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Somerset, 1945
O calor fazia a latrina cheirar pior do que era habitual, por isso Rosie
baixou as cuecas no pomar antes de abrir a frágil porta. Em seguida
tapou o nariz com uma mão, segurou o vestido com a outra e entrou a
recuar, para não ver o fétido buraco sem fundo.
Uma grande aranha castanha que tecia uma teia entre uma das vigas e
uma fenda na porta balançou ao pé da sua bochecha direita. Rosie riu-se.
Considerava que todas as criaturas vivas eram suas amigas, até as menos
atraentes.
– Olá, Syd – disse em tons nasalados, com o nariz tapado. – Porque é que
ficas neste lugar malcheiroso? Se fizesses a tua teia numa das macieiras ias
apanhar tantas moscas como apanhas aqui e também tinhas uma linda vista
dos brejos!
May Cottage, a sua casa, ficava no centro dos Somerset Levels, uma zona
baixa de fértil charneca onde se cruzavam rios e canais feitos pelo homem.
Para algumas pessoas um lugar tão isolado, ainda que muito belo, seria
assustador, acima de tudo se tivessem de estar aqui completamente sozinhas
tantas vezes como ela estava. Porém, Rosie não se importava, nem mesmo
quando a noite caía. Para ela, cada fungadela, latido, guincho ou grunhido
era a voz de um amigo, quer fosse coelho, pássaro, rã-touro ou ouriço-
cacheiro. Ao contrário dos habitantes da aldeia de Catcott, a povoação mais
próxima, eles não coscuvilhavam sobre os Parker nem empinavam o nariz
ao vê-los.
Os homens da família Parker intrigavam, horrorizavam, assustavam e ao
mesmo tempo fascinavam os vizinhos. Cole Parker, o pai de Rosie,
comentava muitas vezes que se não fosse ele não haveria tema de conversa
no Crown. Também afirmava que tinham inveja dele e havia alguma
verdade nisto: Cole era um homem charmoso e tinha jeito com as mulheres.
Também tinha uma sorte dos diabos. Ninguém sabia como, mas conseguira
convencer o serviço de recrutamento de que estava inapto para o serviço
ativo e depois passara os anos da guerra a ganhar bom dinheiro às custas do
conflito. No entanto, além da inveja também havia medo; misteriosos
acidentes pareciam acontecer às pessoas que falavam sobre os Parker de
uma forma demasiado volúvel, acima de tudo as que se atreviam a dizer que
os filhos de Cole eram não apenas selvagens, como maus, e duas vezes mais
perigosos do que o pai.
Todavia, quando a guerra começou a dar sinais de que ia chegar ao fim,
até os habitantes de Catcott encontraram outros temas de conversa para
além dos Parker. Os homens iam voltar para casa e o racionamento e os
blackouts em breve seriam apenas uma memória distante. Os preparativos
para as celebrações de vitória foram agitados: era preciso engordar galinhas
e porcos, armazenar açúcar e farinha e apanhar groselhas para os bolos. As
limpezas de primavera foram feitas com um fervor redobrado e na escola da
aldeia houve uma profusão de composições baseadas nas gulosas fantasias
infantis de um mundo onde tabletes de chocolate cresciam nas árvores, nos
rios corria limonada e as ruas estavam pavimentadas com gomas de frutas.
No ébrio regabofe da Festa da Vitória da aldeia havia a convicção de que
estava a começar uma maravilhosa nova era. Mas em junho, apenas um mês
depois, aquela visão já estava manchada. Muitos militares continuavam no
estrangeiro e, dos que já tinham regressado, uma grande parte estava a
sentir dificuldades para se adaptar à vida familiar. O racionamento era pior
do que nunca e a falta de tinta, tijolos e materiais de construção impedia que
os habitantes das cidades reparassem os danos que a guerra causara nas suas
casas.
Rosie estava mais consciente da situação das famílias que viviam nas
grandes cidades do que as suas colegas de escola porque o pai ia muitas
vezes a Bristol e a Londres para fechar negócios de limpeza de locais
bombardeados. Quando se sentia um pouco sozinha, com medo ou com
fome, tentava lembrar-se das histórias que ele lhe contava sobre as pobres
crianças escanzeladas que via a procurar lenha e carvão. Nas grandes
cidades não havia um coelho ou um pato ocasional para complementar o
racionamento de comida, como acontecia aqui, e as pessoas passavam
fome.
Cole estava em Londres agora. Na melhor das hipóteses, estaria a
regressar depois de uma estadia de três dias. Deixara Rosie ao cuidado dos
irmãos, mas Seth tinha dezassete anos e Norman dezasseis, e tinham coisas
muito melhores para fazer do que tomar conta de uma miúda de oito anos
enquanto o pai estava fora. Por isso, os caracóis cor de cobre da irmã não
viam um pente há dias. Os seus pés descalços e joelhos nus estavam
impregnados de lixo e o vestido estava tão roto que só servia para o saco de
trapos. No entanto, apesar dos evidentes sinais de negligência, ela parecia
robusta e saudável, embora fosse um pouco baixa para a idade. Também
tinha um extraordinário ar de feliz autoconfiança, mesmo num lugar tão
pouco digno.
Um familiar matraquear ao longe fez Rosie esquecer a aranha e correr
para o pomar enquanto puxava as cuecas para cima. Subiu para a pilha de
lenha ao lado do galinheiro e espreitou pelo brejo na direção de Burtle. O
calor tremeluzente e as ervas altas que cresciam junto dos canais e valas não
a deixaram ver se o veículo que se aproximava era mesmo a camioneta de
caixa aberta do pai. Todavia, era improvável que fosse outra pessoa; poucas
camionetas, ou qualquer tipo de veículos motorizados, vinham para este
lado dos Somerset Levels.
Apesar da beleza das charnecas salpicadas de flores que rodeavam May
Cottage, a casa dos Parker não era a casa de campo pitoresca que o nome
sugeria. Era uma delapidada casa de caseiros construída na viragem do
século, quase escondida por montanhas de ferro-velho que se erguiam dos
dois lados. Tratores velhos, carros e motas desmanchados, cheios de
ferrugem, madeira, arquivos, armações de camas, pneus gastos e velhas
alfaias agrícolas. Cole Parker não achava incongruente empilhar aqueles
objetos num lugar onde garças-reais e guarda-rios pescavam na
tranquilidade dos canais e dos rios. Não achava a sua floresta de lixo feia ou
sombria. Era o seu meio de vida.
Quando a conhecida cabina vermelho-ferrugem da camioneta apareceu no
seu campo de visão, Rosie correu pelo pomar, espantando as galinhas, saiu
do pátio das traseiras pelo portão lateral, contornou as pilhas de ferro-velho
e chegou à parte da frente da casa no momento em que o pai parou com um
chiar de travões.
– Paizinho! – gritou, a dar-lhe as boas-vindas, enquanto acenava com as
duas mãos com grande entusiasmo. Preparava-se para saltar para o estribo
da camioneta quando percebeu que ele não estava sozinho.
Uma mulher estava sentada no banco do passageiro ao seu lado e Rosie
recuou, apavorada, para a segurança dos grandes espinheiros-brancos do
jardim.
Cole saltou da cabina, mas, em vez de a abraçar como era costume
quando estava ausente alguns dias, parou e olhou-a com a testa franzida.
– Ora, ora, Rosie. Isso não é maneira de te comportares – berrou-lhe, com
a fala habitualmente lenta acelerada pela irritação. – Vem cá e diz olá à
Heather; ela veio de Londres para ser tua mãe.
Rosie olhou para o pai, estupefacta. Ele nunca encorajara visitas em May
Cottage e ensinara-a a olhar para os desconhecidos com desconfiança.
Agora, sem aviso prévio, trouxera uma nova mãe para casa!
– Mãe, para mim? – deixou escapar.
– Isso mesmo, por isso vai cumprimentá-la.
Rosie podia estar espantada, mas sabia que não devia contrariar o pai em
público. Por isso, deu alguns passos relutantes em frente e obrigou-se a
sorrir quando a mulher desceu da cabina.
Ao vê-la mais de perto, concluiu que ela não era muito velha. Usava um
amachucado vestido às flores e as pernas nuas estavam sarapintadas, como
se tivesse passado o inverno sentada demasiado perto do lume. Não era
nada o tipo de mulher que o pai preferia. Nos últimos dois anos tinham
passado por ali diversas mulheres demasiado arranjadas e vistosas. Esta era
robusta, com ancas largas e um grande rosto sem qualquer beleza especial.
A única coisa digna de nota era o cabelo; era lindo, grosso, comprido e cor
de manteiga.
– Olá – disse ela, e o seu grande rosto abriu-se num caloroso sorriso. –
Sou a Heather Farley e o teu pai contou-me tudo sobre ti. Não tenhas medo
de mim porque daqui a nada vamos ser amigas.
Rosie ficou espantada com o peculiar sotaque da rapariga.
– Porque é que falas de uma maneira tão esquisita? – perguntou, com a
curiosidade a fazê-la esquecer a timidez.
– Porque sou do East End de Londres, ora. – A rapariga riu-se. – Nascida
na zona da Bow. Falamos todos assim. Eu também acho que tu e o teu pai
falam duma maneira estranha!
Rosie olhou para os calorosos olhos da rapariga e depois fitou o pai. Ele
também estava a sorrir, um dos seus raros sorrisos vindos do coração.
Percebeu logo que o pai gostava mesmo desta Heather e ficou contente
porque ele não se afeiçoava a muitas pessoas, embora muitas pessoas se
afeiçoassem a ele.
Mesmo aos quarenta e um anos o seu cabelo continuava tão grosso, preto
e brilhante como quando tinha dezoito anos. O corpo estava cheio de
músculos, apesar de ter uma pequena barriga devido à quantidade de sidra
que bebia todos os dias. Vestido com as suas calças de domingo e com uma
camisa branca engomada, era um homem bonito. Contava muitas vezes em
tom de brincadeira que a mãe dizia que os ciganos deviam ter levado o seu
bebé e deixado um deles, pois as suas feições fortes e o tom de pele escuro
eram mais ciganos do que ingleses.
– Vá lá, rapariga – disse ele para a filha num tom mais meigo, pegando
nela ao colo e abraçando-a. – Tu estás há muito tempo sem uma mãe e a
Heather não tem família. Vamos tentar?
Rosie olhou para Heather da segurança dos braços do pai e decidiu que a
rapariga seria uma distração das conversas com galinhas, aranhas e
pássaros. Tinha uma expressão e conversa alegres e era jovem o suficiente
para ser uma irmã mais velha. Assim, após um breve momento de
hesitação, deslizou dos braços do pai e dirigiu-se a ela.
– Olá, Heather – disse, corando um pouco. – Queres ver a casa e tomar
uma chávena de chá?
– Mal posso esperar – respondeu Heather, pegando na mão da menina e
apertando-a com verdadeiro entusiasmo. – Tenho tanta sede que parece que
a minha garganta foi cortada.
Rosie deixou que o pai fosse buscar a mala de Heather, levou a rapariga
pelo labirinto de ferro-velho até ao pátio das traseiras e entraram na
cozinha.
Heather ofegou quando atravessou a soleira da porta e ficou paralisada.
Rosie não conseguiu perceber porque é que a cozinha provocara aquela
reação, pois todos os pratos estavam lavados. Talvez não gostasse de
galinhas?
Pegou na galinha castanha que debicava um pão que tinha sido deixado
em cima da mesa, atirou-a para a rua e voltou-se para Heather.
– Elas não podem entrar em casa, mas aquela é um bocado atrevida.
Assustou-te?
Era a primeira vez que Heather Farley saía de Londres e ficara encantada
ao ver os campos, rios e flores silvestres. Não ficara nada desanimada com
o delapidado exterior de May Cottage nem com as pilhas de ferro-velho que
rodeavam a casa porque, durante a longa viagem, Cole explicara-lhe que
ganhava a vida a negociar ferro-velho. Além disso, em comparação com as
casas sujas e danificadas pelas bombas de Londres até lhe pareceu bastante
bonita.
Porém, ficou estupefacta ao entrar na cozinha. Nunca vira tanta
imundície, e tinha crescido nos bairros de lata de Poplar e visto coisas que
fariam a maioria das pessoas ficar verde. Para além da imundície, o calor do
fogão a lenha era insuportável e a cozinha cheirava pior do que um
matadouro público.
Era uma grande divisão com um teto de traves baixas e o mobiliário – um
guarda-loiça, uma grande cómoda, uma mesa e cadeiras no centro – devia
ter sido trazido para ali na altura em que a casa fora construída. Estava tudo
coberto por uma grossa camada de gordura, havia excrementos de galinhas
em todas as superfícies e viam-se gordurosas teias de aranha penduradas
nas traves. O chão de pedra não devia ser varrido há semanas, e muito
menos esfregado, e as janelas tinham tanto lixo entranhado que era difícil
ver através delas.
– Não, não tenho medo das galinhas – disse Heather devagar. Calculou
que a criança não era convidada muitas vezes para ir a casa de outras
pessoas e que não devia fazer ideia de como era uma casa limpa. – É que
está tão quente aqui que tive uma tontura. – Limpou o rosto com as costas
da mão para ser mais clara.
– Eu acendi o fogão porque o pai vinha para casa – explicou Rosie. –
Pensei que ele ia querer comer alguma coisa quente e tomar um banho,
depois de Londres.
Cole entrou na cozinha e o seu corpo alto bloqueou a luz da porta.
– Fizeste bem em acender o lume, Rosie – disse. – Esta noite vamos
precisar de muita água quente.
Dissesse Heather o que dissesse, Rosie percebeu que ela estava chocada e
desapontada. No entanto, a expressão e o comportamento do pai intrigaram-
na ainda mais. Ele parecia quase intimidado e mudava o peso do corpo de
um pé para o outro como se estivesse embaraçado. Ela nunca o vira assim.
– A Rosie faz o que pode, mas ainda é uma bebé – continuou Cole. – Os
meus rapazes são uns grandes vadios e preguiçosos e não consigo obrigá-
los a trabalhar sem um pau nas costas. Onde é que eles se meteram, Rosie?
– Foram a Bridgwater na mota – respondeu Rosie, e esperou que o pai
não a interrogasse sobre o que tinham feito desde o dia em que ele se tinha
ido embora. Se descobrisse a verdade daria uma tareia de cinto aos rapazes
no instante em que eles entrassem em casa. E mais tarde Seth ia virar-se
contra ela em retaliação. – Vou encher a chaleira – acrescentou. Pegou nela
e passou pelo pai, saindo para o pátio para enchê-la na bomba.
O barulho da água a sair da bomba impediu-a de ouvir a conversa dos
dois adultos, mas teve a opressiva sensação de que não seria agradável. Por
isso, ficou surpreendida quando voltou para a cozinha com a chaleira e viu
Heather inclinada sobre o fogão, a rodar a torneira de um lado para perceber
como funcionava. Além disso, tinha amarrado o cabelo com uma fita e
posto um avental.
– Pelo menos há água quente, o que é alguma coisa. – Endireitou-se e
pousou as mãos nas ancas. – Esta casa precisa de uma limpeza a fundo e há
alguma coisa que cheira mal, por isso é melhor saírem daqui e irem buscar
comida e material de limpeza enquanto eu começo. Esqueçam o chá. Passo
bem com água.
Rosie olhou para o pai, à espera de ouvir uma resposta brusca. Ele não
gostava de mulheres mandonas. No entanto, para sua surpresa, o pai tirou-
lhe a chaleira das mãos e pousou-a no disco do fogão.
– Não queria que começasses a trabalhar hoje, Heather.
– Bem, não posso sentar-me no meio desta esterqueira. – Heather riu-se e
o som da sua gargalhada ecoou na cozinha sombria. – E daqui a pouco
também vão querer uma refeição, por isso vou atirar-me ao trabalho.
Rosie não sabia o que era uma «esterqueira», mas pensou que era melhor
não perguntar, por isso seguiu o pai para a camioneta sem dizer mais nada.
Heather Farley tinha apenas dois anos e o seu irmão Thomas sete quando
o pai morreu de tuberculose, em 1929. Viviam em duas divisões de um
prédio degradado em Poplar, partilhando uma torneira e uma retrete com
quatro outras famílias. Ratazanas e ratos brincavam nas escadas e deixar
comida destapada durante um ou dois segundos era suficiente para ficarem
sem ela. Mas Maud Farley, a mãe, era uma mulher orgulhosa. Não se sentou
a lamentar o seu infortúnio e arranjou trabalhos de limpeza para evitar que a
família passasse fome. Heather supunha que fora uma infância dura, mas só
tinha recordações felizes, com Thomas no centro de todas. Ele cuidava dela
quando a mãe estava a trabalhar, levava-a à escola, brincava com ela e
protegia-a. Por vezes outras crianças troçavam dela por ser burra, mas
Thomas nunca se ria. Só se lembrava dele a elogiá-la pelos seus dotes de
costura, culinária e limpezas.
Em 1939, quando a guerra começou, Thomas trabalhava no mercado de
Smithfield há três anos e era o homem da casa. Heather lembrava-se de
chorar porque ele dizia que se alistaria quando fizesse dezoito anos e
achava que não conseguiria viver sem ele.
No entanto, aprendeu a viver sem ele, e sem a mãe também. Thomas
alistou-se em 1940 e foi mandado para o estrangeiro quase imediatamente.
Em outubro desse ano, antes de Heather fazer treze anos, a mãe morreu
num ataque aéreo quando voltava do trabalho, enquanto Heather esperava
por ela no abrigo.
Os vizinhos diziam muitas vezes que ela tinha a mesma índole da mãe.
Embora tivesse ficado devastada continuou a viver naquela casa, assumiu
os dois trabalhos de limpeza da mãe e continuou a sua vida, ignorando as
bombas, rejeitando a ideia de que também ela poderia morrer, à espera do
dia em que o irmão voltaria para casa e lhe diria o que fazer a seguir.
Todavia Thomas nunca voltou para casa e estava algures no Extremo
Oriente. Heather pedia a uma vizinha para ler as suas cartas pouco regulares
e ditava-lhe respostas alegres. Depois, quando pensou que nada pior poderia
acontecer, em janeiro de 1942 o prédio onde vivia foi atingido por uma
bomba e ficou reduzido a um monte de escombros.
Nessa altura, tinha catorze anos. Arranjou um emprego como ajudante de
lavandaria no Hospital de Whitechapel e arrendou um quarto minúsculo em
Bethnal Green. Em fevereiro desse ano ouviu a notícia de que Singapura
caíra, mas não tinha a certeza se era onde Thomas estava e de qualquer
maneira a correspondência do Extremo Oriente demorava muito tempo a
chegar.
O ano chegou ao fim e Heather estava cada vez mais preocupada, pois
continuava sem notícias do irmão. A última carta dele chegara dois dias
antes de os apartamentos serem bombardeados. Foi à estação de correios
para saber o que faziam com as cartas que chegavam para um endereço que
já não existia e garantiram-lhe que toda a correspondência era guardada até
ser reclamada. Outras pessoas incentivaram-na a continuar a escrever para o
irmão; disseram-lhe que o exército e a Cruz Vermelha trabalhavam em
conjunto para garantir que os soldados recebiam o correio, onde quer que
estivessem, mas continuou sem notícias. Nem sequer um daqueles bilhetes
curtos a informá-la que ele tinha sido feito prisioneiro. No fundo, pensava
que Thomas devia estar morto; ele fora sempre tão consciencioso e expedito
que tinha a certeza de que teria encontrado uma forma de lhe dizer que
estava em segurança.
Por fim, um padre bondoso investigou por ela. A informação que acabou
por receber em 1944, mais de dois anos depois da última carta do irmão, foi
o golpe pior e mais amargo que já recebera. Thomas Farley tinha
desaparecido durante a queda de Singapura e, como não havia registos seus
em qualquer campo de prisioneiros de guerra, fora dado como morto.
Heather fora sempre uma rapariga alegre e otimista, mas esta notícia
arrasou-a. Naquele momento nada parecia valer a pena; não tinha
expectativas, ninguém para cuidar e ninguém que cuidasse dela. Só em
janeiro de 1945 é que conseguiu ter forças suficientes para sair da
lavandaria e arranjar um novo emprego num restaurante de self-service em
Piccadilly. E fora ali que conhecera Cole Parker.
Fora no fim de abril, duas semanas depois de fazer dezoito anos. Toda a
gente em Londres vivia um estado de grande entusiasmo, a antecipar a
declaração de vitória iminente. Os pubs e clubes estavam a abastecer-se de
cerveja e bebidas espirituosas para as celebrações, por fim as estações do
metropolitano tinham deixado de ser abrigos antiaéreos e os homens
enchiam camiões com montanhas de sacos de areia obsoletos. Heather
sentiu que o entusiasmo era contagioso. Cortou o cabelo, pôs um pouco de
bâton e até começou a sentir um pouco do seu velho otimismo.
O restaurante esteve muito movimentado naquele dia, não apenas à hora
do almoço, mas durante o dia inteiro. Mal levantava as mesas, mais pessoas
entravam e enchiam-nas de novo.
Cerca das quatro da tarde viu um homem alto de cabelo escuro de pé com
um tabuleiro de comida na mão, sem conseguir encontrar uma mesa.
Aproximou-se dele e indicou-lhe uma mesa de canto que acabara de limpar.
Ele parecia querer conversar e pediu-lhe indicações para chegar a
Victoria, onde disse que tinha de ir buscar algumas mercadorias. Heather
falava de boa vontade com toda a gente, mas o forte sotaque rural do
homem espantou-a mais do que a conversa. Nunca ouvira nada assim antes.
Ele disse-lhe que era do Somerset e também brincou com a sua pronúncia
do East End.
O homem ainda estava no restaurante quando Heather interrompeu o
trabalho para descansar e, num impulso, sentou-se à sua mesa. Ele contou-
lhe que a mulher tinha sido morta dois anos antes quando viera fazer uma
visita a Londres. Disse-lhe que os dois filhos, Seth e Norman, tinham idade
suficiente para se safar, mas que Rosie, a sua pequenina, tinha apenas oito
anos e preocupava-o o facto de ela crescer sem a influência de uma mulher.
Contou-lhe que tentara contratar uma governanta, mas comentou em tom
de brincadeira que nenhuma ficava quando via o estado da sua casa.
Heather sentira pena dele e da sua filhinha.
As eufóricas celebrações do Dia da Vitória e o turbilhão dos dias que se
seguiram fizeram-na esquecer o homem e nunca esperou voltar a vê-lo.
Porém, uma tarde, quase três semanas depois de se conhecerem, ele voltou
ao restaurante e desta vez foi evidente que viera especificamente para falar
com ela. Perguntou-lhe se poderiam encontrar-se quando ela terminasse o
trabalho e, embora todas as outras colegas dissessem que ele parecia
perigoso, aceitou.
Ele levou-a ao White Bear em Piccadilly, que estava cheio de militares, e
contou-lhe muitas outras coisas sobre a sua casa e a sua família.
– O Seth é uma peste – disse com um sorriso. – Exatamente como eu
quando tinha a idade dele. Vai fazer-lhe bem quando for chamado para o
serviço militar no fim deste ano, para ter alguma disciplina. O Norman não
é muito melhor, mas é burro que nem uma porta. Mas a Rosie é muito
inteligente. Está sempre a ler e a fazer perguntas. Ela merece mais.
Heather não conseguiu deixar de imaginar a família inteira sob uma
perspetiva romântica. Dois rapazes tão morenos e lindos como o pai, uma
menina pequena a crescer como uma selvagem porque não tinha uma mãe
que a orientasse. Nem sequer lhe passou pela cabeça perguntar a Cole
porque é que não fora recrutado durante a guerra, pois tinha a certeza de
que haveria um bom motivo. Quando ele lhe perguntou se consideraria a
possibilidade de vir tomar conta deles, Heather respondeu que ia pensar no
assunto e que lhe daria a resposta dali a duas semanas, quando ele voltasse a
Londres.
As duas semanas pareceram intermináveis. Todos os dias se tornava mais
evidente que não havia nada para si em Londres. O quarto onde vivia era
minúsculo e escuro, não tinha verdadeiros amigos, família ou namorado, e
sentia que era demasiado desengraçada para arranjar um. Londres também
estava cheia de recordações tristes e dolorosas. Talvez com o tempo
conseguisse esquecer o terror dos ataques aéreos, o som de uma bomba
voadora ou aquele pungente cheiro a gás e estuque que pairava no ar depois
de um bombardeamento, mas sabia que, embora tudo isso pudesse atenuar-
se com o passar do tempo, o rosto do irmão perdido seria tão nítido na sua
mente dali a vinte anos como era agora.
Dois dias antes de Cole vir saber a resposta já tinha feito a mala com os
seus poucos pertences.
Heather estava sentada ao sol a beber uma chávena de chá quando Cole e
Rosie voltaram. Trabalhara como uma escrava durante duas horas e estava a
descansar enquanto o chão secava. Ainda não tinha passado da cozinha. Um
desagradável cheiro atrás do galinheiro, no pomar, indicou-lhe a localização
da retrete. Era a pior que já vira, uma latrina fedorenta, escura e cheia de
aranhas, mas não tinha força para limpar aquilo hoje.
Rosie atravessou o portão a correr, com um brilho de entusiasmo nos
olhos azul-arroxeados.
– O meu pai comprou um monte de coisas especiais porque tu vieste –
disse, sem fôlego, sentando-se ao lado de Heather e enfiando a mão na da
rapariga mais velha. – Demorámos muito tempo porque ele teve de ir
buscar algumas coisas a pessoas que conhece.
– No mercado negro? – perguntou Heather, levantando a cabeça. Cole
levantou um volumoso saco de lona e uma saca cheia de alguma coisa.
– Mais ou menos – respondeu, sorridente. – O racionamento não nos afeta
muito por estas bandas, temos os nossos expedientes.
Rosie desapareceu na cozinha, mas saiu quase logo, com os olhos muito
abertos.
– Pai! Pai! Venha ver o que a Heather fez. Está mesmo fabuloso.
Cole pousou os sacos ao lado de Heather e entrou para inspecionar. Como
a filha, saiu com um sorriso de orelha a orelha.
– Parece que acertei contigo – disse, batendo-lhe no ombro. – Não a via
assim há muitos anos.
Heather iluminou-se. Tinha a certeza de que Cole estava tão pouco
acostumado a fazer elogios como ela a recebê-los.
– Pus as cortinas de molho e aquelas poltronas precisam de capas novas –
disse, mas as perguntas que pretendia fazer-lhe foram esquecidas no
instante em que abriu a saca que estava ao seu lado e viu dois coelhos
mortos a olhá-la.
É evidente que já vira coelhos pendurados em talhos, mas nunca se
imaginara a comprar o animal inteiro e a ter de o esfolar.
Cole riu-se ao ver a sua expressão horrorizada e pegou neles pelas patas
traseiras, abanando-os diante dela num gesto brincalhão.
– Vão ter de ficar pendurados durante dois dias, mas não te preocupes que
eu vou esfolá-los. Espreita para o outro saco.
Heather nunca tinha visto tanta comida fora de uma loja em toda a sua
vida. Farinha, açúcar, fruta seca, compota, margarina e pão, um embrulho
com carne fresca, manteiga em papel parafinado, queijo e toucinho fumado,
e uma pilha de legumes. Ele também trouxera materiais de limpeza: mais
sabão, soda cáustica, esfregão de arame, desinfetante e uma lata de cera de
abelha. Quase não conseguia acreditar no que estava a ver – a escassez de
produtos em Londres era tão crónica que teria de passar duas semanas a
andar de fila em fila para conseguir comprar metade daquelas coisas. Olhou
para Rosie com uma expressão desamparada e a criança sorriu.
E aquele sorriso disse a Heather que iria amar aquela criança.
– Temos os ovos das galinhas – disse Rosie. – Eu é que os recolho.
Conheço todos os esconderijos delas e vou mostrar-te todos.
Três meses mais tarde, num quente fim de tarde de setembro, Rosie
estava na parte de cima do celeiro da quinta dos Shank em Burtle com todas
as crianças pequenas das aldeias das redondezas. Sentia-se uma princesa
com o novo vestido verde-maçã com mangas de balão e franzidos no
corpete que Heather lhe tinha feito. Não pretendia envolver-se em
brincadeiras brutas que pudessem estragá-lo.
Era o Festival das Colheitas de Burtle, uma noite anual para celebrar as
colheitas arrecadadas. Todas as pessoas estavam presentes, até as muito
idosas. Era um momento para conversar e rir com velhos amigos, para
comer, beber e ser feliz, e os mais jovens e solteiros tinham uma
oportunidade para procurar romance. Porém, este ano a comemoração era
dupla, porque a guerra terminara por fim, a maioria dos homens estava de
regresso a casa e todos ansiavam por uma paz duradoura.
Este ano as decorações eram as melhores de que havia memória: ramos
de folhagem, grinaldas de margaridas-do-outono, vergas-de-ouro e
crisântemos pregados nas paredes de madeira, serpentinas de papel e
bandeirolas penduradas nas vigas. As mesas compridas, cheias de comida
que desaparecia a grande velocidade, estavam engalanadas na frente com
arranjos de mais folhagem e fitas cor de laranja.
A maior parte dos homens já bebera muita sidra dos barris que tinham
sido colocados no exterior e agora todos estavam prontos para se juntar às
mulheres no baile. A música era tocada pela banda filarmónica de Burtle e
Jack Dunkie tocava o seu acordeão sempre que os músicos faziam uma
pausa. A luz de dúzias de velas em lanternas à prova de vento, que tinham
sido colocadas a grande altura para não causarem acidentes, banhava o
espaço com uma quente luz dourada e Rosie estava tão feliz que pensou que
podia rebentar.
Desde que Heather chegara em junho, a sua vida mudara drasticamente
para melhor. Começou com o prazer de voltar para casa depois da escola e
encontrá-la na cozinha com tudo muito limpo e arrumado e cheiros bons a
sair do forno. Quando se levantava de manhã tinha um pequeno-almoço
cozinhado e não apenas uma fatia de pão com margarina, o vestido da
escola tinha os botões cosidos e havia meias brancas cerzidas e limpas para
calçar. No entanto, a pouco e pouco tornou-se muito mais do que apenas
uma sensação de conforto e de poder ser dispensada das tarefas mais
pesadas. Heather tornara-se mãe, irmã mais velha e amiga, tudo ao mesmo
tempo.
Heather mudara tudo. A cozinha tinha sido caiada e havia cortinados
novos nas janelas. Agora o pátio das traseiras estava bonito porque ela
recusava-se a deixar os homens trazerem ferro-velho para ali. Varria-o todos
os dias e encorajou Rosie a plantar algumas flores num velho lava-loiça
junto da porta das traseiras. Norman juntara-se para ajudar e pintara o velho
banco de madeira. Já nem sequer se sentia o cheiro da retrete porque
Heather descobrira uma coisa especial para deitar lá dentro. Os espinheiros-
brancos na frente da casa foram aparados para deixar entrar mais luz na sala
de visitas e havia sempre uma jarra com flores silvestres sobre a mesa da
cozinha. Rosie costumava dormir nos mesmos lençóis durante meses antes
de serem lavados; agora, eram mudados todos os sábados, sem falta.
Cole não ia tantas vezes ao Crown e nas noites quentes sentava-se no
alpendre a fumar cachimbo e a beber uma caneca de sidra enquanto Heather
cosia ou tricotava. Quando a escola chegou ao fim e começaram as férias de
verão, ele não trabalhava nos dias de calor e iam todos passar o dia a
Weston-super-Mare ou a Brean na camioneta. Heather preparava um
piquenique e até Seth e Norman deixavam de troçar e de se pavonear para
irem remar, nadar ou jogar futebol na praia.
Porém, era dos longos dias passados com Heather, quando Cole e os
rapazes estavam fora a negociar ferro-velho, de que Rosie mais gostava.
Heather tornava todas as tarefas divertidas. Adorava lavar a roupa,
acendendo o lume sob a caldeira no barracão de manhã bem cedo, muito
antes de Rosie se levantar, para pôr de molho lençóis e fronhas, camisas e
roupa interior com grande deleite. Os seus braços eram tão fortes que
conseguia retirar a roupa ainda fumegante como se não pesasse nada e
depois passá-la pela calandra, a cantar enquanto trabalhava. Quando a
enxaguava na banheira metálica por baixo da bomba, salpicava Rosie com
água com uma alegria infantil.
Faziam pastéis e bolos juntas, ouviam a «Hora das Crianças» no rádio,
jogavam à cama do gato ou jogos de cartas, e Heather fez uma boneca de
trapos para Rosie enrolando lã amarela grossa para o cabelo e pintando
olhos em grandes botões forrados com algodão branco.
Rosie não conseguia compreender que Heather não conseguisse ler ou
escrever bem quando tinha tantas outras capacidades. Tentara ensinar-lhe
um pouco, mas Heather desenhava as letras ao contrário e ainda não
conseguia reconhecer palavras com mais de três letras. No entanto, isso não
parecia ser muito importante. Rosie lia receitas de revistas, era capaz de
somar uma série de números para Heather e a sua aprendizagem progrediu
muito graças ao encorajamento de um público elogioso.
Por vezes Cole trazia para casa sacos de roupas velhas recolhidas em
Bristol na sua qualidade de trapeiro. Antes da chegada de Heather, os sacos
ficavam empilhados na rua até ele ter uma quantidade suficiente para
vender a um negociante de trapos, mas Heather verificava-os
meticulosamente e escolhia as peças que podiam ser usadas. Os botões
eram retirados e guardados em frascos de compota e as fivelas noutro. Saias
de bons vestidos de algodão eram descosidas, lavadas e engomadas para
serem usadas em qualquer coisa nova para Rosie. Virava os colarinhos das
camisas de homem, que passavam a ser camisas de trabalho para Cole e
para os rapazes.
Faziam compota de framboesas e groselhas negras juntas e guardavam
groselhas verdes em frascos. Heather pediu a Cole que a ensinasse a
esfregar salitre nas peles dos coelhos para poderem vendê-las e até venceu o
medo de enguias e ajudou os homens a esfolá-las uma noite em que
apanharam uma grande quantidade.
Todavia, a melhor de todas as coisas que aconteceram foi Seth ser
chamado para cumprir o serviço militar e ir-se embora em agosto para
servir no regimento de Artilharia Real em Larkhill. Pouco depois de ele
partir, uma nova leveza e alegria pareceu invadir a casa. Heather foi
libertada do fardo do taciturno antagonismo de Seth e dos seus
intermináveis lençóis molhados. Rosie já não tinha de esconder os poucos
brinquedos e livros que possuía para garantir que ele não os destruía por
pura maldade como fizera tantas vezes no passado, ou estremecer sempre
que o irmão entrava na divisão onde ela estava.
Norman tinha sido sempre ofuscado pelo irmão mais velho, a tal ponto
que até agora não tinha uma identidade própria. Depois da partida de Seth
começou a falar e a rir mais e gostava de ajudar em tarefas que em tempos
teria desprezado.
Mas Rosie notou mudanças ainda mais assinaláveis no pai. Nos últimos
tempos, ele raramente ficava de mau humor. Parecia gostar de estar com a
família e estava muito mais interessado em Norman e nela. Rosie concluiu
que ele estava feliz e achava que Heather era inteiramente responsável por
isso.
*
A espreitar para o celeiro do alto do depósito de feno, Rosie viu que Cole
estava a dançar de novo com Heather. Ele era sempre um par muito
requisitado nestas festas porque gostava de dançar e era bom dançarino,
mas era a primeira vez que Rosie se recordava de o ver escolher sempre o
mesmo par. O rosto de Heather estava ruborizado e ela parecia quase bonita
com o cabelo louro a ondular solto sobre os ombros. Fizera um vestido
novo para esta noite – xadrez azul e branco com um decote grande – e
parecia uma empregada de uma vacaria.
– O teu pai vai-se casar com a Heather?
Rosie virou-se, surpreendida, e viu que a inesperada pergunta tinha sido
feita por Florrie Langford, uma rapariga dois anos mais velha do que ela
que se achava superior às outras crianças que viviam nos brejos. Florrie
vivia na aldeia de Catcott e o pai era o chefe da estação de correios. Com os
seus caracóis e grandes fitas de cetim no cabelo, parecia sempre uma
verdadeira madame. Esta noite usava um vestido de festa de veludo azul,
não um vestido de algodão feito em casa como o de Rosie.
– Não sei. – Rosie nunca pensara nessa possibilidade. O casamento não
era um assunto falado em May Cottage.
– Bem, ele não se pode casar com ela, pois não? – Florrie olhou para Cole
a rodopiar com Heather e os seus lábios apertaram-se numa expressão de
desprezo. – Ele ainda é casado. A mulher dele fugiu com outro homem, não
fugiu?
– Que é que estás a dizer? – Rosie sentiu um desagradável formigueiro na
espinha. – A minha mãe morreu em Londres há dois anos.
Florrie olhou-a com uma expressão contundente.
– A tua mãe pode ter morrido. Mas ela não era Mrs. Parker, pois não? Era
só uma das mulheres dele. O Seth e o Norman só são teus meios-irmãos.
Isto era uma novidade para Rosie. Não compreendeu onde é que Florrie
estava a querer chegar, mas pressentiu que pretendia abalá-la.
– E se forem? – perguntou, desafiadora. – E se já sabes tantas coisas, para
que é que te dás ao trabalho de me perguntar se o meu pai se vai casar com
a Heather?
– Porque a minha mãe diz que a forma como ele se comporta com as
mulheres é uma desgraça.
Dizia-se muitas vezes que Rosie tinha um temperamento tão exaltado
como os irmãos e o pai. Naquele momento, não parou para pensar no
vestido novo, nem que Heather dissera que esta noite tinha de tentar
comportar-se como uma senhora. Deu um salto e lançou-se a Florrie,
atirando-a para o chão do depósito de feno, e depois pôs-se em cima dela e
esmurrou-a.
A rapariga gritou como se estivesse a ser assassinada e todas as outras
crianças se reuniram à volta delas.
– A tua mãe é uma vaca velha, gorda e preguiçosa – disse Rosie,
prendendo-a por baixo de si, de repente consciente de que só tinha alguns
segundos para dizer o que queria antes que um adulto viesse separá-las. – E
o teu pai tem tanto medo do meu que se borra todo sempre que tem de ir
entregar cartas à nossa casa. Se voltares a dizer alguma coisa sobre mim ou
sobre a minha família vais arrepender-te.
Felizmente para Rosie, foi Norman que subiu as escadas a correr para ver
o que se passava.
– Deixa-a em paz, Rosie – disse ele, quase incapaz de esconder a
diversão. Voltou-se para Florrie, que estava a tentar levantar-se. – E no
futuro, para teu bem, é melhor manteres a boca fechada, finória.
O comentário de Norman sugeriu que ele calculava o que tinha provocado
a luta. Pegou na mão de Rosie e sacudiu-lhe a palha do vestido e cabelo.
– É melhor desceres para eu poder vigiar-te – disse. Havia um brilho de
aprovação nos seus olhos escuros.
No celeiro, com um copo de limonada numa mão e uma tarte de compota
na outra, Rosie contou ao irmão o que a rapariga tinha dito.
– É verdade? – perguntou.
– Sim – balbuciou Norman. – É verdade, eu e o Seth não somos filhos da
tua mãe. Pensei que sabias!
– A vossa mãe fugiu mesmo com outro homem? – Rosie não conseguia
acreditar naquilo. Todas as mulheres gostavam de Cole, mesmo que
tivessem um pouco de medo dele.
– É o que dizem. – Agora Norman parecia embaraçado. – Mas o pai não
se importou nada de a ver pelas costas e não fales sobre isto com mais
ninguém, senão dou-te uma tareia de cinto.
Ao longo da noite Rosie observou Cole e Heather com novos olhos.
Agora eles dançavam lentamente, a olhar-se nos olhos e a sorrir. Esperou
que estivessem a apaixonar-se. Se isso acontecesse, Heather ficaria para
sempre.
Quando chegou o momento de voltarem para casa, Norman estava tão
embriagado que Cole o atirou para a caixa da camioneta e lhe disse que
podia dormir lá. Os copos de sidra que Rosie bebera à socapa, quando
ninguém estava a ver, também deviam tê-la afetado porque não se
recordava de chegar a casa e tinha uma vaga lembrança de o pai a ter levado
ao colo para o primeiro andar.
Despertada pelo cantar do galo, levantou-se, ensonada, para fazer xixi no
bacio, e só nessa altura se apercebeu de que tinha dormido sozinha na cama.
Deitou-se de novo, a perguntar a si mesma onde estaria Heather, e estava
quase a dormir quando ouviu o som de alguma coisa a abanar.
Era um som suave e ritmado, como se alguém estivesse a embalar um
berço. Parecia vir do outro lado do corredor, do quarto do pai. Esforçou-se
para escutar e identificou o barulho como a cabeceira da cama a bater na
parede.
Acima deste som havia mais alguma coisa, uma respiração pesada que a
fez sentir-se muito desconfortável, e soube instintivamente o que estava a
acontecer. Heather estava na cama com o seu pai e estavam a fazer aquela
coisa que fazia bebés.
No entanto, o que sentiu foi perplexidade e não horror. Heather falava
tantas vezes em tons chocados sobre raparigas que tinham bebés antes de
serem casadas que não percebeu porque é que estava a fazer aquilo agora.
Ainda por cima, ela dissera mais do que uma vez que o seu homem ideal
seria como Thomas, o irmão que perdera. Dizia que ele era gentil, sensível
com as mulheres e as crianças e que gostava de pintar e desenhar. Cole
Parker não era nem remotamente assim!
Porém, enquanto voltava a adormecer, imaginou um bebé em casa.
Decidiu que seria encantador e que se isso acontecesse Heather nunca mais
voltaria para Londres.
CAPÍTULO 2
Thomas Farley tinha apenas trinta anos, mas três anos num campo de
prisioneiros de guerra japonês tinham-no envelhecido precocemente e
perdera alguns centímetros da sua altura original de um metro e oitenta e
três. Desde o fim da guerra o seu corpo descarnado engordara um pouco,
mas o rosto continuava macilento. Agora, quando se olhava ao espelho não
via nenhuma semelhança com o rapaz de dezoito anos entroncado que mal
podia esperar pelo fim da recruta para ir combater. Tornara-se um homem
completamente diferente.
Depois de o campo de prisioneiros de guerra ser libertado, mais do que
uma enfermeira do exército comentara a sua semelhança com o ator Leslie
Howard e por vezes ele próprio a via. O seu rosto tornara-se comprido e
fino, anos passados ao sol tinham gravado rugas profundas que tendiam a
conferir-lhe uma expressão triste, e em raras ocasiões, quando o cabelo
louro estava mais comprido do que era costume na nuca e dos lados, caía
como o do ator.
No entanto, Thomas não passava muito tempo diante de espelhos. Já era
suficientemente mau quando se despia e via as cicatrizes de espancamentos
e úlceras tropicais, quando era obrigado a prender a perna artificial e tinha
consciência de que seria improvável conseguir arranjar uma rapariga que
fosse tonta ao ponto de se casar consigo – um aleijado –, ainda que as
mulheres lhe dissessem que tinha alguma coisa misteriosamente atraente.
Em vez disso, tentava não esquecer as poucas vantagens que a guerra e a
prisão lhe tinham dado: engenho, paciência, uma compreensão profunda
dos outros homens e a perda do em tempos intenso sotaque do East End
londrino. Só reparou que o sotaque desaparecera depois de regressar a
Inglaterra e atribuiu esse facto a uma relação próxima com um oficial que
troçava muitas vezes dele por não pronunciar algumas consoantes e o
pusera a ler-lhe poesia e literatura porque os seus óculos estavam partidos e
não conseguia ver para ler. Thomas dizia a si mesmo quase todos os dias
que perder a perna e a juventude pelo seu país não era nada. Podia ter
perdido a vida naquele lugar, como o pobre Sam e tantos outros amigos.
Dizia isto a si mesmo com tanta frequência que por vezes quase acreditava.
Thomas não estava acostumado a caminhar tanto e soube que tinha o coto
em carne viva antes mesmo de, por fim, avistar as pilhas de ferro-velho à
sua frente.
Se não fosse a descrição da mulher, nem sequer teria considerado que
podia ser aquela casa; quando Mrs. Lovell, uma velha amiga da mãe em
Londres, lhe dera a morada, imaginara uma linda casa de campo com o
telhado de colmo e rosas em volta da porta.
Não havia rosas, a menos que contasse uma roseira brava que crescia por
cima de um trator enferrujado.
Parou a cerca de dez metros da casa e apoiou-se pesadamente na bengala,
esperando que a mulher se tivesse enganado. A simples casa de tijolos
vermelhos estava quase escondida atrás de árvores densas, mas no portão
partido estava a placa onde se lia May Cottage, a confirmação de que
chegara ao sítio certo.
Mrs. Lovell dissera-lhe que Heather deixara Londres para vir para aqui
pouco depois do Dia da Vitória na Europa em 1945. Thomas teve uma
sensação de inquietação ao contemplar a casa de campo.
Abriu caminho por entre as árvores densas e bateu à porta principal.
Ninguém abriu. Bateu de novo, e mais uma vez, mas não se ouvia nada no
interior. Espreitou para a solitária janela do rés do chão e ficou espantado ao
ver o incongruente mobiliário imponente: grandes poltronas, um enorme
quadro a óleo por cima da lareira e uma mesa de refeições oval
extremamente brilhante, muito parecida com uma que se lembrava de ver
na casa de um oficial em Singapura. Thomas recuou um passo e olhou para
a casa, pensativo. Tudo aquilo era muito estranho.
Preparava-se para dar a volta para as traseiras da casa, para ver se havia
alguém lá atrás, quando ouviu um sussurro. Vinha de um arbusto ao lado da
casa e sentiu que alguém estava atrás dele, a observá-lo.
– Está aí alguém? – chamou. – Ando à procura da Heather Farley.
Disseram-me que ela veio trabalhar para aqui depois da guerra.
Ninguém lhe respondeu. Abelhas zumbiam por entre as ervas daninhas e
as flores silvestres; ouvia-se o balido de ovelhas ao longe e o grito queixoso
de um pássaro.
Chamou de novo, desta vez mais alto. Afinal de contas, podia ser alguém
velho e duro de ouvido. No entanto, continuou sem resposta.
– Grite se tiver medo de mim – tentou de novo. – Eu não posso correr
atrás de si porque só tenho uma perna. – Para provar o que dizia, abanou a
bengala no ar.
– A Heather já se foi embora há três anos.
Thomas ficou tão surpreendido que quase se desequilibrou. Olhou para o
arbusto de onde vinha a voz.
– Sai daí e vem falar comigo – disse.
– Não vou nada. E você tem de se ir embora agora. O meu pai não gosta
que desconhecidos venham cá a casa.
A voz da rapariga era arrojada e Thomas pensou que ela devia ter mais
medo do pai do que de um desconhecido. Virou-se e saiu pelo portão a
coxear exageradamente.
– Eu não venho fazer uma visita – disse por cima do ombro. – Só quero
saber onde está a Heather. Vim de Londres.
O arbusto estremeceu, algumas ervas altas separaram-se e uma rapariga
apareceu. Parecia ter uns treze ou catorze anos, pequena, mas robusta, e
usava um andrajoso e desbotado vestido de algodão de mulher, vários
tamanhos acima do seu. Estava descalça, tinha uma grande cabeleira de
emaranhados caracóis cor de cobre e sardas num pequeno nariz arrebitado.
Thomas sorriu. Ela lembrou-lhe muito o tipo de crianças com quem
crescera no East End de Londres – não apenas as roupas andrajosas e os pés
descalços, mas também a expressão fortemente desconfiada nos olhos azuis.
– Assim é melhor – disse Thomas, mantendo a distância para que ela não
fugisse. – Nunca tive muito jeito para falar com um arbusto.
A rapariga riu-se. Enquanto se encostava a um velho barril de petróleo,
Thomas pensou que havia algo nela que o encantava.
Às oito horas daquela noite Rosie estava sentada à janela do seu quarto e
permitiu-se pensar em Heather pela primeira vez em meses.
Ainda estava muito calor e o céu cor-de-rosa prometia mais um dia
quente amanhã. Ela nunca se cansava de contemplar os brejos da sua janela;
era como se fossem o seu jardim alargado. Uma garça-real estava parada
como uma estátua na ponta da vala ao fundo do pomar e alguns momentos
antes avistara um clarão de azul-turquesa que sabia ser um guarda-rios.
Mais tarde, quando a noite caísse, um mocho viria empoleirar-se no
estendal, como sempre, à espera do jantar quando os ratos viessem
mordiscar o milho das galinhas.
Viver aqui nos Levels ensinara-lhe até que ponto o equilíbrio da natureza
era precário e como todos os seres vivos estavam dependentes da cadeia da
vida. Se os homens não limpassem as ervas daninhas dos canais e valas, os
campos ficavam inundados no inverno, o que provocava o afogamento do
gado, a destruição das colheitas de legumes e das árvores de fruto. Pensava
que era por isso que tantas das pessoas que viviam por estas bandas eram
duras e brutamontes como o pai e os irmãos. Para sobreviverem, tinham de
ser assim.
Pensou que Thomas Farley devia ser igualmente duro e teimoso para ter
sobrevivido àquele campo de prisioneiros de guerra. Lera sobre eles e sabia
que muitos homens tinham morrido lá. Um homem tão determinado não
voltaria para Londres enquanto não descobrisse tudo o que acontecera
enquanto a irmã estivera aqui. Isso deixou Rosie inquieta. Não lhe tinha
contado muitas coisas e, por uma vez na vida, talvez devesse ter controlado
a curiosidade e ficado escondida.
No entanto, no fundo não lamentava ter falado com ele, mesmo que isso
trouxesse alguns problemas. Heather contara-lhe tantas histórias sobre o
irmão que fora muito bom descobrir que ele não morrera na guerra. Se
Thomas conseguisse encontrar Heather, talvez a ajudasse a levar Alan para
longe daqui. Seria muito bom para o menino e talvez ela pudesse arranjar
um emprego a sério.
Miss Tillingham, a sua professora, ficara muito desapontada quando Cole
a obrigara a sair da escola logo que fizera quinze anos. Declarara que era
um cruel desperdício de uma boa cabeça ela ficar em casa a ser criada do
pai e dos irmãos. Mas nem sequer Miss Tillingham teve coragem suficiente
para expressar a sua opinião diretamente a Cole Parker. Todos sabiam que
ele considerava desnecessário que as raparigas tivessem mais do que uma
educação rudimentar.
Porém, Rosie não desistira de aprender. Tinha sempre o rádio ligado
enquanto trabalhava na cozinha e lia todos os jornais e revistas a que
conseguia deitar a mão. Enquanto a maioria das raparigas da sua idade
citava a morte do rei Jorge em fevereiro como a notícia mais importante do
ano, Rosie sabia tudo sobre a guerra da Coreia, sobre o escândalo de
espionagem protagonizado pelos agentes dos serviços secretos britânicos
Burgess e Maclean e até sobre os Mau-Mau no Quénia. Um dia, queria ser
mais do que uma simples criada.
– Rosie! – Um guincho estridente de Alan sobressaltou-a.
– O que é? – perguntou ela já no meio do quarto, a caminho do quarto ao
lado.
– Não consigo adormecer – choramingou ele.
Rosie passou com dificuldade pelas camas dos dois irmãos mais velhos
para conseguir chegar junto do menino. Havia muito pouco espaço neste
quarto. A cama portátil de Alan estava espremida contra a janela e a sua
posição revelava a pouca consideração que os homens da casa tinham pelo
membro mais novo.
Durante os últimos dois anos, Seth e Norman tinham-se tornado
fotocópias do pai. Os dois anos que cada um deles passara no exército e o
duro trabalho manual a transportar pesadas peças de ferro-velho tinham
fortalecido os seus músculos e bebiam e brigavam como Cole. Enquanto
Alan não evidenciasse sinais de ser um rufia como eles, e não se
interessasse pelo manuseamento de armas, pela caça e pela colocação de
armadilhas, Rosie estava convencida de que eles nunca teriam um elogio
para o irmão mais novo. Cole era apenas indiferente ao filho mais novo e
ignorava-o quase sempre, mas os rapazes desprezavam-no ativamente.
– Devias dormir – disse ela, sentando-se na cama de Alan e acariciando-
lhe a testa. – Amanhã de manhã tens escola.
Mais cedo, quando estava a deitá-lo, sentira-se tentada a falar-lhe sobre a
visita do tio Thomas, só para que ele soubesse que havia alguém para além
dela neste mundo que se interessava por ele. No entanto, sabia que não
poderia correr o risco de lhe contar alguma coisa que ele deixasse escapar
sem querer.
Olhou para o irmão, à procura de uma semelhança com Thomas, mas não
conseguiu encontrar nenhuma. Alan era um menino pálido e frágil, com
olhos castanhos grandes e tristes e cabelo ruivo claro. Thomas também
tinha olhos castanhos tristes, mas era a única verdadeira semelhança com
ele. Na verdade, Thomas fizera-lhe lembrar Ashley Wilkes em E Tudo o
Vento Levou. Um rosto elegante, aristocrático e inteligente, muito diferente
dos homens rosados, com feições grosseiras, que viviam nestas paragens.
Pensou que Heather lhe tinha dito que ele era cinco anos mais velho do que
ela, por isso devia ter cerca de trinta anos.
– Se estivesse na tua cama ia conseguir dormir – disse Alan, a olhá-la
com uma expressão de súplica nos grandes olhos tristes.
– Tu sabes o que o pai diria sobre isso – replicou Rosie suavemente. Cole
proibira Alan de dormir na sua cama e no seu quarto há alguns meses como
parte de um novo regime destinado a endurecê-lo. Rosie obedecia sempre
ao pai, seria insensato fazer o contrário, mas neste caso sentira-se muitas
vezes tentada a desobedecer-lhe porque sabia que os irmãos mais velhos
aproveitavam todas as oportunidades possíveis para assustar, ridicularizar e
magoar o menino. Tentar que ele adormecesse muito antes de voltarem do
pub não era uma forma garantida de protegê-lo da maldade deles, mas
contribuía muito para evitá-la. – Vou ler-te uma história para adormeceres.
O livro era o mesmo que Heather lhe oferecera no dia em que chegara
àquela casa. Estava a cair aos bocados, com páginas soltas e algumas já
desaparecidas. Ambos sabiam quase todas as histórias de cor. Sempre que
Rosie o lia a Alan, lembrava-se muito bem de Heather.
Há três anos, quando ela se fora embora, o brilho que sempre iluminara o
pai também desaparecera. Parecia o mesmo para todos, mas Rosie percebia
que ele estava triste e que se culpava por tudo. Na altura não soubera como
dizer-lhe que compreendia o que ele sentia. E ainda não sabia, pois Cole era
um homem intimidador, duro, imprevisível e quase sempre muito
reservado. No entanto, Rosie sabia que havia alguma doçura no seu íntimo
porque vislumbrara-a muitas vezes. Ele também a amava à sua maneira e
sentia orgulho nela. A única maneira de ajudá-lo naquela altura, e agora, era
cuidando dele e dos rapazes o melhor que podia. Assim, pelo menos ele não
traria mais uma mulher lá para casa. Não tinha muita sorte com as
mulheres.
Desde aquela noite do Festival das Colheitas em 1945, quando Florrie
Langford lhe dissera que Seth e Norman eram apenas seus meios-irmãos, e
mais tarde, quando descobrira que Heather estava na cama com o pai, Rosie
esforçara-se ao máximo para saber mais sobre a história da sua família.
Não tinha sido fácil. As pessoas tinham demasiado medo de Cole para lhe
contarem coisas. Porém, para além de ser curiosa Rosie também era
persistente e, pouco a pouco, conseguiu perceber tudo.
Dizia-se que Ethel Parker, a mãe de Seth e Norman, tinha sido a maior
beldade do condado, com cabelo escuro comprido e olhos ardentes. O pai,
que era um agricultor algures nos arredores de Glastonbury, pusera-a fora
de casa quando ela ficou grávida de Cole, e ela veio viver para May Cottage
com ele e os pais dele. Casaram-se antes de Seth nascer, em 1927. Em 1934
Ethel desapareceu, deixando os filhos, na época com sete e seis anos, com o
pai. Dizia a lenda que ela fugira com um caixeiro viajante galês.
Quando Ruby Blackwell chegou em resposta a um anúncio para uma
governanta no outono de 1936, os rapazes estavam verdadeiramente
selvagens e fora de controlo. Toda a gente dizia que ela fizera todos os
possíveis para ser uma mãe para eles, e para impor ordem numa casa
caótica, mas um ano depois Rosie nasceu.
Rosie gostava de conseguir lembrar-se melhor da mãe; parecia-lhe
horrível não ter imagens fortes de uma pessoa tão importante. No entanto,
todas as imagens que tinha do princípio da infância não passavam de
fragmentos pouco nítidos: uma blusa às riscas, cabelo castanho muito
macio, uma mulher pequena e nervosa que, quando não estava a cozinhar e
a limpar, se sentava numa cadeira ao pé do fogão a tricotar.
Todavia, embora tivesse apenas seis anos, recordava-se muito bem do dia
em que a mãe desaparecera. Tinha ido brincar com Janice Mirrel depois da
escola e chovia muito. Mrs. Mirrel ficou muito zangada quando escureceu e
Ruby não apareceu para ir buscar Rosie, e não parava de balbuciar alguma
coisa sobre «aproveitar-se». Seth acabou por vir buscá-la, o que foi uma
coisa muito invulgar; na altura ele tinha dezasseis anos, viera de bicicleta e
estava completamente encharcado. Rosie ouviu-o explicar a Mrs. Mirrel
que acabara de chegar do trabalho em Bridgwater e que a casa estava vazia
e Ruby ainda não tinha regressado.
Rosie voltou para casa na barra transversal da bicicleta do irmão e foi
muito assustador porque estava muito escuro e chovia torrencialmente. Em
casa, o fogão estava apagado e Seth mandou-a ir logo para a cama, antes
que o pai voltasse.
Cole e Norman deviam ter voltado tarde nessa noite porque estavam no
rés do chão quando ela acordou na manhã seguinte. Cole disse que a mãe
dela devia ter ido a Londres visitar um familiar e que voltaria dali a alguns
dias.
Mas é claro que Ruby nunca voltara e Cole acabou por dizer que ela
devia ter sido morta num ataque aéreo.
Até então a guerra não afetara Rosie a um nível pessoal. Desde que se
lembrava que os sons de aviões a passar no céu, adultos a falar sobre
racionamento, pessoas evacuadas, cupões para roupa e recrutamentos
faziam parte da vida, como acontecia com todas as outras crianças da sua
idade. Por vezes, era lembrada de que estavam a acontecer coisas muito
más noutros lados porque os olhos dos adultos enchiam-se de lágrimas
quando falavam sobre mortes em ataques aéreos ou em soldados que tinham
morrido no conflito. Porém, o pai não estava a lutar no estrangeiro como
muitos dos pais das suas colegas de escola e mesmo quando uma série de
bombas foram lançadas nos brejos perto de Burtle ninguém ficou ferido.
Quando o pai lhe disse que a mãe morrera num bombardeamento aéreo,
de repente a guerra tornou-se muito real e não uma ameaça distante. Rosie
não conseguiu compreender porque é que a mãe tinha sido escolhida para
morrer quando todas as outras mães que conhecia continuavam em
segurança nas suas casas.
Os dois anos entre a morte da mãe e a chegada de Heather estavam
confusos na sua cabeça. Lembrava-se de passar muito tempo sozinha, mas
nada mais. Parecia-lhe que as suas memórias só tinham começado
verdadeiramente com Heather. E em setembro de 1945 foram todas boas.
Heather mudou-se definitivamente para o quarto de Cole no dia a seguir
ao Festival das Colheitas e tudo foi maravilhoso durante um ano inteiro. O
pai passava muito tempo em casa e ouviram-se muitos risos quando ele
forrou os quartos com papel de parede novo e Heather fez cortinas lindas.
Mesmo quando veio a casa de licença, Seth não conseguiu estragar as
coisas nem influenciar Norman contra Heather.
Contudo, naquele outono, quando a sua barriga começou a crescer com o
bebé que esperava, as coisas começaram a correr mal. Talvez fosse porque
Cole estava a ter dificuldade para ganhar dinheiro pela primeira vez na vida.
Talvez fosse, em parte, porque temia que Norman também fosse para a
tropa, deixando-o sem ajuda masculina. Mas parecia que, de repente, estava
rancoroso por ter o fardo de mais um filho.
Tinha começado a pôr defeitos em tudo. Ia para o pub logo a seguir ao
jantar e por vezes nem sequer voltava para casa. Pouco tempo depois, Rosie
começou a acordar com frequência a meio da noite com o pai a gritar e
mobília a ser derrubada. Ouvia Heather chorar e sabia que Cole a
esbofeteara.
Foram aqueles barulhos que lhe trouxeram vagas recordações de
discussões semelhantes entre a sua própria mãe e o pai, e ficou muito
assustada. Heather mudou de um dia para o outro; ficou pálida e apática e,
embora a barriga estivesse enorme, tinha o rosto, os braços e as pernas
muito magros. Parecia estar sempre cansada e por vezes afundava-se numa
cadeira ao meio-dia e não conseguia voltar a levantar-se, e a sua situação
não foi facilitada pelos fortes nevões que caíram em janeiro de 1947 e que
tornaram todas as suas tarefas, como a lavagem da roupa, muito mais
difíceis. Rosie ajudava-a em tudo o que podia, mas era difícil dar à bomba
para tirar água. Rodar a manivela da calandra no exterior, com temperaturas
muito abaixo de zero, estava para além das suas capacidades.
A neve continuou a cair. Aquele inverno foi o mais gélido de que havia
registo e os animais morriam de frio nos campos. Rosie lembrava-se de ver
Heather tentar abrir um caminho nos pesados bancos de neve para chegar à
arrecadação do carvão e cair de exaustão antes de conseguir encher um
balde. Muitas vezes não havia lume e havia pouco para comer porque as
lojas não conseguiam ter provisões. Rosie apanhava neve para derreter por
cima do candeeiro a petróleo porque a bomba estava congelada.
Heather entrou em trabalho de parto em fevereiro e o bebé demorou dois
longos dias a nascer. A estrada para a aldeia estava bloqueada com espessas
camadas de neve e, mesmo que Cole tivesse tentado ir buscar um médico,
era duvidoso que tivesse conseguido passar com o carro. A única coisa que
Rosie sabia acerca de nascimentos era de ver as ovelhas parir e, embora
acreditasse em parte no pai quando ele disse que Heather estava a fazer uma
grande fita, não lhe pareceu certo que a deixasse continuar com aqueles
gritos horríveis e ficasse no rés do chão, a beber sidra e a ignorá-la. Foi ela
que por fim arranjou ajuda; caminhou com grande dificuldade pela neve até
ao presbitério, que tinha um telefone, e a parteira chegou passadas duas
horas num trator.
– Esperemos que o pequeno bastardo nasça morto – balbuciou Cole antes
de adormecer por fim na sua cadeira. – O que é que vou fazer com mais
filhos?
Nos dois últimos anos, de vez em quando Rosie recordava as palavras
terrivelmente insensíveis do pai e quase desejava que Alan não tivesse
sobrevivido, porque parecia que o seu nascimento foi o momento em que
tudo ficou definitiva e irreparavelmente mal. No entanto, na altura Rosie
tinha apenas dez anos; um bebé era quase um boneco e amou Alan desde o
primeiro instante que o teve nos braços.
Cole nunca gostou do filho. O facto de ele ser pequeno e frágil, de chorar
quase continuamente e de o duro inverno nunca mais terminar não ajudou.
Cole ignorou-o de forma deliberada, e também ignorava Heather, a não ser
que estivesse a embirrar com ela. Ela não conseguia fazer nada que lhe
agradasse. Quando as galinhas se recusaram a pôr ovos, a culpa foi dela. Se
o fogão se apagava era porque ela não o acendera bem. Depois, no outono
de 1947, Seth regressou da tropa e aumentou os problemas de Heather com
a cama molhada, as bebedeiras e o comportamento grosseiro.
Talvez fosse a premonição de que Heather também acabaria por fugir que
transformou Rosie numa pequena mãe. Uma vez perguntou-lhe se a levaria
e a Alan se fugisse, mas a rapariga olhou-a com uma expressão apática.
– Como é que eu posso ir? – perguntou, com os olhos marejados de
lágrimas. – Não tenho nenhum sítio para onde ir, Rosie, e também não
tenho dinheiro.
Alan tinha um ano e Rosie onze quando o sentimento de desagrado com
os irmãos mais velhos se transformou em ódio. Uma tarde de fevereiro saiu
mais cedo da escola porque estava previsto um nevão. Quando entrou pela
porta das traseiras encontrou Alan a berrar no berço, mas acima de todo
aquele barulho ouviu outra coisa no primeiro andar. Um som de pancadas
surdas que a arrepiou e, antes de tirar Alan do berço, subiu sorrateiramente
as escadas para investigar.
O que viu foi tão chocante que quase fez xixi nas cuecas quando se colou
à parede do patamar, para não ser vista. O espelho do guarda-vestidos do
quarto do pai refletia o que estava a acontecer ali. Seth, que na altura tinha
vinte anos, estava completamente vestido com as suas sujas roupas de
trabalho e Heather estava de gatas em cima da cama, com a saia levantada,
presa por dedos que se enterravam na sua carne. Ele estava a montá-la por
trás, como o touro fazia nos campos. Fazia esgares e gemia e Heather
chorava, um choro tão triste que metia dó e que dilacerou Rosie como se
fosse perfurada por uma faca.
Pior ainda, Norman estava parado ao lado da cama a observar. Na época
ele estava na tropa; chegara a casa no dia anterior para uma licença de dois
dias e ainda não tirara o uniforme. Tinha a braguilha desapertada e estava a
acariciar-se e a mandar o irmão despachar-se para poder ir ele.
Rosie esforçou-se muito para apagar aquela recordação da cabeça, bem
como a culpa de não ter tentado fazer alguma coisa para impedir aquilo.
Mas tinha ficado tão chocada, tão horrorizada, que não conseguiu fazer
mais nada a não ser voltar para baixo sem fazer barulho e consolar o
irmãozinho que não parava de chorar.
Queria contar ao pai, mas teve demasiado medo do que Seth poderia
fazer-lhe ou a Alan em retaliação. Nem sequer se atreveu a contar a Heather
que tinha visto.
Só quando ela fugiu um ano mais tarde é que Rosie começou a suspeitar
que, afinal de contas, a sua mãe não tinha morrido num bombardeamento
aéreo e tinha fugido pelos mesmos motivos que Heather, por já não
conseguir suportar a crueldade de Cole e dos filhos dele.
Compreendia bem porque é que as duas mulheres tinham fugido. Não
culpou nenhuma delas por a terem abandonado, mas uma coisa
incomodava-a profundamente. Porque é que Heather tinha deixado ficar o
filho? Rosie chegara a casa depois da escola e encontrara-o ainda amarrado
no carrinho no pomar, a gritar a plenos pulmões porque estava todo
molhado e cheio de fome.
Havia boas razões para explicar porque é que a sua própria mãe a deixara
ficar. Afinal de contas, ela tinha seis anos e era a menina dos olhos do pai.
Mas Heather sabia que Cole não amava Alan. Como é que o tinha deixado à
mercê de três homens que sabia que eram perigosos e que não se
importavam absolutamente nada com o seu bem-estar?
Uma vez, Seth comentara com malícia que Heather era uma cabra, que
passava a vida a receber homens lá em casa durante o dia e que deixara
Alan ficar ali porque tinha fugido com um homem que não queria aturar o
miúdo. Mas Rosie nunca acreditou. Heather podia ser um pouco simples,
mas amava o seu bebé.
Durante muito tempo depois de Heather se ir embora, Rosie esperou que
ela reaparecesse um dia para ir buscar o bebé quando os homens estivessem
fora, mas ela nunca veio.
Por isso Alan tinha-se tornado, virtualmente, seu filho. Cole pagava dois
xelins por semana a uma pessoa da aldeia para cuidar dele enquanto ela
estava na escola e, embora contrariado, comprava-lhe roupas e sapatos. No
entanto, não se interessava pelo rapazinho e deixava tudo o resto, incluindo
protegê-lo dos irmãos mais velhos, a cargo de Rosie.
– Não cortes esse pão tão fino – disse Cole com brusquidão para Rosie na
manhã seguinte. Estava a lavar-se no lava-loiça da cozinha, mas devia ter
estado a observá-la pelo espelho. – Essas sanduíches são para homens, não
para um maldito lanche de senhoras. Seth! Norman! Venham para baixo,
seus malditos preguiçosos! – Berrou ao fundo das escadas.
Eram seis e meia da manhã e Rosie já estava a pé há uma hora. Acendera
o fogão, fora buscar oito ovos frescos das galinhas e três enormes
pequenos-almoços fritos esperavam no forno enquanto a chaleira estava
quase a ferver com água para o chá.
Cole era tão grande que bloqueava toda a luz da janela da cozinha. Usava
as mesmas calças cinzentas sujas que vestia todos os dias de trabalho e
tinha os suspensórios caídos ao longo do corpo enquanto lavava os sovacos.
As pessoas diziam que ele era um homem bonito, e por vezes, quando
vestia o seu fato domingueiro, Rosie concordava com elas; mas não de
manhã cedo, com a sombra de uma barba preta a cobrir-lhe toda a parte
inferior do rosto e a pança peluda pendurada por cima das calças.
Rosie pousou os três pratos de pequeno-almoço na mesa em silêncio
quando Seth e Norman entraram na cozinha, vestindo apenas as calças.
– Também quer uma garrafa? – perguntou ao pai. Ele vestira a camisa
limpa, penteara o cabelo e os suspensórios já estavam nos ombros. Agora
que os irmãos estavam na cozinha, sentiu-se nervosa. Já nunca estava à
vontade na presença deles. As raparigas da aldeia podiam achá-los
atraentes, mas ela não.
Seth fedia a urina, e isso queria dizer que voltara a fazer xixi na cama.
Também havia um cheiro forte a suor entranhado e ficou enojada ao pensar
que era muito provável que vestissem as camisas limpas que ela acabara de
engomar nos corpos por lavar. Nenhum deles limpava as unhas ou lavava os
dentes. Cole podia ter um temperamento cruel, mas pelo menos era
cuidadoso com a sua higiene.
– Não recebas rapazes aqui hoje enquanto estivermos fora – disse Seth. –
Ou cortamos-lhes os tomates quando voltarmos.
– Deixa-a em paz – disse Cole, admoestando o filho mais velho. – A
nossa Rosie é muito ajuizada. E tu, rapaz, podes lavar-te como deve ser
antes de sairmos. Cheiras pior do que merda de porco.
Ao ouvir aquele comentário Rosie esgueirou-se em silêncio para fora da
cozinha e subiu as escadas, sem sequer esperar pela resposta de Cole sobre
a garrafa. Quando Seth era repreendido pelo pai costumava vingar-se em
alguém e ela não pretendia ser o alvo.
Engasgou-se quando foi ver Alan. Como esperava, Seth fizera xixi na
cama e o cheiro a amoníaco era repugnante. Ele nunca pedia desculpa e não
lhe passava pela cabeça tirar os lençóis da cama. Mas, afinal de contas, ele
era um animal em todos os sentidos. Vomitava muitas vezes no chão e
deixava ficar a porcaria para ela limpar, e por vezes fazia mais do que xixi
no bacio e também o deixava para ela despejar. Rosie desconfiou que se não
estivesse ali para mudar os lençóis e limpar o que ele sujava, o irmão
continuaria a viver no meio daquela imundície como um porco.
Quando tirou os lençóis da cama, Alan acordou.
– Chiu – sussurrou ela, levando um dedo aos lábios. – Fica aqui até eles
saírem e depois tomamos o pequeno-almoço juntos.
Dez minutos mais tarde Rosie ouviu o pai gritar o seu nome. Correu pelas
escadas abaixo.
– Estava a fazer as camas. Já se vão embora?
Cole sorriu-lhe e estendeu meia coroa.
– Vamos passar o dia inteiro no leilão e só voltamos tarde, por isso
comemos qualquer coisa por lá – disse. – O dia vai estar quente, por isso vai
até à aldeia e come um gelado depois de terminares as tuas tarefas.
O presente e a consideração inesperados agradaram a Rosie. Por impulso,
desceu os últimos degraus a correr para ir abraçá-lo. Felizmente, Seth e
Norman já tinham ido para a camioneta. Cole nunca era afetuoso quando
eles estavam por perto.
– És uma boa menina – disse ele, retribuindo o abraço. – Não te esqueças
de fechar as galinhas esta noite porque há raposas por perto. E acorda
aquele preguiçoso inútil. Com esta idade devia estar a ajudar-te, não deitado
na cama.
Ela seguiu o pai para a rua para lhe dizer adeus. Estava uma manhã linda
e uma neblina leve pairava sobre os brejos. De repente, sentiu-se muito
feliz. Com os homens fora até muito tarde e sem a refeição da noite para
preparar, seria um verdadeiro feriado.
Rosie deu a mão a Alan enquanto seguiam pela viela para a escola da
aldeia. Era a melhor parte do seu dia, uma oportunidade para ver algumas
pessoas, ainda que ninguém parasse para falar. Mas hoje, como Cole lhe
dera meia coroa, poderia comprar um jornal e talvez Mrs. Willis, a dona da
loja, tivesse algumas revistas velhas para lhe dar.
Viu Thomas muito antes de chegar ao Crown. Ele estava sentado à porta,
no banco, como se estivesse à espera do autocarro para Bridgwater. O
autocarro só chegava às nove e meia, por isso a única razão para ele estar
ali agora era para vê-la passar a caminho da escola.
De repente ficou contente por usar o seu melhor vestido – o das riscas
azuis e brancas que engomara na noite anterior.
Apertou bem a mão de Alan e passou por Thomas, esperando que ele não
a chamasse, para não atrair atenções indesejadas. Quando ele abriu um
jornal à sua frente percebeu que a tinha visto, mas limitou-se a acenar e
pareceu estar a ler.
O seu coração bateu com tanta força quando passou por ele que teve a
certeza de que ouviria, e disfarçou a confusão mostrando a Alan duas
pombas brancas que estavam pousadas no telhado do Crown e parando
durante tempo suficiente para ele poder ver bem o rapazinho. Olhou para o
homem, levando um dedo aos lábios, e ele piscou-lhe o olho em sinal de
compreensão.
Thomas sentiu uma onda de emoção inesperada quando olhou para Alan.
Foi como ver-se de novo quando era pequeno. Os mesmos olhos castanho-
escuros, que a mãe sempre dissera que eram demasiado grandes para o seu
rosto, os joelhos ossudos e cheios de cicatrizes e o rosto pálido e magro. No
entanto, o cabelo de Alan era mais ruivo do que louro e o menino parecia
nervoso, coisa que Thomas nunca fora.
Na noite anterior Hilda contara-lhe tudo sobre Cole Parker, os filhos e as
mulheres que desapareciam. Disse-lhe coisas alarmantes, mesmo tendo em
conta o exagero e a coscuvilhice vingativa. Esta manhã Thomas acordara
depois de uma noite inquieta e soubera que era uma situação da qual não
poderia fugir.
Durante a noite percebera que a palavra «evasão» resumia o que mudara
em si em comparação com o que fora antes de ser capturado pelos
Japoneses. Antigamente, encarava tudo com frontalidade. Os problemas
eram enfrentados com coragem e confiança em si mesmo. Se um amigo se
metia numa briga ele ia ajudá-lo, com razão ou não. Manifestava-se contra
as injustiças, mesmo correndo o risco de perder a liberdade; para ele, fugir
ou ignorar era pura cobardia. Quando chegara ao campo de prisioneiros de
guerra na Birmânia, mesmo depois de uma marcha esgotante com pouca
comida ou água, continuava a acreditar que tinha o dever de lutar contra os
Japoneses até ao fim.
Foi chicoteado duas vezes nos primeiros dois meses por se recusar a
obedecer às ordens dos guardas e foi deixado sob o sol escaldante com as
costas dilaceradas até lhe parecer ouvir o ruído metálico das portas do
Paraíso. Porém, pouco a pouco começou a perceber a futilidade da rebelião.
Viu muitos homens bons morrerem por orgulho teimoso ou pura má
vontade. O capitão Gregson deixou-se amarrar a uma estrutura de bambu e
ter uma morte lenta e agonizante para não ter de pedir desculpa por ter
insultado um oficial japonês. Outro homem foi chicoteado até à morte
quando admitir que tinha um rádio escondido na cabana podia tê-lo salvado.
Os Japoneses acabaram por encontrar o aparelho e castigaram todos os
ocupantes da cabana. Mais homens ainda morreram por motivos menos
nobres, apenas de doença e de fome.
Foram os muitos funerais no campo de prisioneiros de guerra que o
fizeram dar verdadeiro valor à sua vida. Não havia nada pior do que
carregar um canto de um caixão improvisado de bambu e, a cada passo que
dava para a sepultura acabada de cavar, suportar o horror de o seu rosto,
ombros e peito ficarem salpicados com os fluidos putrefactos do morto, que
eram consideráveis se ele tivesse morrido de beribéri. Não havia dignidade
nem glória num fim assim e Thomas percebeu então que a sobrevivência
era tudo e que evitar problemas não era cobardia, mas bom senso.
Todavia, às primeiras horas daquela manhã percebeu que chegara o
momento de encontrar o velho espírito e abrir o jogo, fosse qual fosse o
custo a nível pessoal.
No momento em que Rosie entrou com o irmão na escola, Alan olhou por
cima do ombro para Thomas. Os seus olhos cruzaram-se por instantes e
Thomas sorriu.
Naquele momento soube que, acontecesse o que acontecesse, arrancaria
Alan das garras de Cole Parker. Só gostava de poder fazer alguma coisa
também por Rosie. Segundo o que Hilda lhe contara, a vida da rapariga era
um verdadeiro inferno.
CAPÍTULO 3
– H oje o Vic chegou cedo – disse Rosie para Alan quando ouviu um
veículo parar lá fora. Era sábado de manhã, pouco depois das nove,
e ela estava a encerar a mesa da sala de visitas. – É melhor ir pedir algum
dinheiro ao pai.
Vic era um merceeiro ambulante. Passava todos os sábados na sua
camioneta, mas normalmente não chegava a May Cottage antes das onze
horas ou do meio-dia.
Alan subiu a uma cadeira para espreitar pela janela.
– Não é o Vic – disse. – São polícias.
Rosie ficou espantada e foi espreitar, para ver se o irmão tinha razão.
– É verdade – exclamou, ao ver o guarda Nutting, o polícia da aldeia, a
pôr o capacete. Para sua consternação, ele estava acompanhado por um
homem que não conhecia. O outro homem usava um boné com pala e tinha
riscas na manga do uniforme. Pensou que devia ser o seu chefe.
O pai e os irmãos tinham chegado a casa na noite anterior, já tarde, depois
de passarem duas semanas a trabalhar em Londres. Estavam cansados e
imundos, mas bem-dispostos, com um camião cheio de abrigos Anderson.
Para variar, nem sequer tinham ido ao pub. Enfiaram-se à vez na banheira
metálica que estava no pátio e em seguida tinham ido para a cama.
Seth e Norman ainda estavam deitados e Cole estava na cozinha a tomar o
pequeno-almoço. Pareceu-lhe ominoso que a polícia fosse lá a casa tão
pouco tempo depois de eles chegarem, especialmente num carro. Enquanto
andava a fazer o giro, era bastante normal Ernie Nutting passar lá por casa
na sua bicicleta; tinha ido lá na segunda-feira anterior porque ouvira dizer
que Rosie estava sozinha em casa com Alan. No entanto, não viria com
outro agente a menos que estivesse em missão oficial.
Rosie parou apenas o tempo suficiente para dizer a Alan que ficasse onde
estava e correu para a cozinha, para avisar o pai.
Cole estava a limpar o resto do ovo do prato com um pedaço de pão
quando ela lhe deu a notícia com precipitação. Tinha os suspensórios caídos
ao longo do corpo, mas usava uma camisola interior branca limpa e fizera a
barba.
– Não fiques tão preocupada – disse-lhe, a sorrir abertamente. – O teu pai
não fez nada. – Pegou na chávena de chá e sorveu-o ruidosamente.
Levantou-se quando bateram à porta com força, pôs os suspensórios nos
ombros e limpou o ovo da cara com as costas da mão.
– Vamos descobrir o que querem – declarou, pondo um braço sobre os
ombros da filha. Saiu com ela pela porta das traseiras e deram a volta para a
parte da frente da casa.
Rosie não era tonta. Talvez Cole não tivesse nada roubado em casa desta
vez, mas sabia que sempre que a usava como acessório tinha alguma coisa a
esconder. Quando Ernie Nutting viera fazer perguntas depois de alguém que
correspondia à sua descrição ter sido avistado a roubar um par de faisões na
grande propriedade de Wells, ou quando pneus de carros tinham
desaparecido misteriosamente de uma aldeia vizinha, fora muito útil para
Cole tê-la por perto como distração ou para apoiá-lo com um álibi para a
noite em questão. Rosie sempre gostara destas pequenas representações;
faziam-na sentir-se importante.
– Lamento, mas a porta principal não abre. Há muito que emperrou com a
idade, exatamente como eu – disse Cole em tom de brincadeira para os dois
polícias. – Olá, Ern! Que é que te traz por cá tão cedo, e onde está o cavalo
de ferro?
Nutting sorriu acanhadamente e tocou no capacete. Era um homem
grande, com um rosto redondo e gasto pelo clima que o fazia parecer muito
mais velho do que era. Cole estava sempre a dizer que era um idiota, mas
Rosie gostava dele porque era bondoso, alegre e um ávido jardineiro.
Oferecia-lhe muitas vezes pequenas plantas que cultivava na sua estufa.
Ficou intrigada quando ele não respondeu à pergunta do pai sobre a
bicicleta.
O homem do boné de pala que estava com Ernie olhou-a com intensidade.
– É sua filha, Mr. Parker? – perguntou.
– Sim, esta é a nossa Rosie. – Cole sorriu para a filha com carinho e
apertou-lhe o ombro com firmeza. – Porquê, vieram prendê-la? Que é que
ela andou a tramar?
De repente, Rosie lembrou-se de Thomas Farley. Já tinham passado
praticamente três semanas desde que ele fora lá a casa e durante os quinze
dias em que o pai estivera ausente quase não pensara nele. De repente,
adivinhou que esta visita policial fora precipitada por ele; não tinha nada a
ver com as atividades empresariais de Cole. O seu estômago apertou-se.
– Nada, pelo menos que seja do nosso conhecimento. Eu sou o sargento
Headly de Bridgwater. Vim cá hoje com o guarda Nutting para lhe fazer
algumas perguntas sobre uma pessoa desaparecida, a Heather Farley. – O
polícia olhou diretamente para Rosie e sorriu. Tinha olhos azul-claros e um
fino bigode escuro. Rosie pensou que ele era bonito. Teve a impressão de
que o sorriso se destinava a garantir-lhe que não diria a Cole que Thomas já
falara com ela. – Temos motivos para acreditar que ela trabalhou nesta casa
durante cerca de quatro anos, Mr. Parker. Também queríamos falar com o
Alan, o filho dela. Segundo sabemos, Miss Farley deixou-o ao seu cuidado.
Rosie susteve a respiração durante alguns instantes, convencida de que o
pai ia perder as estribeiras. No entanto, para sua surpresa ele pareceu
despreocupado.
– Não sei se poderei ajudar muito – respondeu, com um encolher de
ombros. – Como o Ernie poderá confirmar, ela fugiu há três anos sem me
dizer nada a mim ou a outra pessoa qualquer. É melhor entrarem para verem
o rapaz.
Enquanto davam a volta à casa, Rosie ficou mais ansiosa. Desejou ter
sido avisada para poder vestir Alan com a roupa da escola. Os calções
cinzentos com remendos e a camisa de flanela demasiado pequena que ele
usava hoje faziam-no parecer negligenciado.
Era a primeira vez que Rosie se lembrava de o pai levar alguém para a
sala de visitas. Ele sempre dissera que não queria que as pessoas vissem as
coisas lindas que tinha ali porque podiam pensar que as roubara. Nesse
caso, era estranho levar um polícia para lá. Mas mais estranho ainda foi
que, em vez de ficar irritado por Alan estar escondido atrás de uma das
poltronas, Cole pegou nele ao colo.
– Este é o meu Alan. Cumprimenta os senhores polícias – disse, e fez
uma festa na cara do menino num gesto de ternura paterna.
Alan ficou rígido e sem fala perante o invulgar comportamento do pai.
Rosie também; nunca vira Cole pegar em Alan. Era muito mais provável
que lhe desse um pontapé para que saísse da sua frente.
– Ele é um bocado tímido – explicou Cole. – Não recebemos muitas
visitas cá em casa.
Rosie ficou parada à porta da sala, sem saber se devia entrar, oferecer-se
para fazer chá ou fugir. Ernie Nutting parecia pouco à vontade. Tinha tirado
o capacete e estava de pé, a rodá-lo na mão com nervosismo. Evitou olhar
para Cole ou Rosie.
– Quantos anos tens, Alan? – perguntou o sargento Headly, aproximando-
se mais de Cole e do rapaz.
– Cinco – respondeu Alan, a olhar para Rosie à espera de uma explicação.
– Bem, vamos ver qual é a altura de um rapaz de cinco anos. – O polícia
fez sinal a Cole para que o pusesse no chão.
Rosie estava em grande aflição. Era bem possível que Thomas tivesse
encontrado pessoas na aldeia muito mais dispostas a falar sobre a sua
família do que ela. E se alguém lhe tivesse dito que Cole e os rapazes eram
cruéis com Alan? E se o polícia levantasse a camisa do menino e visse os
vergões nas costas deixados pela última tareia que levara antes de eles irem
para Londres?
Porém, para seu alívio o polícia mais importante sentou-se no sofá e
conversou com Alan durante alguns minutos, perguntando-lhe como estava
a correr a escola, como iam a leitura e as contas, e depois bateu no traseiro
do menino e mandou-o sair porque queria conversar com o pai.
Rosie levou-o para a cozinha e começou a arrumar a loiça do pequeno-
almoço. Depois de a porta da sala de visitas ser fechada não conseguiu
ouvir mais nada a não ser vozes abafadas, demasiado indistintas para
perceber alguma coisa.
– Porque é que ele falou comigo, Rosie? – perguntou Alan, pegando no
prato da manteiga para ir arrumá-lo na despensa. Parecia mais intrigado que
alarmado. Não estava acostumado a ser o centro das atenções.
Rosie não sabia o que dizer. Não podia explicar-lhe que a visita estava
relacionada com a mãe dele, pois o menino poderia ficar perturbado. Além
disso, Seth ou Norman podiam descer a qualquer momento.
– Só estava a ser simpático – respondeu ela. – Deve gostar de meninos
pequenos.
Cerca de dez minutos mais tarde, quando Rosie pegou numa tigela para ir
apanhar framboesas no pomar ouviu o urro da voz de Cole erguer-se num
tom de fúria.
– Quem disse isso? Dê-me o nome do filho da mãe e eu trago-o aqui pelo
pescoço e obrigo-o a admitir que mentiu. Eu podia ter enfiado o miúdo num
orfanato, mas cuidei dele, alimentei-o e vesti-o, embora a mãe dele não o
quisesse.
Rosie queria ficar para ouvir mais, mas bastou-lhe olhar para o rosto
apavorado de Alan para perceber que tinha de o tirar dali antes que ele
ouvisse mais.
Já no meio dos framboeseiros, Rosie pensou na causa e no provável
desfecho desta visita da polícia. Pela indignação do pai, era óbvio que
alguém andara a falar, o que se traduziria quase de certeza numa boa tareia
para Alan e para si.
Rosie tinha muito medo do pai quando ele estava zangado e as suas
tareias eram terríveis, mas neste momento estava acima de tudo preocupada
com Alan. Cole parecia o Diabo quando lhe batia e não estava certo que um
menino tão pequeno fosse castigado por uma coisa que desconhecia.
Olhou em volta à procura de um lugar para esconder o irmão, mas no
fundo sabia que seria inútil porque Cole só ficaria ainda mais furioso
quando o encontrasse.
Depois, teve uma ideia.
Começou por ignorá-la por lhe parecer extrema, mas um olhar de soslaio
para Alan fê-la tomar a decisão. O menino estava parado, com o rosto muito
pálido, a olhar para a casa, e os seus olhos escuros estavam esbugalhados de
pavor. Nada que fizesse o distrairia. Sabia tão bem como Rosie que se
aproximavam sarilhos e que seria ele o mais castigado.
Heather falara tantas vezes sobre Thomas que Rosie pensava que o
conhecia bem. Aquela única breve conversa com ele confirmara que ela não
exagerara as boas qualidades do irmão. Esta visita da polícia era a prova de
que ele não só queria encontrar a irmã a todo o custo, como também se
sentia responsável pelo bem-estar do sobrinho.
Rosie sempre tentara proteger Alan das fúrias do pai, mas não conseguira
evitar a última tareia. Ele só tinha deixado cair dois ovos no pátio e Cole
batera-lhe com a vara nas costas. De repente, naquele momento percebeu
que ao esconder a crueldade do pai e dos irmãos com o menino estava a ser
conivente e isso tornava-a tão má como eles.
A sua ideia era drástica e quando o pai descobrisse o que fizera ficaria em
muito maus lençóis. Todavia, para o bem de Alan teria de pôr o seu plano
em prática, fossem quais fossem as consequências. Thomas importara-se o
suficiente para mandar a polícia ali, queria tomar conta de Alan quer
encontrasse Heather ou não. Mas ao mesmo tempo Rosie sentiu-se
desolada. Amava muito o irmão mais novo e não conseguia suportar a ideia
de ficar longe dele.
No entanto, bastou-lhe olhar uma vez mais para ele. O menino tremia e
era incapaz de apanhar framboesas. Percebeu que a segurança de Alan hoje
e no futuro era muito mais importante do que os seus sentimentos. Talvez
Thomas não pudesse tomar conta do sobrinho, mas pô-lo num orfanato
seria melhor para ele do que ficar aqui.
Piscou os olhos para afastar as lágrimas, ajoelhou-se e segurou no irmão,
olhando-o nos olhos, que eram muito suaves e crédulos. Se ele se fosse
embora agora, talvez se transformasse numa pessoa diferente de Norman e
Seth. Ela devia muito a Heather; o mínimo que podia fazer era ter a certeza
de que fazia o que era melhor para o rapazinho.
– Alan – disse, abraçando-o com força. – Quero que faças uma coisa de
uma maneira muito discreta e inteligente, para que ninguém te veja.
Deu-lhe as instruções, simplificando-as o mais possível.
Ele escutou com muita atenção, com a cabeça inclinada para um lado e o
sol no cabelo a fazê-lo brilhar como brasas numa lareira.
– Agora? – perguntou, parecendo ansioso, mas não contra a ideia.
– Sim, agora, enquanto o pai está lá dentro a conversar. Quando ele sair
com os polícias eu finjo que tu estás aqui fora a apanhar framboesas.
– Mas porque é que não podes vir também?
Rosie desejou poder ir com ele.
– Tenho de ficar aqui para eles não desconfiarem de nada.
– Mas quando é que te vou ver outra vez? – De repente os olhos de Alan
ficaram desconfiados. Esticou os dedos para se agarrar a ela.
– Não sei – respondeu Rosie com franqueza. – Faz o que te disse e diz-
lhes o que eu te disse. Agora vai e mantém-te escondido atrás da vedação.
Ajudou-o a passar pela vedação de arame farpado ao lado do pomar, deu-
lhe mais um beijo e, quando ele hesitou, virou-o para a estrada e deu-lhe
uma pequena palmada no traseiro. Desejou poder dizer-lhe que havia outra
pessoa que o amava, mas agora não havia tempo para isso.
– Menino inteligente – disse, reprimindo as lágrimas. – Agora, vai.
Rosie esperou atrás dos framboeseiros até ver os polícias saírem pela
porta da cozinha. Como esperava, Cole vinha atrás deles, com um sorriso de
orelha a orelha.
Suspirou. Cole tinha um jeito especial para fazer as pessoas curvarem-se
à sua vontade. Não tinha qualquer dúvida de que conseguira convencer o
sargento de que era um pai maravilhoso para Alan, e Ernie Nutting não o
contradiria porque tinha tanto medo dele como todos os habitantes daquelas
paragens. Obrigou-se a correr para o pátio como se os dois polícias fossem
vizinhos que tinham vindo fazer uma visita e de quem queria despedir-se.
– Lamento que tenham vindo até aqui para nada – ouviu Cole dizer
enquanto apertava as mãos dos dois homens. – Há pessoas por estas bandas
que acusariam o papa de todos os pecados. Aqui para nós, eu fui um tonto
com a Heather; devia ter percebido que não conseguiria fazer uma rapariga
da cidade assentar aqui. Ela magoou-me muito quando fugiu, mas isso não
quer dizer que me vingue no nosso filho. No entanto, suponho que tenho a
reputação de homem duro e tenho de viver com todas as suspeitas que estão
associadas a ela. Se o tio do rapaz quiser vê-lo, eu não me oponho.
O sargento Headly voltou-se para Rosie quando ela se aproximou a correr
com uma tigela de framboesas nas mãos.
– Olá! O que é que fizeste ao Alan?
– Está ali a apanhar framboesas – respondeu ela, a acenar vagamente com
o braço na direção do pomar.
Headly aproximou-se mais e tirou uma framboesa da taça.
– Hum – disse, satisfeito, enquanto a comia. – As minhas preferidas.
Continua o bom trabalho que fazes. – Sorriu-lhe afetuosamente. – O teu pai
esteve a contar-nos que és uma boa pequena mãe. E que és uma especialista
em flores.
Rosie ruborizou-se e baixou os olhos para o chão. Como sempre, estava
descalça e os pés estavam muito sujos. Sentiu vergonha, não apenas dos
pés, mas também do vestido cheio de nódoas e rasgões.
– Bem, nós vamos andando. – O sargento Headly falou diretamente para
Cole e voltou a pôr o boné. – Lamento ter-lhe tomado tanto tempo.
Rosie conteve a respiração até ouvir o carro afastar-se. No entanto,
quando respirou fundo pela primeira vez Cole aproximou-se dela.
– Vai procurar aquele filho da mãe e trá-lo cá – disse-lhe num tom
raivoso, com o rosto a ficar mais roxo. – Vou ensiná-lo a queixar-se de que
está a ser maltratado!
*
– O que é que lhe parece, senhor? – perguntou Ernie Nutting enquanto
voltava com o seu superior para Ashcott, onde estava colocado. No dia
anterior Ernie ficara muito surpreendido quando recebera ordens para
acompanhar o sargento principal da divisão de Bridgwater na sua
investigação. Como era o guarda de giro da zona conhecia bem os Parker e
todas as histórias que se contavam acerca deles, mas estava convencido de
que a grande maioria das coisas que as pessoas diziam sobre Cole eram
exageradas. Achava que os dois filhos eram uns rufias impiedosos, mas
Cole era um personagem. Talvez não mantivesse a casa em ordem, bebia de
mais, tinha um temperamento colérico e talvez fosse pouco escrupuloso nos
negócios, mas dava um pouco de cor à comunidade. Quanto a Rosie, era
uma das miúdas mais simpáticas que Ernie já conhecera. Como poderia ser
assim se o pai fosse um vilão tão grande?
Ernie não estivera com o sargento Headly mais do que três ou quatro
vezes antes, mas sabia que ele tinha a reputação de ser extremamente
inteligente e intuitivo. Agora que o vira em ação, estava um pouco
intrigado. Enquanto iam para May Cottage ele dera a impressão de que era
uma investigação muito séria, mas no momento em que entraram em casa
de Cole parecera estar totalmente do seu lado, a conversar como se tivessem
vindo fazer uma visita de cortesia. Quando, por fim, ganhara coragem para
falar sobre a suspeita de crueldade com Alan e perguntara ao homem
porque é que não comunicara o desaparecimento das duas mulheres à
polícia, até parecera embaraçado. Ernie esperava que um oficial superior
fosse muito mais duro.
– Acho que o homem é um... – Headly parou a meio da frase, ao ouvir um
barulho na parte de trás do carro. Os dois homens viraram a cabeça.
– Macacos me mordam – exclamou Headly ao ver Alan agachado atrás
dos bancos da frente. Encostou imediatamente na berma da estrada e
inclinou-se sobre o assento. – Que diabo fazes aqui, filho?
– Foi a Rosie que me mandou – guinchou Alan. – Ela disse-me para me
esconder aqui e para vos dizer coisas.
– Um carro da polícia não é lugar para partidas – disse Ernie no tom
pomposo que usava sempre com meninos pequenos que se comportavam
mal. Também lhe teria puxado a orelha, mas antes de se poder mexer
Headly saiu do carro, puxou o seu banco para a frente e estendeu os braços
para o menino.
O sargento Ronald Headly era um homem de família, com cinco filhos
com idades compreendidas entre os quinze e os três anos. Em mais de vinte
anos na polícia vira inúmeras crianças assustadas, mas não se lembrava de
ter ficado tão comovido como ficou com o medo deste menino.
Alan encolheu-se no carro, com os braços no ar para proteger a cabeça
dos golpes esperados. O seu rosto lívido estava tenso de terror e ele tremia.
– Está tudo bem, filho – garantiu-lhe Headly. – Eu não estou zangado
contigo e não bato em crianças pequenas. Sai daí só um bocadinho.
Alan mexeu-se um pouco, mas foi o suficiente para Headly ver que tinha
uma grande mancha escura nos calções de flanela cinzentos e que urina
escorria pelas suas pernas escanzeladas.
– Não te preocupes com os calções – disse-lhe. – Vamos arranjar alguma
coisa para vestires na esquadra. És um bom menino por obedeceres à tua
irmã. Vem para aqui e conta-me tudo.
Quando Thomas Farley fora à esquadra da polícia de Bridgwater três
semanas antes e lhe contara a história da irmã e do filho, a sua primeira
reação fora que não se tratava de um assunto de polícia e que era um
problema que as assistentes sociais poderiam resolver.
Durante a guerra, muitas jovens tinham vindo das cidades grandes para
aquela zona por uma ou outra razão. Várias dessas mulheres tinham-se
metido em sarilhos e em alguns casos tinham desaparecido deixando ficar
um bebé. No entanto, na opinião de Headly a única coisa que diferenciava
Heather dessas outras mulheres era que não abandonara o filho numa igreja,
num campo ou numa loja, e deixara-o com o pai.
Porém, Farley era um homem muito íntegro e honesto. Tinha um registo
de guerra exemplar e Headly sentiu que lhe devia um relatório completo.
– Vamos despir isto – disse, desabotoando os calções do menino na berma
da estrada. – Acho que a camisa te vai deixar decente.
Quando lhe despiu os calções e as cuecas molhadas, Headly viu as marcas
de uma tareia antiga nas nádegas ossudas do rapazinho. Levantou-lhe a
camisa e viu que ele tinha as costas cobertas de grossas cicatrizes castanhas,
com cerca de duas semanas e já a sarar. No entanto, quem o espancara
cortara-lhe a pele.
– Quem te bateu, Alan? – Headly tentou manter a voz descontraída,
embora estivesse consumido por uma enorme raiva.
– O meu pai. – Os olhos do menino encheram-se de lágrimas, que lhe
escorreram pelo rosto. – A Rosie disse-me para vos dizer, para ele não
poder voltar a bater-me.
Headly pegou nele ao colo e apertou-o com força contra o peito. Olhou
com uma expressão dura para Nutting, que continuava sentado no banco do
passageiro, a olhar em frente. Pensou que o guarda precisava de um pontapé
no traseiro, mas não era o momento certo.
– Conduza o carro, guarda – disse. – O rapaz pode sentar-se no meu colo.
Às cinco horas daquela tarde, Headly dirigiu-se uma vez mais para
Catcott. Desta vez não estava acompanhado pelo guarda Nutting, mas pelo
inspetor Dunn do Departamento de Investigação Criminal. O objetivo dos
dois agentes era informar Cole Parker de que Alan estava sob a custódia das
autoridades locais e avisá-lo de que poderia ser acusado de crueldade para
com uma criança. Apesar de Headly não estar nada contente por uma
criança ter de ser magoada antes de poder convencer um oficial superior a
interessar-se mais ativamente pela sua investigação às atividades de Cole
Parker, estava satisfeito por ter um bom motivo para regressar a May
Cottage. O inspetor Dunn era um homem determinado e não se deixaria
levar pelo encanto de Parker. Estava há trinta anos na polícia e, como
Headly, seguia os seus palpites.
Agora, Alan estava em segurança e muito feliz aos cuidados de Miss
Pemberton, a assistente social da zona, e a caminho de uma família de
acolhimento temporária em Taunton. No começo ficara muito transtornado
por ser alvo de tantas atenções e não parava de perguntar quando é que
voltaria a ver Rosie. Porém, depois de ser lavado, de ser vestido com roupa
limpa e de ter jantado, e perceber que não seria castigado de maneira
nenhuma, tinha-se tornado muito falador.
Para os polícias com filhos, que nunca iam além de um ocasional carolo
ou palmada nas pernas das crianças, foi aterrador ver uma criança tão
pequena que não fazia ideia de que as outras crianças não eram espancadas
com paus por fazerem xixi na cama ou por deixarem cair um ovo no chão.
Todos os relatos que Alan fez sobre o comportamento dos irmãos e do pai
eram parciais, como se pensasse que era um menino muito mau e, por
conseguinte, merecedor daquele tratamento. Quando lhe perguntaram se
Rosie também era espancada ele admitiu que por vezes também levava uma
tareia, mas não com tanta frequência como lhe batiam a ele porque Rosie
era rapariga e cuidava de todos.
– Alguma vez conheceu um homem que fosse deixado com uma criança e
não comunicasse o desaparecimento da mãe? – perguntou Headly alguns
minutos depois de começarem a viagem.
Dunn abanou a cabeça. Tinha cinquenta e sete anos, mas parecia mais
novo, com frios olhos cinzentos, lábios finos e cabelo castanho-escuro
abundante. Uma vez, a mulher comentara que ele se mantinha com uma
aparência tão jovem porque não tinha emoções. Talvez tivesse razão; ele
não ficava perturbado como outros homens. Analisava as coisas de uma
perspetiva calma e lógica.
Desde que voltara com o rapazinho naquela manhã, Headly analisara
minuciosamente o cadastro de Parker. Para além de várias multas por caça
furtiva e seis meses na prisão de Shepton Mallet por agressão, muito antes
da guerra, Parker conseguira safar-se das muitas outras acusações que lhe
tinham sido imputadas ao longo dos anos. Fora acusado de vender no
mercado negro e de pilhagens durante a guerra, de roubo e inúmeras
agressões, em muitas das quais as vítimas tinham ficado tão feridas que
tiveram de ser hospitalizadas. No entanto, todas as acusações haviam sido
retiradas. Muitas vezes as testemunhas pareciam incapazes de ir a tribunal,
ou de fazer uma identificação definitiva, e em dois casos os agentes que
haviam feito a detenção mudaram as declarações iniciais.
– É óbvio que o Parker não é o diamante em bruto que o agente Nutting
pensa – declarou Dunn de maneira incisiva. – Maldito imbecil! Se sabia que
três mulheres desapareceram daquela casa, porque é que não nos informou?
Headly pensou bem antes de responder. No seu íntimo, pensava que
Nutting era um bocado burro e extremamente desatento, mas ao mesmo
tempo sentia alguma pena dele. Era difícil arrancar alguma coisa às pessoas
que viviam nos Levels; eram uma comunidade insular e fechada, e não
falavam de boa vontade contra um dos seus.
– Quando conhecer o Parker, acho que vai perceber porque é que o
Nutting deixou passar – disse. – Ele sabe ser um tipo agradável e, à
primeira vista, gosta de todos os filhos.
– Vou ter isso em consideração – afirmou Dunn. – Mas não pretendo
andar com pezinhos de lã com esta família. Quero que sejam todos trazidos
para interrogatório. Incluindo a rapariga.
Rosie teve de se pôr em bicos de pés para espreitar pelo vidro da porta do
salão de chá da estação de Temple Meads. Viu o seu reflexo nos espelhos
atrás do comprido balcão de madeira, as cúpulas de vidro que tapavam os
bolos, uma máquina de sumo de laranja Kia Ora com laranjas artificiais a
boiar e as nucas de algumas pessoas. Porém, eram quase todas cabeças
femininas, todas com chapéu. Rosie pensou que os homens deviam preferir
esperar no comboio ou apanhar ar fresco; ela também não gostou muito do
cheiro pungente de chá deixado demasiado tempo em infusão e de cigarros
que escapava sempre que a porta era aberta.
Hesitou antes de empurrar a porta envidraçada, em parte porque recordou
uma vez mais a maldosa insinuação de Mrs. Bentley sobre ser muito
estranho que Thomas Farley quisesse vê-la, mas acima de tudo porque ficou
surpreendida ao ver que ele já a esperava. A mesa onde estava sentado
ficava à direita de onde espreitara e ele estudava os horários dos comboios.
Estava diferente de como se recordava dele. Talvez fosse porque não
usava o chapéu mole e porque o casaco de tweed, a camisa e a gravata às
riscas eram muito mais formais do que a camisa de colarinho aberto que
usava quando se tinham visto pela primeira vez. Não obstante, ficou
impressionada ao perceber que tinha um bom rosto, com sobrancelhas
claras e hirsutas e um nariz aristocrático. O rosto era demasiado magro e
enrugado para ter uma beleza convencional, mas ao mesmo tempo aquelas
rugas sugeriam força de carácter e havia alguma coisa irresistível nele que o
diferenciava dos outros homens.
Thomas devia ter sentido a sua presença porque levantou a cabeça e
olhou-a nos olhos. Sorriu e por instantes pareceu a irmã, com os mesmos
olhos castanhos meigos e aquele brilho especial que ela tinha.
Rosie percebeu de imediato que não devia permitir que Mrs. Bentley a
influenciasse sobre as pessoas, pois ela era demasiado mesquinha para ver o
lado bom de alguém. Este homem não tinha nada estranho, a menos que
fosse a sua invulgar bondade.
Quando se aproximou da mesa, Thomas puxou uma cadeira para ela se
sentar.
– Tive receio de que não viesses – disse. – Já estava conformado com
uma longa e maçadora espera entre comboios.
– Eu estava com um bocado de medo de voltar a vê-lo. – A voz de Rosie
tremeu de nervosismo. – Mas queria muito saber notícias do Alan.
– E vais saber como ele está – declarou Thomas quando ela se sentou. –
Mas primeiro vou buscar chá e bolo para os dois.
A verdade é que estava a ser difícil para Thomas não olhar fixamente para
ela. Quase não conseguia acreditar que aquela linda rapariga com um
vestido verde que lhe assentava bem, sapatos engraxados, lindas meias
brancas pelos tornozelos e o cabelo cor de cobre penteado e brilhante era a
mesma maltrapilha suja que lhe oferecera uma chávena de chá em May
Cottage. Parecia pertencer a uma família da classe média e nunca ter tido
um dia infeliz em toda a sua vida. Até o sotaque do Somerset parecia ter-se
atenuado um pouco.
Porém, quando Rosie corou e deixou cair a cabeça Thomas ficou triste.
Ela fora muito arrojada quando a conhecera.
Quando voltou do balcão com um tabuleiro ela ainda parecia inquieta, e
de repente endireitou-se como se estivesse preparada para fugir. Thomas
começou logo a contar-lhe as novidades de Alan, esperando que isso a
descontraísse.
– O Alan está verdadeiramente feliz com Mr. e Mrs. Hughes, por isso não
te preocupes com ele – começou, e descreveu a linda e luminosa casa
moderna com janelas salientes e um grande jardim nas traseiras onde havia
uma caixa de areia e um baloiço. – O Alan divide o quarto com o Raymond,
que tem oito anos; além deles, há a Jennifer, que tem quatro anos e dorme
num quarto mais pequeno. Devias ver os brinquedos que eles têm, Rosie,
até parece uma loja de brinquedos, e dúzias e dúzias de livros. O preferido
do Alan é o triciclo e anda nele de um lado para o outro no jardim. Chama
tio e tia aos Hughes.
Thomas contou-lhe sobre um cão chamado Rex, uma casa de brincar feita
com velhos estendais e cobertores, e até lhe disse que Alan estava a
aprender a ver as horas.
Enquanto ouvia aquele homem que mal conhecia falar com tanto afeto e
interesse sobre o irmão, garantindo-lhe que o menino estava muito feliz, o
seu nervosismo começou a desvanecer-se.
– Acho que esgotei o tema do Alan – acabou ele por dizer. – Agora é a
tua vez de me contares tudo o que tens feito e o que te está a acontecer.
Rosie não se lembrava de alguém lhe ter perguntado alguma coisa sobre
si. Por vezes achava que a polícia a tinha espremido até lhe arrancar todas
as informações acerca do pai e dos irmãos, mas não tinham nenhum
interesse na sua pessoa. Mrs. Bentley era igual e fazia-lhe perguntas sobre
os homens, mas não estava nada interessada no que Rosie sentia. Na
verdade, passava algumas noites acordada a perguntar a si mesma se o seu
destino seria ser alguém sobre quem as pessoas falavam à socapa, um
estorvo que sentiam que tinham de ajudar, mas preferiam manter longe da
vista.
Foi bom falar, partilhar com outra pessoa todas as coisas novas que
descobrira desde que saíra dos Levels. Falou-lhe sobre o desfiladeiro do
Avon, a ponte suspensa e a subida à Torre Cabot para apreciar a vista
panorâmica de Bristol. Falou sobre as maravilhosas lojas que vira, os lindos
jardins e todos os livros que lera. Queria que ele pensasse que era feliz.
Todavia, Rosie depressa percebeu que Thomas Farley era tão perspicaz
como bondoso. Tinha um talento especial para pegar num fio escondido de
uma história que ela contava e puxá-lo. Uma vez, quando estava a descrever
uma refeição, outra vez quando lhe relatou o incidente daquela manhã na
igreja. Nos dois casos, contara a história para se rirem, imitando a voz altiva
e os modos empertigados de Mrs. Bentley. Porém, embora Thomas se risse,
pareceu perceber a vergonha que ela escondia.
– Achas que as pessoas que vão à igreja sabem quem és? – perguntou.
– Sei que sabem – respondeu Rosie com um encolher de ombros. – Mrs.
Bentley contou-lhes. Aposto que a faz sentir-se muito ousada por ter a filha
de um assassino a viver lá em casa.
– E o que é que tu sentes em relação a isso? – perguntou ele. Um médico
fizera-lhe a mesma pergunta uma vez e ele sentira um enorme alívio ao
admitir frontalmente que depois do tempo que passara no campo de
prisioneiros de guerra sentia que era apenas meio homem.
Rosie hesitou. Era a primeira vez que alguém lhe fazia aquela pergunta.
– É importante falar sobre o assunto – disse Thomas suavemente. – Só
depois vais conseguir enfrentar o problema.
– Se quer mesmo saber, sinto que tenho sangue impuro, Mr. Farley –
respondeu Rosie em voz baixa, a olhar em volta para se certificar de que
ninguém estava a escutar a conversa. Havia cerca de vinte pessoas perto
deles e, como na igreja, tinha a sensação de que todas sabiam quem era,
embora o senso comum lhe dissesse que era impossível. – Se mudasse de
nome e fosse viver para longe deste lugar talvez ninguém soubesse quem eu
era durante algum tempo. Mas não posso mudar quem sou na realidade,
nem o pai que tenho. Estou marcada para a vida, não estou?
– Isso é um disparate – declarou Thomas com firmeza. – As pessoas vão
esquecer o que o teu pai fez e, com o tempo, tu também esquecerás. – No
fundo, sabia que Rosie tinha razão e era quase um insulto à sua inteligência
argumentar com ela. No entanto, era um fardo muito pesado para uma
rapariga tão jovem. – Vamos esquecer isso do Mr. Farley – sugeriu,
mudando de assunto. – Para ti é apenas Thomas. Agora, fala-me mais sobre
os Bentley.
Rosie pensou que o nome Thomas lhe assentava muito bem. Todos os
Tom que conhecera na escola eram temerários e divertidos e teve a sensação
de que ele também era assim. Quando sorria, o rosto inteiro iluminava-se
como o de Heather. Aquilo foi estranhamente reconfortante.
– Mr. Bentley é simpático, mas não fala muito – começou. – Mas ela é
muito formal. A mesa tem de ser posta na perfeição. Eu não devo correr
pelas escadas abaixo e também não posso andar descalça. Está sempre a
corrigir o que digo e não gosta muito dos meus modos à mesa.
– Os primeiros tempos na tropa foram difíceis para mim – disse Thomas,
compreendendo o que ela queria dizer. – Eu era duro e forte e não suportava
ser tratado como se fosse de segunda classe por causa do meu sotaque e da
minha origem. Havia jovens oficiais magricelas e muito burros, que só
estavam ali porque tinham estudado em bons colégios privados, e eram eles
que me davam ordens.
«Mas o meu sargento deu-me alguns conselhos para lidar com eles. Ele
disse-me: ‘Mantém a boca fechada, Farley, e faz-lhes continência como
deve ser. Se eles te derem uma ordem, cumpre-a, mas faz tudo melhor e
mais depressa do que eles fariam. Observa esses imbecis aristocráticos e
aprende com eles. Lembra-te de que nenhuma experiência é desperdiçada.’»
Rosie abriu a boca para dizer que estava convencida de que saber a
diferença entre uma colher de chá e uma colher de compota não era vital
para a sua educação, e que viver com os Bentley não era uma experiência
enriquecedora. Todavia, uma expressão nos olhos de Thomas fê-la reprimir
o comentário que se preparava para fazer. Percebeu logo que ele
compreendia verdadeiramente o que ela estava a passar e que isso só podia
ser porque estivera numa situação muito semelhante uma ou duas vezes na
vida. Pensou que era surpreendente não sentir amargura por não ter uma
perna; e mais fantástico ainda era o facto de ter um coração suficientemente
grande para se encontrar com a filha do homem que era suspeito de
assassinar a sua irmã.
– Tem alguma ideia do trabalho que eu poderia fazer? – perguntou em vez
disso, com uma sombra do seu antigo sorriso descarado. – Só sei cozinhar e
limpar.
– No fim da guerra eu estava numa situação muito parecida com a tua –
disse Thomas. – Antes de ser soldado não sabia fazer mais nada a não ser
transportar carne no mercado de Smithfield e não podia voltar a carregar
metades de animais porque tinha apenas uma perna. Começava a
desesperar, mas depois alguém me falou sobre os programas
governamentais de reciclagem criados especialmente para ex-combatentes.
Havia de todos os tipos... pedreiro, canalizador, carpinteiro... mas eu escolhi
relojoaria porque podia trabalhar sentado.
– Gosta do que faz? – perguntou Rosie. Não sabia porquê, mas não
conseguia imaginá-lo curvado sobre uma bancada de trabalho a fazer uma
coisa delicada; apesar da sua incapacidade, parecia um homem que gostava
de estar ao ar livre.
– Gosto – respondeu Thomas, depois de pensar durante alguns instantes.
– É muito absorvente. E posso viver em Hampstead, que é uma das
melhores zonas de Londres. No fundo, acho que sou uma pessoa com muita
sorte. Mas voltemos a ti. Há algum trabalho que gostasses especialmente de
fazer?
– Gostava de ser enfermeira – confessou Rosie. Tivera esta ideia no
hospital, depois das conversas com a enfermeira-chefe Dowd. – Mas é
preciso ter dezoito anos para isso e não sei se conseguirei aguentar os
Bentley mais dois anos.
– Fica com eles até o julgamento do teu pai terminar e teres dezasseis
anos – sugeriu Thomas. – Não te esqueças de trabalhar muito e sorrir
docemente para te darem boas referências e depois arranja outro emprego,
talvez num colégio interno ou num lar de idosos, até teres idade suficiente.
Rosie baixou os olhos para a mesa. Gostava muito daquele homem.
Gostaria de conseguir expressar o quanto lhe estava grata, mas não saberia
por onde começar.
– O senhor é um homem muito bom – acabou por dizer, com as faces
ruborizadas.
Thomas estendeu o braço sobre a mesa para pousar a mão sobre a dela.
– E tu és muito corajosa, Rosie.
Rosie sentiu picadas nos olhos.
– Obrigada, Thomas – disse com voz trémula. – Mas agora tenho de ir. –
Olhou para o relógio que estava por cima da porta e viu que faltavam dez
minutos para as cinco. – É uma longa caminhada para Kingsdown e Mrs.
Bentley quer-me em casa às cinco e meia.
Levantou-se, deu-lhe um tímido beijo na face e afastou-se rapidamente.
Thomas coxeou até à porta do salão de chá e chegou a tempo de vê-la
entregar o bilhete de gare ao guarda que estava junto da barreira. Ao longe
parecia o que era, uma criança muito magra, mas enquanto conversava com
ela tivera a impressão de estar na companhia de uma pessoa adulta.
Thomas sentou-se de novo e de repente sentiu-se muito cansado. A
viagem desde Paddington no dia anterior, a noite passada numa pensão
barata e apenas duas horas com Alan – se não fosse Rosie, talvez tivesse
pensado que a viagem fora uma perda de tempo, dinheiro e energia.
A entusiástica imagem da felicidade de Alan com Mr. e Mrs. Hughes que
pintara para Rosie era verdadeira. No entanto, não conseguira contar-lhe
que se sentira um incómodo desconhecido que não devia estar ali. Alan
quase não olhara para ele, pois estava demasiado entretido com o seu
triciclo e com um comboio de madeira.
Thomas estava muito consciente de que as pessoas não sabiam o que
pensar dele. Nos últimos anos fora descrito como severo, sério, lúgubre,
sem humor, solitário, misterioso e reservado. Na verdade, não era nenhuma
destas coisas, exceto talvez solitário, mas não o era por escolha, apenas
pelas circunstâncias. Se não falava, não se ria nem se esforçava para fazer
amigos era porque estava constantemente consciente de todos os que tinha
perdido.
Em 1940, quando entrara para os Fuzileiros Reais, era como qualquer
outro recruta de dezoito anos, um miúdo que gostava de se divertir, que
procurava aventuras e que até então passava os seus tempos livres na rua
com os amigos, a ver as raparigas ou a jogar futebol. Tinha sido atirado de
cabeça para a guerra no momento em que terminara a recruta. O seu
regimento foi mandado para Dunquerque para cobrir a retirada de tropas.
Viu dois bons amigos morrerem a alguns metros de si, mas não pôde correr
para eles e nem sequer teve tempo para derramar uma lágrima por eles.
Cresceu muito depressa em França.
Ser mandado para Singapura no princípio de 1941, quando tantos outros
regimentos estavam a ser mandados para o norte de África, pareceu ser uma
bênção. Os Japoneses não estavam lá naquela altura e pensava-se que se e
quando viessem, seria pelo sul e os grandes canhões navais estavam
apontados naquela direção, prontos para os receber. Para o regimento de
Thomas, foi um tempo de relativa descontração; havia muita comida, muita
diversão com raparigas bonitas nos bares, podiam nadar no mar de água
quente e havia um país e uma cultura completamente novos para
explorarem.
Porém, os estrategas dos grandes canhões estavam errados e os Japoneses
surpreenderam toda a gente aproximando-se pelo norte através da Malásia.
Os canhões foram inúteis na defesa de Singapura e a cidade caiu em
fevereiro de 1942. Thomas foi um de milhares de homens que foram
cercados e levados para a prisão de Changi. Mais tarde, foi levado para a
Birmânia, para construir estradas. A viagem, feita em parte de comboio,
mas quase toda numa marcha forçada com pouca comida ou água, roubou
muitas vidas. Porém, as mortes naquela marcha interminável não foram
nada quando comparadas com a quantidade de homens que morriam todos
os dias no campo de prisioneiros de guerra.
Quando Thomas foi libertado, perguntaram-lhe porque é que pensava que
tinha sobrevivido depois de ter sofrido de disenteria, úlceras tropicais e
malária. A rir, ele respondera que tinha sido por teimosia, por sentir que era
demasiado jovem para morrer numa selva quente quando sabia tão pouco da
vida. Admitira que passara a maior parte do tempo que estivera preso no
campo de prisioneiros de guerra a planear a exploração do resto do mundo,
a imaginar todas as mulheres que amaria, todas as deliciosas refeições que
comeria, todos os sítios que visitaria.
Contudo, depois de lhe amputarem a perna ulcerada percebeu que a sua
mente já não conseguia construir aquelas imagens animadoras que o
ajudaram tanto no campo de prisioneiros de guerra. Não parava de pensar
teimosamente nos amigos que tinham morrido. Dúzias e dúzias deles, e via
os seus rostos descarnados como um sombrio friso nas paredes da
enfermaria. Até sentia pena por ter conseguido sobreviver e começou a
evitar o contacto com as pessoas.
A solidão tornou-se um hábito quando saiu do hospital e foi viver numa
pensão para ex-combatentes. As raparigas faziam-lhe olhinhos muitas vezes
e outros homens tentavam que se juntasse a eles no pub. No entanto, não
queria fazer amigos com medo de que eles insistissem em questioná-lo
sobre as suas experiências durante a guerra. E nem sequer podia pensar em
fazer amor com uma mulher agora que era aleijado. Assim, sem se dar
conta disso, construiu uma parede invisível à sua volta que ninguém
conseguia transpor.
No entanto, quando descobriu que Heather fora para o Somerset uma
parte dessa parede ruiu. Oito semanas antes partira cheio de alegria à sua
procura. Pela primeira vez em anos teve consciência das outras pessoas e
até se interessou o suficiente para conversar com elas. Enquanto o comboio
seguia para ocidente recordou coisas boas, imagens da sua infância em
Poplar, de amigos de escola e das suas velhas ambições de ser um artista
famoso.
No entanto, alguns dias mais tarde, quando regressou a Londres, a sua
mente quase não conseguia suportar as emoções contraditórias que sentia.
Raiva por desconfiar que Cole Parker podia ter assassinado a irmã. Ternura
pelo pequeno menino sem mãe que só vira durante breves momentos.
Ansiedade por Alan poder estar a ser maltratado e também impotência por
não poder fazer nada. Todavia, embora se sentisse a enlouquecer e zangado,
foi bom voltar a sentir alguma coisa. Vivera num vácuo durante tantos anos
que temera ser incapaz de voltar a sentir. Depois, soube pela polícia de
Bridgwater que Alan estava sob os cuidados da assistência social e de
repente sentiu que tinha um objetivo verdadeiro.
Um homem precisava de algo mais na vida para além do trabalho. Alan
necessitava de um lar. Thomas deu por si a pensar onde poderia colocar
uma cama para o menino no seu minúsculo apartamento e a refletir sobre
como planearia os dias se tivesse de cuidar de uma criança.
Quando a polícia encontrou os cadáveres das duas mulheres não ficou
verdadeiramente surpreendido, pois estava convencido de que Parker as
assassinara quase desde o primeiro momento. Porém, quando soube que
Rosie estava no hospital depois de o irmão mais velho a ter espancado com
gravidade, ficou arrasado. Foi quase tão mau como o desgosto que sentira
com Heather. Sentiu-se profundamente responsável porque estava tudo
relacionado com a sua ida à polícia. Também não conseguia esquecer que
fora Rosie que tivera a coragem e iniciativa de pôr Alan em segurança, sem
pensar na sua, enquanto ele continuava a refletir sobre o próximo passo.
Nas últimas semanas, desde que soubera que Alan estava em segurança e
bem cuidado, uma voz racional começara a fazer-se ouvir. Percebeu que um
simples laço de sangue não significava que tivesse qualificações para se
tornar pai e mãe de um dia para o outro.
Ficara intrigado quando o rapaz não demonstrara o menor interesse no
facto de Thomas ir encontrar-se com Rosie quando voltasse para casa. Não
fizera uma única pergunta sobre ela, nem sequer lhe mandara uma
mensagem. Quando estavam sozinhos, Mrs. Hughes admitiu que ele deixara
de falar nela poucos dias depois de chegar e que era possível que tivesse
decidido bloquear todas as recordações de May Cottage, tanto as boas como
as más.
Thomas não conseguiu deixar de pensar que as crianças eram
incrivelmente resistentes.
Achou irónico que, embora ele e Rosie precisassem de alguém nas suas
vidas, a criança que era o ténue laço entre ambos não parecia necessitar de
nenhum deles. A verdade é que a vida estava cheia de ironia e poucas
pessoas tinham o que mereciam, ou necessitavam.
– Rosie, nós não pomos a faca no frasco do doce – declarou Mrs. Bentley
com brusquidão. – Tens de usar a colher! Coloca um pouco na beira do
prato e depois espalha-o no pão.
– Desculpe – replicou Rosie. No íntimo, pensava que a sua forma de fazer
aquilo era muito menos complicada e poupava o trabalho de lavar mais uma
colher.
Desejou ter descrito Mrs. Bentley a Thomas. Estava convencida de que
ele teria achado graça a como tudo nela era firmemente mantido no lugar.
Os sorrisos eram estritamente controlados, para a igreja e para as visitas, e a
sua conversa era pomposa. Até os cotovelos pareciam estar colados ao lado
do corpo. A única vez que Rosie os vira sair daquela posição foi quando ela
lhe deu uma lição sobre como pendurar a roupa lavada à sua maneira.
Rosie sabia que ela devia ter cerca de cinquenta anos porque uma vez
mencionara que vira uma parada de militares que iam partir para a Primeira
Guerra Mundial quando tinha a sua idade. O seu rosto continuava sem
rugas, mas arfava e agarrava-se aos lados do corpo quando subia as escadas.
Não conseguia imaginar Mrs. Bentley em rapariga. No entanto, gostava de
imaginar como ficaria depois de beber duas canecas de sidra. Isso poderia
soltá-la!
Hoje Mr. Bentley estava tão silencioso como sempre. Na verdade, se
pensasse bem, a vez que ele falara mais com ela fora no seu primeiro dia
naquela casa. Pigarreara, balbuciara algo sobre «as suas infelizes
circunstâncias» e depois dissera-lhe que se precisasse de alguma coisa era
só pedir e que não devia esquecer-se de rezar as suas orações todas as
noites. Outra vez, perguntara-lhe, nervoso, sem que a mulher ouvisse, se
queria ir visitar o pai e o irmão à prisão, porque se quisesse trataria de tudo.
Parecera muito aliviado quando ela respondera que não.
No entanto, naquele dia Rosie recordou o seu sorriso e pensou que era
possível que Mr. Bentley fosse muito diferente fora de casa.
– Rosie! Senta-te direita à mesa. – Mrs. Bentley espetou-lhe o dedo na
coluna através das costas da cadeira. – E corta essa fatia de pão ao meio
antes de começares a comê-la!
Rosie suspirou no seu íntimo. Tinha tanta fome que poderia comer toda a
travessa de fatias finas de pão com manteiga. Depois de perder tempo a
colocar o doce no prato, barrá-lo no pão e cortá-lo, quase não valeu a pena,
pois comeu-o todo de uma dentada.
A sala de jantar era tão deprimente como Mrs. Bentley. Mesmo nos dias
mais quentes, era fria e inóspita. As cadeiras pareciam desenhadas para
ninguém ficar sentado nelas durante muito tempo. Crina de cavalo picava-
lhe as pernas e os relevos no espaldar esculpido espetavam-se nas suas
costas. A divisão estava voltada para a rua e o papel de parede era de um
castanho sombrio que era ainda mais carregado com muitos quadros com
cenas terríveis da Bíblia. «Salomé», com a cabeça cortada de São João
Batista numa bandeja de prata, parecia uma escolha estranha de pintura para
uma sala de jantar. Fazia-a estremecer.
Mrs. Bentley cortou o bolo de frutas e olhou para Rosie como se tivesse
decidido que chegara o momento de terem uma conversa.
– Agora, minha querida – disse, num tom cerimonioso. – Como correu o
teu encontro com Mr. Farley?
Mr. Bentley olhou para Rosie com a delicada expressão interessada que
ostentava sempre que uma conversa decorria na sua presença. Rosie
perguntou a si mesma se ele escutava ou se o seu pensamento estava a um
milhão de quilómetros de distância?
– Foi agradável voltar a vê-lo – respondeu. – Ele parecia cansado, foi uma
longa viagem. Contei-lhe que tem uma perna artificial? Serraram-na quando
era prisioneiro de guerra.
– Membro é uma forma muito mais delicada de referir uma perna, minha
querida – corrigiu-a Mrs. Bentley. – E não falamos sobre amputações
durante as refeições.
Rosie não percebeu o que a palavra «perna» tinha de ofensivo. Nem
porque é que não podia dizer que fora serrada, quando a cabeça decepada
de São João Batista estava por cima deles. No entanto, agora que tinha a
atenção de Mrs. Bentley teve o maior prazer em lançar-se num
entusiasmado relato de como Alan estava feliz e bem-adaptado, incluindo
os pormenores do triciclo e do comboio de brincar.
– É uma boa notícia. Não é, Herbert? – perguntou Mrs. Bentley ao marido
quando Rosie se calou.
– Muito boa, minha querida – respondeu ele, servindo-se de uma fatia de
bolo de fruta.
– Bem, agora que sabemos que o teu irmãozinho está feliz e em
segurança, temos de pensar no teu futuro – declarou Mrs. Bentley, fixando
Rosie com os seus frios olhos azul-claros. – É claro que por enquanto
gostamos muito de te ter aqui, mas não é propriamente ideal para nenhum
de nós.
A verdade é que Edith Bentley considerava que Rosie era uma rapariga
desconcertante. Trabalhava muito, mais depressa e melhor do que uma
mulher com o dobro da sua idade. Mas eram os seus modos arrojados que a
incomodavam. Esperava que uma criança na sua posição estivesse tão
envergonhada com o que o pai fizera que não conseguiria olhar ninguém
nos olhos. Em vez disso, Rosie fazia perguntas, olhava abertamente para as
pessoas e muitas vezes parecia esperar que gostassem dela.
Ainda por cima, não era agradecida. E Edith desconfiava que a rapariga
estava a rir-se de si em silêncio.
– Pensei escrever uma carta a Miss Pemberton amanhã e sugerir-lhe que
te encontre outra casa.
Rosie olhou para ela, a tentar perceber o que fizera de errado. Os seus
olhos começaram a encher-se de lágrimas. Não que quisesse ficar aqui, mas
estava revoltada com a injustiça. Tentou reprimir as lágrimas, mas elas
vieram; a primeira saltou, depois outra, e de repente começou a soluçar.
Edith Bentley preparara-se para algum atrevimento, por isso ficou
embasbacada ao ver lágrimas.
– Ora, ora, minha querida – disse, sem saber o que fazer ou dizer. –
Sabias que esta casa era apenas uma solução temporária.
– Mas pensei que ia ficar aqui até ao fim do julgamento – soluçou Rosie.
– Pensei que os senhores também estavam satisfeitos comigo.
– Ora, Edith, não vamos precipitar-nos – declarou Mr. Bentley.
Rosie ficou tão surpreendida ao ouvir a voz de Mr. Bentley que a sua
boca se abriu e ela rodou para olhar para ele. Ele parecia mais animado do
que era habitual, com um tom rosado na tez de pergaminho e os olhos
brilhantes.
– A Rosie é uma grande ajuda para nós – disse com um encolher de
ombros. – Não vejo nenhum motivo para mandá-la embora agora que ela
está a começar a adaptar-se.
Depois de Mr. Bentley falar, Rosie foi mandada sair da sala de jantar, por
isso não ouviu a conversa entre o casal. Porém, passado algum tempo Mrs.
Bentley desceu para a cozinha com o tabuleiro com as coisas do chá e, para
variar, parecia não ter muito a dizer.
– Decidimos que vais ficar cá, pelo menos por enquanto – declarou a
atropelar as palavras, como se estivesse ansiosa para terminar o que tinha
para dizer e ir-se embora. A boca estava apertada, como se não aprovasse
aquela decisão. – Por isso é melhor esforçares-te se não queres que me
arrependa.
Rosie não percebeu porque é que abraçou Mrs. Bentley. Não tinha o
hábito de abraçar pessoas e a mulher não dissera nada que merecesse um
abraço. Todavia, pareceu-lhe a coisa certa. Mrs. Bentley não reagiu; foi
como se Rosie estivesse a abraçar um marco de correio e ficaram as duas
igualmente rígidas. No entanto, recebeu uma festa na cabeça e foi melhor
do que mais um sermão.
*
Embora as primeiras três semanas em Kingsdown tivessem parecido
intermináveis, o resto do verão passou a voar. Em dias soalheiros, até houve
momentos em que Rosie gostou de estar ali. Mrs. Bentley estava muito
embrenhada na organização de uma festa que decorreria na igreja de St.
Matthew no fim de agosto, por isso passava muito tempo fora. Sem
ninguém a andar atrás dela, Rosie despachava as tarefas domésticas e
arranjava quase sempre tempo suficiente antes do almoço para passar cerca
de uma hora a tratar do jardim, e mais ainda durante a tarde.
Tinha plena consciência de que nunca gostaria de Mrs. Bentley, mas
adorava o seu jardim. Como a casa estava construída numa colina e o
jardim tinha um declive íngreme na direção da cidade, podia muito
facilmente ter-se transformado num espaço baldio, como acontecia com
outros naquela rua. Contudo, em determinada altura alguém planeara e
fizera uma série de socalcos com grande cuidado. Plantas apropriadas para
terrenos rochosos caíam sobre os muros de sustentação e as tiras de relva
entre os socalcos eram verdes e macias. Altos muros de pedra rodeavam
todo o jardim, proporcionando-lhe proteção e privacidade, e havia muitas
árvores encantadoras. No entanto, Rosie pensava que uma das suas
principais atrações era que não se via tudo da casa: havia arcos cobertos de
rosas, dúzias de diferentes arbustos de flores e flores perenes que só eram
visíveis quando se descia até ao fundo. Mas os Bentley pareciam não se
interessar muito por aquele espaço. Mr. Bentley cortava religiosamente os
relvados, mas as ervas daninhas tinham escondido muitas das plantas mais
pequenas.
Rosie sempre tivera um conhecimento intuitivo de plantas e as suas
primeiras tentativas de limpar aquele jardim foram tímidas. Um grupo de
ervas daninhas arrancadas num sítio, um pequeno desbaste nas plantas que
necessitavam de mais espaço noutro. No entanto, quando viu a melhoria e
os Bentley não pareceram notar, tornou-se mais arrojada. À noite,
embrenhava-se muitas vezes na leitura de um dos muitos livros de
jardinagem que encontrou lá em casa e aprendeu tudo sobre flores que
nunca vira até agora. Começou a pensar que o jardim lhe pertencia e
decidiu fazer mais.
Enquanto fazia jardinagem esquecia que o pai e Seth estavam apenas a
alguns quilómetros de distância dali, na prisão de Bristol. Descobriu que a
vozinha que lhe dizia que ela devia contar tudo o que sabia sobre Seth a
alguém não se fazia ouvir aqui fora. Até os pensamentos sobre Alan eram
memórias carinhosas e não ansiosas. Gostava de sentir a terra nos dedos, de
ver as plantas florir com os seus cuidados. O sol quente nas costas, o
perfume das rosas, dos cravos e da relva acabada de cortar, e a beleza das
árvores e flores apagavam algumas das imagens mais feias do seu
pensamento.
A sensação de contentamento era ajudada pelas cartas semanais de
Thomas. Sentia-se menos isolada e mais otimista por saber que ele se
importava o suficiente para se sentar a escrever-lhe todas as tardes de
domingo. Descrevia-lhe tão bem Hampstead, a zona de Londres onde vivia,
que quase conseguia ver as pequenas lojas, a íngreme High Street que subia
até à charneca e as casas com lindos jardins. Por vezes descrevia as pessoas
que vinham à relojoaria, escolhendo as mais pretensiosas como se soubesse
que a faria rir.
Pensou que ele devia estar muito sozinho e perguntou a si mesma se seria
por não ter uma perna que não se casara. Fora visitar Alan mais uma vez e,
embora dissesse que o sobrinho tinha ido passar uma semana de férias à
Cornualha com os pais de acolhimento e os filhos destes, e que vira o seu
novo uniforme escolar, Rosie teve a impressão de que Thomas não
progredira muito com ele.
Rosie também lhe escrevia todas as semanas. Falava-lhe sobre o jardim,
os livros que lera e novas coisas que aprendera a cozinhar. Muitas vezes,
apetecia-lhe queixar-se da rispidez de Mrs. Bentley, outras vezes queria
ridicularizar a mulher, mas continha-se. Thomas não quereria saber essas
coisas. Além disso, Mrs. Bentley não era assim tão má e por vezes até era
simpática, deixando-a fazer bolos sozinha e ajudando-a a fazer um vestido
novo à noite na sua máquina de costura. Quanto a Mr. Bentley, Rosie não
tinha queixas; no seu estilo discreto, parecia gostar dela. Muitas vezes
trazia-lhe a Reader’s Digest ou a National Geographic porque percebeu que
as suas preferências de leitura iam para além das revistas femininas. Até lhe
pôs um candeeiro de mesa de cabeceira no quarto para ela poder ler na
cama. Os dias passavam agradavelmente e até os jornais tinham deixado de
falar sobre o pai.
Se não fossem as visitas quinzenais de Miss Pemberton, Rosie quase
conseguiria acreditar que estava em Kingsdown para ficar. Porém, a
assistente social trazia a realidade consigo nestas visitas, lembrando-lhe que
já não era uma criança e que em breve teria de ir à sua vida no mundo
exterior.
Durante uma visita disse que achava que Rosie devia pensar no futuro e
deu-lhe panfletos de carreiras que iam desde empregos em escritórios até
alistar-se no exército feminino, pedindo-lhe que os lesse todos para ver se
algum lhe agradava.
Noutra visita explicou-lhe os factos da vida, impassível perante o
embaraço de Rosie, e pareceu preocupada quando percebeu que ela ainda
não tinha o período. Nestas visitas nunca falavam sobre Cole ou os irmãos.
Rosie não abordava o assunto porque sentia demasiada vergonha e Miss
Pemberton não falava sobre eles porque pensava que a criança era mais
feliz na ignorância.
Só durante uma visita em meados de agosto, nove semanas após a
chegada de Rosie, é que Miss Pemberton sentiu necessidade de falar sobre
eles. Sabia que a data do julgamento seria marcada a qualquer momento.
Estavam na cozinha e Rosie limpava as pratas. Lá fora caía uma chuva
torrencial e já chovia há vários dias. Enquanto tomavam uma chávena de
chá falaram sobre a terrível cheia em Devon. Nessa manhã Rosie lera no
jornal que trinta e uma pessoas tinham morrido em Lynmouth. Perguntou à
assistente social como estavam as coisas nos Somerset Levels.
– Muito mal. Muitos campos estão inundados – respondeu Miss
Pemberton. – As pessoas que vivem junto do rio Parrett têm cerca de meio
metro de água em casa.
Rosie preparava-se para começar a falar sobre uma família que conhecia
cuja casa ficava inundada quase todos os invernos e que se mudava para o
primeiro andar depois do Natal à espera da água, mas percebeu que a
mulher mais velha tinha alguma coisa em mente.
– Há algum problema? – perguntou.
Miss Pemberton cruzou os braços na mesa da cozinha e pigarreou.
– Não é propriamente um problema. Tenho uma coisa para falar contigo.
Fui visitar o teu pai à prisão há alguns dias. – Calou-se e pareceu um pouco
agitada. – Pensei que seria essencial que alguém agisse como intermediário.
Decerto que há coisas que querem dizer um ao outro.
Rosie sentiu um arrepio gelado na espinha. Pressentiu que o que Miss
Pemberton queria acrescentar era «antes de ele ser enforcado».
– Eu não tenho nada para lhe dizer. – Rosie quase não conseguia suportar
a ideia de lhe chamar «pai». – Tento esquecê-lo.
– Pois eu acho que tens coisas para lhe dizer – declarou Miss Pemberton
suavemente, mas num tom firme. – Ele é teu pai!
Rosie não disse nada.
– Acho que se não lhe disseres nada poderás arrepender-te no futuro.
Ambas sabemos que é quase certo que será considerado culpado no
julgamento. E ambas sabemos muito bem o que isso significa.
Rosie engoliu em seco. Sabia exatamente o que aquilo significava. Uma
corda à volta do pescoço e uma longa queda.
– Que é que ele disse sobre mim?
– Disse que te amava. Que gostaria de ter feito melhor por ti. Pediu-me
para te dizer que lamenta muito ter-te batido naquele dia.
– Para mim, ele não passa de um assassino – afirmou Rosie, teimosa. –
Não me importaria se estivesse doente, zangado ou a ficar verde. Odeio-o.
Violet Pemberton olhou para Rosie e sentiu uma profunda pena da
rapariga. Ela era íntegra, forte e inteligente. Viera para esta casa nas piores
circunstâncias, mas conseguira tirar o melhor partido das coisas. A sua
dicção melhorara, parecia sempre limpa e asseada, com o cabelo bem
penteado, e gostava de aprender coisas novas. Violet não acreditava na ideia
de que os traços de personalidade eram todos inatos e estava convencida de
que muitas coisas eram aprendidas pelo exemplo e pela educação. Como a
mãe de Rosie desaparecera quando a criança tinha apenas seis anos,
dificilmente poderia ter sido uma grande influência. Por isso era lógico que
Cole fosse responsável, pelo menos em parte.
Desde que trabalhava como assistente social, visitara vários homens na
cadeia para falar com eles sobre as suas famílias. De um modo geral eram
pessoas traiçoeiras, desagradáveis e desonestas, tão inadequados que sentia
pouca compaixão por eles. Porém, Cole Parker não era nada disso; era um
homem grande e forte que, mesmo com um uniforme prisional, conseguia
parecer digno e orgulhoso. Olhou-a nos olhos enquanto falava e nunca se
vitimizou. Confessou-lhe que a sua relação com Heather se desmoronara
antes de Alan nascer porque tinha motivos para acreditar que o filho não era
seu. No entanto, disse que se sentia envergonhado por nunca ter conseguido
amar o rapaz como seu filho. E, apesar de ter muitos defeitos, aquele
homem conseguira transmitir à filha as suas melhores qualidades. Coragem,
determinação e orgulho. Violet sentiu-se comovida com isso.
– Bem, pensa no que te disse. – Fez uma festa na mão de Rosie. – Não
estou a sugerir que vás visitá-lo porque as prisões não são lugares para
meninas, mas talvez queiras escrever-lhe.
No dia 1 de setembro Herbert Bentley veio para casa mais cedo. Depois
de voltar do almoço, Miss Pemberton telefonara para o seu escritório com
as últimas novidades sobre Cole Parker. Sabendo que Edith estaria fora
durante a tarde numa das suas comissões da igreja, pensou que seria bom ir
para casa e aproveitar a oportunidade para falar com Rosie. Não confiava na
diplomacia da mulher.
Herbert não era o homem tímido e nervoso que as amigas e conhecidas da
mulher pensavam que era. Só se submetia ao seu domínio porque era mais
fácil do que o confronto. Se o seu casamento era frio, vazio e insatisfatório,
a sua tipografia era mais do que compensadora. Ali era ele que mandava, e
admirava os funcionários, que considerava mais seus amigos do que
empregados. Ganhava bastante bem, dava emprego a outras pessoas,
gostava do que fazia e há muito tempo que percebera que tinha mais sorte
do que a maioria dos homens.
Entrou em casa com a sua chave e parou na entrada durante alguns
instantes. A casa estava em silêncio e pensou que talvez não tivesse
adiantado nada e Rosie tivesse saído para ver montras.
Entrou na sala de visitas, pousou a pasta numa cadeira e despiu o casaco.
O calor voltara; parecia o verão de São Martinho. Dirigiu-se para as janelas
para abri-las, mas parou ao ver Rosie lá em baixo no jardim. Ela estava de
gatas, a plantar alguma coisa num dos canteiros.
Ficou a observá-la durante algum tempo atrás da cortina, para que não o
avistasse se olhasse para cima. Ela estava ajoelhada no chão, a dispor com
todo o cuidado as plantas, de uma forma que ele próprio se recordava de
fazer outrora, antes de o domínio de Edith o ter levado a passar cada vez
mais tempo na tipografia. Rosie revelara-se digna de ser ajudada; era uma
menina corajosa e muito inteligente. Qualquer pessoa que conseguisse
tolerar as críticas constantes de Edith e aprender tão depressa merecia uma
medalha.
Hoje, ao sol, o seu cabelo brilhava como cobre polido. Era um cabelo
lindo – ainda bem que impedira a mulher de o cortar curto como ela
sugerira uma vez. Arrependeu-se de ter vindo tão cedo para casa. Ela
parecia muito feliz e o que tinha para lhe dizer arruinaria aquela felicidade.
Nos dois dias seguintes Rosie descobriu que uma das piores coisas em
Carrington Hall era o tédio. Limpar e fazer as camas era bastante agradável
e ficou surpreendida ao perceber que se acostumara muito depressa à forma
repugnante como os doentes comiam, aos seus horríveis hábitos pessoais e
ao ocasional cocó no chão. Os barulhos terríveis do andar de cima ainda a
preocupavam e a malevolência da enfermeira supervisora deixava-a muito
inquieta. Porém, passar horas sentada numa sala abafada a vigiar doentes
que se arrastavam de um lado para o outro ou se baloiçavam nas suas
cadeiras fazia-a pensar que podia enlouquecer.
No entanto, embora fosse aborrecido para ela e para as outras
funcionárias, pelo menos tinham-se umas às outras como diversão, com
intervalos para as refeições e pequenos trabalhos para fazer. Os doentes não
tinham absolutamente nada com que se entreter. Não tinham livros, puzzles
nem sequer lápis e papel. Não admirava que a maioria se movimentasse tão
devagar. Rosie pensou que eles precisavam muito de fazer um pouco de
exercício físico. Ela própria se sentia como um tigre enjaulado, mas depois
do trabalho podia sair e passear se lhe apetecesse. Os doentes nunca tinham
essa oportunidade.
Porém, na terceira tarde o sol brilhava e a enfermeira supervisora mandou
avisar na enfermaria que Rosie e Mary Connor podiam levar os que
conseguissem descer as escadas para o jardim das traseiras.
A onda de entusiasmo que invadiu a sala de dia provou que era um raro
prazer, mas Rosie ficou surpreendida ao constatar que Maureen não estava
nada aborrecida por ter de ficar lá em cima com Aggie e alguns outros.
Disse que Rosie depressa perceberia que era uma grande trabalheira.
Demoraram quase uma hora a organizar sapatos e casacos de exterior
para oito pacientes e descer as escadas com eles, e Rosie supôs que era
àquilo que Maureen devia estar a referir-se. Porém, quando chegaram ao
jardim todos pareceram mais animados, a agarrar nos braços uns dos outros
e a apontar para coisas com grande entusiasmo, como se tivessem sido
levados de férias. Patty e Alice sentaram-se com poses afetadas num banco.
Tabby pousou o tricô que fizera questão de trazer e andou de um lado para o
outro, a espreitar no meio dos arbustos. Um dos homens mais velhos pôs-se
de gatas a examinar a relva com toda a atenção. Mas era Donald quem
parecia estar a aproveitar ao máximo; correu como um rapazinho pequeno a
fingir que era um avião.
De início, Rosie não conseguiu relaxar e a sua cabeça rodava de um lado
para o outro, a observar toda a gente. Imaginava-os a comer caracóis ou a
tropeçar e magoarem-se, mas depressa percebeu que o ar fresco parecia
acalmá-los e que estavam felizes por poderem deambular, ou sentar-se a
olhar em volta. Mary estava sentada com Patty e Alice, a ver uma revista.
Foi a força do hábito que a levou a começar a cortar as flores secas dos
amores-perfeitos e das dálias, e a arrancar algumas ervas daninhas, um ato
quase inconsciente que não conseguiu evitar.
De repente Donald surgiu a seu lado, assustando-a.
– P-p-posso ajudar? – perguntou, estendendo a mão para um tremoceiro.
– Essa não – disse Rosie. – É uma flor. Eu só estou a arrancar as ervas
daninhas. Elas não devem estar aqui, percebes? São ervas horríveis que
sufocam as plantas bonitas.
– M-mas não tem f-f-flores – retorquiu ele, olhando com alguma surpresa
para as folhas pontiagudas.
– Porque já deu flor este ano – explicou ela devagar. – Se a deixarmos
aqui, no próximo mês de junho vai dar mais flores azuis ou cor-de-rosa.
Mostrou-lhe as ervas daninhas e ele surpreendeu-a ao aprender depressa e
arrancar dentes-de-leão e morriões com entusiasmo.
– Eu gosto de j-j-jardins – declarou. – A-a-antes de vir para cá tinha um
lindo.
– Queres falar-me sobre ele? – perguntou Rosie. Ele estava ajoelhado ao
seu lado e tinha as faces rosadas por ter andado a correr de um lado para o
outro. Embora não tivesse esquecido o que ele lhe fizera quando entrara
pela primeira vez na enfermaria, Donald apagara o seu medo inicial
revelando-se muito educado e capaz. Intrigava-a e queria saber mais sobre
ele.
– Tinha um lago, com peixes, e muitas árvores – disse ele. Pareceu muito
pensativo e quase perdeu a expressão apática. Rosie também reparou que
dissera uma frase inteira sem gaguejar. – Quem me dera ainda viver lá.
– Eu também tinha um lindo jardim – disse Rosie, a pensar no dos
Bentley. – Sentia-me muito feliz quando estava a cavar e a plantar.
Podíamos fingir que este jardim é nosso, não podíamos? Ver as coisas
crescer juntos, aprender os nomes das flores.
De repente, Donald sorriu, mostrando dentes brancos perfeitos.
– Tu és simpática, Smith. Gosto de ti. Agora m-m-mostra-me algumas f-f-
flores.
Rosie percebeu que não conseguiria ficar mais tempo na cama. O sol
brilhava lá fora e estava uma linda manhã enevoada de setembro, com a
promessa de mais um dia quente. Levantou-se, tomou banho, lavou o
cabelo, vestiu a saia nova aos quadrados verdes e a camisola a condizer que
Miss Pemberton lhe comprara, fez a sua cama e a de Maureen e desceu para
tomar o pequeno-almoço.
Tinha todo o seu dia de folga planeado. Durante a manhã exploraria
Woodside Park e procuraria a biblioteca mais próxima. Pretendia comprar
um cinto de ligas para poder deitar fora as desconfortáveis ligas elásticas, e
comprar o seu primeiro par de meias de nylon. À tarde apanharia o
autocarro para Hampstead e descobriria a loja onde Thomas trabalhava.
Esperava que ele estivesse livre ao fim do dia para poderem pôr a conversa
em dia.
O pequeno-almoço terminava oficialmente às sete, mas estava implícito
que nos dias de folga, desde que as pessoas aparecessem antes das nove,
ainda haveria alguma coisa para comer. Rosie não podia apontar defeitos à
alimentação dos empregados de Carrington Hall. A comida era bem
confecionada e abundante, como se o racionamento não existisse. Todavia,
no instante em que entrou na sala de refeições e viu a enfermeira
supervisora sentada a ler o jornal desejou ter saído sem tomar o pequeno-
almoço.
Uma semana a trabalhar em Carrington Hall mudara a sua opinião sobre
algumas coisas que a tinham intimidado à chegada, mas a enfermeira
supervisora não era uma delas.
Mary Connor resumia-a na perfeição numa única palavra – «odiosa».
Linda fora mais longe e descrevera-a como um cheiro nauseabundo que
conspurcava o ar que os funcionários respiravam. Tudo o que Rosie
observara sobre a mulher até ao momento levava-a a acreditar que ela
medrava com malevolência. Estava sempre a observar, a pairar à porta da
sala do pessoal, a espreitar pelos painéis de vidro das portas, para ver se
apanhava alguém com a boca na botija. Pior ainda, Rosie pressentia que a
mulher mais velha a selecionara para um tratamento especialmente mau
porque não gostava que Mr. Brace-Coombes lhe tivesse dado emprego sem
a consultar. Como Mary dissera a rir, Rosie estava metida em sarilhos. Não
parecia suficientemente submissa, era demasiado bonita e, pior ainda aos
olhos da enfermeira supervisora, alguns dos doentes gostavam muito dela.
Nada que Rosie fizera até ao momento recebera a sua aprovação. Não
elogiara a forma como apertara o uniforme com a ajuda de Linda nem o seu
jeito para prender o cabelo num carrapito apertado. Não ficara nada
satisfeita quando entrara na sala de dia e encontrara Rosie a ensinar Patty e
Alice a jogar à cama do gato com um pedaço de fio e disse que ela deixara
os doentes demasiado excitados quando soube que tinha estado a jogar à
«Falua» com o grupo inteiro. Porém, até a enfermeira-chefe Welbred, que
desaprovava qualquer coisa que os pudesse deixar menos que dóceis,
comentou que todos estavam muito satisfeitos e submissos naquela noite
quando entrara de serviço. Rosie também tinha sido responsabilizada pela
fuga de Aggie, embora fosse Maureen quem se esquecera de fechar a porta
da sala de dia.
As outras raparigas diziam que a enfermeira supervisora tinha uma
cozinha muito boa só para si, e que podia pedir a Pat Clack para lhe servir
as refeições no seu apartamento, e pensavam que ela só usava a sala de
refeições para poder vigiá-las melhor.
– Não conseguias dormir? – perguntou a enfermeira supervisora num tom
sarcástico, levantando os olhos do jornal, e os seus lábios finos curvaram-se
num sorriso escarninho.
– Eu bem queria – respondeu Rosie. Sabia que a maior parte do pessoal
passava uma boa parte do dia de folga na cama e pensou que a enfermeira
supervisora estava a insinuar que ela era anormal. – Mas sempre tive de me
levantar cedo. Suponho que é um hábito difícil de quebrar. De qualquer
forma, quero ir à biblioteca.
Sentou-se nervosamente na outra ponta da mesa e serviu-se de cornflakes.
Pat Clack entrou com um bule de chá acabado de fazer e não melhorou
nada a situação tensa ao cumprimentar Rosie com um sorriso radioso. A
cozinheira decidira que Rosie era sua amiga desde que, dois dias antes, ela
se compadecera de uma queimadura séria que tinha na mão. Rosie calculou
que a enfermeira supervisora também não gostava disso.
– Ovos mexidos, querida? – sugeriu Pat, mas o seu tom indicou que lhe
faria o que ela quisesse.
– O que estiver a fazer – respondeu Rosie, tensa.
A enfermeira supervisora retomou a leitura do jornal. Rosie comeu os
cereais e esperou que a mulher mais velha a ignorasse. Porém, um suspiro e
um barulho de papel sugeriram que ela ia dizer mais alguma coisa.
– Então, aqueles monstros assassinos da tua terra vão a julgamento na
próxima semana!
Rosie soube logo a quem é que a mulher se estava a referir e o seu sangue
pareceu transformar-se em gelo.
– Quem? – perguntou, tentando parecer inocente. Esperava não estar a
corar.
– Os Parker. O pai e filho que assassinaram duas mulheres e as
enterraram no quintal. Decerto conheces a história?
– Oh, eles. – Rosie acenou com a cabeça e pôs outra colher de cereais na
boca, esperando que fosse uma boa desculpa para não falar.
– Todas as pessoas mais estranhas parecem vir da tua terra. É claro que
são todos do mesmo sangue. Trabalhei no Stoke Park em Bristol. Metade
das pessoas que trabalhavam lá eram tão loucas como os doentes que
estavam internados.
Rosie sentiu que era uma tentativa deliberada de provocá-la, por isso
encolheu os ombros e não respondeu.
– Admira-me que não tenhas ido trabalhar para lá e que tenhas vindo para
Londres, que é tão longe. Porquê?
Rosie quase se engasgou com os cornflakes.
– Uma amiga da minha família sugeriu que viesse para cá porque eu
queria trabalhar em Londres.
– Mas este hospício é muito afastado de Londres e não é uma instituição
conhecida. Acho um bocado estranho que a tua mãe te tenha deixado vir
para tão longe de casa.
O coração de Rosie começou a bater irregularmente. A enfermeira
supervisora parecia estar a tirar nabos da púcara.
– A minha mãe morreu quando eu era pequena – replicou, com um toque
de provocação. – A minha tia não gostou muito que eu viesse para tão
longe, mas eu quis vir para Londres.
A enfermeira supervisora recostou-se na cadeira e o seu sorriso foi quase
triunfante.
– Então, já eras rebelde em casa?
A chegada de Pat Clack com os ovos mexidos foi a desculpa perfeita para
não responder à pergunta. Começou a comer rapidamente, decidida a sair
dali o mais depressa possível. Manteve os olhos no prato, consciente de que
a enfermeira supervisora estava a observá-la.
– A raparigas tentam enganar-me muitas vezes – disse ela, após alguns
minutos de silêncio. – Candidatam-se a empregos aqui para esconderem
alguma coisa que fizeram. As pessoas acreditam que nos hospitais
psiquiátricos ninguém presta muita atenção, sabes? Já tivemos de tudo aqui.
Ladras, fugitivas, raparigas que deram os seus bebés para adoção ou que
acabaram de sair da prisão. No entanto, eu descubro sempre. Tenho faro
para essas coisas.
De novo no seu quarto dez minutos mais tarde, com as palavras da
enfermeira supervisora a ecoar nos ouvidos, Rosie verificou rapidamente
que não havia nada nas suas coisas que lhe desse motivos para mais
suspeitas. Um sexto sentido disse-lhe que o seu quarto seria revistado hoje.
Pegou na carta de Miss Pemberton, que chegara no sábado. Como
prometera, ela assinara, «amor e beijos, tia Molly» e não tinha nada que
fizesse alguém duvidar que era genuína. Apenas um carinhoso bilhete a
dizer que esperava que Rosemary estivesse a adaptar-se bem e que não
achasse Londres demasiado grande e estranha, e que esperava que lhe
escrevesse em breve a contar todas as novidades.
Rosie dobrou-a de novo com todo o cuidado, reparando como o fizera,
pôs uma marca a lápis na dobra de cima e colocou-a no envelope. Guardou-
o na gaveta da roupa interior e pôs um gancho de cabelo em cima, para
saber se alguém lhe mexera. Depois, tirou duas folhas e um envelope do
estojo de material de escrita e guardou-os na carteira.
Escreveria a Miss Pemberton na privacidade da biblioteca e poria a carta
no correio enquanto estivesse na rua. De repente, não confiou no sistema de
deixar cartas no rés do chão para serem postas no correio. Apostava que a
enfermeira supervisora as abria com vapor e lia antes de chegarem ao
marco do correio.
*
Quando se despediram à porta do café, Thomas parou antes de começar a
subir Flask Walk e observou Rosie a caminhar com leveza pelo meio do
trânsito em Haverstock Hill. Um nó inesperado formou-se na sua garganta,
apanhando-o de surpresa. Com a saia aos quadrados e a camisola a condizer
ela não era diferente de qualquer outra adolescente bonita. Parecia tão
despreocupada que era difícil acreditar que guardava um segredo tão grande
e sinistro. Perguntou a si mesmo para quem se voltaria quando o pai e o
irmão fossem enforcados, pois, seguramente, não seria para ele.
– Não é um problema teu – disse para si mesmo com firmeza quando
desviou os olhos dela.
No entanto, no fundo sabia que Rosie conquistara um lugarzinho no seu
coração e que não seria muito fácil esquecê-la.
Já passava das seis horas quando voltou para Carrington Hall. Usou a sua
chave para entrar pela porta de serviço e ao ouvir a gargalhada de Mary
Connor na sala de estar do pessoal dirigiu-se para lá em vez de subir para o
seu quarto.
Mary, Linda, Brownlow e Thorpe estavam a jantar. Todas olharam para
ela quando entrou na divisão.
– Onde é que foste hoje? – perguntou Mary.
– À biblioteca, e depois apanhei um autocarro para Hampstead –
respondeu Rosie.
– Parece muito divertido – disse Mary com profundo sarcasmo.
– Foi agradável – replicou Rosie, indignada. – Hampstead é encantador.
– Bem, lamento se isto vai estragar o teu dia – interrompeu Linda –, mas
a enfermeira supervisora quer que vás ao escritório dela. Pareceu-me muito
irritada.
Rosie pensou nos acontecimentos daquela manhã e o seu sangue gelou.
– O que é que fizeste? – perguntou Mary, e os seus olhos azuis
esbugalharam-se.
– Que eu saiba, nada – respondeu Rosie com um encolher de ombros. –
Acho que é melhor ir ver o que ela quer.
*
– Entra – respondeu a enfermeira supervisora à hesitante pancada na porta
do escritório. Durante o dia aquela sala pertencia a Mrs. Trow, que tratava
de todo o trabalho administrativo, mas a enfermeira supervisora tinha o
hábito de ir para lá a esta hora e as raparigas diziam que era para ir
bisbilhotar o trabalho dela.
Rosie entrou e encontrou a enfermeira supervisora sentada à secretária. O
escritório era muito pequeno, uma pequena zona delimitada por uma
divisória que fazia parte de uma sala muito maior, sem janelas, com apenas
um vidro na parede voltada para a escadaria. Uma grande secretária com
uma máquina de escrever ocupava a maior parte do espaço, havia arquivos
metálicos na parede de trás e, encaixados no espaço restante, viam-se uma
série de cacifos, um para cada doente, com livros de medicina e papel de
carta em cima.
– A Bell disse-me que quer falar comigo – disse Rosie à porta.
– Pois quero, sua porca imunda – proferiu a enfermeira supervisora com
profunda cólera. Levantou-se da cadeira e agarrou Rosie pelo ombro,
puxando-a para dentro e fechando a porta com um pontapé antes mesmo de
a rapariga conseguir piscar os olhos. – Já me deparei com raparigas porcas
na vida. Mas nunca uma tão grande como tu.
– O que é que eu fiz? – perguntou Rosie indignada, afastando-se da
mulher. Não conseguiu pensar em nada que justificasse um ataque tão
violento à sua pessoa.
– Isto. – A enfermeira supervisora agarrou-a pela gola da camisola e
puxou-a para uma caixa de cartão que estava no chão. Abriu-a com um
dedo, com um gesto de profundo desagrado, e empurrou a cabeça de Rosie
na sua direção.
Rosie engasgou-se com o cheiro forte. Pareciam ser dois pares de cuecas
castanho-avermelhadas do uniforme e um par de cuecas brancas manchadas
de sangue. À volta delas viam-se quatro ou cinco pensos higiénicos por
desembrulhar, muito sujos.
– Eu não tenho nada a ver com isso. – Rosie afastou-se da enfermeira
supervisora com um movimento brusco. – Porque é que pensaria que são
meus?
– Porque os descobri debaixo da tua cama e tu tens diversos pares de
cuecas brancas idênticas a estas.
Rosie ficou tão chocada com a acusação que durante alguns segundos só
conseguiu olhar para a mulher com uma expressão apalermada.
– Não me olhes assim, rapariga – rugiu a enfermeira supervisora. –
Explica-te.
– Essas coisas não me pertencem – disse Rosie. No entanto, pensando
bem, teve um pressentimento de que as cuecas brancas eram de facto suas e
também percebeu quem era responsável por deixar aquelas coisas
repugnantes para que alguém as encontrasse.
– Não me mintas – sibilou a enfermeira supervisora. – Eu sei que te
pertencem.
– Não estou a mentir, e para o caso de se ter esquecido relembro-lhe que
divido o quarto – retorquiu Rosie, zangada. Mal podia acreditar que outra
rapariga pudesse sequer pensar em usar as cuecas de outra pessoa, mas,
embora estivesse muito zangada, não conseguiu acusar ninguém.
– Precisamente como eu esperava. – Agora a enfermeira supervisora
estava muito vermelha e os seus olhos já de si pequenos pareciam uma
fenda escura por cima do nariz. – Tu ias tentar pôr a culpa noutra pessoa.
São tuas. Não negues. – Levantou a mão e esbofeteou Rosie com força.
Rosie revoltou-se com tamanha injustiça.
– Vou negar porque é a verdade – gritou. – Eu ainda nem sequer comecei
a ter o período e como se atreve a bater-me por uma coisa que eu não
poderia ter feito?
– Mentirosa – gritou a mulher mais velha, pegando na caixa e pondo-lha
nas mãos. – Amanhã de manhã vou fazer queixa de ti a Mr. Brace-
Coombes.
Rosie não parou para pensar e atirou a caixa na direção da enfermeira
supervisora, espalhando todo o seu conteúdo no chão.
– Faça queixa de mim a quem quiser. Mas essas coisas não são minhas e
se quiser que alguém as tire daqui descubra a pessoa imunda a quem
pertencem realmente. – Correu para a porta e saiu da sala antes de a
enfermeira supervisora poder agarrá-la.
Quando entrou no quarto dois minutos depois, Maureen estava sentada na
cama. Levantou a cabeça com uma expressão culpada no rosto e Rosie
aproximou-se dela em dois passos e deu-lhe uma forte bofetada antes de ela
conseguir mexer-se.
– Vai lá abaixo dizer à enfermeira supervisora a quem pertencem aqueles
pensos e aquelas cuecas – gritou, tão zangada que não conseguiu controlar-
se. – Vai, agora!
Quando Maureen não se mexeu, Rosie agarrou-a pelos ombros e abanou-
a até os seus dentes quase baterem e os óculos caírem.
– Estás a ouvir-me? – gritou. – És um animal, Maureen. Já me metes nojo
porque não te lavas e agora deixaste aquelas coisas malcheirosas para que a
enfermeira supervisora as encontrasse e eu ficasse com as culpas. E como te
atreves a tirar as minhas cuecas da gaveta e usá-las? Não tens orgulho nem
decência? Se não fores lá abaixo agora e contares a verdade à enfermeira
supervisora, vou fazer um escândalo tão grande que todas as pessoas que
estão nesta casa vão saber como és porca.
– D-d-desculpa – gaguejou Maureen, a tremer, com os olhos cinzentos
muito abertos de terror. – Eu não disse que aquelas coisas eram tuas. A
enfermeira supervisora pensou que eram e fiquei tão assustada que não
consegui contar-lhe a verdade.
– Eu ainda nem sequer comecei a ter o período – rosnou Rosie. – Mas,
mesmo que já tivesse, nunca deixaria aquelas coisas sujas, como nenhuma
pessoa decente deixaria. Agora vai lá abaixo dizer à enfermeira supervisora,
senão juro por Deus que te bato.
Maureen saiu do quarto com um ar comprometido, evitando Rosie, e a
sua expressão aterrorizada dizia que preferia arriscar a sua sorte com a
enfermeira supervisora a ficar ali para ser mais castigada.
Depois de Maureen sair, Rosie afundou-se na cama e começou a chorar.
Estava furiosa com a enfermeira supervisora e com Maureen, mas ainda
mais horrorizada consigo mesma por ter perdido o controlo. Nunca
percebera que era capaz de tanta raiva e foi mais um aviso de que o sangue
dos Parker lhe corria nas veias.
A porta abriu-se e Linda olhou em volta.
– Ouvi tudo – disse. – Fizeste muito bem.
– Vai-te embora – disse Rosie, a tentar recompor-se. – Isto é um assunto
particular.
– Como queiras – retorquiu Linda, ofendida. – Só queria dizer que admiro
a tua garra. Eu e a Mary pensávamos que ias ser mais um capacho.
Maureen entrou no quarto mais de uma hora depois, com a grande marca
vermelha de uma mão na face onde a enfermeira supervisora devia ter-lhe
batido. Tremia de medo e estava sem dúvida à espera que Rosie lhe batesse
de novo.
Mas Rosie acalmara-se e agora a sua raiva estava mais direcionada para a
enfermeira supervisora do que para uma rapariga que nunca aprendera as
regras básicas de higiene. Vira que a carta de Miss Pemberton tinha sido
lida. O gancho do cabelo desaparecera e a carta fora posta ao contrário no
envelope.
– Desculpa – pediu Maureen num lamento, e começou a chorar. – Temos
de os levar para a incineradora, mas eu esqueço-me sempre. E peço muita
desculpa por ter usado as tuas cuecas, mas não tinha nenhumas limpas.
Rosie enterneceu-se. Calculava o que a enfermeira supervisora lhe fizera.
Maureen podia ser muito mais velha do que ela, mas não era muito
inteligente. Pegou na mão da rapariga e levou-a para a cama.
– Está tudo bem. Eu perdoo-te. Mas tens de aprender a lavar-te e todas
essas coisas – disse suavemente. – É importante. Ninguém gosta de pessoas
malcheirosas, é horrível. Por isso, tens de fazer o que eu te vou dizer.
Mais tarde nessa noite, depois de apagarem a luz, Rosie pensou como a
sua situação era irónica. Maureen acreditava piamente que ela vinha de uma
casa boa, com uma casa de banho em condições, e que uma mãe carinhosa
lhe transmitira todo o conhecimento sobre as coisas femininas que Rosie
acabara de lhe ensinar.
Perguntou a si mesma o que pensaria a outra rapariga se pudesse ver May
Cottage no meio do inverno, quando as botas do pai e dos irmãos
transformavam a cozinha num mar de lama. Se os visse chegar à noite, já
tarde, a cair de bêbedos, a vomitar no lava-loiça ou até no chão, ou se fosse
o alvo da sua conversa ordinária. Desejou poder admitir que a maioria do
seu conhecimento vinha de revistas femininas, que noite de banho para ela
era uma banheira de metal no chão da cozinha e que até há alguns meses as
suas cuecas só serviam para trapos e ninguém no seu juízo perfeito quereria
usá-las. Maureen dissera-lhe o quanto admirava os seus modos à mesa e
Rosie quase soltara uma gargalhada. Mrs. Bentley era a única responsável
por esses modos!
Depois de Rosie fazer chá e Maureen tomar banho, ela abrira-se mais
sobre a sua vida e contara-lhe sobre o homem que a violara e como fora
parar a um manicómio. Era uma história lancinante e calculou que a
rapariga nunca contara aquilo a mais ninguém. Tinha sido muito tentador
admitir as suas próprias origens, mesmo que fosse apenas para realçar que
as pessoas podiam aprender a viver de uma forma diferente.
Porém, não disse nada, e nunca diria. Uma coisa que aprendera nos
últimos meses fora que não se devia confiar totalmente em ninguém. Miss
Pemberton, Thomas e Mr. Bentley pareciam confiáveis. No entanto, Miss
Pemberton mandara-a para aqui. Tanto quanto sabia, pelo preço certo Mr.
Bentley poderia traí-la mais tarde. Thomas parecia ter mudado de ideias em
relação a ser seu amigo. Não podia confiar em ninguém a não ser em si.
F reda Barnes não era uma mulher muito inteligente, mas o que lhe
faltava em poder cerebral sobrava-lhe em astúcia e determinação. O pai
fora médico e tivera um consultório rural no Herefordshire. Até aos catorze
anos, quando começara a Primeira Guerra Mundial, a sua infância tinha
sido muito agradável. Embora o pai não fosse rico e a casa da família
estivesse um pouco decrépita, tinham uma criada e uma preceptora que
vinha todos os dias ensiná-la e às três irmãs. Devido à posição do pai, as
quatro raparigas eram convidadas com muita frequência para festas,
piqueniques, bailes e jogos de ténis em casa de muitos dos vizinhos mais
ricos. Freda sempre presumira que com o tempo se transformaria numa
beldade como as duas irmãs mais velhas e que um dos herdeiros daquelas
casas imponentes a pediria em casamento.
Porém, a guerra mudou tudo. O pai sentiu-se obrigado a oferecer os seus
serviços para o bem do país e, um a um, Freda viu todos os jovens das
redondezas alistarem-se quando uma febre patriótica varreu as pequenas
aldeias. A mãe repreendia-a muitas vezes por estar mais preocupada com a
falta de festas ou de parceiros de ténis do que com as listas de baixas que
eram afixadas todas as semanas na aldeia e por fim decidiu que estava na
hora de Freda pensar noutras pessoas para além de si mesma e mandou-a
arregaçar as mangas e começar a trabalhar no consultório para ajudar o
velho Dr. Mayhew, que voltara a trabalhar para substituir o seu pai.
Freda aceitou de má vontade a decisão da mãe e esperou que a guerra
terminasse para tudo voltar ao normal. Mas o pai não voltou de França;
contraiu cólera e morreu em 1917 enquanto ajudava os feridos nas
trincheiras.
Tinha dezoito anos quando a guerra chegou ao fim, mas percebeu com
grande tristeza que a vida nunca mais voltaria a ser como antes e sentiu-se
amargurada e ressentida. Nem sequer se tornara uma beldade. O seu cabelo
era escorrido, liso e baço; tinha um rosto desengraçado, com lábios finos e
os olhos muito juntos. Enquanto as irmãs possuíam corpos esculturais e
pernas bem torneadas, ela era tão robusta como um cavalo de trabalho.
Menos de um quarto dos jovens regressaram e muitos deles eram meras
sombras dos galantes cavalheiros que se tinham alistado em 1914.
A criada e a preceptora foram-se embora pouco depois de o pai partir para
França, mas quando ele morreu a mãe já não conseguia manter uma casa
tão grande e fez planos para se mudar para uma mais pequena. Rachel e
Hester, as suas irmãs mais velhas, foram para Londres e arranjaram
trabalho. Grace, a irmã que era um ano mais nova do que Freda, casou-se
com o filho de um agricultor da região e a mãe deixou claro que Freda
também teria de se sustentar.
O Dr. Mayhew puxou alguns cordelinhos para que ela aprendesse a
profissão de enfermeira no Hospital Whittington, em Londres. Freda não
queria ser enfermeira, mas era melhor do que trabalhar numa loja ou ser
preceptora, e era a única coisa em que tinha alguma experiência. Também
acreditava piamente que seria apenas uma questão de tempo até encontrar
um médico que se casasse consigo, para que as irmãs mais bonitas a
invejassem.
Passou à justa nos exames, mas tinha a postura de autoridade, educação e
porte que era admirada pela sua enfermeira supervisora. Os anos passaram e
foi subindo a pouco e pouco até se tornar enfermeira principal e,
posteriormente, enfermeira-chefe. Freda abominava as enfermarias
pediátricas e a profissão de parteira, embora tivesse passado um ano a fazer
a especialização em cada uma destas áreas, ainda com esperança de que
aquele fugidio médico a arrebatasse. Também não gostava muito de
cirurgia, e uma breve passagem pelo bloco operatório fê-la querer deixar a
enfermagem para sempre. Sentia que a vida a enganara e não percebia
porque é que a sua era apenas trabalho, sem esperança de algo melhor.
Queria dinheiro e posição e acreditava que os merecia.
Em 1931, preparava-se para ser enfermeira domiciliária quando assistiu a
uma palestra sobre saúde mental e viu as oportunidades daquela área.
Todos os hospitais psiquiátricos estavam extremamente cheios e eram mal
geridos. A guerra fizera aumentar muito o número de doentes e havia
poucas enfermeiras com o seu currículo que estivessem ansiosas para
trabalhar num campo tão sombrio e tão pouco glamoroso. Freda não tinha
qualquer desejo de melhorar as vidas dos mentalmente incapazes – na sua
opinião, eles mereciam estar presos longe da vista. No entanto, pensou que
teria verdadeiras possibilidades de subir na carreira e até de chegar ao cargo
de enfermeira supervisora em poucos anos.
Freda tinha trinta e um anos, e já percebera que teria poucas
possibilidades de fazer um bom casamento; era demasiado desengraçada e
não era rica. Além disso, o país estava no meio de uma recessão. Se
continuasse a ser enfermeira generalista, talvez demorasse mais vinte anos
para atingir um cargo superior ao de enfermeira-chefe. Assim, candidatou-
se a vagas em diversos grandes hospitais psiquiátricos e decidiu-se por
Stoke Park em Bristol, porque lhe pareceu mais civilizado do que qualquer
um dos outros.
A esperança transformou-se em amargura ao perceber que Stoke Park era
um hospital psiquiátrico pioneiro, decidido a afastar-se da bárbara imagem
que os hospícios tinham adquirido. Procuravam pessoas dedicadas e
compassivas para os cargos de chefia e as mulheres duras e dominadoras
como Barnes eram deliberadamente ignoradas para promoção. Ela detestava
tudo em Stoke Park. Os doentes perturbados, as mulheres inferiores, sem
qualquer treino, com quem era obrigada a trabalhar, mas acima de tudo os
jovens médicos acabados de sair da universidade que a olhavam com certo
desprezo quando tentava impor alguma disciplina naquele lugar.
Freda estava há sete longos e infelizes anos em Stoke Park quando um
encontro fortuito com Lionel Brace-Coombes no hospital mudou a sua vida.
Ele era o proprietário de um pequeno hospital psiquiátrico particular em
Londres com o tipo de doentes distintos com que Freda conseguia ver-se a
trabalhar. Mr. Brace-Coombes apreciou a sua experiência e origens e ela
conseguiu convencê-lo a oferecer-lhe o cargo de enfermeira-chefe, um
espaçoso apartamento só para si e um salário excelente.
Lionel Brace-Coombes era o tipo de homem de que teria gostado para
marido. Era dez anos mais velho do que ela e possuía riqueza herdada, mas,
infelizmente, já tinha uma mulher, Ayleen, a quem fora diagnosticada
esquizofrenia cerca de cinco anos depois de se casarem. Ele tentara ao
máximo mantê-la em casa, em Foxhill, mas as muitas enfermeiras que
contratava não ficavam depois de descobrirem como Ayleen era difícil. Ele
não suportava a ideia de internar a sua linda esposa num dos terríveis
hospícios que visitara e à medida que o tempo foi passando a única
alternativa pareceu-lhe ser abrir uma clínica psiquiátrica privada.
A velha casa em Woodside Park estava vazia desde o início dos anos
trinta. Ficava perto o suficiente da sua casa para poder visitá-la com
regularidade e o dono ficou muito satisfeito por se livrar da propriedade.
Lionel converteu-a com todo o esmero, arranjando os jardins e instalando o
melhor equipamento disponível. Originalmente, pretendia ter apenas cinco
ou seis doentes do sexo feminino e imaginara que todas seriam mulheres
perturbadas de boas famílias como a sua mulher. Porém, o custo de um
médico e enfermeiras para cuidar de tão poucas doentes revelou-se
proibitivo e quando Freda se juntou à equipa os números tinham aumentado
para doze.
Lamentavelmente, Ayleen falecera na sequência de uma pneumonia em
1940, dois anos após a chegada de Freda. Com a guerra e negócios mais
importantes, a partir daquela altura Lionel distanciara-se do hospício.
Quando a enfermeira supervisora se demitiu, ele ofereceu o cargo a Freda,
com todo o controlo que ela tanto lutara para ter.
Às duas e trinta, Mrs. Trow veio dizer que Mr. e Mrs. Cook aguardavam
na sala de visitas do rés do chão. Donald tomara banho, o cabelo fora
lavado e as unhas limpas antes do almoço. Agora, com uma camisola azul-
clara, calças de flanela cinzentas e uma camisa branca de colarinho aberto,
estava muito arranjado, muito diferente dos outros dias. Apertou muito a
mão de Rosie enquanto desciam as escadas e ela estava quase tão nervosa
como ele.
A sala de estar das visitas estava voltada para o jardim da frente. Como
havia muitas árvores perto da janela era uma sala bastante escura, mas,
como chovia lá fora e alguém acendera uma boa lareira, era muito
aconchegante e, em comparação com a austeridade do resto do edifício,
extremamente confortável.
Mr. e Mrs. Cook eram mais velhos do que Rosie esperava; pensou que
deviam ter sessenta e poucos anos. Mr. Cook era um homem alto, com tez
rosada e uma grande barriga. Apesar de ter o cabelo ralo e grisalho, tinha
grandes sobrancelhas escuras que transmitiam uma impressão de
severidade. A mulher era pequena e elegante e vestia um casaco justo azul-
escuro e um pequeno chapéu a condizer. O seu cabelo era mais branco do
que grisalho, um sinal de que fora loura como o filho, e a pele parecia muito
macia, não propriamente com rugas, mas mais como um pêssego quando
começa a amadurecer de mais.
Donald correu para a mãe e envolveu-a num dos seus abraços fortes
enquanto cheirava o seu perfume, deliciado. Rosie manteve-se a alguma
distância, sentindo-se constrangida e a mais. Percebia porque é que tinha de
haver sempre uma funcionária na sala, mas não conseguia imaginar Donald
a fugir ou a fazer uma birra, não quando estava tão encantado por ver os
pais.
Mrs. Cook tinha lágrimas nos olhos quando Donald a soltou por fim.
Rosie olhou para Mr. Cook quando o filho foi abraçá-lo, e também ele tinha
os olhos marejados de lágrimas, embora tentasse escondê-las de Rosie e da
mulher.
– Esta é a Smith – disse Donald de repente, apanhando Rosie
desprevenida quando correu para ela e lhe pegou na mão. – Ela é minha a-a-
amiga.
– Nesse caso, queremos que Miss Smith se sente ao pé de nós. – Mr.
Cook sorriu-lhe e Rosie sentiu-se muito bem.
Durante a primeira parte da visita dos pais, Donald falou sem parar sobre
o que comia às refeições, sobre os outros doentes e até sobre a chuva que
não os deixava ir para o jardim. Os pais pareciam bastante satisfeitos por
escutá-lo, embora Rosie pensasse que era triste ele não lhes perguntar nada
sobre a casa da família. Depois, de repente, Donald levantou-se do sofá
onde estava sentado com a mãe e, dando-lhe a mão, arrastou-a para a janela.
– Aquelas são m-m-margaridas-do-outono – disse, a apontar para um tufo
de flores roxas ao pé da janela. – A Smith d-d-disse que são p-p-perenes, o
que significa que nascem todos os anos.
Esta demonstração de uma lição aprendida surpreendeu Rosie, mas
Donald continuou e indicou outras flores. Não havia muitas, porque o
jardim da frente não estava bem cuidado como o jardim das traseiras, mas
ele acertou em todos os nomes.
Mrs. Cook olhou para Rosie com uma expressão intrigada.
– Eu gosto de jardinagem – disse Rosie à laia de explicação. – Tenho
ensinado um pouco ao Donald quando estamos no jardim das traseiras.
– E mostras-me o livro – disse Donald, muito entusiasmado. – A Smith é
simpática, mãezinha, manda-me mostrar-lhe as palavras que sei ler em
revistas e conta-me histórias e canta canções.
O mais extraordinário foi que Donald não gaguejou uma única vez
durante aquela última frase. O pai sentou-se direito na cadeira,
aparentemente mais consciente disso do que do que o filho dissera.
O tempo foi passando e Donald não parava de falar na «Smith», a tal
ponto que Rosie começou a sentir-se embaraçada. Pat Clack trouxe chá. Mr.
e Mrs. Cook falaram a Donald sobre o seu irmão mais velho, Michael, que
tinha um bebé novo chamado Robin, e mostraram-lhe algumas fotografias.
Rosie sentiu-se mais à vontade porque, por fim, Donald deixou de falar
sobre ela.
Rosie não perdera o seu espírito curioso desde que viera para Carrington
Hall e, enquanto Donald conversava com os pais, aproveitou a oportunidade
para observá-los. Nunca conhecera pessoas ricas antes e estava convencida
de que a riqueza se notaria como um crachá. No entanto, não se via nos
Cook, pelo menos da forma espampanante que ela imaginara. Eles tinham
roupas boas – o casaco azul de Mrs. Cook parecia ter sido feito por medida
e o conjunto de pedras azuis da pregadeira não eram de simples vidro. Ela
calçava elegantes sapatos de pele de crocodilo que faziam conjunto com a
carteira, e havia o grande e reluzente automóvel na entrada. No entanto, não
tinham manias nem tiques.
Donald tinha os mesmos olhos azuis tristes, boca grande e cabelo louro
da mãe, mas herdara a altura do pai e o seu queixo ligeiramente saliente.
Todavia, o que mais agradou a Rosie foi o prazer que estas pessoas sentiam
por estar com o filho. Não os viu olhar uma única vez para o relógio nem
ouviu um bocejo; riam-se com ele e encorajavam-no a falar. Não era uma
visita feita por obrigação por pessoas ricas que tinham abandonado o filho
porque era um embaraço para eles. Amavam-no de verdade e estavam
relutantes em deixá-lo.
Perguntou a si mesma se saberiam que Donald não usava as roupas que
tinha vestido hoje desde a última visita e que o resto do tempo usava as
roupas da arrecadação que lhe serviam. Também perguntou a si mesma se
fariam alguma ideia de como a sala de dia era lúgubre, ou a quantidade de
arranhões e nódoas negras que ele tinha por ser atacado por outros doentes.
Mrs. Cook ficaria chocada se visse que ele era obrigado a comer com uma
colher ou a passar a noite a cheirar urina – ou pior – de outros doentes até
ao outro dia de manhã? Tinha quase a certeza de que eles não sabiam nada
daquilo.
Às quatro horas, Rosie recordou diplomaticamente ao casal que Donald
tinha de voltar para a enfermaria. Donald levantou-se, abraçou os pais e
dirigiu-se para a porta bastante animado e sem nenhum protesto. Porém,
quando Rosie se preparava para segui-lo, Mrs. Cook agarrou-lhe na manga
do casaco.
– Miss Smith – disse em voz baixa. – Não se importa de voltar depois de
levar o Donald para cima? Gostaríamos de conversar consigo em particular.
Rosie sentiu-se muito inquieta quando voltou passados cinco minutos. A
enfermeira supervisora não gostava que o pessoal se envolvesse com os
doentes, dizendo que eles sofriam quando a pessoa se ia embora. Rosie
pensou que devia ser por isso que a enfermeira supervisora a mandara
receber os Cook hoje, pensando que Donald a poria nos píncaros e que os
pais ficariam aborrecidos. Miss Barnes estava sempre de folga ao sábado à
tarde, por isso devia estar sentada algures a deleitar-se com o pensamento
de que a sua auxiliar mais nova estaria a levar uma descompostura.
Porém, quando voltou para a sala de estar Mr. e Mrs. Smith sorriram-lhe
radiosamente.
– Nunca vimos o nosso filho tão bem-disposto – disse a mãe de Donald,
batendo no sofá para que Rosie se sentasse ao seu lado. – Achei que tinha
de lhe agradecer por cuidar dele.
– Ensinou-lhe os nomes de flores e ele não se esqueceu – disse Mr. Cook.
– A verdade é que hoje ele pareceu quase... normal.
– Ele é normal – disse Rosie com alguma indignação. – É apenas um
pouco simples, nada mais.
Lamentou aquelas palavras no segundo em que as proferiu. Não tinha o
direito de dar a sua opinião sobre um doente. Quem fazia isso era o médico
ou a enfermeira supervisora. Esperou que a repreendessem, sem se atrever a
olhar para eles.
– Desculpem – pediu, ainda de cabeça baixa. – Eu não devia ter dito
aquilo. É que gosto do Donald.
– Deve dizer o que pensa – declarou Mrs. Cook, e a sua voz pareceu ter
um sorriso e não raiva.
Rosie levantou a cabeça e viu que a mulher estava a sorrir; e aqueles
olhos que antes estavam tristes brilhavam agora de alegria.
– A menina acabou de dizer as palavras que todas as mães no meu lugar
querem ouvir – disse. – Mas estou muito curiosa para saber porque é que
pensa que não devia ter dito nada.
– Porque só estou aqui há algumas semanas. Porque sou nova e
inexperiente de mais para ter uma opinião acerca do Donald.
– Não será porque tem medo de desagradar à enfermeira supervisora? –
perguntou Mr. Cook sem rodeios, erguendo uma sobrancelha hirsuta. –
Trataremos com confidencialidade qualquer coisa que queira dizer-nos,
Miss Smith. Pedimos-lhe que voltasse porque percebemos que é uma
verdadeira amiga do nosso filho. Por isso, queremos saber o que pensa,
independentemente de achar que é demasiado jovem ou inexperiente para
ter uma opinião relevante.
Rosie olhou para Mrs. Cook e depois de novo para o marido. Ambos
tinham expressões abertas no rosto e percebeu que queriam saber a verdade.
– Acho que ele não precisa de estar aqui – desabafou. – Na verdade, se
querem mesmo saber, penso que vai ficar pior se estiver aqui muito mais
tempo.
De repente, não se importou de ser despedida; tinha uma enorme bola de
raiva dentro de si que precisava de libertar. O mundo estava cheio de
injustiça e preconceito e talvez dar-lhes a sua opinião sobre Donald não
mudasse isso, mas se falasse era possível que a vida dele melhorasse.
Contou-lhes tudo – a falta de estimulação, o facto de Donald ser obrigado
a ver e a ouvir coisas perturbadoras. Não conseguiu arranjar coragem para
lhes contar o que Linda lhe dissera acerca de Archie ter sido apanhado uma
ou duas vezes a tentar convencer Donald a masturbá-lo, nem que todas as
raparigas sentiam alguma ansiedade em relação ao que acontecia nos
dormitórios depois de os doentes serem trancados à noite. Mas disse que
gostava de poder levá-lo a lojas ou a passear de autocarro e falou-lhes sobre
a sua certeza de que com alguma ajuda ele poderia aprender muito mais.
Por fim, disse-lhes que lhe cantara «The Teddy Bears’ Picnic» e que ele se
recordava de a mãe lhe cantar aquela canção.
– Lamento muito – disse, enquanto Mrs. Cook limpava os olhos. – Não
queria perturbar-vos com isto. Mas ele tem uma memória muito boa e tem
capacidades para fazer muito mais do que está a fazer aqui.
– Miss Smith, a menina é muito jovem – disse Mr. Cook, pousando uma
mão no seu ombro. – Também é inquietantemente franca. Mas estamos
comovidos com a preocupação que tem com o nosso filho e muito gratos
por partilhar as suas opiniões connosco.
– Nunca quisemos internar o Donald – disse Mrs. Cook com voz trémula.
– Fomos obrigados a isso. As pessoas falavam sobre ele, culpavam-no por
todo o tipo de coisas e tivemos medo por ele. Há um ano a enfermeira
supervisora disse-nos que seria melhor para ele se não viéssemos visitá-lo
tantas vezes. Afirmou que ele ficava sempre perturbado quando nos íamos
embora. Mas custa-nos muito estar longe dele.
Rosie sentiu-se tentada a dizer que era mentira, mas sabia que já falara de
mais.
– Não posso dizer nada sobre o que aconteceu depois da última visita –
declarou. – Mas, se isso vos deixar mais descansados, posso escrever-vos
um bilhete amanhã ou depois para dizer como é que ficou depois desta
visita.
– Faria isso? – Mrs. Cook pareceu muito surpreendida.
– Só se me prometerem que não dizem nada à enfermeira supervisora –
replicou Rosie. – E não me escrevam, porque alguém pode ver a carta.
O casal entreolhou-se durante alguns instantes. Rosie pensou que fora
demasiado longe.
Mr. Cook pigarreou.
– Vamos fazer o seguinte – disse, levando a mão ao bolso interior do
casaco do fato e retirando um cartão de visita. – Esta é a nossa morada e
número de telefone. Podemos pedir-lhe que nos telefone de vez em quando
à noite, para podermos falar mais à vontade sobre o Donald? Pode fazer o
telefonema a pagar no destino.
Rosie nunca tivera um motivo para usar um telefone. Não fazia a menor
ideia de como funcionava. No entanto, não ia admitir isso. Descobriria
como se fazia.
– Está bem – concordou, guardando o cartão de visita no bolso. – Mas
agora, se me dão licença, tenho de ir.
– Muito obrigada. – Mrs. Cook levantou-se e pegou na mão de Rosie,
apertando-a entre as suas. – Esta noite vamos dormir muito melhor por
sabermos que o Donald a tem como amiga.
Rosie deixou-os, saindo rapidamente antes que alguém reparasse que
estava a falar com o casal há muito tempo. Olhou para o cartão, viu uma
morada no Sussex e guardou-o no bolso, lembrando a si mesma que teria de
escondê-lo dos olhos curiosos da enfermeira supervisora e de Maureen.
– E nfia isto pela goela abaixo, Smith. – Linda pôs um copo de gim com
sumo de laranja nas mãos de Rosie e passou outro a Mary, que
estava a maquilhar-se no toucador.
Era véspera de Ano Novo e as três raparigas iam para o West End para
participar nas celebrações. Linda insistiu que «apanhassem uma piela»,
como lhe chamou, antes de saírem de Carrington Hall, porque os pubs
estariam muito cheios.
Rosie bebeu um pequeno gole da bebida e estremeceu.
– É horrível – exclamou.
– Tal como a primeira vez que se faz sexo – replicou Linda com uma
risada. – Mas isso não impede as pessoas de gostarem. Olha para a Mary!
Pelo sim, pelo não, vestiu as cuecas de renda que recebeu no Natal.
Mary virou-se no banco do toucador e no seu rosto rosado viu-se a
combinação de uma generosa camada de base em stick e indignação.
– Estás a dizer que sou fácil?
– Santo Deus, não – respondeu Linda em tom de brincadeira, com um
sotaque irlandês muito exagerado. – Não me disseram já que vocês meninas
de convento nunca deixam a mão de um homem subir acima dos joelhos?
Nesse caso, deves estar a pensar despir-te e saltar para a fonte de Trafalgar
Square.
– Credo – troçou Mary. – Esta noite está um gelo, ora se está. Se queres
mesmo saber, senti vontade de vestir as cuecas quentes que a minha mãe me
deu, mas ia morrer de vergonha se fosse atropelada e tivessem de as despir.
Rosie recostou-se na cama e bebericou a bebida doce e pegajosa. Esta
noite estava feliz. Iam divertir-se e tinha um ano completamente novo pela
frente. Já tomara a sua resolução de ano novo, que era a de se tornar uma
londrina em aparência, mentalidade e comportamento.
Na sua opinião, os londrinos estavam na vanguarda de tudo. Novos
filmes, peças de teatro e modas, tudo começava aqui. No resto da Inglaterra
as pessoas continuavam a viver quase como antes da guerra, aparentemente
sem perceberem que passara toda uma década. No entanto, aqui em
Londres, apesar da destruição generalizada causada pelas bombas, a vida
continuava, os lugares destruídos eram limpos e as casas danificadas eram
derrubadas e reconstruídas. Rosie sentia que os londrinos eram mais rápidos
e progressistas do que os habitantes do resto do país. Abraçavam as novas
ideias vindas da América com entusiasmo – casas modernas, frigoríficos,
aspiradores e automóveis.
A sua exuberância pela vida e pelo progresso estava claramente ilustrada
nos jornais, onde até a notícia mais importante depressa era eclipsada e
esquecida por alguma coisa mais dramática. Rosie tinha percebido isso na
altura do enforcamento do pai. Naquele dia fora notícia de primeira página
em todos os jornais, mas no dia seguinte foi trocado pelos nomes
Christopher Craig e Derek Bentley. Os dois rapazes tinham matado um
polícia a tiro enquanto roubavam um armazém de doces no sul de Londres e
foram descritos como jovens rufias que cresceram a ver filmes americanos
de bandidos. Os dois rapazes foram considerados culpados de homicídio no
dia 11 de dezembro, mas embora Craig, de dezasseis anos, tivesse disparado
a arma, o seu companheiro, um rapaz pouco inteligente de dezanove anos
chamado Bentley, foi considerado igualmente culpado porque tinham
perpetrado o roubo juntos. Devido à idade, Craig foi condenado a ficar
detido por tempo indeterminado, enquanto Bentley, apesar de o júri ter
apresentado uma recomendação de clemência, foi condenado à morte.
Rosie ficou muito aliviada quando a atenção do público foi desviada do
pai. Já era bastante difícil esconder o desgosto e aceitar que nunca
conseguiria ultrapassá-lo e a última coisa de que precisava era de
sobressaltos constantes. À medida que o Natal se foi aproximando e todas
as funcionárias falavam sobre as famílias, a sua principal preocupação era
chegar ao fim de cada dia sem ir abaixo por causa da sua.
No entanto, por muito medo que tivesse do Natal, aquela data acabara por
ser um ponto de viragem.
Dois dias antes, as raparigas tinham decorado a sala de dia com correntes
de papel, grinaldas e balões. Na véspera de Natal toda a equipa, incluindo a
enfermeira supervisora, cantou canções de Natal para os doentes no
primeiro andar e cada um deles recebeu uma pequena tablete de chocolate e
uma tangerina.
Na manhã do dia de Natal, depois do pequeno-almoço, o sacristão da
igreja local chegou vestido de Pai Natal com um saco de presentes. Os
doentes ficaram encantados, bateram palmas, bateram com os pés no chão e
desta vez não houve lutas nem altercações. Todos receberam dois presentes
– não fazia ideia se tinham vindo das famílias ou se fora a enfermeira
supervisora que os comprara – extremamente semelhantes em valor e
conteúdo, sobretudo casacos de malha e chinelos de quarto.
Até o almoço de Natal foi uma ocasião alegre, com a mesa da sala de dia
posta com uma toalha vermelha de papel, crackers e chapéus de papel.
Todo o pessoal doméstico que estava de serviço veio ajudar a servir à mesa.
Enquanto cortava comida e a passava aos doentes, de repente Rosie
percebeu que já não sentia repulsa por nenhum deles. Ao vê-los sentados à
volta da mesa com os seus chapéus de festa e os rostos iluminados de
entusiasmo, sentiu afeto e diversão, pois era um pouco como observar um
lanche de chimpanzés.
Continuava a não confiar em Tabby. Archie conseguia ser completamente
repugnante com a sua baba, com o hábito de se masturbar e com as calças
muitas vezes borradas, mas ultrapassara a repulsa ao ponto de falar com ele,
pentear-lhe o cabelo e incentivá-lo. Aggie era estranha, com as suas pernas
doentes, sem nariz e com a cabeça em forma de cúpula, mas já não a
assustava. Maud era como uma menina pequena, a velha Patty e Alice eram
almas inofensivas e gentis, e afeiçoara-se tanto a Donald que não conseguia
imaginar um dia sem ele.
Talvez Carrington Hall fosse um lugar onde os refugos humanos eram
deixados para não ofenderem as sensibilidades das pessoas consideradas
normais. Talvez algumas das funcionárias fossem quase tão amalucadas
como eles, mas naquele momento Rosie estava contente por estar ali.
Mais tarde, pensou que para os doentes gravemente perturbados que
viviam lá em cima talvez fosse um dia como outro qualquer, pois ouviam-se
os habituais gritos e choros abafados. No segundo andar ninguém cantou
cânticos de Natal nem houve qualquer referência ao Pai Natal. No entanto,
não fez perguntas. Pensou que já tivera a sua dose de tristeza nos dois
últimos meses e que não precisava de procurar mais coisas que a deixassem
infeliz.
O pessoal que esteve de serviço durante o dia teve o seu almoço de Natal
à noite. Felizmente, a enfermeira supervisora fora convidada para passar o
Natal fora e a enfermeira-chefe Aylwood, que era igualmente assustadora,
decidira não participar, por isso Linda disse que aquilo merecia uma
comemoração e foi ao quarto buscar uma garrafa de xerez doce que tinha
escondido.
Foi um bom serão. Estavam todas muito animadas e Pat Clack excedera-
se na preparação de uma refeição verdadeiramente memorável. Ofereceram
pequenas lembranças umas às outras, abriram crackers e usaram os chapéus
de papel. Mary fez toda a gente rir com as suas histórias da Irlanda; estivera
lá durante quatro dias e voltara na véspera de Natal. Linda fez um discurso
hilariante, a fingir que era a enfermeira supervisora a falar pela última vez
antes de se reformar, com revelações de onde fizera o treino para Carrington
Hall: domadora de leões num circo, diretora da prisão de Holloway,
torturadora principal da Gestapo e missionária em África a levar «a
palavra» a uma tribo de canibais.
Rosie estava um bocado tocada quando foi para a cama naquela noite.
Depois de beberem a garrafa de xerez, Pat Clack trouxera um pouco de
vinho de groselha caseiro. Era tão bom que Rosie emborcou dois grandes
copos sem se aperceber de como era forte. No dia seguinte, Mary contou-
lhe que cantara «Softly, Softly» de Ruby Murray muito alto quando subiam
as escadas e que tinham sido obrigadas a tapar-lhe a boca. Mas não fazia
mal ter-se embebedado um pouco porque não pensara em Alan com a sua
nova família. Nem no Natal em May Cottage com a mesa da sala de visitas
muito bonita e o pai a trinchar o ganso, com o minúsculo chapéu de polícia
de brincar que desencantava todos os anos.
Quando as lojas abriram depois do Natal, Rosie comprou a roupa nova
que usava esta noite, véspera de Ano Novo – um vestido de pied-de-poule
preto e branco com uma parte de cima linda com folhos e gola e punhos
brancos. Sentia-se sofisticada com bâton, rímel e o cabelo apanhado na
nuca com um laço de veludo preto. Linda disse que agora parecia uma
rapariga londrina e Rosie pensou que se conseguira encontrar a roupa certa
com tanta facilidade também poderia deixar de olhar por cima do ombro e
tornar-se o que quisesse.
– Bebe isso! – ordenou Linda quando viu que Rosie estava a olhar para o
ar, com o copo ainda quase cheio na mão. – Para onde raio é que vais?
Nunca vi ninguém ir para o mundo dos sonhos tantas vezes como tu.
– Aposto que está em algum lado com o Donald – disse Mary com uma
risada.
Rosie recompôs-se, percebendo que estava a fazer precisamente o que
decidira não fazer: a voltar para o passado.
– Não estava a sonhar com o Donald – disse, e riu-se porque todas as
colegas se metiam com ela por causa dos dois. Era verdade que se afeiçoara
muito a ele, e Donald sentia muito a sua falta quando estava de folga, mas
gostaria que elas não fizessem piadas obscenas sobre ele e que parassem de
dizer que era o seu namorado.
– Só estava a pensar que vocês estão lindas – continuou, e engoliu um
pouco da bebida muito depressa. Mary usava um vestido tipo camiseiro
azul-claro que a mãe lhe fizera; combinava na perfeição com os seus olhos
e, com o cabelo louro penteado em ondas macias e brilhantes, parecia uma
roliça rainha de concurso de beleza.
Embora não fosse naturalmente bonita, esta noite Linda estava muito
atraente com um vestido justo de lã vermelha e com o rosto maquilhado.
Mary arranjara-lhe o cabelo num mar de caracóis escuros, puxados para um
lado e presos com um travessão brilhante.
Linda iluminou-se ao ouvir o elogio de Rosie. Achava que uma das
melhores coisas desta rapariga nova era o seu jeito para fazer os outros
sentirem-se melhor consigo mesmos. Até ficava comovida com a paciência
e afeto com que tratava Donald. Só Deus sabia que nenhuma das outras se
daria a esse trabalho. Normalmente, não quereria sair à noite com uma
pessoa tão nova como Rosemary, mas a rapariga era intrigante. Parecia uma
inocente provinciana, mas também possuía alguma coisa muito forte e
adulta. De vez em quando, Linda tinha a impressão de que ela escondia um
grande segredo. Isso não era raro em Carrington Hall – quase todas as
funcionárias tinham alguma coisa que queriam esconder e era precisamente
por isso que estavam ali. Porém, resistira à vontade de tentar descobrir
quem ela era. Já tinha segredos de sobra para a deixarem ansiosa. Não
precisava de descobrir os das outras pessoas.
– Ainda demoras muito? – Linda voltou-se para Mary, que estava a
encaracolar as pestanas com uma pinça. Mary nem sequer conseguia ir
passear sem bâton. Uma noite no West End precisava de um tratamento de
beleza completo.
– Cinco minutos – murmurou Mary, a fazer caretas para si mesma ao
espelho. – Bebe mais um copo e acalma-te. Não vale a pena ir cedo de mais
e estar ao frio até à meia-noite.
Talvez fosse a referência a estar ao frio, ou apenas por ter estado a pensar
no segredo de Rosemary, mas de repente Linda voltou para aquelas noites
em Cable Street.
Tinha catorze anos quando a guerra terminou, e começara a aprender
costura na Cohen’s Gowns em Mile End Road quando a mãe e o pai
receberam uma casa camarária em Romford. Apesar de toda a família ter
ficado jubilosa com aquele passo em frente, Linda teve as suas dúvidas.
Todas as amigas continuavam a viver em Bethnal Green e teria de fazer
uma longa viagem de comboio para vir trabalhar. Quando a tia Babs lhe
ofereceu um quarto no seu apartamento, a cinco minutos da Cohen’s, viu
nessa oferta uma oportunidade para se tornar independente.
A sua ambição era ser uma costureira da corte e, um dia, fazer vestidos
para as aristocratas de Knightsbridge. Mr. Cohen dizia que ela era a melhor
aprendiza que já tivera, por isso o seu sonho não parecia demasiado
irrealista e juntava algum dinheiro a fazer roupas para as vizinhas nos
tempos livres.
Tudo correu bem até conhecer Sydney Greenslade. Ela só saía para
dançar uma vez por semana, visitava a família todos os domingos e estava
sempre no emprego a horas. Contudo, Syd mudou tudo isso. Tinha vinte e
três anos, cabelo preto e alegres olhos azuis, e a sua forma de vida virou a
de Linda do avesso. Syd era um vigarista. Ganhava dinheiro à noite com
«negócios» em pubs e clubes e queria ter uma rapariga no braço enquanto
os fazia. No começo, ela insistia em estar em casa às onze, mas Syd era
muito persuasivo e dava-lhe gim para que se esquecesse das horas e do
emprego. A tia Babs protestaria se soubesse, mas também gostava de beber
um copo e, em geral, já estava a dormir às onze da noite e nunca percebeu
que ela só chegava a casa de madrugada.
Passado pouco tempo começou a ter problemas com Mr. Cohen, pois
chegava atrasada quase todos os dias e adormecia sobre a máquina de
costura, e ele disse-lhe que se não entrasse nos eixos a despediria.
Linda esforçou-se, mas não conseguia dizer não a Syd. Prometia quase
todos os dias a si mesma que se deitaria cedo, mas logo que ouvia a buzina
do carro na rua saía sem pensar duas vezes. E, quando se apaixonou, é claro
que também não conseguiu evitar ir até ao fim com ele.
Quando lhe disse que estava grávida, estava plenamente convencida de
que ele se casaria consigo; afinal de contas, dizia-lhe que a amava sempre
que faziam aquilo no carro. Porém, ele riu-se quando ela sugeriu o
casamento e deu-lhe algum dinheiro, mandando-a tratar do assunto com Ma
Purdy, que resolvia o problema de todas as raparigas em Cable Street.
Ninguém a avisou de como doeria quando o bebé saiu. Nem como ficaria
fraca e chorosa depois. Mr. Cohen despediu-a e, para cúmulo, Syd
desapareceu.
Tinha apenas dezasseis anos quando foi com um homem por dinheiro.
Pareceu-lhe a única solução para ganhar algum dinheiro e se aguentar até
arranjar outro emprego. Disse a si mesma que só uma vez não faria mal,
que ninguém saberia. Mas não foi assim.
Depois de ultrapassar a repulsa da primeira vez e perceber que podia
ganhar mais em cinco minutos do que numa semana inteira a costurar, não
conseguiu parar. A tia descobriu passado pouco tempo e pô-la fora de casa.
Os pais também souberam e, quando apareceu em Romford para perguntar
se podia ir viver com eles, chamaram-lhe rameira e disseram-lhe sem
rodeios para se pôr a andar.
Ela empinou o nariz, disse que não se importava e continuou. Aquele
primeiro verão foi bom; era jovem e muito requisitada, e pela primeira vez
na vida tinha dinheiro. Não apenas alguns xelins, mas libras e libras, sem
ninguém a estender as mãos para receber uma parte. Comprou boas roupas,
arrendou um quartinho em Cable Street onde ninguém se importava com o
que fazia, e quando tinha um ataque de culpa saía para beber uns copos com
as outras raparigas.
É evidente que não pretendia ficar em Cable Street; Cable Street era o
pior lugar de todo o East End, sujo, malcheiroso e duro. Havia salas de jogo
clandestinas, antros de ópio e bordéis, todos frequentados por marinheiros,
estivadores e bandidos. Quase todas as noites dizia que ia para a zona
ocidental da cidade em busca de um janota que soubesse tratá-la como uma
senhora. Gabava-se às outras raparigas de que acabaria por ter uma boa casa
em Park Lane, e acreditava que isso aconteceria. Porém, alguma coisa
parecia impedi-la de sair dali. Talvez, no fundo, soubesse que uma
prostituta do East End com um rosto banal nunca conseguiria vencer no
mundo.
O segundo aborto quase a matou. Foi levada para o Hospital de Londres,
em Whitechapel, com uma hemorragia. Quando teve alta quase três
semanas mais tarde, o seu quarto fora ocupado por outra pessoa e todas as
suas coisas tinham sido roubadas. Outra rapariga deixou-a dormir no chão
do quarto durante algumas noites, mas depois expulsou-a.
Olhando para trás, Linda não conseguia perceber como sobrevivera
àquele inverno de 1947. Estava presa num círculo vicioso de onde não
havia saída. Para conseguir dinheiro para passar a noite num quarto tinha de
ter relações de pé com os clientes debaixo dos arcos em Cable Street, mas a
sua aparência descuidada não lhe permitia mais do que acomodações
imundas partilhadas com outros párias assustadores. Foi ficando cada vez
mais desleixada e suja, e por fim apenas os marinheiros estrangeiros lhe
pagavam, embora por vezes a usassem e depois roubassem, dando-lhe
grandes tareias.
Beber gim era um alívio temporário do pesadelo que estava a viver, mas
às quatro horas da madrugada, quando acordava com frio e via que estava
num edifício abandonado ou numa viela, a morte parecia preferível a ter de
viver mais um dia de humilhação e profunda miséria.
Foi uma voluntária de uma igreja evangelista que a salvou. Uma
mulherzinha curiosa e escanzelada que vestia um casaco e chapéu cinzentos
e a encontrou no princípio de uma manhã a vomitar na sarjeta. Pegou-lhe no
braço, levantou-a e declarou que ia levá-la para um sítio quente para que
pudesse limpar-se.
Demorou seis meses a recuperar a saúde. Tinha piolhos, gonorreia e uma
infeção crónica nos pulmões. Não podia deixar de reconhecer o mérito
daquelas mulheres da igreja – podiam parecer pequenos fantasmas
cinzentos, mas eram duras. Alojaram-na na sua hospedaria, cuidaram dela,
alimentaram-na, rezaram e conversaram com ela até ela ceder e reconhecer
por fim que queria a sua ajuda para mudar de vida.
E fora graças a elas que viera trabalhar para Carrington Hall.
A enfermeira supervisora sabia o que ela era. E Linda também sabia o
que a enfermeira supervisora era. Chegaram a um acordo. A enfermeira
supervisora não lhe pedia para denunciar ninguém e deixava-a em paz. Por
sua vez, Linda não contava os segredos sobre o segundo andar e mantinha
na linha as colegas que eram potenciais desordeiras.
Trabalhar num hospício não era gratificante nem criativo como fazer
vestidos, mas tinha as suas vantagens. Estava longe do East End e das
sórdidas lembranças de como batera no fundo do poço. O salário era bom,
tinha um lugar decente para viver e a família perdoara-lhe depois de verem
que ela virara uma nova página.
Acima de tudo, sentia-se segura agora, passados cinco anos. De vez em
quando, em especial quando era confrontada com um cordeirinho como
Rosemary, lembrava-se de como era aos dezasseis anos. Rosemary seria
uma presa fácil para uma pessoa sem escrúpulos, fosse a enfermeira
supervisora ou algum homem bem-falante com um fato elegante. Queria
avisar Rosemary sobre os homens, mas não sabia o que fazer em relação à
enfermeira supervisora.
Duas semanas mais tarde, recebeu uma carta da «tia Molly» a perguntar-
lhe se gostaria de passar férias com ela na Páscoa, no fim de março. Como
sempre, escrevera a carta com todo o cuidado, fazendo apenas uma
referência extremamente casual a Alan. Todavia, ao ler o sentido implícito
sentiu que Miss Pemberton estava a convidá-la porque queria levá-la a
visitar o irmão e, talvez, falar sobre o futuro dele e o de Rosie.
A seguir à sua pausa para o almoço, foi ao escritório da enfermeira
supervisora. Costumava evitar todo o contacto com a mulher e hoje estava
ainda mais nervosa do que era habitual por ter de falar com ela. Esperava
que a enfermeira supervisora se enfurecesse com o seu pedido de férias e
recusasse de forma categórica.
A enfermeira supervisora estava sentada atrás da secretária, com os
braços cruzados sob os grandes seios, criando o efeito de que estava a puxá-
los para cima. Os olhos muito juntos varreram Rosie como se ela fosse um
pequeno roedor e os seus lábios finos franziram-se, prontos para negar
qualquer pedido, por muito humilde que fosse.
Rosie aprendera a aceitar muitas das coisas de que não gostava em
Carrington Hall, mas estava tão longe de encontrar uma base de
entendimento com esta mulher como no dia em que chegara. Gaguejou o
pedido, quase esperando uma bofetada pelo descaramento.
– Uma semana de férias! – exclamou a enfermeira supervisora antes
mesmo de ela terminar de falar, descruzando os braços e pousando as mãos
nas ancas para manifestar a indignação que sentia. – Mas só estás cá há sete
meses.
Rosie mexeu-se. Queria tanto ir que não sabia o que faria se a enfermeira
supervisora recusasse.
– Não lhe vou pedir mais férias – implorou
– E não vais ter, mesmo que peças – replicou Miss Barnes com
brusquidão.
Na verdade, nessa manhã vira a carta para a rapariga no meio da
correspondência, e, ironicamente, não a abrira com vapor, até porque as
cartas anteriores tinham sido uma grande desilusão. Queria recusar aquele
pedido, só para mostrar a sua autoridade, mas teve a forte sensação de que a
rapariga pediria à «tia» que intercedesse por si e isso só poderia prejudicar a
sua reputação, como acontecera com o lamentável incidente com os pensos
higiénicos.
– Se te deixar ir, espero que trabalhes nas duas folgas a seguir ao teu
regresso. Só assim poderei acertar os turnos – disse num tom ríspido, já a
pegar em alguns papéis para que ela percebesse que a conversa tinha
terminado.
Rosie sabia que teria de pagar algum preço, mas aquele pareceu-lhe muito
baixo. Acenou em sinal de concordância.
– Então, posso ir? – Queria que ela confirmasse já para poder escrever a
Miss Pemberton.
– Podes, sim. – A enfermeira supervisora lançou-lhe um olhar
desdenhoso. – Mas de futuro só terás férias quando eu marcar.
Rosie não se importou com isso, pois não pretendia trabalhar ali durante
muito mais tempo.
– Muito obrigada, Miss Barnes – disse, sem fôlego, e saiu antes que a
mulher mudasse de ideias ou fizesse alguma crítica mordaz.
Já no primeiro andar, soltou um pequeno grito de alegria antes de entrar
na sala de dia. Desde que cortara o cabelo, a sua vida parecia encantada.
Dois rapazes tinham-na convidado para sair no baile onde fora com Linda e
Mary, recebera um aumento de dois xelins no salário e os seus seios
pareciam ter crescido mais dois centímetros. Não gostara o suficiente dos
rapazes para voltar a vê-los, mas era agradável ser convidada. Os seios e o
aumento de salário tinham-na deixado mais satisfeita.
– Pareces muito contente contigo mesma! – disse Maureen
rancorosamente quando Rosie entrou em passos rápidos na sala com um
grande sorriso estampado no rosto.
Rosie parou ao ouvir o tom da colega e de repente percebeu que estava
uma atmosfera tensa. Maureen lavava o chão; decerto, alguém tivera um
acidente. Os doentes estavam todos amontoados na extremidade mais
afastada da divisão, com expressões intimidadas. Rosie perguntou a si
mesma se Maureen lhes gritara como fazia de vez em quando, pregando-
lhes sustos de morte. Não viu Mary em parte alguma.
– Tenho uma semana de férias na Páscoa para ir visitar a minha tia –
explicou com relutância. Como Maureen não saía dali nos dias de folga e
nunca falava em férias, não queria gabar-se muito da sua sorte. – Quem teve
o acidente? – Partiu do princípio de que Mary estaria com essa pessoa.
– A Patty. É a quinta vez que faz isto esta semana. Nem sequer parece
perceber o que está a fazer. – Maureen franziu o sobrolho com uma
expressão irritada. – Ela devia estar lá em cima.
Rosie preparava-se para dizer que pensava que a incontinência não era
uma razão suficiente para encarcerar alguém no meio de pessoas com
perturbações profundas quando se ouviu um grito ensurdecedor vindo do
andar de cima. Parou, com a cabeça levantada, e, ao contrário do que era
habitual, foi imitada por todos os doentes.
Normalmente, os gritos estridentes que se ouviam lá em cima eram de
curta duração, mas não foi o que aconteceu desta vez. Este grito continuou
sem parar, demasiado feroz e forte para ser alguém que estava descontente
por lhe estarem a pentear o cabelo. George e Alice taparam os ouvidos com
as mãos e começaram a baloiçar-se nas suas cadeiras. Donald parecia muito
alarmado.
– Macacos me mordam – exclamou Rosie. Como toda a gente tinha dito,
acostumara-se aos barulhos perturbadores do andar de cima e nem parecia
dar por eles. No entanto, este foi excecional; fez o seu sangue gelar nas
veias e pensou que só podia ser alguém que estava a sofrer dores horríveis.
– Que raio se passa lá em cima?
– Como se eu soubesse – retorquiu Maureen.
Rosie olhou-a com surpresa. Apesar de todos os seus defeitos, ela
costumava importar-se com os doentes.
– Bem, achas que devo ir lá para saber o que se passa? Pode ser uma
emergência!
– Não é da nossa conta – replicou Maureen com brusquidão e aproximou-
se da porta, quase como se quisesse impedir que Rosie saísse dali. – A
Aylwood não te vai agradecer por ires meter o nariz onde não és chamada.
Uma reação tão estranha deixou Rosie ainda mais intrigada. Maureen
parecia assustada; os seus olhos cinzentos piscavam com muita força atrás
dos óculos e a pele habitualmente pálida estava ruborizada. Os gritos
tornaram-se ainda mais altos. Aggie começou a chorar de pavor e quando
Rosie olhou em volta viu que todos os doentes estavam ainda mais
amontoados, como um rebanho de ovelhas assustadas.
– Vou lá acima – disse Rosie, agora tão alarmada que pensou que tinha de
fazer alguma coisa.
Maureen bloqueou-lhe a passagem.
– Não vais, não. Se fores, vais meter-nos a todas em sarilhos – disse,
agarrando no braço de Rosie para impedi-la. – És a pessoa mais
bisbilhoteira que já conheci.
Os gritos silenciaram-se de forma abrupta, como um disco a ser arrancado
de um gramofone. Aggie parou de chorar. Maureen soltou o braço de Rosie.
A sala de dia manteve-se no mais absoluto silêncio durante um ou dois
segundos, não se ouvindo uma única fungadela, resmungo ou som de
respiração. Rosie olhou para trás e ao ver os doentes como estátuas,
demasiado aterrorizados para se mexerem, percebeu que a necessidade de
serem tranquilizados era muito mais importante do que enfrentar Maureen
ou preocupar-se com o que estava a acontecer noutro lado.
Deu meia-volta e aproximou-se deles.
– Já está tudo em ordem – disse num tom suave.
Donald foi o primeiro a mexer-se, levantando-se da cadeira e arrastando-
se na sua direção. Tinha os olhos muito abertos de pavor e quando chegou
junto de Rosie enfiou a mão na sua. A porta abriu-se e Mary entrou com
Patty a reboque. Archie arrastou a cadeira pelo chão, fazendo os pés chiar
no linóleo.
A tensão quase palpável na sala desapareceu quando os ruídos habituais
recomeçaram. Alice levantou-se para ir ter com Patty. George começou a
andar sorrateiramente pela sala e Maud recomeçou a falar sozinha. Mas
Donald, que costumava ser o mais rápido a adaptar-se às mudanças
inesperadas, continuava agarrado à mão de Rosie. Ela calculou que o que
estava a perturbá-lo acontecera antes do início dos gritos.
– O que foi, Donald? – perguntou em voz baixa. Ele tinha a cabeça caída,
como se tivesse medo de falar. Normalmente, contava-lhe tudo o que
acontecia na sua ausência. – Aconteceu alguma coisa enquanto eu não
estava na sala?
– A Jackson b-b-bateu na Patty – sussurrou ele. – Ela g-g-gritou e disse q-
q-que se não nos s-s-sentássemos nos íamos arrepender.
Rosie ainda estava irritada com o comentário de Maureen sobre a sua
bisbilhotice. Saber que ela batera numa velhota porque ela fizera xixi pelas
pernas abaixo só aumentou a sua irritação, mas enquanto acalmava Donald
reparou em Tabby.
Todos os outros doentes tinham recomeçado a mexer-se, mas ela
continuava sentada numa cadeira a olhar apaticamente para o ar, com o tricô
no colo.
Tabby nunca estava imóvel. Ou tricotava freneticamente ou andava de um
lado para o outro, e Rosie sentiu-se inquieta. Deixou Donald durante alguns
instantes e aproximou-se da mulher, sentando-se ao seu lado. Quando lhe
perguntou o que se passava Tabby não respondeu, mas pegou-lhe na mão e
apertou-a com muita força.
Aquela reação foi muito inusitada. A maioria dos doentes gostava de ser
tocado. Reagiam bem quando lhes faziam festas na cabeça, lhes pegavam
nas mãos ou os abraçavam, mas Tabby esquivava-se sempre ao contacto
físico.
– O que é que se passa, Tabby? – perguntou Rosie de novo.
Tabby apontou para o teto.
– Está tudo bem. O barulho acabou – disse Rosie. – Não tens de ter medo
de nada.
– Não quero ir lá para cima – desabafou Tabby, com os olhos castanho-
dourados a brilhar como acontecia muitas vezes antes de atacar alguém.
Tabby era uma das pacientes com quem Rosie não progredira quase nada.
Embora se exprimisse bem e fosse capaz de manter uma conversa quando
queria, passava a maior parte do tempo a resmungar com as pessoas,
incluindo Rosie. A sua natureza era tão fogosa como o cabelo, num instante
calma e dócil e no seguinte a explodir por nenhum motivo aparente e a
arranhar quem estava mais perto. Todas as funcionárias a tratavam com
cautela.
– Ninguém te vai mandar para lá – disse Rosie com calma, curiosa para
saber se Maureen os teria ameaçado com isso.
Tabby virou-se para ela com uma expressão conspiradora, ainda a
segurar-lhe na mão.
– Há um homem mau lá – disse em voz baixa. – Ele magoou-me.
Rosie pensou que ela estava apenas confusa e, depois de algumas
palavras tranquilizadoras, encorajou-a a pegar de novo no tricô. Maureen
saíra da sala de dia, talvez para fumar um cigarro, e ao ver que Mary estava
sentada sozinha a ler uma revista foi ter com ela.
– A Tabby já esteve lá em cima? – perguntou.
Mary acenou com a cabeça.
– Sim, pouco antes de eu vir para cá. Porquê?
– Por nada – respondeu Rosie, e dirigiu-se para a janela para não ter de se
explicar ou ser acusada mais uma vez de bisbilhotice.
Havia narcisos no jardim da frente e uma forsítia estava cheia de flores
amarelas, mas naquele momento Rosie não ficou animada com aqueles
sinais evidentes de primavera. Estava demasiado consciente de que algo
muito feio se escondia dentro deste edifício.
Pensou que a combinação de Maureen a gritar com os pacientes, Patty a
levar uma bofetada e depois ouvir os gritos vindos do segundo andar devia
ter desenterrado uma velha memória de Tabby. O homem mau a que ela se
referia poderia ser o auxiliar chamado Saunders que trabalhava lá em cima?
Ou teria trabalhado lá outro homem antes?
Durante os sete meses em que trabalhava aqui Rosie nunca tivera
qualquer contacto com aquele auxiliar. Ele vivia fora e chegava poucos
minutos antes da sete, indo diretamente para a enfermaria. O seu intervalo
para o almoço nunca coincidia com o dela e só se tinham cruzado uma ou
duas vezes nas escadas. Nem sequer no Natal estivera na sala dos
funcionários.
Tendo em conta que os homens eram o principal tópico de conversa das
auxiliares, era estranho que não falassem sobre o único colega do sexo
masculino. Rosie sempre pensara que a falta de informação sobre ele – se
era casado, onde vivia e outras coisas do género – se devia ao facto de ser
tão feio. Era um homem alto e forte, com cabelo louro cortado muito curto
e a pele marcada por bexigas. Ela própria nunca se interessara o suficiente
para fazer perguntas sobre ele.
Porém, agora que pensava bem, a enfermeira-chefe Aylwood, que
trabalhava com ele, era igualmente misteriosa. Era uma mulher alta e muito
magra com mais de quarenta anos, com cabelo muito grisalho, que tomava
o pequeno-almoço antes de todos os outros, pedia que lhe levassem o
almoço para a enfermaria e muitas vezes levava o jantar para o quarto. À
noite, batia sempre a porta e ligava o rádio como se quisesse afogar o
barulho das conversas das colegas mais novas. Rosie nem sequer sabia o
seu nome de batismo.
Pensando no que Maureen dissera há pouco sobre Aylwood não lhe
agradecer por meter o nariz onde não era chamada, pareceu-lhe mais
provável que aqueles dois empregados mantivessem a distância porque uma
maior intimidade com os colegas poderia expor a forma como aquela
enfermaria era gerida.
Rosie franziu a testa; aquilo não fazia sentido. Afinal de contas, Gladys
Thorpe, Linda e Mary também passavam várias horas lá em cima todas as
semanas. No entanto, enquanto refletia sobre o assunto percebeu que aquele
andar devia estar praticamente o dia inteiro com muito poucos funcionários
porque as outras raparigas só iam lá acima à hora das refeições.
Veio-lhe à ideia uma imagem arrepiante de pessoas trancadas em jaulas
como animais. Tentou afastá-la, certa de que a sua imaginação estava a ficar
descontrolada, e prometeu em silêncio a si mesma que depois da Páscoa
procuraria outro emprego.
Estava uma tarde luminosa e soalheira, mas gelada, quando Rosie saiu do
comboio em Bridgwater duas semanas mais tarde. Miss Pemberton
esperava na plataforma com um casaco de tweed e um chapéu de feltro
castanho. Como muitas pessoas, tinha uma faixa preta cosida no casaco em
sinal de luto pela rainha Maria, que falecera alguns dias antes.
As emoções de Rosie tinham oscilado como um pêndulo entre alegria e
apreensão durante a longa viagem de comboio. Estava entusiasmada por
estar de férias, por ver Miss Pemberton e talvez Alan, mas era assustador
regressar a uma região que lhe trazia tantas recordações. Depois de Bristol,
colara o nariz à janela e esperara com ansiedade pelo primeiro vislumbre
dos Levels. Enquanto o comboio seguia pela familiar paisagem plana, a sua
boca secou com os nervos, mas os olhos encheram-se de lágrimas ao ver de
novo o lugar que adorava.
O sol brilhava nos canais e na água das cheias que ainda cobria os
campos. Viu cordeiros nascidos há pouco tempo a saltitar à volta das mães e
garças-reais paradas como estátuas nas margens dos rios. As árvores de
fruto estavam em flor e viam-se tufos de prímulas a crescer nas margens,
tudo muito lindo e sereno. Todavia, tudo o que via fazia-a recordar o pai e
os irmãos. Também sabia que aqui as pessoas tinham boa memória; não
teriam esquecido os homicídios brutais como acontecera com as pessoas de
Londres.
– Estás maravilhosa – exclamou Miss Pemberton, tirando-lhe a pequena
mala de viagem da mão e pousando-a na gare durante alguns instantes.
Depois, pegou nas mãos de Rosie e sorriu com carinho. – Deixa-me olhar
bem para ti!
Violet não reconhecera a jovem com o cabelo cortado à rapaz e um fato
verde-maçã que saiu do comboio. Só percebeu que era Rosie quando ela
acenou e viu o conhecido sorriso atrevido. Esta nova Rosie parecia saída de
uma revista de moda.
Rosie riu-se, embaraçada, enquanto Miss Pemberton a observava.
– Pareces mesmo uma rapariga da cidade – disse. – Estou muito
orgulhosa de ti, Rosie.
Rosie sentiu um nó na garganta, não com os elogios, mas com o afeto que
sentiu nos olhos e na voz da mulher mais velha. Fê-la sentir que ela era
mesmo sua tia, a dar-lhe as boas-vindas a casa após uma longa ausência.
Rosie não falou enquanto atravessaram a cidade porque estava muito
concentrada a olhar para tudo. Bridgwater era um lugar mágico quando era
criança, cheio de pessoas, carros, autocarros e dúzias de lojas com coisas
lindas. Viu o barbeiro onde costumava levar Alan, o armeiro onde o pai
comprava munições, o merceeiro que vendia maçãs caramelizadas caseiras
e a pequena banca de flores onde costumava parar para cheirar as flores e
perguntar os nomes das que não reconhecia.
Lembrou-se de estar parada na ponte a contemplar o rio e os barcos e a
desejar viver ali. Vira a cidade há menos de um ano, quando tivera alta do
hospital, mas não estava como se recordava.
– Deves estar a pensar que tudo encolheu. Como descobri por mim
própria, alguns sítios melhoram quando os deixamos e voltamos mais tarde,
mas outros deviam ficar apenas na nossa memória – disse Miss Pemberton
secamente. – Senti-me como deves estar a sentir-te agora quando voltei para
cá em 1947. Tinha uma lembrança maravilhosa de uma loja de doces com
filas de frascos de vidro reluzentes cheios de todos os tipos de doces que era
possível imaginar. A dona era uma velhota que usava um grande avental
branco e quando eu era pequena dizia-me para fechar os olhos e abrir a
boca e dava-me alguma coisa deliciosa.
«Mal podia esperar para voltar lá. Durante a guerra tinha sonhado com os
seus caramelos e bolinhos de coco. Pensei que iria lá e compraria muitos
quilos de doces...» Desatou a rir.
– Encontrou-a?
– Sim, mas foi uma grande desilusão! Era escura e suja, e quase não havia
doces por causa do racionamento. Estava lá outra senhora, que usava um
avental bastante sujo. Só comprei sessenta gramas de caramelos.
– Não sei qual seria a minha reação se passasse por May Cottage... – disse
Rosie, pensativa.
– Agora, não há lá nada. Deitaram a casa abaixo em janeiro – replicou a
mulher mais velha apressadamente. – Há pouco tempo passei por lá e nem
sequer consegui perceber exatamente onde era: o chão estava coberto de
ervas daninhas e erva.
Rosie sabia que conseguiria encontrar o local certo. Sabia que mesmo
quando fosse tão velha como Miss Pemberton conseguiria dizer exatamente
onde estivera a porta principal de May Cottage. No entanto, não fez
qualquer comentário.
*
– Então, o que achas da minha casinha? – perguntou Miss Pemberton
depois de lhe mostrar a sua pequena casa de dois quartos em Chilton
Trinity. Estavam na minúscula cozinha e ela preparava um tabuleiro com
coisas para o chá.
– É linda – disse Rosie, entusiasmada. – Posso ir ao jardim?
A casa não era tão velha nem tão bizarra como Rosie esperava. Miss
Pemberton dissera-lhe que fora construída em 1880 e que tinha a aparência
simples e prática das casas dos artesãos daquela época. Pedra cinzenta e um
alpendre com gelosias à volta da porta principal. Uma janela em cima, outra
em baixo. No interior havia uma grande divisão onde estavam as escadas
para o primeiro andar e uma pequena cozinha numa extensão da casa.
Originalmente não havia casa de banho, mas Miss Pemberton mandara
dividir o quarto das traseiras ao meio para construir uma. O que mais
agradou a Rosie na casa foi a simplicidade: paredes pintadas de branco,
tábuas de soalho enceradas no rés do chão e um colorido tapete com franjas
para tornar o espaço mais acolhedor. Cada móvel parecia ter uma história.
Havia duas mesas baixas esculpidas que ela disse que trouxera da Índia e
uma secretária muito brilhante com tampo de couro que pertencera ao seu
avô. O sofá era um velho sofá de pele castanho e as duas poltronas
diferentes tinham costas com botões e pareciam muito antigas.
Miss Pemberton abriu a porta das traseiras.
– Tinha-me esquecido de como gostas de jardinar. Quem me dera ter mais
tempo para dedicar ao jardim. Mas a primavera é sempre um bom tempo
para vê-lo, com todos os bolbos a nascer e antes de as ervas daninhas
começarem a aparecer.
No momento em que saiu e viu o jardim escondido rodeado de todos os
lados por sebes com um metro e oitenta de altura, Rosie percebeu que ela e
Miss Pemberton tinham muito mais em comum do que pensara. Só as
pessoas que gostavam verdadeiramente de flores plantavam os seus narcisos
em tufos na relva daquela maneira; os aspirantes a jardineiros plantavam-
nos muito alinhados em canteiros. Sentiu uma emoção profunda ao ver
aquela massa de amarelo no viçoso relvado. Enquanto percorria o carreiro
com Miss Pemberton à sua frente, reparou com prazer no comedouro dos
pássaros com um pedaço de coco para os chapins-azuis, na forma como as
Aubrietas cresciam no meio do pavimento irregular e nas dúzias de roseiras
com reluzentes folhas novas.
Parou para respirar fundo e saborear o ar fresco e doce, com um ténue
odor a estrume, que vinha dos campos do outro lado da vedação. Aquele
cheiro levou-a para May Cottage; se fechasse os olhos conseguiria imaginar
que estava no pomar. Depois, viu a árvore ao lado da arrecadação.
– O que é? – perguntou, assombrada. A árvore tinha flores cor-de-rosa
esbranquiçadas que pareciam velas e começavam a abrir em ramos quase
despidos.
Miss Pemberton virou-se e sorriu.
– É uma magnólia. Gostas?
– É a árvore mais linda que já vi – sussurrou Rosie, sentindo-se
embaraçada quando os olhos se marejaram de lágrimas.
Miss Pemberton rodeou-lhe os ombros com o braço.
– Não há nada errado contigo – disse, suavemente. – Aquela árvore já me
comoveu muitas vezes até às lágrimas. Para mim, é Deus a manifestar-se. E
vais vê-la na sua glória máxima antes de te ires embora.
Mais tarde nessa noite, confortavelmente sentadas junto da lareira, Miss
Pemberton disse a Rosie que a levaria a Taunton no dia seguinte para visitar
Alan.
Rosie emitiu um pequeno grito de entusiasmo e, num impulso, abraçou a
mulher mais velha.
– Vais ver que ele está muito diferente – avisou-a Miss Pemberton. –
Cresceu em todas as direções, está maior, mais confiante e às vezes até um
pouco descarado. É possível que te ignore, como ignora o Thomas.
– Então, o Thomas continua a vir cá vê-lo? – perguntou Rosie. Como a
assistente social não falara sobre ele, partira do princípio de que se tinha
afastado totalmente desde o julgamento, como fizera com ela.
– Claro que sim, minha querida. – Miss Pemberton pareceu surpreendida
com a pergunta. – Na verdade, também vem cá amanhã. Vamos encontrar-
nos com ele em casa dos Hughes e ofereci-lhe o sofá para passar a noite,
para poderes voltar a vê-lo.
Rosie ficou estupefacta. Quando nem sequer recebera um postal de Natal
dele presumira que as mentiras dos irmãos no tribunal tinham acabado com
todo o interesse que tinha por si. Pensar que o veria no dia seguinte fê-la
ficar nervosa.
Explicou isso a Miss Pemberton e perguntou-lhe porque é que ele
quereria vê-la agora.
– Penso que te estás a esquecer de como o Thomas é um homem honrado
e corajoso – disse Miss Pemberton, a tranquilizá-la. – Acho que quando
bateu no fundo do poço em termos emocionais percebeu que também deve
ter sido horrível para ti. Disse que precisava de te ver de novo, nem que
fosse só para esclarecer tudo.
Rosie respirou fundo, para tentar controlar o nervoso miudinho.
– Talvez ele tenha razão e devamos encontrar-nos de novo, mas mesmo
assim tenho medo de o ver.
– Não precisas de ter medo, minha querida. Embora ainda não conheça o
Thomas pessoalmente, conheço muito bem o seu carácter através da
correspondência que trocamos. Ele é um homem bom e solitário; as muitas
tragédias que aconteceram na sua vida deram-lhe grandes reservas de
compaixão e tenacidade. Vais ver que não te tratará com hostilidade. Além
disso, a maior parte deste encontro será para discutir o futuro do Alan, e
tenho a certeza de que é um tema em que estarão ambos em completa
harmonia.
– O futuro do Alan? – Rosie sentou-se direita. – O Thomas quer levá-lo
para Londres?
– Não, minha querida. O Alan é demasiado feliz para se considerar essa
possibilidade. Mr. e Mrs. Hughes gostariam de o adotar legalmente.
Rosie engasgou-se.
– Desculpa. Não queria transtornar-te com isto, Rosie – disse ela,
atropelando as palavras e batendo na mão da rapariga num gesto
tranquilizador. – Espera até o veres com a nova família, e conversa com o
Thomas antes de tirares conclusões. O Alan está muito, muito feliz e bem
adaptado com eles, minha querida, e os Hughes adoram-no. A adoção ia
dar-lhe uma segurança total e permanente.
O primeiro pensamento de Rosie quando viu Alan foi que aquele menino
robusto era um impostor, não o seu irmão mais novo. Nada era igual. O
cabelo adquirira uma tonalidade mais escura, agora mais castanho do que
ruivo, tinha bochechas gordas e rosadas e os olhos castanho-escuros que
fitaram os seus eram ousados e corajosos. Até as roupas eram diferentes –
bonitos calções cinzentos que lhe serviam bem, uma linda camisa aos
quadrados e um casaco de malha azul-marinho tricotado à mão.
– Olá, Alan – disse ela, quase sucumbindo à emoção. Só queria abraçá-lo.
– Lembras-te de mim?
A sala de estar dos Hughes parecia a sala de um anúncio ao Ovomaltine.
Muito após-guerra, cheia de chintz e confortável. O jardim do outro lado
das portas envidraçadas tinha um baloiço e uma caixa de areia. Via-se um
triciclo no caminho e roupa a secar no estendal.
– És a Rosie – disse ele sem sorrir. – Mas o teu cabelo está diferente.
– Cortei-o porque ficava muito despenteado – replicou ela. – O teu está
mais escuro. E deves ter crescido uns cinco centímetros.
Mais tarde, ele veio sentar-se ao seu lado no sofá. Falou-lhe sobre a
escola e mostrou-lhe que sabia ler com o seu livro de leitura. Thomas estava
sentado numa poltrona a observá-los. Miss Pemberton fora para a cozinha
com Mrs. Hughes.
Foi muito estranho voltar a ver Thomas num sítio tão desconhecido.
Desejou que pudessem ter-se encontrado antes de serem confrontados um
com o outro naquela casa. Ele deixava-a nervosa e pouco à vontade, pois
ainda não tinham tido oportunidade para desanuviar o ambiente. Parecia
tenso e pálido e Rosie não percebeu se se devia a cansaço ou nervosismo.
O facto de Alan o ignorar não ajudava. Não falava diretamente para ele,
dizendo as coisas para os dois. E quando Thomas lhe fazia perguntas olhava
para Rosie enquanto respondia. Aparentemente, Mr. Hughes saíra com o
filho e a filha pouco depois da chegada de Thomas, convencido de que seria
mais fácil para Alan sem tanta gente presente. No entanto, Alan só queria
falar sobre Jennifer e Raymond, e o cão Rex.
Rosie ficou magoada ao ver que Alan transferira para a nova família todo
o amor que outrora sentia por ela. Tinha a certeza de que não esquecera que
ela já fora importante para si, porque em diversas ocasiões viu-o a olhá-la
pensativamente. Contudo, se recordou algum incidente não disse nada e
Rosie não se atreveu a lembrar-lhe coisas porque não queria assustá-lo.
Mr. Hughes voltou mais tarde com os outros dois filhos e foi quase um
alívio ficarem sem a pressão de terem de falar com o menino sozinhos.
Juntos, os Hughes pareciam o tipo de família perfeita retratado nos cartazes
de férias: Mrs. Hughes vestia camisola e casaco de malha a condizer, uma
saia de tweed, e tinha uma permanente no cabelo; o marido, que fumava
cachimbo, era mais alto do que ela e usava um pulôver com padrões
coloridos tricotado à mão; Jennifer, uma menina loura de cinco anos com
covinhas no rosto, vestia um bibe de lã azul; e Raymond era igual a todos
os meninos de nove anos com os joelhos muito esfolados e o cabelo cortado
muito curto.
Alan deixou muito claro quem eram os donos dos seus afetos. Subiu para
o colo de Mr. Hughes e recostou-se confortavelmente no seu peito enquanto
sorria para Thomas, muito satisfeito com a sua pessoa. Jennifer estava mais
interessada em Rosie, a admirar o seu cabelo e fato, e perguntou-lhe se
tinha bâton na carteira para ela experimentar.
Enquanto tomavam chá e comiam uma fatia de bolo de fruta, Rosie
pensou que por fim estava perante o tipo de família feliz, calorosa e
descomplicada de classe média que até então só conhecia dos livros de Enid
Blyton. Alan encaixava como se fizesse parte da família desde sempre, e
agora até falava como eles. Tinha um ligeiro sotaque, mas não tão forte
como em tempos. Sentiu alguma inveja, mas o desgosto de perdê-lo foi
maior. No seu íntimo, sabia que era a última vez que veria o irmão mais
novo.
Quando chegaram a casa, Thomas começou a acender a lareira enquanto
Rosie ajudava Miss Pemberton a preparar fiambre, ovos e puré de batata
para o jantar. A conversa foi fluida, sobre a pequena casa, sobre a vida no
campo em comparação com a vida na cidade e a Coroação iminente, mas
Alan não foi mencionado uma única vez.
– Bem, acho que está na hora de falarmos sobre o Alan – disse Miss
Pemberton enquanto passava queijo e bolachas. – Uma das razões
principais para Mr. e Mrs. Hughes quererem adotá-lo agora, em vez de
esperarem alguns anos, é porque temem que comece a fazer perguntas
difíceis sobre a família quando for mais velho.
– Adotá-lo não vai evitar isso – comentou Rosie com um encolher de
ombros.
Thomas e Miss Pemberton entreolharam-se e de repente Rosie percebeu o
que ela queria dizer.
– Está a dizer que se não nos vir, ao Thomas e a mim, não tem motivos
para fazer perguntas?
Miss Pemberton acenou com a cabeça.
Thomas pousou a mão sobre a de Rosie em cima da mesa.
– Estás a perceber o motivo dos Hughes? – perguntou.
– Sim – respondeu Rosie em voz muito baixa. – Eu também não quero
que ele saiba.
T homas subiu as escadas com Miss Pemberton até à sua sala de estar
antes de dizer mais do que as habituais cortesias. Mr. Bryant
preparava-se para fechar a loja, mas era um homem curioso e Thomas não
queria que lhe perguntasse quem era nem que escutasse a conversa dos dois.
Passara uma semana desde que Rosie viera contar-lhe a sua história
chocante e, embora ele e Miss Pemberton tivessem falado duas vezes ao
telefone durante esse tempo, ela não lhe dera nenhuma indicação de que
viria a Londres hoje. Ficou ainda mais surpreendido com a sua aparência
bastante atraente. Quando se tinham conhecido na Páscoa ela era a
personificação de uma assistente social: de meia-idade, um pouco
masculina, com um fato de tweed e sapatos resistentes. Porém, hoje parecia
dez anos mais nova com um vestido lilás de verão muito feminino de
mangas curtas, sapatos bonitos e um encantador chapéu de palha.
– Se me permite o arrojo, está belíssima, Miss Pemberton – disse Thomas
depois de fechar a porta da sala de estar. – E fico-lhe muito grato por ter
vindo de tão longe.
– Se é arrojado o suficiente para dizer que estou belíssima, é arrojado
para me tratar por Violet – disse ela com um sorriso. Gostava de Thomas
Farley. Apesar de só o ter visto uma vez pessoalmente e de resto
conhecerem-se apenas por conversas telefónicas e cartas, considerava-o
muito encantador. Esta qualidade transparecera sem o ver, através das
interessantes e inteligentes declarações nas suas cartas e do tom forte e
profundo da sua voz e tornou-se mais forte quando viu os olhos castanhos
calorosos e a forma como os seus lábios carnudos se curvavam num leve
sorriso enquanto falava com ele, como se ela o divertisse secretamente.
Gostava muito das rugas do seu rosto porque contavam histórias de
dificuldade, aventura e experiência e também confirmavam porque é que
possuía aquela abundância de compaixão e sensibilidade. E também era
divertido; de alguma forma, conseguira manter o humor irreverente e
acutilante pelo qual os habitantes do East End eram famosos. Na verdade,
era um homem mais verdadeiro com uma perna do que a maioria dos que
tinham as duas. E, se fosse quinze anos mais nova, sentir-se-ia tentada a
atirar-se a ele.
– Não sei porque é que está grato por eu ter vindo. Sou eu que estou em
dívida para consigo, Thomas, por ajudar a Rosie quando ela precisou. Além
disso, gosto de pensar que somos amigos – acrescentou.
Thomas sorriu com a sua franqueza. Trouxe-lhe boas lembranças de
outras enfermeiras do Queen Alexandra igualmente frontais que conhecera.
Devia a vida e a sanidade mental a essas mulheres determinadas. Ficou
comovido ao saber que o considerava um amigo.
– Faça o favor de se sentar – disse, retirando uma camisa de uma das duas
cadeiras. – Se soubesse que vinha visitar-me, tinha-me arranjado um pouco
e também a casa. Posso oferecer-lhe um chá? Ou alguma coisa mais forte?
– Um chá seria agradável – disse Violet, enquanto se sentava e tirava o
chapéu.
Thomas sentiu-se um pouco parvo ao oferecer-lhe uma bebida alcoólica
às cinco da tarde. Evoluíra bastante desde as suas raízes de criança de bairro
de lata, mas pensava que ainda tinha muito para aprender sobre etiqueta.
– A Rosie compilou um grande dossiê – disse rapidamente, para esconder
o embaraço. – Ontem à noite veio cá trazer o relatório do dia. Hoje não
vem, porque tem um encontro.
Quase esperou que Violet não gostasse, mas em vez disso ela sorriu com
verdadeira ternura e os seus suaves olhos cinzentos cintilaram.
– Que boa notícia. Tenho andado muito preocupada com ela. Quem é o
jovem?
– Gareth Jones. É maquinista de locomotivas. Conheceu-o no dia da
Coroação... Aparentemente, o Donald perdeu-se e o Gareth ajudou-a a
encontrá-lo. Fico muito contente que tenha alguém para se distrair desta
coisa horrível, pois já começa a notar-se a tensão. Mas deixe-me dar-lhe as
notas dela para ler enquanto preparo o chá.
Enquanto fazia o chá na minúscula cozinha nas traseiras da casa, pensou
de novo em Rosie. A verdade é que, pensando bem, ela quase não lhe saíra
da cabeça durante a semana inteira. Detestava pensar que estava em
Carrington Hall, especialmente desde que lera o que ela escrevera acerca de
Saunders. Vezes sem conta, sentira-se tentado a chamar um táxi e ir lá
buscá-la. Não parava de pensar porque é que sentia isto por ela; não era
racional nem normal sentir-se tão ligado a uma rapariga que não era da sua
família, especialmente tão jovem e com aqueles antecedentes. Em
momentos sombrios, pensava que talvez precisasse de consultar um
psiquiatra.
– Não sejas estúpido – disse em voz alta, e as suas palavras foram
abafadas pelo som do apito da chaleira. – Não tens nada que não possa ser
resolvido com algumas cervejas em boa companhia. Passas demasiado
tempo sozinho, é só isso.
Violet estava a terminar a última página do relatório de Rosie quando
Thomas voltou com o tabuleiro do chá.
– A Rosie daria uma excelente repórter – disse, olhando para ele. –
Escreve com uma clareza e concisão que não se esperaria de uma rapariga
com a sua origem.
– Também daria uma boa detetive – comentou Thomas, sorridente. – A
forma como descobriu que a Aylwood injeta doentes com insulina para os
manter em coma, sem que tenha sido prescrito pelo Dr. Freed. E aquela
parte em que esperou na casa de banho para espiar o Saunders
impressionou-me. Reparou que ela anotou o tempo exato da sua visita:
chegou às 21h20; saiu às 21h52. Quem diria que ele tinha a lata de voltar
durante a noite para fazer mais maldades!
Violet corou. Estava envergonhada por ter mandado Rosie para
Carrington Hall sem ter ido lá verificar primeiro, e sentiu-se extremamente
culpada por ter ignorado as suas queixas e desconfianças na Páscoa. Devia
tê-las levado mais a sério, pois Rosie não era histérica nem exagerada.
Agora, Saunders estava a fazer aquela pobre menina perder a pouca
inocência infantil que lhe restava. Sentiu-se totalmente responsável.
– Acho inconcebível que a enfermeira supervisora deixe aquele piso sem
alguém de serviço durante a noite – disse, a abanar a cabeça. – Devia ser
chicoteada. Um daqueles pacientes pode ter uma apoplexia, pode haver um
incêndio, qualquer coisa.
Thomas concordou sem reservas, mas referiu que um menosprezo tão frio
pelo bem-estar dos pacientes poderia tornar muito mais fácil provarem
todas as outras alegações.
– Mr. Cook, o pai do Donald, foi lá sem avisar no sábado passado –
continuou. – Ligou-me depois para me contar o que aconteceu. Como
sempre àquela hora, a enfermeira supervisora não estava e ele falou com
Mrs. Trow, que não queria deixá-lo ver o filho sem autorização da chefe.
Enquanto estava no escritório, conseguiu dar uma vista de olhos à escala de
serviço. No papel, a enfermeira Wilkinson estava de serviço noturno com
um auxiliar chamado Giles. A Rosie disse-me que nunca ouviu falar nem
viu ninguém com esses nomes.
– Está a dizer que a enfermeira supervisora mete ao bolso os salários de
dois funcionários que não existem? – Os olhos de Violet quase saltaram das
órbitas com o choque.
– Bem, é o que parece. – Thomas acenou com a cabeça. – E a Rosie está
convencida de que a maior parte do pessoal contratado pela enfermeira
supervisora deve estar em dívida para com ela. Seria muito interessante ver
os seus dossiês. Aposto que íamos encontrar alguns rabos-de-palha.
– Um dos motivos por que vim tão depressa foi porque ontem falei com
uma antiga colega, a Molly Ramsden – disse Violet. – A Molly foi a
primeira enfermeira supervisora de Carrington Hall: eu recomendei-a ao
Lionel quando ele estava a abrir o hospital psiquiátrico. Lamentavelmente,
em 1940 ela teve de se ir embora para cuidar da mãe doente e a Freda
Barnes, que na época era enfermeira, assumiu o cargo de enfermeira
supervisora. Ela contou-me que voltou lá em 1942 para fazer uma visita e
ficou surpreendida ao perceber que todos os funcionários originais se
tinham ido embora. Pediu uma ou duas moradas à Barnes, mas ela mandou-
a passear, e quando quis ver alguns dos antigos doentes foi, praticamente,
acompanhada à porta.
– A sério? – exclamou Thomas, sentando-se para servir o chá.
– Eu pensei que é suspeito – disse Violet com uma fungadela. – Sei que a
Molly nunca gostou da Barnes, e que este incidente pode ter sido por
simples ciúmes profissionais. Mas agora, com o que soubemos pela Rosie,
parece muito provável que ela já estivesse a esconder alguma coisa naquela
época.
– A sua amiga tem contacto com algum dos antigos empregados? –
perguntou Thomas, passando-lhe uma chávena de chá e oferecendo-lhe o
açúcar.
– Apenas com uma, a Lucy Whitwell, que era cozinheira em Carrington
Hall, também desde a abertura do estabelecimento. – Violet recusou o
açúcar e bebeu um gole de chá. – A Whitwell escreveu-lhe em 1943, a
pedir-lhe que lhe desse referências porque fora despedida pela Barnes,
alegadamente por roubar provisões. Na longa e amarga carta, afirmava que
se tinham desaparecido provisões, a Barnes era quase de certeza a
responsável, pois era ela que tinha as chaves da despensa. A Molly sentiu-
se inclinada a tomar o partido da antiga colega, pois enquanto trabalhara lá
pudera perceber que ela era uma excelente cozinheira e uma mulher
honesta. Por isso, deu-lhe uma carta de referências e ela foi contratada para
trabalhar num lar em Bexhill. Ainda continua lá e trocam postais de Natal
todos os anos. A Molly acredita que, se for preciso, ela não se importará
nada de dar um depoimento para contar as suas experiências com a Barnes.
Enquanto bebia o chá, Thomas refletiu um pouco.
– Já pensou porque é que o Brace-Coombes dá tanta liberdade à Barnes
para gerir o seu hospital? – perguntou por fim. – Ou porque é que o médico
que trabalha lá nunca se queixou?
– Fiz algumas investigações sobre ele. Parece que o Dr. Freed tem
bastante mais de sessenta e cinco anos e está semirreformado. É o médico
de Carrington Hall há uns seis ou sete anos e vai lá duas manhãs por
semana. Como passou toda a sua vida profissional a trabalhar em hospitais
psiquiátricos, deve estar demasiado empedernido para ver alguma coisa
mais dramática do que uma epidemia ou uma vaga de mortes súbitas. –
Violet apertou os lábios. – Mas, para ser justa com o homem, é muito fácil o
pessoal de dia ter tudo na mais perfeita ordem quando o médico vem
sempre à mesma hora. Os doentes não conseguem queixar-se de forma
coerente e se o pessoal não lhe disser nada ele não tem motivos para ficar
alarmado.
– E o Brace-Coombes?
Violet encolheu os ombros.
– Ele é um homem de negócios, não um médico. Tenho a certeza de que a
Rosie lhe contou que ele abriu o hospital para pôr a mulher lá, e foi uma
coisa boa. Sei que ficou devastado quando a Ayleen faleceu e sentiu que
tinha de o manter aberto em sua memória. No entanto, depois da morte da
mulher passou a ser muito difícil para ele ir lá. Aposto que foi muito fácil
para a Barnes enganar o pobre Lionel e convencê-lo a dar-lhe autoridade
total. Parece que ela tem jeito para manipular pessoas.
– Isso não o isenta de culpa.
Os olhos de Violet estavam tristes.
– Pois não.
Para além de achar Thomas muito atraente, Violet pensou que ele era algo
intrigante. Se não soubesse quais eram as suas origens, diria que era
oriundo de uma família de classe média baixa e que tinha completado o
liceu. Nunca diria que nascera e crescera num bairro de lata da zona oriental
de Londres. No entanto, como era um pouco bisbilhoteira – a sua profissão
de assistente social a isso obrigava – decidira descobrir mais coisas sobre
ele. Fora um soldado de primeira classe, muito apreciado pelos seus pares e
respeitado pelos oficiais. Antes de perder a perna fora um grande
desportista e estava prestes a ser promovido. Pensou que era triste ter
acabado como relojoeiro. Ele merecia mais.
– Diga-me, Thomas – disse. – Antes de tudo isto acontecer alguma dez
duvidou da opinião de um médico ou de um enfermeiro?
– Bem, não. – Thomas esboçou um pequeno sorriso. – Eles são treinados
para exercer aquelas profissões e eu não.
– Pois – disse ela sem rodeios. – Na verdade, tanto quanto sabe a sua
perna podia não ter de ser cortada. Mas não teria contestado a decisão do
cirurgião, pois não? Todos depositamos a nossa fé em profissionais num
momento ou outro das nossas vidas, sejam médicos, advogados, padres ou
dentistas, e acreditamos que são honrados. Mas a verdade é que já vi
cirurgiões operar em quem não confiaria para trincharem uma peça de
carne. Conheço enfermeiras que já estiveram bêbedas de serviço e
advogados que decidiram defender mal um cliente porque um dos seus
compinchas estava do lado da acusação.
Thomas pareceu alarmado.
– Então em quem é que podemos confiar?
– Em muitas pessoas – respondeu Violet, sorridente. – Felizmente, as
maçãs podres estão em minoria. Eu só estava a tentar perceber o lado do
Lionel, porque o pobre diabo é a pessoa que vai ser alvo das maiores
críticas quando tudo isto for desmascarado. Podemos conseguir que a
Barnes nunca mais trabalhe como enfermeira, e com sorte talvez seja
acusada criminalmente. O Dr. Freed poderá ser repreendido, mas é muito
provável que o nome do Lionel seja arrastado pela lama.
– Isso não vai acontecer se for ele a iniciar as investigações.
– E é o que acho que vai fazer, quando for falar com ele – replicou ela. –
Esta noite vou dormir em casa de uma velha amiga em Highgate. Amanhã,
almoço em casa dele. Pus a Rosie nesta situação terrível e quanto mais
depressa conseguir resgatá-la, mais feliz me sentirei.
– Senta-te como deve ser, Donald – disse Norah Cook com um toque de
exasperação na voz. Já tinham ido buscar Rosemary há duas horas e a
esperança de que ele se acalmasse ao seu lado no banco de trás estava a
revelar-se vã. Ele passara o tempo todo a mexer-se e contorcer-se, virando-
se para um lado e para o outro, a comentar tudo o que via, desde lojas e
vacas nos campos até diferentes carros, e a fazer perguntas atrás de
perguntas até ao ponto de Norah pensar que não conseguiria aguentar nem
mais um instante. Porém, à medida que se foram aproximando de Mayfield
e ele reconheceu alguns pontos de referência, a sua alegria tornou-se
irresistível. – E podes tentar ficar calado durante cinco minutos?
No entanto, enquanto Donald fora ficando cada vez mais ruidoso à
medida que a viagem continuava, Rosemary ficara mais calada. Norah
ponderou se estaria a pensar em todas as coisas terríveis dos últimos dez
dias, ou talvez a sentir que fora obrigada a aceitar aquele emprego sem lhe
darem tempo para pensar. Mas não podia perguntar-lhe agora, não à frente
do filho.
Rosie estava mergulhada nos seus pensamentos, mas não pensava em
Carrington Hall. Era um lugar que nunca mais queria ver e também não
queria pensar nele. Saíra antes das nove da manhã com rápidas despedidas e
sem olhar uma única vez para trás. Todavia, embora sentisse que hoje era o
início de uma vida nova e feliz, podia ser comparado a saltar de um avião
sem verificar primeiro se tinha um paraquedas preso nas costas.
Na noite anterior ficara acordada durante várias horas a pensar em
Gareth. Gostava muito dele, mas ele gostaria o suficiente dela para ir até
Mayfield visitá-la?
Também estava preocupada com Thomas e com Miss Pemberton. Manter-
se-iam em contacto como tinham prometido? Agora que o futuro de Alan
estava decidido e ela tinha um emprego novo, não era realmente necessário,
mas os acontecimentos daquela semana tinham realçado a importância
daquelas duas pessoas na sua vida. Eram substitutos da família, duas
pessoas que sabiam tudo sobre ela e cujos conselhos, amizade e afeto
valorizava acima de tudo.
No entanto, Donald era a sua principal preocupação. Enquanto ele se
contorcia ao seu lado, demasiado excitado, bombardeado de todos os lados
por coisas, sons e paisagens de que tinha sido privado durante tanto tempo,
perguntou a si mesma se seria mesmo capaz de o orientar em todas as
situações difíceis que sabia que os esperavam.
A vida em Carrington Hall era muito disciplinada e ordeira para ambos.
Sabiam exatamente o que se esperava deles em todos os momentos do dia.
Não tinham de tomar decisões e viviam de acordo com regras rígidas.
Mas agora as regras tinham desaparecido. Tinham acabado as portas
trancadas, as campainhas a tocar para se levantar, não precisava de
autorização para sair de casa e não usaria uniforme. Rosie não ia ser
totalmente livre; teria de prestar contas a Mr. e Mrs. Cook e, como viveria
na casa deles, estava sujeita ao seu código de comportamento. Porém, seria
muito diferente para Donald. Era o filho pródigo a regressar a casa.
Era isso que a deixava apreensiva. Demasiada liberdade, cedo de mais,
podia ser desastroso para ele. Fechado desde os quinze anos, não sabia nada
sobre o mundo exterior. E se saísse de casa e desse um dos seus abraços
fortes a uma velhota? Ou se tirasse alguma coisa de uma loja sem perceber
que tudo tinha de ser pago, ou se entrasse na casa de outras pessoas? Em
Mayfield não haveria uma campainha de alarme para tocar a pedir ajuda.
Não haveria outras funcionárias a quem se lamentar se as coisas corressem
mal. Claro que os pais dele estariam lá, mas de certo modo achava que Mrs.
Cook não seria muito forte numa crise. Ainda pensava em Donald como um
rapazinho, e ele era-o em muitos sentidos. Todavia, enquanto estava longe
dela o seu corpo tornara-se adulto e ele adquirira hábitos que poderiam
chocá-la. Rosie interrogou-se se ela estaria consciente de tudo isto.
No entanto, quando chegaram a Mayfield e teve um primeiro vislumbre
da aldeia onde ia viver, Rosie esqueceu a ansiedade e ficou tão
entusiasmada como Donald.
Tinham visto muitas aldeias lindas durante a viagem desde Londres. No
entanto, havia alguma coisa nesta que ofuscava todas as outras. As casas e
lojas da rua principal estavam todas aglomeradas em fila, mas não havia
duas iguais. Algumas tinham ladrilhos vermelhos até às janelas do rés do
chão, outras tábuas pintadas de branco. Algumas tinham jardins à frente e
vedações de madeira e noutras a porta da frente dava diretamente para o
passeio. Aqui uma loja com janelas salientes e um telhado tão baixo que
parecia ter sido levantado apenas o suficiente para encaixar uma janela no
primeiro andar. Ali uma casa de três andares com majestosos beirais
pontiagudos. Não havia uniformidade nenhuma, a menos que se
considerasse as selhas e as floreiras nas janelas com flores coloridas. Aqui
um alpendre com gelosias pintado de branco, ao lado alguns degraus de
mosaicos vermelhos até uma casa com rosas à volta da porta, e logo depois
uma porta que parecia de um estábulo aberta com um canário a baloiçar
numa gaiola por cima.
Rosie sentiu que se não conseguisse ter sucesso no seu trabalho num
lugar tão paradisíaco, não conseguiria em parte alguma do mundo. Depois,
Donald apertou-lhe o braço.
– Olha! – guinchou, excitado. – Casa.
Mrs. Cook voltou-se para olhar para o filho com os olhos marejados de
lágrimas de alegria, pois temia que ele não se lembrasse da sua casa. Aquele
primeiro vislumbre da Granja, quando Mr. Cook virou para o caminho de
acesso, deixou-a sem fôlego.
Árvores antigas formavam um arco sobre o portão e a antiga casa de
pedra cinzento-clara do outro lado pareceu-lhe uma mansão. Tinha as
janelas góticas que associava a igrejas, e estavam emolduradas por longos
cachos de glicínias roxas. Jasmim subia à volta do arco da porta principal e
um gordo e peludo gato cinzento estava sentado à porta como se os
esperasse para lhes dar as boas-vindas. Mas, melhor do que o esplendor da
casa, era o jardim. Nem sequer em revistas vira um tão lindo. Um bonito e
luxuriante relvado, salpicado de rododendros, rodeava a casa; havia
arbustos e árvores que não conhecia e, sem ver, soube que a área das
traseiras da casa seria ainda melhor.
– É enorme – disse com um arquejo, e Mr. Cook riu-se.
– Não é tão grande como parece de fora – disse. – Talvez seja o melhor
exemplo de espaço desperdiçado que alguma vez verás, Rosemary. Acho
que o homem que a construiu há duzentos anos foi inventando à medida que
ia avançando, sem um verdadeiro plano. Olha para aquele telhado comprido
e inclinado nas traseiras! Se ele tivesse posto um telhado convencional,
poderia haver mais dois quartos no andar de cima. Mas nós adoramo-la,
com todos os seus defeitos.
Depois de entrar, as recordações de Donald vieram em catadupa enquanto
davam a volta à casa.
– Este era o meu quarto – gritou, eufórico, quando entraram numa divisão
com o teto muito inclinado. – Eu f-f-fiz uma casa no c-c-canto.
– Pois fez – disse Mr. Cook com um sorriso. – Arrastou um grande cesto
de roupa e usava-o para se enfiar nele às vezes e dormir.
Rosie pensou que a sala de estar, onde até havia uma televisão, era a
divisão mais encantadora de todas. Estava decorada em tons de cor-de-rosa
e verde, com grandes poltronas fofas e dúzias de fotografias de toda a
família Cook, e tinha portas envidraçadas que davam para o jardim.
Era uma casa grande, mas acolhedora, cheia de sol e personalidade.
«Vivida» foi a expressão que veio à ideia de Rosie. Embora houvesse flores
em todas em divisões, em cima de mesas enceradas, também havia livros,
trabalhos de tricô e revistas. Algumas manchas nas carpetes provavam que
ainda brincavam aqui crianças. Alguns dos móveis estavam estragados e
velhos, mas outros eram peças valiosas, com uma aparência antiga, como os
que via em lojas de antiquários em Hampstead. Adorou.
Quanto ao jardim, os seus olhos encheram-se de lágrimas enquanto o
explorava. Havia o lago de que Donald falara, com a superfície cheia de
nenúfares e peixes-dourados gordos a nadar nas profundezas. Um pavilhão
de verão branco, um lindo jardim adornado com pedras, uma horta
aconchegada atrás de uma treliça coberta de rosas e uma bordadura de
plantas herbáceas que a deixou desejosa de mondá-la. Donald saltou para o
baloiço que estava pendurado num grande castanheiro e gritou-lhe para que
o empurrasse. Rosie nunca vira uma felicidade tão plena no rosto de alguém
e percebeu que, independentemente dos problemas que pudessem acontecer
com Donald, ia fazer tudo para que nunca mais fosse mandado para um
hospício.
Após uma refeição de frango estufado na cozinha, que aparentemente
tinha sido preparado por uma senhora chamada Josie que vinha duas
manhãs por semana, Donald foi para a sala com o pai e Rosie ajudou Mrs.
Cook a arrumar a cozinha.
– O Donald está muito magro – disse Mrs. Cook, pensativa, enquanto
lavava os pratos. – Temos de o fortalecer com boa comida e muito
exercício. Os seus modos à mesa são uma desgraça. Tenho de tratar disso, e
é claro que tem de fazer um bom corte no cabelo imediatamente, antes de
podermos levá-lo a algum lado.
Rosie sabia que Mrs. Cook estava a ser maternal e queria que o filho
parecesse o mais normal possível, mas a parte sobre os modos à mesa fê-la
lembrar-se de Mrs. Bentley.
– Ele não usava faca e garfo em Carrington Hall, apenas uma colher –
disse, num tom contundente. – Mas vai aprender depressa, a observar-nos.
– Espero que sim, querida. – Os olhos azuis de Mrs. Cook estavam
ansiosos e algo incrédulos. – Reparei que ele assoa o nariz à manga da
camisa. Também temos de lhe tirar esse hábito. No entanto, acho que não
vai ser possível fazer tudo num dia.
– Ele aprende depressa – replicou Rosie rapidamente. – Por falar nisso, já
fizeram planos sobre o que querem que eu faça com o Donald todos os
dias?
Mrs. Cook olhou para ela, intrigada.
– Ele simplesmente vai estar aqui connosco! Vamos passear, fazer
algumas compras, esse género de coisas. Mais tarde, depois de ele ter
descansado um pouco, talvez possamos fazer alguns planos.
Rosie sentiu um aperto no coração. Mrs. Cook era muito bondosa, mas
era claro que pretendia mimar o filho e compensar todos os anos perdidos.
Não estava a ser prática, nem a ajudá-lo. Ele estava acostumado a uma
disciplina rígida, e se ela desaparecesse de um momento para o outro era
provável que se comportasse como uma criança gulosa à solta numa loja de
doces.
Respirou fundo.
– Espero que não pense que estou a ser inconveniente – disse com voz
trémula. – Mas acho que temos de lhe estabelecer uma rotina desde o
primeiro dia. É natural que ele se sinta muito desorientado até se acostumar
a estar aqui. Por isso, acho que devíamos tentar manter as coisas o mais
parecidas possível com Carrington Hall durante algum tempo.
– Como assim? – A voz de Mrs. Cook subiu num guincho de surpresa. –
Pensei que tu serias a pessoa que mais quereria apagar essas recordações.
Rosie ruborizou-se, mas estava determinada a passar a sua ideia.
Explicou-lhe que Donald sempre ajudara as auxiliares e que gostava muito.
Mrs. Cook sentou-se à mesa para escutar e ela falou-lhe sobre o que a
preocupara durante a viagem para cá.
– Ele precisa de orientações firmes – insistiu. – Era a pessoa mais
inteligente da sua enfermaria, e por causa disso tinha pequenos privilégios
que os outros pacientes não tinham. Se o deixar andar por aí sem fazer
nada, vai perder aquela sensação de que é importante. Pensei que depois do
pequeno-almoço podíamos fazer alguns pequenos trabalhos juntos. Talvez
fazer camas, limpar sapatos, varrer o terraço, coisas simples para começar,
até ele apanhar o jeito. Depois, mais tarde, posso fazer algo mais tranquilo
com ele, ver livros ou fazer um puzzle.
Por fim, Mrs. Cook sorriu.
– Bem, não parece muito cansativo. E o que é que tinhas pensado fazer à
tarde? Tenho a certeza de que também já pensaste nisso.
Aquele último comentário teve um laivo de sarcasmo, mas Rosie tinha de
manter a sua posição.
– Trabalhar no jardim ou ir dar um passeio. Mas penso que devemos
mantê-lo longe das pessoas e das lojas da rua principal até ele ter tempo
para se adaptar a nós e à casa.
Rosie ficou um pouco embaraçada enquanto Mrs. Cook a olhava durante
algum tempo com uma expressão pensativa. Apesar de ser uma mulher
pequena e as suas roupas boas e unhas bem arranjadas sugerirem que tinha
uma vida muito ociosa, nas duas horas desde que tinham chegado a casa já
descobrira que não era assim. Josie vinha fazer algum do trabalho mais
pesado duas vezes por semana, mas ela era uma dona de casa. Cozinhava,
limpava, costurava roupas para os netos e a despensa estava cheia das suas
conservas, doces e pickles. Também tinha sido uma mãe muito boa e Rosie
sentiu que estava a ser muito atrevida ao dizer-lhe como devia tratar o
próprio filho.
– Está certo – disse Mrs. Cook por fim, abanando a cabeça. – Presumo
que ele se deitava cedo em Carrington Hall, por isso é melhor mantermos
esse horário por enquanto.
Rosie soltou um suspiro de alívio. Já tinha dito o que queria e o ambiente
estava desanuviado. Só esperava que Donald não percebesse que a mãe não
estava totalmente de acordo com ela e as virasse uma contra a outra. Ele era
perfeitamente capaz disso.
– No entanto, estou um pouco preocupada com ele à noite – admitiu. –
Está tão acostumado aos outros homens no dormitório que talvez não goste
de ficar num quarto sozinho.
Vira os quartos onde ela e Donald iam dormir. O dele era o que ocupava
quando era criança, decorado há pouco tempo com riscas azuis e brancas, e
o seu era do outro lado do corredor, nas traseiras, um quarto pequeno, mas
muito bonito, decorado em tons de cor-de-rosa e branco com um teto
inclinado semelhante ao do quarto de Donald. Nem sequer sabia se
conseguiria ouvi-lo se ele chamasse.
– Talvez seja melhor eu dormir à porta dele durante algumas noites –
sugeriu. – Só para ter a certeza de que não sai e anda por aí sem destino.
Mrs. Cook pareceu horrorizada com aquela ideia.
– Minha querida – disse ela, erguendo as elegantes sobrancelhas –, eu não
te trouxe para cá para seres uma espécie de cão de guarda.
Rosie riu-se.
– Não estava a pensar dormir em cima de um tapete... talvez uma cama
portátil junto ao corrimão. Depois de todas as portas trancadas em
Carrington Hall, ele vai querer explorar tudo. Durante algum tempo, vai ser
como o seu neto Robin, a querer tocar em tudo e observar tudo. Mas não vai
perceber os perigos de coisas comuns como fósforos, facas afiadas e outras
coisas parecidas. Também pode ser desastrado e partir coisas.
O que Rosie estava a dizer foi provado alguns momentos mais tarde
quando Donald derrubou uma jarra com flores numa mesa baixa na sala de
estar. A jarra de vidro partiu-se, a água entornou-se em cima da mesa e
quando ele foi apanhar o vidro cortou um dedo e começou a chorar ao ver o
sangue.
Mrs. Cook pôs um penso rápido no corte. Rosie limpou a água e reparou
que a mulher mais velha estava a olhar para todo o lado com uma expressão
atemorizada, como se estivesse a tentar perceber que outras coisas é que
deviam ser tiradas dali.
Rosie dormiu mesmo numa cama portátil, e ainda bem porque Donald
saiu três vezes do quarto durante a noite. As primeiras duas vezes
acompanhou-o até à casa de banho e depois levou-o para o quarto e deitou-
o. A terceira vez o dia já estava a nascer e levou-o para a cozinha para lhe
preparar uma bebida quente.
– Tens de ficar no teu quarto à noite, Donald – disse-lhe com firmeza
enquanto enchia a chaleira. – Mesmo que tu não precises de dormir, eu
preciso.
Ele parecia muito novo e infantil sentado à mesa da cozinha com o seu
pijama às riscas.
– Está m-m-muito silencioso – disse.
– Silêncio à noite é bom – explicou Rosie, pousando uma mão no seu
ombro e apertando-o com afeto. – Quer dizer que os pássaros e as outras
criaturas estão a dormir como tu. Não tens de ter medo de nada; a tua mãe e
o teu pai estão perto, e eu também.
Rosie estava mais preocupada agora do que quando tinha falado com
Mrs. Cook. Entre a refeição da noite e a ida de Donald para a cama, eles já
se tinham apercebido de alguns dos problemas que ela previra.
Mrs. Cook não conseguia imaginar a diferença entre a monótona sala de
dia, sem nada para ver, e esta sala de estar cheia de tesouros. Até Rosie
sentia uma grande vontade de pegar em coisas e olhar para elas. Porém,
sempre que Donald tocava em algum objeto a mãe ficava rígida, com receio
de que ele o deixasse cair. Quando lhe ralhava, os seus modos delicados e
voz suave não surtiam efeito. E o pai gritava-lhe de tal maneira que quase o
matava de susto.
Rosie temeu que ele não demorasse muito a fazer uma birra, se
continuassem a dizer-lhe não. Com tantas coisas facilmente acessíveis para
arremessar, nem queria pensar no caos que poderia causar. Outro problema
era que nenhum deles conseguia adivinhar o que ele quereria investigar a
seguir. Tinham-no deixado sozinho na sala a ver televisão durante alguns
instantes e quando voltaram ele fora ao balde do carvão e alinhara os
pedaços na carpete como uma fila de soldados. Rosie teve receio de que os
pais perdessem a paciência com ele. Eram pessoas de classe média com
uma casa linda, e na sua idade talvez fosse muito difícil acostumarem-se
àquela perturbação da sua vida confortável. Também a preocupava que eles
viessem a acusá-la por sugerir que Donald era capaz de viver em casa, e
depois por não ter sido suficientemente vigilante.
Antes de levar Donald para cima, abriu as cortinas das portas que davam
para o terraço para que ele pudesse ver o jardim e os primeiros raios de sol
a iluminar o céu. Enquanto contemplavam o céu e ouviam os pássaros
cantar, Rosie observou-o. O seu rosto estava maravilhado e ela sentiu um nó
na garganta. Pensou que se ele era sensível ao ponto de se comover com a
beleza de um nascer do sol, poderia aprender a olhar para coisas delicadas
sem tocar, a obedecer à mãe mesmo que ela não lhe gritasse e a comer de
novo de faca e garfo.
Rosie viu uma forte semelhança entre como se sentira ao chegar a casa de
Mrs. Bentley em Bristol e como Donald devia sentir-se agora: ambos
desenraizados, atirados para um mundo desconhecido e bombardeados com
novas experiências. O seu coração encheu-se de pena dele.
– São horas de os pássaros se levantarem e de procurarem o pequeno-
almoço – disse, passado um ou dois minutos. – Mas ainda é muito cedo
para nós. Por isso vais para a cama e desta vez só te levantas quando eu te
chamar.
Depois de o levar para cima, sentou-se na cama dele durante algum tempo
e acariciou-lhe a testa devagar. A expressão ansiosa nos seus olhos fê-la
lembrar-se de Alan e perceber que, para todos os efeitos, Donald era um
menino pequeno. Talvez todos se tivessem enganado ao pensar que ele
compreendia o significado de voltar para casa de vez. Talvez ele sentisse
que tinha de mexer em todas as coisas ao mesmo tempo, para o caso de
tudo desaparecer no dia seguinte.
– Tu vais ficar aqui para sempre, Donald – disse, devagar e com clareza.
– Nunca mais vais voltar para Carrington Hall, nem amanhã, nem na
próxima semana, nem sequer no próximo ano. Agora esta é a tua casa e eu
vou ficar aqui contigo e tomar conta de ti. – Inclinou-se e deu-lhe um beijo
na face. – Agora, volta a dormir. Ainda vou estar aqui quando acordares.
Na quarta noite na Granja, Rosie acordou sobressaltada ao ouvir um ruído
no rés do chão. Ainda estava escuro, mas olhou para o quarto de Donald do
outro lado do patamar e viu a janela, o que significava que a porta estava
escancarada e ele saíra sem que o ouvisse.
Levantou-se da cama a suspirar e pegou no roupão. Não dormira mais de
quatro horas seguidas desde que chegara àquela casa. Porém, esta era a
primeira vez que ele não a acordava. Estava a ficar matreiro e desobediente.
– Menino maroto – exclamou quando entrou na cozinha e o apanhou a
devorar comida na despensa. Ele tinha uma grande fatia de tarte de carne
numa mão e um enorme pedaço de queijo na outra. As suas bochechas
estavam atulhadas de comida, inchadas como as de um hamster. – Quantas
vezes já te disse para não vires cá abaixo?
Ele tentou responder, mas não conseguiu. Rosie pegou nas costas do
casaco do pijama, puxou-o para fora da despensa e tirou-lhe a comida das
mãos.
– Já comes mais do que o suficiente durante o dia. Só estás a ser
ganancioso – disse-lhe com rispidez, com uma enorme vontade de lhe bater.
– Tens de parar de ser desobediente, Donald. Agora, vai lavar as mãos e
volta para a cama.
Enfiou-lhe as mãos debaixo da torneira do lava-loiça e lavou-lhas.
– D-d-desculpa – conseguiu Donald dizer por fim, ainda a mastigar a
comida que tinha na boca. – Não te zangues comigo.
– Vou ficar zangada contigo enquanto não parares com isto – disse ela,
furiosa. – E vou deixar de ser tua amiga.
Levou-o à força para cima, enfiou-o na cama e foi deitar-se.
Estava em desespero, cansada, ansiosa e com muito medo de se ter
enganado ao pensar que Donald poderia estar em casa. No dia anterior Mr.
Cook ameaçara pôr uma tranca na porta do quarto, mas Rosie tirara-lhe isso
da ideia, dizendo que ia contra o objetivo de trazê-lo para casa. Agora,
queria tanto uma boa noite de sono que se sentiu tentada a pedir-lhe que a
pusesse.
Durante o dia era muito difícil. Donald não estava um único minuto
quieto, a examinar isto, a enfiar o nariz naquilo, a derrubar coisas. Até
fizera xixi pelas pernas abaixo várias vezes porque tinha demasiado medo
de perder alguma coisa enquanto estivesse na casa de banho. Rosie pensava
que ele acabaria por se acalmar, mas os pais estavam a chegar ao seu limite
máximo de tolerância.
Parecia que tinham passado apenas alguns instantes quando Rosie
acordou com outro ruído. Já havia luz e calculou que seriam cerca de seis
da manhã. Era o som de Donald a vomitar. Levantou-se com dificuldade e
foi ter com ele. Ele estava deitado num monte de vomitado – estava no
cabelo, por todo o pijama e na cama, e caía em cascata para o chão – e, a
avaliar pela enorme quantidade, comera metade das coisas que estavam na
despensa antes de o ter apanhado.
– É o que acontece por seres tão guloso – disse, aborrecida por ter de
limpar tudo quando estava tão cansada. – Levanta-te e vem para a casa de
banho.
Sentiu pena ao vê-lo ajoelhado ao pé da sanita a vomitar ainda mais. Em
Carrington Hall, acostumara-se a uma dieta de comida mole. Esquecera-se
de como se mastigava bem e o seu estômago não conseguia digerir a
enorme quantidade de queijo, tarte de carne e fiambre que emborcara.
Talvez, por fim, aprendesse uma valiosa lição.
Quando ele já não tinha nada no estômago, lavou-o, foi buscar um pijama
limpo e deitou-o na cama dela. Ele adormeceu quase logo e Rosie deixou-se
ficar a olhá-lo durante alguns momentos, antes de voltar para o quarto e
limpar todo aquele vomitado. Pensou que por vezes a Natureza era muito
cruel: a dormir, nada indicava que era diferente de qualquer outro homem.
Era bonito o suficiente para atrair qualquer rapariga, mas um simples
acidente à nascença roubara-lhe uma carreira, casamento e filhos.
Perguntou a si mesma o que lhe aconteceria quando os pais ficassem
demasiado velhos para cuidar dele.
*
Nessa noite, Rosie não conseguiu dormir. Estava com muito calor e a
janela estava aberta de par em par, mas não havia vento suficiente para
abanar as cortinas. A sua cama parecia uma enorme botija de água quente e
só estava tapada com um lençol. Sentia um formigueiro nos seios e sempre
que pensava nos beijos de Gareth era como se tivesse uma corda dentro de
si e alguém estivesse a puxá-la. Agora, queria tudo. Ter a certeza absoluta
de que o que sentia por Gareth era amor, estar convencida de que ele a
amava verdadeiramente. Queria acelerar as coisas, descobrir o que era fazer
amor.
Porém, no fundo sabia que, enquanto não conseguisse confiar nele ao
ponto de lhe contar os seus segredos, não se atreveria a ir mais longe.
CAPÍTULO 13
R osie estava sentada muito direita numa poltrona, com as mãos no colo,
a sorrir com nervosismo para Mrs. Jones, que estava sentada à sua
frente. Desejou que Gareth se despachasse e voltasse para a sala. A mãe
dele observava-a em silêncio, com uma expressão concentrada, e aquele
olhar deixava-a extremamente tensa.
– Suponho que devíamos estar contentes pela chuva – disse, tentando
começar uma conversa enquanto olhava por cima do ombro para a janela
salpicada de chuva atrás de si. – Os jardins precisam. O relvado da Granja
estava a ficar bastante castanho.
O dia estava soalheiro quando saíra de Mayfield nessa manhã e achara
que estava muito elegante com o novo vestido camiseiro azul-claro,
sandálias de salto alto e luvas de algodão brancas. No entanto, tinha
começado a chuviscar pouco antes de chegar a Londres e quando saiu do
comboio chovia a cântaros. Felizmente, tinha a gabardina dobrada na mala
de fim de semana, mas arrependeu-se de não ter trazido um casaco de
malha e uns sapatos.
Gareth tinha ido buscá-la à estação de Victoria, mas estava de mota, por
isso quando chegaram à casa dos pais dele em Mill Hill a gabardina e as
sandálias estavam encharcadas e tinha o cabelo a escorrer. Não era a
aparência ideal para impressionar a mãe dele.
Rosie imaginara que Mrs. Jones era uma mulher grande e alegre, mas na
verdade era pequena e magra, com o cabelo grisalho puxado para trás.
Apesar do penteado austero era muito atraente, com uma boa estrutura
óssea e um rosto sem rugas. Tinha o mesmo tom de pele morena do filho e
os seus olhos azuis brilhantes, mas não sorria e ostentava uma expressão
muito desaprovadora, censurando as roupas molhadas antes mesmo de os
cumprimentar.
– Imaginem só o Gareth ir buscá-la de mota com este tempo – declarou
com um melodioso sotaque galês onde se sentia um toque ácido. – E a
menina devia ter sido sensata e não se sentar nela.
Rosie ficou tão chocada com aquela receção gélida que não disse nada e
aceitou a toalha para secar o cabelo e um par de chinelos com gratidão.
Gareth foi ao andar de cima mudar de roupa e Mrs. Jones levou-a para a
sala.
Ainda que a mãe dele não fosse como esperava, a sua casa suburbana
geminada era. Estava tudo impecável. As almofadas vermelhas estavam
dispostas numa fila direita no sofá cinzento, um anteparo bordado com uma
senhora com uma crinolina escondia a lareira vazia e um conjunto de
acessórios de latão muito brilhantes erguiam-se no seu suporte como um
cavaleiro andante ao lado dela. A poltrona de Mr. Jones tinha uma pequena
mesa ao lado com o cachimbo, torcidas e fósforos muito bem arrumados
diante do rádio.
Como sabia tantas coisas sobre a vida anterior dos Jones, Rosie percebeu
bem porque é que uma mulher como ela teria uma preocupação tão grande
com a limpeza e arrumação da casa. As cortinas brancas como neve nas
janelas e o cheiro forte a cera com lavanda revelavam uma mulher que sabia
o que era esforçar-se para criar dois rapazes pequenos e manter tudo limpo
com um depósito de carvão à porta da cozinha. Também compreendia como
devia ter sido maravilhoso mudar-se para uma casa nova depois da guerra e
a forma como Mrs. Jones a mantinha refletia o orgulho que sentia do
marido por ter progredido na vida e ter-lhes proporcionado uma boa vida.
Como Mrs. Jones não fez nenhum comentário sobre a chuva ou o jardim,
Rosie tentou outro caminho.
– Tem uma casa encantadora – disse. – Muito bonita e luminosa. Apanha
sol o dia inteiro?
Estavam numa sala muito moderna com o formato de um L, com uma
pequena abertura da zona de refeições para a cozinha. Rosie perguntou-se
porque é que teriam escolhido vermelho e cinzento como paleta de cores;
parecia-lhe um pouco triste.
– Sim, apanha sol o dia inteiro. Mas é uma maçada porque desbota os
cortinados e a carpete – retorquiu Mrs. Jones com rispidez.
Rosie gostava de salas soalheiras e estava convencida de que não se
preocuparia se as coisas perdessem a cor. Também perguntou a si mesma
como é que uma mulher tão atraente, com tantas coisas – esta casa, dois
bons filhos e um marido extremoso –, podia ser tão desagradável.
– Espero que não chova durante todo o fim de semana – disse Rosie. – O
Gareth vai mostrar-me um pouco mais de Londres na sua mota.
Ao ouvir isto, Mrs. Jones apertou os lábios.
– Gostava que ele comprasse um carrinho. Estou sempre preocupada com
ele quando sai naquela mota. O nosso Owen tem um bonito Ford Prefect.
– Vá lá, diga, mãe! – declarou Gareth da porta. – Mas o nosso Owen não
esbanja o dinheiro todo a sair com raparigas.
– Oh, Gareth – arquejou Mrs. Jones, tapando a boca com as mãos como
se estivesse profundamente chocada. – Eu nunca disse uma coisa dessas!
Gareth limitou-se a sorrir. Rosie calculou que era uma coisa que a mãe
dizia vezes sem conta, e ele queria embaraçá-la.
– Afinal, o que é que temos para o almoço, mãe? – perguntou.
– A refeição habitual de sábado – respondeu ela, e levantou-se do seu
assento. Pela forma como o rosto de Gareth esmoreceu, Rosie calculou que
tinha ficado desapontado e depressa perceberia porquê.
O almoço era ovos cozidos e pão com manteiga.
Rosie não tinha fome, pois Mrs. Cook dera-lhe um pacote com
sanduíches para comer no comboio, por isso não se importou de comer ovos
cozidos. No entanto, o que a magoou foi que ela estava a deixar bem claro
que não considerava a nova namorada do filho importante o suficiente para
fazer um pequeno esforço.
– De que é que o seu pai morreu? – perguntou logo que se sentaram para
comer. Mr. Jones e Owen ainda estavam a trabalhar. Aparentemente, aos
sábados só chegavam a casa por volta das cinco da tarde.
– Teve um ataque cardíaco – respondeu Rosie, a descascar a parte de
cima do seu ovo.
– E a sua mãe?
– Teve uma infeção depois de perder um bebé. – Era uma coisa que Miss
Pemberton sugerira.
– O Gareth disse-me que só tinha seis anos quando ela faleceu. Quem
tomou conta de si?
Rosie sentiu-se um pouco melhor por Mrs. Jones querer saber tudo sobre
ela. Esperava que os seus modos bruscos fossem apenas timidez.
– O meu pai e a minha tia – respondeu. – Quando o meu pai morreu, ela
arranjou-me o emprego em Carrington Hall.
– Não lhe fez nenhum favor!
– Mãe! – censurou-a Gareth. – Não seja tão dura.
– Oh, eu não estava a falar num mau sentido – replicou Mrs. Jones.
Inclinou a cabeça e Rosie pensou que parecia um passarinho. – Só não
consigo imaginar-me a mandar alguém da minha família trabalhar num
manicómio. E agora está a cuidar do rapaz que conheceu lá. Não deve ser
fácil.
Aquilo parecia mais censura do que admiração, e Rosie sentiu-se
extremamente incomodada.
– O Donald é como um menino grande, Mrs. Jones. Eu gosto muito de
cuidar dele e os pais são as pessoas mais simpáticas que já conheci. –
Calou-se, à procura de alguma coisa para acrescentar que pudesse valer-lhe
alguma aprovação. – Eu só fui trabalhar para Carrington Hall porque pensei
que seria uma boa experiência antes de começar o treino de enfermagem.
– Ora vejam só – disse Mrs. Jones, apertando os lábios. – E onde é que
vai fazer isso?
– Ainda não sei bem, porque só posso candidatar-me no próximo ano.
Mas gostava que fosse num hospital de Londres.
Fez-se silêncio, e Rosie desconfiou que a mulher não gostava de
enfermagem por algum motivo.
– É evidente que posso mudar de ideias antes disso – disse, a tentar
descobrir em que é que ela estaria a pensar. – Também adoro jardinagem.
Talvez seja jardineira.
– Jardineira? – exclamou Gareth. – Estás a brincar, não estás, Rosie? As
raparigas não podem fazer isso!
Embora gostasse de jardinagem acima de tudo, nunca lhe ocorrera
considerá-la uma possível carreira. Para além de uma ou duas senhoras
finas como Gertrude Jekyll, que se tinham tornado famosas graças a isso,
pensava que não havia nenhuma mulher que se dedicasse à jardinagem a
nível profissional. Porém, ao ver a boca de Mrs. Jones abrir-se de choque,
por algum motivo perverso não conseguiu resistir a continuar.
– Porque não? Fizeram-no durante a guerra. É uma ideia antiquada pensar
que só os homens podem cavar e podar arbustos. Quanto a plantar e
mondar, normalmente já são as mulheres que se encarregam disso. E
também estou convencida de que as mulheres criariam jardins muito mais
bonitos do que os homens. Para começar, têm mais imaginação.
– Ora. – Mrs. Jones cruzou os braços no peito e apertou os lábios. –
Nunca ouvi uma coisa assim em toda a minha vida.
*
Paige Street, em Clapham, era tão sombria como Gareth dissera. Era pior
ainda do que um bairro de lata em Bristol aonde fora parar um dia por
engano. Nem o glorioso pôr do sol e o anoitecer conseguiam esconder a
aura de pobreza que escapava de todas as portas abertas na fila de casas
enegrecidas pela fuligem. Aqui não havia jardins à frente das casas, não
havia árvores nem flores. Bebés choravam, cheiros de esgotos e batatas
fritas enchiam o ar e as poucas crianças que jogavam à bola na rua pareciam
magras e pálidas.
– Em Kentish Town era assim – disse Gareth, dando-lhe a mão como se
pensasse que ela poderia virar-se e fugir a todo o momento. – Quando vim
para cá, detestava isto, mas os seres humanos acostumam-se a tudo. Pelo
menos as pessoas são simpáticas... é mais do que se pode dizer dos vizinhos
em Mill Hill.
Rosie percebeu que ele estava muito envergonhado. Estava convencido
de que ela nunca vira pobreza ou sujidade antes. Porém, não disse nada; não
era o momento certo para tentar descrever como crescera.
O número 41 ficava quase no fundo da rua e não era pior nem melhor do
que as outras casas. Gareth abriu a porta principal com uma chave, parou na
entrada estreita para escutar e depois fez-lhe sinal para entrar.
A casa inteira estava em silêncio e cheirava a cebolas fritas. Talvez fosse
bom Gareth não acender nenhuma luz. O corrimão era arenoso ao toque e
as escadas estavam cobertas com oleado ou linóleo.
O quarto de Gareth ficava no andar de cima, nas traseiras do terceiro
andar. Rosie preparara-se para uma grande sordidez, por isso ficou bastante
admirada quando ele acendeu a luz. Era um quarto muito pequeno, mas
estava limpo e arrumado. Uma cama de solteiro coberta com uma colcha
azul-clara, uma cómoda e uma poltrona. A janela estava aberta, havia um
tapete no chão e até as cortinas às riscas azuis e brancas estavam decentes e
pareciam ter sido engomadas.
– É um quarto bonito – disse ela com alguma surpresa, olhando para as
camisas bem engomadas penduradas num pequeno varão preso na parede.
Calculou que a mãe ainda lhe lavava a roupa. – Tinha imaginado uma coisa
muito pior.
Ele pareceu siderado com a sua aprovação.
– A minha mãe achou que era horrível quando veio cá uma vez. Tivemos
uma discussão por causa disso.
– É limpo e confortável – disse Rosie, sentando-se na cama para
experimentar. – Que mais é que ela pode querer?
– Que eu viva lá em casa – declarou Gareth, sorridente. – Mrs. Kent
cometeu o erro de lhe dizer que gostava de beber um copo. Foi isso que
estragou tudo. Ela pensou que eu ia ser levado por maus caminhos.
Rosie ajoelhou-se na cama e espreitou pela janela enquanto Gareth foi à
cozinha preparar uma chávena de chá para ambos. A escuridão caíra por
fim e escondera a fealdade. Aquela casa era mais alta do que a que estava
atrás, por isso Rosie tinha uma vista panorâmica de milhares de luzes.
Depois de Mayfield, aquele lugar era muito ruidoso: música vinda de várias
direções diferentes, pessoas a gritar e a rir e sons de portas de comboios a
bater e guardas a gritar na estação onde Gareth trabalhava.
Lembrou-se de que em Carrington Hall lhe tinha parecido muito
importante tornar-se uma verdadeira londrina. Não lamentava ter ido para
Mayfield, adorava viver lá, mas uma pequena parte de si ainda ansiava por
alargar a sua experiência, satisfazer a curiosidade e explorar todas as zonas
da cidade.
Linda falava muitas vezes sobre o East End. Por vezes era como se fosse
uma grande festa onde toda a gente se conhecia; outras vezes falava
sombriamente sobre a imundície nos bairros de lata, o excesso de pessoas e
o fedor das docas. Enquanto contemplava todas as luzes, percebeu que esta
zona, o East End de Linda, e o West End eram a verdadeira Londres, e se
alguma vez quisesse aspirar a descobrir o que fazia a cidade vibrar teria de
as observar e observar as pessoas simples que ali viviam. Lugares como
Hampstead, St John’s Wood e Highgate não eram o coração da cidade.
Nessa tarde, Gareth mostrara-lhe vislumbres desse coração. Falara-lhe
sobre os pubs, as corridas de galgos e os jogos de futebol. Todos os seus
colegas de trabalho viviam aqui perto – alguns naquela casa –, saíam juntos
à noite e parecia ser muito divertido.
Estava a tentar imaginar-se a viver num quartinho assim, a arranjar-se
com esmero para trabalhar num escritório, a ir ao West End ao sábado à
noite dançar com uma multidão de outras raparigas, quando Gareth voltou,
interrompendo os seus pensamentos. Trazia duas canecas de chá e um prato
com sanduíches.
– Boa velha Mrs. Kent – disse, a sorrir de orelha a orelha. – Ela pode ser
uma bebedolas e um dragão quando se irrita connosco, mas deixa-nos
sempre um lanche.
Passadas duas semanas, numa tarde de sábado, dois dias depois de Rosie
fazer dezassete anos, ela e Gareth estavam num quarto do segundo andar da
pensão Regent em Brighton.
– Eles devem saber que eu não sou casada contigo – disse Rosie, a rir às
gargalhadas. – Aposto que estão todos a falar sobre nós lá em baixo.
Gareth comprara-lhe uma aliança na Woolworth’s e ela exibira-a em
todos os momentos possíveis. No entanto, apesar do novo casaco verde e do
bonito chapéu de veludo castanho inclinado na cabeça, sabia que não
conseguira disfarçar a pouca idade nem esconder os rubores de embaraço
quando a proprietária da pensão lhes perguntou se queriam chá de manhã
cedo no quarto.
– Um dia vamos ser casados – disse Gareth, puxando-a para si e
enchendo-lhe a cara de beijos. – Imagina-nos a ter um quarto igualzinho a
este.
Rosie olhou para o quarto, encantada. Desde muito pequena, olhava para
os hotéis e para as pensões de Weston-super-Mare e perguntava-se como
seria estar hospedada ali. Não ficou nada desapontada com o Regent. Tinha
alcatifa vermelha e dourada nas escadas e o papel de parede às riscas que
sempre imaginara que as pessoas ricas tinham nas suas casas. Um olhar
rápido para a sala de refeições tinha revelado mais elegância; toalhas de
mesa brancas como neve em cada mesa e guardanapos empinados como
pequenas pirâmides. Porém, na sua opinião este quarto era quase tão bonito
como o de Mr. e Mrs. Cook: uma grande cama de casal, um toucador com o
formato de um rim, com um folho de chita a toda a volta, e, melhor ainda,
estava voltado para o passeio público e para o mar.
Não ia preocupar-se agora com a descrição que faria da tia de Gareth, a
tia Mary, quando voltasse para casa. Precisavam de estar juntos, sozinhos.
Se tinha idade suficiente para gerir um pequeno negócio, também tinha
maturidade para passar a noite com o homem que amava.
– Vamos sair para passear? – perguntou Gareth. – O comer é só às seis e
meia e já estou a morrer de fome.
– Nos sítios finos diz-se «jantar» – declarou Rosie, a rir. – Mas, sim,
vamos sair. Quero ver o mar.
Fazia muito frio e vento no passeio público e o céu estava da cor de
chumbo, mas Rosie levantou a gola do casaco novo, ajeitou o chapéu na
cabeça, enfiou a mão no bolso de Gareth e contemplou o mar, encantada. A
única estância balnear digna desse nome onde estivera antes fora Weston-
super-Mare e, embora tivesse uma encantadora praia de areia enquanto esta
era de seixos, o mar era castanho, não o límpido mar azul-esverdeado que
observava agora. As ondas eram enormes e rebentavam com tanto barulho e
força que era difícil ouvir o que ele estava a dizer. Adorou. Apeteceu-lhe
correr pela praia e abanar os braços e gritar como Donald fazia quando
estava excitado.
Foram para o molhe e puseram algumas moedas nas máquinas de jogos.
Gareth tentou ganhar um ursinho de peluche com uma grua mecânica, mas
o tempo esgotou-se antes de conseguir apanhá-lo. Comeram um cachorro-
quente cada um e algodão-doce, e depois foram para os carrinhos de
choque.
Mais tarde nessa tarde, encontraram as Lanes, onde ficavam todas as lojas
de antiguidades. Rosie pensou que era parecido com Hampstead e insistiu
em pagar um lanche de chá e bolos num salão de chá muito chique com
janelas salientes.
O salão de chá era ainda melhor no interior do que parecia visto do lado
de fora, com uma lareira acesa, panelas de cobre penduradas nas traves e
toalhas de mesa bordadas. Rosie sobressaltou-se quando a empregada de
mesa lhes trouxe um expositor de vidro com dois níveis onde havia pelo
menos uma dúzia de bolos. Esperou até a rapariga não poder ouvi-los e
inclinou-se mais para Gareth.
– Decerto não esperam que comamos isto tudo?
Pensou que ele parecia um verdadeiro homem de sociedade. Usava o seu
fato escuro e pedira um sobretudo de tweed cinzento emprestado ao irmão.
– Acho que só nos cobram o que comermos – respondeu ele, nervoso, a
olhar em volta para ver o que as outras pessoas estavam a fazer. – Nunca
estive num sítio como este.
– Em breve vamos acostumar-nos a viver assim – disse Rosie
descontraidamente, enquanto servia o chá. – Um dia, quando eu for uma
jardineira famosa, vamos sair para comer assim todos os dias.
Gareth não se riu e ela pressentiu que ferira os seus sentimentos.
– Nessa altura, tu vais conduzir o Flying Scotsman – acrescentou
rapidamente.
Ele pegou-lhe na mão e por instantes Rosie pensou que ia fazer alguma
coisa romântica como beijá-la, mas em vez disso olhou para as suas unhas.
– Não vais ser bem-vinda em lugares chiques com as unhas nesse estado
– disse com brusquidão.
Rosie afastou a mão, profundamente magoada e embaraçada. Tinha todas
as unhas partidas e, apesar de as ter esfregado muito bem, estavam
horríveis. Também tinha calos nas palmas das mãos de cavar e alguns
arranhões. De repente, reparou que a aliança começava a escurecer.
– As tuas mãos também não são perfeitas – retorquiu. – E não sejas mau
sobre a jardinagem, senão vou para casa.
Gareth pediu-lhe desculpa e continuaram a conversar sobre outras coisas,
mas Rosie passou a estar extremamente consciente das mãos. E, quando lhe
passou uma nota de dez xelins por baixo da mesa para pagar o lanche,
percebeu que ele tinha detestado aceitá-la.
– Ora, minha jovem, hoje é o seu dia de sorte – disse o médico quando
entrou no cubículo com a radiografia nas mãos cerca de três horas mais
tarde. Era bastante idoso, talvez uns sessenta anos, com cabelo branco e
uma barba que parecia a do Pai Natal, mas tinha sido muito simpático com
Rosie e até conseguira fazê-la rir duas vezes. – Acho que os seus joelhos
devem ser de ferro fundido porque não há ossos partidos. Vão ficar muito
doridos nos primeiros dias, e acho que não vai conseguir andar, e muito
menos subir escadas, durante algum tempo.
Rosie ficou tão aliviada que começou a chorar e a rir ao mesmo tempo.
Mrs. Cook e a ambulância tinham chegado ao mesmo tempo. Donald
insistira em acompanhá-la para o hospital de Tunbridge Wells e, embora
com relutância, a mãe permitira, prometendo que iria mais tarde quando o
marido voltasse do trabalho. Desde o momento em que tinha sido trazida
para este cubículo na urgência, Rosie estava convencida de que seria apenas
uma questão de tempo até a levarem para uma verdadeira enfermaria, onde
ficaria internada várias semanas.
– Isso quer dizer que posso ir para casa? – perguntou.
– Claro que sim, depois de pormos um penso limpo nessas feridas – disse
ele. – Creio que os pais do seu amigo já chegaram, por isso vou falar com
eles e avisá-los de que não podem deixá-la ir a bailes durante uma ou duas
semanas. Depois, pode ir.
Enquanto Rosie adormecia, Seth estava a comer peixe com batatas fritas
numa pequena carrinha Morris azul-escura estacionada numa zona remota
dos mesmos brejos que ela vira nos seus pensamentos. Tinha saído de
Londres às dez horas dessa manhã e fora diretamente para Chilton Trinity,
para ver onde morava Miss Violet Pemberton. Em seguida, fora até Taunton
para passar o tempo até poder pôr o seu plano em ação.
Seth era de raciocínio lento, mas não era totalmente parvo. Uma
assistente social que tinha sido responsável por pôr o irmão e a irmã em
famílias de acolhimento e sabia tudo acerca dos Parker não lhe daria a
morada de Rosie. Por isso, estava a pensar entrar lá em casa quando ela
estivesse a dormir, encontrar a informação de que precisava e pôr-se a
mexer para Londres.
Roubo era uma coisa sobre a qual Seth sabia tudo. Desde os catorze anos
que era um ladrão oportunista, entrando por uma porta aberta e enfiando
tudo o que podia nos bolsos. Mais tarde, depois da guerra, começara a
assaltar casas por arrombamento em Wells e Glastonbury. Nunca se dera ao
trabalho de assaltar casas grandes – as pessoas ricas prestavam demasiada
atenção à segurança e raramente tinham dinheiro à vista, que lhe interessava
muito mais do que coisas que teria de vender a recetadores. Ao longo dos
anos fizera dúzias de trabalhos quando estava com falta de dinheiro, e casas
como as de Miss Pemberton eram as mais fáceis de todas. A casa dela era
isolada, com as traseiras voltadas para os campos, e nessa tarde observara
que só vivia uma velhota na casa ao lado. Quando a velhota saiu com
passos vacilantes para ir à loja da aldeia, tinha-se esgueirado para as
traseiras da casa de Miss Pemberton e dera uma boa vista de olhos.
Para além de uma minúscula cozinha havia apenas uma grande sala, com
escadas para o primeiro andar. A secretária estava por baixo da janela das
traseiras e viu um livro de endereços ao lado do telefone. Se não temesse
que a velhota da casa ao lado voltasse de repente talvez tivesse partido o
vidro e roubado o livro de endereços naquele momento. Mas avistara uma
ou duas coisas que valia a pena levar, e era possível que a mulher tivesse
algum dinheiro escondido. Teria de esperar até à noite.
Seth terminou o peixe e as batatas fritas, vestiu uma camisola escura,
calçou luvas de pele, prendeu o pé de cabra, uma faca afiada e uma lanterna
no cinto, guardou os cigarros no bolso, saiu da carrinha e saltou um portão
de cinco traves. Demorou bastante tempo a atravessar os campos e chegar à
sebe que protegia o jardim de Miss Pemberton. A noite estava
agradavelmente quente, com o céu repleto de estrelas, e a Lua emitia uma
luz suficiente para ver o caminho sem precisar da lanterna.
Sentiu-se de novo poderoso porque estava no seu território. Em Londres,
nunca sentia que controlava plenamente a sua vida; era um simples moço de
recados de Del Franklin e dos seus rapazes e tinha a desconfiança quase
constante de que eles o enganavam. Talvez depois desta noite pudesse
separar-se deles e fazer uma coisa melhor.
Passados dois minutos estava a espiar Miss Pemberton da segurança da
arrecadação do jardim. Ela tinha corrido as cortinas da parte da frente da
casa, mas deixara as das traseiras abertas e, graças a dois candeeiros de
mesa, via-a claramente. Ela estava sentada num sofá com os pés levantados
num banco, com os óculos postos, a ler um livro. Ficou encantado ao
perceber que era mais velha e mais pequena do que esperava, uma simples
mulher gorducha de meia-idade. Seth riscou um fósforo, acendeu um
cigarro e olhou para o relógio antes de o apagar. Eram quase onze horas e
calculou que uma mulher daquela idade iria para a cama dali a pouco; a
casa ao lado, onde a velhota morava, já estava às escuras. Estava decidido a
esperar mais duas horas antes de entrar para ter a certeza de que ela estaria a
dormir profundamente.
Alguns minutos mais tarde a mulher levantou-se do sofá e foi para a
cozinha. O vidro daquela porta era canelado, mas via a sua silhueta e
calculou que estaria a preparar uma bebida quente. Ela abriu a porta das
traseiras para deixar sair o gato e, embora a tivesse fechado à chave, não
fechou a pequena janela adjacente. A luz da cozinha apagou-se, ela voltou
para a sala e também apagou a luz. Alguns segundos mais tarde acendeu-se
uma luz no primeiro andar e viu-a correr as cortinas.
Ouviu o barulho do autoclismo e água a correr, mas a luz do quarto
continuou acesa. A caixa de madeira onde estava sentado era
desconfortável. Apeteceu-lhe abrir uma das espreguiçadeiras que estavam
empilhadas contra a parede, mas teve medo de deixar cair alguma coisa. Por
fim, cerca de meia hora mais tarde, a luz apagou-se.
Seth sentou-se no chão, encostou-se à caixa e acendeu outro cigarro. Não
estava num lugar tão profundamente silencioso desde os tempos de May
Cottage, e gostou. Em Londres havia sempre barulho à noite, portas a bater,
pneus a chiar, bêbedos a gritar. Pensou em noites como esta, quando ia
apanhar enguias com Norman. Se ficassem quietos conseguiam ouvir as
enguias a deslizar, e quando as apanhavam e as punham num balde o som
da pele dos animais a esfregarem-se uns nos outros era quase como ouvir
sexo escaldante. Sentia a falta daquelas coisas – e de Norman. Ainda não
compreendia muito bem porque é que o irmão o tinha abandonado; podiam
ter tido uma vida muito boa juntos.
Os seus olhos já estavam acostumados à escuridão e observou o conteúdo
do seu esconderijo. A arrumação de tudo dizia muito sobre a personalidade
da mulher. Ferramentas de jardinagem penduradas em ganchos, uma
organizada pilha de vasos, latas de tinta numa prateleira e pincéis num
frasco de compota. Até cheirava a limpo ali dentro. Pelo que vira da casa,
era igualmente arrumada. Ia ser canja. Poderia entrar e sair em dez minutos.
À uma e meia esgueirou-se em silêncio pelo jardim, enfiou a mão pela
pequena janela, pegou na maçaneta da porta, rodou-a e entrou. Sempre se
orgulhara de ser furtivo. Uma vez, na escola, uma professora dissera que ele
se movia como um gato. Dirigiu-se logo para a secretária, mas ficou
desapontado ao perceber que o livro de endereços que vira anteriormente já
não estava lá. Tirou a lanterna do cinto e perscrutou a sala com o feixe de
luz. A luz incidiu sobre dois lindos castiçais de prata, duas molduras e um
relógio de mesa que poderia ser valioso. No entanto, primeiro teria de
descobrir a morada de Rosie.
Conteve a respiração e abriu a primeira gaveta da secretária com todo o
cuidado. Estava cheia de papel de carta. A gaveta seguinte tinha algumas
pastas de cartão. Abriu uma, depois outra, mas toda a correspondência era
datilografada e era improvável que fosse de Rosie. A última gaveta tinha
cartas normais, um monte delas, presas com um clipe. Pô-las em cima da
secretária e, segurando a lanterna para poder vê-las bem, examinou-as uma
a uma.
– Saia da minha casa!
Seth quase morreu de susto ao ouvir a autoritária voz da mulher. Não
ouvira um único ruído vindo do primeiro andar. Virou-se, espantado, e
deixou cair a lanterna, que rodopiou no chão durante alguns instantes. Ficou
paralisado de medo enquanto o feixe de luz brilhava pela sala, mostrando a
fantasmagórica figura da mulher no cimo das escadas.
– Não há nada nesta casa para roubar, seu bandido! – disse a mulher
numa voz dura e fria. – Saia imediatamente!
De repente, a luz do teto foi acesa e Seth ficou espantado ao ver que a
mulher segurava um grande pau de madeira escura e brilhante. Ela desceu
as escadas, dirigindo-se para ele, e as suas pernas transformaram-se em
gelatina.
– Matei cobras em África com este pau – disse Violet com muita calma. –
E não vou hesitar em bater-lhe com... – Calou-se de repente e os seus olhos
abriram-se muito. – Santo Deus, é o Seth Parker!
Já tinha sido bastante mau ser apanhado em flagrante, mas era pior ainda
ser reconhecido por uma mulher que nunca vira.
– Quero a morada da minha irmã – conseguiu gaguejar. – Se não ma der
já, vai arrepender-se.
– Não me parece – declarou ela, e continuou a descer até estar quase no
fundo das escadas. – Vou pegar no telefone e ligar para a polícia.
A sua calma e confiança enervaram-no. Já fora apanhado no meio de
assaltos e as suas vítimas ficavam sempre tão aterrorizadas com ele que
recuavam. E ela era uma mulher muito pequena. Mesmo nas escadas, os
seus olhos estavam abaixo do nível dos dele, cinzentos, firmes e sem medo
nenhum.
Seth deu um passo ameaçador para ela, esperando que recuasse, mas em
vez disso a mulher levantou o pau e desceu-o com toda a força. Se ele não
tivesse saltado para um lado, ter-lhe-ia acertado no ombro. Mas Seth era um
lutador de rua e, quando o pau desceu abaixo do alvo pretendido, agarrou a
ponta com uma mão e com a outra prendeu-a pelo ombro.
– Solte-o! – rugiu, puxando-a das escadas. A mulher era muito mais forte
do que parecia e lutou desesperadamente para se libertar. No entanto, não
era uma adversária à sua altura e ele depressa conseguiu arrancar-lhe o
bastão da mão.
Levantou o pau por cima da cabeça, pronto para lhe bater.
– Não – gritou ela. No entanto, aos ouvidos de Seth pareceu mais uma
ameaça do que um pedido de misericórdia e durante um breve instante quis
poupá-la. Havia provocação nos seus olhos frios; ela nem sequer estava a
tentar fugir. Aquela mulher era realmente corajosa.
Seth respeitava a coragem; no fundo, sabia que tinha muito pouca e isso
envergonhava-o. No entanto, do mesmo modo que via muitas vezes um
falcão a pairar no ar e admirava a sua extraordinária beleza, mas ainda
assim se sentia compelido a erguer a espingarda e matá-lo, também
levantou o pau e deu-lhe com ele na cabeça.
Ela desabou como um merengue atingido por uma colher. Seth observou-
a a deslizar para o chão com alguma surpresa. Não sabia porquê, mas
esperava que ela fosse mais resistente do que aquilo. Caiu de joelhos, a
segurar a cabeça entre as mãos, com os olhos finalmente arregalados de
terror.
– Por favor, não faça isto, Seth – choramingou.
Ele olhou-a com uma expressão de desprezo. A sua coragem desaparecera
e era mais uma mulher patética a implorar-lhe, como sempre faziam. Não
queria matá-la, mas sabia que tinha de ser. Ela sabia quem ele era.
Pegou no pau com as duas mãos e bateu-lhe repetidas vezes no crânio.
Ela caiu para a frente e Seth continuou a bater no seu corpo cheio de
espasmos como se fosse um saco de feno que queria achatar. Só quando a
camisa de dormir ficou vermelha com sangue é que parou. Por fim a mulher
ficou imóvel, e soube que estava morta.
Deixou cair o pau ao lado do corpo e demorou alguns minutos a perceber
a enormidade do que tinha feito. Ela parecia uma boneca partida, coberta de
doce de morango. Em pânico, correu para a porta das traseiras, mas quando
os seus pulmões se encheram de ar fresco e o momento de náusea o deixou,
ocorreu-lhe que tinha de fazer com que parecesse um verdadeiro assalto.
Voltou para a sala, evitou olhar para o corpo da mulher e correu as cortinas
da janela das traseiras.
Depois, foi sistemático. Acabou de verificar as cartas, mas não havia
nenhuma de Rosie. Abriu as gavetas da secretária e espalhou o seu
conteúdo no chão, e em seguida remexeu todos os armários e gavetas
daquela divisão. Encontrou uma bonita pulseira de prata que pôs de parte,
ao pé das molduras, dos castiçais e do relógio de mesa. No entanto, não
conseguiu encontrar o livro de endereços, por isso foi lá acima.
Por algum motivo, o quarto da mulher enervou-o. Estava muito vazio,
apenas uma cama estreita, uma cómoda e um guarda-vestidos, sem tralha
feminina, perfume ou cosméticos, e sem um único ornamento. Na parede
havia uma fotografia dela, tirada quando era muito mais nova. Vestia um
uniforme de enfermeira e estava rodeada de vários oficiais do exército
sorridentes. Seth interrogou-se distraidamente porque é que ela nunca se
casara.
O livro de endereços estava ao lado da cama, ao pé de uma carta meio
escrita. Pegou nele, mas antes de o guardar no bolso olhou para ver se Rosie
estava nele. Havia uma Rosemary Smith nos «S», numa morada no Sussex.
Pensou durante alguns instantes e achou que devia ser ela. Se não fosse,
bem, azar de Miss Marks.
Vasculhou uma carteira e encontrou sete libras e alguns trocos. Guardou o
dinheiro nos bolsos, apagou a luz e foi buscar as coisas que queria levar.
Passados dois minutos, estava a sair por onde entrara, tendo o cuidado de
trancar a porta.
Seth estava a meio caminho de Londres quando se apercebeu de que,
quando a notícia daquele crime fosse parar aos jornais, Miss Marks
adivinharia que ele era o responsável. O seu estômago contraiu-se e só teve
tempo de encostar a carrinha na berma da estrada e debruçar-se na janela
antes de vomitar com violência. Ficou parado na berma às escuras durante
cerca de quinze minutos, a tremer de medo. O que ia fazer? Um lado do seu
cérebro dizia-lhe que Miss Marks era desonesta o suficiente para ser
persuadida a manter-se calada, mas o outro lado dizia-lhe que não podia
contar com isso. Se não lhe levasse a morada de Rosie, ela ficaria zangada e
iria novamente à sua procura; se lha levasse e recebesse o resto do dinheiro,
saberia com toda a certeza que estivera lá.
Não tinha outra alternativa a não ser matá-la também.
Foi então que percebeu que as suas roupas estavam salpicadas de sangue.
Felizmente, tinha um fato-macaco na parte de trás da carrinha, por isso saiu
e vestiu-o, limpando os sapatos com uma mão-cheia de erva antes de
continuar a viagem.
O céu começava a clarear quando chegou aos arredores de Londres e
sentia-se muito cansado. Não se atrevia a adiar a ida a Camden Town, mas
estava muito assustado. Não tinha como saber se Miss Marks vivia sozinha.
Não havia tempo para vigiá-la, como fizera com Miss Pemberton.
Conduziu devagar por Harmood Street até ver que o número 13A era um
apartamento numa cave. Sentiu algum alívio. Teria sido muito mais difícil
se a mulher morasse nos andares superiores. Estacionou na esquina e,
depois de copiar a morada de Rosie do livro de endereços de Miss
Pemberton para um pedaço de papel, tirou um pesado martelo de unha de
uma caixa de ferramentas nas traseiras da carrinha, prendeu-o no cinto e
abotoou o fato-macaco por cima.
Tocou à campainha da porta da cave. Eram quase seis horas e as pessoas
caminhavam pela rua a caminho do trabalho. Recuou para não ser visto por
quem olhasse para a cave. Fedia a lixo e xixi de gato. Não era o tipo de casa
em que se esperaria encontrar uma enfermeira.
– Quem é? – perguntou ela do outro lado da porta trancada.
Seth lançou um olhar apreensivo para a rua. Esperava que ninguém o
ouvisse.
– É o Seth – respondeu. – Desculpe vir cá tão cedo, mas tenho o que
queria.
A porta abriu-se, mas ela tinha a corrente posta e Seth só viu metade da
sua cara.
– Eu disse-lhe para escrever – declarou ela num tom irritado.
Seth respirou fundo.
– Eu sei, mas tenho de ir trabalhar para o norte hoje e vou estar fora
durante semanas. Pensei que estava com pressa.
A mulher hesitou. Seth desejou poder vê-la bem.
– Se quiser, pode esperar até ao meu regresso – disse, encolhendo os
ombros e virando-se como se se fosse embora. – Mas tive de passar por
aqui e pensei que ia querê-la.
– Nesse caso, é melhor entrar – disse ela, e fechou a porta para retirar a
corrente.
Quando voltou a abrir a porta, Seth sorriu com todo o charme que
conseguiu reunir.
– Que coisa horrível que me pediu – disse, entrando antes que ela
mudasse de ideias. – Aquela Miss Pemberton parecia a minha antiga
professora primária, um verdadeiro dragão.
Freda estava apenas meio acordada, mas alerta o suficiente para perceber
que tinha de ter cuidado com aquele homem. Ele quereria o resto do
dinheiro e perguntou-se como ia tirá-lo do esconderijo sem que ele visse
quanto é que tinha.
– Não me oferece uma chávena de chá? – perguntou Seth com
descaramento quando estava na sala. – Fiz uma longa viagem. – Estava um
bocado espantado com tanta miséria. Já vivera muitas vezes em sítios
piores, mas a forma como Miss Marks falava e os seus modos altivos
tinham-lhe dado a impressão de que vivia bem. Havia pilhas de jornais
velhos, pó e fuligem por todo o lado, e até a cama de onde ela saíra há
pouco parecia tão imunda como muitas em que ele já dormira. Não lhe
apetecia chá, nem ficar aqui um momento mais do que o necessário, mas ao
mesmo tempo não queria parecer demasiado apressado para ela não se
assustar.
– Primeiro deixe-me ver a morada, e depois ponho a chaleira ao lume –
disse Freda. Estava abalada com esta visita inesperada e embaraçada por ele
ver onde vivia, mas também com muito medo de ser enganada. Não
estranharia se ele lhe desse uma morada falsa.
– Ela está no Sussex, num lugar chamado Granja – disse Seth, tirando o
papel do bolso. – Parece um sítio fino. Talvez seja outro lar.
Freda engasgou-se. A Granja era a casa de Mr. e Mrs. Cook. Sentiu uma
onda de raiva extrema consigo mesma por nunca ter pensado que Rosie
poderia tê-los procurado.
Seth viu a sua reação e ficou intrigado.
– A senhora conhece esta morada, não conhece? – perguntou.
– Bem, sim – admitiu Freda. – Só estou admirada por a Rosie não me ter
dito nem a mais ninguém que ia trabalhar para lá.
– Mas a nossa combinação continua de pé, conhecendo a morada ou não
– disse Seth rapidamente. – E foi precisa alguma persuasão para Miss
Pemberton ma dar.
– Vou fazer o chá – disse Freda sem hesitar. Quando se virou para ir para
a cozinha, pegou na carteira e levou-a consigo. Sabia que tinha menos de
três libras lá dentro, mas ele era bem capaz de a revistar mal ela estivesse de
costas voltadas. – Sente-se. Eu não demoro.
Encheu a chaleira e pô-la no fogão. Em seguida espreitou para a sala, para
ter a certeza de que ele continuava sentado perto da janela, baixou-se e
procurou debaixo do fogão a caixa de lata onde guardava todos os seus
documentos pessoais e dinheiro. Demorou apenas dois segundos a tirar as
notas de um molho. Guardou-as na carteira, pôs a morada dentro da caixa e
guardou-a debaixo do fogão.
– Põe açúcar? – perguntou passados dois minutos, aliviada por ter
conseguido ser rápida e tirar o dinheiro sem ele ver.
– Sim, duas colheres, por favor – respondeu Seth enquanto calçava as
luvas de pele. Agora, tremia de medo. Já estava claro lá fora, havia cada vez
mais pessoas nas ruas a ir para o trabalho e tinha ouvido os passos de
alguém no andar de cima. Tinha de fazer o que viera fazer e sair dali
depressa.
Ouviu-a abrir outra vez a torneira. Levantou-se, desabotoou o fato-
macaco, tirou o martelo do cinto e dirigiu-se furtivamente para a cozinha.
Quando espreitou, ela estava inclinada sobre o lava-loiça a lavar o bule.
Seth ergueu o martelo de unha por cima da cabeça, cerrou os dentes e
atirou-se a ela, batendo-lhe com toda a força na nuca.
Freda Barnes não gritou. Caiu para a frente sobre o lava-loiça; o bule caiu
no chão e partiu-se.
Seth bateu-lhe de novo, com mais força ainda, e depois puxou-a para o
chão e observou-a. Os olhos estavam revirados e a boca muito aberta.
Estava morta.
Olhou-a, enojado. O roupão soltara-se e viu a frente da camisa de dormir.
A mulher tinha umas mamas enormes e flácidas e a barriga estava saliente
por baixo delas. Deu-lhe um forte pontapé de lado, para jogar pelo seguro, e
depois pegou na carteira.
Logo que viu as notas enroladas lá dentro percebeu que ela devia tê-las
tirado de algum sítio na cozinha. Demorou apenas dois minutos a encontrar
a caixa escondida por baixo do fogão e o molho de notas escondido no seu
interior, juntamente com a morada que acabara de lhe dar. Sorriu de puro
deleite; a avaliar pela grossura, eram mais de quinhentas libras. Ainda bem
que viera.
Parou antes de sair, olhando em volta mais uma vez. Encontrara algumas
joias boas numa gaveta e ficou intrigado com elas e com o dinheiro. Porque
é que vivia num lugar tão miserável? Mais importante, no entanto, era
porque é que estava tão ansiosa para encontrar Rosie. As duas coisas
pareciam estar ligadas, mas não percebia como nem porquê.
CAPÍTULO 17
Ao fim da tarde desse mesmo dia Rosie, Donald, Thomas e Frank Cook
tomavam chá sentados no terraço da cozinha. Norah estava dentro de casa,
a participar na conversa pelas portas e janelas abertas enquanto preparava a
refeição da noite. Estavam todos a rir enquanto Donald lhes contava como
trouxera Thomas para casa hoje. Pelos vistos, Thomas deixara-se levar pelo
entusiasmo de ajudar a tratar dos jardins e ao fim da tarde doía-lhe muito a
perna. Donald obrigara-o a sentar-se no carrinho de mão e trouxera-o para
casa nele. Parecia que tinham sido vistos por bastantes vizinhos e Thomas
tornara a situação ainda mais caricata acenando pomposamente, como se
fosse um membro da realeza, sempre que se cruzavam com alguém.
Quando ouviram os sinais das seis horas no rádio, Frank pediu a Norah
para aumentar o volume para poderem ouvir o noticiário. Donald levantou-
se logo e foi para o jardim. Rosie levantou-se com alguma dificuldade. Os
joelhos continuavam rígidos e doridos, mas pensou que um pequeno passeio
poderia ajudar.
– Uma mulher de meia-idade foi encontrada hoje brutalmente assassinada
na sua casa na aldeia de Chilton Trinity, no Somerset.
Rosie parou ao ouvir o nome de uma aldeia que conhecia.
– A vítima foi identificada como Miss Violet Pemberton, uma assistente
social. Acredita-se que foi morta quando interrompeu um assalto na sua
residência. A polícia do Somerset está a proceder a buscas porta a porta,
pois acreditam que o assassino é um homem das redondezas.
– Violet! – exclamou Thomas com um arquejo, e levantou-se. – Ouvi
bem? Disseram Violet Pemberton?
Frank acenou com a cabeça e Rosie sentou-se de novo com um baque,
demasiado chocada e horrorizada para falar.
Norah enfiou a cabeça pela janela.
– Ouviram? – perguntou. – Pobre mulher! – Ao ver os rostos
transtornados de Thomas e Rosie afastou-se rapidamente da janela e saiu
para o terraço a limpar as mãos a um pano da loiça. – Não a conhecem, pois
não?
Thomas acenou com a cabeça. Não conseguia falar. Queria consolar
Rosie, mas foi incapaz de mexer um músculo.
Norah ficou a olhar para eles durante alguns instantes e de repente
lembrou-se de quem ambos conheciam que vivia no Somerset.
– Não é a sua amiga, pois não? A senhora que conhecemos em Carrington
Hall?
Thomas conseguiu recompor-se o suficiente para confirmar.
Frank foi mais lento a perceber a quem e a que é que estavam a referir-se.
– Que coisa monstruosa! E ouvir a notícia assim, no rádio! – disse, num
tom que pareceu troar pelo jardim. – Pensei que só anunciavam o nome de
uma vítima depois de todos os familiares terem sido informados... –
acrescentou com alguma indignação.
– Ela não tinha família – explicou Thomas em voz baixa e rouca.
Frank e Norah estavam a falar ao mesmo tempo, mas Rosie sentiu que
todo o seu sangue se esvaía. Não conseguia mexer-se, falar nem ouvir o que
estava a ser dito. Só sentia uma raiva intensa a invadi-la por alguém, um
reles bandido, ter tirado a vida a uma mulher que era tão preciosa para si.
Apertou os braços da cadeira e a raiva que sentia cresceu e explodiu num
brado de dor.
– Rosie! – exclamou Norah, ainda mais chocada com aquele grito
primitivo do que com a notícia. – O que é, Rosie?
Thomas levantou-se da cadeira e aproximou-se dela como uma flecha.
Segurou-a com firmeza e abanou-a levemente para parar os gritos.
– A Rosie está em estado de choque. A Violet era muito importante para
ela – disse, abraçando a rapariga. – Não se importa de lhe ir buscar um
pouco de brandy?
Quando Rosie entrou no quarto de Donald mais tarde para lhe desejar boa
noite, ele estava sentado na cama como sempre a ler uma revista de banda
desenhada, mas em vez de lhe sorrir como era habitual, olhou-a com uma
expressão de censura.
– Porque é que passaste a noite inteira a chorar e a falar com o Thomas?
Rosie não soube bem como responder. Ele era um adulto em muitos
aspetos, mas havia grandes áreas em que continuava a ser uma criança e,
por esse motivo, todos evitavam falar sobre coisas perturbadoras na sua
presença.
– Porque a senhora de quem ouvimos falar nas notícias era uma velha
amiga minha e do Thomas. Não poderia falar contigo da mesma maneira
sobre ela porque tu não a conheceste – acabou por dizer.
– Mas tu excluíste-me – disse ele, com o lábio a tremer.
– Não queria que me visses triste – respondeu Rosie, sentando-se ao seu
lado e pegando-lhe na mão. – Foi só por isso.
– Mas eu cuidei de ti quando magoaste os joelhos – disse ele. – Posso
cuidar de ti aconteça o que acontecer.
Os olhos de Rosie encheram-se de lágrimas ao ouvir a sua fiel resposta.
Ele podia ver o mundo e os problemas da perspetiva simplificada de uma
criança, mas a sua lealdade e afeto eram verdadeiramente adultos.
De certa forma, duvidava que Gareth tivesse uma atitude tão generosa.
Falar com a polícia não foi nem por sombras tão mau como Rosie
esperava. Frank conhecia os dois agentes que foram lá a casa e ficou a
apoiá-la durante toda a conversa, falando por ela quando se ia abaixo. Os
dois polícias ficaram espantados ao saberem que ela era a filha de Cole
Parker e ainda mais surpreendidos quando avançou o nome do irmão como
suspeito. No entanto, embora dissessem que iam investigá-lo, pareceram
muito mais interessados em Saunders. Como Frank Cook, achavam que o
homem tinha ficado ressentido com as duas mulheres desde que fora
expulso de Carrington Hall.
Depois de os polícias se irem embora, Frank saiu com Donald de carro.
Ele estava muito curioso com a ida dos polícias lá a casa e quis distraí-lo,
ao mesmo tempo que dava a Rosie e à mulher oportunidade para
conversarem sozinhas.
– Acho mesmo que tens de dizer ao Gareth tudo o que nos contaste a nós
se ele te telefonar esta noite – disse Norah enquanto preparavam os legumes
para a refeição da noite. Parecia agitada e cortava cenouras como se
quisesse descarregar a ansiedade nelas. – Agora que a polícia vai procurar o
teu irmão, o teu nome pode ir parar aos jornais. Seria muito cruel deixá-lo
saber dessa maneira.
– Não posso contar-lhe uma coisa dessas ao telefone! – exclamou Rosie.
Gareth ligava-lhe sempre de uma cabina telefónica e podia imaginar as
pessoas a bater no vidro a pedir-lhe que se despachasse enquanto lhe
contava a história da sua vida.
– Eu não estava a dizer-te para lhe contares ao telefone, mas sim para
insistires que venha cá imediatamente, ou diz-lhe que vais lá. Tenho a
certeza de que o Thomas te recebe por uma noite, se for necessário. A
propósito, ele sabe alguma coisa sobre isto?
– Sim, sabe tudo – respondeu Rosie, e explicou-lhe que ele era irmão de
Heather e que se tinham aproximado depois de Cole ser preso.
Norah abandonou os legumes e escutou-a com os olhos muito abertos de
incredulidade, mas, quando Rosie lhe contou por fim sobre a adoção de
Alan, ela começou a chorar.
– Que homem bom e generoso – disse, por entre as lágrimas. – Eu sempre
achei que havia mais alguma coisa entre vocês e naquela tarde em que
ouvimos a notícia sobre Miss Pemberton tive a sensação de que partilhavam
um segredo. Mas nunca me passou pela cabeça que fosse uma coisa destas.
Thomas ligou quando ouviu a notícia do homicídio de Barnes no
noticiário das seis. Também estava abalado e, como Frank, suspeitou logo
de Saunders. Rosie contou-lhe tudo: que tivera de dizer aos Cook, a
conversa com os polícias e as suas desconfianças sobre Seth.
– Ainda bem que contaste tudo – disse ele, e admitiu que depois de
regressar a Londres pensara que devia tê-la encorajado a contar aos Cook
enquanto ainda estava lá. Não descartou completamente as suas
desconfianças acerca de Seth. – Parece-me improvável – disse. – Mas ao
observá-lo durante o julgamento percebi que ele era um homem perigoso,
sem quaisquer escrúpulos. Fizeste bem em dar o seu nome à polícia.
Thomas concordou que ela devia contar tudo a Gareth sem demora, antes
que ele soubesse por outra fonte.
– A Scotland Yard não anda com paninhos quentes quando estão em
causa homicídios – disse sem rodeios. – Já devem ter emitido um alerta
geral para Saunders e Seth serem levados para interrogatório. Podes apostar
o que quiseres que amanhã as fotografias dos dois vão estar nas primeiras
páginas de todos os jornais e é provável que o caso do teu pai volte a ser
falado. Quem me dera poder prometer-te que a polícia te vai proteger,
Rosie, mas não posso.
Rosie começou a chorar. Podia ir para Londres agora, mas antes de
chegar Gareth já teria quase de certeza saído com os amigos. Amanhã
talvez fosse tarde de mais.
– Queres que eu vá à casa onde ele mora e lhe conte? – sugeriu Thomas
ao perceber que ela estava muito preocupada. – Se sair agora, posso
apanhá-lo quando ele voltar do trabalho. Eu conheço todos os lados da
história, por isso talvez consiga explicar-lhe melhor do que tu porque é que
lhe escondeste isto.
Rosie achou que era uma boa ideia, se bem que um bocado cobarde da
sua parte. Todavia, mesmo que saísse naquele momento e conseguisse
apanhar Gareth em casa, ele não era muito compreensivo e era provável que
corresse com ela sem a ouvir bem. Thomas tinha jeito para as pessoas e
Gareth seria obrigado a ouvi-lo até ao fim.
– Acha que consegue? – perguntou. Sabia que ainda era um assunto
doloroso para ele.
– Eu suporto qualquer coisa por ti, Rosie – disse ele com um sorriso na
voz. – Dá-me a morada dele.
*
Às sete e meia dessa mesma noite Gareth abriu a porta do quarto e fez um
sorriso rasgado ao deparar com Thomas.
– Que surpresa, homem! – disse. – O que é que o traz por cá?
Thomas notou de imediato que ele estava preparado para sair. Usava
umas calças azul-marinhas muito elegantes, uma camisa branca impecável,
e cheirava a sabonete.
– Desculpa vir sem ser convidado, mas precisamos de ter uma conversa –
disse Thomas. – É sobre a Rosie e é muito importante.
Gareth olhou para o relógio.
– Combinei encontrar-me com os rapazes daqui a meia hora – disse ele. –
Vai demorar muito?
Thomas encrespou-se. Já tinha dito que era importante.
– Talvez – respondeu, e entrou no pequeno quarto antes que ele arranjasse
mais alguma desculpa.
O ciúme era uma emoção que Thomas desprezava e à qual se recusava a
sucumbir, e desde que conhecia Gareth tentava ser escrupulosamente
honesto consigo mesmo sobre se eram os ciúmes que o impediam de gostar
do rapaz. Todavia, desde o primeiro momento achara que ele era fútil e
limitado na conversa.
Porém, nos últimos dezoito meses tornara-se muito pomposo e obstinado.
Thomas viu isso agora no seu rosto: engordara, tinha uma expressão de
desprezo permanente e os seus olhos eram frios e desconfiados. Não
conseguia gostar dele, nem por Rosie.
– Viste a notícia do homicídio da Freda Barnes? – perguntou.
– Quem? – perguntou Gareth, parecendo espantado.
– A mulher que foi encontrada morta em Camden Town.
– Ah, sim. – Gareth acenou com a cabeça e sorriu. – O que é que isso tem
a ver consigo?
– Ela era a enfermeira supervisora de Carrington Hall – explicou Thomas.
– Raios partam! – Os olhos de Gareth abriram-se, interessados. – Que
coincidência duas pessoas que a Rosie conhecia serem assassinadas.
– Eu acho que é mais do que coincidência. – Thomas sentou-se em cima
da cama. Achou que Gareth nunca o convidaria para se sentar. – Há uma
possibilidade de o assassino andar atrás dela.
Thomas sabia que era insensível da sua parte começar a história com uma
declaração tão dramática, e talvez falsa, mas pensou que tinha de chamar a
atenção do rapaz.
Resultou. Gareth sentou-se na cadeira com um ruído surdo.
– Mas porquê?
Thomas avisou-o de que era provável que ficasse perturbado com o que ia
contar-lhe e pediu-lhe que o ouvisse até ao fim.
Gareth não interrompeu, mas à medida que Thomas foi contando a
história os seus olhos semicerraram-se e a sua cor intensificou-se; até o
pescoço ficou vermelho.
– Porque é que ela não me contou? – exclamou, furioso, quando Thomas
terminou. – Se isto não tivesse acontecido, ela casava-se comigo sem me
dizer?
Thomas pensou que as prioridades de Gareth estavam trocadas. Esperava
que a sua primeira reação fosse de preocupação com a segurança de Rosie.
– Acho que não. Ela estava à espera do momento certo – disse, devagar.
– O momento certo era quando me conheceu.
– Vá lá! – exclamou Thomas. – Alguma rapariga diria: «Sim, adorava sair
contigo, mas primeiro tenho de te dizer que o meu pai é um assassino.» Sê
razoável, Gareth. E, à medida que o tempo foi passando, começou a ser
cada vez mais difícil para ela contar-te.
Gareth estava claramente incapaz de raciocinar quando se lançou num
chorrilho de comentários acusadores sobre a reação da sua família, dos
colegas de trabalho e até dos patrões.
Thomas interrompeu-o.
– Pensei que amavas a Rosie.
– E amo – retorquiu Gareth, furioso.
– Então, que tal mostrares alguma compaixão por tudo o que ela sofreu? –
disse Thomas. – Ela nunca teve uma verdadeira infância. Desde os doze
anos tratou da casa para o pai e para os irmãos e foi uma mãe para o meu
pequeno sobrinho. Não tinha vida própria, amigos ou diversão. Depois, de
repente e sem aviso, descobre que o pai é um assassino. Dali em diante, sem
ter culpa nenhuma, é marginalizada. Não tem casa, não tem direitos, e
ninguém a não ser a Violet Pemberton se interessa por ela. Eu sei como foi
a vida dela naquela altura, até ir trabalhar para os Cook, e posso dizer-te que
a vida que ela teve te daria a ti, e a mim, pesadelos.
«Mas ela não ficou a lamentar-se pelos cantos, usou os talentos que tinha
para se valorizar. E vê o que fez com eles! Os Cook ficariam contentes se
ela impedisse que o Donald fizesse asneiras, mas ela ensinou-o a ler, a fazer
contas, deu-lhe um pouco de dignidade e libertou-os de ansiedade em
relação ao filho. Abriu a empresa de jardinagem e transformou-a num
enorme sucesso. É de estranhar que tenha conquistado o respeito e a
admiração de toda a aldeia? Para além de tudo isso, é uma das raparigas
mais bondosas e destemidas que já conheci. Tu és um homem de sorte por
ter aquela rapariga.»
– É fácil para si defendê-la porque soube sempre a verdade sobre ela –
disse Gareth, teimosamente.
– Achas que é mais fácil para mim ver coisas boas numa rapariga cujo pai
assassinou a minha irmã do que para ti, que estás apaixonado por ela? –
retorquiu Thomas com raiva. – Vou dizer-te porque é que a defendo: é
porque ela é uma pessoa muito especial. Quem lhe deu o nome de Rosie
acertou em cheio. Ela ergueu-se daquela pilha de estrume onde nasceu e
tornou-se uma coisa linda. Se não consegues ver isso, há alguma coisa
muito errada contigo.
Agora que começara, não conseguiu parar. Contou-lhe como Rosie
afastara Alan de May Cottage e contou-lhe com todos os pormenores a
tareia que Seth lhe dera. Descreveu todo o horror que ela testemunhara em
Carrington Hall e sentiu um certo prazer ao ver o rosto do homem mais
jovem empalidecer.
– Ela também não te contou estas coisas – continuou. – Talvez tivesses
ficado com pena se te contasse. Mas a Rosie não tenta suscitar pena nas
pessoas. Tu achas-te um homem grande e duro, Gareth, mas não passas de
um verme. Tens medo da coisa mais inofensiva da vida... as opiniões dos
outros. Se queres saber o que é a verdadeira coragem, pergunta à Rosie. Ela
é especialista.
Thomas levantou-se. Soube que tinha ido longe de mais e se ficasse mais
tempo era possível que lhe desse um ou dois murros.
– Vou-me embora. Só te peço que penses bem no que te disse e que
decidas se consegues ou não aceitar o seu passado. Se achares que não
consegues, sê um homenzinho e diz-lhe.
Enquanto descia a rua suja em direção à estação, lágrimas corriam-lhe
pelas faces. Estava envergonhado por ter sido tão duro com Gareth. Devia
ter sido mais brando, mais persuasivo. Teria sido cruel só porque também
estava apaixonado por ela?
Thomas tentava muitas vezes perceber qual fora o momento em que o
afeto e admiração que sentia por Rosie se tinham transformado em
verdadeiro amor adulto. Não tinha qualquer dúvida de que as sementes
tinham sido lançadas quando vira a sua coragem em Carrington Hall, mas
só quando se sentiu compelido a voltar a desenhar é que pressentiu a
verdadeira importância que ela tinha na sua vida.
Aqueles primeiros esboços foram todos de Rosie. No entanto, enquanto a
desenhava também se inspirava na sua força e depressa começou a olhar em
volta, de repente sedento de nova inspiração e desafios. Tinha comprado um
cavalete, óleos e telas e pintava furiosamente até às primeiras horas da
madrugada. Cenas da sua infância, de Singapura e da Birmânia, e cada vez
que terminava um sabia que tinha de agradecer a Rosie por lhe mostrar a
chave para libertar todas aquelas memórias, boas e más, e dar-lhe uma paz
interior há muito ansiada.
Talvez fosse inevitável apaixonar-se pela pessoa que lhe devolvera o seu
antigo espírito. Tinha aprendido a rir de novo, a gostar de companhia, a
olhar em frente em vez de pensar no passado com amargura. Por vezes
perguntava a si mesmo onde é que aquele amor o levaria. Era quinze anos
mais velho do que ela, tinha uma perna postiça e o cabelo a ficar ralo. Tinha
tantas hipóteses de a fazer amá-lo como de recuperar a sua perna. Todavia,
bastava-lhe ser uma pequena parte da sua vida.
Cara Rosie,
Lamento, mas tenho de acabar contigo. Não é só por causa do teu
pai. Eu sei que não és culpada por isso, mas não foste propriamente
sincera comigo sobre muitas coisas, como a enfermagem e a vinda
para Londres. Também parece que gostas mais do Donald e da tua
jardinagem do que de mim. Acho que ambos vamos ser mais felizes
separados.
Melhores cumprimentos,
Gareth
Rosie leu a curta e fria carta duas vezes. Não conseguia acreditar que,
depois de lhe dizer que a amava durante mais de dois anos, a abandonava
agora, quando mais precisava dele. Nem sequer era homem o bastante para
reconhecer que estava abalado por saber quem era o seu pai; tinha de pôr as
culpas na sua mudança de ideias e no facto de estar mais interessada em
Donald e na sua empresa de jardinagem.
Norah aproximou-se de onde Rosie estava sentada e pousou uma mão no
seu ombro. Tinha visto a rapariga ler a carta e adivinhara o que dizia pela
sua expressão chocada. Rosie voltou-se para a patroa e enterrou o rosto no
seu peito durante algum tempo, mas controlou-se para não chorar.
– Lamento muito, Rosie – disse Norah. Não sentiu satisfação ao saber que
a sua intuição sobre Gareth estava certa. Teve a sensação de que Rosie teria
mais dificuldade para lidar com isto do que com todas as tragédias da sua
vida.
Deitada na cama naquela noite, Rosie achou estranho não estar a pensar
em Gareth, como acontecera noite e dia durante a última semana, mas sim
em Thomas. Ele era uma pessoa tão importante na sua vida há tanto tempo,
e pensava que sabia tudo acerca dele, mas hoje ele fora diferente, algo
cruel, e no entanto gostava ainda mais dele por isso.
Tinha-lhe tirado uma espécie de véu dos olhos. No fundo, ela sempre
soubera a maior parte das coisas que ele tinha dito sobre Gareth, mas ele
trouxera tudo para a superfície e agora ela conseguia ver com profunda
clareza. No entanto, não sabia muito bem se gostava da sensação. Não
queria recordar Gareth a obrigá-la a masturbá-lo mal ficavam sozinhos, nem
que no último ano raramente tentava agradar-lhe. Não queria pensar na
maldosa chacota que fazia de Donald ou Thomas, e acima de tudo nas
piadas que dizia sobre ela, que o cabelo estava sempre despenteado, que
tinha seios demasiado pequenos e que as mãos estavam a ficar calejadas
como as de um homem. Também não queria admitir que Gareth era quase
sempre desinteressante, especialmente quando falava sobre comboios ou
motas.
Aquela imagem vaga da sua vida de casados numa casinha coberta de
rosas tinha sido sempre muito bonita e reconfortante, mas agora sabia que
Gareth não era o homem que ela imaginava sentado à sua frente a uma
mesa, à luz de velas, nem com quem se via enroscada numa cama grande e
confortável. Ainda teria de encontrar esse homem. Porém, sentiu-se
revigorada por arrancar aquele véu. Podia ver mais para a frente e sentiu
uma enorme vontade de sair para o mundo e experimentar coisas novas.
Como seria voltar a ir a bailes? Deixar outro homem beijá-la? E as
raparigas com quem ele dissera que devia conversar e rir, quem eram elas?
Onde é que as conheceria?
Adormeceu antes de poder responder às muitas perguntas que lhe
enchiam a cabeça.
CAPÍTULO 18
T rês dias depois de Thomas voltar para Mayfield, Seth também chegou.
Esgueirou-se para o jardim às cinco e meia da manhã, espreitou em
todas as janelas do rés do chão e agora, às sete horas, estava sentado no alto
do muro do jardim, escondido pela densa folhagem de uma faia cor de
cobre, a olhar para a cozinha. Estava à espera de que os ocupantes da casa
se levantassem para poder vê-los.
O seu aspeto agora era tão desesperado como o seu estado de espírito:
sujo, com roupas imundas e uma grossa barba preta. Abandonara o
Standard Vanguard perto de Southampton e caminhara muitos quilómetros
pelos campos antes de roubar um Rover 90 verde numa pequena aldeia. O
proprietário deixara um casaco de tweed e um boné no banco de trás, que o
aqueceram um pouco durante a noite e lhe proporcionaram uma espécie de
disfarce. Também conseguira comprar comida e cigarros na loja de uma
velhota, numa pequena aldeia. Ela não pareceu associar a sua cara à que
estava na primeira página de todos os jornais, mas Seth sentia que a sorte
em escapar à polícia estava a esgotar-se a grande velocidade.
O coração caiu-lhe aos pés quando chegou a Mayfield e viu onde Rosie
morava. Imaginara que a Granja era algum tipo de instituição, uma escola
ou um lar, enfiada num buraco isolado. Em vez disso, deparou-se com uma
grande e chique casa particular, com um lindo Jaguar estacionado na
entrada, bem no meio da rua principal de uma aldeia.
Seth sabia que os aldeões tendiam a ser mais observadores do que os
habitantes das cidades e, a avaliar pelas casas e quintas que vira até agora,
esta aldeia tinha uma grande proporção de habitantes ricos. Era provável
que chamassem a polícia se vislumbrassem um desconhecido desleixado e
isso deixou-o muito nervoso.
Porém, o lado positivo é que não havia polícia ao portão, não tinham cão
e o número de arbustos existentes no jardim facilitava discretas
movimentações sem ser visto. Também fizera o reconhecimento de uma
entrada pelo campo ao fundo do jardim. Pretendia esconder a espingarda ali
mais tarde e depois levar o Rover para um bosque e abandoná-lo lá.
Um ruído chamou a sua atenção para a casa. Uma mulherzinha de meia-
idade, de cabelo grisalho, com um roupão cor-de-rosa, estava a abrir a
janela da cozinha enquanto enchia a chaleira. Seth franziu a testa. Estava
convencido de que Rosie devia trabalhar ali como criada. Mas, se fosse
assim, porque é que não se levantava primeiro? Lembrou-se de Miss Marks
ter ficado muito espantada quando lhe mostrara este endereço e neste
momento desejou ter-lhe perguntado porquê. Pensando bem, agora achava
que devia ter investigado muito mais coisas antes de se envolver com
aquela velha.
As reportagens nos jornais tinham-lhe permitido saber uma parte da
história. Na realidade, Miss Marks era Freda Barnes, que tinha sido
enfermeira supervisora num manicómio privado, e Miss Pemberton tinha
feito com que ela fosse despedida. O homem chamado Saunders, cuja cara
estava nos jornais, também tinha trabalhado ali. Claramente, Rosie criara
alguma confusão enquanto estava lá que levara ao despedimento da
enfermeira supervisora e de Saunders.
Como Rosie não era mencionada em nenhum dos jornais que lera, tinha
chegado à conclusão de que devia tê-lo denunciado anonimamente, a
hipócrita dissimulada. Ponderou se a mulher que estava na cozinha
conhecia a sua verdadeira identidade. Apostava que não.
Um homem entrou na cozinha cerca de dez minutos mais tarde. Como
ficou numa zona mais recuada da divisão, Seth não conseguiu vê-lo bem.
Pareceu-lhe que era um homem alto e bem constituído, com cerca de
sessenta anos; devia ser o marido.
Quando Rosie apareceu de repente junto das portas da cozinha, abrindo-
as de par em par e saindo para o terraço, Seth ficou tão surpreendido que
quase caiu do muro. Não teve qualquer dúvida de que era Rosie, pois os
caracóis cor de cobre traíam-na, mas não esperava descobrir que a miúda
escanzelada de que se recordava se transformara numa beldade.
A velha cabeleira desgrenhada desaparecera e o novo penteado, mais
curto, tornara-a mais brilhante, e ela também estava mais alta, com o corpo
de uma pin-up. A confiança com que abriu a porta, e o traje informal de
calções verde-escuros e uma blusa branca sem mangas, sugeriram que era
muito mais do que uma criada naquela casa.
– Está muito bom e quente – disse para a cozinha. – Tomamos o pequeno-
almoço cá fora hoje?
A sua voz foi outra surpresa: parecia ter perdido o sotaque do Somerset.
O sotaque de Seth atenuara-se durante o tempo que vivera em Londres, mas
as pessoas continuavam a reconhecer as suas origens provincianas. Por
algum motivo, isto exasperou-o mais do que a sua aparência porque sugeria
que ela não sofrera nada e escapara milagrosamente para uma vida fácil.
– Bem, não vais tê-la durante muito mais tempo – balbuciou para si
mesmo enquanto a via dispor cadeiras de jardim à volta da mesa.
Pouco depois, começou a sentir-se muito vulnerável por estar tão perto.
Estava a menos de três metros dela. Se espirrasse, denunciaria a sua
presença. No entanto, agora não podia mexer-se; estava encurralado.
Na meia hora seguinte Seth foi ficando mais agitado, não apenas por
causa da proximidade da irmã, mas também por ciúmes. Ela estava a pôr a
mesa para quatro: um jarro de sumo de laranja, doce de laranja num lindo
frasco, e manteiga num prato de vidro, e os talheres colocados na perfeição.
A mulher mais velha fritava toucinho fumado e o cheiro, juntamente com o
conforto da casa que vira antes, atormentaram-no.
Ele nunca tivera conforto ou glamour na vida – andava sempre na rua,
chovesse ou fizesse sol, a trabalhar sem parar, e as refeições eram,
praticamente, atiradas para cima da mesa. Desde que Cole fora enforcado,
nem sequer tinha um lugar a que pudesse chamar casa. Tinha vinte e oito
anos, mas nunca se sentara num jardim lindo como este, nunca tivera umas
férias nem estivera num sítio luxuoso. Porque é que ela haveria de viver
numa casa com um piano, um televisor, carpetes grossas e todos os outros
sinais de riqueza, quando ele não tinha nada?
Parecia que o homem não se ia juntar ao grupo que tomaria o pequeno-
almoço no terraço. Seth pensou que devia ir trabalhar dali a pouco. Para
quem seriam os outros dois lugares? Talvez houvesse crianças em casa?
Pouco depois das oito um homem louro e alto entrou na cozinha. Seth
esboçou um sorriso escarninho ao vê-lo aproximar-se da mulher mais velha
e abraçá-la.
– Menino da mamã – murmurou. Passados alguns minutos sorriu
afetadamente quando o mesmo tipo saiu para o jardim com a Beano nas
mãos e se sentou à mesa a ler. A leitura de Seth também não ia muito para
além da Beano, mas teria esperado que uma pessoa que vivia numa casa
como aquela estivesse a ler o Financial Times, não uma revista de banda
desenhada.
Depois de alguns minutos a observá-lo, chegou à conclusão de que ele era
simplório. Parecia bastante normal, tinha um corpo musculoso e bronzeado,
e os calções claros e a camisa de manga curta pareciam caros e assentavam-
lhe bem, mas estava a rir alto com a banda desenhada e tinha a boca
ligeiramente descaída como alguns dos imbecis que trabalhavam na
construção civil.
De repente, a atenção de Seth foi desviada por outro homem que saiu para
o terraço. O seu rosto magro, cabelo louro e a forma como coxeava
pareceram-lhe muito familiares, mas demorou um ou dois minutos a
lembrar-se de quem era. Quando isso aconteceu, arquejou de espanto e
agarrou-se ao muro para não cair.
«É o cabrão do Farley!», pensou. «Que raio é que o filho da mãe está a
fazer aqui?»
Thomas Farley era um homem que nunca esqueceria. Não só era
responsável por dar início ao processo que levara à sua detenção e do pai,
como tinha sido o seu carácter, passado e testemunho que, no tribunal,
levara o júri a considerar Cole culpado. A partir do instante em que os
jurados viram o homem macilento que lutara pelo seu país, passara anos
num campo de prisioneiros de guerra na Birmânia e perdera uma perna na
sequência de uma ferida infetada, ficaram do seu lado. Ele era um herói,
enquanto Cole Parker, com a sua saúde robusta, passara os anos da guerra
em conforto e segurança, como um cobarde. Cole não teve hipótese
nenhuma.
Nos dez minutos seguintes, antes de o homem mais velho sair no seu
Jaguar e Rosie e a mulher mais velha trazerem para o terraço pratos com
toucinho fumado e ovos, Seth observou Farley e escutou a sua conversa
com o homem chamado Donald.
Farley parecia mais jovem do que na altura do julgamento. Engordara um
pouco, e até o rosto cheio de rugas de que se recordava tão bem parecia
mais liso. No tribunal, a sua expressão estivera sempre sombria e olhava
para Cole e Seth com ódio, como se fosse capaz de os desfazer com as
próprias mãos. Seth lembrou-se de como aquilo lhe enregelava o sangue,
embora o homem fosse aleijado. Na verdade, durante algum tempo depois
de ser absolvido quase esperava que o tipo viesse atrás de si.
Sem dúvida que a vida tinha sido boa para Farley desde então. Parecia
descontraído e feliz enquanto sorria e conversava. Fez-lhe lembrar um
pouco o seu sargento quando estava no exército. Tinha o mesmo género de
confiança descontraída, era o tipo de pessoa que os outros homens
admiravam – forte e constante. Seth ponderou o que seria ele a Rosie.
Seguramente, o homem não podia gostar da filha do seu inimigo. Mas se
gostava dela, tanto melhor. Seth podia vingar-se duplamente com um só
golpe.
Quando Rosie e a mulher mais velha se juntaram aos dois homens para
tomar o pequeno-almoço, Seth depressa soube muito mais coisas sobre eles
através da conversa. Farley era um convidado, e regular. Rosie era quase
uma filha para a mulher, apesar de a tratar por Mrs. Cook. Donald, como
Seth desconfiara, era atrasado e trabalhava como jardineiro.
No entanto, continuava sem perceber o papel da irmã aqui. Ela parecia
muito ligada ao sujeito simplório, por isso talvez fosse sua namorada.
Contudo, era igualmente carinhosa com Farley. Era muito estranho. Seria de
pensar que Rosie conseguisse arranjar alguém melhor do que um aleijado
ou um atrasado? Também foram feitas referências a alguém chamado
Gareth, por isso talvez estas pessoas tivessem outro filho. Perguntou a si
mesmo onde estaria.
Porém, a maior parte da conversa pareceu centrar-se no dia que tinham
pela frente. Farley disse que tinha trabalho para fazer, mas que gostaria de
fazê-lo ali fora. Mrs. Cook tinha um encontro para jogar whist às onze.
Parecia que Rosie e Donald iam a algum sítio juntos, e Rosie disse que
demorariam duas horas. Falaram muito mais sobre alguém chamado Robin.
Pelas gargalhadas, desconfiou que era uma criança pequena, talvez um neto.
Seth ficou frustrado quando eles terminaram o pequeno-almoço. Rosie e
Donald desapareceram no interior da casa, mas a mulher idosa e Farley
ficaram a arrumar a cozinha. Queria sair do seu esconderijo porque tinha
receio de que Rosie saísse pela porta principal e queria segui-la. No entanto,
não se atrevia a sair dali enquanto a cozinha não estivesse vazia.
Os minutos foram passando e Seth ficou horrorizado ao ver Farley sair de
novo para o terraço e pousar algumas ferramentas em cima da mesa. Viu-se
a ficar a manhã inteira preso em cima do muro. Como estava tão perto do
terraço, o menor movimento poderia alertar o homem para a presença de
alguém ali em cima.
Por fim, Farley voltou para dentro e desapareceu. Seth também não viu a
velhota, por isso aproveitou, saltou para o jardim, avançou atrás de uns
arbustos espessos que rodeavam o relvado e chegou à entrada.
A porta da frente situava-se na parte lateral da casa e Seth sobressaltou-se
quando a ouviu abrir-se no momento em que se preparava para correr para o
outro lado. Mergulhou para trás de um arbusto, a tremer de pavor,
convencido de que alguém o tinha visto. Arrependeu-se de ter vindo. Eram
quase oito e meia. As lojas da rua principal abririam a qualquer momento e
sabia muito bem que nas aldeias as pessoas faziam as compras cedo, as
mais idosas encontravam-se para conversar e muitos turistas também
poderiam andar por ali.
– Voltamos ao meio-dia – disse Rosie para alguém que estava atrás dela.
– Se Mrs. Parsons telefonar, diga-lhe que passo por lá esta tarde para lhe
fazer um orçamento.
Seth soltou um suspiro de alívio. Não o tinham visto.
Escondera-se atrás de um arbusto de azevinho que picava muito, mas,
mesmo quando Rosie e Donald passaram por ele no jardim, não se atreveu a
mexer-se. Passados alguns minutos, eles voltaram. Donald empurrava um
carrinho de mão carregado com ferramentas de jardim e Rosie transportava
um tabuleiro cheio de pequenas plantas. Seria jardineira?
Às onze horas dessa noite, Seth estava no campo nas traseiras da Granja,
encostado ao muro e escondido por dois arbustos densos. Já estava escuro,
mas muito abafado, como se estivesse a formar-se uma tempestade.
Nessa manhã fora muito difícil seguir Rosie. A rua principal estava
movimentada e não tinha onde esconder-se. Ela parecia conhecer toda a
gente e parava constantemente para conversar. Seth atraíra alguns olhares
curiosos e, embora puxasse o boné para os olhos e arrastasse os pés como se
fosse apenas um trabalhador agrícola a passar, sentiu que a sua presença
tinha sido notada e que seria apenas uma questão de tempo até alguém
alertar a polícia para a presença de um indivíduo com uma aparência
suspeita na aldeia.
Pelos vistos, Rosie e Donald tinham uma empresa de jardinagem.
Espreitara por cima da sebe do jardim onde eles estavam a trabalhar e ficara
espantado ao vê-la cavar como um profissional experiente. Incapaz de se
aproximar dela por causa de Donald, Seth dormiu uma sesta num campo ali
perto. Acordou mais tarde e constatou que ambos tinham ido para casa, por
isso dirigiu-se para o carro, levou-o para um bosque, e depois voltou para a
Granja e esperou. Às quatro da tarde ouviu Rosie e Donald atravessarem o
jardim. Ficou atento, mas eles entraram na estufa e as suas vozes ficaram
abafadas. Cerca de uma hora mais tarde Farley veio para o jardim e chamou
Rosie para conversar com ela. Desta vez, Seth ouviu tudo muito bem.
Pensou que deviam estar sentados no banco do outro lado do muro, a pouca
distância dele.
Farley veio contar-lhe as últimas novidades. Com grande consternação,
Seth depressa percebeu que toda a gente lá em casa sabia exatamente quem
ela era e também os pormenores das suas movimentações, que só lhes
podiam ter sido transmitidos pela polícia. Farley disse-lhe que tinha sido
encontrado um Standard Vanguard com as impressões digitais do irmão por
todo o lado e que a polícia acreditava que ele vinha naquela direção num
Rover verde.
– Estão a alertar as pessoas para não se aproximarem dele – disse Farley,
num tom duro e autoritário. – Puseram um guarda no portão daqui de casa,
mas não deves sair enquanto ele não for apanhado.
– Achas que ele se vai atrever a vir aqui? – perguntou Rosie, e Seth sentiu
uma onda de prazer ao perceber o medo na sua voz.
– Não parece muito lógico – respondeu Farley. – Se estivesse no lugar
dele, procuraria formas de sair do país. Mas quem pode adivinhar o estado
de espírito de um homem que já matou duas vezes?
As suas vozes desvaneceram-se a pouco e pouco enquanto voltavam para
casa. Apesar de estar abalado por saber que a polícia estava tão perto de
apanhá-lo, Seth sorriu. Eles não tinham inteligência para vigiar as traseiras
da casa e, se Farley soubesse como estivera perto da irmã hoje, estaria a
borrar-se de medo.
Entretanto, Donald não era tão incapaz de pensar com clareza como os
pais acreditavam. Embora estivesse zangado e perturbado, teve a presença
de espírito de tirar uma gabardina escura que pertencera em tempos a
Michael de um cabide na entrada, calçar os sapatos de jardinagem e levar a
grande lanterna que o pai usava para ver o motor do carro quando estava
escuro.
Também sabia pelos livros de banda desenhada que para apanhar alguém
de surpresa era preciso ser silencioso e manter-se invisível. No instante em
que saiu para o campo esfregou lama na cara e no cabelo. Vira alguém fazer
isso num filme.
Ser rápido pareceu-lhe a coisa mais importante num primeiro momento,
por isso correu como o vento pelo campo até chegar à vedação ao fundo,
mas a partir dali acendia a lanterna de vez em quando para procurar pistas.
Havia nítidas marcas de botas na lama, e marcas de pés descalços, que só
podiam ser de Rosie. O homem mau estava a levá-la para o bosque.
Quando se aproximou do bosque, Donald ficou assustado. Nunca estivera
lá à noite e cada tronco de árvore tinha uma cara feia e mal-intencionada.
Parou durante alguns momentos, demasiado assustado para avançar mais,
mas enquanto estava parado ouviu ruídos acima do barulho da chuva a bater
nas árvores – ruídos de coisas a partir e a abanar um pouco à sua frente.
Saber que Rosie estava ali, ainda mais assustada do que ele, deu-lhe uma
nova coragem. Os seus olhos já estavam mais acostumados à escuridão e
conhecia muito bem o bosque. Não se atreveu a acender a lanterna, por isso
guardou-a no bolso e pegou num pau grande e robusto.
Manteve-se no carreiro muito usado. O homem e Rosie iam à sua
esquerda, a caminhar pelo meio do mato, mas o caminho por onde seguia
aproximava-se gradualmente deles. Se fosse rápido e silencioso poderia
passar à frente deles como o Lobo Mau na história do Capuchinho
Vermelho.
O seu plano funcionou. Depois de andar rapidamente durante cerca de
vinte minutos, parou para escutar e ouviu-os vir na sua direção.
– Mexe-te – disse o homem numa voz abrupta e Donald ouviu um som
que parecia o de uma vara a cortar o ar. Foi como se o homem lhe tivesse
batido, mas Rosie não gritou; só se ouviu um barulho como se um deles
tivesse tropeçado em alguma coisa.
Donald escondeu-se atrás do tronco maior. Desejou ter trazido o gorro
que usava no inverno. Tinha medo de que o cabelo louro se visse.
Mas de repente eles pararam de andar. Donald esforçou-se para escutar.
Ouviu barulhos estranhos, mas não conseguiu identificá-los. Esperou, sem
saber o que fazer, e depois o homem falou de novo.
– Não vais mais longe – disse.
Donald ficou aliviado ao ouvir aquilo. Pensou que o homem ia deixá-la
ali e se ia embora sozinho. Devia saber que a polícia viria atrás dele. Aquilo
facilitava tudo: esperaria até ele desaparecer e depois levaria Rosie para
casa.
Mas os minutos passaram e o homem não veio na sua direção e só fazia
barulhos esquisitos. Donald ficou ansioso. Começou a aproximar-se
furtivamente.
– Fica quieta, sua puta. Não consigo metê-la – exclamou o homem de
repente, e Donald soube por instinto que ele estava a tentar fazer-lhe uma
coisa muito má.
Dois dias depois de Seth raptar Rosie do seu quarto, a imprensa estava no
jardim da Granja a fotografar Donald. Da noite para o dia ele transformara-
se num herói nacional e, como tinham receio de que repórteres pouco
escrupulosos recorressem a métodos dissimulados para falar com o filho,
Norah e Frank tinham autorizado esta sessão fotográfica, estritamente
controlada por Frank.
– Olha para eles! – sussurrou Norah num tom sarcástico para o marido
enquanto posavam para uma fotografia com o filho. Inclinou a cabeça para
a ponta do jardim, onde os habitantes da aldeia se amontoavam e
espreitavam pelos arbustos, chegando a subir o muro e o portão. De vez em
quando alguém gritava um extravagante elogio, ou começava a cantar «For
He’s a Jolly Good Fellow». Os repórteres achavam que era muito
comovente e não perceberam a recusa de Norah em serem fotografados com
os aldeões.
Havia um excelente motivo para a sua recusa. Doze anos antes aquelas
mesmas pessoas tinham estado no mesmo sítio, a gritar histericamente que
Donald era um louco e devia estar atrás das grades. Norah perdoara-lhes
isso – eram pessoas ignorantes e tinham sido apanhadas numa histeria
coletiva. Mas, embora estivesse muito orgulhosa da coragem do filho, não
pretendia partilhar um único momento dela com aquelas pessoas.
– Alguma coisa mudou, não foi? – perguntou Norah quando Rosie entrou
muito animada depois de ir levar Thomas à estação nessa noite.
– Sim – concordou ela, e ficou na cozinha a sorrir como uma imbecil. –
Acho que sim. Ele deixou de ser apenas um amigo.
Norah sorriu. Desde a morte de Miss Pemberton, estava desconfiada de
que os sentimentos de Thomas eram mais do que amizade.
– Fico muito contente pelos dois – disse, com franqueza. – Espero que
resulte.
– A sério? – Os olhos de Rosie abriram-se muito. Quase esperara que a
patroa não gostasse da ideia.
Norah preparava-se para lhe dizer que ela acabara de viver um trauma
terrível dias antes e que podia estar em ressaca emocional por causa de
Gareth. Porém, outro olhar para aquele rosto feliz que estava à sua frente
deteve-a.
– A sério. Vocês têm muitas coisas em comum.
– Então, não acha que ele é velho de mais para mim? – perguntou Rosie.
– Não. Talvez achasse, se tu fosses outra rapariga qualquer – disse a
mulher mais velha com um sorriso caloroso. – Mas tu foste sempre muito
madura. Na verdade, não conseguia imaginar-te a ter alguma coisa em
comum com um rapaz da tua idade. A única preocupação que tenho agora é
que pode ser uma reação ao que aconteceu na outra noite. Por isso, vai com
calma, Rosie.
Foi difícil para Rosie conter as lágrimas muito mais vezes durante essa
noite ao ver quadros que lhe traziam novos vislumbres da alma de Thomas.
Um prédio degradado com roupa estendida numa corda no pátio era o
começo da sua vida. Uma mulher a dormitar numa cadeira era a mãe. Uma
paisagem da selva fazia parte das suas recordações da Birmânia, talvez o
que via do outro lado do arame farpado. O lago de Whitestone não podia
faltar e, com crianças pequenas a andar de barco, refletia até certo ponto o
otimismo que sentira quando chegara a Hampstead. No entanto, o ex-
soldado aleijado a vender jornais era como temera terminar os seus dias.
O seu coração inchou de orgulho quando viu que as pessoas estavam
encantadas com os seus quadros. Escutou enquanto Thomas falava
timidamente com jornalistas e quis atrever-se a interromper para lhes dizer
que ele também podia ser um homem com um humor brilhante. Quando
ouviu dois críticos falarem pomposamente no seu «talento em bruto» e
«técnica primitiva» apeteceu-lhe atirar-lhes com um chorrilho dos palavrões
primitivos que aprendera com o pai quando era pequena.
Porém, à medida que a noite foi passando percebeu que aquelas críticas
eram um elogio, pois eles mencionaram Thomas ao mesmo tempo que Van
Gogh e Monet. O seu entusiasmo crescia sempre que via Paul Brett
atravessar a sala para colocar uma etiqueta de «Vendido» numa das
molduras. Ouviu vozes distintas tecerem elogios rasgados e soube que não
eram impostores que só estavam ali pelo vinho e os canapés gratuitos, mas
pessoas que apreciavam verdadeiramente arte. Uma velhota que mais tarde
descobriu tratar-se de Lady Elizabeth Huntingdon disse que mal podia
esperar que a exposição terminasse para poder levar o seu quadro de
Sparrow’s Nest para casa e pendurá-lo.
Mas o quadro a que Thomas dera o nome de «Rosa Brava» continuava
sem uma etiqueta. Paul Brett estava a reunir ofertas para ele; quem pagasse
mais ficaria com ele no fim da semana. Rosie não se atrevia sequer a pensar
perguntar a Thomas até onde poderia o preço subir. Ouvira falar na soma de
quarenta guinéus em determinada altura e ficara embasbacada.
Paul foi a única pessoa que percebeu que a «Rosa Brava» era Rosie.
Recuou um passo quando Thomas os apresentou e sorriu-lhe como se
tivesse acabado de desvendar um mistério.
– Agora, compreendo – disse, com os olhos azuis a brilhar. – Quando o
Thomas me mostrou aquele quadro, os cabelos da minha nuca eriçaram-se.
Eu não reajo muitas vezes a arte dessa forma. Quando acontece é porque sei
que encontrei uma coisa verdadeiramente especial. Acredito que a menina
foi o catalisador que desbloqueou o talento latente do Thomas. Tenho de
vos convidar para jantar uma noite da próxima semana. Talvez consiga
persuadi-lo a pintá-la como está agora, para mim.
À medida que o serão foi passando, Rosie perdeu o nervosismo ao ponto
de se apresentar às pessoas não apenas como a namorada de Thomas, mas
também como jardineira. Depressa percebeu que os amantes de arte eram,
invariavelmente, apreciadores de jardins, e quando disse que pensava
mudar-se para Hampstead em breve diversas pessoas lhe deram os seus
cartões de visita e pediram-lhe que as contactasse.
Ficou ainda mais encantada ao perceber que os seus receios de que
Donald se embaraçasse e aos pais eram infundados. Ele bebeu apenas um
copo de vinho e andou de um lado para o outro com os pais, a conversar
muito à vontade com as pessoas. Em determinada altura, ouviu-o contar a
um casal de meia-idade que Jack Higgins, o dono da casa em ruínas que
Thomas pintara, perseguira-o uma vez pela aldeia quando ele era pequeno
porque pensara que ele andava a roubar-lhe fruta no pomar. Disse-lhes que
tinha tanto medo daquele lugar que não se atrevia a pôr um pé no jardim. O
casal riu-se com ele e deviam ter ficado comovidos com a história porque
Rosie soube que tinham comprado o quadro por vinte guinéus.
Às dez da noite, quando os últimos convidados saíram, só havia quatro
quadros por vender. Frank e Norah estavam afundados num sofá, exaustos,
e Donald continuava a ver os quadros. As duas empregadas de mesa
recolhiam os copos.
Paul Brett estava parado no meio da galeria, a olhar para as etiquetas de
«Vendido» com uma expressão encantada.
– Bem Thomas – disse. – O que é que vou vender o resto da semana? Não
pode arranjar-me mais dois para amanhã?
– E ao sétimo dia descansou – disse Thomas a rir. – Além disso, vou
passar o dia com a Rosie. E ainda tem o «Rosa Brava» para leiloar, por isso
não seja ganancioso.
Paul voltou-se para Rosie, pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios.
– Desejo-vos muitas felicidades. O Thomas é um grande artista, Rosie, e
tenho a certeza de que a menina foi a sua inspiração. Nunca poderei
agradecer-lhe o bastante por isso.
Frank insistiu que Thomas viesse para casa com eles.
– Há uma cama a mais no quarto do Donald – disse, piscando o olho ao
homem mais novo para lhe recordar que nessa noite teria de haver um
pouco de decoro, pelo menos até ele e Norah voltarem para casa. – Há
champanhe a gelar. Temos muito que comemorar.
– Sabem qual foi a melhor coisa esta noite? – disse Norah muito mais
tarde nessa noite, em Piccadilly. Donald tinha ido para a cama: uma taça de
champanhe e estava quase a dormir na cadeira.
– O que foi, minha querida? Que o lance de cinquenta guinéus que demos
pelo «Rosa Brava» já foi de certeza ultrapassado? – disse Frank, com as
palavras ligeiramente entarameladas.
Rosie sobressaltou-se. Sabia que tinham feito um lance, mas não o valor.
– Não, querido, não é isso. E eu disse-te para comprares as meninas com
o carrinho de bebé, para prevenir, mas tu não me escutaste – disse Norah
num tom de censura.
– Eu não vos deixaria comprar um dos meus quadros – disse Thomas com
um leve soluço. Estavam todos um pouco tocados, mas ele era o que estava
pior porque as pessoas tinham passado a noite inteira a oferecer-lhe copos
de vinho. – Vou pintar um especialmente para vocês.
– Não pode oferecer o seu trabalho – disse ela, indignada. – É como pedir
ao Frank para lhe oferecer um trator!
– Para que é que eu precisaria de um trator? – exclamou Thomas, a rir. –
Além disso, sei que vão mostrá-lo a toda a gente e pode ser que tenha
algumas encomendas. Mas, voltando ao que estava a dizer, o que é que foi
tão agradável esta noite?
Norah pareceu algo embaraçada.
– Talvez não devesse falar no assunto, mas absolutamente ninguém
mencionou os homicídios.
Rosie também reparara nisso e ficara surpreendida. A sua cara e a de
Donald tinham aparecido em muitos jornais e a ligação a Thomas não
passara despercebida. Tinha-se preparado para lhe fazerem perguntas, mas
não houvera sequer uma vaga alusão ao assunto.
– As pessoas de Hampstead que estão ligadas à arte são demasiado
educadas – declarou Thomas. – Ou talvez não leiam jornais.
– Não me parece que seja isso – retorquiu Norah. – É porque está tudo
esquecido. Também já ninguém fala sobre o assunto em Mayfield. Por fim,
acabou.
Rosie não disse nada durante algum tempo. Queria acreditar que Norah
estava certa.
– Não acha mais provável que se tenham esquecido porque o Thomas foi
a estrela da noite e é um homem fascinante por direito próprio? – sugeriu.
Vira a enorme carga emotiva de cada um dos seus quadros. Cada um deles
tinha uma história por trás. Isso bastava para que ninguém se interessasse
por ela e pela sua família. – Teremos de esperar para ver antes de ficarmos
contentes de mais; não sabemos o que a imprensa poderá desencantar.
– Ninguém me perguntou nada sobre isso – disse Thomas. – Eu estava
preparado para lhes arrancar a cabeça se o fizessem, mas não houve nada.
Na verdade, nem sequer falaram sobre a velha história de eu ser prisioneiro
de guerra.
Frank mexeu-se na cadeira. Parecia sonolentamente feliz, com a barriga
gorda saliente por cima da faixa do smoking.
– Eu acho que vocês deviam parar de se preocupar com o passado e olhar
para o futuro – disse. – A minha Norah tem sempre razão, ou pelo menos é
o que gosta de me dizer. Se querem saber o que penso, acho que deviam
casar-se e concentrarem-se em viver felizes para sempre.
– Frank! – disse Norah num tom ríspido. – Não és tu que tens de sugerir
isso.
– É a melhor sugestão que ouvi o ano inteiro – disse Thomas, sorridente.
– Queres casar comigo, Rosie?
O coração de Rosie pulou. Ela já decidira dizer-lhe que pretendia vir
viver com ele. No entanto, embora pensasse que era corajosa o suficiente
para desafiar as convenções, seria duplamente feliz com uma aliança no
dedo e o nome Mrs. Farley. Olhou para Thomas e sorriu, e depois fitou
Norah e piscou-lhe o olho.
– Quando quiseres – respondeu.
Frank levantou-se da cadeira.
– O champanhe acabou, mas há um pouco de brandy para um brinde –
disse, com um sorriso radioso. – Não temos um casamento na Granja desde
o da Susan, e esse foi há tanto tempo que quase me esqueci.
1963