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G
Ana Maria Colling
Losandro Antonio Tedeschi
(Organizadores)

Gg
g Dicionário Crítico de

ênero
Prefácio
Michelle Perrot

2a Edição

2019
Gestão 2015-2019
Universidade Federal da Grande Dourados
Reitora: Liane Maria Calarge
Vice-Reitor: Marcio Eduardo de Barros

Equipe EdUFGD
Coordenação editorial: Rodrigo Garófallo Garcia
Divisão de administração e inanças: Givaldo Ramos da Silva Filho
Divisão de editoração: Cynara Almeida Amaral,
Raquel Correia de Oliveira e Wanessa Gonçalves Silva
e-mail: editora@ufgd.edu.br
A presente obra foi aprovada de acordo com a
Resolução do Conselho Editorial n. 15/2017, de 17/11/2017.
Conselho editorial:
Rodrigo Garófallo Garcia
Marcio Eduardo de Barros
Fabiano Coelho
Clandio Favarini Ruviaro
Gicelma da Fonseca Chacarosqui Torchi
Rogério Silva Pereira
Eliane Souza de Carvalho
Editora iliada à

A revisão textual e a normalização bibliográica deste livro


são de responsabilidade de seus organizadores.
Projeto gráico e capa: Marise Massen Frainer
Impressão e acabamento: Gráica Pallotti
Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação das opiniões expressas neste livro, as
quais não são necessariamente as mesmas da UNESCO e não comprometem a organização.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).

D546 Dicionário crítico de gênero / Ana Maria Colling, Losandro Antônio


Tedeschi, org. ; prefácio [de] Michelle Perrot. – 2.ed. – Dourados, MS :
Ed. Universidade Federal da Grande Dourados, 2019.
748 p.
Textos em português e espanhol
Disponível em pdf no catálogo da editora:
https://www.ufgd.edu.br/setor/editora/catalogo.
ISBN 978-85-8147-155-6 (versão impressa)
1. Papel sexual – Dicionários. 2. Sexismo – Dicionários. I. Colling, Ana
Maria. II. Tedeschi, Losandro Antônio. III. Perrot, Michelle.

CDD 23. ed.- 305.303


Ficha catalográica elaborada pela Biblioteca Central – UFGD, em conformidade com a Res. n. 184 do
Conselho Federal de Biblioteconomia (CFB)
Maria Isabel Soares Feitosa – CRB1-1571
©Todos os direitos reservados. Permitida a publicação parcial desde que citada a fonte.
SUMÁRIO

Prefácio, 11 Ciência, 109

Agradecimentos, 15 Cinema, 112

Apresentação, 17 Ciudadanía, 115

A Clio, 120

Aborto, 21 Clitóris, 125

Acoso sexual (en el trabajo), 26 Condição Feminina, 130

Adultério, 30 Condorcet - Educação da mulher, 133

AIDS, 34 Conhecimento, 138

Alteridade, 39 Corpo, 141

Amor Cortês, 41 Culto Mariano, 144

Anatomia, 46 Cultura Visual, 147

Androginia, 49 D
Aprendizaje, infancia y género, 52 Daltro, Leolinda, 151

Aristóteles, 62 Derrida, Jacques (desconstrução,

B diférance), 154

Beauvoir, Simone, 68 Desigualdade, 159

Beleza e gênero, 74 Diferença/Diferencia, 162

Biorelexividade narrativa, 80 Direitos Humanos, 165

Bourdieu e a dominação masculina, 83 Direitos sexuais e reprodutivos, 173

Bruxas/Feitiçaria, 87 Divórcio, 177

Butler, Judith, 91 Docência e gênero, 181

C E
Capitalismo Gore, 96 Economia solidária, 188

Castração, 99 Educação, 192

Cérebro, 104 Educação Popular, 195

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Entendido, 200 G
Epistemologia feminista, 203 Galeno e Hipocrates, 323
Escravidão, 208 Garçonne, 326
Escrita Feminina, 213 Gênero, 330

Esporte, 218 Gênero e Cinema, 333

Essencialismo, 222 Geograia Feminista, 339

Estereótipos, 226 Geração, 343

Etnia, 231 Gouges, Olympe de, 345

Eugenia, 236 Gravidez, 347

F H
Higienismo, 352
Família, 240
(Nova) História
Feminicídio, 245
Cultural, 355
Feminilidade/Feminino, 248
História das mentalidades, 360
Feminismo-Feminismos, 251
História das mulheres, 367
Feminismo Negro, 255
História oral e as mulheres, 372
Feminismo Pos/decolonial, 260
Historiograia e gênero, 379
Filosoia da diferença, 267
Homoafetividade, uniões homoafetivas, 383
Filosoia Feminista, 272
Homoerotismo, 388
Flora Tristán, 276
Homofobia, heterossexismo,
Fotograia e gênero, 282 heterossexualidade compulsória,
Foucault e as mulheres, 290 heteronormatividade, 390
Freire e a condição das mulheres, 294 Homossexualidade, 395
Freiras e religiosas – as mulheres Honra, 400

consagradas, 299 Humor Feminista, 405

Freud, Sigismund, 308 I


Friedan, Betty, 311 Identidade, 409

Fronteira e fronteiriços(as), 315 Imprensa Feminista, 413

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Infância, 418 Misoginia, 515

Inter/multiculturalidade; Montagem, 518

inter/multiculturalismo, 423 Movimentos Feministas, 522

Interseccionalidad, 427 Mujeres Árabes, 527

J Mulher e Guerra, 532

Julia Lopes de Almeida, 434 Mulheres indígenas, mulheres

L ameríndias, 536

La Barre, Poulain de – a educação da Mulheres Judias, 540

mulher, 439 Mulheres Migrantes, 545

Lacan, Jacques, 444 Mulheres surdas, 550

LGBT, 448 N
Lilith/Eva, 452 Natureza/naturalização, 554

Literatura Feminina, 457 Ninfomania, 558

Loucura, 461 Nísia Floresta, 561

Lutz, Bertha, 466 O


M ONU, 565

Manuais de civilidade / P
comportamento, 471 Palavras - Silêncio, 571

Maria Lacerda de Moura, 476 Paterfamilias, 573

Marianismo, 481 Patriarcado, 578

Marxismo, 485 Pecado Original, 582

Masculino/Masculinidade, 489 Perrot, Michelle, 587

Maternidade, 495 Pizan, Christine, 590

Matriarcado, 500 Platão e a natureza feminina, 596

Memória, 504 Poder (Poder/Saber), 600

Menstruação, 508 Políticas Feministas, 604

Miedo, 510 Poscolonialismo: Caribe Poscolonial, 608

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Pós-Feminismo, 614 V
Prostituição, 617
Violência de Gênero/Intolerância, 715
Q Virgem Maria, 718
Queer, Teoría, 625
Viuvez, viúvas, 724
R Voto feminino, 731
Relações de Gênero, 630
W
Relações Internacionais e Gênero, 634
Woolf, Virginia, 736
Representação, 639
Wollstonecraft, Mary, 740
Resiliência, 643
Índice de autores, 743
Resistência, 647

Rousseau, Jean Jacques, 651


Rubin, Gayle, 654

S
Salud Feminina, 659
Scott, Joan, 662

Sexo/Sexismo, 666

Sexualidade, 669
Subjetividade, 672

Sufragismo/Sufragetes, 676

T
Teologia Feminista, 681

Teoria Crítica, 686

Teoría uterina/Parteras, 693


Trabalhadoras rurais, 699

Trabalho, 704

Trabalho feminino/proissões
femininas, 708

Transgênero, 712

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PREFÁCIO

Ce Dictionnaire, superbement pensé, documenté, organisé, atteste de la


vitalité et du développement des recherches sur les femmes et le genre dans le
monde ibérique et latino-américain, dont le Brésil est un phare. Car c’est une
initiative brésilienne dont il faut féliciter les coordinateurs, Ana Maria Colling et
Losandro Antonio Tedeschi, tous deux enseignants-chercheurs à l’UFGD (Uni-
versité fédérale de Grande Dourados, Matto Grosso do Sul), université engagée
depuis de nombreuses années dans les programmes « Femmes/Genre », avec
une perspective pluridisciplinaire très sensible dans le Dictionnaire, ouvert aux
multiples facettes des sciences humaines.
Ils ont suscité, recueilli et ordonné une matière foisonnante autour de
deux axes majeurs: les personnes qui, par leur écriture, leur pensée, leur action
ont contribué au développement de ce champ; d’autre part, les notions qui le
structurent. D’un côté, Simone de Beauvoir, Poulain de la Barre, Pierre Bourdieu,
Judith Butler, Michel Foucault, ou Bertha Lutz. De l’autre, Aborto, Aids, Clitoris,
Histeria, Homofobia, Lesbianismo, Pecado original… Les articles proposent des
analyses approfondies autour du prisme du genre. Par exemple, la notice ( Marga-
reth Rago) consacrée à Michel Foucault traite non pas de l’œuvre du philosophe,
mais de son apport, parfois controversé, à l’histoire des femmes et à celle de la
sexualité.
Ces données sont classées dans l’ordre alphabétique des entrées 156 au-
teurs ont rédigé plus de 162 notices. Cela représente un conluent de recherches
et d’écritures qui aboutit à ce leuve, à cette somme unique, nécessaire, utile, qui
a valeur de manifeste et suscite l’admiration.
Après le silence obscur du laboratoire, vient la synthèse en pleine lumière.
Voici, mis à la disposition du plus grand nombre, un demi – siècle de rélexions et
de recherches sur l’histoire des femmes, les relations entre les sexes, leur différen-
ce, les sexualités, le genre.Témoin des progrès accomplis, des découvertes qui ont
changé nos conduites et peut-être nos vies par les chemins de liberté qu’ouvre
la connaissance, ce Dictionnaire pionnier, original, désormais indispensable ins-
trument de travail, fait le point de nos savoirs et nous incite à poursuivre.

Michelle Perrot

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Este dicionário, muito bem pensado, documentado, organizado, atesta a


vitalidade e o desenvolvimento da pesquisa sobre mulheres e gênero no mundo
ibero e latino-americano, do qual o Brasil é um farol. Esta iniciativa brasileira
deve-se aos coordenadores, Ana Maria Colling e Losandro Antonio Tedeschi,
professores da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados, Mato Gros-
so do Sul ), universidade engajada há muitos anos em programas sobre “Mulhe-
res/gênero”, numa perspectiva multidisciplinar visível no dicionário, aberta às
múltiplas faces das ciências humanas.
Os organizadores criaram, coletaram e ordenaram um material abundan-
te em torno de dois eixos principais: intelectuais que, através da sua escrita, seu
pensamento e suas ações, contribuíram para o desenvolvimento deste campo; e
os conceitos por eles analisados . Por um lado, Simone de Beauvoir, Poulain de la
Barre, Pierre Bourdieu , Judith Butler, Michel Foucault, Bertha Lutz... Por outro,
Aborto , Aids, Clitóris, Histeria, Homofobia, Lesbianismo, Pecado Original... Os
textos oferecem análises aprofundadas sob o prisma de gênero. Por exemplo,
o verbete (Margareth Rago) dedicado a Michel Foucault não trata somente da
obra do ilósofo, mas da sua contribuição, por vezes controversa, à história das
mulheres e da sexualidade.
Os verbetes são classiicados em ordem alfabética. 156 autores escreve-
ram 162 verbetes. Isto representa uma conluência de pesquisa e escrita que ca-
minha em sentido único, necessário, útil, que se manifesta em valor, provocando
admiração.
Após o silêncio escuro do laboratório vem a síntese em plena luz. Eis
aqui, disponível a todos, meio século de relexão e pesquisa sobre a história das
mulheres, as relações entre os sexos, sua diferença, as sexualidades, o gênero.
Testemunha dos progressos alcançados, das descobertas que mudaram nosso
comportamento e talvez nossas vidas, pelos caminhos de liberdade que o co-
nhecimento abre, este Dicionário, pioneiro, original, doravante ferramenta in-
dispensável de trabalho, é um registro dos nossos saberes e um incentivo a
continuar.

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Este diccionario, magniicamente pensado, documentado y organizado,


muestra la vitalidad y el desarrollo de la investigación sobre mujeres y género
en el mundo ibérico y latinoamericano, del cual Brasil es un faro. Esta iniciativa
brasileña se debe a los coordinadores Ana Maria Colling y Losandro Antonio
Tedeschi, profesores de la UFGD (Universidad Federal de Grande Dourados,
Mato Grosso do Sul), universidad comprometida con programas sobre “Mu-
jeres/Género”, desde una perspectiva multidisciplinaria, abierta a las múltiples
caras de las ciencias humanas.
Los organizadores crearon, colectaron y ordenaron abundante material
al rededor de dos ejes: los intelectuales que a través de su texto, su pensamiento
y sus acciones contribuyeron para el desarrollo de ese campo; y, por otro, los
conceptos por ellos analizados. Por un lado, Simone de Beauvoir, Poulain de la
Barre, Pierre Bourdieu , Judith Butler, Michel Foucault, Bertha Lutz… Por otro,
Aborto, SIDA, Clítoris, Histeria, Homofobia, Lesbianismo, Pecado Original…
Los textos ofrecen análisis profundos bajo el prisma de género. Por ejemplo, el
verbete (Margareth Rago) dedicado a Michel Foucault no trata solamente de la
obra del ilósofo, pero su contribución, a veces controvertida, a la historia de las
mujeres y de la sexualidad.
Las entradas del diccionario son presentadas en orden alfabético. 156 au-
tores escribieron 162 entradas. Eso representa una conluencia de investigaciones
y escritos que resulta en ese rio, en ese montante único, necesario, útil, lo cual
tiene un valor obvio y que provoca la admiración.
Después del silencio oscuro del laboratorio, viene la síntesis a plena luz.
Aquí esta, disponible a un gran numero de personas, la mitad de un siglo de
relexiones e investigaciones sobre la historia de las mujeres, las relaciones entre
los sexos, sus diferencias, las sexualidades, el género. Testigo de los progresos
realizados, de las descubiertas que cambiaron nuestro comportamiento, y quizás
nuestras vidas, por los caminos de libertad que se abren del conocimiento, este
Diccionario pionero, original, de aquí en adelante indispensable instrumento de
trabajo, es un balance de nuestros saberes y un aliento a continuar.

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AGRADECIMENTOS

Realizar uma obra coletiva como este Dicionário Crítico de Gênero, que
reúne escritoras e escritores de vários países, só foi possível pelo desprendimento
destas intelectuais que vislumbraram neste trabalho a visibilidade e a consolida-
ção de uma área extremamente profícua e necessária no mundo acadêmico. Nos-
sa primeira intenção ao organizar este Dicionário Crítico de Gênero, que reúne
intelectuais das mais diversas áreas do conhecimento, para além dos muros da
História, é de que ele possa ser uma ferramenta útil de pesquisa e uma alavanca
para outros projetos.
Portanto, os primeiros agradecimentos são para estas e estes amáveis co-
legas sem o qual esta obra não seria possível. Em segundo lugar, à Universidade
Federal da Grande Dourados - UFGD, através de sua editora, pelo seu apoio
nessa 2ª edição.
Um agradecimento especial à historiadora Michelle Perrot. Intelectual e
feminista de imensa importância para quem trabalha com história das mulheres
e das relações de gênero e profundamente comprometida com a democratização
da História. Com gentileza, desprendimento e simpatia, prerrogativa das grandes,
através de suas palavras, deu seu apoio, valorização e reconhecimento ao Dicio-
nário Crítico de Gênero.
E por im, ao público leitor, às autoras e autores, nosso carinho especial e
agradecimento nessa 2ª edição.

Ana Maria Colling


Losandro Antonio Tedeschi
Organizadores

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APRESENTAÇÃO

O “Dicionário Crítico de Gênero” partiu do entendimento de que era ne-


cessário reunir numa obra o conjunto de vocábulos de referencial crítico, assim
como aqueles termos que permitem um tratamento problematizador do universo
dos estudos de gênero, mulheres, masculinidades e sexualidades. A iniciativa foi
possível pelo apoio da UFGD e da existência de um Laboratório de Estudos de
Gênero, História e Interculturalidade (LEGHI), e da Cátedra/UNESCO – Di-
versidade cultural, Gênero e Fronteiras alojados nesta universidade.
Agora em uma segunda edição, com a responsabilidade desta obra ter sido
agraciada em 1º lugar com o prêmio nacional da ABEU (Associação Brasileira de
Editoras Universitárias) 2016, na categoria Ciências Humanas, a obra é revista e
novos verbetes são incorporados.
Nestes tempos sombrios em que a categoria de análise de gênero é, em
muitos espaços, especialmente política e religiosa, demonizada, escrever sobre
esta temática revela-se um trabalho de responsabilidade social. Temos a certeza
de que muitos e muitas que se arvoram em críticas, desconhecem seu verdadeiro
sentido. Como combater, por exemplo, a violência contra a mulher e os homos-
sexuais, chaga mundial, se não conhecermos a história do desprezo ao corpo
feminino?
Joan Scott, uma das criadoras da categoria de análise “gênero”, na década
de 80, através de seu paradigmático texto Gênero: uma categoria útil de análise histórica,
proporcionou um novo universo linguístico-conceitual, transdisciplinar, amplian-
do o debate epistemológico no conjunto da comunidade acadêmica. Scott, atenta
ao movimento conservador que assola o Ocidente, e não somente o Brasil, rei-
tera a importância do conceito gênero, transformado em uma questão política.
Como a categoria de análise de gênero pressupõe a incorporação de ou-
tros tantos conceitos e de diversas autoras/es que historicamente auxiliaram as
análises, a proposta deste dicionário é de se apresentar como uma obra plural,
que tem a pretensão de visualizar as diferenças de interpretações.

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Michele Perrot, reconhecida historiadora francesa e coordenadora junta-
mente com Georges Duby da já clássica obra em 5 volumes A História das Mu-
lheres no Ocidente, enumera os três movimentos que contribuíram para a chegada
das mulheres na História; não somente elas, mas todos os demais sujeitos sub-
sumidos pelo discurso moderno. Perrot destaca como importantes: a crise dos
grandes paradigmas como o positivismo e o marxismo; a explosão da História
com a Nova História (história em migalhas); e a demanda social com o movi-
mento feminista. (PERROT. Michele. As mulheres e os silêncios da História. Bauru/
SP, EDUSC, 2005).
O positivismo centrava sua análise na história política, privilegiando as
fontes diplomáticas e militares, uma história de guerras e batalhas onde as mu-
lheres não apareciam; o marxismo, referencial teórico marcante na historiograia
ainda hoje, não deu importância para as contradições entre homens e mulheres
ou para as questões femininas, porque as contradições de classe e os seus em-
bates eram a questão de fundo. Segundo eles, as discussões sobre sexualidade,
relações de poder entre homens e mulheres seriam resolvidas após a revolução.
A explosão dos conceitos como igualdade e liberdade trazida pela história
das mulheres e das relações de gênero e poder permitiu uma releitura do passado,
uma prestação de contas entre memória e história. A noção de gênero obrigou a
repensar a visão androcêntrica e colonialista da historiograia e apontou possibi-
lidades de novas explicações da sociedade e da história, que exigiu a consideração
de todos os sujeitos implicados nela. Por este motivo, muitas/os historiadoras/os
têm utilizado a categoria de gênero em suas análises, como metáfora de sujeitos
invisibilizados pela história única.
As autoras e os autores dos verbetes apresentados neste dicionário fo-
ram escolhidos por nós, organizadores, por serem intelectuais envolvidos com
as questões de gênero e reconhecidos no meio acadêmico pelas suas produções
nesta área. São intelectuais das mais variadas universidades brasileiras, latino-a-
mericanas e europeias, de diversas áreas de pensamento alojadas no campo das
Ciências Humanas e Sociais.
O dicionário não é bilíngue, mas editado em português e espanhol numa
tentativa de respeito à escrita de cada um e cada uma, optando por publicar os
verbetes no idioma de seus autores.
Em 1988, Michele Perrot indagava: “é possível uma história de mulheres?”,
porque tão longe quanto nosso olhar histórico alcança vê-se apenas a dominação

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masculina. Como então elas poderiam pensar sua história? Esta pergunta ainda
nos desacomoda. A história das mulheres é uma história diferente, é uma nova
história ou é uma outra história? Ainda achamos que incluir as mulheres no relato
histórico não signiica incluir a metade da humanidade, mas um ato que afeta a
humanidade em seu conjunto? Como transformar a cultura que aprendeu como
verdade a desqualiicação do feminino?
Certamente muitos dicionários sobre as relações de gênero ainda serão
editados, especialmente levando em consideração ser esta área temática ainda
nova, prenhe de signiicações e estudos, mas, de nossa parte, nos consideramos
felizes em poder contribuir, neste momento histórico, com este empreendimento
que nos deu tanto prazer em organizar, especialmente por ser uma obra coletiva.

Ana Maria Colling


Losandro Antônio Tedeschi
Organizadores.

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Aborto

A prática de expelir do corpo hu-


mano o resultado do encontro entre o
óvulo e o espermatozoide é polêmica.
Trata-se de uma prática, ainda que secu-
lar, dominada, em grande medida, pela
moral cristã. É, no Brasil, criminalizada,
um crime contra o feto.
No Brasil, o Código Penal de
1940, decreto-lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940, nos Artigos 124, 125
e 126, a prática da interrupção da ges-
tação é considerada crime quando pra-
ticado por uma mulher gestante, a seu
pedido e/ou sem o consentimento da
gestante. Este Código Penal vigente, de
1940, permite o aborto nas situações de
gravidez em que há risco de morte para
a mulher e em caso de estupro.
Em 2012, o Supremo Tribunal
Federal aprovou a terceira situação na
qual o aborto não é considerado crime
no país: quando o feto é anencéfalo/in-
viável. Nestas situações de abortamen-
to previstas é necessária a autorização
da Justiça e a realização da interrupção
da gravidez. Ainda, em caso de estupro
comprovado é autorizado o abortamen-
to.
Este é um campo minado, que,
como airma Danielle Ardaillon (1997),
surge como situações-limite no cenário
público, marcadas polêmicas e divergên-
cias. Falar abertamente sobre aborto é
enfrentar as políticas de controle sobre
o corpo feminino. Esta política ao do-

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minar, determinar e disciplinarizar os “por um lado, fortalecer a agenda na-
corpos com úteros impõe a gravidez cional de pesquisas sobre aborto, or-
como realização e, ao contrário, a in- ganizando o conhecimento disperso, e,
terrupção como a condenação moral e por outro, aproximar o debate políti-
legal. co da produção acadêmica brasileira.”
É neste terreno de lutas que se (DINIZ, 2008, p.5.). Por meio desta
dá a produção de conhecimentos his- pesquisa, a autora recuperou “2.135
tóricos sobre as práticas de aborto. É, fontes em Língua Portuguesa, publica-
sem dúvida, uma escrita comprometida das por autores, periódicos e editoras
com a relexão nos campos das éticas nacionais ou estrangeiros.” (DINIZ,
e das morais em sua díade com as lutas 2008, p. 8). E realizou estudo de 398
por conquistas de direitos humanos no fontes que apresentavam pesquisas
que diz respeito a autonomia sobre o empíricas sobre aborto.
próprio corpo. Uma história que, no Este importante levantamento
dizer da ilosofa Jeanne Marie Gagne- demonstra, como conclui a antropó-
bim (2006, p. 57), “consegue ouvir a loga Debora Diniz (2008), a relevância
narração insuportável do outro e que do tema aborto nas pesquisa realizadas
aceita que suas palavras levem adiante, no Brasil a partir da década de 1980,
como num revezamento, a história do sendo “um forte indício da importân-
outro”. cia do tema para a saúde pública no
Entretanto, os movimentos fe- País. Grande parte das publicações é
ministas em prol dos direitos sexuais de ensaios, artigos de opinião e peças
e reprodutivos das mulheres, ao fazer argumentativas. (...) Os estudos com
frente a criminalização e a moralização evidências são quase todos relativos
da interrupção da gestação, defendem ao campo da Saúde Pública.” (DINIZ,
a livre decisão das mulheres sobre seu 2008, p. 7).
próprio corpo; e vão além, lutam pela “O aborto é uma questão de
descriminalização do aborto no Brasil saúde pública.”, airma DINIZ (2008,
e pela vida das mulheres que decidem p. 7), para esta estudiosa, a solidez des-
pelo procedimento abortivo. te entendimento implica em “enfrentar
Em 2008, a antropóloga Debora com seriedade esse fenômeno signiica
Diniz (2008) publicou o livro “Aborto entendê-lo como uma questão de cui-
e saúde pública: 20 anos de pesquisas dados em saúde e direitos humanos, e
no Brasil” que sistematiza duas déca- não como um ato de infração moral de
das de publicações sobre o tema do mulheres levianas.” (DINIZ, 2008, p.
aborto no Brasil. A autora objetivava 7).

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Com fontes de dados das inter- e de política pública ligada ao plane-
nações por abortamento no Serviço de jamento familiar, enquanto o aborto
Informações Hospitalares do Sistema permaneceu inscrito nos registros da
Único de Saúde estima-se que foram criminalidade e da moral religiosa.”
1.054.242 abortos induzidos em 2005. (DINIZ, 2012, p. 315).
A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) Conquanto a recorrência da
realizada em 2010 mostra que uma em prática do aborto, as discussões sobre
cada cindo mulheres, com quarenta aborto no Brasil surgiram dentro do
anos de idade, havia realizado ao me- movimento feminista em meio às re-
nos um aborto, utilizando como méto- sistências à ditadura civil-militar. Nes-
do abortivo o Citotec. Já as mulheres te contexto brasileiro, segundo Leila
com idade superior a quarentas anos Barsted (1992, p. 107), “tanto as ques-
airmaram que recorram as clínicas tões do feminismo, quanto a questão
clandestinas. especíica do aborto eram, ainda, temas
Entretanto, há estimativas alar- considerados transplantados de outros
mantes sobre o número de aborto contextos sociais.”, especiicamente
ilegais que vem à tona quase sempre das sociedades capitalistas modernas
quando há óbitos de mulheres em e desenvolvidas do hemisfério norte,
função de terem realizado aborto em onde o feminismo tinha o direito ao
clínicas clandestinas ou quando mulhe- aborto como “reconhecimento do di-
res vítimas de estupro lutam por auto- reito à autonomia individual e como
rização para realização do procedimen- contestação ao poder do Estado em le-
to autorizado pela Justiça Brasileira em gislar sobre questões da intimidade do
Hospitais credenciados. indivíduo.” (BARSTED 1992, p. 107)
Apesar dos altos índices de Para Leila Barsted (1992), é de
abortamento, amplamente denuncia- forma tímida que a questão do aborto,
do pelos movimentos feministas, e enquanto tema político, surgem publi-
da urgência da efetivação dos direitos camente no Brasil dentro da agenda
sexuais e reprodutivos das mulheres, política do feminismo. Nos anos 1970,
propalados pelo movimento feminis- em que pesem “as contradições do
ta dos anos 1990 por meio do slogan movimento na deinição de uma iden-
“Nosso Corpo nos Pertence”, da re- tidade” (BARSTED, 1992, p. 110) o
volução dos contraceptivos orais nos Centro da Mulher Brasileira, em 1978,
anos 1960, com autorização e desauto- e “lançou um manifesto reivindicando
rização quanto aos cuidados reproduti- espaço para os temas-tabu, dentre eles
vos, “a concepção passou a ser discu- as questões da sexualidade e do abor-
tida como uma questão de biomédica to.” (BARSTED, 1992, p. 110)

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Apesar desta reinvindicação, produção “O Fim do Silêncio” (2008),
para Joana Maria Pedro (2003, p. 254), dirigido por Thereza Jessouroun, cria-
“no Brasil, contudo, o movimento fe- se issuras no mutismo em torno da
minista não teve participação direta prática. No Documentário “O Fim
na liberação dos contraceptivos para do Silêncio”, publicação da Editora
o uso. A ditadura militar, iniciada em Fiocruz, ao longo de cinquenta e dois
1964, impediu qualquer manifestação minutos mulheres, de diferentes idades
popular, assim como reuniões, asso- e moradoras de diversos estados bra-
ciações, debates”. Entretanto, segundo sileiros contam como, quando e por
Pedro, jornais e revistas noticiaram e que decidiram interromper a gravidez.
divulgaram o contraceptivo ENOVID, São palavras, quase que confessadas à
pílula anticoncepcional cujo comércio câmera e a pesquisadora/produtora do
teve início no Brasil em 1962, após ter documentário. São palavras que desve-
sido aprovado em 1960 Estados Uni- lam cortinas de silêncio sobre o corpo
dos pelo FDA — Food and Drug Ad- da mulher; são palavras de coragem de
ministration, atrelado à alarmes sobre verdades de mulheres que apesar dos
superpopulação na América Latina. estigmas decidiram falar, contar, narrar
(PEDRO, 2003) e questionar os controles sobre o cor-
Nos anos 1980, com a demo- po feminino.
cratização política do Brasil, o Movi- Ousaram negar-se enquanto
mento Feminista, assumi publicamente corpo reprodutor, ação tida como pe-
a questão do aborto. Sendo objeto de cado e subversão aos olhos da moral
estudos, publicações e mobilizações religiosa; crime aos olhos cegos do
das organizações feministas. No iní- Código Penal Brasileiro, e de enfren-
cio dos anos 1990 “dentre as ações do tamento para os movimentos feminis-
movimento de mulheres pelo direito tas em prol das descriminalização do
ao aborto destacam-se as pressões so- aborto.
bre as diversas câmaras municipais, em Para Leila Barsted (1992, p.
particular nas capitais dos estados, para 104), o direito ao aborto “se constitui
fazer incluir, nas leis orgânicas dos mu- na expressão mais radical da liberdade
nicípios, o direito ao atendimento nos do cidadão perante o Estado.” Apesar
serviços públicos de saúde, nos casos do “manto de silêncio e tabu”, na Mar-
de aborto previstos em lei.” (BARS- cha Mundial das Mulheres, em 2013,
TED, 1992, p. 125). cartazes airmavam: “Eu aborto, tu
Diante de histórias sobre a prá- abortas, somos todas Clandestinas”,
tica do aborto, atualmente, contadas e em clara postura de contestação aos
registradas em documentários como a silêncios em torno do aborto e ruptu-

• 24 •
ra com a moral que pedagogiza a ver- rasgos nos corpos femininos frente à
gonha, o medo, a culpa, o silêncio e a biopolítica patriarcal. Enfrentam como
morte para as mulheres que decidem foi e tem sido as lutas incessantes pelo
sobre seu corpo na contramão das in- domínio do próprio corpo e pelas vi-
gerências do Código Penal Brasileiro e das das mulheres, que não se querem
da moral vigentes. nem pecadoras, nem criminosas, nem
Ademais, no 5° Encontro Fe- clandestinas nem mortas no Brasil; se
minista Latino-Americano e Cariben- querem vivas e donas de si.
ho, realizado no ano de 1999, em Juan
Dolio, na República Dominicana ins- Paula Faustino Sampaio
tituiu-se o 28 de setembro como dia
Latino-Americano e Caribenho pela Referências e sugestões de leitura
Descriminalização do Aborto. Somen-
ARDAILLON, Danielle. Cidadania de corpo inteiro:
te em dois países latino-americanos e discursos sobre o aborto em número e gênero. São Paulo,
caribenhos: Cuba e Uruguai, o aborto 1997. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de
São Paulo.
foi legalizado. Ainda, a Cidade do Mé-
BASTED, Leila. Legalização e descriminalização do abor-
xico legalizou o aborto em 2007, mas to no Brasil: 10 anos de luta feminista. Revista Estudos
no restante do México, o aborto é cri- Feministas. Rio de Janeiro,v.0, n.2, p. 104-130, 1992.
me. DINIZ, Debora. Aborto e Saúde Pública no Brasil. Ca-
Para Debora Diniz, “O tema dernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 9, p.
1992-1993, set. 2007.
do aborto se cruza com o com o do
planejamento reprodutivo, mas prin- ______. Três Gerações de Mulheres. In: PINSKY, Carla
Bassanezi.; PEDRO, Joana Maria. (Orgs.) Nova História
cipalmente com ideais sociais sobre das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012. p.331-332.
a maternidade e o feminino. Mas, di-
GAGNEBIN. Jean Marie. Lembrar, escrever, esquecer.
ferentemente de outras mudanças no São Paulo: Ed. 34, 2006.
campo reprodutivo, como as tecnolo-
PEDRO, Joana Maria (Org.) Práticas proibidas: práticas
gias reprodutivas ou a pílula do dia se- costumeiras de aborto e infanticídio no século XX. Flo-
guinte, o aborto se mantém escondido rianópolis: Cidade Futura, 2003.

sob um manto de silêncio e tabu” (DI- ______. A experiência com contraceptivos no Brasil:
NIZ, 2012, p. 323.). uma questão de geração. Revista Brasileira de História.
São Paulo, v. 23, nº 45, p. 239-260 – 2003.
Os estudos e as lutas dos mo-
PERROT, Michelle. Os silêncios do corpo da mulher. In:
vimentos feministas sobre aborto no
MATOS, Maria Izilda Santos de.; SOIHET, Rachel. São
Brasil são issuras no “pesado silên- Paulo: Editora UNESP, 2003. p.13-41.
cio sobre o corpo da mulher” (PE- PITANGUY, Jacqueline. O Movimento Nacional e In-
RROT, 2003, p. 18). São escritas que ternacional de Saúde e Direitos Reprodutivos In:GIF-
FIN, Karen (Org.) Questões da saúde reprodutiva. Rio
evidenciam as experiências de mulhe- de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.
res. Mostram como se deu e se dão os

• 25 •
• problema social mundial por parte del
movimiento feminista y sindical.
Acoso sexual (en el trabajo) Desde el momento en el que las
feministas de la Universidad de Cornell
Inicialmente la lucha contra el en EEUU llamaron, allá por los seten-
acoso sexual laboral se coniguraba de ta, a esta violencia sexual harassment
manera casi exclusiva como una con- (1), hasta la actualidad se han elabora-
culcación de la dignidad humana. Se do gran número de instrumentos jurí-
entiende la misma como el marco en el dicos, además del protomarco anterior;
que se desarrollan el resto de derechos que han ido conformando su concep-
fundamentales entre los que destacan to, así como su necesaria prevención.
el derecho a la intimidad, la integridad En el caso español la conigu-
física, la integridad psíquica, la igual- ración del acoso sexual laboral ha ido
dad y la libertad. Dicho planteamiento evolucionando desde sus inicios en el
inicial ha sido completado hasta encu- período franquista hasta la actualidad.
adrarse claramente en el ámbito de la Su coniguración inicial estaba atrave-
discriminación por razón de sexo, en el sada de la moral imperante de la época.
ámbito de las violencias contra las mu- Es decir, tanto en la denominaciones
jeres como vulneración de los derechos empleadas como en las descripciones
humanos. Ello es importante porque de las mismas (enfatizándose claramen-
cuando se habla de violencia de género te la resistencia ante tales conductas) se
no siempre se relacionan con la discri- observa como el bien jurídico protegi-
minación por razón de sexo como me- do fundamental no era la libertad7 se-
xual sino más bien la moral imperante,
dio generador-sustentador. Ni tampo-
la honestidad y la decencia. Esto llevó a
co se establece una relación directa con
una cosiicación ideológica del cuerpo
lo que es una escandalosa vulneración
de las mujeres mediante la cual se con-
de los derechos humanos. Por tanto, en
vierten en las garantes culturales, las
demasiadas ocasiones, se las recluyen
portadoras de valores superiores, pero
en departamentos estancos, que lo que
no en las sujetas afectadas en primera
provocan es el enquistamiento de las
instancia por tales deleznables conduc-
mismas al no emprenderse las necesa- tas. Conforme ha ido avanzando la de-
rias intervenciones correctoras de ca- mocracia y se ha ido incorporando a la
rácter integral. Esta evolución a la que misma una perspectiva feminista y, por
me reiero no es casual, ya que anda ende, de derechos humanos, tales cir-
pareja al hecho de ponerle nombre, así cunstancias se han ido corrigiendo. El
como a su visibilización como grave acoso sexual es un ilícito cuyas notas

• 26 •
características fundamentales son que artículo también se ha procedido a in-
ataca de manera directa al principio cluir el acoso como chantaje sexual, el
de igualdad entre mujeres y hombres. condicionamiento de un derecho o de
Es además discriminatorio por razón una expectativa de derecho a la acep-
de sexo Art. 14 C.E (2); pero también tación de una situación constitutiva de
es un ilícito de carácter pluriofensivo, acoso sexual o de acoso por razón de
ya que afecta a otros bienes jurídicos sexo se considerará también acto de
protegidos como la integridad física o discriminación por razón de sexo (Art.
moral (Art. 15CE), la intimidad perso- 7.4). A su vez, se ha señalado que el
nal (Art. 18CE), la libertad sexual, el mismo es discriminatorio por razón de
derecho a la salud y la seguridad (Art. sexo (Art. 7.3). Reforzándose de mane-
43CE) y el derecho al trabajo (Art. ra fehaciente la defensa ante el acoso
35CE). sexual en el trabajo mediante el Art.
Recientemente en el estado es- 9 LOIEMH relativo a la indemnidad
pañol se ha realizado un paso más en frente a represalias.
el camino de la prevención del acoso Además en relación directa con
sexual laboral mediante la aprobaci- todo lo indicado hasta ahora, se ha de
ón de la Ley Orgánica para la Igual- hacer mención a la Recomendación
dad Efectiva de Mujeres y Hombres 92/131/CEE de la Comisión, de 27 de
de 2007 (LOIEMH) (3). Una ley que noviembre de 1991, relativa a la pro-
tiene como objetivo fundamental ha- tección de la dignidad de la mujer y del
cer real la igualdad de género en todos hombre en el trabajo con su anexo re-
los ámbitos que conforman la socie- lativo al Código práctico encaminado
dad española. Desde dicho marco la a combatir el acoso sexual en el tra-
LOIEMH se ha convertido en el refe- bajo(4) el mismo señala que está cla-
rente fundamental para la caracteriza- ro que para millones de mujeres de la
ción del acoso sexual (en el trabajo) en Comunidad Europea, el acoso sexual
el Estado español. Se deine en el Art. es una parte desagradable e inevitab-
7.1 sin perjuicio de lo establecido en el le de su vida laboral. Además existen
Código Penal, a los efectos de esta Ley una serie de grupos que se ven espe-
constituye acoso sexual cualquier com- cialmente afectados por el acoso sexual
portamiento, verbal o físico, de natu- en el trabajo: las mujeres divorciadas o
raleza sexual que tenga el propósito o separadas, las mujeres jóvenes y las que
produzca el efecto de atentar contra la se incorporan por primera vez al mer-
dignidad de una persona, en particular cado de trabajo, las que tienen contra-
cuando se crea un entorno intimidato- tos laborales precarios o irregulares, las
rio, degradante u ofensivo. En dicho mujeres que desempeñan trabajos no

• 27 •
tradicionales, las mujeres incapacitadas pletos en el imaginario social. Por lo
físicamente, las lesbianas y las mujeres cual se puede airmar que en todos los
de minorías raciales corren un riesgo grupos está presente que son supuesta-
desproporcionado. Los homosexuales mente víctimas más fáciles, porque van
y los hombres jóvenes también son a tener menos mecanismos de defensa.
vulnerables al acoso. Con relación a ta- Ello nos permite apreciar claramente
les grupos se observa que el mismo se cómo las conductas de acoso sexual
ejerce contra personas que en el ima- tienen un fuerte componente de poder
ginario social no tienen poder, básica- mal empleado. Pero no es un poder
mente las mujeres en general, así como único, es decir, de un superior, de un
se agrava en los casos que las mujeres mando, sino que es un poder respal-
están “solas”, entendiendo por muje- dado socialmente a través del sexismo
res “solas” a aquellas que no tienen un social, el cual se iltra en las empresas,
hombre protector al lado. También se porque quienes las forman también
agrava en el caso de las mujeres que en- son integrantes de las sociedades.
tran en el mercado laboral o están en Finalmente es importante re-
sectores muy masculinizados, es decir, marcar que el acoso sexual en el tra-
se ejerce contra aquellas que rompen bajo es una cuestión de poder mal
la norma, salen de su ámbito privado entendido según el cual se reduce a la
o aspiran a ejercer una profesión que otra mediante la dominación. En dicho
en el imaginario social no es de muje- proceso de dominación se entreme-
res. De nuevo se agrava en el caso de zclan justiicaciones vinculadas a las
las personas que no siguen la hetero- creencias de inferioridad (por tanto,
normatividad, o sea, va contra aquellas de desvalor) de lo supuestamente fe-
personas que se permiten el lujo de vi- menino respecto a lo supuestamente
sibilizar su orientación sexual no hete- masculino (con valor o sobrevalor), así
rosexual. También se agrava en el caso como se legitima el control masculi-
de las mujeres diversas funcionalmente no como lo hegemónico y verdadero
o pertenecientes a alguna minoría. En dentro del orden social impuesto. Ade-
estos casos la mayor exposición a di- más dichas justiicaciones en el ámbito
chas conductas viene dado por la so- laboral (aunque no sólo en el mismo)
breacumulación vulnerable, es decir, al se entremezclan con justiicaciones de
hecho de ser mujeres se suma otra cau- carácter clasista en las que, de nuevo,
sa más. En cuanto a las mujeres y los la jerarquía es normalizada como úni-
hombres jóvenes, la razón es la misma, ca forma de organización y de enten-
en mi opinión, ya que no tienen poder. dimiento de las relaciones humanas y,
Unas por ser mujeres y jóvenes y otros por supuesto, del poder y control.
porque todavía no son hombres com-
• 28 •
Además dichas estructuras son transgredir aquello que también deinía
generadoras de violencia; porque son el refrán, a la mujer en su casa nada le
injustas, ya que siempre consideran a pasa. En deinitiva, el acoso sexual en
alguien como no-ser completo. En tal el trabajo es una terrible forma de vio-
incumplitud están todas las mujeres; lencia sexual contra las mujeres por el
pero también todos aquellos hombres simple hecho de serlo; pero la misma
que no se incluyen en dicha única su- se ha venido sustentando en el sexismo
puesta masculinidad hegemónica o que como manera normalizada de organi-
no pertenecen a la clase superior de la zación y relación humana, por lo que
jerarquía establecida. A su vez, tales es- se requieren normas y medidas espe-
tructuras necesitan de la violencia para ciicas contra el acoso sexual en el tra-
poderse imponer, para poder sobrevi- bajo a todos los niveles políticos; pero
vir al inlujo de los derechos humanos también se requiere que la prevención
como nueva justiicación ideológica del mismo se vincule con la erradicaci-
contra todo tipo de justiicaciones ón de tales visiones jerárquicas y dico-
discriminatorias de muchos siglos, de tómicas de lo que se supone somos las
milenios, así como se requiere la vio- mujeres y los hombres, de lo que se su-
lencia también contra la aspiración de pone que es un trabajador y una traba-
alcanzar la ciudadanía plena en todos jadora, de la eliminación de todo tipo
los ámbitos. También en el ámbito la- de discriminaciones e injusticias socia-
boral, por qué no. les, económicas, culturales, políticas,
Ciertamente tales vulneracio- etc. tanto dentro de la empresa como
nes de derechos en el ámbito laboral fuera. En deinitiva del respeto a los
se presentan tanto para hombres como derechos humanos. En cuanto al mal
para mujeres, ya que como comen- ejercicio del poder que se está comen-
ta Tárraga Poveda (5) todavía hoy no tando. Añadir que el mismo se presenta
se tiene muy clara la diferencia entre tanto en el acoso de intercambio como
trabajador y siervo. Es decir, entre un en el acoso ambiental. Porque el mis-
hombre libre y otro que no lo es. Pero mo también tiene un componente de
si la condición de siervo es terrible, a la abuso de autoridad, de mando, porque
condición de sierva se le une la condi- para crear ese ambiente intimidatorio,
ción de sierva sexual, lo cual es central degradado, violento se requiere poder.
en cuanto al acoso sexual en el traba- No siempre el poder ha de ser formal,
jo, ya que la misma no tiene libertad sino también el mismo puede ser in-
al entendérsela como un ser inferior e formal, ¿qué mayor poder de carácter
incompleto. Como un objeto al servi- estructural, sistemático, simbólico, etc.
cio de, como una intrusa que ha osado que el propio orden patriarcal?

• 29 •
Pero entonces, ¿el poder siem- TÁRRAGA POVEDA, J., “Trabajador o siervo. (O, dei-
nitivamente, sobre la vigencia de los derechos fundamen-
pre es malo?, considero que no. Por- tales en la relación de trabajo)”, Aranzadi Social num.
que el poder puede ser ejercido con 16/2003, 200, Pág. 1.

carácter transformador. De hecho, la



evolución que han tenido los derechos
humanos desde su primera promulga-
Adultério
ción, así como la evolución jurídico-ju-
dicial del acoso sexual son un ejemplo Do latim adulteriu, burlar, men-
de empleo del poder para el cambio. tir, trair, engabelar, dar volta, corrom-
Tales planteamientos además han de ir per, que viola a idelidade conjugal;
acompañados de políticas de igualdad prevaricação, união destoante e relação
en todos los ámbitos que conforman à margem do Sacramento matrimonial.
nuestras sociedades. La ciudadanía ple- Diante de uma pluralidade de sentidos,
na se construye en todos, ellos y ellas. signiicados e conceitos o adultério e
suas práticas desenham e traçam iti-
Maria Ángeles Bustamante Ruano nerários instigantes sobre a história da
intimidade e a condição humana. No
Referencias y indicaciones
tocante as relações matrimoniais, adul-
de lectura
tério nomeia o/a cônjuge que manteve
ALEMANY GÓMEZ, A., LUC, V., MOZO GONZÁ- relações sexuais com um/a terceiro/a
LEZ, C., El acoso sexual en los lugares de trabajo, Insti- fora do casamento, ferindo o contrato
tuto de la Mujer- Serie Estudios, nº 70, Madrid, 2001,
Pág. 14. de união civil e/ou religiosa. Em quase
todas as sociedades, o adultério é con-
CONSTITUCIÓN ESPAÑOLA DE 1978. BOE nú-
mero 311 de 29/12/1978, páginas 29313 a 29424 (112 siderado uma grave violação dos deve-
Págs.) English version:http://www.boe.es/aeboe/consul- res da conjugalidade, regidos por leis e
tas/enlaces/documentos/ConstitucionINGLES.pdf
códigos de união conjugal consentidos
LEY ORGÁNICA PARA LA IGUALDAD EFECTI- nos costumes culturais e aprovados
VA DE MUJERES Y HOMBRES. BOE número 71 de
23/3/2007, páginas 12611 a 12645 (35 Págs.). English pelo Estado.
version: http://www.empleo.gob.es/es/igualdad/Docu- O Direito Romano criou a no-
mentos/LEY_ORGANICA_3_2007.pdf
ção de idelidade conjugal e estabele-
RECOMENDACIÓN 92/131/CEE DE LA COMISI- ceu penalidades nas áreas civil e penal,
ÓN, DE 27 DE NOVIEMBRE DE 1991, RELATIVA A
LA PROTECCIÓN DE LA DIGNIDAD DE LA MU- e o ofendido podia fazer justiça com as
JER Y DEL HOMBRE EN EL TRABAJO CON SU próprias mãos, matando a esposa adúl-
ANEXO RELATIVO AL CÓDIGO PRÁCTICO EN-
CAMINADO A COMBATIR EL ACOSO SEXUAL tera, pois considerava o adultério crime
EN EL TRABAJO.http://europa.eu/legislation_summa- contra a autoridade do pater-familias.
ries/employment_and_social_policy/equality_between_
men_and_women/c10917b_es.htm No período medieval, a igreja cristã
fez sacralizar o casamento, dogma que

• 30 •
coninou o erotismo e a sexualidade puritana, onde Hester é condenada a
voltada a reprodução. Na tradição re- viver separada da sociedade por ter co-
ligiosa católica, o adultério era um ata- metido o pecado de adultério.
que ao direito masculino sobre o corpo No Brasil quinhentista, como na
feminino e destruidor do amor conju- América espanhola, os discursos sobre
gal. Era, nos escritos dos Apóstolos, a honra feminina advertia as mulheres
um pecado também do homem: “Eu, casadas para esquivarem-se da prática
porém, vos digo, que qualquer que do adultério. Nas páginas de “Cons-
atentar numa mulher para a cobiçar, já tituições primeiras do arcebispado da
em seu coração cometeu adultério com Bahia alertava-se as mulheres casadas
ela.” (Mateus 5:28). Desde seu início, sobre a prevaricação. “É muito grave,
o cristianismo não admitiu o divórcio e prejudicial à República o crime do
nem a inidelidade conjugal. Tomás de adultério contra a fé do matrimônio, e
Aquino (século XIII) na Summa The- é proibido por Direito canônico, civil
ologica sustentou que dentre os vícios e natural, e assim os que o cometem
mais pecaminosos está o adultério, ou são dignos de exemplar castigo”. De
fornicação fora do matrimônio: a luxú- acordo com a legislação portuguesa
ria era o pior dos pecados. Na lógica vigente no Brasil Colônia (1500-1822),
tomística, a mulher é a fonte do mal, pelas Ordenações Filipinas (1603), o
sedutora e pecadora por excelência, adultério era considerado como falta
recebendo como castigo as dores da grave para ambos os cônjuges e tam-
gestação e do parto, e submeter-se ao bém motivo de separação perpétua
marido. No Islamismo, a punição para pela norma eclesiástica, e preconizava
o adultério pode ser o apedrejamento, a morte da mulher adultera. “E toda
abandono à própria sorte, mutilação
mulher, que izer adultério a seu ma-
do corpo, escárnio público e até mes-
rido, morra por isso”. No século XVII
mo a morte. Embora o Alcorão deina
o padre Manuel Bernardes chamava
também o adúltero masculino, recai
atenção das mulheres sobre os galan-
sobre a mulher o crime de honra. No
teios masculinos, “nada responda, nem
Judaísmo, a prática do adultério era
ainda para se mostrar irada” e na au-
condenada e vista como uma ameaça à
sência prolongada do esposo evitar ir
integridade moral do indivíduo e à pre-
igreja “porque por miséria humana, e
servação de Israel como uma “nação
instigação diabólica, pode suceder, que
sagrada”: “Não cometerás adultério”,
indo a buscar indulgências, traga pe-
e “Não cobiçarás a mulher do próxi-
mo.” (Decálogos). Outras religiões têm cados”; e para se distrair, aconselha o
suas normas e controle, como vemos padre, “Leiam e meditem exemplos de
no ilme A Letra Escarlate, sociedade matronas castas, que antes escolherem

• 31 •
perder a vida, que violar a fé conjugal”. estavam permanentemente sobre ri-
(SILVA, 1984, p. 192-4). No sudeste do goroso controle diante dos discursos
Brasil colonial na tentativa de manter a morais inoculados na teia da sociedade
honra feminina intacta era costume das colonial, onde a prática do adultério as
famílias mais abastadas recolher aos castigava com severidade. Em algumas
conventos da região mulheres conside- regiões do Brasil matava-se em nome
radas mais “afoitas. Poder-se-ia dizer da honra: no norte do Brasil, nos se-
que na sociedade colonial honra, virtu- ringais do Amazonas, o adultério fe-
de, honestidade eram preceitos funda- minino custava à vida da mulher. No
mentais para a mulher e que a prática extremo sul, em Nossa Senhora do
do adultério constituía-se como falta Desterro (hoje Florianópolis) era prá-
grave e sujeitas as punições severas. tica de uma parcela da população, atra-
No século XVIII e XIX os dis- vés da imprensa, chamar atenção dos
cursos moralistas visavam inibir a mu- maridos modernos diante dos namori-
lher adúltera. Segundo Vainfas “a lei cos de suas esposas.
do adultério o cerne da condenação ao A literatura, por sua vez, pro-
concubinato e, neste sentindo, parece duziu imaginários e subjetividades no
mais preocupada com as uniões feitas tocante ao adultério. Lúcio de Men-
à margem da autoridade eclesiástica”, donça, em 1882, publica o romance
ou um pecado diante das leis de Deus e “O marido da adúltera”, onde narra os
uma ofensa à honra feminina. Por isso infortúnios do marido traído e a desen-
[...] as mulheres casadas devem ser for- voltura da adultera nos salões do Brasil
imperial. Na Rússia de Tolstói, “Ana
tes, discretas e prudentes: dentro em
Karênina”, não encontra alternativa a
suas casas, zelosas; fora delas, recata-
não ser o suicídio diante do seu adulté-
das; e em todas as ocasiões, exempla-
rio. E diante da moralidade portuguesa
res; [...]. (VAINFAS, 1986, p. 41-8).
do século XIX, Eça de Queirós, em
O Código Civil Napoleôni-
1875 no romance “O Primo Basílio”,
co (1804), vigente em toda a Europa,
relata o adultério de Luísa consumida
aplicado também no Brasil, obrigava
moralmente nos seus jogos de preva-
a mulher casada a residir no domicílio
ricação. No século XX, Raymond Ra-
do marido e a prestar-lhe obediência.
diguet contempla a sociedade francesa
Conforme este Código, o homem po-
com o romance “Le Diable au corps”
dia solicitar o divórcio sempre que a
onde os personagens para sobrevive-
mulher praticasse adultério, mas a ela rem em adultério dependem cada vez
cabia a solicitação se o adultério tivesse mais do alongamento da guerra. No
sido praticado “com escândalo públi- romance medieval “Tristão e Isolda”,
co”. No Brasil imperial as mulheres para viverem em adultério afrontam

• 32 •
constantemente o rei Marcos e em Os ideais de nação moderna,
muitas ocasiões a adultério ocorria civilizada e moralizada, concernentes
dentro dos aposentos da rainha. a ilosoia Positivista no Brasil após a
A ilosoia oitocentista cons- proclamação da República, faziam re-
truiu um modelo de mulher casta e sob lação entre a honra sexual e a interven-
o jugo de seus maridos, justiicando a ção do Estado; o corpo das mulheres,
inferioridade das mulheres na diferen- encerrado ao espaço privado, era alvo
ça sexual e na sua natureza voltada a de controle médico e aquelas que co-
procriação, destituindo-as da participa- metessem adultério atentavam contra
ção política e da cidadania, portanto, se sua natureza, desonra para os maridos
cometesse adultério, seria falta grave. e a família. A luxúria, pior dos peca-
dos, no século XIX torna-se poderosa
Estas ideias foram transformadas em
doença de caráter venéreo. Nas leis pe-
verdades cientíicas no século XIX,
nais de 1890 e 1932, era punido com
com o advento da privacy e do contro-
prisão para a mulher (3 anos), e para
le mais rígido sobre os corpos: a adul-
o homem quando desviava o sustento
tera é comparada a prostituta porque
da família; já o Código Civil de 1916
não cumpre seu papel de esposa iel,
reairma a subordinação da mulher e
honrada, casta, cordata e submissa, va-
lores importantes para airmação dos representa os desejos da sociedade da
estados nações e na preservação dos época e dos juristas no controle da se-
laços consanguíneos e direito de he- xualidade e do possível comportamen-
rança. Segundo Margarita Ramos, “ca- to desviante das mulheres. Os juristas
bia à mulher, através de sua castidade e julgavam os casos de conlitos sexuais
idelidade, sustentar a legitimidade do privados na defesa da honra sexual,
sangue, já que esse era um fator impor- cujos ideias de civilidade e modernida-
tante para dizer da honorabilidade tan- de acompanham os preceitos de hon-
to de seu pai quanto de seu marido. A ra da família, porquanto, às mulheres
inidelidade feminina era, portanto, pe- cobravam-se prescrições de gênero
rigosa por duas razões: a primeira seria dentro da ilosoia positivista. (CAU-
a desonra do pai ou do marido perante FIELD,2000). Já no Código Penal de
a sociedade e a segunda seria o risco de 1940, o adultério continuava a igurar
essa traição trazer para o seio familiar entre os crimes contra o casamento,
ilhos estranhos, ilegítimos.”(RAMOS, mas a pena de detenção foi equiparada
2012). O Código Penal de 1830 cata- para homens e mulheres.
logou o adultério como crime de segu- Até meados do século XX, a so-
rança do Estado. ciedade brasileira imputava somente a

• 33 •
mulher o crime de adultério, e conside- Referências e sugestões de leitura
rava natural que o homem cometesse
traição; a elas se atribuía o adjetivo de VAINFAS, Ronaldo(org.). História e Sexualidade no Bra-
sil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986.
adúltera. A conduta caracterizadora do
adultério permaneceu até 2002, com a RAMOS, Margarita Danielle. Relexões sobre o processo
histórico-discursivo do uso da legítima defesa da honra
mudança do Código Civil, dado que o no Brasil e a construção das mulheres. Revista Estudos
casamento para o ordenamento jurídi- Feministas, vol.20, n. 1. Florianópolis, Jan./Apr. 2012.

co brasileiro tem como característica, CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade,


por herança cristã, a monogamia. O modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940).
Campinas, SP: Unicamp, 2000.
adultério conigurava dano social “um
dos principais motivos causadores do SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no
Brasil colonial. São Paulo: T. A. Queiroz: Ed. da Univer-
desquite visto como destruidor de fa- sidade de São Paulo, 1984.
mílias” e pelo artigo 240 do Código
DIBIE, Pascal. O quarto de dormir: um estudo etno-
Penal de 1940, era considerado crime; lógico. Tradução Paulo Azevedo Neves da Silva. Rio de
revogado, deixou de permanecer na Janeiro: Globo, 1988.

órbita penal, por entendimento na ju- LIMA, Lana Lage da Gama (org.). Mulheres, adúlteros e
risprudência que não conigura dano padres. Rio de Janeiro, Dois Pontos, 1987.

social. O adultério sempre foi tratado •


com cuidado especial pelos juristas,
motivo de calorosos debates e discur- AIDS
sos, e pauta em todas as legislações de
ordenamento civil e penal no Brasil. AIDS é o acrônimo formado
Em todos os casos, com intuito de pelas inicias da expressão inglesa Ac-
controle dos corpos e da sexualidade quired Immune Deiciency Syndrome
das mulheres, o adultério foi alvo da ou Síndrome da Imunodeiciência Ad-
preocupação de juristas com a manu- quirida (SIDA na versão luso-espanho-
tenção do monopólio conjugal pelos la), usado pela primeira vez em 1982
homens, da honra familiar, e por consi- para designar uma nova “doença”
derado motivo central dos pedidos de constatada no início daquela década. O
separação conjugal. Em palavras inais, uso do acrônimo deve-se a descoberta
o adultério motivou, e ainda motiva, de que AIDS é uma síndrome que ata-
crimes de honra masculina, dadas as ca o sistema imunológico do paciente,
estruturas hierárquicas de gênero ainda decorrente do vírus HIV que pode ser
presentes na sociedade e na cultura. adquirido no uso de seringas com san-
gue contaminado, transfusão de sangue
Antônio Emilio Morga (contaminado) e através de relações se-
Marlene de Fáveri xuais desprotegidas. Conforme Susan

• 34 •
Sontag (2007, p. 90), “estritamente fa- mação de úlceras na pele, conhecidas
lando, o termo AIDS - síndromVe da como Sarcoma de Kaposi, e que vie-
imunodeiciência adquirida- não desig- ram a óbito em menos de 24 meses de
na uma doença, e sim um estado clíni- tratamento. Em julho de 1981 o jornal
co, que tem como consequência todo New York Times publicava a matéria
um espectro de doenças.” que icou conhecida como o primeiro
O sistema imunológico é res- registro sobre a AIDS, intitulada Rare
ponsável pelas defesas do corpo con- cancer seen in 41 homosexual (Câncer
tra outros organismos e sua debilidade raro encontrado em 41 homossexuais).
deixa o paciente exposto a uma série Iniciava-se, assim, uma mórbida as-
de infecções e contaminações de do-
sociação entre o novo e raro tipo de
enças que podem, inclusive, levar a
“câncer” e a homossexualidade, em
óbito. Desde 1983, com o isolamento
especial, masculina. Em 1º de maio de
do vírus HIV por médicos americanos 1983 o mesmo jornal publicou uma
e franceses, pesquisas médicas e far- importante matéria onde noticiava que
macológicas favoreceram o desenvol- a AIDS poderia ser causada por um
vimento de uma série de medicações vírus. Ainda que o acrônimo já fosse
antirretrovirais que, quando associadas corrente no vocabulário médico, esse
(o chamado “coquetel”), impedem a foi o primeiro registro para o grande
proliferação do vírus, mas não conse- público, substituindo o uso de ou-
guem eliminá-lo. Portanto, é possível tros termos com GRID (Gay Related
um controle da AIDS, porém sua cura, Immune Deiciency) ou “câncer gay”,
infelizmente, ainda é uma meta a ser onde se evidenciava pejorativamente a
atingida. incidência da síndrome entre homens
Segundo Gabriel Rotello (1998) homo ou bissexuais.
é bem possível que o vírus HIV já es- As comunidades homossexuais
teja convivendo com a humanidade nos Estados Unidos (ver LGBT), e
há muito tempo, mas foi especialmen- também em outras partes do mundo,
te no inal dos anos 1970 e início dos passaram a sofrer ataques de ordem
anos 1980 que se desenvolveu uma moral e política, em função do aumen-
ecologia propícia para sua prolifera- to dos casos de pacientes com AIDS
ção. Nessa época diagnosticou-se que naquela primeira metade dos anos
1980. Ainda segundo Sontag (2007), a
41 homens homossexuais em Nova
AIDS passou a ser vista como metá-
York e Califórnia, nos Estados Unidos,
fora da própria homossexualidade, ou
apresentavam uma forma “rara de cân-
seja, associada a ideias como perigo,
cer”, cujas características eram a for-
contágio e, mais grave ainda, combate

• 35 •
e, se fosse possível, sua total eliminação Aqui, assim como nos Estados
da sociedade. Nos anos em que Ronald Unidos, os ataques às comunidades
Regan esteve à frente da presidência da homossexuais ganharam força e auto-
República nos Estados Unidos (1981- ridades públicas em São Paulo exigiam
1989) sua base aliada conhecida como o fechamento de espaços de sociabili-
“Nova Direita” era formada pela fusão dade gay, como bares, saunas, casas de
de várias agremiações conservadoras, shows na região do Largo do Arouche
entre elas um grupo de fundamentalis- e cinemas de exibição de ilmes porno-
tas religiosos que se intitulavam “Maio- gráicos.
ria Moral”. Esses grupos combateram Nos Estados Unidos, os índices
a homossexualidade e os direitos ad- de contaminação e óbito evoluíram em
quiridos pelo movimento gay no país, uma trajetória ascendente até meados
em uma cruzada que transformava os da década de oitenta. Com o número
pacientes acometidos pelo HIV em ob- de homossexuais doentes aumentan-
jetos também de outro tipo de ataque, do cada vez mais e lutando para man-
o político-ideológico. Marcelo Secron ter os direitos conquistados ao longo
Bessa airma que nesse contexto se dos anos (além de expandir outros,
pode falar em uma epidemia “discur- como atendimento hospitalar, medi-
siva”, na qual as comunidades homos- cação e auxílio funeral para as pessoas
sexuais se viram sob ataque direto tan- acometidas pelo vírus), organizações
to do vírus HIV quanto de discursos homossexuais americanas passaram
conservadores, nos anos conhecidos a se mobilizar e criar novas redes de
historicamente como os da “epidemia organização. Importantes associações
da AIDS.” como a Gay Men’s Health Crisis, fun-
Ao mesmo tempo, no Brasil, dada em 1982 por Larry Kramer (dra-
em 1983 os jornais noticiavam a morte maturgo, roteirista e ativista gay ameri-
do Markito, “um dos maiores nomes cano), iniciaram campanhas de auxílio
da alta costura do país. Idade: 31 anos. às pessoas com HIV e incentivavam o
Causa Mortis: a então quase desco- uso do preservativo de látex, a camisi-
nhecida e letal AIDS (...) que vinha nha (sic), como forma de conter a pro-
atingindo sobretudo homossexuais do pagação do vírus, ao mesmo tempo em
sexo masculino, nos Estados Unidos e que reairmavam direitos, entre eles, a
Europa. A partir daí, essa doença, con- liberdade sexual. A conscientização de
siderada predominantemente america- líderes dos grupos homossexuais e a
na e rica, invade com sensacionalismo busca de práticas sexuais mais saudá-
os meios de comunicação e o quoti- veis estimularam o uso do preservativo
diano dos homossexuais brasileiros”. entre muitos homens que mantinham
(TREVISAN, 2000, p.429).
• 36 •
relações sexuais com outros homens. síndrome: os comportamentos de ris-
Dessa forma, em função de uma ampla co. Nesse momento a AIDS já não po-
mobilização das redes LGBT no país, deria ser resumida a um determinado
a partir do ano de 1986 começou a se grupo de pessoas (homo ou bissexu-
perceber uma curva decrescente de ais) mas sim a comportamentos e há-
óbitos entre homossexuais, que evo- bitos que poderiam ser mais ou menos
luiu até o inal da década, dando um vulneráveis à infecção. Com tal cresci-
novo caráter ao termo “Orgulho Gay”. mento, outra situação que desaiava os
Esse passou a ser associado, naquele pesquisadores e autoridades médicas
momento histórico, à capacidade de era o crescente número de nascimen-
mobilização e organização das comu- tos de crianças infectadas pelo HIV, i-
nidades homossexuais na contenção lhas de pais aidéticos ou soropositivos
da AIDS. (pessoas infectadas pelo vírus mas que
No Brasil, ao inal da década de não desenvolveram a AIDS).
1980, artistas e intelectuais tornavam Em meados da déca da de 1990,
pública sua condição de portadores a ONU, através da UNAids, fomenta-
do vírus HIV, dando maior visibilida- va a elaboração de políticas públicas e
de à doença e as formas de contágio, programas estatais para conter a propa-
desenvolvimento e, naquele momento, gação do HIV em nível mundial. Nos
às suas letais consequências. A Revista Estados Unidos, as principais ações
Veja, na edição de 26 de junho de 1989 estavam ligadas às organizações sociais
estampava na capa a foto de Cazuza, de apoio a homossexuais, enquanto no
cantor e compositor, já bastante de- Brasil o Departamento de DST/AIDS
bilitado sob a manchete: Uma vítima do Governo Federal (criado em 1986)
da AIDS agoniza em praça pública. ampliava a distribuição gratuita de pre-
Cazuza faleceu poucos meses depois, servativos de látex e de antirretrovirais
em 1990, aos 32 anos de idade, tornan- na rede pública do Sistema Único de
do-se um dos ícones vítimas da AIDS Saúde.
no Brasil.
Nos anos seguintes o que se
O crescimento dos casos de
observou foi a ampliação da AIDS em
AIDS entre heterossexuais no inal
países do continente asiático e africa-
da década de 1980 e início dos anos
no, onde se concentravam, em 2010,
1990 causou preocupação às autori-
mais de dois terços dos 41 milhões de
dades médicas e públicas. Um núme-
portadores do vírus HIV no mundo.
ro crescente de mulheres passou a ser
Estimava-se que aproximadamente
diagnosticadas com o vírus, rompendo
50% dessa população poderia desen-
com a ideia de que aquela era uma do-
volver a doença.
ença “gay”, revelando outro lado da

• 37 •
Ainda que nos últimos anos se masculina) e a ampliação de serviços
observe um grande avanço no desen- e atividades para essa população. Por
volvimento das medicações e tratamen- isso campanhas sobre o uso do preser-
tos para soropositivos e acometidos vativo de látex e o prazer sexual depois
pela AIDS, o Brasil vêm apresentando dos 60 anos de idade vêm sendo incen-
um aumento progressivo nos casos de tivadas por autoridades médicas e pro-
infecção, especialmente entre grupos gramas governamentais.
jovens na faixa dos 13 aos 25 anos e O contato sexual com uma pes-
a chamada terceira idade (adultos com soa infectada pelo vírus HIV hoje não
60 anos ou mais). Algumas hipóteses signiica, necessariamente, contágio ou
procuram compreender esses novos desenvolvimento da síndrome. Tra-
números, que vão na contramão da tamentos disponibilizados pelo SUS,
tendência mundial de queda dos ín- como o Programa de Pós-Exposição
dices de contaminação, da ordem de (administração de medicações antir-
20% entre os anos 2000 e 2010 (Cf. retrovirais até 72 horas após o conta-
UNAids). to, pelo período de 28 dias), tendem
Sobre o crescimento de infec- a impedir a replicação do vírus. Da
ção entre a população jovem, uma mesma forma, seguindo o tratamento,
das explicações é o fato dessa geração pessoas diagnosticadas como soropo-
não ter vivido os anos da “epidemia”, sitivas podem viver anos com a carga
desconhecendo o lado mais perverso viral indetectável, o que signiica que
do HIV e suas consequências. Nasci- ainda que tenham o vírus, não o estão
dos em meados da década de 1990 em transmitindo. O que as autoridades
diante, quando a doença já era consi- médicas alertam é que ainda que essas
derada controlada (mas não extinta) e conquistas cientíicas estejam dando
a medicação distribuída gratuitamente bons resultados, o uso continuo da
pelo SUS, o que garante melhores con- medicação pode trazer problemas co-
dições de vida aos portadores do vírus, laterais a longo prazo, permanecendo
a AIDS pode estar sendo encarada a AIDS como uma “doença” de alta
como uma doença “comum” ou ainda, complexidade. Porém é a esperança
de baixa periculosidade. da descoberta de uma cura que ainda
Quanto a terceira idade, a hipó- motiva ativistas, cientistas e pacientes
tese aventada se refere ao prolonga- a continuarem a lutar. Descoberta que
mento da vida sexual ativa das pessoas será considerada, certamente, uma das
nessa faixa etária, em especial pelos no- mais importantes da ciência moderna.
vos tratamentos ligados à sexualidade
Flávio Vilas-Bôas Trovão
(por exemplo, medicações para ereção

• 38 •
Referências e sugestões de leitura sobre a passagem do mundo situado
nas fronteiras da cultura ao mundo so-
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a ho-
mossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. (3a.
cial onde os papéis e identidades são
ed.) Rio de Janeiro: Record, 2000. claramente deinidos. O tratamento à
SONTAG, Susan. Doença como metáfora, AIDS e suas
alteridade situava-se na deinição dos
metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. limites entre civilização e barbárie,
ROTELLO, Gabriel. Comportamento sexual e AIDS. com ênfase à identidade social, à mes-
A cultura gay em transformação. São Paulo: Summus, midade e à educação para tornar-se um
1998.
bom cidadão. Nesse sentido, os limites
BESSA, Marcelo Secron. Histórias positivas: a literatura da contribuição da ilosoia grega para
(des)construindo a AIDS. Rio de Janeiro: Reccord, 1997.
a concepção da alteridade mostrou-se
BLASIUS, Mark e PHELAN, Shane. We are everywhere: tendenciada à exclusão do outro que
a historical sourcebook of gay and lesbian politics. New
York: Routledge, 1997. não estava integrado à polis, suge-
rindo o outro como um não amigo e
• resultando na ausência do totalmente
Outro. Por sua vez, Levinas apresen-
Alteridade ta uma alternativa para se pensar a
questão da alteridade no pensamento
Deinição/Histórico: Alterida- ilosóico contemporâneo: não mais
de, do latim alteritas, signiica ser ou- pensar o Outro a partir da centralida-
tro, colocar-se ou constituir-se como de do eu ou fundada na perspectiva do
outro. A alteridade é um conceito mais eu transcendental, mas a partir de uma
restrito do que diversidade e mais ex- subjetividade capaz de acolher o outro,
tenso do que diferença (ABBAGNA- ou seja, acolher a idéia do ininito. A
NO,1998, p.34). O conceito assume ideia do ininito rompe com o caráter
uma perspectiva multidisciplinar e tra- totalizador da relação entre o Mesmo e
duz, dessa forma, a relevância da sua o Outro e do próprio pensamento que
compreensão e amplitude na sua con- procura englobá-los numa unidade to-
cepção nos campos do conhecimento, talizadora de sentido. Com o desenvol-
bem como a sua reordenação ao longo vimento de outras perspectivas aliadas
dos tempos. ao desenvolvimento do conhecimento
No âmbito primordial ilosói- cientíico, observou-se o deslocamen-
co, a estrita relação do conceito de al- to da ontologia centrada em uma re-
teridade com o mito (Ártemis) revelava lexão a partir da natureza e da visão
a preocupação grega com os limites do de uma objetividade diversa, em dire-
universo cultural e político e com o de- ção à perspectiva da consciência de si
senvolvimento de uma compreensão e da subjetividade. Paul Ricoeur (1913-

• 39 •
2005) desenvolveu uma alternativa “unidade” do homem é sua aptidão
para pensar a alteridade que chamou para inventar modos de vida e formas
de hermenêutica do si-mesmo, em que de organização social muito diversos.
concebe que o ser no mundo é, antes O que seres humanos têm em comum
de tudo, um ser que é, em si-mesmo, é a capacidade para se diferenciar uns
um ser com o outro tanto na sua cons- dos outros, para elaborar costumes,
ciência como em suas relações com os línguas, modos de conhecimento, ins-
outros seres humanos. Em outras pa- tituições, jogos muito diversos. Nessa
lavras, o ser humano é um ser intrinse- direção, a alteridade enquanto uma
camente comunitário e plural, um ser abordagem antropológica é o fenôme-
dotado de uma estrutura baseada em no que promove o reconhecimento,
três elementos: o da linguagem e o de o conhecimento e a compreensão de
uma constituição diferenciada pela re- humanidade plural. A abordagem an-
lação do si-mesmo e da alteridade. tropológica provoca a revolução do
Por sua vez, a perspectiva antro- “olhar”, implicando num descentra-
pológica “por vezes conhecida como mento radical, ruptura com a ideia de
a ciência da alteridade” reconhece a há um “centro do mundo”. Essa visão
alteridade como um princípio consti- reducionista do outro ao ocidentalis-
tutivo da subjetividade, considerando mo - naturalização como dogma ou a
a existência do sujeito como resultado existência de uma essência humana -
histórico dos encontros originais do eu tem seu contraponto na majoração da
de cada sujeito com os outros. alteridade que leva ao dogmatismo da
A experiência da alteridade no relatividade de culturas heterogêneas
estudo do Homem na sua plenitude e justapostas. Ambas redundam em uma
dos fenômenos que o envolvem assu- identiicação integral por meio das se-
me proporções consideráveis no sécu- guintes situações: o acesso à compre-
lo XIX com o acesso do mundo oci- ensão do outro por si e à compreensão
dental a sociedades longínquas e com de si pelo outro. O outro é uma igura
contato restrito com grupos vizinhos. possível de mim, como eu dele.
Com base nos encontros entre as cultu-
Maria Cristina Caminha
ras o conhecimento (antropológico) da de Castilhos França
cultura ocidental passa inevitavelmente
pelo conhecimento das outras cultu- Referências e sugestões de leitura
ras; e o exercício da alteridade leva ao
reconhecimento de que essa é apenas ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosoia. 3ª ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1998. DAMATTA, Roberto.
uma cultura possível entre tantas outra. Relativizando: Uma Introdução à Antropologia Social.
Para a antropologia o que caracteriza Rio de Janeiro, Rocco, 1987.

• 40 •
LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. 9ª Maria, que se constituem em um dos
edição. São Paulo: Brasiliense, 1996.
primeiros produtos de uma política
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antro- cultural de Afonso X. Também consi-
pológico. 17ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999
derada a Bíblia estética do século XIII,
VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito & Política . São para José Filgueira Valverde (1985),
Paulo: Edusp, 2002.
estas Cantigas são o mais atraente dos
• mariologios, o mais copioso em língua
românica, uma obra que relete varia-
Amor Cortês dos aspectos da vida familiar, popular e
cortesã. O elogio à Maria, que a poesia
O amor cortês é um discurso mariana faz, não deixa de apresentar a
amoroso que emergiu da poesia lírica Virgem como uma dama, que precisa
dos trovadores provençais, escrito em ser cortejada.
língua d`oc (língua vernacular da região As Cantigas de Santa Maria da-
do Languedoc, sul da França), entre tam do inal do século XIII, possivel-
os séculos XI e XII, e se difundiu por mente escritas entre 1270 e 1282 em
toda a Europa Medieval. O primeiro galego-português, a língua poética da
poeta trovador, Guilherme IX, duque Península Ibérica. Pertencente à lírica
da Aquitânia e conde de Poiters, legou trovadoresca e compreende 427 poe-
11 cansos, das que temos notícias, que mas que narram os milagres da Virgem
misturam escárnio e elementos da líri- ou homenageiam seus louvores. Essas
ca amorosa trovadoresca. A obra que Cantigas foram o resultado de uma
se tem de Guilherme foi compilada e obra de compilação de fontes orais ou
organizada por Alfred Jeanroy, em cé- escritas de origens geográicas distin-
lebre obra, de 1934. Das 11 Cansos, a tas.
número 10 é aquela que, na leitura de Nas Cantigas de Santa Maria, a
Jeanroy representa o nascimento da lí- dama sans merci compartilha com ou-
rica cortês. tros personagens as atenções dos tro-
O amor cortês é resultado da vadores. Para, além disso, o objetivo é
poesia lírica dos travadores, dos quais enaltecer Maria e demonstrar que ela é
se pode destacar, além de Guilherme pródiga em recompensar aqueles que
IX, Bernard de Ventador e Pierre Car- nela coniam.
denal, e no trovadorismo Galego-por- Mas, ainda se pode referir os
tuguês a obra de Afonso X, o Sábio. romances de cavalaria mais importan-
Sendo deste último uma das mais im- tes escritos em língua não latina, como
portantes contribuições ao culto ma- Lancelot de Chrétien de Troyes ou o
riano, com as suas Cantigas de Santa Roman de la Rose, de Guilherme de
Lorris.

• 41 •
O amor Cortês é uma forma O amor cortês teve existência
amorosa complexa que pode ser vista profana e, por isso, autônoma; tratou-
ao mesmo tempo inteiramente den- -se de um amor humano que propu-
tro e fora do modelo de sociedade do nha uma ascese, no sentido de levar o
qual ele surgiu. Ao mesmo tempo, ele amante a debruçar-se de tal forma so-
somente pode ser compreendido no bre si mesmo a ponto de reconstituir
interior das relações sociais e do cal- seu caráter e construir sua virtuose.
do cultural da Europa da Idade Média Os trovadores procuraram ela-
Central e do Renascimento do século borar uma forma amorosa totalmente
XII, mas avança contra um terreno al- puriicada de tudo o que possa não
tamente rígido do modelo moral cris- ser da natureza do amor. O objetivo
tão que é o casamento. Este que, justa- foi constituir um amor verdadeiro,
mente nesse mesmo momento, emerge ino, bom e puro. O ato carnal torna-
como sacramento e como uma das for- va o amor conjugal “venal utilitário”
mas de controle utilizadas pela Igreja, (NELLI, 1980, p. 86), mas isso não
sobre a sociedade. Le Goff (2005) diz quer dizer que os trovadores pregavam
que o amor cortês faz do terreno do a completa abstinência sexual, ao con-
casamento o lugar/espaço no qual se trário. Tratava-se, no caso, de negar o
trava um debate, uma guerra, uma dis- caráter utilitário da relação sexual, ra-
zão pela qual facilmente tanto o amor
puta de forças, que têm como conse-
cortês é uma forma de negar o casa-
quência a “revolução” dos costumes e
mento, quanto uma forma de amor
da “própria sensibilidade”.
adúltero.
Trata-se de uma relação amo-
O poema amoroso do trovador,
rosa esranha àquele ambiente, mas ao
ou a Canso, como se chamava, se re-
mesmo tempo produto mesmo das
porta sempre à exposição dos estados
suas injunções históricas, da situação
da alma do trovador, este mesmo que
singular do feudalismo no Sul da Fran-
se confunde com o próprio sujeito do
ça e do novo contexto urbano e bur-
seu poema, geralmente, um jovem ca-
guês que vivia a Europa cristã. Uma
valeiro que disputa a Dama com um
relação que volta o homem-cavaleiro
ao seu interior e que o leva a realizar Grande Senhor. Nesse sentido, for-
aventuras únicas e irrepetíveis e, sobre- ma-se um trio amoroso: o jovem ca-
tudo, a olhar para si mesmo, voltar-se valeiro, geralmente representado pela
sobre seu sofrimento, seu amor, sua igura do trovador, a grande Dama,
Dama, como o fez Abelardo, o ilóso- mulher de alta linhagem, rica e casada,
fo, ou como mostrava Guilherme nas e o Senhor, suserano que abriga em seu
suas cansos. castelo o próprio trovador e sua trupe.
Não há dúvida de que no centro do

• 42 •
poema está sempre a Dama, é a devo- oso, respeitando as regras do amor e da
ção a ela o que articula as relações da cortesia. A alegria do amor, assumida
tríade amorosa. pelo trovador que ama incondicional-
Eis um dos elementos mais mente sua Dama idealizada e superior
marcantes da retórica cortês do bon a tudo o que existe, é a fonte mesma da
amour: o culto a uma mulher ausente virtude cavaleiresca, tanto no torneio
e inacessível. Trata-se de uma idealiza-
a lutar e mostrar sua virilidade, quanto
ção da mulher amada, ela é possuido-
a escrever versos. O que intensiica a
ra das maiores e mais altas qualidades.
produção literária dos trovadores é o
São qualidades tão signiicativamente
irreais, que jamais poderiam ser des- horizonte da Senhora, é a promessa
cobertas em uma mulher real. Elas do amor e é a espera interminável pelo
essencializam a Dama, no sentido de momento de beijá-la.A Dama como
colocá-la numa situação ideal, como fonte de virtude pode ser encontrada
uma substância que paira transcenden- em toda a tradição literária do amor
talmente, em relação às mulheres com cortês. No Tratado de André, o Cape-
seus corpos empíricos. lão (2000, p. 98) são as negativas vee-
Para Nelli (1980, p. 87) “a dama mentes da mulher que levam o homem
adorada transmite-nos mais facilmente nobre a revelar mais e mais, através da
a impressão de que simboliza um ser palavra, os males que esperam aquelas
sobrenatural ou equilibrado ou mui- que desdenham o deus do amor. E as-
to simplesmente a essência feminina sim se sucede uma justa dialética entre
consagrada pela morte”. Não se trata,
a Dama e o homem nobre. De modo
para esse autor, de uma incorporação
que cada um, tanto o homem nobre,
do culto à virgem, de modo que se pu-
quanto a Dama, estejam a constituir-se
desse supor ser a virgem a Dama idea-
lizada pelos trovadores. Mas, a mulher no interior do debate, como indivídu-
não simboliza a Virgem, ou a sabedoria os. A justa entre os amantes, a promes-
ou mesmo a Igreja Cátara: “ela reme- sa de amor que a Dama faz ao preten-
te-nos unicamente para a sua própria dente, e que nunca se realiza, fortalece
imagem, transigurada e sempre pron- o amor e lança o homem em busca da
ta, de resto, para recair nas realidades virtude. O amor cortês se revela no tra-
terrenas” (NELLI, 1980, p. 87). tado de Capelão, com a expectativa da
De qualquer modo, as virtudes salvação e do enaltecimento da Dama
da Dama reletem imediatamente no como fonte de virtude.
poeta/cavaleiro. Pois é por amor a ela Bem, sabe-se que tanto nos po-
que o cavaleiro poderá se mostrar virtu- emas dos trovadores do sul da França,

• 43 •
quanto nos romances do ciclo arturia- matéria unânime entre os medievalis-
no, a Dama é uma mulher de alta li- tas. O que se pode ver empiricamente
nhagem. E ela forma junto ao Senhor, é que, nessa época, a Europa Ocidental
detentor de toda autoridade e riqueza assistiu o despertar de uma soma signi-
e o trovador, vital como um adoles- icativa de mulheres que, fosse na lite-
cente, alegre, espirituoso e juvenil, o ratura ou na realidade vivida, rompiam
trio amoroso que marca o amor cortês com os padrões sociais vigentes, como
como o espaço de rebeldia em relação vemos pelo exemplo de Heloisa ou de
ao casamento cristão. Hildegarda de Bingen. Entretanto, lon-
O trovador se relaciona de ge estavam os medievais de suspender
modo ambíguo com o Senhor, que o caráter misógino da sua cultura, fora
pode ser suserano e mecenas e, ao mes- literatura ou do sim diante do altar, o
mo tempo, inimigo mortal, em função casamento era precedido de uma in-
da disputa pela Dama e da quebra do trincada negociação.
contrato de idelidade. Concluímos en- O amor cortês não se deine
tão, que essa forma amorosa cortês é apenas pela negação ao casamento,
adultera. Mas, que casamento era esse nem pela alusão insistente e repetitiva
que os trovadores abominavam e que, à Dama inalcançável e excedente, ele
por exemplo, Heloisa relutou em acei- constitui uma erótica nova e inédita no
tar quando Abelardo a ela propôs? ocidente e estranha à noção de dese-
É bem verdade que o amor cor- jo como falta. É essa forma amorosa
tês cantado pelos trovadores se vale do cortês, inventado no século XII, que
ambiente da sua época a im de criar anuncia o amor romântico ocidental.
os temas das suas canções e, indubita- Na erótica cortês, o amante, via
velmente, o tema da castidade, da ne- de regra o trovador, vê no sofrimen-
gação do ato carnal, no sentido de ser to amoroso um autêntico prazer, tor-
elemento que torna impuro o amor, nando o sofrimento, alegria. Trata-se
estava tanto no discurso dos teólogos, de gozar com o sofrimento, de se ter
quanto na retórica dos trovadores. A prazer na humilhação que causa a cega
época da emergência do lirismo cortês obediência à Dama. A alegria liberta
foi um momento de construção de um do desejo como falta, pois que ela é
imaginário intensamente povoado pela fonte de juventude (ROUGEMOND,
virtude da castidade, pelo apelo à vir- 2003, p. 164).
gindade. Alegria e sofrimento não são
Muito se disse sobre o enalteci- sentimentos apartados, ao contrário,
mento da mulher a partir do século XII, no amor cortês, são inseparáveis e
no Ocidente Medieval, mas isso não é complementares. Para os trovadores o

• 44 •
que permite o regozijo, o gozo e a pro- bilidades de vida, independentemente
dução literária, é a distância da Dama do que se instituía e consolidava no
e a promessa de um dia voltar a vê-la. mundo feudal da Baixa Idade Média.
Assim escrevia Guilherme: “Que Deus Ela pretendia a airmação de um estilo
me deixe viver ainda,/ Para que eu po- de vida nobre diante da desagregação
nha minhas mãos sob seu mantel!”, dos ideais cavalheirescos. Bloch mos-
fazendo clara alusão apenas à possibili- tra tal desagregação através da história
dade de voltar a possuir a Dama. de Lanval, um cavaleiro da corte de
Na literatura cavaleiresca em Arthur. Lanval foi o único cavaleiro
geral, o sofrimento se revela na errân- da corte de Arthur a não receber nem
cia pela loresta, num tormento sem terra nem mulheres, ele foi esquecido
im, na doença e, às vezes, na morte, é pelo Suserano. Desse modo, ele é con-
exemplo disso tudo o amor de Tristão tado no contingente daqueles cavalei-
e Isolda. Esse sentimento produz um ros despossuídos em função das novas
estado de alma que gera sofrimento e relações de herança e consangüinidade
alegria, e que situa o obstáculo “que da Baixa Idade Média. Lanval vaga per-
é, sobretudo, a interdição do dese- dido pelo campo até encontrar com a
jo “como um elemento imanente ao dama-fada que lhe permite prestígio e
amor. “Escreveu Pierre Cardenal: Eu riqueza, coisas as quais Arthur não lhe
tenho desejo, eu desejo e preiro de- concedeu: “a dama fada promete-lhe
sejar sempre”. Ora, o obstáculo é um eterna idelidade (em contraste com
fator de enobrecimento, de fortaleci- o esquecimento de Arthur) e, o que é
mento e de eternização do amor, no mais importante, tanta riqueza quan-
sentido de um apagamento dos aman- to o coração dele desejar” (BLOCH,
tes. 1995, p. 209).
O in amour foi um elemento
necessário para a distinção do nobre Nilton Mullet Pereira
Rejane Barreto Jardim
em relação ao burguês: essa categoria
de gente que invade o modo de vida
Referências
medieval. As práticas amorosas corte-
ses serviram numa época de surgimen- BLOCH, Howard R. Misoginia medieval e a invenção do
amor romântico ocidental. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
to de novos grupos sociais na Europa
ocidental, como elemento singulariza- CAPELÃO, André. Tratado do amor cortês. Tradução
Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes,
dor e diferenciador da nobreza corte- 2000.
sã. Tratava-se de constituir uma outra
FILGUEIRA VALVERDE, José. Alfonso X El Sábio.
“forma de vida” especíica para a no- Cantigas de Santa Maria. Códice Rico de El Escorial.
Madrid: Editorial Castalia, 1985.
breza, que abrisse um campo de possi-

• 45 •
LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. no podía ser cuestionado. Sin embar-
Tradução de José Rivair de Macedo. Bauru, SP: EDUSC,
2005. go, el mito de la neutralidad de la cien-
cia está cuestionado y se ha demos-
NELLI, René. Os cátaros. Lisboa: Edições 70, 1980
trado que es una falacia. El contexto
ROUGEMOND, Denis. História do amor no Ocidente. social, cultural y político condicionan
São Paulo: Ediouro, 2003.
la ciencia y la enmarca con los valores
Sugestões de leitura imperantes en un momento histórico
CANTIGUEIROS. Ulletin of the. Cantigueiros de Santa
determinado. Así mismo, los intereses
Maria. New York: Medieval and Rainaissance Textsd and y subjetividades de los actores implica-
Studies. , v. IV, XI, XII.
dos inluyen en el paradigma predomi-
JEANROY, Alfred. La poésie lyrique dês troubadours. nante en la ciencia (MIQUEO, 2001).
Tomo II. Paris: Henri Didier Éditeur, 1934.
De tal manera que la interpre-
METTMANN, Walter (ed.).Cantigas de Santa Maria. tación histórica del cuerpo de la mu-
Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra: Universi-
dade de Coimbra, 1959, 4v. jer ha mostrado una vez más cómo los
discursos imperantes en las ciencias de
O’CALLAGHAN, Joseph F. El Rey Sábio. El Reinado
de Alfonso X de Castilla. Sevilla: Universidad de Sevilla, la salud han tenido como objetivo jus-
1996. tiicar el destino social de las mujeres,
RIQUER, Martin de. Los Trovadores: historia literaria y que ha consistido fundamentalmente
textos. Barcelona: Editorial en la exclusión del ámbito público y su
Ariel, S. A., 2001.
coninamiento en el ámbito privado.
• Por este motivo, los textos cientíicos
de referencia hasta bien entrado el si-
Anatomia
glo XX han estado cargados de plante-
amientos ideológicos tendentes a con-
La construcción cientíica de
ceptualizar el cuerpo de las mujeres de
la anatomía y isiología femenina a lo
manera coherente con el orden social
largo de la historia ha tenido un carác-
establecido, deinido por los hombres,
ter marcadamente androcéntrico. Las
elevando a la categoría de natural lo
ciencias de la salud, al igual que otras
construido social y culturalmente (LA-
ramas del conocimiento, han estado
QUEUR, 1994).
dominadas por una fuerte presencia
Así mismo estas ciencias han
masculina, mientras que las aportacio-
deinido un modelo universal, coinci-
nes de las mujeres no han sido visibles
dente con el sexo masculino, utilizado
ni reconocidas.
como norma de referencia y que ha re-
La ciencia siempre ha estado ro-
presentado el máximo estado evolutivo
deada de un halo de neutralidad y se
de todos los seres vivos. Se ha consi-
ha considerado que cualquier plantea-
derado el cuerpo del hombre como el
miento basado en supuestos cientíicos

• 46 •
más evolucionado de la especie huma- la menopausia han sufrido un proceso
na, siendo el cuerpo de la mujer menos de medicalización, mientras que otros
perfecto e inferior al del hombre (BA- procesos masculinos no los han sufri-
RRAL, 2001). do. A esto hay que añadir que histó-
Las diferencias anatómicas y ricamente algunos de estos procesos
isiológicas entre hombres y mujeres han sido considerados como repulsi-
son evidentes y visibles, pero estas di- vos y degradantes para las mujeres, por
ferencias no justiican por si solas la ejemplo la menstruación se ha consi-
construcción cultural del sexo y género derado como algo sucio y desagradable
a lo largo de la historia y que, con lige- y durante ese periodo las mujeres han
ras variaciones y escasas excepciones, sido consideradas impuras y malignas
ha caracterizado a todas las socieda- para algunas culturas. La menstruación
des como patriarcales. Las diferencias había que ocultarla y nombrarla de ma-
más importantes lo son en el campo nera eufemística, existiendo toda una
de la reproducción y preservación de variedad de nombres para referirse a
la especie humana. De tal manera que ella. En la actualidad, aunque muchos
las características sociales que se han de estos prejuicios se han superado, en
atribuido tradicionalmente a hombres el imaginario colectivo existe la creen-
y mujeres, derivadas fundamentalmen- cia de que las mujeres se vuelven más
te de esas capacidades reproductivas, sensibles e irritables durante la mens-
han sido consideradas como naturales, truación, habiéndose descrito el deno-
propias de la naturaleza de cada sexo. minado síndrome premenstrual con la
Además de construir culturalmente las consecuente medicalización del mismo
diferencias entre hombres y mujeres, (VALLS-LLOVET, 2009).
las jerarquizan ubicando a las mujeres Otro proceso isiológico sobre
en un estatus inferior al del hombre, el que existen bastantes creencias es el
considerando esta jerarquización como de la menopausia, considerada como
algo natural derivado de la diferente el inal de la vida sexual y reproductiva
naturaleza biológica de hombres y mu- de las mujeres. Tradicionalmente se ha
jeres (VALLS-LLOBET, 2009). vivido como una crisis por parte de las
Los procesos anatómicos y i- mujeres, sobre la base de que su único
siológicos especíicos de las mujeres in en la sociedad era la reproducción.
han sido considerados como anóma- Este proceso también ha sufrido una
los, pues han representado la desvia- excesiva medicalización y, en algunos
ción del estándar masculino que se ha casos, ha sido bastante perjudicial para
constituido como el referente univer- la salud de las mujeres.
sal. Así la menstruación, la gestación, La pretendida inferioridad de
la mujer y su conceptualización como
• 47 •
sexo débil ha tenido su refrendo en de ser madre, considerado como la cul-
una caracterización del carácter de la minación de su vida. Las mujeres que
mujer como emocionalmente inesta- no podían serlo lo han vivido como
ble, hipersensible y dominada por su una autentica tragedia, sintiéndose cul-
biología. El planteamiento que subya- pables por ello. Los cambios sociales
ce es que los órganos reproductivos y han cambiado poco estos esquemas y
todos los procesos relacionados con las mujeres siguen siendo las respon-
la reproducción, especialmente los sables de la reproducción biológica y
hormonales, ejercen una decisiva in- social. Se han incorporado al ámbito
luencia en las mujeres, hasta el punto público pero los hombres no se han
de que gran parte de su conducta está corresponsabilizado en la misma medi-
determinada por los vaivenes hormo- da del ámbito doméstico. La mujer si-
nales del ciclo menstrual o en su caso gue estando obligada a ser una “buena
de la menopausia o climaterio. En base madre” por encima de cualquier otra
a esto, las mujeres son poco aptas para condición que asuma.
ejercer las tareas que se han deinido Por otra parte, el control del
como propias del sexo masculino, y cuerpo de las mujeres ha sido una
que están relacionadas con el ejercicio constante en todos los periodos histó-
y desempeño de tareas en el espacio ricos hasta la actualidad. Este control
público (ESTEBAN, 2004). ha sido más férreo en todo lo relacio-
Pero además de la reproducción nado con la sexualidad y la reproduc-
biológica, la reproducción social ha ción y ha sido ejercido por los hom-
sido asignada a las mujeres. Así el cui- bres, utilizando para ello las ciencias,
dado de personas mayores, de perso- especialmente la medicina, la religión,
nas enfermas, de personas en situación el derecho, la política, etc. Una de las
de dependencia, de los hijos e hijas y cuestiones que mejor ejempliican esto
de la familia en general, ha sido una es la legislación referente a la sexuali-
función asignada a las mujeres con el dad y la reproducción, en la que se in-
argumento de que biológicamente es- cluye el aborto, que en la mayoría de
tán más preparadas para este in. los países son objeto de enfrentamien-
El destino social de la mujer ha tos políticos, religiosos y sociales y que
sido durante muchos años ser esposa y por desgracia ponen en peligro la salud
madre y esto ha condicionado también y la vida de muchas mujeres en el mun-
su sexualidad, que debía tener como do (FALCIO, 1999).
único objetivo el matrimonio y la re- En deinitiva, la anatomía de las
producción. El estatus de adulta en la mujeres ha sido utilizada para justii-
mujer ha venido deinido por el hecho car su exclusión y subordinación en la

• 48 •
sociedad y ha sido el discurso médico •
imperante el que ha legitimado esta si-
tuación. Se ha constituido en la mejor Androginia
base para asegurar el estatus quo y las
relaciones de poder entre hombres y A androginia tem sido retomada
mujeres en las sociedades patriarcales. desde os anos 1960 no âmbito do con-
junto dos movimentos sociais difusos
Maria Luisa Grande Gascón que se convencionou chamar contra-
cultura, caracterizado por uma forte
Referencias crítica ao modo de vida difundido pela
sociedade de consumo. Tais propo-
BARRAL, Mª José. Genes, género y cultura. En: MI-
QUEO, Consuelo et al (Eds.) Perspectivas de género en
sições, desenvolvidas, sobretudo, por
salud. Fundamentos cientíicos y socioprofesionales de uma juventude oriunda das camadas
diferencias sexuales no previstas. Madrid: Minerva Edi-
ciones, p. 135-162, 2001. médias urbanas estadunidenses e euro-
péias e repercussão em outras partes do
FALCIO, Alda. Feminismo, género y patriarcado. En:
LORENA, Fries y FACIO, Alda (Eds.): Género y Dere- globo, focavam, entre outras questões,
cho. Santiago de Chile: LOM Ediciones, p. 21-60, 1999. na ruptura com o modelo hegemônico
ESTEBAN, Mari Luz. 2004. Antropología del cuerpo. fundado no patriarcalismo e no sexis-
Género, itinerarios corporales, identidad y cambio. Bar- mo, gerando uma estética unisex, ex-
celona: Bellaterra.
pressa no comprimento dos cabelos,
LAQUEUR, homas. La construcción del sexo. Cuerpo no vestuário ou nos acessórios, e uma
y género desde los griegos hasta Freud. Madrid: Ediciones
Cátedra. Colección Feminismos, 1994. sexualidade mais plástica, que compor-
MIQUEO, Consuelo. Semiología del androcentrismo.
tava uma erótica bissexual. O cantor
Teorías sobre reproducción de Andrés Piquer y François e compositor britânico David Bowie
Broussais. En: MIQUEO, Consuelo et al (Eds.) Perspec-
tivas de género en salud. Fundamentos cientíicos y socio- que, na primeira metade dos anos 1970
profesionales de diferencias sexuales no previstas. Madrid: criou a personagem Ziggy Stardust,
Minerva Ediciones, p. 97-134, 2001.
a estadunidense Madonna nos anos
VALLS-LLOBET, Carme. Mujeres, salud y poder. Ma-
drid: Ediciones Cátedra. Colección Feminismos, 2009.
1980/90, dialogam diretamente com
a suspensão das diferenças de gênero
Indicaciones de lectura em suas apresentações. No Brasil, os
HARDY, Ellen y JIMÉNEZ, Ana Luisa. Masculinidad y emblemáticos Ney Matogrosso e Cás-
género. Revista Cubana de Salud Pública, n.27(2), p.77-
88, 2001.
sia Eller, assim como os integrantes do
grupo carioca Dzi Croquettes, cons-
PASTOR, Rosa. Cuerpo y género: representación e
imagen corporal. En: BARBERA, Ester y MARTÍNEZ, truíram performances que remetemos
Isabel. Psicología y género. Madrid: Pearson Educación, diretamente à suspensão das fronteiras
2004.
do binarismo de gênero desde os anos

• 49 •
1970. A estética andrógina assumia, agora nada mais é que um nome posto
então, um caráter político de ruptura em desonra. (...) o masculino de início
com os estereótipos de gênero. Déca- era descendente do sol, o feminino da
das depois, o aparecimento da igura terra e o que tinha de ambos era da
do transgênero no movimento LGBT lua” (56-57).
leva a que estudiosos retomem o tema Os pertencentes a esses três gê-
da convivência dual e pacíica de as- neros tratavam-se de seres nascidos de
pectos do feminino e do masculino em predecessores dos deuses. Eram criatu-
um mesmo ser como experiência indi- ras duplicadas: duas iguras masculinas
vidual e/ou proposição política. unidas entre si a partir das espáduas,
A Antiguidade guarda as raízes com dois pares de pernas e dois pares
míticas do andrógino, arquétipo uni- de braços, uma cabeça com duas faces
versalmente difundido. N’O Banquete, e duas genitálias iguais; duas iguras
Platão (1991) coloca na boca de Aris- femininas unidas da mesma maneira;
tófanes a explicação do surgimento de inalmente, o terceiro tratava-se de um
tal igura. Tal relato encontra-se situa- ser masculino unido a um ser feminino,
do no referido texto na oportunidade dotado de dois pares de braços e dois
das exposições acerca das teorias da pares de pernas, uma face masculina
alma e, ali, do amor. Trata-se de uma e uma face feminina em uma cabeça
preleção moral sobre as faces do ho- apenas e as diferentes genitálias. Como
mem, de seus sentimentos e de suas andavam rapidamente quando com os
ações, de forma exemplar, que elabora quatro membros no chão, assumiam
a existência de uma igura que antece- uma forma esférica, lembrando os as-
deria os estereótipos de gênero, com- tros dos quais descendiam.
portando-os a ambos. “Com efeito, Aristófanes continua sua expo-
nossa natureza outrora não era a mes- sição a Erixímaco informando-lhe que,
ma que a de agora, mas diferente. Em assim como os gigantes, ilhos dos ti-
primeiro lugar, três eram os gêneros da tãs, quiseram alcançar o céu e destro-
humanidade, não dois como agora, o nar os deuses e foram vencidos em
masculino e o feminino, mas também batalha, os nascidos dos astros, duplos
havia a mais um terceiro, comum a es- e orgulhosos de si, também quiseram
tes dois, do qual resta agora um nome, alcançar esse território proibido. Zeus,
desaparecida a coisa; andrógino era en- o governante dos deuses, teria, então,
tão um gênero distinto, tanto na for- se decidido por fender esses seres,
ma como no nome comum aos dois,
restando a Apolo a tarefa de lhes fa-
ao masculino e ao feminino, enquanto

• 50 •
zer olhar as entranhas rasgadas e, em na cosmogonia hebraica, no Gênese, a
seguida, curar-lhes as feridas, costuran- narrativa da criação do mundo e dos
do a pele de cada um deles, polindo as seres viventes, interpretada de duas
pregas da pele e deixando como única maneiras. A primeira diz respeito à
marca o umbigo. Os duplos, a partir de própria divindade, uma vez que, tendo
então separados, tornados mais fracos criado homem e mulher, o fez à sua se-
“homens e mulheres”, buscariam in- melhança, donde é possível interpretar
cessantemente cada qual sua metade. que o criador traz em si os aspectos de
O convívio entre os elementos mas- cada um. A segunda refere-se à retirada
culinos e femininos paciicamente, ou de Eva do próprio Adão, sujeito que
ainda, o ideal de unidade e totalidade comportaria até então os dois gêne-
ros em si (ELIADE, 1991, 103-108).
igura em um único ser, teria seu im
A tradição abraâmica imputaria a Eva
dramaticamente instalado pela decisão
a culpabilidade sobre o advento da ex-
divina.
pulsão do Éden, uma das razões pelas
Origem similar, divina, teria
quais o binarismo de gênero e a desi-
Hermafrodito, ser mítico ilho de
gualdade entre ambos passaria a per-
Hermes e Afrodite. O jovem, cuja tra-
mear as demais interpretações a afas-
jetória é narrada por Ovídio em suas
tar a possibilidade de compreensão da
Metamorfoses, em suas andanças, tor- unidade masculino/feminino na igura
na-se objeto de desejo de uma ninfa, do criador.
entidade das águas. Não corresponde Nos séculos XVIII e XIX, no
imediatamente às investidas daquele Ocidente, o hermafrodita seria a ima-
ser feminino inicialmente, mas, sedu- gem vitoriosa da junção dos seres, haja
zido, banha-se em suas águas. A ilha vista uma cultura que via na diferença
de Oceano enlaça o amado e roga aos motivo para a exclusão e, consequen-
deuses permanecer unida a ele. Com temente, uma ciência que lhe acompa-
sua prece atendida, fundem-se os cor- nhava. Estando a diferença entre ho-
pos, surgindo um indivíduo que com- mens e mulheres centrada na isiologia
porta, para gozo da ninfa e opróbrio e no sexo, o indivíduo que trouxesse
do jovem, o masculino e o feminino em si elementos de ambos encarnaria a
(Livro IV). Entretanto, se o andrógino igura foucaultiana do monstro. Dessa
se satisfaz com sua dualidade, a Her- forma, a ciência seria a responsável por
mafrodito ela pesa, envergonhando- tornar a monstruosidade devidamente
-lhe. adequada à separação isiológica dos
Outra origem para o convívio sexos tornada natural, ou seja, cabia
entre o masculino e o feminino está reparar tal desvio da natureza.

• 51 •
Se a repercussão dos mitos da HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de
J. A. A. Serrano. São Paulo: Iluminuras, 1991;
antiguidade (grega ou hebraica) se faz OVÍDIO. Metamorfoses. São Paulo: Madras, 2003.
sentir fortemente ainda nos primeiros
PLATÃO. Diálogos. Tradução e notas de José Cavalcanti
decênios do século XXI, isso se deve de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 5 ed. São
Paulo: Nova Cultural.
em razão da sobreposição discursiva.
Os discursos religioso e cientíico têm SINGER, June. Androginia: rumo a uma nova teoria da
sexualidade. São Paulo: Cultrix, 1990.
sido colocados um sobre o outro sem
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso - a ho-
que qualquer deles tenha sido descar- mossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 3 ed.
tado. A ocorrência do transexual não rev. ampl. São Paulo: Record, 2000.

nos remete ao andrógino, na medida



em que não há o convívio pacíico en-
tre o feminino e o masculino “razão da
Aprendizaje, infancia
própria existência dos procedimentos
y género
de adequação a um e a outro”, mas,
a transgeneridade parece ser a ligação No siempre se asocia la infan-
possível. Importa ressaltar que, para cia al género y, de esta forma, se oculta
uma compreensão da multiplicidade que los modelos de género son cons-
que compõe a sociedade contemporâ- tructos culturales naturalizados que se
nea e a necessidade de convívio entre transmiten desde la niñez, describien-
indivíduos e grupos sociais distintos, do trayectorias diferentes para niñas y
o andrógino passa a ser uma imagem niños. Signiicar la infancia en relación
essencialmente política, detentora de al binomio sexo-género es el objeto
força primordial para a superação da que nos ocupa. Primero se realizan
desigualdade por seu caráter transcen- unos breves apuntes sobre los senti-
dos de la infancia como grupo sujeto
dente dos contrários.
de derechos y como etapa educativa. A
Miguel Rodrigues de Sousa Neto continuación se describe la categoría
género, sus características e impactos
Referências e sugestões de leitura en el desarrollo de identidades dicoto-
mizadas, jerarquizadas y excluyentes.
BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários.
Tradução de Carlos Sussekind, Jorge Laclette, Maria he- Por último se dedica un espacio a la
reza Rezende Costa e Vera Whately. 2 ed. Brasília/Rio de educación, pues es a través de los pro-
Janeiro: Editora da UnB/José Olympio, 2000.
cesos de enseñanza que se transmiten
ELIADE, Mircea. Meistófeles e o andrógino. Tradução y se aprenden los géneros, y es a través
de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes,
1991. de dichos procesos que también pue-
den desaprenderse. En esta perspecti-

• 52 •
va es reto de las sociedades del siglo que deberán garantizarse, promoverse
veintiuno la deconstrucción de los y protegerse los derechos de la niñez
modelos de género que, desde el mo- “sin distinción alguna, independiente-
mento de nacer, prescriben de forma mente de la raza, el color, el sexo, el
estereotipada la vida de las niñas y de idioma, la religión, la opinión política o
los niños. de otra índole, el origen nacional, étni-
Sobre los signiicados de infancia: En co o social, la posición económica, los
1989 la Asamblea General de las Na- impedimentos físicos, el nacimiento o
ciones Unidas aprobó la Convención cualquier otra condición del niño, de
sobre los Derechos de la Infancia. Su sus padres o de sus representantes le-
contenido son los derechos humanos gales” (Art. 2.1).
de las niñas y de los niños menores Para acotar el signiicado de in-
“de dieciocho años de edad, salvo que, fância, hay que señalar que este con-
en virtud de la ley que le sea aplicab- cepto es deinido en el Diccionario de la
le, haya alcanzado antes la mayoría de Lengua Española (2001) como el período
edad” (Art.1). La Convención ha de de la vida humana desde que se nace
entenderse y aplicarse en base a dos hasta la pubertad, pero también reiere
principios que José Vidal Beneito re- al conjunto de los niños de tal edad,
iere a los derechos humanos: el prin- así como al primer estado después
cipio de universalidad dialógica que del nacimiento. Por su parte Lorenzo
hace convivir lo idéntico y lo diferente; Luzuriaga, en el Diccionario de Pedagogía,
y el principio de indivisibilidad, pues signiica a la infancia en relación a la
los derechos humanos –como corpus educación. Airma el autor que es el
doctrinal y como práctica jurídico-polí- primer grado del desarrollo del ser hu-
tica– forman un todo único e indivisib- mano y la edad más apropiada para la
le al tener como centro de referencia e educación, pues es la edad plástica por
imputación el ser humano en su espe- excelencia y, por tanto, la más propi-
ciicidad individual, o la humanidad en cia para la acción educativa (Luzuriaga,
su expresión más genérica (Vidal-Be- 2001). En este sentido la infancia es
neyto, 2006). descubrimiento, aprendizaje y cons-
Atendiendo a los principios trucción del yo.
señalados la Convención reconoce la Tales acepciones llevan a pen-
identidad diferencial del grupo de me- sar la infancia no sólo como una etapa
nores que hace referencia a la niña y educativa, sino también como una con-
al niño como sujetos de derechos y, al dición y un estado, y como una catego-
mismo tiempo, a una etapa evolutiva ría social inventada y construida que
y educativa, la infancia, período en el ha ido experimentando cambios en sus

• 53 •
signiicados. De la creación de la infan- tablece el derecho a disponer de me-
cia como ser y grupo diferente al adul- dios y asistencia para su crianza y su
to –superando la concepción de adulto desarrollo material, moral y espiritual.
en miniatura–, a la desaparición de la Esta primera Declaración fue escrita
infancia en sociedades postmodernas. por Eglantyne Jebb, fundadora en el
De una infancia desprotegida y aban- Londres de 1919 de la organización
donada, familiar e institucionalmente, Save the Children, primera organización
a una infancia sujeto de derechos –en no gubernamental de la infancia crea-
ocasiones en exceso idolatrada y en da para ayudar a las niñas y a los niños
extremo sobreprotegida–. De la infan- desplazados y refugiados por la Prime-
cia dividida en etapas evolutivas cro- ra Guerra Mundial.
nológicas y claramente diferenciadas El año 1948 la Asamblea Ge-
en edades –primera infancia, segunda neral de las Naciones Unidas aprueba
infancia, adolescencia…–, a un diluir- la Declaración de Derechos Humanos
se tales compartimentaciones, un acor- que hace referencia a la infancia reco-
tarse algunas etapas y un prolongarse nociendo que ésta tiene “derecho a cui-
de otras que lleva a un estado de eter- dados y asistencia especiales” (Art. 25).
na infancia. De la infancia olvidada, a En 1959 la misma Asamblea aprueba
proyectar en ella exigencias de futuro la Declaración de los Derechos del
–a veces con demasiadas presiones y Niño, incorporando derechos como la
prescripciones–. libertad y la no discriminación, el dere-
Tal evolución se produce en cho a un nombre y a una nacionalidad,
diferentes espacios y momentos tem- el derecho a la educación, a la atención
porales, quedando relejada en diversas de la salud y a una protección especial.
normativas que muestran los cambios, Posteriormente, antes y después
así como las resistencias a los mismos de la Convención de 1989, se aprueban
de algunos países donde se sigue ne- normativas internacionales en áreas es-
gando la infancia y no se reconocen pecíicas que incorporan referencias
sus derechos. Los antecedentes direc- concretas a la protección de la infancia
tos de la Convención muestran la evo- con el objeto de impedir la explotaci-
lución en la signiicación de la infancia, ón, el maltrato, la discriminación, y la
el desarrollo de una mayor sensibilidad exclusión de niñas y niños. También
hacia la misma, así como los retos aún se crea un Comité de los Derechos del
pendientes. Niño que supervisa la aplicación de la
En 1924 la Liga de las Nacio- Convención.
nes aprueba la Declaración de Ginebra La categoría sexo-género: La infan-
sobre los Derechos del Niño que es- cia va adquiriendo presencia en socie-

• 54 •
dades en cambio, y es en este proceso La teoría sobre el binomio
dinámico que se reconocen los dere- sexo-género permite explicar estos
chos de las niñas y de los niños como dos conceptos, describir que la pala-
derechos humanos universales e indivi- bra sexo es utilizada para designar los
sibles, aunque ello no es obstáculo para rasgos biológicos, y la palabra género
que diferencias como el origen geográ- para designar el modelo cultural atri-
ico y el territorio de vida, la étnia y la buido a cada sexo. Poner en relación
cultura, las vivencias de migración, las ambos conceptos lleva a comprender
características físicas y psicológicas, la que la persona es resultado de biología
clase social y el nivel económico de y del entorno sociocultural donde vive.
las familias, la formación de madres y Como explica Marcela Lagarde esta es
padres, entre otras diferencias, com- una teoría amplia que abarca hipótesis,
porten vivencias de desigualdad, no interpretaciones y conocimientos re-
de forma aislada, sino en interrelación lativos al conjunto de fenómenos his-
unas con otras. tóricos construidos en torno al sexo.
Las diferencias señaladas están Como categoría relacional correspon-
atravesadas –van acompañadas siem- de al orden sociocultural conigurado
pre– por la diferencia sexo que suma sobre la base de una sexualidad cons-
y agrava la situación de las mujeres y truida históricamente, de acuerdo a un
de los hombres, pues el sexo asociado orden que predetermina y clasiica a los
al género mantiene a las personas su- seres humanos en dos grupos: el feme-
jetas a proyecciones estereotipadas del nino y el masculino. Las diferencias de
ser mujer y del ser hombre. Es en este género no son biológicas, se van ges-
sentido que María Milagros Rivera air- tando y desarrollando en un proceso
ma que la diferencia sexual es una evi- histórico social que se construye y se
dencia del cuerpo humano, un hecho reproduce con la inalidad de natura-
conigurador de cada vida femenina o lizar la identidad sexual y la sexualidad
masculina, de sus potenciales, de sus (Lagarde, 1996). Es en el momento de
facultades, de sus posibilidades de exis- nacer que se activan procesos que van
tencia en el mundo y en la historia. Ello a ir moldeando y doblegando a niñas y
es así porque el sexo no sólo funda, a niños de acuerdo al tipo de mujer y
sino que la diferencia sexual anunciada de hombre que se considera adecuados
al nacer –es niña, es niño– acompaña en cada sociedad y época concretas.
durante toda la vida el cuerpo que una El entorno sociocultural, reair-
es y que uno es, marca para siempre la mado políticamente, actúa con la in-
historia de cada ser humano (Rivera, tencionalidad de imponer prototipos,
2005). es decir, la forma de ser de cada sexo –

• 55 •
el ser de mujeres y el ser de hombres–, solo grupo, el grupo mujeres o el gru-
determinando cuáles deben ser sus de- po hombres. Grupos separados entre
seos, sus valores y sus comportamien- si y deinidos homogéneamente, re-
tos en función del género femenino o chazando con ello que hay diferencias
del género masculino adjudicado. Tales entre las personas de un mismo sexo.
modelos de género –aparentemente Victoria Sau señala cuatro característi-
cambiantes pero manteniendo sus es- cas del género, no naturales sino cons-
tructuras estereotipadas– condicionan truidas, que abocan a tales vivencias.
y afectan la vida de mujeres y de hom- La primera relativa al hecho señalado
bres que, desde la infancia, se ven so- anteriormente, relativo a que en la es-
metidos a adoptar personalidades que pecie humana sólo se diferencian dos
condicionan y limitan sus identidades géneros que corresponde a dos sexos.
libres. A niñas y a niños se les obliga La segunda establece que el género es
a adoptar las características de un úni- vinculante, es decir, los géneros son si-
co modelo de género, y se les prohíbe métricos antitéticos dependientes uno
adoptar rasgos y funciones que se con- del otro. La tercera alude a la jerarqui-
sideran no apropiados al sexo biológi- zación de los géneros, estableciendo
co que se identiica al nacer, y cuando el femenino como el subordinado y
lo hacen son objeto de sanción. La el masculino como el dominante. Y la
transgresión del género, en el senti- cuarta se reiere a la estructura inva-
do de mostrar preferencia por rasgos riable, en el tiempo y en el espacio de
y adoptar comportamientos que son los géneros, pues aunque se produzcan
considerados como propios del otro variaciones se mantienen como direc-
sexo, el transitar por diferentes identi- trices reguladoras del ser mujer y del
dades, e incluso atreverse a deinir otras ser hombre (Sau, 2000).
nuevas no marcadas ni controladas a Impactos de discriminación de los
priori, recibe como respuesta el recha- géneros: Las relaciones que se estable-
zo social, la etiquetación marginadora cen desde el momento del nacimiento,
en base a normas estereotipadas que, junto a las expectativas que se anti-
como marcas referenciales, aprisionan cipan respecto a la niña y al niño no
y encapsulan. son neutrales. La historia muestra que
La diversidad de los seres hu- desde la primera infancia son las niñas
manos es negada, y las identidades di- las que sufren una mayor negación de
ferenciales son rechazadas cuando se los derechos de protección, provisión
prohíbe que cada niña y cada niño se y participación. Pero además, como se
desarrolle y se muestre como un ser ha indicado, las niñas y los niños que
único, abocando a formar parte de un no se ajustan al patrón normativizado

• 56 •
para su sexo –masculino o femeni- cho civil y político. Ello exige crear las
no– son estigmatizados y marginados. escuelas necesarias y garantizar la edu-
La diferencia es castigada con la des- cación como derecho social, económi-
protección y vulneración de derechos co y cultural asegurando la gratuidad y
humanos. Ello sucede a pesar que la la obligatoriedad. La accesibilidad exi-
propia Declaración Universal de los ge a los gobiernos no negar el acceso
Derechos Humanos de 1948 establece de todas las niñas y de todos los niños
que “todos los seres humanos nacen li- ; junto a ello crear las condiciones para
bres e iguales en dignidad y derechos” gozar de una formación no limitada
(Art. 1). Tal vulneración de derechos a una etapa de enseñanza obligatoria,
es mostrada en los informes anuales sino permanente a lo largo de la vida.
sobre la situación de la infancia en el La aceptabilidad demanda garantías de
mundo de organismos internacionales calidad para la educación, acompaña-
como UNICEF. Los informes cons- das de estándares mínimos de salud y
tatan que el sexo es diferencia que seguridad, y de requisitos de un saber
comporta experiencias de opresión, de ser y un saber hacer docente lleno de
violencia, de exclusión, especialmente profesionalidad. Por último la adapta-
vividas por las niñas. Nacer mujer con- bilidad exige que las escuelas se adap-
tinúa siendo diferencia que aboca a vi-
ten al principio del interés superior de
das más precarizadas, empobrecidas y
la niña y del niño incluido en la Con-
vulnerables.
vención de 1989 (Tomasevski, 2004).
El género actúa como detonan-
Estos cuatro elementos confor-
te de las situaciones diferenciales que
madores del derecho a la educación
viven las mujeres y los hombres en el
han de ser ejes de las políticas educati-
mundo, relejo de ello es la educación
cuyo derecho es mayormente negado a vas que deben tener en cuenta los im-
las niñas. Como señala Katarina Toma- pactos de género de las mismas. Ello es
sevski no puede existir un derecho sin necesario dado que las realidades his-
que existan las obligaciones guberna- tóricas y del presente muestran como
mentales correspondientes, sin que se los entornos educativos mantienen es-
deinan y pongan en práctica políticas tructuras de género que permean los
que garanticen una educación asequib- procesos de enseñanza y de aprendi-
le, accesible, aceptable y adaptable para zaje activando mecanismos sexistas ya
todas y todos. sean éstos explícitos u ocultos. No se
La asequibilidad, supone la obli- puede ignorar, además, que la prescrip-
gación de los gobiernos de garantizar ción de los géneros es beligerantemen-
el derecho a la educación como dere- te coercitiva, obliga a ser de acuerdo

• 57 •
un determinado modelo renunciando actúa sólo en el ámbito de la educaci-
a otros posibles. ón, sino en todos los ámbitos de la vida
Aprender en femenino, aprender en y de relación humana reproduciendo
masculino: Entre otros documentos, en el androcentrismo, es decir, el partir y
la Guía de Coeducación del Instituto de aplicar la creencia que el hombre es y
la Mujer dependiente del Ministerio de ha de ser la medida de todas las cosas.
Sanidad, Servicios Sociales e Igualdad Tal forma de pensar y actuar se pre-
de España, se diferencian las prácticas senta como verdad incuestionable e
que diicultan la igualdad de oportu- inamovible. Nacer hombre, y adoptar
nidades y se establece la coeducación el género masculino, se establece como
como modelo educativo orientado a la virtud, como parámetro de valor su-
justicia social. La coeducación recono- premo, mientras que nacer mujer es un
ce la diversidad de género y contempla desvalor. Para Eduardo Galeano ello
la escuela como un espacio no neutral muestra que vivimos una escuela de un
en el que se transmiten valores patriar- mundo al revés. Un mundo dividido
cales, asumidos como tradicionales, entre seres superiores –que ostentan
que contribuyen a aumentar las dife- el poder y ordenan– y seres subordina-
rencias entre mujeres y hombres. De- dos –que están desposeídos de poder
saprender tales concepciones precisa y obedecen–, porque unos nacen para
de una escuela coeducativa cuya ina- mandar y otras nacen para ser manda-
lidad sea la eliminación de estereotipos das. Tal situación evidencia relaciones
de género para superar las desigualda- marcadas por el género construido,
des sociales y las jerarquías culturales aunque determinados grupos se obsti-
entre mujeres y hombres (Instituto de nen en justiicarlas genéticamente (Ga-
la Mujer, 2008). En las sociedades del leano, 1998).
siglo veintiuno este enfoque pedagógi- Los modelos de género se na-
co no ha logrado suplantar totalmente turalizan, y se enseña que así es, y al
las concepciones segregadoras y mi- hacerlo se establecen dos mundos di-
xtas que reproducen fuertemente los sociados entre sí. Un mundo inferior,
modelos de género a través de prácti- el privado, habitado por las mujeres a
cas sexistas. las cuáles sólo se les permite cultivar el
El sexismo, entendido como el saber cotidiano y la sensibilidad; mu-
conjunto de métodos empleados en el jeres que desde niñas son instruidas
seno de una cultura patriarcal, mantie- para reproducir y acatar el rol de subal-
ne las relaciones de domino del mundo ternas y el deber de la sumisión. Y un
masculino sobre el femenino, el poder mundo superior, el público, habitado
de los hombres sobre las mujeres. No por hombres que sólo pueden cultivar

• 58 •
el saber cientíico y la razón; hombres intentan invertirse o modiicarse por
instruidos desde niños para producir y otras formas de relación distintas a los
para acatar el deber de asumir el poder modelos de género imperantes se ge-
y la obligación de oprimir. Dos mun- neran dos reacciones: por una parte,
dos separados que se fuerza a estar problemas para el poder patriarcal que
alejados uno del otro con la inalidad es cuestionado en su legitimidad; por
de determinar el ser y el estar de las
otra parte se muestran otras posibles
mujeres y de los hombres. Dos mun-
masculinidades y feminidades (Con-
dos que se encuentran encerrados en
nell, 2003).
sí mismos, en laberintos erráticos que
Estos movimientos abren la po-
no permiten su encuentro, abocando
sibilidad educativa de pensar los géne-
siempre a una única salida.
ros y sus impactos desde otras miradas
Como nos dice Mercedes Oli-
que postulan una diferencia sexual no
vera ello es así porque los géneros se
determinada. En esta perspectiva Ju-
reproducen de generación en genera-
dith Butler realiza una crítica a la idea
ción como parte del carácter transcen-
esencialista de que las identidades de
dente de las prescripciones culturales
género son inmutables y encuentran su
contenidas en diversidad de situacio-
arraigo en la naturaleza, en el cuerpo
nes de género, entendidas tales situa-
o en una heterosexualidad normativa y
ciones como las formas concretas en
obligatoria. Para la autora no hay una
que las mujeres viven la condición de
sola identidad, la identidad es plural
subordinadas: en el trabajo que reali-
y se puede viajar de una a otra. Pero
zan, en sus funciones sociales, en sus
además pertenecer a un género no im-
conductas, sentimientos, creencias e
plica una sexualidad, no están ligados,
intereses (Olivera, 2004: 22). De for-
pues se puede ser mujer y heterosexu-
ma complementaria Robert W. Connell
al, bisexual, lesbiana o sin sexualidad
considera que las situaciones de género
(Butler, 2007). Adoptar un género es
son vividas de forma diferente por los
vestirse de una forma determinada, las
hombres, pues como práctica social el
niñas de rosa y los niños de azul, y si
género se reiere a los cuerpos y a lo
bien al crecer y ser consciente ello, el
que éstos hacen, y se origina dentro de
“yo” puede sentirse bien –si la opción
estructuras deinidas de relaciones so-
es libre–, también puede generar mie-
ciales de poder, de producción y de de-
do que sujeta y oprime –ya sea porque
seo que se exige sean controladas por
es opción impuesta, ya sea por temer la
los hombres. Cuando estas situaciones
perdida de un lugar, de una identidad

• 59 •
que da seguridad y angustia al mismo los libros de texto y otros materiales
tiempo–. Desde la niñez se adopta un educativos y de ocio constituyen cana-
género concreto, y al hacerlo se apren- les de transmisión y fortalecimiento del
de a actuar a través de los mensajes del binomio sexo-género.
entorno, de lo que se prescribe y lo que No se nace mujer, no se nace
se prohíbe, de los roles y las funciones hombre. Se enseña y se aprende. Se
enseña a aprender por descubrimiento,
que se asumen.
ensayando, probando, experimentan-
Se aprende a ser mujer y a ser
do. También se enseña a aprender imi-
hombre a través de procesos de con-
tando, observando y copiando mode-
formación a las normas de modelos
los de referencia, haciendo aquello que
de género que se transmiten. Niñas y
se valora como positivo en las demás
niños van doblegándose a moldes este-
personas o que se espera sea premiado.
reotipados para encarnar culturalmen-
Y también se enseña a aprender obe-
te lo que se da por determinado bio-
deciendo las normas que el entorno no
lógicamente. Se enseña y se aprende
sólo muestra, sino que inculca y no deja
un sistema de género clasista que esta-
cuestionar ni transgredir, pues la no
blece y mantiene polarizaciones entre
obediencia es castigada. En cualquier
los dos sexos. Dicho sistema de clases
proceso de enseñanza-aprendizaje, sea
diferencia poderes –quién lo ejerce y
éste más autónomo o más directivo, lo
quién lo acata–; marca los espacios de
que se aprende es reforzado de forma
presencias y funciones sociales –qué
positiva o negativa por las personas
puede hacer cada sexo y dónde–; estab-
adultas en relación, pero también por
lece cómo deben ser las relaciones –de
el grupo de iguales, en función de si
dependencia o de autonomía–; y dicta
se ajusta o no a los modelos culturales
cuáles deben ser los intereses y proyec-
que se considera adecuados para las
tos de vida –se determina un presente
niñas y para los niños.
y un futuro separado–. La escuela y la
Desaprender, la apertura a otras for-
familia, el grupo de amigos y amigas,
mas de ser: Si la educación reproduce,
los medios de comunicación, el barrio,
también puede contribuir a transfor-
la ciudad o la comunidad donde vive la
mar. Es desde la educación que pueden
niña y el niño son entornos de inluen-
promoverse procesos para desapren-
cia. Educación formal, no formal e in-
der el género, pero ello exige revisar las
formal constituyen vías de enseñanza
concepciones que lo continúan legiti-
del género. El lenguaje, los contenidos
mando. Las que mantienen las diferen-
del currículum, la organización y ges-
cias en derechos y oportunidades entre
tión de las instituciones, los espacios y
los dos sexos en base a justiicaciones
ambientes de aprendizaje, los juegos,

• 60 •
biológicas. Las que también perpetúan que prescriben los modelos de género,
los modelos opuestos invirtiendo el sino también al currículum oculto que
valor de cada uno, es decir, a partir de los mantiene y los fortalece porque ac-
valorizar y engrandecer el género fe- túa en silencio y desde la invisibilidad
menino y desvalorizar y empequeñecer impune.
el género masculino. O las que con- Desaprender es quitar los velos
tinúan considerando el género feme- de todo lo que permea estereotipada-
nino como menor y deienden que la mente las diferentes esferas de vida,
igualdad se consigue cuando mujeres de relación y de aprendizaje de niñas
y hombres adoptan los rasgos del gé- y de niños. Es tomar conciencia que
nero masculino. Tales concepciones los géneros imponen limitaciones al
muestran variaciones en las formas de desarrollo personal de niñas y niños,
pensar y proyectar la categoría sexo-gé- porque niegan el aprendizaje libre en la
nero, pero son ejemplos que también infancia, y porque crean desigualdades
evidencian su permanencia. y obligan a vivir ciudadanías de prime-
Desaprender el género signiica ra y segunda clase, ciudadanías plenas
no construirlo desde el momento de y ciudadanías defectivas. Desaprender
nacer, no asignar modelos de género es volver a aprender, es tener voluntad
política y, como señala Madeleine Ar-
que diferencian expectativas, mensajes
not avanzar, ya desde la primera infan-
y actuaciones diferentes respecto a la
cia, en el desarrollo de una ciudadanía
niña o al niño. Desaprender es no cre- inclusiva que precisa de una educación
ar contextos de prohibición o de per- humanista que se posiciona ante las in-
misión, de facilitación o de inhibición justicias globales para acortar la brecha
en función de la identidad de género de las desigualdades basadas en la per-
que se quiere forjar. Desaprender es un petuación de modelos de género (Ar-
proceso de deconstrucción que exige not, 2009).
focalizar el género como un enfoque
y una forma de mirar y de analizar con Isabel Carrilo Flores
sentido político y, al mismo tiempo, su-
Referencias y Indicaciones
pone el reconocimiento que el sistema
sexo-género es reduccionista cuando ARNOT, Madeleine. Coeducando para una ciudadanía
es interpretado como una forma de en igualdad. Compromisos con las agendas globales y na-
cionales. Madrid: Morata, 2009.
clasiicación dual, ija, estática en el es-
BUTLER, Judith. El género en disputa: el feminismo y
pacio y en el tiempo. Desaprender es la subversión de la identidad. Barcelona: Paidós, 2007.
prestar una atención especial no sólo
CONNELL, Robert W. Masculinidades. México: Uni-
a los mecanismos y estructuras visibles versidad Nacional Autónoma de México, 2003.

• 61 •
GALEANO, Eduardo. Patas arriba. La escuela del mun-
do al revés. Madrid: Siglo XXI, 1998.
Aristóteles
INSTITUTO DE LA MUJER. Guía de coeducación.
Documento de Síntesis sobre la Educación para la Igual- A “natureza feminina” talvez o
dad de Oportunidades entre Mujeres y hombres. Madrid: mais poderoso discurso construído, é
Ministerio de Igualdad, 2008.
apresentada desde sempre como uma
LAGARDE, Marcela. Género y feminismo: desarrollo
humano y democracia. Madrid: Horas y Horas, 1996.
evidência dada, mas, segundo Fran-
çoise Héritier, “não existe instituição
LUZURIAGA, Lorenzo. Diccionario de Pedagogía. Bue-
nos Aires: Losada, 2001, 3ª edición. social que se baseie exclusivamente na
natureza. Todas são um efeito da arte,
NACIONES UNIDAS. Declaración universal de de-
rechos humanos. Disponible en http://www.un.org/es/ da invenção dos grupos, nos limites,
documents/udhr/ [Fecha de consulta: 20 de octubre de certamente, do fato biológico e na-
2013]
tural.” (HÉRITIER, 1996, p. 282). O
OLIVERA, Mercedes (coord.). De sumisiones, cambios y
rebeldías. Mujeres indígenas de Chiapas. Tuxla Gutiérrez:
equilíbrio do mundo, como o corpo
Universidad de Ciencias y Artes de Chiapas, 2004. humano, se funda em uma harmonia
REAL ACADEMINA ESPAÑOLA. Diccionario de len- desses contrários, e todo o excesso
gua española. Disponible en www.rae.es [Fecha de con- em um âmbito anuncia desordem e/
sulta: 18 de octubre de 2013.
ou enfermidade. Relações de poder
RIVERA, María-Milagros. La diferencia sexual en la his-
toria. Valencia: Universitat de Valencia, 2005.
ou juízos de valor demonstram carac-
terísticas apresentadas como naturais,
SAU, Victoria. Diccionario ideológico feminista. Volu-
men I. Barcelona: Icaria, 2000, 3ª edición.
e, portanto, irremediáveis, observáveis
no comportamento, como as “qualida-
SAU, Victoria. Diccionario ideológico feminista. Volu-
men II. Barcelona: Icaria, 2001. des” ou os “defeitos” femininos consi-
derados como marcados sexualmente.
SAVE THE CHILDREN. http://www.savethechildren.
es/ [Fecha de consulta: 10 de junio de 2013] Se recuarmos no tempo à pro-
TOMASEVSKI, Katarina. El asalto a la educación. Bar-
cura da construção inicial do discurso
celona: Intermón Oxfam, 2004. da “natureza feminina”, constatare-
UNICEF. Convención sobre los Derechos del niño. Dis- mos que ele foi deinido pelos gregos
ponible en http://www.unicef.es/infancia/derechos-del- no início da cultura ocidental, pensa-
-nino/convencion-derechos-nino [Fecha de consulta: 4
de septiembre de 2013] mento que condicionou nossa cultura,
sofrendo várias inlexões até o século
UNICEF. Estado mundial de la infancia. Disponible en
http://www.unicef.org/spanish/sowc/index_61804.html XVIII, quando o corpo feminino é
[Fecha de consulta: 20 de octubre de 2013]
destinado unicamente como “apto
VIDAL- BENEYTO, José (ed.). Derechos Humanos y para a maternidade”, para a reprodu-
diversidad cultural. Barcelona: Icaria, 2206.
ção. A normatização da deinição mé-
• dica cruza-se com uma preocupação
política do Estado: a do interesse pela

• 62 •
saúde dos seus cidadãos, a necessidade Para Aristóteles, a condição de
de cidadãos úteis e racionais. ser “cidadão” era dada àqueles que to-
Aristóteles (384 - 322 AC) um mavam parte na cidade. É dessa parti-
dos mais inluentes ilósofos gregos, cipação no culto que se originavam os
após a morte de seu pai Nicômano, direitos civis e políticos. Em Política,
médico do rei Amintas, ixou-se em airma que o desenvolvimento da ple-
Atenas, onde durante vinte anos ou- nitude humana só tem lugar na cidade:
viu as lições de seu mestre Platão. Em “Aquele que não pode viver em socie-
335 A.C. fundou o Liceu, denominado dade, ou não necessita de nada para so-
também de escola peripatética, porque breviver, é uma besta ou um deus.”(A-
o mestre dava suas aulas passeando RISTÓTELES, 1960, p. 124). Na casa
com os alunos. que é a unidade primeira da cidade, e
Suas obras de lógica, reunidas que deve constar de escravos e livres,
sob o nome de Organon, fundam a encontramos três tipos de relações:
teoria do conhecimento; as obras de amo e escravo, marido e mulher e pai
ilosoia natural aliam uma mistura de e ilho.
observações empíricas e de exigências As relações marido-mulher e
racionalistas. O tratado Do Céu inau- pai-ilho diferem da relação amo-escra-
gura a cosmograia, assim como A vo, porque este por natureza não per-
Metafísica funda a física numa teolo- tence a si mesmo. Porém, a justiicação
gia, numa teoria de Deus como motor da autoridade é baseada no princípio
do universo. Em Ética a Nicômano e de que “o macho é mais apto para a
Política, Aristóteles demonstra a im- direção do que a fêmea e o velho mais
portância da prática em moral, o papel apto do que o jovem”, portanto, a mu-
do meio geográico, econômico e so- lher deve ser governada como se go-
cial. Sua obra Das Partes dos Animais, verna um cidadão; porém, sem haver
é considerada por muitos como o pri- alternância no poder, porque a mulher
meiro tratado de anatomia e isiologias não tem autoridade. Na teoria política
comparadas. de Aristóteles, a natureza deine quem
Aristóteles concebe o ser huma- manda e quem obedece:
no como um ser racional, dotado de Distinguir mulher e escravo era
razão e a sua felicidade consiste em vi- uma tarefa difícil já que o ilho subor-
ver de acordo com a razão. Sua impor- dinado ao pai tornar-se-ia um adulto.
tância na ilosoia, que atravessa os sé- Pergunta-se: qual a diferença entre a
culos e chega nos tempos atuais como ausência de faculdade deliberativa do
escravo e a ausência de autoridade na
um dos ilósofos mais respeitados, é
mulher? Para os gregos, e Aristóteles
decorrente das obras citadas acima.
em especial, a inferioridade feminina
• 63 •
se dá em todos os planos “ anatomia, pronunciadas; tem também o pêlo mais
isiologia, ética. Mas o que dizer do ino nas espécies que possuem pêlo, e,
mundo ocidental onde ainda estes dis- nas que os não possuem, o que faz as
cursos são o que de melhor se disse, o suas vezes. As fêmeas têm igualmente
que de melhor se pensou sobre o ser a carne mais mole que os machos, os
humano? joelhos mais juntos e as pernas mais
No seu tratado sobre os ani- inas. Os seus pés são mais pequenos,
mais, Aristóteles entrega-se a um nos animais que têm pés. Quanto à
longo exame dos corpos femininos. voz, as fêmeas têm-na sempre mais
Conhecendo mais de quatrocentas fraca e mais aguda, em todos os ani-
espécies zoológicas, Aristóteles tenta mais dotados de voz, com excepção
descrevê-las e compará-las servindo- dos bovinos: nestes, as fêmeas têm a
-se de duas categorias, a do gênero e voz mais grave que os machos. As par-
a da espécie, genos e eidos. Para todos tes que existem naturalmente para a
os seres que não nascem por geração defesa, os cornos, os esporões e todas
espontânea, quer dizer, da terra úmida a outras partes deste tipo pertencem
ou de substâncias em decomposição, em certos géneros aos machos, mas
existem fêmeas. não às fêmeas. Em alguns géneros, es-
Segundo Aristóteles, há duas tas partes existem em ambos, mas são
maneiras de deinir as características mais fortes e desenvolvidas nos ma-
dos corpos femininos: a analogia e a chos.”(ARISTÓTELES, apud SISSA,
inferioridade relativamente aos corpos 1993, p. 102).
masculinos. Por um lado, a diferença O tamanho do cérebro, a dife-
entre machos e fêmeas é uma relação rença entre homens e mulheres, con-
de correspondência: onde os machos ceito utilizado durante muito tempo
possuem um pênis, as fêmeas apresen- para caracterizar a mulher como um ser
tam um útero, “que é sempre duplo, inferior intelectualmente, e demons-
do mesmo modo que, nos machos, os trar a maior inteligência dos homens,
testículos são sempre em número de é inaugurado nos textos de Aristóteles
dois” (ARISTÓTELES, 1961, p. 5). sobre As Partes dos Animais: “Entre
Na História dos Animais, a compara- os animais, é o homem que tem o cére-
ção entre masculino e feminino é rea- bro maior, proporcionalmente ao seu
lizada salientando-se as suas diferenças tamanho, e, nos homens, os machos
e a mulher aparece com o corpo mais têm o cérebro mais volumoso que as
débil, mais fraco: “A fêmea é menos fêmeas. (...) São os machos que têm o
musculada, tem as articulações menos maior número de suturas na cabeça, e

• 64 •
o homem tem mais do que a mulher, Animais. A mãe fornece o material ina-
sempre pela mesma razão, para que nimado e passivo que é o sangue mens-
esta zona respire facilmente, sobretudo trual: “Quando o resíduo seminal da
o cérebro, que é maior.” (ARISTÓTE- menstruação sofreu uma cocção con-
LES, 1957, p. 41). veniente, o movimento que provém do
Comparando a mulher com macho far-lhe-á tomar a forma que lhe
uma criança, doente por natureza, en- corresponde. (...) De maneira que, se o
velhecendo mais rapidamente porque movimento dominar, fará um macho e
“tudo o que é pequeno chega mais ra- não uma fêmea, e o produto asseme-
pidamente ao seu im, tanto nas obras lhar-se-á ao gerador mas não à mãe; se
de arte como nos organismos natu- não dominar, toda a potência que lhe
rais”, Aristóteles não cansa de repetir falta faltará igualmente no produto.”
que as fêmeas são mais fracas e mais (ARISTÓTELES, 1961, p. 147).
frias e, por natureza, apresentam uma É na questão da geração que
deformidade natural. Os seios, que são Aristóteles anula o papel da mulher,
maiores nas mulheres que nos homens retira-lhe o trabalho de criadora (é o
não escapam ao olhar observador do sêmen que desempenha a função do
ilósofo, que, comparando-os com os artista, porque constitui em si, poten-
músculos peitorais do tórax masculino, cialmente, a forma), estabelecendo a
“carne compacta”, considera-os como menoridade e a inferioridade femini-
intumescências esponjosas, capazes de na, assim como uma perversidade que
se encherem de leite, mas moles e rapi- advém de seu sexo. A própria forma
damente lácidos. côncava da madre criaria um desejo
Assim como Hipócrates, Aris- mais violento, explicável pelo princípio
tóteles também preocupa-se com o natural do horror ao vácuo. Mas, entre
sangue menstrual. É porque a mulher é todas as fêmeas, a mulher e a jumenta
um ser impuro que ela sofre esta catar- atingem, com este ilósofo, o extremo
se através da menstruação: “Num ser da lubricidade, pois tinham a particu-
mais fraco deve necessariamente pro- laridade de serem as únicas que se en-
duzir-se um resíduo mais abundante e tregavam ao coito durante a gravidez.
cuja cocção é menos elaborada”. Este Enquanto Hipócrates atribui
sangue produzido por uma falta de ca- semente quer ao macho quer à fêmea,
lor, sinal da frieza feminina, constitui contribuindo ambos para a formação
a contribuição do animal fêmea para de um novo ser, em Platão e Aristóte-
a concepção de uma criança, defende les a mulher é vista como inferior, não
o ilósofo no Tratado da Geração dos tendo um papel relevante na geração:

• 65 •
“Em consequência da sua juventude, truções textuais como o relato bíblico
da sua velhice ou de qualquer outra da criação e a queda do paraíso ou o
causa(...) dá forma a um produto im- Tratado da geração dos animais de
perfeito, defeituoso, de segunda esco- Aristóteles. Este ilósofo, em especial,
lha. (...) Aquele que não se assemelha exercerá uma grande inluência que
aos pais é já, em certos aspectos, um ainda se mantém viva na tradição da
monstro (teras): porque, neste caso, a teologia e da ilosoia escolástica pre-
natureza afastou-se, em certa medida, sente na Igreja Católica.
do tipo genérico (genos). O primeiro A supremacia masculina foi air-
desvio é exactamente o nascimento de mada baseando-se em textos de investi-
uma fêmea em vez de um macho.”(A- gação cientíica, para proteger a família
RISTÓTELES, 1957, p. 167). e a ordem social. Mesmo autores que
Na sua relação com o homem, repudiam a “imperfeição natural” da
tanto em Platão como em Aristóteles, mulher e airmam a igualdade entre os
a mulher é vista como um desvio, uma dois sexos, não fogem ao pensamento
“defeituosidade natural”. “O que é que comum em designar às mulheres um
forçou a que o pensamento que Platão papel de complementaridade: “o des-
e Aristóteles nos dessem sistematica- tino mais profundo da mulher é ser
mente uma imagem, uma concepção companheira do homem”, ou “encon-
negativa da mulher?”pergunta Teresa tra-se completamente sob a determi-
Joaquim. Estes dois ilósofos, segun- nação da natureza e, por consequência,
do ela, recolheram e transformaram só esteticamente é livre: num sentido
a tradição literária, médica e cientíica mais profundo, só se torna livre atra-
em relação à mulher e a sistematizaram vés do homem.” (KIERKEGAARD,
em seus sistemas explicativos, caracte- 1968, p. 153).
rizando o homem como o criador da
ordem social e a mulher excluída des- Ana Maria Colling
ta ordem. Um é criador da ordem; da
lei, a outra está do lado do desejo, da Referências e sugestões de leitura
desordem: “É sobre estas clivagens ARISTÓTELES. Les parties des animaux. Paris: Les Bel-
simbólicas que se vai fundar a própria les Lettres, 1957.
sociedade.” (JOAQUIM, p. 85). ______. Política. São Paulo: Atena, 1960.
Os discursos sobre a imagem
______. De la génération dês animaux. Paris: Les Belles
da mulher, sua representação, deiniam Lettres, 1961.
não somente normas de comporta-
HÉRITIER, Françoise. Do Poder improvável das mulhe-
mento, como normas jurídicas e pre- res. In: As Mulheres e a História. Lisboa: Dom Quixote,
ceitos morais, referendados por cons- 1995.

• 66 •
______. Masculino/Femenino. El pensamiento de la di-
ferencia. Barcelona: Ariel, 1996.

JOAQUIM, Teresa. Menina e Moça. A construção social


da feminilidade. Lisboa: Fim de Século, 1997.

KIERKEGAARD, Soren Aabye. O conceito de angústia.


Lisboa: Hemus, 1968.

SISSA, Giulia. Filosoias do gênero: Platão, Aristóteles e


a diferença dos sexos. In: História das Mulheres no Oci-
dente. v. 3. Porto: Afrontamento, 1993.

• 67 •
Beauvoir, Simone

Alguns aspectos biográicos de


Simone de Beauvoir fazem-se necessá-
rios para contextualizar sua obra. Sua
infância transcorreu de acordo com
os valores morais de sua época. Po-
rém, aos 19 anos, ela já confessava à
sua melhor amiga, Zaza, dúvidas sobre
qual seria o seu futuro. Em um de seus
diários, registrou que seu pai, após per-
der muito dinheiro com investimentos,
declarou com muito pesar a ela e à sua
irmã Helène que nunca se casariam por
não possuírem dote. Portanto, teriam
que trabalhar e não seriam obrigadas
a casar com um marido pertencente à
alta sociedade e ter ilhos. (ROWLEY,
2006). Ao contrário do que parte da
literatura airma, o trabalho feminino
não constituía uma exceção. Situação
cada vez mais corrente nos meios ru-
rais e urbanos da primeira metade do
século XX, em França, entre 1906 e
1946 as mulheres representaram entre
36 e 38% da população ativa (SOHN,
1991, p.119) No entanto, a condição
feminina era vista como uma barreira
para o trabalho intelectual. Na contra-
mão dessa tendência, a jovem Simone,
de origem burguesa e que estudara em
colégio católico, e que assistira ao de-
clínio social de sua família, tornou-se
professora de ilosoia aos 21 anos ao
ser aprovada no agregátion (concurso
público que garantia cargo vitalício de
professora no sistema francês de ensi-

• 68 •
no). No processo seletivo de 1929, o ciando as gerações posteriores, espe-
primeiro colocado foi Jean Paul Sartre, cialmente aquelas vinculadas à intelec-
que ela conhecera ainda nos exames tualidade feminista. A obra integra o
preparatórios para o concurso. projeto de Beauvoir de um existencia-
Vinte anos depois, em 1949, lismo impregnado de humanismo e a
com a publicação de O Segundo Sexo (Le provocação inicial do livro, “que é uma
deuxième sexe) (SS), Simone de Beau- mulher?” (SS I, 7), expressa uma ina
voir aparece ao grande público como articulação dos conceitos de situação,
uma pensadora original. É possível liberdade, transcendência e justiicação
que o livro, produzido no período do normativa com o movimento da auto-
pós-guerra, seja o resultado de uma ra em compreender a si e às mulheres
tomada de consciência da própria iló- como possiblidade de superação livre
sofa sobre a sua condição de mulher de sua situação existencial na transcen-
em meio a um conlito que provocou dência do discurso ilosóico. O modo
mutações nas relações de gênero. Em como a autora começa seu texto, “he-
todo o continente europeu, mas es- sitei muito tempo em escrever um li-
pecialmente em França, o período da vro sobre a mulher. O tema é irritan-
Guerra e os anos subsequentes evi- te, principalmente para as mulheres”
denciaram desequilíbrios nas relações (Idem), assume o inevitável da ilosoia
de gênero. As punições para as mulhe- a que se ilia: a existência humana é a
res que foram consideradas colabora- livre assunção, ou negação, das possi-
doras do Eixo é um exemplo: muitas bilidades de justiicar-se em projetos
que tiveram suas cabeças raspadas em sempre dinâmicos e intersubjetivos
verdadeiras cerimônias públicas. Para que são o fato mesmo dessa liberda-
outras tantas, envolvidas diretamente de situada em seu exercício. É o peso
no conlito (enfermeiras, militantes da ontológico que Beauvoir dá à situação
resistência francesa), o im da guerra que singulariza seu pensamento. Veja-
signiicou a tentativa de retorno à nor- mos como isso sustenta o projeto de O
malidade: ao cotidiano feminino nos Segundo Sexo.
esperados papeis de esposas, mães ou, A noção de situação opera, na
no máximo, trabalhadoras associadas a ilosoia do século XX, como uma re-
proissões típicas de seu sexo. (QUÉ- cusa a toda essência que pretendesse
TEL, p.238). antecipar algum conteúdo ao fato con-
O livro de Beauvoir, que so- creto do existir humano. Os escritos
mente em Francês vendeu mais de de Beauvoir anteriores a 1949 e que
um milhão e meio de cópias, marcou versam sobre a moral – Pirro e Cinéas
o pensamento do século XX, inluen- (1944) e Por uma moral da ambiguidade

• 69 •
(1947) – apresentam a sua relexão so- que isso é propriamente o que o ser
bre a liberdade de modo que o referen- humano não é, a pergunta inicial “que
cial situacional funciona como exigên- é uma mulher?” só pode ser colocada
cia de uma justiicação normativa para de modo autêntico – entenda-se, ex-
a liberdade. Ao recusar as concepções pressada situacionalmente – por uma
abstratas e absolutas da liberdade in- mulher que tenha assumido livremen-
dividual, Beauvoir enraíza-a no movi- te sua situação como um dado: é-se
mento de transcendência do existente mulher. Esse é, para Beauvoir, um
em direção ao seu próprio sentido de primeiro dado que cumpre conside-
existir, quando a conirmação inter- rar, ainal, diferente dos homens (aqui
subjetiva do mundo justiica ou nega o sempre entendidos como os machos
valor-conteúdo da ação humana indivi- do gênero humano), sempre que uma
dual cuja liberdade valora o mundo. Na mulher expressa-se tem que declarar-
valoração pela ação, o indivíduo recusa -se mulher (SSI, 9) e isso porque, a
o nada e o sem sentido que arrebatam este dado, junta-se outro a partir do
sua existência quando confrontada qual ele se constitui como singular: se
com a initude e, simultaneamente, en- aos homens essa declaração não é uma
contra-se irremediavelmente situado exigência é porque “o fato de ser um
nas multi-valências de sua existência homem não é uma singularidade [...] há
que precisa ser decidida e assumida, ou um tipo humano absoluto que é o tipo
negada, como liberdade. Esta “moral masculino” (SSI, 9-10). Toda a investi-
existencialista” já seria uma contribui- gação sobre a mulher descreverá o dra-
ção suiciente da autora para um dos ma dos movimentos de interrogação,
problemas dessa ilosoia, aquele que relexão e superação desta situação de
se pergunta sobre a possibilidade de estar posta como um indivíduo, se não
uma liberdade individual que não seja derivado, relativizado em face de outro
absoluta, mas que continue sendo li- indivíduo que se tornou soberano ab-
vre; e de uma existência que não esteja soluto de seu gênero.
votada, de antemão, ao niilismo ou ao É no drama desta oposição que
absurdo. Beauvoir sustenta a crítica que permeia
No SS, Beauvoir airma que toda a obra: a alocação do feminino
“todo ser humano concreto sempre se sob a categoria da alteridade. A alteri-
situa de um modo singular... [e] nenhu- dade do Outro está em seu modo de
ma mulher pode pretender sem má-fé ser singular como o que não integra o
situar-se além de seu sexo” (SSI, 8): sentido que se airma como um abso-
assim como não há sentido em tratar- luto; ao mesmo tempo, a alteridade do
-se de um ser humano abstrato, por- Outro é um elemento essencial para

• 70 •
que um absoluto possa airmar-se en- concreta. A submissão das mulheres
quanto tal. Essa dialética Eu-Outro, é investigada pela autora como o re-
segundo a autora, remonta à estrutura sultado concreto da ação de homens
original da consciência humana, seja e mulheres em seu drama existencial
no modo como Hegel a descreveu, seja que é, simultaneamente, individual e
como aparece nas investigações histó- intersubjetivo. É dentro desse marco
ricas e antropológicas levadas a cabo, interpretativo que Beauvoir airma que
por exemplo, por Lévy-Strauss e a par- o corpo feminino, identiicado em sua
tir dele (Cf. SSI, 11s), mas a questão é situação com o seu sexo, submete-a ao
saber como e por que essa polarização macho como realização das inalidades
está assim estabelecida na realidade hu- relativas ao prazer e à reprodução (SSI,
mana, engendrando posições relativas 25-57); mas é igualmente esse corpo,
de soberania aos homens e de submis- historicamente submetido pelas condi-
são às mulheres? O primeiro volume ções materiais da espécie na pura bio-
do SS, ao tratar dos Fatos e mitos sobre a logia, que furta-a à superação de sua
condição histórica da mulher e mesmo condição débil, “houvesse a mulher
sobre a sua origem conhecida, descre- realizado com o homem a conquista da
ve a dialética dessa relação vivida pelos Natureza, a espécie humana ter-se-ia,
dois polos no interior de um gênero e então, airmado contra os deuses atra-
que os constitui reciprocamente. Esse vés dos indivíduos de ambos os sexos.
movimento constitutivo das identi- Mas a mulher não soube tornar suas as
dades vai-se dando na extensão e no promessas da ferramenta. [...] O que
signiicado, emancipador ou de sub- lhe foi nefasto foi o fato de que, não se
missão, como as possiblidades abertas tornando um companheiro de trabalho
pela situação no mundo são vividas pe- para o operário, ela se viu excluída do
los homens e pelas mulheres: o com- mitsein humano” (SSI, 98).
plexo biológico-material-psíquico dos Se o ser humano não é com-
indivíduos situa-os como dados em preendido alheio a sua situação e nela
um mundo que também é dado, mas vive concretamente como liberdade,
o modo da sua ação revela o direciona- então os marcos biológicos e históri-
mento da sua existência – o seu sentido cos (materiais ou psíquicos) são cons-
– para emancipar-se do ou submeter-se tituídos por essa duplicidade do dado
ao dado. É nestes termos que Beauvoir e do desejado, ou do ser como situa-
concebe a liberdade: os seres humanos ção e do ser como vir-a-ser, da possi-
são igualmente livres, mas de um modo bilidade que é, também, situação. Para
concreto, não abstrato, porque sempre Beauvoir, a situação humana é circuns-
referidos à sua situação: a liberdade é crita, simultaneamente, pelo dado e

• 71 •
pela transcendência do dado na ação quem ela é signiica separar, de início,
humana livre, que realiza-se como mé- o existente mulher da sua ação, única
dium entre o dado e a realidade, ela é instância em que a sua verdade como
sentido. Assim, o dado biológico não um existente pode ser desvelada. Mas
tem realidade além do seu caráter de signiica, também, encobrir que a su-
dado e o seu sentido [de realidade] jeição da mulher à condição mítica de
depende do assumir do sentido; esse ser o Outro misterioso que não se dei-
assumir, por sua vez, é livre, e nele a xa penetrar em seus mistérios, porque
humanidade transcende sua situação, sua essência é mistério, é a condição da
ou sucumbe à sua imanência. É sob manutenção da posição mítica do ho-
essa ótica que Beauvoir analisa os Mitos mem como soberano Absoluto.
sobre a mulher como racionalizações O segundo volume da obra não
justiicadoras da sua situação. Através poderia abrir senão com o mais difun-
deles, os seres humanos, ao invés de dido slogan feminista, “Ninguém nasce
superarem a divisão dos sexos como mulher: torna-se mulher” (SS II, 9).
destino natural, narram a irreversibi- O tornar-se mulher é ali proposto por
lidade desse destino em que a mulher Beauvoir nas experiências vividas por
apenas desenvolve a sua essência femi- homens e mulheres nas dimensões do
nina. A pergunta feita de início “o que indivíduo e da vida social que o efeti-
é a mulher?” já denunciava o perigo do vam, que o alçam à condição de real.
problema ser colocado nesta forma: Seja nas instituições formadoras, seja
ela orienta-se para uma resposta em nas diversas possibilidades da vivência
que a objetivação da mulher em uma presente, mulheres e homens forjam-
essência feminina parece inevitável, e -se em sua identidade individual na
certamente o faz porque a situação em relação que a sua liberdade estabelece
que Beauvoir pensou e escreveu O Se- com a liberdade daqueles com quem
gundo Sexo é de suspeição e descrença convivem. De modo semelhante como
sobre a suiciência daqueles mitos. Ao ser sexuado é um dado que não está
inalizar o primeiro volume, Beauvoir ao alcance das determinações individu-
diz que não “se deve confundir o mito ais, também a resolução da signiicação
com a apreensão de uma signiicação; desse ser sexuado em sua singulari-
a signiicação é imanente ao objeto; ela dade não está determinada antes que
é revelada à consciência numa experi- o indivíduo assuma a sua situação no
ência viva, ao passo que o mito é uma sentido de reforçá-la ou de superá-la.
ideia transcendente que escapa a toda Daí a importância que a autora atribui
tomada de consciência” (SSI, 301), por ao trabalho como meio de conquista
isso, perguntar(se) a uma mulher sobre da autonomia para os seres humanos

• 72 •
e para a mulher em especial. É a sua transcendência. Um último e não me-
sujeição econômica mais elementar, às nos grave resquício da diferença sexual
vezes ao nível da sobrevivência, que como inferioridade e debilidade é a in-
impedem a mulher de romper com a capacidade moral a que a irresponsabi-
excessiva preocupação de si que aco- lidade, sempre associada ao feminino
mete um ser humano em dependência. seja pela autovitimação da mulher, seja
É pelo trabalho que o gênero humano pelo desprezo masculino, encarna na
criou-se e renova-se na independência mulher. Enquanto o gênero humano
e autonomia com relação a tudo o que for um, marcado pela diferença sexual,
o submete ou mistiica e que infanti- e esta aninhada numa relação de do-
liza-o. A conquista do trabalho como minação mistiicadora, é a moralidade
produção de autonomia, ainda que não como justiicação racional e efetivação
seja suiciente, é condição indispensá- da liberdade humana que seguirá coxe-
vel para que as mulheres experimen- ante.
tem e exercitem-se em situações de No campo dos estudos feminis-
efetivo desaio que as façam romper tas, talvez a mais relevante contribui-
com o destino que, até então, lhes foi ção de Beauvoir tenha sido transportar
determinado. “Foi pelo trabalho que a o debate sobre as hierarquias entre os
mulher cobriu em grande parte a dis- sexos – antes centrado na biologia -
tância que a separava do homem; só o para a arena da história. É, portanto,
trabalho pode assegurar-lhe uma liber- através do estudo das sociedades que
dade concreta” (SS II, 449), mas Beau- a ilósofa se propôs a compreender o
voir assinala, também, que a libertação modo como as mulheres foram histo-
no plano econômico não implica de ricamente associadas à fragilidade e à
modo imediato “uma situação moral, inferioridade. Para Beauvoir, diferen-
social e psicológica igual a do homem” ças biológicas, como a capacidade de
(SS II, 451) e é no plano deste acrés- gestar e amamentar, foram cultural-
cimo de libertação que o projeto de mente associadas a funções inferiores.
uma humanidade igualada sexualmen- Como resultado, as próprias mulheres
te precisa orientar-se. As ambivalências reconheceriam o universo como obra
vividas pela “mulher independente” masculina e não se considerariam res-
trazem, segundo a autora, como maior ponsáveis, porque sua experiência não
risco e efetivo prejuízo, a permanência lhes ensina a ser sujeito. E para sair da
da mulher numa atitude irresponsável condição de objeto, a mulher deveria
com relação à si como indivíduo e, por ultrapassar este dado de inferiorida-
isso, incapaz de responsabilizar-se com de corporal. (COLLIN, 1991) Se, por
um projeto humano orientado pela um lado, o livro SS explicitava a con-

• 73 •
dição feminina como de objeto e não preconceitos e valores que impedissem
de sujeito, por outro apontava que o o pleno desenvolvimento humano.
ser humano é capaz de modiicar a Para ela: “Libertar a mulher é recusar
própria natureza. Então porque não encerrá-la nas relações que mantém
seria capaz de mudar a própria reali- com o homem, mas não as negar; ain-
dade histórica? Nessa perspectiva, a da que ela se ponha para si, não deixará
libertação da mulher ocorreria princi- de existir também para ele: reconhe-
palmente através do trabalho, mas em cendo-se mutuamente como sujeito,
um mundo no qual o trabalho não seja cada um permanecerá – entretanto –
sinônimo de exploração. Não bastaria um outro para o outro”. (1980, p. 500)
mudar as leis, os costumes, as institui-
ções para que mulheres e homens se Giovana Dalmás
Natália Pietra Méndez
tornassem iguais. Seria preciso uma
mudança individual, uma nova huma-
Referências e sugestões de leitura
nidade, que, desde a infância, educasse
meninos e meninas com as mesmas BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro:
possibilidades de futuro. Nota-se, por- Nova Fronteira, 1980. 1, 2 v.

tanto, que a condição de sujeito de sua COLLIN, Françoise. Diferença e diferendo. A ques-
própria história seria determinada pelo tão das mulheres na Filosoia. In: PERROT, Michelle;
DUBY, Georges; THÉBAUD, Françoise. História das
acesso à educação e ao trabalho. En- Mulheres no Ocidente. O Século XX. Porto: Edições
quanto o homem era educado para ser Afrontamento, 1991.

ativo, Beauvoir concluía que a mulher ROWLEY, Hazel. Tête-à-Tête. Rio de Janeiro: Objetiva,
era educada a ser passiva e aprender a 2006.

aguardar o amor, a não perder sua fe- SOHN, Anne-Marie. Entre duas guerras. In: PERROT,
minilidade: “Hoje, graças às conquistas Michelle; DUBY, Georges; THÉBAUD, Françoise. His-
tória das Mulheres no Ocidente. O Século XX. Porto:
do feminismo, torna-se dia a dia mais Edições Afrontamento, 1991.
normal encorajá-la a estudar, a praticar
QUÉTEL, Claude. As mulheres na guerra (1939-1945).
esporte; mas perdoam-lhe mais que ao São Paulo: Larousse do Brasil, 2009.
menino o fato de malograr; tornam-

-lhe mais difícil o êxito, exigindo dela
outro tipo de realização: querem, pelo
Beleza e gênero
menos, que ela seja também uma mu-
lher, que não perca sua feminilidade”.
Qual a importância da beleza
(1980, p.23)
para a mulher? Ela é mesmo funda-
Beauvoir pode ser considerada
mental? O ideal de beleza é sempre o
uma intelectual engajada em um ideal
mesmo ou varia historicamente? A be-
libertário que consistia na abolição de
leza é opressiva para as mulheres?

• 74 •
Poder e inteligência são consi- que a do belo, só que, sem se alternar
derados, normalmente, atributos eró- com esta ou ser por ela acompanhada,
ticos masculinos e beleza e juventude, cansa, e não pode ser desfrutada por
atributos eróticos femininos. As vir- muito tempo.
tudes femininas tradicionalmente não A ciência da beleza: Nancy Etcoff
estão ligadas ao espírito ou à inteligên- publica em 2000 um livro que se tor-
cia, mas à beleza do corpo. Segundo nou um best seller nos Estados Uni-
o ilósofo Immanuel Kant, a mulher dos chamado Survival of the Prettiest, the
poderia chegar a ser inteligente e des- Science of Beauty (1999). O livro contém
tacar-se nas artes e ciências, contudo, uma tese trivial e outra polêmica. A
com isso ela despertaria apenas respei- trivial é que os homens preferem as
to do homem, mas não mais seu amor mulheres mais bonitas, a inteligência
e perderia todo o poder que ela pudes- sendo indiferente ou negativa para a
se ter sobre o sexo forte. Tal é dito no escolha de uma parceira. As mulheres,
texto Observações sobre o sentimento do belo por sua vez, preferiam homens com
e do sublime “O estudo laborioso ou a status, poder ou dinheiro. As garotas
especulação penosa, mesmo que uma mais bonitas da high school (ensino mé-
mulher nisso se destaque, sufocam os dio americano) são aquelas que con-
traços que são próprios a seu sexo; e seguem marry up, casar com homens
não obstante dela façam, por sua sin- acima do seu nível social.
gularidade, objeto de uma fria admira- Etcoff cita um experimento
ção, ao mesmo tempo, enfraquecem os realizado pelo antropólogo John Mar-
estímulos por meio dos quais exerce shall Townsend (TOWNSEND &
seu grande poder sobre o outro sexo” LEVY, 1990). Foram mostrados aos
(Kant, 2000, p 49). homens três fotos de mulheres e às
Ao dizer que a mulher relacio- mulheres três fotos de homens, cada
na-se ao belo, Kant não nega a relevân- foto representando pessoas de belezas
cia do seu papel na sociedade, nem a desiguais e a cada pessoa foi atribuída
reduz a um papel doméstico. Ela deve uma proissão de status sócio econô-
frequentar os salões e deixá-los mais mico diverso (garçonete/ garçom, pro-
leves com sua presença, servindo de fessora/professor e médica/ médico).
contraponto à seriedade dos assuntos Foi perguntado aos participantes das
masculinos: O belo feminino deve ser- pesquisas com quais dessas pessoas
vir como uma pausa ao sublime mas- eles gostariam de sair, de fazer sexo,
culino, pois aqueles que combinam namorar e de casar. As mulheres prefe-
ambos os sentimentos descobrem que riam o homem mais bonito e com mais
a comoção do sublime é mais poderosa dinheiro, mas, abaixo desses, médicos

• 75 •
não atraentes recebiam a mesma pre- A tese polêmica do livro é que
ferência que professores muito atra- a beleza não atende essencialmente a
entes. No caso do homem, mulheres padrões culturais, mas a simetrias da
não atraentes isicamente nunca eram espécie e que as mulheres bonitas se-
preferidas, independentemente do seu riam preferidas pois seus traços har-
status social. mônicos indicariam um melhor poder
Segundo Etcoff essa é uma das reprodutivo. Analogamente, homens
experiências que mostra a preferência com poder, dinheiro, saber, garanti-
do homem pela beleza, independente riam à prole um melhor sustento. Eu
do status socioeconômico e a prefe- chamaria esta tese de evolucionista, a
rência das mulheres pelo status socio- qual fundamenta, na biologia evolucio-
econômico. Tal fato explicaria porque nista, as preferências dos homens por
as executivas de uma grande empresa, mulheres jovens e bonitas e das mu-
segundo a autora, poder-se-iam sentir lheres por homens com poder e status.
atraídas pelo seu secretário, personal Parece que, como crítica a uma teoria
trainer ou servente e teriam diiculda- de que tudo era cultural, entramos
des para lidar com esses sentimentos, agora numa era na qual tudo passa a
enquanto para os homens o status in- ser biológico. O fundamento biológi-
ferior da mulher não se constitui num co, frente a um fundamento cultural,
obstáculo, podendo até mesmo ser um apresenta uma certa diiculdade para
incentivo, já que os homens considera- qualquer tentativa de mudança de pa-
riam, segundo a autora, mulheres que drão, pois continuaríamos tendo as
ganham mais do que eles menos atra- mesmas preferências dos homens das
entes. cavernas, visto que não houve nenhu-
Etcoff coloca-se como oposito- ma mutação signiicativa desde então.
ra às feministas, tais como Naomi Wolf, Etcoff não reduz suas airmações a ca-
que defendem ser a beleza um produto sais heterossexuais, tentando mostrar
cultural que mantém a dominância do que as preferências masculinas pelo
macho. Iniciando seu livro com uma belo e femininas pela inteligência per-
citação de Aristóteles de porque se de- manecem mesmo em casais do mesmo
seja a beleza física (“Ninguém que não sexo. Assim, em casais homossexuais
é cego poderia fazer essa pergunta”), masculinos, a beleza seria um atributo
ela faz um elogio da beleza como um altamente valorizado no parceiro, en-
poder legítimo da mulher sobre o ho- quanto o mesmo não aconteceria com
mem, e, assim como Camiglie Paglia, as mulheres homossexuais.
restitui à beleza uma cidadania no dis- A tese de Etcoff é altamente
curso feminino. questionável, pois existiram historica-

• 76 •
mente vários modelos de beleza femi- ceder à imposição do macho, somos
ninos. Qual desses corresponderiam ao hoje um pouco mais permissivas em
padrão reprodutivo biológico? Seriam relação às formas de embelezamento.
as voluptuosas mulheres de Rubens, as Devemos questionar, contudo, formas
rechonchudas banhistas de Renoir ou mais radicais de submissão aos padrões
as esquálidas modelos das décadas de de uma cultura. A cirurgia plástica, por
exemplo, poderia ser vista como auto-
70 ou 80, tais como Twiggy ou Kate
nomia feminina de moldar seu corpo?
Moss? Os padrões de beleza parecem
Ou ela deve ser vista como uma mu-
mudar conforme a cultura. Como air-
tilação para a submissão aos modelos
ma Peperonoe (PEPENOE, 2003): impostos? Seria ela um mecanismo de
todas as culturas tiveram seus padrões justiça e autonomia ou uma submissão
de beleza. Essa autora examina as mu- inaceitável?
lheres das tribos do Saara. Lá, ao con- Por um lado, podemos conside-
trário de suas companheiras urbanas e rá-la como uma submissão a padrões
ocidentais, as mulheres almejam cor- impostos. Por outro, podemos vê-la
pos fartos e gordos. como uma autonomia em relação a
Os padrões de beleza feminino nosso próprio corpo, uma liberdade
se apresentam como variações cultu- de moldá-lo como queremos, poden-
rais, que dependem dos valores de uma do signiicar uma expansão do nosso
determinada sociedade. Até onde iría- poder de escolha. Contudo, podemos
mos para seguir esses padrões? objetar que essa escolha não é na ver-
O corpo mutilado: Ainda que não dade uma livre decisão, mas sim uma
se possa concordar com a tese evolu- submissão a padrões que nos fazem
cionista de Ectoff, as pesquisas por ela desejar ter um tipo de corpo especíi-
apontadas mostram que uma mulher co. Além disso, a cirurgia plástica não
cujos traços estejam de acordo com estaria muito longe de um prática de
o considerado belo de uma cultura mutilação corporal. Nós, ocidentais,
levaria vantagem na disputa por um nos sentimos superiores às nossas
parceiro naquela cultura. Poderíamos companheiras que são mutiladas pela
pensar, então, que as atividades que prática de mutilação genital feminina,
aumentem a beleza feminina possam
ou mesmo às mulheres girafas, obriga-
ser consideradas como uma forma de
das a usar colares que lhes alongam os
superar injustiças naturais? Se as femi-
pescoços, ou às japonesas de outrora,
nistas mais radicais das décadas de 70
obrigadas à prática de controle do cres-
e 80 consideravam que mesma a ma-
quiagem e o salto alto eram formas de cimento dos pés. Mas não estaríamos

• 77 •
hoje nos submetendo ao mesmo tipo senão impossíveis, de atingir. Pode-
de prática mutiladora, através da cirur- mos ter uma ideia da impossibilidade
gia plástica, sob pena de sermos exclu- de atingir o ideal Barbie, se comparar-
ídas socialmente? mos com as medidas médias da mulher
Pensar a cirurgia plástica como americana: 101-86-109.
autonomia seria possível se a modii- O corpo idealizado da Barbie
incorpora a contradição de uma so-
cação do corpo não seguisse um único
ciedade que idolatra o corpo magro e
modelo. Contudo, nossa sociedade oci-
propõe, ao mesmo tempo, o excesso
dental segue um modelo feminino es-
de consumo, incluindo o de nutrientes.
pecíico, da mulher esguia, para a qual O ideal Barbie leva a mais do
acúmulos adiposos são considerados que simplesmente uma cópia de um
atestado de feiura e exclusão social. modelo, em alguns casos a uma série
Um dos modelos deste padrão pós-a- de cirurgias plásticas, a uma mutilação,
nos 50 é a boneca Barbie. para se aproximar deste ideal.
Modelo Barbie: A boneca Barbie Anti-Barbies: Vemos hoje uma
aparece em 1959 e torna-se o item tendência que se opõe ao padrão Bar-
mais vendido da empresa de brinque- bie. Um dos exemplos mais signiica-
dos Matell. Uma Barbie é vendida a tivos desta tendência foi a apresenta-
cada 2 segundos, e 95% das garotas ção na mídia de um padrão anti-Barbie
americanas têm uma Barbie. através da campanha da marca Dove
As pesquisadoras Urla e Swe- sobre a beleza real, veiculada entre
dung realizaram uma pesquisa na 2004 e 2007. A campanha, intitulada
década de 90 no Laboratório de An- de “Real Curves”, teve a ousadia de de-
tropometria da Universidade de Mas- saiar os padrões tradicionais de bele-
sachusetts, para estimar as dimensões za, apresentando corpos femininos de
corporais da Barbie, caso ela tives- vários tipos. Mulheres gordinhas, com
se um tamanho real (URLA; SWE- mais idade, com celulite, com cabelos
DUNG, 2000, p. 414). Elas projetaram brancos, eram apresentadas em outdo-
as medidas da Barbie para a altura de ors, ocupando o espaço antes reserva-
uma top model (1,77 m) e para a altura de do apenas às modelos magras e jovens.
uma mulher média americana (1,62 m). Como parte da campanha, foi
No primeiro caso, as medidas de busto, encomendada uma pesquisa de com-
cintura e quadris seriam 89-51-81 cm; portamento, realizada em 10 países
no segundo, para a altura da mulher com três mil mulheres. Segundo a pes-
média americana, as medidas seriam quisa, somente 2% das mulheres pes-
81-43-71 cm, medidas muito difíceis, quisadas se autodeinem como sendo

• 78 •
bonitas, 75% das mulheres deinem Preta Gil torna-se uma por-
sua beleza como sendo mediana e 50% ta voz nas mulheres gordinhas e da
entendem que seu peso está acima do diversidade estética. Contudo, ela é
ideal. enquadrada pela medicina, utilizan-
No movimento de mulheres, o do padrões pretensamente cientíicos
ideal anti-Barbie pode ser visto na re- para controlar corpos, no que Foucault
cente onda da Marcha das Vadias, na chamaria de biopoder. No programa
qual as mulheres protestam contra a Medida Certa, apresentada pelo Fan-
violência e os padrões impostos. Elas tástico nos Domingos a noite, ela e
contestam padrões de vestuário consi- Gaby Amarantos, outra cantora com
derado “decente” e a ideia de que al- padrões estéticos alternativos, são pe-
gum tipo de roupa fora desse padrão sadas e seus sinais vitais são avaliados e
estaria induzindo ao estupro ou violên- elas são declaradas fora de forma física
cia; padrões de comportamento sexual, e não saudáveis. A gordura é dita não
segundo o qual uma mulher que exerce saudável, e contra essa verdade preten-
livremente sua sexualidade deveria ser samente cientíica, aparentemente não
considerada vadia, e também padrões há argumentos. Preta Gil e Gaby Ama-
estéticos, segundo o qual a mulher rantos emagrecessem um pouco a cada
deveria se adaptar a um corpo com semana, chegando ao inal do progra-
proporções previamente deinidas. O ma, mais “saudáveis”, e mais próximas
slogan levado pelo movimento “Tire do padrão considerado belo pelas bra-
os seus padrões do meu corpo” ilustra sileiras; contudo, seu biótipo continua
bem esse tipo de questionamento con- sendo de mulheres rechonchudas.
tra padrões impostos às mulheres. Finalmente Preta Gil, com al-
Por im, podemos falar sobre o guns quilinhos a menos, mas ainda
caso de uma cantora brasileira, Preta uma anti-Barbie, estampa a capa de
Gil, cujas formas são de uma mulher Revista Nova de dezembro de 2013.
mais gordinha do que o considerado Talvez na longa história desta revista,
ideal. Ela escandalizou o público há tenha sido a única vez que uma mulher
alguns anos atrás, quando posou nua considerada (ainda) gordinha sirva de
para a capa de seu álbum musical. O modelo para as mulheres brasileiras.
escândalo deveu-se mais ao fato de Que tal fato signiique o início da li-
mostrar uma mulher fora dos padrões bertação de um padrão exclusivo, que
nua do que o nu propriamente dito. Re- oprime a maioria de nós.
centemente, ela posou para uma marca
de lingeries e a recepção também foi Maria de Lourdes Borges
bastante polêmica.

• 79 •
Referências signiicação das experiências cotidia-
nas”. Daí, ao fazer narrativas das cenas
ETCOFF, Nancy. Surviva1 of the prettiest : he science
of beauty. New York, Doubleday, 1999
de sua própria história, que se conigu-
ram como algo sempre particular, con-
KANT, Imannuel. Observações sobre o belo e o sublime.
São Paulo, Papirus 2000.
tingente, aberto e quiçá inesgotável, a
pessoa procura dar sentido às suas ex-
PEPENOE,Rebecca. Feeding desire: Fatness, Beauty and
sexuality among a Saharan people. London, New York:
periências e, nesse percurso, constrói
Routledge, 2003. outras representações sobre si mesma.
TOWSEND; John e LEVY, Gary. “Efect of Potential
Esses movimentos foram ini-
Partner’s Physical Attractiveness and Social economic Sta- ciados nos anos 1980, cujos pioneiros
tus on sexuality and Partner Selection” Journal of sexual
behavior (1990): 149-164. mais conhecidos entre nós brasileiros/
as são Gaston Pineau (França e Cana-
URLA, Jaqueline and SWEDUNG, Alan. he antromo-
metry of Barbie. In: SCHIEBINGER, Londa. Feminism dá), Pierre Dominicé, Matthias Finger,
and the body. New York: Oxford University Press, 2000. Marie Christine Josso (Suíça), Guy de
Villers (Bélgica), António Nóvoa (Por-
Sugestões de leitura tugal). No Brasil, as pesquisas educa-
cionais com fontes autobiográicas
BORDO, Susan. Unbearable weight: feminism, western
culture and the body. Berkeley: University of California têm se voltado mais para as questões
Press, 2003
identitárias, notadamente, na formação
SCHIEBINGER, Londa. Feminism and the body. New docente. Ainda são raras aquelas que
York: Oxford University Press, 2000.
investigam a ressigniicação da experi-
VILHENA NOVAIS, Joana. O intolerável peso da feiúra. ência no ato de narrar a própria vida.
Rio de Janeiro: Editora da PUC do Rio, 2013.
A pertinência epistemologia das
WOLF, Naomi. he Beauty mith. New York: Bantham pesquisas biorelexivas narrativas nos
Doubleday Dell Publishing, 1991.
domínios das Ciências das Humanas e
nos campos da Educação e/ou Áreas

ains tem apresentado contribuições
férteis para desvelar os processos que
Biorelexividade narrativa
produzem e reproduzem a subordina-
ção de gênero, por exemplo, identii-
O conceito de biorelexivida-
cando como as relações de gênero se
de narrativa está situado no referente
organizam e se sustentam, e quais são
epistemológico da lógica do sensível,
algumas de suas consequências na in-
a partir da experiência das escritas de
serção das mulheres no mundo do tra-
si. Pautado em movimentos socioe-
balho e na produção da pobreza.
ducativos de “Histórias de vida em
Compreender as assimetrias en-
formação”, estimula escutas abertas e
tre homens e mulheres na sociedade
polifônicas, alicerçado na ideia de “res-

• 80 •
como advindas de práticas sociais nos mensões histórica, social, cultural, edu-
leva a reletir sobre os fundamentos cativa e religiosa, dentre outras. É, pois,
da desigualdade. A noção de relações também uma maneira de conhecer me-
sociais de sexo, de relações de gênero, lhor as pessoas e como elas conseguem
airma que, em primeiro lugar, as de- mobilizar interna e externamente o que
sigualdades entre homens e mulheres vão aprendendo e se apropriando em
suas trajetórias vivenciais. Josso (2010,
são fundadas socialmente, portanto,
p. 31) esclarece, “[...] não era mais ape-
não são as diferenças biológicas que
nas a aquisição de uma cultura cientíi-
justiicam a desigualdade. Nesse senti-
ca relativa a um conjunto de disciplinas
do, fazem parte desse contexto de aná- e a sua história, mas mais fundamental-
lise: a) as categorias cognitivas da práti- mente a tomada de consciência de um
ca e historicidade; b) o sistema pessoal conjunto de pontos de vista possíveis
de produção de saberes; c) os discursos sobre si mesmo e seu meio, a atenção
psicanalíticos; d) a questão hermenêu- voltada para os pressupostos constitu-
tica; e) as implicações socioepistemo- tivos da epistemologia do aprendente,
lógicas do método. a integração consciente do processo às
Existem elos entre linguagem, práticas, a capacidade de verbalização
relexividade e consciência histórica, das experiências, o poder-comunicar
numa relação dialética entre a reinven- com terceiros, a capacidade de identii-
ção de si e a ressigniicação da própria cação e de diferenciação com as teori-
experiência. Essas correntes multi- zações e experimentações de outrem, a
dimensionais que se forma, remete a capacidade de atribuição de sentido às
proliferação de alguns neologismos ações empreendidas.”
que acionam o termo grego bio como O argumento baseia-se na tese
preixo “biograização, biocognitivo, de que a reconstrução das próprias
bioético, biopolítico” ao representa- paisagens (sejam elas afetivas, físicas
rem um importante indicador linguís- ou psíquicas) de experiências do sen-
tico da construção de novos espaços sível, permite que o/a docente possa,
conceituais para o trabalho com o iné- por um lado, escutar melhor o seu en-
dito dos problemas vitais. torno, o seu lugar e a si mesmo e, por
Este é o processo de poder se outro, institui a possibilidade de outras
reinventar, visto que possibilita a iden- e novas formas para pensar o mundo e
tiicação, dos processos desencadeados suas relações proissionais.
pelos estados de ser/estar no mundo Ao narrar nossa própria histó-
e que emergem do vivido no mundo ria, o que buscamos é dar signiicado
do trabalho intelectual, a partir das di- às experiências e, nesse percurso, outra

• 81 •
representação de nós mesmos acaba compõe-se de Farht (viagem) e pode
sendo construída e, portanto, reinven- ser associada a Gefahr (perigo). Nesse
ta-se. Isso se faz mediante o ato de di- sentido, ela remete a uma temporalida-
zer, de narrar, (re)interpretar! Decorre de longa e sugere a ideia de aventura.
daí a constatação da relação dialética Um dos princípios fundadores
entre a reinvenção de si e a ressignii- das escritas de si como prática de for-
cação da experiência daquilo que nos mação é a dimensão autopoiética. Au-
acontece e de sua importância política topoiese “ do grego autos, “próprio”;
estratégica como foco investigativo in- poiésis, criação, invenção, produção.
terdisciplinar. Neologismo criado por Humberto
Para Passeggi (2011, p. 148), “Se Maturana e Francisco Varela nos anos
as palavras não são apenas uma repre- 1970 para designar a capacidade dos
sentação da realidade, mas uma forma seres vivos de produzirem a si pró-
de construir uma realidade humana, ou prios. O termo passou em seguida para
de humanizar a realidade transforman- as ciências sociais e humanas para se
do-a em discurso (...)”, ganha destaque referir à capacidade humana de se au-
a noção de experiência, “(...) que evoca torregular, autoadequar, autoinventar.
sua natureza cambiante e sua estreita Desse ponto de vista, o falar de
relação com a formação humana.” si hermenêutico, apresenta três movi-
O termo experiência deriva do mentos distintos e ao mesmo tempo
latim experientia/ae e remete à “pro-
interdependentes. São eles: pensar em
va, ensaio, tentativa”, o que implica
si, falar de si e escrever sobre si. Per-
da parte do sujeito a capacidade de
cebe-se que no interior dessa tríade há
entendimento, julgamento, avaliação
um elemento comum, o conceito de
do que acontece e do que lhe circun-
da. Os termos Erlebnis e Erfahrung, “si mesmo”, que nada mais é do uma
equivalentes de experiência em alemão, proposta organizadora de determinado
nos chama a atenção para a ressigni- princípio de racionalidade.
icação da experiência. Erlebnis tra-
duz-se, geralmente, por “experiência Sandra Vidal Nogueira
vivida”ou”vivência”, entendida como
Referências
uma situação mais imediata, pré-rele-
xiva e pessoal; Erfahrung associa-se JOSSO, Marie-Christine. Caminhar para si. Porto Ale-
a impressões sensoriais e ao entendi- gre: EDIPUCRS, 2010, p.31.

mento cognitivo, que integra o vivido PASSEGI, Maria da Conceição. A experiência em forma-
num todo narrativo e num processo ção. Educação, Porto Alegre, v. 34, n. 2, maio/ago. 2011,
p. 148.
de aprendizagem. A palavra Erfahrung

• 82 •
Sugestões de leitura distribuição bastante estrita das ativi-
dades atribuídas a cada um dos dois
ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. (Org.). A
aventura (auto)biográica - teoria & empiria. Porto Ale-
sexos, de seu local, seu momento, seus
gre: EDIPUCRS, 2004. v. 1, p. 201-224. instrumentos; é a estrutura do espa-
ARENDT, Hannah. Compreender: formação, exílio, to-
ço, opondo o lugar de assembleia ou
talitarismo. Traduzido por Denise Bottman. São Paulo: de mercado, reservados aos homens, e
Companhia das Letras, 2008.
a casa, reservada às mulheres; ou, no
BESSE, Jean-Marc. Ver a Terra: Seis ensaios sobre a paisa- interior desta, entre a parte masculi-
gem e a geograia. São Paulo: Perspectiva, 2006.
na, como o salão, e a parte feminina,
DELORY-MOMBERGER, Christine. Biograia e educa- como o estábulo, a água e os vegetais; é
ção: iguras do indivíduo-projeto. Natal: EDUFRN; São
Paulo: Paulus, 2008. a estrutura do tempo, a jornada, o ano
agrário, ou o ciclo de vida como mo-
• mentos de ruptura, masculinos, e lon-
gos períodos de gestação, femininos”
(BOURDIEU, 1999, p. 18).
Bourdieu e a dominação Essa dominação masculina
masculina (construção simbólica) opera num
campo mágico que incorpora não so-
A categoria “dominação masculi- mente o assentimento ao dominante,
na” desenvolvida pelo sociólogo fran- mas a naturalização, o consentimento
cês Pierre Bourdieu nos mostra que as dessa dominação, por parte de domi-
relações sexuais são socialmente insti- nantes e dominados, exercendo sobre
tuídas e engendram o mundo social e os corpos um poder que em nenhum
simbólico com referenciais de mascu- momento traz o signo da coação física.
linidade e feminilidade compondo di- “A dominação masculina encontra suas
mensões do habitus e da dominação sim- condições de possibilidade e sua con-
bólica, cujas manifestações perpassam trapartida econômica (no sentido mais
o universo habitado por dominantes amplo da palavra) no imenso trabalho
e dominados. Tomando como refe- prévio que é necessário para operar a
rencial a análise da sociedade Cabila, transformação duradoura dos corpos
Bourdieu estende a explicação da do- e produzir as disposições permanentes
minação masculina a todas as formas que ela desencadeia e desperta; ação
sociais, ao destacar que: “a ordem so- transformadora ainda mais poderosa
cial funciona como uma imensa má- por se exercer, nos aspectos mais es-
quina simbólica que tende a ratiicar a senciais, de maneira invisível e insidio-
dominação masculina sobre a qual se sa, através da insensível familiarização
alicerça: é a divisão social do trabalho, com um mundo físico simbolicamente

• 83 •
estruturado e da experiência precoce e Uma história que reconhece as
prolongada de interações permeadas estruturas sociais como lócus de cons-
pelas estruturas de dominação. Os atos trução das relações homem/mulher
de conhecimento e de reconhecimento deve compreender que as relações de
práticos da fronteira mágica entre do- gênero passam, então, pela rejeição do
minantes e dominados, que a magia do caráter ixo e permanente das oposi-
poder simbólico desencadeia, e pelos ções binárias. Essa constatação é de
quais os dominados contribuem, mui- signiicativa relevância na medida em
tas vezes à revelia, ou até então contra que rompe não só com o determinis-
a vontade, para sua própria domina- mo biológico, como também com a
ção, aceitando tacitamente os limites própria ordem cultural modeladora
impostos, assumem muitas vezes a do “ser homem” ou “ser mulher” nas
forma de emoções corporais – vergo- sociedades, ao reconhecer nesta con-
nha, humilhação, timidez, ansiedade, dição um estatuto histórico e cultural-
culpa – ou de paixões e de sentimentos mente construído.
– amor, admiração, respeito – emoções Como se dá a reprodução das
que se mostram ainda mais dolorosas relações de gênero? Reconhecendo a
por vezes, por se traírem em manifes- constância, a permanência, “as inva-
tações visíveis, como o enrubescer, o riantes trans-históricas da relação en-
gaguejar, o desajeitamento, o tremor, a tre os gêneros”, Bourdieu ressalta a
cólera” (BOURDIEU, 1999, p. 51-52). importância de “descrever e analisar a
Bourdieu enfatiza ainda que a (re) construção social, sempre recome-
dominação masculina centrada na do- çada, dos princípios de visão e divisão
minação simbólica é o princípio que geradores dos gêneros e, mais ampla-
justiica e legitima as demais formas de mente, das diferentes categorias de
dominação/submissão, exercitadas de práticas sexuais”. Pois “uma verdadeira
maneiras singulares e múltiplas e, sen- compreensão das mudanças sobrevin-
do diferentes em suas formas segundo das, não só na condição das mulheres,
a posição – social, geográica, espacial,
como também nas relações entre os
étnica, de gênero – dos agentes envol-
sexos, não pode ser esperada, parado-
vidos. Joan Scott (1992), na mesma di-
xalmente, a não ser de uma análise das
reção de Bourdieu, adverte para a ne-
transformações dos mecanismos e das
cessidade de se considerar a existência
instituições encarregadas de garantir a
de uma história das mulheres a ser es-
perpetuação da ordem dos gêneros”
crita, que aborde a noção de represen-
(BOURDIEU, 1999, p. 102-103).
tação e dominação, da desigualdade de
Sobre os papéis especíicos e
poder na história dada pela dominação
articulados das instituições sociais na
masculina.

• 84 •
reprodução da dominação masculina, roga: “a dominação masculina não
diz Bourdieu que “coletivos ou priva- continuará a pesar na investigação
dos, as regularidades da ordem física (masculina ou feminina) sobre as mu-
e da ordem social impõem e inculcam lheres e, se sim, de que modo?” Em
as medidas que excluem as mulheres sua análise, a visão feminina sobre si
das tarefas mais nobres…, assinalan- mesma e sobre a história é uma visão
do-lhes lugares inferiores…, ensinan- dominada, que não vê a si própria. Ele
do-lhes a postura correta do corpo…, nos aponta para a necessidade de sub-
atribuindo-lhes tarefas penosas, baixas metermos nosso olhar à uma relexão
e mesquinhas”. (BOURDIEU, 1999, crítica para termos condições de des-
p. 34). Segundo o autor, em relação nudar as questões que envolvem os
os papéis especíicos e articulados das pressupostos da violência simbólica e
instituições sociais na reprodução da da dominação masculina e que podem
dominação masculina: “o trabalho de “vedar o acesso à visão das mulheres”
reprodução esteve garantido, até época (BOURDIEU, 1995, p. 59).
recente, por três instâncias principais, Para o autor, o papel das mulhe-
a Família, a Igreja e a Escola, que, ob- res na economia dos bens simbólicos
jetivamente orquestradas, tinham em é o de se comportar como objeto, ins-
comum o fato de agirem sobre as es- trumento cuja função é contribuir para
truturas inconscientes. É, sem dúvida, a perpetuação ou aumento do capital
à família que cabe o papel principal na simbólico em poder dos homens. A
reprodução da dominação e da visão dominação masculina, assim, inscre-
masculinas; é na família que se impõe ve-se nas disposições (habitus) dos su-
a experiência precoce da divisão sexual jeitos (homens e mulheres) dessa eco-
do trabalho e da representação legíti- nomia: “cabe às mulheres, nesse jogo
ma dessa divisão, garantida pelo di- de papéis sociais, comportar-se como
reito e inscrita na linguagem. Quanto objetos de troca; aos homens, cumpre
à Igreja, marcada pelo antifeminismo o compromisso de levar a sério todos
profundo... ela inculca (ou inculcava) os jogos assim constituídos” (BOUR-
explicitamente uma moral familiarista, DIEU, 1975). Por conseguinte, con-
completamente dominada pelos valo- forme explicita Bourdieu, os homens,
res patriarcais e principalmente pelo tanto em Cabília quanto nas socieda-
dogma da inata inferioridade das mu- des ocidentais contemporâneas, tam-
lheres…” (BOURDIEU, 1999, p. 103- bém são prisioneiros e vítimas da re-
104). presentação dominante.
No texto “observações sobre a his- Analisar a dominação masculina
tória das mulheres” Bourdieu nos inter- implica, então, consciência de nossa

• 85 •
condição de pesquisadores ou pesqui- através de uma ação política que real-
sadoras, pois somos inluenciados por mente considere todos os efeitos da
estruturas sociais e cognitivas que re- dominação que se exerce com a cum-
velam uma tradição masculina de pen- plicidade das estruturas incorporadas
sar o poder e o conhecimento, aspec- dos habitus e das estruturas das grandes
tos que são interiorizados na forma de instituições, em que a ordem masculi-
esquemas inconscientes de percepção na e a ordem social como um todo é
e apropriação das estruturas históricas reproduzida. É preciso “descolonizar
da lei masculina. o feminino” diz ele. Descolonizar as
Um dos maiores efeitos da do- mulheres é desconstruir os discursos
minação simbólica é a imposição da elaborados sobre elas, tão eicazes, que
representação dos órgãos sexuais, uma elas também o assumiram, para assim
construção social das diferenças ana- reconstruir em bases igualitárias, em-
tômicas visíveis. Segundo Bourdieu, o poderando-as. A desnaturalização dos
mundo social constrói esta diferença discursos das práticas sobre e contra as
anatômica, e esta diferença anatômi- mulheres é tarefa essencial. A descons-
ca socialmente construída se torna o trução do masculino e do feminino
fundamento da diferença social que tem o sentido de desnudar os discursos
a fundamenta. Penso hoje, diz ele, para ver como se construíram os gêne-
que “muitas das divisões que entre os ros na história, como também as ques-
kabyles eram produzidas pela ordem tões do trabalho, do estudo, dos papéis
masculina, a divisão do espaço, etc., sociais, da natureza, das essências, etc.
são reproduzidas por intermédio do
sistema escolar, que é um lugar de re- Losandro Antonio Tedeschi
produção das categorias de construção
da diferença entre os sexos, por exem- Referências e sugestões de leitura
plo, por meio das diferenças entre as BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de
disciplinas, etc.” (BOURDIEU, 1996 Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

p. 32). ______. A economia das trocas simbólicas. São Paulo:


Pierre Bourdieu nos mostra em Perspectiva, 1974.

suas obras que existe uma longa jorna- ______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand
da para uma história de mulheres, isso Brasil, 2000

porque elas tem uma visão dominada ______. Observações sobre a história das mulheres. In:
DUBY, Georges; PERROT, Michelle. As Mulheres e a
que não vê a si própria. Ao defender História. Lisboa: Dom Quixote, 1995.
veementemente o desaparecimento
______. Novas relexões sobre a dominação masculina.
progressivo da dominação masculina, In: Gênero & Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

• 86 •
BOURDIEU, P.; PASSERON, C. A reprodução: ele- cação do “crime” da feitiçaria. É mister
mentos do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1975. enfatizar que esse tema foi costumei-
ramente o foco de intensas análises
CHARTIER, Roger. “Diferenças entre os sexos e do-
minação simbólica”. Cadernos Pagu. São Paulo: UNI- entre os historiadores, principalmente
CAMP, 1995. a perseguição a essas iguras sociais,
SCOTT, J. História das Mulheres. In: BURKE, P. (Org) fonte de debates acadêmicos sobre os
A escrita da história. São Paulo: UNESP, 1992. “tempos de desespero” (MICHELET,
2003, p. 17), os quais o período medie-
• val se encontrava. Em uma época de
pestes, pobreza no campo, destruição
Bruxas/Feitiçaria de colheitas, mortes e incompreen-
são sobre as mais diversas doenças, a
Segundo Vainfas, a bruxa, in- imagem da feiticeira era um misto de
venção do medievo, se caracterizaria medo, poder e perigo. Se, posterior-
como a personagem histórica com alu- mente, o médico simbolizaria também
são direta ao “pacto com o demônio”, um detentor de poder pelos conheci-
fator que, no caso da feitiçaria, poderia mentos especíicos, e, por isso, odiado
simbolizar uma competência mais vaga pela Igreja, ainda assim era melhor que
de práticas mágicas as mais diversas, a feiticeira, porque esta “ousa curar
mas, nem por isso, deixando de ser sem ter estudado” e, portanto, “deve
igualmente mal vista na Idade Média, morrer” (MICHELET, 2003, p. 23).
devido ao seu apelo ao sobrenatural. As justiicativas para o extermí-
De forma geral, a bruxaria e a feitiçaria nio poderiam ser as mais simples: era a
foram marginalizadas inclusive na Ida- mulher viúva, sem família e herdeiros,
de Moderna, momento de desenvolvi- ou até mesmo a “feia anciã” “muito
mento dos Estados e das políticas de embora, segundo Michelet, poderia
cristianização das igrejas protestantes e ser mesmo a mais jovem e bela”, por
católicas (Cf. VAINFAS, 2011). representarem, na construção do pre-
Inicia-se, assim, especialmente conceito, a parte mais quista ou mais
no século XV em diante, com o encal- frágil da sociedade. A ligação da “fra-
ço cada vez maior da Inquisição, a dei- queza feminina” indicaria mais sinais
nição que demarcaria os denominados de sua maleabilidade com os domínios
praticantes de magia, em sua maioria, e ilusões do Diabo. Além disso, a pers-
mulheres: o lado sombrio da socieda- pectiva de que a mulher é mais crédu-
de, o qual deveria ser controlado e ex- la e propensa a impulsos emocionais,
terminado. Portanto, majoritariamente levam-na a ser a referência principal
a essas mulheres era destinada a impli- de utilização de conhecimentos de er-

• 87 •
vas e segredos para malefícios, sobre- çaria. No entanto, segundo ele, ainda
tudo por vingança aos homens. (Cf. assim esses estudos se demonstraram
SALLMANN, 1991). De acordo com demasiadamente preocupados com as
Jean-Michel Sallmann, os documentos razões da legitimação do preconceito
inquisitórios demonstram a feitiçaria e não se atentaram aos signiicados
como uma guerra dos sexos, a qual de simbólicos dos praticantes de magia.
um lado, encontra-se a mulher agres- As documentações, em sua maioria de-
siva e, de outro, o homem ameaçado positárias da perspectiva da Inquisição,
em sua capacidade de reprodução, deiniram os olhares, inclusive de di-
visto que cabia a feiticeira os dons de versos intelectuais, acerca da constru-
privar os homens de seu “membro vi- ção simbólica sobre a feitiçaria em seus
ril” (SALLMANN, 1991, p. 522), uma diversos âmbitos; até mesmo entre os
implícita alusão ao domínio masculino pensadores do período da revolução
pela representação simbólica do falo. cientíica do século XIX, que, ao deter-
De qualquer maneira, foi pelo minarem a imagem desses praticantes,
intenso estudo dedicado a essas per- o faziam sob as pesadas adjetivações
seguições que Carlo Ginzburg se pro- dos perseguidores (Cf. GINZBURG,
pôs a uma pesquisa mais aprofundada 1991). Neste caso é possível citar o
sobre o tema: compreender, além das próprio Michelet, que muito embora
visões pejorativas dos perseguidores, tenha se inluenciado do romantismo
também as atividades e comportamen- europeu (fator digno de ser analisado
tos dos perseguidos, induzindo a uma na característica literária de seus escri-
investigação de suas crenças. Para este tos), a tentativa de reconstruir e valori-
historiador, se de um lado, a tentativa zar a igura da feiticeira está sustentada
de se fazer uma história “dos outros”, no misticismo criado pelos inquisido-
muitas vezes esquecidos na historio- res e suas descrições dessa personagem
graia “dentre eles, os estudos femi- em sua relação com o demônio.
nistas” contribuiu para a construção Seguindo as investigações de
de um diálogo frutífero com métodos Ginzburg, as falas dos perseguidos,
interpretativos dos antropólogos e a muitos sob tortura, denotaram exa-
abertura para pesquisas sobre campos tamente aquilo que o imaginário do
até então nebulosos para a área aca- medo quis determinar e que funda-
dêmica; por outro lado, as críticas ao mentou a existência dos sabás: práticas
progresso tecnológico, ao capitalismo de canibalismo com crianças, cópulas
e a maneira como este arruinou outras com o Diabo e banquetes noturnos;
culturas também inluenciou para os visões que, antes de se cristalizarem na
avanços na chamada história da feiti- igura dos feiticeiros, era destinada aos

• 88 •
demais marginalizados sociais: judeus e sabás nos mais diversos relatos; já to-
leprosos. talmente contaminados da visão maca-
Com a descoberta de novas do- bra. (Cf. GINZBURG, 1991).
cumentações, como a dos benandanti Embora a maioria das pesqui-
(“andarilhos do bem”) de Friul, na Itá- sas sobre a construção marginalizada
lia dos séculos XVI e XVII, os quais das praticantes de magia seja realizada
se denominavam caçadores de bruxas sobre a Idade Média em diante, faz-
e batalhadores noturnos, também eles -se necessário salientar que ainda na
foram correspondidos com as práticas antiguidade uma visão pejorativa foi
do sobrenatural e acusados pelo crime. também determinante para a caracte-
Porém, foi por meio de suas falas que rização dessas personagens. Assim é o
se descobriu uma série de interligações caso da feiticeira Medeia - esse misto
dos cultos com o xamanismo - práticas de mulher, poder e magia, que mesmo
e crenças ancestrais, ainda de períodos hodiernamente nos causa inquietações
pré-históricos e, posteriormente, de re- por ter matado seus próprios ilhos em
lação com culturas asiáticas e do orien- vingança à traição de seu amante Jasão
te próximo na antiguidade de maneira na tragédia grega Medeia de Eurípides
geral. Segundo Ginzburg, essas ideias (431 a. C.). Segundo Olga Rinne, estu-
inluenciaram a pesquisa de estudiosos diosa dos mitos de Medeia (Cf. RIN-
como Murray que deiniu a relação en- NE, 1999), nas crenças mais antigas,
tre esses ritos da feitiçaria com crenças essa igura dramática era relacionada à
antigas ligadas à fertilidade dos campos - Grande Deusa -, à qual se integravam
e o poder destinado à natureza. Essa as deusas do Olimpo: Hera, Afrodite,
tese, posteriormente criticada, não Atenas, e ainda, Hécate - representante
conseguiu, de acordo com Ginzburg, da feitiçaria para os poetas. No perío-
delimitar em que ponto se encontra- do matrifocal, essas deusas, bem como
riam os extratos mais antigos e onde seus dons do desejo, da renovação, do
estariam deinidas as apropriações. conselho e da cura, conjugavam-se na
Mas, de qualquer forma, auxiliou na igura dessa única divindade maior, cuja
compreensão da existência de elemen- função era proteger e guiar os mortais.
tos xamânicos da relação dos vivos e Com a existência de sacerdotisas ao
do culto aos mortos, dos voos mágicos culto à Grande Deusa - como a própria
noturnos, dos rituais de transmutações Medeia - buscava-se manter um eter-
de animais. A questão é que, conforme no ciclo de vida, morte e renascimento
a perseguição da feitiçaria se extinguia, por meio de magias e sacrifícios rituais
desaparecia também a existência dos feitos com animais e homens. Com o

• 89 •
surgimento dos deuses masculinos na vez que deter esses saberes aliados aos
teogonia grega, as deusas foram aos “encantamentos mágicos” signiicava
poucos perdendo sua força simbólica. obter inluência e domínio. Há, dessa
Além disso, com o século V a. forma, um debate crítico na relação do
C., período da escrita de Eurípides, o conhecimento e da soberania que com
homem começava a ser a medida de ele se adquire. Em outras palavras, o
todas as coisas. O logos, ou seja, a teatro trágico “cuja realização se con-
razão, passava a ser estimada e é por cretizou no período clássico grego”
esse aspecto que o tragediógrafo cons- se determinou principalmente por um
truiu a personagem Medeia: em um âmbito ilosóico e político com o de-
período histórico de supervalorização senvolvimento da polis e dos interesses
da civilização helênica, da política, das do Estado. Nesse sentido, esse mesmo
deinições ilosóicas, da moral e da teatro foi igualmente responsável pela
ética. Sacrifícios humanos passaram a construção negativa da imagem socio-
ser vistos como condutas hediondas cultural da mulher feiticeira.
e injustiicáveis. Nestes termos, não Também o Brasil se viu rodeado
há uma defesa explícita da mulher, na desse embate, mas agora com a ima-
peça de Eurípides. Sua força não se en- gem de curandeiras e benzedeiras - tão
contra em uma ideia positiva da igura bem identiicadas, por exemplo, com
feminina estrangeira, destemida e inde- as praticantes de cultos afro-brasilei-
pendente - diferentemente das mulhe- ros, como o candomblé e a umbanda
res de Atenas; as gregas civilizadas que, nas crenças religiosas ou com a cultura
por isso mesmo deveriam ser submis- indígena e a lora medicinal brasileira.
sas e aceitar o seu destino (Cf. PUGA, Segundo Del Priore, o próprio corpo
2009). Segundo Maria Regina Candido, feminino era visto com temor e mis-
há, inclusive, uma denúncia presente ticismo, uma vez desconhecido pelos
na tragédia: a sophia de Medeia po- portugueses erradicados na colônia,
deria simbolizar tanto um auxílio para horrorizados com a menstruação (Cf.
curar doenças femininas, quanto para DEL PRIORE, 1997). Da mesma for-
envenenar inimigos por vingança indi- ma, a falta de médicos no Brasil da
vidual (Cf. CANDIDO, 2001). época instigava ainda mais a presença
Por não se tratar apenas de uma dessas curandeiras e benzedeiras, por
história da passionalidade exacerbada vezes as únicas oportunidades de se
de uma mulher é que, com sua tragé- conseguir tratamento. Não raro, a pro-
dia, Eurípides propõe questionamen- cura do fervor religioso, a Igreja bus-
tos sobre o perigo de se expor sabe- cava controlar as práticas populares,
res especíicos e a utilização de ervas sugerindo que as curandeiras fossem
a essas representantes femininas, uma “substituídas por Nossa Senhora”(-

• 90 •
DEL PRIORE, 1997, p. 91), e, o mais MICHELET, Jules. A Feiticeira. São Paulo: Aquariana,
2003.
instigante é notar que os próprios ritos
foram apropriando rezas católicas à RINNE, Olga. Medéia: o direito à ira e ao ciúme. 9. ed.
São Paulo: Cultrix, 1999.
“virgem Maria”.
Para ins de considerações inais SALLMANN, Jean-Michel. Feiticeira. In: DUBY, Ge-
orge; PERROT, Michelle (Orgs). História das Mulhe-
e maiores indicações sobre o tema da res - Do Renascimento à Idade Moderna. 3 Vol. Porto:
feitiçaria, o ilósofo italiano Umberto Edições Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1991, p.
517-533.
Eco faz diversas referências da repre-
sentação da bruxa em obras de arte li- PUGA, Dolores. Pode ser a Gota D’água: em cena a tra-
gédia brasileira da década de 1970. 2009. 293 f. Disser-
terárias e imagéticas ao longo da histó- tação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Gradu-
ria, construindo relexões, não apenas ação em História, Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia, 2009.
do imaginário sobre essa personagem,
mas também do horror e da feiura •
nela circunscritos, ao passar, desde a
imagem das feiticeiras de Macbeth de Butler, Judith
Shakespeare, até o simbolismo pre-
sente nas bruxas de Walt Disney. (Cf. (24 de febrero de 1956, Cleve-
ECO, 2007). land, Ohio, EEUU). Bachelor of Arts
en Yale University, Summa cum laude
Dolores Puga Alves de Sousa en Filosofía (1978) y Doctora, también
en Filosofía, por la misma universidad
Referências e sugestões de leitura
(1985) con una tesis que años más tar-
CANDIDO, Maria Regina. O saber mágico de Medéia.
de publicó ampliada como Subjects of
Revista Mirabilia - Revista Eletrônica de História Antiga Desire (1999). Alcanzó reconocimien-
e Medieval. Dezembro 2001. Disponível em: <http://
www.revistamirabilia.com/Numeros/Num1/medeia. to internacional al dar fundamento
html>. Acesso em: 01 jul. 2009. ilosóico a la teoría queer en Gender
DEL PRIORE, Mary. Magia e Medicina na colônia: o Trouble (1989), si bien su propuesta
corpo feminino. In: BASSANEZI, Carla; DEL PRIORE, excede esos límites e incide en espa-
Mary (Orgs). História das Mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto, 1997, p. 78-114. cios teóricos más amplios. Bosquejar
ECO, Umberto. Bruxaria, satanismo, sadismo. In: Histó-
sus aportes, aún en desarrollo, en un
ria da Feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 202-239. espacio tan reducido me obliga a trazar
GINZBURG, Carlo. História Noturna  Decifrando o sólo algunas líneas conceptuales bási-
Sabá. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. cas. En principio, Butler apela al giro
LIMA, Vivi Fernandes de; VILAÇA, Fabiano. Ronaldo lingüístico y se inscribe en una tradi-
Vainfas (entrevista). Revista de História. Fevereiro de 201 ción ilosóica antiilustrada. Adopta
Disponível em: < http://www.revistadehistoria.com.br/
secao/entrevista/ronaldo-vainfas>. Acesso em: 04 ago. la dialéctica hegeliana, no en sentido
2013.
metafísico, sino retóricamente. Su es-

• 91 •
trategia es interesante: se distancia del material por la cultura. Si no hay sexo
emotivismo y de las posturas feminis- natural, tampoco hay género: ambos
tas que considera naïve (Chodorow, son constructos culturales. Sobre estas
Gilligan) tanto como de la tradición bases, Butler elabora su dislocación de
ilustrada (Rawls, Habermas y Benha- las categorías con las que pensamos,
bib). Partiendo de Hegel y Nietzsche, conceptualizamos y vivimos nuestra
recupera aspectos del psicoanálisis de identidad, que entiende como un con-
Freud, Lacan e Irigaray y fusiona apor- junto de identiicaciones. Extiende
tes de la ilosofía del lenguaje anglófo- su análisis a otros binarismos como
na (Austin, Searle) y francesa (Deluze, cuerpo / alma [mente]. Si el cuerpo es
Derrida y Foucault). Aborda proble- “Otro”, el “Yo”masculino se cree un
mas vinculados al cuerpo, que remi- fenómeno no corpóreo que reprime,
ten a la fenomenología existencialista niega o proyecta un cuerpo al Otro-
(Beauvoir, Merleau-Ponty y Sartre). En -mujer, Otro-negro, Otro-minoría ét-
menor medida reivindica su iliación nica o sexual; el cuerpo negado retorna
feminista, aunque retoma a teóricas entonces como existencia alienada. A
tales como Rich, de Lauretis, Wittig o partir de trabajos de Wittig y Foucault,
Fraser, con quien polemiza. En Gender desarrolla la idea de apropiación del
Trouble desafía la categorización bina- sexo-género, en tanto la diferencia ana-
ria varón / mujer señalando la imposi- tómica no precede sus interpretaciones
bilidad de inscripción discursiva de se- culturales, sino que, por el contrario, la
res humanos que no se identiican con diferencia en sí misma ya es una inter-
uno de esos polos. Denuncia cómo el pretación cultural que descansa sobre
sexo-género constituye una institución supuestos normativos naturalizados.
de la diferencia reiicada que excluye Desafía así, los modos tradicionales en
como abyectos (Kristeva) a quienes que “identidad”, “sujeto” y “materia”
no se reconocen qua varones o muje- han sido entendidos históricamen-
res, base del estatus de sujeto. Gracias te por la ilosofía y por el feminismo.
a que las diferencias pueden multipli- El entretejido cuerpo-mundo cultu-
carse y referirse unas a otras, radicaliza ral se lleva a cabo performativamente
su hipótesis de que los sexos no tienen como producto de la fantasía indivi-
una base ontológica binaria. En Bodies dual y colectiva: No hay identidad de
that Matter (1993) deconstruye la noci- género y por fuera de sus expresiones
ón de cuerpo y de materia, fundamen- performativas sólo hay disciplinamien-
to legitimador del dimorismo sexual, to heterosexual del deseo. En Merely
y rechaza la categoría “género” como Cultural (1997), examina la relación
impuesto a la supericie del cuerpo entre ciudadanía, derechos e identidad

• 92 •
sexual y se pregunta cómo se organiza ne al deseo según aquello de lo que se
el dispositivo normalizador de la iden- carece; en la Etica, de Espinoza, que lo
tidad. Propone adoptar sexo-géneros considera esencia del hombre; y en la
paródicos para denunciar el disciplina- Fenomenología de Hegel, en el pasa-
miento de género, que es el efecto más je de la dialéctica del amo y el siervo,
productivo del poder que caliica a los como deseo de reconocimiento. Butler
cuerpos de por vida, inscribiéndolos en examina cómo el disciplinamiento del
el dominio de la inteligibilidad cultural. deseo nos constituye en quienes so-
Rompe así las determinaciones discur- mos, por lo que lo deine como pro-
sivas binarias y alienta la proliferación ductor de su objeto, rompiendo con la
paródica de los sexos / géneros / su- metafísica de la sustancia. En The Psy-
jetos / deseos en cuerpos dinámicos e chic Life of Power retoma esa idea y
inconstantes, productos de la libertad. concluye que el deseo no es ni errático
En Excitable Speech (1997), The Psy- ni ciego, sino que siempre es deseo de
chic Life of Power (1997) y “What is algo deinido, lo que identiica como
Critique?” (2000), enfatiza el potencial intencionalidad del deseo, origen del
subversivo de las identidades, que en- Yo que se muestra en el habla. Como
tiende como inestables y sin reconoci- sujeto lingüístico, se revela en la auto-
miento, como sucede con quienes son referencia como un “Yo” que emerge
“producidos” como “inferiores”: las creado y descubierto por una expresi-
mujeres, los judíos, los “negros”, lxs ón concreta del deseo, que es también
queer, y propone abandonar identida- conocimiento, porque punto de vista y
des coherentes y estables. Como con- deseo son lo mismo. Excitable Speech
secuencia subversiva, las identidades parte de la concepción foucaultiana de
paródicas desafían las posiciones de que sexo y poder son coextensivos y
inferioridad y exclusión que consoli- que los discursos hegemónicos infor-
dan las narrativas hegemónicas que ha- man cuerpos binariamente sexuados
cen visibles a los sujetos qua abyectos. como efecto violento del poder. La
“Desire” (1995) y Subjects of Desire política de la performatividad presu-
(1999) tratan la relación entre ilosofía pone así el poder iterativo del discurso
y deseo, al que siempre ha entendido para producir el fenómeno del sexo bi-
como “lo Otro” de la razón. Butler nario al que regula y constriñe. El po-
concluye que esa negación del deseo es der presiona externamente al sujeto, lo
una modalidad de deseo que “produ- subordina y lo conforma en términos
ce” ciertas personalidades ilosóicas. de existencia y trayectoria de su deseo.
Identiica tres hitos: el tratamiento de De ello depende el sujeto de un dis-
Platón en el Banquete, donde se dei- curso que nunca ha elegido, pero que

• 93 •
paradójicamente es origen y sostén de como miembros de tal comunidad. Si
su agencia a partir de un giro trópico. el deseo es una estructura polivalente,
Es decir, el poder constituyente del su- el movimiento que establece identidad
jeto gira sobre sí en una función tro- es coextensivo con el mundo y el self
pológica que funda agencia. Habilitar sólo se encuentra a sí mismo a través
agencia, implica partir de un “clivaje de su encuentro con la alteridad y con
pasional”(passionate attachment), ma- la diferencia. La construcción de la
niobra que queda claramente analizada propia identidad exige del encuentro
en Antigonas´s Claim (2000) y artícu- con la alteridad. Por tanto, la toma de
los aines. Antígona habla en el espacio conciencia de que la alteridad está en
público y en la toma de la palabra, en la identidad y viceversa la obliga a des-
su apropiación del discurso, se inscribe cartar la identidad como auto-idéntica,
como sujeto-agente de su propio deseo coherente e individual, ya que el sujeto
de dar sepultura honorable a su herma- se reconoce como constituido por de-
no. Habla desde un lugar que antes no seos que lo exceden, de los que incluso
existía en el orden establecido; desde no puede hablar pero que igualmente
fuera del discurso hegemónico fuerza conforman su identidad. Si bien el de-
la ley con un lenguaje de soberanía que, seo vertebra gran parte de sus obras,
paradójicamente, es origen y sostén de en las últimas Butler da muestras de
su agencia. Produce así una esfera pú- deseo de convivencia. Sobre todo en
blica nueva en la que se hace audible su Giving an Account of Oneself (2005),
voz de mujer. Parting Ways: Jewishness and the Cri-
Tras la caída de las Torres Ge- tique of Zionism (2012), Disposses-
melas (2001), los intereses de Butler se sion: The Performative in the Political
amplían a zonas vinculadas a la vulne- Dispossession: Conversations with
rabilidad de la vida y a la responsabi- Judith Butler (2013) y algunos textos
lidad. Subraya que sólo en y a través previos aines como Precarious life
de una comunidad el sujeto puede (2004) y Frames of War (2009), Butler
constituirse y adquirir la identidad que formula problemas tradicionalmen-
desea y busca. En otras palabras, sólo te abordados por la ilosofía moral,
puede alcanzar una cierta identidad preguntándose si las cuestiones mo-
en la comunidad que le brinda reco- rales surgen en el contexto de las re-
nocimiento en tanto no es un “indi- laciones sociales, si cambian según el
viduo”aislado sino un miembro de un contexto, si son inherentes al contex-
grupo al que “pertenece”. Esto hace to. Basándose en Adorno, responde
que se alcance el auto-conocimien- que la moral siempre surge cuando las
to gracias a otros que nos conirman normas de comportamiento dejan de

• 94 •
ser obvias e indiscutidas en la vida de y signiicarla continuamente a la espe-
una comunidad. En suma, se pregun- ra de sus próximos textos. Por ahora,
ta por las condiciones de emergencia toda conclusión sobre su obra es me-
de las cuestiones morales, para airmar ramente precaria.
que tales preguntas surgen cuando un
cierto ethos colectivo ha perdido auto- Maria Luisa Femenias
ridad. Subraya así el carácter histórico y
cambiante de la indagación moral que Referencias y indicaciones
exige siempre la apropiación vital de
BURGOS, E. Qué cuenta como una vida. La pregunta
un Yo. Retoma la cuestión foucaultina por la libertad en Judith Butler, Madrid, Mínimo Trán-
sito, 2008.
de la confesión y sus dos modalidades:
como artiicio del poder para dominar CASALE, R. y C. Chiacchio, Máscaras del Deseo, Bue-
nos Aires, Catálogos, 2009.
y someter la conciencia y como un acto
positivo que pone en palabras la ver- CHAMBERS, S. y T. Carver, Judith Butler and Political
heory, London, Routledge, 2008.
dad sobre sí mismo. Y si su verdad se
vincula con la identidad judía, rechaza FEMENÍAS, M. L. Judith Butler, una introducción a su
lectura, Buenos Aires, Catálogos, 2003.
como Arendt el discurso del sionismo.
En Parting Ways y en un complejo SALIH, S. Judith Butler: Critical hinking, London-
-New York, Routledge, 2002.
entramado de artículos y debates pú-
blicos, su punto de mira conceptual
inaugura nuevas deiniciones de Suje-
to. Deiende, por un lado, la prioridad
de la convivencia que obliga a cada
quien a resolver escenas ambiguas que
lo ligan indisolublemente a discursos
hegemónicos perturbadores. Por otro,
a dar respuesta a la pregunta: ¿Qui-
én eres? “tomada de Cavarero” y que
pone en conjunción tanto la pregunta
formulada como la multiplicidad de
respuestas posibles. Estas mutaciones
del pensamiento butleriano abren am-
plios juegos de convergencias y diver-
gencias conceptuales que recorren los
espectros de su propio pensamiento.
En tanto se encuentra en elaboración,
no hay cierre deinitivo; hay que leerla

• 95 •
Capitalismo Gore

O termo capitalismo gore se


refere à re-interpretação da econo-
mia hegemônica e global nos espaços
(geograicamente) fronteiriços e/ou
precarizados economicamente. O ter-
mo gore, emprestado do cinema, faz
referência à extrema violência. Então,
por capitalismo gore nos referimos
ao derramamento de sangue explíci-
to e injustiicado, preço que o Tercei-
ro Mundo paga ao seguir as, cada vez
mais exigentes, lógicas do capitalismo
neocolonial; a enorme porcentagem de
vísceras e desmembramentos, frequen-
temente misturados ao crime organiza-
do; a divisão binária do gênero e aos
usos predatórios dos corpos, tudo isso
mediante a violência explícita como
ferramenta de necroempoderamento.
Denominamos necroempoderamen-
to aos processos que transformam
contextos e/ou situações de vulnera-
bilidade e/ou subalternidade em pos-
sibilidade de ação e autopoder, desde
prácticas distópicas e autoairmação
perversa alcançada através de práticas
violentas. Ao falar de capitalismo gore
nos referimos a uma transvaloração de
práticas que se levam a cabo de forma
mais visível nos territórios fronteiri-
ços, onde cabe a siguinte pergunta:
Que formas convergentes de estraté-
gia estão desenvolvendo os subalter-
nos-marginalizados […] sob as forças
transnacionalizadoras do Primeiro

• 96 •
Mundo? (SANDOVAL 2004, p.81). In- necropolítica. Propomos essa analogia
felizmente, muitas das estratégias para entre o endriago como personagem
enfrentar o Primeiro Mundo ou apro- literário que pertence à metáfora co-
ximar-se dele são formas ultra-violen- lonial sobre os Outros, os não acei-
tas para conseguir capital: práticas de táveis, os inimigos e as subjetividades
violência extrema. O capitalismo gore capitalísticas e violentas representadas
é aquele que se embasa na economia pelos criminosos mexicanos. Assim o
do crime organizado e desorganizado, fazemos porque é fundamental con-
que participa do narcotráico transna- siderar que a construção do endriago
cional, da rentabildade da norte e da se baseou numa ótica colonialista, que
construção sexista dos gêneros. Diante segue presente em muitos territórios
dessa ordem de ideias é preciso se per- do planeta considerados como ex-co-
guntar: Que tipo de sujeitos são resul- lonias, recaindo sobre as subjetividades
tantes dessa reinterpretação e aceitação capitalísticas terceiro-mundistas, por
do neoliberalismo extremo advindo do meio de uma recolonização econô-
capitalismo gore? Os endriagos. For- mica, inanciada mediante demandas
mulamos o termo endriago para fa- de produção e hiperconsumo global,
lar dessas subjetividades capitalísticas criando novos sujeitos ultra-violentos
(GUATTARI e ROLNIK, 2006), pen- e destruidores, que conformam as ilas
sando na pertinência da tese de Mary da precariedade gore e do narcotráico,
Louise Pratt, quem airma que o mun- como um dos seus principais dispositi-
do contemporâneo está governado vos. Os sujeitos endriagos surgem num
pelo retorno dos monstros (PRATT, contexto especíico: o pós-fordismo e,
2002, p.1). A igura do endriago ad- mediante essa análise, podemos traçar
vém da literatura, aparece no livro VII uma rápida genealogia para explicar o
de Amadís de Gaula. É um monstro, vínculo entre pobreza e violência, en-
cruza bestial de homem, hidra e dra- tre o nascimiento de sujeitos endria-
gão, dotado de elementos defensivos e gos e o capitalismo gore. O cotidiano
ofensivos suicientes para provocar o desses sujeitos é “[…] a justaposição
temor em qualquer adversário. Sua for- realista da proliferação de mercadorias
ça é tal que a ilha que habita se torna e exclusão do consumo; [são] contem-
uma paisagem desabitada, uma espé- porâneo[s] da combinação de um nú-
cie de inferno terrenal no qual só têm mero crescente de necessidades com a
acesso cavaleiros cujo heroísmo ronda crescente falta de recursos básicos por
os limites da loucura e cuja descrição uma parte importante da população”
se assemelha aos terrotórios fronteiri- (LIPOVETSKY 2007, p.181). Esse
ços contemporâneos assediados pela coninamento ao subconsumo faz com

• 97 •
que esses sujeitos decidam fazer uso mercado escape à violência, seja essa
da violência como ferramenta de tra- apresentada como mercadoria com va-
balho, de empoderamento e aquisição lor simbólico agregado, ou como fer-
de capital. Devido a fatores como a ramenta de empoderamento distópico,
ascensão do hiper-consumismo como já que são os sujeitos endriagos os que
horizonte do sentido e socialização mostram a “outra face” do consumo
nas sociedades capitalistas contempo- da violência; estreitando as margens
râneas, o uso da violência frontal se entre o poder de consumo e o nível/
poder aquisitivo conseguido através do
populariza cada vez mais entre as po-
uso dessa violência como ferramenta
pulações empobrecidas/miseráveis e
de trabalho. Já que tudo se uniica atra-
é considerada, em muitos casos, como
vés do consumo, pode-se interpretá-lo
uma resposta ao meio, à “desviriliza-
como a constatação da identidade, con-
ção” que pesa sobre muitos homens,
sagração através da compra e a reair-
dada a crescente precarização laboral e mação de um status, já não social, mas
a incapacidade de ocuparem, de modo individual. O consumo como mediador
legítimo, seu papel de provedores. É da verdadeira vida dentro da lógica fe-
necessário clariicar que não só o uso roz do neoliberalismo. Entendemos os
da violência se populariza, mas tam- sujeitos endriagos como um conjunto
bém seu consumo. Dessa maneira, esse de indivíduos que circunscrevem uma
uso desmedido da força se converte subjetividade capitalística, iltrada pe-
não só em ferramenta de trabalho, mas las condições econômicas globalmente
em mercadoria que se oferece a distin- precarizadas, junto a um agenciamento
tos nichos de mercado; por exemplo, subjetivo, desde práticas ultra-violentas
às classes médias e privilegiadas, atra- que incorporam de forma limítrofe e
vés da violência decorativa., fenôme- autoreferencial “aos sistemas de cone-
no que consiste em oferecer armas e xão direta entre as grandes máquinas
outros dispositivos utilizados em várias produtivas, as grandes máquinas de
formas de violência, transformados em controle social e as instâncias psíqui-
objetos de decoração como a AK-47 cas que deinem a maneira de perceber
o mundo” (GUATTARI e ROLNIK
transformada em lâmpada, granadas
2006, p.41), bem como o cumprimen-
de mão transformadas em enfeites de
to das demandas de gênero prescritas
Natal, tanques de guerra comercializa-
pela masculinidade hegemônica.
dos como veículos civis, por exemplo:
O endriago, como característica
os populares Hummer etc.
identitária, é anômalo e transgressor.
Esse fenômeno acaba ocasio-
Combina a lógica da carência (pobreza,
nando que nenhum setor ou nicho de

• 98 •
fracasso, insatisfação) e a lógica do ex- propõe-se o termo capitalismo gore
cesso, lógica da frustração e a lógica do para enunciar essa economia da violên-
heroísmo, pulsão de ódio e estrategia cia extrema, que conecta as demandas
utilitária. As subjetividades endriagas da masculinidade violenta, do sistema
nos mostram que “os corpos inseridos econômico neoliberal e do discurso
em processos sociais como a circula- neocolonial. O capitalismo gore como
ção do capital variável nunca devem se taxonomia discursiva pode ser um
considerar dóceis ou passivos” (HAR- ponto de partida para enunciar uma
VEY 2000, p.141). Isso é fundamental realidade que atinge dolorosamente a
para analisar o papel do crime organi- maioria dos países latinoamericanos
zado, o narco-estado mexicano e suas (ainda que não exclusivamente).
conexões com o capitalismo gore. As-
sim, o narcotráico no México e a cria- Sayak Valencia Triana
ção de uma precariedade gore podem
ser lidos como produto das demandas Referências bibliográicas
neoliberais, numa sociedade cuja eco- GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica. Cartografí-
nomia política é disfuncional, que tem as del deseo. Madrid: Traicantes de Sueños, 2006.

como cenário expandido o contexto HARVEY, D. Espacios de esperanza. Madrid: Akal,


socioeconômico atual, onde reina a 2000.

precarização econômica (que resulta LIPOVETSKY, G. La felicidad paradójica. Ensayo so-


da precariedade existencial) e que der- bre la sociedad hiperconsumista. Barcelona: Anagrama,
2007.
ruba, radicalmente, os mitos de pro-
gresso que o discurso do iluminismo e PRATT, M. L. “Globalización, Desmodernización y el
Retorno de los Monstruos”. Tercer Encuentro de Perfor-
do humanismo haviam proposto como mance y Política. Universidad Católica. Lima, 2002.
possíveis vias de acesso à “modernida-
SANDOVAL, C. “Nuevas ciencias. Feminismo Cyborg
de”. O narcotráico como dispositivo y metodología de los oprimidos.” en: AA.VV. Otras Ina-
de controle nos mostra, ainda, a inexo- propiables. Feminismos desde las fronteras. Madrid: Tra-
icantes de Sueños, 2004
rável lógica que os corruptos utilizam
para se justiicar, baseada em servir ao •
melhor licitante, seja o empresário, o
delinquente ou ambos. Sabemos que Castração
se corromper não é uma decisão difícil
quando o panorama que se vislumbra Castração, por si só, já é uma
é só de perdas e de atraso econômico. palavra forte. Remete imediatamente
O que se torna difícil nesses casos é a algo cruel, punitivo e extremamente
resistir à tentação consumista. A estru- violento. As relações de gênero, por
tura da distopia é complexa, portanto, sua vez e coincidentemente, comparti-

• 99 •
lham com ela estas mesmas caracterís- rais, onde então o organismo estaria
ticas: foram (e são ainda, infelizmente) encarregado de administrar, biológi-
cruéis, punitivas e violentas. Ao longo ca e isiologicamente, os elementos
do tempo, as mulheres registram uma constitutivos da identidade. Aliás, estes
trajetória de abusos e privações que eram os dois “caminhos” possíveis,
envergonham nossa história e ainda o que condiz muito com o contexto
reverberam avassaladoramente, en- social e ideológico ao qual Freud era
quanto os estudos sobre gênero e as contemporâneo, mas foi algo que se
militâncias feministas lutam para expor manteve fortemente implícito mesmo
à sociedade e para combater tais práti- após o posterior desenvolvimento des-
cas e ideologias, pautadas na intolerân- tas ideias iniciais, quando então o foco
cia e na ignorância. deixou de ser o corpo e passou a se
Freud conceituou e abordou concentrar nos fatores interacionais e
profundamente a questão da castração psíquicos.
no início do século passado, em sua O autor, então, rapidamente
obra “Um caso de histeria, três ensaios percebeu que haveria muito mais en-
sobre a teoria da sexualidade e outros volvido ali do que pensava a princípio.
trabalhos” (FREUD, 2006). Nela, uti- Freud já tinha uma boa clientela em
lizou como metáfora a obra “Édipo seu consultório quando passou a ques-
Rei”, do dramaturgo grego Sófocles, tionar-se acerca de que papel poderia
escrita por volta de 427 a. C. Assim, ter algum evento traumático no desen-
ele elaborou um de se mais conheci- volvimento de problemas de ordem
dos e importantes conceitos, o “com- psicológica. Um destes “problemas”,
plexo de Édipo”, o qual se tornou sua na época, era a homossexualidade.
base fundamental para compreender o Freud acreditava que meninos expos-
desenvolvimento psíquico e sexual da tos a traumas, ou então seduzidos por
personalidade. Como parte dele, surge algum adulto, poderiam mais tarde, e
então o chamado “complexo de castra- em decorrência disto, apresentar a ho-
ção”, e também outro construto im- mossexualidade como distúrbio resul-
portante para a abordagem crítica sob tante.
o ponto de vista do gênero, a “inveja Porém, analisando sua própria
do pênis”. experiência clínica, ele percebeu que
Freud, neurologista por for- eram muito variáveis e inconstantes os
mação, incialmente acreditava que papéis que tais eventos exerciam em
a formação psicológica de homens seus pacientes. Notou que nem todos
e mulheres se formaria baseada nos que os experienciavam traumas torna-
seus respectivos determinantes natu- vam-se homossexuais, bem como havia

• 100 •
homossexuais que nunca haviam pas- tindo de uma relação quase simbiótica
sado por tais experiências. Isto repre- com a mãe (em função, principalmente,
sentou uma quebra de paradigmas para das necessidades de sobrevivência), até
o ávido cientista, quando então a pri- a aquisição do controle dos próprios
mazia dos fatores biológicos e ambien- esfíncteres, o inconsciente, em ambos
tais abriu caminho para a consideração os sexos, vai registrando as experiên-
da mente como a principal responsável cias infantis - as quais se dão, funda-
pelo desenvolvimento psicológico. A mentalmente, com a igura materna.
partir deste processo relexivo, Freud Então, a partir instauração do comple-
chegou ao que, provavelmente, foi (e xo de Édipo, meninos e meninas se-
ainda é) o mais importante conceito de guem por caminhos desenvolvimentais
sua obra: o inconsciente. distintos, porém com um ponto em
Este advento adquire importân- comum: o complexo de castração. O
cia aqui, neste texto, porque, mesmo inconsciente, neste ponto, mostra-se
sendo um marco fundamental na histó- em ebulição, produzindo as fantasias
ria da psicologia, na ordem da etiologia que irão direcionar cada um dos sexos
da personalidade (e de seus distúrbios) à produção de sua subjetividade.
Freud “transferiu” ao inconsciente a Para os meninos, tais fantasias
responsabilidade que era previamente dizem respeito à chegada do pai na
do organismo. Ou seja, mesmo que relação mãe-ilho enquanto um “com-
considerasse os fatores interacionais petidor” pelo amor da mãe. Ao incons-
e psicológicos, o inconsciente ainda ciente desta criança, tal pai seria como
era o grande “gestor”, com vontades um intruso, nada bem-vindo, àquela
e propósitos próprios - os quais, já por união de amor até então aparentemen-
deinição, diretamente incontroláveis, te indissolúvel e incondicional com sua
e de papel preponderante no processo mãe. Assim, com a libido (a energia
de desenvolvimento. O inconsciente, que “abastece” o inconsciente e seus
enquanto instância, adquire autonomia processos) direcionada ao próprio pê-
e protagonismo, e os processos psico- nis, uma nova fantasia inaugura-se sob
lógicos de sua ordem passam a deter- a forma do temor da castração, quando
minar as características identitárias de então o menino percebe que a mãe não
homens e mulheres, bem como seus o possui - ela está “castrada”. Então,
desvios patológicos. temendo a mesma retaliação por aque-
Assim, a formação da persona- le que “reivindica” a mãe, o menino
lidade em meninos e meninas tomam, passa a identiicar-se com esta igura
inicialmente, um mesmo rumo. Par- paterna - identiicação esta que se tor-

• 101 •
na o protótipo para todo o desenvolvi- ção social da mulher não somente da
mento da identidade masculina. sociedade na qual o autor estava in-
Já para as meninas, pode-se dizer serido, mas infelizmente também em
que o caminho é mais cruel. Ao atingir nossa própria, ainda nos dias de hoje.
seu complexo de Édipo, percebe que A mulher não-fálica é uma mulher des-
existe uma diferença crucial com rela- tituída de poder, e invejosa do poder
ção aos meninos: ela não possui pênis. varonil. Assim, amargurada pela não-a-
A angústia que isso traz ao seu incons- ceitação do lugar-comum a ela reserva-
ciente vem justamente da percepção do para assegurar sua “normalidade”,
de que ela e a mãe não possuem um ela tem sua tentativa de desconstrução
falo porque ambas foram castradas. da ordem vigente transformada em
Mas por que tal “atrocidade”? Porque, inadequação e subversão.
semelhante ao que acontece com os A dominação masculina e he-
meninos, a menina nutre inconsciente- teronormativa manteve-se através dos
mente um amor pelo pai. Como este tempos porque aos homens foi dada
amor não pode ser consumado, a natu- uma supremacia social, onde sempre
reza “extirpada” do pênis surge então foram reconhecidos como cidadãos.
como uma espécie de “punição” pelo À condição masculina foram reserva-
seu desejo proibido. Isto a faz, por dos os direitos, enquanto à feminina
conseguinte, identiicar-se com a mãe, sobraram os deveres. A história da
também castrada, para, assim, desen- humanidade foi construída tanto por
volver sua identidade feminina. eles quanto por elas, porém quase que
Esta etiologia caracteriza as mu- totalmente escrita por homens. Pos-
lheres como um ser psicológica e ana- suímos um vasto panteão de sábios,
tomicamente incompleto, podado de profetas e heróis, os quais eternamente
sua plenitude, esta apenas possível aos “salvavam” as mulheres, naturalmente
homens. Sem terem o direito a possuir indefesas e vulneráveis, que seguiam
o falo, a elas resta nutrir a denominada admirando-os e seguindo-os sob sua
“inveja do pênis”. Assim, na dinâmica sombra.
freudiana, a mulher apenas conseguiria Segundo a ótica da castração, a li-
aproximar-se da condição masculina bertação das mulheres de sua condição
quando gerar um/a ilho/a, este/a re- secundária e a reivindicação de direitos
presentando o seu falo perdido. igualitários reverbera no desnecessário
Como então desvincular a con- e no supérluo. O que necessita cons-
dição feminina para Freud e a crítica cientização é que a mulher possui um
realizada pelos estudos de gênero? Ela histórico de inúmeras castrações, seja
expressa com idelidade a representa- na sociedade, na política ou na família.

• 102 •
Os homens, como gestores e protago- los homologadores, teriam de deixar
nistas, despertariam então um desejo o lugar-comum para pertencerem ao
de equidade nas mulheres que seria ba- “lugar-nenhum”. Já que as mulheres
seado na inveja dos “postos” que eles almejariam exatamente a posição que
administrariam tão competentemente. previamente ocupavam, a eles seria
A castração da mulher na contempo- inadmissível adotarem qualquer repre-
raneidade é a negação histórica de seus sentação ligada à sujeição. Esta condi-
próprios direitos, tais como o voto, a ção acaba, muitas vezes, sendo justii-
separação conjugal, os cargos de che- cativa, por exemplo, para explosões de
ia e até a alfabetização, por exemplo. violência contra a mulher (WINCK e
Estes, por sua vez, seriam compensa- STREY, 2008).
dos por uma série de deveres “mais Finalizando, é importante lem-
importantes” e, sobretudo, naturais à brar que, mesmo com as valiosas con-
identidade feminina, tais como manter quistas do feminismo, as mulheres
a união da família (sob qualquer custo, ainda são castradas por nossa cultura
mesmo com violência ou inidelidade quase tanto quanto foram por nossa
do cônjuge), administrar as necessida- história. Enquanto a militância pelas
des da casa, ou alimentar e maternar equidades de gênero for confundida
aqueles/as sob sua responsabilidade apenas como uma rebeldia vazia de
outorgada. Elas assim não teriam, a uma causa ilegítima, não somente as
princípio, motivos para se desconten- mulheres, mas também a multiplici-
tarem como seu microcosmo pleno de dades de gêneros que existem além da
atividades fundamentais ao seio fami- dicotomia masculino-feminino estarão
liar, mesmo que às custas de sua pró- marginalizadas e subestimadas. Ainda
pria subjetividade (STREY, 2002). nos carece uma visão crítica sobre gê-
O puro e simples sentimento nero, para a desconstrução de ditames
inveja de um poder masculino, legíti- históricos à identidade feminina que, a
mo “por natureza”, por conseguinte exemplo da temática aqui tratada, fa-
levaria as mulheres a quererem desti- ziam muito mais sentido na sociedade
tuir os homens de seus papéis sociais, do início do século passado. Enquan-
políticos e familiares apenas por capri- to pessoas, independentemente do(s)
chos desnecessários. Muitos homens, gênero(s), não forem destituídas de
então, conforme comenta Trevisan papéis castratórios e de relações de
(1998), enfrentariam a denominada poder não-igualitárias, será necessária
“crise da masculinidade”. Estes, assim a conscientização de que está na pró-
(injustamente) castrados de seus fa- pria noção de “normalidade” um dos

• 103 •
pontos cruciais que ela própria se nega por receber e processar informações
a enxergar. do corpo, tornando-se o principal ór-
gão do sistema nervoso. Além de re-
Gustavo Espíndola Winck ceber e armazenar informações, é res-
ponsável por promover ações (o falar,
Referências o andar, o pegar, o comer, o controle
FREUD, Sigmund. Um caso de histeria, três ensaios so-
da temperatura corpórea, a pressão ar-
bre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1905). Rio terial, os batimentos cardíacos e a res-
de Janeiro: Imago, 2006.
piração). Desse modo, ele atua a partir
STREY, Marlene. Aprendendo a ser inferior: As hierar- de uma rede de controle integrada-
quias de gênero. In STREY, M; LYRA, A.; XIMENES,
L. (org.). Gênero e Questões Culturais: A Vida de Mu- mente a outros sistemas do corpo.
lheres e Homens na Cultura. Recife: Ed. Universitária da
UFPE, 2002.
O cérebro humano contém mi-
lhões de neurônios. Estes são células
TREVISAN, João. Seis balas num buraco só: A crise do
masculino. Rio de Janeiro: Record, 1998. nervosas, a partir das quais as infor-
mações entre o cérebro e o corpo são
WINCK, Gustavo; STREY, Marlene. A voz mais alta,
mas na hora certa: A naturalização na violência de gênero “trocadas”. Por meio de sinais quími-
enquanto recurso legitimado ao homem. Ártemis, 9. p.
113-133, dez. 2008.
cos e elétricos, os neurônios, que não
estão apenas localizados no cérebro,
Sugestões de leitura mas também ao longo de ramiicações
BUTLER, Judith. Gender trouble: Feminism and sub- nervosas por todo o corpo, enviam e
vertion of identity. New York: Routledge, 1999. recebem as informações, direcionan-
BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: Sobre limites do-as à diferentes áreas do cérebro.
materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paidós, Anatomicamente, o cérebro é
2005.
constituído por dois hemisférios. Cada
FREUD, Sigmund. O Ego e o Id e outros trabalhos hemisfério é formado por diferentes
(1923-1925). Rio de Janeiro: Imago, 2006.
áreas, as quais estão associadas às dife-
GUIMARAES, Veridiana. A concepção freudiana da se-
xualidade infantil e as implicações da cultura e educação.
rentes ações, como o desenvolvimento
Educativa, 15 (1), p. 53-66, 2012. de raciocínio, a fala, a coordenação de
ZORNIG, Silvia Maria. As teorias sexuais infantis na atu-
movimentos, o controle muscular, o
alidade: Algumas relexões. Psicologia em Estudo, 13 (1), recebimento de estímulos da pele (sen-
p. 73-77, jan./mar. 2008.
sações de frio e calor), a visão, a audi-
ção, a memória, entre outras.

Muitos/as estudiosos/as bus-
Cérebro cam diagnosticar os comportamento
de homens e mulheres pautando suas
Biologicamente, o cérebro é análises e explicações na anatomia e
concebido como órgão responsável isiologia cerebral. Seja pela contagem

• 104 •
de neurônios ou pelo estudo especí- como o órgão responsável por todas as
ico do desenvolvimento das diferen- propensões, sentimentos e capacidades
tes áreas do cérebro, alguns/algumas (SABBATINI, 2008).
pesquisadores/as levantam hipóteses A partir de 1980, os estudos
sexistas e homofóbicas, na tentativa de sobre padrões cognitivos e comporta-
justiicar as causas pelas quais homens, mentais dos indivíduos, caracteristica-
mulheres, gays, lésbicas, transexuais mente essencialistas, ganham destaque
comportam-se de determinada forma, no cenário cientíico, trazendo em suas
e não de outra. análises as relações de poder tradicio-
Os estudos para investigar as nais. Entre esses estudos, destacam-se
possíveis distinções no funcionamen- os que buscam uma explicação genéti-
to cerebral de homens e mulheres são ca para os comportamentos e as pes-
uma prática que desperta interesse há quisas da neurociência que procuram
muito tempo; tinham, e continuam identiicar as diferenças entre os cére-
tendo, como objetivo dar sustentação bros de homens e mulheres (BEIRAS
“cientíica” para tais diferenças en- et al., 2008). Na década de 1990, as
tre os sujeitos. Conforme Sabbatini neurociências realizaram grandes avan-
(2008), os neurologistas suspeitavam ços quanto à descoberta de diferenças
da existência de diferenças morfológi- “cientiicamente comprovadas” entre
cas do cérebro desde a época da fre- os cérebros dos homens e das mulhe-
nologia, no século XIX – produzida res (SABBATINI, 2007). Conforme
pelo médico Franz Joseph Gall (1758- Kraft (2005), a chamada “moderna
1828), sendo a primeira teoria comple- neurociência” concentrou-se inicial-
ta sobre a localização das diferentes mente em dar sustentação cientíica à
funções no cérebro. De acordo com noção de ascendência masculina e aos
Laqueur (2001), acreditava-se que, por estudos sobre as diferenças do cérebro
meio de uma análise cuidadosa do for- em função do gênero.
mato da cabeça e de outros traços, po- Sabbatini (2007) airma que,
deriam ser avaliados trinta e sete (37) ao longo do tempo, para o estudo das
componentes do caráter humano, para diferenças cerebrais entre os sujeitos,
cada indivíduo. No trabalho “A anato- foram sendo desenvolvidos diferentes
mia e Fisiologia do Sistema Nervoso métodos, tais como: medidas volumé-
em Geral e do Cérebro em Particular”, tricas de regiões cerebrais, imagens por
Gall propõe que as faculdades morais e tomograia, PET-scanners e ressonân-
intelectuais do sujeito são inatas e que cia magnética, exame do cérebro de
a sua manifestação dependia da organi- pessoas falecidas, entre outros. Estes
zação do cérebro – o qual considerava têm como inalidade permitir as/aos

• 105 •
cientistas investigar esse órgão em sua de forma crucial, de seu sistema ner-
minúcia, deinindo diferenças e classi- voso. Para Ortega e Vidal (2013,), “po-
icando distintos “grupos anatomoi- rém, a ideia do sujeito cerebral é mais
siológicos” de cérebros. ampla que a de homo cerebralis ou de
As imagens produzidas a partir homem neuronal. Designa uma igura
desses adventos tecnológicos têm se antropológica – o ser humano como
popularizado e difundido entendimen- cérebro – com uma diversidade grande
tos, experiências vividas, signiicados e de inscrições sociais e imaginárias, den-
representações sobre o que é ser ho- tro e fora dos campos neurocientíicos.
mem e mulher, homossexual, heteros- [...] Nas últimas décadas este processo
sexual e transexual. As imagens falam sofreu uma verdadeira explosão, como
sobre esses sujeitos, classiicam-nos, se pode veriicar pelo aparecimento
posicionam-nos e deinem-nos. de campos como neuropolítica, neu-
Ortega e Vidal (2007) vêm tra- roteologia, neuroética, neuroeducação
zendo essa discussão na expressão neuromarketing, neuroascese, neuro-
“sujeito cerebral”. Para esses autores, fenomenologia, neuroilosoia, neuro-
o progresso dos estudos sobre o cé- economia, neuropsicanálise, neuroarte
rebro, a proliferação de suas imagens etc.”.
na mídia, a circulação de informações O entendimento de sujeito ce-
relacionadas ao funcionamento e ativi- rebral emerge no sentindo de ampliar-
dades desse órgão produzem na socie- mos algumas discussões acerca das
dade percepções de que o cérebro seria neurociências, para além de um campo
portador das propriedades, comporta- de saber com implicações sociais ou
mentos e, assim, autor das ações que que tenha impacto na sociedade, mas
caracterizam modos de ser e estar no como um campo incrustado na esfera
mundo. Seria esse o órgão responsá- social.
vel pela deinição das individualidades, Para que o sujeito conheça e
passando a ser considerado um ator entenda seu cérebro e, assim, conheça
social. a si mesmo, observamos uma ampla
Para esses autores, ao longo do produção de artefatos (livros, ilmes,
século XIX, ocorreu a transformação programas televisivos, revistas, entre
do entendimento do cérebro como lo- outros) que tem como propósito apre-
cal da alma. Assim, este passa a ser o sentar as descobertas cientíicas rela-
órgão do self. Atrelado a esse conceito cionadas a esse órgão. Podemos citar,
de sujeito cerebral, emerge também a como exemplos, dois livros da neuro-
noção do “homem neuronal”, ou seja, cientista Suzana Herculano-Houzel:
os seres humanos seriam dependentes, “O cérebro nosso de cada dia: des-

• 106 •
cobertas da neurociência sobre a vida tarefas entre os hemisférios esquerdo
cotidiana” (publicada em 2002, a obra e direito do cérebro, ela faz diferente
tem como objetivo explicar alguns as- dele. (HAUSMANN, 2005, p. 43)
pectos relacionados ao funcionamento Em programas televisivos tam-
do cérebro em situações do cotidiano) bém podemos perceber a presença de
e “Fique de bem com seu cérebro: guia saberes da neurociência, os quais vêm
prático para o bem-estar em 15 passos” distinguindo homens e mulheres em
(publicada em 2007, a obra apresenta virtude das diferenças cerebrais de cada
alternativas para potencializar a sensa- um. Estas justiicariam e apontariam o
ção de bem-estar através de achados da que cada gênero está apto para fazer
neurociência acerca do funcionamento na sociedade (MAGALHÃES, 2008).
do cérebro). O excerto abaixo – do programa Fan-
Outros livros dedicam-se a tástico – exempliica tal apontamento:
mostrar as “diferenças” existentes O modelo de corpo do cérebro
entres homens e mulheres. “Por que é feminino, se não acontecesse nada de
os homens fazem sexo e as mulheres errado todo mundo ia ser mulher [...]
fazem amor? Uma visão cientíica [e na oitava semana o tempo fecha e pinta
bem-humorada] de nossas diferen- uma chuva de hormônios, a tal da tes-
ças”, de Allam e Barbara Pease, é um tosterona, ou seja, a Ciência prova que
exemplo de artefatos, como esse, que Eva veio primeiro que Adão. (SEXO,
buscam explicar por meio de dados 2008).
da neurociência os comportamentos, A partir desses fragmentos, po-
habilidades, entre outros aspectos de demos perceber o caráter essencialista
homens e mulheres, de forma descon- desse discurso, que atribui às distinções
traída e de fácil entendimento. anatomoisiológicas entre o cérebro de
Com relação à divulgação de mulheres e homens a justiicativa das
explicações sobre as diferenças entre diferenças de comportamento, aptidão,
homens e mulheres, pautadas na neu- habilidades e padrões cognitivos, ou
rociência, podemos citar a revista de seja, as diferenças entre os gêneros são
divulgação cientíica, como Scientiic consideradas como algo dado pela na-
American Brasil. O excerto abaixo tureza, da essência do sujeito. Na me-
exempliica essa questão: dida em que o conceito de gênero air-
Homens e mulheres pensam de ma o caráter social do feminino e do
modo diferente? Há muito tempo os masculino, pretende-se afastar propo-
cientistas cognitivos dizem que sim. sições essencialistas sobre os gêneros,
Agora, dispõem de dados biológicos a ótica ica voltada para um processo,
também: quando se trata de dividir as para uma construção.

• 107 •
Para além das explicações rela- munidade cientíica, acadêmica ou dos
cionadas às diferenças comportamen- centros de pesquisa. O que percebe-
tais, aptidões e habilidades entre ho- mos é que os resultados produzidos
mens e mulheres, o cérebro também nesses estudos cientíicos também
seria o órgão que justiicaria os modos são veiculados em outros meios de in-
de os sujeitos relacionarem-se. Isso formar e comunicar, ou seja, a mídia
pode ser percebido nas publicações impressa e televisiva – conforme os
existentes em periódicos internacio- exemplos mencionados anteriormente.
nais. Assim, vão sendo construídos signii-
A primeira indicação de cor- cados sobre esse órgão. Signiicados
relações neurais para preferência de que acabam por estabelecer subjetivi-
parceiro sexual veio do estudo de au- dades e determinadas conigurações
tópsia do terceiro núcleo intersticial sociais, bem como maneiras de perce-
do hipotálamo anterior (INAH-3) de ber os corpos, as sexualidades, os sujei-
Simon LeVay (1991) onde o INAH-3 tos e a nós mesmos/as.
foi encontrado menor em homens ho-
mossexuais do que em homens presu- Joanalira Corpes Magalhães
midamente heterossexuais, e indistin- Benícia Oliveira da Silva
Paula Regina Costa Ribeiro
guíveis de mulheres presumidamente Fabiane Ferreira da Silva
heterossexuais. [...]. ( RAHMAN, 2010,
p. 1061) Referências
Esses processos de investigação
do cérebro e das sexualidades possibi- BEIRAS, Adriano et al. Sexo e gênero em revistas: uma
análise preliminar de discurso. Psicologia em Estudo, Ma-
litou-nos perceber as Ciências como o ringá, n. 1, p. 97-104, jan./mar. 2008.
campo de saber legitimado para pro-
HAUSMANN, Marcus. Questão de Simetria. Viver
dução de “verdades” para as diferentes Mente & Cérebro Scientiic American, São Paulo, n. 146,
formas de ser homem, ser mulher, de p. 40-45, mar. 2005.

viver os prazeres e desejos corporais, KRAFT, Ulrich. O poder do feminino. Viver Mente &
reiterando, de alguma forma, as teses Cérebro Scientiic American, São Paulo, n. 146, p. 46-
51, mar. 2005.
do determinismo biológico. Os saberes
cientíicos produzidos e documenta- LAQUEUR, homas. Inventando o sexo: corpo e gêne-
ro dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
dos, pelos diferentes campos de saber, 2001.
acabam por instituir o que deve ser dito
MAGALHÃES, Joanalira Corpes. Por que os homens
sobre o cérebro e seu funcionamento. nunca ouvem e as mulheres não sabem estacionar? Ana-
Essas formulações extrapolam lisando a rede de discursos das neurociências quanto às
questões de gênero em alguns artefatos culturais. 2008.
os espaços dos periódicos cientíicos, 84 f. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências).
sendo acessados por outros sujeitos, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Ale-
gre, 2008.
não somente os que compõem a co-

• 108 •
ORTEGA, Francisco; VIDAL, Fernando. Mapeamento ORTEGA, Francisco. O corpo incerto: corporeidade,
do sujeito cerebral na cultura contemporânea. Reciis, Rio tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Ja-
de Janeiro, n. 2, p. 257-261, 2007. neiro: Garamond, 2008. 256 p.

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em: http://www.globo.com/fantastico Acesso em: 16
maio 2008.
uma construção contingente e parcial,
em oposição aos saberes universais e
Sugestões de leitura totalizantes. Desse modo, a Ciência
constituir-se-á pelas interações entre
AMARAL, Jonathan Henriques do. O cérebro e a na- os diferentes pontos de vista de “su-
turalização das diferenças de gênero em um artefato de
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lanpedsul.com.br/admin/uploads/2012/Genero,_Sexua-
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MAGALHÃES, Joanalira Corpes; RIBEIRO, Paula Re-
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cias y horizontes de igualdad. Barcelona: Fundació Vidal econômicos e políticos (WORT-
i Barraquer, 2003. MANN; VEIGA-NETO, 2001). Por-

• 109 •
tanto, a Ciência não é neutra, mas se mento independente de gênero, etnia/
encontra inscrita na cultura e na histó- raça, classe, e outros marcadores dos
ria. Ela é produto da atividade humana, sujeitos e grupos sociais. Além disso,
impregnada de valores e costumes de o discurso “tradicional” sobre a Ciên-
cada época, sendo, portanto, provisó- cia, representada como a “verdade”
ria, mutável e questionável. universal e absoluta, neutra, imparcial,
A razão, a lógica, o quantitativo, desinteressada, visando o bem e o pro-
a observação, a experiência, o controle gresso da humanidade, aproxima a Ci-
e a previsibilidade, a objetividade, ten- ência moderna dos dogmas da religião,
do conceitos da física e da matemática pois seu valor universal e inquestioná-
como referenciais de rigor e exatidão vel ganha legitimidade no mundo intei-
cientíica, são aspectos que caracteriza- ro (HENNING, 2007).
ram e ainda caracterizam uma prática/ A partir das contribuições de
produção intelectual como Ciência; Michel Foucault (2004; 2008), a Ci-
logo, é considerado não Ciência tudo ência pode ser entendida como uma
o que não se adequar a esses discur- formação discursiva que institui e
sos e práticas. Essa concepção, ainda regulamenta códigos, procedimen-
dominante, tem como base o pressu- tos, normas, regras, rituais, saberes e
posto de que um método é o que vai “verdades”, que vão, constantemente,
deinir o que é a Ciência e o caminho subjetivando-nos. A Ciência dá-se na e
cientiicamente “correto” de produ- pela linguagem e na articulação entre
zir conhecimento, por meio da lógica, determinados “regimes de verdade”
da racionalização, da observação e da que determinados grupos colocam em
experimentação, tendo o espaço do funcionamento e passam a ser aceitos
laboratório como locus privilegiado de como “verdades”, que não são ixas e
investigação e produção do conheci- imutáveis, mas, sim, provisórias e his-
mento cientíico. tóricas. Para Attico Chassot (2004, p.
Assim, a objetividade, a neu- 249), “a ciência não tem dogmas. Tem
tralidade, a racionalização e a univer- algumas verdades e estas são transitó-
salidade são características do fazer rias. Há muitos conceitos que já foram
Ciência. Uma Ciência legítima é repre- ensinados como sendo a explicação
sentada como sendo “livre de valores”, para uma determinada situação e de-
autônoma, imparcial e universal, uma pois houve necessidade de se revisa-
Ciência que subjuga seu caráter huma- rem as posições, pois outro modelo
no, social, cultural e histórico. Dessa de explicação era mais apropriado”.
forma, a Ciência seria objetiva, neutra Nessa discussão, não está em jogo
e universal por constituir um conheci- a relevância ou não da produção do

• 110 •
conhecimento cientíico, mas, sim, os A crítica à Ciência tem perma-
seus efeitos de “verdade”, que produ- necido como um dos temas de discus-
zem maneiras especíicas de ver e agir são nas agendas feministas, que vem se
no mundo, fabricando as pessoas e o ampliando e se complexiicando desde
próprio mundo. a década de 1970, quando a expressão
É a partir dessas proposições “gênero e ciência” foi utilizada pela
que a Ciência pode ser entendida como primeira vez, em 1978, como título de
a “grande narrativa” que se instaura na um artigo de Evelyn Fox Keller, no
Modernidade com o caráter de verda- qual ela discutia as relações entre sub-
de legitimadora de conceitos (HEN- jetividade e o objetividade (LOPES,
NING, 2007). Ao entender a Ciência 2006). No caminho da crítica à Ciên-
como uma narrativa, constituída por cia, as feministas avançaram na denún-
relações de poder e saber, enfatiza-se cia sobre a exclusão e invisibilidade das
o papel constituidor da linguagem na mulheres no contexto da Ciência, mos-
produção dos discursos cientíicos e trando o caráter androcêntrico e sexis-
verdadeiros, na produção do que a ta que a perpassa; entraram nas discus-
Ciência pode e deve fazer, e principal- sões sobre os próprios fundamentos
mente sobre quem está autorizado a da Ciência moderna, suas teorias e
fazer Ciência. práticas, a forma como os sujeitos são
A Ciência como um construto socializados no fazer cientíico, as desi-
humano foi moldada por valores so- gualdades de gênero que constituem a
ciais e culturais que excluíram (e ainda Ciência, os preconceitos de gênero na
excluem) e invisibilizaram as mulheres seleção de objetos e análise de dados,
da produção do conhecimento. A es- a linguagem sexista e discriminatória,
trutura de gênero deiniu o Homem entre outros aspectos.
como sujeito do conhecimento. Por-
tanto, as habilidades e características Joanalira Corpes Magalhães
Benícia Oliveira da Silva
necessárias para produzir a Ciência são Paula Regina Costa Ribeiro
tidas como masculinas, das quais as Fabiane Ferreira da Silva
mulheres são “naturalmente” despro-
vidas. A Ciência dita universal é uma Referências
Ciência masculina, branca, elitista, oci-
CHASSOT, Attico. A ciência através dos tempos. 2. ed.
dental, burguesa, embora se pretenda São Paulo: Moderna, 2004.
neutra, livre de marcadores sociais, tais
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 10. ed. São
como gênero, etnia/raça, classe social, Paulo: Loyola, 2004.
geração etc..

• 111 •
______. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: dos em duas vertentes: a primeira diz
Forense-Universitária, 2008.
respeito à utilização do cinema como
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da recurso pedagógico no ambiente es-
ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva
parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 07-41, 1995. colar e a segunda entende o cinema
HENNING, Paula Corrêa. Profanando a Ciência: relati-
como uma eicaz instância pedagógica
vizando seus saberes, questionando suas verdades. Currí- (BALESTRIN, 2009). Nesse sentido, a
culo sem Fronteiras, v. 7, n. 2, p. 158-184, jul./dez. 2007.
segunda vertente percebe a educação
LOPES, Maria Margareth. Sobre convenções em torno como um processo amplo que abrange
de argumentos de autoridade. Cadernos Pagu, Campinas,
n. 27, p. 35-61, jul./dez. 2006. não só as instituições formais de en-
sino, mas também as múltiplas instân-
WORTMANN, Maria Lúcia Castagna; VEIGA-NETO,
Alfredo. Estudos culturais da ciência & educação. Belo cias e os artefatos da nossa cultura.
Horizonte: Autêntica, 2001.
Ao mesmo tempo em que são
entretenimento, os ilmes desenvolvem
Sugestões de leitura
uma pedagogia, ensinam modos de ser
ANDERY, Maria Amália et al. Para compreender a ci- e viver. Sendo produtos da cultura, as
ência: uma perspectiva histórica. 9. ed. Rio de Janeiro: produções cinematográicas produzem
Espaço e Tempo; São Paulo: EDUC, 2000.
sujeitos e identidades. Nos dias atuais,
CHALMERS, Alan. A fabricação da ciência. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1994.
podemos dizer que a mídia ocupa pa-
pel central, e o cinema, nessa perspec-
CHASSOT, Attico. A ciência é masculina? É sim, senho-
ra!. 2. ed. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006. tiva, pode ser considerada uma ação
pedagógica. Como diz Guacira Louro:
FEYERABEND, Paul. Contra o método. São Paulo: Edi-
tora UNESP, 2007. [...] distintas posições-de-sujeitos [...] e
KUHN, homas. A estrutura das revoluções cientíicas.
de gênero vêm sendo representadas,
9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. nos ilmes, como legítimas, moder-
LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. A vida de labo- nas, patológicas, normais, desviantes,
ratório: a produção dos fatos cientíicos. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1997.
sadias, impróprias [...]. Ainda que tais
marcações sejam transitórias [...] é pos-
______. Ciência em ação: como seguir cientistas e en-
genheiros sociedade afora. São Paulo: Editora UNESP, sível que seus resíduos e vestígios per-
2000. sistam, (LOURO, 2008, p. 81).
SCHIEBINGER, Londa. O feminismo mudou a ciên- Nessa perspectiva, o cinema
cia?. São Paulo: EDUSC, 2001.
vira uma eiciente instância pedagógi-
• ca, pelo seu poder de sedução e por
não dispensar o prazer e o divertimen-
Cinema to. São narrativas que nos interpelam;
o ambiente de uma sala de cinema
Os estudos mais recentes sobre propicia um envolvimento entre per-
cinema e educação podem ser dividi- sonagens e plateia, produzindo efeitos

• 112 •
de realidade. Corroborando com esse captura não somos impassíveis; ne-
argumento, Elí Fabris airma: elas [...] gociamos posições. Para marcar essas
nos interpelam para que assumamos negociações na produção dos signiica-
nosso lugar na tela, para que nos iden- dos, vale pensarmos um pouco sobre
tiiquemos com algumas posições e a teoria de endereçamento, discutida
dispensemos outras. Naquele momen- por Elizabeth Ellsworth, que mostra
to, ocorre uma simbiose entre o cor- que as produções cinematográicas são
po do espectador e a história vivida na pensadas para um determinado públi-
tela. (FABRIS, 2008, p. 118). co, mas o endereçamento nem sempre
A narrativa fílmica ensina. O au- atinge seu objetivo, e é aí que se pro-
tor Ismail Xavier (2008, p. 14) enfatiza picia uma negociação entre espectador
que “o cinema que ‘educa’ é o cinema e ilme. Segundo a autora, “essa nego-
que faz pensar, não só o cinema, mas ciação tampouco é, jamais, uma coisa
as mais variadas experiências e ques- simples ou única. Pois da mesma for-
tões que coloca em foco”. Ao assistir ma que o espectador ou a espectadora
um ilme, damos início a variadas ne- nunca é exatamente quem o ilme pen-
gociações: o que fazer com essas ima- sa que ele é ou ela é, assim também o
gens? O que ela despertou no que me ilme não é, nunca, exatamente o que
moveu? O que eu tomo como meu e ele pensa que é.” (2001, p. 21).
o que eu dispenso? São inúmeros sen- Ao mesmo tempo em que o ci-
tidos e representações desenvolvidos nema, como artefato cultural, colabo-
durante uma sessão de cinema. Segun- ra na produção e na manutenção das
do Stuart Hall esses signiicados cultu- representações, é também produzido
rais não são só processos mentais; têm por elas. Graeme Turner, em seus ar-
efeitos reais e regulam as práticas so- gumentos sobre cinema, apresenta
ciais. Gênero, nessa perspectiva é uma uma visão semelhante: “assim como o
construção histórica e cultural, cons- cinema atua sobre os sistemas de sig-
tituindo-se a partir do conhecimento niicação da cultura – para renová-los,
produzido pelos discursos imbricados reproduzi-los ou analisá-los – também
nas relações de poder. São os efeitos é produzido por esses sistemas de sig-
e as consequências das representações niicação.” (1997, p. 128-129). É nes-
contidas nesses discursos que inluen- se sentido que tomo o cinema como
ciam a construção das identidades de produto e produtor das representações
gênero. sobre as práticas de gênero.
O cinema nesse ínterim é um O cinema, aqui, vai além de arte
poderoso discurso no qual somos e comunicação; é um produto cultural
capturados pelas imagens. Mas nessa produzido por práticas sociais e, por

• 113 •
isso, atravessado de signiicados. A Os trailers, as chamadas de vei-
partir do movimento da tela, o cinema, culação, a escolha das músicas, os pla-
como artefato da cultura, vai produzin- nos, os closes, o igurino e o próprio
do, ressigniicando e visibilizando re- desenrolar das cenas são práticas dis-
presentações e signiicados das práticas cursivas que, sendo acionadas em um
sociais e, assim, constituindo sujeitos ilme, permitem a signiicação e a res-
e identidades. Desse modo, é preciso signiicação de práticas de gênero que
pensar nas narrativas e nos discursos operam em direção à constituição dos
que a linguagem cinematográica tem sujeitos. Obviamente, não posso air-
produzido a respeito das concepções mar que todos os sujeitos são interpe-
de gênero na contemporaneidade. lados, mas o processo narrativo de um
Como artefato cultural, o cine- ilme produz efeitos.
ma pode ser analisado como instância Durante a escrita deste verbete,
pedagógica que produz, ressigniica e argumentei que o cinema é uma eicaz
veicula determinados modos de co- instância pedagógica que não apenas
nhecer, viver e valorar os papéis de produz, mas também atualiza tipos de
gênero. Segundo os pressupostos das normatividade de gênero. O cinema é
teorizações culturais contemporâneas, um meio privilegiado através do qual a
um ilme é considerado um texto, e o representação é construída e veiculada.
enfoque analítico está nas representa- A imagem em movimento produz um
ções que circulam em uma película. A efeito de realidade particularmente es-
linguagem cinematográica tem suas pecial, e essa imagem permite variadas
especiicidades. A escolha da música, leituras. Como Rosângela Soares eluci-
dos planos, dos ângulos, das cores, da, “o trabalho do analista da imagem
do igurino, das tomadas, entre outras é precisamente decifrar as signiicações
coisas, colabora com a construção de que a naturalidade aparente das mensa-
signiicados que envolvem o especta- gens visuais implica”. Portanto perce-
dor/a, aumentando os efeitos de rea- ber quais representações e quais jogos
lidade. de poder estão implicados na aparente
Trata-se, portanto, de problema- naturalidade das imagens e quais são os
tizar os modos pelos quais a narrativa efeitos disso na construção das identi-
fílmica constrói modos especíicos de dades de gênero é de estrema impor-
vivenciar os papéis de gênero. Penso tância para a construção de um mundo
que o cinema divulga alguns dos possí- mais igualitário.
veis discursos que constituem sujeitos
e identidades de gênero. Paula Tatiane de Azevedo

• 114 •
Referências e sugestões de leitura •
BALESTRIN, Patrícia Abel. Gênero e sexualidade no ci-
nema: questões para a educação. 2010. Disponível em: Ciudadanía
<http://patriciaabelbalestrin.blogspot.com/2010/03/
genero-e-sexualidade-no-cinema-questoes.html>. Acesso
em: 1º set. 2011. Constituye una de las grandes
FABRIS, Elí Terezinha Henn. Representações de espaço ideas del pensamiento político occi-
e tempo no olhar de Hollywood sobre a escola. 1999. dental y desde las décadas inales del si-
Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de
Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, glo XX adquiere una relevancia notable
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Ale- en los debates académicos y políticos.
gre, 1999.
No tiene, no obstante, un signiicado y
______. Em cartaz: o cinema brasileiro produzindo sen-
tidos sobre escola e trabalho docente. 2005. Tese (Dou-
deinición simple ni deinitiva. Su na-
torado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em turaleza es polémica, histórica y teóri-
Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. ca, ha generado y genera importantes
debates normativos y luchas políticas.
______. Cinema e educação: um caminho metodológico.
Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 117- Dicho de otro modo, la naturaleza y el
133, jan./jun. 2008.
signiicado de la ciudadanía, y la idea
ELLSWORTH, Elizabeth. Modos de endereçamento: de igualdad que incorpora como ele-
uma coisa de cinema; uma coisa de educação também.
In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Nunca fomos humanos: nos
mento fundamental, no es ija y estáti-
rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica Editora, ca, sino compleja y problemática, cam-
2001.
biante, conlleva inclusión y exclusión,
HALL, Stuart. he work of representation. In: HALL, comporta prerrequisitos. En tanto ide-
Stuart (Org.) Representation: cultural representations
and signifying practices. London: housand Oaks; New al político, provoca luchas y conlictos
Delhi: Sage, 1997.
sobre su extensión, levanta anhelos y
LOURO, Guacira Lopes. Nas redes do conceito de gêne- aspiraciones, apunta a un horizonte de
ro. In: Lopes, M. J. D.; MEYER, D. E. E.; WALDOW, V.
R. (Org.). Gênero e saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, posibilidades o de futuro. Remite a la
1996. idea de política misma “al tipo de so-
______. Cinema e sexualidade. Educação & Realidade, ciedad y comunidad política que que-
Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 81-97, jan./jun. 2008. remos” (MOUFFE, 1993), “al tipo de
SOARES, Rosângela de Fátima R. Namoro MTV: ju- vida colectiva que queremos asumir y
ventude e pedagogias amorosas/sexuais no Fica Comigo.
2005. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de
promover”, de ahí que su signiicado
Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, esté sometido a constantes luchas y
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Ale-
gre, 2005. renegociaciones (BOSNIAK, 2010).
Tan vieja como la política, la idea de
TURNER, Graeme. Cinema como prática social. São
Paulo: Summus, 1997. ciudadanía delimita o conforma cierto
tipo de ser humano. Abarca derechos,
XAVIER. Ismail. Um cinema que “educa” é um cinema
que (nos) faz pensar. Entrevistador: Fabiana de Amorim obligaciones y pertenencia. Implica a la
Marcello. Educação & Realidade, Porto Alegre, UFRGS,
v. 33, n. 1, jan./jun. 2008, p. 13-20.
identidad individual y colectiva. Susci-

• 115 •
ta cuestiones de justicia y democracia. mujeres y los hombres han estado en
Tiene distintas dimensiones: jurídica, una relación diferente con ella, en des-
política, social, económica, sexual, cul- ventaja de las mujeres” (Lister, 2001).
tural, corporal e íntima. Y, por lo regu- Una plantilla de género que responde
lar, la encontramos adjetivada: ‘univer- a: varón, soldado, trabajador, nacional,
sal’, ‘civil’, ‘política’, ‘social’, ‘sexual’, según un modelo unitario y universa-
‘multicultural’, ‘ecológica’, ‘cosmopoli- lista de la ciudadanía, permitiendo en-
ta’, ‘desnacionalizada’, ‘postindustrial’, tender el distinto acceso de las mujeres
‘europea’, ‘lexible’… La profusión del a los derechos civiles, políticos y socia-
lenguaje de la ciudadanía, así como las les, mostrar las abstracciones y parado-
críticas a esta idea en el contexto del jas, las contradicciones y tensiones.
debate actual, llevan a determinar cual El feminismo de los sesenta
es su signiicado y valor, si es una her- y setenta, en general, no expresa sus
ramienta políticamente útil o, por el demandas en el lenguaje político de la
contrario, hay que ir más allá de la ciu- ciudadanía, en gran medida porque se
dadanía. asocia ciudadanía con estatus formal
La relación de las mujeres con (VOET, 1998) y por excluir el espacio
la ciudadanía ha sido difícil tanto en privado. En los noventa el renovado
términos de exclusión como de incor- interés en la ciudadanía se deja sentir
poración. La historia de las mujeres también entre las teóricas feministas
y del feminismo está jalonada por las que, además de poner de relieve la
luchas por la ciudadanía. Excluidas de ausencia del análisis de género entre
la ciudadanía y la democracia ateniense los teóricos de la ciudadanía, revisan
(IRIARTE, 2002). Vindicándola ante las teorías, los modelos y las prácticas
la Declaración de los Derechos del Hombre y tradicionales. Las críticas feministas
el Ciudadano (O. de Gouges, M. Wolls- señalan que los modelos tradicionales
tonecraft). Luchando por el sufragio o de ciudadanía, esto es, liberal y repu-
por los Derechos Humanos. El movi- blicano -la ciudadanía como estatus o
miento y la teoría feminista han puesto como práctica- coinciden en presentar
de maniiesto esta complicada relación al ciudadano como universal cuando
o, con otras palabras, han sacado a la en realidad es masculino. El comunita-
luz que la ciudadanía tiene sexo-género, rismo, el multiculturalismo o el ecolo-
que es donde “la exclusión de las muje- gismo, tampoco saldrán bien parados
res ha estado más irmemente impresa del escrutinio crítico.
en su plantilla histórica” (HOBSON/ Desde los análisis críticos pio-
LISTER, 2002, p. 23); que siempre ha neros de la ciudadanía universal, a i-
tenido género “en el sentido de que las nales de los años ochenta, se destaca el

• 116 •
vínculo entre individualidad y masculi- privada no son dos esferas separa-
nidad. La ciudadanía moderna, la ciu- das, están estrechamente relacionadas,
dadanía universal, en términos gene- como pone de maniiesto la crítica a las
rales, reiere a la relación formal entre teorías del contrato, clásicas y contem-
individuo y Estado-nación, al vínculo poráneas, que lleva a cabo C. Pateman
entre ciudadanía y nacionalidad. Con- (1988). La esfera público-política surge
iere a los individuos un estatus formal, de un contrato del que quedan exclui-
abstrayendo toda particularidad, marca das las mujeres, pero no puede cons-
o diferencia, sea de raza, clase, sexo o tituirse como tal sin la esfera privada
cualquier otra. Responde a la igualdad que contiene un contrato especíico: el
formal. Mas la igualdad formal, tras el contrato sexual. El tránsito del ‘estatus’
lento y costoso acceso de las mujeres al ‘contrato’ opera según la lógica del
a ella, no implica que las mujeres par- patriarcado fraternal moderno: ‘indivi-
ticipen plenamente de la ciudadanía, o duo’, ‘contrato’, ‘trabajador’ y ‘ciuda-
dejen de ser ‘ciudadanos de segunda’. dano’ son categorías patriarcales. Las
La abstracción no funciona, el indi- mujeres pueden conseguir la condición
viduo abstracto es masculino (AMO- formal de individuos civiles pero no en
RÓS, 1987; SCOTT, 1996) y las mu- el mismo sentido que los varones, las
jeres no son propiamente ‘individuos’. mujeres no son ahora excluidas, sino
El concepto de individuo sobre el que incorporadas como mujeres al mundo
se construye la categoría de ciudadano público, a la sociedad civil, lo que lleva
descansa en el individuo libre e igual, a Pateman a plantear el ‘dilema Wolls-
independiente y dueño de sí mismo, no tonecraft’ (1989, 1992). Por su parte I.
obstante, este ideal de independencia y M. Young (1989) analiza críticamente
libertad individual viene dado en tér- el ideal de ciudadanía universal enten-
minos de independencia económica, y dida como que se extiende a todas las
así, airma Saraceno: “el concepto de personas y que transciende la particu-
ciudadanía se topó con la imposibili- laridad y las diferencias. La igualdad
dad inherente de ser verdaderamen- se concibe como identidad y destaca
te igualitario para todos y alcanzar la dos sentidos de la universalidad: como
propia universalidad”. Las mujeres son generalidad, esto es, lo que tienen en
dependientes económicamente. Los común los ciudadanos en oposición a
hombres son dependientes del trabajo lo que diieren; como igualdad de tra-
doméstico de las mujeres, un prerre- to, es decir, leyes y reglas son ciegas a
quisito o condición que hay que tomar las diferencias individuales o de grupo.
en consideración (SARACENO, 1988, Cuestiona el vínculo entre ciudadanía
p. 128). La esfera pública y la esfera igual y los dos sentidos de universali-

• 117 •
retribuido está localizado en la esfera tado, mercado, familia y matrimonio,
privada (PATEMAN, 1989; FRASER/ demandando una reconiguración de la
GORDON, 1992). La igura que con- ciudadanía que responda a los cambios
densa los problemas y contradicciones necesarios, que afectan tanto a muje-
es la de la ‘madre trabajadora’: “No existe res como a hombres, en las esferas pú-
una igura análoga, ni a nivel jurídico ni blica y privada, al trabajo remunerado
simbólico, de padre trabajador; es de- y a la incorporación de los cuidados,
cir, de un individuo que tiene a la vez abogando por la plena pertenencia e
responsabilidades laborales y de cuida- incorporación activa a la comunidad,
do de la familia” (SARACENO,1988, a las comunidades, en las que viven.
p. 139). La legitimidad de las mujeres Con otras palabras, tras las críticas a
como trabajadoras es precaria -ser ma- los modelos de ciudadanía, las teóricas
dre y trabajadora está sujeto a contra- políticas feministas han desarrollado
dicción- y, en consecuencia, también lo diferentes propuestas; estas pueden ar-
es su ciudadanía. O, como indica Yu- ticularse en torno a tres imágenes nor-
val-Davis, referido al modelo de ciuda- mativas respecto del género: ciudada-
danía estatal, la característica especíica nía ‘neutral’, ciudadanía ‘diferenciada’,
de la ciudadanía de las mujeres es su ciudadanía ‘pluralista’. (LISTER, 2001;
‘naturaleza dual’: “por un lado, las mu- HOBSON/LISTER, 2002)
jeres están siempre incluidas, al menos El nexo entre ciudadanía y na-
en cierta medida, en el cuerpo general cionalidad, por último, pone de relieve
de ciudadanos del Estado y sus proyec- los problemas y tensiones de la per-
tos sociales, políticos y económicos; y tenencia. Ya Saraceno (1988) advertía
por otro lado, siempre hay, más o me- que la nacionalidad adquiere un “sta-
nos desarrollado, un cuerpo separado tus adscrito y semi-natural”, bien que
de legislación que se relaciona con ellas el criterio de adquisición sea el jus san-
en su condición especíica de mujeres” guinis, bien sea el jus soli. Dicho nexo
(YUVAL-DAVIS, 1996, p. 169) presenta la paradoja de que las mujeres
El debate feminista sobre la son consideradas como ‘soportes de
ciudadanía ha puesto de relieve el fal- la nación’ al tiempo que no son incor-
so universalismo, que la ciudadanía poradas como individuos, sino como
no puede circunscribirse a la relación miembros de la familia, experimentan-
formal entre individuo y Estado (YU- do esta inferioridad de forma diversa
VAL-DAVIS/WERBNER, 1999), que según sea ‘la clase, grupo étnico o na-
no es solo un estatus sino también una ción a la que pertenezcan o de la que
práctica, un conjunto de prácticas; ha provengan”, lo que da lugar a conlic-
mostrado las interconexiones entre Es- tos, y entre los más destacados, los que

• 118 •
se darán luego a propósito de la ciu- Referencias
dadanía multicultural y las luchas por
el reconocimiento. Pero también de AGRA ROMERO, Mª X. Cidadanía. Dicionário de Fi-
losofía Moral e Política. Instituto de Filosofía da Lingua-
forma particular en la actualidad en re- gem, FCSH/UNL, en línea.
lación con la ciudadanía cosmopolita o
AMORÓS PUENTE, Celia. Espacio de las iguales, es-
global, con los problemas que suscitan pacio de las idénticas. Notas osbre poder y principio de
los nuevos lujos migratorios y la glo- individuación. Arbor CXXVIII, 1987, p. 113-127.

balización económica, la pérdida de so- BOSNIAK, Linda. Citizenship, Noncitizenship, and the
beranía del Estado-nación, la crisis del Transnationalization of Domestic Work. En, BENHAB-
IB, S./RESNIK, J. Migrations and Mobilities. Citizen-
Estado de bienestar y el auge del ne- ship, Borders, and Gender. New York: New York Univer-
oliberalismo. ¿Ciudadanía para quien? sity Press, 2009, p. 127-156.

¿Ciudadanía donde? Serían ahora las BOSNIAK, Linda. Desnacionalizando la ciudadanía, en


preguntas pertinentes (BOSNIAK, SOYSAL, Y./BAUBÖCK, R./BOSNIAK, L. Ciudadanía
sin nación. Bogotá: Siglo del Hombre editores, 2010.
2009; SHACHAR, 2007) y la igura de
‘mujer trabajadora doméstica migrada’ FRASER, Nancy/GORDON, Linda. Contrato versus
caridad: una reconsideración de la relación entre ciu-
una de las principales a tener en cuenta dadanía civil y ciudadanía social. Isegoría: 6, 1992, p.
a la hora de seguir pensando y contem- 65-82.

plando la faz excluyente de la ciuda- LISTER, Ruth. Citizenship and Gender, en NASH, K./
danía, sus fronteras y límites, a la hora SCOTT, A. (Eds.). Blackwell Companion to Political So-
ciology. Oxford: Blackwell, 2001, p. 323-332.
de plantearse si estamos ante el in del
modelo unitario de ciudadanía (ONG, MOUFFE, CHantal. he Return of the Political. Lon-
don,New York: Verso, 1993.
1999; BENHABIB/ RESNIK, 2009)
y, como suscitaba Saraceno ¿qué es lo ONG, Aihwa. Flexible Citizenship. he cultural logics
of transnationality. Durham&London: Duke University
que hoy parece más visible y urgente Press, 1999.
en cualquier relexión sobre la ciudada-
PATEMAN, Carole. he Disorder of Women. Cam-
nía?, ahora en un contexto postwestfa- bridge: Cambridge University Press, 1989.
liano, postindustrial, postmarshalliano.
PATEMAN, Carole. Equality, diference, subordination:
En un contexto en el que se detectan the politics of motherhood and women’s citizenship, en
nuevos déicits pero así mismo nos BOCKS, G. / JAMES, S. /eds.). Beyond Equality and
Diference. London: Routledge, 1992, p. 17-31.
encontramos con nuevos sujetos y
nociones emergentes de la ciudadanía. SARACENO, Chiara. La estructura de género de la ciu-
dadanía. En, Mujer y realidad social. II Congreso Mundial
Desde esta perspectiva habrá que con- Vasco. Bilbao: Servicio Editorial Universidad del País Vas-
templar entonces los registros en que co, 1988, p. 123-141.

puede comprenderse para quien tiene SCOTT, Joan. Only Paradoxes to Ofer. French Feminists
valor la ciudadanía, así como los del and the Rights of Man. Cambridge, Mass, London: Har-
vard University Press, 1996.
‘más allá de la ciudadanía’.
SHACHAR, Ayalet. he Worth of Citizenship in an Un-
equal World. heoretical Inquieries in Law. Why Citizen-
Maria Xosé Agra Romero ship?: 8, 2007, p. 367-388.

• 119 •
VOET, R. Feminism and Citizenship. London: Sage, logia grega, Clio seria uma das ilhas
1998.
da relação entre Zeus e Mnemósine.
YOUNG, Iris Marion. Polity and Group Diference: A Zeus, ao consultar os outros deuses se
Critique of the Ideal of Universal Citizenship. Ethics: 99,
1989, p. 250-274. era necessário realizar algo mais após
a façanha de derrotar o deus Cronos
YUVAL-DAVIS, Nira. Género y nación: articulaciones
del origen, la cultura y la ciudadanía. Arenal: 3:2; julio- na batalha contra os Titãs (Titanoma-
-diciembre 1996. quia); estes responderam que era mister
YUVAL-DAVIS, N./WERBNER, P. (eds). Women, Citi- a presença de seres que com seus can-
zenship and Diference. London, New York: Zed Books,
tos celebrassem a glória imperecível da
1999.
parte dos deuses. Foi então que Zeus
Indicaciones de lectura teria se unido com Mnemósine, titâ-
nide irmã de Cronos e ilha de Urano
BENHABIB, Sheyla/ RESNIK, Judith. Migrations and
Mobilities. Citizenship, Borders, and Gender. New York: e Gaia, durante nove noites. Diferen-
New York University Press, 2009. temente dos outros titãs, Mnemósine
IRIARTE, Ana. De amazonas a ciudadanos: pretexto gi- não foi aprisionada no Tártaro, o que
necocrático y patriarcado en la Grecia Antigua. Madrid: relete a importância da memória para
Akal, 2002.
os gregos na Antiguidade. A relação
HOBSON, Barbara/LISTER, Ruth. Citizenship. En B. dos gregos com a memória era bem
HOBSON/J. LEWIS/B. SIIM: Contested Concepts in
Gender and Social Politics. Cheltenham/Northampton: peculiar. A memória era perpetuada
2002, p. 23-54.
através da música e de cantos, ou seja,
LISTER, Ruth. Citizenship. Feminist Perspectives. Lon- a “história” e os mitos daquela época
don: MacMillan, 1997.
eram transmitidos de forma oral, e não
ROSENEIL, Sasha (ed). Beyond Citizenship? Feminism escritas.
and the transformation of belonging. Palgrave, Mac-
Millan, 2013.
Mnemósine, segundo Hesío-
do era a “rainha das colinas da Eleu-
• téria”, a terra da liberdade. Do enlace
com Zeus teriam surgido nove musas.
Clio A origem das musas é imprecisa, ao
menos nas primeiras fontes clássicas.
Do grego Κλειώ (Kleiô), seu O caráter divino dessas iguras é cor-
nome deriva do verbo grego Kleo, roborado pela presença de suas repre-
“para tornar famoso” ou “celebrar”; sentações na estatuária grega, conser-
ou Glória; “A Proclamadora”. É con- vadas em diversos templos dedicados
siderada a musa da História desde a ao deus Apolo, como atesta o historia-
designação da “inteligentzia acadêmica dor grego do século II d. C. Pausanias
de Alexandria” (SCHORSKE, 2000, p. em sua obra Descrição da Grécia. Com
1). Segundo uma das versões da mito- o tempo, as funções e distribuições das

• 120 •
Musas e suas atividades ganharam con- as divindades de todas as artes como
tornos mais precisos, até o ponto de a música, canto e poesia, além das ci-
atribuir-se um domínio para cada uma, ências, o que signiica que para os gre-
que vinha acompanhada de seu atribu- gos antigos a memória era a metade de
to especíico. Já em Homero (Odisseia toda ação criativa. As musas cantavam
e Ilíada) se aponta o número nove para sobre o presente, o passado e o futu-
as musas e a condição divina delas, de- ro. Nos banquetes no monte Olimpo
tentoras do conhecimento de todo os cantavam para Zeus e para os outros
acontecimentos. Os neopitagóricos, deuses as glórias e os feitos heroicos
da mesma forma que os neoplatôni- dos gregos. No monte Parnaso, elas
cos, viam no número nove uma clara eram acompanhadas pela lira do deus
referência ao sentido supremo da per- da música, Apolo, e responsáveis pela
feição. O nove era considerado um nú- inspiração de poetas e músicos, além
mero completo, pois contém três vezes da promoção das artes e das ciências.
o número três. Isso signiica o número O relato de Hesíodo tornou-se
perfeito por excelência, pois ele possui canônico quanto ao número, aos teô-
princípio, meio e im. Hesíodo (Teogo- nimos e à correspondência das musas
nia) apresenta o nome das musas, são em relação aos gêneros literários - es-
elas: Calíope, “a de bela voz”; Clio, “a peciicamente à épica, lírica, tragédia e
que dá a fama”, que se dedicava à his- comédia – e aos gêneros do saber mais
tória, criadora da poesia história e he- valorizados na Antiguidade – a história,
roica, introduziu o alfabeto fenício no cosmologia, música e dança. As musas,
mundo grego; Erato, “a amável”, deu segundo Hesíodo, habitavam em dois
origem à poesia do amor e à mímica; lugares: o monte Hélicon, na Beócia, e
Euterpe, “a doadora de prazeres” era a o monte Olimpo, na Macedônia. Ain-
musa da poesia lírica e da música; Mel- da que geograicamente e hierarquica-
pomene, “a poetisa” era a musa da tra- mente situadas à margem do panteão
gédia – teatro – e do canto; Polímnia, olímpico, pois se atribuía a morada das
“a que canta” ou “a dos muitos hinos”, musas também ao monte Parnaso na
entre os quais a música sacra, a harmo- Fócida, a invocação dessas iguras mí-
nia e eloquência poética; Terspisícore, ticas era a que necessariamente ante-
“a que se deleita na dança” brilhava cedia quaisquer atividades intelectuais
na dança e no canto coral; Thalia, “a humanas. Em um contexto mais am-
festiva” presidia à comédia e à poesia plo, para a produção do conhecimento
pastoral; e Urania, “a celestial” ou a na Antiguidade, eram as musas quem
“rainha dos montes”, era a musa da atribuíam autoridade intelectual para
astronomia. As musas representavam que os homens pudessem criar.

• 121 •
Clio era quem proclamava e a representação do deus Apolo ao cen-
conferia a fama, cujo nome era rela- tro, tocando um instrumento, rodeado
cionado às festividades, celebrações, pelas nove musas e poetas antigos e
cantos e glórias dos guerreiros e de um modernos. Não há um claro consen-
povo. Sua representação habitualmen- so entre os estudiosos da obra sobre a
te era a de uma jovem com uma co- identiicação de cada uma das musas,
roa de louros, carregando em sua mão ou mesmo dos poetas. Clio pode ser
direita uma trombeta, para proclamar identiicada tanto sentada à direita de
os altos feitos, e na mão esquerda um Apolo, com vestes brancas e seguran-
livro ou um rolo de pergaminho, o que do um objeto dourado com sua mão
provavelmente estava relacionado com direita, quanto à esquerda do deus,
a introdução do alfabeto fenício pela representada de peril segurando um
musa no mundo grego e o vínculo da livro. À época de Rafael, ainda não ha-
história com a escrita. Seus símbolos via um índice iconográico sobre for-
eram a trombeta, ou clarim, com o qual mas de representação pictóricas, como
declamava os feitos heroicos e a clepsi- aqueles que pintores da segunda meta-
dra, um dos primeiros instrumentos de de do século XVI poderiam encontrar
medida do tempo. na edição da Mitologia [1567] de Natale
Contudo a representação das Conti e, sobretudo, na importante obra
musas não foi algo estático durante os Iconología [1593] de Cesare Ripa, onde
séculos. Na Antiguidade a represen- o autor caracteriza a musa como uma
tação das musas pode ser observada donzela coroada de louros, segurando
em templos, na forma de relevos ou uma trompa na mão direita e na es-
esculturas. Em Bardo, na Tunísia, é querda um livro sobre o que está es-
possível observarmos um mosaico, crito Thucydides (RIPA, 1987, p. 109-
provavelmente do século III, represen- 119). Na obra O Parnaso [c. 1631-1633]
tando o poeta Virgílio acompanhado de Nicolas Poussin, o pintor também
da presença de suas musas que o ins- apresenta o deus Apolo sentado ro-
piram para a escrita de sua obra épi- deado pelas nove musas e nove poe-
ca, a Eneida. Identiicam-se as musas tas. Podemos identiicar Clio coroada
como sendo Melpomene, segurando de louros, segurando uma espécie de
uma máscara, e Clio, segurando um trompa dourada. Na obra Alegoria da
pergaminho. A partir da época mo- Pintura [c. 1666], de Johannes Vermeer,
derna também podemos observar a Clio é representada com seus atributos
profusão de representações das musas clássicos, uma coroa de louros sobre a
através da pintura. Na obra O Parnaso cabeça, um livro e uma trombeta dou-
[1511], de Rafael Sânzio, observamos rada, em um cenário composto por

• 122 •
diversos elementos, como se fosse um tigação, pesquisa, explicação do autor,
estúdio onde posa de modelo, servin- aprender a conhecer através do ques-
do de musa inspiradora à igura de um tionamento. Contudo, histör também
pintor que registra o momento em sua signiica aquele que sabe ou vê, ressal-
tela. Na pintura Clio [1689], de Pierre tando a ideia de que a história é uma
Mignard, a musa da História é apresen- “imagem do passado” criada pelo jogo
tada sentada e com todos os elementos entre a imaginação e a relexão sobre
que tradicionalmente a caracterizam, os materiais legados pelas gerações que
carrega em sua mão uma trombeta em nos precederam.
tons dourados e segurando um livro O passado revelado aos poetas
sobre seu colo. Ao lado de seu pé des- por intermédio e inspiração do can-
nudo sobre o chão repousa a coroa de to das musas, como Clio, não situava
louros e outros livros. Anton Raphael os eventos em um quadro temporal
Mengs ao pintar sua versão d’O Parna- (VERNANT, 2003, p. 141). A história,
so [c. 1760-1761] traz a inluência de que teve seu berço na Grécia antiga,
antigos pintores sobre o tema e uma nascera vinculada ao mito. Este per-
caracterização mais precisa das musas. mitia aos gregos antigos sistematizar
Clio aparece sentada no solo e rodeada seu passado. Porém, nele não havia
de pergaminhos, enquanto observa a cronologia ou temporalidade deini-
igura central do deus Apolo, seguran- da. O mito era a-histórico. Já a história
do em suas mãos um pergaminho e um produzida no tempo de Heródoto não
estilete. rompia com o mito, mas o reelabora-
A história, como forma de ex- va, não se separando de forma radical
plicação, nasceu unida à ilosoia, da tradição das memórias de epopeias
sendo fruto da própria mitologia gre- centradas no canto das glórias de he-
ga na Antiguidade. O mito fornecia róis. No entanto, apesar da intenção de
os modelos para a conduta humana, Heródoto querer preservar a memória
conferindo signiicação e valor à exis- de acontecimentos e atos heroicos, o
tência. Nesse sentido, era “a narrati- historiador grego não recorre mais ao
va de uma ‘criação’: ele relata de que recurso de invocar as musas através de
modo algo foi produzido e começou seu canto para os feitos gloriosos. Sua
a ser” (ELIADE, 2002, p. 11). Foram narrativa fora construída através de in-
os próprios gregos que descobriram vestigações e o recurso de relatos e do-
a importância da explicação histórica. cumentos dos eventos e tradições que
O termo histör, que deriva do grego, lhe eram contadas. Segundo Hartog
signiica etimologicamente mais do (2000, p. 13), Heródoto “investiga”,
que uma narrativa, mas também inves- pois não possuiria a autoridade natu-

• 123 •
ral de um aedo ou uma musa, poden- criativas dos homens. Há variações em
do somente contar com o processo de relação aos seus nomes, ao número
investigação, que signiica o primeiro delas e aos seus atributos especíicos.
momento dentro de sua operação his- Contudo, essas indeterminações origi-
toriográica. Desta forma Heródoto le- nárias se estendem às diversas funções
gava à história o papel antes atribuído a as quais Clio e as outras musas foram
Clio, o de preservar os feitos humanos sendo investidas ao longo das diferen-
do perigoso esquecimento pelo tempo, tes épocas em que sempre comparece-
conferindo a imortalidade aos aconte- ram como avatares dos gêneros literá-
cimentos. rios e as ciências.
A novidade introduzida por A serena isionomia da musa
Heródoto, com sua investigação sis- da história, Clio, é evidenciada por
temática que seguia à construção de Pesavento (2005, p. 7) ao analisar sua
sua narrativa histórica, foi vinculada postura portando o estilete da escrita
à perspectiva humana e secular dos e a trombeta da fama, sendo, prova-
acontecimentos. Na geração seguinte, velmente, a ilha dileta de Mnemósine,
Tucídides segue adiante estes novos que, enquanto detentora da memória,
paradigmas insistindo numa narrativa gerou a própria história. Clio, tributá-
contínua com uma cronologia rigorosa, ria da linguagem escrita, mesmo tendo
e sob uma análise estritamente secular, suas origens na oralidade dos aedos,
com ênfase aos comportamentos po- cantando as histórias de deuses e he-
líticos do homem (FINLEY, 1989, p. róis, tem a capacidade de partilhar e
23-4). Ambos os historiadores gregos cruzar formas de percepção e conhe-
da Antiguidade deixaram como legado cimentos sobre o mundo. Clio, por
ao ofício do historiador a importância origem e natureza, ocupa o espaço de
de seus métodos. No século XIX, o embate entre o mito e a ciência, onde,
processo de disciplinarização da histó- a partir do sono atávico, constrói ar-
ria instaurou rígidos paradigmas meto- gumentativamente seu direito à vigília
dológicos modernos que afastavam a (PESSANHA, 1992, p. 34).
memória da história e suas fontes. O Clio inspira os historiadores,
que deine e delimita o trabalho dos inebriados pelo tempo, cantando os
historiadores não são suas fontes, é o grandes feitos da humanidade. A His-
seu método (MOMIGLIANO, 2004). tória (Clio), pois, se aparenta com o po-
Nos mais antigos textos lite- der (Zeus), a memória e a justiça (Mne-
rários e iconograias, Clio e as outras mósine), seus pais, e se irmana com as
musas são apresentadas como as di- ciências e as artes. Os historiadores, ao
vindades inspiradoras das atividades se constituírem como seres temporais

• 124 •
que “conversam com os mortos”, bus- RIPA, Cesare. Iconología. Vol. 2. Madrid: Akal, 1987.
p. 109-119.
cam superar o esquecimento do tempo
eternizando a História pela realização SCHORSKE, Carl. E. Pensando com a história. São Pau-
lo: Companhia das Letras, 2000.
de seu ofício.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os
gregos. São Paulo: Perspectiva, 2003.
Rivadávia Padilha Vieira Júnior
Vanderlei Machado

Referências
Clitóris
CONTI, Natale. Mitología. Livro VII. Murcia: Universi-
dad de Murcia, 1988.
Biologicamente, a Anatomia
FINLEY, Moses I. Uso e abuso da história. São Paulo: descreve-o como um órgão alongado
Martins Fontes. 1989.
e erétil, localizado na vulva, mais espe-
HARTOG, François. A fábrica da história: do “aconteci- ciicamente, centrado na parte superior
mento” à escrita da história, as primeiras escolhas gregas.
In: História em revista. Universidade Federal de Pelotas. entre os pequenos lábios.
Instituto de Ciências Humanas, Dep. De História e An-
tropologia, v. 6, dez. 2000, 13.
Atualmente, sabe-se que o cli-
tóris é uma estrutura complexa que se
MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da histo-
riograia moderna. Bauru: EDUSC, 2004.
constitui de componentes internos e
externos. O prepúcio ou capuz clitorial
PAUSANIAS. Descripción de Grecia. 3. Vol. Barcelona:
Orbis, 1986. é uma das partes externas do clitóris
que cobre parcialmente ou totalmente
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultu-
ral. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. a glande clitoriana, também visível. In-
ternamente, a glande subdivide-se em
PESSANHA, José Américo. O sono e a vigília. In: NO-
VAES, Adauto (Org.); et AL. Tempo e história. São Pau- duas raízes curvas e alongadas.
lo: Companhia das Letras, 1992.
O clitóris é um órgão extrema-
Sugestões de leitura mente sensível devido às suas milha-
res de terminações nervosas. Por isso,
BOYANCÉ, P. Le culte dês muses chez lês philosophes
grecs: études d’histoire et de psychologie religieuse. Paris: quando estimulado, com o aumento
Boccard, 1993. da pressão sanguínea, o sangue con-
HESIODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 1992. verge para a glande, provocando o seu
enrijecimento e aumento de tamanho.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspec-
tiva, 2002. Devido a isso, e também por sua estru-
tura interna não se limitar à glande, a
GRIMAL, Pierre. Dicionário de mitologia grega e roma-
na. Rio de Janeiro: Bertrand, 1992. estimulação clitoriana pode ser desen-
cadeada em diferentes regiões, varian-
OTTO, W. F. Las musas. El origen divino del canto y del
mito. Buenos Aires: Eudeba, 1981. do de mulher para mulher. Além disso,
os músculos que compõem o clitóris,

• 125 •
e que são os responsáveis pela sua ere- O’ Connel (DOMINICI, 2013), desta-
ção, não relaxam por completo após o cou que ainda havia muito a se conhe-
orgasmo. Desse modo, a continuidade cer sobre o clitóris e, assim, passou a
de estímulos pode ocasionar múltiplos explorar a anatomia desse órgão.
orgasmos nas mulheres. Atualmente, o prazer sexual é
Deste modo, não é à toa que, diretamente relacionado ao clitóris,
culturalmente, o clitóris é conhecido caracterizando-o, inclusive, como um
como o órgão responsável pelo prazer órgão que tem a exclusiva função de
da mulher – o “botão mágico”. Sua possibilitar que a mulher sinta prazer.
fricção pode, como resposta sensorial, Obstante das compreensões contem-
dar sensações de prazer e promover o porâneas, o prazer foi desvinculado da
orgasmo. No entanto, não se trata ape- história da sexualidade da mulher; os
nas de mágica; outros fatores podem conhecimentos acerca dessa questão
inluenciar no sentimento do prazer, foram esquecidos e desaparecendo ao
além de que cada mulher sente e vive longo dos anos.
seus prazeres de diferentes formas. Alguns anatomistas acredi-
A premissa aceita e divulgada tam que o clitóris é conhecido desde
por muito tempo de que a sexualidade o século II, mas há controvérsias. O
das mulheres era restrita em relação a anatomista Renaldus Colombo (LA-
dos homens; hoje, esta não pode mais QUEUR, 2001), em meados do século
ser sustentada como uma “verdade”. XVI, declarou-se o descobridor do cli-
Por consequência, suas vivências e tóris, airmando ter descoberto o “pê-
seus prazeres foram sendo limitados e nis feminino”, e que este era “eminen-
regulados. temente o ponto de prazer da mulher”.
Em frente às restrições, os si- Colombo (LAQUEUR, 2001) tratou
lenciamentos e a própria ignorância, a sua descoberta com paixão e poe-
mitos e tabus acerca da sexualidade da ma, nomeando sua descoberta como
mulher e especiicamente sobre o clitó- “amor ou doçura de Vênus”. Na mes-
ris foram sendo produzidos. Inclusive, ma época, o anatomista Andreas Vesa-
algumas mulheres nunca visualizaram lius descreveu os órgãos reprodutores
e/ou tocaram seus clitóris devido a das mulheres. No entanto, Renaldus
questões sociais e culturais. não teve o mesmo reconhecimento
É importante ressaltar que, há de Vesalius e suas descrições acerca da
muitos séculos, o que se fala, escreve- “anatomia do prazer” foram esqueci-
-se e conta-se desse órgão é, em grande das (DOMINICI, 2013).
parte, realizada por homens. Recente- Um século depois, o anatomista
mente, a urologista australiana Helen holandês Regnier de Graaf, que acredi-

• 126 •
tava ser o pioneiro nos estudos sobre de Hipócrates perdurou por muito
reprodução, airmou a importância do tempo, até mesmo na Idade Média,
clitóris para a reprodução, sustentando com a vigilância e desconiança da
que, sem sentir prazer, nenhuma mu- Igreja sobre os prazeres da carne, o
lher aceitaria “fazer” ilhos. No entan- conhecimento cientíico predominava,
to, sua constatação e a importância do com direito a prescrições médicas para
clitóris foram ignorados; apenas dois uma reprodução exitosa: “Lubriique o
séculos depois, George Kobelt descre- dedo com óleo perfumado e friccione
veu e desenhou o clitóris com detalhes a vulva com movimentos circulares”
que não havia sido observados ou di- (DOMINICI, 2013). Os tempos pas-
vulgados. sam; em 1875, com a “descoberta”
Finalmente, a medicina parecia do processo de reprodução feita por
ter reconhecido a importância do cli- Edouard Van Beneden, a Ciência, que
tóris; em 1900, o clitóris passou a in- antes atribuiu ao clitóris todas as vir-
tegrar as ilustrações do reconhecido tudes, agora o isenta de qualquer im-
livro de anatomia Gray’s Anatomy, de portância na reprodução. E como Van
autoria de Henry Gray. No entanto, em Beneden airmou, a única função do
1948 o órgão torna a desaparecer, dei- clitóris é dar prazer à mulher, o que na
xando de ser mencionado e ilustrado época foi argumento suiciente para
nos livros. que o órgão fosse desprezado e esque-
Perante a história da “descober- cido (DOMINICI, 2013). Certamen-
ta” e reconhecimento do clitóris, se- te, os estudos de Van Beneden são de
gundo O’ Connel (DOMINICI, 2013), suma importância para a Ciência. No
a Ciência nunca se sentiu à vontade em entanto, assim como muitos conheci-
estudar e descrever um órgão exclusivo mentos cientiicamente produzidos, as
do corpo das mulheres, que, conforme proposições de Van Beneden tomaram
Colombo (LAQUEUR, 2001), trata-se proporções que inluenciaram e, até
do ponto básico do prazer venéreo da hoje, inluenciam nas sexualidades da
mulher. mulheres. Instituir que o clitóris dei-
Na antiguidade, Hipócrates xara de ser necessário, tornou tanto o
acreditava que as mulheres também órgão como o prazer feminino margi-
tinham esperma e que, por isso, pre- nalizados. Assim, o clitóris deixou de
cisavam sentir orgasmos para que a re- ser mencionado nos escritos cientíi-
produção fosse efetiva. Neste tempo, cos e o prazer feminino passou a não
o clitóris já era considerado como um ser considerado.
“botão mágico”; e o prazer da mulher A masturbação feminina passou
era levado em consideração. A teoria a ser proibida. As genitálias das mulhe-

• 127 •
res passaram a ser retratas como im- em que as mulheres são forçadas a ter
puras, o que pode ser visto em muitas seus clitóris amputados, costurados ou
obras de artes antigas, em que a igura mutilados, no intuito de que estas não
do diabo era colocada nas partes ínti- sintam mais prazer. Embora essas prá-
mas das mulheres, reforçando a tradi- ticas sejam repudiadas e condenadas
ção cristã de que os prazeres da carne pela Organização Mundial de Saúde
estão diretamente ligados ao pecado e (OMS), alegando que esses rituais são
à dor. barbáries que causam males psicoló-
A Ciência criou seus próprios gicos e físicos às suas vítimas; sabe-se
demônios. Lesbianismo, ninfomania, que ainda essa prática ocorre em apro-
icterícia e cegueira foram considerados ximadamente 30 países localizados
doenças causadas por desequilíbrios principalmente na África e no Oriente
mentais. Nas mulheres, esses desequi- Médio.
líbrios eram originados pela excitação Dentre os campos que se ocu-
sexual. Sendo assim, não havia dúvidas param e se ocupam em desvendar e
do culpado: o clitóris. vendar o clitóris, além da Medicina,
Em 1865, Baker Brown levan- Anatomia e Fisiologia, a Psicologia e
tou a hipótese de que o clitóris era o a Psiquiatria também fazem parte da
responsável pela a histeria, a epilepsia história do clitóris. Sigmund Freud,
e outras doenças consideradas como inspirado na teoria do psiquiatra Ri-
loucura. O tratamento indicado foi a chard von Kraff-Ebing de que “as zo-
remoção do órgão. Assim, milhares de nas erógenas da mulher são o clitóris
mulheres foram mutiladas até os anos enquanto ela é virgem, e a vagina e o
1920. colo do útero depois da deloração”
As questões culturais acerca do (LAQUEUR, 2001, p. 281), não nega
clitóris vão além de sua identiicação e a importância do orgasmo.
reconhecimento no corpo da mulher. Porém, airma que o prazer pro-
O conhecimento produzido acerca porcionado pelo clitóris é considerado
normal apenas em meninas com cerca
desse órgão, como o responsável pelo
de cinco anos de idade. Portanto, as
prazer feminino, promove a propa-
mulheres adultas devem ter orgasmos
gação de práticas como a circuncisão
vaginais; qualquer uso do clitóris para
feminina (cliterodectomia), também
sentir prazer seria sinal de imaturidade.
chamada de mutilação genital femini-
A teoria de Freud coloca em xe-
na e a inibulação (costura dos lábios
que a teoria dos/as pesquisadores/as
vaginais ou do clitóris). Estas práticas
estadunienses William Masters e Virgi-
são realizadas principalmente em al-
nia Johnson. O médico e a psicóloga,
gumas sociedades africanas e asiáticas,
mundialmente conhecidos por seus

• 128 •
estudos de dimensões terapêuticas isiologia do clitóris, mas não se trata
nas áreas da psicologia e da isiologia apenas de saber o funcionamento e
do ato sexual, foram os primeiros a a estrutura de um órgão. O clitóris é
constatarem que a estrutura do clitó- uma parte do corpo da mulher; ao no-
ris estende-se ao longo da vagina. Esse meá-lo e estabelecermos saberes sobre
conhecimento possibilitou airmar que ele, é da mulher que estamos falando.
tanto o orgasmo clitoriano, quanto o Ao instituir que o clitóris pudesse ser
vaginal, são quase inteiramente clito- a causa de transtornos mentais ou que
rianos. sua anatomia tratava-se de um “pênis
É possível perceber que a his- invertido”, muitas representações so-
tória do clitóris foi sendo escrita de ciais foram sendo determinadas e dis-
acordo com as condições culturais e
seminadas. Até hoje, ecos de um pre-
históricas possibilitadas em determina-
conceito produzido historicamente são
dos tempos. Ao revisitarmos a história
ouvidos quando nos deparamos com
da anatomia, observa-se que o corpo
preceitos como: uma mulher que gosta
da mulher foi estudado e desvendado a
de sexo é tarada, fogosa, ninfomanía-
partir do corpo do homem. Ao tomar
ca; mulheres sérias não se masturbam;
o corpo do homem como referência,
mulher que tem posicionamento forte
as descrições passam a ser compara-
tivas e homólogas; airmações como é dita “homem de saias”; mulheres que
“o clitóris é o pênis feminino” e a tese são responsáveis pela economia da casa
tecida por Freud de que “as mulheres ou que trabalham fora são nomeadas
têm inveja do pênis” posicionam as “o homem da casa”. Há uma diversa
mulheres como o oposto do homem. lista de designações, nas quais somos
Na busca de comparações e identiica- interpelados/as; muitas vezes, repro-
ções de órgãos e estruturas correspon- duzimo-las sem questionarmos e/ou
dentes, partindo do corpo do homem, problematizarmos sobre suas origens.
a mulher torna-se o outro, o diferente;
na falta de um órgão e de uma estrutu- Joanalira Corpes Magalhães
Benícia Oliveira da Silva
ra, coloca-se que a mulher é incomple- Paula Regina Costa Ribeiro
ta, como se faltasse alguma coisa. Fabiane Ferreira da Silva
Nesse contexto, é fato que mui-
tas histórias sobre o clitóris foram es- Referências
critas e contadas, possibilitando que
DOMINICI, Michèle. Clitóris, o prazer proibido (Le
muito conhecimento acerca desse ór- Clitoris, Ce Cher Inconnu). [Documentário]. Disponível
gão fosse produzido. É inegável a im- em: <http://chatasdeatenas.blogspot.com.br/2013/05/
clitoris-o-prazer-proibido documentario.html>. Acesso
portância de conhecer a anatomia e a em: 29 jun. 2013.

• 129 •
LAQUEUR, homas Walter. Inventando o sexo: corpo e sobre sua situação de inferioridade e na
gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Du-
mará, 2001. luta pela igualdade.
Partindo do rastreamento em
Sugestões de leitura um amplo leque de textos feministas,
podemos sugerir que o termo condi-
DE LA IGLEISA, Matilde et al. Biopolítica del clíto-
ris: análisis de un caso de protección jurídica del placer.
ção feminina esteve presente até os
Disponível em: <http://www.scielo.org.ar/scielo.php?pi- anos 1990 no vocabulário das teóricas
d=S1851-16862009000100040&script=sci_arttext&tl-
ng=en>. Acesso em: 10 jun. 2013.
feministas que buscaram organizar, e
por vezes criticar, a trajetória das cate-
MACHADO, Paula Sandrine. O sexo dos anjos: um
olhar sobre a anatomia e a produção do sexo (como se
gorias de análise que vão se sucedendo
fosse) natural. Cadernos Pagu, Campinas, v. 24, p. 249- a partir da segunda onda. O declínio de
281 jan./jun. 2005.
seu uso é detectado a partir da recusa
RAGO, Margareth. O elogio do sexo da mulher. Cader- teórica em colocar os corpos das mu-
nos Pagu, Campinas, n. 14, p. 291-297. 2000.
lheres no centro do debate e da emer-
______ . Os mistérios do corpo feminino, ou as mui- gência do conceito gênero, nos anos
tas descobertas do “amor venéris”. Projeto História, São
Paulo, v. 25, dez. 2002. Disponível em: <http://revistas. 1980, e sua apropriação maciça pela
pucsp.br/index.php/revph/article/view/10587>. Acesso teoria feminista na década seguinte.
em: 10 jun. de 2013.
A discussão sobre a condição
ROHDEN, Fabíola. O corpo fazendo a diferença. feminina esteve presente nos veículos
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pi-
d=S0104-93131998000200007&script=sci_arttext>. midiáticos e, posteriormente, ela apa-
Acesso em: 02 maio 2013. rece em depoimentos que rememoram
o período, colhidos e trabalhados por

meio da História Oral. Encontramos
fartamente no campo feminista a his-
Condição Feminina
toricização dos inicialmente explo-
rados “estudos sobre a mulher”; das
Denominou-se condição femi-
categorias mulher, mulheres e gênero,
nina a “condição” que determinaria
buscando discutir sua aplicação teórica,
uma identidade comum para as mulhe- mas também prática, ou seja, sua fun-
res, com base na biologia ou, melhor ção política na sociedade. Discussões
dizendo, no fato de terem nascido (se sobre o tema estampam com frequên-
tornado, como diria Simone de Beau- cia jornais e revistas de público mais
voir) mulheres. O termo foi apropria- amplo, cujas reportagens questionam
do pelo movimento de mulheres e pe- a situação das mulheres, principalmen-
las protagonistas da chamada segunda te nos anos 1970 e 1980. No Brasil, o
onda feminista para dar sustento aos termo esteve associado ao protago-
argumentos que utilizavam no debate nismo das mulheres em diversas ati-

• 130 •
vidades, mais especiicamente a partir sexo, que discutia a crise da “identida-
da Década da Mulher (1975-1985). A de feminina” e que foi amplamente di-
determinação, pela Organização das fundido em diversos países, entre eles
Nações Unidas, de 1975 como o Ano os latino-americanos.
Internacional da Mulher, ao mesmo Para Vera Soares (1994), o ter-
tempo atendeu a demandas do movi- reno comum que permite as relações
mento, reconhecendo sua visibilidade, entre o movimento feminista e o mo-
mas também gerou outras demandas vimento de mulheres, em termos mais
na imprensa mundial, voltada então amplos, aparece em duas dimensões:
para o que passou a fazer parte do sen- “o descobrimento e a relexão de sua
so comum como a condição feminina, identidade como mulheres e a ênfase
da qual encontramos a variação “con- no cotidiano”. A partir destes elemen-
dição da mulher”. tos, a condição feminina era discutida
Mapeando os caminhos percor- em grupos de mulheres. Exemplos
ridos pelos conceitos, nos deparamos desta discussão aparecem em reporta-
com a obra que foi um marco para o gens encontradas em jornais dos anos
movimento feminista e também para 1970, na Europa, nos Estados Unidos
o movimento de mulheres. No tomo ou no Brasil. Citamos como exemplo
dois de O segundo sexo – A experiência as mulheres cineastas que passaram a
vivida – Simone de Beauvoir (1949) rodar ilmes com perspectiva feminis-
aborda a questão em um dos capítu- ta, que alegavam abertamente o intuito
los, intitulado “Situação e caráter da de discutir, por meio de seu trabalho, a
mulher”. Já no primeiro parágrafo, a condição feminina (cf. Veiga, 2013). A
autora informa que a “condição” da adjetivação “feminina” foi posterior-
mulher permaneceu a mesma, através mente combatida dentro do campo
das mudanças supericiais que vinham feminista, por estar associada a uma
da Grécia antiga até o inal dos anos discutível natureza das mulheres, indi-
1940, quando o livro foi publicado na cando algo que lhes era intrínseco, uma
França. Assim como o termo “condi- característica essencial, que se reletia
ção humana”, a “condição feminina” em suas ações e trabalhos (por exem-
relaciona-se a um estado físico e psi- plo: literatura feminina ou cinema fe-
cológico, a uma maneira de ser, mes- minino). Politicamente, tal qualidade
mo que historicamente construída. Ele era algo a ser combatido, mas isso não
também mostra sua força a partir de impediu que o termo fosse apropriado
1963, com a publicação do livro Mística para além das arestas do feminismo.
feminina, da autora estadunidense Bet- Nas palavras de Linda Nichol-
ty Friedman, inspirado em O segundo son (2000), “Dizer que as mulheres

• 131 •
têm sido diferentes dos homens des- po: condição feminina, maternidade e menta-
se ou daquele jeito é dizer que as mu- lidades no Brasil Côlonia. Estes exemplos
lheres são desse ou daquele jeito. Mas (cf. Pedro, 2005) nos dão a referência
inevitavelmente as características da da presença do termo nos debates so-
‘natureza’ ou da ‘essência’ das mulhe- bre a situação hierarquicamente infe-
res – ainda que essa ‘natureza’ ou essa rior das mulheres na sociedade.
‘essência’ seja descrita como social- Para Adriana Piscitelli (2001), “a
mente construída – tendem a reletir ‘condição’ compartilhada pelas mulhe-
a perspectiva daqueles que as fazem”. res – e da qual se deriva a identidade
Portanto, para historicizarmos o que entre elas – está ancorada na biologia
foi chamado condição feminina, é ne- e na opressão por parte de uma cultu-
cessário situarmos o termo, estabele- ra masculina. O corpo aparece, assim,
cendo um limite temporal para seu uso, como o centro de onde emana e para
cuja demarcação acaba sendo borrada onde convergem opressão sexual e de-
ao encontrarmos ainda na atualidade sigualdade”. Ainda para a autora, “O
seu uso para variados ins. A princípio, conceito de patriarcado, útil do ponto
no Brasil, ele aparece nos títulos dos de vista da mobilização política, colo-
livros de algumas autoras a partir da cou sérios problemas no que se refere
década de 1980, entre elas Miriam Mo- à apreensão da historicidade da condi-
reira Leite (1984), com a obra A condi- ção feminina”.
ção feminina no Rio de Janeiro, século XIX: Para concluir a explanação so-
antologia de textos de viajantes estrangeiros; bre o termo, voltamos a Simone de
Nanci Valadares Carvalho (1988), que Beauvoir (1949) e sua introdução do
organizou o livro intitulado A condição primeiro tomo de O segundo sexo: “O
feminina, cujos capítulos faziam um drama da mulher é esse conlito entre a
apanhado desta “condição” em diver- reivindicação fundamental de todo su-
sos setores, discutindo temas como jeito que se põe sempre como o essen-
aborto, trabalho, cidadania e feminis- cial e as exigências de uma situação que
mo; também Rachel Soihet (1989), a constitui como inessencial. Como
com o livro Condição feminina e formas pode realizar-se um ser humano den-
de violência: mulheres pobres e ordem urba- tro da condição feminina? Que cami-
na, 1890-1920; Leila Mezan Algranti nhos lhe são abertos? Quais conduzem
(1993), que publicou a obra Honradas a um beco sem saída? Como encontrar
e devotas: mulheres da colônia, condição femi- a independência no seio da dependên-
nina nos conventos e recolhimentos do sudeste cia? Que circunstâncias restringem a
do Brasil, 1750-1822; e ainda Mary Del liberdade da mulher, e quais pode ela
Priore (1993), com o livro Ao sul do cor- superar?” Com suas questões de fun-

• 132 •
do existencialista, podemos dizer que VEIGA, Ana M. Cineastas brasileiras em tempos de dita-
dura: cruzamentos, fugas, especiicidades. Florianópolis,
Simone de Beauvoir e seu livro inau- 2013. 397p. Tese (Doutorado em História) – Universida-
guraram as relexões e o debate sobre a de Federal de Santa Catarina.

condição feminina, que encontramos,


de maneira dispersa, ainda nos dias de •
hoje.
Condorcet - Educação
Ana Maria Veiga da mulher
Joana Maria Pedro
Condorcet igura com desta-
Referências e sugestões de leitura que no pequeno grupo de precursores
que, embora “com muita frequência
ALGRANTI, Leila M. Honradas e devotas: mulheres da
colônia, condição feminina nos conventos e recolhimen- esquecidos, ridicularizados ou desco-
tos do sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: José nhecidos”, Benoîte Groult (2010, p.
Olympio & Edunb, 1993.
14) acha que mereceriam “entrar no
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência
vivida. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.
pouco povoado panteão dos homens
feministas”. Mesmo não tendo sido
CARVALHO, Nancy V. A Condição Feminina. São Pau-
lo: Vértice; Ed. Revista dos Tribunais, 1988. o primeiro, Jean Antoine Nicolas de
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição femini-
Caritat, Marquês de Condorcet, des-
na, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de taca-se, nesse papel de precursor, por
Janeiro: José Olympio, Edunb, 1993.
vários motivos: pelo momento - o da
FRIEDAN, Betty. Mística Feminina. Rio de Janeiro: Vo- Revolução Francesa; por ele mesmo
zes, 1971.
- membro da nobreza, último grande
LEITE, Miriam M. (Org.). A condição feminina no Rio
de Janeiro, século XIX: antologia de textos de viajantes
ilósofo do iluminismo, famoso mate-
estrangeiros. São Paulo: HUCITEC, Fundação Nacional mático, pensador e político revolucio-
Pró- Memória, 1984.
nário, situado à esquerda no quadro
NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Revista da doutrina liberal; pelas causas que
de Estudos Feministas, vol.8, n.2. Florianópolis, 2000,
p. 9-43. abraçou – a da Revolução, a do com-
PEDRO, Joana M. Traduzindo o debate: o uso da cate-
bate às desigualdades, a da libertação
goria gênero na pesquisa histórica. História. Vol.24, n.1, dos escravos, a da igualdade entre os
São Paulo: 2005, p. 77-98.
sexos, a da instrução universal, públi-
PISCITELLI, Adriana. Re-criando a (categoria) mulher? ca, gratuita, laica e comum para ambos
Cadernos Pagu, Campinas-SP, 2001.
os sexos; inalmente, porque, como diz
SOARES, Vera. Movimento feminista: paradigmas e de-
saios. Revista Estudos Feministas. N. Especial, Florianó-
Groult (2010, p. 54), o seu Ensaio so-
polis-SC, 1994, p. 11-24. bre a admissão das mulheres ao direito
SOIHET, Raquel. Condição feminina e formas de vio- de cidadania, de 1790, foi “o primeiro
lência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
manifesto feminista da Revolução”,

• 133 •
antecedendo em um ano a proposta de multo organizado por pessoas ligadas
Declaração dos direitos da mulher e da ao mercado de escravos.
cidadã de Olympe de Gouges. Em 1790, no texto Sobre a admis-
É importante notar que a ques- são das mulheres ao direito de cidadania, o
tão da igualdade entre os sexos, inclu- autor trata explicitamente da questão
sive quanto à educação, não se colocou do direito de cidadania (droit de cité)
como questão isolada. Houve uma das mulheres, mas estendendo-o a to-
causa comum anterior – a da liberta- dos os indivíduos da espécie humana,
ção dos escravos – abraçada tanto por independentemente de sexo, cor e re-
Condorcet como pela feminista Olym- ligião: “Ora, os direitos dos homens
pe: “Por causa dos laços entre o Anti- resultam unicamente do fato de que
go Regime e o comércio dos escravos, são seres sensíveis, suscetíveis de ad-
os anos que precederam a Revolução quirir ideias morais, e de raciocinar
viram aparecer também o antirracis- sobre essas ideias. Assim, tendo as mu-
mo. O futuro deputado da Gironda, lheres essas mesmas qualidades, têm,
Brissot, amigo de Olympe, e o abade necessariamente, direitos iguais. Ou
Gregoire tiveram a ideia de fundar um nenhum indivíduo da espécie humana
Clube dos Amigos dos Negros que tem verdadeiros direitos, ou todos têm
adquiriu certa notoriedade em Paris; os mesmos; e aquele que vota contra
Condorcet tomou a si a elaboração dos o direito de outro, seja qual for sua
fundamentos teóricos e ilosóicos da religião, cor ou sexo, desde logo abju-
emancipação dos Negros.” (Noack, rou os seus.” (Condorcet. In: Badinter,
1993, p. 76) 1991, p. 45-46).
Condorcet já izera, anos antes O direito igual da mulher à ins-
(1781, p. 9), esta denúncia: “Reduzir trução, apenas implícito no manifesto
um homem à escravidão, comprá-lo, de 1790, é explicitado em 1791 na obra
vendê-lo, mantê-lo na servidão, es- Cinco memórias sobre a instrução pública
tes são verdadeiros crimes, e crimes (Condorcet, 2008). Coutel e Kintzler
maiores que o roubo.” De Olympe, o (In: Condorcet, 1994, p. 6) atribuem
abade Gregoire diria, em 1808, que ela a esse autor “a teoria mais completa e
foi a “única mulher entre aqueles que mais moderna da escola republicana”.
haviam abraçado a causa dos negros Na Primeira Memória, que trata da na-
e dos mestiços” (Apud Noack, 1993, tureza e objeto da instrução pública, lê-
p. 76). Boicotada por cinco anos, a sua -se que a sociedade deve ao povo uma
peça A escravidão dos negros só seria en- instrução pública; que a deve igual-
cenada na Comédie Française em de- mente nas diversas proissões; que a
zembro de 1789, em meio a grande tu- deve ainda como meio de aperfeiçoa-

• 134 •
mento da espécie humana; que há que ser comum e coniado a um mesmo
estabelecer diversos graus na instru- mestre, que possa ser escolhido indife-
ção comum; que a educação pública rentemente num e noutro sexo”. A ins-
deve limitar-se à instrução; por im, trução comum, longe de ser perigosa, é
que as mulheres devem compartilhar “útil aos costumes”, e a principal causa
a instrução comum dada aos homens da separação dos sexos no ensino são a
(Condorcet, 2008, p. 17-59). Segundo avareza e o orgulho (Condorcet, 2008,
o autor, “não se poderia estabelecer a p. 60-63).
instrução só para os homens, sem in- Em 1792, no “Relatório e pro-
troduzir uma desigualdade notável não jeto de decreto sobre a organização
somente entre marido e mulher, mas geral da instrução pública apresenta-
também entre irmão e irmã, entre ilho dos à Assembleia Nacional em nome
e mãe” (Condorcet, 2008, p. 59). do Comitê de Instrução Pública em
O autor liberal apresenta vários 20 e 21 de abril de 1792”, Condorcet
argumentos em favor da tese de que inicia sustentando o caráter universal
“É necessário que as mulheres tenham e nacional da instrução pública: “Se-
a mesma instrução que é dada aos ho- nhores. Oferecer a todos os indivíduos
mens”: 1º. Para que [elas] possam con- da espécie humana os meios de prover
trolar a instrução que é dada aos seus suas necessidades, de assegurar o seu
ilhos. [...]; 2º. Porque a falta de instru- bem-estar, de conhecer e de exercer os
ção das mulheres introduziria nas fa- seus direitos, de entender e de cumprir
mílias uma desigualdade contrária à sua com seus deveres; [...] Tal é a primeira
felicidade. [...]; 3º. Porque é um meio inalidade de uma instrução nacional e,
de se fazer os homens conservarem os desse ponto de vista, ela é, para o po-
conhecimentos que adquiriram em sua der público, um dever justiça.” (Con-
juventude. [...]; 4º. Porque as mulheres dorcet, 2010, p. 22).
têm o mesmo direito que os homens à Na sequência, apoiando-se no
instrução pública. (Condorcet, 2008, p. princípio da igualdade, Condorcet
58-60). (2010, p. 21-35) reairma que a instru-
E tendo os mesmos direitos, ção deve ter uma organização nacional
“elas têm o direito de obter as mesmas e que a educação deve ser “tão igual
facilidades para adquirir as luzes, que quanto universal”, sustentando ainda
podem lhes dar os meios de exercer re- que esta deve estar aberta para todas
almente tais direitos, com uma mesma as idades, inclusive para adultos, com
independência e numa extensão igual”. vários níveis: escolas primárias, escolas
E mais: “Já que a instrução deve ser secundárias, institutos, liceus, níveis es-
de modo geral a mesma, o ensino deve tes com ensino totalmente gratuito, e,

• 135 •
por im, a sociedade nacional das ciên- progressos da igualdade em um mes-
cias e artes. mo povo; enim, o aperfeiçoamento
No entanto, Luzuriaga (1959, p. real do homem.” (Condorcet, 1970, p.
46-47) anota que Condorcet, em seu 194). O autor identiica também três
projeto, não chega a reconhecer a obri- causas principais das desigualdades: a
gatoriedade do ensino, nem a prever a desigualdade de riqueza; a desigualda-
preparação para o magistério, embo- de de estado ou condição entre aquele
ra, em compensação, introduzam-se cujos meios de subsistência se transmi-
aí ideias que se adiantam em grande tem à sua família e aquele a quem estes
parte ao que, muito mais tarde, haveria meios dependem da parte de sua vida
de constituir “o movimento da escola em que ele é capaz de trabalhar; por
única ou uniicada e da educação de- im, a desigualdade de instrução (Con-
mocrática”. Lopes (1981, p. 60), por dorcet, 1970, p. 199). Para as duas pri-
sua vez, salienta que a unanimidade meiras causas o autor propõe medidas
entre os três estados [nobreza, clero e que preiguram as políticas sociais que
burguesia] não ia além da necessidade se iriam delineando a partir do inal
de reforma do aparelho escolar e do do século XIX e que tomariam corpo
caráter público da instrução: “Sua ad- no Estado do Bem-Estar, no terceiro
jetivação, isto é, se obrigatória ou não, quartel do século XX. Para a elimina-
se laica ou não, se universal ou não, se ção da terceira causa da desigualdade,
gratuita ou não, vai depender do jogo o autor propõe a igualdade de instru-
de forças políticas, sociais e econômi- ção: “A igualdade de instrução que se
cas em cada momento da Revolução e pode esperar obter, mas que deve ser
do grupo que assume o poder.”
suiciente, é aquela que exclui toda de-
Após sua morte não de todo
pendência, tanto forçada como volun-
esclarecida na prisão em 1794, sua es-
tária. [...] Nós mostraremos que, por
posa Sophie publica a obra mais famo-
uma escolha feliz tanto dos próprios
sa de Condorcet: Esboço de um quadro
conhecimentos quanto dos métodos
histórico dos progressos do espírito humano,
de ensinar, pode-se instruir a massa
redigida na clandestinidade em Paris.
inteira dum povo a respeito de tudo
Nessa obra aparece com toda a força
aquilo de que um homem precisa sa-
a preocupação com a superação da
ber para a economia doméstica, para a
desigualdade, inclusive entre os sexos:
administração de seus negócios, para o
“Nossas esperanças sobre os destinos
livre desenvolvimento de sua proissão
futuros da espécie humana podem se
e de suas faculdades; para conhecer os
reduzir a estas três questões: a destrui-
seus direitos, defendê-los e bem exer-
ção da desigualdade entre as nações; os
cê-los; para ser instruído sobre os seus

• 136 •
deveres; para julgar as próprias ações e liberal como Mandeville e Smith, Con-
aquelas dos outros de acordo com as dorcet é antípoda do primeiro e repre-
próprias luzes [...]” (Condorcet, 1970, senta grande avanço em relação ao se-
p. 201, tradução minha) gundo; e enquanto aqueles radicavam
Condorcet entende que “a ins- suas teorias no princípio da Liberdade,
trução bem dirigida corrige a desigual- este fundamenta suas propostas no da
dade natural das faculdades, em vez Igualdade (Ferraro, 2009), justamente
de fortalecê-la, da mesma forma que oo princípio ao qual, no século XX,
as boas leis remediam a desigualdade nasceriam abraçados os direitos funda-
natural dos meios de subsistência”. mentais sociais, entre eles o da educa-
Entende ainda que, entre os progres- ção (Sarlet, 2005, p. 56).
sos do espírito humano mais impor- No entanto, por muito tempo
tantes para a felicidade geral, deve-se ainda se iria tomar como modelo, não
colocar “a destruição completa dos Condorcet, mas Rousseau, o “brilhan-
preconceitos que estabeleceram entre te líder do antifeminismo no século
os sexos uma desigualdade de direitos XVIII”, como diz Groult (2010, p. 53),
que é funesta ao próprio sexo que ela com sua proposta de uma educação
favorece”. Para ele, a total destruição para Emílio e outra para Soia.
dos costumes autorizados por esses
Alceu Ravanello Ferraro
preconceitos haveria de “favorecer o
progresso da instrução e, sobretudo,
Referências e sugestões de leitura
torná-la verdadeiramente geral, seja
porque esta seria estendida aos dois BADINTER, Elisabeth (Org.). Palavras de homens
(1790-1793): Condorcet, Proudhomme, Guyomar... [et
sexos com mais igualdade, seja porque al.]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
ela não pode tornar-se geral, mesmo
CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Mar-
para os homens, sem o concurso das quis de. Rélexions sur l’esclavage des nègres - 1781. La
mães de família”. (Condorcet, 1970, p. Société Tipographique, Neufchatel, 1781. Disponível
em: http://classiques.uqac.ca/classiques/condorcet/rele-
203, 211 e 212). xions_esclavage_negres/condorcet_relexions_esclavage.
Na “Quinta memória”, Con- pdf. Acesso em: 25 abr. 2013.

dorcet (2008, p. 258, grifos do autor) _____. Esquisse d’un tableau historique des progrès de
diz que, por muito tempo, considerara l’esprit humain (1793-1794). Paris: Librairie Philosophi-
que J. Vrin, 1970. Disponível em:http://classiques.uqac.
que suas ideias eram sonhos, quando, ca/classiques/condorcet/esquisse_tableau_progres_hum/
de repente, “um só instante [a Revo- esquisse_tableau_hist.pdf . Acesso em: 31 maio 2008. (A
tradução Esboço de um quadro histórico do progresso do
lução] colocou um século de distância espírito humano, Campinas, Ed. UNICAMP, 1993, tem
o inconveniente de traduzir repetidamente préjugé por
entre o homem de hoje e o de ama- prejuízo em vez de preconceito).
nhã”. Na questão da instrução pública,

• 137 •
______. Sobre a admissão das mulheres aos direito de entender outras formas de apropria-
cidadania. In: BADINTER, Elisabeth (Org.). Palavras de
homens (1790-1793): Condorcet, Proudhomme, Guyo- ção de conhecimentos, requer antes de
mar... [et al.]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p.
43-52.
tudo, um estudo do pensamento de-
senvolvido pelo Sociólogo português
______. Cinco Memórias sobre a instrução pública. Tra-
dução e apresentação de Maria da Graça de Souza. São Boaventura de Sousa Santos (2000;
Paulo: Ed. UNESP, 2008. 2004; 2007; 2010a/b) sobre o assunto.
______. Escritos sobre a instrução pública. Campinas, Ao explicitar a noção de co-
SP: Autores Associados, 2010. (Coleção clássicos da edu-
cação / Coordenação deste volume da coleção Gilberto nhecimento sobre este ponto de vista,
Luiz Alves). emerge a possibilidade de uma visão
COUTEL, Charles; KINTZLER, Catherine. Presénta- crítica ampliada acerca dos princípios
tion. In: CONDORCET, Marie Jean Antoine Nicolas
de Caritat, Marquis de. Cinq mémoires sur l’instruc-
centrais nas lutas pelas questões de
tion publique, 1791. Paris: Garnier-Flammarion, 1994. gênero, ou seja, autonomia, liberdade
Disponível em: <http://classiques.uqac.ca/classiques/
condorcet/cinq_memoires_instruction/Cinq_memoi- e autodeterminação. A intencionali-
res_instr_pub.pdf>. Acesso em: 8 maio 2008.
dade é, pois, contribuir com alguns
FERRARO, Alceu Ravanello. Liberalismos e educação. subsídios teóricos que oportunizem o
Ou por que o Brasil não podia ir além de Mandeville.
Revista Brasileira de Educação, v.14, n. 41, p. 308-325, ingresso e a permanência num proces-
maio/ago. 2009. so emancipatório, quiçá irreversível de
GROULT, Benoîte. Le féminism au masculin. Paris: Ber- pessoas e coletivos!
nard Grasset, 2010.
Os trabalhos do autor, enqua-
LOPES, Eliana Marta S. T. Origens da educação pública. drados em três macroáreas, quais se-
A instrução na Revolução burguesa do século XVIII. São
Paulo: Loyola, 1981. jam: a Epistemologia, a Sociologia do
LUZURIAGA, Lorenzo. História da educação pública.
Direito, a Teoria da Democracia, for-
São Paulo: Ed. Nacional, 1959. necem importantes subsídios para a
NOACK, Paul. Olympe de Gouges. Courtisane et mili- compressão das teorias participativas
tante des droits de la femme. Paris: Fallois, 1993. p.185- da democracia, incluindo as noções de
196
regulação e emancipação.
SARLET, Ingo Wolfang. A eicácia dos direitos funda-
mentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. Santos (2000; 2004) sustenta a
tese de que estamos vivendo na con-
• temporaneidade um momento mar-
cado pela transição paradigmática, no
Conhecimento qual o projeto da modernidade se en-
contra em profundo declínio, a partir
Este conceito abordado na pers- de suas principais racionalidades e vias
pectiva da busca por encontrar novas de acesso aos conhecimentos, ou seja,
racionalidades e, consequentemente, a emancipação e a regulação.

• 138 •
Isto quer dizer que, o pilar da sequente hegemonia do princípio da
emancipação, constituído por três for- regulação, o mercado sobre os outros
mas de racionalidade/conhecimento, dois princípios, o Estado e a comuni-
a saber: estético-expressiva, cogniti- dade. Portanto, a ciência tornou-se a
vo-instrumental e prático-moral, cujos forma de racionalidade absoluta, ou
pontos extremos são o colonialismo seja, hipercientiicização da emanci-
pação e o mercado, o único princípio
(ignorância) e a solidariedade (conheci-
regulador moderno, hipermercadoriza-
mento), se encontram em vertiginoso
ção da regulação.
desequilíbrio em relação ao pilar deno-
A denominada hipercientiiciza-
minado de regulação, composto pelo ção da emancipação, identiicada por
Estado, o mercado e a comunidade e Santos (2000; 2004; 2007), pode ser
nos quais os pontos extremos são o entendida como uma limitação ao co-
caos (ignorância) e a ordem (discipli- nhecimento emancipação, pois a impo-
na). sição da ciência sobre o senso comum
Esse período transicional é, acabou por levar às monoculturas das
pois, marcado na leitura do autor, por práticas e dos saberes.
dois níveis básicos: a natureza episte- A primeira ruptura epistemoló-
mológica e o cunho societal. Essa tran- gica evidenciou-se quando a ciência se
sição ocorre entre o paradigma domi- diferenciou do senso comum conser-
nante da ciência moderna (sociedade vador, hierárquico e autoritário. Com o
patriarcal, produção capitalista, demo- passar do tempo, no entanto, a ciência
cracia autoritária e desenvolvimento acabou por se tornar uma forma de
global e excludente) e o paradigma conhecimento superior, isolada e ina-
emergente (ainda sem uma estrutura cessível. Afora isso, o autor ressalta
bem deinida). ainda a existência de tensões dialéticas
Há de se considerar ainda, de que marcam a modernidade ocidental,
acordo Santos (2000; 2004), que a ab- entre as esferas do público e privado,
sorção do pilar da emancipação pelo Estado e sociedade, Estado-nação e
pilar da regulação foi efetivada por globalização.
meio da convergência entre a moder- A saída dessa primeira fase pres-
nidade e o capitalismo. A sobreposi- supõe a recuperação do conhecimento
ção do conhecimento regulação sobre emancipação e torna-se imprescindível
o conhecimento emancipação se deu assim, uma segunda ruptura, agora de
através da imposição da racionalidade natureza epistemológica, como forma
cognitivo-instrumental sobre as ou- de transformar o conhecimento cien-
tras formas de racionalidade e a con- tíico (totalizante e antidemocrático)

• 139 •
em um novo senso comum, concebido Os problemas fundamentais
por Santos (2000; 2004) como sendo nos diversos espaços-tempo da socie-
‘‘conhecimento prudente para uma dade, como o espaço-tempo mundial,
vida decente’, formado a partir de cin- da produção, da cidadania e doméstico,
co dimensões: a solidariedade, a parti- isto é, a rede em que se conhece e se
cipação, o prazer, a autoria e a artefac- vive, apresentam diiculdades que cla-
tualidade discursiva. mam soluções fundamentais. Em fun-
Para Santos (2000, p. 75), ‘‘o ção da colonização através do princípio
princípio da comunidade e a raciona- cientíico, a participação icou restrita a
lidade estético-expressiva são as repre- uma noção de esfera política entendida
sentações mais inacabadas da moder- a partir da concepção hegemônica da
democracia: a democracia representa-
nidade ocidental” e, por isso, seriam
tiva liberal. E, vamos além, o paradig-
os princípios que poderiam colaborar
ma dominante, contudo, não permi-
para a construção de um novo pilar
te repensar o futuro. Por isso, impõe
emancipatório. Nesse sentido, o prin-
reinventá-lo, abrir um novo horizonte
cípio da comunidade é ‘‘o mais bem
de possibilidades. Para isso, só há uma
colocado para instaurar uma dialética
solução: a utopia, assim compreendida
positiva com o pilar da emancipação’’
“A utopia é a exploração de novas pos-
(Santos, 2000, p. 75). sibilidades e vontades humanas, por
A racionalidade estético-expres- via da oposição da imaginação à neces-
siva por sua vez, foi a que mais icou sidade do que existe, só porque existe
fora do alcance da colonização. Assim em nome de algo radicalmente melhor
como a colonização do prazer se deu que a humanidade tem o direito de de-
através do controle das formas de la- sejar e por que merece a pena lutar. A
zer e dos tempos livres, Santos (2000, utopia é uma chamada de atenção para
p. 76) sustenta que “fora do alcance da o que não existe como (contra) parte
colonização, manteve-se a irredutível integrante, mas silenciada, do que exis-
individualidade intersubjetiva do homo te (...).” (SANTOS, 1997, p. 324).
ludens, capaz daquilo a que Barthes cha- A dignidade humana e o direi-
mou jouissance, o prazer que resiste ao to à vida concebida enquanto quali-
enclausuramento e difunde o jogo en- dade se constitui em referente básico
tre os seres humanos. Foi no campo da de resgate para um projeto utópico do
racionalidade estético-expressiva que o Estado democrático e social de direi-
prazer, apesar de semienclausurado, se to, com vistas ao acesso e permanên-
pode imaginar utopicamente mais do cia das pessoas num ideário educativo
que semiliberto.” mais coletivo e solidário, de acesso e

• 140 •
apropriação de conhecimentos. Desta los, ossos, vísceras, relexos e sensa-
forma, há de se repensar, que nas expe- ções, o corpo é também o seu entorno,
riências comunitárias de movimentos ou seja, a roupa e os acessórios que o
populares e na valorização dos saberes adornam, as intervenções que nele se
locais, emergem fontes inesgotáveis de operam, a imagem que dele se produz,
pilares signiicativos para os alicerces as máquinas que nele se acoplam, os
das novas racionalidades. sentidos que nele se incorporam, os si-
lêncios que por ele falam e a educação
Daniela Silva de Lourenço de seus gestos. Não são, portanto, as
Sandra Vidal Nogueira
semelhanças biológicas que o deinem,
mas, fundamentalmente, os signii-
Referências e sugestões de leitura
cados culturais e sociais que a ele são
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o associados. Esse modo de entender o
social e o político na pós-modernidade. 3.ed. São Paulo: corpo se afasta da teorização tradicio-
Cortez, 1997.
nal, segundo a qual é visto como “um
______. A crítica da razão indolente: contra o desperdí- substrato biológico naturalmente dado
cio da experiência. SP: Cortez 2000.
e inquestionável, em cima do qual se
______. Conhecimento prudente para uma vida decen- erguem, de forma separada e indepen-
te: um discurso sobre as ciências revisitado. SP: Cortez,
2004. dente, os sistemas sociais e culturais de
signiicado” (SILVA, 2000, p. 42). O
______. Para além do pensamento abissal: das linhas glo-
bais a uma ecologia dos saberes. Revista Crítica de Ciên- corpo é produto de uma construção
cias Sociais, Coimbra (78): 3-46, out., 2007.
cultural, social e histórica sobre o qual
______. Um discurso sobre as ciências. 7ª ed., SP: Cor- são conferidas diferentes marcas em
tez, 2010a.
diferentes tempos, espaços, conjuntu-
______. A universidade no século XXI: para uma refor- ras econômicas, grupos sociais, étnicos
ma democrática e emancipatória da Universidade. SP:
Cortez, 2010b.
etc. Ou seja, não é algo dado a priori,
nem mesmo é universal: é provisório,
• mutável e mutante, suscetível a inúme-
ras intervenções consoante o desen-
Corpo volvimento cientíico e tecnológico de
cada cultura, bem como suas leis, seus
Palavra polissêmica, cuja emer- códigos morais e sua linguagem, visto
gência no âmbito das ciências sociais que ele é construído também a partir
e humanas decorre de análises advin- daquilo que dele se diz. Em outras pa-
das do movimento feminista em seus lavras: a linguagem cria o existente e,
diferentes aportes epistemológicos. com relação ao corpo, tem o poder de
Mais do que um conjunto de múscu- nomeá-lo, classiicá-lo, deinir-lhe nor-

• 141 •
malidades e anormalidades, instituin- caráter histórico e biopolítico dos cor-
do, por exemplo, o que é considerado pos. Ao analisar determinadas institui-
adequado em determinado contexto ções como escolas, fábricas, hospitais
histórico e social. Vale destacar que e prisões, Foucault dá visibilidade ao
observar o corpo a partir de sua di- poder que investe no corpo diferentes
mensão cultural não signiica negar sua disciplinas de forma a docilizá-lo, co-
materialidade biológica, mas entender
nhecê-lo e controlá-lo no detalhe. Seu
que esta materialidade não é tomada
objeto de investigação está direcionado
como central na deinição do que seja
para as práticas sociais, as experiências
o corpo, nem mesmo é o local a partir
do qual se estabelecem hierarquias en- e as relações que produzem o corpo
tre os diferentes corpos e sujeitos. em um determinado tempo e local, de
O corpo é também o local de uma forma especíica e não de outra
construção da nossa identidade, uma qualquer. Segundo o autor, o controle
vez que “a existência é corporal” (LE da sociedade sobre os indivíduos não
BRETON, 2006, p. 24). O corpo, por- opera apenas pela ideologia ou pela
tanto, não é algo que temos, mas algo consciência, mas tem seu começo no
que somos. Ao tematizá-lo, estamos corpo, com o corpo. “Foi no biológi-
nos referindo a nós mesmos, à nossa co, no somático, no corporal que antes
subjetividade, àquilo que parecemos de tudo investiu a sociedade capitalista.
ou que gostaríamos de parecer. Isso re- O corpo é uma realidade biopolítica”
mete a entender que o corpo resulta de (FOUCAULT, 1992, p. 77).
um contínuo e minucioso processo pe- Considerando o caráter históri-
dagógico, cuja ação conforma modos co do corpo, para analisá-lo torna-se
de ser e de se comportar. Educa-se o necessária a sua problematização, ou
corpo na escola e fora dela: na religião, seja, é importante estranhar o corpo,
na mídia, na medicina, nas normas colocá-lo em questão. Problematizar,
jurídicas, enim, em todos os espaços por exemplo, os signiicados e a valo-
de socialização nos quais circulamos rização que determinadas culturas atri-
cotidianamente. Pensar o corpo dessa buem a alguns corpos e as hierarquias
maneira pressupõe saberes ancora- que a partir da sua anatomia se estabe-
dos em referenciais teóricos e políti- lecem e que designam quais são os cor-
cos que possibilitam desnaturalizá-lo. pos desejáveis e aceitáveis – lembrando
que, apesar de serem transitórias, essas
Nesse sentido, ganham relevância os
referências têm o poder de excluir, infe-
escritos de Michel Foucault, especial-
riorizar e ocultar determinados corpos
mente aqueles nos quais evidencia o
em detrimento de outros. Não é sem

• 142 •
razão que o corpo jovem, produtivo, Os corpos possuem gestuali-
saudável, belo e sexualmente atrativo dades conformadas e transgressoras,
é um ideal perseguido por um núme- numa educação que é atravessada por
ro ininito de mulheres e homens do várias perspectivas, inclusive de gêne-
nosso tempo, cujos investimentos indi- ro. Vale lembrar que o gênero igual-
viduais demandam energia, dinheiro e mente não é algo que está dado, mas
responsabilidade. Pensemos nos apor- é construído social e culturalmente
tes da denominada indústria da beleza, e envolve um conjunto de processos
da saúde e do itness, cuja ampliação que vão marcando os corpos a partir
não cessa de acontecer. Adornos, cos- daquilo que se identiica ser masculino
méticos, roupas inteligentes, tatuagens, e/ou feminino. O corpo é generiica-
próteses, dietas, suplementos alimenta- do e essa generiicação não acontece
res, academias, cirurgias estéticas, me- naturalmente; resulta de processos cul-
dicamentos e estimulantes fazem parte turais, pois, se os corpos são constru-
de um conjunto de saberes, produtos e ídos na cultura, as representações de
práticas a investir no corpo, produzin- feminilidade e masculinidade a eles as-
do-o diariamente. A todo o momento sociados também o são. Isso signiica
nos deparamos com discursos e práti- perceber que “os corpos carregam dis-
cas que investem nossos corpos, inci- cursos como parte de seu próprio san-
tam nossos desejos, produzem nosso gue” (BUTLER apud PRINS; MEI-
imaginário, movimentando, de modo JER 2002, p. 163). Eles, os discursos,
diverso e peculiar, diferentes assujei- se acomodam no corpo e, do mesmo
tamentos e resistências. Ainal, na so- modo que as representações de gênero,
ciedade contemporânea os corpos são se inscrevem nas suas carnes.
espetáculos. São instituições perfor- Feitas essas considerações, é im-
mantes que, ao se moverem, tornam portante registrar que a produção do
carne representações e discursos que corpo se opera simultaneamente no
operam no detalhe com o controle, coletivo e no individual. Nem a cultura
a vigilância, o esquadrinhamento e é um ente abstrato a governar o sujeito,
a ixidez. E, também, a resistência, o nem o sujeito é um mero receptáculo a
descentramento e a transgressão. Não sucumbir às diferentes ações que sobre
podemos esquecer que, no capitalismo ele se operam. Reage a elas, aceita, re-
avançado, o corpo se tornou um ob- siste, negocia, transgride, tanto porque
jeto de consumo em nome do qual se a cultura é um campo político como o
ediica um crescente mercado de pro- corpo. Ele próprio é uma unidade bio-
dutos e serviços, objetivando sua cons- política que, ao mesmo tempo em que
trução, seus cuidados, sua libertação e, é único, é também partilhado porque
também, seu controle. semelhante e similar a uma ininidade

• 143 •
de outros corpos produzidos neste nhecido pelo Concílio de Éfeso em
tempo e nesta cultura. 431. No século VI se generaliza por
toda a cristandade, chegando até o
Silvana Vilodre Goellner Ocidente, por essa época diminuindo
de intensidade e voltando com grande
Referências força em meados do século IX, alcan-
çando seu apogeu entre os séculos XII
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis:
Vozes, 2006. e XIII. A Idade Média a venera como
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Ja-
a primeira entre todos os santos, as-
neiro: Graal, 1992. sumindo posição de destaque, sendo
PRINS, Baukje; MEIJER, Irene C. Como os corpos se
celebrada artisticamente de diferentes
tornam matéria: entrevista com Judith Butler. Revista Es- formas.
tudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 155-167,
2002. Assim, incorporando Maria ao
seu panteão, o cristianismo, apesar de
SILVA, Tomaz T. da. Teoria cultural e educação: um voca-
bulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. sua indiscutível misoginia, se abriu a
essa igura tão emblemática e cara às
Sugestões de leitura crenças populares, à representação
da Deusa- Mãe ou das Mães-Terra. A
CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGA- Igreja produz uma metáfora, muito ei-
RELLO, Georges. História do corpo 3: As mutações do
olhar: o século XX. Petrópolis: Vozes, 2008. caz, se representando ela mesma como
mãe e virgem, a Santa Madre Igreja.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis:
Vozes, 2006. Importante ressaltar que o do-
mínio das sensibilidades humanas se
LOURO, Guacira. O corpo educado: pedagogias da se-
xualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. desenvolve lado a lado e passa junto
às dimensões da sua existência social e,
GOELLNER, Silvana V. A produção cultural do corpo.
In: LOURO, Guacira; FELIPE, Jane; GOELLNER, Sil- embora a narrativa mítica seja atempo-
vana V. Corpo, gênero e sexualidade: um debate contem- ral, mito e rito existem apenas na sua
porâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2013.
historicidade; o rito ritualiza e reatua-
ORTEGA, Francisco. O corpo incerto: corporeidade, liza o mito dando a ele novos signii-
tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Ja-
neiro: Garamond, 2008. cados. Para Hilário Franco Jr. “mito e
rito não existem na sua atemporalidade
• intrínseca, mas na historicidade que
lhes dá sentido, e à qual eles próprios
Culto Mariano dão sentido.”
Dessa forma, também os mitos
A crença em Maria e, sobretudo da era feudal se contaminaram mutua-
em suas aparições e milagres, remonta mente, assumindo algumas funções. A
ao Oriente grego. Seu culto foi reco- narrativa mítica poderia ter cumprido,

• 144 •
em alguns casos, um papel legitimador guns textos evangélicos que advogam
de peregrinações, das festas tradicio- a igualdade entre homens e mulheres
nais ou de origens dinásticas. Além dis- e a tradição oriental que as considera
so, para esse historiador, “pode ocor- inferiores aos homens.
rer também que ela organize em uma Maria foi a protetora iel dos
mesma narrativa, tradições de origens cristãos em sua luta contra os muçul-
diversas, eruditas e folclóricas: assim manos, nas sociedades ibéricas. Uma
ela contribui para a integração da so- sociedade da guerra e da agressão pre-
ciedade cristã por meio de uma mito- cisava de uma santa padroeira da guer-
logia que tende a se uniicar.” ra. Embora nas tradições mais antigas
Esposa, mãe, irmã, enim Maria as deidades femininas fossem a repre-
foi representada de inúmeras maneiras sentação da vida e da fertilidade, na
e em algumas delas ela era a própria versão da Virgem pelo cristianismo ela
Igreja, apesar de todo o discurso misó- foi, também, uma divindade da guerra.
gino do clero que acompanha a histó- Isso está perfeitamente de acor-
ria da Igreja Cristã, a Virgem serviu de do com a realidade da Europa medie-
meio de divulgação dos projetos dessa val, colocar-se em marcha pelo amor
instituição. O discurso religioso a apre- de Deus. Estava em sintonia com uma
sentava de distintas maneiras, adaptan- sociedade que se cristianizava pela for-
do o mito de acordo com as necessida- ça da palavra e da espada. A própria
des do momento: ora Ela era superior, Igreja se militarizava e desenvolvia um
tal como a Igreja, ora inferior tal como cristianismo de combate que se articu-
a humanidade.
lava com os valores cavalheirescos da
Discurso aqui entendido como
sociedade feudal.
aquilo que engendra e é, ao mesmo
Como exemplo dessa represen-
tempo, engendrado pelo social é as-
tação da Virgem, pode-se citar o mo-
sim palavra em movimento, prática da
delo da Virgen del Pilar, protetora das
linguagem: com o estudo do discurso
tropas aragonesas; os Reis Católicos
observa-se o homem falando. Dessa
foram presenteados por Maximiliano
forma, o discurso das narrativas míti-
da Áustria com uma imagem de Nossa
cas cumpriria um papel mediador entre
Senhora de Vélez; que se tornou pro-
o homem e a sua realidade social.
tetora dos cristãos durante o sítio à
Aliás, o clero jamais resolveu
Málaga. Por im, a Virgen de las Batallas,
algumas contradições, do seu discurso
da catedral de Sevilha, sempre presente
misógino e a adoção da Virgem como
nas expedições guerreiras de Fernando
a alegoria da própria Igreja. Além de
III, o Santo, pai de Afonso X, o Sábio.
outra lagrante contradição entre al-
• 145 •
O desenvolvimento do culto à de la Iglesia, Maria foi a Mãe gloriosa,
Virgem Maria, desde o século XI e XII, a mãe espiritual. Os poetas do século
construiu para as mulheres dois mode- XIII se vinculavam a Ela. Assim como
los básicos: a virgindade e a maternida- Afonso X se dirige a Santa Maria como
de, ambos inspirados na Virgem-Mãe. mia Madre, Berceo também se conside-
Na poesia mariana de Afonso ra seu ilho, Madre del tu Gonzalvo, excla-
X, o sentimento materno recebe uma ma comovido: Madre, dándote buen preçio
importante acolhida. Nele ocorre a que eres pïadosa.
presença feminina em, pelo menos, O Culto Mariano transcende
29 Cantigas, as quais estão relacionadas as fronteiras de classe, sendo venera-
diretamente com o exercício da ma- da tanto nos segmentos abastados da
ternidade, isso sem falar em algumas sociedade, quando nas classes subalter-
poucas que tratam, também, do senti- nas. Rompendo as fronteiras religiosas,
mento paterno. A mulher-mãe foi uma sendo, também celebrada, por exem-
imagem muito cara ao universo mental plo, entre os muçulmanos. É venerada
da Idade Média. por homens e mulheres, sendo a Santa
Também em Gonzalo Berceo se Protetora de muitas ordens religiosas e
pode observar o desenvolvimento do leigas.
afeto parental, tanto no relato da Vida É representada artisticamente
de Santa Oria, quanto nos Milagros de no Ocidente e no oriente, segundo os
Nuestra Señora. A imagem da Virgem elementos formais e estilizados, priori-
com seu ilho ao colo é talvez o mode- zando a suavidade, humanidade e femi-
lo mais freqüente da Virgem gótica. O nilidade como característica essenciais.
homem cristão medieval, tão marcado
pelo maravilhoso, recria em cada mãe Rejane Barreto Jardim
terrena a Mãe celestial e seu Divino i-
lho. Referências e sugestões de leitura
É provável que a Idade Média CANTIGUEIROS, Ulletin of the. Cantigueiros de Santa
tenha cultuado, mais do que qualquer Maria. New York: Medieval and Rainaissance Textsd and
Studies. , v. IV, XI, XII
outra época, a igura da Virgem Mãe,
uma mulher ao mesmo tempo ilha, CAPELÃO, André. Tratado do amor cortês. Tradução
Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes,
mãe e irmã. A sua representação em 2000.DUTTON, Brian. Obras completas. Estúdio y edi-
prosa, verso e imagens povoou o ima- ción crítica por Brian Dutton. London: Tamesis Books
Limited. 1981. 5v: El Sacrifício de la misa, La vida de
ginário das diferentes sociedades da Santa Oria, El Martírio de San Lorenzo.
Europa medieval.
FILGEURIA VALVERDE, José. Alfonso X El Sábio.
Desde que Santo Agostinho a Cantigas de Santa Maria. Códice Rico de El Escorial.
proclamou como a Madre de los miembros Madrid: Editorial Castalia, 1985.

• 146 •
JEANROY, Alfred. La poésie lyrique dês troubadours. do “pedagogía negativa” (surgida de
Tomo II. Paris: Henri Didier Éditeur, 1934.
la combinación entre la Teoría crítica
LOYN, Henry R. Dicionário da Idade Média. Rio de Ja- y los Estudios de Género) ha sido el
neiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
análisis de las relaciones establecidas
RODRIGUES LAPA, Manuel (ed.). Cantigas d’escarnho entre la visualidad, lo visible, lo visto, y
e de maldizer dos cancioneiros medievais galego-portu-
gueses. Coimbra: Editorial Galáxia, 1970. las estructuras de poder.
Nicholas Mirzoeff, desde los
SOLALINDE, Antonio G. (ed). BERCEO. Milagros de
Nuestra Señora. Madrid: Espasa-Calpe, 1944, 1v. estudios de Cultura Visual, y haciendo
hincapié en el carácter in-disciplinado
METTMANN, Walter (ed.).Cantigas de Santa Maria.
Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra: Universi- de esta propuesta, describía este nue-
dade de Coimbra, 1959, 4v.
vo terreno como un trabajo de escritu-
O’CALLAGHAN, Joseph F. El Rey Sábio. El Reinado ra fantasma (“Ghostwriting”) donde el
de Alfonso X de Castilla. Sevilla: Universidad de Sevilla,
1996.
fantasma, lo “visual negativo” podría-
mos añadir, es el lugar intermedio (“in
PÉREZ DE TUDELA y VELASCO, María Isabel. Maria
en el vetice de la Edad Media. Las mujeres e el cristianis-
between”) que escapa a la mirada del
mo medieva,. Madrid, p. 59-69, 1989. espectro panóptico y que tiene múl-
______. El espejo de la feminilidad en la Edad Media tiples nombres en múltiples lenguas:
Española. Anuario ilosóico, Madrid, p. 621-634, 1993. diásporas, exilios, queers, migrantes,
RIQUER, Martin de. Los Trovadores: historia literaria y gitanos, refugiados, tutsis, palestinos.
textos. Barcelona: Editorial Ariel, S. A., 2001. Esta lista puede sin duda ser engor-
ROUGEMOND, Denis. História do amor no Ocidente. dada por todo el resto de categorías
São Paulo: Ediouro, 2003. liminares (identitarias y más allá), por
todas aquellas posiciones, experiencias,
• conocimientos, silencios y cuerpos ge-
nerados en y desde los bordes.
Cultura Visual Homi Bhabha apela a esas mis-
mas “vidas en los bordes” en su bús-
El registro de lo visual: ¿Cómo queda por ubicar la cuestión de la cul-
producimos conocimiento desde la vi- tura en el “más allá”: en los espacios que
sualidad?, ¿en qué sentido son las re- él denomina de “entre medio” y que
laciones visuales relaciones de poder?, no suponen ni el trazo de un horizon-
¿quién dictamina lo visible?, ¿cómo ve- te radicalmente nuevo, ni el abandono
mos?, ¿qué no es visto?, ¿qué se repre- completo del pasado. Por su parte,
senta?, ¿cómo se representa?, ¿cuándo Gloria Anzaldúa evoca este “entre me-
empieza y termina la representación? dio” en su famoso texto Bordelands/La
Una de las principales líneas de Frontera, al deinirlo como un “residuo
análisis de lo que hemos denomina- emocional”, “a vague and undetermi-

• 147 •
ned place created by an emocional re- También ellos retoman el carác-
sidue.” Los habitantes de este espacio ter interdisciplinario, el compromiso
son los atravesados: “the squint-head, the político y el carácter autocrítico de las
perverse, the queer, the troublesome, derivas de la Teoría crítica, para anali-
the mongrel, the mulato, the half bre- zar el gran poder que actualmente ejer-
ed, the half dead. cen la visión y el “mundo visual” tanto
Anzaldúa también evoca el po- en la conformación de sentido, como
der de la visión, de la visualidad como en el establecimiento y repetición de
recurso al borde del sentido, al elaborar valores estéticos, de estereotipos de gé-
en torno a la mirada atravesada como nero y de relaciones de poder. Es decir,
forma de nueva conciencia, una mira- los estudios de cultura visual analizan
da encarnada desde “el otro lado.” Se críticamente el papel que las represen-
reiere a la vida en la frontera al límite taciones y el mundo de la cultura visual
entre el inglés y el español, la domina- han tenido, a lo largo de la historia en
ción anglo y la dominación machista la construcción y modelaje de cuerpos,
mexicana hacia las mujeres, la sexua- subjetividades y estereotipos, y en la
lidad liminal y la imposición heterose- legitimación de relaciones binarias y
xual. El cruce de un lado hacia el otro, desiguales de poder establecidas entre
de lo textual y material a lo visual, de sujeto y objeto de la representación:
lo recto a lo atravesado constituye el hombre-mujer, norte-sur, occidente-o-
movimiento rector de sentido alterado riente, arte-artesanía, etcétera.
“Every time she has to make “sense” Al igual que ocurriera en los
of something, she has to “cross over” orígenes alemanes de la Teoría crítica,
to make a hole of the old boundaries los Estudios de Cultura Visual se le-
of the self and slipping under or over, vantaron contra ese prejuicio evolutivo
dragging the old skin along, stumbling modernista, sostenido por la ideología
over it… It is only when she in on the hegemónica, que considera la tempo-
other side and the shell cracks open ralidad de la historia occidental (léase
and the lid from her eyes lifts that she “primermundista”) como la sucesión
sees things in a different perspective.” exclusiva (unívoca) de hechos legíti-
(ANZALDÚA, 1985) mos y relevantes.
A principios de los años noven- Frente a este perverso meca-
ta, recogiendo todavía el impulso de nismo que ha logrado presentar como
los llamados “studies”, aparece en la central y universal lo que en realidad
academia anglosajona un nuevo campo es solo una de las posibles perspecti-
de trabajo denominado “Visual Cultu- vas, los Estudios de Cultura Visual,
re” o Estudios de Cultura Visual. apoyados en las teorías postcoloniales

• 148 •
y feministas, han reclamado la consti- este giro en la visión que permite otras
tución, en palabras de Shohat y Stam, formas del encuentro, de la conversa-
de un nuevo tipo de análisis policén- ción y del entretenimiento: “There was
trico, dialógico y relacional que ponga one among them who might have been
de maniiesto las relaciones de reci- President but for the fact that she was
procidad existentes entre las diferentes blind and deft. She was smart, but not
culturas visuales. Un nuevo ámbito de one of the geniuses. She was a drea-
trabajo desde donde romper, al menos mer, a creative force, an innovator. It
potencialmente, con el “buen ojo” y was she who dreamt of freedom. But
“el buen gusto”, un lugar desde donde she was not a builder of fairy castles.
luchar contra la esencialidad de signii- Having dreamed it, she had to make it
cados y sentidos, y apostar por la po- come true (VARLEY, 1978).
sibilidad de sentir y signiicar de otra Los estudios de cultura visual,
manera como la teoría crítica, están compues-
En este sentido, los Estudios tos de giros y cruces, giros epistemoló-
de Cultura Visual, desde esta pedago- gicos, visuales, pedagógicos y políticos
gía negativa, igual que ocurre con toda que nos permiten ver “desde el otro
perspectiva crítica, priorizan la impor- lado”. Estas maniobras posibilitan la
tancia de la contextualización de la claridad sólo al atravesarnos, al entre-
producción de signiicados a través de -tenernos y sobre todo entendernos
lo visual. Y es que las imágenes, como –más aún en los silencios– de las en-
las ideas, tienen historia. Lo interesante crucijadas del poder contemporáneo,
además es pensar, tal y como sugiere el cual nos muestra a “todas luces” que
Irit Rogoff, en las consecuencias de lo más oscuro, lo más indescifrable es
desplazar la especiicidad histórica de lo que nos sucede en el momento, en
lo estudiado hacia la especiicidad his- el presente.
tórica de aquel que está realizando el
estudio. Marisa Belausteguigoitia
Como el protagonista de “The Rian Lozano
persistence of vision”, un viajero que,
Referencias y Indicaciones
por equivocación, aterriza en una co-
munidad aislada de sordo-ciegos, con- G. Anzaldúa (1987). Borderlands/La frontera: he new
formada sobre un complejo lenguaje mestiza. San Francisco, CA: Spinsters/Aunt Lute. H.
Bhabha (2002 [1994]). El lugar de la cultura. Buenos
de roces y contactos, el giro visual nos Aires: Manantial.
ayuda a conformar visiones particula-
Donna Haraway. [1988] “Situated Knowledges: he
res del mundo. En su referencia a su Science Question in Feminism and the Privilege of Partial
encuentro con la protagonista, una Perspective”, Feminist Studies, vol. 14-3: 575-599.

mujer ciega y sorda, puede apreciarse

• 149 •
N. Mirzoef (2002 [1998]). “he Subject of Visual Cul-
ture”. In: N. Mirzoef (2002 [1998]). he Visual Culture
Reader. London/New York: Routledge.

I. Rogof (2002 [1998]). “Studying Visual Culture”. In:


N. Mirzoef (2002 [1998]). he Visual Culture Reader.
London/New York: Routledge.

E. Shohat & R. Stam (2002 [1998]). “Narrativizing


Visual Culture. Towards a de Barcelona.

John Varley. [1978] he persistence of vision. New York:


he Dial Press / James Wade.

• 150 •
Daltro, Leolinda

Leolinda Daltro foi a precurso-


ra do movimento organizado feminino
no Brasil, professora e grande defen-
sora dos direitos dos indígenas e das
mulheres. Nasceu na Bahia em 14 de
julho de 1859 e migrou, em 1887, com
o primeiro marido e os ilhos, para a
Capital Federal em busca de melhores
condições de vida. Ardorosa defenso-
ra dos direitos dos indígenas batalhou
tanto pela alfabetização laica dos mes-
mos quanto buscou a sua integração
na sociedade, sem conotações missio-
nárias, ideia inovadora para época. No
inal do século XIX, empreendeu um
ambicioso projeto de alfabetização dos
povos indígenas, percorrendo durante
quatro anos o interior do estado de
Goiás. Na época, separada do marido,
deixou os ilhos pequenos sob a guar-
da de conhecidos para empreender tal
viagem acompanhada pelo ilho mais
velho. Por conta de sua ousadia, re-
cebeu vários epítetos. A imprensa da
época assim a descreveu: “santa, anjo,
excêntrica, monomaníaca, visionária,
heroína, louca de hospício, doce mãe,
aproveitadora, herege e anticristo fo-
ram alguns dos títulos que ela recebeu
de admiradores e desafetos” (ROCHA,
2002). O nome de Leolinda Daltro es-
teve em evidência na imprensa brasi-
leira por quase 15 anos, tanto devido
ao seu envolvimento com os indígenas
quanto por outra causa defendida com

• 151 •
ousadia e esmero: o feminismo. Seu composto exclusivamente por mulhe-
primeiro ato político foi a congrega- res, pois estava vedada a participação
ção de algumas mulheres em apoio à masculina. Apesar desse interdito, Leo-
candidatura de Hermes da Fonseca à linda Daltro, sua presidente, tanto pro-
presidência do Brasil, no ano de 1909, curava o apoio dos políticos da época
e que recebeu o nome de Junta Femi- para a sua causa, como se prontiicava
nil pró-Hermes-Wenceslau. Para Mariana a apoiar os que se identiicavam com
Coelho (2002, p.152) essa “associação sua luta. Ela também se aproveitou da
política de cuja descrição se depreende aproximação de iguras políticas mas-
ser o ponto de partida para a ação do culinas de destaque para dar visibilida-
feminismo no Brasil, pois foi a primeira de aos atos do partido em suas mani-
fundada com intuitos de trabalhar pela festações públicas. Mais do que o voto,
emancipação do sexo feminino brasi- o PRF solicitava a emancipação plena
leiro”. Esse foi o ponto de partida para, das mulheres brasileiras, mesmo assim,
em 1910, Leolinda fundar na capital do ou por causa disso, o pioneirismo de
país um partido político, o Partido Repu- Leolinda foi mal visto na época, e sua
blicano Feminino (PRF). Céli Regina Jar- luta foi muito ridicularizada. Em entre-
dim Pinto (2003, p. 18) salienta que a vista para um jornal do Rio de Janeiro,
criação desse partido “merece atenção ela assim se pronunciou: “pois então o
especial pela ruptura que representou senhor não sabe quanto fui combati-
[...] pelo fato de ser um partido político da, vilipendiada, ridicularizada porque,
composto por pessoas que não tinham simplesmente, só porque me bati por
direitos políticos, cuja atuação, portan- uma aspiração ainda descolada no tem-
to, teria de ocorrer fora da ordem esta- po em que levantei o estandarte do Fe-
belecida”. E June Hahner (2003, p.280) minismo no Brasil.” (A Batalha, Rio de
assinala que a pretensão do partido era Janeiro, 02.abr.1931, p.1). Elaine Rocha
a de reavivar a questão do voto femi- (2002) e Márcia Abreu (2007) salien-
nino “dentro do Congresso, onde não tam que Daltro se dedicou à missão
tinha mais sido tratada desde o Con- de educar os povos indígenas até 1911,
gresso Constituinte de 1891”. O PRF quando transferiu seu foco de atuação
tinha por meta: “congregar a mulher para a causa da emancipação feminina.
brasileira na capital federal e em todos Nessa época seu nome também passou
os Estados do Brasil, promovendo a a ser associado ao movimento das suf-
cooperação entre as mulheres na de- fragettes, movimento militante pelo voto
fesa das causas relativas ao progresso feminino da Inglaterra, o que deu uma
pátrio” (DIARIO OFICIAL, 1910, p. conotação negativa a suas demandas
47). Um diferencial do partido era ser junto ao público. Em 1917 a causa do

• 152 •
voto feminino foi um dos temas do e utilizar a imprensa para divulgar os
carnaval na cidade do Rio de Janeiro e seus atos –, o que as diferenciava era a
o nome de Leolinda Daltro motivo de forma como eram vistas pela socieda-
risos e chacotas. A partir de 1918, a im- de da época. O pioneirismo de Daltro
prensa cunhou o termo “mau feminis- sofreu mais o preconceito do que o
mo” para diferenciar a ação do grupo de Bertha Lutz, pelo fato de sua mi-
de Daltro do feminismo praticado por litância ter surgido na mesma época
Bertha Lutz. Nos anos de 1910 e 1920, em que as inglesas aplicavam as suas
Leolinda Daltro tentou, por várias ve- táticas mais agressivas para alcançar
zes, se qualiicar como eleitora, com os seus objetivos. Isso fez com que os
base no argumento de que a lei eleito- atos de Leolinda e de suas seguidoras
ral não impedia o alistamento feminino fossem diretamente associados com os
bem como participou como candidata das suffragettes, o que se provou negati-
em algumas eleições da capital federal, vo para a imagem dela e para a causa
sem sucesso. Devido a sua militância que defendia. Um artigo publicado em
o tema do voto feminino voltou a ser 1934 bem resume as agruras por que
agenda da imprensa e do Parlamento. A Leolinda Daltro passou em vida: “Foi
partir de 1922, o movimento liderado a primeira líder da emancipação femi-
por Daltro passou cada vez mais para a nina e o que sofreu por causa disso! [...]
obscuridade, enquanto o grupo lidera- os jornais não a poupavam, trazendo-
do por Lutz cresceu cada vez mais até -a ao ridículo mais doloroso... Não se
se irmar como o maior grupo em prol contam as humilhações por que pas-
do sufrágio feminino no país. A feição sou, as amarguras que lhe atribularam
mais comportada da luta em prol do a existência de lutadora. [...] Respondia
sufrágio feminino foi assim imposta aos ataques cruéis de seus adversários,
pelo grupo de Bertha, tal como salien- trabalhando sempre pela causa de que
ta Céli Pinto (2003). As iguras de Le- foi paladina denodada: a emancipa-
olinda Daltro e Bertha Lutz são bons ção da mulher. E hoje, a mulher vota,
exemplos dos tipos de feminismo que a mulher tem um lugar entre os de-
circulavam na época. Embora ambas putados da nação, a mulher entra em
perseguissem o mesmo ideal de uma concursos para as repartições públicas
maior valorização do papel da mulher desbancando os homens, a mulher
na sociedade – procurando cada uma pleiteia todos os direitos políticos con-
com seu estilo de ação pressionar os cedidos aos homens, sem que ninguém
políticos para atingir os seus objetivos ache isso uma coisa absurda, condená-

• 153 •
vel, motivo de censura geral. [...] Ela MELO, Hilda Pereira de; MARQUES, Teresa Novaes.
Partido Republicano Feminino – A construção da cida-
guardou para si todas as agruras, todos dania feminina no Rio de Janeiro. Revista do Instituto
os sacrifícios da campanha, para que Histórico e Geográico do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
2000.
anos depois as suas companheiras de
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo
sexo pudessem serenamente colher os no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.
frutos, os proveitos e as honrarias da
ROCHA, Elaine Pereira. Entre a pena e a espada: a tra-
vitória” (Correio da Manhã, Rio de Janei- jetória de Leolinda Daltro (1859 – 1935) – patriotismo,
ro, 27.set.1934,p.4). Na década de 1930 indigenismo e feminismo. 2002. 335 f. Tese (Doutora-
do em História). Universidade de São Paulo, São Paulo,
permaneceu ativa nessa luta fazendo 2002.
parte da Aliança Nacional de Mulheres, A Batalha, Rio de Janeiro, 02.abr.1931.
agremiação fundada em 1931 pela ad-
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 27.set.1934.
vogada Natércia da Silveira, bem como
sendo candidata nas eleições de 1933 DIÁRIO OFICIAL. 17 de dezembro de 1910.

e 1934. A disputa pela primazia e pelo


Sugestões de leitura
pioneirismo à frente do movimento
organizado feminino podia ainda ser ABREU, Maria Emilia Vieira de. Professora Leolinda
Daltro: Uma proposta de catequese laica para os indíge-
veriicada em 1934, quando Leolinda nas do Brasil: 1895-1911. 2007. 101 f. Dissertação (Mes-
concorreu a uma vaga no Parlamento, trado em Educação). Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2007.
pelo Partido Nacional do Trabalho. Nes-
sa última tentativa, ela reiterou que “a KARAWEJCZYK, Mônica. As ilhas de Eva querem vo-
tar. Dos primórdios da questão à conquista do sufrágio
sua campanha feminista precedeu à de feminino no Brasil (c.1850-1932). 398 f. Tese (Doutora-
todas as senhoras que se apresentam do em História). Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2013.
como líderes do feminismo. Foi quem
levantou, de longa data, no Brasil, a MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. Elas também
desejam participar da vida pública: várias formas de par-
ideia do direito político da Mulher!” – ticipação política feminina entre 1850 e 1932. Gênero,
tal como aparece estampado no pan- Niterói, v.4, n.2, p. 149-169, 1.sem. 2004.

leto de sua campanha. Faleceu no Rio Verbete Leolinda de Figueiredo Daltro. In: SCHU-
de Janeiro, em 4 de maio de 1935, víti- MAHER, Shuma, BRAZIL, Érico Vital (Org.). Dicioná-
rio Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade. Rio de
ma de um atropelamento. Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

Mônica Karawejczyk •

Referências Derrida, Jacques


(desconstrução, différance)
COELHO, Mariana. A Evolução do Feminismo. Subsí-
dios para a sua história. 2. ed. Curitiba: Imprensa Oicial
do Paraná, 2002. O ilósofo franco-argelino Jac-
HAHNER, June E. Emancipação do Sexo Feminino. A ques Derrida (1930-2004) é um pen-
luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850-1940. Flo- sador contemporâneo que integra o
rianópolis: Mulheres, Santa Cruz: EDUNISC, 2003.

• 154 •
que se convencionou chamar de pen- São interpretações de Nietzsche que
samento pós-estruturalista, embora ele Alan D. Schrift (2006) divide em dois
mesmo não costumasse se reconhecer grandes grupos. No primeiro, Derrida
nesta denominação, genérica demais estaria ao lado de autores como Michel
por pretender estabilizar autores he- Foucault, Sara Kaufman, Philippe La-
terogêneos entre si. Considero que se coue-Labart e Bernard Pautrat. São lei-
pode usar pensamento da desconstru- turas voltadas para a questão do estilo
ção e pós-estruturalismo como termos do discurso ilosóico e para a forma
intercambiáveis, recorrendo a este úl- literária de apresentação das questões
timo pela necessidade de situá-lo no ilosóicas, que fazem parte, ainda se-
contexto do pensamento francês dos gundo Schrift, de três importantes te-
anos 1960/1970, que se desenvolve a mas então dominantes no pensamento
partir das aberturas proporcionadas francês: a desconiança em relação à
pelo estruturalismo. hermenêutica, a relexão sobre a natu-
Os anos 1960, nos quais Der- reza da linguagem, e a crítica ao huma-
rida começa a sua trajetória ilosóica, nismo metafísico.
vão se conigurar por uma renovação O segundo grupo de leitores
da ilosoia depois do estruturalismo. franceses de Nietzsche, do qual faz
Por isso, seu percurso na ilosoia se- parte novamente Derrida, mas tam-
guirá ao mesmo tempo um distan- bém Deleuze e Jean-François Lyotard,
ciamento da fenomenologia, na qual privilegia temas como a ênfase na in-
iniciou seus estudos, e uma crítica ao terpretação – que em Nietzsche, como
estruturalismo, com a qual vai indicar em Derrida, é sempre um ato de força;
que, embora esse pensamento preten- a crítica ao pensamento binário – que
da abandonar um ideal de fundamen- percorrerá toda a obra de Derrida; a li-
to, ainda está organizado em estrutu- gação entre poder e conhecimento e a
ras estáveis em torno de um centro. A necessidade de julgar diante da ausên-
estrutura centrada seria, para ele, uma cia de critério.
forma de limitar o jogo da estrutura, Em 1972, por ocasião do cente-
de ainda airmar um ideal de presença nário da publicação de O nascimento da
e de verdade. tragédia (NIETZSCHE, 1992), aconte-
Derrida reconhece em Freud, cem na França dois colóquios dedica-
Heidegger e Nietzsche suas principais dos à obra de Nietzsche. É neste en-
inluências. No que diz respeito a Niet- contro que Derrida faz a conferência
zsche, Derrida faz parte de um amplo “A questão do estilo”, que depois seria
movimento de recepção do ilósofo publicada como “Esporas – os esti-
alemão na França dos anos 1960/1970. los de Nietzsche” (DERRIDA, 2013).

• 155 •
Neste texto, Derrida explora diversos chamar atenção para o fato de que, no
temas na leitura que faz de Nietzsche, pensamento da desconstrução, as au-
cuja obra faz muitas referências às mu- sências são valorizadas, e não desqua-
lheres. Na sua crítica ao ideal metafí- liicadas. No âmbito do pensamento
sico de verdade, Nietzsche se vale de pós-estruturalista, Derrida será um dos
pelo menos três recursos: 1) a suspen- autores a airmar a ausência de um su-
são da verdade entre aspas, 2) a ver- jeito estável a ser representado, o que
dade-aparência; 3) a verdade-mulher, também interessará a muitas teóricas
sobre a qual Derrida vai partir para feministas, como Judith Butler, Dru-
pensar a sua crítica ao ideal de verdade. cilla Cornell, Tina Chanter, Elizabeth
Em Nietzsche, mas também em Grosz, Diane Elam, para citar apenas
Derrida, a busca da verdade seria uma algumas. Para elas, é no esvaziamento
operação de dominação, de apropria- de termos como verdade, feminino,
ção, de posse, uma operação masculi- masculino, que o pensamento da des-
na. Na crítica de Nietzsche ao acesso construção pode se articular com a te-
ao conhecimento, privilégio masculi- oria feminista.
no do qual ele vai desdenhar, há uma Desconstrução: Ainda que seja
ainidade com a crítica de Derrida ao classiicado dentro do grande grupo
fono-falo-logo-centrismo, termo que o do pós-estruturalismo francês, a de-
aproximará das teóricas feministas, por nominação pensamento da desconstrução
sintetizar o privilégio concedido à phone – expressão que resulta da inluência
e ao logos e ao phallus (BERNARDO, de Heidegger e da sua destruição da
2008). Se em Nietzsche esta “verdade” metafísica, como se verá a seguir – sin-
é uma mulher, em Derrida trata-se de gulariza melhor o trabalho de Derrida,
suspender entre aspas todos os concei- cuja obra é voltada para a leitura de di-
tos ilosóicos, que fazem parte de um ferentes autores e não para o desenvol-
“discurso do sujeito masculino falante, vimento de teses e princípios que lhe
presente, e garantidor do sentido e da sejam próprios.
verdade”. É da palavra alemã Destruktion
Ao colocar o feminino num que Derrida propõe a sua desconstru-
lugar de não-verdade, como lugar de ção, na esteira do projeto de Heideg-
onde algo novo pode surgir, Derrida ger (2002), para quem a destruição não
será criticado por ainda estar repetindo tem sentido negativo, mas a intenção
a tradição, que historicamente associou de apontar para os limites que impe-
o feminino à falta, ao vazio a ser preen- diram a tradição de pensar a ques-
chido pelo outro, que é sempre mascu- tão do ser. Quando Derrida propõe
lino. É Gayatri Spivak (1997) quem vai um deslocamento de destruição para

• 156 •
desconstrução, está não apenas se di- vel, essência/aparência, masculino/
ferenciando de Heidegger, mas tam- feminino), Derrida promove o que ele
bém lembrando que a palavra alemã chama de inversão e deslocamento,
Destruktion não tem a mesma conota- movimentos que pretendem trazer à
ção que destruição tem em francês e, tona o polo subordinado e ao mesmo
acrescento, em português. Em ambos tempo promover um deslocamento
os idiomas, destruição está ligada a ani- dos conceitos que estavam apoiados
quilamento, conotação que a palavra nesta diferença opositiva (DERRIDA,
alemã não carrega. Se em Heidegger 1992). Por serem movimentos simul-
a destruição da metafísica tinha como tâneos, não fases de um programa, ele
objetivo retornar à originalidade dos recusa o termo “fases” e explica que,
conceitos, a im de pensar a questão para desconstruir uma determinada
do ser, apagada da história da ilosoia oposição, é preciso inverter a hierar-
pelo menos desde os gregos, em Derri- quia, de maneira a perceber a estrutura
da a palavra desconstrução estará rela- conlitiva e subordinante da oposição.
cionada a uma ideia de decomposição, A intenção não é apenas fazer emergir
dessedimentação, de análise das cama- o que até então estava recalcado, mas
das sedimentadas do pensamento, que proporcionar um novo recurso ao pen-
formam os elementos discursivos com samento. Farão parte deste duplo mo-
os quais pensamos. vimento o deslocamento do conceito
Assim, o objetivo do pensamen- de linguagem para o quase-conceito de
to da desconstrução não é “destruir” escritura, o deslocamento do concei-
os autores sobre os quais se debruça, to de signo para o quase-conceito de
mas escavar as camadas que funda- rastro, o deslocamento do conceito de
mentaram determinados conceitos, ser para o quase-conceito de différance,
a im de mostrar como estes foram termos que integram o que chamo aqui
construídos sobre certas premissas ou de “vocabulário Derrida”. Com este
fundações que encerram os limites de vocabulário, o pensamento de Derrida
tais conceitos. Desconstruir teria, as- se caracteriza pela crítica à metafísica,
sim, a função de trazer à tona aquilo que para ele será sempre “metafísica
que precisou ser recalcado, rebaixa- da presença” (DUQUE-ESTRADA,
do. A estratégia da desconstrução se
2002).
desenvolve, em grande medida, sob
Différance: O termo différance
resultado de um duplo gesto: ao iden-
aparece na obra de Derrida em 1967,
tiicar uma estrutura hierárquica nos
discretamente usado em dois textos
pares binários da tradição metafísica
sobre o problema do signo: Grama-
(universal/singular, sensível/inteligí-
tologia (DERRIDA, [1967] 2004), no
• 157 •
qual ele discute o signo da linguística Por im, uma das heranças que
estruturalista de F. Saussure, e A voz e o Nietzsche deixa a Derrida é a confron-
fenômeno (DERRIDA, [1967] 1994), no tação com a obra de Kant. Derrida foi
qual ele discute o signo na fenomeno- um leitor de todo o arcabouço teórico
logia de Husserl. Para Derrida, o pro- de Kant, e seus trabalhos se referem,
blema do signo não é um entre outros, direta ou indiretamente, ao ilósofo das
mas é uma questão profundamente li- Luzes. A partir da leitura dos textos
gada a uma época histórico-metafísica políticos de Kant – leitura que marca o
(SAFATLE, 2011). Em 1968, quando que muitos comentadores chamam de
ele pronuncia a conferência “A différan- “segundo Derrida” – o ilósofo fran-
ce” (DERRIDA [1968] 1991), Derrida co-argelino desenvolve sua proposição
sintetiza e formula sua proposição de de hospitalidade incondicional, termo com
différance, termo com o qual tenta o qual Derrida estabelece sua discus-
dar conta do que, no português, seria são sobre ética e política (RODRI-
uma conjunção verbal em gerúndio – GUES, 2013).
diferenciando –, mas opera com um
duplo sentido do verbo diferir – no Carla Rodrigues
sentido de diferenciar e no sentido de
Referências e sugestões de leitura
adiar. Différance seria, assim, ao mesmo
tempo o movimento de diferenciação BERNARDO, Fernanda. Femininograia’s: pensar-habi-
e o movimento de adiamento que, jun- tar-escrever o mundo no feminino. In: CONGRESSO
FEMINISTA DE LISBOA, 2008.
tos, indicariam essa impossibilidade de
DERRIDA, Jacques. “Diférence sexuelle, diférence on-
presença a si, seja de um sujeito, seja tologique (Geschlecht I)”. In: ______. Heidegger et la
de um objeto, seja de um signiicado. question. Paris: Champs Flamarion, 1990.

Différance entrará no vocabulário de ______. “Chorégraphies – entrevista com Christie V.


McDonald”. In: ______. Point de suspension – Entre-
Derrida num momento de questiona- tiens. Paris: Galilée, 1992.
mento do apelo fenomenológico de
______. A voz e o fenômeno: introdução ao problema
Husserl – “de volta às coisas mesmas” do signo na fenomenologia de Husserl. Tradução de Lucy
Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
–, que em Derrida será deslocado para
“a coisa mesma sempre escapa”. Esse ______. Gramatologia. Tradução de Miriam Chnaider-
man e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva,
escapar é o movimento da différance, 2004.

que faz com que a coisa mesma esteja _______. Esporas – os estilos de Nietzsche. Tradução de
implicada em dois movimentos: dife- Rafael Haddock-Lobo e Carla Rodrigues. Rio de Janeiro:
NAU Editora, 2013.
renciação e adiamento ininito de sua
DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. “Derrida e a escri-
presentiicação, tornando frágil toda tura”. In: DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar (Org.). Às
identidade dos sujeitos e dos objetos. margens da ilosoia. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio e
Edições Loyola, 2002.

• 158 •
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Már- alguém ou alguma coisa ou conceito só
cia Sá Cavalcante Shuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
v. 1. é idêntico a si mesmo e não para com
um outro ou outra. Deste prisma, ao se
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou
helenismo e pessimismo. Tradução de J. Guinsburg. São falar em igualdade se aborda automa-
Paulo: Cia. das Letras, 1992. ticamente a desigualdade. Ou seja, no
RODRIGUES, Carla. Coreograias do feminino. Floria- pensamento racional formal o igual é
nópolis: Editora Mulheres, 2009. em si mesmo desigual para com um(a)
______. Duas palavras para o feminino: hospitalidade e outro(a) visto que apenas a identidade
responsabilidade. Sobre ética e política em Jacques Derri-
poderia ser a “igualdade plena”. Não
da. Rio de Janeiro : Faperj/NAU Editora, 2013.
por acaso utilizar o termo igualitaris-
SCHRIFT, Alan D. “Nietzsche’s French Legacy”. IN:
MAGNUS, B. e HIGGINS, K. (orgs). he Cambridge
mo tem certo peso pejorativo visto que
Companion to Nietzsche. Cambridge Press, 2006. seria um arremedo do que se propõe
SPIVAK, Gayatri. “Displacement and the discourse of
idêntico sem jamais o ser, visto que
woman”. In: HOLLAND, Nancy. Feminist interpreta- seria apenas o igual. (MOSER; MUL-
tions of Jacques Derrida. Pensilvânia: he Pennsylvania
State University Press, 1997.
DER; TROUT, 2004)
Neste contexto, icam claras
SAFATLE, Vladimir. “Être juste avec Freud”. IN: MA-
NIGLIER, Patrice (org.). Le moment philosophique des as razões do lema que marca(ou) os
années 1960 en France. Paris: PUF, 2011. fundamentos da histórica burguesa
moderna e contemporânea a partir
• da Revolução Francesa: “Liberdade,
igualdade e fraternidade”. Em nenhum
Desigualdade momento os burgueses propuseram o
im irrestrito das desigualdades, antes
Do ponto de vista dos princípios elas estavam contidas na deinição da
do pensamento racional a desigualdade igualdade e mesmo como base da li-
é elemento fundamental para que um berdade visto que a “igualdade plena”,
conceito se diferencie dos outros per- no campo do político-social poderia
mitindo que cada um seja aquilo que conduzir a equivocos. Assim, discutir a
é. Falar em igual é discorrer sobre o desigualdade, por contraditória que pa-
desigual e não apenas no terreno dos reça, ecoa como a discussão das bases
conceitos, mas, também, no mundo daquilo que nos torna o que somos e
real, das coisas, das individualidades. como somos. (PINSKY, 2005)
Assim, “igualdade plena”, “total”, não Se, do ponto de vista dos con-
seria possível, do ponto de referência ceitos a identidade é percebida como
das idéias, visto que esta seria a iden- elemento fundamental que confere
tidade quer de conceitos ou dos ele- originalidade a um ser, termo ou teo-
mentos manifestos no mundo. Algo, ria – vejam-se os embates em torno do

• 159 •
conceito de gênero, de transgênero, de no pensamento binário. Haveria uma
feminino, de masculino, de atividade, natureza imutável, haveria mesmo uma
de passividade entre tantos outros – e natureza que tudo determinaria e que
este aspecto é enfatizado pelos pesqui- desenvolveria ao longo da existência. A
sadores mais argutos como elemento desigualdade seria essencial na medida
fundamental para se compreender o em que explicita os modelos a serem
alcance e limites de determinada con- seguidos. Retornando ao campo dos
tribuição teórico-crítico-metodológica; termos, os desiguais que seguissem
no plano do social e político, a meta, suas essências seriam iguais; todavia,
sobretudo no terreno da História, é aqueles que não se adequassem a esta
compreender o que aquele determi- desigualdade essencial seriam “antina-
nado recorte espaço-temporal tem de turais” em um grau no qual a desigual-
especíico enquanto desigual a tudo o dade seria percebida e notada.
mais pesquisado e compreendido. As- A segunda concepção é deno-
sim, o que atrai a pesquisa histórica é o minada de naturalista e se expandiu
desigual, o especíico, o único. a partir do século XVII concorrendo
Todavia, o como se aborda a pelo espaço de ser reconhecida como
origem da desigualdade e como ela critério de verdade capaz de explicar
é mantida ou se manifesta variou ao a realidade. A ciência com seu méto-
do buscou encontrar aquilo que é a
longo dos séculos em conformidade
regularidade da natureza e do homem
a tendência teórica de fundo adotada
– ainda apenas o homem – para for-
pelo(a) pesquisador(a). Quatro gran-
mular leis que seriam universais e ne-
des tendências se estabeleceram não
cessárias para se compreender o mun-
apenas no campo acadêmico para ex-
do e o comportamento. Esta tendência
plicar a desigualdade, mas, também, no
abre espaço ao determinismo da natu-
campo religioso, no campo político e
reza sobre a existência. A natureza de
social. (SUCHODOLSKI, 1984)
homens e mulheres seria desigual em
A primeira, e talvez a mais mar-
sua biologia corpórea que lhe atribuía
cante, é a concepção essencialista que
um destino social. A consciência deve-
reinou soberana até o século XVII.
ria se dobrar diante do natural para ser
Nesta corrente de pensamento e ação reconhecida como o desigual que gera
o indivíduo seria dotado de uma essên- a igualdade na sociedade e mesmo na
cia que precede sua existência. A essên- natureza pela sua regularidade de gru-
cia seria inata determinando o que é ser po conforme o corpo lhe atribuía.
homem ou mulher, macho ou fêmea, O século XVIII possibilitou
hetero ou homo, para icar-se apenas uma nova tendência de compreensão

• 160 •
da realidade social e política que viabi- igual na medida em que se reconhecem
lizou a reinterpretação da desigualda- as desigualdades e busca equacioná-las
de a partir da crítica ao essencialismo a partir da tolerância, da pluralidade, da
e ao naturalismo, a nova corrente foi diversidade humano-cultural-subjetiva
denominada histórico-social. O duelo e de políticas públicas. Marco funda-
essência e existência, entre natureza mental nesta perspectiva foi a Declara-
e sociedade enquanto determinantes ção Universal dos Direitos Humanos.
das desigualdades ainda é forte, mas, Assim, por contraditória que
se abre espaço para o homem como pareça, o termo desigualdade, que vem
determinado por sua história, por seu do latim aequalitate, igualdade e que foi
processo de constituição social. As- alterado pelo preixo dês, indicando a
sim, as desigualdades seriam fruto das negação da igualdade trouxe em seu
relações históricas e sociais e políticas bojo as premissas necessárias para que
e econômicas e culturais que vivem e aquilo que era desigual por essência,
não mais de uma essência que prece- por natureza, se tornasse a base das
de a existência ou reféns da natureza transformações de concepções para
a qual pertence. A meta passa a ser superar a mesma desigualdade em
compreender a partir do histórico-so- nome da igualdade de gênero.
cial como os modelos foram forjados
e impostos como critérios de igualdade Wlaumir Doniseti de Souza
diante da desigualdade individual, so-
Referências e sugestões de leitura
cial, política e econômica.
Doravante passa-se a denunciar, KERSTENETZKYC.L. Desigualdade e pobreza. Dis-
ponível em: http://www.scielo.br/pdf/%0D/rbcsoc/
sobretudo no século XX, na versão crí- v15n42/1740.pdf . Acesso em 20 de maio de 2013.
tica-social-histórica o quanto o desigual
MENDES, D. T. (Org.) Filosoia da educação brasileira.
é o elemento fundante da igualdade e, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.
para além do modelo burguês da Re- MOSER, P.K.; MULDER, D.H.; TROUT, J.D. Teoria
volução Francesa, passa-se a defender do conhecimento. São Paulo: Mastins Fontes, 2004.

o desigual enquanto especiicidade da PINSKY, J., B. (Orgs) História da cidadania. São Paulo:
Contexto, 2005.
pessoa humana para a liberdade em pa-
tamar de igualdade de gênero que tem SANTOS, J.A. dos. Desigualdade social e o conceito
de gênero. Disponível em: http://www.ujf.br/virtu/i-
dentro de si a especiicidade de cada les/2010/05/artigo-3a7.pdf . Acesso em 20 de maio de
2013.
um, de cada grupo. Inicia-se a partir da
corrente histórica-social, e dentro des- SCOTT, J. Gênero: Uma categoria útil para a análise
histórica. Disponível em: http://disciplinas.stoa.usp.
ta percepção, mas de modo ampliado, br/pluginile.php/6393/mod_resource/content/1/G%-
C3%AAnero-Joan%20Scott.pdf . Acesso em 20 de maio
a se defender criticamente que só se é de 2013.

• 161 •
• como airma Jacques Derrida, la inter-
dependencia de los términos binarios
Diferença/Diferencia es jerárquica, siendo el primero de ellos
el que es más importante; el término
Los seres humanos somos ani- positivo es el principio, el que está del
males simbólicos, porque tenemos la lado del logos; el otro signiica en rela-
capacidad de usar un lenguaje simbó- ción a él y es, necesariamente, carencia,
lico por el que sustituimos realidades el enemigo del logos (SCOTT, 1992, p.
por conceptos. Poseemos un código 85-104).
personal, cultural e incluso de género Hélène Cixous (1975), como
por el que traducimos los signiicantes Bourdieu, rechaza estas oposiciones
(realidades de cualquier tipo) a signii- binarias porque signiican, precisamen-
cados determinados; y ese código, que te, la subordinación total de uno de los
sería como un lenguaje cifrado, es el términos, y porque ella cuestiona cual-
símbolo. Es decir, que las cosas no son quier noción identitaria ija, ya sea lite-
lo que son, sino lo que signiican. raria, cultural o de género.
El orden simbólico, que es lo que En los estudios de género las
estructura el pensamiento, depende del voces binarias son igualdad/diferencia,
lenguaje, que es el que le ha dado reali- pero estos términos no son excluyen-
dad al mundo; a él están sujetas la cul- tes entre sí, puesto que, como muy
tura y la sociedad. El estructuralismo bien explica Scott, «la antítesis [igual-
ha analizado cómo el signiicado se ha dad/diferencia] misma esconde la in-
construido a partir del contraste entre terdependencia de los dos términos, ya
los signos, es decir, en base a términos que la igualdad no es la eliminación de
binarios que establecen oposiciones la diferencia, y la diferencia no excluye
constituyentes de un orden conceptual la igualdad» (1992, p. 94).
que orienta todo el pensamiento, tanto En verdad, los conceptos dico-
el ilosóico y cientíico, como el de la tómicos son igualdad/desigualdad.
vida diaria, creando, así, orden simbó- Bourdieu explica que las dife-
lico. Lévi-Strauss airma que la mente rencias entre los sexos conluyen con
humana funciona en términos binarios. las oposiciones que organizan el uni-
Una de las oposiciones binarias verso «para sostenerse mutuamente,
básicas en la coniguración del orden práctica y metafóricamente, al mismo
simbólico es la dicotomía hombre/mu- tiempo que los “esquemas de pensa-
jer, pues el mundo está organizado de miento” las registran como diferencias
acuerdo a la construcción de ambos “naturales”, por lo cual no se puede
sexos, que están jerarquizados, porque, tomar conciencia fácilmente de la rela-

• 162 •
ción de dominación que está en la base producto de la identidad, se cuestione
y que aparece como consecuencia de ésta o no» (2004, p. 30).
un sistema de relaciones independien- De aquí que la otra oposición
tes de la relación de poder» (LAMAS, válida sea la de los antónimos identi-
1999, p. 93). El juego de diferencias y dad/diferencia.
antagonismos entre masculino y feme- Para Lacan el orden simbólico
nino se incluye en un sistema de opo- es un constituyente formal de la cul-
siciones que informan, según Bour- tura, cultura patriarcal, porque, airma,
dieu, las estructuras cognitivas de toda el Sujeto que rige los destinos de la
la “cultura mediterránea” (LAMAS, humanidad no puede ser otro que el
1999, p. 94). poseedor biológico del pene. En este
Por su parte, Cixous sostiene sentido, la imposibilidad de las mujeres
que la diferencia entre los sexos se de ser y de ser seres sociales, tanto en
debe al cuerpo de la mujer, porque los la realidad física como imaginaria, es
diferentes sexos tienen consecuencias el hecho constatable de su alienación
psíquicas. En el mismo sentido, Alicia y de su falta de conciencia de sí; por
Puleo (2000) engloba en el término gé- esto airmaba que «la mujer no existe»
nero el signiicado de identidad sexuada, (AMORÓS, 1997, p. 327). La diferen-
que no es sino la construcción psico- cia hombre/mujer no parte del género,
lógica del individuo y señala las dife- sino de la sexuación, y «no proviene de
rencias existentes entre el sujeto feme- la biología ni de la cultura, sino de la
nino y el masculino; diferencias que lógica del lenguaje, que es una lógica
son construidas socialmente y que no centrada en el soporte fálico» (ZAVA-
tienen origen biológico. Lacan insiste LA, 2004, p. 30).
en que tenemos que tener en cuenta el Lo que el postmodernismo
inconsciente, frente a la idea de que los quiere decir es que no existe una esen-
seres humanos somos sólo razón. cia de mujer, una identidad subjetiva
Así, pues, los términos hom- de la mujer como eterna, ahistórica,
bre/mujer, masculino/femenino son porque la mujer es una construcción
producto de la lógica del lenguaje y, iccional forjada por diversos discur-
por ende, de las identiicaciones imagi- sos occidentales, como el cientíico,
narias y simbólicas de la sociedad, pero el literario, el jurídico, el médico, etc.
también lo son de «los procesos in- (SCOTT, 1996). Por eso hay que crear-
conscientes vinculados a la simboliza- la. Como dice Victoria Sau, «La iloso-
ción de la diferencia sexual» (LAMAS, fía, la religión y la ciencia son grandes
1999, p. 88). Iris M. Zavala concluye monólogos colectivos del género mas-
que «lo masculino y lo femenino serían culino, donde el otro, en este caso el

• 163 •
interlocutor femenino, no es tenido en Así, siguiendo los principios del
cuenta» (1992, p. 19). postmodernismo, el orden simbólico
El feminismo de la diferencia deja de ser un orden constituyente para
se apoya en que la ilosofía ha estado pasar a ser un orden constituido, en el
siempre preocupada por averiguar si que la mujer sí puede estar inscrita. Se
hay una uniformidad que pueda llegar trata de constituir el orden simbólico
a unir la diversidad; es decir, ha preten- de la madre, como alternativa al siste-
dido reducir las diferencias a lo igua- ma patriarcal. Crear orden simbólico
litario. Sostiene que Platón, Descartes, signiica introducir la variable de la di-
Kant y Hegel impusieron el orden ló- ferencia sexual en todos los ámbitos de
gico de lo igual; es decir, impusieron el la vida, del pensamiento, de la política
(MURARO, 1994).
pensamiento racional masculino como
Para el feminismo deconstruc-
un criterio absoluto, prescindiendo de
tivista las mujeres no tendrían nada
toda diferencia.
que ganar con el igualitarismo, con el
Es Luce Irigaray quien, recha-
acceso al poder y a los recursos mas-
zando una tradición de pensamiento
culinos. Es más, Irigaray airma que
que ha pensado la diferencia a través
la verdadera naturaleza de las mujeres
de la supresión ─ o de considerarla
ha sido sistemáticamente negada; con
inferior ─, de suprimir al otro, intenta sus planteamientos reivindicativos, las
redeinir el sujeto femenino partiendo feministas «corren el peligro de estar
de que la diferencia femenina no se trabajando por la destrucción de las
conigura como un sujeto alternativo mujeres; más generalmente, de todos
al sujeto masculino falogocéntrico, sus valores» (AMORÓS, 1997, p. 390).
sino más bien como una alternativa de Aceptar la igualdad como punto de
alteridad respecto al sujeto, que es mas- partida es negar la diferencia sexual de
culino (MOI, 2006, p. 148). La pensa- las mujeres en pro del sujeto masculi-
dora francesa no pretende construir un no, que ha sido presentado por el saber
sujeto femenino. En este sentido, ha- androcéntrico como universal.
bría que desmitiicar al «sujeto mascu- Luce Irigaray opina que las mu-
lino de la razón» (AMORÓS, 1997). El jeres deben esforzarse por alcanzar
postmodernismo acepta las categorías su propio lenguaje, que es poético y
de otredad y de alteridad con las que está cargado de un potencial subver-
relativiza las categorías universales y sivo con respecto al orden patriarcal.
abre posibilidades nuevas para una ar- Considera que se puede reconstruir la
ticulación diferenciada del otro polo de identidad femenina si nos olvidamos
la diferencia sexual: la mujer. de los discursos androcéntricos y nos

• 164 •
dedicamos a explorar nuestro cuerpo y RIVERA GARRETAS, María Milagros. El fraude de la
Igualdad. Barcelona: Planeta, 1997.
la experiencia del placer sexual; a partir
de aquí se construiría una nueva subje- SAU, Victoria. Otras lecciones de psicología. En SAU,
Victoria, [et al.]. Otras lecciones de psicología. Bilbao:
tividad femenina. Maite Canal Editora, 1992. p.11-36.
La mujer no debe tomar como
SCOTT, Joan. Igualdad versus diferencia: Los usos de la
medida de sí misma lo masculino; por teoría posestructuralista. Debate feminista, Año 3, Vol.
5, 1992.
el contrario, lo que se propone es la
recuperación del mundo simbólico fe- SCOTT, Joan W. El género: una categoría útil para el
análisis histórico. En LAMAS, Marta (comp.) El género:
menino, airmando las relaciones de la la construcción cultural de la diferencia sexual. México:
hija con la madre, reconociendo la au- PUEG, UNAM, 1996. p. 265-302.
toridad de ésta, y el afidamento ─relaci- ZAVALA, Iris M. La otra mirada del siglo XX. Madrid:
ón de autoridad entre una mujer adulta La esfera de los libros, 2004.

y una joven. No se trata de ser iguales Indicaciones de lectura


a los hombres, sino de cuestionar el
BIRULÉS, Fina (ed.). Filosofía y género. Identidades fe-
código secreto de un orden patriarcal meninas. Pamplona, Pamiela, 1992.
que convierte las diferencias en desi-
IRIGARAY, Luce. Espéculo de la otra mujer. Madrid:
gualdades. Los cambios estructurales Akal, 2007.
y legislativos pueden ser un punto de
POSADA KUBISSA, Luisa. Sexo y esencia. De esencia-
partida, pero no de llegada. Milagros lismos encubiertos y esencialismos heredados. Madrid:
Rivera (1997) llama a esta situación el Horas y Horas, 1998.

fraude de la igualdad. RIVERA GARRETAS, María-Milagros. Nombrar el


mundo en femenino: pensamiento de las mujeres y teoría
feminista. Barcelona: Icaria, 2003 (3ª ed.).
Maria Ángelis Perez Carpio

Referencias

AMORÓS, Celia. Tiempo de feminismo. Sobre femi-


Direitos Humanos
nismo, proyecto ilustrado y postmodernidad. Madrid:
Cátedra, 1997.
A desigualdade de gênero é uma
CIXOUS, Hélène. Sorties. En CIXOUS, Hélène Y CLÉ- afronta à igualização proposta pelos
MENT, Catherine. La jeune née. Paris: U.G.E. 10/18, Direitos Humanos desde a sua fun-
1975. p. 114-246.
dação no século XVIII. Os três prin-
LAMAS, Marta. Género, diferencias de sexo y diferencia cipais documentos sobre os Direitos
sexual. Debate feminista, Año 10, Vol. 20, 1999. Humanos, são um relexo do social e
MOI, Toril. Teoría literaria feminista. Madrid: Cátedra, da estreiteza em relação às diferenças
2006 (4ª ed.). de gênero. A França que criou a Decla-
MURARO, Luisa. El orden simbólico de la madre. Ma-
drid: Horas y Horas, 1994.
ração que pretendia ser universal, foi o
último país do ocidente a conceder o
PULEO, Alicia. Filosofía, género y pensamiento crítico. voto às mulheres, sua cidadania políti-
Valladolid: Secretariado de Publicaciones de la Univer-
sidad, 2000. ca.

• 165 •
Esta desigualdade, o poder e o francesa é semelhante á norte-ameri-
domínio de uns sobre outras tem a sua cana, também o documento da ONU
história. A reivindicação de Direitos apresenta similaridades aos seus ante-
Humanos aplicados às mulheres ocor- cessores. Segundo Hunt, “por quase
re porque até há pouco tempo não dois séculos, apesar da controvérsia
eram consideradas humanas, mas sim, provocada pela Revolução Francesa,
ilhas, esposas de humanos. A história a Declaração dos Direitos do Homem
dos Direitos Humanos é contada atra- e do Cidadão encarnou a promessa de
vés de três documentos fundamentais direitos humanos universais. Em 1948,
tidos como textos fundadores: A De- quando as Nações Unidas adotaram a
claração da Independência dos EUA Declaração Universal dos Direitos Hu-
de 1776; a Declaração dos Direitos do
manos, o artigo 1ª dizia: “Todos os se-
Homem e do Cidadão de 1789 e a De-
res humanos nascem livres e iguais em
claração Universal dos Direitos Huma-
dignidade e direitos. Em 1789, o artigo
nos decretada pela ONU em 1948.
1º da Declaração dos Direitos do Ho-
O primeiro documento é elabo-
mem e do Cidadão já havia proclama-
rado por Thomas Jefferson nos Esta-
do; “os homens nascem e permanecem
dos Unidos após a independência da
livres e iguais em direitos”. Embora as
Inglaterra. A Declaração dos Direitos
da Virginia (EUA) de 1776 é uma de- modiicações na linguagem fossem sig-
claração de direitos que abre caminho niicativas, o eco entre os dois docu-
para a independência da América do mentos é inequívoco. “(HUNT, 2009,
Norte e que vai ser a inspiradora para o 15).
documento lançado após a Revolução O Brasil assinou a Declaração
Francesa – Declaração dos Direitos do Universal dos Direitos Humanos em
Homem e do Cidadão. O terceiro do- 1948 comprometendo-se com seus
cumento lançado pela ONU em 1948 termos e seu princípios. A redemocra-
segue os anteriores em seus princípios tização do Brasil após os negros tem-
gerais. Se os dois primeiros falam em pos da ditadura militar de 1964, recolo-
Direitos do Homem o terceiro avança cou novamente em debate a atualidade
e fala em Direitos do ser humano. Mas da defesa dos Direitos Humanos. O
os três silenciam sobre as mulheres. Programa Nacional de Direitos Huma-
Se o segundo possui muitas ai- nos implementado em 1996 exige uma
nidades com o documento norte-ame- mudança no campo das mentalidades.
ricano, e é consequência da Revolução Embaladas pelo Iluminismo e
Francesa, o terceiro é um efeito da Se- a Ilustração, a Revolução Americana
gunda Guerra Mundial. Se a declaração (1776) e a Revolução Francesa (1789)

• 166 •
fundam os novos direitos civis. O que a autonomia. No séc XVIII, e ainda
distingue as declarações do século hoje, não se imagina que todas as pes-
XVIII é a sua abrangência. A ruptura soas sejam autônomas. Para isso duas
histórica e política efetuada pela Revo- qualidades estavam implicadas: a capa-
lução Francesa tenta ir além da propos- cidade de raciocinar e a independência
ta norte-americana com pretensões de de decidir por conta própria. No sécu-
universalidade. Ao lançar a Declaração lo XVIII em especial, as crianças, os
dos Direitos do Homem e do Cidadão, loucos, os escravos, os criados, os sem
a nova burguesia no poder, ambiciona propriedade e as mulheres não tinham
contemplar a humanidade como um independência para serem autônomos.
todo: declaração dos direitos civis de Todos eles podiam um dia tornar-se
todos homens, de todos os países, de autonomos, crescendo ou comprando
todos os povos, de todas etnias. sua liberdade. Apenas as mulheres não
Uma sociedade mais justa e tinham nenhuma destas opções: eram
igualitária era o sonho de intelectuais deinidas como inerentemente depen-
e ilósofos da época. Liberdade, Igual- dentes de seus pais e maridos pelos
dade, Fraternidade, conceitos que se aparatos jurídicos.
transformaram em paradigmáticos Quando se dizia que todos eram
após a Revolução Francesa, sintetiza- iguais perante a lei, contestava-se um
ram os direitos do novo cidadão e são sistema de valores carregado de pri-
as palavras de ordem contra as opres- vilégios adquiridos pelo nascimento.
sões passadas. Mas este modelo liberal Abolidas as diferenças entre os três
para o Ocidente, designou ou relegou estados, muitas outras permaneceram,
muitos à condição de desiguais. É a entre elas a desigualdade entre os se-
partir dessa Revolução que se cons- xos, distinguindo um mundo inferior
truiu o modelo de cidadania que atra- doméstico para as mulheres frente ao
vessou o ocidente e da qual muitos per- mundo superior, público, próprio dos
maneceram excluídos. Michel Foucault homens.
identiica na tríade revolucionária, tão Gênero e Direitos Humanos
cara aos franceses, a delimitação de es- tem se demonstrado um problema
paços e comportamentos a serem se- de difícil solução. Quando a francesa
guidos por todos os indivíduos como Olympe de Gouges foi decapitada por
dispositivos de submissão: por trás da escrever a Declaração dos Direitos da Mu-
liberdade, grande reclusão; por trás da lher e da Cidadã icou explicito a quem
igualdade, a escravidão do corpo; por se destinava a nova cidadania. Olympe
trás da fraternidade, a exclusão. apresentou esta declaração aos Estados
Uma das prerrogativas funda- Gerais franceses em 1791, como uma
mentais da liberdade e da igualdade é resposta à Declaração dos Direitos do

• 167 •
Homem e do Cidadão, reconhecida faculdades intelectuais; que pretende
como momento fundador dos moder- aproveitar a Revolução e reclamar os
nos direitos da liberdade e a igualdade. seus direitos à igualdade, para não di-
Após lutar juntamente com os homens zer mais. (...) Considerando que a igno-
pelos ideais burgueses da Revolução rância, o esquecimento ou o desprezo
Francesa, não sentiu o seu sexo re- dos direitos da mulher são as únicas
presentado na declaração universal. O causas das desventuras públicas e da
documento que apresenta se revela de corrosão dos governos, elas resolve-
particular importância por conter air- ram expor numa solene declaração os
mações e reivindicações das mulheres direitos naturais inalienáveis e sagrados
em termos de direito e denunciar a co- da mulher...”
notação parcial do sujeito masculino. Sua declaração transforma-se
Olympe de Gouges demonstra- no primeiro manifesto público em fa-
va a parcialidade do sujeito masculino vor dos direitos da mulher. No contex-
e reivindicava que a diferença de sexo to dramático da Revolução Francesa,
não pode justiicar a exclusão das mu- por causa da sua crítica pública aos va-
lheres do poder político e da cidadania lores patriarcais e à violência do poder
social. Aceitava o princípio da univer- jacobino, ela foi guilhotinada em 1793.
salidade que está na base da declaração Segundo os revolucionários franceses,
dos direitos do homem e reivindicava Olympe seria guilhotinada por te co-
a diferença que hoje deinimos como metido dois “pecados”: querer ser um
de ‘gênero”, fazendo de homens e de homem de estado e trair a natureza de
mulheres o fundamento da nação. A seu sexo.
Declaração, constituiu-se na primeira Embora os revolucionários
interrogação sobre o papel da mulher franceses reivindicassem a ideologia
nas teorias e práticas institucionais ao republicana fundada na liberdade e na
tentar demonstrar as capacidades inte- igualdade dos cidadãos, não estendiam
lectuais e racionais do gênero femini- estes direitos às mulheres. Mirabeau,
no: “Homem, sabes ser justo? É uma Danton e Robespierre, célebres igu-
mulher que te pergunta: não quererás ras da Revolução, rejeitavam a idéia
tolher-lhe esse direito. Dize-me, quem de uma hierarquia natural entre os ho-
te deu o soberano poder de oprimir mens, mas mantinham-se mudos em
o meu sexo? (...) Extravagante, cego, relação às mulheres. Muitas delas ten-
desdenhoso da ciência e degenerado, taram fazer-se ouvir, através da pena
neste século de luzes e de perspicácia, ou da palavra, gritando nas tribunas da
na mais crassa ignorância, quer impe- Assembléia ou em manifestações de
rar sobre um sexo que tem todas as rua, mas eram escarnecidas, caricatura-

• 168 •
das e desqualiicadas. Propalava-se que de cité de 1790, questiona a exclusão das
as revolucionárias possuíam uma sen- mulheres do direito de cidadania que,
sualidade desenfreada e uma violência segundo ele, equivale a qualquer outra
incontrolável, para serem vistas como forma de discriminação, contrária ao
mulheres pouco respeitáveis e perigo- espírito emancipador da revolução.
sas. Pela primeira vez uma voz mas-
Robespierre, referindo-se às culina vem se opor à farta argumenta-
revolucionárias que haviam lutado ao ção sobre as razões “naturais” para a
seu lado na derrubada do antigo re- discriminação das mulheres. Quanto às
gime, deixa escapar a sua misoginia: justiicativas da inferioridade feminina
“As mulheres aceitam as novas idéias para excluir as mulheres, Condorcet
porque são ignorantes; espalham-nas arrolou-as e recusou-as uma a uma.
facilmente porque são levianas e lutam Frente ao argumento isiológico em
por elas muito tempo porque são tei- relação à gestação, aleitamento e mens-
mosas” (PALLA, 1985, 28). No 9 de truação, que transformava a mulher
Brumário de 1793, a Convenção de- em incapaz de exercer seus direitos
cide fechar os clubes fundados pelas cívicos, perguntava se privava-se dos
mulheres e, quatro dias depois, Olym- direitos políticos quem era acometido
pe é decapitada. A revolução inspirada de gota regulamente ou que se resfria-
em promessas libertadoras não altera o va facilmente. “Não violaram todos
estatuto das mulheres, demonstrando o princípio da igualdade dos direitos,
que as diferenças de gênero e de seus privando tranqüilamente a metade do
papéis sociais são mais profundas e gênero humano daquele de concorrer
arraigadas que as diferenças políticas, para a formação das leis, excluindo
econômicas e sociais. as mulheres do direito de cidadania?”
Assim como nem todas as mu- (CONDORCET, 1991,45).
lheres aderiram ao ideário igualitário Na discussão sobre a universa-
de Olympe de Gouges e outras revolu- lidade dos direitos do cidadão, a ques-
cionárias, nem todos os homens porta- tão central era se a Declaração dos Di-
vam-se da mesma maneira que Danton reitos do Homem aplicava-se a todos
e Robespierre. Jean Marie Condorcet, os seres humanos, seja qual for o seu
ilósofo de concepções feministas, de- sexo, religião ou raça, ou se dizia res-
nunciou todas as formas de opressão peito somente aos homens. Para sub-
sobre a mulher, considerando essencial trair às mulheres o exercício de seus
a simetria entre os sexos em relação a direitos naturais, seria preciso primeiro
todos os aspectos da vida social. Em provar que elas não pertenciam ao gê-
sua obra Sur l‘admission des femmes au droit nero humano. A posição de Condorcet

• 169 •
é clara: “Ou nenhum indivíduo da es- a moral da mulher. Rousseau referenda
pécie humana tem verdadeiros direitos, a feminilidade natural da mulher, a do-
ou todos têm os mesmos; e aquele que çura, a modéstia, as atividades caseiras
vota contra o direito do outro, seja qual e propõe o enclausuramento feminino:
for sua religião, cor ou sexo, desde logo “Só uma mulher deve mandar em casa.
abjurou os seus”. Mas deve limitar-se ao governo do-
Condorcet não conseguiu adep- méstico, não se meter com as coisas de
tos entre os homens, e muitas mulheres fora, se manter encarcerada em casa”
burguesas também não concordavam (Cf. BADINTER, 1991, 20). Discorria
com suas propostas, preferindo seguir também sobre a educação dos ilhos
a cartilha de Emílio (o novo modelo que deveriam receber carinho e cui-
de cidadão) e sua Soia, de Rousseau, o dado. Quanto às mulheres, devem ser
porta-voz da liberdade, segundo elas. O educadas na vergonha e no pudor.
que Rousseau fornecia, na verdade, era Elisabeth Badinter, em Palavras
uma exemplar legitimação burguesa à de Homens, analisa o lugar da mu-
subordinação da mulher no casamento. lher na sociedade segundo os revolu-
Com a adesão das mulheres francesas à cionários franceses, lembrando que o
proposta da relação entre Emílio e So- discurso dominante durante a Revo-
ia, Condorcet desabafa: “tenho medo lução Francesa, tributário a Rousseau,
de me indispor com elas... falo de seus triunfará nas sociedades ocidentais até
direitos, e não de seu império; podem o im da Segunda Guerra Mundial.
suspeitar de minha vontade secreta de A advertência de Rousseau de que a
diminuí-lo; e depois que Rousseau me- única chance de felicidade da mulher
receu a aprovação delas, dizendo que é abandonar o mundo exterior, sofrer
só eram feitas para cuidar de nós, e em silêncio e dedicar a vida aos seus
para nos atormentar, não devo espe- familiares teve boa acolhida entre as
rar que elas se declarem a meu favor” mulheres do mundo inteiro. A receita
(CONDORCET, 1991:19). era seguir a função que a natureza lhe
O teórico europeu da igualdade, destinou, sob pena de ser anormal e
Jean-Jacques Rousseau, estabelece que infeliz. As mulheres não exercerão os
a vida das mulheres está consagrada ao direitos cívicos, não possuirão direitos
papel doméstico. O ilósofo deine que humanos, já que a felicidade de todos,
a existência feminina materializa-se nos inclusive delas próprias, tem este pre-
olhos dos outros, (não é somente ne- ço, conclui o ilósofo.
cessário ser honesta é preciso parecer Se no século XVIII, Condorcet
honesta aos olhos dos outros) estabe- pode ser considerado como um dos
lecendo uma ligação entre a natureza e únicos revolucionários e parlamenta-

• 170 •
res a reconhecer a equivalência política editado logo após a Revolução France-
entre os sexos, no século seguinte ou- sa, determinou por mais de um século
tros homens e mulheres juntaram-se a a subordinação privada das mulheres e
esta preocupação. John Stuart Mill, em inluiu decisivamente na negação à sua
seu livro Subjection of Women (escrito a cidadania política, em todo o ocidente.
quatro mãos com sua mulher Harriet O Código Civil brasileiro edita-
Taylor), chamou a atenção para a alie- do em 1917, assumiu as diretrizes do
nação feminina: sem acesso ao poder Código napoleônico, que legitimava o
político, as mulheres não teriam meios princípio da incapacidade civil das mu-
de garantir os outros direitos funda- lheres casadas, consideradas menores
mentais para se tornarem sujeitos au- submetidas à autoridade do marido,
tônomos. desprovidas de todos os direitos polí-
Segundo Mill, a sujeição das mu- ticos. O casamento, que através de vá-
lheres tem sido tão universal quanto a rios discursos é elevado ao único ideal
diferença entre os sexos. Considerava
feminino, à única maneira de realiza-
a situação social de inferioridade das
ção feminina como esposa e mãe, é,
mulheres como um problema político
ao mesmo tempo, a prisão da mulher;
e social, descaracterizando a diferença
transforma-se na sujeição de um sexo
biológica como origem da subordina-
pelo outro. Arranjar marido signiicava
ção feminina. A sujeição das mulheres
para a mulher perder a capacidade jurí-
põe em dúvida o valor do conceito de
dica. O casamento privava-a de exercer
democracia e, para Mill, esta só será al-
os direitos pessoais e patrimoniais.
cançada através da democracia sexual,
Com o casamento a mulher re-
sobretudo na família. Perguntava ele:
baixava-se à categoria de menor, de-
“è possível denominar democracia um
sistema político que exclui as mulheres pendente do marido, mas todas que-
da cidadania, e portanto, da partici- riam casar-se, porque solteiras não
pação política?” (MILL, apud ALVA- eram bem vistas socialmente. Extremo
REZ, 1994). paradoxo de considerar-se o estado da
A desigualdade entre os sexos casada como o que oferece um maior
é historicamente construída e sua face status a uma mulher, ao mesmo tempo,
mais cruel é a violência praticada con- como tal, sua capacidade e personali-
tra a mulher. A violência contra a mu- dade jurídica, já diminuída, ica con-
lher é o atestado desrespeito aos Di- sideravelmente reduzida. As mulheres
reitos Humanos invocados por todas eram, portanto, destinadas a viverem
declarações. O Código napoleônico, como menores de idade de maneira
de 1804, encarnação da modernidade, permanente.
• 171 •
O conceito de honra é inaugu- e quando foram arquitetados, descons-
rado neste código e a honra da mulher truí-los, é uma tarefa árdua e difícil,
é um dos principais motivos alegados mas necessária. A radical desigualdade
para seu extermínio. Este conceito de entre os sexos – a violência contra a
honra é sexualmente localizado e o mulher, uma das mais claras violações
homem é o legitimador, uma vez que aos direitos humanos, por ser trans-
a honra é atribuída pela sua ausência, nacional e atravessar todas as catego-
rias como classe, raça, etnia, geração,
através da virgindade, ou pela presen-
necessita a convocação dos direitos
ça no casamento. Os crimes em defesa
humanos para combatê-la. Enquanto
da honra, são perpetrados e justiica-
a sociedade conviver com esta chaga
dos tendo como base estes códigos
cultural, ica em suspenso seu projeto
e deixou milhares de criminosos em de liberdade e emancipação.
liberdade, numa demonstração da co-
nivência do estado com a violência do- Ana Maria Colling
méstica e da persistência de uma hie-
rarquia sexual. Referências e sugestões de leitura
A incapacidade da mulher, esta-
ALVAREZ, Ana de Miguel. Como leer a John Stuart
belecida pelo Código Civil é eliminada Mill. Madrid: Júcar, 1994.
em 1962 com a edição do Estatuto da
BADINTER, Elisabeth. Palavras de Homens (1790-
Mulher Casada, mas a cultura, as men- 1793). Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1991.
talidades, durante muito tempo con- BONACCHI, Gabriela; GROPPI, Ângela (org.) O Di-
servaram o estatuto da defesa da hon- lema da Cidadania. Direitos e deveres das mulheres. São
Paulo: Unesp, 1995.
ra masculina. A Lei Maria da Penha,
CONDORCET, Sobre a admissão das mulheres ao direi-
implementada em 2006, surge como to de cidadania. In: BADINTER, Elisabeth. Palavras de
alternativa no Brasil de combater a Homens (1790-1793). Rio de janeiro: Nova Fronteira,
1991.
violência contra a mulher - questão de
GOUGES, Olympe. Declaração dos direitos da mulher e
saúde pública e violadora dos direitos da cidadã. In: BONACCHI, Gabriela; GROPPI, Ângela
humanos. A violação dos direitos hu- (org.) O Dilema da Cidadania. Direitos e deveres das mu-
lheres. São Paulo: Unesp, 1995.
manos femininos, dá-se, principalmen-
te, dentro das paredes domésticas, es- HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma
história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
paço historicamente sacralizado.
MILL, John Stuart. A Sujeição das Mulheres. São Paulo:
Os discursos que nomearam o Escala, 2006.
masculino e o feminino se inculcaram
PALLA, Maria Antônia. O essencial sobre a Condição
profundamente na cultura ocidental feminina. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
e estabeleceram a preponderância do 1985

masculino e a subordinação do femini- ROUSSEAU, Jean-Jaques. Emílio ou Da Educação. Rio


de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.
no. Abrir os discursos, mostrar como

• 172 •
SCOTT, J. La citoyenne paradoxale. Lês féministes fran- de cada termo tem linhas próprias que
çaises et lês droits de l’homme. Paris, Albin Michel, 1998.
se cruzam para formulação do termo
• “direitos sexuais e reprodutivos” em
profundo diálogo com o campo dos
Direitos sexuais direitos humanos, aqui entendido não
e reprodutivos como um dado, mas uma construção
(ARENDT, 1989.), embora o termo
Em pleno século XXI, movi- não tenha sido mencionado na Decla-
mentos feministas, movimento LGBT ração Universal dos Direitos Huma-
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, nos, em 1948. (FREEDMAN; ISAAC,
Transexuais e Transgêneros), entre 1993).
outros, defendem, gritam e publicam Já na Conferência Internacional
“Meu corpo, minhas regras!” Na dé- de Direitos Humanos, em Teerã, no
cada de 1970, o movimento feminista ano de 1968, a reprodução humana foi
airmava em conferências e campanhas objeto de atenção em função da pres-
publicitárias que “Nossos corpos nos são sobre os países menos desenvolvi-
pertencem”. Ontem e hoje, falamos, dos economicamente e suas políticas
escrevemos e reiteramos os direitos de controle demográico. Nesta con-
das mulheres decidirem o que fazer e ferência, direitos reprodutivos foi dei-
como fazer com seu próprio corpo. nido como uma prerrogativa dos pais,
Naquele momento e no atual, as mo- que “têm como direito humano básico
bilizações, as lutas e os estudos eram decidir de forma livre e responsável so-
e são em defesa dos direitos sexuais e bre o número e o espaçamento de seus
reprodutivos das mulheres. ilhos e o direito à educação adequada
Conceituar direitos sexuais e re- e informação a este respeito.” (FRE-
produtivos é uma tentativa de constru- EDMAN; ISAAC, 1993, p. 20). Deste
ção de uma vereda em um espaço em modo, o termo “direitos reprodutivos”
formação, marcado por tensões, diver- não foi deinido como autonomia das
gências e silêncios. Trata-se de histori- mulheres, e sim do casal heterossexual.
cizar a formulação deste conceito em Em 1979, a Convenção sobre a
uma leitura na perspectiva de gênero. Eliminação de todas as Formas de Dis-
Se escritos juntos, o termo “di- criminação contra a Mulher, da Orga-
reitos sexuais e reprodutivos” possui nização das Nações Unidas, defendeu
uma genealogia política especíica; se a obrigação de eliminar a discrimina-
escritos separados, “direitos reproduti- ção contra mulheres e, ao mesmo tem-
vos” e “direitos sexuais”, a genealogia po, assegurar a igualdade entre homens
e mulheres. Somente na II Conferência
• 173 •
Mundial sobre os Direitos Humanos, neomathusiano, propôs a defesa dos
em 1993, em Viena, a sexualidade das direitos humanos, do bem-estar social
mulheres, mais precisamente a elimina- e da igualdade de gênero, do planeja-
ção da violência baseada no gênero e mento familiar no âmbito da saúde e
todas as formas de abuso e exploração dos direitos sexuais e reprodutivos.
sexual, foi mencionada e discutida. (CORRÊA, 1996, p. 2).
Em outra direção, em prol aos No âmbito das discussões e das
direitos reprodutivos das mulheres, a I pressões na Conferência do Cairo, o
Conferência Internacional da Mulher, movimento gay e lésbico, que desde
realizada no México, em 1975, foi um o inal do ano 1980, envolvido na luta
importante espaço para defesa do direi- por combater a chamada epidemia da
to à autonomia reprodutiva, entendido AIDS pressionou a inclusão do ter-
como o direito à escolha reprodutiva mo “direitos sexuais”, entretanto, ao
sob a noção de controle e integridade termo permaneceu de fora, sendo re-
corporal (MATTAR, 2008). tomado na IV Conferência Mundial
No âmbito das conferências sobre a Mulher, em Pequim, em 1995,
da Organização das Nações Unidas e passando a compor o termo direitos
voltada às mulheres o avanço signii- sexuais e reprodutivos.
cativo em relação aos direitos sexuais Para Ávila (2003, p. 466), as re-
das mulheres deu-se na IV Conferên- lações sexuais enquanto relações so-
cia Mundial sobre Mulheres, realizada ciais no âmbito da cidadania, “colocam
em Beijing (Pequim) em 1995, quando a heterossexualidade e a homossexuali-
os direitos reprodutivos foram incor- dade como práticas sexuais igualmente
poradas nas discussões sobre direitos livres” no plano da dignidade humana.
humanos (PIOVESAN, 2003). O controle sobre a própria sexualida-
Contudo, foi na Conferência In- de, incluindo a saúde sexual e reprodu-
ternacional sobre População e Desen- tiva, e a decisão livre, autônoma, sem
volvimento das Nações Unidas, reali- estar sujeita à qualquer forma de coer-
zada na cidade do Cairo, no Egito, de ção, de discriminação ou de violência,
05 a 13 de setembro de 1994, que teve é entendido como direito humano das
por objetivo discutir temas relaciona- mulheres.
dos à demograia e economia, que o Apesar do conceito direitos se-
termo “direitos sexuais e reproduti- xuais e reprodutivos ganhar notorie-
vos” ganhou notoriedade. Ao operar dade a partir da Conferência do Cai-
uma mudança de paradigma, a Confe- ro, o movimento feminista reunido
rência do Cairo na tentativa de superar na Conferência Internacional sobre
as políticas populacionais, alinhadas ao Mulher e Saúde, em Amsterdã, 1984,

• 174 •
usou o termo “direitos reprodutivos” e fundamental pressão para utilização
nas campanhas em prol da autode- do termo “direitos sexuais e reproduti-
terminação reprodutiva das mulheres. vos”, bem como para conceituação do
Anos antes, em 1979, na fundação da mesmo no âmbito do direito das mu-
Rede Nacional pelos Direitos Repro- lheres decidirem sobre seu corpo, in-
dutivos, nos Estados Unidos, o termo cluindo as campanhas para descrimina-
“direitos reprodutivos” teve visibilida- lização do aborto, cabendo ao Estado
de e integrou campanhas em defesa prover as condições para as mulheres
dos direitos reprodutivos, sendo tema decidirem de forma livre e autônoma.
central do movimento feminista e gay Para Corrêa e Petchesky (1996)
nos anos 1970. é preciso pensar os “direitos sexuais
Nas lutas do movimento femi- e reprodutivos em termos de poder e
nista norte-americano, o termo per- recursos”. O poder é compreendido
mitia ampla crítica à concepção de como “tomar decisões com base em
maternidade como dever das mulhe- informações seguras sobre a própria
res, fortalecia a luta pelo direito de de- fecundidade, gravidez, educação dos
cidir sobre o aborto e formas e usos ilhos, saúde ginecológica e atividade
dos anticonceptivos. “Nossos corpos sexual; e recursos para levar a cabo
nos pertencem” tornou-se palavra de tais decisões de forma segura.” (COR-
ordem do movimento feminista dos RÊA; PETCHESKY, 1994, p. 149.)
anos 1970. Este slogan evidenciou o Neste sentido, “o corpo existe em um
reconhecimento do corpo como lugar universo socialmente mediado.”
primeiro da existência e a reapropria- No Brasil, nos anos 1970, sob
ção do corpo feminino. o Regime Ditatorial Civil-Militar, que
Trata-se, portanto, da formu- cerceava os direitos políticos e as lutas
lação de um conceito fora da alçada pelos direitos sociais, o tema da repro-
das conferências da ONU, que, por dução foi atrelado à questão da saúde
sua vez, passou a integrar o termo, em da mulher, muito embora o movimen-
função da presença e das pressões do to feminista no Brasil tenha, desde
movimento feminista e do movimento os anos 1960, a liberdade sexual das
gay nas conferências sobre população, mulheres como bandeira de luta (PE-
sobre mulheres e direitos humanos DRO, 2003).
quanto ao direito à autodeterminação. No Brasil, o Programa de Assis-
A presença e a luta do movimen- tência Integral à Saúde da Mulher, cria-
to feminista no âmbito das conferên- do em 1983, estabeleceu política pú-
cias organizadas pela Organização das blica para a saúde integral da mulher,
Nações Unidas exerceram importante entendida como saúde reprodutiva. A

• 175 •
questão da concepção, do exercício da direitos sexuais e reprodutivos, por
maternidade e das novas tecnologias ativistas feministas, o Conselho Nacio-
reprodutivas, incluindo a esterilização nal dos Direitos da Mulher, criado em
de mulheres, foram pautas discutidas 1985, e setores religiosos, entre eles a
tantos nas políticas públicas quanto na Igreja Católica (PITANGUY, 1999).
mídia. Ainda em 2004, a “Política Na-
Nesta programa, houve a inclu- cional de Atenção Integral à Saúde da
são dos homens e da noção de saúde Mulher” visava a promoção da melho-
sexual, o que é um avanço para os di- ria das condições de vida e saúde das
reitos sexuais e reprodutivos na pers- mulheres e incluía a distribuição de an-
pectiva de gênero. As políticas públi- ticoncepcional, a atenção humanizada
cas para promover os direitos sexuais obstétrica, neonatal e ao abortamento
e reprodutivos seguiram de perto a e redes de apoio contra a violência em
questão da contracepção, esterilização, mulheres são avanços. Contudo, apesar
aborto e assistência à saúde. Mas, os da defesa dos direitos iguais para mu-
estudos recentes e polêmicas sobre o lheres, só recentemente, as mulheres
aborto mostram que a integralidade e a das classes populares, as mulheres ne-
equidade da atenção, enquanto princí- gras, as mulheres indígenas, as mulhe-
pios da política de saúde, que integra- res do campo, etc, passaram a alvos das
políticas públicas de atenção à saúde.
ram o Programa de Assistência, imple-
As múltiplas tensões que per-
mentado ao longo dos anos 1990, não
passam este território conceitual impli-
foram exitosas.
cam retirar o conceito do campo indi-
Defender os postulados dos
vidualista (CORREA; PETCHESKY,
direitos reprodutivos seja na ótica fe-
1996) para colocá-lo no campo do
minista, seja na ótica da políticas po-
poder e dos recursos, ou seja, trazer
pulacionais, é assumir “um confronto
o debate do direito à reprodução, à
político acirrado que se situa nos cam-
sexualidade livre e sem qualquer tipo
pos da ética, da moral e das relações de
discriminação para o campo dos direi-
classe, gênero e raça” (ÁVILA, 1993,
tos humanos. Trata-se de discutir e de
p. 387).
defender os direitos das mulheres de
No Brasil da redemocratização,
decidirem sobre seu corpo tendo as
luta ferrenha icou também eviden-
condições para tomada de decisão de
ciada na Assembleia Nacional Consti-
forma livre e autônoma e assim viver
tuinte em 1987, quando a “Carta das
sua sexualidade com prazer.
Mulheres aos Constituintes” explicitou
Na trajetória do conceito “direi-
as contendas acerca da deinição dos
tos sexuais e reprodutivos”, ao longo

• 176 •
do século XX, a defesa dos direitos FREEDMAN, L.P. e ISAACS, S.L. Human Rights and
Reproductive Choice. Studies in Family Planning, v. 24,
reprodutivos e sexuais, enquanto “uma n. 1 p. 18-30, 1993.
ideia construída na modernidade, a
MATTAR, Laura Davis. Reconhecimento jurídico dos
partir da prática política das mulheres direitos sexuais: uma análise comparativa com os direitos
em torno de sua demanda na esfera reprodutivos. Sur, Rev. int. direitos human., São Paulo ,
v. 5, n. 8, June 2008.
reprodutiva” (ÁVILA, 1993, p. 382),
trouxe para o campo político a discus- PEDRO, Joana Maria. A experiência com contraceptivos
no Brasil: uma questão de geração. Revista Brasileira de
são da sexualidade e reprodução, mas História. São Paulo, v. 23, nº 45, p. 239-260 – 2003.
não abriu mão do campo da moral ain-
PIOVESAN, F. Temas de Direitos Humanos, 2 a ed., São
da dominado pelas religiões cristãs. Paulo: Max Limonad, p. 221-235, 2003.
Portanto, apesar das conquistas PITANGUY, Jacqueline. O Movimento Nacional e In-
pontuais em direção à vivência plena ternacional de Saúde e Direitos Reprodutivos In:GIF-
FIN, Karen (Org.) Questões da saúde reprodutiva. Rio
dos direitos sexuais e reprodutivos pe- de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.
las mulheres, é preciso destacar que
outros sujeitos aderiram à luta, como o Sugestões de leitura
movimento LGBT, pondo em xeque as ÁVILA, Maria Betânia. Modernidade e Cidadania Re-
deinições de direitos humanos ilumi- produtiva. Revista Estudos Feministas, n.2, 1993, p.382.

nistas e limitações do termo “direitos •


sexuais e reprodutivos” das Conferên-
cias da ONU, dos movimentos femi- Divórcio
nistas, e, por outro lado, fortalecendo
a discussão pela liberdade sexual e as Divórcio: do latim divortium,
mobilizações por políticas públicas em derivado de divertĕre, ou “separar-se”.
favor dos direitos humanos e da cons- Nas representações mais recorrentes
trução de relações de gênero livres do na cultura ocidental, a palavra Divór-
patriarcalismo. cio remete ao ato de separação entre
cônjuges, em cujo signiicado está em-
Paula Faustino Sampaio butido o rompimento legal e deinitivo
Referências do vínculo de casamento civil, um con-
trato que ixa os direitos e deveres do
ÁVILA, M. B. Direitos Sexuais e Reprodutivos: desaios casal e regulamentados por Leis de um
para as políticas de saúde. In: Cadernos de Saúde Pública,
Rio de Janeiro, 19 (Sup.2):S465-S469, 2003.
determinado Estado.
Em todas as culturas, a união
CORREA, Sonia; PETCHESKY, Rosalind. Direitos
sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. Phy- entre pessoas de sexo diferentes, e do
sis, Rio de Janeiro , v. 6, n. 1-2, 1996. Available from mesmo sexo mais contemporanea-
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0103-73311996000100008&lng=en&nrm=iso>. ac- mente, bem como para desfazer desta
cess on 16 Feb. 2015.http://dx.doi.org/10.1590/S0103- condição civil, tem sido alvo de discur-
73311996000100008.

• 177 •
sos, regulamentos e leis, e/ou vividas gundo este Código, o casamento era um
nas práticas consuetudinárias. O pro- contrato desigual, exigindo obediência
cesso legal de divórcio pode envolver da mulher ao marido e concedendo-lhe
questões como atribuição de pensão o divórcio apenas no caso de este levar
de alimentos, regulação de casa de mo- sua concubina ao domicílio conjugal.
rada de família, as formas de partilha A Igreja exercia poder e inluência no
de bens, herança, regulação de poderes Império, tanto que em 1827 um De-
paternal e maternal, guarda de ilhos creto real irmava a obrigatoriedade
menores, regulação de pensões. das disposições do Concílio de Trento,
No Brasil colonial (1500-1822), consolidando a jurisdição eclesiástica
a família era o centro das relações, ali- nas questões matrimoniais. Em 1861,
cerçada no casamento, e seguia as leis através do Decreto 1.144, a faculdade
civis instituídas em Portugal para o de dispensar os impedimentos e a de
controle dos corpos, sob o consenti- julgar a nulidade do casamento passa
mento da Igreja, das Ordenações Ma- para a autoridade civil, que institui pu-
nuelinas e, mais tarde, das Filipinas. Às nições às uniões sem um contrato civil,
mulheres aplicavam-se normas de con- a par do costume de realizar apenas o
duta severas na cobrança de sua casti- casamento religioso. Situações de con-
dade, virtude e idelidade, vistas como litos eram comuns, e a legislação ecle-
responsáveis pela honra da família, siástica autorizava divórcios em casos
com rígido controle da Igreja Católica especiais: se um ou os dois cônjuges
sobre uniões conjugais, que exigia a in- passasse a seguir a vida religiosa; na
dissolubilidade do casamento, embora ocorrência de adultério; heresias; prá-
o concubinato fosse prática comum. ticas graves de sevícias, ou renúncia da
(DEL PRIORE, 1993). A coabitação fé católica. Ao longo do oitocentos até
de casais não precedida do sacramen- a década de 1870, solicitações de se-
to do matrimônio era (e é) considerada paração foram feitas, sobretudo, pelas
pecado, conforme estabelecido pelo esposas, dado o dote e os ‘negócios de
Concílio de Trento (1545-1563). A sa- família’, e havia casos em que a Igreja
cralização do matrimônio tem origem Católica autorizava outras núpcias, ou
na igreja cristã medieval, quando fez os “casamentos de consciência”, para
do casamento voltado apenas à repro- ins de status, honra familiar e salvar
dução, monogâmico, indissolúvel e he- almas em pecado (BRUGGER, 2005).
terossexual. Com a proclamação República
No Brasil imperial (1822-1889), (1889) e a separação Igreja e Estado,
juristas instruíam-se no Código Civil foi assinado o Decreto nº 181, em
Napoleônico, outorgado em 1804; se- 1890, instituindo o casamento civil; to-

• 178 •
davia, persistia o costume do matrimô- 2000, p. 63). Para os juristas, o divórcio
nio religioso. Outro Decreto, o de n. era uma questão de civilidade, objeto
521, ditava que o casamento civil devia de legislação própria, o que levou a
preceder o de qualquer culto, e discipli- outros projetos divorcistas em 1900 e
nava a separação de corpos quando ha- em 1908. Em 1910, foi proposto que
via provas aceitáveis como o adultério; os cônjuges que estivessem separados
sevícia ou injúria grave; abandono vo- judicialmente por mais de cinco anos
luntário do domicílio conjugal por dois pudessem requerer o divórcio, mas ve-
anos contínuos; e mútuo consentimen- tado pelo Senado.
to dos cônjuges se casados há mais de O Código Civil de 1916, de
dois anos. Conigurava-se o desquite, autoria do jurista Clóvis Beviláqua,
ou a dissolução da sociedade conjugal manteve o desquite para identiicar a
com a separação dos cônjuges – de separação de corpos/cônjuges, e per-
corpos - e seus bens, sem rompimento manecendo o vínculo matrimonial. A
do vínculo matrimonial. um desquite precediam causas como
Projetos que visassem moder- o adultério, tentativa de morte, sevícia
nização/modernidade tinham eco nos ou injúria grave e abandono voluntário
anos iniciais da República. O tema em do lar conjugal (art. 317). Nas décadas
torno das uniões conjugais e divórcio seguintes, destacavam-se discursos ju-
gerava debates nos âmbitos político, i- rídicos sobre a honra sexual, base da
losóico, religioso e jurídico para o or- família e honra da nação, dentro da
denamento e civilização dos costumes, concepção positivista, com o objetivo
assunto este ventilado na Constituinte de civilizar e conscientizar no regra-
de 1891, mas excluído do texto. A pri- mento das condutas. Deiniram os cri-
meira tentativa de criação do divórcio mes contra a honra, o pudor, o abuso
no Brasil foi em 1893, apresentada à sexual, na perspectiva de estabelecer
Câmara dos Deputados, e rejeitado; o controle das condutas, como enten-
em 1896 e 1899, novas tentativas na diam ser uma nação sadia e civilizada.
Câmara e no Senado, sempre com re- A Constituição de 1934 expressou a
jeição. Embora a Constituição de 1891 retomada de poder da Igreja Católica,
tenha proclamado uma república de e os constituintes da Liga Eleitoral Ca-
cidadãos livres e iguais perante a lei, tólica (LEC) exigiram o compromisso
manteve-se a diferença entre homens e na recusa ao divórcio, sendo incluído
mulheres, mas, “as mulheres permane- artigo tornando o casamento indissolúvel,
ceram sendo ‘cidadãs inativas’, sujeitas dispositivo mantido nas Constituições
às leis republicanas e sem o direito à brasileiras de 1937, 1946, 1957 e 1969.
participação cívica”. (CAULFIELD, Em 1969, o poder militar outorgou a

• 179 •
Emenda Constitucional n. 1/69, li- com a assinatura do presidente Geisel:
mitando as votações para projetos de Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977,
divórcio com quorum de dois terços de conhecida como “Lei do Divórcio”,
senadores e de deputados. que concedeu a possibilidade de um
No início da década de 1950, novo casamento, porém, uma única
práticas sociais modiicam-se, mas per- vez. Os parlamentares pró-divórcio te-
manecia a cobrança da família-modelo ciam argumentos sobre a necessidade
centrada no pátrio-poder. Entretanto, da recondução da mulher desquitada a
o divórcio era tema recorrente no par- um novo casamento, outro lar nuclear,
lamento. O mais enfático parlamen- ao controle de outro homem, e assim
tar na defesa pela institucionalização salvaguardar sua honra, como aparece
do divórcio no Brasil foi o advogado nos argumentos de Nelson Carneiro,
Nelson Carneiro, deputado federal a especialmente na sua obra A luta pelo
partir de 1947 e senador entre 1971 e Divórcio (1977).
1985. Em 1952, propôs a retirada da O ano de 1977 icou marcado
expressão “vínculo indissolúvel” da na história do direito de família no
Constituição, e rejeitada. Nos debates e Brasil com a lei que permitiu a recom-
argumentos, a Igreja Católica mantinha posição familiar e a possibilidade de
o dogma da indissolubilidade do matri- obter nova identidade jurídica civil. As
mônio, e o divórcio como destruidor novas conigurações familiares legiti-
de família. madas pela Lei do Divórcio reletiam
Em 1975, foi apresentada o intenso movimento de novas ideias,
Emenda Constitucional nº 5, propon- desejos e visões de mundo que circu-
do a dissolução do vínculo matrimo- lavam na sociedade da época quebran-
nial após cinco anos de desquite ou do paradigmas e rompendo dogmas
sete de separação de fato; em sessão longamente estabelecidos pela moral
de 8 de maio de 1975, a emenda obte- religiosa e pela ordem liberal conser-
ria maioria de votos (222 contra 149), vadora. E, anunciava-se uma possível
porém insuicientes para atingir o quo- abertura política, lexibilizando con-
rum exigido de dois terços. Finalmen- servadorismos.
te, após longos debates e participação Todavia, para as mulheres, per-
de grupos de pressão pró e contra, a sistia a cobrança das normas de com-
Emenda Constitucional nº 9, apresen- portamento e interdições mais rígidas,
tada pelos senadores Nelson Carneiro e quando desquitadas, e depois divor-
e Accioli Filho, foi aprovada no dia 16 ciadas, sobre elas recaíam expressões
de junho de 1977, por 219 votos a fa- depreciativas como separada, desqui-
vor e 161 contra, e transformada em lei tada, mãe-solteira, delorada, desonra-

• 180 •
da, ‘amiga’, prostituta, fácil, decaída, mento civil pode ser dissolvido pelo
concubina, amante, teúda, manteúda, divórcio sem prévia separação judicial,
sirigaita, palavras dirigidas inclusive imediato, como divórcio direto. Contudo,
no interior dos tribunais. Na prática, o status civil divorciado/a somente po-
até 1977, quem casava no civil, perma- derá ser desconstituído se houver novo
necia com um vínculo jurídico para o casamento, sendo o divórcio em si, ir-
resto da vida; caso a convivência fosse reversível.
insuportável havia o desquite, que in-
Marlene de Fáveri
terrompia com os deveres conjugais e
terminava com a sociedade conjugal:
Referências e sugestões de leitura
os bens eram partilhados, separavam-
-se os corpos, mas nenhum dos dois CARNEIRO, Nelson. A luta pelo divórcio: síntese de
uma campanha em defesa da família. São Paulo: Editora
tinha proteção jurídica noutra união, Lampião, 1977.
e não havia leis que resguardassem os
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade,
direitos de união estável daqueles que modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940).
viviam juntos informalmente. Campinas, SP: Unicamp, 2000.

A Constituição de 1988 traz sig- DEL PRIORE, Mari. Ao sul do corpo: condição femini-
niicativo avanço no campo das rela- na, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. Rio
de Janeiro: José Olympio; Brasília, DF: Edumb, 1993.
ções afetivas, ampliando possibilidades
DIGIOVANNI, Rosângela. Rasuras nos álbuns de famí-
de im de vínculo conjugal pelo divór- lia: um estudo sobre separações conjugais em processos
cio, e a Lei n. 7.841, de 1989, revogou jurídicos. Campinas, 2003. Tese (Doutorado em Ciências
Sociais). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
o art. 38 da Lei do Divórcio e passou
a permitir divórcios sucessivos. Em FAVERI, Marlene de e TANAKA, Teresa Adami. Di-
vorciados, na forma da Lei: discursos jurídicos nas ações
2002, o novo Código Civil Brasileiro, judiciais de Divórcio em Florianópolis (1977-1985).
Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 18(2), maio-
além de reconhecer outras formas de -agosto/2010. p. 359-383.
constituição familiar e das uniões está-
veis, também inclui o Divórcio como •
uma forma de dissolução conjugal.
Em 2007, com a Lei n. 11.441, Docência e gênero
foi permitido requerer divórcio e sepa-
ração consensuais, por via administra- Com o im de recuperar as ar-
tiva (sem ação judicial) para casais sem ticulações entre gênero e trabalho
ilhos. Em 2009, outra lei compatibiliza docente, as pesquisas a respeito têm
o lapso temporal do divórcio realizado se dirigido principalmente a duas pro-
no estrangeiro com a sistemática cons- blemáticas: o resgate da gênese da do-
titucional. E, a partir de 2010, o casa- cência como forma de compreender as

• 181 •
transformações pelas quais a mesma solitários em sua proissão, começam a
vem passando no transcorrer dos sé- constituir uma categoria, exigindo for-
culos, em especial desde a modernida- mação especíica, o que só se concreti-
de; e o exame das características, repre- zará mais organizadamente a partir do
sentações e identidades transmitidas século XIX.
ao ofício, considerando seu processo Algumas décadas iriam se pas-
de feminização. Uma terceira proble- sar até que as mulheres não apenas se
mática é de mais recente abordagem: tornassem alunas, mas também profes-
trata-se das especiicidades da presença soras, fenômeno que data aproxima-
masculina na docência, particularmen- damente da segunda metade do século
te considerando o estado feminizado XIX e se consolida nas primeiras déca-
do ofício. das do século XX. Uma das questões
Gênese da docência: Assim, como que podemos nos fazer, e que envol-
pano de fundo é preciso dizer que em ve o tema da representação, é: de que
grande parte da vida da humanidade o forma o trabalho docente se torna um
ensino foi realizado por homens. Reto- “trabalho de mulher?” Abordarei este
mando a síntese de Nóvoa (1991), as tema, de forma mais atenta, dirigindo-
características da escola dita moderna - -me à produção brasileira.
aquela que adquire as feições que reco- Feminização da docência. Foi basi-
nhecemos até hoje -, foram amadureci- camente tendo por origem investiga-
das paulatinamente da Idade Média até ções no campo da história da educação
a Idade Moderna. Podemos dizer até que a análise sobre trabalho docente e
mesmo que o desenvolvimento da ins- gênero principia no Brasil, mais enfati-
tituição escola colabora com a produ- camente no início dos anos 1980. Po-
ção do mundo moderno, abrangendo rém, nem todas essas análises izeram
transformações na ideia de infância; na uso do conceito de gênero nessa fase.
ideia do que seria educação; e na con- Enquadradas, de maneira ampla, no
cepção sobre o local onde a educação tema “mulher e educação”, seu propó-
(agora, das crianças) deveria ocorrer sito era examinar, em todas as partes
(FERREIRA, 2006). do território nacional, o processo de
Mas é somente no inal do sé- inclusão das mulheres, primeiro, nos
culo XVIII, posteriormente às revo- bancos escolares; segundo, nos estra-
luções burguesas, que um processo dos, na condição de docentes. Come-
massivo de escolarização tem início, çou-se, assim, a tentar compreender
porque é aí que o Estado se coloca o com mais clareza as modiicações pas-
dever de ensinar. Quando isso aconte- sadas pela docência, a partir do que i-
ce, os professores (homens), até então cou conhecido como seu processo de

• 182 •
feminização. Usarei o conceito de fe- primeira escola de formação de profes-
minização sistematizado por Yannou- sores no Brasil foi criada em 1835, na
las (2011, p. 273), para quem há dois cidade de Niterói, e contava com um
enfoques que devem ser mais bem dis- diretor/professor homem e com 13
criminados: “uma perspectiva funda- alunos homens. Deste então a paulati-
mentalmente quantitativa, preocupada na, mas contundente, pressão das mu-
em descrever e mensurar o fenômeno lheres para ingresso nessas escolas foi
que denominamos como feminilização, forçando modalidades de ensino em
e uma perspectiva fundamentalmente separado até a década de 1880, quando
qualitativa, que procura compreender foi introduzido o ensino misto (VIL-
e explicar os processos, a qual deno- LELA, 2000). Isso possibilitou que
minei feminização propriamente dita”. mais mulheres pudessem formar-se e
Assim, a feminização da docên- pleitear funções docentes que foram
cia pode ser compreendida como um sendo abertas por todo o país.
processo formado por duas dimen- Outro argumento colocado re-
sões: (1) aumento massivo de pessoas fere-se à saída dos homens do ofício
do sexo feminino no ofício (feminiliza- docente de primeiras letras, em função
ção); (2) identiicação das característi- da ocupação de novos postos de traba-
cas desse ofício como eminentemente lho com maiores rendimentos, quando
femininas (feminização propriamente da expansão do sistema de produção
dita), o que inclui o valor social confe- e com a ampliação da urbanização no
rido ao mesmo. país (HYPOLITO, 1997; LOURO,
Existe uma série de causas atri- 2001). Embora muito frequentemente
buídas à feminização da docência, que citado, esse argumento parece-me ser
se retroalimentam. Argumenta-se a mais afeto às experiências relatadas na
respeito da expansão da escola estatal literatura internacional que serve de
(VIANNA, 2001), graças à Lei Geral marco aos nossos estudos, faltando,
do Ensino (1827), responsável pelas ainda, uma análise histórica mais pre-
chamadas “escolas de primeiras le- cisa no caso do Brasil, que demonstre
tras”, e ao Ato Adicional de 1834, que essa transferência. Um dos problemas
transferiu às províncias a formação de para essa análise é a limitação dos estu-
docentes e a organização de seus sis- dos estatísticos, ou dos censos, no pe-
temas de ensino (primário e secundá- ríodo referido. No entanto, se pensar-
rio). A partir daí, começou a fundação mos que a ocupação da docência pelas
de Escolas Normais para formação de mulheres já alcança 51% em 1907 e
docentes, paulatinamente ocupadas 70% em 1920, em nível nacional (DAL
por mulheres. Para ter-se uma ideia, a ROSSO, 2010) - bem antes que possa-

• 183 •
mos pensar numa ampla procura dos mesma maneira reorganizou-se o sen-
homens por vagas abertas em outros tido da escola: se tornar-se professora
setores, pelo capitalismo em desenvol- foi a oportunidade surgida para o in-
vimento -, uma hipótese a levantar tal- gresso de mulheres na esfera pública,
vez fosse que as mulheres não entram o espaço escolar, especialmente nas
porque os homens saem da docência, séries iniciais, foi ressigniicado como
mas que os homens não se voltam às vagas não tão “público”, mas como uma ex-
novas criadas, que foram ocupadas pelas mu- tensão do trabalho doméstico permiti-
lheres. do para aquelas mulheres consideradas
Em conseqüência, uma tercei- com moral sem mácula.
ra causa citada é a que vê a docência Dessa forma, o trabalho do-
como um dos locais de entrada da cente pode passar a ser entendido,
mulher no mercado de trabalho e em inclusive por quem o executa, como
outros espaços públicos (ALMEIDA, não-trabalho. Quem exerce atividades
no espaço privado não trabalha, “pro-
1998; FERREIRA, 2008; LOURO;
fessa”, “cuida”; faz o que é inerente a
2001). Quem defende essa perspectiva
sua “natureza” ou o que é resultado de
busca demonstrar que o ingresso - gra-
sua “vocação”, não o que foi adquirido
dativo, mas em grande escala - das mu-
por estudo, relexão e treinamento. Por
lheres na função de professoras não foi
conta disso, transladou-se às represen-
algo tranquilo e consensual. Foi preci-
tações a justiicativa de que foi o pro-
so muita discussão, muitas pressões e
cesso de feminização a provocar a des-
uma grande mudança nas represen-
valorização da docência, um dos mitos
tações sobre o sentido da docência e
sobre a atual situação do ofício mais
sobre quem está apto/a a ensinar, para repetidos na literatura e pormenori-
que as mulheres se instalassem na pro- zadamente contestado por Almeida
issão. (1998), Louro (2001), Vicentini (209) e
Nessa acirrada disputa, destaca- Lugli (2009), para quem o trabalho do-
da em várias pesquisas (LOURO, 2001, cente nunca foi bem remunerado nem,
TAMBARA, 2002; UEKANE, 2010), tampouco, reconhecido.
a representação de docência que se
Muitos dos estudos sobre a do-
tornou dominante é a de que poderia
cência, atualmente, têm se dedicado a
ensinar quem não é vista como supor-
averiguar como as identidades docen-
te econômico do núcleo familiar, mas
tes vêm sendo atravessadas por todas
que sabe, mais do que ninguém, como
“cuidar”: a mulher, cuja “natureza” as representações mencionadas: sobre
teria sido dotada dessa habilidade. Da a natureza desse trabalho, sobre ser

• 184 •
mulher professora e, igualmente, sobre sociedade, ora procuram imprimir re-
ser homem professor. lações mais igualitárias em suas vidas e
Homens na docência. As pesquisas negar, ainda que parcialmente, alguns
sobre os homens na docência – calca- valores tradicionais de masculinidade e
das ou não na concepção de masculini- feminilidade”. Por outra parte, Louro
dades (CONNELL, 1995) – são muito (1997) indica que a escola é marcada
mais recentes e em menor número do tanto por características masculinas
que aquelas realizadas sobre a femini- quanto femininas, dado que o cuidado
zação. Em compensação, trazem insi- convive com o desenvolvimento do
ghts muito interessantes ao pleitear que conhecimento, tradicionalmente ligado
identidades femininas e masculinas são ao mundo masculino.
construídas em cenários conjuntos e Ademais dessas autoras, há ou-
que, portanto – repetindo Scott (1995) tras a desenvolver tais ideias, das quais
–, qualquer informação sobre os ho- vou citar Catani; Bueno; Sousa (1998);
mens é informação sobre as mulheres, Demartini e Antunes (1993); Ferreira;
e vice-versa. Klumb (2012); e Paula (2005). Basica-
É nesse sentido que Carvalho mente o que fazem é examinar as dife-
(1998) destaca a importância de re- rentes trajetórias de homens e mulhe-
conhecer os locais de trabalho como res que se tornam docentes, buscando
gendrados, gerando signiicados e averiguar como o gênero se expressa
identidades de gênero e construin- nas mesmas, bem como as representa-
do relações e hierarquias de trabalho. ções de gênero de uns e outras. Air-
Homens e mulheres, então, trazem mam que homens e mulheres chegam
à escola suas representações sobre o à docência por caminhos diferentes,
que lhes compete proissionalmente, as mulheres precocemente - pois a
reproduzindo e/ou reinterpretando docência é, para elas, destino social -,
essas supostas funções, às vezes alte- enquanto os homens ingressam nela
rando as concepções predominantes. tardiamente, por falta de melhor alter-
Para Vianna (2001, p. 102-103): “pro- nativa ou porque, para eles, isso impli-
fessores e professoras mostram as ten- cou em real melhoria social. Por esse
sões e contradições que permeiam suas motivo, as pressões que esses recebem
por ascender na carreira são maiores,
vidas pessoais e proissionais sob a
deixando o trabalho em sala de aula e
ótica das relações de gênero. Ora refe-
dedicando-se a cargos de direção no
rendam papéis tradicionais reservados
sistema educacional como um todo.
aos homens e às mulheres em nossa

• 185 •
Gênero e docência. Em síntese, CATANI, Denice, BUENO, Belmira; SOUSA, Cynthia.
Os homens e o magistério; as vozes masculinas nas narra-
considerar o trabalho docente uma ne- tivas de formação. In: BUENO, B., CATANI, D.; SOU-
SA, C. (org.). A vida e o ofício dos professores; formação
cessidade social objetiva colabora para contínua, autobiograia e pesquisa em colaboração. São
questionar uma identidade calcada no Paulo:Escrituras, 1998. p.45-64.

caráter vocacional das mulheres à do- CONNELL, Robert W. Políticas da masculinidade. Edu-
cação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 185-206,
cência. Mas, para isso, um uso mais jul./dez. 1995.
preciso do conceito de gênero se faz
DAL ROSSO, Sadi. Condições estruturais de emergência
necessário. Sobre isso Vianna (2001, do associativismo e sindicalismo do setor de educação.
p. 88) pretende ver mais do que sim- Leitura a partir de dados censitários brasileiros. In: SE-
MINÁRIO DA REDE DE PESQUISADORES SO-
plesmente a “mera presença do sexo BRE ASSOCIATIVISMO E SINDICALISMO DOS
TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO, 2., 2010, Rio
feminino” na docência e indica vários de Janeiro. Anais. Rio de Janeiro: IUPERJ/UFRJ/UnB,
aspectos a serem investigados, como a 2010. p. 1-19. Disponível em http://nupet.iesp.uerj.br/
rede/seminario2010.htm.
formação, o currículo e a organização
docente. DEMARTINI, Zeila de B. F.; ANTUNES, Fátima F.
Magistério primário: proissão feminina, carreira mascu-
De fato, uma parcela dos estu- lina. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 86, p. 5-14,
dos sobre o trabalho docente consi- ago. 1993.

dera que uma análise que faz uso do FERREIRA, Márcia Ondina V. Desconforto e invisibili-
dade: representações sobre relações de gênero entre sindi-
gênero poderia revelar os sentidos das calistas docentes. Educação em Revista, Belo Horizonte,
modiicações que o ofício vem sofren- n. 47, p. 15-40, jun./2008. Disponível em: http://www.
scielo.br/pdf/edur/n47/02.pdf
do, inluenciando a questão salarial, as
justiicativas para a diminuição da au- ______. Somos todos trabalhadores em Educação? Re-
lexões sobre identidades docentes desde a perspectiva de
tonomia no trabalho, a perda de reco- sindicalistas. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n.
nhecimento da importância social da 2, p. 225-240, maio/ago. 2006. Disponível em: http://
www.scielo.br/pdf/ep/v32n2/a02v32n2.pdf
atividade, e uma possível introjeção,
______; KLUMB, Márcia C. V. Vozes morais e represen-
por parte das mulheres e dos homens tações de gênero entre sindicalistas docentes. In: SILVA,
professores, do papel secundário de Márcia A.; MEIRA, Mirela R. (orgs.). Mulheres trabalha-
doras; olhares sobre fazeres femininos. Pelotas: Editora da
seu trabalho. UFPel, 2012. p. 37-65.

HYPOLITO, Álvaro. Trabalho docente, classe social e


Márcia Ondina Vieira Ferreira relações de gênero. Campinas: Papirus, 1997.

Referências LOURO, Guacira. Mulheres na sala de aula. In: DEL


PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil.
5. ed. São Paulo: UNESP/Contexto, 2001. p. 443-481.
ALMEIDA, Jane. Mulher e educação: a paixão pelo pos-
sível. São Paulo: UNESP, 1998. ______. O gênero da docência. In: ______. Gênero, se-
xualidade e educação. Petrópolis, Vozes/CNTE, 1997. p.
CARVALHO, Marília. Vozes masculinas numa proissão 88-109.
feminina: o que têm a dizer os professores. Estudos Femi-
nistas, Florianópolis, v. 6, n. 2, p. 406-422, 1998. NÓVOA, António. Para o estudo sócio-histórico da gê-
nese e desenvolvimento da proissão docente. Teoria &
Educação, Porto Alegre, n. 4, p. 109-139, 1991.

• 186 •
PAULA, Cláudia R. Trajetórias e narrativas de homens
negros no magistério. In: OLIVEIRA, Iolanda de; SILVA,
Petronilha; PINTO, Regina (orgs.). Negro e educação;
escola, identidades, cultura e políticas públicas. São Pau-
lo: Ação Educativa/ANPEd, 2005. p. 118-132.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise his-


tórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2,
p. 71-99, jul./dez. 1995.

TAMBARA, Elomar. Proissionalização, escola normal,


feminização e feminilização: magistério sul-rio-grandense
de instrução pública – 1880/1935. In: HYPOLITO, Ál-
varo; VIEIRA, Jarbas; GARCIA, Maria Manuela (orgs.).
Trabalho docente: formação e dentidades. Pelotas: Seiva,
2002. p. 67-97.

UEKANE, Marina Natsume. “Mulheres na sala de aula”:


um estudo acerca do processo de feminização do magis-
tério primário na Corte Imperial (1854-1888). Gênero,
Niterói, v. 11, n. 1, p. 35-64, 2. sem. 2010. Disponível
em: http://www.revistagenero.uf.br/index.php/revista-
genero/article/view/59/37

VIANNA, Claudia. O sexo e o gênero da docência. Ca-


dernos Pagu, n. 17/18, p. 81-103, 2001/02.

VICENTINI, Paula; LUGLI, Rosário. História da pro-


issão docente no Brasil: representações em disputa. São
Paulo: Cortez, 2009.

VILLELA, Heloísa. O mestre-escola e a professora. In:


LOPES, Y.; FARIA FILHO, L. e VEIGA, C. (orgs.). 500
anos de educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Autên-
tica, 2000. p. 95-134.

YANNOULAS, Silvia. Feminização ou feminilização?


Apontamentos em torno de uma categoria. Temporalis,
Brasília, ano 11, n. 22, p. 271-292, jul./dez. 2011.

• 187 •
Economia solidária

A Economia Solidária apre-


senta uma memória sócio-histórica
e econômica pautada na experiência
coletiva com o objetivo de superação
de desigualdades e conquista de uma
vida digna e autônoma. Para pensá-la
na perspectiva de gênero, pode-se dizer
que ela é estruturada por princípios de
organização que remontam ao século
XVIII, quando grupos de mulheres
questionavam a alta de valores de pro-
dutos, especialmente, da farinha que se
constituía na principal matéria prima
para o feitio de pão.
Esse contexto histórico foi re-
gistrado por Thompson ao apresentar
(mesmo de modo pouco analítico e
sem expor a participação das mulheres
na constituição das classes trabalhado-
ras) as resistências de mulheres, que
além de realizarem motins nas portas
de padarias e baterem panelas, elas
trancavam os estábulos e impediam os
homens de venderem a farinha, por-
tanto, questionavam a carestia do pão,
principal produto alimentício da época.
Formas de resistência seme-
lhantes são registradas na obra de Mi-
chelle Perrot, já com uma perspectiva
feminista da “mulher popular rebelde”
(inal do século XVIII e século XIX).
A autora substitui a “[...] representação
dominante de uma dona-de-casa insig-
niicante, negligenciada e negligenciá-
vel, oprimida e humilhada, pela de uma

• 188 •
“mulher popular rebelde”, ativa, resis- atualmente estrutura princípios de or-
tente, guardiã das subsistências, admi- ganização coletiva e solidária.
nistradora do orçamento familiar, no A economia solidária faz parte
cento do espaço urbano.” (PERROT, desse imaginário social e, na contem-
2006, p. 172). poraneidade, diante da intensiicação
As mulheres segundo a autora: do modo capitalista de produção e, ao
“[...] desdobram uma extrema enge- mesmo tempo, com a ampliação da de-
nhosidade para encontrar nos múl- mocracia participativa, grupos em con-
tiplos comércios das cidades, onde dições econômica e social vulneráveis
conhecem todos os cantos, recursos podem se organizar para alcançar con-
complementares que empregam para dições dignas para viverem, em cam-
completar o orçamento da família ou pos econômico, social e cultural.
lhe proporcionar alguns pequenos pra- Por conseguinte, a economia so-
zeres, ou que economizam para os dias lidária apresenta outra lógica e outros
difíceis que vêm periodicamente com princípios, que vão além da simples
os meses parados. Em tempos de crise capacidade de produção e comerciali-
ou de guerra, essa contribuição mar- zação de bens e produtos. A produção
ginal se torna essencial. As mulheres e o consumo voltam-se para a elevação
então se ativam em todos os sentidos” da qualidade de vida estendida ampla-
(PERROT, 2006, p. 190). mente na sociedade, alcançando gru-
Essa memória histórica alimen- pos diversos.
ta uma compreensão da economia so- A produção deve ser acessível a
lidária com viés feminista e de gênero quem produz e a todas as pessoas que
que rompe com a lógica capitalista direta ou indiretamente participam do
masculina de organização social ao va- processo, por exemplo, a comunidade
lorizar as práticas em prol de qualida- onde se efetiva o processo produtivo
de de vida e incentivar a organização deve ter capacidade econômica para a
coletiva, a solidariedade, a ousadia, o aquisição de produtos resultantes do
questionamento da ordem estabeleci- trabalho do grupo, ou seja, os efeitos
da, dentre outros. retornam às pessoas, empoderando-as
A presença dessas mulheres por perceberem sua força produtiva,
nesses tipos de movimentos foi emble- organizativa e criativa. Isso revela que
mática no Brasil em décadas recentes, a economia solidária está intimamente
tanto no campo quanto nas cidades. relacionada à luta pela autodetermi-
Vivências primordiais para a consti- nação dos povos, ao reconhecimento
tuição de uma experiência rebelde que do bem viver e se expressa cotidiana-
se estendeu nos anos subsequentes e, mente nas “lutas” das comunidades

• 189 •
tradicionais contra a mercantilização dos de viver e se apresentam “abertas”
da vida, em favor dos bens comuns, da aos riscos e às ousadias para a ruptura
gestão comunitária e da reciprocidade. dessa lógica.
No Brasil, o surgimento da Além desses fatores, as desigual-
economia solidária pode ser indicado dades de gênero no mundo do traba-
a partir dos anos de 1980, de modo lho persistem, assim como a divisão
pouco organizado, com impulso signi- sexual do trabalho (trabalho remunera-
icativo nos anos de 1990, originária de do e trabalho doméstico não remune-
ampliação de crises econômicas deste rado). Há ampliação da participação de
período e de organização sindicais em mulheres no mercado de trabalho, en-
prol da retomada de empresas em cri- tretanto, os salários ainda são inferio-
ses, objetivando recuperar postos de res aos dos homens, as atividades são
trabalho. (SINGER, 2000). A partir de vulneráveis e precárias, estão em maior
então, o movimento pelo fortalecimen- número nas atividades informais e as
to da Economia Solidária se amplia e taxas de desemprego são maiores entre
inclusive, conquista outros setores so- elas. Essa realidade se mantém porque
ciais, como as universidades, lideranças as relações sociais de gênero continu-
no processo de incubação de empreen- am orientadas por poderes masculinos
dimentos econômicos solidários. que perpassam instituições e legisla-
As mulheres são protagonistas ções, há o predomínio de assimetrias
da Economia Solidária por vários mo- e hierarquias de gênero, fortalecedoras
tivos, dentre eles, por estarem direta- de divisões sexuais do trabalho, do sa-
mente ligadas às condições de escassez, ber e do poder.
à falta de alimentos e de roupas, o não A Economia Solidária com in-
acesso à moradia, à educação, à saúde. terface aos estudos de gênero propõe
Elas são abonadoras diretas em gerir a superação dessas desigualdades e traz
a vida da família e cuidar das crianças, como princípio fundante, a autonomia
além da feitura de alimentos. Não está- e emancipação de mulheres. É, por-
-se concordando com esta condição/ tanto, uma inspiração teórica e meto-
responsabilização feminina por tais dológica para a constituição de outros
tarefas, entretanto, historicamente as modelos de produção e de renda com
mulheres são as principais responsá- vistas à qualidade de vida. Está conso-
veis pela reprodução ampliada da vida. lidada em perspectivas criativas de tra-
A escassez e a perspectiva de balho nas dimensões do próprio corpo,
transformação são dimensões do coti- da subjetividade, da emoção e do em-
diano feminino, por isso, as mulheres poderamento. Desta sorte, questiona
buscam constantemente melhores mo- os modelos gestionários capitalistas/

• 190 •
masculinos dominantes, que enfraque- do/a ser humano/a, valorização da
cem e, em alguns casos, impossibilitam diversidade, emancipação, valorização
as potencialidades de emancipação e do saber local, valorização da apren-
de autogestão de mulheres, que espe- dizagem, justiça social na produção e
ram instituir suas práticas sociais e al- cuidado com o meio ambiente. (SE-
cançar uma vida mais digna. NAES, 2007, p. 32-33).
Neste sentido, a experiência da Em todo o Brasil, de norte a sul,
economia solidária abre um leque de grupos de mulheres participam de re-
probabilidades, e de possíveis histó- des solidárias, demonstram que diante
ricos, valoriza as histórias de vida, os desta experiência, pode ocorrer inclu-
conhecimentos e as práticas emanci- são social e seu empoderamento, na
padoras e solidárias das mulheres, des- medida em que se inserem no mercado
qualiicados historicamente. Os princí- de outro modo, de uma forma quali-
pios da economia solidária permitem, tativa, Pautam-se no trabalho coletivo,
portanto, a constituição de diálogo nas discussões, no processo de forma-
educativo construído a partir do ponto ção para o trabalho e, questionam a
de vista da cultura das mulheres en- hegemonia capitalista e as hierarquias
volvidas, que lideram neste diálogo, a de gênero.
busca por unidade produtiva e criativa, Essas redes permitem que as
além de emancipação social, política e mulheres produzam, conversem, so-
econômica e, prioritariamente, a equi- cializem experiência, apresentem-se
dade de gênero no campo do trabalho. como lideranças e exercitem a capa-
As mulheres formam grupos cidade de questionamentos que ex-
potenciais para o desenvolvimento da trapola a condição econômica. Elas
economia solidária porque, diante das voltam-se para sua subjetividade que
necessidades radicais de sobrevivência, se fortalece por meio da autonomia
elas criam saberes e fazeres, com a pro- inanceira, do acesso a conhecimentos
dução e comercialização informais de e técnicas produtivas, enim, pensam
diversos produtos para o aumento da sua condição no mundo e as formas de
renda familiar. Tais saberes e fazeres transformar tal condição.
são incorporados e recriados pela eco-
nomia solidária, ao tornarem-se produ- Marisa de Fátima Lomba de Farias
ção e comercialização, atividades ains
de empreendimentos econômicos so- Referências
lidários pautados nos seus princípios ECONOMIA SOLIDÁRIA, outra economia acontece.
essenciais, quais sejam: autogestão, Cartilha da Campanha Nacional de Mobilização Social.
Brasília: MTE, SENAES, FBES, 2007.
democracia, cooperação, centralidade

• 191 •
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, e criação de criança, e um sentido abs-
mulheres e prisioneiros. 6 ed. Tradução de Denise Bott-
mann. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 2006. trato, relacionado ao ato de formar ou
instruir. O termo educar é incorpora-
SINGER, P. Economia solidária: um modo de produção e
distribuição. In: SINGER, Paul; SOUZA, André. (Orgs.) do tardiamente à língua portuguesa, a
A Economia solidária no Brasil. A autogestão como res- partir do século XVII, pois até então o
posta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2000.
vocábulo criar traduzia as atividades de
THOMPSON, Edward P. Costumes em comum: estu- ensino: ensinar a criança a comer, en-
dos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1998. sinar a criança a beber. Atualmente, o
termo não se refere somente à criação
Sugestões de leitura de crianças, pois seu campo semântico
abrange os âmbitos físico e intelectual.
BRASIL. Atlas da Economia Solidária no Brasil. Brasília:
SENAES/MTE, 2004.
Em sua obra Sobre a Pedago-
gia, que reúne um conjunto de aulas
CULTI, Maria Nelzida. Mulheres na economia solidária.
São Paulo: UNITRABALHO, 2004.
ministradas em 1776/77, 1783/84 e
1786/87, Immanuel Kant explica que
GAIGER, Luiz Inácio G. (org.). Sentidos e Experiências
da Economia Solidária no Brasil. Porto Alegre: Editora a educação compreende o cuidado, a
da UFRGS, 2004. disciplina e a instrução e é pela ação
SANTOS, BOAVENTURA DE SOUSA. Conhecimen- dessas duas últimas que se dá a forma-
to Prudente para uma Vida Decente. São Paulo: Cortez, ção (Bildung). “O homem não pode se
2003. 821p.
tornar um verdadeiro homem senão
SINGER, Paul. Introdução à economia solidária. São pela educação. Ele é aquilo que a edu-
Paulo, SP: Fundação Perseu Abramo, 2010.
cação faz dele” (KANT, 2002, p.15).
• Dessa forma, a educação pode contri-
buir para conduzir o ser humano a um
Educação estado melhor, provocando um deslo-
camento entre o que o ser humano é
A palavra educação provém do para o que ele pode ser.
latim educatio, que tem o sentido de criar Dois séculos mais tarde, Han-
ou de nutrir, cultura, cultivo. Designa nah Arendt, em sua obra Entre o Passa-
um ato, um processo ou um efeito. O do e o Futuro, abordará o tema da edu-
termo educar também possui origem cação. Para a autora, educar signiica
latina e seu signiicado está igualmen- colocar em relação, pois o ser humano
te circunscrito ao sentido de criar ou deve estabelecer relações com outros
alimentar. Segundo Luis Castello e seres humanos para assumir a respon-
Claudia Mársico (2007), podemos di- sabilidade coletiva pelo mundo. “Face
zer que o termo possui um sentido bá- à criança é como se ele [o professor]
sico, ligado ao âmbito da alimentação fosse um representante de todos os

• 192 •
habitantes adultos, apontando os de- dade criou e organizou para si, como
talhes e dizendo à criança: - “Isso é o sentido” (VALLE, 2009, p. 143). Para
nosso mundo” (ARENDT, 2011, p. a autora, entretanto, tal acepção, seria
239). Nessa perspectiva, a educação é muito genérica e careceria de especii-
uma porta de entrada para o mundo, cidade, por isso ela argumenta que no
pois tem a tarefa de acolher os recém- sentido que a “aspiração democráti-
-chegados ao mundo que os antecede e ca lhe concede, a ‘educação’ é prática
introduzi-los nesse mundo, o qual tem ‘deliberada’, submetida a permanente
uma história, uma cultura, modos de questionamento, e conduzida em rela-
pensamento e modos de vida comuns. ção a inalidades coletivamente institu-
Educação signiica, pois, o ato ídas [e se] faz acompanhar por uma in-
ou processo de educar ou educar-se tensa atividade investigativa, de exame
no mundo e inclui o conhecimento e e de relexão” denominada de teoria
desenvolvimento resultantes desse ato educacional (VALLE, 2009, p. 144).
ou processo. Nesse sentido, o termo Concordando com esse argu-
educar reúne dois grupos de signiica- mento, mas sem abrir mão da amplitu-
dos, associados aos termos educare – de de e da sutileza delineadas na primeira
fora para dentro do indivíduo, com o parte do conceito enunciado por Valle
sentido de orientar, levá-lo do ponto (2009), aproximamo-nos de autores e
em que se encontra para outro que se autoras do campo dos estudos cultu-
deseja alcançar – e educere – de dentro rais, como Stuart Hall (1997), do cam-
para fora, no sentido de promover as po dos estudos de gênero, como Gua-
potencialidades que o indivíduo pos- cira Lopes Louro (2010) e do campo
sui. dos estudos de currículo, como Tomaz
Lilian Valle (2009) explica que, Tadeu da Silva (2012), para assumir
em sua acepção mais genérica, o ato a noção de que educação envolve o
ou processo de educar remete a uma conjunto de processos pelos quais in-
atividade tão antiga quanto a própria divíduos são transformados e/ou se
instituição de uma sociedade organi- transformam em sujeitos de uma cul-
zada, pois corresponderia a uma prá- tura. Nessa perspectiva, a educação se
tica que responde pelas necessidades dá em diferentes espaços do mundo
mais elementares de conservação e de contemporâneo, sendo a escola ape-
reprodução do modo de ser de cada nas um deles. Tornar-se sujeito de uma
sociedade e implica “processos alta- cultura, por meio da educação, envolve
mente complexos de preservação [e complexos processos de ensino e de
transformação] da cultura, dos hábitos, aprendizagem que, contemporanea-
valores, comportamentos que a socie- mente, derivam de uma ininidade de

• 193 •
instituições “pedagógicas” (onde estão ações como transmitir, informar, ofer-
incluídos/as, por exemplo, a literatu- tar, apresentar, expor, explicar. Trata-
ra, o cinema, a música, a televisão e -se, em certa medida, de um processo
as propagandas). Tais processos po- que busca conduzir condutas, produzir
dem, grosso modo, ser divididos em determinadas práticas, incluir e excluir,
intencionais e não intencionais, sendo hierarquizar e normalizar os sujeitos:
que quase tudo que deinimos como quem sabe e quem não sabe, quem se-
educação enquanto prática especíica gue e quem não segue as regras, quem
e deliberada e, também, o que se pri- está dentro e quem está fora de deter-
vilegia discutir como objeto próprio minados padrões de normalidade. O
desse campo de conhecimento pode aprender, por sua vez, seria derivado de
ser incluído nessa categoria de proces- muitos processos que implicam abrir-
sos educativos intencionais. Os pro- -se à experiência ou a uma coisa qual-
cessos educativos não intencionais têm quer que desperte o desejo. Félix Guat-
sido muito pouco reconhecidos, visi- tari e Suely Rolnik (2000) explicam que
bilizados e problematizados, mas sua aprender supõe criar possibilidades de
importância tem sido ressaltada por singularização entendida como a dife-
estudos e pesquisas que se ocupam, rença, que resulta em nós e que desfaz
por exemplo, dos temas de gênero e o nós, abrindo-nos para outros modos
de sexualidade. Tem-se destacado que de ser e de estar no mundo, bifurcando
a produção das diferenças de gênero essa busca pelo homogêneo que pauta
resultam, na maioria das vezes, de pe- o ensinar.
dagogias culturais que envolvem estra- Ambos os processos – ensinar
tégias sutis, reinadas e naturalizadas, e aprender – compõem nossa educa-
exaustivamente repetidas e atualizadas, ção como sujeitos de determinadas
que quase não percebemos como tais culturas, nossa apreensão e nosso
(MEYER, 2012). manejo das linguagens e dos códigos
Nessa direção, educar supõe, constitutivos delas. E tanto o ensinar e
então, processos de ensino e processos quanto o aprender estão estreitamente
de aprendizagem e envolve: o que, com imbricados com o – e no – processo
quem e como nos ensinam e o que, de construção, manutenção e transfor-
com quem e como se aprende. Marlu- mação dos gêneros no contexto das
cy Paraíso (2011) faz uma interessante culturas em que nos (des)constituimos
distinção entre ensinar e aprender em como mulheres e homens de determi-
seus estudos. De certo modo, o que ela nados tipos. Trata-se de processos que
sinaliza é que o ensinar está focado em não são lineares, progressivos ou har-

• 194 •
mônicos e que também nunca estão Sugestões de leitura
inalizados ou completos. ALVARENGA, Luiz Fernando C.; DAL’IGNA, Maria
Cláudia. Corpo e sexualidade na escola: as possibilidades
Dagmar Estermann Meyer estão esgotadas? In: MEYER, Dagmar E. E.; SOARES,
Rosângela F. R.; DALLA ZEN, Maria Isabel H.; XA-
Maria Cláudia Dal’Igna VIER, Maria Luisa M. de F. (orgs.). Saúde, sexualidade
Maria Simone Schwengber e gênero na educação de jovens. 1.ed. Porto Alegre/RS:
Mediação, 2012, v.1, p. 49-58.

Referências e sugestões de leitura COSTA, Marisa Vorraber; SILVEIRA, Rosa Hessel;


SOMMER, Luis Henrique. Estudos Culturais, Educação
e Pedagogia. Revista Brasileira de Educação, n.23, p.36-
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. 7.ed. 61, maio/jun./jul./ago. 2003.
São Paulo: Perspectiva, 2011.
DAL’IGNA, Maria Cláudia. Gênero, sexualidade e
CASTELLO, Luis A.; MÁRSICO, Claudia T. Oculto nas desempenho escolar: modos de signiicar os comporta-
palavras: dicionário etimológico para ensinar e aprender. mentos de meninos e meninas. In: 30ª Reunião Anual
Belo Horizonte: Autêntica, 2007. da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em
Educação. Caxambu/MG, 2007. Disponível em: http://
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: car- www.anped.org.br/reunioes/30ra/index.htm
tograias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2000.
KLEIN, Carin; DAL’IGNA, Maria Cláudia. Mulher-
-mãe responsável: competências necessárias para educar
HALL, Stuart (org.). Representation: cultural represen-
ilhos(as) saudáveis. In: Labrys. Estudos Feministas. (Edi-
tatios and signifying practices. London: Sage; Open Uni- ção em Português, Online), Florianópolis: UFSC, v.22,
versity, 1997. p.1-21, 2012.

KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia. 3.ed. Piracicaba: LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade.
UNIMEP, 2002. 3.ed. In: ______ (org.) O corpo educado. Belo Horizon-
te: Autêntica, 2010. p.9-33.
LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade.
3.ed. In: ______ (org.) O corpo educado. Belo Horizon- MEYER, Dagmar Estermann. Gênero e educação: teo-
te: Autêntica, 2010. p.9-33. ria e política. In: LOURO, Guacira; NECKEL, Jane F.;
GOELLNER, Silvana (orgs.). Corpo, gênero e sexualida-
de: um debate contemporâneo. 8.ed. Petrópolis: Vozes,
MEYER, Dagmar Estermann. Gênero e educação: teo-
2012. p.09-27.
ria e política. In: LOURO, Guacira; NECKEL, Jane F.;
GOELLNER, Silvana (orgs.). Corpo, gênero e sexualida- PARAÍSO, Marlucy Alves. Raciocínios generiicados no
de: um debate contemporâneo. 8.ed. Petrópolis: Vozes, currículo escolar e possibilidades de aprender. In: LEITE,
2012. p.09-27. Carlinda et al. (orgs.). Políticas, fundamentos e práticas
do currículo. Porto: Porto Editora, 2011. p.147-160.
PARAÍSO, Marlucy Alves. Raciocínios generiicados no
currículo escolar e possibilidades de aprender. In: LEITE, SCHWENGBER, Maria Simone V.; MEYER, Dagmar
Carlinda et al. (orgs.). Políticas, fundamentos e práticas E.. Filho/a perfeito/a (...) é resultado de muito trabalho
do currículo. Porto: Porto Editora, 2011. p.147-160. corporal da mãe. In: Instrumento, Juiz de Fora: UFJF,
v.12, n.2, p.21-31, jul./dez. 2010.
SILVA, Tomaz T. A produção social da identidade e da
diferença. In: ______ (org.). Identidade e diferença. A •
perspectiva dos Estudos Culturais. 12.ed. Petrópolis: Vo-
zes, 2012. p.73-102.
Educação Popular
VALLE, Lilian de A. Bastos do. Educação. In: PEREIRA,
Isabel; LIMA, Júlio César (orgs). Dicionário da Educa-
ção Proissional em Saúde. 2.ed. Rio de Janeiro: EPSJV, A EP constituiu-se e se desen-
2009.p. 143-150. volveu em oposição aos luxos das re-

• 195 •
lações sociais opressoras, excludentes Estas características dotam a
e autoritárias, em âmbitos como os EP de grande sensibilidade e mobili-
dos estados, instituições, movimentos dade para “adequar-se” aos tempos e
sociais e espaços comunitários. São di- espaços onde se desenvolve, pois lhe
versos os esforços para deini-la e mui- exigem situar-se na teia da história; re-
tas as conigurações conceituais que querem a problematização e compre-
perpassam os debates sobre temas e ensão das ocorrências e movimentos
questões que integram este campo teó- em curso nos contextos político-cultu-
rico-prático que vem se irmando, his- rais onde suas práticas se desenrolam
toricamente. Decorre desses esforços para que os desenhos dessas sejam co-
a presente síntese: a Educação Popular erentes com o que negam e com o que
concebida como prática social e cul- propõem e/ou airmam.
tural, que implica em ensino e apren- As formas regionais de desen-
dizagem, favorecidos por relações volvimento do capitalismo mundial
dialógicas (entre sujeitos, saberes, pers- tornam-se, para a EP, objeto privile-
pectivas teóricas, metodologias, fun- giado de estudo, dado a necessidade de
damentos ilosóicos) e que se move compreensão e crítica do “lugar” sobre
mediante a intencionalidade política de o qual sua práxis se exerce e das rela-
contribuir para a construção de uma ções de poder que enfrenta no trabalho
ordem social (nos mais diversos espa- com o conhecimento: ensinar, pesqui-
ços sobre os quais incide) que não seja sar, aprender, formar. São deslocamen-
marcada pela exploração, opressão e tos histórico-conjunturais que dão sin-
submissão. Propõe-se, como assevera gularidade às suas práticas, à medida
Torres (2008, p. 20), ao desenvolvi- que propiciam e, ao mesmo tempo,
mento de ações educativas e culturais requerem abertura a procedimentos
que se dirijam “a ampliar as formas de inusitados, dado a diversidade de sujei-
compreender e atuar dos setores po- tos, saberes e conteúdos que reúnem.
pulares”; à “geração e apropriação de Isto não subtrai a necessidade de com-
saberes condizentes com a construção preender o desenvolvimento histórico-
de sujeitos populares e de um projeto -estrutural deste modo de produção, já
político libertador”; à incidência sobre que as ações estratégicas (impugnação)
as subjetividades, desbordando a “ou- exigidas dos sujeitos sociais para tece-
tras dimensões da vida social como rem sua emancipação não podem per-
a economia e as relações de poder”. der de vista a lógica opressora das rela-
Consiste em um fazer teórico-prático ções de poder que o caracterizam. Não
com características impugnativas e, ao restringe, como atestam Mejia e Awad
mesmo tempo, propositivas. (2003, p. 28), a possibilidade de inte-

• 196 •
gração dos sujeitos dos processos edu- movimentos de identiicação e sentido
cativos a um universal “reconstruído de pertencimento.
desde as diferenças e especiicidades O signiicado de popular na EP
culturais” (proposição/airmação.). latino-americana é fortemente marca-
Assim, a forma de manterem-se do por relações sociais objetivas, mas
atentas às díades conjuntural/estrutu- também por correntes de pensamento
ral, local/global e ao emaranhado de que orientam seu fazer educativo e in-
relações que historicamente estas en- vestigativo. Mejia e Awad (2003, p. 28),
gendram proporciona à EP elementos consideram o popular como os am-
para subsidiar suas lutas no plano eco- plos setores da população que assim
nômico-político, no plano das iden- se constituem pela não participação
tidades de gênero, étnico-raciais, de social, exclusão e subordinação, “tan-
to nos processos particulares da vida
geração e dos direitos e necessidades
social como nos mais globais da uni-
especiais. Além disso, também propor-
versalidade e modernidade”. Estes são
ciona condições para a compreensão
processos que se instalam nos âmbitos
da diversidade e especiicidade de for-
da reprodução da vida e da produção;
mas e dispositivos de sujeição e subal-
atribuem à EP sensibilidade histórica
ternização dos sujeitos sociais que lhes
para problematizar relações como a de
são contemporâneos. Na América Lati-
gênero, além das relações de classe.
na, a EP foi um dos primeiros campos As formas de ver e viver o
teórico-práticos a assumir a discussão educativo e o popular condicionam a
de gênero, em suas instâncias de pro- pedagogia da EP que, gradativamen-
dução e certiicação do conhecimento. te, compreende que sua identidade se
ONG, como o CEAAL, mantém em constrói na integração entre elementos
sua plataforma de ação, desde a sua quase sempre dispersos em práticas
constituição, em 1982, a discussão da educativas: conteúdos, metodologias,
equidade de gênero. objetivos, intencionalidades, sentidos
O educativo na EP é conside- e âmbitos das práticas. Perpassa esta
rado o conjunto de iniciativas inten- pedagogia uma ética que considera
cionadas de ensino, aprendizagem e central a participação de educandos e
formação. Atua sobre saberes e conhe- educadores nas deinições e efetivação
cimentos e seus conteúdos e procedi- dos processos educativos.
mentos estão associados às culturas e São diversos os estudiosos que
vivências dos sujeitos que privilegia em tratam da história da EP na América
suas práticas: o popular. Mediante re- Latina. Mejia (1989) e Torres (2008)
lações dialógicas, alimenta nos sujeitos airmam que a EP desponta no con-

• 197 •
tinente como retomada dos ideais de mudanças nessas condições e orienta-
universalidade, gratuidade e obrigato- ções, principalmente para aquelas que
riedade da educação, nascidos com a envolvessem os setores da população
Revolução Francesa, ao inal do século mais vulneráveis à exploração. Os
XVIII. Evocam os nomes de Simon processos educativos que excediam às
Rodrigues, Domingo Faustino Sar- elites só conquistavam prioridade se o
miento e Jose Martí como reproduto- peril dos seus destinatários maculasse
res e reconstrutores de tais ideais. a imagem ou freasse os processos de
Referindo-se especiicamente modernização necessários à viabiliza-
ao Brasil e recorrendo a produções ção de tais economias e, por sua vez,
de Ghiraldelli, Paludo (2001, p. 82- reproduzissem a lógica prevalecente.
85) ressalta o papel dos socialistas, No período, o continente havia
anarquistas e comunistas, no início do se tornado palco de grande movimen-
século XX, na geração de iniciativas tação social conduzida por orientações
educativas para as classes subalternas, político-ideológicas diversas e o gran-
iniciativas de educação escolar e não de acontecimento que foi a Revolução
escolar; processos mais formais ou Cubana, em 1959, passou a incentivar
menos formais, parte deles conluindo lutas populares por mudanças nas rela-
para a luta pela escola pública no país. ções de poder.
A conjuntura do século XX in- Na segunda metade do século,
citou iniciativas, nas diversas esferas o quadro de agitação e transformação
das sociedades latino-americanas, de que tomou conta da Europa e os mo-
crítica, recusa e rebelião do “povo” em vimentos que mobilizaram países afri-
virtude das contradições geradas pelas canos e asiáticos chegam às Américas
opções econômicas e políticas das suas de forma peculiar, associados à referi-
elites dirigentes, compelindo campos, da experiência cubana, ao governo da
como o da EP, a sua interpretação. Unidade Popular no Chile, à Revolu-
Na primeira metade do século, ção Sandinista na Nicarágua e outras
em contexto de “guerra fria”, países iniciativas “menores”. Estruturam-se
latino-americanos aliados ao capita- ditaduras militares, mas acontecimen-
lismo norte-americano, estruturam tos como os citados apontam para a
economias periféricas dependentes e mobilidade das relações de poder.
sociedades orientadas por projetos de O contexto histórico-social
um nacional-desenvolvimentismo atra- favorece o surgimento de um novo
vessado por traços populistas. Pouco “contexto teórico” (Jara, 2006, p. 9),
espaço se abria para ações dirigidas a decorrência e provocação à criação e

• 198 •
ao confronto de abordagens, estraté- brasileiro: a montagem do Programa
gias pedagógicas e procedimentos in- Nacional de Alfabetização, pelo Minis-
vestigativos, na EP. As ações de gru- tério da Educação e Cultura.” (2001, p.
pos, movimentos sociais, organizações 52)
não-governamentais (ONGs), sindica- A EP latino-americana nutriu-
tos, igrejas e setores dos estados nacio- -se, especialmente, das produções te-
nais começam a necessitar de relexão órico-metodológicas e ilosóicas da
e a provocá-la. Tais constatações dão Filosoia e Teologia da Libertação, da
margem a Calado (1998, p. 131) assi- Teoria da Dependência, Pesquisa Par-
nalar que “dessa época resultam as ela- ticipante e Pedagogia Crítico-Liberta-
borações mais vigorosas e mais fecun- dora.
das da Educação Popular, a começar Depois de passar por iniciativas
pelas formulações freireanas, que se de reconceitualização nos anos 1990,
vão acompanhando de várias outras”. adentra o século XXI atenta às iniciati-
vas político-culturais que movimentam
E a Brandão detalhar, com a proprie-
países do continente em direção à de-
dade da vivência, as ramiicações que
mocratização e deine temas prioritá-
o trabalho de educação popular, no
rios para a sua produção e debate: po-
Brasil, assumiu naquele momento: “A
líticas públicas, poder local, economia
década de 1960, que nos envolveu a
solidária, meio ambiente, segurança
todos com a educação popular, foi o
alimentar, direitos humanos. Volta-se,
tempo de uma verdadeira reinvenção
com intensidade, à relexão sobre suas
da criatividade e do compromisso da epistemologias e metodologias de in-
educação no Brasil. A produção do vestigação, reairmando as que possam
método Paulo Freire dentro do Serviço transgredir a racionalidade disciplinar e
de Extensão Cultural da Universidade subverter a lógica das fronteiras rígidas
de Pernambuco; as experiências dura- que separam conhecimentos e sujeitos,
douras de uma educação conscientiza- como a pesquisa participante e a siste-
dora entre lavradores de Minas Gerais matização. Não secundariza, contudo,
para cima e para o oeste, através do temas da sua tradição, como diferença
Movimento de Educação de Base: a e especiicidades culturais, associan-
multiplicação de trabalhos culturais e do-os intimamente à utopia de outros
pedagógicos feita pelos Movimentos mundos possíveis de serem forjados,
de Cultura Popular (MCPs) e pelos mediante práticas de base vinculadas às
Centros Populares de Cultura (CPCs), iniciativas dos movimentos sociais. A
promovidos pela UNE e outras entida- EP não se livra, contudo, do paradoxal
des regionais e locais do estudantado desaio mudança/conservação, a cada

• 199 •
momento da história, tendo a enfren- MEJIA, Marco Raúl J.; AWAD Myriam Inés G. Educa-
ción popular hoy: en tiempos de de globalización. Bogotá:
tar o pacto geracional pressuposto em Ed. Aurora, 2003.
processos educativos condizentes com
PALUDO, Conceição. Educação popular em busca de al-
o que historicamente vem airmando e ternativas: uma leitura desde o campo democrático popu-
que a leva a ter em conta os elementos: lar. Porto Alegre: Tomo Ed.; Camp. 2001.

contexto (compreensão do seu tempo TORRES, Alfonso C. Educación popular y producción


e lugar de acontecer), diálogo (relações de conocimiento. La Pirágua, Panamá: CEAAL, n. 32,
2010. p. 8-25.
capazes de impugnar qualquer forma
de autoritarismo) e ética (liberdade TORRES, Alfonso C. La Educación popular: trayetoria y
actualidad. Bogotá: Ed. El Buho, 2008.
para que educandos e educadores em
relação possam se constituir como su- Sugestões de leitura
jeitos morais: ser-si, ser-junto, ser-rela-
ção). BRANDÃO, Carlos Rodrigues; ASSUMPÇÃO, Raiane.
Cultura rebelde: ensaios sobre a educação popular ontem
e agora. São Paulo: Ed. e Liv. Instituto Paulo Freire, 2009.
Elza Maria Falckembach
TORRES, Alfonso C. La Educación popular: trayetoria y
actualidad. Bogotá: Ed. El Buho, 2008.
Referências
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BRANDÃO, Carlos Rodrigues. De Angicos a Ausentes: educación popular del CEAAL – Consejo de Educación
40 anos de educação popular. Porto Alegre: MOVA-RS; Popular de América Latina y el Caribe, n. 35, Panamá,
CORAG, 2001. 2/2011. www.ceaal.org

CALADO, Alder Júlio Ferreira. Reproblematizando o(s) GT 06 – Educação Popular – ANPEd – Associação Na-
conceito(s) de Educação Popular. In: COSTA, Marisa cional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. www.
Vorraber. (Org.) Educação popular hoje: variações sobre o anped.org
tema. São Paulo: Loyola, 1998. p. 123-146.

FALKEMBACH, Elza Maria Fonseca. Sistematização em
Educação Popular: uma história, um debate... Caxambu,
MG: Anped, 2010. www.anped.org. Entendido
_____. Sistematização, uma arte de ampliar cabeças. In:
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE – MMA/PDA. Termo nativo usado mais inten-
Arte de ampliar cabeças: uma leitura transversal. Brasília:
MMA/PDA, 2006 (Série Sistematização, 11)
sivamente entre as décadas de 1960 e
1980, sobretudo nos centros urbanos.
JARA, Oscar H. A sistematização de experiências: práti-
ca e teoria para outros mundos possíveis. Brasília, DF:
Polifônico, signiica tanto categoria
CONTAG, 2012. identitária autoatribuída para homos-
______. Sistematización de experiências y corrientes
sexuais de ambos os sexos que não
inovadoras del pensamiento latinoamericano: uma apro- exibam estereótipos de gênero, como
ximación histórica, La Pirágua, Panamá: CEAAL, n.23,
1/2006. p. 7-16. código para reconhecimento recípro-
co, constituindo-se, nessa acepção,
MEJIA, Marco Raúl J. Educação popular: pedagogia e
dialética. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 1989. em mecanismo de resistência (RO-
DRIGUES, 2004, p. 4 e 28; 2004, p.

• 200 •
18; 2006, p. 86-88; GLENIEWICZ nismos de resistência, à semelhança do
et al, 1979; GREEN, 2000, p. 307- uso de palavras em nagô por homos-
308; GREEN e TRINDADE, 2005; sexuais masculinos e travestis, adeptos
HOUAISS, 2001, p. 1161; CERTEAU, ou não dos cultos de matriz africana.
2003). Nessa acepção vamos encontrar James Green historiciza o ter-
o registro colhido por Gleniewicz e ou- mo no Brasil, destacando sua cono-
tros . Nesse trabalho, os pesquisadores tação mais igualitária, livre do padrão
constataram seu uso como um código então muito rígido da reprodução dos
inter pares, destituído de noção estig- papéis de gênero, presente nos termos
matizante, usado como senha de iden- “bicha”, “boneca”, “bofe” (GREEN,
tiicação entre gueis e lésbicas que não 2000, p. 307-308; 424-427). Este pes-
assumiam postura social estereotipada quisador estabelece sua origem no Bra-
(“sem dar pinta”, discretos), indepen- sil aproximadamente nos anos de 1940
dentemente do papel que por ventura “ou mesmo antes” (GREEN, 2000,
adotassem em suas práticas sexuais. p. 308), baseando-se em cartas publi-
Essa designação de conteúdo restrito cadas no livro Homossexualismo masculi-
permitia que se certiicassem da orien- no, de autoria de Jaime Jorge (Rio de
tação sexual do interlocutor em espa- Janeiro: O Constructor, 1953). Ainda
ços não exclusivos, sem que para isso segundo sua pesquisa, entre os anos de
precisassem se expor. Também possi- 1960 e 1970 o termo vai sendo cada
bilitava a luência de uma comunicação vez mais utilizado para referir a um
cifrada, mais livre, vez que restrita a sua tipo de homossexual que não ostenta
compreensão entre aqueles que têm as estruturas rígidas da dicotomia do
“entendimento, combinação, consen- gênero. Ele documenta o seu emprego
so” ou “o espírito aberto” (HOUAISS, entre os estratos médios e alto, artísti-
2001, p. 1161, 2ª coluna) o suiciente cos, intelectualizados e urbanos da po-
para aceitar a homossexualidade (que pulação homossexual masculina – seu
corresponderia aos “simpatizantes” da objeto de pesquisa (GREEN, 2000, p.
década de 1990). Como registraram os 424-425). No entanto, ao se referir aos
pesquisadores da PUC-RJ, “a gíria ho- “primeiros ativistas” (sic) – militantes
mossexual é [era?], mais que qualquer dos grupos surgidos entre 1978 e 1980
outra, a maneira verbal dos indivíduos –, James parece tomar a experiência
dissimularem a sua condição discrimi- do grupo Somos/SP como idêntica a
nada política e socialmente” (GLE- todos os demais, espalhados em diver-
NIEWICZ et alli, 1979, p. 14). Nesse sos Estados do país, ao airmar que “a
emprego documentado, expressa a palavra [entendido] foi rejeitada pelos
criatividade na construção de meca- primeiros grupos gays brasileiros por

• 201 •
ser mais representativa de homosse- Green e em um centro urbano como a
xuais ‘enrustidos’” (GREEN, 2000, p. cidade do Rio de Janeiro, por 6,4% do
425). Em 1979, além do Somos/SP, total dos homens entrevistados e por
que existia já há um ano, surgiram dez 15% do total de mulheres presentes na
grupos: três em São Paulo, três no Pará, Parada do Orgulho (CARRARA e RA-
um na Baixada Fluminense, dois na ci- MOS, 2005, p. 35-37).
dade do Rio de Janeiro e um em Brasí- Se entre nós é demonstrado o
lia. No ano seguinte, mais treze: um em declínio em seu emprego nos primei-
Salvador, Belo Horizonte, Niteroi e na ros anos do século XXI, na Espanha e
Paraíba; três em Pernambuco; e mais em países da América Latina era ainda
seis em São Paulo (COLAÇO, 1984, p. bastante utilizado, ao menos nos anos
64). Pelo menos o da Baixada Flumi- inais do século passado, porém mais
nense sabe-se que era composto majo- com o sentido de código, senha, ao lado
ritariamente por trabalhadoras, negras da sinônima expressão de ambiente
e mestiças, não partilhando de modo (ALIAGA e CORTÉS, 2000, passim;
uniforme das mesmas visões de mun- BOTERO, 1980, p. 40). VIÑUALES,
do dos ativistas do sexo masculino, no seu glossário, esclarece: “Entendida
integrantes das camadas média e alta (o que entiende): Término que designa
e intelectualizados que comprovada- la presunta homossexualidad de outra
mente constituíram o Somos/SP (RO- mujer” (VIÑUALES, 2000, p. 184).
DRIGUES, 2004). Em meio a tanta Esta mesma autora, descrevendo as re-
diversidade cultural, presente entre os lações sociais nos ambientes lésbicos,
Estados da Federação que abrigaram informa: “Cuando alguna nueva açude
esses primeiros coletivos de militância, a um local, las otras tratan de averiguar
parece pouco crível que um termo tão si ‘entiende’ o no ...” (VIÑUALES,
polifônico pudesse gozar de recepção 2000, p. 111). GUASCH, por sinal,
e emprego uniforme. Um dado que assim nomeou a sua tese de douto-
parece apoiar esta suspeita pode ser rado: “El entendido: condiciones de
encontrado na pesquisa realizada por aparición, desarrollo y disolución de
Sérgio Carrara e Silvia Ramos com os la subcultura gay em Espana. Tesis de
participantes da Parada do Orgulho Doctorado, Tarragona: Universidad de
no Rio em 2004: Embora em visível Barcelona.” (GUASCH, 2000, p. 143).
declínio o seu uso pelos homens com Em Denise Portinari encontra-
o sentido de identidade autoatribuída, mos uma interessante relexão acerca
ele ainda era empregado, vinte e quatro do “entender” como um dos processos
anos depois do período aventado por que marca constitutivamente a homos-

• 202 •
sexualidade. A necessidade, dada pela GREEN, James. Além do Carnaval. A homossexualida-
de masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Unesp,
heterossexualidade paradigmática (e 2000.
que por isso prescinde de explicações), GREEN, James e TRINDADE, Ronaldo (orgs.), SILVA,
de ser compreendida (entendida) pelo José Fábio Barbosa da... [et al.]. Homossexualismo em
São Paulo e outros escritos. São Paulo: Unesp, 2005.
sujeito desejante. Sendo uma forma de
sexualidade sobre a qual pesam tantas GUASCH, Òscar. La crisis de la heteosexualidad. Barce-
lona: Alertes, 2000.
representações (ainda) negativas, “o
HOUAISS, Antonio e VILLAR, Mauro de Salles. Di-
processo de entender, desencadeado a cionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
partir do ‘então eu soube que sempre Objetiva, 2001.

fui’, parece não ter im.” “Trata-se com PORTINARI, Denise. O Discurso da Homossexualidade
efeito de uma sexualidade que precisa Feminina. São Paulo: Brasiliense, 1989.

ser entendida ... para que o sujeito pos- RODRIGUES, Rita C. C.. Ação e relexão de um ativis-
mo homossexual na Baixada Fluminense: A experiência
sa constituir-se enquanto tal.” Desse do GAAG - Grupo de Atuação e Airmação Gay - 1979-
modo e contrariamente à heterosse- 1980. Monograia apresentada ao curso de graduação em
História Social da Universidade Federal Fluminense. Ni-
xualidade que jamais se exige qualquer terói, dezembro de 2004.
explicação, o homossexual é eterna- VIÑUALES, Olga. Identidades lésbicas. Barcelona:
mente convocado a justiicar e espe- Bellaterra, 2000.

ciicar (e confessar) minuciosamente


Sugestões de leitura
suas práticas e desejos. Ver Portinari,
1989, p. 70-72. GUIMARÃES, Carmen Dora. O homossexual visto por
entendidos. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

Rita de Cássia Colaço Rodrigues



Referências
Epistemologia feminista
ALIAGA, Juan Vicente e CORTÉS, José Miguel G. Iden-
tidad y diferencia. Sobre la cultura gay em Espana. Barce-
lona-Madrid: Egales, 2ª edición, Julio de 2000. A epistemologia pressupõe o
BOTERO, Ebel. Homoilia y homofobia. Medellín: ed. estudo das formas de produção do
Autor, 1980. conhecimento. Neste sentido discu-
CARRARA, Sérgio e RAMOS, Silvia. Política, Direitos, tir epistemologia é propor a relexão
Violência e Homossexualidade. Pesquisa 9ª Parada do
Orgulho GLBT – Rio 2004. Rio de Janeiro: CEPESC,
sobre os objetivos, os objetos e os
2005. sujeitos envolvidos nos processos de
Colaço, Rita. Uma conversa informal sobre homossexua- produção dos saberes. Contudo de-
lismo. Rio de Janeiro: edição da autora, 1984. ve-se começar dizendo que a cons-
GLENIEWICS, Alison; FROTA, Sílvia de Fátima Na- trução de um campo de saber é antes
gem; RUDNER, William Andrew; FARIAS, Zilah Cân-
dida Azevedo. A linguagem de discotecas gueis do Rio
de tudo uma questão de exercício de
de Janeiro. [Trabalho de conclusão de curso]. Pontifícia poder. Acompanhando os estudos de
Universidade Católica, Rio de Janeiro, 1979.

• 203 •
Foucault - que tanto inluenciaram e zidas no mundo também em função
inluenciam os estudos feministas - do poder. E se cada “sociedade tem
percebe-se que este autor articula saber seu regime de verdade” (FOUCAULT,
e poder de tal forma que não se pode 1999, p.2) temos já há certo tempo nas
tematizar a questão da construção do agendas feministas o irme propósito
saber sem tratar das formas de exercí- de que outros saberes sejam construí-
cio de poder. Especialmente nas obras dos. Neste sentido a epistemologia fe-
As Palavras e as Coisas (1966) e Arqueo- minista começa a ser conceituada: tra-
logia do Saber (1969), Foucault propõe ta-se do exercício de poder que busca
relexões que buscam perceber que a a construção de novos saberes. E que
instituição do saber (ou ainda, dos sa- sejam esses plurais, diversos e mesmo
beres) passa por diferentes instâncias subjetivos, ao contrário dos critérios
de vivência do poder. Os discursos, universais e reguladores estabelecidos
o que se faz dele e o que ele produz no modelo de ciência moderna.
são resultado de relações de poder Na tarefa de deinir epistemo-
luídas e oriundas de diferentes luga- logia feminista é importante dizer que
res. O poder “produz coisas, induz ao se trata não apenas de um empreendi-
prazer, forma saber, produz discurso” mento acadêmico ou político mais que
(FOUCAULT, 1999, p. 8), escreveu isso: a escrita feminista é um projeto de
ele, lembrando ainda que as relações colocar em debate questões por muito
de poder não são apenas repressivas. tempo silenciadas. Assim, é fundamen-
Para este pensador estar atento à gene- tal o entendimento de que se fala aqui
alogia, ou seja, a forma de constituição da colocação em discurso de um pro-
dos discursos, de saberes e objetos é jeto de poder. Margareth Rago (1998)
buscar modos de dar visibilidade àqui- lembra que nos anos 1980 Michelle
lo que foi construído como verdade, Perrot se perguntava se era possível
bem como é modo de entender os te- escrever uma história das mulheres.
mas sobre os quais se decidiu silenciar. Sua dúvida e indagação adivinham de
Tal orientação propõe impactos sig- entendimento que colocar em ques-
niicativos na produção dos trabalhos tão o sujeito mulher era privilegiar um
feministas, como dito acima. Ainal, sujeito universal, tal qual a ciência oci-
quando lembra tais questões Foucault dental faz quando mobiliza a catego-
estabelece também a possibilidade de ria homem. Contudo e como se sabe,
outras formas de produção de sabe- desde então os debates e estudos têm
res, em que outras e novas “verdades” entendido e, consequentemente pos-
podem ser construídas. Como ele pró- tulado, que é sim possível e necessário
prio escreveu, as verdades são produ- escrever sobre as mulheres. O diferen-

• 204 •
cial, entretanto, está no modo como também o de ir além desta ciência “en-
isso será feito: certamente questionan- viesada”.
do a universalização do sujeito mulher Foi entre as décadas de 1930 e
e com as mulheres assumindo a autoria 1970 que surgiram grupos acadêmicos
de tal escrita. E ainda considerando que passariam a problematizar a pro-
que tal escrita deve ser feita a partir de dução do conhecimento a partir de um
problematizações que considerem as viés crítico produzindo o que icaria
relações entre homens e mulheres. conhecido como estudos feministas
Continuando na imbricação en- ou estudos de mulheres. Na década
tre poder-saber uma das questões que de 1970 emergiria, no campo da pro-
é necessário considerar quando fala- dução do conhecimento, a perspecti-
mos em epistemologia feminista é a lo- va de gênero. No âmbito acadêmico a
calização de tal produção. Pois, acom- perspectiva buscava tornar a discussão
panhando o que diz Foucault, trata-se mais inclusiva, menos binária, muito
de localizar a emergência deste campo. embora também recebesse críticas por
Neste caso, vale dizer que a produção seu potencial desmobilizador, que po-
de uma escrita feminista não é de iní- deria abrir para o desempoderamento
cio uma questão acadêmica, mas que feminino. O fato é que o conceito de
a problematização e o desejo por uma gênero foi um divisor de águas nos
autoria feminista de saberes nasce no movimentos feministas, sendo que
movimento feminista. De acordo com nesta segunda onda o que estava em
M. Rago (1998, p. 29): “É a partir de jogo eram as “diferenças dentro da di-
uma luta política que nasce uma lin- ferença” (MATOS, 2008, p.338)
guagem feminista”. Ainda segundo Sintetizando e acompanhando o
esta historiadora a relexão política foi entendimento de M. Rago (1998) po-
seguida posteriormente por disciplinas de-se dizer que a epistemologia femi-
diversas como antropologia, história, nista é originária do movimento e do
psicologia, sociologia, etc. Ou seja, a desejo de um duplo encaminhamento.
produção acadêmica feminista é an- Por um lado, trata-se da participação
tes de tudo originária de uma discus- do feminismo ao lado de diferentes
são política do modo como a ciência campos disciplinares na crítica episte-
tematizava a mulheres, entre outras mológica atual. Crítica esta que busca
questões. Donna Haraway (1995) dis- denunciar o caráter excludente da ra-
cutindo este contexto lembra que as cionalidade burguesa em que a ênfase
feministas queriam um instrumento sobre o indivíduo não permite pensar
para descontruir as verdades de uma as diferenças. Aliás, é neste viés que o
“ciência hostil”, mas que o desejo era feminismo se aproxima do pensamen-

• 205 •
to pós-moderno. E por outro, diz res- vel “dispersão” causada pelos discur-
peito a uma nova forma de concepção sos pós-estruturalistas femininas que
e produção de conhecimentos, num dariam menos ênfase sobre a questão
projeto emancipador (RAGO, 1998, p. mais política e, portanto, práticas das
24-25). reinvindicações feministas (1998, p.
Em outras palavras: a epistemo- 63).
logia feminista “nasce” de um desejo Sandra Harding (1993) enten-
dentro do movimento de promover de que as feministas que se alinham
a crítica aos modos da ciência produ- na tendência pós-moderna optam por
zir conhecimentos e desta motivação uma “posição relativista inadequada”
tem migrado para outros movimentos sendo que esta associação não conse-
como, por exemplo, o que propõe uma guira “resolver” a questão e a necessi-
total revisão desta ciência em nome de dade de uma política que enfrente mais
um projeto feminista de fazer ciência. nomeada e ativamente os problemas
Neste último caso deve-se repetir que apontados pelo movimento. Além dis-
mais contemporaneamente muitos tra- so, é crítica de modo contundente da
balhos têm se apropriado da aproxima- possibilidade de uma epistemologia
ção com os textos pós-estruturalistas feminista que aposte nos mesmos ví-
não apenas para confrontar os para- cios criticados pelo movimento, espe-
digmas cientíicos, mas para fundar no- cialmente na ênfase sobre um modelo
vos modelos. Tendência que tem sido de ciência que estipule modelos para a
debatida e utilizada, mas que também produção de saberes.
tem sido alvo de algumas críticas. Certamente que não há um con-
No entendimento de Claudia senso e nem tão pouco um único pro-
de Lima Costa (1998) as aproximações jeto de epistemologia feminista, mas
entre o feminismo e teóricos pós-es- de modo geral, o que une as diferentes
truturalistas têm sido marcadas por vertentes deste campo é a tônica sobre
possibilidades, contradições e ambigui- a ideia de que este é um movimento
dades. Assim, se o contato com os tex- que reivindica autoria. Donna Haraway
tos de nomes como Foucault, Derrida, (1995) que discute a ideia de uma “ob-
Deleuze tem possibilitado instrumen- jetividade” na escrita feminista apre-
tos e a sensibilidade para que outras senta e defende a ideia de que os sabe-
compreensões sobre sujeito, saber e res feministas precisam ser localizados.
as noções de identidade e experiência Certamente ela não defende a objetivi-
femininas sejam consideradas (1998, dade tal qual as feministas rejeitam. De
p. 58), também têm sido apontados acordo com ela, as feministas busca-
possíveis problemas como uma possí- ram “desmascarar” os referenciais de

• 206 •
objetividade, pois esta ia de encontro modelo hegemônico de produzir sabe-
aos ideais de subjetividade e de atuação res, tal qual posto no mundo ocidental
coletivas que elas defendiam (1995, p. moderno. A epistemologia feminista é,
13). E ela concorda com essa rejeição. portanto, uma ação política de questio-
Mas, por outro lado, na visão de Ha- nar e propor mudança, o que tem sido
raway a objetividade da “localização” feito por sujeitos com associação po-
é importante aos estudos feministas e líticas e acadêmicas não hegemônicas.
para isso ela propõe que os posiciona- Contudo, para além das especiicidades
mentos iquem bem claros. Seu argu- o que se registra como “comum” a to-
mento é em prol de uma epistemologia dos esses projetos é o irme propósito
feminista situada e localizada, e que de eliminar qualquer tipo de universa-
seja, consequentemente, facilmente lização ou de verdades absolutas sobre
percebida. No seu entendimento tal mulheres e homens.
procedimento reforça o campo e não
signiicaria uma divisão entre sujeito e Cristiani Bereta da Silva
Nucia Alexandra Silva de Oliveira
objeto (20-21). Assim: “a objetividade
feminista trata (...) do conhecimen-
Referências
to localizado (...). Desse modo pode-
mos nos tornar responsáveis pelo que COSTA, Claudia de Lima. O feminismo e o pós-moder-
nismo/pós-estruturalismo: as (in)determinações da iden-
aprendemos a ver” (p. 21). Ou seja, tidade nas (entre)linhas do (com)textos. PEDRO, Joana
sua proposta é a de uma epistemologia Maria. GROSSI, Miriam Pillar. Masculino, feminino,
plural: gênero na interdisciplinaridade. Florianópolis:
centrada e fechada nas questões no- Editora das Mulheres, 1998.
tadamente feministas e feitas a partir
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução e
deste ponto de vista e também do re- organização de Roberto Machado. 13ª ed. Rio de Janeiro:
conhecimento de um modo feminista Edições Graal, 1979.

de pensar e escrever. Ainda de acordo FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tradução


de Salma Tannus Muchail. 8ª ed. São Paulo: Martins
com ela, tal argumento se coloca pela Fontes, 1999.
necessidade de alocação, posiciona-
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução
mento e parcialidade, condições que de Luiz Felipe Baeta Neves. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000.
são para Haraway determinantes para
que este projeto seja “ouvido” e válido. HARDING, Sandra. A instabilidade das categorias ana-
líticas na teoria feminista. Estudos Feministas. Rio de Ja-
Procurou-se mostrar aqui que neiro: CIEC/ECO/UFRJ, v.1, n.1, p.7-31, 1993
o desejo de propor uma epistemolo-
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da
gia feminista está alicerçado em um ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva
parcial. Cadernos Pagu, Campinas/SP/UNICAMP, n.5,
projeto de poder que vislumbra a ne- p. 07-41, 1995.
cessidade de questionar e desfazer o

• 207 •
MATOS, Marlise. Teorias de gênero ou teorias e gênero? a sua inteira disposição. Aos escravos
Se e como os estudos de gênero e feministas se transfor-
maram em um campo novo para as ciências. Estudos era negado o direito a própria sexuali-
Feministas. Florianópolis: UFSC, v.16, n.2, p.333-357,
maio-agosto/2008.
dade e suas capacidades reprodutivas.
Em Reis (2003), escravidão é
RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e
história. PEDRO, Joana Maria. GROSSI, Miriam Pillar. uma instituição social caracterizada
Masculino, feminino, plural: gênero na interdisciplinari- pelo direito de propriedade de huma-
dade. Florianópolis: Editora das Mulheres, 1998.
nos e na utilização de sua mão de obra,
Sugestões de leitura na qual o escravo está sob domínio
permanente desde seu nascimento,
CODE, Lorraine. (Ed.). Encyclopedia of feminist theo- de modo que os vínculos de poder e
ries. New York: Routledge, 2000.
domínio originados são perpetuados
NARAYAN, Uma. O projeto de epistemologia feminista: pela violência na qual a “morte social”
perspectivas de uma feminista não ocidental. JAGGAR,
Alison M. BORDO, Susan. R. Gênero, Corpo, Conheci- substitui à morte física do prisioneiro
mento. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997.
de guerra, do condenado à morte, do
indigente ou enjeitado.

Maestri (2009 p. 21) classiica a
Escravidão escravidão como “experiência social de
submissão do trabalhador escravizado
Considerada a pior forma de ex- quanto à legislação, à dominação física
ploração da força de trabalho, na qual e cultural, às diversas formas de casti-
um ser humano é submetido à condi- gos e submissão, a cooptação social e
ção de propriedade de outro ser hu- ideológica, etc.”.
mano, por meio de coerção física e/ou A escravidão é uma das mais
psicologia. Expressa-se como a mais antigas instituições, identiicadas em
cruel forma de conisco da dignidade diversas sociedades desde a fase do
humana. Neolítico até os tempos modernos
Para Lovejoy (2002), a escravi- (MOORE, 2007). No Egito, as pirâmi-
dão é uma forma de exploração, carac- des, foram construídas pelos escravos.
terizada pela concepção de que os es- Praticada da Babilônia de Hamurabi à
cravos eram uma propriedade. Podiam Fenícia, nas clássicas Grécia e Roma e,
ser submetidos à condição de escravos, também, na África pré-colonial, parte
estrangeiros alienados a origem, por considerável dos povos antigos teve
sanções judiciais ou outras. A violên- contato ou foi submetida à escravidão.
cia física e psicológica podia ser usada (QUEIROZ, 1993). Em sua expres-
à vontade pelo proprietário de escravo, são moderna (no Continente Ameri-
que tinha a força de trabalho do cativo cano do século XV até o inal XIX),

• 208 •
a escravidão caracterizou-se por ter se XV. Aqui a sociedade livre usufrui do
consolidado como Modo de Produção trabalho de uma massa de escravos,
e submetido à condição de escravo, violentamente reprimida, fortemente
por meio de captura, sequestro e trá- vigiada, considerada como objetos.
ico, exclusivamente população negra c) A escravidão-racial de plan-
africana. tation tem origem no Oriente Médio
De acordo com Moore, ”a es- a partir do século IX, no período de
cravidão parece ter surgido dessa abássida, é praticada a partir do século
complexa problemática que consiste XV até o inal do século XIX, em todo
na crescente capacidade para enfren- continente americano, semelhante à
tar as contingências da sobrevivência escravidão econômica generalizada, a
mediante a produção de um excedente diferença reside no povo submetido à
social, por um lado, e o surgimento pa- condição de escravo: os negros africa-
ralelo de mecanismos de coerção que nos.
restringem as liberdades intrínsecas do A escravidão na África Pré-Colonial:
ser humano, por outro.” (2007, p. 221) A principal especiicidade das socieda-
Ainda que a escravidão possa des africanas era que estavam baseadas
ser identiicada em várias sociedades e nas relações de parentesco, cujo modo
em diferentes períodos históricos não de produção denominado doméstico,
há um único modelo de escravidão, caracterizava-se pelas “distinções etá-
contudo é possível apontar três cate- rias e sexuais, não havendo antago-
gorias estruturantes (MOORE, 2007 nismo de classe” (LOVEJOY, 2002,
p, 224): p.43). O poder político era baseado
a) A escravidão doméstico-ser- na gerontocracia, onde os mais velhos
viçal, fundada nas estruturas de famí- detinham o controle da produção e o
lia, conta com um número pequeno de acesso às mulheres. O que determinava
pessoas. Foi praticada na Ásia antiga e o poder de liderança de um velho era
medieval (China, Japão, Coréia, Índia e a quantidade de mulheres, o número
Indonésia), no Oriente Médio semita de ilhos e a capacidade de garantir a
pré-islâmico, na América pré-colonial cooperação entre as gerações, além do
(Olmeca-Sih, Inca, Maia, Asteca) e na acumulo dos bens imóveis, como: casa,
África. terras, plantações, rebanhos e água. A
b) A escravidão econômica ge- manutenção da sociedade icava sob a
neralizada surgiu na civilização Gre- responsabilidade da mulher por dois
co-romana, perdurou ao longo da motivos: a fertilidade e o trabalho agrí-
época medieval europeia até o século cola.

• 209 •
Nesse contexto, a escravidão vos: o militar, o serviçal, o produtor e
não causava nenhum impacto na base a mercadoria.
da formação dessa sociedade, para Lo- O escravo militar era uma cate-
vejoy, “os escravos não tinham ligação goria de alta posição, pois era escravo
com a rede de parentesco e tinham do Estado e não dos indivíduos, ocu-
apenas aqueles direitos que eram con- pavam posição estratégica na socieda-
cedidos por tolerância, não existia uma de, uma vez que cabia a eles proteger
classe de escravos. Ao mesmo tempo a sociedade de povos inimigos, situa-
ção que muitas vezes os colocava em
em que indubitavelmente desempe-
condição de igualdade em relação aos
nhavam funções econômicas, sua pre-
homens livres.
sença estava relacionada com o desejo
O escravo serviçal exercia fun-
das pessoas, fosse individual ou cole-
ção dentro do lar e ocupava uma supe-
tivo de contornar as relações sociais
rioridade efetiva em relação ao escra-
tradicionais de modo a aumentar o seu vo produtor, geralmente herdado. Era
poder. “ (2002, p. 44) considerado parte da família e, dentro
Mesmo em sociedades mais desta lógica, não podia ser vendido.
complexas, do tipo agro burocráti- Sua condição familiar é comparável a
co, o escravo apesar de sua condição dos empregados domésticos de hoje.
serviçal, e ainda que subalternizado e O escravo produtor poderia ser agri-
desprezado, está inserido na sociedade cultor, pastor, artesão, tinha direitos e
como mais um ator. privilégios, bem próximos ao do ho-
Nesse cenário pode-se até reco- mem livre; as mulheres que se incluíam
nhecer uma divisão de classes, mas di- nessa categoria, desenvolviam funções
ferente do que aconteceria mais tarde, domésticas eventuais e se ocupavam
ou seja, durante a expansão árabe-mu- das crianças.
çulmana, a condição de escravo é con- Quanto ao escravo mercadoria,
siderada como mais uma possibilidade encontrava-se na pior forma de escra-
de trabalho servil. vidão da África pré-colonial. Era consi-
A condição de escravo caracte- derado como objeto de produção, des-
prezado, maltratado, sem nome e sem
riza-se pela perda total do livre arbítrio
família estava sujeito à venda. Faziam
e a alienação a alguém, é condição he-
parte dessa categoria aquelas pessoas
reditária, entretanto, uma pessoa po-
que tinham cometido os piores crimes,
deria se tornar escrava nas seguintes
dentre eles latrocínio e estupro. (Mo-
condições: prisioneiro de guerra, crime ore, 2007, p. 231-232). Essa categoria
grave ou dívidas. Em linhas gerais po- de escravo cresceu exponencialmente
demos classiicar quatro tipos de escra- após a expansão árabe-mulçumana.

• 210 •
É preciso considerar que essa Congo, da Angola e de Moçambique
prática implicava numa sociedade que (distribuídos em Pernambuco, Minas
tinha escravos, mas não em um Modo Gerais e no Rio de Janeiro) e os su-
de Produção Escravista. Na atual fase daneses, da Nigéria, Daomé e Costa
dos conhecimentos sobre a histó- do Marim (cuja mão de obra era uti-
ria da África, não há indícios de que lizada no Nordeste, principalmente na
no continente a escravidão tivesse se Bahia).
consolidado como Modo de Produ- Enviados à força para o conti-
ção (FINLEY,1991; LOVEJOY, 2002; nente americano, em grandes embarca-
MOORE,2007). Destaca-se que o mo- ções chamadas Navios Negreiros, sub-
delo de escravidão africana se viu pro- metidos às condições de extremamente
fundamente alterado após o processo precárias, muitos morriam durante a
islamização do continente. travessia, vitimados pelos maus tratos,
Cabe ressaltar que embora não fome e doenças. Estima-se que mais de
conigurasse um modo de produção 10 milhões de escravos africanos che-
como aquele que aconteceria mais tar- garam vivos na América, dos quais 3,6
de, primeiro com os árabes-muçulma- milhões foram trazidos para o Brasil.
nos, e, depois, com os europeus, qual- Aqueles que sobrevivam à travessia do
quer tipo de cerceamento de liberdade Atlântico eram vendidos como “coi-
é condenável, visto que não existe es- sas” e deveriam ser submissos ao seu
cravidão boa. senhor, ou sofreriam os mais bárbaros
Escravidão no Brasil: A mão de castigos.
obra escrava africana foi introduzida Cabe salientar que durante
no Brasil em meados do século XVI, todo o período de escravidão, negros
pelos colonizadores portugueses, ini- e negras lutaram contra o cativeiro, a
cialmente com a inalidade de atender opressão e discriminação racial, por
as primeiras demandas por força de meio de múltiplas formas de resistên-
trabalho nos Engenhos de Açúcar na cia, das quais destaca-se as revoltas, fu-
região nordeste do país. Contudo de- gas, assassinato de senhores, suicídio,
correr do processo histórico a escra- infanticídio, quilombos e irmandades.
vidão consolidou-se como Modo de A mulher negra escravizada
Produção, que perdurou quase quatro (MOTT, 1988) teve participação em
séculos. quase todas as atividades econômicas
Os negros escravizados eram e era comum acumularem várias fun-
capturados no continente africano, de ções, acostumadas ao trabalho livre
diferentes grupos étnicos, as principais agrícola na África, aqui foram empre-
vítimas foram os bantos, vindos do gadas em menor número no cultivo da

• 211 •
terra. Nos engenhos moíam e tiravam botagem do serviço doméstico e/ou
os bagaços da cana; serviam ama de agrícola, o suicídio e o aborto eram re-
leite dos ilhos do senhor e estiveram correntes, o assassinato de senhores e
presente também na mineração. Em senhoras não era incomum. Em alguns
muitos engenhos e fazendas as escra- casos para obter alguns benefícios ime-
vas eram responsáveis pelos partos e diatos, a escrava fazia uso da sua sexua-
pelos cuidados aos escravos doentes e lidade para seduzir o senhor.
acidentados. Fugiam sós, acompanhadas ou
Apresentadas por muitos auto- em grupos, em direção aos quilombos
res como privilegiada, por ser escrava ou para as cidades na tentativa de se
doméstica da casa rica e não viver na passar por escravas alforriadas. Outra
senzala, ter acesso a uma alimentação importante forma de luta de mulheres
diferenças e vestir-se melhor, as mu- e homens escravizados expressou-se
camas eram, contudo, as que sofriam na utilização em benefício próprio, da
mais de perto a violência sexual de seu brecha oferecida pelo próprio sistema:
senhor e a ira das senhoras. a Carta de Alforria.
O fato de ser mulher não pou- De acordo com Verger (1988),
pou as escravas de sofrerem castigos, as mulheres baianas alforriadas eram
sempre que seu comportamento fosse independentes e em torno delas se for-
considerado indesejado, eram subme- mavam as famílias, vivam com os pais
tidas à palmatória, troncos, mutilação de sucessivos ilhos, tinham em geral
do corpo, marcadas de ferro, açoites, e mais dinheiros do que os homens com
não raro torturadas até a morte. quem viviam amasiadas. Naquele tem-
Entretanto, a mulher negra, não po já eram chefes de suas famílias, con-
aceitou paciicamente a condição de dição vivida na atualidade por muitas
escravizada, conforme observou M, mulheres negras.
“seja quando tentava amenizar a vida Para a negra e o negro escraviza-
enquanto escrava, obtendo alguns be- do, a luta diária para sobreviver e resis-
nefícios imediatos; quando procurava tir à lógica da escravidão foi algo além
saídas para a sua condição através das da complexidade da existência huma-
brechas, oferecidas pelo próprio siste- na, fundamentada, em grande parte, na
ma, ou então quando negava-se a qual- compreensão de mundo e nos valores
quer negociação, matando ou morren- ancestrais, e na crença de mudanças e
do.” (1988, p. 29) continuidade da Cosmovisão Africana.
A resistência da negra escravi- Os esforços empreendidos por
zada manifestou-se, por meio da sa- negras e negros escravizados na tenta-

• 212 •
tiva de preservar a memória, valores, •
crenças de seus ancestrais expressam-
-se hoje, na incisiva marca africana na Escrita Feminina
cultura brasileira, evidenciada, na mú-
sica, na língua, na religião, na dança, na A escrita feminina não designa
estética negra individual e coletiva. apenas uma literatura, a de corpo e voz
que mulheres escritoras (mais ou me-
Cintia Santos Diallo nos reconhecidas) realizaram e conti-
nuam a desenvolver como parte cons-
Referências e sugestões de leitura titutiva da História Cultural e Literária
de seu país.
DIALLO, Cíntia Santos. Silva, Dina Maria. História
da África: Múltiplas Aprendizagens. Dourados: Editora
A escrita feminina é fortemen-
Uems, 2010. te marcada pelas relações, condições
DIOP, ANTA CHEIKH. Nations Negres et Culture. Pa-
e trocas sociais, culturais, econômicas,
ris: Présence Africaine, 1979. intelectuais, linguísticas e geopolíticas
FINLEY, Moses I. Escravidão antiga e ideologia moder- que são estabelecidas entre os indiví-
na. Rio de Janeiro: Graal, 1991. duos, as comunidades e os povos desse
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5. ed. rev. e mesmo país. Ela evidencia portanto
ampl. São Paulo : Ática, 1988. as relações de gênero e as de poder e,
LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história assim, a sua característica como uma
de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Bra- espécie de ‘impressão digital’ sobre os
sileira, 2002.
movimentos de seu tempo.
MOORE, Carlos. Racismo & Sociedade: novas bases Quando feminina, a escrita tor-
epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizon-
te: Mazza, 2007. na-se uma outra modalidade, uma ou-
tra prática discursiva, cuja linguagem
MOTT, Maria Lucia de Barros. Submissão e resistência: a
mulher na luta contra a escravidão. São Paulo: Contexto, estética pode alcançar (ou não) um es-
1988.
tatuto especíico, o de uma literatura, a
PAIVA, Eduardo França. Ivo, Isnara Pereira. Escravidão, partir da qual será recorrente o que é
mestiçagem e histórias comparadas. São Paulo: Annablu-
me: PPGH-UFMG,: Ed. UESB, 2008.
seguramente mais tangível ao universo
feminino, e por ele, a sua expressão.
QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravidão negra no
Brasil. São Paulo: Ática, 1987.
Na História da Humanidade, a
Literatura foi e perdura como uma das
REIS, Joao Jose. Negociação e conlito: a resistência negra
no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras,
aventuras próprias ao Espírito, como
2005. ela é também uma experiência intelec-
VERGER, Pierre. Fluxo e Reluxo do Tráico de Escravos tual e uma atividade transcendental.
entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos No entanto, a Literatura também foi
séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987.
uma ocupação, especialidade e prois-

• 213 •
são destinada exclusivamente aos ho- As graias femininas estampam
mens. Essa Literatura fez-se masculina o rosto, exploram o corpo e ultrapas-
e hegemônica. Tornou-se a referência: sam a pele do papel. As escrituras fe-
descrita, historiografada, (re)produ- mininas ao longo dos séculos mostram
zida e institucionalizada por homens, o quanto as mulheres desenvolveram
embora ninguém a denomine ‘literatu- o próprio corpo como um recurso de
ra masculina’. Ela é literatura, e ela se linguagem. O corpo é uma memória
projetou, como ‘a Literatura’. e a escrita é feminina. Por isso, além
No Brasil, a partir dos anos oi- do corpo as mulheres escreveram em
tenta e, particularmente, dos anos no- pedras, em leques, em chapéus, em
venta do século XX, a escrita feminina lenços, em tecidos, como publicam
assume uma outra, talvez, uma nova diários, cadernos íntimos, romances,
representação. A escrita feminina é ensaios, peças teatrais, contos, novelas
mais reconhecida e, sobretudo, menos e outros gêneros e suportes textuais
estigmatizada, pela crítica literária, pe- (jornais, revistas, periódicos etc.).
las Academias e cânones internacio- A História sobre a Escrita Femi-
nais. Distingue-se a escrita feminina e nina integra a Historiograia sobre os
a escrita femininista. Ambas encontra- suportes, as modalidades e os gêneros
rão seus espaços possíveis e até novos discursivos mais recorrentemente utili-
espaços e interlocutores. zados para a manifestação dessa escrita
O feminismo não é confundido tão inamente, quão duramente resis-
com um estilo, mas evidenciado como tente: a feminina.
uma prática social importante e, por- A escrita feminina atravessou
tanto, ele alcança outros públicos, ou- assim o longo e delgado io do tempo.
tros objetos artísticos, outros atores e Superou seus riscos e os limites geo-
instâncias culturais e intelectuais. políticos. Ultrapassou os obstáculos
Feminina, a escrita torna-se uma linguísticos. Saltou as muralhas religio-
prática, cujo exercício enunciativo re- sas e uma série de contigências sociais,
vela uma atividade especíica: feita, familiares e escolares por elas criadas.
desfeita e refeita por mulheres, sobre A sua existência ou resistência fez-se
mulheres ou através das literaturas, possível porque tal escrita ultrapassou
artes e lutas sociais que elas criam ou as contradições culturais presentes em
recriam, como atos de escrita, como cada sociedade. Reiro-me, por exem-
formas de combate social, com tinta e plo, aos preconceitos raciais, às con-
papel, com corpo e voz: em casa, na junturas sociopolíticas, às normas e
rua, na escola, na sociedade, na im- arbitrariedades de cunho religioso, às
prensa, na cidade e no campo. imposturas intelectuais e, assim, como

• 214 •
uma escrita sobrevivente, ela, pode conteúdo narrativo, poético, ou rele-
narrar uma outra historiograia sobre a xivo. Segundo o país, a religião e o re-
literatura feminina e o mercado que ela gime político instituído tais temas po-
conseguiu criar. dem ser contestados, quando redigidos
Essa escrita feminina representa por homens e, particularmente, quan-
as novas e as antigas relações de gêne- do enunciados por mulheres.
ro, pois que muito é reincidente, denso Nos países onde a repressão
e impermeável quando se trata do lu- moral, sexual, familiar, intelectual, po-
gar atribuído aos homens e às mulhe- lítica e religiosa é fortemente marcada,
res, aos brancos e aos negros, aos ne- as mulheres, quando escritoras, escre-
gros e mestiços, aos citadinos e nativos vem dentro, mas publicam (frequente-
no interior de uma sociedade ou país. mente) fora de seus países e, por isso,
A escrita feminina teve portanto essa literatura ou escrita feminina é ou
suas vezes, seus passos, seus vieses e torna-se uma escrita exilada. A escrita
seus processos como uma escrita femi- em exílio ou a escrita do exílio é, nessa
ninista e militante. Isso ocorreu, tanto perspectiva, eminentemente uma es-
nas Américas, quanto nas Europas e crita política contra a violência fami-
nas Áfricas. Esse percurso foi neces- liar, sexual, social, urbana, cultural ou
sário senão fundamental para derrubar religiosa vivida por meninas, moças,
(o mais possível) os mecanismos de mulheres, idosas, viúvas, prisioneiras,
exclusão e certos efeitos ideológicos, artistas, escritoras e, também, mulhe-
religiosos, políticos, sociais e culturais. res portadoras de alguma deiciência.
Assim é preciso reiterar que Tais temas constituem uma espécie de
nem toda escrita feminista é feminina, literatura-denúncia ou uma literatura-
como nem toda escrita feminina é fe- -cidadã ora mais, ora menos assumida
minista. Escrever em feminino ou pelo pelas escritoras e pelos escritores des-
feminino depende também dos temas ses países, e de outros.
- possíveis ou represados - num dado A escrita feminina tem revelado,
tempo, espaço e contexto, pois esses des-coberto, re(a)presentado as rela-
temas evoluem (e se diferenciam) den- ções entre homens e mulheres ao longo
tro de um mesmo país e entre diferen- da História, ou seja, seus movimentos,
tes nações. suas alianças, adesões, distâncias, nega-
Nesse sentido cabe lembrar ções e contradições. Assim essa escrita
que nem toda escrita feminina privi- é uma respiração, cuja inspiração revela
legia, por exemplo, o tema do amor, a presença sutil e feminina no mundo
do aborto e da liberdade sexual, como e, desse modo, a sua característica ou

• 215 •
dialogia no conjunto da Literatura: o A escrita feminina existiu, antes
seu porquê, o seu diferencial, a sua nu- dos livros, dos jornais, antes mesmos
ance e o seu potencial. dos velhíssimos almanaques e periódi-
Femininas Escritas foram, sem cos, folhetins, cordéis e tantas outras
dúvida, àquelas deixadas por cem, cen- formas manuscritas, à despeito do con-
to e cinquenta, duzentas ou mais mu- trole do chamado ‘mercado livreiro ou
lheres que a partir de meados do sé- editorial’.
culo XIX, no Brasil, ousaram quebrar Na China, em Xia, na Amazô-
o silêncio, expor o corpo, soltar a voz, nia, nas matas de Rondônia, num canto
pintar o papel com palavras velhas e sem nome pelos limites com o Surina-
novas. Desse movimento, uma primei- me, entre as estradas vermelhas de Ro-
ra literatura, pela tinta da vida, pela cor raima, no corpo nativo das mulheres
do sangue e pelo feminino do corpo
do Acre, como também, em diferentes
nasceu, então, um corpo literário.
paragens, feiras e praças de artesanato
Uma escrita desaprisionada,
e bordado do Nordeste, há escritas fe-
embora refém dos valores veiculados
mininas… Elas sobreviveram em ca-
naquela temporalidade e, portanto, à
dernos femininos pelos quatro pontos
condição submissa das mulheres dian-
cardeais do Brasil… Durante longos
te dos homens, diante da Lei, diante
meses pude então identiicar: lenços,
da Política e diante da Igreja. Quando,
bandeiras, escritos, cartas, desenhos,
fora das gavetas, saíram os primeiros
poemas, os primeiros ensaios e as pri- graias, versos, cancioneiros, roman-
meiras memórias de caráter autobio- ces, rezas bordadas, ditados em teci-
gráico ou, apenas, memorialístico. dos, receitas, panos escritos, pinturas
Isso não signiica dizer que antes corporais, braceletes e outros objetos
dessa época as mulheres não escreves- reveladores de uma escrita também fe-
sem. Isso signiica apenas que, no caso minina.
brasileiro, não foi possível reconstituir A escrita feminina se adere ao
documentações, informações, aponta- papel, mas o transcende. Ultrapassa
mentos e produções (suicientes) que seus limites e, desde sempre, se encar-
nos permitam conformar, antes desse na na pele das pedras, nos cascos das
período, a existência de uma escrita tartarugas, nos troncos das árvores, na
feminina em prol de um movimento rica e diversiicada iconograia amerín-
cultural e social amplo e especíico, o dia, mas não apenas, pois que penso no
de uma literatura de corpo e voz femi- inventário das escritas femininas reper-
ninos. toriados em Xia.

• 216 •
Por vezes essa escrita é também As primeiras escritoras de cor-
uma espécie de literatura em silêncio. po feminino, no Brasil, escreveram
Uma literatura poética que escreve a suas histórias de vida, suas memórias
vida ou apenas a acompanha, de forma sobre leituras e livros lidos, seus apon-
discreta, tímida, ora mais, ora menos tamentos biográicos, bem como sua
passiva e, assim, a sua presença duran- literatura poética e artística no sentido
te os rituais de passagem e através dos mais largo da expressão. Assim izeram
objetos que são criados e trocados ao por intermédio dos pedaços-inteiros
longo da existência, como aqueles lin- de uma literatura até então (incipiente)
díssimos lenços de amor e lenços de porque sem espaço e sem vez naquele
namorado que recolhi entre o Norte primeiro contexto e mercado cultural;
e o Sul de Portugal, a partir de 2001- o mercado do livro mostrou-se hostil
2002. no país, antes e depois, da Primeira Re-
A escrita feminina é permeável, pública.
presente, receptiva à medida que ela A escrita feminina brasileira não
narra o quotidiano e (re)cria memórias foge portanto às relações de força esta-
sobre práticas sociais e culturais que se belecidas com os homens e certamente
perderiam, se subjugadas ao rigor das com outras mulheres, em particular,
normas, dos críticos e das instituições àquelas que se opuseram à emancipa-
que regulam a chamada Literatura. ção, educação e literatura femininas.
A escrita feminina é portanto Quando essa escrita se constituiu
mais abrangente porque ela não de- numa forma estética e vibração discur-
pende exclusivamente do papel, nem siva, a escrita pode manifestar a espe-
dos estatutos literários oiciais, com ciicidade de um tratamento e uso da
seus clichês, etiquetas e categorias. linguagem, a que chamamos feminina,
Essa escrita feminina pude pois iden- donde o conceito de escrita feminina.
tiicar, também, nas tapeçarias, borda- Escrita em feminino. Escritu-
dos e tecidos (samplers) mui presentes ra feminina. Feminina-escrita. Escrita
nas Áfricas, como também em países pelo feminino são nuances, marcas,
de tradição asiática, além dos países apelações e representações que procu-
do Magrebe, da América do Norte, da ram enunciar o tratamento (diferencia-
América do Sul e numa larga amostra, do e variado) dessa escrita: o seu tim-
igualmente, presente na França, Ale- bre, a sua elocução, a sua formulação,
manha, Irlanda, Escócia, Itália, Espa- o seu discurso, o seu peril, silhueta,
nha e alguns países da América Central transparência, estética, linguística e lin-
e Europa do Leste. guagem.

• 217 •
Isto dito enuncio um outro ca- MACEDO, Ana Gabriela; AMARAL, Ana Luisa. Dicio-
nário de Escrita Feminina. Porto: Apontamento, 2005.
minho, cujas indicações bibliográicas
abaixo não são exaustivas, bem evi- MUZART, Zahide Lupinacci Muzart (org.). Dicionário:
Escritoras brasileiras do século XIX. Florianópolis: Ed.
dentemente, mas apoiam e ampliam os Mulheres, 1999, 2001 e 2009. vol. I, II e III.
apontamentos neste verbete sobre esse SANTELLANI, Violette. Femme sans igures et igures
mundo, muito vasto, o da escrita femi- des femmes. In: ROSSUM, Francoise Van; DÍAZ-DIO-
CARETZ, Myriam (Ed.). Hèléne Cixous: Chemins
nina e sua literatura. d’une Écriture. Amsterdam: Rodopi, [s. d.]. p. 149-61.

SLAMA, Béatrice. De la « littérature féminine» à « l’écri-


Catitu Tayassu
re-femme»: diférence et institution. In: Littérature, n°44,
1981. Paris: Perse: L’institution littéraire II. p. 51-81.
Referências e sugestões de leitura
SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território
selvagem. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (Org.).
ANDRADE SOUTO-MAIOR, Valéria. Índice de dra- Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cul-
maturgas brasileiras do século XIX. Florianópolis: Ed. tura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 23-57.
Mulheres, 1996.
TELLES, Norma. Escritoras, escritas e escrituras. In:
BADINTER, Elisabeth. Um é o outro: relações entre ho- PRIORI, Mary de. (Org.). História das mulheres no Bra-
mens e mulheres. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
sil. São Paulo: Contexto, 1997, p. 401-442.
BEAUVOIR, Simone. Les femmes s’entêtent. Paris:
VIANA, Maria José Mota. Do sótão à vitrine : memórias
Temps Modernes, 1974.
de mulheres, Belo Horizonte : UFMG, 1993.
BRANDÃO Izabel ; MUZART, Zahidé Lupinacci
(Orgs.) Refazendo nós : Ensaios sobre mulher e Literatu-
ra, Florianópolis: Ed. Mulheres, 2003.

CESBRON, Georges. “Écritures au féminin. Proposi-


tions de lecture pour quatre livres de femmes”. In: Degré Esporte
Second, Paris, juillet, 1980. p. 75-119.

CIXOUS, Hélène. Chemins d’une écriture. Paris: Presses Não há dúvidas de que na con-
Universitaires de Vincennes, Paris 8, 1990.
temporaneidade o esporte se tornou
CUNHA, Helena Parente (Org.). Desaiando o cânone: um fenômeno cultural com grande
aspectos da literatura de autoria feminina na prosa e na
literatura (anos 70/80). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, abrangência e visibilidade, envolvendo
1999. sujeitos de diferentes contextos cultu-
DE LACERDA, Lilian (Catitu Tayassu). Álbum de lei- rais, seja como praticantes, seja como
tura : memórias de vida, histórias de leitoras, São Paulo
: Unesp, 2003.
espectadores. É uma prática regular
que se desenvolve no cotidiano das
DUBY, Georges; PERROT, Michelle (dir.). Histoire des
femmes en Occident, Paris: Plon, 1990-1991. (5 volu- cidades modernas, despertando inte-
mes). resse, mobilizando paixões, evocando
KRISTEVA, Julia. Revolution in Poetic Language, USA: sentimentos, criando representações
Columbia University Press, 1984.
de corpo, saúde e performance, con-
MISTACCO, Vicki, “Chantal Chawaf,” in Les femmes vocando nossa imediata participação.
et la tradition litteraire - Anthologie du Moyen Âge à nos
jours; Seconde partie: XIXe-XXIe siècles. London: Yale Ainda que seja uma prática que
Press, 2006. p.327-343. adquiriu centralidade na agenda políti-
• 218 •
ca e pedagógica do Brasil em função da ensinado consoante as regras sociais e
organização de megaeventos como a morais daquele tempo e que, ao mo-
Copa das Confederações 2013, a Copa diicar alguns dos antigos jogos po-
do Mundo de 2014 e os Jogos Olím- pulares, impõe a necessidade de uma
picos de 2016, há que referenciar que educação do corpo e do espírito dos
o esporte não é uma invenção do pre- jovens de forma a despertar lideran-
sente. Resulta de conceitos e práticas ças e a personiicar, em carne e osso,
há muito estruturadas no pensamento os ideais representativos de um grupo
ocidental, cujos signiicados foram e social especíico.
são alterados não só no tempo, mas Signo de distinção social, o es-
também no local onde aconteceram e porte passa a ser um estilo de vida,
acontecem. Em outras palavras, o es- com elementos constitutivos que são
porte possui história, e a identiicação expressos na comparação das perfor-
de seu surgimento remete a duas ver- mances atléticas e dos resultados, no
tentes teóricas: uma que localiza suas estabelecimento e submissão às regras
origens na Antiguidade, a partir da ixas, na especialização e na hierarqui-
sua similaridade com algumas práticas zação de papéis e funções, na organi-
vivenciadas por chineses, egípcios e zação em clubes, federações e outras
gregos, e outra que entende o espor- entidades e na estruturação de um
te como um produto da modernidade calendário próprio, tendo no olimpis-
que, apesar de sustentar certa seme- mo um campo de reairmação de sua
lhança com algumas práticas antigas, expressão, institucionalização e conso-
apresenta signiicados e sentidos com- lidação. Entendido aqui como um mo-
pletamente diferentes daquelas. vimento que nasce no inal do século
Em que pese essas diferentes XIX, cuja intervenção se dá na orga-
interpretações, o processo de organi- nização e promoção de valores agrega-
zação do esporte se consolida no im dos à prática esportiva e que tem nos
do século XIX e no início do XX, tor- Jogos Olímpicos sua expressão máxi-
nando-se símbolo de uma sociedade ma, o olimpismo é um terreno pleno
que enaltece os desaios, as conquis- de ambiguidades, pois, ao mesmo tem-
tas, as vitórias e o esforço individual. po em que procura assegurar uma cer-
É o esporte moderno, que se origina ta tradição oriunda da Grécia Clássica,
no século XVIII e se expressa nas pu- convive com a espetacularização do
blic schools inglesas (escolas destinadas esporte que, em diferentes situações,
a formar os ilhos da elite), espaço de distancia-se radicalmente dos valores
construção dos corpos e dos valores agregados às competições de outrora.
burgueses. O esporte que passa a ser Ou seja, há em torno do esporte rasgos

• 219 •
de tradição e de espetáculo, colocando intenso esforço pessoal, conquistaram
em ação diferentes paixões, sentimen- um lugar ao sol num mundo pleno de
tos, atitudes, desejos e vontades. adversidades. O esporte opera também
Ao analisar o esporte, há que se ao nível do imaginário individual e co-
considerar seu inegável potencial de letivo, quando é representado como
mobilização. Não é necessário muito promessa de felicidade, ascensão so-
esforço para identiicar sua capacidade cial, marketing pessoal, domínio tec-
de reunir pessoas de diferentes etnias, nológico, reconhecimento nacional e
gêneros, idades, orientações sexuais, airmação política de determinado país
classes sociais e credos religiosos. Os ou ideologia.
eventos esportivos são exemplares Assim, ainda que possamos
dessa airmação, pois neles podemos falar de um certo espírito olímpico,
visualizar uma espécie de expressão identiicando-o com o amadorismo, o
pública de emoções socialmente con- fair-play, a confraternização entre po-
sentidas: o frenesi, o congraçamento, vos, a exaltação à identidade nacional
a rivalidade, o êxtase, a violência, a e à promoção da paz, na atualidade é
frustração, a explosão em aplausos e necessário ressigniicar esses termos,
lágrimas de sentimentos que fazem vi- visto que não é mais possível entendê-
brar a alma dos sujeitos e das cidades -los como foram idealizados na Grécia
no exato momento em que viviicam a Clássica nem como foram recriados no
tensão entre a liberação e o controle de contexto europeu do século XIX. Há
emoções individuais. um tempo decorrido e outros sentidos
Esse demarcado interesse que o e signiicados foram se agregando ao
esporte desperta nos indivíduos cum- esporte, alterando, por consequência,
pre com a destruição da rotina, na me- muitos de seus valores e de seus princí-
dida em que possibilita uma espécie pios. Essa airmação remete à ideia de
de excitação agradável, promovendo que o esporte é plural e manifesta-se
o sentimento de identiicação coleti- de maneiras distintas em diferentes
va (ELIAS; DUNNING, 1985). Para culturas e tempos, e a essas manifes-
além dessas possibilidades, poderíamos tações agregam-se múltiplos valores.
pensar na própria promoção do espaço Solidariedade, consagração, celebração
esportivo como um terreno de virtu- são palavras por demais positivas se
osas visibilidades, visto que em torno pensarmos nas zonas de sombra que
do esporte, em especial de alto rendi- também residem no interior do mundo
mento, há a construção de representa- esportivo. Nacionalismos exacerbados,
ções que associam seus protagonistas exploração comercial e econômica,
com iguras heroicas que, mediante corrupção, especialização precoce, do-

• 220 •
ping, violência, discriminação sexual mulheres para nele se inserir e perma-
também têm sido temas a fazer parte necer. Representado, construído e pen-
do cotidiano esportivo, mesmo que sado como um território de domínio
por vezes os minimizemos e busque- dos homens, desde seus primórdios
mos a todo custo recuperar a tradição e às mulheres foram destinadas muitas
com ela fazer valer a representação do restrições, cerceamentos e interdições,
esporte como promotor de uma huma- grande parte delas assentadas no te-
nidade imanente a cada um de nós. mor à masculinização e aos prejuízos
Se por um lado o esporte con- que essa prática poderia trazer ao cor-
temporâneo está associado à exibição po feminino, sobretudo se pensarmos
de corpos tecnologicamente produ- em uma representação de feminilidade
zidos e treinados, à demonstração de fundamentada na beleza, na fragilidade
performances que parecem romper e na maternidade.
com os limites do corpo, reairman- Passado muito tempo de sua es-
do sua espetacularização, à exibição truturação, o esporte ainda se mostra
de marcas e produtos a promover seu como um terreno marcado pela desi-
consumo fácil, por outro, a essas prá- gualdade de gênero. Em que pesem as
ticas articulam-se discursos que exal- várias das conquistas das mulheres nes-
tam o seu potencial educativo, expli- se campo, ainda são bastante distintas
citado no convívio entre os diferentes, as condições por elas vivenciadas em
no exercício da competição sadia, no comparação aos homens. No esporte
congraçamento, na solidariedade e na de rendimento, são bem menores os
paz relevando, desse modo, o quanto recursos destinados para patrocínios,
é ambíguo o mundo esportivo. Cabe incentivos, premiações e salários; em
lembrar ainda que na cultura contem- algumas modalidades, a realização de
porânea o esporte se presentiica por campeonatos é bastante restrita e, por
meio de diferentes possibilidades, vezes, inexistente; há pouca visibilida-
sendo o alto rendimento uma de suas de nos diferentes meios midiáticos; a
faces. O esporte é também praticado participação de mulheres em órgãos
como opção de lazer e divertimento, dirigentes e de gestão do esporte é ín-
como espaço de sociabilidade, como ima; a inserção em funções técnicas,
opção de prevenção e/ou reabilitação, como treinadoras e árbitras, ainda é
sendo que a sua apropriação é recriada diminuta.
por quem o usufrui. Em relação ao esporte como
O esporte também é generiica- uma vivência de lazer, também há
do e, ao longo de sua história, foram muito a ser conquistado em termos
muitas as lutas empreendidas pelas de tempo e disponibilidade, uma vez

• 221 •
que, diante da responsabilização das KNIJINIK, Jorge Dorfman (org.). Gênero e esporte:
masculinidades e feminilidades. Rio de Janeiro: Apicuri,
mulheres pelo trabalho doméstico e a 2010.
criação dos ilhos, é notória a restrição
de seu tempo de lazer. Além dessas as- •
simetrias, originárias de representações
historicamente construídas, existem Essencialismo
outros temas ainda pouco abordados
em análises relacionadas à presença das Em seu sentido ilosóico, o es-
mulheres no esporte e que merecem sencialismo constitui-se em uma cor-
rente de pensamento que defende que
maior atenção e cuidado, tais como a
os sujeitos e o mundo que os cerca
crença de que algumas modalidades as
possuem propriedades essenciais, mar-
masculinizam e por essa razão devem
cando-os e constituindo-os enquanto
ser evitadas; os assédios sexual e mo-
o que são. No caso especíico dos fe-
ral e a violência sexual presentes em
minismos, essa perspectiva auxiliou na
clubes, federações e outras instituições
constituição da ideia de que existiria
esportivas; o pouco reconhecimento
uma essência feminina, concepção que
à diversidade sexual; a erotização no auxiliou na constituição de um projeto
modo de se referir às atletas, destacan- intelectual e político para pensar e agir
do seus atributos físicos e estéticos (ou em nome de um nós, a Mulher.
a ausência deles) e não seus méritos es- Segundo Daiana Full (1990, p.
portivos; a subvalorização do esporte 2), apesar do essencialismo ter se ar-
como sua principal ocupação prois- ticulado de muitas maneiras aos femi-
sional; e a não compreensão de que o nismos, podemos pensar essa relação
esporte pode se constituir como um a partir da ideia de uma feminilidade
espaço capaz de empoderá-las. pura, original, na essência fêmea, fora
dos limites do social e, portanto, não
Silvana Vilodre Goellner corrompida (embora, talvez, reprimi-
da) pela ordem patriarcal. O feminis-
Referências e sugestões de leitura mo da diferença desempenhou um
DEL PRIORI, Mari; MELO, Victor Andrade de (org.).
importante papel na constituição de
História do esporte no Brasil: do Império aos dias atuais. uma identidade essencialista, tendo em
São Paulo: Editora da Unesp, 2009.
mente que estudiosas, como Luce Iri-
ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excita- garay e Helène Cixous, defenderam a
ção. Lisboa: Difel, 1985.
existência de uma profunda diferença
GOELLNER, Silvana V. A pluralidade e o potencial pe- entre homens e mulheres, pois, ao mar-
dagógico do esporte na atualidade. Revista E, São Paulo,
v. 11, n. 2, p. 36-39, ago. 2004. car a alteridade feminina, fundamen-

• 222 •
talmente alicerçada na biologia, busca- reivindicações das muitas (e diferentes)
vam alcançar uma equidade social. mulheres.” (2011, p. 49).
Em um panorama geral, as fe- Dessa forma, as mulheres ne-
ministas inseridas dentro do movi- gras, trabalhadoras, lésbicas, enim,
mento da segunda onda questionavam passaram a questionar as relações de
“justamente que o universal, em nos- poder que atravessavam o próprio
sa sociedade, é masculino, e que elas movimento feminista, reivindicar a
não se sentiam incluídas quando eram diferença dentro da diferença. Assim,
nomeadas pelo masculino” (PEDRO, gradualmente o termo Mulher passou
2005, p. 80). Dessa maneira, enquan- a ser utilizado em sua pluralidade, as
to projeto intelectual e político, os fe- Mulheres, com o intuito de romper o
minismos passaram a reivindicar uma binarismo igualdade versus diferença,
cuja antítese “esconde a interdepen-
identidade comum, a Mulher, conver-
dência desses dois termos, pois a igual-
gindo, no campo acadêmico, para uma
dade não é a eliminação da diferença
proposta intelectual comum: opor-se
e a diferença não evita a igualdade”
aos pressupostos androcêntricos dos
(SCOTT, 1988, p. 38). Concepção,
saberes dominantes, rompendo, com
como já explicitado, que obscurece, ao
essa atitude, com a rigidez de propo-
se prender a oposição essencialista Ho-
sições normativas e estáticas de pensa-
mem versus Mulher, a própria diferen-
mento. ça entre as mulheres, seja no âmbito de
Contudo, a ideia essencialista seus desejos, caráter, comportamen-
que envolvia a categoria Mulher come- to, sexualidade, gênero, identiicação,
çou a ser fraturada dentro dos femi- subjetividade e experiência histórica
nismos, tendo em mente que passou a (SCOTT, 1988, p. 45).
problematizar a diferença entre as pró- Apesar da pluralidade imbricada
prias mulheres. Nas palavras de Gua- na categoria Mulheres, o foco principal
cira Lopes Louro: “A diferença entre da pauta feminista ainda era a subordi-
as mulheres, reclamada, num primeiro nação das mulheres à autoridade mas-
momento, pelas mulheres de cor, foi, culina, em suas diversas formas sociais,
por sua vez, desencadeadora de deba- culturais, políticas, econômicas e histó-
tes e rupturas no interior do movimen- ricas. Para Elisabeth Badinter (2005, p.
to feminista. Com acréscimo dos ques- 16-17), as denúncias e reivindicações
tionamentos, trazidos pelas mulheres feministas acabaram por valorizar uma
lésbicas os debates tornaram-se ainda vitimização do sujeito do feminismo.
mais complexos, acentuando a diversi- Dessa forma, “o infortúnio equivale
dade de histórias, de experiências e de a uma eleição, enobrece quem sofre, e

• 223 •
reivindicá-lo é arrancar-se da humani- a experiência de um sexo, tenha mui-
dade comum, é transformar o próprio to pouco, ou nada, a ver com o outro
desconcerto em glória”, ou seja, ao sexo” (SCOTT, 1990, p. 7). Ou seja,
cristalizarem uma vitimização femini- em um primeiro momento as feminis-
na, o feminismo da diferença utilizou tas criticaram o caráter androcêntrico
essa questão como um impulso, tendo da sociedade, propondo um ilogini-
em mente que “(...) a vitimização do
zação radical de suas lutas políticas e
gênero feminino permite unir a condi-
produções intelectuais, mas acabaram
ção das mulheres e o discurso feminis-
por recair em sua própria crítica, em
ta sob uma bandeira comum. Assim,
o quebra-cabeça das diferenças cultu- uma proposta de emancipação que vi-
rais, sociais ou econômicas desaparece sava somente “metade da sociedade”,
como pelo toque de uma vara de con- as Mulheres.
dão. Pode-se até comparar a condição Nesse contexto, o gênero apare-
das europeias, sem enrubescer, com a ceu enquanto categoria questionadora
das orientais, por serem mulheres, são dos modelos estáticos e estereotipados
vítimas do ódio e da violência.” (BA- construídos para homens e mulheres,
DINTER, 2005, p. 18). ou seja, os dispositivos que naturalizam
Apesar de colocar essas ques- padrões de comportamento atribuídos
tões em discussões em diferentes ní- a cada um deles. Contudo, como to-
veis da sociedade, a perspectiva es- dos os empreendimentos dos estudos
sencialista acabou por cristalizar, em feministas, o desenvolvimento teórico
algum sentido, a própria desigualdade do gênero esteve profundamente mar-
que buscava romper. Ou seja, “a críti- cado por uma pluralidade de pensa-
ca feminista também deve compreen- mento presente no seio do movimento
der como a categoria das ‘mulheres’, intelectual e político dos feminismos.
o sujeito do feminismo, é produzida e Em um primeiro momento, as
reprimida pelas mesmas estruturas de estudiosas ligadas aos Estudos Sociais,
poder por intermédio das quais busca- como a Antropologia Social ou a His-
-se a emancipação” (BUTLER, 2008, tória Social, problematizaram a subor-
p. 19). dinação das mulheres por meio do es-
Assim, as feministas da terceira tudo do sistema sexo-gênero, que opôs
onda (1980/90) passaram a propor que o sexo biológico ao gênero cultural. Ao
“estudar as mulheres de maneira isola- cunhar o termo, Gayle Rubin (1993)
da perpetua o mito de que uma esfera, buscava conceituar, sob sua égide, uma
série de arranjos pelos quais uma socie-

• 224 •
dade transforma a sexualidade biológi- discursivo/cultural mediante o qual
ca em produtos da atividade humana, o sexo é estabelecido como natural
e nos quais essas necessidades sexuais ou pré-discursivo. Nessa linha inter-
transformadas são satisfeitas. Num ní- pretativa, o sexo é, ele próprio, uma
vel mais geral, a organização social do postulação, um constructo que se faz
sexo se basearia no gênero, na obriga- no interior da linguagem e da cultura
toriedade do heterossexualismo e na (GUACIRA, 2008; BUTLER, 2010).
repressão da sexualidade da mulher, ou Ao inalizar, observamos dife-
seja, o gênero seria uma divisão social rentes momentos em que os feminis-
imposta aos sexos. mos se depararam e repensaram as for-
Segundo Michelle Perrot (2005), mas como suas próprias reivindicações
essa abordagem do gênero contribuiu e produções intelectuais esbarravam
para o entendimento de como as re- na ordem da essência. Assim, as críti-
presentações e os símbolos operam cas, por nós apontadas nesse verbete,
no campo da cultura e do poder, bem põe em questão a estrutura fundante
como deu destaque ao peso que as re- em que o feminismo, como política de
lações entre os sexos possuem sobre identidade, vem-se articulando. Assim,
os acontecimentos ou na evolução da os feminismos vêm pensado seus posi-
sociedade. Assim, o empreendimento cionamentos, com o intuito de criticar
teórico do sistema sexo-gênero con- a própria estrutura de um relato apre-
tribuiu, de muitas maneiras, para se sentado como universal, nas próprias
pensar no gênero como interpretação palavras que o constituem, não somen-
múltipla do sexo. te para explicar os vazios e os elos au-
Porém, as estudiosas vinculadas sentes, mas para sugerir outras leituras
aos Estudos Culturais, especialmente possíveis.
àquelas ligadas às teorizações pós-es-
truturalistas, passaram a questionar o Ivonete Pereira
Gregory da Silva Balthazar
caráter essencializante da interpretação
do sexo enquanto um dado natural –
Referências e sugestões de leitura
que existiria antes da inteligibilidade,
ou seja, seria pré-discursivo, de caráter BADINTER, Elisabeth. Rumo Equivocado: O Feminis-
mo e Alguns Destinos. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
imutável, a-histórico (LOURO, 2008, sileira, 2005.
p. 66). Assim, passou-se a tencionar
BUTLER, Judith. Corpos que Pesam: Sobre os Limites
uma relexão sobre a historicidade do Discursivos do “Sexo”. In: LOURO, Guacira. O Corpo
próprio conceito de sexo e do cor- Educado: Pedagogias da Sexualidade. Belo Horizonte:
Editora Autêntica, 2010, pp. 151-172.
po, sugerindo que o gênero é o meio

• 225 •
______. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão O desaio é produzir conheci-
da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2008. mento sem que se caia na armadilha
conceitual de se (re)produzir estereó-
FULL, Diana. Essentially Speaking: Feminism, Nature,
and. Diference. London: Routledge, 1990. tipos. Mas a história dos pensamentos
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educa-
cientíicos evidencia que não foram
ção: Uma Perspectiva Pós-Estruturalista. Petrópolis: Edi- poucos os equívocos de estereotipia
tora Vozes, 2011.
cometidos nos mais diferentes cam-
______. Um Corpo Estranho: Ensaios sobre a Sexuali- pos, o que contribuiu para induzir os
dade e Teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
interlocutores a um comportamento
PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o Debate: O Uso da reprodutivo.
Categoria Gênero na Pesquisa Histórica. História, São
Paulo, v. 24, nº 1, pp. 77-98, 2005. Assumir um determinado con-
ceito de estereótipo, como sendo o
PERROT, Michelle. As Mulheres ou os Silêncios da His-
tória. Bauru: Edusc, 2005. mais adequado ou apropriado para a
______. Escrever uma História das Mulheres: Relatos de
análise, estimula o nascedouro de mais
uma Experiência. Cadernos Pagu, n. 4, pp. 9-28, 1995. uma abordagem sem a crítica, comple-
RUBIN, Gayle. O Tráico de Mulheres: Notas sobre a
xidade ou lexibilidade que o termo
“Economia Política” do Sexo. Recife: SOS Corpo, 1993. exige.
SCOTT, Joan. Deconstructing Equality-Versus-Diferen- Em diversas áreas os estereó-
ce: Or, the Uses of Poststructuralist heory for Feminism. tipos são tomados como concepções
Feminist Studies, v. 14, n, 1, pp. 33-50, 1998.
rígidas sobre a realidade que não acei-
______. Gênero: Uma Categoria Útil de Análise His- tam ponderações, questionamentos ou
tórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, 16 (2), pp.
5-22, 1990. contraposições. Ou, ainda, como ima-
STONE, Alison. Essentialism and Anti-Essentialism in
gens mentais reduzidas, simpliicadas
Feminist Philosophy. Journal of Moral Philosophy, n. 1, sobre um fato do cotidiano, pessoa,
v. 2, pp. 135-153, 2004.
grupo, lugar, crença, instituição, ma-
nifestação, constituindo-se como um
• julgamento generalizado, resultado do
acesso fragmentado, incompleto, a in-
Estereótipos formações sobre o observado, ou que
se dá mesmo anteriormente à obser-
Compreender o termo estere- vação. Esta forma de pensar conduz
ótipo exige que a análise equacione a um modo de agir e ressalta algum(s)
complexidade, lexibilidade e crítica aspecto(s) especíico(s), único que
necessárias para que não se reconstru- possa(m) ser impingido(s) como carac-
am modelos restritivos de abordagem terística única e determinante do todo,
da questão no campo teórico e práti- de modo a ser visto qualitativamente
co-social (Castro, 1999). como positivo ou negativo.

• 226 •
A questão, assim, na busca da que são diferentes da forma do “eu”
complexidade necessária, não seria de- pensar ou agir, culminou no exercício
bater ou discutir sobre a caracterização de poder econômico-político-ideológi-
dos estereótipos e nem sobre qual seria co de um povo sobre seus inimigos, de
a melhor conceituação para esta pala- um rei sobre seus súditos, de um gêne-
vra, o que seria um reducionismo. Mas, ro sobre o outro.
antes, de discutir os possíveis efeitos Na Ciência, os esforços para
que pensamentos, atitudes ou imagens descobrir ou até criar mecanismos que
estereotipadas possam provocar no justiicassem determinados compor-
âmbito social, político, econômico e tamentos humanos não foram raros e
no campo das Ciências sobre a ques- redundaram em versões estereotipadas
tão de gênero; do que é ser homem da realidade. Os sociólogos positivis-
ou mulher; fêmea ou macho; ativo ou tas Auguste Comte e Émile Durkheim
passivo; homo ou hetero, entre tantas se ocuparam de encontrar regras que
outras formas de se reduzir, estereo- se repetissem, com resultados seme-
tipando as relações humano-sociais lhantes, em contextos, comunidades e
em normais ou patológicas segundo o localidades diversas. Na Psicologia, os
pensamento binário, ou para além des- antecessores de Freud foram buscar
te, a bissexualidade, pan-sexualidade, nas vidas passadas a causa da histeria,
entre outras manifestações humanas. considerada um comportamento es-
Na trajetória da humanidade, tranho aos “padrões” sociais. Nas re-
pensamentos, atitudes e imagens este- ligiões, o ser humano foi visto como
reotipadas colaboraram para explicar produto divino, pronto. No campo das
e/ou legitimar como causa ou efeito linguagens, o estruturalista Ferdinand
da dominação e exploração de um gru- Saussure teve o mérito de conferir um
po pelo outro, de um país pelo outro, caráter cientíico à língua, mas correu
de um gênero sobre o outro; em que o risco de limitar o ser falante ao al-
a estereotipia positiva, historicamen- mejado objetivismo de uma dita nor-
te construída, cabia ao dominante ou ma culta, concebida no seu Curso de
aquele validado como conhecimento Linguística Geral (2013), excluindo, do
verdadeiro; e a estereotipia negativa ao campo de pesquisa, a subjetividade que
dominado ou aquele negado no campo funciona na fala, ou que fala no jogo
dos conhecimentos epistemologica- da alteridade, das relações presentes no
mente válidos. encontro “eu-outro”.
A concepção de opiniões sobre Nos anos de 1960, o pensar o
o “outro”, que não se coadunam com humano como ser que se constitui na
o universo de experiências do “eu”, linguagem, por intermédio do outro,

• 227 •
e, numa relação de troca, atua como o humano à vida, que o faz se alimen-
sujeito na constituição do outro e da tar com novas possibilidades, novas
própria linguagem começou a ganhar teorias, conhecimentos e pontos de
força na França, a partir de teorias sur- vista, que gera inquietações, que o faz
gidas no inal da década de 1920 e no se relacionar com o “outro” almejando
início da de 1930, com a Escola dos a superação das estereotipias. (BAKH-
Annales (BURKE, 2000). Vale lembrar TIN, 1997)
que Freud, no inal do século XIX, já Em vez de ser encarado como
havia iniciado, com a Psicanálise, os es- resultado de uma física social, em que
tudos sobre a inluência da linguagem seria apenas fruto de um conjunto de
na vida humana, inclusive na constitui-
normas pré-estabelecidas, convivendo
ção do inconsciente, teoria que é reto-
com um grupo de iguais, o humano,
mada, volta a ser discutida mais tarde
então, passa a ser visto como único e
na França, com pensadores que cola-
agente ativo da construção histórica
boraram para a construção uma nova
história das Ciências e perceberam plural. Essa unicidade, no entanto, não
que a tentativa de achar fórmulas para poderia advir senão da incompletude
a complexa teia de relações humanas proveniente das relações estabelecidas
poderia apagar, eliminar as diferenças ao longo da existência. O conjunto de
individuais. Quando isso ocorre, a aná- experiências possível a um indivíduo
lise, em vez de ser relativizada, tende não é igual a qualquer outro habitante
a se supericializar, dando origem, jus- do planeta. Mas isso não exime o hu-
tamente, aos estereótipos sancionados mano de ser social, já que, para ser úni-
por pares acadêmicos e fazendo escola. co, a coletividade que o cerca é funda-
(MARTINS, 2004) mental para constituí-lo como tal. Isso
Também no inal da década de
se dá concomitantemente à proposta
1920, na Rússia, Mikhail Bakhtin e seu
de que a coletividade é uma somató-
Círculo de Pesquisa praticamente da-
ria de seres únicos e diferentes uns dos
vam origem a uma ilosoia da lingua-
outros, o que, por si, poderia ser um
gem baseada na dialogia, na concepção
da história como construção social e obstáculo à construção de estereóti-
da Ciência como heterociência, resul- pos. É nesse contato com o diverso, o
tado do intercâmbio entre consciências além do “eu”, o externo, que os grupos
de seres falantes, em que o “eu” é, sim, humanos buscam a desconstrução dos
fragmentado, incompleto, mantendo- estereótipos. Olhar para o igual não
-se, assim, até a morte. Mas é essa in- acrescenta, não produz dúvidas, não
completude, para Bakhtin, que chama faz pensar. Fechar-se no “eu”, mono-

• 228 •
logizante, individualista, elimina a pos- Sendo assim, os estadistas não
sibilidade da experiência, do conhecer, sairiam de cena, mas agora dividiriam
do deparar-se com o “outro” e fazer espaço nos bancos acadêmicos com
um exercício de convivência, de aceita- grupos sociais antes discriminados,
ção, de tolerância. marginalizados, cujas vozes eram aba-
Para estimular o novo, o dife- fadas, pelos “donos do poder”, em for-
rente, a Ciência necessitava, num tem- matos estereotipados com validação
po de efervescência política e cultural negativa. Foram e são ainda exemplos
que foi a década de 1960, mudar o os negros, homossexuais, loucos, mu-
foco e pensar o individual, cada huma- lheres, trabalhadores rurais, transexu-
no enquanto único. Alterar a óptica da ais, bissexuais, num desilar crescente
relexão, migrando da análise histórica de demandantes que, no século XXI,
linear – baseada nos grandes feitos de levantam-se contra as visões e discur-
governantes e imperadores e no per- sos estereotipados, reducionistas e
curso temporal, cronológico, quase que privadores do fomento de diferentes
restrito ao gênero masculino como go- identidades com igual valor.
vernante e do macho guerreiro – para Os campos que tinham, então,
a observação das rupturas, das descon- um caráter unilateral, passaram a lançar
tinuidades históricas que constituem luzes sobre outras fatias da coletivida-
não uma linha, mas uma teia sustenta- de negadas em seus modos de ser, pen-
da sobre discursos, caracterizada por sar e existir pela visão e pelos discursos
repetições, retomadas e silenciamentos estereotipados do real. Antes elitizada,
de alguns textos em detrimento de ou- os estudos davam pistas de que entra-
tros, de alguns conceitos e não de ou- va num processo de abertura, em que
tros que tornam a realidade visível ou a ascensão das classes trabalhadoras
oculta ao pensar. para os bancos universitários faria sur-
É nesse jogo de tensões, de gir um coral de vozes, falas e discursos
disputas ideológicas por meio da lin- dissonantes do dominante tradicional
guagem que a história é construída, – branco, macho, heterossexual, cris-
as relações de gênero explicitadas ou tão –, clamando pelo direito de existir
ocultadas e os estereótipos construídos para além dos estereótipos negativos
ou desconstruídos ou reinventados do que lhes haviam sido historicamente
micro ao macro, segundo pensadores impingidos e construídos como limi-
franceses como Michel Foucault e Mi- tadores da existência. Neste ponto, o
chel Pêcheux. movimento feminista, o movimento

• 229 •
LGBT e o movimento negro foram trimento da fêmea, da mulher, do ho-
forças substantivas na negação de este- mossexual, dos saberes cotidianos que
reótipos e pela busca da igualdade. sobrevivem longe dos bancos acadê-
Nesse contexto, permite-se micos e de tantas outras potencialida-
pensar que a eliminação das diferenças des humanas diversas e plurais.
individuais que explicam os estereó- Considerando o exposto, a in-
tipos encontra respaldo na repetição trodução de estudos sobre grupos
exaustiva de determinados conceitos marginais gerou novas estratégias de
ou imagens, que são transmitidos por manutenção do poder. Essas, por sua
gerações e acabam se consolidando vez, resultaram em novas formas de
como suicientes para explicar o mun- resistência e, por conseguinte, de es-
do, a ponto de tornar invisíveis as re- tereótipos tanto positivos quanto ne-
lações de gênero como constitutivos gativos num jogo de formações das
do real e opressor do outro gênero, consciências, em que, por vezes, o este-
do outro sexo, da outra conduta. Os reótipo foi assumido como uma força
estereótipos, neste ponto, camulam a de reação capaz de unir o grupo contra
exploração e dominação do outro pela os oponentes. Nesse confronto, entre
absoluta exclusão, no caso da valora- estratégias de manutenção do poder e
ção negativa, ou pelo poder absoluto, de resistência é que emerge o novo, a
no caso da valoração positiva, ao apa- oportunidade do diálogo, do pensar
gar as pegadas individuais. sobre os próprios conlitos expressos
No entanto, isto não ocorre de na linguagem e por meio dela. Dessa
forma aleatória. As repetições ou silen- forma, os conceitos sobre o “outro”
ciamentos dependeriam dos interesses vão mudando, alternando-se, sofren-
dos grupos ou indivíduos detentores do variações, contribuindo para uma
de poder numa relação “eu-outro”, discussão sobre os estereótipos que
que direcionam o aparecimento de cer- permeiam as relações sociais, quer po-
tos textos e imagens e não de outros e sitivamente ou negativamente.
a forma como vão aparecer. A dissemi- Diante disso, o desaio é pro-
nação e a manutenção dos estereótipos mover uma lexibilização dos próprios
poderiam ser vistas, nesse nosso jogo conceitos, entendendo, assim, que a
argumentativo, como controle social, Ciência não é portadora de verdades
visando à manutenção e à perpetua- absolutas e que a transformação do co-
ção do próprio poder, do statu quo do nhecimento não se dá na reairmação
macho, do homem, do heterossexual, de dogmas, paradigmas estáticos, este-
do que tem formação superior, em de- reotipados, ou, então, no fazer Ciência

• 230 •
exclusivamente para e com a Ciência, MENIN, Maria Suzana de Stefano. Representação Social
e Estereótipo: A Zona Muda das Representações Sociais.
mas na abertura a vozes plurais disso- Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa. Jan-Abr. 2006, vol.
nantes que ultrapassam os estereótipos 22, n. 1, p. 43-52. Universidade de Brasília (UnB).

de poder que constituíram verdades PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à
airmação do óbvio. Tradução: Eni Puccinelli Orlandi. 2.
históricas conceituais/visuais ou não. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995.
Disso, dependem visões menos este-
reotipadas e mais democráticas e par- •
ticipativas, em que a contribuição das
diferenças individuais apareça em meio
Etnia
a diferentes processos sociais.
No estudo das sociedades, a
Igor José Savenhago partir da análise do grau de consciên-
Wlaumir Doniseti de Souza cia que um determinado grupo social
tem da sua especiicidade cultural, his-
Referências tórica, linguística, religiosa (até mesmo
racial), o termo etnia (e em alguns ca-
BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHINOV, V. N.). Marxis-
sos, grupos étnicos, como substituti-
mo e ilosoia da linguagem. 8.ed. São Paulo: Hucitec,
1997. vo), vem obtendo razoável aceitação.
Como os conceitos de raça e de tribo
BURKE, Peter. Escola dos Annales (1929-1989): a re-
volução francesa da historiograia. São Paulo: Editora da são objeto de críticas, enquanto refe-
Unesp, 2000. rencial de análise, o conceito de etnia
CASTRO, Florêncio Vicente; DIAZ, A. V. D.; VEJA, J. tem sido cada vez mais utilizado para
L. V.. Construcción psicológica de la identidad regional: designar a presença de características
tópicos y estereótipos em el processo de socialización el
referente a Extremadura. Badajoz (Espanha): Gráica Dis- culturais comuns a um determinado
putación Providencial de Badajoz, 1999, p. 63-66. grupo social, como, por exemplo, a lín-
MARTINS, R. M.; RODRIGUES, M. L. Estereótipos gua e os costumes. Ainda assim, mui-
sobre idosos: uma representação social gerontofóbica. tos estudiosos consideram o conceito
Millenium. Revista do ISPV, 29, 249-254, 2004.
como incompleto, demandando aper-
SAUSURRE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. 1ª feiçoamento teórico.
reimpressão. São Paulo: Cultrix, 2013.
A palavra etnia deriva de ethnos,
Sugestões de leituras vocábulo grego para designar “povo”,
que, no entanto, podia designar tam-
BAKHTIN, Mikhail. Hacia una ilosoia del acto ético.
bém povos não gregos (conferindo ao
Barcelona: Anthropos, 1997.
termo, neste caso, o sentido de “es-
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de ve- trangeiro”).
lhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Entre os israelitas da Antiguida-
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 14. ed. Rio de, a palavra equivalente em hebraico
de Janeiro: Graal, 1999.
estabelecia uma nítida diferença entre

• 231 •
os povos da Bíblia e os povos não ju- ao reconhecimento) de um determi-
deus, denominados de “gentios”. No nado grupo étnico. A descendência ou
Novo Testamento, o termo passou a não de uma mesma comunidade ori-
distinguir os seguidores de Cristo dos ginal, neste caso, não é importante: o
não cristãos, ou seja, os pagãos ainda que importa é que os indivíduos com-
não alcançados pelo Cristianismo. Esse partilhem essa crença em uma origem
sentido do termo permaneceu em uso comum. Uma crença conirmada, de
até o século XVIII. seu próprio ponto de vista, pela pre-
No início do século XIX, o an- sença de usos e costumes semelhantes
tropólogo francês Georges Vacher de (religião, língua, costumes, por exem-
Lapouge, no obra L´Aryen, Son Rôle plo). Nesse sentido, a etnia é ou pode
Social (1899), entendendo que o fator ser uma construção artiicial do grupo,
determinante da história era a raça, en- cuja existência depende do interesse de
quanto deinidora das características seus integrantes em dela fazer parte.
hereditárias (físicas) comuns a um gru- Inclusão e identiicação constituem-se,
po de indivíduos, resgatou o conceito assim, em outros dois conceitos-cha-
de etnia para referenciar aquelas carac- ve para a formação e existência de um
terísticas de um agrupamento humano dado grupo étnico.
portador de práticas culturais com- A contrapartida à fórmula da
partilhadas, mas não necessariamente pertença étnica é a questão da exclu-
abarcadas pela raça. são: a construção de uma identidade
O sociólogo alemão Max Weber de grupo frequentemente implica di-
estabeleceu uma distinção não somen- ferenciação e a separação em relação
te entre raça e etnia, mas também entre a um “outro”, do não igual, fator que
etnia e Nação. Para o pensador, perten- promove, não raras vezes, o desenvol-
cer a uma raça implicaria uma mesma vimento de um autoconceito de supe-
origem (biológica ou cultural), enquan- rioridade coletiva, cuja resultante de-
to que pertencer a uma etnia pressupu- semboca na classiicação do diferente
nha a crença em uma origem cultural em um plano social inferior. Esta situ-
comum, independente dos aspectos ação foi observada com frequência du-
físicos do grupo. O conceito de Na- rante o processo de expansão europeia
ção, entretanto, implicava que, além da para outros continentes, a partir dos
presença de tal condicionante (a cren- séculos XV-XVI, postura fortemente
ça no pertencimento), houvesse uma utilizada ao longo de todo o século
demanda de poder politico. Coesão e XIX, ao longo do processo conhecido
pertencimento, portanto, são caracte- como colonialismo. A postura do do-
rísticas imprescindíveis à existência (e minador frente o dominado variou se-

• 232 •
gundo a política de colonização, as ri- um dos polos mundiais de atração de
quezas naturais (ou humanas) e o grau intensos luxos imigratórios prove-
de desenvolvimento e coesão das cul- nientes dos países do leste europeu,
turas locais. O sentimento de superio- asiáticos, africanos e mesmo latino-a-
ridade dos conquistadores, no entanto, mericanos das mais diferentes origens
sempre se fez presente. Desta maneira, raciais, étnicas e culturais. Estas so-
enquanto reforçava o fortalecimento ciedades multifacetadas – com tudo o
dos laços grupais e étnicos dos inva- que o termo sugere, no que se refere
sores, a conquista colonial provocava às práticas diferenciadas de usos, cos-
entre os submetidos uma progressiva tumes, crenças, língua, história e obje-
consciência de pertencimento, em- tivos individuais e de grupo – tem pro-
bora na condição de dominados. Tal vocado reações as mais diferentes, seja
situação gerou, paradoxalmente, em entre os próprios europeus, seja entre
numerosos casos, desejos contraditó- os imigrados - e entre uns e outros.
rios, quase sempre irreconciliáveis: de Diante da realidade, ou seja,
um lado, o desejo de imitar (ou mes- da presença (mais ou menos intensa,
mo de integrar) o grupo dominante, mais ou menos segregacionista, mais
absorvendo seus valores, sua cultura, ou menos excludente) de ações discri-
seu comportamento, em busca de acei- minadoras, ao lado daquelas medidas
tação; de outro, o desenvolvimento de legais voltadas para políticas de inser-
sentimentos de repulsa, de ódio nem ção social, cabe aos diferentes grupos
sempre reprimido, de vingança diante sociais afetados buscar saídas para seu
das humilhações sofridas. desconforto. O conceito de etnia ou
Tais contradições encontraram de grupos étnicos, portanto, mostra-se
espaço de manifestação no decorrer como um termo passível de utilização
das chamadas guerras de independên- quando o objeto de estudo são as so-
cia promovidas por povos africanos e ciedades contemporâneas, envolvidas
asiáticos (e até no continente america- no amplo processo de globalização da
no), processo que avançou, de maneira economia, na expansão dos luxos mi-
mais ou menos violenta, ao longo de gratórios e na popularização do acesso
boa parte do século XX, culminando às mídias sociais.
na formação de numerosos estados As reações, no entanto, não pa-
ainda em processo de construção de ram neste patamar: ao criar a catego-
uma identidade étnica. ria classe social, ainda em meados do
Em movimento paralelo, mas século XIX, Marx permitiu que uma
em sentido contrário, a Europa con- cunha se interpusesse entre o que era
temporânea vem se constituindo em dado como verdade cientíica e a rea-

• 233 •
lidade vivida por milhares de grupos Como resultado imediato dos
étnicos, religiosos, culturais, sociais, intensos estudos desenvolvidos a par-
políticos e sociais ao redor do mundo. tir dos anos 80 emergiu outra demanda
O século XX tornou-se um marco de não menos importante: a inserção/re-
fundamental importância nos estudos lação da categoria de análise etnia, uma
sobre a questão dos diferentes espaços vez que as diferenças de classe e de
e papéis ocupados por diferentes pro- gênero se faziam acompanhar também
tagonistas – e nem por isso uns menos da problemática das peculiaridades
importantes do que outros. étnicas e culturais. Num mundo cada
A rápida expansão da economia, vez mais globalizado, marcado por um
principalmente nas últimas décadas do intenso movimento migratório em di-
século, contribuiu enormemente para reção aos países situados na vanguarda
esta situação: a progressiva substitui- econômica, na busca de melhores con-
ção da força bruta no processo produ- dições de vida e de trabalho, milhões
tivo permitiu o ingresso das mulheres de indivíduos e suas famílias desloca-
no mercado de trabalho, abrindo opor- ram-se, seja do continente asiático, afri-
tunidades de participação no espaço cano ou sul-americano. No processo,
público como sujeitos sociais antes im- acirraram-se as disputas entre os “de
pensáveis. fora” e os “de dentro”, espaços sociais
Essa nova realidade de certa em cujo interior as mulheres constitu-
forma condicionou a necessidade de íram-se/constituem-se em alvo prefe-
repensar as dinâmicas sociais então rido de discriminação. Na qualidade/
ainda vigentes, com vistas a questionar missão de reprodutoras dos padrões
as estruturas do patriarcado e da so- culturais do grupo étnico, foram e ain-
ciedade de classes, as formas como se da são responsabilizadas, tanto pela
manifestavam no interior das relações manutenção, quanto pela reprodução
sociais (familiares, nos grupos étnicos, dos valores da etnia (fator considerado,
no trabalho, na política, na economia), de um lado, como impeditivo da inser-
e nelas, o papel subalterno desempe- ção dos imigrados no grupo dominan-
nhado pelas mulheres. O empenho te – ou em grupos subalternos - ou, de
de muitas intelectuais, principalmente outro, como promotoras de mudanças
no mundo anglófono, no processo de no corpo de valores, na tentativa de in-
construção de um instrumento me- tegração à comunidade local – conduta
todológico adequado para analisar tal igualmente reprovada.
conjunto de situações tão recentes e Consideradas estas tensões (in-
diversiicadas, derivou na criação da tra e extragrupo), vale lembrar que um
categoria gênero. grande número de migrantes (homens

• 234 •
e mulheres) não se “conformam” (ou sos e identidades coletivas que reside
seja, não se ajustam aos contornos de a relação problemática entre estrutura
uma forma previamente estabelecida) e práxis, e entre o social e o indivíduo”
e negam/rejeitam os modelos e valo- (MOORE, p. 16).
res de sua própria etnia. Neste senti- Assim colocada, a análise da
do, é possível identiicar as rupturas de relação entre gênero e etnia deve ser
padrões estabelecidos, principalmente
sempre permeada pelo contexto e nun-
quando uma investigação deine como
ca suposta de antemão. Tais questões
fonte de pesquisa a realização de en-
não podem ser dadas como permanen-
trevistas, dentro das propostas da His-
tória Oral. Ora, se aos homens, via de tes, nem como imutáveis, dado que por
regra, são destinados papéis de domi- vezes, a questão étnica é prioritária; em
nação, de poder (seja na família, seja outras, a sexual se destaca, por exem-
na comunidade, seja no espaço público plo, embora estejam imbricadas.
mais amplo), a contrapartida é a sujei-
Cleci Fávaro
ção das mulheres ao espaço privado,
ato e discurso de submissão. No entan-
Referências e sugestões de leitura
to, a realidade mostra não raras vezes a
subversão de tais papéis sociais. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo:
MOORE refere que “a identi- Companhia das Letras, 1992.

dade de gênero é construída e vivida”. DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo:
Segundo a autora, “com gênero e com Contexto, 2004.

raça (ao que se pode acrescentar, com MEMMI, A. Retrato do colonizado precedido pelo re-
trato do colonizador. 3 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
etnia), e com tudo o que podemos de-
nominar como princípios estruturan- MOORE, Henrietta L. Fantasias de poder e fantasias de
identidade: gênero, raça e violência. Revista do Núcleo
tes da vida social humana, o problema de Estudos de Gênero – PAGU, São Paulo: UNICAMP,
de como os indivíduos levam vidas n.14, p.13-44, 2000.

coletivas surge e ressurge como uma MURARO, Rose Marie; PUPPIN, Andrea Brandão
das problemáticas mais urgentes para (org.) Mulher, Gênero e Sociedade. Rio de Janeiro: Re-
lume Dumará: FAPERJ, 2001.
a ciência social contemporânea” (MO-
LISBOA, Teresa KLeba. Gênero, Classe e Etnia. Trajetó-
ORE, p. 15). Cabe perguntar: o que rias de vida de mulheres migrantes. Florianópolis: Ed. Da
faz com que os indivíduos resistam ou UFSC; Chapecó: Argos, 2003.

obedeçam? “Questões de desejo, iden- POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne.


tiicação, fantasia e medo tem de ser Teorias da etnicidade. Seguido de Grupos étnicos e suas
fronteiras, de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998.
discutidas. Como cada indivíduo tem
SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da
uma história pessoal, é na “interseção alteridade. São Paulo: USP, 1998.
dessa história com situações, discur-

• 235 •
• A Eugenia surge em um período
em quem vários cientistas dedicam-se
Eugenia ao estudo da herança biológica, dentre
eles podemos citar: Thomas Malthus,
Datado de 1882, o termo Eu- estudioso das leis de invariabilidade
genia foi cunhado pelo inglês Francis biológica e Prosper Lucas, cientista
Galton, cuja dedicação às diversas áre- francês que, por volta de 1850, investi-
as do conhecimento lhe permitiu ver- gou a Genealogia, relacionando carac-
sar sobre inúmeros “fenômenos natu- teres mentais e morais de criminosos e
rais”. Antes de se lançar aos estudos delinquentes (STEPAN, 2005).
eugênicos, transitou pela Geograia, Muito mais que fruto do re-
Meteorologia, Genética, Estatística, sultado de uma série de estudos que
Psicologia, Criminologia, Biometria. se caracterizaram como cientíicos,
Seu contínuo interesse em desvendar a partir de meados do século XIX, a
a hereditariedade o levou aos estudos Eugenia consolida-se em meio a dis-
antropométricos e à criação do labo- cursos raciais, muito em voga naquele
ratório de Antropometria. Com isso, período. Assim, constitui-se como um
Galton ampliou seus estudos acerca movimento de intervenções políticas e
das características humanas, tentando cientíicas. Como movimento político,
encontrar tantas características mensu- criava condições para que os resulta-
ráveis possíveis, para assim estabelecer, dos e proposições advindas de seus
por meio da estatística, uma relação “estudos” fossem inseridos em âmbito
com determinantes hereditários. social, muitos deles, por meio de medi-
Assim, Francis Galton pensa a das estatais de intervenção, como foi o
Eugenia como ciência da melhoria da caso de alguns países como Alemanha,
raça, capaz de legar às gerações futu- Estados Unidos da América e Argen-
ras boas qualidades morais, físicas e tina (HABIB, 2010; VALLEJO e MI-
mentais. Baseada nas discussões sobre RANDA, 2004; BLACK, 2003).
hereditariedade, a Eugenia apoiar-se- De modo geral, é possível si-
-ia sobre os estudos genealógicos e nalizar que a Eugenia atuava em três
as medidas antropométricas, para en- esferas: “Eugenia Positiva” - visava a
tão orientar suas ações. Inspirada no incentivar que casais “bem-nascidos”
controle do cruzamento seletivo, mui- tivessem um número maior de ilhos
to utilizado na agricultura, propunha do que os casais “disgênicos”, para
aplicá-lo à espécie humana com ins a tanto as medidas de incentivo ao ma-
obter um número cada vez maior de trimônio eugênico e ao aumento da na-
sujeitos com características superiores. talidade “hígida” deveriam ser incenti-

• 236 •
vadas; “Eugenia Negativa” - pretendia inicial uma palestra sobre Eugenia,
que o os casais “malnascidos” tivessem na Associação Cristã de Moços – SP.
menos ilhos do que os “casais eugê- Em 1918, é fundada a Sociedade Eu-
nicos”, como exemplo é possível citar gênica de São Paulo, sob os auspícios
medidas como a segregação, esteriliza- do próprio Kehl e Arnaldo Vieira de
ção e práticas de assassinato e aborto; Carvalho. Os dizeres e os anseios da
Eugenia Educativa - pretendia ensinar Eugenia, naquele momento, diziam
os preceitos eugênicos, os mecanismos respeito a uma série de intervenções
da hereditariedade e a identiicar na em diversos campos, dentre eles o Sa-
população os sujeitos que carregavam neamento, Higiene, Educação e tam-
os sinais da boa herança, assim como bém Educação Física (SOUZA, 2006,
os considerados malnascidos (STE- SILVA, 2008).
PAN, 2005, SOUZA, 2006). Apesar do movimento eugênico
A partir do início do século brasileiro organizar-se somente ao inal
XX, começam a despontar, na Euro- da década de 1910, já se faziam presen-
pa, as primeiras Instituições eugênicas. tes, por volta de 1900, discursos sobre
Algumas delas destinavam-se a inves- a Eugenia. Naquele momento, havia
tigações cientíicas, outras, a discutir alguns intelectuais que argumentavam
e promover políticas e legislação em em favor de uma melhoria racial, por
defesa de seus ideais. Fundada em meio de boas condições socioambien-
Berlim, em 1905, a primeira Institui- tais, assim como grupos mais radicais
ção foi The German Society for Race que pregavam práticas como segrega-
Hygiene, depois surgiu The Eugenics ção, esterilização e exames médicos
Education Society, na Inglaterra, em pré-nupciais.
1907-1908, The Eugenics Record Of- O movimento eugênico brasi-
ice, nos Estados Unidos, em 1910, e leiro atinge seu auge, realizando, em
a French Eugenics Society, em Paris, 1929, o I Congresso Brasileiro de Eu-
em 1912. Além disso, organizações e genia. Naquele mesmo ano, o “Bole-
temas eugênicos acharam seus cami- tim de Eugenia” começa a ser editado,
nhos em Áreas cientíicas, tais como a tendo seu último número lançado em
Antropologia, Psiquiatria, e Sociologia; 1933. Em 1931, Renato Kehl encabe-
seções de Eugenias eram estabelecidas ça a Comissão Central Brasileira de
em muitas organizações representan- Eugenia, um órgão que promoveria o
tes destas disciplinas (STEPAN, 2005). estudo e a divulgação da causa eugêni-
No Brasil, Renato Kehl inau- ca. Assim, grupos de eugenistas dedi-
gura, em 1917, uma campanha de di- cam-se a construir propostas de polí-
ticas públicas para serem apresentadas
vulgação eugênica, tendo como marco
ao governo que se iniciaria no ano de
• 237 •
1930. Apesar de sua fase profícua, ain- Ao homem, entretanto, cabia
da na primeira metade da década de o lugar de representante universal da
1930, a Eugenia brasileira começa a humanidade que se pretendia eugêni-
perder força política e adeptos (SOU- ca. Dentre suas características, pode-se
ZA, 2006; REIS, 1994). destacar a beleza física, a saúde orgâni-
Atravessada pelas representa- ca perfeita, a moralidade isenta de ví-
ções de seu tempo, a Eugenia constitui cios e a força atlética. Avesso ao álcool,
e constitui-se vinculada às hierarquias aos jogos de azar e às práticas sexuais
de gênero, atribuindo à natureza mani- que levariam às doenças venéreas, o
festa nos corpos causa primeira destas homem puro-sangue, representado
desigualdades. De acordo com Stepan pela estatuária grega, era adepto das gi-
(2005), as vinculações entre gênero e násticas e esportes (SILVA e GOELL-
Eugenia estabeleciam-se em um de NER, 2010).
seus fundamentos mais básicos, a re- Neste processo de construção
produção sexuada. Assim, consideran- de representações de gênero, o lugar
do que em muitos contextos regionais do outro, do disgênico e do intolerável
a reprodução era atribuição “essencial” também se constituía. Aos homens, a
das mulheres, diversos projetos eugê- moralidade malsã manifesta no vício
nicos centraram-se na feminilidade e do álcool e do jogo ladeava aquele su-
maternidade. jeito que, imprevidente, destruía a fa-
Cabe ressaltar, entretanto, que as mília pelos lastros da síilis.
relações entre gênero e Eugenia devem Às mulheres, a beleza como
ser consideradas nas especiicidades de obrigação era evidenciada por re-
cada caso (STEPAN, 2005). Por exem- presentantes femininas indolentes e
plo, dos diálogos estabelecidos entre vulgares, cujos corpos obesos eram
exercícios físicos e o projeto eugênico descritos como exemplos do que não
de Renato Kehl é possível identiicar as se deveria ser. De modo semelhante,
ginásticas e as danças como práticas de mulheres sedutoras de posse de seus
embelezamento e potencializadoras da truques dissimuladores de imperfei-
graciosidade e saúde femininas. Bela, ções são indicadas como vulgares e de
feminina e maternal (GOELLNER, moral duvidosa.
2003), a mulher/mãe deveria eviden- As relações entre gênero e Eu-
ciar seus encantos, sobretudo os físi- genia sinalizam ainda alguns pontos
cos, a im de encontrarem “bons mari- controversos, cujos estudos mais de-
dos”, como sugere a obra Kehl, datada tidos podem lançar outras possibili-
de 1935. dades de interpretação. Entrelaçadas à

• 238 •
pretensa neutralidade cientíica e natu- STEPAN, N. L. A hora da Eugenia: raça, gênero e na-
ção na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
ralizadas pelas leis da natureza, as rela- 2005.
ções de gênero serviram de premissa
VALLEJO, Gustavo y MIRANDA, Marisa A. (2004),
ao pensar e ao fazer eugênico, assim “Los saberes del poder: Eugenesia y Biotipología en la
Argentina del siglo XX”, In Revista de Indias, Vol. LXIV,
como foram ressigniicadas pela “ciên- N° 231, Madrid.
cia da melhoria da espécie”.
Sugestões de leitura
André Luiz da Silva
ALBRIZIO, A. Biometry and Anthropometry: from Gal-
ton to Constitutional Medicine. In: Journal of Anthropo-
Referências
logical Sciences Vol. 85, pp. 101-123, 2007.

BLACK, E. A guerra contra os fracos. São Paulo: A Girafa CASTANED, L. A. Eugenia e casamento. História, Ciên-
Editora, 2003. cia e Saúde: Manguinhos. N.1 Rio de Janeiro: Fundação
Oswaldo cruz, 2003.
GOELLNER, S. V. Bela, maternal e feminina: Imagens
da mulher na Revista Educação Physica. Ijuí: Unijuí, GOULD, S. J. A falsa medida do homem. São Paulo:
2003. Martins Fontes, 1999.

HABIB, P. A.B.B. Agricultura e biologia na Escola Su- VALLEJO, G. Cuerpo y representación: la imagen Del
perior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ): os Hombre en la eugenesia latina. In: VALLEJO, G. e MI-
estudos de genética nas trajetórias de Carlos Teixeira RANDA, M. A. Políticas del Cuerpo: estratégias moder-
Mendes, Octavio Domingues e Salvador de Toledo Piza nas de normalización del indivíduo y la sociedad. Buenos
Jr. (1917-1937). Tese (Doutorado em História das Ci- Aires: Siglo XXI Editora Iberoamericana, 2
ências e da Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz. Casa de
Oswaldo Cruz, 2010.

KEHL, R. F. Como escolher um bom marido? Regras


práticas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ariel Editora Ltda., 1935b.

REIS, J. R. F. Higiene mental e Eugenia: o projeto de


“regeneração nacional” da Liga Brasileira de Higiene
Mental (1920-30). 1994. 353 f. Dissertação de Mestrado
em História. Instituto de Filosoia e Ciências Humanas –
Universidade Federal de Campinas, 1994.

SILVA, A. L. A perfeição expressa na carne: A educação


física no projeto eugênico de Renato Kehl, 1917 a 1929.
Dissertação de Mestrado em Ciências do Movimento
Humano – ESEF/UFRGS. Porto Alegre, 2008.

SILVA, A. L. S. e GOELLNER, S. V. A invenção do ho-


mem eugênico: Enlaces entre Eugenia e Educação Física
nas obras de Renato Kehl (1917-1929). In: KNIJINIK,
J. D. e ZUZZI, R. P. Meninas e meninos na Educação
Física. Jundiaí, SP: Fontoura, 2010.

SOUZA, V. S. A Política Biológica como projeto: a


“Eugenia Negativa” e a construção da nacionalidade na
trajetória de Renato Kehl (1917-1932). Dissertação de
Mestrado apresentada ao Programa de pós-graduação da
COC/Fiocruz, 2006.

• 239 •
Família

Tal como outras categorias im-


portantes para a relexão crítica das
relações de gênero, o termo família
resiste a qualquer esforço delimitador
e universal de conceituação. A história
que marca a construção da ideia de um
conceito de família, pautado em rele-
xões teóricas e pesquisas empíricas em
marcha desde o século XIX, explicita
exatamente os limites interpretativos
das correntes analíticas que tendiam a
projetar sobre essa instituição um ideal
de unicidade, hoje amplamente con-
testado. Ao longo dos anos, os limites
dessas formulações teóricas foram se
tornando cada vez mais evidentes, de-
saiando os especialistas contemporâ-
neos a buscarem novas alternativas de
análise.
Os esforços frequentemente re-
novados de apreensão do conceito de
família, tanto na literatura estrangeira,
quanto na produção acadêmica nacio-
nal, não deve ser entendida de outro
modo senão como o resultado de um
longo debate motivado por diferentes
vertentes das Ciências Humanas. O
amplo repertório de escritos sobre fa-
mília só demonstra que o conceito está
muito longe de respeitar as fronteiras
estáticas, universais e deinitivas far-
tamente atribuídas por linhas teóricas
tradicionais a esta instituição. É pre-
cisamente por seu caráter dinâmico, e
por acompanhar o movimento da his-

• 240 •
tória por meio de importantes mudan- mática da família ocupou um espaço
ças em seu interior, que ainda faz todo central. Distribuída em diferentes tra-
sentido reletir sobre a ideia de família balhos, a relexão sobre família formou
e reformular a noção que fazemos des- um plano coeso de análise no conjunto
se grupo social, sem desatá-lo de toda de seus escritos, fundamentando em
uma contribuição teórica anterior. muitos aspectos a teoria psicanalítica
Como apontam os estudos re- por ele formulada. O impacto de seus
trospectivos sobre família, foi em me- textos foi tão profundo para o pensa-
ados do século XIX que os primeiros mento cientíico posterior que estudio-
teóricos, oriundos do campo da Filo- sas como Moraes e Bruschini, preocu-
soia e da Antropologia, romperam padas com as mudanças operadas no
com a assertiva dominante de que fa- conceito de família dentro do contexto
mília era uma instituição natural e ge- histórico brasileiro, não vacilaram ao
neralizada. A partir daí, pelo trabalho airmar que “depois de Freud, os estu-
desenvolvido por autores como Henry dos de família não podem mais anali-
Morgan, Jakob Bachofen e Friedrich sar as relações familiares sem levar em
Engels, a família tornou-se objeto de conta o nível psicológico das relações
estudo da Ciência. Conforme indica sociais que se passam em seu interior”
Bruschini, a família foi considerada (BRUSCHINI, 1989, p. 5). Concluin-
desde então como “uma instituição do, portanto, que é difícil “pensarmos
social e histórica, cujas estruturas e em termos de teoria da instituição fa-
funções são determinadas pelo grau de miliar sem o recurso aos conhecimen-
desenvolvimento da sociedade global” tos de psicanálise” (MORAES, 1985,
(1990, p. 34). p. 145).
Os debates teóricos se con- A solução freudiana para com-
centraram, em seguida, em descobrir preender a família, segundo se pode
como a família evoluiu no passado, depreender das leituras e reapropria-
seu comportamento no presente e as ções feitas à sua obra por autores como
formas que seriam adotadas por essa Ariès (1978) e Poster (1979), pautou-
instituição no futuro. Logo, as discus- -se na análise dos laços e da vivência
sões se diversiicaram, assumindo di- emocional como o fator responsável
ferentes perspectivas, na expectativa pelas relações sociais no seio de toda
de determinarem os estatutos teóricos estrutura familiar. A dimensão psicoló-
que dariam signiicado à família. gica dos personagens que compõem tal
A primeira grande contribuição unidade, uma vez considerada, revelou
à teoria da instituição familiar veio com uma série de conlitos, de disputas, de
a difusão da obra de Freud. Nela, a te- hierarquias e relações de força antes

• 241 •
invisíveis ou pouco valorizadas. Além femininos. A nova dinâmica domésti-
disso, a leitura de Freud sobre família ca funcionou por intermédio de uma
forneceu importantes argumentos para moral biológica que naturalizava a mu-
a conceituação cientíica do modelo de lher como mãe e protetora do lar e o
família nuclear moderna. homem como agente de autoridade e
Com base na teoria freudiana único provedor das condições mate-
de família moderna, alicerçada no ca- riais de subsistência.
samento, na iliação e na ideia de amor No Brasil, a vertente histórica
romântico, o pensamento sociológico, do funcionalismo icou a cargo de Gil-
representado pela corrente a qual se berto Freyre e Antonio Candido, que
convencionou chamar de funcionalis- se ocuparam em descrever a família
mo, sistematizou uma deinição uni- patriarcal e suas transformações. Até o
versal de família que inluenciou gran- início da década de 1970, predominou
de parte da produção sobre o assunto nas pesquisas sobre família no Brasil o
até os anos 1980. O modelo nuclear modelo de família patriarcal extensa,
difundido pelo funcionalismo excluiu difundido especialmente por Freyre,
da sua lógica explicativa qualquer ar- com a publicação, na década de 1930,
ranjo familiar que não correspondes- da obra Casa Grande e Senzala. A uni-
se aquele composto por um pai, uma dade doméstica da família patriarcal,
mãe e a prole originada dessa relação serviu de molde para a introspecção de
conjugal. O ingresso numa sociedade uma mentalidade referencial de família
moderna industrializada, conforme no Brasil, enquanto os outros modos
defendia a corrente funcionalista, em- de organização familiar foram relega-
purrou a instituição familiar a produzir dos a planos obscuros ou secundários.
uma importante mudança na sua con- Foi somente na década de 1980 que, no
formação, substituindo gradualmente Brasil, o uso generalizado desse mode-
as unidades domésticas expandidas por lo foi relativizado, com os trabalhos de
núcleos mais restritos de convivência Correa (1982) e Samara (1986).
familiar. Essa transformação teria sido Antes disso, ou concomitante a
acompanhada, dentre outros ajustes, essas relexões, estudiosos no mundo
por uma delimitação mais precisa en- já começavam a minar o conceito es-
tre as funções assumidas por homens trutural e universal de família dissemi-
e mulheres no interior da família. A nado pelo funcionalismo. Ariès (1978),
partir de então, família virou sinôni- sem adotar uma explicação evolu-
mo de unidade doméstica harmônica, cionista e linear, elaborou uma análi-
privada e independente, graças a essa se sobre a família a partir da ideia de
diferenciação de papéis masculinos e que as mudanças na estrutura familiar

• 242 •
poderiam acarretar transformações na autoridade e internaliza a submissão. A
estrutura emocional e psíquica de seus vertente frankfurtiana ousou tocar na
membros. Embora seu enfoque fosse ferida ao, de certo modo, denunciar a
o surgimento da infância como catego- família como agência reprodutora de
ria social, sua análise sobre a consoli- ideologias conservadoras. Contudo,
dação da família moderna, por volta do este reduto de dominação poderia dei-
século XVIII, inluiu na percepção de xar de ser o lugar de subserviência à
que tanto o conceito de família quan- autoridade paterna para se converter,
to o de infância eram ideias historica- por sua dupla dinâmica social, no local
mente construídas. Para ele, essa noção de oposição à tirania, de onde, portan-
poderia contribuir no conhecimento to, poderiam surgir as mudanças neces-
sárias para a autonomia dos indivíduos
da história social se fossem examina-
na vida cotidiana.
das as estruturas emocionais da vida
Esses desdobramentos dos es-
cotidiana dos vários tipos de família,
tudos sobre família, acompanhados
e não só do modelo nuclear, levando
de importantes contribuições para o
em consideração sua análise num nível
debate, como os advindos da teoria
psicológico. Poster (1979), tal como
psicanalítica de Freud, não foram su-
o historiador francês, também esteve
icientes para suplantar as ideias enges-
preocupado em demonstrar que é na sadas e atemporais que predominaram
família que o indivíduo encontra segu- sobre o conceito até a década de 1980.
rança emocional e aprende a manipular Poster, um dos críticos desse conhe-
seus sentimentos, por ser ela a primeira cimento simpliicador de família, sen-
instituição social de pertencimento. tenciou, em publicação de 1979, que
Paradoxalmente, do ponto de as Ciências Sociais ainda não possuíam
vista da normatização de leis e cos- uma deinição apropriada de família,
tumes, a família também adquiriu o ou mesmo um complexo coerente de
status de um lugar onde os conlitos e categorias que servisse de base para a
as ambiguidades eram gerados, trans- sua análise, ou ainda um esquema ri-
formando-se num espaço de frequen- goroso de conceitos para especiicar o
te coação social e psíquica. Na defesa que de signiicativo há em seu interior.
dessa ideia estiveram os pensadores da Não à toa sua provocação anunciava
Escola de Frankfurt, que de um modo uma nova tendência da literatura sobre
geral, passaram a debater o conceito de família, dedicada a iniciar o processo
família como o lugar de adestramento de compreensão das estruturas fami-
para a adequação social, onde a crian- liares divergentes, e não mais dos mo-
ça aprende a relação burguesa com a delos genericamente construídos.

• 243 •
Foi na virada dos anos de 1970 Também no Brasil, parte con-
para os anos 80 que, inclusive no Brasil, siderável dos estudos sobre família foi
um salto quantitativo e qualitativo foi inspirada ou dialogou com os avanços
registrado nos estudos que se dedica- e recuos do movimento de mulheres,
ram a conceituar família. As vertentes comprometido em grande medida
de estudos sobre a mulher integraram com o questionamento e a superação
este novo esforço teórico com bas- do modelo patriarcal e opressivo das
tante empenho, produzindo parte das relações familiares (MORAES, 1985).
pesquisas que, daí em diante, buscou Esta associação de interesses, que
tratar a categoria família conforme as aproximou a teoria da prática feminis-
suas especiicidades, buscando alcan- ta, evidencia o signiicado político da
çar toda sua pluralidade e dinamismo. discussão sobre família.
Os limites impostos às mulheres Mesmo com o volumoso con-
pelas normas de feminilidade e de or- junto de debates sobre família, ainda é
ganização do trabalho e da família foi o possível airmar que pouco se sabe a
que impulsionou as estudiosas feminis- respeito dela, e que muitas são as di-
tas, muitas delas formadas pela linha de iculdades em conhecer e sistematizar
pensamento marxista, a questionarem sua multiplicidade de tipos. No mundo
o tão consagrado modelo nuclear de contemporâneo, as formas alternativas
família. Do ponto de vista das relações de família, caracterizadas, por exemplo,
entre os gêneros, já não era admissível por pais e mães em seus segundos casa-
corroborar com uma ideologia que mentos, ou por mães solteiras, ou por
propagava o ideal de domesticidade da casais sem ilhos ou ainda por casais
mulher e legitimava as funções familia- homossexuais (FERES-CARNEIRO,
res conforme um determinismo bioló- 2005), tornam-se cada vez mais visí-
gico cada vez mais refutado pela epis- veis, desaiando o conceito monolítico
temologia feminista. O olhar crítico tradicional. Essas reformulações têm
sobre o modelo positivista de ciência, feito com que a deinição do termo fa-
que tanto colaborou com o essencia- mília, e sua própria realidade, assuma
lismo e o reducionismo na formulação um signiicado mais complexo e plural.
de um conceito de família, contribuiu,
Maria Beatriz Nader
acima de tudo, para valorizar a alteri-
Livia Silveira Rangel
dade da mulher e, consequentemente,
para denunciar o obscurecimento das Referências
diferentes experiências familiares em
tempos e lugares distintos. ARIÈS, Philippe & DUBY, Georges. História Social da
Criança e da Família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

• 244 •
BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha. “Uma abordagem PRADO, Danda. O que é Família. São Paulo: Brasiliense,
sociológica de família”. In. Revista Brasileira de Estudos 1981.
Populacionais, São Paulo: ABEP, v. 6, n. 1, p. 1-23, jan./
jun. 1989.

______. Mulher, Casa e Família: Cotidiano nas Camadas
Médias Paulistas. São Paulo: Fundação Carlos Chagas:
Vértice: Editora Revista dos Tribunais, 1990. Feminicídio
CÂNDIDO, Antônio. “he Brazilian Family”. In.Brazil,
Portrait of Half a Continent. New York: Dryden Press, O conceito de feminicídio é uti-
1951. p. 291-331. lizado para designar os homicídios de
CORRÊA, Mariza. “Repensando a Família Patriarcal mulheres em razão da condição de gê-
Brasileira”. In. ALMEIDA, Maria Suely K. Colcha de Re- nero. Entende-se como uma forma ex-
talhos. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 13-38.
trema de violência de gênero que resul-
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Proprieda- ta na morte de mulheres. A expressão
de Privada e do Estado. Tradução Leandro Konder. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. femicídio – ou ‘femicide’ como formu-
FERES-CARNEIRO, Terezinha (Org.). Família e Casal:
lada originalmente em inglês – é atribu-
efeitos da contemporaneidade. Rio de Janeiro: Ed. PU- ída a Diana Russel, que a teria utilizado
C-Rio, 2005.
pela primeira vez em 1976, durante um
FREUD, Sigmund. Obras completas. 3.ed. Madrid, Bi- depoimento perante o Tribunal Interna-
blioteca Nueva, s.d
cional de Crimes contra Mulheres, em Bru-
HELLER, Agnes. “O futuro das relações entre os sexos”. xelas. (1976) Já no Brasil, a categoria
In. CERRONI, Umberto et al. A crise da família e o
futuro das relações entre os sexos. Rio de Janeiro: Paz e
“femicídio” foi utilizada por Heleieth
Terra, 1971. Safioti e Suely Almeida (1995), com
MORAES, Maria Lygia Quartim de. “Família e Feminis- uma análise sobre homicídios de mu-
mo: o encontro homem/mulher como perspectiva”. In. lheres nas relações conjugais.
Perspectivas, São Paulo, n. 8, p. 143-152, 1985.
Pode-se dizer, que o feminicí-
POSTER, Mark. Teoria Crítica da Família. Rio de Janei- dio conigura-se como o ápice da tra-
ro: Zahar, 1979.
jetória de perseguição à mulher, com
diferentes formas de abuso verbal e
Sugestões de leitura
físico: como estupro, tortura, incesto
BORGES, Ângela; CASTRO, Mary Garcia (Orgs.). Fa- e abuso sexual infantil, maltrato físico
mília, gênero e gerações: desaios para as políticas sociais.
e emocional, perseguição sexual, escra-
São Paulo: Paulinas, 2007.
vidão sexual, heterossexualidade força-
CANEVACCI, M. (org.) Dialética da família: gênese,
estrutura e dinâmica de uma instituição repressiva. São
da, esterilização forçada, maternidade
Paulo: Brasiliense, 1981. forçada, psicocirurgia, entre outros,
GOODE, Willian J. Revolução Mundial e Padrões de Fa-
que culminam com a morte de muitas
mília. São Paulo: Nacional: EDUSP, 1969. mulheres. O feminicídio, em alguns pa-
LÉVIS-STRAUSS, C. A família: origem e evolução. Por-
íses da América Latina também é co-
to Alegre, Editorial Villa Martha, 1980. nhecido como femicídio, termos que

• 245 •
são utilizados para denunciar morte de sil, Bolívia, Chile, Costa Rica, El Salva-
mulheres que ocorrem em diferentes dor, Guatemala, Equador, Honduras,
contextos sociais. Nicarágua, Panamá, Paraguai e Peru
A violência contra a mulher (CLADEM, 2007) que buscam abor-
possui uma historicidade em torno da dar a questão do feminicídio, visando a
dominação masculina e dos padrões proteção das vítimas de violência femi-
culturais patriarcais. Seguindo essa ló- nina e entre outros princípios, garantir
gica histórica, o feminicídio apresenta o direito da mulher, bem como o aces-
complexidades em estabelecer na so- so a justiça. E, em última instância fun-
ciedade a caracterização dos responsá- damentar as discussões sobre a morte
veis, devido em parte, a burocratização ser ou não causada pela discriminação
excessiva de procedimentos jurídicos, baseada no gênero.
além das diiculdades na investigação As abordagens sobre feminicí-
criminal. dio, em certo período histórico, aten-
A repercussão na esfera social tavam para o campo de análise sob o
e intergeracional, trouxe, a partir de viés da relação de dominação ou mes-
2006, um estudo aprofundado sobre mo do modelo patriarcal nas questões
todas as formas de violência contra de gênero, porém, com o avanço das
as mulheres, proposto pela Secreta- perspectivas analíticas sobre a trans-
ria Geral das Nações Unidas. Neste versalidade de gênero com outros mar-
estudo, concluiu-se que a violência cadores sociais (idade/geração, raça/
contra a mulher ainda é um problema cor, religião, orientação sexual, origem
complexo que se manifesta em mo- social/regional) e as diferentes experi-
dos diferentes, de modo contínuo e ências de ser mulher contribuíram para
generalizado, afetando as chances de outras análises sobre como os crimes
desenvolvimento e progresso de cida- ocorrem e quem os pratica.
dãos. Um dos maiores obstáculos para Ainda há muita diiculdade na
os estudos sobre mortes de mulheres, qualiicação do crime de feminicídio,
e sobre os homicídios de forma geral, isso porque há conlitos nas estatísti-
como no Brasil, se dá pela falta de da- cas oiciais; os dados apresentados pe-
dos oiciais que permitam ter uma vi- los serviços de segurança e justiça tem
são mais próxima do número de mor- diferentes encaminhamentos daqueles
tes e dos contextos em que ocorrem. apresentados pelos serviços de saúde.
Com essa preocupação em estabelecer Nesse sentido, não se pode dis-
os dados, foram realizados alguns es- sociar a violência contra as mulheres
tudos em diferentes países da América com as relações de gênero, pois a vio-
Latina, como México, Argentina, Bra- lência é deinida como universal e es-

• 246 •
trutural e fundamenta-se no sistema de ou meninas tentam intervir para impe-
dominação patriarcal presente em pra- dir a prática de um crime contra outra
ticamente todas as sociedades do mun- mulher e acabam morrendo. Indepen-
do ocidental. Assim, o feminicídio e dem do tipo de vínculo entre a vítima
todas as formas de violência que estão e o agressor, que podem inclusive ser
correlacionadas apresentam-se como desconhecidos”.
resultado das diferenças de poder entre Certas condições históricas
homens e mulheres. Há, algumas dei- tendem a generalizar as ações violen-
nições para os tipos de feminicídio ou tas, naturalizando-as em torno das
femicídio(IIDH, 2006): questões étnicas, linguísticas, culturais.
“a)Femicídio íntimo: aqueles Mas, o fato é que a generalização ou
crimes cometidos por homens com os naturalização retira o caráter criminoso
quais a vítima tem ou teve uma rela- da ação violenta contra as mulheres, e
ção íntima, familiar, de convivência ou garante a impunidade de agressores. O
ains. Incluem os crimes cometidos período de impunidade dos que come-
por parceiros sexuais ou homens com tem feminicídio nos permite deduzir
quem tiveram outras relações interpes- que esses crimes se inscrevem numa
soais tais como maridos, companhei- relação de poder, em que são ultrapas-
ros, namorados, sejam em relações sadas as fronteiras da justiça, da lega-
atuais ou passadas; b) Femicídio não lidade, de relações de conjugabilidade,
íntimo: são aqueles cometidos por ho- de relações sociais e culturais, sendo
mens com os quais a vítima não tinha reforçados os fatores da inluência ten-
relações íntimas, familiares ou de con- tacular econômica e política dos pode-
vivência, mas com os quais havia uma res vigentes.
relação de coniança, hierarquia ou A abordagem sobre o feminicí-
amizade, tais como amigos ou colegas dio traz consigo o desejo de ódio em
de trabalho, trabalhadores da saúde, relação às mulheres, identiicadas no
empregadores. Os crimes classiicados interior das relações de gênero, as quais
nesse grupo podem ser desagregados afetam outras áreas da vida econômica,
em dois subgrupos, segundo tenha política, das ações jurídicas. A violação
ocorrido a prática de violência sexual feminina envolvendo o controle ou a
ou não. c) Femicídios por conexão: são posse do corpo feminino e o padrão
aqueles em que as mulheres foram as- de superioridade masculina, em que o
sassinadas porque se encontravam na ódio pode ser desencadeado por ações
“linha de fogo” de um homem que espontâneas, pela autonomina de seu
tentava matar outra mulher, ou seja, corpo, por ações que contrariam o pa-
são casos em que as mulheres adultas drão, desaiando o poder econômico

• 247 •
ou político tradicionalmente ocupados Referências e sugestões de leitura
por homens. Ao airmar a importân-
cia e a caracterização do feminicídio, AGUILLAR, Ana Letícia. Femicídio. La pena capital por
ser mujer. Revista Diálogos, ano 4, vol.4. Flacso, Gua-
pode-se contribuir na criação de es- temala, 2005. Neste estudo, a autora traz alguns relatos
sobre o femicídio, utilizando essa categoria de análise
tratégias de investigação criminal, com
para fundamentar as discussões em torno das formas de
empenho jurídico especíico capaz de violência.
levar aos autores, o rigor da lei, com
ALMEIDA, Suely Souza de. Femicídio: Algemas invisí-
uma visão especíica da realidade de veis do público-privado. Editora Revinter: Rio de Janeiro,
crimes de gênero em cada região do 1998.

Brasil. CARCEDO, Ana; SAGOT, Montserrat. Femicidio en


Costa Rica: 1990 – 1999. Colección Teórica 1. Instituto
O corpo assassinado das mu- nacional de las mujeres. San José: Costa Rica, 2000.
lheres evidencia-se como um corpo
CLADEM. Monitoreo sobre Femicidio/Feminicidio en
marcado pela vontade de repressão e El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicaragua y
destruição das partes que represen- Panamá. CLADEM, Lima, Perú, 2007
tam a voz e a feminilidade. A violência GARCIA, Leila P; FREITAS, Lúcia Rolim Santana de.
emerge nesses crimes de gênero como SILVA, Gabriela Drummond Marques. HOFELMANN,
Doroteia Aparecida. Violência contra a mulher: feminicí-
formas de controle do corpo feminino. dios no Brasil Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
Um controle que não apenas retira a – Ipea. 2010.
vida, mas que destroça o corpo da mu- MOTA, Maria Dolores Brito. Fisiograia dos assassinatos
lher. Não é suiciente matar; é preciso de mulheres – a imolação do corpo feminino no feminici-
dio. In: Agência de Notícias da América Latina ADITAL.
massacrar, mutilar, deformar esse cor- 2010. Disponível em: http://site.adital.com.br/. Acesso
po. ( MOTA, 2010) em 13. 02.2015.
Seguindo essa linha de raciocí- RUSSEL Diana; Femicide. 1992 [disponível em http://
nio, imprimir leis que sejam mais rígi- www.dianarussell.com/femicide.html. Acesso em
03.02.1015
das contribui para criminalizar as ações
violentas contra as mulheres, seja no SEGATO, Rita Laura. Que és un feminicídio. Notas para
un debate emergente. Série Antropología, 401, Brasília-
foro íntimo ou no espaço público. -DF, Universidade de Brasília, 2006.
Na luta de que o feminicídio tenha a
legalidade rigorosa necessária, temos •
no Brasil, a aprovação do projeto de
lei 8305/14, do Senado, que muda o Feminilidade/Feminino
Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40)
para incluir entre os tipos de homicí- Historicamente no Ocidente a
dio qualiicado o feminicídio, deinido noção de feminino costuma designar
como o assassinato de mulher em ra- o conjunto de características, qualida-
zão de sua condição de sexo feminino. des e atributos social e culturalmente
reconhecidos como parte da natureza
Jaqueline Zarbatto da mulher. A ideia de feminino liga-

• 248 •
-se diretamente à sua oposição biná- (org.), 2009, p. 104) A legitimidade do
ria – o masculino – e é deinida, em feminino no padrão heteronormativo,
diversos contextos sociais, através de falocêntrico e compulsório é conferida
uma relação de negação, ou seja, aqui- a partir de referências que dependem
lo que NÃO pertence ao masculino exclusivamente da relação da mulher
é, portanto, feminino. A feminilidade com o outro e dos papeis atribuídos
pode ser deinida, dentro das possí- socialmente nesta relação: esposa e
veis variações no tempo e no espaço, mãe. Dessa maneira, as proissões ade-
a partir de um conjunto de caracterís- quadas para o seu universo de caracte-
ticas do padrão heteronormativo: Fra- rísticas naturalizadas, estariam ligadas
gilidade; Emoção; Beleza; Verborragia às qualidades de cuidado emocional e
“sem conteúdo”; Dependência social e físico, como por exemplo, enfermeira,
Nutriz emocional e física dos outros. professora primária, cozinheira e bor-
Assim, como bem ressalta Simone de dadeira. Desse modo, a diferenciação
Beauvoir (1949), a relação das caracte- sexual binária (homem-mulher) e as
rísticas é conformada por uma lógica atribuições essencializadas das carac-
que compreende o masculino como terísticas atribuídas ao seres humanos
sendo o UM social e o feminino como (masculino-feminino) ligam-se direta-
o Outro. mente às atuações e disputas de poder.
A naturalização e normatização A representação das diferenças
das relações sociais de sexo são, como estaria inscrita no corpo e a valência
bem aponta Joan Scott (1990), uma diferencial dos sexos se concretizaria a
forma primária de divisão de poder na partir de uma série de códigos morais
sociedade, uma vez que, ao signiicar que balizam as condutas sociais. Os
culturalmente um conjunto de caracte- discursos construídos utilizam a dife-
rísticas como parte da “normalidade”, rença anatômica como suporte para
pretende-se reforçar espaços de ação, a construção da referência simbólica
interdições e possibilidades de atua- que, por sua vez, ratiica a “natureza”
ção social. “Para as mulheres, existe feminina no corpo da mulher. Beau-
uma forte contradição entre a cons- voir ao airmar que “ninguém nasce
trução da feminilidade e a integração mulher: torna-se mulher” busca con-
no mundo do trabalho. Por um lado, testar a naturalização do feminino e
as mulheres que desejam fazer uma demonstrar como essas características
carreira valorizada devem aderir ao não são inerentes à natureza dos seres
sistema de defesa viril, desprezando humanos que possuem vagina, mas
ao mesmo tempo seu próprio sexo.” que ao contrário, fazem parte de toda
(MOLINIER e LANG in: HIRATA uma construção cultural que domina

• 249 •
o sujeito a partir da diferenciação se- (como dietas, ginásticas, intervenções
xual. A percepção do grupo sobre este cirúrgicas).
ser humano é que, em última medida, Pensar que a compulsoriedade
molda a maneira como este sujeito se da heterossexualidade está na base des-
comporta socialmente. Ser mulher é, ta dicotomia das características femini-
portanto, uma construção histórica. nas e masculinas, e discutir o seu sta-
Joan Scott (1990) enfatiza a di- tus de verdade natural absoluta, torna
mensão relacional dos comportamen- possível uma reinvenção das relações
tos femininos e masculinos airmando de gênero. Ao enfatizar que a cultura
que a categoria de gênero rejeita o ca- e a história possuem primazia na cons-
ráter ixo e permanente dessa oposição tituição de nossos corpos, subjetivi-
binária, uma vez que, as referências dades, condutas, representações, fan-
culturais são sexualmente produzidas tasias, práticas políticas, Judith Butler
a partir de símbolos, jogos de signi- (1990) complexiica esse debate ao
icação e dominação que permeiam airmar que não são os corpos biolo-
os discursos sócio/histórico/cultu- gicamente determinados que deinem
rais, tais como os discursos médicos, os comportamentos e atuações sociais,
jurídicos, religiosos e midiáticos. As mas ao contrário tais referências são
hierarquias de poder e estratégias de ações que se traduzem em identida-
dominação e sujeição são parte estru- des transitórias, matrizes discursivas
turante das relações de gênero embasa- e representações elaboradas ao longo
das em diferenças cujas características do próprio ato de diferenciação se-
são essencializadas, como uma forma xual. Essa ação é, portanto, um ato
de estruturação das práticas sociais. O performático. O deslocamento da es-
valor social do feminino deine-se em trutura binária, falocêntrica e compul-
relação ao seu corpo, à sua capacidade soriamente heterossexual causa sérias
de atrair, seduzir, depender e cuidar do confusões (Gender trouble) nos sujeitos,
outro. Dessa maneira, a feminilidade instituições, espaços sociais, poder pú-
heteronormativa possui uma espécie blico e jurídico. A desestabilização das
de prazo de validade subjetivo, cuja noções naturais sobre os seres huma-
ação do tempo inexoravelmente a di- nos divididos de maneira oposicional e
minuirá e depreciará frente ao grupo binária – feminino e masculino – cau-
social, portanto, para prolongar seu sam uma instabilidade tão profunda
tempo de vida social útil necessita ser que não raramente observa-se uma
constantemente agenciada por novas abjeção social desses sujeitos e uma
tecnologias e práticas de regulação defesa acalorada das características e

• 250 •
determinações binárias como sendo SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de
análise histórica”. Trad. por Guacira Lopes Louro. Edu-
o padrão da “normalidade”. Drags cação & Realidade. Educação & Realidade, vol. 15, nº
queens e cross-dressers representam 2, jul./dez. 1990.

exemplos de como o feminino pode JAGGAR, Alison M. e BORDO, Susan R. (orgs.) Gêne-
ro, corpo e conhecimento. Rio de Janeiro: Record/Rosa
ser performaticamente constituído. A dos Tempos, 1997.
própria palavra “drag” signiica “Dress
As a Girl” (vestida como uma garota) •
colocando em questão diferentes po-
sições e perspectivas políticas que se
Feminismo-Feminismos
fundam nas diferenças sexuais. Butler
Fenômeno social, cultural que
propõe que o respeito às diferenças
assume feições especíicas de acordo
e aos novos sujeitos sexuais e sociais
com o lugar e os sujeitos que dele ou
não signiica uma nulidade de limites
nele falam. Uma das balizas históricas
ou mesmo falta de parâmetros ético
que informam esse fenômeno aparece
e morais, mas uma forma de compre- com a reivindicação de igualdade, feita
ender os seres humanos para além da por Mary Wollstonecraft, na Inglaterra.
polarização dicotômica homem-mu- Na Vindication of the Rights of Woman
lher. Dessa maneira, o incômodo que (Reinvindicação dos Direitos da Mu-
tais sujeitos atraem ao desestabilizar as lher) de 1792, o feminismo liberal ganha
noções, atitudes e valores que se consi- expressão na legislação que defende
deram naturais deve ser acolhido, pois igualdade de educação, salário e opor-
seria fundamental para um repensar as tunidade para as mulheres. Também
formulações de gênero e as estruturas chamado feminismo cientíico, empirismo fe-
de poder. minista ou feminismo da igualdade, foi prin-
cípio orientador da doutrina de ação
Ana Carolina Eiras Coelho Soares airmativa que possibilita o ingresso
das mulheres nas proissões, com base
Referências e sugestões de leitura na discussão que procurou estender os
BADINTER, Elisabeth. O conlito: a mulher e a mãe.
“direitos do homem” às mulheres,
Rio de Janeiro: Record, 2011. conforme pressupostos do liberalismo.
BADINTER, Elisabeth. Um Amor conquistado: o mito
Algumas estudiosas reconhecem três
do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. períodos em que, como vagas, distin-
BEAUVOIR, S. Le Deuxième Sexe. Gallimard, Paris,
guem diferentes movimentos: a pri-
1949, 2vols. meira vaga, localizada no século XIX,
BUTLER, Judith: Gender Trouble. New York, Routled- localiza, além da demanda pela igualda-
ge, Champman & Hall, 1990. de de direitos contratuais e de proprie-

• 251 •
dade, as lutas contra a subordinação partidos e conjuntos legislativos nacio-
das mulheres ao casamento e aos mari- nais. Tal ampliação tem um ponto de
dos. Desdobramentos se veriicam no inlexão, particularmente, com a publi-
século seguinte, com a conquista pelo cação de O Segundo Sexo, da ilósofa
direito de voto das mulheres (Nova francesa Simone de Beauvoir, que in-
Zelândia, 1893; Reino Unido, 1918; terroga o fundamento biológico da di-
EUA, 1919; Brasil, 1932, para citar ferença sexual e a destinação sócio-cul-
apenas alguns países), entre as lutas pe- tural das mulheres: “Não se nasce
los direitos sexuais e reprodutivos das mulher, torna-se mulher”. As lutas ma-
mulheres; a segunda onda, assinalada nifestam-se em discursos de diferentes
nas décadas de 1960 e 1970, é caracte- nacionalidades, estratos sociais, na im-
rizada pela crítica ao etnocentrismo, prensa e na literatura, em diferentes
em aliança com os movimentos norte- redutos da sociedade moderna. Na se-
-americanos pelos direitos civis e pelas gunda metade do século XX, é relevan-
lutas anti-colonialistas, nos EUA e na te, nos EUA, a formulação de críticas
Europa, e a emergência das feministas internas dirigidas à larga pauta de rei-
negras, entre elas Ângela Davis e Alice vindicações do movimento “women’s li-
Walker; a terceira vaga, a partir dos beration” a im de contemplar posições
anos 80 do mesmo século, é momento do movimento de mulheres negras. No
em que se pontua a acentuação dos livro Feminist Theory: from margin to the
movimentos e do pensamento social center, publicado em 1984 (Cambridge/
na direção de uma radicalização da crí- MA: Southend Press Classics, v.5), Bell
tica ao racionalismo essencialista e às Hooks elabora uma leitura das teorias
categorias da identidade, particular- e práticas feministas desde as margens
mente de sexo-gênero, raça-etnia e do movimento norte-americano con-
classe social. No primeiro período, os tra a exploração e a opressão sexista e
movimentos do pensamento e das prá- racista. Ainda na década de 80, os estu-
ticas políticas buscavam adicionar a ca- dos de gênero abrem um campo não
tegoria mulheres aos discursos da ciên- menos combativo de pesquisas inter-
cia, redeinindo papéis, funções e disciplinares. Inluenciada por Michel
conigurações do feminino na vida Foucault e outros pós-estruturalistas, a
biológica, política e social. Ao longo historiadora Joan Scott elabora uma re-
do século XX, amplia-se o cenário de lexão seminal, que serve de baliza e
relexões e conquistas feministas, pro- referência nesse processo. O artigo Gê-
cesso que pode ser observado não ape- nero, uma categoria de análise histórica, pu-
nas nos discursos de grupos mais orga- blicado em 1986 no American Histori-
nizados da sociedade civil - associações, cal Review (Gender: A Useful Category

• 252 •
of Historical Analysis, American His- LGBT. No Brasil, os movimentos fe-
torical Review 91, No. 5. December ministas também ampliam espaços so-
1986), procura desconstruir a oposição ciais e políticos de modo geral. As pu-
considerada universal entre homem e blicações na área são reveladoras do
mulher, masculino e feminino. Na dire- crescimento da contribuição de inte-
ção contrária ao uso descritivo da cate- lectuais brasileiras e do intercâmbio
goria gênero, a autora sugere pensá-la acadêmico e cultural. Destacam-se al-
como um saber sobre as diferenças se- gumas das mais antigas e persistentes:
xuais e uma forma de dar sentido às Revista de Estudos Feministas, da Univer-
relações hierárquicas de poder. Na es- sidade Federal de Santa Catarina (des-
teira dessas relexões, evidencia-se a de 1993); Revista Pagu, da Unicamp,
emergência do feminismo da diferen- (Campinas/SP, desde 1993); o Caderno
ça, que refuta deinitivamente a airma- Espaço Feminino, da Universidade Fede-
ção de que a ciência, a política, a histó- ral de Uberlândia (Uberlândia/MG,
ria teriam gênero neutro. Judith Butler, desde 1994); Gênero, da Universidade
ilósofa norte-americana, aprofunda a Federal Fluminense (desde 2000), e La-
relexão sobre a natureza biológica do brys, Estudos Feministas, da Universidade
sexo, dos corpos e identidades, ao dis- de Brasília/DF (Brasília/DF; Montre-
solver a dicotomia sexo-gênero (natu- al/Canadá; Paris/FR, desde 1994). A
reza-cultura) para pensar o sexo como proliferação de grupos de estudos e
ideal regulatório, ou seja, não como diálogos transdisciplinares, de publica-
aquilo que alguém tem, mas como nor- ções na área, a consolidação de espa-
ma que confere inteligibilidade cultural ços para o debate - colóquios nacionais
ao corpo sexuado no interior de uma e internacionais - e organizações políti-
ordem heteronormativa. Ao proble- cas governamentais e não-governa-
matizar a própria materialidade do cor- mentais –, entre elas o Conselho Na-
po, e deixar de enxergá-lo como um cional dos Direitos da Mulher, criado
objeto-sujeito no qual o gênero se im- em 1985, e a Secretaria de Políticas
prime ou um meio passivo pelo qual para as Mulheres do Governo Federal,
ele age, ela expõe a arena de práticas criada em 2003, são resultados dessas
regulatórias reiterativas que produzem ações que se multiplicam e que, por sua
performativamente o corpo e o sexo. vez, alargam as perspectivas de promo-
Os estudos de Judith Butler fertilizam ção de pesquisas e políticas públicas
a epistemologia feminista e as críticas para a transformação social na esfera
da cultura, e abrem caminhos para do trabalho, da saúde, da cultura e cida-
ações e elaborações outras, entre elas dania. São evidências da atuação das
as Teorias Queer e os Movimentos mulheres e da sociedade organizada

• 253 •
em suas lutas pelos direitos trabalhis- ções do feminino e do masculino, mos-
tas, reprodutivos, pelos direitos à con- trando que o discurso fundado no
tracepção e ao aborto, no combate aos biológico ou na natureza dos sexos é
crimes de assédio sexual, estupro e às um mecanismo do poder do patriarca-
formas cotidianas mais ou menos ex- do em operação, marcado de historici-
plícitas da violência, entre elas a violên- dade. As ações na sociedade e no pen-
cia doméstica. Desde os esforços mais samento, ou seja, os feminismos,
descritivos no sentido da visibilidade entendidos como instrumento e efeito
das práticas e dos movimentos das mu- dos movimentos sociais e das críticas
lheres até as formas do exercício críti- epistemológicas, procuram retirar das
co da cultura, que se propõem a en- sombras e do silêncio a construção das
frentar a violência impressa e expressa desigualdades de gênero, a divisão bi-
na linguagem e nos códigos sociais, nária, histórica e política da sociedade.
com o aporte da ilosoia da diferença, Assim, procuram mostrar os dispositi-
essas publicações e discursos são reve- vos de produção e naturalização das
ladores de uma miríade de estudos im- identidades sexuadas, reconhecer as
portantes e apresenta a plurivocidade formas históricas de operação da cul-
do pensamento feminista no Brasil e tura androcêntrica, para pensar e re-
no mundo. Portanto, tornando visível a construir, para além da desigualdade
presença e a contribuição das mulheres construída, a multiplicidade de experi-
na vida, na política, na produção e lei- ências humanas em outros termos. Su-
tura do mundo social, ou buscando gere-se o uso do termo no plural – fe-
desconstruir os mundos construídos minismos - para se dar a ler e conhecer
pela linguagem e pela cultura, os femi- o conjunto diverso de experiências e
nismos contemporâneos estão em mo- acepções possíveis que remetem ao
vimento: problematizam a construção enunciado.
da diferença sexual, a representação e a
reiteração binária dos corpos, a produ- Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro
ção da assimetria dos sujeitos, dos po-
Referências e sugestões de leitura
deres e das desigualdades sociais. As-
sim, ao evidenciarem as experiências e ALVES, Branca Moreira & PITANGUY, Jacqueline. O
ao formularem a crítica quanto ao pro- que é feminismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.

cesso de diferenciação dos sexos nas BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. São Paulo: Di-
diferentes formações histórico-sociais, fel, 1955.

os feminismos atuam e buscam des- BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e


subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civili-
construir as identidades e representa- zação Brasileira, 2003.

• 254 •
HOOKS, bell. Feminist heory. From margin to the preendidas e atendidas dentro do mo-
centre. @nd Edition. Cambridge/MA: Southend Press
Classics, 1999. vimento, uma vez que este tomava a
categoria mulher como universal e não
FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade. Vol.1,
2, 3. 13a. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. percebia – muitas vezes de maneira de-
liberada – que a maior parte das con-
NICHOLSON, J. Linda (Org.).Feminismo/posmoder-
nismo. Buenos Aires: Feminaria Editora, 1992.. quistas efetivadas até ali, que se orienta-
vam pela perspectiva liberal, atendiam
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise his-
tórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº apenas à parte branca e classe média
2, jul./dez. 1995, pp. 71-99. Revisão de Tomaz Tadeu da
do movimento, já que outras de suas
Silva a partir do original inglês (SCOTT, J. W.. Gender
and the Politics of History. New York: Columbia Univer- componentes careciam ainda da efeti-
sity Press, 1988. PP. 28-50.)
vação de direitos básicos, o que torna-
SHIENBINGER, Londa. O Feminismo mudou a ciên- va as demandas destas últimas diferen-
cia? Tradução: Raul Fiker. Bauru/SB: EDUSC, 2001.
tes e especíicas. Sendo assim, autoras
como Patricia Hill Collins, Angela Da-

vis, bel hooks – que decidiu grafar seu
nome em minúsculas como forma de
Feminismo Negro
diferenciação e resistência aos padrões
A construção de um feminismo acadêmicos –, Audre Lorde e Kimberle
que atendesse às necessidades especíi- Crenshaw passaram a elaborar análises
cas das mulheres negras começou a se que tinham como base a compreensão
consolidar, nos EUA, a partir de rele- do que é feminismo – “Em seu senti-
xões e ações propostas por militantes do mais amplo, o feminismo constitui
nos anos 70. Embora desde o século tanto uma ideologia como um movi-
XIX já ecoasse ali a pergunta “Não sou mento político global confrontando o
eu uma mulher?”, feita por Sojourner sexismo – uma relação social na qual
Truth para demonstrar as injustiças os homens, como um grupo, têm au-
cotidianas relacionadas às questões de toridade sobre as mulheres enquanto
raça, classe e gênero que se abatiam grupo.” (COLLINS, 2017, s/n) –, mas
sobre as mulheres recém-saídas da es- que buscavam dar conta “da margi-
cravidão (RIBEIRO, 2015; COLLINS, nalização social, econômica e política
2017), foi somente nas últimas décadas das mulheres negras nos EUA.” (RI-
do século XX que começou a ganhar BEIRO, 2015, p.53). Assim, de acordo
corpo uma produção teórica sobre o com Collins, utilizar o termo femi-
feminismo negro. nismo negro “posiciona as mulheres
Embora integrassem o feminis- afroamericanas para examinar como a
mo clássico, as mulheres negras não constelação particular de questões que
se sentiam plenamente ouvidas, com- afetam as mulheres negras nos Estados

• 255 •
Unidos faz parte de questões de eman- como primordiais. Era necessário pen-
cipação das mulheres globalmente” sar, também, como a ideia de raça, a
(COLLINS, 2017, s/n). despeito de sua inexistência biológica
Cabe ressaltar que, para estas e enquanto marcador indisfarçável de
autoras, constituíam importante fator distinção e discriminação, perpassava
de contribuição na formação do pen- as relações estabelecidas e se combina-
samento feminista negro as relexões va com gênero e classe para criar um
elaboradas por mulheres que estavam sistema complexo de dominação, que
ou estiveram fora dos tradicionais cen- colocava homens e mulheres, tanto
tros de produção de conhecimento. brancos quanto negros, em posições
Assim, considerações sobre as ações e sociais diferentes, mutuamente in-
o papel exercido por mães, professo- luenciáveis e hierarquicamente rela-
ras, líderes comunitárias, compositoras tivas entre si. Nas palavras de Angela
e outras agentes sociais negras, com- Davis “Raça é a maneira como a classe
preendidas como experiência cotidia- é vivida. Da mesma forma que gênero
na de luta e resitência, foram tomadas é a maneira como a classe é vivida. A
como parte fundamental e legítima, gente precisa reletir bastante para per-
juntamente com a produção teórica ceber que entre essas categorias exis-
acadêmica, do conjunto de ideias que tem relações que são mútuas e outras
formavam o feminino negro (BAIR- que são cruzadas. Ninguém pode as-
ROS, 1995; COLLINS, 2017). Ou seja, sumir a primazia de uma categoria so-
este pode ser deinido como “um con- bre as outras.” (DAVIS, 1997, p.8 apud
junto de experiências e ideias compar- MALTA; OLIVEIRA, 2016, p.58)
tilhadas por mulheres afro-americanas Assim, para deinir esta per-
que oferecem um ângulo particular de cepção, em 1989 Kimberlé Crenshaw
visão do eu, da comunidade e da socie- estabeleceu o conceito de intersec-
dade e ele envolve interpretações teó- cionalidade. Nesta deinição: “a in-
ricas da realidade de mulheres negras terseccionalidade é uma conceituação
por aquelas que a vivem”. (BAIRROS, do problema que busca capturar as
1995, p.463) consequências estruturais e dinâmicas
Ainda, por meio de suas ex- da interação entre dois ou mais eixos
periências cotidianas e de atuação no da subordinação. Ela trata especiica-
feminismo, as feministas negras per- mente da forma pela qual o racismo,
ceberam que não era possível aplicar o patriarcalismo, a opressão de classe e
a resolução de suas questões especí- outros sistemas discriminatórios criam
icas apenas às categorias de gênero desigualdades básicas que estruturam
ou classe em separado ou tomando-as as posições relativas de mulheres, raças,

• 256 •
etnias, classes e outras.” (CRENSHAW, lidade.” (CARNEIRO, 2003, p.118).
2002, p.177 apud RIBEIRO, 2016, Nas palavras de Lélia Gonzalez, repro-
p.101). Estabelecendo que raça, classe, duzidas por Sueli Carneiro, o feminis-
gênero e outras categorias se interpe- mo brasileiro impunha “duas diicul-
netram e criam realidades sociais, o dades para as mulheres negras: de um
conceito de interseccionalidade ga- lado, o viés eurocentrista do feminis-
nhou centralidade não só nas análises mo brasileiro, ao omitir a centralidade
que partem da perspectiva negra, mas da questão de raça nas hierarquias de
em todo contexto analítico feminista. gênero presentes na sociedade, e ao
No Brasil, embora já houvesse universalizar os valores de uma cultura
participação feminina, deinida como particular (a ocidental) para o conjun-
contribuição negra especíica, nos mo- to das mulheres, sem as mediações que
vimentos pela democratização e de- os processos de dominação, violência e
mandas populares de mulheres da dé- exploração que estão na base da intera-
cada de 1970, somente nos anos 1980 ção entre brancos e não-brancos, cons-
surgem as primeiras manifestações ne- titui-se em mais um eixo articulador do
gras declaradamente feministas. Isso se mito da democracia racial e do ideal de
deu porque nesse período ainda havia branqueamento. Por outro lado, tam-
uma rejeição, por parte das mulheres bém revela um distanciamento da reali-
negras brasileiras, à identidade femi- dade vivida pela mulher negra ao negar
nista, com a qual não se identiicavam toda uma história feita de resistências e
e percebiam como sendo pejorativa – de lutas, em que essa mulher tem sido
coisa de gente feia, que queimava sutiã protagonista graças à dinâmica de uma
(MOREIRA, 2007, p.60). memória cultural ancestral – que nada
Ainda, da mesma maneira que tem a ver com o eurocentrismo des-
nos EUA, no Brasil, “o feminismo es- se tipo de feminismo.” (CARNEIRO,
teve, também, por longo tempo, prisio- 2003, p.120). Desta maneira, questões
neiro das visões eurocêntrica e univer- impostas pela submissão da mulher ne-
salizante das mulheres. A conseqüência gra ao mito da democracia racial, pelo
disso foi a incapacidade de reconhecer ideal de branqueamento da sociedade,
as diferenças e desigualdades presentes pela estigmatização de seus corpos e
no universo feminino, a despeito da pela frequente violência à qual estão
identidade biológica. Dessa forma, as expostas, mas que resultavam em um
vozes silenciadas e os corpos estigma- movimento constante de resistência
tizados de mulheres vítimas de outras e luta, não eram percebidas como re-
formas de opressão além do sexismo, levantes para as feministas da época.
continuaram no silêncio e na invisibi- Esta situação fazia com que o movi-

• 257 •
mento de mulheres negras não se sen- feminista, enfrentando “as contradi-
tisse atendido em seus anseios dentro ções e as desigualdades que o racismo
do feminismo. e a discriminação racial produzem en-
É interessante notar que, mes- tre as mulheres, particularmente entre
mo dentro do movimento negro as negras e brancas no Brasil”, como no
mulheres encontravam resistência em movimento negro, exigindo “que a di-
terem suas demandas especíicas reco- mensão de gênero se instituísse como
nhecidas. “O Movimento Negro Unii- elemento estruturante das desigualda-
cado (MNU), uma das principais orga- des raciais na agenda dos Movimentos
nizações daquele período [1970-1980], Negros Brasileiros.” (CARNEIRO,
não entendia que as bandeiras delas 2003, p.120). Para Sueli Carneiro, “tal
deveriam ser defendidas pelo coletivo. processo vem resultando, desde me-
Em função disto, as questões referen- ados da década de 1980, na criação
tes à vida da mulher negra eram prete- de diversas organizações de mulheres
ridas por questões gerais. Dito de outra negras que hoje se espalham em nível
forma, o antirracismo não garantia a nacional; de fóruns especíicos de dis-
ausência de machismo no interior das cussões programáticas e instâncias na-
organizações, e as pautas das mulheres cionais organizativas das mulheres ne-
negras permaneciam invisibilizadas em gras no país a partir dos quais os temas
nome de uma luta que via mulheres e fundamentais da agenda feminista são
homens negros de forma homogênea.” perscrutados pelas mulheres negras à
(MALTA; OLIVEIRA, 2016, p.58). luz do efeito do racismo e da discri-
Nesse contexto, as organiza- minação racial. (CARNEIRO, 2003,
ções feministas negras surgem, a par- p.120).
tir de 1985, quando do III Encontro Para inalizar, resta dizer que,
Feminista Latino-americano, com a atualmente, diversos grupos que le-
perspectiva de construir uma identida- vam avante a bandeira do feminismo
de feminina negra, “voltada para: [...] negro têm encontrado na internet um
Airmação das mulheres negras como importante espaço para o exercício de
pessoa, como facção política, como sua militância. (MALTA; OLIVEI-
sujeito político, era uma airmação RA, 2016, p.58). É o caso de grupos
do valor da identidade das mulheres como Geledés – Instituto da Mulher
negras como um grupo coeso [...].” Negra, fundado em 1988, e do proje-
(MOREIRA, 2007, p.59-61). Nesta to Blogueiras Negras, criado em 2012.
perspectiva, o movimento feminista Em um alinhamento com a ideia de
negro trabalhou para que fosse reco- valorizar e incorporar a experiência
nhecido tanto dentro do movimento cotidiana de luta e resistência das di-

• 258 •
versas mulheres negras na formação MALTA, Renata Barreto; OLIVEIRA, Laila haíse Ba-
tista de. Enegrecendo as redes: o ativismo de mulheres
do pensamento feminista, proposta negras no espaço virtual. Gênero. Niterói, v.16, n.2, p.
pelas primeiras teóricas estaduniden- 55 – 69, 1.sem. 2016.

ses, este último grupo se apresenta da MOREIRA, Núblia Regina. O Feminismo Negro Brasi-
seguinte maneira: “Somos mulheres leiro: um estudo do movimento de mulheres negras no
Rio de Janeiro e São Paulo. Dissertação de Mestrado apre-
negras e afrodescendentes. Blogueiras
sentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de
com estórias de vida e campos de inte- Filosoia e Ciências Humanas da Universidade Estadual
resses diversos; reunidas em torno das de Campinas, 2007.

questões da negritude, do feminismo, RIBEIRO, Djamila. Simone de Beauvoir e Judith Butler:


e da produção de conteúdo. Viemos aproximações e distanciamentos e os critérios da ação
política. Dissertação apresentada ao programa de Pós-
contar nossas estórias, exercício que -graduação em Filosoia na Universidade Federal de São
nos é continuamente negado numa Paulo, 2015.

sociedade estruturalmente discrimina- RIBEIRO, Djamila. Feminismo Negro para um Novo


tória e desigual.” (ANDRADE, s/d). Marco Civilizatório. SUR. São Paulo, v.13 n.24, p.99-
104, dez 2016.
Cumpre-se, desta maneira, o proposto
na gênese do feminismo negro, a con- Sugestões de leitura
tinuidade das “lutas contra o sexismo
e o racismo enfrentados pelas mu- BAIRROS, Luiza. Nossos Feminismos Revisitados. Estu-
dos Feministas, ano 3, 1995.
lheres negras, que também são parte
dos esforços da comunidade negra CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estud. av.,
para alcançar a igualdade e liberdade” São Paulo, v. 17, n. 49, p. 117-133, dez. 2003. Dispo-
nível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v17n49/18400.
(COLLINS, 2017, s/n). pdf>. Acesso em 20 abr 2018.

Maria Cecília de Oliveira Adão COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider wi-
thin: a signiicação sociológica do pensamento feminista
negro. Soc. estado., Brasília , v. 31, n. 1, p. 99-127,
Referências abr. 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/se/
v31n1/0102-6992-se-31-01-00099.pdf>. Acesso em 23
ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Quem somos. Blo- abr 2018.
gueiras Negras. Disponível em: <http://blogueirasnegras.
org/quem-somos/>. Acesso em 23 abr 2018.
COLLINS, Patricia Hill. O que é um nome? Mu-
BAIRROS, Luiza. Nossos Feminismos Revisitados. Estu- lherismo, Feminismo Negro e além disso.Cad. Pagu,
dos Feministas, ano 3, 1995. Campinas, n. 51, e175118, 2017. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/cpa/n51/1809-4449-c-
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estud. av.,
pa-18094449201700510018.pdf>. Acesso em 28 fev
São Paulo, v. 17, n. 49, p. 117-133, dez. 2003. Dispo-
nível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v17n49/18400. 2018.
pdf>. Acesso em 20 abr 2018.
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boi-
COLLINS, Patricia Hill. O que é um nome? Mu- tempo, 2016.
lherismo, Feminismo Negro e além disso.Cad. Pagu,
Campinas, n. 51, e175118, 2017. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/cpa/n51/1809-4449-c- •
pa-18094449201700510018.pdf>. Acesso em 28 fev
2018.

• 259 •
Feminismo Pos/decolonial nismo poscolonial” en la discusión so-
bre los rasgos que asumió el feminismo
En los inicios del feminismo la como “feminismo blanco occidental y
relexión sobre la emancipación de la heterosexista” y la preocupación sobre
mujer se hacía en función del binaris- las diferencias históricas y culturales
mo hombre/mujer, contrarrestándola podían afectar la teoría y la práctica
con la condición masculina. Las dife- política del feminismo. Para Teresa de
rencias entre mujeres eran subsumidas Lauretis, el sujeto del nuevo feminismo
a la ilusión de una opresión en común. (el feminismo de la época postcolonial,
Ahora las diferencias entre mujeres son como lo denomina), respecto al femi-
el nuevo eje articulador del feminismo. nismo de las etapas anteriores y a su
De este modo, desde la posición de las sujeto (deinido por la oposición de
mujeres negras — quienes “ostentan” la mujer al hombre sobre la base del
el estatus social más bajo que cualquier género, constituido únicamente por
otro grupo social por su triple opresi- la opresión, represión o negación de
ón sexista, racista y clasista “sin ‘otro’ la diferencia sexual) no es ya un suje-
institucionalizado al que puedan dis- to unitario, siempre igual a sí mismo,
criminar, explotar, u oprimir” (hooks, dotado de una identidad estable, ni un
2004: 49) —, la posición de los varones sujeto únicamente dividido en posicio-
afrodescendientes quedaría igualada a nes de masculinidad y feminidad. Es, al
la de las mujeres blancas, en tanto am- contrario, un sujeto que ocupa posicio-
bos pueden actuar como oprimidos nes múltiples, distribuidas a lo largo de
y opresores: “Los hombres negros diversos ejes de diferencia y atravesado
pueden ser víctimas del racismo, pero por discursos y prácticas que pueden
el sexismo les permite actuar como ser y, a menudo lo son, recíprocamente
explotadores y opresores de las mu- contradictorios.
jeres. Las mujeres blancas pueden ser El Feminismo postcolonial ha-
víctimas del sexismo, pero el racismo bla de feminismo del “Tercer Mundo”
les permite actuar como explotadoras y englobaría tanto a las mujeres opri-
y opresoras de la gente negra (…). El midas por la raza/género/sexo en el
sexismo de los hombres negros ha so- “Primer Mundo” como a las mujeres
cavado las luchas por erradicar el ra- de los países descolonizados o neoco-
cismo del mismo modo que el racismo lonizados. Estas tensiones se retrotra-
de las mujeres blancas ha socavado las en la década de los setenta, en la que
luchas feministas” (hooks, 2004: 49). el feminismo negro y/o lesbiano se
Este cambio de eje se inscribe despegaron del feminismo existente,
en el pensamiento próximo al “femi- criticado de racista y etnocentrista: esta

• 260 •
crisis puede señalarse como el antece- muchas mujeres con un movimiento
dente de lo que luego se llamaría fe- feminista cuyo emblema es la mujer
minismo “postcolonial”. Además, cabe blanca, occidental, heterosexual, de
mencionar que muchas de las integran- clase media, urbana, educada y ciuda-
tes de los movimientos de mujeres, dana contra el patriarcado, las feminis-
blancas y de color, estuvieron vincula- tas — que desconocían la opresión de
das al movimiento por los derechos ci- raza y clase — pospusieron y desecha-
viles en los EE.UU y habían participa- ron estas otras ausencias sintomáticas
do en las luchas nacionalistas contra el de la agenda feminista: el racismo, les-
colonialismo del “Tercer Mundo”. El bofobia, la colonización. En torno al
“Tercer Feminismo” o “Feminismo del llamado a la unidad del feminismo para
Sur”, se entiende como parte de una luchar contra la opresión universal del
propuesta anti-imperialista que sobre- patriarcado, las feministas –que des-
vuela la dicotomía geopolítica imperia- conocían la opresión de raza y clase-
lista Norte/Sur cuestionando las bases pospusieron y desecharon estas otras
orientalistas de lo que llamo una “re- opresiones y, de este modo, impidieron
tórica salvacionista” (Bidaseca, 2016: ver sujetos racializados sexualizados
81). Este discurso salvacionista “es y colonizados y la ubicación de estos
propio del feminismo occidentalizante sujetos en diferentes discursos raciali-
que se asocia a la ideología imperialis- zados. En efecto, encontraron que la
ta tal como Edward Said lo deine en categoría de patriarcado era una forma
Orientalismo” (2014: 84). La pensa- de dominación masculina universal,
dora feminista india Chandra Talpade ahistórica, esencialista e indiferencia
Mohanty en su trabajo “Bajo los Ojos a respecto de la clase o la raza y fue
de Occidente”, concibe los discursos este el motivo de su cuestionamiento.
académicos como centros de produc- Múltiples movimientos feministas en
ción de conocimiento de colonización EE.UU construyeron su crítica desde
discursiva. La producción de la “Mujer la posición étnica, cuando advirtieron
del tercer mundo” como sujeto mono- que eran silenciadas por las feministas
lítico singular (Mohanty 2008: 112) es blancas, aunque fueron también criti-
un discurso homogeneizador occiden- cadas de sectarias. Por un lado, el Por
tal que ignora las particularidades so- un lado, el Movimiento de mujeres fe-
cio-históricas y culturales de mujeres ministas negras — bell hooks, Ange-
concretas. la Davis, Audre Lorde, entre otras, de
El feminismo liberal burgués y quienes se rescata la antología Todas las
occidental hegemónico es puesto en mujeres son blancas, todos los negros
tela de juicio por el extrañamiento de son varones, pero algunas de nosotras

• 261 •
somos valientes (Gloria Hull, Patricia tal, lo feminismo de las fronteras. En
Bell Scott y Barbara Smith, 1982) —, el emblemático Borderlands/La Fron-
denuncia el racismo del feminismo tera. The new mestiza (1987) de Glo-
blanco y la ausencia de tratamiento de ria Anzaldúa o Este puente mi espalda
la clase y la raza. “El verdadero enfo- de Cherry Moraga y Gloria Anzaldúa
que del cambio revolucionario no está (1981) o Haciendo caras/Making Fcae,
nunca meramente en las situaciones Making Soul: Creative and Critical
opresivas de las que buscamos escapar, Perspectives (1990), Gloria Anzaldúa
sino en ese pedazo del opresor que propone asumir el mestizaje: la con-
llevamos plantado profundamente en ciencia mestiza surge de hacer habita-
cada uno de nosotros”, advierte Audre ble la propia posición de frontera (ge-
Lorde en los años de 1980. ográica: el borde de México, política,
En el trabajo colectivo “Otras sexual…) de su identidad de chicana
inapropiables” (2004), es su artículo lesbiana de color. Anzaldúa ha contri-
“Mujeres negras. Dar forma a la teoría” buido con la deinición de feminismo y
(2004). También, como Gloria Anzal- en el área cultural de la teoría chicana
dúa, escribe desde su propia experien- y queer.
cia de sentir la actitud condescendiente Una contribución muy especial
de las mujeres blancas feministas como fue la introducción del término mes-
“una forma de recordarnos que el mo- tizaje, que interpreta como un estado
vimiento era ‘suyo’ que podríamos de estar “más allá” (“entre-ó”). En sus
participar porque ellas lo permitían, in- trabajos teóricos, Anzaldúa hace un lla-
cluso nos alentaban a hacerlo. No nos mado a una nueva mestiza (“new mes-
veían como iguales […]” (p. 45). tiza”), que ella describe como un sujeto
Para hooks reverenciarse en el consciente de sus conlictos de identi-
patriarcado y no en el racismo les ha- dad, atrapada en encrucijadas, debien-
bilita a las feministas blancas que sigan do aprender y tolerar la “ambigüedad”.
actuando como explotadoras y opre- Utiliza el término el nuevo ángulo de
soras.” (Asunción portolés, p.7). Sexis- visión (“new angles of vision”) con el
mo, racismo y explotación de clase in de retar el pensamiento binario oc-
constituyen sistemas interrelacionados cidental. Inspirada en José Vasconce-
de dominación y opresión que deter- los, el ilósofo mexicano, quien llamó
minan la agencia femenina. como “raza cósmica”, “una raza mesti-
Los escritos de “mujeres de za, una mezcla de razas aines, una raza
color” mestizas como las escritoras de color — la primera raza síntesis del
chicanas, puertoriqueñas y latinas con- globo”, dice Anzaldúa, “opuesta a la
forman otro movimiento fundamen- teoría de la pureza de la raza aria, y la

• 262 •
política racial de la pureza que practica cutir los temas “importantes” y dejan
la América blanca, su teoría es inclusi- al quechua, el idioma nativo, para las
va. […]. Desde esta ‘crosspolinization’, cuestiones privadas o domésticas. El
una conciencia ‘allien’ se presentiica analfabetismo femenino, en comunida-
en el hacer una nueva conciencia mes- des de altura puede superar el 50% de
tiza, una conciencia de mujer. Esta es la población: las mujeres, en su lengua,
una conciencia de los bordes” (p. 99; aseguran que “son ciegas” y que “son
mi traducción). mudas” pues no saben leer ni hablar es-
Por su vez, el Feminismo Pari- pañol, y por tanto no pueden dirigirse
tario Indígena Andino “El concepto a extraños de la comunidad ni aspirar a
de género es patrimonio de las cien- un “cargo público”. Como en los privi-
cias sociales como categoría de análisis legios de la alimentación: “el hombre
y su construcción teórica es parte de come más no porque trabaje más sino
un proceso social y académico distante porque es hombre”; las campañas de
a los Andes.” (Rosalía Paiva, Feminis- esterilización forzada que fue objeto
mo paritario indígena andino, 2007). de denuncias en Peru, Guatemala, Bo-
Mientras la Unidad es el principio de livia (Sanjinés y su ilm) hasta la miso-
abstracción la cultura occidental, la ginia, especialmente hacia las mujeres
Paridad lo es para la cosmovisión in- indígenas en ciudad Juárez, Guatemala
dígena (Lajo, 2005). Esta cosmovisión o Canadá.
está compuesta por entidades comple- Algunos análisis que abordan
mentarias pero a la vez opuestas: mas- la temática de género (Silverblatt, Ri-
culino, femenino se complementan a la vera, Rostworowski, entre otras) su-
vez que se oponen, no se busca asegu- gieren que en las formaciones sociales
rar la superioridad masculina como en pre-hispánicos existía una igualdad de
la cultura occidental. género cuya matriz era una equitativa
Para Paiva el colonialismo occi- valoración de las tareas realizadas por
dental impuso en sus naciones por la ambos sexos y que son estos aportes,
fuerza una serie de costumbres y có- indispensables para la continuidad de
digos que se practican como si fueran la vida campesina y el cumplimiento de
propias en desmedro de la mujer in- las obligaciones hacia las autoridades
dígena, desde el silenciamiento en las imperiales, aquello que determinarían
asambleas comunales. Como señala la noción de complementariedad de la
Barrig (s/f) “En las asambleas campe- pareja. Estos estudios coinciden en la
sinas, los dirigentes varones eligen el existencia de principios comunes que
español — idioma que no conocen tienen en su vértice una organización
ni dominan las mujeres — para dis- dual en la mitología e incluso en los sis-

• 263 •
temas políticos en los Andes. El dualis- triarcado es una categoría transcultural
mo sería un concepto ordenador de la válida, y así concluir que “el género no
cosmovisión indígena: cada divinidad era un principio organizador en la so-
masculina poseía su doble, de caracte- ciedad Yoruba antes de la colonizaci-
res y atributos opuestos que sin embar- ón Occidental”. El patriarcado no está
go, se complementan. Las relaciones concebido como el opuesto a matriar-
de género tradicionales de los pueblos cado, sino para resaltar que no había
indígenas fueron en gran medida de- un sistema de género institucionaliza-
sestructuradas sobre todo en aquellos do. [...] Incluso, Oyewùmi nos indica
espacios de concentración poblacional que el género ha adquirido importan-
y comercio como los espacios urba- cia en los estudios Yoruba no como
nos. En este sentido, “occidentalizaci- un artefacto de la vida Yoruba sino
ón y patriarcalización de los sistemas porque ésta, tanto en lo que respecta
de género, pueden leerse en los Andes a su pasado como su presente, ha sido
como dos procesos paralelos” (Rivera; traducida al Inglés para encajar en el
1996:3). patrón Occidental de separación entre
En lo feminismo decolonial/ cuerpo y razón [...]. Asumir que la so-
descolonial, María Lugones ha enrique- ciedad Yoruba incluía el género como
cido al concepto de “colonialidad del un principio de organización social es
poder” en su texto “Colonialidad y gé- otro caso de “dominación Occidental
nero: hacia un feminismo descolonial” sobre la documentación e interpretaci-
(2008) propone la categoría “sistema ón del mundo; una dominación que es
moderno-colonial de género”. Airma facilitada por el dominio material que
que la categoría “género” es tan cen- Occidente ejerce sobre el globo” [...]
tral e indispensable como la categoría Oyewùmi airma que los/as investi-
“raza” para la vigencia del patrón colo- gadores siempre encuentran el género
nial del poder y del saber. No obstan- cuando lo están buscando.
te, cuestiona el status totalizador de la Esta discusión es pasible de leer
raza, en que la limitación parte de con- en el texto escrito por Rita Segato quien
siderar al género anterior a la sociedad se ubica en una segunda posición, en el
y la historia. Un punto neurálgico en el otro extremo, de la posición de María
debate acerca de la pre-existencia del Lugones y Oyeronke Oyewumi res-
género en el mundo colonial reúne a pecto de la inexistencia de género. Para
ambas iguras: Lugones y Segato. Para Segato las evidencias etnográicas del
dar cuenta de su inexistencia, Lugones mundo per-intrusión indican que no
cita a la feminista nigeriana Oyéronké existían sociedades igualitarias, que las
Oyewùmi para preguntarse si el pa- nomenclaturas de género ya estaban

• 264 •
disponibles desde la historia humana. enuncia al travesti en “su inasible alte-
La incidencia del pensamiento de la ridad”: “cuerpos indígenas cual no-lu-
colonialidad de poder/género es re- gar ignorado, cuerpos colonizados por
ceptora por los estudios de la disiden- el discurso que los rechaza, cuerpos
cia sexual. En su “Maniiesto en cuatro contemporáneos cuando un legado ir-
actos”, el ilósofo y performer peru- rumpe” (Campuzano, 2007: 9). En dis-
ano Giuseppe Campuzano abrió su tintas texturas, analiza distintas iguras
texto con una cita a Quijano acerca del como los enchaquirados, wawsa (eunu-
evolucionismo y dualismo, conceptos co), q’iwsa, ipa (“que viste vive habla y
nodales para el eurocentrismo y la co- trabaja como mujer”), para demostrar
lonialidad del poder impugnados en la cómo las coniguraciones de género en
propuesta de una historia a contrapelo la cultura prehispánica, no se limitan a
del Perú que se encuentra en el Museo las designaciones. Este binarismo ha
Travesti. Giuseppe Campuzano creó sido impuesto por la cosmovisión de
el Museo Travesti del Perú como un los colonizadores católicos.
proyecto conceptual, obra visual, por- En la perspectiva de los estudios
tátil y libro, “Donde se puede concen- del feminismo pós/decolonial, los es-
trar el universo entero a partir de unas tudios del feminismo islámico cuentan
cuantas imágenes y de ciertos fragmen- con importantes contribuciones de dis-
tos, restos, que siempre estuvieron pre- tintas autoras. En su artículo “Anhelos
sentes pero que nadie pudo detenerse Feministas y Condiciones postcolonia-
— hacía falta el milagro para que esto les”, Lila Abu-Lughod pone su atenci-
sucediera — y contemplarlo en toda la ón sobre el papel de mujeres musulma-
fascinación que su oscuridad lumino- nas que está cambiando en este nuevo
sa produce.” (2007:1) En él explora la siglo o el mundo postcolonial. Ese
huella del travestismo en el contexto cambio es llamativo porque en esos
del Perú. Se trata de un proyecto que tiempos postcoloniales, “Las mujeres
“empieza por impugnar saberes para se han convertido en símbolos poten-
lograr dislocar poderes” articulando tes de identidad y de visiones de la so-
una memoria del travestismo desde ciedad y la nación” (2002: 14). Como
el período prehispánico hasta la actu- explica, desde el feminismo Saba Mah-
alidad, trasladando “al travesti de los mood: “Fue la imagen del cuerpo de
márgenes al centro para replantear la una mujer afgana cubierto por una
historia del Perú desde el travestismo burka, y no la destrucción provocada
no como nuevo centro sino para mos- por 20 años de guerra subsidiada por
trar la relatividad de la historia oicial” los EE.UU, lo que sirvió de marco para
(Campuzano, 2009: 80). Campuzano la movilización de la organización Fe-

• 265 •
minist Majority contra el régimen tali- de la utilidad de los discursos sobre
ban. Esto es evidente en los relatos de las mujeres cubiertas con velos y en-
mujeres afganas que cuentan que sus cerradas en harenes entre cuatro pare-
vidas no mejoraron desde el derrum- des, también desempeñó un papel en
be del gobierno talibanés y cómo sus la comprensión de las libertades de las
vidas se tornaron más inseguras por la mujeres occidentales, entre unas “opri-
inestabilidad sociopolítica creciente.” midas” y otras “libres”.
(p. 10). Saba Mahmood, como Anzal-
La importancia que ha adquiri- dúa, centran su análisis en una diferen-
do el velo como signo de la domina- cia poco tratada la diferencia religiosa;
ción es insoslayable en la propaganda en este caso la tradición religiosa pa-
mediática y en las discusiones sobre los triarcal del islam. No obstante, cono
señala Abu-Lughod al hacer una bre-
derechos de las mujeres musulmanas
ve comparación entre mujeres musul-
que viven en el Primer Mundo, como
manas de tres países (Irán, Turquía, y
si fueran víctimas del sistema patriar-
Egipto), cuando se habla de “mujeres
cal de sociedades no occidentales en
musulmanas” no podemos generalizar-
sociedades occidentales. La obsesión
las porque cada país tiene su cultura e
europea por desvelar a las mujeres, es
historia que afecta las decisiones de sus
decir por quitarles (a ellas) el velo, lo poblaciones. Además, Abu-Lughod di-
inscribe, a mi entender, como signo rige su atención a la modernización, a
de autenticidad cultural. Hay una in- los lazos que la modernidad tendió con
quietante cercanía entre, por un lado, las mujeres, y a la cuestión tantas ve-
los discursos coloniales y los de algu- ces discutidas: si se puede ser moderno
nas representantes del feminismo oc- sin ser occidental. Esta característica
cidental, en términos “salvacionistas” contrasta con el movimiento de muje-
vía el camino del modelo occidental. res iraní cuyo objetivo es reinterpretar
Y por el otro, el discurso del “regre- los textos sagrados con la inalidad de
so a la autenticidad cultural” ante la construir relaciones equitativas entre
amenaza que imponía para las mujeres hombres y mujeres.
lo que un pensador iraní radicalizado
denominaba como “intoxicación occi- Karina Bidaseca
dental”. De modo que, “el velo en sí
mismo no debe ser confundido con, Referencias y sugerencias de
o hecho para, una suerte de agencia” lectura
(Abu-Lughod, 2002: 4; mi traducción).
ANZALDÚA, G. (ed.) Making Face, Making Soul, Ha-
Lo que me parece importante destacar ciendo caras. Creative and Critical Perspectives by Femi-
es lo que Jean Collier señala respecto nists of Color, San Francisco, Aunt Lutte Books, 1990.

• 266 •
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res tercermundistas en los Estados Unidos, San Francisco:
Feminism e a Radicalesbians, que cri-
Ism press. ticam as normas heterossexuais e ins-

• 267 •
titucionalizadas e apontam o sexismo grupo Psy-et-Po, com interesses pelos
étnico do sistema patriarcal. Kate Mil- problemas de linguagem e os escritos
let, Shulamith Firestone, Anne Koedt de Lacan e de Derrida.
e Adrienne Rich, entre outras femi- Em Speculum, Irigaray expõe a
nistas do inal dos anos 60 e também teoria da diferença sexual, criticando
dos anos 70, distinguem sexualidade e as abordagens de Freud e Lacan, bem
reprodução, e, abrem espaço para os como a tradição ilosóica, de Platão a
movimentos que se sucedem e que da- Hegel. Contra as teses essencialistas,
rão ao lesbianismo o status de teoria propõe nova concepção do femini-
respeitável. no pela diferença sexual e condena as
Na França, o grupo Psy-et-Po depreciações da sexualidade feminina
pela psicanálise (RESTAINO, 2002, p.
(Psicanálise e Política), guiado por
49). Com Irigaray, as feministas ditas
Antoinette Fouque, aborda a expres-
da diferença tomaram consciência de
são política das teorias psicanalíticas,
que “o mundo como representação”
aproximando-se das propostas sociais
não era mais que uma projeção do
do MLF (Mouvement de Libération des Fem-
sujeito masculino, e a subjetividade
mes). Outro grupo, no qual se incluem
formada apenas com base no relexo
Christine Delphy, Anne Tristan, Annie
(SENDÓN de LÉON, 2002, p. 16).
de Pisan e Monique Plaza, se apresenta Como ser sujeito tomando apenas o
em 1974 em Les Temps Modernes, e, to- outro e um mundo de representação
mando como referência o pensamento masculina como referência? A alusão
de Simone de Beauvoir, funda a revista ao speculum (contraposto de espelho) é,
Questions féministes, com a intenção de em Irigaray, um ataque sutil a Lacan,
inscrever o feminismo numa perspectiva que, em Estádio do Espelho, indicara
materialista e abolir o sistema de do- como decisiva a experiência especu-
minação patriarcal. Beauvoir atua como lar, na qual o menino ou a menina se
diretora de publicação, contribuindo veem reletidos no espelho e constro-
para a proposta de uma teoria sobre a em o sentido de suas identidades como
opressão das mulheres. Ligam-se a elas indivíduos separados da mãe e dos
feministas historiadoras, como Arlet- outros. O espelho que envia somente
te Farge e Elisabeth Badinter, ilósof- imagens precede da anuência do pai e
as, como Michèle Le Doeuff e Sarah de suas leis, feitas de palavras e lingua-
Kofmann, e, sobretudo, expoentes do gem que sancionam o papel masculino
feminismo francês dos anos 70, Luce como superior e o feminino como in-
Irigaray, Hélène Cixous, Julia Kriste- ferior. A ordem imposta pela lei do pai,
va e Monique Wittig, provenientes do na terminologia lacaniana, é chamada

• 268 •
de ordem simbólica, e os símbolos são seja, na lingugagem da lei do pai como
as palavras, os discursos, a linguagem, espelho, mantém-se a mulher em con-
que se distinguem das imagens e dos dição de inferioridade irremediável,
sinais. Estes pertencem à fase pré-ed- não sendo ela vista pelo homem tal
ípica, que Kristeva privilegiará como a qual é, mas como um buraco, uma falta,
ordem semiótica da mãe, em oposição uma ausência, o contrário de si. O falo
à fase da ordem simbólica do pai (RE- é aquilo que é pleno, a atividade, en-
STAINO, 2002, p. 50). quanto a vagina é a passividade, o nada.
Em Speculum, o tema central é O discurso masculino é falogocêntrico
o conceito de falogocentrismo, que e em tal ordem simbólica o homem se
explora a ambivalência do título do li- coloca no centro de tudo, enquanto
vro, pois este designa o espelho como possuidor do falo e do próprio discur-
instrumento de construção da iden- so (IRIGARAY, 2009, p.17-19).
tidade, tal como descreve Lacan, e o Irigaray critica as teses sobre a
espelho como objeto de uso ginecológ- sexualidade feminina como um cód-
ico, como instrumento que permite igo de comportamento e não uma
ao médico a visão da cavidade genital descrição dos fatos, com “fantasmas”
feminina. Tratando do falogocentri- que fazem a lei e transformam o ima-
smo, Irigaray ressalta a centralidade ginário em ordem social. Estabelece-se
do logos, da racionalidade discursiva, aí a relação do feminino com o pen-
na tradição ocidental, em paralelo com samento da diferença e do masculino
Derrida, que discorre sobre a realidade com o pensamento da identidade. A
marcada e criada pelo falocentrismo lógica para pensar o feminino deveria
originário da civilização. Em análise da transcender a do masculino, dito neu-
desconstrução da história da ilosoia tro ou universal e abstrato. (IRIGA-
e da psicologia, Irigaray mostra como RAY, 2009, p. 18-19). Retomando o
a diferença de gênero foi neutralizada mito da caverna de Platão, considera
e se interpretou a especiicidade fe- que a tradição ilosóica aceita a caver-
minina como uma imagem relexa e na como equivalente ao útero materno,
espelhada na única igura de identidade o speculum - enquanto o lugar da au-
concebida, a do mundo masculino. Se sência, da ignorância e da passividade-
o speculum é instrumento ótico cônc- que se contrapõe ao espelho externo
avo para examinar a cavidade do corpo – o bem e o sol (IRIGARAY, 2010, p.
humano, o espelho é a superfície plana 272). Em ensaios posteriores, Irigaray
que se abre ao público para restituir entende que a função da crítica femi-
a imagem humana. Nessa ideologia e nista seria a de desconstruir (em ter-
no imaginário da ordem simbólica, ou mos derridianos) a linguagem de todas

• 269 •
as disciplinas humanas, demonstrando vras, procurando não abafar a im de
os seus aspectos fundamentalmente des-mentir” (CIXOUS, 2001, p. 159).
falocêntricos e construindo uma outra De Monique Wittig, militante
linguagem, com valores distintos, não do feminismo de orientação lésbica
falsamente neutros mas especiicamen- dos anos 60, o escrito mais conhecido
te femininos (IRIGARAY, 2009, p. 97). é Não se nasce mulher, inspirado na fa-
Hélène Cixous, em especial em mosa frase de O Segundo sexo de Simone
O riso de Medusa, propõe exemplos de de Beauvoir. Trata-se de um reinado
escritura feminina plenos de diferença trabalho sobre a temática lésbica em
sexual, para indagar sobre o lugar da relação ao feminismo, que é referência
mulher na tradição discursiva ocidental para a leitura e compreensão de ten-
e concluir que “sempre vivemos sob o dências dos últimos anos. Wittig toma
alguns aspectos teóricos de Beauvoir e
Império do Próprio”. A história “está
de Virginia Woolf sob uma ótima ma-
dominada pelos mesmos senhores e
terialista, analisa a classe de mulheres,
eles a marcam com as insignías de sua
homens e lésbicas, estas últimas assu-
economia apropriadora”, só havendo
midas como condição especíica no
deslocamento para que ela “possa sem-
sentido de recusa do que possa ser to-
pre se repetir” (CIXOUS, 2001, p. 35).
mado ou imposto como natural, e air-
A lógica não neutra, mas fa-
ma que a heterossexualidade obriga-
locêntrica, do discurso ocidental é de tória limita a liberdade dos indivíduos.
tipo binário, o que legitima o papel Suas críticas alcançam a constituição
subordinado da mulher e deve ser re- da subjetividade e da identidade, jamais
futado por meio de uma escritura fe- dadas por natureza, mas por meio de
minina (écriture féminine) que ignore a escolhas livres (WITTIG, 1979).
lógica masculina. Trata-se de algo que Na Itália, o feminismo nasce
não pode ser teorizado ou codiicado, como consequência dos vários movi-
porque isso implica o léxico e a lógica mentos políticos de esquerda dos anos
da tradição falocêntrica, mas que tão 70 e airma-se não só como prática dos
somente se pode praticar, improvisar, grupos que vão se conscientizando
sem temor reverencial: uma escritura das reivindicações das mulheres, mas
de mulheres para outras mulheres, que pela elaboração teórica do que subjaz
cria estruturas sintáticas e linguísticas às lutas sociais e políticas. O manife-
novas. Assim as mulheres podem rea- sto Rivolta Femminile, que conta com
lizar por si mesmas uma parte de sua a presença de Carla Lonzi, prenuncia
liberação: “Escrever: roçar o mistério, a questão da diferença, em busca do
delicadamente, com a ponta das pala- direito à subjetividade e à autonomia,

• 270 •
fora dos parâmetros de uma “unilateral diferença sexual: “Tavez fosse mesmo
escravidão” (LONZI, 2010, p. 118). O o caso de se reletir suicientemente”
grupo inicialmente situado em Milão sobre a escolha de “separar-se da so-
e designado Libreria delle Donne pu- ciedade feita por homens” (MURARO,
blica, em 1987, um profundo estudo 2002, p. 93).
dos primeiros vinte anos do movimen- Cavarero ocupa-se inicialmente
to feminista italiano. Já em Verona, a dos problemas da linguagem ilosóica
liga remanescente se denomina Dio- e cientíica. No ensaio Per una teoria
tima, com a presença de Luisa Mu- della differenza sessuale, de 1987, ela
raro e Adriana Cavarero, toma como evidencia o caráter sexuado e mascu-
temática central a diferença sexual e a lino desse registro de linguagem, bem
construção de uma alternativa femini- como o fundo excludente da mulher
sta em relação à linguagem sexuada da que há no monismo da lógica tradi-
tradição masculina. cional, propondo que as mulheres tra-
Cavarero problematiza se o alvo balhem para construir uma linguagem
da teoria feminista não seria atacar a afeita a uma logica dual e não monís-
ordem falogocêntrica em seus próprios tica, que evidencie a diferença sexual
fundamentos lógicos, baseados numa e a expressão autônoma. Em escritos
linguagem que produz normas e hie- posteriores, tais como Nonostante Pla-
rarquias (CAVARERO, 2012, p. 114). tone (1990), Corpo in igure (1995), e
Ainda no grupo de Milão, com Tu che mi guardi, tu che mi racconti
destaque para Luisa Muraro, desen- (1997), aprofunda o confronto com
volve-se profunda crítica ao sistema teses da tradição ilosóica e literária
patriarcal, denunciando a opressão do Ocidente, aproximando-se, nos últ-
histórica da mulher. Na obra coleti- imos anos, de teoriasmais recentes na
va Non credere di avere dei diritti, de linha do feminismo de Braidotti, De
1987, a ideia-chave é que as mulheres Lauretis, Butler, Battersby.
não devem apoiar as reivindicações Contudo, o pensamento acerca
igualitárias propostas pelos homens e da diferença sexual sempre sustenta
muito menos se submeterem a deter- seus escritos, com o questionamento
minações tidas como universais. Para acerca da subjetividade feminina (CA-
Muraro, as mulheres devem erguer VARERO, 2009, p. 15). Mesmo que
suas diferenças e exaltar seus valores a mulher não tenha tido outrora uma
positivos por meio da prática da con- linguagem sua e deva utilizar a lingua-
iança, ou seja, que a mulher mais fra- gemdo outro, não podendo se repre-
ca possa coniar na mais forte em seu sentar a si mesma por meio de atos de
itinerário de liberação e airmação da fala, é preciso rever a simbologia igu-

• 271 •
rativa da tradição, para daí extrair o re- MAMBRINI, Luisella. Lacan e il femminismo contem-
porâneo. Roma: Quodlibet, 2010.
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Discursos feministas ante un nuevo siglo. Barcelona: Ica- ter ilosóico de seu discurso. O texto
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no qual sobressai o aspecto jurídico

• 272 •
levava em conta bases antropológicas, ilosoia em relação às mulheres é ide-
éticas e políticas do estado social da ologia patriarcal altamente misógina.
dominação masculina. A relexão so- De Platão e Aristóteles a Nietzsche,
bre as contradições do patriarcado sur- os homens que izeram a ilosoia ou
gia da percepção aguda das primeiras negligenciaram a questão das mulheres
pensadoras feministas que ainda não ou contribuíram para piorar a situação
se declaravam com o termo feminismo que elas ocupavam no cenário social
como uma crítica. A crítica dessas pen- em geral e também no campo ilosói-
sadoras dirigia-se à estrutura patriarcal co. Hoje quando se coloca a pergunta
da cultura, da sociedade e da política, “por que não há mulheres na história
em cujos termos mulheres eram trata- da ilosoia?” (embora sempre se men-
das como seres inferiores, dominados, cione algumas como Aspásia e Cristine
subservientes e subalternos. Podemos de Pisan) a resposta inevitável implica
também diferenciar a ilosoia feminis- as condições de produção da própria
ta da história da ilosoia que se ocupa ilosoia enquanto área sempre coman-
com o tema “mulheres” ou “femini- dada por homens segundo um progra-
no”. A ilosoia feminista não estudas ma de divisão do trabalho em que o
as mulheres como um mero tema a ser pensamento qualiicado como ilosoia
compreendido. Ela não pretende recu- não deveria ser acessível às mulheres.
perar traços perdidos que mostrariam Assim como as mulheres icaram afas-
o valor das mulheres no passado do tadas das artes, da literatura, da ciência,
pensamento. Antes, a ilosoia feminis- do direito, da vida pública em geral,
ta se ocupa em entender o modo como também a ilosoia não foi um campo
foi construída a deinição de “mulher”. aberto às mulheres. Se o mundo apaga
Um leitura feminista da ilosoia impli- a ilosoia, a ilosoia apaga as mulhe-
ca a crítica da ilosoia tradicional em res. Neste sentido, em relação à histó-
seu modo de ser essencialista. Um dos ria da ilosoia, só o que poderíamos
temas de interesse da ilosoia femi- fazer hoje, levando em conta a tradição
nista relativamente à história implica a ilosóica, seria recontar a história evi-
deinição da natureza feminina muito denciando o que os ilósofos homens
comum entre os ilósofos clássicos. falaram sobre as mulheres. Podemos
Neste âmbito raramente aparece algo também elencar alguns ilósofos e i-
que tenha sido escrito por homens lósofas que deixaram alguns textos
acerca de mulheres que não tenha sido favoráveis às mulheres como sujeitos
desabonatório (exceção é o livro A Su- do pensamento e da ação, mas em que
jeição das Mulheres de John Stuart Mill pese sua importância, são tão raros que
publicado em 1869). Toda a história da não chegam a formar um corpus ca-

• 273 •
paz de ameaçar a dominação masculina mologia própria. A ilosoia feminista,
vigente até os dias de hoje. Por serem neste sentido, se diferencia radicalmen-
parte interessada os ilósofos homens te dos estudos sobre mulheres, assim
geralmente falaram mal das mulheres como dos estudos em torno do tema
construindo um processo de identii- do feminino, por ser justamente uma
cação das mulheres com algo inferior crítica radical de toda a epistemologia
e abjeto. O que a ilosoia feminista se e ontologia que dá base à dominação
propõe é, além de ser uma forma de masculina. O próprio termo “femi-
ética, ser também uma crítica da me- nino” é uma heterodeterminação do
tafísica do patriarcado. A ilosoia fe- patriarcado que, confundido com a
minista é, portanto, um projeto que se vida das mulheres, é um caráter a ser
estabelece na contramão da ilosoia desconstruído como fez a ilósofa es-
tradicional enquanto essa ilosoia é panhola Célia Amorós (1944) em seu
metafísica patriarcal ancorada em um livro “Hacia una Crítica de la Razón
discurso acrítico. A ilosoia feminista, Patriarcal” (1985). Toda a produção da
neste sentido, é necessariamente iloso- “identidade” heterodenominada pelos
ia crítica. Assim, a proposta que pode- homens como “feminina” é questiona-
mos identiicar como comum a todas da, do mesmo modo que “a mulher”
as ilósofas feministas diz respeito a como essência é questionada. Apesar
uma crítica profunda capaz não apenas disso, o feminismo de Célia Amorós
de desmantelar as estruturas estéticas, é o chamado Feminismo da Igualdade
políticas e morais do patriarcado, mas enquanto dá base teórica para a bus-
também as estruturas ontológicas da ca por direitos iguais para mulheres e
condição patriarcal à qual submetem- todos os seres oprimidos pelo patriar-
-se todos os discursos e todas as práti- cado.
cas. Assim, o feminismo ilosóico não A questão da igualdade acompa-
é apenas a desconstrução da história nha o feminismo desde sempre, tam-
patriarcal da ilosoia, mas a constru- bém o ilosóico e será fundamental
ção de uma ilosoia presente e futura para a ilosoia feminista. Junto com
que realmente seja crítica das metafísi- Olympe de Gouges, Mary Wollstone-
cas disfarçadas de ilosoias da subje- craft (1759-1797) pode ser considerada
tividade transcendental. O feminismo uma das precursoras da ilosoia femi-
ilosóico depende sempre, mesmo nista devido ao caráter inaugural de
quando seu interesse é eminentemen- sua crítica à pensadores de sua época,
te político, de uma crítica e de uma tais como Jean Jacques Rousseau que
espécie de refundação de uma episte- advogava a ideia de que as mulheres

• 274 •
deveriam ser educadas para o prazer rença entre os sexos construída segun-
dos homens e mereciam uma educação do Beauvoir na história e na cultura.
restrita à casa. Wollstonecraft (que é a É a partir de Beauvoir que se separa a
mãe da famosa autora Mary Shelley) questão sexo (natureza física) e gênero
argumentou em seus textos em favor (papel social). O termo “gênero”, tor-
da educação igualitária entre homens na-se muito discutido entre as ilósofas
e mulheres. A reivindicação de uma feministas nos anos 60 e 70. Dentre as
educação pública vinha acompanhada mais citadas está Joan Scott (1941) que
da exigência de educação para a razão, tratou o termo gênero como uma ca-
pois naquele período vigia a crença de tegoria de análise histórica. Depois de
que a sensibilidade era própria da “na- O Segundo Sexo muitas ilósofas po-
tureza feminina” e de que as mulheres sicionaram-se como feministas de di-
deveriam ser educadas em seu nome. versos modos, mas é em Judith Butler
Neste caso, sua teoria era um comba- (1942) que encontramos uma novida-
te ao sexismo. A ideia da humanidade de em relação à teoria de Beauvoir. Em
universal defendida por ilósofos da seu livro Problemas de Gênero (1990)
época que, contraditoriamente, exclu- Butler questiona justamente a binarie-
íam desta humanidade as mulheres dade dos gêneros que está em jogo na
por sua diferença sexual foi um insight famosa frase de Beauvoir. Pois que esta
fundamental de Wollstonecraft para frase, na visão de Butler, coloca a mu-
toda a história posterior envolvendo lher construída em termos de gênero
feminismo e ilosoia. Podemos, to- como se o gênero fosse novamente a
davia, dizer que a primeira ilósofa verdade natural que resolveria os di-
propriamente feminista foi Simone de lemas da diferença. A questão funda-
Beauvoir (1908-1986) que, ao escrever mental do feminismo de Butler será a
O Segundo Sexo (1949) inaugurou o desconstrução do paradigma binário
questionamento sobre a construção da e da heterossexualidade, bem como a
mulher pelo homem como um “outro” desmontagem do gênero que é toma-
marcado por seu “sexo”. O Segundo do como natural no contexto social.
Sexo é um livro que questiona a “na- Butler colocará em cena o tema dos
tureza” feminina, que questiona a pró- corpos abjetos e de um pensamen-
pria ideia de “mulher”, e justamente to crítico da identidade dos gêneros
por isso propõe a questão que o tor- construídos e posteriormente naturali-
nou famoso: “ninguém nasce mulher, zados. Estudiosas como Julia Kristeva
torna-se mulher”. O livro é um vasto (1941), Hélène Cixous (1937) e Luce
questionamento sobre a suposta dife- Irigaray (1932) praticarão o que foi

• 275 •
chamado de “feminismo da diferença” TIBURI, M.; VALLE, B. (Org.). Mulheres, ilosoia ou
coisas do gênero. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008.
e que nada mais é do que a crítica das
construções de identidade, mas que •
ainda defendem a ideia de uma escrita
e até de uma subjetividade feminina, Flora Tristán
o que vem a ser criticado quando se
entende que esta “diferença” constitui Flora Tristán (1803-1844) es
uma nova identidade. No entanto, a una de las iguras femeninas más em-
ilosoia feminista se recria e aprofun- blemáticas y revolucionarias del siglo
da seu alcance. Em outra linha, Anne XIX. Escritora, visionaria, viajera,
Fausto-Sterling (1944) discutirá o tema pionera en la defensa de los derechos
dos limites do conceito de gênero e de las mujeres, de los trabajadores y
das teorias sobre o corpo investindo trabajadoras y de la lucha contra la es-
na análise do hermafroditismo e da clavitud. Para el escritor Vargas Llosa
pertenece a la dinastía del Siglo XIX
intersexualidade, temas negligenciados
de los inconformes, objetores radi-
historicamente e que só poderiam vir à
cales de la sociedad en que nacieron y
tona com o profundo questionamento
fanáticamente persuadidos de que era
crítico da ilosoia feminista. A iloso-
posible transformarla, la ubica como la
ia feminista torna-se cada vez mais
única mujer entre los utopistas sociales
uma desmontagem das categorias da
decimonónicos. André Bretón, el gran
dominação masculina, tais como sexo
poeta surrealista airmó que acaso no
e gênero, que serviram de armadilha haya destino femenino que deje, en el
contra as individualidades postas sob irmamento del espíritu, una semilla
o controle masculino em uma história tan larga y luminosa. Para una corrien-
que hoje pede para ser reescrita. te de los feminismos es una precursora.
Nació el 7 de abril de 1803 en
Márcia Angelita Tiburi
París. Su padre, Mariano Tristán y
Referências e sugestões de leitura Moscoso, peruano, coronel al servi-
cio de la corona española y su madre
AMORÓS, Célia. Para uma crítica da razão patriarcal. Anne Laisney, francesa. Se casan en
Madrid: Antropos Editorial del hombre, 1985.
un matrimonio religioso con un sacer-
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência dote francés, sin legitimidad legal. En
vivida. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.
1808 Napoleón invade España y tiene
BUTLER, Judith. Gender trouble: Feminism and sub- lugar la insurrección contra la ocupaci-
vertion of identity. New York: Routledge, 1999.
ón francesa, hacia un año que su padre
CHANTER, Tina. Gênero: conceitos-chave em ilosoia. había muerto. El rey de España abdica
Trad. Vinicius Figueira. Porto Alegre: ArtMed, 2011.

• 276 •
ante Napoleón. Continúa la guerra y su generación. Morirá en Burdeos en
se emite un decreto imperial de incau- 1844 a los 41 años de iebre tifoidea.
tación de los bienes de los españoles El matrimonio de sus padres no tendrá
residentes en Francia, pierde la madre validez legal y por ello no accederán a
la propiedad de Vauginard. No se recu- la herencia familiar. Aunque es acogi-
perarán de este golpe y quedarán solas da ella por la familia Tristán en el Perú
sumidas en la pobreza. y posteriormente su hija Alina con su
Se produce la caída de Napo- nieto Paul Gauguin de 1850 a 1854.
león y llega al trono Luis XVIII. Las A los 17 años ingresa a trabajar
guerras y los conlictos han provocado como iluminadora, colorista en el tal-
millón y medio de muertes en Francia, ler de Andre Chazal con quien se verá
es la época de la Restauración y es – obligada a contraer matrimonio en
durante el reinado de Luis Felipe– que 1821. En 1825 luego de una historia de
Flora escribe sus obras, da sus luchas y violencia doméstica lo abandona y se
vive sus utopías. El código de Napole- va con sus tres hijos, Alexander, Er-
ón, logró que los clubes de mujeres se nest y Aline. Luego de un intento de
cierren, que las escuelas para mujeres asesinato, hoy seria tentativa de femi-
fueran abolidas y que se institucionali- nicidio, el 10 de septiembre de 1838,
ce la ideología de Rousseau en el Emi- Chazal le dispara a quemarropa, y una
lio. El código señalaba que el domicilio bala se instaló debajo del pecho. Lo-
de la mujer es el que señala el marido , grará inalmente el divorcio de Chazal
que este protegerá a su mujer y ella le que será condenado a veinte años de
deberá obediencia , el marido adminis- trabajo forzado conmutados por pri-
trara todas las propiedades de la mujer sión en 1839.
, entre otros. Con esto, la mujer casada Además de su trilogía literaria:
no tiene derechos civiles ni políticos. Peregrinaciones de una Paria (1838)
La Restauración suprimió el divorcio y Paseos en Londres (1839) y Mephis
el Código Civil de 1804 fue un monu- (1838) escribe la Unión Obrera, su
mento a la inequidad según la escritora obra cumbre, más reconocida y más
George Sand. La revolución francesa estudiada. Publica también: La emanci-
ya había excluido a las mujeres de la pación de la mujer o testamento de una
política, comenzando por su derecho paria, entre otras.
al voto. Flora Tristán llega al Perú en
Flora vivirá entre dos importan- 1833, ocho años después de la salida
tes revoluciones en Francia, la del 1830 de Simón Bolívar, amigo de su padre
y la de 1848 que no la alcanzara a ver, y de su madre. Publicará la correspon-
pero en la que participaran iguras de dencia entre su madre y el libertador,

• 277 •
como prueba del vínculo. Es difícil duda de su racionalidad y se las trata
explicarnos este personaje sin sus via- como un estamento inferior.
jes. Su encuentro con las Américas, sus Denys Cuche sostiene que no es
viajes a Londres, testigo de la revoluci- en el Perú que Flora Tristán descubre
ón industrial. Su espíritu internaciona- el esclavismo, sino que llega con ideas
lista lo desarrolla en sus viajes. Pasa de abolicionistas sacadas de sus lecturas y
ser testigo de una reciente nación inde- de su vínculo con los círculos parisinos
pendizada a la revolución industrial y el revolucionarios y sus viajes a Londres,
nacimiento de la clase obrera en Fran- país donde el combate por el aboli-
cia. Precisamente en su último viaje es cionismo era pionero. Su indignación
donde redescubre esta clase trabajado- frente a la esclavitud en su viaje al Perú,
ra, haciendo en cada ciudad una des- tanto en Cabo Verde como en su visita
cripción de cómo está organizada. al ingenio Lavalle en Chorrillos, Lima,
A través de sus escritos se pue- esta expresada en su libro de Peregri-
de ir viendo su proceso de transforma- naciones.
ción. En cada viaje aprende y va am- Sin embargo, será también el
pliando su conocimiento del mundo. viaje de su propia vida, su condición de
Los viajes tienen un gran impacto en ilegitima, un matrimonio infeliz, tomar
su sensibilidad y en su desarrollo. Es la decisión de abandonar a un marido
lo que le posibilita ver el mundo de la violento y abrirse paso en una época
época en casi todas sus dimensiones. donde las mujeres no escapaban de la
Es posible airmar que, sin su condici- vida privada y hacerse un espacio en
ón de viajera, difícilmente hubiera ad- la vida parisina e intentar forma parte
quirido la dimensión de precursora que de los círculos obreros y socialistas, es
tiene. De alguna manera redescubre a de dónde sacará las grandes lecciones
Wollstonecraft, que estaba olvidaba en para la vida de las mujeres y para sus
Inglaterra y de la que poco se conocía propuestas, a favor de las mujeres ex-
en Francia. tranjeras, a favor del divorcio, la edu-
Flora Tristán se desarrolla cuan- cación de las mujeres y sobre todo el
do ya algunos ilustrados se declaran en trabajo para poder ser libres.
pro de la emancipación de la mujer, Sus publicaciones son inúmeras,
Poulin de la Barre, Taylor, Condorcet, como por ejemplo “Peregrinaciones
D Alembert, Diderot. La lógica racio- de una Paria” (1838). Es un relato del
nal de la ilustración que se pretende viaje que Flora Tristán realiza al Perú,
universalista deja de lado a las mujeres ente el 7de abril de 1833 y el 15 de julio
a quienes reconoce su humanidad pero de 1834. Su permanencia en Arequipa
no las considera seres autónomos, se de siete meses y su paso por Lima que

• 278 •
duró dos meses, bastó para que esta es- Peregrinaciones muestra el peor lado
critora pudiera dejar un libro sobre uno de nuestras grises revoluciones, está
de los momentos decisivos de nuestra pintado allí con rudeza no igualada.
historia, los primeros años de la repú- Muestra el texto dice Basadre,-el afán
blica. El libro, publicado en París en incontenible del lucro personal, disfra-
1838, obtuvo éxito, imprimiéndose en zado por retóricas declamaciones, la
el mismo año una segunda edición. incapacidad para la disciplina previa,
Basadre señala que Alphonse la desolada paralización de la vida ur-
Constant que publica la obra en fran- bana, la confusión en los combates, el
cés consigna los datos que ejemplares terror del pueblo mientras se libran y
del libro fueron quemados en 1845 en su servilismo cuando se han decidido,
Arequipa y posteriormente en Lima. las reciprocas sorpresas que se dan los
Esto debido a su crítica que realiza so- contendores, siempre desprevenidos,
bre los primeros años del militarismo en que a veces los de la misma bandería
en el Perú, luego de la independencia luchan entre sí.
de España. En el prólogo que le de- En el caso de Peregrinaciones,
dica a la segunda traducción del libro la autora logra con su narración trans-
resalta lo siguiente, sobre su conside- mitir a sus lectores una mirada sobre
ración como parte de la Literatura del un momento de la historia peruana.
Perú republicano. [.....] su libro de re- El mérito, su aporte, a una visión con-
cuerdos, aunque escrito en otro idioma tradictoria que vivía el Perú y que ella
y para otras gentes, y aunque la autora logra transmitirla en un extenso relato
formará parte después entre los más que da cuenta de las tensiones, con-
avanzados agitadores franceses y un tradicciones en la formación de una
monumento la recuerda, como ya se república que comenzaba y que era
ha dicho, en el cementerio de Burdeos, un proyecto que no incluía a sectores
sus infortunios y sus prédicas, pertene- sociales fundamentales como las mu-
ce también a nuestra literatura aunque jeres, los negros, negras en esclavitud.
fuera tan solo porque en muy pocas Su mirada solo de la costa le impide te-
páginas revive, como en éstas, lo que ner una mirada aguda de la población
había de turbulento y de monótono en indígena de ese momento. Su crítica a
esa nueva vida medieval (BASADRE, la iglesia, al poder, al militarismo que
Peregrinaciones, p. XI) marcaba la época nos da una percepci-
Basadre señala que cuando al- ón distinta y nos permite acercarnos a
gunos soñadores quieran embellecer la vida cotidiana de los diversos actores
aquella época, este libro servirá para sociales que conoce. Introduce perso-
la necesaria tarea de desilusionarlos. naje femeninos nuevos.

• 279 •
“Las rabonas”, otra obra, Flora ira y la inercia que sentía de la cobardía
las designa como vivanderas. Describe de los hombres, la hacía arrojar espu-
sus actividades, al llegar al lugar asig- ma de rabia y comenzaban los ataques.
nado, escogen el sitio para acampar, Su única novela, “Mephis”
descargan las mulas, arman las tiendas, (1838), la pública el 17 de noviembre
amamantan y acuestan a los niños, en- de 1838, tiene dos personajes centrales,
cienden los fuegos, cocinan, buscan Mariquita y Mephis un activista prole-
provisiones, a la buena o a la mala van tario que quiere un cambio de la huma-
armadas. Para ella forman una tropa y nidad y recoge las propuestas de la au-
la denomina la vanguardia femenina tora. Poco conocida y traducida según
del ejército. Además de colocarlas en la Evelyne Bloch-Dano esta novela le
historiografía, sin duda expresan otra permite saldar simbólicamente cuentas
cara del militarismo en el Perú. Salvo con su pasado y releja su mundo inte-
las soldaderas de la revolución mexica- rior. Se publica unas semanas antes del
na, su descripción de las rabonas com- juicio, en un momento del desarrollo
plejiza la visión del papel de las muje- de la prensa en Francia y cuando las
res en los ejércitos de la época. novelas se publican como folletines, no
“La Saya y el Manto, por su vez tiene mayor éxito.
hace una descripción muy minuciosa “Paseos en Londres” (1840) és
de la saya y el manto y de las costum- otro libro que escribe a partir de cua-
bres femeninas en Lima, se da cuenta tro viajes que realiza a Londres entre
que la vestimenta las ayuda para poder 1826 y 1839. El libro tiene 19 capítulos
desplazarse por la ciudad tapadas. y cinco apuntes. En cada uno de sus re-
“La Mariscala Francisca Gamar- latos se detiene de manera especial en
ra”, Recoge una biografía sobre la Ma- las mujeres. Se indigna de comprobar
riscala, Francisca Zubiaga y Bernales, la superioridad de las mujeres autoras y
esposa del General Agustín Gamarra la servidumbre en la que viven ahoga-
presidente del Perú (1829-1833) y de das por un sistema educativo fundado
(1837-18410). Destaca que ella era la en falsos principios. Descubre la obra
llamada a continuar la obra de Bolívar, de Mary Wollstonecraft, destacada fe-
y que lo habría hecho si su calidad de minista, escritora y pionera en la de-
mujer no hubiese sido un obstáculo. fensa de los derechos de las mujeres,
Asegura que sus enemigos propalaron dice que su libro fue agotado desde su
calumnias contra ella. En la última en- aparición y encuentra que aún inspira
trevista con la Mariscala, a propósito horror entre la gente.
de su enfermedad, da cuenta como Para establecer la construcción
asistía a todos los combates, y como la de un discurso pionero en los derechos

• 280 •
de las mujeres es importante resaltar no se dejen oprimir ni someter a la in-
que Tristán, conoce la obra y la impor- justicia y la tiranía del hombre y para
tancia que tiene Wollstonecraft, por que los hombres respeten a las muje-
eso en este caso su viaje a Londres es res, sus madres, la libertad y la igualdad
crucial para conocer su obra y su pen- de la que disfrutan ellos. (TRISTAN,
samiento feminista. En este libro reto- Unión Obrera, 2011, p. 115)
ma ideas fundamentales de la feminista Por in, “El tour de Francia”
inglesa. (1843-1844) este diario, escrito durante
La “Unión Obrera” (1843) es su gira en Francia para formar la Uni-
un texto fundacional para el internacio- ón Obrera permaneció inédito hasta
nalismo de los trabajadores y trabaja- 1973. Fue publicado con notas de Jules
doras. El proletarios del mundo uníos, Puech y prefacio de Michel Collint. El
es una referencia de Flora Tristán que manuscrito permaneció en poder de
Carlos Marx coloca en el Maniiesto los descendientes de Eleónore Blanc,
Comunista de 1848. Propone la unión su seguidora y iel amiga, a quien ella
general entre los obreros y obreras, sin conoce durante su último viaje. La pu-
distinción de oicios teniendo como blicación de la versión castellana es del
objetivo constituir la clase obrera y año 2006.
construir establecimientos que deno- Organiza este libro de viajes con
mina palacios para educar a los niños un plan, deiniendo un capítulo por
y niñas entre 6 y 18 años y recibir a los ciudad: “Cada ciudad será un capítulo.
obreros enfermos, heridos y ancianos. Luego una alocución a los obreros, a
Parte de la idea que habiendo cinco los vanidosos y a los inteligentes. Des-
millones de obreros y dos millones de pués, un llamado a los jóvenes burgue-
obreras con dos francos anuales po- ses. La idea del periódico. Trazo allí la
drían crear un fondo común para sacar marcha que conviene seguir. Allí será
adelante su plan de la unión universal puesto el plan. Indicaré la manera de
de obreros y obreras. propagar, de profesar las ideas de la
La idea de la unión la recoge al Unión Obrera. (TRISTAN, 2006, p.
leer los libros de tres obreros escrito- 410).
res: Agricot Perdiguier, Pierre Moreau Inicia el manuscrito el 4 de fe-
y J. Gosset. Dedica un capítulo a las brero de1843, en París, con sus prepa-
mujeres para instarlos a proclamar los rativos para su último viaje, que inicia el
derechos de la mujer en los mismos 12 de abril de 1844 y inalizada el 14 de
términos que declararon los derechos noviembre en Burdeos, cuando mue-
del hombre y esboza una declaración re de tifoidea. En general, este último
para que las mujeres sean instruidas y viaje que realiza en Francia es no sólo

• 281 •
un viaje de difusión de sus propuestas, RECAVARREN, Catalina. La mujer mesiánica Flora
Tristán. Lima: Ediciones Hora del hombre, 1946.
sino un viaje organizativo. También es
el momento en el que ella se confronta ROMERO, Emilia. Brillo y Ceniza de Flora Tristán. En:
Boletín de la Biblioteca Nacional. Año XV N.33-34,
con los obreros y obreras. Tristán, en 1965.
este momento pareciera que es ganada
SANCHEZ, Luis Alberto Una Mujer Sola contra el
por sus ideas socialistas, asunto que le Mundo. Lima: Mosca Azul, 1957.
reclamará Simone de Beauvoir en El
TRISTAN, Flora. La Emancipación de la Mujer o El
segundo sexo. Testamento de la Paria. Lima: PTCM.

______. Paseos en Londres. Lima: Biblioteca Nacional,


Diana Miloslavich Tupac 1972.

Referencias y sugerencias de ______. El tour de Francia. Lima: Ediciones Flora Tris-


tán / Fondo editorial de la Universidad Nacional Mayor
lectura de San Marcos. Tristán, 2007.

BAELEN, Jean. Flora Tristán: Socialismo en el Siglo XIX. ______. Mephis. París: Indigo, 1996.
Y Feminismo. Madrid: Taurus, 1973.
______. Peregrinaciones de una Paria. Santiago: Edi-
BASADRE, Jorge. Prólogo a la edición de Peregrinacio- ciones Ercilla, 1941. (Selección, Prologo y notas de Luis
nes de una Paría. Lima: Antártica Basadre, 1948. Alberto Sánchez, traducción Emilia Romero. Biblioteca
Amauta. Seria América)
BASADRE, Jorge. Historia de la República del Perú.
Lima: Editorial Cultura Antártica, 1949.
______. Peregrinaciones de una paria. Lima: Editorial
Antártica, 1946.(Prólogo y notas de Jorge Basadre, tra-
BLOCH-DINO, Evelyn. Flora Tristán. Pionera, revo-
lucionaria y aventurera del Siglo XIX. Madrid: Maeva, ducción de Emilia Romero)
2003.
______. Peregrinacoies de uma Paria. Brasil: Florianópo-
DE MIGUEL, Ana y ROMERO, Rosalía. Feminismo y lis, Mulheres, Edunisc, 2000. ( Traducción de María Nild
Socialismo. Antologia Flora Tristan. Madrid: Los libros Pessoa y Paula Berinson, introducción de Roland Forges)
de la Catarata, 2003.
______. Unión Obrera. Lima: UNMSM, Flora Tristán,
MICHAUD, Stephane. Flora Tristán, George Sand y 2011.
Pauline Roland Les femmes et l’ invention de une nou-
velle morale 1830-1848, París: Creaphis, 1994. VARGAS LLOSA, Mario El Paraíso en la otra esquina.
España: Alfaguara, 2003.
MILOSLAVICH TUPAC, Diana. “Flora Tristán precur-
sora de los derechos de la mujer”.En: Revista Identidades. ______. Diccionario del amante de América Latina. Bar-
Universidad de Puerto Rico, 2007. celona: Paidós, 2006.

______. “Flora Tristán; una viajera histórica” En: Viajera


WALLTSTONECRAFT, Mary. Vindicación de los Dere-
entre dos mundos. Dourados: Ed. UFGD, 2012.
chos de la Mujer. Madrid: Debate, 1998.
NUNEZ, Estuardo. La Viajera Inquieta: Flora Tristan:
En Las letras en Francia. Lima: UNMSM, 1997. •
PORTA, Magda. Flora Tristán, la precursora. Lima. : Ed.
Humboldt 1983. Fotograia e gênero
______. Flora Tristán. A Forerunner Woman. Toronto:
Traford Publishing, 2012.
A história social da fotograia
REVILLA DE MONCLOA, Fe. (1995) La Paria Peregri- tem mostrado que a presença das mu-
na. Lima: PUCP.

• 282 •
lheres na arte da produção fotográica graias e sim elas, no caso, como fotó-
vem ganhando cada vez mais espaço, grafas amadoras, que fotografavam os
os compêndios sobre fotograia mos- ilhos, as famílias e os diferentes ritos
tram a presença dominante dos ho- de passagens. Assim, de certa forma,
mens neste ofício. Desde a invenção de a popularização da fotograia com as
fotograia na França, em 1839, os fo- câmeras portáteis foi decisiva para que
tógrafos mostraram interesse em des- as famílias de classes mais populares
tacar a igura feminina como modelo pudessem também fazer os seus ál-
de beleza, isto segue até os dias atuais. buns, concebendo um papel decisivo
Na importante obra sobre história da para as mulheres com o ofício da foto-
fotograia, denominada como Historie graia amadora. Não seria uma história
de voir (História do ver), organizada completa o registro somente dos gran-
por Michel Frizot na França em 2001, des nomes de mulheres na fotograia,
pode-se veriicar que o predomínio foi mas considerar que mesmo mulheres
de homens como fotógrafos, são pou- de segmentos mais populares tiveram
cas mulheres que se destacaram como contato com a produção de imagens,
fotógrafas proissionais, mas são exa- desta forma participando decisivamen-
tamente estas que quero destacar neste te da história social da fotograia.
verbete, na perspectiva de evidenciar As mulheres fotógrafas, tanto
que as mulheres não somente partici- as proissionais quanto as amadoras,
param da história da fotograia como são consideradas como ícones de uma
modelos, mas sim como produtoras de visualidade moderna, pois lançam um
uma visualidade com um olhar especí- olhar especíico sobre o mundo, as
ico sobre o mundo, ou seja, o olhar pessoas, as situações e os lugares, desta
feminino sobre a sociedade, certamen- forma trazendo para a fotograia ele-
te com detalhes especíicos que os ho- mentos que compõem singularidades
mens não conseguiriam captar. que exaltam sua sensibilidade. Várias
Na obra de Pierre Bourdieu, fotógrafas proissionais percorreram o
Un art moyen (1965), com o subtítu- mundo em busca de imagens inéditas,
lo sugestivo de ensaio sobre os usos participaram com fotorreportagens em
sociais da fotograia, o autor já fazia jornais, revistas e editorias de moda,
referência às mulheres e à arte foto- como também mostraram as maze-
gráica. Ele destacou que as mulheres las do mundo nas fotograias por elas
geralmente eram as responsáveis pela produzidas. O olhar feminino sobre a
confecção dos álbuns fotográicos de fotograia não é apenas um olhar ro-
famílias, e em muitos casos não eram mântico como alguns podem imaginar
os maridos que produziam as foto- mas, sobretudo, um olhar engajado.

• 283 •
Desde o início da história social restrição com estes nomes, mas creio
da fotograia ainda no século XIX, já que elas representam muito bem as
tivemos as nossas fotógrafas pioneiras, mulheres na arte fotográica. Vou me
dividindo com os grandes fotógrafos a deter nesta designação de arte fotográ-
produção de uma visualidade sobre o ica, embora contestada por muitos au-
mundo contemporâneo. Estas fotógra- tores, no sentido de que elas não ize-
fas pioneiras foram responsáveis pela ram apenas uma fotograia mecânica,
busca de uma sensibilidade do olhar, mas também izeram um tipo de arte,
pois, mesmo sendo consideradas como com uma mediação humana (o olhar
proissionais, não deixaram de impri- fotográico) e uma mediação técnica
mir nas imagens os detalhes de sensibi- (o equipamento e a reprodução foto-
lidades que as caracterizam como pro- gráica).
dutoras de uma realidade captada pelas Julia Margaret Cameron nos reme-
lentes fotográicas. A sensibilidade das te de imediato à própria história social
fotógrafas não as impediu também de da fotograia, pois ela foi um ícone da
produzir imagens mais realistas, pois fotograia ainda no século XIX, quan-
suas fotograias representam um olhar do predominavam os homens como
engajado sobre as sociedades. Muitas fotógrafos. Ela nasceu em 1815 na Ín-
mulheres optaram por uma fotograia dia e somente aos 48 anos começou na
social que traduz o mundo com mais arte fotográica, ganhou uma câmera
realismo, mas não podemos classii- de uma de suas ilhas para ocupar-se
cá-las como seletivas de uma sensibi- em seu tempo livre, dando início a
lidade exacerbada, pois as imagens não uma carreira brilhante com reconhe-
são meramente românticas e sim muito cimento dos seus retratos por grandes
realistas. especialistas. Especializou-se em retra-
Na perspectiva de conhecermos tos, criando uma técnica bem peculiar,
um pouco sobre as mulheres fotógra- embora criticada por fotógrafos pro-
fas, iz uma breve seleção de algumas issionais. A técnica consistia em um
que participaram ativamente da com- leve desfoque do rosto dos retratados,
posição da história social da fotograia, muitos foram em peril, dando mais
pautei em algumas proissionais, pois ênfase aos detalhes dos retratos do que
as amadoras foram muitas, sendo difí- ao próprio rosto, o que era a grande
cil pontuá-las. Para fazer jus ao gran- evidência dos demais fotógrafos. Seus
de time de fotógrafas, selecionei mais retratos quase que imitavam as pintu-
especiicamente: Julia Margaret Came- ras, pois neles predominavam o indi-
ron, Berenice Abbot, Dorothea Lange vidualismo, a expressão dramática e o
e Mary Ellen Mark. Estou ciente da subjetivismo do retratado.

• 284 •
Julia foi criada numa família te, sua fora de foco, suas técnicas em-
abastada. Seu pai trabalhava na Com- bora bem pessoais e mesmo artísticas
panhia da Índias Orientais, sua educa- experimentais foram alvo de muitas
ção foi feita entre a França e a Ingla- criticas. Mas suas técnicas, embora cri-
terra, o que inluenciou em seu olhar ticadas, foram também reconhecidas
bem peculiar que o aproximava muito em várias exposições, o que lhe rendeu
da obra de arte. Suas composições com muitos prêmios pela originalidade da
a fotograia a colocam como uma ar- sua obra.
tista, ela mesmo ressaltou que a câme- As obras de Julia Margaret Ca-
ra fotográica era uma coisa viva, com meron logo tornaram-se conhecidas
voz e memória e vigor criativo. Mas os pelo mundo todo. Suas técnicas mui-
seus fotógras contemporâneos a cri- to peculiares a tornam uma fotógrafa
ticavam acusando-a de um artesanato singular. Ela tornou-se membro da so-
desleixado, pois ela evitou a resolução ciedade de fotógrafos de Londres e da
de detalhes minunciosos e perfeitos, Escócia, desta forma comercializando
optou por uma luz mais dirigida, um seu trabalho de uma forma mais pro-
foco mais suave e longas exposições, o issional. Ela sempre foi muito católi-
que garantiu uma resolução fotográi- ca e isso inluenciou em sua arte, ela
ca espetacular, muito próxima da obra
produziu muitos retratos de santos e
de arte e não de uma fotograia mais
cenas religiosas, o que a aproximou
técnica como era o auge naquela épo-
ainda mais das obras de arte. Ela as re-
ca, quando os fotógrafos buscavam a
produziu e as popularizou. A literatura
perfeição dos traços dos retratados, ela
e a poesia sempre fascinaram Julia, o
optou pelos detalhes e não pelo foco
que a fez produzir ilustrações fotográ-
objetivo.
icas para obras de escritores e poetas
As técnicas fotográicas desen-
famosos, dando reconhecimento para
volvidas por Julia Margaret Cameron
as suas técnicas peculiares de retratar.
são muito peculiares. Ela dedicou-se
muito à pesquisa de possibilidades de Ela fotografou artistas, poetas, escrito-
matérias a serem exploradas na foto- res, cientistas e demais personalidades,
graia, desenvolvendo uma das técni- como também meros anônimos. Sua
cas denominada de single-handed, na obra é muito vasta, encontra-se espa-
qual produziu um grande número de lhada por várias galerias e museus no
retratos promovendo uma maior dis- mundo todo. No inal de sua carreira,
tribuição e popularização de seus obras foi morar no Ceilão para acompanhar o
fotográicas. Suas técnicas deixavam marido. Nesta nova morada continuou
impressões com manchas, impressões a produzir fotograias com as mesmas
de negativos rachados e, principalmen- técnicas, morreu neste mesmo local

• 285 •
em 1879. Foi uma das grandes perso- logo conhecidas no mundo intelectual,
nagens da história social da fotograia. sendo suas imagens expostas em mu-
Berenice Abbot foi uma fotografa seus e galerias, dando reconhecimento
norte-americana, nasceu em 1898 em por seu trabalho como fotógrafa das
Ohio, teve uma formação na Europa, transformações urbanas da cidade. Sua
estudou escultura em Berlim e Paris. fama como fotógrafa de reconheci-
Logo após seus estudos, em 1923, já mento nos EUA, lhe rendeu o convite,
iniciou na fotograia inluenciada pelo em 1935, para ensinar na New Scho-
grande fotógrafo Man Ray, sendo sua ol for Social Research, permanecendo
assistente de atelier em Paris, começan- nesta escola até 1958. Neste período, a
do sua carreira como fotógrafa em Pa- fotógrafa conseguir aliar seus conheci-
ris. Logo tornou-se conhecida, abrindo mentos teóricos com a prática fotográ-
o seu próprio atelier, atraindo grandes ica, atraindo um considerável público
intelectuais para serem retratados, des- para seus cursos.
tacou-se como uma exímia retratista. Berenice Abbot conseguiu, ao
Em 1926, conheceu o famoso fotógra- longo de sua carreira, aliar a carreira de
fo Eugène Ategt, fazendo um retrato fotógrafa e teórica da fotograia, pro-
deste pouco antes de sua morte em duzindo excelentes obras que discutem
1927. Esta convivência de Berenice na a ontologia da fotograia e seus aspec-
Europa consegue modelar o seu olhar tos práticos. Destacaram-se duas obras
como retratista e fotógrafa da cidade, fundamentais da década de 1940, que
destacando-se pela excelente qualidade expressam toda a sua visão sobre a fo-
de suas fotograias com um olhar mui- tograia: A guide to better photography
to especíico sobre a composição de e The view camera made simple. São
suas imagens. obras clássicas desta autora/fotógrafa
No inal de década de 1920, dei- que relacionam alguns pontos em co-
xou Paris e retornou para New York. mum entre fotograia e ciência. Bere-
Muito inluenciada por Eugène Atge, nice também participou de expedições
começou a fotografar a cidade e suas fotográicas, principalmente nos EUA,
transformações urbanas, fazendo um nas quais retratou o modo de vida rural
trabalho como fotógrafa urbanist. Já norte-americano. Seus trabalhos a des-
em 1930, como reconhecimento de tacaram como intelectual e fotógrafa,
seu trabalho como fotógrafa, começou sempre fazendo uma relexão sobre os
a colaborar com as revistas Fortune e usos da fotograia na sociedade.
Life, sendo as mais conhecidas revistas No inal da década de 1960,
dos Estados Unidos. Suas fotorrepor- mais especiicamente em 1968, Bereni-
tagens sobre New York tornaram-se ce publicou a obra Portrait of Maine,

• 286 •
na qual destacam-se o estilo de vida do-se por pessoas excluídas e atingidas
das pessoas do Estado de Nova In- pela crise da economia norte-ameri-
glaterra. É um trabalho praticamente cana. Suas imagens são emblemáticas
etnográico, onde podem ser visualiza- para pensarmos em fotorreportagens
dos diferentes estilos de vida de pesso- que elucidaram momentos importan-
as comuns. Berenice produziu fotogra- tes na história dos EUA.
ias de qualidade exemplar, segundo a Nos anos de 1930, Dorothea
crítica de famosos fotógrafos. Teve um destacou-se como fotógrafa documen-
olhar claro, objetivo e realista, basea- tarista pela sua participação na equipe
do em sua formação entre a Europa e de fotógrafos do Farm Security Admi-
Estados Unidos. Pode ser considerada nistration nos EUA, equipe que foto-
com uma das grandes fotógrafas da ci- grafou a sociedade norte-americana na
dade de New York em todo o seu pro- época da Grande Depressão iniciada
cesso de reformas urbanas. Teve uma em 1929. Dorothea deixou o estúdio
vida muito longa à dedicada a fotogra- fotográico e começou a dedicar-se às
ia e suas relexões teóricas e práticas, fotorreportagens, percorreu mais de
morreu em 1991 em Monson Maine, vinte estados americanos fotografan-
Estados Unidos, deixando para a histó- do as pessoas atingidas pela Grande
ria social da fotograia um conjunto de Depressão, foi um verdadeiro trabalho
imagens que reletem o modo de vida etnográico, pois as imagens fotográi-
no século XX. cas representam situações de vidas em
Dorothea Lange, também nascida vulnerabilidade social de pessoas em
nos Estados Unidos, em 1895, foi uma diferentes espaços e situações sociais,
das fotógrafas de grande expressão são anônimos que representam parte
por retratar pessoas excluídas naquele da população norte-americana. Uma
país. Começou estudando fotograia a das fotos que percorreu o mundo de
partir de 1917 na Columbia University, Dorothea foi Mãe Migrante (1936),
em New York. Teve como professora esta imagem é um verdadeiro ícone da
a famosa fotógrafa Clarence H. Whi- fotograia contemporânea, pois retrata
te, inluenciando todo o seu olhar, que uma mãe branca e seus ilhos numa si-
tensiona entre a realidade e o realismo. tuação de vulnerabilidade social.
Logo no ano seguinte muda para São Dorothea seguiu a sua carreira
Francisco e monta o seu estúdio foto- como fotodocumentarista social. Sua
gráico, no início dedicando-se ao re- longa obra revela o gosto e a sensibi-
trato e à fotograia de paisagens, mas lidade pela construção de uma visuali-
logo a fotógrafa começou a fazer foto- dade do mundo social, destacando-se
graias fora do seu estúdio, interessan- os retratados em situação de vulnera-

• 287 •
bilidade. Nos anos de 1940, ela docu- imagens de diversas culturas no mun-
mentou os campos de internação para do a tornaram uma das fotógrafas de
japoneses nos Estados Unidos, mos- referência na fotograia documental.
trando com clareza a situação em que Suas imagens percorrem o mundo tra-
estes imigrantes viviam. Dorothea teve zendo situações, personagens e lugares
logo sua obra conhecida nos Estados consagrados na memória coletiva con-
Unidos, sendo convidada para fazer temporânea.
ensaios documentais para revistas im- Mary sempre fez questão de res-
portantes como a Life e a Aperture. saltar o seu lado humanista da fotogra-
Suas imagens foram reconhecidas pelo ia, retrata crianças, doentes mentais,
excelente potencial documentarista, prostitutas e demais pessoas em situa-
fez várias expedições fotográicas ao ção de vulnerabilidade social, mas, por
redor do mundo, como na Ásia, Egito outro lado, já passaram por suas lentes
e América do Sul, compondo todo um grandes celebridades, como artistas,
conjunto de imagens em seu melhor cantores, cientistas e políticos. Mas ela
estilo investigativo. Sua carreira seguiu sempre ressaltou que é obstinada em
até praticamente a sua morte, em 1965, mostrar os diferentes modos de vida
na Califórnia, EUA, deixando um lon- das pessoas em geral, sejam anônimos
go acervo documental fotográico. ou celebridades, o retrato sempre foi
Mary Ellen Mark, nascida em seu tipo de imagem favorita, mostran-
1940 nos Estados Unidos, é uma fo- do pessoas na complexidade das re-
tógrafa conhecida pelo seu estilo hu- lações sociais em todo o mundo. Ou
manista na fotograia. Seu trabalho seja, são assuntos universais em todas
como fotojornalista é reconhecido no as culturas, mostrados com detalhes
mundo todo, também atuando como que, ao mesmo tempo em que os uni-
retratista e na foto publicitária. Tem versaliza os individualiza, pois são pes-
participado há mais de três décadas soas, gestos e situações que todos nós
de expedições fotográicas por todo o vivemos no cotidiano. Começou a sua
mundo, capturando imagens essencial- carreira na famosa agência Magnum,
mente humanitária. É o que podemos mas logo optou em ser fotógrafa inde-
chamar de fotograia social, aproxi- pendente por causa de seu estilo hu-
mando do estilo de Sebastião Salgado. manista muito peculiar na fotograia
Atualmente é uma das fotógrafas mais do século XX.
conhecidas do mundo na fotograia As expedições fotográicas de
social, tem respeito por seus pares pela Mary foram pelo mundo todo, foi até
alta qualidade no seu trabalho de leitu- a Índia fotografar as especiicidades
ra de realidades. Seu grande acervo de daquela sociedade, retratou com pre-

• 288 •
cisão alguns trajetos percorridos por do à cena as fotógrafas amadoras, as
Madre Teresa de Calcutá, num ensaio que se dedicaram mais à fotograia fa-
social totalmente inédito para o mundo miliar, que ao lado destas pioneiras da
todo. As imagens de Madre Teresa de fotograia proissional mostraram que
Calcutá percorrem diversas exposições o ofício de fotógrafas é uma tarefa que
por museus e galerias com um forte também pertence ao gênero feminino,
impacto social por representar cenas e que as mulheres podem contribuir de-
personagens inéditos na cultura visual cisivamente para uma nova leitura do
contemporânea. Seus trabalhos sempre mundo com a prática fotográica.
tiveram grande repercussão e merecem
o respeito dos fotógrafos famosos. Ivo Canabarro
Teve ensaios publicados na Life Maga-
Referências
zine, Rolling Stone e Vanity Fair, desta
forma evidenciando a qualidade do seu BOURDIEU, Pierre. Un art moyen: essai sur les usages
trabalho e, principalmente, sua posição sociaux de la photographie. Paris: Les Editions de Mi-
nuit, 1965.
humanista. Suas imagens são quase to-
das em preto e branco, destacando a FREUND, Gisele. Photographie et Société.Paris: Edi-
tions du Seuil, 1977.
intensidade dos contrates, o que marca
um tipo ainda peculiar de fotograia. FRIZOT, Michel (org). Histoire de Voir. Paris: Nathan/
Centre national de la photo, 1989.
O recorte foi muito especíico.
Tomei como parâmetro o trabalho de ______. Nouvelle histoire de la photographie. Paris:Adan
Biro/ Larousse, 2001.
quatro mulheres na fotograia dos sé-
culos XIX e XX, são todas elas ícones ______. Du bom usage de la photographie. Paris: Centre
national de la photo,1897.
de uma cultura visual que se constrói
KOSSOY, Boris. Fotograia & história. 2ª ed. São Paulo:
com a diversidade de olhares. Não vou Ateliê Editorial, 2001.
tomar como comparativo o olhar do
______. Realidades e icções na trama fotográica. São
homem e da mulher, mas o olhar das Paulo: Ateliê Editorial, 1999.
fotógrafas icou muito detido em de-
______. Dicionário histórico-fotográico brasileiro. São
talhes que fazem de sua arte fotográ- Paulo: Instituto Moreira Sales, 2002.
ica uma forma de ver o mundo. Cer-
ROUILLÉ, André. Da arte dos fotógrafos à fotograia dos
tamente estas fotógrafas proissionais artistas. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
contribuíram para a construção da cul- Nacional. N.27. Brasília: IPHAN, 1998.

tura visual no mundo contemporâneo, ______. Les corps e son image. Paris: Contrejur / Biblio-
acrescentando formas e olhares muito théque Nationale de France, 1986.

peculiares. Finalizo novamente trazen-


• 289 •
Foucault e as mulheres denada à prisão perpétua por seus en-
sinamentos místicos, na Espanha, em
Se Foucault não se ocupou di- 1524, ou Armelle Nicolas, Marie Des
retamente com as mulheres e com as Vallées e Madame Acarie, “uma das
questões de gênero, para o desconten- iguras mais notáveis da mística femi-
tamento de muitas feministas, não há nina na França da Contra-Reforma”,
dúvidas de que trouxe contribuições airma Foucault (2008, p. 292).
fundamentais para os feminismos, Contudo, as mulheres se tor-
como compreenderam outras teóricas nam mais fortemente presentes em sua
e ilósofas desse movimento. De Ju- obra a partir de um outro polo, isto é,
dith Butler e Elizabeth Grosz a Rosi a partir de suas análises sobre o poder
Braidotti, Margaret McLaren, Dianna disciplinar e a biopolítica, na sociedade
Taylor, Chloë Taylor e, no Brasil, Tânia moderna. Preocupado com a manei-
N. Swain, Norma Telles, Lucila Scavo- ra pela qual o poder incide molecular
ne e essa autora, entre outras, inúme- e invisivelmente no cotidiano da vida
ros questionamentos ao patriarcalismo, social, constituindo as relações sociais
ao sexismo, às hierarquias de gênero e instituindo identidades naturalizadas,
e à misoginia presentes em nossa so- Foucault produz uma crítica incisiva às
ciedade foram reforçados a partir dos formas da dominação capitalista. Se-
conceitos e problematizações trazidas gundo ele, o poder não se exerce sim-
por esse ilósofo da diferença. plesmente de cima para baixo, como
Há quem destaque que justa- uma força repressiva que do Estado se
mente quando Foucault trabalha com abate sobre a “sociedade civil”. Mais
as resistências ao poder pastoral, em es- do que isso, as tecnologias disciplina-
pecial, com o que denomina de “revol- res e biopolíticas atravessam os corpos
tas de conduta” ou “contracondutas” e as subjetividades, normatizam os
em relação ao “governo das almas” im- gestos, produzem o próprio desejo e
posto pela Igreja, algumas mulheres de promovem maneiras submissas e con-
grande força moral e capacidade aglu- formadas de existência, do indivíduo à
tinadora ganham destaque em sua obra população.
(Foucault, 2008, p.259). Questionando É nesse contexto de intensos
seu estatuto na sociedade, as profetizas questionamentos teóricos e revira-
da Idade Média, como Jeanne Daben- voltas conceituais que emerge, nos
ton e Marguerite Porete, mortas na seus livros, a igura da mulher: des-
fogueira da Inquisição, são citadas ao de a História da Loucura (1961), esta
lado de Isabel de la Cruz, também con- aparece na discussão sobre a histeria,

• 290 •
enquanto que na História da Sexuali- produção da própria sexualidade é
dade I - A vontade de saber (1982), é a histerização da mulher, ao lado das
investida normativamente pelo discur- problematizações em torno da “crian-
so médico do século XIX, que produz ça onanista”, do casal malthusiano” e
a sexualidade a partir do que Foucault da “psiquiatrização do prazer perver-
denomina de “dispositivo da sexuali- so”. Segundo Foucault, “o corpo da
dade”. Trata-se aqui de um conjunto mulher foi analisado, - qualiicado e
de discursos, práticas, técnicas e orga- desqualiicado - como corpo integral-
nização de espaços, que visam a clas- mente saturado de sexualidade (...), in-
siicar e codiicar as práticas sexuais, tegrado sob o efeito de uma patologia
antes pouco esmiuçadas e analisadas, que lhe seria intrínseca, ao campo das
a partir da oposição entre o normal e práticas médicas. (...) A Mãe, com sua
o patológico, entre a heterossexualida- imagem em negativo, que é a mulher
de, considerada lícita, e a homossexu- nervosa, constitui a forma mais visível
alidade, vista como perversão, desde a desta histerização.” (Foucault, 1982,
publicação de Psychopathia Sexualis p.99)
(1886), do psiquiatra alemão Richard Portanto, a domesticação da
Von Krafft-Ebing. mulher, vista como potencialmen-
Nesse contexto, desde o nas- te histérica e irracional, foi defendida
cimento da ginecologia moderna, no como condição de possibilidade da
início do século XIX, o saber médico sobrevivência da família, que, por sua
passa a deinir a mulher como um ser vez, passou a ser percebida como célu-
biológica e moralmente diferente e in- la mater da sociedade.
ferior em relação ao homem, incapaz Muitas pesquisas, especialmente
de participar ativamente da esfera pú- na área dos estudos feministas, desdo-
blica, ou de assumir uma vida intelec- braram essas colocações. Desconstruir
tual expressiva. Vale notar, ainda, que, o discurso médico sobre o corpo femi-
nesse momento, a Revolução Francesa nino signiicou desnaturalizar uma su-
já estabelecera o princípio da igualda- posta essência feminina, instalada em
de de todos perante a lei, enquanto a seu órgão procriador, o útero, e abrir
industrialização crescente provocara o espaço para a liberação das mulheres
surgimento de amplas massas de traba- em relação a essa identidade biologiza-
lhadores, entre mulheres e homens, na da que lhes fora atribuída desde a era
Europa. vitoriana. Nessa formação discursiva,
Um dos principais eixos do destinada pela própria conformação
“dispositivo da sexualidade”, dessa corporal a realizar a função de “rai-

• 291 •
nha do lar”, a mulher fora destituída quanto para dar visibilidade a práticas
de qualquer capacidade criativa para o diferenciadas criadas pelo movimento
mundo público, assim como do direito feminista, ao longo de sua história. Um
de circular livremente pela cidade, ou desses conceitos diz respeito às “artes
de experimentar o desejo sexual, sob do viver”, ou “estéticas da existência”,
pena de ser confundida com seu opos- que o ilósofo encontra no mundo gre-
to, a prostituta, estigmatizada como i- co-romano.
gura excessiva e ameaçadora. Segundo Foucault, ao contrário
Essa foi, portanto, uma enorme do desejo de normatizar o indivíduo,
contribuição de Foucault aos feminis- produzir corpos dóceis e governar as
mos, para não dizer às mulheres em condutas, o ideal de formação do ci-
geral, possibilitando a realização de dadão na Grécia Antiga passava pela
inúmeras pesquisas históricas que hoje experiência das “práticas da liberda-
nos permitem compreender os modos de”, constitutivas de suas “estéticas da
de sujeição instaurados na Moderni- existência”, ou “artes do viver”, a par-
dade, com a deinição e imposição de tir das quais se poderia construir uma
uma suposta identidade essencial da vida bela e temperante. O jovem deve-
ria formar-se como uma subjetividade
Mulher pelo discurso cientíico mas-
ética, livre, capaz de gerir a sua própria
culino, juntamente com a heterosse-
vida e também a vida da polis. O cui-
xualidade compulsória. No Brasil e no
dado de si, central nessas “artes do vi-
exterior, vários estudos evidenciaram
ver”, implicava um trabalho elaborado
como se inviabilizaram outros modos
de transformação da própria subjetivi-
de existência às mulheres, para além
dade e supunha o conhecimento de si,
dos tradicionais papéis de esposa-mãe-
para que se pudesse, então, cuidar do
-assexuada ou de seu avesso, a “mulher
outro. Assim, ser escravo de outrem
pública”, a despeito das inúmeras resis- ou de si mesmo, de suas paixões e ins-
tências e transgressões. tintos incontidos traduzia uma incapa-
Contudo, se o binômio saber- cidade de gerir-se autonomamente e,
-poder foi uma chave explicativa fun- portanto, de participar da vida pública,
damental para a crítica da racionalidade cuidando da cidade. (Foucault, 1984)
masculina e para a desconstrução da Pode-se dizer, inspirada nes-
identidade feminina, outros conceitos sas relexões desenvolvidas em várias
e problematizações de Foucault tam- obras de Foucault, desde a História da
bém serviram para que os sujeitos dos Sexualidade, vol. II - O uso dos Pra-
feminismos fossem repensados, tanto zeres e no vol. III - O Cuidado de si,

• 292 •
assim como em A Hermêneutica do telectuais, cientistas ou políticas, de
Sujeito, Nascimento da Biopolítica, O outro, também se traduziu por uma in-
governo de si e do outro, que os fe- terferência pública e social subversiva e
minismos, ao questionarem a deinição transformadora. Novas concepções de
da identidade feminina imposta a to- política, cidadania, saúde, corpo, sexu-
das as mulheres, abriram espaço para alidade, beleza ou de organização es-
a emergência de novas teorizações e de pacial emergiram com os feminismos,
novas práticas sociais, sexuais e subje- que buscam desfazer as tradicionais
tivas das e pelas mulheres. oposições binárias que hierarquizam
As feministas não apenas pro- razão e emoção, público e privado,
blematizaram as concepções da sub- masculino e feminino, heterossexuali-
jetividade e do gênero, como também dade e homossexualidade. Nesse senti-
se perguntaram pelas “técnicas” ou do, as feministas inventaram eticamen-
“práticas de si” propostas por um mo- te, especialmente ao defenderem um
vimento que luta justamente para liber- outro lugar social para as mulheres e
tar as mulheres das opressões que se para a cultura feminina, e têm operado
manifestam em várias dimensões, da no sentido de reatualizar o imaginário
política e social à psíquica e subjetiva. político e cultural de nossa época, in-
(Rago, 2006). troduzindo novos modos de constitui-
Com isso, reiro-me às práticas ção de si para as mulheres e também
de constituição de subjetividades éticas para os homens, incentivados a repen-
postas em práticas pelos feminismos, sar a masculinidade.
desde o conhecimento do próprio cor- Sem dúvida, Foucault nos aju-
po e a desconstrução dos mitos que da a perceber, nomear e teorizar essas
airmavam as mulheres como seres práticas que elevam os feminismos e
assexuados, deinidos pela maternida- promovem os saberes das mulheres.
de, até as criações culturais em que as
mulheres airmam outras “artes do vi- Margareth Rago
ver” e novos modos de existência, mais
integrados, humanizados e libertários. Referências e sugestões de leitura
Vale notar que se, por um lado, BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e
o cuidado de si proposto pelos femi- subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Ja-
neiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.
nismos às mulheres signiicou que
poderiam ser outras do que haviam FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População:
curso dado no Collège de France, 1977-1978. Trad. Edu-
sido predestinadas a ser, lançando-se ardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
na vida pública, cultural, social, como ______. História da Sexualidade. Vol I. A vontade de sa-
escritoras, artistas, compositoras, in- ber. (3ª.ed.) Rio de Janeiro: Graal, 1982.

• 293 •
______. História da Sexualidade. Vol. II. O uso dos pra- subversão da gramática como denún-
zeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984
cia do machismo da linguagem (FREI-
McLAREN, Margaret. Foucault, Feminism and Embo-
RE, 1992, p. 67), de que o acusava “um
died Subjectivity. New York: State Universiy of New York
Press, 2002. sem número de mulheres norte-ame-
RAGO, Margareth. Foucault, a Subjetividade e as Hete- ricanas”, nos anos 70. Se no início se
rotopias Feministas. In Scavone, L; Miskolci, R.; Alvarez, justiicava passou a levar a sério o “dé-
M. C. O legado de Foucault. São Paulo: UNESP, 2006,
pp. 101-118. bito àquelas mulheres”, e escrevia “a
todas, uma a uma, [...] agradecendo a
• excelente ajuda” (Ib., p. 67).
Numa entrevista com Freire
Freire e a condição intitulada “Opressão, classe e gênero”
das mulheres (FREIRE, 2001, p. 257-268), Donaldo
Macedo retoma as críticas das femi-
Em sua “Terceira Carta Pedagógi- nistas: Alguns/algumas educadores/
ca”, deixada inacabada sobre sua mesa, educadoras, particularmente as femi-
Freire escreveu: “desrespeitando os nistas norte-americanas, argumentam
fracos, enganando os incautos, ofen- que seu trabalho tende a universalizar
dendo a vida, explorando os outros, a opressão enquanto ignora as especi-
discriminando o índio, o negro, a mu- icidades de posições diversas e con-
lher não estarei ajudando meus ilhos a traditórias que caracterizam os grupos
ser sérios, justos e amorosos da vida e
subordinados juntamente às linhas de
dos outro” (FREIRE, 2000, p. 67).
cultura, etnia, linguagem, raça e gênero
Em Pedagogia da Autonomia es-
[...] (FREIRE, 2001, p. 257).
creveu: “a ética de que falo é a que se
Aceitando as críticas como vá-
sabe afrontada na manifestação discri-
lidas (Ib., p. 260), Freire explicita, po-
minatória de raça, de gênero, de classe”
rém, algumas ressalvas: “Sem evitar a
(FREIRE, 1996, p. 17).
questão de gênero, devo dizer que os
Em Porto Alegre, numa fala aos
leitores/as leitoras têm alguma respon-
docentes da UFRGS, em 1988, Freire
sabilidade em colocar meu trabalho
iniciou assim: “Minhas prezadas pro-
inserido nesse contexto histórico e
fessoras!” Fez uma pausa, e continuou:
cultural; isto é, a pessoa lendo Pedagogia
“Por que deveria iniciar dizendo: meus
do Oprimido como se tivesse sido escri-
prezados professores, se a grande
to ontem, de alguma forma descarta a
maioria, nesta sala, são professoras?”
historicidade do livro. O que eu acho
No livro Pedagogia da Esperança
absurdo é ler um livro como Pedagogia
ele conta que usou outras vezes esta
• 294 •
do Oprimido e criticá-lo porque o autor no diálogo de Macedo com Freire, as
não tratou de todos os temas de opres- respostas exaustivas dele sobre o tema.
são potencial de forma igualitária. Em Medo e Ousadia, livro dialo-
(FREIRE, 2001, p. 262-263). gado com I. Shor, são dedicadas, sim,
Moema L. Viezzer, num encon- várias páginas à questão da mulher.
tro nacional, em 1986, fez esta per- (FREIRE; SHOR, 2000, p. 195-201).
gunta: “Paulo, como você vê a questão Shor relata que em suas aulas as mu-
das relações de dominação e opressão lheres falam menos que os homens,
entre homens e mulheres em nossa so- sendo até silenciadas por eles e diz que
ciedade?” (VIEZZER, 1996, p. 596). intervém, para garantir-lhes a palavra.
A resposta foi, “eu jamais teria escrito Pergunta a Freire: “No Brasil o tema
Pedagogia do Oprimido se, ao mesmo do sexismo e do racismo são proble-
tempo, eu me permitisse oprimir mi- mas em sala de aula?”
nhas ilhas, minha esposa e as mulhe- Freire responde: “São, sim. A
res com quem trabalho. As mulheres sociedade brasileira é muito autoritá-
estão certas em organizar-se e dizer o ria”. E acrescenta que tanto o racismo
que tem que ser mudado em relação quanto o machismo são fortes no Bra-
às opressões que hoje sofrem. E nós, sil. Mas observa que ao voltar ao Bra-
educadores, precisamos entendê-las, sil encontrou uma novidade: a luta das
ouvi-las e acompanhar as mudanças mulheres [...] que começaram a lutar,
que ocorrerão graças às suas iniciativas começaram a protestar, começaram
(Ib., p. 596). a rejeitar o fato de continuarem a ser
Márcia A. da Silva escreveu no objetos dominados pelo homem” (Ib.,
Dicionário Paulo Freire (210, p. 182-185) p.197).
o verbete Feminismo historicamen- Silenciamento das mulheres,
te bem fundamentado. Mas cometeu Freire disse que não o viu nas suas
omissão bibliográica grave ao airmar: aulas ou em seminários, apesar de
“Inicialmente, podemos airmar que “nossa cultura machista”. Ponderou
Paulo Freire pouco dialogou com o que não cabe aos homens “libertar as
movimento feminista”, acrescentando mulheres”, que a libertação deve ser
que foi em Medo e Ousadia que Freire conquista delas, cabendo aos homens
deixou nítido “o reconhecimento pela contribuírem, numa “ação política”
luta das mulheres”. A 2ª edição do conjunta: [...] “contra o racismo, con-
Dicionário Paulo Freire, no qual escreve tra o sexismo, contra o capitalismo, e
data de 2010. Mas já em 2001 havia contra as estruturas desumanas de pro-
sido publicado Pedagogia dos Sonhos Pos- dução “ (Ib., p. 199).
síveis (FREIRE, 2001), livro que traz, Para a leitura de um autor, além
do contexto histórico, cabe considerar

• 295 •
também suas experiências existenciais, te e de forma que todos, no açougue,
como no caso de Freire, o segredo ouviam, me fazia um tal mal que, ago-
cruel que ele explicitou em Cartas a ra, preciso me esforçar para descrever
Cristina. Ao falar da fome, resultado a experiência” (FREIRE, 1994, p. 63-
da crise de 1929, e da tristeza do pai, 64).
sentindo-se impotente para dar à fa- Aquela experiência o marcou
mília uma condição menos penosa, ele decisivamente contra qualquer desres-
descreve as humilhações sofridas pela peito à mulher. O relacionamento com
mãe: “Quando [...} minha mãe, dócil sua esposa Elza, falecida em 1986, e
e timidamente, pedindo desculpas ao com sua nova esposa Ana Maria são
açougueiro por não haver pago a ín- exemplo disso. Quanto à Elza são inú-
ima quantidade de carne comprada meras as referências em seus livros.
na semana anterior, ao solicitar mais Ele disse um dia a um de seus ilhos
crédito para trezentos gramas a mais, que muitas pessoas lhe diziam ou es-
prometia que pagaria as duas dívidas, creviam que estavam gostando de seus
na verdade ela não mentia nem tenta- livros, e acrescentou jocosamente: “da-
va um golpe. Ela precisava de acreditar
qui por diante, vou perguntar: “Qual
em que realmente pagaria. E precisava,
é o nome de minha esposa?” Se não
de um lado, por uma razão muito con-
souberem, é porque não leram, sendo
creta – a fome real da família; de outro,
que eu falo dela praticamente em todos
por uma questão ética – a ética de mu-
lher de classe média cristã católica. E os meus livros.”
quando o açougueiro, zombeteiro, ma- Quanto à valorização prois-
chista, a desrespeitava com seu discur- sional da mulher, cabe citar o livro
so de mofa, suas palavras a pisoteavam, Professora sim, tia não: cartas a quem gosta
a destroçavam, a emudeciam. Tímida e de ensinar. Rosa M. Torres relata uma
esmagada, eu a vejo agora, neste mo- entrevista na qual Freire observou:
mento mesmo, eu a vejo frágil, olhos “Quanto mais se reduz a proissiona-
marejando, deixando aquele açougue à lização a uma amorosidade parental,
procura de outro em que quase sempre tanto menos são as condições que terá
se acrescentavam outras ofensas às já a professora para lutar” (TORRES,
recebidas. [...]. O que me revoltava era 1996, p. 275).
o desrespeito de quem se achava em Frente às críticas à linguagem de
posição de poder a quem não o tinha. Freire, ocorre-me citar Manfred Peters,
Era o tom humilhante, ofensivo, cana- exímio lingüista belga. No livro A Pe-
lha, com que o açougueiro falava a mi- dagogia da Libertação em Paulo Freire (PE-
nha mãe. A entonação de censura, de
TERS, 1999, p. 157-162) participou
reprovação do discurso do açougueiro,
com um texto intitulado “Aspectos
que ele prolongava desnecessariamen-

• 296 •
semânticos e pragmáticos da pedago- cadas por modalidades tremendamen-
gia de Paulo Freire”. Segundo Peters: te opressivas da mulher.
“na visão freireana, a linguagem não Na Suíça, um movimento am-
pode ser dissociada do seu contexto plo de mulheres buscou na Pedagogia do
social e político ou do seu papel cria- Oprimido e na “visão política do IDAC”
dor de estratégias de ação. [...] para a inspiração para a luta, relatada no li-
ele a linguagem real sempre envolve a vro Vivendo e aprendendo: experiências do
práxis, e usar uma linguagem real sig- idac em educação popular, de autoria do
niica mudar o mundo. [...] O signii- grupo IDAC (FREIRE et al., 1983).
cado de uma palavra, segundo ele, só No capítulo 3, intitulado “As Mulheres
pode existir em uma situação concreta em Movimento” (OLIVEIRA, 1983,
[...]. A base dessa visão é uma teoria p. 39-68), sobre a 1ª assembléia lemos:
semântica especíica, a qual deine o “éramos quinhentas a perceber a mes-
signiicado como algo que não é ine- ma coisa e, para falar dessa “coisa” que
rente à palavra, possuindo apenas uma ninguém sabia muito bem o que era,
existência semântica potencial, que se nos dividimos em grupos. Esses gru-
torna real em um contexto especíico” pos, que proliferaram em Genebra e na
(PETERS, 1999, p. 158). Suíça se constituíam e se desfaziam se-
Ao falar do projeto Alfabetização gundo os interesses das participantes”
e Conscientização no Kivu, realizado na (Ib., p.43).
Republica Democrática do Congo”, Na pesquisa da realidade, para
Peters elenca uma série de provérbios, “escrever sua própria história” (Ib., p.
canções e histórias populares escanca- 46), “cabia às estudantes da univer-
radamente machistas, que, segundo ele, sidade o levantamento do que Freire
requerem um processo de “desmistii- chamaria o universo temático das ha-
cação”, proposto por Freire, e por isso bitantes do conjunto residencial” (p.
declara: “daí o esforço contínuo dos 52). Nessa “reinvenção de identidade
grupos populares [...] em desvelar a individual e coletiva”, prolongando-se
realidade e criar a utopia, no sentido em ação política, o movimento visava
freireano” (PETERS, Ib., p. 161). um processo amplo de transformação
Peters está convencido de que a social (Ib., p. 66-67).
Pedagogia do Oprimido pode inspirar pro- Um ano e meio antes de sua
jetos de relevância internacional, na morte, no livro À Sombra desta Manguei-
luta para a transformação de tradições ra (FREIRE, outubro de 1995), Freire
culturais e de estruturas de poder mar- denuncia várias vezes todas as formas

• 297 •
de discriminação, “[...] não importa se Referências
contra o negro, a mulher, o homosse-
ANDREOLA, Balduino Antonio. Emmanuel Mounier
xual, o índio, o gordo, o velho” (Ib., p. ET Paulo Freire: Une Pédagogie de la Personne et de la
87). Ele proclama que “é um imperati- Communauté, hèse doctorale. Louvain-La-Neuve, Uni-
versité Catholique, Faculté de Psychologie et des Sciences
vo ético lutar contra a discriminação”, de l’Education. 1985.

e explicita: “discriminados porque FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 46ª edição. São
Paulo, Paz e Terra, 2007.
negros, mulheres, homossexuais, tra-
balhadores, brasileiros, árabes, judeus, FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: Cartas a quem
ousa ensinar, 6ª Ed., São Paulo, Olho D’água, 1995.
não importa por quê, temos o dever
FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. Prefácio de
de lutar contra a discriminação. A dis- Ladislau Dowbor; notas de Ana Maria Araujo Freire. São
criminação nos ofende a todos porque Paulo, Olho d’Água, 1995.
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e Ousadia: O cotidia-
fere a substantividade do ser” (Ib., p. no do professor. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.
70). FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: Cartas Pe-
Ao subverter a gramática, como dagógicas e outros escritos. São Paulo, Editora UNESP,
2000.
na sua fala na UFRGS, Freire queria
FREIRE, Paulo. Pedagogia dos Sonhos Possíveis. Organi-
chamar a atenção para o problema de zação e apresentação de Ana M. Araujo Freire. São Paulo,
uma cultura machista milenar, que não UNESP, 2001.

se reduz a detalhes gramaticais. Peters McLAREN, Peter (Org.) et al. Paulo Freire: Poder, desejo
e memórias de libertação. Porto Alegre, Artmed, 1998.
vai ao âmago do problema quando, ao
“usar continuamente o gênero femini- OLIVEIRA, Rosiska Darcy de; HARPER, Babette. As
Mulheres em Movimento: ler a própria vida, escrever
no” referindo-se às mulheres, justiica: a própria história. In: FREIRE, Paulo et al., Vivendo e
Aprendendo: Experiências do Idac em educação popular.
“Assim posso contribuir, em longo 6ª edição. São Paulo, Brasiliense, 1983
prazo, para a realização de mudanças
PETERS, Manfred. Aspectos semânticos e pragmáticos
da realidade cultural, social, econômi- da pedagogia de Paulo Freire. In: FREIRE, Ana M. Arau-
jo. A Pedagogia da Libertação em Paulo Freire. São Paulo,
ca e política” (PETERS, 1999, p.160). Editora UNESP, 1999, p.157-162.
Esta perspectiva de mudança a “longo
SILVA, Márcia Alves da. Feminismo. In: STRECK,
prazo” condiz com a formulação de Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José.
(Orgs.). Dicionário Paulo Freire. 2ª edição, Belo Hori-
Paulo Freire, em Pedagogia da Esperan- zonte, Autêntica 2010. p. 182-185.
ça: A recusa à ideologia machista, que
TORRES, Rosa Maria. Professora sim, tia não. In. GA-
implica necessariamente recriação da DOTTI, Moacir (Org.) et al. Paulo Freire: Uma biobi-
bliograia. São Paulo, Cortez e Instituto Paulo Freire,
linguagem, faz parte do sonho possí- 1996, p.275.
vel em favor de mudança do mundo
VIEZZER, Moema L. Paulo Freire e as Relações Sociais
(FREIRE, 1992, p. 68). de Gênero. In: GADOTTI, Moacir (Org.) et al. Paulo
Freire: Uma biobibliograia. São Paulo, Cortez Editora &
Instituto Paulo Freire, 1996, p. 596-598.
Baldoíno Antônio Andreola

• 298 •
• das teorias feministas presentes nesses
estudos.
Freiras e religiosas – A cisão dos modelos de Eva e Ma-
as mulheres consagradas ria – uma didática de séculos: O Cristianis-
mo, segundo Graciela Cornaglia (2007,
Para apresentar um núcleo de p.65), reconhece uma ligação entre Eva
signiicados sobre “mulheres religio- e Maria. Maria é a “Nova Eva” no sen-
sas/freiras” é preciso ter presente que tido de que o ato pecaminoso de Eva
a realidade histórica e sociológica da é redimido pelo ato virtuoso de outra
participação das mulheres na religião mulher. Assim, “(...) a obediência de
ainda carece de mais pesquisa para po- Maria origina a redenção do mundo: o
dermos criticar as interpretações vei- nascimento de Jesus”. Há uma apren-
culadas como senso comum. Deve-se dizagem para a vida das mulheres que
começar com o fato da exclusão histó- está presente em letra ina, quase invi-
rica e sistêmica das mulheres de papéis sível sobre essas duas mulheres: cada
de liderança religiosa no judaísmo e do uma delas remete a caminhos distintos,
cristianismo o que poderia se estender mas as duas são mulheres! Quando
pelo menos para as matrizes de religião uma menina cristã aprende que obe-
monoteísta. decer a Deus é estar mais próxima do
Esse verbete é desenvolvido modelo de Maria, ela também aprende
num argumento que deseja ser uma que, com essa proximidade, ica lon-
pró-vocação! Traz as iguras de Eva e ge de Eva (embora essa possa parecer
Maria na tradição judaico, greco-cristã, mais sedutora, persuasiva e pulsante).
como centrais, para pensar caracterís- Enquanto Maria relembra a discrição,
ticas antagônicas. Em seguida propõe submissão, suavidade, a santidade e é
um exercício com base na hermenêu- a referência para todas as mulheres. E
tica da suspeita ensinada por Elizabeth uma das formas que, em especial, as
Schüssler Fiorenza (1998) e apresenta- meninas católicas aprenderam ao lon-
da como desaio para a Educação por go dos séculos foi que, sendo freiras,
Edla Eggert (2000), em que podemos podiam “agradar” de modo mais eicaz
considerar os mosteiros como lugares a Deus para se distanciar de Eva. Era
de resistência e inclusive de insurgên- sempre recomendável que nas boas
cia. E para inalizarmos o verbete, ima- famílias uma das ilhas “optasse” pela
ginamos quanta história ainda está por consagração, denominada também
ser recontada quando estabelecemos pelas palavras: monja, religiosa, irmã/
hermenêuticas que tenham o conteúdo soror. Na tradição protestante a orien-

• 299 •
tação da consagração para as mulheres mulheres eram percebidas. Não há pra-
foi minoritária, mas também existiu. ticamente registros delas e sim, escri-
O cristianismo retomará com tos produzidos pelos monges da época
mais vigor a compreensão de que a basicamente dirigidos aos homens de
mulher (Eva) foi a responsável pela bem, pais de família. Ou seja, o que
perda do paraíso, por meio da deso- os monges conseguiram registrar foi o
bediência, ela ocasionou a queda, o que insinuaram com base no que ou-
pecado. Alguns exegetas, por sua vez, viam dos maridos sobre suas esposas.
questionam a forma empregada para Por meio dessa escuta foram produzi-
a palavra “queda”. Severino Croatto dos manuais de orientação e conduta
(2010) e Terence Fretheim (1994) nos para que os maridos pudessem contro-
auxiliam a perceber as nuances da in- lar suas esposas que eram vistas pelos
terpretação do texto de Genesis numa monges como sinônimo de tentação,
perspectiva não literal. De modo que luxúria, ameaça ao controle da Igreja.
no lugar de “queda” o que se constata Já que os homens não tinham acesso
é a transgressão. aos espaços domésticos, lugares onde
Marcela Lagarde (2005) adver- as mulheres poderiam cometer a alqui-
te que as mulheres consagradas bus- mia das comidas, remédios, perfumes
cavam/buscam em Maria algumas de e venenos simultaneamente, era por
suas marcas: a castidade, a obediência, meio dos sermões, cartas e conselhos
a humildade e a discrição, embora a dos monges que os homens poderiam
maternidade lhes é impedida. E por se orientar.
isso a virgindade é a carta de entrada, Na compreensão dos padres os
ou pelo menos a moeda mais valiosa maridos eram os responsáveis pelos
para que as jovens possam acessar os desvios das suas esposas. Nesse cam-
mosteiros, onde a formação das freiras po a tradição patriarcal se manteve iel
se instalou, sob a égide da Igreja. Lem- aos ensinamentos greco-romanos, ou
brando que o critério da virgindade é seja, as mulheres eram consideradas
exigido somente para mulheres. seres incompletos, homens de segun-
Segundo George Duby (2001) da categoria, defeituosos, infantis e
é no século XII que a Igreja começa necessitavam de tutoria. Por esse moti-
a se preocupar mais com as mulheres. vo, se por caso fosse comprovado que
Esse historiador busca, por meio do uma delas de fato possuía poderes de
estudo dos sermões, das cartas e orien- manipulação, seria considerada insub-
tações dos padres para com as famílias missa, ameaça para a família, portan-
da nobreza europeia, analisar como as to: bruxa. E nesse caso a Igreja teria

• 300 •
autorização para: ou reeducá-la, ou no como Metz e Colonia se servissem da
pior dos casos, executá-la. O século obra como orientação básica para “(...)
XII seria então o início da produção fazer vir à luz o pecado e dosar equi-
dos manuais de orientação e também tativamente as punições redentoras.”
de interrogação que se ampliariam nos (2001, p.18). Desse modo se produziu
séculos seguintes tendo a culminância o Livro das maneiras, assim como toda
no século XVI e XVII com a perse- uma cultura de orientação do que po-
guição as bruxas [que incluía homens deria ser considerado ameaça das mu-
também] em todos os lugares onde a lheres para os com os homens pelo
Igreja, tanto católica quanto protes- fato delas terem conhecimentos sobre
tante, tivessem predominância. Duby os seus corpos e terem uma vida pri-
(2001) escava alguns textos desse sé- vada com pouco acesso dos homens
culo que por sua vez buscam inspira- sobre esses lugares. O acesso para in-
ção nos séculos anteriores para chegar
terrogar as mulheres também passa
aos famosos manuais de orientação.
a existir a partir do século XII assim
Um dos autores referência chamava-se
como o entendimento de que a Igreja
Étiene de Fougéres que se tornou bis-
deveria trazer as mulheres nobres para
po de Rennes na França em 1168 [séc
junto dela pela mediação de “homem
XII] e escreveu o “Livro das maneiras”
de Igreja” ensinando-as ao ponto de
dos anos 1174-1178. Esse autor bebeu
corrigirem-se a si mesmas. A ideia era
em fontes como, por exemplo, o texto
que elas fossem capturadas em suas re-
misógino de um senhor chamado Mar-
des de alcoviteiras. Segundo Duby, as
dobe do século XI (DUBY, 2001, p.16)
mulheres eram o perigo e tudo girava
que coloca a mulher como inimiga do
em torno delas. “A Igreja decidiu sub-
homem. “Traidora era Eva, que con-
jugá-las. Com esse im deiniu clara-
venceu a provar do proibido, briguen-
mente os pecados de que as mulheres
ta, ávara, leviana, ciumenta e, por im,
tornavam-se culpadas.” (2001, p. 36).
encimando esse elenco de ruindades,
O casamento juntamente com os mos-
ventre voraz.” (2001, p.17) Além des-
teiros femininos são a acolhida da pro-
sa fonte Fougéres encontrou na obra
dução moral do casamento para dirigir
do bispo Burchard de Worms intitula-
a consciência das mulheres.
do “Decretun” os elementos morais em
Por essa razão, seguindo esse
forma de lições minuciosamente ela-
raciocínio, é tão importante observar a
boradas. Foi segundo Duby (2001) essa
preparação dos mosteiros como luga-
obra colaborou para que boa parte dos
res para consagrar mulheres a Deus, e
bispos de todo norte da França bem
também prepará-las para o casamento.

• 301 •
Desse modo teremos os padres com Há desigualdades enormes entre
poderes bem mais amplos a guiar a os mosteiros masculinos e femininos,
espiritualidade das mulheres por meio pois enquanto as mulheres necessitam
do confessionário e também por meio da supervisão dos homens, esses pos-
das orientações e supervisões junto às suem somente outros homens como
madres superioras e abadessas. E para seus mestres/supervisores. Lagarde
conferir toda essa formação teremos (2005, p. 466) lembra que distintamen-
as próprias mulheres ensinando e co- te das monjas, os padres possuem fun-
brando a si mesmas para serem iéis ções de intermediários entre os mortais
a Deus e iéis aos seus maridos. Em e Deus além de poderem constituir no-
suma, a obediência é a máxima de todo vas leis nas diferentes ordens religiosas.
aprendizado. No dizer de Andréa Nye Essa concepção é muito desigual para
as religiosas que, segundo Lagarde têm
(2005) e também de Margarita Pisano
o compromisso de reproduzir as fon-
(2001) serão as mulheres as guardiãs
tes do evangelho. “Las congregaciones
do patriarcado. E todas as que segui-
de mujeres son organizaciones destina-
rem o manual serão mais bem suce-
das a la reprodución social no criativa,
didas quanto mais forem adeptas dos
basada en la repetición.” (2005, p.471).
itens a serem seguidos para buscar a
A estrutura eclesiástica reproduz a
santidade.
mesma divisão hierárquica das relações
Lagarde (2005, p. 472) argu-
de gênero na sociedade patriarcal. O
menta que a identiicação com Maria
código da virtuosidade é idêntico para
é contraditória, pois embora sejam
monjas e para esposas, ou seja, elas de-
mulheres, as freiras devem renunciar
verão ser virtuosas, servir a Deus [ma-
à máxima ensinada no gesto de Maria:
rido], esquecer de si mesmas, e esperar
a maternidade, pois é por meio da en-
para serem salvas.
trega do seu corpo para ter ilhos que
Ivone Gebara (2000) em seu
as mulheres podem, como bem lembra
livro Rompendo o silêncio, destaca que
Graciela Cornaglia (2007), se redimir
enquanto era uma docente que repro-
do pecado, expulsando a Eva dentro
duzia ielmente os ensinamentos dos
delas. Às mães ica permitido viver a
patriarcas e dos ilósofos, era conside-
sexualidade procriadora, dentro do ca-
rada uma excelente professora. Quan-
samento, abençoado pela Igreja. No
do porém, resolveu escrever e dizer o
caso das freiras, há a renúncia dessa
que pensava foi silenciada pelo Vatica-
sexualidade procriadora e erótica que
no! E isso foi no inal do século XX,
deixa as freiras num plano ideal, ou
ou seja, a máxima da produção do co-
seja, são esposas de Cristo. (LAGAR-
nhecimento estar nas mãos dos padres
DE, 2005, p. 473).

• 302 •
segue sendo um ensinamento eicaz. beneditina. Heloísa Dalferth (2000)
É nesse vão da história que é preciso apresenta o percurso de Katharina por
observar melhor, como bem lembra mais um mosteiro e diferentes ordens,
Michelle Perrot (2008), pois as mulhe- pois iniciou sua vida de monastério
res sempre trabalharam, sempre pensa- com cinco anos de idade. Quando foi
ram e portanto, mesmo que invisíveis, ordenada freira em 1515 fazia parte da
estavam presentes na história. Desse ordem Sistersinianas Trono de Maria.
modo buscaremos em quatro freiras, – O mosteiro possuía regras muito rígi-
três do passado: uma alemã, uma fran- das de disciplina com as quais as no-
cesa e uma mexicana; e uma freira do viças tinham que se adaptar. Porém as
presente e brasileira, para analisarmos regras eram constantemente quebradas
as insurgências e insubmissões que se e isso pode ser constatado com base
izeram e se fazem presentes nesse am-
nos registros das queixas feitas pelo
biente.
prior Balthazar, o responsável pela
Quando ser freira não é somente sinô-
ordem desse mosteiro. A madre su-
nimo de submissão: Os primeiros mostei-
periora desse tempo possuía um bom
ros segundo Hugo Lopes (s/d) foram
coração e permitia várias concessões
construídos no século XI. E um dos
inclusive que os escritos de Marin
primeiros mosteiros femininos que
Lutero entrassem no mosteiro e fos-
temos registro na história é o Mosteiro
sem lidos pelas freiras, “sinal de que
de Santa Clara – a velha, que teve sua
primeira “fundação em 1283, por ini- o isolamento dos acontecimentos do
ciativa de Dona Mor Dias, uma nobre mundo não fossem totais” como narra
e abastada senhora que se encontrava Dalferth (2000, p.20). A aproximação
recolhida no Mosteiro de São João aos textos de Lutero, permitiu que Ka-
das Donas, anexo ao mosteiro mascu- tharina juntamente com mais 11 mon-
lino de Santa Cruz” (2013,s/p). Esta- jas planejassem uma fuga considerada
va ligado à ordem de Santa Clara. Os espetacular, pois elas dependiam de
mosteiros femininos estavam ligados informantes externos que vinham para
e supervisionados às ordens dos mon- o seu mosteiro. Tanto para trazerem os
ges. Santa Clara pertencia a ordem das textos proibidos como para enviarem
franciscanas. cartas para familiares ou amantes ou,
Nesse âmbito trazemos a pri- nesse caso, para o próprio Lutero que,
meira freira e para espanto de todos: ao receber o pedido de socorro dessas
desertora! Seu nome: Katharina Von onze freiras tratou de planejar a fuga
Bora (1499-1552), freira da ordem das mesmas que foram abrigadas em

• 303 •
Wittemberg com famílias adeptas à re- quanto Katharina, a ex-freira, cozinha-
forma. va e comandava a cozinha, os homens
Não há registros dos textos discutiam teologia e ela participava
ou cartas de Katharina, porém o que ativamente desse debate. Seria possí-
possuímos como fonte de estudos se- vel imaginar que, uma mulher que o
gundo pesquisas recentes são as cartas próprio Luthero chamava de “senhor
de Luthero dirigadas à Katharina em Luthero”, e que quando viúva teve a
que se pode constatar que ela tinha do- indicação do tutor Mechlanton e esse,
mínio básico de latim, pois Lutero se numa carta para o irmão de Katharina,
dirigia a ela com termos nessa língua respondeu que não aceitava, pois ela
quando apresentava argumentos teo- era “ingovernável”, - impossível que
lógicos que estavam sendo discutidos. ela não tivesse pensamentos próprios
Na época o debate teológico era todo sobre a teologia que se fazia na época!
estudado em latim. Além disso temos Difícil imaginar Katharina conzinhan-
presente, ao estudar a biograia dessa do em silencio!
freira, que ela possuía conhecimentos Nessa perspectiva da suspeita
de educação, farmácia, música e admi- compreendemos que o caminho da
nistração, pois no momento em que formação de Katharina num mosteiro
passou a ser a Senhora Lutero admi- que tinha algumas liberdades, foi deci-
nistrou um antigo mosteiro beneditino sivo. A leitura “subversiva” foi um dos
emprestado pelo prefeito do lugar para aspectos que mudou o rumo dessas
ser a moradia do casal Lutero. Assim, onze freiras. O acesso ao que estava
Katharina, acolhia além de pessoas do- acontecendo no seu tempo fez com
entes, crianças órfãs, estudantes de te- que Katharina despertasse para a fuga
ologia que, nesse caso, alugavam quar- e a insurgência.
tos, pois os cursos de teologia eram Uma outra história bastante
ministrados nessa imensa casa. Segun- signiicativa é a narrativa trazida por
do Eggert e Paixão (2013) a cozinha de Natali Davis (1997) sobre uma freira
Katharina Von Bora demonstra uma da ordem das Ursulinas, que no sécu-
profunda cena teológica possível de lo XVII expandiu seus mosteiros para
ser redescoberta por meio das cartas o novo mundo. Natali Davis apresen-
de Luthero. O tüschreden, ou: a mesa ta uma pesquisa detalhada da história
de discussão, era o local preferido de de uma viúva francesa Marie Guyart
Luthero e seus estudantes. Assim que (1599-1672), que decide entrar para a
a suspeita hermenêutica é de que en- congregação das ursulinas e entrega

• 304 •
seu ilho de 12 anos para à ordem dos viveu no México: Sóror Juana Inés de
beneditinos e segue sua “voz interior” La Cruz (1648-1695). Nessa história
viajando para o Canadá e fazendo par- temos uma soisticada rede de biógra-
te do grupo que instala a ordem das fos que, segundo Otávio Paz (1998)
ursulinas. Marie de lÍncarnation, assim pode ser um caminho para se chegar
chamada na ordem ursulina, escreveu a sua obra, mas é uma porta que deve
cadernos sobre sua vida espiritual. Es- ser atravessada porque o que realmen-
tes caderso são enviados ao ilho no te importa é a sua obra! Essa mulher
ano de 1654, cinco anos após a morte desde muito cedo buscou os estudos
da mãe, e Claude Martin, que se tor- e o conhecimento como forma de se
nara monge beneditino, publica os ca- colocar no mundo. Devido ao seu rei-
dernos da freira com o título de “La vie nado conhecimento foi convidada aos
de la vénérable mére Marie de lÍncarnation”. 17 anos a viver na corte do Marquês de
Nosso objetivo aqui não é fazer Mancera que, segundo Francisco Mon-
um estudo sobre as ordens femininas terde (2010), com o apoio da esposa do
e seus mosteiros. Apenas desejamos Marquês ingressou aos 18 anos para o
introduzir elementos que apresentem convento das Carmelitas descalças,
um contexto para que possamos com- onde não se adaptou, partindo então
preender a complexidade da vida das no ano seguinte (1668) para o conven-
mulheres que viveram essa realidade. to de San Jeronimo, no qual viveu até
Marie de lÍncarnation foi considerada sua morte. Foi rodeada de afeto, ensi-
uma “femme forte” pelas colegas e irmãs nou música, fui arquivista e contadora
ursulinas. Transpôs a ordem inques- do convento. Em novembro de 1690
tionável de cumprir com seu papel de é publicado um texto de Sóror Juana
mãe com outra “ordem” de cumprir em forma de carta, com uma crítica
com o chamado de Deus para outro dirigida ao “Sermão do Mandato” escrito
mundo, improvável e desconhecido pelo jesuíta Antônio Vieira no ano de
que era instalar a ordem ursulina num 1650. Junto a essa publicação da carta
país distante. Num tempo em que so- soma-se a outra carta altamente elogio-
mente aos homens estava posto a in- sa ao texto de Sóror Juana, escrita pelo
trépida ousadia de viajar pelos mares bispo doutor em Teologia Fernández
conhecendo outros mundos. de Santa Cruz, mas que assina com o
Numa direção um pouco dife- nome de Sóror Filotea da Cruz. Segun-
rente, porém próxima, trazemos ou- do Antonio Castro Leal (2007) a carta
tra freira também do século XVII que resposta escrita por Juana para Sóror

• 305 •
Filotea da Cruz é o primeiro registro segue sendo uma freira irreverente e
de uma “carta magna da liberdade inte- insubmissa. Notadamente tem se ma-
lectual das mulheres da América”. nifestado crítica em relação ao novo
E no século XX e XXI temos papa, observando o quanto de andro-
no Brasil, Ivone Gebara uma freira centrismo o circunda e que as questões
pertencente à Congregação das Irmãs relacionadas à teologia feminista se-
de Nossa Senhora - Cônegas de San- guem sendo negligenciadas.
to Agostinho e nos relata (2012) numa Na trajetória histórica a vivência
entrevista, que optou por ser freira ao e a educação das mulheres em mos-
conhecer algumas delas na década de teiros geralmente foi inferior à dos
sessenta que militavam nos movimen- homens na medida em que não incluí-
tos populares da época. E segundo ela, am o acesso à aprendizagem secular e
parecia ser uma vida mais livre do que clássica - considerada imprópria para
a vida familiar e com marido. Para Ge- as mulheres. Quando o centro educa-
bara, toda sua narrativa de história de cional da cristandade deslocou-se do
vida tem o eixo da busca por liberdade. mosteiro à universidade no século XII,
“Minha história foi a de busca as mulheres foram excluídas. A univer-
por liberdade. Não suporto que me im- sidade que surge no norte da Europa
peçam de pensar. É um direito pensar teve como característica ser uma insti-
diferente. E isso tem sido a chave de tuição clerical masculina.
minha vida, com todos os tropeços e Esta formatação expressava
as contradições, porque as vezes não se de modo exemplar a compreensão
enxerga claro, e se trilha um caminho e antropológica hegemônica no cristia-
depois não é por ali”. (2012, s/p) nismo baseada no binário hierárquico
Para Gebara, manter-se na con- do masculino sobre o feminino e no
gregação apesar de ter sido silenciada binário de contradição do feminino
no início de década de 90 pelo vatica- contra ele mesmo no imaginário Eva/
no pelo fato de se posicionar a favor Maria. Entretanto os esforços teóricos,
do aborto, segue sendo uma voz que pedagógicos e práticos de exclusão e
rompe silêncios. Rompendo o silêncio é o submissão revelam a constante airma-
título do seu livro publicado no ano de ção de autonomia e resistência da ex-
2000 como resultado de sua segunda pressão religiosa de mulheres desde as
tese de doutorado, quando foi enviada origens do cristianismo. Ao longo da
por indicação de superiores para uma história é possível rastrear os modos
tentativa de “correção” disciplinar. E de aceitação e negociação de mulheres

• 306 •
dentro de uma tradição religiosa de cla- CRUZ, Sor Juana Ines de la Cruz. Obras completas. Ciu-
dad de México: Editorial Purrúa, 2010.
ra promoção e dominação masculina.
A própria história apresenta disjunções DALFERTH, Heloísa. Catarina Von Bora, uma biogra-
ia. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2000.
signiicativas entre as crenças religiosas
e práticas atribuídas a estas mulheres DAVIS, Natalie. Nas margens – três mulheres do século
XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
deixando ver um vasto campo de re-
EGGERT, E. A mulher e a educação: possibilidades de
sistência e desobediência. Foi assim uma releitura criativa a partir da hermenêutica feminista.
com todas as mulheres citadas em nos- Estudos Leopoldenses, São Leopoldo/ RS, v. 03, n.05, p.
19-28, 1999.
so texto que buscou analisar de uma
perspectiva da suspeita feminista, que FIORENZA, Elisabeth Schussler. As origens cristãs da
mulher: uma nova hermenêutica.São Paulo: Paulinas,
a vida nos mosteiros femininos aconte- 1992.
ceu para além das dogmáticas previstas
FRETHEIM, Terence E. Is Genesis 3 a Fall Story? In.:
nos minuciosos textos escritos pelos Word & World, V.14, n. 2 1994, p. p. 144-153. http://
homens com poder da época. wordandworld.luthersem.edu/content/pdfs/14-2_Gene-
sis/14-2_Fretheim.pdf
E é assim ainda hoje quando
vemos as “freirinhas” com suas dis- GEBARA, Ivone. Uma clara opção pelos direitos das mu-
lheres. Entrevista com Ivone Gebara. In. http://www.ihu.
crições e submissões ensinadas, prepa- unisinos.br/noticias/511796

rando mulheres para a luta do dia a dia. HAUG, Wolfgang Fritz. O projeto do Dicionário His-
tórico-Crítico do Marxismo. Conferência proferida na
Edla Eggert Espanha no ano de 2000.In.: http://www.wolfgangfrit-
zhaug.inkrit.de/documents/HKWM-portugies.pdf
Nancy Cardoso Pereira
LAGARDE Y DE LOS RIOS, Marcela. Los cautiveros de
Referências e sugestões de leitura las mujeres: madresposas, monjas, putas, presas y locas. 4.
ed. México: UNAM, 2005.
CASTRO LEAL Antonio. Prólogo do livro Sóror Juana
MONTERDE, Francisco. Prólogo da Obra completa de
Ines de la Cruz - Poesia, teatro y prosa. Ciudad de Méxi-
Sor Juana Ines de la Cruz. Obras completas. Ciudad de
co: Editoral Purua, 2007.
México: Editorial Purrua, 2010.
CORNAGLIA, Graciela. Mulheres que (des)aprendem a
MOSTEIRO de Santa Clara – a velha. In. http://santa-
ser mulheres na tradição católica desconstruindo modelos
claraavelha.drcc.pt/site/index.php
de opressão através da formação das promotoras legais e
populares. Dissertação. São Leopoldo: PPGEdu Unisi-
RANGEL, Leonardo Coutinho de C. “Por meio da santa
nos, 2007.
vida, se segue gloriosa morte”: práticas ascéticas no Con-
vento de Jesus de Setúbal (séculos XV a XVII) In.: Revista
CROATTO, J. Severino. ¿Quién pecó primero? Estudio
de História, 1, 1 (2009), pp. 3-28 acessado http://www.
de Génesis 3 en perspectiva utópica. RIBLA n. 37, Quito,
revistahistoria.ufba.br/2009_1/a01.pdf
2000, p.22-37. Acessado em: http://severinocroatto.com.
ar/wp-content/uploads/2010/08/quien-peco-primero.
PAZ, Otavio. Sóror Juana Inés de la Cruz. As armadilhas
pdf - 10/12/2013.
da fé. 2.ed. São Paulo: Mandarin, 1998.
CRUZ, Sor Juana Ines de la Cruz. Poesia, Teatro y Prosa.
Ciudad de México: Editoral Purrúa, 2007. •

• 307 •
Freud, Sigismund da ciência, que designa a psicanálise
como “pseudo ciência”, na medida
Sigismund Schlomo Freud em que não cumpre com o critério de
(Freiberg, 06/05/1859 – Londres, poder ser falseada pelos fatos : “não
23/09/1939) é conhecido como Sig- conseguia imaginar qualquer tipo de
mund Freud, ou, simplesmente, Freud. comportamento humano que ambas
Embora tenha nascido em uma loca- as teorias [se referia a Freud e a Adler]
lidade da atual República Tcheca, pas- fossem incapazes de explicar” (PO-
sou a maior parte de sua vida em Vie- PPER, 1972, p. 65). Provavelmente é
na, capital austríaca. Em função de sua esta ideia de que a Psicanálise tem ex-
condição judaica, teve que refugiar-se plicação para tudo que está na origem
na Inglaterra, fugindo à perseguição do bordão popular “Freud explica”.
nazista de antes da Segunda Guerra Os aspectos mais polêmicos das
Mundial, onde morreu, em Londres, teorias freudianas, como seria de se es-
aos 83 anos. É o criador da Psicanálise, perar, vazaram de maneira distorcida,
termo que engloba teorias da subjetivi- como quase sempre acontece com as
dade e técnica terapêutica para atender teorias cientíicas (ou ditas cientíicas),
as pessoas em suas diiculdades psico- para o senso comum. Nas conversas
lógicas. informais do cotidiano das pessoas,
Freud, desde o início de seu tra- é comum se escutar expressões tais
balho, produziu polêmicas. Suas ideias como: “a culpa é da mãe” e várias ver-
sacudiram os estatutos morais e cien- sões sobre a inveja feminina que se
tíicos de sua época. Em função das tornou famosa, a do pênis, ou, ainda,
issuras e rupturas que ocasionou no sobre a passividade feminina e várias
conhecimento sobre os seres huma- outras acomodações populares das
nos e da criação de uma nova visão ideias de Freud. Serge Moscovici, com
sobre os mesmos, é considerado uma respeito a essa questão, icou conhe-
das iguras mais importantes do sécu- cido, dentro da área da Psicologia So-
lo XX. Isso, no entanto, não signiica cial, por sua tese de doutorado sobre a
que suas teorias tenham sido unanime- psicanálise, sua imagem e seu público.
mente aceitas, antes ou agora, mesmo Segundo este autor, o senso comum
dentro da própria psicanálise. Fora da reelabora o que a ciência ou as teorias
psicanálise, as críticas podem chegar a cientíicas produzem, transformando
ser bem contundentes, como é o caso, em outro tipo de conhecimento, adap-
por exemplo de Karl Popper, ilósofo tando a certos tipos de necessidades e

• 308 •
de acordo com determinados critérios nariam verdadeiras mulheres era falha:
das sociedades que reelaboraram os “não creio que devemos considerar o
conceitos (MOSCOVICI, 1978). fundador da psicanálise como um con-
Com relação às questões de gê- formista, mas sim como alguém extre-
nero e, principalmente, sobre as rela- mamente mergulhado nas condições
ções entre “feminino” e “masculino”, de produção da moral burguesa de seu
Freud é criticado pelas autoras femi- tempo e, por isso, incapaz de imaginar
nistas, às vezes de maneira contunden- que elas pudessem ser alteradas – in-
te, às vezes parcialmente. É preciso clusive pela “bomba moral” lançada
lembrar que muitas feministas são, ao pelo próprio discurso psicanalítico”
mesmo tempo, psicanalistas, como, (KEHL, 1998, p. 284). Podemos de-
por exemplo, Juliet Mitchell (1988) e, duzir, então, que pela visão da autora,
em nosso país, Maria Rita Kehl (1996, Freud foi, concomitantemente, alguém
1998, 2002) dentre várias outras. Essas que rompeu com a lógica de seu tempo
autoras aceitam pressupostos da psica- e um legítimo representante dessa épo-
nálise e criticam outros. Podemos ver ca em certos aspectos.
isso em duas citações da psicanalista Por outro lado, Freud não usou,
Maria Rita Kehl: “a psicanálise reve- propriamente, ao longo de sua vasta
lou ao século XX o preço pago pelo obra, o termo gênero. Como airma
controle excessivo dos impulsos que Felipe Figueiredo Lattanzio, em sua
as sociedades oitocentistas haviam tese de doutorado de 2011, o gênero
imposto aos seus membros. A eicá- em Freud se explica a partir do bio-
cia deste controle exigia, entre outras lógico e o anatômico, pois quando as
coisas, um silenciamento sobre tudo crianças descobrem suas diferenças
o que fosse proibido. Ao romper esse anatômicas, toda uma “vicissitude de-
silêncio, a psicanálise contribui para a senvolvimental diferenciada já estaria
desmoralização de uma série de tabus e trilhada para cada sexo” (p. 22). Os
restrições, característicos do apogeu da maiores problemas de aceitação estão
dominação do modo de vida burguês que, para Freud, na realidade, só existe
(KEHL, 2002, p. 17). Neste trecho, a um sexo, o masculino, já que o mundo
autora atribui à psicanálise a ruptura desmorona para as meninas quando
com os padrões vitorianos restritivos. descobrem que não têm pênis: “a or-
Na próxima citação, ela critica Freud ganização genital infantil consiste no
por, apesar de ter escutado as histéricas fato de, para ambos os sexos, entrar em
com as quais trabalhava, não ter conse- consideração apenas um órgão genital,
guido dar-se conta de que sua própria ou seja, o masculino (FREUD, 1923,
visão sobre como as mulheres se tor- apud LATTANZIO, 2011, p. 22).

• 309 •
Em 1933 Freud reúne escritos (1967, apud SAYERS, 1992) e Ernest
anteriores no texto intitulado Femini- Jones (1927, 1933 e 1935), para quem
lidade, discorrendo sobre “o enigma a “feminilidade, em vez de ser uma
da natureza da feminilidade” (FREUD, masculinidade frustrada, seria uma en-
1933/1966ª, p. 114). Segundo Mariana tidade autônoma que, como a própria
Corrêa Azevedo (2009), a diferença se- masculinidade, derivaria de predisposi-
xual parte das diferenças anatômicas, ções inatas” (LATTANZIO, 2011, p.
mas o que seja a feminilidade e a mas- 22). Essa maneira de ver o masculino e
culinidade vai além da anatomia. Para o feminino, por outro lado, indica que
essa autora, Freud caiu na concepção o biológico teria a primazia e seria um
de sua época de que o masculino é um evento natural e sem conlitos em seu
princípio ativo e o feminino um princí- processo de formação. Sendo a ques-
pio passivo. Para Azevedo (2009, p. 5) tão da feminilidade um dos temas fun-
“este não é um fenômeno absoluto na damentais na teoria psicanalítica, apre-
natureza animal. Até na vida humana senta também as maiores controvérsias
seria errôneo fazer coincidir essas po- dentro da teoria. Uma das autoras mais
laridades com a sexualidade particular conhecidas por quem estuda as ques-
dos indivíduos”. Esse tipo de relação tões de gênero, Joan Scott (1995, p. 10),
argumentativa de Freud sobre, princi- escreveu em seu constantemente cita-
palmente, as mulheres e a feminilidade do artigo “Gênero, uma categoria útil
é um dos aspectos mais criticados em de análise histórica” que “um exame da
sua obra, pois, como diz Joel Birman teoria psicanalítica exige uma distinção
(2001), existem inúmeras contradições entre escolas”, ou seja, existem muitos
e ambigüidades em sua obra, embora enfoques e tendências que coexistem
esses aspectos não possam ser vistos dentro da teoria. O próprio Freud re-
de maneira supericial. considerava suas ideias na medida em
Essa posição de Freud reve- que seu trabalho clínico avançava.
la que ele, apesar de sua genialidade Dessa forma, escapa ao escopo
e capacidade de romper com o pen- deste verbete apresentar todos os as-
samento vitoriano de sua época, não pectos ligados ao gênero que a psica-
conseguiu romper com a ideia de que nálise de Freud tem em seu arcabouço
o masculino é o verdadeiro represen- teórico, pois cada formulação teve uma
tante da humanidade e que o feminino caminhada dentro da obra, com avan-
é um masculino imperfeito como que- ços e retrocessos, não sendo, de modo
ria Aristóteles. Vozes se alçaram den- algum linear e deinitiva. Tal aspecto
tro da própria psicanálise contra essa é fundamental de ser levado em con-
formulação, como as de Karen Horney sideração, pois, dependendo da época

• 310 •
em que os conceitos foram elaborados, MITCHELL, Juliet. Psicanálise da sexualidade feminina.
Rio de Janeiro: Campus, 1988, 90 p.
o impacto, a aceitação ou as críticas
podem ser muito diferenciados. O im- MOSCOVICI, Serge. A representação social da psicaná-
lise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, 291 p.
portante é lembrar que Freud levantou
muitos véus sobre o funcionamento POPPER, Karl. Objective Knowledge. Oxford: Claren-
don Press, 1972.
humano, mistiicou algumas questões
e, simplesmente, se manteve perplexo SAYERS, Janet. Mães da psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar, 1992, 296 p.
sobre o que seria uma mulher...
SCOTT, Jean Wallach. Gênero, uma categoria útil de
análise histórica. Educação & Sociedade. Porto Alegre,
Marlene Neves Strey Vol. 20, N. 2, p. 71-99, 1995.

Referências e sugestões de leitura Sugestões de leitura


AZEVEDO, Mariana Corrêa. Horizontes epistemológi- BIRMAN, Joel. Gramáticas do erotismo. Rio de Janeiro:
cos para o estudo da família contemporânea: psicanálise, Civilização Brasileira, 2001, 253 p.
feminismo e subjetividade. I Seminário Nacional Socio-
logia & Política UFPR, 2009.
GAY, Peter. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1989, 225 p.
BIRMAN, Joel. Gramáticas do erotismo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001, 253 p.
GAY, Peter. Freud. Uma vida para nosso tempo. São Pau-
lo: Companhia das Letras, 2010, 719 p.
FREUD, Sigmund. Feminilidade (1933). Novas confe-
rências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos.
GUEDES, Paulo Sergio Rosa. A paixão. Caminhos &
Conferência XXXIII: Feminilidade. Edições Standard
Descaminhos. Porto Alegre: Ed. Do Autor, 141 p.
Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Volume
XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1966.
KEHL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo:
JONES, Ernest. Early female sexuality. International Companhia das Letras, 2002.
Journal of Psychoanalysis, 16, p.263-273, 1935

JONES, Ernest. he early development of female sexuali-



ty. International Journal of Psychoanalysis, 8, p. 459-447,
1927.
Friedan, Betty
JONES, Ernest. he phallic phase. International Journal
of Psychoanalysis, 14, p. 1-33, 1933.
Betty Friedan representou uma
KEHL, Maria Rita. A mínima diferença. Masculino e das mais relevantes vozes da chamada
feminino na cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1996, 272 p.
segunda onda feminista. Seu livro The
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino: a mu- Feminine Mystique(1963) – publicado
lher freudiana na passagem para a modernidade. Rio de
Janeiro: Imago, 1998, 348 p. no Brasil em 1971 com o título Mística
Feminina - inspirou a organização de
KEHL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002, 203 p. mulheres em diversos países. Ainda na
década de 1960, Friedan foi uma das
LATTANZIO, Felipe Figueiredo. O lugar do gênero na
psicanálise: da metapsicologia às novas formas de subjeti- fundadoras e primeira presidente da
vação. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de NOW, National Organization of Wo-
Minas Gerais. Belo Horizonte, 2011.

• 311 •
men. Para compreender o contexto de Aquelas que haviam cursado faculda-
produção da obra de Friedan e sua atu- des foram estimuladas a guardar seus
ação como feminista faz-se necessário diplomas universitários nas gavetas.
recordar alguns fatos do mundo pós- O diploma era apenas um diferencial
-Segunda Guerra Mundial. O aumento que as tornava concorrentes melhor
da escolaridade em geral, e principal- preparadas para o disputado mercado
mente da feminina, já era uma realida- dos casamentos. Ao invés de manipu-
de quando iniciou a Segunda Guerra lar máquinas em fábricas e escritórios,
Mundial, em 1939. a indústria de consumo americana
A guerra teve um sentido espe- promovia a imagem da dona de casa
cial para as populações femininas tan- feliz, manejando dezenas de parafer-
to dos países Aliados – que reuniu as nálias domésticas. O im da guerra
democracias capitalistas e o socialismo demonstrava que as mulheres haviam
soviético - quanto do Eixo- formado tornado necessárias, por fatores eco-
por Alemanha, Itália e Japão. Ocorreu nômicos, e conjunturais no mundo
um interessante fenômeno de parti- do trabalho. Mas isto não signiicou
cipação das mulheres nas frentes de uma abolição da mistiicação femini-
batalha, alistadas como voluntárias, na. A dicotomia entre a ocupação de
bem como servindo a seus países em novos papeis sociais e a permanência
postos de trabalho. A mão-de-obra de um pensamento conservador que
feminina foi decisiva para impedir o defendia a primazia de funções ditas
estancamento da produção industrial femininas estimulou o surgimento de
nos países envolvidos no conlito bé- relexões feministas. Nos Estados Uni-
lico e garantir um clima de normalida- dos, um exemplo desta relexão foi
de. Um exemplo disso é que durante o livro A Mística Feminina de Betty
a Segunda Guerra Mundial, milhares Friedan. A autora identiicava que as
de mulheres norte-americanas foram mulheres americanas sofriam de “um
conclamadas a ocupar o lugar de seus mal sem nome”, responsabilizado por
maridos no mercado de trabalho para provocar um sentimento constante de
suprir a necessidade de mão-de-obra. insatisfação com a própria vida. Este
No entanto, com o im do conlito a mal, segundo a Friedan, estava rela-
década de 1950, diversos países, em es- cionado com a impossibilidade de que
pecial os Estados Unidos, estimularam as mulheres ambicionassem uma vida
um movimento da população feminina própria, independente das funções de
de “volta ao lar”. Findado o conlito, esposas e mães. Ainda conforme Frie-
mulheres foram convocadas a reas- dan, as americanas assistiram passiva-
sumir seus postos de mães e esposas. mente a um retrocesso na década de

• 312 •
1950. Jovens que nos anos da guerra do que Betty Friedan chamou de “o
sonharam com uma carreira universitá- problema sem nome”: “As que so-
ria, limitaram suas expectativas ao âm- frem desse mal têm uma fome que o
bito doméstico. Para Friedan, nos anos alimento não pode saciar. E esta ân-
que se seguiram à Segunda Guerra, a sia existe em mulheres cujos maridos
cultura americana centrou seus esfor- são médicos internos, funcionários de
ços em torno da mística de realização repartições, ou prósperos doutores e
feminina. Esta mística teve como pila- advogados; em esposas de operários
res o estímulo ao casamento e à ma- ou executivos, ganhando de cinco a
ternidade. Como resultado, no inal da cinqüenta mil dólares anuais. (...) A
década de 1950 o país registrou uma mulher que sofre deste mal, e em cujo
queda da proporção feminina entre a íntimo fervilha a insatisfação, passou
população universitária e um aumen- a vida inteira procurando realizar seu
to do número de ilhos por mulheres. papel feminino. Não seguiu uma car-
(Friedan, 1971) reira (embora as que o façam talvez
No caso das mulheres norte- tenham outros problemas); sua maior
-americana, a escritora notava um re- ambição era casar e ter ilhos. (...) E as
trocesso na emancipação das décadas que terminaram a faculdade, as que so-
anteriores em comparação com o pe- nharam algo além da vida doméstica,
ríodo do pós-guerra. O livro Mística serão as que mais sofrem? Segundo os
Feminina foi mais um indício de que especialistas, sim..” (FRIEDAN, 1971,
a problemática feminina emergia em p. 26-27)
diferentes contextos. Havia, no início A leitura de Betty Friedan teve
dos anos de 1960, uma disputa entre uma repercussão signiicativa entre
as inovações vivenciadas por um con- uma parcela de mulheres no Brasil, es-
tingente de mulheres e a sobrevivência pecialmente aquelas que já haviam es-
dos padrões tradicionais imprimidos tado no exterior por motivos proissio-
pela “mística feminina”. A leitura de nais, acompanhando o marido ou pela
Mística Feminina chamava a atenção situação do exílio. O fato é que rapi-
para a necessidade de “olhar para den- damente o mal sem nome foi identii-
tro”, descobrir qual o signiicado de cado em território brasileiro. A análise
um mal estar desconhecido que atin- de Betty Friedan, embora centrada na
gia a muitas mulheres, especialmente experiência das mulheres norte-ameri-
aquelas pertencentes à classe média, canas, repercutiu na elaboração do dis-
que haviam estudado e muitas vezes curso feminista no Brasil. No prefácio
possuíam uma proissão. Tratava-se do livro, publicado em 1971, Rose Ma-

• 313 •
rie Muraro airmou que “com a costu- Betty Friedan pode ser considerada
meira defasagem, a sociedade brasileira uma feminista liberal, uma vez que seu
também se aproxima dos padrões mais feminismo visava a igualdade jurídica,
elevados de consumo, principalmente política e social para as mulheres.
nas grandes cidades. O problema por Apesar da repercussão obtida,
ela levantado começa, também, a ser o o livro de Friedan não apresentou, em
problema da mulher brasileira urbana”. termos teóricos, uma inovação no pen-
(MURARO, Introdução) samento feminista. Pode-se dizer que
Neste mesmo ano, Rose Muraro o livro reformulou alguns temas já pre-
foi responsável pela vinda de Friedan sentes em O Segundo Sexo (1949), de
ao Brasil. A feminista americana par- Simone de Beauvoir, com o objetivo
ticipou de encontros e promoveu seu de situá-los para o contexto das mu-
livro. Concedeu entrevistas aos meios lheres americanas. A principal inova-
de comunicação. Vale aqui lembrar o ção de seu livro reside em questionar
caso da já antológica entrevista que a a dicotomia entre público e privado,
feminista norte-americana Betty Frie- introduzindo no debate político femi-
dan concedeu ao jornal Pasquim, em nista as experiências pessoais de mu-
sua visita ao Brasil, no início dos anos lheres. (STACEY, 1992)
70. Questionada por intelectuais como
Glauber Rocha, Paulo Francis e Jaguar, Natália Pietra Méndez
a escritora teve que se desviar das far-
Referências e sugestões de leitura
pas e piadas lançadas pelos renoma-
dos jornalistas que insistiam em per- FRIEDAN, Betty. Mística Feminina. Petrópolis: Vozes,
1971.
guntar, utilizando-se da ironia, se ela
havia vindo ao Brasil para questionar PIETRA MÉNDEZ, N. Feminismo, imprensa e poder
no Brasil Contemporâneo. Métis: história & ultura.
“as posições” das mulheres brasileiras. Caxias do Sul: EDUCS, 2007.
(PIETRA MÉNDEZ, 2007) Antes PIETRA MÉNDEZ, N. Com a palavra o segundo sexo:
do lançamento do livro de Friedan no percursos do pensamento intelectual feminista no Brasil
dos anos 1960. 2008. Tese de Doutorado. Programa de
Brasil, a leitura já circulava entre um Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
restrito grupo de feministas brasilei-
ras (MURARO, 2004). Exemplo dis- MURARO, Rose Marie. Memórias de uma mulher im-
possível. 5ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2004.
so pode ser encontrado no primeiro
STACEY, J. Are Feminist Afraid to Leave Home? he
artigo de Carmen da Silva, publicado Challenge of Conservative Pro-Family Feminist. In:
em 1963 na Revista Cláudia, que fazia HUMM, Maggie. Feminisms: a reader. London: Long-
man, 1992.
uma série de alusões à obra Mística Fe-
minina (PIETRA MÉNDEZ, 2008). •

• 314 •
Fronteira e fronteiriços(as) fronteira, em grande medida fronteiras
internacionais. Os aspectos que carac-
O termo fronteira é legitimado terizam o sujeito fronteiriço se dão es-
no século XIX enquanto compreensão pecialmente pela moradia, estadia ou
de limite territorial; logo não pode ser passagem de um lugar para outro. A
compartilhado como uma simples ex- ocupação proissional também marca
pressão, mas como categoria explica- um fator importante enquanto carac-
tiva. Na América, a fronteira torna-se terização do fronteiriço. Fronteiriço
uma ocorrência histórica sob o consig- também é uma classiicação semântica
no de limite territorial, levado a cabo que estabelece disputas, confrontos e
pelas metrópoles europeias. Assim, ela resistências, que ocorrem no arrola-
é estabelecida na grande maioria das mento íntimo na relação passado-pre-
vezes por marcos geográicos, como sente, obedecendo em grande medida
os acidentes naturais (rios, serras, vales, a aspectos culturais, econômicos, polí-
montanhas). ticos e administrativos; são caracterís-
Atualmente há ampla quantida- ticas materiais e simbólicas que estão
de de estudos sobre a fronteira. Em ligadas com os lugares, proissões e as
geral, apresentam um a priori históri- práticas sociais desenvolvidas no local
co evidenciando como a fronteira do de fronteira. A interação no espaço
Brasil foi orquestrada num primeiro habitado é o que toniica a ainidade
momento por Tratados Diplomáticos, entre a fronteira e fronteiriço conigu-
em que militares, políticos e adminis- rando interesses próprios de cada indi-
tradores, geralmente com uma visão víduo ou grupo.
europeia garantiam os parâmetros Diante das breves ponderações
que limitavam os países. Esse modelo sobre a fronteira e o fronteiriço, há que
de abordagem mostra que a fronteira se perceber que esse é um tema que
acaba fundando limites geográicos e vem sofrendo diversas revisões histo-
administrativos e, nessa perspectiva, os riográicas. Como marco, assinalamos
tratados apontam para uma desejada a historiograia brasileira que é, em boa
estabilidade do espaço fronteiriço. parte, herdeira do Instituto Histórico
A denominação de fronteiriço e Geográico Brasileiro (IHGB), com
se dá em grande medida pela viviica- os primeiros modelos de pensar, criar
ção do ser humano no local de frontei- e propagar os conhecimentos da área
ra; não é possível pensar o fronteiriço de História no Brasil. Além de estu-
sem a fronteira: fronteiriço é a situa- dos provenientes do IHGB naquele
ção do sujeito em uma condição de período, há escritos em outras escalas

• 315 •
ou escalões como os militares, em me- a fronteira, com forte inluência do
nor medida diplomatas, embaixadores, norte americano Frederick Jackson
políticos, componentes de comissões Turner, seja para reforçar, seja para
demarcadoras, geógrafos, professores criticar a teoria por ele desenvolvida.
de geograia, professores de história, A teoria de fronteira de Turner é um
sociólogos, juristas, historiadores, iló- dos marcos signiicativos da revisão
logos, religiosos jesuítas, e outros. historiográica mundial sobre o as-
A história sobre a fronteira que sunto, desenvolvida no inal do século
aparece num primeiro momento no XIX, cuja preocupação é a conquista
Brasil possui um cunho técnico e que do oeste norte americano. Ao reletir-
explora especialmente os trabalhos de mos em torno da deinição turneriana
demarcações e os tratados a que eles de fronteira, é crucial entendê-la sob
obedeciam. Essa especiicidade se dá duas perspectivas: como uma divisão
praticamente com relatórios sobre ex- administrativa e política propriamen-
pedições, viagens, exploração de natu- te dita (border), e a outra, como a ideia
ralistas, entre outras formas descritivas de conquista e expansão (frontier), que
da fronteira. Uma posição que altera se apresenta em movimento, ou seja,
a coniguração do modelo de escrita, quando há um espaço a ser explorado.
perpassando as demarcações, os ma- A tese de fronteira de Turner adquire
nuais e os relatórios para, a partir daí, status de paradigma universal. A teoria
assegurar uma discussão teórica, se dá norte-americana sobre a fronteira ba-
em 1956 com o historiador Renato seada na tese de Turner foi explorada
Mendonça, sob o título Fronteira em exaustivamente, bem como produziu e
marcha; um texto pouco consultado dominou a historiograia estaduniden-
na atualidade, mas que teoriza a fron- se, impactando ainda o ambiente aca-
teira sob a perspectiva da geopolítica dêmico fora dos Estados Unidos.
brasileira, e em cujo interior aparecem Ao mesmo tempo em que o pa-
os homens da fronteira, os fronteiri- radigma buscava maior airmação, ele
ços. Todavia, não negamos aproxima- criou um grande número de críticos
ções ou investidas teóricas dos autores que fez com que a trajetória disciplinar
que escreviam seus relatórios, mas não tomasse outro curso, justamente por
alcançaram resultados em expressão que a tese não respondia aos anseios
para a historiograia da fronteira como de se compreender a experiência his-
os escritos por Mendonça. tórica da fronteira em outros países. A
Outros autores, mesmo antes partir disso houve um deslocamento
da década de 1950, escreveram sobre da interpretação da tese provocando

• 316 •
crises e a posterior fragmentação na utopia de Oliveira Vianna, procurando
área. Nos Estados Unidos, isso repre- mostrar como o autor atua para tentar
sentou a mudança da explicação da legitimar seu texto. Para Carvalho, ao
tese de fronteira de Turner que passa negar a inluência teórica de Turner,
de um paradigma que desde o inal do Vianna busca alento em seus próprios
XIX signiicou a compreensão sobre valores paternalistas, uma vez que sua
as fronteiras do mundo para uma ex- família traz consigo quatro gerações de
plicação “regional” da fronteira nor- fazendeiros, e essa experiência históri-
te-americana na segunda metade do ca se difundiu e se propagou ao longo
século XX. Turner de certa forma cria das gerações, criando uma perspecti-
um fronteiriço que é o pioneiro, o des- va comparativa em relação aos “tipos
bravador, e os outros povos, como os sociais”. Isso ‘talvez’ o tenha levado a
indígenas aparecem como coadjuvan- tecer uma análise semelhante à de Tur-
tes dessa história, quando de fato eram ner.
habitantes seculares daqueles espaços. A Marcha para o Oeste, de Cas-
Da historiograia brasileira que siano Ricardo, publicado em 1942,
teve impulsos turnerianos, Oliveira coloca-se como divulgadora do pro-
Vianna e sua obra Evolução do povo grama de governo da República Nova
brasileiro, de 1923, na qual os bandei- que possui inclusive o mesmo nome:
rantes são considerados superiores aos A Marcha para o Oeste. A referida
índios pode ser lembrada como exem- obra defende a ocupação do Oeste,
plo. Essa interpretação busca, na rea- incentivando a expansão das fronteiras
lidade, inserir a formulação turneriana agrícolas, embora o autor evidencie-a
em oposição à valorização da socieda- como um plano político esta proposta
de oligárquica brasileira, por parte de já estava intrínseca na obra de Turner.
alguns intelectuais; visto que na Pri- Cassiano Ricardo busca explicar a rea-
meira República brasileira, o domínio lidade do povo brasileiro; em seu estu-
oligárquico era preponderante. A pers- do percebe-se cada brasileiro como um
pectiva adotada em Evolução do povo novo bandeirante, com caráter demo-
brasileiro sofreu críticas de outros au- crático, por isso sendo capaz de guiar
tores, posto que a semelhança das aná- a sociedade.
lises entre Turner e Vianna é grande, A obra de Gilberto Freyre Casa
embora o nome do norte americano Grande e Senzala, de 1933 apresenta a
não apareça na obra de Vianna. Crítica sociedade brasileira como uma ação
recente ao texto de Viana é explicitada de “amalgamento de raças e culturas”,
por José Murilo de Carvalho que pu- o que vai icar mais evidente em obra
blica em 1991, o artigo intitulado A seguinte intitulada Interpretação do Bra-

• 317 •
sil, de 1947. Nesse livro, o autor relete mento. Na obra do autor de Caminhos
sobre “fronteiras e plantações”, mo- e Fronteiras, aparece a aproximação dos
mento em que evidencia os mestiços postulados de Turner, na medida em
como um “tipo social” que deu maior que ambos indagam o meio ambien-
mobilidade na ocupação de novas áre- te e o contato com os costumes indí-
as e foi considerado pelo autor como genas que, ao mesmo tempo em que
“moradores das fronteiras do Brasil”. diz que é exótico, evidencia a distância
Essa perspectiva mostra a inluência dos hábitos costumeiros do homem
de Turner que posteriormente é refe- branco europeu transformando-os ca-
renciado. Os sertanistas e bandeirantes racteristicamente em novos homens, a
são percebidos por Freyre como “ho- exemplo dos índios, facilitando a mo-
mens da fronteira” por terem em seu bilidade, fazendo a interiorização do
modus vivendi a “simplicidade” dos in- território, e com isso trabalhando na
dígenas, em que as práticas sociais são expansão da fronteira.
assimiladas por homens da fronteira Mais recentemente autores
e colocadas em uso como uma forma como Vianna Moog, Otávio Guilher-
de adaptação e sobrevivência ao meio me Velho e José de Sousa Martins, pos-
ambiente hostil. Os confrontos entre sibilitaram a elaboração de tessituras
etnias e a miscigenação aparecem na entre suas obras e a teoria turneriana;
obra de Freyre como um afazer na embora se reconheçam as diferentes i-
construção do homem da fronteira. gurações sociais e épocas de percepção
Essas características mostram como desses trabalhos em relação aos cita-
Freyre interpreta a formação social do dos anteriormente. José de Souza Mar-
Brasil que vai dos extremos do estra- tins fornece elementos importantes
nhamento e do conlito até ao conví- ou para designar a fronteira, ou para
vio e a amizade dos povos. O soció- apresentá-las com uma função dife-
logo brasileiro insere novos elementos renciadora durante as últimas décadas
no decorrer de sua obra, como é o caso do século XX no Brasil, especialmen-
do negro e do índio como protagonis- te quando sua pesquisa vai denotar a
tas. Essa característica aponta para a fronteira humana, com a violência e o
compreensão da fronteira como um conlito agrário sob a perspectiva da
complexo espaço em movimento, e vítima, especialmente pequenos cam-
a ocorrência de novos “tipos sociais” poneses e indígenas.
como sujeitos fronteiriços. Sobretudo nas últimas décadas
Já Sérgio Buarque de Holanda do século XX, as críticas ao modelo
vai compreender a fronteira como um do pioneiro apenas como detentor do
espaço luído e em contínuo movi- progresso e responsável pelo expan-

• 318 •
sionismo, sem a percepção de outros os pesquisadores estão inseridos na
atores históricos começam a surgir em vivência de seu campo de análise. A
várias áreas de estudo. A Sociologia e especiicidade de viviicar um campo
a Antropologia despontam em grande de pesquisa aumenta sobremaneira as
medida nesse primeiro momento. As condições de analise, mostrando a plu-
novas frentes de colonização agrária ralidade dos estudos a serem explora-
são os locais de maior concentração dos, uma vez que abrangem a história
dessas análises, como por exemplo, social e cultural com uma análise pro-
a demanda para a Amazônia. Otávio funda dos movimentos sociais que ali
Guilherme Velho e José de Souza Mar- ocorrem, perpassando por compreen-
tins, e Darcy Ribeiro, apresentam no- sões diversas da formação social na/da
vas teorias fronteiriças tanto no campo fronteira e da condição dos fronteiri-
da materialidade, bem como em rela-
ços em uma situação de fronteira.
ção às formas simbólicas da ocorrên-
A fronteira é um campo de prá-
cia da fronteira, especialmente com a
ticas sociais e culturais cotidianas com
introdução de novos atores sociais,
amplo e diversiicado movimento hu-
como o sujeito fronteiriço.
mano que se mantêm desde os primei-
Não é possível conirmar ou ne-
ros contatos humanos. Demonstra a
gar totalmente a inluência conceitual
dinâmica do sentimento de diferentes
de Turner na maioria dos historiadores
povos, que compõem uma série de ca-
brasileiros que citamos, mas as particu-
laridades são evidentes. Por outro lado, racterísticas que envolvem as nações,
reconhecem-se as novas dinâmicas uma gama de fatores sociais que se re-
que os historiadores denotam sobre a produzem no espaço fronteiriço. Com
fronteira. É uma historiograia que em base nesse cabedal de possibilidades
grande parte, provém de fontes da se- que suas analises proporcionam é que
gunda metade do século XX e início a fronteira se mostra como um cam-
do XXI. A categoria fronteira passa a po de estudos privilegiados. Contudo,
ser entendida como um termo plural, não basta dizer que se compreende a
permeado de signiicações, sentidos e fronteira como um espaço de duali-
funções, que ultrapassam as fronteiras dades, ou referenciá-lo como artifício
políticas, econômicas, administrativas e baseado apenas em estratégias políticas
geográicas. e de desenvolvimento que obedecem a
Muitas dessas análises não são processos pensados, elaborados e apli-
elaboradas apenas sobre a frontei- cados por autoridades. Consideramos
ra, mas a partir da fronteira, ou seja, mais propício dizer que a dinâmica dos

• 319 •
povos nas fronteiras é operacionaliza- pesquisas se dá sobre a fronteira e não
da mutuamente. a partir da fronteira, e esse é um fator
Atualmente a categoria frontei- que contribui sobremaneira para a prá-
ra ampliou sobremaneira suas designa- tica da exclusão, no mundo acadêmico,
ções, pois encontramos fronteiras em da mulher, do pobre, do negro, do ho-
praticamente tudo sobre o que busca- mossexual, do bandido, entre outros.
mos estabelecer análises. A discussão O desenho da historiograia da fron-
atinge a diversidade dos estudos histó- teira contempla uma ambiência dife-
ricos, seja no campo social ou cultural, renciada, mas ao mesmo tempo, busca
e colabora com perspectivas como as como delineador de suas pesquisas um
fronteiras religiosas, fronteira de gêne- sujeito cartesiano e não a diversidade
ro, fronteira de trabalho, fronteira de étnica, cultural, social, religiosa ou de
manifestações culturais, fronteiras et- gênero.
nográicas, fronteiras dos constructos Esses pontos são importantes
sociais, ou seja, onde é possível pen- não apenas para a história da fronteira
sar uma relação dialética pautada em ou para a história de gênero, mas, so-
perspectivas ambíguas e ambivalentes bretudo, para entendê-la – a fronteira
é possível operacionalizar os amplos - sob a perspectiva histórica, evitando-
sentidos da categoria fronteira. -se naturalizar a condição ali existente
O mundo fronteiriço, compre- entre homens e mulheres. A naturali-
endido por nós como a ambiência da zação é, por excelência, uma forma de
fronteira onde as pessoas exercem suas reproduzir a dominação do homem,
práticas sociais e culturais, é um lugar conforme nos alerta Pierre Bourdieu
que possui características masculinas em “A dominação masculina”. É ne-
muito fortes. Embora se reconheça cessário reletir sobre a condição de
que com a abertura historiográica gênero, pois não há uma única iden-
baseada no advento da Nova Histó- tidade para as mulheres; isso ajuda na
ria e na trilogia “novos objetos, novos compreensão da diversidade, ao longo
problemas e novos métodos”, a nova da história, das diferentes condições fe-
maneira de pensar a História incluiu mininas. Os estudos de gênero tornam
deinitivamente a mulher no seio de possível elaborar análises associadas
todo conteúdo historiográico, e com com outras categorias que mostram as
a fronteira não é diferente. A frontei- desigualdades dentro do próprio meio
ra não é necessariamente um local de feminino, como classe e raça, ou seja,
profusão das suas próprias experiên- entre as mulheres há índias, brancas,
cias históricas; a grande maioria das árabes, pobres, ricas, judias, negras.

• 320 •
E essa característica, na fronteira em tação da vontade restritiva de marcos
grande medida passa despercebida, divisores. As perambulações realizadas
muito embora a narrativa oral feminina nas áreas limítrofes apoiam essa air-
possua riqueza maior de detalhes a do mação, embora seja possível distinguir
que dos homens. aqueles movimentos que não implicam
A partir da perspectiva plural em migração deinitiva daqueles que se
que a fronteira oferece para as análises coniguram como trânsitos frequentes
históricas podemos pensar a deinição ou eventuais e que conferem identi-
ou a construção de um novo sujeito dade a própria fronteira. A fronteira é
fronteiriço que nasce com as novas limite, sem abandonar a condição de
propostas inseridas nos diferentes possibilidade.
campos de conhecimento, represen-
tando caracteres plurais de vivência Eudes Fernando Leite
Leandro Baller
histórica. Ou seja, o ator que está em
diálogo com uma memória histórica Referências
produzida na longa duração encontra-
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de
-se também no conlito na construção Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
identitária do presente, vivenciando CARVALHO, José Murilo de. A utopia de Oliveira Vian-
e entendendo a fronteira como uma na. In: Revista Estudos Históricos. São Paulo, vol. 4, nº.
7, 1991, p. 82 – 99.
ampla categoria histórica que permeia
tanto o ambiente fronteiriço quanto os FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação
da família brasileira sob o regime da economia patriarcal.
próprios sujeitos fronteiriços. 49ª Ed. São Paulo: Global, 2004.

É importante pontuar que a ____. Interpretação do Brasil: aspectos da formação so-


fronteira vem sendo considerada uma cial brasileira como processo de amalgamento de raças e
culturas. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
ambiência, ou seja, uma localidade na
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras.
qual os limites balizam procedimentos 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
e ações tanto quanto possibilitam ati-
KNAUSS, Paulo (org.). Oeste americano: quatro ensaios
tudes e impulsionam ações no sentido de história dos Estados Unidos da América, de Frederick
de dotar as restrições em possibilida- Jackson Turner. Niterói – RJ: EDUFF, 2004.

des de “avançar” sobre a fronteira. As MENDONÇA, Renato. Fronteira em marcha: ensaios de


geopolítica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Americana,
restrições que foram pensadas no con- 1956.
texto da separação de valores e normas
RAGO, Margareth. Ser mulher no século XXI: ou Carta
de um lugar em relação ao outro som- de Alforria. In: VENTURI, Gustavo; RECAMÁN, Ma-
risol; OLIVEIRA, Suely (Org.). A mulher brasileira: nos
breiam inúmeras práticas sociais que espaços público e privado. 1ª ed. São Paulo: editora Fun-
parecem mostrar claramente a limi- dação Perseu Abramo, 2004, p. 31-42.

• 321 •
RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste: a inluência
da ‘bandeira’ na formação social e política do Brasil. 3ª
ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.

VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e


campesinato: um estudo comparativo a partir da fronteira
em movimento. Rio de Janeiro: Difel, 1979.

VIANNA, Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 2ª ed.


São Paulo: Nacional, 1933.

Sugestões de leitura

AUGÉ, Marc. Por uma Antropologia da Mobilidade.


Maceió: UNESP & UFAL, 2010.

GRIMSON, Alejandro. Pensar Fronteras desde las Fron-


teras. Nueva Sociedad, nº 170. Noviembre-Deciembre.
Honduras, 2000.

MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do


outro nos conins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997.

MOOG, Vianna. Bandeirantes e pioneiros. 12ª ed. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

OSORIO, Helen. Et alli (Orgs).Praticas de Integração


nas Fronteiras: temas para o Mercosul. Porto Alegre:
EdUFRGS, Instituto Goethe/ICBA, 1995.

• 322 •
Galeno e Hipocrates

En el mundo clásico, al igual


que en la tradición judeocristiana,
al explicar la creación del mundo se
considera que la mujer procedía del
hombre, conceptualizándose una ima-
gen negativa de la mujer, considerada
como portadora y origen de muchos
de los males que padecía la humani-
dad. Esta cuestión hay que tenerla en
cuenta para entender muchas de las
deiniciones, descripciones y signiica-
dos que en esta época se hicieron de
la anatomía y isiología femenina y de
todos los procesos relacionados con la
salud y la enfermedad de las mujeres
(MOSSE, 1990)
Dos de los más destacados pre-
cursores de la medicina son Galeno e
Hipócrates, que son considerados los
padres de la medicina moderna. En
este sentido hay que destacar que sus
escritos fueron los manuales que se
utilizaron durante muchos siglos para
la formación de los profesionales de la
medicina.
Hipócrates (460 -370 AC) fue
un médico griego que desarrolló su
trabajo durante el denominado siglo
de Pericles, una época de la historia
de Atenas en la que ésta alcanzó su
máximo esplendor en la historia de la
Grecia clásica. Ha sido uno de los re-
ferentes más destacados de la historia
de la medicina y en la actualidad, para
obtener el título de medicina, se tiene

• 323 •
que asumir el denominado Juramento en mantener relaciones sexuales para
Hipocrático. que el útero fuera irrigado por el se-
Hipócrates cambió las creencias men (LÓPEZ, 2006).
imperantes de que la enfermedad era También la teoría del útero er-
un castigo de los dioses y que solo ellos rante fue mantenida por Hipócrates y
tenían la capacidad para curar. Estab- describía el útero a semejanza de un
leció la existencia de cuatro humores, animal sobre el que la mujer tenía esca-
sangre, lema, bilis negra y bilis ama- so control. El útero tenía la capacidad
rilla, y airmó que el desequilibrio entre de desplazarse y según hacia donde
ellos era el causante de las enfermeda- migrara se producían diferentes enfer-
des. medades. Por ejemplo, si se desplazaba
Los textos médicos que abordan hacia el hipocondrio producía sofocos.
de manera empírica por primera vez lo Galeno de Pergamo (130-200)
relativo a la salud de las mujeres son los fue un médico griego, aunque parte
que aparecen recogidos en el denomi- de su vida discurrió en Roma. Sus es-
nado Corpus Hipocrático, donde apa- critos dominaron la medicina europea
recen tratados de ginecología. Se agru- durante más de diez siglos. La inluen-
pan en tres series: Las Enfermedades cia de Hipócrates, Platón y Aristóteles
de las mujeres I y II. Sobre las mujeres es visible en toda su trayectoria (LÓ-
estériles; Generación, La naturaleza del PEZ, 2002). Tal como sostiene López,
niño y Enfermedades IV; Naturaleza Hipócrates es el referente de Galeno,
de la mujer, Sobre la superfetación, So- estando sus teorías sobre anatomía,
bre la escisión del feto y Enfermedades isiología y patología de las mujeres
de las jóvenes (LÓPEZ, 2006). “unidas a los conceptos y las nocio-
Para Hipócrates existía una di- nes fundamentales de la imagen hipo-
ferenciación entre lo masculino y lo crática sobre la mujer” aunque fueron
femenino, así consideraba que la car- transformadas para “servir a sus pro-
ne de la mujer era más porosa, húme- pios contemporáneos con una patina
da y estaba llena de luidos que eran ideológica y retórica” (LÓPEZ, 2006,
eliminados durante la menstruación y p. 907).
durante el embarazo, al convertirse la Para Galeno la anatomía de las
sangre en alimento del feto o durante mujeres y de los hombres es similar,
la lactancia a través de la leche mater- solo que, en el caso de las mujeres, los
na. En consonancia con este plantea- órganos están en posición inversa a la
miento, el tratamiento que se aconse- de los hombres. Así establece que en
jaba para los sofocos de las mujeres, las mujeres los genitales externos del
cuya causa era un útero seco, consistía hombre están doblados hacia dentro:

• 324 •
el escroto sería el útero, los testículos Galeno la semilla del hombre es más
serian los ovarios, el pene sería el cuello poderosa que la de las mujeres. En
del útero y el prepucio sería los genita- coherencia con los planteado sobre los
les externos de las mujeres. Se utiliza el órganos genitales, piensa que puesto
símil de los ojos de topo, en el sentido que los órganos femeninos son más
de que tienen la misma estructura que imperfectos que los masculinos, la se-
los ojos de cualquier animal, pero no le milla que producen las mujeres es me-
sirven para ver, son imperfectos. De la nos fuerte que la del hombre. La mu-
misma manera los órganos sexuales y jer tiene los testículos más pequeños e
reproductivos femeninos son la versi- internos, por lo que el semen es más
ón defectuosa de los masculinos. Esta ligero, frio y húmedo mientras que el
inversión anatómica demuestra que las semen del hombre es más espeso y
mujeres son seres imperfectos, la per- cálido. Esta es una de las principales
fección está en el hombre y la mujer diferencias con el planteamiento de
tiene una distribución anatómica equi- Aristóteles, que sostenía la teoría de la
vocada con respecto a la de los hom- semilla única: solo existe una semilla la
bres (LAQUEUR, 1994). el hombre, la mujer no aporta semilla a
También Galeno, al igual que la concepción (LAQUEUR, 1994).
Hipócrates, describe la existencia de Hipócrates se adhiere a la pan-
humores y señala que la salud está ase- génesis, en el sentido de que cada
gurada siempre que exista un equilibrio progenitor aporta algo en el acto de
en los mismos. El desequilibrio de los engendrar otro ser vivo. Pero no con-
humores produce enfermedades que sideraba que el hombre tenía la semilla
pueden afectar al útero y su afectación más fuerte sino que consideraba que
inluye en otras estructuras del cuerpo tanto el hombre como la mujer pueden
femenino. La histeria (enfermedad del producir esperma fuerte o débil. Si los
útero) se considera como la más grave dos producen esperma fuerte nacerá
de las afecciones de las mujeres (THO- un varón, si los dos producen esperma
MASSET, 2000). débil será una hembra la que nacerá.
Tanto para Galeno como para En deinitiva, los escritos de
Hipócrates se necesitan dos semillas, Hipócrates y Galeno han sido durante
una del padre y otra de la madre para muchos siglos los referentes para los
engendrar un ser humano. Pero mien- profesionales de la salud y sus plantea-
tras que para Hipócrates cada progeni- mientos sobre la anatomía, isiología, y
tor aporta algo al nuevo ser y no asig- las enfermedades de hombres y muje-
na las semillas fuertes a los hombres y res han sido verdades incuestionables
las semillas débiles a las mujeres, para que relejaban y justiicaban la posici-

• 325 •
ón social de los hombres en sociedades Margueritte (1866-1942), publicado no
marcadamente patriarcales. ano de 1922, cuja personagem princi-
pal - Monique Lerbier – dará o mote
Manuel Linares Abad para a caracterização da mulher mo-
derna. Na icção, Monique é uma jo-
Referencias y indicaciones vem da alta sociedade francesa, educa-
de lectura da de forma tradicional para se tornar
LAQUEUR, homas. La construcción del sexo. Cuerpo
numa boa esposa e mãe de família, mas
y género desde los griegos hasta Fred. Madrid: Ediciones que, ao descobrir a traição do noivo,
Cátedra. Colección Feminismos, 1994.
começa a trabalhar, recusa o casamen-
LÓPEZ, Mercedes. La transmisión a la Edad Media de la to de conveniência arranjado pelos
ciencia médica clásica. En: CONDE, Elena et al. Espacio
y tiempo en la percepción de la Antigüedad Tardía. Mur- pais, adopta atitudes arrojadas e sexu-
cia: EDITUM, p. 899-911, 2006. almente ambivalentes, altera o seu vi-
LÓPEZ, Mercedes. Galeno. Procedimientos Anatómicos. sual, multiplica aventuras galantes, fre-
Libros I-IX. Madrid: Biblioteca Clásica Gredos, 2002. quenta cabarets e dancings da moda,
MOSSE, Claude. La Mujer en la Grecia Clásica. Madrid: experimenta o ópio e a cocaína. Consi-
Editorial Nerea, 1990. derado indecoroso, o romance La Gar-
THOMASSET, Claude. La Naturaleza de la Mujer, en çonne foi responsável por um dos maio-
Historia de las Mujeres. 2. La Edad Media. Madrid: res escândalos literários do século XX,
Taurus, 2000.
tendo sido incluído, pelo Vaticano, no
• Index dos livros proscritos e proibido
em vários países. A campanha difama-
tória deu, no entanto, grande publici-
Garçonne
dade ao livro, convertendo-o num êxi-
to de vendas, tendo sido traduzido em
O vocábulo garçonne é um neolo-
várias línguas e adaptado ao teatro e ao
gismo criado, em 1880, pelo escritor e
cinema (BARD, 1998, p. 65-67). Em-
crítico de arte Joris-Karl Huysmans
bora criticado, o modelo garçonne divul-
(1848-1907), mas é nos Anos Vinte
ga-se por todo o mundo, apoiado pela
que se divulga para identiicar a mulher
imprensa periódica e pelo cinema, em
moderna, de aparência andrógina e de
estreita articulação com a propaganda
espírito independente, traduzidos no
de produtos cosméticos e artigos de
corte de cabelo curto, no vestuário de
moda. Deinidas pelos críticos mais
linhas direitas e numa ilosoia de vida
acérrimos como “nucas rapadas, saias
que se afasta do modelo vigente da es-
pelo pescoço e decotes pelo joelho”
posa, mãe e dona de casa (MARQUES,
(MARQUES, 2004, p. 22), as garçonnes
2004, p. 17). Tem por base o romance
chocaram a sociedade do seu tempo,
homónimo do escritor francês Victor

• 326 •
sobretudo os meios mais conservado- moda na formação das representações
res, assumindo, em alguns países, de- e os inícios do modernismo (BARD,
signações especíicas, como é o caso de 1998, p. 9-10; 16). Estes traduzem-se
lappers, cabelos à Joãozinho e melindrosas, num novo tipo de silhueta, estilizado e
respectivamente nos Estados Unidos esguio, em substituição das formas
da América, em Portugal e no Brasil opulentas, de forte cunho maternal,
(MARQUES, 2007, p. 26, 54; CAR- que corporizavam os cânones da bele-
DOSO, 2010, pp. 212-218). “De cabe- za da mulher da segunda metade do
linho curto, a garçon, lábios em forma século XIX (VAQUINHAS, 2013, p.
de coração, pega-rapaz caindo sobre a 241-242). A formalização do novo ide-
testa, roupas leves e transparentes, al físico acompanha-se de cuidados
saias curtas e decotes longos, às vezes com o bem-estar (prática de algumas
com pequeno chapéu cloche, às vezes actividades desportivas, contestação
sem ele, sedutora sempre”, a melindro- do corpete ou da cauda nos vestidos,
sa, personagem criada pelo caricaturis- masculinização do vestuário, preocu-
ta J. Carlos, em 1920, será consagrada pação com a gordura e a alimentação,
por Benjamim Costallat no seu roman- entre outros aspectos) que mobilizam
ce Mademoiselle Cinema (1923), versão a opinião pública. Os higienistas mani-
brasileira do famoso La garçonne e o festam-se, de um modo geral, favorá-
maior sucesso editorial da República veis às mudanças em curso, tendo o
Velha (RESENDE). Embora os vocá- belo adquirido, no inal do século XIX,
bulos referidos remetam para todo um conotação médica, sendo entendido
visual, é o “escandaloso corte de cabe- como o culminar da saúde (VAQUI-
lo” o principal elemento identiicador NHAS, 2013, p. 255). O uso de calças
da mulher moderna, por dar visibilida- pelas mulheres ou da saia-calção pela
de à masculinização feminina, equipa- biciclista, será igualmente motivo de for-
rando a mulher ao sexo oposto. Con- te controvérsia, em vários países, di-
fundindo as identidades sexuais, o fundindo-se já nos Anos Vinte, por
cabelo à la garçonne era associado a ati- iniciativa sobretudo de Coco Chanel.
tudes contestatárias que poderiam pôr De forma a corresponder às exigências
em causa o tradicional papel das mu- das new women, costureiros famosos,
lheres na sociedade, aigurando-se, por como Poiret e Madeleine Vionnet, en-
isso, subversivo e potencialmente peri- tre outros, criariam roupas mais sim-
goso. As primeiras mudanças nos pa- ples e cómodas que facilitassem “mo-
drões estéticos femininos antecedem a vimentos ágeis e vigorosos”
I Grande Guerra (1914-1918), coinci- (VAQUINHAS, 2011, p. 66). A estas
dindo com a crescente importância da alterações da aparência feminina não

• 327 •
são alheias a progressiva entrada das mento dos vestidos e a “descoberta
mulheres no mercado de trabalho fora das pernas” constitui uma das marcas
do domicílio, a sua maior presença no distintivas do período, a qual vem dar
espaço público, o aumento da produ- uma maior liberdade de movimentos à
ção literária feminina, os inícios dos mulher. Os modelos e as referências
movimentos feministas e o acesso à estéticas são, em geral, de inspiração
instrução, dotando-as de meios que francesa (SCHPUN, 1997, p. 85;
proporcionam novas conquistas, fenó- PRIORE, 2006, p. 258), apresentando-
menos que se aceleram a partir da I -se vestidos de linhas direitas e luidas,
Grande Guerra. Relectem igualmente até ao joelho. Os decotes também se
uma nova identidade e o questionar tornam mais generosos, sobretudo no
das relações e dos papéis de cada sexo vestuário da noite. Acessórios sabia-
na sociedade, com destaque para a va- mente escolhidos, em particular, cola-
lorização dos sentimentos nas relações res compridos de pérolas, de duas vol-
conjugais (SCHPUN, 1997, p. 36), e o tas; sapatos de salto com biqueira em
colocar em causa a maternidade como bico de pato e maquilhagem de cores for-
objectivo prioritário das relações ínti- tes e provocantes completam a perso-
mas. É nos loucos Anos Vinte, no rescal- nagem. Em voga entra também o
do de um conlito sem precedentes à smoking, substituindo-se os vestidos
escala mundial que abalou todos os pelo uso de calças, gravata e bengala,
campos da vida económica e social, indumentária que vem colocar a ques-
que se airmam as garçonnes. Com o seu tão da virilização feminina por se tratar
cabelo curto, corpos esbeltos e seios de um traje tipicamente masculino. A
pequenos, trajes ligeiros, sapatos có- exposição do corpo vai obrigar a cui-
modos, frequentadoras dos novos lo- dados redobrados com a aparência im-
cais da boémia nocturna, adeptas de pulsionando a prática de alguns des-
um modelo de vida cosmopolita, sim- portos (ténis, natação...) e a frequência
bolizam toda uma mudança de menta- das praias, as indústrias cosmética e
lidade relativamente à mulher burguesa farmacêutica e a comercialização dos
tradicional, ao mesmo tempo que ex- seus produtos, bem como o negócio
primem o optimismo e a esfuziante dos salões de cabeleireiro ou de beleza,
alegria de viver dos anos do pós-I profusamente publicitados nas páginas
Grande Guerra. A década traz o des- dos periódicos, factores decisivos no
nudamento de partes do corpo femini- nascimento da sociedade de consumo
no antes encobertas, as quais se mos- e na democratização da moda (VA-
tram e exibem, adquirindo uma nova QUINHAS, 2004, p. 9; BARD, 1998,
funcionalidade. A redução do compri- p. 48). Produtos capilares e de beleza,

• 328 •
dietas para emagrecer, sabonetes, lo- ou ídolo negro, sendo este último consu-
ções, cremes, depilatórios, perfumes, mido em lugares próprios, as fumeries.
colorações de cabelo, permanentes indes- A vertigem da velocidade afecta as re-
frisáveis prometiam a sedução de visuais lações, multiplicando-se os lirts passa-
modernos e o combate aos sinais do geiros. A homossexualidade feminina
envelhecimento. Associada ainda à mu- expande-se e a ambiguidade das identi-
lher moderna está a condução de auto- dades sexuais permanece como uma
móveis, chegando algumas a tirar o constante dos loucos Anos Vinte, ca-
brevet e a pilotar aviões. Ser garçonne im- racterística perceptível nos escritos de
plicava, no entanto, capacidade econó- temática lésbica de Judith Teixeira e de
mica e alguma instrução, correspon- Ercília Nogueira Cobra, autoras que
dendo esse modelo, sobretudo a uma escandalizaram o moralismo oicial de
minoria de mulheres pertencentes em Portugal e do Brasil, com impacto na
regra à classe média alta, com possibili- apreensão de algumas das suas obras
dade de cuidar da aparência, de fre- (MARQUES, 2006, p. 91; CARDOSO,
quentar os lugares da moda, de ter 2010, p. 214-216). Apesar do carácter
acesso à cultura francesa ou estar aten- excepcional dos comportamentos des-
ta às novidades americanas. Nos anos viantes, a ousadia da garçonne e a avalia-
do pós-guerra, elegância e boémia ten- ção negativa que é feita das suas atitu-
dem a coincidir, apropriando-se a gar- des suscitam reações, organizando-se,
çonne do universo da noite, até então em vários países, associações de defesa
estritamente masculino. Nos nightclubs dos costumes cristãos que visam ga-
ou nos dancings entregam-se aos ritmos rantir a decência e a moralidade, no
vibrantes do jazz, às coreograias atre- fundo, assegurar a castidade da mulher
vidas das novas danças (charleston, fox- até ao casamento e a concepção cristã
trote, shimmy, one-step...), bailam coladas de família. Contudo, se os cabelos cur-
ao par, removidos muitos dos obstácu- tos e as roupas simpliicadas entraram
los do vestuário feminino do passado. nos gostos femininos, já no campo dos
O factor moda leva também muitas comportamentos as alterações foram
mulheres a fumar, fenómeno a que as mais tímidas: casar permanece como o
tabaqueiras não icam indiferentes, sonho da garçonne e o casamento como
criando marcas de tabaco destinadas a garantia da sua sobrevivência e reco-
ao sexo feminino ou servindo-se da nhecimento social. No im da década,
imagem da mulher moderna na publi- em especial a partir da crise de 1929, o
cidade. Também associado à vida noc- visual garçónico começa a perder impor-
turna está o consumo de estupefacien- tância, regressando os cabelos compri-
tes: a morina, a cocaína ou côca, o ópio dos e modas mais femininas, em estrei-

• 329 •
ta articulação com o retorno das SCHPUN, Mônica Raisa, Les années folles à São Pau-
lo. Hommes et femmes au temps de l´explosion urbaine
ideologias conservadoras e os anseios (1920-1929), Paris, L´Harmattan, 1997.
de ordem e estabilidade. Enim: prota-
VAQUINHAS, Irene, “Prefácio”, Entre garçonnes e fadas
gonista central dos Anos Vinte, as gar- do lar. Estudos sobre as mulheres na sociedade portugue-
çonnes marcaram a década, introduzin- sa do século XX. Coimbra: Faculdade de Letras da Uni-
versidade de Coimbra, 2004, p. 7-13.
do novas identidades portadoras da
noção de liberdade, tanto nas atitudes VAQUINHAS, Irene, “Alguns aspectos da elegância e da
beleza femininas nos inais do século XIX”, “Senhoras e
como nos costumes, não desprovidas mulheres” na sociedade portuguesa do século XIX, 2ª edi-
de consequências políticas, tendo dado ção, Lisboa, Editorial Colibri, 2011, p. 53-79.

grande visibilidade à mulher no espaço VAQUINHAS, Irene, “Quando a gordura começou


a deixar de ser formosura… Os caminhos de um novo
público, antecipando a sua adaptação paradigma estético nos inais do século XIX-inícios do
às novas exigências proissionais. Essa século XX”, Revista de História das Ideias, O corpo, vol.
33, Instituto de História e Teoria das Ideias, Faculdade de
foi uma das suas grandes conquistas... Letras da Universidade de Coimbra, 2012, pp. 241-259.

Irene Montesuma Vaquinhas •

Referências e sugestões de leitura Gênero


BARD, Christine, Les Garçonnes. Modes et fantasmes
des Années folles. Paris: Flammarion, 1998. O conceito gênero, no sentido
político que se conhece na atualidade,
CARDOSO, Elizangela Barbosa, Identidades de gênero,
amor e casamento em Teresina (1920-1960), Niterói, surgiu com força na segunda metade
2010 (Tese de doutorado). http://www.historia.uf.br/ dos anos 1980, tendo sido construído
stricto/td/1218.pdf Acesso em 02/08/2013.
coletivamente e de modo desaiador,
CASTALLAT, Benjamim, Mademoiselle Cinema, Rio pela colaboração de algumas teóricas
de Janeiro: Casa da Palavra,1999. http://books.google.
pt/books?id=hkbafIPUk30C&pg=PA9&lpg=PA9&d-
do feminismo, que percebiam a vulne-
q=mlle+cinema+Benjamin+Costallat&source=bl&ot- rabilidade dos termos mulher ou mu-
s=rddVf7iJUc&sig=D8tdBpfOpFbDfhmKW6Ihisgn-
jaU&hl=pt-BR&sa=X&ei=700SUrOUCOXR7AbrI-
lheres, ao trazerem em seu bojo uma
CwAg&ved=0CEYQ6AEwAw#v=onepage&q=mlle%20 força de legitimação apoiada no cor-
cinema%20Benjamin%20Costallat&f=false Acesso em
po biológico desses sujeitos. Gênero
20/08/2013.
buscaria então dar conta de relações
MARQUES, Gabriela Mota, “Cabelos à Joãozinho”. A socialmente constituídas, que partem
garçonne em Portugal nos Anos Vinte. Lisboa: Livros
Horizonte, 2007. da contraposição e do questionamento
dos convencionados gêneros feminino
PRIORE, Mary del, História do amor no Brasil, São Pau-
lo: Editoria Contexto, 2006. e masculino, suas variações e hierarqui-
zação social.
RESENDE, Beatriz, “A volta de Mademoiselle Castellat”,
books.google.pt/books?isbn=8587220020 Acesso em
Ao contrário do que se propôs
20/08/2013. a partir daí, as primeiras formulações

• 330 •
em torno do termo baseavam-se justa- cia ao debate sobre o conceito no livro
mente na ixidez biológica que deini- El género mujer, mostrando que a ‘peri-
ria identidades, não nas conigurações feria’ estava inserida nas questões que
de poder histórica e culturalmente es- moviam os grandes centros e que ga-
tabelecidas e reiteradas. Alguns textos nhariam maior evidência anos depois.
(como os de Joana Maria Pedro e de Foi em 1986 que Joan Scott elaborou a
Maria Lygia Quartim de Moraes) reto- relexão sobre gênero como categoria
mam a emergência do termo gênero na de análise e destacou sua utilidade para
década de 1960, com as formulações a historiograia, em um artigo traduzi-
de Robert Stoller (1968). Para Moraes do no Brasil apenas em 1990. Judith
(2000), o autor propunha “a utilização Butler deu sua contribuição decisiva
para o debate a partir da publicação
de uma categoria que diferenciasse a
de Gender trouble, em 1989, provocando
pertinência anatômica (o sexo) da per-
um diálogo com outras autoras e auto-
tinência a uma identidade social ou psí-
res, como Teresa de Lauretis e Thomas
quica (gênero)”. O sentimento de ser
Laqueur.
mulher e o sentimento de ser homem
Enquanto para Scott o gênero
seriam mais importantes, em termos
seria um primeiro modo de dar signi-
de identidade sexual, do que as caracte-
icado às relações de poder, dentro de
rísticas anatômicas. Por seu lado, Linda uma disputa que é política, para Butler
Nicholson (2000) alerta que Simone de ele seria um meio discursivo, um con-
Beauvoir, em O Segundo Sexo, publicado junto de atos reiterados no sentido de
em 1949, ao airmar que “não se nasce regular a sexualidade, seguindo pa-
mulher torna-se” – embora não usasse drões heterossexuais construídos para
a categoria gênero –, já apontava que simularem uma aparência de natureza.
o sexo não garantia a constituição de De Lauretis (1994) situa o gêne-
uma pessoa em correspondência com ro no centro da crítica da representa-
o gênero. ção, sendo sua construção produto e
Em 1975, no ensaio O tráico das processo da representação. Já para La-
mulheres: notas sobre a economia política do queur (1992), o sexo seria situacional e
sexo, Gayle Rubin explorou questões explicável “apenas dentro do contexto
em torno do que chamou “sistema de luta sobre gênero e poder”, sendo,
sexo-gênero”, pontuando e estimulan- ele próprio, constituído pelo gênero.
do a ruptura teórica que viria na déca- Como consenso entre autoras e auto-
da posterior. res, gênero e poder estariam no centro
Em 1982, a ilósofa feminista da hierarquização social, determinando
argentina Leonor Calvera dava sequên- papéis por eles questionados.

• 331 •
Partindo de dentro do campo fe- balhos acadêmicos sobre masculinida-
minista, tais teorias não conquistaram a des multiplicaram-se nas universidades
adesão da maioria das feministas fran- brasileiras na última década, abrindo
cesas naqueles anos, e mesmo na atua- caminho para se pensar a contraparti-
lidade. Embasando suas discussões so- da do que se chamou inicialmente “re-
bre as “relações sociais de sexo”, viam lações de gênero”. Nem só de mulhe-
na categoria de análise gênero uma res se faz essa história, que contesta a
tendência de origem anglo-americana construção do sujeito “homem” como
que não condizia com a realidade fran- modelo universal. A subjetividade e a
cesa, menos ainda com suas tendências fragilidade deste sujeito também foram
teóricas. Esta temática é trabalhada expostas, como elementos omitidos na
por Karen Offen (2011), que percebe performance social de uma heteronor-
na língua francesa uma clara distinção matividade aprendida desde a infância
terminológica entre “sexo” e “gênero e cobrada a partir dela.
masculino/feminino” – utilizados no Com a amplitude do leque pos-
sentido de construção social –, que sibilitado pelo conceito gênero, que
pode ser traçada historicamente. Joan abarca (ao lado da teoria queer) estu-
Scott (2012), historiadora do contexto dos sobre gays, lésbicas, transexuais e
francês, também observa esta contro- outros – além das masculinidades –,
vérsia, relembrando que as palavras algumas teóricas do feminismo, como
têm histórias e múltiplos usos. “Elas Cláudia de Lima Costa (1998), propu-
não só são elaboradas para expressar seram, na virada para os anos 2000,
certas concepções, mas elas também uma recriação do sujeito e do conceito
têm diferentes efeitos retóricos”. Para mulher sob uma perspectiva política,
a historiadora, a crítica francesa é mo- com base nas reivindicações do femi-
tivada pela concepção de que a ênfase nismo como movimento social. Adria-
no gênero reduziria a observação das na Piscitelli (2001) analisa: “no marco
desigualdades visíveis entre mulheres dessa imbricação entre interesses fe-
e homens. Mesmo assim, o termo tor- ministas e teoria social, gênero, ao não
nou-se uma referência que atravessa o encaixar-se plenamente em certos cri-
espectro político e seus efeitos podem térios de ‘utilidade’ política parece ser
não ser mais os mesmos previstos ini- abandonado pelo pensamento feminis-
cialmente pelas feministas. ta”.
O conceito deu base a outros ti- Essas e outras tensões levam a
pos de pesquisa histórica que, ao mes- pensar em gênero como um concei-
mo tempo em que fogem ao campo do to que, mais do que qualquer ixidez,
feminismo, o complementam. Os tra- nos oferece instabilidade e luidez, que

• 332 •
melhor representam as relações sociais NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Revista
Estudos Feministas, vol.8, n.2. Florianópolis, 2000, pp.
que atravessam o tempo e chegam à 9-43.
atualidade. Tendo emergido desde o OFFEN, Karen. Gênero: uma invenção americana? Ar-
início sob rasura e tensão, com as rei- tCultura. Vol.13, n.23, jul/dez. Uberlândia-MG, 2011,
pp. 57-64.
vindicações intrínsecas ao início dos
PEDRO, Joana M. Traduzindo o debate: o uso da cate-
anos 1980 sobre questões envolvendo goria gênero na pesquisa histórica. História. Vol.24, n.1,
raça, etnia, classe e outras possíveis São Paulo: 2005, pp. 77-98.

intersecções sociais, gênero mostra-se PISCITELLI, Adriana. Re-criando a (categoria) mulher?


Cadernos Pagu, Campinas-SP, 2001.
ainda útil como categoria de análise,
passando por adaptações às necessi- RUBIN, Gayle. he traic in women: notes on the ‘po-
litical economy of sex’. In: REITER, Rayna. Toward an
dades de cada grupo que a reivindica, Anthropology of Women. Monthly Review Press, New
York, 1975.
incluindo historiadoras e historiadores,
que buscam situar sua trajetória teórica SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria de análise histó-
rica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.16, n.2, p.5-
e política, constituída e reelaborada ao 22, jul/dez., 1990.
longo das últimas três décadas. _______. Os usos e abusos do gênero. Projeto História.
N.45, São Paulo: dezembro de 2012, pp. 327-351.
Ana Maria Veiga SOIHET, Rachel e PEDRO, Joana M. A emergência da
Joana Maria Pedro pesquisa da história das mulheres e das relações de gêne-
ro. Revista Brasileira de História. Vol.27, n.54. São Paulo,
2007.
Referências e sugestões de leitura
STOLLER, Robert J. Sex and gender. New York: Science
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. São Paulo: Ed. House, 1968.
Difusão Europeia do Livro, 1967. 2 volumes.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e
subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 2003. Gênero e Cinema
CALVERA, Leonor. El género mujer. Buenos Aires: Edi-
torial de Belgrano, 1982. As teorias feministas que toma-
COSTA, Cláudia J. de Lima. O tráico do gênero. Cader- ram o cinema como objeto de análise,
nos Pagu, n.11, Campinas-SP, 1998.
já no início dos anos 70, inserem-se no
LAURETIS, Teresa de. Tecnologia do gênero. In: âmbito da epistemologia feminista que
HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Tendências e
impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de resulta do diálogo entre as agendas dos
Janeiro: Rocco, 1994, p. 206-242.
movimentos de mulheres/feministas e
LAQUEUR, homas. Inventando o sexo: corpo e poder o espectro mais amplo da produção de
dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumara,
1992. conhecimento (RAGO, 1998). Em tal
MORAES, Maria Lygia Q. de. Marxismo e Feminismo: período, as teorias do cinema concen-
ainidades e diferenças. Crítica marxista. Vol.11, Campi-
nas-SP, 2000, pp. 87-97.
travam-se na representação das mulhe-
res em ilmes e na produção fílmica de

• 333 •
autoria feminina, sendo que a categoria começam a reconhecer que a espec-
gênero passou a ser aplicada apenas em tatorialidade se deinia em termos de
meados dos anos 80. gênero e que “o espectador tinha sexo,
As teóricas feministas do cine- raça, classe, nação e região”, abrindo,
ma não falavam de guetos, nos idos assim, espaço para novas clivagens te-
de 1970: dialogavam com as principais óricas (STAM; SOHAT, 2005, p. 420).
correntes da sociologia, da psicanáli- A produção teórica feminista
se, da semiótica. Integravam o campo do cinema compreendia, no entanto,
um leque mais amplo, entre os anos
recém-constituído dos “estudos de ci-
1970 e 1980, caracterizando-se pela
nema”, que, desde meados dos anos
heterogeneidade e pelas colaborações
de 1960, fundamentavam os primei-
de correntes sociológicas e psicanalí-
ros cursos acadêmicos estadunidenses
ticas. Convergia quanto ao interesse
(BORDWELL, 2005, p. 23).
sobre a maneira como as personagens
O texto de Laura Mulvey, Prazer femininas eram construídas nos ilmes,
visual e cinema narrativo, publicado ori- iniciando já o debate sobre a relação
ginalmente na revista britânica Scre- entre o “mundo real” e a representa-
en, em 1975, tornou-se um dos mais ção cinematográica. Debatia sobre o
divulgados. Colocava a questão central sujeito da representação, a partir de di-
da relação entre espectador e “texto ferentes conceitos e pressupostos teó-
narrativo”, a partir de noções da psica- rico-metodológicos, inclusive de orien-
nálise, como: voyeurismo, escopoilia, tação sexista. Todavia, Pam Cook e
complexo de castração e narcisismo Claire Johnston, em 1973, salientaram
(MULVEY, 1983, p. 437-454). Des- que não bastava identiicar e denun-
montava, em linhas gerais, o dispositi- ciar o sexismo da representação, sen-
vo segundo o qual a representação fe- do necessário enfrentar, igualmente, as
minina atendia ao prazer visual de um próprias convenções do cinema, lidar
espectador (supostamente) masculino com a linguagem. Colocavam, então, o
e lançava as bases para “a construção desaio de se apropriar do objeto, de
de outras possibilidades de olhar e de tomar o ilme como expressão (JO-
outras linguagens do desejo, a partir do NHNSTON, 2000).
projeto de um cinema de vanguarda, Já os Festivais de ilmes de Mu-
ou contra-cinema – incluindo aí a ideia lheres, realizados em diferentes países,
de um cinema feminista” (MALUF, quase simultaneamente, naquela dé-
2005, p. 343-344). É a partir desses cada de 1970, também tiveram papel
apontamentos seminais de Mulvey que relevante para o fortalecimento do
as teorias do cinema, com o tempo, campo. Destacam-se o Festival Inter-

• 334 •
nacional de Cinema de Mulheres de Argentina, talvez em decorrência das
New York (1972), o Festival de Cine- ditaduras civis-militares em curso, os
ma e Mulheres, de Toronto (1973); as festivais de cinema de mulheres so-
primeiras projeções de cinema de mu- mente tiveram lugar na década de 1980
lheres no Festival de Cinema de Edim- (RANGIL, 2005).
burgo (1972). Nesses espaços se proje- Mesmo assim, em tais países,
tavam ilmes feitos por mulheres que mulheres cineastas ocupavam o espaço
procuravam problematizar a moldura cinematográico de hegemonia mas-
sociocultural ainda fortemente marca- culina, levando para as telas questões
da pelo patriarcado, por conseguinte, relativas ao feminino. Se o circuito
rechaçavam certo “olhar masculino”, cinematográico argentino era mo-
que reiterava papéis tradicionais atri- vimentado, entre outras, pela carrei-
buídos aos homens e às mulheres, ra da cineasta feminista María Luisa
bem como a subordinação feminina Bemberg (CAVALCANTE, 2014), no
(KAPLAN, 2000). Brasil, Helena Solberg, que enfocara
Concomitantemente, publica- as mulheres em seus ilmes, desde seu
vam-se os primeiros livros de críticas documentário de estreia, A Entrevista
feministas de cinema: Notes on Wo- (1967), já havia se mudado para os Es-
men’s Cinema (1973), de Claire Jonhs- tados Unidos, deixando a agitação do
ton; Popcorn Venus (1973), de Marjo- circuito a cargo das cineastas brasilei-
rie Rosen; Women and their sexuality ras Tereza Trautman (VEIGA, 2013),
in the new ilm (1974), de Joan Mel- Vera de Figueiredo (CAVALCANTE;
len; From reverence to rape (1975), de HOLANDA, 2013), Maria do Rosário
Molly Haskell. Lançaram, nos Estados (CAVALCANTE, 2017) e Ana Caro-
Unidos, as revistas Women and ilm lina (ESTEVES, 2013), que lançavam
(1972) e Velvet Light Trap, sendo que longas-metragens, de icção, em que
esta última dedicou um volume espe- personagens femininas protagonizam
cialmente para artigos sobre as mulhe- as tramas, problematizando a situação
res e Hollywood (KUHN, 1991, p. 89). de opressão das mulheres e o próprio
Além disso, diferentes coletivos aspecto político e moral do Estado de
de “mulheres e cinema” foram for- exceção.
mados, inclusive, na América Latina, Nesse contexto, em meio às mo-
como: o Coletivo Cine-Mujer no Mé- bilizações para a conferência do Ano
xico (1975-1987); coletivo Cine Mujer Internacional da Mulher, da ONU, que
na Colômbia (1978); Grupo Feminista se realizou no México, em 1975, um
Miércoles (1978), na Venezuela (SAN grupo de mulheres cineastas organizou
MARTÍN, 2004). Já no Brasil e na o seminário “Mulher no cinema brasi-

• 335 •
leiro – de personagem à cineasta, com e mulheres residiam em certa essência
uma série de debates paralelos e uma biológica, seja genital, seja hormonal –
mostra retrospectiva”, na Cinemateca desconsiderando, pois, que a deinição
do Museu de Arte Moderna do Rio de gênero resulta de construção social
de Janeiro (PESSOA; MENDONÇA, e, como tal, cultural e histórica.
1989, p. 11). A partir dessa constatação, estu-
É somente a partir dos anos dos feministas passaram a reconhecer
1980 que a categoria gênero, formu- a crítica ao uso da denominação auto-
lada no âmbito da epistemologia fe- ria feminina, mencionando, entretan-
minista, passa a inluenciar o campo. to, que se trata de uma nomenclatura
Desse modo, as análises feministas de necessária para demarcar o aspecto
cinema, ao destacarem as protagonis- político da abordagem, principalmen-
tas femininas nas telas, rompiam com te na ausência de uma expressão que
o modelo de gênero, que, tradicional- dê conta de traduzir a questão que ela
mente, atribuía às mulheres a confor- engendra, qual seja: o lugar assimétrico
mação em papéis de esposas, mães e decorrente de relações desiguais de po-
donas-de-casa. Além disso, problema- der no campo da produção simbólico-
tizavam o espaço de personagens mas- -cultural, que impingiram invisibilidade
culinas nas tramas, questionando as às mulheres cineastas e aos seus ilmes
relações de poder assimétricas. (GRANT, 2001).
Em meio às abordagens de gê- Nesses termos, adquirem rele-
nero, emergiu o debate sobre a autoria vância os trabalhos precursores de le-
feminina de cinema. Sob essa deno- vantamento das cineastas brasileiras e
minação, buscavam-se, nos estudos, de seus ilmes realizados por Elice Mu-
investigar as mulheres cineastas e es- nerato e M. Helena Darcy de Oliveira,
quadrinhar suas cinematograias, no intitulado As musas da Matinê, de 1982,
intuito de problematizar a invisibilida- e, outro, organizado por Heloísa Bu-
de das mulheres em tal campo e lançar arque de Hollanda, com o título Quase
luz sobre suas cinematograias. Contu- catálogo: realizadoras de cinema no Brasil
do, a própria crítica feminista, em diá- (1930-1988), publicado em 1989. Neste
logo com as teorias gerais sobre auto- segundo levantamento, a organizadora
ria, suscitou a possível armadilha desse aponta que foram listados 195 cineas-
tipo de designação, pois remetia à ideia tas e 479 ilmes produzidos entre 1930
de naturalização do feminino, isto é, e 1980 (HOLLANDA, 1989, p. 5).
caía-se no escopo do determinismo Em tal década, diferentes mos-
biológico, que embasava a compreen- tras de ilmes de mulheres foram rea-
são de que as diferenças entre homens lizadas nas principais capitais brasilei-
• 336 •
ras. A imprensa divulgou a “Mostra de Queer, que, assim como os estudos de
Curtas e médias de cineastas brasileiras lésbicas e gays, obtiveram lugar apenas
– Mulheres de cinema”, promovida nos anos 1990 – no hemisfério Norte
pela Embrailme, em maio de 1986, (LAURETIS, 1994). Nessa publicação,
em Brasília, que exibiu 39 ilmes. Na- a autora chamou atenção para a invisi-
queles anos havia 140 mulheres cine- bilidade de lésbicas em ilmes, conside-
astas enfrentando as diiculdades do rando que se tratava de um limite do
mercado no país. Depois, essa mostra conceito gênero, que não se desvincu-
seguiria para Salvador, Belo Horizonte lava da “heterossexualidade compulsó-
e Rio de Janeiro (Correio Brasiliense, ria” ou do “contrato heterossexual”, de
03/06/1986). No ano seguinte, no acordo com as deinições de Adrienne
âmbito do projeto “Criação: Mulher”, Rich e Monique Wittig, respectivamen-
outra mostra de cinema feito por mu- te (LAURETIS, 1992, p. 278).
lheres encontrou espaço em São Pau- Na mesma perspectiva, Judi-
lo, exibindo ilmes de Ana Maria Ma- th Mayne, ao se voltar para o cinema
galhães, de Inês de Castilho e de Cida hollywoodiano, constatou o silêncio
Aldar, de Maria Helena Saldanha, de das teorias feministas de cinema em
Olga Futema, de Eunice Gutman, de relação à lesbianidade. Destacou cer-
Tizuka Yamasaki, dentre outras (Diá- ta omissão dessa corrente de análise
rio Popular, 13/03/1987). quanto à crítica aos ilmes que difun-
Cabe aqui destacar ainda que diram estereótipos e caricaturas de
Tereza de Lauretis, ao se debruçar so- lésbicas e sublinhou que isso reiterava
bre os contextos europeu e estaduni- certo padrão hegemônico de sexuali-
dense da década de 1980, indicou que dade, colaborando para naturalizar a
“o conceito gênero como diferença heterossexualidade (MAYNE, 2000, p.
sexual encontrava-se no centro da crí- 159-160).
tica da representação, da releitura de No Brasil, os estudos sobre lés-
imagens e narrativas culturais, do ques- bicas e gays e da teoria queer são ainda
tionamento de teorias de subjetivida- incipientes. Mesmo no campo histo-
de e textualidade, de leitura, escrita e riográico, somente a partir dos anos
audiência” (LAURETIS, 1994, p. 206). 2000, o tema das homossexualidades
Mais ainda, assinalou, assim como ou- começou a sair “muito lentamente do
tras teóricas feministas, que a categoria armário” (VERAS; PEDRO, 2014, p.
gênero sobrepunha-se às sexualidades. 93). Já no cinema, o estudo basilar de
Em A tecnologia de gênero, publi- Antonio Moreno sobre homossexuali-
cado em meados dos anos 1980, Lau- dade e cinema desvelou, entre outros
retis antecipou elementos da teoria aspectos, a predominância de ilmes

• 337 •
sobre a homossexualidade masculina, Neste breve percurso sobre Fe-
em detrimento da lesbianidade e de minismos e Cinema procurou-se ape-
outras expressões sexuais (MORENO, nas traçar certo itinerário da relação
1995). entre esses dois campos, sendo que
O autor observou que em ilmes muitas questões icaram de fora, sejam
dirigidos por homens, entre os anos relativas às colaborações etnico-raciais,
1960 e 1980, no país, as cenas de rela- às sexualidades, às masculinidades, se-
cionamentos homo-afetivos entre duas jam mais especiicamente relacionadas
mulheres sugeriam algo que interessa- ao objeto fílmico – os desaios estão
va ao prazer masculino (Idem, p. 131). postos.
Outros ilmes, contudo, trazem cenas
da homossexualidade feminina como, Alcilene Cavalcante
por exemplo, em Os homens que eu tive,
de Tereza Trautman – lançado em 1973 Referências
e mantido interditado pela censura até BORDWELL, David. Estudos de cinema hoje e as vicis-
1980. Mas a relação homossexual não é situdes da grande teoria. In: RAMOS, Fernão (org.). Te-
oria Conemporânea do cinema, v. 1, São Paulo: Editora
o enfoque deste longa-metragem. SENAC São Paulo, 2005, pp 25-70.
A lesbianidade adquiriu centra-
CAVALCANTE, Alcilene; HOLANDA, Karla. Femini-
lidade apenas no ilme Amor Maldito no Plural: história, gênero e cinema no Brasil dos anos
(1984), da cineasta brasileira negra 1970. In: Bragança, Maurício; TEDESCO. Marina.
(Org.). Corpos em projeção: gênero e sexualidade no ci-
Adélia Sampaio, rompendo com a in- nema latino-americano. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013,
v. 01, p. 134-152.
visibilidade e permitindo questionar
a moral sexual heteronormativa (CA- ____. A representação do passado nas telas: os discursos
históricos em ilmes de Bemberg e Yamasaki. In: Tunico
VALCANTE, 2016). Amancio (org.). Argentina-Brasil no cinema: diálogos.
Desde os anos 1980, passando Niterói: EdUFF, 2014, pp.57-76.

pela retomada do cinema brasileiro, ____. A lesbianidade nas telas brasileiras da transição
já nos anos 1990, as críticas feminis- democrática: o protagonismo de Amor maldito, de
Adélia Sampaio. Documento/Monumento, vol 18, nº1,
tas, em suas diferentes clivagens, per- pp. 142-155, 2016. Cuiabá/UFMT. Disponível em
http://200.129.241.80/ndihr/revista/revistas-anteriores/
meiam os estudos sobre cinema. Te- revista-dm-18.pdf
mas que tangenciam gênero, como a
COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro (orgs).
representação, as sexualidades, a etni- Dicionário Crítico de Gênero. Dourados: Ed. UFGD,
co-racialidade, coniguram referências 2015.

de trabalhos nessa chave. Coletivos de ESTEVES, Flávia. Reinventando o político nas telas:
gênero, memória e poder no cinema brasileiro (1970-
mulheres, de mulheres negras, de in- 1980). Tese de doutorado apresentado ao Programa de
dígenas e de lésbicas, que promovem Pós-Graduação em História da Universidade Federal Flu-
minense, 2013.
mostras de ilmes de mulheres e man-
têm blogs especíicos sobre o tema, GRANT, Catherine. Secret Agents: Feminist heories of
Women’s Film Authorship’, Feminist heory , vol. 2, nº.
continuam a se propagar pelo Brasil. 1, pp. 113-130, April 2001.

• 338 •
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MORENO, Antonio Nascimento. A personagem ho- LAURETIS, Teresa de. Género y teoria queer. Mora,
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1988). Rio de Janeiro: CIEC – Escola de Comunicação
da UFRJ, MIS e Funarte, 1989. campo da geograia que emergiu no
RAGO, Margareth. Epistemologia Feminista, Gênero
início dos anos70 nos Estados Uni-
e História. In: Pedro, Joana; Grossi, Miriam (orgs.)- dos e no Reino Unido, propiciado pe-
Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Ed. Mulhe-
res,1998. los movimentos sociais, dentro e fora

• 339 •
da academia (MCDOWELL, 1999; outros campos cientíicos como a so-
OBERHAUSER et al, 2003). As críti- ciologia, história, antropologia, políti-
cas feministas à geograia hegemônica ca e a economia, pode-se airmar que
de bases positivistas emergiram como a geograia foi mais temerosa do que
parte do movimento da geograia ra- as demais no acolhimento das ideias de
dical, especialmente de base marxista. pesquisadoras(es) feministas.
A aliança entre a geograia crítica e a Várias produções feministas de
feminista foi bastante produtiva, mas outras ciências sociais acabaram por
também penosa. A intensidade de con- inspirar os trabalhos feministas geo-
vergência entre ambas as correntes foi gráicos em várias áreas da geograia.
diversiicada. Até hoje, por exemplo, Na geograia econômica, o trabalho
Women’s role in economic development, publi-
pode-se dizer que ela é mais forte no
cado pela economista Esther Boserup
Reino Unido do que nos Estados Uni-
em 1970, foi uma importante base de
dos. No Brasil, contudo, as geograias
produção cientíica. Na geograia ur-
feministas surgem à margem da geo-
bana, foram fortes as inluências de
graia crítica, tendo sua expansão, ape-
obras vindas da arquitetura, história e
nas nos anos 90 (SILVA, 2009).
sociologia. Uma das mais importantes
Se, por um lado, as geograias
foi ‘Death and life of great American cities’
feministas reforçaram o movimento publicada em 1961 por Jane Jacobs. Na
de crítica ao positivismo em conjunto geograia política, é marcante a inlu-
com a geograia crítica, por outro, elas ência da obra ‘Participation and democratic
foram além dos pressupostos marxis- theory’ de Carol Pateman, publicada em
tas. A corrente feminista desaiou o 1970.
poder para além das lutas de classe, Além da inluência de outras ci-
evidenciando a base androcêntrica do ências sociais, mais permeáveis à cor-
conhecimento geográico e que em rente feminista, houve também forte
inúmeros momentos foram hostis às intervenção dos movimentos sociais
proposições feministas. A relação en- na emergência das geograias feminis-
tre as duas correntes ainda suscita uma tas. A liberação feminina nos anos 70
série de debates epistemológicos em demandava a equidade entre homens e
ambos os subcampos. mulheres e a visibilidade feminina. A
A geograia feminista possui geograia feminista baseou o seu proje-
uma base multidisciplinar e tem pro- to neste momento em lutar pela visibi-
fundas relações com os movimentos lidade das mulheres como produtoras
sociais. Estes traços permanecem até de conhecimento geográico e também
os dias atuais. Em comparação com de incluir as mulheres como objetos de

• 340 •
pesquisa cientíica. Um interessante ciais. O gênero como um componente
texto pioneiro deste período foi ‘On not de análise da produção do espaço, pas-
excluding half of the human in human geo- sou a ser considerado forte categoria
graphy’ de Monk e Hanson, publicado compreensiva dos processos geográi-
em 1982. O artigo converteu-se em um cos.
importante protesto acadêmico e polí- As geograias feministas rea-
tico no sentido de adicionar as mulhe- lizaram importantes questionamen-
res ao campo cientíico. Esta postura tos à ciência geográica hegemônica
de tornar as mulheres visíveis não é um e evidenciaram a força analítica da
projeto já consolidado, mas que perdu- perspectiva compreensiva do espaço
ra no cotidiano da produção cientíica generiicado. Um interessante exem-
até os dias atuais. plo é a pseudo divisão entre o espaço
Nos anos 80 houve uma expan- público e o privado na composição
são da produção geográica feminista da esfera produtiva e na divisão so-
que acabou criando uma variedade de cial do trabalho. As geógrafas femi-
vertentes no subcampo. Assim, não se nistas evidenciam a interdependência
pode imaginar que haja apenas uma ge- de ambos os espaços e estabelecem a
ograia feminista, mas várias ‘geogra- crítica de que a dicotomia que separa
ias feministas’, já que os interesses se o público do privado é uma estratégia
diversiicaram e várias perspectivas te- conceitual de invisibilizar a exploração
óricas e metodológicas também proli- e o trabalho não pago realizado pelas
feraram, mantendo uma pluralidade de mulheres nos ambientes domésticos.
perspectivas cientíicas concomitantes Outros questionamentos da geograia
como fenomenológicas, culturais, mar- feminista à geograia já legitimada fo-
xistas e assim por diante. ram realizados na área de planejamen-
O aprofundamento da produ- to do espaço urbano. Foram intensas
ção cientíica geográica realizada na as críticas sobre a forma da cidade e
década anterior possibilitou a cons- seus impactos sobre os diferenciais
trução de caminhos teóricos sob uma de acessibilidade aos bens e serviços
perspectiva de gênero. O gênero, com- urbanos entre homens e mulheres. A
preendido como papéis sociais desem- forma urbana organizada sob a lógica
penhados por homens e mulheres, era de zoneamentos que separavam con-
um caminho compreensivo que supe- tundentemente a esfera produtiva da
rava a ideia de diferença naturalizada residencial, diicultava a inserção das
entre o feminino e o masculino, agora mulheres nas atividades remuneradas,
compreendidos como construções so- bem como na sua mobilidade urbana,

• 341 •
visto que elas acumulavam o papel de gênero deveriam ser abordadas, con-
mães e trabalhadoras (PRATT e HAN- siderando o gênero interceptado por
SON, 1988). Nas análises econômicas outras categorias sociais.
e de organização da produção mundial, A inluência das críticas dos mo-
notadamente no período de reestrutu- vimentos raciais auxiliou na construção
ração produtiva com bases lexíveis, da discussão em torno das formas com
as geograias feministas mais uma vez que os saberes são produzidos, legiti-
evidenciaram a importância do exame mados e circulados, bem como dos pri-
minucioso das relações de gênero no vilégios de gênero e raça que permeiam
processo de reestruturação industrial as relações de poder em torno da pro-
nos países capitalistas centrais, desa- dução do conhecimento. Estas críticas
iando as geograias marxistas a incluir possibilitaram à geograia feminista re-
as perspectivas generiicadas em suas letir sobre os processos metodológi-
cos e reconhecer o conhecimento geo-
análises (MASSEY, 1984).
gráico como parte de uma experiência
A década de 80 foi marcada pela
corporiicada do pesquisador em sua
clivagem do movimento social e acadê-
relação com os espaços.
mico feminista, notadamente pelas rei-
A propagação das agendas de
vindicações das mulheres negras. Bell
pesquisas de geógrafas(os) feministas
Hooks com sua obra ‘Feminist Theory
da década de 80 ainda se faz sentir nos
from margin too center’ e Chandra Talpa-
anos 90, justamente na era do cresci-
de Mohanty com ‘Under western: feminist mento das perspectivas ambientalistas.
scholarship and colonial discourses’, ambas São importantes os trabalhos sob as
as obras de 1984, construíram uma perspectivas da construção social da
crítica fundamental sobre o protago- natureza e da ecologia política feminis-
nismo das mulheres brancas de classe ta. Além disso, nesta mesma década foi
média no movimento político femi- fundamental o crescimento de traba-
nista, bem como na academia. Elas lhos de geograia feminista abordando
argumentam que as mulheres, ao expe- os processos transnacionais e a globa-
rienciar suas vidas concretas em deter- lização, sob a perspectiva da relação
minados lugares, podem sofrer outros entre gênero e desenvolvimento, bem
tipos de opressão que ultrapassam à como das assimetrias que envolvem
uma unidade em torno do gênero. A países capitalistas centrais e periféricos
racialidade foi um importante elemen- nas relações globais.
to a ser considerado que evidenciava as A ênfase nas discussões sobre a
clivagens do movimento feminista e a política de construção do conhecimen-
complexidade com que as relações de to e a interseccionalidade nas múltiplas

• 342 •
formas de opressões e identidades MASSEY, Doreen. Spatial Divisions of labor: social
structures and the Geography of Production. New York:
(gênero, sexualidade, classe, idade, reli- Methuen, 1984.
gião e assim por diante) trouxeram um
MOHANTY, Chandra Talpade. Under western: feminist
imenso impulso ao campo feminista da scholarship and colonial discourses. Boundary, v. 2, n 12,
geograia, trazendo novas ferramentas p. 333-358, 1984.

teóricas e metodológicas para o campo. MONK, Janice; HANSON, Susan. On not excluding
Desenvolveram-se com força as crí- half of the human in human geography. he Professional
Geographer, v. 34, n. 1, p. 11-23, 1982.
ticas das teorias raciais, psicanalíticas,
OBERHAUSER, Ann M.; RUBINOFF, Donna; DE
pós-estruturalistas, pós-colonialistas e BRES, Karen; MAINS, Susan; POPE Cindy. Geographic
a teoria queer, trazendo assim novas nu- perspectives on women. In: GAILE, Gary L.; WILL-
MOTT, Cort. J. (Ed.). Geography in America at the
ances internas à produção geográica dawn of the 21st century. Oxford: Oxford University
feminista. Press, 2003, p. 737-758.

As discussões estabelecidas nos PATEMAN, Carol. Participation and democratic theory.


anos 90 desestabilizaram as categorias Cambridge: Cambridge University Press, 1970.

de sexo e gênero, trazendo a ideia de PRATT, Geraldine; HANSON, Susan. Gender, class and
space. Environment and Planning D: Society and Space,
mutabilidade constante, deslocando v. 6, n. 1, p. 15-35, 1988.
também as compreensões de espaço e
ROSE, Gillian. Feminism & geography: the limits of
lugar. O espaço não é apenas um re- geographical knowledge. Cambridge: Polity Prss, 1993.
lexo das relações de gênero e sexua-
SILVA, Joseli Maria. Geograias subversivas: discursos
lidades, mas estes são produtores de sobre espaço, gênero e sexualidades. Ponta Grossa, PR:
espaços e lugares. A multiplicidade TODAPALAVRA, 2009.

de sujeitos generiicados, sexualizados


e racializados performam diferentes Sugestões de leitura
espaços, superando a ideia da existên- MCDOWELL, Linda. Gender, identity and place: un-
derstanding feminist geographies. Minneapolis: Univer-
cia de um espaço essencializado, mas sity of Minnesota Press, 1999.
constantemente produzido de múlti-
NELSON, Lise and SEAGER, Joni. A companion to Fe-
plas formas pelas diversas pessoas. minist Geography. Malden: Blackwell Publishing, 2005.

Joseli Maria da Silva •

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BOSERUP, Esther. Women’s role in economic develop-
ment. New York: St. Martin’s Press, 1970. A noção de geração está intrin-
HOOKS, Bell. Feminist heory from margin to center.
secamente ligada à problemática das
Boston: South End Press, 1984. mudanças sociais e intelectuais, em es-
JACOBS, Jane. Death and life of great American cities.
pecial às novas formas de sociabilidade
New York: Vintage books, 1961 baseadas em critérios geracionais.

• 343 •
Em uma perspectiva sociológica não serem deinidas pela sucessão de
a noção de gerações proposta por Karl gerações biológicas, uma vez que não
Mannheim (1928) é signiicativa em há padronização do tempo para medir
vista do avanço que o autor traz sob a ou prognosticar seu ritmo. Do ponto
posição comum em considerar as gera- de vista sociológico, elas cessam quan-
ções como os indivíduos nascidos em do novos e grandes eventos históricos,
um mesmo tempo cronológico com a políticos, sociais e econômicos e de
possibilidade de presenciarem os mes- natureza cultural tornam o sistema an-
mos acontecimentos ou vivenciarem terior e as experiências sociais a ela re-
experiências semelhantes. Para ele, lacionadas sem signiicado. Mais preci-
acima de tudo, são indivíduos capazes samente: é o processo de mudança que
de processarem esses acontecimentos produz a geração anterior e a posterior.
ou experiências de forma semelhante. Por sua vez, a abordagem i-
Ou seja, os diferentes grupos etários losóica o encontro entre gerações
vivenciam tempos interiores (Dilthey) compreende “uma experiência forte,
diferentes em um mesmo período cro- que contribui a alargar o círculo dos
nológico e a identiicação geracional próximos abrindo-o em direção a um
implica em formas semelhantes de passado, que, em pertencendo aos
ordenação e estratiicação de aconte- nossos ascendentes ainda em vida, nos
cimentos e experiências vivenciadas coloca em comunicação com as expe-
(Sousa, 2006). riências de uma outra geração que não
Na década de 1980 a noção pro- é a nossa. A noção de geração aqui é
posta por Mannheim foi ampliada por chave e oferece este duplo sentido, o
Philip Abrams, considerando a relação de contemporaneidade de uma mesma
entre as dimensões história individual e geração, à qual pertence o conjunto de
história social emerge do tempo social. seres de diferentes idades, e de sequên-
A sociedade e a identidade geram-se re- cia de gerações, no sentido de substi-
ciprocamente no interior ou por meio tuição de uma geração por uma outra...
do tempo social. Ou seja, no sentido conhecemos bem este triplo reino de
sociológico, uma geração é o período predecessores, de contemporâneos e
de tempo durante o qual a identidade é de sucessores” (Ricoeur, 2000, p. 514).
construída a partir de recursos e signi- Em uma perspectiva fenome-
icados que estão socialmente e histori- nológica, as gerações congregam ai-
camente disponíveis. Assim, novas ge- nidades, a participação em um destino
rações criam novas identidades e novas comum - um passado lembrado, um
possibilidades para a ação de modo, a presente vivido, um futuro antecipado.

• 344 •
É estabelecido um tempo intersubjeti- Gouges, Olympe de
vo. Na ideia de geração predomina o
tempo da consciência, de vida compar- La Revolución francesa fue un
tilhada, interdependente, que dispensa acontecimiento que marcó la historia
a ostentação simbólica: é um “nós”, de hombres y mujeres, dado que modi-
uma relação direta, intuitiva, imediata, icó radicalmente la relación entre los
entre o eu e o ele. sexos (SLEDZIEWSKI, 2003). En el
caso particular de las mujeres, la Revo-
Maria Cristina Caminha
de Castilhos França lución propició el cuestionamiento so-
bre su lugar en la sociedad, no solo en
Referências e sugestões de leitura el ámbito doméstico, sino en la ciudad,
como ciudadanas. Aquella cuestión fue
ABRAMS, Ph. Historical sociology. Shepton Mallet:
Open Books, 1982. abordada por algunas mujeres intelec-
BARROS, M. M. L. Autoridade e afeto: avós, ilhos e
tuales de la época, entre ellas, Olym-
netos na família brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. pe de Gouges, escritora, dramaturga y
BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Rio de Janeiro: Nova política francesa, quien estableció su
Fronteira, 1990.
lugar en la historia como precursora
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. del feminismo francés al pronunciarse
3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
en contra de la tiranía de los hombres
PEIXOTO, Clarice; SINGLY, François; CICCHELLI, (líderes de la Revolución) y a favor de
Vicenzo (orgs.). Família e individualização. Rio de Janei-
ro: FGV, 2000. la liberación de las mujeres y la rede-
FONSECA, Claudia. Família, fofoca e honra: etnograia
inición de su rol y lugar en la nueva
de relações de gênero e violência em grupos populares. 2. sociedad revolucionaria (AMORÓS y
ed. Porto Alegre: UFRGS, 2004.
DE MIGUEL, 2005).
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do
individualismo nas sociedades pós-modernas. 4. ed. Rio
Su nombre verdadero era Marie
de Janeiro: Forense Universitária, 2006. Gouze. Nació en Montauban en 1748
RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimen- y su familia era de origen burgués. Su
to. São Paulo: Unicamp, 2000. padre reconocido era carnicero del
SEGALEN Martine et al. História da família - o oci- Languedoc; sin embargo, ella decía
dente: industrialização e urbanização. Lisboa: Terramar,
1999. v. 4. que su verdadero padre era el marqués
Le Franc de Pompignan y adoptó el
SOUSA, Janice. A sociedade vista pelas gerações. Revista
Política & Sociedade, Santa Catarina, n. 8, p. 9-29, abr. nombre de Olympe de Gouges (CON-
2006.
DORCET et al, 1993, p. 153; KELLY,
• 2004, p. 78). Era una mujer de belleza
excepcional y personalidad extrava-

• 345 •
gante. Se casó en 1765 con un hombre la riqueza, mejores condiciones en los
mayor con el que tuvo un hijo, Pierre hospitales de maternidad” (KELLY,
Aubry. Al parecer, su vida en matrimo- 2004, p. 79). Según Kelly, de Gouges
nio no fue feliz, después de enviudar también se manifestó en contra de
no volvió a casarse. Incluso, años de- cualquier tipo de formas de privilegio
spués, se manifestó contra la depen- injusto, tomó una postura moderada
en sus opiniones políticas (2004, p.79),
dencia de las mujeres en el matrimonio,
aunque otros autores también la calii-
al cual caliicaba como “la tumba de la
can de ambigua o voluble. Los acon-
conianza y el amor”.
tecimientos revolucionarios de 1789 la
Su aición por la dramaturgia,
tornaron en amante y defensora de la
la llevó a escribir numerosas obras
libertad; sin embargo, no dejó de mos-
teatrales durante la mayor parte de la
trar cierta simpatía por la monarquía
década de 1780 (KELLY, 2004, p. 78).
(SAZBÓN, 2007, p. 47). De hecho,
L´ Esclavage des Noirs, fue su única obra
llegó a considerar que una monarquía
representada en el teatro, la cual se tra-
taba de un pronunciamiento contra la constitucional era la forma de gobier-
esclavitud. Aquella obra fue retirada no que debía adoptar Francia.
de escena después de tres funciones, En 1791 redactó, en respuesta a
probablemente porque contrariaba la Declaración de los Derechos del Hombre
los intereses de la “camarilla colonial” y del Ciudadano de 1789, la Declaración
(KELLY, 2004, p. 79). De Gouges de los Derechos de la Mujer y la Ciudada-
también escribió novelas y opúsculos na, en la que reivindicaba la igualdad
político sociales. Asimismo, organizó de derechos de las mujeres respecto a
una compañía de teatro itinerante que los hombres. Esta obra la dedicó a la
recorría la región de París. Frecuentó reina María Antonieta, a quien exhortó
los salones literarios parisinos, donde a “encabezar la liberación y regenera-
conoció a la élite intelectual francesa ción del sexo femenino” (CONDOR-
de la Ilustración; dirigió el periódico CET et al, 1993, p. 153), pensando que
L’Impatient y fundó la Société populaire su inluencia sería útil para promover
des femmes. su causa. Fue después del intento de
La Revolución francesa impul- huída de la familia real, detenida en
só aún más su actividad literaria, la Varennes, cuando de Gouges nue-
cual adquirió un sesgo más político y vamente se tornó al republicanismo,
comprometido con diversas reformas aunque esto no evitó que se conmo-
sociales, entre ellas: el establecimiento viera ante el destino del rey en 1792
de “talleres oiciales para los desocu- (SAZBÓN, 2007, p. 47). La causa de
pados, un impuesto voluntario sobre

• 346 •
que fuera condenada fue una octavilla vadores es su Forma del contrato social
titulada Las Tres Urnas, “en la que pedía del hombre y la mujer, en la que propone
un plebiscito nacional para elegir entre acuerdos que colocan a hombres y mu-
gobierno republicano unitario, federa- jeres en una condición de igualdad con
ción o monarquía” (CONDORCET et el in de lograr un matrimonio exitoso.
al, 1993, p. 154). Además, criticó du-
ramente el régimen de Robespierre a Claudia Rosa Lauro
través de libelos que difundía aún fuera
de la cárcel donde se encontraba re- Referencias
cluida (CONDORCET et al, 1993, p. AMORÓS, Celia y DE MIGUEL, Ana (editoras). Teoría
154). Fue guillotinada en París, el 3 de feminista: de la Ilustración a la globalización. De la Ilus-
tración al segundo sexo. Madrid: Minerva, 2005.
noviembre de 1793.
El legado de de Gouges para la BLANC, Olivier. Olympe de Gouges. Des Droits de la
Femme à la guillotine. París: Tallandier, 2014.
historia de las mujeres y el desarrollo
CONDORCET, Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, Mar-
del feminismo es fundamental dado qués de (1743-1794), et al. La Ilustración olvidada: la
que llevó a las mujeres a una revoluci- polémica de los sexos en el siglo XVIII. Alicia H. Puleo
(ed.). Barcelona: Anthropos, 1993.
ón en un segundo plano, el de su relaci-
ón con los hombres, en aquél contexto DUET, Paule-Marie. Las mujeres y la revolución, 1789-
1794. Barcelona: Conmar Color, 1974.
de cambios. Su Declaración de los Derechos
GODINEAU, Dominique. “La Mujer”, en Michel Vo-
de la Mujer y la Ciudadana (1791), como velle (ed.). El Hombre de la Ilustración. Madrid: Alianza,
lo indica José Sazbón, es el “texto em- 1995, pp. 395-428.

blemático de reivindicación política KELLY, Linda. Las mujeres de la Revolución francesa.


Traducción de Aníbal Leal. Buenos Aires: B Argentina,
femenina”, el cual es producto de “la 2004.
prolongación del espíritu ilustrado en
SAZBÓN, José. Cuatro mujeres en la Revolución fran-
el discurso revolucionario” (SAZBÓN, cesa. Olympe de Gouges, Eta Palm, héroigne de Méri-
2007, p. 47). Para ella, tanto hombres court, Claire Lacombe. Buenos Aires: Biblos, 2007.

como mujeres debían ser tratados SEGURA GRAIÑO, Cristina. Diccionario de mujeres
célebres. Madrid: Espasa Calpe, 1998.
como iguales ante la ley y las mujeres
deben tener una participación activa en SEDZIEWSKI, Elisabeth G. “Revolución Francesa. El
giro”. En DUBY, Georges y Michelle PERROT (dirs.).
la ciudad. Es por ello, que en los die- Historia de las Mujeres, t. 4. Madrid: Taurus, 2003, pp.
cisiete artículos de su Declaración “se 53-70.

limita a trasponer a las mujeres las ven-



tajas de estado de derecho insistiendo
en el carácter bisexuado de la comuni- Gravidez
dad civil y política” (SLEDZIEWSKI,
2003, p. 66). Otra obra importante y
Falar em gravidez é falar em
que provocó el rechazo de los conser-
fêmea. Esta ainda é uma associação
• 347 •
inevitável, por ser a gravidez uma con- Badinter (2010) enfatiza que na so-
dição biológica particular às fêmeas, ciedade moderna reorganizou-se uma
desencadeada – ou passível de o ser “economia da vida”, uma gestão téc-
– nos seus corpos. A capacidade re- nico-administrativa da vida, por meio
produtiva da mulher se dá a partir da de políticas sobre os corpos (ventres),
as quais se efetivam de muitas formas,
menarca (entre nove e 16 anos) e man-
por vezes tão imperiosas que tiveram
tém-se até a menopausa (entre os 45
um peso incalculável sobre os corpos
e 55 anos). A gravidez ocorre quando
(ventres) das mulheres. A partir dos sé-
um óvulo fecundado se ixa à mucosa
culos XIX e XX, acentua-se a legitimi-
uterina – o endométrio –, originando dade da maternidade biológica – a cen-
um embrião. O embrião humano passa tralidade outorgada ao corpo da mãe
por um processo de desenvolvimento como condicionante da saúde do/a i-
não somente em termos de peso e es- lho/a. Esse posicionamento do corpo
tatura, mas também no que se refere à feminino teve profundas inluências
complexidade e organização biológica, nas concepções e políticas em torno
num processo de várias fases, indo da da maternidade, destacando-se, aí, a
ovular à fetal, intermediadas pela em- medicalização da gravidez e do parto;
brionária. nesse contexto, que só se aprofunda
Etimologicamente, gravidez e radicaliza desde então, as mulheres-
-grávidas tornam-se objeto de uma vi-
vem do latim gravis, que signiica pe-
gilância ativa, os médicos transformam
sado, um corpo que se deixa fecundar,
a gravidez numa ascese controlada, a
o que remonta à composição e/ou ao
reprodução pertence à esfera materna,
desenvolvimento de um outro corpo,
as técnicas de reprodução moderna
abrigando-o literalmente em si, e se minimizam a participação masculina,
afetando por esta alteridade. A gravi- a forma tradicional de solidariedade
dez não é algo que passa despercebido feminina se desorganiza e as mulheres
na vida das mulheres, uma vez que se perdem sua “autonomia” no domínio
trata de um acontecimento revestido da reprodução (ROHDEN, 2003).
de cada vez mais complexidade nas so- Ocorre, assim, uma re-moraliza-
ciedades contemporâneas. Em função ção da gravidez, e o período de gesta-
dessa complexidade, em larga escala ção ganha status, na cultura ocidental
decorrente de sua medicalização e tec- no decorrer dos séculos XX e XXI –
nologização, a gravidez não só abala o um/a ilho/a deixa de ser concebido/a
sossego e a estabilidade das mulheres, meramente como obra do destino e
passa a se conigurar como um projeto
mas interfere (ainda que temporaria\

• 348 •
de vida, que demanda investimentos contemporâneo, mais amplo, que se
de várias ordens: antes da concepção, associa a uma rede de práticas e de
durante a gestação e ao longo de sua saberes, tais como: cuidados de pré-
vida, depois do nascimento. Um vas- -natal, cursos especializados, consultas
to corpo de conhecimentos está im- médicas, academias, alimentos dife-
plicado nesse processo e tais conhe- renciados. Diferentes pedagogias, nas
cimentos também incidiram sobre a culturas contemporâneas, preparam e
produção de uma nova representação ensinam as mulheres, estimulando-as,
de mulher-mãe e de seu envolvimento quando grávidas, a submeterem o seu
na gravidez, no parto e na criação dos/ corpo a uma ininidade de cuidados
as ilhos/as. Entendemos (junto com corporais, o que chamamos de nova
outras estudiosas feministas) que essas politização da maternidade: nova, “[...]
representações abriram espaços para não no sentido de inovadora, mas no
ixar a exclusividade da mãe não só no sentido de uma atualização, exacerba-
processo reprodutivo, como também ção, complexiicação e multiplicação
em quase todo o processo de cresci- de investimentos educativo-assisten-
mento e educação das crianças (FOR- ciais” (MEYER, 2006, p. 47) que ob-
NA, 1999; MEYER, 2000; MARTINS, jetivam maximizar, através da saúde
2004, SCHWENGBER, 2006). O pro- materna, a saúde do feto.
cesso da gravidez passa, então, a ser re- Assim, na contemporaneidade,
presentado como um período, ou uma as gestantes são instigadas a aderir à
etapa da vida, que depende das mãos ideia de cuidar de si, cuidar da vida.
super zelosas (e reguladoras) das auto- Cuidar de si implica ainar a escuta em
ridades da saúde e, especialmente, do relação ao próprio corpo, a um cons-
corpo – de preferência, disciplinado – tante exercício de autodomínio, disci-
da própria mulher. As grávidas, na con- plina e vigilância de si. É conferido às
temporaneidade, assim que acabam de grávidas o dever de corrigir e aperfei-
receber a conirmação da gravidez, já çoar seu próprio corpo e desenvolver
se veem afogadas numa enxurrada de competências necessárias para cuidar
informações, conselhos e advertências; do outro – feto/criança – e da vida.
representação propalada em inúmeras Do ponto de vista de Forna
publicações, na literatura e na arte, nos (1999), o que se complexiica a partir
tratados médicos, por diferentes dis- da segunda metade do século XX, em
cursos, da medicina à educação física. relação aos séculos anteriores, é a exal-
Tais discursos remetem à “in- tação da vida intraútero. Expande-se
venção do corpo grávido” (SCHWEN- com mais força, a partir daí, a ideia de
GBER, 2006) e a um movimento que é no primeiro período – o gestacio-

• 349 •
nal, no útero – que o trajeto da saúde ciais na criação dos/as ilhos/as, com
do indivíduo se deine. A saúde passa zelo pela integridade física e moral e
a ser, assim, administrada e gerenciada pela educação.
“desde o embrião até o leito de mor- A gravidez é, então, carregada
te”, como destaca Meyer (2006). de múltiplos signiicados em muitas
Abre-se um campo de estu- culturas (talvez na maioria). Para viver
do acerca da vida intraútero. É nesse a gravidez, as mulheres têm sido cres-
contexto que a representação do feto
centemente incitadas ao planejamento
como uma “pessoa plena de direitos”
rigoroso, a uma vigilância intensiica-
(MEYER, 2006) se torna possível, e
da, ampla e complexa de cuidados cor-
tal representação, quando aceita e le-
porais, uma maternidade responsável,
gitimada, tem profundas implicações
carinhosa, protetora, emocional e mo-
sobre as vidas das mulheres gestantes.
Esse reposicionamento do feto – de ral. Parece que raras são as mulheres
um não ser ainda para um ser desde que, quando grávidas, na sociedade
já sujeito de direitos – e a consequen- contemporânea, conseguem icar fora
te exacerbação da responsabilidade dessa rede educativa de regulação/
materna foram intensiicados pelas controle.
tecnologias de imagens intrauterinas
Maria Simone Schwengber
(amniocentese, ultrassonograia, eco-
Dagmar Estermann Meyer
graias 3D, eco-Dopler, vídeos) que
descrevem e monitoram minuciosa e Referências e sugestões de leitura
antecipadamente o desenvolvimento
físico, cognitivo e emocional do feto, BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito
do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
em articulação com as teorias da psico-
logia do desenvolvimento. FORNA, Aminatta. Mãe de todos os mitos: como a so-
ciedade modela e reprime as mães. Rio de Janeiro: Ediou-
Estudiosas feministas como ro, 1999.
Forna, (1999), Lupton (1999), Meyer,
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: cursos
(2006) e Schwengber (2006) defendem do Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins
o argumento de que essas representa- Fontes, 2004.

ções abriram espaços para estabelecer LUPTON, Deborah. Risk and the ontology of pregnant
e ixar a preponderância da mãe (aque- embodiment. In: LUPTON, D. Risk and sociocultural
theory: new directions and perspectives. Cambridge/UK:
la que cuida e se cuida) como princi- University Press, 1999. p. 59-85.
pal responsável, não só pelo processo
MARTINS, Ana Paula Vosne. Visões do feminino: a medi-
reprodutivo estrito senso, mas também cina da mulher nos séculos XIX. Rio de Janeiro: Fiocruz,
pela condução dos procedimentos so- 2004.

• 350 •
MEYER, Dagmar. A politização contemporânea da ma-
ternidade. Gênero: núcleo transdisciplinar de estudos de
gênero – NUTEG, Niterói, v. 6, n. 1, 2006.

MEYER, Dagmar. Discursos que (com)formam corpos


grávidos: da medicina à educação física. Cadernos Pagu, v.
36, p. 283-214, 2011.

SCHWENGBER, Maria Simone Vione. Donas de si? A


educação de corpos grávidos no contexto da Pais & Fi-
lhos. Porto Alegre: UFRGS, 2006.

ROHDEN, Fabiola. Uma ciência da diferença: sexo e


gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Fiocruz,
2001.

• 351 •
Higienismo

O higienismo, como uma for-


ma de pensar, pode ser compreendido
como um desdobramento da medicina
social. Com a Revolução Industrial e o
crescimento urbano desordenado, no
inal do século XIX e início do sécu-
lo XX, surgem as desordens de saúde
relacionadas à concentração urbana e
às más condições sanitárias, fazendo-se
necessária a presença do médico. Com
isso, surge a medicina social, apoiada
no franco desenvolvimento da micro-
biologia e da bacteriologia, que tinham
por objetivo o controle das epidemias
que acometiam a população da época
(MACHADO et al., 1978; ROSEN,
1994).
Machado (1978) ressalta dois
princípios da intervenção médica no
Estado: o primeiro princípio geral, de
localização, ou seja, de afastamento dos
problemas do centro da cidade para a
periferia e o segundo, de organização
do espaço interno, com a inalidade de
reunir ordenadamente.
Além da utilização do discurso
médico como poder político, a assis-
tência à saúde da população, tem como
inovação a implantação das soluções
asilares, como os hospícios, orfana-
tos, abrigos, unidades hospitalares de
isolamento, cemitérios, etc., afastando
do convívio social todo aquele que se
afasta do conceito de norma estabele-
cido (FOUCAULT, 1977).

• 352 •
Para Jurandir Freire Costa que se torna descendente, normalizan-
(1989), a inluência do discurso médi- do formas de ser (FOUCAULT, 1990;
co higienista sobre as famílias, durante 2003; NARADOWSKY, 2001).
o período colonial brasileiro, referen- Estas transformações são di-
da a família como célula da sociedade, retamente inluenciadas por saberes e
atuando sobre a saúde, as doenças, os verdades que controlam e contornam
modos de ser e agir, medindo e con- os indivíduos de um determinado gru-
trolando as emoções, psicologizando a po social; verdades como “o conjunto
de procedimentos regulado para a pro-
conduta social, instituindo o conceito
dução, a lei, a repartição, a circulação
de normal, como comportamento hi-
e o funcionamento dos enunciados”
giênico.
(FOUCAULT, 2004, p.14), numa mi-
A presença do médico, aliada ao crofísica do poder que atua no coleti-
discurso higienista, legitimam o pro- vo a partir do individual, que inventa
cesso de higienizar, medicar e dissolver infâncias ao mesmo tempo em que
toda e qualquer diferença. (MACHA- subjetiva os infantis (FOUCAULT,
DO, LOUREIRO, LUZ & MURICY, 1990), a partir de diversos discursos
1978). Cada etapa da vida humana – que foram sendo construídos ao longo
desde a gestação ao climatério, da in- da história. A maneira como as pesso-
fância à velhice – torna-se objeto de as agem está diretamente relacionada à
cuidados médicos especíicos, inde- maneira como pensam. Essa maneira
pendentemente de haver ou não sinto- de pensar, claro, é construída a partir
mas mórbidos (SINGER, CAMPOS, de verdades que são transmitidas atra-
vés da tradição e educação.
& OLIVEIRA, 1978).
Os processos de subjetivação
Dessa forma, a educação da
são os procedimentos “[...] pressu-
criança se torna o cerne da proposta de
postos ou transcritos aos indivíduos
desenvolvimento de hábitos de higiene
para ixar sua identidade, mantê-la ou
e a escola se torna o local de excelên- transformá-la em função de determi-
cia, onde esse processo de subjetivação nados ins, e isso graças a relações de
e construção do sujeito criança deveria domínio de si ou de conhecimento de
ocorrer, utilizando práticas discursivas si (FOUCAULT, 1997, p.109). Logo, é
de forma ampla e contínua numa pe- sobre o corpo que são construídas as
dagogização da infância, governando-a linhas de subjetivação, moldando, num
desde a mais tenra idade, disciplinando, conjunto de técnicas de si, que reque-
criando corpos dóceis e úteis, atuando rem uma certa exteriorização e objeti-
no eixo político da individualização vação da própria imagem, um algo ex-

• 353 •
terior, convertido em objeto, no qual a cria entre o “normal” e o que resiste
pessoa possa ver a si mesma (LAROS- na sua diferença, é o que não se rotula,
SA, 2002). pois, uma vez diferente, não se identi-
Para Foucault (2001, p.293-334), ica dentro dos padrões de uma socie-
a vida familiar vai se transformando dade hierarquizada, “é o que se situa
numa vida de vigilância contínua, da no limiar do tornar-se” (FOUCAULT,
vida e das atividades da criança, esta 2001, p.54). O monstro surge no “cam-
deve ser o principal objeto da atenção po de um domínio jurídico-biológico”,
do adulto, constituindo-se a nova fa- combinando o “impossível com o in-
mília numa “espécie de núcleo restrito, terdito”, revelando um descompasso
duro, substancial, maciço, corporal afe- ente o “natural e a natureza”, dando
tivo da família: a família-célula no lugar origem à noção de indivíduo “perigo-
da família relacional, a família –célula so”, que deverá ser corrigido e separa-
com seu espaço corporal, com seu es- do, afastado, excluído, para não conta-
paço afetivo, seu espaço sexual, que é minar a sociedade.
inteiramente saturado pelas relações
diretas pais-ilhos” (ibid., p.314), tão Maria Antonia Pinto Pizarro
próximos e íntimos que os pais atuem
Referências
como agentes de saúde, higienizando,
numa relação de cumplicidade e res- COHEN, Jefrey. A cultura dos monstros. In: Silva, To-
ponsabilização mútuas. Com isso, “in- más (org. e Trad.). A pedagogia dos monstros – os praze-
res e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte:
veste-se essa família, em nome da do- Autêntica, 2000
ença, de uma racionalidade que a liga a
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Fami-
uma tecnologia, a um poder e um sa- liar. Editora Graal: RJ, 1989, 3ª edição.
ber médicos externos. A nova família,
FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de
a família substancial, a família afetiva e Janeiro: Forense Universitária, 1977.
sexual, é ao mesmo tempo uma família ______. Tecnologias Del yo y otros textos aines. Barce-
medicalizada (ibid., p.317). lona: Paidos., 1990.

O reconhecimento do diferen- ______. Subjetividade e verdade. In: Foucault, M. Resu-


te como portadores de doenças ou de mo dos cursos do College de France (1970-1982). Rio de
Janeiro: Zahar, 1997.
grupos de risco, de monstros “exige
um repensar radical da fronteira e da ______. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

normalidade” (COHEN, 2000, p.31). ______. Vigiar e Punir – nascimento da prisão. Petrópo-
O monstro é aquele que revela o fra- lis: Vozes, 2003, 27ª edição.

casso do ‘modo-de-ser pré-determina- ______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal,


do’, aquele que habita a fresta que se 2004, 20ª edição.

• 354 •
LAROSSA, Jorge. Tecnologias do Eu e educação. In: Sil- existe uma NHC está muito relacio-
va, T. (org.). O sujeito da educação: estudos foucaultia-
nos. 5ª edição. Petrópolis: Vozes, 2002. nada ao trabalho organizado pela his-
toriadora Lynn Hunt, cujo título é “A
MACHADO, R., Loureiro, A., Luz, R., & Muricy, K.
Danação da norma: a Medicina social e constituição da Nova História Cultural”, traduzido e
psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
publicado no Brasil no início da déca-
NARADOWSKI, Mariano. Infância e poder: conforma- da de 1990, onde apresenta textos que
ção da Pedagogia moderna. Bragança Paulista: Editora da
Universidade São Francisco, 2001.
discutem e tratam de temáticas e abor-
dagens realizadas no âmbito da NHC.
ROSEN, G. Uma história da saúde pública. São Paulo:
ABRASCO, HUCITEC, UNESP. 1994, 2ª edição.
É necessário recordar que há um
consenso entre @s historiador@s que
SINGER, P., Campos, O., & Oliveira, E. M. Prevenir
e Curar. O controle social através dos serviços de saúde.
têm escrito e praticado história sob o
Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1992 . enfoque da História Cultural a respeito
das origens dessa modalidade. O mo-
Sugestões de leitura mento mais expressivo dessa possível
origem estaria no conceito de menta-
AGACINSKI, Sylviane. Política dos sexos. Rio de Janei-
ro: Nova Fronteira,1988. lidades, cujo emprego até a exaustão
esteve a cargo d@s historiador@s liga-
CANGUILHEN, George. O normal e o patológico. 5ª
edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. dos à Nova História francesa, nos anos
1960 e 1970, principalmente.
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Fami-
liar. Editora Graal: RJ, 1989, 3ª edição. A noção de mentalidades foi
abandonada na medida em que se en-
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo:
Perspectiva. 1993. xergou nela uma forma de padronizar
______. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
a ação histórica e ainda tornar idênti-
cas as concepções de mundo presentes
MERTHY, Emerson Elias - O Capitalismo e a saúde pú-
blica - Campinas, SP: Ed. Papirus,1987.
em certa época. Certamente que esse
pressuposto não esteve na origem da
• noção de mentalidade, mas a sua vul-
garização parece ter produzido exage-
(Nova) História cultural ros que promoveram a superação.
Em relação à História Cultural,
O entendimento de que existe o historiador Peter Burke (2002), ele
uma Nova História Cultural não pode próprio um autor de grande inluência
ser tomada como consensual, uma vez entre @s historiador@s culturais brasi-
que muitos de seus pressupostos teó- leiros, chama a atenção para trabalhos
rico-metodológicos já estavam presen- que apresentavam questões atinentes a
tes em outras práticas de elaboração do cultura já no século XVIII. Percebe-se
conhecimento histórico. A ideia de que é que a concepção de História Cultural

• 355 •
está diretamente articulada aos pesqui- relacionado a valorização da noção de
sadores que se sentem mais próximos cultura enquanto ação e componente
ao legado da ecole des Annales, surgida explicativo de grande relevância para
na França na segunda década do sécu- as decisões que os indivíduos, enquan-
lo passado. Assim, o abandono da no- to agentes históricos, adotam no con-
ção de mentalidades e a aproximação texto mais amplo da própria história.
com outros campos do conhecimento, A mecânica determinante das variantes
especialmente, a antropologia passa- econômicas é compreendida, ela mes-
ram a caracterizar a História Cultural. ma, como um componente da cultura
Essa aproximação com a antropolo- e, que, portanto, não possui um caráter
gia estabeleceu no plano da pesquisa absoluto. Essa característica tem ren-
o empréstimo do conceito de cultura dido à história cultural a acusação de
pleiteado por Clifford Geertz, que en- ser culturalista em excesso, diferente-
tende cultura como padrão, historica- mente das mentalidades que era vista
mente transmitido, de signiicados in- como psicologizante. Da excessiva va-
corporados em símbolos, um sistema lorização de aspectos psicológicas ou
de concepções herdadas, expressas em da economia, estaria a história cultural
formas simbólicas, por meio das quais praticando o “determinismo” cultural.
os homens se comunicam, perpetuam Contudo, o aspecto mais expressivo é
e desenvolvem seus conhecimentos a prática interdisciplinar.
e suas atitudes acerca da vida. (GE- Das relações com disciplinas
ERTZ, 1989, p. 89-90) como a Geograia que marcaram os
A deinição de Geertz se ajusta Annales, a História Cultural voltou-se
ao diálogo estabelecido com a antro- muito mais para a antropologia, para
pologia, possibilitando que as ações e a sociologia e para a teoria literária. E
compreensões dos homens sejam valo- nesse novo instante parece tomar for-
rizadas como integrantes do processo ma, diferentes compreensões a respei-
histórico, sem estarem plena e exclusi- to do saber histórico que o (re)aproxi-
vamente submissas ao determinismo ma mais do campo das artes.
presente nas macro-explicações. Iden- Nesse sentido, entendo que a
tiica-se que há uma distinção entre a palavra nova agrega a história cultu-
antiga história das mentalidades pois ral uma marca veriicável não apenas
essa esteve muito próxima do que hoje no campo da semântica, mas da com-
vem sendo denominado de represen- preensão do que é a história-conheci-
tações. mento e suas limitações. Um detalhe
O essencial, em relação ao es- importante diz respeito ao chamado
tabelecimento da história cultural está “giro lingüístico” produzido nos Esta-

• 356 •
dos Unidos, produzido motivado pela e na América Latina. No Brasil, segun-
descrença em relação ao potencial ex- do alguns especialistas, dois autores
plicativo do conhecimento histórico, podem ser lembrados na condição de
fora do ambiente da narrativa histórica referência à preocupação com elemen-
enquanto produtora de sentidos. tos da cultura como fenômenos que
A Nova história cultural pratica- merecem atenção nas análises: Sérgio
da nos Estados Unidos trouxe para o Buarque de Holanda e Gilberto Freyre.
centro dos debates teóricos a questão O primeiro autor é, até deter-
da narrativa. Peter Burke (1992) de- minado ponto, tomado como um dos
monstra que a narrativa nunca esteve precursores da história Cultural no
ausente do metier historiográico, mas Brasil, sobretudo em decorrência dos
sua inserção no centro dos debates está livros “Raízes do Brasil” e “Caminhos
articulada com a dúvida acerca da cien- e Fronteiras”, para icar apenas em
tiicidade da história. Dois importantes dois trabalhos da obra desse intelec-
componentes surgem com algum des- tual. Já Freyre, bastante criticado – e
taque nas pesquisas que partem desse mesmo censurado – por conta de sua
campo: a interdisciplinaridade e a pre- leitura branda a respeito das questões
ocupação com a narrativa histórica. raciais no Brasil, é também responsável
A interdisciplinaridade esteve por uma obra impressionante. Men-
sempre no interior da prática da pes- ciono “Casa Grande e Senzala” como
quisa histórica relacionada a escola referência para a História Cultural em
francesa. Entre @s historiador@s na decorrência de sua sagacidade na per-
NHC ela se coloca como uma constan- cepção entno-antropológica em rela-
te que exige um diálogo ininterrupto ção aos hábitos dos negros escraviza-
com conceitos e procedimentos pró- dos, em um espaço e tempo deinidos.
prios à(s) disciplinas vizinha(s) assim A coletânea “Domínios da His-
como em relação aos objetos, numa tória”, cuja primeira edição é de 1997,
tentativa de conciliar as compreensões organizada por Ciro Flamarion Cardo-
macroestruturais com a perspectiva de so e por Ronaldo Vainfas, dedica um
vida dos sujeitos históricos. No inter- capítulo dedicado à história cultural e
regno desse exercício, a adoção da lei- suas possíveis relações com a história
tura micro-histórica também adquiriu das mentalidades. Esse livro contem-
um destaque importante no interior na pla em suas três seções, dezenove ca-
NHC. Trabalhos como o Carlo Ginz- pítulos dedicados a temas e questões
burg e Giovani Levi são considerados recorrentes na historiograia brasileira
exemplos ou modelos de pesquisas, daquele período. Por sua vez, a histo-
inluenciando pesquisadores no Brasil riadora Sandra Pesavento publicou o

• 357 •
livro “História Cultural; Experiências Este último tem o mérito e, ao mesmo
de Pesquisa”, coletânea de artigos que tempo, demérito de ser tomado como
oferecem um painel sobre algumas um manual.
temáticas da História Cultural. O his- Ponto muito espinhoso da
toriador Francisco Falcon se introduz NHC é sua relação com a narrativi-
nessa discussão em “História Cultu- dade. Para muitos isto é um problema
ral; uma nova visão sobre a sociedade porque pode colocar a História em
e a cultura” publicado em 2002. Dois igual condição de apreensão do passa-
anos antes, Antonio Edmilson M. Ro- do com a literatura, por exemplo. Não
drigues publicou com Falcon o livro se trata de discutir apenas o caráter
“Tempos Modernos; ensaios de Histó- narrativo da História, mas seu estatuto
ria Cultural”, assinalando fortemente enquanto campo de saber possuidor
uma tendência d de teoria e métodos que lhe assegu-
@s historiador@s a tomarem rem autonomia e distinção no âmbito
temas e problemas relevantes no âm- de outras áreas do conhecimento. Tal
bito da cultura e examiná-los sob o en- debate está ancorado em leituras de
foque da história. Em minha opinião, autores como Michel Foucault, Jacques
os trabalhos historiográicos mais ex- Derrida, Hayden White, entre outros.
pressivos dessa corrente são “Varie- O cerne da discussão refere-se sobre
dades de História Cultural” e “O que a capacidade da História em dar conta
é História Cultural”, ambos do inglês de explicações do passado, ou estabe-
Peter Burke. Nos dois é possível en- lecer um conhecimento a respeito da-
contrar uma interessante retrospec- quilo que não é mais qualitativamente
tiva da história da NHC, percebendo distinto quando comparado à um texto
inclusive as alterações que ocorreram literário. Um alerta: essa discussão não
na historiograia na segunda metade se restringe a questão entre história e
do século passado e, concluído que icção, mas sim entre a apropriação e
ela encontrou sua vitalidade no inte- emprego das estratégias discursivas na
rior da prática da pesquisa, o que sig- construção de um modelo de explicita-
niica que poderá desaparecer ou se ção do passado.
transformar. Dois outros trabalhos Todo esse imbróglio ocorre no
que podem ser lembrados, são “Para contexto do paradigma da pós-moder-
uma história Cultural”, organizado por nidade que se apresenta no interior do
Jean-Pierre Rioux e Jean-François Si- campo histórico como relativizador da
rinelli e, “Compendio de história cul- capacidade dessa disciplina em ser au-
tural; teorias, práctica, palavras-clave”.

• 358 •
tônoma e suicientemente segura para dos direitos de grupos considerados
apresentar uma leitura a respeito de um até ali como minorias fortaleceram
fenômeno pretérito. Uma das nuances pesquisas que apontaram para o locus
que apareceram é a inserção da Histó- histórico das mulheres, potencializan-
ria no interior de “pool” de disciplinas do investigações em que o gênero mo-
cuja denominação tem sido “Estudos biliza a atenção sobre questões pouco
Culturais”, espaço de práticas de cons- ou mesmo inexploradas pela histo-
trução de conhecimento amplo o sui- riograia. É importante apontar que
a reconiguração do campo histórico,
ciente para contemplar muitas e distin-
especialmente em relação à temas de
tas disciplinas as quais não se pensaria
gênero não se deu exclusivamente no
possuírem vieses de interlocução com
âmbito da história cultural, mas tam-
a História.
bém na história social e mesmo em es-
No contexto das práticas de
tudos de história econômica.
pesquisa, no Brasil é destacável o cres- A inserção da categoria de aná-
cimento de temas de forte pendor lise gênero, permite ressaltar a capaci-
político e na direção de pautar repara- dade do campo histórico em se mo-
ções sociais. É o caso dos estudos de vimentar, garantindo à história certo
gênero, responsável por implantar uma dinamismo nas suas práticas intelec-
pauta de investigação e relexões como tivas. E a diversidade das pesquisas
a ocultação do feminino e de outras que continuam emergindo apontam a
questões relacionadas aos LGBTs, por fertilidade do campo em que a proble-
exemplo. A movimentação em torno mática a respeito do gênero mobiliza
de uma historiograia a respeito dessa interesse e, em certa medida, retoma a
problemática se desenvolveu, provo- perspectiva da história enquanto ins-
cando não apenas o crescimento da trumento de debates políticos.
produção bibliográica em forma de li- Sem pretender encerrar a ques-
vros e artigos, mas igualmente na orga- tão, é possível considerar a história
nização de eventos acadêmicos, como cultural enquanto uma prática intelec-
o “Fazendo Gênero” e o “Desfazendo tual em cujo interior os procedimentos
Gênero” e outros. metodológicos adquiriram pluralidade
A questão de gênero, se benei- na medida em que os objetos se diver-
ciou das profundas mudanças culturais siicaram. Enquanto prática intelectiva,
veriicadas no Ocidente, especialmente a história cultural também provocou
a partir dos anos 1960, como o movi- deslocamentos nas certezas a respei-
mento feminista. Nesse contexto, os to da linguagem historiográica. E a
debates a respeito dos direitos sociais, situação se tornou mais complexa à

• 359 •
medida que a proliferação temática KUYUMJIAN, Marcia de M. Martins e MELLO, Ma-
ria hereza N. de (orgs.). Os espaços da história cultural.
indicou experiências históricas peculia- Brasília: Paralelo 15. 2008.
res, veriicadas em espaços peculiares, PERROT, Michele. Minha história das mulheres. São
o que provocou desconianças sobre Paulo: Contexto, 2007.

a validade dos modelos assertivos e PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cul-
tural. 2ª. ed, 2ª.reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
macro que foram desenhados desde a
segunda metade do século XIX, sobre- ____ (org.). História Cultural, experiências de pesquisa.
Porto Alegre: EDUFGRS, 2003.
tudo na Europa, e cuja ambição fora
POIRRIER, Philippe. Les enjeux de l´histoire culturelle.
transformar a história em Ciência do Paris: Seuil, 2004.
passado.
RODRIGUES, Antonio Edmilson E. & FALCON,
A história cultural recolocou Francisco José C. Tempos modernos; ensaios de história
cultural. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
em pauta uma antiga e tradicional ca-
racterística do campo histórico: a sua RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-Pierre (dirs.).
Para uma história cultural. (Trad. para Portugal: Ana
instabilidade e a constante capacidade Moura). Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
da prática historiadora de produzir crí-
Indicações de leitura
ticas acerca de seus procedimentos.
BURKE, Peter. O que é história Cultural. Trad. Sérgio
Eudes Leite Góes de Paula. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Trad.


Referências Alda Porto. Rio de Janeiro Civilização Brasileira, 2000.

COLLING, Ana Maria e TEDESCHI, Losandro An-


BURKE, Peter. O que é história Cultural. Trad. Sérgio
tonio (orgs.). Dicionário Crítico de gênero. Dourados:
Góes de Paula. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. EdUFGD, 2015.

BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Trad. DANIEL, Ute. Conpendio de Historia Cultural; teorias,
Alda Porto. Rio de Janeiro Civilização Brasileira, 2000. práctica, palavras clave. (Trad. para Espanha: José Luis
Gil Aristu). Madrid: Alianza, 2005.
BURKE, Peter (org.). A escrita da história; novas pers-
pectivas. São Paulo: Edunesp, 1992. RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-Pierre (dirs.).
Para uma história cultural. (Trad. para Portugal: Ana
Moura). Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
DEL PRIORE, Mary. História das mulheres no Brasil.
São Paulo: Contexto, 1997. VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e His-
tória Cultural. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e ____
FALCON, Francisco. História Cultural; uma nova visão (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodo-
sobre a sociedade e a cultura. Rio de Janeiro: Campus, logia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
2002.

GEBRAN, Philomena (org.). História Cultural; varias •


interpretações. Goiânia: Vieira, 2006

GEERTZ, Cliford. A interpretação das culturas. São


História das mentalidades
Paulo; LTC, 1989.

HUNT, Lynn (org.). A nova história cultural. São Paulo:


A coleção francesa “Histoire des
Martins Fontes, 1992. femmes”, organizada por Georges Duby
• 360 •
e Michelle Perrot (1991-2, 5v) demar- gavam que os próprios conceitos dessa
ca o campo da produção da história de “nova história” pudessem ser fertili-
gênero alinhado ao que foi conhecido zados pelos campos da sociologia, da
etnologia, da geograia histórica, da
como a “história das mentalidades”.
demograia. O historiador inglês Burke
O programa da “história das
(2000, p.129) considerará a ‘história
mentalidades” compreendia conceitos
das mentalidades’ como uma aborda-
e práticas historiográicas onde o his-
gem durkeimiana de ideias, embora o
toriador privilegiava a história social
sociólogo preferisse a expressão “re-
das atitudes e dos comportamentos
presentações coletivas”. Contempora-
coletivos. Demarcava sua hegemonia
neamente adotam-se para os mesmos
na “nova” historiograia francesa e
fenômenos as noções de ‘‘modos de
em inúmeras revisões a “história das
pensamento”, “sistema de crenças” ou
mentalidades” é vista como o ponto de
“mapas cognitivos”. No entanto, até
amadurecimento da dita “terceira gera-
chegar a tais proposições é necessário
ção” do grupo de historiadores reuni-
retroceder até o século XIX. Encontra-
dos desde 1920, em torno da Revista
remos o descontentamento na Alema-
“Annales d´Histoire Économique et Socia-
nha quanto à prática da história produ-
le”, lançada na França por Marc Bloch
zida pela “historiograia metódica” (ou
e Lucien Febvre, desde a Universidade
positivista), então homogeneizada por
de Estrasburgo. Ambos serão reco-
Leoplod Von Ranke. Segundo ele (e
nhecidos como da “primeira geração”,
seus seguidores) a história seria “cien-
aquela que vai sugerir a ideia de unii-
tíica”, desde que adotasse a descrição
cação de esquemas totalizantes como
dos “fatos tal como se passaram” – ou
o das mentalidades. Ainda que esse
não seria ciência. Entendiam urgente a
enquadre geracional possa ser redu-
superação das formas narrativas basea-
cionista, é útil pedagogicamente para
das em crônicas, (“pura literatura”), as-
sinalizar as principais contribuições e
sim como os métodos praticados pelo
rupturas da “escola dos Annales”. Os
romantismo, pelo idealismo alemão.
historiadores combatiam a história
Preservavam estrategicamente as no-
événementielle ou historicizante que pre-
ções “da alma ou do espírito nacional”
dominava na universidade francesa no
centralizadas nas urgências do Estado-
início do séc. XX, e se empenhavam
Nação. Orientação muito conveniente
por um “novo tipo de história’ confor-
de uma história política, uma vez que
me uma agenda do “estudo do homem
vigorava a geopolítica europeia neces-
no tempo”. Opunham-se à tradicional
sitada de inscrições simbólicas nacio-
história das ideias baseada nas extraor-
nais e integradoras das diferenças re-
dinárias trajetórias individuais e advo-

• 361 •
gionais- a exemplo da Itália ainda em Sociale”; outro, a presença do neo-his-
luta pela sua Uniicação. De todo modo toricismo de Dilthey, Rickert, Windel-
a história “cientíica” propugnaria a bland, Simmel, Weber, Meinecke, Tro-
estrita consulta aos arquivos oiciais e eltsch, Croce, Coolingwood e outros.
demais fontes, observados os critérios Em sua síntese historiográica Vainfas
da objetividade e da neutralidade dos (1997) reconhece a precedência ou
pesquisadores. A contestação ou o es- contemporaneidade das contribui-
gotamento da “história cientíica” par- ções de historiadores como Michelet
tirá da própria cena alemã, inicialmente (“La sorciére”, 1982), Georges Lefebvre
através de tentativas isoladas como a (‘‘La grande peur”), o holandês Johan
de Karl Lamprecht, da Universidade Huizinga (“O outono da Idade Média”,
de Leipzig. Nos vários volumes da sua 1919) ou mesmo do sociólogo alemão
obra “History of Germany” (1891-1909) Norbert Elias (“O processo civilizador”,
o historiador propunha que a História 1939). Mas sem dúvida de qualquer
seja uma ciência sociopsicológica. O ângulo que se procure retraçar os elos
autor acompanhava as novas propos- que conduzem para a historiograia da
tas da psicologia social de seu colega “história das mentalidades”, no centro
Wilhelm Wundt e da “geograia hu- estarão Bloch e Febvre. O primeiro
mana” de Friedrich Ratzel, onde na buscará seu material na coesão social,
obra ‘‘Antropogeograia”, na realidade nas representações sociais, no método
uma aposta numa “ história coletiva”. comparativo proposto pelo sociólo-
Estava a esboçar-se uma “nova his- go Èmile Durkeim (1868-1917) e nos
tória social” mais ampla e interessada estudos de memória de seu discípulo
no conjunto das atividades humanas, Maurice Halbwachs. Sua obra de gênio
enriquecida pelas aproximações com do gênero da história das mentalidades
as demais ciências humanas e sociais. será a “Les rois thaumaturges. Étude sur
Lamprecht será seguido nos EUA por le caractère surnaturel attibué à la puissance
Harvey Robinson e Frederick Jackson royale” (1924). Escreve anos após a “La
Turner na década após 1890. Esse société féodale” (1939). Atem-se à história
lança o seminal estudo sobre o papel da crença no poder real de cura dos reis
das fronteiras, o “The Signiicance of the e rainhas de França e Inglaterra, perce-
Frontier in American History”. O início bendo nessa “ilusão coletiva” a persis-
do século XX será pautado por inicia- tência da mentalidade “primitiva”, de
tivas que vão corroborar uma frente ou todo refutável sob a luz da experiência.
“revolta antipositivista” em dois senti- Já Febvre vai inspirar-se no conceito de
dos: o que antecede a criação da Re- mentalidade primitiva ou pré-lógica do
vista “Annales d´Histoire Économique et antropólogo Lévy-Bruhl (“La mentalité

• 362 •
primitive”, 1927) e escreve o “ Le problè- voga estruturalista que revolucionava
me de l´incroyance au XVI siècle: la religion o pensamento francês. No computo
de Rabelais”(1942). Na cena da pesquisa geral a “história das mentalidades” re-
antropológica inglesa Evans-Pritchard presentará uma das mais amplas for-
(“Witchcraft, oracles and magic, among the mas de aplicação do estruturalismo nas
Azende”, 1937) recolhe elementos so- ciências sociais e humanas, um estru-
bre os sistemas de crença dos azende turalismo historicizado ou epistêmico.
da África Central. Evidenciam-se nes- A construção e disseminação do mo-
sas obras o rigor metodológico quanto vimento do pensamento estruturalista
aos quesitos de comprovação e argu- percorrem dos anos 1950, identiicado
mentação direcionados ao tecido cul- com a trajetória intelectual francesa
tural subjacente ao denominado sen- após 1945, aos anos de 1966, quando
so comum e a retenção dos sistemas inicia a sua desconstrução até a atua-
de crença passíveis de interpretação. lidade. Sua ilosoia “é partilhada por
Decorrido alguns anos nos “Annales” três ciências que colocam o incons-
despontará a que foi conhecida como ciente como lugar comum da verdade:
a “era Braudel” referente à “segunda a linguística geral [...]; a antropologia,
geração” de historiadores, com Ernest quando esta se interessa pelo código
Labrouse, Pierre Goubert e outros. No da mensagem mais do que pela própria
cume, Fernand Braudel, ao publicar mensagem, pelo jogo de signos mais
sua tese “La mediterranée et le monde medi- do que pelo seu conteúdo; a psicaná-
terranée à l´`epoque de Philippe II” (1949). lise, quando percebe o inconsciente
O historiador inovará surpreendente- como efeito da linguagem”. (Dosse,
mente a concepção do espaço/tempo. 2007, p.13). O estruturalismo (ou es-
Partirá da concepção de uma tríplice truturalismos) teve no ano de 1966
dinâmica: a primeira estaria alicerçada o seu “momento-farol” (ibdem,p26)
num certo determinismo geográico, a como uma espécie de Koinè de toda
“história quase sem tempo” que deno- uma geração intelectual nas pesquisas
minará “o tempo longo”; seguida por da linguística, da semiótica, da psicaná-
uma determinação mais conjuntural, lise, da teoria literária. Paradoxalmente
“o tempo médio” e inalizada pelo “ nos anos de 1970 a “nouvelle histoire” se-
tempo curto” dos acontecimentos su- guirá o movimento justo no momento
bordinados às estruturas sociais. de seu reluxo entre as demais ciências.
É evidente a ambição intelec- De todo modo os anos 1960-1970 em
tual da “história das mentalidades” ao diante estarão marcados pelas proposi-
pretender constituir uma “história to- ções da “desconstrução da história”, “a
tal”. Na base seguia os pressupostos da história fragmentada”, a história antro-

• 363 •
pologizada. Sob qualquer prisma que necessário ajudá-la a permanecer ou a
se examine essa historiograia, estava desaparecer?” (ibdem.,p.69)
em operação a oposição do estrutura- A ambiguidade é transformada
lismo ao historicismo com sua carga de em benefício: para Le Goff, as novas
contextualização histórica, a busca das fontes documentais e teóricas irão pre-
origens, a diacronia, a teleologia. Ao encher os “resíduos”, os “vazios” dei-
invés, o estruturalismo instala a busca xados pela história. Sugere ainda que
pelas permanências, ou as invariantes, o quadro estendido das possibilidades
a sincronia, o texto fechado sobre si disciplinares podem fornecer quan-
mesmo. Quando Braudel preconiza “a tiicações mais signiicativas, onde o
longa duração’, e a tripartição tempo- corte sincrônico proposto pela etno-
ral como linguagem comum às ciências logia possibilita a percepção de certas
racionalidades, enfeixadas pelo viés so-
sociais, o faz como forma de adesão a
ciológico. Nas palavras do historiador
voga estruturalista, reagindo às criticas
a “história das mentalidades”: “é tam-
que o campo da história vinha receben-
bém o lugar de encontro de exigências
do. Sobressaem na conjuntura o medie-
opostas[ ]. Situa-se no ponto de junção
valista Georges Duby, Pierre Channu,
do individual e do coletivo, do longo
Robert Mandrou, Emmanuel Le Roy,
tempo e do quotidiano, do inconscien-
Marc Ferro, Pierre Nora, Phippe Ariès
te e do intencional, do estrutural e do
e Jacques le Goff. Premido pela neces- conjuntural, do marginal e do geral.”
sidade de deinições, Le Goff (1995, (ibdem.,p71). Como parte da sempre
p.72, [1974]) enunciaria:“a mentalidade presente discussão epistemológica, o
é aquilo que muda lentamente. História ponto de junção sempre será um mo-
das mentalidades, história da lentidão mento tensionado nas ciências huma-
na história”. Pairam incertezas, à me- nas e sociais. Não aceita Le Goff a
dida que avança essa produção e sin- solução marxista para o dilema quan-
tomaticamente o próprio adotará um do airma que “a mentalidade não é
tom ambíguo sobre a dimensão exata relexo”. E será criticado pela airma-
da noção e da amplitude da “história ção e pelo argumento subsequente-
das mentalidades”. Em texto que per- coexistem numa mesma época e num
manece célebre, avalia que ela “é ain- mesmo espírito, várias mentalidades.
da um conceito novo e já desgastado” O paradoxo estabelecido será entre a
(ibdem.,p.68). Questiona-se sobre sua determinação coletiva ao qual a noção
legitimidade cientíica, como sobre sua de mentalidade está atrelada e a relativa
coerência conceitual, até mesmo sobre autonomia do tecido social e histórico,
sua operacionalidade. E desaia: “É por excelência conlituoso.

• 364 •
Está conlagrada a polêmica após, Vovelle sentencia: “há uma crise
com a vertente marxista da “histó- de identidade da história das mentali-
ria das mentalidades”. Resenhada por dades no fazer histórico” (1998, p.85).
Vainfas (1997, p.140-141), as rupturas Desde os desbravadores como Ma-
são de diversa ordens. A primeira rup- drou e Duby que reuniram determina-
tura constituiu na dissociação da noção dos estudos como sendo próprios da
“inconsciente coletivo” do conceito de “história das mentalidades”, passando
mentalidades e adoção do termo “ima- e culminando com o questionamento
ginário coletivo” por ser mais “opera- dos esquemas explicativos do marxis-
cionalizável” e afastado da psicanálise. mo, tudo lhe indica que a pluralidade
A segunda foi a de colocar em suspei- dos mundos históricos observada pe-
ção a autonomia do mental, ainda que los novos Annales conduziram ao es-
não endossasse qualquer reducionismo facelamento dos campos históricos.
do marxismo vulgar. Dirá: “a história Em suma, a história das mentalidades
das mentalidades é o estudo das me- já apresentava fraturas muito anterior-
diações entre, de um lado, das condi- mente, como alertava Duby. Alguns
ções objetivas da vida dos homens e, chegaram a considerá-la um equívoco
de outro, a maneira como eles a nar- teórico, alicerçado numa improvável
ram e mesmo como vivem” (ibdem., estabilidade de sentimentos e ideias
p.141). Essa concepção revela a exis- (LLOYD, GEOFFREY “Pour um inir
tência de dois esquemas conceituais, avec les mentalités”, 1994). Essas fraturas,
o das ideologias e o das mentalidades, por outro lado, redundaram em fertili-
destinando ao terceiro nível da estrutu- zações, abertura para novos temas, sin-
ra social as mentalidades, airmando-se gulares problemáticas, surpreendentes
“não como um território estrangeiro, micro-objetos. Carente de maior dei-
exótico, mas como o prolongamento nição teórica, a história das mentalida-
natural e a ponta ina de toda história des foi superada pela do “imaginário”,
social” (ibdem.,p.1410). Vovelle – e os conceito e postura discutidas e parti-
marxistas – temiam a possibilidade de lhadas no plano da história por Ro-
os historiadores não absorverem as ger Chartier, Jacques Le Goff, Lucian
transformações na história. Como e Boia; da antropologia por Gilbert Du-
quando compatibilizar a “curta” com rand e da ilosoia por Cornelius Cas-
a “longa duração”, o tempo da ruptura toriadis; tal como nas artes por Jacques
com o das permanências, a “respiração Leenhardt. Para ilustrar, sugere-se o le-
ina da história” com o “tempo me- vantamento de Vainfas (ibdem.pp.142-
dianamente longo”. Uma temporada 143) e outros. Para os micro-objetos

• 365 •
como as religiosidades, o “La naissance tem-se o “The great cat massacre” de
du purgatoire”, de Le Goff (1981); para Robert Darton (1984) e a “Society and
a sexualidade o “Le sexe et l´Occident”, culture in early modern France”, de Nata-
de Jean-Louis Flandrin (1981); para os lie Davis (1975). Fora do eixo europeu,
sentimentos coletivos o “La peur em Oc- sobre o sincretismo religioso na Amé-
cident” de Jean Delumeau (1978); para rica espanhola, “Quetzalcóatl et Guadalu-
a vida cotidiana em viés histórico-an- pe” de Jacques Lafaye (1974); a visão
tropológico o “Montaillou Village Occi- do homem medieval sobre a África,
tan” de Le Roy Ladurie (1975); para a “L´Occident et l´Áfrique”, de François de
vida privada a “Historie de la vie privé” Medeiros (1985). Ainda sobre o colo-
organizada por Philippe Ariès e por nialismo europeu na América, “La co-
Georges Duby(1985-7) e a já citada co- lonisation de l’imaginaire”, de Serge Gru-
leção “Histoire des femmes”, organizada
zinski (1988). Contemporaneamente
por Georges Duby e Michelle Perrot
será a “nova história cultural” o grande
(1991-2,5v). Na Itália surge o estudo
refúgio, embora a rejeição pública do
sobre o imaginário na feitiçaria com
conceito de mentalidades. Mentalida-
o “I Benandanti”, de Carlo Ginzburg
des confunde-se com a Nova História
(1966), ainda que se coloque dentro da
Cultural. No Brasil a Nova História
história da cultura e mais especiica-
penetrou a partir de 1980, momento
mente na micro-história como a “Mi-
de reformulação das mentalidades na
crostorie’ da coleção italiana publicada
pela editora Eunaudi, Turim. Em “Il França e airmação da História Cul-
formaggio e i vermi” (1972) ele abando- tural. A obra que melhor assinala esse
na o conceito de mentalidade para o momento será “O diabo e a terra de Santa
de cultura popular, sem a perspectiva Cruz”, de Laura Mello e Souza (1986).
marxista ou resistência a aculturação. Dentre as obras de referência estão
O conceito e a circularidade cultural “Ser escravo no Brasil”, de Kátia Mattoso
bakhtimiana aliada ao proposto méto- (1982), “O trópico dos pecados” de Vainfas
do indiciário o afasta das mentalidades. (1989), “Meretrizes e doutores”, de Magali
Na Inglaterra o estudo do imaginário Engel (1989), “Os prazeres da noite” de
na feitiçaria encontra-se no “Religion Margareth Rago (1991), “Ao sul do cor-
and the decline of magic”, de Keith Tho- po” de Mary Del Priore (1993) e o “Te-
mas (1971). Nos EUA ainda conside- atro dos vícios”, de Emmanuel de Araújo
rado um centro produtor de estudos (1993).
sobre as mentalidades mesclado pela
Rosemary Fritsch Brum
“intelectual history”(ou ‘history of ideas”)

• 366 •
Referências salienta-se o contributo dos movi-
mentos feministas e de outras acções
CARDOSO, Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios
da História. Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Ja-
de intervenção feminina, os quais, ao
neiro: Campus, 1997. questionarem o lugar das mulheres no
BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo:U-
processo histórico, obrigaram a rever
NESP,2002 a sua ausência e a conferir-lhes uma
D´ALESSIO, Márcia Mansor. Relexões sobre o Saber
visibilidade que lhes permitiu aceder
histórico. Pierre Vilar, Michel Vovelle, Madeleine Re- ao estatuto de sujeito e à cena da his-
bérioux, Marcia Mansor D´Àlessio São Paulo: UNESP,
1998.
tória (COLLING, 2012-13, p. 13). No
campo historiográico, a história das
DOSSE, François. História do estruturalismo.v.1,
Baurú:EDUSC, 2007. mulheres foi tributária da escola dos
Annales, dos contributos de outras
DUBY, Georges;LANDREAU, Guy. Diálogos sobre a
Nova História.Lisboa:Dom Quixote, 1989. ciências sociais (antropologia, demo-
graia, sociologia...) e, em particular,
LE GOFF, Jacques; Nora, Pierre. História:novos objetos.
Rio de Janeiro:Francisco Alves, 1995. da “nova história” social, de orienta-
ção antropológica, vocacionada para o

estudo da vida privada, dos marginais
e de todos os excluídos, em geral. Ao
História das mulheres dotarem-na de instrumentos teóricos e
metodológicos mais adequados e ao se
Génese e desenvolvimento, da invisi- deslocar a análise dos acontecimentos
bilidade à legitimação: a área de estudos de natureza política para os da vida pri-
de história das mulheres começou a vada e quotidiana, assegurou-se à histó-
desenvolver-se, nos países ocidentais, ria das mulheres condições para o seu
a partir dos anos 1970, não obstante progresso. Já no campo político, a de-
algumas iniciativas na década anterior, mocratização em curso, em vários paí-
em particular nos Estados Unidos da ses europeus, veio permitir a renovação
América, país onde, sob o impulso do historiográica e a mudança de para-
militantismo feminista, se criaram os digmas epistemológicos, com impacto
primeiros núcleos de women´s studies. no estudo de temas ou períodos his-
Ressalvadas diferenças decorrentes tóricos desprezados pela historiograia
de distintos contextos nacionais, são tradicional. Não menos importante foi
vários os factores de natureza políti- o papel de organizações internacionais
ca, institucional e historiográica que que, a partir de meados dos anos seten-
possibilitaram a emergência do novo ta, incluíram nas suas agendas questões
domínio do conhecimento. De entre relativas aos direitos das mulheres (ce-
os factores de natureza conjuntural, lebração do ano Internacional da Mu-

• 367 •
lher em 1975; proclamação pela ONU de alguns historiadores, “um dos mo-
da Década das mulheres, no período vimentos mais fecundos da produção
1976-1985; deliberações do Conselho historiográica mundial”, tendo trazido
da Europa, da Comunidade Econó- para a disciplina histórica novos temas
mica Europeia e de outras instituições de investigação e novos conceitos que
sobre igualdade de oportunidades en- têm reequacionado parâmetros inter-
tre homens e mulheres, etc.). Por seu pretativos.
turno, a entrada, em número crescen- Linhas de rumo, fontes e metodolo-
te, de mulheres no ensino superior e gias: as primeiras pesquisas sobre his-
no mercado de trabalho, incentivou a tória das mulheres foram suscitadas
pesquisa e o interesse pela sua histó- pelos movimentos feministas, em es-
ria (MATOS, 2000, p. 9). Na década de pecial, pelo esforço de resgate de uma
setenta, os estudos seguem, em alguns memória colectiva, orientando-se para
países, caminhos diversos, quer sob o a análise histórica do associativismo
impacto de uma historiograia inde- reivindicativo feminino e principais
pendente, quer em função de questões conquistas. Aliás, a história das mulhe-
teóricas levantadas pela relexão críti- res foi um dos pilares em que assen-
ca de obras de teorizadores do socia- tou a construção de uma consciência
lismo cientíico (Engels…), como é o especíica e identitária, tendo também
caso dos países do Leste europeu, quer contribuído para a revisão crítica dos
problematizando questões étnicas em conhecimentos históricos. Ao pôr-se
países multirraciais (OFFEN; PIER- em causa os fundamentos epistemo-
SON; RENDALL, 1991). Inicialmente lógicos do saber (sua neutralidade, a
hesitante na sua legitimidade e credi- relação entre o público e o privado, os
bilidade, na selecção das fontes e dos conceitos de natureza e de universal,
métodos especíicos, assistiu-se, a par- etc.) dinamizou-se a renovação da ci-
tir da década de oitenta, à progressiva ência, assumindo um carácter político
consolidação dos estudos de história e subversivo. Já no contexto universi-
das mulheres no ensino superior e ao tário, avançou-se na pesquisa de outras
seu reconhecimento como área cientí- matérias, enquadradas pela história
ica, com impacto no aumento de cur- social, pela nova história ou pela mi-
sos, núcleos de estudos, associações, cro-história, privilegiando-se, como
centros de investigação e produção bi- temas, a família, a condição jurídica e
bliográica. Tendo progredido a “passo social, o trabalho, a educação, formas
de gigante”, como airma Anne-Marie de sociabilidade, movimentos políticos
Sohn, a história das mulheres constitui, e sociais. Nesta fase, a história das mu-
no dealbar do século XXI, e no dizer lheres foi, em parte, tributária da inves-

• 368 •
tigação no domínio da história da fa- sociais, entre as quais se inclui a his-
mília, temática desenvolvida na esteira tória, não foi pacíica e neutral. Como
dos trabalhos de demograia histórica, esclarece a historiadora Joan Scott, a
realizados a partir dos anos sessenta. A sua utilização obedeceu a objectivos
utilização da metodologia criada por estratégicos, enquadrando-se na “bus-
Louis Henry de “reconstituição de fa- ca de uma legitimidade institucional
mílias”, ao incidir nas estruturas fami- para os estudos feministas nos anos
liares e no parentesco, contribuiu para oitenta”, uma vez que “não constituía
pôr em evidência as diferenças sexuais uma ameaça crítica”, por oposição ao
no que concerne ao casamento, à mor- termo “história das mulheres” que
talidade ou ao celibato, entre outros “revela sua posição política airmando
aspectos. Das análises demográicas […] que as mulheres são sujeitos histó-
passou-se ao estudo dos papéis e dos ricos válidos” (SCOTT, 1990, p. 7). Por
espaços femininos no quadro da insti- outro lado, embora a palavra “género”,
tuição familiar e da vida privada, linha na sua acepção mais simples, seja uti-
de pesquisa que prosseguiu em várias lizada como “sinónimo de mulheres”,
direcções, tendo como base documen- é semanticamente ambígua, tanto de-
tos de variada procedências (VAQUI- signando categorias gramaticais (femi-
NHAS, 2005, p. 129). Nos anos noven- nino/masculino), como literárias, não
ta, a introdução do conceito de género sendo sempre claro a que se reporta
no discurso historiográico fez avançar (THÉBAUD, 1998, p. 21). É nessa am-
novas linhas de pesquisa e obrigou a biguidade que reside um dos critérios
reavaliar “as grandes questões da his- de distinção entre os women´s studies e
tória”, ao partir-se do pressuposto de os gender´s studies. Estes últimos carac-
que a diferença de sexos não é apenas terizam-se por serem “mais generalis-
um fenómeno natural mas uma cons- tas e incluírem o estudo dos homens
trução cultural e histórica. A distinção e dos grupos homossexuais, tanto
entre o “sexo biológico” e o “sexo masculinos como femininos e pelo
social” levou a questionar estereóti- seu carácter teórico, estando geral-
pos (ex. a exclusão das mulheres da mente associados aos departamentos
cidadania política, a correlação entre a de línguas e de literatura anglo-saxó-
incapacidade física, intelectual e políti- nica” (BOXER, 2001, pp. 226-229).
ca das mulheres, etc.), e a historicizar Já os women´s studies são considerados
a condição feminina. Sendo, porém, “retrógados”, por criarem guettos no
um conceito originário da linguística saber cientíico, tendo, porém, a vanta-
anglo-saxónica, a adopção do termo gem de serem mais empiristas, objec-
“género” pelo vocabulário das ciências tivos e explícitos, não escamoteando

• 369 •
as mulheres, nem branqueando a sua do a informações tendenciosas, de que
memória histórica. A articulação des- é exemplo a interpretação da fraca cri-
tas duas linhas teóricas fez emergir minalidade feminina oitocentista, en-
um novo campo de estudos que “por tendendo-a como o relexo da inferio-
ecumenismo epistemológico” se de- ridade física e intelectual das mulheres.
signa, em alguns países, por “história Escassez e “opacidadade das fontes”
das mulheres e do género” (SOIHET; (PERROT, 1998, p. 10) resguardavam
PEDRO, 2007). Porém, qualquer que o sexo feminino do olhar dos outros,
seja o enquadramento teórico, o que incluindo historiadores. Um fenómeno
convém reter, como observa Maria a que as próprias mulheres não foram
Beatriz Nizza da Silva, é “a forma alheias... Não obstante estes (e outros)
como se trabalha”, tendo-se presente condicionalismos, tem-se recorrido a
que “para a história |…| as mulheres um leque heterogéneo de documentos:
nunca foram abstracções”, sendo o co- iscais, judiciais (escrituras notariais,
nhecimento histórico “por excelência processos de polícia correcional, pro-
um conhecimento relacional” (SILVA, cessos cíveis, divórcios...), imprensa,
1999, p. 47). Já no que diz respeito aos fontes eclesiásticas e médicas (sermões
obstáculos à realização das pesquisas e pastorais; obras de medicina...), reco-
nesta área de estudos, a questão da lhas etnográicas, estatísticas e recense-
representatividade das fontes historio- amentos, fotograias e outros materiais
gráicas tem sido apontada como um iconográicos, entre outras. O recurso
dos principais factores, em especial, a à história oral, como metodologia de
sua ausência, laconismo, dispersão ou estudo, tem sido uma via muito utili-
subjectividade (MATOS, 2000, p. 22; zada, sobretudo na história do tempo
VAQUINHAS, 2005, p. 125). As mu- presente.
lheres deixaram-nos poucos testemu- Usos políticos da história das mu-
nhos das suas vidas e as informações lheres: o reconhecimento público da
são, em regra, dispersas, fragmentadas, importância das mulheres na história
em segunda mão, recriadas por outros, traduziu-se, entre outros aspectos, na
impondo a necessidade da crítica her- sua incorporação na narrativa simbó-
menêutica das fontes, de forma a se lica dos espaços públicos e das paisa-
poder distinguir as representações ide- gens urbanas, seja pela renomeação de
ológicas da natureza feminina da rea-
ruas, atribuindo-lhes nomes femininos
lidade concreta. Ideias preconcebidas
e pela elaboração de guias com per-
entravam também a objectividade de
cursos ligados a actividades femininas,
muitas fontes, como é o caso, entre ou-
seja em iniciativas comemoracionistas.
tras, das estatísticas judiciais, conduzin-

• 370 •
Grande número de países comemora, KLAPISSCH-ZUBER, C., C., “Mulheres”, BUR-
GUIÈRE, André (org.), Dicionario das Ciências Histó-
a 8 de Março, o dia da mulher, o qual ricas, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993, pp. 569-572.
constitui, em alguns casos, a única oca-
MATOS, Maria Izilda S. de, Por uma história da mulher,
sião anual para se valorizar a história 2ª edição, Bauru, SP: EDUSC, 2000.
das mulheres através de exposições, OFFEN, Karen; PIERSON, Ruth Roach; RENDALL,
emissões de selos, documentários, etc. Jane, (eds.), Writing women’s history. International pers-
pectives, Londres: Macmillan, 1991.
Desde os anos 1990 que a história das
mulheres inluenciou a museologia, PERROT, Michelle, Une histoire des femmes est-elle
possible?, Paris: Ed. Rivages, 1984.
fazendo desenvolver o conceito de
“museologia de género”, sendo em SCOTT, Joan, “Gênero: uma categoria útil de análise
histórica”, Educação e realidade, Porto Alegre, nº 16 (2),
número signiicativo, à escala mundial, Julho/Dezembro 1990, pp. 5-22.
os museus monográicos dedicados a SILVA, Maria Beatriz Nizza da, “Passado e presente nos
temáticas femininas. Na sua maioria de estudos sobre as mulheres”, Igualdade de oportunidades.
Género e educação, Lisboa: CEMRI, Universidade Aber-
carácter histórico, têm como principal ta, 1999, pp. 43-47.
missão a reescrita da história do res-
SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria, “A emergên-
pectivo país, região ou estado, incor- cia da pesquisa da história das mulheres e das relações
de gênero”, Revista Brasileira de História, vol. 27, nº
porando a dimensão de género, assim 54, São Paulo: Dezembro 2007. Disponível em http://
como dar visibilidade ao protagonismo dx.doi.org/10.1590/S0102-1882007000200015; Acesso
em 01/09/2013
feminino nos vários campos da activi-
dade social e cultural. SOHN, Anne-Marie, “Féminin et masculin”, Le Mouve-
ment Social, Janvier-Mars 2002, nº 198.

Irene Montesuma Vaquinhas  THÉBAUD, Françoise, Écrire l´histoire des femmes, 2ª


édition, Fontenay: ENS Éditions Fontenay/Saint-Cloud,
1998.

TILLY, Louise A., “Genre et histoire des femmes et his-


Referências e sugestões de leitura toire social”, Genèses, nº 2, Dec. 1990.

BOCK, Gisela, “La historia de las mujeres y la historia VAQUINHAS, Irene, “Estudos sobre a história das mu-
del género: aspectos de un debate internacional”, Historia lheres em Portugal: as grandes linhas de força no início
Social, nº 9, Invierno 1991. do século XXI”, INTERthesis, Revista Internacional In-
terdisciplinar, vol. 06, nº 1, 2009, UFSC, Florianópolis,
BOXER, Marilyn J., “Women´s studies aux États-Unis: Brasil, pp. 241-253 (https://periodicos.ufsc.br/index.
trente ans de succès et de contestation”, Clio. Histoire, php/interthesis)
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______, Irene, “Estudos sobre as mulheres na área de his-
COLLING, Ana Maria, “Relações de poder e gênero na tória”, “Senhoras e mulheres” na sociedade portuguesa do
história do Brasil”, Revista de História, Petrolina: Dez. século XIX, 2ª edição, Lisboa, Editorial Colibri, Setem-
2012 – Maio 2013, pp. 11-24. http://www.revistahis- bro 2011, pp. 163-184.
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(20-08-2013; 17.45). ______, Irene, “Linhas de investigação para a história
das mulheres nos séculos XIX e XX. Breve esboço”, Nem
COVA, Anne, “Escrever a história das mulheres”, Actas Gatas Borralheiras, Nem Bonecas de Luxo. As Mulheres
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Portuguesas Sob o Olhar da História (Séculos XIX-XX),
de Julho de 1998), Cascais: Câmara Municipal de Cas-
Lisboa: Livros Horizonte, 2005, pp. 125-153.
cais, 1999, vol. 4, pp. 117-130.

• 371 •
• certa cooperação entre os dois cam-
pos, ainda que apenas com o uso de
História oral e as mulheres fontes orais sobre a presença das mu-
lheres na história. Cabe uma breve de-
Situar a história oral é adentrar marcação: os testemunhos, as memó-
numa zona de indeinições, tantos são rias, os relatos orais, etc., constituem
os veios disciplinares que colaboraram uma importante gama do que conhe-
para a sua constituição. Em razão dis- cemos como fontes orais, ou seja, do-
so, estamos diante de um campo teóri- cumentos transmitidos e não necessa-
co-metodológico em constante reno- riamente obtidos pela situação, de
vação. Verena Alberti, historiadora do resto, hermenêutica, entre o entrevista-
Programa de História oral do Centro do e o seu entrevistador. Signiica que
de Pesquisa e Documentação de His- a entrevista de história oral de vida é a
tória Contemporânea (CPDOC-FGV, que visa percorrer narrativamente a
RJ), importante na recepção e produ- memória da existência de uma pessoa
ção da história oral no Brasil nos anos (gravada em áudio ou mesmo contem-
1970, airma que “sua especiicidade poraneamente em imagem); e a histó-
está no próprio arriscado”, isto é, (ela)“ ria oral temática é a que pretende cir-
é um método de pesquisa (histórica, cunscrever acontecimentos através de
antropológica, sociológica) que privile- várias perspectivas de seus entrevista-
gia a realização de entrevistas com pes- dos, são de uso mais recente. Aqui
soas que participaram ou testemunha- também seu emprego pode visar ape-
ram acontecimentos, conjunturas, nas completar lacunas do conhecimen-
visões de mundo, com forma de se to estabelecido ou conigurar verdadei-
aproximar do objeto de estudo” (1989, ramente um método ou até mesmo
p.41). Essa situação face a face possui uma disciplina especíica. Seja como
uma rica tradição, no entanto tardou a for, é forçoso lembrar que nos anos de
ser reconhecida como prática historio- 1960 estão em voga as correntes estru-
gráica. Quanto à “história submersa turalistas a dominar a cena intelectual,
das mulheres” – tal como será conheci- tendo a França como preferencial.
da a emergência das dimensões cultu- Nessa conjuntura, as transformações
rais consideradas como o “modo femi- sociais e políticas aliadas às novas mo-
nino” da experiência do “mundo” – se dalidades do pensamento das ciências
é mais recente sua airmação, sua vali- humanas, das artes, da ilosoia, galva-
dade não foi menos colocada em sus- nizavam os edifícios disciplinares esta-
penso. Aproximadamente em torno belecidos, com ênfase para a linguística
dos anos de 1960, na Europa, inicia e a psicanálise. Estava instalada a crise

• 372 •
dos grandes paradigmas, como o posi- que não têm voz”, isto é, os “novos su-
tivismo e marxismo; a explosão da his- jeitos da história” , passam a coincidir
tória com a Nova História (“história com as demandas por uma história das
em migalhas”) e a demanda social com mulheres. Quanto a esse ponto, inda-
o movimento feminista. Protagonis- gava-se: tratar-se-ia de uma história
mos, relações subalternas, opressão, ‘dentro’ da história, uma história com-
empoderamento, etc. fariam parte da plementar, uma contra- partida, enim,
nova trama conceitual. Como diz Phili- uma radicalidade epistemológica, qual
ppe Lejeune (“O pacto autobiográico. De o seu tropo, ainal? O mesmo pode ser
Rousseau à internet”, 2008, p.81): “todos colocado para os historiadores orais: se
os casos em que um mesmo ‘eu’ englo- não estariam correndo o risco de cons-
ba várias instâncias igurarão nas novas tituir um gueto, caso a formação de ar-
modalidades da “escrita de si”. Conse- quivos orais, a produção de entrevistas
quencia direta das gerações de pesqui- e assim por diante não merecessem o
sadoras que foram assumindo propor- reconhecimento das exigências de vali-
ções na Academia. A considerar que dação para uma “verdadeira” memória
essas historiadoras absorveram igual- histórica. A subjetividade imanente ao
mente as novidades da antropologia, método e os critérios de veracidade an-
da história social. Mas deverão princi- tepostos às relações entre memória/
palmente à “história das mentalidades” história estabeleceriam desde então as
a abertura principal para os objetos principais restrições. Espécie de nega-
que surgirão. Nas palavras de Le Goff ção do fundamento da própria história
no artigo “As mentalidades; uma história humana, que se perde nas origens das
ambígua” (LE GOFF, Jacques e NORA, tradições orais e no metier dos antro-
Pierre. “História. Novos obje- pólogos, como relata Jan Vansina
tos”,1995, p.72, [1974]): “a ‘história das (“Oral tradition as history”, 1985) ou
mentalidades’ é também o lugar de en- como acentua Carlo Ginzburg (“Ne-
contro de exigências opostas[ ]. Situa- nhuma ilha é uma ilha”, 2004), segundo a
-se no ponto de junção do individual e qual a ideia da narração teria surgido da
do coletivo, do longo tempo e do quo- sociedade de caçadores, de suas can-
tidiano, do inconsciente e do intencio- ções, quando descrevem uma cena
nal, do estrutural e do conjuntural, do transmitindo a sensação para o outro,
marginal e do geral.”(ibdem., p71). A de ter estado ‘lá’. Essa sensação de pre-
combinação entre tantas correntes his- sença é, certamente, uma poeisis. Justii-
toriográicas como foram conhecidas a cada pelo fato de que um dos mais fas-
“história vinda de baixo”, “história dos cinantes atributos do texto oral seja de
excluídos”, começam a “dar voz aos que os relatos continuam com sua ca-

• 373 •
pacidade de redimensionar e revolver ção nos últimos 25 anos” (AMADO, J.;
as dobras da memória e da narrativa. FERREIRA, M.M. “Usos & abusos da
Sobre essa relação tempo-narrativa história oral”, 2001). A “primeira gera-
vale trazer a complexa e crescente re- ção” seria a dos anos pós-guerra, pelos
tenção por parte dos historiadores organizadores de arquivos a partir das
orais ou não, da relexão pela herme- memórias dos chefes da Revolução
nêutica fenomenológica de Paul Rico- Mexicana. Entre esses e a geração dos
eur no “Time and narrative” (1984-1988, anos 1970, considerada a “terceira”,
3v.). E retomados por Yvonne de Sou- estão os historiadores da “segunda ge-
za Grossi e Amauri Carlos Ferreira no ração”, ainda à margem da Academia e
artigo “Razão narrativa: signiicado e me- interessados na base da sociedade,
mória” (2001). São alguns exemplos como os iletrados, as minorias étnicas,
dos intercursos interdisciplinares váli- os marginalizados, ao invés dos “notá-
dos e incorporados ao campo perti- veis”. Entre um movimento e outro, a
nente à singularidade da história oral, história das mulheres prossegue. Uma
revelando um empenho pela constitui- das recensões sistemáticas na França
ção de um tropo. Já em relação ao uso foi a da Revista ANNALES (1970-
da entrevista, como parte de um movi- 1980), na “Une histoire des femme est-possi-
mento que desembocará na história ble?”(1984) sob a direção de Michelle
oral, esse pode ser creditado moderna- Perrot, professora da Escola Francesa
mente à sociologia. William I. Tomas e de Estudos Sociais. Destaca-se o artigo
Florian Znanieck entre outros, na Uni- de A. Farge o “Pratique et effets de l’histoi-
versidade de Chicago, entre as décadas re des femmes”. Segue-se a importante
de 1920 a 1930, formularam estudos “Histoire des femmes”, organizada por
sobre a intensa urbanização da cidade, Georges Duby e Michelle Perrot
mesclados aos conceitos teóricos e (1991-2, 5v). Todos esses artigos exer-
pesquisa de campo etnográica. Já pelo citam a publicização dos ciclos da vida,
campo da história, uma das primeiras os cotidianos, a sociabilidade, os pac-
experiências vamos encontrar vinte tos sociais, a sexualidade, a magia, a
anos após na Universidade de Colum- educação da sensibilidade, a saúde e
bia, Nova York, através de um projeto assim por diante. Os movimentos fe-
de relatos orais para ex-combatentes, ministas liderados pelas intelectuais
familiares e vítimas da guerra. Tal traje- americanas e europeias izeram por
tória pode ser creditada à existência de prosperar a revelação e projeção do
gerações de historiadores orais. Assim dito domínio privado, “descobriram” a
sugere Phillipe Joutard no artigo “His- intimidade. Corre no período a difusão
tória oral: balanço da metodologia e da produ- do ilósofo Michel Foucault e do seu

• 374 •
“As palavras e as coisas” (1966). Sua pro- obras, publica o “On the peculiarities of
posição de que a fala provém de uma Oral History” no “History Workshop”
luta pela possibilidade de constituir um (1981, n 12 ), e o “Italian Oral History:
saber no tecido social faria colocar, de- Roots of a Paradox”, publicado original-
initivamente, sob suspeição, os docu- mente pelos editores David Dunaway e
mentos oiciais, como “formações dis- Willa K. Baum, na “Oral history: interdis-
cursivas” que sobrepõem o poder ao ciplinary anthology” (1996). Neste último
saber A narrativa sobre a história da artigo (republicado no “Tempos histó-
saúde, das práticas médicas, do direito, ricos”,v.12, n.2, 2008) Portelli faz vá-
da justiça, das religiões, práticas médi- rios destaques. Inicia apontando o arti-
cas, da educação, das “instituições to- go do australiano Alistair Thomson, o
tais” com vistas ao disciplinamento “The Memory and history debates: some in-
dos corpos serão revolucionadas pelo ternational perspectives” (“Oral History”,
ilósofo. Michelle Perrot, em algum 1994), onde esse discute o uso restriti-
momento colaboradora desse, irá rele- vo baseado apenas em fontes orais, no
tir sobre a proposição dos “micropo- desenvolvimento da história oral britâ-
deres” e instigada a rever o potencial nica, como em outros países. Para situ-
dos movimentos sociais, dentre eles a ar, desde os anos 1980 ele pesquisa os
capacidade transformadora do olhar “anzacs” ou “diggers” e publica em 1994
sobre as relações entre os sexos. Escre- os resultados no “Anzac memories living
ve o “Excluídos da história: operários,mu- with the legend (1914-18)”. Por contraste,
lheres e operários” (1988), o “Femmes pu- Portelli sublinha a renovação proposta
bliques” (1997), e o “Mulheres ou os por Luisa Passerini (“Per una critica stori-
excluídos da história” (2001). Ainda na ca dell’oralità,”), na perspectiva de sua
França, Danièle Hanet, em parceria experiência com a história oral com
com Dominique Aron-Schnapper, es- militantes de ambos os sexos: “A histó-
creve o artigo “D´Herodote au magné- ria oral inquieta-se com o estabeleci-
tophone: sources orales et archives mento de um conceito de memória
orales”(1980) do Annales ESC., sem como ato narrativo e mediação simbó-
exatamente partilhar desses caminhos lica, que deve ser estudado em suas di-
teóricos. Para citar o polo italiano en- versas manifestações históricas e so-
contraremos a contribuição “La Sa- ciais”. E mais adiante , “a descoberta
pienza”, de Alessandro Portelli – pro- das descontinuidades, e das contradi-
fessor na Universidade de Roma e ções, da inércia, mais a face criativa e
presidente do Circolo Gianni Bosio iel da memória constitutiva da memó-
para a memória e o conhecimento crí- ria como um ato individual em contex-
tico da cultura popular. Entre outras tos sociais, pode ser uma contribuição

• 375 •
para ampliar e humanizar o conceito ses trabalhos, além da Resistência, te-
de verdade histórica”. (pp.116-117). mas como a pobreza rural, migrações,
Possivelmente por sua formação como a memória e o papel central das mulhe-
historiadora oral, Passerini incorpora res no estabelecimento do “laço forte”
os conceitos de mentalidade na produção da sociedade e na teia da
(Durkheim), da memória coletiva (Hal- memória. Para inalizar, Portelli desta-
bwachs), aos conceitos da psicanálise ca o sociólogo Franco Ferrarotti pelo
(P.W. Winnicott) e da teoria da auto- seu mérito em fazer a história do coti-
biograia principalmente sobre mulhe- diano repercutir na história oral, onde
res. Com esse enfoque que transita en- sobressaem o “Vite di periferia” (1981) e
tre a teoria da história e da o “Les biographies comme instrument analy-
subjetividade, escreve o “Work ideology tique et interprétatif”, no ‘‘Cahiers Interna-
and working class atitude to fascismo” no tionaux de Sociologie”(1980,v. 69). Sua
“History Workshop” (1979, n.8). A pro- contribuição- em particular para a re-
pósito, sobre a história do Fascismo e cepção brasileira- foi a assessoria pres-
do Anti-Fascismo, a questão do “con- tada ao Centro de Estudos Rurais e
sentimento” foi crucial na discussão Urbanos de São Paulo (CERU), o im-
daquele período da história italiana, e o portante centro de difusão da história
enfoque da história oral sobre a subje- oral de mulheres. Outra menção im-
tividade se demonstrou particularmen- portante é a realizada por Silvia Salvati-
te apropriado para este tipo de investi- ci no “Memórias de gênero. Relexões sobre a
gação, sobretudo porque ela adentrou história oral de mulheres” (‘‘Revista de his-
a memória e a consciência de pessoas tória Oral”, v.8,2005). Ali ela aponta
silenciadas, politicamente invisíveis, es- em especial na cena dos EUA a obra de
pecialmente mulheres”. Realça de Pas- Natalie Zamon Davis, no ‘‘Women´s his-
serini o “Soggettività operaia e fascismo: in- tory in transition The European in case”
dicazioni di ricerca sulle fonti orali,” (“Feminist Studies”, 1976) . No ano se-
(1979-80), “Pós-fácio a Maurice Halbwa- guinte, em 1977, uma das mais antigas
chs, La memoria collettiva” (1987) que tra- publicações sobre a erudição feminista
tará do “silêncio” nas narrativas de nos EUA, o “Frontier:a Journal of Women
mulheres, colocando em questão os Studies” sai um número especial sobre a
conceitos das estruturas da memória história oral de mulheres. No ensaio
“coletiva”. Da Itália, Portelli ainda re- que fez Sherma Berger Cluck, diretora
mete a Nuto Revelli no “Il mondo dei do Programa de história oral da Uni-
vinti. Testimonianze di vita contadina” versidade de Califórnia para essa aber-
(1977) e o “L’anello forte. La donna: storie tura, acentua como de interesse através
di vita contadina” (1985). Recobrem es- da tradição oral, em reconstruir o pas-

• 376 •
sado das mulheres. Para ela, a entrevis- Ou seja, os “modos de dizer” são for-
ta é um momento de encontro, inde- jados a partir de uma singularidade, o
pendentemente da posição ideológica gênero, que atua constantemente sobre
das entrevistadas. Importa ainda trazer a memória e o esquecimento. Estamos
Paul Thompson, na Inglaterra, mais in- diante da complexiicação conceitu-
teressado na “verdade popular” no al na contemporaneidade de temas
‘‘The voice of past: oral history” (1978) e recentes como o da história oral das
traduzido no Brasil apenas em 1998 e memórias e testemunhos de guerras,
Mercedes Vilanova na Espanha, no holocaustos, genocídios e processos
“Una historia sin adjetivo com fuentes orales autoritários. Noutra ponta, mas con-
y la historia del presente” - republicado no servando relações com esses, temos
Brasil (“Revista história oral”,v1,1998). os estudos migratórios recentes, com
A essas alturas, desde 1980 a história os deslocamentos violentos de popu-
oral estava conciliada com as deman- lações (séculos XX e XXI). A já citada
das pela pluralidade do universo femi- Silvia Salvatici – criadora do “Arquivo
nino. Percebia-se as clivagens sociais, da memória da experiencia do Kosovo” – no
étnicas, regionais, ocupacionais, etc., artigo “Narrativas da violência em Kosovo
que procediam a diferença na mera co- pós-guerra” (“Revista História Oral”, v.8,
leta de memórias: as subjetividades 2005) destrincha as experiências trau-
eram múltiplas. O caráter social das máticas que desestruturaram famílias
distinções baseadas no sexo, e sua da região. Como sublinha Fernando
substituição são defendidos por auto- Frochtengarten no artigo “A memória
ras como Joan Scott: “por gênero me oral no mundo contemporâneo” (2005), a
reiro ao discurso da diferença dos se- “ruptura biográica” é a dimensão psi-
xos. Ele não se relaciona simplesmente cológica de desenraizamento social.
às ideias, mas também às instituições, Nessa linha, Marcio Seligman-Silva
às estruturas, às práticas cotidianas, insere-se na recente corrente de uma
como aos rituais, e tudo o que constitui “literatura do testemunho”. Na sua
as relações sociais.” “Apresentação da questão” em “História,
O discurso é o instrumento de memória, literatura. O testemunho na era das
entrada na ordem do mundo; mesmo catástrofes” (2003), defende a indiferen-
não sendo anterior à organização social, ciação entre campos disciplinares no
é dela inseparável” reletida no “Gêne- trato do testemunho nessas condições.
ro e história. Um diálogo possível?”de Ana O testemunho transgride os modos
Maria Colling (2004,p.39). Em tudo, a convencionais de propor o entendi-
admissão de que a memória de gênero mento da qualidade estética, pois é par-
poderia constituir uma nova mentalité. te constitutiva de sua concepção, um

• 377 •
distanciamento com relação às estrutu- se valem da história oral de vida e da
ras unitárias e homogêneas. Diferente- transmissão das tradições familiares e
mente da narrativa usual, corrente na que são desconhecidas pelos métodos
literatura de história oral, por exemplo, demográicos e análises globalizantes
ele aponta para a diiculdade de narrar usuais. Para concluir, no panorama
os acontecimentos. “O narrador teste- latino americano tais temas pesaram
munhal pode ser examinado como um sob os regimes autoritários que sufo-
narrador em confronto com um senso caram o continente nos anos 1960 em
de ameaça constante por parte da re- diante; mais as restrições acadêmicas
alidade”. Tais temáticas tem ensejado, já colocadas e além disso, rejeitava-se
como vimos, a criação de arquivos de a denominada “História do Tempo
fontes orais, de encontros internacio- Presente” por considerar o risco do
nais e de publicações relevantes, com pouco distanciamento entre os even-
destaque para a “história oculta das tos e o trabalho histórico requerido. A
mulheres”. Quanto ao uso da história partir de 1980, no entanto, buscava-se
oral em estudos migratórios, Francesca com a redemocratização a interpreta-
Battisti e Alessandro Portelli, estipu- ção sobre os processos políticos, em
lam uma metodologia de “horizontes apoio à reorganização da sociedade
de possibilidades” no “The Apple and civil. No Brasil e na pauta feminista
Olive tree: exiles, sojournens and tourist in surge a obra de Moema Toscano e Mi-
the universithy”. A vantagem seria a de rian Goldenberg com “A Revolução das
evitar recair em generalizações sobre Mulheres. Um balanço do feminismo no Bra-
uma amostra mais ampla, e sim, enfo-
sil” (1992). Especiicamente na pauta
car os signiicados e as repercussões de
da história oral José Carlos Bom Mehy
certas narrativas consideradas em espe-
relete sobre a criação de associações,
cial. Esse e outros textos foram publi-
etc., mais as publicações especíicas no
cados no importante trabalho editado
“(Re)introduzindo a história oral no Brasil:
por Rina Benmayor e Andor Skotness,
um auto-olhar”.(1996). Andre de Faria
o “International Yearbook of oral history
Pereira Neto, Bárbara Araújo Machado
and life stories” no “Migration and identi-
e Antonio Montenegro publicam no
ty” (1994,v.3). Corroborando o já men-
Regional Oral History Ofice (ROHO)
cionado Alistair Thompson no artigo
em Berkeley, o “História oral no Brasil:
‘‘Histórias (co)movedoras. História oral e
uma análise da produção recente”(2006).
estudos de migração” (“Revista Brasileira de
Em 2009 a “Revista de História Oral”
história”, 2002, n.44) resenha critica que
editada pela Associação Brasileira de
parte da produção norte-americana e
História Oral (ABHO) organiza o dos-
europeia sobre os deslocamentos que
siê “Memória, relações de gênero e história
• 378 •
oral”. Na apresentação de Joana Pedro, mica interdisciplinar que procura com-
Ivonete Pereira e Mariana Jofi Lym e preender as relações entre os gêneros
nos textos seguintes, a tendência temá- - masculino e feminino - na cultura e
tica entre os estudos de migração e a na sociedade humanas. É uma compre-
repressão política se repete, com ênfa- ensão que passa pelos homens e pelas
se para a latinoamérica. Recentemente mulheres, diferentes uns em relação
Amelinha Teles e Rosalina Santa Cruz aos/às outros/as e entre si, e compre-
Leite escrevem o “Da guerrilha à im- ensíveis em uma perspectiva relacional.
prensa feminista. A construção do feminismo Considera-se ainda que essas relações
pós-luta armada no Brasil -1975-1980” são construídas historicamente, marca-
(2013), o que sinaliza o norte de traba- das pela cultura e pelas relações de po-
lhos brasileiros onde os estudos de gê- der que fundamentam uma hierarquia
nero conluem para a história política
e uma assimetria social entre homens
brasileira recente.
e mulheres.
A introdução dos estudos de gê-
Rosemary Fritsch Brum
nero no Brasil encontrou campo fértil
Referências e sugestões de leitura na história das mulheres, caracterizada
como uma produção de saber interdis-
ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. ciplinar, que ganhou consistência nos
Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil, 1989. anos 1970. As pesquisas envolveram
esforços de historiadoras, sociólogas
FERREIRA, M.M.; FERNANDES, T.M.; ALBERTI, V.
(Org.). História oral: desaios para o século XXI. Rio de e antropólogas, feministas que tive-
Janeiro: FIOCRUZ, 2000. ram coragem de dar voz às mulheres,
DUBY,G.,PERROT,M.(0rg.). Histoire des femmes,Pa- retirá-las do apagamento e do silêncio
ris; Plon, 1991-2.5v. da História, destacando as “vivências
JOUTARD, P. História oral: balanço da metodologia e comuns, os trabalhos, as lutas, as so-
da produção nos últimos 25 anos. In: AMADO, J.; FER-
REIRA, M.M. Usos & abusos da história oral. 4. ed. Rio
brevivências e as resistências das mu-
de Janeiro: FGV, 2001. lheres no passado” (PEDRO, 2005,
GROSSI.Y.S.;FERREIRA, A.C.Razão narrativa:signii-
p.85). Nesse avanço das lutas sociais
cado e memória.Revista História Oral:ABHO,n.4,2001. e das críticas feministas, tem vazão a
pp25-38.
controvérsia em torno da história das
• mulheres, que parecia sinalizar a exaus-
tão da categoria mulher, vista, muitas
Historiograia e gênero vezes, como generalizada e universal.
Abria-se, então, o campo para os gender
O estudo das relações de gênero studies ou o estudo das relações de gê-
abrange um campo de pesquisa acadê- nero, que ganharam relevância nos Es-

• 379 •
tudos Unidos, no início dos anos 1990 no Brasil. A partir disso, abriu-se um
(RAGO, 1998, p.89). campo de pesquisa interdisciplinar que
No Brasil, os estudos das rela- busca compreender como se consti-
ções de gênero tiveram maior visibili- tuem o masculino e o feminino cul-
dade com a tradução e publicação do tural e historicamente, na perspectiva
texto da historiadora norte-americana das relações de gênero. A introdução
Joan Wallach Scott: Gênero: uma catego- dessa categoria iluminou a análise ao
ria útil de análise histórica, em 1990. Para incorporar à experiência a dimensão da
Scott (1995, p.86), “o gênero é um ele- sexualidade e das identidades constru-
mento constitutivo de relações sociais ídas, contrapondo-se à tendência de se
baseado nas diferenças percebidas en- pensar a identidade sexual como algo
tre os sexos; e o gênero é uma forma biologicamente dado (NICOLSON,
primeira de signiicar as relações de 2000, p.9).
poder”. A compreensão das relações Somam-se aos estudos de gêne-
de gênero passa, então, pela rejeição ro e dos processos de poder e domina-
do caráter ixo e permanente das opo- ção as dimensões classe, raça/etnia, de
sições binárias e pela historicização e
geração e de orientação sexual, que ga-
desconstrução dos termos da diferen-
nham crescente complexidade. Nesse
ça sexual (SCOTT, 1995, p.84).
sentido, como chamam atenção Rachel
Outro marco na disseminação
Soihet e Suely Costa (2008, p.43) “o
da categoria analítica relações de gê-
interesse despertado pelo conceito de
nero no Brasil se deve à iniciativa de
gênero, nesses termos, é indicativo não
pesquisadoras radicadas na Unicamp
apenas da visibilidade dada a proces-
(RAGO, 1998), nomes importantes
sos obscurecidos na oposição homens
no debate epistemológico atual, como
versus mulheres, mas de sua utilidade
Margareth Rago, Adriana Piscitelli,
nas pautas de lutas por inclusão social
Elisabeth Lobo e Mariza Corrêa. Essas
mulheres formaram um grupo de es- dos oprimidos, como da convicção de
tudos sobre gênero, inluenciadas pelas que as desigualdades de poder se orga-
leituras dos ilósofos Foucault e Der- nizam.”
rida e com fortes interlocuções com O avanço das pesquisas tem
o meio acadêmico norte-americano, permitido compreender melhor a his-
tória do sexo e do gênero, como o
que havia introduzido os estudos de
citado trabalho do historiador da me-
gênero. Esse grupo decidiu editar Ca-
dicina Thomas Laqueur, que publicou,
dernos Pagu, a exitosa revista de divul-
em 1992, um livro chamado Making sex
gação das pesquisas na área de gênero
– body and gender from the greeks to Freud,
e da relexão epistemológica feminista

• 380 •
traduzido e lançado no Brasil em 2001, testável, talvez o próprio constructo
com o título Inventando o sexo: corpo e gê- chamado “sexo” seja tão culturalmente
nero dos gregos a Freud. Um das novida- construído quanto o gênero; a rigor,
des de Laqueur foi demonstrar que, até talvez o sexo sempre tenha sido gêne-
meados do século XVIII, só existia um ro, de tal forma que a distinção entre
sexo, o masculino, sendo a mulher con- sexo e gênero revela-se absolutamente
siderada um macho incompleto. Para o nenhuma” (BUTLER, 2007, p.25).
autor foram as relações de gênero que Nesse sentido, a condição de ser
ressigniicaram o sexo e constituíram homem e mulher não se restringe ao
dois corpos e dois sexos, o feminino sexo nem ao gênero, ultrapassam esses
e o masculino. Mas, como entender limiares. Assim, o gênero poderia ser
essa nova coniguração? Em suas pa-
considerado um ato intencional e, ao
lavras “o contexto para a articulação
mesmo tempo, performático, no sen-
de dois sexos incomensuráveis não era
tido de construção dramática e con-
nem uma teoria de conhecimento nem
tingente de signiicado (PISCITELLI,
avanços no conhecimento cientíico.
2004, p.55).
O contexto era político. Havia inter-
A noção de gênero, portanto,
mináveis lutas pelo poder e posição
inscreve-se nos debates que assinalam
na esfera pública, altamente ampliada
a emergência do pós-modernismo.
no século XVIII, e em especial no sé-
Desse modo, a ênfase dada por Scott
culo XIX, pós-revolucionário: entre
à questão da diferença foi considerada
homens e mulheres, entre feministas e
antifeministas. [...]. Qualquer que fosse uma ameaça ao feminismo por pes-
o assunto, o corpo tornou-se o ponto quisadoras/es que permaneceram no
decisivo” (LAQUEUR, 2001, p.192). campo da modernidade, alegando que
Mais recentemente, o debate in- essa posição precipitaria a fragmenta-
corporou novas perspectivas, advindas ção de sua unidade (SOHIET e COS-
das proposições teóricas da ilósofa TA, 2008, p.44). Por outro lado, a per-
americana Judith Butler, que proble- formatividade do gênero de Butler, no
matizou a categoria de gênero, ao con- sentido da fabricação do masculino e do
siderar que esta se apoiava na noção feminino, implode a noção de identi-
de uma ordem biológica binária. Para dade vinculada ao sexo. Como pontua
Butler, o gênero não é a interpretação Joana Pedro, “a categoria de análise
cultural do sexo, então, interroga o que “gênero” passa, portanto, por intenso
é o sexo “teria o sexo uma história? [...] bombardeio, e não só por ser acusa-
Se o caráter imutável do sexo é con- da de ser útil à dominação. É também

• 381 •
considerada desmobilizante para o fe- e COSTA, 2008, p.43). A problemati-
minismo. O que se reivindica é a reto- zação das relações de gênero consiste,
mada da categoria “mulher”, não mais sem dúvida, no mais importante avan-
na perspectiva anterior, universal e de- ço isolado da e na teoria feminista no
terminada pela biologia” (2011, p.275). inal do século XX, como assinala Jane
Outras estudiosas veem com Flax (1991, p. 226). Deinitivamente,
inaugura-se um novo paradigma para
otimismo a inclusão do gênero no
compreensão da História.
campo dos estudos feministas. Ainal,
“a superação da lógica binária con- Alcileide Cabral de Nascimento
tida na proposta da análise relacional
do gênero é fundamental para que se Referências e sugestões de leitura
construa um novo olhar aberto às dife-
BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e
renças”, como declara Margareth Rago subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 2008.
(1998, p.98). A categoria de gênero ilu-
mina diferentes perspectivas sobre nós FLAX, Jane. Pós-moderno e relações de gênero na teo-
ria feminista. In: BUARQUE DE HOLANDA, Heloísa
mesmas/os, e é, também, um caminho (Org.). Pós-modernidade e política. Rio de Janeiro: Roc-
para desconstruir subjetividades nor- co, 1991. p.217-250.

mativas encarceradas na bipolaridade LAQUEUR, homas. Inventando o sexo. Corpo e gêne-


ro dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
do masculino e do feminino. 2001.
Em síntese, dentre as contribui-
NICOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Estudos
ções do conceito de gênero, destacam- Feministas, Florianópolis, v.8, n.2, p.9-41, 2000.
-se: a rejeição ao determinismo bioló-
PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da ca-
gico implícito no uso de termos como tegoria gênero na pesquisa histórica. História, São Paulo,
v.24, n.1, p.77-98, 2005.
sexo ou diferença sexual; a dimensão rela-
cional entre as mulheres e os homens, _____. Relações de gênero como categoria transversal
na historiograia contemporânea. Topoi, Rio de Janeiro,
indicando que nenhuma compreensão v.12, n.22, p.270-283, jan.-jun. 2011.
de qualquer um dos dois sexos poderia
PISCITELLI, Adriana. Relexões em torno de gênero e
existir sem um estudo que os tomasse do feminismo. In: COSTA, Claudia de Lima e SCHMI-
em separado; a ênfase no caráter so- DT, Simone Pereira. Poéticas e políticas feministas. Flo-
cial e cultural das distinções baseadas rianópolis: Mulheres, 2004. p.43-66.

no sexo, que contribui para desnatura- RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o Gêne-
lizar o discurso biológico; a dimensão ro. Cadernos Pagu, Campinas/SP, n.11, p.89-98, 1998.

das relações de poder que perpassa as SOIHET, Rachel e COSTA, Suely Gomes. Interdisci-
assimetrias e hierarquias nas relações plinaridade: história das mulheres e estudos de gênero.
entre homens e mulheres (SOHIET Gragoatá, Niterói, n.25, p.29-49, 2008.

• 382 •
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise históri- Com o advento do cristianismo
ca. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.20, n.2, p.71-
99, jul/dez. 1995.
o exercício da sexualidade passou a ser
considerado um pecado, sendo admi-
• tido apenas dentro do casamento e
exclusivamente para ins procriativos.
Homoafetividade, uniões Prazer e sexo recreativo eram inacei-
homoafetivas táveis. O matrimônio transformou-se
em sacramento ungido de divindade. A
Relações entre pessoas do
monogamia e a virgindade para as mu-
mesmo sexo sempre existiram. Uma
lheres eram valorizadas como símbo-
realidade tão antiga como a própria
los de virtude, de pureza (OLIVEIRA,
humanidade. Durante longo período,
2011, p. 154).
principalmente à época das civilizações
A suposta crença de que a Bí-
greco-romanas, o relacionamento ho-
blia condena a homossexualidade sus-
mossexual gozava de certo prestígio.
tenta e incentiva o ódio e a crueldade
Verdadeiro rito de passagem para a
contra a população LGBTI – lésbicas,
idade adulta.
gays, bissexuais, travestis, transexuais
Havia uma diferença entre gre-
e intersexos. A justiicativa para con-
gos e romanos: os homens gregos cor-
siderar as relações homossexuais pe-
tejavam os meninos de seu interesse,
cado é porque está escrito na Bíblia:
com agrados que visavam persuadi-los
com o homem não te deitarás como se
a reconhecer sua honra e suas boas in-
fosse mulher, é abominação (Levítico,
tenções; entre os romanos, o amor por
18:22). No entanto, o padre católico-
meninos livres era proibido, uma vez
-romano Daniel A. Helminiak é cate-
que a sexualidade desse povo estava
górico: Para mim, a Bíblia não fornece
intimamente ligada à dominação. As-
qualquer base real para a condenação
sim, era permitido apenas o amor por
da homossexualidade (HELMINIAK,
jovens escravos (VECCHIATTI, 2013,
1998, p. 16).
p. 45).
A partir do momento em que a
De qualquer modo, a homos-
igreja sacralizou o conceito de família,
sexualidade não era considerada uma
conferindo-lhe inalidade meramente
degradação moral, um acidente ou um
reprodutiva, as relações homossexuais
vício (BLEICHMAR, 1998, p. 39). Ex-
foram consideradas verdadeira per-
pressões como pederastia e sodomia,
versão, aberração da natureza, pecado
não dispunham de conteúdo pejorati-
abominável. Os homossexuais pas-
vo ou ofensivo. saram a conviver com a intolerância.

• 383 •
Condenados à absoluta invisibilidade, na vida afetiva do indivíduo, tampouco
os vínculos afetivos – cujo único dife- na sua orientação sexual. Deve ser-lhe
rencial decorre do fato de serem cons- assegurado o direito de constituir famí-
tituídos por pessoas de igual sexo – se lia com pessoa do mesmo ou do sexo
tornaram alvo do preconceito e do oposto.
repúdio social. A mais chocante con- Classicamente é dito – mas pou-
sequência desta rejeição é a omissão co praticado – que a igualdade é asse-
legislativa. A ausência de leis leva à ex- gurar tratamento igual aos iguais e de-
clusão de direitos no âmbito da tutela sigual aos desiguais em conformidade
jurídica do Estado. com a sua desigualdade. Em lugar de se
A onda de conservadorismo reivindicar uma identidade humana co-
provocada pelas religiões reletiu-se no mum, são contempladas as diferenças
Brasil. Até a Proclamação da Repúbli- existentes entre as pessoas. A humani-
ca, o catolicismo era a religião oicial. dade é diversiicada e multicultural. As-
Apesar de a Constituição Federal con- sim, é mais útil procurar compreender
sagrar o princípio da laicidade (Consti- e regular os conlitos inerentes à diver-
tuição Federal, art. 5.º, VI), invoca em sidade do que buscar uma falsa – por-
seu preâmbulo a proteção de Deus. que inexistente – identidade. Ou seja,
Mais recentemente as igrejas igualdade signiica direito à diferença.
evangélicas defendem uma teocracia As regras sociais vigentes em
monoteísta excludente, intolerante, cada tempo autorizam e estimulam
sexista e violenta. Intitulam-se neo- determinados tipos de relações e con-
pentecostais, mas se agarram aos livros denam à clandestinidade tudo o que
do antigo testamento, realizando uma escapa do modelo convencional. A fa-
leitura seletiva e homofóbica (DIAS, mília tinha um peril matrimonial, pa-
2016, p. 53). trimonializado, patriarcal, hierárquico,
A partir da glamorização dos verticalizado e heterossexual (DIAS,
direitos humanos, começou a haver a 2016, p. 106). No entanto, com a evo-
valorização da pessoa humana e com lução dos costumes, que muito se deve
isso uma maior tolerância para com a ao movimento feminista, o conceito de
diversidade sexual. Os direitos funda- família alargou-se.
mentais não são direitos de todos, mas As premissas básicas em que
direitos de cada indivíduo singular- sempre esteve apoiado o conceito de
mente. A liberdade de um é condição família – sexo, casamento e reprodu-
da liberdade dos outros. Partindo desse ção – desatrelaram-se (PEREIRA,
pressuposto, o direito de personalida- 2001, p. 62). Passou a se admitir uma
de não permite inluência do Estado coisa sem a outra. Há família sem ca-

• 384 •
samento, aí está a união estável. Há fa- o requisito da diversidade de sexos não
mília sem conotação de ordem sexual, mais se sustenta frente à repersonaliza-
a exemplo da família monoparental. A ção do Direito das Famílias.
evolução da engenharia genética per- O centro de gravidade das rela-
mite a reprodução sem contato sexual. ções de família situa-se modernamente
Esta visão abrangente levou na mútua assistência afetiva, elemento
à necessidade de se buscar um novo essencial das relações interpessoais, ao
conceito de família que não mais te- qual o Direito não pode icar indife-
nha tais pressupostos como elementos rente. É o afeto que aproxima as pes-
caracterizadores. Entre os rumos de soas, dando origem a relacionamentos
transformação das relações familiares, que geram consequências jurídicas. Em
a reestruturação da família do tipo pa- nome do respeito à diferença, foi cons-
triarcal para uma organização demo- truído um conceito plural de família.
crática, igualitária, pluralista, permitiu a Para a coniguração de uma
ocorrência de importante fenômeno: a entidade familiar, não mais é exigido,
desbiologização, a substituição do ele- como elemento constitutivo: a existên-
mento carnal pelo elemento afetivo ou cia de um casal heterossexual, a prática
psicológico (GAMA, 2000, p. 17). sexual – chamada pela feia expressão
O novo olhar sobre a sexualida- “débito conjugal” – e nem a capacida-
de valorizou os vínculos familiares, que de reprodutiva. A evolução cientíica,
passaram a se sustentar no amor e no principalmente na área da biociência,
afeto. Sem afeto não se pode dizer que acabou inluindo no próprio compor-
há família. É o afeto que conjuga. E, tamento das pessoas e se reletiu na es-
assim, o afeto ganhou status de valor trutura familiar.
jurídico e logo foi elevado à categoria Assim, é indispensável ter uma
de princípio. Resultado de uma cons- visão plural das estruturas familiares e
trução histórica, em que o discurso inserir no conceito de entidade familiar
psicanalítico é um dos principais res- os vínculos afetivos que, por envolve-
ponsáveis, o desejo e o amor começa- rem mais sentimento do que vontade,
ram a ser vistos e considerados como merecem a especial proteção que só o
o verdadeiro sustento do laço conjugal Direito das Famílias consegue assegu-
(PEREIRA, 2014, p. 194). rar. Por isso é necessário reconhecer
A família tornou-se um calei- que, independente da identidade sexu-
al do par, as união de afeto merecem
doscópio de relações que muda no
ser identiicadas como família, gerando
tempo, transforma-se com a evolução
direitos e impondo obrigações aos seus
da cultura, de geração para geração
integrantes.
(GROENINGA, 2003, p. 125). Exigir
• 385 •
No cenário da vida como ela nuem se identiicando e sendo identii-
é, o afeto por vezes falta, o egoísmo cadas como homossexuais, os vínculos
alora, mas os deveres estabelecidos interpessoais que entretêm constituem
nas relações afetivas devem ser inte- uniões homoafetivas. Apesar sofrer
gralmente preservados. Indispensável críticas isoladas de alguns integrantes
que, uma vez introduzida a realidade dos movimentos sociais, que receiam
da vida, do amor e do afeto na expe- a eliminação do caráter erótico da re-
riência normativa, não se releguem as lação, o fato é que as expressões ho-
relações de família, iliais ou conjugais, moafetividade e união homoafetiva se
à pura espontaneidade, desprovida de popularizaram.
valores, deixando-se em segundo pla- O neologismo foi criado no ano
no os deveres constitucionais a que de 2000, quando da primeira edição da
corresponde o amor responsável. A obra Homossexualidade: o Preconceito e a
autonomia é total para os arranjos fa- Justiça, de autoria da subscritora deste
miliares, sendo a responsabilidade pelo verbete (atualmente a obra se encontra
outro e por tudo aquilo que se cativa na 7ª edição, com o nome de Homoafe-
imprescindíveis na legalidade constitu- tividade e direitos LGBTI, São Paulo: RT,
cional (TEPEDINO, 2015, p. 15). 2016.).
Como a família tem o afeto O enfoque atual da família vol-
como pressuposto trata-se de relação ta-se muito mais à identiicação do
da ordem da solidariedade. Portanto, vínculo afetivo que aproxima seus
todas as espécies de vínculos que te- integrantes do que à diversidade ou
nham por base o afeto são merecedo- igualdade sexual de seus membros.
ras da proteção do Estado. O enorme Admitir a existência de comunidades
preconceito de que os homossexuais familiares que não se caracterizam pelo
sempre foram alvo e o repúdio aos vínculo matrimonial é respeitar os va-
seus vínculos de convivência acabou lores constitucionais da democracia e
por gerar a necessidade da criação de a eicácia dos direitos fundamentais.
um novo vocábulo que retirasse das Ressaltada a identiicação da família
uniões de pessoas do mesmo sexo a pelo elo da efetividade, o silogismo é
característica exclusivamente da ordem singelo. Como as uniões homoafetivas
da sexualidade. Daí homoafetividade, têm origem num vínculo afetivo, elas
para marcar que os relacionamentos são uma família. São relações afetivas,
estão calcados muito mais no elo da vínculos em que há comprometimento
afetividade que une o par, não se limi- amoroso. Deste modo é de se admitir
tando a mero propósito de natureza a existência de um gênero de união
sexual. Ainda que as pessoas conti- estável que comporta mais de uma

• 386 •
espécie: união heteroafetiva e união do Estatuto das Famílias, elaborado e
homoafetiva. Ambas entidades fami- apresentado pelo IBDFAM – Instituto
liares que fazem jus à mesma proteção. Brasileiro de Direito de Família (Proje-
Com isso as ações envolvendo víncu- to de Lei nº 470 de 2013).
los afetivos de homossexuais passaram Este é o principal motivo para
a ser julgadas pelos juízes de família e a aprovação de uma legislação ampla a
identiicadas como entidade familiar, im de consolidar os direitos assegura-
merecedores de igual tutela das uniões dos no âmbito judicial, criminalizar a
heteroafetivas. homofobia e impor políticas públicas.
A perversa e preconceituosa O desaio foi aceito pela Or-
omissão do legislador em regulamen- dem dos Advogados do Brasil. Criou
tar as uniões entre pessoas do mesmo Comissões da Diversidade Sexual em
sexo não quer dizer que elas não for- todos os cantos do país e uma Comis-
mam uma entidade familiar, que não são Especial, no âmbito do Conselho
merecem a proteção do Estado, não Federal, a qual, com a colaboração dos
têm direito a constituírem união está- movimentos sociais, elaborou o Proje-
vel e nem acesso ao casamento. to do Estatuto da Diversidade Sexual.
Graças à justiça, que reconheceu Diante da enorme repercussão
que a falta de lei não signiica ausência alcançada pela Lei da Ficha Limpa, foi
de direito, foram estendidas às uniões desencadeado o movimento para an-
homoafetivas os mesmos direitos e de- gariar adesões e apresentar o Estatuto
veres. Os homossexuais casam, podem da Diversidade Sexual por iniciativa
adotar ilhos, fazer uso das técnicas de popular. Para isso é necessário angariar
reprodução assistida e têm reconheci- cerca de um milhão e meio de assina-
dos direitos previdenciários e sucessó- turas (Texto e adesões pelo site: www.
rios. No entanto, isto não basta. Ainda estatutodiversidadesexual.com.br).
é nada. Certamente esta é a única forma
Na tentativa de blindar os avan- de driblar a postura omissiva do Poder
ços judiciais, foi apresentado o projeto Legislativo. Pelo medo de comprome-
de lei, intitulado de Estatuto da Família terem a re-eleição ou serem rotulados
(Projeto de Lei nº 6.583 de 2013), que de homossexuais, deputados e sena-
deine família como a entidade for- dores até hoje se negam a aprovar de
mada por um homem e uma mulher, qualquer projeto de lei que assegure
e somente a ela assegura um punhado direitos às uniões homoafetivas.
de direitos. Este projeto de lei, de for- Apresentar o projeto por inicia-
ma oportunista, tenta confundir para tiva popular é a forma de a sociedade
embaraçar a tramitação do Projeto reivindicar tratamento igualitário a to-

• 387 •
dos, independente de sua orientação HELMINIAK, Daniel. O que a Bíblia realmente diz so-
bre a homossexualidade. São Paulo: Summus, 1998.
sexual ou identidade de gênero. Em
um Estado Democrático de Direito, é OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Homossexualidade:
uma visão mitológica, religiosa, ilosóica e jurídica. São
de todo descabida a exclusão de qual- Paulo: RT, 2011.
quer segmento da tutela jurídica, o que
afeta a todos. Ainal, trata-se de uma PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A sexualidade vista pelos
Tribunais. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
questão de cidadania.
Como diz Gustavo Tepedino, é PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípio da afetividade.
In: DIAS, Maria Berenice (coord.). Diversidade sexual e
necessário preservar a ordem pública direito homoafetivo. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
constitucional – democrática, toleran- Ed. RT, 2014. p. 171-178.

te, igualitária, solidária e personalista, QUINET, Antônio; JORGE, Marco Antônio Coutinho.
considerando-se inconstitucional a (Orgs.). As homossexualidades na psicanálise: na história
de sua despatologização. São Paulo: Segmento Farma,
atuação das autoridades públicas abla- 2013.
tiva dos núcleos familiares formadas
RODRIGUES, Humberto. O amor entre iguais. São
por pessoas do mesmo sexo (TEPE- Paulo: Mytus, 2004.
DINO, 2009, p. 229).
TEPEDINO, Gustavo. Dilemas do Afeto. In: PEREIRA,
Rodrigo da Cunha. Anais do X Congresso Brasileiro de
Maria Berenice Dias Direito de Família: Famílias nossas de cada dia. Belo Ho-
rizonte: IBDFAM, 2015. p. 11-28.
Referências e sugestões de leitura
TEPEDINO, Gustavo. União de pessoas do mesmo sexo
à luz do direito civil-constitucional. In: DIAS, Maria
BLEICHMAR, Silvia. Pontualizações para uma teoria
Berenice (org.). Direito das Famílias. São Paulo: Ed. RT,
psicanalítica da homossexualidade. In: GRAÑA, Roberto
B. (org.). Homossexualidade: formulações psicanalíticas 2009. p. 212-229.
atuais. Porto Alegre: Artmed, 1998.
VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homo-
CHAVES, Marianna. Homoafetividade e direito: prote- afetividade: Da possibilidade jurídica do casamento civil.
ção constitucional, uniões, casamento e parentalidade. 3 Da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 2.
ed. Curitiba: Juruá, 2015. ed. São Paulo: Método, 2013.

DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os direitos


LGBTI. 7. ed. São Paulo: Ed. RT, 2016. •
DIAS, Maria Berenice (coord.). Diversidade sexual e di-
reito homoafetivo. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014. Homoerotismo
FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, George Salomão;
LEITE, Glauber Salomão; LEITE, Glauco Salomão (co-
ords.). Manual de direito homoafetivo. São Paulo: Sarai- O termo homoerotismo se dis-
va, 2013. tingue de outros tais como homos-
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Filiação e re- sexualismo ou homossexualidade. A
produção assistida sob a perspectiva do Direito compara-
do. Revista Brasileira de Direito de Família. n. 5. p. 7-28. utilização da palavra homossexualismo
Porto Alegre, abr.-jun. 2000.
remete a conceitos, crenças e, conse-
GROENINGA, Giselle Câmara. Família: um caleidoscó- quentemente, comportamentos que
pio de relações. In: GROENINGA, Giselle Câmara; PE-
REIRA, Rodrigo da Cunha (coords.). Direito de família e recuperariam o pensamento e as práti-
psicanálise. São Paulo: Imago, 2003. p. 125-142.

• 388 •
cas dos séculos XVIII e XIX, quando negociação. Desta forma, existem um
o conceito foi “inventado” pelo dis- debate aberto em torno da deinição
curso médico associado a “doença”. O do conceito de homoerotismo e ou-
homoerotismo retira do termo cono- tros que a ele se vinculam. A ABEH
tações preconceituosas, representando (Associação Brasileira de Estudos da
a variedade de práticas sociais e sexu- Homocultura), por exemplo, emprega
ais das pessoas com o mesmo sexo, tanto homossexuais como homoero-
principalmente aquelas retratadas nas tismo para designar a relação amorosa
artes visuais e literatura. Com o homo- e afetiva entre pessoas do mesmo sexo,
erotismo há o abandono da ideia da o que é combatido pelo psicanalista
existência de uma identidade homogê- Jurandir Freire que argumenta que não
nea e de essência, que ainda hoje está é possível trabalhar com os conceitos
presente quando se emprega o termo homoerotismo e homossexualida-
homossexual. Neste sentido, ele diz de de como sinônimos e não se trata de
uma atração erótica entre pessoas do substituir um pelo outro. As caracterís-
mesmo sexo, tanto homens como mu- ticas do homoerotismo não permitem
lheres, de forma que podemos falar de pensar a existência da homogeneidade,
homoerotismo masculino e homoero- de maneira que o mais prudente seria
tismo feminino. utilizar o termo “práticas homoeróti-
Com isso, o termo se consagrou cas” do que homoerotismo como uma
nos meios acadêmicos, interessados identidade, algo que deine e marca os
em estudar as correlações entre as ex- sujeitos.
pressões artísticas e estéticas ao retra- O homoerotismo aposta no po-
tar relações entre pessoas do mesmo der do desejo e na variedade de atos e
sexo. Posteriormente o surgimento do sentimentos mais próxima a heteroge-
termo homossexualidade representou neidade vivida pelos sujeitos no que se
um ganho no deslocamento da ideolo- refere às práticas sexuais. O homoero-
gia médica que marcou o homossexu- tismo dilui a ideia da homogeneidade
alismo. tão presente quando utilizamos o ter-
No entanto, tanto homossexu- mo homossexualidade, que atribui aos
alismo quanto homossexualidade, são indivíduos uma identidade homogênea
apenas uma parte da história das práti- que seria a “marca” capaz de identii-
cas homoeróticas, muito mais ampla e cá-los, como por exemplo, comporta-
diversiicada. O homoerotismo é uma mento, trejeitos, fala. Usar os termos
construção social, histórica, relacional, “homossexualidade” e “homossexu-
heterogênea, coletiva e individual, além ais” para se referir a indivíduos com
de estar em constante construção e práticas homoeróticas é estar preso ao

• 389 •
século XIX e aos sentidos atribuídos _____. A Face e o Verso: Estudos sobre o homoerotismo
II. São Paulo: Editora Esculta, 1995.
pelos discursos médico e cristão.
Entender o homoerotismo é GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade:
sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas.
uma tarefa complexa, visto que temos São Paulo: Editora da UNESP, 1993.
que considerá-lo a partir de uma estéti-
LOPES, Denílson (et al.) (org.). Imagem & Diversida-
ca que marca as artes nas suas diversas de Sexual - estudos da homocultura. São Paulo: Nojosa
linguagens e que ao longo dos anos foi edições, 2004.

assumindo uma forma de amor, atra- CATONNÉ, Jean Philippe. A sexualidade, ontem e hoje.
ção e desejo entre pessoas do mesmo São Paulo: Cortez, 1994.

sexo, que tem sido julgado e defen-



dido, assumido e negado, praticado e
teorizado, comemorado e condenado.
Assim, ele deve ser compreendido em Homofobia, heterossexismo,
diálogo ao jogo de força que rotula e heterossexualidade
nomeia, de forma desigual e arbitrária, compulsória,
as pessoas, uma vez que o homoero- heteronormatividade
tismo problematiza a centralidade no
objeto do desejo. No homoerotismo Os conceitos de homofobia,
o que importa são as práticas sem que heterossexismo, heterossexualidade
elas sirvam para classiicar, nomear e compulsória e heteronormatividade
marcar os sujeitos que fazem uso de- possuem muitas relações entre si, mas
las. A indeinição como identidade é a não são sinônimos. Homofobia é um
característica principal do homoerotis- conceito criado para pensar a repul-
mo. Nesse sentido, temos que pensar o sa geral aos sujeitos homossexuais,
homoerotismo como estudo da cultura ou fobia aos homossexuais. Segundo
e da política. Nesse caso, a preocupa- Borrillo (2001, p.21), “o termo parece
ção estaria centrada nessas relações e pertencer a K. T. Smith, quem, em um
não em deinir o homoerotismo, ou artigo publicado em 1971, tentou ana-
seja, o interesse maior estaria nos con- lisar as características de uma persona-
textos sociais e culturais em que são lidade homofóbica. Um ano depois, G.
produzidas as imagens sobre eles. Weinberg deiniu a homofobia como
“o temor de estar com um homosse-
Anderson Ferrari xual em um espaço fechado e, no que
concerne aos homossexuais, o ódio até
Referências e sugestões de leitura a si mesmos”.
Em geral, usamos o conceito
COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício: estudos
sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. de homofobia para descrever qualquer
1992.

• 390 •
atitude ou comportamento de repulsa, homossexuais, mas também poderia
medo ou preconceito contra os ho- atingir os heterossexuais que, porven-
mossexuais. Mas a homofobia não se tura, pareçam, aos olhos homofóbicos,
restringe apenas às violências físicas. como homossexuais.
Existe também a violência verbal, via O conceito de homofobia é
insultos e xingamentos; violência psi- controverso e, ainda que muitos/as
cológica, como as atitudes que causam pesquisadores/as defendam o seu uso,
danos emocionais e à autoestima, tais em função dele já ter sido incorporado
como constrangimentos, humilhações, por boa parte da sociedade, ou que o
insultos; violência simbólica, que se ba- ampliem para além de aspectos de or-
seia na produção de representações de dem psicológica, como faz Junqueira
normalidade e anormalidade e faz com (2007), a ideia de fobia está, queiramos
que os sujeitos se reconheçam nessas ou não, dentro do campo da patologia.
representações, isto é, se vejam a partir Enquanto isso, sabemos que apren-
das construções do discurso do outro. demos no dia-a-dia quem deve ser
Borrillo diferencia vários tipos respeitado e quem pode ser injuriado,
de homofobia (irracional, cognitiva, portanto, não estamos falando de uma
geral e especíica) e depois sintetiza: “A patologia, mas de um problema social.
homofobia pode ser deinida como a Outro problema tem a ver como
o preixo homo é decodiicado no Bra-
hostilidade geral, psicológica e social, a
sil. Os criadores do conceito de homo-
respeito daqueles e daquelas de quem
fobia agruparam dois radicais gregos
se supõe que desejam indivíduos de
para formar a palavra: homo (seme-
seu próprio sexo ou tenham práticas
lhante) e fobia (medo). No entanto,
sexuais com eles. Forma especíica de
para nós, homo signiica homossexual
sexismo, a homofobia rechaça também
e, por isso, o conceito de homofobia
a todos os que não se conformam com
ica reduzido a uma identidade, isto é,
o papel predeterminado para seu sexo
aos homossexuais, e invisibiliza a mul-
biológico. Construção ideológica con-
tiplicidade de outros sujeitos. Isso fez
sistente na promoção de uma forma
surgir novos conceitos, tais como les-
de sexualidade (hétero) entre detri-
bofobia, bifobia, travestifobia, trans-
mento de outra (homo), a homofobia fobia. Borrillo (2011, p.23) reconhece
organiza uma hierarquização das se- esse problema, dizendo que homofo-
xualidades e extrai dela consequências bia pode se confundir como gayfobia,
políticas” (BORRILLO, 2001, p. 36). mas ainda assim decide usar apenas a
Ou seja, a homofobia, neste sentido, noção de homofobia alegando “razões
não seria apenas um problema para os de economia de linguagem”.

• 391 •
Nos chamados estudos gays e ção sexual, voltadas para os homens,
lésbicos, nos quais se desenvolveu o são inevitáveis. As mulheres serão
conceito de homofobia, outro con- doutrinadas pela ideologia do romance
ceito muito valorizado é o de heteros- heterossexual através de contos de fa-
sexismo, “que se deine como a cren- das, da televisão, do cinema, etc, isto é,
ça na hierarquia das sexualidades, que todos esses mecanismos fazem propa-
coloca a heterossexualidade em um gandas coercitivas da heterossexualida-
nível superior. E o resto das formas de e do casamento como padrão.
de sexualidade aparece, no melhor dos Através desses mecanismos, as
casos, como incompletas, acidentais e mulheres seriam aprisionadas psicolo-
perversas, e no pior, como patológicas, gicamente à heterossexualidade e ten-
criminosas, imorais e destruidoras da tariam ajustar a mente e o espírito a um
civilização” (BORRILLO, 2011, p. 32). modo prescrito de sexualidade. Embo-
Ainda que o conceito de hete-
ra Rich faça uma análise da experiência
rossexismo também tenha produzido
lésbica, essa doutrina também ocorre
muitas relexões e obteve certo suces-
com os homens, mesmo que de modo
so junto aos estudos e políticas, deslo-
diferente.
cando o problema da esfera homo para
Também pensando a heterosse-
a esfera hétero, a heterossexualidade só
xualidade em relação às lésbicas (mas
foi deinitivamente tirada de sua “zona
não usando as palavras heterossexua-
de conforto” com os conceitos e rele-
lidade compulsória), Monique Wittig
xões sobre heterossexualidade com-
publica, em 1980, o texto O pensamento
pulsória e heteronormatividade, caros
heterossexual, no qual argumenta que a
aos estudos queer, que são posteriores
heterossexualidade é um regime políti-
aos estudos gays e lésbicos.
co que obriga as mulheres a reproduzir
O conceito de heterossexuali-
para sustentar a sociedade heterosse-
dade compulsória começou a aparecer
xual. Pelo fato das lésbicas não se sub-
por volta de 1980. Neste ano, dois tex-
meterem a esse regime, Wittig (2006,
tos importantes foram publicados so-
bre o tema. Um deles é da feminista p. 57) conclui: “as lésbicas não são mu-
Adrienne Rich (2010), em uma análise lheres” Para ela, a heterossexualidade
sobre a experiência lésbica. Para Rich, não é uma orientação sexual, mas um
essa experiência é percebida através regime político que se baseia na sub-
de uma escala que vai do desviante ao missão e na apropriação das mulheres.
odioso ou até mesmo invisível. Além O feminismo, ao não questionar esse
dessa percepção, as mulheres são con- regime, diz Wittig, ajudar a consolidá-
vencidas que o casamento e a orienta- -lo.

• 392 •
A heterossexualidade compul- Com a retirada da homossexu-
sória consiste na exigência para que alidade da categoria de crime e a sua
todos os sujeitos sejam heterossexuais, posterior despatologização, a partir de
isto é, se apresenta como única forma 1973, a heterossexualidade compul-
considerada normal de vivência da se- sória perde um pouco de força. Isto
xualidade. Essa ordem social/sexual se porque a patologização sustentava a
estrutura através do dualismo heteros- heterossexualidade como única for-
ma sadia de vivenciar a sexualidade.
sexualidade versus homossexualidade,
A partir de então, heterossexualidade
sendo que a heterossexualidade é natu-
e homossexualidade são consideradas
ralizada e assim se torna compulsória.
formas possíveis de vivência da sexu-
Isso ocorre, por exemplo, quando bus-
alidade, ao menos em tese, em muitos
camos as causas da homossexualida- lugares do planeta (mas não em todos).
de, um fetiche vigente ainda hoje. Ao Mesmo que a “ciência” tenha retirado
tentarmos identiicar o que torna uma a homossexualidade (e mantido a tran-
pessoa homossexual, colocamos a he- sexualidade) na lista das doenças, no
terossexualidade como padrão, como senso comum as pessoas ainda acredi-
um princípio na vida humana, do qual, tam que ser normal e sadio é ser hé-
por algum motivo, alguns se desviam. tero. Além disso, algumas concepções
Mesmo que não consideremos “cientíicas” partem ainda da heteros-
que a homossexualidade seja anormal sexualidade como natureza humana e
ou patológica, cada vez que tentamos se apoiam no dualismo hétero versus
achar um momento ou ocasião que a homo.
origina, nós naturalizamos a heterosse- Nos estudos sobre a heterosse-
xualidade e ocultamos um dos meca- xualidade compulsória, além de estu-
nismos de produção da anormalidade, dar as sexualidades heterossexuais, que
são problematizadas e explicadas, tam-
isto é, a naturalização da sexualidade.
bém são realizadas relexões de modo
Para não incorrer nesse erro, teríamos
a entender as orientações sexuais não-
que substituir a questão de uma causa
-heterossexuais. Nas relações sociais,
da sexualidade para problematizar que
a vivência não-heterossexual pode ser
mecanismos tornam alguns sujeitos alvo de atos homofóbicos, isto é, o
aceitáveis, normalizados, coerentes, sujeito não-hétero não é considerado
inteligíveis (BUTLER, 2003) e outros digno de viver, de ocupar cargos pú-
desajustados. Sairíamos de uma busca blicos ou de fazer parte do rol de ami-
pela causa para uma problematização gos. A homofobia pode ser uma forma
dos mecanismos que tornam os indiví- de expressão dessa heterossexualidade
duos desviantes. compulsória.

• 393 •
Já o conceito de heteronorma- sive fora do armário, mas não pode se
tividade, segundo Miskolci (2012), foi identiicar com o universo feminino,
criado em 1991, por Michael Warner, nem uma mulher lésbica pode se iden-
que busca dar conta de uma nova or- tiicar com o masculino.
dem social. Isto é, se antes essa ordem Enquanto a heterossexualidade
exigia que todos fossem heterossexu- compulsória se sustenta na crença de
ais, hoje a ordem sexual exige que to- que a heterossexualidade é um padrão
dos, heterossexuais ou não, organizem da natureza, a heteronormatividade
suas vidas conforme o modelo “su- advoga que ter um pênis signiica ser
postamente coerente” da heterossexu- obrigatoriamente másculo, isto é, o
alidade. gênero faz parte ou depende da “na-
Enquanto na heterossexuali- tureza”; existe uma relação mimética
dade compulsória todos os sujeitos do gênero com a materialidade do cor-
devem ser heterossexuais para serem po. Em ambas a naturalidade aparece
considerados normais, na heteronor- como sustentáculo. Na perspectiva da
matividade todos os sujeitos devem or- heteronormatividade, é preciso que a
ganizar suas vidas conforme o modelo erotização (não-heterossexual) seja in-
heterossexual, tenham eles práticas se- visibilizada, isto é, dois homens podem
xuais heterossexuais ou não. Com isso aparecer como parceiros, mas esse vín-
entendemos que a heterossexualidade culo não pode ser erotizado/sexuali-
não é apenas uma orientação sexual, zado, ou, como dizem as pessoas: “o
mas um modelo político que organiza sexo é dentro de quatro paredes, pode
a vida das pessoas. fazer o que quiser na cama, mas na
Se na heterossexualidade com- rua se comporte como homem”. Para
pulsória todos os sujeitos que não são organizar a sua vida conforme a hete-
heterossexuais são considerados doen- ronormatividade, os homossexuais de-
tes e precisam ser explicados, estuda- vem fazer tudo o que um heterossexual
dos e tratados, na heteronormativida- faz. Assim, o ritual do casamento e a
de esses sujeitos tornam-se coerentes adoção de crianças se transformam em
desde que se identiiquem com a he- um simulacro da sexualidade reprodu-
terossexualidade como modelo, isto é, tiva.
mantenham a linearidade entre sexo e Ainda como motor da hetero-
gênero (Butler, 2003): as pessoas com normatividade, podemos citar as con-
genitália masculina devem se compor- cepções de saúde/doença existentes
tar como machos, másculos e as com nos manuais de diagnóstico, que ainda
genitália feminina devem ser femini- consideram como portadores de um
nas, delicadas. Nesse sentido, um ho- transtorno de gênero quem não segue
mem até pode ser homossexual, inclu- a linha coerente entre sexo / gênero.
• 394 •
Pessoas com genitália masculina que entre outros, talvez possam contribuir
se constroem como femininas ou com para compreendermos dimensões dis-
vagina que se constroem como mas- tintas de mesmos fenômenos ou de
culinas são ainda consideradas como processos conexos. Abandonar o con-
doentes. ceito de homofobia pode comportar o
Miskolci (2012) também se pre- risco de jogarmos fora a criança junto
ocupou em fazer a distinção entre he- com a água do banho, mas empregá-
terossexismo, heterossexualidade com- -lo de modo acrítico pode certamente
pulsória e heteronormatividade. Ele comprometer a produção dos efeitos
sintetiza: “Heterossexismo é a pressu- que dele se espera.” (JUNQUEIRA,
posição de que todos são, ou deveriam 2007, p. 165).
ser, heterossexuais. (...) A heterosse-
xualidade compulsória é a imposição Gilmaro Nogueira
como modelo dessas relações amoro- Leandro Colling
sas ou sexuais entre pessoas do sexo
Referências e sugestões de leitura
oposto. (...) A heteronormatividade é
a ordem sexual do presente, fundada BORRILLO, Daniel. Homofobia. Barcelona: Bellaterra,
no modelo heterossexual, familiar e re- 2001.

produtivo. Ela se impõe por meio de BUTLER, Judith. Problemas de gênero – feminismo e
violências simbólicas e físicas dirigidas subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 2003.
principalmente a quem rompe normas
de gênero” (MISKOLCI, 2012, p. 43- JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia: limites e pos-
sibilidades de um conceito em meio a disputas. Bagoas,
44). volume 1, número 1, jul/dez 2007, p. 145 a 166.
Após essas relexões, o que su-
MISKOLCI, Richard. Teoria queer: um aprendizado pe-
gerimos? O abandono do conceito de las diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
homofobia? Junqueira também fez es-
RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e a
sas perguntas e concluiu: “Mesmo que existência lésbica. Bagoas, número 5, 2010, p. 17 a 44.
o conceito de homofobia se preste a WITTIG, Monique. El pensamiento heterosexual y otros
diferentes entendimentos e o de he- ensaios. Madrid: Egales, 2006.
teronormatividade nos acene com a
possibilidade de análises mais fecundas •
e ações potencialmente mais incisivas,
não creio ser prudente defender o ime- Homossexualidade
diato abandono do primeiro em favor
do último. Seja como for, diferentes e Reconhecendo a historicidade
fortemente relacionados, os conceitos dos objetos e sujeitos, os estudos gene-
de homofobia e heteronormatividade, alógicos, inaugurados por Foucault,

• 395 •
defendem a importância de se investi- a preocupação com a classiicação e
gar a sua construção, levando em con- com o policiamento. E, segundo, por-
sideração as suas condições de surgi- que serão identiicados e apresentados
mento. Partindo de questões levantadas variados casos particulares de anoma-
no presente, signiica problematizá-las lia, caracterizados como distúrbios se-
considerando sua história, pensando o xuais. Pensando que a homossexuali-
seu aparecimento numa determinada dade também foi construída nesse
época para pensar as continuidade e contexto, parece difícil entendê-la sem
rupturas, construindo uma história do levar em consideração a constituição
presente. Assumindo essa perspectiva desse domínio da anomalia. A homos-
de investigação, a proposta deste ver- sexualidade nasce, portanto, neste con-
bete é questionar e problematizar o texto, como um problema, como um
que parece ser “verdades” inquestioná- conceito cunhado no artigo escrito por
veis: entender a presença marcante do Westphal em 1870. O importante não
desejo na identiicação, na classiicação é entender esse domínio médico de
e na imposição da identidade homos- classiicação dos sujeitos nas orienta-
sexual. Recuperar a construção da ho- ções sexuais como simples expressão
mossexualidade é voltar para a História da repressão, mas como a constituição
para buscar entender como o homos- de um novo mecanismo de poder.
sexual se torna “homossexual”, ou Quando se nomeiam essas formas de
seja, até que ponto o que está sendo expressão, assim como aconteceu com
organizado hoje depende desse passa- a homossexualidade e outras experiên-
do e mesmo, em que medida aqueles cias e sexualidades “marginalizadas”,
que não têm essas mesmas experiên- não se tratam apenas de listá-las ou ex-
cias, tornam-se similares. Essência ou cluí-las do real. Os mecanismos de po-
experiência, o que parece servir para a der que se inauguram estão mais liga-
identiicação com uma dessas perspec- dos ao adestramento, à vigilância e à
tivas é a expressão do desejo. Ou seja, conissão do que à penalidade, trazen-
a deinição da homossexualidade está do para a discussão novos campos de
diretamente ligada ao desejo, e, mais conhecimentos dispostos a construí-
especiicamente, ao objeto do desejo. rem discursos inesgotáveis e correti-
O século XIX é marcado pela preocu- vos, como a medicina, a educação, por
pação com a classiicação do que é o exemplo. Esse novo mecanismo de po-
“anormal”. A sexualidade vai estar pre- der que se inaugurou no século XIX,
sente nesse domínio da anomalia, des- foi responsável por incorporar as sexu-
de o seu início. Primeiro porque o alidades que fugiam do formato cristão
campo geral da anomalia vai inaugurar do casamento monogâmico e do mo-

• 396 •
delo heterossexual adulto, assim como pouco importava. O prazer, tanto com
as perversões e novas especiicações os rapazes quanto com as mulheres,
dos indivíduos. Sendo assim, o homos- era igualmente possível em um ho-
sexual torna-se uma personagem, sen- mem. Neste sentido não se pode falar
do atribuído a ele um passado, uma da existência de uma distinção entre o
história, uma infância, um caráter, en- amor homossexual e o heterossexual.
im, características que o marcam Entretanto, os homens podiam ser dis-
como uma personagem de natureza tinguidos pelo tipo de prazer a que
singular. Ainda é com essa visão do ho- eram mais ligados: questão de gosto e
mossexual como personagem, capaz não de tipologia, demarcando e classi-
de ser identiicado pela face e pelo cor- icando a natureza do indivíduo, a ver-
po, como sendo um segredo que se dade de seu desejo ou a legitimidade
trai, como algo que é do sujeito sem ter natural de sua inclinação. O prazer
como fugir, que o senso comum está com rapazes ou moças não resultava
trabalhando, entendendo a homosse- em classiicação, tanto uma quanto a
xualidade e produzindo discurso, per- outra forma de orientação era livre,
petuando, neste sentido, o século XIX. permitida pelas leis e opiniões, encon-
No entanto, o termo homossexualida- trando suporte nas instituições, como
de serve muito pouco, ou nada, para por exemplo, as militares, as pedagógi-
compreender o tipo de experiência, as cas e até mesmo vivenciadas em ritos e
valorizações e os sistemas de recortes festas religiosas. Eram culturalmente
históricos tão distantes do nosso. Mes- valorizadas pela literatura, cantadas
mo assim, é possível questionar o que nos versos, que servia para reletir e
faz a sociedade ocidental modiicar o fundamentar seu valor. Esse contexto
seu tratamento com o desejo e o “uso histórico em que o prazer entre rapa-
dos prazeres na relação com rapazes”. zes não era condenado, serve para
Para os gregos, a oposição mais preo- questionar o momento da mudança
cupante estava relacionada à entrega ao dessa situação e de constituição dessa
prazer. Do ponto de vista da moral, a forma de desejo em problema. Essa
grande questão era não se deixar domi- passagem parece demonstrar que a
nar pelo prazer, pelo desejo, manten- preocupação deixou de estar situada
do-se o homem, senhor de si. Eram nos cuidados com o controle do prazer
desprezados os rapazes fáceis ou inte- para se centralizar no objeto do prazer.
resseiros, os homens efeminados e os E isso se tornou tão intenso que esse
devassos, o que demonstra que nem tipo de desejo foi investido de valores,
todo prazer era, por si só, bom e valo- de imposições, de normas, de conse-
rizado. No entanto, o objeto de desejo lhos, de cuidados e de proibições. Com

• 397 •
isso, foi sendo construída e incorpora- ção por pessoas do mesmo sexo não é
da uma nova forma de entender o pra- suiciente, enquanto qualidade caracte-
zer entre homens, como se estivesse rística que deiniria o comum a todas
estruturado por um desejo que é parti- elas. No entanto, foi atribuída aos ho-
cular, com a interrogação recaindo so- mossexuais, uma identidade homogê-
bre essa singularidade de um desejo nea que seria a “marca” capaz de iden-
que se dirige a pessoas do mesmo sexo. tiicá-los, como por exemplo,
Pouco a pouco, o homem foi incorpo- comportamento, trejeitos, fala, e, so-
rando uma prática constante de vigi- bretudo, o desejo pelo mesmo sexo,
lância em relação a si próprio, atento como se isso fosse suiciente para se
para os menores movimentos que se identiicar como homossexual. A ho-
manifestam no seu corpo e seu pensa- mossexualidade traz consigo a idéia da
mento, buscando entender e classiicar homogeneidade, principalmente no
esses movimentos. O campo da sexua- que diz respeito ao desejo, tão presente
lidade, como foi organizado, abriu um hoje em dia. Durante o século XIX, a
novo domínio: o do pensamento. Irre- homossexualidade não era entendida
gular e espontâneo, repleto e constituí- por uma visão sociológica, ou seja, não
do por imagens, por lembranças, por estava em questão a relação entre so-
histórias vividas e compartilhadas, por ciedade e a criação das normas, do que
percepções e representações construí- é proibido e do que é permitido. A ten-
das numa cultura, num tempo e lugar, dência era acreditar que os homosse-
com movimentos e impressões que xuais eram diferentes biologicamente
vão do corpo à mente num processo ou psicologicamente dos indivíduos
de “mão dupla”. Assim, de forma geral considerados heterossexuais. Assim, a
a sociedade vai incorporando o objeti- Medicina do século XIX cria o homos-
vo de expulsar tudo aquilo que é consi- sexualismo como discurso, relacionado
derado impuro, indesejado e causador à doença, demonstrando a inluência
de impurezas. E isso é possível de ser dessa ciência na deinição de suas prá-
conseguido através de uma vigilância ticas. Os médicos e a medicina do sé-
contínua. Especiicamente cada grupo culo XIX contribuíram para a constru-
social vai elegendo o que se constitui ção social do homossexual,
como impuro e que deve ser objeto de preocupados, sobretudo com as rela-
vigilância e de expulsão no interior de ções sexuais fora do casamento. Nesse
suas lutas. Assim como a heterossexu- contexto as autoridades se preocupa-
alidade serve indicar práticas variadas e vam com questões que envolviam a
disparatadas, a homossexualidade tam- sexualidade dos indivíduos. A justiica-
bém sugere experiências em que a atra- tiva para o controle e para disciplinar

• 398 •
as sexualidades e, em contrapartida, os “errado”, o “adequado” e o “inadequa-
indivíduos era a de que a “saúde” da do”, o “normal” e o “anormal”. As-
nação estava ligada à “saúde” das famí- sim sendo, é necessário pensar nossa
lias e, por isso, dependente do controle sociedade dentro dessa perspectiva e,
da sexualidade. São os médicos que a partir daí, contextualizar o discurso
vão reivindicar o poder de sua autori- que trata dos homossexuais. Embora a
dade, são eles que vão considerar-se medicina e a ciência tenham se interes-
capazes e detentores da fala e da “ver- sado e participado efetivamente da dis-
dade” sobre a sexualidade. O exercício cussão e da determinação de normas e
desse poder vai transformar o discurso regulamentos das condutas sexuais nos
sobre homossexuais de “crime”, “pe- séculos XIX e XX, os conceitos católi-
cado” para “doença”, e também vai cos permaneceram presentes, determi-
alterar o tratamento da homossexuali- nando as ações de muitos indivíduos.
dade, pois se o crime e o pecado mere- A entrada em cena do discurso médi-
cem punição, a doença exige a “cura”. co não signiicou o desaparecimento e
Com a criação do termo ho- nem tampouco o desinteresse católico
mossexual e com a transformação do pela questão. Não houve a substitui-
homossexual em doente, abre-se a ção de um pelo outro. O que ocorreu
possibilidade de cura através do trata- foi a convivência mútua chegando até
mento “médico-pedagógico”. Assim, mesmo ao ponto de um fortalecer e
cada indivíduo passava a ser classiica- complementar o outro. Para a Igreja
do pela medicina, que exercia um papel Católica, durante todo esse período
político, sutil e profundo, dividindo a de convívio com o discurso médico,
sociedade em apenas duas catego- o sexo permaneceu sendo justiicado
rias: homossexuais ou heterossexuais. apenas para a reprodução da espécie e
Quando se trata da homossexualidade por nenhuma outra razão a mais. Qual-
dentro de uma sociedade dada, perce- quer atividade sexual que se distancias-
be-se que se enquadra numa hierarquia
se desse preceito seria um pecado con-
de emoções e comportamentos, onde
tra a natureza. Segundo esse raciocínio,
se sobrepõem valorização ou desva-
a homossexualidade estaria incluída
lorização, tolerância ou condenação.
Os padrões de normalidade legitima- no rol desses pecados contra a natu-
rão ou não as ações de cada indivíduo, reza humana e a vontade de Deus. A
classiicando-as como “pecaminosas”, homossexualidade parece ter sido um
“criminais”, “inconvenientes”. Toda desses campos onde o discurso médico
sociedade, através do seu código éti- e o católico se apoiavam, se comple-
co-moral vai determinar o “certo” e o mentavam e se fortaleciam. Atualmen-

• 399 •
te, muito das representações sobre os mecanismos sociais. Isso é tão forte e
homossexuais que dominam o senso está tão incorporado que é feito de for-
comum mantêm viva essa deinição de ma sutil, desapercebida e espontânea.
doença, perversão e pecado, fornecen-
Anderson Ferrari
do-lhe sempre uma visão única e ho-
mogeneizadora de toda coletividade,
Referências e sugestões de leitura
demonstrando, consciente ou incons-
cientemente, o desconhecimento das FRY, Peter & MACRAE, Edward. O que é homossexua-
lidade. São Paulo: Brasiliense, 1985.
variações possíveis que existem no in-
MACRAE, Edward. A construção da igualdade: identi-
terior dessa categoria e que impossibi-
dade sexual e política no Brasil da abertura. Campinas:
litam falar de homossexual, ao mesmo Ed. UNICAMP, 1990.

tempo em que obrigam a pensar em SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. Rio
homossexuais, sempre no plural. Exis- de Janeiro: Record, 1996.

te uma extrema variedade de inserção FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vonta-


de de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1993.
das pessoas no que se refere a entender
e vivenciar suas sexualidades, sem que COSTA, Horácio (et al.) (org.). Retratos do Brasil Ho-
mossexual: fronteiras, subjetividades e desejos. São Paulo:
haja a obrigação de se deinir, diferen- EDUSP: Imprensa Oicial, 2010.
ciar e mesmo assumir uma identidade
sexual. Um homem pode se relacionar •
sexualmente com outro sem, no en-
tanto, ter ou exercer uma identidade
Honra
homossexual. Com base na história da
Substantivo feminino (der de
homossexualidade é possível perceber
honrar) 1 Sentimento que leva o ho-
como o tema foi apropriado pelo dis-
mem a procurar merecer e manter a
curso médico e pelo cristão em mo-
consideração pública. 2 Pundonor. 3
mentos distintos, demonstrando que
Consideração ou homenagem à virtu-
não há nenhuma verdade absoluta so-
de, ao talento, às boas qualidades hu-
bre o assunto, mas apenas construções
manas. 4 Probidade. 5 Fama, glória. 6
historicamente situadas. Nesse sentido,
Celebridade. 7 Pessoa que por talento
é necessário pensar a homossexualida-
ou virtudes ilustra a classe, a institui-
de e o trabalho dos grupos gays como
ção, o país a que pertence. 8 Cada um
estudo da cultura e da política. Assim,
dos cinco trunfos maiores no jogo da
cada sociedade cria expectativas quan-
imperial. 9 Castidade; pureza. 10 Vir-
to ao comportamento que cada um
gindade. sf pl 1 Honraria. 2 Título ho-
deve desempenhar e essas expectativas
noríico de um cargo, que se confere a
são impostas através de uma série de

• 400 •
quem o exerceu, mas sem vencimen- que a ideia de honra está referida ao
tos. 3 Manifestações exteriores de res- sexo masculino e para compreender
peito ou de saudade.” essa construção social e histórica, pre-
Para além de um conceito nas cisamos contextualizá-la, pois os signi-
ciências humanas, honra é uma palavra icados se modiicam no tempo e no
de uso ordinário na língua portuguesa. espaço.
Está presente em romances, nas nove- Na França do antigo Regime, a
las, nos noticiários sempre relacionada honra era reconhecida como uma qua-
a respeito, dignidade, coragem, heroís- lidade pessoal muito importante que se
mo, aos sentimentos de família e, em estendia sobre a família. Neste sentido,
geral, a atributos de masculinidade quando um criminoso era condenado,
Segundo o Dicionário Michaelis a sua pena envolvia um castigo deson-
(2009) – honra pode ter vários signii- roso que imputava consequências a
cados, mas gostaríamos de demonstrar toda família, seus membros eram con-
como estes sentidos são atravessados siderados igualmente desonrados, não
por marcadores que reforçam distin- podiam comprar cargos, ocupar posi-
ções de gênero. Nesse verbete portan- ções públicas, e suas propriedades po-
to, vamos nos ater a esse signiicado e deriam ser coniscadas (HUNT, 2000).
buscar demonstrar como vem se mo- Após a Revolução Francesa, ocorreu
diicando em determinados contextos uma mudança no conceito de honra,
históricos sociais, políticos e sociais. que pode ser percebida pela mudança
Se tomarmos os primeiros sen- no tratamento do castigo desonroso,
tidos do dicionário veremos que hon- pois, com o desenvolvimento da noção
ra se refere inicialmente aos homens e de direitos humanos, tão caro aos prin-
que cabe às mulheres mantê-la através cípios da Revolução, a compreensão
da castidade, virgindade, idelidade e tradicional de honra, tão importante
pureza. Há outros sentidos relaciona- para aristocracia do antigo regime, pas-
dos a honra - honras fúnebres, honras sa a ser atacada. O castigo desonroso
militares - mas nos ateremos às cons- passa a atingir apenas o criminoso e
truções que enfatizam o sentimento de não mais a sua família. No desenrolar
reconhecimento público marcado por dos acontecimentos da Revolução a
distinções de gênero. noção, de honra continuou a se modi-
No primeiro sentido apresen- icar.
tado acima, a honra se refere ao “ho- Segundo Lynn Hunt, na segun-
mem”, que poderia ser entendido da metade do século XVIII, as distin-
como o “ser humano”. No entanto, ções de honra separavam mais os ho-
sabemos pelos estudos acadêmicos mens das mulheres que os aristocratas

• 401 •
dos comuns (HUNT, 2000, p. 143). trole sobre a sexualidade feminina. No
Dessa forma, a noção de honra se dis- entanto, metodologicamente é necessá-
tanciou dos signiicados aristocráticos, rio tomar cuidado com generalizações
ligados ao nascimento e se aproximou sobre honra e situar nossas discussões
da ideia de honra como virtude, pro- histórica e espacialmente. No Brasil do
bidade, qualidade esperadas dos cida- inal do século 19 e nas primeiras déca-
dãos na República. Portanto, na França das do século 20, tanto pelas autorida-
do Novo Regime com a publicação des religiosas como pelas autoridades
da Declaração Universal dos Direitos políticas, a honra sexual era percebida
do Homem e do Cidadão, todos eram como a base da família e esta como a
iguais, aristocratas e comuns tinham base da nação. “Sem a força moraliza-
os mesmos direitos e punições. No dora da honestidade sexual das mu-
entanto, como apenas homens eram lheres, a modernização - termo que
cidadãos, as diferenças entre homens assumia diferentes signiicados para
e mulheres são marcadas na noção de diferentes pessoas – causaria a disso-
honra. Enquanto a honra para homens lução da família, um aumento brutal da
é pública, para as mulheres a honra se criminalidade e o caos social.” (CAUL-
torna doméstica e privada. FIELD, 2000: 26) Essa noção de hon-
Quando analisamos essa noção ra representava um conjunto de nor-
no Novo Mundo, veremos que tam- mas que, baseadas no argumento das
bém nas colônias a noção de honra diferenças “naturais” entre homens e
operava regulando as relações sociais. mulheres, sustentavam relações desi-
Segundo Verena Stolcke (2006), na co-
guais no espaço público e privado. A
lônia portuguesa e espanhola a noção
honra sexual constituía hierarquias que
de honra também divide homens e
regulavam não apenas relações de gê-
mulheres. Sob código moral da Igreja
nero, mas também as de raça e classe.
Católica, reforçado pela Contra Re-
Os crimes de honra, frequentemente
forma, criou-se a associação explicita
envolvendo casos de deloramentos,
entre virgindade, castidade feminina e
evidenciam estas hierarquias e relações
honra familiar. Para a autora, o contro-
de poder nas interações sociais e nos
le da sexualidade feminina, sustentado
modos porque a noção de honra ope-
na noção de honra, foi fundamental
ravam, representando os juízes o papel
para a constituição do Estado colonial.
do Estado na defesa da honra de um
Os exemplos da França pós-re-
projeto de família – moderno (e evi-
volução Francesa e do Império Colo-
dentemente marcado por um viés de
nial Português e Espanhol evidenciam
classe, sexo e raça).
como a noção de honra envolveu con-
• 402 •
A noção honra sexual como sentar um aporte clássico para teorias
consolidação de uma nação republi- sociais e análises de vários outros con-
cana é importante na constituição da textos etnográicos e históricos.
Nação brasileira, uma nação que se Em 1965, a obra “Honra e Vergo-
pretendia moderna e civilizada e, por- nha: valores da sociedades mediterrâneas” de
tanto, reforça a relevância da honra fa- Peristiany apresenta honra e vergonha
miliar para garantir essa visão de nação. como as noções que regulam a vida
Tais princípios foram reforçado duran- social e estabelecem hierarquias fun-
te o Estado Novo (1937-1945), pois damentais, especialmente, para enten-
no Governo Vargas ocorreram cam- der as relações familiares. No modelo
panhas moralizadoras que buscavam mediterrâneo, a honra de um homem
defender a moral pública e os valores
é herdada à semelhança de uma pro-
da família. Toda essa discussão reali-
priedade, transmitida temporalmente
zada por Susan Cauield ao analisar
numa família, de homens de uma ge-
esse processo de constituição do Esta-
ração para os homens das gerações
do Nação no Brasil evidenciam como
subsequentes. Outrossim, o compor-
operaram no cotidiano e de maneira
tamento moralmente inadequado de
tensa, as noções de honra e vergonha,
uma mulher da família (consanguínea
regulando as relações sociais. A autora
demonstra que nas representações da ou aim: mãe, ilha, irmã, esposa) re-
época a honra era masculina e as mu- percute também sobre a honra do ho-
lheres cabia preservar a honra (confor- mem.
me o modelo mediterrâneo que anali- Os mesmos autores, Peristiany
saremos a seguir) mas que nas práticas e Pitt-Rivers, em 1992, retomam essa
cotidianas essas relações não ocorriam discussão na obra Honor and Grace in
dessa forma. Anthropology. Nesta obra, podemos ver
A noção de honra tem sido uma a noção de honra mais sutilizada e as
importante chave para a compreensão análises mais reinadas, apontando
das relações sociais em diferentes tem- para a necessidade de uma abordagem
poralidades e também em diferentes mais atenta aos contextos etnográicos
sociedades. Os estudos antropológicos e históricos.
trazem uma importante contribuição. Fabiola Rohden (2006), anali-
Na década de 1960, partindo de dados sando o livro de Peristiany, de 1965,
etnográicos de sociedades mediter- destaca que noções de honra e ver-
râneas, dois antropólogos, J. G. Peris- gonha estão presentes em todas as
tiany e J. Pitt-Rivers, desenvolveram o sociedades, marcando hierarquias e
conceito de honra que passou a repre- regras sociais. No entanto, o que varia

• 403 •
é a forma como cada sociedade cons- tudos que se utilizam desta categoria
trói essas noções de honra e vergonha, tem dado provas de sua enorme renta-
sendo que algumas sociedades, como bilidade e poder explicativo e analítico.
as pertencentes a área cultural mediter- No Brasil, os estudos antropológicos
rânea, enfatizariam mais o valor dessas que lançam mão dessas ressalvas, têm
noções regulando as relações sociais, dado mostras da instrumentalidade
particularmente as relações de gênero. deste conceito - como é o caso dos
Em que pese o esforço de con- estudos já clássicos de Luís Fernando
textualização, e de atrelamento das dis- Duarte (1987) sobre honra e vergonha
cussões teóricas a contextos etnográ- entre mulheres trabalhadoras do Rio
icos particulares, os estudos de honra de Janeiro e de Cláudia Fonseca (2000)
têm sua fragilidade no paradoxo fun-
sobre as noções de honra em grupos
dador das generalizações feitas a par-
populares em Porto Alegre. Nos estu-
tir do “modelo mediterrâneo”. Pierre
dos citados os autores evitam a simples
Bourdieu (2003), por exemplo, desen-
transposição do modelo mediterrâneo,
volveu suas análises sobre “a lógica
demostrando como honra e vergonha
ocidental” e sobre a “dominação mas-
são categorias manipuladas pelos su-
culina” a partir de um suposto modelo
jeitos em suas relações sociais. Nesse
mediterrâneo presente na sociedade
Cabila. Se é difícil aceitar “um substra- sentido, esses estudos demonstram
to comum às diversas culturas que aí que não apenas os homens tem uma
existem [mediterrâneo]” (CORRÊA, honra a defender, mas as mulheres
1999), mais delicado ainda torna-se a também manipulam esse valor a favor
transposição desse modelo teórico vin- de suas identidades sociais como mães
culado a dados etnográicos “mediter- de família, mulheres chefes de domici-
râneos” ou “ocidentais” a outras cul- lio e cidadãs e para além do âmbito do
turas mais ou menos distantes (física e privado, sua honra não é deinida pela
temporalmente) do modelo Cabila ou castidade e pureza.
mediterrâneo.
Não obstante as críticas, e es- Flávia de Mattos Motta
Glaucia de Oliveira Assis
pecialmente as ressalvas sobre os
problemas advindos da cristalização e Referências e sugestões de leitura
universalização do conceito de honra
(como é o caso de seu atrelamento a BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
um modelo mediterrâneo), e exata-
mente como resultado desse intenso CAULFIELD, Susan. Em defesa da honra: moralidade,
modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940).
debate, o conceito de honra e os es- São Paulo: Unicamp, 2000.

• 404 •
CORRÊA, Marisa. O sexo da dominação. In: Novos es- segunda metade do século XX, ainda
tudos CEBRAP, n.54, julho de 1999.
sob as amarras da ditadura que assolou
DUARTE, Luiz Fernando Dias. Muita Vergonha, Pouca o país por 21 anos, entre 1964 e 1985,
Vergonha: sexo e moralidade entre classes trabalhadoras
urbanas. In: LOPES, José Sérgio Leite. (org.) Cultura e outra geração de mulheres feministas
Identidade Operaria: aspectos da cultura da classe traba- fez do humor e do riso uma arma de
lhadora. Rio de Janeiro: UFRJ/PROED, 1987.
intervenção e luta. Através de charges
FONSECA, Claudia. Família, Fofoca e Honra: etnogra- e tirinhas o feminismo brasileiro, em
ia de relações de gênero e violência em grupos populares.
Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2000. um novo contexto e a partir da emer-
gência da imprensa feminista, criticou,
HUNT, LYNN. A invenção dos direitos humanos uma
história. São Paulo, Companhia da letras, 2000. reletiu, reivindicou e esforçou-se para
Michaelis: Dicionário Escolar Língua Portuguesa. São
construir um humor contra-hegemôni-
Paulo, Melhoramentos, 2009. co que resultava, e ainda hoje resulta,
ROHDEN, Fabíola. Para que serve o conceito de honra,
em um riso revolucionário.
ainda hoje?. Campos, IMS-Uerj, 2006, p. 101-120. A categoria Humor Feminista,
STOLKE, Verena. O enigma das intersecções, classe, raça
portanto, trata-se de uma (re)invenção
e sexo : a formação dos impérios do século XVI ao XIX. do humor por parte de mulheres femi-
Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 14(1): 15-42 ,
janeiro-abril/2006. nistas que questionam a estrutura do
humor convencional. Ao humor, em
• termos conceituais, aliou-se uma vi-
são feminista de mundo que permitiu
Humor Feminista
a emergência de um modo especíico
de fazer rir.
No Brasil, enquanto o Barão de
Humor é categoria de difícil
Itararé deixava um legado invejável no
deinição. Há séculos desenvolvem-se
campo humorístico, as feministas que
esforços ilosóicos, psicanáliticos, so-
davam início à luta pelo voto e pelo
ciológicos, antropológicos e históricos
direito das mulheres à educação eram
na busca por uma conceituação do ter-
ridicularizadas por jornais e folhetins;
mo. Sigmund Freud (1976), no clássico
mas não sem reação. Já na primeira
Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente
metade do século XX feministas “su-
destacou o humor como um dom pre-
fragistas” exploravam o humor para
cioso e raro, assim como teimoso e re-
criticar o absurdo da negação dos direi-
belde. Já Quentin Skinner (2002), em
tos das mulheres. Cartazes, informes e
Thomas Hobbes e a Teoria Clássica do Riso
piadas circulavam em jornais produzi-
pontua que o humor é um instrumen-
dos por diferentes grupos que, na ânsia
to que serve ao insulto e à destruição
da luta pela transformação social, eram
de causas. Henri Bergson, no livro O
alvo de um humor hegemônico, basea-
Riso (1978), ressalta o riso como gesto
do em estereótipos e na destruição. Na
• 405 •
com signiicação e alcance social que, tipos sempre existirão e o humor fará
em última análise, serve como castigo uso deles” (2011, p. 555). O conceito
ao se estabelecer por meio da humilha- abrangente de humor, portanto, arti-
ção. Os clássicos, portanto, pontuam cula-se a uma modalidade de riso que
dois elementos importantes: primei- causa dor e sofrimento. O humor fre-
ro, o potencial destrutivo do humor; quentemente praticado e que é alvo de
segundo sua intrínseca relação com o diversas relexões teóricas é o que inva-
riso. A diferença entre humor e riso, de lida movimentos sociais, como o femi-
maneira sintética, reside no fato de que nismo; o que reproduz estereótipos de
o primeiro é uma forma de expressão minorias, como os negros; o que ri do
que visa causar o riso, como a comé- sofrimento de pobres; o que ridicula-
dia, a charge, a literatura humorística, riza pessoas por serem negras, gordas,
o stand up comedy; enquanto o segundo é lésbicas, transexuais, gays. Trata-se de
a reação ao primeiro. Essa reação, vale um humor e, consequentemente, de
lembrar, não é objetiva. De acordo uma cultura do riso, que se conigura
com Allan Deligne (2011), o riso é um através de estereótipos e de violência
gesto inteiramente subjetivo, não po- simbólica. O Humor Feminista, embo-
dendo, nesse sentido, ser racionalmen- ra não seja uma reação propriamente,
te controlado. Apesar de serem catego- desenvolve-se a partir de uma premis-
rias distintas, humor e riso articulam-se sa absolutamente diferente, ao mesmo
na simples lógica de que um empresta tempo que completamente articulada a
sentido ao outro. Já o potencial destru- essa noção de humor.
tivo do humor é ponto fundamental O Humor Feminista não obje-
para a construção da ideia de humor tiva destruir ou ridicularizar o outro,
feminista, exatamente por ele não ba- pelo contrário ele procura apontar as
sear-se nessa noção de humor. issuras de uma estrutura desigual e
O humor, ao menos o que te- injusta, o Humor Feminista pontua o
mos acesso no teatro, na televisão, no machismo e o sexismo. Ele não aponta
cinema, na literatura, no stand up comedy, sua habilidade de fazer rir em direção a
no cotidiano e em variadas esferas, é pessoas e grupos, mas sim em direção
o humor deinido por Henri Bergson a sistemas e estruturas viciadas. Algu-
e Quentin Skinner. De maneira geral, mas autoras que procuram teorizar so-
é o humor que se baseia em estereó- bre o humor feito por mulheres desta-
tipos e na destruição que conquista cam que, mesmo quando este não tem
grandes públicos. Ricky Goodwin, em um viés feminista, ele é feminista, uma
importante coletânea sobre os estudos vez que a habilidade de produzir hu-
do humor airmou que “... os estereó- mor sempre foi negada a elas. Confor-

• 406 •
me Nancy Walker o “... humor das mu- das mulheres em esferas que decidem
lheres se desenvolve sob uma premissa seus destinos; denuncia a negação de
diferente: elas vivem em um mundo direitos reprodutivos; ri do controle de
que não é feito por elas e frequente- corpos; aponta o caráter cultural e rela-
mente não as agrada, então suas táticas cional do gênero. O humor feminista,
devem ser de sobreviventes...” (1988, baseado em um princípio revolucioná-
p. 36). Sendo as mulheres atravessadas rio e transformador, propõe a constru-
por expectativas de gênero especíicas, ção de uma cultura do riso totalmente
assim como tendo vivenciado experi- distinta de um humor que explora o
ências particulares, o humor delas se ataque ao outro como princípio fun-
diferencia do dos homens. Nesse senti- dador. O riso promovido pelo Humor
do, o humor e o riso feminista são emi- Feminista é um riso consciente do fun-
nentemente subversivos e revolucioná- cionamento do mundo.
rios. Nas mãos das mulheres o humor O Humor Feminista, na visão
assume um potencial transformador e de teóricas como Nancy Walker e Regi-
libertador. Este humor, contudo, traz na Barreca, tem função política. Nesse
consigo cicatrizes particulares, uma tipo de humor tudo que se tem como
vez que ele não é um gesto social vazio verdade é colocado em suspenso. Se-
de signiicado. gundo Barreca, “Esse tipo de comédia
Umberto Eco informa-nos da é arriscada. É confrontacional e rompe
tristeza presente em um riso genuina- limites uma vez que você vai embora
mente desestruturador. Para ele, nesse sentindo-se brava mesmo que você ria.
tipo de humor “Nós sorrimos porque Esse tipo de comédia não encerra os
nos sentimos tristes por temos des- sentimentos de impotência das mu-
cobertos, por apenas um momento, a lheres – ao invés disso ela sublinha a
verdade” (2009, p. 8). Trata-se da piada natureza política do papel das mulhe-
que denuncia a desigualdade salarial; da res. Ela nos deixa ainda mais determi-
charge que ironiza a sobrecarga do tra- nadas a transformar aqueles aspectos
balho doméstico; do stand up comedy de nossa situação que nos coninam.
que ridiculariza as expectativas esté- É uma comédia que inspira e também
ticas sobre as mulheres. No Humor entretém” (p. 14-15). Para Nancy Wa-
Feminista ataca-se a cultura machista lker o Humor Feminista ri da própria
e patriarcal; critica-se à violência co- desigualdade de gênero na tentativa
metida contra meninas que são criadas de pontuar o absurdo do sistema que
para serem mães e esposas; ridiculari- sustenta essa mesma desigualdade
za a naturalização do trabalho domés- (1988, p. 145). Para Jacques Le Goff o
tico; questiona a pouca participação riso tem uma história (2000, p. 166) e,

• 407 •
atualmente, pensar a historicidade do Sugestões de leitura
humor para a sociedade é fundamen- BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média
tal e traz relevantes relexões sobre o e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São
Paulo: Editora HUCITEC, 2002.
caráter político, formativo e educativo
desse recurso. Nesse sentido, analisar o BARRECA, Regina. hey used to call me snow white...
but I drifted. Women’s strategie use of humor. Penguin
Humor Feminista é dar visibilidade a Book’s: USA, 1991.
outras formas e possibilidades de hu-
CRESCÊNCIO, Cintia Lima. Quem ri por último, ri
mor que comunguem com uma socie- melhor: humor gráico feminista (Cone Sul, 1975-1988)
dade baseada em princípios de diversi- Tese de doutorado. Programa de Pós Graduação em His-
tória Cultural da Universidade Federal de Santa Catarina,
dade e de igualdade. 2016.

ECO, Umberto. he Frames of Comic Freedom. In:


Cintia Lima Crescêncio
ECO, Umberto; IVANOVV, V.V e RECTOR, Monica.
Carnival! Approachs to Semiotic. Berlin, DEU: Walter
de Gruyter, 2011. pp. 1-9.
Referências
WALKER, Nancy A. A very serious thing. Women’s
BARRECA, Regina. hey used to call me snow white... humor and American culture. United States: American
but I drifted. Women’s strategie use of humor. Penguin Culture, 1988.
Book’s: USA, 1991.

BERGSON, Henri. O riso: Ensaio sobre o signiicado do


cômico. Rio de Janeiro: Guanabara, 1978.

DELIGNE, Allan. De que maneira o riso pode ser con-


siderado subversivo? In: LUSTOSA, Isabel (Orgs.). Im-
prensa, humor e caricatura: a questão dos estereótipos
culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. pp.
29-46.

FREUD, Sigmund. Freud, Sigmund. Três Ensaios sobre


Teoria da Sexualidade. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol.
07. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

GOODWIN, Ricky. A monovisão dos estereótipos no


desenho de humor contemporâneo. In: LUSTOSA, Isa-
bel (Org.). Imprensa, Humor e Caricatura: a questão dos
estereótipos culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2011. pp. 535-555.

LE GOFF, Jacques. O Riso na Idade Média. BREMMER


e ROODENBURG (Orgs.). Uma história cultural do
humor. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SKINNER, Quentin. Hobbes e a teoria clássica do riso.


São Leopoldo: Editora da Unisinos, 2002.

WALKER, Nancy A. A very serious thing. Women’s


humor and American culture. United States: American
Culture, 1988.

• 408 •
Identidade

A construção da identidade de
gênero vai se dando desde antes do
nascimento de uma pessoa, como no
enxoval do bebê, que na maioria das
vezes é azul para meninos e rosa para
meninas. Desse modo, essas diferenças
propagadas por muitos e questionadas
por poucos vão deixando marcas de
feminilidade e masculinidade, na maio-
ria das vezes, permanentes, em meni-
nos e meninas (GOMES, 2008).
Sempre foram designadas dife-
renças nas representações de papéis
masculinos e femininos, onde o mas-
culino era representado pela força e
o feminino pela beleza (BAGGIO;
CARVALHO et al., 2009). A cultura,
através da família e da escola, desde
cedo incorpora nas crianças diferenças
entre os meninos e as meninas, entre
masculino e o feminino. Assim, o pro-
cesso infantil de construir a identidade
de gênero, está profundamente conec-
tado às experiências tidas com as pes-
soas que vão desempenhar a função de
cuidador ou cuidadora, os quais estão
inseridos em uma determinada cultura.
Por isso, ao lado dos estudos feminis-
tas, além dos de gênero, reforçamos a
crítica à biologização da sexualidade e a
consequente naturalização dos modos
de ser feminino e masculino (SILVA;
LUZ, 2010).

• 409 •
Quando falamos em uma crítica infância. Por isso crescem os estudos
à biologização, não queremos negar a pleiteando uma política de equidade de
biologia, mas, enfatizar o aspecto so- gênero para a infância (KISHIMOTO;
ciocultural da construção de gênero ONO, 2008). Ainal uma infância com
(GOMES, 2006). As instituições socio- igualdade de gênero diminui a probabi-
culturais família e escola vão desempe- lidade de uma adultez com desigualda-
nhar um papel signiicativo na perpetu- de de gênero, evitando uma repetição
ação da ordem dos gêneros. Mas é no alienada de modelos de gênero para
ambiente familiar que os estereótipos uma próxima geração.
vão sendo inculcados, através de vias A construção dos gêneros na in-
mais indiretas que diretas, como com fância dá-se por meio de várias apren-
a percepção da criança da existência dizagens e práticas que acontecem nas
de uma divisão sexual do trabalho. Já mais distintas situações, podendo ser
creches e escolas contribuem com a empreendida de maneira explícita ou
reprodução desses estereótipos, ao velada através de experiências sociais
propiciar a inserção de um padrão de e culturais vivenciadas pelas crianças
comportamentos femininos e masculi- marcando o desenvolvimento infantil
nos considerados culturalmente corre- (SILVA; LUZ, 2010). A partir de ver-
tos. Deste modo, manifestações infan- tentes feministas, o corpo só se torna-
tis relacionadas a papéis de gênero vão ria inteligível no campo da cultura e da
aparecendo, desencadeando reações linguagem (SILVA; LUZ, 2010).
moralistas por parte de quem cuida, Mensagens transmitidas de pais
mostrando que esse é um tema ainda para ilhos, sejam elas verbais ou não,
pouco trabalhado (GOMES, 2008). também são emitidas pela sociedade
Apesar de na história tentativas sobre o que se espera de “ser menina
de igualar acesso e métodos educacio- ou de ser menino”. Sendo que cada
nais para meninos e meninas podem sociedade está inserida em uma cultu-
ser observadas na teoria desde o surgi- ra diferente, que cria signiicados es-
mento das escolas mistas para crianças pecíicos para quem vive nela, isto é,
em 1920 (CRUZ; PALMEIRA, 2009), o conceito de gênero em cada cultura
há contradições, pois, desde seu início, é produto das representações sociais
a instituição escolar exerceu uma ação criadas pelos homens e mulheres. Para
distintiva, se incumbindo de separar ultrapassar a desigualdade de gênero é
meninos e meninas. O que se relete necessário entender como a sociedade
na atualidade, em que, na prática, ain- hierarquiza e naturaliza as diferenças
da existe relação de superioridade dos entre masculino e feminino, reduzin-
homens frente às mulheres desde a do essas diferenças às características

• 410 •
físicas tidas como naturais e imutáveis transgredir as regras impostas, supe-
(VIANNA; FINCO, 2009). rando modelos padrões de masculini-
Instituições sociais como esco- dade e feminilidade, sinalizando novas
la e família podem ser consideradas as possibilidades de construção das rela-
principais preconizadoras da constru- ções de gênero (SILVA; LUZ, 2010).
ção e reprodução de conceitos e valo- No entanto, muitos educadores e edu-
res estereotipados acerca das questões cadoras ainda insistem em reforçar
de gênero. Para muitas crianças, a cre- habilidades de gênero femininas para
che ou escola é a primeira instituição meninas e masculinas para meninos,
pública que frequentam, tendo a opor- quando, por exemplo, um menino tem
tunidade de experimentar diferentes características consideradas femini-
vivências culturais das vividas no am-
nas, ou quando meninas consideradas
biente familiar, introduzindo meninos
abrutalhadas destoam das outras mais
e meninas ao convívio social e a cate-
delicadas e são oprimidos (VIANNA;
gorias de gênero – além dos colegas,
FINCO, 2009). Assim educadores pro-
os educadores, as professoras, os pais
porcionam aos meninos e às meninas
e mães dos colegas, entre outros. Ofe-
diferentes vivências baseadas nos mo-
recendo a oportunidade de estarem
delos de masculinidade e feminilidade
em contato com crianças de diferentes
classes sociais, religiões e etnias, com padronizados em relação de uma na-
valores e comportamentos distintos. turalização questionável do que é con-
Crianças confrontam-se com uma siderado “mais adequado” para cada
diversidade cultural de raças, etnias, sexo e repreendendo o que consideram
crianças com necessidades especiais, inadequado (SILVA; LUZ, 2010).
pobres, ricas, de classe média, católicas, Há uma hegemonia nas repre-
judias, umbandistas, ateias, entre mui- sentações em volta da masculinidade e
tas outras (CRUZ; PALMEIRA, 2009). do poder do homem, apesar de haver
Mas, também, nesse espaço da diferentes posturas assumidas por me-
sociedade de diversidade cultural, me- ninos e meninas nas relações sociais.
ninos e meninas vivem as mais distin- Também existe uma reprodução de
tas relações de poder. As representa- modelos hegemônicos, onde o homem
ções de feminino e de masculino com é visto como ‘individualista’ e a mulher
as quais meninos e meninas se relacio- como ‘coletivista’. E isso pode ser vis-
nam são, na maioria, as representações to desde a infância onde em momentos
de suas educadoras. Assim, as crianças, de rica interação entre as educadoras e
além de reproduzir as representações as meninas, como a organização dos
e práticas dos adultos, também podem ambientes, na maioria das vezes, os

• 411 •
meninos são excluídos (SILVA; LUZ, e mães, se perpetuam pela indústria
2010). cultural e pela mídia (KISHIMOTO;
Um mesmo contexto pode ser ONO, 2008). Em cada sociedade, de-
visto de diferentes maneiras por meni- pendendo das especiicidades culturais
nos e meninas. Assim as experiências há uma construção cultural de gênero
de socialização vividas por meninos e praticada, havendo valorização de al-
meninas são exercícios sociais que vão guns comportamentos em detrimento
delimitando as possibilidades e os limi- de outros (CRUZ; PALMEIRA, 2009).
tes de suas trajetórias no espaço social O que é valorizado para meninos pro-
(RIBEIRO, 2006). Como no caso de vavelmente não o é para meninas e
controle das emoções nos meninos, vice-versa. Uma re-signiicação dos es-
que são pressionados socialmente para tereótipos envolvidos na identidade de
serem austeros, não chorarem. O que gênero feminino e masculino deveria
pode ser considerado uma grande des-
ser incluída na perspectiva do desen-
vantagem no sentido de serem proibi-
volvimento humano como um todo, e
dos de viverem livremente e esponta-
considerada nas relações de poder. No
neamente seus sentimentos. O que nas
entanto, no contexto escolar, ainda na
meninas, pode ser uma vantagem, já
maioria das vezes não há espaço para
que elas são cobradas exatamente do
uma re-signiicação dos signos ine-
oposto.
Há uma ideia equivocada em rentes aos estereótipos, não havendo
relação às necessidades dos meninos, a possibilidade de intervenções inten-
pois tanto quanto as meninas, tam- cionais nesse sentido (SILVA; LUZ,
bém necessitam de amparo e proteção 2010).
(MEIRA, 2008). Ou seja, há uma di- Segundo Ribeiro (2006), apesar
mensão de exclusão no que se refere do comportamento infantil masculino
as possibilidades de trocas afetivas dos e feminino ser adestrado desde as ida-
homens - educadores, cuidadores, pro- des iniciais, pelas instituições sociais,
fessores ou até mesmo dos pais – e em ele é intensiicado a partir dos 7 até
menor dimensão das mulheres – pro- os 14 anos, devido a transformações
fessoras, educadoras, mães - com os dos corpos de meninos e de meninas.
meninos, envolvendo práticas culturais E isso acontece em qualquer geração,
e, marcadas por concepções do mascu- mas de forma cada vez mais explíci-
lino presentes nas mais diversas cama- ta e questionada. E são esses idiomas
das da sociedade (SILVA; LUZ, 2010). de gênero que organizam as relações
Os estereótipos que são re- sociais, estruturando diferenças que
produzidos pela sociedade e por pais caracterizam comportamentos social-

• 412 •
mente considerados “de meninas ou SILVA, Isabel de Oliveira e LUZ, Iza Rodrigues da. Me-
ninos na educação infantil: O olhar das educadoras sobre
de meninos. a diversidade de gênero. Cadernos Pagu, n.34, p.17-39.
Por im a identidade é um pro- 2010.

cesso multidimensional, que depende VIANNA, Claudia e FINCO, Daniela. Meninas e meni-
nos na educação infantil: Uma questão de gênero e poder.
do tempo em que é conjugado, arti- Cadernos Pagu n.33, p.265-283 2009.
culando entre si o passado, o presente
e o futuro, ao mesmo tempo em que Sugestões de leitura
dissocia os espaços, as instituições e as
categorias sociais (BASTOS, 2007). LOURO, Guacira Lopes (2001). Gênero, sexualidade
e educação: uma perspectiva pós-estruturalista, Editora
Vozes, 184p.
Bruna Krimberg von Muhlen
Marlene Neves Strey LOURO, Guacira Lopes. (1996). Nas redes do conceito
de gênero. IN: Lopes, Marta Julia M.; Meyer, Dagmar
E.; Waldow, Vera Regina (orgs.). Gênero & Saúde. Porto
Referências Alegre : Artes Médicas, p.07-18.

STREY, Marlene Neves. (2000). Gênero. In: Jacques,


BAGGIO, Maria Aparecida, CARVALHO, Jacira Nunes, Maria da Graça; Strey, Marlene N.; Bernardes, Maria G.;
et al. O signiicado atribuído ao papel masculino e femi- Guareschi, Pedrinho A.; Carlos, Sérgio A.; Fonseca, Tânia
nino por adolescentes de periferia. Esc Anna Nery Rev Maria G.. Psicologia social contemporânea – livro-texto.
Enferm, v.13, n.4, p.872-878 2009. 4ª ed. Petrópolis : Editora Vozes. p.181-198.

BASTOS, José Gabriel Pereira. A mudança na cultura STREY, Marlene Neves. (2012). Gênero e ciclos vitais:
- identidade, interculturalidade e hibridização cultural.
desaios, problematizações e perspectivas. Porto Alegre:
Cadernos de Museologia, n.28, p.93-106, 2007.
Edipucrs. 292 p. (Série gênero e contemporaneidade, 8).
CRUZ, Marlon Messias Santana e PALMEIRA, Fernan-
STREY, Marlene Neves. (2007). Gênero, família e socie-
da Caroline Cerqueira. Construção de identidade de gê-
dade. In: Strey, Marlene N.; Neto, João Alves da Silva;
nero na educação física escolar. Motriz, Rio Claro, v.15,
Horta, Rogério Lessa (Orgs.). Família e Gênero. Porto
n.1, p.116-131. 2009.
Alegre : Edipucrs, 17-38.
______. A construção do feminino e do masculino no
processo de cuidar crianças em pré-escolas. Texto Con- •
texto Enferm, v.15, n.1, p.35-42. 2006.

GOMES, Vera Lúcia de Oliveira. A construção do femi-


nino e do masculino no processo de cuidar crianças em Imprensa Feminista
creches. Revista Eletrônica de Enfermagem, v.10, n.1,
p.145-151. 2008.
A deinição de imprensa fe-
KISHIMOTO, Tizuko Morchida e ONO, Andréia Tie- minista, assim como de imprensa fe-
mi. Brinquedo, gênero e educação na brinquedoteca.
Pro-Posições, v.19, n.3, p.209-223. 2008. minina, vincula-se necessariamente
MEIRA, Mara Cristina Ripoli. A evolução da família e
ao público para o qual o conjunto de
suas implicações no cuidado dos ilhos. Pleiade, v.2, n.1, periódicos que as compõe é direciona-
p.151-162. 2008.
do: as mulheres. Ambas diferem, po-
RIBEIRO, Jucélia Santos Bispo. Brincadeiras de meninas rém, no tipo de abordagem dos temas
e de meninos: socialização, sexualidade e gênero entre
crianças e a construção social das diferenças. Cadernos tratados. É neste sentido que Buitoni
Pagu, n.26, p.145-168. 2006. (1986) distingue a imprensa feminina

• 413 •
da imprensa feminista: a primeira é di- Além de abordar temáticas es-
rigida para mulheres e trata de assuntos pecíicas, relacionadas ao “universo
que supostamente as interessam, a par- feminino” – moda, beleza, culinária,
tir dos papéis sociais que cumpriram casa, saúde, comportamento e educa-
em diferentes períodos históricos, ser- ção, a imprensa feminina caracteriza-
vindo, até mesmo, para reairmá-los; a -se, em sua gênese, por uma maneira
segunda defenderia causas do gênero, peculiar de encarar o “novo” ou a “no-
serviria como suporte para a disputa vidade” – elemento tão caro ao jorna-
simbólica em torno de ideias políticas, lismo. Segundo Buitoni (1996), essa
propondo, inclusive, rupturas com re- imprensa dirigida ao público feminino
lação a estes papéis distribuídos pela nasceu, primeiro, sob o signo da litera-
condição de gênero na sociedade: “a tura; depois, aproximou-se bastante da
mulher faz parte da caracterização da moda – diversos periódicos obtiveram
imprensa feminina, seja como recepto- grande sucesso por publicar moldes
ra e, às vezes, como produtora” (BUI- para costura, popularizando o acesso
TONI, 1986, p. 08). às novidades do setor. Tal característi-
A imprensa direcionada para o ca deine, para os periódicos femininos
público feminino nasceu no inal do da época – e também para os atuais –
século XVII, mais precisamente na In- certo distanciamento do conceito tra-
glaterra, em 1693, com o periódico La- dicional de notícia que enfatiza a noção
dy’s Mercury. Literatura e moda foram de atualidade. (LAGE, 2001; GROTH,
os temas inicialmente abordados, além 2011). Na relação com a imprensa fe-
de uma espécie de consultório senti- minina esta atualidade não se refere,
mental que iria obter grande sucesso necessariamente, ao aparecimento de
entre os impressos do mesmo gêne- acontecimentos novos, transformados
ro, conforme observa Buitoni (1986). em texto através do sistema jornalís-
No Brasil, foi O Espelho Diamantino, de tico, para dar a ver o tempo presente.
1827, a primeira publicação com edito- É, sim, um novo ligado à novidade do
rias destinadas ao público feminino. O consumo. Para Buitoni (2005, p. 195)
desenvolvimento histórico da impren- “O novo da imprensa feminina traba-
sa feminina oferece, neste sentido, sub- lha num nível secundário, na aparên-
sídios para pensar os papéis atribuídos cia. Não é vanguarda, não inova. Sua
às mulheres em diferentes momentos aspiração máxima é ser a novidade que
da sociedade, uma vez que essa im- venda. É o novo que não pertence à
prensa relete desde o seu aparecimen- arte; é o novo que serve ao consumo”.
to até a atualidade, uma espécie de ide- Segundo a autora, ainda, a re-
alização do que seja a mulher. vista é o veículo da imprensa feminina

• 414 •
por excelência. Sendo a reportagem o No Brasil, segundo Bandeira
gênero característico das revistas, cabe (2012), no inal do século XIX, o país
a distinção feita por Lage (2001, p. 51), vê se desenvolver um movimento de
para melhor compreender a diferença luta pelos direitos das mulheres, princi-
de abordagem da imprensa segmenta- palmente ao voto. No mesmo período,
da – e dirigida ao público feminino – as mulheres começam a participar mais
do jornalismo diário e cotidiano: “[...] ativamente da produção de periódicos:
a notícia distingue-se com certo grau “As mulheres, assim como os homens
de sutileza da reportagem, que trata de de então, recorriam à imprensa para
assuntos, não necessariamente de fatos disseminação de ideias, ações intelectu-
novos: nesta, importam mais as rela- ais e atividades” (BANDEIRA, 2012,
ções que reatualizam os fatos, instau- p. 38). Neste contexto, a partir de 1850,
surgem diversos periódicos: Jornal das
rando dado conhecimento do mundo.
Senhoras (1852) é o pioneiro – tratando
A reportagem é planejada e obedece a
mais enfaticamente da temática fami-
uma linha editorial, um enfoque; a no-
liar, é considerado vanguardista por
tícia não.”
abordar questões relacionadas às capa-
Por que, então, assuntos como
cidades e necessidades das mulheres.
política, economia ou sociedade não
Depois, seguem os jornais Belo Sexo
eram temas de interesse da imprensa
(1862), O Sexo Feminino (1873), Jornal
feminina? Por que o novo, autêntico das Damas (1870), O Domingo (1870) e
do jornalismo, não circula pelas publi- Eco das Damas (1879). Destes, O Sexo
cações destinadas ao gênero feminino? Feminino é considerado o mais impac-
A resposta encontra-se no contexto tante (BANDEIRA, 2012), em função
de surgimento da imprensa dirigida às de alertar as mulheres para os seus di-
mulheres, estas não tinham direito de reitos, a necessidade de educação e in-
participar da vida pública. Seu universo dependência econômica, para o im da
era o da casa, da família, da igreja. Os sujeição do gênero.
jornais e revistas dirigidos a elas e pro- Neste sentido, Sullerot (1963
duzidos por homens deveriam corres- apud BUITONI, 2009) distingue três
ponder a essa realidade. Na passagem fases da imprensa feminina, segundo
do século XVIII para o século XIX, os o peril de seu público, com base na
movimentos de luta pelos direitos das situação francesa – muito semelhante
mulheres - à educação, ao trabalho, ao à brasileira, conforme destaca Buito-
voto - transformam os temas da im- ni (2009): no século XVIII, as leitoras
prensa feminina que formarão, mais eram as damas, as pertenciam à aris-
tarde, a pauta da imprensa feminista. tocracia e tinham acesso à leitura; no

• 415 •
século XIX, com o fomento de pre- tino-Americano de Mulheres em Paris
ocupações feministas, é a mulher que fundado por volta de 1971 e que in-
consome o periódico feminino e mais: cluía exiladas brasileiras. O primeiro
passa a participar de sua produção; já exemplar saiu em janeiro de 1974 e
em meados do Século XX, a leitura com periodicidade irregular encerrou
transforma-se na dona de casa consu- no inal do ano de 1976. Propondo
midora. Assim, Sullerot também acha discutir textos teóricos do feminismo
conveniente dividir a imprensa dirigida e aprofundar a consciência de gênero,
às mulheres em dois tipos: a dos de- o texto Inimigo Principal é exemplar da
veres e a dos direitos. Esta última de- linha editorial do jornal, dizia “que o
senvolve-se como imprensa feminista, inimigo não era o capitalismo, mas sim
o patriarcado; aquilo para nós era uma
inluenciada pela revolução francesa.
novidade, pois no Brasil não se discutia
Encontra seus primeiros indícios na
nada disso”.
defesa das mulheres ao direito à edu-
Dois jornais são claramente
cação e ganha ainda mais corpo com
identiicados com as características
o movimento sufragista, no início do
da imprensa feminista, vinculados a
Século XX.
movimentos de mulheres e marcados
Segundo Bandeira (2012), ainda
pelo debate entre “questão da mulher
que lutassem pelos direitos das mulhe- versus questão geral, feminismo liberal
res, esses direitos eram à maternidade, versus feminismo marxista ortodoxo,
à educação, à moda, e às manifestações por reivindicações de ações públicas
literárias. Reforçavam, portanto, o pa- que coloquem as mulheres em igual-
pel da mulher como mãe, dona de casa dade com os homens, pelo combate a
e esposa – essas publicações classii- ditadura” (CARDOSO, 2004).
cam-se como um tipo de imprensa que Brasil Mulher, publicado pela So-
é possível denominar de pré-feminista. ciedade Brasil Mulher teve 16 edições
No Brasil, a experiência da imprensa regulares e mais quatro extras entre
feminista propriamente dita situa-se 1975 e 1980 e Nós Mulheres, publica-
claramente no contexto histórico de do pela Associação de Mulheres teve
luta contra a ditadura, vinculada ao oito edições, entre 1976 e 1978, como
movimento feminista e junto aos jor- instrumento de divulgação destes co-
nais alternativos que na década de 1970 letivos de mulheres, que lutavam tanto
e 1980 produziu inúmeros títulos. pela Anistia como por creches, por li-
O primeiro jornal feminista que berdades democráticas e contra a vio-
circulou no Brasil foi Nosotras, editado lência doméstica, por condições igua-
e publicado na França pelo Grupo La- litárias de trabalho e direito ao aborto.

• 416 •
Ou seja, nos jornais aparecia muito radical e profunda, diferente do
claramente a associação formulada feminismo praticado então. Podemos
pelos movimentos feministas que, de- discutir se o ChanacomChana teve uma
nunciando a dupla jornada de trabalho, grande inluência no pensamento da
propunham uma dupla militância para época, mas com certeza ele incomodou
1) mulheres feministas e 2) mulheres bastante e plantou algumas sementes
militantes da esquerda. por aí. Ele introdux]ziu o conceito de
O terceiro jornal inicia quando diferença dentro do Movimento Femi-
estes dois já tinham encerrado suas nista” (CARDOSO, 2004).
atividades e corresponde a uma nova O outro exemplo da segunda
situação do Movimento Feminista, as- geração é o jornal Fêmea produzido
sim como dos Movimentos Sociais em
pela ONG Cfemea (Centro Feminis-
geral. Mulherio surge em 1981, com o
ta de Estudos e Assessoria) de Brasí-
apoio inanceiro da Fundação Ford e
lia. A publicação, conforme Cardoso,
da Fundação Carlos Chagas e pode ser
“agrega três fortes características da
considerado o jornal que faz a ponte
segunda geração da imprensa femi-
entre as duas gerações de jornais fe-
nista: 1) ser editada por ONG; 2) ter
ministas, conforme Cardoso (2004). A
inanciamento de entidades internacio-
primeira ela identiica com Brasil Mu-
lher e Nós Mulheres. nais e do Estado; 3) cobrir o tema mu-
Já a segunda geração incorpora lher no Congresso Nacional, ou seja,
a noção de gênero e assume os temas uma abordagem legislativa da questão
relacionados diretamente à sexuali- de gênero, irmando a importância da
dade. Cardoso ilustra os jornais deste abordagem de gênero e a tendência à
período com dois exemplos: Chana- especialização por tema”. (CARDO-
comChana e Fêmea. ChanacomChana pu- SO, p. 48)
blicou seu primeiro numero em 1981, A pesquisa de Cardoso (2004)
vinculado ao Movimento Lésbico-Fe- identiicou 75 periódicos feministas,
minista (MLF), voltado inicialmente a entre boletins, revistas e jornais de
questões legais, e pregando o direito todo o Brasil. Donde se conclui que
à diferença. Com periodicidade instá- a imprensa feminista circula em todo
vel e acompanhando as mudanças de o país, tem continuidade desde 1974,
nomenclatura do movimento, o jor- está vinculada aos movimentos femi-
nal circulou durante toda a década de nistas com especiicidades que distin-
1980. “O ChanacomChana era muito guem as duas gerações, em sintonia
de vanguarda para a época, ele trazia com os contextos históricos que anco-
uma abordagem da questão de gênero ram as diferentes experiências.

• 417 •
Nota-se, neste sentido, que a CARDOSO, Elizabeth. Imprensa feminista brasileira
pós-74. In.: Revista Estudos Feministas, Florianópolis,
imprensa feminista nasce com os mo- 12, 37-55, set.-dez. 2004.
vimentos de luta pelos direitos das DEBÉRTOLIS, Karen Silva. Brasil Mulher: Joana Lopes
mulheres ainda no século XIX e ganha e a imprensa alternativa feminista. 2002. ANO. PÁGI-
NAS. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Infor-
robustez vinculada aos Movimentos mação) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Informação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Feministas do século XX e ao jornalis- Porto Alegre, 2002.
mo alternativo. Se as revistas vinculam-
LEITE, Rosalinda de Santa Cruz. Brasil Mulher e Nós
-se mais a uma abordagem feminina Mulheres: origens da imprensa feminista brasileira. In.:
Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 11, jan.-jun.
dos temas que abrangem o “universo 2003
particular da mulher” (da casa, da famí-
GROTH, Otto. O poder cultural desconhecido: fun-
lia e do consumo), a imprensa que luta damentos da ciência dos jornais. Petrópolis, RJ: Vozes,
2011.
pelos direitos do gênero – inclusive de
uma participação mais igualitária no LAGE, Nilson. Ideologia e Técnica da Notícia. Florianó-
polis: Insular; Editora da UFSC, 2001.
espaço público – está relacionada a pu-
blicações mais atentas à atualidade, ao Sugestões de leitura
que o jornalismo entende por notícia e
interesse público. KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários nos
tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Scritta Edi-
torial, 1991.
Christa Berger
Vanessa Heuser SULLEROT, Evelyne. La presse féminine. Paris, Colin,
1963.

Referências

BANDEIRA, Ana Paula Bornhausen da Silva. Jornalismo
Feminino em Santa Catarina: uma análise do suplemento Infância
Donna DC, do Diário Catarinense. 2012. 139 p. Disser-
tação (Mestrado em Jornalismo) – Programa de Pós-Gra-
duação em Jornalismo, Universidade Federal de Santa Foi no século XIX que a idade,
Catarina. Florianópolis, 2012.
assim como o nome e o sobrenome,
BORGES, Adélia. Mulherio, jornal feminista. In.: Co- tornou-se um fator central de identii-
municação & Sociedade, São Paulo, n. 8, p.125-133,
nov. 1982. cação individual e social nas socieda-
des ocidentais. A fase inicial da vida
BUITONI, Dulcília Schroeder. Mulher de Papel: a re-
presentação da mulher pela imprensa feminina brasileira. de homens e mulheres, designada pelo
São Paulo: Summus, 2009. vocábulo infância, a partir desta época,
______. Imprensa Feminina. São Paulo: Ática, 1986. adquiriu um novo sentido. Esta ida-
de da vida passou então a ser alvo de
CARDOSO, Elizabeth da Penha. Imprensa feminista
brasileira pós-74. 2004. Dissertação (Mestrado em Ciên- um conjunto de saberes que produziu
cias da Comunicação) – Escola de Comunicação, Univer-
discursos e práticas relativos tanto à
sidade de São Paulo. São Paulo, 2004.
análise quanto à própria constituição

• 418 •
da infância como processo cultural. As verso dos homens. Mas, devido ao alto
relações de gênero balizaram estes dis- grau de mortalidade, apenas uma par-
cursos e práticas, uma vez que, nesta cela pequena de mulheres e homens,
nova perspectiva, o futuro adulto, fos- sobretudo os oriundos dos grupos so-
se do sexo feminino ou do masculino, ciais mais abastados, galgava a velhice
seria gestado neste período de tempo. (ARIÈS, 1981, p. 39-40).
No caso da sociedade brasileira, este No século XVIII, em função
processo está centrado no período re- da introdução das relações capitalistas
publicano, ou seja, a partir do inal do de produção e a emergência do esta-
século XIX até os dias atuais. do moderno, a principal riqueza de um
Segundo o historiador Phillippe país passou a ser o montante de sua
Ariès, as etapas da vida, construídas a população adulta saudável. Uma gran-
partir de critérios associados ao bio- de quantidade de homens e mulheres
lógico e às funções sociais que o indi- adultos era necessária para trabalhar
víduo desempenhava na comunidade nas fábricas, povoar as colônias ou ter-
rural ou urbana, era um tema recorren- ras consideradas inabitadas, compor as
te em textos escritos entre os séculos forças armadas e consumir as merca-
XIV e XVIII. As denominadas etapas dorias produzidas em larga escala. To-
da vida — a infância, a juventude e a davia, para que este processo fosse exi-
velhice — eram delimitadas a partir de toso, era de fundamental importância
um conjunto de elementos: as ativida- superar um grande obstáculo vigente
des desempenhadas pelos homens ou na sociedade ocidental do período: a
pelas mulheres, a aparência física, os elevada mortalidade, sobretudo nos
modos de vestir, entre outros. De for- primeiros dez anos da vida. O ideário
ma semelhante aos ciclos da natureza e da infância foi implementado por meio
ao ordenamento sócio jurídico da so- de um conjunto de saberes, práticas
ciedade ocidental da época, as etapas e instituições que visavam fazer com
da vida também eram aceitas como i- que a criança atingisse a idade adulta.
xas e imutáveis. No caso das mulheres, Neste processo ocorrido na sociedade
os fenômenos associados à reprodução ocidental destacam-se os saberes da
eram balizadores das etapas da vida, Medicina, da Pedagogia, da Psicologia
especialmente a menstruação, que as e o relativo ao Direito.
habilitava para o casamento. Um cor- O corpo da criança considerado
po forte que possibilitasse à pessoa in- vulnerável passou a ser objeto de sa-
gressar na armada ou realizar labores beres e intervenções dos proissionais
que exigissem desempenho físico era o da medicina desde seu nascimento até
principal balizador em relação ao uni- a juventude. Três especialidades médi-

• 419 •
cas — a Ginecologia, a Puericultura e saber considerado especíico. Visando
a Pediatria — foram desenvolvidas a proteger o corpo da criança e/ou do
partir do século XIX, entre outros ob- adolescente, os médicos pediatras fo-
jetivos, com o intuito de salvaguardar ram responsáveis pela enunciação de
a vida do infante do sexo masculino dois discursos considerados “pilares”
ou do feminino. Os saberes e técnicas na construção do ideário da infância.
relativos ao parto foram paulatina- O primeiro diz respeito às relações de
mente apropriados e transferidos das trabalho. As atividades laborais que
mulheres parteiras para médicos/as gi- prejudicassem o pleno desenvolvimen-
necologistas. Os saberes considerados to do corpo deveriam ser interditadas
“tradicionais” deveriam assumir um durante uma fase da vida das pessoas.
Este discurso era dirigido para meni-
caráter cientíico. A Puericultura tinha
nos e meninas, uma vez que as crianças
como foco as prescrições enunciadas
ou adolescentes de ambos os sexos,
pelos médicos em relação à higiene, à
sobretudo as oriundas dos grupos so-
nutrição, à prevenção de doenças (es-
ciais mais pobres, trabalhavam, muitas
pecialmente em relação às vacinas) e à
vezes, desde a tenra idade. O outro dis-
socialização das crianças nos seus pri-
curso era relativo às práticas sexuais.
meiros anos de vida. A ressigniicação
Estas práticas também deveriam estar
positiva realizada em relação à imagem interditadas durante a primeira década
do bebê deve ser destacada neste pro- e meia da vida das pessoas, pois pode-
cesso. Os pequenos seres humanos em riam provocar, especialmente para as
formação, considerados assexuados mulheres, em função de uma possível
e demandantes de constante atenção gravidez, severos danos ao desenvol-
dos adultos, devido aos fenômenos i- vimento corpo. Como airma Michel
siológicos, adquiriram centralidade nas Foucault, neste processo “as crianças
preocupações de genitores, parentes são deinidas como seres sexuais ‘li-
e conhecidos, bem como foram o su- miares’, ao mesmo tempo aquém e já
porte para imagens idealmente positi- no sexo, sobre uma perigosa linha de
vas, compartilhadas pelo conjunto da demarcação.” (FOUCAULT, 1988,
sociedade. p. 99). Sendo assim a vigilância sobre
O discurso da Pediatria, por sua os infantes devia ser intensa em espa-
vez, instituiu no campo da Medicina ços considerados privados (quarto de
que o corpo dos infantes era diferencia- dormir) ou nos públicos (escolas, ba-
do dos adultos. Sendo assim este cor- nheiros públicos, etc.) que passaram a
po deveria manter se sob os cuidados ser idealizados, em parte, a partir desta
de proissionais que dominassem um perspectiva.

• 420 •
As atividades lúdicas e as relati- bancos escolares, sobretudo das insti-
vas à escola passaram a ser sinônimo tuições de ensino médio, até a metade
de infância na sociedade ocidental. As do século XX, foram frequentados,
brincadeiras tornaram-se objeto de preferencialmente, pelos meninos, pois
atenção dos médicos, dos pedagogos estes deveriam ser os provedores da fa-
e dos psicólogos. Por um lado, estas mília na idade adulta. O discurso Fe-
atividades lúdicas não poderiam colo- minista, que preconizava direitos iguais
car em risco o corpo da criança e, por para homens e mulheres, foi de fun-
outro, deveriam instruí-las para os “pa- damental importância para a mudança
péis” que se esperava fossem desempe- deste cenário em relação à escolariza-
nhados na vida adulta. Para as meninas, ção das meninas. Na escola, o currículo
futuras mães e donas-de-casa, estes das disciplinas, a indumentária, o livro
proissionais prescreviam as bonecas, didático e outras atividades contribuí-
as panelas e a literatura romântica e, ram sobremaneira no processo de di-
para os meninos, dos quais se espera- fusão das desigualdades de gênero.
va que assumissem a condição de pais Foi por meio das legislações ci-
e provedores do lar, recomendavam vis, penais e das especíicas que versam
os esportes e as histórias de aventura. sobre as crianças e adolescentes que os
Apesar da crítica feita por mobiliza- Estados nacionais legitimaram o ide-
ções feministas e das formulações dos ário da infância. No Brasil, durante o
estudos de gênero desde os anos de século XX, vigoraram três legislações:
1970, este quadro em relação às ativi- o Código de Menores de 1927 (BRA-
dades lúdicas pouco se alterou. SIL. Decreto n.º 17. 943 A, de 12 de
Entre os séculos XVI e XVIII, a outubro de 1927), o Código de Meno-
socialização da prole masculina infan- res de 1979 (BRASIL. Lei n.º 6.697, de
to-juvenil das famílias mais abastadas 10 de outubro de 1979) e o Estatuto
passou a ser realizada nas escolas, em da Criança e do Adolescente, de 1990
sua maioria com funcionamento em (BRASIL. Lei n.º 8.069, de 13 de julho
regime de internato. Esta forma de so- de 1990). Estes instrumentos instituí-
cialização, que implicava no domínio ram no âmbito do jurídico as noções
de um grande cabedal de conhecimen- de menoridade civil e penal, bem como
tos de caráter cientíico, em função da procuraram regulamentar as matérias
interdição do labor nos primeiros anos em que os sujeitos eram as crianças e
da vida, foi estendida para os infantes os adolescentes (labor infanto-juvenil,
das camadas médias e, posteriormen- infração, etc.). De maneira geral, atri-
te, os pobres puderam acessar escolas buíram um tratamento igualitário para
públicas em tempo parcial. Porém, os meninos e meninas. Todavia, no plano

• 421 •
do senso comum compartilhado pela cidade associou determinadas cores —
sociedade brasileira, a temática das rosa e azul — às representações sociais
infrações foi associado, sobretudo, às de feminino e masculino vigentes no
crianças e adolescentes do sexo mascu- mundo infanto-juvenil. Somente nas
lino, na qualidade de autores, enquanto últimas décadas do século XX estas vi-
que a das violências sexuais, ao sexo sões, que se tornaram senso comum,
feminino, na condição de vítimas. começaram a ser timidamente ques-
Desde o início do século XX, tionadas, em grande parte pela difusão
com o advento da Psicanálise e da dos ensinamentos feministas.
Psicologia Analítica, as subjetividades As disciplinas das Ciências Hu-
individuais dos primeiros anos da vida manas, tais como, a Antropologia da
adquiriram grande importância. Ten- Infância, a Sociologia da Infância, a
do em vista esta perspectiva, Sigmund História da Infância e Juventude, a
Freud elaborou as noções de desenvol- Geograia da Infância e a Psicologia,
vimento psicossexual, que contempla assim como a Educação, de forma
o conceito do complexo de Édipo, mais efetiva nos últimos anos, produ-
enquanto que Carl Gustav Jung, o ziram conhecimento sobre as crian-
conceito do complexo de Electra. Os ças, adolescentes e jovens a partir do
estudos acerca das relações de gênero olhar do sujeito. Esta outra perspectiva
questionaram estas visões transcultu- epistemológica agrega, entre outros, os
rais de processos que ocorreriam na in- conceitos de vitimização e de agência,
fância dos indivíduos, uma vez que as ausentes em parte da literatura até en-
subjetividades também são produzidas tão (ALANEN, 2001). Estes estudos
através das relações socioculturais vi- certamente trarão “novas luzes” às re-
venciadas por homens e mulheres em lexões apresentadas sobre as relações
determinado tempo histórico. de gênero neste campo de estudo.
Os meios de comunicação de
massa, especialmente a publicidade, ao Silvia Maria Fávero Arend
longo do século XX, tiveram um papel
de destaque na difusão das representa- Referências e sugestões de leitura
ções sociais do feminino associada às
ALANEN, Leena. Estudos Feministas/estudos da infân-
emoções e à fragilidade, enquanto que cia: paralelos, ligações perspectivas. In: CASTRO, Lucia
o masculino esteve associado à razão Rabello de (Org.) Crianças e jovens na construção da
cultura. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001, p. 69 – 92.
e à virilidade, tanto no universo dos
ARIÈS, Phillippe. História Social da Criança e da Famí-
adultos quanto no infanto-juvenil. Em lia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.
muitos países ocidentais, inclusive no
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. A vonta-
Brasil, desde os anos de 1950, a publi- de de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

• 422 •
LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude (Org.) Histó- tural; se a partir de situações de etno-
ria dos Jovens. São Paulo: Companhia das Letras, 1996,
volume 1. centrismo ou de relativização cultural;
2. Da noção/modelo de socie-
PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no
Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 1999. dade e das relações que se estabelecem
entre os grupos sociais, envolvendo as
• hierarquizações, os valores, as identida-
des e os papéis vividos ou esperados,
Inter/multiculturalidade; o conformismo ou o inconformismo
inter/multiculturalismo acerca destas relações;
3. Da intencionalidade ética e
Inter/multiculturalidade e in- política no que diz respeito às relações
ter/multiculturalismo são categorias de poder, e de domínio estabelecidas
ético-analíticas que se consagraram nas sobre as pessoas, considerando o cru-
análises sobre a diversidade sociocultu- zamento de classe social, gênero e et-
ral. Por serem polissêmicas, e por carre- nia;
garem consigo inúmeras confusões de 4. Da visão de passado, de pre-
sentido, preferimos tratá-las conjunta- sente e de futuro lançada sobre a hu-
mente, não separando os verbetes. No manidade: essas visões envolvem a
entanto, mesmo que existam pontos de forma como se pensa a constituição
encontro entre o entendimento que se das sociedades humanas, as relações
possa ter sobre a interculturalidade e a humanas que foram estabelecidas no
multiculturalidade, sobre o intercultu- passado, que se estabelecem no pre-
ralismo e o multiculturalismo, e que al- sente, e o tipo de relações que se espera
guns pensadores possam tomar ambos implantar no futuro;
os pares de palavras como sinônimos, 5. Da visão ontológica acerca
estas categorias possuem sentidos di- da(s) essência(s) dos seres humanos: se
ferentes, sendo impossível uniicá-las estática ou dessacralizada, se ligada a
sob um único ponto de vista. Seus atributos externos, como traços físicos,
signiicados dependem mais do uso ou a atributos internos, como o modo
político do que da gramática ou da eti- de ser, ou a papéis sociais, como as re-
mologia. Os signiicados que elas assu- lações de gênero;
mem, e os usos políticos que delas se 6. Da ciência que o utiliza e do
fazem, dependem de diversas variáveis: recorte teórico que lhe embasa (pers-
1. Da maneira como são pensa- pectiva epistemológica).
das as culturas e as identidades sociais: De maneira geral, no entanto,
se em movimento ou estáticas; se em multiculturalidade e interculturalidade
função, ou não, de algum padrão cul- são categorias descritivas da diversida-

• 423 •
de cultural e das formas de interação cas, reciprocidade, diálogos de grupos
entre os agrupamentos humanos; mul- humanos diferenciados em todas as
ticulturalismo e interculturalismo são dimensões: cultura (em sentido amplo
tomados como projetos políticos (Cf. envolve desde costumes, religião, cos-
HERNÁNDES-REYNA, 2007). Pas- movisão, relações intra e interpessoais,
semos a caracterizar cada uma destas até saberes, fazeres e cultura material
categorias: especíicos), política, sociedade, eco-
a) Multiculturalidade: termo des- nomia. A interculturalidade envolve,
critivo que indica a diversidade cultural também, o direito e o respeito à di-
existente em determinada sociedade ferença em condições de igualdade.
ou território. Boaventura percebe, no Na América Latina, Catherine Walsh
entanto, que em alguns autores (como (2007) entende que a interculturalida-
em Stam, 1997), o multiculturalismo de, mais do que simples inter-relação,
pode também ser tomado como pro- tem uma signiicação ligada às geopo-
jeto. líticas de lugar e espaço, à história de
Tanto os debates sobre a multi- resistência dos grupos subalternos, em
culturalidade quanto sobre a intercul- especial dos indígenas e dos negros,
turalidade têm início na negação do na busca de construção de um projeto
monoculturalismo vigente em diversas social, cultural, político, ético e episté-
sociedades por longos períodos. Povos mico orientado para a descolonização
e culturas que têm sua base no mono- e para a transformação. Dessa forma, a
culturalismo estabeleceram/estabele- interculturalidade é mais que discurso,
cem políticas de eliminação das cul- constituindo-se numa lógica de inter-
turas diferentes, e consequentemente pretação da ainda presente coloniali-
das identidades diferenciadas e de seus dade latino-americana. Para Tubino
projetos societários, seja através de ata- (2004), a interculturalidade é mais que
ques físicos ou morais. Geralmente, conceito, ideia ou categoria teórica. É
os ataques à diferença vêm acompa- uma maneira de comportar-se, uma
nhados de práticas de segregação e de proposta ética, uma atitude, maneira
projetos de assimilação e de integração de ser. Por estar centrada nas relações
de povos, ou parte deles, aos valores da entre as culturas, no espaço comum
sociedade majoritária. ocupado por elas, a interculturalidade
b) Interculturalidade: termo des- vai além da multiculturalidade, do re-
critivo que designa, a princípio, a inte- conhecimento das diferenças culturais.
ração ou encontro entre dois ou mais Por isso, há teóricos que a veem tam-
grupamentos humanos. A intercultura- bém como projeto, no sentido de in-
lidade envolve relações, interações, tro- terculturalismo.

• 424 •
c) Multiculturalismo: substantivo 2. Conservador, liberal, comer-
que designa o fenômeno político e te- cial, corporativo e crítico (Hall, 2003):
órico surgido na segunda metade do a) O multiculturalismo conservador
século XX, principalmente nos Esta- insiste na supressão da diferença em
dos Unidos e no Canadá, a partir das função das tradições e costumes da
demandas dos movimentos sociais maioria; b) O multiculturalismo libe-
(de gays, afro americanos, feministas, ral, por sua vez, busca integrar os di-
grupos étnicos). Por sua origem, hege- ferentes grupos culturais ao modo de
monicamente, possui um viés bastan- ser da sociedade majoritária. Baseado
te ligado à ilosoia e ao pensamento em uma cidadania individual universal,
liberais. O multiculturalismo parte do tolera certas práticas culturais particu-
pressuposto da multiculturalidade.
laristas apenas no domínio privado; c)
Para Hall (2003), o multiculturalismo
Já o multiculturalismo pluralista avaliza
está associado às estratégias e políticas
diferenças grupais em termos culturais
adotadas para governar ou administrar
e concede direitos de grupos distintos
problemas de diversidade e multiplici-
a diferentes comunidades dentro de
dade gerados pelas sociedades multi-
uma ordem política comunitária ou
culturais.
mais comunal; d) O multiculturalismo
Enquanto projeto político, o
multiculturalismo é múltiplo e pode comercial, por seu turno, pressupõe
assumir diferentes formas, conside- que, se a diversidade dos indivíduos de
rando-se as variáveis identiicadas no distintas comunidades for publicamen-
início do texto. Assim, tem-se o mul- te reconhecida, então os problemas
ticulturalismo: de diferença cultural serão resolvidos
1. Liberal e comunitarista: a) O (e dissolvidos) no consumo privado,
multiculturalismo liberal (de Joseph sem qualquer necessidade de redistri-
Raz e de Will Kymlicka, por exemplo) buição do poder e dos recursos; e) O
defende que as escolhas culturais são multiculturalismo corporativo (público
processos individuais. Nessa matriz, as ou privado) busca “administrar” as di-
tradições devem ser valorizadas por- ferenças culturais da minoria, visando
que estabelecem referências importan- os interesses do centro; f) Por im, o
tes para essas escolhas; b) O multicul- multiculturalismo crítico ou “revolu-
turalismo comunitarista (de Taylor e de cionário” enfoca o poder, o privilegio,
Walzer, por exemplo) defende que as a hierarquia das opressões e os movi-
políticas sociais devem atacar ao mes- mentos de resistência (Hall segue aqui
mo tempo as diferenças grupais e as o esquema proposto por McLaren).
diferenças de classe. Procura ser “insurgente, polivocal, he-

• 425 •
teroglosso e antifundacional” (assim interculturalismo crítico pensado por
como também o entende Goldberg). Fidel Tubino (2004).
3. Conservador ou empresarial, d) Interculturalismo: fenômeno
liberal humanista, liberal de esquerda que se desenvolve a partir da Europa,
e crítico (McLaren, 2000). a) Respalda- causado pela aluência de imigran-
do nas teorias evolucionistas do século tes àquele continente, e da América
XIX, o multiculturalismo conservador Latina, causado principalmente pela
é aquele que pretende a universalização ação política dos povos ameríndios e
da cultura branca, masculina, ociden- afrodescendentes. Supõe a multicultu-
tal. b) O multiculturalismo humanista ralidade, constituindo-se, no entanto
liberal é perpassado por certa apro- numa relexão sobre a interculturali-
priação humanística, pois defende o dade. O interculturalismo possui duas
acepções: a) é tematização teórica so-
princípio de igualdade independente-
bre o fenômeno da interculturalidade,
mente de questões de etnia, gênero ou
tornando-se um campo de estudos; b)
sexualidade. Por conta disso, acusa o
é projeto político de relações entre di-
sistema capitalista de promover restri-
ções econômicas a determinados gru- versas culturas.
pos sociais, os quais deveriam possuir Num esforço de classiicação
o direito de competir ‘igualmente’ em ampla das perspectivas do uso do in-
uma sociedade capitalista. c) O multi- terculturalismo chega-se a dois tipos,
culturalismo liberal de esquerda enfati- funcional e crítico: a) O interculturalis-
za a diferença cultural acusando que a mo funcional defende o diálogo inter-
ênfase na igualdade universal esconde cultural e o reconhecimento intercul-
as diferenças entre raça, gênero, classe tural sem tocar nas estruturas sociais
e sexualidade. d) O Multiculturalismo que geram as desigualdades sociais.
Crítico compreende que a representa- Esse tipo de interculturalismo não
ção da raça, classe e gênero é resultado questiona as assimetrias socioculturais,
de lutas sociais sobre signos e signii- políticas e econômicas existentes entre
cações. Por isso, enfatiza não apenas os grupos subalternizados e os grupos
o jogo textual, mas a tarefa de trans- hegemônicos. Nele, o discurso sobre
formar as relações sociais. O multicul-
a cultura substitui o discurso sobre a
turalismo crítico pode ser aproximado
pobreza, ignorando-se a injustiça dis-
teoricamente do multiculturalismo
tributiva, as desigualdades econômicas,
emancipatório proposto por Boaven-
as relações de poder entre os gêneros,
tura de Sousa Santos (2003). Da mes-
classes sociais e grupos étnico-cultu-
ma forma, dialoga teoricamente com o

• 426 •
rais. Um caso típico de intercultura- GOLDBERG, D. Introduction. In: GOLDBERG, D.
(Org.). Multiculturalism. London: Blackwell, 1994.
lismo funcional é o multiculturalismo
anglo-saxão (Tubino, 2004, p. 05); b) O HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações
culturais. (Tradução Adelaine La Guaradia Resende) Belo
interculturalismo crítico, por sua vez, Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da
segue o princípio ideológico antico- UNESCO no Brasil, 2003.

lonialista, anticapitalista, anti-imperia- HERNÁNDEZ-REYNA, Miriam. Sobre los sentidos de


lista e antissegregacionista. Por esse “multiculturalismo” e “interculturalismo”. Ra Ximhai,
Vol. 3, Número 2, Mayo-Agosto, 2007, pp. 429-442.
motivo, indica uma política cultural de Universidad Autónoma Indígena de México, México.
transformação estrutural para além do
MCLAREN, Peter. Multiculturalismo Crítico. São Pau-
simples reconhecimento ou inclusão, lo: Cortez, 2000.
pois se debruça sobre as causas histó- OLIVÉ, Léon. Interculturalismo y justicia social. Auto-
ricas da desigualdade entre os grupos nomia e identidad cultural en la era de la globalización.
México, D.F.: UNAM, 2004.
humanos visando à suplantação das as-
simetrias sociais e à construção de uma SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Reconhecer para
libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural.
proposta alternativa de sociedade e de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
civilização. O interculturalismo crítico
STAM, Robert. Multiculturalism and the Neoconservati-
se apresenta, assim, como uma nova ves. In.: McClintock, Anne; Mufti, Samir e Shohat, Ella
tarefa intelectual e prática ao levar ao (orgs.). Dangerous Liaisons: Gender, Nation, and Post-
colonial Perspectives. Minneapolis: University of Minne-
desenvolvimento de uma teoria críti- sota Press, 1997.
ca do reconhecimento, combinando-a
TUBINO, Fidel. Del interculturalismo funcional al in-
com a política social da igualdade (Tu- terculturalismo crítico. 2004. Disponível em: <http://
bino, 2004, p. 07). O interculturalismo www.pucp.edu.pe/ridei/pdfs/inter_funcional.pdf>. Aces-
so 10/05/2012;
crítico propõe o diálogo intercultural,
considerando, porém, as relações de WALSH, Catherine. Interculturalidad y colonialidad del
poder. Un pensamiento y posicionamiento “otro” desde
poder nas quais este diálogo está in- la diferencia colonial. In.: CASTRO-GÓMEZ, Santiago
serido. Por visar à construção de um & GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial, relexio-
nes para una diversidad epistémica más allá del capita-
mundo outro, o interculturalismo críti- lismo global. Siglo del Hombre Editores, Bogotá. 2007.
co defende uma ética inter e transcul-
tural. •

Antonio Dari Ramos Interseccionalidad

Referências e sugestões de leitura No se puede estudiar al género


en aislamiento. El género está íntima-
DAMÁZIO, Eloise da Silveira Petter. Multiculturalismo
versus interculturalismo: por uma proposta intercultural mente conectado con otras divisiones
do Direito. Desenvolvimento em Questão, vol. 6, núm. sociales que en interacción producen
12, julio-diciembre, 2008, pp. 63-86, Universidade Re-
gional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, diferentes desigualdades y múltiples
Brasil.

• 427 •
formas de discriminación. Por lo an- acuñado por la teoría feminista e in-
terior, la división construida en sexos cluye la denuncia a la opresión, y a la
está interconectada con la raza y la et- subordinación, así como un llamado a
nicidad, y esta triada se explica mejor los gobiernos a adoptar prácticas para
con el concepto que aquí analizamos, construir la dignidad de las mujeres y
el de interseccionalidad o como se le su empoderamiento. La intersecciona-
conoce originalmente intersectionality. lidad se discutió en el Grupo de Traba-
La búsqueda por encontrar una expli- jo sobre Mujeres y Derechos Humanos
cación a esta correlación: raza, género, en el Centro para el Liderazgo Global
etnicidad, dio lugar inicialmente a la de la Universidad de Rutgers, y de la
identiicación de la triple opresión que Liga Internacional de Mujeres para la
fue develada por Kimberlé Crenshaw Paz y la Libertad, sección Reino Unido,
en 1989, con relación a la situación de y en la Plataforma de Acción de Nacio-
empleo de las mujeres negras de clase nes Unidas en Beijing.
trabajadora en los Estados Unidos. La El concepto tiene mucho po-
cita de abajo hace referencia muy clara tencial porque no solo se trata de una
a las múltiples barreras que encuentra herramienta teórica, sino también,
una mujer que pertenece a un grupo suele ser un dispositivo para ser im-
minoritario. Una mujer y un hombre plementado por políticas públicas que
de color enfrentan colonialismo y ra- buscan construir el reconocimiento de
cismo, pero además la mujer negra en- los otros. Desde 1989 ha habido una
frenta patriarcado. vasta producción teórica y metodoló-
Substituir pelo texto formatado gica, sobre el concepto. Pero me voy
abaixo: a concentrar en las advertencias meto-
“Intersectionality is what oc- dológicas muy pertinentes de la soci-
curs when a woman from a minority óloga británica Nira Yuval-Davis (Yu-
group... tries to navigate the main cros- val-Davis, 2006; 2015), porque su obra
sing in the city [....]. The main highway es un referente académico imprescin-
is ‘racism road’. One cross street can dible sobre el desarrollo del concepto.
be Colonialism, then Patriarchy Street. La interseccionalidad se reiere a las
[...] She has to deal not only with one múltiples divisiones sociales que son
form of oppression but with all for- construidas: género, clase, raza, etnici-
ms, those named as road signs, which dad. Siendo estas cuatro divisiones las
link together to make a double, a tri- que fortalecen el concepto una vez que
ple, multiple, a many layered blanket éste arribo a los círculos académicos
of oppression” (Crenshaw, 2001). feministas londinenses, desde Estados
La interseccionalidad es un concepto Unidos, y se añadió, clase, pues se co-

• 428 •
nocía solamente como la triple opresi- bios; las mujeres indígenas son pobres;
ón. Es con este contacto trasatlántico las mujeres blancas son bellas.
que inicia un amplio debate e interés Las divisiones sociales también
académico, de manera que el concep- existen en la manera en que la gente
to se va lexibilizando al dejar de ser experimenta subjetivamente su vida
una etiqueta exclusiva para las mujeres diaria en términos de inclusión, exclu-
negras de Estados Unidos y con ello, sión, discriminación, aspiraciones es-
se va allanando el camino para dejar de pecíicas. También como se piensa y se
lado todo tipo de esencialismos (Jor- ve hacia uno mismo, cuáles son las ac-
dan-Zachery, 2007). titudes y prejuicios entre unos y otros.
Para entender mejor porque el Igualmente, al nivel de las representa-
concepto ha ayudado a evitar los esen- ciones en imágenes, textos, ideologías,
cialismos, Nira Yuval-Davis ha soste- marcos jurídicos. Todo importa en el
nido que el punto central del debate es análisis interseccional, sea material o
poner a discusión los diferentes niveles simbólico, las divisiones sociales, tie-
analíticos del concepto, cada división nen causas y efectos, son relacionales
social, y trabajar en la especiicidad de y, sobre todo: ninguna división social
cada una. Por ejemplo, está claro que está por encima de la otra. ¿Que pesa
no se puede abordar el caso de las mu- más para una mujer: ser pobre o ser
jeres indígenas pobres, con el análisis indígena?
de las mujeres negras de clase trabaja- Para realizar un análisis intersec-
dora. cional se requiere investigar con espe-
Las estudiosas de la intersec- ciicidad, insiste Yuval-Davis, todo ele-
cionalidad rechazan el simplismo de mento que genera división social. No
añadir, de adherir vectores a cualquier es reducir una categoría a otra. No se
modelo: mujer indígena, pobre, lesbia- trata de una diferenciación unidimen-
na, discapacitada, joven (Falcon, 2001; sional entre los dominantes y los do-
McCall, 2005; Weber, 2009). El pun- minados sino buscar conocer más pro-
to no es “encontrar diferentes y múl- fundamente a los otros. Cada división
tiples identidades dentro de una”. De es autónoma y cada una da prioridad
ser así, se corre el riesgo de esencializar a las diferentes esferas de las relacio-
las identidades sociales, produciendo nes sociales. ¿Ser negra o mujer es otra
naturalización de las divisiones socia- forma de pertenecer a la clase trabaja-
les, y la interseccionalidad se convierte dora?
en arquetipos o estereotipos: “Black is Años más tarde, la socióloga
beautiful”; los adultos mayores son sa- alemana, Helma Lutz, y sus colegas

• 429 •
(Lutz, Herrera, Supik, 2011) encontra- racial, han sido objeto de atención ins-
rían hasta dieciséis divisiones sociales titucional; asimismo, la edad para estas
o, vectores, que propician discrimina- mujeres es de gran impacto. El recono-
ción, algunos de ellos: raza, etnicidad, cimiento de que niñas y jóvenes indíge-
género, sexualidad, habilidades, edad, nas y afrodescendientes son objeto de
ciclo de vida. Estas divisiones sociales vulnerabilidad, aún más acentuada, es
muestran una jerarquía de acceso dife- otro resultado de un abordaje intersec-
rencial a una variedad de recursos eco- cional. Y en este rubro, la discriminaci-
nómicos-políticos-culturales, lo cual se ón y las violencias se intensiican en las
convierte en un campo de acción de las más jóvenes, es decir, en las niñas, las
políticas públicas. adolescentes y la juventud.
Es un hecho que, aunque las Las acciones airmativas son
mujeres son mayoría demográica, y medidas correctivas para generar igual-
son económicamente activas, reciben dad y equidad, buscando desmante-
salarios más bajos, y tienen peores con- lar la feminización de la pobreza, y
diciones laborales que los hombres, construir empoderamiento (“acciones
además, se concentran en las activida- airmativas”). Ahora es el momento
des informales. Pero los marcadores de de hacer referencia a la importancia
etnia y raza establecen una gran distan- de construir mecanismos para que las
cia con respecto a las mujeres blancas. mujeres tengan oportunidades para
De ahí que las políticas públicas enca- competir por cualquier puesto para la
minadas a generar, equidad, igualdad y toma de decisiones o el ejercicio del
paridad, se sustentan en un abordaje poder, me reiero a la paridad (“Inicia-
combinado que apunta al combate de tiva SUMA, democracia es igualdad.
las desigualdades interconectadas. Así, Modelo para la Participación Política
la implementación de acciones airma- y el Empoderamiento Económico de
tivas ha sido una medida muy extendida las Mujeres”). Y para ello se han im-
en el mundo para generar igualdad de plementado múltiples programas na-
oportunidades, y reducir los privilegios cionales e internacionales para que las
concentrados en determinados grupos mujeres desarrollen liderazgo dentro
(“Interseccionalidad en políticas públi- de sus ámbitos, y adquieran habilida-
cas”). Por ejemplo, hombres blancos des empresariales, de producción, de
de ascendencia europea, cristianos, y organización, entre otras.
mujeres blancas. Las políticas airmati- América Latina se encuentra
vas, en consecuencia, han identiicado muy rezagada con respecto a que las
que las mujeres, con identidad étnica y mujeres étnicas o afrodescendientes

• 430 •
incursionen en las vías para ejercer po- interseccionalidad, hemos dicho, con-
der. México aporta con una sentencia tribuye a profundizar en los contextos
del tribunal electoral que precisa a los socioculturales de las mujeres indíge-
partidos políticos a participar con cuo- nas, pero también sirve para estudiar
tas de género y étnica, de manera que, como la piel blanca, el fenotipo, la ju-
en la competencia electoral de 2018, ventud, hacen que las personas tengan
se verá por primera vez, la participa- más éxito laboral y emocional (Gutiér-
ción de mujeres indígenas de distintas rez Chong, 2014). En un estudio que
etnias en las contiendas electorales realicé con los catálogos de internet
para ocupar escaños en las diputacio- sobre las mujeres indígenas, la indus-
nes federales en los distritos indígenas tria del sexo y la trata, encontré varios
(“Ordena el TRIFE postular mínimo ejemplos de cómo las mujeres blancas
13 indígenas para diputados”). Con resaltan su superioridad sobre las indí-
la participación de mujeres indígenas genas, haciendo notar al consumidor
para ser elegidas y ocupar lugares en las que ellas si son reales, en alusión a
diputaciones y senadurías, se constata que no son trampas para enganchar al
una medida real para garantizar la pa- cliente, son bellas y deseables, algunas
ridad de género. Así también se verá el frases dicen “yo si soy güerita”, “no te
efecto de la violencia política que han conformes con gatas”, “no tengo cara
sufrido las mujeres indígenas cuando de indígena” (Gutiérrez Chong, 2018).
sus triunfos políticos no son respeta- Estos “regímenes de diferencia” (Mo-
dos. Para lograr el reconocimiento de reno Figueroa, 2012), construidos en
las mujeres y construir oportunidades la primacía de la belleza y el deseo,
para las más desprotegidas los esfuer- atributos de las mujeres blancas en
zos no han sido aislados, la Agenda contraste con la supuesta fealdad y la
2030 y sus objetivos de desarrollo sos- accesibilidad sin límites (naturaleza sal-
tenible, contienen numerosas acciones vaje), de las mujeres indígenas y afro-
conjuntas interseccionales que deben descendientes, pero establecidos como
acatar los estados-nación (“Agenda diferencias entre las mismas mujeres,
2030”). demuestra cuán importante es la raza y
La interseccionalidad también la etnia en la industria del sexo y la trata
es fructífera para analizar las divisio- de mujeres.
nes sociales que generan y reproducen De hecho, investigando la inter-
oportunidades y privilegios. Pues si seccionalidad de los vectores que son
bien, todas las mujeres portamos mar- dominantes o deseables, se puede en-
cadores de raza, etnia, clase o edad, la tender mejor el racismo, el patriarcado

• 431 •
y el machismo, pues estas ideologías y sibilizado la erotización de la violencia
prácticas con su origen colonial, que sexual hacia las mujeres por los actos
se ha prolongado hasta la modernidad de conquista y colonización, y la conti-
de la nación, han orillado a las mujeres nuidad del racismo y el sexismo como
indígenas, y a las afrodescendientes a la forma de control.
domesticidad y al servilismo, pero las El análisis interseccional permi-
más blancas, en abrumador contraste, te dar visibilidad a las múltiples opre-
siguen siendo las mujeres que incitan siones creadas por divisiones sociales
al deseo, que inspiran conianza y se que han arrojado al fondo a grupos es-
ganan el respeto. En la América Latina pecíicos, por género, sexo, raza, etni-
colonial, cuando las castas delineaban cidad, edad. Con esta lente múltiple se
la estratiicación social era común el pueden construir los pisos necesarios
dicho “las mujeres indias para limpiar, que aseguren retribución, distribución
las mujeres negras para la cama y las y reconocimiento, ello para buscar so-
blancas para casar” en nuestro siglo ciedades más equitativas, igualitarias, y
permanece sin cambio tal interseccio- en respeto a la pluralidad y diversidad
nalidad combinada con regímenes de de maneras de ser. No podemos con-
diferencia. formarnos con el modelo adherente:
El feminismo latinoamerica- mujeres indígenas pobres, mujeres ne-
no también ha abordado el análisis gras de clase trabajadora, mujeres blan-
interseccional. Mencionamos a Fran- cas de clase alta.
cesca Gargallo de Chile, Mara Rivero
de Colombia, Sueli Carneiro y Ochy Natividad Gutiérrez Chong
Curiel, feministas afrodescendientes
de Brasil y República Dominicana. En Referencias
estas autoras está presente una crítica Acción airmativa. Comisión interamericana de mujeres.
al absolutismo conceptual sobre el ser http://portal.oas.org/Portal/Topic/Comisi%C3%B3nIn-
teramericanadeMujeres/AccionesAirmativas/tabid/960/
humano, sus reglas y sus formas de Default.aspx#03 [Fecha de consulta: 20 de abril de 2018]
pensamiento. Esto porque la raza y la
Agenda 2030 https://www.gob.mx/agenda2030 [Fecha
pertenencia étnica son determinantes de consulta: 20 de abril de 2018]
en la estructura de clases de América
CARNEIRO, Sueli “Ennegrecer el feminismo. La situ-
Latina, donde predomina una pigmen- ación de la mujer negra en América Latina desde una
tocracia sectaria inluyendo y mode- perspectiva de género”. Nouvelles Quéstions Féministes.
Revue International Francophone, 2005 24 (2): 21-26
lando los ámbitos salarial, educativo y Center for Women’s Global Leadership. http://www.
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• 432 •
CRENSHAW, Kimberle “Demarginalizing the Inter- McCALL, Leslie “he Complexity of Intersectionality”,
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cle=1052&context=uclf [Fecha de consulta: 17 de no- ordena-el-trife-postular-minimo-13-indigenas-para-di-
viembre de 2017] putados [Fecha de consulta: 20 de abril de 2018]

CURIEL, Ochy “Género, raza, sexualidad. Debates VIVEROS, Mara “La sexualización de la raza y la racia-
contemporáneos” http://www.urosario.edu.co/Subsitio/ lización de la sexualidad en el contexto latinoamericano
Catedra-de-Estudios-Afrocolombianos/Documentos/ actual” http://www.derechoshumanos.unlp.edu.ar/as-
13-Ochy-Curiel---Genero-raza-y-sexualidad-Debates-. sets/iles/documentos/la-sexualizacion-de-la-raza-y-la-ra-
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Skin Colour, Beauty and the Politics of Mestizaje in
Mexico’ in C. Horrocks (ed.) Cultures of Colour: Visu-
al, Material, Textual Oxford and New York: Berghahn
Books, 2012.

• 433 •
Julia Lopes de Almeida

Romancista, teatróloga, ensaís-


ta, contista, conferencista, ativista dos
direitos femininos, Júlia Valentina da
Silveira Lopes de Almeida foi a escri-
tora brasileira mais importante do inal
do século XIX e das primeiras décadas
do século XX e, ao lado de Macha-
do de Assis, a mais lida e a que mais
vendia livros (MUZART, 2000). Suas
obras eram sucesso de público, esgo-
tando-se rapidamente das prateleiras
das livrarias como atesta seu marido,

Jj o poeta português Filinto de Almeida,


em carta enviada de São Paulo à esposa
em 1932: “Os livreiros aqui reclamam

j obras tuas, principalmente ‘A Família


Medeiros’, que é muito procurada. A li-
vraria Teixeira comprou há tempos 800
ex. que depressa se esgotaram – e pede
mais...” (ALMEIDA, 30/05/1932).
Desacatando normas sociais de
comportamento feminino e os discur-
sos que interditavam a mulher à prática
da escrita – concebida como pernicio-
sa à saúde física e mental delas – Júlia
rompeu as fronteiras do mundo lite-
rário, predominantemente masculino,
e construiu uma carreira incomum às
mulheres de sua geração. Ao fazer isso,
ela não apenas demonstrou a capacida-
de intelectual e criativa das mulheres
na produção literária, mas, como pou-
cos escritores da sua época, conseguiu
viver da sua escrita e administrar sua
própria carreira. Para Michele Fanini

• 434 •
(2009, p.322-323), sua intensa relação O sucesso editorial e o reconhe-
com as letras foi tão transbordante, cimento público, entretanto, não foram
“ao ponto de ter inluenciado seus i- suicientes para que seu nome iguras-
lhos e marido, que gravitavam em tor- se entre os membros fundadores da
no de seu êxito”. Academia Brasileira de Letras (ABL),
Ela foi uma exímia romancista principal instituição de consagração
e escritora talentosa. Suas obras são literária, mesmo ela tendo participado
marcadas pelo caráter realista e etno- das discussões inaugurais que culmina-
gráico, abordando muitas vezes temas ram na sua criação em 1897. Segundo
ainda tabus na sociedade brasileira. Michele Fanini, o nome de Júlia che-
Frequentemente era comparada pela gou a ser apresentado e defendido por
Lúcio de Mendonça para ocupar uma
crítica às mais reconhecidos/as escri-
cadeira na ABL. Entretanto, foi majo-
tores/as da literatura internacional,
ritariamente rejeitado pelos “homens
como no comentário de Leopoldo de
de letras”, “[...] posto que a aceitação
Freitas na Revista de São Paulo: “Na
da indicação do nome de Júlia Lopes
actual litteratura brasileira D. Julia Lo-
sugeriria acolher na agremiação uma
pes de Almeida tem a elevada repre-
mulher, algo inesperado e indesejável,
sentação que George Elliot e Charlotte
já que, sobre o “segundo sexo” pesava
Bronté tiveram na litteratura ingleza o fardo de ser ‘essencialmente inferior’
(sic)” (FREITAS, s.d., p.66). Wilson ao homem”. (Idem, p.325). A presen-
Martins em sua História da Inteligência ça de uma mulher poderia “macular” a
Brasileira compara o romance A Falên- recente instituição que queria se fazer
cia de Júlia os melhores livros de Eça prestigiada desde o início. Para com-
de Queiroz (MARTINS, 1996, p.195); pensar e ao mesmo tempo “homena-
e a escritora portuguesa Guiomar Tor- gear” aquela que à época era a maior
rezão comparou seu romance abolicio- escritora brasileira, a ABL concedeu ao
nista A família Medeiros, ao famoso livro seu marido Filinto de Almeida a vaga
A cabana do pai Tomás da escritora ame- que, “supostamente, seria a ela destina-
ricana Harriet Beecher Stowe. Confor- da” (Idem, p.330).
me ressalta Peggy Sharpe (1999, p.9), Júlia Lopes Almeida nasceu no
“a popularidade dessa ‘primeira-dama’ Rio de Janeiro em 1862, e morreu em
da Belle Époque brasileira e o papel que 1934 aos 72 anos. Iniciou sua carreira
desempenhou na sociedade e nos sa- de escritora incentivada pelo pai aos 19
lões cariocas”, fez com que ela obtives- anos como cronista no jornal Gazeta
se, mais do que qualquer outra do seu de Campinas, cidade onde passou parte
tempo, o reconhecimento público. da infância e da adolescência. Publicou

• 435 •
mais de 30 livros, alguns deles várias iguras importantes como Mme. Séve-
vezes re-editados por importantes ca- rine e o escultor Augusto Rodin.
sas editoriais. Escreveu romances, crô- Júlia Lopes também foi ativis-
nicas, contos, peças teatrais, narrativas ta dos direitos das mulheres e uma
para crianças, livros didáticos; colabo- importante porta-voz do feminismo
rou por 30 anos com diversos jornais dos anos de 1920, embora, conforme
e revistas no Brasil, em Portugal e na sublinha June Hahner (2003, p.247),
França. Segundo Norma Telles (2009, ela combinasse “seu empenho intelec-
p.13), ela escrevia sobre temas con- tual com uma convencional vida do-
temporâneos e fazia campanhas para méstica”, subordinando “sua própria
modernizar a cidade e os hábitos das carreira literária a seu papel de mãe e
famílias; pela arborização e o cultivo de esposa”. Em 1919, fez parte do gru-
lores, pela implantação de exposições; po de mulheres que criou a Legião da
“pregava a paz, pois foi sempre paci- Mulher Brasileira e participou do Pri-
ista” e defendia os direitos das mulhe- meiro Congresso Feminino em 1922,
res. Por 22 anos, manteve uma coluna sendo uma das oradoras daquele im-
de crônicas semanais no jornal O Pais; portante evento. Realizou, no Brasil
dessa coluna resultou o livro Eles e e no exterior, diversas conferências
Elas, publicado em 1910 pela Livraria onde se posicionava a favor da eman-
Francisco Alves e reeditado recente- cipação feminina, especialmente por
mente, em 2015, pela editora UFPB, meio da educação, principal alvo do
organizado por Nadilza Martins de seu investimento político. Ela via na
Barros Moreira. Júlia foi uma das pou- educação a força motriz de transfor-
cas mulheres a participar, em 1905, da mações sociais, econômicas e políticas
série de conferências organizadas por (HAHNER, 2003), por isso, foi crítica
Coelho Neto e Olavo Bilac, provocan- do tipo de educação burguesa recebida
do polêmica ao discutir o papel da mu- pelas mulheres que não as preparava
lher na sociedade (DE LUCA, 1999). para a vida e para o mercado de traba-
Recebeu várias homenagens, no Brasil lho, um modelo gestado, administrado
uma delas, foi o título de padroeira das
e executado por homens, mas que, em
Escolas do Brasil; na França em 1914
sua opinião, deveria icar a cargo das
foi homenageada por intelectuais e li-
mulheres (ALMEIDA, 1914).
teratos franceses, numa badalada festa Através, principalmente, da sua
literária em Paris – fartamente noticia- literatura ela defendeu a educação para
da pelos jornais nacionais e estrangei- as mulheres. Nesse sentido, suas pro-
ros – que contou com a presença de tagonistas são quase todas mulheres

• 436 •
autônomas e inteligentes, a maioria so- e das ilhas de Maria, no romance epis-
zinha, bem instruída e educada para tolar O Correio da Roça (MAIA, 2015).
funções que excedem àquelas restritas Apesar do reconhecimento
ao âmbito doméstico. Como observa obtido em sua época como escritora,
Norma Telles (2009), em suas obras, as intelectual e ativista dos direitos femi-
mulheres ocupam o centro das tramas ninos, pairou durante muito tempo so-
e as histórias giram quase sempre em bre Júlia Lopes um imenso silêncio na
torno do universo feminino e de per- história da Literatura, do pensamento
sonagens femininos nada convencio- social brasileiro e também do feminis-
nais; muitas delas viúvas, pois livres da mo. Para Leonara De Luca (1999), tal
tutela do pai ou do marido. Entretanto, silêncio pode ser explicado, em grande
apesar de crítica a certas formas de de- parte, por sua posição paradoxal, ou
pendência e submissão feminina, suas seja, devido à sua postura moderada na
personagens estão em conformidade defesa dos direitos das mulheres, obte-
com o modelo de mulher burguesa, ve pouca importância entre as feminis-
dedicada ao lar, à maternidade, respon- tas, mas, justamente por ser mulher e
sáveis pelo progresso da família e da ter sido identiicada com as feministas
nação. da sua época, foi esquecida pela histó-
Como muitos intelectuais do ria literária.
entresséculos, ela participou ativamen- Esse silêncio, entretanto, tem
te, por meio da sua literatura, dos de- sido rompido, nos últimos anos, em
bates em torno dos problemas nacio- decorrência do avanço dos estudos
nais e da “imaginação” de um modelo sobre mulheres e gênero, em várias
de nação. Inluenciada pelas teorias universidades brasileiras e, em espe-
higienistas e empenhada como muitos cial, aos estudos pioneiros de Norma
outros intelectuais a identiicar os ma- Telles (1989; 1997; 2012) e ao traba-
les e “traços negativos”, responsáveis lho de resgate de escritoras brasileiras
pelo atraso do Brasil, problematizou e realizado por Zahidé Muzart e pela
denunciou a violência da escravidão (A Editora Mulheres, que tem feito o tra-
Família Medeiros); o abandono do meio balho de reedição de algumas de suas
rural e de suas populações, considera- obras. Dentre elas: A Família Medeiros
da indolente e preguiçosa (O Correio (2009); A Silveirinha (1997); A viúva Si-
da Roça). No seu projeto de nação, a mões (1999); A Falência (2003); Memórias
mulher emerge como agente principal de Marta (2007); Pássaro Tonto (2013);
no processo de regeneração, redenção Ânsia Eterna (2014); O correio da roça
e de progresso do Brasil; é o caso da (2014); O funil do diabo (2015); e Cruel
protagonista Eva de A família Medeiros Amor (2015).

• 437 •
É cada vez mais crescente o SHARPE, Peggy. O caminho crítico D’A viúva Simões.
In: ALMEIDA, Júlia Lopes. A Viúva Simões. Florianópo-
interesse pela obra de Júlia Lopes de lis: Ed. Mulheres/EDUNISC, 1999.
Almeida e sua trajetória de vida, o que
TELLES, Norma. Rebeldes, escritoras, abolicionistas.
têm resultado no desenvolvimento de Revista de História, n.120. São Paulo: USP, Jan./Jul.,
muitas dissertações, teses e na publica- 1989, p 73-83. Disponível em: <http://www.normatelles.
com.br/Rebeldes-Escritoras-Abolicionistas.html> Acesso
ção de diversos artigos. Não obstante, em out./2010.
dado à sua produção profícua em to- Telles, N. Escritoras, escritas, escrituras. In: PRIORE, M.
dos os gêneros literários e sua atuação D. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,
1997, p.401-442.
tanto no campo intelectual, quanto no
ativismo feminista, há, ainda, um vasto TELLES, Norma. Introdução a Família Medeiros. In:
ALMEIDA, Júlia Lopes. A Família Medeiros. Florianó-
e instigante campo de estudos a ex- polis: Ed. Mulheres, 2009, p.11-26.
plorar; há ainda, muito o que se falar
TELLES, Norma. Encarnações: escritoras e imaginação
e desvelar. literária no Brasil, século XIX. São Paulo, Intermeios,
2012.

Cláudia Maia
Sugestões de leitura
Referências ALMEIDA, Júlia Lopes. A Família Medeiros. Florianó-
polis: Ed. Mulheres, 2009.

ABL. Acervo Pessoa de Filinto de Almeida. Carta de Fi- DE LUCA, Luca. O “feminismo possível” de Júlia Lopes
linto Almeida à Júlia Lopes de Almeida. São Paulo, 1932. de Almeida. Cadernos Pagu, Campinas, Unicamp, n. 12,
. 275-299, 1999.
ALMEIDA, Júlia Lopes. Entrevista. Revista Guanabara,
caderno Vida Feminina. Rio de Janeiro, 1914, p.2.
FANINI, Michele Asmar. Júlia Lopes de Almeida: entre
o salão literário e a antessala da Academia Brasileira de
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Letras. Estudos de Sociologia. Araraquara, v.14, n.27,
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• 438 •
La Barre, Poulain de –
a educação da mulher

François Poulain (também


Poullain) de La Barre, nascido em Pa-
ris em 1647 e falecido em Genebra
em 1725, começa a ser visto como
precursor do iluminismo, da teoria da
igualdade e do feminismo. Como re-
conhece Cazés Menache (2007, I, p.
9), muitas pessoas se inteiraram de sua
existência porque Simone de Beauvoir
o citou brevemente na epígrafe de O se-
gundo sexo. São esclarecedoras, a respei-
to, as palavras da autora de Le féminisme
au masculin (O feminismo no masculino):
“Este precursor, cujo nome evoca tão
poucos ecos hoje, merecia entrar por
primeiro no Panteon dos feministas,
especialmente porque, depois dele, se-
ria necessário esperar por mais de um
século para que outro homem, Con-
dorcet, ousasse, por sua vez, defender
esta causa difícil, que as próprias mu-
lheres, principais interessadas, renun-
ciavam com frequência a defender.”
(Groult, 2010, p. 22)
Atuando, desde muito jovem,
como sacerdote na região de Champa-
nhe, Poulain de La Barre acaba tendo
que refugiar-se em Genebra, onde se
converte ao calvinismo em 1688. Em
1671 entrara em contato com o carte-
sianismo, que ele aplica no tratamento
da questão da mulher, com destaque
para a sua tese da igualdade dos dois
sexos, inclusive na educação. Esse “pe-

• 439 •
culiar discípulo de Descartes”, esclare- absoluto para que possamos ter conhe-
ce Amorós (2006, p. 141-142, grifos da cimentos claros e distintos”; que, den-
autora), “leva a cabo uma ampliação e tre todos os Preconceitos, o que mais
uma pragmatização da função da dú- se destaca é aquele que comumente se
vida, que aplicará não só ao âmbito tem sobre a desigualdade dos Sexos;
das ciências, mas também ao dos costu- que as próprias Mulheres concordam
mes”, do que resulta “um deslizamento em dizer que elas não têm parte nas Ci-
do projeto racionalista da reforma da ências nem nos Empregos, por se con-
mente para um programa de reforma siderarem incapazes. Numa argumen-
social”. Para F. Henriques (2005, p. 8), tação tipicamente cartesiana (“depois
o que Poulain de La Barre encontrou de haver examinado esta Opinião de
de inovador em Descartes foi “a de- acordo com a regra da verdade, que é
núncia dos preconceitos e a aplicação não admitir nada como verdadeiro que
do método racional da verdade”, o não esteja apoiado sobre ideias claras
que lhe permitiu defender que “a con- e distintas”), o autor diz que, de um
cepção da desigualdade entre os sexos lado, esta opinião da inferioridade das
advém, apenas, do interesse e do cos- mulheres lhe pareceu “falsa e fundada
tume, não se fundamentando em ne- sobre um Preconceito”, enquanto, de
nhum tipo de razões consistentes”. outro, pôde veriicar que “os dois Se-
A análise que segue apoia-se na xos são iguais”, o que signiica que “as
publicação recente (2011), em volume mulheres são tão Nobres, tão perfeitas
único, da trilogia feminista de Poulain e tão capazes como os homens”. O
de La Barre (2011), editada e anotada que, segundo ele, só pode ser estabe-
por M.-F. Pellegrin. São mantidas as lecido refutando-se dois tipos de Ad-
iniciais maiúsculas em palavras como versários, o Vulgo e a quase totalidade
Mulheres, Preconceitos, Sexos etc. dos Sábios. Estão ali expressos o tema
Já no prefácio da primeira obra (a mulher) e o método de investigação
da trilogia (De l’égalité des deux sexes [ES] (cartesiano). A expectativa do autor,
- Da igualdade dos dois sexos), publica- não conirmada, era que seu discurso
da anonimamente em Paris em 1673, iria criar “grande número de descon-
Poulain de la Barre sustenta que não há tentes”, que não deixariam de “berrar
nada de mais delicado do que alguém contra” (ES, p. 53-57).
ter que se explicar sobre o tema das Poulain de La Barre antecipa
mulheres; que, na pesquisa, “acontece também, já no título e no prefácio, al-
sempre de nos darmos conta de que es- guns termos importantes, tais como:
tamos repletos de Preconceitos, e que igualdade (igualdade dos sexos) e desi-
é necessário renunciar a estes de modo gualdade; preconceitos (sendo o maior de

• 440 •
todos aquele que se refere à desigual- ra, pode-se concluir que este não tem
dade entre os sexos); diferença (enten- nada de sexo.” (ES, p. 99-100)
dendo-se que os dois sexos diferem O autor entende que ambos
entre si mais no que toca às funções ci- os sexos carecem de luz (lumière) para
vis, que dependem do Espírito, do que encontrar a felicidade na prática da
no que respeita às funções que perten- virtude. Rejeita, por isso, “a imagina-
cem ao corpo); sujeição e exclusão (as- ção bizarra que tem o vulgo, de que o
sujeitadas e excluídas, nos campos das estudo tornaria as mulheres mais pe-
ciências e dos empregos); for im, luz rigosas e mais soberbas” (ES, p. 112-
(lumière, já no sentido que o termo terá 113) e reforça a importância do acesso
no iluminismo). da mulher não só à alfabetização, mas
Segundo o autor, limitadas ao lar também à universidade e às diferentes
ocupações. Diz que, se as mulheres
e encontrando sempre ali muito de que
tivessem estudado nas universidades,
se ocupar, não há por que se admirar
junto com os homens ou em univer-
de que as mulheres não tivessem cria-
sidades criadas para elas em particular,
do ciências, até porque a maior parte
“elas poderiam graduar-se e obter títu-
destas “não foi no início senão a obra
lo de Doutor e de Mestre em Teologia
e a ocupação dos ociosos e dos pre-
e em Medicina, num e noutro Direito
guiçosos” (ES, p. 68). Para ele, a depen-
[civil e canônico]; e o gênio, que as dis-
dência da mulher era uma relação pura- põe tão vantajosamente para a aprendi-
mente corporal e civil e, como tal, não zagem, haveria de habilitá-las também
devia ser vista senão como “um efeito para ensinar com sucesso” (ES, p. 117).
do azar, da violência ou do costume” Quanto a ocuparem empregos,
(ES, p. 95). Negava pudesse haver al- o autor começa enfatizando que o cos-
guma coisa nas mulheres que as tor- tume era a única coisa que afastava as
nasse menos aptas para as ciências do mulheres das funções de Pastor ou Mi-
que os homens. Entendia que homens nistro na Igreja. Quanto ao mais, elas
e mulheres diferem apenas quanto ao são tão capazes como os homens para
corpo e que o espírito não tem sexo: o exercício da autoridade, podendo ser
“[...] a diferença entre os sexos diz res- rainhas, ser generais do exército, de-
peito apenas ao Corpo, não havendo sempenhar funções no judiciário, etc.,
propriamente senão aquela parte que bastando para isto que se dediquem ao
serve à reprodução dos homens; e não estudo: “Pode-se, por isso, com segu-
fazendo o Espírito outra coisa que não rança, exortar as damas a que se dedi-
seja prestar o seu consentimento e fa- quem ao estudo, sem dar atenção aos
zendo isto em todos da mesma manei- argumentos daqueles que se propo-

• 441 •
nham afastá-las de tal objetivo.” (ES, que toca à articulação entre igualdade e
p. 118-120) diferença nas relações de gênero. Cabe
Perguntando-se de onde vem a ainda lembrar a importância dada à
distinção dos sexos, o autor responde: instrução da mulher para a superação
“Deus, querendo fazer os homens de- da desigualdade.
pendentes uns dos outros, fez para tal A segunda obra da trilogia é De
im dois corpos diferentes. Cada um l’éducation des dames (ED) (Da educação
perfeito à sua maneira, devendo estar das senhoras), de 1674. Como observa
ambos dispostos/organizados como Pellegrin, ED é um tratado da educa-
estão no presente. E tudo o que de- ção feminina, em que, ao reairmar o
pende de sua constituição particular princípio da igualdade dos sexos e da
deve ser considerado como fazendo importância da educação e instrução
parte de sua perfeição. Por isso, é sem da mulher, Poulain de La Barre se con-
razão que alguns se imaginam que as trapõe aos autores que, na segunda me-
mulheres não são tão perfeitas como tade do século XVII, se ocupavam da
os homens e que eles veem nelas como educação feminina em geral e da sua
um defeito aquilo que é um apanágio instrução em partilhar, mas faziam isto
essencial de seu sexo, sem o que este sempre no sentido de discernir o que
seria inútil para o im para o qual foi era útil que as mulheres conhecessem
criado.” (ES, p. 126). daquilo que não era para elas (ED, p.
Tecendo crítica a médicos que 147). Tem-se aí também um método
viam desvantagem das mulheres na de educação/instrução – os diálogos
questão de temperamento, diz que es- (entretiens) entre duas mulheres e dois
tes, “não distinguindo com bastante homens: Sophie, Timandre, Stasima-
exatidão o que vem do costume e da que e Eulalie. O autor inicia esclare-
educação daquilo que a natureza dá,” cendo que o título – Da educação das
levavam longe demais a diferença dos damas – tinha a ver com o fato de uma
sexos (ES, p. 127-128). Para ele, a dife- Senhorita de espírito forte haver toma-
rença observada entre homens e mu- do a decisão de dedicar-se ao estudo,
lheres no que respeita a costumes vem mas advertia que a publicação dos diá-
da educação que se dá a uns e outras, logos interessava não só às damas que
não da natureza (ES, p. 132). tivessem a mesma disposição para o
Em síntese, as questões levanta- estudo, mas também aos homens, pela
das e as posições assumidas pelo autor mesma razão que as obras escritas para
em relação à mulher surpreendem pela os homens servem igualmente para
sua atualidade e pertinência neste iní- a mulheres, não havendo senão um
cio de século XXI, especialmente no método para instruir aqueles e estas,

• 442 •
por serem da mesma espécie. Portan- possível as razões sobre as quais eles se
to, igualdade entre os sexos, educação fundamentam” (EH, p. 297). Na sequ-
igual para homens e mulheres e méto- ência, sustenta que é mais fácil estabe-
do igual de educação. lecer a igualdade dos sexos a partir da
A propósito, note-se que, qua- Escritura sagrada do que da Filosoia,
se um século mais tarde, Rousseau buscando sustentação para sua tese no
(1995), em sua obra Émile ou de l’éduca- testemunho de vários padres da Igre-
tion (Émilio ou da educação), contrapon- ja e de grandes teólogos (EH, p. 297-
do-se a Poulain de La Barre, “seu re- 319).
ferente polêmico” não revelado (León A Poulain de La Barre sobre-
Hernandes, 2011, p. 256), dedicaria o vém o que Groult (2010, 45-55) chama
Livro Quinto de sua obra à educação de “feminismo em maré baixa”, no pe-
de Sophie, pregando-lhe, porém, uma ríodo do absolutismo na França, cuja
educação conforme com a sua natu- expressão máxima teria sido Rousseau,
reza de mulher, diferente, por isso, o “brilhante líder do antifeminismo no
daquela destinada a Émile. Enquanto século XVIII”.
a Sophie de Poulain de La Barre seria
relegada ao esquecimento, a Sophie de Alceu Ravanello Ferraro
Rousseau circularia tranquila e presti-
Referências e sugestões de leitura
giada nas academias.
A terceira obra da trilogia é De AMORÓS, Celia. Feminismo e ilustración: (XIV Con-
l’excelence des hommes (EH) (Da excelên- ferencias Aranguren, 2005). ISEGORÍA, N. 34, p.129-
166, 2006. Disponível em: http://www.catedras.fsoc.
cia dos homens), em que o autor assume uba.ar/epele/feminismoeilustracion_amoros.pdf. Acesso
em: 15 maio 2013.
o papel que esperava fosse desempe-
nhado por seus opositores, os quais, CAZÉS MENACHE, Daniel. Obras feministas de Fran-
çois Poulain de la Barre (1647-1723). Tomo I - Estudio
mesmo depois de tantas ameaças de preliminar. México: Universidad Nacional Autónoma de
escrever contra a igualdade dos sexos, México, 2007.

não o tinham feito ainda, mesmo que GROULT. Benoîte. Le féminisme au masculin. [Paris] :
Grasset & Fasquelle, 2010.
fosse só para atender à expectativa
criada (EH, p. 297). O autor diz que HENRIQUES, Fernanda. Concepções Filosóicas e Re-
presentações do Feminismo. Comunicação apresentada
procedeu assim, não para provar que no Congresso Internacional Pessoa e Sociedade: Perspec-
os homens são melhores que as mulhe- tivas para o Século XXI. Braga, 17-19 de novembro de
2005. Disponível em: http://home.uevora.pt/~fhenri-
res, mas apenas para dar meio de com- ques/textos-ilegenero/coniloerepresentacoes.pdf. Acesso
em: 16 jun. 2013.
parar entre si esses dois sentimentos
contrários e julgar qual deles é o mais LEÓN HERNÁNDEZ, Luz Stella. François Poulain
de la Barre : feminismo y modernidad. Disponível em:
verdadeiro, e fazer isto “examinando http://www.ub.edu/demoment/jornadasfp2010/comuni-
separadamente com a maior clareza caciones_pdf/leonhernandez-luzstella_poullaindelabar-
re_73.pdf. Acesso em: 16 jun. 2013.

• 443 •
_____. La mirada fenomenológica de Poulain de la Bar- quiatra e psicanalista francês. De toda
re. Invesgigaciones fenomenológicas, vol. Monográico 3:
Fenomenología y política, 2011. Disponível em: http:// forma, aqui não há a “presunção” des-
www.uned.es/dpto_im/InvFen/InvFen_M.03/pdf/16_ te material servir como um referencial
LEON.pdf Acesso em: 16 jun. 2013.
pedagógico suicientemente aprofun-
LA BARRE, Poulain de.[François]. De l’égalité des deux dado à complexa teoria lacaniana. Po-
sexes. De léducation des dames. De l’excelence des hom-
mes. Édition, présentation et notes para Marie-Frédéri- rém, há pontos-chave e passagens que
que Pellegrin. Paris: librairie Philosophique J. Vrin, 2011. exploram intersecções, até então pou-
(Textes cartésiens en langue française).
co prováveis, tais como aquelas entre
ROUSSEASU, Jean-Jacques. Emília ou da educação. Tra-
gênero, psicanálise, discurso, ideologia
dução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1995. e relações de poder, por exemplo.
Lacan teve seu primeiro conta-
• to com a teoria psicanalítica no início
dos anos cinquenta, conhecendo-a já,
Lacan, Jacques pelo menos, na segunda geração dos/
as pós-freudianos/as. A sua inserção
A teoria lacaniana, quando abor- no âmago intelectual psicanalítico se
dada sob a luz dos estudos de gênero, deu, já em seu princípio, a partir de um
relete discussões onde a polêmica ge- forte posicionamento crítico, pelo qual
ralmente tende a reiterar-se. Quando desde já se caracterizou. Ele incomo-
Lacan disse que “a mulher não exis- dava-se com o direcionamento ao qual
te” e “a mulher é não-toda” (LACAN, o meio intelectual vigente estava dan-
1971), ateou fogo em um terreno de do ao pensamento freudiano, alegan-
relexão ainda “jovem” e marginal, po- do que muitas de suas ideias originais
rém com o grande potencial que hoje estariam “perdendo-se” pelo caminho,
reconhecemos: o gênero. Postulações com tantas reinterpretações e adendos.
como estas são certamente fortes e Um fato histórico interessante é que
emblemáticas o suiciente para não se- Lacan divulgou suas relexões quase
rem ignoradas, mesmo dentro dos pró- que totalmente via oral, através de se-
prios círculos psicanalíticos, lacanianos minários e conferências, pois não tinha
ou não. Mas, por outro lado, por isso a pretensão de suas relexões transfor-
mesmo é por vezes comum estigmati- marem-se em doutrina. Seu legado foi
zar seus preceitos teóricos, reduzindo- publicado somente mais tarde, quando
-os à polêmica que elas geraram. Por- então seu genro, Jacques-Alain, encar-
tanto, seria incoerente e reducionista regou-se de organizar a publicação de
torná-las as representantes máximas seu valioso material em uma série de
ou a síntese do aporte teórico e clínico livros (a famosa coleção “Os Seminá-
que reside no legado deixado pelo psi- rios”) e artigos.

• 444 •
Dito isso, é importante retomar As nuances psicossociais do
que Lacan foi precursor em ampliar discurso passaram, então, a ser discuti-
a visão vigente acerca do conceito das a partir de um viés histórico, onde
de sujeito (escrito aqui em sua forma o sujeito inscrever-se-ia socialmente
masculina por reletir a denominação quando fala a partir do que dele se
conceitual), até então um tanto limita- falou, mas também podendo subver-
do às questões da dicotomia biológica, ter o discurso do qual emerge. Esta
ou às postulações um tanto “inalistas” possibilidade abriu portas para uma
da teoria psicossexual freudiana. Nes- intersecção (ainda um tanto “margina-
te posicionamento, surgiu também um lizada”, é verdade) com as teorias de
espaço para explorar questões relacio- gênero, quando então o “lugar” políti-
nadas ao discurso e à linguagem, em co das mulheres passou a ser conquis-
suas interfaces sociais e históricas - o tado através da subversão do próprio
que foi um grande progresso. Sendo entendimento do que seria ser mulher
assim, nas palavras do próprio autor, naquele contexto. Assim, as mulheres
“estes a quem o sujeito fala são tam- adquiriram, mesmo que ainda timida-
bém estes aos quais ele se identiica” mente, a possibilidade de fazerem par-
(LACAN, 1998, p. 285). Tais fatores, te do cenário de um discurso através
então, permitiram a inserção de re- do qual, ao tomarem voz, poderiam
lexões sobre uma temática até então levar à relexão e à possibilidade de
pouco explorada e conhecida: o gê- desconstrução de um discurso que
nero. Butler (1999), grande expoente ainda perseverava em deini-la, assim
nos estudos de gênero, fez referência a assumindo novos lugares na cultura e
Lacan ao reconhecer um avanço signi- na sociedade. Dessa maneira, os pres-
icativo na relação binária dos gêneros, supostos vigentes, que eram majorita-
pois não se embasa somente em um riamente inexoráveis em unir gênero
referencial ontológico, onde gênero à anatomia, passaram a dispor-se, gra-
e sexo necessitam estar mutuamente dualmente, à possibilidade de expandir
correspondentes, mas sim em pressu- seus signiicados para referenciais de
postos que propunham o papel signii- ordem mais interacional.
cativo da linguagem (e de seus fatores Neste ponto, surge então a ne-
interacionais e dialéticos), bem como a cessidade de, sob a luz da teoria laca-
primazia do mundo simbólico. Por ou- niana, articular os conceitos linguagem,
tro lado, também critica com veemên- corpo, gozo e falo. Primeiramente,
cia a patologização que se dá via o esta- para Lacan, o corpo representa um
belecimento de normas, quase sempre campo de gozo (no sentido da satisfa-
mutuamente excludentes. ção e prazer “máximos”, permeando

• 445 •
quase o terreno do inatingível), onde que a põe na condição de “castrada”
se inscreve a subjetividade. O falo, en- - não podendo então sê-lo, possui-lo,
tão, representa aqui uma espécie de enquanto constituinte de si próprio,
“completude”, estando ela diretamen- como seria permitido ao homem. Sen-
te relacionada à experiência de gozo. do assim, a própria visão lacaniana para
Neste sentido, este mesmo falo assume a constituição do ser-humano, ao ins-
o papel de regulador majoritário des- tituir o falo como instância máxima e
te gozo, isto diretamente relacionado idealizada, preconiza e reairma a per-
ao que seja possível (e permitido) pela manência de uma relação entre poder
ordem fálica. Assim, na dinâmica des- e submissão (CECCARELLI, 2010).
te processo, complexo por natureza, e Ou seja, para a mulher, o homem re-
que envolve acordos e conciliações na presenta o falo. Sendo assim, o homem
ordem do inconsciente, “reside a pos- é o modelo, pois a mulher-modelo não
sibilidade da organização da imagem existe. Somente o homem poderá ser
do sujeito e de sua identiicação com completo, pleno, um “projeto realizá-
o outro para a realização do discurso” vel”; somente ele pode ser fálico. Isto
(SOUZA e MACHADO, 2011, p. 121). reairma a necessidade do pensamento
Por conseguinte, chega-se ao dicotômico para a produção da subje-
momento de apontar a uma questão tividade, levando, consequentemente, à
polêmica: o homem, no entendimen- manutenção do padrão heteronormati-
to de Lacan, seria a representação da vo. Foi por esta razão que Lacan disse,
plenitude, do falo - ou seja, de acor- conforme consta no livro 18 de seus
do com este pressuposto, somente no seminários, que “a mulher” não existe;
homem residiria a possibilidade de ser existem somente “as mulheres”. A mu-
um ser-humano “completo”. À mu- lher, assim, seria uma pessoa “não-to-
lher, apenas restaria a parca vigência da”, constituindo desta forma uma ca-
de um desejo de “vir-a-ser”, fadada à tegoria inconsistente (LACAN, 2009).
incompletude. O referencial para este Não existiria, assim, uma “exceção fe-
caminho, cuja inalidade é a de “exis- minina”, ou seja, uma mulher ideal que
tir” plenamente nos campos biológico, pudesse levar ao desejo todos os ho-
psíquico e social, caracteriza, portanto, mens. Por outro lado, há “o homem”,
o homem fálico enquanto o protótipo ideal, completo e, portanto, invejável e
do ideal e o objetivo inal no campo da desejável.
subjetividade - tanto para os homens Neste sentido, a teoria lacaniana
quanto para as mulheres. A mulher, diverge mais radicalmente dos estudos
assim, somente poderia ter acesso ao de gênero, quando então aponta o “ser
órgão sexual que o falo simboliza - o homem” ou o “ser mulher” como as

• 446 •
únicas possibilidades inais do proces- “certas”, mas sim que possam renovar-
so dialético entre o real e o simbólico. -se por via de novas relexões e possi-
É possível encontrar, contudo, inter- bilidades.
pretações deste referencial sob uma
ótica diferente: a pessoa, enquanto ser Gustavo Espíndola Winck
em constante formação em razão des-
Referências
ta supracitada dialética, poderia aí as-
sumir quaisquer representações dentro BUTLER, Judith. Gender trouble: Feminism and sub-
do espectro de possibilidades do gê- vertion of identity. New York: Routledge, 1999.

nero. No entanto, a “inalidade” disto CECCARELLI, Paulo. Psicanálise, sexo e gênero: Algu-
mas relexões. In RIAL, Carmen; PEDRO Joana Maria;
continua sendo a mesma: a dicotomia
AREND, Silvia Maria (Org). Diversidades: Dimensões de
masculino-feminino, ou seja, pode-se Gênero e Sexualidade. Santa Catarina: Mulheres, 2010.
ser qualquer coisa, desde que esta “coi- LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem
sa” insira-se naquilo que se enquadre em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998. p. 238-324.
entre as possibilidades de ser homem
ou ser mulher. Este entendimento é o _______. O Seminário 18: De um Discurso que Não
Fosse Semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
representante da identidade de gênero 2009.
para Lacan, e, ao que dele se exclua, SOUSA, João Marcos; MACHADO, Ida Lucia. A fun-
restaria o campo dos distúrbios - como ção transgressiva dos múltiplos sujeitos nos gêneros dis-
cursivos. Bakhtiniana, 6 (1), p. 111-128, ago/dez 2011.
o que acontece, por exemplo, com a
transexualidade.
Sugestões de leitura
Por im, os estudos de gênero e
BRENNAN, Teresa. Para além do falo: Uma crítica a La-
a psicanálise lacaniana possivelmente can do ponto de vista da mulher. Rio de Janeiro: Record/
permanecerão a ser objetos de rele- Rosa dos Ventos, 1997.

xões, discussões e polêmicas - o que BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: Sobre limites
é muito bom. Ao contrário do que materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paidós,
2005.
talvez possa ser pensado, são fatores
CALDAS, Heloisa. A fala e a escrita da mulher que não
assim que mantêm o movimento e a existe. Opção Lacaniana Online, (10), p. 1- 12, mar.
relevância de questões que, para segui- 2013.

rem “vivas”, alimentam-se de sua pró- FLAX, Jane. Psicoanálisis y feminismo: Pensamientos
pria desconstrução e reinvento. Isto, fragmentários. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995.

assim, tenderão a se manter enquanto LACAN, Jacques. O Seminário 20: Mais, ainda (1972-
também se alimentem do encanto que 1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

surge através da inquietação das per- •


guntas - especialmente aquelas que não
persigam necessariamente as respostas

• 447 •
LGBT vestis (MGLT). Após 1999, Movi-
mento de Gays, Lésbicas, Bissexuais
Lésbicas, Gays, Bissexuais, e Transgêneros (MGLBT), conforme
Transgêneros. Sigla de uso interna- datação proposta por Regina Facchini
cional constituída pelo movimento de (FACCHINI, 2005, p. 20).
pessoas homossexuais, bissexuais e A militância, naquele momento
transexuais dos Estados Unidos e in- inaugural de ins da década de 1970 e
corporada por diversos países. No Bra- início da de 1980, organizava-se em
sil, esta sequência foi adotada a partir de coletivos de discussão horizontais,
deliberação dos integrantes de ONGs informais, destituídos de personali-
ailiadas à ABGLT – Associação Bra- dade jurídica. Dedicava-se à chamada
sileira de Gays, Lésbicas e Transgêne- “airmação”, com discussões sobre a
ros –, ocorrida em Brasília, durante a I vivência dos processos de desqualiica-
Conferência Nacional de Políticas Pú- ção, mecanismos de resistência e supe-
blicas para GLBTs, em junho de 2008. ração, fortalecimento da autoimagem
A justiicativa apresentada pelo seu deteriorada e ruptura do isolamento,
então presidente, Toni Reis, era a de utilizando-se de algumas das técnicas
que, com a mudança na ordem das le- praticadas pelas feministas. Esses co-
tras (até então MGLBT), se reconhecia letivos terminam por se constituir em
a anterioridade do protagonismo das importantes espaços de integração e
lésbicas (REIS, depoimento pessoal à provimento de referenciais identitá-
autora, junho de 2008). Sendo a AB- rios positivos. A ausência de experiên-
GLT a entidade nacional hegemônica, cia prévia da maioria; a incorporação
tornou-se a denominação oicial desse da ideia de anormalidade por vários; a
movimento social que começou se au- falta de costume em perceber e expres-
todenominando Movimento Homos- sar os próprios sentimentos; os con-
sexual Brasileiro (MHB), consagrado litos quanto à relevância da questão
pela bibliograia como surgindo em então caracterizada como pessoal em
1978, a partir da circulação do jornal contexto de resistência e combate do
Lampião da Esquina e da divulgação em regime ditatorial agonizante; os patru-
suas páginas, em 1979, da existência lhamentos ideológicos, que insistiam
já de ano, do grupo Somos/SP, notí- na retórica da dualidade “luta maior”
cia que leva ao surgimento de diversos x “luta menor”, são algumas das dii-
grupos em vários Estados. Em 1993, culdades que esses ativistas tiveram de
passa a se autorreferir Movimento de superar, no processo de se constituí-
Gays e Lésbicas (MGL) e, em 1995, rem agentes coletivos (TREVISAN,
Movimento de Gays, Lésbicas e Tra- 2000; MacRAE, 1990). A “atuação”

• 448 •
compreendia a construção da visibili- de modo mais explícito e incisivo, em
dade – através da ocupação de espa- período o mais cruento da repressão
ços acadêmicos, da constituição de um militar, através das páginas do jornal
campo de pesquisas, da organização e Tribuna da Bahia, em seis de maio de
participação de manifestações públi- 1972 (transcrição socializada e des-
cas, da elaboração do próprio discurso tacada por Luiz Mott, precursor das
e de uma agenda de reivindicações, do pesquisas sobre a história das homos-
estabelecimento de alianças e parcerias sexualidades no Brasil), vocalizada pela
(sindicatos, associações proissionais e travesti Daniele, no quadro da notícia
cientíicas, nacionais e internacionais, de organização de um Congresso de Ho-
movimentos sociais nacionais e con- mossexuais, programado para se realizar
gêneres no exterior). Tarefas nada fá- em Caruaru, PE.
ceis, dada a incorporação da ideia de Tais agentes inicialmente ex-
anormalidade, incutida pelo discurso pressavam a plena incorporação da
hegemônico judaico-cristão por sécu- lógica dominante, oriunda dos saberes
los (MÍCCOLIS, 1983, p. 98; Lampião médico e psiquiátrico, como perten-
da Esquina, nº 12, maio de 1979, p. 2; centes ao “terceiro sexo” ou “inver-
MacRAE, 1990). tidos” (COSTA, 2010, p. 57). Essa
O estado atual das pesquisas, forma de representação das relações
entretanto, não convalida a justiica- afetivo-sexuais entre pessoas do mes-
ção apresentada pelo ex-presidente mo sexo os levava a se organizarem e
da ABGLT, de que as lésbicas teriam se relacionarem a partir da noção “ati-
tido o pioneirismo na reivindicação da vo” / “homem de verdade” / “bofe”
orientação homossexual como um de- versus “passivo” / “bicha” / “boneca”
sejo legítimo. Entre nós, as mais remo- (FRY, 1982, p. 87-113; RODRIGUES,
tas manifestações públicas que se tem 2012). A partir dos contatos com as
notícia reivindicando o direito a uma novas ideias então em circulação nos
vida livre de discriminação e precon- Estados Unidos, seja por meio da cir-
ceito, a partir da orientação homos- culação de livros traduzidos (RODRI-
sexual, datam de 1963 e 1969, através GUES, 2012, p. 76, 84 e 91-96), seja
das páginas da publicação artesanal O com as viagens de brasileiros aos EUA
Snob, do Rio de Janeiro (O Snob, nº 1, e a constituição de redes de relações in-
1969 apud COSTA, 2010, p. 48, O Snob, ternacionais, veriica-se o processo de
n. 2, 1969, apud COSTA, 2010, p. 73), transformação na auto percepção da
constituída por bonecas, bofes, enxutos e homossexualidade e da identidade de
viados – identidades nativas coevas para gênero: esses agentes passam a incor-
estilos de homens homossexuais. E, porar o ideal de relacionamentos hori-

• 449 •
zontais, “entre iguais”, distanciando-se pela transformação da auto percep-
da anterior estruturação “dominante” ção sobre as práticas homossexuais,
versus “dominado”, “ativo” / mascu- ao mesmo tempo em que começar a
lino versus “passivo” / feminino. Esse alorar a necessidade de “conscientiza-
processo ocorre a partir de 1963 e é ção” e “airmação” entre si: “[...] não
intensiicado a partir de 1965, com ma- aceitarmos mais o homossexualismo
nifestações nas páginas do jornalzinho: como uma caricatura do feminino,
“[...] havermos despertado da terrível porque estamos conscientes que isto
ilusão em que vivíamos, para uma reali- não passa de uma falta de informações
dade adulta interplanetária: não temos e a necessidade de uma melhor cons-
nada que ver com quem queira viver cientização” (sic. O Snob, n. 2, 1969,
com o mesmo pensamento de há vinte apud COSTA, 2010, p. 73. Destaquei).
anos” (O Snob, n.º 2, 1969, apud COS- Segundo Costa, essa nova men-
TA, 2010, p. 60; 55-74, 119). talidade apresentada pelos responsá-
Através das transcrições realiza- veis pela edição do jornal foi inluen-
das por Costa de trechos d’O Snob n.º 1, ciada por dois livros: O romance A
constantes da edição retrospectiva de vida na pele, de Vera Mogilka, e A revolta
1969, é possível se entrever a expressão dos homossexuais, de Norman Winski.
daquilo que pode ser considerado os Este último será inluência expressa-
rudimentos do processo de consciên- mente reconhecida pela travesti Danie-
cia política, os primórdios do desejo de le, que, na Caruaru de 1972, apresen-
ativismo político, a exemplo do que se ta um discurso que desponta como o
veriicava nos EUA e na França (HO- expoente maior dessa fase que deno-
CQUENGHEM, 1980): “A fase é de mino de protoativismo (MOTT, 2007
politizar culturalmente. [...] o que nos apud RODRIGUES, 2012, p. 83-84):
leva a todos nessa projeção é um ideal “[...] No campo do trabalho estamos
comum de humanos a mostrar que nos marginalizados, somos apenas cabelei-
insurgimos contra uma marginalização reiros, costureiros ou artistas. A nos-
que procuram nos impor [...]” (O Snob, sa sexualidade é um estigma; se não a
nº 1, 1969 apud COSTA, 2010, p. 48). encobrimos somos reprimidos. [...] A
Recorde-se que o primeiro número foi formação de grupos é seriamente afe-
originalmente editado em 1963; esta é tada pela necessidade do homossexual
uma edição retrospectiva. de se encobrir, pressionado por fatores
A transcrição do número dois, culturais. Mas [os] grupos dos que tem
realizada no mesmo número retros- coragem de assumir já está [sic] cres-
pectivo de 1969, dá seguimento ao cendo e estes grupos na Bahia já são
processo que passa necessariamente um fato. E estes grupos já vem for-

• 450 •
çando a aceitação dos homossexuais que se realizasse; o Padre Henrique
ou em algumas áreas em que é forçoso Monteiro, da Igreja Ortodoxa Italiana,
agir. Educação sexual dado nas escolas seu principal organizador, foi preso
é um problema sério. Isto por causa de em Vitória de Santo Antão, durante
pessoas preconceituosas e mal capaci- uma coleta pública de recursos para a
tadas que divulgam ideias erradas so- sua viabilização (ESTADO DE MI-
bre o homossexualismo. “Esta é uma NAS, 06/04/1972, p. 14; 18/04/1972,
doença séria que precisa ser evitada a p. 20; 21/04/72, p. 16; DIÁRIO DE
todo custo” – é assim que encaram o MINAS, 18/04/1972, p. 9; DIÁRIO
problema. Outra coisa no programa DA TARDE, 06/04/1972, p. 11 e
dos homossexuais que começam a 18/04/72, p. 9). É que, embora a prá-
se organizar é a assistência social dos tica homossexual no Brasil tenha dei-
homossexuais. Com médicos, psicólo- xado de ser criminalizada em 1830,
gos, etc. Esta assistência teria o papel seguiu sendo punida, mediante estrata-
também de amparar o jovem expulso gemas, como a “moral e os bons costu-
de casa, procurar mercado de trabalho mes” (RODRIGUES, 2012, p. 90, 102,
etc.” (Tribuna da Bahia, 5/5/72). 104, 150). Mas, paradoxalmente, há
Como se vê sua fala vem não que se destacar o fato – inédito – de a
apenas airmativa, mas dotada de uma imprensa baiana ter registrado a fala da
agenda de reivindicações políticas e travesti Daniele, vez que na época não
era costumeiro contemplar o ponto de
sociais que permanece atual, mais de
vista dos desqualiicados, limitando-se
quarenta anos depois.
a construir e disseminar um dado dis-
Em que pese a riqueza do pro-
curso sobre eles, portador de uma re-
cesso de transformação pessoal por
presentação simbólica invariavelmente
eles vivenciado, os vínculos de per-
negativa – exceção para os costureiros
tença e os mecanismos de proteção
e cabeleireiros famosos por venderem
recíproca que foram capazes de cons-
os seus serviços às camadas dotadas de
truir entre si, a partir de 1969 os jor-
elevados volumes de capitais globais.
naizinhos pararam de ser produzidos,
por força da exacerbação repressiva Rita de Cássia Colaço Rodrigues
veriicada com a entrada em vigor do
AI-5 (GUIMARÃES apud FIGARI, Referências e sugestões
2007, p. 409). Quanto ao Congresso de leituras
de Homossexuais marcado para o dia
nove de junho de 1972, na cidade de BOURDIEU, Pierre. Violência simbólica e lutas po-
líticas. Libido e illusio, uma coerção pelo corpo, poder
Caruaru, PE, não foi concedida autori- simbólico, dupla naturalização e seus efeitos. In: Medi-
tações pascalinas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001,
zação do Delegado de Costumes para 199-218.

• 451 •
CÂMARA, Cristina. Cidadania e orientação sexual: a REIS, Toni. Presidente da ABGLT. Depoimento pessoal à
trajetória do grupo Triângulo Rosa. Rio de Janeiro: Aca- autora, junho de 2008, em Brasília, durante a Assembléia
demia Avançada, 2002. da associação, realizada no âmbito da I Conferência Na-
cional de Políticas Públicas para pessoas LGBTs.
COLAÇO, Rita. Uma conversa informal sobre homosse-
xualismo. Rio de Janeiro: do autor, 1984. RODRIGUES, Rita de C. C. De Daniele a Chrysósto-
mo: Quando travestis, bonecas e homossexuais entram
COSTA, Rogério da Silva Martins da. Sociabilidade em cena. Niteroi: UFF-PPGH/ICHF [Tese], 2012.
homoerótica masculina no Rio de Janeiro na década de
1960: relatos do jornal O Snob [Dissertação]. FGV-CP- SILVA, Cláudio Roberto da. Reinventando o sonho: his-
DOC, Mestrado Proissional em Bens Culturais e Proje- tória oral de vida política e homossexualidade no Brasil
tos Sociais, 2010. contemporâneo. [Dissertação] Mestrado em História So-
cial – Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências Humanas,
DANIEL, Herbert. Jacarés & lobisomens: dois ensaios Universidade de São Paulo, 1998.
sobre a homossexualidade. Rio de Janeiro: Achiamé,
1983, p. 96-112. SILVA, Alessandro Soares da Silva. Luta, resistência e
cidadania: uma análise psicopolítica dos movimentos e
DIÁRIO DA TARDE, Jornal. 06/04/1972, p. 11 e
paradas do orgulho LGBT. Curitiba: Juruá, 2008.
18/04/72, p. 9

DIÁRIO DE MINAS, Jornal. 18/04/1972, p. 9.


TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a ho-
mossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 3. ed.
ESTADO DE MINAS, Jornal. 06/04/1972, p. 14;
revista e ampliada. São Paulo: Record, 2000.
18/04/1972, p. 20; 21/04/72, p. 16

FACCINI, Regina. Sopa de Letrinhas?: Movimento ho- TRIBUNA DA BAHIA, Jornal. 06/05/1972.
mossexual e produção de identidades coletivas nos anos
1990. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. WINSKI, Norman. A revolta dos homossexuais. Guana-
bara: Record, 1969.
FIGARI, Carlos. @s outr@s cariocas. Interpelações, ex-
periências e identidades homoeróticas no Rio de Janei-
ro. Séculos XVII ao XX. Belo Horizonte Rio de Janeiro:

UFMG IUPERJ, 2007.

FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção his-


Lilith/Eva
tórica da homossexualidade no Brasil. In: Para Inglês Ver.
Identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro:
Zahar, 1982, p. 87-113. É importante observar que os
textos coletados no assim chamado
GREEN, James N. Além do Carnaval. A homossexua-
lidade masculina no Brasil do Século XX. São Paulo: Antigo Testamento (AT) têm sua ori-
Unesp, 2000. gem e transmissão em círculos sacer-
GUIMARÃES, Carmem Dora. O homossexual visto por dotais, que em sua maioria estão li-
entendidos. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. gados ao âmbito da religião oicial. A
LAMPIÃO DA ESQUINA, Jornal. Nº 12, maio de compilação e a redação do material bí-
1979, p. 2.
blico estavam restritas a grupos mascu-
MAcRAE, Edward. A construção da igualdade: identi- linos e sacerdotais. Embora há pesqui-
dade sexual e política no Brasil da abertura. Campinas:
Unicamp, 1990. sadoras que procuram ler alguns textos
ou gêneros literários como vozes au-
MÍCCOLIS, Leila. Prazer gênero de primeira necessida-
de: o movimento homossexual brasileiro organizado: esse tênticas de mulheres, torna-se difícil
quase desconhecido. In: ______; MORANDO, Luiz. Pa- atribuir a autoria dos textos à mulheres.
raíso das Maravilhas: Uma história do Crime do Parque.
Belo Horizonte: Argumentum, 2008. Esta localização contextual inluencia e

• 452 •
determina a forma e o conteúdo dos sangue e secreções não a quis assim o
textos bíblicos. Estes são demarcados Santo a retomou e criou uma segunda
numa cultura patriarcal, androcêntrica, mulher”. (Gênesis Rabba 18.4 e 17.7)
obedecendo a formas determinadas (BUSCEMI, 2005, p.14). Há ainda
de ser masculino e feminino, homem um midrash (uma forma de exposição
e mulher, possíveis nesta organização e interpretação dos textos bíblicos ju-
social e cultural. Este pressuposto me- daicos), datado do século X, chamado
todológico é fundamental ao analisar Alfabeto de Ben Sira, que conta outros
os textos bíblicos. E com um cuida- motivos da entrada de Lilith na cena
do maior ainda para com os textos ou da criação. Deus cria uma mulher para
personagens que são fortemente mar- o homem, pois viu que não era bom
cados por uma história de transmissão que ele estivesse sozinho. No entanto,
e interpretação carregadas de estereó- a mulher não era submissa ao homem,
tipos de gênero, como acontece com e argumentava com o homem, serem
as narrativas bíblicas da criação do ser feitos iguais, da mesma terra; ela não
humano. concordava em icar “por baixo” do
Nesse contexto é que se en- homem, podendo aqui ser interpreta-
contram nossas duas mulheres “más”. do a posição em referência a relações
Lilith deriva de uma palavra que no cotidianas ou a posições da relação se-
hebraico signiica “noite”. Em Isaias xual. (BUSCEMI, 2005, p.14).
34.14, o único lugar onde se tem refe- Eva vem do hebraico (hawwah)
rência a Lilith no AT, a insere no am- e signiica “mãe de tudo que é vivo”
biente do deserto junto das criaturas (SCHROER, 2008, p.136). Em relação
da noite; embora nem todas as tradu- à Eva há que se tomar em conta um
ções sejam claras na referência a Lilith: longo processo de composição e trans-
“bruxa do deserto” é a tradução usa- missão do texto, baseado em estereóti-
da pela Nova tradução da linguagem pos de feminino submisso na cultura
de hoje, por exemplo. Na mitologia ocidental, que dividem mulheres em
Suméria há referência a um demônio boas e más, em santas e putas ou bru-
feminino, Lilitu, associado com o ven- xas.
to, que habita no deserto e representa Há dois relatos da criação do
perigo para as mulheres gravidas e be- ser humano e de tudo o que existe na
bês. As narrativas sobre Lilith na místi- Bíblia. Estes dois relatos são frutos de
ca judaica são posteriores. É no século dois contextos diferentes, e portanto,
III que Rabbi Yehuda Bar Rabbi diz: são formatados e devem ser lidos den-
“Deus havia criado uma primeira mu- tro de seu contexto literário, social e
lher, mas o homem, vendo-a cheia de cultural. No primeiro texto da criação

• 453 •
do ser humano, o primeiro capítulo da Há um deslocamento do signi-
Bíblia, Gênesis 1, os versículos 26 e icado de mãe de todos os seres vivos
27 narram a criação do homem e da para a sedutora, que induz ao erro e à
mulher à imagem de Deus. Os termos transgressão, a partir de sua associa-
usados no hebraico aqui são: adam, ção com o relato de Gn 3. A isso se
para homem, signiicando ser terreno, deve somar outros textos bíblicos no
criado da terra; e ish, que signiica sim- Novo/Segundo Testamento, como em
plesmente “mulher”. 1 Timóteo 2.8-15 onde se atribui à Eva
O segundo relato da criação se a culpa do pecado. O que se percebe é
encontra no Genesis 2. O versículo 15 que a noção de transgressão, de comer
narra a criação do homem, com uma do fruto proibido, vai sendo associado
descrição de sua tarefa, a de cuidar e a pecado, e com o tempo, a partir de
cultivar o jardim; é somente no versí- interpretações dos pais da Igreja, como
culo 18, que ao ver a solidão do ho- Augustinho, por exemplo, este pecado
mem, Deus cria-lhe uma auxiliadora, passa a ter conotações explicitamente
tirando-a da costela do homem. Seve- sexuais, sendo Eva a culpada do peca-
rino Croatto (2000, p.3) analisa que em do da sedução e do prazer sexual. (PA-
Gn 2 temos um outro “mito breve” GELS, 1994, p. 287).
construído sobre a mulher pelo relato Há uma antropologia misógina
de Javé Elohim. Segundo esse autor a na história da tradição judaico-cristã.
mulher é feita do homem/Adão de um Ela funciona no dualismo mulher boa
dos seus lados (melhor do que a cos- e mulher má, mulher-mãe e submissa,
tela!). Portanto o mito breve é que ela como ideal e mulher independente, só,
foi feita da costela, quando se poderia como transgressão ao modelo ideal
analisar melhor o texto e ver que é de criado por Deus. E é neste dualismo
um dos lados do homem. que a narrativa de Eva e Lilith se en-
A introdução do nome Eva so- contra. Ao obscurecer Lilith de qual-
mente aparece no capitulo 3, versículo quer relato bíblico, o modelo dual se-
20, após a narrativa da transgressão no gue na própria Eva, e nas suas ilhas,
jardim. A partir dali, é que o adam, o nas outras mulheres no decorrer da
ser terreno, criado do chão da terra, vai tradição bíblica ou cristã posterior. Eva
nomear a sua companheira de Eva, a é boa, ideal enquanto obediente; mas, é
mãe de todos os seres vivos. E é esta má e transgressora tanto quanto Lilith
conexão com a narrativa da transgres- ao sair dos limites impostos do mundo
são que Eva carrega em toda a história patriarcal na narrativa do cap. 3 em que
da transmissão e interpretação dos tex- aparece como protagonista pelo desejo
tos bíblicos. do conhecimento do bem e do mal.

• 454 •
A partir desta lógica, e com aju- assumir as consequências das decisões
da de outros textos bíblicos transfor- tomadas. E esta a lição que Eva pode
ma-se o poder de ser mãe de todos os nos ensinar no relato da transgressão
viventes em experiência dolorosa, em no jardim. Questionar não é ruim, mas,
maldição, no parto. A mulher passa a a buscar do saber traz consequências,
ser reconhecida como ser humano em e responsabilidades a serem assumidas
sua capacidade de reproduzir vida, mas com a aquisição deste conhecimento.
que é destituído de valor na cultura Esta forma de interpretar não
patriarcal. Essa tradição de conduzir é algo inédito, nem tampouco inapro-
o olhar somente para a maternidade priado, se a tradição profética de bus-
(mulher = mãe boa) é reforçado com a car o caminho da verdade é assumida
igura de Maria no Novo Testamento,
como testemunho bíblico. O coração
ao interpretá-la somente como mãe e
do entendido adquire o conhecimento,
não em seu papel profético de gestora
e o ouvido dos sábios busca a sabedo-
de um novo projeto de vida, ao assu-
ria (Provérbios 18. 15). E conhecereis a
mir a maternidade de Jesus.
verdade, e a verdade vos libertar (Joao
A partir de exercícios herme-
8.32).
nêuticos críticos e feministas que situ-
Na Bíblia das Mulheres, com-
am os textos em seus contextos sociais
e culturais, que desconstroem inter- pilada pela sufragista norte america-
pretações androcêntricas e misóginas na Elizabeth Cady Stanton, em 1895,
dos textos bíblicos, pode-se questio- encontra-se uma pérola de possibili-
nar as assim chamadas mensagens bí- dade de interpretação do texto de Gn
blicas em relação ao ser feminino, ser 3 que culpabiliza Eva como a agente
mulher, bem como do ser homem e de transgressão. Segundo Cady Stan-
masculino, em relações de gênero mais ton, “O Tentador conhecia a natureza
justas. Romper com os modelos este- humana e viu o alto caráter da pessoa
reotipados de ser mulher, signiica não que encontrou. Ele não a tentou com
cair na armadilha de ter que escolher joias brilhantes, vestidos caros, luxúria
entre uma ou outra, entre a boa ou a ou prazer mundano. Mas com a pro-
má, mas entender o ser humano nesta messa de conhecimento, da sabedoria
tensão dialética e criativa que aprende dos deuses. (1974, p. 24)”. Para a au-
ao errar, ao transgredir os limites. A tora imbuída, naquele século, em pro-
consequência de comer do fruto proi- vocar um outro olhar para a bíblia as
bido não é pecado, mas conhecimen- perguntas que a serpente introduziu no
to como consequência. A liberdade diálogo com a mulher despertaram em
de escolher traz a responsabilidade de Eva a sede pelo conhecimento muito

• 455 •
mais interessante do que buscar lores a ambas iguras, como dos aspectos
no jardim ou conversar com Adão. complementarios del misterio de la
Num caminho parecido Severi- vida, el principio femenino (la mujer)
no Croatto (2000, p. 3) estabelece uma y el masculino (la serpiente). La mujer
interessante contribuição na exegese es dadora de vida, la serpiente vive en
de Genesis 3 ao recolocar algumas la tierra fecunda. Tal vez, también, la
constatações sobre o texto: Segun- tradición ha sabido elegir oportuna-
do Croatto o texto trata de proibição, mente a la mujer como interlocutora
perigo de morte, castigo e dores. Mas válida, porque el tema en torno al cual
há coisas positivas, segundo o autor: o gira la decisión, es el “comer”. En la
que a serpente promete, mas que será casa, quien discierne lo que es bueno
castigada justamente porque promete para comer, es la mujer. Por eso, en
(vv.14-15); e o gesto da mulher “dar” este mito, lejos de ser menoscabada, la
a fruta as seu esposo (v.6b), mas que mujer actúa con un papel protagónico.
se torna negativo pelas desculpas que Al terminar el v.5 (que cierra el diálo-
o marido dá (v.12b). A árvore do co- go) el lector sabe sólo indirectamente
nhecimento é positiva porque outorga (por los plurales de verbos en el diá-
sabedoria. Mas para o autor o que de logo de los vv.1b-5) que el varón está
fato é bom, ou seja, “Lo único posi- presente, pero no sabe si escucha, si
tivo en el capítulo 3 es la información interviene. Más bien es ignorado. Si la
– secundaria, empero, en el relato glo- serpiente simboliza la alta sabiduría, el
bal– del nombre de la mujer (v.20) y del texto enaltecea la mujer al darle tal pro-
ofrecimiento de vestidos para protec- tagonismo.” (CROATTO, 2000, p.4)
ción por parte de Yavé (v.21)”. (2000, Essas são tentativas de descen-
p. 3). No seu estudo, Croatto evidencia tralizar hermenêuticas tradicionais que
o que também Cady Stanton destaca, inculcam simplesmente a culpa e a
ou seja, a mulher pode ser protagonis- subserviência das mulheres nas narra-
ta dessa história no sentido mais ele- tivas biblicas. Lilith e Eva foram narra-
vado de compreender sua importância. tivas míticas que podem ser resgatadas
“Una lectura tradicional se ha regode- no eixo do protagonismo e da rebeldia.
ado en deducir que la serpiente, astuta Mulheres que demonstraram inteligên-
como es, se acerca a la mujer por ser cia e amor ao conhecimento. E que ao
débil, más tentable y doblegable que el optarem pela curiosidade epistemolo-
varón. Se puede leer el texto desde otra gical responsabilizam-se por produzir
perspectiva, más atenta al andar de la outros caminhos. Seria o que podemos
narración. Es permitido especular, al dizer hoje sobre a autoria e a autono-
menos. Tal vez el texto quiera asociar mia ainda em construção por parte do

• 456 •
cotidiano das mulheres convidadas e um movimento articulado entre mu-
desaiadas a fazerem parte em todos os lheres em torno de uma única bandei-
lugares da vida. ra, como a questão do direito ao voto,
por exemplo, mas como um movimen-
Edla Eggert to mais amplo pela busca seja da pa-
Elaine Neuenfeldt
ridade dos direitos das mulheres aos
Referências e sugestões de leitura dos homens seja pela a ampliação e,
em alguns casos, até mesmo a conquis-
CADY STANTON, Elizabeth (ed.). he woman’s Bib- ta de direitos políticos e sociais. Em
le. Seattle: Coalition Task Force on women and religion,
1974. Um teto todo seu, de Virginia Woolf,
encontramos a primeira ilustração dos
CROATTO, J. Severino. ¿Quién pecó primero? Estudio
de Génesis 3 en perspectiva utópica. RIBLA n. 37, Quito, caminhos que as mulheres tiveram que
2000, p.22-37. Acessado em: http://severinocroatto.com.
ar/wp-content/uploads/2010/08/quien-peco-primero.
vencer para que se constituísse um es-
pdf - 10/12/2013. paço à Literatura Feminina dentro de
BUSCEMI, Maria Soave. Lilith, a deusa do escuro. Man- um cânone marcadamente masculino.
dragora. O imaginario feminino da Divindade. Ano XI, Nesta obra ensaística, Virginia Woolf,
n. 11, 2005. Sao Paulo : Universidade Metodista de Sao
Paulo, p. 09-15. a escritora inglesa, cria uma irmã para
BRENNER, Athalya A. A mulher israelita. Papel social
Shakespeare. Em sua icção, constata
e modelo literário na narrativa bíblica. São Paulo : Pau- que qualquer mulher que ousasse es-
linas, 2001.
crever, no século XVI, estaria conde-
SCHROER, Silvia. Seçoes tematicas: Quem é Eva. nada à loucura e ao isolamento social.
SCHOTTROFF, Luise, SCHROER, Silvia, WACKER,
Marie-heres. Exegese Feminista. Resultado de pesquisas Assim é a história da irmã de Shakes-
bíblicas a partir da perspectiva de mulheres. Sao Paulo/ peare. Ela tem tanto talento quanto o
Sao Leopoldo: ASTE, CEBI, Sinodal. 2008. P. 135-137.
irmão, mas foi condenada por tentar
• exercer a arte da escrita. Abandona pela
família, a irmã de Shakespeare morreu
Literatura Feminina nas ruas de Londres. Ao inal, Woolf
enfatiza que é possível ressuscitar essa
Optamos por pensar a Lite- poetisa, desde que as mulheres acredi-
ratura Feminina a partir de exemplos tem que podem escrever, que podem
vivenciados ao longo da História da representar a si mesmas a partir de sua
Literatura, dando maior destaque à ex- escrita. Quando as mulheres coniarem
periência brasileira. Via de regra, pen- em si e se lançarem à escrita, a irmã de
sa-se a literatura de autoria feminina Shakespeare “Achará possível viver e
associada ao conceito de feminismo, escrever sua poesia, isso não podemos
este pode ser entendido menos como esperar, pois seria impossível. Mas air-

• 457 •
mo que ela viria se trabalhássemos por res como Mary Wollstonecraft, Poulain
ela, e que trabalhar assim, mesmo na de La Barre e Sophie, a obra de Nísia
pobreza e na obscuridade, vale a pena” Floresta desloca para a herança cultural
(WOLF, 1997, p. 133). portuguesa as causas do preconceito
De fato, até o inal do sécu- com relação à mulher e a ideia da supe-
lo XIX, as mulheres escritoras eram rioridade masculina.
quase que inexistentes na cultura oci- Outro exemplo é o texto “Cartas
dental. As irmãs Brontë, Jane Austen de Helena a Eulália”, pseudônimo femi-
e George Eliot foram algumas poucas nino Helena, pode exempliicar quais
exceções. A maioria das mulheres não as barreiras as mulheres brasileiras pre-
se lançou no ofício da escrita pelo sim- cisaram vencer para terem o direito à
ples motivo de a ela não ser reservado escrita literária. Publicado no tomo 1,
o direito à escolaridade. Outras, entre- de janeiro de 1863, do Jornal das Famí-
tanto, de famílias abastadas, não eram lias, o texto narra a história de Helena,
encorajadas a ler por uma questão de supostamente uma brasileira residente
recusa da sociedade em acreditar que em Paris que recebe um convite para
a mulher tivesse algo a dizer. Fora da colaborar no Jornal das Famílias. An-
vida pública, às mulheres alfabetizadas tes de responder, Helena pergunta a
restavam os diários íntimos, as listas de opinião de seu pai, que permite a sua
compras, os cadernos de receitas, ou participação no periódico com a con-
seja, coisas desimportantes aos olhos dição de que a ilha adote um pseudô-
daqueles que dominavam a esfera pú- nimo. Helena primeiramente pensa em
blica: os homens. um romance e lembra que “depois dos
No Brasil, o nome que se desta- Miseráveis...”. A reticência permite,
ca é o de Nísia Floresta Brasileira Au- dentre outras possibilidades interpreta-
gusta (Nísia Floresta), cujo livro Direito tivas, pensar que, para ela, Os Miseráveis
das mulheres e injustiça do homens, de 1832, é um paradigma, um romance impossí-
fora o primeiro em terras tupiniquins a vel de ser superado. Devemos conside-
tratar dos direitos das mulheres à ins- rar que a seleção é feita por uma leitora
trução e ao trabalho além de exigir que de classe abastada, como comprova a
elas fossem consideradas e respeitadas descrição que a personagem faz de si e
como seres inteligentes. Fortemente dos objetos que a cercam. Trata-se da
inluenciada pelos artigos da “Declara- ilha de um político residente em Paris,
ção dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, de uma moça cujas ocupações giram em
Olympe Gouges, publicados na França torno de se esticar preguiçosamente
em 1791 e, inspirando-se em pensado- numa poltrona, diante de uma chami-

• 458 •
né, para se aquecer do frio parisiense. Outro exemplo de que a Litera-
Sem as qualidades necessárias para tura feminina no Brasil precisou, como
escrever um romance como Os Mise- em toda cultura ocidental, vencer a
ráveis, lançado um ano antes de Hele- muitos tabus relacionados às qualida-
na iniciar suas cartas, ela pensa numa des e ao direito de a mulher registrar
segunda opção: a de escrever uma po- suas ideias e sua criatividade foi Julia
esia. Todavia, Helena também não se Lopes de Almeida. O pai de Julia Lo-
julga uma poeta, apesar de, às vezes, pes, Valentim Lopes, também escritor,
também fazer versos: “Mas, fazer ver- recebe com orgulho a notícia de que a
sos não é ser poeta; por consequência ilha tinha talentos literários e a insere
eu não entro na classiicação”. nos grupos em que ele participava. O
O que a citação indica é que, incentivo do pai será decisivo na vida
para a protagonista, o trabalho do po- literária da escritora. No entanto, após
eta requer muito mais do que espora- participar ativamente da fundação da
dicamente “fazer versos”, atitude assu- Academia Brasileira de Letras, cabe a
mida por um leigo. Ser poeta seria algo ela apenas o título de patrona da cadei-
mais constante, viver para aperfeiçoar ra de número 26 da Academia Carioca
a produção poética e para obter uma de Letras. Por ser mulher, Julia Lopes
renda, ou seja, o poeta é visto como al- de Almeida não pode assumir como
guém que exerce uma proissão. A op- membro da academia, cedeu o lugar
ção é a de escrever à prima contando a seu marido, Filinto de Almeida. Ao
sobre a saudade que sente do Brasil e longo de sua vida, a escritora, fora da
da visão que os estrangeiros têm sobre
literatura, defenderá os direitos da mu-
ele. Helena acredita que deve descul-
lher no II Congresso Internacional Feminis-
pas ao público, mas prefere deixar isso
ta, ocorrido em 1922. Apenas em 1977,
com os redatores: “Não peço descul-
uma mulher teve o direito de ser mem-
pas ao público, porque esse é lá com os
bro da Academia Brasileira de Letras, a
redactores do jornal a quem tem que
façanha foi de Rachel de Queiroz.
pedir contas”. Embora ela seja a auto-
De forma mais signiicativas, os
ra, são os redatores que devem assumir
anos 60 e 70, do século XX, possibi-
as falhas de sua escrita, pois, apesar de
litaram muitas mudanças às mulheres,
se confessar incapaz de tal atividade,
que passaram a ocupar postos antes
Helena é vencida pela insistência dos
exclusivos aos homens: advogadas,
intelectuais; além disso, são eles que
executivas, engenheiras. A mulher, nes-
decidem se a produção de um deter-
se período, passa a ocupar de forma
minado autor merece ou não ocupar as
política tem atuação ativa e política nos
páginas do periódico.
• 459 •
espaços públicos. Nele, intensiica-se a crevem em universidades do Primeiro
luta pelos seus direitos e é nesse pro- Mundo, e são, portanto, deinições que
cesso que se instaura um debate mais derivam de observações ligadas àquele
sistemático sobre a literatura feminina universo conceitual e experiência, re-
ou literatura de autoria feminina, vol- letindo as relações interpessoais que
tada ao estudo de escritoras do sexo ocorrem ali.[...]Isto mesmo se conside-
feminino. rarmos, na América Latina, a burgue-
Ao pensar em Literatura Fe- sia, média ou alta, como praticamente
minina, indica-se a necessidade de a a única classe social que tem uma pro-
mulher fomentar espaços dentro de dução intelectual ligada à escrita, leitu-
uma literatura mais ampla. O cânone ra e discussão de textos literários; 3) o
literário brasileiro, por exemplo, ainda fascínio que em geral sentimos pelas
é marcadamente masculino. Prova dis- deinições antropológicas ou ilosó-
so são os livros didáticos do Ensino icas externas ao campo da literatura
Médio, que, em raras exceções, destaca pode nos levar a fugir de nosso obje-
uma autora mulher. Pensar a Literatura tivo principal, que é o estudo do texto
feminina de maneira política signiica literário em si, embora a partir dele se
garantir que a mulher saia de sua con- vislumbrem possibilidades de intertex-
dição de representada para assumir o tualidades[...]; 4) outra característica
lugar daquele que se auto representa. dos estudos de literatura de autoria
De acordo com Luiza Lobo, a litera- feminina, mas que se apresenta antes
tura de autoria feminina ainda precisa como armadilha num campo minado,
superar alguns dilemas, tais como: 1) o é o descritivismo biográico. A vida
propósito do escritor, do crítico e do das autoras, minuciosamente descrita,
historiador da literatura é ler ou criar o acaba se confundindo com sua obra[...]
escrito com uma compreensão que não Para iniciar na compreensão so-
violente o texto, mas o ouça como de- bre a Literatura Feminina, é preciso de
poimento pessoal e histórico, de modo referências que possibilitem pensar o
que muitos conceitos oriundos de di- conceito a partir de relexões políticas,
versas fontes teóricas, seja dos campos econômicas e sociais. Assim, indica-
citados acima, seja da psicanálise ou da mos as obras de Virgínia Woolf (1928),
neurologia, da história, etc. acabam por Márcia Hoppe Navarro (1995), Judith
violentar a própria essência sensível da Butler (2003). As três obras não esgo-
obra literária; 2) muitas das deinições tam a temática, mas possibilitam com-
que encontramos partem de ensaístas preender a Literatura Feminina pela
e teóricas que vivem, trabalham e es- perspectiva da identidade, pelo olhar

• 460 •
da historiograia literária e de uma vi- tornos diferenciados, que resultaram
são político-econômica. em discursos também diversos e disto
já nos alertou brilhantemente Michel
Alexandra Pinheiro dos Santos Foucault, em seu memorável trabalho
Neurivaldo Campos Pedroso Junior
A história da loucura na Idade Clássica.
Referências e sugestões de leitura Acompanha a variabilidade social da-
quilo que é nomeado pelo termo lou-
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e cura, sua apropriação e uso no campo
subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 2003. acadêmico para discutir relações diver-
sas, como a que é objeto de relexão
NAVARRO, Márcia Hoppe (org.). Rompendo o silên-
cio: Gênero e literatura na América Latina. Porto Alegre, neste verbete: a relação gênero e lou-
Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
1995. (Coleção Ensaios CPG - Letras; 3).
cura.
Tal problematização surge li-
HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Tendências e
impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de gada aos estudos sobre a relação mais
Janeiro: Rocco, 1994. especíica entre mulheres e loucura,
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. “O estranho hori- estudos com uma longa história nas
zonte da crítica feminista no Brasil”. In: SUSSEKIND,
Flora; DIAS, Tânia; AZEVEDO, Carlito (Org.). Vozes
sociedades ocidentais. Na impossibi-
femininas: gênero, mediações e práticas de escrita. Rio lidade de recuperar a totalidade das
de Janeiro: 7 Letras/ Fundação Casa Rui Barbosa, 2003.
p. 15-25. relexões privilegia-se a apresentação
das perspectivas que foram desenvol-
WOOLF, V. Um teto todo seu. Tradução por Vera Ribei-
ro. São Paulo: Editora Nova Fronteira/Círculo do Livro, vidas por autoras anglo-saxônicas, a
1928. partir do inal dos anos 70 e o início
• dos anos 80 do século XX. Foi neste
momento histórico, que acadêmicas
Loucura feministas, de diferentes campos dis-
ciplinares e abordagens teóricas, intro-
A palavra loucura remete, con- duziram a categoria gênero para reletir
temporaneamente, a uma dimensão sobre a relação entre mulheres e loucu-
essencial da cultura ocidental, ou seja, ra. As perspectivas postuladas a partir
“a estranheza, a ameaça, a alteridade de então tiveram um impacto relevante
radical, tudo aquilo que uma civiliza- sobre a maneira como se aborda atu-
ção enxerga como o seu limite, o seu almente esta relação e, portanto, deve-
contrário, o seu outro, o seu além.” mos às contribuições destas feministas
(PELBART, 1990, p.33) Tal dimensão que o gênero (como categoria analítica
apresentou, entretanto, em espacialida- e como variável empírica) seja levado
des e temporalidades diferentes, con- em conta em pesquisas, tratamentos

• 461 •
e políticas contemporâneas de saúde é caracterizada por uma assimetria de
mental. poder frente aos homens, que se tra-
O uso da palavra loucura por duz - na maioria das vezes - em subor-
muitas destas acadêmicas foi e segue dinação e desempoderamento. A par-
sendo intencional. Primeiro, porque tir deste pressuposto problematizam
loucura fornece um conceito guarda- noções profundamente arraigadas que
-chuva que permite uma abordagem as constroem como mais irracionais,
histórica das chamadas doenças men- e, portanto, mais propensas do que os
tais, pois refere-se a um complexo de homens à loucura. Estas ideias estão
diferentes fenômenos humanos, que arraigadas nos diferentes modelos mé-
englobam a situação de doença mental, dicos e culturais, não sendo o mode-
mas que não estão a ela reduzidos. Em lo psiquiátrico a exceção à regra. Pelo
segundo lugar, porque é capaz de evo- contrário, desde o século XIX a prá-
car o sofrimento e o caos que acom- tica médica emergente concentrou-se
panham as situações de disrupção. Em em mostrar a prevalência feminina em
terceiro lugar, ao contrário do conceito todos os aspectos relacionados com a
de doença mental, que imediatamente doença mental.
envia ao terreno da medicina e suas Neste contexto, uma das preo-
concepções patologizantes, a palavra cupações dos primeiros trabalhos re-
loucura resgata os múltiplos signii- alizados a partir de uma perspectiva
cados dessa condição, permitindo sua de gênero foi discutir o controle das
abordagem desde diferentes olhares, mulheres por parte do discurso e da
que incluem diferentes perspectivas prática psiquiátrica e a super-represen-
como, por exemplo, as da medicina, tação das mulheres em todos os âmbi-
a das humanidades ou a das artes. Ou tos relacionados com a doença mental.
seja, o termo loucura expressa uma As autoras se perguntavam então, se
diversidade de possibilidades, que vão efetivamente as mulheres eram mais
além dos reducionismos inerentes a al- propensas à loucura e, em caso air-
gumas das concepções construídas no mativo, porque razão. A investigação
cerne da cultura ocidental fortemente destes problemas ocorreu a partir de
marcada pela hegemonia das repre- duas abordagens teóricas que podem
sentações isicalistas da Biomedicina. ser denominadas como: construção social
(DUARTE, 1998) da loucura e produção social da loucura.
O ponto de partida das autoras A construção social da loucura: A
feministas são as mulheres. Estas são perspectiva da construção social da loucu-
o centro da investigação, a partir do ra se caracteriza por problematizar e
reconhecimento de que sua situação abordar criticamente a construção e

• 462 •
o conteúdo das categorias de loucura cio de uma sexualidade ativa; por outro
feminina, as metodologias existentes lado, ao contrário dos homens, tam-
para medi-la e a maneira como as mu- bém são consideradas loucas quando
lheres têm sido tratadas pelo sistema excedem na assunção de seus papéis e
de saúde mental. tornam-se mulheres muito femininas.
A primeira a abordar o tema Neste sentido, o argumento central de
por este enfoque foi Phyllis Chesler, Chesler é que a psiquiatria aplica dife-
que em seu livro Woman and Madness, rentes parâmetros na hora de valorar o
de 1972, perguntou: por que as mulhe- comportamento masculino e feminino,
res são rotuladas como loucas (correta sendo a faixa de normalidade para as
ou incorretamente) e quem as etiqueta mulheres muito mais estreita do que
assim? Para dar resposta a estas ques- para os homens.
tões a autora articulou conceitos de Chesler compartilha com outras
três teorias diferentes: o feminismo, autoras (ALLEN, 1986; BUSFIELD,
a antipsiquiatria (com sua noção de 1996, 2001; PENFOLD e WALKER,
etiquetamento) e o funcionalismo es- 1984) a ideia de que a psiquiatria tem
trutural de Parsons (com seu conceito contribuído para a adaptação e contro-
de papéis). Com base neste arcabouço le das mulheres no sentido de que, tan-
teórico propôs-se a analisar a relação to a normalidade como a cura de uma
entre papéis femininos estabelecidos dada doença - como a depressão por
pela sociedade e a prática de etiquetar exemplo -, são equiparadas com a as-
as mulheres de loucas. sunção de certas identidades de gêne-
Chesler argumentou que na ro. Contribui assim a prática psiquiátri-
cultura patriarcal são deinidos pa- ca para um controle social mais amplo
péis sexuais para mulheres e homens. exercido pela cultura patriarcal.
Ambos quando não se comportam de Outras autoras que pertencem
acordo com tais papéis são, muitas ve- à perspectiva da construção social da
zes, etiquetados pela psiquiatria como loucura têm-se dedicado a documentar
doentes mentais. Tal prática, segundo a historicamente a constituição da psi-
autora, é exercida com maior rigor no quiatria como prática responsável pela
caso das mulheres, que enfrentam uma loucura e o tratamento dado por esta
dupla desvantagem: por um lado, da às mulheres. Nesta linha a autora para-
mesma forma que os homens, são ro- digmática é Elaine Showalter que, em
tuladas como loucas quando desviam 1987, escreveu The Female Malady. Wo-
dos papéis prescritos, no caso delas a men, Madness and English Culture (1830-
realização de tarefas domésticas, o cui- 1980). Seu objetivo foi escrever uma
dado com crianças e maridos, o exercí- história feminista da psiquiatria e uma

• 463 •
história cultural da loucura como uma e as ideias intelectuais e literárias de
doença feminina, na qual a tese central cada época estão estreitamente relacio-
é que a loucura foi domesticada e femi- nadas. Neste sentido, as construções
nizada no século XIX. da loucura feminina e suas categorias
Showalter argumentou que a diagnósticas foram fortemente in-
construção dos hospitais psiquiátricos, luenciadas por noções sociais sobre
como os novos espaços de conina- o comportamento feminino normal e
mento e tratamento da loucura, permi- adequado, a que os psiquiatras revesti-
tiu à proissão médica estabelecer um ram de autoridade cientíica.
monopólio sobre os problemas psico- A produção social da loucura: O
lógicos das mulheres, ao alegar - entre segundo ponto de vista teórico, o da
outras coisas - que o sistema reproduti- produção social da loucura, se dedica
vo feminino era instável e interferia na ao estudo das relações entre proces-
capacidade daquelas de controlarem-se sos sociais e etiologia das doenças, ou
sexual, emocional e racionalmente. seja, a percepção do impacto que tem
Nesta perspectiva as mulheres teriam as condições sociais e de vida na saú-
maior susceptibilidade à loucura do de mental das pessoas. Ao contrário da
que os homens. As teorias vitorianas, abordagem anterior, as autoras identi-
por exemplo, consideravam a puberda- icadas com esta corrente assumem o
de, a menstruação, a gravidez, o parto estatuto ontológico da doença mental
e a menopausa - ou seja, praticamente e enfatizam seu caráter de realidade. A
todos os momentos da vida das mu- premissa central é de que as condições
lheres - como momentos de crises que de vida mais adversas, consideradas
afetavam sua saúde mental. Prevalecia como mais estressantes, traduzem-se
assim, uma a visão da psique feminina em taxas mais elevadas de doenças e
como tão debilitada que os psiquiatras diferentes tipos de sofrimentos men-
icavam surpresos que não houvesse tais (BORDO, 1993; CHERNIN,
muito mais mulheres doentes. 1985).
No entanto, de acordo com Assim, os estudos discutem os
Showalter, essas noções não foram in- transtornos e o sofrimento mental fe-
ventadas pela psiquiatria, elas são parte minino a partir de seu enquadramento
da cultura em que esta prática emergiu. nas condições particulares de vida das
Através da análise das representações mulheres, provenientes do lugar que
da loucura feminina em manifestações estas ocupam na ordem de gênero. As
artísticas como a pintura, a fotograia, autoras argumentam que as relações de
a literatura e o teatro, a autora con- gênero são marcadas por uma signii-
cluiu que as concepções psiquiátricas cativa disparidade de poder e oportuni-

• 464 •
dades, que coloca as mulheres em uma Para estas autoras, o fato de que,
posição de dependência, subordinação entre outras coisas, muitas das ativida-
e exclusão em relação aos homens, des que as mulheres realizam sejam
pois a sociedade patriarcal impõe nor- subvalorizadas, que sejam considera-
mas e valores que deinem que lugares das de menos importância e que estas
devem ocupar e quais papéis devem recebam salários mais baixos por ativi-
desempenhar, marginalizando-as das dades iguais as dos homens, se traduz
esferas sociais em que há participação em muito menos recursos materiais e
plena, diicultando o acesso a formas simbólicos para lidar com suas ansie-
importantes de poder-saber e enfati- dades e problemas. Neste contexto, é
zando o ensino de formas de conhe- comum que as mulheres se sintam in-
cimento relacionadas com o âmbito feriores, desamparadas e dependentes,
doméstico e os afetos. O argumento o que afeta os níveis de estresse, as for-
central é que a opressão e a dominação mas de percepção, a construção de sua
sistemática sofrida pelas mulheres são subjetividade e da autoestima.
fatores que levam ao sofrimento men- Enim, o que apresentamos nes-
tal. (OAKLEY, 1982; BORDO, 1993) te verbete, considerando as discussões
Da mesma forma que a aborda- levantadas pelas feministas anglo-saxô-
gem da construção social da loucura, nicas, foi apenas uma visão parcial, à
a vertente teórica da produção social guisa de abertura para a relexão. Mui-
da loucura utiliza o conceito de papéis. tas de suas postulações sobre a relação
No entanto, nesta abordagem a ênfase entre gênero e loucura seguem validas
é colocada sobre a relação entre papéis ainda hoje, mas o campo de estudos se
de gênero e desenvolvimento psico- ampliou signiicativamente e feminis-
lógico dos indivíduos, considerando a tas de outros países e culturas - como
vulnerabilidade feminina para certas o Brasil - vêm realizando trabalhos
doenças - como depressão, bulimia importantes. Estes mantém o diálogo
ou anorexia - o resultado da pressão com várias dos trabalhos citados, mas
internalizada das expectativas e papéis agregam questões relativas as diferen-
de gênero. (PUGLIESE, 1992). Assim, ças culturais e sociais próprias dos lu-
transtornos mentais são produzidos na gares e temporalidades nas quais e das
medida em que os papéis que as mulhe- quais falam.
res desempenham - mãe, esposa, dona
de casa -, e dos quais deveriam derivar Teresa Ordorika Sacristán
Yonissa Marmitt Wadi
a sua saúde mental, são desvalorizados.
(SIMON, 1995; BURIN, 2000)

• 465 •
Referências SHOWALTER, Elaine. he Female Malady: Women,
Madness and the English Culture 1830-1980. London:
Virgo Press Ltd., 1987.
ALLEN, H. “Psychiatry and the Construct of the Femi-
nine”. In: ROSE, Nikolas; MILLER, Peter (orgs.). he
Power of Psychiatry. Cambridge: Polity Press, 1986, p. Sugestões de leitura
85-111.

BORDO, Susan. Unbearable Weight: Feminism, Wes- ORDORIKA SACRISTÁN, Teresa. Aportaciones so-
tern Culture and the Body. Berkeley: University of Ca- ciológicas al estudio de la salud mental de las mujeres.
lifornia Press, 1993. Revista Mexicana de Sociología, v.71, n.4, p. 647-674,
oct.-dic. 2009.
BURÍN, Mabel. El malestar de la mujeres. La tranquili-
dad recetada. México: Paidós, 2000. WADI, Yonissa Marmitt. A história de Pierina: subjetivi-
dade, crime e loucura. Uberlândia: EDUFU, 2009.
BUSFIELD, Joan. Men, Women and Madness. London:
Macmillan Press Ltd., 1996.

BUSFIELD, Joan. Rethinking the Sociology of Mental
Health. Cornwall: Blackwell Publishers Ltd., 2001.
Lutz, Bertha
CHERNIN, Kim. he Hungry Self: Women, Eating and
Identity. London: Virago, 1986.
Bertha Maria Júlia Lutz foi a
CHESLER, Phyllis. Women and madness. New York:
Harvest Books, 1989. (A primeira edição do livro é de mais conhecida e reconhecida líder fe-
1972) minista no Brasil da primeira metade
DUARTE, Luiz Fernando D. Investigação antropológica do século XX. Nasceu em 2 de agosto
sobre doença, sofrimento e perturbação: uma introdu- de 1894, na cidade de São Paulo. Fi-
ção. In: DUARTE, Luiz Fernando D.; LEAL, Ondina
F. (org.). Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas lha do cientista e pioneiro da medicina
etnográicas. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 1998, p.
9-27.
tropical brasileira Adolpho Lutz e da
enfermeira inglesa Amy Fowler. Em
FOUCAULT, Michel. A história da loucura na idade
clássica. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1989. (A primeira
1908, logo após a mudança da família
edição do livro de Foucault é de 1961. Utilizamos neste para o Rio de Janeiro, ela, a mãe e o ir-
verbete a edição brasileira de 1989)
mão, partiram para Paris, onde Bertha
OAKLEY, Anna. Subject Women. Londres: Temple Smi- completou seus estudos secundários
th, 1982.
na Cours Bouchut e logo a seguir ingres-
PELBART, Peter P. Manicômio mental: a outra face da sou na Sorbonne, para cursar botânica,
clausura. Saúde e loucura, São Paulo, n. 02, p.131-138,
1990. zoologia e evolução dos seres organi-
PENFOLD, P. Susan; WALKER, Gillian A.. Women and
zados, química biológica, ilosoia e li-
the Psychiatric Paradox. Milton Keynes: Open University teratura (LÔBO, 2010, p.24-25).
Press, 1984.
Durante a estada na Europa tra-
PUGLIESE, Karen Pugliese. Women and Mental He- vou importantes contatos e conheceu
alth: Two Traditions of Feminist Research. Women and
Health, v. 19, n. 2-3, p. 43-68, 1992. de perto a campanha pelo sufrágio fe-
minino na Inglaterra. Em 1918, retor-
SIMON, Robin W. Gender, Multiple Roles, Role Mea-
ning, and Mental Health. Journal of Health and Social nou ao Brasil e passou a se dedicar à
Behavior, New York, v.36, n.2, p.182-194, jun.1995. luta pela valorização do papel feminino

• 466 •
perante a sociedade. A partir de 1919, O tipo de feminismo por ela proposto
colaborou com vários jornais da capital recebeu a alcunha a de “bom feminis-
federal, Rio de Janeiro, com matérias mo”, pois não procurava revolucionar
versando sobre a emancipação femini- o papel da mulher no seio familiar. Tal
na. Também nesse ano passou em pri- alcunha deixa transparecer a existência
meiro lugar para o cargo de secretário de um “mau feminismo”, que a im-
do Museu Nacional, cargo que exerceu prensa, da época em questão, associava
até janeiro de 1936, quando mudou de a igura de Leolinda Figueiredo Daltro.
posto. Permaneceu como funcionária Céli Pinto (2003) cunhou o termo “fe-
do Museu até 1969. Foi a segunda mu- minismo bem comportado” para adje-
lher a ser admitida por concurso e no- tivar a atuação de Bertha Lutz, enquan-
meada para um cargo federal no Brasil. to Rachel Soihet (2006) o denominou
Em 1933 formou-se bacharel em direi- de “feminismo tático”. Para Céli Pinto
to pela Faculdade de Direito do Rio de (2003, p.21-22), a condição de Bertha
Janeiro. foi excepcional em pelo menos três
O aparecimento de Bertha Lutz modos: a primeira delas representada
na cena pública, logo após o término pela sua condição econômica, pois “só
da Primeira Guerra, coincidiu com os muito abastados poderiam sustentar
uma mudança na forma de encarar a uma ilha em Paris”; a segunda con-
capacidade feminina para o trabalho dição diferenciada na vida de Bertha
fora das paredes do lar. O momento teriam sido as condições culturais dos
era mais propício a discutir mudanças, pais, “que permitiram essa trajetória
ainda mais as solicitadas por pessoas da tão rara a uma mulher brasileira”, per-
mesma classe social que os detentores mitindo assim despontar um traço de-
do poder. Mudanças essas que vinham inidor e diferenciador; e, inalmente, a
com a promessa de não se revolucio- própria atuação proissional de Bertha,
nar os costumes da época, apenas em uma mulher cientista com um emprego
adaptá-los para agregar as mulheres. público, fato raro na época em questão.
Bertha sempre procurou acentuar para Desde 1919 Bertha participou
a opinião pública que a “ideia de que como representante do governo brasi-
os direitos da mulher não signiicarão leiro em vários congressos internacio-
um rompimento com a família, com nais, tendo uma atuação de destaque
o papel tradicional de mãe e esposa” em todos. Em 1920 fundou, com ou-
(ALVES, 1980, p.101). tras mulheres, a Liga para Emancipação
Ela também buscou conclamar Intelectual da Mulher (LEIM), concebida
as brasileiras para a necessidade de se com o propósito de estudar todos os
unirem para fazerem valer seus direitos. diferentes aspectos do movimento fe-

• 467 •
minista no Brasil e no exterior e todas (FBPF) e expandir os domínios de atu-
as questões a ela conectadas. O gru- ação do grupo da capital para outros
po que se formou em torno da Liga estados, abrindo iliais.
procurava “revestir o seu discurso de Os objetivos da FBPF eram:
um tom moderado” (SOIHET, 2006, promover a educação da mulher e
p.27) e tinha como estratégia principal elevar o nível de instrução feminina;
de ação expor suas ideias através de proteger as mães e a infância; obter
pronunciamentos públicos, de cartas garantias legislativas e práticas para o
enviadas para a imprensa e buscando trabalho feminino; auxiliar as boas ini-
apoio de lideranças masculinas nos ciativas da mulher e orientá-la na esco-
mais diversos campos para as suas rei- lha de uma proissão; estimular o espí-
vindicações. rito da sociabilidade e de cooperação
No ano de 1921, passou a man- entre as mulheres e interessá-las pelas
ter contato com organizações inter- questões sociais e de alcance público;
nacionais que tratavam da questão assegurar à mulher os direitos políticos
feminista em busca de informações e que a nossa Constituição lhe confere e
de orientações para a sua própria or- prepará-la para o exercício inteligente
ganização, a LEIM. A partir de inais desses direitos e estreitar os laços de
de 1922, o grupo reunido em torno de amizade com os demais países ameri-
Bertha Lutz passou a ser cada vez mais canos, a im de garantir a manutenção
reconhecido pela imprensa como “o” perpétua da Paz e da Justiça no He-
representante legítimo do movimento misfério Ocidental (HAHNER, 1981,
organizado feminino no Brasil. Sua p.107).
aproximação com o movimento esta- O envio de cartas e telegramas
dunidense e com uma de suas líderes, tanto para os parlamentares como
Carrie Chapman Catt, fez com que para a imprensa, foram utilizados tan-
transformasse a LEIM em uma ailiada to como uma forma de pressão como
do movimento internacional. Esse en- uma maneira de chamar a atenção para
volvimento começou em 1922, quando a luta em prol do sufrágio feminino e
Bertha participou da Conferência Pan-A- foi uma das estratégias mais utilizadas
mericana, que se realizou no mês de abril pelo movimento liderado por Bertha
de 1922, em Baltimore (EUA). Seguin- Lutz. Em dezembro 1922 a FBPF or-
do as novas diretrizes internacionais, ganizou o primeiro congresso femini-
sua primeira providência, ao retornar no no Brasil. A aproximação de Bertha
ao Brasil, foi transformar sua Liga na Lutz com os movimentos organizados
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino internacionais foi um dos trunfos da

• 468 •
luta em prol do voto feminino no Bra- League of Women Voters (IWSA), a União
sil, pois deu visibilidade e legitimidade Interamericana de Mulheres, a Comissão
a essa luta. Feminina Consultiva do Trabalho da Mu-
De 1922 a 1932 a principal de- lher, entre outras. Também lutou por
manda da FBPF foi pela aprovação do melhores condições educacionais no
voto para as mulheres. Este foi conce- Brasil além de se dedicar a sua carreira
dido com a publicação do novo Có- cientíica atuando tanto como pesqui-
digo Eleitoral, através do Decreto n° sadora como docente no Museu Na-
21.076, de 24 de fevereiro de 1932. A cional, alcançando muito prestígio na
redação do artigo 2º determinou: é elei- sua área de atuação, sendo considera-
tor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção da uma referência sobre o estudo dos
de sexo, alistado na forma deste Código. anfíbios. Recebeu várias homenagens
Em 1932 Bertha também re- em vida pelo seu trabalho em prol da
digiu e publicou o trabalho intitulado emancipação feminina.
“13 Princípios Básicos – Sugestões ao A trajetória proissional de
Anteprojeto da Constituição” e parti- Bertha Lutz esteve muito ligada à de
cipou como representante feminina da seu pai, cuja morte, em 6 de outubro
comissão que elaborou o anteprojeto de 1940, foi sentida por ela como um
da nova Constituição. Na eleição de grande golpe. A partir de então, passou
1933, concorreu ao cargo de deputa- a dedicar cada vez mais tempo para
da constituinte, não sendo eleita, ape- cultivar a memória paterna e cuidar do
sar de obter boa votação, o mesmo se seu patrimônio intelectual. Nunca se
repetindo nas eleições de 1934 e em casou ou teve ilhos e faleceu aos 82
1935, quando alcançou a suplência. anos no dia 16 de setembro de 1976,
Em 1936, com a morte do deputado no Rio de Janeiro.
Cândido Pessoa assumiu a sua vaga.
Mônica Karawejczyk
Na Câmara lutou pela instituição de
mudanças na legislação referentes ao
Referências
trabalho da mulher e infantil, pleitean-
do igualdade salarial, licença para a ges- ALVES, Branca Moreira. Ideologia e Feminismo. A luta
tante e redução da jornada de trabalho. da mulher pelo voto no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980.

Em 1937, com o advento do HAHNER, June E. A Mulher Brasileira e suas Lutas So-
Estado Novo perdeu o mandado. Fez ciais e Políticas. 1850-1937. São Paulo: Brasiliense, 1981.

parte de várias associações internacio- LÔBO, Yolanda. Bertha Lutz. Recife: Fundação Joaquim
nais pelos direitos das mulheres tais Nabuco, Massangana, 2010.

como a Aliança Internacional pelo Sufrágio PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo
no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.
Feminino e Igualdade Política dos Sexos, a

• 469 •
SOIHET, Rachel. O Feminismo Tático de Bertha Lutz.
Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC,
2006.

Sugestões de leitura

BESSE, Susan. Modernizando a Desigualdade Reestrutu-


ração da Ideologia de Gênero no Brasil: 1914-1940. São
Paulo: Edusp, 1999.

BRAZIL, Érico Vital (Org.). Dicionário Mulheres do


Brasil: de 1500 até a atualidade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000.

HAHNER, June E. Emancipação do Sexo Feminino. A


luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850-1940. Flo-
rianópolis: Mulheres, Santa Cruz: EDUNISC, 2003.

KARAWEJCZYK, Mônica. As ilhas de Eva querem vo-


tar. Dos primórdios da questão à conquista do sufrágio
feminino no Brasil (c.1850-1932). 398 f. Tese (Douto-
rado em História). Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2013. Museu Virtual Bertha Lutz.
Disponível em: <http://lhs.unb.br/bertha/>

SOIHET, Rachel. A conquista do espaço público. In:


PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Org.).
Nova História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012.

Verbete Bertha Lutz. In: SCHUMAHER, Shuma, VI-


DAL, Barros. Precursoras Brasileiras. Rio de Janeiro: A
Noite Editora, 1943.

• 470 •
Manuais de civilidade/
comportamento

Para enquadrar teoricamente as


questões colocadas pelos manuais de
civilidade/comportamento devemos
referir autores como Benveniste, N.
Elias e Foucault. Dirá Benveniste so-
bre a palavra “civilização”: “Da barbá-
rie original à condição presente do ho-
mem em sociedade, descobria-se uma
graduação universal, um lento pro-
cesso de educação e de reinamento,
numa palavra um progresso constante
na ordem do que a civilidade, termo
estático, já não bastava para exprimir
e a que era bem preciso chamar a civi-
lização para deinir em conjunto o seu
sentido e a sua continuidade.”(1996, p.
336-340).
Estes textos funcionavam e
funcionam como operadores práticos
dessa dinâmica, desse lento “processo
de educação e reinamento”. Eles dão-
-nos a ver esferas distintas que Nor-
bert Elias designou no “processo civi-
lizacional”: “a orientação do momento
de civilização para uma “privatização”
cada vez mais pronunciada e mais
completa de todas as funções corpo-
rais, e para a rejeição em recintos espe-
cializados e para a sua deslocação “fora
do campo visual da sociedade” (...) é a
estranha clivagem entre os aspectos da
vida humana que se podem expôr à luz

• 471 •
do dia, quer dizer as relações sociais, e icado na sua referência às mãos e tam-
as outras que é preciso reservar na in- bém “obra de pequeno formato que
timidade, na esfera “secreta” (...) Dito contém noções ou directrizes relativas
de outra maneira, assiste-se no curso a uma disciplina, técnica (s.m)” etc.
do processo de civilização, à formação Textos a serem praticados, in-
progressiva de duas esferas diferentes carnados à semelhança de “técnicas
da vida humana, uma é íntima e secreta, do corpo” deinidas por Marcel Mauss
a outra aberta, de um comportamento (1950), já que o corpo é o lugar primor-
clandestino e de um comportamento dial da inscrição da lei; o corpo é uma
memória na qual se fazem estrutura-
público” (ELIAS, N.,1988, 317-318).
ções diversas, entre estas as graduações
Esta ideia de civilização é central
enormes que cada sociedade pode es-
na evolução do próprio conceito de ci-
tabelecer entre o que cada uma deter-
vilidade e das obras / manuais que lhe minou ser “feminino” e “masculino”,
são dedicados. São textos que ensinam nas manipulações diversas que cada
as regras sociais, o como manter-se no sociedade exerce sobre os corpos, es-
seu lugar. A eles se pode aplicar o que truturando-os para exercerem funções
diz M. Foucault “o domínio em análise e papéis diferentes ou de outro modo
é constituído por textos que preten- o que Butler denominou as variações de
dem dar regras, avisos, conselhos, para género. Sendo o corpo o lugar primor-
se comportar como é preciso: textos dial da inscrição, qualquer que ela seja,
“práticos”, que são eles próprios ob- desde as sociedades primitivas e as suas
jectos de “prática”, na medida em que escariicações do corpo até às nossas
eram feitos para serem lidos, apren- sociedades de leitura mental, de lei in-
didos, meditados, utilizados, postos à teriorizada, as técnicas de corpo fun-
cionam como operadores na constru-
prova e visavam constituir a armadu-
ção de género, na atenção aos detalhes
ra da conduta quotidiana. Estes textos
em todos os gestos, palavras, leituras,
tinham por função serem operadores
espaços, tempos relacionados com a
que permitiam aos indivíduos interro- socialização das meninas/mulheres
garem-se sobre a sua própria conduta, da qual, durante séculos, a educação
velar sobre ela, formá-la e modelarem- religiosa foi uma componente impor-
-se a si mesmos como sujeito ético.” tantíssima. No entanto, através de um
(FOUCAULT, M.,1984 a, p. 18-19). processo de laicização das sociedades
São textos objetos de prática surgem outras necessidades educati-
como é signiicado etimológico da pa- vas a que os compêndios de civilidade
lavra manual que tem esse duplo signi- respondem na aprendizagem de uma

• 472 •
outra maneira de estar em sociedade reconheçam entre si e os de fora sejam
e, nesse processo lento de transforma- assinalados e mantidos a distância, isto
ção, ou nessa transição, os manuais de é, demarcar e distinguir (...)” (1983, p.
civilidade substituíram, de certa forma, 14-15).
esses livros de orações, de instruções Esta era de facto a miragem
morais e religiosas, como é evidente proposta pelos manuais de civilidade;
nesta deinição de “civilidade” dada ao pretenderem estabelecer o reconhe-
por A. M. Baptista “Todos, ou quasi cimento entre iguais, o que os distin-
todos, misturam os preceitos de civili- gue dos restantes, ainda que circulem
dade com os preceitos religiosos, como na mesma esfera - social, educativa,
económica, etc. - mas os gestos, a cum-
se cada uma destas coisas não tivesse o
plicidade de dentro, o sentimento de
seu lugar distincto. Além d’isso, muitas
pertença, nunca se realizavam de fato.
das prescripções que se incontram em
Os manuais pretendem estabe-
todos, ou em quasi todos os compen-
lecer e dar a conhecer as marcas de
dios de civilidade, são hoje rejeitadas distinção entre esferas laica/religiosa;
no trato social, por contrafeitas, fati- pública/privada; entre homens e mu-
gantes e incommodas.” (1886, p. 3). lheres, senhores/as e serviçais etc.e en-
Transformações que implicaram sinar, de modo prático, a cada um/a, a
uma redistribuição das esfera de acção saber ocupar o seu lugar.
do poder: a educação religiosa apesar Logo, a civilidade será o sa-
do lugar importante na educação das ber comportar-se adequadamente em
raparigas, já não dominava toda a ar- cada situação e estes manuais fazem a
quitetura educativa. Estes manuais de enumeração das várias ocasiões e dos
aprendizagem eram necessários para comportamentos respetivos, tanto nas
a burguesia - classe em ascensão - que situações especiais (bailes, festas, etc.)
como no quotidiano (maneira de se
detinha o poder económico e político
deitar, despir, andar, sentar-se, falar,
mas que não tinha o “habitus”, o sa-
etc): “o porte de uma menina, junto do
voir-faire necessário, da aristocracia.
homem, deve ser grave e franco, não o
Diz M.Lourdes L. Santos que “o ma- buscar com a vista, mas também não
nual de civilidade exprimirá, a partir de fugir d’elle com hypocrisia. Pode ser
então, a pretensão de facultar a todos muito honesta e virtuosa sem ser aca-
o conhecimento do código do “saber nhada” (MELO, J.C, 1872, p. 26).
viver”, e nesta medida, está aparente- A incidência deste tipo de
mente a minar os seus próprios ob- aprendizagem marcou particularmente
jectivos - possibilitar que os iguais se a educação das meninas, que D. Roche

• 473 •
denominou a civilização das civilidades, as nossas impressões. (...) Se não se é
nome que revela uma marca de género realmente benévolo, não se poderá in-
acentuada e as exclusões de acesso ao gir por muito tempo. A arte de dissi-
conhecimento que lhe foram inerentes. mular não basta.”(1903, p. 149-152).
Esse saber ocupar o seu lugar E talvez, por isso, haja nestes
passava pela composição do corpo e, processos de civilização de cariz di-
segundo Elias, pela privatização de to- verso a mediação de técnicas que vão
das as funções corporais; uma distância criando um espaço cada vez maior en-
a criar cada vez maior entre o íntimo tre os corpos e também clivagens no
e o social (VIGARELLO, 1988) em próprio individuo que, por exemplo, a
que, por exemplo, a higiene funciona psicanálise vai tentar nomear.
como um processo de civilização à se- Os manuais de civilidade têm
melhança das maneiras de estar à mesa como objectivo a criação de um ser
ou da moda como um dos processos “sem paixões”, regulado no seu “ex-
/ operadores de técnicas e, em parti- terior” - na sua postura corporal - e
cular, sobre o corpo feminino etc., o no seu “interior”, numa interiorização
que foi designado como o trabalho das da Lei, da norma. Transparece assim
aparências (PERROT). O saber destas o ideal da criação de um “corpo pró-
técnicas – a sua prática - constituíam o prio”, de um indivíduo auto-regulado
que no século XVIII se designou como e não afetado pelos acontecimentos,
composição do corpo. A observação pelas paixões, pelos seres. Códigos de
das normas era a forma de tentar criar conduta que funcionam como linhas de
uma legibilidade perfeita, uma trans- demarcação entre homens e mulheres,
parência no jogo da comunicação em classes sociais e de idade. É um mun-
sociedade. Como se o corpo fosse o do hierarquizado, rígido, com espaços
texto disponível a uma leitura sem am- e funções bem demarcados: a intimi-
biguidades nem suspeitas “cada parte dade privatiza-se; as funções corporais
do nosso corpo, encarada, ou separa- deixam de ser públicas. Estes manuais
damente ou nela própria ou colectiva- são um “processo de aprendizagem”
mente nas suas relações, torna-se um (SANTOS, 1983, p. 8): ocupam-se do
novo texto ininitamente instructivo.” modo de se comportar em todas as
(LAVATER, 1786, III, p. 233). situações, públicas ou privadas, fun-
No entanto há sempre algo que cionam como um espelho a que se
excede e que transparece nessa dis- tenta ajustar a imagem, a composição
simulação como airma B. Nazareth: do corpo; procuram formar um texto
“Quanto ao rosto, nenhuma regra po- corporal normalizado, exclui-se tudo
deria impedir que ele relectisse todas o que possa parecer excêntrico “To-

• 474 •
dos os actos da nossa vida pública têm para se tornar social, civil, público.
que obedecer a praxes estabelecidas, a Nesta passagem de um olhar exterior
um geral convencionalismo, sob pena e impessoal para um olhar envolven-
de sermos considerados descortezes e te e pessoal transformou-se o próprio
ignorantes.” (NAZARETH, B., 1903, corpo. Como se na aprendizagem da
prólogo) “civilização das civilidades” ( Roche in
Parte destes manuais ocupa-se M. Sonnet, 1987, p. 11), elas icassem
da menina burguesa que se prepara aquém da civilização e da cultura, do
para o casamento, que vai ser “a fada laço importante com a abstração e os
e o anjo do lar”, fazendo nela o corte princípios.
entre o exterior turbulento e a paz do As transformações sofridas
“Lar, doce Lar”. Diz B. Nazareth que pelo corpo são culturais e, nele ins-
“O respeito pelas damas é um dos mais critas, através das “técnicas do cor-
fortes alicerces da polidez masculina; po” que foram variando ao longo dos
a prova mais segura de boa educação tempos na aprendizagem das linhas de
d’uma dama cifra-se neste grande prin- demarcação entre os seres - homens,
cipio: retribuir em graças e gentileza o mulheres e crianças, espaços públicos
que recebe de protecção e de vassala- e privados, o que se toca e o que não
gem.”(idem) se toca, o que se mostra e o que não
Na evolução das regras de civi- se mostra, o que é permitido e o que
lidade propostas pelos manuais vêem- é interdito. Um corpo faz-se na apren-
-se as imagens do corpo que se foram dizagem do seu lugar, na travessia que
alterando; corpo sempre presente e ele faz pelos outros e os outros por ele:
que se tenta modelar até à presença cada ser sendo um cruzamento de ios
discreta, à quase invisibilidade. No (familiares, sociais, políticos) e é esse
entanto, o ‘corpo’ povoa estes textos, cruzamento - essa teia - que lhe dá um
em cada regra, em cada linha, ele diz- lugar e lhe permite a sua diferença.
-se, airma-se... Como se a sexualida-
de fosse o segredo, o interdito sempre Teresa Joaquim
presente, a não nomear. Passou-se de
um imaginário religioso - que presidia Referências e sugestões de leitura
a todos os atos do quotidiano, em que
ELIAS, Norbert, La civilisation des mœurs, col. Pluriel,
nada escapava a um olhar (divino) que Paris: Calmann Lévy. 1982
pedia disciplina e obediência, que pe- FOUCAULT, Michel, Histoire de la sexualité. L’usage
netrava todos os atos e pensamentos des plai¬sirs, Paris: Gallimard, col. Bibliothèque des His-
toires, 1984.
e o impensado - para um imaginário
civil, num olhar que deixou de ser ex- JOAQUIM, Teresa, Menina e Moça – a construção social
da feminilidade sec. XVII-XIX, Lisboa: Fim de Século,
terior, fora das ações dos humanos, 1997

• 475 •
KEHL, Maria Rita, As máquinas falantes, in Novaes, de de gênero, o fascismo e a opressão
Adauto (org.), O homem máquina - a ciência manipula
o corpo, São Paulo: Companhia das Letras, 2003. http:// sobre as mulheres, sobretudo na famí-
www.mariaritakehl.psc.br/conteudo.php?id=17 lia e no casamento, por meio dos seus
MAUSS, Marcel Sociologie et Anthropologie. Paris: inúmeros livros, ensaios, conferências
Quadrige/PUF, 1950/1985 e artigos. Conforme destacou o arti-
SANTOS, Maria de Lourdes Lima dos. Para uma socio- culista do jornal “O Imparcial” de São
logia da cultura burguesa em Portugal no séc. XIX. Lis- Luiz do Maranhão: “No Brasil, no que
boa: Presença/ICS,1983.
concerne à emancipação da mulher,
• basta-me citar esse espírito altamente
iluminado de Maria Lacerda de Mou-
Maria Larcerda ra, cuja pena candente vive a vergastar
de Moura preconceitos e dogmas immoraes, com
uma coragem digna dos maiores elo-
Embora se recuse a identiicar- gios” (RIBEIRO,1930, p.1).
-se como feminista, conforme deixa Maria Lacerda de Moura nasceu
claro no excerto do artigo publicado em 16 de maio de 1887 em Manhuaçu
em 1928: “ Não sou feminista, já o de- (MG), ilha de um pequeno funcioná-
clarei. Não sou comunista, não perten- rio, livre pensador, anticlerical e espíri-
ço a nenhum partido político, não pon- ta convicto. Aos quatro anos a família
tiico nem sirvo em nenhuma grei. Não se mudou para Barbacena, cidade onde
exerço nenhum apostolado religioso ela cursou as primeiras letras, a Es-
ou social, não rumino em nenhum re- cola Normal e iniciou sua carreira de
banho acadêmico ou moralitheista, não professora. Casou-se aos 17 anos com
bebo a água da vida de nenhuma seita Carlos Ferreira de Moura, de quem,
ilosóica ou escola cientíica ilológica mais tarde, veio a se divorciar. Não
ou estilizada, clássica ou modernista. teve ilhos naturais; em 1912 adotou
Livre de muleta. Livre de igrejas. Não o sobrinho Jair e Carminda, uma órfã
sou do Progresso Feminino pró-voto (LEITE, 1984). Foi também em Bar-
da Sta. Bertha Lutz e nem do bando bacena que ela começou sua carreira
militarizado e catequista da professora de escritora com a publicação de arti-
Daltro.Voto? - Nem secreto, nem mas- gos em jornais locais e do seu primei-
culino, nem feminino”, Maria Lacer- ro livro, Em torno da Educação (1918).
da de Moura foi uma das intelectuais Quem ler a matéria do jornal “Cidade
brasileiras que mais contribuiu para o de Barbacena” de 03/01/1909, repli-
pensamento feminista das primeiras cada na “Gazeta de Notícias” de Juiz
décadas do século XX no Brasil e para de Fora, em que a professora da cadei-
denunciar o patriarcado, a desigualda- ra de costura da Escola Normal Maria

• 476 •
Lacerda de Moura é felicitada pela bela irrequieto e atormentado deseja. Uma
exposição de trabalhos manuais de desilusão não diria, mas uma experiên-
suas alunas, “executados com perfei- cia mais fecunda me veio de todo esse
ção”, diicilmente imaginaria que essa movimento. Retirei-me e creio que
professora do interior mineiro ao se para sempre: trabalho sozinha, publico
mudar para São Paulo se tornaria uma meus livros assumindo, corajosamente,
das mais brilhantes e conhecidas inte- a responsabilidade dos meus ideais e –
lectuais brasileiras e um dos principais individualismo...” (BNP, Espólio Cas-
nomes do feminismo de caráter liber- tro Osório, N12/156, 1926)
tário e mais radical no século XX. Maria Lacerda considerava “o
No excerto da epígrafe ica voto um processo inadequado de luta
claro que ela se posiciona contra um pelo poder, que iria beneiciar umas
tipo especíico de feminismo, aquele poucas mulheres sem trazer coisa al-
defendido pelas sufragistas, lideradas guma à multidão feminina, vítima de
em especial por Bertha Lutz, ao lado uma organização social injusta” (Leite,
de quem Maria Lacerda havia funda- 1984, p. xvi). Ela se autodeinia como
do anos antes (em 1921) a Liga para livre pensadora, rejeitando, dessa ma-
Emancipação Intelectual da Mulher neira, qualquer tipo de vínculo ou
(LEIM), um grupo de estudos que associação. Espírito inquieto e ator-
buscava a emancipação das mulhe- mentado, assumiu posições mais ra-
res e que inicialmente assumiu a luta dicais no que se refere à condição da
pelo sufrágio universal (RAGO, 2007). mulher e à emancipação feminina. Ao
Nessa mesma época a então professo- contrário de muitas feministas burgue-
ra mineira, recém-chegada a São Pau- sas do período que buscavam apenas a
lo também ajudou a criar a Federação inclusão em certos diretos de cidada-
Internacional feminina, tornou-se co- nia, Maria Lacerda procurou subverter
laboradora de diversos jornais e foi esta relação ao denunciar e questionar
convidada a participar das campanhas seus fundamentos e a própria socieda-
cívicas e comemorações do centenário de patriarcal burguesa, propondo um
da Independência em 1922. Mas logo igualitarismo mais radical entre os se-
abandonou o associativismo feminista xos (MAIA; SANTOS, 2015). Em suas
e a luta pelo sufrágio feminino, con- palavras: “[...] Dentro da sociedade ca-
forme explicou em carta enviada à pitalista a mulher é duas vezes escrava:
amiga Ana de Castro Osório, escritora é a ‘protegida’, a tutelada’, a ‘pupila’ do
feminista portuguesa: “Quanto ao mo- homem, a criatura domesticada por
vimento feminista – retirei-me logo. um ‘senhor’ cioso, e ao mesmo tem-
Não é nada disso que o meu espírito po, é escrava social de uma sociedade

• 477 •
baseada no dinheiro e no privilégio...” criticava os feitos do aviador italiano
(MOURA, 1928b, p.3). Ela se tornou Carlo Del Prete. Em resposta o jornal
uma das principais porta-vozes da italiano “Il Piccolo” publica matéria
vertente do feminismo mais libertário “[...] em tom insolente (...) ofensivo aos
(RAGO, 2007). Essa vertente era cons- brios do povo brasileiro” (A MANHÃ,
tituída por mulheres trabalhadoras e 25/09/1928, p. 1), revoltando um gru-
intelectuais, militantes de movimentos po de estudantes que encabeçou mani-
de esquerda; apontava de forma não festações, ocasionando a destruição do
velada a opressão masculina e defendia prédio do jornal e seu empastelamento.
“a libertação da mulher de uma forma Após incendiarem o prédio Il Piccolo,
radical (...) articulando as teses feminis- os manifestantes em passeata segui-
tas aos ideários anarquistas e comunis- ram em direção à sede de outro jor-
tas” (PINTO, 2003, p.15). nal italiano, “Fanfulla”, sendo contidos
Maria Lacerda foi também uma pela polícia. O movimento, inspirado
das principais vozes, pensadoras e ins- nos escritos de Maria Lacerda assumiu
piradoras dos movimentos antifascis- caráter antifascista, “sendo ouvidos, a
tas no Brasil, tornando-se grande in- toda hora, os gritos de “Abaixo Musso-
luenciadora da juventude de esquerda. lini!” e “Abaixo o fascismo!”” (Idem).
A partir do inal dos anos de 1920 ela Esse acontecimento contribuiu para
passou a denunciar em seus escritos o que o pensamento de Maria Lacerda
autoritarismo do Estado e da Igreja, o ganhasse maior notoriedade; ela pas-
avanço de ideais fascistas, a tendência sou a colaborar regularmente com o
à militarização do Estado e o serviço jornal “A Manhã” do Rio de Janeiro,
militar obrigatório para homens e mu- foi convidada para realizar várias con-
lheres. É desse período as obras De ferências no Rio, em Santos e na Ar-
Amundsen a Del Prete (1929), Civili- gentina, demonstrando que suas ideias
zação: tronco de escravos (1931), Amai e... não icaram restritas às fronteiras na-
não vos multipliqueis (1932), Serviço militar cionais.
obrigatório para a mulher? Recuso-me! De- Na Argentina, a convite da In-
nuncio! (1933), Clero e fascismo: horda de ternacional do Magistério Americano,
embrutecedores (1934) e Fascismo-ilho dileto da Liga de Educação Racionalista, do
da Igreja e do capital (1934) dentre outras Syndicado Proissional de Educado-
produções como conferências– todas res e da Liga Antifascista Italiana, ela
amplamente divulgadas – e textos jor- passou um mês e meio, em 1929, reali-
nalísticos. zando conferências sobre vários temas,
Em 1928 ela publicou artigo dentre eles a emancipação feminina e a
no jornal paulista “O Combate” onde liberdade sexual da mulher. Essa últi-

• 478 •
ma conferência chegou a ser repetida ocasionavam às mulheres. Para ela a
três vezes devido ao sucesso de públi- família é constituída por um contrato
co. Dentre os seus ouvintes estavam que alicerça a escravidão e a exploração
os exilados brasileiros das revoltas te- de um dos contratantes que é a mulher.
nentistas Luiz Carlos Prestes, Siqueira A sociedade, resultante desse contrato,
Campos e Juarez Távora. é mantida, portanto, “à custa da estu-
Ao regressar ao Brasil o jornal pidez da ingenuidade ou da escravidão
carioca A Manhã publicou ampla ma- feminina. Logo, essa sociedade deve
téria de primeira página com as suas ser destruída” (MOURA, 1926). Es-
impressões de viagem, fotos e anun- ses argumentos foram posteriormen-
ciou nova série de conferência. Uma te desenvolvidos e aprofundados por
delas, sobre a “Emancipação sexual da importantes teóricas femininas como
mulher”, assumiu forma de protesto, Colette Guilhaumin (1978) e Carole
organizado pelo órgão universitário Paterman (1988).
Folha Acadêmica, em resposta à “gros- Maria Lacerda nos legou uma
seria” do presidente da Liga de Defesa extensa bibliograia entre livros, tex-
Nacional, que de última hora “resolveu tos jornalísticos e conferências. Ela foi
não mais permitir a realização da mes- uma paciista, antifascista, anticlerical,
ma” na sede. Segundo A Manhã “É individualista, anarquista, neo-mal-
incontestavelmente, uma prova de in- thusiana e uma intelectual ávida pelo
cultura lamentável e deseducação ver- conhecimento. Foi autodidata, desen-
gonhosa” (A MANHÃ, 06/09/1929, volvendo estudos em vários campos,
p.1). Este episódio ilustra como Maria entre eles a ilosoia, a astrologia e
Lacerda foi uma mulher muito à frente principalmente a educação; defendeu a
da sua época, tanto em seu modo de maternidade consciente e o amor livre.
vida quanto em seu pensamento in- Mas sua maior contribuição foi, sem
submisso, que incomodava, provocava, dúvida, a tentativa de subverter os dis-
causava controvérsia e muitas incom- cursos de naturalização do feminino e
preensões. Ela também foi antecipa- domesticação das mulheres, cuja única
dora de vários temas do feminismo função de existir deveria ser a procria-
contemporâneo, sugerindo em 1922 a ção.
criação “de uma cadeira de história da A partir de 1937, com o au-
mulher”, conquista alcançada pelo fe- mento da repressão promovida pelo
minismo acadêmico somente nos anos Estado Novo, ela aos poucos deixou a
de 1970; foi pioneira ao examinar, por cena pública e não encontramos mais
exemplo, a opressão e exploração que notícias dela nos jornais. Segundo Mi-
o contrato de casamento e a família riam Moreira Leite, responsável por

• 479 •
extensa pesquisa sobre a vida de Ma- MOURA, Maria Lacerda. Religião do amor e da bele-
za (1926). In: LEITE, M. L. M.(org.) Maria Lacerda de
ria Lacerda que rompeu um grande Moura: uma feminista utópica. Florianópolis: Ed. Mu-
silêncio até bem recentemente sobre lheres; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2005, p. 118-134.

sua obra, nesse período ela retornou ______. Feminista? – Não. A Manhã. Rio de Janeiro, 09.
a Barbacena fugindo da repressão de Dez.1928.

Vargas, mas lá ela não foi bem recebida ______. A Emancipação feminina. O Combate, São Pau-
icando pouco tempo, aos poucos se lo, n. 4604, p. 03, 12/01/1928b.
refugiando no espiritualismo e no tra- PATEMAN, Carole. he Sexual Contract. Stanford Uni-
balho no ensino comercial. Na década versity, 1988.
de 1940 reencontramos Maria Lacerda
PINTO, Celí. R. J. Uma história do feminismo no Brasil.
no Rio de Janeiro onde viveu até a sua São Paulo: Fundação Perseu Abrano, 2003.
morte “num apartamento central, da
RAGO, Margareth. Ética, Anarquia e Revolução em Ma-
Rua Mem de Sá, sob os Arcos de Santa ria Lacerda de Moura. In: REIS, Daniel Aarão; FERREI-
Teresa, em 1945” (Leite, 1984, p. xi). RA, José (org). As esquerdas no Brasil, v.1, A formação
das Tradições, 1889-1945. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007, p. 262-293.
Cláudia Maia
______. Entre o anarquismo e o feminismo: Maria La-
cerda de Moura e Luce Fabbri. Verve Revista do Núcleo
Referências de Sociabilidade Libertária Pepgcs. Puc/SP, v.21, p. 54-
77, São Paulo, 2012.
A MANHÃ. Assumem um caráter de extrema gravidade
as manifestações anti-fascistas de São Paulo. Rio de Janei- RIBEIRO, Adelino. Saint-simon. O imparcial. São Luiz,
ro, 25 set. 1928. 30/07/1930, p.1.

______. A pena que provoca tempestades. Rio de Janei- Sugestão de leitura


ro, ano IV, n.890, 03 nov.1928, p.1.

CIDADE DE BARBACENA. Barbacena, ano XII, n. LEITE, Miriam L.Moreira. Outra face do Feminismo:
550, 03 jan.1909, p.2. Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984.

GUILLAUMIN, Colette. Sexe, race et pratique du pou- LEITE, Míriam L. Moreira. (Org.) Maria Lacerda de
voir. L’idée de Nature. Paris : Côté-femmes,1978. Moura uma feminista utópica. Florianópolis: Editora
Mulheres, 2005.
LEITE, Míriam. L. Moreira. Outra face do Feminismo:
Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984. LEITE, Míriam L. Moreira. Maria Lacerda de Moura:
trajetória de uma rebelde. Filme. Disponível em http://
LEITE, Míriam L. Moreira (Org.) Maria Lacerda de vimeo.com/35898796. Acesso em 18/set./2013.
Moura uma feminista utópica. Florianópolis: Editora
Mulheres, 2005. MAIA, C.; SANTOS, P. Maria Lacerda de Moura: crítica
à família burguesa e à exploração feminina. In: MAIA,
LEITE, Míriam L. Moreira. Maria Lacerda de Moura: C.; PUGA, V. (org.) História das Mulheres e do gêne-
trajetória de uma rebelde. Disponível em http://vimeo. ro em Minas Gerais. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2015,
com/35898796. Acesso em 18/set./2013. p.97-122.

MAIA, Cláudia.; SANTOS, Patrícia. Maria Lacerda de RAGO, M. Ética, Anarquia e Revolução em Maria La-
Moura: crítica à família burguesa e à exploração femini- cerda de Moura. In: REIS, Daniel Aarão; FERREIRA,
na. In: MAIA, C.; PUGA, V. (org.) História das Mulheres José (org). As esquerdas no Brasil, v.1, A formação das
e do gênero em Minas Gerais. Florianópolis: Ed. Mulhe- Tradições, 1889-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
res, 2015, p.97-122. leira, 2007, p. 262-293.

• 480 •
• divino. De acordo com o texto bíbli-
co, um exemplo desse processo teria
Marianismo acontecido durante as Bodas de Caná.
Seu culto foi essencial na religião e na
Se no período das sociedades sociedade medievais.
pagãs tradicionais a igura da mulher A adoração a Virgem Maria é
foi divinizada nos cultos em homena- expressa tanto artisticamente quanto
gem a Deusa Mãe, no mundo do oci- por escrito, principalmente pela sua
capacidade intercessora pelos pecado-
dente cristão medieval o feminino (e,
res no dia do Juízo Final. Há que se
portanto, a mulher) passou a ser asso-
salientar também, que essa representa-
ciado ao maligno e à imagem do de-
ção pictórica preferiu se concentrar na
mônio. Ao ser instituída a Reforma Gre- suavidade, na humanidade e na femini-
goriana, quando da criação do celibato lidade da sua igura maternal, elemento
clerical ocorre a criação da dicotomia bem marcado em obras clássicas do
entre Eva e Maria, daí poder airmar Renascimento como a Pietá de Miche-
que tem início um processo de diabo- langelo. O Marianismo, na opinião do
lização da mulher, representada como medievalista Jacques Le Goff, pode ser
a descendente direta da primeira, porta considerado uma das razões pela qual
através da qual o mundo havia caído houve um afastamento entre a igura
em pecado. No entanto, em sentido de Deus na visão da igreja católica e
inverso a tal processo e de forma dia- a igura de Javé. Segundo o autor esse
metralmente oposta, durante a mesma afastamento foi ocorrendo de forma
progressiva e a “(...) passagem da sacra
idade média ocidental, emerge uma
pagina para a teologia, sobretudo no sé-
tendência oposta, através do fortaleci-
culo XII, mas também no século XIII,
mento do culto à Virgem Maria.
foi motivo de encontros e discussões
O culto de Maria, mãe de Cris-
entre doutores cristãos e rabinos” (LE
to, foi reconhecido pela igreja e for-
GOFF, 2007, p. 97).
malmente aprovado por ela no Con-
Até esse momento o diálogo
cílio de Éfeso promovido em 431 D.
entre os religiosos parecia seguir uma
C. Durante todo o período medieval,
senda frutuosa e pacíica, no entanto,
ela foi adorada como a primeira dentre
como a história demonstra, o desca-
todos os santos dada a sua posição de
minho aconteceu e o frágil diálogo in-
intermediária entre Jesus e os homens,
ter-religioso do século XX é herdeiro
o que lhe concede o mote de medianeira
desse processo. Uma das razões pela
divinal, advogada quase que exclusiva
qual o conlito estabeleceu-se foi o
dos seres humanos junto a seu ilho
• 481 •
culto a Virgem Maria, pois em alguns ação exatamente nesse momento. E o
Talmudes sua representação se faz inal dos tempos medievais marcado
de maneira menos ufânica do que no por eventos históricos como a Guerra
Cristianismo, denotando sua forma dos Cem Anos, a Peste Negra e revol-
puramente humana, quando não a tra- tas camponesas em diferentes locais da
tando como uma prostituta. Também Europa, só reforçou esse processo. A
é possível airmar que o culto à Maria intercessão da Virgem Maria era uma
marca um processo de especialização forma através da qual as mulheres e
muito importante na devoção cristã. homens desses tempos poderiam ga-
Levando-se em conta a organização rantir junto a Deus proteção, alimenta-
administrativa e hierárquica da igreja ção e segurança de modo geral.
católica como sendo contemporânea Se for levada em consideração a
a queda do Império Romano (século situação do mundo contemporâneo e
IV), percebe-se que o mundo cristão os fenômenos onde (acredita-se) ocor-
ocidental se organiza de forma rápida reram aparições da Virgem, como em
e dentro de um paradoxo, elemento ca- Fátima, por exemplo, pode-se consta-
racterístico do medievo, qual seja ele, tar a mesma percepção de falta de se-
uma crença universal e uma forma de gurança e um novo rearranjo da igura
devoção particular. Assim, Deus se divina, acompanhando as transforma-
torna cada vez mais Misericordioso, ções e as necessidades da sociedade. A
Protetor e Concessor. A partir daí, um grande questão é que a manifestação
exército de anjos passa a estar disponí- das infelicidades faz com que homens
vel para tomar conta da humanidade. e mulheres modiiquem sua relação
Mas ao lado de Deus, são os com Deus e se aproximem mais da
santos que devem desempenhar papel igura do Cristo da Paixão, do Deus
primordial nesse sistema. E no caso, que sofre. Ao mesmo tempo, existe
não há igura santa mais preponderan-
por parte dos seres humanos a procu-
te que a de Maria, que com seu manto
ra de um espaço de proteção. Nesse
protetor espalha dons por toda a so-
espaço é que prolifera o Marianismo.
ciedade. Dada as condições da idade
E tais atitudes são efetivamente mais
média central (X-XIII) onde se multi-
plicavam transformações e reivindica- importantes para a compreensão do
ções por parte das pessoas, é percep- fenômeno religioso do que a relação
tível a necessidade que a comunidade costumeiramente estabelecida entre a
tem de uma “(...) diversiicação das promoção da igura da Virgem Maria e
manifestações de Deus” (LE GOFF, a promoção da mulher, elemento que,
2007, p. 57). O Marianismo enraíza sua principalmente no que tange ao medie-

• 482 •
vo é plenamente questionável. Até por- seus seios: “(...) Adur pod’ esta razon/
que, antes de ter elevado a condição da toda o mour’ encimar quand’ à oma-
mulher naquele tempo, a igura virginal gen enton/ viu duas tetas a par,/ de
da mãe de Jesus Cristo, se desprendeu viva carn’e e d’ al non,/ que foron logo
da sua condição feminina para adquirir mãar/ e deitar/ leite como per canu-
um estatuto divino que é impossível dos. Porque ajan de seer...” (AFONSO
encontrar em um ser humano. X, 1959, p. 136).
O culto mariano desenvolveu-se Os dogmas em torno da Virgem
cedo no ortodoxismo grego. Ele pene- Maria foram motivo de controvérsia
trou mais lentamente no ocidente, não no seio da igreja a qual só airmou
porque a igura da Virgem não tenha alguns deles recentemente: no século
estado presente no culto desde a alta XIX, o da Imaculada Conceição e no
idade média (VIII-X), mas porque so- século XX o da Assunção. No entanto,
mente a partir do século XI é que toma percebe-se que as duas noções teoló-
lugar central nas crenças e práticas do gicas já estavam fortemente consolida-
mundo ocidental. Ele torna-se o cora- das e institucionalizadas e o processo
ção da reforma que a igreja promove da sua airmação inicia-se no mundo
entre meados do século XI e do sécu- medieval, justamente quando do forta-
lo XII, ligada à evolução da devoção à lecimento do culto mariano.
Cristo e ao culto eucarístico. O motivo por trás da violenta re-
Diferente da maioria dos san- cusa a estes dogmas por certo número
tos, os quais são especializados na cura de santos e teólogos eminentes como
de certas doenças ou tem uma função São Bernardo e Tomás de Aquino pro-
social especíica e determinada, Maria vém não somente da impossibilidade
pode ser vista como uma “(...) gene- teológica arquitetada pela ideia contida
ralista do milagre” (LE GOFF, 2007, nos mesmos, mas também pelo fato de
p.112): ela é competente em todos os que esses dogmas representam uma es-
problemas das mulheres e dos homens pécie de heresia ao se desdobrarem em
e quando age o faz de forma eicaz. uma adoração quase pagã a Virgem Ma-
Assim, assume um lugar de suma pre- ria, o que retorna as raízes ancestrais
ponderância na salvação dos humanos dos cultos as deusas mães.
sendo-lhe atribuídas ações que vão O culto mariano também se be-
da audácia ao escândalo, questão que neiciou de uma iconograia farta de
pode ser exempliicada através das inspiração e extremamente lorescente.
Cantigas de Santa Maria, onde se narra Muitas miniaturas e esculturas izeram
a conversão de um mouro que ocor- penetrar “(...) no coração e nos olhos
reu pelo fato de ter vertido leite de dos homens e das mulheres da Idade

• 483 •
Média um tesouro de imagens maria- quais airmam ser a virgindade um fa-
nas” (LE GOFF, 2007, p. 114). Os tor que serve como “medidor” da pu-
temas principais da representação da reza feminina. Cabe salientar que nessa
Virgem passaram por uma evolução hierarquia as virgens têm lugar de pre-
durante o período medieval: a igura da ponderância sendo consideradas peca-
virgem aparece em um primeiro mo- doras tão somente pela sua origem e
mento como a de uma mãe com seu i- devem se conservar castas, pois assim
lho de origem divina sobre os joelhos. se mantém entre as preferidas de Jesus
Depois, ela se torna um momento para Cristo. Quanto às viúvas, encontram-
homenagear a beleza feminina. Poste- -se em segundo lugar na escala desde
riormente, no contexto da dolorização que não mais copulem, pelo fato de ha-
do cristianismo; sua igura modelar verem perdido a virgindade em virtude
será a da Pietá, a da mãe que tem seu i- do casamento. Já as mulheres casadas
lho morto sobre os joelhos. Por im, se estão em terceiro lugar, uma vez que,
tem a igura da Virgem da Misericórdia mesmo praticando o ato sexual apenas
que protege sob seu manto os iéis seja por obrigação, estão sendo acometidas
individualmente seja em grupo. e estão cometendo o pecado carnal.
O Marianismo transcendeu Vale ressaltar que o culto maria-
fronteiras de classe social e atraiu tan- no não icou restrito apenas à Europa
to indivíduos de origem nobre quanto Ocidental, sendo trazido para outras
camponeses, sendo tão importante no regiões como o Brasil, por conta dos
período que Maria pode ser conside- colonizadores portugueses e para a
rada como uma quarta pessoa na San- América Espanhola por conta dos co-
tíssima Trindade, posição que lhe foi lonizadores espanhóis. Aliás, pode-se
sancionada através da oração Ave Ma- dizer que esse culto não perdeu em
ria. O mundo medieval rendeu-lhe um popularidade e em fervor mesmo com
culto tão importante quando o que se o processo de emigração para o ultra-
prestava ao Deus Pai e ao Deus Filho, mar. Na verdade, na medida em que a
o que lhe acarretou um processo de di- cultura dos colonizadores entrou em
vinização. contato com a cultura dos colonizados,
De acordo com Vânia Nara Pe- o culto mariano se reviviicou, se for-
reira Vasconcelos, “o culto a Virgem taleceu e assumiu tendências claras de
Maria está associado à defesa da vir- crescimento.
gindade” (VASCONCELOS, 2005, p.
6). Esse processo pode ser conirmado Márcia Maria de Medeiros
Tânia Regina Zimermann
a partir da leitura dos escritos dos pa-
dres da Igreja entre eles São Jerônimo, os
• 484 •
Referências e sugestões de leitura fato, não formal, também conduziria,
embora implicitamente, à emancipação
AFONSO X, O sábio. Cantigas de Santa Maria. Coim-
bra: Editora da Universidade, 1959.
não só das mulheres senão de todos os
explorados.
ARY, Zaíra. Marianismo: poder ou contrapoder das mu-
lheres. In: ARY, Zaíra. Masculino e feminino no imagi- Como airmado anteriormen-
nário católico: da Ação Católica à Teologia da Libertação. te, Marx e Engels não se dedicaram
São Paulo: Annablume, Fortaleza: SECULT, 2000.
especiicamente a tal problemática,
DUBY, Georges, PERROT Michelle. História das Mu-
lheres no Ocidente. Vol. 2, Lisboa: Afrontamento, 1990.
como, aliás, ocorre em outros campos
e temáticas, no entanto, apesar disto,
LE GOFF, Jacques. As Raízes Medievais da Europa. Pe-
trópolis: Vozes, 2007.
podem-se observar alguns elementos
presentes em suas análises que nos
LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média. Rio de Ja-
neiro: Civilização Brasileira, 2007. permitem identiicar aportes funda-
mentais para a compreensão da relação
LE GOFF, Jacques. Em Busca da Idade Média. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. entre gênero e marxismo. Gênero é
OPITZ, Claudia. As mulheres nas estratégias familiares
compreendido para além do biológi-
e sociais. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. His- co, ligado a padrões sociais e formas
tória das Mulheres. Vol. 2, Lisboa, Afrontamento, 1990.
de comportamento que estão inseridos
VASCONCELOS, Vânia Nara Pereira. Visões sobre as historicamente em determinadas rela-
mulheres na sociedade ocidental. In: Revista Ártemis.
Vol. I, n 3, 2005. ções sociais.
Neste sentido, podemos identi-
VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea. São Paulo: Cia das
Letras, 2003. icar obra de Marx e Engels, sobre a
questão feminina, uma visão que vai

do discurso ético e idealista a uma aná-
lise histórica e crítica. Percorrendo O
Marxismo
caminho cronológico possível de fa-
zer na sua obra pode ser percorrido
Embora Marx não tenha traba-
lhado explicitamente a questão femini- a partir da ‘Questão Judaica’ (1843),
na ou a questão de gênero, é possível momento de desconstrução radical da
apontar, no conjunto da sua obra, a in- perspectiva hegeliana, da ruptura que
conduz a separação entre o mundo pri-
clusão dessa preocupação no bojo dos
vado e o mundo público, entendendo
processos de hierarquização e explora-
como uma totalidade social, aqui en-
ção em que se baseia a sociedade ca-
tão, a família emerge como espaço de
pitalista. Além disto, o impulso eman-
reprodução e coninamento da mulher
cipatório, componente fundamental
e a compreensão da igualdade formal
do pensamento marxiano e marxista
como característica da sociedade capi-
ao propor a procura pela igualdade de
• 485 •
talista moderna. Nos ‘Manuscritos Eco- especíicas divisões do trabalho no âm-
nômicos e Filosóicos’ (1844) a opressão bito das relações de gênero históricas
feminina é assumida como fenômeno veriica-se que a produção capitalista
social. Em ‘A Sagrada Família’ (1845) também se apoia na opressão da mu-
analisa a determinação histórica das lher (HAUG, 2007).
relações entre sexos, condicionando Não faz parte da lógica do ca-
como possibilidade histórica a eman- pital uma relação de igualdade subs-
cipação feminina à emancipação geral tancial, tanto no espaço reprodutivo
dos homens e mulheres. Na ‘Ideologia como no produtivo. A lógica do capital
Alemã’ (1845/46), consolida-se a visão se opõe frontalmente ao processo de
da família, como primeira formação emancipação da mulher, uma vez que
das relações de propriedade e onde re- ele necessita, para a preservação do
lações de escravidão persistem “natu- seu sistema de dominação, do trabalho
ralizadas”, ainda que “tosca e latente”. feminino sustentado pelos mecanis-
Na obra máxima ‘O Capital’ (1867), o mos estruturais que geram a subordi-
modo de produção capitalista dá um nação da mulher. O desenvolvimento
novo papel às mulheres, a categoria do capitalismo criou pressões ideoló-
de mulheres proletárias, desta forma, gicas contra a desigualdade racial ou
há uma mudança de signiicados na a opressão de gênero e diferenças em
concepção agora desempenhada pe- grau sem precedentes se comparado
las mulheres que é um ser ativo social, com as sociedades pré-capitalistas. En-
política e economicamente. Em 1884, tretanto, o capital tem sido capaz de
em ‘A Origem da Família, da Propriedade
tirar vantagens do racismo e do sexis-
Privada e do Estado’, uma análise mais
mo, os quais fortalecem as assimetrias
ampla permite caracterizar a família in-
estruturais do sistema capitalista e divi-
dividual moderna como a “forma celu-
dem a classe trabalhadora. Ambos fun-
lar da sociedade moderna”, ao mesmo
cionam bem no capitalismo, pois são
tempo em que airma a “escravidão
capazes de gerar clivagens para certos
doméstica da mulher”.
setores da classe trabalhadora no seio
De maneira geral, nas obras
das condições competitivas do merca-
fundacionais do pensamento marxista
do de trabalho. O capitalismo é lexível
não estão explícitos os vínculos entre
na capacidade de usar e de descartar
relações de produção e gênero, o qual
opressões sociais particulares, poten-
se veriica, por exemplo, na omissão da
cializando as hierarquias como meca-
dominação no âmbito da família mo-
nismo de justiicação para encobrir a
nogâmica. Pois, ao estudar a imbrica-
exploração de classes.
ção da exploração capitalista com suas
• 486 •
O encontro entre marxismo e socialismo no século XX parece ter
gênero somente irá se realizar com a dado impulso ao surgimento de uma
consolidação desta categoria, enquanto vertente da teoria feminista que vai de-
campo analítico, na segunda metade do saguar nas questões de gênero como
século XX. Tal imbricação, que aponta uma crítica aos ‘regimes comunistas
para a transformação radical da socie- realmente existentes’, airmando que
dade nos conduz ao debate fundamen- a revolução seria insuiciente para a li-
tal das relações que demarcam dois beração feminina, ainda que se tenha
campos – com relações nem sempre mudado o sistema econômico.
fraternas –, pois podemos observar es- Por sua vez, a questão de gê-
tudos que enfatizam a exclusividade da nero e marxismo na luta social, não
maternidade teórica da necessária revo- nasce de questões abstratas, mas sim,
lução social como senda da emancipa- de questões concretas no cotidiano da
ção no desenvolvimento de estudos de vida, seja, no início do século XX com
gênero, como aqueles que airmam que as lutas revolucionárias, em especial
tal categoria contribui para a ampliação na Europa, a luta contra guerra (1915
do arcabouço teórico do marxismo. – Berna, Suíça - Conferência Interna-
Tal embate de estratégias encontra-se cional das Mulheres – Manifesto das
embutida na perspectiva marxista mais Mulheres da Classe Trabalhadora). Tal
ortodoxa, que aponta a necessidade de período é marcado pela contribuição
uniicar as questões de classe e gêne- prática e teórica de mulheres marxistas
ro, sendo que uma das leituras airma como Klara Zetkin, Rosa Luxembur-
“que o gênero era uma forma de clas- go, Alexandra Kollontai e Nadezhda
se”, assim como também que poderia Kruspskaya, que terão signiicativa in-
se caracterizar as mulheres como classe tervenção no debate feminista para as
considerando as “relações de produção gerações seguintes, com ampla expres-
‘afetivo-sexuais’” (BENHABIB; COR- são na Revolução Russa. Precisamen-
NELL, 1990). Nessa vertente, Wood te, a luta no interior da construção do
(2003), airma que as relações de gê- Estado Soviético, impulsionou a parti-
nero – nem as raciais – são óbice ao cipação feminina como engajamento
capital para realizar a exploração de a partir das contradições surgidas na
classe, o que implica na possibilidade construção do socialismo e a liberta-
de reconhecimento, sem a necessidade ção da mulher. Neste sentido, Kollon-
de modiicar as relações de produção. tai airmará que: “A tarefa da ideologia
Ainda, de outro lado, como aponta proletária não é, pois, separar das suas
D’Atri (2011), há posturas airmando relações sociais o amor, mas dar-lhe
que o desencanto com os rumos do um novo colorido, ou seja, visa desen-

• 487 •
volver o sentimento do amor entre os sociais e relaciona-las às relações de
sexos, baseado na mais nova e pode- poder como parte de um mesmo
rosa força: a solidariedade fraterna” movimento. Portanto a utilização do
(2005, p.158). conceito gênero e patriarcado assume
Nos anos 70, as elaborações e um conteúdo de radicalidade contra a
atuação de Simone de Beauvoir (na sua opressão do homem e de classe. Den-
obra ‘O segundo sexo’) inaugura um tre os inúmeros desaios contempo-
novo campo do saber “A Mulher” e Ju- râneos que o marxismo e o gênero se
liet Mitchell, a brilhante teórica do ‘Wo- defrontam é possível destacar as suas
man’s State’, consolida a relexão de tal imbricações com a reforma urbana, a
problemática e, em certa medida, apro- precarização do trabalho, a soberania
funda a relação entre gênero e marxis- alimentar, a reforma agrária, o aborto,
mo, ampliando o escopo analítico e sua a violência, as questões indígenas, qui-
inserção acadêmica. Nesse caminho, lombolas e do ‘bom viver’. Além disto,
o trabalho de Safioti provoca uma pode-se constatar que o século XXI
discussão entre os conceitos de gêne-
é permeado por tensões em torno da
ro e patriarcado, para compreender a
participação política das mulheres na
questão feminina como tensão perma-
luta, recolocando o conceito de gêne-
nente, para que o conceito de gênero
não esconda o conteúdo do conceito ro em perspectiva prática: politização
de patriarcado, que é a expressão da e ação nas lutas urbanas e campesinas
estrutura desigual entre homens e mu- a exemplo da Marcha Mundial das Mu-
lheres, pois “tratar esta realidade exclu- lheres, Movimento Mulheres Campo-
sivamente em termos de gênero distrai nesas, Mulheres Sem Terra e da Via
a atenção do poder do patriarca, em Campesina. Trata-se de uma Re-politiza-
especial como homem/marido, ‘neu- ção (GONÇALVES, 2009) do conceito
tralizando’ a exploração-dominação a partir da luta das mulheres que parti-
masculina” (2004, p. 136). Airma tam- cipam dos movimentos populares pas-
bém, que o capitalismo se apropria das sando a assumir um papel protagonista
desigualdades entre os sexos para con- na luta contra opressão e o capital, e
tinuar a sua reprodução, contribuindo reairmando a construção de uma so-
com as análises da mulher em perspec-
ciedade livre da opressão e exploração.
tiva histórica, de classes.
Na atualidade pensar em pers- Guillermo Alfredo Johnson
pectiva marxista as relações de gênero Marcos Antônio da Silva
signiica conceber tais relações como Maria Gorete Souza
elementos constituintes das relações

• 488 •
Referências com um corpo dotado de órgãos que
possibilitam e favorecem a reprodução
BENHABIB, Seyla e CORNELL, Drucilla. Más allá de
la política de género. In: ______ (orgs.). Teoría feminista
biológica da espécie, sendo cada ser
y teoría crítica. Barcelona: Alfons el Magnánim, 1990. humano, em sua maioria, dotado de
GONÇALVES, Renata. (Re)politizando o conceito de um dos dois órgão chamados de geni-
gênero: a participação política das mulheres no MST. tais ou sexuais (há casos excepcionais,
Mediações, Londrina, v. 14, n.2, p. 198-216, Jul/Dez,
2009. nomeados de hermafroditismo, em que
os indivíduos podem portar partes ou
HAUG, Frigga. Para uma teoria das relações de gênero.
In: BORÓN, Atílio A.; AMADEO, Javier; González, Sa- a totalidade dos dois órgão genitais ou
brina. A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas.
Buenos Aires: CLACSO, 2007.
sexuais). Como seres sociais e culturais
que são, os humanos, ao contrário dos
KOLLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral se-
xual. São Paulo: Expressão Popular, 2005. outros animais, partindo da observa-
ção das diferenças entre os seus corpos
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado e violência.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. (Co- e, mais particularmente, da diferença
leção Brasil Urgente). dos órgãos genitais ou sexuais, trans-
WOOD, Ellen. Democracia contra capitalismo: a reno- feriram para a linguagem e para outras
vação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, dimensões de sua cultura e da própria
2003.
organização em sociedade essas dife-
Sugestões de leitura renças. Como descreveram inúmeros
trabalhos antropológicos, os diversos
BORÓN, Atílio A.; AMADEO, Javier; GONZÁLEZ, grupos humanos, desde os menos
Sabrina. A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas.
Buenos Aires: CLACSO, 2007. complexos, utilizaram as diferenças de
seus genitais e de seus corpos para fun-
BUTLER, Judith. Problemas de gênero - feminismo e
subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Bra- dar não apenas diferenças, mas tam-
sileira, 2012. bém diferenciações e hierarquias no
D´ATRI, Andrea. Lutadoras – histórias de mulheres que interior dos agrupamentos humanos.
izeram história. São Paulo: Editora Iskra, 2011. Realizando aquilo que a ilósofa femi-
KOLONTAI, Alexandra. O amor e a nova moral. São nista Judith Butler chamou de implan-
Paulo: Editora Expressão Popular, 2007.
tação do sexo nos corpos, as socieda-
SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: des humanas instituíram na linguagem
mito e realidade. São Paulo: Quatro Artes, 1969.
conceitos para dar sentido, signiicados
• e signiicações culturais a essas distin-
ções observadas nos corpos. Noções
Masculino/Masculinidade como as de macho e fêmea, masculino
e feminino, homem e mulher, agrupa-
Os seres humanos nascem, as- das sob a categoria sexo, serviram não
sim como a maioria dos seres vivos, só para denotar, apontar, sublinhar e

• 489 •
descrever essas diferenças, como para gerações de humanos, como forma de
conotar, distinguir, deinir, classiicar, preservar e retransmitir a própria or-
dar sentido, hierarquizar, comparar, dem social. A desordem nos corpos ou
estabelecer signiicados culturais e so- na organização física e simbólica que
ciais para essa diferenciação tida como as sociedades humanas conferiram a
biológica, embora, seja, desde o início eles passa a signiicar a própria desor-
das sociedades humanas, também cul- dem ou o caos social. Ao submeter a
turais. Lévi-Strauss mostrou em seus prática da cópula, o uso dos genitais,
trabalhos a importância dessa diferen- a própria materialidade deles nos cor-
ciação binária entre os sexos para não pos a códigos, a regras de ordem social
só o estabelecimento das estruturas de e simbólica, ao estabelecer estruturas
parentesco, como das próprias estrutu- que dariam regularidade, submeteriam
ras narrativas e mitológicas que orga- a uma dada ordem, a dadas hierarquias,
nizavam toda a ordem social, inclusive a dadas classiicações, a obediências a
a distribuição territorial e conforma- dados preceitos, tabus, leis as práticas
ção dos clãs, a divisão de tarefas e de materiais e simbólicas ligadas ao uso
trabalho, as divisões e hierarquias de do que se nomeou de pênis, de vagina
poder, prestigio e honra, as regras de ou de qualquer outra parte do corpo
parentesco e de casamento, os tabus e envolvida no que seria o ato sexual,
atribuições rituais e religiosos. as sociedades humanas estabeleceram
Todas as sociedades e cultu- modelos de comportamento, de atitu-
ras humanas são marcadas por essa des, de gestos, de usos do corpo, de ati-
diferenciação entre o que se nomeou tudes físicas e simbólicas para os seres
de sexos, diferenciação que parte da nomeados de femininos (aqueles que
observação dos corpos mas que vem portavam um corpo assim classiicado
se materializar na cultura e na ordem e marcado por traços de distinção que
social. Sendo nuclear na própria re- do plano biológico passam ao plano
produção biológica e social de cada social e cultural, como: ter a capacida-
agrupamento humano, a reprodução de de engravidar e parir novos seres
das diferenças culturais, simbólicas, humanos, ter a capacidade de ama-
imaginárias, estéticas, entre o que se mentar, ter glândulas mamárias e seios
chamou de sexos tornou-se também mais proeminentes, além de várias
essencial para a reprodução da própria características secundárias distintas) e
ordem social. Essa diferença, com to- para aqueles nomeados de masculinos
dos os sentidos e signiicados sociais (aqueles que portavam um corpo assim
e culturais que adquiriu, passa a ser classiicado e marcado por traços de
ensinada, retransmitida para as novas distinção tanto biológicos, embora em

• 490 •
menor número do que nos corpos fe- cipal delas a família, os modelos de
mininos, quanto simbólicos e culturais, sujeito, os modos de comportamen-
como: ter tendencialmente uma maior to, as performances corporais, gestu-
desenvolvimento muscular, apresen- ais, simbólicas, a fazer rostos que são
tar em grande número de casos maior apresentados como normais, naturais,
presença de pelos em dadas partes do especíicos, próprios de homens e de
corpo, como no rosto, peito e abdó- mulheres, de seres masculinos e femi-
men, apresentar uma tonalidade mais ninos. A esses modelos de como ser sujeito
grave de voz, sendo um partícipe da fe- masculino e feminino, a esses padrões, códi-
cundação mas incapacitado de parir e gos, regras que internalizados devem diferen-
amamentar, o que terminou por tornar ciar as formas de ser homem e de ser mulher,
a maternidade algo visto quase como chamamos de modelos, padrões ou códigos de
aquilo que distinguiria a natureza femi- gênero. Levando em conta que a noção
nina da masculina, embora essa asso- de gênero era utilizada para nomear
ciação seja de ordem social e histórica). justamente as distinções que a lingua-
Embora nomeiem realidades que são gem permitia e realizava entre o que
desde o começo também de ordem so- seriam seres e objetos vistos e ditos
cial e cultural, pois embora partam da em dadas sociedades humanas como
observação da distinção de ordem bio- masculinos e femininos (nem todas
lógica, física, material entre os corpos as línguas, a exemplo da língua ingle-
também incorporam sentidos distintos sa, faz essa distinção para coisas, isso
em cada sociedade e cultura humanas, ocorre, no entanto, em todas as línguas
os conceitos de masculino e feminino continu- latinas), já que, como vimos, essa dis-
am sendo associados de forma mais direta à tinção passou a dar sentido e atravessar
dimensão biológica, às distinções vistas como todos os aspectos da vida humana, as
naturais entre os corpos sexuados. A nature- teóricas feministas americanas, a partir
za que é nos humanos apenas possibilidades e dos anos sessenta do século passado,
limites torna-se destino. adotaram essa noção para explicitarem
Ao nascer, qualquer ser huma- o caráter social, cultural e histórico, a
no é levado a aprender, a subjetivar, a dimensão construtivista das distinções,
incorporar essas distinções estabeleci- divisões e hierarquias fundadas sob a
das social e culturalmente a partir do diferença binária dos sexos, visando as-
que se nomeou de sexos, a reproduzir sim desnaturalizar, desmitiicar e per-
a ordem social sexuada, absorvendo a mitir a historicização dessas distinções,
partir de várias pedagogias presentes divisões e hierarquias. O aprendizado,
no social, através do trabalho de vá- a subjetivação, a incorporação (no sen-
rias instituições sociais, sendo a prin- tido mesmo de moldar e tornar-se cor-

• 491 •
po) dos padrões, códigos, regras, das zado de modelos e códigos que nunca
estruturas, dos modelos e narrativas de são internalizados ou obedecidos em
gênero produzem o que chamamos de sua inteireza, permitindo o surgimento
identidades de gênero, à medida que, de distintas maneiras de viver tanto a
desde o nascimento, através de práti- masculinidade quanto a feminilidade.
cas e discursos, dos mais sutis até os Embora em cada sociedade e cultura
mais prescritivos e normativos, somos humanas haja um modelo hegemônico
convocados e impelidos a nos identii- ou prevalecente de masculinidade essa
carmos com uma dada identidade de não impede e até possibilita a existên-
gênero, a nos ver e dizer como sendo cia de maneiras minoritárias e dissiden-
homens ou mulheres, masculinos ou tes de viver a masculinidade, embora
femininos. Essa ordem social e essa essas nunca deixem de manter relações
educação generiicada e generiicante e atualizar regras e aspectos do mode-
nos oferecem apenas duas possíveis lo dominante. A masculinidade, portanto,
identidades, nos impelem e nos obri- não é estática, nem atemporal, é histórica; não
gam a nos identiicarmos com o que é uma manifestação da natureza ou de uma
nomeiam e deinem como masculini- essência psicológica interior, é um construto
dade ou com o que nomeiam e dei- social e simbólico; não é uma mera ascensão
nem como feminilidade. à consciência de uma diferença de natureza
Pensados de modo relacional biológica, mas é uma criação cultural a par-
e, ao mesmo tempo, antagônico, os tir da observação dessa diferença, que foi, ao
conceitos de masculinidade e femini- longo do tempo e em várias sociedades, trans-
lidade são apresentados como sendo formada em princípio de desigualdade entre
atributos naturais que nasceriam da homens e mulheres. A virilidade, condição
própria conformação sexual que teria associada à masculinidade, signiica
cada corpo quando são um conjunto de coisas diferentes em diferentes épocas
signiicados, sempre em transformação, no e para diferentes pessoas. Não nas-
tempo, nos espaços, de sociedade para socie- cemos sabendo que somos homens,
dade e de cultura para cultura, que cada um nem o que signiica ser um homem.
constrói ao longo de seu processo de humani- O que se espera para que se mereça e
zação e socialização, através das relações que se continue a merecer a designação de
mantém com os outros e consigo mesmo, com masculino, aprendemos em nosso pro-
as instituições sociais e o meio social e cultu- cesso de formação, através de nossas
ral em que está inserido. Ninguém nasce experiências e experimentações, que
dotado de masculinidade ou feminili- nos permitem subjetivar esses baliza-
dade, aprende-se socialmente o que é mentos de nossa existência. Somos
ser dotado de tais atributos, aprendi- desde a infância constrangidos a inter-

• 492 •
nalizar normas implícitas e explicitas gil para sua construção, dado que não
para podermos ser considerados seres dispõe de um traço diacrítico impor-
humanos e, mais do que isso, e prin- tante como o parto ou a maternida-
cipalmente homens e mulheres. Sendo de, a masculinidade, apesar de social e
assim a masculinidade se aprende em e está imaginariamente estar associada à for-
sujeita e mediada por dados contextos sociais, ça, parece uma identidade mais frágil
que ao se transformarem também modiicam do que aquela oferecida pela femini-
os sentidos e as práticas identiicadas como de lidade, daí a sua permanente necessi-
masculinidade. dade de ostentação e reairmação. São
Na ampla maioria dos agrupa- inúmeros os rituais sociais destinados
mentos humanos a masculinidade foi à construção e reairmação da masculi-
associada ao poder, é um indicativo de nidade, embora todos eles apresentem
poder, quando não de superioridade um grau elevado de possibilidade de
em relação à feminilidade, vista mui- reversibilidade, ou seja, dado o caráter
tas vezes, como rebaixamento e infe- competitivo que as próprias relações
rioridade (daí a rejeição, o preconceito entre os homens ou entre as masculini-
e até mesmo o ódio àqueles seres que dades assumem, esses momentos facil-
deveriam ser masculinos, que deveriam mente se tornam também momentos
se identiicar com a masculinidade, por de questionamento da virilidade e da
terem o órgão genital que é visto como masculinidade de outrem. A masculini-
portando naturalmente esses atributos dade parece ser um atributo raro que
e que se identiicam como femininos para que um homem o possua deve
ou se identiicam com a feminilidade, retirá-lo ou tomá-lo de outro homem.
como aqueles nomeados a partir do sé- Como a masculinidade parece também
culo XIX por médicos e juristas como ser pensada e deinida mais a partir de
sendo homossexuais ou aqueles que uma comparação negativa e excluden-
no século XX foram ditos pelos mes- te em relação à feminilidade, sendo
mos discursos ou pelos discursos das masculino aquilo que não é feminino
ciências psi como sendo transexuais ou ou que dele difere e dele se afasta, o
transgêneros. Eles seriam vistos como fantasma de uma volta ou de um retor-
traidores ou ameaçadores a hegemonia no ao/do feminino, da descoberta de
e hierarquia entre os gêneros ao prefe- algum resquício de feminilidade parece
rirem se identiicar com o “sexo frágil” atormentar cada homem, que normal-
ou com o “belo sexo”). Como indica- mente observa e acusa no outro essa
tivo de poder a masculinidade deve ser presença feminina. Nessa comparação
sempre exposta e disputada. Contando alguns traços foram culturalmente associa-
com uma base biológica bem mais frá- dos a masculinidade, tanto de ordem física,

• 493 •
como de ordem psíquica e comportamental: à outro modo, como relações de poder,
masculinidade associa-se a força, a energia, a quando não de apropriação e posse,
coragem, o uso da razão, a competitividade, a e se amplia a todos e a cada um dos
rudeza, o desleixo consigo mesmo, a falta de campos do social: o espaço, o trabalho,
cuidado com o outro, a diiculdade e a proibi- a família, as relações de sociabilidade,
ção mesmo de expressar sentimento, de chorar, ao imaginário. Os modelos de mascu-
um apego e um zelo pela honra, a atribuição linidade e feminilidade, predominantes
de prover, manter e defender o grupo domésti- em dado espaço e tempo concretos,
co, a família. Traços que, no entanto, apare- condicionam a construção social e cul-
cem assumidos ou não pelos homens em sua tural dos corpos humanos, inclusive do
vida concreta e cotidiana. que neles é chamado e deinido como
Se é masculino ou se é dotado sendo o sexo. Embora sendo sempre
de masculinidade quando um dado ser um modelo ideal, inalcançável em sua
humano reproduz um modelo supos- inteireza por cada homem, um modelo
tamente essencial legitimado por uma que sofrerá suas defasagens, releituras,
natureza que se vê, se diz e se mostra reinterpretações ao ser interiorizado a
como imutável; uma natureza que di- nível individual, a masculinidade en-
rigiria a vida e a interação entre os se- quanto modelo dominante deve ser
res humanos, agrupados, classiicados, preservado em termos coletivos para
distintos e valorados - pois a masculi- impedir que os nascidos para manter
nidade e a feminilidade, como vimos, a família, ocupar o poder político e so-
têm valores diferentes em dada e em cial não se esqueçam de que essas fun-
cada sociedade -, a partir das marcas ções pretensamente estariam inscritas
dos corpos, em homens e mulheres, em seus genitais. Submetido a diversas
em seres nascidos superiores e seres provas e constrangimentos de toda
nascidos inferiores, em seres nascidos ordem, onde os outros, tanto homens
para dominar e comandar e em seres quanto mulheres, mas principalmen-
nascidos para obedecer e ser domi- te seus próprios companheiros agem
nados, em seres que nascem para fe- como juízes e carrascos (os homens
cundar e seres que nascem para ser no que tange a masculinidade devem
fecundados, em seres que nascem para ter necessariamente a aprovação dos
serem ativos e seres que nascem para outros homens, a mulher sendo ape-
serem passivos. Essa visão dominan- nas um instrumento para alcançá-la ou
te da masculinidade parte da leitura testá-la), como censores e pedagogos
dos corpos, continua na prática e nos que os convocam a reairmar todo o
signiicados das relações sexuais, en- tempo esse modelo ideal, mesmo que
tendidas como, e não poderia ser de para isso tenham que omitir, mentir,

• 494 •
esconder o disfarçar modos e formas BRADY, Sean e ARNOLD, John H. What is masculini-
ty?. Nova York: Palgrave, 2013.
próprias de ser e pensar. Todo tem-
po devem airmar ser “o verdadeiro BERGER, Maurice. Constructing Masculinity. Florence:
Routledge, 2013;
homem”, reproduzindo por meios de
suas falas, de seus gestos e atitudes DE GREGÓRIO-GODEO, Eduardo. La construcción
discursiva de la masculinidade. La Vergner: Lightning
as verdades socialmente elaboradas, Source, 2009.
divulgadas e aceitas sobre o que é ter
LAURIÈRE, François, QUÉROUIL, Olivier e ROYER,
masculinidade, sobre o que é ser mas- Alain (orgs.). Masculinités. Paris: Recherches, 1978.
culino. Como assinala Kimmel, a mas-
LÓPEZ, Juan Blanco e DEL RÍO, José María Valcuende.
culinidade hegemônica se explicitaria La construcción cultural de las masculinidades. Madrid:
num homem no poder, num homem Talasa Editorial, s/d.

com poder e num homem de poder. NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. Rio de
A masculinidade se apresenta pois como um Janeiro: Rocco, 1993.

projeto individual e social, um projeto de ca- OLIVEIRA, Pedro Paulo de. A construção social da mas-
ráter excludente, do qual se veem alijados não culinidade. Belo Horizonte: EDUFMG, 2004.

só as mulheres, como as crianças (pois ainda PENTEADO, Fernando Marques e GATTI, José. Mas-
não são viris) e os velhos (pois já perderam a culinidades: teoria, crítica e arte. São Paulo: Estação das
Letras, 2011
virilidade e muitos o poder). Este o drama
maior da masculinidade, após uma luta

que se trava contra a criança e o femi-
nino que pode haver em cada um, após
inalmente conquistá-la às duras penas, Maternidade
volta-se a perdê-lo ao chegar à velhice.
Contraditoriamente esse símbolo de Na cultura ocidental, ser mãe
potência força que seria o masculino remete, ao mesmo tempo, para uma
mostra toda a sua fragilidade ao neces- etapa e um estado especíico da vida
sitar de permanente reairmação, sem a feminina que envolve a gestação, o
qual se dá a perda de status e de poder. parto e a lactação e, também, cuidados
anteriores e posteriores ao parto; estes
Durval Muniz de Albuquerque Jr. últimos constituem um conjunto de
sentimentos e de ações de longo pra-
Referências e sugestões de leitura zo, dentre os quais se destaca a mater-
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. Nordestino: in-
nagem que envolve, sobretudo, amar,
venção do “falo” – uma história do gênero masculino. 2 criar e educar as crianças geradas.
ed. São Paulo: Intermeios, 2013.
Um recuo no tempo, no entan-
ALMEIDA, Miguel Vale de. Senhores de Si: uma inter- to, assinala que há três séculos a fun-
pretação antropológica da masculinidade. Lisboa: Fim
de Século, 2000; A Masculinidade. Revista da Associa- ção maternal não era objeto de tanta
ção Psicanalítica de Porto Alegre, n. 28. Porto Alegre:
APPOA, 2005.
atenção e valorização nas sociedades

• 495 •
ocidentais. As mulheres não eram glo- sociais distintos e não coincidentes no
riicadas pelo fato de serem mães, e o tempo, que se desencadearam na Eu-
amor maternal não era um valor social ropa nos séculos XVII, XVIII e XIX,
nem moral. Badinter argumenta (1985, quais sejam: a urbanização; a instau-
p. 185) que essa situação se altera ape- ração e o fortalecimento do sistema
nas em inais do século XVIII, quan- capitalista de produção; e a formação
do “se opera uma espécie de revolu- e consolidação dos estados nacionais,
ção das mentalidades” e surgem, pela destacando-se, nesse último caso, a Re-
primeira vez, recomendações escritas volução Francesa.
para que “as mães se ocupem pessoal- Estudiosas feministas como
mente dos seus ilhos”. Também Silvia Londa Schiebinger (1998) e Marilyn
Tubert (1996, p. 8-9), ao historicizar Yalom (1997) também indicam os sé-
as maternidades que vivenciamos na culos XVIII e XIX como períodos de
atualidade, argumenta que os sentidos substantivas transformações sociais,
usualmente associados a elas foram econômicas, cientíicas e políticas, nas
produzidos, basicamente, pela mobili- quais os corpos das mulheres – e mais
zação e articulação de três pressupos- especiicamente o seio feminino e o
tos, no advento da modernidade: o de aleitamento materno – foram politi-
que a maternidade equivale e decorre zados. Tais autoras nos ajudam a en-
da capacidade de geração biológica de tender como se articulou, na Europa
um novo ser; o de que a geração des- desse período, um conjunto de acon-
te novo ser está circunscrita ao corpo tecimentos: 1) as campanhas para abo-
da mulher que processa a reprodução lir o arraigado e difundido costume da
biológica; e o de que a identidade de aristocracia e da burguesia emergente
mulher se reduz à identidade de mãe. de entregar as crianças para serem cria-
Tais sentidos foram produzidos das por amas-de-leite; 2) a necessida-
em um período e contexto histórico de dos estados nacionais nascentes de
especíicos: aquele em que a vida, de expandir sua população para atender
modo geral, e a da criança em particu- suas crescentes demandas militares e
lar, entrou na história das sociedades econômicas; 3) a instauração e legiti-
ocidentais – ou seja, quando a popula- mação da autoridade médica que, no
ção (e, dentro desta, a infância) entrou contexto de reestruturação das políti-
na ordem do saber e do poder – um pe- cas de reprodução humana vigentes,
ríodo que Foucault (1993, p. 131-134) levaria à substituição das parteiras pe-
denominou “era do biopoder”. É um los médicos (homens); 4) a emergên-
contexto que se conigura pela conlu- cia e consolidação de um movimento
ência de três importantes movimentos intelectual e político que, no âmbito

• 496 •
do Iluminismo, congregou ilósofos, primeiro, empreendendo-se campa-
médicos, escritores políticos e funcio- nhas contra a mortalidade infantil, o
nários de governo que defenderam o aborto, o infanticídio, o abandono de
“retorno das mulheres ao seu lugar crianças; segundo, buscando-se trans-
adequado, como mães carinhosas e formar as mães, bem como seus há-
atenciosas” (SCHIEBINGER, 1998, bitos e seus sentimentos com relação
p. 238). Conigura-se, nessa articula- aos/às ilhos/as. Era necessário edu-
ção, um novo estatuto de maternidade, car as mães em todas as instituições
a partir do qual (e em função do qual) (hospitais, institutos de puericultura,
“os deveres familiares e maternos se lactários). Essas ações para educar as
tornaram importantes assuntos de Es- mães geravam certa tensão, pois con-
tado” (ibidem, p. 235).
tradiziam as ideias de uma suposta na-
No Brasil, foram sobretudo os
tureza maternal, feminina, instintiva. A
médicos que iniciaram o processo de
história mostra, pois, que “em vez de
maternalização, contando com o apoio
instinto maternal, seria melhor falar de
do Estado. Para o aparato médico sa-
uma fabulosa pressão social educativa
nitário, as mulheres mães eram consi-
que a sociedade moderna disponibi-
deradas frágeis, quando não inferio-
lizou para que a mulher aprendesse a
res, “ignorantes e negligentes” (LUZ,
2003, p. 18), e, por isso, elas precisa- se relacionar e cuidar dos ilhos” (BA-
vam de conselhos dos proissionais da DINTER, 1985, p. 355). Essa pressão
saúde, especialmente no que se referia estava associada, também, ao papel so-
às formas de viver e pensar o processo cial iluminista de educação, em que a
de condução e implementação da re- maternidade, ao mesmo tempo em que
produção biológica e social. A mater- era apresentada como sendo o destino
nalização das mulheres seguiu, aqui no natural da mulher, também comporta-
Brasil, as coordenadas desse processo va um paradoxo – as mulheres deve-
geral que atingiu o mundo ocidenta- riam aprender, precisavam ser educa-
lizado desde o inal do século XVIII das como mães (ibidem).
(SCAVONE, 2001). Ela foi se cons- Constituíram-se, nesse contexto
truindo e se estendendo, gradualmen- discursivo, os principais elementos que
te, em diferentes âmbitos e planos da possibilitaram a emergência e a con-
vida social, nas práticas cientíicas, nas solidação de representações de mater-
ideias e práticas políticas, no mercado nidade, que foram depois descoladas
de trabalho. Para assegurar a materiali- dos interesses políticos, econômicos,
dade da relação mãe-ilho/a, as ações culturais e cientíicos especíicos que
desenvolveram-se em dois sentidos: as produziram. Tal discursividade pas-

• 497 •
sou a posicionar a mulher (categoria tante – em parte, produzida pelo novo
então essencializada e universalizada) modelo de família contemporânea.
como sendo, por natureza, uma criatu- Essa posição de mãe não só atribuiu
ra generosa, abnegada e instintivamen- uma outra função à mulher, como
te mãe, disposta a qualquer sacrifício também reformulou as relações fami-
por sua cria, e vários de seus elemen- liares: o elo clássico e o poder paterno
(pai-ilho/a) desviava-se para o inalie-
tos ainda podem ser encontrados em
nável binômio mãe-ilho/a. Fonseca
atividade, em muitas das (re)deinições
(2004, p. 14) assinala que, a partir do
contemporâneas de maternidade.
século XX, ocorreu um “declínio do
Ao longo do século XX, a so- poder paternal”, com o “maior con-
ciedade ocidental promoveu uma in- trole das mulheres sobre a criação de
dividualização da maternidade, pro- ilhos, referindo-se a um deslocamento
duzindo a igura da mãe responsável, da autoridade paternal para a afeição
tanto pelas práticas – saúde, puericul- maternal”. Na nova ordem social ur-
tura, educação na infância – quanto bana contemporânea, evidenciam-se
pelo simbolismo, com o investimento claros sinais de abalo: a secundarização
no crescimento do sentimento mater- da igura do pai e a exaltação da igura
nal (BADINTER, 2010). Erige-se, aí, da mãe na gestão da vida do cotidiano
a igura da mãe como aquela que dá familiar. Fonseca (ibidem) airma que
o amor a mais, a vida, o alimento e as essa posição – agregando tarefas vistas
primeiras e contínuas socializações. A como próprias do feminino, feito para
parir e cuidar – sugere a queda do po-
incorporação desses discursos reque-
der do pai e certa promoção da mulher
ria um novo modelo feminino: mãe
como cuidadora.
cuidadosa que deveria estar sempre
No passado, o discurso norma-
atenta à sua saúde e à dos membros tivo encerrava as mulheres na condição
da família. Responsável pelos mínimos de mãe; seus destinos estavam ligados
detalhes que pudessem comprometer às amarras biológicas de um corpo. As
o bom andamento da saúde da famí- mulheres, a partir da segunda metade
lia, a mulher-mãe deveria ser vigilante, do século XX, foram inscritas em uma
abnegada, afetuosa, assexuada, frágil rede mais ampla de discursos e sabe-
enquanto mulher, mas forte e saudável res que possibilitaram a inserção e a
enquanto mãe e soberana dentro do lar difusão de outros padrões de vivência
(BADINTER, 1985). para a experiência da maternidade – li-
Assim a posição da mãe cuida- vre escolha acerca do que fazer com o
dosa foi uma transformação impor- próprio corpo: como cuidá-lo; quais

• 498 •
as melhores formas de cuidado; como O exercício da maternidade
exercer a sexualidade; ter ou não ter i- se produz e se modiica na cultura
lhos; quantos, como e quando tê-los. (MEYER, 2006). Justamente por isso,
Essa dimensão de escolha, segundo o alargamento da historicização da ma-
Badinter (2010, p. 11), por um lado, ternidade é importante e necessário,
modiicou “o estatuto da maternida- porque nos possibilita mostrar como
de ao implicar deveres acrescidos em determinadas maternidades são sig-
relação à criança cujo nascimento re- niicadas politicamente no interior de
sultou de uma escolha”. Ter um ilho uma série de discursos e saberes que
deixa de ser um destino biológico a as normatizam e deinem, e não como
cumprir; é antes um projeto, e as falhas experiências sem história, associadas a
uma ideia biológica, considerada como
são imperdoáveis. No século XXI, ob-
natural do feminino.
serva-se uma sensível diminuição das
taxas de natalidade. Pode-se dizer que Dagmar Estermann Meyer
há menos gravidez e menos ilhos, mas Maria Simone Schwengber
gestações cada vez mais planejadas e
expostas (SCHWENGBER, 2012). Referências e sugestões de leitura
Para Lucila Scavone (2001) e
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito
Meyer (2003), na atualidade, inscre- do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
vem-se nos corpos femininos e na ma-
______. O conlito: a mulher e a mãe. Lisboa: Relógio
ternidade novos e conlitantes atribu- d’água, 2010.
tos, cabendo à academia (em particular,
FORNA, Aminatta. Mãe de todos os mitos: como a so-
às estudiosas feministas) compreender ciedade modela e reprime as mães. Rio de Janeiro: Ediou-
ro, 1999.
um pouco como isso se dá e com que
efeitos. Por esses e outros motivos, “a FONSECA, Claudia. De ainidades a coalizões: uma re-
lexão sobre a transpolinização entre gênero e parentesco
história de como o feminismo deve em décadas recentes da antropologia. Ilha, v. 5, n. 2, p.
lidar com as questões em torno da 5-31, 2004.

maternidade está apenas começando” FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vonta-


(FORNA, 1999, p. 21). Scavone (2001, de de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1993.

p. 20) destaca que a temática da ma- ______. Em defesa da sociedade: cursos do Collège de
France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ternidade é de uma “atualidade sem
im”. Para Françoise Thébaud (1986), LUZ, Madel herezinha. Novos saberes e práticas em
saúde coletiva: estudos sobre racionalidades médicas e
há um campo de domínio da história atividades corporais. São Paulo: Hucitec, 2003.
da maternidade e da gravidez ainda a
MEYER, Dagmar E. E. As mamas como instituintes da
ser explorado, sejam elas desejadas/re- maternidade: uma história do passado? Educação e Reali-
cusadas, realizadas/interrompidas. dade, Porto Alegre, v. 25, n. 2, p. 117-133, 2000

• 499 •
______. Gênero e educação: teoria e política. In: LOU- disputado, deturpado e retorcido sem,
RO, Guacira; NECKEL, Jane Felipe. Petrópolis: Vozes,
2003. contudo, perder de todo sua matriz eti-
______. A politização contemporânea da maternidade. mológica, construída com base na an-
Gênero: núcleo transdisciplinar de estudos de gênero –
NUTEG, Niterói, v. 6, n. 1, 2006. títese do termo “matriarcado” em re-
lação à noção vigente de “patriarcado”.
SCAVONE, Lucila. A maternidade e o feminismo: diá-
logo com as Ciências Sociais. Cadernos Pagu, São Paulo, Desse modo, pode-se airmar que sua
n. 16, 2001.
elaboração esteve na contracorrente
SCHIEBINGER, Londa. Mamíferos, primatologia e se- das teorias que sustentavam ser o direi-
xologia. In: PORTER, R. (org.) Conhecimento sexual,
ciência sexual. A história das atitudes em relação à sexua-
to paterno ou o patriarcado o sistema
lidade. São Paulo: UNESP, 1998.p. –p. 1-145 predominante na origem das formas
SCHWENGBER, Maria Simone Vione. Mãe Moderna:
sociais e políticas de todos os agrupa-
esportiva e forte. Caderno Cedes, v. 32, n. 87, 2012. mentos humanos.
SCHWENGBER, Maria Simone Vione; MEYER, Dag- Ao contrário dessa convicção, a
mar E. E. modos de ser e estar grávida na contempora- hipótese sobre o matriarcado primitivo
neidade: uma análise a partir da revista Pais & Filhos.
In: STREY, Marlene Neves et al. (org.). Gênero e ciclos incorporou ao debate sobre o patriar-
vitais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. p.125-147. cado, em grande evidência desde o sé-
THÉBAUD, Françoise (org.). História das mulheres. São culo XVII, o elemento feminino como
Paulo: Ebradil, 1986. dotado de um antigo domínio político
TUBERT, Sílvia (ed.) Figuras de la madre. Madrid: Ed. e social que prevaleceu ao longo de
Cátedra, 1996. uma parte signiicativa da história dos
YALOM, Marilyn. A história do seio. Lisboa: Teorema, primórdios das civilizações. Matriarca-
1997. do, nesse sentido, se caracterizaria pela
crença de que as mulheres, em deter-

minados períodos e regiões do mundo
antigo primitivo, dirigiram sistemas
Matriarcado
políticos duradouros, exercendo as-
sim uma espécie de governo feminino
O termo “matriarcado”, desde
que se estenderia do círculo familiar à
sua formulação como vocábulo teóri-
sociedade em geral. Porém, como um
co na segunda metade do século XIX
termo difuso e de difícil entendimento,
e ao longo de sua repercussão no sé-
o signiicado de “matriarcado” certa-
culo XX, ganhou inúmeros e diferen-
mente extrapola essa simples deinição
tes signiicados, além de gerar distintas
ao ser revista sob a luz do contexto que
interpretações no âmbito das ciências
inspirou a sua criação e amparou a sua
humanas. Desde a antropologia estru-
permanência ao largo dos anos.
turalista até as concepções feministas
do “direito materno”, o conceito foi Pensados como parte do con-
texto histórico que marcou a opinião

• 500 •
intelectual na virada do século XIX para o patriarcado como uma substi-
para o XX, o evolucionismo, o forta- tuição fundamental para a evolução e
lecimento das ações e dos discursos o progresso das sociedades humanas.
feministas e a aproximação entre mito O que essa transição permitiu foi nada
e história penetraram de modo deini- mais nada menos do que o abandono
tivo a teoria do matriarcado. Tais fe- da era da infância do gênero humano e
nômenos inluíram de um jeito muito o avanço positivo em direção a um es-
particular na construção argumentativa tágio superior da nossa existência, em
da hipótese do matriarcado e no peso que os homens, por meio do direito
convincente que esta adquiriu para paterno, inalmente puderam assumir
uma parte signiicativa da comunidade o seu domínio.
de pensadores e leigos daquele período O método etapista talvez não
e dos seguintes. fosse tão eiciente desligado da visão
Falar do conceito de “matriar- dualista que o acompanha. Logo, o
cado” e evocar a sua construção não confronto entre o matriarcado e o pa-
pode, portanto, ser feito de outra ma- triarcado, o declínio de um para a ele-
neira senão tomando como ponto de vação do outro, sua rivalidade histórica
partida a obra de Johann Jakob Bacho- no registro dos tempos, dá seu teste-
fen, historiador do direito, ilólogo e munho pelo antagonismo que situa em
jurista suíço. Seu livro, impresso com lados opostos, embora complementa-
o título Das Mutterrecht (O direito ma- res, o elemento “feminino” e o “mas-
terno), foi publicado, em 1861, num culino”. A simbologia dos pares dico-
cenário de reformulação do debate tômicos que modela a teoria escrita por
político e social sobre o patriarcado, Bachofen, fortemente estruturada em
com enfoque na relação entre as for- princípios biologizantes, é manuseada
mas familiares e a organização política em seu discurso como um componen-
da sociedade (COWARD, 1983, p. 12). te fundamental. Esse preceito univer-
O grande esquema explicativo sal, que justiica há milênios as relações
de Bachofen fora inteiramente costura- hierárquicas e desiguais entre os sexos,
do por dois procedimentos: o etapista associando a natureza, o selvagem, o
e o dualista, intimamente relacionados. mistério, a matéria à mulher, e a cul-
O primeiro, ao pressupor uma ilia- tura, a civilização, a razão e o espírito
ção com as correntes evolucionistas, ao homem, lhe serve na mesma me-
admitia uma perspectiva progressista dida para justiicara existência de um
e moralista da história, uma vez que matriarcado que reinou na origem do
defendia a passagem do matriarcado mundo, mas que foi suplantado pelo

• 501 •
sistema patriarcal quando o mundo al- forme o matriarcado transita de uma
cançou a maturidade. forma degenerada para outra mais vir-
Bachofen, condizente com a tuosa, não há em sua teoria evidências
lógica evolucionista e dualista de seu de nenhum sistema matriarcal que te-
pensamento, narrou o desenvolvimen- nha resistido ao im do primitivismo.
to das sociedades humanas por meio A era primitiva se encerrou juntamente
de quatro fases, tendo como io con- com o matriarcado, bem como gran-
dutor o auge e a decadência da história de parte da inluência religiosa, da ir-
do matriarcado. Sua projeção trabalha racionalidade, dos ritos, dos instintos,
com três diferentes níveis de matriar- da barbárie, dos mitos. O matriarcado
cado: 1) o mais primitivo, caracterizado foi o alicerce, o predecessor de um
pela promiscuidade, pela vida telúrica sistema muito mais complexo, civiliza-
e pela ausência de posses, sendo esta do, racional, ordenado, características
a fase da família matriarcal, em que os exclusivas da última fase do esquema
laços sanguíneos entre mãe e ilho são bachofeniano, o patriarcado.
estabelecidos pela primazia do direito Escapando um pouco do con-
materno e, consequentemente, pela texto estrito da teoria e do academicis-
ausência do elemento paterno; 2) o do mo, existiram também impulsos exter-
matriarcado positivo, que avança no nos aos propriamente “cientíicos”, de
sentido da moralidade e das normas ordem muito mais prática, que inluí-
de convivência social, impondo a mo- ram na composição bachofeniana da
nogamia e a propriedade como insti- história do matriarcado. O movimento
tuições mais sólidas por onde emana o feminista, por exemplo, que, desde me-
domínio materno; 3) e o ginecocrático, ados do século XVIII, passou a exercer
fase em que o matriarcado chega ao forte pressão a favor dos direitos das
seu apogeu com a instauração de um mulheres, empunhando a bandeira do
governo civil das mulheres. Tal como sufragismo, colaborou como um fe-
na fase anterior, a transmissão da pro- nômeno de grandes proporções para
priedade e da descendência é matrili- que a teoria do matriarcado causasse
near, embora o homem tanto lá como tamanho impacto. Segundo uma inter-
aqui já tenha atingido uma participação pretação muito recente, o matriarcado,
mais ativa e indispensável no sistema como uma teoria legitimadora do pa-
matriarcal (BACHOFEN, 1987). triarcalismo, surgiu no exato momento
Embora essas etapas indiquem em que as feministas vinham insisten-
que na concepção de Bachofen há temente questionando a validade desse
certo “progresso” em andamento con- sistema.

• 502 •
A negação de uma vida plena que publicou Ancient Law (Antiga lei)
de direitos para as mulheres, naturali- no mesmo ano em que Das Mutterecht,
zada pelo discurso moral e biológico, só que sustentando uma tese inversa, a
teria forçado a elaboração de uma jus- da prioridade histórica do patriarcado
tiicativa que respondesse às demandas sobre o matriarcado.
feministas com um argumento simu- A vinculação a um pensamento
lador da existência do seu poder pri- ilosóico grego e ao estudo das ori-
mordial, porém extinto. A exaltação gens, inluenciado por interpretações
de um governo feminino na origem mitológicas da história, está no âmago
dos tempos, irrepetível, enigmático e da obra de Bachofen, bem como na de
difícil de provar, teria na verdade, ser- Maine, e ambas não podem ser com-
vido para naturalizar “a exclusão ou preendidas fora desse universo. No
marginalização histórica das mulheres caso de Bachofen, sua tese também
das esferas de poder” (HERRANZ; não pode ser entendida descolada de
MUÑOZ, 2005, p. 16). Por outro ân- seus leitores-teóricos subsequentes, os
gulo, tal inversão teria sido encarada de quais foram responsáveis pela revalori-
modo mais receptivo, como um marco zação da teoria do matriarcado e pela
de abertura de maiores oportunidades reaproximação com o debate.
para a conquista de amplos direitos Friedrich Engels é apontado
para as mulheres, uma vez que a teoria como o pensador que redescobriu a
do matriarcado permitia as feministas teoria de Bachofen, lançou-a no cam-
justiicar a “retomada” desse poder po da ilosoia socialista e a usou para
original no tempo presente. embasar, em paralelo com o trabalho
Essas são leituras importantes
antropológico de Morgan, Ancient So-
que não devem, contudo, reduzir nem
ciety (Sociedade Antiga), publicado
a motivação da obra, nem o impacto
em 1877, sua própria teoria do cará-
causado por ela unicamente ao deba-
ter histórico da família. O autor de A
te e aos conlitos em torno das fortes
pressões feministas exercidas no mo- Origem da Família, da Propriedade Privada
mento. Para tanto, seria preciso anali- e do Estado preocupou-se menos com
sar comparativamente outros autores a existência primordial de um sistema
contemporâneos de Bachofen que dominado pelas mulheres e, portanto,
participaram ativamente da discussão desigual, hierarquizado, “classista”, do
teórica entre matriarcado e patriarcado, que em defender a ideia de que essas
e que não são incluídos nesta dimensão sociedades matriarcais tiveram como
interpretativa. O jurista inglês Maine princípio a igualdade entre todos os
seria o caso mais ilustrativo, uma vez indivíduos, conseguindo assim colocar

• 503 •
no centro de seus argumentos a nega- Referências
ção da desigualdade de classe como
algo natural. Publicada em 1884, a obra BACHOFEN, J. Jakob. El Matriarcado: una investigaci-
ón sobre la ginocracia en el mundo antiguo según su na-
de Engels contribuiu, mesmo com es- turaleza religiosa y jurídica. Trad. María del Mar Llinares
ses “desvios”, para reforçar e retrans- García. Madri: Ed. Akal, 1987.

mitir a ideia da existência de um princí- BAMBERGER, Joan. “O mito do matriarcado: porque


pio materno dominante que esteve na os homens dominavam as sociedades primitivas?”. In.
Rosaldo, Michelle Zimbalist; Lamphere, Louise (coord.).
base das relações primitivas dos povos. A Mulher, a Cultura, a Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e
No decorrer do século XX, no Terra, 1979.

entanto, com o acúmulo sucessivo de ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Proprieda-


fracassos investigativos, etnológicos e de Privada e do Estado.Trad. José Silveira Paes. São Paulo:
Global, 1984.
arqueológicos, para atestar a veracida-
de do “estado ginecocrático”, ica cada GEORGOUDI, Stella. “Bachofen, o matriarcado e a
antiguidade: relexões sobre a criação de um mito”. In.
vez mais nítido que a real contribui- Duby, George; Perrot, Michelle (Dir.). História das Mu-
ção de Bachofen repousa precisamen- lheres no Ocidente. v. 1. Porto: Afrontamento, 1995.
te nessa aproximação arbitrária entre HERRANZ, Rosa Rodríguez; MUÑOZ, Lucía Serrano.
mito e história, que gerou suas bre- “El concepto del matriarcado: una revisión crítica”. In.
Revista sobre Arqueología en Internet, Arqueoweb, 7 (2),
chas, mas também sua riqueza. A ques- set./dic., 2005.
tão mais importante que parece mover
pesquisadores de diferentes linhas atu- KRISCHE, Pablo. El enigma del Matriarcado.Madri: Re-
vista de Occidente, 1930.
almente não é mais aquela obstinada
em comprovar a existência de uma PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz
e Terra, 1993.
posição política privilegiada das mu-
lheres na pré-história, “mas sim o fato Sugestões de leitura
de existirem mitos airmando que as COWARD, Rosalind. Patriarchal Precedents: sexuality
mulheres izeram isso e que agora não and social relations. Londres: RKP, 1983
fazem mais” (BAMBERGER, 1979, LERNER, Gerda. La Creación del Patriarcado. Barcelo-
p. 237). A contribuição de Bachofen é na: Editorial Critica, 1990
muito mais valorizada pela descoberta
que fez do mito do matriarcado, do •
que pela construção teórica que dedi-
cou ao “direito materno”, povoada de Memória
depreciações e etnocentrismos muito
próprios dos discursos que circulavam Pensar a memória sempre foi
na sua época. um desaio para a humanidade. Não só
no sentindo de problematizar sua na-
Livia Silveira Rangel tureza, entre o lembrar e o esquecer,
Maria Beatriz Nader

• 504 •
mas, sobretudo, no que tange à sua vozes ao longo dos tempos, o surgi-
democratização. O direito à memória mento da imprensa associada à lógica
envolve discussões no âmbito das legi- do processo cientíico iluminista tirou
timações, da historiograia, ou seja, do de cena a autoridade da sociabilidade
lugar ocupado pelos sujeitos que têm o desses relatos, pois quem está autori-
direito a narrar sua história e daqueles zado a falar ocupa não somente um es-
que nela estão inseridos. Trata-se, por- paço de poder e intelectualidade como
tanto, de um tema político de poder e também outorga formas especíicas de
representação sobre o qual estamos to- se dizer algo sobre alguém ou algum
dos envolvidos, quer seja por inclusão acontecimento.
ou exclusão. Nesse sentido, dado à natureza
A memória é o retorno a ves- seletiva - voluntária ou involuntária -
tígios dos caminhos antes trilhados; é da memória, enquanto relato sempre
relato da captação de estilhaços do que inacabado na efetiva batalha associada
se viveu, dado à impossibilidade de seu à inserção de outras vozes, sua demo-
arquivamento nos moldes positivistas, cratização parece estar conectada, a ri-
de modo a tornar a historiograia uma gor, não só ao permanente desaio da
re-inscrição do passado. Essa assertiva, inclusão de diferentes vozes, mas, so-
entretanto, não anula a necessidade de bretudo ao reconhecimento e à valora-
questionar como e quais “sucatas” fo- ção de outras formas de se narrar para
ram recolhidas para legitimar uma ou além do modo consagrado pela ciên-
outra leitura do pretérito, quais sujeitos cia ocidental. Sujeitos à margem dos
tiveram o direito à narrativa, quais fo- relatos oiciais, como as mulheres, os
ram inseridos nelas e, por im, a urgên- exilados, os fronteiriços, os negros, os
cia em propor mudanças substanciais torturados, os iletrados, entre outros,
na construção da ação mnemônica. passam a entrar na negociação pela di-
Obedecendo à lógica moderna, reito à voz, às escolhas e esquecimen-
aqueles que detêm o poder/saber con- tos, como também pelo direito de uma
tam a história, ou melhor, escolhem forma outra de dizer, de comunicar e
como e o que contar, travam, assim, de visibilizar suas memórias.
batalhas inevitáveis entre a lembrança Michelle Perrot (1989) nos lem-
e o esquecimento, quer seja no âmbito bra que a memória da narrativa históri-
político, cultural ou social. Por outro ca tradicional é assexuada, isto porque
lado, muito embora a narrativa oral das as mulheres estão, em sua maior par-
memórias seja uma prática secular, um te, ausentes de suas páginas, quer seja
espaço possível de atuação de várias como personagens ou autoras.

• 505 •
Apesar das esferas públicas e signiicativa, embora olvidada, história
privadas não serem deinidas e classi- das mulheres.
icadas pelo sexo, o século XIX se en- São nas correspondências fami-
carregou de distingui-las, clariicando o liares, nos cadernos de receitas, nos di-
universo público como universidades, ários, nos convites de bailes, nas cartas
bancos, parlamento, grandes empresas, de amor, nos bilhetes das escolas dos
clubes, enquanto espaços de privilé- ilhos, por exemplo, que encontramos
gio dos homens e o universo privado, ínimos rastros da vida feminina. Ain-
como vestimentas e o cuidado em re- da que muitos desses papéis tenham
presentar bem a família diante da so- sido destruídos, é inegável, hoje, o tra-
ciedade, ao mundo feminino. Quanto balho de preservação e re-signiicação
às mulheres ditas do povo, “só se fala
atribuídos a estes objetos. Muitas pes-
delas quando seus murmúrios inquie-
quisadoras e pesquisadores não me-
tam no caso do pão caro, quando pro-
dem esforços em buscar nos escom-
vocam algazarras contra comerciantes
bros do passado objetos que carregam
ou contra proprietários, quando ame-
as memórias de mulheres. Bordados,
açam subverter com sua violência um
fotograias, louças, enxovais, acessó-
cortejo de grevistas” (PERROT, 1989,
rios, objetos decorativos, joias, são al-
p. 10).
Para além do século XIX, os guns dos veículos pelos quais temos
registros históricos apontam em dire- acesso ao pretérito, às memórias desse
ção a silenciamentos e irrisórias parti- mundo privado. Soma-se a esse cená-
cipações das mulheres na construção rio, artefatos culturais, como o cinema,
da memória. Como reação, nos últi- a literatura, a pintura, a dança, a foto-
mos 40 anos, as mulheres entraram no graia, entre outros, como grande força
penoso combate pelo direito à voz, à motriz no processo de encontro, pre-
narrativa. Entretanto, ao se lançarem servação, crítica e projeção do universo
ao trabalho de “narradoras sucateiras” feminino, mais precisamente no im do
(GAGNEBIN, 2006) encontram pou- século XX.
cos, raros registros da atuação femini- É inegável, portanto, que a prá-
na na história. Isto porque, por muito tica memorialística das mulheres este-
tempo, à mulher foi retirado o direito ve, até pouco tempo, “voltada para a
à vida pública, de modo que é nos re- família e o íntimo. (...). Às mulheres
gistros da vida privada que consegui- cabe conservar os rastros das infâncias,
mos um maior número de narrativas (...) a transmissão das histórias de famí-
memorialísticas capazes de pontuar, lia (...), o culto aos mortos e o cuidado
ainda que por meio de re-construção, a dos túmulos” (PERROT, 1989, p. 15).

• 506 •
Ainda na esteira de Perrot, pode- si mesmo é contrário à honra viril que
mos dizer que a memória é verbo, pois considera estas coisas negligenciáveis,
está diretamente conectada à oralidade abandonando às esposas os lados dos
(1989, p. 15). Não por acaso, a histó- berços e as questões do lar.[...]” (2005,
ria oral e a crítica feminista despontam p. 42).
como disciplinas questionadoras de Salvatici (2005, p.32) destaca
discursos e instituições ditas legitima- a ampliação positiva do uso das fon-
doras do poder/saber, além de serem tes orais na pesquisa histórica ao for-
proponentes de novas epistemologias, necer assunções teóricas e soluções
tais como o uso de fontes, linguagens metodológicas nesse contexto de luta
e metodologias outras. Trata-se de um pelo direito à memória. Isso porque há
olhar sobre sujeitos e coisas para as uma urgência em viabilizar essas “me-
quais a escritura histórica deixou, por mórias” narradas/vividas por sujeitos
muito tempo, de atentar-se. históricos silenciados, compreendendo
De fato, é somente a partir do que “[...] a memória passou a ser en-
inal do século XX que as memórias tendida, cada vez mais, como parte de
orais, de forma ainda tímida e enfren- uma maneira de pensar, uma forma de
tando diversas resistências, passam a mentalité, de modo que o foco de uma
ser reconhecidas e, assim, re-conside- grande parte da pesquisa passou de
radas enquanto ferramentas de análise formas individuais para formas coleti-
metodológica, possibilitando o acesso vas de memória, e para a relação en-
a essas memórias silenciadas historica- tre ambas. Isso signiica que a atenção
mente (TEDESCHI, 2014, p.40-41). passou a ser dada menos ao que é dito,
Para Perrot o desenvolvimento e mais ao modo como histórias são
da história oral constituiu uma forma narradas” (SALVATICI, 2005, p. 33).
de revanche das mulheres. Tal fato de- Logo, a identiicação entre lar e
ve-se principalmente a dois aspectos: família e a divisão dos lugares sociais
sua longevidade, o que as torna teste- ocupados na relação de gêneros predis-
munhas de épocas remotas, e o mutis- põe às mulheres a guarda da memória
mo dos homens que “[...] em um casal, do seu grupo. São elas que narram suas
a partir do momento em que se trata trajetórias e as de seus grupos familia-
de lembranças de infância ou da vida res. São elas que guardam consigo ob-
privada, contrasta com a loquacidade jetos que dizem dos seus caminhares
muito maior das mulheres, quer seja e das suas vivências, “‘mil nadas’ [que]
porque o trabalho e as empreitadas do preenchem vitrines, pequenos museus
exterior tenham atroiado a memória da lembrança feminina” (PERROT,
masculina, quer seja porque falar de 2005-37). Cabe, portanto, à narrativa

• 507 •
histórica a assunção da memória de que afeta apenas o sexo feminino. Esse
mulheres como fundamental à cons- período, traz em sua historicidade, as
trução de análises multivocais, pauta- marcas da impureza e alarga uma desi-
das pelo múltiplo e pelo plural. gualdade a muito difundida, a desigual-
dade de gênero. Na tentativa de clas-
Eliene Dias de Oliveira siicar os seres humanos, os aspectos
Silvana Aparecida da Silva Zanchett
biológicos serviram de aporte teórico/
prático para designar as diferenças que
Referências
separam os indivíduos e aprisionar os
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da His- indivíduos na cultura, partindo do pa-
tória. Bauru, SP: Edusc, 2005. râmetro biológico.
PERROT, Michelle. “Práticas da memória feminina”. Há uma diversidade de códi-
Revista brasileira de História. São Paulo, v.9 nº18, pp. gos e expressões para caracterizar o
09-18, 1989.
período em que o útero descama sua
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História, memória, tes- membrana interna e ocorrem os san-
temunho. In:______. Lembrar, escrever, esquecer. São
Paulo: editora 34, 2006. gramentos mensais pelas vias genitais,
por aproximadamente três a cinco dias.
SALVATICI, Silvia. Memórias de gênero: relexões sobre
história oral de mulheres. História Oral, v.8, n.1, p.29- Nomes que foram construídos pela
42, jan/jun. 2005.
cultura para enjaular, usando aqui um
TEDESCHI, Losandro Antonio. Alguns apontamentos conceito formulado por Certeau, para
sobre história oral, gênero e história das mulheres. Dou-
rados-MS: UFGD, 2014.
demonstrar as jaulas que aprisionam
os sujeitos dentro da cultura, nos falam
Sugestões de leitura desse período e daquilo que conside-
ravam a parte negra, o obscurantismo
ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efême-
ros sobre arte, cultura e literatura. Belo Horizonte: editor da mulher.
UFMG, 2006. Esse período, tem em sua histo-
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimen- ricidade, as marcas do tempo em que
to. Campinas: Edunicamp, 2007. os sujeitos colocaram nele as mais di-
SCOTT, Joan. (1992), “História das Mulheres”, IN: versas mitiicações. Portanto, a mens-
Burke, Peter (org.). A Escrita da História - Novas Pers- truação ainda se constitui tabu dentro
pectivas, São Paulo: Novas Perspectivas, 1992.
da sociedade atual. A “Regra”, o “perí-
• odo”, estar “nesses dias”, o “assunto”,
estar “indisposta”, estar “de boi”, estar
Menstruação de “Chico”, “incomodada”, consti-
tuem formas codiicadas de falar sobre
Fenômeno biológico, caracte- o período sem nominá-lo explicita-
rizado por sangramentos mensais e mente. Na nossa cultura, ainda paira o

• 508 •
silêncio sobre o sangue, retrato da im- caráter impuro, inferior e maldito se
pureza feminina, alvo de simbolismos cristalizam e permanecem na história.
e superstições. Trata-se, sem dúvida, do discur-
Os ensinamentos, a tradição so que atravessa o tempo. Os signiica-
oral e o conhecimento passado para as dos do sujeito mulher, não se transfor-
meninas nos mostram o caráter “sujo” mam frente às mudanças tecnológicas,
desse período na vida de uma mulher. a modernidade das relações. A mulher
As crenças depositadas em torno do ainda carrega em si, dispositivos maldi-
ciclo menstrual dão conta de uma so- tos e patológicos.
ciedade amedrontada pelas imagens Ainda hoje, programas veicu-
criadas e cristalizadas em torno desse lados na mídia, para tratar da saúde
feminino perturbador.
da mulher e que falam da menstru-
Na trama das relações sociais,
ação, ilustram o período como algo
foram utilizados vários artifícios para
de caráter anormal, partindo-se então
afastar os males dessa fase, entre os
do princípio que o normal é a gravi-
mais conhecidos estão o hábito de não
dez. À medida que ouvimos discursos
lavar a cabeça, práticas simbólicas de
como esses, observamos a tentativa de
re-signiicação do cotidiano, aprisiona-
reiterar vocações tidas como iminen-
do pelo corpo. Não tocar em algum ali-
mento que estivesse sendo preparado, temente femininas, é o caso aqui da
pois o simples toque poderia azedá-lo. maternidade. Voltamos, portanto, aos
Formas e estratégias pelas quais o dis- discursos religiosos que ressaltam e
curso reitera o caráter demoníaco da airmam o caráter reprodutivo da mu-
mulher e cria nela uma consciência de lher, a realização pela maternidade e a
sua inferioridade em relação ao mun- sua natural vocação para ela, estraté-
do, sendo muito natural a mulher sen- gias discursivas pautadas na anormali-
tir-se menos que o homem em muitas dade da menstruação e na naturalidade
situações do cotidiano. da maternidade para as mulheres.
O desenho animado South Park As cápsulas que envolvem os
nos diz: “Não se pode coniar em al- discursos são construídas, e, criam
guém que sangra cinco dias e não mor- nos sujeitos as peles que eles vestem
re”, na assertiva que se pretende hu- ao nascer. Muitas vezes, as prisões do
morística, reconhecemos os meandros corpo, principalmente as prisões onde
da feminilidade, pautada e enjaulada o sangue é a marca da inferioridade,
em seu corpo. Ao analisarmos a frase do assujeitamento, nos revelam uma
dita nesse desenho animado, constata- sociedade que difunde o medo como
mos que as falas sobre a mulher e seu estratégia de poder. O medo de tocar,

• 509 •
o medo de lavar, o medo de falar, o Miedo
medo de estar em um lugar, presa ao
corpo que emana sangue, eis alguns El miedo es un sentimiento pro-
dos ardis discursivos usados para dizer ducido por una causa identiicada, que
à mulher que o seu espaço é o recôndi- amenaza la seguridad, existencia o inte-
to do privado. gridad del individuo o la sociedad. Esta
amenaza, que puede ser de diferente
Daniela Garcez de Oliveira
tipo, genera un sentimiento de insegu-
Referências e sugestões de leitura ridad, que está en la base del miedo. Su
naturaleza no solamente atañe al indi-
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petró- viduo, sino que también se trata de un
polis, RJ: Vozes, 1994.
fenómeno de carácter colectivo y que
DOUGLAS, Mary. Perigo e Pureza. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1976.
puede ser estudiado históricamente.
El miedo nace del sentimiento
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição femini-
na, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio
de inseguridad, en ese sentido tiene
de Janeiro: José Olympio; Brasília, DF: Edunb,1993. que ver también con su contrapar-
LOURO, Guacira Lopes. Currículo, gênero e sexua-
te, que es el sentimiento de seguridad
lidade- reletindo sobre o “normal”, o “diferente” e o (DELUMEAU, 2002b). Hay que dis-
“excêntrico”. Revista Labrys, estudos feministas, julho/
dezembro, 2002.
tinguir entre inseguridad real e insegu-
ridad percibida, esta última no tiene un
RAGO, Margareth. A aventura de contar-se: Foucault e
a escrita de si de Ivone Gebara. In: FOUCAULT, Michel:
fundamento en la realidad, pero fun-
Sexualidade, corpo e direito. Luiz Antônio Francisco de ciona perfectamente en la mentalidad.
Souza, hiago Teixeira Sabatine e Boris Ribeiro de Ma-
galães (orgs.): Marília: Oicina Universitária. São Paulo: En efecto, muchas veces los miedos no
Cultura acadêmica, 2011. tienen una base real, pero la gente se
NATANSOHN, Graciela L. O corpo feminino como siente amenazada frente a aquello que
objeto médico e “mediático”. Revista Estudos feministas
vol.13. Florianópolis, maio/agosto, 2005.
percibe como real.
Es necesario distinguir el miedo
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Gênero: uma
categoria útil para estudo do corpo e da saúde. Revista
de la angustia (DELUMEAU, 2002a).
Labrys, estudos feministas, janeiro/julho,2004 Una cosa es el miedo, que es un sen-
SARDENBERG, Cecília M. B. De sangrias, tabus e po-
timiento que tenemos hacia una cau-
deres. Estudos feministas, 2º semestre, 1994. sa identiicada, sea real o imaginaria, y
SWAIN, Tânia Navarro. Intertextualidade: perspectivas otra cosa distinta es la angustia, que es
feministas e foucaultianas. Revista Labrys, estudos femi- una sensación de dolorosa espera que
nistas, janeiro/julho, 2004.
nos produce una causa no identiica-
• da, indeterminada, que es un peligro

• 510 •
percibido como mayor. La angustia es lugar, es evidente que la relexión so-
un sentimiento global de inseguridad, bre este tema se ha convertido en una
que también puede ser producida por demanda social creciente tanto a escala
sucesivos episodios de temor que se mundial como a nivel nacional y latino-
repiten hasta generar una crisis de an- -americano (ROSAS LAURO, 2012).
gustia. También hay que considerar el El miedo como objeto de estu-
pánico, que es un nivel mucho mayor dio de la historia hasta las últimas dé-
de expresión del temor. cadas del siglo pasado, no había con-
Sin embargo, el miedo no debe- citado un mayor interés por parte de
mos asociarlo solamente con aspectos los historiadores. Si bien el tema había
negativos, sino también es necesario sido abordado de manera tangencial,
no existía un tratamiento integral y sis-
considerar sus efectos positivos. El
temático del fenómeno desde el pun-
temor puede generar desde actitu-
to de vista histórico. Fue recién con
des pasivas hasta situaciones suicidas,
la aparición de la obra del historiador
aberrantes, agresivas y violentas, pero
francés Jean Delumeau, El miedo en
también es cierto que se trata de un
Occidente, que tenemos el primer in-
elemento instintivo natural que puede
tento de sistematización del estudio
llevar a la conservación del individuo o
del miedo a través de la historia. Este
la colectividad. En este sentido, su na- autor -en la introducción de su libro-
turaleza es ambigua. se preguntaba: “¿Por qué ese silencio
El estudio histórico del miedo prolongado sobre el papel del miedo
es importante por tres razones funda- en la historia? Sin duda, acaso de una
mentales: por un lado, se trata de un confusión mental ampliamente difun-
elemento omnipresente en la historia, dida entre miedo y cobardía, valor y
pues el ser humano se halla en diá- temeridad” (DELUMEAU, 1978).
logo constante con el miedo a través Esta ausencia del miedo en el
del tiempo. Por otra parte, el análisis discurso histórico se debía a una visi-
del miedo nos permite comprender al ón tradicional de la historia, plagada de
hombre no sólo en su dimensión polí- cruentas batallas con actos de estrepi-
tica, social o económica, sino también tosa valentía, cuyos protagonistas eran
en sus sentimientos, mentalidad o cul- poderosos reyes y memorables guer-
tura. Estas dimensiones del ser huma- reros. Se trataba de una historia posi-
no, que tradicionalmente habían sido tivista que privilegiaba la historia po-
dejadas de lado por los historiadores, lítica, militar e institucional, en la que
nos permiten comprender a las socie- el temor no tenía cabida. Es necesario
dades en su complejidad. En tercer señalar que, a diferencia de la perspec-

• 511 •
tiva histórica tradicional, el miedo es en fenómenos sociales o políticos, e
diferente de la cobardía y no se con- incluso económicos, entonces uno los
trapone a la valentía. El silencio sobre puede rastrear en las fuentes históricas
el miedo en la historiograia y la con- y analizarlas siguiendo una metodolo-
fusión con la cobardia, se deben tam- gía para el estudio del tema (DELU-
bién, a que la civilización occidental ha MEAU, 1981). Se debe recurrir a los
culpabilizado el miedo, al concebirlo métodos empleados en la historia de
como algo desdeñable. las mentalidades, pero también en la
Finalmente, el interés por el historia social, económica, política,
tema del miedo apareció en las prime- cultural, entre otras. Ello depende mu-
ras décadas del siglo XX con la renova- cho de la temática a tratar.
ción historiográica protagonizada por Por otra parte, tenemos miedos
los historiadores franceses Marc Bloch espontáneos que surgen naturalmente,
y Lucien Febvre, quienes se preocupa- y miedos relejados o inducidos, que
ron en sus investigaciones por el aná- son de carácter cultural y que son di-
lisis de algunos elementos psicológicos fundidos por el Estado, una institución
de carácter colectivo y se detuvieron a o un grupo social, al resto de la colec-
relexionar sobre el temor y el deseo tividad. Los medios de comunicación y
de seguridad desde el punto de vista la educación han sido históricamente,
histórico. mecanismos privilegiados para la difu-
A partir de este empuje inicial, sión de los miedos a la sociedad.
en la década de 1960 se dio la apertura Hay miedos espontáneos que
de nuevos campos de estudio como la
son derivados del instinto de conserva-
Historia de las mentalidades que reno-
ción como el miedo a la muerte -el más
varon el interés por temas como este y
grande los miedos-, pero también hay
los pusieron en el centro de la atenci-
una instrumentalización del miedo por
ón . En este contexto, se entienden los
trabajos del gran historiador del mie- el poder. Los miedos pueden tener una
do, Jean Delumeau, que son un sólido base real o icticia, lo importante para
aporte historiográico que sienta las que funcionen es que sean percibidos
bases para el tratamiento de esta temá- como reales y en este sentido son mu-
tica desde el punto de vista histórico chas veces manipulados e instrumenta-
(DELUMEAU, 1996). lizados por las élites, por el poder o por
¿Cómo estudiar estos miedos las instituciones para la consecución de
colectivos? Los miedos colectivos se sus propios ines.
exteriorizan a través del discurso, se De acuerdo con su duración, los
maniiestan en acciones, se expresan miedos pueden ser: estructurales o de

• 512 •
larga duración, coyunturales o de me- sariamente, transformarse en odio, que
diana duración, y acontecimentales o es una pasión o un sentimiento que
de corta duración. Asimismo, el temor está orientado a la destrucción simbó-
se puede transformar con el tiempo, lica o real del objeto odiado.
pues es una categoría variable: lo que A continuación, presentamos
genera miedo en un momento, puede un cuadro que presenta una amplia ti-
dejar de generarlo, y viceversa. pología de los miedos colectivos (RO-
¿Cuáles son las reacciones que SAS MOSCOSO, 2005, p. 27-31 y RO-
provoca el miedo a nivel social? Pue- SAS LAURO, 2012, p. 138-139):
den ser de asimilación del miedo, de 1. Miedo a la naturaleza:
rechazo o resistencia, pero también, de a) Miedo a las fuerzas de la na-
indiferencia, que es una forma de vio- turaleza: maremotos o tsunamis, ter-
lencia, una forma de expresar temor, remotos, temblores, erupciones vol-
de mantenerse al margen, de no com- cánicas, huracanes, diluvios, sequías,
prometerse. Por otra parte, según su heladas, inundaciones, huaycos, fuego,
dimensión espacial, los miedos adop- etc.
tan diferentes niveles: global, nacional, b) Temor a los espacios o fe-
regional o local. nómenos de la naturaleza: la noche, el
Otro elemento importante de mar, el bosque, los espacios de frontera
los estudios sobre el miedo releja que o marginales, etc.
generalmente los miedos no aparecen 2. Miedo a los transtornos de la
solos, aparecen como un tren de mie- salud y la muerte:
dos, que actúan en conjunto. Cuando a) Miedo a la enfermedad: epi-
en la época moderna, en la historia demias, pestes, etc.
europea, había el miedo a la mujer, b) Miedo al hambre: carestías,
a las brujas, pero también a Satán, al hambrunas, etc.
Apocalipsis, en las doctrinas milenaris- c) Miedo a la muerte
tas, esto se mezclaba con el miedo al d) Temor a la discapacidad física
hambre, al isco. Detrás de un temor o mental
aparecen varios temores. e) Temores asociados a los pro-
Hay que considerar el vínculo cesos de la vida: vejez, parto, etc.
del miedo con la agresividad y la vio- 3. Miedos socio-políticos:
lencia, y con otro gran fenómeno muy a) Temor a la subversión ante la
presente en nuestra historia: el odio autoridad: rebeliones, motines, revolu-
(ROSAS LAURO, 2009). En algunos ciones, conspiraciones, conjuras, terro-
casos el temor puede, aunque no nece- rismo, guerrillas, anarquía, etc.

• 513 •
b) La autoridad como agente a) Miedo al mundo imaginario:
subversivo: Estado, ejército, policía, gigantes, sirenas, pichtacos, Kraken,
etc. Levas forzadas, trabajos obligato- etc.
rios, requisitorias, etc. b) Temor al más allá: demonios,
c) Miedo al otro: indios, negros, aparecidos, ánimas del purgatorio, fan-
pobres, extranjeros, gitanos, plebe o tasmas, etc.
pueblo, etc. c) Miedo a lo desconocido
d) Temores de género: mujeres, 7. Miedos globalizados:
homosexuales, etc. a) Miedo a la amenaza nuclear
e) Temor a la criminalidad y la b) Miedo al desastre ecológico
delincuencia: robos, asesinatos, violen- c) Miedo a la amenaza terrorista
cia sexual, etc. d) Temor a la crisis alimentaria
4. Miedos económicos: 8. Temores existenciales:
a) Miedo a uno mismo
a) Temor al isco: alza o imposi-
b) Miedo a la libertad
ción de nuevos impuestos, etc.
c) Miedo a la verdade.
b) Miedo a la inlación y la es-
casez Claudia Rosa Lauro
c) Temor ante los agentes eco-
nómicos: bancos, instituciones recau- Referencias y indicaciones
dadoras de impuestos, Estado, etc. de lectura
Expropiaciones, nacionalizaciones,
DELUMEAU, Jean. La peur en Occident. París: Fayard,
multas, etc. 1978.
d) Temor al uso de nuevos ins-
______.“Une enquête historiographique sur la peur:
trumentos económicos: moneda, tarje- vers quoi? Pour-quoi? Comment?”, en L’Histoire et ses
ta de crédito, etc. Méthodes. Lille: Presses Universitaires de Lille, 1981, pp.
29-40.
5. Miedos religiosos e ideológi-
______.La péché et la peur. La culpabilisation en Occi-
cos: dent, XIII-XVIII. París: Fayard, 1983.
a) Temores a la subversión del
______. Rassurer et proteger: le sentiment de securité
orden religioso: brujas, herejes, protes- dans l’autrefois. París: Fayard, 1989.
tantes, judíos, moros, fundamentalistas
______. L’aveu et le pardon. Les diicultés de la confes-
islámicos, sectas, etc. sion XIIIe-XVIIIe siècle. París: Fayard, 1992.
b) Miedo a la subversión ideo-
______. “La religión y el sentimiento de seguridad en
lógica: comunismo, facismo, nazismo, las sociedades de antaño”, en Historiografía francesa. Mé-
xico: CEMCA-CIESAS-UIA-UNAM, 1996, pp. 17-35.
aprismo, etc.
6. Miedo a la subversión de la ______. “Mentalidades religiosas en el occidente moder-
no”. Lienzo, Revista de la Universidad de Lima, Lima, n°
realidad: 18, p. 265-283, 1997.

• 514 •
DELUMEAU, Jean. “Miedos de ayer y hoy”, en El Mie-
do. Relexiones sobre su dimensión social y cultural. Me-
Misoginia
dellín: Corporación Región, 2002a, pp. 9-21.
Derivada do grego (μισογινια) o
______. “’Seguridad’: historia de una palabra y de un
concepto”, en El Miedo. Relexiones sobre su dimensión verbete é formado dos vocábulos miso
social y cultural. Medellín: Corporación Región, 2002b,
pp. 71-82.
(μισο), que signiica ódio de, e giné
(γινή), mulher. Diz-se da aversão, re-
GUIDI, L; PELLIZARI, M.R. y L. VALENZI (coordi-
nadoras). Storia e Paure. Immaginario collettivo, riti e ra-
pulsão mórbida, ódio ou desprezo por
ppresentazioni della paura in età moderna. Milán: Franco mulheres. Não se pode confundir mi-
Angeli, 1992.
soginia com ginecofobia (γινήκοφοβια)
GONZALBO AIZPURU, Pilar; SPECKMAN, Elisa que é a aversão patológica ao convívio
y Claudia AGOSTONI (eds.). Los miedos en la histo-
ria. México: COLMEX-Centro de Estudios Históricos, (sexual) com mulheres. Embora um
2009. possa relacionar-se ao outro, são vo-
GONZALBO AIZPURU, Pilar; STAPLES, Anne y Va- cábulos que se referem a construções
lentina TORRES SEPTIÉN (eds.). Una historia de los
usos del miedo. México: COLMEX-Universidad Ibero-
epistemológicas diferentes.
americana, 2009. Ao se deinir o vocábulo pelas
partes que o constituem miso + giné
LEFEBVRE, Georges. La grande Paura del 1789. Torino:
Einaudi, 1973. as deinições sobre o que seja a misogi-
nia e a forma como a encontramos em
ROSAS LAURO, Claudia (editora). El miedo en el Perú.
Siglos XVI a XX. Lima: Pontiicia Universidad Católica diferentes contextos sócio históricos
del Perú-Seminario Interdisciplinario de Estudios Andi- tornam-se mais claras. Miso, na língua
nos, 2005.
grega, deinia a aversão de uma pessoa
______. (editora). El odio y el perdón en el Perú. Siglos ou um grupo de pessoas a algo ou a
XVI al XXI. Lima: Pontiicia Universidad Católica del
Perú-Sociedad Peruana de Psicoanálisis, 2009.
alguém. Assim, miso é o antônimo de
ilos (φιλοσ), ou seja, amizade ou dese-
______. “El miedo en la historia del Perú. Bases teóricas
jo de aproximar-se de algo ou alguém.
y metodológicas para su estudio”. Revista de historia y
cultura Tiempos del Museo de Arqueología y Antropo- Miso não é dado como algo inato, pelo
logía de la Universidad Nacional Mayor de San Marcos, contrário, como construção que se dá
Lima, n° 7, pp. 123-140, 2012.
no campo das experiências pessoais e
ROSAS MOSCOSO, Fernando. “El miedo en la histo- da cultura.
ria: lineamientos generales para su estudio”, en Claudia
Rosas Lauro (ed.). El miedo en el Perú. Siglos XVI a XX. Tanto Platão quanto Kant
Lima: Pontiicia Universidad Católica del Perú-Seminario ao explicar como nasce a misologia
Interdisciplinario de Estudios Andinos, 2005, pp. 27-31.
(μισολογια) - aversão, ódio, desprezo
VOVELLE, Michel. Aproximación a la Historia de à razão – identiicam experiências pes-
las Mentalidades Colectivas. Cuadernos de Historia N°
XII. Lima: Universidad de Lima, 1991.
soais que levam as pessoas a tal con-
dição. Assim o misólogo (o que odeia
• a razão) não o faz a priori, mas o faz

• 515 •
a partir de crenças equivocadas ou de alguns períodos históricos que signi-
experiências frustradas (MORA, 2001, icativamente construíram represen-
p.477). Voltando à misoginia pode se tações do feminino que expressam e
airmar, então, que essa aversão, ódio, reproduzem um discurso misógino. A
desprezo ou repulsa as mulheres nasce história do ocidente é prodigiosa na
no seio da sociedade e de suas repre- produção de representações que atri-
sentações. buam ao feminino uma série de carac-
JOHNSON (1997, p.149), em terísticas malignas. Nesses discursos
seu Dicionário de Sociologia: guia prá- as mulheres aparecem como ardilosas,
tico de linguagem sociológica airma frívolas, avarentas, incapazes de pro-
que a “misoginia é uma atitude cultu- duzir conceitos, moralmente fracas e
ral de ódio às mulheres simplesmente indisciplinadas.
porque elas são mulheres. Trata-se de Embora esses discursos tenham
uma parte fundamental do preconcei- sido lapidados pelos clérigos medie-
to e da ideologia sexista e, como tal, vais, já os encontramos fartamente nos
constitui uma base importante para a discursos ilosóicos, literários e médi-
opressão das mulheres em sociedades cos entre gregos e romanos, nos escri-
dominadas pelos homens”. A diferen- tos bíblicos e, também, nas tradições e
ça fundamental entre a misoginia e a leis (ver Lei Sálica) dos povos que ocu-
ginecofobia está no fato de que o gi- param a Europa a partir da queda do
necófobo, em sua patologia, teme às Império Romano. MURARO (2002,
mulheres com as quais pode se rela- p.91) airma que “apesar da existên-
cionar ou com as quais possa vir a se cia das hetairas, a sociedade grega era
relacionar. Já o misógino, numa pers- misógina e sexista”. Os romanos eram
pectiva essencialista e universalista, ex- igualmente sexistas e, em muitos perío-
perimenta o ódio ou a aversão a todas dos de sua história legitimaram o con-
as mulheres atribuindo-as identidade trole do pai ou marido sobre a mulher
uniicada. A misoginia é uma aversão alimentando forte sentimento de miso-
ao gênero feminino, entendido como ginia. Segundo se airmava: “o marido
universal e abstrato, pois se estende às é o juiz da esposa. Se ela comete uma
mulheres como uma identidade única falta, ele a pune; se ela bebeu vinho, ele
e a mercê de seus contextos históricos a condena; se ela cometeu adultério, ele
e culturais. a mata” (STEARNS, 2012. p.38).
Quando Johnson (1997) se refe- No medievo se fará uma síntese
re à dominação masculina como fun- desses discursos. Homens apartados
damento para a construção cultural da das mulheres por suas opções religio-
misoginia faz-se necessário voltar-se a sas, como Bento de Núrcia a quem o

• 516 •
diabo sempre se apresenta com feições crenças infundadas. Assim, a misoginia
femininas, produzirão representações nasce de um conjunto de representa-
da mulher como verdadeira ameaça ao ções que permearam a educação de
homem e ao bem. homens e mulheres em diferentes tem-
As teorias sobre o papel da pos e culturas. Portanto, só pode ser
mulher desenvolvidas pelos padres da entendida como constructo cultural
Igreja a colocam como ilha e herdei- que produz experiências e crenças mi-
ra de Eva, portanto fonte do Pecado sóginas, em que as mulheres aparecem
Original (ver verbete). Atuando como universalizadas num feminino que é
instrumento do Diabo atribui-se a ela a abstrato por desconsiderara pluralida-
separação entre o homem e Deus. Ad- de dos contextos e das múltiplas lutas
voga-se um caráter maligno intrínseco
das mulheres concretas.
a todas as mulheres e reclamavam-se
A deinição do sujeito da mi-
ações de vigilância e disciplina sobre
soginia na literatura não é consensual.
elas. Forja-se um caráter mau do sexo
Uns atribuem a misoginia apenas a su-
feminino, o que ideologicamente torna
jeitos do sexo masculino, outros atri-
também benéico para todos sua sub-
buem às pessoas de forma genérica.
missão.
Sabe-se que o mundo social imprime,
Tais representações permanece-
rão na cultura ocidental, seja de forma em cada um, todo um conjunto de per-
localizada e pouco percebida, seja de cepções que atua em nossos corpos
forma adaptada às novas formações produzindo processos de identiicação
sociais. Até o século XIX, em diversos e adesão a determinados discursos.
círculos intelectuais a mulher aparece As representações condenatórias do
como ser especialmente apta ao domí- sexo feminino foram assimiladas por
nio privado e incapaz para os ofícios homens e mulheres que passaram a se
públicos. Inversamente ao homem, reconhecer nelas, de tal forma que o
associado à razão e energia, ela estará discurso misógino perpassa, também,
identiicada por sua sexualidade e seu alguns discursos femininos. Nessa
corpo. No puritanismo, ou outras for- perspectiva é que JOHNSON (1997)
mas de fundamentalismo religioso, se escreve que a misoginia se manifesta
perpetua a vigilância sobre a intimida- inclusive no autodesprezo que as mu-
de da mulher e a exigência de recato lheres podem ser ensinadas a sentir em
e de observância de valores morais relação ao próprio corpo.
cunhados especiicamente para elas.
Platão e Kant defenderam que Carlos Norberto Berger
miso nasce das experiências ou das

• 517 •
Referências sua qualidade feminina. No caso desse
grupo, o convencimento é garantido
JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia: guia
prático de linguagem sociológica. Rio de Janeiro: Zahar.
também através de outras ações que
1997. podem compor a montagem em um
MORA, José F. Dicionário de Filosoia. São Paulo: Mar-
sentido mais amplo, como os hormô-
tins Fontes. 2001. nios femininos adotados por elas des-
MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio: de o inal da década de 1960 (GREEN,
uma história da mulher através dos tempos e suas pers- 2000), e a técnica de aplicação do silico-
pectivas para o futuro. 8ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa
dos Tempos, 2002. ne líquido que, apesar dos avanços no
campo das cirurgias estéticas, continua
STEARNS, Peter N. História das relações de gênero. 2ed.
São Paulo: Contexto, 2012. sendo comum. Muitas travestis, inclu-
sive, ao deinirem-se, baseiam-se nessa
Sugestões de leitura experiência. Dizem elas: “Ser travesti é
estar montada vinte e quatro horas por
JOHNSON, Robert A. Feminilidade perdida e recon-
quistada. São Paulo: Mercuryo, 1991. dia”. Transexuais, por sua vez, ao se re-
ferirem à construção de seus corpos e
MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade média, 4ed.
São Paulo: Contexto, 1999. performances femininas, nem sempre
se identiicam com o uso desse termo.
MENDES, Dom José Palmeiro. A vida maravilhosa e a
medalha de São Bento. 3ed. São Paulo: Artpress, 1999. Muitas acabam se deinindo pela recu-
NOGUEIRA, Carlos R. F. O diabo está solto! A ação
sa a ele, por não se verem “montadas
das ordens mendicantes ao inal da Idade Média. In SIM- como mulher”, mas como “mulheres”.
PÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS MISSIONEIROS
Vol. X “A experiência missioneira: um marco histórico
Este termo não se restringe
para a integração Latino-americana” (1993). Anais. Ijuí: apenas a caracterização de identidades
UNIJUÍ – Campus Santa Rosa, 1993.
travestis e transexuais, por meio dele é
STEARNS, Peter N. História das relações de gênero. 2ed. possível compreender outras experi-
São Paulo: Contexto, 2012.
ências, como a de Drag Queen. Segun-
• do Vencato (2003), o que diferencia
as drags de travestis e transexuais, por
Montagem exemplo, “são aspectos como tempo-
ralidade, corporalidade e teatralidade.
Montagem refere-se ao ato de Temporalidade porque a drag tem um
vestir-se com roupas de mulher. Be- tempo “montada”, outro “desmonta-
nedetti (2000), ao estudar travestis, o da” e, ainda, aquele em que “se mon-
classiicou como um processo de ma- ta”. Diferentes das travestis e transe-
nipulação e construção de uma apre- xuais as mudanças no corpo são feitas,
sentação que seja suicientemente con- de modo geral, com truques e maquia-
vincente, sob o ponto de vista delas, de gem. A corporalidade drag é marcada
• 518 •
pela teatralidade, perspectiva que é im- centes e jovens efeminados, ou que se
portante para compreender estes sujei- identiicam como travestis. Para exem-
tos” (Idem, p. 196) pliicar essa realidade, envolvendo uma
No entanto, esta diferenciação nova geração, proponho a partir do
aparece cada vez mais luida e dinâ- conceito analítico montagem estratégi-
mica, seja na temporalidade, corpora- ca, pensarmos na construção e na des-
lidade ou na teatralidade. Ainda assim, construção da feminilidade de quem se
na montagem realizada por parte de monta via uma manipulação da vergo-
travestis e, especialmente, de transexu- nha e do estigma para se conquistar,
ais, há uma busca de naturalidade que entre outras coisas, parceiros sexuais e
comumente a drag não tem (SILVA, transitar na escala de exposição à vio-
1993; BENEDETTI, 2000, BENTO, lência. Isso implica, no caso de algu-
2006; KULICK, 2008; PELÚCIO, mas travestis mais jovens, entre outras
2009; DUQUE, 2011; TEIXEIRA, coisas, em não mais “estar de mulher
2013). Esta busca por naturalidade foi vinte e quatro horas por dia”.
percebida desde os primeiros estudos A montagem estratégica extra-
sobre travestis (isto é, que envolviam pola os limites de uma escolha pessoal,
a montagem) no Brasil. Segundo Sil- de uma simples agência auto deinido-
va (1993), todo o esforço delas é em ra do sujeito, pois é feita em meio às
busca de um passar por mulher. “Seus exigências que o universo social lhes
êxitos e motivo de orgulho estão con- impõe como umas das possibilidades
tidos em tal possibilidade” (Idem, p. de encontros afetivo-sexuais e tam-
129), diz ele. bém de sobrevivência. A frequente
O passar por mulher está direta- pergunta “lá pode ir montada?”, feita
mente ligado às experiências da mon- muitas vezes por aqueles/as jovens
tagem. Por isso, como citado acima em que se montam, tem me possibilitado
relação à recusa ao termo montagem conceituar a montagem estratégica a
por algumas transexuais, o mesmo se partir das relexões de Certeau (2000).
passa com o passar por. Ainal, para Estratégia, de um modo geral, é a ação
muitas transexuais a construção do fe- racional que avalia custo benefício. Ela
minino não é uma questão de passabi- postula um lugar de poder como algo
lidade, mas de “ser mulher”. próprio, a ser a base de onde se podem
Contudo, há novas experiências gerir as relações, manipular a partir de
de montagens, e, consequentemente, uma exterioridade de alvos ou ameaças
de passar por mulher, entre adoles- (Idem, p. 99).

• 519 •
Penso esse lugar como situacio- montagem estratégica porque, às vezes
nal, ligado a certo momento, dinâmi- é consciente, detalhadamente manipu-
co. Assim, o sujeito pode tomar ações lado, estudado, treinado, exercitado,
estratégicas, mas também agir tatica- que garante, por exemplo, a perma-
mente. A tática, nas relexões deste nência junto à família como menino
autor, é plástica e fruto da astúcia, é ou a frequência à escola. Em outros
uma reação de resistência no local, não momentos, parece ser algo pouco ra-
planejada. Segundo Certeau (2000), di- cionalizado, planejado, quando, por
ferentemente da estratégia, este é um exemplo, montado sem a intenção de
conceito determinado pela ausência de passar por, acaba sendo reconhecido
um lugar próprio, de poder: “então ne- como mulher em alguma loja – neste
nhuma delimitação de fora lhe fornece caso aproveitam para “serem bem tra-
a condição de autonomia. A tática não tadas”.
tem por lugar senão o do outro. E por Outro grupo que se monta e se
isso deve jogar com o terreno que lhe desmonta são os homens praticantes
é imposto tal como o organiza a lei de de crossdressing. Parte destes homens
uma força estranha” (Ibidem, p. 100). praticam a montagem sob segredo,
Sendo assim, algumas travestis mantendo uma vida dupla entre estar
bastante jovens se desmontam para ou não vestido de mulher. Por isso,
frequentar lugares de encontros gays como analisou Vencato (2013), eles
em busca de namoros mais duradou- também mantém um lerte com as
ros, ainal meninos gays comumente ideias de cálculo, desejo e risco, ainal,
não se interessam afetivo-sexualmen- há um medo constante de perderem
te por travestis, enquanto investem na a vida respeitável construída enquan-
montagem para ir a lugares de frequ- to desmontado. É nesse sentido que
ência tida como “mais de hetero” para o passar por mulher quando monta-
beijar meninos na boca pelo fato de, dos faz todo o sentido, especialmente
quando montadas, muitas passarem quando estão montados se dá em lo-
por mulheres. As mais jovens hoje cais públicos.
em dia também se desmontam, isto é, Mas, também há experiências
fazem a linha homem pra ir à rua du- que buscam exatamente o contrário,
rante o dia e tentar não chamar a aten- isto é, revelar o processo da monta-
ção, nem ser vítima de violência, como gem, mesmo quando é tido/a como
também relatado por Kulick (2008) em passável, para conquistar status de
seus estudos com gerações anteriores. reconhecimento e respeito. Em con-
Esse fazer a linha é um “parecer ser”, textos de valorização das diferenças,
e está diretamente ligado à noção de por exemplo, alguns que se montam

• 520 •
e poderiam passar por, anunciam o magras, jovens e com elementos cultu-
seu “verdadeiro sexo” para ser visto/a rais de classes socialmente mais privi-
como alguém corajoso/a e diferente. legiadas são as mais elogiadas e as que
Em vez de buscar passar por para não provavelmente estarão menos expostas
ser notado/a, denuncia-se a si mesmo a situações de violências em determi-
como uma montada para ser admirada nados contextos sociais. Outras, por
e não passar por alguém “igual a todo o sua vez, devido à idade e a classe social,
mundo”. Isso ocorre tanto no ambien- assim como a uma cor de pele menos
te online como ofline. No Facebook, por valorizada socialmente, tenderão a en-
exemplo, são comuns algumas passá- frentar mais diiculdades em conseguir
veis quando montadas, divulgar suas valorização enquanto uma pessoa de
imagens enquanto masculinas, isto é,
sucesso na construção do feminino.
desmontadas. Em casos de travestis e
Porém, isso não signiica que estão fa-
transexuais que passaram por proces-
dadas ao não reconhecimento.
sos cirúrgicos, diicultando um vai-e-
Por isso, seja via a montagem
-vem radical entre “estar de homem”
em busca da passabilidade seja via a
e “estar de mulher”, elas divulgam suas
busca da não passabilidade, o reco-
fotos do tempo de criança ou adoles-
nhecimento estará dado sempre como
cência, com elementos corporais e es-
téticos tidos como “de meninos”, para uma das alternativas contra as expe-
demonstrar o quanto foram corajo- riências de rechaço, discriminação e
sas, diferentes e capazes em construir violência. Aproximar-se dos normais,
uma imagem feminina de si (DUQUE, isto é, daqueles mais inteligíveis – ser
2013). identiicado como uma “mulher de
Analisando a montagem, a des- verdade”, em termos também de clas-
montagem, o passar por e o fazer a se, raça/cor e idade mais privilegiados
linha, entende-se que é na interação – é uma forma de se proteger e se fa-
que se estabelecem as relações de le- zer desejada, mas diferenciar-se dos
gitimidade do que vem a ser tolerável normais e dos tidos com experiências
ou não nos mais variados processos de mais coerentes com as convenções he-
reconhecimento social. Dito de outro gemônicas, inclusive alçando a catego-
modo, a construção e/ou montagem ria de corajosamente diferente, é outra
do corpo passável, por exemplo, é a forma de buscar evitar o desrespeito e
própria construção de uma verdade o anonimato. Tanto uma como a outra
sobre o sexo e o gênero em contextos estão mutuamente se constituindo en-
de classe, idade, cor/raça e sexualidade quanto possibilidades de sobrevivência
muito bem deinidos. As mais brancas, viável em um contexto ainda pouco

• 521 •
acolhedor das diferenças mais ininteli- ______. Sapos e Princesas: prazer e segredo entre prati-
cantes de crossdressing no Brasil. São Paulo: Annablume,
gíveis em termos não só de gênero e 2013.
sexualidade, como também em relação
a outros marcadores sociais. •

Tiago Duque Movimentos Feministas

Referências No Diccionario Ideológico Feminista,


publicado em Barcelona, pelo Icaria
BENEDETTI, Marcos Renato. Toda feita: o corpo e o
gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. Editorial S. A. em 2001, em seu volu-
me II, entre as páginas 109 e 111, Vic-
BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade
e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Ga- toria Sau apresenta o termo feminismo
ramond, 2006. – no singular. Ele é registrado como
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petró- um modo de pensar muito antigo e bi-
polis, RJ: Vozes, 1994. nário, com base na clássica oposição
DUQUE, Tiago. Gêneros incríveis: identiicação, dife- homem x mulher. Essa oposição esta-
renciação e reconhecimento no ato de passar por. Tese
de Doutorado – Campinas: Programa de Pós-Graduação
ria presente na “metaisica china Y
em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campi- Ching (libro de los câmbios), que data
nas, 2013.
de más de cuatro mil años” . E a exem-
______. Montagens e Desmontagens: desejo, estigma e pliica: “El yang y el yin, el bien y el
vergonha entre travestis adolescentes. São Paulo: Anna-
blume, 2011.
mal, la derecha y la isquierda... El hom-
bre e la mujer”. Informa, em nota de
GREEN, James N. Além do Carnaval. A homossexuali-
dade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Edi-
rodapé, tratar-se essa de uma iniciativa
tora UNESP, 2000. que emerge “por la primera y única vez
KULICK, Don. Travesti: prostituição, sexo, gênero e antes de ahora en el V Encuentro de
cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008. Formación Feminista organizado por
PELÚCIO, Larissa. Abjeção e Desejo: uma etnograia el Instituto Andaluz de la Mujer, que
travesti sobre o modelo preventivo de aids. São Paulo: tuvo lugar em Baeza en octubre de
Annablume; FAPESP, 2009.
1998”. Enunciado assim, no singular,
SILVA, Hélio R. S. Travesti: a invenção do feminino. Rio esse modo de conceituar o homem e a
de Janeiro: Relume-Dumará: ISER, 1993.
mulher expõe a tendência que admite
TEIXEIRA, Flávia do Bonsucesso. Dispositivo de dor: uma essência masculina em contrapo-
as=7çmbpprberes-poderes que \conforma as transexuali-
dades. São Paulo: Annablume, 2013. sição a uma feminina. Também no
Brasil, em 1998, o Tesouro para Estudos
VENCATO, Anna P. Confusões e estereótipos: o ocul-
tamento de diferenças na ênfase de semelhanças entre de Gênero e sobre Mulheres de C. Bruschi-
transgêneros. Homossexualidade, sociedade, movimento
e lutas. Campinas: UNICAMP/IFCH/AEL, v.10, n.18,
ni, D. Ardaillon e S. G. Unbehaum, pu-
p. 151-179, 2003. blicado em São Paulo pela Fundação

• 522 •
Carlos Chagas, em associação com a dências analíticas que expõem experi-
Editora 3, nas p.8-9 e 84-85, registra ências feministas que, mesmo conjun-
que a noção de feminismo, também é turais, vinham tornando invisíveis
tomada assim, no singular, quando já tensões e rupturas entre gerações de
estava em marcha o deslocamento mulheres e de feministas. Ela expõe e
conceitual que reconhece a tendência à problematiza, ainda, a metáfora da
reairmação do essencialismo dos se- “sororidade” essa que preside a noção
xos nas críticas conceituais próprias à de solidariedades presumidas na expe-
emergente discussão teórica e metodo- riência naturalizada pelo sexo e pela
lógica peculiar aos estudos de gênero. maternidade. Cresce, ao mesmo tem-
Esse debate move o binarismo homem po, a percepção de que sucessivas gera-
X mulher, passando a incluir e a exigir ções de mulheres, feministas e não, se
o reconhecimento da complexidade movem em diferentes direções. A his-
das relações sociais dos gêneros mas- tória das mulheres e dos feminismos se
culino (s) e feminino (s). Trazem à tona torna mais e mais complexa ainda
a percepção de que as pessoas, além de quando evidencia continuidades e tam-
seus respectivos sexos, estão situadas bém rupturas relacionais muito varia-
em dadas posições de classes sociais, das de muitos contornos e referências.
apresentam características qualiicadas Seus impactos sobre o conhecimento e
como raciais, além das pertinentes a di- os movimentos sociais em marcha são
ferentes etnias e culturas, referidas a muitos. A perspectiva da longa dura-
cores de pele muito variadas, situando ção histórica e dos tempos múltiplos
um mundo de diversidades presentes expõe processos sociais ocultados por
nas relações de diferentes gerações e clássicos conceitos. Isso muda a per-
nas orientações sexuais. Essas evidên- cepção binária anterior: abordagens
cias ativam debates e redeinem mar- temáticas dos sistemas de poder e do-
cos anteriores quando ampliam a per- minação tradicionais como que se dis-
cepção da complexidade de conceitos solvem. A noção de feminismo move-
e de novas questões reorganizando an- -se, pois. Novos debates irão distinguir
tigas áreas temáticas. A clássicas no- formas associativas organizadas sob
ções de ondas feministas para marcos notáveis contradições. Mulheres que
de distinção de gerações feministas se outrora se juntavam, tornavam-se,
movem, dando lugar revisões de metá- também, por suas muitas diferenças,
foras que presidem representações so- susceptíveis de separação. Desco-
bre mulheres e seus movimentos, em briam-se quão desiguais poderiam ser
diferentes lugares e tempos históricos. nas suas relações sociais, nos seus vá-
Avantaja-se, pois, a percepção de ten- rios modos de vida e em suas causas.

• 523 •
Os movimentos, cada vez mais, conhe- pautas de lutas sociais ao longo de
ceriam diásporas e segmentações, asso- muitos séculos. Foram evidentes suas
ciações marcadas por muitas distinções conquistas no campo dos direitos so-
e por hierarquias de classes, de etnias, ciais, mas essa tendência se manterá,
cores de pele, geração, orientação se- agora movendo-se sob novas circuns-
xual de signiicativas peculiaridades e tâncias. Estudos cada vez mais volta-
sob muitos conlitos. A pretensa possi- dos para a política, a cultura e a mu-
bilidade de representarem-se em bloco dança social, por sua vez, não cessariam
se desfaria. Ainda que a tradicional de demonstrar a complexidade das re-
oposição homem X mulher tenha per- lações e das questões sociais (COSTA,
manecido como um ponto de conver- S.G. Onda, rizoma e “sororidade”
gência das diferentes formas de asso- como metáforas: representações de
ciação e, mesmo que ainda consorciasse mulheres e dos feminismos Paris, Rio
mulheres diferentes e desiguais em tor- de Janeiro: anos 70/80 do século XX.
no dessa persistente causa comum, a In: INTERthesis, Florianópolis, v.6, n.2,
tendência intelectual que se irma e p. 01-29, jul./dez. 2009). Amplia-se,
avança, agora, se assentará e se deslo- cada vez mais, a problemática social
cará para um novo patamar de consci- que, de muitas formas, havia confor-
ência política. Daí revisões de teorias e mado as experiências e paradigmas fe-
práticas voltadas para a igualdade/dife- ministas. Numa publicação de 2007,
rença política, social e econômica entre registra-se que, na experiência norte-a-
sexos iguais e diferentes, amplamente mericana, a sororidade, como metáfo-
disseminadas por toda a parte. Avanta- ra, estaria, enim, interrompida (SIE-
jam-se, no ambiente acadêmico de di- GEL, Deborah. Sisterhood Interrupted:
ferentes campos de conhecimento, from radical women to girls gone wild [and
pesquisas voltadas para práticas e re- why our politics are still personal].
presentações sociais, sobretudo as das New York: Pagrave Macmillam, 2007).
ciências humanas. Amplia-se a crítica Conceitos do feminismo como movi-
da sororidade – uma suposta identida- mento uniicado serão revistos nas di-
de de mulheres, reforçada, em grande ferentes ciências das áreas humanas e
monta, pela maternidade, experiência sociais. Note-se que do Dicionário crítico
feminina dada como destino. O mater- do feminismo, organizado por H. Hirata,
nalismo, outrora entendido como uma F. Laborie, H. Le Doaré e R. Senotier,
experiência histórica comum e domi- editado em São Paulo pela Editora
nante na história das mulheres, teria UNESP, originariamente, publicado
construído uma percepção identitária em francês, em 2000, só traduzido para
dos feminismos que organizaria as o português em 2009, deixa de constar

• 524 •
o verbete feminismo. Em seu lugar, que persista ainda a noção de movi-
surge o de movimentos feministas, um mento feminista no singular. Desde
registro que reconhece a pluralidade meados dos anos 80, contribuições da
das organizações de mulheres em luta teoria queer relativas a relações de gê-
por causas as mais diversas. Maira nero, alargam e não cessam de agregar
Abreu, numa resenha desse texto, pu- ao tema novos debates. Isso está em
blicada online, em 2011, sob o título textos como “Invisibilidade da experi-
Feminismo em Cadernos Pagú, em seu ência”, de Joan Scott, publicado no
nº 36, entre as páginas 405 a 415, ob- Proj. História, em 1998, e ainda em “In-
serva que os 48 verbetes publicados versões sexuais” de J. Butler, publicado
são, em grande número, de autoras/es no livro Poder, normalização e violência.
francesas/es, sociólogas/os, baseados Incursões foucaultianas para a atuali-
numa bibliograia, sobretudo francó- dade, constante das páginas 91-108,
fona, embora em diálogo com outras organizado por Izabel C. Friche Passos
produções. Para ela, a proposta não te- e publicado em 2008, em Belo Hori-
ria a pretensão de cobrir toda a produ- zonte pela Autêntica Editora. Vale
ção teórica sobre o tema, vista como lembrar que a teoria queer, palavra de
uma proposta pouco factível. A seu origem inglesa, ultrapassa referências
ver, admite que essa publicação não se com base na oposição masculino versus
limita apenas a “transmitir uma nova feminino, em estudos sobre gays, lésbi-
grade de leitura”, de modo a tornar cas, transgêneros. Conceitualmente, os
“metodologicamente visível a sexuali- feminismos, com crescente nitidez,
zação do social e seus efeitos”, pois, distinguem-se como plurais, reconhe-
situa, no centro do debate, “a proble- cem-se e reairmam-se como movi-
mática da dominação entre os sexos e mentos vários de mulheres, sob as mais
suas consequências”. Avalia essa publi- variadas condições humanas, voltados
cação como a que apresenta, numa lin- para a elaboração de teorias e o exercí-
guagem clara e acessível a não especia- cio de práticas de igualdade. Uns dão
listas, um panorama “dos grandes continuidade a lutas por igualdade dos
temas do movimento feminista (abor- sexos sob tradições intelectuais postas
to e contracepção, violências, família, pela perspectiva inicial de sexualização
etc.), como polêmicas e conceitos cen- do social. Conforme o caso, muitos es-
trais desse movimento (igualdade x di- tarão ainda mais e menos aderentes
ferença, patriarcado), além de interpre- àquela perspectiva binária de oposição
tações feministas de algumas categorias masculina X feminina de longa dura-
(dominação, desemprego, trabalho, ci- ção histórica. Outros mais passam a
dadania, poder)”. No caso, é comum considerar a pluralidade de experiên-

• 525 •
cias femininas e masculinas, revendo exemplo, se fazem com e sem apoio de
conceitos de oposições referidas a vá- movimentos feministas, considerando
rios sistemas de dominação/subordi- o embargo de variadas tradições cultu-
nação. Veem-se, agora, mais do que rais e religiosas. Os estudos das mascu-
antes, diante de complexas relações linidades, da transexualidade e da enge-
sociais de sexos, como de classes so- nharia corpórea são bem exemplos,
ciais, raças, etnias, cores de pele, orien- dos novos desaios conceituais, mas
tações sexuais e gerações; tudo isso faz também organizacionais, considerados
rever concepções e campos de luta re- em novos modos de luta conjunta/se-
feridos à clássica oposição feminino X parada de mulheres e de homens. A
masculino. Maria Lucia Mott mostra meu ver, todas elas acentuam cami-
que, na historiograia sobre experi- nhos de luta por igualdade das pessoas,
mentos femininos do início do século quaisquer que sejam suas diferenças.
XX, essa a que, em geral, vinha se de- Contribuições de interesse dessa maté-
dicando, os percebe como marcados ria estão ainda na publicação A cidadã
por descontinuidades, daí esse seu re- paradoxal: as feministas francesas e os direi-
gistro: “[...] a pesquisa sistemática em tos do homem de Joan Scott traduzida
diferentes fontes sobre proissionaliza- por Élvio A. Funck, com apresentação
ção feminina e sociedades civis, cria- de Miriam P. Grossi e orelhas de Simo-
das, implementadas e mantidas por ne P. Schmidt, publicado em Florianó-
mulheres, por exemplo, aponta que polis, pela Editora Mulheres, em 2002.
essa descontinuidade é uma constru- Também é de interesse da avaliação da
ção que vem sendo repetida acritica- luta e conquista da paridade de ho-
mente e não corresponde ao vivido mens e mulheres na representação po-
por muitas mulheres, em vozes e ima- lítica em todas as instâncias de poder o
gens com que nos temos deparado nos livro Parité! L’universel et la différence des
fundos e coleções dos arquivos” (En- sexes, também de autoria de Joan Scott,
trevista. Citado em COSTA, S.G. Op. publicado em 2005, em Paris, por Édi-
Cit. p.1). Essas concepções em circula- tions Albin Michel. Os feminismos
ção impactam e organizam as formas tem sido reconhecidos como movi-
associativas de vários movimentos so- mentos sociais de mulheres, todavia,
ciais, redeinem suas causas sociais e com suas questões cada vez mais espe-
pautas por direitos sob formas muito cíicas. Há, em todas as formas asso-
plurais. Causas como a do reconheci- ciativas do nosso tempo presente, uma
mento do casamento civil por pessoas permanente reairmação de pautas de
do mesmo sexo e a de adoção de crian- lutas e ações políticas contra diferentes
ças por casais homossexuais, por formas de opressão e de negação de

• 526 •
direitos a pessoas de iguais e de dife- formas do poder contemporâneo or-
rentes sexos. Quais são os rumos de ganizam os caminhos a seguir, quando
novas lutas? Judith Butler, em Can One lhes atribuem valores variáveis, quando
Lead a Good Life in a Bad Life? (2012), instituem, por toda a parte, as desigual-
traduzido para o francês em 2014 dades?” Os feminismos tem agora
(Qu’est-ce qu’une bonne vie? Éditions Payo- mais esse tão antigo desaio por en-
t&Rivages), a faz mais próxima de Rou- frentar.
sseau que de Foucault, observa Martin
Rueff, seu tradutor francês. Ela nega a Suely Gomes Costa
percepção de que a política e a ética

constituem-se domínios radicalmente
heterogêneos e airma: “Eu recuso
toda a distinção entre eles”. Examina,
Mujeres Árabes
então, os desaios do tempo presente
El concepto “mujeres árabes”
na busca por uma “vida boa” para to-
es complejo, pues no es unívoco, sino
dos, diante da missão - radicalmente
con múltiples e importantes diferen-
política - de luta contra a “vida má”.
cias, según el momento o el lugar.
Seus editores, na contracapa da edição
Originalmente son las nacidas en la
francesa, lembram que se deve a essa
Península Arábiga en fechas en las que
ilósofa americana as revisões sobre a
cuanto acontecía en esa poco accesible
problemática feminista: a noção da do-
región casi no se halla presente en la
minação masculina assentada na hege-
historia de su tiempo. Vislumbramos
monia da diferença dos sexos, passa a
retazos de la vida cotidiana preislámica
distinguir relações de dominação ins-
de sus pobladores (nómadas caravane-
critas nas diferenças de gêneros. Ela
ros que comerciaban con sus imperios
reabre, assim, novos debates sobre
vecinos) gracias a escasos y fragmen-
suas próprias contribuições, agora,
tados escritos en prosa o poesía de los
marcadas por preocupações com as
que tenemos constancia, susceptibles
desigualdades humanas desses nossos
de su deformación posterior. Incluso
tempos. Entram em cena, antigas ques-
conocemos fragmentos de poetisas
tões, daí a pergunta que a orienta posta
(SOBH, p. 117-123), emotivas y ar-
em destaque na apresentação desse li-
dorosas elegías en las que ensalzan el
vro: “De que valem nossas aspirações
valor y las hazañas o, reclamando ven-
morais quando a vida se faz dura, frá-
ganza, lloran muerte de sus familiares
gil, precária e, até mesmo, o horizonte
varones víctimas de las constantes
de sobrevivência parece fora de alcan-
guerras tribales que asolaban una tierra
ce? O que é uma vida boa quando as
muy poco fértil, verdadero mosaico de
• 527 •
tribus competidoras por la supremacía (por mediación del arcángel Gabriel)
política y por el dominio de los oasis y para ser el receptor y transmisor de
de las rutas de las caravanas. Aunque una nueva revelación divina, capaz de
limitada, nos es imprescindible esta li- infundir ánimos y energías suicientes a
teratura si se desea entender lo ocurri- un pueblo predominantemente nóma-
do en Arabia antes del Islam; contiene da, para llevar a cabo tal hazaña. Nacido
elocuentes reliquias de un tipo de vida
en La Meca (hacia el 570), era un joven
que sin ella lo consideraríamos muerto
camellero que comerciaba con gentes
y del que no sólo conservan latidos de
de diversas procedencias y religiones,
amor y de dolor, desahogos de odio y
venganza, ideales y entusiasmos, sino al servicio de una rica viuda, Jadiŷa,
que también muestran la durísima lu- con la que se casó cuando sólo contaba
cha por la existencia de estos rudos 25 años, siendo ella mucho mayor. Fue
beduinos, hospitalarios y generosos, un matrimonio monógamo, del que
benignos con los suyos y feroces con nacieron cuatro hijas, de las que sólo
los enemigos; palpamos su alegría por le sobrevivió Fátima, esposa del cuarto
lograr satisfacer las necesidades de sus califa del Islam; ellos engendraron a los
mujeres y hombres, su vida espiritual dos únicos nietos del Profeta. Jadiŷa no
pobre y rudimentaria, con multitud de sólo le aportó una vida más conforta-
supersticiones, etc. ble y feliz, sino que fue la primera que
Pero a cuanto sucedió en esa re- conió en él y le alentó cuando se sintió
mota zona del planeta y en época tan turbado al recibir la primera revelación
pretérita, no le habría sido fácil con-
divina hacia el año 610. Mientras vivió
seguir traspasar sus fronteras si allí no
a su lado (murió en el 619), fue su más
hubiera surgido el Islam a comienzos
iel compañera y seguidora, por lo que
del s. VII. Este hecho, en muy escasos
años, elevó a los árabes a un primer es considerada “la madre de los musul-
plano de la Historia y los condujo hasta manes”.
Hasta su muerte (632), Maho-
los conines del Atlántico y del Extre-
ma no sólo fue un profeta que animó
mo Oriente; en su gran expansión les
a sus seguidores a practicar nuevas
acompañó su lengua, la árabe, vehículo
creencias, sino que se convirtió en ex-
de propagación de esta tercera gran re- perto estratega y político que impulsó
ligión monoteísta y de su civilización. la reuniicación de las múltiples tribus
Impulsor de tan decisivo cam- de la Península, tras numerosas batallas
bio histórico es el profeta Muhammad y posteriores pactos. En ocasiones, las
(Mahoma); él fue elegido por Allah alianzas las logró mediante sus matri-

• 528 •
monios con mujeres de diversas pro- viva. Por ello, en poco tiempo susti-
cedencias. tuyen a las de los conquistados, aunque
Durante los trece años que vivió a su vez éstos (cuyas civilizaciones eran
tras el fallecimiento de Jadiŷa, con 50 más avanzadas) impregnan al Islam de
años y una posición social ya bastan- muchas de sus costumbres. A partir de
te consolidada, emprende una política entonces ya no todos eran de origen
matrimonial que le lleva a contraer su- árabe; por ello, desde las primeras con-
cesivos matrimonios que aianzan más quistas el Islam, pese a ser arabófono,
su poder (su política matrimonial no dejó de ser árabe puro y debemos de
se limitó a sí mismo, sino que también referirnos a sus seguidores como mu-
casó a sus hijas con sus sucesores y pri- sulmanes/as o árabe-islámicos/as; es
meros compañeros. Además de Fátima decir, ieles a las doctrinas emanadas
con Alí, unió a otras dos con Utmān, de su Libro Sagrado, pero imbuidos
tercer califa). Es de destacar que sólo de algunas costumbres anteriores, muy
una de sus esposas, una niña todavía, distintas en los diversos países de fe
no había tenido marido antes: A´iša, su islámica (En la actualidad hay musul-
preferida y en cuyos brazos murió, hija manes en todos los continentes, con
de su sucesor y primer califa. Nueve muy diversas procedencias, y su núme-
fueron sus esposas, entre ellas la hija ro supera los 1.200 millones, mientras
del segundo califa, además de varias que sólo alrededor del 20% son árabes
concubinas; con una de ellas tuvo a su
y arabófonos.).
único hijo varón, fallecido muy niño.
El Corán es el compendio de
A su muerte casi la totalidad de
cuantas revelaciones divinas recibió
Arabia estaba islamizada y uniicada.
Mahoma (previamente conocedor de
Fueron sus sucesores los que ampliaron
el dominio musulmán desde el Atlán- otras religiones, monoteístas o no) du-
tico (el 711 arriban a Hispania) hasta rante su vida profética, transmitidas
más allá de la India (GABRIELLI, p. oralmente a sus seguidores, que las
190-191); es decir, se apoderaron de anotaban. Cuando él falleció existían
parte de los Imperios bizantino, roma- muy diversas versiones, que fueron re-
no, persa, etc., lograron un inmenso copiladas por orden del tercer califa, en
poder merced a su ardor guerrero y re- un único y deinitivo texto, quemando
ligioso. Con ellos iba su lengua y su re- el resto. Es el Libro Sagrado del Islam
ligión, el Islam, que no sólo introducía y el primer libro en prosa de la litera-
novedades en la forma de vivir, en sus tura árabe de cuya autenticidad no se
ritos y doctrina, sino que contenía una
duda, hasta en sus mínimos detalles,
fuerte energía espiritual, una simiente
pues para los musulmanes proviene

• 529 •
directamente de Dios y en él se reco- de botines de guerra, no del comercio
ge ielmente su palabra. Lo consideran de esclavas; reciben el mismo castigo
no sólo el código de su fe, la fuente los/las adúlteros/as; los musulmanes
primera de su teología y derecho y el (hombres y mujeres) son iguales ante
consejero de su vida práctica, sino que Dios y todos deben ser castos, vestir
también es su “monumento literario” honestamente, comportarse según lo
más incomparable e inimitable. Para el establecido, etc. En el Corán, Eva no
creyente, la validez y el valor del Corán es la responsable del pecado original,
no se limita al dogma que contiene, es pues es Adán el que sucumbe ante Sa-
decir, a su insuperable contenido teo- tanás, y ambos son iguales, creados de
lógico y ético, sino que no tiene paran- la misma esencia.
gón la forma, lengua y estilo en el que Sin embargo, en lugar de aplicar
está escrito; por ello lo deben siempre lo legislado de manera liberal y progre-
aprender en su versión original. sista, con el transcurso del tiempo la ju-
En el Corán se cita en innu- risprudencia y las costumbres (muchas
merables ocasiones a las mujeres: sus heredadas o copiadas de otras civiliza-
derechos, deberes, forma de compor- ciones) se han ido endureciendo, en
tarse, etc. Incluso la sura IV se titula perjuicio de la mujer y de sus derechos,
“Las mujeres”, además de múltiples cada vez más sometida a la voluntad
alusiones a lo largo de todo el texto. del varón (en cuyas manos está la ley)
Se debe reconocer que en él se reco- y en beneicio propio. Poco después de
gen indudables mejoras respecto a su los inicios del Islam, se procura acallar
situación anterior. Así, prohibió el in- la voz femenina y ocultar sus valiosas
fanticidio femenino, habitual en época aportaciones. De hecho, hasta inicios
preislámica, cuando la mujer era con- del s. XX, salvo honrosas excepciones,
siderada una carga; la prostitución de no existe un “feminismo” musulmán,
las esclavas; estableció su derecho a que con gran esfuerzo pretende revalo-
heredar (antes podían ser heredadas, rizar a la mujer. Su deseo es rescatar del
como las cosas), si bien la mitad que olvido en el que, menos de dos siglos
un hombre en su mismo grado de pa- tras su nacimiento, se había sepultado
rentesco; los esposos tienen derechos y ya la presencia y la consideración de la
deberes recíprocos; se las debe instruir; que gozó la mujer en los orígenes de
limitó el número de esposas legítimas un movimiento que, con la progresiva
a cuatro y la poligamia sólo se admite conquista del poder temporal, se apar-
si se es perfectamente justo con todas; tó con rapidez y de forma hasta ahora
las concubinas sólo pueden provenir irrevocable de su luz original.

• 530 •
Sobre el particular, son muy in- por ser musulmanas, sino porque son
teresantes las consideraciones y con- víctimas de su sociedad. La pobreza, la
sejos de la socióloga marroquí Fátima incultura, las injusticias socio-políticas,
Mernissi (Premio Príncipe de Asturias sus condiciones de vida, las tradiciones
de las Letras 2003), una de las voces y costumbres regionales, y, sobre todo,
más reconocidas y elocuentes de la es víctima de los poderes machistas. El
intelectualidad musulmana: “Debe- Corán aconseja cambiar la mentalidad
mos remontarnos hacia la época a la de esos árabes tremendamente duros
vez lejana y próxima del principio de con las mujeres, pero parece que eso
la Hégira, en la que el Profeta podía ellos lo han olvidado (voluntariamente,
ser un amante y dirigente hostil a las en su propio beneicio), incluso los ju-
jerarquías, y las mujeres, compañeras risconsultos y demás hombres machis-
indiscutidas de una revolución que ha- tas en cuyas manos está la aplicación
cía de la mezquita un lugar abierto, y de las leyes y, en concreto, la vida de
del hogar, un templo de contestación, las mujeres. En los inicios del s. XXI
tenían su sitio. ¡Icemos velas! Las del hemos sido testigos de “las primaveras
buque-recuerdo, pero, antes que nada, árabes”, en las que las mujeres han par-
los velos de nuestros contemporáneos ticipado activa y decididamente para
que maquillan el pasado para velarnos lograr su lugar en la sociedad, pero es-
el presente” (MERNISSI, p. 17-18). tán perdiendo la batalla, porque acce-
La cultura musulmana es dife- den al poder partidos de corte religioso
rente según las muy distintas épocas, que las quieren relegar de nuevo a la
costumbres, tradiciones y países en esfera de lo privado.
los que se injertó el Islam, pese a tener Pero las y los occidentales no
como punto de unión esta religión mo- podemos ignorar su lucha, y que ha
noteísta que se supone única. Pero en habido, y hay, importantes mujeres es-
la práctica, y en especial en los asuntos critoras, profesoras, místicas, jefes de
relacionados con la mujer, su interpre- Estado, etc., que han contribuido, y lo
tación va a ser diferente dependiendo siguen haciendo, no sólo a mejorar el
de la matriz cultural en la que se intro- Islam, sino también al resto de la Hu-
dujo. manidad. Tienen derecho a la diferen-
Sin embargo, occidente pre- cia y al respeto; cooperemos con ellas y
tende reducir a las musulmanas y a su aceptemos sus peculiaridades, siempre
problemática como si fueran un mo- respetando los Derechos Humanos.
delo único, distinto del suyo, sin tener
en cuenta que no son diferentes sólo Guadalupe Saiz Muñoz

• 531 •
Referencias y indicaciones co esquecimento, ao longo da história.
Um exemplo são as temáticas que fa-
GABRIELLI, Francesco. Mahoma y las conquistas del
Islam. Madrid: Guadarrama, 1967. vorecem a história das mulheres. Em
busca do universo feminino durante
MERNISSI, Fátima. El harén político. El Profeta y las
mujeres. Madrid: Ediciones del Oriente y del Mediter- os séculos que marcaram a exploração
ráneo, 1999.
portuguesa e europeia, defrontamo-
PÉREZ BELTRÁN, Carmelo. “Mujeres árabes en el es- -nos com essa face escondida, à épo-
pacio público: indicadores, problemas y perspectivas”. En
DEL AMO, Mercedes (ed.). Lo imaginario, la referencia ca dos descobrimentos e nos séculos
y la diferencia: siete estudios acerca de la mujer árabe.
Granada: Ed. Universidad, 1997, pp. 91-126.
seguintes.
Quando se fala em guerras dos
SHAABAN, Bouthaina. Mujeres árabes hablan de sus vi-
das. Granada: Fundación El legado andalusí, 2003. séculos passados, imaginamos sempre
homens marchando a pé ou a cavalo,
SOBH, Mahmud. Historia de la literatura árabe clásica.
Madrid: Cátedra, 2002. em situação de combate. Esquecemos
que as mulheres, muitas vezes com
• ilhos, acompanhavam seus compa-
nheiros e maridos soldados. Como
Mulher e Guerra não havia abastecimento regular das
tropas, muitas trabalhavam, alimen-
A guerra é a opção de um gru-
tando, socorrendo, plantando, lutando,
po contra outro. É tão antiga quanto a
ou mesmo comercializando gêneros
história e tão universal quanto a huma-
nidade, mas é uma atividade da qual as de primeira necessidade. Viviam ocu-
mulheres, com exceções insigniican- padas demais para manter todo o apa-
tes, icaram excluídas em tempos e lu- rato de guerra. O triunfo da virilidade
gares diversos. Nunca iguraram como masculina contrapunha-se à presença
atores principais. A história da guerra da mulher, em situação de fragilidade
acompanha a história dos homens, que e, ao mesmo tempo, de força na pro-
teção dos seus ilhos e na luta para a
sempre preencheram os espaços oi-
sobrevivência. A atuação feminina,
ciais da historiograia, nas caravelas,
sempre na retaguarda, não emerge
na Europa ou nas novas terras recém-
como elemento de importância nas ba-
-descobertas. Mas a historiograia das
talhas. Mas as mulheres lá estiveram, e
últimas décadas, na conquista de novos pouco sabemos sobre elas. Mesmo na
espaços, tem se voltado para os grupos retaguarda dos campos de batalha, par-
sociais excluídos da memória histórica, ticiparam ativamente, com grande in-
marginalizados do poder, sobre cujas tensidade, dos episódios bélicos. E são
vidas e cotidianos paira um sistemáti- consideradas apenas como presença

• 532 •
extra-oicial, testemunhas silenciadas Inúmeras crianças nasceram dessas
no tempo, formando um exército sem relações, os chamados “ilhos da guer-
nome. Raras foram as histórias de uma ra” ou “ilhos do regimento”, frutos
guerra com reconhecimento da contri- de amores e, também, de desencon-
buição das mulheres, cuja participação tros amorosos. Enim, suas histórias
e presença izessem sentido e tivessem foram marcadas, em geral, por dores,
relevância. Esse fato, que percorre
misérias, violências, doenças, traumas
um longo e árduo caminho, conduz
psicológicos e morte. Sofriam como os
ao endosso da seguinte assertiva: “...a
homens a marcha extenuante, o sol, o
história das mulheres é uma história re-
cente e que se ressente de um passado frio, a fome, as chuvas que alagavam os
mal contado e que cultivar a memória campos, as doenças, os acampamentos
das mulheres é, sobretudo fazer justi- sem as mínimas condições de higiene
ça” (SCHUMAHER, S.; BRAZIL, E. e as mortes. A temática feminina na
(Orgs.), 2000, p. 9). Guerra do Paraguai foi abordada pela
Se a Guerra do Paraguai contra historiograia tradicional, pelos me-
a Tríplice Aliança (1864-1870) ainda é morialistas, artistas, viajantes estran-
pouco conhecida, a presença feminina geiros e, também, pelos historiadores
é muito menos. Incluída entre índios, contemporâneos, produzindo uma his-
velhos e crianças, formava um exérci- tória permeada de lacunas e silêncios,
to “invisível”, que se tornou impres- incrementando o conhecimento das
cindível por ocasião do desenrolar da mulheres que viveram esse cotidiano
guerra. A mulher que seguia o homem
e nele desempenharam um papel, mas
na guerra, penetrando num mundo
que raramente apareceram nos regis-
do qual, tradicionalmente, não fazia
tros oiciais.
parte, era movida por necessidades
Ao contrário da historiograia e
econômicas e afetivas. Figurava como
da iconograia, as mulheres não eram
enfermeira, andarilha, mãe, esposa, pa-
uma minoria. Elas eram milhares, de
triota, vivandeira, fugitiva, viúva e, no
várias nacionalidades, e estavam pre-
caso das paraguaias, destinadas e resi-
sentes durante todo o conlito. Apesar
dentas. As vivandeiras eram mulheres
disso, eram discriminadas e não rece-
que acompanhavam o exército para
biam os mesmos direitos reservados
vender víveres, bebidas e objetos de
aos homens. Por exemplo, nos deslo-
necessidade; muitas delas eram tam-
camentos dos exércitos, as mulheres
bém prostitutas. As mulheres vivencia-
eram obrigadas a carregar, a pé, a mu-
vam relações estáveis ou temporárias.
nição, além de seus pertences, barracas

• 533 •
e crianças. Formavam um contingente respeitáveis, as comuns, as anônimas e
que não tinha acesso a remédios, abri- entre os homens, estabeleciam-se hie-
go e cuidados, além de serem submeti- rarquias que estigmatizavam, demarca-
das a violências simbólicas. vam e criavam diferenças étnicas, cul-
A situação das mulheres era de turais, sociais, de classe e de gêneros.
quase total invisibilidade. Eram ofus- No entanto, a documentação
cadas pelos homens, que detinham elaborada pela Guardia en la Excolo-
o papel de personagens principais e nia de Miranda Marzo 15 e 20 de 1865,
eram considerados dignos de interes- durante a ocupação paraguaia e assi-
se para a história. Na atualidade, elas nada por Jose Alvarenga, mantida no
vêm ganhando espaço signiicativo Archivo Nacional de Asunción, no Pa-
na historiograia brasileira, embora as raguai, permitiu cruzar os dados e veri-
pesquisas ainda não tenham avançado icar, através de outros documentos, as
em direção ao interior para abarcar, no famílias de Miranda, no Mato Grosso
caso especíico, a história da mulher de (uno), que foram aprisionadas e envia-
Mato Grosso, do século XIX. É inevi- das diretamente para a Vila de Concei-
tável destacar a presença de senhoras ção, no Paraguai. Esses documentos,
respeitáveis, como Ludovina Portocar- importante registro histórico, escla-
rero, Rafaela Senhorinha Maria da Con- recem muitas dúvidas a respeito dos
ceição Barbosa, Ana Justina Ferreira moradores da fronteira mato-grossen-
Néri, Rosa Maria Paulina da Fonseca, se do século XIX. São duas listas, com
entre outras, que mereceram destaques seis e quatro páginas, com 137 e 130
por serem esposas de oiciais gradua- nomes, respectivamente, que mencio-
dos, membros da elite, ou por terem nam suas idades, estado civil, origens,
prestado serviços à Nação durante o ilhos (muitos deles menores de idade)
conlito. Outras mulheres, considera- e escravos (ANA, 1865, p. 1-6). É inte-
das não tão respeitáveis, receberam no- ressante observar que, na segunda lista
toriedade apenas pela bravura e foram analisada, consta que as famílias elen-
descritas com cores negativas, como cadas fueron retenidos en sus hogares,
por exemplo, Jovita Alves Feitosa, Pre- mantendo homens, mulheres, ilhos
ta Ana, Aninha Cangalha, Maria Fuzil, e escravos. Provavelmente a intenção
conhecidas apenas pelos codinomes. dos paraguaios de deixar algumas famí-
Sobre as mulheres comuns, que eram a lias em suas fazendas, ao contrário de
maioria, pesou um silêncio avassalador outras, era a necessidade que tinham
(DOURADO, 2005, p. 08). Entre as de adquirir suprimentos para o Exérci-

• 534 •
to, o que os afazendados poderiam for- domésticos(as), etc. A transcrição des-
necer com as culturas de subsistência. sa importante fonte foi feita em sua
Porém, durante o transcurso da guerra totalidade sem correções, na forma
e das ações bélicas das zonas de conli- como foram grafados os vocábulos.
to, essas famílias foram também presas Os pontos de interrogação nos trechos
e enviadas para a Villa de Concepción, transcritos diicultam a leitura e suge-
o que comprovamos por outras fontes, rem erros. As informações trazem ex-
como inventários, em que aparece a pressões como exbracileros e excolo-
família de José Francisco Lopes, o fa- nia de Miranda, possivelmente devido
moso Guia Lopes, do episódio históri- ao fato de os paraguaios já se julgarem
co Retirada da Laguna (MTJ/MS). Sua donos de toda a região ocupada.
mulher, Rafaela Senhorinha Maria da É fundamental narrar, explicar e
Conceição Barbosa e vários familiares contribuir com a história das mulheres
foram salvos e socorridos pelo Exér- moradoras da fronteira Brasil / Para-
cito Brasileiro em 1869 (AHI, 1869). guai e, também, de muitas outras que
Também é pertinente assinalar que a vivenciaram o período conturbado da
primeira lista inclui somente os nomes Guerra do Paraguai, numa tentativa
dos homens, sem os escravos, ao con- de resgatar o papel feminino na cons-
trário da página seguinte, em que eles trução do Brasil. É necessário que se
são citados. conheça a história das mulheres que
A sociedade brasileira no século viveram a guerra nos seus mais varia-
XIX tinha composição complexa; era dos segmentos, que se dê vida a esse
constituída basicamente de escravos. tema, que se enfatizem a complexida-
Na lista de prisioneiros brasileiros le- de e a diversidade dessa vivência e que
vados para o Paraguai, há trabalhado- se criem espaços para que elas sejam
res escravizados que, no cruel mundo “ouvidas” com respeito e inseridas
da escravidão, eram levados junto aos no contexto histórico, essencialmente
seus senhores. Tudo indica que eram masculino, no qual, quase sempre, fo-
escravos de lavoura e escravos domés- ram vistas pela historiograia tradicio-
ticos. Interessante que, nas duas listas, nal como submissas e dóceis.
com um total de 267 prisioneiros, não
constam outros tipos de trabalhadores, Maria Teresa Garritano Dourado
como livres pobres (camaradas, agre-
Referências e sugestões de leitura
gados(as), pequenos(as) lavradores(as),
trabalhadores(as) de ofício, soldados, ARCHIVO NACIONAL DE ASUNCIÓN. Sección
História. Vol. 345 Nº6.
condutores de tropa, mineiros pobres,

• 535 •
Lista de los individuos exbracileros que han pasado a la nas, ‘indígenas’ como quis e quer o ve-
Villa de Concepción con sus familias e internas con es-
presion de sus circunstancias. lhíssimo vocábulo forjado pelo jargão
colonialista, desde os tempos da Con-
Lista circunstanciada de los bracileros que han quedado
en sus hogares. quista Europeia pelas Américas. Mas
ARQUIVO HISTÓRICO DO ITAMARATY. Relação
quantas foram ? Quantas e quem são ?
das Familias da Provincia de Mato Grosso que se achavam Essas mulheres ‘indígenas’, as quais, de
prizioneiras dos inimigos, e que sendo resgatadas recebe-
rão pelo Consulado Brazileiro desta Republica os generos fato, preiro designá-las como amerín-
para seo vestuario, que vão abaixo declaradas. dias. Elas, depois da voraz Colonização
Consulado Brasileiro. Ofícios Recebidos. Assunção.
1855-1881. Ibero-Lusitana e da Conquista do Ve-
lho Mundo pelo « Novo », são aquelas
DOURADO, Maria Teresa Garritano. Mulheres Co-
muns, Senhoras Respeitáveis: A Presença Feminina na que resistiram e ainda resistem como
Guerra do Paraguai. Campo Grande, MS: Ed. UFMS,
2005.
mulheres-memórias ou mulheres-his-
tórias. Elas foram e são mulheres-livro,
MEMORIAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE
MATO GROSSO DO SUL. mulheres-bordado, mulheres-argila,
Documentos Históricos, Processos Civis e Criminais/Mi- mulheres-mães, mulheres-parteiras,
randa e Nioaque (1873-1899). Caixas 01 a 19.
curandeiras, rezadeiras, xamãs e, tam-
SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital. Dicio-
nário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade bio-
bém, mulheres-iandeiras, contadoras
gráico e ilustrado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. de histórias, mulheres-escritoras de
uma literatura que ao meu ver nasce na
• Terra, com a Terra, com os pés sobre a
Terra e as mãos junto à Terra e, assim,
Mulheres indígenas, o trabalho e a lida pela vida escrita com
mulheres ameríndias a Mãe Natureza.
Mulheres ameríndias - como eu,
Nos Andes, e demais paragens tu, elas, nós - são portanto escritoras
da vasta região Sul Americana, a tradi- de uma literatura que preiro designar
ção andina (em suas línguas e muitas como uma LiteraTERRA. Uma litera-
linguagens) não apenas atravessou ter- tura escrita na /pela relação (ou através
ras, mas nelas deitou sementes, donde da relação) constituída e constitutiva
frutos em novos rizomas e outras ra- dessa/nessa complexa interação entre
ízes são hoje identiicados/identiicá- homens e mulheres, nesse longo du-
veis. Nessas terras dantes e nos territó- rante com a Terra. Isso, embora a Ter-
rios tradicionais d’agora foram quantas ra (donde ilhas) lhes foi expropriada,
( ?) e quem são ( ?) as mulheres ame- explorada e banalizada pelos chama-
rANDIANAS – ameríndias ou, ape- dos ‘conquistadores’, e o que depois

• 536 •
deles nasceu e se forjou como novo, cada geração, em cada povo, em cada
como conquistado, como descoberta, língua, em cada cultura, etnias e tradi-
ocupação e progresso. ções, cosmogonias e expressões que
Isto dito, devo sublinhar que tanto revelam similitudes, como tam-
mulheres ameríndias são também bém, singularidades, a partir das quais
àquelas cuja linguagem estética, orali- essas mulheres ensinam, promovem e
dade e escrita é uma literatura, a qual revitaliza seus fazeres, afazeres, canta-
se escreve com o corpo, com as mãos, res (contados, falados, cantados) juntos
com os pés, com a boca, com os olhos, aos ilhos, aos parentes, aos homens e
com as palavras, com os sinas, com às comunidades (tribais ou não) em
pinturas e até com o silêncio escolhido que estiveram ou estão inseridas.
ou imposto. Nesse dicionário nos parece im-
Mulheres ameríndias, mulheres portante evidenciar as mulheres ame-
indígenas – dessa/nessa América do ríndias que escrevem com suas graias,
Sul, desse/nesse corpo Brasil e pelo ou seja, por meio de suas pinturas-ta-
colo das demais Américas que foram tuagens, senão, escritas poéticas tam-
e se transformaram em América Lati- bém com jenipapo e urucum e, assim,
na, Central e do Norte. Elas são pois uma outra iconograia e escrita huma-
mulheres com múltiplas graias: pin- na. Uma iconograia efêmera, sensível
turas em pele/corpo, esculturas com e provisória por meio das marcas, dos
materiais diversos, artesanatos de to- desenhos, das formas e dos registros
dos os gêneros, medicinas ancestrais e estéticos relativos às suas tradições tan-
culinárias - receitas, pratos e variedades to aplicadas no rosto, quanto no corpo.
com sabor, gosto, desgosto e subtilida- Tais mulheres repetem mil e um
des também sobre o mundo feminino gestos próprios às vivências, durante
e masculino. Como a comida é uma os cozimentos, os artesanatos, os plan-
outra inscrição cultural, marcadamen- tios, os partos, as festividades, os en-
te feminina, embora para além de suas terros, os velórios, as danças, as rezas,
mãos, de seus cuidados e práticas. os casamentos e, também, enquanto
Tais mulheres ameríndias - fei- soltam ou cantam palavras-rezas como
tas de carne-e-osso, sangue, vida, ima- são os : lamentos, as preces, as evoca-
ginário, língua, culturas e histórias - são ções, as histórias, os causos, as poesias,
iguais e diferentes porque a diversida- entre tantas outras modalidades dis-
de, em suas diversas idades, fazem de- cursivas conhecidas num saber-de-cor,
las mulheres de gerações e, assim, em e reconhecidas pela via das escritas que

• 537 •
tanto elas incorporaram ou que outros em profunda mudança, metamorfose e
incorporam como um conhecimento transmutação.
etnológico, antropológico, literário, es- Essas últimas mulheres far-se-
tético, arqueológico, histórico e socio- -ão as novas mulheres de um futuro
lógico ao longo do tempo. próximo e distante, e face às mulheres
As ameríndias, as « indígenas » modernas e pós-moderníssimas elas
desenvolvem uma LiteraTERRA, cuja desaiarão, como já desaiam, a he-
literatura é uma forma e expressão, uma gemonia das sociedades ocidentais e
voz e uma enunciação articuladas com orientais e as lógicas do neoliberalismo
a terra, com o corpo, suas vidas e rela- pelos ardis do capital.
ções com os demais seres e a própria Mulheres ameríndias atraves-
Natureza. Essa LiteraTERRA restitui, sam o meu, o seu e o nosso imaginá-
rio porque delas temos parte/fazemos
evoca, rememora, relembra, renova
parte, ainal, a História entre elas e nós
práticas orais sobre um mundo mui-
não é uma História entre Vencidos e
to mais oral do que o mundo-escrito
Vencedores, mas uma complexa arque-
valorizado pela era atual. Um mundo,
ologia humana, ou seja, uma História
onde tais mulheres ora se integram, ora
em movimento, uma GeoHistória em
se separam, ora se reintegram entre os
relação, uma Sociologia em permanen-
eventos orais, as manifestações escritas
te troca e, assim, as múltiplas intera-
e as produções virtuais-digitais criadas ções na História e pelas Histórias: suas
pela inteligência cibernética, portanto, continuidades e descontinuidades, suas
uma outra forma de « inteligência arti- alianças e rupturas, seus limites e possi-
icial » e, cada vez mais, imaterial. bilidades, suas perdas e seus acúmulos,
Mulheres indígenas, ameríndias seus processos e transformações, seus
carregam em si suas tradições. Elas esquecimentos, legados e patrimônios.
são ventres-livres de suas culturas. Elas Mulheres ameríndias são e se-
aleitam o passado com memórias vivas rão nossas ancestrais, nossas tatara-
e restituem formas/práticas/tradições vós, bisavós, avós, como foram e são
em prol de um novo presente e o pro- (para outras mulheres) suas mães, tias,
longamento geracional e cultural em primas e irmãs. Elas são portanto mu-
prol do futuro. Elas talvez sejam, por lheres de riso e choro, de lamento e
isso, as últimas mulheres dos povos dor, de festa e im-de-festa, de beira
nativos porque portam/carregam/vei- de rio e beira de estrada, são também
culam/berçam um mundo em desapa- (outras vezes) as mulheres dos acam-
recimento; em risco de esquecimento pamentos, das ocupações, das aldeias,
e ameaçado de extinção. Um mundo das reservas, das terras em demarcação

• 538 •
e, portanto, mulheres em luta; mulhe- pouco decadentes. Elas são estrelas
res-combate em uma luta permanente ameríndias e, frequentemente indigna-
pelo direito à vida, pela reconquista da das, perdem luz. Isso, mediante de seus
terra ancestral e o direito à dignidade ‘sem direitos’ e com seus ‘cem deve-
e à diferença que representam no con- res’ no Brasil, no Peru, na Bolívia, no
junto de nossa diversidade. Uruguai, no Equador, na Argentina,
Como nós somos, elas são e elas no Paraguai, no Chile, no Suriname,
continuarão a ser, as novas mulheres nas Guianas e, enim, nessa América
que também transitam e vivem em ci- do Sul, desapegada da América Central
dades, estudam ou trabalham em uni- e a do Norte, embora lá também essas
versidades, lecionam em aldeias e em sobreviventes perdem e ganham lutas.
escolas, além das escolas ameríndias ou Mulheres ameríndias cantam o
‘indígenas’. toré, tocam o maracá, batem tambores,
Diversas são estas mulheres e o modelam argila, esculpem a vida, plan-
que são ultrapassa por certo esse ver- tam, colhem, vendem, sentem fome,
bete. Portanto é preciso sublinhar que comem, matam a fome, como também
elas certamente são: as sobreviventes e trançam ios, coniam, desiam, des-
as guerreiras numa conquista contínua coniam e persistem reiando uma lon-
por direitos sociais, a im de superarem ga tessitura entre os artesanatos e os
os limites entre o substantivo-sobrevi- tecidos da vida. Assim, seus descami-
vência e o verbo-viver. nhos e dez caminhos: nas lorestas, nos
Mulheres ameríndias são Neu- roçados, nos rios, nos acampamentos,
za, são Merina, são Márcia, são Flori- nos vilarejos, nas cidades, nas periferias
za, como também são: Potyra, Tuhigó, e nos espaços urbanos. Espaços tantos
May, Anyelly, Kambeba e quantas ou- por onde crescem, vivem e se multipli-
tras são? Muitas! cam Brasil afora, Brasil adentro e mui-
Elas são uma, duas, três ou, tal- to além do Brasil.
vez, cinco em cinco mil, talvez, dez mil
ou dez milhões de estrelas (como lem- Catitu Tayassu
bra o velho-belo-poema de Vinícius de
Referências e sugestões de leitura
Moraes, chamado, O Poeta). São mu-
lheres-estrelas que passam e encantam AILLÓN, Virginia (Org.). Gênero, etinicidad y par-
ticipación política. La Paz, Bolívia: Diakonia, 2006.
enquanto atravessam a Terra do Céu
por um Céu na Terra e, assim, seguem, CARDOZO, Magiorina Balbuena. Entrevista concedida
a Cristina Scheibe Wolf (digital). Assunção, Paraguai, 22
apesar de tudo, deitando luz. Tais mu- de fevereiro de 2008. Acervo do LEGH/UFSC.
lheres não são por isso cadentes e tão

• 539 •
SACCHI, Ângela. Mulheres indígenas e participação po- veis de modiicação, ainal são divinas,
lítica: a discussão de gênero nas organizações de mulheres
indígenas. Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 7, vo- e não se pode mudar o que ‘Deus es-
lume 14. 2003. creveu’ para se adaptar à contempora-
O Poeta, In: Morais, Vinicius (organização de Antonio neidade (MUHLEN & STREY, 2016).
Cicero e Eucanaã Ferrasz). Nova Antologia Poética. 1a.
Sobre a mulher ortodoxa, os líderes
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. ISBN 978-
85-359-0439-0 ortodoxos pregam a moralidade e a
POTIGUARA, Eliana. Metade Cara, Metade Máscara,
modéstia para as mulheres, pois sua fe-
2009, Global Editora. minilidade leva os homens ao pecado
(TAMAR EL OR citado por SPIEGL,
• 2012). Para os mais ortodoxos as mu-
lheres também não podem rezar em
Mulheres Judias
voz alta, pois isso distrai os homens.
Para conceituar mulheres judias Além de que as mulheres judias, se-
é preciso primeiro contextualizar his- gundo eles, são mais espiritualizadas
toricamente quem é considerado ju- e por estarem mais próximas de Deus
deu. Nos primórdios, judeu era aquele não precisam rezar em espaços públi-
que se apegava à tradição de que seus cos. Assim, além de seus corpos serem
antepassados tinham sido testemunhas controlados pela lei da modéstia, suas
da revelação daquilo que mudaria a vozes, que é o que, segundo Foucault
forma de entender e lidar com o mun- (1996) inaugura os sujeitos no mundo,
do. Tinham um relatório escrito, as tá- também são controladas por quem as
buas da Lei ou Torá, além das leis orais domina (o poder atribuído ao masculi-
ou Zohar, que explicavam o documen- no, também no judaísmo).
to escrito que Moisés recebeu de Deus O segundo movimento do ju-
no Monte Sinai. Esse é o alicerce do daísmo seguiu no século dezenove,
judaísmo, por três milênios, a revelação quando muitos judeus, inclusive pela
e suas implicações. Mas, sempre existi- questão do antissemitismo – pré-con-
ram pessoas que questionavam a auto- ceitos, mitos e superstições medievais
ridade da tradição oral e que tomavam dos gentílicos em relação aos judeus,
decisões baseados na tradição da Torá. que surgiram e foram sendo transmi-
Até aproximadamente 1870, tidos até hoje (ARENDT, 1974) – sen-
não havia diferentes correntes do juda- tiram a necessidade de não parecer tão
ísmo, todos eram o que hoje se conhe-
diferentes de seus vizinhos. Assim, na
ce como ortodoxos ou tradicionalistas.
Alemanha, nasceu o Movimento Re-
Os ortodoxos são judeus que aceitam
formista, o mais liberal, também cha-
as leis judaicas escritas nas tábuas da
mado de secular. Essa corrente aceita
lei, e defendem que elas não são passí-
• 540 •
as leis judaicas da Torá, mas o foco é aquela que se converte. Mas, os orto-
nas ações sociais e éticas; ajudar o pró- doxos não aceitam conversões feitas
ximo é um dos princípios. pelas outras linhas. Oicialmente, Is-
Na Alemanha de 1935 foi no- rael aceita para realizar Aliyah, isto é,
meada a primeira rabina da história: imigrar para Israel e viver lá, além de
Regina Jones. Mas em 1942 foi depor- conversões realizadas pela corrente or-
tada para Theresienstadt; e em 1944 todoxa, as realizadas por reformistas e
para Auschwitz; e por muito tempo conservadores; mas pode ser mais di-
foi apagada da história. Talvez, como fícil (RUTLAND, 2006). Vale lembrar
hipotetiza Foa (2016), porque é amea- que, em Israel não existem casamentos
çador “assumir um papel só masculino, mistos reconhecidos, nem civis; apenas
e demonstrar que as mulheres são tal- religiosos, em que mulher e homem
vez mais adequadas do que os homens devem ser judeus, de mãe judia, ou
para exercer este cargo”. E segundo a convertida. São os tribunais rabínicos
própria rabina, Jones, citada por Foa devem dar permissão, ou não, para os
(2016): “Deus colocou aptidão e cha- divórcios; e o homem deve dar a pala-
madas nos nossos corações, sem dis- vra inal, ou a mulher deve comprovar
tinção de gênero”. algum tipo de violência.
O terceiro e último movimento Falar de mulheres judias não é
criado dentro do judaísmo surgiu com falar apenas de mulheres israelenses,
o objetivo de conservar determinados ainal a maior parte delas vive na Di-
rituais característicos, mas também áspora. Isto é, as diversas expulsões
adaptá-lo para torná-lo aceitável ao forçadas de judeus pelo mundo, e da
judaísmo contemporâneo. Chamados consequente formação de comunida-
de conservadores, defendem que a lei des judaicas fora do que hoje é conhe-
judaica é passível de evolução, e, des- cido como Israel/Palestina, a origem
se modo, há abertura para novas in- do povo judeu. Assim, ser judia não
terpretações da lei judaica. Isso torna está delimitado por uma origem nacio-
este movimento igualitário e inclusivo nal, nem antes da criação do Estado de
como o reformista, um pouco menos Israel em 1948, nem depois. Etnias ju-
liberal. daicas são o conjunto de ramiicações
Após esta contextualização das da comunidade judaica, considerando-
três correntes do judaísmo, a principal -se a cultura e os países onde vivem
questão de quem é considerada mulher ou imigraram. Devido a fatores tem-
judia (e homens judeus) é ter nascido porais e espaciais, além da aculturação,
de um ventre judeu – o que continua assimilação e formas de interpretação
através das gerações. Também é judia religiosa, cada mulher judia possui tra-

• 541 •
dições semelhantes, mas ao mesmo mas exceções eram dadas para traba-
tempo diferenciadas de uma para outra lhar nos negócios da família. Até mes-
(MUHLEN & STREY, 2012). mo para fazer compras deveriam sair
Dito isto, percebemos que o acompanhadas de um homem. Segun-
judaísmo é plural. Hoje se fala inclu- do a tradição ortodoxa, as mulheres
sive em níveis de ortodoxia. E ao falar judias casadas não podiam ter contato
especiicamente de mulheres judias, com homens estranhos nem ter chefes
isto não é diferente, pois existem vá- do sexo masculino. Por isso a vida de
rias formas de o ser, e cada vez mais muitas se resumia em casamento e ma-
possibilidades. Mas antes e até hoje há ternidade.
apenas uma maneira, a qual muitas mu- Segundo Kosminsky (2004,
p.288) “tradições étnico culturais con-
lheres criadas dentro da ortodoxia são
sistem da seleção dos seus componen-
submetidas: À mulher judia foi delega-
tes, revisão de tradições culturais her-
da como principal responsabilidade a
dadas e invenção de novas tradições”.
transmissão do judaísmo; são elas que
Assim, o lugar das mulheres dentro do
devem educar seus ilhos conforme as
judaísmo começou a mudar quando,
leis judaicas. Além de manter a santida-
nas décadas de 50 e 60, muitas mulhe-
de da vida conjugal. Portanto o centro
res judias participaram de movimentos
do judaísmo não é a sinagoga, mas o feministas nos Estados Unidos. Por
lar, espaço designado também a mu- décadas elas estavam entre as ativistas
lheres não judias transmitem suas cren- que conduziram as campanhas pelos
ças. As mulheres judias também estão direitos civis, pelo desarmamento nu-
isentas de deveres que exigem prazo clear e pela paz (KOSMINSKY, 2004;
ixo para seu cumprimento, para não MUHLEN, 2012).
se ausentarem do lar. Além do cuida- Situar as mulheres judias na pós-
do do espaço privado, a mulher deveria -modernidade implica em pós-feminis-
obedecer seu marido, como vemos em mo, isto é, não generalizar nem homo-
Gênesis 3:16: “Teu desejo será para o geneizar todas judias em uma única
teu marido, e ele te governará” (Bíblia, forma de o ser. Ser judia é uma variável
1978). indenitária que se conjuga com outras
Em gerações passadas, tanto variáveis como classe social, nacionali-
no Brasil, quanto na Europa, Estados dade, idade. Além disso, ser mulher ju-
Unidos e Austrália, ser mulher judia dia não é uma condição estática, e sim
casada signiicava não poder trabalhar um processo dinâmico. A identidade,
fora de casa, e as que se arriscavam conforme Anzaldua (1991, p. 252-253)
eram censuradas, controladas. Algu- “não é um amontoado de cubículos es-

• 542 •
tufados respectivamente com intelec- não são necessariamente iguais. Pois
to, sexo, raça, classe, vocação, gênero. são de famílias oriundas de muitos
Identidade lui entre, sobre, aspectos países diferentes, possuem formações
de cada pessoa. Identidade é um [...] diferentes, classes sociais diferentes, vi-
processo”. vências distintas, o que faz com que a
Por isso é esperado que em cada subjetividade de cada mulher judia seja
geração haja mudanças e reconstru- única. Inevitável não falar de pluralida-
ções do que é ser mulher judia. Como de, ainal são mulheres judias, assim,
o caso de mulheres que transitam por cada mulher judia pode ter diferentes
diferentes correntes ao longo da vida. maneiras de se sentir ou praticar seu
Desde se tornar mais religiosa, até o judaísmo. Hoje, a maioria das mulhe-
caso das que nascem em uma família res judias estuda, e, mesmo que seja de
ortodoxa e decidem se tornar mais li- uma corrente mais religiosa, trabalha.
berais. Este é o exemplo da americana A educação dos ilhos e ilhas é
Deborah Feldman (2016) que relatou
algo central no judaísmo. Devido às di-
sua experiência no livro Unorthodox.
versas perseguições e imigrações, onde
Mulheres judias da geração atual cos-
perdiam todos seus bens materiais, é
tumam ter mais possibilidades e liber-
comum a crença entre judeus de que
dade de seguir seus desejos, do que
o conhecimento nunca será roubado.
mulheres judias de gerações passadas;
Apesar das muitas perdas, felizmen-
desde seguir o desejo de romper com
te algumas mulheres sobreviveram às
tradições mais conservadoras, até o de
perseguições e contaram o ápice da
praticar mais as leis judaicas. Assim,
o signiicado de ser judia depende do crueldade, como algumas que resisti-
contexto sócio-histórico em que cada ram aos campos de concentração ou
mulher está inserida, certamente o sig- icaram em esconderijos durante o Ho-
niicado para a mulher brasileira que locausto (MUHLEN, 2012). Algumas
nasceu na família mais liberal é dife- não sobreviveram, como Regina Jones
rente da americana que nasceu numa e Anne Frank. Mas esta última deixou
família ortodoxa. um diário com registro do que pas-
Há diferenças em ser uma mu- sou sob o domínio nazista. De muitas
lher judia no Brasil, na Austrália e no outras formas, mulheres judias ainda
Oriente Médio, mas também seme- tentam sobreviver às violências coti-
lhanças. Assim como há diferença en- dianas (WISNIEWSKI, 2013). Assim,
tre judias de mesma nacionalidade, to- Anzaldua (1991) fala que, apesar dos
das judias de mesma origem nacional pluralismos, às vezes necessitamos de

• 543 •
uniicação para solidiicar nossos luga- VON MUHLEN, Bruna Krimberg; STREY, Marlene
Neves. A conquista das mulheres do Muro das Lamenta-
res contra quem nos oprime. ções. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judai-
Ser mulher judia na contempo- cos da UFMG, v. 10, n. 18, p. 60-68, 2016.

raneidade é principalmente um legado VON MÜHLEN, Bruna Krimberg; STREY, Marlene


cultural em cada família, e apesar de ter Neves. Judeus de bombachas: marcas de gênero na imi-
relação com a religiosidade, não está gração judaica no Rio Grande do Sul. Doi: 10.5212/
Rlagg. v. 3. i2. 098105. Revista Latino-Americana de
delimitada apenas por ela. Por isso, ser Geograia e Gênero, v. 3, n. 2, p. 98-105, 2012.
judia tem sido compreendido como re-
SPIEGL, Der. Judeus ultraortodoxos tem inluência cres-
ligião e cultura. Mas conquistar igual- cente em Israel. Disponível em: <http://www.mundocris-
dade de gênero em uma cultura tão tao.net/2012/01/judeus--‐-ultraortodoxos--‐-tem--‐-in-
luencia.html> 2012.
antiga como a judaica é um processo
lento, pois a repetição de costumes FOA, ANNA. Regina Jonas a rabina esquecida. Jornal
L’osservatore Romano. Novembro de 2016, acessado em
herdados de geração em geração, que fevereiro de 201, retirado de http://www.osservatorero-
é alienada em relação ao signiicado mano.va/pt/news/regina-jonas-rabina-esquecida.
original das tradições, tem força de lei RUTLAND, Suzanne. Introduction. In: Paula E. Hyman
(KOCHMANN, 2005). and Dalia Ofer (eds.) Alice Shalvi (associate ed.) Jewish
É preciso deixar que as mulhe- Women: A Comprehensive Historical Encyclopedia.
Jerusalem: Jewish Women’s Archive–Shalvi Publishing,
res judias sejam o que elas quiserem 2006.
ser, praticantes ou não, mães ou não,
KOCHMANN, Sandra. O Lugar da Mulher no Juda-
esposas ou não, heterossexuais ou não, ísmo. Revista de Estudos da Religião, (2), 35-45. 2005.
sionistas ou não; lembrando que as di-
KOSMINSKY, Esther. Questões de gênero em estudos
ferenças são inerentes aos seres huma- comparativos de imigração: mulheres judias em São Pau-
nos; e que isto enriquece as sociedades lo e em Nova York. Cadernos Pagu, 23, 279-328, 2004.

na diáspora e a humanidade como um MÜHLEN, Bruna Krimberg von. Cultura, identidade e


todo. gênero no processo de imigração judaica de sobreviventes
da Segunda Guerra Mundial. 2012. Dissertação de Mes-
trado. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
Bruna Krimberg von Muhlen
do Sul.

Referências MÜHLEN, Bruna Krimberg von. Vidas de mulheres:


estudo sobre diferentes gerações de mulheres judias brasi-
ANZALDUA, Gloria. To(o) Queer the Writer: Loca, leiras e australianas. 2017. Tese de Doutorado. Pontifícia
Escrita y Chicana.” In. WARLAND, Betsy (ed.). In:Ver- Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
sions: Writing by Dykes, Queers and Lesbians. Vancou-
ver: Press Gang, 1991. p. 249-63.
WISNIEWSKI, Rudião Rafael. Mulheres Judias em tem-
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Madrid: pos de vazio do pensamento. Revista Língua&Literatura,
Taurus. 1974. v. 15, n. 24, p. 123-142, 2013.

FELDMAN, Deborah. UNORTHODOX: he Scanda-


lous Rejection of My Hasidic Roots, 2016. Sugestões de leitura
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Ja- FELDMAN, Deborah. Unorthodox: he Scandalous Re-
neiro: Graal, 1996. jection of My Hasidic Roots, 2016.

• 544 •
KOSMINSKY, Esther. Questões de gênero em estudos gração era realizado basicamente pelo
comparativos de imigração: mulheres judias em São Pau-
lo e em Nova York. Cadernos Pagu, 23, 279-328, 2004. trabalhador homem. Por esse prisma, a
experiência feminina não era conside-
KOCHMANN, Sandra. O Lugar da Mulher no Juda-
ísmo. Revista de Estudos da Religião, (2), 35-45. 2005. rada signiicativa para a compreensão
MUHLEN, Bruna Krimberg von; STREY, Marlene Ne-
do fenômeno migratório, uma vez que
ves. A conquista das mulheres do Muro das Lamentações. as mulheres eram lidas a partir de sua
Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da
UFMG, v. 10, n. 18, p. 60-68, 2016.
pretensa passividade e dependência.
Esse cenário em que o migrante era
MÜHLEN, Bruna Krimberg von; STREY, Marlene Ne-
ves. As mulheres e o Holocausto: dando visibilidade ao pensado como sinônimo de mão-de-
invisível. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos -obra propiciou que os estudos sobre
Judaicos da UFMG, v. 9, n. 17, p. 64-87, 2015.
a migração olvidassem a presença das
• mulheres que, desconsideradas, foram
inscritas como igurantes e não prota-
Mulheres Migrantes gonistas desse processo.
Inserir as mulheres nas análises
Conceituar teoricamente a cate- que pensam as migrações internas e ex-
goria mulheres migrantes implica em ternas é, portanto, uma escolha políti-
dialogar inicialmente com a sua invisi- ca. Escolha a partir da percepção que o
bilidade no campo da escrita histórica. olhar das mulheres tem contribuições
Implica ainda visibilizá-la num proces- a acrescentar à análise do processo mi-
so perpassado pela experiência do tra- gratório, embora seja evidente que, em
grande parte da historiograia das mi-
balho, da memória, da sexualidade, da
grações, elas ainda continuem a ser tra-
maternidade, das sensibilidades, da (re)
tadas como parte da bagagem do ho-
construção permanente das relações
mem. Para além dessa imagem, muitas
sociais, da feminização da pobreza, da vezes escrita, representada e reiterada,
feminização das migrações e do empo- evidencia-se a necessidade de alcançar
deramento feminino. outras nuances do viver das mulheres
Embora dados das Nações Uni- migrantes e de suas relações, em diá-
das atestem que, dos mais de 232 mi- logo com o universo masculino, a fa-
lhões de migrantes no mundo, a meta- mília, aqueles que compõem as redes
de corresponda às mulheres, podemos sociais da migração, as relações de po-
perceber uma ausência de estudos te- der, enim, as relações de gênero que se
óricos que as representem enquanto evidenciam a partir “de uma diferen-
sujeitos do processo migratório até ça dos sexos construída pela cultura e
meados dos anos 1970, quando pre- pela história, secundariamente ligada
dominaram as teorias neoclássicas se- ao sexo biológico, e não ditada pela na-
gundo as quais o ato decisório da mi- tureza” (PERROT, 1998, p.142).

• 545 •
Possas defende o uso e relevân- desde há muito tempo elas estiveram
cia do “olhar fronteiriço” como uma presentes na história, embora tenham
metodologia que almeja os protagonis- sido extenuantemente negligenciadas
mos femininos e as relações de gêne- na escritura histórica: “Saem, viajam,
ro, libertando os conceitos/categorias, migram. Participam da mobilidade
ideias e as palavras dos sentidos e sig- que, com a facilidade dos meios de
niicados que lhe foram agregados em transporte, passa a caracterizar as po-
outro tempo, em outra construção his- pulações do Ocidente dos séculos XIX
tórica. Inspirados nesse olhar, eviden- e XX. [...] As famílias de camponeses
cia-se como necessário perceber a pre- empregam suas ilhas como criadas,
sença e a atuação das mulheres como operárias ou domésticas urbanas. Ao
migrantes, “tendo em vista novos serem empregadas pelos patrões, icam
protagonismos que fogem aos estere- sob seu controle. Mas elas fogem, mu-
ótipos conservados pela historiograia dam de lugar, conquistam a liberdade”
clássica, amparadas em paradigmas (PERROT, 2013, p.136).
universais” (POSSAS, 2011, p. 64). Entende-se, portanto, que o
Nessa perspectiva, a compreen- repensar do feminino e do masculino
são dos migrantes como força de tra- como constructo, arrolado à relações
balho pode parecer adequada quando de poder, a partir de representações
concernida ao universo masculino, no que se reairmam historicamente em
entanto limitada na análise das rela- discursos e práticas, traz novos dimen-
ções de gênero. Pois, “as sutis variáveis sionamentos ao papel exercido pelas
acionadas na construção das imagens mulheres migrantes. Ao mirá-las com
identitárias tais como o sentimento de um pouco mais de atenção e sensibi-
liberdade, de auto realização e de reva- lidade, vê-se que, mais que acompa-
lorização de si mesmas não surgiriam, nharem aos maridos e familiares no
quando limitadas num enfoque exclu- processo de desterritorialização e reter-
sivista quanto à força de trabalho” (KI- ritorialização, são elas peças-chave na
TAHARA, 2005, p.123). compreensão do enredo da migração,
A partir de uma nova postura em que elas atuam com protagonismos
historiográica, desde os anos 70 do e singularidades. Em seus caminhares,
século XX, o interesse em se compre- as mulheres migrantes constituíram-se
ender o papel das mulheres nos luxos sujeitos do processo migratório, atuan-
migratórios tem crescido signiicativa- do diretamente no curso deste.
mente. No entanto, antes, elas já certa- A migração feminina apresenta,
mente migravam com seus homens ou portanto, questões especíicas e que
mesmo sozinhas. Em outros termos, não podem ser contempladas em análi-

• 546 •
ses de cunho geral. Assim, frente à rea- Nesse olhar, a migração é com-
lidade contemporânea do aumento ex- preendida enquanto um fato social
pressivo da presença de mulheres entre completo, sendo necessário analisá-
aqueles que migram, às mudanças nos -la em seus vários aspectos (políticos,
papéis sociais desempenhados pelas econômicos, sociais e culturais), con-
mulheres, aos avanços no processo de siderando-a em sua dupla dimensão
emancipação feminina e à relevância de fato coletivo e trajetória individual
conquistada pela categoria gênero nas (SAYAD, 1998, p. 1-2). Desse modo,
relexões históricas, impôs-se aos estu- as mulheres imigram e emigram, posto
dos migratórios a necessidade de novas que deixam um território conhecido e
chegam a outro, muitas vezes estranho.
relexões e da busca por compreender
Ao contrário das mulheres migrantes
como ocorrem os “rearranjos familia-
de gerações passadas, no cenário con-
res e de gênero” (ASSIS, 2007, p.745)
temporâneo muitas delas apresentam
nesse universo teórico.
uma melhor qualiicação e nível educa-
Compreendê-las enquanto mi-
cional, além de uma legislação que, em
grantes supõe a análise das singula- alguns países, permite o divórcio e pro-
ridades evocadas por essas mulheres cura estabelecer políticas de combate
que, sejam acompanhando outros, às discriminações de gênero. Apesar
sejam sozinhas, migram em busca de disso, tais quais as mulheres migran-
melhorias econômicas para si e para tes dos séculos anteriores, as migran-
sua família, mas também na busca de tes contemporâneas “encontram um
satisfação de anseios não possíveis de mercado segmentado por gênero e,
realização na comunidade de origem, apesar de uma melhor escolarização
como se libertarem das autoridades e qualiicação, ainda se dirigem para
que sobre elas recaem, gozarem de certas ocupações tradicionalmente fe-
maior autonomia e empoderamento e mininas” (ASSIS, 2007, p.750). Dentre
experimentarem o mundo e suas pos- essas ocupações naturalizadas como
sibilidades de existência, uma vez que pertencentes ao universo das mulhe-
“[...] estudos apontaram para o fato de res migrantes no contexto internacio-
que as mulheres migram não apenas nal, situa-se o trabalho doméstico que
por razões econômicas, mas também enuncia o lugar social da mulher como
aquela que cuida e que tece a sua so-
por rompimento com sociedades dis-
brevivência a partir do labor com as
criminatórias, nas quais estariam em
próprias mãos. Nesse prisma, a vulne-
posição subordinada” (ASSIS, 2007,
rabilidade igura como a condição sine
p.751).
qua non de existência das mulheres po-

• 547 •
bres migrantes que, além do trabalho “é essa rede que vai sustentar a identi-
doméstico, encontram na prostituição dade social de seus membros, e ser a
uma das possibilidades de existência sua garantia diante dos momentos de
migrante. infortúnio” (2001, p. 6).
Às atribuições ditas femininas Desse modo, as redes, pelo seu
no universo migratório parece somar- componente hierárquico, também po-
-se ainda o papel de guardiãs da me- dem reproduzir padrões patriarcais.
mória de seus grupos sociais, sendo Em alguns casos, como nas redes ile-
muitas vezes elas as responsáveis pelo gais, pode incorporar ainda questões
contar das histórias da família, a guar- que perpassam o tráico de mulhe-
da de artefatos, objetos, fotograias e res, a exploração sexual, a violência,
cartas recebidas de amigos e familiares. a exploração por conterrâneos e/ou
São elas que “mantém as tradições, a familiares e os conlitos étnicos. Em
língua “materna”, a cozinha, os hábitos outra via, simboliza uma estratégia dos
religiosos” (PERROT, 2013, p.137). grupos sociais em que as mulheres se
São elas também as grandes respon- apresentam ativamente inseridas, igu-
sáveis pela tessitura e manutenção das rando como “capital social que auxilia
pessoas com poucos recursos, pouca
redes sociais da migração.
experiência proissional e baixo nível
Acerca das redes, o pesquisa-
de escolaridade” (ASSIS, 2007, p.752).
dor Dornelas destaca que elas partem
Nesse olhar, a teoria das redes
de “pessoas concretas e de sua neces-
pode ser apontada como um caminho
sidade de criarem laços de coniança
de análise do papel das mulheres no
entre si”. Dessa maneira, “através de
processo de migração, contrapondo-se
uma série de trocas simbólicas (bens,
às teorias neoclássicas na busca por “re-
presentes, favores, casamentos, ilhos, construir as trajetórias das mulheres, as
etc), o grupo se constitui, dá forma às dinâmicas das suas escolhas do ponto
suas práticas culturais e a seus prin- de partida ao ponto de chegada; para
cípios de honra e moral” (2001, p.6). identiicar o papel das mulheres nas
Fruto das relações sociais, são tecidas estratégias de reprodução econômica,
tanto de solidariedade quanto de con- cultural e social dos grupos étnicos”
litos e subordinação entre os sujeitos (PISELLI, 1998, p.103). Ademais, pes-
que as compõem, não permitindo vi- quisas com esse enfoque têm ressalta-
sões simplistas ou ingênuas a respeito do a habilidade de muitas mulheres na
de uma comunidade idealizada. O que criação de estratégias de apoio mútuo
existe são sujeitos concretos vivendo que orientam a alocação de migrantes
relações reais em que, potencialmente, nos primeiros tempos e sua integração

• 548 •
ao mercado de trabalho. Nessa aborda- jeitos protagonistas de suas histórias e
gem, pode se airmar que as mulheres agentes de transformação social.
são hábeis tecedoras de outras redes,
estimulando novas migrações e que os Eliene Dias de Oliveira
acessos dos indivíduos a esse espaço e
as trocas que elas propiciam são “di- Referências
reitos e responsabilidades informados ASSIS, Gláucia de Oliveira. Mulheres migrantes no pas-
pelo gênero e pelas normas de paren- sado e no presente: gênero, redes sociais e migração inter-
nacional. Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 336,
tesco” (ASSIS, 2007, p. 753). setembro/dezembro de 2007.
Falar das mulheres migrantes é,
portanto, falar de sujeitos concretos DORNELAS, Sidnei Marco. Redes sociais na migração.
Travessia. Ano XIV, número 40, maio/agosto de 2001,
que fazem escolhas, que se reinventam, p. 05-10.
que traçam estratégias. Ademais, é im-
KITAHARA, Satomi Takano. Migração internacional
portante pensar a realidade das mulhe- e mulheres: o caso das japonesas e nipo brasileiras. In:
res migrantes em consonância com as PÓVOA NETO, Helion; FERREIRA, Ademir Pacelli
(orgs.). Cruzando fronteiras disciplinares: um panorama
múltiplas variáveis de situação social, dos estudos migratórios. Rio de Janeiro: Revam, 2005,
origem etnográica, grau de acesso à p. 117-132.

educação formal, estatuto migratório PERROT, Michelle. Mulheres em movimento: migra-


(se possuem ou não documentos que ções e viagens. In: PERROT, Michelle. Minha história
das mulheres. São Paulo: Contexto, 2013.
permitem o trabalho), entre outros as-
pectos que propiciem entender o seu PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo:
UNESP, 1998.
lugar social no universo da migração.
Destarte, mostra-se fundamental a PISELLI, Fortunata. Mulheres migrantes: uma aborda-
gem a partir da teoria das redes. Revista Crítica de Ciên-
compreensão de que aquelas que emi- cias Sociais, n. 50, p. 103-119,1998.
gram e imigram portam consigo as
POSSAS, Lídia M. V. As fronteiras: retomando a palavra
identidades e pertenças de gênero dos e libertando signiicados. Quem sou eu? As mulheres e as
territórios de origem, deparando-se no identidades redescobertas. Revista Territórios e Frontei-
ras, v. 4, n. 1, janeiro/julho de 2011.
território de acolhimento com as de-
sigualdades, discriminações e desaios SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da
alteridade. São Paulo: EDUSP, 1998.
presentes na escolha do migrar e no
fato de serem, sobretudo, mulheres. Sugestões de leitura
O grande desaio é, portanto, CASTELLANOS, Patrícia Cortés. Mujeres migrantes de
repensar os próprios critérios analíti- América Latina y el Caribe: derechos humanos, mitos y
duras realidades. Série Población y desarrollo. Santiago
cos dos processos migratórios, enten- del Chile: CEPAL, n. 61, 2005.
dendo a migração de mulheres não
MARINUCCI, Roberto. Feminização das migrações.
como uma derivação da migração dos
REMHU – Revista Interdisciplinar de Mobilidade Hu-
homens, mas como a migração de su- mana: v. 15, n. 29, 2007.

• 549 •
TEDESCHI, Losandro Antonio (org.) Leituras de gê- aos problemas encontrados no funcio-
nero e interculturalidade. Dourados/MS: UFGD, 2013.
namento isiológico das estruturas que
EVANGELISTA, Chiara. Terra, etnie, migrazioni. Tre
donne nel Brasile contemporaneo. Torino, Il Segnalibro,
compõem o aparelho auditivo, do con-
1999. trário estaria “revivendo o passado”,
quando se atribuiu aos surdos o rótulo

de um sujeito deiciente, incapaz, anor-
Mulheres surdas mal, que necessitava ser normalizado
para ter seus direitos básicos reconhe-
De um modo geral os concei- cidos, como acesso à educação, ao ma-
tos são apresentados de forma direta trimônio, ao auto gerenciamento.
e objetiva através do verbo ser con- A im de problematizar a nor-
jugado na terceira pessoa do singular malidade imposta pelo discurso hege-
(é). O que não parece algo problemá- mônico da saúde e evitar a postura de
tico em uma concepção pragmática, determinar verdades e rotular os sujei-
reducionista tão presente em diversas tos, busco amparo nos Estudos Sur-
correntes teóricas e principalmente no dos e Estudos Culturais para auxiliar
senso comum. No entanto, em uma na construção de nosso entendimento
perspectiva pós-estruturalista um con- de mulher surda, sem esquecermos
ceito deve ser apresentado com todos que no termo há uma pluralidade de
os seus desdobramentos e sua traje- arranjos que podem ser aproximados
(surdas negras, surdas homossexuais,
tória histórico-constitutiva, política e
surdas com síndrome de down, surdas
cultural.
autistas, etc.).
Ao propor uma deinição de
Os primeiros registros históri-
mulher surda é importante ressaltar cos sobre a surdez remetem a passa-
que este não é um conceito fechado gens bíblicas: “Quem deu uma boca ao
em si, arbitrado por um outro sujeito, homem? Quem fez o mudo e o surdo,
pelo contrário este é o entendimento o que vê e o cego? Não sou eu o Se-
de uma relexão construída a partir da nhor? Vai, pois e eu serei na tua boca e
escuta de um grupo de mulheres per- te ensinarei o que hás de falar (Êxodo,
tencentes a comunidade surda, onde 4, 11-12). Na tradição judaica a surdez
ser mulher e ser surda é uma questão carrega o princípio da anormalidade,
epistemológica e não apenas patológi- no entanto, como criatura de Deus, de-
ca (SKLIAR, 1997). Cabe ressaltar que vemos ter “piedade” para com ela. É
neste sentido, ser surda não resume-se signiicativo lembrarmos que historica-
mente os registros oiciais, referem-se
a um diagnóstico clínico/patológico ou

• 550 •
sempre ao surdo masculino, mais pre- sua comunidade, suas inúmeras iden-
cisamente o surdo ilho de nobres, pois tidades, seu direito de compreender o
estes necessitavam ser educados/nor- mundo a partir da experiência visual.
malizados para terem garantidos seus Para entendermos o espaço onde a
direitos de herança. Por muito tempo mulher surda se constitui é necessário
o não acesso da mulher surda à edu- ter presente a tríade: cultura, identidade
cação se quer constituiu um problema e língua, não necessariamente em uma
que merecesse atenção e mesmo quan- ordem hierárquica vertical, mas em
do sua presença nas escolas e institutos uma ordem inter-circular que se rela-
se tornou algo real, limitava-se muitas cionam e se interconectam em diversos
vezes ao aprendizado de técnicas do- pontos. Em outras palavras, a cultura
mésticas, e não ao universo letrado e a possui uma parcela de responsabilida-
cultura clássica. de na constituição da identidade, que
A igura da mulher surda se por sua vez também possui uma par-
constitui, historicamente, em oposição cela de responsabilidade na constitui-
ao determinismo imposto pelas estru- ção da cultura, da mesma forma que
turas de poder que atendiam as necessi- a língua relete e dá signiicado aos
dades e exigências de uma época. Fou- símbolos compartilhados pela cultura
cault nos lembra de que existem duas e identidade de uma determinada co-
técnicas de poder interligadas capazes munidade ou grupo social. A questão
de deinir os sujeitos: a primeira delas que não se pode deixar de considerar
está centrada no corpo do indivíduo, é é que ao trabalharmos nesta perspec-
o poder disciplinar, que substitui o po- tiva devemos ter claro que a diferença,
der pastoral (religião), a segunda força muitas vezes, é marcada a partir das
é o poder político que deine formas práticas culturais e que por traz desta
de produção e regulação do individual marcação existe uma série de arranjos
em nome de um bem-estar social. Es- e negociações histórico-políticas que
tas forças agem simultaneamente sobre determinam os conceitos e consequen-
os corpos dos indivíduos produzindo temente os sujeitos.
verdades sobre eles, categorizando to- O século XIX é certamente um
dos em pares binários: normais, anor- marco na história da mulher, pois é
mais; branco, negro; homem, mulher; neste período que a mulher passa a per-
pobre, rico; surda, ouvinte. Na luta seguir sua cidadania. As duas grandes
pela quebra desta binariedade, onde o guerras contribuíram para a mudança
primeiro está posto como superior ao de paradigma, ao levar os homens para
segundo, é que a mulher surda surge as frentes de batalha, forçou as mu-
para defender sua cultura, sua língua, lheres a deixarem a reclusão de seus

• 551 •
“mundos perfeitos” do lar e assumir a reconhecimento de suas capacidades
posição dos homens tanto nos negó- como mulheres e como surdas.
cios da família como no mercado de Ser surda não signiica não escu-
trabalho. Mesmo após o im da Segun- tar, pois a escuta se dá de outra forma.
da Guerra Mundial em 1945, sua per- Ser Mulher Surda é um posicionamen-
manência nas atividades proissionais to político e não uma representação
tornou-se necessária tendo em vista caricata de uma realidade artiicial.
que uma pare signiicativa dos sobrevi-
ventes retornaram com graves sequelas Peterson Rosa Costa
físicas, impossibilitando-os de retornar
Referências e sugestões de leitura
ao ofício anterior. O capitalismo se
apropriou da força de trabalho femi- COSTA, Marisa Vorraber; SILVEIRA, Rosa Hes-
nina, empregando-a nas grandes fábri- sel; SOMMER, Luis Henrique. Estudos culturais,
educação e pedagogia. Rev. Bras. Educ., Rio de Ja-
cas, no entanto, o avanço tecnológico neiro, n. 23, ago. 2003 . Disponível em <http://
e o uso de máquinas mais soisticadas www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1413-24782003000200004&lng=pt&nrm=i-
capazes de realizar o trabalho de deze- so>. acessos em 06 jul. 2011. doi: 10.1590/S1413-
nas de mulheres serviu como principal 24782003000200004.

motivação para que as trabalhadoras se COSTA, Peterson da Rosa. Mulher surda ser eu: a
organizassem em grupo para lutar con- constituição das identidades do sujeito surdo feminino.
Canoas: UNILASALLE/PPGEDU, 2011. Dissertação
tra a exploração. Também é no século (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação,
Centro Universitário La Salle, Canoas, 2011.
XIX que se marca, com maior reper-
cussão nacional a luta da comunidade DABAT, Christine Ruino; ÁVILA, Maria Betânia
(trad.). Gênero uma categoria útil de análise. Disponí-
surda pelo reconhecimento da cultu- vel em: http://www.bibliotecafeminista.org.br/index.
ra, da identidade e da língua de sinais. php?option=com_remository&Itemid=56&func=start-
down&id=203
Para tanto são criadas as associações e
clubes de surdos onde a presença fe- FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da pri-
são. 36. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
minina é indiscutivelmente signiicati-
va na conscientização política, como LANE, Harlan. A Máscara da Benevolência: a comuni-
dade surda amordaçada. Lisboa: Instituto Peaget, 1992.
também na organização que por vezes
muito se aproxima da escola tendo em LOURO, Dagmar Lopes. Nas redes do conceito de gêne-
ro. IN: LOPES, Marta Julia Marques; MEYER, Dagmar
vista que a boa parte das ativistas são Estermann; WALDOW, Vera Regina (Orgs). Gênero e
Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
educadoras surdas. Elas são maior nú-
mero com relação aos homens surdos, PERLIN, Gladis & QUADROS, Ronice Muller de. O
ouvinte o outro do outro surdo. In: Anais do II Semi-
nos cursos de mestrado e doutorado. nário Internacional Educação Intercultural, Gênero e
São maior número na docência, mas Movimentos Sociais. Florianópolis: Fapeu-002, 2003.
CD Room.
ainda assim tem um longo caminho no

• 552 •
PINTO, Maria José. O que os ilósofos pensam sobre as
mulheres: Platão e Aristóteles. IN: FERREIRA, Maria
Luísa (Org.). O que os ilósofos pensam sobre as mulhe-
res. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2010.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Teoria cultural e educação: um


vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

______. Identidade e diferença: A perspectiva dos Estu-


dos Culturais. 7º ed. Petrópolis: Vozes, 2000
SKLIAR, Carlos Bernardo. Pedagogia (improvável) da
diferença: e se o outro não estivesse a? Rio de Janeiro:
DP&A, 2003.

______. A surdez: um olhar sobre as diferenças. 3. ed.


Porto Alegre: Mediação, 2005.

______ La educación de los sordos: Uma reconstrucción


histórica, cognitiva y pedagógica. Mendonza: EDIUNC,
1997.

STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura


surda. 2. ed. Florianópolis: Editora da UFSC, 2009.

THOMA, Adriana da Silva; LOPES, Maura Corcini


(Org.). A invenção da surdez: cultura, alteridade, iden-
tidade e diferença no campo da educação. Santa Cruz do
Sul, RS: Ed. da UNISC, 2004.

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na: Ediciones B, 2005.

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cion humana y su patolíga: Ensayo histórico hara 1900.
Bueno Aires: Casa Artes, 1966.

• 553 •
Natureza/naturalização

A palavra “natureza” deriva do


latim natura, que remete à qualidade de
essência, o que é inato, herdado biolo-
gicamente.
Existem diferentes formas de
signiicar a natureza, pois o conceito
é discutido e deinido por diferentes
perspectivas teóricas e áreas do conhe-
cimento da Ciência. Esse conceito tem
sua emergência no pensamento grego
antigo e vai sofrendo modiicações ao
longo dos séculos. Por exemplo, para
Aristóteles a natureza pode ser vista
como a arte interior das coisas e como
uma forma de saber próprio, inato e
instintivo, presente na mesma consti-
tuição dos animais e dos homens.
Na modernidade, muitas teorias
sobre o desenvolvimento e o compor-
tamento humano destacam que o sujei-
to moderno teria uma natureza única,
que seria legítima para compreender
qualquer indivíduo.
A ideia desse sujeito, deinido a
partir de suas determinações genéticas,
vem de uma perspectiva biologicista, a
qual entende que os indivíduos já nas-
cem com determinadas características.
Para Gould (1999, p. 4), o determinis-
mo biológico [...] sustenta que as nor-
mas comportamentais compartilha-
das, bem como as diferenças sociais e
econômicas existentes entre os grupos
humanos – principalmente de raça,
classe e sexo – derivam de distinções

• 554 •
herdadas e inatas e que, neste sentido, a mos que as diferenças entre mulheres
sociedade é um relexo iel da Biologia. e homens podem estar relacionadas ao
Dessa forma, os argumentos funcionamento do cérebro. Os dois
advindos das Ciências da Natureza excertos, extraídos da revista Viver
são capazes de determinar e airmar Mente & Cérebro Scientiic American
que todos os sujeitos possuem uma exempliicam tal airmação: A tendên-
base biológica inata e intrínseca. Para cia nítida encontrada foi que, em geral,
Freitas e Chaves (2013), “aquilo que as mulheres são superiores aos homens
seria essencialmente humano, num ar- em testes verbais, ao passo que estes
gumento biológico, se tornou inato e se saem melhor nas tarefas relativas à
intrínseco ao homem por meio de um orientação espacial (HAUSMANN,
processo de seleção comportamental 2005, p. 41); Proissões ligadas à en-
com base biológica.” genharia e à metalúrgica exigem alta
Ana Arnt também destaca a for- capacidade de sistematização, uma ca-
ça da Biologia ao destacar que o gover- racterística masculina. (BARON-CO-
no dos corpos dos sujeitos por meio HEN, 2007, p. 25).
de sua sexualidade está “incrustada Nesse sentido, ao nomearmos
neste discurso que naturaliza nossos o cérebro como um órgão responsável
comportamentos e os atribui aos ge- pela origem das distinções/diferencia-
nes quase sem possibilidades de fuga, ções entre os sexos, estamos produ-
como se fôssemos reféns de uma bio- zindo signiicados sobre o que é ser
logia que nos persegue, alcança e obri- mulher e sobre o que é ser homem.
ga.” (2013, p. 102) Assim, Donna Haraway (1992, p. 6)
A partir da perspectiva dos destaca: “o mundo é uma construção
Estudos Culturais, podemos proble- social; o mundo adquire signiicado a
matizar a Biologia, os conhecimentos partir da nomeação, da linguagem que
cientíicos e as categorias – organismo, lhe dá sentido”.
natureza, sexo, entre outras – como Nesse sentido, é possível pensar
invenções produzidas culturalmente que a natureza é uma produção discur-
(SILVA, 2000). siva, existindo por meio de uma rede de
Assim, entendemos que as ca- signiicados – ambiente, matéria, mun-
racterísticas biológicas são constituídas do, espaço. Kofes (2008, p. 873) coloca
na e pela linguagem, pois, ao nomeá- que para Donna Haraway “a natureza é
-las, atribui-se sentido a essas caracte- feita, como fato e como icção”. Nesse
rísticas. Estamos produzindo alguns sentido, os sujeitos não seriam objetos
signiicados, por exemplo, ao justiicar- naturais, são produzidos nas práticas

• 555 •
sociais e técnico-cientíicas, ou seja, entretanto, em função do lado direito,
não existiria uma natureza humana responsável pela capacidade matemá-
para deinir o sujeito moderno. tica e de organização espacial ser me-
Foucault, em sua obra, destaca nos desenvolvido nas mulheres, estas
que o sujeito não é uma substância possuem diiculdade na aprendizagem
ou uma natureza humana previamen- de Matemática, de Física, ou seja, das
te dada ou, conforme Fonseca, um Ciências Exatas em geral.
“dado pré-existente, como uma essên- Tais entendimentos remetem
cia perene e portadora de um sentido” à existência de uma matriz biológica,
(2003, p. 14); o sujeito é uma constru- de atributos comuns entre todas as
ção discursiva, uma construção histó- mulheres, ao naturalizar determinadas
rica e cultural, uma invenção, efeito do características como sendo exclusiva-
discurso e do poder. A im de proble- mente “femininas”. Os exemplos aci-
matizarmos que o sujeito é resultado ma citados possibilitam-nos problema-
das práticas sociais cotidianas, e não tizar a noção universal, trans-histórica
o resultado de uma essência previa- e transcultural de gênero, que remete
mente dada, naturalizada pela Ciência, ao “determinismo biológico”, ou seja,
apresentaremos alguns exemplos de ao pressuposto de que é o sexo bioló-
práticas sociais que vão constituindo gico que determina as características
mulheres e homens. e funções sociais diferenciadas entre
O entendimento de que as mu- mulheres e homens (CITELI, 2001;
lheres, por apresentarem determinadas LOURO, 2007). Nesse sentido, a for-
características biológicas, possuem, ça do discurso biológico reside no en-
por exemplo, um instinto materno em tendimento de que as diferenças entre
sua essência (condição de reproduzir mulheres e homens – comportamen-
e ser mãe) remete à existência de uma tos, atitudes, habilidades cognitivas,
matriz biológica, de atributos comuns características pessoais, entre outras
entre todas as mulheres, que naturaliza – são inatas e universais. No entanto,
determinadas características como sen- não se trata de desconsiderar a existên-
do exclusivamente “femininas”. Tam- cia de uma materialidade biológica do
bém se enquadram as concepções de corpo, mas, sim, de interrogar os pro-
que as mulheres sejam excessivamente cessos pelos quais a biologia/natureza
emocionais e sensíveis em função dos serve de argumento para determinar os
hormônios sexuais femininos; de que comportamentos, as habilidades e os
o lado esquerdo do cérebro, por ser lugares sociais que os sujeitos podem e
mais desenvolvido, caracteriza a faci- devem ocupar. Além disso, trata-se de
lidade das mulheres em comunicar-se, perceber que o que dizemos e entende-

• 556 •
mos sobre o corpo – ossos, músculos, Referências
órgãos, hormônios, neurônios e mais
ARNT, Ana de Medeiros. Genomas, sexualidade, sele-
– é uma fabricação histórica e cultural. ção de parceiros, anomalias, defeitos, aborto, seleção de
Thomas Laqueur (2001), em seu livro embriões: educando e governando vidas e sujeitos pelo
determinismo biológico enunciado na revista Ciência
“Inventando o sexo”, fez diversas in- Hoje. 2013. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação, Programa de
vestigações para mostrar que o corpo Pós-Graduação em Educação, Porto Alegre, 2013.
humano tem uma história, rompendo,
BARON-COHEN, Simon. Engrenagens do cérebro
assim, com qualquer perspectiva na- masculino. Viver Mente & Cérebro Scientiic American,
São Paulo, n. 10, p. 22-27, 2007. Edição especial.
turalista ou biologizante. Analisando
historicamente os discursos sobre o CITELI, Maria Teresa.. Fazendo diferenças: teorias sobre
gênero, corpo e comportamento, Estudos Feministas,
corpo, o autor demonstrou que as di- vol. 9, no 1, p. 131-145, 2001.
ferentes formas de se pensar sobre os FONSECA, Marcio Alves da. Michel Foucault e a consti-
sexos, passando da existência de um só tuição do sujeito. São Paulo: EDUC, 2003.

sexo, o masculino, do qual as mulhe- FREITAS, Lilliane Miranda; CHAVES, Silvia Nogueira.
Agindo pelo instinto? A naturalização das práticas sociais
res seriam uma versão imperfeita, para por discursos cientíicos. In: VIII Encontro Nacional de
a emergência de dois sexos no século Pesquisa em Educação em Ciências e I Congreso Iberoa-
mericano de Investigación en Ensenãnza de las Ciencias,
XVIII, não foi resultado de um “avan- 2011, Campinas. Atas do VIII Encontro Nacional de Pes-
quisa em Educação em Ciências e I Congreso Iberoameri-
ço” da Ciência, mas, sim, uma resposta cano de Investigación en Ensenãnza de las Ciencias. Dis-
política às necessidades daquela épo- ponível em: <http://www.nutes.ufrj.br/abrapec/arquivos/
LISTA_ORAL.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2013.
ca. Na sua trajetória histórica sobre o
GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. 2. ed.
corpo, Laqueur concluiu que as par- São Paulo: Martins Fontes, 1999.
tes do corpo da mulher e do homem
HAUSMANN, Marcus. Questão de Simetria. Viver
eram percebidas e desenhadas a partir Mente & Cérebro Scientiic American, São Paulo, n. 146,
p. 40-45, mar. 2005.
das lentes que lhes davam a forma, ou
seja, não eram isentas de valores cul- HARAWAY, Donna. he promises of monsters: a rege-
nerative politics for inappropriate/ d others. In: GROS-
turais e sociais. Portanto, é importante SBERG, Lawrence; NELSON, Cary; TREICHLER,
Paula. (Org.). Cultural studies. New York/London: Rout-
que olhemos para o corpo como uma ledge, 1992. p.
produção histórica, um sistema que,
KOFES, Suely. No labirinto, espadas e novelo de linha:
simultaneamente, produz signiicados Beauvoir e Haraway, alteridades, e alteridade, na teoria
social. Estudos Feministas, local, v. 16, n. 3, p. 865-877,
sociais e é produzido por estes. set./dez. 2008.

LAQUEUR, homas. 2001. Inventando o sexo: corpo e


Joanalira Corpes Magalhães gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Du-
Benícia Oliveira da Silva mará.
Paula Regina Costa Ribeiro
LOURO, Guacira. Gênero, sexualidade e educação: as
Fabiane Ferreira da Silva ainidades políticas às tensões teórico-metodológicas,
Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 46, p. 201-218,
dez. 2007.

• 557 •
SILVA, Luis Henrique dos Santos. A Biologia tem uma liano no ano de 1786. Bienville (1996)
história que não é natural. In: COSTA, Marisa Vorraber
(Org.). Estudos culturais em educação: mídia, arquitetu- chegou a equiparar a ninfomania à
ra, brinquedo, biologia, literatura, cinema... Porto Alegre: masturbação, ambas como doenças
Ed. Universidade/UFRGS, 2000. p. 229-256.
que atacam mulheres carentes: jovens
Sugestões de leitura não satisfeitas por algum enamorado,
adultas que tiveram vidas voluptuosas
FOUCAULT, Michel. Da natureza humana: justiça con- e depois icaram sós, viúvas, enim,
tra o poder. In: Ditos e escritos, vol. IV. Rio de Janeiro:
Forense universitária, 2004. p. 87-132. mulheres frustradas.
HARAWAY. Donna Jay. Ciencia, cyborgs y mujeres: la
No Dicionário do sexo, de Gol-
reinvención de la naturaleza. Madri: Ediciones Cátedra, denson e Anderson (1989, p. 189), de-
1995.
ine-se ninfomania como “necessidade
KESSELRING, homas. O conceito de natureza na his- compulsiva, insaciável, de estimulação
tória do pensamento ocidental. Episteme. Porto Alegre,
n. 11, p. 153-172, jul./dez. 2000. e satisfação sexual em mulheres, o que
frequentemente leva à promiscuidade
RUIZ, Castor Bartolomé. A bios humana: paradoxos
éticos e políticos da biopolítica. Disponível em: <http:// ou à masturbação repetida”. Embo-
www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_
content&view=article&id=4353&secao=388)>. Acesso
ra não apresente a ninfomania como
em: 25 maio2013. patologia, como “distúrbio”, mas que
VEIGA NETO, Alfredo. Cultura e natureza; cultura e “pode se originar de fatores como ten-
civilização: precauções quase-metodólogicas. In: SOM- são emocional, necessidade incomum
MER, Luiz; BUJES, Maria (Org.). Educação e cultura
contemporânea: articulações, provocações e transgressões de ser aceita pelos homens, tentativa
em novas paisagens. Canoas: Ulbra, 2007. p. 305-316.
de negar tendências homossexuais ou
provar que não é frígida”.

Goldenson e Anderson aliviam
o ranço patológico do termo, mas ain-
Ninfomania
da lembram os sentidos pejorativos
que colocam a mulher como sujeito
Substantivo feminino. A equipe
passivo, cujo comportamento busca
do Dicionário Houaiss (2009, p. 1.356)
encontrou o termo citado pela pri- uma falta ou uma compensação de algo
meira vez em 1858, como referência que não se encaixa em certa “normali-
a uma psicopatologia: “desejo sexual dade”, ou acomodação de prazeres. A
anormalmente forte nas mulheres; fu- frigidez, em geral, é também atribuída
ror uterino”. Todavia, o termo “furor a uma diiculdade ou até incapacidade
uterino” já havia sido utilizado por da mulher de gozar ou ter orgasmo.
Bienville, médico francês que escreveu Ou, ainda, a uma não vontade dela de
A ninfomania ou tratado sobre o furor uteri- ingir. A ninfômana não sente prazer
no, publicado pela primeira vez em ita- a mais ou a menos, ela busca inesgo-

• 558 •
tavelmente os prazeres do sexo e por aos homens e com medo de não ser
estes se dispõe a romper regras. capaz de formar família, de não con-
Foucault, especialmente em seguir ser “como as outras mulheres”.
História da sexualidade 2 (2001), nos faz Vivenciou várias experiências, do casa-
pensar sobre o valor que a moderni- mento à prostituição, e ainal conclui
dade deu para a sexualidade, criando que esposa e prostituta são iguais, pois,
as classiicações e patologizações de para ela, nas duas situações os homens
comportamentos que passaram a ser se sentem donos do corpo da mulher.
enquadrados em normas, sustentadas A literatura sobre a ninfoma-
por saberes médicos, sobretudo. E, se nia pelas ninfômanas é relativamente
desde a Antiguidade era o comporta- recente. Considerando-se o rótulo da
mento sexual dos homens que havia patologia e do distúrbio, não seria co-
sido normatizado, a modernidade inci- mum encontrar mulheres que se acei-
diu no corpo da mulher o discursivo da tassem ou fossem aceitas, sem discri-
norma. Consequentemente, as que não minação, caso se reconhecessem como
se encaixavam iam para a margem da ninfomaníacas. Então, são homens, em
“anormalidade”, do “desvio”, do “dis- geral, que falam da ninfomania. Ander-
túrbio” e da “patologia”. son e Goldenson (1989, p. 189) air-
No ilme Diário proibido (2009) mam: “Muitos homens rotulam falsa-
– baseado no best-seller de Valérie Tas- mente qualquer mulher de ninfômana
so, uma francesa de classe média que simplesmente porque os impulsos se-
publicou originalmente o Diário de uma xuais dela são mais fortes que os seus”.
ninfomaníaca, autobiográico, em 2003 A ninfomania é, então, carregada de
–, há uma fala da avó de Valérie, in- um sentido competitivo e ameaçador
terpretada por Geraldine Chaplin, que para os homens. Na referência da mas-
vai ao encontro do que diz Foucault. culinidade dominante, o homem é o
Essa avó, que havia se relacionado se- “pegador”, conquistador e ativo, não
xualmente apenas com um homem em a mulher. A experiência da ninfomania
toda sua vida, nunca reprimiu os dese- inverte esse suposto papel social.
jos sexuais da neta e sempre a incenti- Em Ninfomaníaca – Volume 2
vava a aproveitar a juventude. No inal (2013), Lars von Trier traz um exce-
da vida, diante da jovem que se declara lente debate sobre as dissimulações
uma ninfomaníaca, retruca: “Ninfoma- que a sociedade cria ao colocar rótulos
nia – invenção dos homens para culpar e estipular formas de tratamento para
as mulheres por serem fogosas”. Valé- uma cura: através da abstinência, do
rie até passou pela fase da culpa, jul- desvio de pensamento e até da nega-
gando ter algum problema em relação ção da palavra. Esse aspecto é eviden-

• 559 •
ciado na cena em que Joe (interpretada frequentemente entendido, nos ho-
por Charlotte Gainsbourg) se nega a mens, como parte de sua “natureza”,
reconhecer-se como “sexo-dependen- enquanto nas mulheres esse desejo é
te”: airma-se como ninfomaníaca e visto, frequentemente, como obsceno
diz amar sua vagina e sua luxúria re- e repulsivo às regras da moralidade
pugnante. Acusa a coordenadora do burguesa. Ou seja, uma ninfômana não
grupo de autoajuda de “iscal da mo- é “boa para casar”.
ral social”, cuja função seria “varrer a Até da maternidade, parte da
obscenidade da face da Terra para não “natureza da mulher”, tentou-se des-
deixar a burguesia se sentir enojada”. vincular o prazer sexual. Laqueur
Joe também passou pelo estágio da (2001, p. 13-15) ilustra esse aspec-
culpa, de não conseguir manter um ca- to com um bom exemplo ao contar
samento, de nem sequer poder olhar o a história da ilha dos donos de uma
rosto do ilho como se ele “soubesse hospedaria francesa que teria sido
de tudo” – recebeu cuspida, mijada, engravidada por um monge. Duran-
foi esbofeteada, amarrada, sangrada, e te a noite o religioso havia velado o
mais. Ações de signiicados metafóri- corpo da jovem, que fora dada como
cos. Expressam a opressão, a dor, o so- morta, mas na hora do sepultamento
frimento, mas também o processo de ela desperta de um possível coma. O
descoberta individual e de superação caso analisado por Antoine Louis, em
de uma condição de subjugação. 1752, seria uma fraude, uma trama dos
A ninfômana nega, embora não dois amantes para poderem realizar o
socialmente, a imposição do recato, da ato sexual proibido. Mas em 1836, ou-
obliteração do desejo ou sublimação tro médico, dr. Michel Ryan, utiliza o
do prazer através do afeto maternal. mesmo caso para provar que mulheres
Sua busca é descompassada em rela- insensíveis podiam conceber, não ha-
ção às regras conjugais duradouras. Ao vendo necessidade do orgasmo, como
perseguir novos prazeres, sem necessi- antes se acreditava. Vale lembrar que
dade de vincular sentimentos afetivos, o prazer sexual das mulheres foi um
entra em novos relacionamentos, visto mistério para a ciência médica até o sé-
que seria impossível realizar um grande culo XVI. Só em 1561, o anatomista
universo de fantasias com uma mesma italiano Gabriele Falloppio publicou a
pessoa. Mas o que antes era parte da primeira descrição minuciosa do clitó-
sexualidade foi transformado por mé- ris (SEVELY, 1987, p. 32). Até então,
dicos, a partir do século XVIII, em predominava a interpretação de Gale-
perversões e patologias. O desejo com- no, do século II, de que havia um único
pulsivo por relacionamentos sexuais é sexo, diferenciado apenas na apresen-

• 560 •
tação: no homem o sexo era para fora Gonçalves Pinto Lisboa e da brasileira
(o pênis) e na mulher o sexo era para Antônia Clara Freire, nasceu no ano de
dentro (vagina). 1810, no sítio Floresta, na cidade de
A luxúria feminina foi conde- Papary, Rio Grande do Norte.
nada na modernidade. A ninfomania, Nísia casou-se aos 13 anos com
inventada e patologizada, imprimindo Manuel Alexandre Seabra de Melo e
na mulher a culpa e o estigma da pro- em poucos meses se separou e voltou
miscuidade. a morar com seus pais. No ano de 1828
Nísia Floresta foi morar com Manuel
Ana Maria Marques
Augusto de Faria Rocha, acadêmico na
Faculdade de Direito de Recife com
Referências e sugestões
quem teve dois ilhos: Lívia Augusta e
BIENVILLE, D. T. A ninfomania. Porto Alegre: L&PM, Augusto Américo.
1996.
Dionísia Gonçalves Pinto foi
HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Di- uma importante escritora, educadora
cionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2009. e poetisa que assinava as suas obras
como Nísia Floresta Brasileira Augus-
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso
dos prazeres. 9. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001. ta. Ela escreveu artigos sobre a condi-
GOLDENSON, Robert; ANDERSON, Kenneth N.
ção feminina no Brasil para o jornal
Dicionário do sexo. São Paulo: Ática, 1989. Espelho das Brasileiras que pertencia ao
LAQUEUR, homas W. Inventando o sexo: corpo e gê- tipógrafo francês Adolphe Emille de
nero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Bois Garin. Esse jornal era direciona-
2001.
do as senhoras da sociedade pernam-
SEVELY, Josephine Lowndes. Segredos de Eva: uma nova
bucana.
teoria da sexualidade feminina. São Paulo: BestSeller,
1987. No ano de 1832 Nísia publicou
DIÁRIO Proibido. Direção: Christian Molina. Espanha.
o seu primeiro livro intitulado Direitos
PlayArte, 2009. (97 min). das mulheres e injustiça dos homens em Per-
NINFOMANÍACA – Volume 2. Direção: Lars von Trier. nambuco. Mudou-se juntamente com
EUA. California Filmes, 2013. (124 min). seu companheiro e sua ilha para Porto
Alegre, RS. No mês de janeiro de 1833
• nasceu o seu segundo ilho, Augusto
Américo, e neste corrente ano, no mês
Nísia Floresta de agosto, morreu o seu companheiro
com apenas 25 anos de idade deixan-
Dionísia Gonçalves Pinto, i- do-a com duas crianças pequenas. Ain-
lha do advogado português Dionísio da em 1833 foi publicado uma segunda

• 561 •
edição de seu livro Direitos das mulheres e presente pelo seu aniversário de doze
injustiça dos homens. anos de idade.
Segundo Duarte “o primeiro Nísia, com 39 anos, viúva, de-
livro escrito por Nísia Floresta é tam- cidiu no ano de 1848 mudar-se para
bém o primeiro de que se tem notícia França com a intenção de cuidar da
no Brasil que trata dos direitos das mu- saúde de sua ilha, que tinha sofrido
lheres à instrução e ao trabalho, e que um acidente a cavalo. Algumas pessoas
exige que as mulheres sejam considera- acreditavam que o motivo principal foi
das como seres inteligentes e merece- o de se afastar dos fervorosos críticos
doras de respeito pela sociedade. Este da época que repudiavam seus textos.
livro, publicado em 1832 em Recife Na cidade de Paris, Nísia publi-
(PE), tem o sugestivo título de Direi- cou romances, novelas, contos, poe-
mas e ensaios, escritos em português,
tos das mulheres e injustiça dos homens, e,
francês e italiano. Entre seus escritos,
quando surgiu, Nísia tinha apenas 22
se destaca o “Opúsculo Humanitário”,
anos e a grande maioria das mulheres
obra que recebeu elogios de Augus-
brasileiras vivia enclausurada em pre-
te Comte, pai do Positivismo. Outras
conceitos, sem qualquer direito que
obras importantes são: Itinéraire d’un-
não fosse o de ceder e aquiescer sem-
voyage en Allemagne (Paris, 1857) e Troi-
pre à vontade masculina.” (DUARTE,
sans en Italie, suivis d’unvoyage en Gréce
1997, p.2) (Paris, v. I, 1864; v. II, 1871). Essas fo-
A obra Direitos das mulheres e in- ram escritas sob a forma de diário ou
justiça dos homens é considerada uma de cartas, desvendando a cultura local,
“tradução livre” do livro Vindication contextualizando o período histórico,
de Mary Wollstonecraft. Esse livro lhe assim como, as emoções e as impres-
conferiu a atribuição de percussora do sões da autora diante de cada cidade
feminismo no Brasil. ou país que visitava com descrições e
Nísia mudou-se para o Rio de análise sobre monumentos históricos,
Janeiro no ano de 1837, no meio da como igrejas, museus, etc.
Revolução Farroupilha e fundou no Nísia relacionou-se na Europa
ano seguinte o colégio Augusto, que com importantes intelectuais como
oferecia uma educação revolucionária “Alexandre Herculano, Antonio Fe-
para meninas propondo mais conheci- liciano de Castilho, Luis Filipe Leite,
mento e menos bordado. Mazzoni, Azeglio, Giuseppi Garibaldi,
No ano de 1845 publicou, no Ettore Marcucci, Duvernoy, Parlatore,
Rio de Janeiro, o livro Conselhos à minha Braye Debuysé, George Sand, (...) e,
ilha, dedicado à sua ilha Lívia como especialmente com Augusto Comte.”

• 562 •
(DUARTE, 2002, Apresentação do li- elas são excluídas dos cargos públicos,
vro) único im a que os homens se aplicam.
Nísia Floresta foi uma escritora, A virtude e a felicidade são tão indis-
crítica e questionadora que não aceita- pensáveis na vida privada, como na pú-
va a condição de inferioridade desti- blica, e a ciência é um meio necessário
nada às mulheres. Registrou no século para se alcançar uma e outra.” (FLO-
XIX suas viagens, ideias e relexões em RESTA, 1989, p. 51)
livros e artigos. Foi pioneira no rom- Em 1885, Nísia faleceu em Rou-
pimento dos limites entre o público e en, na França, aos 75 anos e foi sepul-
o privado na sociedade brasileira. Pu- tada em Bonsecours. Praticamente 70
blicou desde o período de 1830 textos anos depois da sua morte, seu corpo
na imprensa brasileira abordando as- foi trasladado para a cidade em que
suntos polêmicos como o direito das nasceu e alojado na igreja Nossa Se-
mulheres, dos escravos e índios reivin- nhora do Ó até a construção do mau-
dicando uma vida digna e justa para soléu da poetisa. A cidade de Papary,
todas/os. “Até hoje só se tem tratado localizada no interior do Rio Grande
supericialmente da diferença dos dois do Norte, aproximadamente a 40 km
sexos. Todavia os homens arrastados de Natal, a partir de 1948 passou a se
pelo costume, prejuízo e interesse, chamar Nísia Floresta em homenagem
sempre tiveram muita certeza em de- a sua ilha ilustre.
cidir a seu favor, porque a posse os co-
locava em estado de exercer a violência Mareli Eliane Graupe
em lugar da justiça...” (FLORESTA,
Referências e sugestões de leitura
1989, p.29-30).
Nísia foi precursora na dis- DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta: vida e obra.
cussão da igualdade de direitos entre Natal: EDUFRN, 2008. DUARTE, Constância Lima.
Nísia Floresta: a primeira feminista do Brasil. Santa Cata-
homens e mulheres, desempenhando rina: Editora Mulheres, 2005.
um importante papel na luta contra
DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta Brasileira
a opressão imposta ao sexo feminino Augusta: Pioneira do Feminismo Brasileiro - Séc. XIX.
pela sociedade da época. Foi militante Mulheres e literatura. Ano 1. vol. 1. 1997. Disponí-
vel em: <http://www.litcult.net/revistamulheres_vol1.
e defendia direitos à educação e à car- php?id=7>. Acesso: 30 jun. 2013.
gos públicos para as mulheres, se des-
DUARTE. Constância Lima. Pesquisa, Organização,
tacava na sociedade como uma mulher Introdução e Notas. Florianópolis, Ed. Mulheres, 2002.
à frente de sua época. “É um grande
FLORESTA, Nísia. Direitos das mulheres e injustiça dos
absurdo pretender que as ciências são homens. 4 ed., São Paulo: Cortez, 1989.
inúteis às mulheres, pela razão de que

• 563 •
FLORESTA, Nísia. Cintilações: de uma alma brasileira.
Florianópolis: Ed. Mulheres 1997. 180p.

FLORESTA, Nísia. Troisans en Italie, suivis d’un voyage


en Grèce.Paris: E. Dentu, 1864. v. I.

FLORESTA, Nísia.Troisans en Italie, suivis d’un voyage


en Grèce.Paris: E. Dentu, 1872. v. II

FLORESTA, Nísia.Itinerário de uma viagem à Alema-


nha. 2. ed. Tradução de Francisco das Chagas Pereira e
apresentação e notas biográicas de Constância Lima Du-
arte. Florianópolis: Editora Mulheres, 1998a.

FLORESTA, Nísia.Três anos na Itália.Tradução de Fran-


cisco das Chagas Pereira e apresentação de Constância
Lima Duarte. Natal: UFRN, 1998b.

• 564 •
ONU

La Organización de las Nacio-


nes Unidas (ONU) es la entidad supra-
nacional más importante del mundo.
Sus principales metas, ijadas desde su
fundación en 1945, persiguen la pre-
servación de la paz y la seguridad inter-
nacional, el mejoramiento de las con-
diciones de vida de las poblaciones y la
promoción de los derechos humanos.
Con resultados dispares en la concreci-
ón de sus objetivos y no exenta de crí-
ticas a su desempeño, esta institución
se ha posicionado como un referente
de la política mundial en sus múltiples
aspectos. Actualmente está compuesta
por 193 Estados Miembros.
Historia: En las postrimerías de
la Segunda Guerra Mundial y ante el
panorama desolador que enfrentaba la
humanidad como consecuencia de esa
catástrofe, el 26 de julio de 1945 en la
ciudad de San Francisco (EEUU) se re-
alizó la Conferencia de las Naciones Unidas
sobre Organización Internacional de la que
participaron 50 países. Las naciones
allí congregadas se comprometieron a
terminar con el “lagelo de la guerra”
y a trabajar de manera conjunta por
la paz mundial. Esa intención por lo-
grar un modo pacíico de resolver los
conlictos internacionales y asegurar
el bienestar general quedó plasmada
en la Carta de las Naciones Unidas, el
principal documento de la ONU en el
que se establecieron los derechos y las

• 565 •
obligaciones de los Estados Miembros años. Cada miembro tiene un voto. Si
como así también las instituciones que las decisiones responden a cuestiones
le darían forma la organización supra- de procedimiento, se necesitan 9 votos
nacional. Casi tres meses después de para convertirse en regla. En aquellas
ese primer encuentro, el 24 de octubre consideradas de fondo también se ne-
se realizó en Nueva York una nueva cesitan 9 votos pero de esos votos 5
reunión de la ONU en la que los paí- tienen que ser de los miembros per-
ses irmantes de la Carta la ratiicaron. manentes. Si una de esas naciones vota
De ese modo, dio inicio formal de sus negativamente una decisión no logra
actividades. su aprobación (“poder de veto”).
Uno de sus primeros y más A diferencia del resto de los or-
importantes logros fue la Declaración ganismos de la ONU, cuyas determina-
universal de Derechos Humanos aprobada ciones tienen el carácter de recomen-
el 10 de diciembre de 1948, fecha en daciones, las decisiones tomadas por el
que se conmemora en todo el mundo Consejo de Seguridad deben ser acata-
el Día Internacional de los Derechos das por todos los Estados miembros.
Humanos. La composición y el funciona-
Estructura y organización: De miento del Consejo de Seguridad es
acuerdo a lo establecido en la Carta, la objeto de fuertes críticas de amplios
ONU cuenta con 6 órganos principa- sectores de la comunidad internacional
les: la Asamblea General, el Consejo que exigen una serie de reformas que
de Seguridad, el Consejo Económico amplíen la representación política del
y Social, el Consejo de Administración Consejo.
Fiduciaria, la Corte Internacional de La Asamblea General es el ám-
Justicia y la Secretaría. A su vez cada bito de deliberación de la ONU. En
uno de ellos tiene a su cargo otros or- ella están representados todos los Es-
ganismos y programas. tados miembro, cada uno con un voto.
El Consejo de Seguridad tiene Las decisiones que se toman en la
como responsabilidad máxima man- Asamblea se deciden por mayoría sim-
tener la paz y la seguridad internacio- ple; salvo aquellas que están vinculadas
nales. Está formado por 15 miembros. a cuestiones consideradas cruciales
Cinco de ellos ocupan su lugar de ma- como la paz y la seguridad internacio-
nera permanente: China, Estados Uni- nal, el ingreso de nuevos miembros y el
dos, la Federación de Rusia, Francia y presupuesto que requieren ser aproba-
el Reino Unido. Los diez restantes son das por 2/3 de los votos.
elegidos por la Asamblea General y El Consejo Económico y Social
ocupan ese cargo por período de dos (ECOSOC) es el órgano que se encar-

• 566 •
ga de coordinar las tareas vinculadas promover el adelanto de los habitantes
al desarrollo económico y social. Está de esos territorios y su desarrollo hacia
compuesto por 54 miembros quienes el gobierno propio o la independencia.
tienen un mandato de 3 años. Los El 1º de noviembre de 1994 el Conse-
puestos se asignan sobre la base de re- jo suspendió su actividad una vez que
presentación geográica. Cada miem- último territorio en ideicomiso, Palau,
bro tiene un voto y el consejo toma
alcanzó su independencia el 1º de oc-
decisiones por mayoría simple.
tubre de ese año. A partir de entonces,
Bajo su órbita funcionan pro-
se estipuló que el Consejo de Adminis-
gramas tales como el Programa de las
Naciones Unidas para el desarrollo tración Fiduciaria se reunirá cuando la
(PNUD) y el Fondo de las Naciones ocasión lo requiera (por decisión pro-
Unidas para la infancia (UNICEF) y pia o a pedido de la Asamblea General
organismos especializados como la y/o del Consejo de Seguridad).
Organización Internacional del Traba- La Corte Internacional de Justi-
jo (OIT) y la UNESCO. Su labor se or- cia es el principal órgano judicial de la
ganiza en 8 comisiones orgánicas (una ONU. Con sede en La Haya resuelve
de ellas es la Comisión de la Condición controversias jurídicas entre los países
Jurídica y Social de la Mujer); 5 comi- miembros y emite opiniones consul-
siones regionales (una de ellas es la Co- tivas a requerimientos de ONU y sus
misión Económica para América Lati- organismos especializados. Está inte-
na y el Caribe-CEPAL), 3 comisiones grada por 15 magistrados de distintos
permanentes y otros órganos conexos.
países elegidos por la Asamblea Gene-
El ECOSOC está habilitado
ral y el Consejo de Seguridad, en vo-
para consultar a organizaciones no gu-
taciones independientes, en atención a
bernamentales interesadas en proble-
máticas que atañen a los intereses del sus méritos. Cada juez de la Corte tie-
Consejo. Hasta 2010, 3051 organiza- ne un mandato de nueve años y tiene
ciones no gubernamentales fueron re- la posibilidad de ser reelegido en sus
conocidas como entidades consultivas funciones. Las áreas de incumbencia
del Consejo repartidas en sus distintas de la Corte son aquellas prescriptas
categorías (permanentes, especíicas o por la Carta de la ONU y los tratados y
eventuales). convenciones internacionales. Este tri-
El Consejo de Administración bunal civil no tiene jurisdicción penal
Fiduciaria fue establecido en 1945 para para enjuiciar personas.
supervisar la administración de 11 Ter- La Secretaría se encarga de la la-
ritorios en ideicomiso. Su función fue bor cotidiana de la ONU. Administra

• 567 •
los programas y las políticas que sus Conferencia y sus principales docu-
principales órganos elaboran. La au- mentos, la Declaración de Beijing y la
toridad máxima reside en el Secretario Plataforma de Acción, son considera-
General, nombrado por la Asamblea dos uno de los avances más signiicati-
General por recomendación del Con- vo en la lucha por la equidad de género
sejo de Seguridad por un período de y los derechos humanos de las mujeres
cinco años con posibilidad de reelec- en tanto logró colocarlos como puntos
ción. cruciales de la agenda política global.
La ONU y las mujeres: La princi- Otros de los importantes logros de la
pal entidad encargada de llevar adelan- esta Comisión fue la elaboración de
te las iniciativas de la ONU a favor de Convención para la Eliminación de
la población femenina ha sido la Comi- todas las Formas de Discriminación
sión de la Condición Jurídica y Social contra la Mujer (CEDAW), documen-
de la Mujer dependiente del ECOSOC. to en el que se establece la igualdad
Creada en 1946, entre sus primeras ini- entre mujeres y hombres ante la ley y
ciativas se destacan: la Convención so- detalla las medidas que deben tomarse
bre los derechos políticos de la Mujer para eliminar la discriminación contra
(1952), la Convención sobre la nacio- la mujer en la vida política y publica, la
nalidad de las mujeres casadas (1957), enseñanza, el empleo, la salud el matri-
la Convención sobre el consentimien- monio y la familia.
to de matrimonio, la edad mínima para En 2010, se creó ONU-Mujeres.
contraer matrimonio y el registro de Entidad de las Naciones Unidas para
matrimonios (1962) y la Declaración la igualdad de género y el empodera-
sobre la eliminación de la discriminaci- miento de la Mujer. Surgió de la fusi-
ón contra la mujer (1963). ón del Fondo de las Naciones Unidas
Al calor de la experiencia de los para el Desarrollo de la Mujer (UNI-
movimientos de liberación de la mujer, FEM), la División para el adelanto de
la Comisión renovó y avanzó en sus la mujer (DAW), la Oicina de la aseso-
propuestas. Bajo su iniciativa, la ONU ra especial para cuestiones de género
declaró al año 1975 Año Internacional (OSAGI) y el Instituto Internacional
de la Mujer y organizó la Primera Con- de Investigaciones y Capacitación para
ferencia Mundial de la Mujer que tuvo la promoción de la mujer (INSTRAW).
lugar en el DF de México ese mismo Con ella, la ONU pretende concentrar
año. El evento se replicó luego en Co- sus actividades en pos de la equidad de
penhague (1980) y Nairobi (1985) –en género y los derechos de las mujeres.
el marco de la Década de la Mujer de la Los feminismos latinoamericanos y
ONU– y en Beijing (1995). Esta última la ONU: El acercamiento de la ONU

• 568 •
hacia los movimientos de mujeres y propuesta radical y potencia transfor-
feministas y la respuesta positiva que madora. La dependencia inanciera y
recibió de buena parte de ellos generó la demanda de profesionalización han
un intenso debate en el seno del femi- llevado a la formación de “expertas”
nismo latinoamericano. Los vínculos alejadas de las demandas y preocupa-
entre el organismo supranacional y ciones de las mujeres. (FALQUET,
ONGs de mujeres y feministas tienen 2003). Otras, en cambio, focalizan, sin
larga data. Un hito de esa relación fue dejar de señalar complicaciones en ese
la realización, en el marco de la Pri- vínculo, en los aspectos positivos que a
mera Conferencia Mundial de la Mu- su juicio tiene la labor de la ONU en el
jer (México, 1975), de la Conferencia desarrollo de los movimientos sociales
Alternativa donde participaron, por (MOLYNEUX, 2003). En esa línea,
invitación de la ONU, un conjunto de existen trabajos que destacan la labor
ONGs de distintas partes del mundo. de la ONU en la generación de cier-
Experiencia que se repitió en las su- ta “cultura jurídica” que fortalece los
cesivas reuniones de ese calibre. En argumentos de las mujeres organizadas
materia de políticas de género, los vín- en su lucha por la igualdad (LINHA-
culos con agrupaciones feministas se RES BARSTED, 1995). Otros, por su
acrecentaron de manera notable a co- parte, subrayan las potencialidades de
mienzos de la década de 1990 de cara a los vínculos entre las feministas latino-
la realización de la Cuarta Conferencia americanas que trabajan en ONGs y
Mundial de la Mujer (Beijing-1995). el funcionariado público y los elencos
Esta situación dio lugar a un fenómeno políticos en la concreción de derechos
relativamente novedoso en el campo feministas para las mujeres. Así, para
feminista: la emergencia de numerosas otra postura, el “internacionalismo” de
ONGs que rápidamente asumieron un la ONU y sus derivaciones es conside-
papel destacado y casi excluyente en la rado una herramienta útil para mejorar
preparación de la esa reunión interna- la situación de las mujeres en cada una
cional (ALVAREZ, 1997). de las realidades nacionales y por lo
La “ongeización” del feminis- tanto no debería ser despreciado por el
mo latinoamericano y la inluyente pre- feminismo.
sencia de la ONU es objeto de discu-
sión entre las feministas. Las posturas Karin Grammático
más críticas señalan que esta, a través
de diversas iniciativas, provocó la des- Referencias
politización del movimiento feminista ABC de las Naciones Unidas. Buenos Aires: Siglo XXI
y erosionó su autonomía conceptual y editores, 2012.
organizativa y con ello ha debilitado su

• 569 •
ALVAREZ, Sonia. Articulación y transnacionalización de
los feminismos latinoamericanos. Debate feminista, Mé-
xico, Año 8, vol. 15, pp. 146-170, abril de 1997

FALQUET, Jules. Mujeres, feminismo y desarrollo: un


análisis crítico de las políticas de las instituciones inter-
nacionales. Desacatos. Revista de Antropología Social,
Distrito Federal, México, n. 11, pp.13-35, 2003.

LINHARES BARSTED, Leila. O direito internacional e


o movimiento de mulheres. Estudos feministas, Florianó-
polis, Vol. 3, nº 1, pp.191-1997, 1er. Semestre de 1995.

MOLYNEUX, Maxime. Movimiento de mujeres en


América Latina. Madrid: Cátedra, 2003.

NASH, Mary. Mujeres en el mundo. Historia, retos y


movimientos. Madrid: Alianza ed., 2004.

VARGAS, Virginia. Una mirada del proceso hacia Bei-


jing. Estudos feministas, Florianópolis, Vol. 3, nº 1, pp.
172-179, 1er. Semestre de 1995.

Indicaciones
DI MARCO, Graciela y TABBUSH, Constanza
(comps.). Feminismos, democratización y democracia ra-
dical. Estudios de caso de América del Sur, Central, Me-
dio oriente y Norte de África. San Martín: Universidad
Nacional de San Martín. UNSAM Edita, 2011.

LEBON, Nathalie y MAIER, Elizabeth. De lo privado


a lo público. 30 años de lucha ciudadana de las mujeres
en América Latina. México: Siglo XXI editores-UNIFE-
M-LASA, 2006.

MOLYNEUX, Maxime. Movimiento de mujeres en


América Latina. Madrid: Cátedra, 2003.

NASH, Mary. Mujeres en el mundo. Historia, retos y


movimientos. Madrid: Alianza ed., 2004.

SIKKINK, K. La red internacional de Derechos Huma-


nos en América Latina: Surgimiento, evolución y efectivi-
dad. En: Elizabeth Jelín y Eric Hershberg, Construyendo
la democracia: Derechos Humanos, ciudadanía y socie-
dad en América Latina, Caracas, Nueva Sociedad, 1996

• 570 •
Palavras – Silêncio

A palavra é, por deinição, cor-


respondente à fala, à sonoridade que
transmite uma airmação ou mensa-
gem; podendo se referir, não apenas à
uma manifestação verbal mas também
à escrita. Podemos também pensar nas
expressões culturais dessa unidade lin-
guística, que nos remete à permissão de
falar ( dar ou passar a palavra à alguém,
permitir que fale), de compromisso
(dar a palavra como promessa) ligada
à “palavra de honra” (de quem tem ou
não tem palavra), da palavra como en-
sinamento ou doutrina , da capacidade
de falar em público (ter o “dom” da
palavra) e, por im, a “palavra de or-
dem” que se faz presente para marcar
uma posição, tornar público um dire-
cionamento social, político em dispu-
tas que buscam pela “última palavra”.
Aponto, aqui, a palavra como discur-
so, por meio dos escritos de Foucault,
2009, num diálogo entre saber-poder,
onde a fala incorpora subjetividades
transformando-se em resistência.
Em contrapartida ao que aca-
bo de salientar, pensamos em quem se
abstém ou cessa sua fala, quem faz si-
lêncio. Um cessar de ruídos, uma inter-
rupção da comunicação com o mundo,
omissão, sigilo. Para alguns pode con-
igurar-se em momentos de quietude,
sossego ou calma, para outros, como
o toque de silêncio dos quartéis ou
conventos, a palavra não permitida, su-

• 571 •
focada. O silêncio daqueles que tem a risca aos “códigos de conduta” da es-
palavra negada, dos que são impedidos posa ideal. Assumindo a posição de
de falar, dos que devem se manter ca- escuta, caladas aprenderam a suprimir
lados e que, por muitas vezes, consen- as vozes de seus corpos por meio de
tem esta condição. “O silêncio é assim, um disciplinamento minuciosamente
a ‘respiração’ (o fôlego) da signiicação; passado de mães para ilhas, num con-
um lugar de recuo necessário para que sentimento à sua anulação nos contex-
se possa signiicar, para que o sentido tos sociais e políticos. Mas o que ecoa
faça sentido. Reduto do possível, do no mundo recluso das mulheres, trans-
múltiplo, o silêncio abre espaço para o põem-se aos muros das casas e elas
que não é ‘um’, para o que permite o tomam, a passos curtos, seus espaços
movimento do sujeito” (ORLANDI, nas sociedades, fazendo de seu silên-
1997, p.13). cio um instrumento de poder que lhes
Compreendendo as palavras e garantia uma possibilidade de articula-
os silêncios como distintos e comple- ção multifacetada com a realidade. Di-
mentares, visto que, ao passo que um ários, cartas e conidências povoavam
detém a palavra enquanto o outro si- o mundo silencioso das mulheres, que
lencia, podemos pensar nos caminhos transpunham seus pensamentos em
percorridos por homens e mulheres palavras escritas e em alguns momen-
nos processos históricos, e, em espe- tos destruídas para que jamais se tor-
cial nas trajetórias das mulheres até a nassem públicas. Michelle Perrot, nos
contemporaneidade. A palavra pública traz a ideia do poder que circula, mu-
não estava entre as mulheres, à nós era tável que constrói subjetividades signi-
destinado o espaço privado e à eles, icativas: “Teme-se sua conversa iada
tudo o que era notório. “O silêncio é e sua tagarelice, formas, no entanto,
o comum das mulheres. Ele convém à desvalorizada da fala. Os dominados
sua condição secundária e subordina- podem sempre esquivar-se, desviar as
da” (PERROT, 2005, p.09) proibições, preencher os vazios do po-
Construídas no detalhe, nos pe- der, as lacunas da História. Imagina-se,
quenos gestos e falas, delicadamente sabe-se que as mulheres não deixaram
intencionais no que se refere ao bom de fazê-lo. Frequentemente, também,
comportamento e polidez diante dos elas izeram de seu silêncio uma arma.”
homens, para que fossem possíveis (2005, p. 10)
pretendentes ao único lugar possível Portanto, podemos perceber
para uma “boa moça”: o de esposa, que, mesmo na sombra de uma socie-
dedicada, submissa e que, mesmo nos dade masculina, as mulheres passam à
ambientes privados, deveria seguir à redimensionar seus cotidianos de for-

• 572 •
ma a buscar novos espaços de articu- d@s que se permitem silenciar e, à
lação da palavra, trilhando caminhos quem, dá voz, se faz ouvir e amplia sua
translúcidos, que expressam suas me- escuta, num processo de construção de
mórias por detrás de um véu que em subjetividades.
nada distorce suas signiicações. Na
literatura, suas manifestações trans- Aline da Silva Pinto
põem literalidades, construindo senti-
Referências
dos: “Mito, História e Corpo cantam
quando canta uma mulher: desde a lira FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural
de Orfeu dedilhada por Safo, sob os no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de
1970. São Paulo, Edições Loyola, 18º ed. , 2009.
encantos de Afrodite, sua palavra foi
amor, desejo inlamado em erotismo; IANELLI, M. Por uma poética do feminino. Faces fe-
mininas da Literatura. Ângulo, SP 117, 2009. P. 08 -10
durante séculos de reclusão, interdição
e mutismo, sua palavra foi segredo, su- ORLANDI, E. P. As formas do silêncio - no movimento
dos sentidos. Campinas, Editora da Unicamp, 1997.
blimação do grito; agora, no instante
luido da escrita, tal como dentro de PERROT, M. As Mulheres e os silêncios da História.
Bauru, SP: EDUSC, ,2005.
um ventre, sua palavra é semente, vida
cíclica.” (IANELLI, 2009, p. 9.) Sugestões de leitura
Batalhas incessantes marcam a FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro,
história das mulheres, do silêncio ao Edições Graal, 1979.

grito por igualdade de direitos, uma SCOTT, J. W. Gênero e Historia. México, UACM, 2008.
história povoada por um vazio pro-
VARELA, N. Feminismo para principiantes. Argentia:
fundo, em lacunas que persistem em Ediciones B,SQN, 2005.
construir identidades estereotipadas,
forjadas pela tradição da obediência e •
da omissão. Seguimos buscando rom-
per silêncios, resistir aos padrões que Paterfamilias
ainda nos são apresentados, ultrapassar
as fronteiras entre a tradição e a con- No mundo ocidental, o po-
temporaneidade, construindo diálogos der paterno sobre a família derivou,
possíveis na escrita da nossa história. em grande parte, das prerrogativas
Os silêncios e palavras, aqui concedidas ao paterfamilias no Direi-
conduzidos pelos vazios que com- to Romano. Para compreendermos as
põem a história das mulheres e suas implicações sociais e jurídicas deste
possibilidades de articulação com a termo é necessário remontar à Histó-
pós modernidade, busca levar-nos à ria da Roma Antiga, focalizando, par-
novas relexões acerca de tudo e to- ticularmente, as transformações pelas

• 573 •
quais passou a estrutura familiar na Entre os romanos, havia uma
sociedade romana. Durante a Monar- correlação direta entre o termo fami-
quia Etrusca, isto é, desde a funda- lia e o termo famulus, que designava o
ção lendária de Roma até a queda de escravo. Assim, denominava-se familia
Tarquínio, em 509 a.C., as famílias do um grupo de escravos que trabalha-
patriciado ou nobreza romana, que va em uma determinada propriedade.
descendiam, por linha paterna, de um Amunátegui Perell aponta que o sig-
antepassado comum, agregavam-se niicado original do termo é de ordem
em clãs denominados gens. A organi- econômica, referindo-se ao patrimônio
zação gentílica ancorava-se no culto imóvel, em contrapartida ao termo pe-
doméstico aos antepassados, partilha- cúnia, que se referia aos bens móveis.
do por todos os que tinham a mesma Assim, o termo designava o lugar de
moradia e trabalho, passando, pos-
ascendência. A estrutura gentílica, que
teriormente, a incluir o conjunto de
constituía a base da sociedade e do
pessoas, livres ou escravas, que habi-
governo na época monárquica, per-
tavam e trabalhavam numa mesma fa-
deu importância política e econômica
mília ou casa. No Direito Romano, o
durante a Primeira República, que se
parentesco se estabelecia por cognição
estendeu de 509 e 146 a. C. Nesse pe-
(parentesco sanguíneo) ou por agnição
ríodo, marcado pelas lutas da plebe em (parentesco jurídico entre todos os que
busca da igualdade jurídica, ocorreu o estavam submetidos a um mesmo pa-
fortalecimento do poder político das terfamilias). Portanto, o parentesco ag-
famílias em detrimento das gens, embora natício era exclusivamente patrilinear,
o vínculo entre os pertencentes a um enquanto o parentesco cognatício po-
mesmo clã persistisse como elemento deria ser matrilinear, estabelecido pelos
aglutinador das famílias que tinham laços de sangue com a família da mãe.
um ancestral comum. O enfraqueci- A igura jurídica da adoção, comum na
mento dos laços gentílicos acompanhou a sociedade romana, permitia multiplicar
fragmentação das antigas terras comunais a parentela. Além da adoção individu-
e o crescimento da importância econômi- al, havia a adrogação, quando um pa-
ca das propriedades familiares, exploradas terfamilias e seus subordinados eram
por grupos menores, fortemente coesos e adotados por outro (AMUNÁTEGUI
submetidos a um paterfamilias, que deveria PERELL, 2006).
ser sempre um homem com condição sui O Direito Romano dava ao pa-
juris, isto é, que não estivesse juridicamen- terfamilias poder de vida e morte sobre
te submetido a outro (AMUNÁTEGUI todos os que, por parentesco cognatí-
PERELL, 2006). cio ou agnatício, integrassem a sua fa-

• 574 •
mília, e também sobre os seus escra- nica potestas, sobre os escravos; manus,
vos. Exercia o papel de juiz na família, sobre a esposa e mancipium, sobre pes-
podendo vender como escravos ou soas originalmente submetidas a ou-
mesmo punir com a morte aqueles que tro paterfamilias. O patria potestas só
violassem as normas e os costumes era exercido sobre os ilhos legítimos
domésticos. E, apesar de o casamen- que fossem reconhecidos como tais,
to romano implicar no consentimento icando excluídos os nascidos fora do
das partes, era o paterfamilias quem casamento e os que não obtivessem o
decidia com quem as mulheres a ele reconhecimento por parte do paterfa-
submetidas deveriam casar. Dispunha milias. Portanto, a integração à família
de todo o patrimônio da família, cujos não decorria apenas dos laços sanguí-
membros não podiam ter bens imóveis neos, mas dependia do beneplácito do
ou pecúlio próprio. Atuava também pai, que estabelecia os laços morais, re-
como sacerdote do culto doméstico, ligiosos e jurídicos entre seus membros
o que lhe conferia um caráter sagrado (FUSTEL DE COULANGES, 2006).
(AMUNÁTEGUI PERELL, 2006, p. A autoridade do paterfamilias
65). podia ser estendida, através do manci-
O poder do paterfamillias ces- pium, sobre pessoas livres alien iuris, isto
sava somente com sua morte, quando é, submetidas ao poder de outro. Essa
seus ilhos casados passavam a formar igura jurídica permitia que um paterfa-
novos grupos familiares, tornando-se, milias transferisse, inclusive por venda
eles próprios, paterfamilias. Mas, ainda ou como forma de pagamento de dívi-
que tivessem, assim, tornado-se sui iu- das, o poder que exercia sobre os ilhos
ris, continuavam ligados a todos os seus ou sobre a mulher. O casamento roma-
parentes de sangue e agnatícios pela no constituía um ato privado e poderia
ancestralidade comum (AMUNÁTE- ser realizado cum manu ou sine manu. No
GUI PERELL, 2006). Às mulheres, no matrimônio cum manu, a mulher deixa-
entanto, era vedada a condição sui iuris. va sua família de origem para integrar-
Com a morte do paterfamilias, era-lhes -se à do marido, submetendo-se à sua
designado um tutor, que poderia ser autoridade e à autoridade de seu pater-
um de seus irmãos, um parente agnatí- familias. Quando casava com um pater-
cio ou ser nomeado pelo paterfamilias familias, passava a ser considerada iliae
em seu testamento, ou ainda por uma loco, isto é, a ocupar o lugar de ilha,
autoridade pública (CASTRO, 2010). icando juridicamente em igualdade
Os direitos do paterfamilias se de condições com seus próprios ilhos
assentavam em quatro poderes: patria (PINHO, 2002, p. 279). O matrimônio
potestas exercido sobre os ilhos; domi- sine manu permitia à mulher continu-

• 575 •
ar pertencendo à sua própria família, A igura jurídica do paterfami-
permanecendo submetida ao seu pa- lias e a posição de inferioridade e sub-
terfamilias e continuando a participar missão da mulher, consolidados no Di-
do culto doméstico aos seus próprios reito Romano, inluenciaram o Direito
antepassados, sem partilhar da religião ocidental de um modo geral, deixando
familiar do marido (CASTRO, 2010). profundas marcas na legislação de di-
O casamento romano era monogâmi- ferentes países. O Brasil herdou da Eu-
co e o divórcio era permitido. ropa uma série de leis que conferiam
Segundo Fustel de Coulanges, aos pais e maridos poderes absolutos
as crenças sobre o culto aos ancestrais sobre suas ilhas e esposas. Um bom
constituíram a base mais importante exemplo é o Código Filipino, publica-
do em 1603, que facultava ao marido
das normas familiares romanas, devido
assassinar a esposa surpreendida em
à preocupação em garantir a perpetu-
adultério, permitindo-lhe, ainda, matar
ação dos sacrifícios feitos aos mortos,
o amante, salvo se este fosse de catego-
para que seus manes, misto de espíritos
ria social superior à sua. Revalidado em
e deuses, não se transformassem em
1643, após a restauração da monarquia
entidades malfazejas. A continuidade
portuguesa, o código permaneceu em
do culto dependia da continuidade da
vigor no Brasil após a independência,
família, já que somente seus membros sendo reconhecido por D. Pedro I em
poderiam participar dele. A procriação 1823. Publicado em 1830, o Código
era a inalidade maior do matrimônio. Criminal do Império considerou o
O celibato era socialmente condenado adultério um crime e estabeleceu pena
e a esterilidade da esposa justiicava a de um a três anos de prisão para a mu-
sua anulação. Mas somente os ilhos lher casada que o cometesse. Essa pena
homens garantiam a perpetuação do era aplicada ao marido somente se ti-
culto aos ancestrais, visto que, ao con- vesse “concubina teúda e manteúda”,
trair um casamento cum manu, as ilhas o que signiica permitir ao homem ter
passavam a integrar a família do ma- relações extraconjugais fortuitas. Ape-
rido e a cultuar os antepassados dele. nas no Código Penal de 1940, o adulté-
Como religião doméstica estava dire- rio masculino passou a ser conigurado
tamente ligada à propriedade onde se a partir de qualquer ato de inidelidade
localizavam os túmulos e se erguia o conjugal. Somente em 2005, com a Lei
altar dos sacrifícios, as mulheres não 11.106, o adultério deixaria de ser con-
podiam dispor da herança paterna para siderado crime.
não transferir a propriedade (FUSTEL No que tange à legislação civil,
DE COULANGES, 2006). o Brasil, mesmo após a independên-

• 576 •
cia, conservou as leis portuguesas, que que essa função fosse exercida “com a
mantinham a mulher em uma situação colaboração da mulher no interesse co-
de inferioridade jurídica. Proclamada a mum do casal e dos ilhos”. Também
República, o Decreto 181 de maio de exigia o consentimento mútuo para
1890 normalizou o casamento laico, atos como dar iança, alienar ou hipo-
designando o homem como chefe da tecar bens imóveis, estendendo assim
sociedade conjugal. O Código Civil de ao marido impedimentos legais antes
1916 manteve a desigualdade jurídica aplicados apenas às mulheres. Permitia
estabelecida na legislação anterior. O à mulher exercer proissão e dispor li-
casamento tornava a mulher “relativa- vremente dos recursos recebidos e dos
mente incapaz” por necessitar da auto- bens adquiridos com o fruto de seu
rização do marido para praticar inúme- trabalho. Publicada em 1988, a atual
ros atos que lhe eram anteriormente Constituição Federal “completou um ci-
facultados pela condição de maior de clo de ampliação e reconhecimento da
idade e solteira, como aceitar manda- igualdade entre homens e mulheres na
to, cargo ou ofício; exercer proissão; vida pública e privada” (BASTERD;
alienar bens imóveis; aceitar ou recu- GARCEZ, 1999, p. 23), dando ensejo
sar herança; litigar em juízo civil ou a outras leis importantes, como a Lei
criminal. O código permitia ao marido 8.971/94, que reconheceu direitos para
anular o casamento se a mulher não pessoas não casadas civilmente; a Lei
fosse virgem e ao pai deserdar a ilha 9.278/96, que regulou a união estável,
que não fosse considerada “honesta” e a Lei 11.340/06-Lei Maria da Penha,
(BASTERD E GARCEZ, 1999). considerada um marco histórico no
As mudanças ocorridas após a combate à violência contra a mulher.
Segunda Guerra, sobretudo pela am- O Código Civil de 2002, ao estabelecer
pliação da participação das mulheres que, “pelo casamento, homem e mu-
no mercado de trabalho, possibilita- lher assumem mutuamente a condição
ram a crítica a essa legislação conser- de consortes, companheiros e res-
vadora e discriminatória no que tan- ponsáveis pelos encargos da família”,
ge aos direitos da mulher. Em 1962 consolidou a reversão do quadro de
foi aprovada a Lei 4.121, conhecida inferioridade jurídica da mulher e dos
como Estatuto Civil da Mulher Casada, poderes legais concedidos ao marido e
que “modiicou de forma expressiva ao pai sob inspiração da igura do pa-
a posição da mulher no contexto le- terfamilias romano.
gal” (BASTERD; GARCEZ, 1999, p.
22). Apesar de manter o marido como Lana Lage da Gama Lima
Suellen André de Souza
chefe da família, o Estatuto estabelecia

• 577 •
Referências •

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mo acesso: 24 de novembro de 2013.
ter (pai) e arkhe (origem, comando). A
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gislação Civil sobre Família no Brasil. In: BARSTED,
Leila Linhares; HERMANN, Jacqueline. As Mulheres e ganização familiar e social em que um
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em: http://www.cepia.org.br/doc/leis3.pdf. Último aces- membros da família ao seu poder.
so:15 de novembro de 2013.
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ponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/cidade- 1884, reunindo relexões suas e de Karl
antiga.html. Último acesso: 24 de novembro de 2013.
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PINHO, Leda de. A Mulher no Direito Romano: noções (1861), Lewis H. Morgan (1877) e Mac
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Disponível em http://www.cesumar.br/pesquisa/periodi-
cos/index.php/revjuridica/article/view/428/347 Último
de que o matriarcado, caracterizado
acesso: 24 de novembro de 2013. pela poliandria e pela descendência
matrilinear, esteve presente em todas
Sugestões de leitura
as sociedades primitivas, sendo subs-
OPTIZ, Claudia. O quotidiano da mulher no inal da tituído pelo patriarcado, caracterizado
Idade Média. In: PERROT, Michelle; DUBY, Georges.
História das Mulheres no Ocidente. Vol. 2. A Idade Mé- pela monogamia feminina e a patriline-
dia. Porto: Edições Afrontamento, 1993.
aridade, como resultado da adequação
CANEZIN, Claudete Carvalho. A Mulher e o Casamen- da organização familiar e social ao apa-
to: da submissão à emancipação. Revista Jurídica Cesu-
mar, 2004; RODRIGUES, Darcio. Aspectos de Interesse recimento da propriedade privada. En-
Atual do Matrimônio Romano. Revista da Faculdade de
Direito da USP, 93, 1998, p. 81-107.
gels aponta a família romana como o
tipo perfeito de família patriarcal (EN-
CORTEZ, Iária Ramalho. A Trilha Legislativa da Mu-
lher. In: PERROT, Michelle; DUBY, Georges. História GELS, 1991, p. 61). No Direito Roma-
das Mulheres no Ocidente. Vol. 2. A Idade Média. Porto: no, o termo paterfamilias designava o
Edições Afrontamento, 1993.
homem que, sem estar submetido a ne-
SANTOS, Ebe Campinha dos; PEREIRA, Vera Lucia.
Gênero e Poder na Longa Trajetória pelo Reconhecimen-
nhum outro, exercia, pelo parentesco
to dos direitos da Mulher no Brasil. Revista de Direito ou pelo direito, poder absoluto sobre
da UNIGRANRIO. Duque de Caxias, v. 1, n. 1, dez.
2008. Disponível em: http://publicacoes.unigranrio.edu. uma família. Entre os romanos, este
br/index.php/rdugr/article/view/194 Último acesso: 24 termo tinha um signiicado diferente
de novembro de 2013.

• 578 •
do que tem hoje, referindo-se, origi- mulheres na sociedade e as mudanças
nalmente, a uma propriedade. Com o estruturais ocorridas nas relações de
tempo, passou a incluir também todos parentesco e na divisão do trabalho;
os que aí habitavam e trabalhavam sob entre a propriedade privada, o casa-
a autoridade de um paterfamilias, fos- mento monogâmico e a prostituição; e
sem a esposa, os ilhos, os escravos entre a dominação econômica e polí-
ou aqueles que por alguma forma de tica dos homens e seu controle sobre
adoção estavam integrados ao grupo a sexualidade feminina. Destaca ainda
(AMUNÁTEGUI PERELL, 2006, que, ao situar origem da submissão
p.14). Para Engels, a monogamia femi- feminina no período de formação dos
nina, estabelecida com o patriarcado, estados arcaicos, Engels conferiu-lhe
não havia signiicado o surgimento de
historicidade (LERNER, 1990).
“uma forma elevada de matrimônio”,
Essa revelação da origem social
e sim, uma “forma de escravização de
e histórica das desigualdades de po-
um sexo sobre o outro”. Ele menciona
der entre homens e mulheres colocou
o fato de que, em A Ideologia Alemã, tex-
em xeque a interpretação de que eram
to escrito com Marx entre 1845 e 1846,
fruto das diferenças naturais entre os
mas que só seria publicado em 1932,
sexos, abrindo caminho para a crítica
já haviam airmado que a “primeira
divisão sexual do trabalho é a que se que, tempos depois, se coniguraria no
fez entre o homem e a mulher para a pensamento feminista, a partir do con-
procriação dos ilhos”. Assim também, ceito de gênero, deinido por Joan Scott
identiica “o primeiro antagonismo de como “uma forma primeira de signi-
classes” com o que se estabelece en- icar as relações de poder” (SCOTT,
tre homem e mulher no patriarcado, e 1990, p. 14). Esse processo contribuiu
“a primeira opressão de classes com a para a desnaturalização do patriarcado
opressão do sexo feminino pelo mas- como forma de organização familiar e
culino” (ENGELS, 1991, p. 70-71). social, ao dar visibilidade aos aspectos
Gerda Lerner observa que a culturais nela inseridos e ao apontar o
análise marxista do patriarcado teve seu caráter histórico. Assim, o termo
grande inluência nos estudos feminis- patriarcalismo passou a ser utilizado
tas, ao considerar a submissão da mu- pelos movimentos feministas, princi-
lher como derivada do surgimento da palmente a partir da década de 60, para
propriedade privada e apontar impor- problematizar as relações de poder e
tantes conexões para a compreensão domínio dos homens sobre as mulhe-
das desigualdades de gênero, como as res, particularmente nas relações con-
relações entre a posição ocupada pelas jugais (MACHADO, 2000).

• 579 •
Como qualquer fenômeno his- dade e a economia da Colônia” (RUS-
tórico, a família patriarcal não corres- SEL-WOOD, 1977, p. 1). No entanto,
ponde a um modelo único de organi- o próprio Gilberto Freyre havia enfa-
zação familiar, apresentando variações tizado que, ao falar de patriarcalismo,
ao longo do tempo e de acordo com se referia a um modelo idealizado de
o lugar, porém mantendo sempre a família, nascido a partir da organização
superioridade e o poder do patriarca familiar típica dos senhores de enge-
em relação aos seus outros membros. nho, que se difundiu entre as outras
E esse poder masculino não se limita classes sociais, apoiado no “sentimen-
ao espaço doméstico, mas se relete to de honra do homem com relação
na forma de organização da sociedade à mulher (esposa ou companheira) e
como um todo.
às ilhas moças.” Sentimento esse –
No que tange à sociedade bra-
acrescentou o autor – “a que se devem
sileira, autores considerados clássicos,
numerosos crimes” (FREYRE, 1975,
como Gilberto Freyre, Antônio Cândi-
p. 65). Essa airmação desloca o pa-
do, Caio Prado Júnior e Sérgio Buar-
triarcado do lugar de estrutura familiar
que de Holanda, foram criticados por
hegemônica, para conceituá-lo como
sua ênfase excessiva no predomínio
modelo ideológico, presente nos dife-
da família patriarcal e na decorrente
submissão feminina durante o período rentes arranjos familiares existentes no
colonial. Os argumentos baseavam-se Brasil Colônia. Como remarcou Vain-
no fato de que esse modelo de orga- fas, independente do tipo de estrutura
nização familiar, sendo próprio das familiar em que estivesse inserida, ne-
classes dominantes, não dava conta nhuma parcela da sociedade colonial
da multiplicidade de tipos de família esteve “alheia ao poder e aos valores
existentes na Colônia, como apontou patriarcais” (VAINFAS, 1989, p. 110).
Samara, ao criticar o seu uso como Sergio Buarque de Holanda também
“exemplo válido e estático para toda destacou que, ao se deslocarem do
sociedade brasileira, esquecidas as va- campo para a cidade, onde as estru-
riações que ocorrem na estrutura das turas familiares se transformariam, as
famílias em função do tempo, do es- famílias da classe dominante mantive-
paço e dos grupos sociais” (SAMARA, ram o patriarcalismo como “o grande
1981, p. 17). Assim também destacou modelo por onde hão de calcar, na vida
Russel-Wood que “nenhum aspecto da política, as relações entre governantes
História do Brasil recebeu tratamento e governados” (HOLANDA, 1971, p.
mais estereotipado do que a posição da 50-53), apontando para a extrapolação
mulher e sua contribuição para a socie- de um modelo de relações familiares

• 580 •
para as relações de poder mais amplas cargo público e receber herança, sem
da política e da sociedade. o consentimento do marido. Em 1962,
É signiicativo que a família pa- depois de discussões que marcaram
triarcal e a imagem da mulher reclusa toda a década de 1950, a Lei 4.121, que
à esfera privada e submissa ao marido icou conhecida como o Estatuto Ci-
persistam como modelo de relações vil da Mulher Casada, modiicou vários
conjugais, mesmo quando a participa- artigos desse, conferindo à mulher o
ção das mulheres no orçamento do- direito de ser economicamente ativa e
méstico, proporcionada pelo trabalho compartilhar o pátrio poder sobre os
fora de casa, se contrapõe às iguras ilhos, continuando o marido a ser che-
tradicionais do homem provedor e da fe do casal, mas em colaboração com
mulher economicamente dependente, a mulher. Em 1977, a Lei do Divórcio
que caracterizam o patriarcalismo. (Lei 6.515) airmaria, por pressão dos
No Brasil, a legislação que regu- movimentos feministas, que os direitos
lamenta as relações conjugais sofreu, e deveres referentes à sociedade con-
desde o período colonial, quando as jugal eram iguais para homens e mu-
Ordenações Filipinas de 1603 autori- lheres (BARSTED; GARCEZ, 1999,
zavam o marido a matar a esposa adúl- p.17-19). O novo Código Civil Brasilei-
tera, até o Código Civil atual, grandes ro, publicado em 2002, deine, no seu
avanços no sentido de estabelecer a artigo 1.511, que “o casamento esta-
igualdade de direitos entre os cônju- belece comunhão plena de vida, com
ges. O casamento laico, estabelecido base na igualdade de direitos e deveres
pelo Decreto 181 de 1890, logo após a dos cônjuges”.
proclamação da República, continuou Mas, a despeito das grandes mu-
a ter feições patriarcais, conferindo ao danças por que passa a organização
homem a representação legal da famí- familiar no mundo contemporâneo, o
lia e a obrigação de prover seu susten- modelo patriarcal ainda desempenha,
to, além de poderes sobre os bens co- e não somente no Brasil, importan-
muns ao casal, a educação dos ilhos e te papel na estruturação das relações
a proissão da mulher. O Código Civil de conjugais de gênero, legitimando a de-
1916 também descrevia a família como sigualdades de direitos entre homens e
uma organização hierárquica, “ten- mulheres. Por isso, o conjunto de re-
do o homem como chefe e a mulher lações e formas de dominação que o
em situação de inferioridade legal” e conceito de patriarcado ajuda a expli-
proibindo a mulher casada de praticar citar, continua fundamental para com-
vários atos, como exercer proissão ou preendermos as desigualdades de gê-

• 581 •
nero estabelecidas ao longo da história LERNER, Gerda. La Creación del Patriarcado. Barcelo-
na: Editorial Crítica, 1990.
da humanidade. A atualidade do con-
MACHADO, Lia Zanotta. Perspectivas em Confronto:
ceito está vinculada à existência de um Relações de gênero ou patriarcado Contemporâneo? Série
discurso que ainda se vale dele como Antropologia: Brasília, 2000.

modelo ideológico para o estabeleci- RUSSEL-WOOD, J. R. Women and Society in Colonial


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o distanciamento entre (IAVÉ) Deus
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Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1971. do Judaísmo e Cristianismo e a huma-
nidade. Eva é descrita como a princi-

• 582 •
pal protagonista, por deixar-se tentar importante no pensamento Cristão”
pela serpente e por seduzir Adão, seu (VANDENBOS, 2010, p.691).
esposo, ao pecado. O ato envolve uma Desde as elaborações de Agos-
desobediência a Deus que ordenara tinho, intensiicadas no labor teológi-
que não comesse do fruto da “Arvore co do clero medieval, a intimidade do
do Conhecimento do Bem e do Mal”. crente é uma loresta funesta onde se
Tal conhecimento (em hebraico - yâda’) debatem os grilhões do mal com as
extrapola o simples fato intelectual e hostes sagradas. Isso acontece sem que
comporta o domínio de todas as coisas, haja domínio do próprio crente sobre
inclusive dos mistérios, capacidade de esse embate.
compreender tudo. É entendido como É pressuposto que não são os
a tentativa humana de romper com a mitos que produzem as sociedades,
inocência e tornar-se como Deus, con- mas cada sociedade procura se repro-
trariando a ordem estabelecida na cria- duzir criando e recriando mitos. Con-
ção (VOVRAD, 1973, p.163). siderando que a narrativa bíblica do
Num sentido mais amplo o pe- pecado original se deu num contexto
cado é a ação oposta à ação do homem patriarcal e que em Israel a moral era
bom, pois na cultura hebraica não se pautada por princípios religiosos, o
faz distinção entre a ação e aquele que pecado passa a ser qualquer violação
a realiza. Pecar é quebrar uma aliança (quebra da aliança) dos princípios mo-
que foi irmada, neste caso entre Deus rais que regem a sociedade. Dentro
e o humano. O pecado é sempre con- dessa sociedade teocêntrica, desconiar
tra alguém, traição a alguém, pressupõe da ordem estabelecida e sustentada por
obrigações violadas, desobediência ou Deus-Pai desestabilizaria a legitimação
contrariedade à ordem. Está também da ordem social. Por isso, todo pecado
associado à revolta contra alguém. Na provoca punição, para que se preser-
tradição bíblica pecar é extraviar-se, er- vem os princípios.
rar seu alvo, é conduzir-se para onde Há de se estabelecer uma dis-
não há resultado algum (VON ALL- tinção entre o período da narrativa
MEN, 1972, p.319). O pecado traz a do mito sobre o pecado original e sua
culpa, pois os pecadores são conside- utilização no cristianismo, em especial
rados maus, ao contrário dos justos, após Agostinho. É com Agostinho que
pois “embora os teólogos modernos a teologia ocidental tomou o pecado
tendam a interpretar esse relato mais original como eixo de suas elaborações.
simbólica do que historicamente, a Nessa teologia ele aparece associado à
ideia de que há uma falha fundamental vida individual do crente. Relacionado
na natureza humana continua sendo diretamente com a sexualidade, o peca-

• 583 •
do original, informa insistentemente a como esse pecado se transmitiu de
cada um a dramática luta entre pecado Adão e Eva para a humanidade. Tomaz
e redenção, travada em sua intimidade. de Aquino ao discorrer sobre tal tema
A narrativa do mito, produzida renega a teoria segundo a qual a “alma
há mais de mil anos antes de Agosti- racional transmite-se com a semente,
nho, está centrada na construção de de tal maneira que de uma alma infecta
uma ordem para as coisas. A sociedade derivam almas infectas”. Aquino re-
necessitava de um mito que forneces- nega também a teoria que airmava a
se sustentação a nova ordem. Fazia- hereditariedade do pecado “a culpa da
-se necessário explicar a necessidade alma do primeiro genitor transmite-se à
do trabalho, quando ele se torna cada prole”. Sua tese é de que “todos os ho-
vez mais fatigante, em especial em so- mens nascidos de Adão têm a mesma
ciedades escravocratas; tinha que se natureza”, ou seja, todos têm a mesma
explicar a origem das dores do parto, natureza pecadora (ABBAGNANO,
numa sociedade que valoriza a exten- 2012, p. 870). Portanto, o pecado origi-
sa prole, quase que irrealizável pela nal sentenciou todo ser humano a car-
intensa mortalidade infantil; tinha que regar em si a condição de pecador, de
se justiicar a subjugação da mulher à culpado, de alguém propenso a errar
dominação masculina; enim tinha de o alvo, a romper a aliança com Deus
se explicar a ordem que permite a do- ou com seus pares. A mulher, enquan-
minação – do homem sobre outro ho- to aquela que introduziu o pecado e
mem, sobre a mulher, sobre a natureza. atraiu o homem a ele, será vista como a
“O conhecimento é colocado como a principal causadora dessa queda e mais
causa da transgressão, porque de agora fortemente afetada por ela do que o
em diante ele vai ser o motor que vai homem que possui atributos de maior
fazer funcionar todo o sistema” (MU- discernimento e racionalidade.
RARO, 2002, p.74). No Antigo Testamento a temá-
A superação da ideia de “peca- tica em estudo teve pouca relevância.
do original”, passa obrigatoriamente É o Novo Testamento que contrapõe
pelo questionamento da tradição pa- o “pecado original” à obra do Cristo. É
triarcal dentro do cristianismo. Nesta o no ceio da nascente igreja cristã que se
pecado original refere-se há um estado utilizará abundantemente desse mito
considerado inato em toda humani- para alinhavar uma teologia do bem
dade que deriva do pecado de Adão e e do mal, afeita às representações de
Eva. Diversas discussões ilosóico-te- homem e mulher, numa sociedade que
ológicas se debruçaram sobre a forma propiciou o encontro entre as culturas

• 584 •
greco-romana, judaica e dos povos que Entretanto, mesmo no estado original
passam a ocupar a Europa nos primei- criado, a natureza defeituosa da mulher
ros séculos da era cristã. signiicava que, ela era servil e estava
Dessas culturas patriarcais sob sujeição”. Segundo Aquino, a im-
nascem novos elementos para cul- perfeição da mulher não lhe impede de
par a mulher pelo “ingresso” do mal participar da perfeição da criação por
no mundo. “Muitos pensadores não causa de seu papel na procriação hu-
acreditavam que Eva, assim como mana. Ressalva, porém, que em qual-
Adão, tivesse sido criada a imagem de quer ajuda espiritual o homem está
Deus. Preferiram considerá-la criação mais bem servido com um companhei-
de Adão e assim o sendo, uma mera ro do mesmo sexo.
projeção da criação divina.... [Isso] for- Ainda, segundo a autora, Lutero
neceu aos teólogos uma prova da in- (1483-1546) discorda de uma inferiori-
ferioridade natural do sexo feminino” dade originária, mas atribui o pecado
(MACEDO. 1999. p. 42). original a Eva e descreve suas conse-
Reuter (1993, p.84-87) airma quências para todas as mulheres. A pu-
que o cristianismo patriarcal estabelece nição de ser agora sujeita ao homem
uma relação assimétrica entre homem foi imposta a ela após o pecado e por
e mulher, antes mesmo do pecado ori- causa do pecado, assim como os de-
ginal. Ou seja, originalmente a mulher mais incômodos e perigos: trabalho de
era inferior, sua queda só veio conir- parto, dor e inúmeras outras alições.
mar e agravar a sua condição. Portanto, Na tradição calvinista se nega a
“a submissão da mulher é tanto relexo superioridade natural do homem sobre
de sua natureza inferior quanto puni- a mulher, mas se atribui a esse um car-
ção por sua responsabilidade pelo pe- go superior. Ou seja, “o homem do-
cado.” mina não porque ele seja superior, mas
A autora elenca alguns textos por que Deus lhe ordenou que faça”. A
que vão de Agostinho, passando por tradição calvinista dissocia a submissão
Tomás de Aquino e Lutero, até Barth. feminina à sua inferioridade inata, mas
Nesses textos demonstra que o primei- radicaliza a dominação e subjugação
ro nega à mulher a condição de ima- como ordem original das coisas criadas
gem de Deus. Condição essa que ela só por Deus. Para o teólogo Karl Barth
alcança quando unida ao seu marido, (1886-1968) essa ordem estabelecida e
este, por sua vez, com ela, ou sem ela, criada do homem sobre a mulher rele-
é plena e completamente a imagem te o pacto da criação.
de Deus. “Para Aquino “essa inferio- Tertuliano, que antecedeu a
ridade foi aprofundada pelo pecado. Idade Média, já se dirigia às mulheres

• 585 •
exortando-as: “Não sabes tu que és estampadas nos sofrimentos da vida –
Eva, tu também? A sentença de Deus do trabalho ao parto – na expulsão de
tem ainda hoje todo o vigor sobre este ambos (Adão e Eva) do paraíso, mas
sexo, é preciso, portanto que sua culpa não do abandono total pela divindade,
subsista também. Tu és a porta do Dia- o que instaura a dimensão da graça (do
bo, tu consentiste na sua árvore, foste a perdão reconciliador). Assim, um mito
primeira a deserdar da lei divina” (DA- produzido em plena era patriarcal dei-
LARUN. 1990, p.35). xa espaço para outras interpretações,
Fica evidente que o pecado ori- distantes das produzidas por olhares
ginal tem dupla relevância na teologia misóginos. Interpretações que visam
patriarcal, de um lado deine uma or- desenvolver relações de equidade en-
dem hierárquica nas relações de gêne- tre os sexos, acolhendo as diferenças,
ro, deinindo mister especíicos para incentivando a reciprocidade e valori-
homens e mulheres. Do outro, coloca zando a complementaridade.
todo humano na condição de poten-
cialmente mau. A suspeita que recai Carlos Norberto Berger
sobre todo o humano legitimará a pro-
dução de mecanismos de controle e a Referências
moral patriarcal fundada em preceitos ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosoia. 6ed.
teológicos, se sobreporá aos debates São Paulo: Martins Fontes. 2012.

cotidianos. DALARUN, Jacques. Olhares de Clérigos. In: DUBY,


Diversas autoras(es) questio- Georges & PERROT, Michelle. História das mulheres no
Ocidente. Vol 2. A Idade Média. Porto: Edições Afron-
nam a teologia patriarcal, inclusive a tamento, 1990.
interpretação que ela fez do “pecado
MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade média, 4ed.
original”. Ao contrapor a ação de Eva São Paulo: Contexto, 1999.
e de Adão, e ao desvincular o mito do
MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio:
contexto de sua criação, a teologia pa- uma história da mulher através dos tempos e suas pers-
triarcal induz a uma única interpreta- pectivas para o futuro. 8ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa
dos Tempos, 2002.
ção condenatória de todo ser humano
e da mulher em especial. Visto de outra REUTER, Rosemary R. Sexismo e religião.São Leopol-
do,RS: Sinodal, 1993.
perspectiva o mito narra o fascínio e
o temor do ser humano frente à vida VANDENBOS, Gary R. Dicionário de Psicologia da
APA. Porto Alegre: Artmed, 2010.
e seus mistérios, o desejo de dominar
VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento:
os mistérios e o temor do infortúnio teologia das tradições históricas de Israel. São Paulo: Aste,
em tal intento. A necessidade de se 1973.
aventurar e o risco de perder-se. As VON ALLMEN, Jean-jacques. Vocabulário Bíblico. São
consequências segundo o mito estão Paulo: Aste. 1972.

• 586 •
Sugestões de leitura lismos y digna de la clase obrera, orga-
JOHNSON, Robert A. Feminilidade perdida e recon-
niza en 1960 el coloquio «el militante
quistada. São Paulo: Mercuryo, 1991. obrero», de donde saldría la principal
KLAPISCH-ZUBER, Christiane. Introdução. In:
revista de historia obrera, Le Mouvement
MOTT, Luiz R. B. O sexo proibido: escravos, gays e vir- Social, que luego se ampliaría a las mu-
gens nas garras da Inquisição. Campinas: Papirus, 1988.
jeres y actualmente al género. Mayo del
68 es vivido por la profesora univer-

sitaria desde las múltiples actividades
de la Sorbona hasta que, poco después,
Perrot, Michelle
experimenta su conversión feminista.
Entre sus primeras publicacio-
Michelle Perrot nace en París en
nes destacan La Sorbonne par elle-même
1928. Historiadora y feminista france-
(1968) y sus estudios sobre la vida de
sa, gran especialista en la historia del
las clases populares se publican ense-
siglo XIX, es actualmente profesora
guida en varios países: Le socialisme et le
emérita de la Universidad Paris 7-De-
pouvoir (1966), Enquêtes sur la condition
nis Diderot. Pionera en los estudios
ouvrière en France au XIXe siècle (1971),
sobre la historia de las mujeres, se ha
así como su importante tesis sobre los
ocupado asimismo de la clase obrera y,
movimientos obreros Les ouvriers en grè-
más recientemente, de interpretación
ve (1974). En este último, la autora su-
del compromiso social.
braya el papel de las mujeres en el mo-
Procedente de una familia de la
vimiento obrero, pero aún, como ella
pequeña burguesía católica, su brillante
misma reconoce, sin analizarlo desde la
carrera universitaria como historiadora
conciencia de género. Jeunesse de la grè-
se inicia en la Sorbona en 1946, y en
ve. France 1871-1890 (1984) y Mélancolie
la línea de la historia social del movi-
ouvrière (2012) son la prueba de que la
miento obrero, gracias a Ernest La-
historia de los oprimidos atraviesa toda
brousse. Será una joven militante de
la excelencia de su carrera académica
los grupos cristianos progresistas hasta
de punta a punta. Existe una melanco-
que, en 1955, Roma prohíbe la expe-
lía obrera al día siguiente de las huelgas,
riencia del sacerdocio-obrero lo que
una sensación de error, de cobardía; y,
le llevará a cuestionar la Iglesia. Milita
en el trabajo, los cuerpos siempre están
en el Partido Comunista Francés hasta
amenazados.
1958, concibiéndolo como principal
Su dedicación a la historia so-
fuerza de oposición a la injusta guerra
cial amplió notablemente el campo de
de Argelia. En busca del advenimiento
sus trabajos. Michelle Perrot dirigió el
de una historia obrera cientíica y libre
volumen cuarto, relativo al siglo XIX,
de presupuestos ideológicos, sin servi-
• 587 •
de Histoire de la vie privée, «De la Ré- Agrupó sus artículos sobre el sistema
volution à la Grande Guerre» (1987), penitenciario en Les ombres de l’histoire
dirigida por Ph. Ariès y G. Duby. La (2001), y siguió publicando Femmes et
Historia de la vida privada agrupa la justice pénale, XIXe-XXe siècles, en cola-
cotidianeidad centrándose en relación boración con Chr. Bard, Fr. Chauvaud
a lo privado, que surgió en la Edad Me- y J.-G. Petit (2002).
dia. Para su estudio en el siglo XIX, la Al mismo tiempo, sus intereses
historiadora propone la aproximación se van centrando en la historia de las
a las invenciones como la fotografía mujeres, a la que llega a través de Mayo
–verse, tomar conciencia de sí, verse del 68 y del movimiento de las mujeres.
con el grupo-, la lectura, la casa bur- En 1971 opta por la Université Paris
guesa, las vacaciones –reservada a la 7, centro de relexión sobre la liberaci-
élite, el encuentro con la familia-, los ón de las mujeres. En 1973 propone la
rituales amorosos, la muerte, el estatus materia de la primera asignatura sobre
del hombre, las tensiones familiares, el las mujeres, luego vendrían los semina-
adulterio femenino. En cuanto a Histoi- rios, las tesis doctorales sobre historia
re de chambres (2009) es una contribuci- de las mujeres. Este trabajo primero
ón o una invitación a la historia de la sirvió para celebrar también colo-
noche vivida desde dentro. quios internacionales (en colaboración
Tras una notable edición de J. con Madeleine Rebérioux (1978), con
Bentham de Le panoptique (1977) don- Yvonne Knibiehler (1975)). Duran-
de aparece el trabajo de Perrot con te el otoño de 1974 funda, junto con
Michel Foucault en el artículo L’œil du Françoise Basch, el Groupe d’études fé-
pouvoir, continuaron la colaboración en ministes (GEF), muy en contacto con
L’impossible prison (1980). El interés por Women’s studies. Como la propia autora
la Historia penitenciaria, la marginali- señala, poder unir feminismo e historia
dad y la rebelión aparecieron también de las mujeres en su trabajo le sirvió
en su carrera hacia 1971 coincidien- para conciliar un proyecto político –el
do con las revueltas en las cárceles y movimiento de las mujeres-, con un
la creación del GIP (grupo de infor- proyecto intelectual -escribir la historia
maciones sobre las cárceles) por parte de las mujeres- y un proyecto existen-
de Foucault –lo intelectual especíico cial y personal.
que éste preconizaba. Asumió la edi- Posteriormente será la res-
ción de los Écrits pénitentiaires de Alexis ponsable, con Duby, de la Historia de
de Tocqueville (1984). Y, en esta línea, las mujeres (1990-1991). Buena parte
trabajaría junto con Robert Badinter de sus artículos feministas aparecen
sobre el tema de la cárcel republicana. reunidos en Les femmes ou les silences de

• 588 •
l’histoire (1998). Anteriormente, Perrot con la escritura, por ejemplo. Gracias
había editado las Lettres des illes de Karl a l’Histoire des femmes en Occident se ha
Marx (1979), así como el Journal intime reconocido un ámbito de estudio, una
de Caroline B.(1985), con G. Ribeill. Y la dinámica, y su publicación legitimó los
recopilación de George Sand, Politique et coloquios, publicaciones y revistas, etc.
polémiques (1997). que le siguieron El silencio que opri-
Michelle Perrot se impone como me a las mujeres ha llevado a buscar
la gran historiadora de las mujeres por- otras fuentes, métodos y perspectivas
que ésta es la historia que desea contar. distintas a las propias del trabajo de
Hoy en día se presenta como obvio historiadora. Lo más innovador fue,
que una historia ‘sin las mujeres’ pare- sin duda, la interrogación misma que
ce imposible; sin embargo, no siempre se hacía a la historia. Cualquier forma
existió en el sentido colectivo del tér- de aprehender un lugar, una actividad,
mino, que no abarca sólo las biografías, un oicio o una vida de mujeres es un
las vidas de mujeres, sino las mujeres camino que sigue siendo pertinente
en su conjunto y a largo plazo. Michel- para la historia de las mujeres, según la
le Perrot fue una de las iniciadoras en autora, siempre que sea desde la cues-
Francia de este movimiento de histo- tión del género, desde la diferencia de
riadoras que ofrecen a las mujeres y los sexos construida socialmente. A lo lar-
hombres la dimensión de la acción de go de su trayectoria, Michelle Perrot
las mujeres en el pasado, la evolución ha ido modiicando la problemática de
de su estatus, las luchas y las estrategias estudio. Partiendo de que era imposi-
para obtener su independencia. Histoire ble hacer la historia de las mujeres sin
des femmes en Occident (1990-1991), co- plantear a la vez la cuestión de la dife-
dirigida con Georges Duby es la pri- rencia de sexos, inspirada por El Segun-
mera gran síntesis de la Antigüedad a do sexo (1949) de Simone de Beauvoir,
nuestros días. El silencio de las mujeres donde se deconstruye la naturalidad
no es atemporal y las numerosas y va- del género, ayudada por el concepto de
riadas formas de resistencia femenina género propuesto por la historiadora
han plantado cara a la prohibición de americana Joan Scott como categoría
la palabra. Podría tratarse de tácticas útil del análisis histórico, Michelle Per-
inconscientes transformadas en ritu- rot ha conseguido que los estudios his-
ales de comportamiento por medio de tóricos abracen el concepto de género
los cuales las mujeres han intentando sin medias tintas. Todo ello sin dejar
aligerar la devaluación social que pesa- de constatar que la vida de las mujeres
ba sobre su sexo –al menos las élites ha cambiado, y que la igualdad sexual
más cultivadas han podido intentarlo ha progresado a lo largo del siglo XX,

• 589 •
gracias a la presión del feminismo y al Thébaud (2013); en Entre ici et là-bas :
progreso de las técnicas, a la capacidad le pouvoir des femmes dans les familles ma-
de decisión de las mujeres sobre su fe- ghrébines de Hakima Mounir (2013); en
cundidad y a una mayor participación Prisonniers en révolte : quotidien carcéral,
de las mujeres en la vida social; aún sin mutineries et politique pénitentiaire en France
dejar de tener que luchar contra una re- (1970-1980) de Anne Guérin (2013);
sistencia y contra discriminaciones que y en Femmes en métiers d’hommes : cartes
se desplazan sin desaparecer. postales, 1890-1920, une histoire visuelle
Les femmes ou les silences de l’histoire du travail et du genre de Juliette Rennes
(1998) es una aproximación al silencio (2013). Y es de destacar su colabora-
en el que la sociedad ha mantenido a ción en un volumen con motivo de la
las mujeres durante siglos. La historia- exposición Au bazar du genre : féminin-
dora interroga los espesos muros de -masculin en Méditerranée (MuCEM del 7
las mansiones burguesas o la de los de junio 2013 al 6 de enero 2014).
claustros conventuales, las páginas de
los diarios íntimos o las casi imper- Encarnación Medina Arjona
ceptibles conidencias que el pasado
aporta a través de los murmullos en los •
talleres o los mercados. Michelle Perrot
ha seguido a las mujeres desde el siglo Pizan, Christine
XIX interrogando todos los silencios
de la historia y fundamentalmente los Christine de Pizan (1364-
instantes en que estos desaparecían. 1430/31) é uma das mais renoma-
En la carrera historiadora, in- das escritoras do Ocidente Medieval.
telectual y vital de Michelle Perrot, en Nascida em Veneza, de pais italianos,
el cruce de vectores bidireccionales a escritora Cristine de Pizan viveu na
como el trabajo, las cárceles y lo fe- França desde os quatro anos, quando
menino, se mezclaban también otros foi transferida com a família em 1368
intereses como las edades de la vida, para a corte do rei Carlos V. Em várias
la juventud principalmente. De todo su de suas obras, encontramos referências
trabajo surge una extensísima produc- a esse acontecimento e outros dados
ción, traducida a varios idiomas, cuya da sua biograia. De fato, seus biógra-
recepción lleva a su autora al recono- fos buscaram grande parte das infor-
cimiento internacional. Trabajadora mações nas próprias obras da autora.
incansable, recientemente acaba de Em Mutation de Fortune, por exemplo,
aparecer su prólogo en Les femmes au Christine de Pizan revela que era ilha
temps de la guerre de 14 de Françoise do astrólogo e médico Tommaso di

• 590 •
Benvenuto da Pizzano (Thomas de Pi- cadeador de sua carreira literária. Viúva
zan), formado na prestigiosa universi- aos 25 anos, com 3 ilhos, a mãe e uma
dade de Bolonha. Também sua mãe era sobrinha para sustentar - eis a situação
ilha de um médico de reputação, To- que leva Christine a encontrar um meio
masso Mondini, e procurou, sem mui- de sobrevivência através da seu talento
to êxito, dar-lhe uma educação dentro literário. O lirismo de teor melancóli-
dos padrões femininos esperados pela co marca a sua estreia no “Campo das
sociedade da época. A convite do rei Letras”, em 1394. Apesar das barreiras
da França, a família Pizan se instala na encontradas, a poetisa afasta-se dos
corte do rei Sábio. O palácio do Lou- caminhos habituais trilhados pela mu-
vre, abrigando uma das maiores biblio- lher viúva naquela época, seja um novo
tecas do país, e acolhendo um luxo de casamento, seja a vida religiosa. Viver
renomados intelectuais, cientistas, hu- sozinha signiicaria ter um “teto todo
manistas propiciou uma formação pri- seu”, construindo assim a sua indepen-
vilegiada à escritora. Ao longo de sua dência e liberdade, como expressam os
obra, Pizan enfatiza a singularidade e primeiros versos da conhecida balada:
privilégio que marcam sua trajetória de “Seulete suy et seulete vueil estre/ Seu-
vida, como nesses versos da obra cita- lete m´a mon doulz ami laissiee/ Seu-
da, em que ela faz menção ao fato de lete suy, sanz compaignon ne maistre”
ter sido amamentada pela mãe, e não (Sozinha sou e sozinha quero estar/
pela ama de leite, como era costume na Sozinha deixou-me meu doce amigo/
época: “Et bien nourrie et bien aimee/ De Sozinha sou, sem companheiro nem
ma mere a joyeuse si chiere/ Qui m’ama mestre. (PIZAN, tradução minha)
tant et tint si chiere/ Que elle meismes O feminismo avant la lettre de Chris-
m’allaicta, / Aussitost qu’elle m’enfanta” tine de Pizan: A partir de 1399, as refe-
(PIZAN, 1955, p.31). rências aos sentimentos de dor e luto
A felicidade a acompanha tam- que caracterizam essa primeira fase
bém na juventude e casamento com da escrita de Pizan vão dando espa-
Ettiénne Castel, lembrado em suas ço a outras construções temáticas, de
obras pela “bondade, doçura, lealdade tendência mais politizante. Christine
e terno amor” (PIZAN, 2012, p.173). discute e domina desde temas então
Em 1380, porém, inicia-se um período monopolizados pelo universo mascu-
de graves acontecimentos: a sucessão lino, como a arte da guerra, da admi-
de mortes de três iguras importantes nistração real, nas obras Livre des Fais
na vida de Pizan: o rei Carlos V, seu d´armes et de chevalerie (1410), e Livre
pai e, em seguida seu esposo. Tais fatos du Corps de Police (1406-1407), repre-
serão, de certa forma, o motor desen- sentando a valorização da força como

• 591 •
ideal necessário de uma época, a temas eles julgam ser de sua competência: a
que a apresentam como uma paciista argumentação, a história; empregando
e devota, nos livros Lamentation sur la aquilo de que as mulheres são acusadas
guerre civile (1410), Livre de la paix (1412- de serem desprovidas: a razão”.
1413), Epistre de la Prison de vie humai- Quase quatrocentos anos an-
ne(1405-1406), Epistre à la Reine(1405). tes da inglesa Mary Wollstonecraft
Da diversidade de temas abordados na publicar um dos primeiros clássicos
sua obra, a defesa da mulher constitui da literatura feminista, A Vindication
o traço mais marcante. A luta contra of the Rights os Woman (As reivindicações
a cultura misógina do inal da Idade dos direitos da mulher), Christine de Pi-
Média está presente desde os versos da zan escreveu, em 1405, sua obra-prima
Epistre au Dieu d´Amour (1399), ao seu
A Cidade das Damas, livro que parece
último livro, Le Ditié de Jeanne d´Arc, es-
anunciar a relexão da poetisa feminis-
crito em 1429, um ano antes da morte
ta Adienne Rich(1980) acerca da im-
da mística guerreira.
portância de revisitar o passado para
O poema narrativo Épître au Dieu
entender o presente e planejar o futu-
d´amour representa uma das principais
ro. Considerada a primeira obra ques-
obras de Pizan por ser o desencadea-
tionadora da supremacia masculina em
dor da célebre batalha de cunho políti-
co-social em forma de debate literário, relação à mulher em vários domínios,
conhecida como “Querelle des femmes”. A Cidade das Damas busca reavaliar o
O objeto central dessa “Querelle”, men- papel feminino ao longo dos tempos,
cionada por Simone Beauvoir, Riverra- através da compilação de exemplos
-Garretas, Joan Kelly, Michelle Perrot, de várias iguras históricas, lendárias,
consistia na valoração positiva ou ne- mitológicas, de grandes virtudes, que
gativa da natureza feminina e da par- deram prova da capacidade intelectual
ticipação social das mulheres ao longo e física, cujas histórias foram empres-
dos séculos e se estendeu até o século tadas de obras de escritores de renome,
XVIII. Segundo Eliana Viennot (2004, como Ovídio, Virgílio, Jean de Meung,
p.47), “pela primeira vez foi enunciada Jehan Le Fèvre, Boccaccio. A ginetoco-
uma verdade a qual falsos raciocínios pia (Riverra Garretas, 1990) imaginada
e zombarias durante séculos tentaram por Christine de Pizan trata de temas
ocultar: a cultura, e não a natureza, é o como educação, igualdade e diferença
que se está na origem da inferioridade entre os sexos, estupro, e introduz um
das mulheres. Pela primeira vez, uma tema novo no século XV: a importân-
mulher ousou contestar a supremacia cia de um espaço próprio para abrigar
dos intelectuais baseando-se no que o processo da escrita, o “teto todo

• 592 •
seu” de que que nos falou Virgínia diversos retratos de mulheres virtuosas
Woolf(1929), cinco séculos mais tarde. que nos são apresentados neste livro.
O quarto de estudo, por exem- Na obra alegórica Le Livre du
plo, é o espaço de referência no rela- Chemin de Long Estude(1403), a escrito-
to inicial da obra A Cidade das Damas, ra é inspirada por outro autor italiano,
quando a narradora autodietética Dante, para recriar sua “Divina Comé-
Christine revela o sentido da cons- dia”. Ela narra em mais de 6000 versos
trução de uma cidade utópica para as uma viagem onírica guiada pela Sibila
mulheres. Em um momento de se- de Cumes. A primeira parada da prota-
miadormecer, depois de se mostrar gonista Christine é a fonte da Sapiên-
cansada após um dia de muito estudo, cia, e, ao contrário de Dante, que perde
a protagonista Christine, de cabeça o caminho certo, ela segue sempre pelo
baixa, protegida pelas mãos, percebe caminho correto, o caminho de “lon-
um raio de luz que desce ao seu colo, go estudo”, reservado aos “letrados”.
trazendo-lhe à sua frente três virtudes (DEPLAGNE, 2008)
personiicadas em Dama Razão, Dama A ênfase na sabedoria, no pro-
Retidão e Dama Justiça, que a ajudarão cesso de aprendizagem, marcante nas
a construir uma cidade-fortaleza para obras de Christine de Pizan, relete a
proteger as mulheres das acusações ca- valorização da educação como meio de
luniadoras presentes em grande parte desalienação feminina, na medida em
nos escritos da época. O raio de luz, que ela proporciona o conhecimento
que desce em direção ao colo da perso- da mulher sobre diversiicados domí-
nagem, conigura-se como uma metá- nios de interesse, retirando-a do limi-
fora que relete o desejo de fertilidade tado universo de atividades em que o
de tais virtudes, pois uma vez acolhi- saber feminino estava historicamente
das no colo feminino, reproduziram-se predestinado pela sociedade patriarcal.
em vários outros exemplos de virtude O acesso à educação é, pois, uma das
feminina. O catálogo de histórias de principais bandeiras levantadas pela
mulheres virtuosas que compõem a Ci- escritora: “Se fosse costume enviar as
dade das Damas foi inspirado em gran- mocinhas à escola e ensiná-las metodi-
de parte na obra do seu compatriota camente as ciências, como é feito para
Boccaccio, autor renomado de De Cla- os rapazes, elas aprenderiam e com-
ris Mulieribus e de Decameron, através de preenderiam as diiculdades de todas
uma reescrita de cunho “feminista”, as artes e de todas as ciências tão bem
onde transparece a sua interpretação quanto eles”(PIZAN, 2012, P.115)
diferenciada do autor, bem como sua A atualidade dos Estudos Christi-
narrativa argumentativa que articula os nianos: De notável teor autobiográico,

• 593 •
a extensa obra da escritora revela seu em 2006) a partir dos anos 80, assim
desejo de inserir-se em seus versos, como a periodicidade dos “Colóquios
narrativas e iluminuras e junto a eles internacionais sobre Christine de Pi-
imortalizar-se. No último capítulo do zan”, organizados pelos membros
Livre des Trois Vertus, traduzido para o da Société Christine de Pizan, dão prova
português ainda no século XV, Pizan do crescente interesse pelos estudos
(2002, p.309) manifesta tal desejo de christianos na Europa e nas Américas.
reconhecimento, dando voz, de manei- Atualmente é possível não apenas ter
ra visionária, a toda uma genealogia de acesso às impressões das obras da es-
escritoras que a sucederam: “esta no- critora, mas também às edições online,
bre obra multiplicaria pelo mundo em incluindo as iluminuras. Desde 2009, o
outros muitos trelados [cópias], qual- projeto da Universidade de Edinbur-
quer que fosse o custo. Seria apresenta- gh, The Making of the Queen´s Manus-
da em diversos lugares a Rainhas, prin- cript, dirigido pelo prof. James Laidlaw,
cesas e altas Senhoras, aim que mais em parceria com várias instituições
fosse honrada e eixalçada [enaltecida], de pesquisa, disponibilizou online to-
assi como ela é digna, e que per elas das as edições das obras de Christine
podesse seer semeada antre as outras de Pizan pertencentes ao manuscrito
mulheres.” Harley 4431, da Biblioteca de Londres.
A riqueza da documentação Também em 2009, foi lançado o ilme
biográica contida em seus manuscri- Christine Cristina, dirigido pela italiana
tos admiravelmente ilustrados possibi- Stefania Sandrelli, inspirado na vida da
litou ao leitor dos séculos posteriores sua conterrânea escritora. No Brasil,
conhecer a vida, arte e pensamento da a partir da primeira década do século
prestigiosa escritora. Ausente da histó- XXI, as pesquisas sobre a obra de Pi-
ria literária durante praticamente toda zan se multiplicam, originando desde
a Idade Moderna, como a maior parte artigos cientíicos, trabalhos de mono-
das escritoras medievais e renascentis- graias, até teses de doutorado. Graças
tas, Christine de Pizan é redescoberta a iniciativas de pesquisadore/as, atuan-
na contemporaneidade, graças sobre- tes na área de estudos de gênero, tais
tudo ao impacto dos movimentos fe- como Ana Míriam Wuensch, da UnB,
ministas do século XX na busca pela e Nadilza Moreira, da UFPB, que vêm
revisão da História. As sucessivas tra- ministrando cursos exclusivamente
duções para línguas modernas (ingle- sobre a obra da escritora; à criação do
sa em 1982, francesa em 1986, alemã grupo Christine de Pizan, vinculado
em 1986, catalã em 1990, espanhola ao diretório de pesquisas no CNPq, e
em 1995, italiana em 1997, brasileira à publicação da tradução brasileira da

• 594 •
Cidade das Damas em 2012 pela Edi- FONSECA, P. C. L. . Christine de Pizan e Le Livre de la
Cité des Dames: pontos de releitura da visão tradicional
tora Mulheres, realizada pela integran- da mulher. Revista Cerrados, UnB, Brasília, v. 20, p. 299-
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Deplagne. KELLY, Joan. Early Feminist heory and the Querelle


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lhor a atualidade das obras de Pizan. A aprendizagem da moral de resignação. Tese de Doutora-
do – Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura
defesa do sexo feminino, a reescritura Francesa e Estudos Medievais- USP, 2008.
dos mitos sob uma percepção crítica,
PIZAN, Chrisitne. A Cidade das Damas. Tradução e
a reação contra as diversas formas de apresentação de Luciana Eleonora de Freitas Calado. Flo-
violência contra mulheres, a defesa rianópolis: Editora Mulheres, 2012.

pela educação feminina e o acesso da PIZAN, Christine de. L´Epistre au Dieu d´Amours. In.:
ROY, Maurice (éd.) OEuvres poétiques de Christine de
mulher aos vários campos do saber, Pizan. Tome II. Paris: Firmin-Didot, 1896.
são alguns dos temas que tornam seu
PIZAN, Christine de. La città delle dame. Trad.Patrizia
mais conhecido livro, A Cidade das Carai. Milão: Luni, 1998.
Damas, pioneiro não só da tradição
PIZAN, Christine de. O Livro das Três Virtudes ou O
literária proto-feminista, mas também Espelho de Cristina. Edição Crítica da Tradução Qua-
de uma utopia literária avant la lettre trocentista de Le LivreTrois Vertus e estudo linguístico
de algumas Construções Nominais da Versão Manuscri-
(CAVALCANTI, 2012). ta. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa, 1995.
Luciana Eleonora de Freitas Calado
PIZAN, Christine de. Le livre de la Mutacion de Fortu-
ne. Edição de Suzanne Solente. Paris: Editions A. et J.
Referências Picardet Cie, 1955.

RIBÉMONT, Bernard.(ed.) Une femme de lettres au


BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Trad. Sérgio Mil- Moyen Âge. Études autour de Christine de Pizan Or-
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• 595 •
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RAFFI, Patrizia. La Cita delle Dame. Traduction bilin-
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WOLLSTONECRAFT, Mary. (1971). A vindication
va enfatiza duas óticas confrontantes:
of the rights of woman. 2 ed. New York: Dover hrift, de um lado, a serva que ri do ilóso-
1996.
fo absorto em seus pensamentos e, de
Sugestões de leitura outro, o próprio ilósofo, que atribui
mais valor à teoria que às experiências
BROWN-GRANT, Rosalind: Christine de Pizan and the
moral defence of women. Cambridge: Cambridge Uni- que o distraem do sublime relexivo.
versity Press, 1999. Ao longo de dois mil anos essa dupla
DULAC, Liliane (ed.). Desireuse de plus avant enquerre, perspectiva tem sido usada de formas
actes du VIe colloque international sur Christine de Pi- diferenciadas e opostas. As leituras
zan. Paris: Honoré Champion, 2009.
metafísicas, por exemplo, destacam a
• ignorância dos que não compreendem
a importância da especulação, depre-
Platão e a natureza feminina ciando o bom senso da jovem. Martin
Heidegger faz dessa história a base de
São quatro as obras de Platão sua deinição preliminar da ilosoia e
em que a igura da mulher aparece em a assume como o pensamento com o
sua diferença sexual: Banquete, Teeteto, qual se pode “começar o nada e sobre
República e Leis. Não que aí se encontre o qual as servas necessariamente riem”
uma preocupação feminista, pelo con- (HEIDEGGER, apud HOLVECK,
trário, todo vigor se põe na ediicação 1995, p. 68).
de um pensamento logocêntrico, que Leituras feministas contempo-
desconsidera a isonomia entre os gêne- râneas usam a igura da escrava trácia
ros. Ainal, Platão é um crítico da de- para realçar ambiguidades na ilosoia
mocracia ateniense e a isonomia é um de Platão. Adriana Cavarero, apon-
princípio por excelência democrático. tando a coerência de atitude da serva,
Apesar disso, a dialética platônica pos- ressalta a evidente discrepância entre o
sibilita interpretações de várias pers- riso de uma mulher jovem e graciosa,
pectivas, dentre as quais as relativas ao contraposto, “em simbólica bipolari-
lugar da mulher na cultura. dade”, à sabedoria masculina do “ver-
No Teeteto encontramos a pri- dadeiro ilósofo” (CAVARERO, 2009,
meira cena digna de relexão, quando p. 40-42). O contraste entre beleza e

• 596 •
juventude com sabedoria e seriedade é plano maior (JAEGER, 1979, p. 675),
evidente no diálogo, anunciando dois a sacerdotisa delineando um projeto
mundos da perspectiva platônica: o pedagógico que termina numa ciência
das aparências e da superfície engano- que se “transfunde no absoluto do seu
sa, ou seja, o da serva trácia, mundo objeto”, a ciência da beleza inteligível
da simbologia feminina feito de coisas (VAZ, 2011, p. 56). Assim, ela simboli-
próximas, e o mais sublime, ilosóico zaria a mulher como mestra da verda-
por excelência. O ponto crucial dessa de, a icção de um feminino que tem
distinção consiste em considerar ver- algo a ensinar ao ilósofo (IRIGARAY,
dade e realidade como as “coisas que 1994) - esse feminino vinculando-se às
são”, desvalorizando as coisas próxi- metáforas da gravidez, da parturição e
mas como pertencentes à experiência do ato de dar à luz. Mas aqui também
enganosa dos sentidos. Nesse confron- os contrastes são relevantes: de um
to, o riso da serva surge como “único lado, o feminino apresenta-se como
indício de resistência” ao percurso i- experiência da maternidade, de outro,
losóico que visa manter a realidade à aparece no ilosofar socrático-platôni-
distância (CAVARERO, 2009, p. 44). co como o parto de ideias, de tal modo
Conforme Eleanore Holveck – que que, ao tomar as palavras de Diotima,
toma a serva trácia como sua ancestral Sócrates provoca um efeito de “con-
–, seria preferível, com Simone de Be- -fusão entre pensamento masculino e
auvoir, não admitir que se é ilósofa se voz feminina” (CAVARERO, 2009, p.
a ilosoia que se estuda e com a qual 98-99).
se pensa “gastou sempre muito tem- Diotima é estrangeira, tal como
po com nada” (HOLVECK, 1995, p. a serva trácia, mas enquanto sacer-
69). Eis portanto o paradoxo: a aten- dotisa é detentora da palavra, permi-
ção feminina à realidade é expressão tindo-se até rir do ilósofo. Seu riso,
da força dos fatos da parte de alguém contudo, é de outra natureza, pleno de
que se atém ao mundo no qual seu sagacidade. Seu discurso concentra-se
existir singularmente se ixa, mas isso apenas no amor e sua fala vem acom-
não encontra lugar nas tematizações da panhada dos temas da sexualidade e
ilosoia. da sexualização. Um novo contraste
A igura de Diotima domina o então se descobre: o amor entre dois
Banquete e parece constituir uma ofen- homens constitui a via para a verdadei-
siva contra a impessoalidade do lógos ra ilosoia, relegando-se a um plano
em outros textos. Há quem tome o não-ilosóico o amor heterossexual.
diálogo como uma transposição pla- Nessa característica contrastante, o fe-
tônica do erotismo em direção a um minino mostra-se destituído de valor

• 597 •
em face das vantagens pedagógicas, éti- Pode-se entender que os guardiões ser-
cas e políticas do amor entre homens vem à cidade (polis), enquanto as guar-
(CAVARERO, 2009, p. 100-102). Se o diãs servem aos homens guardiões e à
amor é uma eterna busca de beleza e cidade? Essa determinação acompa-
sabedoria, destaca-se uma relação mi- nha e demarca o intento inal da politeia
mética entre a potencialidade geratriz platônica, no sentido de que identida-
do corpo feminino e a linguagem ilo- de e diferença são conceitos dialéticos
sóica masculina. A ilosoia reproduz que realçam o valor da unicidade no
in abstrato o que o corpo feminino gera contraste com a pluralidade. Mesmo
na dimensão fática. com a presença paritária de mulheres
Na República Platão propõe a fa- e homens na classe dos guardiões, o
mosa comunidade de mulheres e ilhos paradigma masculino não deixa de ser
para os guardiões da cidade. As outras referencial, o feminino tendo um cará-
classes, dos artesãos e comerciantes, ter meramente auxiliar na geração de
têm habilidades (tekhnai) próprias, mas ilhos.
os guardiões devem ter qualidades (are- Se na República há passagens
tai) como sabedoria, temperança, co- indicando “igualdade de aptidões en-
ragem e justiça. Para atingi-las, mulhe- tre homem e mulher”, airma-se tam-
res e homens têm funções paritárias, bém a “desigualdade de capacidade”
pois da harmonia das partes de suas entre ambos (PRIETO, 1995, p. 345).
almas resulta uma correlação também A fraqueza e debilidade femininas são
de equilíbrio na cidade. Alma e cidade continuamente admitidas, mesmo que
devem demonstrar virtudes correlacio- se argumente não haver, pela natureza,
nadas, a comparação da cidade com o necessariamente diferenças entre os
indivíduo provocando ambiguidades gêneros. Em certas passagens (460a-
na relação entre natureza e educação. b e 465a-b), as mulheres na classe dos
Os guardiões são o produto da técnica guardiões “simplesmente desapare-
educativa e natureza e educação pa- cem”; em outras (388a e 605d-e), as
recem caminhar juntas no livro V da mulheres são mostradas como aque-
República, o que suscita indagações. A las que “facilmente sucumbem à dor,
primeira delas diz respeito à natureza enquanto os homens permanecem
própria de cada gênero. A diferença fortes”. A distinção entre mulheres e
entre eles estaria apenas no gerar i- homens torna-se um modelo para a
lhos como função própria dos homens oposição entre ilosoia e política, e a
e no dá-los à luz como das mulheres, tentativa de igualar ambos os gêneros
mulheres e homens guardiões estando “simplesmente os destrói em seu es-
aptos a governar e a proteger a cidade? tado de oposição”. O que se tem en-

• 598 •
tão é um espectro de mulheres “nem e bastante racional de Platão. Se a so-
desejosas nem desejadas”, mas apenas ciedade política é o espaço no qual mu-
“dessexuadas”. Sem desejo sexual, lheres e homens circulam, os corpos
também o desejo de conhecimento se femininos podem ser tomados como
compromete e a classe dos guerreiros corpos políticos justamente por exer-
parece surgir, na cidade inchada de hu- cerem funções pertinentes às mulheres,
mores, “purgada de todos os desejos as quais tornam possível a vida políti-
de prazeres” (SAXONHOUSE, 1994, ca, a procriação sendo o primeiro “ato
p. 68-69). político” (CANTO, 1994, p. 65). Pla-
Ao comparar a República e as tão poderia estar, como faz no Banquete
Leis com a visão comum sobre as mu- com relação a Diotima, escolhendo a
lheres na Antiguidade, Okin entende mulher e as mulheres como referencial
que Platão aponta para a possibilidade de diferença e, segundo sua diferença
de as mulheres exercerem funções di- e alteridade, a cidade verá como bem
ferentes das usualmente a elas atribuí- a gravidez, a parturição e a povoação,
das. Contudo, é preciso considerar em sem recair num desejo desenfreado ou
que sentido identidade e diferença se excessivo (em pleonexía), com uma pre-
especiicam. Embora sejam os gêneros ocupação voltada para a justiça e não
paritários no desempenho de funções para apenas para a mesmidade.
vitais para a cidade, não parece que se Noutros termos, é preciso que
admite que as mulheres sejam tão ap- a experiência do feminino invada as
tas quanto os homens para a função de leis da cidade e as reelabore sob nor-
guardiãs e ilósofas (OKIN, 1977, p. mas próprias (SANTOS, 2011, p. 303).
357). Por um lado, não há como abs- Será enquanto força de alteridade que
trair das peculiaridades corpóreas das as mulheres provocam “o riso, a críti-
mulheres, ligadas à procriação; por ou- ca e a refutação na Antiguidade grega”
tro, é justamente pela via da possibi- (CANTO, 1994, p. 65). Entretanto,
lidade de procriação que as mulheres essa é também a condição humana ple-
poderiam se distinguir dos homens, na de desejos, de medo, de temporali-
não sendo iguais a eles, mas não se po- dade e da procura do outro. As mulhe-
sicionando por sua diferença. res representam, assim, a necessidade
Embora essa dualidade tenha de contínuas mudanças que toda cida-
sido revista nas Leis, em que natureza de deve encontrar apesar do riso e dos
e capacidade se realinham em moldes riscos envolvidos. Na cidade platônica
mais conservadores, Monique Canto elas são absolutamente necessárias e a
entende a inserção das mulheres na cidade se torna o seu lugar, o lugar das
República como uma pontuação genial mulheres, pois é pela alteridade que se

• 599 •
constituirá o sentido profundo e possí- •
vel da cidade política que se quer justa.
Poder (Poder/Saber)
Magda Guadalupe dos Santos
Como fenômeno social o poder
Referências – e as questões que lhe são inerentes
CANTO, Monique. he Politics of Women’s Bodies: Re-
– constitui-se em objeto controver-
lection on Plato. In: TUANA, Nancy (Edit.). Feminist so de estudo e relexões de diferentes
Intepretations of Plato. University Park: he Pennsylva-
nia State University Press, 1994. p. 49-65. áreas de conhecimento e espaços so-
ciais, não se reduzindo, portanto, aos
CAVARERO, Adriana. Nonostante Platone: Figure fem-
minili nella ilosoia antica. Verona: Ombre Corte, 2009. ambientes acadêmicos. Numa tradição
HOLVECK, Eleanore. Can a Woman Be a Philosopher? que remonta a Thomas Hobbes (1588-
Relections of a Beauvoirian Housemaid. In: SIMONS, 1679) o poder é entendido como algo
Margaret A (Edit.). Feminist Interpretations of Simone
de Beauvoir. University Park: he Pennsylvania State que se obtém e se detém. Para Nor-
University Press, 1985, p. 67-78.
berto Bobbio (1909-2004), numa dei-
JAEGER, Werner. Paideia. Tradução Artur M. Parreira. nição mais geral, a “palavra Poder de-
São Paulo: Martins Fontes, 1979.
signa a capacidade ou a possibilidade
IRIGARAY, Luce. Sorcerer Love: A Reading of Pla- de agir, de produzir efeitos”. Sendo
to’s Symposium Diotima’s Speech. In: TUANA, Nancy
(Edit.). Feminist Intepretations of Plato. University Park: assim, o poder não pode ser percebido
he Pennsylvania State University Press, 1994. p. 181-
195.
como “uma coisa ou sua posse”, mas
uma “relação entre pessoas” (2000,
OKIN, Susan Moller. Philosopher Queens and Private
Wives: Plato on Women and the Family. Philosophy and p.933-934). Nesta acepção a deinição
Public Afairs, Princeton, v. 6, n. 4, p. 345-369, 1977. de um certo poder não passaria ape-
PLATON. Oeuvres complètes. Paris: Les Belles Lettres, nas pela identiicação da pessoa ou do
1932-1968.
grupo que a ele está sujeito, e sim que
PRIETO, Maria Helena Ureña. Breves interrogações so- seria necessário determinar também a
bre a condição feminina na obra de Platão. Humanitas,
Coimbra, v. 47, p. 343-356, 1995. esfera de atividade à qual o poder se
refere ou esfera de poder, que pode ser
SAXONHOUSE, Arlene W. he Philosopher and the
Female in the political thought of Plato. In: TUANA, mais ou menos ampla e delimitada
Nancy (Edit.). Feminist interpretations of Plato. Univer-
sity Park: he Pennsylvania State University Press, 1994. mais ou menos claramente. Poder po-
p. 67-86. lítico ou poder paterno seriam exem-
SANTOS, Magda Guadalupe dos. A isonomia e a dife- plos de esferas muito amplas, assim
rença: a recepção do papel das mulheres no enfrentamen-
to das ondas da Politéia V. Hypnos, São Paulo, n. 27, p.
como o poder do presidente de uma
284-305, 2011. dada organização seria mais delimita-
VAZ, H. C. de Lima. A ascensão dialética no Banquete do, pois se funda numa competência
de Platão. In: VAZ, H. C. de Lima. Platonica. São Paulo: especial estando coninado ao âmbito
Loyola, 2011. p. 49-67.
dessa competência. Bobbio também

• 600 •
distingue o poder como simples pos- do conhecimento do mundo e o que
sibilidade (Poder potencial) e o poder lhe dá suporte são as relações de força
efetivamente exercido (Poder em ato entre indivíduos e grupos e entre estes
ou atual), e sustenta que a relação de e as instituições. Compreender a cons-
poder pode ser assimétrica, mas não trução social de um campo, os jogos
exclusivamente, pois existem relações que nele se joga, das coisas materiais
de poder que “se distinguem por um e simbólicas que nele se gera, seria ir-
maior ou menor grau de reciprocida- redutível para “explicar, tornar neces-
de” (BOBBIO, 2000, p.936). sário, subtrair ao absurdo do arbitrário
Já os estudos de Pierre Bour- e do não-motivado os atos dos produ-
dieu (1930-2002) sobre os sistemas de tores e as obras por eles produzidas”
dominação que atravessam e consti- (BOURDIEU, 1989, p.69). Dentre o
tuem as relações sociais evidenciam arbitrário, aqui, pode ser destacada a
as dimensões simbólicas do poder e, noção de interesse, compreendido por
a partir dessas, o saber, ou ao menos, Bourdieu (2004, p.65) como o “inves-
suas condições de produção e repro- timento em um jogo, qualquer que seja
dução. Trabalhando com a noção de ele”. O interesse seria a condição de
campo social ele oferece uma alterna- funcionamento do campo, em sua qua-
tiva teórico-metodológica importante lidade de produto histórico, por isso
para a compreensão da relação sujei- haveria “tantos campos, quantas são
to-sociedade. O campo social pode as formas de interesse” (BOURDIEU,
ser considerado tanto um ‘campo de 2004, p.65).
forças’, ao constranger os sujeitos nele A partir da noção de campo si-
inseridos, quanto um ‘campo de lutas’, tua-se o poder simbólico, isto é, o “po-
no qual os sujeitos agem conforme der invisível o qual só pode ser exercido
suas posições, mantendo ou modii- com a cumplicidade daqueles que não
cando a estrutura a partir de regras e querem saber que lhe estão sujeitos ou
dinâmicas próprias de funcionamento. mesmo que o exercem” (BOURDIEU,
O conceito de campo é, assim como 1989, p.7-8). Em Bourdieu o poder
o de habitus, central na obra de Bour- simbólico constrói a realidade, estabe-
dieu e é deinido como um espaço de lecendo um sentido compartilhado de
disputa e de produção da autoridade, mundo social e contribuindo para a re-
onde dominantes e dominados lutam produção da ordem social. As relações
pela manutenção e pela obtenção de linguísticas são, de modo inseparável,
determinadas posições de poder. Os sempre relações de poder que depen-
campos são resultados de processos de dem, na forma e no conteúdo, do po-
diferenciação social, da forma de ser e
der material ou simbólico acumulado

• 601 •
pelos agentes (ou pelas instituições) vel, mas “jogos de poder” que supõem
envolvidos nessas relações e que po- condições históricas de emergências
dem permitir acumular poder simbó- complexas, que implicam em efeitos
lico. É na condição de instrumentos múltiplos, compreendidos fora do que
estruturados e estruturantes que os a análise ilosóica identiica tradicio-
“sistemas simbólicos” cumprem sua nalmente como o “campo do poder”.
função política de instrumentos de im- Não há poder que seja exercido por
posição ou de legitimação da domina- uns sobre outros, pois “os uns” e “os
ção, que contribuem para assegurar a outros” nunca estão ixados numa po-
dominação de uma classe sobre outra sição, mas sucessiva e até simultanea-
(violência simbólica) dando o reforço mente inseridos em cada um dos polos
da sua própria força às relações de po- de uma relação. Dessa forma, o exer-
der que as fundamentam, contribuindo cício do poder não pode ser reduzido
para a “domesticação dos dominados” a uma relação entre “parceiros” indi-
(BOURDIEU, 1989, p.11). O poder viduais ou coletivos, o poder não é da
simbólico constitui o dado pela enun- ordem do consentimento, da renúncia
ciação, legitima o fazer ver e fazer crer, de liberdade, da transferência de direi-
conirma ou transforma a visão do to, não é exclusivo do uso da violên-
mundo e, desse modo, a ação sobre o cia. O poder “é um conjunto de ações
mundo. Isto signiica que o poder sim- sobre ações possíveis” (FOUCAULT,
bólico não reside nos ‘sistemas simbó- 1995, p.243). Para Foucault não haveria
licos’ mas que se deine numa relação algo como “o poder” ou “do poder”
determinada – e por meio desta – entre que existiria globalmente ou em esta-
os que exercem o poder e o que estão do difuso. O poder não é somente re-
sujeitos na própria estrutura do campo pressivo ou puramente dominação. “O
em que se produz e se reproduz a cren- que faz com que o poder se mantenha
ça na legitimidade das palavras e da- e que seja aceito é simplesmente que
quele que as pronuncia (BOURDIEU, ele não pesa só como uma força que
1989, p.14-15). diz não, mas que de fato ele permeia,
As análises do ilósofo francês produz coisas, induz ao prazer, forma
Michel Foucault (1926-1984) sobre o saber, produz discurso” (FOUCAULT,
poder enfatizam sua dimensão pro- 1998, p.8). A análise de Foucault cen-
dutiva, compreendida no conjunto de tra-se numa nova economia do poder,
práticas discursivas construídas histo- ou seja, em como o poder funciona,
ricamente. Em Foucault, o poder não é de como ele é exercido, operado como
uma entidade coerente, unitária e está- tecnologias políticas. Em seu estudo

• 602 •
sobre a microfísica do poder, ele air- 1995, p.127). A crítica à hipótese re-
ma que as relações de poder não se pressiva do sexo realizada no livro His-
localizam no Estado ou nas relações tória da Sexualidade I: a vontade de saber
entre este e os sujeitos, ou na fronteira (publicada pela primeira vez em 1976)
entre as classes sociais, ou em formas pode ser pensada como um dos exem-
de leis. O poder, em Foucault, mais se plos da forma como Foucault opera
exerce do que se possui e não é efeito com a noção de poder-saber. Quan-
de uma classe dominante, mas sim de do ele se opõe a hipótese repressiva
um conjunto de posições estratégicas. do sexo gerada no século XVII, seu
Ou seja, não é um poder que se aplica objetivo é menos mostrar a hipótese
“como uma obrigação ou uma proibi- como falsa e mais “recolocá-la numa
ção, aos que não têm; ele os investe, economia geral dos discursos sobre o
passa por eles e através deles; apoia-se sexo” (FOUCAULT, 1997, p.16). Tal
neles, do mesmo modo que eles, em empreendimento centra-se no regime
sua luta contra esse poder, apoiam-se de funcionamento do poder-saber que
por sua vez nos pontos em que os al- sustentou o discurso sobre a sexualida-
cança.” (FOUCAULT, 1996, p.29). de. Partir desse regime implica consi-
Para Foucault a dominação não derar tanto o que se disse sobre o sexo
é a essência do poder, o poder é pro- quanto os efeitos de poder produzidos
dutor de individualidade, a noção de pelo o que se disse, bem como os sabe-
indivíduo é uma produção do poder e res que se formaram a partir daí. O im-
do saber. Nessa clave encontra-se um portante, segundo Foucault, é perceber
dos temas metodológicos explorados nessas produções discursivas e nesses
em seu trabalho que é de suma impor- efeitos de poder, a “vontade de saber”
tância para os estudos feministas e/ que lhe serve de suporte e de instru-
ou de gênero: as relações entre poder mento. Não há relação de poder sem
e saber. Em Foucault poder e saber a constituição de um campo de saber,
não são externos um ao outro. O saber nem saber que não constitua relação
está intimamente ligado ao conceito de de poder. Como um dispositivo histó-
poder, no sentido em que ambos ope- rico, a sexualidade é produto de uma
ram na história de forma mutuamente economia dos discursos, cujo funcio-
produtiva. Dimensão mais radical do namento, regulação e veiculação são
pensamento de Foucault essa relação sustentados por interações entre poder
questiona a própria natureza objetiva e saber, dois lados intrínsecos de um
das investigações, pois, saber e poder mesmo processo produtivo.
não podem ser explicados um a par-
tir do outro, muito menos reduzido Cristiani Bereta da Silva
um ao outro (RABINOW; DREIFUS, Nucia Alexandra Silva de Oliveira

• 603 •
Referências política. Por lo tanto, hablar de políti-
cas feministas es airmar en principio
BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUI-
NO, Gianfranco. Dicionário de política (2 volumes).
dos cosas. Primeramente, la pluralidad
Tradução de Carmen C. Varrialle et al. 5ª ed. Brasília: de los feminismos reiere al hecho de
UnB, 2000.
que desde sus primeras manifestacio-
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2º ed. Rio nes en la Modernidad, los feminismos
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
han estado nutridos por todas las tradi-
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de ciones del pensamiento político desde
Fernando Tomaz. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1989.
el siglo XVIII en adelante, hecho del
cual se derivan los feminismos en sus
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Tradução Cássia R. da
Silveira; Denise Moreno Pegorim. São Paulo: Brasiliense, vertientes ilustradas, liberales, anar-
2004. quistas, marxistas, radicales, ecofemi-
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tradução nistas, poscoloniales, posmodernas,
de Salma Tannus Muchail. 8ª ed. São Paulo: Martins entre otras y que según la época, el
Fontes, 1999.
contexto y las interpelaciones de cada
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Nascimento da pri- lugar, han cobrado particulares formas.
são. Tradução de Raquel Ramalhete. 14ª ed. Petrópolis:
Vozes, 1996 Pero también, los feminismos reieren
a un modo-de-vivir-en-la-política, confor-
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução e
organização de Roberto Machado. 13ª ed. Rio de Janeiro: mado por al menos dos dimensiones.
Edições Graal, 1979. La primera, relativa a un modo de pensar
FOUCAUL, Michel. História da sexualidade I: a vontade la política, es decir, el trabajo conceptual
saber. 12ª ed. Tradução de Maria hereza da Costa Al-
buquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro:
feminista. La segunda, da cuenta de un
Edições Graal, 1997. modo de hacer política, es decir, la acción
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In: DREY-
política feminista que deriva en un mo-
FUS, Hubert e RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma vimiento social heterogéneo.
trajetória ilosóica: (para além do estruturalismo e da
hermenêutica). Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de
Ahora bien, ¿en donde radica la
Janeiro: Forense Universitária, 1995. singularidad de las políticas feministas?
Para responder a esta pregunta
• es necesario explicitar al menos tres
supuestos. En primer lugar, la políti-
Políticas Feministas ca tiene que ver con lo común o con
la deinición (provisoria) de un orden
La relación entre política y fe- común para y en una comunidad. Lue-
minismo es constitutiva y plural, es de- go, el establecimiento de lo común su-
cir, es imposible pensar el feminismo pone cada vez conlicto y desacuerdo
en su pluralidad sin tener en cuenta la (Rancière, 1995) acerca de lo que se en-
dimensión fundante de su constitución tiende por común, por lo tanto convoca

• 604 •
posiciones en pugna, pero también ar- mocracia. Una verdadera estrategia
ticulaciones en las que algunas logran troyana (Wittig, 1984).
momentáneamente hegemonizarse Cuatro han sido quizás los cam-
(Laclau y Mouffe, 1985). De tal modo, pos de batalla pacíica más destacados
el establecimiento de la política enten- de las políticas feministas y que pueden
dida como un orden político en el que derivarse del lema Lo personal es político.
se juega un sentido de lo común supo- Esta expresión, vale aclarar, emergió en
ne una disputa de valores (Molina Petit, la década del 60´ en Estados Unidos en
1994) acerca de qué cuenta y qué no el marco de los activismos feministas
cuenta; qué vale y qué no vale; quienes radicales y luego fue apropiada y resig-
cuentan y quienes no cuentan; cuáles niicada por generaciones de feministas
voces, cuáles palabras, cuáles cuerpos hasta nuestros días a lo largo y a lo an-
deben ser, precisamente, tenidos en cuen- cho del mundo. Lema político activista
ta (Rinesi, 2005) a la hora de deinir lo pero también premisa conceptual que
común. reiere a la operación de instalar asun-
La singularidad de las políticas tos comunes en los lugares que fueron
feministas está precisamente, desde sus deinidos como no políticos -incluidos
primeras obras, activistas e intelectu- los territorios de frontera (Anzaldúa et
ales, en mostrar a través de estrategias al, 2004)-, pero a su vez colocar en esos
de las más diversas, que en el estable- lugares entendidos como políticos por
cimiento de lo común hay ciertas vo- la cultura dominante, asuntos conside-
ces, palabras, cuerpos que no cuentan rados no comunes.
o que cuentan de menos, que no va- Primer campo de las políticas femi-
len o valen menos, y a veces, hasta no nistas: La disputa en torno a la prácti-
existen: las mujeres en sentido amplio ca de la dicotomía (De Certeau, 1982)
y aquellas otras identiicaciones no he- público – privado, recreada por el libe-
gemónicas (LGTB y personas Queer) ralismo moderno y vigente en la actua-
(Butler, 1993) consideradas excéntricas lidad. Es decir, la problematización de
(De Lauretis, 1993) o abyectas (Kriste- su identiicación ontopolítica con tipos
va, 1982). Pero no sólo mostrar, sino diferentes de instituciones, actividades
disputar, denunciar, desplazar, mover, y atributos humanos (Young, 1987)
desactivar, problematizar, polemizar, conformándose la representación de
discutir, desmontar, llevar adelante lo privado asociado a la feminidad –
verdaderas guerras retóricas-políticas- afectividad – mujeres, y de lo público
-conceptuales-activistas respecto de relativo a la masculinidad – razón – va-
esos lugares entendidos como nuestros rones, en donde primaría lo segundo
lugares comunes en el banquete de la de- sobre lo primero. Relaciones binarias,

• 605 •
jerarquizadas y heteronormadas pre- como espacios de generación de valor,
sentadas como presupuestos cuasi na- de beneicio económico, de plusvalía
turales, biológicos y/o esenciales, don- y explotación, de trabajo doméstico y
de la supuesta superioridad ontológica de cuidados y todos sus entretelones
del campo simbólico que articula la (Carrasco, 1999; Pérez Orozco, 2005).
masculinidad produjo una superiori- Tercer campo de las políticas femi-
dad funcional, política y social (Feme- nistas: La disputa en torno a las nocio-
nías, 2000). Pero a su vez, las políticas nes instituidas de familia y de Estado,
feministas han polemizado un sentido es decir, cuestionar un sentido de fa-
de lo privado vinculado al término do- milia únicamente asociado al amor, al
mesticidad, dentro del contrato sexu- afecto, al cuidado, al altruismo y a la
al (Pateman, 1988), entendida como armonía. En ese mismo acto, mostrar
espacio propio de esa individualidad las múltiples violencias que se tejen en
doméstica asociada a las mujeres como las relaciones íntimas (Fraser, 1997),
seres-en-la-casa-para-otros (Lerussi, 2013a; los conlictos de poder y de dinero
2013b), desestabilizando y moviendo (Zelizer, 2005), las desigualdades, las
radicalmente las fronteras de esta prác- exclusiones, las manipulaciones y ex-
tica dicotómica y de sus términos. torsiones, el maltrato, la explotación, el
Segundo campo de las políticas femi- silenciamiento, el feminicidio (Lagarde,
nistas: La disputa en torno a la práctica 2005), en in la misoginia en todas sus
de la dicotomía reproducción – pro- manifestaciones. Asimismo, dar cuenta
ducción, recreada fundamentalmente de la formación patriarcal del Estado
en el siglo XIX por Adam Smith, por (MacKinnon, 1989), en sus leyes, en
el marxismo y la escuela marginalista los modos de aplicación e interpreta-
en economía, y muchas de cuyas con- ción de las mismas (Smart, 1989) y en
cepciones y supuestos siguen vigentes sus estructuras organizacionales.
en la actualidad. Los feminismos han Cuarto campo de las políticas femi-
procurado problematizar entonces un nistas: La disputa en torno a los modos
sentido de lo reproductivo asociado heteronormados de entender y vivir
a la familia y a las unidades domésti- las sexualidades, los cuerpos y los gé-
cas en general como no económicas neros. Desestabilizar un sentido de lo
y espacio propio de las mujeres, y han humano deinido desde la matriz hete-
dado cuenta de los modos de producción rosexual (Butler, 1990) como régimen
doméstica (Delphy, 1970), es decir, de epistémico, en donde el ser dos (Irigaray,
las dimensiones productivas y econó- 1974), varón y mujer, cuentan como
micas que se tejen cotidiana y silen- diferencia que pareciera irreductible.
ciosamente al interior de las familias Mediante este acto, movilizar la fron-

• 606 •
tera de lo humano hacia aquellas per- BARTHES, Roland (1966): Investigaciones retóricas I.
La antigua retórica. Barcelona, Ediciones Buenos Aires,
sonas que constituyen la alteridad no ed. 1982.
heterosexuada, es decir, lesbianas, gays,
BUTLER, Judith (1990): El género en disputa. El femi-
personas trans, travestis, queer. Y así, nismo y la subversión de la identidad. Barcelona, Paidós,
ed. 2007.
dejar-nos inundar por la diversidad de
modos de amar, de sentir, de desear, de ______, Judith (1993): Cuerpos que importan. Sobre los
límites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires,
habitar los cuerpos y de vivir las sexu- Paidós, ed. 2008.
alidades (incluso las diversas heterose-
CARRASCO, Cristina (ed.) (1999): Mujeres y econo-
xualidades) en todas sus dimensiones. mía. Nuevas perspectivas para viejos y nuevos problemas.
Las políticas feministas nos in- Barcelona, Icaria, ed. 2003.

vitan a partir de multiplicidad de estra- DE CERTEAU, Michel (1982): La fábula mística. Siglos
XVI – XVII. México, Universidad Iberoamericana, ed.
tegias y en su situacionalidad localizada 2004.
(Rich, 1984; Haraway, 1988), a renovar
DE LAURETIS, Teresa (1993): “Sujetos excéntricos: te-
nuestros modos de pensar de y en la oría feminista y conciencia histórica”. En Cangiano y Du
política, en el trabajo con los concep- Bois (comps.), De mujer a género, Buenos Aires, CEAL,
1993, pp. 72 – 113.
tos que componen nuestras prácticas
DELPHY, Christine (1970): Por un feminismo materia-
de vida y de pensamiento, inventando lista. El enemigo principal y otros textos. Barcelona, laSal,
incluso nuevos conceptos. Pero tambi- ed.1982.
én, las políticas feministas nos instan FEMENÍAS, M. L. (2000): Sobre sujeto y género. Lec-
a recrear nuestras maneras de acción turas feministas desde Beauvoir a Butler. Buenos Aires,
Catálogos.
política y a llevar adelante estrategias
de articulación con otros movimientos FRASER, Nancy (1997): Iustitia Interrupta. Relexiones
críticas desde la posición postsocialista. Bogotá, Siglo
sociales emancipatorios que denuncian Hombre Universidad de los Andes.
la incompatibilidad de la actual orga- HARAWAY, Donna (1988): “Conocimientos situados: la
nización cultural, política, jurídica, so- cuestión cientíica en el feminismo y el privilegio de la
perspectiva parcial”. En Haraway, Ciencia, cyborgs y mu-
cial y económica predominantemente jeres. La reinvención de la naturaleza, Madrid, Cátedra,
capitalista globalizada, clasista, hetero- [1991] ed. 1995, pp. 313 – 346.

patriarcal y racista en la que nacemos, IRIGARAY, Luce (1974): Speculum. Espéculo de la otra
vivimos y morimos. mujer. Madrid, Saltés, ed. 1978.

KRISTEVA, J. (1982): Poderes de la perversión. Buenos


Romina Lerussi Aires, Catálogos, ed. 1988.

LACLAU, Ernesto y Moufe, Chantal (1985): Hegemo-


Referencias e indicaciones nía y estrategia socialista. Hacia una radicalización de la
democracia. Buenos Aires, FCE, ed. 2004.
de lectura
LAGARDE, M. (2005): “Por la vida y la libertad de las
ANZALDÚA, Gloria; Brah, Avtar; hooks, bell; Sandoval, mujeres, in al feminicidio”. En Concha Aída y Laballe,
Chela et al (2004): Otras inapropiables. Feminismos des- Resistencia y Alternativas de las Mujeres Frente al Mode-
de las fronteras. Madrid, Traicantes de sueños. lo Globalizador, Red Nacional de Género y Economía,
México, 2005, pp. 114 - 126.

• 607 •
LERUSSI, Romina (2013a): La retórica de la domestici-
dad. Política feminista, derecho y empleo doméstico en la
Poscolonialismo:
Argentina. La Plata, EDULP, Colección Biblioteca Críti- Caribe Poscolonial
ca de Feminismos y Género (en prensa).

LERUSSI, Romina (2013b) “De vuelta al debate sobre Mientras que el Caribe ha sido
la domesticidad”. En Mora, Instituto Interdisciplinario
de Estudios de Género, Facultad de Filosofía y Letras, durante mucho tiempo el próximo y
Universidad Nacional de Buenos Aires, Argentina, n. 20 a la vez irreconocible viacrucis de la
(en prensa).
civilización, cuya importancia y cen-
MACKINNON, Catherine (1989): Hacia una teoría fe-
minista del Estado. Madrid, Cátedra, ed. 1995.
tralidad en la historia occidental es
frecuentemente elidida, la insistencia
MOLINA PETIT, Cristina (1994): Dialéctica feminista
de la Ilustración. Madrid, Anthropos.
del escritor caribeño de imbricar la
narrativa con la voz y el carácter físi-
Pateman, Carole (1988): El contrato sexual. Barcelona,
Anthropos, ed. 1995. co revela una voluntad de no acceder
a la censura. Ciertamente, la narrativa
PÉREZ OROZCO, Amaia (2005): Perspectivas femi-
nistas en torno a la economía: el caso de los cuidados. y la cultura caribeña está impregnada
Madrid, CES, ed. 2006. por un “soundscape” (paisaje auditi-
RICH, Adrienne (1984): “Apuntes para una política de vo) singularmente físico, en el cual el
la posición”. En Rich, 1986, Sangre, pan y poesía. Prosa
escogida 1979 – 1985, Barcelona, Icaria/Antrazyt, ed.
cuerpo habla y es hablado, delineando
2001, pp. 205 – 222. y subvirtiendo los bordes de su propio
RANCIÈRE, J. (1995): El Desacuerdo. Política y iloso-
espacio caribeño. Como postula Rive-
fía. Buenos Aires, Nueva Visión, ed. 2010. ra-Colon, “El cuerpo se convierte en
RINESI, Eduardo (2005): Política y tragedia. Hamlet en- instrumento que rompe la supremacía
tre Hobbes y Maquiavelo. Buenos Aires, Colihue. de un mundo vertebrado alrededor del
SMART, Carol (1989): Feminism and the Power of Law. alma y del conocimiento entendido
Londres, Routledge. como abstracción, como transcenden-
WITTIG, Monique (1984): “El caballo de Troya”. En cia del cuerpo” (94).
Wittig, 1992, El pensamiento heterosexual y otros en- El ritmo, la onomatopeya, y la
sayos, Madrid, Egales, ed. 2006, pp. 59 – 71.
musicalidad se destacan en la produc-
YOUNG, Iris Mary (1987): “Imparcialidad y lo cívico ción literaria de la región, desde la obra
público. Algunas implicaciones de las críticas feministas a
la teoría moral y política”. En Benhabib, Seyla y Cornell, de Aimé Césaire de Martinica a la obra
Drucilla (eds.), Teoría feminista y teoría crítica. Ensayos del puertorriqueño Luis Palés Matos,
sobre la política de género en las sociedades de capitalis-
mo tardío, Valencia (España), Ediciones Alfons El Mag- entre otros. Esta predominante sono-
nanim, ed. 1990, pp. 89 – 117.
ridad se ainca en una híper conciencia
ZELIZER, Viviana (2005): La negociación de la intimi- de la corporalidad y la racialización, a
dad. Buenos Aires, FCE, ed. 2009.
través de las cuales el sonido y el per-
formance habitan o revelan espacios

de ausencia en cuanto a la gestión po-
lítica. En lugar de producir un discur-

• 608 •
so esencialista, la atención al cuerpo tos-Febres y el juego sonórico de Ana
como no sólo el lugar de enunciación Lydia Vega—en los cuales se habla (o
sino como la articulación misma pun- no) desde “los ovarios”—entrelazan la
tualiza un discurso que renuncia a los corporalidad y la feminidad como a la
imperativos hegemónicos del lenguaje, vez performativas y productivas. Al escri-
reivindicando espacios físicos al igual bir literatura que requiere ser escucha-
que la narrativa histórica. Como la es- da, las escritoras caribeñas han dado a
critora Jamaica Kincaid (Antigua) nota luz discursos (trans)nacionales en los
en A Small Place, su meditación sobre cuales el Caribe habla simultáneamen-
el continuo legado colonial sobre el te como centro y periferia, situándose
colonizador y el colonizado: “For isn’t a la vanguardia del pensamiento globa-
it odd that the only language I have in lizado. Esta intervención indaga en la
which to speak of this crime is the lan- fusión del lenguaje, el sonido y la cor-
guage of the criminal who committed poralidad, soliendo incluir o subrayar
the crime? And what can that really los usos y ‘mal usos’ del lenguaje y su
mean? For the language of the crimi- conexión a una maniiesta calidad físi-
nal can contain only the goodness of ca o erótica, como vehículo a través del
the criminal’s deed. The language of cual escritoras caribeñas insisten en ha-
the criminal can explain and express bitar sus propias narrativas históricas,
the deed only from the criminal’s point inscribiéndose en historias imperiales,
of view. It cannot contain the horror coloniales, o explícitamente aincadas
of the deed, the injustice of the deed, en conceptualizaciones estrechas de
the agony, the humiliation inlicted…” género.
(31,32) Historias Imperiales (Re)nacidas:
Sin duda, es el lenguaje de la ad- Las narrativas caribeñas hablan sobre
ministración colonial que, a pesar de y a partir de un lugar de cruce, ya que
todo, reverbera en el espacio antillano, las islas caribeñas se sitúan en el locus
imbuyendo sentido a la cotidianidad. geográico del encuentro entre impe-
Para poder representar el Caribe como rios y la ruta transitoria/destinataria
si mismo y no ‘otro,’ el lenguaje colo- de cuerpos convertidos en artículos
nial debe ser desplegado de nuevo, y de consumo. El anonimato impuesto
aún más, sujeto a un “re-staging.” Esta sobre las gentes caribeñas como obje-
encarnación del lenguaje es particular- tos de la historia en lugar de sujetos de
mente evidente en textos sobre escri- la historia (ya que la Historia ha sido
toras femeninas a lo largo del Caribe, escrita desde la perspectiva del triunfo
a la luz de referencias como “pariendo imperial) propone que escribir de y so-
palabras” en la obra de Mayra San- bre el cuerpo—así declarándose dueño

• 609 •
de este—es aún un acto revolucionario, teo feroz en su interior y los dolores
uno que enmarca a los individuos den- inenarrables. Según los expertos estaba
tro de un marco histórico que concibe a punto de parir, según ella se moría, se
de la región antillana como una simple vaciaba…Pues mire…Me gustaría po-
consecuencia de efecto posterior a la nerle Victoria…o mejor, mejor…¡Pa-
colonización, existiendo sólo a partir tria!...¡Patria es un nombre muy origi-
del momento imperial. Entonces, darle nal!...Soy el padre, el padre de Patria, de
voz al cuerpo (colonizado), al igual que la Patria! ¡Carlos Manuel de Céspedes!
insistir en hablar sobre el cuerpo como ¡El primero que libertó a sus esclavos!
aquello que se mueve, funciona, da y ¡Qué par de cojones, que toletón! Y mi
recibe placer, es crear un nuevo lugar padre, emocionado, sollozó creyéndo-
de enunciación fuera de una cronolo- se glorioso.” (22, 25)
gía imperial. La hija llamada Patria nace a
La manera en las cual el cuerpo padres revolucionarios, con su madre
femenino se mueve o es movido, ce- tendida sobre una bandera supuesta-
lebrado, o trae vida nueva (a peligro mente recién regalada por el mismo
de muerte), es explorada en detalle en Che. Entre angustiados suspiros, gri-
muchos trabajos antillanos. Desde ora- tos, y súplicas, la madre de Patria la
ciones repetitivas en las cuales la voz trae al mundo entre el trasfondo de
reclama su espacio hasta los rigores del festejo, ovaciones, y tiros celebrato-
alumbramiento y sus exclamaciones rios. Los dos eventos—el nacimiento
sonoras, el cuerpo de la mujer caribeña de una bebé y el alba de una revolu-
y los sonidos que resultan de este son ción—están yuxtapuestos, ocurriendo
continuamente representados como el en tiempo paralelo. La mujer en parto
repositorio del imperio y la memoria sobrelleva un acto de talla extraordi-
nacional. La primera parte de la novela nariamente física, cuya realidad vivida
La nada cotidiana de Zoe Rivera Valdés es muy diferente para ella que para
comienza con una escena de parto in- los que la observan. Justo cuando a la
tensa en la cual la protagonista (que futura madre se le anuncia que pron-
pronto nacerá con el nombre Patria) to traerá una vida nueva, la mujer se
entra al mundo en plena revolución cu- siente más próxima a la muerte. Sin
bana: “La barriga le bajó hasta el pubis, embrago, ella continua con este per-
dice que sintió dentro como una explo- formance simbiótico de la maternidad
sión de constelaciones. Cerró los ojos y la ciudadanía, permitiendo que la hija
y saboreó el dolor de la espera. Una tome el nombre Patria otorgado por
vez más, esperaba, y en esta ocasión su padre, a pesar de que ha sido su
era bien distinto… De nuevo el tras- cuerpo femenino que ha asegurado el

• 610 •
nacimiento/la madre patria. Dar a luz La calidad sonora y la musica-
es, entonces, un acto corporal al igual lidad del acercamiento caribeño hacia
que político. El resto de la novela reali- el lenguaje se pone en evidencia en
za esta propuesta, ya que Patria crece y obras como el clásico “Pollito/Chic-
se convierte en una mujer que expresa ken” (que juega con la polinización
su frustración personal y política hacia entre el español y el inglés, al igual que
el resultado de la revolución a través la crisis de identidad puertorriqueña),
de encuentros explícitos e ilícitos del y en textos como el cuento “Pasión
cuerpo (sensaciones), siempre acom-
de Historia,” en el cual Vega decide
pañados por descripciones orales del
examinar la experiencia puertorrique-
deseo (voz).
ña en Francia según la amistad de dos
Este enlace entre lo femenino y
amigas de universidad, Vilma y Carola.
lo político logra realizar su performan-
En este relato, Carola (una joven pe-
ce a través de la fractura/nuevo des-
pliegue del lenguaje antillano, en el cual riodista) se encuentra sumida en “el
la palabra de la métropole o la nación caso Malén,” un ‘crimen pasional’ que
colonizadora es apropiada de manera está plasmado por todos los medios
únicamente regional. Valdés emplea de comunicación, cuando impulsiva-
coloquialismos típicamente cubanos mente decide visitar a su amiga Vilma,
que no serían fácilmente comprendi- que está casada con un francés y vive
dos fuera de la región caribeña. El len- en Francia. Mientras se prepara para el
guaje se convierte en un contrapunto al viaje, lee sobre los últimos momentos
igual que un puente al imperio, ya que de Malén, cuyo ex amante la apuñala
la ‘pureza’ de su forma es moldeada, por celos. Mientras que “Malén retira
cambiada, y creolizada. Pocas autoras el disco, se mira, pone el radio, se re-
han ejempliicado esta utilización del cuesta. Está desnuda y su piel oscura
idioma como la puertorriqueña Ana brilla bajo la lamparita roja. Está toda
Lydia Vega, quien reta y (re)implemen- desnuda y la música ahora es un bolero
ta el uso y las reglas de gramática en viejo, bolero Dipiní de amores despe-
una manera que duplica la cadencia chados. En la media luz de la lectura,
del español puertorriqueño. Al doblar
Malén se va vistiendo de negro como
y manejar las reglas del lenguaje y pri-
un sueño de Truffaut” (19). Esperando
vilegiar un ‘decir’ localizado y no un
el placer con su amante, el cuerpo des-
usuario canónico (en este caso, La Real
nudo de Malén se mueve suavemente
Academia Española), Vega hace del
lenguaje mismo un personaje en sus al compás de la música, justo antes de
cuentos, otra protagonista que a su vez su encuentro con la muerte. El cuerpo
relata y participa en la narrativa central. de la mujer (y su placer potencial) es

• 611 •
aquí sobrepuesto con la violencia y el Carola soporta una tensa estadía
sonido, ya que es el cuerpo que pagará con Vilma, navegando las indiscrecio-
por su (¿transgresivo?) placer a pun- nes de los suegros y el deterioro de la
to de cuchillo. El placer y el dolor se vida personal de Vilma, culminando
encuentran con una banda sonora de en una última noche de amistad y re-
despecho por la legendaria Carmen miniscencia: “Y caminamos mucho,
Delia Dipiní, irmemente anclando el mucho, cantando Verde Luz, Coño Des-
crimen, y sus ecos culturales, en el ám- pierta Boricua, Isla Nena, y tantos otros
bito puertorriqueño. aperitivos patrióticos para el retorno
Cuando Carola emprende el via- a Puertorro. Bajamos hasta el río. Allí
je a Francia, ella imagina que la rela- nos quedamos un buen rato, recor-
dando los años locos, pasándonos la
ción entre Vilma y su esposo Paul sería
bota. Vilma y Carola riéndose con la
muy “Simone de Beauvoir y Jean-Paul
eterna pavera que sólo se comparte en
Sartre,” pero contrario a sus expecta-
la irresponsabilidad total o en absoluta
tivas encuentra a su amiga una hecha
certeza de la tragedia. La violencia de
una sombra de lo que una vez era, casi
hombres y mujeres parecía haberse de-
una prisionera en el domicilio de una
tenido, escondiendo su rostro patético
familia que parece resentirla como
de vampiro arrinconado por el alba”
“mamífera isleña, plebeya de Joséphine (36).
de Beauharnais en sus mestizos encan- Se percibe una inalidad al en-
tos” (17). Aquí se invoca la Joséphine cuentro que precede la partida de Ca-
creolizada, con poderes de seducción rola, una melancolía mediada y posibi-
destructivos y encantos puramente fí- litada por un performance y una nueva
sicos (convertida en emperatriz súbito puesta en escena (re-staging) de un
a su matrimonio con Napoleón) re- pasado de amistad compartida intrín-
presenta en el imaginario europeo. En secamente atada a un lugar. El re-sta-
este caso, Francia seguramente no es la ging permite que la mujer y su cuerpo
ex-métropole de Puerto Rico, pero sin sean, en cada instancia, la protagonista
embargo es frecuentemente entablado de su relato. En este contexto, Vilma
en la icción de Ana Lydia Vega. Es y Carola pueden existir plenamente
aquí que ella encuentra el más obvio solo con Puerto Rico como referente,
ejemplo de la “vieja Europa,” (que Ca- un refugio no obstante lo externo que
rola equivale con la civilización), solo se encuentre. Los silencios que dicta-
para allí encontrar la violencia que dejó minan la vida de Vilma son quebrados
atrás (el caso Malén) reproducida en por las canciones “Verde Luz,” “Des-
Europa. pierta Boricua,” e “Isla Nena,” mien-

• 612 •
tras que las dos emplean cuerpo y voz el habla en la narrativa. En “Pasión de
para re-crear una pertenencia que les es historia,” Vega continua su adaptación
ajena: se cantan la presencia hacia otro creativa del lenguaje coloquial, a su vez
espacio. incorporada con un claro conocimien-
Disonancias Caribeñas: Luego de to del francés. De esta manera Vega
haber vuelto a Puerto Rico, Carola se reconoce la concepción más amplia
siente arrepentida por no haber indaga- del Caribe polífono, común en obras
do más en la vida de Vilma, y no haber como su inluyente Encancaranublado y
aconsejado a una amiga que claramen- otros cuentos de naufragio, en el cual pro-
te naufragaba. Carola comenta que, “A tagonistas naufragados de a lo largo de
pesar del ajoro, no podía dejar de pen- las Antillas ponen en escena los discur-
sar en Vilma. Su imagen estilizada de sos y disonancias internas del Caribe, o
madona latina martirizaba mis sueños. el “intercambio poblacional interno y
Por in saqué un ratito y le escribí: una externo que caracteriza la historia co-
larga carta llena de interrogaciones, de lonial y poscolonial del Caribe” (Marti-
consejos, de todo lo que no había tenido los nez-San Miguel, 28).
ovarios de decirle” (37). La carta no recibe La cualidad física de esta polifo-
contestación, proponiendo la pregun- nía de feminizada (gendered), en la cual
ta de si Vilma habría encontrado inal la mujer da luz a narrativas nacionales,
parecido al de Malén. Es la “escritora” habla desde los ovarios, y canta el lugar,
del cuento, la narradora Carola, quien se mantiene únicamente caribeña en
no se entera del inal del relato. Una su performance y su articulación. En
nota inal, supuestamente escrita por lugar de necesariamente evocar la hi-
los editores del periódico que emplea bridez del Caribe, la manera en la cual
a Carola revela que, entre la música y estos y otros textos le dan importancia
el baile que festeja el in del año, ella primaria al cuerpo (sus movimientos,
recibió un disparo en la cabeza de una sensaciones, sonidos, ruidos, y lenguaje
bala perdida. “Pasión de historia” es de apropiado) puede verse como una air-
particular intriga, ya que presenta a las mación de la Créolité. Mientras que la
violencias coloniales como circulares, hibridez propuesta por Bhabha y otros
repetitivas, y con víctimas frecuente- teóricos ha cobrado un signiicado glo-
mente femeninas. El nombre Pasión balizado, la Créolité propone lo que
de historia implica a la vez una histo- Coniant y Chamoiseau notan como
ria de pasión y sentir una pasión por el “une annihilation de la fausse univer-
relato, un double entendre que recalca la salité, du monolinguisme et de la pure-
importancia del manejo del lenguaje y té,” (28) que la literatura caribeña lleva

• 613 •
a cabo como su realidad vivida. Hablar BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the
Subversion of Identity. Routledge, 1990.
desde el cuerpo, y hacerlo en lenguaje
que es distintivamente de y para el Ca- KINCAID, Jamaica. A Small Place. New York: Farrar,
1988.
ribe, propone que el Caribe ya es un
MARTÍNEZ-SAN MIGUEL, Yolanda. Caribe Two
lugar de coherencia interna que alberga Ways: Cultura de la migración en el Caribe insular hispá-
múltiples y entrelazadas historias para- nico. Ediciones Callejón, 2003.

lelas, que a su vez proveen contra-na- MURRAY, R. Shafer. he Tuning of the World. Knopf,
rrativas (o quizás, contra-cuerpos), a 1977.

la corriente predominante de historia RIVERA-COLÓN, Irma. La huella de Palés : Su presen-


Europea y Estadounidense. Mientras cia en las voces de Luis Rafael Sánchez, YVÁN SILÉN,
Mayra Santos Febres, y Ana Lydia Vega. Isla Negra Edi-
que el cuerpo femenino está conti- tores, 2012.
nuamente representado como el lugar
SCHWARZ-BART, Simone. Pluie et vent sur Telumée
de enunciación al igual que el sitio de Miracle. Paris : Editions du Seuil, 1980.
mayor sufrimiento, su puesta en escena TAYLOR, Diana. Disappearing Acts: Spectacles of
(staging) es airmativa en mucha ic- Gender and Nationalism in Argentina’s “Dirty War”.
Durham: Duke University Press, 1997.
ción caribeña contemporánea, e insiste
en el Caribe como el lugar del hogar y TORRES SAILLANT, Silvio. An Intellectual History of
the Caribbean. Palgrave Macmillan, 2006.
el aincamiento, el génesis de una histo-
ria compleja con cuerpo de mujer. Si el VALDÉS, Zoé. La nada cotidiana. Buenos Aires: Emecé
Editores, 1996.
caribe es una “isla que se repite” (Bení-
VEGA, Ana Lydia. Pasión de historia. Ediciones de la
tez-Rojo), para las escritoras caribeñas lor, 1987.
es el cuerpo el que marca la diferen-
cia, y se airma. Como insiste la sufrida •
protagonista de la novela Pluie et vent
sur Télumée Miracle de Simone Schwarz- Pós-Feminismo
Bart (Guadeloupe) : “Si on m’en don-
nait le pouvoir, c’est ici même, en Gua- O pós-feminismo é um concei-
to em movimento, sendo importante
deloupe, que je choisirais de renaître,
especiicá-lo sob uma perspectiva si-
souffrir et mourir” (11).
tuada, sendo aqui deinido a partir do
Lara Dotson– Renta pós-feminismo estadunidense, elabo-
rado a partir de dissensos. Para além
Referencias y indicaciones de um conceito foi um processo que
se iniciou na “crise” da 2ª onda do
BERNABÉ, Jean, Patrick Chamoiseau & Raphaël Con-
iant. Éloge de la créolité, Paris: Gallimard, 1993. movimento feminista, abrindo espaço
para as teorias pós-coloniais, a teoria
BENÍTEZ-ROJO, Antonio. La isla que se repite: el Cari-
be y la perspectiva posmoderna. Rama, 1999. queer, os estudos transgênero etc. A

• 614 •
2ª onda do movimento feminista du- merece destaque no movimento da 3ª
rou aproximadamente duas décadas onda é a ressigniicação positivada da
(dos anos 60 aos anos 80 do século sexualidade das mulheres, a airmação
XX), tendo como pautas principais a da sexualidade das mulheres como
desigualdade de gênero, a sexualidade um direito, a prevalência de uma po-
das mulheres, a família, os direitos re- lítica do desejo como possibilidade de
produtivos e as condições de trabalho. ser. Essa ressigniicação da sexualida-
Foi diferente da 1ª onda, que pautou de lançou novas possibilidade sobre a
predominantemente a superação de transexualidade, a prostituição, o tra-
obstáculos legais: o sufrágio feminino balho sexual, a pornograia, a transfo-
e as questões de propriedade. Já o fe- bia etc. A tendência pós-estruturalista
minismo da 3ª onda (termo usado pela da 3ª onda passa a caracterizar o mo-
primeira vez por WALKER, Rebecca, vimento como pós-feminista. Nesse
no artigo “Becoming the Third Wave”, momento ganha visibilidade e impulso
1992) tem seu início nos anos 90 e sur- o feminismo lésbico, pois durante os
ge como uma resposta aos vazios per- anos 60 é quando emerge e se cristaliza
cebidos no movimento da 2ª onda, in- a comunidade feminista lésbica como
dicando que não existe uma categoria um sujeito político ativo, potente e vi-
hegemônica de mulher, mas que essa sível que perdura durante as décadas
forma de existir é plural e múltipla, ou de 80 e 90. A cristalização desses “no-
seja, matizada por questões culturais, vos” sujeitos pós-feministas dos anos
étnicas, sociais, etc. Ao inal de seu ar- 90 é resultado de diversos dissensos
tigo, Rebecca Walker preconiza a ne- nos próprios movimentos sociais e
cessidade de entender as estruturas e as feministas, não nasceram de forma es-
lógicas do poder para desaiá-las. A 3ª pontânea, mas se fortaleceram durante
onda protagonizou uma luta importan- esse momento onde o neoliberalismo
te pela não essencialização da mulher, começa a se enraizar e converter em
mas pela defesa de modos de subjetiva- identidade e cultura qualquer forma de
ção, de ser/estar no mundo que extra- dissenso político para se re-apropriar
polam os enquadramentos universais das subjetividades. De fato, para algu-
sobre o ser mulher e sobre o feminino. mas feministas críticas, o pós-feminis-
Assim, podemos airmar que a episte- mo coloca em jogo o sujeito político
mologia da 3ª onda, a partir de várias do feminismo. Assim, não se trata de
correntes feministas, é pós-estrutura- um construto antifeminista, ao con-
lista, pois supera as interpretações co- trário, indica a ampliação de algumas
nhecidas e “naturalizadas” atribuídas características do feminismo como te-
ao sexo e ao gênero. Um aspecto que oria política. Para PRECIADO, Beatriz

• 615 •
(2004), o discurso dos anos 90 do sécu- minismo, sujeitos políticos “abjetos”,
lo XX sinalizou uma mudança concei- desprezados (prostitutas, transgênero,
tual, a partir dos debates de igualdade drag quenn, drag king, lésbicas negras
e diferença, justiça e reconhecimento etc.) que não se identiicam com as lu-
e, inclusive, desde o essencialismo e o tas das mulheres da 2ª onda feminista,
construtivismo, aos debates acerca da pois reclamam outros lugares, outras
produção transversal das diferenças. políticas para além da categoria mulher
Esse giro conceitual marca um deslo- e da própria identidade homossexual.
camento da compreensão da diferença São os sujeitos políticos abjetos que
sexual e de gênero, para além da lógica denunciam que as mulheres não são os
binária e/ou essencialista. Nesse senti- sujeitos políticos compulsórios do fe-
do, não se trata de pensar as posições minismo, tampouco os homossexuais
subjetivas de classe, nacionalidade, ou gays. O movimento pós-feminista
raça, etnia como acumulativas à opres- abre novos espaços conceituais e de
são/violência sexual ou de gênero, mas ação política para pensar e deinir os
entrecruzadas, transversais ou mútu- desejos, os corpos e a vida. Reclamar
as. Essa é uma proposta que escapa à e lutar por novas formas de existên-
hierarquização de categorias políticas, cia, politizar o social, a partir do cor-
fazendo pensar na “interseccionalida- po, corpo-discurso, corpo-ação. Esses
de política” (CRENSHAW, Kimberly, “novos” sujeitos pós-feministas expe-
2012) desses eixos que estratiicam a rimentam e imprimem mudanças pro-
opressão/violência. Cabe destacar que fundas nas formas de produzir o sexo,
esse conceito cunhado pela advogada o gênero, a raça etc. Para Preciado
feminista afro-americana, apesar de (2004), outro aspecto importante é que
hoje em dia estar incorporado no apa- esses sujeitos políticos passam a re-si-
rato teórico conceitual do feminismo tuar uma enunciação cientiica, já não
institucional, foi cunhado desde uma produzidos como objetos/abjetos/
crítica fundamental ao esencialismo marginais, mas começam a reivindi-
e ao racismo e desde a produção de car e produzir um saber local/situado,
conhecimento situado e “encarnado”. contextualizado a partir de suas exis-
Trata-se de pensar como essas posi- tências e práticas, colocando em xeque
ções subjetivas se articulam e se co- o saber hegemônico. Trata-se de uma
nectam historicamente, sem comparti- epistemologia da insurgência. Trata-
mentá-las. Para LAURETIS, Teresa de -se de usar os “recursos identitários”
(1994), o pós-feminismo sinaliza uma como lugares potentes e estratégicos
ruptura constitutiva do sujeito do fe- de ação política, sem considerá-los me-

• 616 •
ros efeitos de um sistema opressor ou é uma visão anacrônica, pois práticas
como as bases “naturais” da formação da antiguidade oriental, envolvendo ri-
de um grupo social/comunitário. tuais simbólicos de renovação da vida
– união sagrada entre a grande sacer-
Aline Reis Calvo Hernandez
dotisa e o futuro Rei ou entre uma sa-
Sayak Valencia Triana
cerdotisa e o visitante do templo – são
Indicações de leitura interpretadas, a partir de valores do
presente, ou seja, como de sexo mer-
BHABHA, Homi. he Location of Culture. Londres:
Routledge, 1994. cantilizado (SWAIN, 2005, p. 2). Na re-
alidade, a forma como ela se apresenta
BUTLER, Judith. Undoing Gender. Boca Raton, Routle-
dge, Taylor & Francis Group, 2004. em nossos dias, está ligada à urbaniza-
CRENSHAW, Kimberle. A Intersecionalidade na Discri-
ção massiva e à sociedade de mercado.
minação de Raça e Gênero. Disponível em: http://www. Ao longo desse tempo, os Estados têm
acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/09/
Kimberle-Crenshaw.pdf oscilado entre sua proibição ou sua re-
Acesso em 13/2/17. gulamentação e, via de regra, o peso
LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: do pecado tem incidido sobre as pros-
HOLLANDA, H. B. de. Tendências e impasses. O fe-
minismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco,
titutas, enclausuradas, estigmatizadas,
1994. desprezadas (LEGARDINIER, 2009,
PRECIADO, Beatriz. Entrevista com Beatriz Preciado p. 199).
a Jesús Carillo. Desacuerdos, vol. 2, outubro de 2004, Especialmente, a partir do sécu-
pp.244-261. http://www.arteleku.net/4.0/pdfs/preciado.
pdf lo XIX, políticos, reformadores religio-
WALKER, Rebecca. Becoming the hird Wave. Ms. (Ja-
sos, autoridades médicas e cientíicas
nuary/February, 1992) pp. 39-41. discutem se o comércio sexual deve ser
legalizado, proibido ou abolido. Nesses

debates, a prostituta serve de símbolo
da desordem social, da imoralidade e
Prostituição
da doença. As posições das feminis-
tas sobre o assunto são tão divididas,
Via de regra, a prostituição é
quanto às das autoridades. A França
apresentada como “a mais velha pro-
da segunda metade do século XIX
issão do mundo”, o que contribui
apresentou-se como a grande teórica
para evitar qualquer questionamento,
do internamento. Sob o argumento de
concorrendo para aceitá-la como um
defesa da sociedade do risco sanitário
fatalismo, naturalizando a sua existên-
(síilis) e da desordem sexual (estupros,
cia através dos tempos. Esta, porém,
adultério) os grupos no poder decidi-

• 617 •
ram-se pelo regulamentarismo, ou seja, como uma violência, independente-
as prostitutas icariam isoladas nos mente das condições de autonomia ou
bordéis, sujeitas ao controle policial e coerção das mulheres que o realizam.
acompanhamento médico, isentando- Assim, desde os anos 1980 a
-se os clientes, criadores desse merca- tensão ideológica e estratégica entre
do que, desde então, não têm sido pu- aquelas que reconhecem a prostituição
nidos, nem rejeitados socialmente. como trabalho e aquelas que a deinem
Tal fato deu lugar à forte cam- como violência contra as mulheres
panha pela abolição de regulamenta- tornou-se um ponto de cisão política
ção estatal da prostituição, iniciada em feroz no âmbito do feminismo inter-
1870, pela feminista inglesa Josephine nacional. Enquanto as primeiras lu-
Butler, que combateu, especialmente, tam ao lado das prostitutas contra as
o assédio policial às prostitutas e ou- condições de exploração e de violência
tras trabalhadoras. Na virada do século
na indústria do sexo, as segundas con-
XX, o abolicionismo se torna um dos
sideram a prostituição a situação mais
principais objetivos do movimento fe-
extrema das relações de poder entre as
minista. Nos anos 1980, reacende-se a
categorias de sexo, lutando pela sua ex-
questão com o advento da AIDS que
tinção.
faz retornar antigos medos que lem-
A historiadora Tania Navarro
bram aqueles do século XIX, em re-
Swain considera a venda de corpos
lação à síilis (PHETERSON, 2009, p. forçada ou não como talvez a maior
205). violência social cometida contra as
Paralelamente, as prostitutas mulheres. Violência que na sua con-
retomam o movimento contra a crimi- cepção é acentuada por sua total bana-
nalização pelo Estado e contra o assé- lização; mais ainda a proissionalização
dio sexual às mulheres. Politicamente, da prostituição, que acolhe adeptos
identiicando-se como “trabalhadoras mesmo entre as feministas, deine a
do sexo” exigiram o reconhecimento apropriação e a “mercantilização” total
social e legal da prostituição como tra- das mulheres como um trabalho que
balho e das pessoas que fornecem ser- seria tão digniicante quanto qualquer
viços sexuais como cidadãs legítimas. A outro. Nesse sentido, acrescenta a his-
posição dessas militantes e suas aliadas toriadora que a simples classiicação
feministas se chocou de imediato com “trabalho” promove a compra de mu-
as feministas da corrente abolicionis- lheres – momentânea ou permanente,
ta, as quais deinem o comércio sexual como no caso das meninas raptadas,

• 618 •
violentadas e prostituídas – a um nível te relacionada à desigualdade social no
de mercado, de justiicação monetária, país e à questão do gênero. Os cafetões
de inserção nos mecanismos de produ- e todos aqueles ligados à administração
ção e reprodução do social. De fato, a do tráico e o turismo sexual são os
prostituição é um agenciamento social que realmente lucram com este comér-
onde a classe dos homens, como bem cio (CASSEMIRO et al., 2013, p. 2).
deiniu Christine Delphy, se apropria Queixam-se as autoras da maté-
ria citada acima que esse projeto de lei
e usa a classe das mulheres (SWAIN,
foi apresentado no inal do ano passa-
2005, p. 1).
do, sem qualquer discussão com o con-
Com relação ao Brasil, em maté-
junto d@s militantes do partido, inclu-
ria recente, três autoras contrapõem-se
sive o setorial de mulheres do PSOL.
ao projeto de lei 4211/2012 de autoria
A proposta não é uma novidade, pois
do deputado Jean Wyllys do PSOL –
em 2003 o então deputado federal Fer-
RJ que pretende regulamentar a prosti-
nando Gabeira do PV apresentou a PL
tuição, enquanto proissão e o seu local
98/2003 que objetivava a legalização
de exercício. Segundo elas, tal medida
da comercialização do sexo. Em 2004
tomada às vésperas da Copa de 2014,
o deputado Eduardo Valverde (RO)
a ser realizada nesse país viria ao en-
apresentou proposta semelhante, que
contro da demanda da FIFA que tem
também foi arquivada pela Mesa Dire-
pressionado os países, sede da Copa,
tora da Câmara. O projeto visa legali-
para a sua regulamentação ou descri-
zar o que hoje é proibido: administrar
minalização, visando o turismo sexual,
a prostituição e permitir casas de pros-
vinculado ao turismo esportivo. Nesse
tituição.
particular, lembram que o tráico in-
As mulheres são o principal
ternacional de pessoas constitui-se na
sujeito, pois a grande maioria dessas
terceira prática ilícita mais lucrativa do
proissionais são do sexo feminino,
mundo, abaixo apenas do tráico de ar-
embora transexes e travestis estejam
mas e de drogas. Mais de 40 milhões
também inseridas. É sugerido pelo au-
de pessoas se prostituem, a grande
tor da proposta que a lei resultante seja
maioria entre 13 e 25 anos, sendo 90%
conhecida como Lei Gabriela Leite,
ligadas aos cafetões. Em sua perspec-
homenageando uma ex-prostituta bra-
tiva, a prostituição estaria associada à
sileira, da década de 1970, que airma
pobreza e, na maioria das vezes não se
que para ela a prostituição foi uma vo-
conigura como uma escolha proissio-
cação. Por este critério, também pode-
nal ou uma vocação, e sim, uma forma
ria se chamar de Lei Bruna Suristinha,
de comercialização do corpo pela falta
garota rica que virou garota de progra-
de oportunidades, estando diretamen-

• 619 •
ma e então escritora, pois ambas, ape- licionista e proibicionista interditando
sar de famosas, não representariam a a facilitação das transações econômi-
trajetória da maioria das proissionais. co-sociais de pessoas com ou sem con-
Acrescentam que no referido projeto sentimento (Convenção Internacional
faz-se o diálogo, somente com as pro- sobre Repressão do Tráico de Seres
issionais que optaram livremente por Humanos e da Exploração da Pros-
esta proissão, que são minoria, e com tituição de Outrem, 1949). Na verda-
os empresários do sexo, que, protegi- de, embora alguns países signatários
dos pela lei, lucrarão ainda mais com apelem para esta Convenção, a im de
esta exploração e não com a grande justiicar suas práticas repressivas, os
maioria de pessoas que viram na pros- governos regulam a indústria do sexo,
tituição a única forma de subsistência. sobretudo, em função de seus interes-
Finalizam, acrescentando que não são ses. Assim, as leis sobre a prostituição
contra prostitutas, mas sim contra a emergem, principalmente, do nível
prostituição e a comercialização do nacional, embora a realidade da eco-
corpo. (CASSEMIRO et al., 2013, p. 3) nomia contemporânea, sexual ou não,
Cabe ressaltar que a prostitui- tenha ganho, desde 1970 um caráter,
ção no Brasil é uma atividade prois- cada vez mais internacional. Milhões
sional reconhecida pelo Ministério do de mulheres migram cada ano no in-
Trabalho com presença na CBO (Clas- terior e em outros países em busca de
siicação Brasileira de Ocupações) e renda para prover suas necessidades e
não possui restrições legais, enquanto de suas famílias. Esse é frequentemen-
praticada por adultos. Prostituir-se no te um meio de fugir da coerção e da
Brasil não é crime, o que é expressa- exploração que elas sofrem em seus
mente proibido em lei é agenciar ou países. Na ausência de direitos para
administrar a prostituição ou ter um viajar, trabalhar ou imigrar de maneira
local destinado a esta atividade. Tal po- autônoma, elas precisam contar com
sição revela-se coerente com aquela da intermediários que organizam o trans-
Organização Internacional do Traba- porte das zonas rurais para as zonas
lho – OIT, a qual propõe a entrada da urbanas e de países mais pobres para
prostituição no mercado de trabalho, países mais ricos, onde muitas se es-
defendendo a exclusão, apenas de seus tabelecem como prostitutas. Do lado
aspectos mais chocantes, como a pros- dos homens, no sistema desigual de gê-
tituição infantil (LEGARDINIER, nero, os viajantes e militares, vindos de
2009, p. 202). países industrializados sustentam uma
No plano internacional, as Na- lorescente indústria do sexo nos paí-
ções Unidas partilham da posição abo- ses em desenvolvimento, que chega a

• 620 •
produzir de 2% a 14% do produto in- cívicos e humanos (PHETERSON,
terno bruto de algumas economias re- 2009, p. 208).
gionais (PHETERSON, 2009. p. 207). Nesse sentido, destaca-se a po-
A atual expansão das migrações lêmica, ocorrida no Brasil, decorrente
de trabalho e o desenvolvimento cor- da mudança de rumo decidida pelo Mi-
relato da indústria do sexo aumenta- nistério da Saúde em recente campa-
ram massivamente os lucros e os abu- nha sobre a prevenção de doenças se-
sos. As mulheres que se identiicam xualmente transmissíveis voltadas para
como trabalhadoras do sexo reagiram as prostitutas em comemoração ao Dia
a essas evoluções, da mesma forma Internacional das Prostitutas. Todos os
que à epidemia mundial da AIDS, com seus idealizadores foram demitidos ou
organizações de base. Em meados dos constrangidos a deixarem o cargo por
pressão da bancada evangélica. Este
anos 1980, elas denunciam em todos
recuo do governo brasileiro foi con-
os continentes à violação de seus direi-
siderado inaceitável por especialistas
tos humanos em colóquios nacionais e
ligados à questão, já que, “o gozo de
internacionais.
direitos básicos, autoestima e cidada-
Com o apoio de subvenções
nia constitui condição imprescindível
não governamentais e governamentais
para a promoção da saúde, especial-
para o trabalho de prevenção da AIDS,
mente em grupos considerados sob
elas mobilizaram milhares de mulheres maior vulnerabilidade social em razão
em reuniões regionais e transregionais, do estigma, preconceito e discrimina-
principalmente, na América Latina e ção social”, de acordo com a notiica-
na Ásia; esta é a primeira vez na His- ção, elaborada pelo assessor jurídico da
tória que prostitutas se beneiciam de Rede Brasileira de Prostitutas, Roberto
um estatuto legítimo como educado- Chateaubriand Domingues.
ras para a saúde. Protestando contra Um cartaz em particular, pro-
a hipocrisia da sociedade e do Estado, vocou reações adversas não apenas em
esses “diálogos entre putas” dão uma evangélicos, mas em pessoas que se
voz política às mulheres que agora fa- entendem como defensoras de direitos
lam em seu próprio nome para reivin- e contra qualquer forma de discrimina-
dicar a solidariedade dos organismos ção. A imagem de uma mulher sorrindo
responsáveis por trabalho e por migra- com a frase “Eu sou feliz sendo pros-
ções e dos movimentos feministas, exi- tituta” sofreu fortes restrições, sendo
gindo o im do assédio sexista, racista acusada de “gloriicar”, “glamourizar”
e colonialista das autoridades públicas, uma proissão que, segundo estas pes-
assim como o pleno acesso aos direitos soas, “objetiica”, “mercantiliza”, trata

• 621 •
a mulher como “coisa” e, portanto, como “namoro”. São até vislumbrados
uma carreira indigna de qualquer pes- como relacionamentos de “interesse”,
soa. Tal fato levou ao questionamento: mas não merecem as mesmas atenções
por que uma mulher, líder das prosti- das forças de segurança que prendem
tutas, num cartaz dizendo “sou feliz mulheres e violam seus direitos porque
sendo prostituta” causa tanto mal-es- são taxadas de “putas”.
tar até mesmo nas pessoas que se au- Enim, a categoria “puta” é acu-
todenominam “libertárias” e a favor da satória e é aplicada a um certo tipo de
construção de “igualdades”? mulher de classe e de cor, a qual “ME-
A resposta, de acordo com a RECE apanhar ou ser “controlada”
autora da matéria, reside no fato de e incentivada a procurar empregos
que ser prostituta foi tão estigmatizado “dignos”. E se airmamos a necessida-
que não se consegue vislumbrar que de destas pessoas terem direitos reco-
as pessoas que vivem disso podem ser nhecidos, estamos gloriicando a pros-
agentes e cidadãs. Aprendemos que tituição. Termina sua fala, aludindo a
alguém que é prostituta por si só está existência de pesquisas sérias sobre a
numa condição de inferioridade tão temática, que não compactuam com
grande que todas as suas capacidades
os preconceitos vigentes e as soluções
de discernir sobre o que é certo ou er-
abolicionistas para acabar com este
rado lhe foram retiradas. Por isto con-
“mal”.
tinuam lá. De repente ter alguém fora
Em que pese este “mal estar”,
desse padrão incomoda e parece estar
“glamourizando” uma função que se constata-se a existência de lideranças
considera ser de antemão degradante entre as prostitutas que lutam por ga-
(SILVA, 2013). rantir a airmação de sua cidadania e o
Mais adiante, é colocado algo reconhecimento de seus direitos (Pros-
que via de regra não se dá a devida titutas exigem...,2013). Na verdade, são
atenção, em termos da diversidade e herdeiras do movimento iniciado nos
complexidade do campo da prosti- anos 1980 por Gabriela Leite que en-
tuição, não existindo apenas um tipo frentou inúmeros preconceitos na de-
de prostituição. Na verdade, existem fesa dos direitos das prostitutas, que
muitos tipos e pessoas envolvidas de viviam em situação de “quase absoluto
todas as classes e cores, sendo uma
abandono social”. Situação reforçada
simpliicação acreditar que só pobre se
pelos desencontros com os feminismos
prostitui. Determinadas trocas se en-
e com a ausência de apoio dos grupos
volvidas por pessoas de classes sociais
de esquerda que as viam como parte
mais abastadas podem ser entendidas

• 622 •
do “lumpen-proletariado”, setor irrele- do Sexo (APPS) já fez circular nas re-
vante para a revolução social (RAGO, des sociais uma peça em que aparece
2011, p.169). Arregimentando forças, ao lado da frase que se tornou sucesso
ao lado do jornalista Flávio Lenz e da nacional: “Sou feliz sendo prostituta”.
prostituta Maria de Lourdes Barreto Nilce Machado, presidente do Núcleo
cria a Rede Brasileira de Prostitutas e de Estudos da Prostituição, o NEP de
em 1992 a ONG DaVida, iniciativa Porto Alegre, lembra que os vídeos da
completada pela criação da DASPU, campanha (também censurados) fo-
em 2005, grife de moda, voltada para a ram exibidos em praça pública, ao inal
confecção de roupas, da qual as prosti- da oicina em João Pessoa, e “muito
tutas desilam como modelos nas pas- bem aceitos” por integrantes do go-
sarelas dos mais diversos locais. verno municipal. “Como posso fazer
E hoje estas novas lideranças campanha de prevenção sem falar na
desaiam seus detratores, como Luzari- proissão?”, questiona. Sobre a frase
na, Coordenadora geral da Associação que escancarou a traição do governo a
de Prostitutas da Paraíba (Apros-PB), princípios da saúde pública, em troca
de João Pessoa, onde foi realizado em de uma infeliz ambição eleitoreira, ela
março o evento de criação da Cam- conirma quantas vezes for necessário:
panha, a qual faz questão de airmar: “Sou, sim, uma prostituta feliz e nem
“Sou uma puta cidadã e tenho o di- esse governo vai tirar a minha felici-
reito de expressar meus sentimentos. dade”. Gabriela Leite, diante dessas
Sou feliz sendo prostituta”. Ativista manifestações airma estar “orgulho-
da Associação Maranhense de Prosti- sa das colegas que se indignaram com
tutas (Aprosma), Jesus considera que essa violenta intervenção do governo
“as prostitutas não têm motivo para na campanha”. Para ela, essas reações
ter vergonha de nada, pois estamos “são também fruto de 30 anos de mi-
mostrando a nossa cara”, e que os re- litância”.
presentantes do governo é que deve-
riam “ter vergonha” com a mudança Raquel Sohiet
da campanha. “Já sabemos comer com
Referências e sugestões de leitura
nossas mãos. Este povo quer brincar
conosco, vamos dar para eles nossas CASSEMIRO, Lívia; COELHO, Natália; SALES, Ká-
respostas”, disse. Outra participante da tia. Prostituição e mercantilização do corpo da mulher –
quem ganha com isso? Boletim Eletrônico da LSR. www.
oicina Nanci Feijó militante da Asso- lsr-cit.org/mulheres/30-mulheres/1012-prostituicao.
Acesso a 30/05/2013.
ciação Pernambucana de Proissionais

• 623 •
LEGARDINIER, Claudine. “Prostituição I” In: Helena
Hirata, Françoise Laborie, Hélène Le Doaré, Danièle
Senotier (Orgs.) Dicionário Crítico do Feminismo. São
Paulo: Ed. UNESP, 2009. 199-203.

LEITE, Gabriela. Filha, mãe, avó e puta: a história de


uma mulher que decidiu ser prostituta. Rio de Janeiro:
Ed. Objetiva Ltda. 2010.

PHETERSON, Gail. “Prostituição II” In: Helena Hira-


ta et alii. Op. Cit. 203-208. Silva, Ana Paula. Facebook.
Acesso a 11/06/2013.

RAGO, Margareth. “Cartograias de si no feminismo da


diferença: Amelinha, Gabriela, Norma” Gênero: Núcleo
Transdisciplinar de Estudos de Gênero – NUTEG. V.10
N. 2. Niterói: Editora da UFF, 2011. P. 151-175.

Prostitutas exigem que Ministério da Saúde tire campa-


nha do ar. Participantes da oicina de criação criticam
“radical mudança” na ação em notiicação extrajudicial ao
ministro. Facebook. 11/06/2013. Agradeço a minha co-
lega a historiadora Profª Cecília Azevedo da UFF o acesso
a esse material.

SWAIN, Tania Navarro. “Banalizar e naturalizar a prosti-


tuição: violência social e histórica”. Labrys estudos femi-
nistas. Agosto/dezembro 2005 – août/décembre – 2005.
www.tanianavarroswain.com.br/labrys/labrys8/perspec-
tiva. Acesso a 17/06/2013.

• 624 •
Queer, Teoría

El término Teoría Queer apa-


rece como el novedoso título de una
conferencia organizada por Teresa de
Lauretis en 1990. Desde entonces tal
expresión ha impactado de forma no-
table en la teoría feminista y de género,
así como en los estudios gays y lésbi-
cos, por su capacidad de problematizar
y desestabilizar las categorías de pen-
samiento utilizadas hasta el momento
(WATSON, 2005). En primer lugar, la
Teoría Queer ofrece un modo de abor-
dar la sexualidad más allá de cualquier
etiqueta que denote desviación o nor-
malidad. La seductora utilización del
término Queer ha proliferado desde
entonces debido a su potencia disrup-
tiva. Si bien para varios intelectuales
este término se convirtió casi de inme-
diato en una categoría conceptualmen-
te vacía de la industria editorial, coop-
tada por las instituciones que pretendía
desmantelar, la Teoría Queer muestra
un ritmo de producción extrañamen-
te acelerado y desordenado que se ha
independizado de su intención inicial
–más ligada a una provocación que a
una posición teórica consistente. Es
así que la Teoría Queer parece coni-
gurarse como una oposición radical a
la norma, una forma de resistencia a la
homogeneización cultural que permite
contrarrestar los discursos dominantes
a través de otras construcciones y po-

• 625 •
sicionamientos subjetivos en el interior de lo simbólico en la construcción de
de una cultura hetero-normada. las mismas. Los primeros trabajos en la
‘Queer’ puede ser traducido Teoría Queer estuvieron muy inluen-
como extraño, torcido o raro. Su uso ha ciados por la obra de Michel Foucault,
servido como insulto denigrante para Judith Butler, y Eva Kosofsky Sedgwi-
señalar a quienes son identiicados fue- ck. La atención se focalizó en la de-
ra de los alcances de la sexualidad he- construcción, desmontaje y desafío de
gemónica y normativa. Sin embargo, el la heterosexualidad hegemónica, en la
término fue resigniicado y apropiado forma en que la heterosexualidad ins-
en un sentido positivo, de tal modo la tala la norma en los arreglos culturales
posición marginalizada y excluida que actuales que articulan todo el espectro
designa lo Queer deja de ser una lo- de las expresiones y deseos sexuales,
calización indeseada. En este sentido, incluyendo las identidades sexuales do-
Queer designa la asunción orgullosa minantes y marginadas.
y airmativa de una posición subjetiva En algunos aspectos, Jacques
radicalmente novedosa que no pre- Lacan fue especialmente inluyente al
tende ingresar en los marcos normati- destacar la precariedad de la identidad
vos, tampoco liberarse mediante air- y la noción de un yo constituido a tra-
maciones identitarias disidentes, más vés del encuentro con lo simbólico.
bien pretende subvertir o socavar el Del mismo modo, varios autores han
dimorismo sexual como principio de explorado las construcciones binarias,
inteligibilidad cultural que torna al sexo presentes en la constitución de las
dicotómico, hetero y estable. En este identidades sexuales y de género, des-
sentido, lo Queer no pretende hundir de un enfoque que privilegia los efec-
sus raíces en la subjetividades a tra- tos discursivos del lenguaje. Sin duda,
vés de identidades ijas y monolíticas. el pensador más referenciado en las
Lo Queer supone la luidez del movi- producciones reunidas en este campo
miento continuo, la no captura en las de estudios es Michel Foucault (1975,
categorías que ofrece la norma, admite 1976). Sus ideas sirvieron como mar-
la ambigüedad, el no lugar, el tránsito, co fundamental para el surgimiento
el estar entre. Por tanto más que una de la Teoría Queer. Foucault ilustra el
identidad, Queer señala una disposici- modo en que la sexualidad se consti-
ón o un modo de estar y de vivir. tuye como tal al ser tomada como ob-
La Teoría Queer ha sido inlui- jeto de determinados saberes institu-
da por los aportes del posestructura- cionales. Esto signiica que mediante
lismo y del psicoanálisis que reieren el examen de los discursos fue posible
a la identidad, la sexualidad y al papel comprender cómo ciertos actos y con-

• 626 •
ductas se transformaron en blanco de la identidad en el marco de los movi-
determinados discursos, por lo tanto mientos de liberación gays, lésbicos y
fueron sujetos al poder disciplinario y de otras minorías. En este contexto,
así entrampados en identidades (como el sexo comienza a pensarse como
la homosexual) interiorizadas como una icción regulatoria (FEMENÍAS,
atributos esenciales. La identidad, en 2003) que, como tal, debe ser desnatu-
los escritos de Foucault, por lo tanto, ralizada. Para ello la Teoría Queer ancla
está históricamente constituida (no es el género en el lenguaje performativo
a-histórica). Este enlace entre discurso para desvincularlo de los alcances del
e identidad constituye el corazón de la pretendido determinismo biológico
Teoría Queer. Foucault también air- del sexo.
mó que el poder no es una propiedad Resulta evidente que quienes se
ejercida por una mayoría dominante, localizan entre los intelectuales queer
sino que se trata de relaciones e inte- se expresan de forma más deconstruc-
racciones. Lo que es particularmente tiva que propositiva, por este motivo
importante para la teoría queer, sin no sería muy razonable imaginar a la
embargo, fue la idea de que, en cual- Teoría Queer como la formulación de
quier relación en la que opera el poder un cuerpo organizado de enunciados
también se produce la posibilidad de la o un conjunto de ideas más o menos
resistencia. homogéneas. El intento de cercar una
El impacto del pensamiento de posible descripción o deinición de lo
Foucault produjo, de este modo, un Queer trae consigo un carácter polémi-
giro radical anti-esencialista en la for- co, pues no deja de ser una ambición
ma en que se venía pensando la iden- paradójica conceptualizar una perspec-
tidad sexual. De estos aportes se des- tiva que claramente hace hincapié en la
prenden los principios fundamentales incognoscibilidad radical de sus forma-
de la Teoría Queer, los cuales se con- ciones futuras. Toda construcción de
traponen a –pero surgen a partir de– conocimiento estable y coherente se
varias fuentes teóricas provenientes de produce simultáneamente, al interior
los estudios gays y lésbicos de los años de esta teoría, con sus limitaciones o
1970 y 1980 en Estados Unidos (GIF- caducidad.
FNEY, 2004). Este contexto sociopo- En su forma más básica, la Te-
lítico albergó el proyecto de liberación oría Queer se caracteriza por una va-
de identidades sexuales no subsidiarias riedad de métodos que interrogan los
a la heteronormatividad. La Teoría modos normativos de deslindar la se-
Queer coniguró una respuesta a los xualidad y su relación con la identidad.
retos que planteaban tales políticas de Hunde sus raíces en la deconstrucción

• 627 •
postestructuralista para revelar la cons- las directrices y los límites para pensar
titución histórica de la sexualidad y del a los sujetos y a las prácticas es binaria.
género. En este contexto cobran espe- Fuera del binarismo que entreteje todo
cial relevancia categorías tales como este artilugio ideológico se sitúa lo im-
“heterosexual”, “gay” y “lesbiana”, pensable, lo ininteligible… lo Queer.
especialmente se enfatiza su reiicación Dentro de los dominios luctu-
en identidades estables. La perspecti- antes de la Teoría Queer la discontinui-
va Queer devela, entonces, el carácter dad y la incoherencia no son atributos
de construcción frágil e inestable que que deben ser evitados a cualquier cos-
subyace a la icción de posiciones se- to. Por el contrario, la discontinuidad
xuales ijas y estables aglutinadas en o incoherencia por parte de quienes
identidades coherentes, discretas, mo- no se conforman a las normas de in-
nolíticas e invariables, así como los teligibilidad cultural por las que debe-
complejos anudamientos existentes rían ser deinidos, sostienen formas de
entre género y sexualidad (JAGOSE, pensamiento que resisten, cuestionan
2009). y rompen los límites de las prácticas e
El blanco de la oleada decons- identidades sexuales establecidas.
tructiva se dirige, de manera privilegia- En este sentido, parece claro
da, hacia el modo en que las sociedades que la nomenclatura Teoría Queer re-
asumen y reiteran un encadenamiento sulta engañosa, pues no constituye un
causal y coherente entre Sexo-Géne- sistema claramente uniicado de traba-
ro-Sexualidad. Las normas sociales de jo, más bien se trata de una perspectiva
género pretenden capturan los cuer- utilizada por diversas disciplinas. La
pos, los identiica como machos o teoría queer permite pensar el modo
como hembras determina un género en que se constituyen las identidades y
linealmente asignado (masculino o fe- cómo se reproducen. De algún modo,
menino) y los orienta de acuerdo a una las identidades (sexual, de género, en-
única dirección del deseo (al sexo/gé- tre otras) pueden entenderse como
nero opuesto). El proceso a través del producciones relacionales, y no como
cual se producen y reiteran compulsi- identidades estables pre-existentes.
vamente los cuerpos dimóricamente Aunque fuertemente criticada y
sexuados (HIRD, 2004), por un lado, resistida, la Teoría Queer ha convertido
y la norma heterosexual, por otro, se en un importante movimiento intelec-
inscribe en esta lógica, que asegura el tual en los últimos tiempos. Como tal,
mantenimiento de la continuidad y de ofrece una nueva lente y la perspectiva
la coherencia entre Sexo-Género-De- única que se puede utilizar para exami-
seo (BUTLER, 1990). La lógica que da nar y entender las relaciones sociales y

• 628 •
los movimientos de la cultura. Ofrece Indicaciones de lectura
una nuevo punto de mira epistemoló-
gico y un conjunto de metodologías PRECIADO, Beatriz. Maniiesto contrasexual. Barcelona:
Anagrama, 2011.
para examinar críticamente, analizar
RUBIN, Gayle. “hinking sex: Notes for a radical theory
y comprender las relaciones sociales, of the politics of sexuality”. In C. S. Vance (Ed.). Pleasu-
en particular los organizados en torno re and danger: Exploring female sexuality (pp. 267–319).
New York: Routledge & Kegan Paul, 1984.
construcciones actuales de la sexua-
lidad y el deseo (VALOCCHI, 2005). SEDGWICK, Eve. Epistemology of the Closet. Berkeley:
University of California Press, 1990.
Además, pone de relieve la centralidad
de las relaciones de poder y destaca la WITTIG, Monique. El pensamiento heterosexual y otros
ensayos. Madrid: Eagles, 2005.
necesidad de examinar y comprender
los contextos de manera histórica, geo-
gráica y política.

Ariel Martinez

Referencias

BUTLER, Judith. Gender trouble. Feminism and the


subversion of identity. New York & London: Routledge,
1990.

FEMENÍAS, M. L. Judith Butler: introducción a su lec-


tura. Buenos Aires: Catálogos, 2003.

FOUCAULT, Michel. La voluntad de saber. Historia de


la sexualidad Vol 1. Buenos Aires: Siglo XXI, 1976.

FOUCAULT, Michel. Vigilar y castigar. Nacimiento de


la prisión. Buenos Aires: Siglo XXI, 1975.

GIFFNEY, Noreen. Denormatizing Queer heory: More


han (Simply) Lesbian and Gay Studies. Feminist he-
ory. Vol. 5, No. 1, p.73-78, 2004.

HIRD, Myra. Naturally queer. Feminist heory. Vol. 5,


No. 1, p.85-89, 2004.

JAGOSE, Annamarie. Feminism’s Queer heory. Femi-


nism & Psychology. Vol. 19, No. 2, p.157-174, 2009.

VALOCCHI, Stephen. Not Yet Queer Enough: he Les-


sons of Queer heory for the Sociology of Gender and
Sexuality. Gender & Society. Vol. 19, No. 6, p.750-770,
2005.

WATSON, Katherine. Queer heory. Group Analysis.


Vol. 38, No. 1, p.67-81, 2005.

• 629 •
Relações de Gênero

O estudo das relações de gênero


abrange um campo de pesquisa acadê-
mica interdisciplinar que procura com-
preender as relações entre os gêneros
- masculino e feminino - na cultura e
na sociedade humanas. É uma compre-
ensão que passa pelos homens e pelas
mulheres, diferentes uns em relação
aos/às outros/as e entre si, e compre-
ensíveis em uma perspectiva relacional.
Considera-se ainda que essas relações
são construídas historicamente, marca-
das pela cultura e pelas relações de po-
der que fundamentam uma hierarquia
e uma assimetria social entre homens
e mulheres.
A introdução dos estudos de gê-
nero no Brasil encontrou campo fértil
na história das mulheres, caracterizada
como uma produção de saber interdis-
ciplinar, que ganhou consistência nos
anos 1970. As pesquisas envolveram
esforços de historiadoras, sociólogas
e antropólogas, feministas que tive-
ram coragem de dar voz às mulheres,
retirá-las do apagamento e do silêncio
da História, destacando as “vivências
comuns, os trabalhos, as lutas, as so-
brevivências e as resistências das mu-
lheres no passado” (PEDRO, 2005,
p.85). Nesse avanço das lutas sociais
e das críticas feministas, tem vazão a
controvérsia em torno da história das
mulheres, que parecia sinalizar a exaus-
tão da categoria mulher, vista, muitas

• 630 •
vezes, como generalizada e universal. gênero. Esse grupo decidiu editar Ca-
Abria-se, então, o campo para os gender dernos Pagu, a exitosa revista de divul-
studies ou o estudo das relações de gê- gação das pesquisas na área de gênero
nero, que ganharam relevância nos Es- e da relexão epistemológica feminista
tudos Unidos, no início dos anos 1990 no Brasil. A partir disso, abriu-se um
(RAGO, 1998, p.89). campo de pesquisa interdisciplinar que
No Brasil, os estudos das rela- busca compreender como se consti-
ções de gênero tiveram maior visibili- tuem o masculino e o feminino cul-
dade com a tradução e publicação do tural e historicamente, na perspectiva
texto da historiadora norte-americana das relações de gênero. A introdução
Joan Wallach Scott: Gênero: uma catego- dessa categoria iluminou a análise ao
ria útil de análise histórica, em 1990. Para incorporar à experiência a dimensão da
Scott (1995, p.86), “o gênero é um ele- sexualidade e das identidades constru-
mento constitutivo de relações sociais ídas, contrapondo-se à tendência de se
baseado nas diferenças percebidas en- pensar a identidade sexual como algo
tre os sexos; e o gênero é uma forma biologicamente dado (NICOLSON,
primeira de signiicar as relações de 2000, p.9).
poder”. A compreensão das relações Somam-se aos estudos de gêne-
de gênero passa, então, pela rejeição ro e dos processos de poder e domina-
do caráter ixo e permanente das opo- ção as dimensões classe, raça/etnia, de
sições binárias e pela historicização e geração e de orientação sexual, que ga-
desconstrução dos termos da diferen- nham crescente complexidade. Nesse
ça sexual” (SCOTT, 1995, p.84). sentido, como chamam atenção Rachel
Outro marco na disseminação Soihet e Suely Costa (2008, p.43) “o
da categoria analítica relações de gê- interesse despertado pelo conceito de
nero no Brasil se deve à iniciativa de gênero, nesses termos, é indicativo não
pesquisadoras radicadas na Unicamp apenas da visibilidade dada a proces-
(RAGO, 1998), nomes importantes sos obscurecidos na oposição homens
no debate epistemológico atual, como versus mulheres, mas de sua utilidade
Margareth Rago, Adriana Piscitelli, nas pautas de lutas por inclusão social
Elisabeth Lobo e Mariza Corrêa. Essas dos oprimidos, como da convicção de
mulheres formaram um grupo de es- que as desigualdades de poder se orga-
tudos sobre gênero, inluenciadas pelas nizam.”
leituras dos ilósofos Foucault e Der- O avanço das pesquisas tem
rida e com fortes interlocuções com permitido compreender melhor a his-
o meio acadêmico norte-americano, tória do sexo e do gênero, como o
que havia introduzido os estudos de citado trabalho do historiador da me-

• 631 •
dicina Thomas Laqueur, que publicou, é o sexo: “teria o sexo uma história? [...]
em 1992, um livro chamado Making Se o caráter imutável do sexo é con-
sex – body and gender from the greeks to testável, talvez o próprio constructo
Freud, traduzido e lançado no Brasil chamado “sexo” seja tão culturalmente
em 2001, com o título Inventando o sexo: construído quanto o gênero; a rigor,
corpo e gênero dos gregos a Freud. Um das talvez o sexo sempre tenha sido gêne-
novidades de Laqueur foi demonstrar ro, de tal forma que a distinção entre
que, até meados do século XVIII, só sexo e gênero revela-se absolutamente
existia um sexo, o masculino, sendo a nenhuma.” (BUTLER, 2007, p.25).
mulher considerada um macho incom- Nesse sentido, a condição de ser
pleto. Para o autor foram as relações homem e mulher não se restringe ao
de gênero que ressigniicaram o sexo e sexo nem ao gênero, ultrapassam esses
constituíram dois corpos e dois sexos, limiares. Assim, o gênero poderia ser
o feminino e o masculino. Mas, como considerado um ato intencional e, ao
entender essa nova coniguração? Em mesmo tempo, performático, no sen-
suas palavras “contexto para a articula- tido de construção dramática e con-
ção de dois sexos incomensuráveis não tingente de signiicado (PISCITELLI,
era nem uma teoria de conhecimento 2004, p.55). “A noção de gênero, por-
nem avanços no conhecimento cientí- tanto, inscreve-se nos debates que as-
ico. O contexto era político. Havia in- sinalam a emergência do pós-moder-
termináveis lutas pelo poder e posição nismo. Desse modo, a ênfase dada por
na esfera pública, altamente ampliada Scott à questão da diferença foi consi-
no século XVIII, e em especial no sé- derada uma ameaça ao feminismo por
culo XIX, pós-revolucionário: entre pesquisadoras/es que permaneceram
homens e mulheres, entre feministas e no campo da modernidade, alegando
antifeministas. [...]. Qualquer que fosse que essa posição precipitaria a frag-
o assunto, o corpo tornou-se o ponto mentação de sua unidade.” (SOHIET
decisivo.” (LAQUEUR, 2001, p.192). e COSTA, 2008, p.44) Por outro lado, a
Mais recentemente, o debate in- performatividade do gênero de Butler,
corporou novas perspectivas, advindas no sentido da fabricação do masculino e
das proposições teóricas da ilósofa do feminino, implode a noção de iden-
americana Judith Butler, que proble- tidade vinculada ao sexo.
matizou a categoria de gênero, ao con- Como pontua Joana Pedro, “a
siderar que esta se apoiava na noção categoria de análise “gênero” passa,
de uma ordem biológica binária. Para portanto, por intenso bombardeio, e
Butler, o gênero não é a interpretação não só por ser acusada de ser útil à do-
cultural do sexo, então, interroga o que minação. É também considerada des-

• 632 •
mobilizante para o feminismo. O que sem dúvida, no mais importante avan-
se reivindica é a retomada da catego- ço isolado da e na teoria feminista no
ria “mulher”, não mais na perspectiva inal do século XX, como assinala Jane
anterior, universal e determinada pela Flax (1991, p.226). Deinitivamente,
biologia” (2011, p.275). inaugura-se um novo paradigma para
Outras estudiosas veem com compreensão da História.
otimismo a inclusão do gênero no
campo dos estudos feministas. Ainal, Alcileide Cabral de Nascimento
“a superação da lógica binária con-
tida na proposta da análise relacional Referências
do gênero é fundamental para que se BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e
construa um novo olhar aberto às dife- subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 2008.
renças”, como declara Margareth Rago
(1998, p.98). A categoria de gênero FLAX, Jane. Pós-moderno e relações de gênero na teo-
ria feminista. In: BUARQUE DE HOLANDA, Heloísa
ilumina diferentes perspectivas sobre (Org.). Pós-modernidade e política. Rio de Janeiro: Roc-
nós mesmas/os, e é, também, um ca- co, 1991. p.217-250.

minho para desconstruir subjetivida- LAQUEUR, homas. Inventando o sexo. Corpo e gêne-
ro dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
des normativas encarceradas na bipo-
2001.
laridade do masculino e do feminino.
NICOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Estudos
“Em síntese, dentre as contribuições Feministas, Florianópolis, v.8, n.2, p.9-41, 2000.
do conceito de gênero, destacam-se:
PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da ca-
a rejeição ao determinismo biológico tegoria gênero na pesquisa histórica. História, São Paulo,
implícito no uso de termos como sexo v.24, n.1, p.77-98, 2005.

ou diferença sexual; a dimensão rela- ______. Relações de gênero como categoria transversal
cional entre as mulheres e os homens, na historiograia contemporânea. Topoi, Rio de Janeiro,
v.12, n.22, p.270-283, jan.-jun. 2011.
indicando que nenhuma compreensão
de qualquer um dos dois sexos poderia PISCITELLI, Adriana. Relexões em torno de gênero e
do feminismo. In: COSTA, Claudia de Lima e SCHMI-
existir sem um estudo que os tomasse DT, Simone Pereira. Poéticas e políticas feministas. Flo-
rianópolis: Mulheres, 2004. p.43-66.
em separado; a ênfase no caráter so-
cial e cultural das distinções baseadas RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o Gêne-
ro. Cadernos Pagu, Campinas/SP, n.11, p.89-98, 1998.
no sexo, que contribui para desnatura-
lizar o discurso biológico; a dimensão SOIHET, Rachel e COSTA, Suely Gomes. Interdisci-
plinaridade: história das mulheres e estudos de gênero.
das relações de poder que perpassa as Gragoatá, Niterói, n.25, p.29-49, 2008.
assimetrias e hierarquias nas relações
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histó-
entre homens e mulheres” (SOHIET rica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.20, n.2, p.
e COSTA, 2008, p.43). A problemati- 71-99,jul./dez. 1995.

zação das relações de gênero consiste,


• 633 •
• da disciplina, essa realidade social é
deinida como “um continuum de fatos
Relações Internacionais e processos, inclusive interpretativos”
e Gênero que cruzam a fronteira do nacional
(ROCHA, 2002; ROSENAU, 2001).
Cinthia Enloe airma a impor- Diz respeito aos intercâmbios sociais,
tância de ampliar os sentidos da políti- culturais, políticos e econômicos en-
ca internacional no século XXI (2000). tre pessoas e coletividades que não se
Tal expansão é possível ao tomar a ex- esgotam na comunidade política ou
periência das mulheres em sua diver- no âmbito interno do Estado (ROSE-
sidade, destacando a política envolvida NAU, 2001; TRUYOL, 1973). Refere-
nas manipulações de gênero. Inspirada -se a uma pluralidade de atores, como
pela máxima da segunda onda do femi- os Estados, os povos, as organizações
nismo, “o pessoal é político”, enfatiza internacionais, as organizações não go-
que o pessoal é global: “gênero faz o vernamentais, os blocos regionais de
mundo girar” (ENLOE, 2000). integração, as multinacionais, os parti-
Este verbete assume a provoca- dos políticos, os sindicatos, os grupos
ção da teórica das Relações Internacio- de pressão e os movimentos sociais.
nais (RI) e busca relatar os encontros Essa diversidade de agentes que atuam
de sentido entre esse campo do co- na ri também a caracterizam a partir
nhecimento e a categoria gênero. Para do espaço em que se localizam: a fron-
tanto, apresenta o conceito de RI, sua teira. As relações internacionais são as
fundação como disciplina e sua carac- que se efetivam no contato espaço-
terização em debates teóricos. Poste- -temporal com o outro, entre entidades
riormente, deine o entendimento de diferenciadas ou separadas.
gênero nas RI e os feminismos que se A sistematização das RI como
corporiicam como discurso cientíico campo disciplinar, com seus autores e
na disciplina. Finalmente, apresenta teorias, é tardia em relação às demais
uma relexão sobre as contribuições ciências sociais. Entre 1917 e 1919, no
desses estudos para ampliar os senti- país de Gales, surge a primeira cátedra
dos da política internacional e as rea- com o intuito de estudar a ri. Mas é
ções de analistas mais tradicionais. somente após a Segunda Guerra Mun-
Relações Internacionais é uma dial que se dá um lorescimento das
expressão que pode referir-se tanto ao RI como campo autônomo de estu-
campo de estudos (RI) quanto à rea- dos. Os Estados Unidos tornam-se, a
lidade internacional (ri). Como objeto partir de então, o centro de referência

• 634 •
da área, considerada por muitos como sor desse movimento é de autoria de
uma “ciência social norte-americana” Berenice Carroll (1972). As incursões
(HOFFMAN, 1977). de interpretações acerca das mulheres
A história da disciplina é comu- e da categoria gênero nas RI aumen-
mente apresentada a partir do emba- taram na década de 1980, adquiriram
te entre seus discursos teóricos: entre alguma visibilidade no contexto pós-
1919-1960/70, o antagonismo ilosói- -Guerra Fria e tornaram-se expressão
co, político e ontológico entre liberais a partir do terceiro debate teórico das
e realistas; no ínterim 1970/1980 a RI. É representativa a publicação edi-
disputa política, metodológica e onto- tada por Grant e Newland (1988), o
lógica entre neorrealistas, transnacio- livro compilado por Peterson (1992), e
nalistas e radicais/marxistas; a partir o lançamento da revista especializada
da metade da década de 1980 o debate The International Feminist Journal of Poli-
ilosóico, epistemológico e ontológi- tcs, em 1999.
co entre positivistas e pós-positivistas A deinição de gênero comu-
(WEAVER, 1996). É somente nesse mente adotada nos estudos das RI
terceiro debate teórico (LAPID, 1989) é próxima da desenhada por Scott
que o campo sofre uma expansão no (1995). Para a autora o gênero é uma
sentido de romper as tradicionais or- construção social de cunho relacional,
dens impostas por um discurso cientí- mitigado por relações de poder. Re-
ico positivista, naturalista, empiricista jeitando “o caráter ixo e permanente
e racionalista. Se anteriormente as RI da oposição binária”, em um exercício
tinham como conceito central a sobe- de desconstrução da naturalização da
rania e uma agenda de estudos cen- diferença sexual e da legitimação de
trada nas dinâmicas comportamentais desigualdades. Nas análises acerca da
de conlito e cooperação dos atores realidade internacional, é a categoria
estatais, o terceiro debate teórico re- gênero que identiica a perspectiva fe-
presenta a pluralização do campo e sua minista das RI. Sob essa denominação,
mediação com (des)construções socio- coexistem distintas abordagens episte-
lógicas, linguísticas e políticas vivencia- mológicas, teóricas e metodológicas.
das há mais tempo em outras áreas das Portanto, é mais apropriado referir-se
ciências sociais. às teorias/perspectivas feministas das
A categoria gênero começou a RI.
ser utilizada nas RI em interpretações As pesquisas feministas nas RI
críticas sobre paz e desenvolvimento dividem-se em gerações distintas, po-
(MURPHY, 1998). O artigo precur- rém complementares (TICKNER,

• 635 •
2007): a primeira com ênfase na for- das mulheres, seus temas e agendas
mulação teórica e na associação en- versaram sobre: desenvolvimento,
tre conhecimento e poder; a segunda Women in development e Gender and deve-
vinculada com análises empíricas re- lopment (LOCHER, 2001); globaliza-
alizadas a partir do ponto de vista de ção, feminização da pobreza e divisão
gênero, “gendered lenses” (PETERSON; sexual do trabalho (SASSEN, 1998;
RUNYAN, 1999). No terceiro debate PATTMANN, 1989); organizações
teórico, autoras como Tickner e Sylves- internacionais e sua elite masculina
ter orientaram suas formulações para (PRUGL, 2000); política externa e o
denunciar o caráter masculino e pa- caráter masculino e ictício do interes-
triarcal das teorias tradicionais em RI. se nacional (MCGLEN, 1993); Estado
A partir dessa crítica, os conceitos de e (in)segurança (GOLDSTEIN 2001;
poder, Estado soberano, anarquia in- CAPRIOLI 2001); atores não-estatais,
ternacional e guerra foram tidos como solidariedade transnacional e novas
fontes de insegurança e exemplos do formas de ação coletiva (COCKBURN
androcentrismo e da subordinação 1998; ACKERLY 1999); entre outros.
do feminino presentes nas análises da Ao longo de tais gerações, pes-
ri. A primeira geração de feminismos quisas de caráter empírico, analítico e
nas RI, que ganhou dimensão no im normativo (TRUE, 2005) foram reali-
da década de 1980, defendeu o gênero zadas em diálogo com distintas lentes
como chave interpretativa contra uma teóricas. Destacamos a seguir os femi-
compreensão unívoca da política inter- nismos crítico, construtivista, pós-es-
nacional (TRUE, 2005). Airmar que truturalista e pós-colonial. Outros dis-
“o pessoal é político e internacional” cursos teóricos não necessariamente
(ENLOE, 2000) representa uma tenta- iliados ao feminismo e sua dissidência
tiva de romper com categorias binárias epistêmica adotaram o ponto de vista
hierárquicas e estruturantes. A propos- feminista nas RI (SYLVESTER; 1996).
ta não é analisar o meio internacional Um exemplo é o Feminismo Liberal
em oposição com o ambiente nacional que, calcado em uma metodologia po-
ou doméstico, mas em sua interação. sitivista, investiga as causas da subor-
A segunda geração de feminis- dinação da mulher na política global,
mos nas RI ganhou destaque em me- empregando o gênero como variável
ados da década de 1990, preocupada de análise. Caprioli (2001) é uma das
com a análise empírica e a ampliação adeptas à perspectiva liberal, por meio
dos programas de pesquisa. Sob a in- de uma ontologia individualista e mé-
sígnia de valorização das experiências todos quantitativos, formula um co-

• 636 •
nhecimento racionalista acerca do gê- o recrutamento até as políticas de defe-
nero na interface com a teoria da paz sa e segurança suecas.
democrática. O Feminismo Pós-Estrutura-
O Feminismo Crítico, inluen- lista, interessado no relacionamento
ciado por Robert Cox (1981), interpre- entre conhecimento e autoridade, ex-
ta as desigualdades de gênero a partir plora as relações de poder legitimadas
do efeito combinado entre condições por construções linguísticas binárias.
materiais, ideias e instituições, que atua Em um exercício de desconstruir dico-
nos níveis das relações de produção, tomias que validam a desigualdade de
do complexo Estado/Sociedade Civil gênero, Hooper (2001) investiga como
e das ordens mundiais historicamen- as teorias das RI foram sedimentadas
te deinidas. A partir dessa referência, por referenciais masculinos.
Whitworth (1994) analisa como a Or- O Feminismo Pós-Colonial in-
ganização Internacional do Trabalho terpreta a realidade internacional a par-
(OIT) fomentava a diferença entre tir da intersecção entre cultura, classe
gêneros e Chin (1998) demonstra que social, raça e localização geográica.
a modernização da Malásia foi realiza- Tecendo críticas ao feminismo ociden-
da com base no trabalho de mulheres tal e sua pretensão de universalidade,
migrantes, inserindo em sua relexão o Mohanty (1988) defende que a emanci-
caráter de classe, raça e gênero. pação da mulher é condicionada espa-
O Feminismo Construtivista, ço-temporalmente, o que gera distintas
ao situar a realidade como socialmente formas de agência política e subordina-
construída a partir de uma ontologia ção feminina.
ideacional com consequências mate- A diversidade das perspectivas
riais, tece uma crítica ao patriarcado mencionadas contribui para a renova-
como sistema de valores e práticas que ção das RI como campo de estudos.
aprofunda as desigualdades de gênero. Incluindo o gênero como categoria,
A co-constituição entre agente e estru- não somente a ontologia amplia-se em
tura internacional incide nos processos novos atores e problemas, mas a auto-
de construção de signiicados intersub- ridade dos portadores do conhecimen-
jetivos. Kronsell (2012), por exemplo, a to passa ser relativizada. Não é casua-
partir da pergunta “quão extensamente lidade que grande parte da enunciação
as relações de gênero tem sido trans- feminista nas RI seja verbalizada por
formadas no contexto de segurança e mulheres. Segue a busca por igualdade,
defesa pós-nacional?” demonstra que seja no espaço doméstico, acadêmico,
o gênero é uma variável presente desde estatal ou internacional. Para isso, há

• 637 •
que se propor formulações teórico-po- CHIN, C. In service and servitude: Foreign female do-
mestic workers and the Malaysian ‘modernity’ project.
líticas não restritas ao universo mascu- New York: Columbia University Press, 1998.
lino e patriarcal, portador da exclusão.
Cockburn, C. he Space Between Us: Negotiating Gen-
Recusada a alegada neutralida- der and National Identity in Conlict Zones. London:
Zed Books, 1998.
de, explicita-se a cegueira das RI em re-
lação ao gênero (TICKNER, 1997). O ENLOE, V. Women and Children: Making Feminist
Sense of the Persian Gulf Crisis. New York, Village Voi-
senso comum de que mulheres e crian- ces, n.25, 1990.
ças não fazem parte da política inter-
GOLDSTEIN, J. War and Gender. Cambridge: Cambri-
nacional é ainda um estereótipo a ser dge University Press, 2001.
superado (ENLOE, 1990). Apesar de
HOFFMAN, S. An American social science: Internatio-
a realidade internacional constituir-se nal Relations. Daedalus, 106 (3): 41-60, 1977.
pela transversalidade de gênero, muitos
GRANT, R.; NEWLAND, K. (org). Gender and In-
manuais de relações internacionais ain- ternational Relations. Indianapolis: Indiana University
Press, 1991.
da excluem as perspectivas feministas,
e poucas são as revistas especializadas HOOPER, C. Manly States: Masculinities, Internatio-
nal Relations, and Gender Politics. New York: Columbia
que aceitam artigos sobre o tema no University Press, 2001.
Brasil.
KRONSELL, A. Gender, Sex and the Postnational De-
Fica a necessidade premente de fense: Militarism and Peacekeeping. Nova York: Oxford
explorar a diversidade de vozes, teo- University Press, 2012.

rias, agentes e estruturas que emergem LAPID, Yosef. he third debate: on the prospects of in-
das intersecções entre gênero e RI e ternational theory in a Post-positivism Era. International
Studies Quaterly, v.33.n.3, 1989. p.235-254.
abrem a possibilidade de uma política
LOCHER, B.; PRUGL, E. Feminism and Construc-
internacional efetivada na igualdade de tivism: Worlds Apart or Sharing the Middle Ground?.
gênero. International Studies Quarterly, 45(1), 2001.

MCGLEN, N. E.; SARKEES, M. R. (orgs). Women in


Tchella Fernandes Maso Foreign Policy: he Insiders. New York; Routledge, 1993.
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MOHANTY, C.T. Under Western Eyes: Feminist Scho-
larship and Colonial Discourse. Feminist Review, 30/3,
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ACKERLY, A.; OKIN, S. M. Feminist Social Criticism
and the International Movement for Women’s Rights as Gefrey. Dictionary of International Relations. New
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versity Press, 1999. PATEMAN, C. he Disorder of Women. Stanford: Stan-
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ternational crisis. Journal of Conlict Resolution, 45/4, PETERSON, V.S.; RUNYAN, A.S. Global gender is-
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CARROLL, A. B. Peace Research: the cult of power. he PRUGL, E. he Global Construction of Gender. New
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• 638 •
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SASSEN, S. Globalization and its Discontents. New 611-632.
York: he New Press, 1998.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise. •


Porto Alegre: Educação e Realidade, v. 20, n. 2, p. 71-
100, jul./dez. 1995.
Representação
SYLVESTER, C. he contributions of feminist theory to
International Relations. In: International heory: positi-
vism and beyond. SMITH, S; BOOTH, K; ZALEWSKI, Etimologicamente, ‘represen-
M. (orgs). Cambridge: Cambridge University Press,
1996. tação’ provém da forma latina ‘reprae-
sentare’ – ‘fazer presente’ ou ‘apresentar
TICKNER, J.A.; SJOBERG, L.. Feminism. In: DUN-
NE,T.; KURKI, M.; SMITH, S. International Relations de novo’. Fazer presente alguém ou al-
heories: Discipline and diversity. Oxford/New York: guma coisa ausente, mesmo uma ideia,
Oxford University Press, 2007.
por intermédio da presença de um ob-
TRUE, J. Feminism. In: Burchill, S. et alli. heories of
International Relations. New York: Palgrave Macmillan,
jeto (FALCON, 2000). A noção de ‘re-
2005. presentação’ na história era sinônimo
TRUYOL Y SERRA, Antonio. La teoría de las relaciones de cópia, de espelho do mundo. Repre-
internacionales como sociología. Madrid: Instituto de Es- sentar era copiar ou reproduzir o so-
tudios Políticos, 1973.
cial. Essa ideia inluenciou, por longo
WEAVER, Ole. he rise and fall of the inter-paradigm
debate. In Smith, S. et. al. International heory: posi-
tempo, as ciências humanas e sociais. A
tivism and beyond. Cambridge: Cambridge University teoria das representações foi ao longo
Press, 1996.
do tempo construída em dois níveis de
WHITWORTH, S. Feminism and International Rela- fenômenos: o ‘individual’ e o ‘coletivo’,
tions: Towards a political economy of gender in interstate
and non-governmental institutions. Basingstoke: Mac- em razão da crença de que as leis que
millian, 1994. explicavam os fenômenos coletivos
eram diferentes das que explicavam os
Sugestões de leitura fenômenos individuais.
ENLOE, C. Bananas, Beaches, and Bases: Making Fe- Assim, de um lado, as represen-
minist Sense of International Politics. London: Pandora tações conservam a marca da realidade
Press, 2000.
social onde nascem, mas também pos-
MATHIAS, S. K. Sob o signo de Atena: gênero na diplo- suem vida independente, reproduzem-
macia e nas Forças Armadas. São Paulo: Editora Unesp,
2009. -se e se misturam, tendo como causas
OLIVEIRA, M.O. Relações Internacionais - a Questão
outras representações e não apenas a
de Gênero. Ijuí: Unijuí, 2011. estrutura social

• 639 •
Ao trabalharmos com a cate- podemos supor uma distinção entre o
goria representações e os estudos de que representa e o que é representado,
gênero, uma das possibilidades seria a sendo instrumento de um conheci-
aproximação com a História Cultural mento imediato, que faz ver um objeto
pois tem uma especial afeição pelo in- ausente, substituindo-lhe por uma ima-
formal, pelo popular, pelo resgate do gem, capaz de repô-lo em memória e
papel de grupos sociais invisíveis na de pintá-lo tal como ele é.
história, por uma abordagem plural na Representação, como usado nos
investigação histórica. estudos de gênero, é fazer conhecer
A história cultural trabalhada as coisas imediatamente pela “pintura
por Roger Chartier é uma modalidade de um objeto”, “pelas palavras e pelos
que procura entender a produção de gestos”, por algumas iguras, por al-
sentido das palavras, das imagens e dos gumas marcas – como os enigmas, os
símbolos, e busca também a reconstru- emblemas, as fábulas, as alegorias.
ção das práticas culturais em termos Ao discorrer sobre os papéis
de recepção, de invenção e de lutas de gênero, na busca de uma deinição
de representações. Trabalha ainda as identitária, os grupos sociais se atri-
diferentes formas de apropriação dos buem símbolos, discursos, comporta-
discursos, de textos (verbais e não-ver- mentos, deinindo e sendo deinidos
bais) e da produção do sentido, sendo coletivamente pelos outros, em relação
este diferenciado pelas posições que a um nós. E esse nós possui uma de-
os atores ocupam socialmente. Nesta signação, um nome, um símbolo que
perspectiva, nos mostrando algumas comporta signiicado.
dependências da vida cultural, que apa- Chartier explica que nas repre-
recem nas diferentes formas de apro- sentações sociais estão implícitas es-
priação, mediadas pela representação. colhas simbólicas e, para compreendê-
Roger Chartier, considera o -las, é preciso, na medida do possível,
conceito de representação como uma captar as signiicações que carregam.
das ferramentas essenciais, uma das Assim as representações sociais po-
categorias fundamentais para as análi- dem ser concebidas como algumas das
ses em História cultural. Em uma de respostas que as coletividades dão aos
suas primeiras análises, ele destaca que, seus conlitos, divisões, violências reais
no Dicionário Universal de Furetiére, ou potenciais, consentindo nas ações,
de 1727, a palavra representação traz constituindo uma força reguladora da
duas conotações: a primeira, é a repre- vida cotidiana e coletiva, pois é no cen-
sentação de uma coisa ou pessoa; de tro das representações, dos imaginá-
outro que faz ver uma ausência, assim rios, que o problema da legitimação do

• 640 •
poder se encontra. E, como nenhum Na mesma direção de Bourdieu,
poder advém de qualquer princípio Scott (1992) adverte para a necessi-
universal, físico, biológico ou espiritu- dade de se considerar a existência de
al, para se impor ele precisa ser legiti- uma história das mulheres a ser escrita,
mado por um conjunto de relações de que aborde a noção de representação e
sentido. dominação, da desigualdade de poder
Podemos perceber então como na história dada pela dominação mas-
o patriarcalismo constrói leituras par- culina. Uma história que reconhece as
ticulares do mundo, concebendo, para estruturas sociais como lócus de cons-
si e para os outros, identidades que trução das relações homem/mulher
atendam a seus interesses. Para refor- deve compreender que as relações de
çar essa airmação, Chartier aponta a gênero passam, então, pela rejeição do
relação entre representação, identidade caráter ixo e permanente das oposi-
social e mundo material quando “pen- ções binárias. Essa constatação é de
sa a construção das identidades sociais signiicativa relevância na medida em
como resultado de uma relação de for- que rompe não só com o determinis-
ça entre representações impostas pelos mo biológico, como também com a
que detêm o poder de classiicar e de própria ordem cultural modeladora
nomear e a deinição, de aceitação ou do “ser homem” ou “ser mulher” nas
resistência, que cada comunidade pro- sociedades, ao reconhecer nesta con-
duz de si mesma” (CHARTIER, 1990, dição um estatuto histórico e cultural-
p. 183). mente construído.
Para Pierre Bourdieu, homens e Os discursos sociais produzem
mulheres incorporam representações representações sociais e, alguns deles,
e constroem suas práticas dentro de terminam por adquirir a autoridade do
uma lógica social. Dessa forma, na so- óbvio e do senso comum. Contudo, as
ciedade patriarcal, as referidas práticas representações sociais não determinam
determinam atitudes de dominação/ inteiramente as decisões tomadas pelo
submissão, donde é possível airmar indivíduo, mas elas limitam e orientam
que, tanto homens quanto mulheres, o universo de possibilidades colocadas
nas sociedades marcadas por fortes à sua disposição. A ordem social, se-
componentes patriarcais, colocam sua gundo Bourdieu, funciona como uma
posição social masculina ou feminina máquina simbólica, que tende a perpe-
sob a pressão originada pela divisão do tuar as representações que homens e
trabalho na unidade produtiva familiar, mulheres fazem de si mesmos e expli-
bem como pelas relações de poder. cam suas práticas de acordo com tais

• 641 •
representações, construindo identida- Uma concepção mais abrangen-
des sociais. te de “representação” adota pela his-
A representação também está tória cultural, é o conceito de discurso
ligada ao olhar, à visão. De uma forma usado por Michel Foucault. Ao analisar
ou de outra, o papel do olhar mascu- a categoria feminino/masculino como
lino na objetiicação da mulher, tem uma representação dos discursos, atra-
sido central à análise feminista. Mary vés da análise cultural e dos estudos de
Louise Pratt (1999) na obra “Os olhos gênero, é possível entendermos que a
do império” desenvolve uma teoria rela- “realidade é construída discursivamen-
cionado ao colonialismo, onde coloca te”. Isso signiica destacar o trabalho
que visão e representação, observação de sua produção, implica expor e ques-
e registro, são também inseparáveis tionar os códigos, as convenções, os
estratégias de inscrição utilizada pela discursos, os artifícios, os meios dos
ciência e na construção da moderna quais ele foi produzido, implica tornar
teorização do social. Segundo a autora, visíveis a marca de sua arquitetura. A
a representação também resulta de um representação é sempre uma represen-
regime de visão. Nessa perspectiva, vi- tação autorizada; sua força e sentido
são e representação – em conexão com dependem dessa autoridade que ligada
o poder – se combinam para produzir ao poder gera processos de signiica-
a alteridade, a identidade e os papéis ção, imposição de signiicados. O ima-
sociais. ginário social que alora nos mais dife-
Por seu caráter ativo, a visão é, rentes tipos de discurso, é um forjador
de todos os sentidos, talvez aquele que de sentidos, de identidades, de (in) co-
mais expresse a presença e a eicácia do erências, de poder.
poder. Muitas das questões próprias do Como sabemos, há uma estreita
poder, como as nomeações e o contro- ligação entre o processo de produção
le, se realizam e se efetivam pelo olhar da identidade e da diferença que ca-
e por meio dele. É pelo olhar que o racteriza a representação e a produção
homem transforma a mulher em obje- cultural e social da identidade. A pro-
to: imobilizada e disponível para o seu dução da identidade e da diferença se
consumo. É esse olhar imperial que dá em grande parte, na e por meio da
tudo abarca, que tudo descortina na representação. Como representação, o
paisagem colonial do texto da autora, feminino e o masculino estão direta-
que expressa, mais que tudo, o domí- mente envolvidos nesse processo. Ao
nio do colonizador sobre os lugares e usarmos a categoria representação nos
as pessoas. estudos de gênero podemos destacar

• 642 •
os mecanismos de produção dos pa- SCOTT, Joan W. “História das Mulheres.” In: BURKE,
Peter (Org.). A escrita da história. São Paulo: Ed. da Uni-
péis sexuais, das verdades impostas no versidade Estadual Paulista, 1992.
cenário social sobre o que é o femini-
no e o masculino, levando-nos assim a •
questionar os códigos, as convenções,
os artifícios, a arquitetura do como es- Resiliência
sas representações foram construídas e
impostas. Deriva do latim resilire, “saltar
para trás, retornar”, “escapulir”, sendo
Losandro Antonio Tedeschi resiliência a “[...] propriedade pela qual
a energia armazenada em um corpo
Referências e sugestões de leitura
deformado é devolvida quando cessa
BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. Enciclopédia a tensão causadora duma deformação
Einaudi – V, Lisboa: imprensa nacional/casa da moeda, elástica” (FERREIRA, 1986, p.1493).
1985.
A utilização desse conceito é prática
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. (Trad.
Maria Helena Kühner). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
regular na Física e na Engenharia, sen-
1999. do Thomas Young, em 1806, seu intro-
BURKE, Peter (Org). A escrita da história. São Paulo: Ed. dutor através do conceito de módulo
da Universidade Estadual Paulista, 1992. de elasticidade longitudinal, analisando
CHARTIER, Roger. A história cultural. Entre práticas e a aplicação de variadas tensões sobre
representações. Rio de Janeiro: DIFEL/ Bertrand Brasil,
1990.
barras, buscando a relação entre a for-
ça que era aplicada num corpo e a de-
______. A beira da Falésia: a história entre incertezas e
inquietudes. Porto Alegre: editora da UFRGS, 2002.
formação que essa força produzia.
Michel Rutter, um dos pioneiros
______. A história hoje: dúvidas, desaios, propostas. In:
Estudos Históricos. Vol.7, n.13. Rio de Janeiro, 1994. desse estudo no campo da Psicologia,
deine a resiliência como um conjunto
______. Diferenças entre os sexos e dominação simbó-
lica. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle (orgs). As de processos sociais e pessoais, numa
mulheres e a história (anais). Lisboa: publicações Dom
Quixote, 1995.
variação individual, que possibilitam
ter uma vida sadia em resposta ao ris-
COUTINHO, Maria da Penha de Lima. Representações
sociais: abordagem interdisciplinar. João Pessoa: Editora co de viver em um ambiente insano,
Universitária. UFPA, 2003. estando em jogo os mecanismos de
JODELET, Denise (org.). Representações sociais: um do- proteção, não como atributos com que
mínio em expansão. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001. as crianças nascem ou adquirem, mas
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de como aquela dinâmica que se desen-
Janeiro: Forense, 1986.
volve ao longo da vida e que permite
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de ao indivíduo sair fortalecido da adver-
viagem e transculturação. São Paulo: EDUSC, 1999.

• 643 •
sidade (1992). Já para Brofenbrenner, ger a integridade de pessoas sob pres-
resiliência do ego se refere à capacida- são e a capacidade de construir um
de de uma criança enfrentar estresse estilo positivo de vida, que conira à
ou incertezas ambientais (2011, p.171). pessoa ou à comunidade uma maneira
Kotliarenco e colaboradores do de enfrentar as diiculdades de forma
CEANIM, no Chile, desenvolveram adequada e socialmente aceita (Vanis-
e utilizam o conceito de resiliência tendael, 1994).
• A resiliência se caracteriza por
como uma habilidade para suportar a
adversidade, adaptar-se, recuperar-se e
um conjunto de processos sociais e in-
ascender a uma vida produtiva (1996).
trapsíquicos que possibilitam ter uma
Realizaram importante revisão de di-
vida sadia, mesmo vivendo em meio
versos conceitos de resiliência, sinteti-
insano, que se constroem ao longo
zando-os como a seguir:
• Habilidade para sair da ad- do tempo, não podendo ser pensa-
versidade, adaptar-se, recuperar-se e do como um atributo inato nem que
ascender a uma vida signiicativa e pro- seja adquirido durante o processo de
dutiva (ICCB/BICE, 1994). desenvolvimento, mas, sim que se tra-
• História pessoal de adaptações ta de um processo interativo entre a
criança e o seu meio (Rutter, 1992).
• Conceito genérico que se re-
exitosas quando exposto a fatores bio-
lógicos de risco ou eventos estressan-
tes na vida, relacionada à expectativa fere a uma ampla gama de fatores de
de continuar com uma baixa suscepti- risco e os resultados de competência,
bilidade a futuros estressores (Luthar como conjunção de fatores ambientais,
e Zingler, 1991; Masten e Gamerzy, e um tipo de habilidade cognitiva que
1985; Werner e Smith, 1982; 1992).
• Enfrentamento efetivo diante
têm as crianças quando são pequenas
(Osborn, 1993).
• Característica das crianças que
de situações severamente estressantes
e acumulativos (Lösel Blieneser e Kö-
se enfrentam de forma positiva (cope
ferl, em Brambing e cols., 1989).
• Capacidade humana universal
well) apesar dos estressores ambientais
a que são submetidos nos primeiros
para fazer frente às adversidades da
anos de vida (Milgram e Palti, 1993).
vida, supera-las ou ser transformado
por ela, como parte do processo evo- Outros conceitos foram relacio-
lutivo que deve ser promovido desde a nados ao de resiliência no sentido de
infância (Grotberg, 1995). ampliar sua utilização, tais como:
• A resiliência distingue dois 1) Risco: relaciona-se à alta
componentes: a capacidade de prote- probabilidade de prejuízo em função

• 644 •
de um determinado evento na vida portante deve ser feita, uma vez que as
do indivíduo. Por ser um conceito de exigências de um determinado grupo
grande plasticidade, Rutter nos alerta social podem, através dos seus discur-
que a resiliência é o processo inal de sos, reforçar normas de conduta pré-
processos de proteção que encorajam -determinadas, devendo-se ter o cuida-
o indivíduo a se engajar na situação de do de não patologizar aqueles que não
risco efetivamente (1992). se conformam a elas.
2) Vulnerabilidade X invulnera- 6) Fatores de proteção: são
bilidade: ser vulnerável diz respeito a aqueles que inluenciam positivamente,
uma predisposição individual para o melhorando a resposta a uma situação
desenvolvimento de psicopatologias de estresse. Estes atuam através de três
ou de comportamentos ineicazes em mecanismos básicos: o compensatório
situação de crise. A invulnerabilidade é (fatores estressantes se somam a ca-
relativa, variando no tempo de acordo racterísticas individuais, promovendo
com as diversas etapas infantis do de- uma resposta satisfatória); o de desaio
senvolvimento à qualidade dos estímu- (quando o estresse atua como um estí-
los recebidos. mulo à competência) e de imunidade
3) Estresse: é utilizado para de- (quando há uma relação condicional
inir situações de tensão na vida do que modula o impacto do estresse na
indivíduo, de caráter agudo ou crôni- qualidade da adaptação) (WERNER &
co, que induzem a uma alteração do SMITH, 1982).
estado de equilíbrio biopsicossocial. Para Edith Grotberg (1995), os
atributos considerados como fontes de
Selye, o introdutor desse termo o de-
resiliência e utilizados como base para
ine como “uma resposta especíica
o Projeto Internacional de resiliência
do corpo a uma exigência feita a ele”
(PIR), são determinados como:
(1982, p.7-20).
a) “eu tenho” – meus apoios,
4) Coping: refere-se à capacida-
pessoas em quem conio e que não me
de de utilizar estratégias de adaptação,
abandonam, meu suporte social;
voltadas para o futuro “onde assumir
b) “eu sou/estou” – uma pessoa
riscos sugere a coniança de obter êxi-
valorosa para aqueles com quem con-
to” (Pereira, 2001, p.85).
vivo, sou capaz de participar de minha
5) Competência: a utilização
comunidade, ser respeitada e valori-
desse conceito relaciona-se às habilida-
zada pelo que faço; possuo esta força
des mínimas que necessita uma criança
interior;
para se desenvolver harmoniosamente
c) “eu posso” – coniar e contar
no ambiente em que vive. Ressalva im- aos outros sobre a minha vida e fatos

• 645 •
que me angustiam ou causam dúvidas, d) honestidade coletiva ou esta-
construir alternativas que me ofereçam tal – a existência de uma consciência
soluções para meus problemas e dii- coletiva que rejeita e condena a deso-
culdades; possuo as habilidades neces- nestidade, a corrupção, valorizando a
sária. postura ética e honesta por parte dos
Wolin & Wolin (1993) apresen- dirigentes nos diversos níveis.
tam, no conceito de “Mandala da re- Referem, ainda, os autores que
siliência”, as características pessoais diversos fatores atuam diicultando,
que atuam como facilitadores na cons- senão impedindo, o desenvolvimento
trução da resiliência. São elas: intros- desses pilares considerados fundamen-
pecção, independência, capacidade de tais. Entre esses ‘anti-pilares’ citam:
relacionar-se, iniciativa, humor e criati- a) malinchismo – a presença de
vidade e moralidade. uma admiração excessiva por tudo que
Melillo e Ojeda (2005) partem é estrangeiro, numa atitude de negação
da aplicação dos pilares da resiliência dos valores que constroem a identida-
individual para um conceito de resi- de cultural;
liência coletiva e estabelecem quatro b) fatalismo – postura passiva
pilares fundamentais nessa construção. frente às adversidades como fruto da
São eles: desesperança ou de crenças fundamen-
a) autoestima coletiva – que se- talistas que desestimulam a busca de
ria uma atitude ou sentimento de valor soluções;
ou orgulho pelo lugar em que se vive, c) autoritarismo – centralização
com o reconhecimento e a valorização das decisões que anula a capacidade
de suas qualidades; participativa das comunidades;
b) identidade cultural – enten- d) corrupção – desvio de recur-
dida como a persistência do ser social sos e atenção aos interesses coletivos
em sua unidade e identidade nas mu- para interesses privados dos governan-
danças e circunstâncias diversas, com tes e funcionários públicos, compro-
a incorporação de hábitos, costumes metendo as possibilidades de ‘acreditar
que o caracterizam como pertencendo em’, levando à desesperança e à passi-
àquele grupo social; vidade.
c) humor social – a capacidade Ser resiliente pode ser entendi-
que um povo tem de rir de sua tragé- do como ter a ‘liberdade-possível’, pois
dia, de elaborar críticas bem-humo- sabemos que não há liberdade absolu-
radas a situações, hábitos ou práticas ta, sendo ativo, não-domesticado; abdi-
negativas. car da tutela de autoridade, que nomeia

• 646 •
e exclui, airmando o direito à diferen- Sugestões de leitura
ça; superar a individualidade pela práti- BOWLBY, John. Cuidados maternos e saúde mental. São
ca livre de novas formas de vinculação, Paulo: Martins Fontes,1981.

elaborando espaços de libertação pos- BRAZELTON, Berry. O desenvolvimento do apego –


sível; exercitar a ‘atitude-limite’ e emer- uma família em formação. Porto Alegre: Artes Médicas,
1988.
gir através de processos de interação
social de que participa, gerando novas CYRULNIK, Boris. Os patinhos feios. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2004.
formas de ser e de viver.
______. Falar de amor à beira do abismo. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
Maria Antonia Pinto Pizarro

Referências

BROFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvi-


Resistência
mento humano. Porto Alegre: Artmed, 2011.

FERREIRA, A. Novo Dicionário da língua portuguesa. Resistência é um conceito que


2ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
vem da Física. Em física signiica a
GROTBERG, Edith. he International resilience resear- força que se opõe a outra, que não
ch project: promoting resilience in children. Washington
D.C., Civitan Internacional Research Center. University cede à outra, mas também a força que
of Alabama at Birmingham: Eric Reports, 1995.
defende um organismo contra o des-
KOTLIARENCO, Maria Angelica; CÁCERES, I.;
FONTECILLA, M. Estado del arte en resiliencia.Wa-
gaste, a doença; aquilo que se opõe ao
shington, DC: Organización Panamericana de la Salud, deslocamento de um corpo ou, ain-
1996.
da, a propriedade de alguns materiais
MELLILO, Aldo; OJEDA, Elbio & cols. Resiliência:
descobrindo as próprias fortalezas. Porto Alegre: Artmed, de se oporem à passagem de corrente
2005. elétrica. Nas Ciências Humanas e So-
PEREIRA, Anabela. Resiliência, personalidade, stress e ciais, entretanto, a noção de resistência
estratégias de coping. In: Tavares, J. (org.). Resiliência e
Educação. São Paulo: Cortez Editora, 2001. está geralmente associada à de poder
RUTTER, Michael; RUTTER, Marjorie. Developing
ou de opressão, signiicando as forças
minds:challenge and continuity across the life span. Gran ou ações que se opõem ao exercício
Bretaña: Pegin Books, 1992.
do poder na sociedade, ou à opressão
SELYE, Hans. History and present of the stress concept.
In: Goldberg, L. & cols. Handbook of stress, p.7-20. social. É nesse sentido que tem sido
New York: Macmillan, 1982. usada essa categoria nos estudos de fe-
WERNER, Emmy; SMITH, Ruth. Vulnerable but in- ministas e de gênero e na história das
vincible: a longitudinal study of resilient children and
youth. New York: McGraw-Hill Book. mulheres em geral: para designar ações
WOLIN, Steven; WOLIN, Sybil. he resilient self: how
de oposição à dominação e opressão
survivors of troubled families rise above adversity. New de gênero.
York: Villard Books, 1993.

• 647 •
A ideia de resistência tem sido po estratégico das relações de poder”
muito usada nos estudos feministas (FOUCAULT, 1988).
principalmente porque ela permite en- Imaginem a importância disso
xergar o protagonismo das mulheres para a História das Mulheres ou para a
em situações em que normalmente Antropologia, a Sociologia, a Psicolo-
elas são pensadas como não sujeitos. gia Social, num tempo em que se pen-
E sua utilização ganhou corpo es- sava uma sociedade centrada no Esta-
pecialmente a partir da inluência da do, cuja história era protagonizada por
obra de Michel Foucault nas Ciências governantes, militares, heróis. A partir
Humanas e Sociais. Se as feministas já da noção de resistência as mulheres,
vinham dizendo que “O privado é po- operários, escravos, indígenas, loucos,
lítico”, Foucault mostrou, ou pôde ver, todos podem ser sujeitos de história,
a partir dos movimentos sociais que sujeitos de relações de poder, sujeitos
acompanhou, como todas as relações de resistência.
sociais são permeadas por relações Gosto de lembrar de um ilme,
de poder, e que na sociedade moder- baseado em um lindo livro de Alice
na isso se deu através de um tipo de Walker, A cor púrpura. O ilme conta
poder que ele chamou de disciplinar. a história de uma mulher, negra, norte-
Para Foucault: “o poder está em toda a -americana, que parece ser totalmente
parte; não porque englobe tudo, e sim submissa a seu marido, que a maltrata e
porque provém de todos os lugares” menospreza, e aos poucos vai tecendo
e, em decorrência disso: “... lá onde há uma outra vida para si mesma. Ela faz
poder há resistência e, no entanto (ou a barba dele com uma navalha e pensa
melhor, por isso mesmo) esta nunca se em cortar seu pescoço. Mas seu gesto
encontra em posição de exterioridade de resistência, aquele que ela realmen-
em relação ao poder. (...) Portanto, não te faz e não ica só no sonho, é o de
existe, com respeito ao poder, um lugar cuspir no copo ou no prato em que
da grande Recusa – alma da revolta, serve sua bebida ou comida. Um ges-
foco de todas as rebeliões, lei pura do to que parece inócuo, mas que carrega
revolucionário. Mas sim resistências, o germe da insubmissão. Uma forma,
no plural, que são casos únicos: pos- mesmo velada, de resistir a uma sub-
síveis, necessárias, improváveis, espon- missão total, gesto que somado a ou-
tâneas, selvagens, solitárias, planejadas, tros vai possibilitando uma reconstru-
arrastadas, violentas, irreconciliáveis, ção da personagem enquanto sujeito,
prontas ao compromisso, interessadas de vítima a protagonista. Dessa forma,
ou fadadas ao sacrifício; por deinição, a resistência nem sempre se expressa
não podem existir a não ser no cam- em aberta rebeldia, ela se dá em gestos,

• 648 •
muitas vezes introspectivamente, mas organizada, estruturada e com formas
permite que o sujeito se airme mesmo de luta e de ação próprias. Outra pers-
em um contexto de total negação de pectiva pensa a resistência de forma
seus direitos, suas vontades, seus pra- muito mais ampla e englobante, e se
zeres. refere à uma “reatividade social”, no
No campo da história, quando caso em relação à ocupação alemã na
se fala em resistência, dois momentos França. Quando estamos preocupadas
têm sido bastante lembrados. Um foi o em enxergar as mulheres e sua ação
da ocupação nazista em países da Eu- política na História, é importante que
ropa, especialmente a França, quando não desprezemos esta visão mais am-
pessoas civis se organizaram para ofe- pla da ideia de resistência. Muitas ve-
recer resistência às tropas de ocupação. zes as mulheres não estavam na ileira
Entre essas pessoas, muitas mulheres de frente (embora sempre houvesse
estavam presentes. As atividades da re- também mulheres nestas ileiras, em-
sistência, que incluíam passar informa- punhando fuzis), mas sua participação
ções, esconder pessoas, conseguir ali- majoritária se dava de forma mais vela-
mentos para membros que estavam na da, discreta, o que as fazia, no contexto
clandestinidade, esconder armas, entre daquela sociedade de ocupação, ainda
outras, faziam com que o papel das mais valiosas, pois justamente essa sua
mulheres fosse salientado. Esse tipo qualidade furtiva é que possibilitava a
de atividade é importante em qualquer sobrevivência.
guerra, mas nas guerras tradicionais, o No contexto dos regimes au-
exército – que continua a ser predomi- toritários que foram implantados nos
nantemente masculino – ganha o papel países do Cone Sul nos anos 1960 e
principal. Na resistência as mulheres 1970, a resistência também se deu de
obtiveram certo protagonismo, pois vários modos – assim como também
muitas vezes eram elas que faziam es- aconteceu a colaboração, por parte da
tas tarefas e conseguiam passar desper- sociedade civil, da igreja católica, de
cebidas pela repressão. Além disso, as funcionários dos governos e militares.
mulheres eram a maioria da população Segundo Marcelo Ridenti, no contexto
civil. da ditadura brasileira o termo resistên-
Os estudos sobre a resistência cia tem sido usado nas ciências sociais
no contexto da Segunda Guerra Mun- e na história com um sentido inspirado
dial geraram muita discussão. Jacques na “...experiência histórica européia
Semelin aponta para duas perspecti- durante a Segunda Guerra Mundial,
vas sobre esta resistência: uma seria englobando todos os movimentos de
a ideia da resistência como uma ação oposição à ocupação nazi-facista.”

• 649 •
Dessa forma pode englobar os mo- cia. Embora para alguns autores esse
vimentos armados de guerrilha rural tipo de resistência seja considerada
e urbana; os partidos e organizações menos importante por, segundo eles,
clandestinas; as ações de organizações não ser “consciente” e não expressar
legais da sociedade civil que se opu- vontade de mudança, para as pessoas
nham a medidas do regime; ações e que estavam sendo perseguidas, tortu-
iniciativas de indivíduos de denúncia, radas, assassinadas, essa resistência que
esconder fugitivos, colaboração com a meu ver era sim consciente e expres-
organizações clandestinas armadas ou sava uma vontade política de mudança
não, uma grande miríade de ações. No senão no sistema econômico e político,
documentário de Renato Tapajós e ao menos nas práticas políticas, signi-
Toni Venturi, No olho do furacão, por icou muitas vezes a diferença entre a
exemplo há o depoimento de Carlos vida e a morte.
Eugênio Paz, conhecido durante sua Na medida em que as Ditaduras
militância na ALN como Clemente. foram sendo implantadas nos países da
Ele conta que quando esteve foragido América Latina, também foram surgin-
escapou diversas vezes da polícia, e em do organizações não governamentais
uma delas ele alugava um quarto no e associações que começaram muitas
apartamento de uma senhora, que não vezes com os familiares de desapare-
fazia ideia de que ele tivesse envolvi- cidos e presos políticos e aos poucos
mento com a guerrilha. Certo dia a po- foram adquirindo outros simpatizan-
lícia bateu no apartamento e a senhora tes, enquanto outras organizações da-
acobertou a sua fuga, ou seja, não o vam apoio aos familiares, assistência
delatou. Ele saiu pelos fundos quando jurídica aos presos, apoiavam pessoas
os policiais entravam pela frente e vas- exiladas e denunciavam em jornais,
culhavam a casa. Quando chegou na cartas, telegramas, nestes países ou no
portaria do prédio, havia também po- exterior, as atrocidades que foram co-
liciais ali, questionando o porteiro, que metidas. Nestas organizações o papel
disse a eles que se tratava do sobrinho das mulheres foi muito importante e
daquela senhora. Ou seja, duas pessoas destacado. Várias delas eram formadas
que não tinham vínculos com nenhu- somente (ou aparentemente somen-
ma organização política, que poderiam te) por mulheres como era o caso das
até agitar bandeirinhas na passagem do Madres de la Plaza de Mayo e das Abuelas
presidente da República, ou mesmo ter de la Plaza de Mayo na Argentina, ou o
participado de uma das Marchas pela Movimento Feminino Pela Anistia, no
Família com Deus de 1964, naquele Brasil. Em outras, as mulheres de qual-
momento izeram um ato de resistên- quer forma eram a maioria, as que iam

• 650 •
nas passeatas e protestos, as que apare- principais ilósofos europeus do século
ciam em público chorando a o desapa- XVIII. Rousseau considerado teórico
recimento de seus ilhos. Elas usaram da igualdade inaugurou a categoria mu-
o gênero como estratégia de luta e de lher como “rainha, anjo do lar”.
resistência, ao se apropriarem daqui- Rousseau não conheceu a mãe,
lo que se esperava delas, como mães, pois ela morreu logo após o parto. Foi
como esposas, como ilhas, como avós, criado pelo pai, um relojoeiro, até 1722.
o cuidado com a família, para protes- Após a morte de seu pai, com apenas
tar contra os regimes autoritários, suas 10 anos de idade foi entregue aos cui-
torturas, prisões e assassinatos. dados de um pastor calvinista, em Bos-
sey. Mais tarde emigrou para Turim,
Cristina Scheibe Wolf Itália. No ano de 1733 foi morar com
Madame de Warens em Chambéry, na
Referências e sugestões de leitura França, período em que começou a se
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1. A von-
destacar nos seus escritos.
tade de saber. 9.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. De 1743 a 1744 trabalhou como
PERROT, Michelle. Os excluídos da história. Rio de Ja- professor, copista e secretário de um
neiro: Paz e Terra, 1988.
embaixador Francês em Veneza. Em
PEDRO, Joana Maria; WOLFF, Cristina Scheibe; VEI- 1745 retornou para Paris, inventou um
GA, Ana Maria (Orgs.). Resistências, Gênero e Femi-
nismos contra as Ditaduras no Cone Sul. Florianópolis: sistema de notação musical e fez-se
Mulheres, 2011.
conhecer como compositor da ópera
WOLFF, Cristina Scheibe. Eu só queria embalar meu i- As musas galantes. Fez amizade com o
lho. Gênero e maternidade no discurso dos movimentos
de resistência contra as ditaduras no Cone Sul, América ilósofo francês Denis Diderot, que lhe
do Sul. Aedos: Revista do Corpo Discente do Programa convidou a colaborar para a prestigiosa
de Pós-Graduação em História da UFRGS (Online), v. 5,
p. 117-131, 2013. Enciclopédia, primeiramente escrevendo
DUARTE, Ana Rita Fonteles. Jogos da Memória - O Mo-
sobre música; mas o mais famoso dos
vimento Feminino pela Anistia no Ceará (1976-1979). 1. seus artigos acabou sendo sobre políti-
ed. Fortaleza: Topbooks/Edições UFC/INESP, 2012.
ca econômica. Em 1750, foi premiado
pela Academia de Dijon pelo Discurso

sobre as ciências e as artes.
Rousseau escreveu sobre arte,
Rousseau, Jean Jacques
política, educação, democracia, ciên-
cias e música. Suas principais obras
Jean Jacques Rousseau nasceu
são: Do Contrato Social e Emílio ou da
em Genebra, Suíça, em 28 de junho de
Educação. No Contrato Social defende
1712 e morreu em 2 de julho de 1778
a ideia de que o ser humano nasce
em Ermenoville, França. É um dos
• 651 •
bom, porém a sociedade o corrompe não é igual: os homens dependem das
e conduz a degeneração. Airma tam- mulheres por seus desejos; as mulhe-
bém que a sociedade funciona como res dependem dos homens por seus
um pacto social, onde os indivíduos, desejos e suas necessidades; nós sub-
organizados em sociedade, concedem sistiríamos mais sem elas do que elas
alguns direitos ao Estado em troca de sem nós. Para que elas tenham o ne-
proteção e organização. Ao defender cessário, para que elas estejam em seu
que todos os homens nascem livres, estado, é preciso que lho demos, que
e a liberdade faz parte da natureza do nós as estimemos dignas disso; elas
homem, Rousseau inspirou movimen- dependem de nossos sentimentos, do
tos sociais que visavam uma busca pela valor que damos a seu mérito, do caso
liberdade. que fazemos de seus encantos e de
No ano de 1762, Rousseau co- suas virtudes. Pela própria lei da natu-
meçou a ser perseguido na França, reza, as mulheres tanto por elas como
pois seus escritos foram considerados por seus ilhos, estão à mercê do jul-
uma afronta aos costumes morais e gamento dos homens; não basta que
religiosos. Refugiou-se na cidade suíça sejam estimáveis, cumpre que sejam
de Neuchâtel. Em 1765, foi morar na estimadas; não basta que sejam belas,
Inglaterra a convite do ilósofo David é preciso que agradem; não basta que
Hume. De volta à França, Rousseau sejam bem comportadas, é preciso que
casou-se com Thérèse Levasseur, no sejam reconhecidas como tal, sua hon-
ano de 1767. ra não está apenas na sua conduta, está
Os escritos de Rousseau in- na sua reputação, e não é possível que
luenciaram o papel atribuído às mu- a que consente em passar por infame
lheres naquela época, especialmente seja um dia honesta. O homem, agindo
a sua obra chamada Emílio ou Da bem, não depende senão de si e pode
educação, onde explicitava pedagogi- desaiar o juízo público; mas a mulher,
camente o lugar social do feminino na agindo bem, só cumpre metade de sua
família e na sociedade. No seu Livro tarefa, e o que pensam dela lhe impor-
Quinto, em que aborda sobre Soia ou ta tanto quanto o que é efetivamente.”
a Mulher, inaugura o discurso da mu- (ROUSSEAU, 1992, p.432)
lher como “anjo do lar”, “santa” des- Rousseau com seus escritos so-
crevendo como deveria ser a relação bre Emílio e Soia, defendia a ideia de
entre o homem e a mulher: “A mulher se educar homens e mulheres de forma
e o homem são feitos um para o ou- diferente. Para o autor Soia deveria ser
tro, mas na sua dependência natural criada em casa, correspondendo com

• 652 •
sua função de boa mãe e mulher sub- Essa categoria da mulher como
missa. “rainha do lar” predominou na socie-
Primeiramente a mulher era dade ocidental por mais de dois sécu-
considerada como “boneca”, “criança los. A autora Virgínia Woolf (1882-
mimada”, e a partir da obra de Rous- 1941) escreveu que a mulher precisava
seau foi adquirindo a posição de “pe- matar o “anjo do lar” para conquistar
destal”, deixando de ser tratada com outros espaços, além do privado que é
brutalidade ou como posse, passando destinado a ela como sendo o único.
a ocupar outros espaços além da cozi- A autora airmou ter descoberto que
nha. Com a passagem do arquétipo de se fosse resenhar livros precisaria tra-
“boneca”, para “anjo”, “rainha do lar”, var batalha com um certo fantasma. “E
a mulher começa a ter direito à educa-
o fantasma era uma mulher, e quando
ção, para cumprir adequadamente com
vim a conhecê-la melhor eu comecei a
as obrigações de sua nova posição, ou
chamá-la como uma heroína de um fa-
seja, de uma esposa agradável e de uma
moso poema, The Angel in the House (O
mãe carinhosa. Rousseau divulgou am-
anjo da casa). Era ela que me incomo-
plamente essa ideia da feminilidade
dava e roubava meu tempo e assim me
natural da mulher, que ela deveria ser
atormentava até que ainal eu a matei”.
doce, tranquila, responsável pelas ativi-
dades caseiras e pela educação de seus (WOOLF, 1997, p.43).
ilhos.
Mareli Eliane Graupe
No século XVIII, quando se
discutia a cidadania dos indivíduos, Je- Referências e sugestões de leitura
an-Jacques Rousseau, estabelecia que
a vida das mulheres estava designada ROUSSEAU, J-J. Discurso sobre a origem e os funda-
mentos da desigualdade entre os homens. In: Coleção Os
ao papel doméstico “Quase todas as Pensadores. Trad: Lourdes Santos Machado. São Paulo:
raparigas aprendem com repugnância Abril Cultural, 1999.

a ler e escrever, mas quanto a segurar ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social e outros
a agulha, é o que elas aprendem sem- escritos. São Paulo: Cultrix, 1965.

pre de boa vontade. Antecipadamente ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os
imaginam-se crescidas e sonham com fundamentos da desigualdade entre os homens. Brasília,
DF: Ed. Universidade de Brasília, 1985.
prazer que estes talentos poderão um
dia servir-lhes para se enfeitar. Aberto ROUSSEAU, Jean-Jaques. Emílio ou Da Educação. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.
este primeiro caminho é então fácil de
seguir: vêm por si mesmos a costura, DENT, N. J. H. Dicionário Rousseau. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1996.
o bordado, a renda.” (ROUSSEAU,
1992, p.178) FORTES, Luis Roberto Salinas. Rousseau: da teoria à
prática. São Paulo: Ática, 1976.

• 653 •
SIMPSON, Matthew. Compreender Rousseau. Rio de sa perspectiva pode ser observada no
Janeiro: Vozes, 2009.
conceito de “sistema de sexo e gêne-
WOOLF, Virgínia. Kew gardens; O status intelectual da ro” formulado por ela, ao postular que
mulher; Um toque feminino na icção; Proissões para
mulheres. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. a assimetria entre homens e mulheres,
presentes em múltiplas sociedades, de-
• veria ser debitada às formas de organi-
zação social do sexo e da reprodução.
Rubin, Gayle Interpelando Lévi- Strauss (2011) na
teoria sobre a circulação de mulheres,
Uma das formulações teóricas Rubin assevera que a desigualdade de
mais importantes sobre as conexões distribuição de poder está na raiz da
entre gênero e sexo foi elaborada em apropriação pelos homens da capaci-
1975 pela antropóloga norte-america- dade reprodutiva do sexo feminino.
na Gayle S. Rubin. Nascida em 1949, Escrito em 1975, “Trafic in
ela é importante ativista pelos direitos women”, cujo título já é signiicativo,
relacionados à diversidade sexual e se permanece instigante, e mantém for-
auto intitula lésbica feminista. Ao lon- te ligação com as questões levantadas
go de sua vida, tem escrito importantes pelo pensamento militante da época.
artigos e ensaios sobre feminismo, sa- A autora propõe-se a investigar que
domasoquismo, prostituição, pedoilia, relações sociais engendram a ‘domes-
pornograia e cultura lésbica. No front ticação da mulher’. Singularizando-se
antropológico, dedica-se ao estudo de em um campo intelectual marcado por
subculturas sexuais, que proliferam na importante presença marxista, Rubin
chamada Bay Área, entorno de São sentencia: o mapa do mundo social
Francisco, Califórnia. Atualmente, é de Marx não inclui o sexo (1975:160),
professora associada da Universidade proposição que terá impacto impor-
de Michigan. tante se considerarmos que ela está
Rubin airma que nos pressu- escrevendo em um campo intelectual
postos que dão base ao pensamento marcado por importante contribuição
clássico sobre a organização social da marxista (HEILBORN, 1990). Assim,
atividade sexual humana está a noção ela coloca Freud e Lévi-Strauss entre
de um sistema com dois gêneros dico- os formuladores de uma teoria da so-
tômicos (masculino/feminino), cria- ciedade na qual a sexualidade tem um
dos a partir do sexo biológico, sistema papel determinante, uma vez que am-
que regula, constrange e limita arranjos bos fornecem instrumentos conceitu-
sexuais na base da heterossexualidade ais sobre a parte da vida social em que
obrigatória. Uma relexão crítica des- se encontra o lócus da opressão. Esta

• 654 •
não se resume às mulheres, estenden- tórica (Foucault, 1977). Contudo, essa
do-se às minorias sexuais e a certos posição será revista em um artigo pos-
aspectos da personalidade dos indiví- terior (Rubin, 1984), airmando que o
duos. Por meio do conceito de siste- feminismo é uma teoria da opressão
ma de sexo/gênero, que diz respeito de gênero que falha em distinguir a
ao domínio social onde se engendra a disjunção entre gênero e sexualidade
opressão, ela destaca o indicador ana- (1984:307).
tômico e a elaboração cultural como Ressalto essa sua nova incursão
dois elementos distintos presentes no na crença de que a sexualidade cons-
que outrora se designava como papéis titui-se num domínio autônomo, ob-
sexuais, e que atualmente é referido servando que gênero é um elemento
como gênero. Para a autora, o sistema constitutivo da razão simbólica, deter-
sexo-gênero abarca “um conjunto de minando assim a impossibilidade de
arranjos pelos quais a sociedade trans- superação desse constrangimento. As-
forma a sexualidade biológica em pro- sim, a sagacidade de Rubin ica com-
duto” (Rubin, 195:197). prometida por uma visão de socieda-
A representação desse sistema de em que a troca como pressuposto
é observável na organização do paren- da organização social é tomada como
tesco. “Trafic in women” apresenta uma opressora de parcelas da humanida-
peroração contra a ação repressora da de (as mulheres) ou da sexualidade (a
sociedade e, sobretudo, em favor de homossexualidade). É justamente o
uma sociedade genderless. A posição comprometimento de Rubin com pa-
tem adeptas na literatura feminista, radigmas epistemológicos individualis-
como Elizabeth Badinter (1986), que
tas que a faz propor, ao reler a fórmula
preconiza uma androginização da cul-
da circulação de mulheres estabelecida
tura como condição de realização da
por Lévi-Strauss (1976), que as mulhe-
igualdade.
res, embora detendo uma posição pri-
Se o conceito por ela produzido
discrimina a indicação anatomoisio- vilegiada no elenco de bens trocados,
lógica da elaboração cultural, anun- estão mais na condição de conduto-
ciando-se nisso a interveniência do ras do que de parceiras no sistema de
arbitrário como emblema da cultura, relações (Rubin, 1984:174). Aos ho-
outra simpliicação nele se insinua. O mens, enquanto categoria socialmen-
sexo é tomado como sinônimo de se- te construída, é reservado o controle
xualidade, categoria que não merece de “quem tem nas mãos as regras do
qualquer avaliação crítica de Rubin, jogo”; cabe-lhes o poder e o prestígio
dada a sua notória circunscrição his- sociais. Segundo a autora, as mulheres

• 655 •
não se beneiciam da própria circula- gica de homens e mulheres, é uma
ção. Rubin associa a origem da subor- construção social (Moore, 1994;
dinação feminina a uma derrota histó- Oudshoorn,1994). Ou seja, o que é
rica simultânea à criação da cultura. reconhecido como um corpo sexuado,
A questão da universalidade da isicamente diferente, não é algo que,
assimetria há de conduzir Sherry Ort- levando em conta as ideias de outras
ner (1974:71) a indagar-se que “tipo de sociedades sobre a realidade física,
estrutura generalizada e condições de possa ser considerado um dado univer-
existência, comuns a todas as culturas, sal. Assim, tanto a distinção entre sexo
poderiam levá-las a apor um valor in- e gênero como as ideias de poder a ela
ferior às mulheres?”. Na proposta da associadas (Mathieu,1991) estendem
autora, a equação mulher/natureza
a outras sociedades concepções sobre
inscreve-se em um plano concreto; de
as relações entre homens e mulheres
alguma forma, todos os edifícios sim-
presentes nas sociedades “ocidentais”
bólicos apresentariam de modo mais
e devedoras do pressuposto da dicoto-
ou menos explícito algum tipo de ana-
mia entre sujeito e objeto. Esta dico-
logia entre os dois termos.
tomia, por sua vez, deriva de noções
As mencionadas abordagens
de poder (dominação/submissão) vin-
sustentam-se em pilar epistemológi-
co problemático: a própria distinção culadas à noção de “propriedade” e a
sexo/ gênero. A categoria sexo, en- uma visão do mundo “natural” como
quanto realidade física, não é objeto algo ixo sobre o qual se atua, no plano
de problematização histórico-cultural da cultura (Strathern 1980; Jordanova,
(Laqueur, 2001). No binômio sexo-gê- 1980). Esta nova perspectiva rejeita a
nero, o primeiro termo aparece como universalidade da distinção sexo/ gê-
objeto de conhecimento da biologia, nero para o conjunto das diversas cul-
numa particular tradição ocidental na turas existentes ou desaparecidas.
qual o corpo é tabula rasa a ser for- Os limites da sexualidade, por-
matada por marcas, inclusive aquelas tanto, são inteligíveis apenas se conce-
produzidas pelo discurso biológico. Na bidos em contextos precisos e, no que
tradição ocidental cartesiana, o objeto concerne às práticas ocidentais, suas
de conhecimento é matéria para o ato normatividades e pensamento, é preci-
do sujeito que analisa, e a “natureza” é so considerar o peso da heterossexua-
tão somente matéria prima para a cul- lidade, tomada como modelo compul-
tura (Haraway, 1991). sório.
O argumento é de que a no- Importante assinalar que no
ção de sexo, ou da natureza bioló- debate que envolve temas como sexu-

• 656 •
alidade, seus limites e os direitos sexu- bora as bases de um novo repertório de
ais assiste-se, atualmente, a um certo conhecimentos sobre sexualidades não
deslocamento e, por vezes, disputas circunscritas ao casamento heterosse-
de signiicados para qualiicar práticas xual. Conhecer e defender as minorias
sexuais anteriormente valorizadas de sexuais (aquelas que adotam as práticas
modo distinto. É o caso, por exem- menos valorizadas ou até sancionadas)
plo, de uma tolerância cada vez maior corresponde à tentativa de expandir as
em relação ao adultério, masturbação, fronteiras do que é aceito através da le-
prostituição, pornograia e homoero- gitimação social de que o prazer não
tismo e uma condenação, agora com apenas libera, como emancipa.
conotação legal, do assédio sexual, da
pedoilia ou do turismo sexual (Pisci- Maria Luiza Heilborn
telli, 2004; Vianna e Lacerda, 2004).
Referências e sugestões de leitura
A emergência de novas ansiedades re-
lacionadas ao que se conigura como BADINTER, Elizabeth. 1986. Um é o outro. Trad. Car-
lota Gomes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
limites aceitáveis, indicando uma espé-
FOUCAULT, Michel. 1977. História da Sexualidade: A
cie de pânico sexual. No caso do fe- Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal.
minismo, essas ansiedades derivam de HARAWAY, Donna. 1991. Simians, cyborgs and wo-
uma tendência radical que concebe a men. he reinvention of nature. New York: Routledge.

liberação sexual como mera extensão HEILBORN, Maria Luiza. 1990. Do gênero: antropo-
dos privilégios masculinos. logicamente… In: De Folhetins n. 3. Rio de Janeiro:
CIEC/UFRJ.
Outras tendências feministas,
JORDANOVA, Ludmilla. 1980. Natural facts: a histori-
gays e lésbicas criticam essa concepção cal perspective on science and sexuality. In: McCormack,
determinística, bem como lutam con- C.; Strathern, M. (Orgs.) Nature, Culture and Gender.
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tra restrições ao comportamento sexu-
LAQUEUR, homas. 2001. Inventando o sexo: corpo e
al das mulheres. Tais vertentes são liga- gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Du-
das ao movimento de liberação sexual mará.

dos anos sessenta e têm produzido es- LÉVI-STRAUSS, Claude. 1976 [2011]. As estruturas
elementares do parentesco. Tradução de Mariano Ferrei-
tudos e práticas inovadoras relativas ao ra. 6. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
prazer e escolhas sexuais. Para Rubin MATHIEU, Nicole-Claude. 1991. L’anatomie politique.
(1984), a inter-relação sexualidade-gê- Categorisations et ideologies du sexe. Paris: Côté femmes
“Recherches”.
nero não pode ser tomada pelo prisma
da causalidade, nem ser ixada como MOORE, Henrietta. 1994. A passion for diference.
Bloomington: Indiana University Press.
necessária em todos os casos. Nes-
ORTNER, Sherry. 1974. Is female to male as nature is
se sentido, ela adota uma posição de to culture? In: ROSALDO, M., LAMPHERE, L. (eds.)
aliança com as minorias sexuais e ela- Woman, culture and society. Stanford: Stanford Univer-
sity Press.

• 657 •
OUDSHOORN, Nelly. 1994. Beyond the natural body.
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Routledge.

PISCITELLI, Adriana. 2004. “Entre a praia de Iracema e


a União Européia: turismo sexual internacional e migra-
ção feminina”, in PISCITELLI, A.; GREGORI, M. F.;
CARRARA, S. (orgs.), Sexualidade e saberes: convenções
e fronteiras, Rio de Janeiro, Garamond Universitária.

RUBIN, Gayle. 1975. he Traic in Women: notes on


the ‘political economy’ of Sex. In: REITER, Rayna (org)
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thly Review Press.

RUBIN, Gayle. 1984. hinking Sex: Notes for a Radical


heory of the Politics of Sexuality. In: VANCE, Carol
(ed) Pleasure and Danger: Exploring Female Sexuality.
New York: Routledge.

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re: the Hagen case. In: McCormack, C.; Strathern, M.
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dge University Press.

VIANNA, Adriana; LACERDA, Paula. 2004 Direitos e


políticas sexuais no Brasil: o panorama atual, Rio de Ja-
neiro, CLAM/ IMS/UERJ.

• 658 •
Salud Feminina

Siguiendo la ya clásica deinición


de la Organización Mundial de la Salud
(OMS) de que la salud es “un estado
de completo bienestar físico, mental
y social y no solamente la ausencia de
enfermedad”, está ampliamente acep-
tado que la salud individual y colectiva
está determinada por factores biológi-
cos, psicológicos y sociales, incluyendo
dentro de estos últimos, los culturales,
económicos y religiosos. De igual ma-
nera, la salud de las mujeres está de-
terminada por estos mismos factores,
siendo los determinantes psicosociales
y socioeconómicos los que tienen una
inluencia más decisiva en su salud. La
premisa fundamental en la que se basa
este planteamiento es que las desigual-
dades sociales y económicas son las
que explican las diferencias en la mor-
bimortalidad diferencial que presentan
hombres y mujeres. Y si la salud de la
población es un exponente de la des-
igualdad que existe entre países con di-
ferentes niveles de desarrollo, también
lo es de la desigualdad que existe entre
hombres y mujeres (PNUD, 1995).
Las mujeres han sido conside-
radas tradicionalmente el “sexo débil”,
sin embargo los datos estadísticos de-
muestran que esto es una falacia. En
este sentido hay que destacar, por
ejemplo, que las mujeres tienen una
mayor esperanza de vida, existiendo,
por este motivo, de media 106 muje-

• 659 •
res por cada 100 hombres. Sin embar- hombres del derecho a la salud. Estas
go se da la paradoja de que aunque las desigualdades no son consecuencia de
mujeres viven más, su estado de salud las diferencias biológicas que existen
es peor y presentan una mayor mor- entre hombres y mujeres, sino que tie-
bilidad que los hombres. En general nen un origen social y cultural. A este
las mujeres presentan una prevalencia respecto guardan una especial relación
más alta de enfermedades crónicas y con el sistema sexo-género, pues mien-
tienen una percepción más negativa de tras que el sexo se deine en relación
su nivel de salud. Así indicadores tales a las diferencias biológicas, anatómicas
como la Esperanza de Vida Libre de y isiológicas de hombres y mujeres, el
Enfermedad Crónica o la Esperanza concepto género se reiere a las repre-
de Vida en Buena Salud evidencian sentaciones, ideas y prácticas sociales
esta airmación. de hombres y mujeres construidas por
Esta situación está directamente la sociedad que implican funciones di-
relacionada con las condiciones de vida ferentes y establecen una jerarquía en
que sufren las mujeres y de la posición el ejercicio del poder. Los roles socia-
que ocupan en la sociedad. Las des- les que se atribuyen a cada sexo, y que
igualdades de género están presentes sustentan las relaciones de poder en
en todas las sociedades. Varia la forma los sistemas patriarcales, no tienen una
de manifestarse dichas desigualdades base biológica sino que son construc-
pero no hay ningún país en el que las ciones sociales y determinan las dife-
mujeres no sufran algún tipo de discri- rencias en la forma de enfermar y mo-
minación. A pesar de los importantes rir de hombre y mujeres (WHO, 2011).
avances conseguidos, las mujeres no Las teorías feministas han apor-
disfrutan de una igualdad real que les tado un marco de análisis que ha per-
permita tener las mismas oportunida- mitido visibilizar los determinantes
des que los hombres. que afectan a la salud de las mujeres y
En la actualidad está ampliamen- que habían sido ignorados por las teo-
te demostrado que las desigualdades e rías predominantes en cada momento
inequidades tienen una repercusión histórico. Como señala Velasco, desde
importante en la salud de la población la epistemología feminista, “se con-
en general y de manera particular en el templa la salud-enfermedad como un
nivel de salud de las mujeres. Así mis- proceso biológico, pero también como
mo estas desigualdades de género es expresión de los conlictos por la posi-
uno de los obstáculos más importantes ción social debida a ser mujer u hom-
para que las mujeres puedan disfru- bre, los roles de cada sexo y la identi-
tar en las mismas condiciones que los dad sexual” (VELASCO, 2009, p. 55).

• 660 •
En relación a la salud de las mu- impacto decisivo en la salud de las mu-
jeres, las complicaciones relacionadas jeres (GARCÍA-CALVENTE, 2004,
con el embarazo y el parto son una p. 83-92).
de las primeras causas de mortalidad y Tal y como señala Gómez (2002,
morbilidad de las mujeres en el mundo. p. 5), “la equidad de género en el ámbi-
Se estima que cerca de 300.000 mujeres to de la salud debe entenderse, enton-
mueren anualmente por causas relacio- ces, como la eliminación de aquellas
nadas con el embarazo y el parto. Las disparidades innecesarias, evitables e
prácticas tradicionales nocivas para la injustas entre mujeres y hombres que
salud de las mujeres, la malnutrición, se asocian con desventajas sistemáti-
los abortos clandestinos, la alta tasa de cas en el contexto socioeconómico”.
natalidad, la inaccesibilidad a los servi- Entendiendo además que la equidad
cios de salud, la sobrecarga de trabajo, incluye que hombres y mujeres tengan
la pobreza, los matrimonios precoces, similares niveles de salud y bienestar;
los embarazos tempranos y poco espa- que tengan un acceso equitativo a los
ciados, etc. son algunos de los graves recursos sanitarios; y que tengan las
problemas que tienen las mujeres en mismas capacidades para participar
el mundo y que determinan el nivel de en la toma de decisiones y una similar
salud del que disfrutan. distribución de responsabilidades y de
Otro factor importante que in- trabajo (GÓMEZ, 2002, p.5-6).
cide en la salud de las mujeres en el In deinitiva, la salud de las
mundo es su situación económica. Del mujeres además de un componente
total de pobres que hay en el mundo, el biológico está condicionada por de-
70% son mujeres, lo que pone de ma- terminantes psicosociales, y por de-
niiesto que existe una feminización de terminantes socioeconómicos y pro-
la pobreza. Las mujeres trabajan más ductivos, siendo además el género un
horas a lo largo del día que los hom- determinante transversal de otros de-
bres, en base a la división social del tra- terminantes como son la edad, clase
bajo y al triple rol que desempeñan las social y etnia que pueden introducir
mujeres: rol reproductivo, rol produc- más factores de desigualdad e inequi-
tivo y rol de gestión comunitaria. La dad que afecta la salud de las mujeres.
doble y a veces la triple jornada de tra-
bajo que soportan las mujeres, como Maria Luisa Grande Gascón
consecuencia de su incorporación al
mercado de trabajo y de la asunción Referencias
del rol reproductivo, que sigue desem- GARCÍA-CALVENTE, María del Mar. “El impacto de
peñando casi en exclusividad, tiene un cuidar en la salud y la calidad de vida de las mujeres”,
Gaceta Sanitaria 2004; 18(Supl 2), p.83-92, 2004.

• 661 •
GÓMEZ, Elsa. Equidad, género y salud: retos para la de Illinois em Chicago, na Universida-
acción. Revista Panamericana de Salud Pública/Pan Am J
Public Health, n. 11, p. 5-6, 2002. de Northwestern, na Universidade da
Carolina do Norte em Chapel Hill, na
PROGRAMA DE NACIONES UNIDAS PARA EL
DESARROLLO (PNUD), Informe sobre Desarrollo Universidade de Rutgers e na Universi-
Humano 1995. México: PNUD, 1995.
dade Johns Hopkins. Após ocupar bre-
VELASCO, Sara. Sexos, género y salud. Teoría y métodos vemente o cargo de diretora de estudos
para la práctica clínica y programas de salud. Madrid: Mi-
nerva Ediciones, 2009.
associados à École des Hautes Études
en Sciences Sociales (em 1984), obte-
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO),
Gender mainstreaming for health managers: a practical ve em 1985 e permanece até o tempo
approach, 2011. Disponible en: http://whqlibdoc.who. presente na cadeira Harold F. Linder
int/publications/2011/9789241501071_eng.pdf. (Con-
sultado: 15 de junio de 2013) do Instituto de Estudos Avançados na
Faculdade de Ciências Sociais de Prin-
Indicaciones de lectura ceton, New Jersey. Em janeiro de 2006,
ela se juntou ao conselho editorial do
BORREL, Carme et al. Desigualdades en salud según la
clase social en las mujeres. ¿Cómo inluye el tipo de me-
The Journal of Modern History.
dida de la clase social?. Gaceta Sanitaria, n. 18 (supl 2), Nos começos da vida acadêmica
p. 75-82, 2004.
pesquisou à história francesa, especial-
ESTEBAN, Mari Luz. El género como categoría analíti- mente o movimento operário e a his-
ca. Revisiones y aplicaciones a la salud. En: MIQUEO,
Consuelo et al. Perspectivas de género en salud. Fun-
tória intelectual. Com esses estudos ad-
damentos cientíicos y socioprofesionales de diferencias quiriu respaldo nos meios acadêmicos
sexuales no previstas. Madrid: Minerva Ediciones, 2001.
masculinos. A obra de Scott desaiou
ROHLFS, Izabella, BORRELL Carme, FONSECA os fundamentos da prática histórica
M do C. Género, desigualdades y salud pública: cono-
cimientos y desconocimientos. Gaceta Sanitaria, n. 14 convencional, incluindo a natureza da
(supl 3), p. 60-71, 2000. evidência histórica, a experiência his-
VALLS-LOBET, Carme. Mujeres, salud y poder. Madrid: tórica e o papel da narrativa na escrita
Ediciones Cátedra. Colección Feminismos, 2009. da história. Baseando-se em uma gama
do pensamento ilosóico, bem como
• sobre a repensar da formação d@ his-
toriador (a) ela tem contribuído para a
Scott, Joan transformação do campo da história.
Scott publicou vários livros, que
Joan Wallach Scott - nasceu em são amplamente reimpressos e foram
1941 no Brooklyn, Estados Unidos. traduzidos para várias línguas, incluin-
Ela graduou-se na Universidade Bran- do francês, japonês, português e core-
deis, em 1962. Em 1969, obteve seu ano. Suas publicações incluem estudos
Ph. D. pela Universidade de Wiscon- sobre os vidreiros de Carmaux, mu-
sin. Scott trabalhou na Universidade lheres, sexualidade, trabalho e família,

• 662 •
sobre feministas francesas e os direitos culava com a noção de poder confor-
do homem. Ela também tem inúmeros me o excerto que segue: “[...] tem duas
artigos publicados. partes e diversas subpartes. Elas são
Na década de 1980, ela dedicou ligadas entre si, mas deveriam ser dis-
sua pesquisa à história das mulheres. tinguidas na análise. O núcleo essencial
Entre suas publicações mais notáveis da deinição repousa sobre a relação
está o artigo “Gênero: uma categoria útil de fundamental entre duas proposições:
análise histórica”, publicado em 1986 no o gênero é um elemento constitutivo
American Historical Review e publica- de relações sociais fundadas sobre as
do em português no Brasil em 1990. diferenças percebidas entre os sexos
Este artigo tornou-se um dos textos e o gênero é um primeiro modo de
mais citados nos estudos de gênero dar signiicado às relações de poder.”
e com isso ela referendava algo novo (SCOTT, 1990, p. 36)
e desaiador na academia. No Brasil, Com isso, Scott entendia que
Rago salienta a repercussão desta ca- gênero é constituído por relações so-
tegoria: “[...] por todo o país repercu- ciais permeadas no seu interior por
tiu vigorosamente em nossas próprias relações de poder. A relevância dessa
práticas, facilitando a valorização do articulação entre poder e gênero estava
trabalho das intelectuais feministas, na compreensão da dominação mascu-
nem sempre bem vistas, como sabe- lina e da subordinação feminina.
mos. A risadinha deu espaço à curio- Ao pensar a categoria Scott,
sidade e, aos poucos, os antropólo- dizia-se inluenciada por Jacques Der-
gos, historiadores e sociólogos, e não rida ao apontar para a desconstrução
apenas alguns intelectuais, passaram a do caráter binário e ixo para os gêne-
pensar na importância da sexualização ros (MACHADO, 1998, p. 107) Já as
do discurso historiográico. O femi- abordagens de Michel Foucault, são
nismo saía do gueto e irradiava seus pensadas por ela, no sentido de que os
luidos mornos e positivos pela acade- signiicados “nascem de uma disputa
mia.” (RAGO, 1998, p. 90) política e são os meios pelos quais as
Foi a partir da categoria mulhe- relações de poder – de dominação e
res que surgiu a de gênero. O termo já de subordinação – são construídas”.
havia sido proposto por Robert Stoller (SCOTT, 1990, p.37) Para Soihet, Scott
em 1968 em sua obra “Sex and Gender”, também propunha a análise da política
na qual separava sexo e gênero como mais tradicional, ou seja, do governo
distintos. Joan Scott retomou a dife- e do Estado como domínio da utiliza-
rença entre sexo e gênero, mas o arti- ção da categoria gênero, pois a história

• 663 •
política “foi trincheira de resistência à so, é preciso perceber em quais contex-
inclusão de materiais ou das questões tos políticos os signiicados da diferen-
sobre as mulheres e o gênero”, vista ça sexual são criados e/ou criticados e,
como categoria antitética aos negócios então, veriicar como, por exemplo, o
sérios da verdadeira política. (1998, p. ‘verdadeiro homem’ ou a ‘verdadeira
79-80) Nesta relação com a política e mulher’ são diferentes em cada perío-
o saber, gênero estaria imbricado a re- do do passado, procurando sempre se
lações de poder também na disciplina diferenciar um do outro, e ao mesmo
de História. tempo nunca coincidindo com as pes-
Joana Maria Pedro observa que soas de ‘carne e osso’.” (2005, p. 87)
para Scott, a história não era apenas o Estes signiicados estão em um
registro e, sim a forma que mulheres e universo simbólico que organiza so-
homens organizavam a vida. A história cialmente aquilo que podemos enxer-
era uma narrativa não neutra porque gar nos corpos e nas relações sociais.
produzia sobre a diferença sexual. O Para Joan Scott, o discurso é um ins-
envolvimento apenas dos homens nos trumento de ordenação do mundo, e
fatos marrados construía represen- mesmo não sendo anterior à organi-
tações de gênero no presente. Pedro zação social, ele é inseparável desta.
observa que “A história, neste caso, é (...)” (GROSSI; HEILBORN,1998, p.
uma narrativa sobre o sexo masculino, 115). Sobre as estratégias discursivas,
e constitui o gênero ao deinir que so- Scott na obra “A cidadã paradoxal: as
mente, ou principalmente, os homens feministas francesas e os direitos do
fazem história.” (PEDRO, 2005, p. 87) homem” discute a trajetória de impor-
Destarte, Scott propunha que a narra- tantes militantes feministas francesas
tiva histórica contemplasse como os — Olympe de Gouges, Jeanne Deroin,
signiicados de homens e mulheres, Hubertine Auclert e Madeleine Pelle-
como categorias de identidade, foram tier desde a Revolução Francesa, que
construídos. Pedro destaca ainda que vieram obtendo diferentes rendimen-
uma história feminista torna-se en- tos políticos em vários momentos his-
tão “uma maneira de fazer a crítica da tóricos. Nesta obra, ela pretendeu dar
maneira como esta história é narrada vozes as vidas das pessoas que estive-
e como esta disciplina atua” (2005, p. ram historicamente omitidas ou negli-
87). Para Pedro, a escritura nesta pers- genciadas em relatos do passado. Com
pectiva deve “[...] observar os signiica- isso, ela produziu uma riqueza de novas
dos ‘variáveis e contraditórios’ que são evidências e experiências normalmente
atribuídos à diferença sexual. Além dis- considerada indignas na escritura con-

• 664 •
vencional da história. (SCOTT, 1998, MACHADO, Lia Zanotta. Gênero, um novo paradig-
ma? Cadernos Pagu, n.11,p. 107-125, 1998.
p. 300). Esta autora é considerada uma
das especialistas da história da França RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gêne-
ro. Cadernos Pagu, n.11, p.89-98, 1998.
no século XIX, é também uma das
RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e
principais teóricas contemporâneas da história. In: PEDRO, Joana Maria e GROSSI, Miriam
história das mulheres e do feminismo. Pillar. Masculino, feminino, plural: gênero na interdisci-
plinaridade. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998, p.21-41.
Os textos de Joan Scott inluen-
ciaram de sobremaneira a produção PEDRO, Joana Maria. Relações de gênero na pesquisa
histórica. Revista Catarinense de História, n. 2, p.35-44,
historiográica, ultrapassando as ques- 1994.
tões de gênero. Grande parte das pes-
PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da ca-
quisas que discutem gênero a citam tegoria gênero na pesquisa histórica, História (São Paulo),
UNESP, vol. 24, n. 1, p. 77-98, 2005.
mesmo que seja para mostrar as limi-
tações. O uso da categoria de análise PISCITELLI, Adriana. Re-ecriando a (categoria) mu-
lher? Textos Didáticos, nº 48, ALGRANTI, Leila Mezan.
gênero na narrativa histórica e sua re- (org.) A Prática Feminista e o Conceito de Gênero, Cam-
lação com outras categorias como clas- pinas-SP, IFCH/Unicamp, p. 7-42, novembro de 2002.

se, geração e etnicidade permitiu que SAMARA, Eni de Mesquita; SOIHET, Rachel e MA-
as pesquisas ampliassem as discussões TOS; Maria Izilda S. de. (orgs.) Gênero em debate: traje-
tórias e perspectivas na historiograia contemporânea. São
sobre as relações entre homens e mu- Paulo: Educ, 1997.

lheres, adentrando também as relações SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise históri-
entre homens, entre mulheres e entre ca. Educação e Realidade. Porto Alegre, v.16, n.2, p.5-22,
jul/dez., 1990.
e com outras formas de identiicação.
A categoria gênero proposta por Scott SOIHET, Rachel. História das mulheres e história do
gênero. Um depoimento. Cadernos Pagu, n.11, p.77-87,
criou um novo universo linguístico- 1998.
-conceitual ultrapassando os muros da
Sugestões de leitura
academia e se fazendo visível em várias
instituições e organizações em todo o BOCK, Gisela. História, História das Mulheres, História
do Género. In: Penépole, Fazer e Desfazer História, nº 4,
mundo. Novembro de 1989, pp.158-187.

MATOS, Maria Izilda S. de. Estudos de gênero: percur-


Márcia Maria de Medeiros sos e possibilidades na historiograia contemporânea. Ca-
Tânia Regina Zimermann dernos Pagu, n.11, p.67-75, 1998.

SCOTT, Joan W. A cidadã paradoxal: as feministas fran-


Referências cesas e os direitos do homem.  Florianópolis: Edito-
ra Mulheres. Trad. Élvio A. Funck. Apres. Miriam P.
GROSSI, Miriam; HEILBORN, Maria Luiza e RIAL, Grossi, 2002.
Carmen. “Entrevista com Joan Wallach Scott”. In: Revis-
ta Estudos Feministas, Florianópolis, CFH/CCE/UFSC, SCOTT, Joan W. História das mulheres. In. BURKE, Pe-
v. 6, p. 114-125, n. 1/1998. ter.(Org.) A Escrita da História: Novas Perspectivas. São
Paulo: Unesp, 1992.

• 665 •
SCOTT, Joan W. A Invisibilidade da Experiência. Proje- cultura. Implica em denominações e
to História, nº 16, São Paulo, 1998, p.303-304.
caracterizações diferentes conforme os
• valores, os costumes, os mitos e as re-
presentações de cada grupo e em cada
Sexo/Sexismo sociedade, sempre relacionada ao dico-
tômico binômio sexo/gênero: macho/
Sexo é a categoria biológica uti- masculino ou fêmea/feminino.
lizada para diferenciar homens e mu- O conceito de sexo pode ser
lheres, baseada na ordem compulsória confundido, também, com o termo
do binarismo macho/fêmea advinda orientação sexual, que se refere à dire-
do reino animal e da natureza. É deter- ção do desejo ou da atração sexual e,
minado exclusivamente pela anatomia a partir desse critério, se qualiicar de
e isiologia do corpo humano – pelos três formas diferentes, descritas em
caracteres sexuais primários e secundá- expressões conhecidas socialmente.
rios. Exclui qualquer divisão que não Como heterossexual (quando o dese-
seja pré-concebida e que não corres- jo ocorre por alguém do sexo oposto),
ponda a essa classiicação, ignorando como homossexual (nos casos em que
o estado transitório do corpo e suas há desejo por alguém do mesmo sexo)
variações, tão comuns na contempo- ou como bissexual (quando a orienta-
raneidade. A dualidade biológica ainda ção sexual manifesta-se no desejo por
permanece dominante, considerando ambos os sexos).
o sexo masculino e o sexo feminino Sexo é um conceito que tam-
como as duas únicas possibilidades de bém pode se referir ao ato sexual ou
ser, existir e se enquadrar que são acei- relação sexual, compreendendo todas
tas socialmente, sendo antagônicos e as formas de atividade sexual prove-
excludentes, um em relação ao outro. nientes dessa prática. Inclui desde as
Essa deinição baseada nas ca- carícias eróticas até a união dos órgãos
racterísticas anátomo-biológicas é co- genitais, envolvendo diferentes atos re-
mumente relacionada a de gênero, que lacionados à sexualidade. Pode ocorrer
diz respeito à organização social da entre duas ou mais pessoas do mesmo
diferença sexual a partir de uma pers- sexo e/ou do sexo oposto, ou, então,
pectiva relacional, atravessadas pelas com a masturbação, uma atividade se-
questões do poder (STREY, 2009). xual auto erótica, na qual o indivíduo
Assim, enquanto sexo é uma categoria busca, sozinho, através de seu corpo,
biológica, gênero é a expressão ligada e de diferentes formas de estimulação,
às construções históricas e sociais que a obtenção da satisfação corporal e do
deinem a diferença sexual em uma prazer, tentando atingir o orgasmo.

• 666 •
Também pode ter ins de reprodução, chi (2009), servindo para criar e manter
incluindo, ou não, a satisfação dos ins- relações desiguais, assimétricas. Nessa
tintos de excitação sexual. A atração fí- perspectiva, pode-se considerar a des-
sica e/ou amor são as principais causas coberta do sexo-gênero (considera-
da procura pela(o) parceira(o) para a dos, socialmente, inseparáveis) de uma
realização do sexo ou ato sexual. criança, ainda no ventre da mãe, como
Das características anteriormen- uma das deinições mais importantes
te mencionadas, quando considera-se de sua vida, já que trará consequências
o conceito de sexo como relacionado à para suas formas de ser e se comportar
biologia corporal, pode-se entender o ao longo de toda sua vida.
conceito de sexismo. Esse está direta- Isso porque, de forma geral,
mente ligado aos estudos feministas de compreendemos como aceitável em
gênero, que criticam a associação direta nossas culturas, apenas duas formas
do sexo biológico ao gênero. Deine- de se constituir enquanto sujeitos: ou
-se como a retaliação, preconceito, e/ se nasce (e se é) homem, ou se nasce
ou atitudes negativas dirigidas às mu- (e se é) mulher. Essas formas de per-
lheres, tendo como justiicativa esse cepção são resultado de dois universos
fato, ou seja, seu sexo físico e seu gê- polarizados que, quando a criança nas-
nero correspondente. Apresenta uma ce, apenas lhe são apresentados, sem
relação de supremacia dos homens possibilidade de poder reletir e ques-
em relação às mulheres, colocando-as tionar se deseja enquadra-se ao mun-
em um papel de submissão, inferiori- do de estereótipos que cada um deles
zando o feminino em relação ao mas- reserva. Às meninas, cabe o rosa, as
culino. Uma ideia ou comportamento bonecas, casinhas e comportamentos
será considerado sexista no momento de passividade, delicadeza e retraimen-
em que o gênero masculino estiver se to. Aos meninos, oferece-se o azul, os
sobrepondo ao feminino, construindo carrinhos, as bolas e atos de soberania,
uma atmosfera de depreciação e estig- assertividade e exposição pública. Sig-
matização. niicativas diferenças herdadas do pa-
O sexismo, assim como o gêne- triarcado, que, mesmo que sutil, pode
ro, também é cultural, e pode começar ser percebido ainda na contemporanei-
a se constituir desde a infância, quan- dade.
do meninos e meninas são tratados Assim, faz-se indispensável
de maneiras diferentes, construindo e pensar o conceito de sexismo relacio-
mantendo, desde então, uma relação nando-o com o sistema patriarcal que
ideológica entre os gêneros, sendo ide- perpassa a sociedade atual e que serve
ologia compreendida segundo Guares- como um mantenedor do status quo

• 667 •
social. Essa forma de hierarquia enten- por meio do masculino, conforme di-
de o mundo e as relações que nele se tam as normas culturais e de nossa lín-
estabelecem através da supremacia do gua-pátria. Com o aval da Ciência, mui-
masculino, sendo o patriarca o chefe tas questões culturais são legitimadas,
ou senhor da família e o restante seus já que o que é considerado cientíico
dependentes, icando a mulher sempre é visto como certo, e a linguagem cor-
submissa ao homem, seja ele o seu pai reta, então, passa a ser uma linguagem
ou o seu marido (THERBORN, 2006). sexista, por invisibilizar as mulheres no
Ao irem constituindo-se en- uso do artigo masculino abrangendo
quanto meninos e meninas, homens os dois sexos (COULTHARD, 1991).
e mulheres, em contextos opostos em As ações produzidas por ho-
que o masculino é supremo, as relações mens e mulheres, como são resulta-
de poder começam a estabelecer-se dos da cultura em que estamos inse-
desde então, dominando o feminino ridas(os), acabam reproduzindo os
e submetendo-o às opressões mascu- pensamentos e ações sexistas que a
linas, de diferentes formas, em dife- cultura também constrói na socieda-
rentes contextos (FERREIRA, 2004). de ainda patriarcal em que vivemos. E
O denominado “sexo frágil”, mesmo questões sexistas nos remetem a uma
com as diversas mudanças sociais, linguagem sexista, que reforça ainda
ainda ica em desvantagem em con- mais para que o masculino se sobrepo-
textos proissionais e/ou domésticos, nha ao feminino. Essa não é uma con-
ganhando menores salários para os dição contemporânea, mas pode ser
mesmos cargos, por exemplo, ou pre- observada em suas origens históricas,
cisando dedicar-se a tarefas extenuan- quando as mulheres eram vistas como
tes, enquanto o sexo oposto descansa e “mais vulneráveis às vontades do dia-
distrai-se, unicamente porque se é mu- bo” e de complexo entendimento, em
lher – e vive-se em um mundo sexista. função da procriação não ser com-
Além do sexismo ser encontra- preendida, sendo considerada magia
do nos comportamentos sociais, tam- (DEL PRIORE, 1997).
bém está presente na fala, no sentido de Nessa perspectiva, a linguagem
entender a linguagem de modo sexista tem sido estudada a partir de diferen-
e não neutra, ou seja, privilegiando o tes enfoques, principalmente o de gê-
masculino em detrimento ao femini- nero, que se preocupa em desvelar os
no. Essa questão pode ser observada signiicados da linguagem sexista para
quando percebemos o mundo consti- as relações entre homens e mulhe-
tuído por homens e mulheres e uma res. Os estudos de gênero têm, então,
linguagem nomeando a todos e a todas contribuído para a defesa e difusão da

• 668 •
linguagem não-sexista, na medida em STREY, Marlene Neves; CABEDA, Sonia T Lisboa;
PREHN, Denise. Gênero e Cultura: questões contempo-
que, cuidadosamente, buscam que seus râneas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
textos e escritos nomeiem tanto as mu-
lheres quanto os homens, sem subsu- •
mir as primeiras aos últimos.
Sexualidade
Andressa Botton
Marlene Neves Strey
Patricia Fasolo Romani
Um dos principais desaios dos
Yáscara Arrial Palma estudos e pesquisas sobre a sexualida-
de é compor um retrato panorâmico
Referências de sua polissemia, pois, mesmo sendo
uma noção bastante conhecida, ela ain-
FERREIRA, Maria Cristina. Sexismo hostil e benevolen-
te: inter-relações e diferenças de gênero. Temas em Psico- da se encontra aberta a novos sentidos
logia da SBP, Ribeirão Preto, vol. 12, nº 21, p.119- 126, que variam de acordo com diferentes
2004.
contextos e situações, o que torna a
COULTHARD, Malcom. Linguagem e Sexo. São Paulo: pretensão de historiar ou dissecar esse
Editora Ática, 1991.
tema em sua ilimitada abrangência uma
DEL PRIORE, Mary. Magia e medicina na colônia: o
corpo feminino. In: Del Priore, M. História das mulheres
tarefa difícil. No entanto, podemos
no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. pensar a sexualidade como um con-
GUARESCHI, Pedrinho. Ideologia. In JACQUES, M. ceito empírico, analítico e político que
G. C. et al. Psicologia social contemporânea: livro-texto. passa por constantes alterações, sendo
12.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
a sua construção parte de um proces-
THERBORN, Goran. Sexo e poder: A família no mun-
do, 1900-2000. Trad. Elisabete Dória Bilac. São Paulo:
so complexo, que envolve, ao mesmo
Contexto, 2006. tempo, aspectos individuais, sociais,
STREY, Marlene Neves. Gênero. In JACQUES, M. G.
psíquicos e culturais que carregam his-
C. et al. Psicologia social contemporânea: livro-texto. toricidade e envolvem práticas e sim-
12.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
bolizações (HEILBORN, 2006).
Sugestões de leitura Como conceito empírico a no-
ção de sexualidade tem sido usada para
CASTRO, Ana Lúcia. Cultura Contemporânea, Identi-
dades e Sociabilidades: olhares sobre corpo, mídia e novas
descrever as experiências sexuais entre
tecnologias. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. seres humanos de diferentes culturas.
LOURO, Guacira Lopes. (2010). Gênero, sexualidade e A análise do processo de formação de
educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: gênero e as diferenças sexuais apresen-
Ed. Vozes, 2010.
ta uma outra dimensão desse conceito,
NYE, Andrea. (1995). Teoria feminista e as ilosoias do
homem. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1995.
que ainda na esfera política tem sido
usado para problematizar as relações

• 669 •
de poder entre os gêneros, derivados Uma das maiores contribuições
do controle desigual sobre o próprio no entendimento da sexualidade como
corpo. parte de um processo histórico foi
De modo geral três principais realizada por Michel Foucault (1988)
aspectos da sexualidade humana de- que a problematiza em um conjunto
vem ser identiicados: o biológico, que de relações sociais nomeado de “apa-
se refere ao prazer físico e a reprodu- rato da sexualidade”, que seria um ló-
ção; o social, que trata das relações, re- cus do qual várias formas de controle
gras, normas sexuais e as formas em e resistência são gerados e exercidos
que o sexo biológico é expresso e; o (FOUCAULT, 1988). Na transição do
subjetivo, da consciência individual e feudalismo para o período de indus-
coletiva da sexualidade e desejos. Esses trialização, o sexo biológico tornou-
aspectos são elementos de um amplo -se uma arena política e econômica de
processo que chamamos organização intervenção e tema de discurso que
da sexualidade, que não opera em ne- permeou todos os aspectos da vida
nhuma dessas estruturas sociais de for- privada. A ordenação da sexualidade,
ma isolada. Um dos primeiros usos do a medicalização e a estigmatização
termo sexualidade aparece no século seriam sansões sociais de estado nas
XIX, no entanto a palavra já existia no esferas institucionais e instrumentais,
jargão técnico da Biologia e da Zoolo- que marcaram o início da sociedade
gia desde o início de 1800, mas somen- moderna.
te no inal do século ela veio ser usada As principais contribuições para
amplamente em um sentido mais pró- o entendimento da hipótese repressiva
ximo do signiicado que tem hoje, que da sexualidade são: 1. A visão de que
segundo o Oxford English Dictionary o corpo humano deva ser entendido
se refere “a qualidade de ser sexual em termos de uma concepção histó-
ou possuir sexo” (GIDDENS, 1993, rica possibilitando discernir os termos
p.32). O sentido atribuído a sexualida- dos vários discursos e relacioná-los à
de se distingue de uma atividade sexu- mudanças sociais; 2. A noção de que
al. A expressão do sexo biológico, as o sexo biológico é uma fonte de vida
formas de relações sexuais, bem como cujas estruturas de regulação social
a consciência sexual são socialmente e formam uma base econômica e bio-
historicamente especíicas e devem se lógica da sexualidade que estabelece
diferenciar de acordo com as relações uma relação entre os modos das rela-
sociais de gênero, classe, etnicidade, ções sexuais e as relações de produção
idade etc. econômica; 3. Que os discursos sobre

• 670 •
sexualidade devam ser compreendido mana torna-se um direito atrelado às
como uma fonte de poder e resistência garantias constitucionais da dignidade
(CATONNÉ, 2001). da pessoa humana, da liberdade e da
Na sociedade brasileira, a se- igualdade (PARKER, 1991). Embora
xualidade se constituiu com fortes se possa airmar que a sexualidade te-
inluências ocidentais, em virtude da nha sido reconhecida como um direito
colonização portuguesa e da Igreja humano, ao ser pautada nas Confe-
Católica (GOLDBERG,1984), consti- rências das Nações Unidas de Cairo
tuindo o “patriarcalismo” não somente (1994) e Pequim (1995), esses direitos
uma forma de organização familiar e estavam restritos ao enfrentamento da
social, mas também uma construção violência contra a mulher e questões
ideológica, onde os conceitos de ho- relativas à saúde sexual e reprodutiva
mem e mulher foram deinidos em ter- na perspectiva do planejamento fami-
mos de oposição binária, que carregava liar, excluindo do debate outros atores
consigo um dualismo moral explícito, sociais que têm seus direitos humanos
que contribuiu para legitimar e refor- violados em função da sexualidade, tais
çar a ordem aparentemente natural como gays, lésbicas, bissexuais, traves-
das hierarquias de gêneros (PARKER, tis e transexuais (GLBT) e proissio-
1991). Esse legado patriarcal continua nais do sexo (CORRÊA, 1999).
a afetar o pensamento brasileiro e a Em uma ampliação dos direitos
maneira como a sexualidade tem sido sexuais percebe-se o surgimento dos
organizada. Contudo, emerge a par- novos arranjos, expressões, metodo-
tir da década de 70 o que nomeamos logias e abordagens que rompem com
de “revolução sexual” que prega uma as tradicionais leituras, antes associadas
concepção de sexo desvinculado de a uma perspectiva essencialista, sob
sua função reprodutiva, o que oportu- orientação da biomedicina, para tomar
nizou uma nova noção de sexualidade as variadas formas de expressão das
que repensasse a opressão e submissão ‘sexualidades’ e gêneros como sendo
vigente há milênios. mediadas por determinações psicosso-
Assim, os movimentos sociais, ciais, históricas e culturais. Nesse po-
particularmente o movimento feminis- sicionamento teórico crítico, a sexuali-
ta apresenta novas controvérsias para o dade pode ser pensada como parte dos
debate da sexualidade como os direitos processos fundamentalmente culturais
sexuais reprodutivos, a propagação da e plurais que “envolve rituais, lingua-
epidemia da AIDS, e a reinvindição da gens, fantasias, representações, símbo-
aceitação social e legitimidade legal da los, convenções” (LOURO, 1999, p.11)
diversidade sexual. A sexualidade hu- Nessa abordagem são os processos

• 671 •
culturais que deinem os sentidos da HEILBORN, M.L. (Org) . Sexualidade: o olhar das ci-
ências sociais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
natureza e biologia, as tornando con- v. 1. 206p
sequentemente, categorias históricas.
LOURO, G.L. (Org) O corpo educado: pedagogias da
Hoje identiicamos no debate sexualidade. Belo Horizonte : Autêntica,1999.
contemporâneo sobre sexualidade di-
PARKER, R.G. Corpos, prazeres e paixões: a cultura
álogos e tensões, entre as perspectivas sexual no Brasil contemporâneo. São Paulo: Best Seller,
culturalistas, as investigações biomédi- 1991.

cas em HIV/AIDS, os estudos recen-



tes com os aportes da teoria queer, em
especial no que diz respeito a crítica da
ordem heteronormativa, questões es- Subjetividade
sas que podem ser pensadas não como
um ponto de chegada, deinitivo e per- A Subjetividade em geral é en-
manente desse conceito, mais um lugar tendida como aquilo que pertence
de onde podemos partir para novas e ao sujeito, que é pessoal, individual,
múltiplas abordagens das ‘sexualidades’. particular, que manifesta as ideias ou
preferências da própria pessoa. Carac-
Jacy Corrêa Curado teriza-se como o contrário de objetivi-
dade, pertencendo somente ao pensa-
Referências mento humano, integrando o campo
das atividades psíquicas e emocionais
CATONNÉ, J.P. A sexualidade ontem e hoje. São Paulo:
Cortez, 2001.
do indivíduo. Como é possível falar de
diversas maneiras sobre subjetividade,
Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Hu-
manos (CLAM). www.clam.org.br
optarei pelas análises realizadas por
Deleuze, Guatari e Foucault, centradas
CORRÊA, S. “Saúde reprodutiva, gênero e sexualidade:
legitimação e novas interrogações”. IN: K. GIFFIN, K.,
na concepção de que a subjetividade é
and SH COSTA., orgs. Questões da saúde reprodutiva. uma produção histórica.
Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1999.
Gilles Deleuze e Felix Guatari
FOUCAULT, M. História da Sexualidade I. : a vontade na obra intitulada Mil Platôs, defen-
de saber. Trad. Maria hereza da Costa Albuquerque e J. ª
Guilhon Albuquerque.7 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
dem que assim como Marx argumenta-
va que o capitalismo fabrica o proleta-
GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexua- riado que será seu algoz e coveiro, este
lidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Trad.
Magda Lopes. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1993 mesmo capitalismo fabrica esquizofrê-
nicos que estabelecerão seu limite e o
GOLDBERG, M.A.A. Educação sexual: uma proposta,
um desaio. 2. ed. São Paulo: Cortez,1984.
arruinarão. Segundo eles, o esquizofrê-
nico é múltiplo, já não tem a identidade
HEILBORN, M.L. Entre as tramas da sexualidade brasi- do sujeito e sim identiicações transitó-
leira. Estudos Feministas,14 (1) :336, janeiro-abril, 2006.
rias e simbólicas.

• 672 •
Para Deleuze e Guatari que am- blina, de um enxame, de uma matilha
pliaram o conceito de subjetividade, (independentemente da regularidade).
esta é socialmente construída, é o efei- Ou pelo menos você pode tê-la, pode
to da cultura sobre uma pessoa. É uma consegui-la” (DELEUZE; GUATARI,
subjetividade que diz menos à identi- 1997, p. 49).
dade e mais à singularidade, dialógica,
Deleuze e Guatari defendem
descentrada e inscrita na superfície
do corpo. Em suas concepções, atu- que o “eu” não deve mais ser investi-
almente uma criança tem como vetor gado como um espaço contido de in-
de subjetivação tanto a família como a dividualidade humana, limitado pelo
televisão. “envelope da pele”, mas como histo-
Ao criticarem a subjetividade ricamente ele acabou por conceber sua
fundadora, coerente e individualizada, relação consigo mesmo. Um corpo ha-
imanente ao indivíduo, formulam uma bitado por sua própria alma.
alternativa radical ao estabelecerem-na Nicolas Rose demonstra a im-
como plural e polifônica. Para Deleuze possibilidade de uma identidade ixa e
e Guatari os seres humanos são mais
imutável. Segundo ele, somos dinâmi-
múltiplos, porque a subjetivação nunca
cos e interagimos, inluenciando e sen-
é um processo puramente gramatical,
ela surge de um “regime de signos e do inluenciados, desenvolvendo varia-
não de uma condição interna à lingua- das identiicações, não sendo único em
gem” e este regime de signos está sem- momento algum. Não existe um único
pre preso a um agenciamento ou a uma “eu”, mas esse “eu” possui várias iden-
organização de poder. E é neste agen- tidades, muitas vezes, inclusive, opos-
ciamento (montagem, arranjamento, tas. Também para Katryn Woodward
combinação) que são produzidos os identidade e subjetividade são concei-
sujeitos. tos interligados: “O conceito de sub-
As multiplicidades ultrapassam
jetividade permite uma exploração dos
a distinção entre a consciência e o in-
sentimentos que estão envolvidos no
consciente, entre a natureza e a histó-
processo de produção da identidade e
ria, o corpo e a alma. Elas deinem a
do investimento pessoal que fazemos
pluralidade e a multiplicidade do eu,
em posições especíicas de identida-
um eu construído: “Você é longitude
de. Ele nos permite explicar as razões
e latitude, um conjunto de velocidades
pelas quais nós nos apegamos a iden-
e lentidões entre partículas não forma-
tidades particulares” (WOODWARD,
das, um conjunto de afetos não subjeti-
2007, P. 55,56).
vados. Você tem a individuação de um
Michel Foucault, na iliação da
dia, de uma estação, de um ano, de uma
subjetividade construída de Deleuze
vida (independentemente da duração);
e Guatari, defende que para falar de
de um clima, de um vento, de uma ne-

• 673 •
sujeito é preciso falar de “modos de fabricados em um certo momento da
subjetivação”, de como as formações história, e que portanto podem ser cri-
de saber e dispositivos de poder nos ticados, desconstruídos e destruídos
constituem como sujeito. Subjetivida- descobrirá que é mais livre do que pen-
de para Foucault refere-se ao modo sa.
pelo qual o sujeito faz a experiência Em relação aos modos de pro-
de si mesmo em um jogo de verdade: dução da subjetividade, Foucault diz
“se digo a verdade sobre mim mesmo que “não se deveria dizer que a alma
como eu o faço, é porque, em parte, me é uma ilusão, ou um efeito ideológico,
constituo como sujeito através de um mas airmar que ela existe, que tem
certo número de relações de poder que uma realidade, que é produzida per-
são exercidas sobre mim e que exerço manentemente, em torno, na superfí-
sobre os outros.” (FOUCAULT, 2000, cie, no interior do corpo pelo funcio-
p. 327). namento de um poder que se exerce
Em um de seus últimos traba- sobre os que são punidos. Essa alma
lhos, O Sujeito e o Poder, Foucault real e incorpórea não é absolutamente
confessa que apesar de suas pesquisas substância; é o elemento onde se arti-
centrarem-se na questão do poder, não culam os efeitos de um certo tipo de
era este, mas o sujeito, que constituiu poder e a referência de um saber, a en-
o tema central de suas pesquisas. A grenagem pela qual as relações de po-
história dos diferentes modos que os der dão lugar a um saber possível, e o
seres humanos tornaram-se sujeitos, saber reconduz e reforça os efeitos de
as diversas formas de assujeitamento poder. Sobre essa realidade-referência,
(submissão da subjetividade através vários conceitos foram construídos e
de discursos, técnicas e estratégias que campos de análise foram demarcados:
produz a homogeneidade da subjetivi- psique, subjetividade, consciência, etc.”
dade) e de como foram produzidas as (FOUCAULT, 1991, 31-32).
subjetividades. As instituições que produzem
Foucault insiste em lembrar que a subjetividade, como a família, o es-
devemos pensar a subjetividade se- tado, trabalho, a mídia, por exemplo,
parada da individualidade. Se durante
são neutralizadoras da diferença e do
muito tempo foi imposto ao homem
heterogêneo. O controle não mais se
um tipo de individualidade, de identi-
circunscreve a muros como Escola e
dade, ele agora deve promover novas
formas de subjetividade. Quando des- Igreja, mas expande-se em espaços
cobrir que aquilo que sempre tomou abertos. É uma nova produção de sub-
por verdade, por evidência, são temas jetividade que emerge. Segundo Mi-

• 674 •
chel Foucault é possível questionar as lações de poder, marcando identidades
formas de ser que têm sido inventadas e subjetividades únicas e permanentes.
para nós, inventando novas possibili- Desde o nascimento, à vestimenta, a
dades de vida e novas subjetividades. imposição de nomes e normas com-
Para Suely Rolnik a subjetivida- portamentais deinem-se o que são ho-
de não se deine por uma só igura que mens e o que são mulheres. S e
se estabelece na infância e se desenvol- a lógica da subjetividade é identitária,
ve ao longo da vida, pois somos sem- havendo uma incessante política de
pre confrontados com as mudanças subjugação das diferenças, a alternativa
do mundo contemporâneo e o caráter a esta lógica seria a invenção de novas
incerto da subjetividade. Deveríamos subjetividades, diferentes multiplicida-
falar, mais do que em subjetividades, des, colocando em suspenso a subjeti-
em processos de individuação ou de vidade hegemônica. Se a subjetividade
subjetivação. Segundo ela, “faz-se ne- é construída no social, é possível, por-
cessário constituir uma teoria da sub- tanto, a produção de novas subjetivida-
jetividade que comporte tais singulari- des.
dades e sua potência de transiguração.
Ana Maria Colling
Isso implica deslocar-se radicalmente
de um modelo identitário e represen- Referências e sugestões de leitura
tacional, que busca o equilíbrio e que,
para obtê-lo, despreza as singularida- DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Ca-
pitalismo e esquizofrenia. Vol. 2. Rio de Janeiro: Ed. 34,
des. Trata-se de apreender a subjetivi- 1995.
dade em sua dupla face: por um lado, a
______. Vol. 4. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.
sedimentação estrutural, e, por outro, a
agitação caótica propulsora de devires, DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault.
Uma trajetória ilosóica para além do estruturalismo e
através dos quais outros e estranhos da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
eus se perilam, com outros contornos, 1995.

outras linguagens, outras estruturas, FONSECA, Márcio Alves. Michel Foucault e a constitui-
outros territórios.” (ROLNIK, 2000, ção do sujeito. São Paulo: Educ, 1995.

p. 67). FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I. A Von-


Em relação às mulheres e ao gê- tade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1977.

nero existe um trabalho incessante em ______. O Sujeito e o Poder. In: Michel Foucault. Uma
demarcar identidades e subjetividades trajetória ilosóica para além do estruturalismo e da her-
menêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
em detrimento de processos de subjeti-
vação e individuação. Um trabalho dis- ______. Verdade e Subjetividade. In: Michel Foucault.
Uma analítica da Experiência. Lisboa: Cosmos, 1993.
cursivo permanente, entrelaçado à re-

• 675 •
______. A Hermenêutica do Sujeito. In: Resumo dos cepção dos homens como politica-
Cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar editor, 1997. mente iguais, através de um novo prin-
cípio eleitoral, o do sufrágio direto sem
REY, Fernando; FURTADO, Odair (org.) Por uma
epistemologia da subjetividade: um debate entre a teoria qualquer limitação de censo. Contudo
sócio-histórica e a teoria das representações sociais. São esse ainda era um sufrágio, de fato, res-
Paulo: Casa do psicólogo, 2002.
trito aos representantes masculinos, o
ROLNIK, Suely. Novas iguras do caos – mutações da que o tornava “universal”, na época,
subjetividade contemporânea. In:FONSECA, Tânia;
FRANCISCO, Deise. Formas de ser e habitar a contem- era a ausência da barreira censitária,
poraneidade. Porto Alegre; UFGRS, 2000.
mas foi através de sua aplicação, que a
ROSE, Nicolas. Inventando nossos eus. In: SILVA, To- exclusão de grupos, tais como as mu-
maz Tadeu (org.). Nunca fomos humanos. Nos rastros do
sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
lheres, passou a ser mais notada e con-
testada. Despontou assim um novo
WOODWARD. Katryn. Identidade e diferença: uma
introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu
tipo de exclusão baseada exclusiva-
(org.) Identidade e Diferença. A perspectiva dos Estudos mente no quesito “sexo”. A cidadania
Culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
política feminina se viu relegada a um
• patamar difícil de ser contestado, uma
vez que o conceito atrelou-se a uma di-
Sufragismo/Sufragetes ferenciação sexual. A partir dessa ex-
plícita não inclusão surgiu no mundo
O sufragismo foi um movimen- ocidental um movimento em busca do
to em prol da extensão do voto, sem reconhecimento da cidadania política
nenhum tipo de restrição, a todas as feminina. Nesse sentido o movimento
pessoas de uma mesma comunidade. mais conhecido foi o que ocorreu na
Durante muito tempo, o direito de vo- Inglaterra, no início do século XX. O
tar foi entendido como um privilégio surgimento de associações femininas
de poucos, e estes poucos sendo exclu- nesse país foi diretamente inluenciado
sivamente do gênero masculino, bran- pela negativa do governo de conceder
cos e possuidores de bens. O termo é o sufrágio feminino. O ato fundador
mais comumente empregado para do movimento parece ser a petição
identiicar a luta empreendida, entre os apresentada por Stuart Mill em 1866,
séculos XIX e XX, pelo direito ao voto em prol do voto das mulheres, que,
das mulheres. Os partidários desse mo- apesar de aprovada pelo Parlamento
vimento, homens e mulheres, icaram inglês, recebeu veto do primeiro-mi-
conhecidos pela alcunha de sufragistas. nistro Gladstone. Outra provável ori-
Foi delagrado quando da instituição gem do movimento pode ser identii-
do chamado sufrágio universal em cada em 1832, quando uma nova lei
1848, na França, que difundiu a con- eleitoral foi colocada em vigor na In-

• 676 •
glaterra, assegurando o “direito de moderação, com o cuidado de se man-
voto a meio milhão de eleitores do ter sempre dentro da constitucionali-
sexo masculino da classe média” dade, pois apostavam na justeza de
(ABREU, 2002, p.460). Com tal refor- seus pedidos para conscientizar os po-
ma, aparece pela primeira vez, de for- líticos e a opinião pública a seu favor.
ma explícita, a separação política entre Mas apesar dessa atitude, não conse-
homens e mulheres, uma vez que foi guiram angariar muitos resultados con-
introduzida a expressão “male person” cretos. A segunda e mais conhecida
ao corpo da lei, determinando a exclu- fase do movimento inglês foi também
são de todas as mulheres do direito de a mais militante e utilizou técnicas mais
voto, sem exceções. A partir de então o contundentes para fazer valerem os
voto passou a ser o ideal buscado pelas seus pedidos. Teve início em 1903 com
mulheres, pois “as sufragistas argu- a fundação, em Manchester, de um
mentavam que as vidas das mulheres novo grupo liderado por Emmeline
não melhorariam até que os políticos Pankhurst e suas duas ilhas, e recebeu
tivessem de prestar contas a um eleito- o nome de Women’s Social and Political
rado feminino. Acreditavam que as Union (WSPU). Esse grupo também
muitas desigualdades legais, econômi- publicava jornais semanais, o primeiro
cas e educacionais com que se con- deles fundado em 1907, o Votes for Wo-
frontavam jamais seriam corrigidas, men, seguido pelo The Suffragette, de
enquanto não tivessem o direito de 1912. Foi o mais combativo dos gru-
voto. A luta pelo direito de voto era, pos e o que alcançou mais sucesso em
portanto, um meio para atingir um expor o movimento pró-sufrágio para
im” (ABREU, 2002, p.460). A questão o mundo, sendo o mais lembrado e as-
do voto deixou de ser considerada ape- sociado à luta feminina pelo voto no
nas como o símbolo da desigualdade imaginário popular. As militantes do
entre homens e mulheres para ser ele- WSPU icaram conhecidas mundial-
vado à prioridade do movimento. A mente pela alcunha de suffragettes. Os
principal e mais antiga organização su- argumentos utilizados pelos seus mem-
fragista britânica no inal do século bros em nada se diferenciavam dos ou-
XIX era a National Union of Women’s tros sufragistas, podendo ser assim re-
Suffrage Societies (NUWSS) fundada em sumidos: a exaltação das qualidades da
1897 e presidida por Millicent Garret mulher, da sua força moral em oposi-
Fawcett. Era bem estruturada, com ção ao pragmatismo masculino, além
uma publicação semanal em forma de de também contestarem o papel da
jornal, intitulado The Common Cause. A mulher na nova sociedade. O que dife-
sua estratégia de ação era pautada pela renciava uma associação da outra eram

• 677 •
as estratégias de luta empregadas, e não partir de 1908 a WSPU passou tam-
o argumento discursivo. Segundo bém a apostar no uso de cores para di-
Abreu (2002, p.462), a WSPU era uma ferenciar as suas seguidoras e identii-
“organização ativa com objetivos bem car a sua campanha pelo voto.
deinidos e uma ética especial”, sendo Escolheram para isso as cores violeta
que essa seria a sua principal diferença – para representar a dignidade, o bran-
e inluência, pois suas militantes esco- co – a pureza –, e o verde – a esperan-
lheram apostar no uso de táticas não con- ça. Assim, “as Sufragetes foram instru-
vencionais para fazer pressão junto ao ídas para usarem sempre essas cores,
governo para a causa sufragista e, desse por forma a serem instantaneamente
modo, chamar a atenção do público identiicadas em público, bem como a
para as suas demandas. Com o lema causa por que lutavam” (ABREU,
Deeds not words – Ações e não palavras, as 2002, p.463). A partir de junho desse
militantes aplicavam todos os métodos ano, as partidárias da WSPU também
ao seu alcance para obter alguma vitó- começaram a tomar atitudes mais vio-
ria, desde passeatas até o uso da violên- lentas nas manifestações públicas de
cia e da intimidação. Entre as táticas que participavam, sendo este também
empregadas por esse grupo destaca- o início da parte mais violenta da mili-
ram-se: atear fogo a caixas de correio, tância, quando ocorreu a primeira que-
quebrar vidraças de lojas e casas, acor- bra de vidraças da casa do primeiro
rentar-se a portões de prédios públicos ministro, em Downing Street. Após o
e interromper os discursos dos políti- ano de 1911, a estratégia estabelecida
cos. O resultado de tais ações foi que pelo movimento passou a ser de pres-
muitas dessas militantes foram presas são total em relação aos membros do
por perturbação da ordem pública e governo, concentrando seus esforços
desrespeito à autoridade. As estratégias em uma campanha contra os detrato-
aplicadas pela militância são resumidas res do voto feminino. Se a tática mais
por Anne-Marie Käpelli (1995, p.565) utilizada, nos primeiros tempos, era in-
em quatro formas de expressão: técni- terromper os encontros públicos dos
cas de propaganda, desobediência civil, políticos com aclamações pelo sufrá-
não-violência ativa e violência física. gio, logo passou a ser a confrontação
Em 1914, às vésperas da Primeira física com a polícia. Para Martin Pugh
Guerra Mundial, essa organização era (2000) as táticas que tiveram mais su-
uma das maiores do Reino Unido, e o cesso, em termos de resultados práti-
que havia começado como uma orga- cos, foram as empregadas entre os
nização essencialmente familiar, em anos de 1906 e 1908, caracterizadas
1903, sofreu uma enorme expansão. A pelas interrupções nos discursos dos

• 678 •
parlamentares e os atos de se acorren- presas praticaram a greve de fome na
tarem em prédios públicos, que servi- prisão, como uma forma de protesto, o
ram para elevar a questão do sufrágio que desencadeou uma violenta reação
feminino como uma das prioridades por parte das autoridades, que força-
do novo século. O incremento no uso vam as manifestantes a se alimentarem.
da violência, ao invés de trazer simpa- Tal ato de brutalidade foi denunciado
tias para a causa do grupo, mais des- pelas próprias militantes, e parece ter
gastou o movimento junto à opinião surtido efeito, uma vez que, em 1913, o
pública do que o ajudou. Contudo a governo britânico sancionou uma lei –
mudança para táticas mais radicais e The Cat and Mouse Act – que permitia
violentas se mostrou eicaz, pois, tal ao governo liberar provisoriamente as
como salienta Abreu (2002, p. 464), foi presas que icassem doentes, para se
“somente a partir do momento em que restabelecer em sua própria casa. Na
as suffragettes adotaram estas formas mesma época o grupo do NUWSS, re-
de luta é que a campanha pelo direito tomou de forma acentuada as suas táti-
ao voto feminino na Grã-Bretanha co- cas de pressão moderadas, subscreven-
meçou a ser levada a sério pelos políti- do petições, escrevendo artigos para
cos e pela imprensa”, recebendo um jornais e enviando cartas aos políticos.
destaque enorme também na imprensa Em 1912 o NUWSS passou a apoiar o
de outros países. Essa e outras atitudes partido trabalhista (Labor Party), apon-
femininas também serviram para dar tando uma mudança nas suas estraté-
maior vigor aos argumentos dos que gias de ação mantidas até então, isto é,
eram contrários a se estender a cidada- de não dar apoio a nenhum partido
nia política para as mulheres. A campa- político. Com o advento da Primeira
nha de confronto direto das suffraget- Guerra Mundial, os atos de desobedi-
tes começou a declinar a partir de ência civil foram suspensos de comum
1912, pois a eicácia da tática já não era acordo entre os grupos envolvidos e o
mais observada e estava saindo do governo britânico. A liderança da
controle. Ataques contra o governo e WSPU resolveu apoiar o governo, dei-
prédios comerciais, durante 1911 e xando a militante campanha em prol
1912, resultaram na prisão de muitas do sufrágio feminino em segundo pla-
militantes. De 1912 a 1914, os órgãos no. Em março de 1917 foi apresentado
policiais passaram a se utilizar todos os um novo projeto de lei na Câmara dos
recursos legais a seu dispor para supri- Comuns, concedendo o voto para as
mir a campanha da WSPU e trazer a mulheres maiores de 30 anos, levado
opinião pública para o seu lado e con- ao debate na Casa dos Lordes, em ja-
tra as suffragettes. Muitas das mulheres neiro de 1918, inalmente foi vitorioso.

• 679 •
A concessão desse voto limitado para PUGH, Martin. he March of the Women. A revisionist
analysis of the campaign for women’s sufrage, 1866-
as mulheres fez parte de uma tática do 1914. London: Oxford University Press, 1999.
governo para diminuir o impacto da
PURVIS, June. Emmeline Pankhurst. A biography. Lon-
conquista, uma vez que os parlamenta- don: Routledge, 2002.
res acreditavam que um número limita-
ROWBOTHAM, Sheila. A Century of Women. he
do de mulheres se interessaria em par- History of Women in Britain and the United States. Lon-
ticipar das pugnas eleitorais. Somente don: Viking, 1997.

em 1928 ocorreu a equiparação entre STANSELL, Christine. he feminist promise: 1792 to


the present. New York: Modern Library, 2010.
os sexos no quesito. As suffragettes e
as suas táticas mais agressivas passa-
ram a ser reconhecidas como “o” re-
presentante do movimento sufragista
no imaginário popular e também in-
luenciaram o primeiro movimento or-
ganizado feminino no Brasil liderado
por Leolinda Figueiredo Daltro.

Mônica Karawejczyk

Referências e sugestões de leitura

ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Luta das Mulheres


pelo Direito de Voto. Movimentos sufragistas na Grã-
-Bretanha e nos Estados Unidos. Arquipélago – Re-
vista da Universidade dos Açores. Ponto Delgada, 2ª
série, VI, 2002. Disponível em: <http://hdl.handle.
net/10400.3/380>

BAKER, Jean H. Votes for Women: the struggle for suf-


frage revisited. New York: Oxford University Press, 2002.

GAY, Peter. A Experiência Burguesa da Rainha Vitória a


Freud. Vol. 3: O Cultivo do Ódio. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2001.

KÄPPELI, Anne-Marie. Cenas Feministas. In: DUBY,


Georges; PERROT, Michelle. História das Mulheres no
Ocidente. Vol. 4: O século XIX. Porto: Afrontamento,
1995.

KARAWEJCZYK, Mônica. As ilhas de Eva querem vo-


tar. Dos primórdios da questão à conquista do sufrágio
feminino no Brasil (c.1850-1932). 398 f. Tese (Doutora-
do em História). Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2013.

• 680 •
Teologia Feminista

A Teologia Feminista (TF) é


a elaboração teológica comprometi-
da com os movimentos de salvação,
emancipação e libertação das mulheres e
de toda a humanidade, visando forjar
sujeitos livres e construir relações de
gênero justas. Partindo da experiên-
cia da revelação de Deus no mundo,
historicamente encarnada em Jesus
Cristo, a Teologia Feminista sempre é
e só pode ser teologia contextualizada,
reconhecendo a Revelação atualizada
nos movimentos e gestos de libertação
da experiência de vida real e atual. Por
isso a Teologia Feminista que acontece
nas igrejas, nas religiões e na academia
é sempre ato segundo, construída a par-
tir da experiência real; o cotidiano é o
lugar de Deus, e, por esta razão, a TF
compreende as estruturas sexistas e
excludentes da sociedade, das relações
humanas em si, e de seus mantenedo-
res, nós mesmas/os como pecado. Ou
seja, o pecado está nestas estruturas,
nos gestos, nas ações e nas teorias que
oprimem as mulheres e todos os seres
humanos em razão do gênero.
Gênese da Teologia Feminista: No
século XV estão os primeiros sinais do
que se chama feminismo cristão, quando
a francesa Christine de Pisan escre-
ve o livro A cidade das mulheres (1405)
criticando a misoginia no discurso re-
ligioso e na ciência. Segundo Pisan, o
Criador colocou uma alma igualmente

• 681 •
nobre e inteiramente semelhante no várias mulheres nas igrejas e religiões
corpo feminino e no masculino, ne- fazendo relexão teológica. Em 1968
gando qualquer superioridade essen- a teóloga católica e ilósofa feminista
cialista ou dualista. Mary Daly publica o livro A Igreja e o
No contexto religioso, coube às Segundo Sexo, relendo o clássico de Si-
feministas estadunidenses o protago- mone de Beauvoir com contundentes
nismo de reletir coletivamente e pu- críticas ao cristianismo patriarcal.
blicamente sobre a opressão de gênero O desenvolvimento da teologia femi-
no âmbito das Igrejas, com destaque nista: Hoje há teologia e teólogas femi-
para as abolicionistas afrodescendentes nistas em todos os continentes, num
e líderes religiosas da primeira metade movimento dinâmico e criativo dentro
do século XIX Sojourner Truth, Jare- e fora das igrejas e religiões. Há TF
na Lee, e as irmãs ex-escravas Sarah cristã, budista, islamita, judaica, católi-
e Angelina Grimké. Sarah protestou ca, evangélica, etc., ocupando-se com
contra falsas traduções, interpretações experiências de grupos bem diferentes,
e comentários distorcidos de textos bí- como mulheres em situação de rua e
blicos, e exigiu que as mulheres fossem de prostituição, mulheres negras, indí-
admitidas ao estudo das línguas origi- genas, lésbicas, trabalhadoras do cam-
nais da bíblia a im de produzirem ou- po, migrantes, empregadas domésticas,
tras interpretações não androcêntricas religiosas, entre outras. Fiel ao contex-
e sexistas dos textos. to de onde parte, a TF pode receber
A crítica bíblica feminista tem inclusive diferentes nomes, como Te-
como precursora a presbiteriana Eliza- ologia Ecofeminista, Womanist Theology,
beth Cady Stanton e sua Bíblia da mu- Teologia Mujerista, Teologia Bosadi, Te-
lher que, no século XIX, reinterpretou ologia Minjung, entre outras.
os textos bíblicos à luz da consciência Entre as principais da América,
feminista emancipatória, abrindo ca- destaca-se a Teologia Womanista surgida
minho para a hermenêutica feminista nos EUA, um movimento das teólogas
crítica. Destaque também para a Alian- feministas afro americanas para air-
ça Internacional Joana d’Arc, movimento mar as experiências das mulheres ne-
inglês fundado em 1911 sob o slogan gras diante da ausência delas tanto na
Orai a Deus: Ela vos atenderá!, reivindi- Teologia Negra quanto na TF branca.
cando que a divindade transcende a di- Nesse contexto surge a Teologia Mujeris-
ferenciação sexual, sendo possível no- ta, buscando reletir a experiência das
meá-la de “Ela” ou “Ele”. A partir de mulheres migrantes latinas. E ainda
1965, com a organização político-so- TF da Libertação, que compartilha cri-
cial do movimento feminista, surgiram ticamente a perspectiva da teologia da

• 682 •
libertação latino-americana, fazendo a o que precisa ser justiicado e salvo
relexão a partir da opressão e exclusão pelo masculino. Se estabelece, então, a
das mulheres pobres e marginalizadas marca androcêntrica da epistemologia
e a crítica profética ao modelo social teológica clássica, onde a experiência
patriarcal, especialmente nas igrejas. masculina cria as categorias teológi-
Consolidam-se três TF de diferentes cas, inclusive a imagem hegemônica de
perspectivas: a TF Pós-cristã ou a Religião Deus. A Teologia Ecofeminista diz que
da Deusa, que se situa fora dos contex- esse dualismo essencialista e a marca
tos religiosos feministas cristãos clássi- androcêntrica impossibilita a plena re-
cos, propondo outra espiritualidade; a velação de Deus no mundo.
TF reformista, que tem forte apreço pela A Teologia Ecofeminista de-
Bíblia, pela Igreja e pela Tradição dou- nuncia a marca monoteísta e excluden-
trinária protestante ou católica, apesar te da teologia clássica, pois o divino
da luta contra o sexismo e o patriar- único é correlato de rei que reina só,
cado; e TF militante ou reconstrucionista, um só general ou um só senhor, geran-
que busca diálogo com novas estrutu- do concentração de poder e domínio
ras sociais, eclesiais e textuais, buscan- de uma classe de homens sobre mulhe-
do renovar as estruturas cristãs. res e outros homens. A epistemologia
Teologia feminista e epistemologia: clássica se baseia em verdades eternas e
A teóloga e ilósofa brasileira Ivone absolutas, postula a teologia com inle-
Gebara propõe uma epistemologia xibilidade, instigando a manutenção da
feminista teológica partindo da crítica tradição e do status quo social e religio-
à epistemologia que funda a teologia so, sem retratar o conlito de gênero,
patriarcal, denunciando-a não só como classe e etnia. A epistemologia teoló-
androcêntrica, mas também como an- gica patriarcal, por sua vez, é aristoté-
tropocêntrica e etnocêntrica. Neste lico-tomista, sustentando a submissão
contexto, Gebara propõe uma teologia da razão à fé, propondo uma visão de
ecofeminista. Para ela há uma marca mundo dualista, sendo a fé de verdades
essencialista da teologia clássica que imutáveis é sempre superior aos dita-
exclui as mulheres e tudo o que é liga- mes da razão libertária.
do à “natureza”, criando ideais essen- A epistemologia teológica eco-
ciais e divinizando-os, e justapondo-os feminista propõe incluir a corporei-
a todo o resto demoníaco a ser comba- dade e o doméstico como lugar teo-
tido – Bem e males, Cultura e natureza, lógico; propõe interdependência do
Deus e falsos deuses, Homem e mu- conhecimento e a realidade processual
lher, etc. O masculino estará associado do conhecimento; insiste na indisso-
à essência ideal, e o feminino a tudo ciabilidade de espírito e matéria ou

• 683 •
corpo e mente no fazer teológico; bus- na confecção e na história interpreta-
ca construir o conhecimento teológico tiva do texto. A hermenêutica da sus-
de forma regional, jamais universal, peita desconia de protótipos, estereó-
contemplando os contextos nos quais tipos e arquétipos presentes no texto
vivem as pessoas que o formulam; e e no intérprete; também pergunta pelo
inalmente, propõe uma epistemologia tipo de sociedade e pelas relações de
holística afetiva e inclusiva, não andro- poder entre homens e mulheres, das
cêntrica, antropocêntrica ou dualista, e mulheres entre si e dos homens entre
sim aberta para a múltipla experiência si. Fiorenza propõe um processo her-
da humanidade e do universo. menêutico que desenvolva uma memó-
Hermenêutica teológica feminista: A ria perigosa em torno da Bíblia, ou uma
hermenêutica feminista é outra verten- memória subversiva, evidenciando textos
te importante da teologia feminista. Se e ideologias que foram ocultados na
ocupa da interpretação dos textos sa- leitura tradicional, mostrando as ex-
grados e da realidade atual, e tem como periências silenciadas historicamente.
chave metodológica especial e ponto Isto signiica fazer um exercício de
de partida a experiência das mulheres. reapropriação crítica do passado, pro-
Parte das perguntas feitas desde o co- nunciando nomes e nomeando aquilo
tidiano e interpreta os textos sagrados que os textos calam, vendo o que eles
propondo uma inversão do método calam, e por que calam, lendo inclu-
clássico: na hermenêutica feminista, a sive o silêncio dos textos. Propõe um
vida real é o primeiro texto, e o contex- exercício de imaginação criativa como
to passa a ser o texto sagrado, o texto uma regra metodológica fundamental
escrito. A pergunta que se coloca é se no processo de leitura e interpretação
determinado texto sagrado ajuda na dos textos, buscando viabilizar e exer-
libertação, na emancipação e na salva- citar nas leitoras a capacidade de pen-
ção de mulheres e homens subjugados. sar um mundo diferente e melhor do
A hermenêutica aqui já não é mais ape- que aquele apresentado no texto e na
nas uma teoria de interpretação, mas vida real.
uma maneira de ser, de relacionar-se e A masculinidade: As relexões so-
de se colocar politicamente no mundo. bre masculinidade também tem tido
A teóloga Elisabeth S. Fioren- lugar na teologia feminista. Neste caso
za propõe as chaves hermenêuticas da a pergunta é pelo lugar dos homens
suspeita e da imaginação. A suspeita é no processo de libertação, salvação e
um exercício de inconformidade e des- emancipação das mulheres e da hu-
coniança em relação a ideologias con- manidade. Partindo da participação na
servadoras que estiveram envolvidas luta pela equidade nas relações de gê-

• 684 •
nero, e sem deixar de constatar os pri- do Deus-dos-exércitos ou Deus-todo-po-
vilégios masculinos na estrutura sexista deroso, substituindo-se pela experiência
da sociedade e da teologia clássica, os do Deus-que-sofre ou mesmo do Cris-
homens passaram a entender-se tam- to-que-chora, assim aproximando Deus
bém como dominados e subalternos, e a teologia mais da experiência e do
especialmente em relação a outros cotidiano dos homens reais.
homens e modelos hegemônicos de Uma alternativa a essa teologia
masculinidade. Desenvolvem-se aqui do modelo masculino hegemônico co-
especialmente as temáticas da violên- meça pelo resgate de iguras bíblicas
cia masculina, da etnia, da homossexu- masculinas marginais e que se rebelam
alidade e da heterossexualidade, e dos contra o modelo patriarcal de homem;
novos modelos de homem. passa pela construção de uma outra
A teologia feminista feita por episteme que permita aos homens
homens, desde os homens ou para ho- fazer teologia considerando catego-
mens observa que o cristianismo é um rias como cotidiano, casa, cuidado de
tema masculino heterossexual, com crianças e doentes, sexualidade, corpo-
líderes e divindades masculinas, que reidade, conlitos de trabalho e trânsi-
faz parte do aparato ideológico que to, futebol e esporte, assim alçando a
sustenta uma certa zona de conforto experiência e o cotidiano dos homens
masculina e heterossexual da sociedade para o centro da teologia, e não mais
patriarcal atual, que a imagem de Deus conceitos racionais e abstratos; e che-
e a simbologia cristã é majoritariamen- ga à adoção de ações airmativas na
te masculina. Observa e denuncia pro- sociedade e nas igrejas e instituições
feticamente que esse conjunto, além religiosas que envolvam os homens
de ser simbolicamente dominante, é em outros processos que não aqueles
socialmente excludente, conservando classicamente a eles atribuídos, visando
uma hierarquia de gênero, cabendo à relações de gênero justas.
parte feminina e àquela masculina su-
balterna ser justiicada pela parte mas- Adilson Schultz
Alzira Muñoz
culina hegemônica. Anete Roese
Teologicamente se faz a des-
construção de conceitos e imagens de Referências
Deus tidas como ligadas ao masculi-
no hegemônico, buscando, por exem- AQUINO, M. P. Teología feminista latinoamericana. In:
FORNET-BETANCOURT, R. (Ed.). Balance y perspecti-
plo, superar a imagem de Deus-Senhor vas de la teología de la liberación, 1997, p. 11-12, mimeo).
para exaltar aquela do Deus-servo ou CHRIST, C., PLASKOW, J. Tecendo as visões: novos
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• 685 •
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Propostas para uma Teologia Gay. São Leopoldo: Sino-
dal, 2002. tudios de Género relevando una opera-

• 686 •
ción: la pedagógica; es decir, las formas De lo que hablamos es, enton-
en que se produce conocimiento des- ces, de un trabajo de traducción cul-
de esta mirada. Nos interesa explorar tural desde una teorización de tono
cómo desde los Estudios de Género se postestructuralista, como un conjunto
han producido ciertos giros en lo que de teorías emigradas a los Estudios de
se entiende como poder (giro político y Género y sus derivados: estudios cultu-
de la representación), en lo que cuenta rales, de la sexualidad, postcoloniales,
como conocimiento (giro pedagógico), de la subalternidad, que han perdido su
y en el contrapunto a lo textual, lo que formalismo y han adquirido una nueva
se devela a partir de la mirada (giro vi- vida trasplantada al terreno de la teoría
sual). cultural. No se trata entonces de “apli-
Los giros provocados desde es- car” el postestructuralismo al feminis-
tos actos de apropiación tienen que ver mo, sino de procesar y someter sus
con un particular tipo de intervención teorías a una reformulación feminista,
en la noción de cultura. Los Estudios someterlos a una conversación.
de Género y sus correspondientes gi- I. Teoría crítica: Pedagogía y Femi-
ros, han reconocido en estas nuevas nismo: Los giros en la conceptualizaci-
teorías un potencial interpretativo que ón del poder, del conocimiento y del
los introduce en la lectura compleja de ámbito de lo visual, producidos por
las nociones de sujeto, subjetividad, esa teoría crítica activada desde el fe-
dominación y poder. minismo, pueden funcionar como tres
¿Hemos desplazado la teoría mecanismos pedagógicos, es decir,
cultural a los Estudios de Género o los tres herramientas administradoras y
Estudios de Género han tenido una productoras de conocimiento: como
nueva vida transplantados al terreno de campo epistémico, como dispositivo
la Teoría crítica y cultural? La operaci- de intervención, como método e ins-
ón se localiza justamente al límite de trumento de revelación de verdades no
ambas opciones. Se trata de procesar dichas.
las teorías culturales (aquellas más in- La Teoría crítica, aparecida ha-
luenciadas por el postestructuralismo) cia 1923 en torno al Instituto de In-
en los Estudios de Género. Se trata de vestigaciones Sociales (Universidad de
que la crítica cultural sea administrada Frankfurt), abrazada por Horkheimer y
por una pedagogía crítica, entendida Adorno, habitada por Benjamín, Mar-
como producción y diseminación del cuse, Weber y Habermas, entre otros,
conocimiento desde la mirada provo- se constituye como una perspectiva
cada por la “perspectiva “ de género. crítica de la modernidad, de la domina-

• 687 •
ción y de la consecuente formación de límites entre discurso textual y visual,
una cultura de masas. en particular de los que se reieren al
Nos centraremos en la vertiente silencio y al ejercicio de la mirada y la
pedagógica de la teoría crítica, es de- voz, los poderes de ver y de nombrar
cir, en la forma en la que a partir de desde una condición de sujeto.
ser maniobrada se constituye como un La clave del pensamiento de la
conjunto de actos encaminados a la Teoría crítica radica en la imposibili-
producción y la transmisión de cono- dad de entender el fracaso de la mo-
cimiento de forma crítica. dernidad atendiendo especialmente
Desde esta apropiación pedagó- a razones económicas. Las nociones
gica, surgen varias preguntas: ¿cómo se de diferencia, alteridad, desigualdad,
produce y transmite el conocimiento dominación que dan forma al nuevo
propio de los Estudios de Género y concepto de cultura –como campo de
del feminismo desde la teoría crítica?, disputa sobre las diferencias y el signi-
¿qué subvierte en el proceso de enun- icado, la dominación y el poder– em-
ciación visual y textual, en la escucha y piezan a dar forma a un nuevo ámbito
en la producción de saber?, ¿desde qué de trabajo. El acento principal recae
“posturas”, “encuadres”, “miradas” sobre la crítica directa al consumo (del
(perspectivas) administra (subvierte), cuerpo, del dinero, de la conciencia, del
produce y transmite el conocimiento tiempo, del espacio) y a las característi-
esta forma de pensar críticamente?, ¿de cas de la sociedad occidental capitalista
qué manera trastoca el acto de enseñar, y su cultura de masas (cine, literatu-
leer, escribir, analizar?, ¿qué es lo que ra, TV, publicidad y, en suma, lo que
se “enseña,” qué “aparece,” qué se deja Adorno y Horkheimer denominaran
ver y se “desvela” con esta forma de “industria cultural”).
crítica? En sus inicios, la Teoría crítica
La Teoría crítica es fronteriza trabaja siguiendo los principios dialéc-
más que central, transdisciplinaria más ticos de la ilosofía idealista hegeliana y
que disciplinaria. Está al borde de la de los impulsos marxistas. El mercado,
palabra, más que al pie de la letra. Tie- los medios de comunicación de masas
ne que ver con el cuerpo, con el ojo y eran el aspecto más negativo del de-
con la voz, con la mirada y el lenguaje, sarrollo producido en la modernidad.
no con los saberes descorporeizados Apenas se coniaba en la posibilidad
y desterritorializados. Es situada y en- de que la audiencia, silenciosa, pasiva,
carnada. Sus mecanismos favorecen el pudiera resistir, responder o apropiar-
acto de cruzar fronteras disciplinarias, se –de formas insospechadas– de sus
geoculturales; favorecen el trasvase de contenidos venenosos y letárgicos. En

• 688 •
el desarrollo más contemporáneo de do a hablar, la desaparición de la voz
la Teoría crítica y cultural, aparece una cuando no hay traductores, el silencio
actitud diferente frente a la recepción después de una excepcional ejecución
y el papel del espectador. Se estudian artística.
las telenovelas desde la agencia, la sub- Uno de los ejes de la prime-
jetividad o la ciudadanía, la nación o la ra Teoría crítica fue el desarrollo de
identidad, los talk shows y el Big Brother la “dialéctica negativa”. Adorno ha-
avanzan subjetividades postmodernas bla del pensamiento airmativo como
regidas por el voyerismo y el panópti- aquel que mantiene lo dado y oculta
co. El silencio de la audiencia, su pa- lo que no está presente en la airma-
sividad, han dado un vuelco. También ción. El negativo, al contrario, trata de
las formas de mirar y de dejarse ver. descubrir lo no dicho, lo no impuesto
Desde la Academia, estas cues- por discursos formales. La dialéctica
tiones darán lugar a la aparición de los negativa es un “atentado contra la tra-
llamados “estudios” (“studies”): es- dición”. En esa negatividad radican los
tudios culturales, estudios de género, inicios de la emancipación.
postcoloniales, estudios queer, estudios ¿Quién puede hablar y quién
de la subalternidad, estudios de las permanece en silencio? ¿A quién se le
emociones. impide hablar? ¿Quién lo hace y no es
El giro pedagógico da lugar a un entendido? ¿Quién puede devolver el
tropo que nos interesa resaltar: aquello golpe o la palabra? ¿Quién tiene de-
que se constituye y se entiende como recho y posibilidad de réplica? ¿Qué
silencio. El silencio como “no caber sujeto está autorizado a narrar? ¿Qué
en las voces” se constituye como tema cuenta como respuesta? ¿Quién puede
central desde la Teoría crítica y sus gi- sacar la lengua? El interés por lo au-
ros, un acto u operación que inaugura sente (este pensamiento negativo de
la posibilidad de inscripción de lo que la Teoría crítica, que Adorno subraya),
el otro no puede decir o, mejor, de lo denota la importancia del poder de
que no puede ser escuchado: el silencio nombrar, de responder, de hablar.
de los empleados frente al patrón, del Hay en los acentos de la Teo-
acusado frente a su juez, del interro- ría crítica y de género algo que busca
gado frente al interrogador, del televi- resarcir una pérdida, nombrar una au-
dente frente al televisor; pero también sencia, descifrar un gesto, transformar
el silencio entre una nota y otra, el un silencio en relato: la tierra perdida
vacío que se genera en la punta de la de los migrantes, la vida perdida de las
lengua, cuando no puede advenir el de- mujeres en Juárez, la ciudadanía en los
cir, la ausencia de voz cuando hay mie- indígenas, el relato en los exiliados. En

• 689 •
todo esto se releja la pedagogía nega- Rodríguez, Mónica Szurmuck, Mary
tiva, es decir, el método de la Teoría Louis Pratt, Doris Summer, Margo
crítica y todos aquellos “estudios” que Glantz, Mabel Moraña, han marcado
se la han apropiado. El vínculo parti- desde diferentes ángulos las fronteras
cular entre los Estudios Culturales y que deben cruzar y reinventar las mu-
los Estudios de Género se centra en jeres y sus otredades para poder hacer
objetivos semejantes. Ambos estudios sentido en los límites de lenguajes y
están interesados en analizar el poder y pedagogías hegemónicas, con el in de
la inequidad, en su vínculo con la pro- proponer cánones alternativos, ciuda-
ducción de conocimiento y su adminis- danías integrales a sujetos “parciales”
tración para la producción de formas y políticas de la traducción y la media-
de la representación crítica de la subal- ción que potencien una cultura latinoa-
ternidad o la otredad. Se han nutrido mericana que no se base en la produc-
de discursos emergentes y alternativos ción de una elite.
tales como el análisis del discurso, el II. La pedagogía negativa: Entende-
psicoanálisis, la semiología y la recons- mos el acto pedagógico crítico como
trucción para criticar nociones discipli- aquel que administra el conocimiento,
narias de espacio e identidad. lo des/estructura y difunde con un ob-
Los Estudios Culturales han lle- jetivo: la transformación del sujeto que
vado a cabo intervenciones estratégicas aprende, del sujeto que enseña, de los
que los localizan en la frontera con los modos de ver el mundo y de los signi-
Estudios de Género. Stuart Hall, des- icados que los rodean.
borda el término hegemonía, de origen Podemos por tanto pensar en el
gramsciano, para referir no solamente desarrollo de la Teoría crítica y su rela-
a las relaciones de poder articuladas en ción con los estudios de género como
términos de clase, sino también a las un dispositivo pedagógico negativo.
que incluyen relaciones de género, ra- Esto signiica, al menos, tres cuestio-
ciales, de creación de signiicado como nes diferentes.
apuesta del subalterno, y del placer En primer lugar, implica que en
como elementos de las negociaciones su desarrollo partiremos, siempre, de
hegemónicas. Gayatri Ch. Spivak ha preguntas. Como todo ejercicio “crí-
marcado los problemas de represen- tico”, la Teoría crítica y los Estudios
tación de la subalternidad frente a la de Género no buscan necesariamente
violencia epistemológica de Occidente. conocer las respuestas sino, más bien,
Un gran número de intelec- comprender que en el propio proceso
tuales latinoamericanistas entre ellas de construcción de las preguntas, es
Nelly Richards, Diamela Eltit, Ileana donde radica el objeto fundamental de

• 690 •
trabajo y, en deinitiva, el nuevo ámbito manera de torcer la pedagogía misma
epistemológico. con el giro de la Teoría crítica, favore-
Estas preguntas descolocan a ciendo un decir al límite de lo que es
los sujetos del saber y del silencio, del posible signiicar, creando entre-dichos,
bien decir y de la ausencia, del pupitre invitando a hablar y a escuchar un len-
y del pizarrón, del espacio cibernético guaje que indaga particularmente en
y del espacio físico, de los géneros, las los silencios. ¿Cómo leer al otro? Cerca
clases y los colores, de la nación y la del maldecir, de lo maldito o maldicho,
extranjería, de la legitimidad y la bas- encontramos esta pedagogía del entredicho:
tardía. Por ello es fundamental com- la de las palabras de Gloria Anzaldúa,
prender que el discurso tiene efectos bell hooks, Gayatri Ch. Spivak, Marga-
materiales que afectan a los cuerpos y ret Atwood, Cristina García, Rosario
las vidas de las personas. Ferré, Esmeralda Santiago.
Por otro lado, la Teoría crítica III. En perspectiva: Esta pedago-
entendida como pedagogía negativa es gía negativa se vincula insistentemente
un saber fronterizo. El conocimiento con otro concepto fundamental, clave
se coloca en las fronteras de las disci- en la historia más reciente del pensa-
plinas, de los espacios nacionales, de miento feminista y de la llamada cultu-
los géneros, de los cuerpos. ra visual: la perspectiva.
Por último, la pedagogía desde Pensar en perspectiva implica,
el paradigma vinculado a la Teoría crí- necesariamente, pensar en la materia-
tica atiende a una particular adminis- lidad de un cuerpo que mira, siente
tración de sus tensiones. En particular y crea sentido desde un espacio y un
las que analizan las formas en que se lugar especíico: un conocimiento si-
distribuye el poder, pero no cualquier tuado tal y como apuntaron desde los
tipo de poder: el poder de hablar, de años ochenta autoras como Donna
hacer sentido, el poder de narrar, de Haraway, Chela Sandoval y Chantal
responder, de preguntar, en una pala- Mouffe. ¿Quién es el sujeto del discur-
bra la experiencia de contar (narrar y so?, ¿quién tiene el poder de narrar?,
contar, constituirse como sujeto, ser ¿cómo desarrollar una perspectiva crí-
alguien). tica?
Entendemos esta pedagogía, Según apunta Gavin Butt, la crí-
como la interrupción de la pulsión tica (toda actividad crítica) para ser crí-
educativa por enseñar a “decir bien”, tica debe ser una operación paradójica.
por invitar –pedagógica, gramatical y La paradoja, en este caso, no es tanto
apropiadamente– a decir bien, a ser una contradicción lógica. Es, más bien,
parte del “bien decir”. Supone una la suma de los signiicados de estos

• 691 •
dos componentes semánticos de ori- construcción de conocimiento, a espa-
gen griego: para (más allá de) y doxa cios que tienen una característica en co-
(opinión, pensamiento, conocimiento mún si se acogen a sus principios, ten-
adquirido). Para operar críticamente, siones y crítica: se asientan de manera
la crítica debe encontrar un modo de frágil en las universidades. La crítica a la
maniobrar que le permita liberarse de modernidad como centro de la Teoría
los protocolos adscritos a las formas crítica, el énfasis en la comunicación,
de pensamiento institucionalizado. La como el lenguaje que da materialidad
Teoría crítica es una posición siempre a la dominación y a sus signiicados,
comprometida y supone una actitud in- los mercados, la intersubjetividad, el
sumisa respecto a las representaciones poder, la emancipación han dado pie
regladas por la tradición normativa. a la creación múltiples “studies”; zonas
¿ El pensamiento feminista se que han relejado, expandido y se han
ha preguntado sobre el sujeto situado apropiado de las tensiones que esta
y sitiado por sus marcas (de género, teoría ha hecho visibles. Estos “estu-
raciales, sexuales y de clase) y por el dios” se inician con una relectura del
poder de hablar y el acto de callar, la triángulo por excelencia de la moderni-
ausencia y la presencia, la tradición y dad, Freud, Marx y Hegel, pero los so-
la modernidad en relación a la domi- brepasan al incluir a Gramsci, Fanon,
nación. Spivak, Butler, Anzaldúa, Said, Zea,
La condición de las mujeres, León Portilla, Sedgwick: lecturas que
como sujeto de análisis en la moder- descentran el sujeto masculino, blanco,
nidad, no fue un tema principal de la heterosexual y europeo.
Teoría crítica hasta que las mismas En muchos casos, estos “es-
mujeres pensaron en sus propias con- tudios” son de difícil asiento en los
diciones de dominación y, con ello, lo- medios académicos latinoamericanos.
graron apropiarse de las tensiones y de Aún más si esas perspectivas tratan
las preguntas. sujetos inadecuados y se convierten
Los feminismos, actuando en Queer Studies, Estudios de Género,
como pedagogía negativa, se han apro- Estudios de la Subalternidad, Estudios
piado de las torsiones, de operaciones Culturales. La Teoría crítica, desde el
de intervención y de las preguntas de feminismo y desde las operaciones de
la Teoría crítica y las han expandido y esta pedagogía negativa, ha producido
enriquecido. un inacabable canon como suplemento
La pedagogía y el feminismo del canon clásico.
desde el cuadrante de la Teoría crítica A partir del énfasis que dan los
han dado lugar a diversos espacios de Estudios de Género al concepto de

• 692 •
cultura, en tanto que articulación, fron- Diccionario de Teoría Crítica y Estudios Culturales, com-
pilado por Michael Payne (Paidós, 2002).
tera, podemos empezar a pensar de
otro modo en los sujetos y en las mar- Donna Haraway. [1988] “Situated Knowledges: he
Science Question in Feminism and the Privilege of Par-
cas que los constituyen, en la diferencia tial Perspective”, Feminist Studies, vol. 14-3: 575-599.
y en los abismos de la desigualdad, de M. Horkheimer (2000 [1937]). Teoría tradicional y teo-
lo local y lo global. ría crítica. Barcelona: Paidós.

La cultura –vista desde el ángu- M. Lamas (comp.) (2000). El género. La construcción


lo de la teoría, pedagogía y feminismo cultural de la diferencia sexual. México: PUEG/UNAM
- Miguel Ángel Porrúa.
críticos–permite el derribamiento de
R. Lozano (2010). Prácticas culturales a-normales. Un
muros, de fronteras que separaban for- proyecto (alter)mundializador. México: PUEG/UNAM.
mas de dominio y de emancipación,
N. Mirzoef (2002 [1998]). “he Subject of Visual Cul-
y crea o analiza nuevos muros que se ture”. In: N. Mirzoef (2002 [1998]). he Visual Culture
Reader. London/New York: Routledge.
han instalado entre métodos, verdades,
conocimientos y espacios de vida. Una I. Rogof (2002 [1998]). “Studying Visual Culture”. In:
N. Mirzoef (2002 [1998]). he Visual Culture Reader.
de las fronteras que se toca con esta London/New York: Routledge.
teoría, es la de la mirada. El acto de ver
S. Sim (1998) Critical Dictionary of Posmodern hou-
y el acto de develar. ght, Routledge: New York.

E. Shohat & R. Stam (2002 [1998]). “Narrativizing


Marisa Belausteguigoitia Visual Culture. Towards a polycentric aesthetics”. In:
Rian Lozano N. Mirzoef (2002 [1998]). he Visual Culture Reader.
London/New York: Routledge.

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de lectura De Gayatri Ch. Spivak, traducción y edición crítica de
Manuel Asensi Pérez, Barcelona: Museo de Arte Contem-
poráneo de Barcelona.
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la autenticidad. Madrid: Akal. John Varley. [1978] THE PERSISTENCE OF VISION.
New York: he Dial Press / James Wade.
Adorno & Horkheimer (1994 [1944]). Dialéctica de la
Ilustración. Fragmentos ilosóicos. Madrid: Trotta.

G. Anzaldúa (1987). Borderlands/La frontera: he new
mestiza. San Francisco, CA: Spinsters/Aunt Lute.
Teoría uterina/Parteras
María Isabel Belausteguigoitia. (2009) “Frontera” Diccio-
nario de Estudios Culturales Latinoamericanos, Instituto
Mora y Siglo XXI Editores, México. Desde su nacimiento como
H. Bhabha (2002 [1994]). El lugar de la cultura. Buenos concepto, la histeria se ha vinculado a
Aires: Manantial.
las mujeres, particularmente a ciertas
G. Butt (ed.) (2005). After Criticism. New responses to perturbaciones del útero provocadas
art and performance. Londres: Blackwell.
por el descontento y la insatisfacción.
J. I. de la Cruz (1998 [1691]). Respuesta a Sor Filotea de Al no tener lo que desea, el útero migra
la Cruz. México: Fontamara.
por el cuerpo y oprime otros órganos

• 693 •
causando así la sintomatología caracte- fertilizado a tiempo durante un largo
rísticas de la enfermedad. En opinión período y, errante por todo el cuerpo,
de los historiadores, esta idea del útero obstruye los conductos de aire sin de-
insatisfecho y errante está presente en jar respirar”. Igualmente, Hipócrates,
el primer manual de medicina descu- en sus tratados de ginecología, dejó pa-
bierto en Kahoun (Egipto), fechado tente que el útero insatisfecho sexual-
aproximadamente 1900 años antes de mente perdía peso y se elevaba en bus-
Cristo; similares cuestiones se expre- ca de humedad, ocasionando a su paso
san igualmente en el papiro de Ebers disnea, globus hystericus, presión en el
(siglo XVI a.C.), también egipcio, que pecho, cefaleas y somnolencia. (PLA-
se ocupa de las enfermedades de las TON en ALVAREZ, 2006, p. 113).
mujeres (ALVAREZ, 2006, p.113). A inales del siglo XIX la histeria
La histeria como enfermedad sufre un cambio en su diagnóstico y se
tiene una larga historia cuyo nombre atribuye su origen a lo psíquico aunque
proviene de la palabra útero por lo que primero se asoció a causas cerebrales y
se ha asociado desde siempre a enfer- nerviosas, dejando de asociarse al sexo.
medad de las mujeres. En 1904 José No obstante la mayoría de personas
Ingegnieros escribe sobre lo poco que histéricas se dicen que son mujeres en
Hipócrates sabía sobre la enfermedad esta época y hay autoras que airman
y como antes y después de Galeno e que a lo largo del siglo XIX se habían
Hipócrates se sostuvo la justiicación construido patologías típicamente fe-
de la neurosis en la teoría uterina y por meninas, como la histeria, basadas en
ende una enfermedad de las mujeres las diferencias de características men-
por ser estas las poseedoras de matriz. tales asignadas al género (JIMENEZ Y
A esto contribuyó el poco y mal co- RUIZ, 1999, p. 192). Fueron los traba-
nocimiento que se tenía de la histeria jos de Jean-Martin Charcot en el siglo
masculina (INGEGNIEROS, 1904, p. XIX los que sentaron las bases clínicas
18-19). En el siglo IV a.C. Hipócrates para el estudio de la histeria (BLACK
y Platón revestidos de su indudable y Cols., 2004, p. 245-251). Charcot ma-
autoridad asentaron sus postulados so- nifestó también que la histeria podía
bre la histeria entre sus coetáneos y la darse también en el sexo masculino
transmitieron durante muchos siglos. porque esta tenía una causa neurológi-
Así, en las últimas páginas de Timeo, ca, pero insistimos en la conexión que
Platón dejó escrito sobre el útero o le propio Charcot hace de la mujer y la
matriz (hystér): “un animal deseoso histeria al considerar a los ovarios los
de procreación en ellas [las mujeres], órganos histerógenos más importantes
que se irrita y enfurece cuando no es (JIMENEZ Y RUIZ, 1999, p. 192).

• 694 •
Los trabajos realizados desde médicas se constituyeron en pilares
una perspectiva psicoanalítica consoli- fundamentales de la subordinación del
daron el uso del término histeria en la género femenino. De esta forma, la ca-
clínica contemporánea. Concretamen- tegoría de análisis de género puso su
te fue Sigmund Freud quien introdu- punto de mira en primer lugar en la gi-
jo el término conversión (Konversion necología como disciplina que estudia
) para caracterizar un mecanismo por las enfermedades de las mujeres al es-
el que el afecto asociado a una repre- tar esta fundamentada en una premisa
sentación displacentera para el yo del ideológica que airmaba que el sexo y
individuo era traspuesto (umsetzen ) la reproducción son más importantes
al cuerpo, lo que provocaba, en con- a la naturaleza de las mujeres que a la
secuencia, la aparición de síntomas de los hombres. También la psicología
somáticos. En la actualidad aunque el y psiquiatría han jugado un papel fun-
término histeria haya perdido vigen- damental e histórico al proporcionar
cia fuera del campo psicoanalítico, su una justiicación intelectual de la su-
sintomatología y su etiología traumáti- bordinación femenina. Concretamente
ca continúan teniendo eco en la clíni- la psiquiatría también sirvió de contro-
ca contemporánea. De tal forma que, lador para impedir la transgresión del
el DSM -IV (Asociación Psiquiátrica ideario que la sociedad patriarcal había
Americana [APA ], 1980, 1994) reem- asignado a los géneros. La carencia de
plazó el término neurosis histérica, toda crítica en la que se relacionaba la
tipo conversivo por el de trastorno de enfermedad mental con el género, se
conversión. En este sentido, si bien el ponía de maniiesto cuando conductas
término histeria ha sido desterrado de agresivas de hombres no daban lugar
la terminología psiquiátrica oicial, el a ninguna sospecha de enfermedad
mecanismo inherente a la producción mental y las respuestas defensivas de
sintomática del trastorno sigue tenien- las mujeres eran patologizadas. Incluso
do vigencia. Aunque aun se descono- el discurso psiquiátrico aunque apor-
cen cuáles son los circuitos neuronales taba evidencias de la no relación ana-
especíicos implicados en dicho meca- tómica de ciertas enfermedades consi-
nismo (AMORUSO, 2010, p. 86). deradas nerviosas y femeninas como la
El análisis crítico feminista ha histeria, la psiquiatría, paradójica e in-
considerado que la ciencia médica ha comprensiblemente, apoyaba prácticas
sido a lo largo de la historia una pode- de cirugía ginecológica para resolverla.
rosa fuente de ideología sexista racio- Las ovariotomías empezaron a denun-
nalizando lo que diferenciaba a hom- ciarse a inales del siglo XIX como
bres y mujeres. Los saberes y prácticas procedimientos quirúrgicos para curar

• 695 •
ciertas enfermedades mentales, fueron cionales del grupo que se encargaban
caliicadas de simples mutilaciones en de los cuidados. Poco se conoce del
aquellos países donde más se practi- embarazo en esta época de la prehisto-
caban ( JIMENEZ Y RUIZ, 1999, p. ria, parece ser que la mujer paría sola o
200-202). ayudada por otra mujer (SILES, 1999).
Parteras: La actividad de la asis- Las matronas eran la referencia
tencia a la mujer de parto conocida en el arte de partear y en temas de sa-
como partería ha estado asociada en lud de las mujeres en Europa hasta el
todas las culturas al hecho de ser mujer. siglo XVIII, la supremacía de las ma-
Han sido muchos los nombres dados tronas en la atención obstétrica empie-
a lo largo de la historia a las personas za a desmoronarse cuando los ciruja-
encargadas de asistir los partos: coma- nos transformaron la asistencia a las
dres, comadronas, matronas, obstetri- mujeres de parto en un arte quirúrgico,
ces, parteras; y otros menos frecuentes que en principio, fueron destinatarias
como madrinas, mujeres «sabidoras», las mujeres de la corte real y de la alta
profesoras en partos, mayéutica o sociedad que residían en las grandes
mayeuta, madre de dolores, amas de ciudades. Mientras tanto, las matronas
parir, etc. (VALLE, 2003, p.17). El pa- quedaron relegadas a la asistencia del
pel que realizan las parteras o matronas resto de la población urbana y rural
a lo largo de la historia ha sufrido cam- pero siempre de escasos recursos eco-
bios relacionados con la percepción nómicos. Tuvo lugar un complejo pro-
que se tiene de ellas en diferentes par- ceso de reorganización de las activida-
tes del mundo y en diferentes períodos des sanitarias que puso las bases para la
políticos o económicos (PURKAL, masculinización del arte de partear y la
2008, P. 21-25) (ALARCÓN Y Cols., subordinación formal de las matronas
2011, p. 189). El origen de la enferme- (MOLINA, 2000, p. 15-20).
ría y de las matronas como especialidad La pérdida de poder de las ma-
profesional se ha relacionado con la di- tronas del continente americano guarda
visión sexual del trabajo que ya apunta una estrecha similitud con la situación
desde la épocas más primitivas. Así, la vivida en Europa, en ambos continen-
mujer asume la responsabilidad de los tes estas mujeres se enfrascaron en
cuidados de supervivencia de la tribu una lucha con el colectivo de médicos
con el beneplácito de los miembros de por delimitar las parcelas de actuación.
las comunidades tribales. Las caracte- Curiosamente ambos colectivos estu-
rísticas de los yacimientos durante el vieron unidos previamente para erra-
periodo paleolítico nos dan las bases dicar la partería u obstetricia tradicio-
para el análisis de los elementos fun- nal (SCOGGIN, 1997, p. 47-52). Los

• 696 •
límites al desarrollo profesional de las que aprendieron en las aulas fueron
matronas tituladas se pusieron de ma- transformados en función del espacio
niiesto por la carencia de control so- y contexto donde trabajaron, lo que
bre sus actuaciones y la subordinación en la práctica les otorgó autoridad. Las
al colectivo de médicos (MCINTOSH, relaciones sociales y laborales que las
1998, p. 403-420). La investigación so- matronas rurales mantuvieron, nos
bre la experiencia individual del saber permite acercarnos a la formación de
profesional de las matronas, ayuda a la identidad profesional que conigu-
entender mejor el entramado de los raron como colectivo, a su estatus y a
procesos de profesionalización, sobre las cotas de poder que alcanzaron. Las
todo cuando el género se perila como condiciones de trabajo y las funciones
factor principal. (RHODES, 2001, p. de la matrona rural como responsable
189-213). y referente para la asistencia del naci-
En los entorno rurales de me- miento marcó para este colectivo un
diados del siglo XX, una vez que las estatus social y sanitario que se ha ido
matronas desplazaron a las parteras desdibujando y perdiendo espacio de
tradicionales sin formación académica, poder con la incorporación generaliza-
fueron marcando su territorio y adqui- da de la asistencia obstétrica a los hos-
riendo protagonismo. Los médicos de- pitales y maternidades en los años 70
jaron a las matronas la dirección de los del siglo XX (LINARES, 2008).
partos, de esta forma la jerarquía teóri- En la primera década del siglo
ca del sistema sanitario fue invertida en XXI y en el contexto europeo, la Di-
la realidad de la práctica rural. Esta au- rectiva 2005/36 expresa para los Es-
toridad de las matronas fue reforzada tados miembros que estos garanticen
por las mujeres de los pueblos al con- entre las competencias de las matro-
siderarlas a estas como las profesiona- nas las que se detallan a continuación;
les referentes para la asistencia al parto prestar información y asesoramiento
normal. Las matronas rurales creyeron adecuados sobre cuestiones de planii-
en la toma de sus propias decisiones, cación familiar, diagnosticar el emba-
desarrollando un sentimiento de or- razo y supervisar el embarazo normal,
gullo profesional. La división del espa- realizar los exámenes necesarios para la
cio laboral entre el colectivo médico y supervisión del desarrollo de los em-
de matronas, releja que la intervención barazos normales, prescribir o asesorar
de éstas a través de su experiencia, les sobre los exámenes necesarios para el
dotó de un sentido de independencia diagnóstico precoz de la gestación de
profesional. los contenidos formativos alto riesgo, facilitar programas a padres

• 697 •
y madres para el proceso de la materni- AMORUSO, Lucía. Una perspectiva neurocientíica
sobre la histeria. Revista Colombiana de Psicología. Vol.
dad y paternidad incluido el parto, así (19). n. 1, enero-junio, p. 85-95, 2010. -VALLE, Juan I.
Acerca de los términos comadrón/a, matrona, obstetrix y
como la información relacionada con otros. Matronas Profesión. Vol. (4), n.11, p. 17-19. 2003.
la higiene y nutrición, prestar cuidados
BLACK, D.N., SERITAN, A.L., TABER, K.H., HUR-
y asistencia a la madre durante el par- LEY, R.A. Conversion hysteria: Lessons from functional
to y supervisar las condiciones fetales imaging. Journal of Neuropsychiatry and Clinical Neu-
rosciences. n. 16, p. 245-251, 2004.
dentro del útero mediante métodos clí-
DIRECTIVA 2005/36/CE DEL PARLAMENTO EU-
nicos y técnicos pertinentes, atender el ROPEO Y DEL CONSEJO de 7 de septiembre de 2005
parto normal cuando se trate de una relativa al reconocimiento de cualiicaciones profesiona-
les.
presentación de vértice incluyendo la
práctica de la episiotomía si fuera ne- INGEGNIEROS, José. Estudios de patología nerviosa
y mental. Los accidentes histéricos y las sugestiones te-
cesario y, en caso de urgencia, asistir el rapéuticas. Buenos Aires: Librería J. Menéndez.Vol. (1),
1904.
parto en presentación de nalgas, reco-
nocer y prestar cuidados al recién naci- JIMENEZ, Isabel, RUIZ, Mª José. Las políticas de géne-
ro y la psiquiatría española de principios del siglo XX. En
do, adoptar todas las iniciativas preci- BARRAL, Mª José, MAGALLÓN, Carmen, MIQUEO,
sas en caso de necesidad y practicar, si Consuelo, SANCHEZ, María Dolores. Interacciones
Ciencia y Género. Discursos y prácticas cientíicas de
llega el caso, la reanimación inmediata, mujeres. Barcelona: Icaria Antrazyt, p. 185-208, 1999.
asistir y supervisar los progresos de la LINARES, Manuel. Las matronas en el Jaén del XX. El
madre después del parto y prestarle el caso de la Comarca de Sierra Mágina. Jaén: Instituto de
Estudios Giennenses. Diputación Provincial de Jaén,
asesoramiento necesario en relación 2008.
con los cuidados de su descendiente MCINTOSH, T. Profession, skill, or domestic duty?
para que pueda garantizar el progreso Social history of medicine. Vol. 11, n. 13, p. 403-420,
1998.
óptimo del recién nacido, realizar el
tratamiento prescrito por el médico y MOLINA, P.A., MOLINA, C. Inicio de la formación de
las parteras en España. Garnata. n.15, p. 15-20, 2000.
redactar los informes que sean necesa- PLATÓN, Timeo, en Diálogos VI (Filebo, Timeo, Cri-
tias), Madrid: Gredos, p. 260, 2002.
rios.
PURKAL, NK. he politics of midwifery education and
Manuel Linares Abad training in New South Wales during the last decades of
the 19th Century. Women Birth. n. 21, p. 21-25, 2008.

Referencias y indicaciones SILES, José. Historia de la Enfermería. Alicante: Agua-


clara, 1999.

ALARCÓN, Miguel A., SEPÚLVEDA, Janer, ALAR- SCOGGIN, J. he historical relationship of nurse-mid-
CÓN, Iván C. Las parteras, patrimonio de la Humani- wifery with medicine. Journal Nurse Midwifery. Vol.
dad. Revista Colombiana de Obstetricia y Ginecología. (42), n. 1, p. 47-52, 1997.
n. 62, p.188-195, 2011.
RHODES, Maxine. Saber y práctica de la matronería en
ÁLVAREZ, José María. Elogio de la histeria. En AN- Gran Bretaña, 1936-1950. En CABRÉ, Montserrat, OR-
GOSTO, Tiburcio (compi.). Cuadernos de Psiquiatría TÍZ, Teresa. Sanadoras, matronas y médicas en Europa.
Comunitaria. Clínica de la Histeria. Asturias. Vol. (6), Barcelona: Icaria, p. 189-213, 2001.
n.2, p. 111-124, 2006.

• 698 •
• prazo voltadas para a transformação
das relações de gênero, de poder e tra-
Trabalhadoras rurais balho, principalmente referentes aos
movimentos de mulheres do campo,
A literatura acadêmica nas últi- perpetuando as relações desiguais de
mas décadas é rica na análise do tema poder e trabalho na roça.
“mulher rural”. Acreditamos que O termo “feminino rural” apre-
este tema é um dos primeiros ao ser senta diiculdades conceituais dadas a
abordado pelo feminismo brasileiro e carga de signiicados que o mesmo car-
latino-americano. Um bom exemplo rega dentro da epistemologia andro-
desse pioneirismo foi à realização do cêntrica e da cultura patriarcal rural,
seminário “Mulheres na força de tra- diicultando em momentos históricos
balho na América Latina”, coordena- o diálogo e ações comuns com o mo-
do por Neuma Aguiar no Rio de Ja- vimento feminista no Brasil.
neiro em 1978 e que teve seus textos Foi através do sindicalismo
publicados em 1984. Provavelmente agrário, na década de 1980, que as mu-
o interesse nesse tema reletia a forte lheres agricultoras sofreram grande in-
preocupação do feminismo nos anos luência na formatação das bases polí-
1970 com a invisibilidade do trabalho ticas para reivindicar direitos sociais. É
feminino, como também a agitação so- pertinente observarmos que, no caso
brasileiro, a construção de movimen-
cial que sacudia a sociedade brasileira
tos sociais femininos no campo tem
na cidade e no campo em contextos de
uma especiicidade em relação à inlu-
ditadura militar.
ência que receberam.
A invisibilidade do trabalho fe- Em 1986, no II Congresso da
minino devia-se a ausência de teorias CUT, foi criada a Comissão Nacional
que concedessem o estatuto de ativida- sobre a Mulher Trabalhadora. Daí em
de produtiva ao trabalho realizado no diante, a comissão desenvolveu diver-
âmbito doméstico. Segundo Giulliani sos trabalhos no âmbito sindical, inter-
(1997), podemos observar que, entre ferindo na agenda política da CUT e,
a invisibilidade das mulheres (caracte- sobretudo, introduzindo temas consi-
rística dos anos 70) e a lógica da ei- derados problemáticos e polêmicos,
ciência feminina, com participação no como a questão da saúde integral da
sindicalismo nos anos 90, deixou-se es- mulher, que passou a merecer desta-
capar o mais importante: a formulação que incorporando as reivindicações
feministas como as campanhas contra
de estratégias de curto, médio e longo

• 699 •
a esterilização das mulheres, a luta pela profundas crises de reestruturação em
legalização do aborto; a reivindicação grande parte do mundo, e as entidades
do afastamento no primeiro trimestre sindicais, como um todo, mergulham
de gravidez das mulheres que traba- no debate de uma série de novas temá-
lham com a radioatividade de produtos ticas, tais como a modernização tecno-
químicos e em contato direto com o lógica, a reestruturação dos processos
público. Dentre outras questões, des- produtivos, a política salarial, a revisão
tacam-se ainda as lutas pelos 120 dias da legislação trabalhista, a transforma-
de licença-maternidade e pela licença- ção da agricultura em face de expansão
-paternidade. do complexo agroindustrial e a refor-
Esse vínculo das mulheres tra- ma agrária.
balhadoras com o movimento sindical, O desenvolvimento da política
tem no entanto, gerado dissensões. sindical, nos idos dos anos 70/80 no
Embora as mulheres tenham tido pre- Brasil mostra que a presença da mulher
sença signiicativa no mercado de tra- trabalhadora foi de exclusão na partici-
balho desde o início do processo de in- pação das instâncias de decisão sindi-
dustrialização, com atuação destacada cal. O novo momento político brasilei-
na época da luta operária, os sindicatos ro da redemocratização na década de
não as integraram à prática política, oitenta, com garantias constitucionais
nem dividiram com elas o poder das a todos os cidadãos, abriu possibilida-
entidades representativas de trabalha- des para as mulheres se integrarem no
dores no período. cenário sindical.
No caso das trabalhadoras ru- Para as trabalhadoras rurais, a i-
rais, os laços familiares são referência liação sindical nesse período tornou-se
importante para a inserção e sociali- sua maior bandeira de reivindicação,
zação na vida sindical. O homem, as- tão importante que o da própria iden-
sociado, transmite para a família, aos tidade proissional e, às vezes, até mais
ilhos e às ilhas, o signiicado da mi- que as responsabilidades domésticas.
litância, de ser sócio, e os incentiva à A categoria “mulheres trabalha-
participação, mesmo que, muitas vezes, doras rurais” não se formou apenas na
apenas para usufruir do assistencialis- prática sindical, mas a partir de debates
mo médico e jurídico. Para muitas tra- sobre as suas condições de vida, rea-
balhadoras rurais, a sindicalização era lizados em pequenos grupos, a maio-
movida, no período, pelos serviços e ria desses grupos com base religiosa
benefícios fornecidos pelo sindicato. ligada às pastorais, aos quais nos do-
Por outro lado, ao longo de mingos, depois da missa, as mulheres
toda a década de 80, o trabalho sofre reuniam-se para relexões.

• 700 •
É no início dos anos 80, em es- o cotidiano doméstico não constitui
paços de discussões alternativos, como ponto de partida para rever a divisão
os clubes de mães, por exemplo, que sexual do trabalho e a relação de poder
as mulheres trabalhadoras rurais criam na família e na representação sindical.
espaços de discussão e relexão sob Os movimentos de trabalhado-
o prisma da Teologia da Libertação e ras rurais que brotam dessas pautas e
sob a inluência do Sindicalismo Ru- experiências têm um sentido político
ral. Os núcleos passam a denunciar a que se faz necessário resgatar. Apon-
precariedade das condições de vida no tam para desaios presentes na estrutu-
campo em relação à saúde, à falta de ra agrária brasileira, quais sejam, lutar
ichas para consulta médica, a precarie- contra a exclusão e/ou subordinação
dade da educação e, por esse caminho, ao capital e lutar tanto por terra como
começam a elaborar abaixo-assinados, por novas formas de integração na di-
manifestações públicas e a realizar reu- visão social do trabalho e na economia
niões, estruturando organizações mu- como um todo.
nicipais, estaduais e nacionais, median- As mulheres trabalhadoras ru-
te a gestação de um movimento com rais buscam amparo e legitimidade de
caráter próprio, porém localizado na atuação nesse novo cenário, a partir de
esfera sindical rural. mobilizações já produzidas na história
Ao longo dos anos 80, sob a agrária brasileira, destacando mulheres
inluência das ferramentas de análise líderes que se tornaram modelos para a
do feminismo, ocorre uma revisão da militância do movimento. Citam-se os
imagem e dos papéis sociais femininos. nomes de Elizabeth Teixeira, das Ligas
Difundem-se novas teses, que reair- Camponesas do Nordeste, e o de Mar-
mam o princípio da equidade entre os garida Alves, Presidente do Sindicato
sexos, e são debatidas modiicações na de Alagoa Grande, na Paraíba, assassi-
ordem jurídica e legal. Nesse percurso, nada em 1983.
começam a icar claros os limites do O movimento das mulheres
que seria próprio das mulheres, do que trabalhadoras rurais, como institui-
lhes seria reconhecido, permitido ou ção, surgiu no inal dos anos 80, com
atribuído como característico de sua reivindicações centradas no reconhe-
“natureza social”. cimento social e legal de sua atuação
Tanto as trabalhadoras urbanas como mulheres e trabalhadoras, con-
quanto as rurais introduzem, em suas tendo em suas bandeiras o direito à
pautas de reivindicação, a participação sindicalização, à terra, à previdência
política, temas de relexão nos quais social, dentre outros. Apesar do aces-

• 701 •
so ao direito ao salário-maternidade “direitos” ica, assim, atrelada à neces-
ter sido incluído na Constituição de sidade do reconhecimento da mulher
1988, o benefício foi vetado pelo en- como agricultora se tornando pauta de
tão Presidente Fernando Collor (1990- mobilização no início da década de 90.
1992) e até na regulamentação da Lei Esta ênfase se justiica pelo fato
da Previdência em 1990. As lideranças de que grande parte da população ru-
das mulheres rurais tentaram reverter ral feminina está inserida em formas
esse quadro fazendo uma ampla mo- de organização familiares que conju-
bilização e mediante organização de gam funções reprodutivas e produ-
caravanas a Brasília, obtendo a aprova- tivas onde a inserção na produção é
ção da lei sobre o salário-maternidade entendida como um prolongamento
em agosto de 1993, direito esse regu- das atividades domésticas, uma “aju-
lamentado em 1994. No processo de da” ao marido. Ao reconhecer a par-
construção de uma nova identidade de ticipação política das trabalhadoras do
mulher rural, a organização (ou mobi- campo, abre-se caminho para a revisão
lização) também é vista como um meio da perspectiva que tende a considerar
de conferir visibilidade a sua participa- o trabalho das mulheres rurais como
ção na produção. um fato provisório e complementar,
Como uma forma de justiicar e, assim como permite corrigir a visão
ao mesmo tempo demonstrar, a legiti- do caráter subalterno de sua atuação
midade das reivindicações sobre os di- sindical (Cappellin, 1991, p. 17) As
reitos das mulheres, enfatiza-se o papel representações construídas sobre os
econômico que elas desempenham no papéis de gênero no campo seriam os
seio das unidades de produção fami- responsáveis pela airmação de valores
liares. Mobilizando-as para a luta por diferenciados na formulação de identi-
interesses comuns advindos, princi- dades de gêneros, não apenas no que
palmente, da condição de produtora, se refere à distinção entre o masculino
os movimentos de mulheres rurais e o feminino, mas também na própria
torna-se uma das etapas, talvez a mais construção das identidades femininas.
importante, do processo de elaboração Da mesma forma, a homogeneização
da nova identidade feminina e a busca das identidades femininas no campo e
de equidade nas relações de poder no a continuidade de uma imagem social-
mundo rural. No entanto, essa imagem mente construída para o homem como
de mulher relete apenas uma única modelo, levou a invisibilidade do tra-
face de sua identidade - a de trabalha- balho feminino na história agrária bra-
dora. A questão da “cidadania” e dos sileira.

• 702 •
Porém, a partir das pautas femi- conteúdo político atribuído a essa par-
nistas na década de 90 passa-se lenta- ticipação, ocupando espaços no cená-
mente a serem superados os limites do rio público, seja no sindicato, prefei-
isolamento que colocam as mulheres turas, cooperativas, etc. A identidade
em posição de submissão patriarcal política e social da “mulher trabalha-
frente aos homens. A prova disso é a dora rural” estaria, assim, fortemente
incorporação pelas líderes rurais de delimitada pelo conteúdo econômico
palavras de ordem das reivindicações e político atribuído por esses agentes
feministas no discurso, na linguagem sociais, pois são elas que conduzem e
sindical, contribuindo assim para que sustentam as transformações culturais
se fortaleça a confrontação feminis- atuais no mundo rural.
mo-sindicalismo. A imagem da mulher
rural, resultado de um discurso colo- Losandro Antonio Tedeschi
nizador do patriarcalismo agrário bra-
Referências
sileiro, passa a ser desconstruída me-
diante o seu protagonismo econômico AGUIAR, Neuma (coord.). Mulheres na Força de Traba-
lho na América Latina – análises qualitativas, Petrópolis,
como condição de sua transformação Editora Vozes, 1984.

em categoria política, construída a BRUMER, Anita & PAULILO, Maria Ignez (org.). As
Agricultoras do Sul do Brasil (dossiê), em Revista Estudos
partir de mobilizações coletivas, seja Feministas, CFH/CCE Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), vol.12 n.1/2004.
no sindicalismo rural, como em movi-
mentos de caráter popular. CARNEIRO, Maria José e TEIXEIRA, Vanessa Lopes.
Mulher rural nos discursos dos mediadores. Revista Estu-
A categoria de “trabalhadora dos Sociedade e Agricultura, 5, novembro 1995: 45-57.
Artigo apresentado na 47a. Reunião Anual da SBPC, São
rural” se confunde, assim, com a de Luiz, MA, 1995.
mulher rural. O caráter genérico e uni- DEERE, Carmen D., e LÉON, Magdalena. O empo-
versalizante dessa categoria se explica deramento da Mulher:direitos a terra e direitos de pro-
priedade na América Latina. Porto Alegre, Editora da
justamente pelo seu conteúdo político, UFRGS, 2002.

semelhante à categoria de camponês GIULANI Cappellin, Paola. Silenciosas e combativas: a


contribuição das mulheres na estrutura sindical do Nor-
empregada pelo campo acadêmico e deste, 1976-1986. In: Rebeldia e Submissões. São Paulo,
político nas décadas de 60 e 70. Po- Vértice, 1989.

demos dizer que no estado atual da LAVINAS, Lena, (org.) Mulher Rural – identidades na
pesquisa e na luta política, Anais do seminário realizado
relexão/ação sobre a mulher rural, a no Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ, dezembro de 1987.
designação “trabalhadora rural” res-
ponde ao esforço de tornar visível sua Sugestões de leitura
participação na produção e na manu-
CAPPELLIN, Paola. Os movimentos das trabalhadoras
tenção da pequena propriedade rural, e a sociedade brasileira. In: Mary del Priore. (Org.). His-
tória das Mulheres no Brasil. 2ed.Sao Paulo: Contexto,
e ao mesmo tempo em que reforça o 2000, v. 1, p. 640-668.

• 703 •
SCOTT, Parry e CORDEIRO, Rosineide. (Org.) Gêne- tando o sucesso proissional vinculado
ro e Geração em Contextos Rurais. Florianópolis: Editora
Mulheres, 2010. à competitividade e à própria ética do
provedor - o homem capaz de susten-
PAULILO, Maria Inez. Agricultura e espaço rural em San-
ta Catarina. Florianópolis: Ed. UFSC, 2003. tar mulher e ilhos.
Dessa forma, ser homem impli-
• ca em subjetivar valores de trabalhado,
provento, sucesso e dinheiro, as deno-
Trabalho minações de bom marido e pai, hon-
rado e provedor constituíam imagens
A importância do trabalho para do que se esperava de um homem. O
a sobrevivência, sua centralidade nas masculino, trabalho e paternidade re-
trajetórias de vida e a valorização da forçavam-se mutuamente, garantindo e
realização pelo trabalho tornaram-no
consolidando o modelo de autoridade
temática central em diferentes disci-
e de poder a ser desempenhado pelos
plinas das humanidades, também nas
homens, o pai tornou-se iscalizador,
áreas médicas e engenharias.
disciplinarizador, também protetor e
Sob uma perspectiva de gênero,
observam-se as questões-tensões do provedor. Nas últimas décadas, entre-
universo do trabalho no âmbito das tanto, a masculinidade vem sofrendo
masculinidades e feminilidades, des- alterações incorporando outros ele-
tacando-se as construções culturais e mentos, além do sucesso no mundo do
históricas que vincularam o masculino trabalho, a valorização da presença, do
ao trabalhado, provento e sustento da cuidado com os ilhos, além de outras
família, em confronto com as ambigui- atividades ligadas ao cotidiano familiar
dades (presença, ocultamento e ques- e doméstico.
tionamentos) em torno do trabalho No que se refere ao trabalho fe-
feminino. minino, desde os inais do século XIX,
A masculinidade hegemônica que a luta pelo direito ao trabalho foi
projeta homens que deveriam se mos-
demandas constante nos movimentos
trar fortes e capazes, com envolvimen-
feministas. Cabendo destacar que o
to com o trabalho, identiicado como
termo trabalho feminino é polissêmi-
fonte de auto realização, veículo de
crescimento pessoal, criatividade e pra- co: alguns confundem “trabalho fe-
zer; inclusive, como elemento de sub- minino” com as funções domésticas,
jetividade dos homens, valorizando-os cuidados com a família e a casa; já ou-
por sua capacidade de ação, praticidade tros entendem que ele envolve as ativi-
e objetividade, sucesso e iniciativa, es- dades remuneradas realizadas no pró-

• 704 •
prio domicílio e mesmo a participação izeram de formas variadas. Esta pre-
das mulheres no mercado de trabalho. sença se evidencia na orbita do traba-
Neste último sentido, o trabalho che- lho escravo, contudo, mulheres livres e
gou a ser questionado como elemen- pobres, também, das elites exerceram
to impeditivo das ditas “funções na- múltiplas atividades e foram sujeitos
turais” das mulheres, mães e esposas; históricos fundamentais no mundo co-
entretanto, basta olhar com atenção lonial.
para o passado para recuperar que as O estabelecimento do sistema
mulheres sempre trabalharam, mesmo escravista levou a entrada, ainda que
que, em várias situações, seu labor não desigual, de homens e mulheres, que
fosse tão evidente e confundia-se com atuaram em muitas frentes e atividades:
os ofícios coletivos e familiares. escravas do eito ou domésticas (amas
Condicionamentos e necessi- de leite e secas, cozinheiras), escravas
dades variadas levaram as mulheres a de ganho (quituteiras e quitandeiras),
assumir diversas “funções produtivas”, uma diversidade de funções tanto nos
abraçando habilmente as possibilida- campos e como cidades, no espaço pú-
blico e no privado.
des existentes, ocupando brechas no
As mulheres das elites da Co-
cotidiano ou tomando para si postos e
lônia e Império tinham um cotidiano
colocações antes vetados ou inacessí-
marcado por diversas ocupações e
veis. Este percurso foi complexo e ten-
obrigações, enquanto seus maridos e
so, e de modo algum linear e totalmen-
pais se dedicavam aos cuidados com
te progressista. Houve momentos de
a produção agro exportadora, discus-
maiores contingências, até de arranque,
sões e práticas políticas, elas assumiam
em contraposição a outros, de reluxo
as funções de controle da vida domés-
e resistência, em que foi preciso abrir
tica da casa, do latifúndio e da escrava-
caminhos por meio de enfrentamentos
ria. Já para as mulheres pobres o traba-
e lutas. Contudo, indiscutivelmente,
lho constituiu-se numa necessidade de
uma das maiores transformações dos sobrevivência, estas estratégias podem
últimos cem anos foi presença marcan- ser atestadas em vários serviços nos
te e evidente das mulheres no mundo espaços domésticos e públicos, como
do trabalho. a elaboração de quitutes, comércio de
Desta forma, observa-se que, gêneros alimentícios de pequena mon-
apesar do processo de colonização do ta, entre muitos outros.
país ter sido uma experiência históri- Nos inais do século XIX e iní-
ca predominantemente masculina, as cio do XX, intensiicou-se o proces-
mulheres participaram ativamente e o so de urbanização, industrialização e

• 705 •
imigração, neste contexto, o emprego fora do lar e estigmatizavam algumas
feminino fabril foi intensamente incor- proissões como lavadeira, doceira, lo-
porado, contudo, o salário feminino rista, artista (igurante de teatro, atriz,
representava apenas 65% do masculi- bailarina, cantora), associando-as à
no adulto, além disso, as atividades nas perdição moral e, até, à prostituição.
quais as mulheres penetraram foram O trabalho feminino era tolera-
progressivamente desprestigiadas, des- do como uma fatalidade da pobreza e/
valorizadas monetária e socialmente, ou resultado da ausência do provento
sendo descartadas pelos homens. adequado, também identiicado como
Entre 1917/19, por pressão das atividade transitória – que deveria ser
lutas operárias, surgiram as primeiras interrompida por ocasião do casamen-
medidas regulamentadoras do trabalho to ou do nascimento de um ilho, a di-
feminino proibindo a jornada noturna fusão destes preceitos reforçou o relu-
das mulheres e as atividades durante o xo e setorização da presença feminina
último mês de gravidez e o primeiro no universo fabril observado entre os
do puerpério. Apesar de poderem ser anos de 1920 e 1940.
vistas como benefícios, estas medidas As proissões de maior prestí-
geraram resistências patronais, vários gio e de nível universitário (Medicina,
empregadores passaram a dar prefe- Engenharia e Direito), eram de difícil
rência ao trabalhador masculino. acesso às mulheres, pois o ambiente
O aumento considerável da po- universitário era território masculino
pulação urbana gerou novas oportuni- e, além disso haviam restrições de or-
dades para o crescimento das ativida- dem legal. Em áreas para as quais as
des comerciais e de abastecimento, em mulheres eram consideradas “mais ap-
que a participação ativa das mulheres, tas” – como Magistério, Enfermagem,
muitas delas reproduziam suas ocupa- Farmácia e Odontologia – os obstácu-
ções nos quadros domésticos, como los foram menores, mas ainda signii-
cozinhar, lavar, passar e engomar num cativos.
esforço de ganho extra ou para manter O magistério era uma possibili-
a família. dade proissional atraente para as mu-
Após o inal da Primeira Gran- lheres das elites e classe média. Seduzia
de Guerra (1918), o trabalho feminino as jovens por possibilitar ganho inan-
enfrentou maiores questionamentos ceiro, aprimoramento intelectual, ace-
revestidos de preocupações morais nando com a possibilidade de maior
numa somatória de argumentos reli- status social, aceitação em funções
giosos, jurídicos e higienistas, passan- públicas e espaços intelectuais, consi-
do-se a condenar o labor das mulheres derado adequado às mulheres por ser

• 706 •
desenvolvido em o “meio período”, ainda se centrarem em cursos de Edu-
permitindo concatenar uma atividade cação e Humanidades, observa-se a di-
proissional com as obrigações do lar. versiicação em outros campos como
A partir da década de 1960, a as Engenharias, Arquitetura, Medicina,
empregabilidade feminina cresceu de Veterinária e Direito, numa sistemática
forma sistemática tornando-se cons- consolidação de trajetórias proissio-
tante, intensa e diversiicada. Vários nais, atingindo cargos mais elevados e
elementos contribuíram para tanto consolidando carreiras.
como: a redução do poder de compra No setor agrícola, a presença
e arrocho salarial, colocando em che- feminina foi uma constante, com o
que a sobrevivência e capacidade de inal da escravidão (1888) difundiu-se
consumo da família, levando a amplia- o sistema de colonato, nele as mulhe-
ção da presença de mulheres de seto- res, além de trabalhar ao lado dos ho-
res populares no mercado de trabalho; mens no cafezal, eram encarregadas
somada às novas expectativas femini- da lavoura de subsistência, cultivavam
nas vinculadas às mudanças compor- a horta, criavam animais, preparavam
tamentais, despertando o desejo de as carnes, faziam embutidos e produ-
autonomia inanceira e de realização ziam banha e sabão, também conser-
proissional nas camadas médias. Nes- vas, doces, queijos e manteiga. Mesmo
te momento, a mão de obra feminina com tensões e abusos do patronato,
foi incorporada as indústrias de eletro- o sistema de colonato persistiu até os
eletrônicos, brinquedos, farmacêuticas inais da década de 1950, coexistindo
e de cosméticos. Da mesma forma, o com o trabalho de parceiros, arrenda-
crescimento dos setores de serviços tários e assalariados; a partir da década
e comércio abriu possibilidades, de- de 1960, a situação se alterou, como a
sencadeando um processo de “femi- intensiicação das transformações da
nização” de alguns segmentos, sendo agricultura, concentração de proprie-
exemplar o ocorrido no setor bancário, dade, difusão de novas culturas e alte-
apesar que de os cargos mais elevados rações nas relações de trabalho, com o
e bem remunerados mantiveram-se surgimento dos “boias fria” (contrata-
como redutos masculinos. dos por empreitada para realizar tare-
A expansão do ensino médio fas sazonais). Sem registro ou proteção
e universitário ampliou possibilitou a legal, homens e mulheres nessa condi-
ampliação da escolaridade feminina ção enfrentam trabalho árduo, longas
em diferentes níveis e áreas do conhe- jornadas, exigência abusivas de produ-
cimento, apesar das escolhas femininas tividade e ganhos ínimos.

• 707 •
Apesar do aumento da contri- Sugestões de leitura
buição feminina para o orçamento da
família e da crescente cheia de domi- NOGUEIRA, Claudia Mazzei. A Feminização no Mun-
do do Trabalho. São Paulo: Editora Autores Associados,
cílios encabeçada por mulheres, nos 2004.
núcleos familiares, os cuidados dos i- MATOS, Maria Izilda. Cotidiano e Cultura: História,
lhos e encargos domésticos continuam Cidade e Trabalho. Bauru: EDUSC, 2002.
majoritariamente sob responsabilidade MATOS, Maria Izilda e BORELLI, Andrea. Trabalho: es-
das mulheres, sobrecarregando seu co- paços femininos no mercado produtivo. PEDRO, Joana
Maria e PINSKY, Claudia. Nova História das Mulheres
tidiano envolto numa “dupla jornada”. no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.
Ao longo deste último século,
MORAES, Maria Aparecida. Errantes do im do século.
as mulheres ampliaram sua presença SP: UNESP, 1999.
no mundo do trabalho (formal e in-
formal) e ocuparam diversos campos •
proissionais. Porém, paradoxalmente,
a maior parte das mulheres continua Trabalho feminino/
concentrada em ocupações de menor proissões femininas
remuneração, em empregos precários e
vulneráveis, sendo mais atingidas pelo Mesmo no início do século XX
desemprego que os homens. Persistem encontramos uma grande maioria de
ainda diiculdades de inserção em de- mulheres brasileiras fora dos bancos da
terminadas especialidades ou funções, escola. Nossa cultura cristã ocidental
bem como desigualdades salariais e construiu para as mulheres e homens
múltiplos obstáculos à promoção na diferentes papéis para que desenvol-
carreira. vessem tarefas e ocupassem posições
em nossa sociedade, não por serem
Andrea Borelli biologicamente diferentes, mas, produ-
Maria Izilda Mattos zidos por construções sociais diversas.
No entanto, não são todas as mulheres
Referências que estão fora da escola e do trabalho.
O trabalho feminino foi realidade do
LOBO, Elisabete Souza. A classe operária tem dois sexos!
Trabalho dominação e resistência. São Paulo: Brasiliense, Brasil Colônia e Império. As escravas
1981. e forras, assim como as mulheres bran-
MOURA, Esmeralda Blanco. O Trabalho da Mulher e do cas pobres sempre tiveram que lutar
menor na Indústria Paulistana (1890 - 1920). Petrópolis: pelo pão do dia a dia. Como rendei-
Vozes, 1982.
ras, passadeiras, vendedoras de doces e
PENA, Mª Valéria Juno. Mulheres e Trabalhadoras: Pre- salgados, lavadeiras, etc., elas estiveram
sença Feminina na Constituição do Sistema Fabril. São
Paulo: Paz e Terra, 1981. presentes por este Brasil afora se desta-

• 708 •
cando, inclusive, nas lutas e greves pela cursavam matérias que lhes poderiam
diminuição dos preços de alimentos. render um processo seletivo vantajoso
Mulheres “sós”, unidas pelo trabalho nas universidades, as mulheres faziam
e pelos ilhos se auto ajudavam para a além do português, matemática, ciên-
sobrevivência no cotidiano. (Cf. DIAS, cias e didática, cursavam também pue-
1994). ricultura, canto, bordado, etc. Até no
Ao contrário das mulheres, os banho as diferenças se impunham: os
homens, principalmente os de classes meninos podiam se ver nus, conversar
sociais mais privilegiadas, tiveram lugar e brincar durante a higienização dos
reservado na educação formal – curso: corpos, as meninas tomavam banhos
Cientíico e Clássico – para chegarem em locais fechados e vigiados por frei-
às universidades e as mulheres, tam- ras que não lhes permitiam conhecer
bém da classe burguesa, quando muito, os seus corpos e os das outras internas.
faziam o curso Normal, denominado à Assim, os homens, ao saírem
época (1940/1950) de “espera marido”. das escolas – o antigo 2º grau e, mais
A divisão sexual do trabalho re- tarde, das universidades –, além de
servou para os homens uma esfera pro- mais conhecedores de seus próprios
dutiva e valorizada pela sociedade en- corpos e sexos, podiam se dedicar à
quanto às mulheres coube outra esfera: proissão na qual se especializaram na
a reprodutiva. “Essa forma de divisão educação superior: médicos, engenhei-
social do trabalho tem dois princípios ros, economistas, administradores de
organizadores: o da separação (existem empresas, etc. Quanto às mulheres, ou
trabalhos de homens e outros de mu- se casavam e se dedicavam ao lar, ou
lheres) e o da hierarquização (um tra- escolhiam proissões ligadas ao mundo
balho de homem ‘vale’ mais do que um feminino como uma extensão do lar:
de mulher)” (KERGOAT, 2009, p.67). secretárias, professoras, enfermeiras,
Em estudo dos anos 1960 no donas de lojas de artigos femininos,
Triângulo Mineiro (Cf. PUGA DE decoradoras, costureiras, cabeleirei-
SOUSA, 1994, p.37-61.), constatei as ra, manicure, pedicura, etc. Nos anos
diferenças de Gênero em se tratando de 1960, duas cidades com as quais
das escolas de Internatos Religiosos. trabalhei: Uberlândia e Araguari, nos
Em dois colégios especíicos, um para registros civis (livro de casamentos e
meninos e outro para meninas, a rigidez separações) inscreveram 70% e 90%,
disciplinar, orações e silêncios se im- respectivamente de mulheres que se
punham, (Cf. FOUCAULT, M.,1985) dedicavam à proissão “doméstica ou
porém, as diferenças das disciplinas do lar”, ou seja, a maioria de mulheres
eram imensas. Enquanto os homens que se casaram nos anos de 1960 nes-

• 709 •
tas duas cidades possuíam proissão Engenharias e Ciência da Computa-
ligada ao mundo doméstico. ção. Outra comprovação se obteve ao
“A transformação da grande pesquisar dois cursos de medicina: um
maioria das escolas públicas e priva- da Universidade Federal de Uberlân-
das brasileiras [até então separadas por dia; outro da Universidade Federal do
sexo] em mistas foi um dos importan- Triângulo Mineiro quanto à residência
tes resultados do processo de moder- Médica. Percebeu-se que nos anos de
nização iniciado a partir dos anos de 2011/12 se escolheram as especialida-
1960. Meninas e meninos, desde a ten- des médicas por gênero. Ainda hoje,
ra idade, passaram a dividir os bancos a Urologia e a Ortopedia continuam
escolares, possibilitando, assim, que altamente especializadas por homens
ambos os sexos tivessem trajetórias si- enquanto a Ginecologia, Pediatria e
milares nos estudos.” (AREND, 2012, Dermatologia são as preferidas pelas
p.77). Tendo igualdade na formação mulheres. As falas em resposta às esco-
escolar, as mulheres puderam ganhar o lhas de especialidades têm relação com
mundo público do trabalho almejando plantões, diiculdades apontadas pelas
carreiras até então consideradas mas- estudantes, assim como a duração ex-
culinas, como as engenharias, direito, tensa de algumas especialidades que
medicina, entre outras. requerem das mulheres tempo excessi-
Pesquisas realizadas pelo Insti- vo as quais algumas julgam atrapalhar
tuto Nacional de Estudos e Pesquisas o objetivo do casamento e a criação de
Educacionais Anísio Teixeira (INEP) ilhos e ilhas. (PUGA, 2012, p. 256-
tem demonstrado que, entre os anos 277). O caso de cirurgia geral pode ser
de 1991 a 2005, as mulheres são maio- mantido nas chamadas especialidades
ria nos processos seletivos para cursos masculinas a não ser que se opte, por
superiores, na entrada dos cursos de exemplo, por cirurgias menores, mais
graduação e ainda nas conclusões dos delicadas, como das mãos ou ortope-
cursos de graduação (RISTOFF, 2007), dia pediátrica. Ao perguntar a uma es-
apesar de se constatar que existem al- tudante as razões da escolha por esse
gumas especialidades consideradas tipo de intervenção médica, obtivemos
masculinas e femininas. Ou seja, mui- a seguinte resposta: no caso de atendi-
to embora a igualdade no acesso da mento a crianças, as médicas têm mais
educação superior, continua a existir paciência e ganham melhor a coniança
uma participação menor de homens da mãe. A cultura sexista e hierarqui-
nos cursos de Letras, Enfermagem zada está, assim, introjetada em toda a
e Pedagogia, assim como uma baixa sociedade, e continua a se fazer valer
participação feminina nos cursos de no caso de escolhas de proissões.

• 710 •
Para Bourdieu, o mundo social Dentre os dez capítulos do Pla-
constrói o corpo como realidade sexu- no Nacional de Políticas para as Mu-
ada e como depositário de princípios lheres 2013-2015, o primeiro trata da
de visão e de divisão sexualizante. Esse igualdade no mundo do trabalho e
programa social de percepção incor- autonomia econômica das mulheres,
porada aplica-se a todas as coisas do levando em conta as desigualdades
existentes entre homens e mulheres,
mundo e, antes de tudo, ao próprio
entre as classes, raças e etnias, com
corpo em sua realidade biológica: é ele
ênfase nas políticas de erradicação da
que constrói a diferença entre os sexos
pobreza e na garantia da participação
biológicos. [...] a diferença biológica das mesmas no desenvolvimento do
entre os sexos, isto é, entre o corpo país. Constata-se que é no espaço so-
masculino e o corpo feminino, e, es- cial do trabalho que as desigualdades
peciicamente, a diferença anatômica e discriminações são mais evidentes e
entre os órgãos sexuais, pode assim acabam por determinar o acesso e a
ser vista como justiicativa natural da permanência no emprego. Apesar da
diferença socialmente construída entre participação das mulheres no mercado
os gêneros e, principalmente, da divi- de trabalho, visivelmente signiicativa a
são social do trabalho. (BOURDIEU, partir dos anos de 1990, ainda persis-
1999, p. 18-20). tem diferenças salariais, ausências fe-
Para as mulheres, a partir dos mininas nos postos de liderança, ocu-
movimentos feministas e ainda nos pação pela população feminina e negra
de lugares mais precários do que aque-
dias atuais (2013), a luta pela entrada e
les ocupados pela população masculina
permanência no mercado de trabalho
e branca, desigualdades essas que pre-
continua. As chamadas duplas jorna-
cisam ser superadas no cotidiano de
das de trabalho - mercado e lar – (tare- seus meio de sobrevivência.
fas domésticas, cuidados, mãe/esposa) A presença da mulher no tra-
permanecem para muitas mulheres balho formal constitui uma transfor-
que não têm a divisão dos serviços do- mação que vivenciamos no Brasil nos
mésticos por parte dos companheiros, tempos atuais. Elas são presença mar-
maridos, ilhos e ilhas. É certo airmar cante e, apesar desta feminização, per-
que as novas gerações já percebem as manece a divisão sexual que mantém
mudanças e têm dividido melhor o tra- sob a responsabilidade das mulheres a
balho doméstico e com as crianças e carga do trabalho reprodutivo, ou seja,
também as rendas geradas no mercado o cuidado dos ilhos, da casa, dos do-
de trabalho pelo casal. entes, além das demais tarefas domésti-

• 711 •
cas. Essa persistência cria diiculdades KERGOAT, Denise. Divisão sexual do trabalho e rela-
ções sociais de sexo. In: HIRATA, H.; LABORIE, F.; LE
e desigualdades na inserção de muitas DOARÉ e SENOTIER, D. (org.). Dicionário Crítico do
trabalhadoras em empregos de boa Feminismo. São Paulo: Editora da UNESP, 2009.

qualidade. Assim, ainda é uma realida- PUGA, Vera Lúcia. A escolha da proissão médica: as re-
de para a maioria daquelas os baixos lações de gênero e as construções do ser homem e mulher.
In: Nas veredas da História: Itinerários e Transversalidades
salários, os empregos precários e a in- da Cultura. Uberlândia: EDUFU, 2012.
formalidade.
PUGA de SOUSA, Vera Lúcia. Internatos. Caderno Espa-
Muitas mulheres lutaram pela ço Feminino, Uberlândia, n.1, p.37-61,1994.
autonomia inanceira e conseguiram,
RISTOFF, Dilvo [et al.] A Mulher na Educação Superior
mas outras tantas continuam a des- Brasileira. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pes-
pender forças por salários iguais aos quisas Educacionais Anísio Teixeira, 2007.

dos homens, por divisão de tarefas



domésticas, para exercerem proissões
chamadas de nichos masculinos, para
alcançarem postos de comando nas
Transgênero
empresas, pelo empoderamento fe-
Quem são os transgêneros?
minino. Esse esforço pela autonomia
Neste espaço e arbitrariamente pensa-
inanceira, para exercerem cargos de
do por nós, não deiniremos o termo
cheia, tem exigido a tomada de posi-
transgênero no movimento classiica-
ções por parte de algumas mulheres.
tório subjacente aos propósitos dos
Entre essas posições, a de não se casar
dicionários e das iluminadas enciclopé-
e nem ter ilhos, ou casar e ter um nú-
dias. Se por um lado, nomear é dar exis-
mero menor de ilhos, dando ênfase à
tência e atribuir visibilidade pela via do
sua carreira.
que é dizível, por outro lado, classiicar
Vera Lúcia Puga não apenas é engessar, mas também é
colocar sob os holofotes da vigilância
Referências e sugestões de leitura e do dispositivo disciplinar – ambos
efeitos dos discursos ditos cientíicos.
AREND, Silvia Fávero. Trabalho, Escola e Lazer. In: Nesse sentido, nossa ênfase aqui será
PINSKY, Carla B. e PEDRO, Maria Joana (org.). Nova
História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012. a de simplesmente vincular o termo
“transgênero” às limitações de dadas
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1999. signiicações atribuídas historicamente
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em
ao conceito de “gênero”. Portanto, se
São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1994. há “ares” conceituais para o presente
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vonta-
verbete, assim o faremos no sentido de
de de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1985, 2ª edição. “transver” (BARROS, 2004) àquele do
“gênero”; quando reduzido às “repre-
• 712 •
sentações culturais” que recaem sobre diário de Herculine Barbin ou Alexi-
um dado corpo sexuado. Aliás, concei- na (FOUCAULT, 1982). Essa por ser
to refutado pelo artigo clássico de Joan classiicada enquanto uma hermafrodi-
Scott (1990) que convida os pesquisa- ta a partir de meados de 1860 deveria
dores implicados nas discussões de gê- por força de uma ordem judicial optar
nero ao “rompimento da existência de entre um dos dois sexos que até hoje
um sujeito como pautado apenas e tão deinem a verdade de nós sujeitos. “Ela
somente no binómio que se perfaz pela e/ou ele não poderia mais viver na in-
oposição à outra possibilidade de exis- deinição, pois o neutro não mais se-
tência, a saber: ou se é homem, ou se é ria concebível enquanto vivível” (BE-
mulher” (BECKER, 2011, p.108). Por CKER, 2011, p.111).
sua vez, este corpo sexuado que relete Nos (d)escritos de Michel Fou-
os constructos sociais (e vice-versa) é cault, não por um acaso Alexina sui-
aquele imposto pelos discursos biomé- cidou-se fazendo coincidir a inviabili-
dico e jurídico (FOUCAULT, 1982). dade de sua vida viva atravessada pela
Partamos para o concreto do e de morte social: “As memórias de
cotidiano. Quais e quantas são as tra- sua vida, Alexina escreveu quando já
vestis abrigadas pela lei 11.340/2006 havia sido descoberta e estabelecida
também conhecida em solos brasilei- sua nova identidade. Sua “verdadeira”
ros como Maria da Penha? Ousamos e “deinitiva” identidade. Mas é óbvio
airmar com base em pesquisas (BE- que não é do ponto de vista desse sexo
CKER, 2011a; BECKER 2011b; BE- enim encontrado ou reencontrado
CKER, LEE & LEMES, 2012; BE- que ela as escreve. Não é o homem
CKER & LEMES, 2012) que não há que fala, tentando relembrar as sensa-
quaisquer travestis “normalmente” sal- ções e a vida de quando não era ainda
vaguardadas pela citada legislação. Por “ele-mesmo”. Quando Alexina redige
quê? Provavelmente pela interpretação suas memórias, não está longe do seu
estreita concedida ao termo “gênero” suicídio; ela tem sempre para ela mes-
que de maneira inédita consta, feliz- ma um sexo incerto; mas é privada das
mente sem conceituações prévias, na delícias que experimentava em não ter
lei Maria da Penha. Uma interpretação esse sexo, ou em não ter totalmente o
estreita que torna coerente a correla- mesmo sexo que tinham aquelas com
ção entre gênero, sexo, prática sexual as quais vivia, amava e desejava tanto.
e desejo denunciada/questionada por E o que ela evoca do seu passado é o
Judith Butler (2003) em “Problemas de limbo feliz de uma não-identidade, que
gênero” e outrora evocada por Michel protegia paradoxalmente a vida dentro
Foucault, não apenas, mas também no daquelas sociedades fechadas, estreitas

• 713 •
e calorosas, onde se tem a estranha feli- Referências
cidade, ao mesmo tempo, obrigatória e
BARROS, Manoel de. Livro sobre Nada. 11ª edição. Rio
interdita, de conhecer apenas um único de Janeiro: Editora Record, 2004.
sexo.” (FOUCAULT, 1982, p.6-7).
BECKER, Simone. DORMIENTIBUS NON SOCUR-
De fato e de direito desumana, RIT JUS! (O DIREITO NÃO SOCORRE OS QUE
DORMEM): um olhar antropológico sobre rituais pro-
assim como àquela existência inexis- cessuais judiciais (envolvendo o pátrio poder/poder fami-
tente posta e não imposta em prosa liar) e a produção de suas verdades. Tese de doutorado
defendida junto ao PPGAS da Universidade Federal de
por Clarice Lispector no que toca às Santa Catarina, 2008.
angústias existenciais da e/ou do pro-
BECKER, Simone. Breves considerações sobre a (in)
tagonista de Água Viva; - ela, ele e/ou humanidade de LGBT’s (lésbicas, gays, bissexuais, tran-
sexuais e travestis) perante o discurso jurídico brasileiro.
it. Se não vejamos: “No âmago onde In: Género e Ciências Sociais. Org. NEVES, Soia, v.1, 1ª
estou, no âmago do É, não faço per- edição. Maia: Edições ISMAI, p. 103-119, 2011a.

guntas. Porque quando é – é. Sou limi- BECKER, Simone. Entre a história e o direito, entre hu-
tada apenas pela minha identidade. Eu, manos e inumanos: o que é que o discurso jurídico tem
que só ele detém (...). In: Revista Brasileira de História das
entidade elástica e separada de outros Religiões, v.1. Maringá: UEM, p.123 - 151, 2011b.
corpos” (LISPECTOR, 1973, p.31). BECKER, Simone; LEE, Gracia; LEMES, Hisadora Be-
Separada de outros corpos, de outras atriz. “A Joaquim” e os discursos dos Tribunais de Justiça
do MS e do RS: considerações sobre as travestis In: 28
existências humanas. Reunião Brasileira de Antropologia - Desaios antropoló-
Portanto, a humanidade vivida gicos contemporâneos. São Paulo: PUC, 2012.

na e pela fronteira transgênero que BECKER, Simone; LEMES, Hisadora Beatriz. “”Que és
una vida?”” Representações sobre as travestis no TJMS e
extrapola o binarismo redutível ao ser no TJRS In: II Congresso Iberoamericano de Arqueolo-
mulher ou ao ser homem, há que ser gia, Etnologia e Etno-história, Dourados: UFGD, 2012.

produzida para quiçá ser reconhecida. BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismos e
subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
Isto porque, se todas as vidas são (em sileira, 2003.
dada medida) precárias (BUTLER,
BUTLER, Judith. Marcos de guerra: las vidas lloradas.
2010), existem aquelas cujas viabilida- Buenos Aires: Paidós, 2010.
des são legitimadas pelo Estado sob FOUCAULT, Michel. Herculine Barbin: o diário de um
hermafrodita. Rio de Janeiro: Francisco Alvez, 1982.
dadas condições não extensíveis a ou-
FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins
tras. Em síntese, por mais vivas que Fontes, 2011.
sejam em termos biológicos as vidas
LISPECTOR, Clarice. Água Viva. São Paulo: Círculo do
transgêneros, essas carecem e muito de Livro, 1973.
se tornarem possíveis e viáveis peran-
MACHADO, Paula Sandrine. O sexo dos anjos: um olhar
te o Estado, aquele que(m) nos gesta e sobre a anatomia e a produção do sexo (como se fosse) na-
tural. In: CADERNOS PAGU, (24), jan-jun. Campinas:
nos pare (BECKER, 2008). UNICAMP, p. 249-281, 2005.

SCOTT, Joan. Gênero uma categoria útil para a análise


Simone Becker
histórica. Revista Educação e Realidade, vol. 16, n.2. Por-
Lauriene Seraguza Olegário e Souza to Alegre: UFRGS, jul-dez, p.5-22, 1990.

• 714 •
Violência de Gênero/
Intolerância

O ser humano é um animal ra-


cional, mas altamente violento. Capaz
de provocar dores, de odiar, de matar
não com uma facada, mas com cem.
As sociedades detêm as rédeas da vio-
lência, porém, conforme estudiosos, a
mesma sociedade solta essas amarras
quando lhe convém, dão a certos in-
divíduos licenças para a agressão. As
sociedades criam os chamados álibis
para que as pessoas possam digladiar,
fugir ao estado da paz. Para Peter Gay,
existem três álibis: um é o da concor-
rência, o segundo, a construção do
outro conveniente e, um terceiro, o culto
da masculinidade, aquele que de certa
forma permitia a violência do homem
contra a mulher. É no século XIX
que a mulher está presente na militân-
cia cavalheiresca. “Com todas as suas
ansiedades e ódios silenciosos, os ho-
mens não admitiam qualquer dúvida
de que, assim como eles não podiam
falhar a suas mulheres, as mulheres que
amavam deveriam, por sua vez, viver
de acordo com os padrões mais altos
possíveis. Suas mulheres tinham que
ser fortes em suas mesquinharias, valo-
rosas na adulação, rápidas em reconhe-
cer a superioridade masculina e pron-
tas a sacriicar tempo, esforço e seus
próprios desejos a seus homens. De
maneira signiicativa, mas não surpre-

• 715 •
endente, em tal código a falta de casti- sermos, nós mesmos, bárbaros, here-
dade de uma moça e a inidelidade da ges e mendigos.” (DUSCHATZKY e
esposa eram os crimes mais graves. A SKLIAR, 2001, p. 124).
vergonha de uma mulher manchava a A civilização dos costumes, a
reputação dos homens a quem ela per- instalação das boas maneiras e da po-
tencia – ilho, marido, irmãos – até que lidez parecem amenizar as agressivi-
a mancha fosse apagada, por intermé- dades ou deslocá-las. Na realidade, a
dio da agressão.” (GAY, 1995, p.120). violência é, segundo casos, tolerada,
Desta forma, seja um extermí- ajeitada, proibida, encorajada, possuin-
nio de uma raça inteira, seja a elimina- do às vezes uma valoração positiva ou
ção de mulheres por serem considera- negativa. “A agressividade é coninada
das “seres inferiores”, a estratagema e domada por inumeráveis regras e
era retirar a humanidade do OUTRO proibições, que se transformaram em
para que, sem culpa, pudessem ser autolimitações. Foi tão transformada,
autorizados ao massacre conveniente. ‘reinada’, ‘civilizada’ como todas as
Assistimos, assim, na História, as guer- outras formas de prazer, e sua violên-
ras políticas e religiosas, os imperialis- cia imediata e descontrolada aparece
mos, os duelos em favor da honra, a apenas em sonhos ou em explosões
criação de heróis, as lutas individuais e isoladas que explicamos como patoló-
coletivas gerenciadas pelo ódio a esse gicas.” (ELIAS, 1990, p.190-191). Mas
outro. A isso chamamos de Intolerân- as violências, de uma forma ou de ou-
cia. É a rejeição do outro que é dife- tra, permanecem em nossas socieda-
rente de mim. Aquele cuja cultura, culi- des.
nária, vestimentas não são semelhantes A violência, presente na socieda-
aos da minha sociedade. Desta forma de capitalista moderna, é marcada por
se dá a exclusão, historicamente falan- uma urbanização acelerada, na qual são
do, de judeus, de escravos, de heréticos valorizados a competição e o individu-
e de leprosos. “Necessitamos do outro, alismo e ainda o consumismo. Neste
mesmo que assumindo certo risco, pois espaço urbano, que também é político,
de outra forma não teríamos como jus- o cotidiano, especialmente dos menos
tiicar o que somos, nossas leis, as ins- favorecidos economicamente, é per-
tituições, as regras, a ética, a moral e meado por imagens que incentivam ao
a estética de nossos discursos e nossas consumo, ao desejo de possuir, o que
práticas. Necessitamos do outro para, para muitos é inatingível. A cidadania
em síntese, poder nomear a barbárie, a é agredida quando crianças, idosos, de-
heresia, a mendicidade etc. e para não icientes físicos, mulheres, homossexu-

• 716 •
ais, lésbicas, entre tantas outras pessoas O anonimato e a invisibilidade
têm seus direitos desrespeitados. E esta da violência de gênero foi objeto de
sociedade contemporânea está cheia luta dos movimentos feministas e jul-
destas violências contra tantas pesso- gamentos de organizações mundiais
as. Ela assiste a isso cotidianamente de que queriam uma legislação apropria-
tal forma que parecem naturais. A luta da contra a impunidade masculina.
pelo poder, riqueza e domínio sobre o Lavar a honra com sangue e ter, por
outro faz dessa nossa sociedade uma isso mesmo suas penas diminuídas, foi
sociedade hostil. forte argumento dos advogados de de-
Como se não bastasse ser vio- fesa dos réus. A partir da Constituição
lenta, é preciso ser agressiva com os de 1988 e da reformulação do Código
considerados mais fracos, menores, Penal de 1940, os homens tiveram que
repensar suas defesas para com as vio-
idosos. Uma das violências que mais
lências praticadas.
tem preocupado o Estado é a violência
Assim, por denúncias, lutas fe-
de gênero, aquela praticada por homens
ministas e de mulheres, de organiza-
contra mulheres que se utilizam de for-
ções internacionais, o Estado brasileiro
ça física ou de ameaças, provoca sofri-
acabou por combater com mais rigor
mentos psicológicos, intelectuais, físi-
este tipo de violência. A partir dos anos
cos, sexuais e morais com o objetivo
de 1990 começa a surgir uma reação a
de coagir, humilhar, castigar, submeter, favor das mulheres que sofrem dessas
punir. No Brasil, as mulheres têm sido agressividades em casa, nas ruas e no
ameaçadas, estupradas, espancadas e trabalho, e é assim que se dá a criação
mortas por companheiros, namorados das Delegacias Especiais para Mulhe-
e maridos. São dramas, em sua grande res, SOS Mulheres, Casas Abrigo e,
maioria, anônimos e alguns outros se nos anos 2000, se ganha proteção e di-
destacaram na mídia escrita ou televi- reito pela Lei 11.340/2006, a popular
sionada pela fama de seus atores, se- Lei Maria da Penha. Aqui me reiro ao
jam eles artistas ou pessoas de classes enfrentamento da violência doméstica
econômicas mais elevadas que saem e familiar que deve ser entendida como
nos jornais pela vida badalada que le- aquela que primeiro se toma contato
vam. Mas, podem ser ricos ou pobres, para depois surgirem outras formas de
de uma forma ou de outra as agressi- violência social.
vidades constatam a subordinação fe- A Intolerância não pressupõe
minina e o poder dos homens sobre as uma doutrina, ela está aquém de qual-
mulheres. quer doutrina. “A intolerância tem

• 717 •
raízes biológicas, manifesta-se entre ses que se sentem ameaçados, seja de
os animais em forma de territoriali- perder o poder, seja o de ser excluído
dade e baseia-se em reações emocio- da sociedade. Viver a tolerância signii-
nais supericiais. Não gostamos dos ca aprender a não odiar.
que são diferentes de nós, porque têm
uma cor diferente de pele, porque fa- Vera Lúcia Puga
lam uma língua que não entendemos,
Referências e sugestões
porque comem rã, cachorro, macaco,
de leitura
porco, alho, porque usam tatuagem.
A intolerância em relação ao outro é BARRET-DUCROQ, Françoise (dir.). A Intolerância.
Foro Internacional sobre a Intolerância. Academia Uni-
natural na criança, como o instinto de versal das Culturas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
se apropriar de tudo o que lhe agra-
ECO, Umberto. Deinições léxicas. In: BARRET_DU-
da. Aprendemos a tolerância, pouco a CROCQ, Françoise (dir.). Intolerância. Foro Internacio-
pouco, como aprendemos a controlar nal sobre a Intolerância. Academia Universal das Cultu-
ras. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
o esfíncter.” (ECO, 2000, p.16)
Transformações sociais e cultu- ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Uma História
dos Costumes. Vol. 1. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
rais são necessárias para que o machis-
GAY, Peter. A Experiência Burguesa da Rainha Vitória a
mo, o poder e a violência deixem de Freud. O Cultivo do Ódio. São Paulo: Companhia das
ter um caráter positivo e passem neces- Letras, 1995.

sariamente para o negativo. É preciso LARROSA, JORGE e SKLIAR, Carlos. Habitantes de


ensinar nas escolas e nas famílias a To- Babel. Políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001.
lerância, não a aprendizagem em que se
deve tolerar tudo, até o intolerável, mas NAXARA, Márcia; MARSON, Izabel e BREPOHL,
Marion (org.) Figurações do outro. Uberlândia: EDU-
o respeito aos outros, aos diferentes de FU, 2009.
nossa cultura, àqueles ou aquelas que PUGA DE SOUSA, Vera Lúcia. Paixão, Sedução e Vio-
optam por exercer seus desejos sexuais lência. 1960-1980. Tese de doutoramento. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 1998.
de formas diversas, aqueles que rezam
um credo ou têm uma cor que não seja •
semelhante à nossa. É preciso respei-
tar a cultura, a culinária, a crença e os Virgem Maria
hábitos dos outros, mesmo que sejam
diferentes dos nossos. A ideia de to- A igura da Virgem Maria, den-
lerância surge em contraponto à ideia tro da conjuntura metafórica do texto
de verdade, de convicção política ou bíblico, está em exato papel de oposi-
religiosa. O contrário, a intolerância, ção à igura de Eva (Sobre o assunto
segue uma lógica que serve aos interes- ver Eva). No Gênesis, a igura da se-

• 718 •
gunda mulher de Abrão se torna párea De acordo com o Evangelho
a partir do momento em que ela prova de São Lucas, na cidade de Nazaré na
do fruto proibido e traz sobre si toda Galileia, habitava uma jovem chamada
a marca da maldição de Deus sobre Maria, prometida como esposa a um
a humanidade, a começar pelo ato de carpinteiro conhecido como José. Foi
procriar, união carnal que denuncia a esta virgem que o anjo Gabriel apa-
o pecado original e sela de forma ca- receu anunciando que ela se achava em
nhestra o destino de todas as mulheres grande graça diante de Deus e que seu
(a partir dela) que se tornam esposas ventre iria conceber um ilho ao qual
e mães. seria dado o nome de Jesus. Confor-
A partir desse momento, a ideia me Jacopo de Varazze em sua obra a
do casamento estará ligada à condi- Legenda Áurea Maria “(...) nasceu da es-
ção humana após o pecado original: tirpe régia de Davi da tribo de Judá”
a virgindade pertence ao universo do (VARAZZE, 2003, p. 746). A tentativa
Paraíso Perdido de que gozaram Adão de Varazze no sentido de articular esta
e Eva, objeto que todo o cristão (e questão situa um processo importante,
principalmente a cristã!) deve tentar re- uma vez que tanto no Evangelho de
cuperar com todo o empenho. Se Eva Lucas quanto no de Mateus, os episó-
possui um papel tão ativo no pecado, dios que dão conta do nascimento de
Maria opõe-se diametralmente a ela, Cristo evidenciam que José descendia
com uma passividade que se exalta no de Davi. Se José não teve participação
momento em que ela se torna instru- no nascimento de Jesus, tornava-se im-
mento para que a humanidade alcance prescindível comprovar que sua mãe
a Redenção. tinha uma origem nobre, de forma que
Maria que concebeu sem conhe- o autor busca uma série de razões ge-
cer um homem no sentido bíblico da nealógicas para comprovar esse fato.
expressão, que deu à luz um ilho man- No universo do Cristianismo
tendo-se virgem, tornando-se assim a medieval, juntamente com Marta e
única do seu sexo, “(...) precisamente Maria Madalena, a Virgem Maria faz
porque o seu corpo não conhece a parte de um conjunto de mulheres que
união do matrimônio pode ser exalta- rodeia Cristo e que de certa forma cria
da na sua maternidade, constitui o mo- uma representação do feminino que o
delo que cada mulher deve procurar circunda. Dentro desse pressuposto a
imitar (...)” (FRUGONI, 1990, p. 462). construção da igura de Maria a colo-
É importante frisar que essa proposta ca na condição de grande redentora do
nega, acima de tudo, o corpo feminino lado feminino da cristandade, o qual
e as suas funções. havia sido marcado pelo pecado origi-

• 719 •
nal cometido por Eva, sendo que cabe uma fonte de vida, de esperança e de
ressaltar que a partir do século XII será piedade. Tal temática está relacionada
a imagem da mãe de Cristo que vai pre- de forma direta, à literatura litúrgica,
ponderar em relação à imagem da mu- cuja origem já se apresenta em vários
lher pecadora, tornando-se central no poemas latinos do século IV e V e na
mundo cristão, tanto oriental quanto literatura profana, acompanha-se a sua
ocidental. aparição a partir do século XII, atra-
É possível dizer que uma das vés das canções de gesta. Cabe lembrar
grandes inovações do Novo Testamen- que essa literatura, fosse ela de cunho
to foi exatamente a igura de Maria, agrado ou profano projetou uma ima-
sendo que ela se torna o ponto culmi- gem de Maria que a afastou das mulhe-
nante de um todo, dado o grande nú- res terrestres elevando-a a um espaço
mero de iguras femininas que rodeiam inacessível ordenado por uma materni-
Jesus Cristo. Note-se que os grandes dade “(..) virginal sem a menor fenda”
pais do Velho Testamento (Abraão e (DALARUN, 1990, p. 42).
Moisés, por exemplo) não são vistos Essa questão traz intrínseca a si
sob a inluência feminina da mesma um problema: no universo do feudalis-
forma que Jesus. Sua mãe esteve pre- mo a virgindade torna-se um elemento
sente em vários momentos da Sua tra- que garante às mulheres uma liberda-
jetória como, por exemplo, durante as de única, pois elas estariam libertas do
Bodas de Caná e na Sua Cruciicação. poder do homem sobre o seu corpo.
Ademais, Jesus prega seus ensinamen- Mas o que propor então, às mulheres
tos a Marta e Maria, sendo que quan- casadas, as quais já haviam perdido o
do da Ressurreição, foram às mulheres acesso à salvação garantida pela virgin-
quem descobriram o túmulo vazio e dade e que mesmo assim eram boas
divulgaram a notícia. Portanto, verii- cristãs leais e iéis, e, portanto tinham
ca-se que nos Evangelhos e no Novo o direito de serem salvas? O próprio
Testamento o papel da mulher atinge texto bíblico oferece a resposta, pois
um novo lastro, de maior importância de acordo com o Livro dos Provérbios,
marcando um novo espaço de relacio- não há nada de melhor que uma boa
namento que repercutirá na própria es- esposa. Ademais, é possível comprovar
trutura hierárquica da igreja. a utilidade da mulher, comparando-a
A igura da Virgem será fonte ao campo onde o agricultor semeia
de inspiração para a literatura em voga para obter a colheita. No conjunto,
no período medieval, sobretudo na es- no entanto, a lógica do discurso reali-
fera da poesia lírica: seu mote encar- za uma defesa tímida da condição da
na o princípio do Bem, simbolizando mulher casada, reabilitando a sua fun-

• 720 •
ção social sem falar da sua salvação. Há profetisa Ana que nunca abandona o
que se considerar nesse contexto que, templo onde reza e jejua noite e dia
a igura de Eva em vez de ser apaga- e, sobretudo, na Virgem Maria, a qual
da, era compensada pela imagem da ica em silêncio respeitoso e em mais
Virgem Maria, e posteriormente ainda respeitosa espera de que se cumpra
mais pela de Maria Madalena (mesmo nela a vontade de Deus.
caso de Eva). No entanto, a suprema- Reforçando essa ideia, poderia
cia da virgindade continuará absoluta e se pensar, em um primeiro momen-
será reforçada pelos dogmas referentes to que a vida de Nossa Senhora seria
à Maria. Quanto às pecadoras, só lhes oferecida à meditação dos cristãos de
restava a penitência, mesmo que legiti- ambos os sexos como uma espécie de
mamente casadas. De acordo com Da- modelo alternativo. Porém, vale ressal-
larun: “Para as descendentes da portei- tar que o corpo de Maria não segue as
ra da morte, que não souberam aceitar regras de um corpo humano: tal exce-
o impossível desaio mariano – per- ção, invés de servir como garantia de
manecer porta fechada mantendo-se alternativa, apenas reforça a misoginia.
ao mesmo tempo porta da vida -, não Toda a vida de Maria na terra, a exceção
há salvação senão pela porta pequena” da Assunção ao céu, é demonstrada na
(DALARUN, 1990, p. 47) liturgia através de acontecimentos que
Desta forma, e através da repre- estão relacionados à procriação, mui-
sentação construída em torno da mãe tos deles em exata oposição ao destino
de Cristo a qual fortalece a ideia da vir- de Eva.
gindade, o corpo feminino é mantido Quando da Imaculada Con-
sob custódia (masculina) devido a uma ceição estabeleceu-se que Maria foi o
rede intrincada de concepções e dis- único ser vivo de ambos os sexos pri-
cursos de grande prestígio cultural no vados do estigma do pecado original,
período, porque ordenada pelos mem- pois concebeu sem conhecer homem,
bros do clero. Estes conhecedores do já que o Espírito Santo se fez presente
texto bíblico procuram e nele encon- sobre sua pessoa. A Anunciação onde
tram muitos exemplos admiráveis de ela é visitada pelo anjo Gabriel subli-
mulheres que se afastaram das tenta- nham essa concepção espiritual, assim
ções mundanas e impuseram a seus como o nascimento de Jesus e a manu-
corpos uma disciplina rígida: o proces- tenção de seu estado virginal. Mesmo
so pode ser constatado em Judite, que que tenha concebido sem conhecer
se esconde em um recôndito espaço de homem algum, inundada pelo poder
seu lar para praticar o jejum; na velha divino, Maria foi humilde o suiciente

• 721 •
para participar dos rituais de puriica- Assim sendo, aos moldes da i-
ção no Templo, submetendo-se aos gura da Virgem Maria, a boa esposa ge-
mesmos. rava muitos ilhos e invariavelmente se
Maria encarna, no universo do tornava uma boa mãe, corroborando
medievo, uma concepção de materni- para a ideia de que toda a igura ma-
dade e de sentimento maternal que o
terna ressaltava e reinventava a igura
mundo judaico cristão ocidental carre-
da mãe de Cristo, escolhida por Deus
ga intrínseca até os dias de hoje. Nela,
a maternidade se torna tão importante para gerar o seu ilho divino, espécie de
quanto o casamento ou a situação fa- vaso coletar que conforme preconiza o
miliar para o quotidiano da mulher, o doutor angélico é uma auxiliar na pro-
que delimita e deine a sua posição na criação. Portanto, e nesse contexto, não
sociedade. Dentro desse pressuposto, era estranho que uma mulher que não
e a partir da prerrogativa da Virgem, gerasse um ilho fosse repudiada pelo
cabe a mulher dar à luz e criar os i- marido. Aliás, vale ressaltar que Maria
lhos como principais tarefas, podendo vinha em auxílio dessas mães estéreis:
mesmo dizer que esta constitui uma es- bastava para tanto, rezar humildemen-
pécie de “proissão” para as mulheres te, realizar promessas e peregrinações
casadas. Esse arquétipo constrói um
e, mais importante, fazer oferendas à
modelo de familiar nuclear muito bem
Virgem Maria com o intuito de obter
deinido onde os papéis do masculino
e do feminino são claramente posto: a graça de gerar um ilho. (Sobre o as-
ao primeiro o mundo externo, público, sunto ver Marianismo)
com todas as suas tarefas e acepções. Vale ressaltar que, dentro do
Ao segundo, o mundo interno, priva- culto cristão, Maria não é somente uma
do, com tudo o que isso abarca. igura bíblica, ente que serve de cami-
Tomás de Aquino é corrobora nho para que o Filho de Deus encarne,
claramente com essa acepção quando mas também a expressão de um arqué-
diz que” era necessário que a mulher tipo, capaz de reletir questões ineren-
entrasse na Criação, como diz a Escri- tes ao estado da alma dos crentes. Des-
tura, como ajudante do homem; e não
tarte, ela é uma imagem primordial que
como ajudante em quaisquer outras
possui um caráter universal. Assim a
obras da criação, como alguns air-
mam, pois o homem encontra para as sua representação alcança dois lados: o
restantes obras melhor ajuda noutro lado da sempre virgem, imaculada mãe
homem do que na mulher, mas sim de Cristo gloriicada em corpo e alma;
como ajudante na obra da procria- e por outro prisma o da igura a qual se
ção.” (AQUINO apud OPITZ, 1990, rende homenagem a partir da sua con-
p. 378). sagrada perfeição.

• 722 •
Segundo Pedro Iwashita o lancólico a aceitação resignada do fu-
“dogma marial, de modo especial o da turo suplício pelo qual Jesus passará. A
assunção, representa, do ponto de vis- mensagem que essa imagem transmite
ta psicológico, um acontecimento me- nega o seu conteúdo no exato momen-
tafísico conhecido pela psicologia do to em que o airma, sendo, portanto,
inconsciente como processo de Indivi- uma proposta inimitável.
duação. A Individuação é o processo
que visa a totalidade e da psique, cons- Márcia Maria de Medeiros
tituída de um lado de pelos elementos Tânia Regina Zimermann
conscientes, e de outro lado pelos ele-
Referências
mentos ou conteúdo do inconsciente.
Essa totalidade representa o Self ou ‘si BÍBLIA DE ESTUDO. Aplicação Pessoal. São Paulo:
mesmo’ [sic], do qual um dos símbolos CPAD Bíblias.

é a criança divina. A assunção de Maria DALARUN, Jacques. Olhares de Clérigo. In: DUBY,
Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres.
se reportaria, portanto, à ‘realização do Vol 2, Lisboa, Afrontamento, 1990.
hierógamos no pleroma, e este hieró-
FRUGONI, Chiara. A mulher nas imagens, a mulher
gamos, por sua vez, se refere ao futuro imaginada. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle.
nascimento do menino divino que, em História das Mulheres. Vol 2, Lisboa, Afrontamento,
1990.
virtude da tendência divina a encarnar-
-se, escolherá o homem empírico para IWASHITA. Pedro. Maria e Iemanjá: ensaio de método
para uma análise religiosa e psicológica do feminino. In:
nele se realizar.” (IWASHITA, 1989, p. Perspectiva Teológica, São Paulo, n 21, p. 317-331, 1989.
7)
LE GOFF, Jacques. Uma Longa Idade Média. Rio de Ja-
Conforme demonstrado nesses neiro: Civilização Brasileira, 2008.
apontamentos, a Virgem Maria recria
OPITZ, Claudia. As mulheres nas estratégias familiares
em sua imagem o contexto dos antigos e sociais. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. His-
cultos pagãos à Deusa Mãe e dentro tória das Mulheres. Vol 2, Lisboa, Afrontamento, 1990.

desse processo, diante de um univer- VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea. São Paulo: Cia das
so que vive de arquétipos paradoxais Letras, 2003.

como o medieval, é possível airmar Sugestões de leitura


que se Eva representa a face perigosa
da Deusa, Maria encarna um modelo ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família.
Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1981.
ideal do feminino, e, portanto, a face DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São
benéica da mesma. Maria cria no co- Paulo: Cia das Letras, 2009.

ração dos iéis, a imagem da mãe por LEAL, José Carlos. A maldição da mulher. Rio de Janei-
excelência, unida a um ilho em um bi- ro: Achiamé, 1995.

nômio inseparável, pressagiando com


seu ar resignado e de certa forma me- •

• 723 •
Viuvez, viúvas A modernidade de cunho universalista,
invisibiliza as situações de viuvez, ape-
A viuvez é concebida como o sar de convivermos nos dias de hoje,
estágio inal de uma cadeia que se inicia com as facilidades da comunicação
com o casamento/matrimônio; o viú- global. Discussões e debates políticos
vo e a viúva são pessoas que estabele- não avançam para uma maior concre-
ceram um contrato mutuo, identiican- tude da vida das mulheres e homens
do-se como casados e com a morte de em situação de viuvez; ela é sempre
um dos cônjuges, passam a assumir um vista como algo dado, residual, crista-
outro estado civil, regulamentado pelas lizado pela cultura Ocidental.
legislações nacionais. Na América Latina e no Brasil,
A “viuvez”, partindo do subs- observa-se como a ideia é carregada
tantivo traduz-se por uma identida- de muitos estigmas. Ao adentrar o sé-
de individual e das mais longevas ao culo XXI, sem a maior preocupação
pensarmos no processo civilizatório com a história de indivíduos concre-
da humanidade. Assume signiicados tos, jornalistas brasileiros renomados
e práticas distintas quanto as relações como Elio Gaspari, Jânio de Freitas e
de gênero ao diferenciar os comporta- Carlos Heitor Cony, em suas crônicas
mentos femininos e masculinos diante izeram da palavra “viúva” como me-
da morte. Trata-se de um “conceito” táforas de sentidos diversos, porém
que interiorizado nas e pelas coletivi- sem afastar-se muito do sentido es-
dades reforça determinadas atitudes e tigmatizado: Carlos CONY em maté-
comportamentos que se deinem em ria “A lata de lixo da história ( FOLHA
ritos de passagem e a convivência so- de 15/01/2001), apontou na direção
cial. Ser viúva/viúvo na longa duração de una concretude ao retomar a ideia
histórica possui variações no tempo e se posicionar emitindo seu juízo de
e espaço, porém permaneceu nas so- valor, diante de um protagonismo fe-
ciedades com regras de bem vestir, de minino desse estado civil ao dizer: ‘não
bem agir, de bem falar. De leis consue- acompanhei em detalhes o julgamento da viú-
tudinária aos discursos jurídicos com o va de Mao Tse Tung em Pequim’. ‘Não é o
advento do Estado Burguês, a viuvez meu gênero. Não curto Viúvas’; em um
manteve-se rodeada de um moralismo outro momento : “Depois, recorreu à
cultuado e com forte poder simbólico mais elementar das construções keyne-
sobre as pessoas, principalmente as sianas para evitar o desastre e foi bus-
mulheres. Como abstração nos códi- car na Bolsa da Viúva o remédio para
gos legais, a viuvez é deinida em seus a intoxicação( GASPARI, 2008)”; a
usos, porém tratando de assujeitados. “estratégia petista de investida sobre as

• 724 •
‘viúvas de Alckmin’”( FREITAS, 2008); dade Social, 94% dos beneiciados,
e na mesma direção: “Nas últimas se- sendo, portanto, detentoras de pensão,
manas, deixaram o polo oposicionista assumindo a cheia e o sustento da fa-
alguns expoentes do que se convencio- mília. Deste modo, poderíamos falar
nou chamar ‘as viúvas de FHC’, grupo em presença de formas de empodera-
que teve importância nos governos de mento feminino? Da feminização da
Fernando Henrique ( FREITAS, 2006) Viuvez? Para mulheres octogenárias
[...]”. brasileiras a resposta é airmativa.
E sendo colocada em cena pela No entanto a viuvez, as viúvas
grande imprensa Samantha Lewthwa- não se reduzem apenas à situação de
ite, britânica, mãe de três ilhos, , está convivências social e prescrições jurí-
sendo procurada pela Interpol como a dicas diante da perda do marido. É una
“viúva branca” depois da morte de seu construção histórica, inusitada pelo
marido, Germaine Lindsay, cidadão circunstancial, recebendo em várias
britânico de origem jamaicana, um dos comunidades distintas concepções,
quatro terroristas suicidas no metrô de vivencias e tratamentos. Os tempos
Londres em 2005.Convertida ao Islã, bíblicos demonstram como está as-
está envolvida no ataque ao shopping sentada em construções culturais que
Westgate, de Nairóbi. tendem a prevalecer nos dias atuais,
Em geral os “usos e abusos” da embora com alterações, principalmen-
expressão, quase sempre (des)qualii- te ao manter as distinções das relações
cam essa identidade, principalmente no de gênero. Como mulheres sós e vi-
caso feminino, com os procedimentos úvas representaram uma constante
e práticas, sem una contextualização preocupação das comunidades, quase
histórica apropriada e com una genera- sempre motivando situações de con-
lização perniciosa que acaba reforçan- lito que perturbavam a ordem patriar-
do o estereótipo, o senso comum de cal. Entre os judeus havia regras bem
pouca legitimação no espaço público. delimitadas de modo que aos homens
E mesmo com as garantias de fossem garantido manter a herança no
direitos constitucionais, observa-se que grupo familiar a que pertenciam e foi
mesmo em novas conjunturas, a “viu- essa situação que revelou-se contradi-
vez, enquanto estado civil ainda per- tória diante das muitas subversões de
manece com sentido universal, no caso comportamentos que algumas viúvas
de conceber os benefícios do marido/ praticaram para enfrentar à condição
mulher” (DEBBER, 1999) que coloca de isolamento e de privação.
una relevante questão: atualmente, no No Antigo Testamento não há
Brasil, as viúvas atingem pela Seguri- o reconhecimento de direito de he-

• 725 •
rança as viúvas. Elas estavam entre os os limites da esfera privada onde os
membros mais vulneráveis da socieda- protocolos sociais impunham códigos
de judaica. Os parentes do sexo mas- de conduta, questionavam a viúva Er-
culino herdavam todos os bens do seu nestina. A prematura morte do marido
marido falecido, cedendo apenas algu- poderia denunciar o caso de “mulheres
ma coisa do espólio que não lhe ga- tocada pela afecção nervosa”, pensava
rantiam meios suicientes de provisão, ela. Normas e diretrizes eram exigidas
dependendo da caridade alheia. Por ter na maneira de trajar fala e viver.
que viver em condições subalternas no Saber ser uma mulher educada,
antigo Israel a viuvez das mulheres era casada e enviuvada necessitava enfren-
considerada símbolo de grande degra- tar um certo código estético e de dis-
dação (Isaías, 54:4). Em Gênesis 38:11 ciplinamento inerente à sua posição
uma viúva sem ilhos deveria casar- social e às limitações que a viuvez im-
-se com o irmão de seu marido mes- punha. Uma série de comportamentos
mo que ele já fosse casado para que, de reclusão social, de interiorização
dessa maneira, o cunhado produzisse no privado (demonstrando o recato),
um descendente para seu irmão faleci- como uma etiqueta conveniente, e de-
do, assegurando, desta maneira, que o monstração de respeito à memória do
nome de seu irmão não desaparecesse. cônjuge falecido, exigia dela o cumpri-
O consentimento da viúva para este mento do luto, prática social que impu-
casamento não era requerido. Ela era nha não só trajes mais sóbrios, de pre-
considerada parte dos bens do seu ma- ferência o preto, por um ano, devendo
rido e sua principal função era garantir ser acompanhado por uma gestualida-
a posteridade dele. de contida e pouca demonstração de
A igura da viúva está na lite- alegria.
ratura no contexto das crônicas, das Os comportamentos dirigidos e
peças teatrais com características di- contidos para essas viúvas, bem como
versas, sendo possível identiicar tra- a presença de uma etiqueta social apre-
ços comuns entre elas: os contos de endida na “convivência idalga” foi reco-
Machado de Assis, e no caso exemplar mendada nos conselhos de Carmem
do romance “A Viúva Simões”, de Ju- D’ Ávila, em seu livro “Boas Maneiras”
lia Lopes de Almeida (1999). Vislum- (D’AVILA, Carmem, 1942), comparti-
bra-se a presença do peril agonizante lhado por Cesar Netto, que, ao redigir
de uma mulher entre o precisar ser, as “Palavras Preambulares” da obra,
aparentar e o ser individual encober- reforçou a necessidade de “atitudes e
to pelas regras sociais. Como ter o os ademanes de salão onde a lustrosa
atrevimento, a ousadia de ultrapassar teoria de grandes mestres da polidez se

• 726 •
alistou a autora do livro. Novos hábitos teriorizadas em práticas e signiicados
sociais teriam, portanto, que ser cons- ao longo da história, porém não como
tantemente reforçados, garantindo, se- sujeitos e sim abjetos, conforme sugere
gundo o prefaciador, “derradeiros to- Butler (1998, p. 11-92) ao interrogar e
ques à modelação de nossa consciência superar premissas fundamentalistas na
moral”. ( p. XII) questão do sujeito: ser homem e ser
Nesse sentido, a viuvez trans- mulher.
formada em um estado social, “um Com isso vejo a oportunidade
desses pequenos embaraços de nossa de observar um movimento aponta-
vida em sociedade” merecia ser apre- do por Sarlo (2007, p. 38-39) cada vez
endida com uma lição, mas desem- mais intenso de “devolução da palavra,
penhada com elegância. As mulheres de conquista da palavra e de direito à
deveriam saber conter a dor da perda palavra que se expande, reduplicado
com uma visibilidade adequada à sua por una ideologia da “cura” identitária
nova situação. por meio da memória social ou pesso-
Ao analisar as origens dessas al”.
construções, e “desnaturalizar” um es- Ao concentrar a atenção em
tado civil carregado de estigmas e que retomar a palavra, decifrá-la conjugan-
permanece no imaginário social como do o ato ler, analisar e escrever, para
arcabouço de um capital simbólico de garantir a una genuína construção
difícil superação é possível entender, buscando as raízes, libertei outras pos-
por exemplo, a sua permanência nos sibilidades de existência, resgatando
ditos populares dos cancioneiros re- outras estruturas narrativas de modo
pentistas: a viúva é barco sem leme”; que elas (as palavras) sejam tomadas a
“viúva honrada, porta fechada”; “dor partir do seu valor individual, arejando
de viúva dura pouco” e a mais comum os signiicados que lhes foram agrega-
a “viúva alegre” ( POSSAS, L.MV. dos e que sufocaram outros sentidos.
2008). Ter o contato direto com as viúvas
O sentido cristalizado da viuvez antes de serem tomadas de emprésti-
e, principalmente da viúva instituída mos” (LIVI, 1996, p. 89). Segundo a
na e pela sociedade Ocidental, com autora, “ela [a palavra] devia ser nua”,
conotações semânticas, que contem- para permitir que outros usos e senti-
plam sujeitos invisíveis, comprimidos dos pudessem ser alocados. “Olhava na
em una palavra que os institui, precisa direção da janela. Janela, pensava...” Ficava
ser rompido para revelar as multiplas à espera. A palavra não deveria dirigir-se a
existências , a polifônia e as histórias. nenhuma associação. Era possível separar a
Elas são de carne e osso, existem, ex- palavra do sentido? Era preciso retomá-la de

• 727 •
dentro e libertá-la de todas as construções” nheiro Eduardo Raul Requena, docen-
(LIVI, 1996, p. 89). te de História e Geograia e militante
Portanto, ao ser instigada a se- do Sindicato de Docentes Privados de
guir esse percurso diante das palavras Cordoba, seqüestrado em 23/07/1976
viuvez, viúva partindo da perspectiva de pelas forças repressivas do Estado Ter-
um olhar fronteiriço (POSSAS, 2012), me rorista argentino na cidade de Cordo-
possibilitou buscar os sentidos que po- ba, Soledad Eldelveis me respondeu
dem ser exalados, indagando o porquê em entrevista realizada em 2013: Que
e dos interesses e projetos em jogo. E pergunta? Eu nunca pensei se sou ou
além disso aproveitando as efervescên- não una viuda ? O que sei que sou é “
cias suscitadas pela história do tempo mujer de desaparecido” e por isso a minha
presente (HOBSBAWN, 1998 e FER- luta e a militância junto à organização
REIRA, 2000) e as novas relexões de dos Familiares de Desaparecidos”
uma historiograia contemporânea, E situando a análise sobre a “viu-
sensível em entender o papel e o local vez/viudez nas lutas e resistências às
das culturas para ressigniicar não só as ditaduras militares no Cone Sul, onde
palavras e os sentidos atribuídos, mas mulheres vivenciaram a perda dos côn-
as práticas, os comportamentos e as juges diante das atrocidades cometidas
relações sociais que produzem. pelo Estado Terrorista, observei no
Portanto a viuvez, como as vi- caso argentino que elas não são con-
úvas podem deslocar-se, construir-se templadas nas imagens simbólicas das
conforme um novo contexto, uma formas de sobrevivência, como pode-
outra situação inusitada, e não como -se observar com a presença e na ação
indivíduos agindo em função de una das mães, avós, irmãs e ilhas. O “fa-
totalidade dada, que obscurece e anu- milismo” e o “maternalismo” funda-
la as experiências e as subjetividades, mentos recorrentes de legitimidade da
impedindo que em suas distintas per- palavra pública, fortemente presente
formances e protagonismos assumam- na Argentina pós-ditatorial, conforme
-se dispares, distintas como sujeitos. É ressalta JELIN(2009) e que foram re-
preciso afastar a imobilização da pa- correntes tanto para os militares como
lavra que as instituiu e inviabilizou as o movimento de direitos humanos, o
permutações possíveis e as posições uso da matriz familiar como o lócus do
complexas que muitas vezes assumi- discursos de legitimação e de confron-
ram e viveram. tação política, priorizaram as relações
Ao ser indagada se era una das famílisticas tradicionais dominantes.
“ viudas ”, diante do desaparecimento Observo que tanto a viuvez
( presunção de morte) do seu compa- como as viúvas e nesse caso pode-se

• 728 •
incluir os viúvos não foram conside- no diante da freqüência e desdobra-
radas laços primordiais, identidades, mentos de situações de violência que
substancia comum em uma relação de se transformaram em una gama de
parentesco legítima, originadas nos la- ações e em una atuação política mobi-
ços de sangue(CATELA,2001,p. 26-27) lizando instâncias sociais, organizações
capazes simbolicamente para adensar e recursos materiais.
forças para as lutas políticas e de rea- Assim a pesquisa realizada deu
ção aos governos militares, em geral do visibilidade ao protagonismo e ques-
Cone Sul. Fundadas em relações de con- tionou o silêncio historiográico no
trato, pelo matrimonio, as viúvas tran- Brasil sobre a viuvez. E ao realizar en-
sitavam em situações de meras adições, trevistas sobre as trajetórias pessoais
complemento à família do conjugue “ das mulheres viúvas brasileiras e ar-
assassinado”, sem a devida credibilida- gentinas de grupos diversos tendo em
de familistica para fazer política, reivin- vista as individualidades suas subjetivi-
dicar o exercício da cidadania como as dades constroem, cada uma narrativas
demais. próprias e as estratégias políticas.
No entanto encontrei outros E diante da experiência viven-
sintomas em várias localidades. A ex- ciada em minha pesquisa de campo,
periência recente de uma pesquisadora com um olhar atento à todos os indí-
mexicana sobre a viuvez política cha- cios, percebo a sua existência , longe
mou minha atenção ao colocar em foco de qualquer tendência de vitimização .
as mulheres viúvas diante das lutas e Foi por não encontrarem espaço para
da violência na Colômbia. As viúvas, existir uma vez que são agentes dados de
tornaram-se mulheres guerrilheiras ao antemão (BUTLER, 1998, p.23-24), aca-
terem que (re) inventar estratégias de
baram excluídas permanecendo como
sobrevivências cotidianas diante da
sujeitos desautorizados, ou melhor de pré
morte de militantes em combate, sejam
sujeitos.
de militares, paramilitares, guerrilhei-
ros e desaparecidos pertencentes as A permanência do silenciamen-
Forças Armadas Revolucionárias Co- to e a ausência das viúvas como uma
lombianas (FARC) e do Exército de categoria participativa e familistica se
Libertação Nacional (ELN). justiica no caso argentino (JELIN,
Segundo a autora, (CRUZ 2006, 2007) devido à falta de legitimidade
p. 195-213) elas formaram uma rele- sua palavra no espaço público, mas
vante rede de sobrevivência e de soli- também como uma estratégia política
dariedade entre os diferentes grupos assumida, coletivamente em geral, na
de viúvas consolidando-se no cotidia- fase pós ditatorial, uma vez que, como

• 729 •
elas mesmas enfatizam: não há corpo, logo Referências
não há óbito. É nesses termos que elas
ALMEIDA, Julia Lopez de. A Viúva Simões. Atualiza-
(re) signiicaram a sua existência diante ção e notas de Peggy Sharpe. Florianópolis, Ed Mulheres,
da perda do cônjuge, da morte: somos 1999.

mujeres de desaparecidos e não viúvas, BUTLER, Judith. O Feminismo e a questão da pós mo-
dernidade. Cadernos Pagu( 11) 1998, p. 11-92
Na tessitura dos novos enredos
históricos criados na América Latina, CATELA,.Ludmila da Silva. Situação - Limite e Memó-
ria. A reconstrução do mundo dos familiares de desapare-
na fase pós ditatorial, a viuvez saiu do cidos da Argentina. São Paulo, Hucitec. ANPOCS, 2001.
P.26-27)
anonimato, repensada em função de
um passado recente que ceifou mui- ASSIS, Machado, Contos Fluminenses. V.1 e 2 Rio de
Janeiro/São Paulo, W.M.Jackson Inc. Editores
tas vidas e que permanecem como
CRUZ, Luz Maria Salazar, In: PRIETO, Mercedes ( org)
“desaparecidas”. Através do doloroso Mujeres y escenarios ciudadanos.Equador, FLACSO e
exercício de memória, nesse momento ministérios da Cultura, 2008, p. 195-213

de passar à limpo as versões militares D’AVILA, Carmem. Boas Maneiras. Rio de Janeiro, Edi-
tora Civilização Brasileira, 1942
oiciais, a geração de jovens rebeldes
que rompeu com os valores e compor- CRUZ, Luz Maria Salazar, In: PRIETO, Mercedes ( org)
Mujeres y escenarios ciudadanos.Equador, FLACSO e
tamentos tradicionais nos anos 60-70, ministérios da Cultura, 2008, p. 195-213

recriam as palavras para exigir a verda- DEBBER, 1999 Guita Grin. A reinvenção da velhice:
de e a justiça pelos crimes de lesa hu- socialização e processos de reprivatização do envelheci-
mento . São Paulo, Edusp. FAPESP, 1999
manidade cometidos.
No caso argentino são “mulhe- FERREIRA, Marieta de M. História do tempo presente:
desaios. Cultura Vozes, Petrópolis, 2000, v. 94, n. 3, p.
res de desaparecidos”, enquanto no 111-124,
Brasil permanecem utilizando a pala-
JELIN( 2009) JELIN, Elizabeth. Víctimas, familiares y
vra “viúvas”, porém seus relatos dão ciudadanos/as: las luchas por la legitimidad de la pala-
ênfase aos protagonismos assumidos bra. Cadernos PAGU, n.29, jul/dez/2009, Disponível:
SCIELO.
seja na militância, na maternidade clan-
destina e nas denúncias de mulheres HOBSBAWN, Eric. Sobre a História. São Paulo. Cia das
por seus direitos diante da morte do Letras, 1998

cônjuge direitos. LIVI, Grazia. As letras do meu nome. Rio de Janeiro:


Para tanto, romperam com a Rocco, 1996.

intangibilidade dos discursos que as POSSAS, L.MV. As Fronteiras: retomando a palabra e


excluíam (re) signiicando o termo, a libertando signiicados. Quem sou eu? As mulheres e as
Identidades redescobertas. IN:Revista Territórios e Fron-
viuvez, as viúvas, construindo outras his- teiras. V.4 N.1 – Jan/Jul2011,p.59-70
tórias.
______. Mulheres e Viuvez: recuperando fragmentos, re-
construido papéis. Fazendo Gênero 8, Anais Eletrônico,
Lidia Possas 2008

• 730 •
Sarlo (2007, p. 38-39 Beatriz. Tiempo pasado. Cultura ral no dia 24 de fevereiro. Essa vitória
de la memoria y giro subjetivo. Una discusión. Buenos
Aires: Siglo Veintiuno Editores Argentina, 2005. se deu através do Decreto no 21.076,
que instituiu a Justiça Eleitoral, o voto
Sugestões de leitura secreto e o voto feminino. A redação
GARAY, Lucia S., BANCHIERI, Carla M., TUMINI, do artigo 2º icou assim deinida: É elei-
Ma. Carina. Vivencias frente al limite. Los familiares tor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção
de desaparecidos de Cordoba y SUS construcciones de
identidad em torno al secuestro, la desaparición y las de sexo, alistado na forma desse código. De
exhumaciones de los restos de sus familiares. Cordoba, modo que o Brasil é um dos países pio-
Universidad Nacional de Cordoba, 2006
neiros na América Latina no que con-
GRANJA, Lucia, Novas Conissões sobre um conto Po- cerne a conquista do sufrágio para as
lêmico de Machado de Assis. “ Conissões de uma Viuva
moça( publicado em junho 1865, no Jornal da Família)
mulheres. Os principais percalços no
http://www.machadodeassis.net/download/Novas%20 caminho dessa conquista foram: o re-
Confiss%C3%B5es%20sobre%20um%20conto%20 conhecimento da constitucionalidade,
pol%C3%AAmico%20de%20Machado%20de%20As-
sis.pdf da oportunidade e da justeza do pedi-
do. Um ponto a se destacar é que o
MEIRELHES, Renata. Da memória para a história: ex-
periências e expectativas de mulheres subversivas na di- voto para as brasileiras não foi consi-
tadura militar. Prisma Jurídico, v.10, n.1, jan.jun/2011, derado obrigatório, a não ser para as
p. 111-134
funcionárias públicas, até 1945. Outras
• peculiaridades podem ser destacadas
no caso brasileiro, a primeira delas é
Voto feminino que as discussões sobre a possibilidade
de se estender o voto para as brasileiras
O primeiro país do mundo a ocorreram no inal do século XIX, du-
conceder o direito de voto para suas rante a feitura da carta constitucional
cidadãs foi a Nova Zelândia, em 1893. republicana. Esse é um ponto que nos
Contudo até o início da Primeira Guer- diferencia de outras nações, tal como
ra Mundial ele só foi havia sido conce- os EUA, por exemplo, onde o tema
dido em mais três países: a Austrália não tinha sido agendado para debate
em 1902, a Finlândia em 1907 e, em no Congresso Nacional até 1910
1913, a Noruega. O estado de Wyo- (ABREU, 2002; ROWBOTHAM,
ming, apesar de considerado como o 1997). Naquela ocasião foram apresen-
precursor na concessão do voto femi- tadas, na Constituinte, seis emendas
nino, em dezembro de 1869, os EUA em prol do voto feminino, e mesmo
só reconheceu esse direito para todas todas tendo solicitado um tipo de su-
as cidadãs em 1920. No Brasil o voto frágio limitado e exigindo, por exem-
feminino foi conquistado em 1932, plo, escolaridade ou prova de renda,
com a promulgação do Código Eleito- nenhuma foi aprovada. Também se

• 731 •
destaca que as todas as emendas foram não foi mais discutido no Parlamento
apresentadas por iniciativa dos pró- até 1917, data da tentativa do deputado
prios parlamentares, o que parece luminense Maurício de Lacerda reati-
apontar que o voto para as mulheres var a discussão no Plenário; o segundo
era um tema em evidência na socieda- foi o surgimento de um movimento
de da época, como atesta a peça teatral organizado feminino representado
intitulada o Voto Feminino de 1890 de tanto pelo Partido Republicano Feminino
autoria de Joseina Álvares de Azevedo (PRF), em 1910, liderado por Leolinda
(SOUTO-MAIOR, 2001). Outro pon- Figueiredo Daltro, quanto pela Liga
to a se destacar foi que a redação do pela Emancipação Intelectual das Mulheres
artigo 70 da nova Constituição brasilei- (LEIM) fundado em 1920 por Bertha
ra pode ser considerada ambígua, pois Lutz e da sua sucessora a Federação Bra-
deiniu: “são eleitores os cidadãos bra- sileira pelo Progresso Feminino (FBPF). As
sileiros maiores de 21 anos”. Esse arti- reivindicações pelo direito de partici-
go passou a ser contestado pelas que par da vida política e a busca da plena
almejavam participar do mundo políti- cidadania pelas mulheres só começa-
co, pois não deiniu, na letra da lei, que ram a ser levadas a sério, pelos deten-
as mulheres estavam excluídas do direi- tores do poder, quando do surgimento
to de voto. Tais ressalvas são relevantes de tais movimentos organizados femi-
na medida em que diferenciam o Brasil ninos, tanto no Brasil quanto no exte-
do que aconteceu em outros países, rior. As campanhas no exterior in-
como os EUA e a Inglaterra, por exem- luenciaram tanto o movimento de
plo, que deixaram clara a exclusão das Leolinda Daltro quanto o de Bertha
mulheres da política ao empregar o Lutz. Nesse sentido o movimento em
termo “masculino” nas suas legisla- prol do voto feminino no Brasil teve
ções. Nesses países foi a explícita ex- duas fases distintas: a primeira poden-
clusão feminina que passou a denotar do ser identiicada a partir da década
com clareza os limites naturais impostos de 1850, em matérias encontradas na
à participação das mulheres na política, imprensa feminina brasileira sobre o
não ocorrendo o mesmo no Brasil, tema do voto feminino e com os deba-
onde os constituintes do século XIX tes ocorridos durante as sessões da
abriram um precedente que, mais tar- Constituinte de 1890-1891 englobando
de, seria explorado pelos partidários o aparecimento do PRF, em 1910, até a
do voto feminino. Após a promulga- fundação da LEIM, em 1920. A repre-
ção da Constituição Republicana em sentante mais característica dessa pri-
1891 dois fatos se destacam. O primei- meira fase foi Leolinda Figueiredo
ro deles foi que o sufrágio feminino Daltro. A segunda fase teve seu início

• 732 •
no momento da transformação da tadas sofreu mais esse interdito. Desde
LEIM na FBPF, em agosto de 1922, as reuniões da Constituinte, os parla-
terminando 10 anos depois, quando da mentares que apoiavam o sufrágio fe-
conquista do sufrágio pelas brasileiras minino, quase sempre, ancoraram-se
e sua representante máxima foi Bertha em questões referentes à res publica,
Lutz. A principal argumentação em com argumentos que giravam em tor-
prol do voto para as brasileiras, a partir no de questões do direito e da demo-
da década de 1910, passou a girar em cracia. Já o grupo contrário a essa con-
torno de três eixos principais: do em- cessão baseava-se em questões de foro
prego do termo “cidadão brasileiro” privado, enaltecendo uma igura ideali-
na Constituição de 1891; da capacida- zada da mulher e da sociedade em que
de feminina – ou a falta dela – para de- o papel familiar da mulher, de mãe e de
sempenhar um papel no mundo políti- ilha não só a deiniria como auxiliar
co; e da oportunidade da medida/do do homem como também a impediria
momento para essa aprovação. A partir de exercer qualquer papel fora desse
de 1917 foram apresentadas no Parla- ambiente. A segunda proposta apre-
mento brasileiro projetos de lei e sentada em prol do alistamento femini-
emendas constitucionais com o intuito no foi do senador Justo Chermont em
de incluir as brasileiras como eleitoras 17 de dezembro de 1919. Palavras
nas mesmas condições que os homens. como injustiça contra as mulheres e regene-
As propostas e emendas em prol do ração da política serviram como forma
alistamento feminino constituem uma argumentativa para o senador Cher-
parte fundamental da luta em prol do mont e passaram a fazer parte do voca-
sufrágio feminino no Brasil, pois evi- bulário dos que eram favoráveis ao
denciam o protagonismo masculino voto feminino. Esse projeto recebeu
nessa luta e expõem os argumentos parecer favorável da Comissão de Consti-
pró e contra a inserção feminina no tuição e Diplomacia do Senado em 11 de
mundo político, bem como o processo maio de 1921. O fato de esse projeto
em torno da aprovação do voto para as ter sido considerado constitucional foi
brasileiras. A primeira proposta apre- uma das primeiras vitórias para a causa
sentada pelo deputado Maurício de La- sufragista, denotando uma quebra de
cerda, em 12 de junho de 1917, foi su- paradigmas importante para a luta em
mariamente rejeitada por ser prol do voto feminino. Também na
considerada inconstitucional. Após o sessão em que foi feita a leitura do pa-
inal da Primeira Guerra Mundial, em recer do projeto Chermont, ocorreu à
1918, nenhuma das propostas apresen- primeira participação de um grupo de

• 733 •
mulheres, lideradas por Leolinda Dal- encerrou a primeira etapa das reivindi-
tro, inaugurando uma prática de pres- cações femininas no Brasil, abrindo
são política que seria utilizada pelo mo- espaço para muitas outras.
vimento sufragista brasileiro a partir de
então e, por Bertha Lutz em particular, Mônica Karawejczyk
a partir de 1922. De 1921 a 1928 ocor-
Referências
reu uma intensa discussão em prol do
voto feminino na imprensa e no Parla- ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Luta das Mulhe-
mento, mas sem obter maiores avanços res pelo Direito de Voto. Movimentos sufragistas na
Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Arquipélago –
a nível nacional. Nesse sentido o políti- Revista da Universidade dos Açores. Ponto Delgada,
2ª série, VI, 2002. Disponível em: http://hdl.handle.
co mais conhecido pelo seu engaja- net/10400.3/380
mento na luta em prol do voto femini-
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e Feminismo. A luta
no foi Juvenal Lamartine, tanto pela da mulher pelo voto no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980.

sua colaboração com Bertha Lutz e a HAHNER, June E. Emancipação do Sexo Feminino. A
FBPF, durante a década de 1920, quan- luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850-1940. Flo-
rianópolis: Mulheres, Santa Cruz: EDUNISC, 2003.
to por ter sido o principal articulador
KARAWEJCZYK, Mônica. As ilhas de Eva querem vo-
da proposta que concedeu o voto para tar. Dos primórdios da questão à conquista do sufrágio
as mulheres no estado do Rio Grande feminino no Brasil (c.1850-1932). 398 f. Tese (Doutora-
do em História). Universidade Federal do Rio Grande do
do Norte, em 25 de outubro de 1927. Sul, Porto Alegre, 2013.

Somente em 1932, e após a mudança RODRIGUES, João Batista Cascudo. A Mulher Brasilei-
de poder ocorrida com Revolução de ra. Direitos políticos e civis. 2. ed. Rio de Janeiro: Renes,
1982.
1930 é que a questão do voto feminino
ROWBOTHAM, Sheila. A Century of Women. he
foi deinida no Brasil. Getúlio Vargas, History of Women in Britain and the United States. Lon-
ao assumir a cheia do Governo Provi- don: Viking, 1997.

sório, designou, pelo Decreto n°19.459, SANTOS, Wanderley G. dos. Votos e Partidos: Almana-
que de Dados Eleitorais. Brasil e outros países. Rio de
de 6 de dezembro de 1930, uma subco- Janeiro: FGV, 2002.
missão legislativa para estudar e propor
SOUTO-MAIOR, Valéria Andrade. O Florete e a Más-
a reforma da lei e do processo eleito- cara. Joseina Álvares de Azevedo. Dramaturga do Século
XIX. Florianópolis: Mulheres, 2001.
rais. Uma das reformas propostas era
estender o direito de voto às mulheres, Sugestões de leitura
o que se efetivou em 1932. Em 1934, ARNAUD-DUC, Nicole. As contradições do Direito.
com a promulgação de nova Constitui- In: FRAISSE, Geneviéve; PERROT, Michelle. História
das Mulheres no Ocidente. Vol. 4: O Século XIX. Porto:
ção, esse direito foi garantido, sendo Afrontamento, 1991.
que a única diferença foi a diminuição
BORELLI, Andrea. Uma cidadã relativa. As mulheres, as
da idade para o alistamento que passou questões de gênero e o direito brasileiro. 1830-1950. São
a ser de 18 anos. Com essa conquista se Paulo: DC&C Empresarial, 2010.

• 734 •
COLLING, Ana Maria. A Constituição da Cidadania da
Mulher Brasileira. Igualdade e Diferença. 1999. 382 f.
Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999.

MORAES, Maria Lygia Quartim de. Brasileiras – Cida-


dania no Feminino. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla
B. (Org.). História da Cidadania. São Paulo: Contexto,
2003.

PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo


no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.

• 735 •
Woolf, Virginia

A Virginia Woolf que, em 28 de


março de 1941, enfeitiçada pelo canto
das sereias, enche de pedras os bolsos
do pesado casaco e atende ao apelo das
águas e afoga-se no Rio Ouse, numa
atitude que pode ser vista como uma
simbologia da tentativa de voltar ao
colo da mãe, morta quando a escritora
tinha apenas 13 anos, já havia escrito
nove romances, sete volumes de en-
saios, duas biograias e vários contos.
A escritora coloca im não apenas à
própria vida, mas a um dos projetos
literários mais importantes da moder-
nidade.
Ao longo de quase toda a sua
vida, incentivada, principalmente, pelas
frequentes e profundas crises mentais
que teve de enfrentar desde a morte da
mãe, ela manteve o hábito de escrever
diários. Tais escritos, quando de sua
morte, em 1941, já somavam um total
de vinte e sete volumes e podem ser
considerados um dos grandes diários
literários que conhecemos, pois nele
lemos não apenas o registro da vida
social de Virginia Woolf, suas observa-
ções, seus sentimentos e suas leituras,
mas vemos, também, um admirável re-
gistro de sua composição literária, com
valiosas indicações sobre a elaboração
de suas obras.
Virgínia Woolf nasceu Adeli-
ne Virginia Stephen, em 25 de janeiro

• 736 •
de 1882, no número 22 de Hyde Park injusta diferença entre a educação de
Gate, ilha de Julia e Leslie Stephen. homens e mulheres. Woolf defenderá
Sua família era constituída por vários que numa sociedade que exclui as mu-
escritores e advogados, pelo lado pa- lheres de atividades intelectuais é quase
terno, e por aristocratas, sendo alguns que impossível a consolidação de uma
franceses, pelo lado materno. grande escritora. Metaforicamente
Apesar de ter tido uma infância airma que a estrutura cultural e social
e adolescência marcada por sucessi- abre espaço para muitos Shakespeare,
vos lutos (a morte da mãe, Julia Ste- mas jamais para “uma possível irmã de
phen, em 1895; da meia-irmã, Stella Shakespeare”. A síntese de seu ensaio
Duckworth, em 1897; e do pai, Leslie consiste em defender a necessidade de
Stephen, em 1904), o que acarretou recursos inanceiros e de um teto (um
inúmeras crises de depressão, pode-se espaço) para a consolidação de uma
dizer que o ambiente literário no qual a escritora.
jovem Stephen foi educada contribuiu Contudo, muito mais signiicati-
de forma decisiva em sua carreira de va do que uma educação em Cambrid-
escritora, pois seu pai - ilustre homem ge, a principal inluência na formação e
de letras e primeiro editor do The Dic- no desenvolvimento intelectual de Vir-
tionary of National Biography - além de ginia Woolf foi a educação liberal que
possuir uma ampla e importante bi- ela recebeu, já que, ao chegar à adoles-
blioteca, procurava orientar cuidadosa- cência, foi-lhe permitido o livre aces-
mente o apetite voraz de Virginia pela so à biblioteca de seu pai, algo que lhe
leitura. proporcionou, em princípio um amplo
Num mundo convencional, re- conhecimento da literatura inglesa e,
gido pelos homens, a Virginia Woolf mais tarde, com o auxílio de Janet Case
foi negado o direito de frequentar es- e Clara Pater (irmã de Walter Pater),
colas, tendo sua educação sido realiza- um aprofundamento em latim e grego.
da em casa, sob a supervisão de seus Virginia Woolf era membro do Grupo
pais. A escritora nunca se conformou de Bloomsbury, um dos grupos mais
com esse fato, uma vez que seu irmão representativos e ativos do Moder-
Thoby Stephen, pôde, simplesmen- nismo inglês, formado por escritores,
te por ser homem, gozar de todas as pintores, críticos de arte, economistas
vantagens de uma educação em Cam- e ilósofos.
bridge. No livro ensaístico Um teto todo A estreia na icção deu-se em
seu, a autora tecerá, na década de 20, 1915, com a publicação de A viagem,
do século XX, comentários sobre a livro que levou nove anos para ser es-

• 737 •
crito e narra Rachel Virance e sua via- da narrativa e instala-se na mente das
gem em um navio pela América do Sul. personagens, num movimento semo-
Esse romance, embora seja um dos vente entre consciências, reforçando
menos conhecidos de Virginia Woolf, a fragmentariedade dos sentimentos
já introduz as opiniões da autora sobre humanos de dor, amor e morte. Além
as questões de gênero, pois mostra a disso, o mundo retratado pela escritora
inabilidade da personagem principal não se assenta mais sobre crenças uni-
em adequar-se aos padrões da época versais sólidas.
destinados às mulheres e enfatiza a ne- Com a publicação de O Quarto
cessidade destas seguirem uma viagem de Jacob, em 27 de outubro de 1922,
pessoal rumo à autodescoberta. Virginia Woolf começa a abandonar os
Em 1919, Virginia Woolf publi- tradicionais modelos iccionais, centra-
ca Noite e dia, considerado por muitos dos no desenrolar de uma “história”
críticos, dentre eles, Katherine Man- ou de um “enredo” e caminha em dire-
ield e E.M. Foster, um dos mais tra- ção a uma escrita que a levaria a ocupar
dicionais e convencionais romances um lugar de destaque no panorama da
woolianos. O enredo, centrado em literatura mundial.
Katherine Hilbery, Ralph Denham e O projeto literário empreendido
Mary Datchet, muito se aproxima do por Virginia Woolf, após a publicação
teatro de Shakespeare, uma vez que há de “O Quarto de Jacob”, materializado
o desenrolar de histórias e amor e pai- em seus romances Mrs Dalloway, Passeio
xão, com momentos de solidão e rejei- ao farol, Orlando, As Ondas e Entre os atos,
ção, até seu feliz desfecho. caminha em direção a uma narrativa
Em seu dois primeiros roman- que torna conspícua a discrepância
ces, o que se observa é que Virginia entre o tempo presente e o tempo da
Woolf ainda luta com a tradição lite- consciência. A consciência liberta-se
rária do século XIX, marcadamente re- do rígido avanço do relógio. Por isso,
alista, mas já demonstra, ainda que de pode adiantar-se e retroceder, pode
forma tímida, o que se tornaria, mais misturar passado, presente e futuro,
tarde, sua marca registrada: o luxo da os processos psíquicos não obedecem
consciência. mais à linearidade cronológica, ou não
É com O quarto de Jacob que a seguem à risca os ponteiros dos reló-
escritora inglesa começa, aos quarenta gios, pois um mesmo momento na/
anos, “a dizer algo com a própria voz”. da consciência pode ser prolongado
Virginia Woolf abandona o enredo ininitamente, como pode, também, se
convencional e as técnicas tradicionais passar em um átimo de segundo. As-

• 738 •
sim, a narrativa wooliana, ao represen- ambos os autores coincidem muito, na
tar esses movimentos da consciência, medida em que apontam para a indis-
acabará colocando em questão as no- tinção entre os sexos, ou seja, a busca
ções de tempo e espaço como formas por uma harmonia interna, em que co-
relativas e subjetivas. existam em todas as pessoas elementos
Ao lado de Simone de Beauvoir, masculinos e femininos.
Virginia Woolf é considerada uma das A androginia, aspecto impor-
precursoras do feminismo moderno, tante do pensamento de Virginia Wo-
pois, tanto em sua obra de icção quan- olf, tem sido motivo das mais aca-
to em seus ensaios críticos, a escritora loradas discussões entre as críticas
inglesa busca, de um lado, desconstruir literárias feministas. Emblemática é a
valores e preconceitos estabelecidos querela entre Elaine Showalter e To-
a respeito das mulheres e tidos como ril Moi. Enquanto a primeira acredita
verdade absoluta e universal e, de ou- ser a androginia também uma forma
tro, questionar a própria distinção en- de repressão, um projeto utópico e
tre masculino e feminino. Na verdade, uma forma de se abster de confrontar
o que se observa em toda a obra de masculino versus feminino, a segunda
Virginia Woolf é uma certa tensão en- reforça o caráter positivo da obra de
tre os dois sexos e que será muita bem Virginia Woolf, pois a autora inglesa,
explorada em Orlando, livro baseado seja em seus romances seja em seu en-
em Victoria Sackville-West, cuja perso- saios críticos, rejeita o essencialismo
nagem principal, depois de atravessar metafísico subjacente à doxa masculina
todo o período elizabetano, desfrutan- e patriarcal.
do da mais absoluta liberdade sexual e Virginia Woolf antecipa, então,
de pensamento que sua condição de em sessenta anos as discussões femi-
homem lhe permitia, ao acordar, certo nistas propostas por Julia Kristeva, que
dia, percebe que havia se transforman- acredita que as mulheres devam rejeitar
do em mulher, dando início a uma série a dicotomia entre masculino e femini-
de limitações imposta ao seu sexo. Até no, posto que tal dicotomia, ao opor
mesmo as propriedades de terra são duas entidades rivais, deve ser enten-
lhe proibidas. Não se sabe ao certo se dida como pertencente a uma metafísi-
as opiniões de Virginia Woolf sobre o ca, ainal, o que podem “identidade” e
equilíbrio entre sexos, exploradas so- “identidade sexual” signiicar em um
bremaneira em Orlando e Um teto todo espaço teórico e cientiico quando o
seu, foram inluenciadas pelos estudos próprio conceito de identidade é desa-
de Sigmund Freud, mas as teses de iado?

• 739 •
Longe de fugir das discussões uma das matrizes do feminismo, es-
sobre as questões de gênero, como critora renomada e de características
quer Elaine Showalter, o que se obser- impares, suas críticas a outros colegas
va em toda a obra de Virginia Woolf é para defender seus ideais de igualdade
que a autora reconhece que o objetivo de gênero atingiram uma proporções
da luta feminista deve ser justamente notáveis e arriscadas, mas isso não a
o de desconstruir as oposições binárias impediu de ir contra padrões da épo-
de masculinidade e feminilidade. ca. O sistema social que Wollstonecraft
criticava, tratava a mulher limitada de
Alexandra Pinheiro dos Santos razão e educação. Ela defendia que a
Neurivaldo Campos Pedroso Junior mulher era mais que esposa, esta pode-
ria fazer uma relexão sobre qualquer
Referências e sugestões de leitura
assunto político, cultural, econômico
MANONNI, Maud. Elas não sabem o que dizem: Virgi- e decidir o que queria para seu futu-
nia Woolf, as mulheres e a psicanálise. Trad. Lucy Maga- ro. Na prática ela representava a má-
lhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
xima descartiana “penso logo existo”,
BELL, Quentin. Virginia Woolf – uma biograia,
1882-1941. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Quanabara
estudando e se dedicando de corpo e
S.A.,1988. (Quetin Bell é sobrinho de Virgínia Woolf ). alma aos livros, sabendo que conheci-
BLOOM, Harold. “Orlando de Virginia Woolf: fe- mento a libertaria. É uma pioneira na
minismo como amor à leitura”. In: ______. O cânone escrita feminista inglesa e considera-
ocidental. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Ob-
jetiva,1995. da a primeira ilósofa feminista e seus
HUMPHREY, Robert. O luxo da consciência: um estu-
escritos são frequentemente citados
do sobre James Joyce, Virginia Woolf e Dorothy Richard- pelas autoras dos séculos XIX e XX.
son, William Faulkner e outros. Trad. Gert Meyer. São
Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976.
No entanto, sua vida teve momentos
de grande sofrimento, pois tinha um
• pai usurário, alcoólatra e violento. Ro-
mances, tratados ilosóicos, livros de
Wollstonecraft, Mary viagem e livros infantis compõem a
obra dessa mulher, que há seu tempo
Uma das primeiras mulheres viveu além das expectativas esperadas
da Inglaterra a levantar a bandeira do para as mulheres. Sua obra mais citada
debate sobre o gênero feminino. Nas- e conhecida intitula-se A Vindication of
ceu em Londres na segunda quinzena the Rights of Woman (1792), na qual ela
de abril no dia 27 de 1759, viveu in- argumenta que a falta de educação para
tensamente lutas, amores e desilusões as mulheres que as deixam suscetíveis
nos seus 38 anos de vida. Considerada de parecerem inferiores aos homens e

• 740 •
que a natureza feminina – por deini- A crítica fazia parte para a rea-
ção racional – nada tinha de inferior a lização de seus sonhos, não aceitava a
masculina. Um verdadeiro escândalo dependência que a mulher tinha de um
para a época! “homem”. Ela foi a experiência viva de
Filha de família de camada mé- suas hipóteses: estudar livraria as mu-
dia no século XVIII, sua vida e obra lheres dos costumes repressores e faria
se mesclam na não convencionalidade. suas vidas algo signiicativo e relevan-
Wollstonecraft não se sentia e não vi- te para a sociedade. Plantava no pre-
veu inferior a nenhum homem, rebatia sente com muita luta e diiculdade as
os privilégios e a autoridade masculina. sementes dos frutos de uma sociedade
Crítica do modelo de educação dado as melhor e igualitária, melhor no senti-
mulheres, queria não só a participação do humanitário, que colheria no futu-
feminina na política, também defendia ro independente do gênero. Sua vida
como escolheriam e levariam suas vi- foi marcada por vários momentos de
das casadas ou solteiras, isso só diria sofrimento e diiculdades inanceiras,
respeito a elas. Teve vários relaciona- mas sentiu o gosto de viver e ser inde-
mentos, nada convencionais e durante pendente de um homem, isto para ela
seu romance com Gilbert Imlay teve fazia parte de um propósito de liberda-
sua primeira ilha: Fanny Imlay. Anos de, cujo caminho trilhado foi fruto da
depois casou com o William Godwin, educação.
importante escritor do movimento Ela percebeu isso com sua pró-
anarquista ambos achavam que esse pria trajetória e o pouco de educação
ritual era desnecessário, mas realiza- que recebeu, pois isso a proporcionou
ram, talvez por força das convenções ver um mundo novo e buscou mais
ou apenas para formalizar o que já estudos de maneira autodidata. Sua
existia de fato. Teve sua segunda ilha, vida compõe-se da luta contra a cul-
Mary Wollstonecraft Godwin, que por tura opressora ao gênero feminino e
sua vez foi a escritora de Frankenstein. tinha plena convicção de que a mulher
Ironicamente o destino abreviou sua ao ser educada (no sentido de estudar)
vida, foi provavelmente por complica- seria melhor mãe, ilha, esposa e para
ções no parto o ato mais feminino da a sociedade. Além da educação, a in-
natureza de uma mulher, uma vez que dependência econômica era um dos
morreu dez dias após o nascimento da seus maiores motivadores, suas expe-
segunda ilha certamente por não ter riências no social e no privado a sin-
sido retirado totalmente a placenta de tetizaram e ou ascenderam seus ideais
dentro dela. de liberdade, ajudaram a formar críti-

• 741 •
cas a um sistema patriarcal. Apesar de A Vindication of the Rights of
ser uma sonhadora romântica-racional Woman with Strictures on Moral and Poli-
iluminista era uma pensadora radical tical Subjects. London: Joseph Johnson,
e colocava isso muito bem no papel. 1792.
Mary sabia dos obstáculos que viriam
em sua vida, mas nunca recuou. Viveu Ana Carolina Coelho Soares
Juliano Benatti Machado Paz
e morreu como uma inconformista.
Em 38 anos de vida, teve casos
amorosos, retirou sua irmã de uma si-
tuação de abuso conjugal, tentou pelo
menos duas vezes se suicidar, viajou e
construiu uma rica vida social e cultu-
ral. Viveu intensamente e certamente
é uma mulher que desejava ser lem-
brada por suas palavras e não apenas
por sua vida particular. A possibilidade
do letramento da escritora foi decisiva
para que ela pudesse, por conta pró-
pria, educar-se. Dentre seus inúmeros
escritos, traduções, relatos de viagens e
livros infantis pode-se citar:
Thoughts on the Education of Dau-
ghters: With Relections on Female Conduct,
in the More Important Duties of Life. Lon-
don: Joseph Johnson, 1787;
Mary: A Fiction. London: Joseph
Johnson, 1788. .Original Stories from
Real Life: With Conversations Calcu-
lated to Regulate the Affections and
Form the Mind to Truth and Good-
ness. London: Joseph Johnson, 1788.
A Vindication of the Rights of
Men, in a Letter to the Right Hono-
rable Edmund Burke. London: Joseph
Johnson, 1790.

• 742 •
ÍNDICE DE AUTORES
(página por verbete)

Adilson Schultz (PUC/Minas), 681 Ana Maria Veiga (UFSC), 130, 330

Alceu Ravanello Ferraro (UFRGS),133, Anderson Ferrari (UFJF/MG), 388,

439 395

Alcileide Cabral de Nascimento André Luiz da Silva (IPA/Feevale), 236

(Universidade Federal Rural/ Andrea Borelli (Universidade Cruzeiro

Pernambuco), 379, 630 do Sul), 704

Alcilene Cavalcante (UFG), 333 Andressa Botton (PPG PUCRS), 666

Alexandra Pinheiro dos Santos (UFGD), 457, Anete Roese (PUC/Minas), 681

736 Antonio Dari Ramos (UFGD), 423

Aline da Silva Pinto (UERGS/ FEEVALE), Antônio Emilio Morga (UFAM), 30

571 Ariel Martinez (CONICET/

Aline Reis Calvo Hernandez (UFRGS), Argentina), 625

614 Balduino Antonio Andreolla (UFRGS),

Alzira Muñoz (Instituto S. Tomás Ed. 294

Aquino/MG), 681 Benícia Oliveira da Silva (FURG), 104, 109,

Ana Carolina Eiras Coelho Soares (UFG), 125, 554

248, 740 Bruna Krimberg Von Muhlen (UCS), 409,

Ana Maria Colling (UFGD), 62, 165, 672 540

Ana Maria Marques (UFMT), 558 Carla Rodrigues (PUC/Rio), 154

• 743 •
Carlos Norberto Berger (C. U. União Durval Muniz (UFPB), 489

Dinâmica das Cataratas), 515, 582 Edla Eggert (PUCRS), 299, 452

Catitu Tayassu (CEAF-EHESS/Paris), 213, Elaine Neuenfeldt (EST), 452

536 Eliene Dias de Oliveira (UFMS/

Christa Berger (UNISINOS), 413 Coxim), 504, 545

Cintia Lima Crescêncio (UFMS), 405 Elza Maria Falckembach (UNIJUI),

Cintia Santos Diallo (UEMS) , 208 195

Cláudia Maia (Unimontes ), 434, 476 Encarnación Medina Arjona (Universidad de

Claudia Rosa Lauro (PUC/Lima-Peru), 345, Jaén/ Espanha), 587

510 Eudes Fernando Leite (UFGD), 315,

Cleci Fávaro (UNISINOS), 231 355

Cristiani Bereta da Silva (UDESC), 203, Fabiane Ferreira da Silva (Unipampa), 104,

560, 600 109, 125, 554

Cristina Scheibe Wolf (UFSC), 647 Flávia de Mattos Motta (UDESC), 400

Dagmar Estermann Meyer (UFRGS), 192, Flávio Vilas-Bôas Trovão (UFMT/

347, 495 Rondonópolis), 34

Daniela Garcez de Oliveira (PPGH/ Gilmaro Nogueira (Grupo de Pesquisa

PUCRS), 508 Cultura e Sexualidade/BA), 390

Daniela Silva de Lourenço (UFFS/Cerro Giovana Dalmás (USP), 68

Largo), 138 Glaucia de Oliveira Assis (UDESC),

Diana Miloslavich Tupac, 276 400

Dolores Puga Alves de Sousa (UFMS/ Gregory da Silva Balthazar (UFRGS),

Coxim), 87 222

• 744 •
Guadalupe Saiz Muñoz (Universidad de Karin Grammático (UBA/UMA/

Jaen/Espanha), 527 Argentina), 565

Guillermo Alfredo Johnson (UFGD), Karina Bidaseca (UBA y UNSAM/Argenti-

485 na), 260

Gustavo Espíndola Winck (PPG/PUCRS), Katiuscia Galhera (PPG UNICAMP),

99, 444
634

Igor José Savenhago (C.U. Barão de Mauá/


Lana Lage da Gama Lima (UENF), 573,
Ribeirão Preto), 226
578
Irene Montesuma Vaquinhas (Universidade
Lara Dotson– Renta (Quinnipiac
de Coimbra/Portugal), 326, 367
University/EUA), 608
Isabel Carrilo Flores (Universidad de VIC/
Lauriene Seraguza Olegário e Souza (UEMS),
Espanha), 52
712
Ivo Canabarro (UNIJUI), 282
Leandro Baller (UFGD), 315
Ivonete Pereira (UNIOESTE), 222
Leandro Colling (UFBA) 390
Jacy Corrêa Curado (UFMS), 669
Lidia Possas (UNESP/Marilia), 724
Jaqueline Zarbatto(UFMS/
Livia Silveira Rangel (UFES), 240, 500
Campo Grande), 245
Losandro Antonio Tedeschi (UFGD), 83, 639
Joana Maria Pedro (UFSC), 130, 330
699
Joanalira Corpes Magalhães (FURG), 104,
Luciana Eleonora de Freitas Calado (UFPB),
109, 125, 554
590
Joseli Maria da Silva (UEPG), 339

Juliano Benatti Machado Paz (UFG/PPG), Magda Guadalupe dos Santos

740 (PUCMINAS), 267, 596

• 745 •
Manuel Linares Abad (Universidad de Jaén/ Maria Cecília de Oliveira Adão (Centro Uni-

Espanha), 323, 693 versitário Claretiano), 255

Márcia Angelita Tiburi (Universidade Maria Cláudia Dal’Igna (UNISINOS), 192

Presbiteriana Mackenzie), 272 Maria Cristina Caminha de Castilhos França

Márcia Maria de Medeiros (UEMS), 481, (IFRGS), 39, 343

662, 718 Maria de Lourdes Borges (UFSC), 74

Márcia Ondina Vieira Ferreira (UFPel), Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro (UFU),

181 251

Marcos Antônio da Silva (UFGD), 485 Maria Gorete Souza (Escola Nacional

Mareli Eliane Graupe (UNIPLAC), 561, 651 Florestan Fernandes), 485

Margareth Luzia Rago (UNICAMP), Maria Izilda Mattos (PUCSP), 704

290 Maria Luisa Femenias (Universidad

Maria Ángeles Bustamante Ruano (LRM/ Nacional de La Plata/Argentina), 91

CDDII-Valência/Espanha), 26 Maria Luisa Grande Gascón (Universidad de

Maria Ángelis Perez Carpio (Universidad de Jaén/Espanha), 46, 659

Jaén/Espanha), 162 Maria Luiza Heilborn (UERJ), 654

Maria Antonia Pinto Pizarro (IESA/CNEC), Maria Simone Schwengber (UNIJUI), 192,

352, 643 347, 495

Maria Beatriz Nader (UFES), 240, 500 Maria Teresa Garritano Dourado (Pesquisado-

Maria Berenice Dias (Presidenta da Comis- ra IHGMS), 532

são Especial da Diversidade Sexual e Gênero Maria Xosé Agra Romero (Universidad San-

do Conselho Federal da OAB), 383 tiago de Compostela/Espanha), 115

• 746 •
Marisa Belausteguigoitia (UNAM/ Paula Faustino Sampaio (UFMT/

México), 147, 686 Rondonópolis), 21, 173

Marisa de Fátima Lomba de Farias (UFGD), Paula Regina Costa Ribeiro (FURG), 104,

188 109, 125, 554

Marlene de Fáveri (UDESC), 30, 177 Paula Tatiane de Azevedo (PPG/

UFRGS), 112
Marlene Neves Strey (PUCRS), 308, 409,
Peterson Rosa Costa (ULBRA/IPA), 550
666
Raquel Sohiet (UFF), 617
Miguel Rodrigues de Sousa Neto (UFMS/
Rejane Barreto Jardim (UFPel), 41, 144
Aquidauana), 49
Rian Lozano (UNAM/México), 147,
Mônica Karawejczyk (PUCRS), 151, 466,
686
676, 731
Rita de Cássia Colaço Rodrigues (TJ/Rio de
Nancy Cardoso Pereira (UNISINOS),
Janeiro), 200, 448
299
Rivadávia Padilha Vieira Júnior (UFF),
Natália Pietra Méndez (UFRGS), 68, 311
120
Natividad Gutiérrez Chong (UNAM / Méxi-
Romina Lerussi (Universidad Nacional de
co), 427
Córdoba/Agentina), 604
Neurivaldo Campos Pedroso Junior
Rosemary Fritsch Brum (UFRGS), 360,
(UNIGRAN/MS), 457, 736
372
Nilton Mullet Pereira (UFRGS), 41
Sandra Vidal Nogueira (UFFS/Cerro Largo),

Nucia Alexandra Silva de Oliveira (UDESC),


80, 138

203, 600 Sayak Valencia Triana (El COLEF/México),

Patricia Fasolo Romani (PPG PUCRS), 666 96, 614

• 747 •
Silvana Aparecida da Silva Zachett (UFMS/ Yáscara Arrial Palma (PPG PUCRS),

Coxim), 504 666

Silvana Vilodre Goellner (UFRGS), 141, 218 Yonissa Marmitt Wadi (UNIOESTE),

Silvia Maria Fávero Arend (UDESC), 461

418

Simone Becker (UFGD), 712

Suellen André de Souza (UENF), 573,

578

Suely Gomes Costa (UFF), 522

Tânia Regina Zimermann (UEMS), 481,

662, 718

Tchella Fernandes Maso (UFGD), 634

Teresa Joaquim (Universidade Aberta/

Portugal), 471

Teresa Ordorika Sacristán (UNAM/

México), 461

Tiago Duque (UFMS), 518

Vanderlei Machado (CA-UFRGS), 120

Vanessa Heuser (PPG UNISINOS),

413

Vera Lúcia Puga (UFU), 708, 715

Wlaumir Doniseti de Souza (C. U. Barão

de Mauá/Ribeirão Preto), 159, 226

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Impressão:

Papel de capa: Supremo 180g


Miolo: Pólen Soft 90g
Texto corpo 11
752 páginas.

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