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Ficha Técnica

Título original: ROSIE


Título: Uma Mulher em Fuga
Autor: Lesley Pearse
Traduzido do Inglês por Isabel Veríssimo
Capa: Alexandra Costa
Imagem da capa: Jovana Rikalo/Trevillion Images
ISBN: 9789892339412

Edições ASA II, S.A.


uma editora do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
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© 1998, Lesley Pearse


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LESLEY PEARSE

UMA MULHER EM FUGA

TRADUZIDO DO INGLÊS POR


ISABEL VERÍSSIMO
Para o Peter, a Lucy, o Sammy e a Jo, com amor
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Gerald Lockyer, superintendente reformado da Polícia de


Somerset e Bath, cuja ajuda, conselhos e conhecimento da polícia e dos
seus procedimentos durante os anos cinquenta se revelaram preciosos.
Também agradeço à News Beat, a revista da Polícia de Avon e Somerset,
cujos funcionários me ajudaram tão simpaticamente a entrar em contacto
com ele.
CAPÍTULO 1

Somerset, 1945

O calor fazia a latrina cheirar pior do que era habitual, por isso Rosie
baixou as cuecas no pomar antes de abrir a frágil porta. Em seguida
tapou o nariz com uma mão, segurou o vestido com a outra e entrou a
recuar, para não ver o fétido buraco sem fundo.
Uma grande aranha castanha que tecia uma teia entre uma das vigas e
uma fenda na porta balançou ao pé da sua bochecha direita. Rosie riu-se.
Considerava que todas as criaturas vivas eram suas amigas, até as menos
atraentes.
– Olá, Syd – disse em tons nasalados, com o nariz tapado. – Porque é que
ficas neste lugar malcheiroso? Se fizesses a tua teia numa das macieiras ias
apanhar tantas moscas como apanhas aqui e também tinhas uma linda vista
dos brejos!
May Cottage, a sua casa, ficava no centro dos Somerset Levels, uma zona
baixa de fértil charneca onde se cruzavam rios e canais feitos pelo homem.
Para algumas pessoas um lugar tão isolado, ainda que muito belo, seria
assustador, acima de tudo se tivessem de estar aqui completamente sozinhas
tantas vezes como ela estava. Porém, Rosie não se importava, nem mesmo
quando a noite caía. Para ela, cada fungadela, latido, guincho ou grunhido
era a voz de um amigo, quer fosse coelho, pássaro, rã-touro ou ouriço-
cacheiro. Ao contrário dos habitantes da aldeia de Catcott, a povoação mais
próxima, eles não coscuvilhavam sobre os Parker nem empinavam o nariz
ao vê-los.
Os homens da família Parker intrigavam, horrorizavam, assustavam e ao
mesmo tempo fascinavam os vizinhos. Cole Parker, o pai de Rosie,
comentava muitas vezes que se não fosse ele não haveria tema de conversa
no Crown. Também afirmava que tinham inveja dele e havia alguma
verdade nisto: Cole era um homem charmoso e tinha jeito com as mulheres.
Também tinha uma sorte dos diabos. Ninguém sabia como, mas conseguira
convencer o serviço de recrutamento de que estava inapto para o serviço
ativo e depois passara os anos da guerra a ganhar bom dinheiro às custas do
conflito. No entanto, além da inveja também havia medo; misteriosos
acidentes pareciam acontecer às pessoas que falavam sobre os Parker de
uma forma demasiado volúvel, acima de tudo as que se atreviam a dizer que
os filhos de Cole eram não apenas selvagens, como maus, e duas vezes mais
perigosos do que o pai.
Todavia, quando a guerra começou a dar sinais de que ia chegar ao fim,
até os habitantes de Catcott encontraram outros temas de conversa para
além dos Parker. Os homens iam voltar para casa e o racionamento e os
blackouts em breve seriam apenas uma memória distante. Os preparativos
para as celebrações de vitória foram agitados: era preciso engordar galinhas
e porcos, armazenar açúcar e farinha e apanhar groselhas para os bolos. As
limpezas de primavera foram feitas com um fervor redobrado e na escola da
aldeia houve uma profusão de composições baseadas nas gulosas fantasias
infantis de um mundo onde tabletes de chocolate cresciam nas árvores, nos
rios corria limonada e as ruas estavam pavimentadas com gomas de frutas.
No ébrio regabofe da Festa da Vitória da aldeia havia a convicção de que
estava a começar uma maravilhosa nova era. Mas em junho, apenas um mês
depois, aquela visão já estava manchada. Muitos militares continuavam no
estrangeiro e, dos que já tinham regressado, uma grande parte estava a
sentir dificuldades para se adaptar à vida familiar. O racionamento era pior
do que nunca e a falta de tinta, tijolos e materiais de construção impedia que
os habitantes das cidades reparassem os danos que a guerra causara nas suas
casas.
Rosie estava mais consciente da situação das famílias que viviam nas
grandes cidades do que as suas colegas de escola porque o pai ia muitas
vezes a Bristol e a Londres para fechar negócios de limpeza de locais
bombardeados. Quando se sentia um pouco sozinha, com medo ou com
fome, tentava lembrar-se das histórias que ele lhe contava sobre as pobres
crianças escanzeladas que via a procurar lenha e carvão. Nas grandes
cidades não havia um coelho ou um pato ocasional para complementar o
racionamento de comida, como acontecia aqui, e as pessoas passavam
fome.
Cole estava em Londres agora. Na melhor das hipóteses, estaria a
regressar depois de uma estadia de três dias. Deixara Rosie ao cuidado dos
irmãos, mas Seth tinha dezassete anos e Norman dezasseis, e tinham coisas
muito melhores para fazer do que tomar conta de uma miúda de oito anos
enquanto o pai estava fora. Por isso, os caracóis cor de cobre da irmã não
viam um pente há dias. Os seus pés descalços e joelhos nus estavam
impregnados de lixo e o vestido estava tão roto que só servia para o saco de
trapos. No entanto, apesar dos evidentes sinais de negligência, ela parecia
robusta e saudável, embora fosse um pouco baixa para a idade. Também
tinha um extraordinário ar de feliz autoconfiança, mesmo num lugar tão
pouco digno.
Um familiar matraquear ao longe fez Rosie esquecer a aranha e correr
para o pomar enquanto puxava as cuecas para cima. Subiu para a pilha de
lenha ao lado do galinheiro e espreitou pelo brejo na direção de Burtle. O
calor tremeluzente e as ervas altas que cresciam junto dos canais e valas não
a deixaram ver se o veículo que se aproximava era mesmo a camioneta de
caixa aberta do pai. Todavia, era improvável que fosse outra pessoa; poucas
camionetas, ou qualquer tipo de veículos motorizados, vinham para este
lado dos Somerset Levels.
Apesar da beleza das charnecas salpicadas de flores que rodeavam May
Cottage, a casa dos Parker não era a casa de campo pitoresca que o nome
sugeria. Era uma delapidada casa de caseiros construída na viragem do
século, quase escondida por montanhas de ferro-velho que se erguiam dos
dois lados. Tratores velhos, carros e motas desmanchados, cheios de
ferrugem, madeira, arquivos, armações de camas, pneus gastos e velhas
alfaias agrícolas. Cole Parker não achava incongruente empilhar aqueles
objetos num lugar onde garças-reais e guarda-rios pescavam na
tranquilidade dos canais e dos rios. Não achava a sua floresta de lixo feia ou
sombria. Era o seu meio de vida.
Quando a conhecida cabina vermelho-ferrugem da camioneta apareceu no
seu campo de visão, Rosie correu pelo pomar, espantando as galinhas, saiu
do pátio das traseiras pelo portão lateral, contornou as pilhas de ferro-velho
e chegou à parte da frente da casa no momento em que o pai parou com um
chiar de travões.
– Paizinho! – gritou, a dar-lhe as boas-vindas, enquanto acenava com as
duas mãos com grande entusiasmo. Preparava-se para saltar para o estribo
da camioneta quando percebeu que ele não estava sozinho.
Uma mulher estava sentada no banco do passageiro ao seu lado e Rosie
recuou, apavorada, para a segurança dos grandes espinheiros-brancos do
jardim.
Cole saltou da cabina, mas, em vez de a abraçar como era costume
quando estava ausente alguns dias, parou e olhou-a com a testa franzida.
– Ora, ora, Rosie. Isso não é maneira de te comportares – berrou-lhe, com
a fala habitualmente lenta acelerada pela irritação. – Vem cá e diz olá à
Heather; ela veio de Londres para ser tua mãe.
Rosie olhou para o pai, estupefacta. Ele nunca encorajara visitas em May
Cottage e ensinara-a a olhar para os desconhecidos com desconfiança.
Agora, sem aviso prévio, trouxera uma nova mãe para casa!
– Mãe, para mim? – deixou escapar.
– Isso mesmo, por isso vai cumprimentá-la.
Rosie podia estar espantada, mas sabia que não devia contrariar o pai em
público. Por isso, deu alguns passos relutantes em frente e obrigou-se a
sorrir quando a mulher desceu da cabina.
Ao vê-la mais de perto, concluiu que ela não era muito velha. Usava um
amachucado vestido às flores e as pernas nuas estavam sarapintadas, como
se tivesse passado o inverno sentada demasiado perto do lume. Não era
nada o tipo de mulher que o pai preferia. Nos últimos dois anos tinham
passado por ali diversas mulheres demasiado arranjadas e vistosas. Esta era
robusta, com ancas largas e um grande rosto sem qualquer beleza especial.
A única coisa digna de nota era o cabelo; era lindo, grosso, comprido e cor
de manteiga.
– Olá – disse ela, e o seu grande rosto abriu-se num caloroso sorriso. –
Sou a Heather Farley e o teu pai contou-me tudo sobre ti. Não tenhas medo
de mim porque daqui a nada vamos ser amigas.
Rosie ficou espantada com o peculiar sotaque da rapariga.
– Porque é que falas de uma maneira tão esquisita? – perguntou, com a
curiosidade a fazê-la esquecer a timidez.
– Porque sou do East End de Londres, ora. – A rapariga riu-se. – Nascida
na zona da Bow. Falamos todos assim. Eu também acho que tu e o teu pai
falam duma maneira estranha!
Rosie olhou para os calorosos olhos da rapariga e depois fitou o pai. Ele
também estava a sorrir, um dos seus raros sorrisos vindos do coração.
Percebeu logo que o pai gostava mesmo desta Heather e ficou contente
porque ele não se afeiçoava a muitas pessoas, embora muitas pessoas se
afeiçoassem a ele.
Mesmo aos quarenta e um anos o seu cabelo continuava tão grosso, preto
e brilhante como quando tinha dezoito anos. O corpo estava cheio de
músculos, apesar de ter uma pequena barriga devido à quantidade de sidra
que bebia todos os dias. Vestido com as suas calças de domingo e com uma
camisa branca engomada, era um homem bonito. Contava muitas vezes em
tom de brincadeira que a mãe dizia que os ciganos deviam ter levado o seu
bebé e deixado um deles, pois as suas feições fortes e o tom de pele escuro
eram mais ciganos do que ingleses.
– Vá lá, rapariga – disse ele para a filha num tom mais meigo, pegando
nela ao colo e abraçando-a. – Tu estás há muito tempo sem uma mãe e a
Heather não tem família. Vamos tentar?
Rosie olhou para Heather da segurança dos braços do pai e decidiu que a
rapariga seria uma distração das conversas com galinhas, aranhas e
pássaros. Tinha uma expressão e conversa alegres e era jovem o suficiente
para ser uma irmã mais velha. Assim, após um breve momento de
hesitação, deslizou dos braços do pai e dirigiu-se a ela.
– Olá, Heather – disse, corando um pouco. – Queres ver a casa e tomar
uma chávena de chá?
– Mal posso esperar – respondeu Heather, pegando na mão da menina e
apertando-a com verdadeiro entusiasmo. – Tenho tanta sede que parece que
a minha garganta foi cortada.
Rosie deixou que o pai fosse buscar a mala de Heather, levou a rapariga
pelo labirinto de ferro-velho até ao pátio das traseiras e entraram na
cozinha.
Heather ofegou quando atravessou a soleira da porta e ficou paralisada.
Rosie não conseguiu perceber porque é que a cozinha provocara aquela
reação, pois todos os pratos estavam lavados. Talvez não gostasse de
galinhas?
Pegou na galinha castanha que debicava um pão que tinha sido deixado
em cima da mesa, atirou-a para a rua e voltou-se para Heather.
– Elas não podem entrar em casa, mas aquela é um bocado atrevida.
Assustou-te?
Era a primeira vez que Heather Farley saía de Londres e ficara encantada
ao ver os campos, rios e flores silvestres. Não ficara nada desanimada com
o delapidado exterior de May Cottage nem com as pilhas de ferro-velho que
rodeavam a casa porque, durante a longa viagem, Cole explicara-lhe que
ganhava a vida a negociar ferro-velho. Além disso, em comparação com as
casas sujas e danificadas pelas bombas de Londres até lhe pareceu bastante
bonita.
Porém, ficou estupefacta ao entrar na cozinha. Nunca vira tanta
imundície, e tinha crescido nos bairros de lata de Poplar e visto coisas que
fariam a maioria das pessoas ficar verde. Para além da imundície, o calor do
fogão a lenha era insuportável e a cozinha cheirava pior do que um
matadouro público.
Era uma grande divisão com um teto de traves baixas e o mobiliário – um
guarda-loiça, uma grande cómoda, uma mesa e cadeiras no centro – devia
ter sido trazido para ali na altura em que a casa fora construída. Estava tudo
coberto por uma grossa camada de gordura, havia excrementos de galinhas
em todas as superfícies e viam-se gordurosas teias de aranha penduradas
nas traves. O chão de pedra não devia ser varrido há semanas, e muito
menos esfregado, e as janelas tinham tanto lixo entranhado que era difícil
ver através delas.
– Não, não tenho medo das galinhas – disse Heather devagar. Calculou
que a criança não era convidada muitas vezes para ir a casa de outras
pessoas e que não devia fazer ideia de como era uma casa limpa. – É que
está tão quente aqui que tive uma tontura. – Limpou o rosto com as costas
da mão para ser mais clara.
– Eu acendi o fogão porque o pai vinha para casa – explicou Rosie. –
Pensei que ele ia querer comer alguma coisa quente e tomar um banho,
depois de Londres.
Cole entrou na cozinha e o seu corpo alto bloqueou a luz da porta.
– Fizeste bem em acender o lume, Rosie – disse. – Esta noite vamos
precisar de muita água quente.
Dissesse Heather o que dissesse, Rosie percebeu que ela estava chocada e
desapontada. No entanto, a expressão e o comportamento do pai intrigaram-
na ainda mais. Ele parecia quase intimidado e mudava o peso do corpo de
um pé para o outro como se estivesse embaraçado. Ela nunca o vira assim.
– A Rosie faz o que pode, mas ainda é uma bebé – continuou Cole. – Os
meus rapazes são uns grandes vadios e preguiçosos e não consigo obrigá-
los a trabalhar sem um pau nas costas. Onde é que eles se meteram, Rosie?
– Foram a Bridgwater na mota – respondeu Rosie, e esperou que o pai
não a interrogasse sobre o que tinham feito desde o dia em que ele se tinha
ido embora. Se descobrisse a verdade daria uma tareia de cinto aos rapazes
no instante em que eles entrassem em casa. E mais tarde Seth ia virar-se
contra ela em retaliação. – Vou encher a chaleira – acrescentou. Pegou nela
e passou pelo pai, saindo para o pátio para enchê-la na bomba.
O barulho da água a sair da bomba impediu-a de ouvir a conversa dos
dois adultos, mas teve a opressiva sensação de que não seria agradável. Por
isso, ficou surpreendida quando voltou para a cozinha com a chaleira e viu
Heather inclinada sobre o fogão, a rodar a torneira de um lado para perceber
como funcionava. Além disso, tinha amarrado o cabelo com uma fita e
posto um avental.
– Pelo menos há água quente, o que é alguma coisa. – Endireitou-se e
pousou as mãos nas ancas. – Esta casa precisa de uma limpeza a fundo e há
alguma coisa que cheira mal, por isso é melhor saírem daqui e irem buscar
comida e material de limpeza enquanto eu começo. Esqueçam o chá. Passo
bem com água.
Rosie olhou para o pai, à espera de ouvir uma resposta brusca. Ele não
gostava de mulheres mandonas. No entanto, para sua surpresa, o pai tirou-
lhe a chaleira das mãos e pousou-a no disco do fogão.
– Não queria que começasses a trabalhar hoje, Heather.
– Bem, não posso sentar-me no meio desta esterqueira. – Heather riu-se e
o som da sua gargalhada ecoou na cozinha sombria. – E daqui a pouco
também vão querer uma refeição, por isso vou atirar-me ao trabalho.
Rosie não sabia o que era uma «esterqueira», mas pensou que era melhor
não perguntar, por isso seguiu o pai para a camioneta sem dizer mais nada.

Depois de Cole e Rosie saírem, Heather parou no meio da cozinha e


cheirou. O cheiro fétido era mais forte longe do fogão, mas passados alguns
instantes apercebeu-se de que a porta aberta das traseiras escondia outra
porta e que era dali que vinha o fedor.
Tapou o nariz e abriu-a, saltando para trás, horrorizada, quando uma
dúzia de gordas moscas varejeiras saíram disparadas como aviões de
combate. Ali, numa prateleira, estava a origem do mau cheiro: um naco de
carne que fora deixado durante tanto tempo numa travessa metálica que
estava cheio de larvas a contorcer-se. Ela sentiu náuseas, bateu com a porta
e correu para a rua para respirar ar fresco.
Heather Farley era um pouco lenta e nunca conseguira aprender a ler e
escrever bem. Porém, o que lhe faltava em educação era compensado com
senso comum. Enquanto enchia os pulmões com o fragrante ar do exterior,
avaliou a sua situação.
O resto da casa devia estar ainda pior do que a cozinha. A pequena Rosie
parecia a filha de um cigano; talvez até tivesse piolhos. A casa mais
próxima devia ficar pelo menos a três quilómetros dali e nem se atreveu a
pensar a que distância estava da cidade mais próxima. Era uma rapariga da
cidade e não sabia nada sobre a vida no campo. Hoje fora a primeira vez
que vira uma vaca. Como é que podia pensar em ficar aqui?
Por outro lado, estava a cento e oitenta quilómetros de Londres e com
apenas alguns xelins na carteira. E não tinha ninguém nem nenhum sítio
para onde fugir. Em todo o caso, Cole Parker não lhe mentira. Dissera-lhe
vezes sem conta que a casa não tinha as comodidades modernas e que ele e
os seus rapazes não conseguiam cuidar dela sozinhos.
Mas, acima de tudo, havia a menina. Heather sorriu para si mesma ao
recordar como a mão de Rosie estava áspera quando a apertara. Embora
estivesse imunda, parecia ser uma menina simpática e precisava de alguém
que cuidasse dela. Não era uma boa razão para ficar?
Levantou a cabeça para o sol e gostou de sentir o calor na pele. Nunca
estivera num lugar tão tranquilo – só se ouvia o zumbido das abelhas e as
galinhas a cacarejar no pomar. Aquela paz absoluta aumentou a sua
determinação. Passara todo o tempo da guerra a sonhar com a vida no
campo e, apesar de esta casa ser uma lixeira, agora estava aqui.
– É melhor pôr mãos à obra – disse em voz alta, e voltou para a cozinha.
Com o nariz tapado, embrulhou a carne podre num jornal. Resolvido
aquele assunto, empilhou todas as peças de loiça, panelas e bibelots em
cima da mesa, e levou todas as cadeiras para a rua. Em seguida, encheu um
balde com água quente do fogão, pegou numa barra de sabão amarelo e
começou a esfregar as paredes e as prateleiras.

Heather Farley tinha apenas dois anos e o seu irmão Thomas sete quando
o pai morreu de tuberculose, em 1929. Viviam em duas divisões de um
prédio degradado em Poplar, partilhando uma torneira e uma retrete com
quatro outras famílias. Ratazanas e ratos brincavam nas escadas e deixar
comida destapada durante um ou dois segundos era suficiente para ficarem
sem ela. Mas Maud Farley, a mãe, era uma mulher orgulhosa. Não se sentou
a lamentar o seu infortúnio e arranjou trabalhos de limpeza para evitar que a
família passasse fome. Heather supunha que fora uma infância dura, mas só
tinha recordações felizes, com Thomas no centro de todas. Ele cuidava dela
quando a mãe estava a trabalhar, levava-a à escola, brincava com ela e
protegia-a. Por vezes outras crianças troçavam dela por ser burra, mas
Thomas nunca se ria. Só se lembrava dele a elogiá-la pelos seus dotes de
costura, culinária e limpezas.
Em 1939, quando a guerra começou, Thomas trabalhava no mercado de
Smithfield há três anos e era o homem da casa. Heather lembrava-se de
chorar porque ele dizia que se alistaria quando fizesse dezoito anos e
achava que não conseguiria viver sem ele.
No entanto, aprendeu a viver sem ele, e sem a mãe também. Thomas
alistou-se em 1940 e foi mandado para o estrangeiro quase imediatamente.
Em outubro desse ano, antes de Heather fazer treze anos, a mãe morreu
num ataque aéreo quando voltava do trabalho, enquanto Heather esperava
por ela no abrigo.
Os vizinhos diziam muitas vezes que ela tinha a mesma índole da mãe.
Embora tivesse ficado devastada continuou a viver naquela casa, assumiu
os dois trabalhos de limpeza da mãe e continuou a sua vida, ignorando as
bombas, rejeitando a ideia de que também ela poderia morrer, à espera do
dia em que o irmão voltaria para casa e lhe diria o que fazer a seguir.
Todavia Thomas nunca voltou para casa e estava algures no Extremo
Oriente. Heather pedia a uma vizinha para ler as suas cartas pouco regulares
e ditava-lhe respostas alegres. Depois, quando pensou que nada pior poderia
acontecer, em janeiro de 1942 o prédio onde vivia foi atingido por uma
bomba e ficou reduzido a um monte de escombros.
Nessa altura, tinha catorze anos. Arranjou um emprego como ajudante de
lavandaria no Hospital de Whitechapel e arrendou um quarto minúsculo em
Bethnal Green. Em fevereiro desse ano ouviu a notícia de que Singapura
caíra, mas não tinha a certeza se era onde Thomas estava e de qualquer
maneira a correspondência do Extremo Oriente demorava muito tempo a
chegar.
O ano chegou ao fim e Heather estava cada vez mais preocupada, pois
continuava sem notícias do irmão. A última carta dele chegara dois dias
antes de os apartamentos serem bombardeados. Foi à estação de correios
para saber o que faziam com as cartas que chegavam para um endereço que
já não existia e garantiram-lhe que toda a correspondência era guardada até
ser reclamada. Outras pessoas incentivaram-na a continuar a escrever para o
irmão; disseram-lhe que o exército e a Cruz Vermelha trabalhavam em
conjunto para garantir que os soldados recebiam o correio, onde quer que
estivessem, mas continuou sem notícias. Nem sequer um daqueles bilhetes
curtos a informá-la que ele tinha sido feito prisioneiro. No fundo, pensava
que Thomas devia estar morto; ele fora sempre tão consciencioso e expedito
que tinha a certeza de que teria encontrado uma forma de lhe dizer que
estava em segurança.
Por fim, um padre bondoso investigou por ela. A informação que acabou
por receber em 1944, mais de dois anos depois da última carta do irmão, foi
o golpe pior e mais amargo que já recebera. Thomas Farley tinha
desaparecido durante a queda de Singapura e, como não havia registos seus
em qualquer campo de prisioneiros de guerra, fora dado como morto.
Heather fora sempre uma rapariga alegre e otimista, mas esta notícia
arrasou-a. Naquele momento nada parecia valer a pena; não tinha
expectativas, ninguém para cuidar e ninguém que cuidasse dela. Só em
janeiro de 1945 é que conseguiu ter forças suficientes para sair da
lavandaria e arranjar um novo emprego num restaurante de self-service em
Piccadilly. E fora ali que conhecera Cole Parker.
Fora no fim de abril, duas semanas depois de fazer dezoito anos. Toda a
gente em Londres vivia um estado de grande entusiasmo, a antecipar a
declaração de vitória iminente. Os pubs e clubes estavam a abastecer-se de
cerveja e bebidas espirituosas para as celebrações, por fim as estações do
metropolitano tinham deixado de ser abrigos antiaéreos e os homens
enchiam camiões com montanhas de sacos de areia obsoletos. Heather
sentiu que o entusiasmo era contagioso. Cortou o cabelo, pôs um pouco de
bâton e até começou a sentir um pouco do seu velho otimismo.
O restaurante esteve muito movimentado naquele dia, não apenas à hora
do almoço, mas durante o dia inteiro. Mal levantava as mesas, mais pessoas
entravam e enchiam-nas de novo.
Cerca das quatro da tarde viu um homem alto de cabelo escuro de pé com
um tabuleiro de comida na mão, sem conseguir encontrar uma mesa.
Aproximou-se dele e indicou-lhe uma mesa de canto que acabara de limpar.
Ele parecia querer conversar e pediu-lhe indicações para chegar a
Victoria, onde disse que tinha de ir buscar algumas mercadorias. Heather
falava de boa vontade com toda a gente, mas o forte sotaque rural do
homem espantou-a mais do que a conversa. Nunca ouvira nada assim antes.
Ele disse-lhe que era do Somerset e também brincou com a sua pronúncia
do East End.
O homem ainda estava no restaurante quando Heather interrompeu o
trabalho para descansar e, num impulso, sentou-se à sua mesa. Ele contou-
lhe que a mulher tinha sido morta dois anos antes quando viera fazer uma
visita a Londres. Disse-lhe que os dois filhos, Seth e Norman, tinham idade
suficiente para se safar, mas que Rosie, a sua pequenina, tinha apenas oito
anos e preocupava-o o facto de ela crescer sem a influência de uma mulher.
Contou-lhe que tentara contratar uma governanta, mas comentou em tom
de brincadeira que nenhuma ficava quando via o estado da sua casa.
Heather sentira pena dele e da sua filhinha.
As eufóricas celebrações do Dia da Vitória e o turbilhão dos dias que se
seguiram fizeram-na esquecer o homem e nunca esperou voltar a vê-lo.
Porém, uma tarde, quase três semanas depois de se conhecerem, ele voltou
ao restaurante e desta vez foi evidente que viera especificamente para falar
com ela. Perguntou-lhe se poderiam encontrar-se quando ela terminasse o
trabalho e, embora todas as outras colegas dissessem que ele parecia
perigoso, aceitou.
Ele levou-a ao White Bear em Piccadilly, que estava cheio de militares, e
contou-lhe muitas outras coisas sobre a sua casa e a sua família.
– O Seth é uma peste – disse com um sorriso. – Exatamente como eu
quando tinha a idade dele. Vai fazer-lhe bem quando for chamado para o
serviço militar no fim deste ano, para ter alguma disciplina. O Norman não
é muito melhor, mas é burro que nem uma porta. Mas a Rosie é muito
inteligente. Está sempre a ler e a fazer perguntas. Ela merece mais.
Heather não conseguiu deixar de imaginar a família inteira sob uma
perspetiva romântica. Dois rapazes tão morenos e lindos como o pai, uma
menina pequena a crescer como uma selvagem porque não tinha uma mãe
que a orientasse. Nem sequer lhe passou pela cabeça perguntar a Cole
porque é que não fora recrutado durante a guerra, pois tinha a certeza de
que haveria um bom motivo. Quando ele lhe perguntou se consideraria a
possibilidade de vir tomar conta deles, Heather respondeu que ia pensar no
assunto e que lhe daria a resposta dali a duas semanas, quando ele voltasse a
Londres.
As duas semanas pareceram intermináveis. Todos os dias se tornava mais
evidente que não havia nada para si em Londres. O quarto onde vivia era
minúsculo e escuro, não tinha verdadeiros amigos, família ou namorado, e
sentia que era demasiado desengraçada para arranjar um. Londres também
estava cheia de recordações tristes e dolorosas. Talvez com o tempo
conseguisse esquecer o terror dos ataques aéreos, o som de uma bomba
voadora ou aquele pungente cheiro a gás e estuque que pairava no ar depois
de um bombardeamento, mas sabia que, embora tudo isso pudesse atenuar-
se com o passar do tempo, o rosto do irmão perdido seria tão nítido na sua
mente dali a vinte anos como era agora.
Dois dias antes de Cole vir saber a resposta já tinha feito a mala com os
seus poucos pertences.

Heather estava sentada ao sol a beber uma chávena de chá quando Cole e
Rosie voltaram. Trabalhara como uma escrava durante duas horas e estava a
descansar enquanto o chão secava. Ainda não tinha passado da cozinha. Um
desagradável cheiro atrás do galinheiro, no pomar, indicou-lhe a localização
da retrete. Era a pior que já vira, uma latrina fedorenta, escura e cheia de
aranhas, mas não tinha força para limpar aquilo hoje.
Rosie atravessou o portão a correr, com um brilho de entusiasmo nos
olhos azul-arroxeados.
– O meu pai comprou um monte de coisas especiais porque tu vieste –
disse, sem fôlego, sentando-se ao lado de Heather e enfiando a mão na da
rapariga mais velha. – Demorámos muito tempo porque ele teve de ir
buscar algumas coisas a pessoas que conhece.
– No mercado negro? – perguntou Heather, levantando a cabeça. Cole
levantou um volumoso saco de lona e uma saca cheia de alguma coisa.
– Mais ou menos – respondeu, sorridente. – O racionamento não nos afeta
muito por estas bandas, temos os nossos expedientes.
Rosie desapareceu na cozinha, mas saiu quase logo, com os olhos muito
abertos.
– Pai! Pai! Venha ver o que a Heather fez. Está mesmo fabuloso.
Cole pousou os sacos ao lado de Heather e entrou para inspecionar. Como
a filha, saiu com um sorriso de orelha a orelha.
– Parece que acertei contigo – disse, batendo-lhe no ombro. – Não a via
assim há muitos anos.
Heather iluminou-se. Tinha a certeza de que Cole estava tão pouco
acostumado a fazer elogios como ela a recebê-los.
– Pus as cortinas de molho e aquelas poltronas precisam de capas novas –
disse, mas as perguntas que pretendia fazer-lhe foram esquecidas no
instante em que abriu a saca que estava ao seu lado e viu dois coelhos
mortos a olhá-la.
É evidente que já vira coelhos pendurados em talhos, mas nunca se
imaginara a comprar o animal inteiro e a ter de o esfolar.
Cole riu-se ao ver a sua expressão horrorizada e pegou neles pelas patas
traseiras, abanando-os diante dela num gesto brincalhão.
– Vão ter de ficar pendurados durante dois dias, mas não te preocupes que
eu vou esfolá-los. Espreita para o outro saco.
Heather nunca tinha visto tanta comida fora de uma loja em toda a sua
vida. Farinha, açúcar, fruta seca, compota, margarina e pão, um embrulho
com carne fresca, manteiga em papel parafinado, queijo e toucinho fumado,
e uma pilha de legumes. Ele também trouxera materiais de limpeza: mais
sabão, soda cáustica, esfregão de arame, desinfetante e uma lata de cera de
abelha. Quase não conseguia acreditar no que estava a ver – a escassez de
produtos em Londres era tão crónica que teria de passar duas semanas a
andar de fila em fila para conseguir comprar metade daquelas coisas. Olhou
para Rosie com uma expressão desamparada e a criança sorriu.
E aquele sorriso disse a Heather que iria amar aquela criança.
– Temos os ovos das galinhas – disse Rosie. – Eu é que os recolho.
Conheço todos os esconderijos delas e vou mostrar-te todos.

Já passava das oito da noite quando a família inteira se sentou à mesa


para comer o fígado com toucinho fumado e puré de batata que Heather
tinha cozinhado. Ela estava um pouco tocada porque Cole lhe dera dois
copos de sidra, mas talvez fosse melhor assim porque não ficou tão chocada
com a insolência dos dois rapazes.
A chegada dos dois às sete horas tinha desfeito a paz. Primeiro o rugido
de uma mota, depois o barulho de botas pesadas a percorrer o pátio. Os dois
rapazes estavam imundos, com lama até aos joelhos, e Seth, o mais velho,
tinha atirado duas enguias enormes e ainda a contorcer-se para o lava-loiça
antes sequer de olhar para Heather.
Como Cole lhe dissera, os rapazes eram tão parecidos que podiam ser
gémeos. Dois ou três centímetros mais altos do que o pai, mas com a esguia
elegância da juventude, partilhavam o mesmo cabelo e olhos pretos, pele
morena e maçãs do rosto proeminentes. Porém, apesar de serem
inegavelmente bonitos com os seus rostos bronzeados e dentes perfeitos, a
característica especial que Cole tinha, a faísca que atraía os olhos e aquecia
o coração de Heather, não existia nos filhos.
– Então, tu és a gaja de Londres? – foi o primeiro comentário de Seth
para Heather, e os seus frios olhos pretos percorreram o corpo dela de alto a
baixo, fazendo-a estremecer por dentro como uma das enguias. – Seria de
pensar que não gostasses disto.
Norman não foi tão desagradável. Comentou que a cozinha estava muito
bonita e disse-lhe para não se preocupar com as enguias porque as esfolaria
mais tarde. Todavia, Heather ficou com a impressão de que ele também
tinha medo de que a presença de uma mulher em casa interferisse com a
liberdade deles.
Heather pediu-lhes com delicadeza se não se importavam de descalçar as
botas no alpendre, mas eles ignoraram-na e sentaram-se nas duas poltronas
sem se preocuparem com as calças cheias de lama.
– Rosie, leva a Heather lá para cima – disse Cole num tom brusco e
Rosie, que estava a ajudar a descascar as batatas, levantou-se ao ouvir a
ordem do pai, pegou na mão da rapariga mais velha e levou-a para a estreita
escada de caracol ao fundo da cozinha.
– O pai vai estourá-los – disse Rosie enquanto levava Heather para o
pequeno quarto que iriam partilhar. A divisão tinha apenas uma cama de
casal e uma pequena cómoda. Não havia cortinas na janela, a cama estava
por fazer e os lençóis estavam imundos. Não obstante, Heather gostou do
quarto pois estivera algo ansiosa com a possibilidade de um homem do
campo como Cole pensar que uma governanta tinha de partilhar tudo com
ele, incluindo a cama.
– Estourá-los? – repetiu Heather; durante alguns momentos pensou que a
criança estava a dizer que Cole ia usar a espingarda que vira no alpendre
nos filhos.
– Sabes, passar-lhes uma descompostura, dar-lhes uns carolos – replicou
Rosie com indiferença. – Mas não queria fazer isso à tua frente.
As paredes e soalhos podiam ser grossos o suficiente para abafar a
discussão que se seguiu, mas as janelas e portas estavam escancaradas e
Heather ouviu todas as palavras.
– Não queremos uma cabra de Londres a mandar em nós – declarou Seth
num tom taciturno.
– Esta casa é minha e quem manda sou eu – rugiu Cole. – A Heather não
é uma cabra e se não gostam que ela esteja cá podem pôr-se a mexer daqui
de vez.
– Mas, pai... – Agora Seth estava a choramingar. – A gente estávamos
muito bem sozinhos.
– Vivíamos como porcos e vocês estavam a chafurdar na vossa imundície.
Mas eu não trouxe a Heather para cá para cuidar de vocês, trouxe-a para cá
para a nossa Rosie. Não quero que a minha filha cresça como vocês, que
são duas bestas ignorantes. Agora, descalcem essas botas e ponham-nas no
alpendre, lavem-se e mudem de roupa antes do jantar, ou não comem. E
levem aquelas malditas enguias lá para fora, que elas aterrorizam qualquer
pessoa.
O silêncio súbito na cozinha e depois o som de água a ser tirada da bomba
no pátio das traseiras provou que os rapazes estavam a obedecer, ainda que
com relutância.
– Os teus irmãos são sempre assim ou é só por minha causa? – perguntou
Heather. Antes de os rapazes chegarem a casa já estava apreensiva em
relação a eles. Rosie mostrara-lhe o quarto onde dormiam e cheirava pior do
que um estábulo, a uma mistura de urina velha e suor. Rosie explicara-lhe
num tom descontraído que muitas vezes Seth molhava a cama quando se
deitava com os copos. Heather esperava não ter de lavar os seus lençóis;
recusava-se a limpar a porcaria de homens crescidos.
– O Norman não é muito mau quando está sozinho – disse Rosie, tocando
ansiosamente no braço de Heather como se tivesse medo de que ela fugisse.
– Mas o Seth é horrível. Vou ficar contente quando for convocado para o
serviço militar.
A comida de Heather agradou aos três homens, que devoraram tudo e
limparam o molho com grossas fatias de pão. Heather não gostou de ver os
rapazes comer com a boca aberta nem dos muitos arrotos, mas pelo menos
pareciam mais simpáticos com ela. Não sabia se isto se devia aos
«estouros» ou apenas à fome saciada, mas quando estava a levantar a mesa
Seth disse que ela era boa cozinheira e Norman convidou-a para ir lá fora
vê-lo esfolar as enguias.
Elas continuavam vivas, a tremer e a contorcer-se, embora Seth lhes
tivesse cortado a cabeça.
– É como tirar as meias a uma rapariga – disse Norman com um sorriso
lascivo, e começou a passar a faca pela parte inferior das enguias para
exemplificar. – Alguma vez comeste enguias?
– Em gelatina – respondeu ela, a pensar que não voltaria a comê-las
enquanto vivesse. – É o que vais fazer com elas?
– Não, estas são para um amigo meu, ele defuma-as. Eu e o Seth não
gostamos muito. Só as apanhamos para lhas vender. Espera até veres as
noites em que apanhamos a sério. A gente apanhamos centenas na noite
certa do ano, quando elas estão a tentar voltar para o mar. Podemos ganhar
cinquenta libras numa boa noite de trabalho e o nosso pai leva-as para os
judeus em Londres.
Heather olhou para as duas enguias esfoladas, ainda a contorcerem-se no
alguidar, e estremeceu. Teve o pressentimento de que não demoraria muito
a assistir a mais matanças de animais que a fariam querer voltar a correr
para a civilização de Londres.

– Que tal tomares um banho e deixares-me lavar-te o cabelo? – sugeriu


Heather a Rosie depois de os homens terem saído para o pub. Percebeu que
o pub devia ficar a uns três quilómetros de distância e teve a sensação de
que eles só voltariam depois de o estabelecimento fechar.
Ainda não tinha oferecido a Rosie o livro de contos de fadas que trouxera
de Londres. Cole dissera-lhe que ela lia bem e a menina já demonstrara isso
ao ler alguma coisa do Picture Post. Agora quase desejava não ter trazido o
livro, pois significava que teria de admitir que ela própria só conseguia ler
as palavras mais simples.
– Mas domingo é noite de banho – disse Rosie, com os olhos azuis muito
abertos de espanto. – Hoje só é sábado.
– No lugar de onde eu venho, tomamos banho quando estamos sujos –
retorquiu Heather. – E não acredito que o teu cabelo tenha sido lavado
desde o Natal.
– Foi – replicou Rosie, indignada. Não se sentia intimidada com Heather;
ela era simpática e era bom ter companhia, pois as noites pareciam sempre
muito longas quando estava sozinha.
– Bem, apetece-me tomar um banho. – Heather decidiu que tinha de
garantir que não embaraçava a menina. – Por isso vamos pôr-nos de molho,
está bem? Eu deixo-te tomar primeiro!
Sentada ao lado da banheira de metal a lavar Rosie, Heather lembrou-se
com intensidade da mãe e de tudo o que ela lhe ensinara. Lembrava-se de
ela lhe dar banho assim, de lhe lavar o cabelo e enrolá-lo em trapos, e de a
obrigar a lavar os dentes com um pouco de sal. As suas roupas eram tão
velhas como as de Rosie e muitas vezes também andava descalça, mas a
mãe incutira nela a necessidade de higiene e era uma coisa que faltava
muito nesta casa.
Heather acendeu o candeeiro a petróleo antes de entrar na banheira. Rosie
estava sentada numa cadeira, com uma camisa de dormir demasiado
pequena e esfarrapada. O seu cabelo molhado estava lindo à luz do
candeeiro, com os cachos de cobre escuro a baloiçar nos ombros magros e a
emoldurar o seu rosto cor-de-rosa e branco. Enquanto se lavava, Heather
apercebeu-se de que a menina a olhava com curiosidade.
– Eu vou ter essas coisas grandes? – perguntou por fim.
Heather riu-se.
– Claro que sim, amor, todas as raparigas têm aos treze ou catorze anos.
– Porquê?
Aquela pergunta entristeceu-a; mostrou-lhe o quanto Rosie perdera ao
ficar sem a mãe.
– Servem para alimentar o teu bebé quando te casares.
– O quê, como as tetas das vacas?
Como Heather nunca vira uma vaca antes do dia de hoje, e apenas da
camioneta, o seu conhecimento da anatomia daqueles animais era limitado.
No entanto, como davam leite presumiu que serviam o mesmo propósito.
– Sim, acho que sim. Elas enchem-se de leite depois de termos um bebé.
Até lá são só como as minhas. Nunca viste uma mãe dar de mamar ao seu
bebé?
Rosie abanou a cabeça.
– E para que são os pelos na tua barriga?
Heather não sabia responder àquela pergunta e disse-lhe isso.
– Aparecem quando os seios crescem, faz parte da transformação em
mulher.
Rosie ficou pensativa durante alguns instantes.
– Então, porque é que o meu pai e os meus irmãos têm aquelas coisas
penduradas? Nós não temos.
Heather ruborizou-se. Na idade de Rosie só sabia que o coiso de Thomas
era a «pilinha» e a sua era o «pipi». Não sabia porque é que eram diferentes
nem para que serviam. Acabara por descobrir por outras raparigas na
lavandaria durante a guerra e a maior parte das coisas que lhe tinham
contado pareciam-lhe muito rudes. Não lhe pareceu certo tentar explicar
aquilo a uma criança tão pequena, e muito menos na sua primeira noite.
– Estão relacionadas com ter bebés – disse. – Mas tu és pequena de mais
para te explicar agora. Tenho um livro na mala para ti. Deixa-me vestir a
camisa de dormir e despejar esta água e depois vamos vê-lo.

Rosie continuava acordada muito depois de Heather apagar a vela e


adormecer ao seu lado na cama de casal. A janela estava aberta de par em
par e o brilho da lua cheia inundava o quarto. Desejou que a luz fosse um
pouco mais forte para ler um pouco mais daquele maravilhoso livro.
Estava muito contente por o pai ter trazido Heather consigo. Ela era
encantadora. Era engraçada, conversadora e bondosa, embora não soubesse
ler. Esperava muito que Seth e Norman não a irritassem e que o pai não a
assustasse com um dos seus ataques de mau génio.

Três meses mais tarde, num quente fim de tarde de setembro, Rosie
estava na parte de cima do celeiro da quinta dos Shank em Burtle com todas
as crianças pequenas das aldeias das redondezas. Sentia-se uma princesa
com o novo vestido verde-maçã com mangas de balão e franzidos no
corpete que Heather lhe tinha feito. Não pretendia envolver-se em
brincadeiras brutas que pudessem estragá-lo.
Era o Festival das Colheitas de Burtle, uma noite anual para celebrar as
colheitas arrecadadas. Todas as pessoas estavam presentes, até as muito
idosas. Era um momento para conversar e rir com velhos amigos, para
comer, beber e ser feliz, e os mais jovens e solteiros tinham uma
oportunidade para procurar romance. Porém, este ano a comemoração era
dupla, porque a guerra terminara por fim, a maioria dos homens estava de
regresso a casa e todos ansiavam por uma paz duradoura.
Este ano as decorações eram as melhores de que havia memória: ramos
de folhagem, grinaldas de margaridas-do-outono, vergas-de-ouro e
crisântemos pregados nas paredes de madeira, serpentinas de papel e
bandeirolas penduradas nas vigas. As mesas compridas, cheias de comida
que desaparecia a grande velocidade, estavam engalanadas na frente com
arranjos de mais folhagem e fitas cor de laranja.
A maior parte dos homens já bebera muita sidra dos barris que tinham
sido colocados no exterior e agora todos estavam prontos para se juntar às
mulheres no baile. A música era tocada pela banda filarmónica de Burtle e
Jack Dunkie tocava o seu acordeão sempre que os músicos faziam uma
pausa. A luz de dúzias de velas em lanternas à prova de vento, que tinham
sido colocadas a grande altura para não causarem acidentes, banhava o
espaço com uma quente luz dourada e Rosie estava tão feliz que pensou que
podia rebentar.
Desde que Heather chegara em junho, a sua vida mudara drasticamente
para melhor. Começou com o prazer de voltar para casa depois da escola e
encontrá-la na cozinha com tudo muito limpo e arrumado e cheiros bons a
sair do forno. Quando se levantava de manhã tinha um pequeno-almoço
cozinhado e não apenas uma fatia de pão com margarina, o vestido da
escola tinha os botões cosidos e havia meias brancas cerzidas e limpas para
calçar. No entanto, a pouco e pouco tornou-se muito mais do que apenas
uma sensação de conforto e de poder ser dispensada das tarefas mais
pesadas. Heather tornara-se mãe, irmã mais velha e amiga, tudo ao mesmo
tempo.
Heather mudara tudo. A cozinha tinha sido caiada e havia cortinados
novos nas janelas. Agora o pátio das traseiras estava bonito porque ela
recusava-se a deixar os homens trazerem ferro-velho para ali. Varria-o todos
os dias e encorajou Rosie a plantar algumas flores num velho lava-loiça
junto da porta das traseiras. Norman juntara-se para ajudar e pintara o velho
banco de madeira. Já nem sequer se sentia o cheiro da retrete porque
Heather descobrira uma coisa especial para deitar lá dentro. Os espinheiros-
brancos na frente da casa foram aparados para deixar entrar mais luz na sala
de visitas e havia sempre uma jarra com flores silvestres sobre a mesa da
cozinha. Rosie costumava dormir nos mesmos lençóis durante meses antes
de serem lavados; agora, eram mudados todos os sábados, sem falta.
Cole não ia tantas vezes ao Crown e nas noites quentes sentava-se no
alpendre a fumar cachimbo e a beber uma caneca de sidra enquanto Heather
cosia ou tricotava. Quando a escola chegou ao fim e começaram as férias de
verão, ele não trabalhava nos dias de calor e iam todos passar o dia a
Weston-super-Mare ou a Brean na camioneta. Heather preparava um
piquenique e até Seth e Norman deixavam de troçar e de se pavonear para
irem remar, nadar ou jogar futebol na praia.
Porém, era dos longos dias passados com Heather, quando Cole e os
rapazes estavam fora a negociar ferro-velho, de que Rosie mais gostava.
Heather tornava todas as tarefas divertidas. Adorava lavar a roupa,
acendendo o lume sob a caldeira no barracão de manhã bem cedo, muito
antes de Rosie se levantar, para pôr de molho lençóis e fronhas, camisas e
roupa interior com grande deleite. Os seus braços eram tão fortes que
conseguia retirar a roupa ainda fumegante como se não pesasse nada e
depois passá-la pela calandra, a cantar enquanto trabalhava. Quando a
enxaguava na banheira metálica por baixo da bomba, salpicava Rosie com
água com uma alegria infantil.
Faziam pastéis e bolos juntas, ouviam a «Hora das Crianças» no rádio,
jogavam à cama do gato ou jogos de cartas, e Heather fez uma boneca de
trapos para Rosie enrolando lã amarela grossa para o cabelo e pintando
olhos em grandes botões forrados com algodão branco.
Rosie não conseguia compreender que Heather não conseguisse ler ou
escrever bem quando tinha tantas outras capacidades. Tentara ensinar-lhe
um pouco, mas Heather desenhava as letras ao contrário e ainda não
conseguia reconhecer palavras com mais de três letras. No entanto, isso não
parecia ser muito importante. Rosie lia receitas de revistas, era capaz de
somar uma série de números para Heather e a sua aprendizagem progrediu
muito graças ao encorajamento de um público elogioso.
Por vezes Cole trazia para casa sacos de roupas velhas recolhidas em
Bristol na sua qualidade de trapeiro. Antes da chegada de Heather, os sacos
ficavam empilhados na rua até ele ter uma quantidade suficiente para
vender a um negociante de trapos, mas Heather verificava-os
meticulosamente e escolhia as peças que podiam ser usadas. Os botões
eram retirados e guardados em frascos de compota e as fivelas noutro. Saias
de bons vestidos de algodão eram descosidas, lavadas e engomadas para
serem usadas em qualquer coisa nova para Rosie. Virava os colarinhos das
camisas de homem, que passavam a ser camisas de trabalho para Cole e
para os rapazes.
Faziam compota de framboesas e groselhas negras juntas e guardavam
groselhas verdes em frascos. Heather pediu a Cole que a ensinasse a
esfregar salitre nas peles dos coelhos para poderem vendê-las e até venceu o
medo de enguias e ajudou os homens a esfolá-las uma noite em que
apanharam uma grande quantidade.
Todavia, a melhor de todas as coisas que aconteceram foi Seth ser
chamado para cumprir o serviço militar e ir-se embora em agosto para
servir no regimento de Artilharia Real em Larkhill. Pouco depois de ele
partir, uma nova leveza e alegria pareceu invadir a casa. Heather foi
libertada do fardo do taciturno antagonismo de Seth e dos seus
intermináveis lençóis molhados. Rosie já não tinha de esconder os poucos
brinquedos e livros que possuía para garantir que ele não os destruía por
pura maldade como fizera tantas vezes no passado, ou estremecer sempre
que o irmão entrava na divisão onde ela estava.
Norman tinha sido sempre ofuscado pelo irmão mais velho, a tal ponto
que até agora não tinha uma identidade própria. Depois da partida de Seth
começou a falar e a rir mais e gostava de ajudar em tarefas que em tempos
teria desprezado.
Mas Rosie notou mudanças ainda mais assinaláveis no pai. Nos últimos
tempos, ele raramente ficava de mau humor. Parecia gostar de estar com a
família e estava muito mais interessado em Norman e nela. Rosie concluiu
que ele estava feliz e achava que Heather era inteiramente responsável por
isso.
*

A espreitar para o celeiro do alto do depósito de feno, Rosie viu que Cole
estava a dançar de novo com Heather. Ele era sempre um par muito
requisitado nestas festas porque gostava de dançar e era bom dançarino,
mas era a primeira vez que Rosie se recordava de o ver escolher sempre o
mesmo par. O rosto de Heather estava ruborizado e ela parecia quase bonita
com o cabelo louro a ondular solto sobre os ombros. Fizera um vestido
novo para esta noite – xadrez azul e branco com um decote grande – e
parecia uma empregada de uma vacaria.
– O teu pai vai-se casar com a Heather?
Rosie virou-se, surpreendida, e viu que a inesperada pergunta tinha sido
feita por Florrie Langford, uma rapariga dois anos mais velha do que ela
que se achava superior às outras crianças que viviam nos brejos. Florrie
vivia na aldeia de Catcott e o pai era o chefe da estação de correios. Com os
seus caracóis e grandes fitas de cetim no cabelo, parecia sempre uma
verdadeira madame. Esta noite usava um vestido de festa de veludo azul,
não um vestido de algodão feito em casa como o de Rosie.
– Não sei. – Rosie nunca pensara nessa possibilidade. O casamento não
era um assunto falado em May Cottage.
– Bem, ele não se pode casar com ela, pois não? – Florrie olhou para Cole
a rodopiar com Heather e os seus lábios apertaram-se numa expressão de
desprezo. – Ele ainda é casado. A mulher dele fugiu com outro homem, não
fugiu?
– Que é que estás a dizer? – Rosie sentiu um desagradável formigueiro na
espinha. – A minha mãe morreu em Londres há dois anos.
Florrie olhou-a com uma expressão contundente.
– A tua mãe pode ter morrido. Mas ela não era Mrs. Parker, pois não? Era
só uma das mulheres dele. O Seth e o Norman só são teus meios-irmãos.
Isto era uma novidade para Rosie. Não compreendeu onde é que Florrie
estava a querer chegar, mas pressentiu que pretendia abalá-la.
– E se forem? – perguntou, desafiadora. – E se já sabes tantas coisas, para
que é que te dás ao trabalho de me perguntar se o meu pai se vai casar com
a Heather?
– Porque a minha mãe diz que a forma como ele se comporta com as
mulheres é uma desgraça.
Dizia-se muitas vezes que Rosie tinha um temperamento tão exaltado
como os irmãos e o pai. Naquele momento, não parou para pensar no
vestido novo, nem que Heather dissera que esta noite tinha de tentar
comportar-se como uma senhora. Deu um salto e lançou-se a Florrie,
atirando-a para o chão do depósito de feno, e depois pôs-se em cima dela e
esmurrou-a.
A rapariga gritou como se estivesse a ser assassinada e todas as outras
crianças se reuniram à volta delas.
– A tua mãe é uma vaca velha, gorda e preguiçosa – disse Rosie,
prendendo-a por baixo de si, de repente consciente de que só tinha alguns
segundos para dizer o que queria antes que um adulto viesse separá-las. – E
o teu pai tem tanto medo do meu que se borra todo sempre que tem de ir
entregar cartas à nossa casa. Se voltares a dizer alguma coisa sobre mim ou
sobre a minha família vais arrepender-te.
Felizmente para Rosie, foi Norman que subiu as escadas a correr para ver
o que se passava.
– Deixa-a em paz, Rosie – disse ele, quase incapaz de esconder a
diversão. Voltou-se para Florrie, que estava a tentar levantar-se. – E no
futuro, para teu bem, é melhor manteres a boca fechada, finória.
O comentário de Norman sugeriu que ele calculava o que tinha provocado
a luta. Pegou na mão de Rosie e sacudiu-lhe a palha do vestido e cabelo.
– É melhor desceres para eu poder vigiar-te – disse. Havia um brilho de
aprovação nos seus olhos escuros.
No celeiro, com um copo de limonada numa mão e uma tarte de compota
na outra, Rosie contou ao irmão o que a rapariga tinha dito.
– É verdade? – perguntou.
– Sim – balbuciou Norman. – É verdade, eu e o Seth não somos filhos da
tua mãe. Pensei que sabias!
– A vossa mãe fugiu mesmo com outro homem? – Rosie não conseguia
acreditar naquilo. Todas as mulheres gostavam de Cole, mesmo que
tivessem um pouco de medo dele.
– É o que dizem. – Agora Norman parecia embaraçado. – Mas o pai não
se importou nada de a ver pelas costas e não fales sobre isto com mais
ninguém, senão dou-te uma tareia de cinto.
Ao longo da noite Rosie observou Cole e Heather com novos olhos.
Agora eles dançavam lentamente, a olhar-se nos olhos e a sorrir. Esperou
que estivessem a apaixonar-se. Se isso acontecesse, Heather ficaria para
sempre.
Quando chegou o momento de voltarem para casa, Norman estava tão
embriagado que Cole o atirou para a caixa da camioneta e lhe disse que
podia dormir lá. Os copos de sidra que Rosie bebera à socapa, quando
ninguém estava a ver, também deviam tê-la afetado porque não se
recordava de chegar a casa e tinha uma vaga lembrança de o pai a ter levado
ao colo para o primeiro andar.
Despertada pelo cantar do galo, levantou-se, ensonada, para fazer xixi no
bacio, e só nessa altura se apercebeu de que tinha dormido sozinha na cama.
Deitou-se de novo, a perguntar a si mesma onde estaria Heather, e estava
quase a dormir quando ouviu o som de alguma coisa a abanar.
Era um som suave e ritmado, como se alguém estivesse a embalar um
berço. Parecia vir do outro lado do corredor, do quarto do pai. Esforçou-se
para escutar e identificou o barulho como a cabeceira da cama a bater na
parede.
Acima deste som havia mais alguma coisa, uma respiração pesada que a
fez sentir-se muito desconfortável, e soube instintivamente o que estava a
acontecer. Heather estava na cama com o seu pai e estavam a fazer aquela
coisa que fazia bebés.
No entanto, o que sentiu foi perplexidade e não horror. Heather falava
tantas vezes em tons chocados sobre raparigas que tinham bebés antes de
serem casadas que não percebeu porque é que estava a fazer aquilo agora.
Ainda por cima, ela dissera mais do que uma vez que o seu homem ideal
seria como Thomas, o irmão que perdera. Dizia que ele era gentil, sensível
com as mulheres e as crianças e que gostava de pintar e desenhar. Cole
Parker não era nem remotamente assim!
Porém, enquanto voltava a adormecer, imaginou um bebé em casa.
Decidiu que seria encantador e que se isso acontecesse Heather nunca mais
voltaria para Londres.
CAPÍTULO 2

Sete anos mais tarde, 1952

T homas Farley sentou-se na vedação, deixou cair a bengala, o blusão e a


mochila ao seu lado e empurrou o chapéu para a nuca. Esperava que
não faltasse muito para Catcott, pois estava muito calor e doía-lhe bastante
a perna.
Abanou a parte da frente da camisa para se refrescar e olhou em volta.
Nunca estivera no Somerset, e era muito diferente do que esperava. O
homem que lhe dera indicações na estação de Bridgwater dissera que esta
parte do país era os Levels, uma vasta região de charnecas com tendência
para inundações, mas que a alguns quilómetros de distância a ausência de
relevo dava lugar a ondulantes colinas e florestas. Thomas achou que os
aparentemente intermináveis quilómetros de charnecas cobertas de flores
eram lindos ao sol de junho, mas calculou que durante o inverno seriam um
lugar ermo e fustigado pelo vento.
Não percebia porque é que Heather decidira vir trabalhar para aqui. As
raparigas nascidas e criadas no East End de Londres, acostumadas a lojas,
cinemas, mercados e multidões de pessoas, não se adaptavam bem à vida no
campo. Bridgwater, a cerca de oito quilómetros de onde se encontrava, era
uma das cidades mais desoladoras que Thomas vira em toda a sua vida e
duvidou que Catcott tivesse mais de meia dúzia de casas.
Uma mulher de meia-idade bamboleou-se pela estrada na sua direção. Era
a primeira pessoa que via nos últimos três quilómetros e, levantando-se com
a ajuda da bengala, aproximou-se dela a coxear.
– Ainda falta muito para Catcott? – perguntou, obrigando-se a sorrir. Ela
tinha um rosto taciturno e macilento, com alguns pelos escuros espetados
no queixo. O vestido estampado estava manchado de vermelho na frente e
Thomas pensou que ela devia ter andado a apanhar morangos, embora não
trouxesse nenhum.
– Ainda faltam três quilómetros – respondeu a mulher, a olhar para a
bengala. – Procura algum lugar em especial?
O seu sotaque cantado era muito mais agradável do que a aparência.
Thomas lembrou-se de Sam Gurney, que conhecera no campo de
prisioneiros de guerra na Birmânia. Sam nascera e fora criado no West
Country e à noite contava muitas vezes aos outros homens histórias da
comunidade agrícola onde crescera. Nunca mais voltara a ver a sua casa.
– May Cottage – respondeu Thomas. – Sabe onde é?
Ela sorriu, mostrando duas arnelas de dentes enegrecidas.
– Deve estar a falar da casa do Cole Parker. Perceberá que lá chegou pelo
monte de tralha à volta dela.
Thomas continuou o seu caminho e sentiu que a mulher estava a observá-
lo com curiosidade. Era o que acontecia sempre.

Thomas Farley tinha apenas trinta anos, mas três anos num campo de
prisioneiros de guerra japonês tinham-no envelhecido precocemente e
perdera alguns centímetros da sua altura original de um metro e oitenta e
três. Desde o fim da guerra o seu corpo descarnado engordara um pouco,
mas o rosto continuava macilento. Agora, quando se olhava ao espelho não
via nenhuma semelhança com o rapaz de dezoito anos entroncado que mal
podia esperar pelo fim da recruta para ir combater. Tornara-se um homem
completamente diferente.
Depois de o campo de prisioneiros de guerra ser libertado, mais do que
uma enfermeira do exército comentara a sua semelhança com o ator Leslie
Howard e por vezes ele próprio a via. O seu rosto tornara-se comprido e
fino, anos passados ao sol tinham gravado rugas profundas que tendiam a
conferir-lhe uma expressão triste, e em raras ocasiões, quando o cabelo
louro estava mais comprido do que era costume na nuca e dos lados, caía
como o do ator.
No entanto, Thomas não passava muito tempo diante de espelhos. Já era
suficientemente mau quando se despia e via as cicatrizes de espancamentos
e úlceras tropicais, quando era obrigado a prender a perna artificial e tinha
consciência de que seria improvável conseguir arranjar uma rapariga que
fosse tonta ao ponto de se casar consigo – um aleijado –, ainda que as
mulheres lhe dissessem que tinha alguma coisa misteriosamente atraente.
Em vez disso, tentava não esquecer as poucas vantagens que a guerra e a
prisão lhe tinham dado: engenho, paciência, uma compreensão profunda
dos outros homens e a perda do em tempos intenso sotaque do East End
londrino. Só reparou que o sotaque desaparecera depois de regressar a
Inglaterra e atribuiu esse facto a uma relação próxima com um oficial que
troçava muitas vezes dele por não pronunciar algumas consoantes e o
pusera a ler-lhe poesia e literatura porque os seus óculos estavam partidos e
não conseguia ver para ler. Thomas dizia a si mesmo quase todos os dias
que perder a perna e a juventude pelo seu país não era nada. Podia ter
perdido a vida naquele lugar, como o pobre Sam e tantos outros amigos.
Dizia isto a si mesmo com tanta frequência que por vezes quase acreditava.

Thomas não estava acostumado a caminhar tanto e soube que tinha o coto
em carne viva antes mesmo de, por fim, avistar as pilhas de ferro-velho à
sua frente.
Se não fosse a descrição da mulher, nem sequer teria considerado que
podia ser aquela casa; quando Mrs. Lovell, uma velha amiga da mãe em
Londres, lhe dera a morada, imaginara uma linda casa de campo com o
telhado de colmo e rosas em volta da porta.
Não havia rosas, a menos que contasse uma roseira brava que crescia por
cima de um trator enferrujado.
Parou a cerca de dez metros da casa e apoiou-se pesadamente na bengala,
esperando que a mulher se tivesse enganado. A simples casa de tijolos
vermelhos estava quase escondida atrás de árvores densas, mas no portão
partido estava a placa onde se lia May Cottage, a confirmação de que
chegara ao sítio certo.
Mrs. Lovell dissera-lhe que Heather deixara Londres para vir para aqui
pouco depois do Dia da Vitória na Europa em 1945. Thomas teve uma
sensação de inquietação ao contemplar a casa de campo.
Abriu caminho por entre as árvores densas e bateu à porta principal.
Ninguém abriu. Bateu de novo, e mais uma vez, mas não se ouvia nada no
interior. Espreitou para a solitária janela do rés do chão e ficou espantado ao
ver o incongruente mobiliário imponente: grandes poltronas, um enorme
quadro a óleo por cima da lareira e uma mesa de refeições oval
extremamente brilhante, muito parecida com uma que se lembrava de ver
na casa de um oficial em Singapura. Thomas recuou um passo e olhou para
a casa, pensativo. Tudo aquilo era muito estranho.
Preparava-se para dar a volta para as traseiras da casa, para ver se havia
alguém lá atrás, quando ouviu um sussurro. Vinha de um arbusto ao lado da
casa e sentiu que alguém estava atrás dele, a observá-lo.
– Está aí alguém? – chamou. – Ando à procura da Heather Farley.
Disseram-me que ela veio trabalhar para aqui depois da guerra.
Ninguém lhe respondeu. Abelhas zumbiam por entre as ervas daninhas e
as flores silvestres; ouvia-se o balido de ovelhas ao longe e o grito queixoso
de um pássaro.
Chamou de novo, desta vez mais alto. Afinal de contas, podia ser alguém
velho e duro de ouvido. No entanto, continuou sem resposta.
– Grite se tiver medo de mim – tentou de novo. – Eu não posso correr
atrás de si porque só tenho uma perna. – Para provar o que dizia, abanou a
bengala no ar.
– A Heather já se foi embora há três anos.
Thomas ficou tão surpreendido que quase se desequilibrou. Olhou para o
arbusto de onde vinha a voz.
– Sai daí e vem falar comigo – disse.
– Não vou nada. E você tem de se ir embora agora. O meu pai não gosta
que desconhecidos venham cá a casa.
A voz da rapariga era arrojada e Thomas pensou que ela devia ter mais
medo do pai do que de um desconhecido. Virou-se e saiu pelo portão a
coxear exageradamente.
– Eu não venho fazer uma visita – disse por cima do ombro. – Só quero
saber onde está a Heather. Vim de Londres.
O arbusto estremeceu, algumas ervas altas separaram-se e uma rapariga
apareceu. Parecia ter uns treze ou catorze anos, pequena, mas robusta, e
usava um andrajoso e desbotado vestido de algodão de mulher, vários
tamanhos acima do seu. Estava descalça, tinha uma grande cabeleira de
emaranhados caracóis cor de cobre e sardas num pequeno nariz arrebitado.
Thomas sorriu. Ela lembrou-lhe muito o tipo de crianças com quem
crescera no East End de Londres – não apenas as roupas andrajosas e os pés
descalços, mas também a expressão fortemente desconfiada nos olhos azuis.
– Assim é melhor – disse Thomas, mantendo a distância para que ela não
fugisse. – Nunca tive muito jeito para falar com um arbusto.
A rapariga riu-se. Enquanto se encostava a um velho barril de petróleo,
Thomas pensou que havia algo nela que o encantava.

Há algum tempo que Rosie estava a ver aquele homem aproximar-se.


Vira-o subir a rua enquanto estava a pendurar a roupa no pomar e ficara
curiosa antes mesmo de ele bater à porta da frente. Normalmente, os turistas
não vinham para esta parte do Somerset e homens que coxeavam muito e
usavam uma bengala não faziam grandes caminhadas. Além disso, ele tinha
um rosto intrigante. Não era propriamente bonito, mas era interessante.
Parecia demasiado inteligente para andar à procura de trabalho; tinha as
calças muito bem engomadas, a camisa branca de colarinho aberto
imaculadamente limpa e as botas também estavam bem engraxadas.
Alguma coisa no ângulo inclinado para trás do chapéu, na forma
descontraída como tinha o casaco pendurado no ombro, juntamente com
uma mochila de lona, sugeria que era um ex-combatente, e que fora ferido.
Perguntou a si mesma como é que ele conhecia Heather.
– Você tem duas pernas – disse ela, num tom de censura.
– Uma e um bocado, para ser mais preciso – replicou ele, inclinando-se e
puxando a perna das calças alguns centímetros para cima para mostrar a
perna artificial bege. – Perdi a minha perna verdadeira quando uma ferida
ficou infetada durante a guerra.
– Cortaram-na? – exclamou ela, horrorizada, mas aproximou-se mais,
como se quisesse inspecioná-la.
– Serraram-na. – Thomas tivera muita sorte porque a infeção só começara
depois de o campo de prisioneiros de guerra ser libertado. Assistira a
diversas amputações feitas pelos Japoneses e cada um dos homens
amputados tinha tido uma morte lenta e horrível, enquanto a gangrena
fétida se espalhava pelo corpo. A sua amputação fora feita sem anestesia,
mas pelo menos tinha sido efetuada em condições razoavelmente
esterilizadas num hospital de campanha, com pensos adequados e água
limpa para lavar a ferida. – Fui prisioneiro de guerra na Birmânia e depois
passei muito tempo no hospital. Mas a minha história não tem importância
nenhuma. Para onde é que foi a Heather, e porquê?
A rapariga pôs as mãos nas ancas.
– Que é que ela lhe é?
Thomas pensou que ela não tinha medo de muitas coisas, embora tivesse
dito aquilo sobre o pai.
– Sou o irmão dela, o Thomas Farley.
O olhar insolente desvaneceu-se e a rapariga tapou a boca com uma mão.
– Não pode ser! Ela disse que você estava morto e de qualquer maneira
não fala como ela nem é parecido com ela.
– Até há algumas semanas eu também pensei que ela estava morta. –
Thomas encolheu os ombros. – Soube que a nossa antiga casa tinha sido
bombardeada e quando não recebi nenhuma carta dela no campo de
prisioneiros de guerra pensei que tinha morrido lá. A guerra estragou a vida
de muitas pessoas. Quanto a não sermos parecidos nem falarmos da mesma
maneira, bem, irmãos e irmãs nem sempre são parecidos. Para onde é que
ela foi? Tenho de a encontrar.
– Voltou para Londres – respondeu a rapariga. – Como disse, já foi há três
anos.
Thomas sentiu um baque de desapontamento. Encostou-se de novo ao
barril de petróleo, a pensar no que devia fazer a seguir.
Desejou ter pensado num plano de contingência para o caso de perder o
contacto com a irmã. Porém, naquela altura ninguém esperava que houvesse
tanta destruição no East End, nem que tantos civis fossem mortos, e
certamente ele também não imaginara que seria capturado pelos Japoneses.
Ultimamente, a palavra «se» parecia salpicar o seu discurso e pensamentos.
Se tivesse conseguido uma licença quando a mãe fora morta no ataque
aéreo, se não estivesse em Singapura quando a cidade caíra. Se houvesse
medicamentos no campo de prisioneiros de guerra ele talvez não tivesse
perdido a perna. Se tivesse ido logo para Londres depois da guerra.
Na primavera de 1946 fora mandado para Inglaterra, para um hospital em
Bournemouth, onde estivera quase um ano. Como estava convencido de que
não havia nada nem ninguém para si em Londres, ficara na cidade depois de
ter alta do hospital, a viver numa pensão para ex-combatentes e a andar de
um lado para o outro de muletas, à espera de poder ter uma perna artificial.
Durante esse tempo ouvira dizer que o governo estava a oferecer cursos de
reciclagem para homens como ele e conseguiu entrar num onde aprendeu a
arte da relojoaria e da reparação de relógios. Talvez nunca tivesse saído de
Bournemouth, mas ouviu falar num emprego numa relojoaria em
Hampstead, em Londres, que incluía um pequeno apartamento por cima da
loja.
Há dois meses acabara por voltar a Poplar, para tentar libertar-se das
recordações que o atormentavam. Se andasse uma vez mais pelas ruas onde
tinha crescido, talvez se conformasse não apenas com a perda da mãe e da
irmã, mas também com a sua deficiência.
Quando viu a devastação, não quis ficar ali mais tempo: filas inteiras de
casas arrasadas, zonas cobertas de ervas daninhas onde em tempos ficavam
os prédios camarários, incluindo aquele onde nascera. Tentou dizer a si
mesmo que a destruição total era uma coisa boa, que por fim os últimos
bairros degradados e toda a miséria associada a eles seria apagada para todo
o sempre. Todavia, enquanto observava as fotografias nas vedações que
delimitavam o perímetro onde seriam construídos os prédios de
apartamentos que o governo pretendia construir no seu lugar sentiu-se ainda
mais triste. Podiam ter eletricidade e casas de banho, mas os velhotes não
poderiam sentar-se nos degraus da entrada oito ou nove pisos acima do
nível da rua, os vizinhos não entrariam nas casas uns dos outros como era
costume. Olhou com uma expressão cética para os cartazes de crianças em
parques infantis e perguntou a si mesmo onde é que os pais estariam. No
antigo East End, as crianças eram quase partilhadas, vigiadas enquanto
brincavam por vizinhos muitas vezes exasperados, mas sempre afetuosos. O
novo serviço de saúde poderia acabar com as doenças, e o medo da casa de
correção e a prova de recursos económicos podiam tornar-se uma coisa do
passado, mas o estado-providência apoiaria e protegeria da mesma forma
que o velho espírito comunitário?
Um homem numa papelaria disse-lhe que a maioria dos seus antigos
vizinhos tinham sido realojados em Dagenham e podia ter-se ido embora e
esquecido o passado para sempre se não tivesse parado para beber uma
cerveja no Nag’s Head e encontrado o velho Jack Crowhurst.
Jack Crowhurst tinha uma loja de peixe com batatas fritas nas docas de
West India e Thomas costumava descascar batatas para ele depois da escola.
Jack era um homem pequeno, curvado e mal-humorado, com uma carranca
permanente, que na altura já parecia ter uns setenta anos. No entanto, era
bom para ele e muitas vezes dava-lhe embrulhos com peixe e batatas fritas
para levar para casa, para a mãe e a irmã.
Jack não mudara nada. Continuava a aparentar uns setenta anos, muito
embora tivessem passado vinte anos, e continuava a ser o mesmo rezingão.
Quando Thomas lhe disse quem era, foi como se ele estivesse a ver um
fantasma.
– Todos pensámos que tinhas batido a bota no Extremo Oriente – disse.
Conversaram durante algum tempo sobre como ele mantivera a loja de
peixe e batatas fritas durante a guerra e a perdera num incêndio em 1946.
Disse-lhe que tinha muita pena que Mrs. Farley tivesse sido morta e
perguntou-lhe se Heather se tinha casado.
Quando Thomas lhe disse que pensava que ela também tinha morrido,
Jack abanou a cabeça.
– Nem pensar! Ela veio comer peixe e batatas fritas uma noite, mesmo
antes do fim da guerra – disse. – Ia visitar a Ada Lovell. Contou-me que
estava a trabalhar num restaurante, algures na zona oeste.
Aquela notícia foi mais empolgante para Thomas do que se lhe dissessem
que tinha ganhado a lotaria. Jack Crowhurst disse-lhe que Ada Lovell vivia
com a filha num prefabricado na Ilha dos Cães e Thomas dirigiu-se logo
para lá, começando a bater às portas até a encontrar.
Foi Mrs. Lovell que lhe contou tudo o que acontecera a Heather durante a
guerra. Falou-lhe sobre a morte da mãe e como ela ficara com os seus
trabalhos e continuara a viver no apartamento. Contou-lhe o que acontecera
no dia em que a casa onde vivia foi bombardeada e como ela arrendara um
quarto em Bethnal Green e arranjara um emprego numa lavandaria.
Também descreveu a agonia que sofrera sem notícias dele e, por fim, a
devastação quando soube que ele estava «Desaparecido, dado como morto».
Thomas ficou muito zangado ao pensar que ela sofrera um desgosto tão
desnecessário devido a alguma falha na administração.
E com estes pensamentos também veio uma culpa terrível. Estava em
Inglaterra há seis anos. Tinha uma desculpa para o primeiro ano, porque
estava demasiado doente e fraco para fazer outra coisa a não ser estar
deitado a olhar para o teto. Porém, a verdade é que continuara a entregar-se
à autocomiseração e à apatia em vez de procurar ajuda e conselhos para
descobrir exatamente o que acontecera a Heather. Tivera medo de ter a
confirmação de que ela estava morta, por isso decidira mergulhar numa
profunda depressão de negação.
*

De repente Thomas apercebeu-se uma vez mais da rapariga; ela estava


parada em silêncio, a observá-lo.
– O que é que fez a Heather ir-se embora daqui? – perguntou.
– Não sei bem – respondeu a rapariga com um encolher de ombros. – O
meu pai disse que ela sentia falta de Londres.
Thomas pensou que era uma explicação muito lógica. Depois do caos de
Londres durante a guerra, devia ter sido uma bênção vir para aqui e viver
nesta paz e ar puro. Porém, com o tempo qualquer jovem começaria a ansiar
por companhia da sua idade, por bailes, liberdade e diversão.
– Então, é melhor voltar quando o teu pai estiver cá. Para saber se ele tem
a morada dela em Londres.
Thomas ficou espantado quando viu a rapariga ficar lívida.
– Se sabe o que é bom para si, é melhor ir-se embora já. – Inclinou a
cabeça e olhou-o com intensidade, como um passarinho. – O nosso pai não
é propriamente um cavalheiro. Não pode dizer-lhe nada sobre a Heather
porque não sabe para onde ela foi. Se vier falar-lhe de coisas que o irritam,
só vai enfurecê-lo. Ele vai ficar furioso e expulsa-o daqui a pontapé.
– Bem, então é melhor seres tu a contar-me tudo sobre ela – replicou
Thomas. Içou-se para cima do barril de petróleo, convencido de que estar à
vista de quem se aproximasse pela estrada a deixaria nervosa. – Ela é a
minha única parente viva e até há duas semanas pensei que estava morta.
Vim longe de mais para sair daqui sem saber alguma coisa sobre ela e não
vou desistir sem dar luta. Por isso, vou ficar aqui sentado e esperar que o
teu pai volte para tentar que me diga alguma coisa, ou então vamos para
algum sítio para podermos falar em privado. A Heather tinha mais ou
menos a tua idade quando a vi pela última vez, treze anos, uma menina que
andava na escola e usava tranças. Quero saber como foi a sua vida.
– Eu tenho quinze anos – retorquiu a rapariga. – E já não ando na escola.
– Desculpa. – Thomas sorriu perante tamanha indignação. Ela tinha a
maturidade de uma rapariga mais velha, mas o corpo tão pouco
desenvolvido como o de uma criança. – Afinal, como é que te chamas?
– Rosie.
Thomas pensou que aquele nome lhe assentava na perfeição. A sua pele
era da cor de pálidos botões de rosa, os olhos azuis eram tão brilhantes
como o céu do verão e até as sardas na cana do nariz lhe lembravam pólen
dourado. E também era espinhosa e tão selvagem como a roseira brava que
crescia por entre o velho trator abandonado. Duvidou que alguma vez
aprendesse a domar aquela melena de caracóis rebeldes, ou que tivesse um
pouco de sofisticação, mas não teve qualquer dúvida de que se
transformaria numa mulher muito linda e desejável. Se a tivesse conhecido
alguns anos antes gostaria de pintá-la, tal era a força e determinação
daquele pequeno rosto. Porém, depois de perder a perna também perdera a
vontade de pintar.
– A tua mãe deu-te o nome certo. És tão linda como aquelas rosas
silvestres – disse, apontando para uma roseira que crescia por cima do
trator.
Rosie ruborizou-se e os seus olhos desceram para os pés sujos e
descalços. Thomas calculou que não estava acostumada a receber elogios.
– Vou deixá-lo vir às traseiras para beber uma chávena de chá porque
parece cansado – disse ela. Mordeu o lábio, nervosa, como se já tivesse a
certeza de que se arrependeria daquela generosidade. – Mas tem de me
prometer que se vai embora logo a seguir e que não dirá a ninguém que
falou comigo.
– Prometo – replicou Thomas.
Muito arrumado e limpo, o pátio das traseiras contrastava profundamente
com o pátio do ferro-velho. O chão de cimento estava bem varrido, com
uma colorida massa de flores plantadas ao longo da tosca vedação de
madeira. Do outro lado do pátio, defronte do portão, havia um anexo que
parecia ser usado como oficina. Outra vedação e portão separavam o pátio
de um pomar onde as galinhas andavam em liberdade.
Ao lado de um alpendre de pedra que devia dar acesso à cozinha havia
um velho lava-loiça onde estavam plantadas mais flores, um banco de
madeira pintado de branco ao sol e uma velha bomba de água. Thomas
olhou para o alpendre e viu uma série de casacos impermeáveis e galochas,
mas, mais sinistro, três caçadeiras presas num suporte.
– Fique aqui – disse Rosie, preocupada, a apontar para o banco. – Eu vou
pôr a chaleira ao lume.
Thomas sentou-se, agradecido, estendendo a perna artificial à sua frente.
Estava preocupado com a ferida; pensou que não conseguiria fazer a longa
caminhada de volta para a estação de Bridgwater esta tarde e perguntou a si
mesmo se haveria um pub nas redondezas onde pudesse pernoitar.
Ouviu Rosie na cozinha, o barulho de chávenas e um ruído sibilante
como se ela estivesse a pousar uma chaleira molhada na placa de um fogão
a lenha. Para além disso, os únicos sons que se ouviam eram os dos insetos
e das galinhas a cacarejar.
Thomas olhou para as flores e perguntou a si mesmo quem seria
responsável por elas. Não havia nada aleatório na plantação; a disposição,
as cores, as alturas e os formatos tinham sido considerados por alguém com
um olhar de artista. Não conseguia imaginar um homem que empilhava
sucata à porta de casa a fazer uma coisa daquelas. Haveria outra mulher
nesta casa?
Olhou à sua volta para ver se encontrava alguma pista. No pomar havia
um estendal com roupa pendurada: seis camisas de homem, três pares de
camisolas interiores e cuecas, dois lençóis e um vestido às riscas. Havia
duas peças mais pequenas, mas mais nada que pertencesse a uma mulher.
– Quem é o jardineiro? – perguntou quando Rosie reapareceu. – Está
muito lindo.
– Sou eu – respondeu ela, e o seu rosto iluminou-se como se raramente
fosse elogiada por causa dos seus canteiros. – Adoro flores. Qualquer dia
vou aventurar-me no jardim da frente. Mas o chão é duro como o diabo e
não tenho muito tempo porque tenho de cuidar dos meus irmãos e do meu
pai.
– Devias gostar de ter uma irmã – disse Thomas.
Rosie suspirou, como se estivesse a concordar com ele.
– Como se chamam os teus irmãos e que idade têm?
– O Seth tem vinte e cinco, o Norman tem vinte e três e o Alan tem cinco.
Thomas ergueu uma sobrancelha.
– Então, o Alan nasceu enquanto a Heather estava cá? – Pensou que Mrs.
Lovell devia ter percebido mal, pois dissera-lhe que Cole Parker era viúvo.
– Bem, é claro que sim, ela teve-o.
Thomas olhou para Rosie.
– O quê?
– É melhor limpar os ouvidos – retorquiu ela, brincalhona. – Eu disse que
é claro que ela estava aqui. Ela teve-o! O Alan é filho da Heather.
O estômago de Thomas pareceu cair no chão como um elevador
desgovernado num filme. Quis pedir-lhe para repetir mais uma vez o que
tinha dito, mas tinha a certeza de que ouvira bem. Não conseguia imaginar a
sua irmãzinha a ter um filho, do mesmo modo que não conseguia imaginá-
la a pilotar um avião ou a ir a uma festa no palácio real. Se ela deixara o
filho aqui e fugira, não admirava que Cole Parker não quisesse falar sobre
ela.
– Então, a Heather casou-se com o teu pai?
Rosie olhou-o com uma expressão algures entre a diversão e o espanto.
– Casar-se com o meu pai? Nada disso.
– Então, casou-se com um dos teus irmãos? – Ocorreu-lhe que o filho
mais velho devia ter mais ou menos a mesma idade de Heather.
– Enquanto esteve aqui, não se casou com ninguém.
O seu estômago afundou-se ainda mais. Nunca lhe passara pela cabeça
que Heather se metesse em sarilhos. A rapariga que tivera na cabeça
durante todos aqueles anos era uma menina de escola, não muito diferente
da rapariga que estava à sua frente naquele momento. Sabia que não estava
certo fazer-lhe perguntas de natureza íntima, mas não tinha outra
alternativa.
– Então quem é o pai do Alan? Sabes?
– O meu pai, é claro – respondeu Rosie.
Não havia qualquer sinal de embaraço no seu jovem rosto. Era como se
não estivesse consciente da pressão social para ter filhos legítimos. Antes
de Thomas poder perguntar mais alguma coisa ouviu-se o apito da chaleira
e Rosie voltou para a cozinha, deixando-o completamente chocado. Era tio!
– Porque é que a Heather não levou o Alan quando se foi embora, Rosie?
– perguntou-lhe quando ela voltou com duas grossas canecas com chá. –
Não se importava com ele?
– É claro que se importava – retorquiu Rosie, indignada. – Acho que não
tinha para onde o levar e sabia que eu cuidaria bem dele.
– Onde é que o Alan está agora?
– Na escola – respondeu ela, olhando-o como se achasse que era uma
pergunta parva. – E é melhor beber o seu chá e ir-se embora. Tenho de
passar a roupa a ferro e fazer uma empada.
Thomas bebeu o chá. Achou que Rosie estava a falar verdade, pelo menos
em relação a não saber para onde Heather fora. Decidiu que faria perguntas
noutro lado, que pensaria sobre o problema e no dia seguinte de manhã
decidiria o que fazer.
– A Heather alguma vez te falou sobre mim? – perguntou-lhe quando se
levantou para se ir embora.
Rosie acenou com a cabeça. Estava a mexer-se, impaciente, mas olhou-o
com uma expressão curiosamente afável.
– Ela disse que era inteligente e que cuidava dela quando era pequena.
Thomas suspirou.
– Mais uma pergunta antes de me ir embora. Gostavas da Heather?
Não sabia porque é que tinha perguntado aquilo, mas pareceu-lhe
extremamente importante saber.
Para sua surpresa e consternação, os olhos de Rosie marejaram-se de
lágrimas.
– Desculpa – disse ele rapidamente, com medo de ter feito uma pergunta
incómoda. – Se não quiseres, não precisas de responder.
– Não me importo de lhe dizer – respondeu ela em voz baixa e trémula. –
Eu amava-a e vivi com ela os momentos mais maravilhosos de que me
recordo.
Thomas sentiu um nó na garganta. Esticou-se e apertou a pequena mão da
rapariga. Fosse o que fosse que acontecera aqui, se a rapariga amava a sua
irmã era quase certo que Heather também a amara. Isso fazia com que ele e
Rosie fossem aliados e pensou que teria de cumprir a promessa de que
manteria sigilo sobre aquela conversa.
Porém, aquilo fazia com que o desaparecimento de Heather fosse ainda
mais estranho. Não sairia do Somerset enquanto não soubesse mais.

Às oito horas daquela noite Rosie estava sentada à janela do seu quarto e
permitiu-se pensar em Heather pela primeira vez em meses.
Ainda estava muito calor e o céu cor-de-rosa prometia mais um dia
quente amanhã. Ela nunca se cansava de contemplar os brejos da sua janela;
era como se fossem o seu jardim alargado. Uma garça-real estava parada
como uma estátua na ponta da vala ao fundo do pomar e alguns momentos
antes avistara um clarão de azul-turquesa que sabia ser um guarda-rios.
Mais tarde, quando a noite caísse, um mocho viria empoleirar-se no
estendal, como sempre, à espera do jantar quando os ratos viessem
mordiscar o milho das galinhas.
Viver aqui nos Levels ensinara-lhe até que ponto o equilíbrio da natureza
era precário e como todos os seres vivos estavam dependentes da cadeia da
vida. Se os homens não limpassem as ervas daninhas dos canais e valas, os
campos ficavam inundados no inverno, o que provocava o afogamento do
gado, a destruição das colheitas de legumes e das árvores de fruto. Pensava
que era por isso que tantas das pessoas que viviam por estas bandas eram
duras e brutamontes como o pai e os irmãos. Para sobreviverem, tinham de
ser assim.
Pensou que Thomas Farley devia ser igualmente duro e teimoso para ter
sobrevivido àquele campo de prisioneiros de guerra. Lera sobre eles e sabia
que muitos homens tinham morrido lá. Um homem tão determinado não
voltaria para Londres enquanto não descobrisse tudo o que acontecera
enquanto a irmã estivera aqui. Isso deixou Rosie inquieta. Não lhe tinha
contado muitas coisas e, por uma vez na vida, talvez devesse ter controlado
a curiosidade e ficado escondida.
No entanto, no fundo não lamentava ter falado com ele, mesmo que isso
trouxesse alguns problemas. Heather contara-lhe tantas histórias sobre o
irmão que fora muito bom descobrir que ele não morrera na guerra. Se
Thomas conseguisse encontrar Heather, talvez a ajudasse a levar Alan para
longe daqui. Seria muito bom para o menino e talvez ela pudesse arranjar
um emprego a sério.
Miss Tillingham, a sua professora, ficara muito desapontada quando Cole
a obrigara a sair da escola logo que fizera quinze anos. Declarara que era
um cruel desperdício de uma boa cabeça ela ficar em casa a ser criada do
pai e dos irmãos. Mas nem sequer Miss Tillingham teve coragem suficiente
para expressar a sua opinião diretamente a Cole Parker. Todos sabiam que
ele considerava desnecessário que as raparigas tivessem mais do que uma
educação rudimentar.
Porém, Rosie não desistira de aprender. Tinha sempre o rádio ligado
enquanto trabalhava na cozinha e lia todos os jornais e revistas a que
conseguia deitar a mão. Enquanto a maioria das raparigas da sua idade
citava a morte do rei Jorge em fevereiro como a notícia mais importante do
ano, Rosie sabia tudo sobre a guerra da Coreia, sobre o escândalo de
espionagem protagonizado pelos agentes dos serviços secretos britânicos
Burgess e Maclean e até sobre os Mau-Mau no Quénia. Um dia, queria ser
mais do que uma simples criada.
– Rosie! – Um guincho estridente de Alan sobressaltou-a.
– O que é? – perguntou ela já no meio do quarto, a caminho do quarto ao
lado.
– Não consigo adormecer – choramingou ele.
Rosie passou com dificuldade pelas camas dos dois irmãos mais velhos
para conseguir chegar junto do menino. Havia muito pouco espaço neste
quarto. A cama portátil de Alan estava espremida contra a janela e a sua
posição revelava a pouca consideração que os homens da casa tinham pelo
membro mais novo.
Durante os últimos dois anos, Seth e Norman tinham-se tornado
fotocópias do pai. Os dois anos que cada um deles passara no exército e o
duro trabalho manual a transportar pesadas peças de ferro-velho tinham
fortalecido os seus músculos e bebiam e brigavam como Cole. Enquanto
Alan não evidenciasse sinais de ser um rufia como eles, e não se
interessasse pelo manuseamento de armas, pela caça e pela colocação de
armadilhas, Rosie estava convencida de que eles nunca teriam um elogio
para o irmão mais novo. Cole era apenas indiferente ao filho mais novo e
ignorava-o quase sempre, mas os rapazes desprezavam-no ativamente.
– Devias dormir – disse ela, sentando-se na cama de Alan e acariciando-
lhe a testa. – Amanhã de manhã tens escola.
Mais cedo, quando estava a deitá-lo, sentira-se tentada a falar-lhe sobre a
visita do tio Thomas, só para que ele soubesse que havia alguém para além
dela neste mundo que se interessava por ele. No entanto, sabia que não
poderia correr o risco de lhe contar alguma coisa que ele deixasse escapar
sem querer.
Olhou para o irmão, à procura de uma semelhança com Thomas, mas não
conseguiu encontrar nenhuma. Alan era um menino pálido e frágil, com
olhos castanhos grandes e tristes e cabelo ruivo claro. Thomas também
tinha olhos castanhos tristes, mas era a única verdadeira semelhança com
ele. Na verdade, Thomas fizera-lhe lembrar Ashley Wilkes em E Tudo o
Vento Levou. Um rosto elegante, aristocrático e inteligente, muito diferente
dos homens rosados, com feições grosseiras, que viviam nestas paragens.
Pensou que Heather lhe tinha dito que ele era cinco anos mais velho do que
ela, por isso devia ter cerca de trinta anos.
– Se estivesse na tua cama ia conseguir dormir – disse Alan, a olhá-la
com uma expressão de súplica nos grandes olhos tristes.
– Tu sabes o que o pai diria sobre isso – replicou Rosie suavemente. Cole
proibira Alan de dormir na sua cama e no seu quarto há alguns meses como
parte de um novo regime destinado a endurecê-lo. Rosie obedecia sempre
ao pai, seria insensato fazer o contrário, mas neste caso sentira-se muitas
vezes tentada a desobedecer-lhe porque sabia que os irmãos mais velhos
aproveitavam todas as oportunidades possíveis para assustar, ridicularizar e
magoar o menino. Tentar que ele adormecesse muito antes de voltarem do
pub não era uma forma garantida de protegê-lo da maldade deles, mas
contribuía muito para evitá-la. – Vou ler-te uma história para adormeceres.
O livro era o mesmo que Heather lhe oferecera no dia em que chegara
àquela casa. Estava a cair aos bocados, com páginas soltas e algumas já
desaparecidas. Ambos sabiam quase todas as histórias de cor. Sempre que
Rosie o lia a Alan, lembrava-se muito bem de Heather.
Há três anos, quando ela se fora embora, o brilho que sempre iluminara o
pai também desaparecera. Parecia o mesmo para todos, mas Rosie percebia
que ele estava triste e que se culpava por tudo. Na altura não soubera como
dizer-lhe que compreendia o que ele sentia. E ainda não sabia, pois Cole era
um homem intimidador, duro, imprevisível e quase sempre muito
reservado. No entanto, Rosie sabia que havia alguma doçura no seu íntimo
porque vislumbrara-a muitas vezes. Ele também a amava à sua maneira e
sentia orgulho nela. A única maneira de ajudá-lo naquela altura, e agora, era
cuidando dele e dos rapazes o melhor que podia. Assim, pelo menos ele não
traria mais uma mulher lá para casa. Não tinha muita sorte com as
mulheres.
Desde aquela noite do Festival das Colheitas em 1945, quando Florrie
Langford lhe dissera que Seth e Norman eram apenas seus meios-irmãos, e
mais tarde, quando descobrira que Heather estava na cama com o pai, Rosie
esforçara-se ao máximo para saber mais sobre a história da sua família.
Não tinha sido fácil. As pessoas tinham demasiado medo de Cole para lhe
contarem coisas. Porém, para além de ser curiosa Rosie também era
persistente e, pouco a pouco, conseguiu perceber tudo.
Dizia-se que Ethel Parker, a mãe de Seth e Norman, tinha sido a maior
beldade do condado, com cabelo escuro comprido e olhos ardentes. O pai,
que era um agricultor algures nos arredores de Glastonbury, pusera-a fora
de casa quando ela ficou grávida de Cole, e ela veio viver para May Cottage
com ele e os pais dele. Casaram-se antes de Seth nascer, em 1927. Em 1934
Ethel desapareceu, deixando os filhos, na época com sete e seis anos, com o
pai. Dizia a lenda que ela fugira com um caixeiro viajante galês.
Quando Ruby Blackwell chegou em resposta a um anúncio para uma
governanta no outono de 1936, os rapazes estavam verdadeiramente
selvagens e fora de controlo. Toda a gente dizia que ela fizera todos os
possíveis para ser uma mãe para eles, e para impor ordem numa casa
caótica, mas um ano depois Rosie nasceu.
Rosie gostava de conseguir lembrar-se melhor da mãe; parecia-lhe
horrível não ter imagens fortes de uma pessoa tão importante. No entanto,
todas as imagens que tinha do princípio da infância não passavam de
fragmentos pouco nítidos: uma blusa às riscas, cabelo castanho muito
macio, uma mulher pequena e nervosa que, quando não estava a cozinhar e
a limpar, se sentava numa cadeira ao pé do fogão a tricotar.
Todavia, embora tivesse apenas seis anos, recordava-se muito bem do dia
em que a mãe desaparecera. Tinha ido brincar com Janice Mirrel depois da
escola e chovia muito. Mrs. Mirrel ficou muito zangada quando escureceu e
Ruby não apareceu para ir buscar Rosie, e não parava de balbuciar alguma
coisa sobre «aproveitar-se». Seth acabou por vir buscá-la, o que foi uma
coisa muito invulgar; na altura ele tinha dezasseis anos, viera de bicicleta e
estava completamente encharcado. Rosie ouviu-o explicar a Mrs. Mirrel
que acabara de chegar do trabalho em Bridgwater e que a casa estava vazia
e Ruby ainda não tinha regressado.
Rosie voltou para casa na barra transversal da bicicleta do irmão e foi
muito assustador porque estava muito escuro e chovia torrencialmente. Em
casa, o fogão estava apagado e Seth mandou-a ir logo para a cama, antes
que o pai voltasse.
Cole e Norman deviam ter voltado tarde nessa noite porque estavam no
rés do chão quando ela acordou na manhã seguinte. Cole disse que a mãe
dela devia ter ido a Londres visitar um familiar e que voltaria dali a alguns
dias.
Mas é claro que Ruby nunca voltara e Cole acabou por dizer que ela
devia ter sido morta num ataque aéreo.
Até então a guerra não afetara Rosie a um nível pessoal. Desde que se
lembrava que os sons de aviões a passar no céu, adultos a falar sobre
racionamento, pessoas evacuadas, cupões para roupa e recrutamentos
faziam parte da vida, como acontecia com todas as outras crianças da sua
idade. Por vezes, era lembrada de que estavam a acontecer coisas muito
más noutros lados porque os olhos dos adultos enchiam-se de lágrimas
quando falavam sobre mortes em ataques aéreos ou em soldados que tinham
morrido no conflito. Porém, o pai não estava a lutar no estrangeiro como
muitos dos pais das suas colegas de escola e mesmo quando uma série de
bombas foram lançadas nos brejos perto de Burtle ninguém ficou ferido.
Quando o pai lhe disse que a mãe morrera num bombardeamento aéreo,
de repente a guerra tornou-se muito real e não uma ameaça distante. Rosie
não conseguiu compreender porque é que a mãe tinha sido escolhida para
morrer quando todas as outras mães que conhecia continuavam em
segurança nas suas casas.
Os dois anos entre a morte da mãe e a chegada de Heather estavam
confusos na sua cabeça. Lembrava-se de passar muito tempo sozinha, mas
nada mais. Parecia-lhe que as suas memórias só tinham começado
verdadeiramente com Heather. E em setembro de 1945 foram todas boas.
Heather mudou-se definitivamente para o quarto de Cole no dia a seguir
ao Festival das Colheitas e tudo foi maravilhoso durante um ano inteiro. O
pai passava muito tempo em casa e ouviram-se muitos risos quando ele
forrou os quartos com papel de parede novo e Heather fez cortinas lindas.
Mesmo quando veio a casa de licença, Seth não conseguiu estragar as
coisas nem influenciar Norman contra Heather.
Contudo, naquele outono, quando a sua barriga começou a crescer com o
bebé que esperava, as coisas começaram a correr mal. Talvez fosse porque
Cole estava a ter dificuldade para ganhar dinheiro pela primeira vez na vida.
Talvez fosse, em parte, porque temia que Norman também fosse para a
tropa, deixando-o sem ajuda masculina. Mas parecia que, de repente, estava
rancoroso por ter o fardo de mais um filho.
Tinha começado a pôr defeitos em tudo. Ia para o pub logo a seguir ao
jantar e por vezes nem sequer voltava para casa. Pouco tempo depois, Rosie
começou a acordar com frequência a meio da noite com o pai a gritar e
mobília a ser derrubada. Ouvia Heather chorar e sabia que Cole a
esbofeteara.
Foram aqueles barulhos que lhe trouxeram vagas recordações de
discussões semelhantes entre a sua própria mãe e o pai, e ficou muito
assustada. Heather mudou de um dia para o outro; ficou pálida e apática e,
embora a barriga estivesse enorme, tinha o rosto, os braços e as pernas
muito magros. Parecia estar sempre cansada e por vezes afundava-se numa
cadeira ao meio-dia e não conseguia voltar a levantar-se, e a sua situação
não foi facilitada pelos fortes nevões que caíram em janeiro de 1947 e que
tornaram todas as suas tarefas, como a lavagem da roupa, muito mais
difíceis. Rosie ajudava-a em tudo o que podia, mas era difícil dar à bomba
para tirar água. Rodar a manivela da calandra no exterior, com temperaturas
muito abaixo de zero, estava para além das suas capacidades.
A neve continuou a cair. Aquele inverno foi o mais gélido de que havia
registo e os animais morriam de frio nos campos. Rosie lembrava-se de ver
Heather tentar abrir um caminho nos pesados bancos de neve para chegar à
arrecadação do carvão e cair de exaustão antes de conseguir encher um
balde. Muitas vezes não havia lume e havia pouco para comer porque as
lojas não conseguiam ter provisões. Rosie apanhava neve para derreter por
cima do candeeiro a petróleo porque a bomba estava congelada.
Heather entrou em trabalho de parto em fevereiro e o bebé demorou dois
longos dias a nascer. A estrada para a aldeia estava bloqueada com espessas
camadas de neve e, mesmo que Cole tivesse tentado ir buscar um médico,
era duvidoso que tivesse conseguido passar com o carro. A única coisa que
Rosie sabia acerca de nascimentos era de ver as ovelhas parir e, embora
acreditasse em parte no pai quando ele disse que Heather estava a fazer uma
grande fita, não lhe pareceu certo que a deixasse continuar com aqueles
gritos horríveis e ficasse no rés do chão, a beber sidra e a ignorá-la. Foi ela
que por fim arranjou ajuda; caminhou com grande dificuldade pela neve até
ao presbitério, que tinha um telefone, e a parteira chegou passadas duas
horas num trator.
– Esperemos que o pequeno bastardo nasça morto – balbuciou Cole antes
de adormecer por fim na sua cadeira. – O que é que vou fazer com mais
filhos?
Nos dois últimos anos, de vez em quando Rosie recordava as palavras
terrivelmente insensíveis do pai e quase desejava que Alan não tivesse
sobrevivido, porque parecia que o seu nascimento foi o momento em que
tudo ficou definitiva e irreparavelmente mal. No entanto, na altura Rosie
tinha apenas dez anos; um bebé era quase um boneco e amou Alan desde o
primeiro instante que o teve nos braços.
Cole nunca gostou do filho. O facto de ele ser pequeno e frágil, de chorar
quase continuamente e de o duro inverno nunca mais terminar não ajudou.
Cole ignorou-o de forma deliberada, e também ignorava Heather, a não ser
que estivesse a embirrar com ela. Ela não conseguia fazer nada que lhe
agradasse. Quando as galinhas se recusaram a pôr ovos, a culpa foi dela. Se
o fogão se apagava era porque ela não o acendera bem. Depois, no outono
de 1947, Seth regressou da tropa e aumentou os problemas de Heather com
a cama molhada, as bebedeiras e o comportamento grosseiro.
Talvez fosse a premonição de que Heather também acabaria por fugir que
transformou Rosie numa pequena mãe. Uma vez perguntou-lhe se a levaria
e a Alan se fugisse, mas a rapariga olhou-a com uma expressão apática.
– Como é que eu posso ir? – perguntou, com os olhos marejados de
lágrimas. – Não tenho nenhum sítio para onde ir, Rosie, e também não
tenho dinheiro.
Alan tinha um ano e Rosie onze quando o sentimento de desagrado com
os irmãos mais velhos se transformou em ódio. Uma tarde de fevereiro saiu
mais cedo da escola porque estava previsto um nevão. Quando entrou pela
porta das traseiras encontrou Alan a berrar no berço, mas acima de todo
aquele barulho ouviu outra coisa no primeiro andar. Um som de pancadas
surdas que a arrepiou e, antes de tirar Alan do berço, subiu sorrateiramente
as escadas para investigar.
O que viu foi tão chocante que quase fez xixi nas cuecas quando se colou
à parede do patamar, para não ser vista. O espelho do guarda-vestidos do
quarto do pai refletia o que estava a acontecer ali. Seth, que na altura tinha
vinte anos, estava completamente vestido com as suas sujas roupas de
trabalho e Heather estava de gatas em cima da cama, com a saia levantada,
presa por dedos que se enterravam na sua carne. Ele estava a montá-la por
trás, como o touro fazia nos campos. Fazia esgares e gemia e Heather
chorava, um choro tão triste que metia dó e que dilacerou Rosie como se
fosse perfurada por uma faca.
Pior ainda, Norman estava parado ao lado da cama a observar. Na época
ele estava na tropa; chegara a casa no dia anterior para uma licença de dois
dias e ainda não tirara o uniforme. Tinha a braguilha desapertada e estava a
acariciar-se e a mandar o irmão despachar-se para poder ir ele.
Rosie esforçou-se muito para apagar aquela recordação da cabeça, bem
como a culpa de não ter tentado fazer alguma coisa para impedir aquilo.
Mas tinha ficado tão chocada, tão horrorizada, que não conseguiu fazer
mais nada a não ser voltar para baixo sem fazer barulho e consolar o
irmãozinho que não parava de chorar.
Queria contar ao pai, mas teve demasiado medo do que Seth poderia
fazer-lhe ou a Alan em retaliação. Nem sequer se atreveu a contar a Heather
que tinha visto.
Só quando ela fugiu um ano mais tarde é que Rosie começou a suspeitar
que, afinal de contas, a sua mãe não tinha morrido num bombardeamento
aéreo e tinha fugido pelos mesmos motivos que Heather, por já não
conseguir suportar a crueldade de Cole e dos filhos dele.
Compreendia bem porque é que as duas mulheres tinham fugido. Não
culpou nenhuma delas por a terem abandonado, mas uma coisa
incomodava-a profundamente. Porque é que Heather tinha deixado ficar o
filho? Rosie chegara a casa depois da escola e encontrara-o ainda amarrado
no carrinho no pomar, a gritar a plenos pulmões porque estava todo
molhado e cheio de fome.
Havia boas razões para explicar porque é que a sua própria mãe a deixara
ficar. Afinal de contas, ela tinha seis anos e era a menina dos olhos do pai.
Mas Heather sabia que Cole não amava Alan. Como é que o tinha deixado à
mercê de três homens que sabia que eram perigosos e que não se
importavam absolutamente nada com o seu bem-estar?
Uma vez, Seth comentara com malícia que Heather era uma cabra, que
passava a vida a receber homens lá em casa durante o dia e que deixara
Alan ficar ali porque tinha fugido com um homem que não queria aturar o
miúdo. Mas Rosie nunca acreditou. Heather podia ser um pouco simples,
mas amava o seu bebé.
Durante muito tempo depois de Heather se ir embora, Rosie esperou que
ela reaparecesse um dia para ir buscar o bebé quando os homens estivessem
fora, mas ela nunca veio.
Por isso Alan tinha-se tornado, virtualmente, seu filho. Cole pagava dois
xelins por semana a uma pessoa da aldeia para cuidar dele enquanto ela
estava na escola e, embora contrariado, comprava-lhe roupas e sapatos. No
entanto, não se interessava pelo rapazinho e deixava tudo o resto, incluindo
protegê-lo dos irmãos mais velhos, a cargo de Rosie.

Mais tarde, no andar de baixo, Rosie estendeu um cobertor em cima da


mesa da cozinha, pôs um lençol em cima e ligou o ferro de engomar no
candeeiro de teto. A eletricidade só tinha sido instalada no ano anterior e
ainda lhe parecia um milagre. Também era bom ter água corrente na
cozinha, mas tinha sido posta há dois anos e já se acostumara. Borrifou as
camisas dos irmãos e enrolou-as bem até o ferro de engomar aquecer, mas
enquanto isso perguntou a si mesma o que estava a acontecer no Crown e se
Thomas também estava lá.

Thomas estava no Crown, sentado num canto a beber a segunda caneca


de sidra forte e turva. No campo de prisioneiros de guerra, Sam passava a
vida a falar nesta sidra e, embora não adorasse o sabor, sentiu que tinha de
beber pelo menos três antes do fim da noite em memória do amigo.
Tinha batido à porta do pub mais cedo nessa tarde, depois de deixar
Rosie, e perguntara se tinham um quarto. Mrs. Hilda Colbeck, a
proprietária, começara por ficar muito circunspecta. Disse que não
costumava aceitar hóspedes, a menos que ficassem durante uma semana,
mas cedeu quando Thomas admitiu que não conseguia andar mais. Ela
parecia ter um fraco por ex-combatentes feridos.
Enquanto comia um robusto jantar de empada de carne e rins com o casal
Colbeck, Hilda perguntou-lhe o que o trouxera ao Somerset. Thomas
pensou que por enquanto seria prudente não abrir o jogo sobre Heather, por
isso falou-lhes sobre o amigo Sam Gurney e disse-lhes que pretendia
conhecer a região antes de seguir viagem para procurar a sua família perto
de Henton.
Com menos dores na perna, e um lauto jantar na barriga, estava a
observar e a escutar Cole Parker e os filhos, que tinham chegado perto das
sete e meia.
Não precisou de esperar que alguém os cumprimentasse pelo nome para
saber quem eram os três homens; no momento em que eles entraram a
pavonear-se, adivinhou que eram eles. Todos partilhavam o mesmo cabelo
preto brilhante, olhos escuros semicerrados e pele trigueira. Um bonito trio,
todos mais altos e de ombros mais largos do que os outros homens que
estavam no bar e com uma certa superioridade que lhe disse que se
consideravam os senhores deste lugar.
No entanto, apesar dos ares de grandeza, Thomas percebeu logo que não
eram populares. A temperatura pareceu descer alguns graus no momento
em que eles entraram e os sorrisos de cumprimento pareciam tensos.
Ninguém os olhou nos olhos.
O bar estava cheio, mas era bastante pequeno, com um teto baixo com
traves e uma lareira à antiga que roubava espaço para mais meia dúzia de
clientes. Para além de Hilda, que estava atrás do balcão, não havia
mulheres. A grande maioria dos homens eram trabalhadores agrícolas,
ainda com as toscas roupas de trabalho e esterco nas botas, e tinham todos o
mesmo sotaque cantado do Somerset. No entanto, eram ofuscados e
tornavam-se insignificantes ao pé dos Parker.
Os dois rapazes, tão parecidos que passavam facilmente por gémeos,
eram dois ou três centímetros mais altos do que o pai e muito mais
elegantes, com a pele macia e um bronzeado dourado. No entanto, embora
os rapazes tivessem a juventude do seu lado, com dentes ainda perfeitos e
corpos firmes, as suas feições eram insípidas quando comparadas com as de
Cole. Os rapazes tinham lábios finos e narizes estreitos; a boca de Cole era
grande, carnuda e sensual, e tinha um nariz grande. Sorria com facilidade e
a sua gargalhada era profunda e rouca, desmentindo o mau feitio que Rosie
insinuara. Na verdade, se ela não o tivesse avisado de que o pai não estaria
recetivo a perguntas sobre Heather, ele teria tido o impulso de se aproximar
do homem naquele momento.
Porém, os rapazes eram diferentes. Não pareciam conseguir manter
conversas, cumprimentavam os outros homens com o tipo de gracejos
sarcásticos que sugeriam que eram incapazes de verdadeira amizade e
estavam sempre a olhar em volta para ver o efeito que estavam a ter em
todos os presentes. Thomas sorriu no seu íntimo ao ver aquilo. Conhecera
muitos homens como eles durante o tempo que estivera no exército.
Rapazes rufiões e imbecis de andar pomposo, que, se fossem separados dos
seus comparsas e recebessem uma dose do seu próprio remédio, se
transformavam em lamurientos cordeirinhos.
– Vá lá, Stan, vai buscar as cervejas. É a tua rodada – disse um dos
rapazes de repente. Thomas pensou que devia ser Seth e o alvo da sua
atenção era um homem pequeno que vestia um casaco Norfolk e parecia
claramente nervoso.
De repente, todos se calaram. O homenzinho tinha chegado ao pub nos
últimos quinze minutos e nenhum dos Parker lhe tinha oferecido uma
bebida.
– Esta noite não posso – replicou o homem, a lamber os lábios com
nervosismo e com a caneca de cerveja na mão. – Não trouxe dinheiro. Só
vim beber uma cerveja rápida.
Seth sorriu.
– Bem, então vamos torná-la ainda mais rápida. – E, dito isto, agarrou no
cabelo do homem com uma mão, inclinou-lhe a cabeça para trás, tirou-lhe a
caneca de cerveja da mão e começou a despejá-la pela boca aberta do
homenzinho.
Ouviram-se risos abafados e constrangidos e vários homens viraram a
cabeça, mas ninguém levantou um dedo para parar aquilo. Os braços de
Stan abanavam freneticamente, ele estava a engasgar-se e a deitar
perdigotos, e cerveja escorria pelo seu casaco.
Thomas começou a levantar-se por instinto, mas Hilda lançou-lhe um
olhar de aviso do outro lado do balcão.
– Ora, Seth – disse, num tom reprovador. – Para já com isso. Esse
comportamento não é aceitável.
As expressões de todos os outros clientes disseram a Thomas que
concordavam com ela, mas ninguém tomou a iniciativa de apoiá-la.
Seth ignorou-a e continuou a despejar cerveja na boca do homem.
Foi Cole que o parou. Pousou uma mão no antebraço do filho e disse em
voz baixa:
– Basta, filho.
Stan recuou, ainda engasgado, dirigiu-se para a porta e saiu sem dizer
nada. Thomas afundou-se no seu assento e fingiu que estava a olhar para
uma velha fotografia que estava na parede ao seu lado. Calculou que Seth
devia estar a olhar em volta, para provocar quem tivesse a insensatez de
fazer um comentário.
Quando o pub fechou, Thomas já tinha avaliado os Parker. Os três
homens consumiram pelo menos oito canecas de sidra e as suas vozes
tornavam-se mais altas depois de cada uma. Gabavam-se constantemente,
sobre cavalos em que tinham apostado, mulheres que gostavam deles,
negócios que tinham fechado. Ouviu-os dizer que iam para Londres na
semana seguinte, para ir buscar abrigos antiaéreos Anderson.
Aparentemente, podiam receber até dez libras por cada um que
desenterrassem, e muitas vezes conseguiam que os donos lhes pagassem
ainda mais para os deitarem fora. Seth fez uma piada sobre também se
aproveitarem de donas de casa solitárias e Norman disse alguma coisa sobre
dar alguns xelins às velhotas por mobiliário e pratas antigos.
Quando o último cliente saiu do bar e Thomas se levantou para ir para o
seu quarto, sentiu náuseas ao pensar que a irmã mais nova tinha vivido
numa casa com aquelas criaturas durante quatro anos. Pareceram-lhe piores
do que animais. As mulheres existiam para ser usadas e abusadas, enquanto
eles viviam à custa de vigarices, mentiras e traições. Também perguntou a si
mesmo como é que Rosie conseguira sair tão simpática e até que ponto
estaria em segurança na companhia daqueles dois irmãos.
– Não se sentiu sozinho naquele canto, sem companhia? – perguntou-lhe
Hilda enquanto subia as escadas atrás dele. – Devia ter-se sentado ao
balcão. Nós somos um grupo de pessoas simpáticas, a sério.
– Contentei-me em escutar e observar – replicou ele. – Especialmente
aqueles três homens morenos. São umas figuras!
Ela parou no cimo da estreita escadaria e voltou-se para olhar para
Thomas com uma expressão de profundo desprezo no rosto estreito e
magro.
– Só entre nós – disse –, por mim eles nunca mais entrariam aqui. São uns
grandes bandidos, os três. Venderiam a própria avó por uma ninharia. Mas o
Harold tem medo deles.

– Não cortes esse pão tão fino – disse Cole com brusquidão para Rosie na
manhã seguinte. Estava a lavar-se no lava-loiça da cozinha, mas devia ter
estado a observá-la pelo espelho. – Essas sanduíches são para homens, não
para um maldito lanche de senhoras. Seth! Norman! Venham para baixo,
seus malditos preguiçosos! – Berrou ao fundo das escadas.
Eram seis e meia da manhã e Rosie já estava a pé há uma hora. Acendera
o fogão, fora buscar oito ovos frescos das galinhas e três enormes
pequenos-almoços fritos esperavam no forno enquanto a chaleira estava
quase a ferver com água para o chá.
Cole era tão grande que bloqueava toda a luz da janela da cozinha. Usava
as mesmas calças cinzentas sujas que vestia todos os dias de trabalho e
tinha os suspensórios caídos ao longo do corpo enquanto lavava os sovacos.
As pessoas diziam que ele era um homem bonito, e por vezes, quando
vestia o seu fato domingueiro, Rosie concordava com elas; mas não de
manhã cedo, com a sombra de uma barba preta a cobrir-lhe toda a parte
inferior do rosto e a pança peluda pendurada por cima das calças.
Rosie pousou os três pratos de pequeno-almoço na mesa em silêncio
quando Seth e Norman entraram na cozinha, vestindo apenas as calças.
– Também quer uma garrafa? – perguntou ao pai. Ele vestira a camisa
limpa, penteara o cabelo e os suspensórios já estavam nos ombros. Agora
que os irmãos estavam na cozinha, sentiu-se nervosa. Já nunca estava à
vontade na presença deles. As raparigas da aldeia podiam achá-los
atraentes, mas ela não.
Seth fedia a urina, e isso queria dizer que voltara a fazer xixi na cama.
Também havia um cheiro forte a suor entranhado e ficou enojada ao pensar
que era muito provável que vestissem as camisas limpas que ela acabara de
engomar nos corpos por lavar. Nenhum deles limpava as unhas ou lavava os
dentes. Cole podia ter um temperamento cruel, mas pelo menos era
cuidadoso com a sua higiene.
– Não recebas rapazes aqui hoje enquanto estivermos fora – disse Seth. –
Ou cortamos-lhes os tomates quando voltarmos.
– Deixa-a em paz – disse Cole, admoestando o filho mais velho. – A
nossa Rosie é muito ajuizada. E tu, rapaz, podes lavar-te como deve ser
antes de sairmos. Cheiras pior do que merda de porco.
Ao ouvir aquele comentário Rosie esgueirou-se em silêncio para fora da
cozinha e subiu as escadas, sem sequer esperar pela resposta de Cole sobre
a garrafa. Quando Seth era repreendido pelo pai costumava vingar-se em
alguém e ela não pretendia ser o alvo.
Engasgou-se quando foi ver Alan. Como esperava, Seth fizera xixi na
cama e o cheiro a amoníaco era repugnante. Ele nunca pedia desculpa e não
lhe passava pela cabeça tirar os lençóis da cama. Mas, afinal de contas, ele
era um animal em todos os sentidos. Vomitava muitas vezes no chão e
deixava ficar a porcaria para ela limpar, e por vezes fazia mais do que xixi
no bacio e também o deixava para ela despejar. Rosie desconfiou que se não
estivesse ali para mudar os lençóis e limpar o que ele sujava, o irmão
continuaria a viver no meio daquela imundície como um porco.
Quando tirou os lençóis da cama, Alan acordou.
– Chiu – sussurrou ela, levando um dedo aos lábios. – Fica aqui até eles
saírem e depois tomamos o pequeno-almoço juntos.
Dez minutos mais tarde Rosie ouviu o pai gritar o seu nome. Correu pelas
escadas abaixo.
– Estava a fazer as camas. Já se vão embora?
Cole sorriu-lhe e estendeu meia coroa.
– Vamos passar o dia inteiro no leilão e só voltamos tarde, por isso
comemos qualquer coisa por lá – disse. – O dia vai estar quente, por isso vai
até à aldeia e come um gelado depois de terminares as tuas tarefas.
O presente e a consideração inesperados agradaram a Rosie. Por impulso,
desceu os últimos degraus a correr para ir abraçá-lo. Felizmente, Seth e
Norman já tinham ido para a camioneta. Cole nunca era afetuoso quando
eles estavam por perto.
– És uma boa menina – disse ele, retribuindo o abraço. – Não te esqueças
de fechar as galinhas esta noite porque há raposas por perto. E acorda
aquele preguiçoso inútil. Com esta idade devia estar a ajudar-te, não deitado
na cama.
Ela seguiu o pai para a rua para lhe dizer adeus. Estava uma manhã linda
e uma neblina leve pairava sobre os brejos. De repente, sentiu-se muito
feliz. Com os homens fora até muito tarde e sem a refeição da noite para
preparar, seria um verdadeiro feriado.

Rosie deu a mão a Alan enquanto seguiam pela viela para a escola da
aldeia. Era a melhor parte do seu dia, uma oportunidade para ver algumas
pessoas, ainda que ninguém parasse para falar. Mas hoje, como Cole lhe
dera meia coroa, poderia comprar um jornal e talvez Mrs. Willis, a dona da
loja, tivesse algumas revistas velhas para lhe dar.
Viu Thomas muito antes de chegar ao Crown. Ele estava sentado à porta,
no banco, como se estivesse à espera do autocarro para Bridgwater. O
autocarro só chegava às nove e meia, por isso a única razão para ele estar
ali agora era para vê-la passar a caminho da escola.
De repente ficou contente por usar o seu melhor vestido – o das riscas
azuis e brancas que engomara na noite anterior.
Apertou bem a mão de Alan e passou por Thomas, esperando que ele não
a chamasse, para não atrair atenções indesejadas. Quando ele abriu um
jornal à sua frente percebeu que a tinha visto, mas limitou-se a acenar e
pareceu estar a ler.
O seu coração bateu com tanta força quando passou por ele que teve a
certeza de que ouviria, e disfarçou a confusão mostrando a Alan duas
pombas brancas que estavam pousadas no telhado do Crown e parando
durante tempo suficiente para ele poder ver bem o rapazinho. Olhou para o
homem, levando um dedo aos lábios, e ele piscou-lhe o olho em sinal de
compreensão.
Thomas sentiu uma onda de emoção inesperada quando olhou para Alan.
Foi como ver-se de novo quando era pequeno. Os mesmos olhos castanho-
escuros, que a mãe sempre dissera que eram demasiado grandes para o seu
rosto, os joelhos ossudos e cheios de cicatrizes e o rosto pálido e magro. No
entanto, o cabelo de Alan era mais ruivo do que louro e o menino parecia
nervoso, coisa que Thomas nunca fora.
Na noite anterior Hilda contara-lhe tudo sobre Cole Parker, os filhos e as
mulheres que desapareciam. Disse-lhe coisas alarmantes, mesmo tendo em
conta o exagero e a coscuvilhice vingativa. Esta manhã Thomas acordara
depois de uma noite inquieta e soubera que era uma situação da qual não
poderia fugir.
Durante a noite percebera que a palavra «evasão» resumia o que mudara
em si em comparação com o que fora antes de ser capturado pelos
Japoneses. Antigamente, encarava tudo com frontalidade. Os problemas
eram enfrentados com coragem e confiança em si mesmo. Se um amigo se
metia numa briga ele ia ajudá-lo, com razão ou não. Manifestava-se contra
as injustiças, mesmo correndo o risco de perder a liberdade; para ele, fugir
ou ignorar era pura cobardia. Quando chegara ao campo de prisioneiros de
guerra na Birmânia, mesmo depois de uma marcha esgotante com pouca
comida ou água, continuava a acreditar que tinha o dever de lutar contra os
Japoneses até ao fim.
Foi chicoteado duas vezes nos primeiros dois meses por se recusar a
obedecer às ordens dos guardas e foi deixado sob o sol escaldante com as
costas dilaceradas até lhe parecer ouvir o ruído metálico das portas do
Paraíso. Porém, pouco a pouco começou a perceber a futilidade da rebelião.
Viu muitos homens bons morrerem por orgulho teimoso ou pura má
vontade. O capitão Gregson deixou-se amarrar a uma estrutura de bambu e
ter uma morte lenta e agonizante para não ter de pedir desculpa por ter
insultado um oficial japonês. Outro homem foi chicoteado até à morte
quando admitir que tinha um rádio escondido na cabana podia tê-lo salvado.
Os Japoneses acabaram por encontrar o aparelho e castigaram todos os
ocupantes da cabana. Mais homens ainda morreram por motivos menos
nobres, apenas de doença e de fome.
Foram os muitos funerais no campo de prisioneiros de guerra que o
fizeram dar verdadeiro valor à sua vida. Não havia nada pior do que
carregar um canto de um caixão improvisado de bambu e, a cada passo que
dava para a sepultura acabada de cavar, suportar o horror de o seu rosto,
ombros e peito ficarem salpicados com os fluidos putrefactos do morto, que
eram consideráveis se ele tivesse morrido de beribéri. Não havia dignidade
nem glória num fim assim e Thomas percebeu então que a sobrevivência
era tudo e que evitar problemas não era cobardia, mas bom senso.
Todavia, às primeiras horas daquela manhã percebeu que chegara o
momento de encontrar o velho espírito e abrir o jogo, fosse qual fosse o
custo a nível pessoal.
No momento em que Rosie entrou com o irmão na escola, Alan olhou por
cima do ombro para Thomas. Os seus olhos cruzaram-se por instantes e
Thomas sorriu.
Naquele momento soube que, acontecesse o que acontecesse, arrancaria
Alan das garras de Cole Parker. Só gostava de poder fazer alguma coisa
também por Rosie. Segundo o que Hilda lhe contara, a vida da rapariga era
um verdadeiro inferno.
CAPÍTULO 3

– H oje o Vic chegou cedo – disse Rosie para Alan quando ouviu um
veículo parar lá fora. Era sábado de manhã, pouco depois das nove,
e ela estava a encerar a mesa da sala de visitas. – É melhor ir pedir algum
dinheiro ao pai.
Vic era um merceeiro ambulante. Passava todos os sábados na sua
camioneta, mas normalmente não chegava a May Cottage antes das onze
horas ou do meio-dia.
Alan subiu a uma cadeira para espreitar pela janela.
– Não é o Vic – disse. – São polícias.
Rosie ficou espantada e foi espreitar, para ver se o irmão tinha razão.
– É verdade – exclamou, ao ver o guarda Nutting, o polícia da aldeia, a
pôr o capacete. Para sua consternação, ele estava acompanhado por um
homem que não conhecia. O outro homem usava um boné com pala e tinha
riscas na manga do uniforme. Pensou que devia ser o seu chefe.
O pai e os irmãos tinham chegado a casa na noite anterior, já tarde, depois
de passarem duas semanas a trabalhar em Londres. Estavam cansados e
imundos, mas bem-dispostos, com um camião cheio de abrigos Anderson.
Para variar, nem sequer tinham ido ao pub. Enfiaram-se à vez na banheira
metálica que estava no pátio e em seguida tinham ido para a cama.
Seth e Norman ainda estavam deitados e Cole estava na cozinha a tomar o
pequeno-almoço. Pareceu-lhe ominoso que a polícia fosse lá a casa tão
pouco tempo depois de eles chegarem, especialmente num carro. Enquanto
andava a fazer o giro, era bastante normal Ernie Nutting passar lá por casa
na sua bicicleta; tinha ido lá na segunda-feira anterior porque ouvira dizer
que Rosie estava sozinha em casa com Alan. No entanto, não viria com
outro agente a menos que estivesse em missão oficial.
Rosie parou apenas o tempo suficiente para dizer a Alan que ficasse onde
estava e correu para a cozinha, para avisar o pai.
Cole estava a limpar o resto do ovo do prato com um pedaço de pão
quando ela lhe deu a notícia com precipitação. Tinha os suspensórios caídos
ao longo do corpo, mas usava uma camisola interior branca limpa e fizera a
barba.
– Não fiques tão preocupada – disse-lhe, a sorrir abertamente. – O teu pai
não fez nada. – Pegou na chávena de chá e sorveu-o ruidosamente.
Levantou-se quando bateram à porta com força, pôs os suspensórios nos
ombros e limpou o ovo da cara com as costas da mão.
– Vamos descobrir o que querem – declarou, pondo um braço sobre os
ombros da filha. Saiu com ela pela porta das traseiras e deram a volta para a
parte da frente da casa.
Rosie não era tonta. Talvez Cole não tivesse nada roubado em casa desta
vez, mas sabia que sempre que a usava como acessório tinha alguma coisa a
esconder. Quando Ernie Nutting viera fazer perguntas depois de alguém que
correspondia à sua descrição ter sido avistado a roubar um par de faisões na
grande propriedade de Wells, ou quando pneus de carros tinham
desaparecido misteriosamente de uma aldeia vizinha, fora muito útil para
Cole tê-la por perto como distração ou para apoiá-lo com um álibi para a
noite em questão. Rosie sempre gostara destas pequenas representações;
faziam-na sentir-se importante.
– Lamento, mas a porta principal não abre. Há muito que emperrou com a
idade, exatamente como eu – disse Cole em tom de brincadeira para os dois
polícias. – Olá, Ern! Que é que te traz por cá tão cedo, e onde está o cavalo
de ferro?
Nutting sorriu acanhadamente e tocou no capacete. Era um homem
grande, com um rosto redondo e gasto pelo clima que o fazia parecer muito
mais velho do que era. Cole estava sempre a dizer que era um idiota, mas
Rosie gostava dele porque era bondoso, alegre e um ávido jardineiro.
Oferecia-lhe muitas vezes pequenas plantas que cultivava na sua estufa.
Ficou intrigada quando ele não respondeu à pergunta do pai sobre a
bicicleta.
O homem do boné de pala que estava com Ernie olhou-a com intensidade.
– É sua filha, Mr. Parker? – perguntou.
– Sim, esta é a nossa Rosie. – Cole sorriu para a filha com carinho e
apertou-lhe o ombro com firmeza. – Porquê, vieram prendê-la? Que é que
ela andou a tramar?
De repente, Rosie lembrou-se de Thomas Farley. Já tinham passado
praticamente três semanas desde que ele fora lá a casa e durante os quinze
dias em que o pai estivera ausente quase não pensara nele. De repente,
adivinhou que esta visita policial fora precipitada por ele; não tinha nada a
ver com as atividades empresariais de Cole. O seu estômago apertou-se.
– Nada, pelo menos que seja do nosso conhecimento. Eu sou o sargento
Headly de Bridgwater. Vim cá hoje com o guarda Nutting para lhe fazer
algumas perguntas sobre uma pessoa desaparecida, a Heather Farley. – O
polícia olhou diretamente para Rosie e sorriu. Tinha olhos azul-claros e um
fino bigode escuro. Rosie pensou que ele era bonito. Teve a impressão de
que o sorriso se destinava a garantir-lhe que não diria a Cole que Thomas já
falara com ela. – Temos motivos para acreditar que ela trabalhou nesta casa
durante cerca de quatro anos, Mr. Parker. Também queríamos falar com o
Alan, o filho dela. Segundo sabemos, Miss Farley deixou-o ao seu cuidado.
Rosie susteve a respiração durante alguns instantes, convencida de que o
pai ia perder as estribeiras. No entanto, para sua surpresa ele pareceu
despreocupado.
– Não sei se poderei ajudar muito – respondeu, com um encolher de
ombros. – Como o Ernie poderá confirmar, ela fugiu há três anos sem me
dizer nada a mim ou a outra pessoa qualquer. É melhor entrarem para verem
o rapaz.
Enquanto davam a volta à casa, Rosie ficou mais ansiosa. Desejou ter
sido avisada para poder vestir Alan com a roupa da escola. Os calções
cinzentos com remendos e a camisa de flanela demasiado pequena que ele
usava hoje faziam-no parecer negligenciado.
Era a primeira vez que Rosie se lembrava de o pai levar alguém para a
sala de visitas. Ele sempre dissera que não queria que as pessoas vissem as
coisas lindas que tinha ali porque podiam pensar que as roubara. Nesse
caso, era estranho levar um polícia para lá. Mas mais estranho ainda foi
que, em vez de ficar irritado por Alan estar escondido atrás de uma das
poltronas, Cole pegou nele ao colo.
– Este é o meu Alan. Cumprimenta os senhores polícias – disse, e fez
uma festa na cara do menino num gesto de ternura paterna.
Alan ficou rígido e sem fala perante o invulgar comportamento do pai.
Rosie também; nunca vira Cole pegar em Alan. Era muito mais provável
que lhe desse um pontapé para que saísse da sua frente.
– Ele é um bocado tímido – explicou Cole. – Não recebemos muitas
visitas cá em casa.
Rosie ficou parada à porta da sala, sem saber se devia entrar, oferecer-se
para fazer chá ou fugir. Ernie Nutting parecia pouco à vontade. Tinha tirado
o capacete e estava de pé, a rodá-lo na mão com nervosismo. Evitou olhar
para Cole ou Rosie.
– Quantos anos tens, Alan? – perguntou o sargento Headly, aproximando-
se mais de Cole e do rapaz.
– Cinco – respondeu Alan, a olhar para Rosie à espera de uma explicação.
– Bem, vamos ver qual é a altura de um rapaz de cinco anos. – O polícia
fez sinal a Cole para que o pusesse no chão.
Rosie estava em grande aflição. Era bem possível que Thomas tivesse
encontrado pessoas na aldeia muito mais dispostas a falar sobre a sua
família do que ela. E se alguém lhe tivesse dito que Cole e os rapazes eram
cruéis com Alan? E se o polícia levantasse a camisa do menino e visse os
vergões nas costas deixados pela última tareia que levara antes de eles irem
para Londres?
Porém, para seu alívio o polícia mais importante sentou-se no sofá e
conversou com Alan durante alguns minutos, perguntando-lhe como estava
a correr a escola, como iam a leitura e as contas, e depois bateu no traseiro
do menino e mandou-o sair porque queria conversar com o pai.
Rosie levou-o para a cozinha e começou a arrumar a loiça do pequeno-
almoço. Depois de a porta da sala de visitas ser fechada não conseguiu
ouvir mais nada a não ser vozes abafadas, demasiado indistintas para
perceber alguma coisa.
– Porque é que ele falou comigo, Rosie? – perguntou Alan, pegando no
prato da manteiga para ir arrumá-lo na despensa. Parecia mais intrigado que
alarmado. Não estava acostumado a ser o centro das atenções.
Rosie não sabia o que dizer. Não podia explicar-lhe que a visita estava
relacionada com a mãe dele, pois o menino poderia ficar perturbado. Além
disso, Seth ou Norman podiam descer a qualquer momento.
– Só estava a ser simpático – respondeu ela. – Deve gostar de meninos
pequenos.
Cerca de dez minutos mais tarde, quando Rosie pegou numa tigela para ir
apanhar framboesas no pomar ouviu o urro da voz de Cole erguer-se num
tom de fúria.
– Quem disse isso? Dê-me o nome do filho da mãe e eu trago-o aqui pelo
pescoço e obrigo-o a admitir que mentiu. Eu podia ter enfiado o miúdo num
orfanato, mas cuidei dele, alimentei-o e vesti-o, embora a mãe dele não o
quisesse.
Rosie queria ficar para ouvir mais, mas bastou-lhe olhar para o rosto
apavorado de Alan para perceber que tinha de o tirar dali antes que ele
ouvisse mais.
Já no meio dos framboeseiros, Rosie pensou na causa e no provável
desfecho desta visita da polícia. Pela indignação do pai, era óbvio que
alguém andara a falar, o que se traduziria quase de certeza numa boa tareia
para Alan e para si.
Rosie tinha muito medo do pai quando ele estava zangado e as suas
tareias eram terríveis, mas neste momento estava acima de tudo preocupada
com Alan. Cole parecia o Diabo quando lhe batia e não estava certo que um
menino tão pequeno fosse castigado por uma coisa que desconhecia.
Olhou em volta à procura de um lugar para esconder o irmão, mas no
fundo sabia que seria inútil porque Cole só ficaria ainda mais furioso
quando o encontrasse.
Depois, teve uma ideia.
Começou por ignorá-la por lhe parecer extrema, mas um olhar de soslaio
para Alan fê-la tomar a decisão. O menino estava parado, com o rosto muito
pálido, a olhar para a casa, e os seus olhos escuros estavam esbugalhados de
pavor. Nada que fizesse o distrairia. Sabia tão bem como Rosie que se
aproximavam sarilhos e que seria ele o mais castigado.
Heather falara tantas vezes sobre Thomas que Rosie pensava que o
conhecia bem. Aquela única breve conversa com ele confirmara que ela não
exagerara as boas qualidades do irmão. Esta visita da polícia era a prova de
que ele não só queria encontrar a irmã a todo o custo, como também se
sentia responsável pelo bem-estar do sobrinho.
Rosie sempre tentara proteger Alan das fúrias do pai, mas não conseguira
evitar a última tareia. Ele só tinha deixado cair dois ovos no pátio e Cole
batera-lhe com a vara nas costas. De repente, naquele momento percebeu
que ao esconder a crueldade do pai e dos irmãos com o menino estava a ser
conivente e isso tornava-a tão má como eles.
A sua ideia era drástica e quando o pai descobrisse o que fizera ficaria em
muito maus lençóis. Todavia, para o bem de Alan teria de pôr o seu plano
em prática, fossem quais fossem as consequências. Thomas importara-se o
suficiente para mandar a polícia ali, queria tomar conta de Alan quer
encontrasse Heather ou não. Mas ao mesmo tempo Rosie sentiu-se
desolada. Amava muito o irmão mais novo e não conseguia suportar a ideia
de ficar longe dele.
No entanto, bastou-lhe olhar uma vez mais para ele. O menino tremia e
era incapaz de apanhar framboesas. Percebeu que a segurança de Alan hoje
e no futuro era muito mais importante do que os seus sentimentos. Talvez
Thomas não pudesse tomar conta do sobrinho, mas pô-lo num orfanato
seria melhor para ele do que ficar aqui.
Piscou os olhos para afastar as lágrimas, ajoelhou-se e segurou no irmão,
olhando-o nos olhos, que eram muito suaves e crédulos. Se ele se fosse
embora agora, talvez se transformasse numa pessoa diferente de Norman e
Seth. Ela devia muito a Heather; o mínimo que podia fazer era ter a certeza
de que fazia o que era melhor para o rapazinho.
– Alan – disse, abraçando-o com força. – Quero que faças uma coisa de
uma maneira muito discreta e inteligente, para que ninguém te veja.
Deu-lhe as instruções, simplificando-as o mais possível.
Ele escutou com muita atenção, com a cabeça inclinada para um lado e o
sol no cabelo a fazê-lo brilhar como brasas numa lareira.
– Agora? – perguntou, parecendo ansioso, mas não contra a ideia.
– Sim, agora, enquanto o pai está lá dentro a conversar. Quando ele sair
com os polícias eu finjo que tu estás aqui fora a apanhar framboesas.
– Mas porque é que não podes vir também?
Rosie desejou poder ir com ele.
– Tenho de ficar aqui para eles não desconfiarem de nada.
– Mas quando é que te vou ver outra vez? – De repente os olhos de Alan
ficaram desconfiados. Esticou os dedos para se agarrar a ela.
– Não sei – respondeu Rosie com franqueza. – Faz o que te disse e diz-
lhes o que eu te disse. Agora vai e mantém-te escondido atrás da vedação.
Ajudou-o a passar pela vedação de arame farpado ao lado do pomar, deu-
lhe mais um beijo e, quando ele hesitou, virou-o para a estrada e deu-lhe
uma pequena palmada no traseiro. Desejou poder dizer-lhe que havia outra
pessoa que o amava, mas agora não havia tempo para isso.
– Menino inteligente – disse, reprimindo as lágrimas. – Agora, vai.
Rosie esperou atrás dos framboeseiros até ver os polícias saírem pela
porta da cozinha. Como esperava, Cole vinha atrás deles, com um sorriso de
orelha a orelha.
Suspirou. Cole tinha um jeito especial para fazer as pessoas curvarem-se
à sua vontade. Não tinha qualquer dúvida de que conseguira convencer o
sargento de que era um pai maravilhoso para Alan, e Ernie Nutting não o
contradiria porque tinha tanto medo dele como todos os habitantes daquelas
paragens. Obrigou-se a correr para o pátio como se os dois polícias fossem
vizinhos que tinham vindo fazer uma visita e de quem queria despedir-se.
– Lamento que tenham vindo até aqui para nada – ouviu Cole dizer
enquanto apertava as mãos dos dois homens. – Há pessoas por estas bandas
que acusariam o papa de todos os pecados. Aqui para nós, eu fui um tonto
com a Heather; devia ter percebido que não conseguiria fazer uma rapariga
da cidade assentar aqui. Ela magoou-me muito quando fugiu, mas isso não
quer dizer que me vingue no nosso filho. No entanto, suponho que tenho a
reputação de homem duro e tenho de viver com todas as suspeitas que estão
associadas a ela. Se o tio do rapaz quiser vê-lo, eu não me oponho.
O sargento Headly voltou-se para Rosie quando ela se aproximou a correr
com uma tigela de framboesas nas mãos.
– Olá! O que é que fizeste ao Alan?
– Está ali a apanhar framboesas – respondeu ela, a acenar vagamente com
o braço na direção do pomar.
Headly aproximou-se mais e tirou uma framboesa da taça.
– Hum – disse, satisfeito, enquanto a comia. – As minhas preferidas.
Continua o bom trabalho que fazes. – Sorriu-lhe afetuosamente. – O teu pai
esteve a contar-nos que és uma boa pequena mãe. E que és uma especialista
em flores.
Rosie ruborizou-se e baixou os olhos para o chão. Como sempre, estava
descalça e os pés estavam muito sujos. Sentiu vergonha, não apenas dos
pés, mas também do vestido cheio de nódoas e rasgões.
– Bem, nós vamos andando. – O sargento Headly falou diretamente para
Cole e voltou a pôr o boné. – Lamento ter-lhe tomado tanto tempo.
Rosie conteve a respiração até ouvir o carro afastar-se. No entanto,
quando respirou fundo pela primeira vez Cole aproximou-se dela.
– Vai procurar aquele filho da mãe e trá-lo cá – disse-lhe num tom
raivoso, com o rosto a ficar mais roxo. – Vou ensiná-lo a queixar-se de que
está a ser maltratado!

*
– O que é que lhe parece, senhor? – perguntou Ernie Nutting enquanto
voltava com o seu superior para Ashcott, onde estava colocado. No dia
anterior Ernie ficara muito surpreendido quando recebera ordens para
acompanhar o sargento principal da divisão de Bridgwater na sua
investigação. Como era o guarda de giro da zona conhecia bem os Parker e
todas as histórias que se contavam acerca deles, mas estava convencido de
que a grande maioria das coisas que as pessoas diziam sobre Cole eram
exageradas. Achava que os dois filhos eram uns rufias impiedosos, mas
Cole era um personagem. Talvez não mantivesse a casa em ordem, bebia de
mais, tinha um temperamento colérico e talvez fosse pouco escrupuloso nos
negócios, mas dava um pouco de cor à comunidade. Quanto a Rosie, era
uma das miúdas mais simpáticas que Ernie já conhecera. Como poderia ser
assim se o pai fosse um vilão tão grande?
Ernie não estivera com o sargento Headly mais do que três ou quatro
vezes antes, mas sabia que ele tinha a reputação de ser extremamente
inteligente e intuitivo. Agora que o vira em ação, estava um pouco
intrigado. Enquanto iam para May Cottage ele dera a impressão de que era
uma investigação muito séria, mas no momento em que entraram em casa
de Cole parecera estar totalmente do seu lado, a conversar como se tivessem
vindo fazer uma visita de cortesia. Quando, por fim, ganhara coragem para
falar sobre a suspeita de crueldade com Alan e perguntara ao homem
porque é que não comunicara o desaparecimento das duas mulheres à
polícia, até parecera embaraçado. Ernie esperava que um oficial superior
fosse muito mais duro.
– Acho que o homem é um... – Headly parou a meio da frase, ao ouvir um
barulho na parte de trás do carro. Os dois homens viraram a cabeça.
– Macacos me mordam – exclamou Headly ao ver Alan agachado atrás
dos bancos da frente. Encostou imediatamente na berma da estrada e
inclinou-se sobre o assento. – Que diabo fazes aqui, filho?
– Foi a Rosie que me mandou – guinchou Alan. – Ela disse-me para me
esconder aqui e para vos dizer coisas.
– Um carro da polícia não é lugar para partidas – disse Ernie no tom
pomposo que usava sempre com meninos pequenos que se comportavam
mal. Também lhe teria puxado a orelha, mas antes de se poder mexer
Headly saiu do carro, puxou o seu banco para a frente e estendeu os braços
para o menino.
O sargento Ronald Headly era um homem de família, com cinco filhos
com idades compreendidas entre os quinze e os três anos. Em mais de vinte
anos na polícia vira inúmeras crianças assustadas, mas não se lembrava de
ter ficado tão comovido como ficou com o medo deste menino.
Alan encolheu-se no carro, com os braços no ar para proteger a cabeça
dos golpes esperados. O seu rosto lívido estava tenso de terror e ele tremia.
– Está tudo bem, filho – garantiu-lhe Headly. – Eu não estou zangado
contigo e não bato em crianças pequenas. Sai daí só um bocadinho.
Alan mexeu-se um pouco, mas foi o suficiente para Headly ver que tinha
uma grande mancha escura nos calções de flanela cinzentos e que urina
escorria pelas suas pernas escanzeladas.
– Não te preocupes com os calções – disse-lhe. – Vamos arranjar alguma
coisa para vestires na esquadra. És um bom menino por obedeceres à tua
irmã. Vem para aqui e conta-me tudo.
Quando Thomas Farley fora à esquadra da polícia de Bridgwater três
semanas antes e lhe contara a história da irmã e do filho, a sua primeira
reação fora que não se tratava de um assunto de polícia e que era um
problema que as assistentes sociais poderiam resolver.
Durante a guerra, muitas jovens tinham vindo das cidades grandes para
aquela zona por uma ou outra razão. Várias dessas mulheres tinham-se
metido em sarilhos e em alguns casos tinham desaparecido deixando ficar
um bebé. No entanto, na opinião de Headly a única coisa que diferenciava
Heather dessas outras mulheres era que não abandonara o filho numa igreja,
num campo ou numa loja, e deixara-o com o pai.
Porém, Farley era um homem muito íntegro e honesto. Tinha um registo
de guerra exemplar e Headly sentiu que lhe devia um relatório completo.
– Vamos despir isto – disse, desabotoando os calções do menino na berma
da estrada. – Acho que a camisa te vai deixar decente.
Quando lhe despiu os calções e as cuecas molhadas, Headly viu as marcas
de uma tareia antiga nas nádegas ossudas do rapazinho. Levantou-lhe a
camisa e viu que ele tinha as costas cobertas de grossas cicatrizes castanhas,
com cerca de duas semanas e já a sarar. No entanto, quem o espancara
cortara-lhe a pele.
– Quem te bateu, Alan? – Headly tentou manter a voz descontraída,
embora estivesse consumido por uma enorme raiva.
– O meu pai. – Os olhos do menino encheram-se de lágrimas, que lhe
escorreram pelo rosto. – A Rosie disse-me para vos dizer, para ele não
poder voltar a bater-me.
Headly pegou nele ao colo e apertou-o com força contra o peito. Olhou
com uma expressão dura para Nutting, que continuava sentado no banco do
passageiro, a olhar em frente. Pensou que o guarda precisava de um pontapé
no traseiro, mas não era o momento certo.
– Conduza o carro, guarda – disse. – O rapaz pode sentar-se no meu colo.

Às cinco horas daquela tarde, Headly dirigiu-se uma vez mais para
Catcott. Desta vez não estava acompanhado pelo guarda Nutting, mas pelo
inspetor Dunn do Departamento de Investigação Criminal. O objetivo dos
dois agentes era informar Cole Parker de que Alan estava sob a custódia das
autoridades locais e avisá-lo de que poderia ser acusado de crueldade para
com uma criança. Apesar de Headly não estar nada contente por uma
criança ter de ser magoada antes de poder convencer um oficial superior a
interessar-se mais ativamente pela sua investigação às atividades de Cole
Parker, estava satisfeito por ter um bom motivo para regressar a May
Cottage. O inspetor Dunn era um homem determinado e não se deixaria
levar pelo encanto de Parker. Estava há trinta anos na polícia e, como
Headly, seguia os seus palpites.
Agora, Alan estava em segurança e muito feliz aos cuidados de Miss
Pemberton, a assistente social da zona, e a caminho de uma família de
acolhimento temporária em Taunton. No começo ficara muito transtornado
por ser alvo de tantas atenções e não parava de perguntar quando é que
voltaria a ver Rosie. Porém, depois de ser lavado, de ser vestido com roupa
limpa e de ter jantado, e perceber que não seria castigado de maneira
nenhuma, tinha-se tornado muito falador.
Para os polícias com filhos, que nunca iam além de um ocasional carolo
ou palmada nas pernas das crianças, foi aterrador ver uma criança tão
pequena que não fazia ideia de que as outras crianças não eram espancadas
com paus por fazerem xixi na cama ou por deixarem cair um ovo no chão.
Todos os relatos que Alan fez sobre o comportamento dos irmãos e do pai
eram parciais, como se pensasse que era um menino muito mau e, por
conseguinte, merecedor daquele tratamento. Quando lhe perguntaram se
Rosie também era espancada ele admitiu que por vezes também levava uma
tareia, mas não com tanta frequência como lhe batiam a ele porque Rosie
era rapariga e cuidava de todos.

– Alguma vez conheceu um homem que fosse deixado com uma criança e
não comunicasse o desaparecimento da mãe? – perguntou Headly alguns
minutos depois de começarem a viagem.
Dunn abanou a cabeça. Tinha cinquenta e sete anos, mas parecia mais
novo, com frios olhos cinzentos, lábios finos e cabelo castanho-escuro
abundante. Uma vez, a mulher comentara que ele se mantinha com uma
aparência tão jovem porque não tinha emoções. Talvez tivesse razão; ele
não ficava perturbado como outros homens. Analisava as coisas de uma
perspetiva calma e lógica.
Desde que voltara com o rapazinho naquela manhã, Headly analisara
minuciosamente o cadastro de Parker. Para além de várias multas por caça
furtiva e seis meses na prisão de Shepton Mallet por agressão, muito antes
da guerra, Parker conseguira safar-se das muitas outras acusações que lhe
tinham sido imputadas ao longo dos anos. Fora acusado de vender no
mercado negro e de pilhagens durante a guerra, de roubo e inúmeras
agressões, em muitas das quais as vítimas tinham ficado tão feridas que
tiveram de ser hospitalizadas. No entanto, todas as acusações haviam sido
retiradas. Muitas vezes as testemunhas pareciam incapazes de ir a tribunal,
ou de fazer uma identificação definitiva, e em dois casos os agentes que
haviam feito a detenção mudaram as declarações iniciais.
– É óbvio que o Parker não é o diamante em bruto que o agente Nutting
pensa – declarou Dunn de maneira incisiva. – Maldito imbecil! Se sabia que
três mulheres desapareceram daquela casa, porque é que não nos informou?
Headly pensou bem antes de responder. No seu íntimo, pensava que
Nutting era um bocado burro e extremamente desatento, mas ao mesmo
tempo sentia alguma pena dele. Era difícil arrancar alguma coisa às pessoas
que viviam nos Levels; eram uma comunidade insular e fechada, e não
falavam de boa vontade contra um dos seus.
– Quando conhecer o Parker, acho que vai perceber porque é que o
Nutting deixou passar – disse. – Ele sabe ser um tipo agradável e, à
primeira vista, gosta de todos os filhos.
– Vou ter isso em consideração – afirmou Dunn. – Mas não pretendo
andar com pezinhos de lã com esta família. Quero que sejam todos trazidos
para interrogatório. Incluindo a rapariga.

A velha camioneta cheia de abrigos Anderson tinha desaparecido da


berma coberta de erva onde estava naquela manhã.
– Parece que estamos com azar – disse Headly quando parou na parte da
frente da casa. – A camioneta dele não está cá.
– Ou com sorte – declarou Dunn, erguendo uma sobrancelha e sorrindo
com uma expressão sardónica. – Assim, podemos dar uma espreitadela.
Headly levou Dunn para o pátio das traseiras. Para além das galinhas a
cacarejar o silêncio era absoluto, mas a porta das traseiras estava aberta.
Headly bateu e, como ninguém apareceu, entrou, parando, surpreendido,
quando viu a confusão em cima da mesa. Havia um pedaço de fiambre num
prato, com algumas moscas a zumbir à volta, e pão, manteiga, queijo e
frascos de pickles com as tampas caídas no meio das migalhas. Dava a
impressão de que alguém arranjara uma refeição à pressa, antes de sair.
Andariam à procura de Alan?
– Está alguém em casa? – gritou Dunn.
Headly saiu de novo para o pátio e olhou com uma expressão pensativa
para a tigela de esmalte caída ao pé do portão e para as framboesas
espalhadas pelo chão. Voltou para dentro e mostrou-as a Dunn, apontando
pela janela.
– A Rosie tinha aquilo nas mãos quando nos despedimos esta manhã –
disse. – Não percebo porque é que as deixaria ali se as entornou? A menos,
é claro, que o pai lhe tenha arrancado a tigela das mãos antes de lhe dar uma
tareia.
De repente, sentiu medo. Não por si, mas por Rosie. Ela tinha organizado
a fuga de Alan; era muito provável que tivesse sido castigada por isso.
Dunn ficou contagiado com a ansiedade do sargento e abriu a porta
estreita para as escadas.
– Está alguém aí em cima? – gritou.
Headly passou à sua frente. O palpite que tivera antes ao ver as cicatrizes
de Alan estava a ficar mais forte. Sentiu que havia alguma coisa muito
errada naquela casa.
Subiu os degraus dois a dois e Dunn seguiu-o de perto, com as pesadas
botas a bater ruidosamente no soalho sem tapetes. Olhou para o primeiro
quarto, mas estava vazio, com a cama de casal muito bem feita. No quarto
principal a cama estava por fazer, mas também não tinha ninguém. Correu
para o terceiro quarto, nas traseiras, e abriu a porta fechada.
A sua exclamação de terror e a de Dunn, que estava atrás dele, foram
simultâneas. Rosie estava deitada de barriga para baixo, com os braços e
pernas esticados, atravessada numa das duas camas por fazer. Tinha o
vestido subido por cima da cintura, as cuecas puxadas para baixo e as
pequenas nádegas nuas estavam cobertas de brilhantes vergões vermelhos.
As costas do vestido estavam ensopadas de sangue.
Houvera uma luta violenta no quarto. Uma cama portátil estava desfeita
no chão, um toucador estava virado. Também se sentia um forte cheiro a
urina, pior do que um urinol público num sábado à noite.
Headly correu para Rosie e verificou a sua pulsação.
– Está viva! Rosie! Consegues ouvir-me? – perguntou, enquanto abria
cuidadosamente os botões das costas do vestido. O sangue já estava a
coagular e o tecido colava-se às feridas. Sentiu que era o culpado deste
horrível espancamento. Nem sequer pensara no que lhe poderia acontecer
quando o pai descobrisse que Alan tinha desaparecido. Mas devia ter
pensado! Porque é que não levara Alan para um sítio seguro e depois
voltara para vir buscá-la?
Um gemido baixo indicou que ela estava consciente. A sua cabeça virou-
se quase impercetivelmente e os dois homens vislumbraram o olho quase
fechado num monte de tecido em carne viva.
Ela pareceu reconhecê-lo.
– Também me vai levar daqui? – gemeu.
Contrariando tudo o que aprendera sobre primeiros-socorros, Headly
levantou-a o suficiente para passar um ombro por baixo do seu peito,
endireitou-se e começou a dirigir-se para as escadas.
– Devíamos chamar uma ambulância – declarou Dunn, pousando uma
mão no seu ombro para o deter.
– Talvez – resmungou Headly. – Mas quer deixá-la aqui mais um minuto?
*

O Dr. Willis olhou para as costas e nádegas dilaceradas da rapariga que


estava no cubículo dois do serviço de urgência do Hospital de Bridgwater e
estremeceu. A enfermeira-chefe já tinha limpado as feridas e vira coisas
muito piores durante a guerra, quando trabalhava no Hospital Real de
Bristol, mas saber que um pai era capaz de espancar a filha com aquela
brutalidade gelou-lhe o sangue.
– Como te sentes, Rosie? – perguntou o médico, tocando-lhe no braço nu.
A enfermeira-chefe já lhe contara que a rapariga nem sequer choramingara
quando o vestido fora descolado das costas. Ficara deitada com a cara para
baixo e escondera o rosto com a mão.
– Já me sinto um pouco melhor – sussurrou ela.
– Vai ficar dorido durante alguns dias – disse ele, a perguntar a si mesmo
como é que uma pessoa tão pequena e jovem podia ser tão estoica. – Mas
vou pôr-te um penso nas costas, dar-te um medicamento para as dores e
depois vais para uma enfermaria.
– Não foi o meu pai que fez isto – disse ela, levantando um pouco a
cabeça e olhando-o de lado. Tinha os olhos enterrados em carne inchada; na
manhã seguinte teria os dois olhos pisados. – Ele bateu-me para eu lhe dizer
para onde é que o Alan tinha ido. Mas foi o Seth que me espancou depois
de o pai sair.

Rosie apercebeu-se de que o homem que a levou para baixo e para um


carro era o polícia de bigode que estava com Ernie Nutting naquela manhã,
mas sentia tantas dores que não conseguiu dizer nada. Era como se tivesse
um ferro em brasa nas costas e só conseguia concentrar-se na esperança de
que em breve alguém o removeria.
Não sabia nem queria saber para onde estavam a levá-la; só sentia uma
dor agonizante e a sensação de estar a ser sacudida de um lado para o outro
no colo do polícia. Contudo, quando chegou ao hospital e a enfermeira lhe
lavou as costas a dor abrandou o suficiente para se lembrar com clareza do
que acontecera.
Cole esbofeteou-a quando ela disse que não sabia para onde fora o irmão.
Ainda estavam no pátio e Rosie caiu contra a vedação com a força da
pancada.
– Diz-me onde é que ele está! – gritou Cole, puxando-a para cima pelos
ombros. – Não te ponhas com jogos parvos comigo!
Alguma coisa se partiu dentro dela e não se importou que o pai voltasse a
bater-lhe.
– Mandei-o esconder-se no carro da polícia. Disse-lhe para lhes contar as
coisas que o senhor e os rapazes lhe fazem, para eles o levarem para longe
de vez e para o deixarem ir viver com o tio.
Queria vê-lo assustado, mas a sua reação ao que ela dissera deixou-a
embasbacada. O pai recuou, deixou-se cair no banco e segurou a cabeça
entre as mãos.
Rosie não conseguiu calar-se e tudo o que tinha reprimido durante anos
saiu numa torrente.
– A Heather era encantadora e fugiu por sua causa. A minha mãe também
fugiu por sua causa e mentiu-me quando me disse que ela tinha morrido em
Londres. A única coisa que faço aqui é trabalhar, cozinhar e limpar. Não
tenho roupa bonita, nem livros para ler, não tenho amigas e tenho medo de
que o Seth e o Norman me façam o que fizeram à Heather.
Ele continuava com a cabeça nas mãos, mas ao ouvir a última frase
endireitou-se rapidamente.
– O que é isso? O que é que os rapazes fizeram à Heather?
Alguma coisa lhe disse que tinha ido demasiado longe, mas agora não
podia recuar.
– Sexuaram-na – disse Rosie, sem saber qual era a palavra certa para
aquilo. – Vi os dois a forçá-la. A Heather estava a chorar. E o Seth assusta-
me ainda mais porque está sempre a tocar-me aqui. – Pôs as mãos no peito.
– Ele diz que está só a ver para saber se estou madura.
Cole levantou-se. Rosie pensou que ele ia bater-lhe de novo e fugiu para a
rua, começando a correr pela estrada o mais depressa que conseguia.
Mas os pés descalços travaram-na; as pedras magoavam-na e quando
parou para olhar para trás, à espera de que Cole estivesse mesmo atrás de si,
não o viu em parte alguma. A viela estava deserta. A razão impôs-se: não
podia ir para a aldeia descalça e Cole não devia estar muito zangado se não
tinha vindo atrás dela, por isso voltou para trás.
Quando contornou a sucata com todo o cuidado ouviu o pai gritar, e, para
jogar pelo seguro, escondeu-se atrás do velho trator e escutou.
– A Rosie está a mentir, pai. Nós nunca fizemos isso à Heather. – A voz
de Seth estava esganiçada e chorosa. – Ela está a tentar passar a culpa para
nós porque o denunciou à polícia.
– Ela não está a mentir – gritou Cole. – Ninguém pensaria numa coisa
assim se não tivesse visto. Malditos animais. E que foi aquilo sobre
apalpares a Rosie? Ela é tua irmã, por amor de Deus!
Ouviu-se um som sibilante e depois um estalido seguido de um grito.
Rosie percebeu que o som era o cinto de couro do pai e que ele estava a
bater nos dois rapazes com ele.
Foi um pandemónio naquele quarto, com gritos, palavrões, pancadas
abafadas e um grande tumulto. Ouviu alguma coisa a partir-se e uma parte
da cama portátil de Alan voou pela janela. Rosie tinha ouvido o suficiente.
Saiu do seu esconderijo e fugiu, atravessando o depósito de ferro-velho e
correndo para o brejo.
Sentou-se na beira de uma vala e limpou as lágrimas que lhe escorriam
pelas faces. Sentiu-se muito pequena, sozinha e assustada. Não se
arrependia de ter mandado Alan embora; pelo menos, ele estava em
segurança, mas sem o irmão para acarinhar e cuidar o que é que lhe restava?
Longos dias solitários a lavar, limpar e cozinhar, sem idas à escola para
quebrar a monotonia, sem ninguém a quem contar histórias, sem ninguém
que a ajudasse a dar de comer às galinhas ou a levá-las para a capoeira. Sem
nenhum objetivo na vida a não ser tentar apaziguar três homens que
aceitavam como um dado adquirido tudo o que ela fazia.
A erva à sua volta era tão alta que os seus olhos estavam ao nível das
pontas ligeiramente penugentas. Olhou em volta e quase lhe pareceu que
estava no meio de um oceano, com o vento a criar vagas e pequenas
ondulações. Esta visão costumava agradar-lhe, mas hoje fê-la sentir que
estava a afogar-se. E não havia ninguém para lhe estender uma mão amiga.
Enquanto voltava para casa olhou para o sol e calculou que deviam ser
duas horas. Não valia a pena ficar na rua mais tempo. Tinha a roupa dos três
homens para lavar, ainda não tinha feito as suas camas e só ficariam mais
zangados se ela se atrasasse com a refeição da noite.
A confusão que encontrou na cozinha alegrou-a um pouco. Era sinal de
que todos tinham saído à pressa, provavelmente para ir a Bristol vender os
abrigos Anderson. Suspirou de alívio; pelo menos teria alguma paz até à
hora do chá e se eles ganhassem um bom dinheiro com os abrigos talvez lhe
perdoassem o que acontecera com Alan e tudo o que ela dissera.
Correu para o primeiro andar para ir buscar toda a roupa suja.
Nada a avisou que não estava sozinha em casa. O silêncio era profundo.
No entanto, quando entrou no quarto dos rapazes a porta fechou-se com
força.
Seth estava lá. Sentiu o seu cheiro antes mesmo de ele falar.
– Então, voltaste? Sua puta de merda – rosnou.
Estava de pé atrás da porta fechada e vestia apenas um par de calças.
Tinha o olho direito vermelho e inchado, sangue coagulado no lábio e viam-
se vergões muito vermelhos nos ombros e no peito feitos pelo cinto de Cole.
Nas mãos tinha o pau fino que usava sempre para aterrorizar Alan.
– P-pensei que t-t-tinhas saído com o pai – gaguejou Rosie. Como
sempre, o cheiro a urina velha era demasiado forte no pequeno quarto.
– Como é que posso ir a algum lado neste estado? – disse. – E a culpa é
toda tua, por isso vou ensinar-te a não inventar histórias.
Rosie não tinha para onde fugir. Recuou por cima de uma pilha de roupa
suja para a janela onde estavam os restos da cama de Alan e, ao perceber
que estava encurralada, tapou a cabeça com as mãos para se proteger.
– Por favor, não me batas, Seth – implorou, mas foi inútil porque o irmão
já estava a levantar a vara.
Fustigou-lhe os braços nus, primeiro um e depois o outro, fazendo-a
saltar de dor.
– Dói, não dói? – provocou-a, tocando-lhe na bochecha com a ponta e
batendo-lhe de lado. – Vai doer muito mais antes de eu acabar.
Seth sempre fora um rufião, mas agora percebeu que infligir dor o
excitava; ele estava corado e sorria com uma expressão ameaçadora.
Rosie tentou fugir quando ele levantou o braço para dar mais força à vara,
mas ao desviar-se tropeçou na pilha de roupa e caiu atravessada na cama de
Norman, que estava por fazer.
– Vou contar ao pai! – gritou.
– Não vais estar viva para lhe dizer nada – gritou Seth em resposta, e no
momento em que a vara cortou o ar Rosie viu a boca do irmão molhada de
cuspo e os olhos pretos a brilhar de ódio.
Não conseguiu contar as vergastadas nem desviar-se delas. Choveram
sobre o seu corpo tão depressa que foi apenas uma interminável e
agonizante explosão de dor.
– Por favoooor – implorou.
Sentiu-o puxar-lhe o vestido para cima com brusquidão e as mãos
agarraram a parte de trás das cuecas e puxaram-nas para baixo. Ela resistiu
furiosamente quando as nádegas ficaram expostas, temendo que ele
repetisse o que o vira fazer a Heather.
– Por favor o quê? – perguntou ele, sarcasticamente. – Queres que eu te
«sexue»? Foi o que lhe chamaste, não foi?
A vara desceu de novo, com mais força ainda, no seu traseiro nu, a cortá-
la como uma faca. Rosie tentou proteger-se com as mãos, agora a gritar de
dor, mas ele afastou-as com a vara e continuou a vergastá-la.
– Vais para a prisão por isto – gritou ela.
Quando o golpe seguinte que esperava não veio, mexeu ligeiramente a
cabeça para ver o que ele estava a fazer. Ficou horrorizada ao ver que tinha
o pénis na mão e estava a esfregá-lo, como Norman fizera naquele dia
enquanto Seth atacava Heather. Tirando aquela vez, nunca vira um pénis
ereto e ficara demasiado chocada para observar. No entanto, o de Seth
parecia enorme, nada como aquela coisa mole e pendente que observava
ocasionalmente quando ele estava a tomar banho. Tapou os olhos e gritou
de novo.
– Grita outra vez – disse ele em voz rouca. – Vá lá, grita. Eu gosto.
Apesar da agonia das feridas que ele lhe infligira, a mente de Rosie
assimilou uma mensagem. Ele estava zangado, perigosamente zangado, e
não tinha medo do que o pai pudesse fazer-lhe por causa disto. Estava para
além de qualquer tipo de razão. Percebeu que não devia dizer mais nada
para provocá-lo. Não devia fazer nada para encorajá-lo.
Soltou mais um grito, mas obrigou-se a controlá-lo em vez de pensar no
que ele estava a fazer e fechou os olhos com muita força para não ver o
pulso em movimento nem o rosto enlouquecido. Devagar, deixou o grito
morrer, com esperança de estar a fingir bem um desmaio.
Ouviu-o soltar um grunhido gutural, mas não se atreveu a abrir os olhos
para olhar. Ouviu o chiado das molas da cama quando ele se deitou
pesadamente ao seu lado e por instantes fez-se silêncio, pontuado apenas
por um longo suspiro.
Quando a mão dele tocou na sua face, teve de se esforçar ao máximo para
não voltar a gritar. A mão estava pegajosa com alguma coisa e cheirava
mal. Controlou-se, à espera de que ele a puxasse para cima, ou que
recomeçasse a bater-lhe, mas em vez disso ouviu uma coisa muito parecida
com um soluço.
Em seguida, ele foi-se embora. Levantou-se, saiu do quarto e desceu as
escadas. Sem dizer mais nada.

Na segunda-feira à tarde, dois dias depois de encontrar Rosie, o sargento


Headly estava de regresso ao mesmo quarto de May Cottage e espreitou
pela janela. Em parte, queria respirar ar puro, pois o quarto fedia tanto
como no sábado, mas acima de tudo queria observar os homens que
estavam no exterior a prender correntes num velho trator para o tirar dali. Já
tinham desimpedido a maior parte da área e havia espaços amarelos e
brancos vazios entre as ervas daninhas que assinalavam os sítios onde
tinham estado as pilhas de pneus e de máquinas velhas.
Headly sentia-se como se não dormisse há um mês, mas a verdade é que
não dormira mais do que duas pequenas sestas desde que encontrara Rosie
naquele quarto no sábado à tarde.
Cole e Norman Parker foram detidos quando voltaram para casa no
sábado à noite, já tarde. Estavam ambos muito embriagados e ainda bem
que tinham vindo seis guardas prendê-los porque os dois homens resistiram
violentamente. Um agente ficou com um olho negro e a escorrer sangue do
nariz e Headly tinha uma costela estalada.
A atitude de Cole Parker em relação à detenção foi intrigante. Admitiu
quase logo que fora duro com Alan e desculpou-se dizendo que os rapazes
necessitavam de disciplina para endurecerem. E não revelara remorsos, nem
sequer medo, de ser acusado de crueldade. No entanto, quando lhe
contaram o que Seth fizera a Rosie ficou quase incoerente de raiva e, depois
de vociferar o que faria ao filho quando lhe pusesse as mãos em cima,
acabou por começar a chorar, soluçando e dizendo que sempre amara Rosie
e que ela era a sua preferida.
Norman, por outro lado, quando foi posto sozinho numa cela tornou-se
dócil e até arrependido de ter agredido os polícias. Revelou-se um rapaz
simplório que imitava cegamente o pai e o irmão mais velho. Enquanto
contava o que faziam em Londres, usou palavras como «vigarizar» e
«ameaçar pessoas» com tanta naturalidade que foi evidente que não fazia
ideia de que aquilo era errado ou vergonhoso.
Também não pareceu compreender o conceito de crueldade com uma
criança pequena. Pareceu baralhado e disse que Alan «só levava com a vara
e com o cinto como eu e o Seth». De igual modo, quando lhe perguntaram
se o pai batia em Ruby e Heather, respondeu, «Bem, elas só levavam uns
estalos quando precisavam».
Seth ainda não fora encontrado e isto era um mistério. Não fora avistado
por ninguém nem tinha um meio de transporte. Como todos os Parker,
conhecia cada recanto dos brejos, por isso fazia sentido que se tivesse
escondido algures, num acampamento improvisado. No entanto, chovera
muito desde domingo de manhã até há uma ou duas horas, quando a chuva
passara a chuviscos, e embora ele pudesse ter levado algumas provisões e
um casaco impermeável, era duvidoso que conseguisse esconder-se durante
muito tempo. Mais preocupante ainda, faltava uma espingarda no alpendre.
Depois de o trator ser retirado, Headly desceu as escadas. Doía-lhe a
costela e desejou poder ir para casa. Não havia um verdadeiro motivo para
ficar; fizera a sua parte e revistara a casa inteira em busca de alguma coisa
que pudesse dar-lhes uma pista. Contudo, para além de encontrar uma caixa
de dinheiro atrás de um tijolo solto na chaminé da sala de visitas com quase
cem libras, um velho livro de cupões de racionamento de Heather Farley
enfiado nas costas de uma das poltronas da sala de visitas, um lenço de seda
azul-claro preso num pedaço de madeira lascada no fundo de uma cómoda
no quarto de Cole e uma fina aliança de ouro no meio de algumas contas
baratas numa caixa com bugigangas, encontrara poucos sinais de que
alguma vez tivessem vivido mulheres adultas naquela casa, e muito menos
alguma coisa que pudesse indiciar homicídio.
Mesmo sem provas, o inspetor Dunn organizara a busca e um grupo para
fazer escavações na terra dos Parker, chamando todos os homens
disponíveis na zona para ajudar. Declarou que Cole não tinha um álibi para
os dias em que as suas mulheres tinham desaparecido. Também não
conseguira apresentar uma justificação plausível para não ter comunicado o
seu desaparecimento à polícia. Headly estava tão convencido como o
inspetor de que todas as mulheres estavam mortas, mas pensou que Dunn
era muito corajoso por tentar comprovar o seu palpite e começar a escavar.
A sua carreira não seria tão brilhante no futuro se estivesse enganado em
relação a isto.
O pátio das traseiras estava enlameado, muito pisado pelos homens
depois da chuva forte do dia anterior. Na lama viam-se vários objetos que
os Parker tinham usado para resistir à detenção – postes de vedação, um
machado e duas garrafas partidas. E no meio dos destroços estava o jardim
arruinado de Rosie. Todas as flores tinham sido pisoteadas por botas
pesadas. Até as que estavam no velho lava-loiça tinham sido
completamente esmagadas, como se alguém tivesse caído em cima delas.
Era quase simbólico do que lhe acontecera.
Headly não sabia como é que a rapariga conseguiria recuperar, tal como
aquelas flores. Os médicos e enfermeiras tratariam as suas feridas
exteriores, mas duvidava que algum medicamento apagasse a recordação
daquele espancamento. E tinha a certeza absoluta de que o pior ainda estava
para vir.

O inspetor Dunn afastou-se dos homens e ficou a vê-los cavar.


– Como está a correr, senhor inspetor? – perguntou-lhe Headly. – Algum
sinal de já ter sido escavado antes?
Dunn abanou a cabeça.
– Aquele ferro-velho comprimiu o chão e, com três anos de neve, gelo,
chuva e sol parece tudo igual. Mas um dos rapazes acabou de encontrar os
restos de um sapato de mulher no fundo de uma pilha de pneus.
Nas outras zonas dos Levels a terra era macia e esponjosa devido à turfa,
mas May Cottage fora construída em terreno um pouco mais elevado que
era duro como rocha. A chuva forte do dia anterior não amolecera muito o
solo e tudo indicava que seria um trabalho longo e árduo.
Às dez e meia os chuviscos transformaram-se de novo em chuva forte,
obrigando os homens a recuar para uma tenda improvisada que tinham
montado no fundo da viela. Até agora haviam trabalhado sem se
preocuparem com a chuva, a escorregar e deslizar na lama, mas tornou-se
impossível continuar.
A camada superior de erva e solo comprimido já tinha sido removida da
área e quando a chuva começou a acumular-se no subsolo mais duro e
menos poroso pareceu uma grande piscina insuflável iluminada por
algumas lanternas à prova de vento. O oficial superior mandou os homens
que tinham estado de serviço desde manhã irem para casa e ficou com os
seis homens que entraram de serviço ao fim da tarde para ficarem de
guarda.
Ao amanhecer a chuva tinha parado, mas quando os homens saíram da
tenda com as pás para recomeçar a escavar repararam num fenómeno
interessante. Em dois lugares, a cerca de três metros de distância um do
outro, a água da chuva que se tinha acumulado estava a escoar mais
depressa do que nos outros sítios, deixando uma forma curiosamente
retangular em cada caso.
– Ora, diabos me levem! – exclamou o guarda Sam Kenting, que viera de
Bristol e estivera a entreter os homens durante a noite com histórias sobre
um trabalho que tivera nos esgotos. – Se não é o sítio onde elas estão
enterradas, amanhã vou voltar a apanhar merda à pazada.
Quando os reforços chegaram pouco depois das seis da manhã, entre os
quais Headly, que não conseguira ficar na cama, encontraram os seis
homens a escavar a toda a velocidade, três em cada sítio. Já tinham cavado
cerca de um metro e vinte e estavam cobertos de lama da cabeça aos pés.
Pouco passava das sete quando Sam Kenting bateu num osso. Estava
sozinho no buraco, que ficara demasiado apertado para ter mais do que um
homem a cavar. Tinham-lhe dito para ir para casa, mas ele ignorara a ordem
e quando gritou todas as pás foram pousadas, os cigarros apagados a toda a
velocidade e todos correram para ver o que ele encontrara.
– Não me digam que não é humano – declarou ele, inclinando-se para
retirar o pesado barro com as mãos. – Se isto não é um fémur, então eu
chamo-me Dr. Crippen1.
Os homens rodearam o buraco e observaram com atenção quando
Kenting afastou com muito cuidado a terra com uma colher de pedreiro.
Pouco a pouco, todos viram um fémur humano ganhar forma.
– Sai daí agora – disse Headly, o primeiro a voltar à realidade, e estendeu
uma mão a Sam Kenting para ajudá-lo a sair. A avaliar pelo tamanho
pequeno era o fémur de uma mulher, e para ele isso bastava por agora. –
Vou ter de entrar em contacto com o inspetor e ele vai querer falar com a
chefia em Taunton e com os rapazes da equipa forense. Mas tu e os outros
homens fizeram um bom trabalho, Sam. Mais tarde pago-vos uma cerveja.
*

A enfermeira-chefe Dowd percebeu que a rapariga estava a chorar


quando fez a ronda na enfermaria pouco depois das onze e meia da noite.
Não se ouvia nada, mas o seu sexto sentido fê-la perceber o significado do
ligeiro estremecimento da roupa da cama. Todas as doentes estavam a
dormir, com exceção da velhota que estava no fundo da enfermaria, e o seu
primeiro pensamento foi que devia dar à rapariga a dignidade de chorar
sozinha.
No entanto, a enfermeira-chefe Dowd era irlandesa e tinha seis irmãos e
irmãs – uma família carinhosa e pobre onde partilhavam as alegrias e
tristezas uns dos outros. Desde que se soubera às seis da tarde que os corpos
de duas mulheres tinham sido encontrados enterrados em Catcott, toda a
gente no hospital sussurrava que a rapariga que fora trazida para ali vítima
de um terrível espancamento também era a filha do assassino. A
enfermeira-chefe Dowd ficou horrorizada por as pessoas tirarem conclusões
tão rápidas sem nenhuma prova concreta. Ficou ainda mais irritada quando
uma alma pouco caridosa sugeriu que a rapariga devia ser levada para outro
lado. Na opinião da enfermeira-chefe Dowd, a jovem Rosie tinha direito a
solidariedade e compreensão. Quando o pai fosse julgado, as coisas seriam
muito piores.
– Então, Rosie – murmurou, afastando a roupa da cama do rosto da
rapariga. – Queres falar comigo em vez de chorar sozinha?
– Não estou a chorar – insistiu Rosie, tapando os olhos inchados com as
mãos. A enfermaria estava tenuemente iluminada por um candeeiro com um
quebra-luz verde sobre a secretária da enfermeira-chefe no meio da sala. –
Só não consigo dormir.
– Não me enganas – replicou a enfermeira-chefe. – Eu tenho olhos na
nuca e antenas escondidas por baixo do avental que me dizem quando
alguém está a sofrer e se é por causa das feridas ou porque o seu coração
está a partir-se.
Rosie não respondeu logo. Estar no hospital era uma experiência estranha
e inteiramente nova para ela. Pela primeira vez na vida era o centro das
atenções, preocupavam-se com ela e tratavam-na bem. Sentira dores
terríveis nas primeiras vinte e quatro horas e todo aquele carinho ajudara a
suavizá-las.
Na segunda-feira, começara a sentir-se um pouco melhor e até tivera
alguma esperança no futuro. Uma mulher-polícia que veio vê-la disse-lhe
que quando estivesse suficientemente bem para sair do hospital uma
assistente social iria ajudá-la a encontrar outro sítio para viver e,
posteriormente, um emprego. Também lhe disse que Alan estava a adaptar-
se muito bem à nova casa e que os seus pais de acolhimento talvez o
trouxessem ao hospital para a visitar.
O sargento Headly também veio visitá-la. Trouxe-lhe uma linda camisa
de dormir e uma grande tablete de chocolate, e conversaram sobre os filhos
dele e sobre Alan. Contou-lhe que o pai e Norman tinham sido detidos no
sábado à noite, mas Seth desaparecera. Pediu-lhe que sugerisse sítios ou
pessoas para onde ele pudesse ter ido. No entanto, nunca disse que
suspeitava que Cole ou os seus irmãos tinham feito alguma coisa pior do
que serem cruéis.
Depois, hoje cedo voltara para lhe dizer que tinham encontrado os corpos
de duas mulheres por baixo da sucata ao lado da casa que pensavam ser os
de Ruby e Heather, e que iam acusar o seu pai de homicídio.
Rosie não conseguiu acreditar que fosse verdade. Disse-lhe que devia ser
um engano, começou a chorar e ficou com tanto frio que o polícia teve de
lhe trazer outro cobertor.
Ele foi-se embora e Rosie passou toda a tarde deitada de barriga para
baixo a desejar também estar morta. Parecia um daqueles pesadelos que
voltam mesmo depois de a pessoa acordar, se virar e dizer a si mesma que
não é real. Via o ferro-velho com toda a nitidez e via-se a brincar lá às
escondidas com Alan, a treparem pelas pilhas de pneus, sentados no trator, a
fazer tendas com pedaços de madeira e cobertores velhos.
E durante todo o tempo que estivera convencida de que a sua mãe e
Heather viviam em Londres, elas estavam ali. Vermes rastejavam sobre
elas, larvas comiam a sua carne. Ela e Alan tinham brincado em cima das
sepulturas das mães.
Embora estivesse sempre a repreender as enfermeiras por fazerem o
mesmo, a enfermeira-chefe Dowd sentou-se na beira da cama de Rosie.
– O que o teu pai fez é um pecado dele, não teu – disse. – Tens de te
lembrar sempre disso.
– Mas eu sentei-me no seu colo, abracei-o e beijei-o – sussurrou Rosie. –
Eu amava-o. Como é que pude amar um assassino?
A enfermeira-chefe Dowd não soube responder àquela pergunta e
calculou que seria uma coisa que perturbaria a criança até ao fim da vida.
Por vezes, era muito mais fácil lidar com a emoção do ódio. Ardia com
intensidade e acabava por desaparecer. O amor perdurava.

1 Hawley Harvey Crippen, falecido em 23 de novembro de 1910, foi um homeopata e especialista


em olhos e ouvidos americano enforcado na prisão de Pentonville em Londres pelo homicídio da
mulher e foi o primeiro suspeito a ser apanhado com o auxílio da telegrafia sem fios. Depois de
uma festa em sua casa, a mulher desapareceu e ele afirmou que ela voltara para os Estados Unidos,
declarando mais tarde que falecera e fora cremada. (N. da T.)
CAPÍTULO 4

E nquanto conduzia para Bristol, Miss Violet Pemberton olhou de soslaio


para Rosie, que estava sentada no banco do passageiro, e ficou
preocupada com o seu silêncio. A rapariga não proferira uma única palavra
desde que saíra do Hospital de Bridgwater há quase uma hora.
Violet era a assistente social que arranjara uma casa para Alan e agora,
duas semanas depois de o alojar em Taunton, também levava Rosie para
uma família de acolhimento. As feridas físicas do espancamento já estavam
curadas, mas Violet receou que as cicatrizes mentais, invisíveis, fossem
demasiado profundas para alguma vez sararem.
– Já estiveste em Bristol, Rosie? – perguntou.
Rosie queria responder; sabia que devia parecer muito grosseira, talvez
até burra, ali sentada a olhar pela janela. Não sabia porque é que não
conseguia dizer nada; tinha perguntas suficientes na cabeça para passar dias
inteiros a falar, mas não conseguia articulá-las. Respirou fundo.
– Uma vez, Miss, mas foi há muito tempo – conseguiu responder. – A
Heather levou-me lá de autocarro, para ver o Pai Natal.
Violet quase desejou não ter perguntado. No entanto, nas três conversas
que tivera anteriormente com a pobre menina quase todas as perguntas que
lhe fizera envolviam uma das pessoas que ela amara e agora perdera.
– Então, suponho que não vais reconhecer a cidade – replicou. – O centro
de Bristol ficou muito destruído durante a guerra e agora está a ser
reconstruído. Mas é uma cidade muito bonita e tem algumas lojas boas e
grandes. Para mim, é sempre um sítio empolgante.
Violet estava convencida de que uma menina de quinze anos que passara
a vida inteira isolada no campo não partilharia o seu entusiasmo ao ver uma
cidade danificada pela guerra ganhar vida nem compreenderia que os anos
cinquenta podiam ser uma década em que ocorreriam mudanças da maior
importância. Violet sentia que já estavam a começar, apesar de o
racionamento e a austeridade nunca mais chegarem ao fim. O novo Serviço
Nacional de Saúde, o conceito de uma sociedade que cuidava das pessoas
desde o nascimento até à morte, e as influências do outro lado do Atlântico
– grandes carros e casas modernas e mais fáceis de cuidar – iam mudar a
ética tradicional da classe operária britânica. Estava convencida de que
dentro de pouco tempo qualquer homem poderia subir acima da condição
em que nascera. Havia trabalho para todos, grandes prédios de habitação
nasciam de um dia para o outro como cogumelos e o governo transmitia
mensagens de que a vida familiar era da maior importância, encorajando as
mesmas mulheres que tinham trabalhado tanto em fábricas durante a guerra
a ficar em casa e dedicarem-se exclusivamente aos filhos e aos maridos.
Estava a tornar-se a era dos idealistas.
Violet também se considerava uma idealista. Era uma mulher baixa e
corpulenta de quarenta e cinco anos e o cabelo castanho liso com um corte
muito curto e austero não a favorecia, do mesmo modo que os fatos de
tweed que realçavam a sua corpulência não eram os mais indicados, pois
ambos transmitiam a imagem de uma mulher inacessível e bastante
masculina. Na realidade, Violet era bondosa, sensível, tinha uma mente viva
e um rosto bonito. A sua pele era tão clara e lisa como a de uma menina,
com lindos olhos cor de avelã e maçãs do rosto muito bem definidas. No
entanto, Violet Pemberton preocupava-se pouco com a aparência.
Canalizava todas as suas energias para ajudar os outros.
Tinha sido extremamente difícil encontrar um lar de acolhimento para
Rosie. Para além das objeções da maioria das pessoas a receber a filha de
um possível assassino, aos quinze anos ela era demasiado crescida para um
lar de acolhimento normal e jovem de mais para viver sozinha.
Quando uma colega sua, uma assistente social de Bristol, sugerira os
Bentley, que conhecia da igreja, Violet ficara aliviada. Teria preferido
colocar Rosie em casa de pessoas que conhecesse pessoalmente, mas o
tempo esgotara-se, o hospital queria a cama e era importante tirá-la o mais
depressa possível dos Somerset Levels, pois os ânimos estavam muito
exaltados contra os Parker. Até aparecer alguém mais adequado, Rosie iria
ajudar Mr. e Mrs. Bentley nas tarefas domésticas em Kingsdown, Bristol,
em troca de alojamento e alimentação.
– Estas pessoas sabem o que o meu pai fez, Miss? – conseguiu Rosie
perguntar por fim.
– Sim, minha querida. – Violet procurava ser sempre franca com as
crianças que estavam ao seu cuidado. – Mas não deixes que isso te
preocupe. Eles são pessoas boas, cristãs, e ofereceram-se para te ajudar. –
Desejava muito que os Bentley estivessem à altura da recomendação que a
colega lhe fizera, mas a única reunião que tivera com eles não fora
suficientemente longa para avaliar se os motivos que os levavam a oferecer
um lar a Rosie eram puro altruísmo ou se queriam apenas melhorar a sua
imagem.
Até há cinco anos, Violet raramente precisava de pensar nos motivos das
pessoas. A enfermagem fora a sua vida e não era uma profissão atraente
para os vangloriosos.
Começara em St. Mary, em Paddington, onde chegara ao cargo de
enfermeira do bloco operatório, e no princípio da guerra integrara o Corpo
Real de Enfermagem Queen Alexandra. Adorara estar no QA e todas as
oportunidades para viajar que aquele cargo lhe proporcionara. Estivera na
Índia e no Egito e vira paisagens que poucas das suas atuais colegas podiam
imaginar.
Em 1947, consciente de que estava a ficar sem tempo, saíra do QA.
Queria um marido e filhos, e, embora a enfermagem no exército a pusesse
em contacto com homens enquanto trabalhava, todos os adequados já eram
casados.
Voltar para o Somerset e tornar-se assistente social não resultara como ela
esperava. Comprara uma pequena casa de campo, aprendera a conduzir e
adaptara-se à vida civil, mas não conseguira encontrar um marido
adequado. Procurava um homem forte e de confiança, que tivesse estado no
exército, de preferência oficial, muito embora estivesse disposta a
considerar um sargento. Teria de ter viajado tanto como ela e de partilhar a
sua paixão por música clássica. Não se importava que tivesse filhos de um
casamento anterior.
Conhecera diversos viúvos durante o seu trabalho e, se tivesse baixado
um pouco os padrões de exigência, dois ou três talvez quase tivessem
cumprido os seus requisitos. Mas Violet não era mulher para baixar os
padrões em circunstância alguma. Agora, passados cinco anos, sentia-se um
pouco desiludida. Não com a falta de marido ou filhos, pois era o seu
destino, mas porque o trabalho a pusera frente a frente com alguns dos
aspetos mais desagradáveis da natureza humana.
Crescera no Somerset, mas não fazia ideia de que o incesto era tão
predominante no campo. Numa família horrível que visitara, o pai
engravidara as três filhas. Também não fazia ideia de que havia tantas mães
desleixadas e incapazes. De vez em quando apetecia-lhe voltar para o
ordeiro mundo dos hospitais, vestir de novo uma bata cirúrgica e voltar a
conviver com pessoas inteligentes e dedicadas, que partilhavam os seus
elevados padrões.
Porém, quando foi chamada à esquadra da polícia de Bridgwater para ver
Alan Parker, não fazia a menor ideia de que os poucos fiapos de convicção
que ainda lhe restavam de que os atos verdadeiramente bárbaros só
aconteciam nas cidades estavam prestes a ser arrancados pelas raízes.
Vinte e quatro horas depois de levar Alan para um lar de acolhimento em
Taunton, foi avisada de que a irmã dele estava no hospital depois de ter
sofrido um terrível espancamento e que a polícia andava a escavar a terra à
volta de May Cottage.
Ainda agora, duas semanas mais tarde, todos continuavam inquietos com
a descoberta dos corpos de duas mulheres enterrados na propriedade.
Multiplicavam-se os rumores de que havia mais nos brejos. A polícia fizera
um apelo para que Ethel Parker aparecesse, para poderem descartar outra
possível vítima, mas até ao momento ela não respondera.
Cole estava detido na cadeia de Bristol e protestava vigorosamente a sua
inocência. Seth fora apanhado uma semana depois de os corpos serem
descobertos. Estava escondido nos brejos e a polícia acabara por capturá-lo
porque ele cometeu o erro de acender uma fogueira à noite. Só foi acusado
de danos corporais severos contra Rosie, mas Violet sabia que a polícia
estava convencida de que ele também estava envolvido nos homicídios.
Norman, no entanto, fora libertado. A polícia convenceu-se de que ele
não tinha conhecimento dos homicídios nem participara neles. Violet ouvira
dizer que ele fora trabalhar para Cardiff. May Cottage fora esvaziada e
entaipada porque se tornara uma espécie de Meca para os mórbidos
mirones.
Todavia, os Parker adultos, culpados ou inocentes, não eram uma
preocupação sua. A sua missão era garantir a segurança e bem-estar das
duas crianças. Tinha sido muito fácil lidar com Alan. Apesar de perguntar
muitas vezes por Rosie nos primeiros dias que passara com os pais de
acolhimento, depressa se adaptara à nova vida e dava-se muito bem com
Mrs. Hughes, a nova mãe de acolhimento.
Rosie, no entanto, era uma grande complicação. Violet gostaria de a ter
conhecido antes de tudo isto acontecer. Ela parecia muito calma e
controlada. Seria fingimento, uma maneira de impedir que as pessoas se
aproximassem de mais dela, ou era naturalmente assim? Embora estivesse
muito aliviada por Rosie estar a aceitar tudo tão bem – tinha dificuldade
para lidar com adolescentes perturbadas –, pensou que a sua dócil aceitação,
a ausência de lágrimas ou de explosões emocionais, era um pouco estranha,
tendo em conta as circunstâncias.
– Estamos quase a chegar, Miss? – perguntou Rosie de repente,
interrompendo as reflexões de Violet.
– Sim. Faltam cerca de oito quilómetros. Já te disse que Kingsdown, a
zona onde os Bentley vivem, fica numa encosta íngreme e, a uma curta
distância a pé das lojas e das docas? Ali perto há alguns sítios antigos muito
pitorescos e uma zona chamada Clifton que é esplêndida.
Rosie olhou pela janela com desalento. Tudo tinha um aspeto cinzento e
triste porque estava a chover e parecia que estavam no outono e não em
julho, em pleno verão. Estava convencida de que nunca mais acharia
alguma coisa ou algum sítio esplêndido. Também pensava que não gostaria
de viver numa cidade e estava com receio de ir morar com desconhecidos.
– Quando é que posso ver o Alan? – perguntou alguns minutos mais
tarde. Estava muito desconfiada por Miss Pemberton ter levado o irmão
para Taunton e tê-la alojado em Bristol. Pensou que a grande distância entre
os dois lugares se destinava a separá-los permanentemente.
– Falaremos sobre isso daqui a algumas semanas, quando estiveres
instalada – respondeu a assistente social num tom brusco. Era comovente
que Rosie se importasse mais com o irmão mais novo do que consigo
mesma, mas também era um pouco irritante. – Mrs. Hughes acha que ele
precisa de estar algum tempo só com eles para se adaptar bem. Mas já te
disse que ele está muito feliz com aquela família, minha querida. Deixou de
fazer xixi na cama, come bem e está contente por ir para uma escola nova
em setembro.
Rosie pensou que tudo aquilo parecia muito bom. Estava muito feliz por
ele estar a ser bem tratado. Só gostaria de conseguir explicar-lhe que
precisava de ver o irmão para sentir que ainda tinha alguém.
Depois, havia os pensamentos terríveis e sujos que a atormentavam
constantemente. Como a recordação do que Seth e Norman tinham feito a
Heather e o irmão mais velho a esfregar o seu «coiso» enquanto ela gritava.
No seu íntimo, sabia que Seth era muito mau, talvez ainda mais perigoso do
que o pai. Sempre que o sargento Headly fora vê-la ao hospital, uma
vozinha não parava de lhe sussurrar que devia dizer-lhe isso e explicar os
seus motivos. No entanto, não conseguira. Afinal de contas ele era seu
irmão, ainda que o odiasse. Ao mesmo tempo, esperava que Seth fizesse
alguma coisa, fosse o que fosse, enquanto estava na prisão para que a
polícia percebesse como ele era mau.
Quando entraram em Bristol e viu edifícios grandes, lojas bonitas e
multidões, Rosie tentou esquecer os seus problemas e ficar entusiasmada.
Aqui ninguém saberia quem ela era e não lhe apontariam o dedo nem
sussurrariam sobre ela. Talvez Bristol fosse um bom lugar para viver.

– Cá estamos – disse Miss Pemberton com vivacidade, parando por fim


diante de uma fila de casas jorgianas cinzentas. – Agora, antes de entrarmos
e de te apresentar aos Bentley, só quero lembrar-te uma ou duas coisas. Eu
estou aqui para te ajudar, Rosie. Se tiveres algum problema, alguma coisa
que me queiras dizer, escreve-me e eu venho ver-te.
«Aqui estarás em segurança. Ninguém sabe quem és. Mrs. Bentley dirá
aos amigos que estás a trabalhar cá em casa. Esforça-te para ser uma boa
menina, obedece-lhes e tudo correrá bem.»
Passados vinte minutos, Rosie estava a beber uma chávena de chá na sala
de visitas de Mrs. Bentley. Visitara toda a casa de quatro andares, desde a
cozinha na cave até ao quarto onde dormiria no último andar, e agora estava
a olhar pela janela, consciente de que Miss Pemberton e Mrs. Bentley
estavam a falar sobre ela, mas demasiado interessada na paisagem para
prestar atenção à conversa.
Kingsdown Parade ficava no cimo de uma colina, mas só se percebia isso
depois de entrar em casa e espreitar pelas janelas das traseiras. Mesmo no
meio desta chuva de verão, tinha uma espetacular vista panorâmica dos
telhados, com colinas verdes ao longe e o rio Avon a serpentear pela cidade
como uma cobra prateada. Rosie não sabia que Bristol era uma cidade tão
grande; parecia ter casas para um milhão de pessoas e dúzias de
campanários de igrejas. Porém, melhor ainda que a vista era o jardim dos
Bentley lá em baixo; estava um pouco desleixado, com muitas árvores e
arbustos, mas convidava à exploração.
– Estás a ouvir, Rosie? – perguntou Miss Pemberton, obrigando-a a virar-
se para as duas mulheres e a parecer interessada. – Mrs. Bentley estava a
perguntar-me sobre as tuas roupas. Expliquei-lhe que te arranjei dois
vestidos e sapatos novos, e que vou trazer-te um casaco o mais depressa
possível.
Rosie ruborizou-se. Não queria ser um caso de caridade. Como o vestido
que usava quando Seth a espancara ficara arruinado, Miss Pemberton
comprara-lhe o vestido verde, os sapatos e a roupa interior que usava agora,
bem como mais um vestido para o dia a dia e uma muda de roupa interior.
Eram encantadores, o tipo de roupa que sempre quisera ter, mas não
esperava que Mrs. Bentley tivesse de saber que não lhe pertenciam
verdadeiramente.
Também não gostou da expressão de Mrs. Bentley. Era uma mulher
grande, de rosto severo, toda vestida de cinzento e muito apertada com
fortes espartilhos. O cabelo era grisalho e estava preso com uma rede.
Pouco antes dissera que tinha três filhas crescidas e gabara-se de que
mantinha os seus quartos prontos para o caso de virem para casa
inesperadamente, mas Rosie pensou que ela parecia demasiado altiva para
ser maternal.
– A Rosie deve estar extremamente confusa – disse a mulher, olhando-a
com uma daquelas falsas expressões bondosas. – Esta casa deve ser muito
diferente do que está acostumada.
Rosie ficou magoada. Estava muito consciente do seu sotaque do
Somerset desde o instante em que entrara naquela casa porque Mrs. Bentley
era muito snobe. Porém, a sugestão de que vinha de um casebre irritou-a. A
casa dos Bentley era grande, mas os tapetes e a mobília estavam velhos e
gastos. A sala de visitas de May Cottage era muito mais imponente.
– A Rosie vai acostumar-se a estar aqui não tarda nada – replicou Miss
Pemberton, e Rosie teve a impressão de que ela também não gostava muito
de Mrs. Bentley. – Ela está acostumada a cuidar da família inteira, a
cozinhar, lavar a roupa e limpar, e segundo sei fazia um belo trabalho.
Tenho a certeza de que será uma boa ajuda para si, Mrs. Bentley. Agora
quer fazer o favor de lhe explicar as regras da casa? A hora de deitar e tudo
o resto.
Edith Bentley era uma pessoa de ideias. Tinha uma diferente a cada três
ou quatro meses. As ideias anteriores tinham ido desde juntar Bíblias velhas
para enviar para as missões em África, a tricotar mantas para refugiados e
ajudar «infelizes». A sua posição na igreja local significava que podia pôr
outras pessoas a fazer o trabalho e ela limitava-se a coordená-lo. Pouco
depois da guerra houvera uma grande quantidade de mães solteiras e ela
arranjara casas para a maioria, mas depois descobrira que a maior parte das
jovens mães se queixavam de que se esperava que fizessem tanto trabalho
doméstico que não tinham tempo para cuidar dos seus bebés.
Recentemente, tivera um breve interesse por ex-presidiários. Persuadia as
pessoas a darem-lhes casa em troca de trabalhos variados e jardinagem até
eles conseguirem organizar a sua vida. Infelizmente, alguns deles tinham-se
organizado de uma forma mais criativa do que arranjar um emprego
permanente: uma abastada paroquiana chegara a casa um dia e descobrira
que as pratas da família tinham desaparecido, juntamente com a criada.
Quando uma assistente social lhe disse que Violet Pemberton procurava
uma casa para a filha do assassino, percebeu logo que seria uma
oportunidade de ouro para melhorar a sua reputação enfraquecida na igreja
e ter alguma ajuda nas tarefas domésticas. É claro que nenhuma pessoa
razoável pensaria que a criança era perigosa por causa do que o pai fizera,
mas a maioria das amigas de Edith Bentley da paróquia de St. Matthew
eram solteironas medrosas e ficariam impressionadas com a sua coragem e
compaixão.
Edith ficou algo desapontada ao perceber que Rosie Parker era uma
rapariga atraente e aparentemente inteligente, apesar do medonho sotaque
rústico: esperava uma pessoa simplória e um pouco burra.
– Espero que estejas levantada às sete horas da manhã. – Mrs. Bentley
baixou os óculos para espreitar para Rosie por cima deles. – Vou preparar
uma lista de tarefas que devem ser executadas de manhã. O almoço é à uma
hora em ponto, porque Mr. Bentley vem almoçar a casa. Depois de
arrumares a cozinha, tens algum tempo livre até às cinco. Quero-te na cama
às dez da noite. Tenho a certeza de que não será preciso dizer que tens de
ficar em casa à noite. Não gosto que as jovens andem a calcorrear as ruas.
Aos domingos de manhã recebes dois xelins e seis pence. Farás todas as
refeições connosco, mas penso que talvez prefiras passar o serão na
cozinha; há lá um rádio que podes ouvir.
Rosie sentiu que esperavam que dissesse alguma coisa. Olhou
rapidamente para a sala de visitas, em busca de inspiração. Viu os muitos
livros e, pela primeira vez naquele dia, esboçou um verdadeiro sorriso.
– Posso ler alguns daqueles? – perguntou.

Durante as primeiras três semanas em casa dos Bentley, Rosie pensou


muitas vezes em fugir. Mrs. Bentley não lhe batia, não a fazia passar fome
nem trabalhar de mais, mas estava sempre a queixar-se desde manhã até à
noite.
A mulher encontrava defeitos em tudo, desde a maneira como ela falava
até à falta de modos à mesa e à forma como executava a mais simples das
tarefas. Há muito que Rosie deixara de tentar manter uma conversa com ela.
Cada frase que dizia era corrigida.
– É «Eu não», não «Ê não». Nós dizemos «Isto é», não «Ist’é». E para de
enrolar esses erres! Pareces uma trabalhadora agrícola.
Era mais fácil ficar calada do que estar sempre a ser recordada da sua
ignorância.
Mrs. Bentley espreitava por cima do ombro de Rosie enquanto ela estava
a passar uma camisa a ferro, insistindo que tinha de começar pelo colarinho
e a seguir passar os punhos. Lenços de assoar ou toalhas com bordados
tinham de ser engomados sobre uma grande espessura de cobertor. Gritava,
horrorizada, quando Rosie mergulhava pratos sujos em água quente;
primeiro, tinham de ser passados por água fria. Quando Rosie estava a fazer
uma cama, a limpar o pó de uma divisão ou a varrer as escadas, a mulher
observava-a, a debitar uma enorme quantidade de instruções. Nunca lhe
dirigia uma palavra de louvor e à noite Rosie subia para o seu quarto e
soluçava até adormecer.
Ao fim da tarde do primeiro dia Rosie estava a pôr manteiga no pão para
o chá quando Mrs. Bentley subiu para abrir a porta principal. Antes de sair
da cozinha, mandou-a pôr a mesa.
Embora a cozinha fosse na cave, era uma divisão agradável e luminosa,
pintada de verde-claro, com as portas dos armários beges. Eles tinham todos
os equipamentos modernos – um fogão e caldeira a gás – e nenhuma peça
de loiça estava rachada. Rosie pôs a mesa do centro para os três e
certificou-se de que as facas e garfos estavam no sítio certo. Para sua
surpresa, Mrs. Bentley guinchou quando voltou para baixo e viu o seu
trabalho.
– O que é que te passou pela cabeça? – exclamou, apertando os lábios
muito chocada, como se Rosie tivesse esventrado o gato na sua ausência. –
Eu estava a referir-me à mesa da sala de jantar. Só os criados é que comem
na cozinha!
Rosie subiu as escadas a cambalear para a sala de jantar no rés do chão
com um tabuleiro cheio de coisas que pareciam totalmente desnecessárias,
mas Mrs. Bentley depressa lhe explicou tudo sobre as «minúcias» de pôr a
mesa e apresentou-lhe coisas que desconhecia como colheres para compota,
facas para manteiga, passadores de chá, pinças para o açúcar e guardanapos.
Desde então, todas as refeições eram um teste de resistência, pois Mrs.
Bentley debitava um fluxo constante de instruções. «Não segures a faca
como se fosse um lápis. Não te atrevas a virar o garfo para apanhar comida.
Usa a mão direita para beber e pega no pão com manteiga com a esquerda.
Senta-te direita. Mantém os cotovelos para dentro.»
Mr. Bentley nunca participava nestas instruções e limitava-se a comer as
suas refeições em silêncio. Era um homenzinho gentil, com uma tez que
parecia pergaminho claro, um bigode fino como um traço de lápis e cabelo
escuro que cintilava com brilhantina. Tinha uma tipografia em Bristol e
mesmo quando estava calor, e depois de subir as íngremes escadas desde a
cidade, nunca parecia afogueado. Nunca se sentava em mangas de camisa,
arrotava, dizia palavrões ou gritava.
Depois de observá-lo durante tantas refeições, Rosie perguntou a si
mesma se ele ficava em silêncio pelo mesmo motivo que ela, porque a
mulher o vencera pelo cansaço. Se lhe perguntava alguma coisa, ele
raramente dizia mais do que «Sim, querida» ou «Não, querida». Quando
Mrs. Bentley lhe contava algum mexerico ou mencionava uma coisa que
ouvira no rádio, ele erguia uma sobrancelha e replicava, «A sério?» Porém,
embora achasse que o seu silêncio era muito estranho, ele sorria e
agradecia-lhe sempre que ela lhe fazia alguma coisa e Rosie tinha a
impressão de que gostava dela.
Antes do primeiro domingo com os Bentley, Rosie nunca tinha entrado
numa igreja. Sabia coisas sobre Deus e Jesus porque aprendera na escola, e
rezava orações na assembleia escolar. No entanto, Cole não acreditava em
igrejas. Rosie ficou feliz quando Mrs. Bentley lhe disse que teria de ir com
eles; fê-la sentir que estava a ser aceite como um membro da família e
sentia curiosidade para saber o que era um «serviço». Todavia, no instante
em que entrou na igreja no meio dos Bentley viu cabeças voltarem-se para
olhar para si e ouviu os sussurros. «É ela», «Lá vem ela!» e «Tendo tudo em
consideração, até parece bastante normal».
Durante aquele primeiro serviço interminável sofrera com vergonha e
fúria porque era óbvio que Mrs. Bentley tinha contado a toda a gente quem
ela era. Manteve os olhos muito fechados durante as orações para não ver
todas aquelas pessoas abelhudas a observá-la e pediu a Deus para ter força
para ignorar os olhares, as constantes críticas de Mrs. Bentley e o seu
terrível sentimento de culpa.
Afinal de contas, talvez houvesse alguém lá em cima a escutá-la porque
passados dois dias lembrou-se de escrever uma lista com todos os pontos
positivos da sua nova vida em comparação com as coisas que a faziam
querer fugir.
Quando pensou no assunto, percebeu que eram bastantes. Tinha um
quartinho no último andar com uma maravilhosa vista sobre Bristol. Tinha
comida suficiente, havia uma casa de banho a sério e uma retrete interior
com autoclismo. Antes de ser levada para o hospital nunca soubera o que
era um verdadeiro banho e havia muitos livros e jornais para ler. O trabalho
não era árduo. Não havia roupas imundas, cheias de gordura, para lavar,
ninguém entrava com os pés cheios de lama na cozinha da cave e os
Bentley comiam como passarinhos em comparação com os homens da
família Parker, por isso não havia montanhas de batatas para descascar. E
depois havia o jardim. Quando Mrs. Bentley não estava a observá-la como
um falcão ela passeava lá fora, arrancava algumas ervas daninhas ou parava
para cheirar as rosas, e esses momentos quase compensavam a falta dos
brejos à porta de casa.
À tarde podia sair para passear e depressa percebeu que a vida na cidade
tinha as suas vantagens. Nunca vira casas tão grandes e lindas em toda a sua
vida, espreitar pelas janelas fazia-a ter uma compreensão totalmente nova
de como as pessoas ricas viviam e muitas delas também tinham
maravilhosos jardins. Clifton era tão esplêndido como Miss Pemberton
dissera, com as suas majestosas casas jorgianas com vistas soberbas da
cidade. E também havia os Downs – hectares de relva que a faziam sentir-se
de novo no campo.
Encontrou a ponte suspensa de Clifton por acaso, depois de passear por
uma zona intrigante com dúzias de lojinhas, e o seu coração quase parou de
bater ao ver tanto esplendor. Ficou muito tempo na ponte, a olhar para o
formidável desfiladeiro com o rio muito mais abaixo. Assustava, intimidava
e inspirava ao mesmo tempo. De alguma maneira, depois de ver aquele
lugar os seus problemas e ansiedades pareceram quase triviais.
Por vezes, descia os íngremes degraus desde Kingsdown até ao centro da
zona comercial de Bristol e quase não conseguia acreditar na enorme
variedade de produtos disponíveis para quem tinha dinheiro para comprá-
los. Em Catcott havia apenas o grande armazém e a estação de correios, que
pouco tinham mudado desde a guerra e vendiam apenas os bens essenciais
mais básicos.
Aqui, nas lojas existiam cabides atrás de cabides de lindos vestidos. Filas
de sapatos de todas as cores do arco-íris. Joias, cosméticos e mercearias
cheias de produtos que nunca vira antes. Observava mulheres vestidas com
elegância a entrar em bonitos cafés e maravilhava-se com os seus atraentes
chapéus, sapatos de salto alto e meias com lindas costuras lisas. Também
havia muitos carros, cinemas e salões de baile. Como Miss Pemberton
dissera, era um lugar empolgante.
Não obstante, por muito que gostasse de ver lojas e observar pessoas, era
aqui que a sua sensação de solidão era mais intensificada. Via mães e filhas
a fazerem compras juntas, grupos de raparigas da sua idade a rir e a
conversar enquanto viam produtos de maquilhagem e bijuteria no
Woolworth’s. Todos pareciam ter alguém, exceto ela. Olhava para as
montras das lojas de brinquedos e desejava que Alan estivesse ali consigo.
Sentia muitas saudades dele.

Durante a sua terceira semana em Kingsdown Parade, Rosie recebeu uma


carta que fez com que parasse, por fim, de pensar em fugir. Mrs. Bentley
desceu para a cozinha onde ela estava a lavar a roupa e entregou-lha.
– Para mim? – perguntou Rosie, espantada, limpando as mãos ao avental
com precipitação. Era a primeira carta que recebia em toda a sua vida.
– Bem, está endereçada a ti – declarou Mrs. Bentley com uma fungadela.
– É um carimbo de Londres. Não sabia que tinhas família lá.
– Nã tenho – disse Rosie. – Quero dizer, não tenho – corrigiu-se
rapidamente antes de abrir a carta com dedos ansiosos. Quando viu a
assinatura de Thomas Farley fiou assustada, certa de que seria uma carta
horrível sobre o seu pai. No entanto, quando começou a ler ficou encantada
ao constatar que não era nada disso.
Ele dizia que ia ver Alan a Taunton no fim de semana seguinte e que,
como tinha de mudar de comboio em Bristol no domingo à tarde, e teria de
esperar duas horas entre comboios, talvez Rosie gostasse de se encontrar
com ele na estação. Disse que compreendia que ela não pudesse visitar Alan
e pensava que talvez gostasse de saber em primeira mão como ele estava.
– Então? – perguntou Mrs. Bentley. – De quem é?
– De Mr. Farley – respondeu, e estava tão encantada com a bondade do
irmão de Heather que lhe estendeu a carta para que ela lesse. – Não é
simpático da parte dele? – perguntou, sorrindo de orelha a orelha,
convencida de que a mulher mais velha concordaria com ela. Porém, ficou
consternada e embaraçada ao ver Mrs. Bentley estremecer.
– Que estranho – declarou a mulher mais velha no seu tom de voz altivo,
devolvendo-lhe a carta. – Se eu fosse Mr. Farley, a última pessoa com quem
confraternizaria seria com a filha do homem que deu à minha irmã um filho
ilegítimo e depois a assassinou. Terei de falar sobre isto com Miss
Pemberton.
Mais tarde, sozinha no seu quarto, Rosie perguntou a si mesma como é
que uma mulher que falava sem parar sobre bondade cristã podia ser tão
cruel. Já estava esmagada pela enormidade do que diziam que o pai fizera e
não precisava que lho lembrassem. A verdade é que sentia uma vergonha
tão grande que não sabia se teria coragem para se encontrar com Mr. Farley.
No entanto, na manhã seguinte sentiu-se desafiadora. Iria encontrar-se
com ele, mesmo que Miss Pemberton o proibisse. Se ele tivera a grandeza
de sugerir o encontro, seria cobarde da sua parte recusar. Além disso, ia ser
um alívio conversar com um ser humano a sério depois de estar presa
naquela casa com uma mulher que diminuía todos os seus esforços para
agradar. E claro que estava ansiosa para saber notícias de Alan.

Na manhã do domingo em que Thomas passaria por Bristol, Rosie


acordou agitada. Mrs. Bentley estava fria como gelo desde que Mrs.
Pemberton concordara com o encontro. Teria de ir à igreja e depois ainda
havia o almoço. Ambos seriam verdadeiros suplícios. A missa matinal
pareceu ainda mais longa do que era habitual. Não conseguia estar quieta
durante a homilia e Mrs. Bentley bateu-lhe diversas vezes no joelho.
Também estava muito quente e alguém perto do banco onde estavam
sentados cheirava a suor. Rosie não parava de imaginar os brejos, pensando
como seria bom andar de barco numa vala com Alan e apanhar alguns
peixes miúdos. Perguntou a si mesma como conseguiria aguentar o almoço
e arrumar a cozinha sem gritar.
Como sempre, quando saíam da igreja todos se reuniam no adro para
conversar. Mrs. Bentley parou para falar com uma mulher que usava um
grande chapéu azul. Mr. Bentley parou ao seu lado e limitou-se a acenar
com a cabeça educadamente, como sempre fazia.
Rosie olhou à sua volta com interesse. Via os mesmos rostos todas as
semanas e gostava de observar o que vestiam. Como tinha apenas um
vestido adequado para a igreja e Mrs. Bentley usava sempre o mesmo
vestido azul-marinho e branco e um chapéu branco com uma fita azul
pensava que as mulheres que usavam uma roupa diferente todas as semanas
deviam ser muito ricas. Algumas das senhoras estavam muito bem vestidas,
com saias estreitas e direitas e casacos cintados, outras usavam as novas
saias de bailarina compridas com cintos largos a estreitar a cintura. Todas
usavam chapéus, e eram lindos. Uma tinha o que parecia uma larga
bandolete com penas num brilhante tom rosa-salmão para condizer com o
vestido. Rosie olhou-a com intensidade, perguntando a si mesma que
pássaro teria penas daquela cor.
A cotovelada de lado apanhou-a de surpresa.
– Não fiques especada a olhar para as pessoas – sibilou Mrs. Bentley. – É
muito grosseiro.
– Elas olham para mim – replicou Rosie sem pensar. – Até parece que
tenho duas cabeças!
Então viu Mr. Bentley a sorrir. Ele estava parado um pouco atrás da
mulher, com a habitual postura subserviente, mas olhava diretamente para
Rosie e o seu sorriso era de pura diversão. Até àquele momento, Rosie
nunca reparara que ele tinha uns olhos bonitos; eram azuis, com uma
expressão bondosa. Retribuiu o sorriso e aquela breve troca de olhares
disse-lhe que ele estava do seu lado.

Rosie teve de se pôr em bicos de pés para espreitar pelo vidro da porta do
salão de chá da estação de Temple Meads. Viu o seu reflexo nos espelhos
atrás do comprido balcão de madeira, as cúpulas de vidro que tapavam os
bolos, uma máquina de sumo de laranja Kia Ora com laranjas artificiais a
boiar e as nucas de algumas pessoas. Porém, eram quase todas cabeças
femininas, todas com chapéu. Rosie pensou que os homens deviam preferir
esperar no comboio ou apanhar ar fresco; ela também não gostou muito do
cheiro pungente de chá deixado demasiado tempo em infusão e de cigarros
que escapava sempre que a porta era aberta.
Hesitou antes de empurrar a porta envidraçada, em parte porque recordou
uma vez mais a maldosa insinuação de Mrs. Bentley sobre ser muito
estranho que Thomas Farley quisesse vê-la, mas acima de tudo porque ficou
surpreendida ao ver que ele já a esperava. A mesa onde estava sentado
ficava à direita de onde espreitara e ele estudava os horários dos comboios.
Estava diferente de como se recordava dele. Talvez fosse porque não
usava o chapéu mole e porque o casaco de tweed, a camisa e a gravata às
riscas eram muito mais formais do que a camisa de colarinho aberto que
usava quando se tinham visto pela primeira vez. Não obstante, ficou
impressionada ao perceber que tinha um bom rosto, com sobrancelhas
claras e hirsutas e um nariz aristocrático. O rosto era demasiado magro e
enrugado para ter uma beleza convencional, mas ao mesmo tempo aquelas
rugas sugeriam força de carácter e havia alguma coisa irresistível nele que o
diferenciava dos outros homens.
Thomas devia ter sentido a sua presença porque levantou a cabeça e
olhou-a nos olhos. Sorriu e por instantes pareceu a irmã, com os mesmos
olhos castanhos meigos e aquele brilho especial que ela tinha.
Rosie percebeu de imediato que não devia permitir que Mrs. Bentley a
influenciasse sobre as pessoas, pois ela era demasiado mesquinha para ver o
lado bom de alguém. Este homem não tinha nada estranho, a menos que
fosse a sua invulgar bondade.
Quando se aproximou da mesa, Thomas puxou uma cadeira para ela se
sentar.
– Tive receio de que não viesses – disse. – Já estava conformado com
uma longa e maçadora espera entre comboios.
– Eu estava com um bocado de medo de voltar a vê-lo. – A voz de Rosie
tremeu de nervosismo. – Mas queria muito saber notícias do Alan.
– E vais saber como ele está – declarou Thomas quando ela se sentou. –
Mas primeiro vou buscar chá e bolo para os dois.
A verdade é que estava a ser difícil para Thomas não olhar fixamente para
ela. Quase não conseguia acreditar que aquela linda rapariga com um
vestido verde que lhe assentava bem, sapatos engraxados, lindas meias
brancas pelos tornozelos e o cabelo cor de cobre penteado e brilhante era a
mesma maltrapilha suja que lhe oferecera uma chávena de chá em May
Cottage. Parecia pertencer a uma família da classe média e nunca ter tido
um dia infeliz em toda a sua vida. Até o sotaque do Somerset parecia ter-se
atenuado um pouco.
Porém, quando Rosie corou e deixou cair a cabeça Thomas ficou triste.
Ela fora muito arrojada quando a conhecera.
Quando voltou do balcão com um tabuleiro ela ainda parecia inquieta, e
de repente endireitou-se como se estivesse preparada para fugir. Thomas
começou logo a contar-lhe as novidades de Alan, esperando que isso a
descontraísse.
– O Alan está verdadeiramente feliz com Mr. e Mrs. Hughes, por isso não
te preocupes com ele – começou, e descreveu a linda e luminosa casa
moderna com janelas salientes e um grande jardim nas traseiras onde havia
uma caixa de areia e um baloiço. – O Alan divide o quarto com o Raymond,
que tem oito anos; além deles, há a Jennifer, que tem quatro anos e dorme
num quarto mais pequeno. Devias ver os brinquedos que eles têm, Rosie,
até parece uma loja de brinquedos, e dúzias e dúzias de livros. O preferido
do Alan é o triciclo e anda nele de um lado para o outro no jardim. Chama
tio e tia aos Hughes.
Thomas contou-lhe sobre um cão chamado Rex, uma casa de brincar feita
com velhos estendais e cobertores, e até lhe disse que Alan estava a
aprender a ver as horas.
Enquanto ouvia aquele homem que mal conhecia falar com tanto afeto e
interesse sobre o irmão, garantindo-lhe que o menino estava muito feliz, o
seu nervosismo começou a desvanecer-se.
– Acho que esgotei o tema do Alan – acabou ele por dizer. – Agora é a
tua vez de me contares tudo o que tens feito e o que te está a acontecer.
Rosie não se lembrava de alguém lhe ter perguntado alguma coisa sobre
si. Por vezes achava que a polícia a tinha espremido até lhe arrancar todas
as informações acerca do pai e dos irmãos, mas não tinham nenhum
interesse na sua pessoa. Mrs. Bentley era igual e fazia-lhe perguntas sobre
os homens, mas não estava nada interessada no que Rosie sentia. Na
verdade, passava algumas noites acordada a perguntar a si mesma se o seu
destino seria ser alguém sobre quem as pessoas falavam à socapa, um
estorvo que sentiam que tinham de ajudar, mas preferiam manter longe da
vista.
Foi bom falar, partilhar com outra pessoa todas as coisas novas que
descobrira desde que saíra dos Levels. Falou-lhe sobre o desfiladeiro do
Avon, a ponte suspensa e a subida à Torre Cabot para apreciar a vista
panorâmica de Bristol. Falou sobre as maravilhosas lojas que vira, os lindos
jardins e todos os livros que lera. Queria que ele pensasse que era feliz.
Todavia, Rosie depressa percebeu que Thomas Farley era tão perspicaz
como bondoso. Tinha um talento especial para pegar num fio escondido de
uma história que ela contava e puxá-lo. Uma vez, quando estava a descrever
uma refeição, outra vez quando lhe relatou o incidente daquela manhã na
igreja. Nos dois casos, contara a história para se rirem, imitando a voz altiva
e os modos empertigados de Mrs. Bentley. Porém, embora Thomas se risse,
pareceu perceber a vergonha que ela escondia.
– Achas que as pessoas que vão à igreja sabem quem és? – perguntou.
– Sei que sabem – respondeu Rosie com um encolher de ombros. – Mrs.
Bentley contou-lhes. Aposto que a faz sentir-se muito ousada por ter a filha
de um assassino a viver lá em casa.
– E o que é que tu sentes em relação a isso? – perguntou ele. Um médico
fizera-lhe a mesma pergunta uma vez e ele sentira um enorme alívio ao
admitir frontalmente que depois do tempo que passara no campo de
prisioneiros de guerra sentia que era apenas meio homem.
Rosie hesitou. Era a primeira vez que alguém lhe fazia aquela pergunta.
– É importante falar sobre o assunto – disse Thomas suavemente. – Só
depois vais conseguir enfrentar o problema.
– Se quer mesmo saber, sinto que tenho sangue impuro, Mr. Farley –
respondeu Rosie em voz baixa, a olhar em volta para se certificar de que
ninguém estava a escutar a conversa. Havia cerca de vinte pessoas perto
deles e, como na igreja, tinha a sensação de que todas sabiam quem era,
embora o senso comum lhe dissesse que era impossível. – Se mudasse de
nome e fosse viver para longe deste lugar talvez ninguém soubesse quem eu
era durante algum tempo. Mas não posso mudar quem sou na realidade,
nem o pai que tenho. Estou marcada para a vida, não estou?
– Isso é um disparate – declarou Thomas com firmeza. – As pessoas vão
esquecer o que o teu pai fez e, com o tempo, tu também esquecerás. – No
fundo, sabia que Rosie tinha razão e era quase um insulto à sua inteligência
argumentar com ela. No entanto, era um fardo muito pesado para uma
rapariga tão jovem. – Vamos esquecer isso do Mr. Farley – sugeriu,
mudando de assunto. – Para ti é apenas Thomas. Agora, fala-me mais sobre
os Bentley.
Rosie pensou que o nome Thomas lhe assentava muito bem. Todos os
Tom que conhecera na escola eram temerários e divertidos e teve a sensação
de que ele também era assim. Quando sorria, o rosto inteiro iluminava-se
como o de Heather. Aquilo foi estranhamente reconfortante.
– Mr. Bentley é simpático, mas não fala muito – começou. – Mas ela é
muito formal. A mesa tem de ser posta na perfeição. Eu não devo correr
pelas escadas abaixo e também não posso andar descalça. Está sempre a
corrigir o que digo e não gosta muito dos meus modos à mesa.
– Os primeiros tempos na tropa foram difíceis para mim – disse Thomas,
compreendendo o que ela queria dizer. – Eu era duro e forte e não suportava
ser tratado como se fosse de segunda classe por causa do meu sotaque e da
minha origem. Havia jovens oficiais magricelas e muito burros, que só
estavam ali porque tinham estudado em bons colégios privados, e eram eles
que me davam ordens.
«Mas o meu sargento deu-me alguns conselhos para lidar com eles. Ele
disse-me: ‘Mantém a boca fechada, Farley, e faz-lhes continência como
deve ser. Se eles te derem uma ordem, cumpre-a, mas faz tudo melhor e
mais depressa do que eles fariam. Observa esses imbecis aristocráticos e
aprende com eles. Lembra-te de que nenhuma experiência é desperdiçada.’»
Rosie abriu a boca para dizer que estava convencida de que saber a
diferença entre uma colher de chá e uma colher de compota não era vital
para a sua educação, e que viver com os Bentley não era uma experiência
enriquecedora. Todavia, uma expressão nos olhos de Thomas fê-la reprimir
o comentário que se preparava para fazer. Percebeu logo que ele
compreendia verdadeiramente o que ela estava a passar e que isso só podia
ser porque estivera numa situação muito semelhante uma ou duas vezes na
vida. Pensou que era surpreendente não sentir amargura por não ter uma
perna; e mais fantástico ainda era o facto de ter um coração suficientemente
grande para se encontrar com a filha do homem que era suspeito de
assassinar a sua irmã.
– Tem alguma ideia do trabalho que eu poderia fazer? – perguntou em vez
disso, com uma sombra do seu antigo sorriso descarado. – Só sei cozinhar e
limpar.
– No fim da guerra eu estava numa situação muito parecida com a tua –
disse Thomas. – Antes de ser soldado não sabia fazer mais nada a não ser
transportar carne no mercado de Smithfield e não podia voltar a carregar
metades de animais porque tinha apenas uma perna. Começava a
desesperar, mas depois alguém me falou sobre os programas
governamentais de reciclagem criados especialmente para ex-combatentes.
Havia de todos os tipos... pedreiro, canalizador, carpinteiro... mas eu escolhi
relojoaria porque podia trabalhar sentado.
– Gosta do que faz? – perguntou Rosie. Não sabia porquê, mas não
conseguia imaginá-lo curvado sobre uma bancada de trabalho a fazer uma
coisa delicada; apesar da sua incapacidade, parecia um homem que gostava
de estar ao ar livre.
– Gosto – respondeu Thomas, depois de pensar durante alguns instantes.
– É muito absorvente. E posso viver em Hampstead, que é uma das
melhores zonas de Londres. No fundo, acho que sou uma pessoa com muita
sorte. Mas voltemos a ti. Há algum trabalho que gostasses especialmente de
fazer?
– Gostava de ser enfermeira – confessou Rosie. Tivera esta ideia no
hospital, depois das conversas com a enfermeira-chefe Dowd. – Mas é
preciso ter dezoito anos para isso e não sei se conseguirei aguentar os
Bentley mais dois anos.
– Fica com eles até o julgamento do teu pai terminar e teres dezasseis
anos – sugeriu Thomas. – Não te esqueças de trabalhar muito e sorrir
docemente para te darem boas referências e depois arranja outro emprego,
talvez num colégio interno ou num lar de idosos, até teres idade suficiente.
Rosie baixou os olhos para a mesa. Gostava muito daquele homem.
Gostaria de conseguir expressar o quanto lhe estava grata, mas não saberia
por onde começar.
– O senhor é um homem muito bom – acabou por dizer, com as faces
ruborizadas.
Thomas estendeu o braço sobre a mesa para pousar a mão sobre a dela.
– E tu és muito corajosa, Rosie.
Rosie sentiu picadas nos olhos.
– Obrigada, Thomas – disse com voz trémula. – Mas agora tenho de ir. –
Olhou para o relógio que estava por cima da porta e viu que faltavam dez
minutos para as cinco. – É uma longa caminhada para Kingsdown e Mrs.
Bentley quer-me em casa às cinco e meia.
Levantou-se, deu-lhe um tímido beijo na face e afastou-se rapidamente.
Thomas coxeou até à porta do salão de chá e chegou a tempo de vê-la
entregar o bilhete de gare ao guarda que estava junto da barreira. Ao longe
parecia o que era, uma criança muito magra, mas enquanto conversava com
ela tivera a impressão de estar na companhia de uma pessoa adulta.
Thomas sentou-se de novo e de repente sentiu-se muito cansado. A
viagem desde Paddington no dia anterior, a noite passada numa pensão
barata e apenas duas horas com Alan – se não fosse Rosie, talvez tivesse
pensado que a viagem fora uma perda de tempo, dinheiro e energia.
A entusiástica imagem da felicidade de Alan com Mr. e Mrs. Hughes que
pintara para Rosie era verdadeira. No entanto, não conseguira contar-lhe
que se sentira um incómodo desconhecido que não devia estar ali. Alan
quase não olhara para ele, pois estava demasiado entretido com o seu
triciclo e com um comboio de madeira.
Thomas estava muito consciente de que as pessoas não sabiam o que
pensar dele. Nos últimos anos fora descrito como severo, sério, lúgubre,
sem humor, solitário, misterioso e reservado. Na verdade, não era nenhuma
destas coisas, exceto talvez solitário, mas não o era por escolha, apenas
pelas circunstâncias. Se não falava, não se ria nem se esforçava para fazer
amigos era porque estava constantemente consciente de todos os que tinha
perdido.
Em 1940, quando entrara para os Fuzileiros Reais, era como qualquer
outro recruta de dezoito anos, um miúdo que gostava de se divertir, que
procurava aventuras e que até então passava os seus tempos livres na rua
com os amigos, a ver as raparigas ou a jogar futebol. Tinha sido atirado de
cabeça para a guerra no momento em que terminara a recruta. O seu
regimento foi mandado para Dunquerque para cobrir a retirada de tropas.
Viu dois bons amigos morrerem a alguns metros de si, mas não pôde correr
para eles e nem sequer teve tempo para derramar uma lágrima por eles.
Cresceu muito depressa em França.
Ser mandado para Singapura no princípio de 1941, quando tantos outros
regimentos estavam a ser mandados para o norte de África, pareceu ser uma
bênção. Os Japoneses não estavam lá naquela altura e pensava-se que se e
quando viessem, seria pelo sul e os grandes canhões navais estavam
apontados naquela direção, prontos para os receber. Para o regimento de
Thomas, foi um tempo de relativa descontração; havia muita comida, muita
diversão com raparigas bonitas nos bares, podiam nadar no mar de água
quente e havia um país e uma cultura completamente novos para
explorarem.
Porém, os estrategas dos grandes canhões estavam errados e os Japoneses
surpreenderam toda a gente aproximando-se pelo norte através da Malásia.
Os canhões foram inúteis na defesa de Singapura e a cidade caiu em
fevereiro de 1942. Thomas foi um de milhares de homens que foram
cercados e levados para a prisão de Changi. Mais tarde, foi levado para a
Birmânia, para construir estradas. A viagem, feita em parte de comboio,
mas quase toda numa marcha forçada com pouca comida ou água, roubou
muitas vidas. Porém, as mortes naquela marcha interminável não foram
nada quando comparadas com a quantidade de homens que morriam todos
os dias no campo de prisioneiros de guerra.
Quando Thomas foi libertado, perguntaram-lhe porque é que pensava que
tinha sobrevivido depois de ter sofrido de disenteria, úlceras tropicais e
malária. A rir, ele respondera que tinha sido por teimosia, por sentir que era
demasiado jovem para morrer numa selva quente quando sabia tão pouco da
vida. Admitira que passara a maior parte do tempo que estivera preso no
campo de prisioneiros de guerra a planear a exploração do resto do mundo,
a imaginar todas as mulheres que amaria, todas as deliciosas refeições que
comeria, todos os sítios que visitaria.
Contudo, depois de lhe amputarem a perna ulcerada percebeu que a sua
mente já não conseguia construir aquelas imagens animadoras que o
ajudaram tanto no campo de prisioneiros de guerra. Não parava de pensar
teimosamente nos amigos que tinham morrido. Dúzias e dúzias deles, e via
os seus rostos descarnados como um sombrio friso nas paredes da
enfermaria. Até sentia pena por ter conseguido sobreviver e começou a
evitar o contacto com as pessoas.
A solidão tornou-se um hábito quando saiu do hospital e foi viver numa
pensão para ex-combatentes. As raparigas faziam-lhe olhinhos muitas vezes
e outros homens tentavam que se juntasse a eles no pub. No entanto, não
queria fazer amigos com medo de que eles insistissem em questioná-lo
sobre as suas experiências durante a guerra. E nem sequer podia pensar em
fazer amor com uma mulher agora que era aleijado. Assim, sem se dar
conta disso, construiu uma parede invisível à sua volta que ninguém
conseguia transpor.
No entanto, quando descobriu que Heather fora para o Somerset uma
parte dessa parede ruiu. Oito semanas antes partira cheio de alegria à sua
procura. Pela primeira vez em anos teve consciência das outras pessoas e
até se interessou o suficiente para conversar com elas. Enquanto o comboio
seguia para ocidente recordou coisas boas, imagens da sua infância em
Poplar, de amigos de escola e das suas velhas ambições de ser um artista
famoso.
No entanto, alguns dias mais tarde, quando regressou a Londres, a sua
mente quase não conseguia suportar as emoções contraditórias que sentia.
Raiva por desconfiar que Cole Parker podia ter assassinado a irmã. Ternura
pelo pequeno menino sem mãe que só vira durante breves momentos.
Ansiedade por Alan poder estar a ser maltratado e também impotência por
não poder fazer nada. Todavia, embora se sentisse a enlouquecer e zangado,
foi bom voltar a sentir alguma coisa. Vivera num vácuo durante tantos anos
que temera ser incapaz de voltar a sentir. Depois, soube pela polícia de
Bridgwater que Alan estava sob os cuidados da assistência social e de
repente sentiu que tinha um objetivo verdadeiro.
Um homem precisava de algo mais na vida para além do trabalho. Alan
necessitava de um lar. Thomas deu por si a pensar onde poderia colocar
uma cama para o menino no seu minúsculo apartamento e a refletir sobre
como planearia os dias se tivesse de cuidar de uma criança.
Quando a polícia encontrou os cadáveres das duas mulheres não ficou
verdadeiramente surpreendido, pois estava convencido de que Parker as
assassinara quase desde o primeiro momento. Porém, quando soube que
Rosie estava no hospital depois de o irmão mais velho a ter espancado com
gravidade, ficou arrasado. Foi quase tão mau como o desgosto que sentira
com Heather. Sentiu-se profundamente responsável porque estava tudo
relacionado com a sua ida à polícia. Também não conseguia esquecer que
fora Rosie que tivera a coragem e iniciativa de pôr Alan em segurança, sem
pensar na sua, enquanto ele continuava a refletir sobre o próximo passo.
Nas últimas semanas, desde que soubera que Alan estava em segurança e
bem cuidado, uma voz racional começara a fazer-se ouvir. Percebeu que um
simples laço de sangue não significava que tivesse qualificações para se
tornar pai e mãe de um dia para o outro.
Ficara intrigado quando o rapaz não demonstrara o menor interesse no
facto de Thomas ir encontrar-se com Rosie quando voltasse para casa. Não
fizera uma única pergunta sobre ela, nem sequer lhe mandara uma
mensagem. Quando estavam sozinhos, Mrs. Hughes admitiu que ele deixara
de falar nela poucos dias depois de chegar e que era possível que tivesse
decidido bloquear todas as recordações de May Cottage, tanto as boas como
as más.
Thomas não conseguiu deixar de pensar que as crianças eram
incrivelmente resistentes.
Achou irónico que, embora ele e Rosie precisassem de alguém nas suas
vidas, a criança que era o ténue laço entre ambos não parecia necessitar de
nenhum deles. A verdade é que a vida estava cheia de ironia e poucas
pessoas tinham o que mereciam, ou necessitavam.

– Rosie, nós não pomos a faca no frasco do doce – declarou Mrs. Bentley
com brusquidão. – Tens de usar a colher! Coloca um pouco na beira do
prato e depois espalha-o no pão.
– Desculpe – replicou Rosie. No íntimo, pensava que a sua forma de fazer
aquilo era muito menos complicada e poupava o trabalho de lavar mais uma
colher.
Desejou ter descrito Mrs. Bentley a Thomas. Estava convencida de que
ele teria achado graça a como tudo nela era firmemente mantido no lugar.
Os sorrisos eram estritamente controlados, para a igreja e para as visitas, e a
sua conversa era pomposa. Até os cotovelos pareciam estar colados ao lado
do corpo. A única vez que Rosie os vira sair daquela posição foi quando ela
lhe deu uma lição sobre como pendurar a roupa lavada à sua maneira.
Rosie sabia que ela devia ter cerca de cinquenta anos porque uma vez
mencionara que vira uma parada de militares que iam partir para a Primeira
Guerra Mundial quando tinha a sua idade. O seu rosto continuava sem
rugas, mas arfava e agarrava-se aos lados do corpo quando subia as escadas.
Não conseguia imaginar Mrs. Bentley em rapariga. No entanto, gostava de
imaginar como ficaria depois de beber duas canecas de sidra. Isso poderia
soltá-la!
Hoje Mr. Bentley estava tão silencioso como sempre. Na verdade, se
pensasse bem, a vez que ele falara mais com ela fora no seu primeiro dia
naquela casa. Pigarreara, balbuciara algo sobre «as suas infelizes
circunstâncias» e depois dissera-lhe que se precisasse de alguma coisa era
só pedir e que não devia esquecer-se de rezar as suas orações todas as
noites. Outra vez, perguntara-lhe, nervoso, sem que a mulher ouvisse, se
queria ir visitar o pai e o irmão à prisão, porque se quisesse trataria de tudo.
Parecera muito aliviado quando ela respondera que não.
No entanto, naquele dia Rosie recordou o seu sorriso e pensou que era
possível que Mr. Bentley fosse muito diferente fora de casa.
– Rosie! Senta-te direita à mesa. – Mrs. Bentley espetou-lhe o dedo na
coluna através das costas da cadeira. – E corta essa fatia de pão ao meio
antes de começares a comê-la!
Rosie suspirou no seu íntimo. Tinha tanta fome que poderia comer toda a
travessa de fatias finas de pão com manteiga. Depois de perder tempo a
colocar o doce no prato, barrá-lo no pão e cortá-lo, quase não valeu a pena,
pois comeu-o todo de uma dentada.
A sala de jantar era tão deprimente como Mrs. Bentley. Mesmo nos dias
mais quentes, era fria e inóspita. As cadeiras pareciam desenhadas para
ninguém ficar sentado nelas durante muito tempo. Crina de cavalo picava-
lhe as pernas e os relevos no espaldar esculpido espetavam-se nas suas
costas. A divisão estava voltada para a rua e o papel de parede era de um
castanho sombrio que era ainda mais carregado com muitos quadros com
cenas terríveis da Bíblia. «Salomé», com a cabeça cortada de São João
Batista numa bandeja de prata, parecia uma escolha estranha de pintura para
uma sala de jantar. Fazia-a estremecer.
Mrs. Bentley cortou o bolo de frutas e olhou para Rosie como se tivesse
decidido que chegara o momento de terem uma conversa.
– Agora, minha querida – disse, num tom cerimonioso. – Como correu o
teu encontro com Mr. Farley?
Mr. Bentley olhou para Rosie com a delicada expressão interessada que
ostentava sempre que uma conversa decorria na sua presença. Rosie
perguntou a si mesma se ele escutava ou se o seu pensamento estava a um
milhão de quilómetros de distância?
– Foi agradável voltar a vê-lo – respondeu. – Ele parecia cansado, foi uma
longa viagem. Contei-lhe que tem uma perna artificial? Serraram-na quando
era prisioneiro de guerra.
– Membro é uma forma muito mais delicada de referir uma perna, minha
querida – corrigiu-a Mrs. Bentley. – E não falamos sobre amputações
durante as refeições.
Rosie não percebeu o que a palavra «perna» tinha de ofensivo. Nem
porque é que não podia dizer que fora serrada, quando a cabeça decepada
de São João Batista estava por cima deles. No entanto, agora que tinha a
atenção de Mrs. Bentley teve o maior prazer em lançar-se num
entusiasmado relato de como Alan estava feliz e bem-adaptado, incluindo
os pormenores do triciclo e do comboio de brincar.
– É uma boa notícia. Não é, Herbert? – perguntou Mrs. Bentley ao marido
quando Rosie se calou.
– Muito boa, minha querida – respondeu ele, servindo-se de uma fatia de
bolo de fruta.
– Bem, agora que sabemos que o teu irmãozinho está feliz e em
segurança, temos de pensar no teu futuro – declarou Mrs. Bentley, fixando
Rosie com os seus frios olhos azul-claros. – É claro que por enquanto
gostamos muito de te ter aqui, mas não é propriamente ideal para nenhum
de nós.
A verdade é que Edith Bentley considerava que Rosie era uma rapariga
desconcertante. Trabalhava muito, mais depressa e melhor do que uma
mulher com o dobro da sua idade. Mas eram os seus modos arrojados que a
incomodavam. Esperava que uma criança na sua posição estivesse tão
envergonhada com o que o pai fizera que não conseguiria olhar ninguém
nos olhos. Em vez disso, Rosie fazia perguntas, olhava abertamente para as
pessoas e muitas vezes parecia esperar que gostassem dela.
Ainda por cima, não era agradecida. E Edith desconfiava que a rapariga
estava a rir-se de si em silêncio.
– Pensei escrever uma carta a Miss Pemberton amanhã e sugerir-lhe que
te encontre outra casa.
Rosie olhou para ela, a tentar perceber o que fizera de errado. Os seus
olhos começaram a encher-se de lágrimas. Não que quisesse ficar aqui, mas
estava revoltada com a injustiça. Tentou reprimir as lágrimas, mas elas
vieram; a primeira saltou, depois outra, e de repente começou a soluçar.
Edith Bentley preparara-se para algum atrevimento, por isso ficou
embasbacada ao ver lágrimas.
– Ora, ora, minha querida – disse, sem saber o que fazer ou dizer. –
Sabias que esta casa era apenas uma solução temporária.
– Mas pensei que ia ficar aqui até ao fim do julgamento – soluçou Rosie.
– Pensei que os senhores também estavam satisfeitos comigo.
– Ora, Edith, não vamos precipitar-nos – declarou Mr. Bentley.
Rosie ficou tão surpreendida ao ouvir a voz de Mr. Bentley que a sua
boca se abriu e ela rodou para olhar para ele. Ele parecia mais animado do
que era habitual, com um tom rosado na tez de pergaminho e os olhos
brilhantes.
– A Rosie é uma grande ajuda para nós – disse com um encolher de
ombros. – Não vejo nenhum motivo para mandá-la embora agora que ela
está a começar a adaptar-se.
Depois de Mr. Bentley falar, Rosie foi mandada sair da sala de jantar, por
isso não ouviu a conversa entre o casal. Porém, passado algum tempo Mrs.
Bentley desceu para a cozinha com o tabuleiro com as coisas do chá e, para
variar, parecia não ter muito a dizer.
– Decidimos que vais ficar cá, pelo menos por enquanto – declarou a
atropelar as palavras, como se estivesse ansiosa para terminar o que tinha
para dizer e ir-se embora. A boca estava apertada, como se não aprovasse
aquela decisão. – Por isso é melhor esforçares-te se não queres que me
arrependa.
Rosie não percebeu porque é que abraçou Mrs. Bentley. Não tinha o
hábito de abraçar pessoas e a mulher não dissera nada que merecesse um
abraço. Todavia, pareceu-lhe a coisa certa. Mrs. Bentley não reagiu; foi
como se Rosie estivesse a abraçar um marco de correio e ficaram as duas
igualmente rígidas. No entanto, recebeu uma festa na cabeça e foi melhor
do que mais um sermão.

*
Embora as primeiras três semanas em Kingsdown tivessem parecido
intermináveis, o resto do verão passou a voar. Em dias soalheiros, até houve
momentos em que Rosie gostou de estar ali. Mrs. Bentley estava muito
embrenhada na organização de uma festa que decorreria na igreja de St.
Matthew no fim de agosto, por isso passava muito tempo fora. Sem
ninguém a andar atrás dela, Rosie despachava as tarefas domésticas e
arranjava quase sempre tempo suficiente antes do almoço para passar cerca
de uma hora a tratar do jardim, e mais ainda durante a tarde.
Tinha plena consciência de que nunca gostaria de Mrs. Bentley, mas
adorava o seu jardim. Como a casa estava construída numa colina e o
jardim tinha um declive íngreme na direção da cidade, podia muito
facilmente ter-se transformado num espaço baldio, como acontecia com
outros naquela rua. Contudo, em determinada altura alguém planeara e
fizera uma série de socalcos com grande cuidado. Plantas apropriadas para
terrenos rochosos caíam sobre os muros de sustentação e as tiras de relva
entre os socalcos eram verdes e macias. Altos muros de pedra rodeavam
todo o jardim, proporcionando-lhe proteção e privacidade, e havia muitas
árvores encantadoras. No entanto, Rosie pensava que uma das suas
principais atrações era que não se via tudo da casa: havia arcos cobertos de
rosas, dúzias de diferentes arbustos de flores e flores perenes que só eram
visíveis quando se descia até ao fundo. Mas os Bentley pareciam não se
interessar muito por aquele espaço. Mr. Bentley cortava religiosamente os
relvados, mas as ervas daninhas tinham escondido muitas das plantas mais
pequenas.
Rosie sempre tivera um conhecimento intuitivo de plantas e as suas
primeiras tentativas de limpar aquele jardim foram tímidas. Um grupo de
ervas daninhas arrancadas num sítio, um pequeno desbaste nas plantas que
necessitavam de mais espaço noutro. No entanto, quando viu a melhoria e
os Bentley não pareceram notar, tornou-se mais arrojada. À noite,
embrenhava-se muitas vezes na leitura de um dos muitos livros de
jardinagem que encontrou lá em casa e aprendeu tudo sobre flores que
nunca vira até agora. Começou a pensar que o jardim lhe pertencia e
decidiu fazer mais.
Enquanto fazia jardinagem esquecia que o pai e Seth estavam apenas a
alguns quilómetros de distância dali, na prisão de Bristol. Descobriu que a
vozinha que lhe dizia que ela devia contar tudo o que sabia sobre Seth a
alguém não se fazia ouvir aqui fora. Até os pensamentos sobre Alan eram
memórias carinhosas e não ansiosas. Gostava de sentir a terra nos dedos, de
ver as plantas florir com os seus cuidados. O sol quente nas costas, o
perfume das rosas, dos cravos e da relva acabada de cortar, e a beleza das
árvores e flores apagavam algumas das imagens mais feias do seu
pensamento.
A sensação de contentamento era ajudada pelas cartas semanais de
Thomas. Sentia-se menos isolada e mais otimista por saber que ele se
importava o suficiente para se sentar a escrever-lhe todas as tardes de
domingo. Descrevia-lhe tão bem Hampstead, a zona de Londres onde vivia,
que quase conseguia ver as pequenas lojas, a íngreme High Street que subia
até à charneca e as casas com lindos jardins. Por vezes descrevia as pessoas
que vinham à relojoaria, escolhendo as mais pretensiosas como se soubesse
que a faria rir.
Pensou que ele devia estar muito sozinho e perguntou a si mesma se seria
por não ter uma perna que não se casara. Fora visitar Alan mais uma vez e,
embora dissesse que o sobrinho tinha ido passar uma semana de férias à
Cornualha com os pais de acolhimento e os filhos destes, e que vira o seu
novo uniforme escolar, Rosie teve a impressão de que Thomas não
progredira muito com ele.
Rosie também lhe escrevia todas as semanas. Falava-lhe sobre o jardim,
os livros que lera e novas coisas que aprendera a cozinhar. Muitas vezes,
apetecia-lhe queixar-se da rispidez de Mrs. Bentley, outras vezes queria
ridicularizar a mulher, mas continha-se. Thomas não quereria saber essas
coisas. Além disso, Mrs. Bentley não era assim tão má e por vezes até era
simpática, deixando-a fazer bolos sozinha e ajudando-a a fazer um vestido
novo à noite na sua máquina de costura. Quanto a Mr. Bentley, Rosie não
tinha queixas; no seu estilo discreto, parecia gostar dela. Muitas vezes
trazia-lhe a Reader’s Digest ou a National Geographic porque percebeu que
as suas preferências de leitura iam para além das revistas femininas. Até lhe
pôs um candeeiro de mesa de cabeceira no quarto para ela poder ler na
cama. Os dias passavam agradavelmente e até os jornais tinham deixado de
falar sobre o pai.
Se não fossem as visitas quinzenais de Miss Pemberton, Rosie quase
conseguiria acreditar que estava em Kingsdown para ficar. Porém, a
assistente social trazia a realidade consigo nestas visitas, lembrando-lhe que
já não era uma criança e que em breve teria de ir à sua vida no mundo
exterior.
Durante uma visita disse que achava que Rosie devia pensar no futuro e
deu-lhe panfletos de carreiras que iam desde empregos em escritórios até
alistar-se no exército feminino, pedindo-lhe que os lesse todos para ver se
algum lhe agradava.
Noutra visita explicou-lhe os factos da vida, impassível perante o
embaraço de Rosie, e pareceu preocupada quando percebeu que ela ainda
não tinha o período. Nestas visitas nunca falavam sobre Cole ou os irmãos.
Rosie não abordava o assunto porque sentia demasiada vergonha e Miss
Pemberton não falava sobre eles porque pensava que a criança era mais
feliz na ignorância.
Só durante uma visita em meados de agosto, nove semanas após a
chegada de Rosie, é que Miss Pemberton sentiu necessidade de falar sobre
eles. Sabia que a data do julgamento seria marcada a qualquer momento.
Estavam na cozinha e Rosie limpava as pratas. Lá fora caía uma chuva
torrencial e já chovia há vários dias. Enquanto tomavam uma chávena de
chá falaram sobre a terrível cheia em Devon. Nessa manhã Rosie lera no
jornal que trinta e uma pessoas tinham morrido em Lynmouth. Perguntou à
assistente social como estavam as coisas nos Somerset Levels.
– Muito mal. Muitos campos estão inundados – respondeu Miss
Pemberton. – As pessoas que vivem junto do rio Parrett têm cerca de meio
metro de água em casa.
Rosie preparava-se para começar a falar sobre uma família que conhecia
cuja casa ficava inundada quase todos os invernos e que se mudava para o
primeiro andar depois do Natal à espera da água, mas percebeu que a
mulher mais velha tinha alguma coisa em mente.
– Há algum problema? – perguntou.
Miss Pemberton cruzou os braços na mesa da cozinha e pigarreou.
– Não é propriamente um problema. Tenho uma coisa para falar contigo.
Fui visitar o teu pai à prisão há alguns dias. – Calou-se e pareceu um pouco
agitada. – Pensei que seria essencial que alguém agisse como intermediário.
Decerto que há coisas que querem dizer um ao outro.
Rosie sentiu um arrepio gelado na espinha. Pressentiu que o que Miss
Pemberton queria acrescentar era «antes de ele ser enforcado».
– Eu não tenho nada para lhe dizer. – Rosie quase não conseguia suportar
a ideia de lhe chamar «pai». – Tento esquecê-lo.
– Pois eu acho que tens coisas para lhe dizer – declarou Miss Pemberton
suavemente, mas num tom firme. – Ele é teu pai!
Rosie não disse nada.
– Acho que se não lhe disseres nada poderás arrepender-te no futuro.
Ambas sabemos que é quase certo que será considerado culpado no
julgamento. E ambas sabemos muito bem o que isso significa.
Rosie engoliu em seco. Sabia exatamente o que aquilo significava. Uma
corda à volta do pescoço e uma longa queda.
– Que é que ele disse sobre mim?
– Disse que te amava. Que gostaria de ter feito melhor por ti. Pediu-me
para te dizer que lamenta muito ter-te batido naquele dia.
– Para mim, ele não passa de um assassino – afirmou Rosie, teimosa. –
Não me importaria se estivesse doente, zangado ou a ficar verde. Odeio-o.
Violet Pemberton olhou para Rosie e sentiu uma profunda pena da
rapariga. Ela era íntegra, forte e inteligente. Viera para esta casa nas piores
circunstâncias, mas conseguira tirar o melhor partido das coisas. A sua
dicção melhorara, parecia sempre limpa e asseada, com o cabelo bem
penteado, e gostava de aprender coisas novas. Violet não acreditava na ideia
de que os traços de personalidade eram todos inatos e estava convencida de
que muitas coisas eram aprendidas pelo exemplo e pela educação. Como a
mãe de Rosie desaparecera quando a criança tinha apenas seis anos,
dificilmente poderia ter sido uma grande influência. Por isso era lógico que
Cole fosse responsável, pelo menos em parte.
Desde que trabalhava como assistente social, visitara vários homens na
cadeia para falar com eles sobre as suas famílias. De um modo geral eram
pessoas traiçoeiras, desagradáveis e desonestas, tão inadequados que sentia
pouca compaixão por eles. Porém, Cole Parker não era nada disso; era um
homem grande e forte que, mesmo com um uniforme prisional, conseguia
parecer digno e orgulhoso. Olhou-a nos olhos enquanto falava e nunca se
vitimizou. Confessou-lhe que a sua relação com Heather se desmoronara
antes de Alan nascer porque tinha motivos para acreditar que o filho não era
seu. No entanto, disse que se sentia envergonhado por nunca ter conseguido
amar o rapaz como seu filho. E, apesar de ter muitos defeitos, aquele
homem conseguira transmitir à filha as suas melhores qualidades. Coragem,
determinação e orgulho. Violet sentiu-se comovida com isso.
– Bem, pensa no que te disse. – Fez uma festa na mão de Rosie. – Não
estou a sugerir que vás visitá-lo porque as prisões não são lugares para
meninas, mas talvez queiras escrever-lhe.

No dia 1 de setembro Herbert Bentley veio para casa mais cedo. Depois
de voltar do almoço, Miss Pemberton telefonara para o seu escritório com
as últimas novidades sobre Cole Parker. Sabendo que Edith estaria fora
durante a tarde numa das suas comissões da igreja, pensou que seria bom ir
para casa e aproveitar a oportunidade para falar com Rosie. Não confiava na
diplomacia da mulher.
Herbert não era o homem tímido e nervoso que as amigas e conhecidas da
mulher pensavam que era. Só se submetia ao seu domínio porque era mais
fácil do que o confronto. Se o seu casamento era frio, vazio e insatisfatório,
a sua tipografia era mais do que compensadora. Ali era ele que mandava, e
admirava os funcionários, que considerava mais seus amigos do que
empregados. Ganhava bastante bem, dava emprego a outras pessoas,
gostava do que fazia e há muito tempo que percebera que tinha mais sorte
do que a maioria dos homens.
Entrou em casa com a sua chave e parou na entrada durante alguns
instantes. A casa estava em silêncio e pensou que talvez não tivesse
adiantado nada e Rosie tivesse saído para ver montras.
Entrou na sala de visitas, pousou a pasta numa cadeira e despiu o casaco.
O calor voltara; parecia o verão de São Martinho. Dirigiu-se para as janelas
para abri-las, mas parou ao ver Rosie lá em baixo no jardim. Ela estava de
gatas, a plantar alguma coisa num dos canteiros.
Ficou a observá-la durante algum tempo atrás da cortina, para que não o
avistasse se olhasse para cima. Ela estava ajoelhada no chão, a dispor com
todo o cuidado as plantas, de uma forma que ele próprio se recordava de
fazer outrora, antes de o domínio de Edith o ter levado a passar cada vez
mais tempo na tipografia. Rosie revelara-se digna de ser ajudada; era uma
menina corajosa e muito inteligente. Qualquer pessoa que conseguisse
tolerar as críticas constantes de Edith e aprender tão depressa merecia uma
medalha.
Hoje, ao sol, o seu cabelo brilhava como cobre polido. Era um cabelo
lindo – ainda bem que impedira a mulher de o cortar curto como ela
sugerira uma vez. Arrependeu-se de ter vindo tão cedo para casa. Ela
parecia muito feliz e o que tinha para lhe dizer arruinaria aquela felicidade.

Rosie levantou-se de um salto com uma expressão culpada quando ele


saiu para o jardim pela porta da cozinha.
– Olá, Mr. Bentley... hum, quer um chá? – perguntou, hesitante. Ele nunca
vinha para casa a esta hora e estava embaraçada por ter sido apanhada
desprevenida.
– Vou fazer um pouco para os dois – disse ele com um sorriso tímido. –
Volta para as plantas. Eu já me tinha interrogado quem era a boa fada que
andava a cuidar delas por mim.
Rosie ficou espantada ao ouvir Mr. Bentley dizer uma frase completa e
oferecer-se para lhe fazer chá. Sabia que devia ter pedido autorização antes
de começar a mexer no jardim.
Curiosamente, ele não parecia estar zangado. Na verdade, parecia
satisfeito.
– Peço desculpa por não ter pedido autorização – disse Rosie, a saltar
nervosamente num pé e no outro. – Eu sei que devia ter pedido, mas não
suportei ver tantas ervas daninhas.
Dez minutos mais tarde, Mr. Bentley voltou para o jardim com duas
canecas de chá. Rosie olhou para elas de lado. Mrs. Bentley dissera-lhe que
só se dava uma caneca de chá a um comerciante.
– É melhor do que aquelas chávenas pretensiosas – disse ele com um
sorriso, sentando-se nos degraus que davam acesso ao socalco seguinte. –
Agora, diz-me o que são aquelas coisas que estás a plantar?
– Tremoceiros – respondeu Rosie. – Os que estavam no fundo do jardim
deram novos rebentos, por isso tirei-os da terra e pensei que poderia
replantá-los aqui. São todos azuis. Acho que vão ficar lindos nesta parte do
jardim no próximo ano, no meio das margaridas; talvez pudéssemos plantar
alguma coisa vermelha com eles. Seria bom para a Coroação. Li numa das
revistas que o senhor me trouxe que todos os jardineiros dos grandes
parques estão a planear canteiros com flores vermelhas, brancas e azuis
para o próximo verão.
Herbert sentiu-se como se tivesse sido picado por uma abelha. Não
imaginara que Rosie alguma vez pensasse com mais de duas semanas de
antecedência. Agora estava a falar no próximo mês de junho.
– Vem sentar-te – disse-lhe, batendo no degrau ao seu lado. – Tenho uma
coisa para te dizer. – Desejou ter aceitado a oferta de Miss Pemberton para
vir dar-lhe a notícia. No entanto, há apenas uma hora pensara que seria mais
simpático ser ele a dizer-lhe.
O rosto de Rosie ensombrou-se.
– É o julgamento?
Herbert acenou com a cabeça.
– Miss Pemberton telefonou-me hoje e vim logo para casa. O julgamento
já foi marcado e vai começar no dia 24 de setembro. E será aqui em Bristol.
Não no tribunal criminal em Wells ou Taunton como esperávamos.
– Oh – exclamou Rosie, e segurou a caneca com as duas mãos, como se
de repente estivesse com frio.
Herbert não sabia muito bem como continuar, embora tivesse tudo muito
bem estruturado na cabeça enquanto vinha para casa.
– O problema de ser aqui em Bristol é que vai atrair muita atenção a nível
local. Não me recordo da última vez que tivemos um julgamento de
homicídio na cidade. As pessoas são mórbidas com essas coisas e vai
dominar todos os jornais.
Rosie virou-se para ele no degrau e olhou-o nos olhos.
– Então, não me vão querer aqui – disse sem um único vestígio de
amargura, apenas dócil aceitação. – É o que queria dizer-me, Mr. Bentley?
– Não. Não é o que queria dizer-te – replicou ele, muito corado.
Rosie não falou e baixou o olhar para os pés; estavam descalços e muito
bronzeados, e fletiu os dedos para que a relva se enfiasse entre eles.
– E o que vai acontecer ao Seth e ao Norman? – acabou por perguntar. –
Também vão ser julgados? – Durante todo este tempo recusara-se a fazer
perguntas sobre os irmãos e Miss Pemberton não lhe dera qualquer
informação sobre eles.
– O Norman vai ser testemunha, é claro. Miss Pemberton não te disse que
o Seth foi acusado juntamente com o teu pai? – perguntou ele.
– Disse-me que ele seria julgado ao mesmo tempo – respondeu Rosie, e
depois, como se acabasse de perceber, olhou para Herbert com intensidade.
– Isso significa que a polícia acha que ele ajudou o pai a cometer os crimes?
Herbert mostrou-se embaraçado. Pensava que Miss Pemberton lhe devia
ter explicado aquilo há algum tempo. Não percebia porque é que não o
tinha feito.
– Bem, sim, Rosie, pensava que já sabias.
– Não. Não sabia – respondeu ela. Estava completamente abalada. –
Pensei que ele só tinha sido acusado por me ter batido. – Calou-se durante
alguns instantes, com uma estranha sensação de alívio por as suas preces
terem sido ouvidas e a maldade de Seth ter sido vista e ele ser castigado. –
Eu também vou ter de ir a tribunal?
Herbert notou que ela tinha ficado muito pálida e as sardas do nariz
estavam mais visíveis. Achou que não seria aconselhável tentar explicar-lhe
agora porque é que a polícia retirara as acusações mais leves contra o
irmão. Na verdade, a decisão era em parte para proteger Rosie: destinava-se
a poupá-la a uma traumatizante ida a tribunal e a manter o seu anonimato. A
polícia acreditava que se concentrassem todos os seus esforços no crime
mais grave, o de cumplicidade com o pai nos homicídios, Seth seria
enforcado. Não era necessário nem aconselhável prolongar o julgamento e,
possivelmente, confundir os jurados com acusações mais leves.
– Não. Não terás de estar presente, pelo menos agora. Eles já têm
testemunhas suficientes e não precisam de ti. Parece que por fim a polícia
conseguiu encontrar a Ethel Parker e ela vai testemunhar.
– Vai? – exclamou Rosie. Os seus sentimentos em relação a esta notícia
foram contraditórios. Foi um alívio saber que Cole não a assassinara, mas
ao mesmo tempo era improvável que Ethel dissesse alguma coisa no
tribunal que ajudasse o seu pai. – Vai ser muito estranho ela ficar frente a
frente com os dois filhos que deixou para trás – disse. – Talvez eles não
fossem as pessoas horríveis que são hoje se ela não os tivesse abandonado?
Herbert olhou para Rosie com atenção. Que observação tão adulta.
Perguntou a si mesmo quais seriam os seus verdadeiros sentimentos em
relação ao pai e ao irmão. Acreditaria que eram inocentes? Ou sabia que
eram culpados? Sentiu-se envergonhado consigo mesmo por Rosie viver em
sua casa há tanto tempo e não ter tentado comunicar com ela. Porém, agora
era tarde de mais para tentar descobrir o que se passava na sua cabeça.
– Bem, Mrs. Bentley não vai querer-me aqui se houver um grande
burburinho, pois não? – disse Rosie depois de um momento de profunda
reflexão.
Herbert suspirou. Rosie acertara em cheio. A mulher poderia adorar a
glória de acolher «uma infeliz», mas a sua caridade era interesseira.
– Ainda não falei sobre isto com ela – respondeu, mas o seu tom
desanimado disse-lhe qual seria o desfecho.
– Não faz mal, Mr. Bentley. – Rosie tocou-lhe no braço com um gesto
hesitante. Estava grata por ele se preocupar e lembrou-se de que se não
fosse a sua intervenção anterior já teria sido mandada embora há várias
semanas. – Eu compreendo.
– Compreendes? – Olhou para Rosie com uma sobrancelha erguida. Ela
fora criada com um homem que matava as mulheres que se atravessavam
no seu caminho. Desprezá-lo-ia em segredo por ser tão fraco com a sua?
Que tipo de mulher se tornaria? Uma tirana como Edith ou uma vítima
sofredora como a mãe? Esperou com fervor que pudesse ficar num meio
termo.
– Compreendo. – De repente, sorriu-lhe. – Estar aqui convosco não foi
tempo perdido. Aprendi imenso sobre pôr mesas, jardinagem e muitas
outras coisas. Vou ficar bem para onde quer que vá. Não se preocupe
comigo.
Herbert bebeu o chá e depois passeou pelo jardim com Rosie. Deixou-a
mostrar-lhe todas as plantas que descobrira no meio das ervas daninhas e
em seguida voltou para dentro, desculpando-se com algumas cartas que
tinha de escrever.
Sentiu medo por Rosie. Cole e Seth Parker podiam ser os que
enfrentavam a pena de morte, mas nas próximas semanas ela ia ouvir coisas
que destruiriam as boas memórias que ainda tinha da família e que
arrancariam os últimos vestígios da sua inocência. Pior ainda era o receio de
que as provas que a polícia reunira contra Seth fossem insuficientes para
que o júri o considerasse culpado de homicídio e daí a umas semanas ele
andasse em liberdade à procura da pessoa que considerava responsável pela
desdita do pai.
Herbert suspirou. Miss Pemberton tivera a ideia acertada ao retirar Rosie
daquela região e dar-lhe uma nova identidade. Também defendera os seus
interesses ao convencer a polícia de que seria muito prejudicial para a
menina ser obrigada a testemunhar em tribunal contra o pai e o irmão. No
entanto, o seu plano para protegê-la de mais sofrimento e humilhação
parecia quase tão mau como fechá-la numa prisão.
Não lhe ocorria destino pior do que ser posta a trabalhar num hospital
psiquiátrico.
CAPÍTULO 5

R osie espreitou pelos altos portões de ferro de Carrington Hall e


estremeceu. Imaginara que um hospital privado com um nome tão
pomposo seria uma imponente casa no meio de lindos jardins. Em vez disso
era um edifício irregular e feio que mais parecia um velho asilo. O jardim
estava cheio de ervas e muito negligenciado.
A tinta a descascar, os tijolos vermelho-escuros a verem-se através do
estuque danificado, os altos abetos que o rodeavam e as janelas com grades
acrescentavam uma nota ameaçadora ao carácter já de si deprimente de um
lugar usado para prender os imbecis.
Foi o mais puro instinto que a levou a virar-se e afastar-se, voltando para
a linda rua que percorrera desde a estação do metropolitano de Woodside
Park. As casas geminadas tinham sido construídas depois da guerra, com
alpendres arredondados, relvados muito bem aparados e lindos canteiros
com flores. Quando as vira até começara a pensar que as coisas iriam
melhorar para si. A vida não lhe atirara já horror suficiente? Miss
Pemberton ainda tinha de trair a sua confiança mandando-a para um
manicómio a cair aos pedaços?
Percorrera cerca de vinte metros quando o senso comum prevaleceu.
Parou, pousou a mala de viagem no chão durante alguns momentos e
pensou nas suas opções.
Para onde poderia ir às sete da tarde? A casa de Thomas em Hampstead
não podia ser muito longe, mas será que ele ia gostar que batesse à sua
porta sem ser convidada?
Não fazia ideia de como arranjar outro emprego ou uma casa para morar.
Londres era uma cidade enorme e ela tinha apenas dois xelins na carteira e
estava demasiado cansada para pensar com clareza. Talvez estivesse a
dramatizar? Além disso, era um pouco cobarde fugir antes sequer de pôr um
pé na soleira da porta.
Respirou fundo e voltou para trás, desta vez tentando ser mais positiva. A
casa parecia ter sido ampliada ao longo dos anos de uma forma
desordenada. Até o telhado tinha dois níveis diferentes. Do lado mais baixo
havia dois pisos principais com uma fila de minúsculas janelas de sótão por
baixo de um telhado convencional. Do outro lado o edifício tinha três pisos,
todos com janelas mais pequenas e empenas pontiagudas por cima.
No nível térreo, outros edifícios com um único piso tinham sido anexados
à casa principal; espalhavam-se por uma zona de betão que estava
delimitada por uma vedação de arame com dois metros e meio de altura.
Rosie abriu os portões e começou a percorrer cautelosamente a alameda
de betão cheia de ervas daninhas. Chovera o dia inteiro, até há cerca de uma
hora, e a água pingava sobre ela das árvores altas. A alameda tinha cerca de
quarenta metros de comprimento e teve a nítida impressão de estar a ser
observada.
Tocou à campainha da porta principal, mas teve de esperar muito tempo
antes de ela ser aberta. Uma mulher gorda de meia-idade, com um uniforme
azul-marinho de enfermeira e uma touca de folhos engomada empoleirada
no cabelo muito grisalho, olhou-a com uma expressão carrancuda.
– Sim? – perguntou, como se desconfiasse que Rosie andava a vender
vassouras de porta em porta.
– Sou a Rosemary Smith – disse Rosie, tão nervosa que falou quase num
sussurro. – Venho trabalhar para cá.
A expressão azeda da mulher não mudou. Nenhum sorriso súbito de boas-
vindas nem um pedido de desculpas, apenas um olhar frio.
– Esperava-te há horas – disse secamente. – Já jantámos e a cozinha está
fechada. Eu sou Miss Barnes, a enfermeira supervisora, e agora estou
ocupada de mais para te receber. Vou chamar alguém para te mostrar a casa.
Entra e espera.
Depois da longa viagem e da hesitação à entrada, aquela receção fria
arrancou de imediato a Rosie os últimos vestígios de autoconfiança e teve
de se controlar para não começar a chorar. Entrou circunspectamente numa
pequena zona com chão de mosaicos pretos e brancos. O espaço estava
isolado por uma divisória de madeira e vidro aramado. A enfermeira-chefe
fechou a porta principal e trancou-a com uma das muitas chaves que trazia
numa corrente presa ao cinto. Depois, sem mais uma palavra, saiu por uma
porta da divisória e fechou-a à chave, deixando Rosie presa no que era
praticamente uma gaiola.
Um dia depois de Mr. Bentley lhe ter falado sobre a data do julgamento
do pai, Miss Pemberton visitara-a para lhe dizer que lhe arranjara este
emprego. Rosie não gostara nada e suplicara-lhe que lhe arranjasse outra
coisa qualquer, mas a assistente social conseguira convencê-la a aceitar.
Referira que Mr. Lionel Brace-Coombes, o proprietário do hospital, era um
velho amigo e estava disposto a aceitar Rosie apenas com a sua
recomendação, sem verificar os seus antecedentes. Também era um passo
na direção certa para aprender enfermagem.
Ao perceber que não lhe seria proposta outra alternativa, Rosie tentou ser
otimista e pensar em todas as vantagens que aquele emprego lhe oferecia.
Era no norte de Londres e Thomas Farley estaria apenas a uma viagem de
autocarro de distância. Receberia uma libra e dez xelins por semana, e tudo,
incluindo o uniforme, seria fornecido pelo hospital. E o melhor de tudo é
que absolutamente ninguém ali saberia quem era na realidade, nem sequer
Mr. Lionel Brace-Coombes. Miss Pemberton conseguira arranjar-lhe um
cartão da segurança social com o nome de Rosemary Smith e, juntas,
tinham criado toda uma nova história de vida para ela. A mãe de Rosemary
morrera de uma infeção na sequência de um aborto espontâneo quando ela
tinha seis anos e o pai falecera de ataque cardíaco no ano anterior. Rosie
ficou surpreendida com a facilidade com que uma pessoa podia mudar de
identidade. Como uma cobra a mudar a pele.
Miss Pemberton não podia ter sido mais encorajadora ou bondosa; estava
determinada a que Rosie começasse uma nova vida com todas as roupas
certas. Levara-a aos grandes armazéns Bright’s em Clifton e comprara-lhe,
entre outras coisas, a gabardina verde-escura que usava agora. Tinha um
forro quente de tecido escocês e um capuz, e quase não conseguia acreditar
que possuía uma coisa tão bonita. A mala de viagem podia ser uma mala
velha e estragada de Miss Pemberton, mas quase tudo o que estava no seu
interior era novo. Até tinha uma fotografia dos «pais» numa moldura para
dar crédito à sua história familiar. É claro que a mulherzinha de cabelos
encaracolados e o homem alto com um bigode mole eram apenas amigos de
Miss Pemberton, mas a mulher tinha uma aparência de rapariga do campo
semelhante à de Rosie.
– Podes dizer que sou a tua tia Molly, a irmã solteira do teu pai que
ajudou a cuidar de ti depois do falecimento da tua mãe – sugeriu Miss
Pemberton, a rir-se como se quase desejasse que a história fosse real. – E dá
a minha morada em Chilton Trinity como a tua morada de casa. Vou
escrever-te como qualquer tia escreveria, por isso se alguém quiser
bisbilhotar, como as pessoas fazem, não vão perceber nada. Posso dar-te
informações sobre o Alan e tu dizes que é o teu primo mais novo.
Mr. Bentley perguntara-lhe se queria manter-se em contacto com ele.
Sugeriu que enviasse as cartas para o seu escritório e ele responderia como
tio Herbert. Rosie percebera que ele não queria que a mulher descobrisse
para onde é que ela fora, nem que se interessava por ela. Partilhar o seu
destino secreto com ele fê-la sentir-se reconfortada e o mesmo acontecia
quando olhava para o estojo, com material de escrita em pele, que lhe
oferecera como presente de despedida.
Todavia, a sensação de felicidade e entusiasmo que sentira ao deixar
Bristol naquela manhã foi substituída por terror enquanto esperava,
trancada naquele cubículo. Através do vidro aramado, que estava ao nível
dos olhos, viu uma larga escadaria sem carpete. À esquerda e à direita havia
outras portas fechadas, todas com um pequeno painel de vidro aramado. As
paredes estavam pintadas com um monótono tom verde-ervilha e as portas
eram beges. O hospital parecia bastante inóspito, mas foi um barulho ao
longe que a intimidou verdadeiramente. Um lamento, não exatamente um
choro ou grito, mas um som lúgubre de uma pessoa muito perturbada.
«É assim que é para si, pai?», pensou.
Aceitara a sugestão da assistente social e escrevera-lhe. Pensar muito no
que sentia por ele e expressar os seus sentimentos por escrito aliviara um
pouco o seu tormento. Disse-lhe sem rodeios que não tinha pena, apenas
uma vergonha profunda, e que a única coisa que poderia mudar o que sentia
era se ele fosse homem o bastante para reconhecer os seus crimes e mostrar
algum arrependimento verdadeiro pelo que fizera. No entanto, apesar de
tudo, suavizara as palavras duras no fim da carta dizendo que guardaria
boas recordações suas no coração e que tentaria perdoar-lhe.
A resposta do pai fê-la chorar. Ele escrevia como uma criança, com letras
maiúsculas, sem pontuação, e quase todas as palavras estavam mal escritas.
Todavia, a mensagem que lhe transmitiu foi forte e clara: sempre a amara,
sentia orgulho nela e lamentava muito não ter sido um exemplo melhor.
Não afirmou a sua inocência, nem admitiu a culpa, mas declarou que estava
contente por ela se ir embora do Somerset porque queria mais para ela do
que ele próprio conseguira a viver nos Levels. Esperava que se casasse com
um homem que a tratasse bem e a fizesse feliz.
Rosie lera e relera a carta antes de acabar por destruí-la. Aquelas poucas
palavras inarticuladas diziam muito acerca do homem. Ele possuía um lado
mais bondoso e decente, tinha sonhos e ansiava por mais do que a vida lhe
oferecera. Rosie pensou no passado e recordou o orgulho que ele sentia da
sua sala de visitas. O mobiliário que comprara em leilões de mansões rurais
durante os difíceis anos trinta era demasiado imponente para a casa de um
trabalhador. Ele costumava passar as grandes mãos com afeto pela mesa
encerada e realçar a habilidade do artesão que a fizera. Também se
lembrava de que fora ele que despertara o seu interesse pela natureza,
explicando-lhe tudo o que sabia sobre aves e outros animais enquanto
caminhavam juntos pelos brejos.
Pensou que talvez ele fosse tão vítima como Ruby e Heather, obrigado
desde pequeno a depender da força física e despojado de toda a
sensibilidade devido à dureza do meio em que nascera. Não sabia porque é
que essas circunstâncias o tinham transformado num assassino, mas talvez
demasiada frustração fizesse isso a um homem.
Por fim, no instante em que estava prestes a gritar e bater na porta para
que a tirassem dali, Rosie viu uma rapariga descer as escadas. Parecia ter
uns dezanove ou vinte anos e era completamente desprovida de encantos,
dolorosamente magra, com cabelo castanho baço, curto, mal cortado, e
óculos com aros metálicos. Usava um vestido de uniforme castanho-
avermelhado. Como a enfermeira-chefe, tinha um molho de chaves no
cinto.
A sua aparência era tão pouco atraente que Rosie ficou surpreendida
quando ela acenou e sorriu antes de abrir a porta.
– Não estejas tão assustada – disse com uma risada quando abriu a porta
para Rosie sair. – É um hospício, mas não é tão mau como parece.
A alegria da rapariga foi um pequeno raio de esperança, mas quando saiu
do cubículo e a porta foi fechada de novo atrás de si o barulho aumentou
muito e sentiu um cheiro desagradável que parecia ser de vomitado antigo.
Rosie estremeceu visivelmente e a outra rapariga riu-se.
– Não te preocupes com aquele barulho – disse. – É só a velha Mabel,
mas vão calá-la daqui a pouco. Eu sou a Jackson. Somos tratadas pelo
apelido quando estamos de serviço, mas sou a Maureen quando a
enfermeira supervisora não estiver a ouvir. Não pensei que fosses tão nova.
Rosemary Smith, não é?
Rosie acenou com a cabeça e tentou sorrir, mas tinha os olhos rasos de
lágrimas.
– Vá lá, querida. – A rapariga mais velha tocou-lhe no ombro e pegou na
sua mala de viagem. – Vou levar-te para o nosso quarto... vais dividir
comigo. Pareces exausta.
Maureen subiu a escadaria à frente e o som dos pés de ambas na madeira
envernizada sem tapetes quase abafou os gemidos que se ouviam mais
acima. Ela parou ao pé de uma porta no primeiro andar.
– É por aqui que entras na enfermaria onde vais trabalhar – disse,
deixando Rosie espreitar pelo painel de vidro. Ela viu outra porta
semelhante no interior e depois dela um comprido corredor. – Durante
algum tempo vai parecer uma prisão porque todas as portas, as interiores e
estas, têm de ser fechadas à chave quando entras e sais. No entanto, daqui a
alguns dias estarás tão acostumada a trancar e destrancar que nem sequer
pensarás nisso.
– Então, os doentes são perigosos? – perguntou Rosie, nervosa.
– Alguns podem ser – respondeu Maureen com um encolher de ombros. –
Mas as portas fechadas à chave são acima de tudo para sabermos onde estão
todos e o que estão a fazer.
A larga escadaria terminava de forma abrupta no patamar do segundo
andar, a seguir à porta que Maureen disse que dava acesso à enfermaria dos
doentes mais perturbados. A partir dali a escada para a última porta era
estreita, tinha alcatifa e era sem dúvida um acrescento mais recente à casa.
Quando Maureen destrancou a porta Rosie percebeu que estavam a entrar
na parte mais alta do edifício, que vira do exterior.
– Esta é a ala dos funcionários – explicou Maureen. – Vivemos todos aqui
em cima, exceto a enfermeira supervisora, que tem um apartamento no rés
do chão. Como está separada do resto do edifício, é uma zona muito
sossegada. Pode estar um pandemónio lá em baixo e nós não ouvimos nada.
– Entraram num corredor estreito e ela abriu a primeira porta. – E este é o
nosso quarto.
Depois da escadaria de madeira e da frialdade institucional do resto da
casa, o quarto onde Rosie entrou pareceu-lhe agradavelmente confortável,
com duas camas iguais com pesadas colchas bege, duas poltronas, um
toucador e uma grande cómoda. Até havia um tapete no chão e cortinas
alegres aos quadrados amarelos na janela.
– A casa de banho é na porta ao lado – informou Maureen, sentando-se na
cama que estava mais próxima da janela. – Esta é a minha cama. Tu ficas
com as duas gavetas do lado direito do toucador e com as duas gavetas do
fundo da cómoda. Há imenso espaço no armário porque eu não tenho muita
roupa.
Rosie ficou parada no meio do quarto a olhar em volta e de repente os
acontecimentos do longo dia assoberbaram-na e começou a chorar.
Acreditara que já tinha idade e que era forte o suficiente para poder ser
mandada sozinha para Londres, mas não era verdade. Ninguém a alertara
para as grandes multidões e agitação, nem para a confusão que eram os
comboios subterrâneos. Fora parar a um sítio chamado Gloucester Road
antes de perceber que estava a ir no sentido contrário e quando, por fim,
conseguiu voltar para Leicester Square e para o comboio certo, estava à
beira das lágrimas. Tudo era diferente do sítio onde morava antes. As
pessoas abriam caminho e empurravam, tinham rostos mais pálidos, roupas
melhores e falavam de uma maneira estranha. Rosie olhava para os sapatos
de salto alto e para as roupas sofisticadas das mulheres e sentia-se um
ratinho do campo com os seus pesados sapatos pretos de atacadores e meias
brancas pelo tornozelo.
Agora, encontrava-se num sítio onde estavam presas pessoas perigosas.
Dali a duas semanas o pai e o irmão seriam julgados e enforcados e não
tinha ninguém em quem confiar. Estava muito assustada. Como conseguiria
aguentar?
Maureen pareceu chocada ao ver as lágrimas da rapariga mais nova.
Levantou-se da cama e hesitou, como se quisesse dar-lhe um abraço para
consolá-la, mas tivesse medo de ser rejeitada.
– Não chores. Isto aqui é bom – disse, pousando uma mão hesitante no
ombro de Rosie. – Eu sei que no fundo ninguém quer trabalhar num
hospital de malucos, mas não é tão mau como parece e divertimo-nos
muito. Vou fazer-te uma chávena de chá enquanto arrumas as tuas coisas.
Mais tarde, mostro-te tudo.
– Desculpa – soluçou Rosie, a esfregar os olhos sem conseguir estancar
as lágrimas. – É só que... – Calou-se de repente, incapaz de dizer o que a
tinha perturbado.
– Nunca estiveste longe de casa antes? Aquela enfermeira supervisora
fez-te sentir tão bem-vinda como uma pulga? As portas trancadas e a Mabel
a berrar? Eu sei. Quando uma pessoa está cansada, isto é de mais – disse
Maureen num tom cheio de compreensão.
Rosie conseguiu esboçar um sorriso amarelo. Pensou que Maureen era
bondosa e que talvez estivesse a chorar porque não esperava isso.
– Agora vais pensar que sou um bebé chorão...
Maureen olhou para Rosie com uma expressão avaliadora. Tinha doces
olhos cinzentos atrás dos óculos e o seu sorriso caloroso fazia o rosto pálido
e cheio de sinais parecer menos desengraçado.
– Não, não penso. Acontece o mesmo a todas as pessoas quando chegam
cá. Estou muito contente por te ver; tem sido solitário estar aqui sozinha.
Agora, arruma as tuas coisas e põe-te à vontade; vais sentir-te melhor.
Maureen esteve fora do quarto durante cerca de dez minutos. Como não
conseguia ouvir nada, Rosie presumiu que ela voltara a descer. Pendurou as
suas roupas, guardou a mala de viagem na prateleira de cima do armário e
depois sentou-se na cama.
Maureen tinha ainda menos coisas do que ela. Não se viam fotografias,
livros ou outros objetos pessoais. Perguntou a si mesma se todas as pessoas
que vinham trabalhar para este lugar eram excêntricas e não tinham mais
nenhum sítio para onde ir.
Já estava a anoitecer e ao olhar pela janela constatou que o quarto estava
voltado para o jardim das traseiras, que estava mais bem cuidado do que o
jardim da frente, com um relvado bem aparado, canteiros com flores e
diversos bancos de madeira. Tinha cerca de trinta metros de comprimento e
estava circunscrito por um alto muro de pedra com vidros partidos no cimo.
Havia muitas árvores e um pequeno pavilhão de verão. Do outro lado das
árvores viam-se campos. Começou a sentir-se um pouco menos assustada.
Maureen voltou com duas canecas de chá numa mão e um prato com pão
torrado com manteiga na outra.
– Pensei que podias estar com fome, mas só consegui encontrar isto –
disse com um grande sorriso. – Pus muito açúcar no teu chá. É bom para o
choque.
Enquanto bebiam o chá, Maureen descreveu a hierarquia dos
funcionários.
– Começando pelo topo, há a enfermeira supervisora, isto é, Miss Barnes,
a bruxa que te abriu a porta. Depois há o Dr. Freed, que vem cá duas vezes
por semana. A enfermeira-chefe Welbred, que é responsável pela
enfermaria, e a enfermeira Aylwood vêm a seguir, mas não terás de lidar
muito com elas. Mrs. Trow trata de todos os aspetos administrativos e vem
todos os dias. Também há duas enfermeiras que acabaram de tirar o curso e
distinguem-se das outras pelos uniformes às riscas. Abaixo delas estão as
auxiliares, que somos nós. Usamos castanho-avermelhado e vais receber o
teu uniforme amanhã de manhã. Abaixo de nós estão as domésticas, que
tratam da comida, da roupa e das limpezas; algumas usam aventais brancos
e outras aventais verdes, dependendo do que fazem. Duas delas, a Clack e a
Simmonds, têm um quarto no rés do chão, mas as outras não vivem cá e
trabalham a tempo parcial.
Rosie pensou que parecia um exército de pessoas. Perguntou porque é
que não vira mais ninguém quando chegara.
Maureen esboçou um sorriso afetado.
– Elas não estão todas cá ao mesmo tempo. Trabalham em turnos
diferentes e à noite não é necessário haver tantas pessoas. Digam a
enfermeira supervisora ou as outras enfermeiras o que disserem, somos nós,
as auxiliares, que fazemos a maior parte do trabalho. Servimos a comida,
damos de comer aos doentes que não conseguem comer sozinhos, vestimo-
los, lavamo-los e limpamos os que se borram.
Rosie estremeceu. Miss Pemberton dissera-lhe tudo aquilo, e na altura
não lhe parecera muito mau cuidar das pessoas, mas agora que estava ali
parecia horrível.
– Vais acostumar-te depressa – declarou Maureen com um encolher de
ombros. – Afinal de contas, eles não conseguem evitar. Eu penso nos
doentes como crianças grandes e isso ajuda. Uma ou duas funcionárias são
más para eles. Detesto isso e tenho a certeza de que tu também vais detestar,
mas não digas nada, pelo menos se quiseres conservar o emprego, e tenta
manter-te de boas relações com a enfermeira supervisora, senão ela vai
transformar a tua vida num inferno. Mas a grande maioria das empregadas
são simpáticas. A Linda Bell e a Mary Connor são jovens como nós. Esta
noite foram ao cinema, mas voltam mais tarde.
Maureen explicou-lhe mais algumas coisas sobre Carrington Hall.
– Não é nada parecido com os manicómios estatais – disse. – Como as
pessoas pagam para ter os seus familiares maluquinhos aqui, não há
centenas de pacientes, apenas uns trinta, no máximo. Há muitos
empregados, a comida é melhor e não é tão assustador. Eu sei como são os
outros sítios. Trabalhei num.
Quando Maureen disse que estava na hora de fazerem a visita ao edifício,
Rosie começava a achar que talvez não fosse tão mau trabalhar em
Carrington Hall como temera inicialmente. Porém, quando chegaram ao
patamar do segundo andar ouviu algumas pancadas abafadas e gritos vindos
do outro lado da porta trancada e estremeceu.
– Não vamos entrar ali – disse Maureen num tom tranquilizador, dando-
lhe o braço com firmeza e levando-a para o andar de baixo. – Na verdade,
talvez nunca entres lá. A enfermeira supervisora não gosta que as
funcionárias mais novas trabalhem naquela enfermaria. Eu estou aqui há
três anos e só vou lá de vez em quando, se estão com falta de pessoal. E não
te preocupes com os barulhos... lembra-te de que as pessoas que aqui estão
são malucas e é a sua forma de descomprimirem.
Depois de passarem pelos dois conjuntos de portas trancadas no primeiro
andar seguiram por um corredor comprido com chão de linóleo castanho
muito brilhante e muitas portas. Embora o cheiro fosse horrível, mais forte
ainda do que lá em baixo, era claro e espaçoso, com uma janela comprida e
estreita de onde se avistava a alameda.
– Os dormitórios são ali em baixo – disse Maureen com um aceno vago. –
As mulheres ocupam um e os homens o outro. As outras divisões são de
isolamento, tratamento e casas de banho, mas mostro-te tudo isso mais
tarde. Primeiro vou mostrar-te os doentes, que estão na sala de dia.
Como o patamar estava tranquilo e apenas um murmúrio de vozes
indicava que havia pessoas ali perto, Rosie não sentiu medo. Entrou na sala
de dia atrás de Maureen com bastante confiança, mas antes mesmo de ter
um segundo para olhar em volta, ou respirar, um homem avançou para ela e
envolveu-a num abraço cerrado, levantando-a do chão e apertando-a com
tanta força que pensou que ia esmagar-lhe as costelas. Gritou, aterrorizada.
– Está tudo bem – disse Maureen por cima dos seus gritos. – Ele é
completamente inofensivo, só é demasiado cordial. – Põe-na no chão,
Donald – mandou, batendo no ombro do homem. – A Smith veio para cá
para ajudar a tomar conta de ti e se a assustares não vai querer ficar.
Para enorme alívio de Rosie, o homem pousou-a logo no chão e recuou
com uma expressão abatida. Reparou que ele era bastante jovem, com vinte
e poucos anos, era alto e tinha cabelo louro.
– Eu só q-q-queria d-d-dizer olá – gaguejou e afastou-se de cabeça baixa.
Ainda a recuperar do choque do ataque, com o coração a bater como um
martelo-pilão, Rosie olhou pela primeira vez para o resto dos doentes e, ao
fazê-lo, as suas pernas cederam. Nunca vira nada em toda a sua vida que a
deixasse tão repugnada, ou assustada. Encolheu-se de medo e recuou até
ficar encostada à porta trancada, lutando contra a vontade de gritar de novo.
Cerca de catorze rostos feios e deformados, e todos a olhavam. Olhos
apáticos, bocas molhadas e sujas, uns quantos com narizes ranhosos.
Alguns estavam sentados e outros estavam de pé, imóveis, como se
tivessem parado a meio de um movimento quando ela entrara
inesperadamente. A sala estava insuportavelmente quente e abafada e
cheirava a uma pungente mistura de comida rançosa, suor e gases.
E não havia absolutamente nada para distrair o seu olhar daqueles
patéticos refugos humanos. Não havia um único quadro nas sujas paredes
beges, as janelas com grades não tinham cortinas e nem sequer havia um
tapete no chão de linóleo castanho. Para além de cerca de uma dúzia de
poltronas não havia mais nada a não ser uma pilha de cadeiras com
estruturas tubulares empilhadas num canto e uma mesa junto da janela.
– Estás bem? – perguntou Maureen, quebrando o silêncio. – Ficaste
branca como a cal! Deixa-me apresentar-te à Brownlow. É outra auxiliar.
Rosie obrigou-se a sorrir para a mulher de meia-idade que se aproximava,
embora lhe apetecesse fugir dali. A mulher parecia cansada. As muitas
rugas que tinha no rosto estavam inclinadas para baixo, como se nunca
tivesse esboçado um sorriso na vida. Usava um uniforme castanho-
avermelhado como o de Maureen, mas também uma touca e um avental.
Tinha cabelo grisalho e olhos apáticos.
Maureen explicou-lhe rapidamente que Smith acabara de chegar do
Somerset. Brownlow estendeu uma mão mole e proferiu um breve e afetado
discurso de boas-vindas, mas foi óbvio que não lhe apetecia falar e depressa
voltou para a sua cadeira.
Rosie esforçou-se ao máximo para controlar o medo e repugnância e
olhou em volta. Para sua surpresa, Donald, o homem que a esmagara, era
não apenas o mais jovem dos doentes, mas também o único que parecia ter
alguns sinais de normalidade. Na verdade, se não fosse a boca molhada e
suja e uma expressão vazia nos olhos azuis tristes, quase poderia ser
considerado bonito. Tinha pelo menos um metro e oitenta de altura, um
corpo magro, uma postura muito direita e cabelo louro mole que precisava
muito de um corte. Em comparação com os outros homens, não parecia
assustador.
Havia menos homens do que mulheres, mas, excluindo Donald, todos
pareciam ter mais de quarenta anos e usavam as mesmas calças cinzentas e
casaco de flanela com corte militar por cima de uma camisa. Um baloiçava-
se para trás e para a frente na cadeira enquanto balbuciava alguma coisa
baixinho e esfregava as mãos nas virilhas. Os outros continuavam a olhar
para Rosie; um estava a babar-se.
As mulheres foram as primeiras a recomeçar a mexer-se, juntando-se em
grupos de duas e três e sussurrando umas com as outras enquanto a
observavam. Ao contrário dos homens, não havia qualquer uniformidade
nas suas roupas e idades. A mais jovem parecia ter vinte e tal anos e a mais
velha talvez mais de sessenta. Algumas usavam vestidos estampados e
casacos de malha, outras vestiam saias, blusas e casacos de malha. No
entanto, todas pareciam negligenciadas, com nódoas de comida na roupa e
cabelo desgrenhado, e andavam devagar, sem graça, quase como se
sentissem dores nos membros.
– É melhor dizer-te quem são – declarou Maureen, segurando no cotovelo
de Rosie e afastando-a da porta. – Não tenhas medo, são todos bastante
inofensivos e quando os conheceres verás que alguns até são queridos.
Rosie não acreditou naquilo. Uma mulher de olhos desvairados com cerca
de trinta anos estava sentada numa cadeira a tricotar furiosamente. Tinha
cabelo ruivo muito áspero que se espetava como uma vassoura. Num canto,
duas mulheres mais velhas estavam muito juntas, de braços entrelaçados.
Uma delas tinha uma cicatriz horrível desde a têmpora até ao maxilar que
lhe repuxava a pele e deixava os olhos em diferentes níveis. A sua
companheira era tão magra que quase parecia um esqueleto. Contudo, a
mais assustadora de todas era uma mulher muito gorda que estava sentada
no chão. A cabeça parcialmente careca estava muito deformada e tinha uma
enorme testa saliente. Os seus olhos eram apenas fendas estreitas e quase
não tinha nariz, apenas dois buracos. O vestido estava subido, deixando
entrever cuecas cor-de-rosa compridas, e ela mexia numa crosta feia na
perna fina e pintalgada enquanto resmungava em voz baixa.
Maureen comportou-se com se estivesse a passear por entre um grupo de
crianças. Ainda a segurar Rosie com uma mão, inclinou-se para falar com
alguns, dizendo-lhes quem ela era; a outros apenas tocava no ombro, como
se quisesse reconhecer a sua presença.
– Esta é a Aggie – disse, parando ao lado da mulher gorda com a cabeça
estranha. – E estas são a Alice e a Patty – disse quando chegou junto das
duas mulheres que tinham os braços unidos. Jacob estava sentado a
baloiçar-se na sua cadeira e ignorou totalmente as tentativas de Maureen
para fazê-lo falar. A mulher de olhar desvairado que estava a tricotar era
Tabby.
– Como um gato – disse a rir às gargalhadas e a tricotar ainda mais
depressa. – Eu também arranho as pessoas, por isso tem cuidado.
– E às vezes arranha mesmo – concordou Maureen com um sorriso
enquanto tocava no ombro de Tabby com um gesto afetuoso. – Mas não é
por isso que lhe chamam Tabby. É o diminutivo de Tabitha. Mas não vais
magoar a Smith, pois não? Porque ela é simpática.
A mulher levantou os olhos para Rosie como se estivesse a decidir se a
arranhava ou não.
– Ela tem um cabelo bonito – disse num tom monocórdico. – A
enfermeira supervisora não vai gostar disso.
Aquele comentário pareceu baseado num conhecimento da enfermeira
supervisora e, como Tabby foi a única pessoa que falou para além de
Donald, Rosie ganhou alguma coragem e inclinou-se para ela.
– O que é que está a tricotar, Tabby? – atreveu-se a perguntar.
– Um vestido – respondeu Tabby e parou de tricotar para mostrar o
trabalho. – É lindo, não é?
Rosie concordou por delicadeza. Na verdade, não passava de uma longa
tira multicolorida com não mais de vinte e cinco centímetros de largura e
muitos buracos onde ela deixara cair malhas.
Donald parecia recuperado da repreensão. Voltou para junto de Rosie e
desta vez pôs a mão nas dela como uma criança. Estava quente e
transpirada, mas o sorriso rasgado que a acompanhava era caloroso e nada
ameaçador.
– C-c-como é que te ch-ch-chamas? – perguntou.
– Smith – respondeu Rosie em voz fraca. Era muito peculiar dizer um
nome a que ainda não se tinha acostumado e mais estranho ainda estar a
falar com um homem gigante que se comportava como uma criança
pequena. – E tu és o Donald, não és?
Ele acenou com a cabeça e sorriu.
– Vais s-s-ser minha a-a-amiga? – perguntou.
– Hum, sim – respondeu Rosie, hesitante, e desejou conseguir gostar de
algumas daquelas pessoas. Pelo menos Donald não era feio e talvez o
abraço forte fosse a sua forma de ter atenção. – Sim, é claro que vou ser tua
amiga – acrescentou com maior convicção do que sentia.
– A Smith volta amanhã – disse Maureen em voz alta. – E quero que se
portem bem, senão...
O alívio que sentiu ao sair da sala foi tão grande que Rosie se encostou à
parede do corredor enquanto Maureen fechava a porta à chave.
– É difícil, não é? – disse ela com alguma compreensão.
– Eles assustaram-me – sussurrou Rosie. – Sei que devia ter pena deles,
mas só queria fugir dali. Não vou ser capaz de fazer este trabalho. Nem
sequer vou conseguir tocar neles. Não sei como aguentas.
Maureen sorriu como se a compreendesse muito bem.
– Todas as pessoas se sentem como tu a primeira vez que visitam um
manicómio – disse. – Mas nunca tivemos ninguém que viesse trabalhar para
cá que não se habituasse ao fim de alguns dias. Aposto que daqui a uma
semana me vais dizer que já nem te lembras do que te assustou. Agora, é
melhor irmos ter com a enfermeira-chefe Welbred e a seguir mostro-te o
resto da casa. Ela devia estar aqui agora com a Brownlow, porque fazem as
noites juntas, mas aposto que está a fumar um cigarro no escritório.

Já passava das nove e meia quando as duas raparigas voltaram para o


quarto. Maureen acendeu um cigarro e parecia disposta a passar a noite
inteira a conversar.
Rosie estava demasiado chocada e agoniada com tudo o que vira e ouvira
para fazer mais perguntas. Tinham-se cruzado com a enfermeira
supervisora, que declarou sem rodeios a Rosie que teria de prender o cabelo
para trás, caso contrário insistiria que o cortasse curto. Pelo menos aquilo
deu sentido ao comentário de Tabby. Aparentemente, a enfermeira
supervisora não aprovava qualquer manifestação de feminilidade. A
enfermeira-chefe Welbred também era estranha, uma mulher grande, ruiva,
de cinquenta e poucos anos com um ligeiro estrabismo num olho. Estava a
ler uma revista quando foram ter com ela ao escritório, tinha um cigarro no
canto da boca e cheirava a álcool. Apertou os braços de Rosie, disse que em
breve teria alguns músculos e começou a rir-se de uma forma quase
maníaca.
Rosie viu tudo o que Maureen pensava que devia ver: as casas de banho e
os dormitórios no primeiro andar, a sala de refeições dos funcionários e as
instalações sanitárias no rés do chão, uma sala de tratamentos e uma sala de
isolamento. Rosie sentiu um arrepio quando Maureen apontou com uma
mão para algumas portas fechadas, dizendo despreocupadamente que eram
as celas almofadadas, e com a outra para um lugar onde eram feitos os
tratamentos com choques elétricos. Também perguntou a si mesma porque é
que ninguém abria as janelas, pois havia cheiros horríveis por toda a parte
que não eram completamente apagados pelo forte odor a desinfetante.
Por fim, entraram numa sala de estar no rés do chão voltada para o jardim
da frente, que se destinava às visitas de familiares dos doentes. Era uma
divisão acolhedora e agradável, com poltronas forradas com chita. Rosie
perguntou se os familiares alguma vez viam a sala de dia dos doentes no
primeiro andar e se comparavam as duas.
– Muito poucos recebem visitas – declarou Maureen com um encolher de
ombros. – Enfiam-nos aqui, pagam as contas e esquecem-nos. Os pais do
Donald costumavam vir uma ou duas vezes por mês, mas agora só vêm cá
uma vez de três em três meses. O pior é que eu acho que ele nem sequer
precisa de estar aqui, só é um pouco simplório. Mas ninguém está
interessado na minha opinião.
No entanto, agora a visita tinha acabado e estavam de novo no segundo
andar. Maureen não parava de contar histórias sobre os doentes e
bisbilhotices sobre os funcionários. Quando Rosie bocejou, ela ficou muito
corada.
– Oh, Céus, desculpa. Deves estar muito cansada e eu não paro de falar.
Vai para a cama, querida. Podemos continuar a conversa amanhã.
Rosie estava quase a dormir quando Maureen falou de novo.
– Achas que vais aguentar? – perguntou em voz baixa.
– Não sei – respondeu, perguntando a si mesma como é que alguma vez
conseguiria vencer a sua suscetibilidade. – Mas tu aprendeste a gostar, por
isso, com o tempo, talvez eu também aprenda.
Pensou que Maureen era tão estranha como tudo o resto neste lugar. Não
parecia uma jovem. Dava a impressão de quase mandar ali, mas os
comentários secos que fazia sobre outros funcionários sugeriam que talvez
não fosse muito apreciada. Também era estranho que não tivesse falado
sobre nada fora de Carrington Hall, quase como se nunca saísse dali.
– Não sei como é a vida fora dos hospícios – declarou Maureen. – Fui
deixada num orfanato quando a minha mãe morreu e mandaram-me para
Luckmore Grange quando tinha apenas catorze anos. Ao pé de Luckmore
Grange, este lugar é um verdadeiro paraíso.
Rosie queria saber tudo sobre a vida de Maureen, mas não conseguiu
manter-se acordada mais tempo. A última coisa em que pensou antes de
mergulhar num sono profundo foi que logo que fizesse dezasseis anos em
outubro sairia dali. Já nem sequer tinha a certeza se queria ser enfermeira.

Maureen ficou acordada durante muito tempo depois de Rosie adormecer.


Podia ter contado muito mais coisas a esta nova rapariga, mas não se
atrevera. Ela descobriria depressa e, entretanto, pelo menos teria
companhia. Todavia, fora sincera quando dissera que era um paraíso em
comparação com Luckmore Grange. Ainda tinha pesadelos com aquele
lugar.
Maureen Jackson tinha dezanove anos e não se importava de trabalhar em
Carrington Hall. No entanto, a sua ideia de felicidade era não ser abusada
verbal ou fisicamente, ter três boas refeições por dia e um quarto decente
para dormir. Até chegar aqui, nunca tivera nenhuma destas coisas.
Tinha seis anos quando a guerra começou e vivia em dois quartos em
Peckham com os dois irmãos mais velhos e com a mãe. Nunca conhecera o
pai, mas percebera muito cedo na vida que a mãe não gostava dela por
causa dele.
– És mesmo igual ao teu pai – dizia, enraivecida, enquanto lhe batia com
um cinto.
Quando a escola de Maureen foi evacuada para Bognor Regis, todas as
outras mães estavam chorosas, mas não a sua. Peggy Jackson já estava no
pub ao fundo da rua antes de a fila dupla de crianças sair pelos portões da
escola.
Entre setembro de 1939 e 1943, Maureen esteve em oito casas diferentes
e por fim foi parar a uma quinta perto de Bodmin para viver com um casal
velho e louco que não se dava ao trabalho de a mandar para a escola e
muito menos de a alimentar com regularidade. Ainda vivia lá, uma menina
escanzelada e desengraçada de dez anos, quando foi informada de que a
mãe morrera. Se tivesse sido morta por uma bomba talvez Maureen sentisse
alguma pena, mas fora atropelada por um carro quando voltava para casa
depois de ter estado no pub.
Foi levada para um orfanato em Yeovil, onde ficou até ao fim da guerra, e
depois, por um motivo qualquer que nunca lhe foi explicado, foi mandada
para Londres, para Northwood, outro orfanato em Dulwich. Quando o tio
Ted, um homem que tratava do jardim, começou a abraçá-la e a acariciá-la,
teve a sensação de que aquilo não era certo, mas era bom que, por fim,
alguma pessoa se importasse com ela. Ted era simples, mas costumava dar-
lhe doces e dizia que era a sua pequena namorada. Maureen confiava nele e
considerava que era o seu melhor amigo.
Mas um dia, pouco antes de ela fazer catorze anos, Ted atirou-a para cima
de algumas sacas velhas na arrecadação do jardim e violou-a. Doeu imenso,
mas pior ainda do que a dor e o choque foi a horrível sensação de ter sido
traída. Fugiu a chorar quando ele acabou de forçá-la e depois disso
manteve-se longe dele.
Foi numa consulta médica de rotina que descobriram que ela estava
grávida de cinco meses. Maureen perguntara inocentemente a si mesma
porque é que a sua barriga parecia estar a ficar mais gorda, mas nunca fez a
associação entre aquilo e a coisa terrível que Ted lhe fizera. Quando o
médico a interrogou ela teve demasiado medo de admitir fosse o que fosse e
continuou a dizer que não sabia como acontecera.
E foi assim que acabou em Luckmore Grange, no Essex. Disseram que
tinha um problema mental e que teria de ser internada.
Entrou em trabalho de parto antes do fim do tempo e a bebé morreu
algumas horas depois de nascer. Maureen tinha apenas catorze anos e meio
e ninguém teve pena dela.
Maureen esteve naquele lugar pavoroso durante quase dois anos. Passava
os dias fechada à chave numa sombria enfermaria, rodeada de velhas que
arrastavam os pés, faziam xixi no chão e cocó na cama. Via mulheres tão
perturbadas que arrancavam o cabelo com as mãos e rasgavam a carne com
as unhas, e ouvia-as gritar com brutais tratamentos de choques elétricos.
Durante algum tempo depois de perder a bebé ficou parada sem se mexer e
recusava-se a falar fosse com quem fosse.
Porém, uma noite estava deitada naquele dormitório, com a pele arrepiada
a ouvir os horríveis sons de loucura que a rodeavam, as gargalhadas, os
sinistros sussurros e os estranhos gemidos, e soube que se não fizesse
alguma coisa depressa ficaria tão demente como elas.
Percebeu que teria de se esforçar para provar que não era louca. Qualquer
violência significaria tratamento de choques elétricos e um colete de forças
– eles não dariam ouvidos a quaisquer protestos. A sua única opção era ser
dissimulada.
O primeiro passo foi oferecer-se para ajudar os funcionários. Era um
grupo de pessoas cruéis, que faziam um trabalho que mais ninguém queria
fazer. No começo só a rebaixaram, atribuindo-lhe os trabalhos mais
repugnantes, como limpar o que os pacientes incontinentes sujavam. No
entanto, pouco a pouco percebeu que começavam a contar com ela e em
breve estava a dar de comer aos pacientes mais dependentes, a fazer camas
e recados. Um jovem médico que começou a trabalhar lá foi a sua
verdadeira salvação; sem ele, talvez tivesse ficado presa naquele limbo para
sempre, a ter de trabalhar, mas fechada.
No primeiro dia em que ele veio à enfermaria, Maureen viu aquela luz
nos seus olhos que dizia que ainda não fora desgastado pela situação
desesperada das instituições para doentes mentais. Ouviu-o dizer a uma
enfermeira beligerante que os doentes mentais eram pessoas e que tinham
de ser tratados com compaixão e percebeu que seria a pessoa ideal para
ajudá-la.
Seguia-o sempre que ele fazia as rondas. Oferecia-se para ajudar com
pacientes difíceis, dando-lhe informações sobre eles. Por fim, um dia o
médico pediu-lhe que lhe falasse sobre o seu caso.
Fora assim que conseguira o emprego em Carrington Hall. Quase não
sabia ler nem escrever, o que excluía quase todos os outros trabalhos, e
estava acostumada a cuidar de doentes mentais. Viera durante um mês à
experiência e quase três anos depois continuava a trabalhar ali.
Espreitou pelo estreito espaço entre a sua cama e a da rapariga nova e
sentiu muita inveja dela. Ela tinha tudo: era bonita, possuía roupas lindas e
até a fotografia que estava em cima da mesa de cabeceira mostrava que
tinha pais que a amavam. Não ficaria ali muito tempo.
Ao vê-la dormir com um braço dobrado em volta da cabeça Maureen
sentiu-se um pouco culpada por ter concordado contar à enfermeira
supervisora tudo sobre ela. Rosemary era simpática e não parecia justo
espiá-la e contar o que descobrisse. Porém, ela insistira que tinha de ser
assim, a não ser que quisesse ir parar a outro lugar como Luckmore Grange.

Rosie acordou sobressaltada quando uma campainha tocou.


– Temos de nos levantar – disse Maureen, saltando da cama. – Veste
alguma coisa simples. Recebes o uniforme a seguir ao pequeno-almoço.
Rosie esfregou os olhos e levantou-se da cama. Pegou na bolsa com os
produtos de higiene e na toalha e foi à casa de banho na porta ao lado.
Quando voltou, Maureen já estava pronta.
– Despacha-te – disse. – Temos de estar lá em baixo daqui a cinco
minutos.
Rosie perguntou a si mesma se a rapariga se tinha lavado e escovado os
dentes. Não parecia haver outra casa de banho ali perto. Enfiou rapidamente
a saia azul-marinho e uma blusa branca, escovou o cabelo e prendeu-o com
um elástico na nuca.
Estava tudo em silêncio quando desceram os três lanços de escadas e
pensou que os pacientes ainda deviam estar a dormir. No entanto, sentiu o
forte cheiro a amoníaco a sair por baixo de portas fechadas à chave e foi
uma desagradável lembrança não só do que teria de fazer, mas também do
irmão Seth.
No fundo das escadas viraram à esquerda para a zona do edifício que
tinha apenas um piso, onde Maureen a levara na noite anterior para lhe
mostrar os aposentos dos funcionários e a lavandaria.
O pequeno-almoço estava servido numa sala pequena e escura à saída da
cozinha. O relógio de parede marcava seis e meia e a pequena tira de céu
que se via para lá de um arbusto denso do lado de fora da janela com grades
estava cinzento-escura. Rosie e Maureen foram as primeiras a chegar e
sentaram-se a uma mesa posta com oito lugares, mas alguns minutos mais
tarde entraram duas raparigas de vinte e poucos anos, ambas com o
uniforme castanho-avermelhado de auxiliares.
Maureen apresentou-as como Mary Connor e Linda Bell, as raparigas que
mencionara na noite anterior. Explicou-lhes que Rosie chegara enquanto
elas estavam fora e que lhe mostrara o edifício.
Elas pareceram completamente desinteressadas e limitaram-se a acenar.
Rosie não percebeu se era hostilidade ou se era apenas porque tinham
acabado de acordar.
Linda Bell parecia ser a mais velha e era uma rapariga roliça com cabelo
escuro curto e pele má. Sentou-se à frente de Rosie e começou a servir-se
de uma porção gigantesca de cornflakes.
Mary Connor hesitou antes de pegar na caixa dos cereais e, talvez
consciente de que estavam a ser rudes, olhou para Rosie e passou-lha
primeiro.
– É melhor comeres. Vais querer comer tudo o que houver para o
pequeno-almoço porque o almoço parece demorar sempre uma eternidade –
disse.
Tinha um suave e melodioso sotaque irlandês e parecia uns dois anos
mais nova do que Linda – pequena e atarracada, mas bonita, com cabelo
louro macio e olhos azul-acinzentados. Rosie gostou dela.
Estava demasiado nervosa para sentir fome e serviu-se de uma quantidade
muito pequena de cereais. No entanto, quando uma mulher muito mais
velha com um avental branco trouxe pratos com toucinho fumado, ovos e
pão frito e pousou um à sua frente sem dizer nada, no momento em que ela
acabava de comer os cereais, o cheiro era tão bom e a aparência tão
apetitosa que começou a comer.
– Aquela é a Pat Clack – disse Mary Connor logo que a mulher mais
velha voltou para a cozinha. – Já esteve internada aqui, mas agora faz a
comida. É uma velhota engraçada. Quase não fala e por vezes até parece
que não ouve, mas é uma boa cozinheira.
– Todo o pessoal doméstico é um pouco... – Bell levou um dedo à cabeça
para sugerir que eram simples. – É a enfermeira supervisora que os escolhe.
Ela gosta de ter pessoas que pode controlar.
Enquanto comia em silêncio, a desejar que alguém voltasse a falar, Rosie
apercebeu-se de que Maureen comia ruidosamente. Um olhar de lado para a
rapariga fê-la sentir-se enojada – ela mastigava com a boca muito aberta,
estalando os lábios e mal engolindo uma garfada antes de levar outra à
boca. Era uma visão repugnante e um sexto sentido disse-lhe que Linda e
Mary também detestavam aquilo. Talvez fosse por isso que não eram muito
simpáticas?
Enquanto bebia uma segunda chávena de chá e comia a terceira torrada,
Rosie sentiu-se corajosa o suficiente para falar e perguntou a Mary e Linda
de onde tinham vindo e se gostavam de trabalhar ali.
Mary sorriu e os seus olhos tinham calor suficiente para afastar qualquer
ideia de que Rosie pudesse não ser bem-vinda.
– A Linda é de Londres. Eu sou irlandesa, como deves ter percebido, e
nasci em Cork. Se gostamos disto? O diabo é que gostamos! Terias de ser
louca para gostar. E tu? O teu sotaque parece do West Country. O que é que
te leva a querer trabalhar num hospício?
Rosie sorriu ao ouvir esta torrente de explicações e perguntas.
– Quero ser enfermeira, por isso pensei que podia trabalhar aqui até aos
dezoito anos.
– Seria igual se estivesses a abrir valas num cemitério – replicou Linda
num tom sombrio, e o seu sotaque do East End londrino fê-la recordar
Heather com intensidade. – Não vais aguentar isto até aos dezoito anos.
A enfermeira supervisora chegou à porta da sala de refeições e todas as
conversas pararam.
– Jackson, Bell, para cima! – disse com brusquidão, e a sua expressão
dizia agora, não quando vos der jeito. – Connor, vai ajudar com o carro dos
pequenos-almoços. Smith, vem comigo.
Rosie olhou para trás antes de ir submissamente atrás dela. Linda Bell
estava a fazer uma careta nas costas da mulher e piscou-lhe um olho como
se quisesse dizer que estavam todas unidas na antipatia pela responsável.
A enfermeira supervisora seguiu à frente pelo estreito corredor e
passaram pela sala de estar dos funcionários e pela lavandaria. Duas
mulheres mais velhas com aventais verde-escuros estavam lá dentro, uma a
mexer um gigantesco caldeirão fumegante e a outra a pôr montes de roupa a
pingar num grande secador de rolos. Olharam quando Rosie passou. A que
estava a mexer a roupa acenou.
A enfermeira supervisora só falou quando destrancou uma porta a cerca
de três metros da lavandaria. Nesse momento virou-se para Rosie e olhou-a
de alto a baixo. Na noite anterior Rosie estivera mais preocupada com a
formidável presença desta mulher do que com a sua aparência física, mas
agora reparou que ela era tão pouco atraente como os seus modos azedos.
Os astutos olhos escuros estavam muito juntos e uma vida inteira de mau-
humor franzira-lhe a testa e enrugara-lhe a boca. A sua pele tinha uma
tonalidade acinzentada doentia e um bigode escuro parecia realçar os
grandes dentes salientes e amarelos.
A sua gordura nem sequer era uniforme, mas sim aos papos; na verdade,
tinha um rolo de gordura à volta das ancas que sobressaía como uma
prateleira. Mais gordura transbordava dos sapatos de atacadores e outro
rolo, nos antebraços, despontava de baixo dos punhos brancos engomados
do uniforme. Contudo, mais preocupante do que a aparência da mulher era
uma sensação de antagonismo que emanava dela como os desagradáveis
cheiros que se sentiam por toda a parte neste lugar e, pior ainda, parecia ser
dirigido a Rosie.
– Todos os uniformes vão ser grandes de mais para ti – disse-lhe num tom
que sugeria que a culpa era sua. – Ajeitas-te a costurar?
Rosie sabia passajar meias, pregar botões e fizera uma blusa à mão na
escola, mas não sabia se conseguiria arranjar um uniforme.
– Não sei – respondeu.
– Bem, ou sabes ou não sabes – disse a enfermeira supervisora num tom
brusco. – Não suporto pessoas indecisas.
– Sei coser. O que quis dizer foi que não sei se consigo apertar um
uniforme – retorquiu Rosie. Depois, lembrando-se do que Maureen dissera
sobre «manter-se de boas relações» com ela, acrescentou: – Mas posso
tentar.
A enfermeira supervisora abriu a porta que destrancara, acendeu uma luz
e entrou, deixando Rosie no corredor. Era um grande armário e as paredes
estavam cheias de prateleiras. Num dos lados viam-se pilhas organizadas de
uniformes de todas as diferentes cores que Maureen descrevera. Do outro
lado havia mais roupas variadas – saias, calças cinzentas, camisolas, roupa
interior, camisas de dormir e pijamas. Rosie pensou que deviam ser para os
pacientes.
A mulher mais velha procurou na pilha castanho-avermelhada e tirou dois
vestidos, estendendo um a Rosie.
– Acho que está quase bom – disse, apesar de ser vários tamanhos acima
do seu e de lhe chegar quase aos pés. A seguir deu-lhe três peças de cada:
aventais e toucas brancos engomados, cuecas grossas, meias pretas de fio da
Escócia, um casaco de malha castanho-avermelhado e um cinto elástico
preto. – A Jackson explicou-te como funciona a lavandaria? – perguntou
num tom brusco.
Rosie acenou com a cabeça. Estava a cambalear sob a pilha de roupa.
– Tem de estar lá às segundas-feiras. E os aventais todos os dias.
– Esta noite tens de coser uma etiqueta com o teu nome em todas as
peças. – Entregou-lhe um pouco de fita e um marcador. – Devolve-me isso
amanhã de manhã.
Em seguida, mandou-a ir para cima vestir o uniforme. Não podia demorar
mais de quinze minutos e depois devia ir ter com ela ao gabinete de Mrs.
Trow na entrada com o seu cartão da segurança social.
Voltaram para trás pelo corredor e a enfermeira supervisora parou junto
de um pequeno armário a seguir à sala de refeições e abriu-o. Estava cheio
de chaves e ela retirou um molho, estendendo-o a Rosie.
– Agora, são tuas – disse. – Se as perderes, o custo será descontado do teu
salário. A etiqueta de cor em cada uma significa o andar a que pertencem.
As vermelhas são do rés do chão, as verdes são do primeiro andar e as azuis
da ala dos funcionários. O número corresponde aos números de cada porta.
Tu só tens as chaves das divisões onde tens de entrar.
Rosie não teve tempo para fazer mais nada a não ser atirar tudo para cima
da cama e mudar rapidamente de roupa. As cuecas eram grandes, com forro
de lã, como as que usava na escola, e olhou para elas horrorizada enquanto
perguntava a si mesma quem as teria usado antes. Como solução de
compromisso, vestiu-as sobre as boas de algodão que Miss Pemberton lhe
comprara.
Não tinha um cinto de ligas para prender as meias, por isso não pôde
calçá-las. Quanto ao vestido, como previra, chegava-lhe quase aos
tornozelos e era vários centímetros largo de mais.
Conseguiu subi-lo um pouco quando prendeu o avental e ajustou o cinto
na cintura, mas ao olhar-se ao espelho não soube se devia rir ou chorar.
Estava ridícula, como uma criança pequena vestida com roupas de um
adulto. E a cor castanho-avermelhada não combinava com o seu cabelo.
Quando pôs a touca branca no cabelo perguntou a si mesma se Maureen
saberia alguma coisa sobre arranjos de roupa.
A enfermeira supervisora estava à sua espera no gabinete de Mrs. Trow.
– Onde estão as tuas meias? – perguntou, olhando para as meias curtas de
Rosie com desagrado.
– Peço desculpa, mas não tenho um cinto de ligas – gaguejou Rosie.
– Podes usar ligas elásticas. Faz um par esta noite.
Sentou-se à secretária, mas não mandou Rosie sentar-se e nem sequer a
olhou nos olhos enquanto berrava todos os «nunca»: nunca deixar a sala de
dia sem vigilância (tinham de estar lá duas funcionárias em todos os
momentos); nunca trazer coisas do exterior para um paciente, por muito
inocente que o pedido pudesse parecer; nunca fumar na sala de dia e nunca
dar cigarros ou fósforos aos pacientes; nunca falar sobre Carrington Hall
com ninguém e comportar-se sempre de uma forma digna.
Rosie esperava que a enfermeira supervisora fosse como Miss Pemberton,
talvez um pouco brusca, mas interessada nos seus subordinados ao ponto de
fazer algumas perguntas pessoais e de querer saber como é que ela se estava
a adaptar. Porém, para sua consternação, ela parecia incapaz de dar até as
mais tépidas boas-vindas.
– Por enquanto, vais folgar à terça-feira – acabou por dizer, olhando-a de
uma forma que sugeria que esperava que Rosie já não estivesse ali na
semana seguinte. – Podes sair à noite quando não estiveres de serviço, mas
tens de estar de volta às dez e meia. Não penses por um único momento que
a tua relação com Mr. Brace-Coombes te dará algum privilégio. Se te
atrasares a voltar ou infringires alguma das regras, serás despedida
imediatamente. Agora, está na hora de ires trabalhar.
Ao ouvir o comentário sobre Mr. Brace-Coombes Rosie perguntou a si
mesma se seria por esse motivo que a enfermeira supervisora parecia não
gostar dela. Abriu a boca para declarar que não tinha uma verdadeira
relação com o proprietário do hospital psiquiátrico, mas fechou-a de novo,
consciente de que se dissesse isso ficaria numa posição ainda mais precária.
Em vez disso agradeceu à mulher, embora não fizesse ideia do que estava a
agradecer.
Quando chegou ao primeiro andar para começar a trabalhar muitas das
camas nos dois dormitórios já tinham sido desfeitas, mas, apesar de as
janelas estarem abertas de par em par, o pungente cheiro a amoníaco ainda
se sentia. Rosie ficou muito contente por ter perdido a primeira parte do dia.
Não sabia se, depois de tudo o resto, ainda conseguiria aguentar as
lembranças das camas molhadas de Seth.
Todos os pacientes que vira na noite anterior, com exceção de Aggie, já
estavam vestidos e sentados à mesa na sala de dia à espera do pequeno-
almoço em silêncio. Como acontecera na noite anterior, olharam-na com
expressões apáticas. Aggie estava vestida, mas sentada no chão, exatamente
no mesmo lugar onde estivera na noite anterior, a baloiçar-se para trás e
para a frente e a falar sozinha.
Maureen servia canecas de chá de um bule que estava num carrinho
enquanto uma mulher mais velha chamada Simmonds, de avental verde,
enchia tigelas com papas de aveia. Rosie não viu Linda em parte alguma.
– Distribui as papas de aveia – ordenou Maureen, e depois olhou
rispidamente para Aggie e gritou. – Levanta-te já, Aggie, ou não comes.
Aggie deu uma resposta ininteligível, virou-se até estar de gatas e
gatinhou até à mesa. Rosie pensou que devia deslocar-se assim
normalmente, pois ninguém pareceu achar estranho. Quando pôs uma tigela
e uma colher diante de cada paciente, eles atiraram-se à comida como se
não comessem há uma semana.
Aggie acabou por se içar para uma cadeira, mas era óbvio que tinha um
problema grave nas pernas; não parecia conseguir apoiar-se nelas e tinham
várias lesões húmidas com mau aspeto. Pôs a boca na tigela e sugou,
praticamente, as papas de aveia. Rosie sentiu náuseas.
A seguir veio ovo mexido com minúsculos cubos de pão frito. Rosie
presumiu que estava cortado daquela maneira para ser comido com
colheres. No entanto, muitos ignoraram-nas e comeram com os dedos,
enfiando a comida na boca com tanta rapidez que pensou que não podiam
estar a mastigá-la.
Enquanto barrava uma fina camada de doce de laranja em fatias de pão
com margarina, Rosie deu por si a pensar em Mrs. Bentley e nos seus
queixumes continuados sobre «maneiras à mesa» e perguntou a si mesma o
que pensaria ela deste grupo. Donald era o único que comia com alguma
dignidade e Rosie sentiu curiosidade em saber porque seria. Fora internado
há pouco tempo ou era um pouco mais inteligente do que os outros e
recordava-se de coisas que aprendera quando era criança?
Às nove horas, Mary desceu do segundo andar e juntou-se a elas,
queixando-se amargamente de que um dos pacientes comera o seu pequeno-
almoço e depois vomitara em cima dela, obrigando-a a mudar o uniforme
inteiro, incluindo as meias. Afundou-se numa cadeira e declarou que já
estava exausta. Parecia que hoje Linda ia ficar no segundo andar.
A enfermeira supervisora informara Rosie de que, como auxiliar, fazia
parte das suas tarefas lavar o chão da sala de dia, dos dormitórios e dos
corredores com desinfetante, fazer as camas e limpar as casas de banho e
avisara-a de que teria de ver a escala de serviço para saber quais eram as
tarefas que lhe tinham sido atribuídas. Porém, Maureen não parecia
interessada no que estava na escala de serviço; disse que Simmonds já
estava a começar a lavar o chão de um dos dormitórios e que ela e Mary
limpariam a sala de dia. Rosie podia ir ter com Simmonds e fazer o resto.
Rosie concordou de boa vontade. Pelas sobrancelhas erguidas de Mary
percebeu que não era propriamente uma divisão justa do trabalho, mas para
ela era preferível a passar o dia inteiro numa sala com os doentes. A
sensação de repulsa não diminuíra. Sentia a pele arrepiar-se ao vê-los
arrastarem-se de um lado para o outro sem destino, a arranharem-se, a pôr o
dedo no nariz. Perguntou a si mesma se alguma vez conseguiria falar com
eles. Eles nem sequer pareciam comunicar uns com os outros.
– Podias levar o Donald para te ajudar – sugeriu Mary. – Ele é bom a
limpar e fica com alguma coisa para fazer. Ele ajuda-me sempre.
Rosie estremeceu. Tinha visões de Donald a agarrá-la de novo, como
acontecera na noite anterior, sem ninguém por perto para o impedir.
– O Donald é bastante inofensivo – disse Mary em voz baixa. – Olha para
ele!
Rosie virou-se e viu Donald parado junto da porta. O seu rosto estava
ansioso; alisava o cabelo louro como se estivesse a tentar tornar-se mais
atraente para ela. Alguma coisa fez um clique dentro de si. Vira aquela
mesma expressão tantas vezes no rosto de Alan quando estava na presença
dos irmãos mais velhos. Queria que gostassem dele e estava pronto para
fazer o que fosse preciso.
– Muito bem, Donald, vais ser o meu ajudante – disse com alguma
relutância, mas foi recompensada com um enorme sorriso de felicidade.

Depois de passar meia hora sozinha com Donald no primeiro dormitório,


Rosie percebeu não só que estava contente com a sua ajuda mas também
que Maureen poderia estar certa quando dizia que ele não precisava de estar
ali.
Donald sabia exatamente o que tinha de ser feito. Tirou lençóis e fronhas
lavados de um armário e pô-los num carrinho antes mesmo de ela perceber
por onde devia começar. Em seguida, levou-a para a ponta da fila de camas,
atirou rapidamente os cobertores e a almofada para a cama seguinte e abriu
o lençol de baixo limpo.
– A-a-assim – gaguejou, mostrando-lhe uma maneira especial de fazer
cantos perfeitos. – C-c-cantos de hospital. A e-e-enfermeira ensinou-me.
Falou muito pouco enquanto trabalhavam, mas Rosie deu por si a sorrir
ao ver o orgulho que ele tinha no seu trabalho. O lençol de cima devia ser
dobrado de uma determinada maneira e a almofada batida e posicionada
com todo o cuidado. Era mais rápido e eficiente do que muitas das
enfermeiras que observara enquanto estava no hospital. Quando terminaram
o dormitório das mulheres foram ter com Simmonds ao dos homens para
ajudá-la e Donald mostrou-lhe qual era a sua cama, a única seca, junto da
janela.
– G-g-gosto de olhar para o j-j-jardim de manhã – gaguejou. – G-g-
gostava de poder s-s-sair q-q-quando quero.
Aquele comentário melancólico fê-la ver a difícil situação de Donald e
dos outros pacientes com mais clareza. O seu dia só começara há duas horas
e Rosie já estava a ansiar por ir lá fora respirar ar puro. Toda a vida tivera
grandes espaços abertos ao fundo do quintal. No entanto, poderia sair ao
fim da tarde, cheirar flores nos jardins, passear pelas ruas e campos se lhe
apetecesse, mas o pobre Donald, sem que a culpa fosse sua, estava
condenado a passar o dia inteiro, todos os dias, ali preso, e a ver o mundo
exterior através de uma janela.
Mais tarde, Donald mostrou-lhe onde eram guardados os baldes,
esfregonas e materiais de limpeza e continuou em passo acelerado para a
sala de despejos para encher os baldes com água quente. Simmonds tirou-
lhe um balde das mãos e começou a lavar o corredor e Rosie e Donald
trabalharam lado a lado em cada um dos dormitórios. Ele voltou a ser
meticuloso, tendo o cuidado de escorrer muito bem a esfregona. Rosie
pensou que o silêncio se devia ao facto de ele estar muito consciente da sua
gaguez, mas era uma companhia agradável e ficou bastante comovida com
a sua delicadeza ao tirar-lhe o balde para esvaziá-lo e enchê-lo de novo.
Quando foram limpar as retretes e as casas de banho, Simmonds já saíra
da enfermaria para ir ajudar na cozinha. Rosie ficou horrorizada ao ver que
alguém defecara no chão no interior de uma delas.
Teve um arranco de vómito e Donald pegou-lhe no braço e puxou-a para
trás.
– Eu f-f-faço isso – disse.
Quase o deixou, mas bastou-lhe olhar para ele para perceber que aquelas
coisas lhe faziam tanta impressão como a ela.
– Não, Donald – disse, e sorriu-lhe com uma expressão tranquilizadora. –
É o meu trabalho. Tu podes ir buscar mais água quente.
Quando ele voltou para a retrete, Rosie conseguira apanhar toda a
porcaria com papel higiénico, deitara tudo na sanita e puxara o autoclismo.
Donald pareceu aliviado.
– A culpa é da e-e-enfermeira-chefe – gaguejou. – Ela n-n-nem sempre
nos deixa sair a t-t-tempo, nem q-q-quando gritamos que q-q-queremos ir.
Rosie não podia imaginar que aquela porcaria se devesse a isso; se um
paciente chegava à retrete, na sua opinião conseguiria sentar-se na sanita.
No entanto, o comentário de Donald ficou-lhe na cabeça e quando voltaram
para a sala de dia pouco depois das onze, após acabarem a limpeza, pensou
que perguntaria às outras raparigas se o que ele dissera sobre a enfermeira-
chefe Welbred era verdade.
Maureen e Mary estavam ocupadas a reposicionar as poltronas depois de
o chão ter sido lavado. Todavia, quando lhes fez a pergunta ficou espantada
ao ver Mary, que estava inclinada para a frente, endireitar-se com uma
expressão tensa e, como se não tivesse ouvido a pergunta, declarar que tinha
de ir fazer os «lanches da manhã».
Enquanto Rosie observava a intempestiva saída de Mary da sala de dia,
Maureen aproximou-se.
– Vais arranjar muitos inimigos se começares a fazer demasiadas
perguntas – disse sem rodeios.
Rosie franziu o sobrolho, sem compreender o que Maureen queria dizer.
– Mas não achas que se temos de continuar a limpar porcarias que não
são necessárias devíamos fazer alguma coisa em relação a isso?
Maureen olhou-a durante alguns instantes, suspirou, sentou-se numa
poltrona e fez-lhe sinal para que se sentasse ao seu lado.
– Escuta – disse, cansada. – É verdade que alguns dos pacientes têm
algum medo da enfermeira-chefe, por isso não chamam à noite ou no
princípio da manhã, quando querem ir à casa de banho. Se queres saber o
que penso, diria que não teríamos mais do que duas camas molhadas por
noite e quase nunca outras porcarias se houvesse uma sanita onde os
pacientes pudessem ir sozinhos.
«Mas, por outro lado, encontramos muitas vezes porcarias como a que tu
encontraste a todas as horas do dia. Acho que é o Archie. Como vais
descobrir depressa, ele tem alguns hábitos repugnantes. Por isso não andes
por aí a dar as tuas opiniões sobre alguma coisa enquanto não conheceres a
realidade deste lugar, a menos que queiras tornar-te muito impopular.»
Rosie não disse mais nada, mas imagens de doentes indefesos com
demasiado medo de pedirem para ir à casa de banho para não irritarem uma
enfermeira não lhe saíam da cabeça. Era o mesmo tipo de intimidação que
Seth e Norman infligiam a Alan.
Depois dos lanches da manhã começaram a ouvir-se barulhos
assustadores no segundo andar. Eram acima de tudo pancadas e berros, mas
de vez em quando ouvia-se um verdadeiro grito. Foi estranho que nem os
pacientes, nem Mary e Maureen, parecessem reparar, mas Rosie achou que
era muito perturbador.
– Parece que estão a ser torturados – disse a certa altura para Maureen.
Ela riu-se.
– Não estão. É a forma que têm de tentar chamar a atenção. Alguns dias
são piores, eles provocam-se uns aos outros, mas vais acostumar-te. Daqui a
uma semana já nem os ouves.
Ao meio dia e meia Simmonds trouxe o almoço num carrinho. Era um
guisado, seguido de um rolo de compota e creme de ovo. Depois de estar
tudo na mesa, Maureen declarou que ela e Mary iam almoçar na sala dos
funcionários e Rosie ficaria a supervisionar a refeição com a ajuda de
Simmonds.
Rosie ficou chocada. Não se sentia capaz de lidar com os doentes sem
ajuda experiente e Simmonds deixava-a ainda mais nervosa do que algumas
das pessoas que estavam ali internadas. A mulher era muito alta e larga,
com um rosto que parecia um bife mal passado, ombros largos como os de
um homem e uma expressão hostil nos olhos. Enquanto faziam as camas,
Rosie sentira-se intimidada com o seu frio silêncio, pontuado apenas por
fungadelas ruidosas, e quando Mary lhe disse que a mulher era mais uma
ex-paciente teve a impressão de que era uma pessoa a quem não se podia
voltar as costas.
Maureen devia ter adivinhado os seus pensamentos porque antes de sair
tocou-lhe no braço e sorriu.
– A Simmonds é bastante inofensiva – disse. – Calada, mas muito
competente. Deixa-a fazer as coisas à sua maneira e imita-a. Depois de
acabarem o almoço, ela vai levá-los dois a dois às retretes e depois vão
lavar as mãos. Tu empilhas os pratos no carrinho e quando eu voltar podes
levá-lo para baixo e ir almoçar. Há um elevador ao lado das escadas. Não
entres em pânico, acima de tudo se ficares sozinha com eles durante alguns
momentos. Sê firme com todos.
O almoço foi uma visão ainda mais repugnante do que o pequeno-almoço
e Rosie teve vários arrancos de vómitos. Os doentes emborcavam a comida,
mastigavam com a boca muito aberta e muitas vezes tiravam-na da boca e
examinavam-na. Patty, a velhota com as cicatrizes no rosto, mastigou
parcialmente vários pedaços de carne e cuspiu-os para o prato. Para horror
de Rosie, Jacob roubou-lhos e comeu-os. Donald era o único que era
tolerável de ver. Como acontecera ao pequeno-almoço, comeu com toda a
dignidade possível sendo obrigado a usar apenas uma colher. Rosie
perguntou a si mesma quanto tempo se manteriam os seus modos, rodeado
por um comportamento tão selvagem.
No entanto, por muito chocada que estas pessoas a deixassem, e por
muito que desejasse estar a mil quilómetros dali, também sentia alguma
pena delas. Pensava que sabia como era ser marginalizada pela sociedade,
mas estes pobres desgraçados estavam muito pior do que ela alguma vez
estivera. Ela podia ser tão indesejada e tão mal-amada como eles, mas pelo
menos tinha uma mente sã e era jovem e saudável. Um dia não muito
distante poderia arranjar um modo de vida mais feliz. Eles nunca poderiam.

Pat Clack estava a servir o almoço a Rosie na sala de refeições dos


funcionários quando Linda Bell, a rapariga de Londres que conhecera nessa
manhã, entrou.
– Como vai isso? – perguntou ela enquanto se sentava à mesa ao seu lado.
Eram as únicas pessoas que estavam na sala. – Esperava poder ficar contigo
hoje para te mostrar como se faz o trabalho, mas a maldita enfermeira
supervisora mandou-me para o segundo andar.
– Não foi tão mau como eu esperava – mentiu Rosie. Não queria que a
outra rapariga pensasse que ela era uma choramingas, ou fraca, sobretudo se
era simpática ao ponto de querer tomar conta dela. – Mas acho que sem
mais limpezas para fazer esta tarde vai custar a passar.
– Arranja um livro – sugeriu Linda. – É o que eu faço. A Mary faz tricô.
Enquanto estiveres lá, não importa o que fazes. Eu leio dois por semana,
mais quando estou lá em cima.
– Mas a Maureen não lê – disse Rosie. Pensava que ninguém devia enfiar
o nariz num livro quando devia estar a vigiar pessoas, por muito maçador
que isso fosse.
– Bem, ela não sabe ler, pois não? Ela própria é um pouco simplória.
Rosie ficou estupefacta ao ouvir aquilo. Não pensara em Maureen como
simplória.
Linda riu-se ao ver a sua expressão chocada.
– Ela é muito estranha. Não se lava, come como um porco e dá graxa à
enfermeira supervisora. Ainda bem que não tenho de dividir um quarto com
ela. Espera um dia ou dois. Tomou banho ontem, mas só porque a
obrigámos. Ela cheira mal.
Rosie ficou lívida. Lembrou-se de ter perguntado a si mesma onde é que
Maureen se lavara naquela manhã, mas era óbvio que não se dera a esse
trabalho. Heather incutira nela a necessidade de limpeza. Até ao momento
em que desaparecera obrigava-a a lavar-se todas as manhãs e todas as
noites, e Rosie nunca mais perdera esse hábito.
– Talvez nunca lhe tenham ensinado essas coisas – disse, devagar. – A
mãe morreu quando ela era pequena.
– Eu cresci num apartamento onde a cama era partilhada por quatro –
retorquiu Linda. – Estávamos tão acostumados ao lixo que nem dávamos
por ele. Mas quando tinha uns treze anos consegui perceber sozinha que
sabonete e água tornavam as pessoas um pouco mais atraentes.
– Se ela cheirar mal eu digo alguma coisa – replicou Rosie calmamente.
Não lhe parecia certo falar mal de Maureen nas suas costas. – Eu acho que
ela é simpática. Foi boa para mim quando cheguei e é carinhosa com os
doentes.
– Tem cuidado com ela – alertou Linda sombriamente. – Não lhe contes
nada pessoal e esconde o teu dinheiro num sítio seguro.
Rosie indignou-se. Desde a escola que sabia que algumas raparigas
podiam ser maldosas e muitas vezes fora vítima delas. A verdade é que
Linda também não parecia muito limpa; o cabelo dela precisava de ser
lavado e tinha o aspeto de quem estava sempre a espremer as borbulhas.
Sugerir que Maureen era ladra e queixinhas parecia pura maledicência.
– Não é uma coisa muito simpática para se dizer – declarou
causticamente.
– Em breve vais perceber que ela não é muito simpática – retorquiu Linda
com um sorriso afetado. – Depois não digas que não te avisei. Agora, para
falar sobre uma coisa mais alegre, o que é que se passa com o teu uniforme?
Podia ser usado por um elefante!
Rosie teve de sorrir. Mary já tinha troçado dela. Contou-lhe o que a
enfermeira supervisora dissera sobre apertá-lo e o seu medo de não
conseguir.
– Se quiseres, eu arranjo-o – ofereceu-se Linda inesperadamente. –
Trabalhei durante algum tempo como costureira antes de vir para cá. Há
uma máquina de costura na sala de estar dos funcionários. E não penses que
sou uma cabra malvada por dizer aquilo sobre a Maureen. Um dia talvez me
agradeças por te ter avisado.

Nos dois dias seguintes Rosie descobriu que uma das piores coisas em
Carrington Hall era o tédio. Limpar e fazer as camas era bastante agradável
e ficou surpreendida ao perceber que se acostumara muito depressa à forma
repugnante como os doentes comiam, aos seus horríveis hábitos pessoais e
ao ocasional cocó no chão. Os barulhos terríveis do andar de cima ainda a
preocupavam e a malevolência da enfermeira supervisora deixava-a muito
inquieta. Porém, passar horas sentada numa sala abafada a vigiar doentes
que se arrastavam de um lado para o outro ou se baloiçavam nas suas
cadeiras fazia-a pensar que podia enlouquecer.
No entanto, embora fosse aborrecido para ela e para as outras
funcionárias, pelo menos tinham-se umas às outras como diversão, com
intervalos para as refeições e pequenos trabalhos para fazer. Os doentes não
tinham absolutamente nada com que se entreter. Não tinham livros, puzzles
nem sequer lápis e papel. Não admirava que a maioria se movimentasse tão
devagar. Rosie pensou que eles precisavam muito de fazer um pouco de
exercício físico. Ela própria se sentia como um tigre enjaulado, mas depois
do trabalho podia sair e passear se lhe apetecesse. Os doentes nunca tinham
essa oportunidade.
Porém, na terceira tarde o sol brilhava e a enfermeira supervisora mandou
avisar na enfermaria que Rosie e Mary Connor podiam levar os que
conseguissem descer as escadas para o jardim das traseiras.
A onda de entusiasmo que invadiu a sala de dia provou que era um raro
prazer, mas Rosie ficou surpreendida ao constatar que Maureen não estava
nada aborrecida por ter de ficar lá em cima com Aggie e alguns outros.
Disse que Rosie depressa perceberia que era uma grande trabalheira.
Demoraram quase uma hora a organizar sapatos e casacos de exterior
para oito pacientes e descer as escadas com eles, e Rosie supôs que era
àquilo que Maureen devia estar a referir-se. Porém, quando chegaram ao
jardim todos pareceram mais animados, a agarrar nos braços uns dos outros
e a apontar para coisas com grande entusiasmo, como se tivessem sido
levados de férias. Patty e Alice sentaram-se com poses afetadas num banco.
Tabby pousou o tricô que fizera questão de trazer e andou de um lado para o
outro, a espreitar no meio dos arbustos. Um dos homens mais velhos pôs-se
de gatas a examinar a relva com toda a atenção. Mas era Donald quem
parecia estar a aproveitar ao máximo; correu como um rapazinho pequeno a
fingir que era um avião.
De início, Rosie não conseguiu relaxar e a sua cabeça rodava de um lado
para o outro, a observar toda a gente. Imaginava-os a comer caracóis ou a
tropeçar e magoarem-se, mas depressa percebeu que o ar fresco parecia
acalmá-los e que estavam felizes por poderem deambular, ou sentar-se a
olhar em volta. Mary estava sentada com Patty e Alice, a ver uma revista.
Foi a força do hábito que a levou a começar a cortar as flores secas dos
amores-perfeitos e das dálias, e a arrancar algumas ervas daninhas, um ato
quase inconsciente que não conseguiu evitar.
De repente Donald surgiu a seu lado, assustando-a.
– P-p-posso ajudar? – perguntou, estendendo a mão para um tremoceiro.
– Essa não – disse Rosie. – É uma flor. Eu só estou a arrancar as ervas
daninhas. Elas não devem estar aqui, percebes? São ervas horríveis que
sufocam as plantas bonitas.
– M-mas não tem f-f-flores – retorquiu ele, olhando com alguma surpresa
para as folhas pontiagudas.
– Porque já deu flor este ano – explicou ela devagar. – Se a deixarmos
aqui, no próximo mês de junho vai dar mais flores azuis ou cor-de-rosa.
Mostrou-lhe as ervas daninhas e ele surpreendeu-a ao aprender depressa e
arrancar dentes-de-leão e morriões com entusiasmo.
– Eu gosto de j-j-jardins – declarou. – A-a-antes de vir para cá tinha um
lindo.
– Queres falar-me sobre ele? – perguntou Rosie. Ele estava ajoelhado ao
seu lado e tinha as faces rosadas por ter andado a correr de um lado para o
outro. Embora não tivesse esquecido o que ele lhe fizera quando entrara
pela primeira vez na enfermaria, Donald apagara o seu medo inicial
revelando-se muito educado e capaz. Intrigava-a e queria saber mais sobre
ele.
– Tinha um lago, com peixes, e muitas árvores – disse ele. Pareceu muito
pensativo e quase perdeu a expressão apática. Rosie também reparou que
dissera uma frase inteira sem gaguejar. – Quem me dera ainda viver lá.
– Eu também tinha um lindo jardim – disse Rosie, a pensar no dos
Bentley. – Sentia-me muito feliz quando estava a cavar e a plantar.
Podíamos fingir que este jardim é nosso, não podíamos? Ver as coisas
crescer juntos, aprender os nomes das flores.
De repente, Donald sorriu, mostrando dentes brancos perfeitos.
– Tu és simpática, Smith. Gosto de ti. Agora m-m-mostra-me algumas f-f-
flores.

– Fala-me sobre o Donald – pediu Rosie a Maureen mais tarde, quando


estavam de volta à sala de dia. Eram quase cinco horas e Mary fora buscar o
carrinho com o chá à cozinha. Apesar de ser a mais simpática da equipa e
de não se importar de falar sobre a família que deixara na Irlanda, as noites
no salão de baile local e os rapazes com quem saía, Mary não queria falar
sobre os doentes.
Rosie chegara à conclusão de que ela era um pouco sonhadora. Era
demasiado preguiçosa para procurar um emprego mais agradável, por isso
apagava da sua mente todas as coisas de que não gostava neste e marcava
passo até terminar o seu turno. Maureen era bastante diferente; Carrington
Hall era o centro da sua vida. Na verdade, não tinha qualquer outro
interesse.
– Os pais dele são riquíssimos – disse ela, e apertou os lábios com força
como se estivesse amargamente ressentida com isso. – Vivem algures no
Sussex. Têm um filho e uma filha mais velhos que são normais. O Dr. Freed
pensa que o Donald sofreu lesões cerebrais feitas por fórceps durante o
nascimento. Ele viveu em casa até ter cerca de quinze anos, mas começou a
andar pela aldeia, a falar com as pessoas e isso, e deve ter deixado toda a
gente nervosa. Lembras-te de como te abraçou na tua primeira noite aqui?
Bem, ele faz isso quando fica excitado, e é muito forte. O que ouvi dizer foi
que uma rapariga foi para casa a chorar fazer queixinhas à mãe e todos
pensaram que ele a tinha magoado, sabes. – Maureen calou-se e ficou muito
ruborizada.
Rosie percebeu que Maureen estava a insinuar violação e uma imagem de
Seth veio-lhe logo à cabeça. No entanto, afastou-a; podia não saber nada
sobre o comportamento e a sexualidade dos doentes mentais, mas Donald
não lhe parecia nem um pouco perigoso.
– Não acredito que ele tenha feito isso – continuou Maureen. – Ele nunca
mostrou qualquer sinal de nada desde que estou aqui, a única coisa que faz
é abraçar pessoas. Alguns dos homens que estão aqui são horríveis, tiram os
coisos para fora das calças e brincam com eles e isso. – Fez uma careta. –
Mas o Donald nunca faz isso. De qualquer maneira, o que acho é que
alguém convenceu os pais a mandarem-no para cá, só para prevenir.
Rosie pensou que aquilo era muito injusto e disse-lhe.
– Eu sei – concordou Maureen. – E se ele ficar aqui durante muito mais
tempo vai ficar tão mal como o velho Jacob e os outros. Mesmo assim, acho
que tem mais sorte do que a maioria; se os pais não tivessem dinheiro para
o mandar para cá, estaria num hospício estatal.
Maureen gostava muito de falar sobre hospícios estatais. Dizia que os
doentes que estavam internados nessas instituições eram tratados como
gado; se não conseguiam alimentar-se sozinhos, passavam fome, eram
deixados no meio dos seus dejetos durante dias a fio e estavam à mercê de
qualquer sádico que fosse trabalhar para lá. Falava com conhecimento de
causa, mas Rosie não sabia se podia acreditar em tudo o que ela dizia. A
verdade é que não queria acreditar que as pessoas permitissem a existência
de lugares tão horríveis.
– E os outros todos? – perguntou. – Porque é que a Patty tem a cara tão
cheia de cicatrizes?
– Fizeram-lhe aquilo noutro manicómio – a voz de Maureen caiu para um
sussurro. – A família dela também é rica. Ela era muito normal até ter uma
doença quando tinha vinte e tal anos. Não sei o que foi, mas ficou esquisita
por causa dela. Parece que ficou muito sensual com os homens, começou a
andar sem roupa e acabaram por interná-la.
Rosie sentiu vontade de sorrir ao ouvir aquilo. Carrington Hall podia ser
o assunto preferido de Maureen, mas sexo e tarados sexuais era o segundo.
– Então, foi um doente que a deixou com aquelas marcas? – perguntou,
quase à espera de ouvir que ele também tinha uma tara qualquer.
– Não, é claro que não – troçou Maureen. – Nos manicómios estatais os
dois sexos são separados. Foi uma mulher. Atacou a Patty com uma faca,
abriu-lhe a cara e, a julgar pela cicatriz, o médico que a coseu sabia tanto de
costura como eu.
Ao ouvir aquilo, Rosie sentiu as pernas um pouco bambas.
– Foi por isso que ela veio para cá? – perguntou.
Maureen acenou com a cabeça.
– Foi uma das primeiras a vir para cá quando isto abriu. Ouvi dizer que
naquela altura costumava ajudar com as refeições e tudo. Mas o irmão ainda
estava vivo e dizem que vinha visitá-la quase todas as semanas. Quando ele
faleceu, mais ninguém veio no lugar dele e ela fechou-se em si mesma.
Parece ter uns sessenta anos, não parece? Mas não tem, só tem quarenta e
três e a enfermeira supervisora diz que agora a família se atrasa quase
sempre a pagar as contas, por isso acho que daqui a pouco vai ser mandada
para outro lado.
Rosie sentiu-se muito triste enquanto Maureen lhe falava sobre os outros
pacientes, e envergonhada consigo mesma por sentir tanta repugnância por
eles. Sempre imaginara que os hospícios estavam cheios de pessoas
completamente doidas, maníacos que atacavam sem aviso, como nos filmes
de terror. Agora estava a descobrir que embora houvesse alguns assim –
Maureen disse que havia doentes perigosos no segundo andar – a grande
maioria eram apenas pessoas com capacidades limitadas. Muitos deles
tinham sofrido lesões cerebrais à nascença e, embora os seus corpos se
tivessem tornado adultos, continuavam a ter a idade mental de uma criança
pequena. Talvez os mais dignos de pena fossem aqueles que, como Tabby,
tinham vivido uma vida normal, estudado e mais tarde trabalhado, mas
alguma coisa os empurrara para uma depressão que piorara rapidamente e
se transformara em doença mental. Pelo que Rosie percebeu não havia um
verdadeiro tratamento nem medicamentos, e pensou que os doentes só
ficariam pior por serem pouco estimulados e praticamente ignorados.
No entanto, o mais triste de tudo para Rosie foi descobrir que todos os
doentes que estavam internados em Carrington Hall eram oriundos de
famílias ricas. Lembrou-se de famílias nos Somerset Levels que tinham um
filho ou filha simplório, mas, apesar de serem pobres e analfabetos, não
mandavam internar os filhos pouco inteligentes; aceitavam-nos, com todas
as suas limitações.
CAPÍTULO 6

O alarme das seis e meia tocou no corredor. Rosie sentou-se na cama


como um robô, esfregou a cara e, ensonada, rodou para pôr as pernas no
chão. Depois lembrou-se. Era terça-feira, o seu primeiro dia de folga.
Maureen estava a vestir-se, mas ela afundou-se de novo na almofada e
fechou os olhos, sem sequer se dar ao trabalho de falar com a colega.
Mais tarde, quando acordou de novo, pensou que a manhã já devia ir a
meio, mas olhou para o relógio de Maureen e viu que eram apenas oito
horas. Espreguiçou-se com exuberância e sorriu no seu íntimo ao pensar no
dia que tinha pela frente.
Era o seu oitavo dia em Carrington Hall, mas parecia que já estava ali há
semanas. Cada novo dia trouxera choques diferentes e por vezes sentia que
estava a dar a volta à cratera de um vulcão ativo que poderia entrar em
erupção a qualquer momento.
Para além das horas das refeições e da hostilidade da enfermeira
supervisora, nada era previsível. O dia podia começar muito tranquilo, com
todos os doentes sentados muito sossegados, e de repente, sem aviso, por
nenhum motivo discernível, um deles atirava um sapato ou um prato à
janela, ou agarrava outro doente, e de repente armava-se a maior barafunda.
Aconteceu pela primeira vez no seu quarto dia. As outras raparigas
disseram que os doentes tinham estado muito bem-comportados até ao
momento porque ela era nova e era uma espécie de distração. A confusão
foi iniciada por Tabby, que descobriu que alguém tirara o tricô das agulhas e
saltou para cima de Maud, a mulher mais jovem, talvez porque era a que
estava mais perto. Mary e Rosie levantaram-se logo para separá-las, mas
quando se mexeram foram imitadas por todos os presentes na sala e George,
um dos homens mais velhos, caiu sobre Aggie, que estava sentada no chão.
Aggie gritou a plenos pulmões e o seu grito funcionou como um tiro de
partida para todos os outros. Archie aproveitou a oportunidade para tentar
estrangular George.
Foi Donald que tocou a campainha para pedir ajuda; nem Mary nem
Rosie conseguiram chegar até lá, pois estavam rodeadas de pessoas que
arranhavam e gritavam. Nos breves momentos antes de a porta se abrir de
par em par e entrarem a correr Simmonds, Maureen e Gladys Thorpe, uma
das enfermeiras, Rosie ficou absolutamente aterrorizada. Não sabia qual era
o procedimento mais adequado e a gritaria à sua volta deixou-a paralisada
de medo. Embora sentisse uma onda de alívio quando chegaram reforços,
ficou embasbacada ao ver Simmonds dar um murro na boca de Tabby e
Maureen agarrar os braços de Archie e torcê-los atrás das costas.
Nesse dia, Tabby e Archie foram levados da sala de dia; Archie foi
fechado numa das celas de isolamento no corredor e Tabby foi posta,
completamente vestida, numa banheira com água gelada e mantida ali à
força até se acalmar.
Rosie e Mary ficaram na sala de dia a acalmar os outros doentes,
separando os homens das mulheres e obrigando-os a sentarem-se em cantos
opostos da sala. Como ninguém avisara Rosie de que este tipo de desordem
era comum, nem lhe dera instruções para lidar com uma emergência, ela
sentiu-se impotente e algumas horas depois de tudo estar calmo ainda
tremia de pavor.
Mais tarde, explicaram-lhe que devia ter corrido logo para a campainha,
antes de tentar intervir, e que em seguida devia pôr-se atrás dos
responsáveis, prender-lhes bem os braços e empurrá-los com força contra a
parede, batendo-lhes com as cabeça nela, se necessário. Tamanha
brutalidade era impensável para Rosie e não acreditou que alguma vez
conseguisse fazer aquilo.
No entanto, uma coisa que aprendeu depressa foi que os doentes
envolvidos em incidentes daquele tipo eram sempre castigados. Tabby não
só tomou um banho gelado como passou o resto do dia no isolamento sem
comer e sem o seu tricô. Archie recebeu um tratamento semelhante, mas
sem o banho porque não era considerado histérico, apenas um oportunista
que aproveitava qualquer desordem para atacar alguém. Rosie também
ficou a saber que em casos extremos os doentes eram submetidos a
tratamentos de choques elétricos, mas a ameaça desse tratamento
costumava ser o bastante para calar qualquer um, sem necessidade de
realizá-lo.
Depois daquela primeira escaramuça, Rosie percebeu que passou a atuar
com maior eficácia em incidentes semelhantes, agarrando a pessoa que
começara antes de mais alguém se envolver e gritando para que se calassem
como um sargento-mor, como Maureen fazia. Começou a perceber porque é
que a enfermeira-chefe Welbred fizera aquele comentário sobre ganhar
músculos na sua primeira noite ali. Também aprendeu a perceber sinais
precoces de que os doentes poderiam atacar e muitas vezes era possível
acalmá-los afastando-os do resto do grupo para falar tranquilamente com
eles.
Rosie continuava ansiosa em relação aos doentes do segundo andar. Por
muito que tentasse evitar que imagens medonhas se formassem na sua
mente quando ouvia gritos, elas vinham na mesma. Quando o cesto da
roupa suja estava a ser empurrado para o rés do chão todas as manhãs, o
fedor de fezes invadia tudo. Já vira uma corda cheia de camisas de linho
grosso penduradas e tinham-lhe dito que era a única coisa que os doentes
que estavam internados lá em cima usavam. Um grande cesto com tampa
onde se lia «coletes de forças», as taças de alimentação com um formato
estranho para os doentes que não conseguiam pegar nas taças normais,
todas essas coisas serviam para criar imagens indesejáveis na sua cabeça.
Um véu de secretismo parecia envolver aquele andar. Rosie fazia muitas
perguntas, apenas sobre coisas pouco importantes como: se os doentes
conseguiam alimentar-se e tomar banho sozinhos, ou que tipo de
tratamentos recebiam, mas as suas perguntas eram sempre evitadas ou
respondidas com uma piada.
Apesar de ter aprendido a detetar os primeiros sinais de aviso de
problemas e a preparar-se quando eles começavam, era muito mais difícil
aguentar a náusea dos trabalhos repulsivos. Rosie não se importava de
mudar camas molhadas, estava acostumada a isso. No entanto, lidar com
um homem adulto que se tinha borrado era uma coisa completamente
diferente. Não adiantava lembrar a si mesma que limpara o rabo de Alan
centenas de vezes no passado. Estar fechada numa casa de banho com um
adulto feio e malcheiroso e ser obrigada a raspar a porcaria do seu corpo e
depois lavá-lo era absolutamente repugnante e estava convencida de que
nunca se acostumaria a isso.
No entanto, a coisa mais desconcertante de todas em Carrington Hall
talvez tivesse sido a confirmação de que não havia nenhum tratamento ou
medicamento que pudesse curar os pacientes ou mesmo deixá-los um pouco
mais felizes. Havia um médico, o Dr. Freed, que vinha duas vezes por
semana e tratava as feridas ou infeções, mas a realidade é que aquelas
pobres pessoas só eram alimentadas e limpas e estavam presas numa
enfermaria, sem estimulação mental ou exercício físico, até a morte as
libertar.
Era um trabalho horrível. Rosie pensava que devia ser um dos piores do
mundo, mas como Maureen dissera na sua primeira noite, ali também havia
momentos mais descontraídos e eram esses momentos que tornavam o
trabalho suportável.
Como quando Maud despejou uma taça de arroz-doce na cabeça de
Albert porque ele não parava de lhe pedir. Um momento de pânico absoluto
quando Aggie desapareceu e foi encontrada no armário das vassouras a
cantar baixinho. Como ela quase não conseguia andar, ainda era um
mistério perceber como conseguira esgueirar-se pela porta da sala de dia
que só estivera aberta durante alguns momentos e esconder-se tão depressa.
Depois havia Alice e os seus sapatos novos. Gostava tanto deles que insistia
em andar com eles na mão em vez de os calçar.
E Donald. Ele estava sempre ao seu lado, a querer ajudar. O seu sorriso
alegre era verdadeiro, não o sorriso palerma e apático dos outros. Ele não
tinha nada de fisicamente repulsivo; na verdade, quando enfiava a mão na
sua era quase como ter Alan de novo ao seu lado e gostava muito dele.
Porém, no fundo eram Linda e Mary que a alegravam mais. Não voltara a
conversar com raparigas desde que saíra da escola e esquecera-se de como
era bom ter companhia feminina.
Linda Bell era uma das pessoas mais engraçadas que Rosie já conhecera.
O seu humor era seco – observações extremamente malévolas, cortantes
piadas curtas –, não apalhaçado. À noite, no último andar, imitava tão bem
as pessoas que parecia tornar-se elas, com as mesmas expressões faciais,
movimentos e voz. Numa determinada ocasião pusera-se à porta da casa de
banho enquanto Rosie estava lá dentro e lançara-se numa torrente de
queixas com a voz da enfermeira supervisora. Rosie saíra precipitadamente,
a pedir muitas desculpas, mas vira que era apenas Linda e que Mary Connor
estava um pouco mais adiante no patamar a rir a bandeiras despregadas.
Mary também era estimulante. Conseguia pegar no mais trivial dos
incidentes e transformá-lo numa farsa ou tragédia, com um pouco do seu
colorido muito irlandês. À tarde, na sala de dia, também se ria muito e
Rosie achava que o seu riso era contagioso.
Se não fossem elas, talvez Rosie não tivesse conseguido ultrapassar o
choque de encontrar Jacob deitado na cama uma manhã a enrolar bolas de
excrementos com as mãos. Ou Albert a masturbar-se freneticamente num
canto da sala de dia, ou Maud a escorrer sangue de feridas que infligira a si
mesma depois de encontrar um pedaço de vidro aguçado no jardim. Linda e
Mary faziam-na ver humor até nos momentos mais negros e garantiam-lhe
que um dia encararia aquelas coisas com tanta naturalidade como elas.
Porém, Rosie não criara uma verdadeira amizade com Maureen. Era bom
trabalhar com ela, mas os seus hábitos pouco higiénicos tornavam
impossível gostar verdadeiramente dela. Linda estava certa quando dissera
que ela não se lavava; o cheiro a suor velho enchia-lhe o nariz sempre que a
rapariga se despia. Ela sentava-se muitas vezes na cama a tirar macacos do
nariz e a comê-los e depois espremia borbulhas ou mexia nos pés. Para
além destes hábitos que faziam Rosie retrair-se, Maureen era uma
companhia muito aborrecida. Vivia unicamente para Carrington Hall. Não
se importava com o que estava a acontecer no mundo, no cinema ou até ali
na rua. Só sabia falar sobre trabalho.

Rosie percebeu que não conseguiria ficar mais tempo na cama. O sol
brilhava lá fora e estava uma linda manhã enevoada de setembro, com a
promessa de mais um dia quente. Levantou-se, tomou banho, lavou o
cabelo, vestiu a saia nova aos quadrados verdes e a camisola a condizer que
Miss Pemberton lhe comprara, fez a sua cama e a de Maureen e desceu para
tomar o pequeno-almoço.
Tinha todo o seu dia de folga planeado. Durante a manhã exploraria
Woodside Park e procuraria a biblioteca mais próxima. Pretendia comprar
um cinto de ligas para poder deitar fora as desconfortáveis ligas elásticas, e
comprar o seu primeiro par de meias de nylon. À tarde apanharia o
autocarro para Hampstead e descobriria a loja onde Thomas trabalhava.
Esperava que ele estivesse livre ao fim do dia para poderem pôr a conversa
em dia.
O pequeno-almoço terminava oficialmente às sete, mas estava implícito
que nos dias de folga, desde que as pessoas aparecessem antes das nove,
ainda haveria alguma coisa para comer. Rosie não podia apontar defeitos à
alimentação dos empregados de Carrington Hall. A comida era bem
confecionada e abundante, como se o racionamento não existisse. Todavia,
no instante em que entrou na sala de refeições e viu a enfermeira
supervisora sentada a ler o jornal desejou ter saído sem tomar o pequeno-
almoço.
Uma semana a trabalhar em Carrington Hall mudara a sua opinião sobre
algumas coisas que a tinham intimidado à chegada, mas a enfermeira
supervisora não era uma delas.
Mary Connor resumia-a na perfeição numa única palavra – «odiosa».
Linda fora mais longe e descrevera-a como um cheiro nauseabundo que
conspurcava o ar que os funcionários respiravam. Tudo o que Rosie
observara sobre a mulher até ao momento levava-a a acreditar que ela
medrava com malevolência. Estava sempre a observar, a pairar à porta da
sala do pessoal, a espreitar pelos painéis de vidro das portas, para ver se
apanhava alguém com a boca na botija. Pior ainda, Rosie pressentia que a
mulher mais velha a selecionara para um tratamento especialmente mau
porque não gostava que Mr. Brace-Coombes lhe tivesse dado emprego sem
a consultar. Como Mary dissera a rir, Rosie estava metida em sarilhos. Não
parecia suficientemente submissa, era demasiado bonita e, pior ainda aos
olhos da enfermeira supervisora, alguns dos doentes gostavam muito dela.
Nada que Rosie fizera até ao momento recebera a sua aprovação. Não
elogiara a forma como apertara o uniforme com a ajuda de Linda nem o seu
jeito para prender o cabelo num carrapito apertado. Não ficara nada
satisfeita quando entrara na sala de dia e encontrara Rosie a ensinar Patty e
Alice a jogar à cama do gato com um pedaço de fio e disse que ela deixara
os doentes demasiado excitados quando soube que tinha estado a jogar à
«Falua» com o grupo inteiro. Porém, até a enfermeira-chefe Welbred, que
desaprovava qualquer coisa que os pudesse deixar menos que dóceis,
comentou que todos estavam muito satisfeitos e submissos naquela noite
quando entrara de serviço. Rosie também tinha sido responsabilizada pela
fuga de Aggie, embora fosse Maureen quem se esquecera de fechar a porta
da sala de dia.
As outras raparigas diziam que a enfermeira supervisora tinha uma
cozinha muito boa só para si, e que podia pedir a Pat Clack para lhe servir
as refeições no seu apartamento, e pensavam que ela só usava a sala de
refeições para poder vigiá-las melhor.
– Não conseguias dormir? – perguntou a enfermeira supervisora num tom
sarcástico, levantando os olhos do jornal, e os seus lábios finos curvaram-se
num sorriso escarninho.
– Eu bem queria – respondeu Rosie. Sabia que a maior parte do pessoal
passava uma boa parte do dia de folga na cama e pensou que a enfermeira
supervisora estava a insinuar que ela era anormal. – Mas sempre tive de me
levantar cedo. Suponho que é um hábito difícil de quebrar. De qualquer
forma, quero ir à biblioteca.
Sentou-se nervosamente na outra ponta da mesa e serviu-se de cornflakes.
Pat Clack entrou com um bule de chá acabado de fazer e não melhorou
nada a situação tensa ao cumprimentar Rosie com um sorriso radioso. A
cozinheira decidira que Rosie era sua amiga desde que, dois dias antes, ela
se compadecera de uma queimadura séria que tinha na mão. Rosie calculou
que a enfermeira supervisora também não gostava disso.
– Ovos mexidos, querida? – sugeriu Pat, mas o seu tom indicou que lhe
faria o que ela quisesse.
– O que estiver a fazer – respondeu Rosie, tensa.
A enfermeira supervisora retomou a leitura do jornal. Rosie comeu os
cereais e esperou que a mulher mais velha a ignorasse. Porém, um suspiro e
um barulho de papel sugeriram que ela ia dizer mais alguma coisa.
– Então, aqueles monstros assassinos da tua terra vão a julgamento na
próxima semana!
Rosie soube logo a quem é que a mulher se estava a referir e o seu sangue
pareceu transformar-se em gelo.
– Quem? – perguntou, tentando parecer inocente. Esperava não estar a
corar.
– Os Parker. O pai e filho que assassinaram duas mulheres e as
enterraram no quintal. Decerto conheces a história?
– Oh, eles. – Rosie acenou com a cabeça e pôs outra colher de cereais na
boca, esperando que fosse uma boa desculpa para não falar.
– Todas as pessoas mais estranhas parecem vir da tua terra. É claro que
são todos do mesmo sangue. Trabalhei no Stoke Park em Bristol. Metade
das pessoas que trabalhavam lá eram tão loucas como os doentes que
estavam internados.
Rosie sentiu que era uma tentativa deliberada de provocá-la, por isso
encolheu os ombros e não respondeu.
– Admira-me que não tenhas ido trabalhar para lá e que tenhas vindo para
Londres, que é tão longe. Porquê?
Rosie quase se engasgou com os cornflakes.
– Uma amiga da minha família sugeriu que viesse para cá porque eu
queria trabalhar em Londres.
– Mas este hospício é muito afastado de Londres e não é uma instituição
conhecida. Acho um bocado estranho que a tua mãe te tenha deixado vir
para tão longe de casa.
O coração de Rosie começou a bater irregularmente. A enfermeira
supervisora parecia estar a tirar nabos da púcara.
– A minha mãe morreu quando eu era pequena – replicou, com um toque
de provocação. – A minha tia não gostou muito que eu viesse para tão
longe, mas eu quis vir para Londres.
A enfermeira supervisora recostou-se na cadeira e o seu sorriso foi quase
triunfante.
– Então, já eras rebelde em casa?
A chegada de Pat Clack com os ovos mexidos foi a desculpa perfeita para
não responder à pergunta. Começou a comer rapidamente, decidida a sair
dali o mais depressa possível. Manteve os olhos no prato, consciente de que
a enfermeira supervisora estava a observá-la.
– A raparigas tentam enganar-me muitas vezes – disse ela, após alguns
minutos de silêncio. – Candidatam-se a empregos aqui para esconderem
alguma coisa que fizeram. As pessoas acreditam que nos hospitais
psiquiátricos ninguém presta muita atenção, sabes? Já tivemos de tudo aqui.
Ladras, fugitivas, raparigas que deram os seus bebés para adoção ou que
acabaram de sair da prisão. No entanto, eu descubro sempre. Tenho faro
para essas coisas.
De novo no seu quarto dez minutos mais tarde, com as palavras da
enfermeira supervisora a ecoar nos ouvidos, Rosie verificou rapidamente
que não havia nada nas suas coisas que lhe desse motivos para mais
suspeitas. Um sexto sentido disse-lhe que o seu quarto seria revistado hoje.
Pegou na carta de Miss Pemberton, que chegara no sábado. Como
prometera, ela assinara, «amor e beijos, tia Molly» e não tinha nada que
fizesse alguém duvidar que era genuína. Apenas um carinhoso bilhete a
dizer que esperava que Rosemary estivesse a adaptar-se bem e que não
achasse Londres demasiado grande e estranha, e que esperava que lhe
escrevesse em breve a contar todas as novidades.
Rosie dobrou-a de novo com todo o cuidado, reparando como o fizera,
pôs uma marca a lápis na dobra de cima e colocou-a no envelope. Guardou-
o na gaveta da roupa interior e pôs um gancho de cabelo em cima, para
saber se alguém lhe mexera. Depois, tirou duas folhas e um envelope do
estojo de material de escrita e guardou-os na carteira.
Escreveria a Miss Pemberton na privacidade da biblioteca e poria a carta
no correio enquanto estivesse na rua. De repente, não confiou no sistema de
deixar cartas no rés do chão para serem postas no correio. Apostava que a
enfermeira supervisora as abria com vapor e lia antes de chegarem ao
marco do correio.

A meio da manhã Rosie estava sentada na parte de cima de um autocarro


a caminho de Hampstead. Fora à biblioteca e tinha E Tudo o Vento Levou e
o primeiro livro da série Jalna, que sempre quisera ler, na carteira. Também
comprara um lindo cinto de ligas branco e um par de meias de nylon e
calçara-as numa casa de banho pública antes de apanhar o autocarro.
O entusiasmo de usar o seu primeiro par de meias de nylon e finalmente
contemplar Londres do cimo de um dos autocarros vermelhos que vira
tantas vezes em livros ilustrados fez com que esquecesse a enfermeira
supervisora e Carrington Hall. Ao falar com Linda, que conhecia bem
Londres, descobrira que toda esta parte do norte da cidade, desde Woodside
Park, passando por Finchley e até Hampstead, era uma das melhores zonas
e não propriamente uma imagem representativa de toda a cidade. Porém,
hoje não queria ver as partes mais feias e mais pobres; nem sequer os
lugares famosos como a Torre, o Palácio de Buckingham ou Trafalgar
Square. Poderia conhecê-los noutros dias de folga. Hoje queria ver casas
lindas e grandes, jardins cheios de flores e divertir-se muito com a surpresa
que Thomas teria ao vê-la.
Escrevera-lhe pela última vez depois de Mr. Bentley lhe dizer que o
julgamento se realizaria em Bristol. Contara-lhe que ia mudar-se, mas
naquela altura não sabia para onde. Dissera que lhe escreveria quando
estivesse instalada. Mas não escrevera – uma visita de surpresa era muito
mais excitante.
O revisor gritou «Henlys Corner» e o autocarro percorreu uma rua larga e
muito movimentada onde viu um grande salão de exposições cheio de
automóveis novos à sua direita. Rosie percebeu logo que estava na
verdadeira Londres, como vira tantas vezes em filmes e no Picture Post:
compridas filas de lojas de três ou quatro pisos, entremeadas de imponentes
edifícios de apartamentos com nomes como Mansões Albemarle e degraus
de mármore branco até às portas de entrada.
Os apartamentos eram intrigantes para Rosie. Antes de ir viver para
Bristol, desconhecia por completo o conceito de várias casas em cima umas
das outras, mas pensou que gostaria de viver num desses lugares; através
das portas de vidro vislumbrava lindas e espessas carpetes vermelhas,
brilhantes chãos envernizados e um elevador ao fundo, e supunha que os
apartamentos deviam ser ainda mais chiques.
As lojas também eram bastante diferentes das de Bristol: elegantes lojas
de pronto-a-vestir, restaurantes e lojas de chapéus de senhora. Viu uma que
vendia apenas flores, e muitas joalharias. Imaginou que as pessoas que
viviam nesta zona eram todas muito, muito ricas.
Até os ocasionais buracos feitos por bombas pareciam menos feios do
que os que vira em Bristol. Hera e rododendro tinham crescido por cima das
pilhas de entulho e, em vez de serem visões chocantes, pareciam ruínas
antigas. De repente, Rosie teve a impressão de que em Londres tudo era
possível. Se quisesse muito, poderia ser enfermeira, secretária ou até
trabalhar naquela encantadora loja de flores. Talvez também conseguisse
morar num daqueles lindos apartamentos.
O revisor do autocarro indicou-lhe onde sair. Disse-lhe que o lugar se
chamava Swiss Cottage e apontou para o sítio onde poderia apanhar outro
autocarro ou subir a colina a pé até Hampstead. Rosie não se importou de
caminhar; a avenida ladeada de árvores era íngreme, mas o sol aquecia-lhe
os ombros e foi interessante contemplar todas as mansões. Algumas
estavam muito delapidadas, com jardins cheios de ervas daninhas, e
pareciam ser partilhadas por muitas famílias. Outras ainda mantinham uma
espécie de imponência esvaecida, com tinta a descascar nas portas de
entrada, mas degraus de pedra branca, bebedouros de pedra para os pássaros
e enormes vasos cheios de flores. Aqui também havia vários lugares onde
tinham caído bombas que, a julgar pelas casas de brincar improvisadas com
velhas tábuas e caixas de madeira, eram agora usadas como locais de
brincadeira pelas crianças. Embora esta avenida não tivesse a elegância ou
mesmo a opulência das cuidadas casas suburbanas de Woodside Park, Rosie
gostou dela. Era mais parecida com a Londres da sua imaginação, uma rua
com carácter e um pouco misteriosa.
O seu entusiasmo aumentou quando chegou a Hampstead Village. Era
muito mais encantadora do que as descrições de Thomas a tinham levado a
pensar. Viam-se pitorescas lojas antigas, encantadores pátios minúsculos e
vielas empedradas com lindas casinhas, mas ao mesmo tempo era
movimentada em comparação com qualquer outra aldeia que já vira. Aqui,
as mulheres eram muito sofisticadas ao contrário das do Somerset. Não
usavam lenços na cabeça para tapar os rolos, nem aventais, mas sim
chapéus elegantes, fatos e sapatos de salto alto. Parou à porta das lojas a
ouvir as suas vozes snobes, reparando nas sobrancelhas com um risco de
lápis, nos lábios brilhantes e nas unhas pintadas. Até as mães que
empurravam carrinhos de bebé eram atraentes e estavam bem vestidas, e
perguntou a si mesma como é que arranjariam tempo para estar tão bonitas.
Demorou algum tempo a encontrar Flask Walk, pois distraiu-se com as
muitas lojas fascinantes. Livros, roupas, material de pintura e joias – sentiu
que poderia passar dias a passear por ali e ainda assim não veria tudo.
Porém, finalmente encontrou a Bryant’s. Aninhava-se entre uma
mercearia e mais uma livraria, e a minúscula montra estava cheia de
relógios de parede e de pulso. Espreitou para o escuro interior e viu apenas
um homem idoso com cabelo tão branco que parecia neve. Estava
empoleirado num banco alto atrás do balcão, a espreitar para um relógio de
pulso com uma lupa encostada ao olho. Pensou que devia ser Mr. Bryant, o
patrão de Thomas.
O velhote afastou a lupa dos olhos quando ela entrou na loja.
– Boa tarde – disse, numa voz grave e ressonante que não parecia
condizer com a sua aparência frágil. – Em que posso ajudá-la?
Rosie hesitou durante alguns instantes, pensando de repente que Thomas
talvez não gostasse de uma visita de surpresa. Porém, agora era tarde de
mais para recuar. A loja cheirava a mofo e tinha muito pó. Havia imensos
relógios de parede velhos nas prateleiras, alguns com uma etiqueta onde se
lia o nome do proprietário e outros com etiquetas «Para Venda». Por baixo
do vidro do balcão viam-se dúzias de relógios de pulso e uma grande
almofada de veludo com joias.
– Só entrei para saber se seria possível dar uma palavrinha a Mr. Farley –
disse. – Ele está?
– Está, sim. Vou chamá-lo. – O velhote esboçou um sorriso radioso e
levantou-se do banco. – Quem devo anunciar?
– Rosemary Smith – respondeu Rosie com nervosismo, sem saber se ele
adivinharia quem era.
O velhote desapareceu nas traseiras e pareceu subir ao primeiro andar.
Falou, mas a sua voz estava abafada e Rosie não conseguiu ouvir o que
disse.
O velhote voltou para o seu banco e Rosie ouviu Thomas a descer. O
ritmo lento sugeriu que as escadas eram estreitas e perigosas. Quando
entrou pela porta atrás do balcão e a viu, pareceu estupefacto.
– Estava de passagem – disse ela, sentindo-se muito disparatada. Thomas
usava um comprido avental castanho sobre as roupas e precisava de fazer a
barba. Não parecia o cavalheiro elegante de que guardara uma imagem na
cabeça. – Desculpe se interrompi o seu trabalho. Só queria cumprimentá-lo.
O velhote observava-os de pé com grande interesse.
– Estou a trabalhar aqui perto – acrescentou Rosie num tom pouco
convincente.
– É bom ver-te, Rosemary – disse Thomas num tom muito afetado. – Que
surpresa. Não fazia ideia de que estavas em Londres. – Olhou para o patrão.
– Importa-se que saia durante meia hora com Miss Smith?
O velhote sorriu calorosamente para Rosie, mas ela sentiu que ele estava
muito curioso.
– Claro que não me importo. Quem me dera ter jovens bonitas a visitar-
me.
Thomas voltou para o corredor e regressou passados alguns segundos
com um casaco no lugar do avental e com a sua bengala. Abriu a porta e
saíram. Quando estavam em Flask Walk, pegou-lhe no braço com a mão
livre e levou-a para longe da loja como se estivesse com pressa.
– Não devias ter vindo assim – disse em voz baixa. – Apanhaste-me
desprevenido.
Não foi o acolhimento caloroso que Rosie esperava.
– Desculpe – disse numa voz sumida. – Só queria fazer-lhe uma surpresa.
– E não há dúvida de que fizeste – retorquiu ele e, sem mais uma palavra,
levou-a para o fundo de um café ali perto.
Só quando se sentaram, bem longe dos outros clientes, é que ele se
inclinou mais para ela e falou em voz baixa.
– Estou contente por te ver, Rosie. Mas devias ter escrito para me avisar.
Agora Mr. Bryant deve estar a interrogar-se sobre quem és e é difícil
improvisar uma história plausível assim de repente.
Não a olhou enquanto falava e pela segunda vez naquele dia Rosie
lembrou-se vivamente de quem era.
– Não pensei – disse, e para sua consternação começou a sentir lágrimas
nos olhos.
– Por amor de Deus, não chores – disse ele rapidamente, tocando-lhe na
mão. – É que se soube que sou uma testemunha importante no julgamento
da próxima semana e toda a gente está interessada em mim.
Para além de se sentir inconveniente, agora Rosie sentia-se surpreendida e
muito estúpida. Em todas as cartas que tinham trocado, Thomas nunca
mencionara o julgamento, nem que seria uma das testemunhas. Não sabia
porque é que não pensara nisso, pois agora parecia perfeitamente óbvio.
Mas talvez não fosse tão inteligente como sempre pensara.
– Não podem adivinhar que eu sou a filha do Cole Parker, pois não? –
sussurrou.
Como a empregada escolheu aquele momento para se aproximar da mesa,
Thomas não conseguiu responder. Rosie observou-o com atenção enquanto
ele pedia chá e duas sanduíches de fiambre. Ele tinha um estilo natural e
descontraído, e sorriu para a mulher enquanto falava como se ela fosse
muito importante para si. Percebeu que era este seu cavalheirismo,
juntamente com o rosto magro e o cabelo louro que o faziam parecer-se
tanto com Ashley Wilkes em E Tudo o Vento Levou. Pensou que as
mulheres deviam achá-lo muito atraente.
– Duvido que adivinhem quem és só por olharem para ti – respondeu
Thomas quando a empregada se afastou com o pedido. – Mas já andam
vários repórteres atrás de mim. Fiquei espantado com a quantidade de
coisas que sabem sobre mim, a Heather e a tua família. Talvez esteja a ficar
paranoico, mas sinto que estou a ser observado ao microscópio. Agora,
imagina que um deles aparece por aqui hoje e me vê com uma rapariga
linda como tu... não vão querer saber quem és?
Rosie olhou-o com uma expressão triste. Thomas corou e baixou os
olhos.
– Desculpa, minha querida. Devo parecer ridículo. Mas imagina que
alguém fazia a associação? Podia tornar-me uma testemunha não credível e
estragar o disfarce que Miss Pemberton criou para ti.
Rosie não pensara nisso.
– Peço muita desculpa. É melhor ir-me embora – disse, levantando-se da
cadeira. Tinha receio de começar a chorar e isso atrairia certamente muito
mais atenção para a sua pessoa.
– Não – disse ele, pegando-lhe no braço. – Não, não podes ir já.
Thomas estava tão agitado que não conseguia pensar bem. Nas últimas
duas semanas, enquanto se preparava para o julgamento, não conseguira
comer nem dormir. As recordações de infância com a irmã atormentavam-
no. O campo de prisioneiros de guerra na Birmânia e todas as atrocidades
que testemunhara não lhe saíam da cabeça, por muito que tentasse esquecê-
las. Estava convencido de que tinha perdido toda a raiva em relação a isso
há muito tempo, mas percebeu que só a suprimira.
Em momentos mais calmos, percebia que estava a usar Cole e Seth Parker
como bodes expiatórios para todas as coisas que o atormentavam e, até
certo ponto, algum daquele ódio começara a passar para Rosie.
No entanto, agora que ela estava sentada à sua frente, com os olhos azuis
marejados de lágrimas, foi chamado à razão. Ela não passava de uma
criança, uma criança a quem tudo fora tirado – a casa, a família e a
inocência. Fora ele que tomara a iniciativa de lhe estender uma mão amiga,
e olhando para trás talvez tivesse sido um disparate, mas não seria certo
voltar-lhe as costas agora.
– Vai parecer ainda mais esquisito se saíres a correr agora – disse
rapidamente. – Além disso, quero saber o que estás a fazer aqui em
Londres. Fica e diz-me.
Rosie falou-lhe sobre o seu emprego.
Thomas recordou-se de uma enfermaria onde estivera durante algum
tempo. Estava cheia de homens que tinham perdido o juízo durante a guerra
e era mais uma imagem horrível que não queria recordar.
– Não é assim tão mau – disse ela ao ver o horror que se estampara nos
olhos dele. – É só outro tipo de enfermagem.
Thomas mantinha um contacto regular com Miss Pemberton por causa de
Alan e, pelas suas cartas, estava convencido de que a mulher era muito
sensata e cuidadosa. No entanto, agora, ao saber para onde mandara Rosie,
perguntou a si mesmo se estaria enganado em relação àquela assistente
social. Rosie não passara já por tragédias suficientes? Porquê sujeitá-la a
mais horror?
Pensou durante alguns instantes antes de fazer um comentário.
– Sim, suponho que é apenas enfermagem – disse, num tom reservado. –
Como a maioria das pessoas, talvez eu seja preconceituoso em relação aos
hospícios. Mas és feliz lá?
– Sim, muito feliz – respondeu Rosie de uma forma pouco convincente. –
Gosto de estar em Londres. As outras raparigas são simpáticas. Tenho um
quarto encantador e alguns dos doentes são bastante queridos.
Thomas olhou-a nos olhos e viu a verdade a toldá-los. Ela odiava aquilo,
mas estava convencida de que não tinha direito a nada melhor. Qualquer
hostilidade que tivesse alimentado nas duas últimas semanas por ela fazer
parte daquela família monstruosa transformou-se em pena.
– Oh, Rosie – disse, abanando a cabeça com tristeza. – Não tens de fingir
comigo. É horrível, não é?
Rosie engoliu em seco com dificuldade.
Até ao dia de hoje pensava em Thomas Farley quase como um deus. Era
corajoso, intuitivo, compassivo, perspicaz e muito forte, e queria apoiar-se
nele para se sentir segura. Contudo, de repente percebeu que a tensão do
julgamento que se aproximava lhe sugara a força. Ele tinha a pele cinzenta,
olheiras escuras, e Rosie adivinhou que estava muito ansioso. Decidira ser
seu amigo porque era um homem generoso, mas ela só podia ser uma
lembrança amarga, constante, dos homens que haviam assassinado a sua
irmã. Tinha de se afastar dele, pois não estava certo permitir que se
preocupasse com ela num momento tão difícil da sua vida.
– Não é nada horrível – disse, obrigando-se a rir alegremente. – É
estranho, e por vezes um pouco repugnante, mas é muito melhor do que
aguentar as críticas constantes de Mrs. Bentley. Gosto de trabalhar com
outras raparigas, divertimo-nos muito e em breve vou acostumar-me à
estranheza do trabalho. Na verdade, a principal razão que me trouxe aqui
hoje, para além de lhe dizer que estou em Londres, foi para sugerir que
paremos de nos corresponder.
Intrigado, Thomas ergueu uma sobrancelha.
– Porquê?
– Bem, em primeiro lugar não tenho muito tempo livre – declarou Rosie.
– E para além disso as outras raparigas estão convencidas de que a
enfermeira supervisora abre as cartas com vapor e não queremos que isso
aconteça, pois não? Se for preciso, podemos trocar alguma mensagem por
intermédio de Miss Pemberton. – Calou-se, sem fôlego, à espera de ter
conseguido falar no tom ligeiro que pretendia. – Agora diga-me, tem
notícias do Alan?
Se a empregada não tivesse chegado com um tabuleiro, Thomas talvez
tivesse continuado a insistir para ter a certeza de que Rosie estava a ser
sincera. Porém, aquela pequena pausa deu-lhe tempo para perceber que era
a solução ideal para o seu dilema. E também era possível que Rosie
precisasse de começar uma vida nova.
– Mrs. Hughes escreveu no sábado – disse, quando o chá e as sanduíches
foram pousados na mesa. – O Alan adaptou-se muito bem à escola nova.
Nem sequer chorou no primeiro dia e quando foi buscá-lo às três e meia
estava muito entusiasmado. Parece que é muito feliz.
Enquanto comiam, Rosie levou a conversa para longe de assuntos
pessoais. Falou-lhe sobre as raparigas com quem trabalhava e Thomas
contou-lhe que pintara a sala de estar do seu apartamento por cima da loja.
– Não devia levar uma camada de tinta desde a viragem do século – disse
com um sorriso. – Pintei-a de branco e está muito diferente. A seguir vou
tratar da cozinha.
Rosie olhou pensativamente para o seu rosto magro, com a barba por
fazer. Nunca gostara de ver o pai e os irmãos assim. Parecia animalesco. No
entanto, por alguma estranha razão, Thomas parecia o oposto; na verdade,
sentiu vontade de esticar a mão para acariciar o queixo áspero e dizer-lhe
que não se preocupasse com nada. Pensou que a sua vida por cima da loja, a
reparar relógios, devia ser muito solitária e perguntou a si mesma se
prepararia boas refeições para si próprio.
– Devia arranjar uma namorada – disse num tom reprovador.
– E tu devias arranjar um namorado – retorquiu Thomas, apontando para
ela. – Vai a bailes com algumas das tuas colegas.
– Não sei dançar – admitiu ela, um pouco envergonhada.
– Então, porque é que não aprendes? – sugeriu Thomas. – Muitas vezes
há anúncios de aulas de dança. Não são muito caras.

*
Quando se despediram à porta do café, Thomas parou antes de começar a
subir Flask Walk e observou Rosie a caminhar com leveza pelo meio do
trânsito em Haverstock Hill. Um nó inesperado formou-se na sua garganta,
apanhando-o de surpresa. Com a saia aos quadrados e a camisola a condizer
ela não era diferente de qualquer outra adolescente bonita. Parecia tão
despreocupada que era difícil acreditar que guardava um segredo tão grande
e sinistro. Perguntou a si mesmo para quem se voltaria quando o pai e o
irmão fossem enforcados, pois, seguramente, não seria para ele.
– Não é um problema teu – disse para si mesmo com firmeza quando
desviou os olhos dela.
No entanto, no fundo sabia que Rosie conquistara um lugarzinho no seu
coração e que não seria muito fácil esquecê-la.

Quando Rosie deixou Thomas, o brilho do dia pareceu eclipsar-se, mas


ainda assim viu todas as lojas da rua principal de Hampstead e foi até ao
parque como planeara. Todavia, sentada ao sol na margem do lago
Whitestone, de repente sentiu-se profundamente só.
Havia mulheres e crianças à sua volta, raparigas apenas alguns anos mais
velhas do que ela com bebés em carrinhos, outras mulheres a brincar com
crianças pequenas e uma família inteira com cinco ou seis filhos a andar de
barco no lago. Pressentiu a felicidade de todas aquelas mulheres e pensou
que nenhuma delas tinha alguma coisa mais séria a esconder do que talvez
gastar um pouco de mais no governo da casa.
Até agora não pensara para além do julgamento do pai e do irmão. Era
como se uma vedação alta lhe bloqueasse a vista. No entanto, de repente foi
como se conseguisse ver por cima da vedação e não gostou nada do que
estava do outro lado. Agora Thomas estava muito preocupado por ser visto
com ela e duvidou que quisesse voltar a vê-la depois do julgamento. Quase
todas as pessoas em Inglaterra seguiriam o julgamento, os nomes de Cole e
Seth Parker ficariam na história e todos os pormenores da sua família e vida
familiar passariam a ser do conhecimento geral.
Era muito bonito Thomas incentivá-la a ir a bailes e arranjar um
namorado, mas teria ele pensado nos perigos que isso podia trazer? Talvez
não fizesse mal ir dançar com Linda e Mary. Mas o que aconteceria se
conhecesse um rapaz e gostasse dele? O que faria? Devia continuar a contar
a mesma história que contara às raparigas?
Rosie sentiu-se desolada. Contar mentiras para manter um emprego era
uma coisa, mas não lhe agradava a ideia de enganar alguém de quem viesse
a gostar. Contudo, quem a quereria se dissesse a verdade? Olhando ainda
mais longe no futuro, nenhum rapaz decente quereria casar-se com alguém
da família Parker.
Lembrou-se de pensar que o crime do pai deixara uma marca indelével na
sua testa. Agora que sabia que Seth também estava envolvido era muito pior
do que isso. Era como se fosse portadora de uma doença hereditária; podia
não ter sintomas, mas nenhum homem sensato correria o risco de ter filhos
consigo.

Já passava das seis horas quando voltou para Carrington Hall. Usou a sua
chave para entrar pela porta de serviço e ao ouvir a gargalhada de Mary
Connor na sala de estar do pessoal dirigiu-se para lá em vez de subir para o
seu quarto.
Mary, Linda, Brownlow e Thorpe estavam a jantar. Todas olharam para
ela quando entrou na divisão.
– Onde é que foste hoje? – perguntou Mary.
– À biblioteca, e depois apanhei um autocarro para Hampstead –
respondeu Rosie.
– Parece muito divertido – disse Mary com profundo sarcasmo.
– Foi agradável – replicou Rosie, indignada. – Hampstead é encantador.
– Bem, lamento se isto vai estragar o teu dia – interrompeu Linda –, mas
a enfermeira supervisora quer que vás ao escritório dela. Pareceu-me muito
irritada.
Rosie pensou nos acontecimentos daquela manhã e o seu sangue gelou.
– O que é que fizeste? – perguntou Mary, e os seus olhos azuis
esbugalharam-se.
– Que eu saiba, nada – respondeu Rosie com um encolher de ombros. –
Acho que é melhor ir ver o que ela quer.

*
– Entra – respondeu a enfermeira supervisora à hesitante pancada na porta
do escritório. Durante o dia aquela sala pertencia a Mrs. Trow, que tratava
de todo o trabalho administrativo, mas a enfermeira supervisora tinha o
hábito de ir para lá a esta hora e as raparigas diziam que era para ir
bisbilhotar o trabalho dela.
Rosie entrou e encontrou a enfermeira supervisora sentada à secretária. O
escritório era muito pequeno, uma pequena zona delimitada por uma
divisória que fazia parte de uma sala muito maior, sem janelas, com apenas
um vidro na parede voltada para a escadaria. Uma grande secretária com
uma máquina de escrever ocupava a maior parte do espaço, havia arquivos
metálicos na parede de trás e, encaixados no espaço restante, viam-se uma
série de cacifos, um para cada doente, com livros de medicina e papel de
carta em cima.
– A Bell disse-me que quer falar comigo – disse Rosie à porta.
– Pois quero, sua porca imunda – proferiu a enfermeira supervisora com
profunda cólera. Levantou-se da cadeira e agarrou Rosie pelo ombro,
puxando-a para dentro e fechando a porta com um pontapé antes mesmo de
a rapariga conseguir piscar os olhos. – Já me deparei com raparigas porcas
na vida. Mas nunca uma tão grande como tu.
– O que é que eu fiz? – perguntou Rosie indignada, afastando-se da
mulher. Não conseguiu pensar em nada que justificasse um ataque tão
violento à sua pessoa.
– Isto. – A enfermeira supervisora agarrou-a pela gola da camisola e
puxou-a para uma caixa de cartão que estava no chão. Abriu-a com um
dedo, com um gesto de profundo desagrado, e empurrou a cabeça de Rosie
na sua direção.
Rosie engasgou-se com o cheiro forte. Pareciam ser dois pares de cuecas
castanho-avermelhadas do uniforme e um par de cuecas brancas manchadas
de sangue. À volta delas viam-se quatro ou cinco pensos higiénicos por
desembrulhar, muito sujos.
– Eu não tenho nada a ver com isso. – Rosie afastou-se da enfermeira
supervisora com um movimento brusco. – Porque é que pensaria que são
meus?
– Porque os descobri debaixo da tua cama e tu tens diversos pares de
cuecas brancas idênticas a estas.
Rosie ficou tão chocada com a acusação que durante alguns segundos só
conseguiu olhar para a mulher com uma expressão apalermada.
– Não me olhes assim, rapariga – rugiu a enfermeira supervisora. –
Explica-te.
– Essas coisas não me pertencem – disse Rosie. No entanto, pensando
bem, teve um pressentimento de que as cuecas brancas eram de facto suas e
também percebeu quem era responsável por deixar aquelas coisas
repugnantes para que alguém as encontrasse.
– Não me mintas – sibilou a enfermeira supervisora. – Eu sei que te
pertencem.
– Não estou a mentir, e para o caso de se ter esquecido relembro-lhe que
divido o quarto – retorquiu Rosie, zangada. Mal podia acreditar que outra
rapariga pudesse sequer pensar em usar as cuecas de outra pessoa, mas,
embora estivesse muito zangada, não conseguiu acusar ninguém.
– Precisamente como eu esperava. – Agora a enfermeira supervisora
estava muito vermelha e os seus olhos já de si pequenos pareciam uma
fenda escura por cima do nariz. – Tu ias tentar pôr a culpa noutra pessoa.
São tuas. Não negues. – Levantou a mão e esbofeteou Rosie com força.
Rosie revoltou-se com tamanha injustiça.
– Vou negar porque é a verdade – gritou. – Eu ainda nem sequer comecei
a ter o período e como se atreve a bater-me por uma coisa que eu não
poderia ter feito?
– Mentirosa – gritou a mulher mais velha, pegando na caixa e pondo-lha
nas mãos. – Amanhã de manhã vou fazer queixa de ti a Mr. Brace-
Coombes.
Rosie não parou para pensar e atirou a caixa na direção da enfermeira
supervisora, espalhando todo o seu conteúdo no chão.
– Faça queixa de mim a quem quiser. Mas essas coisas não são minhas e
se quiser que alguém as tire daqui descubra a pessoa imunda a quem
pertencem realmente. – Correu para a porta e saiu da sala antes de a
enfermeira supervisora poder agarrá-la.
Quando entrou no quarto dois minutos depois, Maureen estava sentada na
cama. Levantou a cabeça com uma expressão culpada no rosto e Rosie
aproximou-se dela em dois passos e deu-lhe uma forte bofetada antes de ela
conseguir mexer-se.
– Vai lá abaixo dizer à enfermeira supervisora a quem pertencem aqueles
pensos e aquelas cuecas – gritou, tão zangada que não conseguiu controlar-
se. – Vai, agora!
Quando Maureen não se mexeu, Rosie agarrou-a pelos ombros e abanou-
a até os seus dentes quase baterem e os óculos caírem.
– Estás a ouvir-me? – gritou. – És um animal, Maureen. Já me metes nojo
porque não te lavas e agora deixaste aquelas coisas malcheirosas para que a
enfermeira supervisora as encontrasse e eu ficasse com as culpas. E como te
atreves a tirar as minhas cuecas da gaveta e usá-las? Não tens orgulho nem
decência? Se não fores lá abaixo agora e contares a verdade à enfermeira
supervisora, vou fazer um escândalo tão grande que todas as pessoas que
estão nesta casa vão saber como és porca.
– D-d-desculpa – gaguejou Maureen, a tremer, com os olhos cinzentos
muito abertos de terror. – Eu não disse que aquelas coisas eram tuas. A
enfermeira supervisora pensou que eram e fiquei tão assustada que não
consegui contar-lhe a verdade.
– Eu ainda nem sequer comecei a ter o período – rosnou Rosie. – Mas,
mesmo que já tivesse, nunca deixaria aquelas coisas sujas, como nenhuma
pessoa decente deixaria. Agora vai lá abaixo dizer à enfermeira supervisora,
senão juro por Deus que te bato.
Maureen saiu do quarto com um ar comprometido, evitando Rosie, e a
sua expressão aterrorizada dizia que preferia arriscar a sua sorte com a
enfermeira supervisora a ficar ali para ser mais castigada.
Depois de Maureen sair, Rosie afundou-se na cama e começou a chorar.
Estava furiosa com a enfermeira supervisora e com Maureen, mas ainda
mais horrorizada consigo mesma por ter perdido o controlo. Nunca
percebera que era capaz de tanta raiva e foi mais um aviso de que o sangue
dos Parker lhe corria nas veias.
A porta abriu-se e Linda olhou em volta.
– Ouvi tudo – disse. – Fizeste muito bem.
– Vai-te embora – disse Rosie, a tentar recompor-se. – Isto é um assunto
particular.
– Como queiras – retorquiu Linda, ofendida. – Só queria dizer que admiro
a tua garra. Eu e a Mary pensávamos que ias ser mais um capacho.
Maureen entrou no quarto mais de uma hora depois, com a grande marca
vermelha de uma mão na face onde a enfermeira supervisora devia ter-lhe
batido. Tremia de medo e estava sem dúvida à espera que Rosie lhe batesse
de novo.
Mas Rosie acalmara-se e agora a sua raiva estava mais direcionada para a
enfermeira supervisora do que para uma rapariga que nunca aprendera as
regras básicas de higiene. Vira que a carta de Miss Pemberton tinha sido
lida. O gancho do cabelo desaparecera e a carta fora posta ao contrário no
envelope.
– Desculpa – pediu Maureen num lamento, e começou a chorar. – Temos
de os levar para a incineradora, mas eu esqueço-me sempre. E peço muita
desculpa por ter usado as tuas cuecas, mas não tinha nenhumas limpas.
Rosie enterneceu-se. Calculava o que a enfermeira supervisora lhe fizera.
Maureen podia ser muito mais velha do que ela, mas não era muito
inteligente. Pegou na mão da rapariga e levou-a para a cama.
– Está tudo bem. Eu perdoo-te. Mas tens de aprender a lavar-te e todas
essas coisas – disse suavemente. – É importante. Ninguém gosta de pessoas
malcheirosas, é horrível. Por isso, tens de fazer o que eu te vou dizer.

Mais tarde nessa noite, depois de apagarem a luz, Rosie pensou como a
sua situação era irónica. Maureen acreditava piamente que ela vinha de uma
casa boa, com uma casa de banho em condições, e que uma mãe carinhosa
lhe transmitira todo o conhecimento sobre as coisas femininas que Rosie
acabara de lhe ensinar.
Perguntou a si mesma o que pensaria a outra rapariga se pudesse ver May
Cottage no meio do inverno, quando as botas do pai e dos irmãos
transformavam a cozinha num mar de lama. Se os visse chegar à noite, já
tarde, a cair de bêbedos, a vomitar no lava-loiça ou até no chão, ou se fosse
o alvo da sua conversa ordinária. Desejou poder admitir que a maioria do
seu conhecimento vinha de revistas femininas, que noite de banho para ela
era uma banheira de metal no chão da cozinha e que até há alguns meses as
suas cuecas só serviam para trapos e ninguém no seu juízo perfeito quereria
usá-las. Maureen dissera-lhe o quanto admirava os seus modos à mesa e
Rosie quase soltara uma gargalhada. Mrs. Bentley era a única responsável
por esses modos!
Depois de Rosie fazer chá e Maureen tomar banho, ela abrira-se mais
sobre a sua vida e contara-lhe sobre o homem que a violara e como fora
parar a um manicómio. Era uma história lancinante e calculou que a
rapariga nunca contara aquilo a mais ninguém. Tinha sido muito tentador
admitir as suas próprias origens, mesmo que fosse apenas para realçar que
as pessoas podiam aprender a viver de uma forma diferente.
Porém, não disse nada, e nunca diria. Uma coisa que aprendera nos
últimos meses fora que não se devia confiar totalmente em ninguém. Miss
Pemberton, Thomas e Mr. Bentley pareciam confiáveis. No entanto, Miss
Pemberton mandara-a para aqui. Tanto quanto sabia, pelo preço certo Mr.
Bentley poderia traí-la mais tarde. Thomas parecia ter mudado de ideias em
relação a ser seu amigo. Não podia confiar em ninguém a não ser em si.

Quase duas semanas mais tarde e uma semana depois de o julgamento


começar, Rosie apercebeu-se de como o seu passado inventado era frágil e
dos perigos de deixar as pessoas aproximarem-se de mais.
Era domingo à noite e todas as raparigas que não estavam de serviço
reuniram-se na sala de estar do pessoal após o jantar. Linda, Mary e
Maureen estavam lá, e Gladys Thorpe, uma das enfermeiras, também. A
sala destinava-se a todo o pessoal, mas na prática apenas as mais novas a
usavam.
Funcionárias atuais e antigas tinham tentado transformar aquela divisão
num refúgio confortável com fotografias, almofadas e livros, mas os gostos
muito diferentes e o mobiliário díspar que tinha sido oferecido por pessoas
bem-intencionadas quando se cansavam da sua fealdade ou velhice
conferiam-lhe uma aparência abandonada. Grades na janela, um quadro de
recados com os turnos de serviço e os muitos e breves memorandos da
enfermeira supervisora eram uma recordação constante de que estavam
quase tão institucionalizadas como os doentes lá em cima.
Os domingos pareciam ter o dobro das horas dos outros dias porque, por
alguma razão que ninguém conseguia explicar, os doentes davam sempre
problemas.
Havia teorias: porque havia menos pessoal doméstico de serviço e, por
conseguinte, as auxiliares distraíam-se, pois tinham de fazer o trabalho
delas. Porque um vigário vinha celebrar a missa na sala de dia, ou porque
neste dia normalmente havia visitas que faziam os doentes recordar
vagamente a vida que tinham antes de virem para Carrington Hall.
Fosse qual fosse a razão, havia sempre mais xixis no chão, mais calças
borradas, mais birras e lutas. Por isso, quando chegavam as seis horas, todo
o pessoal que saía de serviço estava demasiado cansado para outra coisa a
não ser afundar-se nas poltronas e lamentar-se. Felizmente, a enfermeira
supervisora ia sempre à missa da noite e raramente voltava antes das dez
porque ceava com uma amiga, por isso costumavam reunir-se na sala de
estar a beber incontáveis chávenas de chá e a fumar cigarros até poucos
minutos antes de ela chegar.
O confronto de Rosie com a enfermeira supervisora fizera-a subir alguns
pontos na consideração das colegas. Achavam que ela não só tinha sido
corajosa ao enfrentar a enfermeira supervisora, como não dissera uma única
coisa contra Maureen depois e até conseguira, por fim, persuadir a rapariga
a lavar-se.
Todas sabiam que a enfermeira supervisora queria tramar Rosie – ela não
aceitava de bom grado que as suas subordinadas lhe fizessem frente –, e isto
incomodava-as. A única forma que encontraram de mostrar a sua
solidariedade a Rosie foi tornando-se suas amigas, tomando chá e comendo
bolo depois do trabalho e encorajando-a a falar-lhes sobre a sua vida.
Rosie estava sozinha e isolada há tanto tempo que achou maravilhoso não
apenas ser aceite, mas também apreciada, e quando as outras raparigas lhe
fizeram perguntas sobre a sua casa e família teve de lhes dar mais do que
um esboço de uma história. Sem ter verdadeira consciência disso, começou
a descrever uma infância quase perfeita numa bonita casa com um pai
extremoso e uma tia solteira que cuidava dela. Num ou outro momento de
nostalgia contou histórias verdadeiras do pai, deixando-as ter um vislumbre
da sua jovialidade, força e personalidade carismática. Ficou contente ao
perceber que gostavam do homem que ela retratara e isso aplacou o seu
sentimento de perda.
No entanto, quando o julgamento começou e Seth e Cole Parker se
tornaram quase tão infames como Jack, O Estripador, Rosie voltou à dura
realidade e foi obrigada a ver os piores aspetos da sua família. Todas as
pessoas em Carrington Hall, desde a enfermeira supervisora até à mais
insignificante doméstica, seguiam avidamente o julgamento. Escutavam as
notícias no rádio e liam todos os jornais. Todos os dias havia uma nova
revelação que era esmiuçada e como Rosie era do Somerset, e supunham
que podia ter alguma informação privilegiada, perguntavam-lhe muitas
vezes qual era a sua opinião. Rosie ignorava as perguntas com fingido
desinteresse, mas o fardo de saber tanto ia-se tornando mais pesado a cada
dia que passava.
Na quinta-feira, quando Ethel Parker foi chamada a testemunhar para
falar sobre a crueldade do marido, foi quase impossível para Rosie guardar
as suas opiniões e conhecimento para si.
Ethel tinha quarenta e oito anos agora e os desenhos do desenhador do
tribunal gravaram não apenas o seu rosto descarnado e cabelo grisalho, mas
também a horrível cicatriz na face que ela afirmou ter sido feita por Cole
com um ferro de engomar quente. Rosie olhou para o desenho com grande
incredulidade. A mulher não tinha qualquer semelhança com a beldade de
cabelo preto de que tanto ouvira falar em Catcott e a sua cáustica descrição
do casamento violento e infeliz não coincidia com os relatos que Rosie
ouvira da mulher artística e divertida feitos pelos vizinhos. Ethel fez um
grande teatro à volta de ter sido obrigada a fugir e deixar os filhos, mas
quando foi interrogada pela defesa ficou a saber-se que fugira com outro
homem e que, em dezoito anos, nunca tentara saber como estavam. Mesmo
no banco das testemunhas, com Seth a pouca distância, o artigo dizia que
não demonstrara qualquer emoção ao estar diante do filho que abandonara
há tanto tempo.
Hoje, os jornais de domingo tinham pegado na história com toda a garra,
com manchetes como «Os Assassinos do Pântano» e «Satanás no
Somerset», e contavam a história de Ethel, Ruby e Heather, por isso naquela
noite a conversa centrou-se, inevitavelmente, nelas.
Linda assumiu o papel central, sentada no sofá, de cigarro na mão e com
um jornal no colo.
– Acho que tanto a Blackwell como a Farley eram interesseiras – disse
descontraidamente, a soprar anéis de fumo para o teto. – Não quer dizer que
ache que os Parker tinham o direito de as matar por causa disso. Mas se eu
fosse um homem e tivesse alguns xelins, ficaria furioso quando descobrisse
que elas só queriam dinheiro.
– Que diabo é que te leva a pensar isso? – perguntou Mary, incrédula.
– Bem, olhem para as suas origens – disse Linda, a apontar para o jornal.
– Ambas eram do East End de Londres e não tinham nada antes de irem
trabalhar para a casa dele. Eu sou de lá. Sei como é. Não me vão convencer
de que elas pensaram: «Oh, o pobre homem precisa de ajuda para cuidar
dos filhos sem mãe.» Viram aquilo como uma maneira de terem uma vida
boa e fácil.
– Se era o que queriam – disse Gladys, devagar –, porque é que não se
foram embora no momento em que perceberam que não ia ser assim?
Nas três semanas desde que chegara aqui, Rosie aprendera muito sobre as
personalidades das outras raparigas em conversas como aquela. Linda
passara a guerra no East End de Londres e, embora a sua família tivesse
sido realojada em Romford em 1945, continuava a ter uma visão dura e
cínica da vida. Rosie interrogava-se muitas vezes porque é que ela viera
trabalhar para ali. Não era uma cuidadora por natureza e a sua
personalidade era mais adequada para o trabalho numa fábrica do que para
bajular pessoas como a enfermeira supervisora Barnes. Porém, sempre que
tentava abordar aquele assunto, Linda ria-se e afirmava que era um trabalho
fácil.
Mary, por outro lado, tivera uma boa educação num convento na Irlanda,
mas era uma sonhadora romântica, de coração mole, preguiçosa e crédula.
Viera para Carrington Hall com a intenção de passar o tempo antes do
treino de enfermagem, mas, por um ou outro motivo – Rosie estava
convencida de que era acima de tudo por se apaixonar com frequência –,
não saíra dali.
A enfermeira Gladys Thorpe era uma rapariga bondosa, mas tola, de vinte
e seis anos, a mais velha da sala. As outras raparigas, talvez maldosamente,
diziam que ela optara pela enfermagem psiquiátrica porque não tinha
inteligência para a enfermagem geral. Era trabalhadora e não olhava para
além do próximo salário. Plácida, sem imaginação e simples, com cara
redonda e um corpo papudo, Rosie estava convencida de que ainda estaria
em Carrington Hall dali a vinte anos.
– Ficaram porque sabiam que o Parker tinha dinheiro escondido algures –
argumentou Linda. – Estavam a tentar perceber como conseguiriam deitar-
lhe a mão.
– És parva, Linda – interrompeu Mary, indignada. – As mulheres não
pensam assim. Devem ter-se apaixonado por ele. Por que outro motivo é
que ambas teriam um filho com ele?
– Porque eram as duas umas galdérias e aposto que a Farley sabia que ele
tinha assassinado a Blackwell.
Rosie distanciara-se desta conversa, obrigando-se a não fazer nenhum
comentário, dissessem elas o que dissessem. Todavia, ao ouvir o insulto a
Heather a sua fúria cresceu.
– Nenhuma delas era galdéria e é claro que a Heather não sabia o que o
Parker tinha feito à Ruby. Ela era uma rapariga simples. – Rosie calou-se de
repente, consciente de que ao usar os nomes de batismo das mulheres e
defendê-las com tanto ardor revelara não apenas o seu interesse como
também que sabia alguma coisa sobre elas que as colegas desconheciam.
Durante alguns instantes o silêncio foi absoluto e as outras raparigas
entreolharam-se, surpreendidas.
– Pareces saber muito – declarou Maureen, a olhá-la com curiosidade.
– Não sei – replicou Rosie apressadamente. Estava acima de tudo
preocupada com Maureen, pois a rapariga podia ser analfabeta, mas era
rápida a perceber intrigas. – Só não gosto que as pessoas falem mal dos
mortos.
– Como é que sabes que a Farley era simples? – perguntou Linda de uma
maneira contundente, com os olhos escuros semicerrados. – Nunca li isso
em parte alguma.
– Não te esqueças de que eu vim de lá. – Rosie desejou que o chão se
abrisse e a engolisse. – Ouve-se dizer coisas; toda a gente falava sobre as
mulheres quando os corpos foram encontrados.
A conversa continuou, mas Rosie estava dolorosamente consciente de que
todas as raparigas a observavam, à espera de mais alguma reação. Tentou
desligar-se do que elas diziam, mas sempre que ouvia alguma coisa que
sabia ser falsa o seu estômago apertava-se de uma forma agonizante.
Lera todos os relatos do julgamento e tentava ter uma mente aberta.
Duvidava da veracidade de muitas das coisas vingativas que Ethel Parker
dissera acerca de Cole, e na verdade o advogado de defesa afirmara que a
cicatriz na cara era bastante recente e que não podia ter dezoito anos.
Porém, Rosie sabia que a polícia tinha provas sólidas, e quem poderia ter
assassinado e enterrado as duas mulheres no pátio dos Parker a não ser os
Parker? Por isso, mantinha-se na dúvida, à espera de alguma coisa que
provasse definitivamente a culpa ou inocência dos dois homens.
Todavia, entretanto a imprensa criava toda uma história de fundo que
impedia qualquer pessoa de ser justa. May Cottage tinha sido recriada como
uma espécie de inferno, um lugar escuro e sinistro onde os seus residentes
sub-humanos chafurdavam em imundície e perversão, e aprisionavam
mulheres jovens contra a sua vontade.
Rosie recordava-se de como a cozinha era limpa, com o chão e a mesa
bem esfregados, as lindas cortinas de Heather na janela, as mantas de
croché de Ruby – até Ethel deixara ficar frascos pintados à mão numa
prateleira. Era o trabalho de escravas que eram mantidas naquela casa
contra a sua vontade?
Lembrava-se de ver Cole sorrir enquanto olhava Heather nos olhos no
Festival das Colheitas. De os ouvir rir enquanto colavam o novo papel de
parede nos quartos naquele primeiro verão. Conseguia visualizar o pomar
na primavera, quando flores cor-de-rosa e brancas caíam, flutuantes, no
meio da erva como confetes e Heather corria descalça pelo meio delas a
gritar para Rosie que adorava aquilo. Desejou que houvesse uma forma de
recriar algumas daquelas imagens mais bonitas para os jurados.
– Que será que fizeram com os outros dois filhos do Parker? – perguntou
Gladys mais tarde, pensativa. – Aposto que eles poderiam contar algumas
coisas!
– Espero que os tenham prendido em algum lugar – disse Linda. – Eles
não podem ser normais.
Rosie sentiu a raiva voltar, mas reprimiu-a com firmeza.
– O menino é capaz de ser pequeno de mais para ter sido muito afetado –
disse Mary com um suspiro profundo. – Mas a rapariga deve saber toda a
verdade. Não gostava de estar no lugar dela, nem por todo o dinheiro do
mundo. Matava-me se tivesse um pai e um irmão daqueles.

Durante a segunda semana do julgamento, Rosie estava quase sempre


com náuseas. Passava os dias como um autómato, a fazer o que lhe
mandavam: limpava, alimentava, fazia camas, limpava urina e acicatava os
doentes. Todavia, o seu coração e o seu pensamento estavam naquele
tribunal a cento e sessenta quilómetros de distância.
Thomas testemunhou e falou sobre o encontro com ela em May Cottage.
Não conseguia deixar de pensar que se não tivesse desobedecido ao pai e
falado com um desconhecido, Cole e Seth não estariam agora no banco dos
réus e ela continuaria a ignorar o destino de Ruby e Heather. No entanto,
quando pensou nisso sentiu vergonha de tentar enterrar a cabeça na areia.
Talvez ainda não estivesse provado que eles eram assassinos, mas tinham
sido cruéis com Alan e devia estar feliz por ele ter sido salvo graças ao seu
ato de desobediência.
Os jornais centraram-se em Thomas, com uma fotografia dele quando
entrara para o exército e outra tirada pouco depois de o campo de
prisioneiros de guerra na Birmânia ser libertado. Ficou espantada com a sua
semelhança com Heather na primeira fotografia, o cabelo louro espesso, a
grande boca sorridente e as faces rechonchudas. Na segunda fotografia,
tirada apenas cinco anos mais tarde, estava irreconhecível, quase um
esqueleto, com o rosto cheio de rugas e cansado, apoiado em muletas e com
a perna amputada cheia de ligaduras, velho antes do tempo.
Rosie calculou que Thomas devia estar cruelmente embaraçado com
aquela manipulação das emoções das pessoas e percebeu que, muito depois
de o julgamento chegar ao fim, as pessoas continuariam a lembrar-se do seu
papel nele. Tinha a certeza de que a amizade de ambos estava acabada.
Perguntou a si mesma se ele suportaria continuar a ver Alan.
No entanto, foram os desenhos que o artista fazia de Cole e Seth que lhe
mostraram como estava confusa. O verdadeiro carácter de Seth transparecia
na sua postura insolente no banco dos réus. Os acontecimentos daquele dia
em May Cottage voltaram com tanta força que tremeu dos pés à cabeça.
Acreditava em todas as coisas de que ele era suspeito. Queria que fosse
considerado culpado.
Mas os desenhos do pai fizeram-na derreter-se por dentro. Havia
dignidade na sua postura direita, não insolência. Os olhos escuros pareciam
dizer-lhe que, apesar de ter feito muitas outras coisas más na vida, não
espancara a sua mãe e Heather até à morte como a polícia dizia.
Foi difícil resistir a recortar apenas uma daquelas imagens, uma
recordação em nome dos velhos tempos, mas até isso lhe foi negado por
causa da coscuvilhice da enfermeira supervisora. Desejou poder vê-lo uma
última vez, para esquecer o que estava a acontecer agora e poderem voltar a
ser apenas pai e filha.

Na noite de sexta-feira dessa mesma semana, Rosie foi ao quarto de


Linda e Mary. Mary estava deitada na cama a ler o Evening News, vestida
com um vestido justo azul-claro e maquilhada para ir a um baile, mas ainda
com rolos no cabelo. Linda estava parada diante do espelho com uma blusa
de folhos estilo camponesa, descaída nos ombros, e uma saia larga
vermelha a tentar disfarçar duas borbulhas muito feias na parte de cima das
costas com base em stick.
– Pões-me isto? – pediu, pousando o stick nas mãos de Rosie. – Não
consigo chegar lá. Mas não me sujes a blusa.
Rosie fez o que ela lhe pedia, mas quando olhou para Mary reparou que
ela estava a ler alguma coisa sobre o julgamento.
– Quais são as últimas novidades? – perguntou, esperando ter falado num
tom descontraído o suficiente.
– Parece que o filho não podia ter participado – disse Mary sem olhar
para cima. – Um agricultor qualquer testemunhou que ele esteve a trabalhar
para ele até depois das sete no dia em que a Ruby Blackwell desapareceu.
Começo a sentir pena dele. Deve ter tido uma infância terrível.
As mãos de Rosie tremeram.
– Cuidado com o que estás a fazer! – guinchou Linda quando viu Rosie
atrás de si no espelho a abanar a base em stick perigosamente perto da sua
blusa.
Rosie recompôs-se e pediu desculpa. Desejou poder arrancar o jornal das
mãos de Mary e lê-lo, mas sabia que teria de esperar até elas saírem.
– Ela diria que o Jack, O Estripador, era boa pessoa se ouvisse dizer que
a mãe dele bebia e andava com homens – disse Linda, olhando por cima do
ombro para o espelho para confirmar que Rosie fizera um bom trabalho. –
Mas desta vez vou concordar com ela. Em primeiro lugar, o filho era
pequeno de mais. Não acredito que um rapaz de dezasseis anos pudesse
ajudar o pai a fazer uma coisa daquelas e nunca contasse a ninguém.
Rosie sentiu um arrepio gelado a percorrer-lhe a espinha. Sabia que Seth
era perfeitamente capaz de fazer aquilo. Ele podia ser muitas coisas, mas
nunca fora um linguarudo; nenhum dos Parker era, incluindo ela.
– Posso lê-lo quando acabares? – pediu a Mary.
Mary fez uma careta de desaprovação.
– Devias sair connosco, não ficar aqui a ler jornais – disse. – De que
adianta trabalhar em Londres se nunca sais daqui?
– Eu saio daqui – protestou Rosie. – Mas não sei dançar e só ia
envergonhar-vos.
– Então, nós ensinamos-te no domingo à noite – disse Linda, prendendo
um cinto preto largo na cintura e apertando-o bem. – Só tens de aprender a
dançar a valsa e o chachachá, nenhum dos tipos sabe dançar outras coisas.
Agora, como é que estou?
Rosie sorriu. Linda parecia desengraçada durante o dia, mas depois de pôr
rolos no cabelo e se maquilhar transformava-se numa rapariga voluptuosa e
glamorosa.
– Uma rainha de concurso de beleza – disse. – Agora, posso ficar com o
jornal?
Mary atirou-lho.
– Estás tão viciada nisto como nós! – disse, triunfalmente.
– Não estou – insistiu Rosie. – Só quero ver a página dos anúncios de
emprego para poder sair deste manicómio.
– Então, escolhe um emprego para as três – disse Mary, a rir. – Num sítio
onde paguem bem, se trabalhe pouco e com muitos homens!

O piso do pessoal ficou mergulhado no mais profundo silêncio depois de


Linda e Mary saírem. Maureen e Gladys estavam lá em baixo na sala de
estar a ouvir rádio e se a enfermeira Aylwood estava no seu quarto, mais ao
fundo, estava tão silenciosa como sempre. Rosie esticou-se na cama e leu o
relato da defesa de Seth, aliviada por ser improvável que fosse
interrompida.
No início do julgamento, a acusação explorara ao máximo a reputação de
lutador, arruaceiro e rufia de Seth, realçando que ele idolatrava o pai e
procurava imitar o seu comportamento. O advogado que defendia o seu
meio-irmão não procurou negar essas acusações, mas tentou mostrar que
Seth tinha outro lado mais gentil que não queria revelar por medo do pai.
Interrogou-o muito pormenorizadamente sobre os dois anos depois de
Ethel Parker se ter ido embora de May Cottage, em que ele e o irmão mais
novo tinham sido obrigados a desenrascar-se, muitas vezes com fome e
sempre negligenciados. Quando chegou ao momento da vinda de Ruby, as
respostas de Seth sugeriram que o rapaz de nove anos a vira como uma mãe
de substituição há muito desejada. Falou sobre ela cozinhar refeições,
tricotar camisolas quentes e transformar de novo a casa num verdadeiro lar,
incluindo o aumento da família com uma nova irmãzinha.
Uma lágrima escorreu-lhe pela face quando leu as carinhosas palavras de
Seth sobre a sua mãe. Acreditou em tudo porque lhe lembrou a alegria que
sentira quando Heather entrara na sua vida. À medida que o advogado foi
aprofundando mais os anos em que ela era pequena, ficou mortificada ao ler
as carinhosas referências de Seth a si e à sua mãe e sentiu que talvez se
tivesse equivocado em relação a ele. Certamente não pensava que pudesse
ter assassinado a mulher por quem tinha sem dúvida tanto apreço.
Como Mary já dissera, havia o testemunho de um agricultor em
Bridgwater segundo o qual Seth passara toda a semana em que Ruby
desaparecera a trabalhar no seu celeiro e os livros de contas da quinta onde
estavam registados os pagamentos que tinham sido feitos a Cole foram
apresentados como prova. O advogado repisou isto durante algum tempo,
mostrando que entre os catorze e os dezoito anos Seth tinha trabalhado
muitas horas, fizesse chuva ou sol, e o pai nunca lhe pagara nada pelo
esforço, dando-lhe apenas alguns tostões para gastar. Em seguida, realçou o
excelente registo militar de Seth, insinuando que se o rapaz não tivesse
medo de desagradar ao pai teria começado a trabalhar como mecânico na
vida civil e teria ido viver para a cidade para se tornar independente.
Passando para a altura da morte de Heather, concentrou-se muito no facto
de Seth ter passado aquela semana inteira a trabalhar em Bristol e declarou
que não ganharia nada em matar a mulher pois só ficaria mais obrigado a
ajudar o pai a gerir o negócio e teria de assumir maiores responsabilidades
com os irmãos mais novos.
Como a acusação tinha falado sobre a alegada crueldade de Seth com
Alan e Rosie, a defesa não teve outra alternativa a não ser voltar ao assunto.
Para sua surpresa, Seth não tentou negar, e as perguntas cuidadosamente
elaboradas sobre o assunto criaram a imagem de que estava apenas a
cumprir ordens do pai para tentar impor alguma ordem numa casa de onde
tinha desaparecido toda a noção de disciplina e organização. Pareceu
severo, mas compassivo.
Rosie ficou deitada na cama durante muito tempo depois de ler o jornal,
com a cabeça e o coração repletos de emoções contraditórias. Não achava
que Seth pudesse ter assassinado a sua mãe, ou mesmo sabido da sua morte.
Na altura tinha a mesma idade que ela tinha agora e era demasiado jovem
para essas coisas. No entanto, não tinha tanta certeza em relação à morte de
Heather. Olhando para trás, recordou que Heather dizia muitas vezes que
ele não gostava nada dela e lembrou-se de como todos tinham sido muito
mais felizes enquanto ele estivera a cumprir o serviço militar.
Naquele momento, percebeu que fizera muito mal ao não contar ao
sargento Headly ou até a Miss Pemberton tudo o que sabia sobre o irmão.
Talvez aquele episódio que testemunhara no quarto do pai não provasse que
ele o ajudara a assassinar Heather, mas mostrava com bastante clareza o
tipo de homem que se tornara. A polícia ainda acreditava que a tareia que
levara do irmão se devia apenas a ter ajudado Alan a fugir. Se soubessem a
história toda, a acusação talvez sofresse uma reviravolta total e o advogado
de Seth não conseguiria levar os jurados a acreditar que ele não passava de
um simples rapaz do campo que vivia com medo de desagradar ao pai.
Mas o que podia fazer agora? Miss Pemberton tivera muito trabalho para
mantê-la fora do julgamento. E também havia Thomas! Como é que ele
ficaria se soubesse que Seth e Norman tinham violado a irmã?

Naquela noite Rosie acordou de um terrível pesadelo. Descia uma rua


escura em direção a umas lojas profusamente iluminadas no fundo quando
Seth aparecia atrás dela. Ela corria sem parar, mas, em vez de chegar à
segurança das lojas, elas pareciam afastar-se cada vez mais e Seth
aproximava-se. Ele agarrou-a pela cintura e atirou-a ao chão e Rosie viu o
rosto sorridente do irmão pairar por cima dela e a boca a aproximar-se do
seu pescoço como um cão raivoso. Quando os dentes se cravaram na carne,
acordou.
Deitada na cama, demasiado assustada para voltar a fechar os olhos com
medo que o sonho continuasse, lembrou-se de que o pai sabia o que Seth e
Norman tinham feito. Teria de ser ele a revelar a história e, se pedisse para
Rosie ir testemunhar, ela iria.
No entanto, por muito que quisesse acreditar na inocência do pai, e por
muito transtornada que estivesse por ele ainda não ter dado ao advogado
alguma coisa substancial para o defender, tinha de enfrentar a desagradável
realidade de que ele devia ter assassinado as duas mulheres e que Seth
também estava quase de certeza envolvido. Era impossível ignorar isso.
Percebeu que chegara o momento de pensar em si. Como a enfermeira-
chefe Dowd e Thomas tinham dito, ela não era responsável pelos atos de
ninguém a não ser pelos seus. Dali a muito pouco tempo faria dezasseis
anos e teria idade para decidir o seu futuro. Talvez devesse cortar
completamente com o passado, esquecer a sua vergonhosa família e mudar-
se para outro lado, abandonando toda a gente, até as pessoas que tinham
tentado ajudá-la.
Na manhã seguinte, quando se levantou, descobriu que os seus períodos
menstruais tinham começado. No entanto, quando olhou para a camisa de
dormir suja de sangue não sentiu consternação, apenas uma espécie de
confirmação de que os seus pensamentos durante a noite tinham sido
racionais e adultos. Pela primeira vez sentiu que controlava a sua vida. E
não pretendia deixar que alguém lhe roubasse esse controlo.
CAPÍTULO 7

F reda Barnes não era uma mulher muito inteligente, mas o que lhe
faltava em poder cerebral sobrava-lhe em astúcia e determinação. O pai
fora médico e tivera um consultório rural no Herefordshire. Até aos catorze
anos, quando começara a Primeira Guerra Mundial, a sua infância tinha
sido muito agradável. Embora o pai não fosse rico e a casa da família
estivesse um pouco decrépita, tinham uma criada e uma preceptora que
vinha todos os dias ensiná-la e às três irmãs. Devido à posição do pai, as
quatro raparigas eram convidadas com muita frequência para festas,
piqueniques, bailes e jogos de ténis em casa de muitos dos vizinhos mais
ricos. Freda sempre presumira que com o tempo se transformaria numa
beldade como as duas irmãs mais velhas e que um dos herdeiros daquelas
casas imponentes a pediria em casamento.
Porém, a guerra mudou tudo. O pai sentiu-se obrigado a oferecer os seus
serviços para o bem do país e, um a um, Freda viu todos os jovens das
redondezas alistarem-se quando uma febre patriótica varreu as pequenas
aldeias. A mãe repreendia-a muitas vezes por estar mais preocupada com a
falta de festas ou de parceiros de ténis do que com as listas de baixas que
eram afixadas todas as semanas na aldeia e por fim decidiu que estava na
hora de Freda pensar noutras pessoas para além de si mesma e mandou-a
arregaçar as mangas e começar a trabalhar no consultório para ajudar o
velho Dr. Mayhew, que voltara a trabalhar para substituir o seu pai.
Freda aceitou de má vontade a decisão da mãe e esperou que a guerra
terminasse para tudo voltar ao normal. Mas o pai não voltou de França;
contraiu cólera e morreu em 1917 enquanto ajudava os feridos nas
trincheiras.
Tinha dezoito anos quando a guerra chegou ao fim, mas percebeu com
grande tristeza que a vida nunca mais voltaria a ser como antes e sentiu-se
amargurada e ressentida. Nem sequer se tornara uma beldade. O seu cabelo
era escorrido, liso e baço; tinha um rosto desengraçado, com lábios finos e
os olhos muito juntos. Enquanto as irmãs possuíam corpos esculturais e
pernas bem torneadas, ela era tão robusta como um cavalo de trabalho.
Menos de um quarto dos jovens regressaram e muitos deles eram meras
sombras dos galantes cavalheiros que se tinham alistado em 1914.
A criada e a preceptora foram-se embora pouco depois de o pai partir para
França, mas quando ele morreu a mãe já não conseguia manter uma casa
tão grande e fez planos para se mudar para uma mais pequena. Rachel e
Hester, as suas irmãs mais velhas, foram para Londres e arranjaram
trabalho. Grace, a irmã que era um ano mais nova do que Freda, casou-se
com o filho de um agricultor da região e a mãe deixou claro que Freda
também teria de se sustentar.
O Dr. Mayhew puxou alguns cordelinhos para que ela aprendesse a
profissão de enfermeira no Hospital Whittington, em Londres. Freda não
queria ser enfermeira, mas era melhor do que trabalhar numa loja ou ser
preceptora, e era a única coisa em que tinha alguma experiência. Também
acreditava piamente que seria apenas uma questão de tempo até encontrar
um médico que se casasse consigo, para que as irmãs mais bonitas a
invejassem.
Passou à justa nos exames, mas tinha a postura de autoridade, educação e
porte que era admirada pela sua enfermeira supervisora. Os anos passaram e
foi subindo a pouco e pouco até se tornar enfermeira principal e,
posteriormente, enfermeira-chefe. Freda abominava as enfermarias
pediátricas e a profissão de parteira, embora tivesse passado um ano a fazer
a especialização em cada uma destas áreas, ainda com esperança de que
aquele fugidio médico a arrebatasse. Também não gostava muito de
cirurgia, e uma breve passagem pelo bloco operatório fê-la querer deixar a
enfermagem para sempre. Sentia que a vida a enganara e não percebia
porque é que a sua era apenas trabalho, sem esperança de algo melhor.
Queria dinheiro e posição e acreditava que os merecia.
Em 1931, preparava-se para ser enfermeira domiciliária quando assistiu a
uma palestra sobre saúde mental e viu as oportunidades daquela área.
Todos os hospitais psiquiátricos estavam extremamente cheios e eram mal
geridos. A guerra fizera aumentar muito o número de doentes e havia
poucas enfermeiras com o seu currículo que estivessem ansiosas para
trabalhar num campo tão sombrio e tão pouco glamoroso. Freda não tinha
qualquer desejo de melhorar as vidas dos mentalmente incapazes – na sua
opinião, eles mereciam estar presos longe da vista. No entanto, pensou que
teria verdadeiras possibilidades de subir na carreira e até de chegar ao cargo
de enfermeira supervisora em poucos anos.
Freda tinha trinta e um anos, e já percebera que teria poucas
possibilidades de fazer um bom casamento; era demasiado desengraçada e
não era rica. Além disso, o país estava no meio de uma recessão. Se
continuasse a ser enfermeira generalista, talvez demorasse mais vinte anos
para atingir um cargo superior ao de enfermeira-chefe. Assim, candidatou-
se a vagas em diversos grandes hospitais psiquiátricos e decidiu-se por
Stoke Park em Bristol, porque lhe pareceu mais civilizado do que qualquer
um dos outros.
A esperança transformou-se em amargura ao perceber que Stoke Park era
um hospital psiquiátrico pioneiro, decidido a afastar-se da bárbara imagem
que os hospícios tinham adquirido. Procuravam pessoas dedicadas e
compassivas para os cargos de chefia e as mulheres duras e dominadoras
como Barnes eram deliberadamente ignoradas para promoção. Ela detestava
tudo em Stoke Park. Os doentes perturbados, as mulheres inferiores, sem
qualquer treino, com quem era obrigada a trabalhar, mas acima de tudo os
jovens médicos acabados de sair da universidade que a olhavam com certo
desprezo quando tentava impor alguma disciplina naquele lugar.
Freda estava há sete longos e infelizes anos em Stoke Park quando um
encontro fortuito com Lionel Brace-Coombes no hospital mudou a sua vida.
Ele era o proprietário de um pequeno hospital psiquiátrico particular em
Londres com o tipo de doentes distintos com que Freda conseguia ver-se a
trabalhar. Mr. Brace-Coombes apreciou a sua experiência e origens e ela
conseguiu convencê-lo a oferecer-lhe o cargo de enfermeira-chefe, um
espaçoso apartamento só para si e um salário excelente.
Lionel Brace-Coombes era o tipo de homem de que teria gostado para
marido. Era dez anos mais velho do que ela e possuía riqueza herdada, mas,
infelizmente, já tinha uma mulher, Ayleen, a quem fora diagnosticada
esquizofrenia cerca de cinco anos depois de se casarem. Ele tentara ao
máximo mantê-la em casa, em Foxhill, mas as muitas enfermeiras que
contratava não ficavam depois de descobrirem como Ayleen era difícil. Ele
não suportava a ideia de internar a sua linda esposa num dos terríveis
hospícios que visitara e à medida que o tempo foi passando a única
alternativa pareceu-lhe ser abrir uma clínica psiquiátrica privada.
A velha casa em Woodside Park estava vazia desde o início dos anos
trinta. Ficava perto o suficiente da sua casa para poder visitá-la com
regularidade e o dono ficou muito satisfeito por se livrar da propriedade.
Lionel converteu-a com todo o esmero, arranjando os jardins e instalando o
melhor equipamento disponível. Originalmente, pretendia ter apenas cinco
ou seis doentes do sexo feminino e imaginara que todas seriam mulheres
perturbadas de boas famílias como a sua mulher. Porém, o custo de um
médico e enfermeiras para cuidar de tão poucas doentes revelou-se
proibitivo e quando Freda se juntou à equipa os números tinham aumentado
para doze.
Lamentavelmente, Ayleen falecera na sequência de uma pneumonia em
1940, dois anos após a chegada de Freda. Com a guerra e negócios mais
importantes, a partir daquela altura Lionel distanciara-se do hospício.
Quando a enfermeira supervisora se demitiu, ele ofereceu o cargo a Freda,
com todo o controlo que ela tanto lutara para ter.

– Hoje está muito bonita, Freda – disse Lionel Brace-Coombes enquanto


servia duas chávenas de chá com um bule de prata. O seu elogio não foi
muito sincero. Achava que Freda ficava impressionante com o uniforme
azul-marinho e a touca engomada de enfermeira supervisora – adequavam-
se à sua personalidade rígida e sem sentido de humor e conferiam-lhe
dignidade. Porém, com um fato azul-claro e uma blusa guarnecida de renda,
parecia o que era: uma solteirona gorda e desengraçada de meia-idade que
tentava disfarçar a dureza intrínseca com uma capa de falsa feminilidade.
No entanto, achava que, como ela fizera um esforço tão grande para lhe
agradar – lavara e arranjara o cabelo no cabeleireiro e até usava um pouco
de bâton e rouge –, o mínimo que podia fazer era mostrar algum agrado.
– Oh, obrigada, Lionel – agradeceu ela com um sorriso afetado. Os novos
sapatos azul-marinhos de saltos altos magoavam-lhe os calos e o espartilho
estava tão apertado que não conseguia recostar-se no sofá, mas o
desconforto valia a pena se ele pensava que estava bonita.
Lionel Brace-Coombes, o seu patrão e proprietário de Carrington Hall,
era a única pessoa a cuja opinião dava valor e uma visita a Foxhill House, a
sua casa em Borehamwood, no Hertfordshire, era um raro prazer. Pensava
que, apesar de ter sessenta e dois anos, ele ainda era um homem bonito com
o seu espesso cabelo branco e olhos azul-claros. Engordara um pouco nos
últimos dez anos, mas isso só o deixara com uma aparência ainda mais
distinta. No fundo, Freda Barnes admirava tudo no patrão: o aspeto, os
modos impecáveis e a inteligência. Também invejava a sua linda casa e os
seus antepassados aventureiros que fizeram fortuna com o comércio
marítimo e lhe tinham deixado tudo.
O jardim do outro lado das grandes janelas da sala de visitas era glorioso,
com um relvado tão liso e verde como um campo de bowling e onde as
muitas árvores ancestrais se enchiam de tonalidades de dourado e castanho
no esplendor outonal.
O trisavô de Lionel construíra Foxhill House duzentos anos antes, quando
Borehamwood não passava de um minúsculo lugarejo rodeado de pinhais.
Naquela época não era uma casa grandiosa pelos padrões dos ricos, apenas
oito divisões ao todo, mas ele era um homem com olho para a simetria e
para a beleza e o gracioso estilo jorgiano era intemporal. Também
encomendara a artesãos a maior parte dos lindos móveis que ainda
embelezavam todas as divisões. Subsequentes intrépidos Brace-Coombes
tinham trazido muitos artefactos intrigantes de todos os cantos do mundo,
como os tapetes com franjas espessas da Pérsia e da Índia e uma fabulosa
coleção de figuras de jade do Extremo Oriente.
Todas as divisões do rés do chão tinham sido redecoradas desde a última
visita de Freda. As paredes estavam agora forradas com seda ondeada de
um dourado pálido e havia novas guarnições em tons de bege e dourado.
– Gosta da nova decoração? – perguntou Lionel, reparando na forma
como os olhos muito juntos da enfermeira observavam a sala, sem deixar
escapar nada. Passou-lhe uma delicada chávena de chá com o respetivo
pires.
– Muito. É muito elegante e de bom gosto – respondeu Freda com
efusividade. Foxhill House fora requisitada pelo Ministério do Interior
durante a guerra e, embora Lionel tivesse levado grande parte do mobiliário
para sítios seguros, as peças tinham ficado bastante estragadas. Pensou que
era bom sinal que ele estivesse, por fim, a incutir a sua personalidade na
casa. Ele era um homem discreto e distinto, com uma verdadeira paixão
pela arte, pela música e pela Natureza, e ela sempre considerara que a
decoração anterior da sala de estar, com as suas riscas escuras de estilo
Regência, era demasiado opressiva para um homem com a sua
sensibilidade.
– Achei que já estava mais do que na hora de tratar disso – disse ele com
um encolher de ombros. – Para ser franco, Freda, nos últimos anos deixei
correr as coisas.
Freda engoliu em seco, nervosa. Era evidente que ele podia estar a referir-
se apenas à sua casa, mas sabia que perdera o interesse por Carrington Hall
há alguns anos. Teve medo de que quisesse fechar o hospício.
Freda pedira esta reunião com o pretexto de falar sobre alguns dos
pacientes mais antigos cujas famílias estavam atrasadas nos pagamentos.
Porém, o verdadeiro motivo para falar com o patrão não era para envolvê-lo
em coisas que podia resolver muito bem sozinha, mas para descobrir um
pouco mais sobre a nova funcionária, Rosemary Smith.
Rosemary Smith já estava em Carrington Hall há um mês e, embora não
conseguisse encontrar falhas no trabalho ou no comportamento da rapariga,
achava-a intrigante ao ponto de ela se intrometer nos seus pensamentos de
uma forma quase constante.
Freda estava em Carrington Hall há catorze anos, doze dos quais como
enfermeira supervisora, e durante todo aquele tempo nunca vira uma
rapariga que não se debulhasse em lágrimas de vez em quando ou que não
desobedecesse a algumas regras. Rosemary Smith nunca fizera nenhuma
daquelas coisas e não era normal que uma rapariga que ainda não tinha
dezasseis anos fosse tão controlada e conscienciosa. Até o lamentável
incidente com os pensos higiénicos sujos que fizera Freda fazer uma
enorme figura de parva passara sem mais repercussões. Que rapariga
daquela idade não se teria queixado à família e exigido um pedido de
desculpas?
Além disso, Freda não gostava que a rapariga tivesse conquistado um
certo estatuto entre o resto do pessoal, nem que estivesse sempre a fazer
perguntas sobre aspetos da casa que não lhe diziam respeito. Por vezes,
quase parecia que estava a compilar um dossiê sobre o funcionamento de
Carrington Hall. Olhando para todas aquelas coisas com objetividade,
estava profundamente desconfiada dela. A única explicação parecia ser que
a rapariga tinha sido colocada ali para espiar.
– Posso assegurar-lhe que nada está desleixado em Carrington Hall –
disse Freda ao patrão num tom tranquilizador. – Está a ir de vento em popa
e o mérito é todo seu. Se temos uma fraqueza é sermos um pouco caridosos
de mais. Eu sei que o Lionel não gosta de ser implacável – continuou, no
tom suave e persuasivo que só usava com ele e com as famílias dos novos
pacientes –, mas aquelas pessoas confiaram-nos os seus familiares e não
podemos fazer devidamente o nosso trabalho a menos que paguem as
contas. A Patty é um bom exemplo. Desde que o irmão faleceu mais
ninguém a visitou e estão quase um ano atrasados com os pagamentos. Têm
de ser chamados à responsabilidade, Lionel. Ou pagam, ou a Patty tem de ir
para uma instituição estatal e deixar uma cama livre para alguém que
valorize o tipo de cuidados que prestamos em Carrington Hall.
– Mas a Patty está connosco desde o início e era amiga da Ayleen – disse
Lionel rapidamente.
Freda olhou para a expressão horrorizada do patrão e sorriu no seu
íntimo. Desprezava sentimentalismo e fraqueza na maior parte das pessoas,
mas achava que eram muito atraentes em Lionel. Sabia que ele podia dar-se
ao luxo de manter uma dúzia de Pattys sem que o dinheiro lhe fizesse falta,
mas não era isso que importava.
– O Lionel é um homem muito bondoso – disse. – Mas a Patty não sabe
quem é, nem quem está a cuidar dela. Se começarmos a ficar com um
paciente de graça, daqui a pouco toda a gente deixará de pagar, e o que é
que nos vai acontecer?
Lionel encolheu os ombros. Sentia vergonha em admitir que pensara em
vender a casa. Tinha demasiadas recordações tristes de Ayleen e na verdade
achava que os deficientes mentais eram terrivelmente perturbadores. Estava
muito contente por ter uma pessoa como Freda Barnes para cuidar de tudo
por si. Significava que não tinha de continuar a ir lá.
– O que é que sugere que façamos?
– Nada muito desagradável, apenas uma carta firme a expressar a nossa
posição. Tenho a certeza de que vai resultar. A família dela não tem falta de
dinheiro, pois não?
Lionel concordou. Falaram sobre outros pacientes e depois, com toda a
cautela, Freda levou a conversa para os funcionários.
– A nova rapariga, a Rosemary Smith, está a adaptar-se bem – declarou
com um sorriso radioso. – Foi um grande achado seu, Lionel!
– Ai sim? – Ele ergueu uma sobrancelha, surpreendido. – Eu fiquei um
pouco preocupado com a sua idade. Quinze anos é muito pouco.
– É filha de algum dos seus amigos? – perguntou Freda, bebendo uma
segunda chávena de chá com elegância.
– Não. – Ele abanou a cabeça. – Foi recomendada pela Violet Pemberton,
uma enfermeira que cuidou da Ayleen durante algum tempo aqui em casa,
muito antes de eu abrir Carrington Hall. É uma boa mulher e eu teria
gostado muito de a ter a trabalhar comigo quando abri o hospício.
– Ela não quis trabalhar para si naquela altura?
– Lamentavelmente, naquela época estava muito embrenhada no seu
trabalho no Hospital de St. Mary, em Paddington, e o seu forte não era a
enfermagem psiquiátrica. No entanto, foi uma grande ajuda para mim,
aconselhando-me sobre o pessoal, o equipamento e outras coisas do género.
Mantivemo-nos em contacto e ela foi muito simpática quando a Ayleen
faleceu.
Freda indignou-se. Tudo levava a crer que Lionel se embeiçara um pouco
por aquela mulher.
– Ela continua em St. Mary?
– Não, alistou-se no QA quando a guerra começou e agora é assistente
social no Somerset. Quando me falou sobre essa jovem, eu tive o maior
prazer em dar-lhe uma oportunidade. Confio totalmente nas opiniões da
Violet.
– Então, a Smith é um dos casos dela?
Pela primeira vez na sua longa e agradável associação, Freda viu Lionel
tornar-se um pouco furtivo.
– Oh, não. É claro que não.
Freda mudou de assunto. Conhecia-o suficientemente bem para saber
quando ele não tinha mais nada a dizer sobre um assunto.
Preparava-se para sair, para ir apanhar o autocarro para Carrington Hall,
quando teve uma ideia.
– Não se importa de me dar a morada da sua amiga? – pediu. – Gostaria
muito de lhe escrever um bilhete para dizer que a Smith está a trabalhar
muito bem. Acho sempre que as pessoas gostam de saber que as suas
recomendações foram boas, o Lionel não?
Lionel ficou animado com o facto de Freda gostar de Rosemary Smith.
Pensou que devia estar a ficar mais branda com a idade, pois nem sempre
fora generosa com os elogios no passado. E Violet Pemberton ficaria
encantada ao saber que a sua protegida não a deixara ficar mal.
– Seria um gesto muito simpático – disse com um grande sorriso e virou-
se para procurar o endereço de Violet na secretária. – Quando lhe escrever,
mande-lhe os meus cumprimentos.
Enquanto percorria a viela para a paragem do autocarro, Freda parou e
olhou mais uma vez para a morada que Lionel lhe dera: 1, Chapel Cottages,
Chilton Trinity, Near Bridgwater, Somerset. Desconfiou que algo estranho
se passava, pois era a mesma que Smith dera como sendo a morada da tia.
– A não ser que a tia da rapariga e essa Miss Pemberton vivam na mesma
casa – murmurou, a falar sozinha –, há aqui alguma coisa muito estranha.

Rosie ouviu a notícia de que o pai tinha sido considerado culpado no


rádio quando estava na sala de refeições do pessoal.
Era quinta-feira, 23 de outubro, e ela e Maureen tinham acabado de entrar
para jantar quando a voz melodiosa do locutor da BBC começou a ler as
principais notícias do dia.
– Cole Reginald Parker foi hoje considerado culpado do homicídio de
Ruby Blackwell e Heather Farley pelo Tribunal Criminal de Bristol.
Enquanto o condenava à pena de morte, o juiz Draycott declarou: «O
senhor assassinou intencionalmente e com crueldade estas duas mulheres
indefesas e enterrou-as sem piedade no seu quintal para esconder a maldade
que fez.»
Rosie arquejou sem querer. A sala rodou à sua volta e ela deixou de ver,
agarrando-se a Maureen para não cair.
– O que é que se passa? – ouviu a voz de Maureen ao longe.
– Seth Parker, o filho de Cole Parker, foi considerado inocente pelo júri e
libertado – continuou o locutor, e um zumbido nos ouvidos impediu-a de
ouvir mais alguma coisa. No entanto, apercebeu-se de que Pat Clack a
olhava de boca aberta. Sabia que era a mão de Gladys Thorpe que estava no
seu ombro a apoiá-la. E sentiu o olhar intrigado de Maureen.
– Fiquei muito tonta – conseguiu dizer, e agarrou-se a uma cadeira para se
sentar.
Gladys empurrou-lhe a cabeça até ficar entre os joelhos.
– Vai buscar uma chávena de chá – mandou.
Rosie só conseguia ver pernas enquanto tentava recompor-se, mas o facto
de Pat Clack não ir para a cozinha sugeria que as três mulheres estavam a
entreolhar-se.
– Foi aquela notícia – disse Pat. – Eu também fiquei arrepiada.
Rosie sentou-se direita.
– Eu estou bem. – Tentou sorrir, mas o seu rosto estava demasiado rígido
e paralisado para se mexer. As notícias passaram para o problema dos mau-
mau no Quénia. Pensou que o locutor poderia voltar ao julgamento do pai e
precisava de desviar a atenção dele. – Já me tinha sentido um bocado
esquisita ao princípio da tarde. Talvez seja só fome.
Rosie obrigou-se a comer uma sanduíche de fiambre, embora cada
bocado ficasse preso na garganta. Maureen olhava-a muito desconfiada e a
entrada de Mary e Linda, a quem a história do seu quase desmaio e da pena
de morte para Cole Parker foi contada, não ajudou em nada. Estava muito
perto de se descontrolar. Todas falavam em tom macabro sobre o tempo que
se demorava a morrer na forca e sobre a sensação de esperar pelo momento
em que o carrasco punha o capuz na cabeça e a corda à volta do pescoço do
condenado à forca.
– Lembram-se de quando o Timothy Evans foi enforcado? – perguntou
Linda. – A minha mãe estava sempre a dizer que ele era inocente e que era
demasiado imbecil para matar alguém.
– Uma auxiliar que trabalhou aqui, uma mulher chamada Lily Stoops,
enforcou-se algumas semanas depois de eu começar a trabalhar aqui – disse
Gladys. – Enforcou-se na sala de tratamentos. Sabem aquela roldana que
está no teto para levantar os doentes para a banheira... bem, ela subiu para
um banco e passou a corda por lá. Foi a enfermeira supervisora que a
encontrou.
– Quando foi isso? – Linda olhou para Gladys com toda a atenção. –
Nunca tinha ouvido essa.
– Há cinco anos – respondeu Gladys. – Eu não estava aqui há tempo
suficiente para saber muitas coisas sobre a Lily, que todas diziam que era
um bocado estranha. As outras raparigas achavam que ela tinha sido
rejeitada numa relação amorosa e na autópsia descobriram que estava
grávida. Não digam à enfermeira supervisora que vos contei. É um dos
segredos sinistros de Carrington Hall que ela gosta de manter assim. Como
também não gosta que se fale sobre aquela doente que saltou da janela e
partiu as duas pernas.
Rosie obrigou-se a beber o chá. A conversa das raparigas envolvia-a, mas
ignorou-a, concentrando-se em parecer bem e reagir normalmente até ao
momento em que pudesse levantar-se e sair dali sem atrair mais atenção
para a sua pessoa.
Embora não tivesse lido mais nenhum jornal desde a noite em que
sonhara com a perseguição de Seth, ouvira o suficiente das colegas para
saber o que se passava.
Enquanto Seth construíra uma forte defesa com a aparente falta de motivo
e álibis fortes e conseguira conquistar alguma simpatia por causa do
abandono da mãe e por ter um pai rufia, a defesa de Cole foi muito fraca.
Os seus álibis na altura dos dois homicídios não foram corroborados por
ninguém a não ser pelos filhos. No caso da morte de Heather, ele começou
por dizer que tinha passado a semana inteira a trabalhar em Bristol, mas
depois admitiu que viera a casa duas noites, deixando Seth sozinho nas
escavações.
Os patologistas concluíram que as duas mulheres tinham sido mortas com
uma arma semelhante, talvez o lado rombo de um machado. Ruby parecia
ter sido agredida diversas vezes, antes ou depois do golpe fatal na nuca. Por
outro lado, Heather parecia ter sido atingida apenas duas vezes, também na
nuca. Apesar de não haver testemunhas em nenhum dos homicídios, nem
provas de que Parker escavara as sepulturas, os testemunhos de Ethel
Parker e de outros vizinhos sobre a sua violência com as mulheres pesaram
fortemente contra si. No entanto, o que selou o seu destino foi o facto de
não ter comunicado o desaparecimento de nenhuma das mulheres à polícia.
Claramente, os jurados não acreditaram que um homem inocente aceitasse
que as suas mulheres tinham fugido, deixando ficar os filhos, sem fazer
qualquer tentativa para tentar encontrá-las.

– O que é que se passa? – perguntou Maureen quando se foi deitar


naquela noite. Rosie tinha ido cedo para o quarto, explicando que estava
muito cansada. Maureen ficara lá em baixo na sala de estar durante mais
algum tempo, mas voltou inesperadamente cerca das nove horas e
encontrou Rosie não apenas acordada, mas com os olhos inchados de
chorar. – Podes contar-me. Eu não digo a ninguém.
Rosie teria dado qualquer coisa para poder contar a alguém, mas sabia
que não podia confiar em ninguém, e muito menos em Maureen.
– Estou com saudades de casa – disse, a tentar sorrir.
De certa forma, era verdade. Nas últimas duas horas não pensara noutra
coisa a não ser na sua casa e nas preciosas recordações do pai.
Às suas cavalitas, muito acima das multidões de pessoas na feira da
véspera de Natal em Midsomer Norton, onde havia dúzias de bancas
iluminadas por lanternas à prova de vento. Mãos pegajosas por causa das
maçãs caramelizadas, a segurar com muita força um saco cheio de
tangerinas, nozes e romãs. Lembrava-se de porem na camioneta o ganso
que ele comprava sempre no leilão, o novo barril de sidra e uma caixa de
legumes e depois ficar enrolada num cobertor enquanto Cole ia tomar uma
última bebida antes de voltar para casa com ela e com as iguarias para o
Natal.
Os dias em Weston-super-Mare no verão, a andar de barco a remos no
mar, a construir castelos na areia, a andar de burro e a comer algodão-doce.
E as noites à lareira no inverno, quando o vento uivava em volta da casa e
Cole lhe falava sobre a sua infância, quando o rio Parrett transbordava das
margens todos os invernos e transformava os brejos num grande lago.
– Estás a pensar ir-te embora? – perguntou Maureen, e o seu olhar ansioso
fez Rosie sentir-se ainda mais culpada por não confiar nela. – Acho que não
vou aguentar se fores.
– Não, não estou a pensar ir-me embora. – Rosie suspirou. Gostava de
poder dizer com verdade que se afeiçoara tanto a Maureen como ela parecia
ter-se afeiçoado a si, mas não conseguia. Tolerava-a e defendia-a perante as
outras, mas não conseguia gostar dela. Como Linda dissera, Maureen era
estranha; agora podia estar mais limpa, e ser-lhe demasiado leal para roubar
alguma coisa ou arranjar-lhe sarilhos, mas era dissimulada e traiçoeira.
– Tu conheces aquela família Parker, não conheces? – perguntou Maureen
num tom acusador.
Rosie sentiu outro arrepio nas costas.
– Por que raio é que dizes isso? – perguntou rapidamente, esperando não
estar a ficar corada.
– Porque nunca falaste sobre eles, como todas falamos. E eu sei que foi
aquela notícia que quase te fez desmaiar.
– Tens demasiada imaginação para o teu próprio bem – declarou Rosie
com uma fungadela. Aquela expressão era uma das preferidas da sua
professora e agora pareceu-lhe apropriada. – Se queres mesmo saber, acho
que é esquisito as pessoas serem obcecadas por crimes. Agora, por amor de
Deus para de insistir comigo.
Rosie ficou contente por ter mudado a sua folga para sexta-feira, pois isso
significava que no dia seguinte poderia sair de Carrington Hall e escapar a
outras discussões. Porém, embora quisesse apenas passear no campo,
quando acordou viu que chovia a cântaros e a biblioteca pareceu-lhe o
único lugar para onde seria sensato ir.
Não havia mais de quatro ou cinco pessoas lá e apenas um velhote a ler os
jornais. Rosie pendurou a gabardina encharcada num cabide, sentou-se o
mais longe possível do homem e leu jornal atrás de jornal até achar que
tinha a imagem completa de tudo o que acontecera no tribunal durante as
últimas semanas.
Perguntou a si mesma como é que o pai podia manter a declaração de
inocência quando admitira de livre vontade que era exaltado e por vezes
batia em mulheres. Não negara nenhuma das coisas que Ethel dissera,
exceto marcá-la com um ferro quente, que de qualquer maneira fora
desmentido com provas médicas. As suas palavras rudes foram que «ela
tinha arranjado lenha para se queimar». O advogado de defesa conseguiu
lançar a dúvida sobre o seu testemunho porque ela fugira com outro homem
e não se interessara pelos filhos. Porém, em relação a Ruby e Heather não
conseguiu apresentar nada substancial que levasse o júri a acreditar na
inocência do seu cliente, para além de que ele não tinha motivo para matá-
las.
O advogado explorou muito a forte masculinidade de Cole e fez-lhe
perguntas para que ele expressasse a profunda vergonha e dor que sentira
por mais duas mulheres que amava o terem abandonado, para tentar
demonstrar que era o único motivo que o levara a não comunicar o seu
desaparecimento às autoridades. Porém, Cole manteve-se frio e em silêncio.
A declaração de que tinha medo de que lhe tirassem a filha não pareceu
completamente verdadeira, acima de tudo porque admitira ao tribunal que
não tinha tempo para Alan.
Depois de a acusação fazer as deliberações finais não foi preciso grande
debate ou reflexão para ser considerado culpado. Como o advogado referiu:
«Talvez alguém com algum ressentimento contra Cole Parker pudesse ter
ido lá a casa e assassinado as suas mulheres. Mas depois tê-las-iam
enterrado muito bem na sua terra, tudo isso antes de ele voltar do trabalho?»
Rosie quase podia aceitar que o pai talvez tivesse assassinado as duas
mulheres num ataque de fúria por elas terem dito ou feito alguma coisa de
que não gostara. Todavia, quando leu as mentiras que os irmãos disseram
acerca de Heather quase gritou de raiva ali mesmo na biblioteca. Eles
tinham declarado que Heather era uma rapariga dissoluta e desmazelada
que se aproveitava da vulnerabilidade do pai e falaram na rapidez com que
se enfiara na cama dele e lhe dera outro filho para ele criar. Segundo eles,
passava o dia inteiro a beber sidra e tinham ouvido rumores de que homens
eram vistos lá em casa durante o dia enquanto eles estavam fora a trabalhar.
Seth até disse que estava convencido de que Alan não era filho de Cole.
Rosie sentiu pena de Thomas. Podia imaginar o mal que lhe fizera ouvir
aquelas imoralidades. Nunca sentira tanta vergonha e repugnância pelos
irmãos.
Quando Norman falou sobre a noite em que ele e Cole tinham voltado
para casa depois de estarem em Birmingham e Ruby não estava, disse a
verdade porque era exatamente como Rosie se lembrava. Naquele dia ela
ficara com uma vizinha chamada Mrs. Mirrel enquanto Ruby ia visitar uma
amiga que estava doente. Norman declarou que Cole só dissera que Ruby
morrera num ataque aéreo porque pensara que Rosie lidaria melhor com a
morte do que com o abandono.
Norman não pôde falar sobre o desaparecimento de Heather porque
estava longe a cumprir o serviço militar, mas tinham-lhe dito que a irmã, ao
chegar a casa depois da escola, constatara que Heather e as suas coisas
tinham desaparecido e encontrara Alan ainda preso no carrinho no pomar.
A acusação chamou a atenção de Norman para os depoimentos de vários
vizinhos e da professora da aldeia, segundo os quais as duas mulheres eram
mães conscienciosas que nunca abandonariam os filhos. Pediu a Norman
que refletisse sobre isso e ele declarou que esses mesmos vizinhos também
tinham afirmado que a mãe deles era conscienciosa, mas todos sabiam que
fugira e deixara dois meninos pequenos abandonados à sua sorte.
Quando viu uma fotografia de Seth a sorrir triunfalmente à porta do
tribunal de Bristol depois de ser absolvido, Rosie sentiu-se indisposta. Ele
tinha a mesma expressão que ostentava sempre que se safava de alguma
coisa. Nem sequer se importava que o pai fosse a caminho de uma cela de
condenados à morte. Naquele momento, percebeu sem qualquer dúvida que
ele era culpado. Talvez não tivesse assassinado as mulheres, mas criara o
problema que fizera Cole perder a cabeça. E teve a certeza de que também
ajudara a abrir as sepulturas. Rosie sabia que o pai não teria conseguido
fazer aquilo sozinho.
Passou a tarde a andar sem destino à chuva, a seguir por caminhos
aleatórios nos campos, quase cega pelas lágrimas. Dali a algumas semanas
o pai seria enforcado na prisão de Bristol e o corpo salpicado com cal e
enterrado sem lápide ou orações.
Mas era a sua própria culpa que a trespassava como uma faca no coração.
Devia ter ido à polícia contar tudo o que sabia sobre Seth e também devia
ter dito ao pai que vira Seth e Norman fazerem aquilo a Heather no
momento em que acontecera. Devia ter sido suficientemente corajosa para
insistir em ser testemunha no julgamento; se tivesse conseguido transmitir
ao juiz e aos jurados a sua opinião sobre a família, talvez o resultado fosse
diferente.
Porém, agora era tarde de mais. Seth não poderia ser julgado de novo pelo
mesmo crime. Não conseguiria salvar o pai e só magoaria Thomas ainda
mais.
Perguntou a si mesma como é que ele se sentiria hoje? Outro homem
menos sensível talvez celebrasse, mas sabia que ele estaria demasiado
magoado com as coisas que os seus irmãos tinham dito sobre Heather para
sentir satisfação ao ouvir o veredicto. Acreditava que nunca mais saberia
nada dele.
Também não duvidava que Seth e Norman depressa se meteriam em
sarilhos, agora que já não podiam esconder-se atrás do pai. Nunca mais
queria vê-los enquanto vivesse.

Enquanto Rosie caminhava por campos encharcados, a chorar sozinha, a


enfermeira supervisora estava na sua sala de visitas, com os pés calçados
com meias em cima de um banco à frente de um aquecedor elétrico, a sorrir
com uma expressão triunfante.
Tinha o jornal no colo, mas lera tudo o que queria. Já sabia quem era
Rosemary Smith.
É claro que não tinha nenhuma prova concreta, apenas suposições e
alguns comentários muito úteis de Maureen Jackson. Porém, enfermeiros e
médicos faziam muitas vezes diagnósticos corretos baseados em alguns
sintomas, umas quantas perguntas pertinentes e suposições.
A rapariga tinha a idade certa, era da zona indicada, estava protegida por
uma assistente social e era evidente que os hospitais psiquiátricos eram os
lugares ideais para esconder inadaptados. Nem sequer tinham tido a
inteligência de lhe mudar drasticamente o nome. Rosemary Smith era Rosie
Parker, a única filha do homem a quem chamavam o «Monstro do
Pântano».
Mas o que faria com aquele conhecimento?
A sua primeira ideia foi convocar uma reunião com todos os funcionários
e denunciá-la em público enquanto as notícias estavam quentes. Porém,
após alguma reflexão calculou que Lionel ficaria muito zangado com ela se
fizesse isso. Se a notícia se espalhasse, talvez o futuro de Carrington Hall
ficasse em risco. Além disso, expulsar a rapariga seria uma vitória falsa.
Ainda por cima, ela era uma boa trabalhadora e seria difícil substituí-la.
Depois de pensar muito bem em tudo, Freda resolveu fazer o que sempre
fazia quando descobria uma informação interessante: guardar segredo, pelo
menos por enquanto. Poderia ser um trunfo na manga mais tarde. Dobrou as
páginas do jornal que continham a história e fotografias dos homens da
família Parker e guardou-as na sua secretária.

Na manhã de sábado da semana seguinte, a enfermeira supervisora entrou


na sala de dia quando Rosie e Simmonds estavam a empilhar a loiça do
pequeno-almoço no carrinho. Maureen encostava as cadeiras à parede com
a ajuda de Donald. O resto dos doentes estavam espalhados pela sala,
alguns parados a olhar para o vazio, outros a baloiçar-se em cadeiras. Tabby
tricotava freneticamente. Lá fora chovia de novo e Rosie e Maureen já
tinham comentado que seria um longo dia, pois não poderiam levar nenhum
doente para o jardim.
– Smith, vem cá – chamou a enfermeira supervisora num tom brusco.
Rosie aproximou-se da mulher mais velha, à espera de alguma
reclamação. Passara a semana inteira transtornada, embora tivesse tentado
esconder as suas emoções. Chorava à mais pequena coisa – um doente
difícil, uma palavra brusca de uma das colegas – e não parava de pensar no
pai, imaginando-o numa cela à espera da morte.
O seu décimo sexto aniversário já passara e não tivera coragem de dizer a
ninguém, e muito menos planear algum tipo de celebração. Miss Pemberton
mandara-lhe uma camisola fofa, branca, de angorá, bem como um
simpático cartão assinado pela tia Molly, mas como não recebera mais nada
a data passara despercebida a toda a gente.
Até o tempo a deprimia; estava quase sempre a chover, as árvores
perdiam as folhas e quando olhava pela janela a paisagem era tão desolada e
triste como o seu futuro. Pensou que a enfermeira supervisora devia ter
sabido que ela andava abatida e vinha ralhar com ela.
Para sua surpresa, ela sorriu-lhe. O sorriso mudou-lhe completamente o
rosto; tudo se tornou maior, os olhos e a boca má, e por um breve instante
pareceu bastante bonita.
– Mr. e Mrs. Cook, os pais do Donald, vêm visitá-lo esta tarde – disse
num tom baixo, quase conspirador. – Quero que te certifiques de que ele
toma um banho e veste-lhe as suas melhores roupas. Também quero que o
acompanhes durante a visita. Mrs. Trow avisa-te quando eles chegarem.
– Sim, Miss Barnes – respondeu Rosie. Quando um doente tinha visitas,
uma auxiliar ou uma enfermeira tinha de estar presente durante toda a
visita. Rosie ouvira falar em pacientes que ficavam agitados e por vezes até
violentos quando recebiam a visita de familiares, mas no caso de Donald
era muito improvável que isso acontecesse. Perguntou a si mesma porque é
que a enfermeira supervisora estaria a escolhê-la para um trabalho que
costumava ser realizado pelo pessoal mais antigo.
– Não te esqueças de usar um avental limpo e de pentear muito bem o
cabelo – disse a enfermeira supervisora, olhando-a de alto a baixo. – Quero
dar uma boa impressão aos Cook. Disse-lhes ao telefone que pareces ter
criado um laço forte com o Donald e foram eles que pediram para te
conhecer.
Vindo de outra pessoa, Rosie teria considerado que era um elogio. Mas
Miss Barnes era uma mulher muito estranha e Rosie teve um
pressentimento de que o dia de hoje era um teste qualquer.
– Posso contar ao Donald? – perguntou Rosie. – Ou quer ser a senhora a
dizer-lhe?
– Podes informá-lo, mas por favor não o deixes demasiado excitado –
disse ela, virando-lhe as costas e afastando-se.
Teria sido demasiado esperar que a enfermeira supervisora saísse sem
criticar alguma coisa. Ignorou Alice, que se aproximou para falar com ela,
dirigiu-se para as janelas e passou um dedo pelo parapeito, desviou algumas
cadeiras e fungou.
– As cadeiras têm de ser arredadas quando o chão é lavado – disse,
maldosa. – Jackson! Tens a bainha do uniforme a descoser-se. Vai cosê-la
antes que lhe volte a pôr a vista em cima.
– Bruxa – murmurou Maureen quando ela saiu, logo seguida de
Simmonds com o carrinho do pequeno-almoço. – Já reparaste que ela nunca
fala com os doentes? É quase como se fossem peças de mobiliário. O que é
que te queria?
Linda dizia muitas vezes em tom de brincadeira que, se aprendesse a ler,
Maureen seria uma sucessora natural da enfermeira supervisora. Como a
responsável, fazia questão de saber tudo o que se passava em Carrington
Hall. No entanto, Rosie pensava que Linda era dura de mais; na sua
opinião, Maureen era digna de pena porque na verdade parecia mais um dos
doentes do que uma funcionária. Era por isso que Rosie nunca lhe dizia
para se meter na sua vida quando ela lhe fazia perguntas, como as outras
faziam. Assim, relatou-lhe toda a conversa que tivera com a enfermeira
supervisora.
– Porque é que achas que ela me escolheu? – perguntou.
Maureen encolheu os ombros.
– Não faço ideia! Mas não te queixes porque Mr. e Mrs. Cook são
simpáticos e vais ter uma tarde muito melhor do que eu aqui em cima.
Algumas pessoas são muito sortudas.
Donald ficou muito entusiasmado quando Rosie lhe deu a novidade.
Começou aos saltos pela sala de dia como se fosse um canguru e por fim
deixou-se cair de costas e bateu ruidosamente com os calcanhares no chão.
Enquanto olhava Donald com diversão e carinho, de repente Rosie sentiu-
se um pouco melhor. Achava que ele tinha a personalidade e o
comportamento de um cachorro grande. Muitos dos pacientes, como Aggie
e Archie, ainda a repugnavam, alguns eram exasperantes, mas Donald era
encantador. Se não medisse quase um metro e oitenta, e não tivesse de fazer
a barba todos os dias, toda a gente o consideraria uma criança. Tinha sido
avaliado como tendo uma idade mental de oito anos, mas Rosie descobrira
que ele sabia ler um pouco e no seu íntimo estava convencida de que se
houvesse livros, puzzles e jogos de tabuleiro na sala de dia poderia aprender
muito mais do que já sabia.
– Levanta-te, Donald – disse, resistindo à tentação de lhe fazer cócegas
para que ele se risse mais. – Podes vir ajudar-me a limpar e a fazer as
camas. Se te comportares assim durante a manhã inteira toda a gente se vai
zangar contigo. E eu também.
Na opinião de Rosie, uma das coisas mais tristes em Carrington Hall era
que todos os doentes eram metidos no mesmo saco e recebiam o tratamento
dos que tinham atrasos mais graves. Muito embora estivesse aqui há muito
pouco tempo e não tivesse experiência anterior com pessoas com
deficiências mentais, pensava que devia haver momentos do dia em que os
mais competentes eram separados dos outros e postos a fazer coisas. Uma
vez sugerira isto a Mary, mas ela rira-se e dissera que a enfermeira
supervisora não gostaria porque teriam de contratar mais pessoal.
Rosie não tinha coragem para fazer uma coisa de que a enfermeira
supervisora não gostaria; estava convencida de que isso a deixaria em maus
lençóis. Além disso, mais nenhuma das colegas partilhava a sua opinião;
todas gostavam de ficar sentadas a conversar, a ler ou a tricotar enquanto os
doentes andavam de um lado para o outro para passar o tempo. Até
Maureen, que falava com eles, era tão preguiçosa como as outras. Era por
isso que Rosie acabava por fazer quase toda a limpeza diária.
No entanto, Rosie trabalhara um pouco com Donald, acima de tudo
durante a semana anterior, porque queria deixar de pensar no pai. Trouxera
um livro de jardinagem da biblioteca para ler e mostrou-lhe as fotografias
das flores, ensinando-lhe muitos dos nomes. Noutra ocasião deixou-o fazer
um puzzle de unir os pontos numa revista e ficou surpreendida ao perceber
que ele reconhecia a maior parte dos números. No entanto, o seu progresso
com Donald devia-se essencialmente às conversas enquanto faziam as
camas e limpavam. Por vezes ele não gaguejava durante longos períodos e
adorava jogar um jogo com Rosie em que ela inventava as primeiras frases
de uma história e depois o mandava acabá-la. Lamentavelmente, a sua
imaginação não se estendia para lá de Carrington Hall. Ela podia começar
uma história com duas raparigas a irem num comboio para Londres, a
comer sanduíches e a beber limonada, mas quando ele continuava era
sempre com algo do género: «Depois a enfermeira supervisora mandou-as
calçarem-se e vestir os casacos porque estava na hora de irem para o
jardim.»
Talvez fosse apenas por saber que o pai nunca mais veria o mundo
exterior que se dedicou a querer liberdade para Donald. Ele não fizera nada
errado, mas estava aqui preso e não era justo. Desejou poder sair com ele e
ir a lojas, ou apenas dar um passeio no campo, comprar-lhe um livro de
banda desenhada, levá-lo a andar de autocarro ou deixá-lo ver um campo
com vacas. Perguntou a si mesma se teria a oportunidade de falar sobre isto
com os Cook.
Nessa manhã, Rosie cantou para Donald enquanto lavavam o chão do
dormitório. Começou com «Molly Malone» e, como ele gostou, cantou
«The Teddy Bears’ Picnic».
– Eu s-s-sei essa – disse ele, interrompendo-a. Para sua surpresa,
começou a cantar com ela, sem gaguejar, sem hesitar, e sabia a maior parte
da letra.
– Quem te ensinou esta canção? – perguntou Rosie depois de a cantarem
diversas vezes.
– A minha mãe – respondeu ele, e o seu rosto brilhou de prazer. – Ela c-c-
costumava cantar quando eu ia para a c-c-cama.
Rosie pediu-lhe que lhe contasse mais coisas. Ele lembrava-se de dar de
comer aos patos, de andar de baloiço e de estender massa para bolos.
De vez em quando, alguns dos outros doentes recordavam coisas da
infância. Tabby lembrava-se do mar. Archie falava sobre comboios, mas as
suas reminiscências eram desarticuladas e era impossível saber que idade
tinham na época ou mesmo com quem estavam. As recordações de Donald
eram muito lúcidas. Rosie sentiu que a canção fora a chave que abrira a
porta para elas saírem e perguntou a si mesma quanto mais conseguiria com
ele se tivesse carta-branca.

Às duas e trinta, Mrs. Trow veio dizer que Mr. e Mrs. Cook aguardavam
na sala de visitas do rés do chão. Donald tomara banho, o cabelo fora
lavado e as unhas limpas antes do almoço. Agora, com uma camisola azul-
clara, calças de flanela cinzentas e uma camisa branca de colarinho aberto,
estava muito arranjado, muito diferente dos outros dias. Apertou muito a
mão de Rosie enquanto desciam as escadas e ela estava quase tão nervosa
como ele.
A sala de estar das visitas estava voltada para o jardim da frente. Como
havia muitas árvores perto da janela era uma sala bastante escura, mas,
como chovia lá fora e alguém acendera uma boa lareira, era muito
aconchegante e, em comparação com a austeridade do resto do edifício,
extremamente confortável.
Mr. e Mrs. Cook eram mais velhos do que Rosie esperava; pensou que
deviam ter sessenta e poucos anos. Mr. Cook era um homem alto, com tez
rosada e uma grande barriga. Apesar de ter o cabelo ralo e grisalho, tinha
grandes sobrancelhas escuras que transmitiam uma impressão de
severidade. A mulher era pequena e elegante e vestia um casaco justo azul-
escuro e um pequeno chapéu a condizer. O seu cabelo era mais branco do
que grisalho, um sinal de que fora loura como o filho, e a pele parecia muito
macia, não propriamente com rugas, mas mais como um pêssego quando
começa a amadurecer de mais.
Donald correu para a mãe e envolveu-a num dos seus abraços fortes
enquanto cheirava o seu perfume, deliciado. Rosie manteve-se a alguma
distância, sentindo-se constrangida e a mais. Percebia porque é que tinha de
haver sempre uma funcionária na sala, mas não conseguia imaginar Donald
a fugir ou a fazer uma birra, não quando estava tão encantado por ver os
pais.
Mrs. Cook tinha lágrimas nos olhos quando Donald a soltou por fim.
Rosie olhou para Mr. Cook quando o filho foi abraçá-lo, e também ele tinha
os olhos marejados de lágrimas, embora tentasse escondê-las de Rosie e da
mulher.
– Esta é a Smith – disse Donald de repente, apanhando Rosie
desprevenida quando correu para ela e lhe pegou na mão. – Ela é minha a-a-
amiga.
– Nesse caso, queremos que Miss Smith se sente ao pé de nós. – Mr.
Cook sorriu-lhe e Rosie sentiu-se muito bem.
Durante a primeira parte da visita dos pais, Donald falou sem parar sobre
o que comia às refeições, sobre os outros doentes e até sobre a chuva que
não os deixava ir para o jardim. Os pais pareciam bastante satisfeitos por
escutá-lo, embora Rosie pensasse que era triste ele não lhes perguntar nada
sobre a casa da família. Depois, de repente, Donald levantou-se do sofá
onde estava sentado com a mãe e, dando-lhe a mão, arrastou-a para a janela.
– Aquelas são m-m-margaridas-do-outono – disse, a apontar para um tufo
de flores roxas ao pé da janela. – A Smith d-d-disse que são p-p-perenes, o
que significa que nascem todos os anos.
Esta demonstração de uma lição aprendida surpreendeu Rosie, mas
Donald continuou e indicou outras flores. Não havia muitas, porque o
jardim da frente não estava bem cuidado como o jardim das traseiras, mas
ele acertou em todos os nomes.
Mrs. Cook olhou para Rosie com uma expressão intrigada.
– Eu gosto de jardinagem – disse Rosie à laia de explicação. – Tenho
ensinado um pouco ao Donald quando estamos no jardim das traseiras.
– E mostras-me o livro – disse Donald, muito entusiasmado. – A Smith é
simpática, mãezinha, manda-me mostrar-lhe as palavras que sei ler em
revistas e conta-me histórias e canta canções.
O mais extraordinário foi que Donald não gaguejou uma única vez
durante aquela última frase. O pai sentou-se direito na cadeira,
aparentemente mais consciente disso do que do que o filho dissera.
O tempo foi passando e Donald não parava de falar na «Smith», a tal
ponto que Rosie começou a sentir-se embaraçada. Pat Clack trouxe chá. Mr.
e Mrs. Cook falaram a Donald sobre o seu irmão mais velho, Michael, que
tinha um bebé novo chamado Robin, e mostraram-lhe algumas fotografias.
Rosie sentiu-se mais à vontade porque, por fim, Donald deixou de falar
sobre ela.
Rosie não perdera o seu espírito curioso desde que viera para Carrington
Hall e, enquanto Donald conversava com os pais, aproveitou a oportunidade
para observá-los. Nunca conhecera pessoas ricas antes e estava convencida
de que a riqueza se notaria como um crachá. No entanto, não se via nos
Cook, pelo menos da forma espampanante que ela imaginara. Eles tinham
roupas boas – o casaco azul de Mrs. Cook parecia ter sido feito por medida
e o conjunto de pedras azuis da pregadeira não eram de simples vidro. Ela
calçava elegantes sapatos de pele de crocodilo que faziam conjunto com a
carteira, e havia o grande e reluzente automóvel na entrada. No entanto, não
tinham manias nem tiques.
Donald tinha os mesmos olhos azuis tristes, boca grande e cabelo louro
da mãe, mas herdara a altura do pai e o seu queixo ligeiramente saliente.
Todavia, o que mais agradou a Rosie foi o prazer que estas pessoas sentiam
por estar com o filho. Não os viu olhar uma única vez para o relógio nem
ouviu um bocejo; riam-se com ele e encorajavam-no a falar. Não era uma
visita feita por obrigação por pessoas ricas que tinham abandonado o filho
porque era um embaraço para eles. Amavam-no de verdade e estavam
relutantes em deixá-lo.
Perguntou a si mesma se saberiam que Donald não usava as roupas que
tinha vestido hoje desde a última visita e que o resto do tempo usava as
roupas da arrecadação que lhe serviam. Também perguntou a si mesma se
fariam alguma ideia de como a sala de dia era lúgubre, ou a quantidade de
arranhões e nódoas negras que ele tinha por ser atacado por outros doentes.
Mrs. Cook ficaria chocada se visse que ele era obrigado a comer com uma
colher ou a passar a noite a cheirar urina – ou pior – de outros doentes até
ao outro dia de manhã? Tinha quase a certeza de que eles não sabiam nada
daquilo.
Às quatro horas, Rosie recordou diplomaticamente ao casal que Donald
tinha de voltar para a enfermaria. Donald levantou-se, abraçou os pais e
dirigiu-se para a porta bastante animado e sem nenhum protesto. Porém,
quando Rosie se preparava para segui-lo, Mrs. Cook agarrou-lhe na manga
do casaco.
– Miss Smith – disse em voz baixa. – Não se importa de voltar depois de
levar o Donald para cima? Gostaríamos de conversar consigo em particular.
Rosie sentiu-se muito inquieta quando voltou passados cinco minutos. A
enfermeira supervisora não gostava que o pessoal se envolvesse com os
doentes, dizendo que eles sofriam quando a pessoa se ia embora. Rosie
pensou que devia ser por isso que a enfermeira supervisora a mandara
receber os Cook hoje, pensando que Donald a poria nos píncaros e que os
pais ficariam aborrecidos. Miss Barnes estava sempre de folga ao sábado à
tarde, por isso devia estar sentada algures a deleitar-se com o pensamento
de que a sua auxiliar mais nova estaria a levar uma descompostura.
Porém, quando voltou para a sala de estar Mr. e Mrs. Smith sorriram-lhe
radiosamente.
– Nunca vimos o nosso filho tão bem-disposto – disse a mãe de Donald,
batendo no sofá para que Rosie se sentasse ao seu lado. – Achei que tinha
de lhe agradecer por cuidar dele.
– Ensinou-lhe os nomes de flores e ele não se esqueceu – disse Mr. Cook.
– A verdade é que hoje ele pareceu quase... normal.
– Ele é normal – disse Rosie com alguma indignação. – É apenas um
pouco simples, nada mais.
Lamentou aquelas palavras no segundo em que as proferiu. Não tinha o
direito de dar a sua opinião sobre um doente. Quem fazia isso era o médico
ou a enfermeira supervisora. Esperou que a repreendessem, sem se atrever a
olhar para eles.
– Desculpem – pediu, ainda de cabeça baixa. – Eu não devia ter dito
aquilo. É que gosto do Donald.
– Deve dizer o que pensa – declarou Mrs. Cook, e a sua voz pareceu ter
um sorriso e não raiva.
Rosie levantou a cabeça e viu que a mulher estava a sorrir; e aqueles
olhos que antes estavam tristes brilhavam agora de alegria.
– A menina acabou de dizer as palavras que todas as mães no meu lugar
querem ouvir – disse. – Mas estou muito curiosa para saber porque é que
pensa que não devia ter dito nada.
– Porque só estou aqui há algumas semanas. Porque sou nova e
inexperiente de mais para ter uma opinião acerca do Donald.
– Não será porque tem medo de desagradar à enfermeira supervisora? –
perguntou Mr. Cook sem rodeios, erguendo uma sobrancelha hirsuta. –
Trataremos com confidencialidade qualquer coisa que queira dizer-nos,
Miss Smith. Pedimos-lhe que voltasse porque percebemos que é uma
verdadeira amiga do nosso filho. Por isso, queremos saber o que pensa,
independentemente de achar que é demasiado jovem ou inexperiente para
ter uma opinião relevante.
Rosie olhou para Mrs. Cook e depois de novo para o marido. Ambos
tinham expressões abertas no rosto e percebeu que queriam saber a verdade.
– Acho que ele não precisa de estar aqui – desabafou. – Na verdade, se
querem mesmo saber, penso que vai ficar pior se estiver aqui muito mais
tempo.
De repente, não se importou de ser despedida; tinha uma enorme bola de
raiva dentro de si que precisava de libertar. O mundo estava cheio de
injustiça e preconceito e talvez dar-lhes a sua opinião sobre Donald não
mudasse isso, mas se falasse era possível que a vida dele melhorasse.
Contou-lhes tudo – a falta de estimulação, o facto de Donald ser obrigado
a ver e a ouvir coisas perturbadoras. Não conseguiu arranjar coragem para
lhes contar o que Linda lhe dissera acerca de Archie ter sido apanhado uma
ou duas vezes a tentar convencer Donald a masturbá-lo, nem que todas as
raparigas sentiam alguma ansiedade em relação ao que acontecia nos
dormitórios depois de os doentes serem trancados à noite. Mas disse que
gostava de poder levá-lo a lojas ou a passear de autocarro e falou-lhes sobre
a sua certeza de que com alguma ajuda ele poderia aprender muito mais.
Por fim, disse-lhes que lhe cantara «The Teddy Bears’ Picnic» e que ele se
recordava de a mãe lhe cantar aquela canção.
– Lamento muito – disse, enquanto Mrs. Cook limpava os olhos. – Não
queria perturbar-vos com isto. Mas ele tem uma memória muito boa e tem
capacidades para fazer muito mais do que está a fazer aqui.
– Miss Smith, a menina é muito jovem – disse Mr. Cook, pousando uma
mão no seu ombro. – Também é inquietantemente franca. Mas estamos
comovidos com a preocupação que tem com o nosso filho e muito gratos
por partilhar as suas opiniões connosco.
– Nunca quisemos internar o Donald – disse Mrs. Cook com voz trémula.
– Fomos obrigados a isso. As pessoas falavam sobre ele, culpavam-no por
todo o tipo de coisas e tivemos medo por ele. Há um ano a enfermeira
supervisora disse-nos que seria melhor para ele se não viéssemos visitá-lo
tantas vezes. Afirmou que ele ficava sempre perturbado quando nos íamos
embora. Mas custa-nos muito estar longe dele.
Rosie sentiu-se tentada a dizer que era mentira, mas sabia que já falara de
mais.
– Não posso dizer nada sobre o que aconteceu depois da última visita –
declarou. – Mas, se isso vos deixar mais descansados, posso escrever-vos
um bilhete amanhã ou depois para dizer como é que ficou depois desta
visita.
– Faria isso? – Mrs. Cook pareceu muito surpreendida.
– Só se me prometerem que não dizem nada à enfermeira supervisora –
replicou Rosie. – E não me escrevam, porque alguém pode ver a carta.
O casal entreolhou-se durante alguns instantes. Rosie pensou que fora
demasiado longe.
Mr. Cook pigarreou.
– Vamos fazer o seguinte – disse, levando a mão ao bolso interior do
casaco do fato e retirando um cartão de visita. – Esta é a nossa morada e
número de telefone. Podemos pedir-lhe que nos telefone de vez em quando
à noite, para podermos falar mais à vontade sobre o Donald? Pode fazer o
telefonema a pagar no destino.
Rosie nunca tivera um motivo para usar um telefone. Não fazia a menor
ideia de como funcionava. No entanto, não ia admitir isso. Descobriria
como se fazia.
– Está bem – concordou, guardando o cartão de visita no bolso. – Mas
agora, se me dão licença, tenho de ir.
– Muito obrigada. – Mrs. Cook levantou-se e pegou na mão de Rosie,
apertando-a entre as suas. – Esta noite vamos dormir muito melhor por
sabermos que o Donald a tem como amiga.
Rosie deixou-os, saindo rapidamente antes que alguém reparasse que
estava a falar com o casal há muito tempo. Olhou para o cartão, viu uma
morada no Sussex e guardou-o no bolso, lembrando a si mesma que teria de
escondê-lo dos olhos curiosos da enfermeira supervisora e de Maureen.

Na segunda-feira ao fim da tarde Rosie fez o seu primeiro telefonema


para os Cook da cabina telefónica à porta da biblioteca. Ficou surpreendida
ao constatar que era muito fácil e mais estupefacta ainda quando ouviu a
voz de Mr. Cook como se ele estivesse um pouco mais abaixo na rua. Foi
um telefonema feliz. Donald não sofrera nenhum efeito adverso com a
visita e talvez até estivesse mais alegre e satisfeito do que antes. Rosie
prometeu que telefonaria de novo no mês seguinte, a menos que os pais
conseguissem vir vê-lo antes disso.
Enquanto voltava para Carrington Hall viu algumas raparigas da sua
idade à espera do autocarro. Estavam a rir e a empurrar-se umas às outras e
sentiu alguma inveja. Nenhuma estava mais bem vestida do que ela; todas
usavam gabardinas bastante velhas, de uniformes escolares, abertas para
mostrar os vestidos bastante simples, mas a forma como estavam
maquilhadas e tinham o cabelo encaracolado lembrou-lhe que era muito
provável que todas as raparigas londrinas de dezasseis anos soubessem mais
sobre maquilhagem e penteados do que ela.
O autocarro chegou e Rosie continuou a andar enquanto pensava que
talvez tivesse chegado o momento de deixar a aparência de rapariga do
campo e aceitar a oferta de Linda e Mary para ir a um baile com elas. Pelo
menos podia ajudá-la a esquecer o pai. Talvez até pudesse reduzir um pouco
a dor que sentia e fazê-la ver um futuro um pouco mais alegre.
Hesitante, abordou o assunto com Linda e Mary. Elas não lhe deram
hipótese de recuar no último momento e compraram-lhe um bilhete para o
baile do sábado seguinte no centro paroquial local.
– Não tens de ter medo de nada – insistiu Linda. – Há sempre mais
raparigas do que rapazes lá e só podes beber limonada. Mas é um bom lugar
para ganhares confiança.
Na noite seguinte, Linda ensinou-lhe os rudimentos da valsa e Mary
inspecionou as suas poucas roupas para escolher o que vestiria.
Rosie não podia dizer que gostou muito do baile. O salão estava bastante
bem decorado com balões e bandeirolas, mas sentira-se ridícula a arrastar
os pés pela sala com Mary, a fingir que sabia dançar a valsa. As raparigas
ultrapassavam os rapazes numa proporção de dois para um e sentiu-se
muito antiquada com o seu vestido estampado ao lado das raparigas locais
que copiavam as modas americanas com camisolas justas e saias de roda. O
rímel que Linda insistira que usasse fazia os olhos arder e doíam-lhe os pés,
que estavam calçados com um par de sapatos de salto alto emprestados por
Mary. Todavia, gostou da banda musical. Os músicos usavam casacos azul-
escuros e laços e tocavam ao estilo de Victor Sylvester, o que parecia
extremamente sofisticado. Decidiu que aprenderia a dançar bem e que
gastaria todo o seu salário em roupas bonitas antes de se aventurar a sair de
novo com elas.

O mês de novembro passou muito devagar. Eisenhower venceu as


eleições presidenciais no dia 4. No dia 18, Jomo Kenyatta foi acusado de
ser o líder dos mau-mau, mas, embora tentasse interessar-se pelas notícias
internacionais, Rosie não conseguia pensar em mais nada a não ser na
execução iminente do pai. As outras raparigas falavam com entusiasmo
sobre o Natal. A máquina de costura trabalhava todas as noites na sala de
estar do pessoal enquanto Linda fazia roupas de bonecas para as sobrinhas e
as agulhas de tricô de Mary clicavam enquanto ela tentava terminar um
casaco de malha para a mãe antes da partida para a Irlanda para visitar a
família.
No entanto, Rosie não queria fazer um presente para ninguém. O pai
estava na sua cabeça desde o momento em que acordava de manhã até
adormecer à noite, mas tinha de fingir que estava interessada em tudo e em
todos. Houve um recurso, mas foi recusado, e sabia que agora Cole estaria
na cela dos condenados, vigiado durante todos os minutos do dia e da noite.
Rosie escreveu-lhe uma última carta, juntando-a a uma que enviou para
Miss Pemberton e pedindo-lhe que lha fizesse chegar. Tinha muito para
dizer, e ao mesmo tempo tão pouco. Por fim, só conseguiu escrever que ele
estava nos seus pensamentos e que o amava.
Na véspera de sexta-feira, 4 de dezembro, não conseguiu pregar olho.
Cole seria enforcado às oito da manhã. Manteve a vigília com ele a noite
inteira, a pensar sem parar em todas as boas recordações e a rezar em
silêncio para que ele se mantivesse calmo e que a morte fosse rápida.
Como a sexta-feira era o seu dia de folga, Rosie fingiu que estava a
dormir profundamente quando o alarme soou às seis e meia. Depois de
Maureen descer sentou-se na cama com o relógio à sua frente e ficou a ver
os ponteiros moverem-se devagar para a hora da execução do pai.
Quando faltavam cinco minutos para as oito soluçava incontrolavelmente,
com medo e tristeza. O rosto de Cole estava muito nítido na sua mente,
quase como se estivesse parado à sua frente. Olhos muito escuros, cheios de
tristeza, sem vestígios da fanfarronice e da bazófia. Beijou-o e abraçou-o
mentalmente, recordando o seu cheiro a sabão pela manhã, e rezou para que
sentisse a sua presença no momento da morte.
Teve a sensação de vê-lo ser levado da cela, com as mãos amarradas atrás
das costas e ladeado por dois guardas prisionais. No fundo, sabia que ele
conservaria a coragem e orgulho mesmo quando lhe pusessem o capuz na
cabeça e a corda à volta do pescoço.
– Que Deus o abençoe, paizinho – sussurrou quando os ponteiros
chegaram por fim às oito. – Amo-o. E perdoo-lhe.
CAPÍTULO 8

– E nfia isto pela goela abaixo, Smith. – Linda pôs um copo de gim com
sumo de laranja nas mãos de Rosie e passou outro a Mary, que
estava a maquilhar-se no toucador.
Era véspera de Ano Novo e as três raparigas iam para o West End para
participar nas celebrações. Linda insistiu que «apanhassem uma piela»,
como lhe chamou, antes de saírem de Carrington Hall, porque os pubs
estariam muito cheios.
Rosie bebeu um pequeno gole da bebida e estremeceu.
– É horrível – exclamou.
– Tal como a primeira vez que se faz sexo – replicou Linda com uma
risada. – Mas isso não impede as pessoas de gostarem. Olha para a Mary!
Pelo sim, pelo não, vestiu as cuecas de renda que recebeu no Natal.
Mary virou-se no banco do toucador e no seu rosto rosado viu-se a
combinação de uma generosa camada de base em stick e indignação.
– Estás a dizer que sou fácil?
– Santo Deus, não – respondeu Linda em tom de brincadeira, com um
sotaque irlandês muito exagerado. – Não me disseram já que vocês meninas
de convento nunca deixam a mão de um homem subir acima dos joelhos?
Nesse caso, deves estar a pensar despir-te e saltar para a fonte de Trafalgar
Square.
– Credo – troçou Mary. – Esta noite está um gelo, ora se está. Se queres
mesmo saber, senti vontade de vestir as cuecas quentes que a minha mãe me
deu, mas ia morrer de vergonha se fosse atropelada e tivessem de as despir.
Rosie recostou-se na cama e bebericou a bebida doce e pegajosa. Esta
noite estava feliz. Iam divertir-se e tinha um ano completamente novo pela
frente. Já tomara a sua resolução de ano novo, que era a de se tornar uma
londrina em aparência, mentalidade e comportamento.
Na sua opinião, os londrinos estavam na vanguarda de tudo. Novos
filmes, peças de teatro e modas, tudo começava aqui. No resto da Inglaterra
as pessoas continuavam a viver quase como antes da guerra, aparentemente
sem perceberem que passara toda uma década. No entanto, aqui em
Londres, apesar da destruição generalizada causada pelas bombas, a vida
continuava, os lugares destruídos eram limpos e as casas danificadas eram
derrubadas e reconstruídas. Rosie sentia que os londrinos eram mais rápidos
e progressistas do que os habitantes do resto do país. Abraçavam as novas
ideias vindas da América com entusiasmo – casas modernas, frigoríficos,
aspiradores e automóveis.
A sua exuberância pela vida e pelo progresso estava claramente ilustrada
nos jornais, onde até a notícia mais importante depressa era eclipsada e
esquecida por alguma coisa mais dramática. Rosie tinha percebido isso na
altura do enforcamento do pai. Naquele dia fora notícia de primeira página
em todos os jornais, mas no dia seguinte foi trocado pelos nomes
Christopher Craig e Derek Bentley. Os dois rapazes tinham matado um
polícia a tiro enquanto roubavam um armazém de doces no sul de Londres e
foram descritos como jovens rufias que cresceram a ver filmes americanos
de bandidos. Os dois rapazes foram considerados culpados de homicídio no
dia 11 de dezembro, mas embora Craig, de dezasseis anos, tivesse disparado
a arma, o seu companheiro, um rapaz pouco inteligente de dezanove anos
chamado Bentley, foi considerado igualmente culpado porque tinham
perpetrado o roubo juntos. Devido à idade, Craig foi condenado a ficar
detido por tempo indeterminado, enquanto Bentley, apesar de o júri ter
apresentado uma recomendação de clemência, foi condenado à morte.
Rosie ficou muito aliviada quando a atenção do público foi desviada do
pai. Já era bastante difícil esconder o desgosto e aceitar que nunca
conseguiria ultrapassá-lo e a última coisa de que precisava era de
sobressaltos constantes. À medida que o Natal se foi aproximando e todas
as funcionárias falavam sobre as famílias, a sua principal preocupação era
chegar ao fim de cada dia sem ir abaixo por causa da sua.
No entanto, por muito medo que tivesse do Natal, aquela data acabara por
ser um ponto de viragem.
Dois dias antes, as raparigas tinham decorado a sala de dia com correntes
de papel, grinaldas e balões. Na véspera de Natal toda a equipa, incluindo a
enfermeira supervisora, cantou canções de Natal para os doentes no
primeiro andar e cada um deles recebeu uma pequena tablete de chocolate e
uma tangerina.
Na manhã do dia de Natal, depois do pequeno-almoço, o sacristão da
igreja local chegou vestido de Pai Natal com um saco de presentes. Os
doentes ficaram encantados, bateram palmas, bateram com os pés no chão e
desta vez não houve lutas nem altercações. Todos receberam dois presentes
– não fazia ideia se tinham vindo das famílias ou se fora a enfermeira
supervisora que os comprara – extremamente semelhantes em valor e
conteúdo, sobretudo casacos de malha e chinelos de quarto.
Até o almoço de Natal foi uma ocasião alegre, com a mesa da sala de dia
posta com uma toalha vermelha de papel, crackers e chapéus de papel.
Todo o pessoal doméstico que estava de serviço veio ajudar a servir à mesa.
Enquanto cortava comida e a passava aos doentes, de repente Rosie
percebeu que já não sentia repulsa por nenhum deles. Ao vê-los sentados à
volta da mesa com os seus chapéus de festa e os rostos iluminados de
entusiasmo, sentiu afeto e diversão, pois era um pouco como observar um
lanche de chimpanzés.
Continuava a não confiar em Tabby. Archie conseguia ser completamente
repugnante com a sua baba, com o hábito de se masturbar e com as calças
muitas vezes borradas, mas ultrapassara a repulsa ao ponto de falar com ele,
pentear-lhe o cabelo e incentivá-lo. Aggie era estranha, com as suas pernas
doentes, sem nariz e com a cabeça em forma de cúpula, mas já não a
assustava. Maud era como uma menina pequena, a velha Patty e Alice eram
almas inofensivas e gentis, e afeiçoara-se tanto a Donald que não conseguia
imaginar um dia sem ele.
Talvez Carrington Hall fosse um lugar onde os refugos humanos eram
deixados para não ofenderem as sensibilidades das pessoas consideradas
normais. Talvez algumas das funcionárias fossem quase tão amalucadas
como eles, mas naquele momento Rosie estava contente por estar ali.
Mais tarde, pensou que para os doentes gravemente perturbados que
viviam lá em cima talvez fosse um dia como outro qualquer, pois ouviam-se
os habituais gritos e choros abafados. No segundo andar ninguém cantou
cânticos de Natal nem houve qualquer referência ao Pai Natal. No entanto,
não fez perguntas. Pensou que já tivera a sua dose de tristeza nos dois
últimos meses e que não precisava de procurar mais coisas que a deixassem
infeliz.
O pessoal que esteve de serviço durante o dia teve o seu almoço de Natal
à noite. Felizmente, a enfermeira supervisora fora convidada para passar o
Natal fora e a enfermeira-chefe Aylwood, que era igualmente assustadora,
decidira não participar, por isso Linda disse que aquilo merecia uma
comemoração e foi ao quarto buscar uma garrafa de xerez doce que tinha
escondido.
Foi um bom serão. Estavam todas muito animadas e Pat Clack excedera-
se na preparação de uma refeição verdadeiramente memorável. Ofereceram
pequenas lembranças umas às outras, abriram crackers e usaram os chapéus
de papel. Mary fez toda a gente rir com as suas histórias da Irlanda; estivera
lá durante quatro dias e voltara na véspera de Natal. Linda fez um discurso
hilariante, a fingir que era a enfermeira supervisora a falar pela última vez
antes de se reformar, com revelações de onde fizera o treino para Carrington
Hall: domadora de leões num circo, diretora da prisão de Holloway,
torturadora principal da Gestapo e missionária em África a levar «a
palavra» a uma tribo de canibais.
Rosie estava um bocado tocada quando foi para a cama naquela noite.
Depois de beberem a garrafa de xerez, Pat Clack trouxera um pouco de
vinho de groselha caseiro. Era tão bom que Rosie emborcou dois grandes
copos sem se aperceber de como era forte. No dia seguinte, Mary contou-
lhe que cantara «Softly, Softly» de Ruby Murray muito alto quando subiam
as escadas e que tinham sido obrigadas a tapar-lhe a boca. Mas não fazia
mal ter-se embebedado um pouco porque não pensara em Alan com a sua
nova família. Nem no Natal em May Cottage com a mesa da sala de visitas
muito bonita e o pai a trinchar o ganso, com o minúsculo chapéu de polícia
de brincar que desencantava todos os anos.
Quando as lojas abriram depois do Natal, Rosie comprou a roupa nova
que usava esta noite, véspera de Ano Novo – um vestido de pied-de-poule
preto e branco com uma parte de cima linda com folhos e gola e punhos
brancos. Sentia-se sofisticada com bâton, rímel e o cabelo apanhado na
nuca com um laço de veludo preto. Linda disse que agora parecia uma
rapariga londrina e Rosie pensou que se conseguira encontrar a roupa certa
com tanta facilidade também poderia deixar de olhar por cima do ombro e
tornar-se o que quisesse.
– Bebe isso! – ordenou Linda quando viu que Rosie estava a olhar para o
ar, com o copo ainda quase cheio na mão. – Para onde raio é que vais?
Nunca vi ninguém ir para o mundo dos sonhos tantas vezes como tu.
– Aposto que está em algum lado com o Donald – disse Mary com uma
risada.
Rosie recompôs-se, percebendo que estava a fazer precisamente o que
decidira não fazer: a voltar para o passado.
– Não estava a sonhar com o Donald – disse, e riu-se porque todas as
colegas se metiam com ela por causa dos dois. Era verdade que se afeiçoara
muito a ele, e Donald sentia muito a sua falta quando estava de folga, mas
gostaria que elas não fizessem piadas obscenas sobre ele e que parassem de
dizer que era o seu namorado.
– Só estava a pensar que vocês estão lindas – continuou, e engoliu um
pouco da bebida muito depressa. Mary usava um vestido tipo camiseiro
azul-claro que a mãe lhe fizera; combinava na perfeição com os seus olhos
e, com o cabelo louro penteado em ondas macias e brilhantes, parecia uma
roliça rainha de concurso de beleza.
Embora não fosse naturalmente bonita, esta noite Linda estava muito
atraente com um vestido justo de lã vermelha e com o rosto maquilhado.
Mary arranjara-lhe o cabelo num mar de caracóis escuros, puxados para um
lado e presos com um travessão brilhante.
Linda iluminou-se ao ouvir o elogio de Rosie. Achava que uma das
melhores coisas desta rapariga nova era o seu jeito para fazer os outros
sentirem-se melhor consigo mesmos. Até ficava comovida com a paciência
e afeto com que tratava Donald. Só Deus sabia que nenhuma das outras se
daria a esse trabalho. Normalmente, não quereria sair à noite com uma
pessoa tão nova como Rosemary, mas a rapariga era intrigante. Parecia uma
inocente provinciana, mas também possuía alguma coisa muito forte e
adulta. De vez em quando, Linda tinha a impressão de que ela escondia um
grande segredo. Isso não era raro em Carrington Hall – quase todas as
funcionárias tinham alguma coisa que queriam esconder e era precisamente
por isso que estavam ali. Porém, resistira à vontade de tentar descobrir
quem ela era. Já tinha segredos de sobra para a deixarem ansiosa. Não
precisava de descobrir os das outras pessoas.
– Ainda demoras muito? – Linda voltou-se para Mary, que estava a
encaracolar as pestanas com uma pinça. Mary nem sequer conseguia ir
passear sem bâton. Uma noite no West End precisava de um tratamento de
beleza completo.
– Cinco minutos – murmurou Mary, a fazer caretas para si mesma ao
espelho. – Bebe mais um copo e acalma-te. Não vale a pena ir cedo de mais
e estar ao frio até à meia-noite.
Talvez fosse a referência a estar ao frio, ou apenas por ter estado a pensar
no segredo de Rosemary, mas de repente Linda voltou para aquelas noites
em Cable Street.
Tinha catorze anos quando a guerra terminou, e começara a aprender
costura na Cohen’s Gowns em Mile End Road quando a mãe e o pai
receberam uma casa camarária em Romford. Apesar de toda a família ter
ficado jubilosa com aquele passo em frente, Linda teve as suas dúvidas.
Todas as amigas continuavam a viver em Bethnal Green e teria de fazer
uma longa viagem de comboio para vir trabalhar. Quando a tia Babs lhe
ofereceu um quarto no seu apartamento, a cinco minutos da Cohen’s, viu
nessa oferta uma oportunidade para se tornar independente.
A sua ambição era ser uma costureira da corte e, um dia, fazer vestidos
para as aristocratas de Knightsbridge. Mr. Cohen dizia que ela era a melhor
aprendiza que já tivera, por isso o seu sonho não parecia demasiado
irrealista e juntava algum dinheiro a fazer roupas para as vizinhas nos
tempos livres.
Tudo correu bem até conhecer Sydney Greenslade. Ela só saía para
dançar uma vez por semana, visitava a família todos os domingos e estava
sempre no emprego a horas. Contudo, Syd mudou tudo isso. Tinha vinte e
três anos, cabelo preto e alegres olhos azuis, e a sua forma de vida virou a
de Linda do avesso. Syd era um vigarista. Ganhava dinheiro à noite com
«negócios» em pubs e clubes e queria ter uma rapariga no braço enquanto
os fazia. No começo, ela insistia em estar em casa às onze, mas Syd era
muito persuasivo e dava-lhe gim para que se esquecesse das horas e do
emprego. A tia Babs protestaria se soubesse, mas também gostava de beber
um copo e, em geral, já estava a dormir às onze da noite e nunca percebeu
que ela só chegava a casa de madrugada.
Passado pouco tempo começou a ter problemas com Mr. Cohen, pois
chegava atrasada quase todos os dias e adormecia sobre a máquina de
costura, e ele disse-lhe que se não entrasse nos eixos a despediria.
Linda esforçou-se, mas não conseguia dizer não a Syd. Prometia quase
todos os dias a si mesma que se deitaria cedo, mas logo que ouvia a buzina
do carro na rua saía sem pensar duas vezes. E, quando se apaixonou, é claro
que também não conseguiu evitar ir até ao fim com ele.
Quando lhe disse que estava grávida, estava plenamente convencida de
que ele se casaria consigo; afinal de contas, dizia-lhe que a amava sempre
que faziam aquilo no carro. Porém, ele riu-se quando ela sugeriu o
casamento e deu-lhe algum dinheiro, mandando-a tratar do assunto com Ma
Purdy, que resolvia o problema de todas as raparigas em Cable Street.
Ninguém a avisou de como doeria quando o bebé saiu. Nem como ficaria
fraca e chorosa depois. Mr. Cohen despediu-a e, para cúmulo, Syd
desapareceu.
Tinha apenas dezasseis anos quando foi com um homem por dinheiro.
Pareceu-lhe a única solução para ganhar algum dinheiro e se aguentar até
arranjar outro emprego. Disse a si mesma que só uma vez não faria mal,
que ninguém saberia. Mas não foi assim.
Depois de ultrapassar a repulsa da primeira vez e perceber que podia
ganhar mais em cinco minutos do que numa semana inteira a costurar, não
conseguiu parar. A tia descobriu passado pouco tempo e pô-la fora de casa.
Os pais também souberam e, quando apareceu em Romford para perguntar
se podia ir viver com eles, chamaram-lhe rameira e disseram-lhe sem
rodeios para se pôr a andar.
Ela empinou o nariz, disse que não se importava e continuou. Aquele
primeiro verão foi bom; era jovem e muito requisitada, e pela primeira vez
na vida tinha dinheiro. Não apenas alguns xelins, mas libras e libras, sem
ninguém a estender as mãos para receber uma parte. Comprou boas roupas,
arrendou um quartinho em Cable Street onde ninguém se importava com o
que fazia, e quando tinha um ataque de culpa saía para beber uns copos com
as outras raparigas.
É evidente que não pretendia ficar em Cable Street; Cable Street era o
pior lugar de todo o East End, sujo, malcheiroso e duro. Havia salas de jogo
clandestinas, antros de ópio e bordéis, todos frequentados por marinheiros,
estivadores e bandidos. Quase todas as noites dizia que ia para a zona
ocidental da cidade em busca de um janota que soubesse tratá-la como uma
senhora. Gabava-se às outras raparigas de que acabaria por ter uma boa casa
em Park Lane, e acreditava que isso aconteceria. Porém, alguma coisa
parecia impedi-la de sair dali. Talvez, no fundo, soubesse que uma
prostituta do East End com um rosto banal nunca conseguiria vencer no
mundo.
O segundo aborto quase a matou. Foi levada para o Hospital de Londres,
em Whitechapel, com uma hemorragia. Quando teve alta quase três
semanas mais tarde, o seu quarto fora ocupado por outra pessoa e todas as
suas coisas tinham sido roubadas. Outra rapariga deixou-a dormir no chão
do quarto durante algumas noites, mas depois expulsou-a.
Olhando para trás, Linda não conseguia perceber como sobrevivera
àquele inverno de 1947. Estava presa num círculo vicioso de onde não
havia saída. Para conseguir dinheiro para passar a noite num quarto tinha de
ter relações de pé com os clientes debaixo dos arcos em Cable Street, mas a
sua aparência descuidada não lhe permitia mais do que acomodações
imundas partilhadas com outros párias assustadores. Foi ficando cada vez
mais desleixada e suja, e por fim apenas os marinheiros estrangeiros lhe
pagavam, embora por vezes a usassem e depois roubassem, dando-lhe
grandes tareias.
Beber gim era um alívio temporário do pesadelo que estava a viver, mas
às quatro horas da madrugada, quando acordava com frio e via que estava
num edifício abandonado ou numa viela, a morte parecia preferível a ter de
viver mais um dia de humilhação e profunda miséria.
Foi uma voluntária de uma igreja evangelista que a salvou. Uma
mulherzinha curiosa e escanzelada que vestia um casaco e chapéu cinzentos
e a encontrou no princípio de uma manhã a vomitar na sarjeta. Pegou-lhe no
braço, levantou-a e declarou que ia levá-la para um sítio quente para que
pudesse limpar-se.
Demorou seis meses a recuperar a saúde. Tinha piolhos, gonorreia e uma
infeção crónica nos pulmões. Não podia deixar de reconhecer o mérito
daquelas mulheres da igreja – podiam parecer pequenos fantasmas
cinzentos, mas eram duras. Alojaram-na na sua hospedaria, cuidaram dela,
alimentaram-na, rezaram e conversaram com ela até ela ceder e reconhecer
por fim que queria a sua ajuda para mudar de vida.
E fora graças a elas que viera trabalhar para Carrington Hall.
A enfermeira supervisora sabia o que ela era. E Linda também sabia o
que a enfermeira supervisora era. Chegaram a um acordo. A enfermeira
supervisora não lhe pedia para denunciar ninguém e deixava-a em paz. Por
sua vez, Linda não contava os segredos sobre o segundo andar e mantinha
na linha as colegas que eram potenciais desordeiras.
Trabalhar num hospício não era gratificante nem criativo como fazer
vestidos, mas tinha as suas vantagens. Estava longe do East End e das
sórdidas lembranças de como batera no fundo do poço. O salário era bom,
tinha um lugar decente para viver e a família perdoara-lhe depois de verem
que ela virara uma nova página.
Acima de tudo, sentia-se segura agora, passados cinco anos. De vez em
quando, em especial quando era confrontada com um cordeirinho como
Rosemary, lembrava-se de como era aos dezasseis anos. Rosemary seria
uma presa fácil para uma pessoa sem escrúpulos, fosse a enfermeira
supervisora ou algum homem bem-falante com um fato elegante. Queria
avisar Rosemary sobre os homens, mas não sabia o que fazer em relação à
enfermeira supervisora.

– Não é maravilhoso? – arquejou Rosie quando estavam em Piccadilly


duas horas mais tarde. Quase não conseguia ver a estátua de Eros por causa
das pessoas que subiam para cima dela. Os passeios estavam cheios de
ruidosos foliões, aos encontrões, mas bem-dispostos, e acima e a toda a sua
volta viam-se as famosas luzes de néon sobre as quais tanto ouvira falar,
mas que nunca vira. Já lhe doía o pescoço por estar a olhar para cima, para
as mensagens e anúncios sempre a piscar com luzes verdes, amarelas,
vermelhas e azuis. Poderia passar a noite inteira ali de pé e nunca se
cansaria.
– Não vai ser tão maravilhoso se te perderes – gritou-lhe Linda. – Agarra-
te bem ao meu cinto e se nos separarmos volta para aqui para o Swan and
Edgar para podermos encontrar-te.
Mais tarde, conseguiram entrar num pub. Mary estava a queixar-se de frio
e de dores nos pés. Linda pensou que seria muito mais agradável estar no
East End a conversar com pessoas que falavam a sua língua do que a ser
empurrada e acotovelada por estúpidos da alta sociedade com vozes
estridentes e cachecóis de universidades.
Rosie pensou que era a melhor noite da sua vida.
Havia alguma coisa no ar aqui no West End que a arrepiou até à ponta dos
dedos congelados dos pés. Os tufos de nevoeiro que passavam pelos
edifícios profusamente iluminados, as luzes, cheiros e as vagas de música
vindos de toda a parte. E tantas pessoas, todas com rostos alegres apesar de
terem de se mexer a passo de caracol. Os autocarros vermelhos, os grandes
táxis pretos. Era tudo maravilhoso.
O cheiro de castanhas a assar numa braseira levou-a diretamente para os
dias de mercado em Midsomer Norton, mas havia muito mais aqui do que
alguma vez vira no Somerset. Um realejo numa esquina com um macaco
domesticado vestido com um casaquinho vermelho a saltar em cima dele,
uma velha cigana a vender raminhos de urze branca e um homem-orquestra
a marchar com tanta altivez como um pavão com um tambor às costas, a
marcar um ritmo constante.
Enquanto tentavam abrir caminho em direção ao balcão do bar, um
homem alto de cabelo escuro, com um cachecol branco comprido enrolado
com desenvoltura à volta do pescoço, virou-se para observá-las. Rosie
pensou que se parecia um pouco com Errol Flynn, com o mesmo tipo de
sorriso malvado e olhos brilhantes. Ele percebeu logo o problema das três
raparigas. Linda saltava, a tentar chamar a atenção do empregado, mas era
demasiado baixa para ser vista atrás dos ombros largos dos homens que
bebiam ao balcão.
– Deixem-me oferecer-vos uma bebida, meninas – disse. – Que vai ser?
Eu vou buscar uma para mim.
Mary iluminou-se como uma árvore de Natal ao ver um homem tão
atraente. Riu-se e fez-lhe olhinhos com as pestanas cheias de rímel.
– É muito simpático da sua parte, senhor. Queremos três gins com sumo
de laranja, por favor – disse.
As muitas pessoas que se amontoavam no pub fizeram com que Rosie
ficasse afastada de Mary e Linda. Ouviu o homem dizer a Mary que se
chamava Mitch, e a forma como a olhou e lhe sorriu com uma expressão
sedutora quando ela lhe respondeu sugeria que estava totalmente fascinado
com ela.
A bebida de Rosie foi-lhe passada por cima das cabeças e à medida que
mais pessoas tentavam chegar ao bar a distância entre ela e as amigas foi
aumentando. Não ficou alarmada, porque conseguia ver as duas raparigas:
Mary olhava para o homem alto e batia as pestanas e Linda estava ao seu
lado, acenando de vez em quando para que Rosie soubesse que não se
tinham esquecido dela. Mas Rosie não se importou de estar a tomar a sua
bebida e a observar as pessoas que estavam no pub. Depois do frio que fazia
lá fora, era bom sentir que os dedos dos pés começavam a aquecer. Todas as
pessoas eram muito joviais, tendo em conta o aperto; não se importaria se
ficassem aqui até à meia-noite em vez de voltarem para Trafalgar Square
como tinham planeado.
Cerca de dez minutos mais tarde, Rosie reparou que Mitch estava muito
inclinado para Mary e lhe dizia alguma coisa ao ouvido. Pôs-se em bicos de
pés durante alguns instantes e viu-a com clareza; ela estava a rir-se e
pareceu concordar com o homem. Algumas pessoas saíram do bar,
deixando um espaço, e naquele breve instante avistou Linda. Ao contrário
de Mary, ela não estava a rir-se; na verdade, o seu rosto estava glacial.
Rosie preparava-se para se aproximar e descobrir o que estava a acontecer
quando ela pegou no braço de Mary e começou a arrastá-la pelo meio da
multidão, para longe do homem.
Rosie olhou de novo para Mitch. Como era uma cabeça mais alto do que
os outros homens que o rodeavam, viu bem o seu rosto: ele parecia
espantado e estava a dizer alguma coisa, mas não conseguiu perceber o que
era por causa de todo o barulho à sua volta.
– Acaba de beber, porque vamos embora – disse Linda com brusquidão
quando chegou ao pé de Rosie, ainda a apertar o braço de Mary, que não
parecia nada satisfeita. Rosie emborcou obedientemente o resto da bebida
de uma vez e seguiu-as para a rua.
O passeio à porta do pub tinha menos gente do que antes de entrarem.
Estava muito frio depois do calor que se fazia sentir no interior e todas as
pessoas caminhavam na mesma direção, que Rosie presumiu que seria
Trafalgar Square.
Mary tentou libertar-se da mão da outra rapariga.
– Não quero ir para aí – disse, num tom furioso. – Está um frio de rachar
e vamo-nos divertir mais na festa dele. Vocês podem ir para Trafalgar
Square se quiserem. Eu fico com o Mitch.
Rosie ficou muito surpreendida. A ideia de virem para o West End esta
noite fora de Mary, e também fora ela que conseguira convencer a
enfermeira supervisora a deixá-las ficar na rua mais duas horas. Preparava-
se para perguntar o que estava a acontecer quando Linda se virou contra
Mary.
– Não vais para lado nenhum com aquele tipo – disse com brusquidão,
agarrando a amiga e abanando-a. – Às vezes acho que tens serradura entre
as orelhas. Se te meteres no carro de um tipo daqueles, só Deus sabe onde
vais parar. Não há festa nenhuma. Ele só anda à procura de alguém para
levar para a cama. Não acredito que não percebas isso.
– Só estás zangada porque ele não te preferiu a ti – retorquiu Mary.
– Raios, miúda, eu sei que és uma irlandesa burra, mas tenta usar a carola
– disse Linda, agarrando no braço de Mary e obrigando-a a caminhar com
ela. – Aquele tipo é um chulo. Ouviu o teu sotaque irlandês, viu o teu lindo
cabelo louro e grandes olhos azuis e pensou que lhe tinha saído o primeiro
prémio da lotaria. Agora, vamos para Trafalgar Square cantar «Auld Lang
Syne» e dançar um bocado, e depois voltamos para casa no último comboio
do metropolitano.

Mary adormeceu no metropolitano quando voltavam para casa e a sua


cabeça deslizou para o ombro de Rosie. Linda estava sentada à frente delas.
A carruagem estava completamente cheia na estação de Strand, mas agora
que tinham passado Camden Town só restavam umas dez pessoas.
– Divertiste-te? – perguntou Linda, acendendo um cigarro. Estendeu os
pés e pousou-os entre as duas raparigas.
– Foi maravilhoso – respondeu Rosie, suspirando de felicidade. Nunca
vira uma multidão tão enorme e tão alegre. As pessoas beijavam-se,
dançavam e gritavam. Fê-la sentir que 1953 seria um ano maravilhoso. –
Nunca pensei que havia tantas pessoas no mundo, e muito menos em
Londres.
– Ainda não viste nada – disse Linda com um sorriso. – Está mais do que
na hora de te mostrar um pouco mais e ensinar-te uma ou duas coisas.
Rosie gostou da ideia e disse-lho. Conversaram mais um pouco e ela
falou-lhe sobre os salões de baile, as grandes lojas de Oxford Street e os
Pleasure Gardens de Battersea, do outro lado do rio.
– Linda – começou Rosie, hesitante –, o que é um chulo? – Tinha ouvido
a palavra e não a esquecera. Recordava-se vagamente de Heather a ter
usado, referindo-se a Seth, mas a verdade é que Linda e Heather tinham um
vocabulário muito semelhante.
– É um tipo que obriga as raparigas a entrar no jogo e depois fica com o
dinheiro que elas ganham – respondeu ela.
– O jogo! Qual jogo? – perguntou Rosie.
– Prostituição – respondeu Linda com a testa muito franzida, e explicou-
lhe em detalhe o que aquilo significava.
Os olhos de Rosie abriram-se de espanto.
– As mulheres fazem isso por dinheiro? Como é que conseguem?
– Porque têm fome, porque têm filhos para alimentar. Às vezes porque
não têm juízo – respondeu Linda. – Mas o que eu detesto são os gajos que
as metem nisso. E há quase sempre um gajo. Sabes, às vezes quando
estamos sozinhas, um bocado assustadas ou somos burras, esquecemo-nos
das coisas que as nossas mães nos disseram. A maioria dos homens são
animais. Não te esqueças disso, Rosemary. O teu pai podia ser bom, como o
meu, mas há mais homens maus do que bons e dizem qualquer coisa, o que
for preciso, para te despirem as cuecas.
Linda calou-se depois daquele pequeno discurso e Rosie não lhe fez mais
perguntas. Perguntou a si mesma como é que ela se teria tornado tão cínica.
Também teria conhecido alguns Seths e Normans na vida?

Embora o ano de 1953 tivesse começado bem para Rosie, no dia 28 de


janeiro foi atirada de novo para a execução do pai quando Derek Bentley foi
enforcado na prisão de Wandsworth pelo homicídio do polícia Sidney
Miles. Partilhou o desgosto dos pais e da irmã e sentiu uma raiva profunda
por o sistema judiciário estar tão pervertido que condenava à morte um
rapaz sem grande inteligência, mesmo quando ele não tinha assassinado
ninguém.
Dias depois do enforcamento de Bentley houve mais tragédias que a
fizeram chorar: um ferry irlandês afundou-se e vinte e oito pessoas
morreram afogadas; no princípio de fevereiro, uma grande inundação na
Holanda causou mais de mil mortes; e ao mesmo tempo um furacão atingiu
a costa oriental da Inglaterra e trezentas pessoas morreram. Mary e Gladys,
ambas católicas romanas, correram para a igreja para rezar pelas almas
daquelas pessoas. Rosie perguntou a si mesma como é que elas conseguiam
pensar em rezar a um Deus que deixara que acontecessem coisas tão
horríveis e doou o salário da semana a um fundo para ajudar os
sobreviventes.
Foi a sensação de impotência perante estes desastres que fez Rosie
lembrar-se da resolução que fizera no dia de Ano Novo. Embora não
pudesse fazer nada para impedir injustiças, ou casos de força maior, tinha a
capacidade de assumir as rédeas da sua vida e fazer o que queria. Enquanto
pensava no que isso poderia ser, contemplou-se durante muito tempo ao
espelho. Viu um rosto pálido, com sardas, uma trunfa de cabelo
despenteada e incontrolável e um corpo arrapazado. Não era certamente o
tipo de aparência que abria portas para um emprego com melhores
perspetivas.
Durante o frio cortante do mês de fevereiro, Rosie passava os seus tempos
livres a estudar revistas de moda e descobriu que estavam em voga dois
estilos diferentes. Um era o tipo loura voluptuosa, com peito grande, criado
por Diana Dors, e o outro era o estilo muito sofisticado da modelo Barbara
Goalen, com o cabelo penteado para trás, chapéus elegantes e luvas
compridas.
Rosie sabia que estes dois estilos estavam para além do seu alcance.
Tinha seios minúsculos e não suportava a ideia de pôr água oxigenada no
cabelo, apesar de dois terços das mulheres na Grã-Bretanha parecerem estar
a fazer isso. Quanto ao estilo sofisticado, também não conseguiria imitá-lo.
Era incapaz de manter o cabelo preso para trás sem que alguns caracóis
fugissem sempre, e para além disso nunca vira ninguém com apenas um
metro e cinquenta e cinco e sardas no nariz parecer sofisticada.
Depois, viu uma fotografia de uma modelo francesa e leu que o estilo
gamine com cabelo muito curto era a grande moda em Paris. Linda, Mary e
Maureen não acreditaram que um estilo tão drástico lhe ficasse bem, e
disseram que tinha um cabelo demasiado bonito para ser cortado curto.
Porém, Rosie molhava-o e prendia-o com ganchos todas as noites, deixando
apenas algumas madeixas à volta do rosto para ver como ficava. Acreditava
que era o estilo certo para si.
No dia 1 de março abriu as cortinas e viu um toque de primavera no ar no
seu dia de folga. Por fim, o sol brilhava de novo e viu os primeiros rebentos
minúsculos nas árvores e os bolbos a começarem a romper a terra. Aquilo
decidiu-a, e menos de uma hora mais tarde atravessava os portões em
direção à paragem de autocarro e ao cabeleireiro chique que vira em
Finchley Road.
O único estabelecimento do género que Rosie visitara antes era o barbeiro
de Bridgwater. Era um lugar escuro e assustador, com homens recostados
em cadeiras com os rostos cobertos de sabão para barbear, enquanto as
navalhas, máquinas e afiadas tesouras transmitiam uma espécie de ameaça.
Não admirava que Alan chorasse sempre que o levava lá para cortar o
cabelo.
O cabeleireiro em Finchley Road, que se chamava Sally’s Salon, era
muito diferente. Rosie vira-o do autocarro quando passara por lá e admirara
a sua decoração cor-de-rosa e branca, com o balcão da receção dourado
com tampo de vidro e fotografias ao estilo de Hollywood de elegantes
modelos na parede. Teve de presumir que os cortes de cabelo e os penteados
eram feitos atrás da cortina cor-de-rosa, já que as fotografias e uma
exposição de loções de fixação eram a única prova concreta de que era um
estabelecimento onde se arranjava o cabelo.
Uma sofisticada sósia de Barbara Goalen estava sentada atrás da
secretária quando Rosie entrou. Tinha maçãs do rosto salientes,
sobrancelhas que eram apenas um risco de lápis e usava o cabelo escuro
num elegante puxo. Disse que poderiam arranjar já o cabelo da madame
porque tinham tido um cancelamento, olhou para a imagem da revista que
Rosie trouxera consigo e acenou com a cabeça.
– Oh, sim, madame, esse estilo é absolutamente perfeito para si –
concordou.
Um cheiro forte escapava do outro lado da cortina. Rosie pensou que
devia ser loção para permanentes. Foi levada para o outro lado da cortina,
onde lhe tiraram o casaco, substituindo-o por um penteador e toalha cor-de-
rosa, e acompanhada até ao fundo de uma série de cubículos onde se viam
diversas senhoras sentadas sob enormes secadores de pé, para ir ter com
Miss Sally.
Miss Sally tinha cerca de trinta anos. Era uma falsa loura, com seios
cónicos e um cinto largo a apertar a cintura de vespa. A sua pele parecia de
mármore branco e as sobrancelhas eram arcos finos com uma expressão de
surpresa. Rosie sentiu-se logo pouco à vontade, simples e embaraçada
quando a mulher olhou para a imagem que trouxera consigo, suspirou ao
olhar para Rosie e lhe fez sinal para que se sentasse.
Penteou-lhe o cabelo durante alguns instantes e examinou-o bem.
– Tem a certeza de que quer cortá-lo tão curto? – acabou por perguntar.
Rosie presumiu que a mulher não acreditava que lhe ficasse bem, mas não
pretendia recuar agora.
– Sim – disse, com mais coragem do que sentia. – Estou cansada dele.
Enquanto os caracóis cor de cobre caíam no chão, formando um grosso
tapete à volta da cadeira, Rosie tentou não pensar que poderia ser um
desastre. Miss Sally fez-lhe muitas perguntas enquanto cortava. Onde
trabalhava? Tinha namorado? Onde nascera? Rosie ouviu outras mulheres
gritar por cima do barulho dos secadores, por isso pensou que o tempo de
perguntas e respostas devia ser a ordem do dia nos cabeleireiros.
Porém, quando disse a Miss Sally que trabalhava num hospício as
perguntas pararam de imediato. Rosie ficou muito contente. Queria que a
mulher se concentrasse no seu cabelo.
Foi a leveza da cabeça que mais a impressionou quando saiu do salão
mais de uma hora depois. Miss Sally estava muito entusiasmada e não
parava de falar sobre como o estilo curto de «rapazinho» realçava as suas
feições delicadas e atraía a atenção para os seus lindos olhos azuis. Porém,
Rosie sentia uma grande afinidade com uma ovelha tosquiada.
Parou diante da montra de uma joalharia para se observar com maior
objetividade e ficou encantada ao perceber que a opinião de Miss Sally e a
sua própria intuição estavam certas. O comprido cabelo encaracolado fora
sempre a sua característica mais marcante. Dominava tudo o resto – eram
incontáveis as pessoas que a descreviam apenas como «a rapariga do
cabelo». Sem aquela cabeleira rebelde tinha uma identidade completamente
nova. Menos pálida, mais adulta. O cabelo estava mais brilhante, apenas
com algumas ondas em vez de uma auréola de caracóis. Concluiu que
adorava aquele estilo e, enquanto passeava ao sol de primavera, sentiu uma
nova onda de confiança e otimismo.

Duas semanas mais tarde, recebeu uma carta da «tia Molly» a perguntar-
lhe se gostaria de passar férias com ela na Páscoa, no fim de março. Como
sempre, escrevera a carta com todo o cuidado, fazendo apenas uma
referência extremamente casual a Alan. Todavia, ao ler o sentido implícito
sentiu que Miss Pemberton estava a convidá-la porque queria levá-la a
visitar o irmão e, talvez, falar sobre o futuro dele e o de Rosie.
A seguir à sua pausa para o almoço, foi ao escritório da enfermeira
supervisora. Costumava evitar todo o contacto com a mulher e hoje estava
ainda mais nervosa do que era habitual por ter de falar com ela. Esperava
que a enfermeira supervisora se enfurecesse com o seu pedido de férias e
recusasse de forma categórica.
A enfermeira supervisora estava sentada atrás da secretária, com os
braços cruzados sob os grandes seios, criando o efeito de que estava a puxá-
los para cima. Os olhos muito juntos varreram Rosie como se ela fosse um
pequeno roedor e os seus lábios finos franziram-se, prontos para negar
qualquer pedido, por muito humilde que fosse.
Rosie aprendera a aceitar muitas das coisas de que não gostava em
Carrington Hall, mas estava tão longe de encontrar uma base de
entendimento com esta mulher como no dia em que chegara. Gaguejou o
pedido, quase esperando uma bofetada pelo descaramento.
– Uma semana de férias! – exclamou a enfermeira supervisora antes
mesmo de ela terminar de falar, descruzando os braços e pousando as mãos
nas ancas para manifestar a indignação que sentia. – Mas só estás cá há sete
meses.
Rosie mexeu-se. Queria tanto ir que não sabia o que faria se a enfermeira
supervisora recusasse.
– Não lhe vou pedir mais férias – implorou
– E não vais ter, mesmo que peças – replicou Miss Barnes com
brusquidão.
Na verdade, nessa manhã vira a carta para a rapariga no meio da
correspondência, e, ironicamente, não a abrira com vapor, até porque as
cartas anteriores tinham sido uma grande desilusão. Queria recusar aquele
pedido, só para mostrar a sua autoridade, mas teve a forte sensação de que a
rapariga pediria à «tia» que intercedesse por si e isso só poderia prejudicar a
sua reputação, como acontecera com o lamentável incidente com os pensos
higiénicos.
– Se te deixar ir, espero que trabalhes nas duas folgas a seguir ao teu
regresso. Só assim poderei acertar os turnos – disse num tom ríspido, já a
pegar em alguns papéis para que ela percebesse que a conversa tinha
terminado.
Rosie sabia que teria de pagar algum preço, mas aquele pareceu-lhe muito
baixo. Acenou em sinal de concordância.
– Então, posso ir? – Queria que ela confirmasse já para poder escrever a
Miss Pemberton.
– Podes, sim. – A enfermeira supervisora lançou-lhe um olhar
desdenhoso. – Mas de futuro só terás férias quando eu marcar.
Rosie não se importou com isso, pois não pretendia trabalhar ali durante
muito mais tempo.
– Muito obrigada, Miss Barnes – disse, sem fôlego, e saiu antes que a
mulher mudasse de ideias ou fizesse alguma crítica mordaz.
Já no primeiro andar, soltou um pequeno grito de alegria antes de entrar
na sala de dia. Desde que cortara o cabelo, a sua vida parecia encantada.
Dois rapazes tinham-na convidado para sair no baile onde fora com Linda e
Mary, recebera um aumento de dois xelins no salário e os seus seios
pareciam ter crescido mais dois centímetros. Não gostara o suficiente dos
rapazes para voltar a vê-los, mas era agradável ser convidada. Os seios e o
aumento de salário tinham-na deixado mais satisfeita.
– Pareces muito contente contigo mesma! – disse Maureen
rancorosamente quando Rosie entrou em passos rápidos na sala com um
grande sorriso estampado no rosto.
Rosie parou ao ouvir o tom da colega e de repente percebeu que estava
uma atmosfera tensa. Maureen lavava o chão; decerto, alguém tivera um
acidente. Os doentes estavam todos amontoados na extremidade mais
afastada da divisão, com expressões intimidadas. Rosie perguntou a si
mesma se Maureen lhes gritara como fazia de vez em quando, pregando-
lhes sustos de morte. Não viu Mary em parte alguma.
– Tenho uma semana de férias na Páscoa para ir visitar a minha tia –
explicou com relutância. Como Maureen não saía dali nos dias de folga e
nunca falava em férias, não queria gabar-se muito da sua sorte. – Quem teve
o acidente? – Partiu do princípio de que Mary estaria com essa pessoa.
– A Patty. É a quinta vez que faz isto esta semana. Nem sequer parece
perceber o que está a fazer. – Maureen franziu o sobrolho com uma
expressão irritada. – Ela devia estar lá em cima.
Rosie preparava-se para dizer que pensava que a incontinência não era
uma razão suficiente para encarcerar alguém no meio de pessoas com
perturbações profundas quando se ouviu um grito ensurdecedor vindo do
andar de cima. Parou, com a cabeça levantada, e, ao contrário do que era
habitual, foi imitada por todos os doentes.
Normalmente, os gritos estridentes que se ouviam lá em cima eram de
curta duração, mas não foi o que aconteceu desta vez. Este grito continuou
sem parar, demasiado feroz e forte para ser alguém que estava descontente
por lhe estarem a pentear o cabelo. George e Alice taparam os ouvidos com
as mãos e começaram a baloiçar-se nas suas cadeiras. Donald parecia muito
alarmado.
– Macacos me mordam – exclamou Rosie. Como toda a gente tinha dito,
acostumara-se aos barulhos perturbadores do andar de cima e nem parecia
dar por eles. No entanto, este foi excecional; fez o seu sangue gelar nas
veias e pensou que só podia ser alguém que estava a sofrer dores horríveis.
– Que raio se passa lá em cima?
– Como se eu soubesse – retorquiu Maureen.
Rosie olhou-a com surpresa. Apesar de todos os seus defeitos, ela
costumava importar-se com os doentes.
– Bem, achas que devo ir lá para saber o que se passa? Pode ser uma
emergência!
– Não é da nossa conta – replicou Maureen com brusquidão e aproximou-
se da porta, quase como se quisesse impedir que Rosie saísse dali. – A
Aylwood não te vai agradecer por ires meter o nariz onde não és chamada.
Uma reação tão estranha deixou Rosie ainda mais intrigada. Maureen
parecia assustada; os seus olhos cinzentos piscavam com muita força atrás
dos óculos e a pele habitualmente pálida estava ruborizada. Os gritos
tornaram-se ainda mais altos. Aggie começou a chorar de pavor e quando
Rosie olhou em volta viu que todos os doentes estavam ainda mais
amontoados, como um rebanho de ovelhas assustadas.
– Vou lá acima – disse Rosie, agora tão alarmada que pensou que tinha de
fazer alguma coisa.
Maureen bloqueou-lhe a passagem.
– Não vais, não. Se fores, vais meter-nos a todas em sarilhos – disse,
agarrando no braço de Rosie para impedi-la. – És a pessoa mais
bisbilhoteira que já conheci.
Os gritos silenciaram-se de forma abrupta, como um disco a ser arrancado
de um gramofone. Aggie parou de chorar. Maureen soltou o braço de Rosie.
A sala de dia manteve-se no mais absoluto silêncio durante um ou dois
segundos, não se ouvindo uma única fungadela, resmungo ou som de
respiração. Rosie olhou para trás e ao ver os doentes como estátuas,
demasiado aterrorizados para se mexerem, percebeu que a necessidade de
serem tranquilizados era muito mais importante do que enfrentar Maureen
ou preocupar-se com o que estava a acontecer noutro lado.
Deu meia-volta e aproximou-se deles.
– Já está tudo em ordem – disse num tom suave.
Donald foi o primeiro a mexer-se, levantando-se da cadeira e arrastando-
se na sua direção. Tinha os olhos muito abertos de pavor e quando chegou
junto de Rosie enfiou a mão na sua. A porta abriu-se e Mary entrou com
Patty a reboque. Archie arrastou a cadeira pelo chão, fazendo os pés chiar
no linóleo.
A tensão quase palpável na sala desapareceu quando os ruídos habituais
recomeçaram. Alice levantou-se para ir ter com Patty. George começou a
andar sorrateiramente pela sala e Maud recomeçou a falar sozinha. Mas
Donald, que costumava ser o mais rápido a adaptar-se às mudanças
inesperadas, continuava agarrado à mão de Rosie. Ela calculou que o que
estava a perturbá-lo acontecera antes do início dos gritos.
– O que foi, Donald? – perguntou em voz baixa. Ele tinha a cabeça caída,
como se tivesse medo de falar. Normalmente, contava-lhe tudo o que
acontecia na sua ausência. – Aconteceu alguma coisa enquanto eu não
estava na sala?
– A Jackson b-b-bateu na Patty – sussurrou ele. – Ela g-g-gritou e disse q-
q-que se não nos s-s-sentássemos nos íamos arrepender.
Rosie ainda estava irritada com o comentário de Maureen sobre a sua
bisbilhotice. Saber que ela batera numa velhota porque ela fizera xixi pelas
pernas abaixo só aumentou a sua irritação, mas enquanto acalmava Donald
reparou em Tabby.
Todos os outros doentes tinham recomeçado a mexer-se, mas ela
continuava sentada numa cadeira a olhar apaticamente para o ar, com o tricô
no colo.
Tabby nunca estava imóvel. Ou tricotava freneticamente ou andava de um
lado para o outro, e Rosie sentiu-se inquieta. Deixou Donald durante alguns
instantes e aproximou-se da mulher, sentando-se ao seu lado. Quando lhe
perguntou o que se passava Tabby não respondeu, mas pegou-lhe na mão e
apertou-a com muita força.
Aquela reação foi muito inusitada. A maioria dos doentes gostava de ser
tocado. Reagiam bem quando lhes faziam festas na cabeça, lhes pegavam
nas mãos ou os abraçavam, mas Tabby esquivava-se sempre ao contacto
físico.
– O que é que se passa, Tabby? – perguntou Rosie de novo.
Tabby apontou para o teto.
– Está tudo bem. O barulho acabou – disse Rosie. – Não tens de ter medo
de nada.
– Não quero ir lá para cima – desabafou Tabby, com os olhos castanho-
dourados a brilhar como acontecia muitas vezes antes de atacar alguém.
Tabby era uma das pacientes com quem Rosie não progredira quase nada.
Embora se exprimisse bem e fosse capaz de manter uma conversa quando
queria, passava a maior parte do tempo a resmungar com as pessoas,
incluindo Rosie. A sua natureza era tão fogosa como o cabelo, num instante
calma e dócil e no seguinte a explodir por nenhum motivo aparente e a
arranhar quem estava mais perto. Todas as funcionárias a tratavam com
cautela.
– Ninguém te vai mandar para lá – disse Rosie com calma, curiosa para
saber se Maureen os teria ameaçado com isso.
Tabby virou-se para ela com uma expressão conspiradora, ainda a
segurar-lhe na mão.
– Há um homem mau lá – disse em voz baixa. – Ele magoou-me.
Rosie pensou que ela estava apenas confusa e, depois de algumas
palavras tranquilizadoras, encorajou-a a pegar de novo no tricô. Maureen
saíra da sala de dia, talvez para fumar um cigarro, e ao ver que Mary estava
sentada sozinha a ler uma revista foi ter com ela.
– A Tabby já esteve lá em cima? – perguntou.
Mary acenou com a cabeça.
– Sim, pouco antes de eu vir para cá. Porquê?
– Por nada – respondeu Rosie, e dirigiu-se para a janela para não ter de se
explicar ou ser acusada mais uma vez de bisbilhotice.
Havia narcisos no jardim da frente e uma forsítia estava cheia de flores
amarelas, mas naquele momento Rosie não ficou animada com aqueles
sinais evidentes de primavera. Estava demasiado consciente de que algo
muito feio se escondia dentro deste edifício.
Pensou que a combinação de Maureen a gritar com os pacientes, Patty a
levar uma bofetada e depois ouvir os gritos vindos do segundo andar devia
ter desenterrado uma velha memória de Tabby. O homem mau a que ela se
referia poderia ser o auxiliar chamado Saunders que trabalhava lá em cima?
Ou teria trabalhado lá outro homem antes?
Durante os sete meses em que trabalhava aqui Rosie nunca tivera
qualquer contacto com aquele auxiliar. Ele vivia fora e chegava poucos
minutos antes da sete, indo diretamente para a enfermaria. O seu intervalo
para o almoço nunca coincidia com o dela e só se tinham cruzado uma ou
duas vezes nas escadas. Nem sequer no Natal estivera na sala dos
funcionários.
Tendo em conta que os homens eram o principal tópico de conversa das
auxiliares, era estranho que não falassem sobre o único colega do sexo
masculino. Rosie sempre pensara que a falta de informação sobre ele – se
era casado, onde vivia e outras coisas do género – se devia ao facto de ser
tão feio. Era um homem alto e forte, com cabelo louro cortado muito curto
e a pele marcada por bexigas. Ela própria nunca se interessara o suficiente
para fazer perguntas sobre ele.
Porém, agora que pensava bem, a enfermeira-chefe Aylwood, que
trabalhava com ele, era igualmente misteriosa. Era uma mulher alta e muito
magra com mais de quarenta anos, com cabelo muito grisalho, que tomava
o pequeno-almoço antes de todos os outros, pedia que lhe levassem o
almoço para a enfermaria e muitas vezes levava o jantar para o quarto. À
noite, batia sempre a porta e ligava o rádio como se quisesse afogar o
barulho das conversas das colegas mais novas. Rosie nem sequer sabia o
seu nome de batismo.
Pensando no que Maureen dissera há pouco sobre Aylwood não lhe
agradecer por meter o nariz onde não era chamada, pareceu-lhe mais
provável que aqueles dois empregados mantivessem a distância porque uma
maior intimidade com os colegas poderia expor a forma como aquela
enfermaria era gerida.
Rosie franziu a testa; aquilo não fazia sentido. Afinal de contas, Gladys
Thorpe, Linda e Mary também passavam várias horas lá em cima todas as
semanas. No entanto, enquanto refletia sobre o assunto percebeu que aquele
andar devia estar praticamente o dia inteiro com muito poucos funcionários
porque as outras raparigas só iam lá acima à hora das refeições.
Veio-lhe à ideia uma imagem arrepiante de pessoas trancadas em jaulas
como animais. Tentou afastá-la, certa de que a sua imaginação estava a ficar
descontrolada, e prometeu em silêncio a si mesma que depois da Páscoa
procuraria outro emprego.

Estava uma tarde luminosa e soalheira, mas gelada, quando Rosie saiu do
comboio em Bridgwater duas semanas mais tarde. Miss Pemberton
esperava na plataforma com um casaco de tweed e um chapéu de feltro
castanho. Como muitas pessoas, tinha uma faixa preta cosida no casaco em
sinal de luto pela rainha Maria, que falecera alguns dias antes.
As emoções de Rosie tinham oscilado como um pêndulo entre alegria e
apreensão durante a longa viagem de comboio. Estava entusiasmada por
estar de férias, por ver Miss Pemberton e talvez Alan, mas era assustador
regressar a uma região que lhe trazia tantas recordações. Depois de Bristol,
colara o nariz à janela e esperara com ansiedade pelo primeiro vislumbre
dos Levels. Enquanto o comboio seguia pela familiar paisagem plana, a sua
boca secou com os nervos, mas os olhos encheram-se de lágrimas ao ver de
novo o lugar que adorava.
O sol brilhava nos canais e na água das cheias que ainda cobria os
campos. Viu cordeiros nascidos há pouco tempo a saltitar à volta das mães e
garças-reais paradas como estátuas nas margens dos rios. As árvores de
fruto estavam em flor e viam-se tufos de prímulas a crescer nas margens,
tudo muito lindo e sereno. Todavia, tudo o que via fazia-a recordar o pai e
os irmãos. Também sabia que aqui as pessoas tinham boa memória; não
teriam esquecido os homicídios brutais como acontecera com as pessoas de
Londres.
– Estás maravilhosa – exclamou Miss Pemberton, tirando-lhe a pequena
mala de viagem da mão e pousando-a na gare durante alguns instantes.
Depois, pegou nas mãos de Rosie e sorriu com carinho. – Deixa-me olhar
bem para ti!
Violet não reconhecera a jovem com o cabelo cortado à rapaz e um fato
verde-maçã que saiu do comboio. Só percebeu que era Rosie quando ela
acenou e viu o conhecido sorriso atrevido. Esta nova Rosie parecia saída de
uma revista de moda.
Rosie riu-se, embaraçada, enquanto Miss Pemberton a observava.
– Pareces mesmo uma rapariga da cidade – disse. – Estou muito
orgulhosa de ti, Rosie.
Rosie sentiu um nó na garganta, não com os elogios, mas com o afeto que
sentiu nos olhos e na voz da mulher mais velha. Fê-la sentir que ela era
mesmo sua tia, a dar-lhe as boas-vindas a casa após uma longa ausência.
Rosie não falou enquanto atravessaram a cidade porque estava muito
concentrada a olhar para tudo. Bridgwater era um lugar mágico quando era
criança, cheio de pessoas, carros, autocarros e dúzias de lojas com coisas
lindas. Viu o barbeiro onde costumava levar Alan, o armeiro onde o pai
comprava munições, o merceeiro que vendia maçãs caramelizadas caseiras
e a pequena banca de flores onde costumava parar para cheirar as flores e
perguntar os nomes das que não reconhecia.
Lembrou-se de estar parada na ponte a contemplar o rio e os barcos e a
desejar viver ali. Vira a cidade há menos de um ano, quando tivera alta do
hospital, mas não estava como se recordava.
– Deves estar a pensar que tudo encolheu. Como descobri por mim
própria, alguns sítios melhoram quando os deixamos e voltamos mais tarde,
mas outros deviam ficar apenas na nossa memória – disse Miss Pemberton
secamente. – Senti-me como deves estar a sentir-te agora quando voltei para
cá em 1947. Tinha uma lembrança maravilhosa de uma loja de doces com
filas de frascos de vidro reluzentes cheios de todos os tipos de doces que era
possível imaginar. A dona era uma velhota que usava um grande avental
branco e quando eu era pequena dizia-me para fechar os olhos e abrir a
boca e dava-me alguma coisa deliciosa.
«Mal podia esperar para voltar lá. Durante a guerra tinha sonhado com os
seus caramelos e bolinhos de coco. Pensei que iria lá e compraria muitos
quilos de doces...» Desatou a rir.
– Encontrou-a?
– Sim, mas foi uma grande desilusão! Era escura e suja, e quase não havia
doces por causa do racionamento. Estava lá outra senhora, que usava um
avental bastante sujo. Só comprei sessenta gramas de caramelos.
– Não sei qual seria a minha reação se passasse por May Cottage... – disse
Rosie, pensativa.
– Agora, não há lá nada. Deitaram a casa abaixo em janeiro – replicou a
mulher mais velha apressadamente. – Há pouco tempo passei por lá e nem
sequer consegui perceber exatamente onde era: o chão estava coberto de
ervas daninhas e erva.
Rosie sabia que conseguiria encontrar o local certo. Sabia que mesmo
quando fosse tão velha como Miss Pemberton conseguiria dizer exatamente
onde estivera a porta principal de May Cottage. No entanto, não fez
qualquer comentário.

*
– Então, o que achas da minha casinha? – perguntou Miss Pemberton
depois de lhe mostrar a sua pequena casa de dois quartos em Chilton
Trinity. Estavam na minúscula cozinha e ela preparava um tabuleiro com
coisas para o chá.
– É linda – disse Rosie, entusiasmada. – Posso ir ao jardim?
A casa não era tão velha nem tão bizarra como Rosie esperava. Miss
Pemberton dissera-lhe que fora construída em 1880 e que tinha a aparência
simples e prática das casas dos artesãos daquela época. Pedra cinzenta e um
alpendre com gelosias à volta da porta principal. Uma janela em cima, outra
em baixo. No interior havia uma grande divisão onde estavam as escadas
para o primeiro andar e uma pequena cozinha numa extensão da casa.
Originalmente não havia casa de banho, mas Miss Pemberton mandara
dividir o quarto das traseiras ao meio para construir uma. O que mais
agradou a Rosie na casa foi a simplicidade: paredes pintadas de branco,
tábuas de soalho enceradas no rés do chão e um colorido tapete com franjas
para tornar o espaço mais acolhedor. Cada móvel parecia ter uma história.
Havia duas mesas baixas esculpidas que ela disse que trouxera da Índia e
uma secretária muito brilhante com tampo de couro que pertencera ao seu
avô. O sofá era um velho sofá de pele castanho e as duas poltronas
diferentes tinham costas com botões e pareciam muito antigas.
Miss Pemberton abriu a porta das traseiras.
– Tinha-me esquecido de como gostas de jardinar. Quem me dera ter mais
tempo para dedicar ao jardim. Mas a primavera é sempre um bom tempo
para vê-lo, com todos os bolbos a nascer e antes de as ervas daninhas
começarem a aparecer.
No momento em que saiu e viu o jardim escondido rodeado de todos os
lados por sebes com um metro e oitenta de altura, Rosie percebeu que ela e
Miss Pemberton tinham muito mais em comum do que pensara. Só as
pessoas que gostavam verdadeiramente de flores plantavam os seus narcisos
em tufos na relva daquela maneira; os aspirantes a jardineiros plantavam-
nos muito alinhados em canteiros. Sentiu uma emoção profunda ao ver
aquela massa de amarelo no viçoso relvado. Enquanto percorria o carreiro
com Miss Pemberton à sua frente, reparou com prazer no comedouro dos
pássaros com um pedaço de coco para os chapins-azuis, na forma como as
Aubrietas cresciam no meio do pavimento irregular e nas dúzias de roseiras
com reluzentes folhas novas.
Parou para respirar fundo e saborear o ar fresco e doce, com um ténue
odor a estrume, que vinha dos campos do outro lado da vedação. Aquele
cheiro levou-a para May Cottage; se fechasse os olhos conseguiria imaginar
que estava no pomar. Depois, viu a árvore ao lado da arrecadação.
– O que é? – perguntou, assombrada. A árvore tinha flores cor-de-rosa
esbranquiçadas que pareciam velas e começavam a abrir em ramos quase
despidos.
Miss Pemberton virou-se e sorriu.
– É uma magnólia. Gostas?
– É a árvore mais linda que já vi – sussurrou Rosie, sentindo-se
embaraçada quando os olhos se marejaram de lágrimas.
Miss Pemberton rodeou-lhe os ombros com o braço.
– Não há nada errado contigo – disse, suavemente. – Aquela árvore já me
comoveu muitas vezes até às lágrimas. Para mim, é Deus a manifestar-se. E
vais vê-la na sua glória máxima antes de te ires embora.
Mais tarde nessa noite, confortavelmente sentadas junto da lareira, Miss
Pemberton disse a Rosie que a levaria a Taunton no dia seguinte para visitar
Alan.
Rosie emitiu um pequeno grito de entusiasmo e, num impulso, abraçou a
mulher mais velha.
– Vais ver que ele está muito diferente – avisou-a Miss Pemberton. –
Cresceu em todas as direções, está maior, mais confiante e às vezes até um
pouco descarado. É possível que te ignore, como ignora o Thomas.
– Então, o Thomas continua a vir cá vê-lo? – perguntou Rosie. Como a
assistente social não falara sobre ele, partira do princípio de que se tinha
afastado totalmente desde o julgamento, como fizera com ela.
– Claro que sim, minha querida. – Miss Pemberton pareceu surpreendida
com a pergunta. – Na verdade, também vem cá amanhã. Vamos encontrar-
nos com ele em casa dos Hughes e ofereci-lhe o sofá para passar a noite,
para poderes voltar a vê-lo.
Rosie ficou estupefacta. Quando nem sequer recebera um postal de Natal
dele presumira que as mentiras dos irmãos no tribunal tinham acabado com
todo o interesse que tinha por si. Pensar que o veria no dia seguinte fê-la
ficar nervosa.
Explicou isso a Miss Pemberton e perguntou-lhe porque é que ele
quereria vê-la agora.
– Penso que te estás a esquecer de como o Thomas é um homem honrado
e corajoso – disse Miss Pemberton, a tranquilizá-la. – Acho que quando
bateu no fundo do poço em termos emocionais percebeu que também deve
ter sido horrível para ti. Disse que precisava de te ver de novo, nem que
fosse só para esclarecer tudo.
Rosie respirou fundo, para tentar controlar o nervoso miudinho.
– Talvez ele tenha razão e devamos encontrar-nos de novo, mas mesmo
assim tenho medo de o ver.
– Não precisas de ter medo, minha querida. Embora ainda não conheça o
Thomas pessoalmente, conheço muito bem o seu carácter através da
correspondência que trocamos. Ele é um homem bom e solitário; as muitas
tragédias que aconteceram na sua vida deram-lhe grandes reservas de
compaixão e tenacidade. Vais ver que não te tratará com hostilidade. Além
disso, a maior parte deste encontro será para discutir o futuro do Alan, e
tenho a certeza de que é um tema em que estarão ambos em completa
harmonia.
– O futuro do Alan? – Rosie sentou-se direita. – O Thomas quer levá-lo
para Londres?
– Não, minha querida. O Alan é demasiado feliz para se considerar essa
possibilidade. Mr. e Mrs. Hughes gostariam de o adotar legalmente.
Rosie engasgou-se.
– Desculpa. Não queria transtornar-te com isto, Rosie – disse ela,
atropelando as palavras e batendo na mão da rapariga num gesto
tranquilizador. – Espera até o veres com a nova família, e conversa com o
Thomas antes de tirares conclusões. O Alan está muito, muito feliz e bem
adaptado com eles, minha querida, e os Hughes adoram-no. A adoção ia
dar-lhe uma segurança total e permanente.

O primeiro pensamento de Rosie quando viu Alan foi que aquele menino
robusto era um impostor, não o seu irmão mais novo. Nada era igual. O
cabelo adquirira uma tonalidade mais escura, agora mais castanho do que
ruivo, tinha bochechas gordas e rosadas e os olhos castanho-escuros que
fitaram os seus eram ousados e corajosos. Até as roupas eram diferentes –
bonitos calções cinzentos que lhe serviam bem, uma linda camisa aos
quadrados e um casaco de malha azul-marinho tricotado à mão.
– Olá, Alan – disse ela, quase sucumbindo à emoção. Só queria abraçá-lo.
– Lembras-te de mim?
A sala de estar dos Hughes parecia a sala de um anúncio ao Ovomaltine.
Muito após-guerra, cheia de chintz e confortável. O jardim do outro lado
das portas envidraçadas tinha um baloiço e uma caixa de areia. Via-se um
triciclo no caminho e roupa a secar no estendal.
– És a Rosie – disse ele sem sorrir. – Mas o teu cabelo está diferente.
– Cortei-o porque ficava muito despenteado – replicou ela. – O teu está
mais escuro. E deves ter crescido uns cinco centímetros.
Mais tarde, ele veio sentar-se ao seu lado no sofá. Falou-lhe sobre a
escola e mostrou-lhe que sabia ler com o seu livro de leitura. Thomas estava
sentado numa poltrona a observá-los. Miss Pemberton fora para a cozinha
com Mrs. Hughes.
Foi muito estranho voltar a ver Thomas num sítio tão desconhecido.
Desejou que pudessem ter-se encontrado antes de serem confrontados um
com o outro naquela casa. Ele deixava-a nervosa e pouco à vontade, pois
ainda não tinham tido oportunidade para desanuviar o ambiente. Parecia
tenso e pálido e Rosie não percebeu se se devia a cansaço ou nervosismo.
O facto de Alan o ignorar não ajudava. Não falava diretamente para ele,
dizendo as coisas para os dois. E quando Thomas lhe fazia perguntas olhava
para Rosie enquanto respondia. Aparentemente, Mr. Hughes saíra com o
filho e a filha pouco depois da chegada de Thomas, convencido de que seria
mais fácil para Alan sem tanta gente presente. No entanto, Alan só queria
falar sobre Jennifer e Raymond, e o cão Rex.
Rosie ficou magoada ao ver que Alan transferira para a nova família todo
o amor que outrora sentia por ela. Tinha a certeza de que não esquecera que
ela já fora importante para si, porque em diversas ocasiões viu-o a olhá-la
pensativamente. Contudo, se recordou algum incidente não disse nada e
Rosie não se atreveu a lembrar-lhe coisas porque não queria assustá-lo.
Mr. Hughes voltou mais tarde com os outros dois filhos e foi quase um
alívio ficarem sem a pressão de terem de falar com o menino sozinhos.
Juntos, os Hughes pareciam o tipo de família perfeita retratado nos cartazes
de férias: Mrs. Hughes vestia camisola e casaco de malha a condizer, uma
saia de tweed, e tinha uma permanente no cabelo; o marido, que fumava
cachimbo, era mais alto do que ela e usava um pulôver com padrões
coloridos tricotado à mão; Jennifer, uma menina loura de cinco anos com
covinhas no rosto, vestia um bibe de lã azul; e Raymond era igual a todos
os meninos de nove anos com os joelhos muito esfolados e o cabelo cortado
muito curto.
Alan deixou muito claro quem eram os donos dos seus afetos. Subiu para
o colo de Mr. Hughes e recostou-se confortavelmente no seu peito enquanto
sorria para Thomas, muito satisfeito com a sua pessoa. Jennifer estava mais
interessada em Rosie, a admirar o seu cabelo e fato, e perguntou-lhe se
tinha bâton na carteira para ela experimentar.
Enquanto tomavam chá e comiam uma fatia de bolo de fruta, Rosie
pensou que por fim estava perante o tipo de família feliz, calorosa e
descomplicada de classe média que até então só conhecia dos livros de Enid
Blyton. Alan encaixava como se fizesse parte da família desde sempre, e
agora até falava como eles. Tinha um ligeiro sotaque, mas não tão forte
como em tempos. Sentiu alguma inveja, mas o desgosto de perdê-lo foi
maior. No seu íntimo, sabia que era a última vez que veria o irmão mais
novo.
Quando chegaram a casa, Thomas começou a acender a lareira enquanto
Rosie ajudava Miss Pemberton a preparar fiambre, ovos e puré de batata
para o jantar. A conversa foi fluida, sobre a pequena casa, sobre a vida no
campo em comparação com a vida na cidade e a Coroação iminente, mas
Alan não foi mencionado uma única vez.
– Bem, acho que está na hora de falarmos sobre o Alan – disse Miss
Pemberton enquanto passava queijo e bolachas. – Uma das razões
principais para Mr. e Mrs. Hughes quererem adotá-lo agora, em vez de
esperarem alguns anos, é porque temem que comece a fazer perguntas
difíceis sobre a família quando for mais velho.
– Adotá-lo não vai evitar isso – comentou Rosie com um encolher de
ombros.
Thomas e Miss Pemberton entreolharam-se e de repente Rosie percebeu o
que ela queria dizer.
– Está a dizer que se não nos vir, ao Thomas e a mim, não tem motivos
para fazer perguntas?
Miss Pemberton acenou com a cabeça.
Thomas pousou a mão sobre a de Rosie em cima da mesa.
– Estás a perceber o motivo dos Hughes? – perguntou.
– Sim – respondeu Rosie em voz muito baixa. – Eu também não quero
que ele saiba.

Mais tarde, enquanto ajudava Miss Pemberton a arrumar a loiça do jantar,


continuou a pensar no assunto. Thomas confundia-a. Sempre que o via
parecia um pouco diferente. Em certos aspetos era assertivo, noutros
parecia fraco. Por vezes era infantil, outras vezes parecia um velho. No
começo pensara que sabia muito sobre ele e a sua personalidade, mas agora,
depois destes meses afastada dele, sentiu que não o conhecia e aquilo
incomodou-a.

Na manhã seguinte, depois de Miss Pemberton sair de casa, Rosie fez


mais uma chávena de chá para si e para Thomas. Ainda não eram nove
horas e a manhã estava soalheira, mas fria. Miss Pemberton já saíra para o
escritório há duas horas, mas voltaria a tempo de levar Thomas para a
estação às onze.
Thomas estava a avivar um pouco o lume e Rosie trouxe um tabuleiro
com chá para junto dele.
– Quando é que o Alan vai ser adotado? – perguntou. No dia anterior não
ficara totalmente convencida de que era a decisão certa, mas esta manhã
acordara com a certeza de que seria o melhor para o irmão.
– Penso que deve ser o mais depressa possível, não te parece? – disse
Thomas com um suspiro. – Mas vamos deixar este assunto para outro dia.
Quero que me fales sobre o teu emprego. Não disseste uma única palavra
sobre isso.
Thomas estava convencido de que Violet saíra de propósito para que eles
tivessem tempo para falar a sós. Não fazia ideia do que ela pensava que ele
devia discutir com Rosie, mas sabia que não era apenas a adoção de Alan.
– Não há muito para dizer. – Rosie encolheu os ombros. – Quando
regressar vou procurar outro emprego.
– É assim tão mau? – Thomas fez uma careta.
– Não é nada mau – respondeu ela com um sorriso. – Adoro um doente
chamado Donald e afeiçoei-me bastante a alguns dos outros. Gosto das
minhas colegas e há momentos em que nos divertimos a valer. Aprendi
muito lá. Quando fui vê-lo o ano passado estava convencida de que nunca
me acostumaria a algumas das coisas horríveis. Mas acostumei-me.
– A todas? – Thomas ergueu uma sobrancelha.
– Não. – Ela desviou o olhar do dele. – Há a enfermeira supervisora, e um
grande secretismo sobre o que acontece no segundo andar. – Contou-lhe
apenas um pouco e mudou de assunto com uma risada tensa. – O meu
problema é que sou uma bisbilhoteira. Se conseguisse ser como as outras
pessoas e fazer o meu trabalho sem querer saber o funcionamento das
coisas, seria muito mais feliz.
Thomas pensou que Miss Pemberton talvez lhe arrancasse tudo sobre
aquele assunto e estaria em melhor posição para aconselhar Rosie sobre o
que fazer.
– Bem, eu ficaria muito mais contente se te encontrasses comigo em
Londres – disse. – Que tal combinarmos uma noite, por exemplo uma vez
de três em três semanas, para eu te levar a jantar a algum lado?
– Porque é que o Thomas quereria fazer isso? – perguntou Rosie.
– Porque acho que precisamos um do outro.
Rosie observou-o e franziu o sobrolho. Sabia que queria vê-lo, mas não
conseguia imaginar porque é que ele o quereria.
– Para falar sobre o Alan, é isso?
– Bem, sim, mas não apenas isso. Há muitas coisas por resolver entre nós.
Eu não te disse porque é que não entrei em contacto contigo antes.
– Mas eu sei porque foi – replicou ela.
De repente, Thomas soube qual era a conversa que Violet queria que eles
tivessem.
– Talvez penses que sabes, mas não falámos sobre o assunto – disse. –
Talvez eu só te queira como uma amiga. Ou tu não queres ter um velho com
uma perna como amigo?
– É evidente que quero – retorquiu ela, indignada. – Só não vejo como
podemos ser amigos depois de tudo o que aconteceu no julgamento.
– É precisamente por isso – disse Thomas, com a voz a falhar. – Alguma
vez contaste a alguém como te sentiste na manhã em que o Cole foi
enforcado?
– Não – sussurrou ela. – E também não posso dizer-lhe, porque estamos
em lados opostos do caso.
Thomas abanou a cabeça.
– Não estamos nada. Ambos amávamos a Heather, por isso como
poderíamos estar?
Rosie sentiu uma onda repentina de raiva. Estava disposta a poupá-lo aos
pormenores dolorosos de coisas que testemunhara entre Heather e o seu pai,
mas não ia fingir que estava contente por Cole ter sido enforcado só para
que ele se sentisse melhor.
– Bem, então diga-me como é que o Thomas se sentiu na manhã em que o
Cole foi enforcado – retorquiu Rosie. – Pode falar sobre isso?
– Posso. – Ele franziu o sobrolho perante aquela hostilidade repentina. –
Se queres mesmo saber, queria sentir júbilo. Estava convencido de que
gostaria muito de estar lá para o ver cair. Mas acabou por não ser assim.
Não senti nada. Fiquei deitado na cama a ver os ponteiros do relógio
avançar e senti-me dormente. Pensei que me sairia um grande peso dos
ombros, mas não saiu. Senti mais quando o teu maldito irmão foi libertado.
Aquilo deixou-me tão zangado que se ele se aproximasse de mim tê-lo-ia
matado.
Rosie olhou para Thomas. Sabia que aquele comentário viera do coração.
– Se isso ajuda, também fiquei muito zangada – confessou. – Não sei se
era mesmo culpado, mas odiava-o tanto que queria que fosse enforcado.
– E o teu pai?
Arrependeu-se logo de ter feito a pergunta. Ela baixou a cabeça e torceu
os dedos.
– Chorei por ele – disse por fim, num tom desafiador. – Amava-o, fosse
ele o que fosse.
As suas palavras pareceram pairar na sala. Não conseguiam olhar um para
o outro e apenas o estalar do lume abafava a respiração pesada de ambos.
Thomas foi o primeiro a falar, e a sua voz soou rouca e áspera.
– Eu quero conseguir perdoar-lhe, Rosie. Sei que tenho de o fazer se
quiser ultrapassar isto. Ajudas-me?
Há meses que Rosie mantinha os sentimentos pelo pai tão reprimidos que
por vezes acreditava que os tinha erradicado. No entanto, aquele pedido
teve o efeito de uma faca a ser empurrada por baixo da tampa de um frasco
de doce para deixar entrar o ar e de repente saltaram com tanta força como
na manhã da sua morte.
– Como é que posso ajudá-lo – gritou, a chorar –, se nem sequer consigo
ajudar-me a mim mesma?
– Podemos ajudar-nos mutuamente – ouviu-o dizer, e depois sentiu os
seus braços a abraçá-la e puxá-la contra o peito e ele fez-lhe festas no
cabelo como Heather costumava fazer. Percebeu que também estava a
chorar. – Podemos recuperar – sussurrou. – Sei que podemos, se
conseguirmos confiar um no outro e nos tornarmos verdadeiros amigos.
Nós precisamos mesmo um do outro.
CAPÍTULO 9

R osie estremeceu de entusiasmo ao ver a enorme multidão de pessoas


muito amontoadas mais abaixo em Piccadilly. Era o dia da Coroação, 2
de junho de 1953, e mais tarde naquele dia o cortejo real passaria junto
daquela janela a caminho do Palácio de Buckingham. Mal podia acreditar
que fora escolhida pelos pais de Donald para assistir a uma coisa tão
importante e excitante.
Nem sequer a chuva forte poderia ensombrar aquele dia. Estava no
conforto de um apartamento muito grandioso, convidada para a festa da
família Cook, com um invejável lugar na primeira fila. Ao olhar para a
multidão lá em baixo era impossível ver um milímetro de chão atrás das
barricadas. Do outro lado da rua, até as vedações de Green Park estavam
quase escondidas pelas pessoas que tinham encontrado engenhosos métodos
com cordas e caixas para subirem para posições estratégicas. Atrás delas,
mais pessoas ainda atravessavam o parque. O barulho era incrível, um
rugido de centenas de milhares de vozes, a gritar, a rir e a cantar. Muitas
daquelas pessoas estavam acampadas nos passeios desde o dia anterior para
terem a certeza de que veriam bem. Tinham fogareiros a petróleo para fazer
chá, espreguiçadeiras ou caixas para se sentar, cobertores para se
protegerem do frio e chapéus de chuva para se abrigarem da chuva.
Era um mar de vermelho, branco e azul. Chapéus, fitas, bandeirolas e
faixas de papel crepe. E, como se isso não fosse suficiente para mostrar
fervor patriótico, muitas pessoas tinham ido para além de alguns acessórios
e tinham-se vestido com as três cores.
Rosie desviou os olhos do que se via do outro lado da janela e
concentrou-se nas pessoas com quem estava a passar o dia. Mr. e Mrs. Cook
sentavam-se lado a lado num sofá e ela embalava o neto mais novo, um
bebé de catorze meses chamado Robin. Michael, o irmão mais velho de
Donald, e Alicia, a sua mulher, estavam sentados à frente deles com os
outros dois filhos, Clara e Nicholas, de oito e seis anos, respetivamente,
espremidos ao seu lado. Donald sentava-se numa poltrona, muito calmo, e
Susan, a irmã, estava empoleirada no braço a mostrar-lhe um livro ilustrado.
Roger, o marido de Susan, saíra para ir dar um passeio.
Rosie nunca vira uma família como esta. Pensava que os Hughes, os
novos pais de Alan, eram muito simpáticos, mas eram um pouco formais e
contidos. Os Cook eram muito abertos, calorosos e joviais, muito
interessados uns nos outros e nela. Até lhe tinham sugerido que os tratasse
pelos nomes de batismo, pois com tantos Cook era uma grande confusão. Já
tinha dado por si várias vezes naquela manhã a desejar poder tornar-se por
milagre um membro permanente daquele clã em vez de uma mera
convidada para passar o dia.
Michael tinha trinta e oito anos, Susan era dois anos mais nova, e eram
ambos muito parecidos com Donald. Eram todos altos e partilhavam o
mesmo cabelo louro liso, olhos azuis e bocas grandes. Se Donald
conseguisse controlar a boca descaída e molhada, e os movimentos bruscos,
ninguém perceberia que era diferente do irmão e da irmã mais velhos.
Os três netos tinham os mesmos olhos azuis, mas tinham o cabelo
castanho-escuro e as feições mais franzinas da mãe. Clara e Nicholas eram
conversadores e sorridentes. Rosie ficou comovida com o facto de eles não
parecerem achar que o tio Donald, que só tinham visto uma ou duas vezes
antes, era estranho.
Mr. Cook pedira este apartamento, situado num segundo andar,
emprestado a um amigo que estava a tratar de negócios na América. Devia
ser um amigo muito bom porque Rosie ouvira Mr. Cook dizer a Michael
que aposentos com uma vista tão excelente como aquela estavam a ser
arrendados por preços que chegavam às três mil libras para aquele dia.
Também estava convencida de que a casa dos Cook devia ser tão esplêndida
como aquela, porque eles estavam completamente à vontade. Ela, por outro
lado, estava perplexa. Na sua cabeça, era uma casa digna apenas de
membros da realeza ou, no mínimo, de uma estrela de cinema.
A sala de estar onde se encontravam era suficientemente grande para pelo
menos vinte e cinco pessoas. Decorada em tons de azul-claro e bege, as
poltronas e sofás tinham as almofadas mais macias em que Rosie já se
sentara. Havia lindas pinturas de paisagens com molduras prateadas e uma
luxuosa carpete bege. Rosie estava particularmente impressionada com os
cortinados; pensava que deviam ter uns cem metros de veludo azul, pois
tinham pelo menos três metros de comprimento e havia três grandes janelas.
E também nunca vira sanefas assim em toda a sua vida. O veludo estava
drapeado em suaves espirais, cada uma delas presa com uma roseta de um
azul um pouco mais escuro. Perguntou a si mesma o que fariam os
proprietários do apartamento quando os cortinados ficavam sujos. Não
conseguia imaginar como é que alguém poderia lavá-los e engomá-los.
Para além de todo aquele esplendor, também havia televisão. Embora nos
últimos dois ou três anos tivesse ouvido falar e lido muitas coisas sobre
aquela fantástica invenção, era a primeira vez que via uma, sem ser nas
montras das lojas. Quando Mr. Cook abriu as portas do armário e a ligou
naquela manhã, ela soltou um arquejo audível com o milagre de ver um
grande plano da rainha Isabel na carruagem real a caminho da Abadia de
Westminster.
Porém, passadas duas horas a novidade de olhar para o pequeno ecrã
começava a perder o interesse para toda a gente. Todos tinham ficado
maravilhados com a pompa e imaginado as cores do manto da coroação
debruado com arminho, da carruagem dourada, dos cavalos com plumas e
dos arautos com os seus uniformes de cerimónia vermelhos e dourados.
Tinham visto todos os membros da família real, mas começavam a ficar um
pouco fartos e a conversar entre si, e até a dizer piadas irreverentes.
– O que será que aconteceria se a rainha precisasse de ir à casinha? –
perguntou Alicia, a olhar para o ecrã com uma expressão pensativa. O coro
entoava um hino e as câmaras não paravam de fazer grandes planos da
jovem rainha, que conseguia manter-se tão serena como se só estivesse ali
há dez minutos.
– Só tu para te preocupares com uma coisa dessas! – exclamou Michael a
rir às gargalhadas e batendo-lhe no joelho num gesto brincalhão. – Tens
uma mente extremamente escatológica.
Rosie também se riu, pois achava que Alicia era engraçada. Apesar de ter
mais de trinta anos e três filhos, era muito elegante e juvenil. Usava o
cabelo escuro comprido e solto, e o vestido cor-de-rosa com um decote de
coração e mangas de balão dava-lhe a aparência de uma aluna americana do
ensino secundário.
– Bem, ia ser muito difícil – retorquiu ela, indignada. – Imaginem ter de
arrastar aquele vestido comprido e aquela capa?
– Penso que ela foi treinada para esperar – disse Mrs. Cook. A verdade é
que a nora dera voz aos seus pensamentos. Ela chegara à conclusão de que
o mais certo era Isabel não poder beber nada enquanto a cerimónia não
chegasse ao fim. – Afinal de contas, a realeza não é como nós.
Mr. Cook riu-se a bom rir e todos se juntaram a ele exceto Donald, que
pareceu intrigado.
– Ela t-t-tem pernas? – perguntou.
A sua inocente pergunta deu origem a novo ataque de riso de todos.
– Claro que tem, meu querido, mas estão escondidas por baixo do vestido
comprido – respondeu a mãe, pegando numa revista para lhe mostrar uma
fotografia de Isabel com uma saia pelos joelhos, a sair de um avião. Tinha
sido tirada no ano anterior, depois de ela ter sido forçada a regressar da
Austrália na sequência da morte do pai, o rei Jorge.
Donald olhou para a fotografia e franziu a testa.
– Mas porque é que a mãe disse que ela não é como nós? – perguntou,
olhando-a com uma expressão intensa.
Rosie sorriu. Já conhecia Donald há nove meses. Durante aquele tempo
ele surpreendera-a muitas vezes com perguntas que provavam que era tão
capaz de raciocinar como ela. Os anos que passara em Carrington Hall sem
estimulação tinham-no deixado claramente apático, mas quando estava com
uma pessoa disposta a explicar-lhe coisas e a discuti-las com ele parecia dar
grandes passos em frente.
Rosie atravessou a sala para se sentar numa cadeira ao seu lado.
– O que a tua mãe quer dizer é que ela viveu uma vida diferente das
pessoas comuns – disse. Para o preparar para o dia de hoje, passara a
semana anterior a explicar-lhe o objetivo da família real e o significado da
Coroação. Agora diziam-lhe que a rainha tinha funções corporais como
qualquer outra pessoa e ele estava um pouco confuso. – Ela é apenas uma
senhora, como a Susan, a Alicia, ou a tua mãe e eu. Janta, vai para a cama e
toma banho como nós. Mas como era uma princesa e sabiam que um dia
seria rainha, tem damas de companhia e criadas para a ajudarem a vestir-se
e para fazerem tudo por ela. Não sai sozinha, não anda de autocarro nem vai
a lojas. É o que a tua mãe queria dizer quando disse que ela não é como nós.
Donald olhou para Rosie durante alguns instantes e depois esboçou um
enorme sorriso.
– Então, é como eu – disse. – E-e-eu não saio sozinho e as p-p-pessoas
ajudam-me a fazer t-t-tudo.
– Sim, tu também és muito especial – disse Rosie com um sorriso. – E
quando a rainha passar por aqui esta tarde podes acenar-lhe da janela.
Norah Cook tinha o neto nos braços, mas estava a observar e a escutar
esta troca de palavras entre o filho e a amiga com grande interesse e afeto.
Ao que parecia, Rosemary Smith era apenas uma jovem invulgarmente
bondosa e bonita que estava a passar tempo em Carrington Hall até ter
idade para começar a fazer o treino para se tornar enfermeira. Até ao dia de
hoje, Norah imaginava que ela vinha de uma família bastante grande de
classe média baixa, onde a falta de dinheiro, mas muito amor, tinha
produzido uma pessoa competente, inteligente e bondosa.
Apenas nessa manhã um comentário casual revelara que ela era órfã.
Aquilo fora uma surpresa para Norah e gostaria de saber mais, mas a
velocidade com que Rosemary conseguira mudar de conversa fê-la
desconfiar que a sua infância não fora nada como ela pensava.
Desde então, observava a rapariga com muita atenção, analisando tudo.
Era a primeira vez que a via desde que ela cortara o cabelo, e, sem o pouco
favorecedor uniforme e touca castanho-avermelhados para distraí-la, sentiu-
se muito mais capaz de avaliar bem o verdadeiro carácter de Rosemary.
O cabelo cor de cobre cortado muito curto era um pouco vanguardista
numa época em que a maioria das jovens preferia madeixas louras com
permanente e conferia-lhe uma encantadora imagem arrapazada. O fato
verde-maçã com a saia em evasê e casaco justo favoreciam o seu corpo
magro e a cor clara realçava a sua tez rosada e branca. Era sem dúvida uma
roupa barata, talvez comprada num mercado de rua, mas nela parecia
chique, nada reles.
Acrescentando tudo o que observara hoje ao que já sabia sobre ela, sentiu
que Rosemary era um enigma. Era uma rapariga do campo com o seu suave
sotaque do Somerset, o seu amor pelas flores, paciência e docilidade, mas
também tinha um lado mais duro. Embora fosse sempre educada, não era
servil. Gostava de desafios, mas também era muito adaptável. A sua
expressão esta manhã dissera a Norah que nunca entrara num apartamento
tão bonito em toda a sua vida. Talvez também não estivesse acostumada a
conhecer pessoas de uma classe social diferente, mas isso quase não se
notara quando brincou com as crianças, se ofereceu para fazer chá e se
integrou discretamente na família como se fizesse parte dela.
Fora por gratidão que Norah e Frank tinham convidado Rosemary para
passar este dia com eles. Antes da sua chegada a Carrington Hall, Donald
estava muitas vezes com medo, cabisbaixo e apático quando iam visitá-lo.
Agora, graças ao seu interesse por ele, era quase como quando era pequeno,
alegre, cativante e amoroso. Na verdade, sentia que lhe deviam muito mais
do que um lugar de primeira fila para a Coroação.
A enfermeira supervisora não gostara nem um pouco quando a tinham
informado dos seus planos para hoje. Do mesmo modo que dizia sempre
que Donald ficava mal-humorado apenas para aborrecê-los, insistiu que um
dia fora dali com eles ia prejudicá-lo ainda mais. Ficara ainda menos
satisfeita quando pediram para Rosemary lhes fazer companhia, e tinha
insinuado que não era uma rapariga de confiança. No entanto, Norah não
acreditou naquilo nem por um instante e podia ser muito insistente,
sobretudo quando tinha em mente um plano a longo prazo.
Hoje não era apenas um dia de saída para Donald. Era um teste para ver
se ele estava equilibrado o suficiente para poder voltar para casa de vez.
Através de Rosemary e das conversas telefónicas secretas, Norah e Frank
estavam convencidos de que a rapariga tinha razão quando dizia que
Donald não era um perigo para ninguém, desde que tivesse alguma
supervisão. Olhar para ele agora e ver a sua felicidade por estar rodeado
pela família confirmou que tinham cometido um erro muito grande ao
permitirem que desconhecidos os convencessem a interná-lo.
Os seus pensamentos sobre o filho mais novo foram interrompidos pela
descoberta de que o bebé lhe molhara o vestido.
– Acho que o Robin foi afetado pela conversa das funções corporais –
disse, a rir, e levantou-se com ele nos braços. – Vou mudá-lo e fazer chá e
sanduíches antes da coroação – disse.
– Deixe-me fazer isso – disse Rosie, estendendo os braços para o bebé
gorducho e sorridente.
– Sabes mudar fraldas?
– Claro que sei – respondeu Rosie, sorridente. – Costumava mudar o
meu... – calou-se, percebendo de repente que ia dizer irmão mais novo –
primo muitas vezes – acrescentou rapidamente.
– Não se importa, Alicia? – perguntou Norah. Não gostava de tomar
liberdades com a nora; ela podia ser muito possessiva com os filhos.
Alicia acenou com a cabeça e sorriu calorosamente para Rosie. Só
conhecia aquela rapariga há poucas horas, mas percebia muito bem porque
é que os sogros tinham uma consideração tão grande por ela. Era uma mãe
natural e Clara e Nicholas tinham-se afeiçoado logo a ela.
– Só se quiseres mesmo – disse. – As coisas dele estão na casa de banho.
Eu vou ajudar a mãe com as sanduíches.
No momento em que Rosie desapareceu com o bebé nos braços, Michael
levantou-se.
– Que tal se eu levar os miúdos e o Donald para dar uma volta no parque?
– sugeriu à mãe. – Ainda falta pelo menos meia hora para a cerimónia da
coroação e eles estão a ficar um bocado irrequietos.
Norah hesitou. Era completamente a favor de Clara e Nicholas saírem
durante algum tempo, mas não sabia muito bem se seria boa ideia Donald ir
com eles. Ele não andava numa rua há anos e as enormes multidões e o
barulho podiam enervá-lo. Olhou para o marido para tomar a decisão, mas
ele conversava com Susan e não parecia ter ouvido a sugestão de Michael.
Para sua consternação, Donald tinha ouvido e levantou-se de um salto com
um grande sorriso.
Norah olhou para Donald e para o filho mais velho. Desejou que Michael
a tivesse consultado sem que o irmão ouvisse. Teve receio de que ele fizesse
uma birra se não o deixasse ir. Clara tocou-lhe no braço.
– Não se preocupe, avó – disse. – Nós vamos tomar conta do tio Donald.
Eu seguro-lhe a mão com muita força.
Norah suspirou. Nicholas e Clara já seguravam as mãos de Donald e, com
o outro filho a insistir também, sentiu-se impotente. Michael e Donald eram
muito parecidos fisicamente e sempre houvera um laço muito forte entre
ambos porque Michael cuidava muitas vezes do irmão mais novo quando
ele era pequeno. Também sabia que ele se sentia culpado por não visitar o
irmão muitas vezes, agora que tinha uma família. Queria tempo a sós com
ele.
– Está bem – concordou com relutância. – Mas tem cuidado.
Dez minutos mais tarde Frank entrou na cozinha, onde as mulheres
estavam a fazer sanduíches.
– Onde está toda a gente? – perguntou, sentando-se à mesa central e
mexendo em algumas fatias de fiambre.
O apartamento era grande, com dois quartos, uma sala de jantar e uma
grande cozinha, para além da enorme sala de estar. Tinha paredes interiores
tão grossas que era muito possível que as crianças estivessem a brincar num
dos quartos sem serem ouvidas.
– A Rosemary está a mudar o Robin e os outros saíram – disse Norah
enquanto punha manteiga no pão.
Frank olhou para ela.
– O Donald não, espero?
Norah explicou apressadamente.
– Não posso acreditar! – disse ele, alarmado, e afastou a cadeira com
tanta força que ela caiu com estrondo no chão. – Em que é que estavas a
pensar, mulher? Lá fora está um pequeno circo. O Donald não sabe
atravessar uma rua sozinho, e muito menos lidar com todas aquelas pessoas.
Norah olhou para o marido com alguma indignação. Como Michael, ele
era bondoso, mas era um homem grande, com uma voz forte, e tinha
tendência para esquecer que quando se exaltava deixava as pessoas
nervosas.
– Foi tudo falado enquanto tu estavas na sala com a Susan – retorquiu
Norah. – Porque é que não disseste nada nessa altura em vez de te irritares
comigo agora?
Frank lançou-lhe um olhar fulminante enquanto se dirigia para a porta.
– Não vos ouvi. E às vezes pergunto-me se alguém nesta família tem
cérebro. É melhor ir procurá-los e trazer o Donald para casa.

Mais ao fundo do corredor, Rosie não sabia nada do que se passava.


Robin estava deitado numa toalha no chão da casa de banho a abanar as
perninhas gorduchas no ar; ela estava ajoelhada ao seu lado, a lavá-lo.
Pensou que, a seguir a Alan, era o bebé mais lindo que já tinha visto.
Não se apressou, fazendo-lhe cócegas para ele se rir, brincando com os
seus dedos dos pés e desejando trabalhar a cuidar de bebés em vez de
deficientes mentais adultos.
Miss Pemberton aconselhara-a a não ter muita pressa para mudar de
emprego e não dera importância à sua impressão de que algo se passava no
segundo andar. Referiu que muitas pessoas que trabalhavam em instituições
para doentes mentais eram um pouco estranhas, mas isso não significava
que fossem cruéis. Na sua opinião, Rosie devia ficar um ano inteiro no
emprego e procurar bem em Londres antes de decidir o que faria a seguir.
Contudo, por muito que prezasse a opinião de Miss Pemberton, não foi
ela que a impediu de sair de Carrington Hall.
Foi Donald.
Ele conquistara um lugar no seu coração sem que Rosie desse por isso e
sempre que pensava em mudar de vida vinha-lhe à lembrança o que lhe
faria ver-se de repente sem a sua amiga especial. As outras raparigas
troçavam dela, dizendo que no seu dia de folga ele ficava sentado num
canto e quase não falava. Como poderia sair dali quando ele dependia tanto
dela?
Nos dias em que Carrington Hall a desanimava, fazia uma lista mental de
todas as coisas boas da sua vida: tinha amigas, por fim o peito crescera o
suficiente para usar um sutiã, ainda que tivesse de ser almofadado para
poder usar as camisolas justas que estavam na moda sem parecer a Olívia
Palito; até crescera alguns centímetros para um respeitável metro e sessenta;
nos bailes onde ia com Linda e Mary percebeu que falava com rapazes com
facilidade, embora não tivesse conhecido ninguém de quem gostasse o
suficiente para combinar um encontro; orientava-se bem em muitas zonas
de Londres e, quando o tempo melhorasse, pretendia aventurar-se mais
longe.
E depois havia Thomas. Encontrara-se com ele duas vezes para jantar em
Finchley desde a Páscoa e era muito bom estar com alguém de quem não
tinha de esconder coisas.
A adoção de Alan estava em curso e seria quase de certeza concluída
nesse verão, mas não conversavam muito sobre esse assunto. Também não
tinham voltado a falar sobre Cole ou Heather. Foi quase como se tivessem
subido um patamar por acordo tácito, deixando ficar lá em baixo todas as
coisas que os tinham magoado.
Conversavam sobre as coisas que estavam a acontecer no mundo naquele
momento, sobre filmes, livros e música. Thomas era bom para ela,
contestava as coisas que dizia, fazia-a pensar por si em vez de repetir coisas
que lhe tinham dito. Dizia que ela era boa para ele porque lhe recordava que
ainda era um homem jovem, fazia-o rir e até o fazia esquecer que só tinha
uma perna.
Donald também estava nessa lista de coisas boas. No topo. Era o seu
amigo pouco exigente, o seu aluno atento e, por vezes, o seu filho. Por ele
conseguia aguentar a malevolência e a intromissão da enfermeira
supervisora, ignorava os barulhos do segundo andar, os hábitos porcos de
Maureen e a claustrofobia de passar o dia inteiro fechada dentro de casa
quando o sol brilhava lá fora. Ele podia ser simples, mas preenchia uma
grande necessidade dentro de si. Ver o seu sorriso alegre quando entrava no
dormitório pela manhã animava-a e era muito gratificante ensinar-lhe
pequenas coisas. Só conseguiria sair de Carrington Hall feliz se os pais o
levassem para casa.
– Já está – disse para Robin, pegando no bebé limpo e seco e dando-lhe
um beijo. – Vamos ver o que o teu irmão e a tua irmã andam a fazer.
Enquanto voltava para a sala de estar, ouviu a voz de Mrs. Cook na
cozinha.
– Oh, onde é que eles estarão, Susan? Não os devia ter deixado sair e
agora o Frank também está lá. E se o Michael deixar as crianças para correr
atrás do Donald?
Rosie sentiu uma pontada de ansiedade. Mrs. Cook parecia transtornada.
Parou à porta da cozinha. Mrs. Cook, Susan e Alicia estavam muito juntas;
olharam-na quando entrou e tinham expressões tensas.
– O que é que se passa? – perguntou Rosie. – Aconteceu alguma coisa ao
Donald?
Mrs. Cook explicou.
– Depois o Frank saiu para ir procurá-los – acrescentou. – E agora o
Roger também foi. Achas que o Donald pode fugir?
– Não fugiria de propósito – disse Rosie, mas sentiu um aperto no
coração. Não conseguia acreditar que um adulto sensato como Michael
fosse irresponsável ao ponto de sugerir levá-lo para a rua. Não conseguia
pensar no que poderia acontecer se alguém o assustasse, ou se ficassem
separados no meio da multidão. Ele estava trancado numa casa há nove
anos, privado de qualquer possibilidade de pensar por si, e duvidava que
tivesse algum sentido de orientação. Não conseguiria dizer a ninguém onde
estavam os pais e, se estivesse muito perturbado, achava que nem sequer
conseguiria dizer o seu nome todo. – Também vou procurá-lo.
– Vê lá se não te perdes – disse Alicia, e começou a chorar.
Rosie percebeu que ela estava descontrolada, a pensar que naquele
momento os filhos podiam estar sozinhos na rua, e apressou-se a
tranquilizá-la.
– Acontecesse o que acontecesse, o Michael nunca deixaria a Clara e o
Nicholas – disse, com maior calma do que sentia. – Mesmo que tenha
perdido o Donald, é provável que os traga para cá antes de ir procurá-lo. –
Devolveu o risonho Robin à mãe e dirigiu-se para a porta principal,
pegando na gabardina antes de sair.
– Tem cuidado, Rosemary – disse Mrs. Cook, com a voz histérica de
pavor.
Chovia muito e Rosie demorou algum tempo a abrir caminho por entre a
multidão, o mar de chapéus de chuva e as barreiras para atravessar a
estrada. Quando atravessou os portões de Green Park vislumbrou a cabeça
de Michael através de um espaço na multidão. Encontrava-se a cerca de
vinte metros de distância, rodeado de muitas pessoas, por isso não
conseguiu perceber com quem estava.
Rosie abriu caminho com os cotovelos pelo meio da densa multidão. Era
difícil porque estava a ir na direção contrária. De vez em quando tinha de
saltar para ver por cima dos ombros das pessoas, para se certificar de que
não tinha passado por ele.
– Michael – gritou quando contornava as últimas pessoas que os
separavam. Clara e Nicholas estavam com ele, mas Donald não. As duas
crianças pareciam assustadas. – O que é que aconteceu? – perguntou
quando chegou mais perto.
– Um polícia a cavalo aproximou-se e o Donald fugiu apavorado – disse
ele, encolhendo os ombros. – Tentei ir atrás dele, mas com estes dois não
consegui. Não se vê nada no meio das pessoas. Só Deus sabe onde ele está
agora.
– Leve as crianças para a Alicia – disse Rosie sem pensar que era muito
presunçoso estar a dar ordens a um homem adulto. – Eu vou continuar a
procurar. Para que lado é que ele foi?
– Não vi, ele simplesmente desapareceu, mas estávamos a meio do Mall
quando fugiu.
Rosie não disse mais nada e embrenhou-se no parque. Subiu a todos os
bancos que encontrou para observar a multidão, em busca daquela
conhecida cabeça loura. No entanto, não conseguia vê-la.
O seu coração começou a bater muito depressa. Tentou imaginar o que ele
faria quando ficasse sozinho e isso deixou-a ainda mais assustada. Era
muito possível que agarrasse uma pessoa que lhe agradasse e lhe desse um
dos seus assustadores abraços fortes, e quem sabia o que isso provocaria!
Por outro lado, se estivesse mesmo assustado talvez ficasse parado a chorar.
A maioria dos adultos aproximava-se de uma criança que chorava para lhe
perguntar o que se passava, mas um homem adulto era uma coisa muito
diferente. As pessoas evitavam os deficientes mentais e hoje, quando toda a
gente queria encontrar um lugar para ver o cortejo, não queriam certamente
estorvos.
Só podia continuar a procurar e desejou ser mais alta para conseguir ver
por cima das cabeças das pessoas. Os chapéus de chuva e as cabeças
complicavam a sua missão. Estupidamente, nem sequer perguntara se
Donald tinha vestido uma gabardina, ou de que cor era.
Ao chegar ao outro lado do parque, perto do Mall, a multidão era ainda
mais densa do que em Piccadilly. Era impossível ver para além das pessoas
que estavam mais próximas. Pior ainda, estava a ser levada por elas, presa
de todos os lados. Percebeu que aquilo também devia estar a acontecer a
Donald e chegou à conclusão de que teria de encontrar um sítio alto para
onde pudesse subir e observar a multidão.
Quando saiu para o Mall, abriu caminho contra o fluxo de pessoas e
dirigiu-se para um muro alto. Dúzias de pessoas já tinham ocupado todos os
centímetros disponíveis no cimo do muro, pois era um dos melhores lugares
para ver o cortejo. Reuniu toda a sua coragem, esticou-se e abanou o sapato
de um homem. Ele olhou para ela, surpreendido.
– Pode ajudar-me a subir só um instante? – gritou. – Perdi uma pessoa e é
o único lugar de onde conseguirei avistá-lo.
Sentiu que abordara um homem decente. Ele tinha um ar duro de operário
e usava um boné de pano. Não era muito diferente dos homens de Catcott.
Além disso, tinha um sorriso caloroso.
– Se quiseres, podes sentar-te no meu colo – disse ele a rir, sem deixar de
olhar para ela. – Dá-me a mão e eu puxo-te. Não vou ceder o meu espaço,
nem a uma rapariga tão linda como tu.
Rosie ergueu as duas mãos e ele agarrou-as, puxando-a para cima; o
amigo que estava ao seu lado segurou-a pela cintura e de repente estava no
meio deles.
– Quem é que perdeste? – perguntou o primeiro homem. – O teu
namorado ou a tua mãe?
– Nada disso – respondeu Rosie, tentando manter-se de pé entre os dois
homens. O seu sotaque do East End lembrou-lhe Heather. – Perdi um
doente do lar onde trabalho. Ele tem cerca de um metro e oitenta, vinte e
quatro anos e cabelo louro. Nunca esteve em Londres e é um bocado
simples.
A vista para o Mall era deslumbrante e nunca vira tantas pessoas em toda
a sua vida. Foi como ver o Mercado de Natal de Midsomer Norton cem
vezes, e as pessoas estavam tão amontoadas que era impossível distinguir
alguma coisa. Percebeu que procurava a proverbial agulha num palheiro.
Foi passada palavra ao longo do muro que ela procurava alguém, e de
repente um par de binóculos chegou-lhe às mãos.
Rosie perscrutou várias vezes a multidão. Com os binóculos conseguia
ver pormenores, uma menina às cavalitas do pai, chapéus de todas as cores,
pessoas ruivas, morenas e louras, mas nada de Donald.
Soltou um suspiro profundo e devolveu-os.
– De qualquer maneira, obrigada. Acho que vou ter de ir à polícia.
– Se virmos alguém parecido com ele mantemo-lo aqui para ti – disse o
homem. – Como é que ele se chama?
– Donald Cook – respondeu Rosie. – Digam-lhe para esperar pela Smith,
está bem?
Preparava-se para pedir que a descessem quando olhou para a direita e
para o Palácio de Buckingham. De repente, teve uma intuição de que era
para onde Donald iria se tivesse conseguido chegar tão longe. Mostrara-lhe
algumas fotografias há dois dias e ele ia quase de certeza reconhecê-lo.
Os homens baixaram-na de novo e dirigiu-se para o palácio. Quanto mais
se aproximava, mais impenetráveis se tornavam as multidões. Era como se
a Inglaterra inteira estivesse determinada a ver a rainha coroada quando ela
viesse mais tarde à varanda acenar, e todos guardavam ciosamente o
minúsculo espaço que conseguiam conquistar. No entanto, o mais puro
terror deu-lhe forças para continuar a abrir caminho. Tinha de encontrar
Donald o mais depressa possível. Soube por instinto que se estivesse muito
assustado, e apesar de nunca ser violento, Donald poderia atacar se se
sentisse ameaçado.
Milagrosamente, quando chegou ao fim do Mall, onde a rua se bifurcava
dos dois lados de uma grande estátua, viu uma zona onde a multidão era
menos compacta. Correu para aquele espaço e abriu caminho com os
cotovelos até à barreira que separava a multidão da rua.
– Ei, este é o meu lugar – exclamou uma mulher sentada num banco
desmontável com uma expressão indignada. – Passei a noite inteira aqui
para o guardar. Não vais meter-te aí agora e tirar-me a vista.
Rosie pediu desculpa rapidamente e explicou-lhe o seu problema.
– Bem, não faz mal desde que desapareças daí depois de olhar – disse a
mulher. – Não te passa pela cabeça o que alguns patifes descarados têm
feito.
Enquanto espreitava para as vedações do palácio, onde as multidões eram
mais densas do que nunca, teve a estranha sensação de estar perto dele,
embora não conseguisse vê-lo. Via-se uma carrinha preta da polícia do lado
de fora dos portões do palácio e apercebeu-se de uma frenética
movimentação das pessoas que estavam ali reunidas, como se tivesse
começado uma briga. Uma espécie de burburinho percorreu o grupo onde
ela estava e as pessoas puseram-se em bicos de pés e esticaram o pescoço
para ver.
Dois polícias pareciam estar a arrastar alguém do meio da multidão. A
chuva caía com intensidade, tornando ainda mais difícil perceber o que se
passava, mas quando teve um breve vislumbre de cabelo louro passou por
cima da barreira e correu para a rua sem parar para ter a certeza se era
Donald.
– Vão prender-te – berrou a mulher atrás dela, mas Rosie não se importou
e continuou a correr.
Era Donald, e estava a debater-se enquanto os polícias tentavam enfiá-lo
na carrinha.
– Soltem-no! – gritou Rosie enquanto corria para ele.
Pelo canto do olho viu outros polícias correr para a tirarem dali, mas
estava determinada.
– Smith – gritou Donald quando a viu, e os polícias deviam ter afrouxado
a pressão nos seus braços durante alguns momentos porque ele soltou-se e
correu para ela como uma criança, com os braços esticados, indo ao seu
encontro no meio da rua.
Tinha o rosto manchado pelas lágrimas, um corte por cima de um olho e a
gabardina rasgada. Parecia desvairado e transtornado.
– Donald – foi a única coisa que Rosie conseguiu dizer quando ele a
apertou num forte abraço. – Graças a Deus que te encontrei.
Um grupo de polícias procurava retirá-los da estrada, Donald gaguejava a
tentar contar-lhe o que acontecera e os dois polícias que tentavam enfiá-lo
numa carrinha estavam a perguntar, aos gritos, quem era ele e o que é que
tinha. Apesar de estar feliz por tê-lo encontrado, Rosie sentia relutância em
dizer-lhes que ele era simples na sua presença.
– Tenho de o levar para casa sem demora – insistiu, quando estavam de
novo junto da carrinha da polícia e o segundo grupo de agentes se tinha
afastado. – A família dele está a morrer de preocupação porque só veio
passar um dia a casa. Ele não fez nada de mal, pois não?
– Nada, a não ser tentar chegar até à vedação da parte da frente do palácio
– respondeu o mais velho dos dois agentes. Ostentava uma expressão severa
e olhava para Donald com muita atenção, como se estivesse a tentar avaliar
se era perigoso. – Mas num dia como o de hoje é praticamente motivo para
a forca.
Rosie percebeu que era apenas uma expressão, mas fê-la tremer.
– Quem é que lhe bateu? – perguntou.
Naquele momento, um carro da polícia parou e os polícias deixaram
Rosie e Donald por breves instantes para irem falar com os colegas.
– Alguém na multidão deu-lhe um soco – disse uma voz perto de si. – E
se estivesse no teu lugar, querida, pirava-me com ele antes que os polícias
voltem.
Rosie virou-se e viu que a voz pertencia a um jovem robusto com cabelo
castanho-claro encaracolado e olhos azuis cintilantes. Usava uma gabardina
castanha comprida e tinha uma roseta vermelha, branca e azul presa na
lapela.
– Eu estava perto dele – continuou o homem. – Podia ter ficado muito
mais feio, especialmente com tantas crianças pequenas à volta. Mas estás
branca como a cal e completamente encharcada. Deixa-me ajudar-te a levá-
lo para casa antes que eles insistam em levar-vos aos dois para a esquadra.
Rosie não ia deixar que isso acontecesse. Mrs. Cook já devia estar fora de
si de tanta ansiedade e lembrou-se de que nem sequer sabia o número do
telefone do apartamento para poder telefonar-lhes a dizer que Donald estava
em segurança. Tinha de voltar para lá sem demora, caso contrário o dia
ficaria estragado para todos.
– Só tenho de atravessar o parque outra vez – disse, apertando o braço de
Donald e levando-o para longe da polícia. – O apartamento é em Piccadilly.
Mas eu fico bem sozinha.
– Vocês precisam de ajuda – insistiu ele e, dizendo isto, pegou no outro
braço de Donald e começou a levá-lo em direção ao parque. Rosie não teve
outra alternativa a não ser acompanhar o ritmo dos dois homens.
Já no parque e longe da polícia, o jovem parou durante alguns instantes.
– Desculpa. Devo parecer muito mandão – disse, a sorrir para Rosie. –
Sou o Gareth Jones. Também me perdi dos meus colegas, por isso sei como
o teu amigo deve sentir-se.
Rosie apresentou-se e disse-lhe que estava muito grata pela sua bondade,
mas que não era preciso continuar a acompanhá-los.
– Escuta, querida – disse Gareth com um olhar intenso que indicava que
percebia que Donald não tinha os parafusos todos. – Ele está molhado e
com frio, e até pode estar em estado de choque por causa daquele murro.
Vou levar-vos para casa, para saber que conseguiram chegar em segurança.
Donald apertou a mão de Rosie com força enquanto percorriam o parque
e não disse nada. Ela pensou que Gareth podia ter razão, Donald talvez
estivesse em estado de choque. Felizmente, a multidão já estava menos
densa; presumivelmente, todas as pessoas tinham conseguido arranjar
lugares para ver o cortejo. Rosie explicou a Gareth a localização exata do
apartamento.
Ele era um homem muito desembaraçado. Quando perceberam que já não
podiam atravessar Piccadilly, levou-os para o metropolitano de Green Park
e subiram as escadas do outro lado. Rosie nunca se teria lembrado disso.
Donald estava a chorar quando chegaram ao outro passeio; as multidões
eram novamente mais densas e Rosie sentiu que ele estava a entrar em
pânico porque já não conseguia caminhar ao seu lado. Gareth também
percebeu.
– Agarra-te bem ao meu cinto – disse. – E tu agarra-te ao do Donald –
gritou para Rosie.
A luta final pelo meio da multidão, aos encontrões até às portas de vidro
do prédio de apartamentos, foi desesperada, pois ninguém cedia um
milímetro. Porém, o alívio de Rosie quando viu Mr. Cook descer as escadas
a correr para abrir a porta, e a alegria no seu rosto ao ver o filho ao seu lado,
apagou aquela hora terrível.
– Encontraste-o! És um anjo – exclamou ele, com o rosto já vermelho
ainda mais corado de júbilo. – Telefonámos para a polícia, mas disseram-
nos que seria tão provável encontrá-lo hoje como ir à Lua.
Antes de Rosie poder explicar o que quer que fosse, quem era o
desconhecido que estava com eles ou como é que Donald fizera o corte por
cima do olho, toda a família desceu as escadas para vir recebê-los. Todos
falavam ao mesmo tempo. Mrs. Cook e Susan tinham os olhos inchados de
chorar e Mrs. Cook envolveu Donald e Rosie num forte e emocionado
abraço.
– Todos perdemos a coroação – disse Susan, agarrando os ombros de
Rosie e apertando-os com afeto. – Nenhum de nós sabia o que fazer. Os
homens têm andado dentro e fora como baratas tontas e as crianças
choraram imenso porque pensaram que também te tinhas perdido.
Só então é que Rosie conseguiu falar para apresentar Gareth e explicar
como os tinha ajudado a voltar.
– Então, tem de se juntar à nossa festa – disse Mr. Cook com um sorriso
radioso, e bateu no ombro de Gareth. – É o mínimo que podemos fazer.
Entra, filho. Estamos-te muito agradecidos.
Gareth pareceu chocado.
– Não me posso juntar à vossa festa de família! – disse.
Mas Mr. Cook insistiu, dizendo que se não fosse a sua ajuda não haveria
festa, e subiu as escadas à frente de todos. Alicia ficou com os seus casacos
molhados e Susan foi buscar chá. Depois, quando Michael levou Donald
para a casa de banho, para lhe lavar a cara e procurar algumas roupas secas,
o resto da família quis saber tudo sobre Gareth.
Rosie recostou-se a observar a calorosa reação da família a um completo
desconhecido e deu por si a comparar o seu código de comportamento com
aquele com que crescera. Pessoas desconhecidas nunca eram bem-vindas
em May Cottage; até os homens que vinham visitar o pai para tratar de
negócios raramente eram convidados para entrar. Perguntou a si mesma o
que Cole teria pensado dos Cook. Certamente, não se enquadravam em
nenhuma das suas classificações de pessoas.
Durante a infância fora condicionada a acreditar que todas as pessoas com
dinheiro e classe eram snobes que olhavam com desprezo para as pessoas
da classe operária. Cole desprezava ainda mais a classe média, dizendo que
imitavam «os seus superiores». Quanto às pessoas comuns da classe
operária, também não gostava delas por serem demasiado servis e por não
serem corajosas. Enquanto observava e escutava os Cook, sentiu que eram o
tipo de pessoas que devia aspirar a ser. Não eram snobes nem bajuladores.
Tinham uma classe muito própria.
Gareth também parecia à vontade com eles, apesar de ser um operário
com um fanhoso sotaque londrino.
– Trabalho nos comboios, em Clapham Junction – disse. – Vim com um
grupo de colegas, mas perdi-me deles cerca de uma hora antes de ver o
Donald perto do palácio. Foi uma sorte a Rosemary ter chegado naquele
momento... mais alguns instantes e a polícia tinha-o metido na carrinha e
levado só Deus sabe para onde.
Donald voltou da casa de banho com um penso por cima do olho e um
par de calças secas. Não estava nada abalado com a sua odisseia. Como
uma criança, no instante em que se sentiu de novo em segurança exultou
com a aventura e nem sequer falou no homem que lhe tinha batido.
– Eu vi o p-p-palácio – gabou-se. – E os soldados com os chapéus de p-p-
pele.
Rosie foi a heroína do dia. Enquanto esperavam pela passagem do
cortejo, todos quiseram saber exatamente como e onde é que o tinha
encontrado e pareciam pensar que ela era muitíssimo inteligente. Depois de
ser a funcionária mais nova em Carrington Hall e de ser ignorada ou
considerada culpada pelas superioras por tudo o que corria mal, era bom ser
admirada e amimada. E além disso havia aquele jovem muito bonito que
estava sentado ao seu lado, a perguntar-lhe onde trabalhava e a dizer que
conhecia bem Woodside Park.
O cabelo dele secou, enchendo-se de pequenos caracóis apertados, os
seus olhos eram de um azul brilhante e tinha uma encantadora covinha no
queixo. Rosie perguntou a si mesma que idade é que ele teria. Parecia ter
uns vinte e dois, mas tinha a confiança de um homem muito mais velho.
– Os meus pais vivem em Mill Hill, que não é muito longe – disse. – O
meu pai vende carvão e é de boa cepa galesa – acrescentou, falando com
um brincalhão sotaque galês. – Eu tentei afastar-me o mais possível do
carvão, mas agora sou maquinista de comboios e continuo dependente
daquilo.
Por fim, o cortejo chegou. Primeiro apenas tambores distantes e um
silêncio na rua, e depois gritos quando as pessoas que estavam mais
afastadas avistaram a carruagem dourada. Toda a família correu para as
janelas, abrindo-as de par em par apesar da chuva, e o barulho das
multidões encheu a sala e abafou todas as conversas.
Foi tão magnífico que Rosie chorou. Ver um cortejo daqueles na televisão
era muito empolgante, mas a televisão só mostrava vislumbres e não a cor
ou o pormenor. Os uniformes vermelhos e dourados, o tilintar de esporas
em botas reluzentes, o brilho nos flancos dos cavalos, os alabardeiros do rei,
a guarda real montada, lacaios e cocheiros, tudo aquilo excedeu a sua
fantasia mais desenfreada. A carruagem dourada parecia saída de um conto
de fadas, muito mais bonita do que as ilustrações deixavam antever. Rosie
debruçou-se na janela quando a carruagem se aproximou, acenando
freneticamente, e, para seu profundo espanto, a jovem rainha com a sua
coroa e trajes cerimoniais olhou para cima e para ela, levantando uma mão
num cumprimento, quase como se soubesse que esta súbdita guardaria
aquela recordação no coração e na memória até ao fim dos seus dias.
Um ano antes, Rosie possuía apenas um vestido decente; era uma
maltrapilha descalça que nunca saíra do Somerset. Londres e a realeza eram
tão inacessíveis e distantes como a África ou a Austrália. No entanto, aqui
estava ela agora, debruçada numa janela de um luxuoso apartamento em
Piccadilly, com uma bandeira do Reino Unido na mão e a gritar até ficar
rouca, e a rainha acenara para ela.

– Ficas para jantar connosco? – perguntou Mrs. Cook a Gareth depois de


o longo cortejo passar e de as multidões que enchiam as ruas começarem a
dispersar, algumas pessoas a voltarem para casa, mas mais ainda a
dirigirem-se para Green Park para tentarem chegar ao palácio e ver mais
uma vez toda a família real quando se reunissem mais tarde na varanda.
– É muito simpático da sua parte, Mrs. Cook – disse Gareth com um
sorriso tímido. – Mas é melhor ir procurar os meus amigos. Muito obrigado
por me terem deixado ver o cortejo convosco. Duvido que tivesse
encontrado um sítio melhor ou companhia tão boa.
Rosie olhou para Gareth com grande admiração. Ele podia ser apenas o
filho de um vendedor de carvão, mas a sua confiança, dignidade e modos
eram tão impecáveis como os de Michael e Roger.
– Espero voltar a encontrar-te um dia – disse Mrs. Cook. – E quero
agradecer-te mais uma vez por teres resgatado o meu filho e a Rosemary.
Queres acompanhar o Gareth à porta, Rosemary?
Depois de ele se despedir de toda a gente, Rosie acompanhou-o até à
entrada e foi buscar a sua gabardina.
– Ainda está muito molhada – disse, tocando-lhe nos ombros. – E se não
conseguires encontrar os teus amigos?
– Vou conseguir. Estão no pub perto de Charing Cross, espero. Senão,
volto para casa, em Clapham, sozinho. Mas, antes de ir, gostavas de sair
comigo uma noite destas?
Tinha sido um dia cheio de choques e a boca de Rosie abriu-se de
surpresa. Conhecera alguns rapazes em bailes, e até dera um ou dois beijos
quando a levavam a casa. Mas Gareth era um homem, não um rapaz. Não
soube o que responder.
– N-n-não sei – gaguejou.
– Pelo menos vais pensar? – perguntou ele num tom suplicante.
Rosie olhou-o por entre as pestanas. Gostava dele só por ter sido tão
bondoso com Donald; os seus cintilantes olhos azuis, a pele clara cor de
pêssego e aquele sorriso rasgado e sedutor eram muito atraentes. Gostava
dele. Mas um encontro!
– Está bem – foi tudo o que conseguiu dizer.
– Está bem saíres comigo ou só pensar no assunto? – perguntou ele,
sorridente.
Rosie percebeu de repente que se arrependeria mais tarde se o deixasse ir-
se embora sem uma resposta concreta.
– As duas coisas – respondeu, e sorriu porque de repente percebeu que
era o que Linda chamava «uma reviravolta do destino».
– Na próxima quarta-feira à noite? – perguntou ele, erguendo uma
sobrancelha escura. – Trabalho no turno da noite até lá.
Rosie acenou com a cabeça. Parecia faltar imenso tempo.
– Queres que anote a morada?
– Não é preciso. Sei onde fica Carrington Hall. E vou buscar-te às sete e
meia – disse, abrindo a porta e descendo as escadas. Só depois de ele sair
para a rua é que se lembrou de que a enfermeira supervisora não gostaria
que um jovem fosse buscá-la lá a casa.
– Tiveste um bom dia, apesar da fuga do Donald? – perguntou-lhe Mr.
Cook enquanto a levava e a Donald para Carrington Hall às oito da noite.
Agora chovia com mais intensidade ainda e as ruas estavam desertas
quando saíram do centro de Londres. Donald ia no banco de trás, quase a
dormir.
– Foi o melhor de sempre – respondeu Rosie com um suspiro profundo. –
Por muitos anos que viva, nunca vou esquecê-lo.
Depois de Gareth sair tinham comido um jantar gigante, com fiambre,
frango, salada e trifle de xerez. A seguir, Mrs. Cook trouxera um bolo que
tinha comprado na Fortnum and Mason. Estava coberto com glacé como
um bolo de noiva, com uma minúscula carruagem dourada e todos os
cavalos no meio. Mrs. Cook oferecera-lhe a carruagem para ficar como
recordação. Ela embrulhara-a num guardanapo de papel, juntamente com
um pedaço de bolo para oferecer às outras raparigas quando chegasse a
casa.
Como se isso não bastasse, tinha marcado um encontro para sair. Mal
podia esperar para lhes contar tudo.
Frank Cook olhou de lado para Rosemary e sorriu. Era uma jovem muito
interessante, muito sensata, prática e calma, mas tinha outro lado que
vislumbrara enquanto ela via passar o cortejo. Também era emotiva, cheia
de fogo e riso, mas tinha a forte impressão de que fora obrigada a reprimir
este lado da sua personalidade por algum motivo.
Percebia muito bem porque é que aquele jovem maquinista de comboios
correra para ajudá-la. A pequena cabeça com um reluzente cabelo cor de
cobre, aqueles olhos azul-miosótis que pareciam questionar tudo, as sardas
que lhe salpicavam o nariz e aquele caloroso sorriso sempre pronto eram
encantadores.
– Espero que nos faças companhia noutras saídas com o Donald – disse.
– Gostaria muito – respondeu Rosie com ardor. – Mas para a próxima
talvez seja melhor escolherem um sítio sem multidões!
Frank soltou uma gargalhada. Tinha um lugar perfeito na cabeça. No
entanto, achou que não devia dizer-lhe ainda onde era.
CAPÍTULO 10

À s sete da manhã do dia a seguir à Coroação, Rosie preparava-se para


abrir a porta exterior que dava acesso à sala de dia e aos dormitórios
do primeiro andar quando a enfermeira supervisora subiu as escadas a arfar.
Ostentava a sua expressão especial, carrancuda, que Rosie já sabia que era,
invariavelmente, sinónimo de sarilhos.
Rosie continuava intrigada com a forma inesperadamente azeda como o
dia anterior terminara. Esperava que o aparecimento da enfermeira
supervisora agora não estivesse relacionado com isso.
Mr. Cook tinha trazido Donald e Rosie para Carrington Hall por volta das
oito e meia. Ela despedira-se deles na entrada, deixando Mr. Cook a
entregar o filho à enfermeira supervisora e explicar-lhe como fizera o corte
na testa, e fora à procura de Linda, Mary e Maureen para lhes oferecer o
bolo e para lhes contar todas as novidades.
As três raparigas estavam na sala de estar do pessoal no rés do chão a
ouvir rádio e uma nuvem de fumo de cigarro enchia a divisão. Rosie estava
tão entusiasmada que não reparou logo na frieza com que a receberam.
Sentou-se numa cadeira que estava vazia e contou-lhes a história de como
Donald se tinha perdido. Só quando nenhuma delas se riu ou fez perguntas é
que percebeu que alguma coisa estava muito errada.
– O que é que se passa? – perguntou, olhando de uma para a outra, de
repente gelada. – Aconteceu alguma coisa enquanto estive fora, ou estão
zangadas comigo?
Os olhares furtivos que elas trocaram pareceram confirmar que era a
última hipótese.
– Mas o que é que eu fiz? – perguntou Rosie, confusa. – Vá lá, digam-me.
Linda, que nunca fora pessoa para estar com rodeios, foi a primeira a
falar.
– Se queres mesmo saber, é por receberes todo este tratamento especial –
disse, sem cerimónia. – Eu nunca tive muito tempo para o Donald. Por isso
não estava à espera que os pais dele me convidassem, mas hoje era o meu
dia de folga. Podia ter ido a casa ver a minha mãe e à festa de rua do bairro.
Mas disseram-me que afinal ia ter a sexta-feira de folga. Não é justo.
– Eu não pedi o dia de folga – retorquiu Rosie com alguma indignação. –
Mrs. Cook pediu à enfermeira supervisora. Nem sequer sabia até Miss
Barnes me dizer.
– Mas porquê tu? – exclamou Mary indignada, com os olhos azuis,
habitualmente suaves, a chispar de ódio. – A Maureen e eu tomamos conta
do Donald há anos. Porque é que ninguém reconhece o nosso trabalho?
Mary costumava ser tão despreocupada e tinha uma natureza tão generosa
que foi óbvio que alguém andara a influenciá-la. Rosie sentiu-se tentada a
dizer em sua defesa que nem Mary nem Maureen passavam mais de dois
minutos por dia a falar com Donald. Eram simpáticas com ele, mas ambas
tendiam a usá-lo apenas como mais um par de mãos na enfermaria e
tratavam-no como um estorvo quando ele andava atrás delas. Porém, dizer
isso só pioraria a situação atual.
Tanto Mary como Linda se tornaram um pouco mais brandas depois de
Rosie dizer que lamentava, mostrar o bolo e fazer-lhes um bule de chá. Ela
estava ansiosa para lhes falar sobre Gareth, mas, dadas as circunstâncias,
pensou que poderia ser um erro, por isso perguntou-lhes como tinham
passado o dia.
Só quando Linda estava a descrever como Tabby arranhara Simmonds
quando ela levara o chá para a sala de dia e como Archie aproveitara a
oportunidade para pegar no bule e atirá-lo pela sala é que Rosie reparou que
Maureen estava muito calada. Normalmente, era ela que adorava contar
essas histórias; três doentes com pequenas queimaduras e uma doméstica
com a cara arranhada era a sua ideia de um dia excitante. De repente,
percebeu quem tinha sido a instigadora de todo este ressentimento.
Estava decidida a confrontar Maureen quando estivessem sozinhas no
quarto, mas adormecera enquanto esperava que ela subisse. E nessa manhã
também não conseguira falar sobre o assunto.
– Podes fechar essa porta outra vez – disse a enfermeira supervisora com
voz áspera de onde estava nas escadas. – A partir de agora quero-te lá em
cima no segundo andar.
Rosie deu meia-volta, alarmada.
– Eu? Lá em cima? – engasgou-se.
– Bem, eu não estava a falar para a parede – retorquiu a enfermeira
supervisora num tom sarcástico. – Dá-me essas chaves, porque não vais
precisar mais delas.
Não era invulgar a enfermeira supervisora mandar uma das raparigas
mais antigas para o segundo andar. Numa emergência, muitas vezes iam
para lá durante algumas horas. Porém, a expressão rancorosa de Miss
Barnes e o pedido das chaves significava que a situação seria permanente e
que era um castigo. Rosie presumiu que era a forma de a enfermeira
supervisora se vingar por ela ter tido a audácia de conseguir ser convidada
pelos Cook para sair.
Rosie virou-se para a porta e entreabriu-a.
– Posso ir aqui primeiro, para dizer aos doentes onde estou? – pediu.
Imaginava Donald a ficar muito perturbado se não a visse esta manhã.
– Não sejas ridícula – disse a enfermeira supervisora com raiva. Deu um
passo em frente, fechou a porta com estrondo e guardou as chaves no bolso.
– Como se eles quisessem saber onde estás! Tens uma ideia muito
exagerada da tua importância.
O coração de Rosie apertou-se. Argumentar com ela só resultaria em mais
problemas, por isso não teve outra alternativa a não ser segui-la
submissamente para o segundo andar.
No instante em que a enfermeira supervisora destrancou a porta exterior
da enfermaria, saiu uma cacofonia de barulho e um fedor a excrementos.
Porém, depois de atravessarem a segunda porta tornou-se muito pior e
Rosie engasgou-se e recuou com uma expressão horrorizada.
O fedor era horrível, tão mau como qualquer chiqueiro de porcos, e o
barulho era assustador. Pancadas, berros, gritos e choros.
– Vais acostumar-te num instante. – A enfermeira supervisora sorriu com
malícia ao ver o seu rosto aterrorizado e apertou-lhe o braço com força. – O
cheiro desaparece quando estiverem todos limpos. E vais aprender a viver
com o barulho.
O coração de Rosie apertou-se ainda mais enquanto era levada contra a
sua vontade pelo corredor, pois não havia sequer uma semelhança
tranquilizadora com o primeiro andar, onde o corredor era largo e luminoso,
com várias janelas compridas e estreitas entre as diversas divisões que
enchiam o espaço de luz natural de ambos os lados. Este andar parecia o
corredor de uma prisão, sem janelas, apenas dúzias de portas fechadas, cada
uma delas com um pequeno postigo. Até o teto era mais baixo, criando uma
atmosfera claustrofóbica, e era iluminado por forte luz fluorescente.
Enquanto avançava, Rosie viu um rosto grotesco colado a um desses
painéis, com a língua pendurada e os olhos revirados, e a profunda
repugnância que sentira na primeira noite em Carrington Hall voltou com
toda a intensidade. Sempre sentira muita curiosidade em relação a este
andar, mas de repente percebeu que seria muito pior do que as suas
fantasias mais desenfreadas.
Quando entraram no escritório, que ficava ao fundo do corredor,
Saunders, o auxiliar, estava a vestir um casaco castanho-avermelhado de
mangas curtas que fazia conjunto com as calças. A enfermeira-chefe
Aylwood estava sentada à secretária, a verificar algumas notas. Ambos se
voltaram quando a enfermeira supervisora entrou com Rosie.
Depois da atmosfera opressiva do corredor, o escritório era
surpreendentemente agradável, com vista para os campos do outro lado do
jardim das traseiras e uma agradável brisa matinal a entrar por uma janela
aberta.
– A Smith vai começar a trabalhar convosco – disse a enfermeira
supervisora num tom ríspido, sem fazer qualquer apresentação. – Ela acha-
se mais importante do que o resto do pessoal, por isso comecem
imediatamente com uma iniciação à rotina matinal. Isso deve metê-la na
linha.
Quando Saunders e Aylwood olharam para Rosie com inequívoca
hostilidade, ela estremeceu de medo. Eram ambos muito altos e sentiu-se
muito pequena ao pé deles. Saunders tinha cerca de um metro e oitenta e
cinco, ou um pouco mais, e uns noventa ou noventa e cinco quilos. A altura
de Aylwood não era tão percetível enquanto estava sentada, mas os ombros
e antebraços eram extremamente masculinos e os olhos eram tão mortiços e
frios como um bacalhau na banca de uma peixeira.
– Isto aqui em cima não é brincadeira nenhuma – declarou Aylwood num
tom tão frio e hostil como os seus olhos. – Por isso vais fazer exatamente o
que eu te mandar. Não é um lugar para meninas de escola patetas com
estômagos sensíveis.
Rosie olhou para os três adultos e viu a mesma expressão malévola nos
olhos de todos. Os olhos pálidos de Saunders semicerraram-se e ele sorriu
afetadamente. Aylwood levantou-se, cruzou os braços no peito e avaliou-a
com evidente ressentimento. Os olhos muito juntos da enfermeira
supervisora brilharam de prazer. De repente, percebeu que eles tinham uma
espécie de aliança.
Do fundo do corredor veio um berro gutural, acompanhado de frenéticas
pancadas na porta. O sangue de Rosie transformou-se em água.
A enfermeira supervisora saiu sem mais uma palavra. Enquanto os seus
passos se afastavam pelo corredor, Aylwood e Saunders tiraram grandes
aventais de borracha de um cabide na parede e puseram-nos por cima dos
uniformes.
– Assustada? – perguntou Aylwood, erguendo uma espessa sobrancelha
grisalha. Tinha uma voz muito grossa, com um leve sotaque de Newcastle.
Rosie acenou com a cabeça. Não adiantava tentar esconder.
Aylwood esboçou o fantasma de um sorriso, completamente desprovido
de simpatia. O seu rosto tinha uma tonalidade cinzenta doentia e a pele
parecia ter sido esticada sobre as feições ossudas.
– Bem, então é a primeira coisa que tens de ultrapassar – disse. – Os
doentes aqui são animais, sentem o medo e reagem a ele. Não lhes dês um
milímetro e nunca lhes vires as costas.
Pela primeira vez na vida, Rosie não soube o que dizer. Perguntou a si
mesma porque é que ontem pudera ser tão feliz e hoje tudo lhe era
arrancado.
Saunders estendeu-lhe um avental de borracha.
– Estar cá em cima tem as suas compensações – disse com um olhar
irónico. – Depois de estarem limpos e alimentados, não temos mais nada
para fazer.
Aylwood lançou-lhe um olhar peculiar. Rosie não percebeu se era de
desaprovação ou aviso.
– Vem connosco já – disse, dando-lhe um toque para ela sair para o
corredor. – Esta manhã só vais observar, mas presta atenção porque amanhã
é o meu dia de folga e vais ocupar o meu lugar com o Saunders. Temos de
trabalhar depressa para os limparmos todos antes de lhes darmos de comer.
Rosie nunca se considerara uma pessoa sensível. Desde muito pequena
esvaziava baldes de dejetos e via coelhos a serem esfolados e galinhas
esventradas. Desde que viera para Carrington Hall vira tantas coisas
desagradáveis e limpara tantas porcarias aviltantes que pensava que pouco
mais poderia chocá-la. Porém, quando Aylwood destrancou aquela primeira
porta recuou, repugnada. Parecia uma fedorenta masmorra medieval. Teve
de tapar o nariz e a boca com a mão para combater a náusea.
A divisão tinha cerca de três metros de comprimento por um metro e
oitenta de largura e estava quase às escuras porque a única luz vinha de uma
janela de trinta centímetros com grades quase colada ao teto. O doente, que
não percebeu se era homem ou mulher porque tinha o cabelo cortado muito
curto, estava agachado no chão, coberto de fezes. Emitia um gemido baixo
e balançava-se para trás e para a frente sobre os calcanhares, com o rosto
escondido nos braços. A cama e o chão estavam tão imundos como o
paciente e o cheiro era tão nauseabundo que Rosie não conseguia respirar.
Quando Saunders e Aylwood avançaram para lhe pegar nos braços e
levantá-la, a criatura soltou uma rosnadela de fúria.
– Esta é a Monica – disse Aylwood, virando-lhe ligeiramente a cabeça
para Rosie, que estava encolhida à porta. – Tem trinta anos e nunca fala.
Rosie quase não conseguiu olhar. A mulher usava apenas uma camisa de
linho grosso e as pernas e braços eram tão finos como os de uma criança
pequena. Porém, foi mais o seu rosto do que o estado imundo em que se
encontrava que a chocou: contorcido, bestial e selvagem. Tinha os lábios
arreganhados, mostrando dentes amarelos.
– É a pior daqui – disse Saunders enquanto ele e Aylwood arrastavam a
mulher para a porta e passavam por Rosie. – Não é humana.
Enquanto via Saunders e Aylwood a arrastar aquela mulher demente aos
berros pelo corredor até uma casa de banho, com os pés a raspar em vão no
chão, Rosie pensou que nunca vira nada tão vil. No entanto, não teve outra
alternativa a não ser segui-los.
A casa de banho não era igual às do andar de baixo. Havia duas
banheiras, uma com um aparelho sólido por cima que sugeria que os
doentes eram imersos e depois presos, ficando apenas com a cabeça de fora.
O resto do espaço era ocupado por uma grande zona de chuveiro com
azulejos brancos, dividida em três com estruturas metálicas. Aylwood
empurrou Monica para o canto e Saunders segurou-a com força atrás da
estrutura, depois a enfermeira abriu a torneira e deu um salto para trás.
O grito de Monica provou que a torrente de água era gelada, e a força do
jato fê-la encolher-se no canto. Porém, Saunders simplesmente levantou o
braço e redirecionou o chuveiro mesmo para ela, segurando-a com força por
baixo do jato. O horror de Rosie aumentou quando viu Aylwood pegar
numa escova com um cabo comprido e começar a esfregar Monica com ela,
rosto, cabeça e corpo. A camisa deslizou para o chão da casa de banho com
os primeiros toques da escova e o seu corpo estava tão emaciado e cheio de
nódoas negras que Rosie desviou os olhos, lembrando-se das perturbadoras
fotografias que vira de presos nos campos de concentração alemães.
– Não é possível limpá-la de outra maneira – gritou Aylwood por cima do
barulho da água. – Por isso, não faças essa cara.
Rosie tinha a certeza absoluta de que teria de haver uma maneira mais
bondosa. Foi como ver uma vaca ou um porco a serem esfregados antes de
irem para o mercado, mas nunca vira um agricultor tão bruto como estes
dois. Aylwood bateu nas costas da mulher, obrigando-a a dobrar-se, e
depois enfiou-lhe a escova entre as pernas para a lavar com um prazer quase
vingativo.
Aquela barbárie foi ainda pior porque Rosie sabia que no dia seguinte
esperavam que ocupasse o seu lugar. Porém, sabia que não conseguiria
fazer aquilo.
Monica continuou a gritar, mas a pouco e pouco os gritos tornaram-se
menos estridentes, intercalados com arquejos, e por fim a torneira do
chuveiro foi fechada. Saunders prendeu-a enquanto Aylwood a limpava
com uma fina toalha cinzenta. Obrigaram-na a vestir uma camisa de linho
limpa e depois arrastaram-na pelo corredor para um quarto diferente. Ali
chegados, e sem lhe dizerem uma única palavra, empurraram-na lá para
dentro e Aylwood fechou a porta.
Quando percorreram o corredor para ir buscar outro doente, Coates, uma
das domésticas, estava a acabar de limpar o quarto de onde Monica saíra há
pouco.
– A Coates limpa os quartos enquanto lavamos os doentes – informou
Aylwood de forma sucinta. – Se ela for lenta amanhã quando eu não estiver,
grita com ela. Se não houver um quarto limpo para os pormos quando
acabamos de os lavar, as coisas complicam-se.
Rosie pensou que nunca teria coragem para mandar Coates despachar-se,
e muito menos para lhe gritar. Ela era uma ex-doente mental como todas as
domésticas, uma mulher grande com uma cara dura e mãos roxas do
tamanho de presuntos que estava sempre a falar sozinha. Todos sabiam que
até a enfermeira supervisora ficava nervosa com a perspetiva de irritá-la.
Só havia nove doentes ao todo, cinco mulheres e quatro homens. Rosie
ficou surpreendida com isto; sempre pensara que haveria pelo menos uns
catorze, e havia aqui quartos suficientes para esse número. Desses nove,
apenas outros três estavam sujos, dois homens e Mabel, a mulher que Rosie
ouvira gritar quando chegara a Carrington Hall. Sempre pensara que uma
pessoa capaz de fazer aquele barulho constante seria robusta, uma espécie
de louca estereotipada como a mulher de Mr. Rochester em Jane Eyre, mas
ela não era nada disso.
Mabel era apenas uma velhota frágil, tão magra que quase não conseguia
manter-se de pé sozinha, e tinha as costas deformadas. O cabelo branco era
ralo, não tinha um único dente na boca e bastou-lhe olhar para ela para
perceber que só chorava porque tinha dores. Sentiu muita pena. Apeteceu-
lhe afastar Aylwood e insistir que fosse posta numa cadeira de rodas para
ser levada para a casa de banho. No entanto, não se atreveu a fazer ou dizer
fosse o que fosse.
Outros dois homens e uma mulher só estavam molhados, mas todos
receberam o mesmo tratamento aviltante que Monica, apesar de não
evidenciarem qualquer inclinação para lutar, e um dos homens estar tão
doente e trémulo que quase não conseguia manter-se de pé. As duas últimas
mulheres, uma rapariga chamada Angela e uma mulher robusta e grande
chamada Bertha, quase tão alta e pesada como Saunders, foram autorizadas
a ir à sanita e a lavarem-se sob um chuveiro quente, mas Aylwood e
Saunders mantiveram-se sobre elas, ameaçadores, não lhes permitindo ter
qualquer privacidade.
Maureen relatara muitas histórias hediondas de brutalidade em Luckmore
Grange, incluindo uma descrição de banhos muito semelhante a estes, mas
Rosie nunca imaginara que este tipo de coisas pudesse ser tolerado num
hospital privado. A verdade é que sempre desconfiara que Maureen era uma
grande exagerada.
Agora, perante o que vira, acreditava nela. Ficou chocada ao pensar que
ouvia aqueles gritos há tanto tempo, e estava tão desconfiada, e, no entanto,
deixara-se ser convencida pelas outras de que não tinha nada a ver com
isso. Que tipo de pessoa era se conseguia trabalhar, comer e dormir num
lugar onde pressentia que havia algo muito errado, e não tinha coragem para
fazer ou dizer alguma coisa?
Talvez estivesse enganada ao pensar que Aylwood e Saunders gostavam
de humilhar aqueles pobres infelizes. Talvez o tempo e a experiência
provassem que eram apenas calejados e não cruéis. No entanto, todos os
doentes tinham nódoas negras e cicatrizes nos corpos. Todos se encolhiam
para se proteger dos seus cuidadores como cães assustados quando as portas
das celas eram abertas. Os colchões e a roupa de cama dos quartos onde
eram postos eram retirados durante o dia, ficando apenas a base de madeira
da cama que estava muito bem presa ao chão. Não tinham nada; roupas,
sapatos, bens pessoais, e também não havia conforto absolutamente
nenhum. Era bárbaro.
Rosie ficou muito envergonhada por ser obrigada a ficar ao lado de
Saunders a ver Angela e Bertha a lavarem-se. Elas pareciam perfeitamente
capazes de o fazer sem supervisão e, mesmo que tivesse de estar lá um
homem por questões de segurança, o mínimo que podia fazer era virar-se de
costas. Olhou-o de lado. Ele observava Angela com muita atenção enquanto
ela ensaboava os seios e a barriga, e passava a língua pelos lábios.
Ao contrário dos outros doentes, Angela era jovem e muito bonita. Devia
ter uns vinte e quatro ou vinte e cinco anos e o seu espesso cabelo preto,
naturalmente encaracolado, não fora cortado. Tinha um corpo curvilíneo e
bem proporcionado, com pequenos seios empinados e nádegas firmes. Os
olhos tinham uma expressão selvagem e ela murmurava e resmungava tanto
como alguns dos outros, mas não era nada repulsiva.
Os cabelos na nuca de Rosie arrepiaram-se ao ver a reação de Saunders.
Embora não tivesse nenhuma experiência daquele género de coisas, teve a
certeza de que ele estava a ficar excitado por olhar para Angela. A sua
expressão recordou-lhe dolorosamente a forma como o irmão mais velho
olhava para as mulheres. Olhou para Aylwood com uma expressão
inquisitiva, talvez à espera de que aquele pensamento fosse apagado, mas
em vez disso viu uma expressão igualmente lasciva nos seus olhos. Como
se tivesse sentido o olhar de Rosie, a mulher sorriu-lhe com uma expressão
afetada.
– Aposto que estás a perguntar a ti mesma o que está ela a fazer aqui em
cima? – perguntou. – Parece inofensiva, não parece? Mas acredita em mim,
Smith, quando te digo que é a paciente mais perigosa de Carrington Hall,
muito pior do que a Monica porque é totalmente imprevisível. Quando veio
para cá esteve no primeiro andar até tentar estrangular outro doente. Uma
vez, tentou cegar a enfermeira Welbred com um garfo. Já mordeu e
arranhou toda a gente. É como uma cobra e nunca sabemos quando vai
atacar. Por isso, não lhe dês nenhuma margem de manobra.
Às oito e meia os banhos estavam terminados, e nessa altura Rosie já vira
o bastante para querer fugir de Carrington Hall e nunca mais voltar. Mas se
pensava que os banhos eram desumanos, o pequeno-almoço seria ainda
pior.
Saunders dirigiu-se para uma ponta do corredor com Simmonds atrás.
Aylwood e Rosie começaram na outra extremidade. Quando chegaram à
primeira porta um pequeno tabuleiro foi enfiado nas mãos de Rosie, com
uma taça de papas de aveia quase frias, outra taça com ovo mexido também
quase frio, duas fatias de pão com margarina e uma caneca de chá. Aylwood
abriu a porta, entrou e mandou Rosie ficar encostada à porta para impedir
que o doente tentasse fugir. O primeiro doente foi um dos velhos; nem
sequer lhe disseram o seu nome. Estava sentado no estrado de madeira da
cama quando Aylwood lhe estendeu as papas de aveia. O homem levou a
taça aos lábios e sugou ruidosamente, esticando a mão para o ovo mexido,
que comeu com as mãos. Desde que começou a comer as papas de aveia até
às últimas gotas de chá, tudo aquilo demorou menos de dois minutos.
Enquanto trancavam a porta depois de saírem, Rosie olhou para trás pela
janela e viu que ele apanhava da camisa os restos de comida entornados e
os comia como se continuasse com fome.
O quarto seguinte era o de Mabel, e ela já estava outra vez a gemer,
deitada de lado na cama, a baloiçar-se. As finas pernas nuas estavam cheias
de horríveis veias roxas salientes e ela não se sentou para comer. Aylwood
despejou as papas de aveia para uma taça de alimentação com bico, juntou
mais leite e mexeu. Avançou para Mabel, puxou-a para cima pelo ombro e,
segurando o pescoço da velhota com uma mão firme, enfiou-lhe a comida
pela goela abaixo. Mabel engasgou-se enquanto as papas de aveia desciam,
e abanou os braços freneticamente como as velas de um moinho de vento,
mas Aylwood não abrandou. Quando a caneca ficou vazia, encheu-a com
chá e deu-lho à força.
Por alguma razão não lhe foi dado ovo mexido, talvez porque dava muito
trabalho alimentá-la. Depois de Mabel acabar o chá, Aylwood fez sinal a
Rosie de que o trabalho estava terminado e fechou a porta à chave,
deixando Mabel com os seus gemidos.
Este procedimento foi repetido com todos os doentes. Não houve
qualquer tentativa de conversar ou persuadi-los a colaborar. Se não comiam
de boa vontade e depressa, eram alimentados à força. Angela comeu as
papas de aveia bastante bem, mas bateu na taça com ovo mexido, fazendo-a
cair da mão de Aylwood. A enfermeira esbofeteou-a com toda a força e
agarrou-a pelo pescoço, obrigando-a a deitar-se no chão e comer a comida
entornada como se fosse um animal.
Monica não tomou pequeno-almoço. Embora se tivesse acalmado depois
do duche, Aylwood administrou-lhe uma injeção que a deixou inconsciente.
Rosie perguntou a si mesma se seria por isso que ela era tão magra. Se
aquilo acontecia todos os dias, talvez quase nunca comesse.

Rosie estava sentada numa cadeira no corredor quando o Dr. Freed


chegou para ver os doentes pouco depois das dez da manhã. Aylwood
dissera-lhe que até à hora do almoço, ao meio-dia, só tinha de percorrer o
corredor com regularidade e espreitar pelos postigos. Não lhe disse o que
devia verificar, nem o que constituía uma emergência. Era como se só
quisesse ver-se livre da rapariga nova para que ela e Saunders pudessem ler
os seus jornais em paz.
Estava tudo calmo de novo. Os doentes, com exceção de Monica,
estavam sentados no chão a olhar para o vazio. Monica dormia deitada no
estrado da cama, sem uma única almofada ou cobertor. Quando o Dr. Freed
entrou acompanhado pela enfermeira supervisora, Rosie levantou-se
precipitadamente. Já vira o médico baixo e magro muitas vezes no primeiro
andar, mas nunca falava com ele porque estava sempre acompanhado por
ela. Examinava os doentes na sala de tratamentos ao lado do escritório e,
mesmo que houvesse algumas instruções para o pessoal, raramente lhes
eram comunicadas.
– Smith! Diz à enfermeira-chefe Aylwood que o Dr. Freed veio fazer as
rondas – disse Miss Barnes.
Rosie obedeceu, esperando ter oportunidade de falar com ele mais tarde,
mas não teve. Saunders mandou-a ir fazer chá para eles na minúscula
cozinha ao fundo do patamar e quando voltou para o escritório com um
tabuleiro, Aylwood estava sentada numa poltrona a acender um cigarro.
Saunders estava empoleirado na secretária a falar com ela.
– Também fiz chá para o doutor – disse Rosie, nervosa. – Ele está com
um dos doentes?
Aylwood lançou-lhe um olhar fulminante.
– Já se foi embora. Deixa o chá dele que eu bebo-o. Volta para o corredor.
Rosie escapuliu-se para o corredor, mas da sua cadeira ouvia a conversa
de Aylwood e Saunders. Percebeu que o médico recomendara tratamento de
choques elétricos para Mabel e para um dos homens. Nem sequer referiram
Monica.
Sentada no corredor, sem uma janela por onde pudesse espreitar, de
repente ocorreu-lhe que não sabia mais sobre saúde mental do que quando
aqui chegara em setembro. Sabia que a maioria dos pacientes do primeiro
andar tinha nascido com alguma deficiência no cérebro. No entanto, o que é
que acontecera aos que estavam aqui em cima? Seriam normais até alguma
tragédia ou trauma os ter mergulhado no aterrador mundo de trevas em que
viviam agora? E, se assim fosse, seguramente alguma coisa poderia ser feita
para os ajudar, não?
Lá em baixo já era muito triste ver adultos a andar de um lado para o
outro o dia inteiro sem terem nada para fazer, mas pelo menos tinham a
companhia uns dos outros, as funcionárias conversavam com eles e podiam
olhar pelas janelas. Aquelas pobres pessoas ali em cima não tinham
absolutamente nada, estavam completamente isoladas e privadas de todo o
contacto humano. Até as minúsculas janelas das celas estavam demasiado
altas para poderem olhar para o exterior. Pensou que era preferível morrer a
ser obrigada a viver assim.
Rosie nunca percebera que o tempo passava tão devagar como passou
naquela manhã. Lá em baixo havia a rotina das limpezas e da mudança das
camas, e as conversas com as outras raparigas e com os doentes para passar
o tempo. Aqui, Coates fazia toda a limpeza sozinha e não havia ninguém
com quem falar. Saunders estava a descansar num pequeno quarto mais ao
fundo do corredor, a ler um jornal e a fumar como uma chaminé. Aylwood
parecia estar a tratar de alguma papelada no escritório. Com exceção da
altura em que a enfermeira Thorpe subiu para ajudar Aylwood a levar
Mabel lá para baixo para fazer o tratamento de choques elétricos, não houve
mais visitas à enfermaria até Simmonds chegar com o carrinho do almoço.
Sentada sozinha numa cadeira de costas direitas no corredor, a escutar os
sons da miséria humana à sua volta, cabeças a bater nas paredes, queixosos
choros baixos e, de vez em quando, um grito de indignação, Rosie esforçou-
se para não chorar e tentou pensar no que tinha de fazer para sair daqui.
Era óbvio que seria inútil implorar para voltar a trabalhar no primeiro
andar. A verdade é que se mostrasse à enfermeira supervisora como estava
aterrada por estar aqui, ela ficaria encantada. Se fizesse um escândalo,
talvez fosse despedida. Ser despedida parecia mais atraente do que ter de
voltar para aquela enfermaria no dia seguinte, mas para onde iria quando
fosse expulsa dali? Tinha poupado menos de duas libras, e essa quantia não
era suficiente para pagar um quarto, sequer. Thomas aceitaria recebê-la até
arranjar outro emprego?
Tinha a certeza de que não lhe recusaria um teto numa situação de
emergência, mas seria justo pedir-lhe? As pessoas falariam se ele tivesse
uma rapariga sozinha com ele no apartamento e o patrão desaprovaria a
ideia, certamente. Talvez pudesse telefonar para Miss Pemberton esta noite
para lhe pedir um conselho? No entanto, ela poderia pensar que Rosie era
cobarde e questionar que tipo de enfermeira seria se queria fugir ao
primeiro sinal de problemas.
Depois havia Donald. Sabia que ele estava sempre fechado em si mesmo
no seu dia de folga, mas tinha uma noção bastante boa do tempo para
compreender que ela estaria de volta no dia seguinte. Como reagiria se não
voltasse? E se fizesse uma das suas birras e fosse castigado com um
tratamento de choques elétricos?
Pensar naquela perspetiva fez os seus olhos marejarem-se de lágrimas e a
sua barriga contrair-se de medo. A enfermeira supervisora apontaria de
certeza o dia que estivera fora como a razão para o mau comportamento.
Sem Rosie para agir como mediadora, Mr. e Mrs. Cook talvez desistissem
para sempre da ideia de levá-lo para casa. Que seria dele então? Estava a
reagir muito bem, mas sem o tratamento especial que se acostumara a ter
dela depressa reverteria para o estado em que se encontrava antes.
E também havia Gareth. Na quarta-feira viria buscá-la e não sabia como
entrar em contacto com ele para se encontrarem noutro sítio.
Rosie soltou um suspiro fundo. Gareth não era verdadeiramente
importante, pelo menos quando comparado com Donald ou com os doentes
que estavam a ser maltratados aqui. Mas o que ia fazer?
Também estava muito zangada por as outras raparigas que considerava
boas amigas não lhe terem contado o que se passava aqui em cima. Porque
seria? Seriam tão empedernidas que não se importavam, ou teriam tanto
medo da enfermeira supervisora que não se atreviam a falar?
Esta sensação de profunda impotência era-lhe muito familiar. Sentira-se
assim depois de ver o que Seth e Norman fizeram a Heather. Se tivesse feito
alguma coisa na altura, contado ao pai ou até admitido a Heather que sabia,
talvez ela estivesse viva agora.
E havia todas as vezes que o pai e os irmãos tinham batido em Alan.
Porque é que não contara à professora? Talvez na altura tivesse alguma
desculpa, pois era apenas uma criança e receava que lhe tirassem Alan. Mas
agora era adulta. Se ficasse calada e ignorasse uma coisa que sabia ser
completamente errada, isso não a tornava tão má como Saunders, Aylwood
e a enfermeira supervisora?
Os pensamentos de Rosie foram interrompidos pelo ruído de Simmonds a
entrar na enfermaria com o carrinho da refeição e levantou-se penosamente.
O pequeno-almoço tinha sido tão mau que quase não suportava pensar no
que lhe estava reservado com o almoço.

No fim do dia, quando saiu de serviço, Rosie estava muito perto de se ir


abaixo. Doía-lhe a cabeça, sentia-se doente e, à medida que o longo dia fora
passando, reparara em muitas outras coisas aterradoras. Se os doentes
precisavam de ir à retrete, deviam chamar ou esperar até às horas das
refeições, quando os funcionários abriam as portas e os levavam lá. Embora
um ou dois conseguissem, a maioria não, e os seus dejetos eram deixados
no chão até as portas voltarem a ser abertas. E era por isso que todos os
colchões e roupas de cama eram retirados durante o dia.
Mais alarmante ainda era que depois do jantar eram fechados de novo até
às sete horas da manhã seguinte e, pelo que percebeu, depois das dez e meia
da noite não estava ninguém de serviço contínuo e só a enfermeira Welbred,
que estava de serviço no primeiro andar, subia de vez em quando para ver o
que se passava.
Quando chegara a Carrington Hall, Rosie pensara que havia imensos
funcionários e perguntara a si mesma como poderiam manter-se todos
ocupados. Porém, com o passar dos meses depressa descobrira que os
trabalhos domésticos eram os mais difíceis, não os de enfermagem. Ao ver
as pessoas que entravam e saíam de serviço percebera que o segundo andar
tinha uma equipa bastante mais pequena do que o primeiro, e era uma coisa
que sempre a intrigara.
Todavia, bastara um dia lá em cima para perceber porquê. Com os
doentes fechados como animais enjaulados, para além da limpeza ao
princípio da manhã e da alimentação, não havia necessidade de mais
empregados. Quanto à história de que a enfermeira supervisora passava o
dia inteiro aqui, era mentira. Saunders disse-lhe que ela nunca ia lá acima a
não ser que houvesse uma emergência.
Rosie desceu com relutância para a sala de refeições do pessoal. Não lhe
apetecia jantar, apenas uma aspirina para a dor de cabeça e um passeio lá
fora para se livrar do repugnante cheiro do segundo andar que sentia ter-se
colado a si. Nem sequer queria ver as outras raparigas porque agora estava
convencida de que na noite anterior já deviam saber o que ia acontecer-lhe
hoje. Continuava sem saber o que fazer; não tinha amigos e estava
desamparada, mas sentiu-se obrigada a agarrar-se aos últimos vestígios de
orgulho e, se isso significava que teria de ver as pessoas que pensava que a
tinham traído, não ia esquivar-se.
Thorpe, Maureen, Mary, Linda e Simmonds estavam a jantar. Ouviu-as
falar e rir antes mesmo de chegar à sala de refeições. Quando entrou todas
se calaram durante alguns instantes, mas depois aproximaram-se mais umas
das outras e retomaram as conversas, ignorando-a completamente.
Rosie não percebeu se estavam a ignorá-la por causa do dia anterior ou
porque a enfermeira supervisora mandara. Sentou-se ao fundo da mesa, o
mais longe possível das outras. Pat Clack pousou uma caneca de chá e uma
sanduíche de fiambre à sua frente com brusquidão, sem o habitual sorriso.
Rosie bebeu o chá em silêncio e esforçou-se para não chorar.
Maureen e Mary saíram da sala pouco depois de ela entrar. Thorpe e
Simmonds seguiram o seu exemplo logo a seguir. Linda continuava
sentada, a comer uma grande fatia de bolo de fruta, mas não falou. Rosie
engoliu o chá, mas deixou a sanduíche no prato e levantou-se para sair.
Porém, quando se dirigia para o corredor Linda aproximou-se atrás dela.
– Vem para a sala de estar – sussurrou. – Preciso de falar contigo. – Dito
isto, acelerou como um gato escaldado pelo corredor.
Rosie ficou intrigada. Olhou em volta, à espera de ver a enfermeira
supervisora ali perto, mas não se via ninguém. Pat Clack estava sozinha na
sala de refeições, a levantar a mesa. Nem sequer ouviu vozes ao longe.
Apressou-se a ir para a sala de estar e viu Linda a acender um cigarro com
uma expressão muito tensa e pálida.
Rosie sentou-se. Linda espreitou para o corredor e fechou a porta.
– Eu tinha de dizer alguma coisa – começou, dando uma grande passa no
cigarro. – Mandaram-nos a todas não dizer nada, mas não me parece justo,
por isso vou arriscar.
– Mas porquê? O que é que se passa? – perguntou Rosie. – E porque é
que nunca me contaram como é lá em cima?
Linda encolheu os ombros.
– Esquece isso por um minuto. Eu não tenho muito tempo – continuou,
apressada. – Sei que não é nada bom lá em cima, mas não é diferente dos
outros hospitais de malucos. O que eu quero é avisar-te sobre a Aylwood e o
Saunders, eles não são para brincadeiras, por isso mantém-te discreta e,
vejas o que vires, não digas nada.
Receber aquele aviso sem uma explicação adequada deixou-a ainda mais
alarmada.
– Mas eu não compreendo! Sei que a enfermeira supervisora não gosta de
mim e quer que vocês não falem comigo, e isso já é muito estranho e mau.
Mas nenhuma de vocês tem pena daqueles doentes?
Linda encolheu de novo os ombros. Os seus olhos escuros ficaram
inexpressivos e a boca fina cerrou-se numa linha reta. Não pareceu nada
preocupada com a situação difícil dos doentes.
– Teriam o mesmo tratamento em qualquer outro lugar – disse. – Por isso,
não, não tenho pena deles. Mas tenho pena de ti.
– Deixa-te de rodeios e conta-me o que se passa, Linda – disse Rosie num
tom mais enérgico. – Porque é que fui mandada lá para cima? Foi só para se
vingarem de mim porque fui à Coroação, ou porque a enfermeira
supervisora quer que eu me vá embora?
Um pouco de ternura voltou aos olhos escuros de Linda.
– Sim, acho que é uma maneira de se ver livre de ti – disse, a coçar a pele
com borbulhas como se aquela revelação a preocupasse. – É que a bruxa
tem uma coisa sobre ti. Um dia depois de chegares avisou-nos de que não
podíamos falar contigo sobre os doentes do segundo andar nem sobre os
funcionários que trabalham lá. E nós não dissemos nada porque sabíamos
que a Maureen iria contar-lhe. A Maureen é uma traidora e denuncia
qualquer pessoa por dez cigarros. Foi-te leal durante algum tempo porque
foste a única que foi simpática com ela, mas começou a ficar zangada
quando o Donald começou a gostar mais de ti do que dela.
Rosie acenou com a cabeça. Maureen era perspicaz; talvez tivesse
percebido que ela mantinha um contacto regular com Mr. e Mrs. Cook e o
convite de ontem a tivesse deixado ciumenta a ponto de contar à enfermeira
supervisora. Isso também explicaria porque é que a enfermeira supervisora
queria ver-se livre dela. Não podia despedi-la por causa disso sem provas,
mas levá-la a querer ir-se embora era outra forma de se livrar dela.
– O que é que devo fazer, Linda? – perguntou. Tinha de confiar em
alguém, e pelo menos Linda era frontal.
– Se estivesse no teu lugar, fugia daqui o mais depressa possível –
respondeu a outra rapariga de maneira enfática. – Não há muitas de nós que
tenham estômago para o segundo andar, mas eu, a Mary e a Maureen só
temos de dar de comer aos mais calmos e limpar um ou outro descuido. O
Saunders e a Aylwood sempre fizeram o trabalho sinistro e adoram. Mas as
porcarias e o horror lá em cima, e se aguentas ou não, não é o que interessa.
A Maureen parece achar que a enfermeira supervisora sabe alguma coisa
sobre ti. Isso é perigoso, porque ela vai usar o que tem. Há alguma coisa?
O estômago de Rosie apertou-se e sentiu uma tontura. Então, era isso. A
enfermeira supervisora estava à espera de que ela se queixasse e depois
ameaçaria desmascará-la. Respirou fundo e obrigou-se a ficar impávida.
– A Maureen tem demasiada imaginação para o seu próprio bem –
declarou. – Diz-me porque é que achas que a Aylwood e o Saunders podem
fazer-me algum mal?
Linda pareceu hesitante.
– Não digas a ninguém que te disse isto, mas pelo que ouvi e vi lá em
cima são os dois uns grandes tarados e sádicos. A enfermeira contratou-os
sabendo tudo sobre eles, como aconteceu com quase toda a gente menos tu,
e acho que são cúmplices numa vigarice qualquer.
– Mas Mr. Brace-Coombes, o proprietário! – começou Rosie a protestar.
Linda esboçou um sorriso afetado.
– Ele já não põe cá os pés, pois não? Ouvi dizer que andava sempre cá
metido enquanto a mulher esteve internada. Mas quando ela bateu as botas
deixou a enfermeira supervisora tomar conta de tudo. Não o vi mais do que
uma ou duas vezes desde que comecei a trabalhar aqui. Duvido que faça a
mais pequena ideia do que se passa e também não está nada interessado em
saber.
Rosie sentiu-se confusa. Tinha uma intuição de que Linda queria que ela
se fosse embora dali sem demora por mais razões do que lhe dera. Embora a
rapariga não tivesse ido tão longe, parecia estar a dizer-lhe que se ficasse
não poderia esperar ajuda ou solidariedade de ninguém, incluindo ela
própria. Rosie perguntou a si mesma se a enfermeira supervisora também
teria alguma coisa sobre ela. Agora que pensava nisso, Linda era tão
evasiva como ela quanto ao seu passado.
– É melhor ir-me embora – disse ela. Pousou uma mão no ombro de
Rosie e apertou-o. – Escuta, lamento muito tudo isto, tu és nova de mais e
demasiado idealista para um lugar como este. Vai-te embora, querida, antes
que te magoes. E mantém-te longe do Saunders.
Rosie acenou, como se estivesse a concordar com ela.
– Obrigada por seres tão franca comigo – disse. – Fazes-me só mais uma
coisa? Diz ao Donald onde estou, sem mais ninguém ouvir, e que sinto
saudades dele. Explica-lhe que não posso ir vê-lo agora.
Linda arqueou uma sobrancelha.
– Claro, desde que também faças uma coisa por mim.
Rosie acenou com a cabeça.
– Tem cuidado com a Maureen e diz-lhe só coisas que queiras que ela
conte à enfermeira supervisora. Como que andas à procura de um emprego
novo!

Felizmente, Maureen não estava no quarto quando Rosie entrou, pois


poderia sentir-se tentada a estrangulá-la. Mudou rapidamente de roupa, pôs
a gabardina no braço e desceu antes que alguém lhe perguntasse aonde ia.
Faltavam poucos minutos para as sete quando saiu de Carrington Hall. Às
oito menos um quarto estava em Flask Walk, Hampstead, a tocar à
campainha de Thomas.
Ele demorou algum tempo a abrir a porta. Ao ouvi-lo coxear pela loja
com as muletas, e ver a perna das calças vazia a abanar, Rosie sentiu-se
muito culpada por estar prestes a sobrecarregá-lo com os seus problemas.
Ele já estava pronto para passar um serão tranquilo, e pensou que não
gostaria que ela o visse sem a perna artificial.
– Rosie – exclamou ele ao abrir a porta, mas o seu sorriso foi tão
acolhedor que pelo menos perdeu o medo de rejeição. – Que surpresa tão
agradável! O que é que te traz cá?
– Precisava de falar com alguém – disse ela. – Desculpe se não é
conveniente, mas é a única pessoa em quem posso confiar.
– Qualquer momento é conveniente para ti – disse Thomas com uma
gargalhada. – Ainda bem que limpei a casa há um ou dois dias.
Rosie perguntara muitas vezes a si mesma como seria o apartamento dele
– esperava que um homem solteiro fosse muito desarrumado, mas para sua
surpresa não havia tralha e a casa tinha muito poucos móveis. Thomas
mostrou-lhe a sua oficina primeiro, quando passaram por ela nas escadas
estreitas. Uma bancada com uma lâmpada forte, um banco alto e as
ferramentas alinhadas em filas como as de um cirurgião ao lado de um
relógio desmontado. Dali, subiram mais um lanço de escadas sinuosas até
um pequeno patamar, com a minúscula cozinha e uma casa de banho ao
fundo do edifício, e o quarto, que não lhe mostrou. A sala de estar ficava na
parte da frente da casa, voltada para Flask Walk. Estava toda pintada de
branco e tinha cortinas vermelho-escuras. O sol do fim de tarde entrava
pelas janelas e o teto baixo conferia ao lugar a atmosfera de uma casa de
campo. Ele não tinha muitas coisas: duas filas de livros em prateleiras, duas
poltronas e uma pequena mesa redonda junto à janela coberta com uma
toalha vermelha, um rádio e um candeeiro num aparador. Porém, a rigidez
era atenuada por dois grandes quadros, um em cada extremidade da divisão.
Um era um milharal dourado sob um céu muito azul e o outro uma casa
branca com telhado de colmo, com uma porta verde desbotada e erva alta e
ondulante em volta.
Rosie ficou tão espantada com a beleza serena e a simplicidade daquelas
paisagens que os seus problemas sérios foram esquecidos durante algum
tempo.
– Foram pintados por si? – perguntou.
Ele acenou com a cabeça, mas pareceu embaraçado e não fez qualquer
comentário quando Rosie se aproximou para observá-los melhor. De perto,
a delicadeza dos traços e o cuidadoso sombreado das cores mostrou-lhe que
não eram as pinceladas de um novato, mas sim de um artista com algum
talento. Perguntou a si mesma porque é que nunca lhe dissera que pintava e
porque é que estava tão relutante agora.
– Pintou-os quando estava no hospital? – perguntou por cima do ombro.
– O que é que te leva a pensar isso? – perguntou ele num tom defensivo.
– Não sei – respondeu Rosie com um encolher de ombros. – Têm um
carácter sonhador, como se tivesse pintado a cena a partir de uma
recordação.
– És muito perspicaz – replicou Thomas, e depois pigarreou como se
tivesse decidido que afinal ia falar sobre o assunto. – Na verdade, estava
internado numa enfermaria cheia de homens que choravam de dor noite e
dia. Costumava pedir à enfermeira para me levar para a varanda na cadeira
de rodas para poder pintar. Era a minha única forma de escapar. Estes dois
quadros são imagens de Inglaterra que tive na cabeça durante todo o tempo
que passei na Birmânia.
– Porque é que nunca me tinha dito que pinta? – perguntou ela em voz
baixa.
– Nunca veio a propósito. – Afastou-se. – Além disso já não pinto, por
isso é irrelevante.
Rosie tinha bons motivos para saber que muitas vezes o mais importante
eram as coisas que as pessoas tentavam esconder sobre si mesmas.
– Eu acho que é relevante – disse, a olhar de novo para a imagem da casa.
Não sabia nada sobre arte, mas percebeu que estava a ver uma coisa muito
especial. Poderia olhar para aquele quadro todos os dias e nunca se
cansaria. – Se tem um talento tão grande, devia usá-lo.
Thomas riu-se, mas o seu riso soou oco.
– Talento? É apenas uma pintura tosca!
– Isso é um perfeito disparate – resmungou Rosie. – Se pensasse mesmo
isso não o teria mandado emoldurar e pendurado na sua parede. Se quer
saber o que penso, a verdadeira razão para não pintar é porque lhe recorda a
vida antes de ter perdido a perna.
Thomas olhou para Rosie e ela percebeu que estava certa.
– Bem, menina sabichona – acabou por dizer. – Se já acabaste com a tua
psiquiatria amadora, talvez queiras contar-me o que te traz aqui esta noite?
Enquanto bebiam uma chávena de chá, Rosie contou-lhe tudo, a saída
para ver a Coroação e os acontecimentos de hoje. Thomas deixou-a
desabafar tudo sem interromper ou fazer comentários. Embora ela
conseguisse descrever as cenas desumanas que testemunhara com bastante
calma, era óbvio que estava estupefacta e chocada.
Enquanto escutava, sentiu raiva crescer dentro de si. Quase não conseguia
acreditar que as enfermeiras eram não apenas cruéis ao ponto de infligirem
tanto sofrimento a doentes indefesos, mas também de permitirem que uma
inocente menina de dezasseis anos assistisse a tamanhas atrocidades.
Olhou para Rosie e viu que ela estava tão fresca e bonita como sempre,
com uma blusa branca de mangas curtas e o cabelo curto a brilhar com os
últimos raios de sol, mas ao olhar melhor viu que os seus olhos azuis
pareciam angustiados.
A sua reação inicial foi apenas protegê-la, mantê-la ali nessa noite, tentar
que ela esquecesse o que vira e ajudá-la a arranjar um novo emprego o mais
depressa possível. Porém, quando Rosie continuou a falar percebeu que ela
estava muito mais revoltada com o sofrimento dos doentes do que por ser
obrigada a fazer um trabalho tão repugnante.
– A ideia de voltar para aquela enfermaria amanhã faz-me sentir vontade
de vomitar – disse ela por fim. – Mas não posso fugir, pois não?
A sua humanidade comoveu-o profundamente. Ele aprendera a arte de
olhar para o outro lado enquanto muitas atrocidades eram cometidas no
campo de prisioneiros de guerra. A palavra que descrevia isso lá era
sobrevivência. Porém, tinha a certeza de que todos os homens que, como
ele, estiveram naquela posição, mais tarde tiveram dificuldade em viver
com a sua cobardia.
Pensou que talvez acontecesse o mesmo com Rosie. Se a encorajasse a
sair de lá agora, sem tentar fazer alguma coisa para ajudar aqueles doentes,
poderia ser mais um fardo de culpa para ela carregar.
– Se precisares, tens aqui um refúgio – disse-lhe. – Mas acho que tu
queres fazer uma coisa mais positiva do que fugir, não queres?
– Não sei, Thomas. – Ela passou uma mão pelo cabelo, distraída. –
Gostava de fazer alguma coisa, qualquer coisa, para ajudar aquelas pobres
pessoas, mas sou a auxiliar mais nova. Que experiência é que tenho? Nem
sequer estive noutro hospital psiquiátrico para saber como são. Como posso
fazer alguma coisa?
Thomas refletiu durante alguns instantes.
– Podes fazer muito – disse, por fim. – Não enfrentando as pessoas
sozinha, mas recolhendo informações e passando-as a alguém que esteja em
melhor posição para lidar com o assunto.
– Mas quem é que está em melhor posição? – perguntou ela com
amargura. – Depois das coisas que vi hoje, nunca mais voltarei a acreditar
em médicos ou enfermeiros. Na verdade, acho que nunca mais vou
conseguir confiar em alguém.
– Bem, para começar, Miss Pemberton – replicou ele.
Rosie abriu a boca para lhe dar uma resposta zangada.
– Ela não podia saber que se passavam coisas tão horríveis em Carrington
Hall – disse Thomas rapidamente –, pois se soubesse não te teria mandado
para lá. Garanto-te que vai mover céus e terra para mudar as coisas quando
lhe contar. E depois também há Mr. e Mrs. Cook. Não estou a vê-los a
recusarem-se a ajudar quando o seu próprio filho pode estar em perigo.
– Acha que lhes telefone para lhes contar? – A voz de Rosie subiu em
pânico, como se fosse incapaz de alarmá-los até esse ponto.
– Deixa-me falar com Miss Pemberton primeiro – disse Thomas
suavemente. – Ela vai saber qual é a melhor maneira de resolver o assunto.
Se quiseres, telefono-lhe ainda esta noite para lhe contar tudo.
Rosie ficou calada durante alguns instantes.
– O que é? – perguntou Thomas.
– E se a Linda tinha razão e a enfermeira supervisora souber tudo sobre
mim – disse, precipitadamente, e os seus olhos ficaram quase azul-marinhos
de ansiedade. – É provável que conte a toda a gente, sobretudo se perceber
que eu sou responsável por arranjar problemas.
Pelo que Rosie dissera, Thomas estava convencido de que a enfermeira
supervisora Barnes era não apenas uma afronta para a profissão de
enfermagem, mas também uma mulher maléfica e intriguista que estava a
enriquecer à custa dos pacientes.
– Acho que tens de te preparar para isso, Rosie – disse sem rodeios. –
Conheces o ditado «não se pode fazer uma omeleta sem partir alguns ovos».
Mas, embora pareça horrível, tens de te agarrar à verdade de que,
pessoalmente, não fizeste nada que seja motivo de vergonha, ao passo que
ela fez muitas coisas. Eu ou Miss Pemberton poderemos recordar-lhe isso!
Rosie esboçou um pequeno sorriso ao ouvir a alusão de Thomas a
chantagem, mas continuava um pouco insegura. Queria fazer o que ele
sugerira e sabia que, se quisesse, era perfeitamente capaz de ser tão
dissimulada como Maureen. Mas conseguiria voltar para lá e ficar a ver
coisas terríveis dia após dia sem se ir abaixo?
Thomas observou o seu rosto e, adivinhando o que estava a pensar, sentiu
muita pena dela. Tinha a certeza de que ia passar um mau bocado. No
entanto, podia ser muito importante para a sua formação, uma oportunidade
de fazer alguma coisa de que pudesse orgulhar-se.
– Preocupas-te o suficiente para defenderes os doentes da tua enfermaria?
Observou o seu rosto e viu uma chama de coragem iluminar-lhe os olhos.
– Sim – disse ela. – Preocupo.
– És forte o suficiente para limpar e alimentar aqueles doentes durante
mais algum tempo e tens coragem para correr o risco de seres exposta como
a filha de um assassino?
Rosie engoliu em seco. Pensou nas pessoas a escarnecer dela e a sussurrar
atrás das suas costas, mas depois obrigou-se a lembrar-se de Aylwood com
aquela escova, dos gritos de Monica e de Saunders a olhar com uma
expressão lúbrica para Angela.
– Sim, acho que sim.
– Linda menina – disse ele, inclinando-se na cadeira e pousando uma mão
forte sobre a sua mão mais pequena. – Agora, a partir de amanhã tens de
fazer um relatório diário. Tens de anotar tudo o que vires e que te pareça
errado ou cruel; o momento, o doente em questão, e quem fez. Escuta atrás
das portas, mantém os olhos abertos.
– Sinto-me uma Mata Hari – disse Rosie com uma risadinha nervosa.
– Não vai ser por muito tempo. Vou arranjar-te ajuda de alguma maneira
e, se quiseres, podes vir para cá todas as noites. Se não vieres, manda-me os
relatórios diários pelo correio, por segurança, e telefona-me para a loja se
houver alguma emergência. Agora, é melhor voltares para lá e comportares-
te como sempre, mas eu vou pôr as coisas a mexer do meu lado. Tens o
número de telefone dos Cook contigo? Miss Pemberton pode precisar dele.

Rosie sentia-se muito melhor quando voltou para casa de autocarro.


Agora tinha um objetivo e, embora a perspetiva da manhã seguinte a
aterrorizasse, pelo menos poderia pensar que todos os momentos passados
na enfermaria tinham uma finalidade clara. Talvez também conseguisse
arranjar uma forma mais humana de lavar os pacientes no dia seguinte, ou
outras pequenas coisas que aliviassem a sua infelicidade. Tinha de parar de
temer o trabalho e encará-lo como um desafio.
*

Eram dez e meia da noite quando Thomas subiu as escadas a coxear,


depois de ter estado a falar pelo telefone da loja. No entanto, desta vez não
se sentia um aleijado, mas sim um soldado a ir para a batalha.
Violet Pemberton quase pareceu desfalecer de choque quando Thomas lhe
contou a história e, como ele próprio, a sua primeira reação fora tirar Rosie
de lá. No entanto, após alguns minutos de conversa convertera-se à sua
ideia. Disse que tinha a certeza de que Lionel Brace-Coombes não fazia
ideia do que se passava, mas que falaria com outros contactos que
conheciam o hospital psiquiátrico para saber qual era a sua opinião sobre
aquilo. Foi ela que sugeriu que deixassem Rosie lá durante cerca de uma
semana para compilar o seu diário, e depois telefonaria a Lionel e pedir-lhe-
ia para fazer uma visita de surpresa porque suspeitava que alguma coisa
estava muito mal. Como realçou, seria muito errado da parte deles não lhe
darem uma oportunidade de provar que não fora conivente com brutalidade
e negligência no hospício. E apenas um homem culpado se recusaria a
seguir a sua sugestão. Também pretendia falar com os Cook para pedir
ajuda ao casal.
Entrou na sala de estar a coxear, viu o quadro da casa de campo e esboçou
um pequeno sorriso ao recordar as perguntas de Rosie sobre ele.
Ela era uma rapariga inteligente. Não acertara no motivo que o levara a
deixar de pintar ou desenhar, mas andara perto. Outrora nunca andava sem
um bloco de desenho e aproveitava todos os momentos livres enquanto
trabalhava no mercado de Smithfield, e os domingos nas docas com
Heather ao seu lado, para desenhar. Tinha o sonho de se tornar um artista,
embora naquele tempo não tivesse dinheiro para comprar papel decente ou
tintas mais caras do que aguarelas.
Mais tarde, no campo de prisioneiros de guerra, tornara-se a sua tábua de
salvação, e desenhava em tudo o que conseguia encontrar, incluindo
pedaços de tábuas velhas e cascas de árvores quando deixou de ter papel.
Alguns homens desenhavam os seus colegas, ou os guardas, mas ele não;
ele desenhava cenas do seu país, flores e pássaros, qualquer coisa que lhe
permitisse manter o otimismo e desviasse os seus pensamentos da fome.
Aqueles dois quadros tinham sido os únicos de dúzias que fizera no
hospital que conseguira guardar e para os quais era capaz de olhar. Tentara
preservar a sanidade mental pintando as imagens que lhe vinham à cabeça,
mas todos, exceto aqueles, eram cenas horríveis e negras, de homens
emaciados a transportar caixões de bambu, a fazer fila para uma tigela de
arroz, a cambalear sob pesados cestos de pedras, de um homem amarrado
com as pernas e os braços esticados a postes, enquanto um sorridente
guarda japonês o chicoteava até o deixar quase morto. Destruíra aqueles
desenhos e guardara as tintas, jurando que nunca mais lhes tocaria.
Se Rosie era capaz de voltar para Carrington Hall com tanta coragem, e
arriscar-se a expor todos os seus velhos demónios, para ajudar um punhado
de pessoas esquecidas que nunca saberiam que fora ela que as salvara,
talvez tivesse chegado o momento de também ele ganhar coragem para
enfrentar os seus demónios.

No dia seguinte, Rosie descobriu que, embora não fosse menos


repugnante encontrar um quarto cheio de fezes pela segunda vez, havia
formas de tornar os banhos dos doentes menos horríveis. Não teve outra
alternativa a não ser vestir o grande avental de borracha, ou agarrar Monica
com firmeza pelos braços e arrastá-la para o chuveiro, mas com sorrisos e
olhares sedutores para Saunders conseguiu persuadi-lo de que a água quente
lavava melhor e mais depressa do que a água fria. Ele gritou-lhe, zangado,
quando ela se recusou a usar a escova com cabo comprido e se aproximou
de Monica com um pano e sabão nas mãos. O argumento dele foi que Rosie
ia ficar encharcada, ou que Monica a arranharia, mas como estava a segurar
a doente não pôde fazer grande coisa e ela parou de gritar quase
imediatamente.
Rosie não sabia o suficiente sobre nenhum dos doentes para avaliar se
tinham estado um pouco mais calmos hoje do que ontem, nem se a sua
abordagem mais gentil foi o que diminuiu as lutas e os gritos. Podia ser
porque ela era uma cara nova, ou até por estar a tornar-se imune à gritaria.
Felizmente, Saunders não era tão atento como Aylwood e perdeu o
interesse quando ela estava a secar os doentes. Recuou para espreitar pela
janela, o que lhe deu oportunidade para observar com maior atenção as
cicatrizes nos seus corpos, que ele afirmava serem autoinfligidas. Rosie
sabia que não eram; já vira demasiadas lacerações no passado feitas com
varas e cintos para ser enganada, e o tipo de nódoas negras que via em
nádegas, coxas e canelas só podiam ter sido feitas por uma bota pesada.
Olhou para as grossas botas castanhas de Saunders e estremeceu.
Depois de todos os doentes estarem limpos e de volta aos quartos, Rosie
sentiu-se quase eufórica. É claro que sabia que no dia seguinte Aylwood
estaria de volta e Saunders seguiria quase de certeza o seu exemplo,
voltando aos velhos métodos de banho, mas pensou com otimismo que
talvez Aylwood fosse preguiçosa o suficiente para deixar aquela tarefa a seu
cargo. No entanto, logo que Simmonds chegou com o pequeno-almoço,
Rosie viu que, se tinha sido privado de um ato sádico, Saunders tinha de
encontrar outro.
Mabel foi a primeira vítima da sua malevolência. Como no dia anterior,
quando Saunders destrancou a porta ela estava deitada no estrado da cama a
gemer. Rosie vinha atrás dele com a taça de alimentação com papas de
aveia muito ralas que Simmonds lhe entregara. Saunders pegou na velhota
por um braço, sentou-a com um puxão e, sem esperar um ou dois instantes
para que ela recuperasse o fôlego, inclinou-lhe a cabeça para trás e começou
a despejar-lhe a comida na boca.
Rosie não queria acreditar no que estava a ver. Ele despejou as papas de
aveia com tanta velocidade que Mabel não conseguiu engolir ao mesmo
ritmo e começaram a sair pelo nariz.
– Não – gritou Rosie, e correu para tentar pará-lo. – Vai sufocá-la.
Ele parou apenas um instante para esboçar um sorriso maníaco.
– Não tenho o dia inteiro para cuidar dela – disse. – Além disso, ela está
acostumada a comer assim.
Rosie tremeu de raiva e náusea enquanto ele continuava. Ser forçada a ver
aquela pobre mulherzinha deformada a tentar engolir a comida com grande
coragem, enquanto as mãos abanavam num vão protesto, foi uma das coisas
mais perturbadoras que já vira em toda a sua vida. Sentiu um desejo
profundo de pegar na panela das papas de aveia do carrinho, despejá-la pela
cabeça de Saunders abaixo e depois dar-lhe um pontapé na virilha.
Quando ele acabou, não pôde fazer muito para compensar aquela
brutalidade. Limpou a boca e o nariz de Mabel e ajudou-a com muito
cuidado a deitar-se no estrado da cama, mas Saunders estava à espera para
trancar a porta e passar para o doente seguinte.
Felizmente, Saunders considerava que alimentar os doentes era uma
tarefa menor e, depois de Mabel, mandou Rosie alimentar todos os que não
conseguiam fazê-lo sozinhos, ficando parado à porta de braços cruzados, a
refilar porque ela demorava muito tempo. Monica não comera mais de duas
colheradas no dia anterior, quando a colher estava numa das mãos de
Aylwood enquanto a outra lhe apertava a nuca. Rosie não copiou aquele
método cruel; segurou Monica com firmeza, mas com cuidado, pelos
ombros, e por vezes encorajava-a acariciando-a e falando-lhe em voz baixa
como teria feito a uma criança. Para seu deleite, a boca de Monica abriu-se
voluntariamente, a comida não foi cuspida e ela não se debateu.
Mais tarde nessa manhã, enquanto Coates limpava o chão do corredor e
Saunders estava sentado na sala de descanso a ler, Rosie entrou no
escritório e olhou discretamente para as notas dos doentes que estavam
empilhadas na secretária. Esperava descobrir se havia um bom motivo para
alguns dos pacientes, como Mabel, comerem tão pouco. Uma taça de papas
de aveia ralas não lhe parecia suficiente; embora ela não tivesse dentes,
conseguiria comer um ovo mexido. No entanto, ficou desapontada, pois não
compreendeu nada do que estava escrito a não ser o registo das
temperaturas. A caligrafia do Dr. Freed era ilegível e Aylwood não
acrescentara mais nada. Rosie chegou à conclusão de que os únicos que
comiam uma refeição decente eram os que ainda conseguiam comer
sozinhos.
Havia um arquivo num canto e, ao experimentar as gavetas, constatou que
estavam abertas. Não se atreveu a investigar, não sem descobrir o que
Saunders estava a fazer e quais eram os seus planos para o resto da manhã.
Assim, decidiu ir procurá-lo e tentar descobrir. Ele continuava na sala de
descanso, a ler o jornal. Rosie deixou-se cair no sofá ao seu lado.
– Já viste isto sobre o Edmund Hillary, que chegou ao cimo do Everest? –
perguntou, acenando com o jornal, muito entusiasmado. – O primeiro
homem a chegar ao cume – disse, como se ela não soubesse, e começou a
ler-lhe alguns trechos da notícia.
Noutras circunstâncias, Rosie quereria ler tudo e falar sobre o assunto
com quase toda a gente, pois pensava que era uma façanha maravilhosa e
corajosa. Porém, hoje tinha coisas muito mais importantes em mente do que
o alpinismo e aquele homem enojava-a de mais para ter uma conversa
desnecessária com ele.
– O que é que se passa? – perguntou ele quando Rosie começou a ficar
inquieta.
– Estou entediada – respondeu Rosie. – Que diabo é que vocês fazem
aqui o dia inteiro para passar o tempo?
– Isto – respondeu ele, abanando o jornal. – Eu leio-os de uma ponta à
outra, todas as palavras.
Rosie olhou-o de lado. Ele era um homem muito feio, e agora que sabia
até que ponto era sádico quase não conseguia respirar o mesmo ar que ele.
Perguntou a si mesma o que o levara a trabalhar com deficientes mentais.
Teria sido sempre um rufia, ou seria o trabalho que o deixara assim?
– É casado? – perguntou.
Ele sorriu com uma expressão cruel.
– Já fui, mas corri com ela enquanto estava no exército. Não vi a lógica
de pagar para ter uma mulher em casa quando podia tê-las sem pagar em
toda a parte.
Rosie estremeceu. Era muito estranho tê-lo comparado a Seth a primeira
vez que o vira, pois, fisicamente, não havia a mais pequena semelhança.
Porém, aquele comentário grosseiro era exatamente o que o irmão diria.
Lembrou-se do aviso de Linda de que devia manter-se longe dele, mas
precisava de ficar ali mais algum tempo para tentar criar algum tipo de
confiança.
– Posso limpar o escritório? – perguntou. – Estou aborrecida sem nada
para fazer. Não estou acostumada.
– A Aylwood não gosta que andem a meter o nariz lá – replicou ele,
olhando-a de lado. – Se quiseres, posso arranjar uma coisa para não te
aborreceres! – acrescentou com um olhar lúbrico.
Rosie estremeceu. Teve a certeza de que era uma insinuação sexual.
– Não estou assim tão aborrecida – disse rapidamente. Levantou-se e
afastou-se para ir espreitar os doentes.
Sentiu um aperto no coração ao vê-los. Monica estava sentada no chão,
curvada no canto, com a cabeça rapada entre os joelhos e os braços magros
a rodeá-la num gesto protetor. Hoje estava calma e o rosto perdera a
expressão bestial do dia anterior. Rosie perguntou a si mesma se ainda
estaria sob o efeito do forte sedativo que lhe tinham administrado no dia
anterior ou se oscilava sempre entre ataques de fúria e silêncio. Desejou
conhecer a história clínica dos doentes. Estava convencida de que isso a
ajudaria a compreendê-los, mas pensou que Saunders e Aylwood troçariam
dela se soubessem isso.
Havia uma poça de xixi no chão, por isso Rosie voltou e perguntou a
Saunders se podia emprestar-lhe as chaves para ir limpar.
– Só podes estar a brincar! – disse ele, olhando-a com desprezo. – A porta
só volta a ser aberta à hora do almoço.
– Mas ela está sentada quase em cima dela – protestou Rosie.
– É muito bem feito – declarou ele, pegando de novo no jornal.
– Porque é que eles não podem ter um bacio lá dentro? – perguntou
Rosie, a esforçar-se ao máximo para controlar a raiva que sentia.
Saunders olhou-a por cima do jornal com uma expressão furiosa.
– És idiota ou quê? – Parecia exasperado. – Gostavas que um bacio cheio
de merda te fosse atirado quando abrisses a porta?
Rosie saiu. Ele podia estar a falar por experiência própria, mas isso não
justificava que não a deixasse ir limpar o chão. Gostava de saber como é
que ele se sentiria se tivesse de passar a manhã inteira sentado em cima da
sua urina.
Em cada postigo o seu coração ficava um pouco mais apertado. Bertha
andava de um lado para o outro a falar sozinha, e de vez em quando batia na
porta. Angela estava sentada no chão a enrolar e desenrolar uma madeixa de
cabelo nos dedos e a tagarelar sozinha. Um dos homens idosos estava de pé,
virado para o canto, a fazer caretas; outro acariciava-se para se consolar.
Agora, Mabel estava no chão a chorar, a baloiçar para a frente e para trás,
com a camisa ensopada de urina. Rosie fixou todos aqueles cenários na
mente, para poder registá-los mais tarde. Desejou poder entrar no escritório
e revistar aquele arquivo. Duvidava que conseguisse ver o que tinha quando
Aylwood voltasse.
Cerca das três da tarde Rosie estava quase a dormir na cadeira no
corredor quando Saunders lhe tocou. Estava muito quente e abafado, e pela
primeira vez naquele dia estava tudo em silêncio. Pensou que talvez os
doentes também estivessem afetados pelo calor.
– Vai para o escritório e descansa a cabeça – sugeriu. – Eu sento-me aqui
um bocado.
De repente, ficou bem desperta e percebeu que seria uma oportunidade de
ouro que talvez não se repetisse. Mesmo quando Saunders descera para
almoçar, Gladys Thorpe viera substituí-lo. Rosie sempre a considerara boa
pessoa, apesar de ser um pouco lenta, mas quando tentou saber o que
pensava sobre aquela enfermaria o rosto da enfermeira ficou tenso e ela
disse:
– Não me compete a mim falar sobre isso.
Rosie ficou mais chocada com a atitude de Thorpe do que com a das
auxiliares; afinal de contas, ela era uma enfermeira credenciada. Se não
tivesse medo de que ela fosse contar à enfermeira supervisora, tê-la-ia
censurado sem dó nem piedade.
– Está tanto calor aqui dentro – disse, abanando a mão como um leque.
Tinha a forte sensação de que Saunders estava a fazer-lhe um favor que
esperava que fosse retribuído. – É sempre assim?
Ele encolheu os ombros e os seus pequenos olhos claros pareceram
apáticos.
– É capaz. Mas vais acostumar-te. Posso tentar abrir algumas janelas.
Está muito mais calor na rua. Acho que o verão chegou por fim.
Rosie foi para o escritório, sentou-se na poltrona no canto, junto do
arquivo, e recostou a cabeça. Ouvia os passos de Saunders no corredor, pois
os seus sapatos tinham protetores de aço e as chaves tilintavam no cinto.
Sempre que ele parava, via mentalmente para qual dos quartos estava a
olhar.
Percebeu quando ele se sentou no fundo do corredor pelo barulho da
cadeira a raspar no chão e abriu o arquivo sem demora. A gaveta de cima
parecia ser apenas para guardar coisas que já tinham sido lidas e havia de
tudo, desde exemplares da Nursing Times até dois velhos livros policiais em
mau estado. Fechou-a em silêncio e abriu a gaveta do fundo, constatando,
encantada, que continha os dossiês dos doentes. Havia dois separadores
distintos, um para os ex-pacientes e o outro para os pacientes atuais.
Tirou o que pertencia a Monica Endlebury e começou a folheá-lo, atenta
às movimentações de Saunders. No fim, havia uma história clínica
datilografada.
Aparentemente, Monica fora uma criança normal, se bem que um pouco
nervosa. Em 1938, quando tinha quinze anos, fora mandada para Paris para
viver com uma tia porque os pais pensaram que lhe alargaria os horizontes.
Um ano depois, quando a guerra começou, escreveram a pedir à tia para
mandá-la para casa. Monica desapareceu.
No outono de 1944, habitantes de uma zona rural perto de Reims
começaram a relatar avistamentos de uma mulher com uma aparência
selvagem, vestida com farrapos, que vivia no bosque. Dois homens
declararam que tinham tentado falar com a mulher, mas que ela se atirara a
eles como um cão selvagem e desaparecera de novo. No princípio do mês
de janeiro de 1945 dois rapazes que andavam a caçar coelhos ouviram um
gemido vindo do que parecia ser um acampamento improvisado.
Investigaram e descobriram a mulher semienterrada no meio das folhas, a
morrer de frio e de fome.
Foi levada para um hospital local e enquanto estava a ser tratada
aperceberam-se de que era inglesa por causa de uma ou outra palavra nos
seus murmúrios dementes. Foi transmitida uma descrição física à
embaixada britânica, que acabou por não só repatriá-la para Inglaterra e
enviá-la para o Hospital Psiquiátrico Friern Barnet, mas também contactar
os pais.
Rosie estava a ler um longo e pormenorizado relatório de um psiquiatra
que acreditava que Monica fora mantida prisioneira durante alguns anos e
sujeita a todos os tipos de perversões sexuais quando ouviu os passos de
Saunders. Enfiou rapidamente o dossiê na gaveta, fechou-a e afundou-se na
poltrona como se estivesse profundamente adormecida.
Sentiu que Saunders esteve parado à porta durante algum tempo, a
observá-la, mas depois, quando pensou que devia abrir os olhos e falar, ele
afastou-se. Rosie escutou durante alguns minutos antes de voltar aos
dossiês. Ouviu-o abrir portas de celas e mais barulho quando ele entrou.
Lembrou-se de que dissera que ia abrir um pouco as janelas e presumiu que
era o que estava a fazer.
Quando os seus passos voltaram para o fundo do corredor, abriu de novo
a gaveta. Por muito que quisesse saber mais sobre Monica e como viera
parar a Carrington Hall, não perdeu mais tempo a ler as histórias clínicas.
Precisava das moradas das famílias.
Para seu desapontamento, não havia nenhuma. Pensou que deviam ser
guardadas lá em baixo, no escritório de Mrs. Trow. Estava desesperada para
ler mais sobre todos os doentes, mas, certa de que a sua sorte não se
manteria durante muito mais tempo, guardou os dossiês e fechou a gaveta.
Eram pouco mais de quatro horas quando espreitou para o corredor. Para
sua surpresa, Saunders não estava lá sentado e ficou imediatamente
alarmada.
O seu primeiro pensamento foi que ele voltara para o escritório sem que o
ouvisse, vira-a a ler um dossiê e saíra para contar à enfermeira supervisora.
Contudo, enquanto estava parada à porta a pensar em desculpas para ter
metido o nariz em coisas que não lhe diziam respeito, reparou que a porta
do quarto de Angela estava entreaberta.
As portas não fechavam por dentro, uma precaução para evitar que os
doentes roubassem as chaves e se trancassem no interior das celas. Pensou
que Saunders devia estar lá a abrir a janela, mas, tendo em conta que
Aylwood dissera que ela era a doente mais perigosa da enfermaria, pensou
que seria melhor ir ver se estava tudo bem.
Ia a meio do corredor quando percebeu que Saunders não conseguiria
abrir aquelas janelas pequenas e altas sem levar alguma coisa para subir.
Além disso, se estivesse ocupado com isso, como é que impediria que a
doente fugisse? Parou de repente, a pensar na sugestão invulgarmente
simpática para que dormisse uma sesta no escritório. Porque não na sala de
descanso? A menos, é claro, que fosse porque ficava quase defronte do
quarto de Angela.
Relembrou a forma como a olhara no duche e, com essa lembrança, veio
um clarão de intuição do que estava a fazer no quarto dela. Avançou em
bicos de pés. Sentiu-se pouco à vontade, sabendo no seu íntimo que ia ver
uma coisa chocante, mas que teria de olhar.
Quando espreitou pelo postigo quase teve um flashback da terrível cena
que estava gravada na sua mente desde a infância. Personagens diferentes,
talvez, e filmada de um ângulo diferente, mas o mesmo ato igualmente
brutal.
O grande corpo de Saunders quase escondia a pequena mulher que estava
presa por baixo do seu peso. O seu traseiro sarapintado subia e descia, e
Rosie teve de se pôr em bicos de pés para conseguir ver tudo o que estava a
acontecer.
As suas calças estavam descidas até aos tornozelos e ele pressionava
Angela contra o estrado da cama. Ela tinha as mãos numa posição estranha
por cima da cabeça e os pulsos estavam amarrados com um cordão. Como
não fazia barulho, Rosie pensou que ele devia tê-la amordaçado com
alguma coisa, mas não viu o rosto dela, apenas a grande massa de cabelo
preto encaracolado.
Os gemidos de Saunders eram tão asquerosos que teve um arranco de
vómito, e aquele momento de hesitação forçada em que a boca se encheu de
bílis deu-lhe tempo suficiente para pensar antes de se precipitar para
intervir.
Sentiu-se a mais vil das cobardes quando voltou para trás pelo corredor
sem fazer barulho, afastando-se da cela: de novo a lembrança da culpa por
também não ter tentado impedir que os irmãos abusassem de Heather, nem
contado à polícia o que tinham feito, mas o senso comum disse-lhe que não
poderia enfrentar Saunders quando ele estava inflamado com aquela luxúria
animalesca.
Parada à porta do escritório, tremia da cabeça aos pés, sem saber o que
fazer. Não duvidou que o homem usava a rapariga com regularidade há
meses, talvez desde que ela viera para cá. E, tanto quanto sabia, era possível
que abusasse de outras.
Um tilintar repentino de chaves alertou-a para o facto de que ele tinha
terminado o horrível trabalho, mas não conseguiu sair da soleira da porta.
Observou-o a sair, fechar a porta à chave, e de repente Angela começou a
gritar.
Rosie nunca ouvira um grito como aquele. O seu sangue gelou ao
perceber como era selvagem e, sem querer, começou a aproximar-se.
– Não fiques tão preocupada – disse Saunders num tom animado
enquanto se dirigia para ela, com as mãos abertas para a manter à distância.
– Ela fica sempre assim quando alguém entra de repente, sem comida nas
mãos. Tentei abrir a janela, mas ela começou a bater-me. Dormiste bem?
Quando fui espreitar há bocado estavas ferrada no sono.
Rosie teve de se virar. O seu rosto ter-lhe-ia dito que vira tudo. Não
conseguia apagar a expressão de desprezo que sabia que estava estampada
nos seus olhos, nem o rubor de fúria nas faces.
Vomitou mais tarde na sanita. Angela continuava a gritar, o que
desestabilizara alguns dos outros doentes, e Rosie sentiu que já sabia como
devia ser o Hospital de Bethlem. Como poderia ficar aqui depois de ter
visto aquilo?

– Tiveste um dia mau? – perguntou Linda durante o jantar. Todas tinham


saído e, excetuando Pat Clack na cozinha, estavam sozinhas.
Rosie só conseguiu acenar. Não foi capaz de comer nada, tudo parecia
ficar preso na garganta. Precisava de contar a alguém, a qualquer pessoa,
mas sabia que não podia confiar em ninguém.
– Vem sair comigo esta noite, vai animar-te – disse Linda com um sorriso.
– Podemos apanhar o metro para o West End e andar a ver os rapazes.
Rosie sentiu-se comovida por Linda tentar animá-la e desafiar a ordem
para não falar com ela. Foi mais simpático ainda convidá-la para sair, mas
pensou que não queria voltar a olhar para um homem enquanto vivesse.
Eram todos desprezíveis, o pai, os irmãos e agora Saunders. Tanto quanto
sabia, Thomas podia ter alguma perversão secreta. Pensou que poderia
começar a odiar todos os homens.
CAPÍTULO 11

T homas subiu as escadas com Miss Pemberton até à sua sala de estar
antes de dizer mais do que as habituais cortesias. Mr. Bryant
preparava-se para fechar a loja, mas era um homem curioso e Thomas não
queria que lhe perguntasse quem era nem que escutasse a conversa dos dois.
Passara uma semana desde que Rosie viera contar-lhe a sua história
chocante e, embora ele e Miss Pemberton tivessem falado duas vezes ao
telefone durante esse tempo, ela não lhe dera nenhuma indicação de que
viria a Londres hoje. Ficou ainda mais surpreendido com a sua aparência
bastante atraente. Quando se tinham conhecido na Páscoa ela era a
personificação de uma assistente social: de meia-idade, um pouco
masculina, com um fato de tweed e sapatos resistentes. Porém, hoje parecia
dez anos mais nova com um vestido lilás de verão muito feminino de
mangas curtas, sapatos bonitos e um encantador chapéu de palha.
– Se me permite o arrojo, está belíssima, Miss Pemberton – disse Thomas
depois de fechar a porta da sala de estar. – E fico-lhe muito grato por ter
vindo de tão longe.
– Se é arrojado o suficiente para dizer que estou belíssima, é arrojado
para me tratar por Violet – disse ela com um sorriso. Gostava de Thomas
Farley. Apesar de só o ter visto uma vez pessoalmente e de resto
conhecerem-se apenas por conversas telefónicas e cartas, considerava-o
muito encantador. Esta qualidade transparecera sem o ver, através das
interessantes e inteligentes declarações nas suas cartas e do tom forte e
profundo da sua voz e tornou-se mais forte quando viu os olhos castanhos
calorosos e a forma como os seus lábios carnudos se curvavam num leve
sorriso enquanto falava com ele, como se ela o divertisse secretamente.
Gostava muito das rugas do seu rosto porque contavam histórias de
dificuldade, aventura e experiência e também confirmavam porque é que
possuía aquela abundância de compaixão e sensibilidade. E também era
divertido; de alguma forma, conseguira manter o humor irreverente e
acutilante pelo qual os habitantes do East End eram famosos. Na verdade,
era um homem mais verdadeiro com uma perna do que a maioria dos que
tinham as duas. E, se fosse quinze anos mais nova, sentir-se-ia tentada a
atirar-se a ele.
– Não sei porque é que está grato por eu ter vindo. Sou eu que estou em
dívida para consigo, Thomas, por ajudar a Rosie quando ela precisou. Além
disso, gosto de pensar que somos amigos – acrescentou.
Thomas sorriu com a sua franqueza. Trouxe-lhe boas lembranças de
outras enfermeiras do Queen Alexandra igualmente frontais que conhecera.
Devia a vida e a sanidade mental a essas mulheres determinadas. Ficou
comovido ao saber que o considerava um amigo.
– Faça o favor de se sentar – disse, retirando uma camisa de uma das duas
cadeiras. – Se soubesse que vinha visitar-me, tinha-me arranjado um pouco
e também a casa. Posso oferecer-lhe um chá? Ou alguma coisa mais forte?
– Um chá seria agradável – disse Violet, enquanto se sentava e tirava o
chapéu.
Thomas sentiu-se um pouco parvo ao oferecer-lhe uma bebida alcoólica
às cinco da tarde. Evoluíra bastante desde as suas raízes de criança de bairro
de lata, mas pensava que ainda tinha muito para aprender sobre etiqueta.
– A Rosie compilou um grande dossiê – disse rapidamente, para esconder
o embaraço. – Ontem à noite veio cá trazer o relatório do dia. Hoje não
vem, porque tem um encontro.
Quase esperou que Violet não gostasse, mas em vez disso ela sorriu com
verdadeira ternura e os seus suaves olhos cinzentos cintilaram.
– Que boa notícia. Tenho andado muito preocupada com ela. Quem é o
jovem?
– Gareth Jones. É maquinista de locomotivas. Conheceu-o no dia da
Coroação... Aparentemente, o Donald perdeu-se e o Gareth ajudou-a a
encontrá-lo. Fico muito contente que tenha alguém para se distrair desta
coisa horrível, pois já começa a notar-se a tensão. Mas deixe-me dar-lhe as
notas dela para ler enquanto preparo o chá.
Enquanto fazia o chá na minúscula cozinha nas traseiras da casa, pensou
de novo em Rosie. A verdade é que, pensando bem, ela quase não lhe saíra
da cabeça durante a semana inteira. Detestava pensar que estava em
Carrington Hall, especialmente desde que lera o que ela escrevera acerca de
Saunders. Vezes sem conta, sentira-se tentado a chamar um táxi e ir lá
buscá-la. Não parava de pensar porque é que sentia isto por ela; não era
racional nem normal sentir-se tão ligado a uma rapariga que não era da sua
família, especialmente tão jovem e com aqueles antecedentes. Em
momentos sombrios, pensava que talvez precisasse de consultar um
psiquiatra.
– Não sejas estúpido – disse em voz alta, e as suas palavras foram
abafadas pelo som do apito da chaleira. – Não tens nada que não possa ser
resolvido com algumas cervejas em boa companhia. Passas demasiado
tempo sozinho, é só isso.
Violet estava a terminar a última página do relatório de Rosie quando
Thomas voltou com o tabuleiro do chá.
– A Rosie daria uma excelente repórter – disse, olhando para ele. –
Escreve com uma clareza e concisão que não se esperaria de uma rapariga
com a sua origem.
– Também daria uma boa detetive – comentou Thomas, sorridente. – A
forma como descobriu que a Aylwood injeta doentes com insulina para os
manter em coma, sem que tenha sido prescrito pelo Dr. Freed. E aquela
parte em que esperou na casa de banho para espiar o Saunders
impressionou-me. Reparou que ela anotou o tempo exato da sua visita:
chegou às 21h20; saiu às 21h52. Quem diria que ele tinha a lata de voltar
durante a noite para fazer mais maldades!
Violet corou. Estava envergonhada por ter mandado Rosie para
Carrington Hall sem ter ido lá verificar primeiro, e sentiu-se extremamente
culpada por ter ignorado as suas queixas e desconfianças na Páscoa. Devia
tê-las levado mais a sério, pois Rosie não era histérica nem exagerada.
Agora, Saunders estava a fazer aquela pobre menina perder a pouca
inocência infantil que lhe restava. Sentiu-se totalmente responsável.
– Acho inconcebível que a enfermeira supervisora deixe aquele piso sem
alguém de serviço durante a noite – disse, a abanar a cabeça. – Devia ser
chicoteada. Um daqueles pacientes pode ter uma apoplexia, pode haver um
incêndio, qualquer coisa.
Thomas concordou sem reservas, mas referiu que um menosprezo tão frio
pelo bem-estar dos pacientes poderia tornar muito mais fácil provarem
todas as outras alegações.
– Mr. Cook, o pai do Donald, foi lá sem avisar no sábado passado –
continuou. – Ligou-me depois para me contar o que aconteceu. Como
sempre àquela hora, a enfermeira supervisora não estava e ele falou com
Mrs. Trow, que não queria deixá-lo ver o filho sem autorização da chefe.
Enquanto estava no escritório, conseguiu dar uma vista de olhos à escala de
serviço. No papel, a enfermeira Wilkinson estava de serviço noturno com
um auxiliar chamado Giles. A Rosie disse-me que nunca ouviu falar nem
viu ninguém com esses nomes.
– Está a dizer que a enfermeira supervisora mete ao bolso os salários de
dois funcionários que não existem? – Os olhos de Violet quase saltaram das
órbitas com o choque.
– Bem, é o que parece. – Thomas acenou com a cabeça. – E a Rosie está
convencida de que a maior parte do pessoal contratado pela enfermeira
supervisora deve estar em dívida para com ela. Seria muito interessante ver
os seus dossiês. Aposto que íamos encontrar alguns rabos-de-palha.
– Um dos motivos por que vim tão depressa foi porque ontem falei com
uma antiga colega, a Molly Ramsden – disse Violet. – A Molly foi a
primeira enfermeira supervisora de Carrington Hall: eu recomendei-a ao
Lionel quando ele estava a abrir o hospital psiquiátrico. Lamentavelmente,
em 1940 ela teve de se ir embora para cuidar da mãe doente e a Freda
Barnes, que na época era enfermeira, assumiu o cargo de enfermeira
supervisora. Ela contou-me que voltou lá em 1942 para fazer uma visita e
ficou surpreendida ao perceber que todos os funcionários originais se
tinham ido embora. Pediu uma ou duas moradas à Barnes, mas ela mandou-
a passear, e quando quis ver alguns dos antigos doentes foi, praticamente,
acompanhada à porta.
– A sério? – exclamou Thomas, sentando-se para servir o chá.
– Eu pensei que é suspeito – disse Violet com uma fungadela. – Sei que a
Molly nunca gostou da Barnes, e que este incidente pode ter sido por
simples ciúmes profissionais. Mas agora, com o que soubemos pela Rosie,
parece muito provável que ela já estivesse a esconder alguma coisa naquela
época.
– A sua amiga tem contacto com algum dos antigos empregados? –
perguntou Thomas, passando-lhe uma chávena de chá e oferecendo-lhe o
açúcar.
– Apenas com uma, a Lucy Whitwell, que era cozinheira em Carrington
Hall, também desde a abertura do estabelecimento. – Violet recusou o
açúcar e bebeu um gole de chá. – A Whitwell escreveu-lhe em 1943, a
pedir-lhe que lhe desse referências porque fora despedida pela Barnes,
alegadamente por roubar provisões. Na longa e amarga carta, afirmava que
se tinham desaparecido provisões, a Barnes era quase de certeza a
responsável, pois era ela que tinha as chaves da despensa. A Molly sentiu-
se inclinada a tomar o partido da antiga colega, pois enquanto trabalhara lá
pudera perceber que ela era uma excelente cozinheira e uma mulher
honesta. Por isso, deu-lhe uma carta de referências e ela foi contratada para
trabalhar num lar em Bexhill. Ainda continua lá e trocam postais de Natal
todos os anos. A Molly acredita que, se for preciso, ela não se importará
nada de dar um depoimento para contar as suas experiências com a Barnes.
Enquanto bebia o chá, Thomas refletiu um pouco.
– Já pensou porque é que o Brace-Coombes dá tanta liberdade à Barnes
para gerir o seu hospital? – perguntou por fim. – Ou porque é que o médico
que trabalha lá nunca se queixou?
– Fiz algumas investigações sobre ele. Parece que o Dr. Freed tem
bastante mais de sessenta e cinco anos e está semirreformado. É o médico
de Carrington Hall há uns seis ou sete anos e vai lá duas manhãs por
semana. Como passou toda a sua vida profissional a trabalhar em hospitais
psiquiátricos, deve estar demasiado empedernido para ver alguma coisa
mais dramática do que uma epidemia ou uma vaga de mortes súbitas. –
Violet apertou os lábios. – Mas, para ser justa com o homem, é muito fácil o
pessoal de dia ter tudo na mais perfeita ordem quando o médico vem
sempre à mesma hora. Os doentes não conseguem queixar-se de forma
coerente e se o pessoal não lhe disser nada ele não tem motivos para ficar
alarmado.
– E o Brace-Coombes?
Violet encolheu os ombros.
– Ele é um homem de negócios, não um médico. Tenho a certeza de que a
Rosie lhe contou que ele abriu o hospital para pôr a mulher lá, e foi uma
coisa boa. Sei que ficou devastado quando a Ayleen faleceu e sentiu que
tinha de o manter aberto em sua memória. No entanto, depois da morte da
mulher passou a ser muito difícil para ele ir lá. Aposto que foi muito fácil
para a Barnes enganar o pobre Lionel e convencê-lo a dar-lhe autoridade
total. Parece que ela tem jeito para manipular pessoas.
– Isso não o isenta de culpa.
Os olhos de Violet estavam tristes.
– Pois não.
Para além de achar Thomas muito atraente, Violet pensou que ele era algo
intrigante. Se não soubesse quais eram as suas origens, diria que era
oriundo de uma família de classe média baixa e que tinha completado o
liceu. Nunca diria que nascera e crescera num bairro de lata da zona oriental
de Londres. No entanto, como era um pouco bisbilhoteira – a sua profissão
de assistente social a isso obrigava – decidira descobrir mais coisas sobre
ele. Fora um soldado de primeira classe, muito apreciado pelos seus pares e
respeitado pelos oficiais. Antes de perder a perna fora um grande
desportista e estava prestes a ser promovido. Pensou que era triste ter
acabado como relojoeiro. Ele merecia mais.
– Diga-me, Thomas – disse. – Antes de tudo isto acontecer alguma dez
duvidou da opinião de um médico ou de um enfermeiro?
– Bem, não. – Thomas esboçou um pequeno sorriso. – Eles são treinados
para exercer aquelas profissões e eu não.
– Pois – disse ela sem rodeios. – Na verdade, tanto quanto sabe a sua
perna podia não ter de ser cortada. Mas não teria contestado a decisão do
cirurgião, pois não? Todos depositamos a nossa fé em profissionais num
momento ou outro das nossas vidas, sejam médicos, advogados, padres ou
dentistas, e acreditamos que são honrados. Mas a verdade é que já vi
cirurgiões operar em quem não confiaria para trincharem uma peça de
carne. Conheço enfermeiras que já estiveram bêbedas de serviço e
advogados que decidiram defender mal um cliente porque um dos seus
compinchas estava do lado da acusação.
Thomas pareceu alarmado.
– Então em quem é que podemos confiar?
– Em muitas pessoas – respondeu Violet, sorridente. – Felizmente, as
maçãs podres estão em minoria. Eu só estava a tentar perceber o lado do
Lionel, porque o pobre diabo é a pessoa que vai ser alvo das maiores
críticas quando tudo isto for desmascarado. Podemos conseguir que a
Barnes nunca mais trabalhe como enfermeira, e com sorte talvez seja
acusada criminalmente. O Dr. Freed poderá ser repreendido, mas é muito
provável que o nome do Lionel seja arrastado pela lama.
– Isso não vai acontecer se for ele a iniciar as investigações.
– E é o que acho que vai fazer, quando for falar com ele – replicou ela. –
Esta noite vou dormir em casa de uma velha amiga em Highgate. Amanhã,
almoço em casa dele. Pus a Rosie nesta situação terrível e quanto mais
depressa conseguir resgatá-la, mais feliz me sentirei.

Às sete e vinte da tarde, quando Thomas descia as escadas com Miss


Pemberton para acompanhá-la à porta da loja, Rosie esperava por Gareth
junto aos portões de Carrington Hall.
Qualquer pessoa que percorresse Ridge Lane num quente fim de tarde de
verão não acreditaria que a velha casa meio escondida atrás de árvores
imponentes era palco de tanta miséria humana. A placa nos portões de ferro
não tinha qualquer indicação de que era um hospício e poderia ser uma
pensão, ou uma escola. A hera e a clematite que trepavam pelas paredes
escondiam a maior parte do estuque a cair e duas enormes peónias em plena
floração distraíam os olhos do resto do jardim da frente, que estava bastante
negligenciado. Durante o dia talvez houvesse rostos pálidos e tristes
encostados às janelas com grades do primeiro andar, mas a esta hora os
doentes já tinham sido levados para os dormitórios nas traseiras da casa.
O cheiro doce da relva acabada de cortar nos jardins das duas pequenas
casas em frente, o som de gargalhadas de crianças a misturarem-se com o
suave bater de uma bola numa raquete algures e com o tinido de um piano
daria ao transeunte a sensação de que era um bom lugar para viver, não
propriamente no campo, mas também não num subúrbio. Poderiam avistar a
rapariga bonita parada debaixo do sicómoro inclinado e sorrir, adivinhando
pelo nervosismo, pelo lindo vestido de verão cor-de-rosa e branco e pelo
cabelo muito bem arranjado, que esperava o namorado com ansiedade.
Ninguém adivinharia que na última semana uma pessoa tão jovem pudesse
ter sido sujeita a experiências tão aterradoras.
Rosie passara o dia inteiro em grande aflição, ora tão nervosa que
pensava que teria de faltar ao encontro marcado com Gareth, ora a contar os
minutos que faltavam para o ver. Passara a semana inteira dedicada a
Carrington Hall, mas nas duas últimas horas concentrara-se apenas no
encontro daquela noite e na sua aparência.
Seria o bâton rosa que tinha comprado no Woolworth’s demasiado
berrante? Devia ter trazido um casaco de malha? Ele repararia que os saltos
dos seus sapatos estavam um pouco estragados? E se tivesse uma malha nas
meias de nylon novas? Ele tentaria beijá-la? E se tentasse devia deixá-lo, ou
ele ficaria a pensar que era fácil?
O som de uma mota na rua fez Rosie virar-se. Se o motociclista não
tivesse acenado, não teria percebido que era ele; não esperava que viesse de
mota.
Gareth usava calças de flanela cinzenta, uma camisa branca de colarinho
aberto e um casaco de tweed. Parou a alguma distância dela, com o motor
ainda ligado. Sorriu e passou a mão pelos despenteados caracóis castanhos
para os alisar.
– Estava um pouco a contar tocar à campainha e ser corrido com uma
desculpa qualquer – disse. – Não pensei que estivesses à minha espera.
Rosie ficou aparvalhada durante alguns instantes. Não só a mota foi uma
surpresa, como ele era ainda mais bonito do que a imagem que guardara na
memória. O sol que brilhara nessa semana bronzeara-lhe o rosto, o que
fazia os seus olhos parecerem arroxeados e os dentes muito brancos.
– Esperei aqui porque a enfermeira supervisora não gosta que rapazes
entrem em Carrington Hall – conseguiu dizer. – Não me lembrei de te dizer
isso a semana passada.
Ele desligou o motor, mas continuou sentado na mota, com o rosto
franzido num sorriso sedutor.
– Não sei bem como interpretar isso – declarou. – Queres dizer que estás
aqui à espera para me mandar passear? Ou ainda temos um encontro?
Rosie hesitou. Nos filmes, em situações como esta as raparigas faziam
sempre um comentário que as tornava lindas e desejáveis. Porém, não lhe
ocorreu nenhuma frase inteligente.
– O que quis dizer foi que gostava de sair daqui depressa para que a
enfermeira supervisora não me veja.
– Tens coragem para subir para a mota? – perguntou ele. – Ou deixo-a
aqui e vamos a pé para algum lado?
As motas só lhe traziam boas recordações dos irmãos e do pai; andara
com eles à pendura desde muito pequena.
– Adoro motas – disse, e, sem pensar que ia desmanchar o penteado que
demorara tanto tempo a fazer, sentou-se atrás dele.
– Segura-te bem! – avisou ele enquanto ligava o motor e, antes de ela ter
tempo de se segurar na sua cintura, arrancaram ruidosamente pela rua.
O conhecimento que Rosie tinha do norte de Londres estava limitado ao
percurso do autocarro para o centro da cidade, mas Gareth foi por outro
caminho. Alguns minutos mais tarde percorriam uma tranquila ruela, com o
vento a desgrenhar-lhe o cabelo.
– Tens frio? – gritou ele por cima do ombro. – Devia ter-te avisado de que
vinha de mota, para trazeres um casaco ou uma camisola.
Rosie estava com um pouco de frio, mas era uma sensação maravilhosa
depois de ter passado o dia inteiro dentro de casa.
– Estou bem – gritou em resposta. – É muito bom apanhar ar puro.
Estava encantada com a velocidade. Casas bonitas, campos e bosques
ficavam rapidamente para trás e os acontecimentos mais sórdidos do dia
evaporaram-se no ar como sementes de dentes-de-leão. Enquanto se
inclinava nas curvas, com as mãos na sua cintura e uma bochecha nas suas
costas, o nervosismo que sentia em relação a ele desvaneceu-se.
Cerca de vinte minutos mais tarde entraram numa pequena povoação
construída à volta de um lago com patos. Algumas pessoas sentavam-se em
bancos à porta de um pub. Gareth abrandou.
– Paramos aqui para tomar um copo? – perguntou, virando a cabeça para
ela. – Andar de mota é bom, mas não consigo conversar contigo.
Rosie concordou e ele estacionou a mota.
– O meu cabelo deve parecer uma meda de feno – disse ela a rir enquanto
descia, e tentou alisá-lo com as mãos. Esperava não ter rímel a escorrer
pelas bochechas.
Ele olhou-a com uma expressão crítica e sorriu.
– Está despenteado, mas muito bonito. O teu cabelo foi a primeira coisa
que reparei em ti. Tem uma cor linda.
Gareth pediu uma caneca de cerveja e ela bebeu uma limonada. Esperava
que ele tentasse persuadi-la a beber alguma coisa mais forte como os outros
rapazes faziam, mas ele não disse nada. Sentaram-se num dos bancos, ao
calor do sol, a ver os patos no lago e Gareth perguntou-lhe por Donald.
Rosie lera nas colunas de conselhos de revistas que, num primeiro
encontro, a rapariga devia fazer perguntas ao rapaz sobre o seu trabalho e
passatempos e nunca falar sobre si mesma. No entanto, como ele lhe
perguntara por Donald, não teve outra alternativa a não ser explicar um
pouco do que acontecera desde o dia da Coroação. Fez todos os possíveis
para tornar a história, se não engraçada, pelo menos pouco profunda e
interessante, omitindo o horror.
– Por isso, não o vi – terminou. – Sei que o pai foi visitá-lo e tenho a
certeza de que lhe explicou um pouco onde estou, mas mesmo assim ele
deve estar muito confuso.
– A tua enfermeira supervisora parece uma fera – disse Gareth, solidário.
– Porque é que não escreves à tua mãe e ao teu pai e lhes pedes para
fazerem alguma coisa?
– Não tenho mãe nem pai – desabafou. – A minha mãe faleceu quando eu
tinha seis anos e o meu pai o ano passado. Foi por isso que vim trabalhar
para cá.
Ficou surpreendida ao ver que ele estava muito consternado e, depois da
semana terrível que tivera, aquela preocupação foi muito reconfortante.
– Meu Deus! – exclamou ele. – Lamento muito, Rosemary. Isso é muito
difícil.
Rosie encolheu os ombros e sorriu-lhe.
– Há pessoas em situações muito piores do que eu. Mas não vamos falar
sobre coisas tristes. Fala-me sobre ti. Encontraste os teus amigos depois da
Coroação? Como é o sítio onde vives? Nasceste no País de Gales? Não tens
sotaque galês.
– Sim, encontrei os meus amigos. Moro num sítio bastante sinistro. Saí
do País de Gales quando tinha dois anos e é por isso que não tenho sotaque
– disse, a sorrir, enquanto respondia a todas as perguntas pela mesma ordem
em que ela as fizera. – Mas os meus pais continuam a ser tão galeses como
sempre. Viemos de Rhondda Valley e o meu pai, avô e bisavô foram
mineiros, mas em 1933 o meu pai quebrou a tradição e veio trabalhar para
Londres. Veio todo o caminho a pé, apanhava bagas na berma das estradas e
nunca tocou no xelim que tinha no bolso para emergências. Passados três
anos, mandou vir a minha mãe, o Owen e eu, e nessa altura já tinha uma
pequena carvoaria.
Rosie adorava ouvir histórias, acima de tudo de família, e encorajou
Gareth a contar-lhe tudo, começando pela chegada a Londres.
– Lembro-me de ter ficado chocado porque Londres era filas e filas de
pequenas casas escuras, sem colinas verdes atrás – disse, a rir. – Os outros
miúdos troçavam de mim e do Owen porque falávamos de uma maneira
esquisita. O Owen é dois anos mais velho do que eu e andava sempre à
bulha por causa disso. Mas o que mais me intrigava era o meu pai passar a
vida a dizer que estávamos muito melhor. Para mim, a casinha com duas
divisões no andar de baixo e dois quartos no andar de cima em Kentish
Town não era melhor do que a que deixáramos no País de Gales. Mais
importante ainda, em vez de estar na mina, agora o carvão estava à porta da
cozinha, pilhas e pilhas de carvão brilhante.
Rosie sorriu. A descrição fê-la recordar May Cottage e o ferro-velho à
porta de casa.
– Um dia, perguntei à minha mãe porque é que o meu pai passava a vida a
dizer que estávamos melhor – contou Gareth, pensativo. – Ela disse que a
diferença era que aqui havia uma placa na frente da casa que dizia «Davy
Jones Comerciante de Carvão e Coque», e isso significava que o carvão nos
pertencia, como também eram nossos o cavalo e a carruagem que o pai
usava para entregá-lo, e também tínhamos uma sanita com autoclismo. Mas
naquela altura essas coisas não eram muito importantes para mim.
Desde tenra idade tinha-lhe sido incutido que era dever do homem tentar
melhorar-se, e o pai era apresentado como um grande exemplo. Agora que
era adulto percebia como ele fora corajoso ao sair dos vales em plena
Depressão e tentar a sua sorte em Londres. Também sabia que não havia
sorte no que Davy Jones conseguira, apenas muito trabalho e tenaz
determinação.
– Então, porque é que não te tornaste carvoeiro? – perguntou Rosie.
– Porque adoro comboios – respondeu ele com simplicidade. – Deixei a
escola quando a guerra terminou. O Owen já estava a trabalhar com o nosso
pai há dois anos e na época não havia trabalho suficiente para mim e, para
além disso, eu detestava andar a distribuir carvão. A minha mãe queria que
eu fosse engenheiro ou eletricista, mas decidi aprender uma profissão nos
caminhos de ferro. Aos dezoito anos, quando fui chamado para cumprir o
serviço militar, o meu pai já tinha juntado dinheiro suficiente para comprar
a casa em Mill Hill. A casa de Kentish Town tornou-se o escritório do
depósito e eu estava mais inclinado do que nunca a ser maquinista de
comboios.
– Para onde é que conduzes comboios? – perguntou Rosie, imaginando-o
com o rosto enegrecido pela fuligem, a espreitar pela janela da locomotiva
envolvida em vapor.
– Manobro-os de um lado para o outro na estação de Clapham Junction –
respondeu Gareth com um sorriso triste. – Às vezes tenho sorte e deixam-
me ser fogueiro numa viagem local. Mas acho que ainda vai demorar algum
tempo até que me deixem conduzir um comboio de passageiros. Os
maquinistas mais velhos defendem os seus empregos com unhas e dentes e
não gostam dos novos.
O seu devaneio preferido desde que se lembrava de ser gente era conduzir
o Flying Scotsman. Quando era criança passava todo o seu tempo livre nas
estações de King’s Cross e Euston a contemplar as grandes locomotivas a
vapor com o tipo de adoração que os outros miúdos tinham pelos
desportistas e pelas estrelas de cinema. Colecionava fotografias deles e lia
todos os livros que encontrava sobre comboios. Era uma paixão muito
absorvente que até há uma semana nunca fora ultrapassada por outra coisa a
não ser pela sua mota.
– Eu também gosto de comboios – disse Rosie, lembrando-se dos
conselhos das revistas de que era preciso mostrar entusiasmo pelo trabalho
e pelos interesses do rapaz. – Não que tenha andado em muitos. Na
verdade, quando vim para Londres foi a primeira vez que andei num. Mas
adorava viajar mais e conhecer o resto da Inglaterra.
Gareth sorriu. Pensou que seria bom mostrar-lhe algumas das suas
locomotivas preferidas.
– Que diabo é que te fez querer trabalhar num manicómio?
– Eu não quis. Queria ser enfermeira – respondeu Rosie. – Mas ainda não
tenho idade suficiente, por isso pareceu um lugar perfeito para estar por
enquanto. Mas ando a pensar em procurar outra coisa. Acho que não vou
conseguir aguentar o segundo andar durante muito tempo. O único
problema é que também tenho de arranjar um sítio para viver.
– Aposto que a minha mãe não se importava de te receber, se não tivesses
para onde ir – disse ele impulsivamente. – O meu antigo quarto está vazio.
Rosie ficou comovida com a sua bondade. Ele era muito diferente dos
tipos grosseiros que conhecera nos salões de baile. Teve a impressão de que,
se lhe contasse toda a verdade sobre si e sobre Carrington Hall, ele
compreenderia.
– Não podia pedir-lhe que fizesse isso – disse. – Mas a tua oferta é muito
generosa. Estava um bocado farta até esta noite, por estar enfiada dentro de
casa e isso. Não sou uma pessoa caseira e sair na tua mota fez-me sentir
muito melhor. Agora, fala-me sobre o sítio sinistro onde moras e sobre os
teus amigos.
Ficaram sentados à porta do pub até escurecer, a conversar de uma forma
tão fácil e natural que Rosie sentiu que o conhecia há anos. Ele contou-lhe
mais coisas sobre a família, a sua casa e a mãe.
– Ela é uma mulher de uma raça em vias de extinção – disse, a rir. – Vive
apenas para os homens da sua vida, a cozinhar, a fazer pão e bolos e a
limpar. Mas às vezes irrita-me um bocado. O meu pai matou-se a trabalhar
para lhe comprar uma boa casa com todos os luxos que podes imaginar, mas
ela continua a contar os tostões. Nem sequer usa alguns dos aparelhos que
ele lhe comprou, como a chaleira elétrica. Diz que é um desperdício ferver
uma chaleira cheia quando só quer água para uma chávena de chá. Põe a
água à medida numa caçarola e aquece-a nela. Só usa o aspirador uma vez
por semana, e o resto dos dias limpa a casa com um espanador e uma
vassoura. A tua mãe também era assim?
– Lembro-me de que ela também andava sempre a limpar – respondeu
Rosie, contente pela oportunidade de ser verdadeira sobre como fora criada.
– Mas a nossa casa era muito primitiva, nem sequer tínhamos eletricidade
quando ela estava viva, por isso tinha de fazer tudo da maneira mais difícil.
– Desviou-se de qualquer questão delicada e falou-lhe sobre o seu primeiro
emprego em casa de Mrs. Bentley em Bristol, contando-lhe os sermões que
ela lhe pregava sobre «fazer as coisas da maneira correta».
– Agora, estou muito contente por ela me ter ensinado todas aquelas
coisas – disse, a rir, depois de descrever como a mesa tinha de ser posta de
determinada maneira e como corrigia a sua maneira de falar. – Senão, não
teria sabido como comportar-me com os Cook. Não sabia pôr uma mesa
como deve ser e acho que devia falar como uma camponesa. Mas Mr.
Bentley era simpático e eu adorava o jardim deles. Costumava tratar dele
quando não estavam em casa.
Gareth olhou-a com algum espanto.
– Eu fiquei mesmo convencido de que tu pertencias a uma família fina
como os Cook – disse. – Parecias muito à vontade com eles naquela casa
luxuosa.
– Nunca tinha visto nada tão grandioso antes daquele dia – reconheceu
Rosie, explicando-lhe sucintamente como fora convidada. – Era capaz de
morrer para ter uma casa como aquela! – Calou-se, e depois soltou uma
gargalhada. – Que expressão tão parva. Se estivesse morta não ia ter grande
prazer com ela, pois não? De qualquer maneira, se fosse rica queria ter um
jardim. Adoro plantar coisas.
– Então, tenho de te levar lá a casa para conheceres a minha mãe –
declarou ele. – Ela não percebe nada de jardinagem e tudo morre nas suas
mãos. Talvez possas dar-lhe algumas dicas.
Rosie iluminou-se. Tudo levava a crer que ele queria voltar a vê-la.
Depois da terrível frieza em Carrington Hall, queria muito que alguém
gostasse de si.
Quando voltaram para a mota, Gareth despiu o casaco.
– Veste-o – disse. – Vais ficar gelada sem ele.
– Mas tu vais ter frio – protestou Rosie.
– Não vou nada, se tu me abraçares com força – replicou ele, sorridente. –
E, além disso, não estamos muito longe da tua casa e quando chegarmos
dás-mo outra vez.
Foi a melhor sensação do mundo andar por aquelas estradas rurais escuras
com os braços a apertar-lhe a cintura com força. Encostou de novo a face às
costas dele e inspirou profundamente aquele calor masculino e os cheiros
campestres. De vez em quando ele cobria-lhe as mãos com uma das suas e
apertava-as, e Rosie estava tão feliz que lhe apetecia cantar e rir.
No entanto, chegaram a Carrington Hall num piscar de olhos. Gareth
parou a mota a cerca de duzentos metros de distância e Rosie desceu.
– Obrigada por uma noite maravilhosa – disse, sem saber o que fazer ou
dizer a seguir.
Gareth desceu da mota e pô-la no descanso antes de se virar para ela e lhe
pegar nas mãos.
– Quando posso voltar a ver-te?
– Quando quiseres – respondeu ela, esperando não parecer muito
oferecida. – Eu posso sair todas as noites.
– Quem me dera poder – disse ele com alguma tristeza. – Mas estão
sempre a mudar os nossos turnos e a obrigar-nos a fazer horas
extraordinárias. Posso telefonar-te?
Rosie abanou a cabeça.
– A enfermeira supervisora não permite telefonemas pessoais.
– Bem, então combinamos para sábado à noite – sugeriu ele. – Tenho
quase a certeza de que não me vão obrigar a trabalhar nesse dia, mas
preocupa-me que se alguma coisa acontecer não sei como avisar-te.
– Posso dar-te o número do telefone do meu tio Thomas em Hampstead –
sugeriu ela num momento de inspiração. Se não vieres, podes telefonar para
ele.
Gareth concordou que era um bom plano de emergência e anotou o
número nas costas da mão.
– Mas vou estar aqui às sete horas, aconteça o que acontecer – disse. – Se
estiver a chover, podemos ir ao cinema.
Seguiu-se um breve silêncio incómodo.
– É melhor ir andando – disse Rosie, despindo o casaco. – Se não estamos
em casa às dez e meia, há problemas.
Gareth vestiu o casaco.
– Tens tempo para um beijo? – perguntou, e, sem esperar pela resposta,
tomou-lhe o rosto nas mãos grandes e aproximou-a.
Rosie só fora beijada duas vezes, e sempre por rapazes inexperientes que
não queria muito beijar, mas no momento em que os lábios de Gareth
tocaram nos seus apeteceu-lhe afundar-se nos seus braços e ficar lá para
sempre.
A boca dele era muito quente e macia, e ficou na sua enquanto os dedos
lhe acariciavam o cabelo. Por um breve instante, sentiu que estavam
sozinhos no cimo da maior montanha do mundo, com a Lua e as estrelas a
brilhar à sua volta como um mar de diamantes.
– São quase dez e meia – disse ele, afastando-se sem lhe soltar as mãos. –
Não quero que sejas proibida de voltar a sair no sábado.
Rosie virou-se, quando subia o carreiro para a porta de serviço e viu-o
passar na mota. Viu o seu perfil durante um instante fugaz e pareceu-lhe
lindo. Não soube como conseguiria aguentar os três dias que faltavam para
voltar a vê-lo.

No sábado de manhã acordou sobressaltada e por breves instantes ficou


confusa. O despertador tocara e Maureen desligara-o como já acontecera
antes?
Soergueu-se apoiada num cotovelo. Maureen dormia profundamente, com
a cabeça quase escondida por baixo dos cobertores. Felizmente, não
escondera o relógio, que continuava em cima da mesa de cabeceira. Rosie
pegou nele e viu que eram apenas cinco e meia.
A sorrir para consigo, deitou-se de novo. Mais uma hora inteira para
pensar como seria quando visse Gareth esta noite. Esperava que chovesse
para poderem ir ao cinema; não conseguia imaginar nada melhor do que
estar sentada às escuras com o braço dele sobre os seus ombros. Devia
vestir o fato verde que usara no dia da Coroação ou uma saia e uma blusa?
Gostaria de ter um vestido novo e um pouco de perfume. Não havia grandes
hipóteses de Mary a deixar pôr uma borrifadela do seu. No entanto, agora
não se importava com o afastamento das outras raparigas nem com o que
aconteceria hoje na enfermaria. Podia pensar em Gareth.
Acabara de fechar os olhos para voltar aos seus ditosos sonhos quando o
som de vozes alteradas a sobressaltou. Num primeiro momento pensou que
eram Linda e Mary a discutir, mas quando se sentou percebeu que o barulho
vinha de mais longe.
Maureen ergueu-se na cama com brusquidão e os seus olhos encheram-se
de pânico.
– Adormecemos? – perguntou, enquanto procurava os óculos na mesa de
cabeceira.
Rosie sentiu-se tentada a dizer que sim só pelo vingativo prazer de ver a
rapariga correr para se arranjar sem necessidade. No entanto, foi agradável
ouvi-la dirigir-lhe a palavra.
– Não, só são seis menos dez – tranquilizou-a. – Escuta, está a acontecer
alguma coisa lá em baixo!
Ambas escutaram durante alguns instantes; as vozes eram abafadas, mas
pareciam zangadas. As duas raparigas saíram para o corredor, onde se
cruzaram com Linda, também em camisa de dormir. Ela acabara de entrar
pela porta que dava acesso às escadas.
– É o proprietário, Mr. Brace-Coombes – disse num tom baixo e chocado.
– Não sei o que se passa, mas ele está no segundo andar com duas
mulheres. A enfermeira supervisora está a ter um ataque de fúria!
– Deixa-me ver – disse Maureen, ansiosa, e dirigiu-se para a porta, mas
Linda puxou-a para trás e avisou-a para não interferir.
Rosie sentiu um aperto no estômago. Tinha ido visitar Thomas na quinta-
feira à noite e ele dissera que Miss Pemberton estava em Londres e que
pretendia ir falar com Mr. Brace-Coombes. Calculou que decidira começar
a agir hoje.
Estava à espera de que alguma coisa acontecesse, a desejar que
acontecesse, mas agora estava assustada. Quanto mais tempo demoraria até
que todos soubessem quem era?
– Então, o que é que vamos fazer? – perguntou Maureen a Linda. –
Devemos vestir-nos e ir para baixo ou quê?
– Não sei. – Linda encolheu os ombros. – Isto não me agrada nada.
Rosie perguntou a si mesma porque é que ela parecia tão nervosa.
Normalmente, nada a abalava.
– Tu podias ir para baixo – disse Maureen, a olhar para Rosie com uma
expressão maliciosa. – Afinal de contas, trabalhas lá.
– Acho que ninguém devia fazer nada enquanto não forem horas de
descermos para ir tomar o pequeno-almoço – disse Rosie com mais
coragem do que sentia. – A não ser que alguém nos chame.
Foi a meia hora mais longa de sempre para Rosie. Lavou-se e vestiu-se, e
Maureen fez o mesmo. No entanto, sentia os olhos da outra rapariga
pregados nela, quase ouvia a sua mente desconfiada a pensar, e os nervos
fizeram-na começar a tremer.
– Estás muito calada – disse Maureen por fim. – Porquê? Será que tens
alguma coisa a ver com aquela balbúrdia lá em baixo?
Rosie preparava-se para negar, mas a raiva pela forma como fora tratada
por aquela rapariga levou a melhor.
– Talvez tenha – disse com rispidez. – Se queres mesmo saber, ainda bem
que Mr. Brace-Coombes decidiu vir fazer uma visita, e já devia ter vindo há
muito tempo. Tu sabes melhor do que ninguém que se passam coisas
terríveis neste lugar. Só não sei porque é que não dizes nada...
– Tu achas-te muito especial, não achas? – sibilou Maureen. – Claro, é
fácil para ti, podes voltar para casa da tia Molly quando quiseres. Algumas
de nós não têm casa, e temos de aguentar muitas coisas para conservarmos
os nossos empregos.
Aquelas palavras de autocomiseração irritaram Rosie e toda a raiva que
reprimira durante muito tempo foi libertada.
– Tu metes-me nojo com os teus queixumes e choraminguices – atirou. –
Eu fui sempre mais simpática contigo do que qualquer outra pessoa neste
lugar, mas tu voltaste-te contra mim por nada. Não achas que está na hora
de olhares bem para ti para veres porque é que as pessoas não gostam de ti?
És uma cobarde hipócrita, Maureen Jackson, e traiçoeira. Aposto que sabes
todas as coisas más que acontecem neste lugar. Por uma vez na vida, faz
alguma coisa que preste. Vai lá abaixo agora e conta tudo o que sabes a Mr.
Brace-Coombes.
Esperou que Maureen retorquisse com alguma coisa que a magoasse, mas
o rosto da rapariga esmoreceu.
– Não consigo – disse, e começou a chorar. – Tenho medo.
– Medo de quê? Da enfermeira supervisora? – perguntou Rosie com
desprezo. – Duvido que ela fique aqui mais um dia, agora que o patrão
sentiu o fedor do segundo andar. Afinal de contas, o que é que ela tem
contra ti?
Fez-se um momento de silêncio e Rosie ficou surpreendida ao vê-la
afundar-se na cama e começar a soluçar.
Rosie nunca conseguia ser dura quando alguém estava transtornado.
– O que é? – perguntou. – Conta-me.
– Eu fiz uma coisa má quando comecei a trabalhar aqui – desabafou
Maureen, com as mãos a tapar a cara. – A enfermeira supervisora encobriu-
me, mas está sempre a lembrar-me. Se eu disser alguma coisa hoje, ela
conta a Mr. Brace-Coombes e ele põe-me na rua.
– O que é que tu fizeste? – Rosie estava solidária agora. Afinal de contas,
também tinha muito a temer da enfermeira supervisora. Mas se Miss
Pemberton estava lá em baixo Rosie sabia que, embora ela não tivesse de
sair dali hoje, era possível que Maureen não tivesse a mesma sorte. – Vá lá,
conta-me. Talvez eu possa interceder a teu favor.
– Eu roubei a carteira de Mr. Brace-Coombes – sussurrou Maureen.
– Tu fizeste o quê? – Rosie engasgou-se. – Quando? Como?
– Foi há anos, quando comecei a trabalhar aqui. Ele estava a falar com
umas pessoas na sala de visitas. A carteira estava no sobretudo no átrio. Eu
tirei-a. A enfermeira supervisora virou a casa do avesso quando ele lhe
disse que desaparecera e encontrou-a debaixo do meu colchão.
Rosie olhou para a rapariga.
– E suponho que te disse que não ia contar nada se tu fizesses tudo o que
ela mandasse?
Maureen soluçou e acenou com a cabeça.
– Ela disse-lhe que a tinha encontrado na sala de dia do primeiro andar.
Disse que um dos doentes a tinha levado quando voltaram do jardim. Já
tentei ir-me embora daqui algumas vezes, mas ela não me dá uma carta de
referências e está sempre a ameaçar que lhe vai contar a verdade se eu não
lhe disser outras coisas.
– Bem, depois de hoje uma carta de referências dela não vai servir para
nada – declarou Rosie secamente. – Mas se fores leal e honesta com aquelas
senhoras que estão lá em baixo com Mr. Brace-Coombes, talvez recebas
uma.
Maureen fitou Rosie com os olhos marejados de lágrimas. Sabia por
algumas insinuações que a enfermeira supervisora fizera que aquela
rapariga ia sofrer muito em breve. Não sabia o que era, mas desconfiava
que Rosie devia ter feito uma coisa ainda pior do que ela. Tinha estado
muito contente até agora; odiava Rosie porque ela era muito bonita e todos
gostavam dela. Mesmo nos últimos dias em que todas a ignoravam porque
tinham recebido ordens para não lhe dirigir a palavra, sabia que a maioria se
sentia mal por causa disso.
– Porque é que és tão corajosa? – perguntou. – Não tens medo de nada?
– É claro que às vezes tenho medo – reconheceu Rosie. – Neste momento
tenho medo porque não sei o que vai acontecer. Mas estou mais zangada
com o que a enfermeira supervisora tem feito neste lugar do que com o
resto. E tu também devias estar. Agora, para de pensar em ti e põe os
doentes em primeiro lugar. Eles não têm inteligência nem força para se
defenderem. Tu tens.
Às seis e meia a campainha tocou como sempre e quando Rosie e
Maureen desceram as escadas para ir tomar o pequeno-almoço, seguidas de
perto por Linda e Mary, o segundo andar pareceu ominosamente silencioso.
Linda aproximou-se da porta e espreitou pela janela.
– Não consigo ver ninguém lá dentro – sussurrou para as outras. – Para
onde é que acham que eles foram?
Lá em baixo na sala de refeições do pessoal tudo parecia bastante normal.
Pat Clack tinha a mesa posta para o pequeno-almoço e da cozinha vinha o
cheiro de toucinho fumado a fritar. As raparigas não disseram nada,
servindo-se de cornflakes e chá. Gladys Thorpe entrou passados alguns
minutos a bocejar, ensonada; parecia não ter ouvido nada. Rosie perguntou
a si mesma onde estaria Aylwood – normalmente, era a primeira a chegar de
manhã e saía quando elas entravam.
O pequeno-almoço quente tinha acabado de ser servido quando Miss
Pemberton entrou com uma bata branca. Olhou para Rosie com uma
expressão penetrante, como se estivesse a avisá-la para não mostrar que a
conhecia.
– Bom dia, meninas – disse num tom descontraído, enquanto os seus
olhos cinzentos perscrutavam os rostos surpreendidos das raparigas. – Eu
sou a enfermeira-chefe Pemberton. A enfermeira supervisora foi suspensa
das suas funções e estou aqui com algumas assistentes para assumir o
comando provisoriamente. Depois de terminarem o pequeno-almoço
gostaria que se reunissem todas no átrio. Como hoje temos uma
emergência, conto com todas vós para colaborar comigo.
Saiu, dirigindo-se para a lavandaria, e passados alguns instantes ouviram-
na falar com as domésticas.
– Quem diabo é ela? – perguntou Linda num sussurro. – E o que é que fez
à enfermeira supervisora?
– Onde está a Aylwood? – perguntou Mary, e os seus olhos azuis estavam
tão grandes que pareciam pires.
Gladys quis saber o que se passava, e de repente pareceu acordar quando
as raparigas lhe contaram tudo o que sabiam.
– Alguém andou a contar histórias – disse num tom sombrio. – Quem terá
sido?
Linda olhou para Rosie com uma expressão intensa. Mary arquejou e
Maureen baixou os olhos. Gladys olhou para os seus rostos e depois voltou-
se para Rosie.
– Tu? – disse com alguma surpresa. – Porquê?
Rosie não sentira nenhuma verdadeira animosidade em relação a Gladys
até ao dia em que a enfermeira se virara contra ela no segundo andar. No
entanto, quando percebera que ela estava a par de tudo o que se passava e
parecia não se sentir minimamente culpada, isso, na sua opinião, colocava-a
ao mesmo nível da enfermeira supervisora, de Aylwood e de Saunders,
ainda que ela própria não fosse cruel.
– Sim, fui eu. – Rosie desviou o prato e olhou-a com uma expressão
desafiadora. – E, antes que digas mais alguma coisa, só quero dizer que
penso que vocês são as cobardes mais patéticas e medricas do mundo por
trabalharem aqui durante todo este tempo e não terem denunciado o que se
passa.
Dito isto saiu, começando a afastar-se pelo corredor antes que elas
pudessem ver as suas mãos trémulas ou ouvir o seu coração bater com
força.
Miss Pemberton era uma excelente atriz. Quando todas as raparigas se
reuniram numa fila no átrio, estava a olhar para uma escala de serviço e mal
olhou para Rosie.
– Rosemary Smith – chamou. – Tens trabalhado no segundo andar
recentemente, não é verdade?
– Sim, senhora enfermeira – respondeu Rosie.
– Bem, eu vou ajudar-te lá em cima daqui a alguns momentos. A
enfermeira Clegg, a minha assistente, já lá está, por isso vai ter com ela.
Maureen Jackson, também vais lá para cima.
Os olhos de Maureen abriram-se de pavor atrás das lentes dos óculos.
– M-m-mas, senhora enfermeira – gaguejou.
– Vai, Jackson – afirmou Miss Pemberton com firmeza. – Não admito
discussões.
Enquanto subiam as escadas, Rosie ouviu Miss Pemberton pedir a cada
uma das outras que se apresentasse e mandá-las fazer os trabalhos de
sempre. Maureen arrastava os pés e quando Rosie olhou para trás o seu
rosto estava branco de terror.
A enfermeira Clegg estava à espera de Rosie e Maureen no escritório do
segundo andar. Era uma mulher grande, com uma cara vermelha e alegre, e
usava um uniforme de enfermeira azul-escuro ao qual já tinha acrescentado
um avental de borracha. Se sabia alguma coisa acerca de Rosie, não
demonstrou. Saunders e Aylwood não se viam em parte alguma.
– Qual de vocês é a Smith? – perguntou. Como sempre, o cheiro era
insuportável, o ruído ensurdecedor e Maureen passara de branco para verde.
Rosie apresentou-se.
– Certo – disse Clegg com um grande sorriso. – Segundo sei, conheces
esta enfermaria, por isso vamos começar a dar os banhos juntas. Jackson, tu
podes acompanhar-nos, mais um par de mãos é sempre útil. Alguma de vós
pode dizer-me se a Coates é sempre tão carrancuda? Não consigo arrancar-
lhe uma palavra.
Rosie explicou-lhe que ela limpava sempre os quartos sozinha e que era
uma mulher de poucas palavras. Pegou num avental de borracha e deu outro
a Maureen.
– Vá lá, anima-te – disse. Não percebeu porque é que Maureen estava tão
verde, até parecia que nunca estivera naquele andar. – Não vai ser tão mau
sem a Aylwood ou o Saunders. E o cheiro desaparece quando os doentes
estiverem limpos.
Depois das coisas terríveis a que assistira durante a última semana, Rosie
sentiu-se comovida ao ver uma enfermeira trabalhar com uma combinação
de força e compaixão, e com sentido de humor. A mulher dirigiu-se para a
cela de Monica com a mesma genica de Aylwood, mas nem pestanejou ao
ver a porcaria, e quando se debruçou para ajudar a mulher encolhida a
levantar-se do chão falou suavemente, como se estivesse a lidar com uma
criança pequena.
– Estás no meio de uma linda porcaria – disse. – Toca a levantar e vamos
tomar um bom duche quente. Daqui a pouco já estás limpinha.
Clegg teve de prender Monica enquanto Rosie a lavava, mas, ao contrário
de Saunders, falou de modo suave e à medida que a água quente foi
acalmando a doente, afrouxou a força com que a segurava, embora
continuasse a observar com atenção.
– Tens umas nódoas negras muito feias – disse quando saiu de trás da
divisória para secá-la. Acariciou-lhe o braço com compaixão, tocando nas
marcas. – Não vais ter mais destas, meu amor, não te preocupes.
Se Monica percebeu o que foi dito não demonstrou, mas deixou que lhe
vestissem uma camisa lavada e não se debateu quando foi levada para um
quarto limpo.
O mesmo procedimento foi repetido com cada doente e os que não
estavam sujos puderam ir às instalações sanitárias, com a porta meio
fechada para terem um pouco de privacidade.
Clegg falou com cada um deles, explicando-lhes que o tratamento mais
humano que estavam a ter hoje seria o procedimento normal dali em diante.
Como acontecera com Monica, nenhum deles pareceu perceber o que ela
disse, mas estavam todos muito mais dóceis do que era habitual. Talvez
fosse apenas por Clegg ser uma desconhecida, mas Rosie queria acreditar
que era por serem acalmados pelo seu tom de voz suave e pela ausência de
agressividade.
Miss Pemberton chegou no momento em que se preparavam para tirar
Angela do quarto para tomar banho. Os seus olhos estavam cheios de fúria
e ela debatia-se freneticamente, a tentar arranhar Clegg e Rosie; a camisa de
linho estava cheia de sangue e durante alguns instantes Rosie pensou que
era uma ferida.
– Ora, ora – disse Clegg num tom tranquilizador, agarrando os braços da
mulher atrás das costas. – Então, estás com o período e sentes-te mal, mas
não há necessidade dessa brutalidade, esta manhã tens aqui amigas.
Normalmente, Angela lavava-se sozinha, mas hoje ficou debaixo do jato
de água a olhar com uma expressão agressiva e a balbuciar, recusando-se a
colaborar. Havia uma marca vermelha de uma dentada no seio que não
estava ali na véspera. Rosie calculou que Saunders fizera outra visita
noturna na noite anterior e perguntou-se se devia dizer alguma coisa.
Também se perguntou onde ele e Aylwood estariam. Teria Mr. Brace-
Coombes juntado todos os verdadeiros criminosos algures lá em baixo?
Miss Pemberton ocupou o lugar de Clegg e, com a ajuda de Rosie, lavou
e secou Angela, vestiu-lhe uma camisa limpa e pôs-lhe um penso higiénico.
Enquanto levavam Angela para o quarto, ela começou a chorar e agarrou-se
à barriga.
Miss Pemberton deixou Rosie perplexa. Envolveu Angela com os dois
braços e apertou-a com firmeza contra o seu ombro durante alguns instantes
enquanto lhe falava baixinho ao ouvido como se não fizesse ideia da
formidável reputação da doente.
– Agora estás em segurança, minha querida – disse. – Prometo que ele
nunca mais se vai aproximar de ti. O médico vem ver-te daqui a pouco e vai
receitar alguma coisa para a dor de barriga. Queres deitar-te um pouco e
descansar até ao pequeno-almoço?
Miss Pemberton ordenou que os colchões ficassem nos quartos com um
lençol limpo. Insistiu que as pequenas janelas fossem abertas o mais
possível e declarou que durante o dia os doentes deviam ser tirados dos
quartos de acordo com uma escala para andarem no corredor e usarem as
instalações sanitárias.
Rosie ficou contente com isso; Maureen parecia ainda mais ansiosa do
que antes.
– É pouco provável que eles reajam durante vários dias – avisou-as Miss
Pemberton. – Atrevo-me a dizer que podem tornar-se ainda mais agressivos
até se acostumarem. Se mantiverem as pessoas trancadas como animais,
elas começam a comportar-se como tal e ressentem-se com a mudança. Mas
temos de tentar. Quase todos têm atrofia nos membros e temos de combater
isso com alimentação e exercício.
Só depois das onze da manhã é que Rosie teve tempo para pensar no que
ia acontecer a seguir. Miss Pemberton andava sempre dentro e fora, a
verificar tudo, desde dossiês no escritório até às fichas dos doentes e à
comida que era trazida para eles. Acompanhou o novo médico durante a
visita e ainda não tinha chamado Rosie para uma conversa em particular.
Para além de um sorriso secreto aqui e ali, mal reconhecera a sua presença.
Clegg também andava numa grande azáfama, a abrir armários, verificar
gavetas e dossiês. E entretanto também estava a elaborar uma lista de
sugestões que incluíam uma cadeira para cada doente, dar-lhes roupas
normais para usarem durante o dia e abrir a sala fechada ao fundo do
corredor como sala de dia onde eles poderiam socializar de vez em quando,
se lhes apetecesse. Ficou escandalizada com a falta de líquidos que eram
dados aos doentes. Quase não conseguiu acreditar quando Rosie lhe disse
que só bebiam uma chávena de chá depois de cada refeição, e não lhes era
dada água nem sequer durante os dias mais quentes. Tirou uma de várias
grandes caixas de bolachas de um armário e declarou que passariam a
comê-las com chá como lanche da manhã, como os funcionários. O lanche
seria preparado cá em cima, e mandou Maureen ir à cozinha buscar
canecas.
Foi neste momento de quietude, com Maureen fora dali e Clegg ocupada
na outra extremidade do corredor, que Rosie se aproximou de Miss
Pemberton, que estava no escritório a analisar as notas de alguns doentes.
– Sei que está ocupada – disse, hesitante, da porta –, mas tem um
momento para me contar o que está a acontecer?
– Minha querida. – Miss Pemberton olhou para cima e sorriu. – Que
ninho de víboras que desenterraste para nós, e como tenho sido descuidada
por não arranjar tempo para te agradecer.
– Não espero um agradecimento – disse Rosie. – Mas sinto-me pouco à
vontade. Todas as raparigas sabem que fui eu que contei o que se passava
aqui. Nem quero pensar como vai ser à hora do almoço.
– Não precisas de te preocupar com isso. Vou mandar trazer o teu almoço
e o da Jackson cá para cima. Na verdade, acho que a meio da tarde já vamos
ter reforços e nessa altura poderemos sair para apanhar ar fresco e ter uma
conversa a sério. Consegues esperar até lá?
Rosie sorriu. Não estava acostumada a que lhe falassem com tanta
educação.
– Claro que consigo – respondeu. – É bom tê-la aqui, e a enfermeira
Clegg é muito diferente da Aylwood.
– Espero bem que sim. – Miss Pemberton soltou uma risada e os seus
olhos brilharam. – Estivemos juntas no QA. Mas, como ela me disse uma
vez durante a guerra, «Lembra-te de que as paredes têm ouvidos, Pembers,
e até as batatas têm olhos!» Por isso, vamos ter a nossa conversa mais tarde.
Tenho uma proposta interessante para te fazer e muitas novidades para te
contar.
Maureen voltou das cozinhas com algumas coscuvilhices, que relatou a
Rosie enquanto preparavam o chá juntas. Rosie achava lamentável que esta
rapariga, que fora tão malévola, estivesse agora a tentar aproximar-se. Mas
era humana e estava tão ansiosa como qualquer outra pessoa para saber as
novidades, por isso esqueceu o que pensava sobre ela e escutou com avidez.
Aparentemente, havia mais duas enfermeiras novas no primeiro andar, a
mandar nas raparigas e a fazer alterações em tudo. Mr. Brace-Coombes e
outros dois senhores estavam no apartamento da enfermeira supervisora, e
Aylwood e Saunders também tinham estado lá pelo menos durante algum
tempo. Pat Clack tinha-lhe dado estas informações e parecia convencida de
que Saunders fora levado pela polícia cerca das dez horas da manhã. Não
tinha a certeza do paradeiro de Aylwood, mas Simmonds contara que o
quarto dela tinha sido revistado e que agora uma das domésticas estava a
empacotar as suas coisas.
– Quem me dera que nos dissessem o que vai acontecer a seguir – disse
Maureen. Ainda estava pálida de preocupação. – Achas que nos vão
despedir?
– Nem pensar – tranquilizou-a Rosie. – Quem cuidaria dos doentes?
Além disso, tu não fizeste nada de mal, ou fizeste?
Maureen não respondeu diretamente à pergunta e disse apenas que ia
levar o chá à enfermeira Clegg. Rosie estava sozinha na cozinha e começou
a pensar no encontro que teria mais logo com Gareth.
Nestas circunstâncias extremas, sentiu-se muito culpada por estar tão
preocupada com um rapaz com quem só estivera uma vez em vez de pensar
nos doentes e nas outras funcionárias, mas não conseguia tirá-lo da cabeça.
Miss Pemberton esperaria que ela ficasse no hospital esta noite? E se
planeasse levá-la consigo para o Somerset? Como diria a Gareth, e quando
é que voltaria a vê-lo?
Miss Pemberton só voltou à enfermaria depois do almoço, quase às três
da tarde, e Rosie reparou que ela perdera toda a energia e ardor que tinha no
princípio do dia. Foi para o escritório com Clegg e fechou a porta. Rosie
perguntou a si mesma se acontecera mais alguma coisa lá em baixo.
Lá fora estava um dia lindo, quente e soalheiro, mas no segundo andar
parecia não haver ar. Os doentes estavam calmos e ouviam-se apenas alguns
gemidos de Mabel para lhes recordar que estava lá. Clegg tinha colocado
uma cadeira no seu quarto para que ela ficasse mais confortável. Tinha sido
trazida da sala de dia do andar de baixo e tinha braços tubulares de aço e
almofadas forradas com tecido impermeável. Sempre que Rosie espreitava
pelo postigo via-a sentada na cama, muito curvada, a olhar para a cadeira.
Era uma visão muito triste. Seria preciso uma grande dose de bondade e
paciência antes que qualquer das pessoas deste andar começasse a reagir a
um novo tratamento.
Rosie estava a ponto de adormecer na cadeira no corredor quando Miss
Pemberton saiu do escritório e lhe fez sinal.
– Vamos sair para ter a nossa conversa agora – disse, mas o seu sorriso foi
fraco e os olhos pareciam cansados. – A Jackson pode ficar no teu lugar.
Onde é que ela está?
Maureen ouviu o seu nome e saiu da sala dos funcionários com um cheiro
a cigarros e uma expressão de culpa.
Bastou-lhe descer as escadas para se sentir no Céu, depois da falta de ar
que se fazia sentir no segundo andar; as janelas estavam abertas de par em
par e uma brisa suave trazia para o interior o aroma a erva acabada de cortar
do campo adjacente ao jardim.
Miss Pemberton só falou quando chegaram ao jardim e se sentaram num
banco à sombra de uma árvore.
– Desculpa, Rosie, por não ter tido tempo para conversar contigo antes –
disse. – Tem sido um dia interminável e muito perturbador.
Rosie fez alguns comentários solidários sobre o calor, a estranheza de
tudo aquilo e como Miss Pemberton se devia ter levantado cedo hoje.
Depois, incapaz de esperar mais, perguntou-lhe sem rodeios o que estava a
acontecer.
– Depois do que encontrámos na inspeção desta manhã, durante a qual
descobrimos que não havia pessoal de serviço e todos os doentes estavam
negligenciados no segundo andar, Mr. Brace-Coombes e um colega
analisaram as contas e o armário de medicamentos – disse Miss Pemberton
num tom áspero e seco, olhando em frente e evitando encarar Rosie. –
Parece que as tuas suspeitas estavam certas, Rosie. Para além de não manter
um padrão de cuidados adequado e de abusar dos seus privilégios, a Barnes
também é culpada de fraude e apropriação indevida de fundos.
– E o Saunders e a Aylwood? – perguntou Rosie, um pouco assustada
com o tom cansado e com a falta de entusiasmo da mulher mais velha.
– A Aylwood foi imediatamente despedida. Eu recomendei que seja
enviado um relatório completo para a comissão de enfermagem e que ela
perca a licença para exercer a profissão. Quanto ao Saunders, aquela
criatura desprezível – estremeceu, como se mal conseguisse obrigar-se a
dizer o seu nome –, foi levado para a esquadra da polícia para ser
interrogado. Parece que foi visto por um polícia a entrar e sair daqui a meio
da noite, como tu afirmaste ter visto noutras ocasiões.
– Mas o que é que lhe vai acontecer e à enfermeira supervisora? –
perguntou Rosie.
Quando Miss Pemberton não respondeu logo, ficou com a impressão de
que ela estava zangada com alguma coisa.
– A Freda Barnes... recuso-me a honrá-la com um título de enfermeira...
foi mandada embora – disse por fim. – É Mr. Brace-Coombes que vai
decidir se apresenta queixa dela. Ele ainda não discutiu os seus planos
comigo. Quanto ao Saunders, temos de o deixar nas mãos da polícia. A
violação já é um crime muito difícil de provar com uma mulher preparada
para testemunhar contra ele. Eu diria que vai ser completamente impossível
com uma louca.
Rosie preparava-se para abrir a boca para recordar à mulher mais velha
que o vira violar Angela, mas de repente percebeu porque é que ela estava
zangada. Entrara ali naquela manhã como um anjo vingador, descobrira que
a situação era tão má como Rosie descrevera, e era possível que tivesse
descoberto coisas ainda mais terríveis. No entanto, em vez de ver os
culpados receberem o castigo merecido, parecia que os seus crimes iam
ficar impunes.
– Está zangada – disse em voz sumida. – Tem alguma coisa a ver
comigo? A enfermeira supervisora contou a toda a gente quem eu sou? É
por isso que vão ficar todos impunes? Porque ninguém vai acreditar em
mim?
Miss Pemberton virou-se no banco para olhar para Rosie, envergonhada
por não conseguir ter energia suficiente para fingir que estava feliz com os
acontecimentos do dia ou para inventar algumas pequenas mentiras.
Se Rosie testemunhasse contra Saunders, ele seria quase de certeza
condenado a uma longa pena de prisão, mas o que é que isso significaria
para ela? Advogados de defesa a desencantar a história da sua família
durante o interrogatório, a possibilidade de uma nova vida feliz a
desaparecer. Violet queria que aquele homem fosse apanhado, e Barnes
também, mas não à custa de uma criança com um espírito nobre, que se
preocupava o bastante com os fracos e oprimidos para arriscar o pescoço
por eles.
Saunders apareceria noutro lugar. Era o que acontecia sempre com os
homens da sua laia. Só esperava que a polícia o vigiasse. Quanto a Barnes,
talvez o descrédito fosse um castigo suficientemente grande, embora
achasse que a mulher também merecia um açoitamento e prisão.
– Não estou zangada – mentiu Miss Pemberton. – Só estou cansada. Acho
que hoje me levei ao meu limite. A Barnes abordou o assunto, mas apenas
comigo, e mandei-a calar com bastante veemência. E também não era uma
questão de ninguém acreditar em ti; toda a gente sentiu a maior admiração
pelo papel que tiveste em tudo isto. Talvez a Barnes não vá para a prisão,
que é onde devia estar, Rosie, mas decerto não voltará a ter um cargo de
chefia e nunca poderá fazer-te mal.
– Mas o que é que vai acontecer a Carrington Hall? Vai continuar aberto?
– Por enquanto. Consegui arranjar pessoal temporário suficiente para se
manter, embora o futuro dependa muito do proprietário. Mas por enquanto
todas as funcionárias têm emprego, incluindo tu, se quiseres ficar. Mas é
sobre isso que quero falar-te, Rosie.
A rapariga engoliu em seco. Seguramente, Miss Pemberton não ia obrigá-
la a ficar aqui?
– Tens três ou quatro opções, minha querida – continuou Miss Pemberton,
por fim a sorrir. – Podes ficar aqui com um aumento de salário. Podes vir
comigo para o Somerset enquanto pensas no que queres fazer a seguir. O
Thomas está disposto a receber-te no seu apartamento até encontrares outro
emprego em Londres. Ou... – Calou-se de repente.
– Sim? – incitou Rosie, sem saber qual seria a quarta opção. – Ou o quê?
– Podes ir para o Sussex para ajudar a cuidar do Donald com os pais dele.
Rosie piscou os olhos com força e a sua boca abriu-se. Não tinha a
certeza se ouvira bem.
Miss Pemberton riu-se ao ver a sua expressão de perplexidade e ficou
logo mais animada. As pessoas como Aylwood, Barnes e Saunders que
chafurdassem na sua lama. Esta querida menina merecia muito mais,
merecia ser feliz.
– Como sabes, há algum tempo que eles querem levar o Donald para casa
– continuou. – No entanto, acham que são um pouco idosos para começar
outra vez do zero com ele. Não querem que vás para lá como ama ou criada,
mas como companheira dele. Alguém que o ajude a adaptar-se à sua nova
liberdade, que cuide dele e lhe ensine coisas. Eles têm uma casa muito
grande e terias um bom quarto e um bom salário. O que te parece?
– Não sei – respondeu Rosie. Não parava de pensar em Donald desde o
dia da Coroação. Sentia muito a falta dele, preocupava-se com ele e receava
não voltar a vê-lo. Não conseguia imaginar nada melhor do que cuidar dele.
Recordou toda a sua família no dia da Coroação. Gostava de todos e não
tinha reservas nesse aspeto. Parecia um emprego divinal.
– Eles sabem o quanto gostas de jardinar. – Miss Pemberton sorriu
enquanto expunha as tentações. – Têm um grande jardim e uma das suas
ideias é que tu e o Donald podiam trabalhar nele juntos. Terias os teus dias
de folga; eles não pretendem prender-te lá em casa. Querem que passes a
fazer parte da família.
Ao ouvir aquela última frase, Rosie começou a chorar. Miss Pemberton
estava a deixá-la cada vez mais perto das portas do Céu com cada coisa que
dizia, mas por fim encontrara a chave para abri-las.
– Parece maravilhoso – disse, a soluçar. – Não consigo pensar em nada de
que gostasse mais. – Fez uma breve pausa, a tentar encontrar um lenço de
assoar no bolso do uniforme.
– Mas, se não estou muito enganada, há um «mas» – disse Miss
Pemberton, batendo no seu joelho. – Deixa-me adivinhar! Será o jovem
com quem saíste na quarta-feira?
Rosie assoou o nariz e limpou os olhos. Sentiu-se uma tonta.
– Sim – sussurrou timidamente. – Eu gosto mesmo dele e o Sussex é
muito longe de Londres, não é?
Violet sorriu. Recordou-se de um dos seus antigos namorados fazer vinte
quilómetros de bicicleta à chuva só para estar duas horas com ela. Uma vez,
um jovem médico fizera-lhe a corte desde Leeds quando ela estava em
Londres.
– O amor vence todos os obstáculos – disse. – Além disso, ele trabalha
nos caminhos de ferro, não é verdade? Mayfield tem uma estação e não fica
a mais de oitenta quilómetros de Londres.
Rosie não precisou de pensar em mais nada. Nenhum emprego em
Londres poderia oferecer-lhe tanto como os Cook lhe ofereciam. Gareth
podia cansar-se dela, ela podia aborrecer-se com ele, e depois o que faria?
– Eu quero trabalhar para eles – disse, a sorrir, e de repente imaginou-se
de novo no campo, a cavar num jardim e a partilhar coisas com Donald. –
Vai ser uma grande aventura. Sim, quero ir.
Violet iluminou-se.
– É assim mesmo – disse num tom resoluto. – Agora, quando é que
combinaste sair de novo com o jovem?
– Esta noite. – Rosie corou. Não esperara que Miss Pemberton fosse tão
compreensiva. – Posso encontrar-me com ele?
– Claro que sim. E vai ser perfeito porque Mr. e Mrs. Cook vêm buscar o
Donald amanhã. Vão ficar encantados quando virem que estás pronta para
ir com eles.
– Amanhã? – Rosie engasgou-se. Pensou que Miss Pemberton queria
dizer dali a uma ou duas semanas.
– Sim, minha querida. – Piscou os olhos depressa, surpreendida com a
pergunta. – Os Cook queriam levar o filho ao primeiro sinal de problemas.
Só não o levaram porque eu tive receio de que isso deixasse a Barnes
desconfiada de que estava a acontecer alguma coisa. Agora, o que sugiro é
que saias daqui amanhã de manhã num táxi, e que digas a quem te
perguntar que vais voltar para casa, para o Somerset. Vai para o
apartamento do Thomas e espera lá até os Cook te irem buscar durante o
dia. Assim, ninguém saberá para onde vais.
– Falou aos Cook sobre mim? – perguntou Rosie, hesitante.
– Só lhes disse que entrei na tua vida quando o teu pai morreu e que te
arranjei este emprego – respondeu ela. – É a única coisa relevante. Quanto
ao Thomas, com quem falaram algumas vezes ao telefone, acreditam que é
um amigo meu, uma pessoa com quem te pus em contacto quando vieste
para Londres.
– Acha que devo contar-lhes tudo sobre mim? – perguntou Rosie com
uma vozinha sumida.
– Acho que a decisão tem de ser tua, minha querida. Mas agora apressa-te
e vai jantar antes que o resto do pessoal termine o turno. Tenho a certeza de
que já tiveste a tua dose para um dia.
*

Rosie tinha tomado banho e lavado o cabelo quando Maureen subiu.


– A Simmonds disse que a enfermeira supervisora se foi embora esta
tarde no automóvel do cunhado – começou, sentando-se na cama e olhando
para Rosie, que estava sentada no toucador. – Ela disse que Mr. Brace-
Coombes saiu alguns minutos depois. Mas a enfermeira Pemberton deve
ter-te contado tudo quando estavam a conversar no jardim.
O sarcasmo não foi nada subtil, mas Rosie decidiu não morder o isco.
– Não, por acaso não contou. Só queria saber o que pretendo fazer agora.
Ela disse-te alguma coisa? – Rosie estava muito entusiasmada e isso fê-la
sentir alguma pena da rapariga. Ela não tinha perspetivas nenhumas e
parecia muito perdida e assustada.
– Sim, disse que ainda tinha emprego se quisesse ficar. Mas foi um
bocado fria. Disse que eu não podia entrar em contacto com a enfermeira
supervisora de maneira nenhuma. Como se eu quisesse.
Teve a clara impressão de que Miss Pemberton lhe tinha dito muito mais
do que isso, mas não ia perguntar. De repente, a política de Carrington Hall
já não lhe interessava.
– Agora vai ser muito melhor. – Rosie tentou parecer otimista. – A
enfermeira Clegg é simpática, mas acho que Miss Pemberton não te vai
deixar no segundo andar.
– Como se tu te importasses – retorquiu Maureen num tom venenoso. –
Suponho que amanhã vais voltar para casa da tia?
– Por acaso, vou – respondeu Rosie. – E mal posso esperar.
– Acho que ninguém vai ficar – disse Maureen, e começou a chorar. – O
Donald vai para casa amanhã com a mãe e o pai. A Mary anda a falar sobre
voltar para a Irlanda e a Linda disse que só vai ficar uma ou duas semanas,
porque a Clegg está a contactar as famílias de todos os doentes para lhes
contar o que aconteceu e acha que o Brace-Coombes vai ter de fechar isto.
Rosie estava dividida entre a compaixão e querer arranjar-se para ir ter
com Gareth, mas a compaixão venceu.
– Escuta, Maureen – disse, levantando-se do toucador e indo sentar-se ao
seu lado. Pôs o braço sobre os ombros da rapariga. – Tens de encarar isto
como o princípio de uma coisa nova, e quase de certeza melhor. Porque é
que não procuras também um emprego novo e recomeças onde ninguém
souber nada?
– Isso é muito fácil para ti, porque és bonita e inteligente. – Maureen
fungou encostada ao seu ombro. – Eu sou feia e as pessoas não gostam de
mim.
– Aqui também ninguém gosta de mim. – Rosie encolheu os ombros.
Nem Linda nem Mary tinham vindo ter com ela ao quarto e estava
convencida de que não viriam. – E ser inteligente não me levou muito
longe. Tu ainda tens um emprego e eu não.

Depois de sair pela porta principal, soltou um suspiro de alívio. O dia de


hoje tinha sido longo e esgotante, e Maureen acabara com ela.
Todavia, enquanto se aproximava dos portões, de repente apercebeu-se da
realidade. Estava livre. Nunca mais teria de limpar outro rabo sujo, exceto,
talvez, o de um bebé, e nunca mais seria obrigada a entrar numa daquelas
enfermarias. Amanhã faria a mala, chamaria um táxi e entraria num mundo
completamente novo. Donald só saberia que ela ia com eles depois de sair
dali no dia seguinte. Mal podia esperar para ver a sua cara quando os pais
fossem buscá-la a Hampstead. Todas as coisas que queria fazer com ele –
ler livros, passear pelos campos, andar de autocarro, levá-lo às compras –
eram possíveis agora. Ia ser maravilhoso.
Cheia de entusiasmo e esquecido o cansaço, correu para os portões, abriu-
os e saiu para a rua a sorrir de felicidade. E ali, alguns metros mais à frente,
Gareth estava sentado na mota à sua espera.
Não foram ao cinema. Estava um fim de tarde demasiado quente para
irem sentar-se num espaço interior escuro e tinham muito que conversar.
Foram para o campo e, enquanto passeavam de mãos dadas, Rosie contou-
lhe tudo o que tinha acontecido, incluindo o seu papel a desencadear tudo.
Foi um alívio enorme poder falar sobre o assunto. Quando terminou, sentiu-
se como se tivesse tirado a tampa de uma banheira cheia de água suja e a
visse desaparecer.
– Só gostava de ter espreitado pela janela enquanto a velha bruxa estava a
ser interrogada – disse, a rir. – Mas Miss Pemberton é muito discreta e
talvez nunca me conte tudo o que aconteceu.
– Imagina só tu estares envolvida em tudo isto e não me contares nada. –
Gareth olhou-a com uma expressão que se aproximava da reverência.
Detestou a ideia de ela estar perto de um homem como Saunders e, embora
Rosemary só se tivesse referido ao que ele fizera à doente como «interferir
com ela», adivinhou exatamente o que acontecera. – Eu tinha-me metido no
próximo autocarro e fugido de lá. Não me tinha preocupado com os
doentes, só comigo.
– Não acredito nisso. – Rosie sorriu. Era muito bom ser admirada, não
estava acostumada a isso. – De qualquer modo, ainda bem que não me
acobardei e fugi... não teria arranjado este emprego em casa dos Cook.
Gareth estava um pouco confuso porque tinha uma ideia na cabeça de
como as raparigas deviam ser e Rosemary não encaixava nela. Estava
contente por ela sair de Carrington Hall – não se sentia à vontade com uma
namorada que trabalhava num manicómio. Pensava que os Cook eram boas
pessoas, mas não conseguia perceber porque é que ela queria enterrar-se no
meio do campo a tomar conta de Donald. Seria muito gozado pelos colegas
se algum deles descobrisse o que ela fazia. As suas namoradas trabalhavam
em escritórios, lojas ou cabeleireiros.
– Tens a certeza de que é o que queres mesmo fazer? – perguntou-lhe. –
Eu sei que eles são boas pessoas. Mas é muito longe de Londres. Como é
que te vou ver?
Rosie pensou que tinha de parecer descontraída. Lera em revistas que os
homens ficavam sempre mais atraídos quando tinham de correr atrás das
raparigas.
– Claro que é o que quero fazer. E tu é que sabes tudo acerca de
comboios, por isso não preciso de te dizer como chegas lá – disse,
brincalhona. – Mas de qualquer maneira daqui a algumas semanas já me
deves ter esquecido.
– Isso não é verdade – disse ele, puxando-a para si. – Vou pensar em ti
noite e dia, e desejar estar contigo.
Quando a beijou pouco depois, não foi um beijo suave como quando se
tinham despedido na quarta-feira à noite. Desta vez os seus braços
rodearam-na e a sua boca pousou na dela, quente e intensa.
– Eu gosto mesmo de ti – sussurrou no seu pescoço. – Quero que sejas
minha namorada, estou a falar a sério. Não queria dizer nada disto tão cedo,
mas agora que te vais embora tenho de dizer. Prometes que me escreves?
– Sim, se quiseres – concordou Rosie, encantada com as palavras dele e
com o toque dos seus lábios no pescoço. – Eu também gosto de ti, Gareth.
Tu és a única coisa que me faz sentir um pouco triste por me ir embora.
Gareth teve um pouco de esperança. Talvez ela só fosse para o Sussex
porque não tinha mais nada neste momento. Talvez dali a algumas semanas
se cansasse e conseguisse persuadi-la a voltar para Londres. Imaginou-se a
ajudá-la a arranjar um quarto perto de si em Clapham, a sair com ela e
apresentá-la a todos os amigos. Todos ficariam com inveja, porque
nenhuma das suas namoradas era tão bonita.
Abraçou-a e continuaram a caminhar até chegarem a uma zona de
vegetação rasteira.
– Vamos sentar-nos ali – sugeriu.
Sentaram-se na relva a beijar-se e pouco depois estavam deitados e os
beijos tornaram-se mais longos e ardentes. Rosie interrogava-se muitas
vezes porque é que os casais gostavam de se deitar abraçados nos parques
durante o que parecia uma eternidade. Agora, compreendeu. Cada beijo
tornou-se mais intenso, com a língua de Gareth a explorar a sua boca,
provocante, e as mãos dele a percorrerem-lhe as costas, braços e nádegas,
puxando-a cada vez mais para si.
Quando a mão dele lhe tocou num seio pela primeira vez, Rosie afastou-a
logo, mas depressa se tornou uma deliciosa brincadeira em que a mão
voltava e ela deixava-a ficar durante alguns instantes antes de o parar. No
entanto, cada vez que ele lhe tocava ali era mais difícil afastá-lo. Uma
sensação de calor e arrepios estava a invadir-lhe o corpo e, embora uma
vozinha num recanto da sua cabeça sussurrasse que tinha de se afastar e
acalmar, não queria escutá-la.
Foi ele que se afastou.
– Isto está a ficar descontrolado – disse com uma voz curiosamente
trémula enquanto se sentava e tirava os cigarros do bolso da camisa.
Rosie também se sentou, de repente embaraçada, e puxou a saia para
cima dos joelhos. Ficou sentada num silêncio incómodo durante alguns
instantes, a ouvi-lo fumar. Mary dissera-lhe que os rapazes só queriam
«uma coisa» e que diziam e faziam tudo para a conseguir. Agora estava
confusa: porque é que Gareth não estava a implorar-lhe?
Ele abraçou-a e puxou-a para o seu ombro, dando-lhe um suave beijo na
testa.
– Tu és tão linda que é difícil controlar-me – sussurrou. – Mas eu sou
fraco, Rosemary. Se continuarmos a beijar-nos assim, posso acabar por ir
longe de mais, e tenho demasiado respeito por ti para estragar tudo.
De repente, Rosie sentiu-se segura. Respeito era uma palavra que nunca
fizera parte do vocabulário do pai ou dos irmãos, não quando estavam em
causa mulheres. Como Gareth a usara, ele devia acreditar no amor
verdadeiro e no casamento, e que o sexo só acontecia depois de ter uma
aliança de casamento no dedo.
Virou-se para beijá-lo, segurando o seu rosto entre as mãos. Sentiu as
palavras «amo-te» formarem-se na sua mente, mas sabia que ainda não
devia dizê-las, não antes dele.
– Vais ver-me ao Sussex, não vais? – perguntou em vez disso.
– Tenta impedir-me – disse ele com um sorriso endiabrado. – É cedo de
mais para dizer isto, mas acho que estou a apaixonar-me por ti.
Rosie olhou para ele, absorvendo aqueles olhos azul-claros, o tom
dourado da sua pele e a suavidade dos lábios. Nunca se sentira tão
delirantemente feliz como naquele momento. Todas as nuvens da sua vida
estavam a afastar-se por fim.
CAPÍTULO 12

T homas recuou e observou o abraço arrebatador que Donald deu a Rosie


em Flask Walk. Eram duas da tarde, ele e Rosie tinham acabado de
voltar depois de terem almoçado num café perto da charneca e agora os
Cook vinham buscá-la.
O reencontro foi muito emotivo. Donald e Rosie choravam e riam ao
mesmo tempo, e Donald parecia querer espremê-la até lhe tirar todo o ar.
Frank Cook, com o braço em volta da mulher, sorria radiosamente, sem
dúvida encantado por levar o filho para casa. O rosto de Norah estava
enterrado no peito largo do marido, por isso Thomas não conseguiu ver se
também chorava, mas teve a certeza de que sim.
– Entrem para tomar um chá – sugeriu. Conhecer por fim aquele jovem
sobre quem Rosie falara tanto e saber que teria uma vida nova e feliz fê-lo
ficar com um nó na garganta.
– É muito simpático da sua parte, Farley – troou a voz grossa de Frank –,
mas acho que o Donald já teve demasiada excitação para um dia. Se
pudermos ir buscar as coisas da Rosemary, vamos levá-los para casa.
Thomas sentiu uma pontada súbita e irracional de ciúmes.
– Mas não podem – opôs-se. – Decerto podem ficar alguns minutos?
Norah Cook afastou-se do marido, limpando os olhos com as costas da
mão.
– O Frank tem razão sobre ele estar demasiado excitado. – Sempre
sensível aos outros, Norah percebera a tensão na voz de Thomas. Pensou
que talvez estivesse nervoso por duas pessoas que mal conhecia levarem
Rosemary com eles, sem as observar primeiro. Pensou que era uma reação
comovente. – Mas não é uma despedida, apenas um au revoir – disse com
um sorriso. – Tem de ir passar um fim de semana connosco em Mayfield
em breve, Thomas. Nessa altura, poderemos conhecer-nos melhor.
– Eles têm razão. – Rosie libertou-se dos braços de Donald e aproximou-
se dele, pegando-lhe nas mãos e olhando-o. – Temos de o levar para casa
depressa. E virá a Mayfield, não virá?
Thomas acenou com a cabeça. Não foi capaz de falar. Rosie chegara à
loja naquela manhã com a sua bagagem, pouco depois das nove, e fora
como se uma brisa de verão quente e perfumada tivesse entrado na sala com
ela. Estava muito feliz e animada; nunca a vira assim antes e também se
sentiu feliz. Tinham ido sentar-se ao sol na charneca e ela contara-lhe tudo
o que acontecera no dia anterior com grande entusiasmo, falando-lhe sobre
a sua esperança para o futuro.
– Não te esqueças de me escrever – conseguiu dizer por fim. Não sabia o
que se passava consigo. – Agora, vamos levar a tua bagagem para o carro.
Trouxeste o livro de jardinagem para baixo?
Rosie entrou na loja. Deixara ali a mala de viagem e dois sacos mais
pequenos. Nessa manhã Thomas oferecera-lhe um livro enorme e brilhante
sobre jardinagem como presente de despedida. Era o melhor presente de
sempre e mal podia esperar para começar a lê-lo.
– Já o guardei na mala de viagem – disse. – Nunca poderei agradecer-lhe
o suficiente. Vou ler todas as palavras e tornar-me especialista em
jardinagem.
Pôs-se em bicos de pés, segurou-lhe o rosto entre as mãos e deu-lhe um
beijo na face.
– Espero que tenha alguns desenhos para me mostrar quando vier visitá-
lo – disse em voz baixa, perto do seu ouvido. – E arranje uma namorada!
Thomas ficou a acenar até o Jaguar dos Cook desaparecer na descida de
Haverstock Hill. Em seguida, virou-se e voltou devagar para a loja. Teve a
sensação de que sabia o que se passava consigo. Afinal de contas, talvez
precisasse de um psiquiatra; homens de trinta e um anos com uma perna
não se apaixonavam por meninas bonitas de dezasseis. Era ridículo e
totalmente impossível.

– Senta-te como deve ser, Donald – disse Norah Cook com um toque de
exasperação na voz. Já tinham ido buscar Rosemary há duas horas e a
esperança de que ele se acalmasse ao seu lado no banco de trás estava a
revelar-se vã. Ele passara o tempo todo a mexer-se e contorcer-se, virando-
se para um lado e para o outro, a comentar tudo o que via, desde lojas e
vacas nos campos até diferentes carros, e a fazer perguntas atrás de
perguntas até ao ponto de Norah pensar que não conseguiria aguentar nem
mais um instante. Porém, à medida que se foram aproximando de Mayfield
e ele reconheceu alguns pontos de referência, a sua alegria tornou-se
irresistível. – E podes tentar ficar calado durante cinco minutos?
No entanto, enquanto Donald fora ficando cada vez mais ruidoso à
medida que a viagem continuava, Rosemary ficara mais calada. Norah
ponderou se estaria a pensar em todas as coisas terríveis dos últimos dez
dias, ou talvez a sentir que fora obrigada a aceitar aquele emprego sem lhe
darem tempo para pensar. Mas não podia perguntar-lhe agora, não à frente
do filho.
Rosie estava mergulhada nos seus pensamentos, mas não pensava em
Carrington Hall. Era um lugar que nunca mais queria ver e também não
queria pensar nele. Saíra antes das nove da manhã com rápidas despedidas e
sem olhar uma única vez para trás. Todavia, embora sentisse que hoje era o
início de uma vida nova e feliz, podia ser comparado a saltar de um avião
sem verificar primeiro se tinha um paraquedas preso nas costas.
Na noite anterior ficara acordada durante várias horas a pensar em
Gareth. Gostava muito dele, mas ele gostaria o suficiente dela para ir até
Mayfield visitá-la?
Também estava preocupada com Thomas e com Miss Pemberton. Manter-
se-iam em contacto como tinham prometido? Agora que o futuro de Alan
estava decidido e ela tinha um emprego novo, não era realmente necessário,
mas os acontecimentos daquela semana tinham realçado a importância
daquelas duas pessoas na sua vida. Eram substitutos da família, duas
pessoas que sabiam tudo sobre ela e cujos conselhos, amizade e afeto
valorizava acima de tudo.
No entanto, Donald era a sua principal preocupação. Enquanto ele se
contorcia ao seu lado, demasiado excitado, bombardeado de todos os lados
por coisas, sons e paisagens de que tinha sido privado durante tanto tempo,
perguntou a si mesma se seria mesmo capaz de o orientar em todas as
situações difíceis que sabia que os esperavam.
A vida em Carrington Hall era muito disciplinada e ordeira para ambos.
Sabiam exatamente o que se esperava deles em todos os momentos do dia.
Não tinham de tomar decisões e viviam de acordo com regras rígidas.
Mas agora as regras tinham desaparecido. Tinham acabado as portas
trancadas, as campainhas a tocar para se levantar, não precisava de
autorização para sair de casa e não usaria uniforme. Rosie não ia ser
totalmente livre; teria de prestar contas a Mr. e Mrs. Cook e, como viveria
na casa deles, estava sujeita ao seu código de comportamento. Porém, seria
muito diferente para Donald. Era o filho pródigo a regressar a casa.
Era isso que a deixava apreensiva. Demasiada liberdade, cedo de mais,
podia ser desastroso para ele. Fechado desde os quinze anos, não sabia nada
sobre o mundo exterior. E se saísse de casa e desse um dos seus abraços
fortes a uma velhota? Ou se tirasse alguma coisa de uma loja sem perceber
que tudo tinha de ser pago, ou se entrasse na casa de outras pessoas? Em
Mayfield não haveria uma campainha de alarme para tocar a pedir ajuda.
Não haveria outras funcionárias a quem se lamentar se as coisas corressem
mal. Claro que os pais dele estariam lá, mas de certo modo achava que Mrs.
Cook não seria muito forte numa crise. Ainda pensava em Donald como um
rapazinho, e ele era-o em muitos sentidos. Todavia, enquanto estava longe
dela o seu corpo tornara-se adulto e ele adquirira hábitos que poderiam
chocá-la. Rosie interrogou-se se ela estaria consciente de tudo isto.
No entanto, quando chegaram a Mayfield e teve um primeiro vislumbre
da aldeia onde ia viver, Rosie esqueceu a ansiedade e ficou tão
entusiasmada como Donald.
Tinham visto muitas aldeias lindas durante a viagem desde Londres. No
entanto, havia alguma coisa nesta que ofuscava todas as outras. As casas e
lojas da rua principal estavam todas aglomeradas em fila, mas não havia
duas iguais. Algumas tinham ladrilhos vermelhos até às janelas do rés do
chão, outras tábuas pintadas de branco. Algumas tinham jardins à frente e
vedações de madeira e noutras a porta da frente dava diretamente para o
passeio. Aqui uma loja com janelas salientes e um telhado tão baixo que
parecia ter sido levantado apenas o suficiente para encaixar uma janela no
primeiro andar. Ali uma casa de três andares com majestosos beirais
pontiagudos. Não havia uniformidade nenhuma, a menos que se
considerasse as selhas e as floreiras nas janelas com flores coloridas. Aqui
um alpendre com gelosias pintado de branco, ao lado alguns degraus de
mosaicos vermelhos até uma casa com rosas à volta da porta, e logo depois
uma porta que parecia de um estábulo aberta com um canário a baloiçar
numa gaiola por cima.
Rosie sentiu que se não conseguisse ter sucesso no seu trabalho num
lugar tão paradisíaco, não conseguiria em parte alguma do mundo. Depois,
Donald apertou-lhe o braço.
– Olha! – guinchou, excitado. – Casa.
Mrs. Cook voltou-se para olhar para o filho com os olhos marejados de
lágrimas de alegria, pois temia que ele não se lembrasse da sua casa. Aquele
primeiro vislumbre da Granja, quando Mr. Cook virou para o caminho de
acesso, deixou-a sem fôlego.
Árvores antigas formavam um arco sobre o portão e a antiga casa de
pedra cinzento-clara do outro lado pareceu-lhe uma mansão. Tinha as
janelas góticas que associava a igrejas, e estavam emolduradas por longos
cachos de glicínias roxas. Jasmim subia à volta do arco da porta principal e
um gordo e peludo gato cinzento estava sentado à porta como se os
esperasse para lhes dar as boas-vindas. Mas, melhor do que o esplendor da
casa, era o jardim. Nem sequer em revistas vira um tão lindo. Um bonito e
luxuriante relvado, salpicado de rododendros, rodeava a casa; havia
arbustos e árvores que não conhecia e, sem ver, soube que a área das
traseiras da casa seria ainda melhor.
– É enorme – disse com um arquejo, e Mr. Cook riu-se.
– Não é tão grande como parece de fora – disse. – Talvez seja o melhor
exemplo de espaço desperdiçado que alguma vez verás, Rosemary. Acho
que o homem que a construiu há duzentos anos foi inventando à medida que
ia avançando, sem um verdadeiro plano. Olha para aquele telhado comprido
e inclinado nas traseiras! Se ele tivesse posto um telhado convencional,
poderia haver mais dois quartos no andar de cima. Mas nós adoramo-la,
com todos os seus defeitos.
Depois de entrar, as recordações de Donald vieram em catadupa enquanto
davam a volta à casa.
– Este era o meu quarto – gritou, eufórico, quando entraram numa divisão
com o teto muito inclinado. – Eu f-f-fiz uma casa no c-c-canto.
– Pois fez – disse Mr. Cook com um sorriso. – Arrastou um grande cesto
de roupa e usava-o para se enfiar nele às vezes e dormir.
Rosie pensou que a sala de estar, onde até havia uma televisão, era a
divisão mais encantadora de todas. Estava decorada em tons de cor-de-rosa
e verde, com grandes poltronas fofas e dúzias de fotografias de toda a
família Cook, e tinha portas envidraçadas que davam para o jardim.
Era uma casa grande, mas acolhedora, cheia de sol e personalidade.
«Vivida» foi a expressão que veio à ideia de Rosie. Embora houvesse flores
em todas em divisões, em cima de mesas enceradas, também havia livros,
trabalhos de tricô e revistas. Algumas manchas nas carpetes provavam que
ainda brincavam aqui crianças. Alguns dos móveis estavam estragados e
velhos, mas outros eram peças valiosas, com uma aparência antiga, como os
que via em lojas de antiquários em Hampstead. Adorou.
Quanto ao jardim, os seus olhos encheram-se de lágrimas enquanto o
explorava. Havia o lago de que Donald falara, com a superfície cheia de
nenúfares e peixes-dourados gordos a nadar nas profundezas. Um pavilhão
de verão branco, um lindo jardim adornado com pedras, uma horta
aconchegada atrás de uma treliça coberta de rosas e uma bordadura de
plantas herbáceas que a deixou desejosa de mondá-la. Donald saltou para o
baloiço que estava pendurado num grande castanheiro e gritou-lhe para que
o empurrasse. Rosie nunca vira uma felicidade tão plena no rosto de alguém
e percebeu que, independentemente dos problemas que pudessem acontecer
com Donald, ia fazer tudo para que nunca mais fosse mandado para um
hospício.
Após uma refeição de frango estufado na cozinha, que aparentemente
tinha sido preparado por uma senhora chamada Josie que vinha duas
manhãs por semana, Donald foi para a sala com o pai e Rosie ajudou Mrs.
Cook a arrumar a cozinha.
– O Donald está muito magro – disse Mrs. Cook, pensativa, enquanto
lavava os pratos. – Temos de o fortalecer com boa comida e muito
exercício. Os seus modos à mesa são uma desgraça. Tenho de tratar disso, e
é claro que tem de fazer um bom corte no cabelo imediatamente, antes de
podermos levá-lo a algum lado.
Rosie sabia que Mrs. Cook estava a ser maternal e queria que o filho
parecesse o mais normal possível, mas a parte sobre os modos à mesa fê-la
lembrar-se de Mrs. Bentley.
– Ele não usava faca e garfo em Carrington Hall, apenas uma colher –
disse, num tom contundente. – Mas vai aprender depressa, a observar-nos.
– Espero que sim, querida. – Os olhos azuis de Mrs. Cook estavam
ansiosos e algo incrédulos. – Reparei que ele assoa o nariz à manga da
camisa. Também temos de lhe tirar esse hábito. No entanto, acho que não
vai ser possível fazer tudo num dia.
– Ele aprende depressa – replicou Rosie rapidamente. – Por falar nisso, já
fizeram planos sobre o que querem que eu faça com o Donald todos os
dias?
Mrs. Cook olhou para ela, intrigada.
– Ele simplesmente vai estar aqui connosco! Vamos passear, fazer
algumas compras, esse género de coisas. Mais tarde, depois de ele ter
descansado um pouco, talvez possamos fazer alguns planos.
Rosie sentiu um aperto no coração. Mrs. Cook era muito bondosa, mas
era claro que pretendia mimar o filho e compensar todos os anos perdidos.
Não estava a ser prática, nem a ajudá-lo. Ele estava acostumado a uma
disciplina rígida, e se ela desaparecesse de um momento para o outro era
provável que se comportasse como uma criança gulosa à solta numa loja de
doces.
Respirou fundo.
– Espero que não pense que estou a ser inconveniente – disse com voz
trémula. – Mas acho que temos de lhe estabelecer uma rotina desde o
primeiro dia. É natural que ele se sinta muito desorientado até se acostumar
a estar aqui. Por isso, acho que devíamos tentar manter as coisas o mais
parecidas possível com Carrington Hall durante algum tempo.
– Como assim? – A voz de Mrs. Cook subiu num guincho de surpresa. –
Pensei que tu serias a pessoa que mais quereria apagar essas recordações.
Rosie ruborizou-se, mas estava determinada a passar a sua ideia.
Explicou-lhe que Donald sempre ajudara as auxiliares e que gostava muito.
Mrs. Cook sentou-se à mesa para escutar e ela falou-lhe sobre o que a
preocupara durante a viagem para cá.
– Ele precisa de orientações firmes – insistiu. – Era a pessoa mais
inteligente da sua enfermaria, e por causa disso tinha pequenos privilégios
que os outros pacientes não tinham. Se o deixar andar por aí sem fazer
nada, vai perder aquela sensação de que é importante. Pensei que depois do
pequeno-almoço podíamos fazer alguns pequenos trabalhos juntos. Talvez
fazer camas, limpar sapatos, varrer o terraço, coisas simples para começar,
até ele apanhar o jeito. Depois, mais tarde, posso fazer algo mais tranquilo
com ele, ver livros ou fazer um puzzle.
Por fim, Mrs. Cook sorriu.
– Bem, não parece muito cansativo. E o que é que tinhas pensado fazer à
tarde? Tenho a certeza de que também já pensaste nisso.
Aquele último comentário teve um laivo de sarcasmo, mas Rosie tinha de
manter a sua posição.
– Trabalhar no jardim ou ir dar um passeio. Mas penso que devemos
mantê-lo longe das pessoas e das lojas da rua principal até ele ter tempo
para se adaptar a nós e à casa.
Rosie ficou um pouco embaraçada enquanto Mrs. Cook a olhava durante
algum tempo com uma expressão pensativa. Apesar de ser uma mulher
pequena e as suas roupas boas e unhas bem arranjadas sugerirem que tinha
uma vida muito ociosa, nas duas horas desde que tinham chegado a casa já
descobrira que não era assim. Josie vinha fazer algum do trabalho mais
pesado duas vezes por semana, mas ela era uma dona de casa. Cozinhava,
limpava, costurava roupas para os netos e a despensa estava cheia das suas
conservas, doces e pickles. Também tinha sido uma mãe muito boa e Rosie
sentiu que estava a ser muito atrevida ao dizer-lhe como devia tratar o
próprio filho.
– Está certo – disse Mrs. Cook por fim, abanando a cabeça. – Presumo
que ele se deitava cedo em Carrington Hall, por isso é melhor mantermos
esse horário por enquanto.
Rosie soltou um suspiro de alívio. Já tinha dito o que queria e o ambiente
estava desanuviado. Só esperava que Donald não percebesse que a mãe não
estava totalmente de acordo com ela e as virasse uma contra a outra. Ele era
perfeitamente capaz disso.
– No entanto, estou um pouco preocupada com ele à noite – admitiu. –
Está tão acostumado aos outros homens no dormitório que talvez não goste
de ficar num quarto sozinho.
Vira os quartos onde ela e Donald iam dormir. O dele era o que ocupava
quando era criança, decorado há pouco tempo com riscas azuis e brancas, e
o seu era do outro lado do corredor, nas traseiras, um quarto pequeno, mas
muito bonito, decorado em tons de cor-de-rosa e branco com um teto
inclinado semelhante ao do quarto de Donald. Nem sequer sabia se
conseguiria ouvi-lo se ele chamasse.
– Talvez seja melhor eu dormir à porta dele durante algumas noites –
sugeriu. – Só para ter a certeza de que não sai e anda por aí sem destino.
Mrs. Cook pareceu horrorizada com aquela ideia.
– Minha querida – disse ela, erguendo as elegantes sobrancelhas –, eu não
te trouxe para cá para seres uma espécie de cão de guarda.
Rosie riu-se.
– Não estava a pensar dormir em cima de um tapete... talvez uma cama
portátil junto ao corrimão. Depois de todas as portas trancadas em
Carrington Hall, ele vai querer explorar tudo. Durante algum tempo, vai ser
como o seu neto Robin, a querer tocar em tudo e observar tudo. Mas não vai
perceber os perigos de coisas comuns como fósforos, facas afiadas e outras
coisas parecidas. Também pode ser desastrado e partir coisas.
O que Rosie estava a dizer foi provado alguns momentos mais tarde
quando Donald derrubou uma jarra com flores numa mesa baixa na sala de
estar. A jarra de vidro partiu-se, a água entornou-se em cima da mesa e
quando ele foi apanhar o vidro cortou um dedo e começou a chorar ao ver o
sangue.
Mrs. Cook pôs um penso rápido no corte. Rosie limpou a água e reparou
que a mulher mais velha estava a olhar para todo o lado com uma expressão
atemorizada, como se estivesse a tentar perceber que outras coisas é que
deviam ser tiradas dali.

Rosie dormiu mesmo numa cama portátil, e ainda bem porque Donald
saiu três vezes do quarto durante a noite. As primeiras duas vezes
acompanhou-o até à casa de banho e depois levou-o para o quarto e deitou-
o. A terceira vez o dia já estava a nascer e levou-o para a cozinha para lhe
preparar uma bebida quente.
– Tens de ficar no teu quarto à noite, Donald – disse-lhe com firmeza
enquanto enchia a chaleira. – Mesmo que tu não precises de dormir, eu
preciso.
Ele parecia muito novo e infantil sentado à mesa da cozinha com o seu
pijama às riscas.
– Está m-m-muito silencioso – disse.
– Silêncio à noite é bom – explicou Rosie, pousando uma mão no seu
ombro e apertando-o com afeto. – Quer dizer que os pássaros e as outras
criaturas estão a dormir como tu. Não tens de ter medo de nada; a tua mãe e
o teu pai estão perto, e eu também.
Rosie estava mais preocupada agora do que quando tinha falado com
Mrs. Cook. Entre a refeição da noite e a ida de Donald para a cama, eles já
se tinham apercebido de alguns dos problemas que ela previra.
Mrs. Cook não conseguia imaginar a diferença entre a monótona sala de
dia, sem nada para ver, e esta sala de estar cheia de tesouros. Até Rosie
sentia uma grande vontade de pegar em coisas e olhar para elas. Porém,
sempre que Donald tocava em algum objeto a mãe ficava rígida, com receio
de que ele o deixasse cair. Quando lhe ralhava, os seus modos delicados e
voz suave não surtiam efeito. E o pai gritava-lhe de tal maneira que quase o
matava de susto.
Rosie temeu que ele não demorasse muito a fazer uma birra, se
continuassem a dizer-lhe não. Com tantas coisas facilmente acessíveis para
arremessar, nem queria pensar no caos que poderia causar. Outro problema
era que nenhum deles conseguia adivinhar o que ele quereria investigar a
seguir. Tinham-no deixado sozinho na sala a ver televisão durante alguns
instantes e quando voltaram ele fora ao balde do carvão e alinhara os
pedaços na carpete como uma fila de soldados. Rosie teve receio de que os
pais perdessem a paciência com ele. Eram pessoas de classe média com
uma casa linda, e na sua idade talvez fosse muito difícil acostumarem-se
àquela perturbação da sua vida confortável. Também a preocupava que eles
viessem a acusá-la por sugerir que Donald era capaz de viver em casa, e
depois por não ter sido suficientemente vigilante.
Antes de levar Donald para cima, abriu as cortinas das portas que davam
para o terraço para que ele pudesse ver o jardim e os primeiros raios de sol
a iluminar o céu. Enquanto contemplavam o céu e ouviam os pássaros
cantar, Rosie observou-o. O seu rosto estava maravilhado e ela sentiu um nó
na garganta. Pensou que se ele era sensível ao ponto de se comover com a
beleza de um nascer do sol, poderia aprender a olhar para coisas delicadas
sem tocar, a obedecer à mãe mesmo que ela não lhe gritasse e a comer de
novo de faca e garfo.
Rosie viu uma forte semelhança entre como se sentira ao chegar a casa de
Mrs. Bentley em Bristol e como Donald devia sentir-se agora: ambos
desenraizados, atirados para um mundo desconhecido e bombardeados com
novas experiências. O seu coração encheu-se de pena dele.
– São horas de os pássaros se levantarem e de procurarem o pequeno-
almoço – disse, passado um ou dois minutos. – Mas ainda é muito cedo
para nós. Por isso vais para a cama e desta vez só te levantas quando eu te
chamar.
Depois de o levar para cima, sentou-se na cama dele durante algum tempo
e acariciou-lhe a testa devagar. A expressão ansiosa nos seus olhos fê-la
lembrar-se de Alan e perceber que, para todos os efeitos, Donald era um
menino pequeno. Talvez todos se tivessem enganado ao pensar que ele
compreendia o significado de voltar para casa de vez. Talvez ele sentisse
que tinha de mexer em todas as coisas ao mesmo tempo, para o caso de
tudo desaparecer no dia seguinte.
– Tu vais ficar aqui para sempre, Donald – disse, devagar e com clareza.
– Nunca mais vais voltar para Carrington Hall, nem amanhã, nem na
próxima semana, nem sequer no próximo ano. Agora esta é a tua casa e eu
vou ficar aqui contigo e tomar conta de ti. – Inclinou-se e deu-lhe um beijo
na face. – Agora, volta a dormir. Ainda vou estar aqui quando acordares.
Na quarta noite na Granja, Rosie acordou sobressaltada ao ouvir um ruído
no rés do chão. Ainda estava escuro, mas olhou para o quarto de Donald do
outro lado do patamar e viu a janela, o que significava que a porta estava
escancarada e ele saíra sem que o ouvisse.
Levantou-se da cama a suspirar e pegou no roupão. Não dormira mais de
quatro horas seguidas desde que chegara àquela casa. Porém, esta era a
primeira vez que ele não a acordava. Estava a ficar matreiro e desobediente.
– Menino maroto – exclamou quando entrou na cozinha e o apanhou a
devorar comida na despensa. Ele tinha uma grande fatia de tarte de carne
numa mão e um enorme pedaço de queijo na outra. As suas bochechas
estavam atulhadas de comida, inchadas como as de um hamster. – Quantas
vezes já te disse para não vires cá abaixo?
Ele tentou responder, mas não conseguiu. Rosie pegou nas costas do
casaco do pijama, puxou-o para fora da despensa e tirou-lhe a comida das
mãos.
– Já comes mais do que o suficiente durante o dia. Só estás a ser
ganancioso – disse-lhe com rispidez, com uma enorme vontade de lhe bater.
– Tens de parar de ser desobediente, Donald. Agora, vai lavar as mãos e
volta para a cama.
Enfiou-lhe as mãos debaixo da torneira do lava-loiça e lavou-lhas.
– D-d-desculpa – conseguiu Donald dizer por fim, ainda a mastigar a
comida que tinha na boca. – Não te zangues comigo.
– Vou ficar zangada contigo enquanto não parares com isto – disse ela,
furiosa. – E vou deixar de ser tua amiga.
Levou-o à força para cima, enfiou-o na cama e foi deitar-se.
Estava em desespero, cansada, ansiosa e com muito medo de se ter
enganado ao pensar que Donald poderia estar em casa. No dia anterior Mr.
Cook ameaçara pôr uma tranca na porta do quarto, mas Rosie tirara-lhe isso
da ideia, dizendo que ia contra o objetivo de trazê-lo para casa. Agora,
queria tanto uma boa noite de sono que se sentiu tentada a pedir-lhe que a
pusesse.
Durante o dia era muito difícil. Donald não estava um único minuto
quieto, a examinar isto, a enfiar o nariz naquilo, a derrubar coisas. Até
fizera xixi pelas pernas abaixo várias vezes porque tinha demasiado medo
de perder alguma coisa enquanto estivesse na casa de banho. Rosie pensava
que ele acabaria por se acalmar, mas os pais estavam a chegar ao seu limite
máximo de tolerância.
Parecia que tinham passado apenas alguns instantes quando Rosie
acordou com outro ruído. Já havia luz e calculou que seriam cerca de seis
da manhã. Era o som de Donald a vomitar. Levantou-se com dificuldade e
foi ter com ele. Ele estava deitado num monte de vomitado – estava no
cabelo, por todo o pijama e na cama, e caía em cascata para o chão – e, a
avaliar pela enorme quantidade, comera metade das coisas que estavam na
despensa antes de o ter apanhado.
– É o que acontece por seres tão guloso – disse, aborrecida por ter de
limpar tudo quando estava tão cansada. – Levanta-te e vem para a casa de
banho.
Sentiu pena ao vê-lo ajoelhado ao pé da sanita a vomitar ainda mais. Em
Carrington Hall, acostumara-se a uma dieta de comida mole. Esquecera-se
de como se mastigava bem e o seu estômago não conseguia digerir a
enorme quantidade de queijo, tarte de carne e fiambre que emborcara.
Talvez, por fim, aprendesse uma valiosa lição.
Quando ele já não tinha nada no estômago, lavou-o, foi buscar um pijama
limpo e deitou-o na cama dela. Ele adormeceu quase logo e Rosie deixou-se
ficar a olhá-lo durante alguns momentos, antes de voltar para o quarto e
limpar todo aquele vomitado. Pensou que por vezes a Natureza era muito
cruel: a dormir, nada indicava que era diferente de qualquer outro homem.
Era bonito o suficiente para atrair qualquer rapariga, mas um simples
acidente à nascença roubara-lhe uma carreira, casamento e filhos.
Perguntou a si mesma o que lhe aconteceria quando os pais ficassem
demasiado velhos para cuidar dele.
*

Duas semanas mais tarde, numa manhã de sexta-feira, Rosie estava


ajoelhada na relva a plantar plantas de verão num canteiro quando Mrs.
Cook saiu de casa com um tabuleiro com sumos e bolachas para o lanche da
manhã. Estava muito bonita num vestido largo estampado, com o cabelo
branco muito fofo a emoldurar-lhe o rosto pequeno. Ninguém diria que já
entrara na casa dos sessenta; tinha a elegância e os movimentos rápidos de
uma mulher muito mais jovem.
Donald andava a cortar a relva, mas ao ver a mãe atravessou o relvado
aos saltos. Duas semanas de ar puro, sol, exercício e boa comida tinham
operado maravilhas nele. Vestido apenas com uns calções de caqui e com o
cabelo aclarado pelo sol, parecia um vagabundo da praia bronzeado, mas
bastante magro.
– Senta-te antes de eu te dar o copo – disse Mrs. Cook num tom
reprovador quando ele se esticou para o tabuleiro. – Não queremos nada
entornado, nem mesmo no jardim.
Pousou o tabuleiro em cima da mesa do jardim. Donald sentou-se na
relva e estendeu as mãos, expectante. Rosie aproximou-se e juntou-se a
eles, sentando-se à mesa.
Há pouco vira-se refletida na janela da sala de jantar e sorrira ao perceber
que voltara a ser como era em May Cottage. O cabelo crescera bastante e
era de novo uma massa de caracóis, tinha mais sardas no nariz e as faces
estavam muito coradas. Até o vestido de algodão que usava para trabalhar
no jardim era velho e estava sujo de terra, e tinha os pés descalços.
Ficara muito surpreendida ao descobrir que os Cook não se importavam
com as aparências. Nos primeiros três ou quatro dias usara uma bonita saia
azul-marinha e uma blusa branca, mas eles tinham-lhe recordado em tom de
brincadeira que não era uma criada e que na Granja devia usar roupas
velhas, acima de tudo quando estava no jardim com Donald. Pareciam
gostar muito de vê-la suja, mas feliz.
– Conseguimos tanto em duas semanas – disse Mrs. Cook para Rosie com
um suspiro de satisfação. – E pensar que nos primeiros dias eu estava
desesperada...
Olhando para trás, Norah sentiu-se um pouco disparatada por esperar que
o filho se comportasse na perfeição desde o primeiro dia e por não ter
previsto os ajustes que ela e Frank teriam de fazer. Se Rosie não estivesse
ali, só Deus sabia como teriam aguentado.
Rosie baixou-se para fazer uma festa na cabeça de Donald.
– Queres contar à tua mãe a história que te li ontem à noite?
Recostou-se com um sorriso de satisfação enquanto Donald relatava o
conto «O gato que andava sozinho», de Histórias Assim, de Kipling. A sua
descrição foi um pouco confusa, mas quase não gaguejou. Ele adorava que
lhe lessem histórias e, agora que percebera o conceito da leitura, queria
muito aprender a ler. Escrever era muito mais difícil: tinham-lhe sido
negados lápis durante tanto tempo que parecia incapaz de controlar um, mas
talvez melhorasse com a prática.
No entanto, era no jardim que estava no seu elemento. Como Rosie,
parecia ter uma afinidade com a Natureza e um talento para cultivar coisas.
Embora fosse desastrado dentro de casa, conseguia pegar numa pequena
planta com a maior delicadeza e estar no exterior parecia esgotar a maior
parte do seu excesso de energia. Lembrava-se de todas as coisas que ela lhe
ensinara sobre flores em Carrington Hall e adorava usar o corta-relva e
cavar na horta.
Desde que o velho jardineiro dos Cook se reformara há um ano, Mr. Cook
esforçava-se para manter tudo em ordem, e estava encantado por Rosie e
Donald serem tão entusiastas. Para encorajá-los ainda mais trouxera para
casa os tabuleiros de plantas que Rosie estava agora a plantar. Em privado,
admitira a Rosie que estava convencido de que Donald precisava de
trabalho e não dos brandos mimos da mãe, e não se importaria nada se ela
quisesse passar o dia inteiro com ele no jardim.
Rosie queria estar no jardim; para ela era um paraíso, mesmo à chuva. À
noite estudava o livro de jardinagem que Thomas lhe oferecera e os muitos
outros livros que encontrava lá em casa. O seu conhecimento sobre plantas,
flores e árvores aumentava todos os dias.
Também gostava cada vez mais dos Cook. Maureen enganara-se quando
dissera que eram ricos. Viviam confortavelmente, a casa era encantadora e
possuíam um bom carro, mas não nadavam em dinheiro. A casa e o negócio
tinham sido herdados dos pais de Frank. O negócio era o fabrico de tratores
e outra maquinaria agrícola, mas só tivera grandes lucros durante a guerra,
com contratos governamentais especiais.
Norah era oriunda de uma família pobre de uma aldeia próxima e, embora
se tivesse mudado para a casa grande quando se casara com Frank, a vida
era difícil porque os pais dele eram idosos e doentes e tinha de cuidar deles.
Na verdade, o amigo que lhes emprestara o apartamento em Piccadilly era
um dos poucos amigos ricos que tinham; quase toda a gente sabia que eles
eram bastante simples e algumas das antigas colegas de escola de Norah
viviam em casas de campo não muito diferentes de May Cottage. Quanto a
Frank, sentia-se mais à vontade a beber uma cerveja no pub do que a
conviver com os muitos homens de carreira que viviam na aldeia.
Ambos tinham uma forte consciência social. Norah visitava
constantemente as pessoas idosas da aldeia e interessava-se de uma forma
ativa por um lar local para mães solteiras. Frank estava envolvido em
angariações de fundos para enviar equipamento agrícola para países pobres
e até há muito pouco tempo orientara um grupo de escuteiros.
Porém, de todas as coisas que gostava neles, o que Rosie mais admirava
era a franqueza. Nada era escondido. Não andavam a sussurrar pelos cantos,
e, se um deles estava zangado, dizia. Durante as refeições, falavam sobre
tudo e todos, desde mexericos locais até negócios, atualidades e família,
parando muitas vezes para lhe explicar um ou outro ponto para que ela
compreendesse a conversa. Nunca a faziam sentir-se embaraçada ou
excluída, e, mais importante ainda, sentia-se valorizada.
Norah dera-lhe o sábado como dia de folga porque Frank estava em casa
para ajudar com Donald. No sábado anterior, Rosie apanhara o comboio
para Tunbridge Wells para visitar a localidade, mas chovera o dia inteiro e
voltara para casa às três da tarde, parecendo, na opinião de Norah, que se
sentira muito solitária sem companhia. Esperava que Rosie conhecesse
algumas das raparigas da aldeia e fosse a alguns bailes ou festas. Podia
gostar muito de Donald, mas não era saudável passar o tempo todo com ele.
– A que horas chega o Gareth amanhã? – perguntou.
Rosie sorriu de orelha a orelha.
– O comboio dele chega às onze.
– O que é que vão fazer? – perguntou Norah. – Ou é segredo?
– Não sei – respondeu Rosie. Gareth escrevera-lhe cinco vezes desde que
viera para cá e fora difícil ele conseguir ter uma folga. – Acho que vamos
só andar por aí.
– Bem, trá-lo para jantar por volta das cinco – sugeriu a mulher mais
velha. – Gostava de voltar a vê-lo e tenho a certeza de que o Frank e o
Donald também. Agora, vou para dentro porque tenho dúzias de cartas para
escrever. Donald, veste a camisola durante algum tempo. Não quero que te
queimes e hoje o sol está muito quente.

Depois de a mãe voltar para dentro, Donald continuou a cortar a relva e


Rosie dedicou-se à plantação, mas agora estava a pensar em Gareth. As
últimas duas semanas tinham voado em muitos sentidos, mas parecia-lhe
que passara uma eternidade desde que se despedira dele à porta de
Carrington Hall.
Relembrava os seus beijos todas as noites quando estava deitada na cama,
e sentia calor e arrepios no corpo inteiro.
Aquelas sensações eram muito perturbadoras. Eram maravilhosas e
excitantes, como toda a gente dizia que era o amor, mas também a faziam
sentir-se envergonhada. Tentou dizer a si mesma que o que sentia por
Gareth não era nada parecido com o que vira Seth e Norman fazerem a
Heather, ou Saunders a Angela, mas uma vozinha dentro de si dizia-lhe que
estava relacionado e que todos os homens eram animais.
Porém, Mr. Cook era muito amoroso com a mulher. Era atencioso, eles
eram bondosos um com o outro, interessados e carinhosos. Um dia, Rosie
queria ter um casamento como aquele.
– Rosie!!
Rosie ficou sobressaltada ao ouvir Donald chamá-la pelo seu nome
verdadeiro. Levantou-se de um salto e corou. Fora difícil para ele deixar de
lhe chamar «Smith» e passar para Rosemary, que logo abreviara para Rose.
Ela sabia que acrescentar o «ie» era uma progressão natural, do mesmo
modo que por vezes lhe chamava «Donny», mas ainda se assustava.
Ele vinha na sua direção com a caixa da relva nas mãos.
– E-e-está cheia – gritou. – O pai disse que eu tinha de a p-p-pôr na
comodagem.
Apesar de estar tão abalada, Rosie teve de se rir com a palavra inventada,
se bem que parecida.
– É compostagem, não comodagem – disse. – Vem comigo. Vou mostrar-
te onde é.
A pilha de compostagem estava num canto ao lado da horta, vedada com
chapa ondulada. Deitaram as aparas de relva lá dentro e pararam para ver a
feijoca que tinham plantado no domingo à tarde, depois de Mr. Cook
montar a estrutura. Rosie ficou encantada ao constatar que as pequenas
plantas estavam a crescer bem e começavam a enrolar-se à volta dos paus.
Sempre cultivara feijões no Somerset, e talvez fosse aquela lembrança do
passado, juntamente com Donald a tratá-la de súbito pelo seu nome
verdadeiro, que ensombrou ligeiramente a sua segurança.
Alguns dias antes, Mrs. Cook tinha-lhe feito perguntas sobre a sua
infância e a morte dos pais. Não foram perguntas muito curiosas, apenas um
interesse simpático. Rosie conseguira responder com muita facilidade,
como fizera com as raparigas em Carrington Hall. No entanto, a sua história
tinha falhas, como o facto de ter três irmãos, de a irmã de Thomas ter sido a
sua segunda mãe e, é claro, o pai ser um assassino. Nesse momento, como
se para recordar-lhe os perigos de omitir grandes partes do passado, reparou
que um convólvulo crescia ao lado de um dos feijoeiros, ameaçando ocupar
o pau e sufocar o pé de feijão.
Arrancou-o e mexeu na terra com os dedos para se certificar de que
arrancara todas as raízes.
– Porque é que arrancaste essa? – perguntou Donald. Rosie mostrou-lhe a
diferença entre a erva daninha e o legume e explicou-lhe o que aconteceria
se a deixassem crescer.
Sentiu-se um pouco nauseada quando voltaram para o canteiro de flores
para terminar a plantação. O feijoeiro parecia representá-la, desenvolvendo-
se bem porque estava em bom solo, e com as condições certas cresceria e
transformar-se-ia numa planta forte e saudável, capaz de suportar uma ou
outra tempestade de verão. O convólvulo era como as mentiras e as meias
verdades que contava. Aparentemente já tinha desaparecido, mas era apenas
uma questão de tempo até surgir de novo, e da próxima vez podia não
reparar que estava a aparecer antes de a sufocar.
Seth e Norman estavam algures. Tanto quanto sabia, um dia podiam ir à
sua procura. Havia pessoas no Somerset que sabiam quem ela era. Miss
Barnes também sabia e, dissesse Miss Pemberton o que dissesse, poderia
contar a alguém.
Enquanto punha as plantas na terra, soube que devia contar a Mr. e Mrs.
Cook toda a verdade sobre si, e a Gareth também, quando ele viesse no dia
seguinte. No entanto, enquanto ensaiava o que diria, soube que essas
palavras nunca seriam ditas. Não conseguia suportar a ideia de que
pudessem rejeitá-la.

Enquanto Rosie adormecia nessa noite, a pensar nos beijos de Gareth,


teria ficado surpreendida se soubesse que Thomas estava a pensar na sua
boca e a tentar desenhá-la de memória.
O apartamento estava muito quente e abafado, as janelas estavam abertas
de par em par e ele estava sentado à mesa com um bloco de desenho,
vestindo apenas um par de calças velhas.
O retrato meio feito de Rosie era excelente, excetuando a boca.
Aperfeiçoara o cabelo, e a expressão descarada dos olhos, o queixo
desafiador e o narizinho direito estavam muito bem. No entanto, por muito
que se esforçasse, não conseguia desenhar os lábios.
Na última semana, conseguira convencer-se de que o seu afeto por Rosie
era apenas paternal. Ela perdera o pai, ele perdera a irmã, e não era preciso
saber muito sobre psicologia para perceber porque é que se tinham
aproximado. Afinal de contas, não sentira ciúmes quando ela lhe contara
numa carta o quanto gostava de Gareth. Também não andava triste por ela
estar tão longe nem a sonhar com o momento em que voltaria a vê-la.
Então, porque é que estava a desenhá-la?

Gareth estava a espreitar pela janela quando o comboio se aproximou e o


coração de Rosie disparou ao ver os seus caracóis castanhos e os braços a
acenar.
Estava mais um glorioso dia de sol, o calor tremeluzia nos carris e não se
via uma única nuvem no céu. O comboio entrou aos soluços na estação, a
libertar vapor quente e fumo, e Gareth saltou da carruagem com a
composição ainda em movimento.
Usava uma linda camisa branca de colarinho aberto com as mangas
arregaçadas, calças de flanela cinzentas, e trazia o casaco na mão. Rosie
pensou que devia ser o homem mais bonito de Inglaterra.
– Apeteceu-me subir para a locomotiva e trazê-la eu próprio – disse
enquanto a abraçava, indiferente aos olhares curiosos do guarda e do
revisor. – Nunca mais chegava.
– Chegou à hora – disse ela, sentindo-se um pouco embaraçada e insegura
agora que chegara o momento com que sonhara durante dias. – O que
queres fazer agora?
– Sair desta gare e encontrar um sítio sossegado onde possa beijar-te –
disse ele, passando o braço à volta da sua cintura e levando-a para fora da
estação como se fosse ele, e não ela, que conhecia o lugar. – Depois, não me
importava nada de tomar um chá.
Beijou-a pela primeira vez fora da estação, puxando-a para si debaixo de
uma árvore, e apertou-a com tanta força e durante tanto tempo que Rosie
mal conseguia respirar.
– Comprei-te um presente – disse ele, quando se afastou para respirar.
Levou a mão ao bolso da camisa e tirou um minúsculo embrulho de pano.
Rosie sorriu; já era suficiente vê-lo e não precisava de um presente. O seu
coração estava demasiado cheio para falar.
– Vá lá, abre-o – insistiu ele.
Era um minúsculo coração de prata num fio.
– Oh, Gareth – sussurrou Rosie enquanto o erguia. – Nunca tive uma joia
verdadeira antes e é linda.
– Não é tão linda como tu – disse ele, sorridente. – Deixa-me pô-lo. Isto
é, se os meus dedos desajeitados conseguirem abrir o fecho.
Rosie não parava de tocar no coração enquanto passeavam pela aldeia de
mãos dadas. Era uma espécie de confirmação de que tudo o que ele dissera
nas cartas era verdade, que tinham um futuro juntos. Sentia-se tão feliz que
teve de se conter para não parar todas as pessoas por quem passavam para
lhes mostrar o coração e dizer-lhes o que significava.
Mostrou-lhe as lojas, apontou para todas as suas casas preferidas e,
quando passaram pela Granja, disse-lhe que tinham sido convidados para
jantar. Como esperava, ele ficou bastante impressionado e quando estavam
sentados num salão de chá Rosie contou-lhe tudo o que acontecera desde a
sua chegada.
– Gostas mesmo disto, não gostas? – disse ele, erguendo uma sobrancelha
ao ouvir a extasiada descrição do interior da casa.
– É maravilhoso – respondeu ela, efusivamente. – Nunca fui tão feliz. No
princípio o Donald foi muito chato, mas por fim acalmou e os Cook são
muito simpáticos. – Percebeu que se tinha excedido com a litania de elogios
e corou. – Estou a ser maçadora, não estou?
– Não. – Ele sorriu. – Ainda bem que estás feliz. Claro que tinha alguma
esperança de que não estivesses, para poder convencer-te a voltar para
Londres. Mas estás tão linda, tão entusiasmada, que não tenho coragem de
estragar tudo.

O dia voou. Compraram duas empadas de carne e uma garrafa de


limonada e caminharam pelos campos na direção de Heathfield, parando no
cimo de uma colina para contemplar a paisagem, comer as coisas que
tinham comprado e conversar.
Gareth também estava entusiasmado porque andara toda a semana como
fogueiro num comboio de passageiros. Falou sobre a locomotiva com tanto
carinho que podia estar a referir-se a outra mulher, e o entusiasmo com que
descreveu todas as estações onde tinham parado fez com que parecesse o
relato de um encontro escaldante. Explicou-lhe que tinha sido apenas para
substituir um colega que estava de férias, mas que o chefe dissera que ia
recomendá-lo para um cargo permanente em breve.
Rosie não estava muito interessada em locomotivas e estações, mas,
lembrando-se de como ele fora paciente enquanto ela falava sem parar
sobre a Granja e os Cook, fingiu que estava fascinada.
– Podes ir a Londres daqui a duas semanas para conhecer os meus pais? –
perguntou ele depois de lhe contar tudo sobre o seu trabalho.
Rosie acenou com a cabeça, encantada por ele estar a levá-la tão a sério.
– Vou trabalhar no primeiro turno – disse. – Mas posso sair ao meio-dia,
vou buscar-te a Victoria e levo-te logo para lá. Eles querem muito conhecer-
te. Acho que a minha mãe sabe que tu és uma pessoa especial. Se
conseguisses ter o domingo de folga, podias passar o fim de semana todo
porque também não trabalho nesse domingo.
Encontraram um pequeno ribeiro e enfiaram os pés na água, e depois
ficaram abraçados, a beijar-se, mas a hora do jantar na Granja chegou
depressa de mais.

– Ele é um rapaz encantador – disse Mrs. Cook enquanto ela e Rosie


arrumavam a cozinha. Viam Gareth no jardim a regar as plantas com
Donald. – Tem muito boas maneiras e é bondoso. Na minha opinião, são
duas das coisas mais importantes num homem. No entanto, quando
conheceres a mãe dele tens de a observar bem... eu acredito que as mães
formam o carácter dos filhos. Se vires alguma coisa de que não gostas na
mãe, é tão certo como dois e dois serem quatro que ele vai ter as mesmas
características.
Rosie riu-se. Mrs. Cook tinha muitas teorias simples sobre as pessoas.
Embora no essencial fosse uma mulher muito boa, muitas vezes rejeitava
pessoas porque os seus olhos estavam muito juntos, os lábios eram
demasiado finos ou as sobrancelhas estavam unidas. Dizia que, nos homens,
era um sinal de que tinham nascido para ser enforcados. No entanto, as
sobrancelhas de Cole não se tocavam, por isso a sua teoria não tinha
fundamento.
– Podes rir-te – disse Mrs. Cook, indignada. – A mãe do Frank era uma
acumuladora. Guardava tudo, desde pedaços de cordel até envelopes
velhos. Quando ela era viva, esta casa estava cheia como um ovo de coisas
inúteis. O Frank dizia que odiava aquilo. Mas o que é que começou a fazer
quando a mãe morreu e eu deitei tudo fora?
Rosie sorriu.
– Isso não é muito mau. Há coisas piores.
– É bem verdade, Rosemary. – O rosto de Mrs. Cook ficou pensativo. –
Está atenta à mesquinhez e ao mau feitio. São essas coisas que podem
destruir um casamento. Mas estou a precipitar-me. Ainda só saíste duas
vezes com o rapaz. Vai ter com ele ao jardim. Podes dizer-lhe que tens o
fim de semana todo com ele. Quanto mais depressa conheceres a mãe dele,
mais depressa saberás se é o homem ideal para ti!

O comboio de Gareth partia às oito horas e saíram da Granja às sete e um


quarto para irem devagar até à estação. Gareth abraçou-a e estava sempre a
parar para beijá-la durante o caminho.
– Não sei como vou conseguir sobreviver a mais duas semanas sem te ver
– disse, pesaroso, e os olhos azuis espelhavam a tristeza da voz. – Nem
sequer tenho uma fotografia tua para ver. Diz-me, Rosie, gostas de mim?
Como quando Donald lhe chamara Rosie, sobressaltou-se. Há pouco,
quando estavam a regar as plantas no jardim, Donald dissera o seu nome
outra vez; Gareth devia ter ficado com ele na cabeça.
Respirou fundo.
– Claro que gosto. Quem me dera que estivéssemos perto para podermos
ver-nos a toda a hora... – Calou-se, querendo dizer muito mais, mas sem
conseguir encontrar as palavras certas.
– Mas estou a ir depressa de mais para ti? – perguntou ele.
Não era isso que Rosie queria dizer. O que queria era o momento certo
para lhe falar sobre si, para lhe contar toda a verdade antes que as coisas
ficassem mais sérias.
– Mais ou menos – foi tudo o que conseguiu dizer.
– Bem, então é melhor abrandar – disse ele, a sorrir timidamente. – A
minha mãe diz que eu sou impulsivo de mais.
– Teremos mais tempo quando eu for a Londres – disse Rosie, e esticou-
se para lhe acariciar o rosto com uma mão. – Agora é melhor acelerarmos o
passo, senão vais perder o comboio.

Nessa noite, Rosie não conseguiu dormir. Estava com muito calor e a
janela estava aberta de par em par, mas não havia vento suficiente para
abanar as cortinas. A sua cama parecia uma enorme botija de água quente e
só estava tapada com um lençol. Sentia um formigueiro nos seios e sempre
que pensava nos beijos de Gareth era como se tivesse uma corda dentro de
si e alguém estivesse a puxá-la. Agora, queria tudo. Ter a certeza absoluta
de que o que sentia por Gareth era amor, estar convencida de que ele a
amava verdadeiramente. Queria acelerar as coisas, descobrir o que era fazer
amor.
Porém, no fundo sabia que, enquanto não conseguisse confiar nele ao
ponto de lhe contar os seus segredos, não se atreveria a ir mais longe.
CAPÍTULO 13

R osie estava sentada muito direita numa poltrona, com as mãos no colo,
a sorrir com nervosismo para Mrs. Jones, que estava sentada à sua
frente. Desejou que Gareth se despachasse e voltasse para a sala. A mãe
dele observava-a em silêncio, com uma expressão concentrada, e aquele
olhar deixava-a extremamente tensa.
– Suponho que devíamos estar contentes pela chuva – disse, tentando
começar uma conversa enquanto olhava por cima do ombro para a janela
salpicada de chuva atrás de si. – Os jardins precisam. O relvado da Granja
estava a ficar bastante castanho.
O dia estava soalheiro quando saíra de Mayfield nessa manhã e achara
que estava muito elegante com o novo vestido camiseiro azul-claro,
sandálias de salto alto e luvas de algodão brancas. No entanto, tinha
começado a chuviscar pouco antes de chegar a Londres e quando saiu do
comboio chovia a cântaros. Felizmente, tinha a gabardina dobrada na mala
de fim de semana, mas arrependeu-se de não ter trazido um casaco de
malha e uns sapatos.
Gareth tinha ido buscá-la à estação de Victoria, mas estava de mota, por
isso quando chegaram à casa dos pais dele em Mill Hill a gabardina e as
sandálias estavam encharcadas e tinha o cabelo a escorrer. Não era a
aparência ideal para impressionar a mãe dele.
Rosie imaginara que Mrs. Jones era uma mulher grande e alegre, mas na
verdade era pequena e magra, com o cabelo grisalho puxado para trás.
Apesar do penteado austero era muito atraente, com uma boa estrutura
óssea e um rosto sem rugas. Tinha o mesmo tom de pele morena do filho e
os seus olhos azuis brilhantes, mas não sorria e ostentava uma expressão
muito desaprovadora, censurando as roupas molhadas antes mesmo de os
cumprimentar.
– Imaginem só o Gareth ir buscá-la de mota com este tempo – declarou
com um melodioso sotaque galês onde se sentia um toque ácido. – E a
menina devia ter sido sensata e não se sentar nela.
Rosie ficou tão chocada com aquela receção gélida que não disse nada e
aceitou a toalha para secar o cabelo e um par de chinelos com gratidão.
Gareth foi ao andar de cima mudar de roupa e Mrs. Jones levou-a para a
sala.
Ainda que a mãe dele não fosse como esperava, a sua casa suburbana
geminada era. Estava tudo impecável. As almofadas vermelhas estavam
dispostas numa fila direita no sofá cinzento, um anteparo bordado com uma
senhora com uma crinolina escondia a lareira vazia e um conjunto de
acessórios de latão muito brilhantes erguiam-se no seu suporte como um
cavaleiro andante ao lado dela. A poltrona de Mr. Jones tinha uma pequena
mesa ao lado com o cachimbo, torcidas e fósforos muito bem arrumados
diante do rádio.
Como sabia tantas coisas sobre a vida anterior dos Jones, Rosie percebeu
bem porque é que uma mulher como ela teria uma preocupação tão grande
com a limpeza e arrumação da casa. As cortinas brancas como neve nas
janelas e o cheiro forte a cera com lavanda revelavam uma mulher que sabia
o que era esforçar-se para criar dois rapazes pequenos e manter tudo limpo
com um depósito de carvão à porta da cozinha. Também compreendia como
devia ter sido maravilhoso mudar-se para uma casa nova depois da guerra e
a forma como Mrs. Jones a mantinha refletia o orgulho que sentia do
marido por ter progredido na vida e ter-lhes proporcionado uma boa vida.
Como Mrs. Jones não fez nenhum comentário sobre a chuva ou o jardim,
Rosie tentou outro caminho.
– Tem uma casa encantadora – disse. – Muito bonita e luminosa. Apanha
sol o dia inteiro?
Estavam numa sala muito moderna com o formato de um L, com uma
pequena abertura da zona de refeições para a cozinha. Rosie perguntou-se
porque é que teriam escolhido vermelho e cinzento como paleta de cores;
parecia-lhe um pouco triste.
– Sim, apanha sol o dia inteiro. Mas é uma maçada porque desbota os
cortinados e a carpete – retorquiu Mrs. Jones com rispidez.
Rosie gostava de salas soalheiras e estava convencida de que não se
preocuparia se as coisas perdessem a cor. Também perguntou a si mesma
como é que uma mulher tão atraente, com tantas coisas – esta casa, dois
bons filhos e um marido extremoso –, podia ser tão desagradável.
– Espero que não chova durante todo o fim de semana – disse Rosie. – O
Gareth vai mostrar-me um pouco mais de Londres na sua mota.
Ao ouvir isto, Mrs. Jones apertou os lábios.
– Gostava que ele comprasse um carrinho. Estou sempre preocupada com
ele quando sai naquela mota. O nosso Owen tem um bonito Ford Prefect.
– Vá lá, diga, mãe! – declarou Gareth da porta. – Mas o nosso Owen não
esbanja o dinheiro todo a sair com raparigas.
– Oh, Gareth – arquejou Mrs. Jones, tapando a boca com as mãos como
se estivesse profundamente chocada. – Eu nunca disse uma coisa dessas!
Gareth limitou-se a sorrir. Rosie calculou que era uma coisa que a mãe
dizia vezes sem conta, e ele queria embaraçá-la.
– Afinal, o que é que temos para o almoço, mãe? – perguntou.
– A refeição habitual de sábado – respondeu ela, e levantou-se do seu
assento. Pela forma como o rosto de Gareth esmoreceu, Rosie calculou que
tinha ficado desapontado e depressa perceberia porquê.
O almoço era ovos cozidos e pão com manteiga.
Rosie não tinha fome, pois Mrs. Cook dera-lhe um pacote com
sanduíches para comer no comboio, por isso não se importou de comer ovos
cozidos. No entanto, o que a magoou foi que ela estava a deixar bem claro
que não considerava a nova namorada do filho importante o suficiente para
fazer um pequeno esforço.
– De que é que o seu pai morreu? – perguntou logo que se sentaram para
comer. Mr. Jones e Owen ainda estavam a trabalhar. Aparentemente, aos
sábados só chegavam a casa por volta das cinco da tarde.
– Teve um ataque cardíaco – respondeu Rosie, a descascar a parte de
cima do seu ovo.
– E a sua mãe?
– Teve uma infeção depois de perder um bebé. – Era uma coisa que Miss
Pemberton sugerira.
– O Gareth disse-me que só tinha seis anos quando ela faleceu. Quem
tomou conta de si?
Rosie sentiu-se um pouco melhor por Mrs. Jones querer saber tudo sobre
ela. Esperava que os seus modos bruscos fossem apenas timidez.
– O meu pai e a minha tia – respondeu. – Quando o meu pai morreu, ela
arranjou-me o emprego em Carrington Hall.
– Não lhe fez nenhum favor!
– Mãe! – censurou-a Gareth. – Não seja tão dura.
– Oh, eu não estava a falar num mau sentido – replicou Mrs. Jones.
Inclinou a cabeça e Rosie pensou que parecia um passarinho. – Só não
consigo imaginar-me a mandar alguém da minha família trabalhar num
manicómio. E agora está a cuidar do rapaz que conheceu lá. Não deve ser
fácil.
Aquilo parecia mais censura do que admiração, e Rosie sentiu-se
extremamente incomodada.
– O Donald é como um menino grande, Mrs. Jones. Eu gosto muito de
cuidar dele e os pais são as pessoas mais simpáticas que já conheci. –
Calou-se, à procura de alguma coisa para acrescentar que pudesse valer-lhe
alguma aprovação. – Eu só fui trabalhar para Carrington Hall porque pensei
que seria uma boa experiência antes de começar o treino de enfermagem.
– Ora vejam só – disse Mrs. Jones, apertando os lábios. – E onde é que
vai fazer isso?
– Ainda não sei bem, porque só posso candidatar-me no próximo ano.
Mas gostava que fosse num hospital de Londres.
Fez-se silêncio, e Rosie desconfiou que a mulher não gostava de
enfermagem por algum motivo.
– É evidente que posso mudar de ideias antes disso – disse, a tentar
descobrir em que é que ela estaria a pensar. – Também adoro jardinagem.
Talvez seja jardineira.
– Jardineira? – exclamou Gareth. – Estás a brincar, não estás, Rosie? As
raparigas não podem fazer isso!
Embora gostasse de jardinagem acima de tudo, nunca lhe ocorrera
considerá-la uma possível carreira. Para além de uma ou duas senhoras
finas como Gertrude Jekyll, que se tinham tornado famosas graças a isso,
pensava que não havia nenhuma mulher que se dedicasse à jardinagem a
nível profissional. Porém, ao ver a boca de Mrs. Jones abrir-se de choque,
por algum motivo perverso não conseguiu resistir a continuar.
– Porque não? Fizeram-no durante a guerra. É uma ideia antiquada pensar
que só os homens podem cavar e podar arbustos. Quanto a plantar e
mondar, normalmente já são as mulheres que se encarregam disso. E
também estou convencida de que as mulheres criariam jardins muito mais
bonitos do que os homens. Para começar, têm mais imaginação.
– Ora. – Mrs. Jones cruzou os braços no peito e apertou os lábios. –
Nunca ouvi uma coisa assim em toda a minha vida.
*

Mais tarde parou de chover e Rosie e Gareth foram dar um passeio a pé


pelas lojas de Mill Hill.
– Desculpa por a minha mãe ter sido um bocado esquisita contigo – disse
ele com um ar envergonhado. – Não percebo porquê. Mas por que raio é
que disseste aquilo sobre seres jardineira? Agora ela vai pensar que és
mesmo estranha.
Rosie parou de repente e fitou-o. Estava profundamente magoada com a
atitude da mãe dele; não tinha sido nada simpática, nem mesmo enquanto
arrumavam a cozinha. Também estava indignada por Gareth não a ter
avisado antes sobre ela e não pretendia bajular nenhum deles.
– Eu sou um bocado estranha – declarou, provocadora. – Escuta! Eu não
sou a rapariga delicada que pareces pensar que sou, Gareth. Tive uma
infância difícil e fui obrigada a desenrascar-me sozinha. Mas se há uma
coisa que aprendi com isso, e com as coisas que aconteceram depois, é que
tenho de aproveitar ao máximo os talentos com que nasci. Tenho jeito para
jardinagem e adoro. Por isso, porque não fazer disso uma carreira, se
quiser?
Alguns dias antes, Mr. Cook dissera que talvez oferecesse os serviços de
Rosie e Donald como jardineiros na aldeia. Rosie encarara aquela
declaração com o espírito que se pretendia, uma brincadeira, e nada mais,
mas agora, perante tanta oposição, decidiu que era exatamente o que queria.
– Nunca ouvi falar em alguém que fizesse carreira na jardinagem – troçou
Gareth. – É só um trabalho que dão a pessoas sem inteligência, como
acontece com os varredores de rua.
Rosie ficou ofendida.
– Olha lá, senhor sabichão Jones – disse com brusquidão. – Eu quero
fazer alguma coisa da minha vida. Quer seja em enfermagem, jardinagem
ou uma coisa completamente diferente, quem decide sou eu, por muito
estranho que tu e a tua mãe achem que é. Não quero trabalhar atrás de um
balcão na Woolworth’s e casar com uma pessoa que espera que eu esteja às
suas ordens para o resto da vida. E quero mais do que limpar vidros,
arrumar almofadas e polir latão para ser feliz.
– Estás a atacar a minha mãe – retorquiu ele, com a boca a apertar-se.
– Talvez – disse Rosie com um suspiro, um pouco envergonhada. – Mas
ela não foi muito simpática comigo, pois não?
– Acho que está com alguns ciúmes. Ela e eu fomos sempre muito
próximos – disse. – O Owen é mais ligado ao nosso pai. Eu é que falo com
ela, que lhe dou alguma atenção. Acho que percebeu que me apaixonei por
ti.
Embora o seu coração batesse com mais força ao ouvir que a amava, o
momento foi completamente estragado por ouvir aquilo associado a uma
explicação sobre a sua relação com a mãe. Os seus sentimentos já estavam
feridos, e agora sentiu-se enganada.
– Acho que é melhor ir para casa esta noite – disse. – A tua mãe não gosta
de mim e não quero estar num sítio onde não sou bem-vinda.
– Não, Rosie, por favor não faças isso – implorou-lhe Gareth, agarrando-a
e tentando abraçá-la no meio da rua. – Escuta, esta noite saímos para ir a
algum lado e amanhã, se não estiver a chover, vamos passear para o campo
de mota.
Quando voltaram para o jantar, Rosie esquecera a ameaça de voltar para
casa. Depois da pequena discussão, Gareth fizera-a rir e tinha sido
agradável ver montras, passear de mãos dadas e beber um batido numa
gelataria com bancos altos, como via nos filmes americanos. Era
empolgante estar de novo em Londres, com muita gente a fazer as compras
de sábado. Em Mayfield, uma multidão nunca tinha mais do que seis
pessoas. E o melhor de tudo foi estar outra vez com Gareth, a conversar
sobre tudo o que tinham feito durante as duas semanas em que não se viram
e a rir juntos quando lhe contou todas as parvoíces que Donald dissera e
fizera.
Porém, quando entraram, Mrs. Jones estava de gatas a esfregar o chão de
tacos da entrada.
– O seu casaco a pingar tirou a cera do meu chão – disse, levantando a
cabeça para olhar para Rosie com uma expressão acusadora.
De repente, Rosie sentiu-se enregelada até aos ossos.
– Lamento muito – disse num tom gélido. – Mas o Gareth não me avisou
que aqui as pessoas descalçavam os sapatos e despiam os casacos no
jardim.
Gareth pareceu alarmado ao ouvir aquele comentário sarcástico.
– Bem, tu és uma rapariguinha com pelo na venta – disse Mrs. Jones,
levantando-se, com os lábios finos apertados numa linha reta. – No instante
em que te pus a vista em cima percebi que tinhas crescido sem respeito por
nada nem por ninguém.
Rosie ficou tão embasbacada com aquela declaração injustificada que
durante alguns instantes só conseguiu olhar para a mulher com uma
expressão chocada.
– Acho que é melhor ir para casa, Mrs. Jones – disse, passados um ou
dois segundos. – Vejo que não sou bem-vinda e foi um erro ter vindo. Se
fizeres o favor de ir buscar a minha mala, Gareth, não preciso de voltar a
pisar o chão limpo da tua mãe.
– Essa agora – retorquiu Mrs. Jones, cruzando os braços e apertando os
lábios. – Estás acostumada a melhor do que isto, é?
Rosie olhou para Gareth à espera de que ele dissesse alguma coisa para
travar a maldade da mãe, mas ele só conseguiu ficar parado a olhar com
uma expressão estupidificada e ela sentiu uma onda de raiva crescer dentro
de si.
– Não, na verdade não estou – respondeu com brusquidão. – A casa onde
cresci devia ser muito parecida com a que vocês tinham em Kentish Town,
não muito melhor do que uma barraca. A verdade é que nunca tinha visto
um chão encerado antes de trabalhar em Carrington Hall. Mas na minha
terra é o calor das boas-vindas que damos aos nossos convidados que conta,
não se a nossa casa é chique.
As sobrancelhas finas de Mrs. Jones subiram como flechas.
– Por favor vai buscar a minha mala, Gareth – pediu Rosie. – Eu vou-me
embora.
Quando Gareth desapareceu obedientemente nas escadas sem uma
palavra, Rosie soube que ele devia ter percebido que um fim de semana
inteiro naquela casa estava fora de questão. Mrs. Jones ajoelhou-se de novo
e continuou a esfregar o chão, embora não fosse visível nenhuma marca de
água. Rosie esperou, de nariz no ar.
Gareth desceu as escadas passados alguns segundos, com a mala na mão.
Rosie abriu a porta da frente.
– Obrigada pelo almoço, Mrs. Jones. Lamento ter-lhe dado tanto trabalho
– disse. Estendeu a mão para que Gareth lhe desse a mala.
– Eu vou contigo – disse ele e, sem se voltar para olhar para a mãe,
seguiu Rosie para a rua.
– Não precisas de vir – disse Rosie com brusquidão depois de ele fechar a
porta, tentando tirar-lhe a mala da mão. – Eu sei voltar para a estação.
Gareth não lhe deu a mala, por isso saiu pelo portão sem ela e ele seguiu-
a.
– Desculpa, Rosie – disse, pegando-lhe na mão quando estavam na rua. –
Ela não consegue evitar ser assim, são os nervos. Tem dias maus e este é só
um deles.
Rosie começou a chorar enquanto se dirigiam em silêncio para a paragem
do autocarro. Sonhava com este fim de semana há tanto tempo e tinha
corrido tudo mal.
– Não chores – disse Gareth. – Eu falo com a minha mãe quando chegar a
casa esta noite. Prometo que ela nunca mais vai ser assim contigo.
– Não vai voltar a ter a oportunidade – disse Rosie. – Eu não voltaria lá
nem que me pagasses. Ela foi odiosa, Gareth.
Ele puxou-a para a porta de uma loja e abraçou-a com força até ela parar
de chorar.
– Estava a falar a sério há bocado – sussurrou. – Eu amo-te, Rosie. Se
tivesse de escolher entre ti e a minha mãe, escolhia-te a ti.
Rosie sentiu-se demasiado infeliz para lhe perguntar porque é que não a
tinha defendido. Só conseguia pensar que os seus sonhos felizes tinham ido
por água abaixo e que gastar duas libras num vestido novo e no bilhete do
comboio tinham sido um grande desperdício de dinheiro. Mas Gareth
continuou a acariciá-la, a sussurrar-lhe palavras de amor ao ouvido, até a
raiva e a dor começarem a desaparecer.
– Vai só no último comboio – implorou-lhe enquanto iam para a paragem
do autocarro. – É só às nove, por isso podemos ir um pouco ao West End e
dar um passeio por lá.
A parte de cima do autocarro estava quase vazia. Sentaram-se no banco
de trás e, enquanto seguiam lentamente pelas movimentadas ruas para o
West End, Gareth tentou explicar-lhe como era a mãe.
– Ela odeia Londres – disse. – Quando o meu pai nos trouxe para cá ela
teve de deixar a família... tinha cinco irmãs e três irmãos, todos na mesma
aldeia, e havia todos os filhos deles e também os pais. Não estava muito
mal quando o Owen e eu éramos pequenos, porque tinha muito que fazer
para nos manter limpos; podes imaginar o que era viver num depósito de
carvão. E durante a guerra as pessoas também eram mais simpáticas, os
vizinhos entravam e saíam, e ajudavam-se uns aos outros. Mas quando o
meu pai comprou aquela casa e o Owen foi para a tropa, e depois eu, ela
ficou sozinha. O meu pai não ajuda muito e fica longe dela quando tem
aqueles repentes esquisitos. Sabes, ele está convencido de que ela devia ser
feliz só por ter uma boa casa.
– Mas, se se sente sozinha, porque é que não gosta de ver pessoas novas?
– Rosie pensou que Mrs. Jones era uma boa candidata para um manicómio.
Concordava plenamente com o pai dele: não percebia como é que alguém
podia ser infeliz se tinha comida suficiente na mesa e uma casa e um jardim
lindos. Pensou que a mulher devia estar agradecida por ter tanto.
– Se eu soubesse a resposta para isso, talvez conseguisse curá-la –
suspirou Gareth. – Pensei mesmo que ela ia gostar de ti. Desculpa, Rosie.
Não era a primeira vez que Rosie era maltratada. Quando era criança, a
maioria das pessoas evitava falar com ela por causa do pai e dos irmãos;
Mrs. Bentley não gostava dela, e a enfermeira supervisora também não.
Pensou que Mrs. Jones era tão má como as outras duas mulheres e não
perderia um minuto de sono se nunca mais voltasse a vê-la. Mas não queria
perder Gareth.
– Eu também lamento ter sido mal-educada com ela. – Rosie encostou a
cabeça no ombro dele, cansada. – Mas ela fez-me ficar muito zangada.
– Vamos esquecer o que aconteceu – disse Gareth. – Ela pode ser minha
mãe, mas tu és a minha namorada e tu é que és verdadeiramente importante
para mim.
O West End parecia muito diferente de como estava na passagem de ano,
quando viera com Linda e Mary. Ainda havia grandes multidões, mas
durante o dia, sem as luzes de néon, não era tão mágico. Reconheceu o pub
onde tinham estado naquela noite e ficou surpreendida ao ver que se
chamava White Bear, o mesmo pub onde Heather dissera que tinha ido
tomar um copo com Cole na noite em que ele lhe pedira para ser sua
governanta.
Andaram a ver montras em Regent Street e depois voltaram para
Piccadilly e sentaram-se à janela de um café a comer ovos com batatas
fritas e a ver as pessoas passar. Havia uma atmosfera diferente na zona
agora que as pessoas que andavam às compras e os empregados dos
escritórios tinham ido para casa. A cada poucos minutos uma multidão
subia as escadas do metropolitano: grupos de raparigas com vestidos de
festa de alças e estolas à volta dos ombros, com o rosto cuidadosamente
maquilhado e o cabelo impecável, dirigiam-se para o Empire em Leicester
Square; rapazes com bonitos fatos de passeio, com cabelo penteado com
gel, estavam parados na esquina a fumar e a observar as raparigas. Havia
casais a passear de mãos dadas, como ela e Gareth, e táxis contornavam a
estátua de Eros a grande velocidade, permitindo apenas um vislumbre de
casais mais elegantes e mais velhos a caminho dos teatros.
– Gostava que estivesse escuro para poder ver novamente as luzes – disse
Rosie com nostalgia, e contou-lhe sobre aquela noite com as raparigas no
West End.
– Trago-te cá outra vez quando as luzes estiverem acesas – disse ele. – Há
todos os tipos de pessoas, não apenas as que vemos agora e que vão a
bailes, mas atores e atrizes, bandidos e senhoras da noite.
– A sério? Como é que sabes?
– O Owen e eu costumávamos vir para cá muitas vezes depois da guerra.
Eu só tinha catorze anos e ele tinha dezasseis. – Esboçou um sorriso
travesso. – O Owen sempre quis arranjar uma rapariga, mas nunca teve
coragem para abordar uma. Costumávamos espiá-las e segui-las até
engatarem um homem. Depois, uma noite, quando tinha uns dezassete anos,
ele ofereceu dois xelins a uma rapariga. Sabes o que ela disse?
Rosie abanou a cabeça.
– Diz-me.
– Ela disse: «Por dois xelins só consegues uma das velhas feias de
Berwick Street. Mas um rapaz bonito como tu devia conseguir arranjar de
graça.» O Owen ficou tão envergonhado que nunca mais quis voltar aqui.
– Tu pagarias a alguém para isso? – perguntou Rosie. Gostava muito de
ver uma dessas raparigas; aquele pensamento deixou-a estranhamente
excitada.
– Nunca – disse ele, parecendo chocado por ela sentir necessidade de
perguntar. – Quando estive no exército alguns dos outros rapazes pagavam,
mas eu não. O sexo não é nada a não ser que se ame alguém.
Rosie sorriu. Queria perguntar-lhe se amara alguém o suficiente para
experimentar, mas não perguntou. Não queria saber sobre outras raparigas
na sua vida.
O tempo passou muito depressa e de repente eram oito e meia. Correram
para a estação do metropolitano, mas o comboio só chegou passados dez
minutos. Tiveram de mudar no Embankment e ficaram horrorizados quando
o comboio parou no túnel entre Westminster e St James’s Park. Os minutos
passavam.
– Vou perder o comboio – disse Rosie, alarmada. – O que é que vou
fazer?
– Vai correr tudo bem – insistiu Gareth. – São só dois minutos para subir
até à estação central. Podemos correr.
Correram, como o vento, subindo as escadas duas a duas, e atravessaram
a estação para a gare número três, mas as portas estavam a fechar e o
guarda agitava a bandeira.
Gareth implorou ao homem que deixasse Rosie entrar na gare, mas ele
recusou e ambos ficaram a ver o comboio sair da estação sem poderem
fazer nada. Rosie começou a chorar.
– Não faz mal, voltamos para casa da minha mãe – disse Gareth, e
abraçou-a.
– Preferia passar a noite aqui na estação do que em casa da tua mãe –
replicou ela a chorar, e estava a falar a sério. Confiara em Gareth para ter
um bom fim de semana e sentia que ele era responsável por tudo o que
correra mal. – Este dia foi um desastre.
Gareth abraçou-a durante alguns instantes.
– Podes vir para o meu quarto – acabou por sugerir. – Não é muito
agradável, mas é melhor do que tentar dormir num banco.
– E a tua senhoria? – perguntou ela, a fungar. Nas cartas, Gareth dizia que
ela era um dragão.
– Aos sábados à noite ela vai sempre para o pub – disse ele. – Eu posso
meter-te no meu quarto sem problemas e ela vai estar demasiado bêbeda
quando chegar a casa para se preocupar comigo. E aos domingos nunca se
levanta antes das onze. Podíamos sair à socapa antes de ela acordar.
– Mas onde é que eu dormiria? – perguntou Rosie, nervosa.
– Na minha cama, é claro. Eu posso dormir no chão.
– Mas...
Gareth pousou um dedo nos seus lábios. Estava sorridente e os seus olhos
cintilavam.
– Vou ser um cavalheiro, prometo.
– Tens a certeza? – perguntou ela.
– Juro por Deus – disse ele, cruzando os dedos sobre a boca. – Já te disse
que te amo, Rosie. Quero-te para sempre, não apenas para uma noite.
Aquelas palavras ecoaram nos seus ouvidos enquanto apanhavam o
comboio para Clapham Junction. Até o som das rodas do comboio parecia
repeti-las vezes sem conta. Estava a anoitecer, o céu tinha uma brilhante
tonalidade avermelhada e, com o braço de Gareth à sua volta, sentiu-se
segura.

Paige Street, em Clapham, era tão sombria como Gareth dissera. Era pior
ainda do que um bairro de lata em Bristol aonde fora parar um dia por
engano. Nem o glorioso pôr do sol e o anoitecer conseguiam esconder a
aura de pobreza que escapava de todas as portas abertas na fila de casas
enegrecidas pela fuligem. Aqui não havia jardins à frente das casas, não
havia árvores nem flores. Bebés choravam, cheiros de esgotos e batatas
fritas enchiam o ar e as poucas crianças que jogavam à bola na rua pareciam
magras e pálidas.
– Em Kentish Town era assim – disse Gareth, dando-lhe a mão como se
pensasse que ela poderia virar-se e fugir a todo o momento. – Quando vim
para cá, detestava isto, mas os seres humanos acostumam-se a tudo. Pelo
menos as pessoas são simpáticas... é mais do que se pode dizer dos vizinhos
em Mill Hill.
Rosie percebeu que ele estava muito envergonhado. Estava convencido
de que ela nunca vira pobreza ou sujidade antes. Porém, não disse nada; não
era o momento certo para tentar descrever como crescera.
O número 41 ficava quase no fundo da rua e não era pior nem melhor do
que as outras casas. Gareth abriu a porta principal com uma chave, parou na
entrada estreita para escutar e depois fez-lhe sinal para entrar.
A casa inteira estava em silêncio e cheirava a cebolas fritas. Talvez fosse
bom Gareth não acender nenhuma luz. O corrimão era arenoso ao toque e
as escadas estavam cobertas com oleado ou linóleo.
O quarto de Gareth ficava no andar de cima, nas traseiras do terceiro
andar. Rosie preparara-se para uma grande sordidez, por isso ficou bastante
admirada quando ele acendeu a luz. Era um quarto muito pequeno, mas
estava limpo e arrumado. Uma cama de solteiro coberta com uma colcha
azul-clara, uma cómoda e uma poltrona. A janela estava aberta, havia um
tapete no chão e até as cortinas às riscas azuis e brancas estavam decentes e
pareciam ter sido engomadas.
– É um quarto bonito – disse ela com alguma surpresa, olhando para as
camisas bem engomadas penduradas num pequeno varão preso na parede.
Calculou que a mãe ainda lhe lavava a roupa. – Tinha imaginado uma coisa
muito pior.
Ele pareceu siderado com a sua aprovação.
– A minha mãe achou que era horrível quando veio cá uma vez. Tivemos
uma discussão por causa disso.
– É limpo e confortável – disse Rosie, sentando-se na cama para
experimentar. – Que mais é que ela pode querer?
– Que eu viva lá em casa – declarou Gareth, sorridente. – Mrs. Kent
cometeu o erro de lhe dizer que gostava de beber um copo. Foi isso que
estragou tudo. Ela pensou que eu ia ser levado por maus caminhos.
Rosie ajoelhou-se na cama e espreitou pela janela enquanto Gareth foi à
cozinha preparar uma chávena de chá para ambos. A escuridão caíra por
fim e escondera a fealdade. Aquela casa era mais alta do que a que estava
atrás, por isso Rosie tinha uma vista panorâmica de milhares de luzes.
Depois de Mayfield, aquele lugar era muito ruidoso: música vinda de várias
direções diferentes, pessoas a gritar e a rir e sons de portas de comboios a
bater e guardas a gritar na estação onde Gareth trabalhava.
Lembrou-se de que em Carrington Hall lhe tinha parecido muito
importante tornar-se uma verdadeira londrina. Não lamentava ter ido para
Mayfield, adorava viver lá, mas uma pequena parte de si ainda ansiava por
alargar a sua experiência, satisfazer a curiosidade e explorar todas as zonas
da cidade.
Linda falava muitas vezes sobre o East End. Por vezes era como se fosse
uma grande festa onde toda a gente se conhecia; outras vezes falava
sombriamente sobre a imundície nos bairros de lata, o excesso de pessoas e
o fedor das docas. Enquanto contemplava todas as luzes, percebeu que esta
zona, o East End de Linda, e o West End eram a verdadeira Londres, e se
alguma vez quisesse aspirar a descobrir o que fazia a cidade vibrar teria de
as observar e observar as pessoas simples que ali viviam. Lugares como
Hampstead, St John’s Wood e Highgate não eram o coração da cidade.
Nessa tarde, Gareth mostrara-lhe vislumbres desse coração. Falara-lhe
sobre os pubs, as corridas de galgos e os jogos de futebol. Todos os seus
colegas de trabalho viviam aqui perto – alguns naquela casa –, saíam juntos
à noite e parecia ser muito divertido.
Estava a tentar imaginar-se a viver num quartinho assim, a arranjar-se
com esmero para trabalhar num escritório, a ir ao West End ao sábado à
noite dançar com uma multidão de outras raparigas, quando Gareth voltou,
interrompendo os seus pensamentos. Trazia duas canecas de chá e um prato
com sanduíches.
– Boa velha Mrs. Kent – disse, a sorrir de orelha a orelha. – Ela pode ser
uma bebedolas e um dragão quando se irrita connosco, mas deixa-nos
sempre um lanche.

Às onze da noite apagaram a luz. Rosie estava deitada em camisa de noite


e Gareth, ainda vestido, deitara-se por cima da roupa da cama a acariciá-la.
Recomeçara a chover, e lá fora o barulho estava a diminuir um pouco. Era
muito bom estarem juntos, a abraçar-se.
– Tens a certeza de que Mrs. Kent não vem cá acima? – perguntou ela
acanhadamente. Gareth mostrara-lhe onde era a casa de banho, um andar
abaixo, mas ela não tinha ficado muito tempo lá com medo de ser apanhada.
Só esperava não ter de usar a sanita durante a noite.
– Ela não consegue subir um lanço de escadas quando esteve a beber, e
muito menos três – disse ele, a rir baixinho e a beijar-lhe o pescoço. – Além
disso, nunca vem cá acima à noite, a não ser que alguém esteja a fazer
barulho. Estamos bastante seguros.
Pouco depois, uma porta bateu.
– Foi ela que chegou – disse Gareth. Soergueram-se ambos para escutar e
ouviram-na tropeçar pelo corredor para a cozinha. Ouviram o tilintar de
loiça, água a correr e depois a porta das traseiras abriu-se e ela saiu.
– Ela usa a retrete exterior quando está assim – disse Gareth a rir. – Uma
noite adormeceu lá. Ainda bem que deixou o apito na chaleira... eu ouvi, fui
lá abaixo e acordei-a.
– Como é que ela é? – perguntou Rosie. Gostava de imaginar pessoas.
– Gorda, com quarenta anos e loura oxigenada – disse ele. – A minha mãe
acha que ela é promíscua, mas não é. Só é um pouco solitária. O marido foi
morto na guerra.
Mrs. Kent voltou para dentro e ouviram-na falar com alguém que acabara
de entrar.
– É o Steve. Tem um quarto no primeiro andar – informou Gareth. –
Também trabalha nos comboios.
Já passava da uma quando a casa ficou por fim em silêncio. Até então
tinham ouvido portas bater, o autoclismo a ser puxado e alguém a tossir. A
chuva batia contra a janela e estava muito confortável na cama enquanto
conversavam em sussurros.
– Posso ir para baixo da roupa? Tenho frio – disse Gareth.
– Claro que podes – respondeu Rosie sem hesitar. Estava um pouco
entalada com as roupas apertadas pelo peso dele, e além disso ele cumprira
a sua palavra e não tentara tomar liberdades com ela. Ele despiu-se, tudo
exceto as calças, e deitou-se ao seu lado.
No momento em que sentiu o seu peito nu, Rosie percebeu que não seria
assim tão fácil evitar qualquer intimidade agora que a pele dele tocava a
sua. Pareceram fundir-se um no outro enquanto se beijavam, cada beijo
mais demorado e ardente do que o anterior.
Quando ele enfiou a mão por baixo da camisa de dormir para lhe acariciar
os seios, tentou impedi-lo, mas sem grande vontade, pois estava tão
excitada como ele. A seguir a camisa de dormir foi tirada e ele desceu para
lhe beijar e chupar os mamilos.
Rosie sentiu que estava a ser levada para outro mundo, onde nada a não
ser os lábios dele nos seus, o toque das suas mãos e a pressão do seu corpo
contavam. Perdera toda a vontade de parar este jogo, embora soubesse que
era perigoso. Quando ele lhe tirou as cuecas e lhe tocou ali, só conseguiu
pensar em acariciá-lo para o fazer sentir-se tão bem como ela.
Não sentiu vergonha quando os dedos dele a exploraram e entraram
dentro de si. Era como uma sede que tinha de ser saciada fosse como fosse.
Pôs a mão à volta do pénis dele e mexeram-se juntos, dando prazer e
brincando um com o outro ao mesmo tempo. Nunca tivera uma sensação
tão boa e queria que continuasse para sempre.
Até agora, Rosie sempre pensara que o sexo antes do casamento era
instigado e possivelmente forçado pelo homem, e não tinha grande pena das
raparigas que eram fracas ao ponto de deixarem que acontecesse. Porém,
quando deu por si a acariciar e explorar o corpo de Gareth, e o seu a vibrar
por baixo do dele com igual paixão, perdeu todas as inibições. Queria-o
tanto que perdeu toda a razão.
Foi Gareth, não ela, que parou quando se preparava para penetrá-la.
– Não podemos – disse, a arfar. – Tu podes ter um bebé.
A palavra «bebé» foi o bastante para arrefecê-la, trazendo-lhe
recordações de Heather e do pai. As suas pernas fecharam-se de forma
involuntária.
– Eu quero, quero muito – sussurrou Gareth, com o pénis duro como uma
rocha contra ela. – Nunca quis tanto uma coisa. Mas temos de esperar, pelo
menos até estarmos noivos.
Rosie abraçou-o com força, amando-o ainda mais pela sua nobreza de
carácter e muito envergonhada consigo mesma por ter deixado as coisas
irem tão longe.
O cansaço acabou por fazê-los adormecer e Rosie acordou num quarto
cheio de sol, com Gareth apoiado num cotovelo a contemplá-la.
– És tão linda – sussurrou. – Fico com um nó na garganta só por olhar
para ti.
Rosie riu-se. Não acreditava que era bonita. Achava que ele era lindo. Os
seus caracóis castanhos estavam húmidos de transpiração e os olhos azuis
pareciam as pervincas nos brejos; até a sombra escura no queixo com
covinha era estranhamente atraente.
– Que horas são? – perguntou.
– Quase oito. Temos de sair daqui antes de toda a gente. – Puxou os
cobertores para baixo e olhou para os seus seios. – Quem me dera que
pudéssemos passar o dia inteiro aqui.
Curiosamente, durante a noite Gareth explorara cada centímetro do seu
corpo, mas agora sentiu-se embaraçada por estar a olhá-la. Corou, procurou
a camisa de dormir no chão e vestiu-a à pressa.
– Um dia, quando fores mesmo minha, tiro-te as roupas todas e
mantenho-te nua o dia inteiro! – disse ele com um sorriso.
Rosie assustou-se quando se estava a lavar na casa de banho. Alguém
experimentou a porta e ela ficou paralisada, a pensar que a pessoa talvez
estivesse à espera do outro lado. Mas, fosse quem fosse, já não estava ali
quando ela saiu, e voltou depressa para a relativa segurança do quarto de
Gareth.
Eram quase nove horas quando desceram sem fazer barulho. A casa não
era tão má como Rosie imaginara na noite anterior, às escuras; era limpa e
luminosa, se bem que um pouco austera. Ouviam-se roncos atrás de portas
fechadas e sempre que dava um passo, Rosie tinha a certeza de que Mrs.
Kent ia aparecer ao fundo das escadas.
Tudo brilhava quando se dirigiram para a estação do metropolitano. Até
os cães que faziam o passeio matinal com os donos pareciam felizes.
– Se tivesse trazido a mota da casa da minha mãe ontem, podíamos ir dar
um passeio – disse Gareth. – Esta noite tenho de ir lá buscá-la. Não me
apetece muito.
Esta manhã Rosie estava tão feliz que até se sentiu generosa ao ponto de
ter alguma pena da mãe dele.
– Diz-lhe que peço desculpa – disse. – Achas que devo escrever-lhe uma
carta também?
– Esquece isso – disse ele com um encolher de ombros. – Ela vai acabar
por mudar de ideias. Agora, que tal irmos ao mercado de Petticoat Lane e
depois mostro-te a Torre de Londres?
Foi um dia maravilhoso. O sol brilhava, o Tamisa cintilava e todas as
pessoas que estavam no mercado pareciam ter um sorriso estampado no
rosto. Rosie experimentou chapéus bonitos numa banca, fazendo Gareth rir-
se enquanto posava e fazia caras. Ele experimentou primeiro um chapéu de
coco e depois um chapéu mole, e ela riu a bom rir. Comeram sanduíches de
toucinho fumado enormes numa banca e experimentaram enguias em geleia
noutra. Ela disse-lhe que no Somerset as enguias saíam a deslizar de todas
as valas e rios em determinada altura do ano, quando tinham de acasalar.
Gareth disse-lhe que deslizaria de barriga até Mayfield da próxima vez que
sentisse vontade de acasalar com ela.
Ao fim da tarde apanharam um autocarro para St. James’s Park e
deitaram-se na relva a acariciar-se e beijar-se, como faziam muitos outros
casais. Uma banda tocava para um vasto público sentado em
espreguiçadeiras, enquanto crianças alimentavam os patos e brincavam às
escondidas à volta das árvores. Um vendedor de gelados apareceu numa
bicicleta e Gareth comprou-lhe um cone com três bolas.
Eram cerca de seis horas, uma hora antes de o comboio partir de Victoria,
e estavam sentados num salão de chá em St James’s Park. Gareth contava
uma história sobre o seu primeiro dia de escola em Londres quando Rosie
voltou à realidade e se lembrou de que pretendia contar-lhe toda a verdade
sobre si hoje.
O rosto dele estava franzido de riso e os seus olhos tão ternos que soube
que não poderia estragar o dia contando-lhe agora.
A caminho da estação, pararam para olhar para o Palácio de Buckingham.
O sol forte tornava tudo mais lindo do que no dia da Coroação. Os casacos
vermelhos e os barretes pretos dos guardas reais contrastavam fortemente
com o branco do palácio e todas as janelas brilhavam. Também estava
tranquilo, apenas um punhado de turistas espreitavam pelo gradeamento e
havia muito pouco trânsito.
– Naquele dia percebi que me estavas destinada – disse ele, a olhar para o
sítio onde a polícia tentara enfiar Donald na carrinha. – O meu coração
saltou no momento em te vi.
Voltou-se para ela, segurou-lhe no rosto com as duas mãos e os seus olhos
não estavam a rir-se, mas cheios de ternura.
– Amo-te, Rosie – disse.
Rosie ficou sem fôlego. Sabia sem qualquer sombra de dúvida que o que
sentia por ele também era amor.
– Tu não sabes o suficiente sobre mim – desabafou. – Não deves dizer
essas coisas enquanto eu não te contar tudo.
– Sei tudo o que quero – respondeu ele, dando-lhe um beijo no nariz. – Tu
és inteligente e linda, bondosa e generosa. A única coisa que quero saber
agora é se me amas.
A cabeça de Rosie disse-lhe para fazer uma piada, quebrar o encanto e
depois obrigá-lo a escutar toda a verdade antes de se comprometer mais.
Mas não conseguiu. Não quis que aquela expressão terna desaparecesse dos
seus olhos. Quis que ele a beijasse e a convencesse de que tinham sido
feitos um para o outro.
– Sim – sussurrou. – Eu também te amo.
Quando ele a beijou, percebeu que passara o ponto de não retorno.
CAPÍTULO 14

T homas deixou-se cair no carreiro com erva na orla do campo de trigo


acabado de cortar. Estavam no fim de agosto e ele viera passar o fim de
semana a Mayfield.
– Dói-lhe a perna? – Embora tivesse forçado o ritmo rápido neste passeio
pelos campos, Rosie ficou imediatamente preocupada. – Desculpe. Não
pensei. Só queria muito que visse tudo. – Pôs dois dedos na boca e assobiou
de uma forma muito pouco feminina para Donald, que se afastara aos pulos
para subir a uma meda de feno.
Thomas pensou que Rosie era impagável. Desde que chegara no dia
anterior, mostrara-lhe muitos aspetos diferentes da sua personalidade. A
jardineira zelosa que ia à estufa regar os rebentos antes mesmo de tomar o
pequeno-almoço. A pequena mãe muito preocupada com Donald porque ele
tinha uma farpa no dedo e logo depois a megera que lhe gritou por derrubar
o leite do gato. A cozinheira que tinha feito uma soberba empada de carne e
rins para o jantar da véspera e a companheira carinhosa e atenta que
segurava na mão de Donald com todo o cuidado quando ele tentava
escrever o seu nome. Entrara, depois de ir apanhar feijoca para o almoço de
hoje, com as pernas, mãos e cara cheias de lama, e antes mesmo de se lavar
falara em ter uma imagem mais sofisticada porque achava que Gareth
gostava de raparigas assim.
Mais tarde tinha ido para o primeiro andar e descera pouco depois com o
lindo vestido de algodão que usava naquele momento, queixando-se de que
tinha as unhas todas estragadas e dizendo que de futuro usaria luvas para
jardinar. Mal tinham saído de casa para dar aquele passeio quando lhe
perguntou se pensava que era possível ser jardineira e se teria de ir para a
universidade ou para algum sítio para se instruir. Depois começara aquela
marcha forçada, a falar sem parar sobre Gareth.
De certa forma, o assobio foi a cereja em cima do bolo. Uma coisinha tão
refinada e feminina a recorrer a uma tática tão boçal!
– Qual é a piada? – perguntou Rosie a olhar para Thomas, que estava
sentado a rir a bandeiras despregadas.
– Tu – disse ele. – Tu és a rapariga mais extraordinária que já conheci.
Em parte maria-rapaz, em parte princesa. Enfermeira, jardineira, diabrete e
mãe. Tens de me ensinar a assobiar assim. Sempre quis aprender.
Rosie sentou-se, a acenar para que Donald viesse ter com eles.
– É praticamente a única coisa útil que aprendi com o Seth – disse com
um sorriso, e mostrou-lhe como enrolar a língua e soprar. – Diga-me a
sério, Thomas. Eu poderia ser jardineira se quisesse?
– Acredito que, se quisesses muito, poderias ser a primeira mulher a ir à
Lua – respondeu ele. – Mas não adianta nada perguntares-me essas coisas
porque eu sou um homem da cidade. Pergunta a Mr. Cook. Ele vai saber.
– Mas ele pode pensar que eu me quero ir embora, e não é verdade – disse
ela, ansiosa. – Eu pensei que podia aprender um pouco na escola noturna e
passar o dia com o Donald. Tenho lido muitos livros sobre jardins famosos
e como foram desenhados e plantados. Daria qualquer coisa para conseguir
fazer isso.
Thomas olhou para Rosie. As suas faces estavam muito rosadas e
percebeu que não se devia ao rápido passeio ao sol, mas ao entusiasmo que
o assunto lhe provocava. Frank e Norah já tinham comentado a diferença
que ela fizera no jardim. Agora, Thomas tinha visto por si mesmo que ela
estava muito empenhada.
– Bem, diz tudo isso ao Frank – aconselhou-a. – Tenho a certeza de que
ele vai fazer o que puder. Entretanto, podes aprender muito nos livros.
Rosie levantou-se e afastou-se um pouco, protegendo os olhos do sol para
ver onde Donald estava. Thomas olhou para cima e reparou que, com o sol
atrás dela, o vestido de algodão fino era quase transparente. Viu claramente
os seus pequenos seios, a leve curvatura da barriga e o contorno das
nádegas. A sua boca ficou seca e sentiu um nó no estômago. Era uma das
imagens mais belas que já vira, mas uma imagem que não se atrevia a
contemplar e muito menos a pintar.
– Que Deus me ajude – balbuciou enquanto se virava e tentava levantar-
se sem graça. O que sentia por ela não era paternal nem fraterno, pois esses
sentimentos eram calmos e puros. O que sentia dentro de si era um vulcão
adormecido, a fervilhar, à espera da sua hora de explodir e entrar em
erupção. Pensou que não havia maneira de o manter sob controlo.
*

Passadas seis semanas, Rosie e Mrs. Cook estavam a pôr ameixas em


frascos na cozinha. Já estavam em outubro e o fim de tarde estava húmido e
ventoso. Mr. Cook e Donald estavam na sala de estar a ver televisão.
Ao ouvir a pancada forte de um ramo contra a janela, Rosie interrompeu
o que estava a fazer e dirigiu-se para as portas do terraço para espreitar para
o exterior. As luzes da cozinha lançavam uma faixa de luz na escuridão,
iluminando o terraço encharcado e o relvado. As folhas rodopiavam
febrilmente, incapazes de se manterem no chão por causa do vento forte.
Aquele cenário trouxe uma memória imediata e muito forte do outono do
ano anterior. Durante o julgamento do pai o tempo estivera como hoje e ela
passava muito tempo a olhar pelas janelas em Carrington Hall, sentindo-se
profundamente infeliz. Porém, apesar de não ser desejada, aquela
lembrança serviu como uma espécie de marco. Podia olhar para trás e ver o
quanto evoluíra desde aquela altura.
Afastou-se da janela e esboçou um pequeno sorriso para Norah Cook, que
mexia uma panela com calda de açúcar no fogão.
– Nunca gostei do outono – disse Rosie. – Sempre achei que era um
tempo triste porque tudo morria. Mas, não sei porquê, este ano não estou
triste.
Norah acenou em sinal de concordância.
– Sei exatamente o que queres dizer, minha querida. Normalmente,
também é a estação de que menos gosto. Mas este ano sinto-me
positivamente revigorada. Estou muito ansiosa para que chegue o Festival
das Colheitas, a Noite de Guy Fawkes, aconchegantes serões à lareira, e
para começar os doces de Natal, tudo o que o outono tem para oferecer.
Mas tenho a certeza de que sabes porquê. Todas estas coisas parecem muito
mais especiais agora que o Donald está em casa connosco.
Norah não podia explicar a ninguém o quanto a sua vida e casamento
tinham ficado mais ricos por voltar a ter o filho em casa. Fazê-lo implicaria
admitir como tinham sido vazios antes. Durante os nove anos em que
Donald estivera longe dela e de Frank tinha sido como se uma podridão
tivesse infetado lentamente o seu casamento outrora perfeito. Para os
outros, incluindo os dois filhos mais velhos, ainda eram o casal ideal, mas a
deferência que tinham um com o outro em público era apenas por força do
hábito. Sozinhos em casa, raramente se falavam; muitas vezes pareciam
dois desconhecidos, ambos presos numa culpa e ressentimento privados que
não podiam expressar.
Praticamente desde o momento em que Donald voltou para casa, a sua
presença pareceu banir toda a podridão. No começo foi através da partilha
da ansiedade que sentiam em relação ao seu comportamento difícil,
perguntando-se se tinham tomado a decisão certa ao trazê-lo para casa, mas
a pouco e pouco, à medida que o filho se adaptou, a ansiedade transformou-
se em alegria e a felicidade fê-los envolverem-se de novo como jovens
amantes.
Rosie estava numa posição muito semelhante à dos patrões, incapaz de
descrever de forma adequada o estado de bem-aventurança em que passava
os dias. Todas as manhãs, quando acordava no seu lindo quarto e olhava
para o jardim e para os campos mais abaixo, dava graças por viver numa
casa linda onde era apreciada e necessária. Agora tinha verdadeira
liberdade, de escolha, de expressão, sem medo de ser rebaixada. Podia
planear cada dia para Donald sabendo que teria o apoio incondicional dos
pais dele, que a faziam sentir que era um membro da família.
Tinha Gareth, que também a amava, e uma nova amiga chamada Judy,
que trabalhava na padaria da aldeia. Costumavam ir ao cinema juntas uma
noite por semana, e, se o sábado de folga da amiga coincidia com um em
que Gareth tinha de trabalhar, as duas passavam o dia a fazer compras em
Tunbridge Wells. E agora, para cúmulo, Rosie preparava-se para abrir um
pequeno negócio de jardinagem com Donald.
– Há uns seis ou nove meses, quem teria pensado que o Donald seria
capaz de trabalhar para se sustentar? – continuou Rosie. – Quase gostava de
voltar a ver a enfermeira supervisora, só para poder exibi-lo.
Norah estremeceu ao recordar aquela mulher horrível que lhe mentira e a
Frank tantas vezes e com tanta manha. Não gostava de pensar no sofrimento
desnecessário que ela causara aos outros doentes.
– Para teu bem, espero que o Gareth não crie obstáculos ao teu negócio –
disse Norah, pensativa, enquanto mexia a panela. – Esforçaste-te muito para
organizar tudo e sei quão importante é para ti, mas tenho a impressão de
que ele não gosta muito da ideia.
– Mas porque é que se importaria? – perguntou Rosie. – Quero dizer, não
vai afetá-lo de maneira nenhuma. Eu vou continuar a viver aqui e o Donald
vai passar o dia inteiro comigo. A senhora e Mr. Cook são os únicos que
podem ficar aborrecidos. Ele não. Sempre que vier aos fins de semana eu
estarei aqui, sentada na cozinha como sempre!
A cozinha tornara-se a sua divisão preferida na Granja. Durante o dia era
uma divisão luminosa e soalheira, e à noite o fogão a lenha mantinha-a
aconchegante e quente. Era uma divisão agradável para longas conversas
depois das refeições ou para se refastelar no velho sofá a ouvir rádio.
Pinturas de Donald tinham-se juntado às dos netos nas paredes. A linda
porcelana no aparador partilhava o espaço com os brinquedos de bebé de
Robin e com cartas antigas, bem como com um puzzle meio feito numa
tábua, pronto para quem tivesse tempo ou inclinação para acrescentar mais
algumas peças. Rosie perguntava muitas vezes a si mesma o que a
picuinhas Mrs. Jones pensaria de toda aquela tralha. Pensou que era capaz
de fungar de desaprovação.
– Tens muito que aprender sobre os homens – replicou Norah com um
toque de cinismo, limpando as mãos ao avental. – A maioria deles não gosta
que as suas mulheres tenham ideias ou aspirações que não os incluam. Olha
para a Susan e o Roger. Ela tinha um trabalho de secretária que adorava e
quando o patrão lhe pediu que o acompanhasse à América numa viagem de
negócios ele amuou até ela recusar a proposta. Por isso, o patrão arranjou
uma secretária mais ambiciosa e agora ela foi relegada para a sala de
datilografia.
– Mas o Gareth não está propriamente amuado – disse Rosie, defensiva. –
Só pensa que eu vou ficar demasiado cansada e que vou ter terra nas unhas
quando sair com ele.
– Demasiado cansada para ele, é o que quer dizer. Talvez tenha medo de
que gostes mais de jardinagem do que dele.
– Eu não vou desistir por uma coisa tão parva como essa – disse Rosie
com alguma indignação. – A senhora acha que a jardinagem é boa ideia,
não acha?
Norah distraiu-se com os seus pensamentos. Gostara de Rosie desde o dia
em que se tinham conhecido, mas ao longo dos últimos meses, ao observá-
la com o filho, a amizade transformara-se em amor. Teriam ficado muito
satisfeitos se ela mantivesse Donald feliz, mas ela fora muito além disso.
Permitira-lhe ser um verdadeiro homem ao ensinar-lhe um ofício.
Ele sabia cortar relva, podar árvores e arbustos, cavar e plantar. Sabia
seguir instruções, mas também usar a sua iniciativa se estivesse sozinho. Ao
vê-lo trabalhar num jardim, ninguém adivinharia que tinha um atraso
mental. Era tão forte como qualquer homem da sua idade e tinha
desenvolvido os músculos juntamente com as capacidades. Se alguma coisa
acontecesse a Frank ou Norah ele poderia não apenas sobreviver, mas
também sustentar-se.
Mas Rosie? Ela tinha quase dezassete anos e tinha idade e confiança
suficientes para alcançar tudo o que quisesse na vida, mas Norah pensava
que, se ela tinha uma falha, era querer agradar de mais. Planeava todos os
dias à volta de outras pessoas e nem sequer parava para pensar que também
tinha direitos. Embora isso fizesse dela a mais perfeita das empregadas, e
Norah tivesse paz de espírito por saber que o filho era extremamente
importante para Rosie, também percebia que outras pessoas poderiam
aproveitar-se daquele altruísmo.
À primeira vista, Gareth era o namorado ideal, um rapaz simpático,
ajuizado e trabalhador, completamente apaixonado por ela. Porém, Norah já
percebera que era ele que ditava todas as regras. Encaixava Rosie entre o
trabalho, os jogos de futebol e as saídas com os amigos, e esperava que ela
deixasse tudo o que estava a fazer quando era conveniente para ele.
Ele também era um rapaz urbano. Gostava de passeios debaixo dos pés,
de ruas movimentadas, pubs cheios de gente e pessoas constantemente à sua
volta. Parecia não perceber que Rosie era mais feliz quando tinha o vento a
despentear-lhe o cabelo e a relva por baixo dos pés, e que gostava mais de
Natureza do que de comboios e autocarros.
Gareth não era diferente da maioria dos jovens da sua classe ou grupo
etário. Nascidos durante os tempos difíceis dos anos trinta, as suas
personalidades tinham sido formadas por uma pobreza inicial e tinham
crescido durante os anos da guerra, sem o estímulo de livros, arte ou música
para os levar a querer uma coisa diferente do que os pais tinham tido.
Mesmo agora, nos anos cinquenta, quando os filmes e a televisão lhes
mostravam sinais do início de uma nova era de prosperidade, quando havia
trabalho para todos, um Serviço Nacional de Saúde e novas casas para
substituir os velhos bairros de lata no centro das cidades, rapazes como
Gareth ainda pensavam como os pais.
As ambições de Gareth não iam além de ser maquinista de um grande
comboio a vapor, ter uma casinha nos subúrbios e uma mulher submissa em
casa com os filhos. Norah não desprezava as suas ambições humildes, mas
sentia que Rosie tinha o direito, e merecia a possibilidade de abrir um
pouco as asas antes de se entregar a uma vida que poderia ser
embrutecedora de tão monótona. Gostaria de vê-la sair para dançar com
Judy e entregar-se a risadinhas e parvoíces mais juvenis. Também pensava
que devia olhar para outros jovens.
Rosie nunca falava muito sobre a sua infância. A falta de histórias
nostálgicas e uma certa subserviência com os homens levava Norah a
pensar que o pai devia ter sido um brutamontes. A ser verdade, seria uma
grande pena se se deixasse deslizar para a sombra de outro homem ou
permitisse que os sonhos dele suplantassem os seus.
– Uma boa ideia? – exclamou Norah, regressando dos seus pensamentos.
– O Frank e eu pensamos que é uma ideia brilhante. Apoiamos-te a cem por
cento. Não estou a tentar desanimar-te. Quero que tenhas muito sucesso e
acredito que vais ter. Só estou a tentar fazer-te perceber que poderá chegar
um momento em que terás de escolher entre a jardinagem e o Gareth.
Rosie não disse mais nada enquanto empilhava os frascos para conservas
em tabuleiros para irem ao forno. Compreendeu o que Mrs. Cook estava a
tentar dizer, mas não acreditava que alguma vez chegasse a esse ponto.
Gareth amava-a. Ela amava-o. Mas também queria aquele negócio e estava
determinada a ter os dois.

A ideia da jardinagem surgira pouco depois de Thomas ter vindo passar o


fim de semana. Rosie aceitara a sua sugestão e falara com Mr. Cook, que
lhe disse que havia cursos universitários de horticultura, mas eram mais
vocacionados para a agricultura do que para a jardinagem. Pensava que a
parte mais importante de iniciar uma carreira era ganhar experiência e
disse-lhe que ia perguntar na vizinhança se alguém precisava de ajuda para
cuidar do jardim.
Durante a preparação para o Festival das Colheitas muitos vizinhos
vieram à Granja falar com os Cook sobre os pormenores da festa anual no
salão da aldeia. Todos ficavam surpreendidos ao ver as melhorias no jardim.
Admiravam os feijoeiros, as filas de cenouras, cebolas e couves que Rosie
plantara. Viram os tabuleiros de plantas perenes que ela cultivava a partir de
sementes e levaram para casa uma alface acabada de apanhar ou duas
plantinhas, e pouco depois toda a gente sabia que ela era uma especialista
em jardinagem e que o seu assistente Donald era um trabalhador incansável.
Quando Rosie afixou um cartaz nos correios a oferecer os seus serviços de
jardinagem à hora, Mr. Cook ficou satisfeito, mas apreensivo. Sabia o
preconceito que ainda havia na aldeia com o filho.
Porém, a velha Mrs. Tyler, que morava na casa ao lado dos correios, ficou
entusiasmada. Enviuvara alguns anos antes e, como estava incapacitada por
causa da artrite, o seu outrora lindo jardim das traseiras tinha-se
transformado numa selva. Ela não tinha qualquer problema com Donald –
nunca acreditara que tinha sido ele a magoar aquela menina há muitos anos
e estava encantada por ter voltado para casa. Não se importou nada de pagar
dois xelins por hora a cada um.
Eles precisaram apenas de algumas horas de trabalho para pôr o jardim de
Mrs. Tyler em ordem. Podaram as rosas e prenderam-nas na latada,
arrancaram todas as ervas daninhas e cortaram os arbustos que estavam
grandes de mais. Mrs. Tyler ficou encantada e quase todas as pessoas que
iam lá a casa eram convidadas para ver o trabalho deles. Passado pouco
tempo tiveram outra oferta de trabalho de um casal recém-casado que
trabalhava fora o dia inteiro. O jardim deles foi um desafio muito maior
para Rosie porque não passava de um relvado inclinado, com um pequeno
canteiro de flores a toda a volta. O casal queria alguma coisa mais
imaginativa e pediu-lhe conselhos. Ela sugeriu que tirassem o relvado mais
próximo da casa e que construíssem um muro de sustentação com alguns
degraus até onde o relvado ficava plano mais acima. Depois, a zona ao pé
da casa poderia ser pavimentada para poderem sentar-se no exterior quando
a relva estivesse molhada.
Eles ficaram eufóricos com a ideia, contrataram dois homens para fazer a
escavação, o pavimento e o muro de pedra, e depois convidaram Rosie e
Donald para continuarem o plano e plantar o jardim. Eles criaram canteiros
de flores com curvas suaves à volta da relva e uma bordadura junto do muro
de sustentação para que as flores acabassem por cair em cascata sobre ele.
Era demasiado tarde para colocar plantas, mas Rosie ofereceu-se para voltar
em outubro para plantar bolbos de primavera e plantas perenes à volta dos
novos arbustos, para estarem em flor no ano seguinte.
Para além de um ou outro pedido para cortes de relva e mondas, não
houvera mais ofertas até há duas semanas, quando de repente pareceu que
toda a gente queria que lhes arranjassem os jardins para o outono,
semeassem bolbos de primavera e fizessem uma inspeção geral para ver se
podiam ser feitos melhoramentos para o futuro.
Rosie não fazia ideia de como organizar tudo, mas Frank Cook sabia. Um
fim de tarde sentou-se com ela e uma grande agenda, e mostrou-lhe como
devia distribuir o tempo pelos seus «clientes», reservando duas horas duas
vezes por semana para cada um. Avisou-a de que não devia tentar fazer de
mais porque poderia chover dias a fio e que teria de ser flexível e fazer os
trabalhos de escavações quando o tempo permitisse. Também explicou que,
para além de cobrar pelo tempo de trabalho, também teria de cobrar o
estrume, os bolbos e as plantas que fornecia. Disse-lhe que não era um
trabalho de caridade, mas um emprego a sério. Mandou alguém no seu
escritório datilografar e duplicar um pequeno panfleto que explicaria isto
aos clientes; o dinheiro para os materiais tinha de ser pago antecipadamente
e as horas de trabalho seriam liquidadas no fim de cada semana.
Rosie esperava que, embora não houvesse trabalho nos meses de inverno,
quando chegasse a primavera as pessoas voltassem a contactá-la para
continuar. Entretanto, poderia cultivar plantas de verão na estufa da Granja,
e no ano seguinte também poderia vendê-las. Mr. e Mrs. Cook insistiram
que Rosie continuasse a receber as suas duas libras e dez xelins por semana,
pois na realidade não deixaria de tomar conta de Donald. Rosie achou que
não estava certo, pois sabia que não teria tempo para fazer os trabalhos que
costumava fazer em casa. Por fim, chegaram a um acordo. Rosie receberia
metade do salário, a menos que ganhasse menos do que isso com os
serviços de jardinagem durante a semana, e nesse caso os Cook pagar-lhe-
iam o salário normal.

Mais tarde nessa noite Rosie estava a limpar as bancadas da cozinha


quando o telefone tocou.
– É para ti, Rosie – gritou Frank Cook da entrada. – É o Thomas. Eu vou
deitar o Donald. Digo-lhe que sobes mais tarde para lhe desejar boa noite.
Rosie sorriu, não apenas ao pensar que ia conversar com Thomas, mas
pela forma como toda a família adotara gradualmente o seu verdadeiro
nome. Começara com Donald, depois Gareth, e agora todos o usavam,
incluindo o pequeno Robin, embora ele só conseguisse dizer «Osie».
Já não a enervava. Agora, raramente pensava nos acontecimentos do
passado ou na família. No que lhe dizia respeito o seu cartão de segurança
social dizia Rosemary Smith e era esse o seu verdadeiro nome. Já fora tão
longe que era impossível contar a verdade aos Cook ou a Gareth. Até a
culpa desaparecera, uma vez que os pecados do pai não eram seus. Não
queria saber onde estavam os irmãos, nem o que andavam a fazer. Tinha
uma vida nova e sem qualquer receio.
Thomas acabara de receber a carta onde ela lhe contava sobre o negócio e
queria dar-lhe os parabéns.
– Quando é que começam a sério? – perguntou. Sabia que ela fazia
trabalhos de jardinagem em tempo parcial há algumas semanas.
– Na segunda-feira de manhã. Trabalhamos desde as nove até ao meio-dia
num lugar que precisa de muito trabalho. Depois, vamos para outro desde
as três até às seis. Só espero que o tempo melhore um pouco até lá. Até ao
fim da semana encaixámos muitos outros trabalhos e daqui a algum tempo
esperamos estar a trabalhar desde as oito da manhã até ao anoitecer.
– Vê lá se não exageras – lembrou-lhe Thomas. Perguntou como estava
Gareth. A última vez que estivera em Londres para o ver passara a noite no
apartamento de Thomas e tinham saído todos para jantar.
– Está bem, foi promovido a fogueiro e anda o dia inteiro a fazer viagens
de ida e volta para Brighton.
– A mãe dele já está mais simpática?
Rosie suspirou.
– Nem por isso. Mas já lhe contei numa carta como foi quando fui lá
almoçar num domingo, não contei?
Tinha sido no mesmo fim de semana em que ficara em casa dele. Gareth
viera buscá-la de mota no domingo de manhã e prometera que ia correr tudo
bem. Não tinha sido tão mau como na primeira visita, mas isso devera-se
acima de tudo ao facto de Mr. Jones e Owen também estarem em casa. Eles
eram muito simpáticos, calorosos e alegres como Gareth, mas a mãe passara
o tempo todo carrancuda. Melhorara ligeiramente quando Rosie estava de
saída e oferecera-se para lhe tricotar um casaco de malha. Rosie esperava
que fosse um sinal de aceitação, mas continuava a temer outro convite
porque era uma grande tensão.
– Mas continuas apaixonada? – perguntou Thomas. – Mesmo sendo a
mãe dele uma bruxa?
– Sim – admitiu ela, a sorrir do outro lado da linha. – Ele é maravilhoso.
A nossa relação está cada vez melhor.
– O que é que pensas fazer nos teus anos? – perguntou Thomas. – Vens a
Londres?
Rosie não soube muito bem como responder. A verdade é que Gareth
queria levá-la para um pequeno hotel em Brighton para passar o fim de
semana, mas não podia dizer isso. Estava a preparar uma pequena mentira
que envolvia uma tia fictícia de Gareth que ia recebê-los.
– Ainda não sei bem – respondeu, hesitante. Detestava mentir,
especialmente a Thomas. – Neste momento tenho muito que fazer e de
qualquer modo ainda faltam duas semanas.
– Se quiseres, podes ficar aqui – disse ele. – Até vou sair nessa noite para
vos deixar namorar! – acrescentou. – Mas avisa-me. Se não vieres, tenho de
mandar o teu presente pelo correio.
Quando Thomas desligou, Rosie subiu para desejar boa noite a Donald.
Ele estava sentado na cama a ler a Beano.
– O Thomas vem cá? – perguntou.
– Não para já – respondeu ela, sentando-se na sua cama. – Só telefonou
para dizer que está muito contente com o nosso negócio de jardinagem.
– Contaste-lhe sobre o novo carrinho de mão?
Rosie sorriu. Mr. Cook comprara-lhes um carrinho de mão novo de
alumínio que era muito mais leve do que o velho de madeira. Donald
adorava-o. Tratava-o como outro homem trataria o seu primeiro carro.
– Não. Achei que ias querer ser tu a dizer-lhe quando ele voltar cá –
respondeu. – Agora, são horas de dormir.
Donald pousou obedientemente a revista de banda desenhada e enroscou-
se por baixo dos cobertores. Rosie aproximou-se para o aconchegar e dar-
lhe um beijo de boa noite.
– Rosie – disse ele, pensativo, a olhar para ela. – Se te casares com o
Gareth vais-te embora e deixas-me?
Rosie ficou embasbacada durante alguns instantes. À noite, por vezes
pensava nesse assunto e perguntava a si mesma como é que ele reagiria se
se fosse embora e como ela própria se sentiria se o deixasse. No entanto,
não lhe passara pela cabeça que ele tivesse discernimento suficiente para
pensar naquilo sozinho.
A realidade é que seria um grande sofrimento deixá-lo. Ele tinha um lugar
no seu coração que mais ninguém poderia ocupar. Era irmão, filho e amigo
num só. Olhou para ele agora e viu uma confiança ilimitada naqueles olhos
azuis.
– Se nos casarmos, espero que possamos viver aqui perto – respondeu
com sinceridade. – E nós vamos continuar com a nossa jardinagem
enquanto o Gareth conduz os seus comboios. Mas não deves preocupar-te
com isso. Mesmo que nos casemos, só vai ser daqui a muito tempo.

Passadas duas semanas, numa tarde de sábado, dois dias depois de Rosie
fazer dezassete anos, ela e Gareth estavam num quarto do segundo andar da
pensão Regent em Brighton.
– Eles devem saber que eu não sou casada contigo – disse Rosie, a rir às
gargalhadas. – Aposto que estão todos a falar sobre nós lá em baixo.
Gareth comprara-lhe uma aliança na Woolworth’s e ela exibira-a em
todos os momentos possíveis. No entanto, apesar do novo casaco verde e do
bonito chapéu de veludo castanho inclinado na cabeça, sabia que não
conseguira disfarçar a pouca idade nem esconder os rubores de embaraço
quando a proprietária da pensão lhes perguntou se queriam chá de manhã
cedo no quarto.
– Um dia vamos ser casados – disse Gareth, puxando-a para si e
enchendo-lhe a cara de beijos. – Imagina-nos a ter um quarto igualzinho a
este.
Rosie olhou para o quarto, encantada. Desde muito pequena, olhava para
os hotéis e para as pensões de Weston-super-Mare e perguntava-se como
seria estar hospedada ali. Não ficou nada desapontada com o Regent. Tinha
alcatifa vermelha e dourada nas escadas e o papel de parede às riscas que
sempre imaginara que as pessoas ricas tinham nas suas casas. Um olhar
rápido para a sala de refeições tinha revelado mais elegância; toalhas de
mesa brancas como neve em cada mesa e guardanapos empinados como
pequenas pirâmides. Porém, na sua opinião este quarto era quase tão bonito
como o de Mr. e Mrs. Cook: uma grande cama de casal, um toucador com o
formato de um rim, com um folho de chita a toda a volta, e, melhor ainda,
estava voltado para o passeio público e para o mar.
Não ia preocupar-se agora com a descrição que faria da tia de Gareth, a
tia Mary, quando voltasse para casa. Precisavam de estar juntos, sozinhos.
Se tinha idade suficiente para gerir um pequeno negócio, também tinha
maturidade para passar a noite com o homem que amava.
– Vamos sair para passear? – perguntou Gareth. – O comer é só às seis e
meia e já estou a morrer de fome.
– Nos sítios finos diz-se «jantar» – declarou Rosie, a rir. – Mas, sim,
vamos sair. Quero ver o mar.
Fazia muito frio e vento no passeio público e o céu estava da cor de
chumbo, mas Rosie levantou a gola do casaco novo, ajeitou o chapéu na
cabeça, enfiou a mão no bolso de Gareth e contemplou o mar, encantada. A
única estância balnear digna desse nome onde estivera antes fora Weston-
super-Mare e, embora tivesse uma encantadora praia de areia enquanto esta
era de seixos, o mar era castanho, não o límpido mar azul-esverdeado que
observava agora. As ondas eram enormes e rebentavam com tanto barulho e
força que era difícil ouvir o que ele estava a dizer. Adorou. Apeteceu-lhe
correr pela praia e abanar os braços e gritar como Donald fazia quando
estava excitado.
Foram para o molhe e puseram algumas moedas nas máquinas de jogos.
Gareth tentou ganhar um ursinho de peluche com uma grua mecânica, mas
o tempo esgotou-se antes de conseguir apanhá-lo. Comeram um cachorro-
quente cada um e algodão-doce, e depois foram para os carrinhos de
choque.
Mais tarde nessa tarde, encontraram as Lanes, onde ficavam todas as lojas
de antiguidades. Rosie pensou que era parecido com Hampstead e insistiu
em pagar um lanche de chá e bolos num salão de chá muito chique com
janelas salientes.
O salão de chá era ainda melhor no interior do que parecia visto do lado
de fora, com uma lareira acesa, panelas de cobre penduradas nas traves e
toalhas de mesa bordadas. Rosie sobressaltou-se quando a empregada de
mesa lhes trouxe um expositor de vidro com dois níveis onde havia pelo
menos uma dúzia de bolos. Esperou até a rapariga não poder ouvi-los e
inclinou-se mais para Gareth.
– Decerto não esperam que comamos isto tudo?
Pensou que ele parecia um verdadeiro homem de sociedade. Usava o seu
fato escuro e pedira um sobretudo de tweed cinzento emprestado ao irmão.
– Acho que só nos cobram o que comermos – respondeu ele, nervoso, a
olhar em volta para ver o que as outras pessoas estavam a fazer. – Nunca
estive num sítio como este.
– Em breve vamos acostumar-nos a viver assim – disse Rosie
descontraidamente, enquanto servia o chá. – Um dia, quando eu for uma
jardineira famosa, vamos sair para comer assim todos os dias.
Gareth não se riu e ela pressentiu que ferira os seus sentimentos.
– Nessa altura, tu vais conduzir o Flying Scotsman – acrescentou
rapidamente.
Ele pegou-lhe na mão e por instantes Rosie pensou que ia fazer alguma
coisa romântica como beijá-la, mas em vez disso olhou para as suas unhas.
– Não vais ser bem-vinda em lugares chiques com as unhas nesse estado
– disse com brusquidão.
Rosie afastou a mão, profundamente magoada e embaraçada. Tinha todas
as unhas partidas e, apesar de as ter esfregado muito bem, estavam
horríveis. Também tinha calos nas palmas das mãos de cavar e alguns
arranhões. De repente, reparou que a aliança começava a escurecer.
– As tuas mãos também não são perfeitas – retorquiu. – E não sejas mau
sobre a jardinagem, senão vou para casa.
Gareth pediu-lhe desculpa e continuaram a conversar sobre outras coisas,
mas Rosie passou a estar extremamente consciente das mãos. E, quando lhe
passou uma nota de dez xelins por baixo da mesa para pagar o lanche,
percebeu que ele tinha detestado aceitá-la.

Depois de tudo o que tinham comido durante a tarde, Rosie teve


dificuldade para apreciar devidamente o jantar de carne estufada servido na
pensão. Gareth não teve problemas: devorou o seu e também terminou o
prato de Rosie. Só havia mais quatro hóspedes. Um casal de meia-idade que
não parava de olhar para Rosie e Gareth e sorrir, e duas senhoras mais
idosas que se queixavam de tudo.
– O que é que vamos fazer agora? – perguntou Gareth quando
terminaram. Passava pouco das sete e a intensidade do vento aumentara
ainda mais enquanto estavam a comer, fazendo os caixilhos das janelas
bater e lembrando-lhes o frio que devia estar lá fora. – Podíamos ir ao
cinema. Reparei que ao cimo da rua estão a passar o Dona Elvira.
Rosie estava empanturrada de comida e tão ensonada que só lhe apetecia
subir para o quarto e enroscar-se com ele, mas tinha a certeza de que se
fizessem isso a proprietária da pensão diria que eram um casal que tinha
vindo passar um fim de semana de sexo, por isso fingiu que estava
entusiasmada.
O passeio ao frio despertou-a e o filme era tão maravilhoso como todos
os críticos tinham afirmado. No regresso pararam num pub e Rosie bebeu o
seu primeiro porto com sumo de limão, que Gareth lhe disse ser o que as
senhoras bebiam. Não gostou muito e pensou que sabia a xarope para a
tosse. No entanto, gostou do efeito. Fê-la sentir-se quente por dentro e
bebeu mais um.

Gareth já estava na cama quando ela voltou da casa de banho em camisa


de dormir.
– Estava a começar a pensar que te tinhas ido embora – disse, sentando-
se. – Que diabo estiveste a fazer todo este tempo?
– Não é da tua conta – disse ela, a rir, satisfeita ao ver que ele vestira um
pijama. Subiu para o seu lado da cama.
A verdade é que estivera muito tempo a lavar os dentes porque de
repente, e sem saber porquê, estava apavorada. Gareth sempre dissera que
esperariam até ao casamento para fazerem amor, mas Rosie pensou que
talvez fosse diferente quando estivessem deitados naquela grande cama.
Durante o verão, nos campos à volta de Mayfield, em várias ocasiões
tinham estado muito perto de ir até ao fim; a única coisa que os contivera
fora o medo de serem vistos por alguém. E se não conseguissem controlar-
se esta noite? E se ficasse grávida? Queria casar-se com Gareth mais do que
tudo no mundo, mas não queria engravidar; ainda não.
Gareth puxou o fio por cima da cama para apagar a luz e em seguida
puxou Rosie para si. O vento uivava, as ondas rebentavam com estrondo na
praia e foi muito bom estar a escutar aqueles barulhos numa cama quente.
– Desculpa por ter dito aquilo sobre as tuas mãos esta tarde – comentou
Gareth inesperadamente, apertando-a com força. – Não sei porque é que
digo aquelas coisas. Às vezes sou igual à minha mãe.
– Eu amo-te na mesma – disse ela, aconchegando-se ainda mais e
levantando o rosto para beijá-lo. A paixão incendiou-se no instante em que
os seus lábios tocaram nos dele. Rebolaram juntos, a beijar-se, a acariciar-se
e a abraçar-se. A camisa de noite foi despida e logo depois o pijama, e os
dois corpos nus colaram-se um no outro, intensificando o desejo.
Gareth lambeu e chupou os seus seios até ela gritar por mais e guiar
impudicamente os dedos dele para dentro de si. Foi varrida por uma enorme
onda de prazer, aproximando-se cada vez mais do orgasmo que só
conseguira antes com os seus próprios dedos. Perdeu todo o controlo e os
medos de há pouco foram esquecidos. A única coisa que importava agora
era a satisfação. Estremeceu debaixo dele, ansiando pelo momento em que
perderia o autocontrolo e a possuiria. Porém, quando lhe apertou as costas
com força, puxando-o para si, de repente ele afastou-se dela, virou-se e
enfiou-se por baixo da roupa da cama. Abriu-lhe as pernas e começou a
beijar as suas partes íntimas.
Rosie ficou rígida de espanto. Nunca ouvira dizer que os homens faziam
aquilo e pareceu-lhe um ato muito grosseiro. Pior ainda, o queixo dele tinha
barba e raspava contra a sua pele.
– Dói – sussurrou ela, tentando afastar a cabeça dele. Porém, Gareth não
deu qualquer indicação de ter ouvido. Com uma mão abriu-lhe ainda mais
as coxas e com a outra enfiou-lhe o pénis na boca, não lhe dando hipótese
de protestar mais.
Uma vez Linda tinha falado sobre isto; chamara-lhe «fazer um broche a
um homem». Falara com tanta descontração que não lhe parecera nada
repulsivo. Mary tinha a opinião contrária. Dissera que era repugnante e que
nenhum homem enfiaria o coiso na sua boca e viveria para contar a história.
Naquela altura Rosie nem sequer tinha segurado um pénis ereto na mão,
mas pensava que se uma mulher estava mesmo apaixonada por um homem
era provável que quisesse satisfazê-lo.
Esforçou-se muito para pensar apenas nisso agora, mas chegou à
conclusão de que não gostava. O pénis de Gareth tinha um cheiro esquisito
e um sabor salgado, e teve receio de que os seus dentes o magoassem.
Quando ele entrou ainda mais na sua boca, engasgou-se, e todo o prazer que
sentira há pouco desvaneceu-se.
Para além do desagrado que sentia por ser obrigada a tê-lo na boca, era
como se estivesse a ser esfregada com lixa lá em baixo pelo queixo dele.
Quando tentou afastar a parte inferior do corpo, ele agarrou-a com mais
força ainda e enterrou-se mais na sua boca. Num esforço desesperado para
se libertar, segurou-o pelas ancas e tentou afastá-lo. No entanto, quando
recuou um pouco a cabeça e um pouco de luz da rua entrou pelas cortinas,
viu os testículos dele pendurados e teve um arranco de vómito.
Gareth estava alheado de tudo a não ser do seu próprio prazer.
– Chupa-me! – ordenou, enfiando os dedos dentro dela com força,
convencido, talvez, de que Rosie estava tão excitada como ele. – Vá lá, não
pares agora, estou-me a vir!
Os olhos de Rosie encheram-se de lágrimas. Já o levara ao clímax muitas
vezes com as mãos e não sentira nojo porque ele estava sempre a abraçá-la,
a sussurrar palavras carinhosas no seu ouvido e a acariciá-la com meiguice.
Mas isto era muito diferente. Não havia ternura, apenas bestialidade.
O queixo dele espetava-se na sua virilha, a sua respiração por baixo da
roupa da cama era difícil e ele também murmurava alguma coisa. Sempre
que espetava os dedos dentro de si apetecia-lhe gritar de dor. Depois,
quando pensou que não aguentava mais, ele arqueou as costas, soltou um
arquejo e empurrou-lhe a cabeça para um lado.
O seu corpo estava a estremecer num espasmo. Rosie sentiu-o ejacular
contra o seu pescoço e depois ele ficou imóvel.
– Foi fantástico! – murmurou, com a cara pousada na sua barriga.
Rosie ficou deitada, aturdida, com lágrimas silenciosas a escorrer pelas
faces. Estava confusa e zangada porque se sentia suja e usada. Por outro
lado, sentia-se triste e culpada porque, seguramente, se amava Gareth como
pensava o prazer dele devia ser mais importante do que os seus sentimentos.
Ele virou-se na cama e abraçou-a.
– Foi muito bom – disse, ensonado. – O Fred do meu trabalho disse que
ele e a mulher costumavam fazer assim antes de se casarem. Ele tinha
razão, é melhor do que bater uma punheta.
Gareth adormeceu passados alguns momentos, mas Rosie ficou deitada,
ainda nos seus braços, a pensar naquelas palavras grosseiras. A sua vagina
ardia e sentia-se enganada, mas o que a envergonhava verdadeiramente era
ele ter falado sobre uma coisa tão íntima com um colega de trabalho.
Lembrou-se de Seth. Supôs que só podia ser porque a brutalidade de
Gareth lhe recordara a forma como ele costumava falar. Estremeceu.
Durante todos aqueles meses não pensara uma única vez no irmão. Mas
agora, numa noite que devia ter sido maravilhosa, ele estava de volta, a
recordar-lhe todas as coisas que pensava ter esquecido.
Ao meio-dia do dia seguinte, enquanto caminhavam pelo passeio público,
fustigados pelo vento forte, Rosie desejou estar em casa, na Granja. Poderia
estar sentada diante da lareira da sala de estar, a ler os jornais de domingo.
Estava um frio terrível, os seus pés pareciam blocos de gelo e tudo – o mar,
o céu, as casas – parecia cinzento e lúgubre.
No entanto, não queria dizer nada. Gareth já estava bastante irritado e
todos os ressentimentos que ainda sentia pela noite anterior transformaram-
se em pena quando a proprietária da pensão lhe pediu mais uma libra pela
refeição da noite.
Rosie sabia que Gareth se sentira sofisticado quando planeara aquele fim
de semana. Não sabia que tinham de sair do quarto logo após o pequeno-
almoço nem que em Brighton estava tudo fechado aos domingos.
Certamente não esperava que estivesse tanto frio. Mas fora a libra a mais
que o desconcertara. Não estava prevenido e, quando foi acrescentada a
todos os outros momentos um pouco embaraçosos de ingenuidade e inépcia,
fê-lo sentir-se um verdadeiro fracasso.
– Vamos tomar uma chávena de chá – sugeriu ela, a tentar fingir que
estava encantada com tudo. – Podíamos ir àquele café no molhe. Deve estar
aberto.
– Não quero uma chávena de chá – disse Gareth, amuado. – Quero uma
cerveja, mas só tenho uns cinco xelins.
– Eu tenho algum dinheiro – apressou-se Rosie a dizer.
Ele olhou-a com uma expressão estranha, de desaprovação por ela se
oferecer para pagar misturada com alívio.
– Escuta, Gareth, eu sei que a pensão custou mais do que esperavas –
disse, dando-lhe o braço e encostando-se mais a ele. – O mínimo que posso
fazer é oferecer-te uma bebida.
– Eu não aceito dinheiro de raparigas – retorquiu ele.
– Eu não sou uma rapariga qualquer – disse Rosie num tom calmo. –
Ontem não te importaste que eu pagasse o lanche e de qualquer maneira sou
a tua namorada e devíamos dividir as despesas. Afinal de contas, ganho
quase tanto como tu.
No momento em que falou soube que tinha dito as palavras erradas. O
rosto dele ruborizou-se com uma raiva súbita.
– Está certo, atira-me isso à cara – disse com amargura. – Eu não presto
para nada, pois não?
– Não sejas ridículo – retorquiu ela. – Não foi isso que quis dizer.
Conseguiu convencê-lo a mudar de ideias e levou-o para o pub mais
próximo. Depois de ter uma cerveja na mão, ele pediu-lhe desculpa pela
segunda vez naquele fim de semana. Quando emborcou a segunda cerveja,
depois de Rosie lhe enfiar uma nota de dez xelins para pagar, estava de
novo feliz e até se juntou a outros homens que estavam a jogar dardos.
Rosie ficou sozinha, com um pequeno copo de sidra à sua frente. O pub
era um lugar sujo e cheio de fumo, com um aquecedor a petróleo
malcheiroso. As únicas mulheres para além dela eram duas velhas com
roupas andrajosas que estavam sentadas num canto.
Ficou a ver Gareth jogar dardos. Ele estava concentrado, com a língua a
aparecer entre os lábios, a olhar para o alvo e preparado para lançar. Tinha-
se esquecido dela; agora, os três homens que acabara de conhecer eram
muito mais importantes. Rosie percebeu que ele era assim em Londres, no
pub com os amigos ou num jogo de futebol. Não mudaria quando se
casasse, do mesmo modo que o pai não mudara quando se tornara amante
de Heather.
O senso comum disse-lhe que era assim com a maioria das mulheres em
Inglaterra. Os homens traziam dinheiro para casa e em troca recebiam
jantares quentes, tinham a roupa lavada e sexo sempre que queriam. Não
percebeu porque é que ficou tão desapontada ao perceber que Gareth era
igual. Os homens da família Cook eram os únicos que conhecia que se
comportavam de uma forma diferente.
Quando saíram do pub à hora do fecho, Gareth estava embriagado.
Bebera seis cervejas ao todo.
– O que é que vamos fazer agora? – perguntou, com as palavras
entarameladas e a cambalear.
– Vamos buscar as nossas malas à pensão e vamos para casa – respondeu
Rosie, a esforçar-se muito para não se zangar com ele. – Está demasiado
frio para andar a deambular por aí e de qualquer maneira não há nada para
fazer.
O caminho para a estação pareceu muito longo porque Gareth estava
sempre a parar. Não gostou nada dele bêbedo. Falava alto de mais e as
pessoas não paravam de o olhar com expressões desaprovadoras porque ele
cambaleava pelo passeio e de vez em quando tentava beijá-la
desajeitadamente. Mas quando ele parou numa porta e abriu a braguilha
para urinar, Rosie perdeu a paciência.
– Isso é nojento – disse com brusquidão, e depois continuou a andar e
deixou-o lá. Já era bastante mau ter-lhe feito lembrar o irmão na noite
anterior, mas ver que tinha outros hábitos horríveis em comum com ele foi a
última gota de água.
Tiveram de esperar uma hora pelo comboio, mas nem sequer o frio o
deixou sóbrio. Felizmente, havia poucas pessoas por ali e quando o
comboio chegou por fim ficaram com um compartimento só para eles.
Gareth adormeceu logo que se sentaram, com a boca aberta e a cabeça a
abanar no seu ombro. Rosie sabia que não poderia levá-lo para a Granja
naquele estado.
Quando o comboio se aproximava de Mayfield, acordou-o.
– Eu vou sair na próxima paragem – disse. – Tu ficas e vais diretamente
para Londres.
– Que horas são? – perguntou ele, com as palavras ainda entarameladas.
– Quase cinco – respondeu Rosie. – Não vale a pena ires comigo porque
tinhas de voltar para trás e apanhar o próximo comboio.
– Então está bem – concordou ele, deixando-se cair no banco. Tinha os
olhos quase fechados, tresandava a cerveja e cigarros e a boca estava quase
tão descaída como a de Donald. – Ainda vou a tempo de ir ter com os
rapazes.
– Vai ter com eles – disse ela bruscamente enquanto tirava a mala do
porta-bagagens. – Tu gostas da companhia deles.
Fora da estação, Rosie ajeitou o chapéu, puxou a gola para cima para se
proteger do vento frio, pegou na mala e dirigiu-se para casa com passos
rápidos. Já estava escuro e Mayfield estava tão vazia como ela se sentia.
– Até podes amá-lo – balbuciou para si mesma. – Mas não vais deixá-lo
pisar-te. E não te atrevas a chorar.
CAPÍTULO 15

P ercy Arkwright, o chefe da estação de Mayfield, varria diligentemente


as poças de água na sua gare. Todavia, embora parecesse muito
determinado a garantir que os passageiros que iam chegar no comboio das
sete e quinze não molhassem os pés, a verdade é que estava muito mais
interessado no jovem casal que esperava o comboio para Londres.
Chovera sem parar nos últimos três dias e só agora, no fim da tarde de
domingo, o céu estava menos carregado e uma luz do sol pálida fazia todos
os possíveis para romper as nuvens. Regra geral, a esta hora da tarde em
agosto Percy esperaria que dúzias de pessoas saíssem daquele comboio
depois de terem passado o dia à beira-mar, mas hoje duvidava que houvesse
mais de cinco ou seis veraneantes com expressões desoladas.
Percy conhecia quase todos os habitantes de Mayfield, quer fossem
passageiros regulares quer não. Só começara a trabalhar como chefe da
estação depois da guerra, mas nascera na aldeia e, excetuando o tempo
como aprendiz nos caminhos de ferro e o breve período no exército, vivera
a vida inteira aqui.
Velhos amigos de infância viajavam nos comboios de manhã cedo,
homens e mulheres a caminho do trabalho, na maior parte carpinteiros,
mecânicos, enfermeiras e empregadas de balcão em cidades próximas.
Cerca das oito chegava a brigada do chapéu de coco. Banqueiros,
advogados e contabilistas, chegados há relativamente pouco tempo à aldeia
e que viajavam para Londres em primeira classe. Mais tarde pela manhã via
as mulheres muito bem vestidas desses homens saírem para um dia de
compras em Tunbridge Wells. Também via os seus filhos quando iam e
vinham da escola; alguns eram fedelhos descarados que mereciam um
puxão de orelhas, mas outros eram miúdos decentes que recompensava de
vez em quando com um ou dois rebuçados.
Porém, de todos os visitantes mais regulares da estação, Percy tinha um
carinho especial por aquele jovem casal. Há mais de dois anos que quase
fazia parte do seu namoro. Assistia aos felizes reencontros nas tardes de
sábado ou manhãs de domingo, e às despedidas mais tristes ao domingo ao
fim do dia, quando se abraçavam até ao último instante antes de o jovem
Gareth embarcar no comboio. Eram mais do que muitas as vezes que ficava
com um nó na garganta enquanto Rosie corria ao lado do comboio, a acenar
e a soprar beijos, e a via limpar os olhos antes de voltar para casa sozinha.
Ela ia sempre buscá-lo e despedir-se dele, chovesse ou nevasse, e Percy
iluminava-se ao ver tamanha devoção. No entanto, esta noite pressentiu que
alguma coisa estava errada. Eles não estavam abraçados como era habitual.
Estavam próximos, a olhar um para o outro, e não discutiam, mas
transmitiam alguma hostilidade.
Nos dois anos em que Percy os observara, ambos tinham mudado. Gareth
era um rapazinho quando viera ali pela primeira vez, magro e ansioso, com
cabelo curto encaracolado e um sorriso enorme. Agora era um homem, mais
forte, com o rosto mais cheio e os ombros mais largos, e o cabelo quase
rapado. Lamentavelmente, o seu brilho e entusiasmo juvenil pareciam ter
desaparecido com os caracóis de adolescente. Hoje em dia, raramente sorria
a Percy e já não parava para conversar sobre comboios como fazia antes.
Na verdade, a única conversa que tinham tido nos últimos meses fora
quando Gareth o informara num tom pomposo que fora promovido a
maquinista de um comboio de passageiros.
No princípio, Rosie era uma rapariga bonita, com um cativante sorriso
atrevido, mas demasiado magra e muito pálida. Dois anos de vida saudável
ao ar livre tinham-na transformado numa beldade curvilínea e radiosa, com
uma aura de confiança natural e um andar vivo.
Esta noite, como acontecia sempre que estava com Gareth, estava muito
elegante e cheia de estilo, com um vestido verde, sapatos de salto alto e
bâton, com o cabelo a brilhar como cobre derretido sob os fracos raios de
sol. No entanto, Percy preferia o seu aspeto de maria-rapaz quando passava
pela estação a empurrar o carrinho de mão durante a semana. Havia alguma
coisa muito cativante numa rapariga bonita vestida com um par de
jardineiras, com o vento a despentear-lhe o cabelo e algumas manchas de
terra nas faces rosadas. Ela era o tipo de rapariga que tornava o dia mais
luminoso só por estar presente e Percy sabia que não era a única pessoa nas
redondezas a pensar assim.
Apoiou-se na vassoura durante alguns instantes e observou-os. Teve uma
ideia do que estava errado nessa noite. O jovem Gareth era um citadino de
gema que só gostava do campo quando passava por ele a conduzir o seu
comboio. Talvez tivesse percebido por fim que Rosie e ele seguiam em
carris muito diferentes.
Percy quase acertou em cheio. Gareth estava amuado, como estivera
desde que chegara no sábado à tarde e percebera que o tempo estava
demasiado chuvoso para fazer outra coisa a não ser ficar em casa, na
Granja. E agora, depois de um longo e maçador fim de semana, sem ter a
oportunidade de estar a sós com ela, culpava-a pelo tédio que sentia.
– Não sei por quanto mais tempo esperas que aguente isto – disse. – Se
tivesses começado o treino de enfermagem o ano passado, como disseste
que ias fazer, pelo menos estarias em Londres. Mas tu pensas mais na tua
maldita jardinagem e no Donald do que em mim.
Rosie suspirou. Ele tinha passado o fim de semana inteiro a tentar
discutir, embirrando com tudo o que pensava que poderia irritá-la. Sentiu-se
tentada a dizer-lhe que preferia a jardinagem e a companhia de Donald
quando ele estava tão embirrante, mas o comboio chegaria dali a cinco
minutos e não queria separar-se dele zangada.
– Isso não é verdade – retorquiu.
– Claro que é. Há um ano estavas morta para te casar, mas agora quase
nunca falas nisso.
– Se fosses transferido para cá, casava-me já amanhã – disse Rosie,
irritada. – Podíamos arranjar uma casinha com facilidade. Não percebo
porque é que estás tão decidido a ficar em Londres.
– Tu sabes porquê – replicou ele, com a voz alterada como sempre que
ela abordava aquele assunto. – Esperei muito tempo para ser maquinista.
Não vou contentar-me em ser revisor ou trabalhar numa guarita de
sinalização, que é o que aconteceria se pedisse transferência. Além disso, a
minha família está em Londres e eu não gosto do campo.
O som do comboio ao longe, a aproximar-se pelos carris, foi uma
distração bem-vinda. Gareth pegou no relógio de bolso para ver as horas,
como fazia com todos os comboios. Rosie costumava adorar aquele gesto,
mas esta noite irritou-a e apeteceu-lhe dar-lhe uma palmada na mão para
que ele caísse ao chão.
– Mesmo à hora – disse ele. – Pensei que chegaria atrasado por causa da
chuva forte.
Beijou-a, um beijo demorado e intenso, mas Rosie não se sentiu melhor.
Sabia que entre agora e o momento em que voltariam a ver-se nada
mudaria. Os seus problemas só seriam arrumados numa prateleira, para
serem repisados da próxima vez que se vissem e nunca resolvidos.
– Adeus, amor – disse ele, pegando na mala de fim de semana quando o
comboio entrou na estação. Os seus olhos iluminaram-se como se o
comboio fosse mais importante do que ela. – Telefono-te no fim da semana.
O comboio partiu. Ele baixou o vidro da janela e inclinou-se para fora,
como sempre, e Rosie correu pela gare, como sempre, a acenar e a soprar
beijos. Mas esta noite não sentiu a habitual tristeza insuportável por se
separar dele. Foi quase um alívio vê-lo ir.
Decidiu não ir logo para casa e foi dar um passeio. A canção «Love and
Marriage», de Frank Sinatra, que estivera no top no início desse ano, vinha-
lhe irritantemente à cabeça. As árvores pingavam e os sapatos dela não
eram adequados para passear na erva molhada, mas o ar estava fresco e
doce depois da chuva e precisava de estar sozinha para pensar.
O fim de semana fora complicado. A verdade é que a relação estava num
declínio gradual há alguns meses, desde que Rosie admitira que tinha
desistido da ideia de se tornar enfermeira. Gareth dizia que ela andara a
iludi-lo desde o primeiro dia.
Rosie achava que não era assim. Talvez não devesse ter partido do
princípio de que ele partilhava a sua visão de um casamento na igreja de
Mayfield, uma casinha acolhedora e os Cook por perto. Mas se ele
detestava tanto aquela ideia, porque é que demorara tanto tempo a dizê-lo?
Agora, dizia-lhe que se o amava teria de desistir da jardinagem e dos
Cook e mudar-se para Londres para arranjar o que ele chamava um
emprego «como deve ser». Falava em arrendarem dois quartos algures perto
de Clapham e candidatarem-se a uma habitação camarária. Parecia não
perceber que estava a pedir-lhe para deitar fora tudo aquilo que lhe dera
tanto trabalho para conseguir.
Rosie não se opunha categoricamente à ideia de viver em Londres. De
vez em quando parecia-lhe uma aventura muito tentadora, começarem uma
vida juntos, construir um lar, ver tudo o que Londres tinha para oferecer.
Talvez até conseguisse convencê-lo a deixá-la trabalhar em jardins lá.
Thomas dizia que havia muitas pessoas ricas que andavam sempre à
procura de quem cuidasse dos seus jardins. No entanto, como poderia ir-se
embora e deixar Donald? Para além de o amar, a ele e à sua família, desde
que estavam juntos tinham passado de enfermeira e doente para professora
e aluno, até, por fim, se terem tornado sócios em pé de igualdade ao
reunirem os seus talentos.
Gareth sorria com uma expressão de desprezo sempre que tentava
explicar-lhe isto. Dizia que Donald poderia continuar sozinho a cortar relva,
podar árvores e plantar flores. Era verdade, podia; mas era Rosie que tinha a
capacidade de organização e a criatividade. Do mesmo modo que dependia
da força física de Donald para fazer o trabalho, ele dependia da sua para
planear, arranjar novos clientes e fazer as cobranças.
O negócio estava próspero e ganhavam muito dinheiro, quase todas as
semanas mais do que Gareth ganhava como maquinista de comboios.
Tinham conquistado o respeito e admiração de todos os habitantes da
aldeia. Orgulhavam-se muito do que já tinham conseguido e Rosie queria
que fizessem muito mais. À noite trabalhava em projetos, estudava livros de
plantas raras e jardins famosos, e sabia que se alguma vez lhe dessem a
possibilidade de criar um jardim de raiz conseguiria fazê-lo.
Por muito que amasse Gareth e quisesse casar-se com ele, também queria
trabalhar na profissão que escolhera. Poderia fazê-lo se fosse Mrs. Jones, a
mulher do maquinista de comboios?
Talvez estivesse a ser ridiculamente pessimista. Outras raparigas da sua
idade só pensavam em casar-se, ter uma casa delas e esperar pelo primeiro
filho. Isso não a preencheria o suficiente?
Estar perto da mãe dele era outro problema. Em dois anos Rosie não se
afeiçoara àquela mulher mesquinha e má-língua. Tinha a certeza de que fora
Mrs. Jones que o dissuadira da ideia de uma casa no campo, que insistia que
o filho nunca seria feliz com Rosie a não ser que a afastasse dos Cook e a
trouxesse para Londres. Depois de se casarem, Rosie sabia que a mulher
meteria o nariz em todos os aspetos da vida deles. No entanto, era o
desagrado de Gareth pelo campo que a preocupava ainda mais. Dizia-lhe
que eram totalmente incompatíveis.
Subiu os degraus de passagem numa vedação e sentou-se no alto. À sua
frente estendia-se um campo de trigo dourado, a ondular suavemente ao
sabor da brisa. Ao fundo havia um bosque onde cantavam rouxinóis. Ali
sentada a contemplar a beleza e tranquilidade da paisagem, perguntou a si
mesma como é que alguém podia preferir as sombrias ruas de Londres a
isto. Lembrou-se da reação de Donald quando o trouxera aqui a primeira
vez. Ele sentara-se nesta mesma vedação e contemplara a paisagem com um
enorme sorriso. Como ela, nunca se cansava, quer fosse primavera e os
primeiros rebentos verdes estivessem a despontar do chão, outono, quando
o agricultor ceifava o campo e centenas de pássaros vinham comer as
delícias que ele desenterrava para eles, ou inverno quando o solo despido
estava congelado em duros sulcos. Agora estava no auge da sua beleza, mas
Gareth continuava indiferente.
A verdade é que Rosie descobrira que poucas coisas o comoviam. Ver o
Brighton Bell ou o Flying Scotsman com a locomotiva cheia de vapor
deixava-o entusiasmado. Os seus olhos ficavam húmidos quando olhava
para uma mota potente e ficava emocionado sempre que o País de Gales
vencia a Inglaterra num jogo de rugby. Mas a Natureza não lhe dizia nada.
Também havia outras áreas da sua relação que a preocupavam. Ele ia sair
com os amigos para uma noite de copos em Londres e gastava alegremente
metade do salário numa noite, mas com ela insistia em comprar os bilhetes
mais baratos no cinema e, se iam passar o dia a algum lado, arranjava
sempre um café sujo numa rua escondida para comerem.
Também era um amante muito egoísta. Rosie suspirou fundo. Talvez ela
fosse a culpada. Porque é que não lhe dizia que se sentia uma prostituta
quando ele a pressionava para que o masturbasse sem tentar dar-lhe prazer
também? Ele parecia pensar que protegê-la de engravidar era um ato de
amor altruísta, mas a ela parecia-lhe pouco natural, frio e calculista. O
problema é que deixara as coisas arrastarem-se durante demasiado tempo
para começar a queixar-se agora.
– Afinal, de que é que gostas nele? – perguntou a si mesma em voz alta.
Foi como perguntar porque é que alguém adorava o mar, vibrava com
uma determinada música ou chorava num filme. Não conseguia analisar o
que ele tinha que fazia o seu coração bater mais depressa quando corria para
ir ao seu encontro na estação ou os joelhos tremer quando a beijava; era
pura emoção. Queria fazer amor com ele, passear de mãos dadas por
caminhos frondosos, cozinhar-lhe refeições, ter filhos com ele. Não fazia
sentido. Mas, afinal de contas, o que é que fazia alguns homens quererem
subir montanhas e outros ser talhantes? Todas as pessoas eram diferentes e
não marchavam ao mesmo ritmo.
No entanto, acima de tudo o resto, Rosie era teimosa. De um modo geral,
era um dos seus maiores trunfos: nunca desistia de um trabalho difícil,
concluindo-o quando todas as outras pessoas o teriam abandonado. Também
não ia desistir de Gareth, embora o senso comum lhe dissesse que talvez
fosse a melhor coisa a fazer. A próxima vez que o visse tentaria aplanar
algumas das diferenças sérias entre ambos. Tinha de haver uma solução.
Na Granja, Norah e Frank passeavam juntos no jardim, que estava no seu
melhor: a chuva deixara o relvado de um verde luxuriante e a bordadura de
plantas herbáceas tinha uma miríade de cores. Donald estava dentro de casa.
Ouviram «Rock Around the Clock» tocar na radiola. Ele adorava rock ‘n’
roll; comprava um disco novo todas as semanas com o dinheiro da
jardinagem, mas este continuava a ser o seu preferido. Muitas noites, ele e
Rosie dançavam o jive juntos. Donald dançava surpreendentemente bem,
desde que não ficasse demasiado excitado.
– O que aconteceu com a Rosie e o Gareth? – perguntou Frank à mulher.
– Pareciam tão perfeitos juntos, e agora já não parecem.
– Eu sei. – Norah suspirou. – Pensei que iam ficar juntos para sempre,
mas o Gareth mudou, não achas? Está a tornar-se muito obstinado e
pomposo. Ouviste-o dissertar com o Michael no sábado sobre a abolição
dos lugares de terceira classe? O pobre Michael não sabia o que dizer, não
deu a sua opinião em nenhum sentido, e ao ouvir o Gareth falar dir-se-ia
que nós somos aristocratas sem qualquer conhecimento da classe
trabalhadora.
Frank parou à beira do lago e sentou-se numa das grandes pedras perto da
água. Os nenúfares estavam tão densos na superfície que teve de os afastar
para ver os peixes lá em baixo.
– O que mais me preocupa é a forma como ele rebaixa a Rosie – disse,
pensativo. – Até compreendo o seu sarcasmo com o Donald. Tem ciúmes do
afeto que ela sente por ele. Mas nunca perde uma oportunidade de
ridicularizar o seu trabalho de jardinagem. Seria natural que estivesse muito
orgulhoso por ela ser totalmente autodidata. Eu fico espantado com tudo o
que ela aprendeu sobre fertilizantes e compostagem, fazer carreiros e
construir muros, para além de ter um conhecimento quase enciclopédico de
plantas. Apetece-me abaná-lo e ver se lhe ponho algum juízo na cabeça.
– Suponho que, no fundo, ele está frustrado – disse Norah devagar,
sentando-se ao lado do marido e encostando-se ao seu ombro. – Eu
costumava ter medo de que a Rosie chegasse a casa um dia e nos dissesse
que estava grávida. É claro que estou muito contente por eles serem tão
sensatos e controlados, mas não é propriamente normal num casal que se
ama tanto.
Frank sorriu e pegou-lhe na mão para lhe beijar as pontas dos dedos com
carinho.
– Ninguém pode acusar-nos de sermos sensatos e controlados – disse. –
Se bem me lembro, quando começámos parecíamos coelhos.
Norah corou. Sempre fora um mistério para si não ter ficado grávida antes
de se casarem.
– Não sei porquê, mas acho que o controlo não é da Rosie – disse. – Acho
que é ele que estabelece todas as regras. Desconfio que aquela sua mãe
temível o perverteu até certo ponto. Já reparaste que ele raramente conta
alguma coisa pessoal?
– Bem, acho que podemos dizer o mesmo da Rosie – disse Frank devagar.
– Não, não é a mesma coisa – discordou Norah. – A Rosie não gosta de
falar sobre a infância, mas é franca em relação aos seus sentimentos e ao
que quer da vida. Sinto que a conheço profundamente.
Frank sorriu.
– Então, o que é que ela quer, para além do Gareth?
– O mesmo que a maioria das mulheres. Uma casa decente, um homem
que a ame e um bando de filhos. Às vezes fico muito contente por ela gostar
tanto do Donald. Se não fosse ele, talvez já tivesse ido para Londres há
muito tempo. Pelo menos, ele está a impedir que tome decisões
precipitadas.
Viraram ambos a cabeça quando o filho saiu para o terraço pela porta da
cozinha. Estava a fingir que tocava guitarra e não percebeu que os pais
estavam a observá-lo. Não havia um dia em que não pensassem no quanto
Rosie enriquecera a sua vida. Gostavam de Rosie por ela, mas amavam-na
pelo que dera a Donald.
Agora, ninguém na aldeia desconfiava dele. Sabiam que tinha a alcunha
de Donald Palerma, mas como Rosie o forçava e encorajava tinha
encontrado o seu nicho como um «personagem» e não alguém a temer ou
evitar. O seu amor e jeito para a jardinagem tornara-o estimado por muitas
pessoas e o facto de se ter revelado seguro e trabalhador levou as pessoas a
confiarem nele. Todavia, por muito estável e confiante que estivesse agora,
os pais sabiam que quando Rosie se fosse embora teria dificuldades sem
ela. Afinal de contas, era a sua única verdadeira amiga.
– Desconfio que, quando se casar com ele, o Gareth vai tornar-se
autoritário. Ele tem hábitos fixos e não gosta de mulheres com ideias
próprias – disse Frank com o sobrolho franzido. – Achas que devíamos
conversar sobre isto com o Thomas? Talvez ele consiga influenciar a Rosie.
Ela valoriza muito a sua opinião.
Norah não respondeu durante algum tempo. Rosie estava com eles há
dois anos e durante esse tempo Thomas fora uma visita regular e tornara-se
um grande amigo de toda a família. Era um homem fascinante, inteligente,
sensível, generoso e uma excelente companhia. A sua experiência e
incapacidade tinham-lhe dado um profundo conhecimento dos outros, e
tinha um maravilhoso sentido de humor. Norah perguntava muitas vezes a si
mesma se a amizade entre ele e Rosie teria mais alguma coisa além daquela
sórdida história de Carrington Hall. Sentia que havia um laço profundo,
misterioso e inexplicado entre os dois. Era quase como se Thomas a
conhecesse desde que ela era criança, embora soubesse que não era
possível.
– Talvez seja uma ideia – disse Norah. – Mas o Gareth fica quase tão
ressentido com o Thomas como com o Donald. Ele revelou-se um homem
muito ciumento! A Rosie é tão inteligente para a maioria das coisas, mas é
cega e surda em tudo o que lhe diz respeito. Dizes que te apetece meter
algum juízo na cabeça do Gareth... bem, eu gostava de poder fazer o mesmo
com ela.

Enquanto Norah e Frank Cook estavam preocupados com Rosie, Freda


Barnes, a antiga enfermeira supervisora de Carrington Hall, também
pensava nela. Todavia, os seus pensamentos eram inteiramente malévolos.
Dois anos depois da humilhante expulsão do seu emprego e casa,
continuava no mesmo apartamento numa cave que fora obrigada a arrendar
em Camden Town, em Londres. As circunstâncias extremamente difíceis
em que era forçada a viver, a perda de prestígio, família e amigos, tinham-
na tornado uma mulher precocemente velha e amarga.
O apartamento tinha duas assoalhadas, uma cozinha e uma retrete. A
banheira estava na cozinha e, com uma tampa a cobri-la, também
funcionava como mesa. A humidade no quarto era tanta que escorria pelas
paredes, por isso tinha de comer, viver e dormir numa sala escura que nunca
via um raio de sol.
Os vizinhos que viam a mulher baixa e gorda com cabelo cinzento-escuro
percorrer vagarosamente a rua todos os dias ao fim da tarde nem sequer lhe
dirigiam a palavra, e não podiam adivinhar que durante a maior parte da
vida fora uma enfermeira respeitada e extremamente qualificada. Tinham
ouvido dizer que discutia com o jovem casal que vivia no apartamento por
cima do seu por porem o lixo nos caixotes à sua porta antes das dez da
manhã e batia no teto com uma vassoura quando o bebé chorava à noite.
Em Camden Town quase toda a gente era pobre, por isso não se
importavam com a aparência andrajosa e suja da mulher. Porém, num lugar
onde a vida era dura para todos, não tinham tempo para pessoas
desagradáveis com expressões amargas.
Freda não queria que as pessoas falassem com ela. Pensava que os seus
vizinhos ruidosos e simples estavam muito abaixo dela e durante as
primeiras duas semanas depois de se mudar para o número 13A de
Harmood Street pensou que seria apenas uma questão de tempo até arranjar
um emprego como governanta ou dama de companhia e mudar-se para um
bairro mais chique. Porém, depressa percebeu que ninguém ia empregar
uma mulher da sua idade sem referências. Os possíveis empregadores
percebiam pelos seus modos e discurso que já ocupara um cargo de chefia e
as suas desconfianças aumentavam quando dizia que passara os últimos
catorze anos a cuidar de um familiar doente. Quando as semanas se
transformaram em meses, e ela engordou muito mais, a sua aparência
desmazelada e um certo desespero nos olhos excluiu todos os tipos de
trabalho a não ser limpeza de escritórios.
Recusou-se a fazer isso durante algum tempo. Era um trabalho degradante
e mal pago. Porém, quando começou a gastar as poupanças teve de aceitar
que não encontraria mais nada. Pior ainda, percebeu que o apartamento
escuro e húmido seria a sua habitação permanente.
A apatia instalou-se. No começo pretendia pintar o apartamento, colocar
cortinados novos e ir à igreja mais próxima para conhecer pessoas. No
entanto, à medida que os dias iam passando foi-se desmazelando até ao
ponto de se tornar difícil tomar banho, lavar a roupa e manter uma boa
alimentação.
Agora, passados dois anos, já nem reparava que o bolor preto subia pelas
paredes, que não limpava o pó há semanas ou que os jornais que comprava
todas as manhãs estavam a formar uma pequena montanha num canto da
sala. Ficava na cama até às dez horas, ia às lojas comprar o jornal e depois
voltava para casa e lia-o de uma ponta à outra. Às cinco da tarde saía do
apartamento e ia a pé até Tottenham Court Road para começar a trabalhar.
Normalmente, voltava para casa por volta das onze da noite e ia logo para a
cama. Por vezes podia passar uma semana inteira sem falar com uma única
pessoa.
Depois de se acostumar à ideia de limpar escritórios percebeu que tinha
as suas vantagens. Trabalhava sozinha no prédio de quatro andares de
escritórios e a limpeza era bastante fácil. Construído em 1947, tinha a
vantagem de ser moderno, com todo o chão forrado a linóleo. Para além do
pequeno átrio que tinha de esfregar e encerar, só precisava de limpar as
casas de banho, varrer, limpar o pó das secretárias e dos arquivos e despejar
os caixotes do lixo. Podia muito bem fazer o trabalho todo em três horas,
mas chegava a demorar cinco para ler todos os jornais que tinham ficado.
O domingo era o pior dia da semana porque não havia trabalho para onde
ir e todas as lojas estavam fechadas. As horas vazias e solitárias estendiam-
se à sua frente e, sentada à janela, a ver apenas os pés das pessoas que
passavam lá em cima na rua, lembrava-se sempre de Carrington Hall. Os
domingos lá eram muito agradáveis. O padre ia rezar uma missa de manhã e
à tarde costumava ser convidada para lanchar; depois, ia à igreja ao fim da
tarde e muitas vezes ceava fora para terminar o dia.
Sentia falta de muitas coisas, não apenas do hospício, mas de toda a sua
carreira de enfermagem. As roupas eram lavadas e engomadas na
lavandaria, confecionavam-lhe as refeições e o seu quarto era limpo. Os
funcionários mais jovens admiravam-na e havia conversas com os médicos
e reuniões com os familiares dos doentes, que estavam sempre
extremamente agradecidos.
As últimas palavras de Lionel Brace-Coombes ainda lhe ecoavam nos
ouvidos. Ele dissera que ela era «uma afronta para a profissão de
enfermeira. Para alcançar os seus objetivos torpes permitiu que doentes
deficientes mentais fossem abusados e negligenciados. Traiu a confiança
que depositei em si enchendo os bolsos com dinheiro que se destinava a
financiar os cuidados e a segurança em Carrington Hall. Tenho provas
suficientes contra si para a mandar para a prisão; a única razão porque não
vou apresentar queixa criminal agora é porque acredito que se o fizer várias
jovens inocentes poderão ser mais prejudicadas ainda se forem intimadas
para testemunhar contra si. Quero-a fora daqui hoje, e se alguma vez chegar
aos meus ouvidos que tentou contactar algum dos meus funcionários, ou
arranjar problemas a alguma pessoa que conheceu aqui, vou atacá-la de tal
maneira que se arrependerá até ao fim dos seus dias.»
Contudo, a sua acrimónia não era dirigida a Lionel Brace-Coombes. Na
sua opinião, fora aquela reles Rosie Parker que lhe arruinara a vida – uma
delinquente de dezasseis anos que não percebia nada de enfermagem! Cada
dia longo e infeliz, a amargura em relação àquela rapariga corroía-a como
ácido. Noite após noite, ficava deitada na cama a tentar pensar numa forma
de se vingar dela. Mas não sabia onde a rapariga estava e muito menos
como poderia tentar encontrá-la.
Violet Pemberton era a única pessoa que devia saber onde ela se
encontrava, mas Freda sabia que não poderia contar com a sua ajuda.
Pensou contratar um detetive privado, mas com menos de seiscentas libras
em poupanças não podia dar-se a esse luxo. Um dos motivos para ler todos
os jornais a que deitava a mão era porque tinha esperança de que um dia os
irmãos Parker fossem notícia nos tabloides. Duvidava muito que tivessem
ficado no Somerset depois de Seth ser absolvido. Era muito mais provável
que tivessem vindo viver para Londres. Um dia talvez aparecessem nas
notícias criminais e isso poderia fazer com que descobrisse onde estava a
irmã deles. Era improvável, mas pesquisar os jornais todos os dias era
melhor do que estar sem fazer nada.
Hoje, pela primeira vez desde que se tinha mudado para Camden Town,
sentia-se otimista e tivera energia suficiente para mudar a roupa da cama e
limpar a cozinha. Até pretendia tomar um banho e lavar o cabelo mais
tarde. Tudo porque tinha noventa e nove por cento de certeza que descobrira
o rasto de Seth Parker. Há mais de um ano que lera sobre um sucateiro no
norte de Londres que tinha sido multado pelo tribunal por vender chumbo
roubado de igrejas. Aquela notícia chamara-lhe a atenção – Cole Parker e os
dois filhos não tinham um ferro-velho?
Tempo era uma coisa que tinha de sobra, por isso arranjou um mapa,
marcou as zonas onde era provável haver depósitos de sucata e saía para
procurá-lo dois dias por semana. Não pensou por um único instante que os
Parker ainda usassem os seus verdadeiros nomes, mas tinha fotografias dos
jornais da época do julgamento.
Pouco tempo depois percebeu que as respostas negativas que estava a
receber para as perguntas que fazia podiam dever-se à sua aparência e
modos. Só quando um homem corpulento ameaçou soltar os cães é que
percebeu que era considerada uma espécie de bisbilhoteira profissional.
Repensou a sua estratégia, arranjou-se e fingiu ser inspetora dos serviços de
saúde pública, a visitar casas perto de depósitos de sucata.
Depressa descobriu muitas donas de casa que estavam mais do que
dispostas a falar. Apresentavam as suas queixas com o maior prazer, tudo
desde barulho, sujidade, bicharada e receio pelos filhos. Apesar de poucas
destas mulheres conhecerem os funcionários dos depósitos pelo nome, não
se importavam nada de dar as suas opiniões sobre a atividade criminal que
observavam. Por fim, passadas cerca de seis semanas, quando tinha
coscuvilhices e boatos suficientes para encher um livro, uma mulher em
Acton olhou para a fotografia de Seth e disse que já o vira no depósito em
frente à sua casa em diversas ocasiões. Declarou que ele costumava vir num
camião, descarregava-o e ia-se embora. Lembrava-se muito bem dele
porque não gostara da forma como tinha olhado para a sua filha de quinze
anos. Disse que anotara o nome que estava na parte lateral do camião –
Transportes Franklin – por causa disso.
Através de outra empresa de transportes, Freda acabou por localizar
aquele nome perto da ponte de Londres. Não se atreveu a entrar no
escritório para investigar. A empresa estava situada sob um arco dos
caminhos de ferro, um lugar húmido e imundo onde dois homens com um
aspeto rude desmontavam um motor e o escritório não passava de uma
espécie de balcão e umas quantas prateleiras.
Algumas perguntas num café próximo revelaram-se úteis, mas algo
intimidadoras. Ficou a saber pela gerente que Del Franklin, o proprietário
da empresa Transportes Franklin, era um «sacana muito reles» que estava
metido em muitos negócios, todos eles «corruptos». Foi aconselhada a ir-se
embora e esquecer aquilo. Freda pediu muitas desculpas, mas ainda assim
mostrou-lhe as fotografias dos Parker. Para sua surpresa, a mulher acenou
com a cabeça e disse que Seth ia comer lá de vez em quando. Disse a Freda
que uma vez se vangloriara de ser o gerente de um ferro-velho que Del
possuía em Lewisham.
Freda descobriu que Lewisham era uma vasta área onde havia muitos
depósitos de sucata para investigar. Mas por fim, na última sexta-feira,
depois do que parecia uma eternidade de becos sem saída, Freda descobriu
o ferro-velho que procurava em Morley Road. Não havia nada nele que lhe
desse grandes esperanças. Como muitos dos que já vira, ocupava um lugar
bombardeado durante a guerra, desta vez na extremidade de uma fila de
lúgubres casas vitorianas. Espreitou pela vedação, mas não viu ninguém,
por isso voltou à velha rotina e bateu à porta da casa com melhor aspeto da
rua.
Uma mulher jovem com cabelo frisado e uma criança pequena na anca
abriu. Freda esboçou um sorriso simpático.
– Lamento muito incomodá-la. Sou do departamento de saúde pública e
queria fazer-lhe uma ou duas perguntas sobre o ferro-velho do fundo da rua.
Temos motivos para acreditar que pode ser um risco de saúde,
especialmente para crianças pequenas. Pode dispensar-me alguns
momentos?
Como esperava, a mulher convidou-a para entrar e até fez um bule de chá
enquanto se lançava numa longa diatribe de queixas.
– Agora está calmo – disse, e duas manchas vermelhas de raiva
coloriram-lhe as faces –, mas a meio da tarde é um inferno. Desmontam
carros e trazem cargas e mais cargas de lixo. Ficam lá até muito depois de
escurecer, acendem fogueiras malcheirosas e fazem tanto barulho que os
miúdos não conseguem dormir. Está a dar connosco em doidos.
Freda olhou à sua volta enquanto a mulher falava. Pareceu-lhe que era a
casa típica de uma família de operários, um pouco escura e acanhada, com
mobília barata, mas limpa e arrumada. Quando a criança se aproximou,
pegou-lhe ao colo e deixou-a brincar com o seu molho de chaves.
– Deve ser horrível para ti – disse, acariciando-lhe o cabelo numa
demonstração de ternura. – Sabe dizer-me alguma coisa sobre o
proprietário? O seu nome? De onde é?
– Há vários homens lá, mas não sabemos quem é o dono – respondeu a
mulher com um encolher de ombros. – A maior parte das pessoas que
moram aqui têm demasiado medo deles para lhes dirigir a palavra.
– Algum destes homens trabalha aqui? – perguntou Freda, tirando o
recorte de jornal da carteira. – Só entre nós, tivemos uma série de queixas
sobre estes irmãos noutras zonas de Londres.
A mulher pegou na desbotada fotografia de jornal. Se achou estranho que
uma funcionária dos serviços de saúde pública apresentasse uma coisa tão
amachucada e pouco profissional, não demonstrou. Em vez disso, arquejou.
– Sim, este é um deles – disse, a apontar para a fotografia de Seth. – No
entanto, o outro é quase igual, por isso não sei qual deles é. Nunca está bem
arranjado como aí, está sempre sujo e a precisar de fazer a barba. Algumas
das outras mulheres que moram ao fundo da rua dizem que já o viram
agachado no terreno a fazer as necessidades. É asqueroso. Espero que
possam fazer alguma coisa para acabar com aquilo.
O coração de Freda pulou de deleite e gratidão.
– Claro que vamos fazer tudo o que pudermos para fechar o ferro-velho –
garantiu à mulher. – Mas tenho de lhe pedir que mantenha sigilo sobre a
minha visita de hoje. Para conseguirmos processá-los, outros funcionários
do departamento de saúde pública farão visitas clandestinas ao ferro-velho
nas próximas semanas. Uma fuga de informação nesta fase pode pôr todo o
caso em risco. Não só dá aos criminosos tempo para começarem a limpar
tudo, como sabemos que podem ser muito desagradáveis com as pessoas
que acham que falaram sobre eles. A senhora e o seu marido já aguentaram
muito e não precisam de mais problemas.
A expressão ansiosa da jovem mulher confirmou que não diria nada.
– Mais uma coisa – pediu Freda enquanto se dirigiam juntas para a porta.
– Suponho que nunca viu uma rapariga nova ali? Tem cerca de um metro e
sessenta de altura, é magra e tem cabelo cor de cobre encaracolado e cerca
de dezanove anos?
A mulher abanou a cabeça loura de cabelo frisado.
– Não. Há uma mulher mais velha, com trinta e poucos anos, que vai lá
de vez em quando, mas mais nada. Acho que nenhuma rapariga no seu juízo
perfeito entraria ali com aqueles homens. Parecem-me todos muito
perigosos.
Freda parou momentaneamente no passeio junto da casa. Não pensara no
que faria depois de encontrar um dos Parker, e sabia que teria de elaborar
um plano infalível antes de os abordar. Porém, a sua curiosidade sobre Seth
Parker era tão grande que queria vê-lo, para ter a certeza de que todos os
longos meses de busca tinham chegado ao fim.
Enquanto olhava para o beco sem saída, para sua surpresa viu um jovem
alto subir para o cimo de uma pilha de carros velhos. Usava apenas uns
calções e o peito e membros nus estavam bronzeados, com um tom
castanho-dourado. O seu coração pulou de entusiasmo: mesmo a cerca de
doze metros, teve a certeza de que era Seth Parker só pela forma insolente
como olhava em volta. Aquela insolência era uma coisa que tinha sido
mencionada diversas vezes durante o julgamento e captada com muita
clareza nos desenhos do artista. Não precisou de se aproximar mais.
Nessa noite, pela primeira vez desde que começara a trabalhar na limpeza
de escritórios, Freda apressou-se a terminar o serviço. Na sua mente estava
a preparar uma carta para Seth Parker e mal podia esperar para chegar a
casa e escrevê-la.
Refletira sobre todas as razões plausíveis que poderia dar para precisar de
encontrar Rosie, e pensara muito no que levaria Seth a dar-lhe a morada.
Decidiu que o único estímulo provável seria dinheiro.

Seth estava a assobiar «Mountain Greenery», mas parou, surpreendido,


quando um carteiro entrou no ferro-velho na segunda-feira de manhã.
– Enganou-se no sítio, homem? – gritou à porta do barracão. – Desde
quando é que recebemos cartas?
– Não conhece um «Mr. S. Parker»? – perguntou o carteiro, olhando para
a carta que tinha na mão. – Está endereçada ao ferro-velho de Morley Road.
Seth ficou tão chocado que quase deixou cair a caneca de café Camp com
leite condensado que acabara de fazer. Ninguém sabia o seu nome
verdadeiro, nem Del nem ninguém. Todos o conheciam como Stan Willmot,
embora alguns dos rapazes lhe chamassem Tom Pearce por causa do
sotaque.
– Vamos lá dar uma olhada. – Avançou em passos rápidos pelo carreiro e
quase arrancou o envelope da mão do carteiro. – Talvez seja para o Stan.
Não sei qual é o apelido dele.
Viu que era a caligrafia de uma mulher e que o carimbo do correio era de
Camden Town. Ponderou se teria dito o seu nome verdadeiro a alguma gaja
quando estava podre de bêbedo.
– Oh, sim, é para o Stan – disse, esperando que o carteiro não tivesse o
hábito de verificar as identidades dos destinatários. – Quando ele chegar,
entrego-lha.
Depois de o carteiro desaparecer, sentou-se em cima de dois pneus,
acendeu um cigarro e abriu a carta. A caligrafia tremida era difícil de ler, e
de qualquer maneira a leitura não era o seu ponto forte.

Caro Mr. Parker,


Tenho motivos para acreditar que é o irmão de Rosie Parker, que
trabalhou num lar no norte de Londres onde eu sou enfermeira. A
Rosie foi-se embora há dois anos sem deixar um novo endereço e
preciso muito de encontrá-la porque um dos nossos doentes morreu
recentemente e deixou-lhe um pequeno legado. Eu vou a Lewisham na
manhã de sexta-feira desta semana e espero poder falar consigo
sobre este assunto.
Com os melhores cumprimentos,
J. Marks.

Precisou de lê-la várias vezes antes de perceber o que eram todas as


palavras e não sabia bem o que significava «legado». Esperava que fosse
dinheiro. O seu primeiro pensamento foi que a mulher ia ali para lho
entregar, e achou que era uma coisa boa. Não fazia a mais pequena ideia do
paradeiro de Rosie, e se soubesse onde ela se metera estaria a enfiar-lhe um
murro na cara, não a dar-lhe dinheiro.
O cérebro de Seth era muitas vezes lento. Só horas mais tarde é que
começou a pensar como é que a mulher descobrira onde ele trabalhava.
Estava convencido de que cobrira tão bem o seu rasto que ninguém
conseguiria encontrá-lo.
Ser descoberto, e por causa da irmã, trouxe de volta toda a intensidade da
raiva que sentia por ela. Na sua opinião, era por causa de Rosie que o pai
estava morto e Norman se fora embora e estava algures no Norte. Cole ter
sido enforcado fora muito mau, mas perder o irmão tinha sido muito mais
doloroso. Seth estava convencido de que depois do julgamento ele e
Norman poderiam arranjar uma casinha para morarem juntos e continuarem
a fazer a mesma vida de antes, mas o irmão abandonara-o. Mesmo agora,
quase três anos depois, as suas palavras iradas ainda doíam: «Odeio-te, seu
sacana mentiroso. Nunca mais quero voltar a ver-te. Quero esquecer que
tive um irmão. Não tentes encontrar-me. Tu e eu estamos acabados.»
May Cottage, e todos os móveis bons da sala de visitas que podia ter
vendido por alguns xelins, tinham desaparecido, e de repente tudo o que
tomara como certo na vida também se tinha evaporado. Ele era alguém no
Somerset. Entrava em qualquer pub e pagavam-lhe uma bebida; as pessoas
respeitavam-no, faziam o que ele pedia. Seth não gostava de cidades
grandes, havia demasiados homens mais duros e mais inteligentes do que
ele, e descobrira que sem o apoio do irmão não era tão corajoso como
sempre pensara.
Fora por isso que se juntara a Del e aos seus comparsas. Não gostava
muito de ser tratado como um campónio burro e também não gostava que
lhe chamassem «Swede», o nome que davam a todas as pessoas que vinham
de fora de Londres. No entanto, recebia um bom dinheiro todas as semanas
porque conhecia o ofício do ferro-velho como a palma da mão, sabia manter
a boca fechada e era hábil com os punhos. A maior parte do tempo
considerava-se um homem de sorte.
Porém, de vez em quando tinha ataques de puro pavor, regra geral a meio
da noite, e quando acordava via que fizera xixi na cama outra vez. Não
tinham conta os quartos de onde tinha sido expulso por causa disso. Punha a
culpa na falta que sentia do pai e do irmão, e dos brejos onde crescera e
aonde nunca mais poderia voltar. Isso levava-o a pensar em Rosie e o ódio
que sentia por ela crescia em cada noite que se descuidava.
Sabia que vivia no fio da navalha. Os tipos de Londres para quem
trabalhava eram verdadeiros bandidos. Podiam parecer um bando de
saltimbancos, mas eram argutos e perigosos e estavam envolvidos em tudo,
desde assaltos a bancos até drogas. Não eram leais a ninguém a não ser aos
seus, e Seth sabia que não pensariam duas vezes antes de o deixarem arcar
com as culpas se as coisas se complicassem um pouco. Também tinham
ciúmes porque as mulheres ficavam caidinhas por ele. A verdade é que Seth
não tinha um verdadeiro interesse por mulheres. Gostava de uma rapidinha,
e nada mais. No entanto, os rapazes não sabiam isso; pensavam que ele era
o maior.

Às onze da manhã de sexta-feira, Freda entrou no ferro-velho e dirigiu-se


para o barracão. Chovia muito e foi extremamente difícil evitar a grande
quantidade de poças. Sentiu alguma pena dos habitantes de Morley Road. O
ferro-velho era um sítio horrível: dúzias de carros em várias fases de
desmontagem das peças úteis, velhos fogões, banheiras, lavatórios e
depósitos de água em pilhas altas. E cheirava muito mal, a borracha a arder,
gasolina e uma coisa mais desagradável que reconheceu como excrementos.
– Mr. Parker! – chamou, enquanto batia à porta entreaberta do barracão,
hesitante. – É Miss Marks. Posso entrar?
Esperava estar bem disfarçada. Vestira a velha gabardina azul-marinho e
um chapéu de feltro, e tinha o distintivo de enfermeira credenciada preso na
lapela. Podia passar facilmente por uma enfermeira domiciliária.
Sentiu o cheiro de Seth antes de ele chegar à porta. Era o mesmo cheiro –
a suor e urina – que pairava à volta dos doentes em Carrington Hall. Soube
logo que ele fazia xixi na cama e que era muito provável que estivesse a
viver no barracão. Reprimiu o nojo e preparou um sorriso.
Ele era sem dúvida um homem muito atraente; os desenhos do tribunal,
as fotografias dos jornais e o que vira na semana anterior não lhe faziam
verdadeira justiça. Usava uma camisa imunda e calças com massa
lubrificante incrustada, mas a única coisa que viu foi o rosto por cima da
roupa: cabelo preto e brilhante como alcatrão novo, olhos escuros
reluzentes, pele dourada e dentes muito brancos. Precisava muito de fazer a
barba e de tomar um banho, mas, tendo em conta as suas origens, não era
surpreendente.
– Isto está um bocado sujo – disse ele, mas depois de olhar para a chuva
fez-lhe sinal para entrar. – E desculpe o cheiro. Acho que alguém entrou
aqui ontem à noite.
O barracão devia ter uns quatro metros quadrados. Havia uma mesa perto
da porta e sacos e caixotes cheios de trapos ocupavam praticamente todo o
espaço de chão. Num canto havia dois velhos assentos de carros com uma
pilha de sacas e cobertores; um fato e uma camisa branca estavam
pendurados num prego na parede. Como Freda pensara, ele morava aqui.
Lembrou-se do que soubera sobre como ele e a sua família viviam pelos
jornais e perguntou a si mesma onde é que Rosie teria ido buscar aqueles
ares e graciosidade.
– Então, recebeu a minha carta? – começou. – Estou muito ansiosa para
encontrar a Rosie, para despachar este legado.
Seth perguntara a alguém o que significava aquela palavra e tinham-lhe
dito que podia significar dinheiro ou um presente. Também fora informado
de que seria extremamente improvável que lho confiassem para o entregar
ao beneficiário.
– Não posso dizer que sei onde ela está – disse, a coçar a cabeça. – Não a
vejo há dois anos. Posso ficar com o que tem e entregar-lhe quando ela
aparecer. Mas não sei dizer quando será.
Pouco depois de chegar a Londres, Seth descobrira que às vezes
compensava agir como um provinciano burro. Conservara
propositadamente o sotaque do Somerset porque percebera que fazia as
pessoas confiarem nele.
– Por muito que gostasse, não posso fazer isso, Mr. Parker – disse Freda.
– Não é permitido. Tenho de lho entregar diretamente, ou então volta para o
solicitador e fica na sua posse até conseguirem encontrá-la. – Fez uma
pausa para ele poder assimilar as suas palavras.
– No entanto, devido às circunstâncias da sua família, poderá ser
embaraçoso para ela – continuou. – Sabe, a sua irmã dizia que se chamava
Smith no nosso lar. Eu fui a única pessoa a quem ela confidenciou a sua
verdadeira identidade.
A boca de Seth abriu-se. Não lhe ocorrera que esta mulher soubesse sobre
Cole. Foi ainda mais surpreendente descobrir que, mesmo sabendo, ela
estava disposta a fazer alguma coisa pela filha dele. O tipo de pessoas com
quem se relacionava ficariam impassíveis se lhes dissesse que o pai matara
um polícia ou batera noutro vilão até à morte; nem sequer levantariam a
cabeça para olhar para ele. Mas um assassino de mulheres era outra história.
Seth nunca contara a sua história a ninguém. Ficou surpreendido por Rosie
ter contado.
– De quanto é que estamos a falar? – perguntou. Sentiu-se muito pouco à
vontade ao perceber que ela sabia tanto sobre si e a sua família. Desejou ter-
se arranjado, ter recebido a mulher ao portão e tê-la levado para um café
para conversarem. Pelo menos podia ter-se ido embora, se fosse preciso;
aqui, sentia-se encurralado.
– Cerca de mil libras – respondeu Freda sem hesitar. – Se não sabe onde
ela está, talvez conheça alguém que possa saber?
Seth abanou a cabeça. Pensar que Rosie ia receber todo aquele dinheiro
só por ser boazinha com um velho excêntrico fê-lo ficar morto de inveja.
Mas ao mesmo tempo a sua ganância natural estava a dizer-lhe que podia
ultrapassar a raiva que sentia por Rosie se recebesse uma parte.
Freda quase conseguia seguir os seus processos de pensamento.
– Conhece uma Miss Violet Pemberton?
Seth abanou uma vez mais a cabeça.
– É a assistente social que levou o seu irmão e a sua irmã – disse ela
devagar. – Tenho a certeza absoluta de que ela sabe onde é que a Rosie está,
mas não acredito que me diga porque foi ela que a protegeu da imprensa na
altura do julgamento e que lhe deu uma nova identidade. Ela é muito
protetora. Mas, como é o irmão da Rosie, talvez lhe diga.
De repente, Seth lembrou-se do nome. Recordou-se de o seu advogado
falar sobre ela. Era aquela tipa velha que convencera a polícia a retirar as
queixas mais leves contra si.
– Sabe onde é que ela vive? – perguntou.
– Tenho a morada dela no Somerset. Se pudesse contar consigo para ir
visitá-la e obter o novo endereço da Rosie, tiraria dinheiro do legado para
pagar as suas despesas.
Embora fosse lento, de repente Seth percebeu que a mulher não podia ter
bons motivos para querer encontrar a irmã. Se fosse bem-intencionada, teria
escrito a Miss Pemberton, ou dado instruções a um solicitador para entrar
em contacto com ela.
Empoleirou-se na ponta da mesa e observou-a. O casaco e o chapéu eram
parecidos com os que as enfermeiras usavam e tinham desviado a atenção
do seu rosto num primeiro momento. Agora, viu uma boca malévola e
reparou que tinha os olhos muito juntos. Ponderou se seria mesmo
enfermeira e o que é que Rosie teria feito para a pôr à sua procura.
– De quantas «despesas» estamos a falar? – perguntou, semicerrando os
olhos. – Eu ia precisar de pedir uma licença, de dinheiro para a gasolina e
talvez de passar uma noite num hotel. Não me importo muito se não voltar a
ver a minha irmã, por isso teria de me dar alguma coisa pelo incómodo.
Freda refletiu durante alguns instantes. Aquele homem não era tão burro
como pensara. Desconfiou que a tinha desmascarado. Porém, precisava da
sua ajuda e tinha uma forte sensação de que ele conseguiria o endereço de
Rosie se lhe pagasse bem.
– Dez libras já. Outras dez se arranjar a morada.
Seth riu-se na cara dela.
– É maluquinha? Eu ganho dez libras aqui sentado o dia inteiro sem fazer
nada. Vinte e cinco agora e outro tanto quando fizer o serviço e posso
pensar no assunto.
Cinquenta libras era muito dinheiro para Freda, mas chegara até aqui e
não sabia como poderia recuar agora.
– Está bem, cinquenta libras ao todo. Mas quinze agora e o resto quando
me trouxer a morada.
Seth concordou tão depressa que Freda percebeu que ele teria aceitado
trinta, mas o negócio estava fechado e tinha de lhe entregar o dinheiro e a
morada de Miss Pemberton.
– Vai tratar do assunto depressa? – perguntou. O fedor do barracão estava
a deixá-la tonta e, embora fosse bonito, o homem tinha algo de repelente e
perigoso. – Preciso de resolver este assunto e tenho a certeza de que quer
que a Rosie receba o que lhe está reservado sem mais demora.
– Pode crer que trato – respondeu ele com um toque de ironia na voz. –
Agora, como é que entro em contacto consigo?
– Escreva-me quando tiver a morada. Eu venho cá no dia seguinte – disse
Freda. – Ainda tem a carta com o meu endereço?
Ele acenou com a cabeça e ela recuou para a porta.
– Obrigada. Estou-lhe muito grata.
Só quando descia a rua em direção à rua principal de Lewisham é que
Freda percebeu de súbito que Rosie ia ter mais problemas agora que Seth
estava envolvido. Teve a impressão de, que logo que tivesse a morada, ele
iria atrás dela. Talvez nem sequer precisasse de se vingar pessoalmente.
Aquele homem parecia capaz de ser o pior pesadelo de qualquer pessoa.
CAPÍTULO 16

– T em cuidado, Rosie! – gritou Donald quando ela começou a subir a


escada encostada a uma sebe de abetos demasiado grandes com uma
grande tesoura numa mão. – Deixa-me fazer isso.
– Tu não és tão rápido como eu – respondeu ela do alto, a olhar para o seu
rosto ansioso voltado para cima. A verdade é que não confiava inteiramente
nele para aparar. Ele costumava entusiasmar-se um pouco de mais, até a
sebe parecer um esqueleto. Esta só precisava de ficar sem uns sessenta
centímetros de ramos irregulares na parte de cima para ficar de novo direita.
Rosie adorava aparar sebes, sobretudo em dias quentes e soalheiros. O
jardim dos Baker era um dos mais bonitos em que já trabalhara: tinha uma
série de socalcos até ao relvado na parte mais elevada, onde se encontrava
naquele momento. Os Baker tinham plantado a sebe para proteger o jardim
das nortadas que varriam a parte mais alta da propriedade durante o
inverno, matando todas as plantas com exceção das mais resistentes. Agora
que estava no cimo da escada, a brisa era deliciosamente refrescante e via
os campos enquanto trabalhava.
Hoje estava especialmente feliz. Gareth telefonara na noite anterior e
parecia ter mudado de ideias desde o último fim de semana porque pensava
que talvez conseguisse ser transferido para Tonbridge. De sábado a oito dias
ia levá-la e a Donald a Eastbourne e passariam lá o dia. Era por isso que
hoje ela vestia apenas uns calções e uma blusa de tecido fino sem mangas
em vez das habituais jardineiras – queria bronzear as pernas antes de as
expor na praia.
Thomas também viria esta noite e ficaria dois dias. Esperava que o bom
tempo se mantivesse porque ele gostava de vir com ela e Donald e ficar a
vê-los trabalhar, mas não seria muito agradável se o tempo estivesse
húmido ou gelado.
Perguntou a si mesma se a mudança de atitude de Gareth e a sua vontade
repentina de ser mais simpático com Donald se devia à carta que lhe
mandara. Estava tão zangada no fim de semana anterior que lhe escrevera a
dizer que começava a ter dúvidas em relação a ele e que talvez não tivessem
afinidade suficiente para se casarem. Ele não mencionara a carta, mas era
típico. Nunca falava sobre nada de uma forma aprofundada.
– Não te estiques tanto – gritou Donald lá de baixo. – Desce e mudamos a
escada.
– Preocupa-te com o teu trabalho – replicou Rosie. No último ano,
Donald tornara-se muito mandão. Era bom ver que aprendera tanto que
queria assumir o controlo, mas também era irritante quando ele pensava que
sabia tudo. – Daí de baixo não consegues ver o que estou a fazer.
Era divertido aparar uma sebe. Sempre imaginara que estava a cortar o
cabelo a um gigante, um pouco aqui, mais um pouco ali, e depois descia a
escada para avaliar o progresso. Queria aprender a fazer topiaria. Seria
empolgante esculpir um pavão como vira num jardim em Heathfield.
Parou durante alguns instantes para observar o seu trabalho. Reparou num
pedaço que lhe escapara do lado direito e esticou-se para cortá-lo, mas
sentiu logo a escada mover-se por baixo dos seus pés.
– Donald! – guinchou, agarrando-se à sebe e deixando a tesoura cair. – A
escada!
O bocado de sebe escorregou entre as suas mãos quando a escada
deslizou para um lado, e de repente estava a cair de lado para os socalcos.
Aterrou de cara para baixo e bateu com os joelhos no muro do socalco. A
parte superior do corpo caiu em cima das plantas e a dor foi tão forte que
nem sequer conseguiu gritar. Ouviu Donald gritar e os seus pés a correrem
com estrépito pelo jardim. Depois, de repente, ele pegou nela.
– Pousa-me na relva – foi tudo o que Rosie conseguiu dizer. – E vai
buscar ajuda.
Ele pô-la no chão com todo o cuidado, mas ainda assim as pernas doeram
tanto que gritou quando a pousou.
– Desculpa – disse ele. – Eu d-d-devia ter ficado a segurar a escada. A c-
c-culpa é minha.
Rosie abriu os olhos e viu que ele estava a chorar.
– A culpa não é tua – conseguiu dizer em voz rouca. – Agora, vai buscar
ajuda. Acho que tenho as pernas partidas.
Pensou em coisas estranhas enquanto estava deitada no chão ao sol e as
dores nas pernas aumentavam a cada momento que passava: que os Baker
iam ficar zangados quando chegassem a casa ao fim da tarde e vissem que
não tinha terminado de aparar a sebe; que devia ter esmagado todas as
flores daquele canteiro; e que as aparas da sebe tinham de ser apanhadas.
Depois, pensou em Gareth. Ele também ficaria zangado se não pudessem ir
a Eastbourne e quereria saber o que estava a fazer no cimo de uma escada.
E não poderia ver Thomas se estivesse no hospital. Levantou a cabeça uma
vez, o suficiente para ver os joelhos, e aquela visão fê-la sentir-se fraca.
Não passavam de uma massa ensanguentada.
Donald pareceu demorar muito tempo, mas por fim apareceu a correr pelo
portão lateral da casa, com uma garrafa de água.
– P-p-pedi a Mrs. Jackson na l-l-loja para chamar uma ambulância pelo
telefone – disse, esbaforido. – Depois corri para casa para contar à minha
m-m-mãe. Ela vem aí, mas eu corri s-s-sem ela. E t-t-trouxe-te água.
Sentou-se ao seu lado, deu-lhe água e depois molhou um lenço de assoar
e limpou-lhe o rosto com ele. Tinha o rosto contorcido de ansiedade, a
gaguez voltara e Rosie percebeu que se culpava. No entanto, em vez de
ficar preocupada, de repente percebeu o que aquilo significava.
Acostumara-se tanto a estar com ele dia após dia que já quase não se dava
conta do seu progresso. Há dois anos duvidava que tivesse alguma perceção
da dor de outra pessoa, ou sentisse responsabilidade por ela. As suas
reações hoje tinham sido as de um homem normal, desde o momento em
que lhe dissera para ter cuidado até tirá-la do muro e ir pedir ajuda. Pensou
que teria de perguntar a Mrs. Cook se ele pensara na água sozinho ou se
fora ela que lhe dera a garrafa.
– Está tudo bem – sossegou-o em voz débil, e levantou uma mão para lhe
tocar no rosto transtornado. – Foi um acidente e a culpa foi minha porque
não estava a prestar atenção ao que estava a fazer. Tu fizeste tudo bem.

– Ora, minha jovem, hoje é o seu dia de sorte – disse o médico quando
entrou no cubículo com a radiografia nas mãos cerca de três horas mais
tarde. Era bastante idoso, talvez uns sessenta anos, com cabelo branco e
uma barba que parecia a do Pai Natal, mas tinha sido muito simpático com
Rosie e até conseguira fazê-la rir duas vezes. – Acho que os seus joelhos
devem ser de ferro fundido porque não há ossos partidos. Vão ficar muito
doridos nos primeiros dias, e acho que não vai conseguir andar, e muito
menos subir escadas, durante algum tempo.
Rosie ficou tão aliviada que começou a chorar e a rir ao mesmo tempo.
Mrs. Cook e a ambulância tinham chegado ao mesmo tempo. Donald
insistira em acompanhá-la para o hospital de Tunbridge Wells e, embora
com relutância, a mãe permitira, prometendo que iria mais tarde quando o
marido voltasse do trabalho. Desde o momento em que tinha sido trazida
para este cubículo na urgência, Rosie estava convencida de que seria apenas
uma questão de tempo até a levarem para uma verdadeira enfermaria, onde
ficaria internada várias semanas.
– Isso quer dizer que posso ir para casa? – perguntou.
– Claro que sim, depois de pormos um penso limpo nessas feridas – disse
ele. – Creio que os pais do seu amigo já chegaram, por isso vou falar com
eles e avisá-los de que não podem deixá-la ir a bailes durante uma ou duas
semanas. Depois, pode ir.

Foi Donald que a transportou ao colo para o quarto. Era extremamente


doloroso tentar dobrar os joelhos. Durante a viagem de carro para casa,
viera sentada de lado, com as pernas esticadas no colo de Mrs. Cook.
– Vou cuidar de ti até ficares melhor – disse ele enquanto a pousava na
cama com todo o cuidado. – E também vou fazer o trabalho todo sozinho.
Rosie deixou-o ajeitar as almofadas atrás das costas e sorriu-lhe. Talvez
fosse por causa da inversão de papéis, mas deu por si a tentar imaginar
como ele era há três anos quando a apertara num abraço naquela primeira
noite em Carrington Hall.
Na época era muito pálido e magro. Um corte de cabelo horrível e roupas
demasiado grandes contribuíam para a sua aparência negligenciada. No
entanto, pensando bem, o que a repelia verdadeiramente era a sua boca
babada e descaída. Agora, ao olhar para ele, percebeu que a boca já não era
assim. Continuava a ser grande, com lábios carnudos que se curvavam
facilmente num sorriso. No entanto, já não descaía. Em algum momento,
sem que tivesse reparado, isso desaparecera, juntamente com a gaguez e os
ataques de rebolar no chão quando ficava excitado.
– Porque é que estás a sorrir? – perguntou ele, e os seus olhos azuis
olharam-na com curiosidade.
– Porque te adoro – respondeu Rosie. – E porque foste muito inteligente
hoje.
Ele brindou-a com um dos seus radiosos sorrisos especiais, como quem
diz «eu também te adoro». Atenuou as dores nas pernas e diminuiu a
ansiedade em relação ao que Gareth diria quando soubesse do acidente. De
uma forma estranha, foi a justificação de que precisava para colocar o bem-
estar e a felicidade de Donald à frente de Gareth.
Thomas chegou às nove daquela noite. Rosie ouviu Donald cumprimentá-
lo à porta e começar imediatamente a contar-lhe a história do acidente.
Ainda a falar a mil à hora, trouxe-o para cima para ir vê-la.
– Pobre soldado ferido – disse Thomas, pesaroso, ao entrar no quarto. –
Aposto que dói imenso!
– É bem feito – disse Rosie com um encolher de ombros. Estava sentada
na cama, com as pernas esticadas, e agora um latejar e uma moinha tinham
substituído a dor aguda que sentia antes. – Pelo menos, não estão partidas.
– Vou ter de as observar todos os dias para ver se não gangrenam – disse
Thomas, brincalhão. – Se for preciso, o Donald e eu podemos cortá-las e
ensino-te a andar com uma perna postiça.
Donald pareceu alarmado. Não compreendia as piadas dos adultos.
– Não podes cortar a perna dela! – exclamou, sobressaltado.
– O Thomas só está a brincar comigo – disse Rosie suavemente. – Que tal
ires buscar uma bebida para ele enquanto lhe conto como foste inteligente
hoje?
Depois de ele sair, Thomas puxou uma cadeira para junto da cama e
sentou-se, esticando a perna à sua frente.
– Bem, isto põe-nos ao mesmo nível durante algum tempo – disse, com
um sorriso. – Pelo menos posso ter a tua atenção total durante dois dias,
sem andares a correr por todo o lado. Há alguma novidade para além desta
tragédia?
Rosie relatou-lhe sucintamente o sucesso continuado da empresa de
jardinagem e as observações que fizera hoje sobre Donald, e referiu que
Gareth falara em pedir transferência para Tonbridge.
Donald entrou com um grande uísque com água com gás e disse que a
mãe estava a preparar-lhe uma ceia.
– É melhor ir para baixo daqui a pouco, para poderes dormir – disse
Thomas. – Amanhã teremos o dia inteiro para conversar. Agora, não te
preocupes com o trabalho que ficou por acabar. Eu vou lá de manhã com o
Donald e vejo o que tem de ser feito. Não posso prometer que termino de
aparar a sebe, mas posso supervisioná-lo e segurar-lhe a escada.
Enquanto descia as escadas, Thomas sentiu-se ridiculamente trémulo.
Estava sempre preocupado com a possibilidade de Rosie ter um acidente
durante o trabalho, imaginando-a caída em grande agonia num jardim
isolado, com Donald demasiado transtornado para ir pedir ajuda. Nunca
confessara aqueles receios a ninguém, e muito menos a ela. Rosie só se riria
e lhe chamaria mariquinhas.
Era estranho como perder uma perna tinha alterado a sua perceção de
perigo. Quando fora para o exército nunca lhe passara pela cabeça que seria
ferido, e muito menos morto. Durante todo o tempo que estivera no campo
de prisioneiros de guerra, quando via outros morrerem de doenças tropicais
recusava-se a acreditar que também poderia ser vítima de uma. Mesmo
quando aquela úlcera se espalhou tão depressa na perna convenceu-se de
que podia ser tratada. Mas talvez a descoberta de que não era especial o
bastante para ser poupado fosse a razão por que agora via perigos terríveis à
espreita para fazer mal a Rosie. Ela era tão destemida e despreocupada
como ele fora outrora, a ir para o cimo de escadas altas, a trepar às árvores,
muitas vezes com ferramentas nas mãos que poderiam feri-la com muita
facilidade. Mas que poderia fazer? Não podia dizer-lhe que não suportava
vê-la sofrer.
Um homem mais forte viraria as costas àquele doce afeto que ela lhe
dava, sabendo que só servia para atormentá-lo ainda mais. Um homem mais
corajoso talvez admitisse o que sentia, correndo o risco de ser
completamente rejeitado. Mas ele já não era forte nem corajoso. Agarrava-
se ao que tinha como uma tábua de salvação: a sua amizade, confiança e
afeto. A maior parte dos dias era suficiente.

Rosie demorou algum tempo a adormecer. Ouvia as vozes de Thomas e


dos Cook a conversar lá em baixo na cozinha e foi bom saber que estavam
todos perto. Uma brisa suave e quente entrava pela janela aberta. Ouviu
uma coruja piar ao longe e aquele som fê-la recordar as noites de verão no
Somerset. Pensou em Alan. Ele já tinha nove anos e na última carta Miss
Pemberton dissera que tinha passado no exame do ensino básico e ia para a
escola secundária de Taunton. Rosie já não ficava triste quando pensava
nele. O irmão era muito feliz com Mr. e Mrs. Hughes e Thomas tomara a
decisão certa ao deixá-lo ser adotado. Só esperava poder voltar a vê-lo um
dia.
Antes de adormecer pensou no pomar de May Cottage. Viu-se a correr
atrás das galinhas com o irmão mais novo para que elas entrassem no
galinheiro ao fim da tarde. Sentiu a erva alta por baixo dos pés descalços,
viu o sol afundar-se a pouco e pouco nos brejos. Quando era muito
pequena, acreditava que a grande extensão de terra plana que via da
vedação do pomar era o mundo inteiro. Agora sabia que não, mas esta noite
sentiu que o que era verdadeiramente importante para si estava aqui nesta
casa.

Enquanto Rosie adormecia, Seth estava a comer peixe com batatas fritas
numa pequena carrinha Morris azul-escura estacionada numa zona remota
dos mesmos brejos que ela vira nos seus pensamentos. Tinha saído de
Londres às dez horas dessa manhã e fora diretamente para Chilton Trinity,
para ver onde morava Miss Violet Pemberton. Em seguida, fora até Taunton
para passar o tempo até poder pôr o seu plano em ação.
Seth era de raciocínio lento, mas não era totalmente parvo. Uma
assistente social que tinha sido responsável por pôr o irmão e a irmã em
famílias de acolhimento e sabia tudo acerca dos Parker não lhe daria a
morada de Rosie. Por isso, estava a pensar entrar lá em casa quando ela
estivesse a dormir, encontrar a informação de que precisava e pôr-se a
mexer para Londres.
Roubo era uma coisa sobre a qual Seth sabia tudo. Desde os catorze anos
que era um ladrão oportunista, entrando por uma porta aberta e enfiando
tudo o que podia nos bolsos. Mais tarde, depois da guerra, começara a
assaltar casas por arrombamento em Wells e Glastonbury. Nunca se dera ao
trabalho de assaltar casas grandes – as pessoas ricas prestavam demasiada
atenção à segurança e raramente tinham dinheiro à vista, que lhe interessava
muito mais do que coisas que teria de vender a recetadores. Ao longo dos
anos fizera dúzias de trabalhos quando estava com falta de dinheiro, e casas
como as de Miss Pemberton eram as mais fáceis de todas. A casa dela era
isolada, com as traseiras voltadas para os campos, e nessa tarde observara
que só vivia uma velhota na casa ao lado. Quando a velhota saiu com
passos vacilantes para ir à loja da aldeia, tinha-se esgueirado para as
traseiras da casa de Miss Pemberton e dera uma boa vista de olhos.
Para além de uma minúscula cozinha havia apenas uma grande sala, com
escadas para o primeiro andar. A secretária estava por baixo da janela das
traseiras e viu um livro de endereços ao lado do telefone. Se não temesse
que a velhota da casa ao lado voltasse de repente talvez tivesse partido o
vidro e roubado o livro de endereços naquele momento. Mas avistara uma
ou duas coisas que valia a pena levar, e era possível que a mulher tivesse
algum dinheiro escondido. Teria de esperar até à noite.
Seth terminou o peixe e as batatas fritas, vestiu uma camisola escura,
calçou luvas de pele, prendeu o pé de cabra, uma faca afiada e uma lanterna
no cinto, guardou os cigarros no bolso, saiu da carrinha e saltou um portão
de cinco traves. Demorou bastante tempo a atravessar os campos e chegar à
sebe que protegia o jardim de Miss Pemberton. A noite estava
agradavelmente quente, com o céu repleto de estrelas, e a Lua emitia uma
luz suficiente para ver o caminho sem precisar da lanterna.
Sentiu-se de novo poderoso porque estava no seu território. Em Londres,
nunca sentia que controlava plenamente a sua vida; era um simples moço de
recados de Del Franklin e dos seus rapazes e tinha a desconfiança quase
constante de que eles o enganavam. Talvez depois desta noite pudesse
separar-se deles e fazer uma coisa melhor.
Passados dois minutos estava a espiar Miss Pemberton da segurança da
arrecadação do jardim. Ela tinha corrido as cortinas da parte da frente da
casa, mas deixara as das traseiras abertas e, graças a dois candeeiros de
mesa, via-a claramente. Ela estava sentada num sofá com os pés levantados
num banco, com os óculos postos, a ler um livro. Ficou encantado ao
perceber que era mais velha e mais pequena do que esperava, uma simples
mulher gorducha de meia-idade. Seth riscou um fósforo, acendeu um
cigarro e olhou para o relógio antes de o apagar. Eram quase onze horas e
calculou que uma mulher daquela idade iria para a cama dali a pouco; a
casa ao lado, onde a velhota morava, já estava às escuras. Estava decidido a
esperar mais duas horas antes de entrar para ter a certeza de que ela estaria a
dormir profundamente.
Alguns minutos mais tarde a mulher levantou-se do sofá e foi para a
cozinha. O vidro daquela porta era canelado, mas via a sua silhueta e
calculou que estaria a preparar uma bebida quente. Ela abriu a porta das
traseiras para deixar sair o gato e, embora a tivesse fechado à chave, não
fechou a pequena janela adjacente. A luz da cozinha apagou-se, ela voltou
para a sala e também apagou a luz. Alguns segundos mais tarde acendeu-se
uma luz no primeiro andar e viu-a correr as cortinas.
Ouviu o barulho do autoclismo e água a correr, mas a luz do quarto
continuou acesa. A caixa de madeira onde estava sentado era
desconfortável. Apeteceu-lhe abrir uma das espreguiçadeiras que estavam
empilhadas contra a parede, mas teve medo de deixar cair alguma coisa. Por
fim, cerca de meia hora mais tarde, a luz apagou-se.
Seth sentou-se no chão, encostou-se à caixa e acendeu outro cigarro. Não
estava num lugar tão profundamente silencioso desde os tempos de May
Cottage, e gostou. Em Londres havia sempre barulho à noite, portas a bater,
pneus a chiar, bêbedos a gritar. Pensou em noites como esta, quando ia
apanhar enguias com Norman. Se ficassem quietos conseguiam ouvir as
enguias a deslizar, e quando as apanhavam e as punham num balde o som
da pele dos animais a esfregarem-se uns nos outros era quase como ouvir
sexo escaldante. Sentia a falta daquelas coisas – e de Norman. Ainda não
compreendia muito bem porque é que o irmão o tinha abandonado; podiam
ter tido uma vida muito boa juntos.
Os seus olhos já estavam acostumados à escuridão e observou o conteúdo
do seu esconderijo. A arrumação de tudo dizia muito sobre a personalidade
da mulher. Ferramentas de jardinagem penduradas em ganchos, uma
organizada pilha de vasos, latas de tinta numa prateleira e pincéis num
frasco de compota. Até cheirava a limpo ali dentro. Pelo que vira da casa,
era igualmente arrumada. Ia ser canja. Poderia entrar e sair em dez minutos.
À uma e meia esgueirou-se em silêncio pelo jardim, enfiou a mão pela
pequena janela, pegou na maçaneta da porta, rodou-a e entrou. Sempre se
orgulhara de ser furtivo. Uma vez, na escola, uma professora dissera que ele
se movia como um gato. Dirigiu-se logo para a secretária, mas ficou
desapontado ao perceber que o livro de endereços que vira anteriormente já
não estava lá. Tirou a lanterna do cinto e perscrutou a sala com o feixe de
luz. A luz incidiu sobre dois lindos castiçais de prata, duas molduras e um
relógio de mesa que poderia ser valioso. No entanto, primeiro teria de
descobrir a morada de Rosie.
Conteve a respiração e abriu a primeira gaveta da secretária com todo o
cuidado. Estava cheia de papel de carta. A gaveta seguinte tinha algumas
pastas de cartão. Abriu uma, depois outra, mas toda a correspondência era
datilografada e era improvável que fosse de Rosie. A última gaveta tinha
cartas normais, um monte delas, presas com um clipe. Pô-las em cima da
secretária e, segurando a lanterna para poder vê-las bem, examinou-as uma
a uma.
– Saia da minha casa!
Seth quase morreu de susto ao ouvir a autoritária voz da mulher. Não
ouvira um único ruído vindo do primeiro andar. Virou-se, espantado, e
deixou cair a lanterna, que rodopiou no chão durante alguns instantes. Ficou
paralisado de medo enquanto o feixe de luz brilhava pela sala, mostrando a
fantasmagórica figura da mulher no cimo das escadas.
– Não há nada nesta casa para roubar, seu bandido! – disse a mulher
numa voz dura e fria. – Saia imediatamente!
De repente, a luz do teto foi acesa e Seth ficou espantado ao ver que a
mulher segurava um grande pau de madeira escura e brilhante. Ela desceu
as escadas, dirigindo-se para ele, e as suas pernas transformaram-se em
gelatina.
– Matei cobras em África com este pau – disse Violet com muita calma. –
E não vou hesitar em bater-lhe com... – Calou-se de repente e os seus olhos
abriram-se muito. – Santo Deus, é o Seth Parker!
Já tinha sido bastante mau ser apanhado em flagrante, mas era pior ainda
ser reconhecido por uma mulher que nunca vira.
– Quero a morada da minha irmã – conseguiu gaguejar. – Se não ma der
já, vai arrepender-se.
– Não me parece – declarou ela, e continuou a descer até estar quase no
fundo das escadas. – Vou pegar no telefone e ligar para a polícia.
A sua calma e confiança enervaram-no. Já fora apanhado no meio de
assaltos e as suas vítimas ficavam sempre tão aterrorizadas com ele que
recuavam. E ela era uma mulher muito pequena. Mesmo nas escadas, os
seus olhos estavam abaixo do nível dos dele, cinzentos, firmes e sem medo
nenhum.
Seth deu um passo ameaçador para ela, esperando que recuasse, mas em
vez disso a mulher levantou o pau e desceu-o com toda a força. Se ele não
tivesse saltado para um lado, ter-lhe-ia acertado no ombro. Mas Seth era um
lutador de rua e, quando o pau desceu abaixo do alvo pretendido, agarrou a
ponta com uma mão e com a outra prendeu-a pelo ombro.
– Solte-o! – rugiu, puxando-a das escadas. A mulher era muito mais forte
do que parecia e lutou desesperadamente para se libertar. No entanto, não
era uma adversária à sua altura e ele depressa conseguiu arrancar-lhe o
bastão da mão.
Levantou o pau por cima da cabeça, pronto para lhe bater.
– Não – gritou ela. No entanto, aos ouvidos de Seth pareceu mais uma
ameaça do que um pedido de misericórdia e durante um breve instante quis
poupá-la. Havia provocação nos seus olhos frios; ela nem sequer estava a
tentar fugir. Aquela mulher era realmente corajosa.
Seth respeitava a coragem; no fundo, sabia que tinha muito pouca e isso
envergonhava-o. No entanto, do mesmo modo que via muitas vezes um
falcão a pairar no ar e admirava a sua extraordinária beleza, mas ainda
assim se sentia compelido a erguer a espingarda e matá-lo, também
levantou o pau e deu-lhe com ele na cabeça.
Ela desabou como um merengue atingido por uma colher. Seth observou-
a a deslizar para o chão com alguma surpresa. Não sabia porquê, mas
esperava que ela fosse mais resistente do que aquilo. Caiu de joelhos, a
segurar a cabeça entre as mãos, com os olhos finalmente arregalados de
terror.
– Por favor, não faça isto, Seth – choramingou.
Ele olhou-a com uma expressão de desprezo. A sua coragem desaparecera
e era mais uma mulher patética a implorar-lhe, como sempre faziam. Não
queria matá-la, mas sabia que tinha de ser. Ela sabia quem ele era.
Pegou no pau com as duas mãos e bateu-lhe repetidas vezes no crânio.
Ela caiu para a frente e Seth continuou a bater no seu corpo cheio de
espasmos como se fosse um saco de feno que queria achatar. Só quando a
camisa de dormir ficou vermelha com sangue é que parou. Por fim a mulher
ficou imóvel, e soube que estava morta.
Deixou cair o pau ao lado do corpo e demorou alguns minutos a perceber
a enormidade do que tinha feito. Ela parecia uma boneca partida, coberta de
doce de morango. Em pânico, correu para a porta das traseiras, mas quando
os seus pulmões se encheram de ar fresco e o momento de náusea o deixou,
ocorreu-lhe que tinha de fazer com que parecesse um verdadeiro assalto.
Voltou para a sala, evitou olhar para o corpo da mulher e correu as cortinas
da janela das traseiras.
Depois, foi sistemático. Acabou de verificar as cartas, mas não havia
nenhuma de Rosie. Abriu as gavetas da secretária e espalhou o seu
conteúdo no chão, e em seguida remexeu todos os armários e gavetas
daquela divisão. Encontrou uma bonita pulseira de prata que pôs de parte,
ao pé das molduras, dos castiçais e do relógio de mesa. No entanto, não
conseguiu encontrar o livro de endereços, por isso foi lá acima.
Por algum motivo, o quarto da mulher enervou-o. Estava muito vazio,
apenas uma cama estreita, uma cómoda e um guarda-vestidos, sem tralha
feminina, perfume ou cosméticos, e sem um único ornamento. Na parede
havia uma fotografia dela, tirada quando era muito mais nova. Vestia um
uniforme de enfermeira e estava rodeada de vários oficiais do exército
sorridentes. Seth interrogou-se distraidamente porque é que ela nunca se
casara.
O livro de endereços estava ao lado da cama, ao pé de uma carta meio
escrita. Pegou nele, mas antes de o guardar no bolso olhou para ver se Rosie
estava nele. Havia uma Rosemary Smith nos «S», numa morada no Sussex.
Pensou durante alguns instantes e achou que devia ser ela. Se não fosse,
bem, azar de Miss Marks.
Vasculhou uma carteira e encontrou sete libras e alguns trocos. Guardou o
dinheiro nos bolsos, apagou a luz e foi buscar as coisas que queria levar.
Passados dois minutos, estava a sair por onde entrara, tendo o cuidado de
trancar a porta.
Seth estava a meio caminho de Londres quando se apercebeu de que,
quando a notícia daquele crime fosse parar aos jornais, Miss Marks
adivinharia que ele era o responsável. O seu estômago contraiu-se e só teve
tempo de encostar a carrinha na berma da estrada e debruçar-se na janela
antes de vomitar com violência. Ficou parado na berma às escuras durante
cerca de quinze minutos, a tremer de medo. O que ia fazer? Um lado do seu
cérebro dizia-lhe que Miss Marks era desonesta o suficiente para ser
persuadida a manter-se calada, mas o outro lado dizia-lhe que não podia
contar com isso. Se não lhe levasse a morada de Rosie, ela ficaria zangada e
iria novamente à sua procura; se lha levasse e recebesse o resto do dinheiro,
saberia com toda a certeza que estivera lá.
Não tinha outra alternativa a não ser matá-la também.
Foi então que percebeu que as suas roupas estavam salpicadas de sangue.
Felizmente, tinha um fato-macaco na parte de trás da carrinha, por isso saiu
e vestiu-o, limpando os sapatos com uma mão-cheia de erva antes de
continuar a viagem.
O céu começava a clarear quando chegou aos arredores de Londres e
sentia-se muito cansado. Não se atrevia a adiar a ida a Camden Town, mas
estava muito assustado. Não tinha como saber se Miss Marks vivia sozinha.
Não havia tempo para vigiá-la, como fizera com Miss Pemberton.
Conduziu devagar por Harmood Street até ver que o número 13A era um
apartamento numa cave. Sentiu algum alívio. Teria sido muito mais difícil
se a mulher morasse nos andares superiores. Estacionou na esquina e,
depois de copiar a morada de Rosie do livro de endereços de Miss
Pemberton para um pedaço de papel, tirou um pesado martelo de unha de
uma caixa de ferramentas nas traseiras da carrinha, prendeu-o no cinto e
abotoou o fato-macaco por cima.
Tocou à campainha da porta da cave. Eram quase seis horas e as pessoas
caminhavam pela rua a caminho do trabalho. Recuou para não ser visto por
quem olhasse para a cave. Fedia a lixo e xixi de gato. Não era o tipo de casa
em que se esperaria encontrar uma enfermeira.
– Quem é? – perguntou ela do outro lado da porta trancada.
Seth lançou um olhar apreensivo para a rua. Esperava que ninguém o
ouvisse.
– É o Seth – respondeu. – Desculpe vir cá tão cedo, mas tenho o que
queria.
A porta abriu-se, mas ela tinha a corrente posta e Seth só viu metade da
sua cara.
– Eu disse-lhe para escrever – declarou ela num tom irritado.
Seth respirou fundo.
– Eu sei, mas tenho de ir trabalhar para o norte hoje e vou estar fora
durante semanas. Pensei que estava com pressa.
A mulher hesitou. Seth desejou poder vê-la bem.
– Se quiser, pode esperar até ao meu regresso – disse, encolhendo os
ombros e virando-se como se se fosse embora. – Mas tive de passar por
aqui e pensei que ia querê-la.
– Nesse caso, é melhor entrar – disse ela, e fechou a porta para retirar a
corrente.
Quando voltou a abrir a porta, Seth sorriu com todo o charme que
conseguiu reunir.
– Que coisa horrível que me pediu – disse, entrando antes que ela
mudasse de ideias. – Aquela Miss Pemberton parecia a minha antiga
professora primária, um verdadeiro dragão.
Freda estava apenas meio acordada, mas alerta o suficiente para perceber
que tinha de ter cuidado com aquele homem. Ele quereria o resto do
dinheiro e perguntou-se como ia tirá-lo do esconderijo sem que ele visse
quanto é que tinha.
– Não me oferece uma chávena de chá? – perguntou Seth com
descaramento quando estava na sala. – Fiz uma longa viagem. – Estava um
bocado espantado com tanta miséria. Já vivera muitas vezes em sítios
piores, mas a forma como Miss Marks falava e os seus modos altivos
tinham-lhe dado a impressão de que vivia bem. Havia pilhas de jornais
velhos, pó e fuligem por todo o lado, e até a cama de onde ela saíra há
pouco parecia tão imunda como muitas em que ele já dormira. Não lhe
apetecia chá, nem ficar aqui um momento mais do que o necessário, mas ao
mesmo tempo não queria parecer demasiado apressado para ela não se
assustar.
– Primeiro deixe-me ver a morada, e depois ponho a chaleira ao lume –
disse Freda. Estava abalada com esta visita inesperada e embaraçada por ele
ver onde vivia, mas também com muito medo de ser enganada. Não
estranharia se ele lhe desse uma morada falsa.
– Ela está no Sussex, num lugar chamado Granja – disse Seth, tirando o
papel do bolso. – Parece um sítio fino. Talvez seja outro lar.
Freda engasgou-se. A Granja era a casa de Mr. e Mrs. Cook. Sentiu uma
onda de raiva extrema consigo mesma por nunca ter pensado que Rosie
poderia tê-los procurado.
Seth viu a sua reação e ficou intrigado.
– A senhora conhece esta morada, não conhece? – perguntou.
– Bem, sim – admitiu Freda. – Só estou admirada por a Rosie não me ter
dito nem a mais ninguém que ia trabalhar para lá.
– Mas a nossa combinação continua de pé, conhecendo a morada ou não
– disse Seth rapidamente. – E foi precisa alguma persuasão para Miss
Pemberton ma dar.
– Vou fazer o chá – disse Freda sem hesitar. Quando se virou para ir para
a cozinha, pegou na carteira e levou-a consigo. Sabia que tinha menos de
três libras lá dentro, mas ele era bem capaz de a revistar mal ela estivesse de
costas voltadas. – Sente-se. Eu não demoro.
Encheu a chaleira e pô-la no fogão. Em seguida espreitou para a sala, para
ter a certeza de que ele continuava sentado perto da janela, baixou-se e
procurou debaixo do fogão a caixa de lata onde guardava todos os seus
documentos pessoais e dinheiro. Demorou apenas dois segundos a tirar as
notas de um molho. Guardou-as na carteira, pôs a morada dentro da caixa e
guardou-a debaixo do fogão.
– Põe açúcar? – perguntou passados dois minutos, aliviada por ter
conseguido ser rápida e tirar o dinheiro sem ele ver.
– Sim, duas colheres, por favor – respondeu Seth enquanto calçava as
luvas de pele. Agora, tremia de medo. Já estava claro lá fora, havia cada vez
mais pessoas nas ruas a ir para o trabalho e tinha ouvido os passos de
alguém no andar de cima. Tinha de fazer o que viera fazer e sair dali
depressa.
Ouviu-a abrir outra vez a torneira. Levantou-se, desabotoou o fato-
macaco, tirou o martelo do cinto e dirigiu-se furtivamente para a cozinha.
Quando espreitou, ela estava inclinada sobre o lava-loiça a lavar o bule.
Seth ergueu o martelo de unha por cima da cabeça, cerrou os dentes e
atirou-se a ela, batendo-lhe com toda a força na nuca.
Freda Barnes não gritou. Caiu para a frente sobre o lava-loiça; o bule caiu
no chão e partiu-se.
Seth bateu-lhe de novo, com mais força ainda, e depois puxou-a para o
chão e observou-a. Os olhos estavam revirados e a boca muito aberta.
Estava morta.
Olhou-a, enojado. O roupão soltara-se e viu a frente da camisa de dormir.
A mulher tinha umas mamas enormes e flácidas e a barriga estava saliente
por baixo delas. Deu-lhe um forte pontapé de lado, para jogar pelo seguro, e
depois pegou na carteira.
Logo que viu as notas enroladas lá dentro percebeu que ela devia tê-las
tirado de algum sítio na cozinha. Demorou apenas dois minutos a encontrar
a caixa escondida por baixo do fogão e o molho de notas escondido no seu
interior, juntamente com a morada que acabara de lhe dar. Sorriu de puro
deleite; a avaliar pela grossura, eram mais de quinhentas libras. Ainda bem
que viera.
Parou antes de sair, olhando em volta mais uma vez. Encontrara algumas
joias boas numa gaveta e ficou intrigado com elas e com o dinheiro. Porque
é que vivia num lugar tão miserável? Mais importante, no entanto, era
porque é que estava tão ansiosa para encontrar Rosie. As duas coisas
pareciam estar ligadas, mas não percebia como nem porquê.
CAPÍTULO 17

M rs. Underwood olhou com uma expressão especulativa para as duas


garrafas de leite que estavam no alpendre enquanto esperava que
Miss Pemberton abrisse a porta. Pensou que uma das garrafas devia ser do
dia anterior porque estava a talhar, e, no entanto, as cortinas do rés do chão
da vizinha continuavam corridas e já passava das dez da manhã.
Una Underwood era a viúva de setenta anos, magra como um espeto e
encarquilhada que vivia na casa ao lado da de Violet Pemberton. Tinham
um relacionamento cordial, mas não próximo. A assistente social saía
muitas vezes de manhã cedo e voltava à noite, já tarde, por isso às vezes
passavam muitos dias sem se ver. No entanto, se fosse passar a noite fora,
Violet pedia-lhe sempre para dar de comer ao seu gato.
Una estava intrigada. Tinha ido tocar à campainha da vizinha porque o
gato andava a miar à sua porta, esfomeado, no princípio da manhã. Depois
reparou que o carro de Violet continuava no lugar de sempre, um pouco
mais acima na rua. Deu a volta à casa e experimentou a porta das traseiras.
Estava fechada à chave. As cortinas da sala de estar nas traseiras estavam
corridas, por isso não conseguiu ver o interior casa. Pensou que aquilo
também era muito estranho. Violet nunca as corria no verão, dizia que
gostava de ver o pôr do sol. Mesmo que tivesse saído de manhã cedo para
apanhar o comboio e se tivesse esquecido de dar de comer ao gato e de
levar o leite para dentro, não conseguia imaginar a metódica vizinha a sair
sem abrir as cortinas. Una decidiu que teria de pedir a uma vizinha que
tivesse telefone para ligar para o gabinete de segurança social de
Bridgwater e perguntar se Violet estava fora em trabalho.
Uma hora mais tarde Hargreaves, o polícia local, subiu a viela na sua
bicicleta quando Una polia o batente de latão da porta.
– Bom dia, Mrs. Underwood – disse o homem alegremente. Encostou a
bicicleta à sebe, tirou o capacete e limpou a testa. – Ui! Hoje está calor.
Disseram-me que está um pouco preocupada com a sua vizinha.
– Talvez seja uma terrível coca-bichinhos – disse Una, ansiosa. Não
gostava que as pessoas pensassem que passava a vida a espreitar as idas e
vindas dos vizinhos. Explicou-se sobre o carro, o leite, as cortinas corridas e
o gato. – Pedi a uma vizinha para telefonar para o trabalho dela, mas há dois
dias que não a veem nem sabem nada dela. Às vezes tem de se ausentar em
trabalho, mas não é nada típico dela esquecer-se de me pedir para dar de
comer ao gato nem de telefonar para o escritório. Tenho medo de que esteja
lá dentro, demasiado doente para abrir a porta.
– Bem, vamos tirar isso a limpo – disse ele num tom suave enquanto batia
no ombro magro da velhota. – Não se importa de me acompanhar? Talvez
seja preciso partir um vidro para entrar.
Ao ouvir aquilo, Una pareceu ainda mais preocupada.
– Espero que ela não fique zangada comigo – disse. – Eu não gostaria que
alguém partisse as minhas janelas.
– Tenho a certeza de que vai ficar contente por se preocupar com ela –
disse o guarda. – E se estiver doente vai ficar muito agradecida.
Dirigiram-se juntos para as traseiras da casa de Violet.
– Estamos com sorte – disse o polícia com um sorriso ao ver que havia
uma pequena janela aberta ao lado da porta das traseiras. – Passo a vida a
dizer às pessoas para fecharem as janelas quando saem, mas é bom
encontrar uma aberta numa emergência.
Enfiou o braço e rodou a chave na porta das traseiras. Una preparou-se
para entrar atrás dele.
– Não, a senhora vai ficar aqui, Mrs. Underwood – disse ele. – Primeiro,
quero dar uma vista de olhos sozinho.
O arquejo que ela ouviu segundos depois disse-lhe que ele encontrara
alguma coisa má e, apesar do aviso, entrou disparada.
Desejou não ter entrado.
Não parecia Violet. Foi mais como ver um saco de entranhas
ensanguentadas no chão. Ela estava coberta de moscas e o cheiro era
horrível e enjoativo. A sala estava cheia de papéis. Nunca vira nada tão
horrível e as suas pernas cederam.

Ao fim da tarde desse mesmo dia Rosie, Donald, Thomas e Frank Cook
tomavam chá sentados no terraço da cozinha. Norah estava dentro de casa,
a participar na conversa pelas portas e janelas abertas enquanto preparava a
refeição da noite. Estavam todos a rir enquanto Donald lhes contava como
trouxera Thomas para casa hoje. Pelos vistos, Thomas deixara-se levar pelo
entusiasmo de ajudar a tratar dos jardins e ao fim da tarde doía-lhe muito a
perna. Donald obrigara-o a sentar-se no carrinho de mão e trouxera-o para
casa nele. Parecia que tinham sido vistos por bastantes vizinhos e Thomas
tornara a situação ainda mais caricata acenando pomposamente, como se
fosse um membro da realeza, sempre que se cruzavam com alguém.
Quando ouviram os sinais das seis horas no rádio, Frank pediu a Norah
para aumentar o volume para poderem ouvir o noticiário. Donald levantou-
se logo e foi para o jardim. Rosie levantou-se com alguma dificuldade. Os
joelhos continuavam rígidos e doridos, mas pensou que um pequeno passeio
poderia ajudar.
– Uma mulher de meia-idade foi encontrada hoje brutalmente assassinada
na sua casa na aldeia de Chilton Trinity, no Somerset.
Rosie parou ao ouvir o nome de uma aldeia que conhecia.
– A vítima foi identificada como Miss Violet Pemberton, uma assistente
social. Acredita-se que foi morta quando interrompeu um assalto na sua
residência. A polícia do Somerset está a proceder a buscas porta a porta,
pois acreditam que o assassino é um homem das redondezas.
– Violet! – exclamou Thomas com um arquejo, e levantou-se. – Ouvi
bem? Disseram Violet Pemberton?
Frank acenou com a cabeça e Rosie sentou-se de novo com um baque,
demasiado chocada e horrorizada para falar.
Norah enfiou a cabeça pela janela.
– Ouviram? – perguntou. – Pobre mulher! – Ao ver os rostos
transtornados de Thomas e Rosie afastou-se rapidamente da janela e saiu
para o terraço a limpar as mãos a um pano da loiça. – Não a conhecem, pois
não?
Thomas acenou com a cabeça. Não conseguia falar. Queria consolar
Rosie, mas foi incapaz de mexer um músculo.
Norah ficou a olhar para eles durante alguns instantes e de repente
lembrou-se de quem ambos conheciam que vivia no Somerset.
– Não é a sua amiga, pois não? A senhora que conhecemos em Carrington
Hall?
Thomas conseguiu recompor-se o suficiente para confirmar.
Frank foi mais lento a perceber a quem e a que é que estavam a referir-se.
– Que coisa monstruosa! E ouvir a notícia assim, no rádio! – disse, num
tom que pareceu troar pelo jardim. – Pensei que só anunciavam o nome de
uma vítima depois de todos os familiares terem sido informados... –
acrescentou com alguma indignação.
– Ela não tinha família – explicou Thomas em voz baixa e rouca.
Frank e Norah estavam a falar ao mesmo tempo, mas Rosie sentiu que
todo o seu sangue se esvaía. Não conseguia mexer-se, falar nem ouvir o que
estava a ser dito. Só sentia uma raiva intensa a invadi-la por alguém, um
reles bandido, ter tirado a vida a uma mulher que era tão preciosa para si.
Apertou os braços da cadeira e a raiva que sentia cresceu e explodiu num
brado de dor.
– Rosie! – exclamou Norah, ainda mais chocada com aquele grito
primitivo do que com a notícia. – O que é, Rosie?
Thomas levantou-se da cadeira e aproximou-se dela como uma flecha.
Segurou-a com firmeza e abanou-a levemente para parar os gritos.
– A Rosie está em estado de choque. A Violet era muito importante para
ela – disse, abraçando a rapariga. – Não se importa de lhe ir buscar um
pouco de brandy?

Mais tarde nessa noite, quando Rosie já se tinha acalmado o suficiente


para conseguir pensar, perguntou a si mesma como é que teria aguentado
sem Thomas. Ele levara-a para a sala de estar, para longe de todos, e
abraçara-a. Deixara-a chorar e partilhara o seu desgosto porque
compreendia muito bem a importância que Violet tinha na sua vida. A
mulher não só conhecia o horror de tudo o que tinha acontecido em May
Cottage como a ajudara a esquecer a vergonha que sentia e a refazer a sua
vida. Thomas sabia que Violet nunca vira Rosie apenas como um dos seus
«casos» e tinha sido sua tia, amiga e conselheira. Se estivesse viva, não
duvidava que aquela mulher muitas vezes brusca, mas carinhosa, estaria no
casamento de Rosie e seria uma avó para os seus filhos. Era uma perda
terrível e cruel.
Thomas chorou juntamente com Rosie, pois também gostava muito de
Violet. Para além de organizar a nova vida feliz do sobrinho, e apoiá-lo e
aconselhá-lo durante a subsequente adoção, também se tinha tornado uma
amiga.
Rosie sabia que não podia esperar que os Cook compreendessem a sua
enorme sensação de perda. A única coisa que sabiam sobre Miss Pemberton
era o seu papel ativo na expulsão da enfermeira supervisora de Carrington
Hall. Embora soubessem que Rosie continuara a corresponder-se com ela
durante os últimos dois anos, os Cook nunca tinham tido motivos para
supor que eram mais do que cartas escritas por obrigação, relatórios
ocasionais do seu progresso, porque a mulher se interessava por ela.
Quis poder contar-lhes toda a história agora, pelo menos para que eles
pudessem compreender.
– Devo contar-lhes tudo? – perguntou a Thomas.
– Não sei – respondeu ele com franqueza, com os olhos castanhos cheios
de preocupação com ela. – Quando vieste para cá pensei que seria melhor
contares tudo e despachar o assunto, mas já passou muito tempo e agora
eles gostam profundamente de ti. No entanto, serem confrontados com esta
história de repente pode complicar a tua relação com eles. E de que
adiantaria contar-lhes agora, Rosie? Podia ajudá-los a compreender o
desgosto que sentes com a morte da Violet, mas mais nada.
Naquele momento, ela admitiu com uma expressão envergonhada que
também nunca contara a Gareth.
Thomas soltou um suspiro profundo e abraçou-a com força.
– Oh, Rosie! Como é que podes pensar casar-te com um homem sem lhe
contar uma coisa tão importante? Sempre pensei que lhe tinhas contado
logo.
– Nunca houve um momento certo – disse ela em voz sumida, a olhar
para o chão.

Quando Rosie entrou no quarto de Donald mais tarde para lhe desejar boa
noite, ele estava sentado na cama como sempre a ler uma revista de banda
desenhada, mas em vez de lhe sorrir como era habitual, olhou-a com uma
expressão de censura.
– Porque é que passaste a noite inteira a chorar e a falar com o Thomas?
Rosie não soube bem como responder. Ele era um adulto em muitos
aspetos, mas havia grandes áreas em que continuava a ser uma criança e,
por esse motivo, todos evitavam falar sobre coisas perturbadoras na sua
presença.
– Porque a senhora de quem ouvimos falar nas notícias era uma velha
amiga minha e do Thomas. Não poderia falar contigo da mesma maneira
sobre ela porque tu não a conheceste – acabou por dizer.
– Mas tu excluíste-me – disse ele, com o lábio a tremer.
– Não queria que me visses triste – respondeu Rosie, sentando-se ao seu
lado e pegando-lhe na mão. – Foi só por isso.
– Mas eu cuidei de ti quando magoaste os joelhos – disse ele. – Posso
cuidar de ti aconteça o que acontecer.
Os olhos de Rosie encheram-se de lágrimas ao ouvir a sua fiel resposta.
Ele podia ver o mundo e os problemas da perspetiva simplificada de uma
criança, mas a sua lealdade e afeto eram verdadeiramente adultos.
De certa forma, duvidava que Gareth tivesse uma atitude tão generosa.

Passados três dias, na segunda-feira de manhã, Donald e Rosie estavam


na estufa a desbastar alguns rebentos de goivos-amarelos. Thomas voltara
para Londres de comboio na noite anterior e, como os seus joelhos estavam
a melhorar bastante, Rosie sentiu que estava na hora de voltar a trabalhar
um pouco.
Os jornais do fim de semana estavam cheios de reportagens sobre o
homicídio de Miss Pemberton. A polícia ainda não prendera ninguém, mas
pensavam que o assassino tinha sido alguém que ela conhecia. O seu
trabalho social punha-a em contacto com tantas pessoas de todas as
posições sociais que demoraria muito tempo a investigar toda a gente.
Rosie ficara muito triste com a partida de Thomas. Ele consolara-a,
ajudara-a a ultrapassar o choque e ajudara Donald nos trabalhos de
jardinagem enquanto não conseguia mexer-se. No entanto, hoje sentia-se
um pouco menos angustiada. Esperava estar mais recomposta quando visse
Gareth nesse fim de semana.
Ele tinha-se mostrado pesaroso com o que acontecera a Miss Pemberton
quando falara com ele ao telefone, mas bastante indiferente à sua queda
grave. Disse que subir a escadas era um trabalho de homens e que era muito
bem feito para ela.
Rosie estava sentada num banco alto, a pensar na viagem que planeavam
fazer a Eastbourne no sábado e que tinha sido cancelada, e suspirou ao
olhar para os joelhos cobertos de ligaduras. Já não doíam tanto, era acima
de tudo uma moinha, mas não conseguia andar muito e estavam horríveis
por baixo das ligaduras. Gareth ia usá-los sem sombra de dúvida como mais
munições para lhe fazer ver que devia desistir da jardinagem.
– Parece o carro do meu pai – disse Donald, interrompendo os seus
pensamentos.
Rosie escutou. Parecia o ruído do Jaguar a aproximar-se da casa, mas a
estufa ficava no canto mais afastado do jardim das traseiras e a vista da
alameda ao lado da casa era tapada por arbustos.
– Ele não vinha almoçar a casa hoje – comentou. – Além disso, ainda só é
meio-dia.
Donald pousou as ferramentas e saiu apressado para saber o que se
passava. Rosie sorriu ao vê-lo correr pelo jardim. No passado, comparava-o
a um cachorrinho excitável; agora, estava a transformar-se num cão curioso
que tinha sempre de saber onde todos se encontravam e o que estavam a
fazer.
Ele desapareceu na esquina da casa. Rosie ouviu-o chamar o pai, mas
continuou a trabalhar. Passados alguns minutos, reapareceu à porta da
cozinha. Comia um bolo acabado de fazer e tinha um saco de compras no
braço.
– A mãe quer que eu vá à padaria – gritou do relvado. – E quer que
venhas cá dentro um instante.
– Está bem – respondeu Rosie. Limpou as mãos a um trapo e coxeou pelo
jardim até à casa. Apesar de a cozinha cheirar maravilhosamente a bolo, e a
grelha metálica de arrefecimento estar cheia de bolinhos de fruta, mal
entrou percebeu que tinha acontecido alguma coisa grave. Norah estava
sentada à mesa e o marido estava parado junto dela com a mão no seu
ombro. Ambos pareciam ansiosos. Rosie presumiu que deviam ter alguma
coisa para lhe dizer que não queriam que Donald ouvisse, e fora por isso
que o tinham mandado fazer um recado.
– O que é que aconteceu? – perguntou, antes mesmo de se dirigir para o
lava-loiça para lavar as mãos. – Tem alguma coisa a ver com o Donald?
O rosto de Frank costumava ser rosado, mas agora estava muito pálido.
Sentou-se pesadamente ao lado da mulher e entreolharam-se como se
estivessem a tentar decidir qual deles lhe contaria.
– Não tem nada a ver com o Donald. Houve outro homicídio – disse
Frank muito depressa.
Rosie esqueceu as mãos sujas.
– O quê? Na mesma aldeia?
Frank fez um som estranho na garganta.
– Não, em Londres. – Calou-se e passou a mão pela testa. Nunca o vira
tão preocupado. – É melhor sentares-te – acrescentou. – Isto também te vai
abalar.
– Foi a Freda Barnes – disse Norah em voz sumida. – O Frank leu no
jornal no emprego. Foi por isso que veio para casa.
– A enfermeira supervisora! – A boca de Rosie abriu-se de choque. – Tem
a certeza?
– Explica-lhe, Frank – pediu Norah, e começou a chorar. – Eu não
consigo contar-lhe.
Rosie escutou enquanto Frank lhe contava rapidamente como abrira o
jornal diário e lera uma reportagem sobre uma mulher que tinha sido
encontrada assassinada, desta vez num apartamento na cave de um prédio
em Camden Town. O corpo só fora descoberto vários dias mais tarde.
Quando lera o nome e percebera que era a ex-enfermeira supervisora de
Carrington Hall ficara tão alarmado que tivera de vir para casa.
Tirou o jornal dobrado do bolso e pousou-o em cima da mesa.
– Podes ler a notícia, Rosie. Eles referem as semelhanças entre os dois
crimes, ambas mulheres solteiras de meia-idade que viviam sozinhas,
mortas com cerca de oito ou nove horas de diferença uma da outra, as duas
ex-enfermeiras, e nos dois casos não havia sinais de arrombamento. No
entanto, o que me preocupa verdadeiramente nestas reportagens é que a
polícia parece não saber que as mulheres se conheciam. A não ser que lhes
falemos sobre a verdadeira ligação entre ambas, talvez não encontrem o
assassino.
– Ligação? – repetiu Rosie.
– Carrington Hall – disse ele. – Pode ter sido aquele tipo horrível, o
Saunders.
– Nem pensar! – exclamou Rosie, sobressaltada.
– Pode ter sido – disse Frank com um aceno entendido. – Já sabemos que
é um brutamontes e pode ter ficado com raiva da Barnes e de Miss
Pemberton depois de perder o emprego.
Rosie sentiu-se inquieta enquanto lia a reportagem a toda a velocidade. O
senhorio de Barnes tinha tocado diversas vezes à porta entre sexta-feira e
segunda-feira para receber a renda, mas ela não estava, o que era muito
estranho. Por fim, pensando que se tinha ido embora sem o avisar, usara
uma chave sobressalente para entrar. Encontrara o corpo na cozinha. Ela
tinha sido atingida na nuca com um objeto pesado.
Embora não tivesse nenhum motivo para ter pena de Barnes, foi chocante
saber que morrera daquela forma e sentiu uma tristeza renovada pela morte
de Miss Pemberton. Começou a chorar.
Frank deu a volta à mesa e pousou a mão no seu ombro.
– É quase certo que o Brace-Coombes vai falar com a polícia assim que
souber a notícia. Mas tu conhecias muito bem as duas mulheres, Rosie, e
sabes muito sobre o Saunders, por isso talvez possas ajudar mais do que ele.
Acho que devíamos telefonar para a esquadra da polícia agora e pedir que
venha cá alguém.
O coração de Rosie começou a bater irregularmente e sentiu um nó no
estômago.
Os polícias não eram como as pessoas comuns. Não podia dizer-lhes que
conhecia duas vítimas de homicídio e ficar por aí. Eles quereriam saber
como e porque é que conhecera Miss Pemberton. Em breve seria obrigada a
revelar a sua verdadeira identidade.
– Bem, o que é que achas, Rosie? – perguntou Frank. Pareceu-lhe que ela
estava um pouco apática. Não era nada típico dela.
Rosie estava a pensar profundamente.
Mr. Cook podia estar certo em relação a Saunders ter ficado ressentido
com as duas mulheres, especialmente se fora parar à prisão pelo que fizera
em Carrington Hall. No entanto, Freda Barnes não lhe causara problemas e
Miss Pemberton também não. Fora ela que o denunciara. A palavra
«ligação» proferida por Mr. Cook veio-lhe novamente à ideia. E se ela fosse
a ligação entre as duas mulheres?
A cozinha pareceu rodopiar à sua volta. E se Saunders tinha ido a casa
das duas mulheres à sua procura? E depois, por algum motivo, matara-as.
– Sentes-te bem, Rosie? – perguntou Norah. – Ficaste branca como a cal!
Pobrezinha, deixa-me fazer-te uma chávena de chá.
– Estou bem, obrigada. – Rosie ouviu a sua educada resposta automática,
mas parecia distante, como se nem sequer estivesse na mesma divisão que
eles. Outra ideia começava a formar-se na sua mente, uma ideia assustadora
e chocante em que não queria pensar. Havia mais alguém que poderia
querer encontrá-la.
Seth.
Uma imagem muito nítida veio-lhe à cabeça. Foi da última vez que tinha
visto o irmão, naquela tarde em que a atacara em May Cottage. Ele estava
enlouquecido de ódio por si naquele dia e, conhecendo-o como conhecia,
aquele ódio podia ter estado a corroê-lo desde então.
Rosie percebeu logo que teria de contar tudo aos Cook. Podia estar
enganada em relação a Seth. Do fundo do coração, esperava estar. No
entanto, não podia guardar para si uma suspeita tão sinistra e horrível, até
porque podia ter razão.
Olhou para Norah, e depois para Frank. Ambos tinham expressões muito
preocupadas. O afeto que sentiam por ela era tão forte que quase era
palpável, e sentiu muita vergonha por ter sido egoísta ao ponto de deixar
que a trouxessem para o seio da sua família e aceitar tudo o que lhe tinham
dado, enquanto os enganara ao esconder a verdade sobre quem era.
– Há uma coisa que tenho de vos contar antes de telefonarem para a
polícia – disse, hesitante, com a boca seca de medo. – Porque tudo se vai
saber quando eles falarem comigo. Devia ter-vos contado há muito tempo,
mas tive medo. O meu verdadeiro nome é Parker, não Smith. O meu pai
chamava-se Cole Parker e foi enforcado em 1952 pelo homicídio de duas
mulheres.
Norah sobressaltou-se e ficou rígida.
– Continua – disse Frank num tom austero, e aproximou-se mais da
mulher.
Rosie não conseguiu fitar os seus olhos chocados enquanto lhes contava a
história toda. Foi como arrancar a crosta de uma velha ferida dolorosa e
reviver toda a agonia uma vez mais. Foi invadida por um sentimento de
indignidade absoluta.
– Não vos devia ter deixado trazerem-me para a vossa casa – disse por
fim numa voz que foi pouco mais do que um sussurro. – Estou muito
envergonhada e lamento muito.
Fez-se silêncio na cozinha. Rosie esperou, com os olhos pregados no
chão, preparada para que uma tempestade se abatesse sobre a sua cabeça.
– Rosie, olha para mim! – disse Frank por fim.
Ela levantou a cabeça devagar e viu que ele tinha um braço à volta de
Norah. Ela chorava encostada ao seu ombro.
– O que esperas que façamos agora? – perguntou. Tinha uma lágrima a
escorrer pela face e ela nunca vira uma expressão tão sombria nos olhos de
alguém em toda a sua vida.
– Que me mandem embora – sussurrou ela. – Eu vou falar com a polícia e
depois faço as malas e vou. Sei que não me vão querer perto do Donald.
– Não te vamos querer perto do Donald? – retorquiu ele, soltando a
mulher e levantando-se.
Rosie encolheu-se. Pensou que ele ia bater-lhe. Pôs os braços à volta da
cabeça para se proteger do golpe esperado.
– Não te encolhas à minha frente, rapariga – gritou-lhe Frank. – Nunca
bati numa mulher em toda a minha vida e certamente não o faria a ti.
Rosie baixou os braços. Frank pegou neles, abanou-a um pouco e
aproximou o rosto do dela.
– Tens tão pouca fé em nós que pensas que te voltaríamos as costas por
causa do teu pai?
Ela não conseguiu falar. Lágrimas escorriam-lhe pelo rosto.
– Não sabes o que fizeste por nós? – perguntou Frank, e a sua voz falhou.
– Deste uma vida ao nosso filho. Tudo o que o Donald consegue fazer agora
deve-se a ti. É verdade que talvez tivéssemos conseguido algumas coisas,
com tempo e paciência. No entanto, acho que a nossa paciência se teria
esgotado muito depressa. Achas mesmo que te voltaríamos as costas depois
disso?
Rosie não soube o que dizer.
Norah aproximou-se e afastou o marido. Sem dizer uma palavra, puxou-a
para os seus braços e apertou-a com força, embalando-a no ombro como se
ela fosse uma criança pequena.
Lembrava-se de ter lido sobre o julgamento de Cole Parker. Para ser
totalmente sincera, se tivesse sabido que a filha daquele homem trabalhava
em Carrington Hall teria ficado chocada. Porém, como Frank tinha dito com
tanta clareza, Rosie conquistara o afeto e respeito de ambos. Agora, merecia
a sua proteção.
Frank pigarreou. Não era um homem emotivo por natureza e não falava
sobre os seus sentimentos com facilidade. No entanto, enquanto observava
a mulher a abraçar aquela rapariga frágil e franzina que nunca tivera a
infância feliz que os seus filhos tinham conhecido, sentiu uma enorme pena
dela.
– Nós amamos-te, Rosie. Amamos-te como és, com a bagagem que trazes
contigo – disse, bruscamente. – Tu não és responsável pelos atos do teu pai.
Tu és diferente, és um ser humano generoso e carinhoso. Se temos alguma
coisa a dizer sobre isto é só para te perguntar porque é que não nos contaste
antes.
– Tive medo – choramingou ela no ombro de Norah.
– Bem, nunca mais precisarás de ter medo – disse Norah e, soltando-a,
limpou-lhe as faces com um lenço de assoar. – Eu já calculava que o teu pai
era um brutamontes. Só tenho pena de não ter insistido para saber mais
sobre ele.
Enquanto ela se afastava para pôr a chaleira ao lume, Rosie percebeu que
tinha de lhes falar sobre as suspeitas em relação ao irmão.
– Espero sinceramente estar errada – disse sombriamente quando chegou
ao fim –, mas suponhamos que o Seth foi ter com elas para tentar encontrar-
me? Ele teve sempre um feitio horrível, sem respeito pelas mulheres.
Frank olhou para o rosto horrorizado de Norah e de novo para Rosie, que
estava destroçada. Mal se lembrava do julgamento dos Parker. Os jornais
estavam cheios de histórias sensacionalistas todos os dias e nem ele nem a
mulher gostavam de ler notícias macabras. A única coisa de que se
recordava sobre o caso era que o pai fora enforcado e o filho absolvido, e
acreditava muito no sistema judiciário britânico.
– Não vejo nenhum motivo lógico para o teu irmão fazer seja o que for
para te encontrar. O Saunders é um candidato muito mais provável – disse,
com calma. – O que é que o Seth poderia querer de ti que seja importante ao
ponto de matar?
– Não sei – disse Rosie. – Mas lógica é uma palavra que ele nunca
compreendeu e tenho um horrível pressentimento.

Falar com a polícia não foi nem por sombras tão mau como Rosie
esperava. Frank conhecia os dois agentes que foram lá a casa e ficou a
apoiá-la durante toda a conversa, falando por ela quando se ia abaixo. Os
dois polícias ficaram espantados ao saberem que ela era a filha de Cole
Parker e ainda mais surpreendidos quando avançou o nome do irmão como
suspeito. No entanto, embora dissessem que iam investigá-lo, pareceram
muito mais interessados em Saunders. Como Frank Cook, achavam que o
homem tinha ficado ressentido com as duas mulheres desde que fora
expulso de Carrington Hall.
Depois de os polícias se irem embora, Frank saiu com Donald de carro.
Ele estava muito curioso com a ida dos polícias lá a casa e quis distraí-lo,
ao mesmo tempo que dava a Rosie e à mulher oportunidade para
conversarem sozinhas.
– Acho mesmo que tens de dizer ao Gareth tudo o que nos contaste a nós
se ele te telefonar esta noite – disse Norah enquanto preparavam os legumes
para a refeição da noite. Parecia agitada e cortava cenouras como se
quisesse descarregar a ansiedade nelas. – Agora que a polícia vai procurar o
teu irmão, o teu nome pode ir parar aos jornais. Seria muito cruel deixá-lo
saber dessa maneira.
– Não posso contar-lhe uma coisa dessas ao telefone! – exclamou Rosie.
Gareth ligava-lhe sempre de uma cabina telefónica e podia imaginar as
pessoas a bater no vidro a pedir-lhe que se despachasse enquanto lhe
contava a história da sua vida.
– Eu não estava a dizer-te para lhe contares ao telefone, mas sim para
insistires que venha cá imediatamente, ou diz-lhe que vais lá. Tenho a
certeza de que o Thomas te recebe por uma noite, se for necessário. A
propósito, ele sabe alguma coisa sobre isto?
– Sim, sabe tudo – respondeu Rosie, e explicou-lhe que ele era irmão de
Heather e que se tinham aproximado depois de Cole ser preso.
Norah abandonou os legumes e escutou-a com os olhos muito abertos de
incredulidade, mas, quando Rosie lhe contou por fim sobre a adoção de
Alan, ela começou a chorar.
– Que homem bom e generoso – disse, por entre as lágrimas. – Eu sempre
achei que havia mais alguma coisa entre vocês e naquela tarde em que
ouvimos a notícia sobre Miss Pemberton tive a sensação de que partilhavam
um segredo. Mas nunca me passou pela cabeça que fosse uma coisa destas.
Thomas ligou quando ouviu a notícia do homicídio de Barnes no
noticiário das seis. Também estava abalado e, como Frank, suspeitou logo
de Saunders. Rosie contou-lhe tudo: que tivera de dizer aos Cook, a
conversa com os polícias e as suas desconfianças sobre Seth.
– Ainda bem que contaste tudo – disse ele, e admitiu que depois de
regressar a Londres pensara que devia tê-la encorajado a contar aos Cook
enquanto ainda estava lá. Não descartou completamente as suas
desconfianças acerca de Seth. – Parece-me improvável – disse. – Mas ao
observá-lo durante o julgamento percebi que ele era um homem perigoso,
sem quaisquer escrúpulos. Fizeste bem em dar o seu nome à polícia.
Thomas concordou que ela devia contar tudo a Gareth sem demora, antes
que ele soubesse por outra fonte.
– A Scotland Yard não anda com paninhos quentes quando estão em
causa homicídios – disse sem rodeios. – Já devem ter emitido um alerta
geral para Saunders e Seth serem levados para interrogatório. Podes apostar
o que quiseres que amanhã as fotografias dos dois vão estar nas primeiras
páginas de todos os jornais e é provável que o caso do teu pai volte a ser
falado. Quem me dera poder prometer-te que a polícia te vai proteger,
Rosie, mas não posso.
Rosie começou a chorar. Podia ir para Londres agora, mas antes de
chegar Gareth já teria quase de certeza saído com os amigos. Amanhã
talvez fosse tarde de mais.
– Queres que eu vá à casa onde ele mora e lhe conte? – sugeriu Thomas
ao perceber que ela estava muito preocupada. – Se sair agora, posso
apanhá-lo quando ele voltar do trabalho. Eu conheço todos os lados da
história, por isso talvez consiga explicar-lhe melhor do que tu porque é que
lhe escondeste isto.
Rosie achou que era uma boa ideia, se bem que um bocado cobarde da
sua parte. Todavia, mesmo que saísse naquele momento e conseguisse
apanhar Gareth em casa, ele não era muito compreensivo e era provável que
corresse com ela sem a ouvir bem. Thomas tinha jeito para as pessoas e
Gareth seria obrigado a ouvi-lo até ao fim.
– Acha que consegue? – perguntou. Sabia que ainda era um assunto
doloroso para ele.
– Eu suporto qualquer coisa por ti, Rosie – disse ele com um sorriso na
voz. – Dá-me a morada dele.

*
Às sete e meia dessa mesma noite Gareth abriu a porta do quarto e fez um
sorriso rasgado ao deparar com Thomas.
– Que surpresa, homem! – disse. – O que é que o traz por cá?
Thomas notou de imediato que ele estava preparado para sair. Usava
umas calças azul-marinhas muito elegantes, uma camisa branca impecável,
e cheirava a sabonete.
– Desculpa vir sem ser convidado, mas precisamos de ter uma conversa –
disse Thomas. – É sobre a Rosie e é muito importante.
Gareth olhou para o relógio.
– Combinei encontrar-me com os rapazes daqui a meia hora – disse ele. –
Vai demorar muito?
Thomas encrespou-se. Já tinha dito que era importante.
– Talvez – respondeu, e entrou no pequeno quarto antes que ele arranjasse
mais alguma desculpa.
O ciúme era uma emoção que Thomas desprezava e à qual se recusava a
sucumbir, e desde que conhecia Gareth tentava ser escrupulosamente
honesto consigo mesmo sobre se eram os ciúmes que o impediam de gostar
do rapaz. Todavia, desde o primeiro momento achara que ele era fútil e
limitado na conversa.
Porém, nos últimos dezoito meses tornara-se muito pomposo e obstinado.
Thomas viu isso agora no seu rosto: engordara, tinha uma expressão de
desprezo permanente e os seus olhos eram frios e desconfiados. Não
conseguia gostar dele, nem por Rosie.
– Viste a notícia do homicídio da Freda Barnes? – perguntou.
– Quem? – perguntou Gareth, parecendo espantado.
– A mulher que foi encontrada morta em Camden Town.
– Ah, sim. – Gareth acenou com a cabeça e sorriu. – O que é que isso tem
a ver consigo?
– Ela era a enfermeira supervisora de Carrington Hall – explicou Thomas.
– Raios partam! – Os olhos de Gareth abriram-se, interessados. – Que
coincidência duas pessoas que a Rosie conhecia serem assassinadas.
– Eu acho que é mais do que coincidência. – Thomas sentou-se em cima
da cama. Achou que Gareth nunca o convidaria para se sentar. – Há uma
possibilidade de o assassino andar atrás dela.
Thomas sabia que era insensível da sua parte começar a história com uma
declaração tão dramática, e talvez falsa, mas pensou que tinha de chamar a
atenção do rapaz.
Resultou. Gareth sentou-se na cadeira com um ruído surdo.
– Mas porquê?
Thomas avisou-o de que era provável que ficasse perturbado com o que ia
contar-lhe e pediu-lhe que o ouvisse até ao fim.
Gareth não interrompeu, mas à medida que Thomas foi contando a
história os seus olhos semicerraram-se e a sua cor intensificou-se; até o
pescoço ficou vermelho.
– Porque é que ela não me contou? – exclamou, furioso, quando Thomas
terminou. – Se isto não tivesse acontecido, ela casava-se comigo sem me
dizer?
Thomas pensou que as prioridades de Gareth estavam trocadas. Esperava
que a sua primeira reação fosse de preocupação com a segurança de Rosie.
– Acho que não. Ela estava à espera do momento certo – disse, devagar.
– O momento certo era quando me conheceu.
– Vá lá! – exclamou Thomas. – Alguma rapariga diria: «Sim, adorava sair
contigo, mas primeiro tenho de te dizer que o meu pai é um assassino.» Sê
razoável, Gareth. E, à medida que o tempo foi passando, começou a ser
cada vez mais difícil para ela contar-te.
Gareth estava claramente incapaz de raciocinar quando se lançou num
chorrilho de comentários acusadores sobre a reação da sua família, dos
colegas de trabalho e até dos patrões.
Thomas interrompeu-o.
– Pensei que amavas a Rosie.
– E amo – retorquiu Gareth, furioso.
– Então, que tal mostrares alguma compaixão por tudo o que ela sofreu? –
disse Thomas. – Ela nunca teve uma verdadeira infância. Desde os doze
anos tratou da casa para o pai e para os irmãos e foi uma mãe para o meu
pequeno sobrinho. Não tinha vida própria, amigos ou diversão. Depois, de
repente e sem aviso, descobre que o pai é um assassino. Dali em diante, sem
ter culpa nenhuma, é marginalizada. Não tem casa, não tem direitos, e
ninguém a não ser a Violet Pemberton se interessa por ela. Eu sei como foi
a vida dela naquela altura, até ir trabalhar para os Cook, e posso dizer-te que
a vida que ela teve te daria a ti, e a mim, pesadelos.
«Mas ela não ficou a lamentar-se pelos cantos, usou os talentos que tinha
para se valorizar. E vê o que fez com eles! Os Cook ficariam contentes se
ela impedisse que o Donald fizesse asneiras, mas ela ensinou-o a ler, a fazer
contas, deu-lhe um pouco de dignidade e libertou-os de ansiedade em
relação ao filho. Abriu a empresa de jardinagem e transformou-a num
enorme sucesso. É de estranhar que tenha conquistado o respeito e a
admiração de toda a aldeia? Para além de tudo isso, é uma das raparigas
mais bondosas e destemidas que já conheci. Tu és um homem de sorte por
ter aquela rapariga.»
– É fácil para si defendê-la porque soube sempre a verdade sobre ela –
disse Gareth, teimosamente.
– Achas que é mais fácil para mim ver coisas boas numa rapariga cujo pai
assassinou a minha irmã do que para ti, que estás apaixonado por ela? –
retorquiu Thomas com raiva. – Vou dizer-te porque é que a defendo: é
porque ela é uma pessoa muito especial. Quem lhe deu o nome de Rosie
acertou em cheio. Ela ergueu-se daquela pilha de estrume onde nasceu e
tornou-se uma coisa linda. Se não consegues ver isso, há alguma coisa
muito errada contigo.
Agora que começara, não conseguiu parar. Contou-lhe como Rosie
afastara Alan de May Cottage e contou-lhe com todos os pormenores a
tareia que Seth lhe dera. Descreveu todo o horror que ela testemunhara em
Carrington Hall e sentiu um certo prazer ao ver o rosto do homem mais
jovem empalidecer.
– Ela também não te contou estas coisas – continuou. – Talvez tivesses
ficado com pena se te contasse. Mas a Rosie não tenta suscitar pena nas
pessoas. Tu achas-te um homem grande e duro, Gareth, mas não passas de
um verme. Tens medo da coisa mais inofensiva da vida... as opiniões dos
outros. Se queres saber o que é a verdadeira coragem, pergunta à Rosie. Ela
é especialista.
Thomas levantou-se. Soube que tinha ido longe de mais e se ficasse mais
tempo era possível que lhe desse um ou dois murros.
– Vou-me embora. Só te peço que penses bem no que te disse e que
decidas se consegues ou não aceitar o seu passado. Se achares que não
consegues, sê um homenzinho e diz-lhe.
Enquanto descia a rua suja em direção à estação, lágrimas corriam-lhe
pelas faces. Estava envergonhado por ter sido tão duro com Gareth. Devia
ter sido mais brando, mais persuasivo. Teria sido cruel só porque também
estava apaixonado por ela?
Thomas tentava muitas vezes perceber qual fora o momento em que o
afeto e admiração que sentia por Rosie se tinham transformado em
verdadeiro amor adulto. Não tinha qualquer dúvida de que as sementes
tinham sido lançadas quando vira a sua coragem em Carrington Hall, mas
só quando se sentiu compelido a voltar a desenhar é que pressentiu a
verdadeira importância que ela tinha na sua vida.
Aqueles primeiros esboços foram todos de Rosie. No entanto, enquanto a
desenhava também se inspirava na sua força e depressa começou a olhar em
volta, de repente sedento de nova inspiração e desafios. Tinha comprado um
cavalete, óleos e telas e pintava furiosamente até às primeiras horas da
madrugada. Cenas da sua infância, de Singapura e da Birmânia, e cada vez
que terminava um sabia que tinha de agradecer a Rosie por lhe mostrar a
chave para libertar todas aquelas memórias, boas e más, e dar-lhe uma paz
interior há muito ansiada.
Talvez fosse inevitável apaixonar-se pela pessoa que lhe devolvera o seu
antigo espírito. Tinha aprendido a rir de novo, a gostar de companhia, a
olhar em frente em vez de pensar no passado com amargura. Por vezes
perguntava a si mesmo onde é que aquele amor o levaria. Era quinze anos
mais velho do que ela, tinha uma perna postiça e o cabelo a ficar ralo. Tinha
tantas hipóteses de a fazer amá-lo como de recuperar a sua perna. Todavia,
bastava-lhe ser uma pequena parte da sua vida.

No dia seguinte, às nove da noite, o telefone tocou na Granja e Rosie


levantou-se do sofá, onde estava a ver televisão com a família, e correu para
a entrada para atender. Ficou desapontada ao perceber que era para Frank, e
voltou para lhe dizer.
Depois de ele sair da sala, Norah bateu no lugar ao seu lado para que ela
se sentasse.
– Tenho a certeza de que o Gareth vai telefonar – disse. – Deve estar a pôr
os pensamentos em ordem antes de conversar contigo.
– Acho que já fez isso – disse Rosie, e uma lágrima escorreu-lhe pela
face. – Se se preocupasse comigo, tinha-me telefonado no instante em que o
Thomas o deixou. Aposto que foi ter com a preciosa mãezinha para saber
qual era a sua opinião.
Mrs. Cook pensou que era muito provável. No entanto, não conseguiu
dizer isso.
– Se ele for mais influenciado pelos outros do que pelo coração, então
talvez não seja o homem certo para ti, Rosie. Mas dá-lhe tempo, ele pode
estar em estado de choque.
Donald tinha estado sentado numa cadeira sem dizer nada durante esta
troca de palavras, mas quando viu as lágrimas de Rosie levantou-se e veio
ajoelhar-se à sua frente.
– Eu cuido de ti – disse. – Não precisas do Gareth.
Rosie começou a chorar mais. Donald não compreendia o que estava a
acontecer. A mãe tentara explicar-lhe, como faria a uma criança, que o pai
de Rosie tinha feito uma coisa muito feia há muito tempo e Gareth estava
zangado porque ela não lhe contara. Mas aquilo não fora suficiente para o
satisfazer. Todos evitavam falar sobre os dois homicídios na sua presença,
mas ele ouvira algumas coisas aqui e ali e estava extremamente curioso.
– Não deves chorar – disse, pondo uma mão na sua face e limpando-lhe
as lágrimas. – Não importa se o Gareth não está aqui contigo. Se aquele
homem mau vier cá, não o deixo fazer-te mal.
Até agora todas as ansiedades de Rosie se centravam em Gareth e em
todas as pessoas que conhecia, preocupada com a reação que teriam quando
descobrissem quem era o seu pai. No entanto, no fundo, quase no
subconsciente, pressentia que estava em perigo e era por isso que precisava
tão desesperadamente dele. Não dissera nada a ninguém e reprimia a
sensação sempre que ela tentava vir à tona.
Era estranho que Donald, que não conseguia compreender as
complexidades de acontecimentos passados e recentes, tivesse posto o dedo
na ferida.

Na manhã seguinte Rosie foi buscar o jornal ao tapete da entrada e viu


fotografias de Seth e Saunders na primeira página. O título era VIU ALGUM
DESTES HOMENS? Levou-o logo para a cozinha e entregou-o a Frank, que
estava a tomar o pequeno-almoço.
– Não tenho coragem para ler – disse em voz sumida. – Não se importa
de me resumir o que está aí escrito?
Ele esboçou um pequeno sorriso e tocou-lhe no braço.
– Senta-te e bebe uma chávena de chá – disse.
Norah estava em roupão, a fritar toucinho fumado no fogão. Tinha
olheiras, como se não tivesse dormido a noite inteira. Donald continuava no
primeiro andar.
– Diz-lhe depressa, antes de o Donald descer – pediu, a olhar para o
marido com uma expressão ansiosa.
Rosie serviu uma chávena de chá para si e acabou de encher a de Frank.
Esperou enquanto ele lia a primeira página.
– Não há grandes novidades – disse ele, dobrando-o para não se ver a
notícia. – Na verdade, é apenas um resumo de tudo o que já disseram e diz
que a polícia quer interrogar os dois homens. Um parágrafo sobre o
Saunders; parece que ele tem um historial de violência. Também há um
bocado sobre o teu pai. Mas não há qualquer referência a ti.
Frank ficou contente por Rosie não ter lido. Era uma reportagem
histérica, que faria metade da população correr para trancar as portas para
se proteger do assassino que andava à solta. No entanto, fê-lo pensar se a
sua casa estaria suficientemente segura e se se atreveria a ir para o escritório
até um ou os dois homens serem encontrados. Mas era um disparate. Em
primeiro lugar, não havia nenhuma prova concreta de que algum dos dois
homens tinha assassinado aquelas mulheres. E, se um deles tivesse, seria
estúpido ao ponto de vir aqui, sabendo que a polícia andava à sua procura?
O correio chegou quando Donald desceu e ele trouxe-o para a cozinha e
entregou-o à mãe. Norah olhou para as cartas.
– Há uma para ti – disse, olhando para Rosie. – Acho que é do Gareth.
Rosie abriu-a ansiosamente, mas o seu sorriso desapareceu ao ler a
primeira linha.

Cara Rosie,
Lamento, mas tenho de acabar contigo. Não é só por causa do teu
pai. Eu sei que não és culpada por isso, mas não foste propriamente
sincera comigo sobre muitas coisas, como a enfermagem e a vinda
para Londres. Também parece que gostas mais do Donald e da tua
jardinagem do que de mim. Acho que ambos vamos ser mais felizes
separados.
Melhores cumprimentos,
Gareth

Rosie leu a curta e fria carta duas vezes. Não conseguia acreditar que,
depois de lhe dizer que a amava durante mais de dois anos, a abandonava
agora, quando mais precisava dele. Nem sequer era homem o bastante para
reconhecer que estava abalado por saber quem era o seu pai; tinha de pôr as
culpas na sua mudança de ideias e no facto de estar mais interessada em
Donald e na sua empresa de jardinagem.
Norah aproximou-se de onde Rosie estava sentada e pousou uma mão no
seu ombro. Tinha visto a rapariga ler a carta e adivinhara o que dizia pela
sua expressão chocada. Rosie voltou-se para a patroa e enterrou o rosto no
seu peito durante algum tempo, mas controlou-se para não chorar.
– Lamento muito, Rosie – disse Norah. Não sentiu satisfação ao saber que
a sua intuição sobre Gareth estava certa. Teve a sensação de que Rosie teria
mais dificuldade para lidar com isto do que com todas as tragédias da sua
vida.

– Sinto-me muito responsável – disse Thomas para Norah ao telefone


uma noite alguns dias mais tarde. – Fui demasiado brusco com o rapaz. Não
devia ter saído quando saí. Devia ter ficado até o convencer.
Norah tinha telefonado para Thomas porque estava muito preocupada
com Rosie. Desde que a carta de Gareth chegara ela parecia um autómato, a
fazer tudo o que fazia normalmente, mas devagar, em silêncio e impassível.
Não tinha chorado nem falado sobre o assunto. Saía com Donald para
trabalhar, voltava para casa à hora do costume, fazia as refeições com eles,
regava o jardim todas as noites e depois ia ver televisão com eles, como era
habitual. No entanto, Norah sabia que a rapariga estava desesperadamente
infeliz e esconder a tristeza não ia ajudar em nada.
Surpreendentemente, Saunders tinha entrado numa esquadra da polícia
em Manchester no dia em que a sua fotografia apareceu no jornal. Parecia
que estava a trabalhar como porteiro noturno num hotel e tinha um álibi
muito sólido para as alturas em que as duas mulheres tinham sido
assassinadas, pois estivera de serviço desde as nove da noite até às nove da
manhã seguinte. Rosie limitara-se a encolher os ombros quando ouvira
aquilo. Nem sequer a notícia de que parecia ter escapado a qualquer
acusação criminal pelo que fizera em Carrington Hall pareceu afetá-la.
Frank tentara arrancar-lhe uma reação cerca de meia hora antes dizendo-
lhe que a polícia encontrara a carrinha de Seth algures nos brejos no
Somerset. Rosie olhara-o com uma expressão apática, como se não
soubesse do que ele estava a falar. Frank não conseguiu dizer-lhe que na
carrinha havia objetos que tinham vindo da casa de Miss Pemberton e do
apartamento de Freda Barnes. Não lhe pareceu sensato confirmar-lhe que o
irmão era mesmo o assassino.
– Se o Gareth a amasse de verdade, não seria necessário convencê-lo –
replicou Norah com firmeza. – Teria vindo para cá no comboio seguinte
para apoiá-la. Na minha opinião, ainda bem que se livrou dele, mas isso não
torna mais fácil vê-la completamente destroçada.
– Acha que devo ir passar uns dias aí? – sugeriu Thomas. – Talvez
consiga fazê-la falar. Só tenho alguns relógios para arranjar e posso
trabalhar aí. Mr. Bryant deve-me vários dias de folga e neste momento não
temos muito trabalho.
Norah esperava que ele dissesse aquilo.
– Seria maravilhoso se conseguisse vir – disse, ansiosa. – O Donald
parece um cão fiel, e nunca sai de perto dela, mas é possível que isso ainda
lhe faça pior.
– Vou para aí amanhã à tarde – disse Thomas sem qualquer hesitação.

Enquanto Thomas preparava algumas ferramentas e uma muda de roupa


numa pequena mala para viajar no dia seguinte, Seth andava a rondar as
traseiras de um pub no Somerset, a considerar qual dos cinco carros
estacionados ao lado do edifício seria mais fácil de roubar. Estava em
Brean, onde ele e Norman costumavam ir quando eram crianças para nadar
no mar e brincar na areia. A terriola não podia ser considerada uma estância
balnear, não como Weston-super-Mare, a alguns quilómetros de distância,
pois tinha apenas algumas casas espalhadas pela plana estrada costeira. No
entanto, havia um aldeamento turístico e diversos parques de caravanas. Em
julho e agosto era um lugar popular para famílias da classe trabalhadora,
que não pareciam importar-se com a falta de equipamentos e apreciavam a
comprida praia de areia.
Estava uma noite linda, quente e sem vento, e o céu parecia veludo preto
salpicado de lantejoulas, mas Seth não sentiu nenhum prazer ao pensar que
poderia passar a noite nas dunas, se fosse necessário, e adormecer ao som
calmante das ondas a rebentar na areia. Gostaria de poder ir ao pub.
Feixes de luz dourada saíam pelas janelas abertas juntamente com sons de
conversas, risos e tilintar de copos. «I’ll be Home Soon», de Pat Boone,
tocava na juke-box, e ouviu duas raparigas rir ao pé da porta enquanto
conversavam com alguns rapazes montados em bicicletas. Seth ansiava por
companhia, desejava mais do que tudo na vida juntar-se a todos aqueles
veraneantes com os rostos vermelhos do sol, beber duas canecas de sidra,
jogar dardos e observar as raparigas. Mas não se atreveu. Alguém poderia
reconhecê-lo.
Fora um erro voltar para o Somerset. Devia ter ido algures para o norte,
logo depois de acabar com Miss Marks. Porém, com todo o dinheiro que
encontrara, não conseguira sair de Londres. Comprara um bom fato,
hospedara-se num hotel chique, engatara umas raparigas e bebera até cair.
Depois, de repente, antes de ter tempo de pôr a cabeça em ordem, o corpo
da mulher tinha sido encontrado e viu, com choque e surpresa, que o seu
rosto estava estampado em todos os jornais diários, juntamente com o de
outro tipo qualquer.
Rosie pusera-o na berlinda. Teve a certeza disso, embora os jornais não
fizessem qualquer referência a ela. Todo o ódio que sentia pela irmã
ressurgiu mais forte do que nunca. Vingar-se-ia dela, mesmo que fosse a
última coisa que fazia.
No entanto, um instinto qualquer fizera-o voltar para aqui em vez de ir
para o Sussex ou fugir para o norte. Tivera a ideia de que se podia esconder
nos brejos durante semanas sem ser visto enquanto fazia alguns planos.
Todavia, aquilo já não era como nos velhos tempos; havia veraneantes por
toda a parte, a acampar, a caminhar, a fazer caravanismo e a andar de
bicicleta. Ele deixara a carrinha estacionada numa viela onde pensara que
ninguém repararia nela, fora dar um passeio com a espingarda para caçar
uns coelhos, e quando regressara a polícia andava de volta dela. Felizmente,
não o tinham visto; ele conseguira esconder-se atrás de uma sebe. Contudo,
tinham deixado um guarda a vigiá-la, por isso tivera de a abandonar,
deixando tudo o que estava no interior. Agora, só tinha a roupa que vestia, a
espingarda e as últimas cem libras que roubara a Miss Marks. Cheirava mal,
precisava de fazer a barba e estava desesperado porque sabia que havia
provas suficientes na carrinha, incluindo o martelo de unha, para ser
incriminado pelos dois homicídios.
Tinha de fugir. Havia polícia por toda a parte. Estava farto de se esconder
em valas e por baixo de sebes, e estava esfomeado porque não se atrevia a
entrar numa loja para comprar comida, cigarros ou um jornal. Se
conseguisse chegar ao Sussex e encontrar Rosie, poderia obrigá-la a ajudá-
lo antes de a silenciar de vez. Só precisava de um carro.
O Standard Vanguard pareceu-lhe a melhor aposta. Era novo e já
conduzira um antes para Del. Também era o que estava mais longe do pub,
por isso talvez ninguém ouvisse o ruído do motor e já estaria longe quando
percebessem que tinha sido roubado.
Estava com sorte. O carro não estava trancado. Sentou-se no assento e os
estofos de pele cheiravam bem. Demorou apenas dois segundos a fazer uma
ligação direta e afastou-se pela estrada costeira na direção de Burnham.
Dali, atravessaria o país para o Sussex.
Enquanto conduzia pela planície de Salisbury mais tarde nessa noite,
recordou-se do tempo que passara na tropa. Estivera colocado em
Warminster durante algum tempo e vinham muitas vezes para ali em
manobras. Olhando para trás, os seus tempos mais felizes tinham sido no
exército. Talvez devesse ter seguido a carreira militar.
A brisa suave que entrava pela janela era refrescante. Só conseguia ver a
estrada à sua frente no feixe de luz dos faróis e um ou outro coelho ou
raposa a fugir para um lugar seguro quando ele se aproximava. Desejou que
o dia estivesse a nascer para poder ver o sol aparecer no céu. A seguir aos
Levels, este era o seu lugar preferido, espaço vasto, com colinas ondulantes
e quase sem casas – uma natureza selvagem que combinava na perfeição
com a sua personalidade. Se pudesse escolher, gostaria de viver numa casa
recôndita, algures no meio da escuridão.
A força do hábito levou-o a esticar a mão para o assento do lado e
procurar os cigarros. No entanto, quando a mão tocou na pele macia
lembrou-se de que não tinha nenhum.
– Vai-te foder, Rosie! – exclamou. Também era a força do hábito que o
levava a culpá-la por tudo. Nos últimos dias, passara muito tempo a pensar
nela e a refletir sobre a melhor maneira de a castigar por lhe ter estragado a
vida.
Agora que pensava bem, tudo tinha começado com o seu nascimento. Até
então eram apenas Cole, Norman e ele. Claro que Ruby também estava lá,
mas não se metia muito na vida deles. Só limpava e cozinhava e, à sua
maneira, Seth gostava bastante dela. Era uma mulher suave e gentil como as
mulheres deviam ser.
– Foi em outubro, e chovia a potes – disse Seth em voz alta. Ele tinha
nove anos, Norman oito, e lembrava-se de chegarem da escola e verem que
o fogão se tinha apagado e a comida não estava na mesa. Ruby chamou do
primeiro andar.
– Vão pedir ajuda, rapazes – gritou. – O bebé vai nascer.
Eles subiram para ir vê-la. Ela estava deitada na grande cama do pai,
agarrada à trave de madeira da cabeceira. Tinha o rosto manchado e um
bocado inchado. A camisa de dormir estava aberta à frente e Seth lembrou-
se de que a sua barriga inchada estava muito branca e cheia de pequenas
veias azuis. Um grande seio estava à mostra e ele sentiu-se enjoado.
– Seth, corre para a aldeia e pede ajuda – disse ela, a arquejar. Dito isto, o
seu rosto contorceu-se e ela começou a fazer um som terrível no fundo da
garganta. Seth virou-se e correu.
Talvez tivesse ido pedir ajuda se não tivesse encontrado Tommy enquanto
ia para a aldeia, mas o outro rapaz vira algumas enguias grandes numa das
valas a cerca de um quilómetro e meio e, quando lhe perguntou se queria ir
apanhá-las com ele, esqueceu-se de Ruby.
Estava escuro como breu e eram quase oito da noite quando chegou a
casa. Ele e Tommy tinham apanhado cinco enguias e tinham-nas levado ao
avô dele. A avó dera sopa aos dois rapazes e secara-lhes as roupas
molhadas.
Quando entrou na cozinha, Cole correu para ele e prendeu-o por uma
orelha.
– Seu filho da mãe – gritou, puxando-o à bruta para o outro lado da
divisão. – Porque é que não foste buscar ajuda para a Ruby? Se eu não
tivesse chegado quando cheguei, ela podia ter morrido.
Cole atravessou-o numa cadeira, puxou-lhe as calças para baixo e bateu-
lhe no traseiro com uma vara. Mas o que tinha ficado verdadeiramente na
sua recordação, mais do que a dor, fora o som de um bebé a chorar no
primeiro andar. Nos dias seguintes, quando não conseguia sentar-se porque
o traseiro estava muito dorido, foi o bebé que culpou. E nos meses seguintes
teve ainda mais motivos para odiar a nova irmãzinha.
Cole adorava-a. Gabava-se no Crown de que tinha sentido logo alguma
coisa por ela porque fizera o parto, e chamou-lhe logo Rosie porque a sua
boca parecia um botão de rosa. Não teria sido tão mau para Seth se o pai
limitasse a conversa a outras pessoas, mas ele estava sempre a pegar na
bebé e a obrigá-los, a si e ao irmão, a admirá-la.
Segundo ele, era a bebé mais linda, inteligente e amorosa do mundo.
Chegava a casa depois do trabalho e tirava-a do berço antes mesmo de falar
com os rapazes. Nos fins de tarde de verão passeava pelo pomar com ela
nos braços. Quando Rosie aprendeu a andar, levava-a pela viela. Seth ainda
se recordava de ver aquele homem muito grande quase dobrado ao meio
enquanto lhe dava a mão.
Nada foi igual depois da chegada de Rosie. A bebé passou a ter toda a
atenção de Ruby e Cole exigiu que os rapazes ajudassem nas tarefas
domésticas aos sábados em vez de irem brincar para a rua. No passado,
Cole jogava muitas vezes à bola com eles ao fim da tarde, mas agora
sentava-se na cozinha a baloiçar Rosie no joelho. Ela recebia pedaços de
comida do seu prato e, quando ficou mais crescida, trazia-lhe fitas para o
cabelo e livros ilustrados. Seth ouvia-o dizer-lhe que a amava.
Seth estava convencido de que a única razão que levara Cole a subornar
alguém da comissão de recrutamento para ser declarado inapto para o
serviço militar também fora Rosie. Um por um, todos os homens fortes das
redondezas de Catcott foram para a guerra, e Seth e Norman tiveram de
aguentar as piadas dos outros rapazes que diziam que o pai deles era um
cobarde. Mais tarde durante a guerra, a opinião pública sobre Cole mudou
porque ele abastecia a aldeia de coelhos, patos e outros alimentos quase
sozinho, mas a vergonha daqueles dois primeiros anos de guerra ficou
gravada para sempre na sua lembrança.
Houve muitas vezes que sentiu vontade de fazer mal a Rosie, mas não se
atreveu. Cole era perigoso quando se zangava e ficaria mais do que zangado
se soubesse que a sua preciosa menina tinha sido tocada. A única maneira
se se vingar da miúda era através da mãe e, embora sentisse pouco azedume
por Ruby, para além de ter trazido a miúda para a sua casa, arranjava dúzias
de maneiras de irritá-la. Cole podia idolatrar a filha, mas não era tão
compreensivo com Ruby. Se o seu jantar não estivesse servido quando
entrava pela porta, se a sua melhor camisa não estivesse engomada e
arejada quando precisava dela, ou se pensasse que ela andava a esbanjar o
dinheiro da casa, era muito provável que lhe desse um estalo.
Era muito fácil distrair Ruby enquanto estava a cozinhar o almoço; ela
não era uma mulher muito inteligente. Um dos seus truques preferidos era
atrasar os ponteiros do relógio e depois mudá-los rapidamente quando ouvia
a camioneta do pai. A melhor camisa podia muito bem cair do estendal para
a lama no pomar. Tirava algum dinheiro da lata e ia à aldeia comprar
alguma coisa frívola e feminina, e depois deixava-a algures onde o pai
visse.
Sempre que Cole esbofeteava Ruby, Seth esperava que ela fugisse como a
sua mãe fizera. Não acreditava que deixasse Rosie. Gostava demasiado da
filha.
Porém, Ruby não se foi embora. Seth apanhava-a muitas vezes a chorar.
Uma noite, ouviu-a dizer a Cole que pensava que Seth estava a pregar-lhe
partidas para lhe arranjar problemas, o que originara mais uma discussão.
Pouco depois, Cole começou a ficar carrancudo com ela, e ela com ele, mas
ainda assim ficou.
No verão de 1942, quando Seth tinha quinze anos, Cole e Norman foram
fazer um trabalho de dois dias em Birmingham, deixando-o a tomar conta
de Ruby e Rosie, a arrumar o ferro-velho e a vigiar para garantir que não
havia incêndios provocados por bombas, uma tarefa que era da
responsabilidade do pai. Seth ficou muito ressentido por ser deixado em
casa. A probabilidade de Catcott ser bombardeada era extremamente
remota; o máximo que viam da guerra era aviões a sobrevoar o céu e alguns
estrondos distantes vindos de Weston-super-Mare. Ele queria ver os
estragos provocados pelas bombas em Birmingham. Até esperava ser
apanhado num raide aéreo para ter alguma coisa de que se gabar aos
colegas. Enquanto trabalhava sob o sol quente, a carregar madeira e a
deslocar pilhas de pneus, o ressentimento que sentia por Ruby e Rosie
tornou-se ainda mais forte.
Depois do jantar, foi para o quarto dormir um pouco antes de sair para
vigiar os incêndios. Sabia que Ruby pretendia tomar banho porque durante
a tarde tinha acendido a caldeira no anexo. Ouviu-a enchê-la, e depois as
risadas de Rosie quando entrou primeiro. Em seguida, Ruby levou Rosie
para o primeiro andar e deitou-a.
Enquanto estava deitado na cama, a ter pensamentos porcos e a tocar-se,
ouviu Ruby voltar para baixo e despejar mais água na banheira. Esperou até
ouvir chiar e raspar nas lajes de pedra, o que significava que tinha entrado,
e desceu sorrateiramente para espreitar por uma fenda na porta da cozinha.
Nunca tinha pensado que ela era bonita, mas naquela noite estava linda.
Durante o dia usava sempre o cabelo preso e as formas do corpo estavam
escondidas por baixo de um vestido largo e um avental. Sabia que ela tinha
vinte e sete anos e parecia-lhe muito velha. No entanto, quando espreitou
pela fenda da porta ela estava de pé na banheira a ensaboar-se toda, com o
cabelo castanho caído sobre os seios.
Era cor-de-rosa, branca e cheia de curvas, com uma cintura fina e
pequenas nádegas redondas. Enquanto ela ensaboava os seios e descia até
àquele triângulo de pelos arruivados, o pénis de Seth espetou-se como um
pau.
Ruby gritou quando ele entrou a correr todo nu, e tentou pegar numa
toalha para se cobrir. Mas Seth saltou-lhe para cima, atirando-a para o chão
de pedra da cozinha, e enfiou o membro duro dentro dela.
Ainda agora gostava de saborear aquele momento maravilhoso mas
demasiado breve. Ela estava toda molhada e escorregadia. Cheirava a
sabonete e tinha uma rata muito quente e apertada, muito melhor do que a
sua mão.
Quando o pai voltou para casa, foi como viver no fio da navalha. Seth
estava apavorado com a possibilidade de ela contar o que ele fizera, mas ao
mesmo tempo estava determinado a tê-la de novo, custasse o que custasse.
Comprou o seu silêncio com pequenas ameaças que fazia a Rosie, que na
época tinha cinco anos e andava atrás dele como um cordeirinho. Bastava-
lhe virar-se para Ruby quando ia dar um passeio com a miúda e fazer um
gesto para indicar que lhe cortaria o pescoço para ela se lembrar de que
tinha de manter a matraca fechada.
Não conseguia tê-la muitas vezes. Ruby era esperta a certificar-se de que
nunca estava sozinha com ele em casa, mas por vezes arranjava forma de
vir a casa à tarde, sem Norman e o pai, e nessas alturas atacava. Ruby
chorava e implorava, insistindo que ia contar a Cole. Porém, Seth sabia que
cada vez que a fodia era menos provável que ela contasse. Devia ter-lhe
contado quando acontecera pela primeira vez.
Porém, um dia, no outono de 1943, pouco depois do décimo sexto
aniversário de Seth, Cole anunciou que iria a Birmingham no dia seguinte
fazer um orçamento para um trabalho de demolição e que levaria Norman
consigo. Disse que deixaria Seth na quinta perto de Bridgwater para
terminar as obras no telhado de um celeiro que estavam a reparar juntos, e
se pusessem a sua bicicleta na caixa da camioneta ele poderia voltar para
casa ao fim do dia.
Seth ficou no celeiro durante tempo suficiente para o agricultor ver que
estava lá, e depois montou na bicicleta e foi para casa. Chovia muito e
Rosie estava na escola. Estava convencido de que Ruby estaria mais
recetiva por saber que Cole estava longe, mas estava enganado. Logo que
entrou na cozinha, ela pegou na faca de trinchar e ameaçou-o.
– Nem sequer penses nisso – rosnou, com os olhos azuis a chispar tão
perigosamente como a lâmina da faca. – Estou farta, Seth. Podes ameaçar-
me quanto quiseres, mas não vais conseguir fazer mal à Rosie. Eu calculei
que ias voltar para casa hoje e pedi a uma pessoa para ir buscá-la à escola e
ficar com ela até o Cole voltar. Vou contar-lhe tudo.
– Ele não vai acreditar – retorquiu Seth. Já tinha uma ereção só de olhar
para o seu peito a subir e a descer e imaginar aquelas mamas cor-de-rosa
nuas.
– Vai. Ele já sabe que há alguma coisa errada. Há semanas que anda a
tentar convencer-me a dizer-lhe o que é.
Seth sabia que aquilo era verdade. Cole perguntara aos dois rapazes se
sabiam porque é que ela andava tão estranha.
– Pousa essa faca – ordenou Seth. Tinha o estômago embrulhado e não
percebeu se era de medo ou desejo. – Afinal de contas, qual é o mal? Tu
nem sequer és casada com ele.
Ruby riu-se, nervosa, e em vez de pousar a faca deu um passo ameaçador
na sua direção.
– Posso não me ter casado com o teu pai, mas amo-o – disse. – Se não
fosses tu, Seth, seríamos o casal mais feliz do mundo. És tu que causas
todos os problemas. Foste um miúdo estranho desde o início e à medida que
os anos foram passando ficaste mais estranho, mais cruel e mais maldoso.
No princípio fui compreensiva. Sei que sofreste um grande choque quando
a tua mãe fugiu e tentei cuidar de ti e tratar-te como se fosses meu filho.
Mas agora estás descontrolado. Roubas, enganas e mentes, és pervertido e
perigoso. Quero-te fora desta casa para sempre, antes que corrompas a
Rosie.
De repente, Seth percebeu que ela estava a falar a sério. Havia força e
determinação no seu rosto e a voz estava calma e confiante. Ele
subestimara-a muito.
Seth aprendera desde muito pequeno que por vezes, quando estava metido
em sarilhos com as professoras na escola, ou com o pai, era necessário
recuar e fingir remorsos enquanto pensava no passo seguinte. Fez isso
então, deixando-se cair numa cadeira e tapando o rosto com as mãos.
– Por favor, não contes ao meu pai – implorou. – Eu vou-me embora,
arranjo um emprego em qualquer lado e nunca mais volto para te
incomodar. Mas não lhe contes.
Ruby não se compadeceu logo. Ainda a segurar ameaçadoramente a faca,
lançou-se num longo e amargo ataque, enumerando todas as coisas
desagradáveis que ele fizera no passado, todos os atos de crueldade com
Rosie, Norman e outras crianças da aldeia que lhe tinham chegado aos
ouvidos. Disse que ia escrever tudo, e incluir todas as vezes que ele roubara
dinheiro da caixa da casa e dos bolsos do pai, bem como as queixas dos
vizinhos. Por fim, deu-lhe as suas ordens. Tinha de ir ao seu quarto, pegar
nas roupas e ir-se embora. Ela faria a lista de acusações e se ele alguma vez
voltasse dá-la-ia logo a Cole.
Seth não demorou mais de dois minutos a arrumar os seus poucos
pertences. Tinha apenas uma muda de roupa e um par de sapatos de
domingo. Quando desceu para a cozinha ela tinha pousado a faca e estava
ao pé do lava-loiça, com os braços cruzados no peito.
– Vê se fazes alguma coisa da tua vida – disse num tom muito mais doce.
– Pelo teu pai. Ele pode nunca dizer, mas ama-te.
Durante o sermão anterior o desejo que sentia por ela fora substituído por
ira e necessidade de vingança. Porém, quando lhe disse que o pai o amava,
uma enorme raiva apoderou-se dele. Se Ruby não tivesse vindo para cá e
mudado tudo, ele e Norman teriam o pai só para eles. Odiava-a.
Ruby virou-se para pegar na lata com o dinheiro para a casa que estava na
prateleira por cima do fogão. Naquele segundo Seth avistou o pequeno
machado que usavam para cortar paus ao lado da porta das traseiras. Pegou
nele.
– Posso dar-te duas libras – disse ela sem se virar. – Estava a tentar
poupá-las para o Natal, mas tu vais precisar...
Não terminou a frase porque Seth bateu-lhe com o lado rombo do
machado na nuca. Ruby caiu de lado, com os olhos muito abertos de
surpresa, e um estranho rugido saiu de dentro dela.
Ela podia ter morrido com aquela pancada, mas Seth não tinha a certeza,
por isso bateu-lhe muitas vezes.
Cavar um buraco para o corpo foi o mais difícil de tudo. Sabia que tinha
de ser fundo, senão as raposas desenterravam-na. Primeiro retirou uma
pilha de madeira; em seguida, escondido atrás dela para não ser visto da
rua, cavou sem parar. Os primeiros sessenta centímetros de terra saíram
bem, mas quanto mais fundo cavava mais compacto era o terreno. Só o
terror de o pai voltar para casa e apanhá-lo o fez continuar. Por fim, às três
da tarde, completamente encharcado por causa da chuva, transportou o
corpo de Ruby da cozinha e deitou-o no buraco. Em seguida, tapou-o com a
terra e saltou em cima até estar plano o suficiente para voltar a pôr a
madeira no sítio e esconder a sepultura.
Estava a transpirar quando voltou para casa. Despiu as roupas enlameadas
no alpendre, lavou as mãos e correu para o primeiro andar com as roupas
que arrumara para voltar a pô-las no quarto e encher o mesmo saco com as
coisas de Ruby. Quando desceu, limpou o sangue e a lama que deixara na
cozinha ao levar o corpo. Vestiu-se de novo com as roupas molhadas e
enlameadas, fechou a porta das traseiras, pôs o saco com as coisas dela às
costas e voltou de bicicleta para Bridgwater para terminar o trabalho,
parando apenas para pôr algumas pedras no saco e atirá-lo ao rio Parrett.
A sorte e a chuva estiveram do seu lado. Não se cruzou com ninguém na
estrada e na quinta a sua ausência não fora notada. Na verdade, às sete da
tarde, quando o dono da quinta o encontrou, elogiou-o por continuar a
trabalhar com aquele tempo e perguntou-lhe se não estava na hora de voltar
para casa.
Seth parou o carro na berma da estrada. Recordar aquele primeiro
homicídio arrepiou-o. Nunca o lamentara; Ruby estava a pedi-las. Na
verdade, orgulhava-se de ser inteligente a ponto de ter cometido o crime
perfeito.
Tudo lhe correra de feição. Ruby tinha dito à vizinha com quem deixara
Rosie naquele dia que tinha de ir visitar um familiar que estava doente.
Quando não voltou, toda a gente se compadeceu de Cole. Aceitaram a sua
história de que ela devia ter morrido num ataque aéreo. Em segredo, todos
estavam convencidos de que fugira, como Ethel Parker fizera. Por isso,
ninguém a procurou.
Durante o dia Cole armava-se em corajoso, e muitas vezes agia como se
não se importasse por Ruby o ter deixado. Mas Seth sabia que não era
verdade. Por vezes, quando ouvia o pai chorar à noite, sentia-se mal com o
que fizera. Até tinha tentado compensá-lo trabalhando mais.
– Se tivesses conseguido arranjar uma maneira de te livrares da Rosie,
agora não estarias atolado em merda – disse em voz alta.
Rosie era uma pedra no seu sapato. Tudo o que acontecia era culpa sua.
Se não fosse ela, Norman, Cole e ele podiam ter ficado bem depois de Ruby
ter desaparecido. Cole preocupava-se por ela ficar sozinha em casa depois
da escola, por ela crescer selvagem sem ninguém que a ensinasse a ter boas
maneiras. Parecia não se lembrar de que os dois rapazes tinham ficado
sozinhos depois de a mãe fugir e de que ele ficava muitas vezes no pub até
à hora do fecho, deixando-os sós em casa sem nada para comer. Rosie era o
seu amor, a sua princesinha, nenhuma criança no mundo era tão especial
como ela.
Por isso, tinha encontrado Heather.
Naquela noite em que ele e Norman tinham chegado a casa e ela estava
lá, Seth ficou lívido. Não importou que ela tivesse limpado a cozinha e
tivessem comido a primeira boa refeição em anos. Heather era apenas
alguns meses mais velha do que ele. Era uma afronta o pai ter trazido uma
miúda como ela lá para casa e que a tivesse deixado assumir o controlo sem
sequer os consultar. Ruby era calada e dócil, mas Heather não. Ela berrava
as suas instruções para todos, desde Cole até Rosie, e antes de Seth poder
fazer alguma coisa estavam todos a descalçar as botas no alpendre e a lavar
as mãos antes das refeições, enquanto Cole estava completamente
apaixonado por ela.
Seth não se importou nada de ir para a tropa. Sabia que seria apenas uma
questão de tempo antes de a rapariga acabar na cama do pai. No entanto, o
que o irritou de verdade foi ela ter conquistado Norman enquanto ele estava
fora. Quando veio a casa de licença fizeram com que se sentisse um
estranho, um arruaceiro que incomodava a família feliz. Norman pintou-lhe
a cozinha, Cole colocou papel de parede nos quartos; quanto a Rosie,
agarrava-se a Heather como cola, imitando tudo o que ela dizia ou fazia.
Seth viu as primeiras brechas surgirem antes de Alan nascer. Heather
estava sempre zangada e irritada e andavam a discutir. Durante o Natal,
Cole embebedou-se e admitiu que se sentia velho de mais para ser
responsável por mais um filho. Seth viu a sua oportunidade e insinuou que
talvez o filho que ela trazia na barriga não fosse dele. O pai insurgiu-se,
indignado, como Seth sabia que aconteceria, mas também sabia que ele era
um homem muito ciumento e que, lançadas as sementes da desconfiança,
depressa se seguiriam problemas e discussões.
Seth despertou dos seus devaneios com um sobressalto, surpreendido ao
ver a primeira luz da manhã iluminar a planície. Devia estar ali sentado há
duas horas sem se aperceber. Ligou o carro e continuou, mas a sensação de
fragilidade continuava presente. Sabia que precisava de comida e de uma
bebida quente para ficar bem, e de um lugar para dormir onde não fosse
visto.

Thomas chegou à Granja ao meio-dia e encontrou Rosie como Norah


descrevera ao telefone, quase apática, como se uma parte do seu cérebro se
tivesse desligado. A falta de uma verdadeira reação por Thomas vir visitá-
los de novo tão depressa depois da última vez foi a prova de que não estava
em si.
– Esta tarde quero que esqueças a jardinagem – disse ele com firmeza. –
Em vez disso, vamos dar um passeio.
Thomas não queria que Donald viesse, mas quando ele começou a
caminhar ao lado deles não teve coragem de o mandar para casa. Porém,
quando começaram a andar pelos campos na direção de Heathfield, ele
saltitou à frente deles e Thomas começou a falar mais a sério com ela.
– Não vou minimizar a rejeição do Gareth – disse, indo direto ao assunto.
– Sei que é doloroso e que te fez sentires-te imprestável. O que tu tens de
perceber, Rosie, é que o imprestável é ele, não tu.
Ela não respondeu. Na verdade, foi quase como se não o tivesse ouvido.
Thomas agarrou-lhe no braço e virou-a para ele, levantando-lhe o rosto.
– Sabes o que vejo na tua cara? – perguntou, a olhá-la nos olhos.
Ela abanou a cabeça.
– Vejo força – disse ele com simplicidade. – A primeira vez que te vi em
May Cottage, quando saíste daqueles arbustos onde estavas escondida,
reparei logo. A tua expressão fez-me lembrar os miúdos do East End:
desafiadora e arguta. Parecias uma pequena maltrapilha com o teu vestido
grande e muito velho e o cabelo todo emaranhado, mas percebi
imediatamente que eras muito mais do que isso.
Rosie fez um esgar.
– O que é que isso importa?
– Importa, porque fico triste ao ver que tu tens toda essa força e, no
entanto, às vezes aceitas as coisas quando não deves. Não vou repetir todos
os sermões que já te preguei tantas vezes sobre os pecados do teu pai não
serem teus. Tu já sabes isso. O que quero fazer-te ver hoje é que o Gareth te
fez um grande favor.
Para deleite de Thomas, a expressão desafiadora regressou aos olhos de
Rosie.
– Ele fez o quê? – retorquiu, indignada.
– Um favor – repetiu Thomas. – Por sua causa aceitaste acomodar-te
numa rotina confortável. Desde que o conheceste, e só estavam juntos
quando ele estava de folga, não viste nada do mundo exterior. Não foste a
um baile, não namoriscaste com outros rapazes nem te sentaste a conversar
e a rir com outras raparigas. Na verdade, não fazes ideia do que fazem as
raparigas da tua idade. Aceitaste ver apenas o que o Gareth queria que tu
visses.
– Isso não é verdade – disse ela, afastando a mão de Thomas do seu
queixo.
– Claro que é – insistiu ele. – E posso dizer-te como ia ser se te casasses
com ele. Primeiro, passariam um ou dois anos num apartamento de duas
assoalhadas que tu ias pôr confortável, e visitariam os pais dele todos os
domingos. Depois, ficavas grávida e o Gareth ia fazer tudo o que fosse
possível para te dar uma casa melhor. Talvez tivesse juntado dinheiro
suficiente para comprar uma casinha perto dos pais, mas o mais provável é
que conseguissem uma habitação camarária. Não há nada de mal em
nenhuma dessas hipóteses, até agora. Mas avancemos alguns anos. Tu tens
a casa e um pequeno jardim só teu, e dois ou três filhos pequenos. Mas o
Gareth trabalha muitas horas para sustentar tudo isto; está mal-humorado
quando chega a casa, por isso vai para o pub todas as noites. Quer que a sua
casa seja igual à da mãe, tudo num brinco, e o jantar na mesa no momento
em que entra, mas não quer conversar contigo.
– Não teria sido assim – disse ela, zangada. – Não teria.
– Teria, sim – continuou Thomas. – Mas como tens uma boa cabeça,
Rosie, um dia ias acordar e perceber. Terias percebido que te tinhas
contentado com um prémio de consolação e sentir-te-ias enganada.
Gostarias que os teus filhos andassem a brincar nos campos. Quererias
paixão e novas experiências... ver o mundo.
– Todas as mulheres têm de fazer cedências quando se casam – replicou
ela, teimosamente. – O casamento é isso mesmo.
Thomas abanou a cabeça.
– Não é, não, Rosie. Casamento é partilhar uma vida com outra pessoa
porque não podes viver sem ela. É alegria e trabalharem juntos para
alcançarem os mesmos sonhos. É verdade que há altos e baixos; poucas
pessoas têm um casamento sem problemas. Mas ambos têm de partir no
mesmo caminho, com o mesmo objetivo em mente. Vocês nunca estiveram
verdadeiramente no mesmo caminho, ou, se estiveram, chegaram a uma
bifurcação em algum momento e seguiram em direções diferentes.
– A intenção disto é fazer-me sentir melhor? – perguntou ela num tom
sarcástico. – Porque se for, não resultou.
– Não. A intenção é fazer-te ver as coisas com maior objetividade. Tu
descobriste que o Gareth não tem muita compaixão. Que é um cepo e uma
pessoa de vistas curtas. Quer uma mulher que faça exatamente o que ele
manda. Só se preocupa com a sua pessoa.
Rosie suspirou. No fundo, sabia que tudo o que Thomas dissera era
verdade, mas não suportou que Gareth fosse tão caluniado.
– Foi a mãe dele que o fez assim – disse. – Ela diz-lhe como deve viver a
sua vida.
Thomas pensou durante alguns instantes, recordando as coisas que Rosie
lhe contara sobre Mrs. Jones.
– Alguma vez pensaste porque é que ela é assim? – perguntou, devagar. –
Ela não queria sair do País de Gales e deixar a família toda. Ficou
desenraizada num sítio a que nunca se adaptou. Não lhe serviu de nada ter
uma boa casa com todos os equipamentos imagináveis. Só ficou amarga.
Ela é um exemplo muito bom do que poderia acontecer-te.
– Mas ela não tinha nada no País de Gales. Eles eram extremamente
pobres.
– O dinheiro não traz felicidade, Rosie – disse ele. – A felicidade tem de
vir de dentro.
Estugaram o passo para apanhar Donald, e para mudar de assunto
Thomas começou a falar sobre a iminente crise no canal do Suez. Rosie
parecia não estar a acompanhar as notícias mundiais como era seu hábito,
mas ele pensou que, dadas as circunstâncias, era compreensível.
Mais tarde, sentaram-se todos na erva e Donald tirou uma garrafa de Tizer
e algumas maçãs da mochila. O dia estava muito quente, sem nuvens no
céu, e num momento de silêncio ouviram uma cotovia cantar muito acima
deles.
Talvez fosse a profunda paz, ou a história que Thomas contou sobre nadar
nas docas de East India, em Blackwall, quando era criança, mas Rosie
começou a falar sobre o verão nos Somerset Levels: pescar enguias nos
canais apenas com um pau, um fio de lã pendurado e uma minhoca
amarrada na ponta; cortar turfa em blocos para o lume; e apanhar grandes
molhos de unhas-de-cavalo para levar para casa.
Thomas encorajou-a. Achava que ela mantinha estas memórias fechadas a
sete chaves com medo de que lhe recordassem coisas más. Precisava de as
reexaminar, e esse exercício também a ajudaria a pensar objetivamente
sobre as suas recordações de Gareth.
Donald estava deitado de barriga para baixo a escutar Rosie e Thomas.
Rosie contava-lhe muitas histórias, mas nunca de quando era pequena.
Achou estranho que se risse com o irmão chamado Seth, porque o nome era
igual ao do homem mau que a polícia procurava. Também era engraçado
falar sobre uma pessoa chamada Heather, e depois Thomas dizer que era
sua irmã. Mas Thomas parecia gostar das histórias sobre Heather e como
ela achava a vida no campo muito estranha, porque estava sempre a rir-se.
Donald também se riu, embora não percebesse muito bem.
– Ela quase teve um ataque quando percebeu que a latrina não tinha
autoclismo e que de vez em quando tinha de ser escavado outro buraco –
disse Rosie, interrompendo a narração para explicar a Donald o que era uma
«latrina». – Tinha medo de ir lá à noite porque o Seth disse que havia lá
bichos que podiam morder-lhe.
Thomas falou sobre as latrinas no campo de prisioneiros de guerra.
– Era apenas uma vala comprida e funda. Tínhamos um corrimão de
bambu para nos segurarmos, outro para nos agacharmos, e nada mais... uma
escorregadela e era uma desgraça. Quando tive disenteria acho que passei lá
a noite inteira. Ouvíamos guinchos e barulhos, mas não nos atrevíamos a
olhar porque se víssemos as ratazanas ficávamos com tanto medo que
caíamos.
Donald perguntou-se porque é que Thomas e Rosie estavam a falar sobre
coisas que tinham acontecido há muito tempo. Escutá-los era quase como
quando tentava ler um livro a sério em vez de uma revista de banda
desenhada. Compreendia algumas coisas, mas tinha de saltar as palavras
difíceis e às vezes quando chegava ao fim da página não fazia sentido. Quis
interrompê-los muitas vezes para perceber melhor as coisas, mas alguma
coisa lhe disse para ficar calado. Pareceu-lhe importante deixar aquelas
pessoas que amava falarem uma com a outra. Rosie estava a ficar outra vez
feliz.
Já passava das cinco quando voltaram para casa, e, enquanto
atravessavam o último campo antes da aldeia de Mayfield, Thomas olhou
de soslaio para Rosie. As suas faces estavam de novo rosadas, a ligeira
inclinação do seu corpo quando chegara tinha desaparecido, e ela ia a
saltitar e a rir com alguma coisa que Donald dizia.
Lembrou-se de como previra que ela se transformaria numa bonita
mulher, mas que nunca seria sofisticada. Estava certo na segunda previsão –
não conseguia imaginar um cabeleireiro a domesticar por completo aquela
massa de caracóis selvagens, nem um vestido elegante a transformar o seu
estilo de rapariga do campo em chique urbano. No entanto, ela não era
apenas uma mulher bonita, era linda: pestanas compridas cor de cobre
orlavam os olhos azul-céu, tinha um queixo saliente, determinado, um nariz
arrebitado com sardas que mais pareciam pó de ouro, e uma boca suave e
convidativa. Sentiu uma onda de profunda ternura por ela. Tinha sido tão
frontal acerca de Gareth hoje que desejou atrever-se a ser igualmente
honesto sobre o que sentia por ela.
Donald saltou por cima da última vedação e correu à frente deles. Thomas
passou a seguir, devagar porque era difícil para ele subir. Virou-se para o
outro lado e, por instinto, estendeu a mão para Rosie. Por instantes, ela
ficou sentada no cimo da vedação a olhar para ele, com a mão na sua. O sol
estava atrás dela, transformando o seu cabelo numa ondulada aura dourada,
e os seus braços, no vestido de algodão sem mangas, também estavam
dourados. Tentou fotografá-la na memória, para poder pintá-la quando
regressasse a Londres. Também queria ter coragem para pôr as duas mãos
na sua cintura, descê-la para os seus braços e beijá-la.
– Obrigada, Thomas – disse, com uma vozinha suave. – Estás sempre
presente quando preciso de ti.
– Espero estar sempre – disse ele, levando a sua mão aos lábios e
beijando-a.

Deitada na cama naquela noite, Rosie achou estranho não estar a pensar
em Gareth, como acontecera noite e dia durante a última semana, mas sim
em Thomas. Ele era uma pessoa tão importante na sua vida há tanto tempo,
e pensava que sabia tudo acerca dele, mas hoje ele fora diferente, algo
cruel, e no entanto gostava ainda mais dele por isso.
Tinha-lhe tirado uma espécie de véu dos olhos. No fundo, ela sempre
soubera a maior parte das coisas que ele tinha dito sobre Gareth, mas ele
trouxera tudo para a superfície e agora ela conseguia ver com profunda
clareza. No entanto, não sabia muito bem se gostava da sensação. Não
queria recordar Gareth a obrigá-la a masturbá-lo mal ficavam sozinhos, nem
que no último ano raramente tentava agradar-lhe. Não queria pensar na
maldosa chacota que fazia de Donald ou Thomas, e acima de tudo nas
piadas que dizia sobre ela, que o cabelo estava sempre despenteado, que
tinha seios demasiado pequenos e que as mãos estavam a ficar calejadas
como as de um homem. Também não queria admitir que Gareth era quase
sempre desinteressante, especialmente quando falava sobre comboios ou
motas.
Aquela imagem vaga da sua vida de casados numa casinha coberta de
rosas tinha sido sempre muito bonita e reconfortante, mas agora sabia que
Gareth não era o homem que ela imaginava sentado à sua frente a uma
mesa, à luz de velas, nem com quem se via enroscada numa cama grande e
confortável. Ainda teria de encontrar esse homem. Porém, sentiu-se
revigorada por arrancar aquele véu. Podia ver mais para a frente e sentiu
uma enorme vontade de sair para o mundo e experimentar coisas novas.
Como seria voltar a ir a bailes? Deixar outro homem beijá-la? E as
raparigas com quem ele dissera que devia conversar e rir, quem eram elas?
Onde é que as conheceria?
Adormeceu antes de poder responder às muitas perguntas que lhe
enchiam a cabeça.
CAPÍTULO 18

T rês dias depois de Thomas voltar para Mayfield, Seth também chegou.
Esgueirou-se para o jardim às cinco e meia da manhã, espreitou em
todas as janelas do rés do chão e agora, às sete horas, estava sentado no alto
do muro do jardim, escondido pela densa folhagem de uma faia cor de
cobre, a olhar para a cozinha. Estava à espera de que os ocupantes da casa
se levantassem para poder vê-los.
O seu aspeto agora era tão desesperado como o seu estado de espírito:
sujo, com roupas imundas e uma grossa barba preta. Abandonara o
Standard Vanguard perto de Southampton e caminhara muitos quilómetros
pelos campos antes de roubar um Rover 90 verde numa pequena aldeia. O
proprietário deixara um casaco de tweed e um boné no banco de trás, que o
aqueceram um pouco durante a noite e lhe proporcionaram uma espécie de
disfarce. Também conseguira comprar comida e cigarros na loja de uma
velhota, numa pequena aldeia. Ela não pareceu associar a sua cara à que
estava na primeira página de todos os jornais, mas Seth sentia que a sorte
em escapar à polícia estava a esgotar-se a grande velocidade.
O coração caiu-lhe aos pés quando chegou a Mayfield e viu onde Rosie
morava. Imaginara que a Granja era algum tipo de instituição, uma escola
ou um lar, enfiada num buraco isolado. Em vez disso, deparou-se com uma
grande e chique casa particular, com um lindo Jaguar estacionado na
entrada, bem no meio da rua principal de uma aldeia.
Seth sabia que os aldeões tendiam a ser mais observadores do que os
habitantes das cidades e, a avaliar pelas casas e quintas que vira até agora,
esta aldeia tinha uma grande proporção de habitantes ricos. Era provável
que chamassem a polícia se vislumbrassem um desconhecido desleixado e
isso deixou-o muito nervoso.
Porém, o lado positivo é que não havia polícia ao portão, não tinham cão
e o número de arbustos existentes no jardim facilitava discretas
movimentações sem ser visto. Também fizera o reconhecimento de uma
entrada pelo campo ao fundo do jardim. Pretendia esconder a espingarda ali
mais tarde e depois levar o Rover para um bosque e abandoná-lo lá.
Um ruído chamou a sua atenção para a casa. Uma mulherzinha de meia-
idade, de cabelo grisalho, com um roupão cor-de-rosa, estava a abrir a
janela da cozinha enquanto enchia a chaleira. Seth franziu a testa. Estava
convencido de que Rosie devia trabalhar ali como criada. Mas, se fosse
assim, porque é que não se levantava primeiro? Lembrou-se de Miss Marks
ter ficado muito espantada quando lhe mostrara este endereço e neste
momento desejou ter-lhe perguntado porquê. Pensando bem, agora achava
que devia ter investigado muito mais coisas antes de se envolver com
aquela velha.
As reportagens nos jornais tinham-lhe permitido saber uma parte da
história. Na realidade, Miss Marks era Freda Barnes, que tinha sido
enfermeira supervisora num manicómio privado, e Miss Pemberton tinha
feito com que ela fosse despedida. O homem chamado Saunders, cuja cara
estava nos jornais, também tinha trabalhado ali. Claramente, Rosie criara
alguma confusão enquanto estava lá que levara ao despedimento da
enfermeira supervisora e de Saunders.
Como Rosie não era mencionada em nenhum dos jornais que lera, tinha
chegado à conclusão de que devia tê-lo denunciado anonimamente, a
hipócrita dissimulada. Ponderou se a mulher que estava na cozinha
conhecia a sua verdadeira identidade. Apostava que não.
Um homem entrou na cozinha cerca de dez minutos mais tarde. Como
ficou numa zona mais recuada da divisão, Seth não conseguiu vê-lo bem.
Pareceu-lhe que era um homem alto e bem constituído, com cerca de
sessenta anos; devia ser o marido.
Quando Rosie apareceu de repente junto das portas da cozinha, abrindo-
as de par em par e saindo para o terraço, Seth ficou tão surpreendido que
quase caiu do muro. Não teve qualquer dúvida de que era Rosie, pois os
caracóis cor de cobre traíam-na, mas não esperava descobrir que a miúda
escanzelada de que se recordava se transformara numa beldade.
A velha cabeleira desgrenhada desaparecera e o novo penteado, mais
curto, tornara-a mais brilhante, e ela também estava mais alta, com o corpo
de uma pin-up. A confiança com que abriu a porta, e o traje informal de
calções verde-escuros e uma blusa branca sem mangas, sugeriram que era
muito mais do que uma criada naquela casa.
– Está muito bom e quente – disse para a cozinha. – Tomamos o pequeno-
almoço cá fora hoje?
A sua voz foi outra surpresa: parecia ter perdido o sotaque do Somerset.
O sotaque de Seth atenuara-se durante o tempo que vivera em Londres, mas
as pessoas continuavam a reconhecer as suas origens provincianas. Por
algum motivo, isto exasperou-o mais do que a sua aparência porque sugeria
que ela não sofrera nada e escapara milagrosamente para uma vida fácil.
– Bem, não vais tê-la durante muito mais tempo – balbuciou para si
mesmo enquanto a via dispor cadeiras de jardim à volta da mesa.
Pouco depois, começou a sentir-se muito vulnerável por estar tão perto.
Estava a menos de três metros dela. Se espirrasse, denunciaria a sua
presença. No entanto, agora não podia mexer-se; estava encurralado.
Na meia hora seguinte Seth foi ficando mais agitado, não apenas por
causa da proximidade da irmã, mas também por ciúmes. Ela estava a pôr a
mesa para quatro: um jarro de sumo de laranja, doce de laranja num lindo
frasco, e manteiga num prato de vidro, e os talheres colocados na perfeição.
A mulher mais velha fritava toucinho fumado e o cheiro, juntamente com o
conforto da casa que vira antes, atormentaram-no.
Ele nunca tivera conforto ou glamour na vida – andava sempre na rua,
chovesse ou fizesse sol, a trabalhar sem parar, e as refeições eram,
praticamente, atiradas para cima da mesa. Desde que Cole fora enforcado,
nem sequer tinha um lugar a que pudesse chamar casa. Tinha vinte e oito
anos, mas nunca se sentara num jardim lindo como este, nunca tivera umas
férias nem estivera num sítio luxuoso. Porque é que ela haveria de viver
numa casa com um piano, um televisor, carpetes grossas e todos os outros
sinais de riqueza, quando ele não tinha nada?
Parecia que o homem não se ia juntar ao grupo que tomaria o pequeno-
almoço no terraço. Seth pensou que devia ir trabalhar dali a pouco. Para
quem seriam os outros dois lugares? Talvez houvesse crianças em casa?
Pouco depois das oito um homem louro e alto entrou na cozinha. Seth
esboçou um sorriso escarninho ao vê-lo aproximar-se da mulher mais velha
e abraçá-la.
– Menino da mamã – murmurou. Passados alguns minutos sorriu
afetadamente quando o mesmo tipo saiu para o jardim com a Beano nas
mãos e se sentou à mesa a ler. A leitura de Seth também não ia muito para
além da Beano, mas teria esperado que uma pessoa que vivia numa casa
como aquela estivesse a ler o Financial Times, não uma revista de banda
desenhada.
Depois de alguns minutos a observá-lo, chegou à conclusão de que ele era
simplório. Parecia bastante normal, tinha um corpo musculoso e bronzeado,
e os calções claros e a camisa de manga curta pareciam caros e assentavam-
lhe bem, mas estava a rir alto com a banda desenhada e tinha a boca
ligeiramente descaída como alguns dos imbecis que trabalhavam na
construção civil.
De repente, a atenção de Seth foi desviada por outro homem que saiu para
o terraço. O seu rosto magro, cabelo louro e a forma como coxeava
pareceram-lhe muito familiares, mas demorou um ou dois minutos a
lembrar-se de quem era. Quando isso aconteceu, arquejou de espanto e
agarrou-se ao muro para não cair.
«É o cabrão do Farley!», pensou. «Que raio é que o filho da mãe está a
fazer aqui?»
Thomas Farley era um homem que nunca esqueceria. Não só era
responsável por dar início ao processo que levara à sua detenção e do pai,
como tinha sido o seu carácter, passado e testemunho que, no tribunal,
levara o júri a considerar Cole culpado. A partir do instante em que os
jurados viram o homem macilento que lutara pelo seu país, passara anos
num campo de prisioneiros de guerra na Birmânia e perdera uma perna na
sequência de uma ferida infetada, ficaram do seu lado. Ele era um herói,
enquanto Cole Parker, com a sua saúde robusta, passara os anos da guerra
em conforto e segurança, como um cobarde. Cole não teve hipótese
nenhuma.
Nos dez minutos seguintes, antes de o homem mais velho sair no seu
Jaguar e Rosie e a mulher mais velha trazerem para o terraço pratos com
toucinho fumado e ovos, Seth observou Farley e escutou a sua conversa
com o homem chamado Donald.
Farley parecia mais jovem do que na altura do julgamento. Engordara um
pouco, e até o rosto cheio de rugas de que se recordava tão bem parecia
mais liso. No tribunal, a sua expressão estivera sempre sombria e olhava
para Cole e Seth com ódio, como se fosse capaz de os desfazer com as
próprias mãos. Seth lembrou-se de como aquilo lhe enregelava o sangue,
embora o homem fosse aleijado. Na verdade, durante algum tempo depois
de ser absolvido quase esperava que o tipo viesse atrás de si.
Sem dúvida que a vida tinha sido boa para Farley desde então. Parecia
descontraído e feliz enquanto sorria e conversava. Fez-lhe lembrar um
pouco o seu sargento quando estava no exército. Tinha o mesmo género de
confiança descontraída, era o tipo de pessoa que os outros homens
admiravam – forte e constante. Seth ponderou o que seria ele a Rosie.
Seguramente, o homem não podia gostar da filha do seu inimigo. Mas se
gostava dela, tanto melhor. Seth podia vingar-se duplamente com um só
golpe.
Quando Rosie e a mulher mais velha se juntaram aos dois homens para
tomar o pequeno-almoço, Seth depressa soube muito mais coisas sobre eles
através da conversa. Farley era um convidado, e regular. Rosie era quase
uma filha para a mulher, apesar de a tratar por Mrs. Cook. Donald, como
Seth desconfiara, era atrasado e trabalhava como jardineiro.
No entanto, continuava sem perceber o papel da irmã aqui. Ela parecia
muito ligada ao sujeito simplório, por isso talvez fosse sua namorada.
Contudo, era igualmente carinhosa com Farley. Era muito estranho. Seria de
pensar que Rosie conseguisse arranjar alguém melhor do que um aleijado
ou um atrasado? Também foram feitas referências a alguém chamado
Gareth, por isso talvez estas pessoas tivessem outro filho. Perguntou a si
mesmo onde estaria.
Porém, a maior parte da conversa pareceu centrar-se no dia que tinham
pela frente. Farley disse que tinha trabalho para fazer, mas que gostaria de
fazê-lo ali fora. Mrs. Cook tinha um encontro para jogar whist às onze.
Parecia que Rosie e Donald iam a algum sítio juntos, e Rosie disse que
demorariam duas horas. Falaram muito mais sobre alguém chamado Robin.
Pelas gargalhadas, desconfiou que era uma criança pequena, talvez um neto.
Seth ficou frustrado quando eles terminaram o pequeno-almoço. Rosie e
Donald desapareceram no interior da casa, mas a mulher idosa e Farley
ficaram a arrumar a cozinha. Queria sair do seu esconderijo porque tinha
receio de que Rosie saísse pela porta principal e queria segui-la. No entanto,
não se atrevia a sair dali enquanto a cozinha não estivesse vazia.
Os minutos foram passando e Seth ficou horrorizado ao ver Farley sair de
novo para o terraço e pousar algumas ferramentas em cima da mesa. Viu-se
a ficar a manhã inteira preso em cima do muro. Como estava tão perto do
terraço, o menor movimento poderia alertar o homem para a presença de
alguém ali em cima.
Por fim, Farley voltou para dentro e desapareceu. Seth também não viu a
velhota, por isso aproveitou, saltou para o jardim, avançou atrás de uns
arbustos espessos que rodeavam o relvado e chegou à entrada.
A porta da frente situava-se na parte lateral da casa e Seth sobressaltou-se
quando a ouviu abrir-se no momento em que se preparava para correr para o
outro lado. Mergulhou para trás de um arbusto, a tremer de pavor,
convencido de que alguém o tinha visto. Arrependeu-se de ter vindo. Eram
quase oito e meia. As lojas da rua principal abririam a qualquer momento e
sabia muito bem que nas aldeias as pessoas faziam as compras cedo, as
mais idosas encontravam-se para conversar e muitos turistas também
poderiam andar por ali.
– Voltamos ao meio-dia – disse Rosie para alguém que estava atrás dela.
– Se Mrs. Parsons telefonar, diga-lhe que passo por lá esta tarde para lhe
fazer um orçamento.
Seth soltou um suspiro de alívio. Não o tinham visto.
Escondera-se atrás de um arbusto de azevinho que picava muito, mas,
mesmo quando Rosie e Donald passaram por ele no jardim, não se atreveu a
mexer-se. Passados alguns minutos, eles voltaram. Donald empurrava um
carrinho de mão carregado com ferramentas de jardim e Rosie transportava
um tabuleiro cheio de pequenas plantas. Seria jardineira?

Às onze horas dessa noite, Seth estava no campo nas traseiras da Granja,
encostado ao muro e escondido por dois arbustos densos. Já estava escuro,
mas muito abafado, como se estivesse a formar-se uma tempestade.
Nessa manhã fora muito difícil seguir Rosie. A rua principal estava
movimentada e não tinha onde esconder-se. Ela parecia conhecer toda a
gente e parava constantemente para conversar. Seth atraíra alguns olhares
curiosos e, embora puxasse o boné para os olhos e arrastasse os pés como se
fosse apenas um trabalhador agrícola a passar, sentiu que a sua presença
tinha sido notada e que seria apenas uma questão de tempo até alguém
alertar a polícia para a presença de um indivíduo com uma aparência
suspeita na aldeia.
Pelos vistos, Rosie e Donald tinham uma empresa de jardinagem.
Espreitara por cima da sebe do jardim onde eles estavam a trabalhar e ficara
espantado ao vê-la cavar como um profissional experiente. Incapaz de se
aproximar dela por causa de Donald, Seth dormiu uma sesta num campo ali
perto. Acordou mais tarde e constatou que ambos tinham ido para casa, por
isso dirigiu-se para o carro, levou-o para um bosque, e depois voltou para a
Granja e esperou. Às quatro da tarde ouviu Rosie e Donald atravessarem o
jardim. Ficou atento, mas eles entraram na estufa e as suas vozes ficaram
abafadas. Cerca de uma hora mais tarde Farley veio para o jardim e chamou
Rosie para conversar com ela. Desta vez, Seth ouviu tudo muito bem.
Pensou que deviam estar sentados no banco do outro lado do muro, a pouca
distância dele.
Farley veio contar-lhe as últimas novidades. Com grande consternação,
Seth depressa percebeu que toda a gente lá em casa sabia exatamente quem
ela era e também os pormenores das suas movimentações, que só lhes
podiam ter sido transmitidos pela polícia. Farley disse-lhe que tinha sido
encontrado um Standard Vanguard com as impressões digitais do irmão por
todo o lado e que a polícia acreditava que ele vinha naquela direção num
Rover verde.
– Estão a alertar as pessoas para não se aproximarem dele – disse Farley,
num tom duro e autoritário. – Puseram um guarda no portão daqui de casa,
mas não deves sair enquanto ele não for apanhado.
– Achas que ele se vai atrever a vir aqui? – perguntou Rosie, e Seth sentiu
uma onda de prazer ao perceber o medo na sua voz.
– Não parece muito lógico – respondeu Farley. – Se estivesse no lugar
dele, procuraria formas de sair do país. Mas quem pode adivinhar o estado
de espírito de um homem que já matou duas vezes?
As suas vozes desvaneceram-se a pouco e pouco enquanto voltavam para
casa. Apesar de estar abalado por saber que a polícia estava tão perto de
apanhá-lo, Seth sorriu. Eles não tinham inteligência para vigiar as traseiras
da casa e, se Farley soubesse como estivera perto da irmã hoje, estaria a
borrar-se de medo.

Seth acendeu outro cigarro. Estava à espera de que todos os habitantes da


casa fossem para a cama. Esperava que houvesse uma tempestade porque
tornaria o seu plano muito mais fácil.
A sua ideia original era apanhar Rosie sozinha, bem longe da casa. Como
os acontecimentos do dia tinham impossibilitado isso, tivera de repensar.
Porém, o novo plano era muito mais excitante.
Resignara-se a acabar por ser capturado, mas poderia ir para a cadeia
muito mais feliz sabendo que enganara Farley e a polícia, e se vingara de
Rosie da melhor maneira. Seria o ato mais compensador de toda a sua vida
e queria continuar a pensar nele, mas por alguma razão os seus pensamentos
não paravam de voltar a Heather.
Possuíra-a pela primeira vez quando Alan tinha apenas oito semanas.
Chegara a casa para uma licença de quarenta e oito horas na noite anterior,
bem no meio de uma terrível discussão entre ela e Cole.
Quando se levantou na manhã seguinte, o pai já saíra para trabalhar com
Norman e Heather tinha uma enorme nódoa negra num olho e os nós dos
dedos muito esfolados. O bebé chorava a plenos pulmões. Ela estava sem
saber o que fazer, porque tinha uma montanha de roupa para lavar. Parecia
exausta e velha. Foi a primeira vez que Seth sentiu pena dela. Admirou a
forma como tentara retaliar na noite anterior – ele não se teria atrevido a dar
com uma frigideira na cabeça de Cole como ela fizera.
Certamente, não foi desejo que o levou a abraçá-la. Ela estava horrível
com as roupas manchadas, e o cabelo não via um pente há dias. No entanto,
quando estava a abraçá-la alguma coisa levou a melhor sobre ele.
À sua maneira, Heather era muito sensual. Ele sempre achara isso. O seu
grande traseiro ondulava quando ela andava, as mamas tremiam e os olhos
cintilavam quando se ria. Normalmente, o cabelo comprido estava limpo e
brilhante e tinha uma forma de falar com os homens que os fazia sentirem-
se um pouco especiais. Nesse dia cheirava a leite, sentia os seios dela
inchados e quentes contra o seu peito, e enquanto chorava encostada ao seu
ombro e lhe agradecia por ser bondoso soube que teria de a possuir.
Seth não se recordava de como conseguira persuadi-la a ir para o primeiro
andar com ele. Talvez lhe tivesse dito que a ajudaria a fazer as camas. Mas
levou-a para o quarto do pai, obrigou-a a deitar-se e possuiu-a.
Curiosamente, não conseguia lembrar-se de como fora, não com a
intensidade com que recordava o que acontecera com Ruby. Ela debatera-se
e gritara, é claro, e amaldiçoara-o mil vezes, mas não se lembrava da
excitação. Só se recordava de olhar para ela depois. O vestido estava subido
e ele rasgara o corpete. Escorria leite de um dos grandes seios inchados, e
ele apertara-lhe o mamilo como se estivesse a mugir uma vaca e rira-se
quando o leite esguichou para a cama.
De alguma forma, soube que ela não diria nada a Cole, embora tivesse
ficado histérica depois. Atirou-se a ele e tentou arranhar-lhe a cara, mas não
parava de dizer que devia ter sabido que não podia confiar nele. Seth supôs
que isso significava que estava convencida de que o tinha incentivado, e
talvez estivesse demasiado fraca depois de ter tido o bebé para aguentar
mais brigas com Cole.
Seth voltou para o quartel e Heather devia ter pensado que não voltaria a
acontecer. Mas é claro que estava enganada. Logo que foi desmobilizado e
voltou para casa, depressa encontrou oportunidades e, como fizera com
Ruby, manteve-a em silêncio ameaçando que faria mal ao seu filho.
Seth sentiu uma enorme satisfação ao perceber que Cole continuava sem
qualquer interesse pelo miúdo. Isso significava que poderia fazer-lhe
praticamente tudo o que quisesse. De qualquer maneira ele passava a vida a
chorar, por isso algumas pequenas marcas passariam despercebidas.
Seth não se lembrava de quantas vezes possuiu Heather antes de levar
Norman – quatro, talvez cinco vezes. Norman estava de licença pela
primeira vez desde que fora convocado para cumprir o serviço militar, e na
noite anterior contara ao irmão mais velho que ainda não perdera a
virgindade e que todos os homens o gozavam por causa disso. Seth
prometeu que lhe arranjaria uma miúda e que lhe mostraria como se fazia.
Nesse dia estiveram a beber sidra no Crown desde o meio-dia até ao meio
da tarde. Cambalearam para casa e encontraram Alan na cozinha, a dormir
profundamente no berço, e Heather a dormir uma sesta no quarto. Ela
estava deitada de barriga para baixo na cama e o vestido subira um pouco,
revelando o cimo das meias e as roliças coxas brancas. Ele ficou logo
excitado, por isso desapertou o fecho das calças, saltou para a cama, puxou-
a até ela estar de gatas e penetrou-a.
Naquela ocasião o mais excitante não foram apenas os gritos ou a luta,
embora isso o deixasse sempre ainda mais excitado: foi ter um espectador.
Olhou por cima do ombro, viu Norman com a pila na mão, e foi isso que
tornou aquele momento mágico. Foi como quando eram crianças e
entravam sorrateiramente pelas traseiras da loja da aldeia para fanar um
pacote de bolachas ou uma tablete de chocolate do armazém. A maior parte
das vezes nem sequer queriam o que roubavam. Era a maldade partilhada
que transformava aquilo numa grande aventura.
Alan começou a chorar lá em baixo, mas isso não fez qualquer diferença.
Foi glorioso, melhor do que acelerarem pelas vielas juntos numa mota, ou
nadarem nus no rio. Depois de se vir mandou Norman ocupar o seu lugar, e
a excitação na cara do irmão foi melhor do que vê-lo abrir os presentes no
dia de Natal.
Depois daquela vez, Norman acobardou-se. Quando ficou sóbrio quase
não falava com ele e passou muito tempo sem vir a casa de licença. Heather
estava sempre a avisá-lo de que ia contar a Cole, mas nunca contou.
Seth tinha o êxito assegurado. Conseguira criar conflito suficiente entre o
pai e a sua mulher para que toda a confiança desaparecesse. Cole acreditava
piamente que ela o sobrecarregara com um filho que não era seu. Sem saber
isso, Heather rejeitava todos os seus avanços porque ele não se preocupava
com o filho. Tinha de se submeter a Seth por medo de que ele fizesse mal a
Alan, e devagar, mas com constância, a fricção em May Cottage
intensificou-se.
Eles brigavam quase todas as noites. Era quase sempre por causa de uma
coisa insignificante, Cole ir para o pub ou ela esquecer-se de fechar as
galinhas. No entanto, cada discussão parecia ser mais amarga. Ela dizia que
Cole não a amava nem a Alan. Ele perguntava-lhe como podia dizer que o
amava se não o deixava aproximar-se. Muitas vezes era Heather que
começava as coisas físicas; atirava-lhe alguma coisa e ele retaliava com um
murro.
Seth recostava-se alegremente e ficava a ver. Por vezes regressava do pub
a tempo de assistir à luta pela janela da cozinha. Outras vezes começava
depois de se ter ido deitar. Divertia-o que eles pensassem que nem ele nem
Rosie sabiam das suas discussões. Por fim, vingara-se do pai por magoar
tanto a sua mãe que ela se fora embora. A vingança absolveu-o da culpa por
matar Ruby e castigou Rosie por ter nascido. Acreditava que muito em
breve Heather pegaria em Alan e fugiria. Só esperava que também levasse
Rosie.
Na primavera de 1949, Cole e Seth estavam a fazer um trabalho em
Bristol, a limpar os escombros de um local bombardeado. Seth tinha vinte e
um anos, Rosie doze e Alan apenas dois. Norman continuava no exército,
mas só lhe faltavam duas semanas para ser desmobilizado. Estavam em
Bristol há algum tempo e só iam a casa aos domingos, mas uma noite Cole
saiu sozinho e voltou passados dois dias com um grande sorriso na cara e
recusando-se a dizer onde estivera. Seth presumiu que ele tinha arranjado
outra mulher e um pouco mais tarde nessa manhã, quando o mandaram ir
descarregar uma camioneta cheia de entulho, decidiu fazer um desvio para
ir ver Heather. Teve o cuidado de deixar a camioneta a oitocentos metros e
foi para casa pelo brejo. Se Cole soubesse que tinha ido lá durante o dia
quereria saber porquê.
Assim que viu Heather a pendurar a roupa no pomar, a cantar
alegremente, como se tivesse acabado de dar uma boa queca, de repente
percebeu onde é que Cole estivera nos últimos dois dias. Não havia outra
mulher, mas sim esta. Pior ainda, percebeu que tinham resolvido as suas
diferenças sem ele ali para espetar algumas farpas. O sorriso de Heather
apagou-se quando o avistou. No entanto, em vez de fugir como costumava
fazer, ficou parada, com as mãos nas ancas, e olhou-o com uma expressão
furiosa.
– Nem penses nisso – avisou-o. – Se quiseres um chá ou uma sanduíche,
tudo bem. Mas se tens outra coisa em mente, esquece.
A sua confiança abalou-o. Ela estava como quando chegara àquela casa,
jovem, fresca e forte. Os olhos castanhos fitaram os seus sem pestanejar;
aquela coragem que em tempos admirava nela estava de volta.
– Ora, vá lá – disse, sem saber se estava a tentar persuadi-la ou a fingir
que nem sequer tinha pensado em sexo. – O meu pai pode ter sido bom para
ti nos dois últimos dias, mas foi só porque tem andado a papar todas as
mulheres em Bristol.
Ela esboçou um pequeno sorriso e abanou a cabeça com uma expressão
exasperada.
– Não me venhas com essas tretas gastas – disse. – Tu és um verme, Seth,
um verme mentiroso, fedorento e podre. Se não tivesse estado tão ocupada
a fazer o teu pai feliz nos últimos dois dias, tinha-lhe contado todas as
coisas que tu fizeste, mas não quis desperdiçar o nosso precioso tempo
juntos a falar em ti. Agora, vou dizer-te como vai ser. Tu vais sair daqui de
vez, e se não saíres até sexta-feira por tua iniciativa conto-lhe tudo e digo-
lhe para te pôr na rua.
Do mesmo modo que soube que Ruby estava a falar a sério, também
percebeu que Heather estava decidida. Havia uma determinação absoluta
nos seus olhos.
Não tinha a intenção de matá-la, não naquela altura. Falou-lhe num tom
simpático. Até pediu desculpa e concordou encontrar um sítio para morar
em Bristol. Só quando ela se virou e começou a dirigir-se para casa à sua
frente com o cesto da roupa na anca é que percebeu que ela pretendia contar
a Cole de qualquer maneira. Seguiu-a. O mesmo machado com que matara
Ruby seis anos antes estava no cimo da pilha de lenha ao pé do anexo.
Pegou nele e escondeu-o atrás das costas.
Heather parou ao pé da calandra. Ao lado estava a velha banheira cheia
de lençóis de molho. Ela debruçou-se para pegar num, dobrou-o duas vezes
e começou a passá-lo pela calandra.
– Vai pôr a chaleira ao lume – disse, com indiferença. – Eu faço-te uma
sanduíche quando terminar isto.
Seth levantou o machado e bateu-lhe com força na nuca por trás. Ela caiu
para a frente e ele bateu-lhe de novo.
Bastaram dois golpes fortes. Mais fácil do que torcer o pescoço de uma
galinha.
Tudo foi mais simples do que fora com Ruby. Agora era um homem
adulto e muito mais forte. A terra também estava mais mole, porque nos
últimos meses ele e Cole tinham escavado uma parte do terreno para
experimentar uma escavadora mecânica. Tinha feito o buraco em duas horas
e terminado o serviço, madeira colocada no sítio e tudo, em três. Só quando
acabou é que ouviu Alan chorar.
Doente era a única palavra que podia usar para descrever como se sentiu.
No calor do momento, não pensara no miúdo. Ele estava no pomar, dentro
do berço, e se não se tivesse esquecido da existência daquele infeliz
também o teria matado e atirado para a sepultura com a mãe.
Todavia, agora era demasiado tarde para fazer alguma coisa. Rosie
voltaria da escola dali a pouco e se não regressasse a Bristol dentro de uma
hora Cole ficaria desconfiado. Mais tarde, enquanto se afastava na
camioneta para se desfazer de um saco com as roupas de Heather, disse a si
mesmo que Cole acabaria por entregar Alan às assistentes sociais.
Ter deixado o miúdo vivo era a única coisa que lamentava daquele dia.
Não se importou que o pai chorasse como uma criança e gostou de ver
Rosie desorientada e exausta enquanto se desdobrava para ir à escola e
tomar conta do fedelho. Se não fosse aquele miúdo escanzelado e miserável
toda a gente teria acreditado que Heather fugira porque já não aguentava
Cole. Farley nunca teria começado a investigar. Cole, Norman e ele ainda
estariam em May Cottage. Rosie ter-se-ia casado há um ou dois anos.
Cole não teria sido enforcado.
Quando as primeiras gotas de chuva começaram a cair, Seth pôs a
espingarda ao ombro, subiu o muro do jardim e desceu sem fazer barulho
ao lado da estufa.
Não sentia qualquer culpa por ter assassinado as mulheres. Elas tinham-se
atravessado no seu caminho. Nem sequer se sentia mal por Cole ter sido
julgado por uma coisa que não fizera. O que ainda o atormentava era o
olhar que o pai lhe lançara quando fora condenado à morte.
Durante o julgamento Seth estava convencido de que Cole acreditava que
alguém fora lá a casa e assassinara as duas mulheres. Não podia desconfiar
dele, senão teria falado. No entanto, quando o olhou com aqueles olhos
pretos frios e penetrantes, Seth percebeu que o pai sabia que fora ele, desde
que os corpos tinham sido descobertos. Até ao dia de hoje, Seth não
compreendia porque é que o pai tinha ficado calado, e isso consumia-o
como uma dor de dentes.
Avançou furtivamente até ao pavilhão de verão e entrou. A cozinha
estava às escuras e pensou que a família devia estar a ver televisão na parte
da frente da casa. Sentou-se confortavelmente numa cadeira de verga e
preparou-se para esperar.
A chuva era tão leve que quase não a ouvia, mas ouviam-se trovões ao
longe. Um pouco mais tarde um candeeiro foi aceso no quarto por cima da
cozinha e o terraço e o relvado ficaram iluminados com uma tira de luz. Ele
endireitou-se e quase gritou de alegria quando viu Rosie aproximar-se da
janela para espreitar, e lembrou-se de que ela costumava passar muito
tempo à janela do seu quarto quando era miúda. Não correu as cortinas, e só
fechou parcialmente as janelas. Enquanto observava, ela começou a despir-
se.
Seth só conseguia vê-la da cintura para cima, mas quando ela desabotoou
a blusa teve uma ereção imediata. Rosie usava um sutiã branco e virou-se
para despir a saia ou os calções. Para sua grande desilusão, afastou-se antes
de tirar o sutiã e quando voltou a entrar na sua linha de visão vestia uma
espécie de top com folhos que parecia um daqueles bonitos conjuntos de
baby-doll. Esteve junto da janela durante algum tempo a escovar o cabelo e
depois acendeu-se uma luz mais suave, o candeeiro do teto foi apagado, e
presumiu que se deitara.
Nessa manhã, Seth tivera muito tempo para estudar as traseiras da casa. O
quarto onde Rosie estava ficava por cima da cozinha. Havia uma planta a
trepar por uma latada quase até à sua janela e, por coincidência, era o
caminho que ele planeara usar para entrar em casa se não conseguisse
apanhá-la durante o dia. No entanto, não esperara ter a sorte de a encontrar
naquele quarto. Só gostaria de saber onde dormiam todos. Calculou que os
pais deviam ocupar o quarto grande na parte da frente da casa, mas onde
estariam Farley e Donald?
Um pouco mais tarde ficou a saber onde estava um deles quando
apareceu uma luz em dois pares de janelas a seguir ao quarto de Rosie. As
cortinas estavam corridas, por isso não soube qual dos homens era, mas um
sexto sentido disse-lhe que era Farley.
À uma e meia Seth estava pronto. Tinha vários metros de corda forte
enrolados no peito, trapos no bolso e a faca no cinto; o casaco e a
espingarda estavam escondidos muito perto do muro do jardim.
Pouco antes tinha-se esgueirado para a parte da frente da casa. Só havia
um polícia a vigiar. Seth viu a ponta vermelha do cigarro enquanto ele se
abrigava da chuva debaixo de uma árvore próxima do portão. Só demorou
um momento a cortar o fio do telefone do lado de fora da casa. O polícia
não se mexeu.
Agora, chovia torrencialmente. O som da chuva a bater na estufa e no
acesso de gravilha era o bastante para esconder qualquer barulho que ele
fizesse. Mas o melhor de tudo era a trovoada, a troar como armas a disparar
ao longe. O medo foi substituído por uma excitação intensa.

Rosie acordou sobressaltada ao sentir uma coisa molhada e fria a fazer


pressão na sua traqueia. No entanto, quando abriu a boca para gritar alguma
coisa foi enfiada nela, fazendo-a engasgar-se. Estava demasiado escuro para
ver o atacante, mas pelo cheiro percebeu logo quem era. Apenas o suor de
uma pessoa cheirava assim – o de Seth. Lutou contra os braços que a
prendiam, tentando libertar-se, mas ele prendeu-a com força por baixo da
roupa da cama.
– Ora, irmãzinha, aposto que nunca pensaste que voltarias a ver-me –
sussurrou. – Agora vais ser uma linda menina e vais ficar muito quieta para
eu não te magoar a ti nem a mais ninguém nesta casa.
Rosie tentou gritar, mas Seth enfiou mais o pano na sua boca e ela
engasgou-se muitas vezes.
– Cheira – ordenou num sussurro ameaçador, com o rosto a pairar sobre
ela enquanto a segurava. Rosie tentou desviar-se do seu hálito, que também
cheirava mal, mas ao fazê-lo sentiu um odor mais forte.
Petróleo.
Atirou a cabeça para trás, mais alarmada ainda, e viu pelo brilho dos
dentes que ele estava a sorrir.
– Sim, é petróleo. Deixaste-o para mim na estufa e despejei-o pela casa
inteira. Mantém a boca fechada, não tentes lutar, e talvez eu não acenda um
fósforo. Sabes o que acontecerá se eu fizer isso, não sabes?
Rosie ficou paralisada. Não tinha qualquer dúvida de que ele era
desumano ao ponto de incendiar a casa. Não tinha mais nada a perder. Teria
de fazer o que ele mandasse.
– Não vim cá para te magoar. Mas tu meteste-me nesta trapalhada e tens
de me tirar dela – disse num tom muito suave ao seu ouvido. – Por isso, vou
amarrar-te e depois desço-te pela janela. Mas lembra-te de que quando
estiveres no jardim e eu cá em cima, se fizeres um som... nem que seja só
um guincho... incendeio a casa.
Rosie sabia que ele pretendia fazer-lhe mal, dissesse o que dissesse, mas
não tinha outra alternativa a não ser obedecer-lhe. Não podia correr o risco
de ele acender um fósforo. Talvez conseguisse fugir quando estivessem no
exterior.
Ele pô-la de barriga para baixo, prendeu-lhe as mãos atrás das costas com
um pedaço de corda, amarrou-lhe os tornozelos com outro, e depois rodeou-
lhe a cintura com um pedaço mais grosso com uma espécie de nó corredio.
Para jogar pelo seguro, prendeu mais um trapo à volta da boca para ter a
certeza de que ela não conseguia cuspir a mordaça.
Enquanto a levantava para lhe enfiar a cabeça pela janela, a única coisa
que Rosie pôde fazer foi esperar que Thomas ouvisse algum ruído e desse o
alarme, mas sabia que com o barulho da tempestade seria improvável.
Rosie pesava apenas uns cinquenta quilos, mas ainda assim era muito
peso para Seth segurar. Enquanto ele descia o seu corpo pelo parapeito da
janela, ela teve visões da corda a fugir-lhe das mãos e do seu crânio a
esborrachar-se lá em baixo no terraço. Já estivera nesta posição com ele
quando tinha uns quatro ou cinco anos, pendurada de cabeça para baixo por
cima do muro de um chiqueiro de porcos. Porém, naquela altura ele não se
atrevera a fazer-lhe mal.
Ela usava apenas um fino pijama de nylon e a corda amarrada à volta da
cintura enterrava-se dolorosamente na pele. Por milagre, chegou ao chão
bastante devagar, mas mesmo que não tivesse as mãos e os pés amarrados
não conseguiria fugir. Seth continuava a segurar a outra ponta da corda e
quando ela olhou para cima ele estava a passar pela janela para ir ao seu
encontro. Conteve a respiração, com medo que ele acendesse um fósforo
antes de sair do quarto. Mas ele não acendeu. Desceu pela latada em
silêncio como um macaco.

Thomas acordou de repente de um sonho desagradável. Era um sonho


antigo que não o perturbava há algum tempo: todos os homens estavam
alinhados sob o sol escaldante para o «Tenko», a chamada, à espera que os
guardas japoneses descobrissem que faltava um homem. O sonho era
sempre muito real e ele tinha aprendido a sair dele. No entanto, deixava-o
sempre com uma sensação de profundo terror e com suores frios, mesmo
sem chegar à parte em que um dos guardas os obrigava a ajoelharem-se no
chão, com as cabeças curvadas, e percorria a fila com a espada erguida para
escolher alguém para decapitar.
Thomas nunca compreendera porque é que este sonho persistia. Vira
homens serem espancados, chicoteados e fuzilados pelos guardas, mas não
decapitados. Um psiquiatra no hospital dissera-lhe que a espada era apenas
um símbolo de tudo o que ele temia. Talvez tivesse voltado esta noite
depois de meses de tréguas devido à ansiedade que sentia por causa de
Rosie.
Quando ouviu o ribombar de um trovão, sorriu para si mesmo. Fora
apenas uma tempestade que motivara o sonho. Levantou-se da cama e
saltitou pelo quarto para ver da janela, respirando fundo para afastar o
pesadelo de vez.
O clarão de um relâmpago iluminou o jardim inteiro durante um segundo.
Ele piscou os olhos. Pareceu-lhe ver alguém correr pelo relvado com um
fardo ao ombro, mas de repente o jardim ficou outra vez mergulhado na
escuridão. Ficou parado durante um segundo, a cambalear um pouco
enquanto se equilibrava na única perna, a espreitar para fora, certo de que
era fruto da sua imaginação. Mas a imagem não desapareceu da sua cabeça.
Não tinha muletas nem bengala. Com a perna do pijama vazia a abanar,
saltitou até ao quarto de Rosie e quando abriu a porta viu a cama vazia e a
janela aberta de par em par com as cortinas a abanar ao vento. Também
sentiu o cheiro de petróleo.
Desde que fora capturado pelos Japoneses sentira-se muitas vezes
completamente impotente, mas nunca tanto como agora. A sua mente disse-
lhe para saltar pela janela e ir atrás deles, mas sabia que era impossível. Em
vez disso, gritou como um louco para Norah e Frank enquanto saltitava pelo
corredor.
Donald saiu do quarto antes de Thomas chegar à porta do quarto dos pais
dele.
– Vai telefonar para a polícia – gritou-lhe. – O Seth Parker tem a Rosie.
Está a fugir pelo campo nas traseiras.
Esperava que Donald ficasse a olhar para ele com uma expressão apática,
mas ele partiu disparado pelo corredor em direção às escadas e desceu-as de
três em três.
Frank saiu do quarto a esfregar os olhos, com Norah logo atrás. Thomas
contou-lhes o que tinha visto.
– Vão ver se o Donald telefonou. Eu vou pôr a perna – disse.
Ainda não tinha chegado ao quarto quando Donald gritou ao fundo das
escadas.
– O telefone não funciona. Nem sequer faz aquele barulho engraçado –
disse, num tom alarmado.
– Eu vou chamar o polícia que está lá fora – disse Frank, correndo para o
quarto para ir buscar o roupão.
Thomas estava a acabar de prender a perna quando ouviu Norah gritar da
cozinha. Vestiu as calças por cima do pijama, pegou no casaco e nos sapatos
e apressou-se a ir para o andar de baixo.
Norah estava parada na cozinha, a torcer as mãos, com uma expressão do
mais puro terror. As portas que davam para o terraço estavam abertas e
chuva entrava na cozinha.
– O Donald foi atrás deles – disse, a chorar. – Oh, Thomas, ele não é
adversário para aquele homem.
Thomas consolou-a o melhor que pôde, mas não havia muito que pudesse
dizer para fazê-la sentir-se melhor. Donald era forte, estava em boa forma e
conhecia bem os campos. No entanto, o mais certo era correr atrás deles
como um touro enraivecido e tornar a situação ainda mais perigosa.
Frank voltou quando Thomas estava a fazer chá para Norah. Estava
completamente encharcado, com chuva a escorrer pelo rosto, e roxo de
fúria.
– Que porcaria de guarda! Não estava lá. Tive de ir bater à porta dos
vizinhos para usar o telefone deles – explodiu.
– A polícia vem? – perguntou Thomas.
Frank acenou com a cabeça, acrescentando que esperava que tivessem
mandado homens um pouco mais competentes do que o que tinham deixado
lá fora.
– Esperemos que liguem as sirenes. Pode ser que aquele animal deixe
ficar a Rosie e fuja.
Quando Thomas lhe contou o que Donald tinha feito, o homem mais
velho empalideceu.
– O diabo do rapaz – explodiu, batendo com o punho fechado na mesa da
cozinha. – Só vai complicar ainda mais as coisas.
– Ele foi pelos motivos certos – lembrou-lhe Thomas. – Se eu tivesse
duas pernas boas, também já estaria fora daqui.
Quando o primeiro grupo de polícias chegou cerca de dez minutos depois,
juntamente com o que devia estar lá fora, Frank e Norah já estavam
vestidos. Enquanto dois dos homens saíram para o jardim com lanternas,
Thomas levou o terceiro homem, um agente mais velho, ao primeiro andar
para lhe mostrar o quarto de Rosie. O cheiro a petróleo ainda era forte, mas
não havia sinal de ter sido entornado. Pensaram que talvez Seth tivesse
ficado com petróleo na roupa enquanto estava escondido em algum lugar.
Thomas quis saber porque é que o homem que devia estar a guardar a
casa desaparecera e porque é que não tinham vigiado também as traseiras.
O agente disse que iria investigar e afastou-se sem mais demora para ir ter
com os colegas, que estavam agora do outro lado do muro, no campo.
Eram duas e vinte e cinco quando Thomas entrara na cozinha e soubera
que Donald tinha saído. Calculou que Rosie devia ter sido raptada uns
quinze minutos antes disso. Agora, enquanto esperavam na cozinha,
desesperados por notícias ou por alguma coisa construtiva para fazer, os
minutos pareciam horas.
Durante algum tempo depois de a polícia sair, todos se tranquilizaram
mutuamente falando sobre os reforços que a polícia dissera que ia mandar,
as barricadas que estavam a ser montadas e as promessas que tinham sido
feitas de que Donald seria encontrado e trazido imediatamente para casa.
No entanto, à medida que o tempo foi passando todos mergulharam nos
seus pensamentos.
Norah manteve-se ocupada a fazer um monte de sanduíches e uma grande
garrafa-termo de café. Cobriu as sanduíches com um pano de cozinha
húmido, tirou uma pilha de pratos pequenos do armário e colocou-os ao
lado de algumas chávenas, quase como se estivesse a preparar uma festa.
No entanto, o medo que sentia era evidente nos movimentos bruscos e na
compulsão para estar sempre a limpar superfícies. Os olhos azul-
acinzentados habitualmente calmos estavam escuros de ansiedade; os lábios
tremiam como se estivesse à beira de um colapso nervoso.
Frank parecia estar atordoado, com o queixo caído sobre o peito. A
costumeira tez rosada, que sempre anunciara a sua boa saúde, estava agora
perigosamente lívida. As veias da testa estavam inchadas e pulsavam
visivelmente.
Antes tinham falado sobre Michael e Susan e discutido durante breves
momentos que, mesmo que o fio do telefone não tivesse sido cortado, seria
injusto acordá-los para lhes dar a má notícia. Porém, Thomas sabia que
ambos desejavam que os dois filhos mais velhos aparecessem de repente à
porta.
Thomas teve muita pena deste casal que passara a conhecer tão bem. Há
algum tempo tinham-lhe falado naquele dia, muitos anos antes, em que a
menina da aldeia desaparecera. Sabia que estavam a revivê-lo agora, a
sentir o mesmo terror que os pais dela tinham sentido durante aquela longa
noite enquanto os grupos de busca vasculhavam os bosques e os campos.
Donald podia ser um homem aos olhos da maioria das pessoas, mas para
eles continuava a ser um rapazinho que estava lá fora, descalço no meio de
uma tempestade, a perseguir um assassino que poderia matá-lo ou estropiá-
lo. Quase conseguia ouvir os seus pensamentos atormentados. Porque é que
não tinham mandado Rosie e Donald para casa do filho em Tunbridge
Wells, para eles ficarem em segurança, quando souberam que Seth Parker
tinha assassinado as duas mulheres? E porque é que tinham sido ingénuos
ao ponto de confiar na vigilância da polícia?
No entanto, embora reconhecesse a situação difícil de Norah e Frank,
achava que a sua dor era muito maior. A guerra roubara-lhe a mãe, a
juventude e a perna. Como se isso não bastasse, a irmã também lhe tinha
sido levada. Depois, como um milagre, a amizade com Rosie arrancara a
amargura que tinha dentro de si. Desde a altura em que lhe escrevera as
primeiras cartas quando estava em casa dos Bentley, ela enriquecera a sua
vida com a sua coragem e resistência.
Agora, era possível que nunca mais voltasse a vê-la, e havia tantas coisas
que queria partilhar com ela – que por fim, na véspera de vir para cá, tivera
coragem para mostrar os seus quadros a Paul Brett, o proprietário de uma
galeria de arte em Hampstead; que Paul sentia que ele estava à beira de
conseguir uma coisa maravilhosa.
Rosie inspirara-o, mas agora talvez nunca visse o quadro que tanto
impressionara Paul Brett. Pintara-o de memória: uma pequena maltrapilha
de cabelo encaracolado e olhos desafiadores, a espreitar atrás de uma
roseira brava.
Nem sequer podia sair e juntar-se ao grupo de busca para procurá-la. Um
passo em terreno irregular e escorregadio e cairia. Era tão útil para a mulher
que amava como um guarda-fogo de chocolate.

Entretanto, Donald não era tão incapaz de pensar com clareza como os
pais acreditavam. Embora estivesse zangado e perturbado, teve a presença
de espírito de tirar uma gabardina escura que pertencera em tempos a
Michael de um cabide na entrada, calçar os sapatos de jardinagem e levar a
grande lanterna que o pai usava para ver o motor do carro quando estava
escuro.
Também sabia pelos livros de banda desenhada que para apanhar alguém
de surpresa era preciso ser silencioso e manter-se invisível. No instante em
que saiu para o campo esfregou lama na cara e no cabelo. Vira alguém fazer
isso num filme.
Ser rápido pareceu-lhe a coisa mais importante num primeiro momento,
por isso correu como o vento pelo campo até chegar à vedação ao fundo,
mas a partir dali acendia a lanterna de vez em quando para procurar pistas.
Havia nítidas marcas de botas na lama, e marcas de pés descalços, que só
podiam ser de Rosie. O homem mau estava a levá-la para o bosque.
Quando se aproximou do bosque, Donald ficou assustado. Nunca estivera
lá à noite e cada tronco de árvore tinha uma cara feia e mal-intencionada.
Parou durante alguns momentos, demasiado assustado para avançar mais,
mas enquanto estava parado ouviu ruídos acima do barulho da chuva a bater
nas árvores – ruídos de coisas a partir e a abanar um pouco à sua frente.
Saber que Rosie estava ali, ainda mais assustada do que ele, deu-lhe uma
nova coragem. Os seus olhos já estavam mais acostumados à escuridão e
conhecia muito bem o bosque. Não se atreveu a acender a lanterna, por isso
guardou-a no bolso e pegou num pau grande e robusto.
Manteve-se no carreiro muito usado. O homem e Rosie iam à sua
esquerda, a caminhar pelo meio do mato, mas o caminho por onde seguia
aproximava-se gradualmente deles. Se fosse rápido e silencioso poderia
passar à frente deles como o Lobo Mau na história do Capuchinho
Vermelho.
O seu plano funcionou. Depois de andar rapidamente durante cerca de
vinte minutos, parou para escutar e ouviu-os vir na sua direção.
– Mexe-te – disse o homem numa voz abrupta e Donald ouviu um som
que parecia o de uma vara a cortar o ar. Foi como se o homem lhe tivesse
batido, mas Rosie não gritou; só se ouviu um barulho como se um deles
tivesse tropeçado em alguma coisa.
Donald escondeu-se atrás do tronco maior. Desejou ter trazido o gorro
que usava no inverno. Tinha medo de que o cabelo louro se visse.
Mas de repente eles pararam de andar. Donald esforçou-se para escutar.
Ouviu barulhos estranhos, mas não conseguiu identificá-los. Esperou, sem
saber o que fazer, e depois o homem falou de novo.
– Não vais mais longe – disse.
Donald ficou aliviado ao ouvir aquilo. Pensou que o homem ia deixá-la
ali e se ia embora sozinho. Devia saber que a polícia viria atrás dele. Aquilo
facilitava tudo: esperaria até ele desaparecer e depois levaria Rosie para
casa.
Mas os minutos passaram e o homem não veio na sua direção e só fazia
barulhos esquisitos. Donald ficou ansioso. Começou a aproximar-se
furtivamente.
– Fica quieta, sua puta. Não consigo metê-la – exclamou o homem de
repente, e Donald soube por instinto que ele estava a tentar fazer-lhe uma
coisa muito má.

Rosie estava completamente aterrorizada. Desde o instante em que Seth a


levara às costas pelo muro do jardim e depois lhe soltara os pés para ela
poder andar, soube que pensava matá-la ou deixá-la tão ferida que desejaria
estar morta. Não podia fugir. Ainda tinha a corda muito apertada à volta da
cintura e quando parava de andar ele arrastava-a ou dava-lhe pontapés. O
pano que tinha na boca estava a deixá-la maldisposta e o que ele usara para
prender a mordaça tresandava a petróleo. De repente, percebeu que a
enganara em casa. Não espalhara petróleo e ela só cheirara aquele pano.
Enquanto atravessavam o campo, ele proferiu uma grande quantidade de
acusações. Era por sua causa que fora por maus caminhos. Ela começara a
causar-lhe problemas desde o dia em que nascera. Cole sempre gostara mais
dela do que dele. Fora por sua causa que tivera de matar Ruby.
Rosie parara ao ouvir aquilo e olhara-o, horrorizada. Ele fitara-a com
raiva, pontapeara-a para que continuasse a andar e contara-lhe com
pormenores macabros e repugnantes como é que a assassinara e porquê.
Depois, passara para Heather.
Quando chegaram ao bosque, Rosie estava com dores. Batera várias
vezes em pedras com os pés descalços, estava enregelada e a corda à volta
da cintura enterrava-se cada vez mais na pele. A chuva fazia o pijama colar-
se ao corpo e tinha a certeza de que Seth pretendia violá-la. Não sabia
porquê, mas violação era a coisa pior que podia imaginar. Preferia ser
espancada até ficar praticamente à beira da morte.
Porém, acima de tudo isso, estava o terrível conhecimento de que o pai
era inocente. Enforcado por crimes cometidos pelo filho mais velho, aquele
louco selvagem. Ela sempre se sentira culpada por não ter contado à polícia
tudo o que sabia sobre Seth. Agora, sentiu uma profunda desolação porque
ao manter-se calada ajudara a pôr a corda à volta do pescoço do pai.
Não valia a pena rezar por salvação. Só perceberiam que ela tinha
desaparecido de manhã, e nessa altura seria tarde de mais. Lágrimas
escorreram-lhe pelo rosto, mas nem sequer podia falar para tentar dissuadi-
lo.
Andar no bosque foi muito pior do que nos campos. Tropeçava em todos
os paus, foi picada por urtigas e espetada por espinhos. Depois, ele parou e
amarrou-a a uma árvore com os pés muito separados e percebeu que aquilo
significava que a primeira coisa seria violação. No entanto, antes disso
provocou-a, tirando uma faca comprida e brilhante do cinto e passando-a
pelas suas narinas e faces, enquanto enterrava levemente a ponta para lhe
mostrar o que pretendia fazer.
– Isso vai ser a última coisa – sussurrou. – Vou cortar-te a cara às tiras e
depois arranco-te os olhos. Nenhum homem vai voltar a querer-te, nem
sequer vais conseguir ver como estás feia nem olhar para as tuas preciosas
flores. Mas primeiro vais ter a minha pila grande e dura.
Mesmo com o forte cheiro a petróleo, conseguia sentir o seu mau hálito e
o fedor do seu suor, e engasgou-se de novo. Depois, ele desapertou o fecho
das calças e mostrou-lhe o pénis, puxando-lhe a cabeça para um lado e para
o outro sempre que ela tentava desviar os olhos.
Arrancou-lhe os calções do pijama com uma mão enquanto se masturbava
com a outra. Depois, quando ficou ereto, tentou penetrá-la. Ela contraiu
todos os músculos. Fizesse ele o que lhe fizesse, não o deixaria ter isto.
Quisera guardar-se para a noite de núpcias com Gareth. Agora ele não a
queria, mas diabos a levassem se o irmão ia tirar-lhe a virgindade.
Ele deu-lhe um murro na cara quando não conseguiu penetrá-la, mas ela
não se importou. Ele era um animal, um monstro cruel e sádico que deixara
o pai ser enforcado pela morte de duas mulheres que amava. A virgindade
era tudo o que lhe restava e lutaria para conservá-la.
De repente, ouviu um som que mais parecia um rugido. Por instantes
pensou que era Seth, mas quando virou a cabeça viu uma figura correr para
eles como um touro selvagem.
Seth recuou, apanhado de surpresa. Tentou pegar na espingarda que ainda
tinha pendurada às costas, mas não foi suficientemente rápido. A figura
saltou para ele, fazendo-o cair no chão de costas, atirou-se para cima dele e
começou a bater-lhe na cabeça e na cara com um pau pesado.
Só quando o seu salvador soluçou é que Rosie percebeu que era Donald.
CAPÍTULO 19

U m verdadeiro pandemónio instalou-se no bosque. Vozes de homens a


gritar, barulho de pés a correr pelo meio do mato e luzes a dançar de
todas as direções competiam com os trovões, com os relâmpagos e com o
barulho da chuva. Rosie tentou gritar para os orientar, mas o som estava
apenas na sua cabeça e engasgou-se vezes sem conta quando o trapo que
tinha na boca desceu pela garganta.
No entanto, Donald gritou por ela. À luz de um relâmpago, Rosie viu-o
com toda a nitidez. Estava sentado em cima de Seth, com a cabeça para trás,
a rugir como um leão ferido.
De repente, apareceram homens fardados. Viu o brilho dos botões
prateados, os rostos fantasmagoricamente brancos à luz das lanternas, e as
árvores pareceram rodopiar diante dos seus olhos.
– Estás em segurança – disse uma voz áspera, e sentiu duas mãos quentes
nas bochechas frias e molhadas quando o homem desamarrou o trapo que
lhe rodeava a cabeça e a boca. Quando lhe tirou o segundo trapo da boca, os
gritos que guardara dentro de si saíram em catadupa.
– Fica quieta – disse o polícia. – Vou desamarrar-te.
– Donald – gritou ela. A sua linha de visão estava obscurecida pelos
ombros largos do polícia e, agora que estava a salvo, tinha de saber se
Donald também estava bem.
– Ele está ótimo – disse o polícia, olhando por cima do ombro para onde
os colegas rodeavam Donald e Seth. – Não te preocupes com nada. Já
passou.
Aquelas palavras, «já passou», ecoaram sem parar na sua cabeça quando
foi enrolada no casaco de alguém e erguida por braços fortes. Durante a
infância, o pai dizia-lhas muitas vezes quando a acordava no meio de um
pesadelo. O sargento Headly proferira-as quando a levara para o Hospital de
Bridgwater. Miss Pemberton e Thomas tinham-nas dito depois do seu
suplício em Carrington Hall. Mas teria passado tudo desta vez? Ou haveria
mais?
*

– És o homem mais corajoso que já conheci – disse Thomas enquanto


lavava o cabelo de Donald na banheira. O dia estava a nascer: a tempestade
terminara e um vento fresco empurrava o resto das nuvens para longe.
Thomas desejou poder apagar as terríveis imagens que a polícia, Donald e a
própria Rosie tinham gravado na sua mente durante a última hora com tanta
facilidade como tirava a lama do cabelo daquele rapaz.
Os olhos de Donald brilharam e o seu sorriso abriu-se de orelha a orelha.
– Eu tinha de parar aquele homem mau – disse. – Ele estava a magoar a
Rosie.
Thomas engoliu em seco e virou-se para que Donald não visse as suas
lágrimas.
Quando os polícias tinham voltado para casa, um deles com Rosie nos
braços, durante uma fração de segundo pensara que ela estava morta. Mas a
razão prevalecera logo: a polícia não levava cadáveres para a casa de
ninguém. No entanto, ela parecia uma boneca de trapos embrulhada num
casaco, com as pernas horrivelmente arranhadas e cobertas de lama caídas
sem vida sobre os braços do homem.
– Ela recusou-se a ir para o hospital – disse o polícia, num tom de
impotência. Depois, quando Norah apareceu vinda da entrada e o mandou
levá-la para a sala de estar, Rosie começou a mexer-se nos braços dele.
– Eu estou bem – declarou, num tom surpreendentemente claro. – Leve-
me para a cozinha. Estou toda molhada e cheia de lama.
Mais tarde, depois de o médico confirmar que as feridas eram apenas
arranhões e nódoas negras superficiais, até conseguiram rir-se da sua
preocupação com os tapetes e os móveis. No entanto, naquele momento
ficaram todos tão estupefactos por tê-la de volta, viva e capaz de falar com
clareza, que fizeram o que ela pedia e sentaram-na numa cadeira de
madeira.
A chegada de Donald alguns minutos mais tarde quase eclipsou a
provação de Rosie. Ao verem-no – cara e cabelo cobertos de lama, mãos e
gabardina manchadas de sangue –, ficaram em estado de choque. Todavia,
enquanto Rosie estava sentada em silêncio, embrulhada num cobertor,
Donald contara num estado de grande excitação uma história confusa sobre
como parara «o homem mau».
Depois de ficar estabelecido que Donald também não estava ferido,
Norah levou Rosie para cima, para lhe dar banho e deitá-la, e os polícias
afastaram Frank para um canto, para terem uma conversa em particular. Os
agentes saíram pouco depois, dizendo que voltariam mais tarde para saber
se Rosie já estaria em condições de lhes fazer um relato completo dos
acontecimentos daquela noite.
Norah voltou para baixo algum tempo depois, com o rosto pálido e a
tremer. Conseguiu mandar Donald para cima, para tomar o banho que
preparara para ele, mas quando ele saiu desatou a chorar e relatou a Frank e
a Thomas o que Rosie lhe tinha contado.
– Foi o Seth que assassinou a Ruby e a Heather, não o pai – disse a
chorar, abraçada ao marido. – Conseguem imaginar? Ele gabou-se disso à
Rosie e contou-lhe todos os pormenores sórdidos. Disse que ia cegá-la e
desfigurá-la, e estava a tentar violá-la quando o Donald correu para ele e o
impediu. Ela pode não ter feridas externas graves, mas só Deus sabe que
danos terríveis é que ele provocou na sua mente.
Frank falou sobre o que a polícia lhe dissera em particular, que Donald
saltara sobre ele e quase o matara à paulada. Pensavam que o crânio de Seth
estava partido e que não sobreviveria para ser julgado. Ia a caminho do
hospital.
Só restava um papel para Thomas. Fez chá, serviu brandies, escutou e
ofereceu consolo, mas o papel que ansiava era o de vingador. Mais do que
tudo na vida, desejou ter cinco minutos a sós com Seth Parker, pois faria o
homem implorar e suplicar para morrer.
Sem nenhuma possibilidade de se vingar, Thomas decidiu rezar em
silêncio enquanto ajudava cada membro da família: rezar para que Rosie
saísse disto incólume, para que Donald nunca mais precisasse ou quisesse
usar a sua força física para levar a melhor sobre outro homem. Porém,
acima de tudo, rezou para que Seth sobrevivesse, para suportar o tipo de
horror que infligira a Rosie enquanto esperava para ser enforcado.
Despejou um jarro de água sobre a cabeça de Donald para retirar o resto
do champô. Depois, estendeu-lhe uma toalha.
– Eu fui como um índio – disse Donald com orgulho enquanto se secava.
– Se tivesse uma faca, tinha-lhe tirado o escalpe.
Aquela bazófia de Donald trouxe um pouco de luz aos seus pensamentos
negros e até o fez sorrir. O rapaz parecia um entusiasmado miúdo de seis
anos acabado de chegar de um festim de cowboys e índios na sessão de
cinema de sábado de manhã. Felizmente, não tinha uma verdadeira noção
do que Seth pretendia fazer a Rosie nem de como estivera perto de ser um
assassino. Só fora guiado por um primitivo instinto de proteção e dali a
alguns dias já teria esquecido tudo a não ser a glória da sua proeza.
Pela primeira vez, Thomas deu por si a invejar a simplicidade de Donald.
Ele não olhava por cima do ombro para o passado, nem tentava prever o
futuro. Aceitava todas as coisas como elas eram. Boa comida, roupas
limpas, o amor da família, sorrisos calorosos dos vizinhos e palavras de
louvor esporádicas era tudo o que precisava para ser totalmente feliz.
Lembrou-se de como se sentira no campo de prisioneiros de guerra na
Birmânia, quando um minúsculo pedaço de carne ou peixe na taça diária de
arroz era o bastante para o deixar delirante de felicidade. Desejou poder
recuperar aquela capacidade de precisar e querer tão pouco.

Dois dias depois de Seth raptar Rosie do seu quarto, a imprensa estava no
jardim da Granja a fotografar Donald. Da noite para o dia ele transformara-
se num herói nacional e, como tinham receio de que repórteres pouco
escrupulosos recorressem a métodos dissimulados para falar com o filho,
Norah e Frank tinham autorizado esta sessão fotográfica, estritamente
controlada por Frank.
– Olha para eles! – sussurrou Norah num tom sarcástico para o marido
enquanto posavam para uma fotografia com o filho. Inclinou a cabeça para
a ponta do jardim, onde os habitantes da aldeia se amontoavam e
espreitavam pelos arbustos, chegando a subir o muro e o portão. De vez em
quando alguém gritava um extravagante elogio, ou começava a cantar «For
He’s a Jolly Good Fellow». Os repórteres achavam que era muito
comovente e não perceberam a recusa de Norah em serem fotografados com
os aldeões.
Havia um excelente motivo para a sua recusa. Doze anos antes aquelas
mesmas pessoas tinham estado no mesmo sítio, a gritar histericamente que
Donald era um louco e devia estar atrás das grades. Norah perdoara-lhes
isso – eram pessoas ignorantes e tinham sido apanhadas numa histeria
coletiva. Mas, embora estivesse muito orgulhosa da coragem do filho, não
pretendia partilhar um único momento dela com aquelas pessoas.

– Não tens de fazer isto – lembrou-lhe Thomas quando desceram. Tinham


estado a observar a cena ruidosa de um quarto do primeiro andar e Rosie
sugerira que também devia ir lá fora e despachar aquilo.
– Eles não vão parar de telefonar e vir cá a casa enquanto eu não aparecer
– disse, num tom firme e decidido. – Além disso, já estou bem e eles vão
gostar mais se puderem ver-me enquanto se notam as marcas da agressão.
Thomas observou-a com atenção. Ela ainda estava muito pálida e quase
não conseguia segurar uma chávena de chá porque as mãos tremiam muito.
Porém, para além de um olho muito negro onde Seth a esmurrara e grandes
arranhões nos braços e pernas, não parecia muito mal. Pensou que o seu
sistema nervoso devia ser de aço, porque, para além de se ir abaixo quando
contara a Norah tudo o que Seth lhe confessara, conseguia manter um ar de
quase indiferença em relação aos acontecimentos daquela noite.
– Bem, então dá apenas uma entrevista rápida – disse Thomas, com a mão
na porta com a parte superior envidraçada que dava para o alpendre. Não
acreditava que ela estivesse tão composta por dentro como o exterior
sugeria. – Se eles fizerem perguntas incómodas ou eu pensar que estás
perturbada, arrasto-te pelo cachaço para casa.
– Está bem, mandão – disse ela com um sorriso. – Vai à frente.
Mal Rosie saiu de casa, ouviu-se um murmúrio entre os jornalistas e
fotógrafos que estavam reunidos à volta de Donald e dos pais, mais perto da
entrada.
«É ela», «A rapariga está aqui» e «É a filha do Parker» foram alguns dos
comentários que Thomas ouviu. Afastaram-se todos ao mesmo tempo de
Donald e atravessaram o jardim para ir ter com Rosie.
– Como se sente, Rosie? – perguntou um jovem repórter, muito
determinado a arrancar-lhe alguma coisa substanciosa. Na sua opinião,
Donald Cook era um caso perdido, bom para posar para fotografias, mas
não conseguia fazer-lhes uma descrição lúcida de como conseguira dominar
Seth Parker. Além disso, o pai já os tinha avisado de que ninguém podia
escrever que ele era simplório e, sem aquela parte interessante, não havia
uma grande história.
– Já estou melhor, obrigada – disse Rosie. Sentiu-se intimidada ao ver-se
rodeada de homens que gritavam para falar com ela.
– O que é que sente pelo seu irmão agora? – atirou o mesmo repórter, à
espera de uma resposta irrefletida enquanto ela ainda não estava preparada.
Thomas indignou-se com a pergunta e apertou mais o braço de Rosie. Ela
olhou para ele para o tranquilizar.
– Ele só é meu meio-irmão – respondeu. – Estou contente por ele estar
num sítio onde não pode magoar mais ninguém.
– É verdade que foi ele e não o seu pai que assassinou a Ruby Blackwell
e a Heather Farley? – perguntou outro repórter.
Rosie levantou a cabeça e olhou-os com uma expressão desafiadora.
– Sim, é verdade – respondeu. – O próprio Seth me contou que foi ele. O
meu pai era um homem inocente.
– Mas o seu pai deve ter percebido que foi o filho que as matou. Porque é
que não disse nada durante o julgamento?
– Não sei – disse ela com franqueza. Era uma pergunta que fizera a si
mesma durante os últimos dois dias e para a qual ainda não tinha uma
resposta. – Talvez esperasse que o Seth confessasse, mas agora é tarde de
mais para lhe perguntar.
– Acha que o Seth vai recuperar para ser julgado? – perguntou alguém no
fundo da fila de jornalistas.
Rosie sabia que alguém a criticaria, mas respondeu à pergunta.
– Espero que recupere o suficiente para fazer uma confissão que limpe o
nome do meu pai – disse, com calma. – Não pensei para além disso.
– Basta – disse Thomas de repente, quando as perguntas dos jornalistas se
tornaram demasiado intrometidas. Percebeu que eles não estavam nada
interessados em Rosie. Só queriam mais horror para prender os leitores. Um
pareceu desapontado ao ver que ela não tinha ferimentos mais graves. Sabia
que correriam para as suas redações e embelezariam o que lhes tinham dito
com sensacionalismo, distorcendo a verdade para transformá-la e a Donald
num par de aberrações de um espetáculo de feira. – Vou levar a Rosie para
dentro. Já têm tudo o que precisam.
– Ainda não, Mr. Farley. É o Thomas Farley, não é, o irmão da Heather
Farley? – Um homem atraente de vinte e tal anos abriu caminho para a
frente da multidão e os seus olhos semicerraram-se com uma intenção
maliciosa. Thomas teve a certeza de que era um dos jornalistas que tinham
praticamente acampado à porta da loja em Flask Walk durante o
julgamento. – Como irmão de uma das mulheres assassinadas pelo Parker, e
principal testemunha de acusação no julgamento, fico um pouco
surpreendido ao encontrá-lo aqui. Tenho a certeza de que todos adoraríamos
saber como e quando é que o senhor e a Rosie se tornaram tão bons amigos.
Foi antes ou depois do julgamento?
Thomas não se lembrou de nenhuma resposta, inteligente ou não, por isso
fitou o homem com uma expressão furiosa, apertou mais o braço de Rosie,
virou-se e levou-a para dentro.
Rosie foi para as escadas, sentou-se e olhou-o, intrigada. Ele continuava
parado junto à porta do alpendre, a tremer de fúria.
– O que foi, Thomas? – perguntou em voz baixa.
– Abomino e detesto jornalistas – declarou ele com veemência. – São as
versões humanas dos abutres.
Rosie compreendia que ele estivesse zangado por ser provocado por
aquele jornalista. O homem fizera uma insinuação muito concreta de que
havia algo estranho, até obscuro, na amizade de ambos. Porém, achou que a
reação dele tinha sido um pouco extrema.
– Sempre soubemos que, um dia, alguém nos faria essa pergunta – disse.
– Talvez devesses ter-lhe dito como aconteceu?
A porta da frente continuava aberta, mas eles tinham fechado a porta
interior. Esta tinha vitrais vermelhos e o sol que entrava tingia de rosa o
cabelo louro de Thomas. Lá fora, os jornalistas continuavam a bombardear
Donald e os pais com perguntas, mas aqui, na entrada, todos pareciam
muito longe.
– Tu sabes porquê. Não suporto falar sobre o Cole ou a Heather. Nunca vi
a nossa amizade como tendo alguma coisa a ver com eles nem com o que
aconteceu. É uma coisa separada.
Rosie preparava-se para dizer que tinha gostado muito das suas palavras
quando Thomas virou a cabeça para um lado. O seu rosto estivera na
sombra até agora, mas quando se mexeu ela reparou que havia lágrimas a
brilhar nas pestanas. Aquilo lembrou-lhe que achava que ele tinha mudado
em certos aspetos desde que Seth a raptara – não conseguia especificar o
que era, mas estava menos seguro de si, talvez melancólico.
Durante os últimos dois dias tivera muitas oportunidades para falar sobre
o que lhe tinha acontecido. Com a polícia, com o médico, com Mrs. Cook,
com todas as pessoas que estavam dispostas a escutá-la e consolá-la. No
entanto, apesar de ter dito àquelas pessoas a maior parte do que acontecera,
ainda não revelara o que sentia verdadeiramente sobre tudo aquilo.
As palavras daquele polícia, «Já passou», voltaram. Como suspeitava, ele
estava enganado. Um episódio tão traumático como aquele, com raízes
profundas no passado, não podia ser esquecido com dois brandies e um
banho quente.
Num momento de intuição, soube que Thomas sentia o mesmo que ela.
Ambos precisavam de examinar os seus sentimentos, em relação aos
acontecimentos recentes e às feridas antigas. Pouco depois de ela ser trazida
para casa, ele brincara com o facto de ter sido tão útil no seu resgate como
um guarda-fogo de chocolate. Agora, percebeu que não tinha sido uma
piada, mas uma declaração de como se sentia.
Levantou-se das escadas e aproximou-se dele. Impulsivamente, deslizou
os braços pela sua cintura e abraçou-o com força.
– Chegou o momento de falarmos – disse em voz baixa encostada ao seu
ombro, surpreendida ao perceber como era bom abraçá-lo. – Quando
aquelas pessoas todas se forem embora, vamos escapulir-nos os dois para
algum lado?
Os lábios de Thomas roçaram-lhe a face.
– Eu estava a pensar que tenho de voltar para Londres. Mr. Bryant parecia
estar a perder a paciência quando lhe telefonei ontem.
Rosie sentiu que era uma desculpa. Ele queria voltar a enfiar-se num
buraco onde ninguém pudesse fazer-lhe perguntas. Mas não ia deixá-lo
fazer isso.
– Podias voltar no comboio da noite – sugeriu. – Assim, ainda temos esta
tarde.
Ouviu um suspiro formar-se dentro dele, quase como se não conseguisse
lutar contra a sua vontade. Thomas recuou um passo e forçou um sorriso.
– Está bem, mas não sei para onde podemos ir sem deparar com alguém.
– Eu sei – disse Rosie, a sorrir-lhe. – Confia em mim.

– Tens a certeza disto? – perguntou Thomas quando Rosie abriu o portão


lateral de Swallows, uma pequena casa a cinco minutos de distância da
Granja.
– Há algum tempo Mr. Tweedy pediu-me para fazer um projeto para
melhorar o jardim – respondeu Rosie com um sorriso matreiro. – Ele e a
mulher estão fora de férias até ao próximo sábado e foi por isso que me
deram esta chave. Talvez eu não vá projetar o jardim hoje, mas preciso de
me sentar nele durante algum tempo para sentir o espaço.
Era um jardim que estava a crescer de uma forma desordenada há vários
anos. Os muitos arbustos em flor enchiam o pequeno relvado de sombra e
uma pérgula estava quase a cair sob o peso de glicínias e roseiras. Visto
agora, no meio do verão, depois das chuvas fortes que tinham caído há
poucos dias, era uma gloriosa e colorida selva e um lugar discreto e ideal
para dizerem tudo o que tinham para dizer.
– Afinal, qual é o assunto que necessita de tanta privacidade? – acabou
Thomas por perguntar. Estavam sentados num banco ao sol e já tinham
falado sobre Donald e o efeito que ser empurrado para a ribalta poderia ter
nele.
– Uma coisa que te devia ter contado há muito tempo – disse ela
simplesmente. – Podes detestar-me depois de te dizer.
Thomas virou-se no banco para olhar para Rosie, perturbado com as suas
palavras. Ela recuperara a cor desde que os jornalistas se tinham ido
embora. Na verdade, durante o almoço parecera bastante enérgica e normal.
Não lhe passara pela cabeça que quisesse revelar-lhe segredos profundos e
sinistros esta tarde. Pensou que só queria ir para um sítio tranquilo.
– Acho que nunca conseguiria detestar-te por nada, por muito mau que
fosse – disse ele, pousando-lhe uma mão na face. – Mas porque é que
queres contar-me agora?
– Uma coisa que disseste esta manhã fez-me perceber que não poderemos
pensar no futuro enquanto não aceitarmos o passado – disse ela depressa,
afastando a mão dele da face. – Tenho isto trancado a sete chaves. E acho
que tu também tens alguma coisa. Por isso vou contar-te a minha e espero
que me digas o que te incomoda.
Thomas sentiu um arrepio desagradável. Franziu a testa.
– Está relacionado com a Heather? O Seth contou-te o que lhe fez?
– Sim, com detalhes brutais e explícitos – reconheceu Rosie, baixando a
cabeça. – Mas não é isso. É uma coisa que aconteceu um ano antes de ela
desaparecer. Se eu tivesse contado ao meu pai naquela altura, é possível que
ela ainda estivesse viva.
Rosie enterrara a recordação dos irmãos a violar Heather. Não fora
completamente apagada da sua cabeça, como também não conseguia
esquecer o horror do julgamento e enforcamento do pai, mas enterrara-a
fundo o suficiente para passar meses e meses sem pensar no assunto.
Quando Seth a obrigara a ouvir todas as suas bazófias sobre as outras vezes
que abusara dela, e aquele último dia com ela antes de a matar, a verdadeira
importância do que vira e escondera ficou clara.
Todas as palavras doeram quando descreveu a Thomas o que vira quando
era uma inocente criança de onze anos. Lembrava-se de todos os barulhos,
desde a chuva a cair lá fora até à cama a chiar, os grunhidos dos homens e
os gritos de Heather, como se aquilo tivesse acontecido no dia anterior.
Thomas manteve-se muito quieto enquanto ela falava, mas fechava e
abria as mãos de uma forma assustadora.
– A culpa é minha – sussurrou ela quando acabou de falar. – Se tivesse
contado ao meu pai naquela noite, ele teria expulsado o Seth e o Norman de
casa. O meu pai e a Heather teriam voltado a ser felizes. Mas em vez disso,
tudo continuou.
– Porque é que não lhe contaste? – perguntou Thomas numa voz
estrangulada.
– Tive medo. – Parecia muito fraco e patético, mas lembrava-se bem dos
terríveis pesadelos depois daquele dia e do medo de que Seth também lhe
fizesse aquilo.
Thomas respirou fundo. Apetecia-lhe dar um murro naquela pérgula
instável para que ela se desfizesse no chão, mas controlou-se.
– Tu eras só uma criança – acabou por dizer. – Não compreendeste bem o
que viste, do mesmo modo que o Donald não compreendeu bem o que o
Seth estava a tentar fazer-te na outra noite.
– Compreendi, sim – admitiu ela. – Até esperei que a Heather fugisse
depois disso. Só queria que me levasse com ela quando se fosse embora.
Thomas foi incapaz de falar durante alguns momentos. Perguntou a si
mesmo como é que Rosie podia ter-se transformado numa pessoa tão linda,
por dentro e por fora, depois de ter estado exposta àquelas coisas.
– Então foi por isso que ele a matou? – perguntou, por fim. – Um dia ela
ganhou coragem e ameaçou denunciá-lo?
Rosie acenou com a cabeça.
Thomas tombou para a frente, com a cabeça quase nos joelhos.
– Oh, Rosie – disse. – Não sei o que é pior... andares com essa recordação
na cabeça ou pores uma imagem tão horrível na minha.
Rosie começou a chorar. Tudo parecera muito simples há pouco.
Contava-lhe este segredo terrível e vergonhoso, e ele ficava zangado ao
ponto de desabafar o que o perturbava. No entanto, só conseguira deixá-lo
mais angustiado.
– Por amor de Deus, zanga-te! – gritou ela de súbito. – Podes ficar
zangado. É muito normal! Ou perdeste a capacidade de mostrar os teus
sentimentos quando perdeste a perna?
Ele endireitou-se bruscamente, o seu rosto magro ruborizou-se e os seus
lábios arreganharam-se.
– Zangado! Estou mais do que zangado, estou furioso! – disse ele num
tom áspero. – Mas não tenho ninguém em quem descarregar, pois não? O
teu pai foi enforcado, o Donald conseguiu destruir o Seth e o teu outro
irmão está escondido algures. O que queres que faça, Rosie? Que te encha
de pancada para mostrar como sou um homem forte? É o que os homens da
tua família fazem, não é? Mas eu nem sequer conseguiria magoar-te... um
murro e o mais certo era cair. Não sirvo para ninguém.
– Eu disse para te zangares, não para teres pena de ti mesmo – retorquiu
ela. – Então, perdeste uma perna... ainda tens muitas outras coisas a teu
favor. Tens dois olhos, duas mãos e um bom cérebro. O que é uma perna a
menos?
– Eu vou dizer-te o que significa ter uma perna a menos – sibilou
Thomas, levantando-se e olhando-a com uma expressão ameaçadora. –
Significa que não podes correr para proteger uma mulher que amas, que não
podes lutar por ela e que ela nunca te quererá.
Rosie só conseguiu olhar para os seus olhos castanhos cheios de fúria
com surpresa. No entanto, quando assimilou o verdadeiro significado do
que ele dissera, sentiu uma vergonha profunda por tê-lo levado a confessar.
– Oh, Thomas – sussurrou.
– É melhor ir-me embora – disse ele, virando-se. – Não devia ter dito
aquilo. Esquece.
Rosie levantou-se e pegou-lhe no braço.
– Fizeste bem em dizer, se é a verdade – disse em voz baixa. – Mas não
concordo que uma mulher não te quisesse só porque não podes lutar para
protegê-la.
Thomas soltou uma pequena gargalhada tensa e olhou-a com desdém.
– Acorda, Rosie! Uma mulher pode amar um homem com problemas
cardíacos, um cego ou até um homem com uma doença incurável. Há um
toque de romantismo nisso. Mas não um homem com um coto horrível. Eu
sei porque outras mulheres o viram e matou tudo o que poderia ter
acontecido.
Rosie sentiu a dor profunda que provocara aquele discurso e estremeceu.
Acreditava que o conhecia, mas assim como ela fechara a sete chaves
aquela imagem de Heather e dos irmãos, incapaz de falar sobre o que vira,
também ele reprimira este medo de rejeição. Ela sempre o amara como
amigo, confidente, e por vezes também uma figura fraternal e paternal. Mas
agora não estava a vê-lo em nenhum desses papéis. Era apenas um homem
que era tudo para ela.
– Uma mulher que te amasse verdadeiramente pelo que és não se afastaria
– disse com acrimónia. – E um homem pode lutar por uma mulher sem usar
os punhos. Alguma vez ouviste falar em fazer a corte? É um insulto para as
mulheres sugerires que todas as que possam sentir-se atraídas por ti te vão
abandonar depois de olharem para o teu coto. Tu não foste o único homem
durante a guerra a perder um membro, e tenho a certeza absoluta de que
muitos deles se apaixonaram, se casaram e tiveram filhos.
Thomas franziu os olhos para olhar para Rosie, com o sol de frente.
– Então, como é que um homem começa a fazer a corte a uma mulher que
conhece desde que ela era uma pequena maltrapilha? – perguntou
suavemente.
Rosie sorriu. Não fazia a mínima ideia de como se tentava transformar
uma longa amizade numa coisa diferente.
– Tu é que tens muita experiência – respondeu Rosie. – Mas sempre
pensei que a maioria das pessoas começa com um beijo.
– Sou velho de mais para ti – resmungou ele.
– Isso é uma desculpa patética – retorquiu Rosie e, sabendo que ele não
daria o primeiro passo, tomou a iniciativa. Deu um passo em frente, pegou-
lhe no rosto com as duas mãos e beijou-o demoradamente nos lábios.
Thomas abraçou-a e de repente era ele que estava a beijá-la com lábios
sensuais e suaves que fizeram todos os seus nervos vibrar. Rosie percebeu
que não cometera um erro fatal; sentia a mesma fome que sentiu nele.
– Tu és uma espécie de mestre do beijo – disse, quando ele a soltou por
fim.
– Bem, tirando a perna, tudo o resto funciona – respondeu Thomas, a rir
baixinho, a acariciar o seu olho negro com a mão e com olhos brilhantes
pregados nos dela. – O meu coração, alma e sentimentos. Há muito, muito
tempo que queria beijar-te.
Ficaram no jardim até a relva se encher de sombra e perceberem que já
passava das cinco. Beijaram-se, abraçaram-se e conversaram, mas desta vez
não apenas sobre o passado ou acontecimentos recentes, mas também sobre
o futuro. Por fim, Thomas falou-lhe sobre a pintura e a esperança de uma
exposição em Hampstead.
Rosie sentiu uma enorme onda de entusiasmo. Via-o desenhar de vez em
quando quando vinha para cá. Na última visita que fizera a Londres
parecera-lhe sentir cheiro de tinta, mas, como não vira nenhuma prova de
que ele retomara o seu velho passatempo, esquecera o assunto.
– Quando vai ser essa exposição? – arquejou.
– Provavelmente, em novembro – respondeu ele, encantado com a sua
reação. – Se as pessoas gostarem do meu trabalho, não terei de ficar em
Londres a arranjar relógios – disse. – Podia mudar-me para o campo e
trabalhar lá.
– Enquanto eu faço jardinagem? – perguntou Rosie, a rir. – É isso que
queres dizer?
Ele segurou-lhe ternamente o rosto com as mãos e olhou-a nos olhos.
– É cedo de mais para falarmos sobre essas coisas, Rosie. Eu não
pretendia confessar-te os meus sentimentos hoje, não foi justo da minha
parte depois da terrível provação por que acabaste de passar. Mas, agora
que te disse, estás numa posição impossível.
– Não estou nada! – exclamou ela, indignada.
– Claro que estás – insistiu ele. – Neste momento podes pensar que
correspondes aos meus sentimentos e até acreditar que podemos construir
um futuro juntos. Mas pode ser apenas pena e daqui a alguns meses talvez
vejas as coisas de uma forma diferente.
Rosie encolheu os ombros.
– Não vai acontecer.
A sua expressão teimosa fê-lo rir.
– Veremos. Vamos fazer as coisas com calma. Gostava que viesses a
Londres para a exposição. Também gostava de te mostrar algumas coisas e
apresentar-te a pessoas que não são campónios. Mas para já não vamos
pensar para lá disso.
Enquanto voltavam para a Granja, Rosie sentiu que estava a andar no ar.
Há algumas horas não conseguia ver para além de um dia. Tudo era
monótono e cinzento. Agora, era como se alguém tivesse passado um filme
a preto e branco para o glorioso Technicolor.

– Alguma coisa mudou, não foi? – perguntou Norah quando Rosie entrou
muito animada depois de ir levar Thomas à estação nessa noite.
– Sim – concordou ela, e ficou na cozinha a sorrir como uma imbecil. –
Acho que sim. Ele deixou de ser apenas um amigo.
Norah sorriu. Desde a morte de Miss Pemberton, estava desconfiada de
que os sentimentos de Thomas eram mais do que amizade.
– Fico muito contente pelos dois – disse, com franqueza. – Espero que
resulte.
– A sério? – Os olhos de Rosie abriram-se muito. Quase esperara que a
patroa não gostasse da ideia.
Norah preparava-se para lhe dizer que ela acabara de viver um trauma
terrível dias antes e que podia estar em ressaca emocional por causa de
Gareth. Porém, outro olhar para aquele rosto feliz que estava à sua frente
deteve-a.
– A sério. Vocês têm muitas coisas em comum.
– Então, não acha que ele é velho de mais para mim? – perguntou Rosie.
– Não. Talvez achasse, se tu fosses outra rapariga qualquer – disse a
mulher mais velha com um sorriso caloroso. – Mas tu foste sempre muito
madura. Na verdade, não conseguia imaginar-te a ter alguma coisa em
comum com um rapaz da tua idade. A única preocupação que tenho agora é
que pode ser uma reação ao que aconteceu na outra noite. Por isso, vai com
calma, Rosie.

Dois meses depois daquela tarde no jardim de Swallows, Rosie estava na


estufa a envasar algumas estacas. Era uma manhã de sábado do mês de
outubro e ela e Donald estavam mais ocupados do que nunca a limpar
jardins e a plantar bolbos de primavera. No entanto, chovia muito e ela
optara por ficar onde estava enquanto Donald fora fazer um trabalho
sozinho. Ele gostava de chuva, e nunca ficava em casa por causa dela.
A tranquilidade regressara à aldeia. Seth Parker estava praticamente
esquecido, pois fora considerado inimputável. Todos presumiram que isso
se devia aos ferimentos. Só Rosie e as pessoas mais próximas é que
conheciam a verdade: Seth fora considerado louco pelos psiquiatras.
Passaria o resto da vida num hospital psiquiátrico seguro.
Rosie, que tinha uma verdadeira ideia de como isso podia ser horrível,
pensou que era um castigo mais adequado para o irmão do que ser
enforcado. Tinha recebido um relatório do psiquiatra que cuidava do caso
de Seth e parecia que todos os problemas do irmão estavam relacionados
com o abandono da mãe. Ele idolatrava o pai, mas também o odiava porque
o considerava responsável pela fuga de Ethel. De igual modo, queria
castigar todas as mulheres que conhecia para se vingar da mãe.
Rosie continuava sem saber se o pai alguma vez receberia um perdão
póstumo. A palavra de um homem mentalmente incapaz de ser julgado não
tinha crédito. No entanto, deixara de se atormentar com essas coisas.
Sentia-se de novo feliz e segura. Tinha a companhia de Donald, que não
piorara depois daquela noite no bosque – talvez até tivesse ficado mais
arguto e mais confiante. À noite, iam muitas vezes beber um copo ao pub e
ela conhecera muitas outras pessoas da sua idade. Thomas vinha quase
todos os domingos, e ela fora duas vezes a Londres passar o dia com ele.
Também tinha feito planos a longo prazo: ia procurar clientes que
quisessem projetos de jardins de raiz em vez de arranjos. Thomas oferecera-
se para pegar nos seus projetos toscos e produzir planos profissionais à
escala.
Estava tudo perfeito. Exceto a relutância de Thomas em levar as coisas
para a fase seguinte.
Beijava-a constantemente, com tanta paixão que ela tinha a certeza de que
em breve levaria a algo mais. Porém, era sempre ele que parava. Rosie
queria-o tanto que não conseguia pensar em mais nada, mas quando lhe
dizia ele ria-se e inventava desculpas: ela estava a ultrapassar o fim do
relacionamento com Gareth; podia engravidar; primeiro tinham de ter a
certeza absoluta; queria que a primeira vez fosse num sítio especial. Tudo
menos a verdade, que era que tinha medo de que ela visse o seu coto.
Se a convidasse para ir ao seu apartamento, talvez ela conseguisse
encurralá-lo. Mas Thomas também tinha desculpas para não poder levá-la
lá. Agora, a sala era um estúdio e estava muito desarrumado; não queria que
ela o visse.
O som da porta da cozinha a abrir-se arrancou Rosie dos seus
pensamentos e fê-la levantar a cabeça do trabalho. Norah Cook atravessava
o jardim em passos rápidos, protegendo da chuva com um avental por cima
da cabeça o cabelo acabado de arranjar.
– Oh, Rosie, o Gareth está cá! – disse, sem fôlego, antes sequer de entrar
na estufa. – Eu disse-lhe que achava que não querias vê-lo, mas ele diz que
tens de falar com ele. Acho que quer pedir desculpa. Tive de o convidar
para entrar.
Rosie ficou tão surpreendida que durante alguns segundos não soube o
que dizer.
– O Gareth pedir desculpa? – disse por fim. – Bem, isso é uma novidade.
É melhor ele vir cá... tenho imenso que fazer e os meus sapatos estão cheios
de lama.
Norah esboçou um pequeno sorriso. Há não muito tempo, Rosie correria
para casa, pentearia o cabelo e poria um pouco de bâton antes de ir ter com
ele. Claramente, já o esquecera.
– Está bem. Vou dizer-lhe para vir para cá – disse, e correu para casa.
Mas quando Gareth apareceu no terraço, muito bonito num fato azul-
marinho novo, o coração de Rosie deu um pulo inesperado. Ele tinha
emagrecido e deixara o cabelo crescer um pouco mais. Os encantadores
caracóis estavam de volta e teve medo de que os velhos sentimentos por ele
também.
Continuou teimosamente a envasar as estacas, sem sequer olhar para ele
quando correu pelo jardim. Desejou não usar calças tão largas e sujas e ter
lavado o cabelo na noite anterior. Sentir-se-ia mais confiante se estivesse
arranjada.
– Olá, Rosie – disse ele à porta da estufa. – Temos mesmo de falar aqui?
Não podes ir para casa comigo?
– Estou demasiado ocupada para isso – disse ela, fazendo um grande
esforço para parecer desinteressada. – Tens de entrar. Mas tem cuidado
onde pões os pés porque está um bocado enlameado.
Ele entrou e empoleirou-se com todo o cuidado numa caixa de laranjas
virada ao contrário.
– Não pareces muito surpreendida por me ver – disse ele, franzindo o
nariz de desagrado ao sentir o cheiro de estrume.
Rosie encolheu os ombros. Encheu outro vaso com terra.
– Devia ficar?
– Bem, eu diria que sim – respondeu Gareth. – Sabes, vim cá para te dizer
que lamento.
– Lamentas o quê? – Olhou para ele. Podia estar como era quando se
apaixonara por ele porque emagrecera um pouco e deixara o cabelo crescer,
mas parecia mais emproado do que nunca e sentiu o cheiro de cerveja. Era
evidente que parara no pub para ganhar coragem antes de vir. – Lamentas
que afinal o meu pai não fosse o assassino, e sim o meu irmão? Ou
lamentas que eu quase tivesse sido assassinada? – Lançou-lhe um olhar
longo e frio.
– Eu fui um palerma – disse ele, baixando a cabeça. – Senti muitas
saudades tuas. Quero começar tudo outra vez.
Noite após noite depois de ele lhe mandar aquele bilhete seco e frio,
Rosie sonhara com aquele cenário. Se ele aparecesse naquela altura, sabia
que tudo teria sido perdoado e esquecido porque precisava muito dele.
Mesmo se tivesse escrito ou telefonado para expressar compaixão depois de
Seth a ter raptado, talvez tivesse mais consideração por ele. Porém, agora
era tudo diferente. Percebera não só que podia sobreviver sem ele, mas
também que era muito mais feliz. Ele teria de rastejar aos seus pés antes de
poder perdoar-lhe.
Escutou a sua longa litania de desgraças em silêncio. Não conseguia
concentrar-se no trabalho, não tinha apetite, nenhuma outra rapariga poderia
ocupar o seu lugar, até a mãe lhe dissera que tinha sido um parvo por acabar
com ela. Sentia falta de vir aqui aos fins de semana, estava disposto a
mudar-se para Tonbridge e nem sequer se importaria de viver no campo.
Rosie esperou, convencida de que a qualquer momento ele chegaria à
parte crucial e admitiria que tinha sido um pulha e se mostraria preocupado
com o que ela sofrera. Esperou que quisesse saber pormenores do que Seth
lhe fizera, que ficasse zangado por a polícia não a ter protegido melhor. Ou
até que lhe perguntasse como é que Donald estava desde aquela noite e se o
resto da família Cook ficara afetada. No entanto, não disse nada disto. Só
sabia falar sobre a sua pessoa.
Deixou-o continuar e acenou como se concordasse enquanto ele falava
sobre umas casas novas que estavam a ser construídas perto de Tonbridge e
como pensava que podiam dar uma entrada para comprar uma delas. Porém,
quando disse que a mãe estava disposta a oferecer-lhes o velho conjunto de
sofás porque estava cansada deles, Rosie agarrou a ponta da bancada de
trabalho, furiosa. De repente, perguntou-se como raio é que alguma vez
imaginara estar apaixonada por aquele imbecil pomposo e narcisista.
– Que simpático da parte da tua mãe – explodiu por fim. – Que amável
oferecer-me a sua mobília – acrescentou, fazendo uma pequena pausa para
que ele assimilasse o sarcasmo. – Mas podes dizer-lhe da minha parte que
não quero nada dela na minha casa, especialmente o filho.
Gareth pareceu espantado.
– Mas eu pensei...
– Pensaste que és tão fantástico que bastava apareceres aqui e pedires
desculpa e eu atirava-me para os teus braços – retorquiu ela com desprezo.
– Deixa-me dizer-te uma coisa. Ainda bem que me deste com os pés
naquela altura, Gareth. Fez-me perceber que não prestavas para nada. Se
tivesses aparecido aqui hoje num Cadillac de ouro e me oferecesses uma
casa para morar, eu mandava-te passear na mesma.
– Mas, Rosie...
– Não me venhas com «mas, Rosie» – sibilou. – Eu espero que um
homem que disse que queria casar-se comigo esteja preparado para morrer
por mim. Ele apanharia com toda a certeza o comboio seguinte para cá se
pensasse que eu corria perigo ou precisava do seu apoio. Não quero um
homem que não consegue partilhar tudo, bom e mau. Nem um que faz o
que a mãe manda, que se preocupa mais consigo, com comboios e motas do
que com os meus sentimentos.
Ele conseguiu parecer apenas um pouco pesaroso.
– Mas a culpa foi tua. Tu não me disseste nada sobre ti.
– Pois não. Mas a verdade é que tu nunca me perguntaste nada. Agora,
vou dizer-te porque foi; foi porque tu nunca estiveste muito interessado em
mim, não como pessoa. O tipo de homem que eu quero e de que preciso
quereria saber tudo sobre mim. Desde o momento em que nasci. Importar-
se-ia com os meus interesses, quereria falar sobre tudo o que faço, sonho e
penso.
– Os homens não são assim – retorquiu Gareth com desdém. – Exceto em
livros e filmes. Tu estás a viver num mundo de fantasia.
– Eu conheço vários homens que são assim – replicou ela, começando a
divertir-se. – E um em especial. Só gostava de não ter desperdiçado dois
anos da minha vida contigo quando podia ter estado com ele.
A boca de Gareth abriu-se e um rubor carmesim subiu-lhe pelo pescoço.
– Quem é?
– O Thomas, é claro – respondeu ela alegremente.
– Tu gostas de um aleijado? – zombou ele.
Ela irritou-se e deu um salto para o esbofetear.
– Ele não é um aleijado – berrou. – Pode ter perdido uma perna, mas é
duas vezes mais homem do que tu. Tinha a tua idade quando ela foi cortada,
sem anestesia, no meio de uma selva remota. Tu nem sequer aguentarias um
corte num dedo a menos que a tua mãe estivesse ao teu lado para te pôr um
penso. Tu és o verdadeiro aleijado, Gareth, não o meu Thomas. Agora,
desaparece daqui antes que te magoe.
Gareth recuou para a porta, mas hesitou antes de sair para a chuva.
– Está bem, eu vou, se é o que queres. Mas só há um comboio às quatro e
meia e vou ficar encharcado se for para a estação com esta chuva. Não
podemos ir para dentro tomar uma chávena de chá?
De repente, Rosie viu o lado engraçado daquilo. Começou a rir. Gareth
pareceu desorientado.
– Não vejo qual é a piada. O meu fato novo vai ficar estragado.
A risada transformou-se em fortes gargalhadas.
– Tu podes ter duas pernas, mas só tens meio cérebro – disse, dando-lhe
um empurrão para a chuva. – Pensaste mesmo que um fato novo e os sofás
velhos da tua mãe me iam convencer? Não aprendeste nada sobre mim
durante o tempo que estivemos juntos?
– Tu és louca – disse ele alarmado, afastando-se a recuar. – Tão louca
como o teu irmão.
– Sou louca – gritou-lhe Rosie enquanto ele corria pelo jardim. – Louca
pelo Thomas como nunca fui por ti.
Depois de Gareth se ir embora, Rosie sentou-se na caixa que ele
desocupara e continuou a rir. Pensou na mãe dele de lábios cerrados na sua
casa imaculada e teve novo ataque de riso. Ao lembrar-se de que Gareth
sabia os horários dos comboios de cor, o riso redobrou. Lágrimas
escorreram-lhe pelas faces de tanto rir, e ao imaginá-lo a ir de porta em
porta até à estação para fugir da chuva teve de se agarrar à barriga.
– Qual é a piada? – A voz de Donald à porta apanhou-a desprevenida.
Ele usava um casaco impermeável amarelo, botas de borracha e um
chapéu de abas largas. Parecia o homem dos anúncios da pasta de peixe
Shiphams.
– É o Gareth – disse ela, ainda a rir às gargalhadas enquanto saía do
caminho para ele poder entrar. – Oh, Donald, ele foi tão patético que
gostava que tivesses estado aqui. Não consigo imaginar o que vi nele.
Donald empurrou o chapéu para trás. O rosto ainda estava bronzeado por
trabalhar no exterior e os olhos eram muito azuis.
– Bom – disse ele, e um grande sorriso iluminou-lhe o rosto. – Isso
significa que te podes casar com o Thomas, não é?
– O que é que te leva a pensar que o Thomas se quer casar comigo? –
perguntou ela, estendendo a mão para lhe acariciar o cabelo húmido com
carinho.
Donald pareceu surpreendido com aquela pergunta.
– Claro que quer. A última vez que esteve cá disse-me que detestava
voltar para Londres. Eu disse que ele não tinha de ir, que podia casar-se
contigo e ficar connosco para sempre.
– E o que é que ele respondeu a isso? – Rosie riu-se. Estava sempre muito
consciente das limitações de Donald. Ele não conseguia compreender as
complexidades das emoções dos adultos.
– Ele disse que gostava, mas que tu amavas o Gareth, não ele.
Rosie franziu a testa. Donald estava sempre a perceber mal as pessoas.
Acreditava em tudo o que lhe diziam como uma verdade absoluta, quer
fosse uma piada ligeira, sarcasmo ou um comentário sério. No entanto,
sabia que ele era muito bom a transmitir exatamente o que as pessoas
tinham dito. Não aprendera a embelezar as coisas e, a não ser que tivesse
adquirido essa capacidade de repente, podia acreditar piamente nele. Isso
trouxe uma nova perspetiva à relutância de Thomas em levar a relação para
o nível seguinte. Apesar de ela acreditar que o único problema era a perna,
Thomas via Gareth como um obstáculo intransponível.
Apeteceu-lhe rir-se do absurdo, mas percebeu que havia alguma verdade
naquilo, pelo menos até Gareth entrar na estufa. Rosie precisara daquele
momento de verdade com ele – vê-lo de uma vez por todas como era – para
se livrar de quaisquer ilusões românticas que ainda tivesse. Agora sabia que
nunca mais queria voltar a pôr-lhe a vista em cima. A relação estava
verdadeiramente morta e enterrada.
Pensou durante alguns instantes.
– Acabas de envasar isto? – pediu a Donald, apontando para as estacas.
– Porquê? Onde é que vais? – perguntou ele.
– A Londres – respondeu Rosie com um sorriso. – Ver o Thomas.
Norah estava a fazer um bolo quando Rosie entrou a correr na cozinha
para lhe perguntar se podia ir passar o fim de semana a Londres.
– O quê, agora? – perguntou ela, erguendo as sobrancelhas. – No mesmo
comboio que o Gareth?
Rosie não tinha pensado nisso, mas a ironia agradou-lhe.
– Duvido que ele me reconheça com o meu conjunto novo – disse, a rir. –
Mas vou esperar até ao último momento antes de entrar no comboio e vou
para a carruagem só para senhoras.

Rosie chegou à estação para comprar o bilhete um minuto antes de o


comboio chegar. Ouviu-o aproximar-se, esperou dentro da estação até
alguns passageiros saírem, e depois esgueirou-se para o cais e entrou no
comboio. Avistou Gareth mais ao fundo, quando ele entrou na carruagem da
frente.
Estava muito entusiasmada e nunca se sentira tão segura de si. A sua
aparência refletia tudo o que sentia. Duas semanas antes retirara algum
dinheiro das poupanças para comprar um casaco azul-escuro com gola de
veludo numa loja muito chique em Tunbridge Wells. Pretendia estreá-lo na
exposição de pintura de Thomas, mas hoje era mais importante. Era muito
bonito, de uma lã leve com o novo estilo «princesa», e colava-se ao seu
corpo elegante. Também tinha um pequeno chapéu a condizer e os seus
caracóis enrolavam-se à sua volta de uma forma encantadora. Por baixo
usava um simples vestido justo azul-marinho. Não era novo, mas era
elegante, demasiado elegante para usar em Mayfield.
Tinha sido uma grande correria para tomar banho, lavar o cabelo e
arranjar as unhas, tudo antes de apanhar o comboio. Perguntou a si mesma o
que diria Thomas quando a visse.
*

O relógio da igreja dava as sete horas quando tocou à campainha da loja


em Flask Walk. Apertou a pequena mala de viagem na mão e respirou
fundo para acalmar os nervos. Quando ouviu Thomas a descer as escadas
com a perna postiça, decidiu que quando estivessem juntos procurariam
uma casa térrea para ele não ter de subir escadas.
Ele iluminou-se com um grande sorriso quando viu a cara de Rosie
encostada ao vidro. Acendeu a luz e estugou o passo pela pequena loja para
abrir a porta.
– Rosie! – exclamou. – Que diabo fazes aqui?
– Vim ver-te – disse ela, e atirou-se para os seus braços.
– Mas porquê agora? – perguntou ele, depois de a beijar. – E para que é a
mala?
– Porque vou passar a noite contigo – disse ela. – Mas vais ter de te
arranjar porque primeiro vamos jantar fora.
Ficou surpreendida quando ele não protestou. Só perguntou se os Cook
sabiam que ela estava ali e comentou que era uma sorte ter ido buscar a sua
melhor camisa à lavandaria. Também disse que a sala parecia um chiqueiro
e que o mais certo era ela querer apanhar o próximo comboio para casa.
Enquanto Thomas fazia a barba, Rosie foi para a sala. Estava
desarrumada como ele dissera, com frascos e tubos de tintas de óleo por
toda a parte, desenhos a lápis no chão e um quadro começado no cavalete.
Mas o seu olhar foi atraído para um quadro acabado que estava encostado a
uma cadeira. Era de duas meninas pequenas debruçadas sobre um velho
carrinho de bebé de bonecas. Era absolutamente encantador, mas a sua
primeira reação foi perguntar a si mesma o que inspirara aquele tema.
Thomas não dissera que coisas pintava. Ela presumira que todos os temas
eram paisagens, como os dois que vira nas suas paredes. Nunca o imaginara
a pintar pessoas.
O quadro tinha uma curiosa característica intemporal. As meninas
usavam vestidos muito velhos, com cores desbotadas; o fundo tinha o ar
sombrio de um prédio decrépito ou um beco. Se não fossem as roupas
curtas que mostravam pernas gorduchas, poderiam ser duas meninas de
qualquer período.
Thomas voltou para a sala a apertar a gravata. Parou para observá-la a
contemplar o quadro.
– O seu veredicto, minha senhora? – disse.
– É verdadeiramente mágico – respondeu ela, a sorrir. – O que é que te
levou a pintá-las?
– Porque estavam ali – respondeu ele, a rir. – Vi-as pela janela num
domingo à tarde e desenhei-as logo. Suponho que me trouxeram lembranças
da Heather. Nunca tivemos dinheiro suficiente para que ela tivesse um
carrinho de bebé de bonecas, mas lembro-me de que uma vez pediu um
emprestado.
– Ela adorava levar o Alan a passear no carrinho – disse Rosie, vendo
Heather nos seus pensamentos, a empurrar o carrinho de bebé com força e a
deixá-lo ir, e depois correr atrás dele para fazer o filho rir. Estava a começar
a lembrar-se de quanto sentira a falta dela durante os primeiros dois meses
depois de ela desaparecer, de ter de empurrar Alan no seu carrinho de bebé
até a aldeia para ele ficar com uma vizinha enquanto estava na escola, mas
parou a tempo. Esta noite não era um momento para falar sobre coisas
tristes.
– Então, onde é que vamos comer? – perguntou Thomas, pegando numa
escova para limpar o casaco.
– Naquele restaurante italiano fino ao cimo da rua – respondeu Rosie. –
E, antes que comeces a refilar, quem paga sou eu. Fui eu que escolhi.
Ele ergueu uma sobrancelha, como se quisesse discordar, mas Rosie
agitou um dedo.
– Não te atrevas! Senão, comporto-me como uma campónia lá e
envergonho-te.
– Não conseguirias comportar-te como uma campónia com essa roupa –
respondeu ele com um sorriso. – Já te disse que pareces uma estrela de
cinema?
– Pensei que não tinhas reparado – disse ela a rir, rodando para ele poder
apreciar. – Comprei-o para a inauguração da tua exposição. Mas pensei que
esta noite era igualmente importante, de certa forma talvez até mais
importante.
– E porquê? – perguntou ele, aproximando-se para abraçá-la.
– Porque é a noite especial que ambos esperávamos – respondeu Rosie. –
E porque tenho uma coisa muito engraçada para te contar.
*

O empregado de mesa levou-os para um reservado no fundo do


restaurante e acendeu a vela na mesa. Rosie habituara-se a comer fora
porque os Cook levavam-na muitas vezes e a Donald ao seu restaurante
preferido em Tunbridge Wells. No entanto, era um lugar muito iluminado,
com grandes coberturas de prata sobre os pratos de carne e toalhas
imaculadamente brancas. Este restaurante era pequeno, íntimo e escuro,
com toalhas aos quadrados e flores na mesa. Gostou muito mais deste.
Primeiro comeram uma sopa minestrone. Depois, quando o empregado de
mesa trouxe o prato principal de frango com legumes, Rosie contou-lhe a
visita de Gareth.
Ela tinha jeito para contar histórias engraçadas. Descreveu o seu fato
novo e o aborrecimento notório por não o ter levado para dentro de casa, e
depois lançou-se na sua litania de queixas, acrescentando mais algumas
coisas para embelezar a história. A única coisa que omitiu foi a descrição
que ele fizera de Thomas. Mudou-a para «ser muito velho».
Thomas estava a rir-se quando chegou ela à parte do conjunto de sofás de
Mrs. Jones e, embora soubesse o que Gareth devia ter dito de verdade sobre
ele, sentiu algum prazer ao imaginar o homem a ficar completamente
estupefacto com o chorrilho de ofensas de Rosie. No entanto, o que mais
lhe agradou foi ver a alegria no seu rosto enquanto contava a história. Sabia
que todas as palavras eram verdadeiras e ter apanhado o comboio, correndo
o risco de Gareth a ver e pensar que tinha vindo ter com ele, era muito
lisonjeiro.
– Então, por fim está morto e enterrado – concluiu ela. – Tu foste parvo
ao pensar que eu ainda gostava dele. Deve ter sido por isso que me
mantinhas à distância.
Thomas ficou um pouco surpreendido com a sua abordagem direta. Mas
ela fora sempre muito frontal em relação a tudo. As mulheres eram criaturas
engraçadas, num momento desbocadas e no momento seguinte com medo
de dizer o que pensavam. Nos cinco anos desde que vivia em Hampstead
tivera muitas amigas. Antes de perceber que o seu coração pertencia a
Rosie, várias tinham dito que o amavam e algumas tinham ido para a cama
com ele, mas nenhuma fora honesta ao ponto de admitir que a sua
deficiência as afastava. Uma em especial quase o ferira de morte quando,
depois de uma noite de paixão, virara a cabeça quando ele se levantara da
cama e insistira com veemência que vestisse imediatamente as calças.
– Tenho-te mantido à distância por muitas razões – disse ele, pegando-lhe
na mão. – O Gareth foi a principal. Tinha medo de que ainda gostasses dele,
e todos fazemos coisas parvas depois de uma relação falhada. No entanto,
não é a única razão. Há a minha perna e o facto de ser muito mais velho do
que tu. Eu estimo-te acima de tudo como amiga, Rosie. Não suportaria
perder-te, por isso tinha de ter a certeza primeiro.

Estavam ambos um pouco tocados quando voltaram para casa. Rosie


pensou que Hampstead Village era encantadora com as montras salientes
das lojas iluminadas e com coisas que nunca vira no Sussex. Estava
entusiasmada com tudo – o céu limpo e estrelado, as folhas que caíam nos
passeios, a música que saía dos bares e a mão de Thomas na sua.
Dali a uma semana faria dezanove anos. Se pertencesse a qualquer outra
família dos Somerset Levels era provável que já estivesse casada e com
filhos. Todavia, ainda era virgem. Mas não seria por muito mais tempo.

Thomas acendeu a lareira na sala e foi buscar uma garrafa de champanhe


que comprara para a inauguração da exposição. Estava quente, porque ele
não tinha um frigorífico, e deixá-la do lado de fora da janela da cozinha
enquanto foram jantar não surtira o efeito desejado. Ele gostaria de ter sido
avisado de que Rosie viria esta noite. Teria mudado os lençóis da cama,
feito uma limpeza mais profunda ao apartamento e comprado velas para
aumentar o romantismo. Porém, apesar de toda a ansiedade, a presença dela
bastou para fazer o seu coração bater mais depressa. Ao brilho suave da
lareira, os caracóis cor de cobre, faces rosadas e olhos cintinlantes de Rosie
davam beleza à salinha desarrumada.
Rosie riu-se quando bebericava o primeiro copo.
– Sempre quis saber qual é o sabor do champanhe – disse. – Uma vez li
um livro da biblioteca em que a heroína bebia uma taça sentada na
banheira. Uma noite em que estava a tomar banho na cozinha, enchi um
copo de limonada para fingir que era ela.
Thomas sorriu ao imaginar uma adolescente escanzelada sentada numa
banheira de lata a imaginar aquelas coisas.
– Talvez um dia possa levar-te a um sítio glamoroso o suficiente para
experimentares – disse. – Mas esta noite podemos fingir que estamos numa
suíte do Dorchester.
– Alguma vez ficaste num sítio verdadeiramente imponente? – perguntou
Rosie. Gostava do champanhe e do efeito que provocava. Aproximou mais
a cadeira de Thomas e pegou-lhe na mão.
– Nunca. – Ele abanou a cabeça com pesar. – Fui ao Raffles, um hotel
chique em Singapura, algumas vezes, mas apenas para tomar uma bebida.
Era esplêndido, com soalhos de madeira encerados, grandes ventoinhas para
manter o espaço fresco e poltronas macias. Eu costumava sonhar muito com
ele quando estava no campo de prisioneiros de guerra. Mas se vender
muitos quadros na exposição talvez possa levar-te a um sítio assim.
Rosie deslizou da cadeira e ajoelhou-se à sua frente, pousando os braços
no seu colo.
– É bom nunca termos tido muito, não é? Quero dizer, podemos sonhar
juntos e planear como vamos conseguir o que queremos.
Thomas sentiu um doloroso aperto no coração ao ouvir as suas palavras.
Estreitaram muito o fosso entre as suas idades e experiências. Alegria e
excitação borbulharam dentro de si como o champanhe. Por fim, sentia que
estava a sair de um túnel comprido e escuro e a ver um sol brilhante, com
uma estrada onde vislumbrava à sua frente todas as coisas que em tempos
pareciam inatingíveis.
Os olhos de Rosie, que pareciam safiras à luz da lareira, brilhavam para
ele, e os seus lábios macios ansiavam pelos beijos dele. Voltou a ter vinte
anos e todas as dúvidas que o atormentavam desapareceram quando se
inclinou para beijá-la.
– Vamos para a cama – sussurrou ela passados alguns minutos. Levantou-
se e pegou-lhe nas duas mãos, obrigando-o a levantar-se. Tinha os lábios
inchados dos beijos e o cabelo tão despenteado como a primeira vez que a
vira.
Thomas desejou poder pegar nela ao colo e levá-la para o quarto, mas
Rosie rodeou-lhe a cintura e levou-o. Ele sentou-se na cama. Temia este
momento, mas Rosie sentou-se ao seu lado e beijou-o de novo, com
meiguice, e empurrou-o até ele ficar deitado de costas.
– Amo-te – disse simplesmente. – Sei que estás embaraçado, mas eu
também estou, e esta noite é apenas o início de uma coisa maravilhosa para
os dois. Por isso, não vamos deixar que o embaraço nos atrapalhe.
Só quando Rosie se ajoelhou em cima da cama ao seu lado e começou a
despi-lo devagar é que se lembrou de que ela sempre cuidara de pessoas e
que dera banho e vestira adultos com deficiências muito maiores do que a
sua. Despiu-lhe a camisa primeiro, passando as pontas dos dedos pela pele
macia do seu peito, beijando-lhe os ombros, braços e abdómen com tanta
ternura que ele sentiu o embaraço a desvanecer-se.
Parte enfermeira, parte amante, descalçou-lhe os sapatos e despiu-lhe as
calças sem pressa, deixando-o apenas com as cuecas. Ele conteve a
respiração, procurando no seu rosto sinais de pânico ou repugnância quando
viu a perna artificial cor de pedra ao lado da outra perna musculosa, mas a
sua expressão amorosa manteve-se imutável.
– Tens um corpo lindo – murmurou Rosie enquanto as mãos se
aproximavam das correias. – Esta é a última barreira.
A perna caiu ruidosamente quando ela a atirou para o chão e Thomas
fechou os olhos, cerrou os dentes e esperou o provável arquejo. Mas em vez
disso sentiu uma mão macia a acariciar com ternura o coto marcado com
cicatrizes.
– Já está – sussurrou ela. – Já podes abrir os olhos. Não há mais segredos
entre nós.
Thomas abriu os olhos para vê-la por entre as lágrimas. O seu rosto
estava sereno, os olhos fitavam-no com amor e estava a acariciá-lo e a olhar
para o seu corpo com adoração.
Muito comovido, Thomas puxou-a para si. A boca que foi ao encontro da
sua estava tão esfomeada como a dele e soube que tinham ultrapassado
aquele obstáculo.
– Tu és um anjo – sussurrou. – Amo-te muito.
Ela levantou-se da cama e começou a despir-se. Thomas enfiou-se por
baixo da roupa e observou-a com espanto. O vestido deslizou para o chão,
deixando-a apenas com uma combinação de cetim bege. Como uma
sedutora experiente, levantou uma perna para a cama e soltou uma meia,
descalçando-a devagar, e em seguida a outra. Sorriu-lhe enquanto descia
uma alça da combinação, depois a outra, e o cetim deslizou lentamente pelo
corpo magro, deixando-a em cuecas de cetim e um sutiã a condizer.
Subiu de novo para a cama e só então Thomas percebeu que ela estava
tão embaraçada por lhe mostrar o corpo como ele.
– Nunca vi nada tão perfeito – sussurrou ele enquanto levava a mão às
suas costas para desapertar o colchete do sutiã. Os seus seios eram
pequenos e empinados, os mamilos estavam duros no quarto frio e a pele
branca, com um toque rosado, lembrou-lhe o interior de conchas. – Vem
para a cama. Estás com frio.
Aconchegar-se no corpo quente de Thomas foi o momento melhor e mais
empolgante da vida de Rosie. Não esperava sentir-se repugnada com a sua
perna. Os pensamentos que tinha sobre ela eram apenas de curiosidade. Não
era horrível como ele a levara a acreditar, apenas uma coxa a terminar
acima do joelho e muito bem rematada. Não percebia porque é que alguém
podia pensar que era assustadora. Quanto ao resto do corpo, era perfeito,
um peito macio e musculoso, braços e ombros fortes. Adorava todos os
centímetros.
Aquela sensação de amor e adoração tornou-se ainda mais forte enquanto
ele a acariciava. As pontas dos seus dedos eram muito sensíveis em
comparação com a brutalidade com que Gareth a acariciava, e os seus
beijos enviaram-na para um plano mais elevado. Ele desceu na cama para
lhe beijar os seios, e o seu corpo pareceu fundir-se no dele como se fossem
apenas um. No entanto, as coisas que lhe sussurrou enquanto estava a amá-
la tornaram o momento ainda mais maravilhoso – como os seus seios eram
perfeitos, como a sua pele era sedosa e o muito que a queria.
As cuecas de ambos pareceram desaparecer por artes mágicas. Ele
acariciou-lhe a vagina com suavidade e arquejou de prazer quando Rosie
lhe acariciou o pénis. Não houve pressa para atingirem o clímax nem a
sensação de que aquela felicidade poderia terminar de repente. Foi apenas
erotismo perfeito que se transformou gradualmente num êxtase cada vez
maior.
Com Gareth, a falta de conforto e o medo de serem apanhados quando a
acariciava impedia quase sempre que ficasse excitada, e muito menos que
tivesse uma verdadeira satisfação. No último ano, Gareth só estava
interessado nas suas necessidades, e quando elas eram satisfeitas ficava
aborrecido. Não aconteceu isso com Thomas. Ele ejaculou uma vez e
sussurrou um pedido de desculpa, mas continuou a acariciá-la e, para sua
surpresa e deleite, o seu pénis ficou ereto quase imediatamente.
Foi um festim de prazer. Cada centímetro do seu corpo reagia ao toque
dele, cada beijo era mais intenso e mais sensual. Rosie também o beijou
todo, as costas, a barriga, o pénis e a parte interior das coxas, descendo até
ao ferimento e exultando com a sensação de que ele nunca mais sentiria
vergonha.
Mas foi quando ele separou os lábios da sua vagina e a acariciou com a
língua que Rosie perdeu, por fim, as últimas inibições que ainda tinha.
Gritou o prazer que sentia, contorceu-se e estremeceu ao seu toque,
desesperada para chegar ao ponto que sabia que ia alcançar. Depois, por
fim, uma sensação ardente vinda das entranhas levou-a a puxar Thomas
para si e exigir que a penetrasse.
Mais tarde, deitada no aconchegante conforto, ficou surpreendida por não
ter doído. Mas no momento da penetração não pensou em nada a não ser na
grande necessidade de o ter dentro de si a todo o custo. Foi maravilhoso,
empolgante, satisfatório e terno. Nada na sua vida a tinha comovido tanto.
Lágrimas de felicidade escorreram-lhe pelas faces. Disse o seu nome e
colou-se a ele como uma lapa. Por fim, sentia-se uma verdadeira mulher.
Na manhã seguinte, Rosie acordou ao som dos sinos da igreja a tocar e,
ao abrir os olhos, ensonada, viu que Thomas estava apoiado num cotovelo a
olhar para ela.
– Então, a bela adormecida acordou por fim – disse. – Saí à socapa e
pedi-lhes para tocarem os sinos porque não te conseguia acordar.
– Deve ter sido aquele champanhe – disse ela. Tinham acabado a garrafa
depois do primeiro momento de paixão, e começaram tudo de novo.
– E pensar que me convenci de que tinham sido os meus carinhos que te
tinham esgotado – disse ele, a sorrir. – Espero que não me vás dizer que não
te lembras do que aconteceu ontem à noite?
Rosie riu-se e aconchegou-se mais a ele.
– Lembro-me de todos os pormenores – disse. – Acho que quando for
muito velhinha ainda me vou lembrar.

Enquanto o comboio saía da estação de Victoria nessa noite, Rosie


debruçou-se na janela e soprou muitos beijos a Thomas, mas ele ficou para
trás muito depressa. Ela fechou a janela e afundou-se no banco. Ficou
contente por não ter de partilhar o compartimento e não ser obrigada a
conversar com ninguém. Queria estar sozinha com os seus pensamentos e
saborear as últimas vinte e quatro horas.
Fora o melhor dia da sua vida. Tinham tomado o pequeno-almoço ao pé
da lareira na sala e depois foram passear em Hampstead Heath. Tudo
parecia muito especial, as árvores com a sua coloração de outono, as
crianças a andar de barco no lago de Whitestone, amas uniformizadas a
passear as crianças que estavam a seu cargo em grandes carrinhos de bebé e
outros casais como eles a passear de mãos dadas. Mais tarde, tinham ido ao
Jack Straw’s Castle e beberam algumas bebidas antes de voltarem para
Flask Walk para fazer amor.
Thomas estava muito preocupado por não terem tomado precauções
contra uma possível gravidez. Rosie não se importaria se tivessem feito um
bebé naquela noite, mas ficou comovida por ele gostar dela ao ponto de
insistir que teriam de ter mais cuidado de futuro.
Comeram sanduíches na cama, e fizeram amor e conversaram muito. Pela
primeira vez, ele falou em tom sonhador sobre a esperança de que a
exposição fosse um sucesso, e de que um dia talvez só reparasse relógios
por prazer.
– Eu quero o mesmo que tu – sussurrou ele, quando estavam voltados um
para o outro com a cabeça nas almofadas. – Uma casinha com rosas junto à
porta. Um jardim atravessado por um ribeiro. Quero bebés nossos, mas
espaço para o Donald poder vir visitar-nos e ficar connosco. Talvez um dia
o Alan também venha procurar-nos.
– Parece um paraíso – disse ela, a sorrir para o seu rosto sério e passando
o dedo pelas rugas à volta dos olhos.
– Foi esse sonho que me deu força quando estive no campo de
prisioneiros de guerra – disse Thomas. – Costumava visualizar todos os
móveis, todos os centímetros do jardim. Mas a rapariga dos meus sonhos
nunca tinha cara. Tentei dar-lhe uma, pensei em todas as atrizes de cinema,
em raparigas que conhecia em Inglaterra e nas que conheci em Singapura.
Mas os rostos nunca ficavam, por muito que me concentrasse.
– O meu rosto fica?
– Foi então que percebi que me tinha apaixonado – disse ele com um
sorriso doce. – Comecei a voltar ao sonho mais ou menos na altura em que
foste trabalhar para casa da Norah e do Frank. De repente, eras tu que
estavas comigo naquela casa. Sempre que ia a Mayfield e falavas sobre o
Gareth, a tua jardinagem e a casinha que querias, eu ficava muito triste.
Parecias partilhar o meu sonho, mas tinhas o homem errado ao teu lado.
– Soubeste sempre que ele não era o homem certo para mim?
– Não, nem por isso. Não gostava dele, mas num primeiro momento
pensei que era bom para ti. Ficaste confiante e com um brilho maior nos
olhos. Fiquei feliz por ti e desejei sinceramente que resultasse. Mas à
medida que o tempo foi passando vi as falhas. Ele queria uma rapariga
muito comum, alguém que se moldasse ao que ele queria.
– E eu não sou comum? – Os olhos de Rosie abriram-se muito.
– Não, não és. Tu és como aqueles brejos de onde vens, selvagens,
fascinantes, cheios de mistérios e de lugares inexplorados. Quase sempre
lindos e serenos, mas com um lado mais misterioso, e é por isso que acho
que és tão intrigante.
Rosie fechou os olhos e escutou o som do comboio. Pensou nos Somerset
Levels no pico do verão: ervas ondulantes que lhe chegavam à cintura,
cisnes a deslizar nos rios e uma garça-real cinzenta parada numa margem à
espera do almoço. Sentiu o sol quente nos braços, a lama fresca sob os pés
descalços quando se banhava e o cheiro de ulmária por toda a parte.
Lembrou-se do pai a ensiná-la a nadar num dia assim. Seth e Norman já
estavam no rio a molhar-se um ao outro, pretos como tições, com água a
brilhar na pele morena e no cabelo penteado para trás. A sua mãe estava
sentada na margem de erva, a rir enquanto Cole a segurava com uma mão
por baixo da barriga e a ensinava a mexer as pernas como uma rã. Mais
tarde tirou a mão, e só passado algum tempo é que ela percebeu que estava
a nadar sozinha.
De repente, Rosie percebeu a importância daquela recordação. Cole
insistira que aprendesse a nadar muito cedo porque temia pela sua
segurança com tanta água à volta da casa. Durante anos pensara que era um
mau pai, nos últimos tempos por causa dos crimes que acreditava que
cometera e antes por não ser como os pais das amigas da escola. Mas agora,
pensando bem, viu que ele tinha sido um dos melhores em muitos sentidos.
Ensinara-a a ser corajosa, autoconfiante e a apreciar a beleza da Natureza.
Porque é que deixara Seth ficar impune? Pensou que agora tinha a
resposta para aquela interrogação. Ele amava o filho mais velho, via-se
espelhado nele, e talvez no amargo fim, quando descobrira o que ele fizera,
tivesse assumido sozinho a culpa pelo seu carácter pervertido. Talvez
esperasse que ele fosse homem o suficiente para confessar no último
minuto, ou que o choque de saber que o pai fora enforcado pelos seus
crimes o tornasse uma pessoa melhor.
– Descanse em paz, pai – murmurou para si mesma. – Ensinou-me a
nadar e muito mais. Agora posso ser independente, graças a si.
CAPÍTULO 20

R osie olhou em volta, pensativa, enquanto subia a larga escadaria com


uma grossa alcatifa. Era o mesmo apartamento em Piccadilly de onde
assistira ao cortejo da Coroação dois anos e meio antes. Na altura, o
opulento papel de parede aveludado, alcatifa vermelha, candeeiros de cristal
e corrimões de mogno eram como imaginava a entrada de um palácio.
Lembrava-se claramente de ter tido um súbito ataque de pânico quando
entrara, percebendo logo que o seu fato verde-maçã parecia tão reles como
era e que antes de o dia chegar ao fim os Cook se arrependeriam de ter
convidado uma pessoa tão vulgar.
Agora, podia rir-se daqueles sentimentos de imperfeição, pois hoje não
sentia qualquer ansiedade com a sua aparência nem com a sua capacidade
de socializar, mas sentia um nervoso muito parecido, como se alguma coisa
decisiva estivesse para acontecer. Talvez fosse apenas porque a última vez
que estivera aqui fora um importante marco na sua vida.
– É muito estranho estar aqui de novo – disse, virando a cabeça para
Norah, que subia atrás de si. Frank e Donald tinham ido à frente com a
bagagem.
– Também acho – disse Norah com uma risada nervosa, recordando os
momentos de terror daquele dia. – Só espero que o Donald não volte a fugir.
Mas é pouco provável, não é?
– Claro que é – disse Rosie com um sorriso. Achou comovente que Norah
ainda precisasse da sua garantia em relação ao filho. – E, mesmo que se
perdesse de nós por acaso, seria perfeitamente capaz de pedir indicações
para voltar aqui. Não precisa de se preocupar com ele.
Estavam em Londres para a exposição de Thomas, que seria inaugurada
no dia seguinte numa galeria de Hampstead. Rosie só pensava vir à festa de
inauguração no sábado, mas há duas semanas, no seu aniversário, Mrs.
Cook dissera-lhe que ela e o marido tinham outra surpresa para ela. Era
esta: uma semana inteira de férias em Londres. Os Cook só ficariam no fim
de semana e pretendiam voltar para casa de carro no domingo à tarde com
Donald. Depois disso, ela e Thomas teriam o apartamento só para eles.
Quando atravessaram a porta principal e entraram na grande sala de estar
que durante tanto tempo fora a bitola pela qual Rosie media a
grandiosidade, a sua reação inicial foi que não era tão grande ou imponente
como se lembrava. Donald já estava esparramado num dos grandes sofás e
Mr. Cook olhava pela janela para a movimentada rua mais abaixo. Claro
que estava na mesma – as espessas carpetes tão sumptuosas, os ornamentos
e quadros igualmente lindos. Ainda via o seu rosto refletido na mesa de
pau-rosa, e as cortinas que em tempos pensara que dariam para cobrir todas
as janelas de May Cottage e ainda sobraria tecido para fazer um vestido de
baile eram tão fabulosas como pensara na altura. A diferença estava apenas
dentro de si. Acostumara-se ao luxo.
Às cinco da tarde estava escuro lá fora. O tráfego em Piccadilly estava a
tornar-se mais intenso e mais ruidoso, e funcionários de escritórios e
pessoas que andavam às compras dirigiam-se para a estação do
metropolitano de Green Park para irem para casa. Rosie deixou-se ficar
algum tempo junto das janelas da sala antes de correr as cortinas. Frank
saíra com Donald para irem ao Fortnum and Mason comprar alguns
petiscos para o fim de semana. Norah estava na cozinha a arrumar uma
caixa de mercearias que trouxera de casa e Rosie ficou contente por estar
alguns momentos sozinha.
Achava que Londres era uma cidade muito glamorosa e empolgante à
noite. Faróis de carros e sinais de néon a brilhar, montras de lojas
profusamente iluminadas, muito barulho e um grande bulício. O Ritz, do
outro lado da rua à sua esquerda, dava-lhe um vislumbre do refinado mundo
dos ricos. Quase podia ouvir o tilintar de taças de champanhe enquanto
criados de libré chamavam táxis para os hóspedes e seguravam portas
abertas para elegantes mulheres com casacos de peles. Olhou para as
janelas altas e perguntou a si mesma como seriam os quartos e que pessoas
famosas poderiam estar hospedadas lá esta noite. A luz dourada do
restaurante ao lado do hotel estendia-se para a escuridão do parque e através
das janelas viu um empregado de mesa a abrir uma toalha engomada, outro
a segurar copos contra a luz para verificar se não tinham manchas. Rosie
perguntou a si mesma quanto custaria um jantar ali e jurou a si mesma que,
custasse o que custasse, um dia ela e Thomas jantariam lá.
Enquanto corria as cortinas, sorriu com a sua ousadia. Três anos antes
ficaria intimidada com um simples restaurante self-service – pensava que
lugares como o Ritz eram apenas para as classes altas. Mas agora sabia que
o requisito de entrada em lugares como aquele era apenas confiança: com as
roupas certas, e dinheiro suficiente, as pessoas podiam fazer tudo, ir a
qualquer lugar.

– O que posso fazer para ajudar? – perguntou a Norah quando entrou na


cozinha, nas traseiras do apartamento. Estava muito mais silencioso aqui e o
tráfego era um simples zumbido ao longe.
– Podes descascar as batatas – sugeriu Norah. Segurava uma panela com
carne estufada que trouxera de casa. – Vou pôr isto no forno e depois faço
um creme de ovo.
Rosie encontrou o descascador de batatas na gaveta da mesa e dirigiu-se
para o lava-loiça. Gostava desta cozinha. Para além de um moderno fogão a
gás e um frigorífico, não mudara nada desde que os apartamentos tinham
sido construídos um século antes. Grandes armários com portas de vidro
cheios de lindas porcelanas forravam as paredes, havia uma grande mesa de
madeira gasta no centro e, do lava-loiça, via os escritórios muito iluminados
e outros apartamentos.
Era quase como olhar para meia dúzia de teatros, com um espetáculo
diferente em cada um. Viu raparigas sentadas à secretária a datilografar
numa, noutra via-se um empresário recostado na sua cadeira, com os pés
levantados e as mãos atrás da cabeça. Pensou que estava a ditar uma carta à
secretária, embora não visse mais ninguém. Num apartamento à sua direita,
uma mulher magra e elegante com um vestido vermelho colocava uma
grande jarra com flores sobre um piano vertical; parou para arranjá-las e
depois recuou para admirá-las. Rosie estava desconfiada de que era o mais
parecido com trabalho que fizera o dia inteiro.
– Pergunto a mim mesma como seria voltar a viver num sítio como May
Cottage – disse, pensativa, e olhou para Norah, que estava debruçada sobre
o fogão a arranjar as prateleiras do forno. – Nunca pensei que era horrível
quando vivi lá, mas depois de morar na vossa casa e ver lugares como este,
como conseguiria aguentar sem todo o conforto e os eletrodomésticos
modernos?
Norah endireitou-se e sorriu. Perguntou a si mesma o que levara Rosie a
pensar naquilo.
– Penso que dependeria das circunstâncias – respondeu. – Duvido que te
importasses de passar algumas dificuldades com o Thomas. Ou até
connosco, se fossem umas curtas férias.
– Não foi isso que quis dizer – disse Rosie. – Estava a imaginar ser
desenraizada, atirada para lá permanentemente, sozinha, sem dinheiro para
arranjar as coisas.
– Bem, esse cenário é sombrio e improvável – disse a mulher mais velha,
a rir. – Mas tenho de admitir que depois de me casar com o Frank e mudar-
me para a Granja detestava ter de passar mais de uma ou duas horas na casa
dos meus pais. A casa deles era minúscula e muito desconfortável; as camas
eram duras, cheias de altos e muito frias. Uma vez tentei explicar à minha
mãe como me sentia e ela acusou-me de me ter tornado uma snobe.
– Eu também me estou a tornar uma snobe? – perguntou Rosie, ansiosa.
– Claro que não – troçou Norah. – Ser snobe é olhar com desprezo para as
pessoas que não têm tanta sorte como nós. Não há mal nenhum em subires
os teus padrões. A minha mãe podia ter melhorado a sua casa, tinha
dinheiro para isso, mas era demasiado sovina. Preferia vestir um casaco a
pôr mais carvão na lareira, e resmungava por causa das molas partidas no
colchão da cama, mas não comprava um novo.
«Estava sempre a bater na mesma tecla, a dizer que eu ‘tinha as coisas
com demasiada facilidade’. Não percebia que eu e o Frank trabalhávamos
para conseguirmos o que tínhamos, nem que eu tomava conta dos seus pais
idosos ao mesmo tempo que criava o Michael e a Susan. Ela fazia-me sentir
muito culpada por tudo quando me visitava, de tal maneira que cheguei a
um ponto em que não queria que ela viesse. Espero sinceramente nunca ser
tão intratável com os meus filhos.»
Rosie riu-se. Norah Cook não tinha nada de intratável. Ela rejubilava com
o facto de os filhos terem vidas tão boas e adorava os netos.
– Quando tiver filhos, talvez seja melhor não lhes falar sobre May
Cottage – disse. – Não gostaria que se sentissem culpados com o que têm.
Norah percebeu que estava a aproximar-se do que a preocupava
verdadeiramente.
– Acho que devias contar-lhes, mas manter a história divertida. Eu sei que
os meus netos adoram ouvir as excentricidades dos avós. Ou é isso que te
preocupa verdadeiramente? Que ao falares-lhes sobre May Cottage talvez
tenhas de lhes revelar a história da tua família?
Rosie pensou durante algum tempo antes de responder.
– Acho que sim – disse, de sobrolho franzido. – Uma tende a levar à
outra. Quero dizer, se começasse a falar sobre o Seth e o Norman a esfolar
enguias, ou sobre o ferro-velho à volta da casa, é natural que perguntassem
o que lhes aconteceu, não é?
Norah suspirou.
– Tu consegues ser extremamente sagaz para uma pessoa tão jovem,
Rosie! Se eu estivesse no teu lugar, provavelmente inventava algumas
pequenas mentiras, pelo menos até eles serem crescidos o suficiente para
compreenderem. Mas vamos relativizar as coisas. Tu ainda não és casada,
não há filhos, e quando alguns nascerem, e tiverem idade suficiente para
essas revelações, tu e Thomas talvez tenham tido tantas aventuras juntos
que os vossos filhos nunca queiram saber mais do que isso.
– É melhor pensar assim. – O rosto de Rosie iluminou-se. Não sabia
porque é que começara a falar sobre aquelas coisas. – Além disso, depois de
amanhã o Thomas pode ser uma estrela do mundo artístico.
– Pois pode. – Norah sorriu. – Agora, vais contar-me como estão as
coisas com ele? Não quero pôr a pata na poça quando o virmos amanhã.
Um pouco embaraçada, Rosie esboçou um sorriso dengoso. Ficava
sempre surpreendida ao ver como Norah podia ser direta. Na noite de
domingo em que Rosie voltara depois de passar o fim de semana com
Thomas, esperava ouvir algum sermão. Para sua surpresa, Norah perguntou-
lhe sem rodeios se tinham feito amor e se tinham «tido cuidado». Não a
censurou. O que disse deixou bem claro que sabia tudo sobre as alegrias das
noites de paixão. Ficou feliz pelos dois, mas não os queria sobrecarregados
com um bebé antes de terem tempo para estar sozinhos.
Como Thomas dedicava todo o seu tempo livre a pintar, só estivera uma
vez em Mayfield. Norah tinha muita pena de que não tivessem muitas
oportunidades para passarem tempo juntos e fingiu que não percebera que
Rosie se tinha esgueirado para o quarto dele a meio da noite. O facto de ela
e o marido terem conseguido que eles ficassem neste apartamento mostrava
que queriam ajudar os apaixonados. Assim, Rosie sentiu-se obrigada a
contar tudo à mulher mais velha.
– Queremos desesperadamente estar sempre juntos – disse. – Mas eu não
vejo como poderemos. Por enquanto, o Thomas não pode sair de
Hampstead.
– Então, vai viver com ele para lá.
Os olhos de Rosie abriram-se muito e o seu queixo caiu de surpresa.
– Viver em pecado!
Norah riu-se da expressão chocada de Rosie.
– Eu sei que não é a coisa certa, pelo menos não agora, nos pudicos anos
cinquenta. A julgar pelo que algumas pessoas afirmam, dir-se-ia que se
esqueceram de como todos fomos desinibidos durante a guerra. Mas, afinal
de contas, o Thomas é um artista e vive em Hampstead, que é um centro de
pessoas boémias. Se bem me lembro, a separação é dolorosa quando duas
pessoas se amam. E atrevo-me a dizer que o Thomas vai querer casar
contigo de qualquer maneira, mas não vejo nenhuma boa razão para
esperares até teres uma aliança no dedo quando é muito evidente que os
dois deviam estar juntos agora.
– E o Donald? – perguntou Rosie. – Não posso vir-me embora e deixá-lo
desamparado.
– Ele vai ficar bem. Não vais sair da vida dele para sempre. – Norah
aproximou-se de Rosie e rodeou-lhe a cintura com um braço. – Só Deus
sabe o quanto eu e o Frank te devemos, Rosie. Tu ensinaste o suficiente ao
nosso Donald para ele poder trabalhar e ter amigos. É claro que ele vai
sentir a tua falta, e o Frank e eu também, mas todos preferimos ver-te feliz e
realizada a tentarmos manter-te connosco por causa das nossas necessidades
egoístas.
Rosie virou-se e enterrou o rosto no pescoço quente e perfumado da outra
mulher.
– Não sei o que dizer – sussurrou, e os seus olhos encheram-se de
lágrimas de gratidão. – Um simples agradecimento por serem tão
compreensivos não parece suficiente.
Desde aquela noite em Hampstead com Thomas, Rosie pensara em pouco
mais do que no seu desejo de estar sempre com ele. Parecia irónico ter
arranjado mil desculpas quando Gareth queria que ela se mudasse para
Londres. No entanto, agora não se importava se vivia em Mayfield,
Londres, Manchester ou até na Austrália, desde que pudesse estar ao lado
de Thomas.
Lembrou-se muito claramente de como uma vez ele profetizara a sua vida
com Gareth e afirmara que um dia ela ficaria insatisfeita com o futuro que
ele lhe ofereceria. Na altura, não compreendera muito bem aonde Thomas
queria chegar, mas agora percebia.
Ela precisava de aventura antes de assentar com uma casa e filhos. Havia
um mundo enorme à sua espera e ainda só vira um recanto minúsculo.
Thomas deixara-a com uma grande vontade de ver mais. Ele queria ir a
Veneza e Paris para pintar, ela queria ver os jardins de Versalhes, o Grand
Canyon, selvas e desertos. Talvez pudessem fazer tudo isso juntos.
Norah ergueu o rosto de Rosie do seu ombro e, segurando-o nas duas
mãos, olhou-a nos olhos como se estivesse a perscrutar a sua alma.
– Aceitas mais um conselho? – perguntou. – Vai com o Thomas. Sê feliz
com ele. Mas mantém a tua identidade e talento intactos, Rosie. Tu és uma
artista tão grande como ele. A única diferença é que pintas quadros com
coisas vivas, que crescem. Não te deixes desviar das tuas ambições pessoais
de ser criadora de jardins para passares a ser uma mulherzinha e dona de
casa perfeita. Um dos principais motivos para vocês serem tão certos um
para o outro é que são ambos espíritos livres. Mantém as coisas assim.
Rosie ficou surpreendida com aquela declaração, acima de tudo vinda de
uma mulher que era um exemplo soberbo das prendas femininas.
– Estás surpreendida por me ouvir dizer isto, não estás? – Os olhos de
Norah cintilaram. – Eu sinto-me completamente realizada como mulher e
mãe e acredito do fundo do coração que para a maioria das mulheres é um
papel totalmente satisfatório e importante. Mas os tempos estão a mudar,
Rosie. Agora há oportunidades para as mulheres que eram impensáveis
antes da guerra. Olha à tua volta enquanto estiveres aqui em Londres, vê
como as coisas progrediram desde que eras criança e imagina como
mudarão ainda mais drasticamente daqui a dez anos. Tu és jovem, forte e
arrojada. Sabes mais sobre jardinagem do que a maioria das pessoas com o
triplo da tua idade. Tens capacidade para planear, construir e criar. Não
desperdices o teu talento, Rosie. É precioso.

– Meus Deus, estás sensacional! – exclamou Frank quando Rosie entrou


na sala de estar às seis e meia da tarde de sábado. – Todos vão olhar para ti
em vez de olharem para os quadros do Thomas.
Rosie corou. Norah insistira para ela comprar um vestido novo nessa
tarde e sapatos de saltos altos de camurça a condizer. Nunca se imaginara a
usar uma coisa tão sofisticada como este vestido justo de veludo. Tinha
mangas a três quartos, costas cavadas e um bordado de contas douradas
desde um ombro até acima do seio direito. Norah emprestara-lhe um par de
brincos de ouro e prendera-lhe o cabelo acima das orelhas com dois
travessões brilhantes.
– Pareces a rainha – disse Donald. – E também cresceste.
– São só os saltos altos – disse Rosie, a rir. – E esta noite tu também
pareces um príncipe.
A altura, os ombros largos e as costas direitas de Donald eram realçados
pelo casaco de smoking e pelo laço. Com o cabelo louro muito bem cortado,
o rosto bronzeado e os olhos azul-claros, atrairia sem dúvida muitas
atenções esta noite. Rosie e Norah estavam um pouco ansiosas para ver
como se comportaria. Ele não estava acostumado a desconhecidos e nada na
sua aparência alertava as pessoas para o facto de ter um atraso mental. No
entanto, precisava do desafio para se pôr à prova, e não podiam mantê-lo
numa redoma para sempre.
– E outra mulher deslumbrante! – exclamou Frank quando a mulher
entrou na sala. Ela vestia-se sempre com elegância, mas o vestido azul-
turquesa de cerimónia que comprara esta tarde era muito mais elegante do
que todos os outros. A cor ficava-lhe bem, realçando os olhos azuis e o
cabelo grisalho. Parecia mais perto dos quarenta do que da sua verdadeira
idade, que já passava dos sessenta anos.
– É melhor irmos andando – disse ela, e alisou o casaco de Donald com
nervosismo. – Tens um lenço de assoar limpo? E não te atrevas a beber às
escondidas, pois não voltamos a trazer-te connosco.
– Não, mãe – disse Donald, como um rapazinho pequeno. – Vou portar-
me muito bem. Prometo.
Rosie sorriu com carinho. Esta noite, Donald e ela estavam no mesmo
barco. Nenhum deles estava acostumado a lugares chiques ou a conviver
com pessoas da alta sociedade. Estavam ambos entusiasmados e assustados
por darem um passo para o desconhecido. Mas pensava que Thomas estaria
ainda mais assustado. Parecera bastante confiante quando tinham falado ao
telefone há pouco e até dissera em tom de brincadeira que ficaria contente
se vendesse um ou dois quadros. Mas sabia que era fanfarronice.
Depositava todas as suas esperanças nesta exposição para mudar a sua vida.
– Olhem! – guinchou Rosie, entusiasmada, quando Frank passou pela
galeria de arte em Heath Street, à procura de um lugar para estacionar o
carro. A galeria era numa das antigas lojas com as montras salientes e todas
as janelas estavam profusamente iluminadas, como uma árvore de Natal. O
que entusiasmara Rosie fora uma faixa por cima da montra: EXPOSIÇÃO DE
THOMAS FARLEY. De certa forma, ver o seu nome em letras garrafais
significou que tudo ia correr como ele queria.
Demoraram algum tempo para encontrar um lugar para estacionar.
Hampstead estava sempre muito movimentado, mas aos sábados à noite
vinham pessoas de toda a cidade de Londres para jantar nos muitos
restaurantes e beber nos pitorescos pubs. As ruas eram estreitas e depressa
ficavam congestionadas. Rosie nunca vira tantos carros de luxo no mesmo
sítio. Acabaram por encontrar um lugar para deixar o carro, foram a pé por
Heath Street até à galeria e ficaram encantados ao ver que já havia pelo
menos vinte pessoas lá.
– Os vossos convites por favor, cavalheiro – pediu um homenzinho
moreno com um smoking quando eles entraram. – Há um bengaleiro ao
fundo da galeria para os casacos das senhoras – continuou enquanto
verificava os convites. – Espero que tenham uma noite muito agradável.
Os primeiros pensamentos de Rosie naquele momento foram que Thomas
a enganara. Não lhe dissera como esta galeria era chique. Parecia bastante
pequena do exterior, mas a verdade é que a parte estreita era apenas uma
entrada, e alguns metros mais adiante abria-se num espaço muito maior. Era
muito moderna, como os estilos escandinavos que vira em revistas, toda
branca e cromada, com dúzias de focos e um chão de pinho encerado.
Olhou para tudo. As paredes dos dois lados do espaço onde se encontrava
tinham quatro pequenos quadros cada uma. Queria observá-los, mas parecia
que todas as pessoas estavam amontoadas a olhar apenas para um quadro no
meio da galeria. Rosie avistou a cabeça de Thomas atrás deles. Voltou-se
para Frank, que estava a ajudar a mulher a despir o casaco.
– Andamos por onde queremos ou é uma espécie de visita guiada? –
sussurrou, a apontar para o aglomerado de pessoas. – O Thomas está a falar
com eles?
Frank olhou e esboçou um pequeno sorriso.
– Acho que estão a fazer-lhe perguntas. Dá-me o teu casaco e vou tentar
fazer-lhe sinal quando passar por ele. Normalmente, não fazem visitas
guiadas propriamente ditas. Aquele quadro deve ser uma coisa fora do
vulgar.
Quando ele se afastou com os casacos, Donald, Rosie e Norah foram ver
o primeiro grupo de quadros.
– Olhem, é Sparrow’s Nest – exclamou Norah. Era uma linda casa de
madeira branca da aldeia. – E aquela é a casa em ruínas do velho Jack
Higgins.
Rosie olhou para as pinturas, maravilhada. Estava com Thomas quando
ele as desenhara, mas nunca imaginara que ficariam assim. Sparrow’s Nest
tinha sido pintada no meio de uma neblina matinal e ele pintara o minúsculo
jardim como era na realidade, uma selvagem profusão de flores
amontoadas. No entanto, a casa de Jack Higgins estava pintada ao anoitecer
e as sombras compridas transmitiam uma sensação sinistra. Dos dois,
preferia o último: arrepiava-se muitas vezes quando passava pela casa de
Jack e o quadro transmitia essa emoção.
– Rosie!
Virou-se ao ouvir a voz de Thomas. Ele atravessava a galeria na sua
direção, com um grande sorriso. Não usava um smoking como todos os
outros homens. Rosie sabia que ele não tinha um, e também devia ter
pensado que essas coisas não condiziam com um artista. No entanto, nunca
o vira tão elegante, com um casaco cinzento-claro, calças de um tom um
pouco mais escuro e uma gravata azul-clara que ela lhe oferecera no
aniversário, no ano anterior.
– Estás tão linda – exclamou, e os seus olhos refletiram a felicidade de a
ver. – A minha rosa brava transformou-se numa mulher linda e sofisticada.
– Deu-lhe um beijo no rosto e enlaçou-a com um braço enquanto
cumprimentava calorosamente Norah e Donald.
– Espero que não se importem que não passe muito tempo convosco esta
noite, mas o Paul Brett, o dono da galeria, avisou-me de que tenho de
conversar com todos os convidados. – Virou a cabeça para olhar para trás. –
Aquele é o Paul – disse, apontando para um elegante homem magro, de
cabelo escuro, com um bigode fino que conversava com um pequeno grupo
de pessoas. – Vou apresentar-vos quando ele estiver livre, mas importam-se
que leve a Rosie um bocadinho? Tenho uma coisa para lhe mostrar.
– Claro que não. – Norah deu o braço ao filho e sorriu-lhe. – O Donald e
eu vamos conviver, não vamos?
Donald sorriu. Parecia completamente à vontade.
– Eu tomo conta da minha mãe – disse. – Gosto de festas.
As pessoas continuavam diante do mesmo quadro, mas quando Thomas
se aproximou atrás delas abriu-se um espaço e Rosie arquejou ao ver o
quadro que elas estavam a contemplar.
Era ela que estava retratada ali. Intitulava-se «Rosa Brava» – uma menina
com a cara suja, cabelo embaraçado e um velho vestido demasiado grande,
a espreitar por entre uma roseira brava.
– Oh, Thomas – suspirou ela, sucumbindo de repente a uma torrente de
recordações meio esquecidas. – É tão, bem... lindo.
Não conseguiu dizer mais nada, pois foi transportada para aquele dia há
mais de três anos. Sentiu o sol nos braços nus enquanto estendia a roupa no
pomar, ouviu as galinhas a cacarejar, sentiu o cheiro da ulmária enquanto
observava o homem coxo de bengala a subir o caminho. Lembrava-se muito
bem de tudo, a sua camisa de colarinho aberto, o chapéu inclinado, uma
mochila às costas e o casaco num ombro. O calor tremeluzia na estrada e
sentiu o seu cansaço. Antes mesmo de ouvi-lo bater à porta principal da
casa ou chamar, pressentiu que não ia passar sem parar ali.
Ao longo dos anos recordara com frequência cada pormenor daquele dia,
por vezes com pena de ter sido involuntariamente a causa de uma avalancha
tão grande, mas em geral surpreendida por, depois de todo o horror e
vergonha, ele se ter tornado o seu mais querido e íntimo amigo.
Agora, enquanto olhava para este quadro, ficou espantada por Thomas ter
mantido aquele primeiro vislumbre dela guardado na cabeça, por amá-la o
bastante para conseguir pintá-la ali, a um metro de onde a irmã estava
enterrada. Não era um quadro leve e doce, destinado a uma caixa de
chocolates; ele conseguira transmitir a sensação de que estava a acontecer
alguma coisa macabra nos bastidores. Era uma verdadeira obra de arte.
Virou-se para Thomas com os olhos marejados de lágrimas e, indiferente
a todos os olhares curiosos, esticou os braços para ele. Thomas abraçou-a
em silêncio durante vários minutos. Ouvia o seu coração bater e sentiu que
procurava as palavras para lhe explicar porque é que nunca lhe falara neste
quadro e no que significava para ele.
Thomas ergueu-lhe o queixo, olhou-a nos olhos durante alguns instantes e
sorriu.
– Representa um recomeço – disse, suavemente. – Aquele momento em
que apareceste no meio das ervas foi o início de uma nova era para mim.
Estava para vir uma dor terrível, muita raiva e ódio, mas através de tudo
isso reencontrei-me. Através de ti, ao ver a tua coragem e determinação,
consegui viver verdadeiramente. Foi o que me fez recomeçar a pintar e
deixar de me ver como um inválido. Por isso, chega de lágrimas. Esta noite
é outro recomeço. Um futuro brilhante e luminoso para os dois.

Foi difícil para Rosie conter as lágrimas muito mais vezes durante essa
noite ao ver quadros que lhe traziam novos vislumbres da alma de Thomas.
Um prédio degradado com roupa estendida numa corda no pátio era o
começo da sua vida. Uma mulher a dormitar numa cadeira era a mãe. Uma
paisagem da selva fazia parte das suas recordações da Birmânia, talvez o
que via do outro lado do arame farpado. O lago de Whitestone não podia
faltar e, com crianças pequenas a andar de barco, refletia até certo ponto o
otimismo que sentira quando chegara a Hampstead. No entanto, o ex-
soldado aleijado a vender jornais era como temera terminar os seus dias.
O seu coração inchou de orgulho quando viu que as pessoas estavam
encantadas com os seus quadros. Escutou enquanto Thomas falava
timidamente com jornalistas e quis atrever-se a interromper para lhes dizer
que ele também podia ser um homem com um humor brilhante. Quando
ouviu dois críticos falarem pomposamente no seu «talento em bruto» e
«técnica primitiva» apeteceu-lhe atirar-lhes com um chorrilho dos palavrões
primitivos que aprendera com o pai quando era pequena.
Porém, à medida que a noite foi passando percebeu que aquelas críticas
eram um elogio, pois eles mencionaram Thomas ao mesmo tempo que Van
Gogh e Monet. O seu entusiasmo crescia sempre que via Paul Brett
atravessar a sala para colocar uma etiqueta de «Vendido» numa das
molduras. Ouviu vozes distintas tecerem elogios rasgados e soube que não
eram impostores que só estavam ali pelo vinho e os canapés gratuitos, mas
pessoas que apreciavam verdadeiramente arte. Uma velhota que mais tarde
descobriu tratar-se de Lady Elizabeth Huntingdon disse que mal podia
esperar que a exposição terminasse para poder levar o seu quadro de
Sparrow’s Nest para casa e pendurá-lo.
Mas o quadro a que Thomas dera o nome de «Rosa Brava» continuava
sem uma etiqueta. Paul Brett estava a reunir ofertas para ele; quem pagasse
mais ficaria com ele no fim da semana. Rosie não se atrevia sequer a pensar
perguntar a Thomas até onde poderia o preço subir. Ouvira falar na soma de
quarenta guinéus em determinada altura e ficara embasbacada.
Paul foi a única pessoa que percebeu que a «Rosa Brava» era Rosie.
Recuou um passo quando Thomas os apresentou e sorriu-lhe como se
tivesse acabado de desvendar um mistério.
– Agora, compreendo – disse, com os olhos azuis a brilhar. – Quando o
Thomas me mostrou aquele quadro, os cabelos da minha nuca eriçaram-se.
Eu não reajo muitas vezes a arte dessa forma. Quando acontece é porque sei
que encontrei uma coisa verdadeiramente especial. Acredito que a menina
foi o catalisador que desbloqueou o talento latente do Thomas. Tenho de
vos convidar para jantar uma noite da próxima semana. Talvez consiga
persuadi-lo a pintá-la como está agora, para mim.
À medida que o serão foi passando, Rosie perdeu o nervosismo ao ponto
de se apresentar às pessoas não apenas como a namorada de Thomas, mas
também como jardineira. Depressa percebeu que os amantes de arte eram,
invariavelmente, apreciadores de jardins, e quando disse que pensava
mudar-se para Hampstead em breve diversas pessoas lhe deram os seus
cartões de visita e pediram-lhe que as contactasse.
Ficou ainda mais encantada ao perceber que os seus receios de que
Donald se embaraçasse e aos pais eram infundados. Ele bebeu apenas um
copo de vinho e andou de um lado para o outro com os pais, a conversar
muito à vontade com as pessoas. Em determinada altura, ouviu-o contar a
um casal de meia-idade que Jack Higgins, o dono da casa em ruínas que
Thomas pintara, perseguira-o uma vez pela aldeia quando ele era pequeno
porque pensara que ele andava a roubar-lhe fruta no pomar. Disse-lhes que
tinha tanto medo daquele lugar que não se atrevia a pôr um pé no jardim. O
casal riu-se com ele e deviam ter ficado comovidos com a história porque
Rosie soube que tinham comprado o quadro por vinte guinéus.
Às dez da noite, quando os últimos convidados saíram, só havia quatro
quadros por vender. Frank e Norah estavam afundados num sofá, exaustos,
e Donald continuava a ver os quadros. As duas empregadas de mesa
recolhiam os copos.
Paul Brett estava parado no meio da galeria, a olhar para as etiquetas de
«Vendido» com uma expressão encantada.
– Bem Thomas – disse. – O que é que vou vender o resto da semana? Não
pode arranjar-me mais dois para amanhã?
– E ao sétimo dia descansou – disse Thomas a rir. – Além disso, vou
passar o dia com a Rosie. E ainda tem o «Rosa Brava» para leiloar, por isso
não seja ganancioso.
Paul voltou-se para Rosie, pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios.
– Desejo-vos muitas felicidades. O Thomas é um grande artista, Rosie, e
tenho a certeza de que a menina foi a sua inspiração. Nunca poderei
agradecer-lhe o bastante por isso.
Frank insistiu que Thomas viesse para casa com eles.
– Há uma cama a mais no quarto do Donald – disse, piscando o olho ao
homem mais novo para lhe recordar que nessa noite teria de haver um
pouco de decoro, pelo menos até ele e Norah voltarem para casa. – Há
champanhe a gelar. Temos muito que comemorar.

– Sabem qual foi a melhor coisa esta noite? – disse Norah muito mais
tarde nessa noite, em Piccadilly. Donald tinha ido para a cama: uma taça de
champanhe e estava quase a dormir na cadeira.
– O que foi, minha querida? Que o lance de cinquenta guinéus que demos
pelo «Rosa Brava» já foi de certeza ultrapassado? – disse Frank, com as
palavras ligeiramente entarameladas.
Rosie sobressaltou-se. Sabia que tinham feito um lance, mas não o valor.
– Não, querido, não é isso. E eu disse-te para comprares as meninas com
o carrinho de bebé, para prevenir, mas tu não me escutaste – disse Norah
num tom de censura.
– Eu não vos deixaria comprar um dos meus quadros – disse Thomas com
um leve soluço. Estavam todos um pouco tocados, mas ele era o que estava
pior porque as pessoas tinham passado a noite inteira a oferecer-lhe copos
de vinho. – Vou pintar um especialmente para vocês.
– Não pode oferecer o seu trabalho – disse ela, indignada. – É como pedir
ao Frank para lhe oferecer um trator!
– Para que é que eu precisaria de um trator? – exclamou Thomas, a rir. –
Além disso, sei que vão mostrá-lo a toda a gente e pode ser que tenha
algumas encomendas. Mas, voltando ao que estava a dizer, o que é que foi
tão agradável esta noite?
Norah pareceu algo embaraçada.
– Talvez não devesse falar no assunto, mas absolutamente ninguém
mencionou os homicídios.
Rosie também reparara nisso e ficara surpreendida. A sua cara e a de
Donald tinham aparecido em muitos jornais e a ligação a Thomas não
passara despercebida. Tinha-se preparado para lhe fazerem perguntas, mas
não houvera sequer uma vaga alusão ao assunto.
– As pessoas de Hampstead que estão ligadas à arte são demasiado
educadas – declarou Thomas. – Ou talvez não leiam jornais.
– Não me parece que seja isso – retorquiu Norah. – É porque está tudo
esquecido. Também já ninguém fala sobre o assunto em Mayfield. Por fim,
acabou.
Rosie não disse nada durante algum tempo. Queria acreditar que Norah
estava certa.
– Não acha mais provável que se tenham esquecido porque o Thomas foi
a estrela da noite e é um homem fascinante por direito próprio? – sugeriu.
Vira a enorme carga emotiva de cada um dos seus quadros. Cada um deles
tinha uma história por trás. Isso bastava para que ninguém se interessasse
por ela e pela sua família. – Teremos de esperar para ver antes de ficarmos
contentes de mais; não sabemos o que a imprensa poderá desencantar.
– Ninguém me perguntou nada sobre isso – disse Thomas. – Eu estava
preparado para lhes arrancar a cabeça se o fizessem, mas não houve nada.
Na verdade, nem sequer falaram sobre a velha história de eu ser prisioneiro
de guerra.
Frank mexeu-se na cadeira. Parecia sonolentamente feliz, com a barriga
gorda saliente por cima da faixa do smoking.
– Eu acho que vocês deviam parar de se preocupar com o passado e olhar
para o futuro – disse. – A minha Norah tem sempre razão, ou pelo menos é
o que gosta de me dizer. Se querem saber o que penso, acho que deviam
casar-se e concentrarem-se em viver felizes para sempre.
– Frank! – disse Norah num tom ríspido. – Não és tu que tens de sugerir
isso.
– É a melhor sugestão que ouvi o ano inteiro – disse Thomas, sorridente.
– Queres casar comigo, Rosie?
O coração de Rosie pulou. Ela já decidira dizer-lhe que pretendia vir
viver com ele. No entanto, embora pensasse que era corajosa o suficiente
para desafiar as convenções, seria duplamente feliz com uma aliança no
dedo e o nome Mrs. Farley. Olhou para Thomas e sorriu, e depois fitou
Norah e piscou-lhe o olho.
– Quando quiseres – respondeu.
Frank levantou-se da cadeira.
– O champanhe acabou, mas há um pouco de brandy para um brinde –
disse, com um sorriso radioso. – Não temos um casamento na Granja desde
o da Susan, e esse foi há tanto tempo que quase me esqueci.

Na sexta-feira seguinte de manhã, Thomas foi à galeria com Rosie para ir


buscar um cheque de Paul Brett.
Tinha sido uma semana frenética. Thomas ficava todas as noites com
Rosie e de manhã cedo tinha de voltar para a loja de Flask Walk para
dedicar algumas horas a reparar relógios antes de Rosie ir ter com ele para
um almoço rápido. À tarde, tinha de passar duas horas na galeria para
conhecer pessoas que estavam interessadas no seu trabalho. Só faltava
vender um quadro da exposição, mas Paul esperava conseguir mais algumas
encomendas. Tinham tido três convites para jantar e nas outras noites
Thomas mostrara-lhe um pouco da vida noturna de Londres. Mas agora
chegara ao fim. A exposição estava encerrada. Um por um, os quadros
estavam a ser retirados e cuidadosamente embalados para Paul ir entregá-
los aos seus donos. Amanhã, o trabalho de outro artista estaria exposto ali.
– Vou sentir a falta dos seus quadros – disse Paul, e a expressão pesarosa
mostrou a sua sinceridade. – Foi uma das minhas exposições de maior
sucesso de sempre, quer em vendas quer na adesão do público, mas vou ter
pena de entrar e não os ver todos nas paredes. Cada um deles tornou-se
especial para mim.
Abriu uma gaveta da secretária e retirou um envelope.
– Esta não é a quantia final. Algumas pessoas só me vão pagar quando
lhes entregar os quadros. Mas tenho a sensação de que tem pressa para
comprar uma coisa para a sua jovem.
Saíram da galeria e caminharam por Heath Street antes de Thomas abrir o
envelope. Ele tirou o cheque e a lista que o acompanhava e soltou um
pequeno assobio.
– Santo Deus! – exclamou. – É de quatrocentas e cinquenta e oito libras!
E ainda tenho de receber cerca de oitocentas.
Prendeu Rosie pela cintura e rodopiou com ela, a rir a bandeiras
despregadas, sem se importar com um grupo de mulheres que estavam a
olhar.
– Põe-me no chão – gritou ela, com medo de que ele caísse.
Thomas pousou-a no chão, mas continuou a abraçá-la.
– Sabes o que isto significa? – perguntou, com a voz a vibrar de
entusiasmo.
– Que me podes comprar um anel? – disse Rosie. – Que vamos a Veneza
ou a Paris?
– Tudo isso – disse ele, ofegante, a encher-lhe a cara de beijos. – Mas,
melhor ainda, podemos comprar uma casa para viver. Posso deixar de
arranjar relógios e tu vais ter dinheiro para abrir uma empresa de
jardinagem como deve ser e contratar alguém para te ajudar com o trabalho
pesado.
Rosie deu-lhe um beijo intenso e demorado. Não se importou que as
mulheres estivessem a olhar.
– Amo-te muito, Thomas Farley – disse, segurando-lhe o rosto entre as
mãos. – Ia amar-te mesmo que tivéssemos de viver numa casa sem
eletricidade e tivesse de lavar a roupa. Mas sabes o que é mais importante
para mim?
– O quê? O facto de eu estar prestes a ser tão famoso como o Monet?
– Não – disse ela, a rir. – O mais importante é o que disseste sobre a
jardinagem. Pensei que poderias sugerir que desistisse.
De repente, ele ficou muito sério.
– Eu nunca sugeriria uma coisa dessas – replicou. – Tu e as tuas plantas
são como eu e as tintas: inseparáveis. Um dia, vais ser tão conhecida como
a Gertrude Jekyll e eu vou pintar os teus jardins.
EPÍLOGO

1963

O s escritórios da Wentworth, Dupree and Brownlow em Chancery Lane


eram frios, escuros e dickensianos, com paredes cheias de livros e
pesados móveis de madeira do século anterior. Mas Charles Dupree, o sócio
principal, tinha um forte lume na lareira do seu gabinete e a neve que se via
cair do outro lado das janelas compridas e estreitas só realçava o conforto
da sala.
– Deixa-me voltar a encher o teu copo de xerez – disse Charles, tirando o
copo da mão de Rosie antes de ela poder recusar. – Temos todos os motivos
para celebrar, não temos?
Rosie sorriu. Houvera um tempo na sua vida em que teria ficado
intimidada com qualquer advogado, mas Charles não era apenas o seu
solicitador, era um verdadeiro amigo. Era baixo e gordo, estava a ficar
careca, tinha um nariz roxo e mais de cinquenta anos, mas a sua
personalidade alegre e voz tonitruante eram o que ela via e ouvia.
Rosie conhecera Charles numa festa em casa de Paul Brett em Hampstead
seis semanas depois de se casar com Thomas, em dezembro de 1955. Na
época ainda viviam por cima da loja em Flask Walk e, como o apartamento
estava associado ao emprego, Thomas continuava a tentar conciliar o
trabalho de relojoeiro com a pintura nos tempos livres.
Embora tivesse estabelecido contacto com várias pessoas que conhecera
na exposição de Thomas quando voltaram da lua de mel em Paris, e tivesse
feito alguns planos para começar a trabalhar nos seus jardins na primavera,
Rosie estava um pouco frustrada por viver num espaço tão pequeno sem
nada para fazer.
Enquanto bebiam vinho, deu por si a confidenciar isto a Charles. Na
época não fazia ideia de que ele era um solicitador, nem que acabara de
comprar uma das casas em muito mau estado que ela admirara em
Fitzjohn’s Avenue na sua primeira visita a Hampstead, quando trabalhava
em Carrington Hall.
Não tinha o hábito de falar sobre si, mas Charles estava muitíssimo
interessado nela e em Thomas. Conhecera-o na exposição e comprara um
quadro da selva birmanesa. Desde que o quadro fora pendurado na sua
parede sentira vontade de saber mais sobre o artista e, ao descobrir que
aquela linda jovem se casara com ele há pouco tempo, Charles esforçou-se
ao máximo para conversar com ela.
Charles ficou encantado com Rosie. Ela falava sobre jardinagem com o
mesmo entusiasmo que as mulheres da sua classe falavam sobre ballet ou
teatro. Compreendeu bem a frustração que sentia por estar fechada num
apartamento muito pequeno quando estava acostumada a espaços amplos.
Pensou que também era uma pena que um artista com o calibre de Thomas
continuasse a passar a maior parte do tempo a arranjar relógios. Nos dias
seguintes, aquele intrigante casal não lhe saiu do pensamento. Queria
conhecê-los melhor e sentia que valeria a pena ajudá-los.
Duas semanas mais tarde, Charles foi à loja uma noite e fez uma proposta
aos dois. Poderiam viver no apartamento da cave na casa de Fitzjohn’s
Avenue sem pagar renda, e em troca supervisionariam os operários que iam
converter o resto da casa em apartamentos.
Rosie e Thomas aceitaram logo que viram o apartamento. Era espaçoso e
a sala que estava voltada para as traseiras seria um estúdio perfeito para
Thomas. Rosie olhou para o enorme e selvagem jardim das traseiras e ficou
ansiosa por transformá-lo em algo belo.
Foram muito felizes naquele apartamento, sobretudo no primeiro verão.
Foi como uma longa lua de mel, com Thomas a pintar e Rosie a trabalhar
no jardim. Foram gastando com cuidado o dinheiro que Thomas guardara
da exposição, complementado por alguns trabalhos de jardinagem de Rosie
para outras pessoas e a venda ocasional de um dos quadros de Thomas.
Passados dezoito meses, quando todos os apartamentos dos andares de
cima estavam prontos e vendidos, Charles fez-lhes uma segunda proposta.
O lindo jardim que Rosie criara aumentara drasticamente o valor do
apartamento da cave e Charles, com o seu espírito empresarial, não podia
deixar que o sentimentalismo impedisse os seus lucros. Porém, ao mesmo
tempo gostava demasiado de Thomas e Rosie para os pôr na rua. Como
tinha um cliente que queria vender uma pequena casa em Hampstead
Village, disse que podia dar-lhes uma quantia para a entrada da casa e que
se encarregaria de fazer uma hipoteca.
Rosie e Thomas ficaram encantados. Embora fosse encantador, era difícil
manter o grande apartamento quente e o enorme jardim dava tanto trabalho
a Rosie que tinha pouco tempo para trabalhar noutros sítios e ganhar mais
dinheiro. Também sabiam que sem a ajuda de Charles não poderiam
comprar uma casa, pois os seus rendimentos eram muito irregulares.
Quando viram a casa em Holly Walk foi amor à primeira vista: uma
grande sala no rés do chão com uma escada aberta e uma divisão lateral
mais pequena onde Thomas poderia pintar. No primeiro andar havia dois
quartos e a casa de banho mais bonita que Rosie já vira. O jardim era
pequeno, mas parecia feito à medida deles, com um barracão e estufa no
fundo. Tudo naquela casa lhes agradou – a porta de duas folhas, as
estranhas janelas góticas. A casa estava cheia de luz e um gordo gato
amarelo sentava-se no parapeito da janela como se estivesse pronto para
viver com eles. O antigo dono era claramente exigente e amante de
conforto. Os radiadores eram aquecidos pela caldeira da cozinha, as
carpetes que pretendia deixar eram espessas e novas e todas as divisões
estavam pintadas de um branco imaculado.
A amizade com Charles deu um passo em frente quando se mudaram para
a pequena casa de campo. Ele e Julia, a sua mulher, vinham jantar amiúde e
Charles arranjava muitos clientes a Rosie porque estava sempre a mostrar
fotografias do jardim de Fitzjohn’s Avenue e nunca parava de elogiar o seu
talento.
Esse ano, a partir de meados de 1958, foi o momento em que a sorte de
Rosie e Thomas começou a mudar verdadeiramente. Houve outra exposição
extremamente bem-sucedida na galeria de Paul Brett e como cada vez mais
pessoas procuravam os serviços de Rosie, ela depressa se viu numa posição
em que podia escolher os trabalhos que queria. Concentrou-se apenas
naqueles em que o cliente queria uma remodelação total do jardim, dando-
lhe total liberdade para o planear de raiz. Contratava mão de obra
temporária para os trabalhos pesados e usava operários locais para fazer
caminhos e construir muros. Mas o projeto, a escolha de plantas e a
plantação estavam a seu cargo. Não demorou muito a ser considerada uma
especialista. Muitas vezes ouvia as pessoas referirem-se a si como «a
senhora das plantas».
Todavia, mais importante do que o sucesso e a segurança de saberem que
tinham de novo dinheiro no banco era o facto de ela e Thomas estarem tão
felizes juntos. Podiam passar muitos dias separados, mas tinham a liberdade
de deixar tudo para trás quando lhes apetecia e ir fazer um piquenique no
parque, apanhar por impulso um comboio para algum lado ou apenas ficar
na cama em dias frios de inverno.
Donald vinha passar algum tempo com eles com frequência e ajudava
Rosie nos seus projetos. Em Mayfield, continuava a cuidar da maioria dos
jardins em que tinham começado a trabalhar juntos. A sua paixão por rock
’n’ roll mantinha-se – até comprara uma guitarra e aprendera a tocar bem o
suficiente para deliciar Rosie e a sua família com imitações de Elvis
Presley. Jogava dardos no pub, críquete no verão, e era muito feliz.
Norah e Frank vinham passar um fim de semana de dois em dois meses.
Michael, Alicia e os filhos vinham passar o dia de vez em quando. Clara,
Nicholas e Robin tinham uma semana de férias sozinhos com Rosie e
Thomas todos os anos por altura da Páscoa. Agora, Susan e Roger tinham
duas meninas pequenas, mas Rosie quase só os via quando ela e Thomas
iam a Mayfield.
Havia o teatro, filmes e concertos, refeições em bons restaurantes, festas e
diversão. Hampstead era tudo o que Rosie sempre esperara, animado, cheio
de pessoas interessantes e excêntricas, e, no entanto, parecia que estava no
campo. Tinha o homem que amava, uma casa maravilhosa e um trabalho de
que nunca se cansava.
Agora, fora-lhe oferecida a oportunidade de uma vida: um financeiro
americano chamado Arthur Franklin tinha mandado construir uma mansão
na The Bishops Avenue, uma rua entre Hampstead e Highgate a que
chamavam muitas vezes a «Ala dos Milionários». Ele queria que fosse
criado um jardim esplêndido e faustoso, com socalcos, lagos e fontes
grandiosos. O dinheiro não era problema; queria um jardim que pudesse
surpreender e encantar toda a gente.
Ela estava aqui hoje para assinar o contrato.
– Mal posso acreditar que o Arthur me escolheu – disse Rosie, enquanto
engolia o xerez. Passara os últimos seis meses a trabalhar nos planos quase
noite e dia. Thomas transferira o esquema para o papel, usando todo o seu
talento para transmitir a riqueza do projeto e a magnificência do seu sonho.
Charles olhou para Rosie e sorriu. Tinha o mérito de ter apresentado
Rosie a Arthur e de o ter persuadido de que uma mulher tão pequena e
jovem poderia encarregar-se de um trabalho tão grande. Mostrara-lhe
alguns dos jardins que ela projetara e criara e referira que, embora fossem
projetos pequenos em comparação com o que ele tinha em mente, o seu
talento e imaginação eram óbvios. Mas no fim fora a sua personalidade que
a fizera ficar com o trabalho.
Hoje estava vestida para a cidade, com um fato verde-escuro com gola de
pele e um atrevido chapéu inclinado para um lado. Tinha vindo de táxi e as
suas unhas estavam pintadas de vermelho. Qualquer pessoa a tomaria pela
proprietária de uma loja de roupa chique ou pela mulher de um empresário
rico.
Mas Arthur conhecera-a quando ela estava a trabalhar num jardim
enlameado em Hampstead Village, uma rapariga de vinte e cinco anos com
jardineiras rasgadas e botas de borracha, com as unhas partidas e as mãos
tão sujas que nem sequer pôde apertar a sua, e o cabelo muito embaraçado.
No entanto, Arthur ficara encantado com o seu amor por jardins, com a
alegria com que falava sobre magnólias e áceres-japoneses, e tomara a
iniciativa de lhe pedir para ir ver o seu vasto lote de terreno.
Ela fora para lá de bicicleta, vestida com um par de velhas calças de
homem e sapatos de lona com sola de borracha. Sentou-se numa árvore
caída e perguntou a Arthur que imagem é que ele pretendia criar. Não
troçara das suas ideias grandiosas nem do facto de ele não saber distinguir
uma rosa de uma tulipa. Quis saber coisas sobre ele, os seus sonhos e
aspirações. Arthur já falara com muitos jardineiros paisagistas emproados e
achava que todos se riam nas suas costas das suas ideias de colunas
coríntias e imponentes socalcos com estátuas no meio das plantas. Sabia
que o consideravam vulgar e pretensioso, e o único motivo para quererem o
contrato era o dinheiro.
Rosie também se riu de algumas das suas ideias, mas com ele, não dele;
estava doida para ficar com o trabalho, e ele gostou disso.
– O Arthur escolheu-te porque acredita em ti – disse Charles. – Sabe que
só daqui a alguns anos é que o jardim estará no auge. Vai dar-te todo o
apoio para obteres os materiais mais exóticos de que precisares e os
operários para os trabalhos de construção. Mas o projeto e a plantação serão
teus, Rosie. E tu mereces uma oportunidade tão maravilhosa.
Charles passou-lhe o contrato. Enquanto ela se inclinava para lê-lo,
observou-a com afeto.
Charles nascera num proverbial berço de ouro – educado nos melhores
colégios e em Oxford, fora depois trabalhar alegremente para a firma de
advogados do pai. Nunca tivera um momento de dificuldade em toda a sua
vida. Até encontrar Rosie e Thomas na festa de Paul Brett nunca conhecera
ninguém fora do seu privilegiado círculo social. Rosie encantara-o naquela
primeira noite por ser tão enérgica, calorosa e engraçada. Thomas demorara
um pouco mais a abrir-se: era mais reservado, um observador e não um
falador. Porém, depois de quebrar essa reserva, Charles encontrou em
Thomas o amigo que sempre quisera ter.
Alguns meses depois de eles se mudarem para o apartamento de
Fitzjohn’s Avenue ouviu alguns mexericos acerca da família de Rosie. Não
fizera a menor diferença no carinho que sentia por eles, mas ficara intrigado
e investigara até saber tudo sobre o passado dela e de Thomas. E fora um
ponto de viragem na sua compreensão dos menos privilegiados. Estava
diante de duas pessoas muito admiráveis e talentosas que, por ironia do
destino ou acaso de nascimento, tinham suportado mais dor e tristeza do
que ele podia imaginar.
Charles passou muitas noites de insónia a pensar como seria agora se
tivesse voltado para casa no fim da guerra sem uma perna e encontrasse os
seus únicos parentes mortos. Ou como seria se o pai fosse enforcado e
descobrisse mais tarde que o irmão era o culpado. Tinha a certeza de que
nunca teria a força de carácter para reconstruir a sua vida depois dessas
coisas.
Rosie acabou por lhe contar a história. Disse que os segredos criavam
distância entre amigos, e ele admirou-a acima de tudo pela coragem. Ela
disse que ainda não fazia ideia do que acontecera ao outro irmão, Norman.
Não tinha qualquer interesse em saber onde estava, mas esperava que se
tivesse mantido longe de sarilhos. Confidenciou a Charles que esperava que
um dia Alan viesse vê-la e a Thomas. Charles prometera que quando o
rapaz tivesse dezasseis anos, na sua opinião a idade da razão, tentaria
intermediar um reencontro. Alan faria dezasseis anos em fevereiro e
Charles estava decidido a cumprir a sua promessa.
– Assina onde pus a cruz – disse quando ela chegou ao fim do
documento. – A menos que tenhas mudado de ideias, é claro.
Ela riu-se a assinou o seu nome com um floreado.
– Já está – disse. – O meu destino está selado.
– Ainda falta o dinheiro, e todo o trabalho duro – disse Charles.
Rosie olhou-o durante alguns instantes, pensativa.
– O dinheiro é uma coisa interessante – disse. – Deixa de ter importância
quando se tem o suficiente. É a parte da criação que me interessa.
Charles abanou a cabeça, maravilhado. O dinheiro era muito importante
para si, mas sabia que Rosie e Thomas não pensavam como ele. Gastavam-
no à medida que o iam ganhando, a viajar, a divertirem-se juntos, mas
nunca viveriam em função dele. Quando morressem, os seus filhos – pois
estava seguro de que teriam filhos em breve – teriam uma rica herança, não
dinheiro ou bens, mas a arte do pai, a beleza dos jardins da mãe e um
sentimento de orgulho. Gostaria de ter uma coisa tão inestimável e
permanente para deixar aos seus filhos.
– Só vais poder começar a trabalhar quando o tempo melhorar – disse
Charles. Tinha sido o pior inverno desde 1947; as estradas tinham estado
cortadas com neve, muitas aldeias tinham passado semanas isoladas, o
correio e o leite eram levados de helicóptero. – O que é que vais fazer até
lá?
– Vou relaxar e ler livros de plantas – respondeu Rosie a rir. – Posar para
o Thomas, cozinhar para ele e fazer todos os trabalhos que costumo
negligenciar. Quando me fartar disso, vou procurar umas estátuas boas para
o Arthur. Mas antes de começar a vegetar até ao fim do inverno quero que
tu e a Julia venham a um sítio especial connosco.
– Onde? – Charles quase esperou ouvir alguma coisa do género andar de
trenó, pois por vezes ela era como uma criança.
– Ao Ritz – respondeu ela com um grande sorriso endiabrado. – Jantar.
Sempre quis ir lá e tu e a Julia conhecem bem os lugares chiques.
Charles ergueu uma sobrancelha, surpreendido. Ele e Julia iam lá muitas
vezes, mas nunca imaginara que Rosie tinha esse desejo. Em muitos aspetos
ela era uma verdadeira boémia, e sentia-se muito mais à vontade com
toalhas de mesa aos quadrados e uma vela enfiada numa garrafa.
– Dizes-me porquê, primeiro? – pediu.
Ela soltou um pequeno suspiro e corou.
– É o desafio supremo – disse em voz baixa. – A filha do selvagem Cole
Parker está finalmente a ter sucesso na vida. Consegues compreender isso?
Charles compreendeu. Uma vez ela dissera-lhe que costumava acreditar
que estava marcada para a vida. E estivera. No entanto, em muitos sentidos
a maldição, ou calamidade, fosse o que fosse que se chamava àquilo,
também a formara.
– Combinado, Rosie – disse ele, a sorrir. – Mas só na condição de ser eu a
convidar. Qualquer pessoa pode comer no Ritz. Ser levado como convidado
é muito mais kudos.
– O que quer dizer «kudos»? – perguntou Rosie. Charles tinha o hábito de
usar palavras invulgares e ela queria sempre saber o seu significado.
– É o que o Arthur terá contigo a criar o seu jardim. O que as pessoas têm
quando compram um Thomas Farley.
– Fala a sério! – O seu rosto iluminou-se e ela riu-se. – Não sejas parvo!
– Espera para ver – disse ele com sabedoria. – Talvez ainda não estejam
lá. Mas em breve estarão.

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