Você está na página 1de 167

Ficha Técnica

Título: Os Blumthal: Uma História Real de Vidas Sacrificadas às piores Utopias e Tiranias
do Século XX
Autor: José Milhazes
Edição: Duarte Bárbara
Revisão: Inês Hugon
Capa: Rui Rosa
Imagem da capa e fotografia do autor: Direitos reservados
Imagens: Arquivo privado. Reprodução não autorizada.
ISBN: 9789897800511

OFICINA DO LIVRO
Uma editora do grupo LeYa
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01

Copyright: © 2018, José Milhazes e Oficina do Livro


e Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
www.oficinadolivro.leya.com
www.leya.pt
JOSÉ MILHAZES

OS BLUMTHAL
Uma história real de vidas sacrificadas às piores
utopias e tiranias do século XX
Para
os meus netos, Aurora, Maria Teresa e Rafael
os meus filhos, Liina e Olev
a minha nora Marta e o meu genro João

Para a minha esposa, Siiri


Blumthal – apelido de origem alemã que significa Campo Florido
PREÂMBULO

Um pequeno ponto no mapa da Europa

Tendo em conta o que irá ser contado, este livro nunca poderia
começar pela gasta expressão «Era uma vez». Não se trata nem
de um conto de fadas nem de uma história de terror ficcionada,
mas de factos e vidas reais ligados à Estónia, pequeno Estado
situado na costa do Mar Báltico que readquiriu a sua
independência em 1991, à enorme União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, império que ruiu no mesmo ano. A história
deste minúsculo país é um exemplo da crueldade do comunismo e
do nazismo, utopias monstruosas que dominaram o século XX.
Não há neste livro uma única linha de ficção. Todas as
afirmações estão documentadas, para que ninguém possa dizer
«isso foi inventado», «semelhante coisa não poderia ter
acontecido». Tudo o que aqui se conta aconteceu de facto e,
infelizmente, a história pode repetir-se.
Para que o leitor compreenda o meio onde irão actuar as
personagens, todas elas reais, será preciso descrever, embora de
forma breve, alguns dos momentos cruciais da história da Estónia.
A Estónia possui uma área de apenas 45 000 quilómetros
quadrados – ou seja, menos de metade do território português – e,
em 2000, tinha 1 376 743 habitantes. Os estónios, tal como os
finlandeses, são um povo de origem fino-úgrica que se
estabeleceu na costa do Mar Báltico numa época remota
indefinida.
Sendo pouco numeroso, o povo estónio só conseguiu aceder à
independência estatal em 1918, tendo antes sido dominado por
países maiores e mais fortes como a Dinamarca, a Alemanha, a
Suécia e a Rússia. Porém, souberam conservar a sua língua e os
seus costumes.
Os estónios são um dos poucos povos da Europa que não
tinham nobreza, sendo, na sua maioria, camponeses que
trabalhavam para os senhores feudais alemães e russos. Durante
o século XVIII, a criação de escolas e da Universidade de Tartu
propiciou um forte desenvolvimento cultural da população, com
maior utilização do idioma próprio e a valorização da cultura
estónia. Foi a primeira vez em que os estónios se viram como um
povo e os intelectuais começaram a ansiar pela criação de uma
nação.
Isso tornou-se possível apenas em 1918, com a desintegração
do Império Russo.
Nos primeiros 22 anos de independência (1918-1940), a Estónia
passou por uma conturbada vida económica e política, muito
condicionada pela sua situação entre países maiores como a
URSS e a Alemanha. Tratando-se de uma democracia
pluripartidária, as autoridades limitavam as acções dos
comunistas, pois viam neles «agentes de Moscovo».
No aspecto cultural, foi um período muito frutífero, com a criação
de numerosas escolas que leccionavam em estónio e um sistema
de ensino que garantia a autonomia cultural das minorias, única
em todo o Leste europeu.
No ano seguinte à assinatura do Pacto Molotov-Ribbentrop, entre
a União Soviética estalinista e a Alemanha hitleriana em 1939, as
tropas soviéticas ocuparam a Estónia, alargando a este país a
sangrenta ditadura de Estaline. Em 1941, os alemães invadiram a
União Soviética e apoderaram-se da Estónia. Nos primeiros
tempos, o povo estoniano ficou contente, por sonhar com a
libertação do comunismo e o regresso da independência, mas esta
última parte do sonho não estava prevista nos planos de Adolfo
Hitler. Por isso, grande parte da população compreendeu que,
«entre nazismo e comunismo, venha o diabo e escolha». «O
diabo» – ou, mais concretamente, José Estaline – decidiu
incorporar a Estónia na URSS depois da Segunda Guerra Mundial.
Durante os mais de 50 anos de ocupação soviética, os
comunistas não só impuseram uma ditadura, como tentaram
alterar as estruturas demográficas e produtivas da Estónia,
exportando para lá milhares de trabalhadores da Rússia, Ucrânia e
Bielorrússia, que deveriam «criar e reforçar o proletariado local».
Segundo o marxismo-leninismo, isso contribuiria para elevar a
consciência política dos estónios, predominantemente
camponeses e maioritariamente anti-soviéticos.
Este projecto não foi realizado até ao fim porque, após a abertura
política de Mikhail Gorbatchov na União Soviética, a Estónia foi
das primeiras repúblicas a exigir o restabelecimento da
independência, o que foi conseguido em 1991, após a derrocada
do império soviético.
Por vontade da maioria da população, a Estónia aderiu à União
Europeia e à NATO, vendo nessa opção uma forma de se proteger
da vizinha Rússia.
REMINISCÊNCIAS

Memórias de Siiri, 2018

«Há acontecimentos reais tão inverosímeis que não se


poderiam transformar em literatura, sob pena de perderem
toda a credibilidade.»
A. Campos Matos

– A minha avó paterna (chamava-lhe Mamma) muito pouco ou


nada nos contava sobre a sua infância, os seus pais, irmãs, quase
nada dizia…
Eu tinha 14 ou 15 anos, não sei precisar bem, e nas escolas da
Estónia, que naquela altura fazia parte da União Soviética, foi
anunciada a realização de um concurso. O tema era sobre a
revolução comunista, a política… A minha avó participara na luta
revolucionária e eu decidi escrever uma redacção sobre ela, mas
sem a abordar directamente, talvez tenha conversado apenas
sobre isso com o meu pai. Sabia que a minha professora e o
director da escola esperavam que eu participasse nesta espécie de
espectáculo e escrevesse que me sentia muito orgulhosa por a
Mamma ter lutado pelo comunismo. Todos nós compreendíamos
que isto não passava de um jogo. Por isso decidi escrever não o
que pensava, inventei até…
Escrevi como se estivesse a fazer um exame e esqueci-me de
tudo logo a seguir, mas ganhei o concurso, que, mais tarde, até me
ajudou a receber autorização para visitar a República Democrática
Alemã. Aí começaram os problemas, pois não esperava que o meu
trabalho fosse lido em público pela professora… Foi uma vergonha
total, pois eu pensava exactamente o contrário do que tinha
escrito. Preocupava-me com o que os outros alunos e professores
iriam pensar de mim, como iriam reagir em casa.
Isso não me trouxe qualquer satisfação, fiquei muito triste, não
me sentia bem perante os meus amigos, os meus colegas. Acho
que tapei os ouvidos para não ouvir o que a professora lia.
Depois, tinha ainda outro problema. Fui criada no seio da família
materna. Não é que não mantivesse contactos com a avó paterna,
mantinha, mas tratava-se de uma relação totalmente diferente. Às
vezes, ia a casa dela ou ela vinha a nossa casa, mas a minha mãe
referia-se a essa parte da família como «comunistas do diabo», e
era odiada como todos os comunistas. Eu sempre escondera que
tinha alguém na família ligado aos comunistas. O meu pai, Jaak,
era membro do partido, mas sempre considerei que isso não era
uma opção, mas uma obrigação para não ter problemas. Nunca,
mas nunca tive coragem de dizer isso a ninguém: não sei quem
sabia o quê, mas, para mim, era uma coisa terrível o facto de a
minha avó ter feito parte do Partido Comunista da Estónia e ter
lutado pelo sistema soviético, no qual víamos uma força
ocupadora. Para nós, os comunistas estónios eram um grupelho
de idiotas úteis…
E outra vergonha estava ligada ao meu avô materno Hugo,
porque ele era um homem inteligentíssimo. Considero que
vivíamos numa casa privilegiada, porque tínhamos uma enorme
biblioteca. Nunca mais vi uma biblioteca particular assim. Para mim
era um meio normal. Como o meu avô era claramente contra o
poder e contra os comunistas, eu conhecia a forma de pensar dele.
Não falava muito, mas também não precisava de falar para que eu
soubesse o que ele pensava. E aqui fiquei com mais um problema
durante uma ou duas semanas, porque entendi que tinha de lhe
dar a notícia de que vencera o concurso, mas não conseguia
ultrapassar o receio, pois ele com certeza quereria ler a minha
composição. Pensei o que fazer para ele não ler, mas também não
conseguia manter em segredo o tema, teria de lho revelar de
alguma maneira. Estava toda atrapalhada…
Lembro-me de que fui falar com o meu avô, estava ele sentado à
mesa da sua grande secretária na biblioteca. Inicialmente ficou
todo contente, mas eu não sabia o que esperar dali; mostrei-lhe a
composição e, para minha grande surpresa, ele sorriu, deu-me os
parabéns e ficou todo feliz. Isso para mim foi espantoso, talvez
para ele o tema não tivesse importância, mas sim a forma como
escrevi. O meu avô nunca me disse uma só palavra sobre isso.
Para ele, a escrita era uma coisa sagrada, especial. Acho que ficou
contente por causa disso…
Na realidade, esse trabalho não me trouxe felicidade nenhuma,
porque era uma mentira e eu nada sabia sobre a vida dela, apenas
escrevi o que a escola queria, o que os professores esperavam de
mim…
Certa vez, a minha avó contou-me alguns pormenores de que
mal me recordo. Ela era muito reservada, contava pouca coisa. Se
bem me lembro, pouco ou nada me falou da sua infância. Eu não
sabia nada nem sobre as suas irmãs, nem sobre os seus pais, não
fazia ideia. A única pessoa sobre quem eu tinha ouvido falar era o
meu bisavô paterno (Mikhel), que vivia num lar de idosos em frente
da minha escola. Ele faleceu quando eu tinha um ou dois anos.
Dele se dizia que era muito simpático, falador e alegre, tenho uma
fotografia ao seu colo no lar. Depois vim a saber que se tratava de
um lar de terceira idade para albergar comunistas reformados:
tratava-se de uma grande vivenda, bem arranjada, cercada por um
extenso jardim. A Mamma tinha conseguido metê-lo lá, pois ele
viveu até quase aos cem anos. Gozava de boa saúde, mas já não
tinha amigos vivos com quem matar o tempo. A minha mãe
recordava que ele se queixava porque não queria viver mais, por
não ter amigos vivos. Talvez fosse o único familiar da parte do meu
pai sobre o qual se falava alguma coisa. Eu considerava que ele
não estava ligado aos comunistas, porque fora a minha avó quem,
através dos seus conhecimentos e camaradas, conseguira um
lugar para ele ficar nesse lar todo jeitoso, onde Mikhel até vivia
num quarto independente…
O meu pai também pouco falava da sua família. Um dia, porém,
fomos os dois a Tallinn e passámos perto da estação ferroviária
central, onde se encontrava, na época soviética, um monumento
aos comunistas estonianos. Ele disse-me que aquele era um
monumento ao meu avô, mas não consegui entender porque é que
as figuras estavam armadas com espingardas, que para mim eram
sinónimo de morte e sofrimento. Não prestei atenção à história
porque era ainda criança, só mais tarde compreendi.
Apesar de tudo, o meu pai costumava contar como tinha vivido
em Leninegrado. À sua neta – nossa filha – Jaak contou a cena da
detenção do meu avô. Ele morreu durante o bloqueio àquela
cidade e a minha avó conseguiu levar o filho para a Estónia. O
meu avô e o irmão morreram, mas não sabíamos onde estavam
sepultados.
Agora sobre a vida da Mamma, porque é que não falava? Talvez
fosse por eu raramente ter estado sozinha com ela? Quando nos
visitava e alguém começava a falar de política, defendia sempre o
regime comunista, mas a minha família pedia-lhe para acabar com
aquela conversa e não fazer propaganda. Em nossa casa, a
Mamma ficava calada porque ninguém queria ouvi-la. Lembro-me
apenas de algumas coisas que me contava em sua casa, quando
ficava sozinha com ela. Vivia com a irmã mais velha e o filho desta
num apartamento, tinham um quarto para cada uma. Às vezes,
visitava-a e, quando os meus pais não podiam tomar conta de
mim, deixavam-me ficar com ela. Dormia nesse apartamento de
vez em quando, mas poucas vezes, porque os meus pais nunca
me queriam lá deixar, nem eu própria desejava isso, porque a
Mamma gritava todas as noites, tinha pesadelos, não era possível
dormir descansada. Não me lembro do que ela dizia, mas gritava.
Os meus pais achavam que isso era mau para uma criança.
Ela vivia muito humildemente. O seu quarto era muito simples,
não tinha nada daquilo que as mulheres gostam de ter, mas
apenas uma mesa, uma cama e um armário com alguma roupa,
nada mais. Não tinha quadros na parede, nada para embelezar o
quarto, para o tornar mais confortável. Nunca se interessou por
comprar o que quer que fosse, embora tivesse mais dinheiro do
que os restantes reformados, porque recebia uma «reforma
pessoal», concedida só a alguns por serviços prestados ao Estado,
e que era superior à da maioria.
Além disso, gozava de outros privilégios: tinha acesso a uma loja
onde, não me lembro ao certo se uma vez por semana ou duas por
mês, se ia ao gabinete do director. Aí não entravam pessoas
comuns, apenas «reformados pessoais». Tinham um cartão que
dava direito a comprar coisas que nem sempre havia à venda nas
lojas. Nós íamos com a minha avó porque não só os sacos eram
pesados para ela, mas também porque ela não necessitava de
nada. A minha mãe dava-nos o dinheiro e nós comprávamos
produtos alimentares para nossa casa, utilizávamos o privilégio
dela para nosso bem, ela raramente queria alguma coisa. O
director da loja lia a lista de produtos que tinha, podiam ser ervilhas
enlatadas, conservas de carne ou peixe, bolachas, o que não havia
normalmente à venda. Era-nos sempre dito que quantidades
podíamos levar: uma, duas ou mais embalagens. A minha resposta
era sempre a mesma: se puder ser… e pedia o máximo possível,
tal como a minha mãe me instruíra. Ela ia para casa dela e eu para
a nossa com o saco de compras. Era uma maneira que
utilizávamos para ter acesso a produtos raros, mas essenciais em
qualquer lar…
Não sei se por medo ou se por convicção, a Mamma punha o
partido acima de tudo. Quando eu estava internada num hospital
gravemente enferma, a minha mãe pediu-lhe que me preparasse
uma salada e me viesse visitar… a Mamma respondeu: «Não
posso, não posso falhar à reunião do partido.»
A minha avó paterna não sabia cozinhar, não se podiam comer
os pratos que fazia, sobretudo se comparados com as comidas a
que a outra avó me habituara. Aconteciam coisas incríveis: cozia
batatas, mas, depois, não despejava a água quando estavam
prontas. Por isso não ficavam saborosas como as da outra avó,
antes ensopadas de água. Acho que ela fazia alguma coisa em
casa: papas ou outras coisas, a sua comida não abria o apetite, ela
não sabia nem estava interessada em saber cozinhar.
O que fazia eu na casa da minha avó? Conversava, desenhava,
era uma criança muito mexida, e as únicas coisas de que me
lembro são o que ela contava sobre os campos de concentração.
Talvez me tenha falado uma só vez, mas chocou-me muito. Não
sei se foi por iniciativa dela ou minha que abordámos o tema… Já
tinha ouvido sussurros em casa: que ela tinha estado na cadeia.
Para mim era estranho, porque ficava curiosa em saber porque é
que tinha estado presa. Eu não compreendia o que era um campo
de concentração, achei que era uma prisão, um lugar para onde
iam os criminosos, por isso, para mim ela era também uma
criminosa. Talvez me quisesse explicar que não era assim e,
então, falou-me do campo de concentração na Alemanha, disse-
me uma coisa ao comparar dois campos de concentração
[soviético e alemão]: «Os alemães matavam com experiências
horrorosas e os russos com trabalho.» Ela contou-me um episódio,
na Alemanha, que bastou para mim: os prisioneiros escavavam um
grande buraco onde cabiam várias pessoas. Os guardas cobriam o
fundo com comida e colocavam prisioneiros famintos à volta dele.
O buraco era feito de maneira a que os que se atiravam para
apanhar comida não conseguissem sair. Quem não aguentava
esta prova diabólica, saltava e morria afogado em comida. Quem
conseguia resistir, ficava vivo.
Pouco mais me contou. Recordo-me de me ter dito que trabalhou
numa fábrica que fazia material de guerra. Penso que deve ter sido
horroroso para a Mamma trabalhar num lugar desses, sabendo
que o seu trabalho era utilizado contra camaradas e amigos seus.
Em casa dos meus pais ouvi dizer, mas com alguma ironia, que a
fuga do campo de concentração aconteceu duas semanas antes
da chegada dos russos, ficaram na floresta e nem sabiam que os
russos já estavam em Berlim. Estavam escondidos nessa altura.
Perguntei-lhe se isso era verdade e ela confirmou. Disse que,
quando fugiram, a cada metro morria alguém e voltava a comparar
com os campos russos, explicando que, quando construía a via-
férrea, a cada metro lá ficava uma pessoa…
Não posso dizer muito mais, porque não queria fazer mais
perguntas e ela talvez não quisesse falar mais…
Só estive uma vez na casa da família de Kohtla-Järve, que criou
o meu pai. Lembro-me que a visitámos sem a minha avó, apenas
com o meu pai e a minha mãe, eu era pequena. Eu não sabia de
nada… Mas a minha família olhava para a minha avó de forma
horrorosa. Era comunista, traidora. E havia ainda outro aspecto:
abandonou o filho, era uma coisa terrível. Uma mãe não devia
deixar o filho para ser criado noutra família. Não havia justificação.
Para fazer a revolução, para fazer o trabalho do partido, deixou o
filho a outras pessoas. O meu pai falava muito pouco. Vi que
estava triste, por um lado, mas contente por ter voltado àquele
lugar: mostrou-me onde dormia, brincava, eram pessoas
simpáticas, mas não sei se eram tios ou primos do meu pai. Talvez
fosse família mais afastada…
Não entendia porque é que o meu pai teve de viver na casa de
alguém, sem a sua família e ninguém queria falar disso, pois na
era soviética não se podia falar de tudo. Como não estávamos à
vontade com eles, a minha família também não dizia tudo.
Lembro-me de que o meu pai chorou quando fomos visitar essa
família. Contou-me que fora criado ali porque a mãe não podia,
tinha cinco ou seis anos quando foi viver para lá, onde ficou quatro
ou cinco anos, foi bem tratado, mas sabia que não era filho. No
entanto, não se queixava.
Quando na minha família se abordava o tema dos campos de
concentração, falava-se com algum desprezo. A minha avó queria
construir o comunismo, conseguira sobreviver num campo de
concentração na Alemanha, soube fugir, mas foi metida pelos
russos noutro campo de concentração. Era olhada com ironia,
porque era esse «bem» que ela queria para os outros, quando ela
própria fora vítima disso. Como podia ela falar do regime soviético
e dizer que tudo estava bem, se tinha passado por tudo isso?
Achavam que ela não tinha o cérebro no lugar. Neste sentido, era
sempre marginalizada, conversavam com ela apenas sobre coisas
simples.
Ela vinha sempre à festa do meu aniversário, visitava-nos no
Natal e Ano Novo. Sentava-se, comia, mas quando tentava dizer
algo sobre o regime comunista, cortavam-lhe a palavra e não a
deixavam falar. As pessoas estavam ocupadas a preparar a
comida e ela ficava sentada, pois nada sabia fazer. Ficava sentada
a olhar. Mas quando os meus pais começavam a dizer algo contra
o poder vigente, ela perdia o controlo, dizia que não se devia falar
assim, que iam todos para a cadeia, que não podiam dizer isso.
Ficava totalmente irritada, mas não levantava a voz, penso que
sofria. Isso aconteceu várias vezes, mas houve um acontecimento
especial. Foi num dos meus aniversários, havia crianças, adultos.
As crianças andavam a correr e os adultos diziam algo negativo
sobre a União Soviética, ela perdeu o controlo, saiu para a rua e
caiu no chão. Começou a bater com os braços e pernas no chão
como uma epiléptica. Não conseguia controlar os seus
movimentos, chorava e gritava que, agora, todos «eles», crianças
e adultos, iriam ser levados para a prisão e assassinados. E que
ela não aguentava, tinha uma dor muito forte e ia morrer. A minha
avó materna, que era uma senhora sempre muito simpática, mas
mesmo muito, na presença das numerosas pessoas que lá
estavam, aproximou-se e disse-lhe uma coisa que nunca diria a
ninguém: «Mamma, por favor, se queres morrer, faz isso noutro
lado, aqui não…» Nunca ouvi a minha avó materna dizer algo
semelhante contra quem quer que fosse, nunca, foi a única vez na
minha vida… a Mamma levantou-se e não me recordo de mais
nada…
No final da vida da Mamma, não tinha muito tempo para
conversar com ela, pois tinha a minha vida e fui estudar para
Moscovo. Ela vivia numa casa comunal em Kadriorg, onde
dispunha de um quarto. Três quartos para três pessoas e uma
cozinha com três pequenas mesas, uma casa de banho para
todos. Eu estava com dificuldade em arranjar onde viver quando ia
à Estónia e ela, enquanto «reformada pessoal», já há muito tempo
tinha direito a receber um pequeno apartamento, mas estava na
fila de espera. Eu sabia que ela se encontrava no primeiro ou no
segundo lugar, mas, como era daquelas pessoas que não
protestavam, não exigiam nada para si, então muita gente lhe deve
ter passado à frente. Eu estava registada no quarto dela, o que era
feito para que, em caso de morte, ele não passasse para as mãos
do Estado. Regressei à Estónia, fui falar com ela e disse-lhe que
tinha chegado a hora de exigir um apartamento independente para
nós. Perguntei-lhe em que lugar se tinha inscrito, disse que iria lá
sem ela, porque sabia que a minha avó não seria capaz de exigir
coisa alguma, e lá fui. Falei com um funcionário que me confirmou
que a minha avó estava inscrita no primeiro ou segundo lugar e
que deveria esperar. Aqui pensei ser o momento de utilizar a
situação e frisei: acho que não devem esperar, pois eu estou
grávida e, ou recebemos agora um apartamento de 18 metros
quadrados (a lei previa uma área mínima de nove metros
quadrados por pessoa), ou dentro de alguns meses terão de dar
um maior, de duas assoalhadas. Resolvi exagerar um bocadinho e
disse que poderiam nascer mais filhos. Levantei-me da cadeira,
voltei a casa, contei tudo à minha avó e regressei a Moscovo a fim
de continuar os estudos. O tempo passava e até já me tinha
esquecido do caso, mas, alguns meses depois, quando fui a
Tallinn, descobriram-me de forma muito estranha, pois eu não tinha
deixado os meus contactos. Lembro-me de que também lhes disse
que estudava em Moscovo e eles devem ter receado que eu
escrevesse a alguma instituição soviética.
Quando fui a uma consulta de ginecologia, disseram-me aí que
estava a ser procurada. A médica não me sabia dizer quem tinha
vindo perguntar por mim, entregou-me um papel com um número
de telefone para onde eu deveria ligar. Até hoje nunca entendi a
razão de me terem procurado na ginecologista, porque eles
sabiam onde a minha avó morava, tinham todos os meus dados.
Talvez tivessem ido confirmar se eu estava realmente grávida.
Telefonei para o número indicado e foi-me comunicado que me
queriam entregar o novo apartamento.
A minha avó ficou contente, por um lado, mas, por outro, não
gostou que o apartamento não tivesse telefone, como na «casa
comunal»; ficaria sem contacto e já era uma pessoa muito idosa.
Sentia-se ansiosa, porque nunca tinha vivido num apartamento
independente. Fomos para a nova casa, mas, entretanto, a minha
mãe, que não me aconselhava a viver juntamente com a avó,
ofereceu-se para me alugar um apartamento perto do seu.
Quando se aproximava a data do nascimento da criança,
compreendi que, no novo apartamento, não teria a possibilidade de
chamar sequer uma ambulância. Por isso, decidimos que eu iria
viver para perto da minha mãe e a avó ficava sozinha.
Depois do nascimento da minha filha, porém, regressámos ao
apartamento e passámos a viver no mesmo quarto. Ela de um lado
do armário e eu com a criança no outro…
Tive de regressar a Moscovo com a minha filha, e a minha avó
ficou sozinha durante algum tempo. Infelizmente caiu e teve de ser
internada em Pärnu, cidade onde residia o meu pai.
Aí, pouco tempo depois, a Mamma faleceu, mas eu não consegui
ir ao funeral. Como era véspera de Ano Novo, foi impossível
comprar bilhete de comboio ou avião.
– Lembras-te de mais alguma coisa?
– Não, é tudo…
– Mesmo tudo?
– Nada mais.
A REALIDADE

«A diferença entre a verdade e a ficção é que a ficção faz


mais sentido.»
Mark Twain

A vida de qualquer pessoa está cheia de surpresas, mas


algumas são de tal forma fortes, carregadas de emoções e
sentimentos, que nos obrigam a reagir também de forma
emocional. Porém, foi preciso muito sangue-frio para mergulhar
nos mais terríveis acontecimentos do século XX.
– Mãe, sabias que a tua avó, a minha bisavó, não se chamava
Leida Holm, como tinha escrito nos documentos? – perguntou a
nossa filha a Siiri, depois de intensas buscas nos arquivos
estónios, soviéticos e alemães.
– Como? Deves estar a brincar! Então como se chamava? –
reagiu Siiri, perplexa, numa torrente de perguntas.
– O pai, provavelmente, era judeu e ela chamava-se Leida
(Emilie) Blumthal1… Não sabias nada sobre isto? Ficas a saber –
retorquiu a nossa filha com um ar vitorioso.
– Mas os meus pais nunca me falaram disso! Tens a certeza do
que estás para aí a dizer? – Siiri não queria mesmo acreditar, nem
eu e o nosso outro filho, que ouvíamos a conversa com a maior
das atenções.
– Tenho sim, está tudo documentado – disse, e fez-se uma longa
pausa.
*

Tudo começara com uma conversa em família, num dos raros


jantares em que se conseguem reunir os filhos à mesma mesa
depois de eles deixarem o lar, paterno e materno, para criarem o
seu próprio ninho. Veio à conversa, não me recordo bem a que
propósito, a enigmática avó de Siiri, Leida, conversa que,
pensávamos nós, não iria ter continuidade, mas que marcou
profundamente a nossa filha, que nos tempos livres começou a
entrar em contacto com arquivos da Estónia, da Alemanha e da
Rússia. Periodicamente trocávamos impressões e, a dada altura,
tornou-se evidente que estávamos perante uma mulher com uma
biografia trágica, como trágicas também as vidas de praticamente
todos os familiares próximos: mãe, irmãos, irmãs, marido,
cunhados, vítimas daquilo que a escritora e filósofa norte-
americana Hannah Arendt definiu como «a banalidade do mal».
Eles viram-se martirizados pelas mais cruéis ditaduras do século
XX: o comunismo e o nazismo. Ao lutarem por um ideal, neste caso
concreto pela vitória do comunismo, foram perseguidos, presos,
humilhados, desterrados e, nalguns casos, assassinados pelos
seus próprios camaradas, ou então alvos do extermínio hitleriano.
Nenhum dos regimes tinha qualquer consideração pelas
pessoas, pelos indivíduos, tratando-os apenas como peças de
engrenagens diabólicas montadas para construir utopias com
ideologias alegadamente opostas, mas, na prática, com resultados
muito semelhantes. Não há qualquer diferença entre os carrascos
que matam em nome de uma classe ou em nome de uma raça.
Foi isto que nos levou a avançar com este doloroso e difícil
empreendimento. Nunca guiados por sentimentos de vingança,
quisemos apenas compreender as personagens, todas elas reais,
em situações extremas, frequentemente para além do bem e do
mal. Outra razão para avançar com este livro foi a actual situação
no mundo, que não augura nada de bom, quando velhas
ideologias, que não olham a meios para atingir os fins, ganham
novamente terreno…
Ainda cheguei a conhecer a avó Leida Holm, encontrei-me com
ela uma ou duas vezes em Tallinn, quando ela vivia com a minha
esposa e a minha filha, que tinha alguns meses de vida. Lembro-
me de uma senhora magra, cabelos brancos, reservada,
silenciosa, vestida de preto, que segurava a minha pequena filha
ao colo com muito esforço. Nunca tive a oportunidade de
conversar com ela sobre o seu passado e apenas mais tarde vim a
saber que Leida também falava muito pouco dele, preferindo
remeter-se ao silêncio.
Pensei até que isso se devesse ao facto de Leida ser estónia,
povo que não se presta a longas conversas, só ultrapassado,
talvez, pelos finlandeses na arte do silêncio e da reserva.
Porém, talvez devido à influência secular alemã ou por serem um
povo pequeno, os estónios são meticulosos, às vezes até
picuinhas, conservando os testemunhos do seu passado com todo
o cuidado. Basta visitar as cidades de Tallinn ou Tartu para
confirmar esta observação.
Além disso, a Estónia está na vanguarda da computorização e
da digitalização, tornando facilmente acessíveis, mesmo à
distância, documentos não só sobre as suas figuras históricas,
mas também sobre os simples mortais.
A isso poder-se-á também juntar a mania do ditador soviético
José Estaline de que se deveriam guardar eternamente todos os
documentos, embora fechados a sete chaves. Na Rússia, o acesso
aos arquivos da era comunista (1917-1991) continua a ser muito
limitado, mas os estónios, após recuperarem a sua soberania e
independência, abriram as portas de acesso ao passado, o que
nos permitiu tentar desenhar o quadro trágico de vidas arriscadas,
sacrificadas inutilmente em nome de uma utopia – a construção do
comunismo em todo o planeta –, bem como da competição entre o
comunismo e o nazismo no que respeita ao grau de violência
usado.

1 Nos documentos em estónio, o apelido de Leida e dos seus irmãos aparece com três
grafias diferentes: Blumthal, Blumenthal e Plumthal. Para facilitar a leitura do texto, optou-
se pela adopção da grafia única Blumthal ao longo de toda a obra.
LEIDA

«E V. verá o que sai da Revolução Russa… Qualquer coisa


que vai atrasar dezenas de anos a realização da sociedade
livre…»
Fernando Pessoa

Era preciso começar a organizar toda a documentação sobre


Leida que fora recolhida nos arquivos estónios, soviéticos e
alemães, traduzi-la com a ajuda da família e, principalmente, dar
início à escrita do livro. No começo, decidi, sempre que possível,
seguir o princípio da sucessão cronológica na descrição da vida
das minhas personagens. Esta opção revelou-se impossível, pois
quando elas se cruzavam tinha de regressar ao passado ou dar
pequenos saltos para o futuro.
Leida Blumthal, nome de baptismo da avó de Siiri, nasceu a 27
de Abril de 1901 em Türismäe Mõis, no Nordeste da Estónia. Era
filha de Rudolf Blumthal (1874-1924) e de Liisa Ots (?-1944).
Rudolf, por sua vez, era filho de um guarda-florestal, tendo sido
enviado para a cidade aos 17 anos, para se tornar aprendiz de
ferreiro. Já Liisa era filha de um pequeno agricultor rendeiro.
Segundo se conta na família, o pai de Liisa, Jaak Ots, ficou órfão
quando ainda era criança. O dono da casa e da terra onde os pais
viviam e trabalhavam pegou nele, foi ter com um pastor protestante
e disse-lhe, «Eu dou-lhe de comer e você educa-o na escola!»
Aos 17 anos, tornou-se professor da primeira classe numa
escola primária, mas o antigo patrão dos pais, vendo que Jaak era
um jovem despachado e inteligente, ter-lhe-á perguntado se ele
queria terra para cultivar, tendo este respondido afirmativamente.
Por isso, Liisa nasceu e viveu no campo até ao momento em que a
terra onde os pais trabalhavam foi ocupada por uma mina.
Rudolf e Liisa ter-se-ão conhecido e apaixonado na festa de São
João, que, tal como em Portugal, se realiza na noite de 23 para 24
de Junho. Nessa noite, a mais branca e mais curta do ano nas
latitudes setentrionais da Terra, a luz do dia ilumina-nos
praticamente durante 24 horas. E tem um significado especial para
os povos do Leste da Europa. Os estónios, tal como fazem os
portugueses nas festas joaninas do Porto, Braga e Vila do Conde,
acendem grandes fogueiras, saltam por cima das chamas, cantam
e dançam ao redor delas pela madrugada dentro. Os mais jovens
vão à floresta em busca da flor do feto, que simboliza o amor
eterno. No fundo, é uma festa que simboliza o renascimento da
natureza depois dos longos e frios Invernos nórdicos.
Rudolf e Liisa casaram-se um ano depois e foram-se instalar em
Narva, o maior centro industrial da Estónia, situado na fronteira
com a Rússia.
Nessa altura, este casal (cujo marido, como já foi dito, seria
provavelmente de origem judaica ou com alguns antepassados
saídos desse povo errante) não era excepção no que dizia respeito
à numerosa prole: oito filhos, sendo que nem todos chegaram à
maioridade. Os irmãos gémeos Karl e Herman Blumthal faleceram
ainda crianças de «barriga hemorrágica», doença mais conhecida
pelo termo «disenteria», mas Leida ficou ainda com três irmãs e
dois irmãos: Karl, Linda, Ida (Lisseta), Helene-Marie e Adolf.
O apelido alemão, Blumthal, pode ter a seguinte explicação: a
Estónia fazia parte do Império Russo e, no ano de 1804, o czar
Alexandre I ordenou aos seus súbditos judeus que passassem a
ter apelidos russos. Uma das saídas foi ir buscar os seus apelidos
aos nomes femininos em hebraico ou em iídiche. Outra consistia
em ir buscar os apelidos às terras de origem mais ou menos
remotas. Por isso, é muito provável que esta família tenha origem
em judeus asquenazes que se mudaram da Alemanha para a
Estónia. (Entre os judeus russos encontramos hoje pessoas com
apelidos como Portugal, Portugalski e Portugalov, que indicam a
sua origem lusa.)
*
A comunidade judaica na Estónia nunca foi muito numerosa nem
influente, como era norma em vários países da Europa Central e
do Leste. Os documentos existentes começam a falar dela a partir
do século XVI, embora os judeus tenham certamente chegado mais
cedo àquele país. Porém, os judeus só começaram a fixar-se em
comunidades estonianas após 1865, ano em que o czar Alexandre
II permitiu a sua saída das «zonas de assentamento»2. Esta
autorização abrangia antigos soldados e seus descendentes,
comerciantes de primeira categoria, artesãos e judeus que
acabavam a universidade. A comunidade hebraica de Tallinn, a
maior da Estónia, foi criada em 1830. Foram construídas várias
sinagogas, sendo as mais importantes a da capital e a de Tartu,
cidade estónia onde se encontrava uma das mais prestigiadas
universidades do Império Russo. Ambos os templos foram
destruídos durante a Segunda Guerra Mundial.
*

Até 1906, Rudolf trabalhou como ferreiro numa casa senhorial de


Türismäe (região de Ida-Virumaa), ficando a família a viver numa
casa situada no mesmo lugar. Nesse ano, a família partiu para a
cidade de Narva, grande centro industrial estónio na fronteira com
a Rússia. O chefe da família encontrou emprego na Fundição
Zinoviev e Companhia, onde trabalhavam cerca de 500
trabalhadores, e a esposa Liisa foi trabalhar para o gigante têxtil
Krenholm, que tinha mais de dez mil operários. Mantiveram-se
nesses empregos até 1918.
É sabido que os judeus, como forma de sobrevivência em meios
para eles pouco seguros, tentavam dar a melhor educação
possível aos seus filhos, mas, devido à difícil situação económica
da família numerosa, Leida andou na escola apenas quatro anos,
embora, segundo as suas próprias memórias, tivesse gostado de
continuar os estudos, o que veio a fazer mais tarde. Estávamos em
1914, ano em que começou a Primeira Guerra Mundial, por isso
Leida teve de começar a trabalhar quando tinha apenas 13 anos:
primeiro como ama e, depois, como empregada doméstica.
*

O golpe de Estado bolchevique de 25 de Outubro/7 de Novembro


de 1917 colocou também judeus e estónios de ambos os lados da
barricada nos confrontos sangrentos que se seguiram à tomada do
poder pelos comunistas no Império Russo. No ano seguinte, a
Estónia tornou-se um Estado independente, onde os judeus
passaram a ter igualdade de direitos, o que lhes permitiu
desenvolver a sua cultura. A política de tolerância da República da
Estónia em relação aos judeus é destacada numa das páginas do
Livro de Ouro de Jerusalém (1927).3
*

Durante esse período, as condições económicas nos grandes


centros industriais não eram as melhores, sendo grande a
escassez de produtos essenciais, nomeadamente géneros
alimentares. Quando estes não existiam nas lojas e mercados, os
habitantes das cidades dirigiam-se às aldeias e trocavam roupa ou
objectos valiosos por farinha e outros produtos. Por isso, foram
muitos os operários que voltaram ao campo, a fim de garantir a
subsistência da família. Em 1918, Rudolf e Liisa regressam com os
filhos à casa senhorial de Türismäe, o pai voltou a ocupar a oficina
de ferreiro e Leida Emile foi trabalhar para o campo. Porém, em
1923 ou 1924, Leida voltou para Narva, onde passou a trabalhar
na empresa de tricotagem de meias de lã Kajakas.
Após a morte de Rudolf, a família voltou a abandonar Narva, em
1924, e foi viver para Tallinn. Os relatos sobre a causa da morte
divergem. Segundo alguns dos filhos, ele terá morrido num
acidente, esmagado por uma árvore que estaria a cortar na
floresta. Mas no registo de saúde do seu filho Karl está escrito que
ele foi vítima de uma pneumonia.
Helene e Linda mudaram-se para a capital da Estónia em 1926.
A primeira ingressou numa escola de costura, enquanto a segunda
encontrou emprego numa loja de roupas pertencente a um judeu
chamado Goldman.
Este tinha uma tradição muito peculiar: às segundas-feiras, ele
ou a empregada deviam vender sempre alguma coisa ao primeiro
cliente que entrasse na loja. O próprio judeu colocava-se por
detrás do balcão, esperava o comprador e elogiava a mercadoria.
Negociava durante muito tempo e, se necessário fosse, «fazia»
descontos, pois atribuía um preço elevado à mercadoria para
depois o baixar. Após a primeira venda, retirava-se da loja e
deixava a empregada sozinha ao balcão.
Chegada a Tallinn, Leida foi viver para a casa de Helene. Depois
de vender o gado que possuía na aldeia, a mãe Liisa deu dinheiro
às filhas para comprarem máquinas de costura, dizendo que, a
partir daí, elas deveriam tratar da sua própria sobrevivência.
Estas duas irmãs compraram uma máquina de tricotar meias,
que vendiam a pequenas lojas de roupa, incluindo a de Goldman.
Isso permitia-lhes ter uma vida desafogada, pois conseguiam
produzir dez a doze pares de meias por dia. Uma trabalhava na
máquina de manhã, outra à tarde e, durante a noite, o irmão Adolf
carregava a máquina com linha.
Foi precisamente nessa fase da vida que toda a família, à
excepção de Karl, começou a participar na vida clandestina do
Partido Comunista da Estónia (PCE).
*

Esta força política radical nasceu e saiu do seio do Partido Social


Democrata Operário da Rússia (bolchevique), fundado por Vladimir
Ulianov (Lenine). Após a revolução comunista de 1917, os
comunistas russos quiseram manter a Estónia no seio do novo
Estado comunista, tendo mesmo proclamado, em 29 de Janeiro de
1918, a Comuna Trabalhadora da Estelândia. Porém, esta acabou
por ser derrotada pelos independentistas e, após a criação da
República da Estónia, a comuna foi dissolvida e os comunistas
estónios passaram a ter a sua força política: o Partido Comunista
da Estónia, ligado à ditadura dos sovietes na Rússia através da
Internacional Comunista4. Este partido nunca chegou a ser muito
numeroso, tendo, no máximo, dois mil militantes, mas era activo.
Em finais de 1924, tentaram mesmo derrubar pela força das armas
o regime existente na Estónia, mas foram rapidamente derrotados.
*

É também por essa altura que Leida muda o seu apelido de


Blumthal para Holm. Isto era comum entre os revolucionários, que
utilizavam os novos apelidos ou alcunhas para desorientar as
autoridades policiais. Com eles fabricavam documentos falsos que
lhes permitiam circular pelo Império Russo ou sair para o
estrangeiro. Na maioria das vezes, utilizavam documentos
roubados ou de pessoas já falecidas. Praticamente todos os
dirigentes da Rússia soviética eram conhecidos por apelidos ou
alcunhas: Ulianov/Lenine, Bronshtein/Trotski, Djugachvili/Estaline,
Rozenfeld/Kamenev.
Esta forma de conspiração expandiu-se por todas as
organizações comunistas no mundo, tendo chegado a Portugal.
Álvaro Barreirinhas Cunhal era conhecido, entre outros
pseudónimos, por Duarte, Daniel, Manuel Tiago.
Após o esmagamento da rebelião de 1924, alguns comunistas
não conseguiram escapar à polícia e foram fuzilados, mas outros
procuraram refúgio em casas de amigos e camaradas. O cunhado
de Linda, a irmã mais velha de Leida, casara-se com Johanes
Jumann5, que estava ligado aos comunistas e deu abrigo a alguns
em sua casa, mas, como eram numerosos, pediu a Linda que
albergasse alguns dos seus camaradas. Estes instalaram-se em
todas as casas dos filhos de Liisa. Um dos dirigentes comunistas
estónios, Heinrich Ross6, revelou mais tarde, nas suas memórias,
as instruções que recebera de Richard Mirring, funcionário estónio
do MOPR (Organização Internacional de Ajuda aos Combatentes
da Revolução)7 da Internacional Comunista:

«Mirring abriu na mesa o mapa de Tallinn e começámos mais uma vez


a ‘fazer o passeio’. Ele disse o endereço: Rua Kalji, n.º 8, ap. 5 e pediu-
me para lhe mostrar como eu iria até lá depois de sair da Estação
Ferroviária ‘Balti’. Encontrei rapidamente o lugar. Depois de sair da
estação, era preciso atravessar a linha do eléctrico para chegar à Rua
Kesk-Kalamaja e, daí, pela Rua Girgenson, virar à direita e chegava-se
à Rua Kalju. Não deveriam surgir dificuldades.
Fiquei a saber que aí seria o primeiro apartamento clandestino para
onde eu iria viver. A dona do apartamento era Helene Türk (apelido de
solteira: Blumthal), competente e fiel. A senha para entrar no
apartamento era ‘Juhan de Kukrus deseja-lhe saúde’ e eu devia
responder: ‘Mas Juhan ainda está doente?’ A partir daí podia
considerar-me em segurança no apartamento. Nessa casa, eu deveria
encontrar-me com Aleksander Leiner8, o reorganizador do Partido
Comunista da Estónia.»

Na viagem real, tudo ocorreu como planeado. Ao chegar à


estação ferroviária de Tallinn, Ross ajudou uma família que viajava
com ele na mesma carruagem a levar uma mala e misturou-se
com os numerosos passageiros, a fim de não chamar a atenção da
polícia. Depois, dirigiu-se para o apartamento clandestino, através
das estreitas ruas da parte antiga da capital estónia, tal como tinha
sido planeado em Leninegrado:

«Naquela manhã fria, o vento soprava, havia pouca gente na rua,


encontrei sem dificuldade a Rua Kalju e a casa necessária. O
apartamento n.º 5 ficava no 1.º andar e as janelas davam para a rua
principal. Tudo coincidia, mas, em todo o caso, olhei uma vez mais para
trás. Na janela do apartamento via-se luz, o que significava que os
inquilinos já tinham acordado. A porta de entrada não estava fechada à
chave e eu não podia esperar mais, tive de subir com cuidado até ao 1.º
andar porque o corredor estava escuro. Tentei fazer o menor barulho
possível. Felizmente, não havia mais ninguém no corredor. Encontrei a
porta que procurava e, de súbito, fiquei na dúvida se devia ou não bater.
Que tontaria!
Segundo as regras da clandestinidade, o militante ilegal não devia
bater à porta, pois isso poderia levantar suspeita entre os vizinhos. Era
preciso entrar como se eu fosse uma pessoa da casa, sem bater. Mas o
hábito dizia o contrário: sê educado e bate à porta antes de entrar na
casa de um desconhecido. Bati muito devagar, empurrei a porta com
cuidado e entrei. Uma mulher jovem, de pele clara, cozinhava no fogão
e, ao ver o desconhecido, veio calmamente ao meu encontro e fechou a
porta. Depois disso, olhou-me com atenção, eu cumprimentei-a e disse
a senha, tendo ela dado a resposta esperada. Pediu-me para tirar o
sobretudo e entrar. Eu quis deixar o gorro e o sobretudo pendurados na
cozinha, mas a dona de casa pegou neles e levou-os para um quarto,
pendurando-os atrás de um armário.
– O seu gorro e sobretudo devem estar sempre aqui, para que
nenhum estranho os veja – disse a dona da casa, acrescentado: – Se
entrarem pessoas estranhas, você deve também ir para trás do armário
e esconder-se. Para isso, há lá uma cadeira e uma cama.»

O enviado da União Soviética apresentou-se como Ats e os


donos do apartamento como Helene9 e Henrich Türk, dois jovens
com um pequeno filho que ainda dormia quando Ats chegou.
Como eles se preparavam para tomar café, convidaram o hóspede
para se sentar à mesa:

«Aceitei o convite com prazer, porque estava mesmo com muita fome,
a sede já se tinha apoderado de mim em Narva. O odor agradável do
café atraía-me para a mesa, mas os nervos estavam tensos como
cordas esticadas. Fui-me acalmando à medida que bebia café e
conversava com os donos da casa.»

Helene estava também encarregada de passar mensagens ao


recém-chegado. Henrich Ross recorda:

«Quando acabámos de comer e o marido saiu para o trabalho,


levantei-me e dirigi-me para o quarto para ler o jornal. Nesse momento,
a mulher veio ter comigo, tirou de uma tabaqueira, de entre cigarros, um
tubo de papel e disse: esta é uma informação que um camarada deixou
para si. No tubo havia uma folha de trigo onde estavam escritos
números. Caso fôssemos detidos, seria fácil engoli-la.»

A mensagem vinha de Aleksander Leiner, dirigente comunista


estoniano que ordenava que Henrich publicasse no diário
Päevaleht um anúncio com o texto cifrado na mensagem. Isso
significava que Leiner viria encontrar-se com o segundo logo que o
anúncio fosse publicado. Helene foi encarregada de tratar do
assunto.
Todavia, antes de sair de casa, deu instruções precisas ao
camarada clandestino sobre como se comportar no apartamento
durante a sua ausência: a discrição e o silêncio eram
fundamentais. Entretanto, Ross foi conhecendo os cantos ao
apartamento:

«Tinha uma cozinha e um quarto, estando este dividido por uma


parede. Quando a pessoa entrava, via-se logo na cozinha, onde à
direita, perto da parede com o quarto, se encontrava um fogão. Do outro
lado, por baixo da janela, estava uma mesa. Ao lado da porta do quarto
via-se uma grande cristaleira. Nele, à esquerda, havia um biombo, atrás
do qual ficava a cama onde dormia o dono. Aos pés desta havia um
jarro com água e uma bacia. Debaixo da mesa, por detrás do biombo,
havia um balde com tampa que os clandestinos deviam utilizar para
urinar. No corredor existia uma casa de banho, mas só para
necessidades extremas e quando lá não estivesse ninguém. Um grande
problema, mas que fazer?… No meio do quarto estava um armário com
roupas que o dividia em duas partes. Do armário até à parede havia um
cortinado pendurado, o que formava um pequeno quarto onde não
chegava a luz do dia. Perto da parede quente estava o berço da criança.
Esta área pertencia à dona, mas, quando vinham clandestinos, passava
a ser para estes, ficando os donos a dormir juntos na cozinha. Quando
vinham visitas, o clandestino devia esconder-se atrás do armário, ficar
sentado na cadeira ou na cama e segurar uma travesseira ao colo para
encobrir o som caso quisesse espirrar ou tossir… A porta de entrada
estava habitualmente fechada à chave, mas a porta entre a cozinha e o
quarto, simplesmente fechada. Se algum estranho batesse, a dona ia
abrir. Nessa altura, eu devia estar escondido por detrás do armário.»

Cansado da viagem, Heinrich adormeceu profundamente e só


acordou quando os donos já tinham regressado, de noite.
«Pouco tempo depois», recorda ele, «vieram conversar comigo.
Interessavam-lhes principalmente as condições de vida na URSS:
como vai lá o desemprego? O povo passa fome? Como está a
instrução? etc., etc. Nessa altura não havia publicações que
mostrassem o que realmente se passava na URSS. As
publicações burguesas falavam da fome e do desemprego na
Rússia Vermelha.»
Foi nessa ocasião que este dirigente comunista passou a
conhecer outro membro da família Blumthal:
«Quando estávamos sentados à mesa, alguém bateu à porta. Helene
Türk piscou-me o olho e foi, devagar, abrir a porta. Eu escondi-me
apressadamente atrás do armário, sentei-me na cama e, para o que
desse e viesse, coloquei a travesseira no colo. Escutava. Chegou uma
mulher. Algum tempo depois, a dona veio ter comigo e disse que me
podia juntar a eles, porque a pessoa era dos nossos. Eu avancei e
cumprimentei uma mulher jovem e bonita. Era a irmã mais nova de
Helene, Linda Jumann (apelido de solteira: Blumthal). Sentámo-nos à
mesa e a conversa continuou animada. Hora e meia depois, chegou o
marido de Linda, Johannes Jumann, que se juntou logo à conversa.
Entretanto, a mesa já tinha sido preparada para o chá. Os Jumann
foram-se embora muito tarde.»

Na tarde seguinte, o anúncio foi publicado no diário Päevaleht e


rezava o seguinte: «Jovem de 17 anos procura emprego em
qualquer ramo. Trabalhou antes e tem boas recomendações.
Contacto: ‘Meri’.» Essa era a senha para que o dirigente comunista
Aleksander Leiner se pudesse encontrar com Henrich Ross. Leiner
apareceu às onze horas da noite do mesmo dia. Afinal, era um
encontro de velhos camaradas.
Mais tarde, Ross recordaria:

«Leiner era um jovem alto, loiro, de quem me tornei amigo em


Leninegrado, porque ambos tínhamos chegado da Estónia a essa
cidade. Abraçámo-nos como velhos amigos. Sentíamos uma alegria
sincera por um encontro naquelas condições, passámos toda a noite e o
dia seguinte no apartamento conspirativo porque era indispensável
conversar e reflectir muito…»

E acrescentava:

«Leiner traçou-me um quadro das actividades legais e ilegais a


realizar na nova etapa, revelou as tarefas que se colocavam perante o
partido e a juventude comunistas. Em conformidade com as decisões da
conferência do Partido Comunista e da Organização da Juventude
Comunista da Estónia (OJCE). Concluímos que a minha principal tarefa,
nos tempos seguintes, seria passar a dirigir a OJCE, com todas as
ligações e apartamentos conspirativos.»10
Antes de abandonarem a casa conspirativa, os comunistas
tinham de pagar à dona 200 marcos estónios por cada dia de
estadia. Como termo de comparação: o salário mensal médio de
uma operária têxtil variava entre 4000 e 4500 marcos, o aluguer de
um apartamento rondava os 1200.
Henrich Ross teve a oportunidade de conhecer praticamente
toda a família Blumthal no dia de Ano Novo de 1927:

«Na tarde de 1 de Janeiro, depois do encontro com Robert, chegou a


hora de pensar onde dormir. Para onde ir? Eu já tinha passado por seis
apartamentos conspirativos, cada um com aspectos positivos e
negativos. Decidi repetir e voltar ao lugar onde passei a primeira noite
em Tallinn. Dirigi-me à Rua Kalju, para a casa dos Türk, atravessei a
soleira e olhei, assustado. À mesa estava sentada mais gente do que
normalmente. A dona da casa veio ao meu encontro, pediu que eu
tirasse o sobretudo e me juntasse aos outros. Vi que eram todos dos
nossos: o irmão e a mãe da dona da casa tinham vindo de Türsamäe
para passar o Ano Novo em Tallinn. Helene apresentou-me a sua mãe
Liisa Blumthal, o irmão Adolf Blumthal (Bauman) e as irmãs Ida Blumthal
(Bauman) e Leida Blumthal (Holm). A terceira irmã, Linda, e o marido já
eram meus conhecidos. Foi bom passar o tempo com uma família
amiga em redor da mesa de Ano Novo e a conversar abertamente.
Fizeram-me muitas perguntas: quais as condições de trabalho e de vida
na Rússia soviética? Lá ainda há fome? Que condições têm os adultos
para estudar, principalmente os estónios que vão para lá?, etc.»

Linda e o marido decidiram regressar a casa à meia-noite e Ross


teve de segui-los, pois na casa de Helene não havia lugar para
passar a noite. Dirigiram-se para o apartamento conspirativo a
cargo de Linda, cito na Rua Jõe, n.º 35, 1.º:

«Tomei o pequeno-almoço com os donos e, depois do café, o marido


foi para o emprego e Linda dirigiu-se ao mercado para comprar produtos
alimentares… Quando chegou, começou a preparar o almoço e, nos
intervalos, tratava das ligações, conversámos principalmente sobre
temas políticos. Era uma mulher inteligente que tinha lido muita
literatura de ficção e política, era agradável conversar com ela. Nos
encontros seguintes, ela recordava frequentemente conversas com
Jaan Anvelt11, Alice Stein-Anvelt12, August Riismann13 e outros
clandestinos que, depois de 1924, utilizaram o seu apartamento e o da
irmã Helene.»

Dos seis apartamentos secretos dos comunistas na Estónia,


metade encontrava-se sob o controlo de familiares de Leida. Ela
própria vivia num dos mais importantes.
Após a adesão ao Partido Comunista da Estónia, Leida assumiu
rapidamente tarefas de responsabilidade no seu seio. Entre 1927 e
Julho de 1930, foi responsável pela manutenção de uma casa
conspirativa por onde passaram conhecidos dirigentes comunistas
estónios, como Aleksander Leiner, Henrich Rossi, Katarina
Padrik14, Alvine Puunsepp15, Nikolai Karotamm16, Konstantin
Männikson17, Irina Ots18, Aleksander Orlov19, etc.
Ross deixou-nos uma descrição do apartamento «alugado» por
Leida e Linda, «por ordem de Alexander Leiner na Rua Lille, 13»:

«Um apartamento com dois quartos, tendo cada um saída para a rua.
Nesse apartamento, por debaixo do soalho, havia uma cave profunda,
que eu e Leiner utilizávamos como tipografia. Levámos para lá uma
máquina de escrever, um reprógrafo, tintas, papel e outros materiais
necessários. Aí, A. Leiner batia na máquina de escrever apelos em
pequenas folhas, que eu reproduzia.»20

Além dessa tarefa delicada e de responsabilidade, Leida e as


irmãs Linda e Ida estavam também encarregadas de fazer circular
comunicações escritas entre militantes e distribuir materiais de
propaganda.
Em 1928, Ida apercebeu-se de que estava a ser seguida e
comunicou essa informação aos dirigentes comunistas, que lhe
pediram para verificar se se tratava sempre da mesma pessoa. Ela
disse ter visto uma vez mais o seu perseguidor, mas que, depois,
este desapareceu. As irmãs concluíram que tinham deixado de ser
seguidas porque a polícia pensou que elas apenas se dedicavam a
distribuir pelas lojas as meias produzidas em casa.
As coisas correram bem durante dois anos. Porém, em 1930, a
Polícia Política da Estónia conseguiu deter uma «emissária» da
URSS, Alvine Puunsepp, que entrara ilegalmente na Estónia no
ano anterior. Na casa de Leida Blumthal, Puunsepp encontrara-se
várias vezes com Konstantin Männikson, que na altura dirigia as
células comunistas locais, e fora encarregada de relançar o
trabalho de agitação e propaganda entre as mulheres estónias.
Os agentes de segurança conseguiram decifrar as mensagens
que ela transportava (no julgamento judicial, transpareceu que
Alvine teria traído os seus camaradas) e foram detidos mais três
«emissários» da URSS que transportavam material de agitação e
propaganda. As operações levaram ao desmantelamento das
estruturas clandestinas comunistas na Estónia e à detenção de 34
militantes. Desta forma, a polícia de segurança desferiu um rude
golpe na organização dos comunistas estónios.
Os meios financeiros para todas as operações chegavam da
Organização Internacional de Ajuda aos Combatentes pela
Revolução, que a Internacional Comunista, em Moscovo, criara
para realizar actividades subversivas no estrangeiro. Ou seja,
como se diria em terminologia mais moderna, «saía dos bolsos dos
contribuintes soviéticos». Katerine Patrick, uma das dirigentes
comunistas estónias detidas, geria esse dinheiro e conseguiu
salvar algum enterrando a «caixa do partido» no jardim da casa
clandestina. Pouco depois, Leida descobriu-o e devolveu-o à
organização.
Linda Blumthal/Jumman, que fora detida a 26 de Junho de 1931,
estava entre o grupo daqueles que a polícia considerou «terem-se
reunido numa organização cujo objectivo era preparar o derrube
armado do poder constitucional estónio». Devido «ao perigo de
fuga e de destruição de documentos», ficou em prisão preventiva.
Além disso, pelo seu carácter irreverente, ficou separada dos
outros presos políticos.
O julgamento dos revolucionários teve um grande impacto na
sociedade estónia e foi acompanhado, passo a passo, por
numerosos órgãos de informação, pois o processo havia sido
entregue a um tribunal militar. Os acusados eram considerados
«agentes soviéticos».
A 25 de Fevereiro de 1932, o diário Päevaleht titulava «Começou
o processo dos 34 comunistas» e pormenorizava:

«Segundo documentos recolhidos, Alvine Puunsepp chegou à Estónia


em Dezembro de 1929. Em Tallinn ficou a viver na Rua Harju, onde
residia Leida Blumthal. Alguns dias depois, aí, encontrou-se com o
organizador clandestino do PCE Konstantin Männikson, que lhe propôs
como tarefa que ela aderisse à Organização das Mulheres da
Estónia.»21

Nas 35 páginas da acusação, as autoridades policiais estónias


descrevem pormenorizadamente as actividades de agitação e
propaganda que tinham sido organizadas por este grupo
clandestino de comunistas, os lugares onde tinham instalado uma
tipografia e uma reprografia.
Como era habitual no seio dos comunistas, estes processos
eram aproveitados para divulgar ideias políticas e captar
apoiantes. Os quatro principais arguidos – Alvine Puunsepp,
Osvald Kivisoon22, Osvald Tull23 e Voldemar Teppich24 –
renunciaram aos advogados de defesa, não esconderam que eram
cidadãos soviéticos nem quais os objectivos da sua luta. Quando o
juiz lhes perguntou qual a sua profissão, Puunsepp respondeu,
sem hesitar, «Derrubadora da burguesia!»; Kivisoon, «Derrubador
do Estado!»; Tull, «Lutador no movimento revolucionário!»25
A mesma táctica foi utilizada quando o juiz permitiu aos réus
pronunciarem a última palavra antes de ser lida a sentença. Alvine
Puunsepp declarou que tinha sido forçada a assinar o
reconhecimento de culpa e começou a falar «não a título individual,
mas como militante do Partido Comunista», tendo sido
interrompida pelo tribunal, que considerou que ela começara a
fazer «propaganda política». Puunsepp retomou o discurso para
criticar a difícil situação dos presos políticos na Estónia e, desta
vez, foi mandada calar e sentar-se.
É importante registar aqui a linha de defesa de Voldemar
Teppich. Este líder comunista considerava que a acusação
segundo a qual ele se preparava para derrubar o poder não estava
correcta, porque «eu apenas preparava esse processo com
agitação e propaganda». «O derrube do poder é a fase seguinte,
por isso só devo ser castigado pela agitação e propaganda»,
concluiu.
«Sou de uma família operária e não vejo qualquer tipo de crime
nas minhas acções», declarou Linda Jumman na sua curta
intervenção, concluindo o discurso com as palavras: «Sou
comunista e espero ser absolvida.»26
O tribunal dividiu os arguidos em quatro categorias. A primeira e
«mais perigosa» era constituída pelos quatro agentes ilegais que
tinham vindo da URSS; a segunda era formada por comunistas
locais que colaboraram com os primeiros; a terceira, por pessoas
que mantinham tipografias e casas clandestinas, e à quarta
pertenciam as pessoas que serviam de ligação entre as várias
categorias.
O processo foi longo e a sentença tornada pública a 24 de Março
de 1934. Os comunistas do primeiro grupo foram condenados a 12
anos de trabalhos forçados. Linda Blumthal, na segunda categoria,
recebeu seis anos de trabalhos forçados, tantos quantos apanhou
Johannes Lauristin (1899-1941), conhecido dirigente comunista
estónio que depois ocuparia o cargo de primeiro-ministro da
Estónia ocupada pelas tropas soviéticas.27
Linda foi enclausurada na Prisão Central de Tallinn para cumprir
a pesada pena. Aí, comportava-se como uma «exemplar
comunista», o que lhe agravava ainda mais a vida na reclusão.
Ser comunista exemplar significava não aceitar a legitimidade da
«justiça burguesa» e não colaborar de forma nenhuma com as
autoridades. Em Abril de 1933, Linda foi condenada a «quatro dias
de cárcere solitário» por ter tentado fazer passar uma carta
ilegalmente para fora da prisão.
Era claro que, para tornar isso possível, os comunistas tinham
simpatizantes ou militantes entre os funcionários prisionais. O
esquema consistia no seguinte: Linda deixava a carta numa frincha
na parede do chuveiro para que alguém a recolhesse e levasse
para o exterior. Confrontada com a missiva apreendida, Linda
reconheceu que era a autora, mas não revelou o destinatário.28
No dia 2 de Junho, enviou uma queixa escrita à direcção da
prisão a protestar contra o «arejamento insuficiente da cela onde
se encontrava com outras reclusas», exigindo que fosse autorizada
a abertura não só dos postigos, mas também das janelas;
considerava também que as rações alimentares eram pequenas, o
que provocava «doenças como a anemia, cardíacas e
tuberculose». Além disso, expressava preocupação «pela falta de
roupa, lençóis e cobertores quentes».
«Parece que o objectivo da administração é torturar-nos…
Frequentemente, as guardas abusam do poder, ameaçam castigar-
nos com a solitária se abrirmos completamente as janelas, embora
a administração o tenha autorizado», escreve Linda, sublinhando
que, quando as janelas estavam abertas, as prisioneiras cumpriam
todas as regras para não se prejudicarem a si próprias.
A resposta não se fez esperar: as autoridades consideraram as
acusações «caluniosas» e ela «perdeu o direito de receber visitas,
encomendas e cartas durante um mês».29
Os reclusos tinham direito a receber jornais, revistas e livros do
exterior, mas estes nem sempre lhes chegavam às mãos, por se
tratar de literatura claramente subversiva para as autoridades
estónias. Isso aconteceu várias vezes quando Linda recebia
encomendas da URSS com livros em russo como «A História dos
Povos da URSS» ou a «História do Movimento Revolucionário».
Não obstante o carácter claramente provocatório dos títulos dos
livros, as obras, normalmente, não eram confiscadas nem
destruídas, mas entregues a quem a reclusa pedisse ou devolvidas
quando ela saísse da prisão.30
Na penitenciária, Linda certamente matutava sobre as razões
que levaram a polícia estónia a desmantelar a célula comunista em
que militava, sobre se nas fileiras havia camaradas pouco
cuidadosos ou até mesmo traidores. Conversava também com
outras camaradas a este propósito. O facto é que, a 10 de Janeiro
de 1934, Linda foi acusada de ter esmurrado o rosto da reclusa
Anna Sommer, alegando que esta sua camarada a teria traído e
estaria na origem da sua detenção pela polícia. Depois de um
inquérito interno, Linda foi castigada pela administração prisional
«a sete dias num cárcere» e «à perda do direito de receber visitas,
encomendas e cartas durante um mês».31 A irmã de Leida foi
também castigada por «cantar sem autorização» e «ignorar a
ordem de ir à casa de banho».
No meio desta «guerra» com a administração, Linda apresentou
dois pedidos de libertação antecipada, em Janeiro e Outubro de
1934, mas o primeiro-ministro estónio indeferiu-os.32
No início do ano seguinte, Linda apresentou uma nova queixa
contra a administração da prisão, desta vez mais longa e
fortemente politizada.
«No 17.º aniversário da República da Estónia, a classe operária
estónia é alvo de pressão política crescente», começava ela,
considerando que se viviam «tempos sangrentos», de «longos
processos políticos», de «ditadura fascista». Segundo ela, a
burguesia tinha «retirado completamente às massas trabalhadoras
o direito à expressão e à imprensa livre, a reuniões políticas», pois
«a classe operária, na luta pelos seus ideais, é como agulhas nos
olhos da burguesia».
Linda concentrou especialmente os seus protestos contra a
«nova lei das prisões», aprovada pelas autoridades pouco tempo
antes, que, para ela, «conduz[ia] à destruição sistemática dos
presos políticos» através da «diminuição da ração alimentar, do
frio, da destruição da saúde com trabalhos forçados».
No fundo, as queixas eram as mesmas, mas desta vez Linda
recusava-se a comer e exigia:

«1) a revogação da ‘lei das prisões’; 2) a alteração das leis laborais; 3) a


liberdade de receber livros e jornais; 4) o fim do isolamento nos
cárceres; 5) o aumento e a diversificação das rações alimentares; 6) a
suspensão das limitações aos encontros com amigos e familiares, ao
recebimento de encomendas pelos reclusos; 7) o fim da limitação da
troca de correspondência; 8) mais roupa, cobertores e lençóis
quentes.»33
Segundo a revista Kommunist, esta greve de fome foi realizada
ao longo de sete dias por todos os presos políticos que se
encontravam nas prisões estónias. Contudo, além de não terem
sido alcançados os objectivos propostos, os presos políticos
perderam temporariamente o direito a receber visitas e parentes e
a manterem correspondência com eles.34
Linda começou a queixar-se da saúde, principalmente de
problemas renais, e em 15 de Julho de 1935 pediu à administração
prisional que autorizasse o seu internamento no Hospital Privado
de Tallinn.35
Desconhecemos se foi ou não internada nesse ou noutro
hospital, mas, em Outubro do ano seguinte, passou a gozar de um
regime de reclusão bem mais leve e a ter direito a saídas precárias
de seis horas para «visitar parentes» e «tratar de assuntos
pessoais».36
O abrandamento do cumprimento da pena resultou do bom
comportamento de Linda na prisão. Porém, a administração não
confiava inteiramente nela. Ainda que no papel estivesse escrito
que ela não seria acompanhada de guarda, foram dadas
instruções à polícia para que a seguissem de perto nas saídas. No
mês seguinte, a segunda saída precária permitiu-lhe ausentar-se
da cadeia por dez horas, e mais tarde foi autorizada a sair seis
horas uma vez por semana.
A 6 de Novembro de 1938, Linda foi libertada antecipadamente,
regressando logo à actividade conspirativa.
Após a União Soviética ter invadido a Estónia, em 1939, Linda
trabalhou como enfermeira em dois hospitais de Tallinn e, em
1943, pediu para ser readmitida na Faculdade de Medicina da
Universidade de Tartu, tendo o seu pedido sido aceite. Porém, não
pôde terminar os estudos universitários, pois foi novamente detida
por actividades subversivas, desta vez pelos ocupantes nazis.

2 Região específica do Império Russo onde os judeus podiam viver, sendo a sua residência
proibida na restante Rússia. Foi demarcada entre uma linha (pale) oriental e outra ocidental
que terminava na fronteira do Reino da Prússia (Império Alemão) e o Austro-Húngaro. A
Zona de Assentamento Judeu correspondia a 20 por cento do território da Rússia ocidental
e às fronteiras históricas do antigo mercado comum polaco-lituano. Incluía o território actual
da Lituânia, Bielorrússia, Polónia, Moldávia, Ucrânia e partes da Rússia ocidental. Os
judeus também foram impedidos de residir num grande número de cidades dentro da
própria zona. A um limitado número de categorias profissionais (como médicos,
advogados) permitia-se viver fora da zona.

3 Ver mais em: http://www.telaviv.vm.ee/jewish_community_in_estonia.

4 Internacional Comunista (IC), Comintern ou Komintern (do alemão Kommunistische


Internationale) é o termo com que se designa a Terceira Internacional (1919-1943), isto é, a
organização internacional fundada por Vladimir Lenine e pelo PCR (bolchevique), em
Março de 1919, para reunir os partidos comunistas de diferentes países, tendo como
objectivo central a revolução mundial. Segundo os seus primeiros estatutos, a IC propunha-
se também lutar pela superação do capitalismo, pelo estabelecimento da ditadura do
proletariado e da República Internacional dos Sovietes, pela completa abolição das classes
e pela construção do socialismo, como uma transição para a sociedade comunista, com a
completa abolição do Estado e para isso utilizando todos os meios disponíveis, inclusive
armados, para derrubar a burguesia internacional.

5 Nos documentos encontrados nos arquivos estónios, este apelido aparece escrito de
várias formas. Além de Jumann, encontramos Junmann.

6 Henrich Ross (1902-1983) nasceu em São Petersburgo numa família operária estónia.
Em 1910, foi viver com os pais para a Estónia. Em Abril de 1924, aderiu ao PCE e
trabalhou na clandestinidade até 1928, quando partiu para a URSS. Dez anos depois, foi
acusado de «violar a ordem soviética» e enviado para um campo de concentração
estalinista, tendo sido reabilitado em 1955. Em 1956, regressou à Estónia, onde ocupou
vários cargos no Arquivo do Partido Comunista e no Controlo Popular.

7 Richard Voldemar Mirring (29 de Junho de 1901 – 01 de Setembro de 1938). Membro do


Comité Central do PCE. Aderiu ao PCE em 1920, tendo sido expulso da Estónia para a
URSS em 1921. Entre 1922 e o Verão de 1923 trabalhou clandestinamente na Estónia. A
partir de 1923, voltou à URSS, onde usou os nomes Meering, Mehring e Mering. Trabalhou
enquanto representante estónio na Internacional Comunista Juvenil em Moscovo. Entre
1927 e 1930 estudou marxismo-leninismo no ensino superior. Entre 1930 e 1931 foi
representante do Comité Central do PCE junto do Komintern. Entre 1930 e 33 dirigiu o
Secretariado dos Países Escandinavos no Komintern. Entre 1933 e 1935 foi membro do
Secretariado dos Países Ingleses e Americanos junto do Komintern. Representou o PCE
no VII Congresso do Komintern de 1935. A 26 de Julho de 1937 Mirring foi detido e
condenado pelo Supremo Tribunal Militar da URSS por participar numa «organização
contra-revolucionária». Executado a 1 de Setembro de 1938, acabou por ser reabilitado a
23 de Julho de 1956. A MOPR (1922-1947) foi criada pela Internacional Comunista, à
imagem e semelhança da Cruz Vermelha Internacional.

8 Aleksander Leiner (6 de Setembro de 1902 – 3 de Agosto de 1927). Membro do PCE


desde 1922. Em 1919, Leiner participou na revolta de Saaremaa. A partir de 1920,
participou na actividade operária clandestina em Tallinn. Entre 1923 e 1924, foi membro do
Parlamento Municipal de Tallinn na qualidade de representante do Partido dos
Trabalhadores da Estónia. Estudou, entre 1924 e 1926, em Leninegrado, na Universidade
Comunista para Povos Minoritários do Ocidente. No Outono de 1926 regressou ilegalmente
à Estónia, ficando responsável, enquanto membro do Comité Central do PCE, por toda a
actividade clandestina levada a cabo no país. Foi morto numa troca de tiros com a polícia
em 1927.

9 Nos documentos encontrados nos arquivos estónios, este nome próprio aparece escrito
de duas formas: Helene e Elena.

10 Ross, H., Ei Vabadust saa Taevavaega («A liberdade não vem de Deus»). Talliinn, 1966,
p. 86.

11 Jaan Anvelt (18 de Abril de 1988 – 11 de Dezembro de 1937) teve os pseudónimos


Eessaare Aadu, Jaan Holm, Jaan Hulmu, Kaarel Maatamees, Onkel Kaak e N. Alt.Líder do
PCE e elemento activo no movimento comunista ligado à URSS desde 1917. Entre 1921 e
1925, foi responsável pela actividade clandestina do PCE na Estónia, tendo sido um dos
organizadores da tentativa de golpe de 1 de Dezembro de 1924. Jaan Anvelt participou
activamente nos XIV, XV e XVI Congressos do PCR(b) e nos Congressos da Internacional
Comunista. Entre 1926 e 1929, foi comissário junto da Academia da Força Aérea de
Zhukovski. Entre 1929 e 1935, inicialmente vice e depois presidente da Direcção para a
Aviação Civil. Anvelt foi detido em 1937 e acusado de espionagem a favor da Letónia. A 11
de Dezembro foi espancado até à morte durante um interrogatório do NKVD (Comissariado
do Povo para Assuntos Internos). Em 1956 foi reabilitado. Neto de Jaan Anvelt, Andres
Anvelt foi nomeado ministro do Interior da Estónia a 23 de Novembro de 2016.

12 Alice (Alise) Stein-Anvelt (14 de Outubro de 1900 – 15 de Abril de 1991) teve os


pseudónimos Leevald e Lewald (Levald). Entre 1919 e 1925, trabalhou na clandestinidade
no PCE. Terá tido, alegadamente, uma relação amorosa com um dos fundadores do
partido, Viktor Kingissep, tendo posteriormente casado com Jaan Anvelt. Em 1925 o partido
enviou-a para a URSS. Formou-se em Pintura em Moscovo. Foi membro do Parlamento
Estónio entre 1923 e 1926. Era irmã do revolucionário Paul Leevald.

13 August Riismann (28 de Fevereiro de 1880 – 23 de Abril de 1926) teve o pseudónimo


August Ristmets. Membro do PCE desde 1920. Trabalhou como professor até ter sido
mobilizado, em 1914, para as Forças Armadas do Império Russo. August Riismann iniciou
a sua actividade política em 1919. Entre 1922 e 1925, viveu na URSS, onde era
responsável pela inspecção das escolas estónias. A partir de 1925 desenvolveu trabalho
clandestino na Estónia e foi membro do Comité Central do PCE. Em 1926 foi detido pela
polícia e condenado à morte, tendo sido executado a 23 de Abril desse ano.

14 Katarina Padrik (1879 ou 1880 – ?) teve os pseudónimos «tia» e Katarina Telliskivi.


Membro do PCE. Estudou no KUNMZ até 1928. A partir de 1929 desenvolveu actividade
clandestina na Estónia, tendo sido responsável pela coordenação de casas clandestinas.

15 Alviine Puunsepp (16 de Março de 1905 – 12 de Dezembro de 1979) trabalhou sob o


pseudónimo Alvine Pusep. Membro do PCE, foi detida na Estónia em 1932, devido ao
trabalho clandestino que desenvolvia.
16 Nikolai Karotamm (23 de Outubro de 1901 – 21 de Setembro de 1969) foi membro do
PCE. Iniciou estudos para professor e cumpriu serviço militar antes de emigrar para a
Holanda, em 1925, onde aderiu ao Partido Comunista Holandês. Em 1926 foi para a
URSS, tendo estudado no KUNMZ e aderido ao PCR(b) em 1928. Em 1938, durante o
grande terror, Karotamm foi detido, mas sem que enfrentasse qualquer acusação. Em 1940
regressou à Estónia, para ocupar cargos dirigentes no PCE, então no poder. Com o início
da Segunda Guerra Mundial, Karotamm partiu para a URSS. Em 1944 foi eleito primeiro-
secretário do Comité Central do PCE, cargo que ocupou até Abril de 1950. Em 1950,
Nikolai Karotamm foi afastado do cargo e expulso do Comité Central, devido à brandura
que terá demonstrado durante as deportações dos estónios para a Sibéria e o
Cazaquistão. No mesmo ano, foi enviado para Moscovo, trabalhando até 1967 na
Academia de Ciências da União Soviética.

17 Konstantin Männikson (15 de Maio de 1894 – 21 de Agosto de 1941) foi membro do


PCE. Trabalhou como alfaiate. Em 1922 chegou à Rússia soviética, tendo-se formado no
KUNMZ em 1929. Dirigiu uma escola na cidade de Kalinin. Regressou à Estónia em 1940
para dirigir o PCE, acabando por morrer a combater as forças nazis em 1941.

18 Irina Ots-Adamson (1893-?) foi membro do PCE. Em 1921 foi condenada, devido à sua
actividade partidária, a seis anos de trabalhos forçados. Acabou por não cumprir a pena e
seguiu para a URSS, onde estudou no KUNMZ, Leninegrado, entre 1922 e 1923. A partir
de 1928 foi responsável pela organização do trabalho feminino na delegação de Tallinn do
PCE. Foi membro do Bureau Ilegal do PCE.

19 Aleksander Orlov-Saar (1900-1938) foi membro do PCE desde 1918. Entre 1918 e 1922
dedicou-se à actividade revolucionária na ilha de Saaremaa. Em 1922 partiu para a URSS,
e foi secretário-geral do Bureau Ilegal do PCE entre 1928 e 1929. Morreu em 1938, vítima
das repressões na URSS.

20 Ross, H., op. cit., p. 118.

21 Päevaleht, n.º 55, 25 de Fevereiro de 1932 (Arquivo do Ministério do Interior da


Estónia).

22 Osvald Kivisoon (1909-?), membro do PCE. O pai de Osvald, Oskar Kivisoon, tinha
emigrado para a URSS em 1917 e desapareceu em combate enquanto membro das
Forças Armadas Soviéticas. Na década de 1930, Osvald estudou no KUNMZ, Leninegrado.

23 Osvald Tuul (1906-1942), membro de PCE, responsável pela Organização de Tartu


desde 1923. Entre 1923 e 1926 foi preso político na Estónia. Expulso da Estónia em 1926,
foi estudar para a KUNMZ. Em 1930, Tuul regressou à Estónia e passou a ocupar o cargo
de vice-secretário-geral do Bureau Ilegal do PCE até 1931, quando foi detido e condenado
a 12 anos de trabalhos forçados. Foi libertado em 1938, seguindo para Leninegrado, onde
trabalhou como operário fabril. Em 1940, Tuul regressou à Estónia, onde continuou a sua
actividade no PCE, enquanto guerrilheiro. Foi assassinado em 1942 por forças militares
alemãs na Estónia.
24 Voldemar Teppich foi um dos pseudónimos de Jaan Kallas (1899-1941). Membro do
PCE desde 1917, em Fevereiro de 1918 Teppich foi condenado por um tribunal militar
alemão, mas foi enviado, por engano, para trabalhos forçados na Alemanha. Em Janeiro de
1919 regressou à Estónia e foi mobilizado para as Forças Armadas. Em Agosto de 1919,
voltou a ser detido por actividade comunista. Em 1920, fugiu da prisão e continuou a
actividade clandestina, sendo novamente detido e condenado a seis anos de prisão. Em
1922 foi expulso para a URSS, onde passou a usar o nome Voldemar Kasemets.
Combateu no Exército Vermelho no Uzbequistão, onde adoeceu com malária. Em 1931
regressou à Estónia para continuar a actividade clandestina. Desiludido com o comunismo
e a URSS, denunciou à polícia as actividades do PCE, o que levou à detenção de 37
activistas e à descoberta de uma tipografia secreta, culminando com a destruição da
cúpula da organização no país. A 28 de Fevereiro de 1932, Voldemar Teppich foi
condenado a 12 anos de trabalhos forçados. Em 1933, foi expulso do partido. A 1 de
Janeiro de 1933, foi libertado e voltou a usar o nome Jaan Kallas. A 11 de Março de 1941,
foi condenado à morte por um tribunal militar soviético.

25 Päevaleht, n.º 57, 27 de Fevereiro de 1932 (Arquivo do Ministério do Interior da


Estónia).

26 Päevaleht, n.º 58, 28 de Fevereiro de 1932 (Arquivo do Ministério do Interior da


Estónia).

27 Johannes Lauristin (1899-1941), membro do PCE desde 1917. Entre 1919 e 1922,
prestou serviço militar nas Forças Armadas da Estónia. Entre 1922 e 1923, participou na
actividade clandestina do partido. Entre 1922 e 1924, foi membro do Comité Central do
PCE. Devido à sua actividade política, Lauristin esteve preso entre 1923 e 1931 e entre
1932 e 1938. Entre 1938 e 1940, tornou-se membro do Bureau Político do PCE. A partir de
1940 assumiu o cargo de secretário-geral do PCE. Johannes Lauristin morreu em
circunstâncias desconhecidas, aquando da retirada das Forças Armadas Soviéticas da
Estónia, em 1941. Segundo dados soviéticos, Lauristin terá falecido no navio Jakov
Sverdlov, afundado aquando da evacuação. Contudo, fontes estónias, nomeadamente a
esposa, afirmam que terão sido os soviéticos a executá-lo. Johannes Lauristin foi casado
com Olga Lauristin e pai de Marju Lauristin, académica estónia que chegou a ocupar o
cargo de ministra da Segurança Social após o fim da URSS.

28 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERAF. 27.7.11; ERAF.2.1.1762;


ERAF.5.2.190; ERA.1868.1.688.

29 Ibidem.

30 Ibidem.

31 Ibidem.

32 Ibidem.

33 Ibidem.
34 Trellide Taga («Atrás das grades»), Instituto de História do PCE, 1962, p. 82.

35 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERAF. 27.7.11; ERAF.2.1.1762;


ERAF.5.2.190; ERA.1868.1.688.

36 Ibidem.
LEIDA NO PAÍS DOS SONHOS

«Coisas impossíveis, é melhor esquecê-las que desejá-


las.»
Luís de Camões

Leida, não obstante o facto de o seu nome constar no «Processo


dos 34» como «elo de ligação» entre dirigentes comunistas,
conseguiu evitar a prisão, porque fora enviada para a União
Soviética antes, em Agosto, a fim de estudar ou, como se dizia no
calão revolucionário soviético da época, numa komandirovka
(missão de serviço). Dois anos antes, a irmã Ida e o irmão Adolf já
tinham ido para o mesmo país com idêntico objectivo.
Ida recordou mais tarde que Alexander Leiner, dirigente do
Partido Comunista da Estónia, veio ter com ela e lhe perguntou se
ela queria estudar na URSS ou ir parar à prisão estónia. Ela optou
pela «pátria dos trabalhadores», mas depois arrependeu-se várias
vezes da sua escolha: «Na Estónia saberia qual a razão da cadeia,
mas na URSS estive na prisão sem saber porquê.» A
compreensão da verdadeira natureza do regime soviético chegaria
mais tarde, quando já pouco ou nada havia a fazer.
A Secção Estónia do Komintern (Internacional Comunista) enviou
Ida em 1928 e Leida em 1930 para estudarem na KUNMZ –
«Universidade Comunista para Minorias Nacionais do Ocidente»,
escola superior de Leninegrado (actualmente, São Petersburgo)
que tinha o nome do revolucionário polaco Julian Baltazar
Marchlewski (1866-1925).
*

Esta universidade comunista foi uma das muitas escolas criadas


pelos bolcheviques para preparar quadros para a revolução
mundial, neste caso para atiçar a chama comunista entre os
pequenos povos do Ocidente. Mas existiam outras: a Universidade
Comunista dos Trabalhadores do Oriente (Estaline) e a
Universidade Comunista dos Trabalhadores da China (Sun Yat-
sen).
Anualmente, em cada uma dessas universidades estudavam
entre 1000 e 1500 alunos. As viagens, a estadia e os estudos dos
estrangeiros estavam a cabo das autoridades soviéticas. Este tipo
de apoio aos partidos comunistas estrangeiros manteve-se até ao
fim da União Soviética.
Josip Broz Tito (futuro presidente da Jugoslávia) estava entre os
mais conhecidos alunos da «Universidade Comunista para
Minorias Nacionais do Ocidente». Pode-se também citar o nome
de Leopold Trepper (1904-1982), dirigente da organização de
espionagem soviética «Capela Vermelha». Mais tarde, este
revolucionário de origem judaica passou numerosos anos em
campos de concentração estalinistas e, já no fim da vida, emigrou
para Israel, para escapar às campanhas anti-semitas.37
*

A julgar pela caracterização da direcção da universidade


disponível nos arquivos da Internacional Comunista, Leida não se
destacava pelo seu fervor revolucionário, mas era fiel à linha do
Partido Comunista:

«Holm, Leida Rudolfovna, nasceu em 1901, membro do Partido


Comunista Russo bolchevique (PCR[b]) desde 1931. Estado social:
operária. Disciplinada. Não teve desvios da linha geral do partido.
Êxitos médios nos estudos, não tem iniciativa, não é activa.
Característica sobre o cumprimento do trabalho prático do partido em
1931: não foi satisfatória.
Compreende questões políticas [riscado].
Aquando da análise de questões políticas, manifesta passividade
extrema [a palavra extrema está riscada]. Não é capaz de realizar
trabalhos de direcção. Pode trabalhar sob orientação no trabalho de
jornais das minorias nacionais.»38
Leida era tímida e calada por natureza, muito reservada, mas o
baixo fervor revolucionário poderia dever-se às importantes
mudanças pessoais ocorridas durante os estudos. Foi nessa
escola que Leida conheceu outro comunista estónio, Erich Sõerd,
tendo desta relação nascido Jaak Sõerd. O registo da criança é de
21 de Julho de 1933, em Leninegrado, mas, segundo se conta na
família, ele teria nascido alguns dias antes.
Embora o regime comunista soviético tenha rapidamente
restaurado o matrimónio, anulado enquanto «instituição burguesa»
após o golpe de Estado bolchevique de 1917, não chegou até nós
nenhum registo de casamento de Leida Holm e Erich Sõerd, o que
era habitual entre os comunistas estrangeiros que, nos seus
países, viviam na clandestinidade.
Após terminar os estudos, em Abril de 1934, Leida não foi
trabalhar. Devido ao nascimento de Jaak e ao facto de não inspirar
plena confiança nos dirigentes comunistas soviéticos, não foi
enviada para a Estónia. Erich foi enviado para Kingisepp, cidade
russa muito próxima da fronteira com a Estónia e que deve o seu
nome a Viktor Kingissep, revolucionário comunista estónio
assassinado em 1922. Nessa localidade, Erich dirigiu o
Departamento de Educação da Escola do Partido Comunista da
Estónia (PCE), onde também leccionava.
A esposa, pelo seu lado, teve de pedir ao Comité do PCR(b) que
lhe arranjasse emprego, uma vez que, por «falar mal russo», ela
tinha dificuldade em encontrá-lo. Embora já tivesse cerca de 17
anos quando a Estónia deixou de fazer parte do Império Russo,
Leida, tal como muitos outros estónios, não dominava a língua
russa, porque raramente a utilizava na vida quotidiana.
Os camaradas soviéticos arranjaram-lhe um lugar de
bibliotecária na Escola Técnica de Agricultura Estónia e Finlandesa
de Vsevolovski, na região de Leninegrado, o que lhe permitia viver
com o marido. Nesse estabelecimento de ensino, Leida trabalhou
entre 2 de Outubro de 1935 e 28 de Setembro de 1938, dia em que
agentes do NKVD39 lhe foram bater à porta para a deterem.
Não obstante Lenine ter sido obrigado a conceder a
independência às três províncias bálticas do Império Russo –
Estónia, Letónia e Lituânia –, bem como à Finlândia, os
comunistas soviéticos nunca perderam a esperança de as
reocupar. Com este fim em vista, preparavam agentes subversivos
para minarem os sistemas políticos dos jovens Estados,
nomeadamente na Escola do Partido Comunista da Estónia. Não
por acaso, esta situava-se a poucos quilómetros da fronteira que
separava a Estónia da URSS.
Porém, à medida que a ditadura de José Estaline se reforçava na
URSS, maior era a desconfiança dos comunistas soviéticos face
aos camaradas estrangeiros. Estes passaram a ser todos
potencialmente espiões disfarçados. Para se ser mais preciso, é
necessário acrescentar que a desconfiança começava a ser total
mesmo na sociedade soviética. O medo e o terror transformavam-
se numa das bases fundamentais da ditadura comunista.
Por exemplo, em 1935, durante um controlo rotineiro de
documentos realizado no interior do Partido, foi retirado a Leida o
cartão de militante, pois nele estava escrito que ela era membro do
Partido Social-Democrata da Rússia (bolchevique) desde 1927,
enquanto o registo central dizia que tinha militado no Partido
Comunista da Estónia entre 1927 e 1931. Em conformidade com
as palavras dela, o Comité do Partido Comunista de Leninegrado
«quis saber o que vim fazer para a URSS, sobre o trabalho
clandestino, prometeu esclarecer a situação e deu-me a esperança
de que iria receber de volta o cartão do partido».40
No entanto, não obstante já ter sido alvo de vários controlos
depois da chegada à URSS, Leida teve de passar por maus
momentos. Nos arquivos do Partido Comunista da Estónia, numa
das várias pastas com documentos sobre Leida Holm, encontra-se
uma folha, amarelada pelo tempo, onde estão coladas estreitas
tiras de papel com pequenos textos escritos à máquina por
diferentes pessoas, a maioria dos quais sem assinatura. Quase
todos contêm graves acusações à camarada.
«Retiraram-lhe o cartão do partido por passividade», lê-se num
deles; noutro vai-se buscar uma opinião sobre ela dada pela
direcção da universidade onde estudou em Leninegrado: «Carácter
solitário, silenciosa. Estuda com grande dificuldade. Tem particular
dificuldade em compreender o leninismo. Ela poderá ser utilizada
depois, e não agora.» «Não era grande coisa como comunista»,
escreve outro camarada. «Pouco desenvolvida, demasiado
passiva. Segundo os últimos documentos, ela teria mesmo sido
‘expulsa do partido’», denuncia outro.
E claro que até a vida pessoal servia para atacar. «Dizem que é
esposa de Erich Sõerd», insinuava-se, como se não soubessem
que dessa ligação tinha nascido Jaak.
Em prol da verdade, nesse processo havia uma opinião positiva
de Konstantin Männikson, um dos dirigentes comunistas estónios:
«Quando estava à frente da casa clandestina, ela era muito
modesta e fazia uma vida solitária. Cumpria as tarefas de forma
correcta.»
Além disso, Erich Sõerd saiu em defesa da esposa e enviou
cartas a camaradas estónios para que esclarecessem a delicada
situação. Embora Leida acabasse mesmo por ser expulsa da
organização comunista em Setembro de 1935, voltou a ser
admitida no mês seguinte pelo Comité Central do Partido
Comunista da Rússia (b), em cuja resolução se escreve que ela
começou a militar nas fileiras do Partido Comunista da Estónia em
1927.41
Porém, a confusão não terminou aí. Em Julho de 1936, um
representante do Comité Central do Partido Comunista da Estónia
junto da Internacional Comunista tira a seguinte conclusão:
«Segundo dados não confirmados, tiraram-lhe o cartão do partido
por passividade. Se o cartão de Holm lhe foi devolvido, considero
necessário que a militância seja contada quando da transferência
para o PCR(b), ou seja, a partir de 1931, porque, na Estónia, ela
não realizou qualquer trabalho pelo qual possa ser considerada
membro do PCR(b) desde 1927.»42 Leida ficou nas fileiras desse
partido, mas a militância desde 1927 só seria reconhecida, como
iremos constatar, muito mais tarde, em 1959.
*

É necessário fazer aqui um parêntesis para que os leitores


menos familiarizados com estas matérias compreendam o que
significava, naquela altura, ser expulso do PCR(b). Hoje, será difícil
imaginar o que significava a exclusão da força política
omnipotente, a verdadeira espinha dorsal da ditadura soviética.
Não se tratava apenas do afastamento de um partido tal como ele
acontece em regimes democráticos, mas o ruir de todo um sonho
ligado à edificação da sociedade comunista, mais justa e
igualitária. Claro que este sentimento só podia apoderar-se
daqueles que acreditavam sinceramente nessa causa. No que
dizia respeito aos carreiristas, tratava-se também de uma autêntica
catástrofe, pois significava o fim de todos os planos para a vida
futura.
Além do mais, todos os que eram excluídos do partido comunista
tornavam-se vítimas de ostracismo total na sociedade, passando a
ser olhados como «inimigos do povo». Muitas vezes afastavam-se
ou eram afastados da família, para não prejudicar os parentes. A
notícia do afastamento de um comunista chegava rapidamente ao
emprego da esposa ou do marido, às escolas onde os filhos
estudavam, o que, por sua vez, poderia levar ao desemprego ou à
expulsão da escola ou da universidade. A família do comunista
castigado passava a ser «intocável», «leprosa».
A exclusão das fileiras do partido comunista soviético era uma
das mais dolorosas penas que se podiam infligir a um comunista,
sendo superada apenas pelas penas de reclusão em campos de
concentração ou a pena de morte. Mais, na era soviética, a saída
do seio da força política única era o primeiro passo rumo às
masmorras soviéticas. No fundo, os militantes excluídos não
passavam de traidores da causa.
A época das purgas estalinistas, porém, aproximava-se
rapidamente. Depois de «neutralizados» todos os «inimigos
externos» do partido – monárquicos, constitucionalistas, liberais,
socialistas de direita e de esquerda, anarquistas –, chegara a hora
dos «internos»: trotskismo, «desvios» de esquerda e de direita,
etc., pois a máquina repressiva não podia parar, exigia novas e
novas vítimas.
A onda da repressão não passou ao lado desta família que
dedicara os melhores anos da sua vida à luta pelo «futuro radioso
da humanidade», e chegou-lhes em 1938. No mês de Setembro
desse ano, Leida foi detida pela polícia soviética NKVD e acusada
de «actividade contra-revolucionária», o que levou à sua
condenação a dez anos de reclusão num campo de concentração.
Pouco tempo depois, como veremos em pormenor, chegou a vez
do marido, Erich Sõerd.
Siiri recorda aquilo que o pai lhe contou do avô Erich:

«Jaak tinha cinco anos, quando dois polícias fardados entraram no


apartamento de Leninegrado onde vivia com os pais. Erich, que se
encontrava sozinho com o menino, pediu apenas que deixassem a
criança acabar de comer. O meu pai detestava puré de batata (jantar
daquele dia) e a birra deveria dar tempo suficiente para que alguém
chegasse a casa antes de o avô ser levado. Mas, pela primeira vez,
Jaak comeu sem um único protesto, não se recordando se fruto de um
qualquer ‘destino’ ou pela imponente presença ‘uniformizada’.»

No combate contra as «actividades contra-revolucionárias»,


lançado durante o Grande Terror de 1937-1938, que ceifou a vida
de milhões de pessoas, dedicava-se particular atenção à luta
contra os nacionalismos e os espiões.
Desde a década de1920, a propaganda comunista vinha
incutindo na cabeça dos soviéticos que a URSS era uma «fortaleza
cercada», que poderia ser alvo de ataques externos a qualquer
momento. Nesse contexto, os estrangeiros, mesmo aqueles que se
encontravam no país para ajudar na «construção do socialismo»
ou na «revolução mundial», eram vistos como reais ou potenciais
agentes de serviços secretos estrangeiros. Os representantes de
minorias nacionais ocidentais residentes na URSS começaram a
ser alvo de particular atenção do NKVD, que os considerava como
potencial «quinta coluna» do imperialismo.43
Os polacos foram, em termos quantitativos, os mais perseguidos.
Segundo dados do Arquivo Central do Serviço Federal da Rússia,
a polícia secreta estalinista conseguiu «desmascarar», em 1937 e
1938, 102 000 «espiões polacos», embora os serviços de
espionagem polacos não tivessem mais de 200 agentes em todos
os países. Além do mais, grande parte dos «agentes polacos» foi
descoberta na Sibéria, embora os reais agentes actuassem em
Moscovo, Leninegrado, Minsk, Kiev, Kharkov e Tbilissi.44
Os estónios também não escaparam a esta onda de xenofobia. A
14 de Dezembro de 1937, o NKVD aprovou uma directiva que
alargava as repressões da «linha letã» aos estónios, lituanos e
finlandeses. 9735 estónios foram julgados e, destes, 7998 foram
fuzilados. Uma das primeiras medidas da polícia política soviética
foi a decisão de encerrar a redacção do jornal Edasi («Em Frente»)
e da revista Kommunismi Teel («Na Via do Comunismo»),
publicados em língua estónia.
Esta onda de terror estalinista coincidiu temporalmente com uma
amnistia dos presos políticos na Estónia e é possível que estes
dois acontecimentos estejam ligados entre si. A 7 de Maio de
1938, por decisão do Parlamento, foram libertados 104 presos que
tinham sido condenados por «actividade comunista», dois terços
dos quais membros do Partido Comunista da Estónia. Segundo o
historiador O. Kuuli, o presidente da Estónia «[Konstantin] Päts
considerava que, após a liquidação da direcção do PCE na União
Soviética, os comunistas locais não constituíam ameaça séria…
No Verão de 1938, na Estónia, havia cerca de 120-130 membros
do PCE. Durante dois anos (até à Primavera de 1940), aderiram 22
pessoas. A maioria dos comunistas vivia nas grandes cidades:
Tallinn, Tartu, Narva, Pärnu.»45
*

Como já foi dito, a 28 de Setembro de 1938, Leida é detida no


seu local de trabalho. «Acusaram-me de ajudar o meu marido no
seu trabalho», escreveu ela mais tarde46, sendo enviada para um
campo de concentração estalinista perto de Syktyvkar, capital da
República Socialista Autónoma dos Komi, no extremo norte da
Rússia. Erich foi detido uns meses depois, tendo o seu filho Jaak
ficado a cargo do tio Oskar, em Leninegrado.
Ela própria, por receio de repressões por parte das autoridades
comunistas, não falava muito da sua vida num dos campos de
concentração do sistema GULAG (Direcção Principal dos Campos
de Reeducação pelo Trabalho), mas recordava, em algumas das
poucas conversas com a neta Siiri, ter participado na construção
de um caminho-de-ferro, «onde a cada metro morria um
prisioneiro», e no derrube de floresta. Nessa altura, os planos de
industrialização e de militarização da economia soviética
compreendiam a exploração de zonas setentrionais da União
Soviética, a construção de novas cidades em regiões inóspitas. A
maioria dos trabalhos era realizada por presos políticos, cujo
número não parava de aumentar.
Num documento do Bureau de Tallinn do Partido Comunista da
Estónia, datado de 15 de Dezembro de 1978, pode-se ler que, «em
1938, ela [Leida] foi condenada a dez anos de prisão por motivos
políticos. Em Setembro de 1940, foi reabilitada
administrativamente»47.
Não obstante nos ter sido impossível aceder aos arquivos
soviéticos referentes a este período da vida da comunista estónia e
do seu marido, podemos fazer uma ideia do inferno pelo qual Leida
passou numa região onde, no Inverno, o mercúrio do termómetro
descia até aos 50 graus abaixo de zero e, no curto período de
Verão, os mosquitos eram uma autêntica praga. Todavia, existem
numerosos testemunhos de outros prisioneiros.
Num dos campos de concentração por onde ela poderia ter
passado, encontrava-se presa Ekaterina Ivanovna Kalinina, esposa
de Mikhail Kalinin, presidente do Presidium do Soviete Supremo da
URSS, o equivalente, em Portugal, ao cargo de presidente da
República, e companheiro de luta de José Estaline contra todos os
«desvios».
O ditador soviético gostava de manter como reféns nas prisões e
campos de concentração familiares de altos dirigentes do país. O
escritor Lev Razgon, que também passou pelo GULAG de Komi,
cruzou-se com Ekaterina e escreveu mais tarde:

«Já sabíamos que Estaline não abandonava velhos hábitos: cada um


dos seus camaradas devia ter parentes próximos na prisão. Talvez entre
os seus colaboradores mais chegados não existisse uma pessoa a
quem não tivessem prendido parentes mais ou menos próximos. Um
dos irmãos de Kaganovitch foi fuzilado e outro preferiu suicidar-se com
um tiro; o marido da única filha de Chvernik, Stakh Ganetzki, que vivia
com ele no mesmo apartamento, foi detido e fuzilado; os pais da nora
de Vorochilov foram presos e tentaram deter também a esposa,
Ekaterina Davidovna; como é sabido, a esposa de Molotov, que também
era um quadro dirigente, passou pela prisão… Pode-se continuar esta
lista… Por isso nada havia de surpreendente no facto de prenderem
igualmente a mulher de Kalinin.»48

Mesmo sendo esposa de um dos dirigentes máximos soviéticos,


Ekaterina, que por coincidência também era estónia, estava sujeita
às mesmas regras dos restantes prisioneiros no campo de
concentração:

«Ela falava muito pouco, como os estónios, tinha experiência


revolucionária e era esposa de um revolucionário profissional. Não
gostava de falar de tudo o que acontecera depois do telefonema… Mas
sabíamos que ela tinha passado maus momentos na prisão. No seu
formulário estava escrito quase metade do Código Penal, incluindo o
artigo mais terrível: art.58-8, terror. O formulário não podia ser alterado,
o que significava que ela nunca podia andar sem escolta e só podia ser
usada nos difíceis trabalhos comuns debaixo de controlo. Dos dez anos
a que foi condenada, Ekaterina Ivanovna passou a maior parte do
tempo nos trabalhos mais difíceis em que se podiam utilizar mulheres
no campo de concentração.»49

Mikhail Rozanov, outro escritor que também sentiu na carne o


trabalho forçado dos campos eufemisticamente chamados de
reeducação, deixa-nos um retrato deste aspecto da máquina
repressiva e exterminadora de Estaline:

«É tenebroso e impossível de calcular o resultado da ‘vitória dos


bolcheviques sobre o Norte’. Suor, sangue e cadáveres. Cadáveres,
sangue e suor. A propaganda sobre a industrialização do Norte pelo
heróico povo soviético chega a todos os cantos do mundo. Mentira! O
Norte é explorado apenas por reclusos. O campo de concentração é
uma escola clara da teoria da selecção natural e da luta pela
sobrevivência. Sobrevivem os mais ágeis e fortes, morrem os tímidos e
fracos. A exploração do homem pelo bolchevismo é evidente num
campo de concentração como num ecrã, até os míopes a notam. Seria
útil passar pelo menos um ano num campo de concentração aos que
querem estudar exaustivamente a política e os métodos do
bolchevismo. Um ano de estudo prático ensina mais do que andar 20
anos a marrar no Instituto de Marx-Engels-Lenine-Estaline. Fórmulas
científicas nublosas do tipo ‘a cada qual de acordo com o trabalho’ já
tomaram, nos campos de concentração, as formas perfeitamente
concretas de tigelas e colheres de diferentes medidas, dependendo a
percentagem cumprida da norma e do tipo de trabalho. Depois de
estares durante um ano na fila para o caldeirão n.º 8, não esquecerás
até à morte as fórmulas marxistas. O campo de concentração é o
bolchevismo nu visto ao microscópio. A essência do trabalho forçado
soviético reflecte um novo tipo de pessoas sujeitas a muitos anos de
degeneração moral, trituradas pela máquina do Estado e imbuídas da
filosofia soviética da vida, com uma noção especial do bem e do mal.
Por cima dos portões dos campos de concentração exibe-se uma
máxima de Estaline: ‘O trabalho é uma questão de honra, uma questão
de glória, coragem e heroísmo.’ A dentadura carnívora do regime
escondida pela máscara do farisaísmo bolchevique.»50

37 Panin, Evgueni Valerievitch, «Condições de vida materiais e domésticas dos estudantes


das universidades internacionais e nacionais comunistas da Rússia soviética (anos de
1920 e 1930)», in: http://teoria-practica.ru/rus/files/arhiv_zhurnala/2012/3/istoriya/panin.pdf.

38 Arquivo da Internacional Comunista, fl. 529, descr. 23, unid. 183, p. 34.

39 NKVD é a abreviatura de Comissariado do Povo para Assuntos Internos. Criado em


1934, o NKVD incorporou o GPU ou OGPU (Obiedinionnoye Gosudarstvennoye
Politicheskoye Upravlenie, «Direcção Política Unificada do Estado»), transformado em
GUGB («Administração Central da Segurança do Estado»). Além de funções policiais e de
segurança tradicionalmente atribuídas ao Ministério do Interior – como o controlo de
trânsito, o corpo de bombeiros e a guarda das fronteiras –, cabia ao NKVD controlar a
economia e os serviços secretos, prestando contas ao Conselho de Comissários do Povo
(órgão principal do Governo soviético) e ao Comité Central do Partido Comunista da Rússia
(bolchevique). No âmbito do NKVD, foi criado o GULAG (Glavnoie Upravlenie Lagerei,
«Direcção Central dos Campos»), órgão responsável pelo sistema de campos de
concentração soviéticos.

40 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERAF.2.1.1763; ERAF.287.6.98;


ERAF287.4.128; ERAF.25.2.53; ERA.R-16.3k.2240; EEA.V-157.1k. 914.

41 Ibidem.

42 Ibidem.

43 Dionningkhaus, Victor, «Na sombra do ‘Grande Irmão’. As minorias nacionais ocidentais


na URSS, 1917-1938», Moscovo, Enciclopédia Política da Rússia, 2011, p. 587.

44 Petrov, N.V., Roguinskii, A.B., «Operação Polaca» do NKVD em 1937-1938, in:


http://old.memo.ru/history/polacy/00485art.htm.

45 Kuuli, O., Sotsialistid já kommunistid Eestis 1917-1991. Tallinn, 1999, lk. 64, 65, 74.

46 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERAF.2.1.1763; ERAF.287.6.98;


ERAF287.4.128; ERAF.25.2.53; ERA.R-16.3k.2240; EEA.V-157.1k. 914.

47 Ibidem.

48 Razgon, Lev, «Nada Inventado», Moscovo, 2007, p. 5; Lazar Kaganovitch (1893-1991),


nessa altura, era membro do Bureau Político do PCR(b); Nikolai Chvernik (1888-1970)
ocupava cargo idêntico; Kliment Vorochilov (1881-1969) era ministro da Defesa da URSS;
Viatcheslav Molotov (1890-1986) dirigia o Ministério dos Negócios Estrangeiros da URSS.

49 Razgon, Lev, ibidem, p.7.

50 In: https://little-histories.org/2016/05/30/gulag_flag/.
IDA E ADOLF NOS «CAMPOS DE REEDUCAÇÃO
SOVIÉTICOS»

«Estaline foi o pai do GULAG, mas o avô foi Lenine.»


Evgueni Evtuchenko

A procura de documentos referentes a Leida levou-nos a


descobrir novos factos das biografias dos irmãos, do marido e do
cunhado. Colocou-se a questão: cingir-me apenas à biografia da
avó da Siiri ou tentar desenhar um quadro mais completo da
época, juntando as biografias de outros familiares? Claro que a
decisão foi alargar a investigação…
Os irmãos de Leida, Ida e Adolf, também foram vítimas da
mesma campanha estalinista contra o «nacionalismo».
Terminada a universidade comunista na URSS, Ida trabalhou
durante algum tempo na editora Edasi, que publicava, na União
Soviética, revistas e jornais em língua estónia, e, depois, aceitou
trabalhar como redactora-chefe do jornal Oparino Säde («Faísca
de Oparino»), periódico editado em estónio na região de
Arkhanguelsk, Norte da URSS. Nessa como noutras regiões da
União Soviética – Sibéria, Cáucaso – viviam milhares de famílias
vindas da Estónia em diferentes períodos e, por isso, aí existiam
também escolas primárias em língua estónia.
O seu trabalho à frente do jornal começou a ser alvo de sérias
críticas a partir de 1936. No número do Edasi de 6 de Março de
1936, os artigos por ela publicados foram considerados «não
interessantes», sublinhando-se que «o Oparino Säde tem
melhores condições do que outros, é editado em duas páginas…,
mas Ida Bauman não sabe o que fazer com tanto espaço». Além
disso, Ida é acusada de publicar longas traduções em vez de
pequenos textos e numa linguagem demasiado difícil para os
kolkhozianos. «Apenas uma pequena parte dos artigos se
aproveita», conclui o autor do artigo, que assina com as iniciais
A.S.51
Os órgãos repressivos estalinistas não sabiam o que era dia e
noite, feriado ou dia útil, o seu funcionamento era permanente. Por
conseguinte, em vez de descansarem no Dia Internacional da
Mulher, 8 de Março de 1938, uma das principais datas do
«calendário comunista» na URSS, agentes da polícia política
soviética bateram à porta do apartamento em que Ida vivia, mas
sem quaisquer intenções de a felicitar ou de lhe oferecer flores,
como era costume. Logo que ela abriu, entraram de rompante e
realizaram uma busca, tendo confiscado numerosos documentos.
«Havia papéis por todo o lado. Levaram uma parte e a outra
ficou no chão. Ficaram também com uma pasta de couro. Mais
tarde, pedi que ma devolvessem, mas nunca mais a vi», recordou
Ida muitos anos depois.
Após passar alguns dias na cela da prisão da vila de Oparino,
Ida foi levada para outra penitenciária da cidade de Arkhanguelsk,
onde ficou encerrada num barracão com cem pessoas que, devido
à falta de espaço, dormiam não só nos beliches, mas também por
baixo deles. As reclusas tinham direito a sair do barracão 15
minutos por dia para um pátio cercado por altas paredes. No
interior do barracão, apenas podiam estar sentadas. Normalmente,
as que tinham agulhas e linhas podiam fazer alguma coisa,
enquanto as restantes, para matar o tempo, contavam e
recontavam o enredo de obras literárias já lidas ou simplesmente
falavam da sua vida.
As práticas de alimentação eram muito pobres: ao pequeno-
almoço, as mulheres recebiam água quente, dois pequenos
pedaços de açúcar e 600 gramas de pão; ao almoço recebiam
uma sopa de batata e, ao jantar, um copo de água quente. O
banho era permitido de dez em dez dias, sendo que, nessa altura,
as prisioneiras podiam lavar a pouca roupa que tinham conseguido
trazer consigo…
A 3 de Setembro de 1938, a Sessão Especial junto do
Comissariado do Povo de Assuntos Internos (NKVD) da URSS, ou
seja, uma das formas de julgamento sumário do poder comunista,
condenou Ida a dez anos de prisão por «actividade contra-
revolucionária».52 No mês seguinte, ela e outros prisioneiros foram
levados para as carruagens de um comboio, normalmente
utilizadas para carregar gado, que os transportou durante vários
dias. Depois de serem descarregados numa estação
desconhecida, tiveram de caminhar a pé durante mais dois dias
para chegarem ao «campo de reeducação pelo trabalho» no lugar
de Nishni-Mochevo, Solikanski, região de Perm. Durante a
caminhada, dormiram num templo ortodoxo que se encontrava
cheio de beliches, mal aquecido e onde era difícil adormecer por
causa do frio. Naquela região, que é parte da Sibéria, já era
Inverno. Por isso, Ida recordava que alguns dos condenados não
resistiam às difíceis condições e morriam pelo caminho, sendo os
cadáveres abandonados na berma das estradas.
*

Os campos de concentração soviéticos não foram criados pelo


ditador José Estaline, antes foram obra dos mais destacados
dirigentes do golpe de Estado comunista de 25 de Outubro/7 de
Novembro de 1917: Vladimir Lenine e Lev Trotski. Aliás, o terror
estalinista não é mais do que a realização prática das ideias de
Lenine e de Trotski. Na obra A Revolução Proletária e o Renegado
Kautsky, ainda hoje uma das cartilhas marxistas-leninistas, o
primeiro defende: «A ditadura é o poder que se apoia directamente
na violência, sem ligação a quaisquer leis. A ditadura
revolucionária do proletariado é o poder conquistado e mantido
pela violência do proletariado sobre a burguesia, sem ligação a
quaisquer leis.»53
Na prática, a violência sem ligação a quaisquer leis está patente
nas seguintes instruções dadas por Vladimir Lenine: «Recebi o seu
telegrama. É necessário organizar a segurança de pessoas de
confiança escolhidas, lançar terror sem piedade e massivo contra
os kulakes, os padres e os guardas brancos; os duvidosos devem
ser encerrados em campos de concentração fora da cidade.
Comecem a expedição. Telegrafem a comunicar os resultados.»54
E ninguém conseguia fugir à «justiça proletária». Numa carta de
Lenine a Estaline, o primeiro escreve: «Quanto aos estrangeiros,
recomendo não ter pressa com a expulsão. Não será melhor pô-los
num campo de concentração para depois os trocar?»55
Estaline foi além da proposta de Lenine e até ofereceu a Hitler,
depois da assinatura do Pacto Molotov-Ribentropp, dezenas de
antifascistas alemães.
Mas se no lugar de Estaline estivesse Trotski, este não primaria
pela originalidade do aparelho repressivo. Em Agosto de 1918,
Trotski ordenava ao comité militar do distrito de Vologda:

«Arrancai impiedosamente os contra-revolucionários pela raiz, prendei


os suspeitos em campos de concentração. Isto é uma condição
indispensável para o êxito completo… Os carreiristas serão fuzilados,
independentemente dos méritos passados.»56

Estaline mais não fez do que desenvolver a política repressiva


iniciada por Lenine-Trotski, levando-a a todos os cantos da União
Soviética e criando um sistema que ficou conhecido como GULAG.
*

Chegados ao campo de trabalhos forçados, os reclusos ficaram


de quarentena durante duas semanas. Viviam em grandes
barracões e, diariamente, recebiam uma ração de 600 gramas de
pão e uma sopa líquida: água, batatas e uns poucos grãos de
cereais. A prisão estava cercada por três filas de arame farpado e
em cada um dos cantos havia uma torre de vigia, onde se
encontrava um guarda armado.
Ida lembrava que, quando chegaram ao campo de concentração,
onde poucos eram os criminosos de delito comum e a maioria dos
prisioneiros cumpria penas por «crimes políticos», não receberam
roupa, mas apenas calçado. Ela trouxe vestido um casaco de
peles que foi substituído por um casaco de algodão acolchoado só
depois de o primeiro se ter desfeito em pedaços. O calçado era
feito de cascas de árvores trançadas (lapti), que não duravam mais
de dois dias no meio da neve. «Parecíamos espantalhos!»,
recordava ela mais tarde.
Trabalhavam em brigadas de quatro pessoas. Ida carregava
troncos de árvores com mais duas alemãs que antes viviam em
Moscovo, e com a esposa de um marinheiro de Arkhanguelsk.
Quando trabalhavam, recebiam, diariamente, 800 gramas de pão e
uma sopa de manhã. Se estavam doentes, a ração do pão descia
para 600 gramas e, se não trabalhassem, tinham direito a receber
apenas 300 gramas de pão.
Ida viu a sua pena reduzida de dez para sete anos devido «aos
altos índices de produção» conseguidos. Saiu em liberdade depois
da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mas, sem autorização
de regressar à Estónia, só podia residir na remota aldeia de
Mochevo, perto dos Montes Urais. Foi aí que conheceu o seu
marido, um médico moscovita de origem judaica que dirigia um
hospital nessa localidade. O casal teve um filho, mas a felicidade
durou pouco tempo, porque ela voltou a ser detida em 1949. A 29
de Outubro desse ano, uma Sessão Especial do Ministério da
Segurança do Estado (MGV), herdeiro do NKVD, além de repetir a
acusação anterior – «actividades anti-soviéticas» – acrescentou
ainda «espionagem», embora fosse muito difícil imaginar como é
que ela poderia fazer isso num campo de concentração ou quando
vivia com o marido. A «justiça proletária» condenou-a ao exílio
numa qualquer região remota do país e até lhe deu a
«possibilidade» de escolher o lugar. Quando se encontrava na
prisão na cidade de Perm, perguntaram-lhe para onde queria ser
enviada, tendo ela escolhido a região de Krasnoyarsk, no Norte da
Sibéria, para onde tinha sido deportado o marido, vítima da
repressão no âmbito do «Processo dos Médicos Assassinos»,
desencadeado por Estaline principalmente contra os judeus
soviéticos. O objectivo da campanha anti-semita, que se reflectiu
de igual forma na luta contra o «cosmopolitismo», poderia, no
fundo, levar a cabo aquilo que Hitler não conseguira fazer na
Alemanha: a liquidação dos judeus na União Soviética.
Prevendo talvez esse cenário, o conhecido escritor soviético de
origem hebraica Ilya Erenburg propôs ao ditador José Estaline
outra forma, mais aceitável, de resolver o problema. Numa carta
enviada a 29 de Janeiro de 1953, escreve:

«Parece-me que a única solução radical da questão judaica no nosso


Estado socialista consiste na assimilação total, na fusão das pessoas de
origem judaica com os povos entre os quais vivem. Isso é urgente para
o combate contra a propaganda americana e sionista, que tenta separar
as pessoas de origem hebraica.»57

A morte do ditador, que ocorreu cerca de um mês após essa


data, acabou por pôr fim ao «Processo dos Médicos Assassinos».
*

Quando chegou ao local do exílio, Ida recebeu a notícia de que o


marido tinha falecido dois dias antes.
Passou a viver no quarto que o marido tinha alugado numa casa,
cuja dona lhe contou como ele falecera e onde tinha sido
sepultado. Duas semanas depois, agentes do MGV atiraram-na
para dentro de um comboio, que, depois de uma noite de viagem,
chegou à localidade de Kamsk. Aí, teve de pagar a um camionista
para a levar para uma aldeia situada a 30 quilómetros de distância,
percurso que levou mais de cinco horas a realizar, devido à
ausência de estradas.
O camionista recomendou-lhe uma casa onde poderia arrendar
um quarto, mas, lá chegada, a dona disse-lhe que não tinha
lugares disponíveis. Todavia, quando a mulher ouviu dizer que ela
era estónia e que tinha vivido em Leninegrado, sua cidade natal,
cedeu-lhe um canto no seu quarto, atrás do forno russo, o lugar
mais quente e mais confortável, normalmente reservado para os
hóspedes.
A recém-chegada acabou por alugar, pouco depois, um quarto
na casa de uma idosa russa, onde também vivia outro exilado
estónio, que a aconselhou a trabalhar na secagem da batata,
produto que era enviado para o extremo norte da União Soviética.
«Aí há calor, recebes comida e até dão óleo de girassol», informou
ele. Ida trabalhou nessa empresa até 1954. Com o salário mensal
que ganhava, conseguia comprar pão, bacalhau, 200 a 300
gramas de toucinho, as batatas eram grátis.
Depois da morte do ditador soviético, ou, como costumava dizer,
«quando o velho José faleceu a 3 de Março de 1953», Ida
começou a pensar em como sair da região e regressar a Tallinn.
No ano seguinte, uma conhecida foi viver para a parte meridional
da região de Krasnoyarsk e escreveu-lhe que aí havia muitas
maçãs, muito baratas. Acordaram que ela enviaria essa fruta em
encomendas postais e que Ida as venderia no mercado local, o
que lhe permitiu juntar dinheiro para pagar as maçãs
«importadas», regressar à Estónia e levar algum com ela.
Chegada a Tallinn, foi viver para a casa da irmã Helene, que
tinha passado também pela prisão estónia, mas escapado aos
campos de concentração estalinistas e nazis. A propósito, Helene
foi a única das irmãs que, embora tenha participado no trabalho
clandestino, não aderiu ao Partido Comunista e se afastou da
actividade política. Era uma excelente costureira e, por isso, não
lhe faltava trabalho.
Ida manifestou o desejo de viver com Leida, mas esta recusou-
se a recebê-la, receando que o facto de a irmã ter sido condenada
por motivos políticos na URSS lhe trouxesse novos problemas. O
medo de represálias era omnipresente na sociedade soviética,
criando graves conflitos entre pais e filhos, irmãos e irmãs,
parentes e amigos. Segundo relatos de familiares, as irmãs
discutiam frequentemente sobre os campos de concentração
soviéticos e alemães, sendo que Ida defendia que Leida tivera
sorte ao ser enviada para a Alemanha.
O destino do irmão, Adolf Blumthal/Bauman, foi o mais trágico de
todos. Adolf vivia na casa de Leida e, como quase todos os
restantes membros da família, estava envolvido na luta
clandestina, sendo membro da Organização da Juventude
Comunista da Estónia.
Quando o dirigente comunista estónio Henrich Ross percebeu
que Adolf tinha deixado bons contactos na sua terra-natal,
Türismäe, e no lugar de Kukruse, onde havia minas, começou a
aproveitá-lo para alargar as actividades clandestinas aos mineiros,
parte da classe operária mais permeável à propaganda
revolucionária devido às difíceis condições de trabalho:

«Certo dia, quando conversava com Adolf, compreendi que ele tinha,
em Türismäe e Kukruse, amigos em quem se podia confiar, a quem
poderíamos entregar materiais clandestinos e com quem se conseguiria
realizar trabalho sistemático de informação para os fazer entrar na via
da acção revolucionária. Em Kukruse trabalhava e vivia o tio dele. Por
isso, a ida à terra constituía um bom disfarce para encobrir o verdadeiro
objectivo. Ia visitar os pais em Türismäe e o tio em Kukruse. Era preciso
ponderar tudo muito bem, porque a aposta era grande. Se Adolf
falhasse, três bons apartamentos clandestinos não poderiam ser mais
utilizados, já para não falar de outros dissabores que poderiam advir.
Discutimos essa questão várias vezes, o tempo passava, o contacto
com os trabalhadores das minas era muito importante. Por fim, em Abril,
na Páscoa, decidimos enviar Adolf para cumprir a nossa tarefa. Demos-
lhes instruções pormenorizadas e recebeu alguns panfletos. Quando foi
enviado, nós saímos do apartamento na Rua Lille. Alguns dias depois,
Adolf regressou, tudo correra bem. Ele tinha-se encontrado com vários
camaradas em Türismäe e Kukruse, trocou opiniões e entregou
panfletos. Constatou-se que os amigos estavam interessados na
actividade clandestina. Desse modo, A. Blumthal tornou-se o dirigente
da juventude operária e o elo de ligação com Tallinn.»58

Em 1927, Adolf ainda participou na reorganização da OJCE, mas


depois teve de fugir da polícia estónia para a URSS, onde cursou a
Escola do Partido Comunista da Rússia (bolchevique). Casou-se
com uma russa e foi viver para a terra da mulher, na região de
Kalinin, onde chegou a ocupar o cargo de dirigente do kolkhoz
«Força», unidade colectiva de produção soviética.
Não obstante ter participado activamente na colectivização da
agricultura soviética, Adolf foi preso a 17 de Novembro de 1937 e,
quase um ano depois, condenado por uma Sessão Especial junto
do NKVD da URSS a oito anos de internamento no «campo de
reeducação pelo trabalho» de Usollag, no Norte dos Urais, devido
a «actividades anti-soviéticas». Faleceu em 1943, antes de cumprir
integralmente a pena, em condições que não conseguimos apurar.
Como já tivemos oportunidade de ver, a fome, as doenças, o
trabalho forçado e os maus-tratos eram as principais causas da
morte nessas «escolas do comunismo».
*

O campo de reeducação pelo trabalho Usollag foi criado a 5 de


Fevereiro de 1938, estando Adolf entre os primeiros reclusos. Era
formado por numerosos pequenos campos de concentração
espalhados pela taiga da região de Perm. No ano em que abriu,
tinha mais de mil reclusos, número que aumentou até 37 000 em
Janeiro de 1942. Em 1938, 7420 prisioneiros tinham sido
condenados por «actividades contra-revolucionárias».
Num lugar inóspito e frio, com condições de trabalho desumanas
no derrube de árvores, na construção de caminhos-de-ferro e em
fábricas, a mortalidade entre os reclusos era muito alta. Em 1942,
morriam 800 pessoas por mês.
Um grande número de cidadãos soviéticos de origem alemã
passou pelo Usollag. Entre 1942 e 1947, aí morreram de fome,
doenças e trabalhos forçados 3500 alemães: homens e mulheres,
idosos e jovens.59
Por esse campo de concentração passou também o físico Boris
Rauschenbach, um dos criadores da cosmonáutica soviética e
futuro membro da Academia das Ciências da URSS.
Rauschenbach recordou:

«Formalmente, eu não tinha sido condenado segundo um artigo, o


artigo era alemão, sem acusações, o que significava uma pena por
tempo indeterminado. Mas o GULAG é o GULAG: grades, cães, tudo
como é devido. Formalmente, eu era considerado mobilizado para o
exército laboral, mas, de facto, isso era pior do que os campos de
concentração, alimentavam-nos pior do que os reclusos, embora
estivéssemos presos nos mesmos campos, por detrás do mesmo arame
farpado, etc.
O meu destacamento, cerca de mil homens, perdeu metade deles no
primeiro ano, havia dias em que morriam dez homens. No início, os
membros do destacamento viviam debaixo de um telhado sem paredes,
enquanto no Norte dos Urais as temperaturas eram de 30-40 graus
negativos.
Trabalhávamos na fábrica de tijolos. Tive sorte de não ir parar ao
abate de árvores ou a uma mina de carvão, mas, não obstante, metade
dos nossos na fábrica de tijolos morreu devido à fome e aos trabalhos
forçados. Eu sobrevivi por acaso, como por acaso tudo acontece à face
da Terra…»60

A certa altura da sua vida, Leida disse à neta Siiri: «Os


bolcheviques matavam com trabalho, enquanto os nazis faziam o
mesmo com câmaras de gás.»
Esta afirmação, bem como o testemunho de Ida e de outros
reclusos dos «campos de reeducação pelo trabalho», leva-nos a
voltar à discussão sobre se existia, realmente, alguma diferença
entre os campos de morte estalinistas e os nazis. Os reclusos que
passaram por ambos – e foram milhares – não sentiram grandes
diferenças. Não fora a existência de numerosos testemunhos e
seria impossível imaginar o nível de crueldade e de desumanidade
no tratamento das pessoas. Mas retomaremos esta discussão
mais adiante.

51 Edasi, n.º 32, 6 de Março de 1936.

52 «Livro de memória do distrito de Kirovskii», in: http://lists.ru/d3/f394.html. Página


acedida em 12.04.2018.

53 Lenine, V., Obras Completas, vol. 50, p. 245.

54 Lenine, V., Obras Completas, vol. 50, pp. 143-144.

55 Lenine, V., Obras Completas, vol. 50, p. 335.

56 Volkogonov, Dmitri, Trotski, Vol. 1, Moscovo, 1992, p. 344.

57 I.G.Erenburg a I.V. Estaline sobre o projecto da carta da opinião pública judaica a enviar
ao jornal Pravda, 29.01.1953), in: http://www.alexanderyakovlev.org/fond/issues-doc/69189.

58 Ross, H., op. cit., p. 120.

59 https://ru.openlist.wiki/Справка:Усольлаг.

60 Raushenbach, B.V. Predilecção. Moscovo, «Agraf», 1997.


REGRESSO À «NORMALIDADE»

«Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão.»


Provérbio popular português

Ao contrário de Ida e de Adolf, Erich e Leida foram deixados sair


em liberdade pelas autoridades estalinistas. Segundo Leida, a
libertação dela e do marido deveu-se ao facto de terem
considerado Erich «inocente».61
Após sair da prisão, Leida já não conseguiu emprego nem como
bibliotecária nem como jornalista, mas voltou a um trabalho que lhe
era familiar na juventude: o sector têxtil, na secção de controlo de
qualidade da fábrica Krasnoe Znamie (Bandeira Vermelha), em
Leninegrado. Tratou-se claramente de mais um sinal de que o
regime soviético não confiava nela para a realização de tarefas
políticas.
Entretanto, em Agosto de 1939, dois ditadores, Hitler e Estaline,
firmaram um pacto de divisão da Europa oriental, fazendo com que
a Estónia passasse para a zona de influência soviética e acabasse
ocupada por tropas do Exército Vermelho.
A invasão soviética foi acompanhada por uma onda de
repressões nunca vista nessa pequena república do Báltico. Em 17
de Junho de 1941, a cinco dias do início da guerra entre a
Alemanha nazi e a URSS estalinista, Vsevolod Merkulov,
comissário do povo para os Assuntos Internos da União Soviética,
enviou a Estaline um relatório «completamente secreto» onde,
entre outras coisas, informava que, em pouco mais de um ano,
foram detidas 3178 pessoas e 5978 outras foram deportadas para
a Sibéria e o Cazaquistão.62
As condições de transporte dos desterrados do seu país estão
bem descritas nas memórias de um deles:

«As carruagens para onde empurravam os deportados – os maridos


iam separados das esposas e das crianças – eram carruagens que
serviam habitualmente para transportar gado e não serviam para o
transporte de pessoas…
Normalmente, numa carruagem metiam 30 a 40 pessoas, mas às
vezes mais. Nas tarimbas havia lugar apenas para dez, e só sentados.
Os restantes tinham de ir de pé, sentados ou deitados no chão
atravessado pelo vento, frequentemente deitados uns em cima dos
outros… Devido à falta de quaisquer condições sanitárias, o chão das
carruagens ficava rapidamente coberto de urina; devido à falta de
espaço, as crianças deviam dormir no chão, em cima de fraldas
húmidas. Muitos morreram por não aguentarem o choque…, mas não
havia pressa na retirada dos cadáveres.»63

Os ocupantes não pouparam também os dirigentes da República


da Estónia. O presidente Konstantin Päts foi internado na prisão
psiquiátrica de Kazan, na Rússia, e, depois de ser julgado apenas
em 1952 — ou seja, 12 anos após a sua detenção —, foi
condenado a mais 25 anos de reclusão noutro hospital psiquiátrico,
onde faleceu em 1956. Dos 11 membros do último governo
democrático, nove foram fuzilados ou morreram no desterro.
Setenta e um dos 120 deputados do Parlamento foram fuzilados
ou morreram na prisão, dois deles… às mãos dos ocupantes
alemães.64
Verdade seja dita, até os ministros do «Governo Popular»,
imposto pelas baionetas soviéticas, rapidamente deixaram de
gozar da confiança de Estaline e quase todos os seus membros
foram fuzilados ou metidos na prisão pelos seus próprios
camaradas. Dos 14 ministros liquidados, apenas dois foram
assassinados durante a ocupação nazi da Estónia.65
*

Leida regressou ao seu país em Maio de 1941 e trabalhou


temporariamente na Cruz Vermelha estónia até Agosto desse
mesmo ano. Foi através dessa organização que tentou, a 11 de
Junho, nas vésperas do início da invasão da URSS pelas tropas
nazis, chegar a território soviético – «retaguarda segura», como ela
dizia –, mas os carros da Cruz Vermelha foram parados em Narva
por razões que não conseguimos apurar e enviados para trás.
Jaak adoeceu durante a viagem e Leida viu-se obrigada a bater à
porta da casa de familiares do marido na pequena cidade de
Kiviõli, onde arranjou um trabalho como operária numa fábrica de
óleos para tentar sobreviver.
As tropas nazis avançaram rapidamente para leste e ocuparam a
Estónia a 7 de Novembro de 1941, tendo os soldados alemães
sido recebidos por grande parte da população estónia como
«libertadores da tirania estalinista», não obstante os sentimentos
antialemães estarem ainda bem vivos entre os estónios. O seu
país fora dirigido durante muitos séculos por uma nobreza alemã,
contra a qual se tinham verificado os grandes levantamentos
sociais e políticos. A reviravolta súbita na disposição deste
pequeno povo deveu-se à crueldade inédita com que os poderes
comunistas se comportaram entre Setembro de 1939 e Junho de
1941, ou seja, desde a assinatura do Pacto Molotov-Ribbentrop até
à invasão da URSS pela máquina militar de Hitler.
A este propósito, o historiador estónio A. Oras recorda:

«Os bolcheviques poderiam ter facilmente utilizado esses sentimentos


[antialemães] para os seus objectivos, se estivessem minimamente
interessados em conservar relações de amizade connosco: se
respeitassem o acordo que eles próprios nos impuseram em 1939.
Porém, a União Soviética, com o seu Governo terrorista, via nos
estónios inimigos seus, querendo-nos exterminar, para prevenir possível
resistência no futuro.
Tal era a situação na Estónia a 22 de Junho de 1941, quando Hitler
atacou a União Soviética. Nunca antes o nosso povo reagira a uma
invasão alemã senão com a defesa determinada da sua terra. Mas
quando Molotov, naquele domingo – quase todos os anos a URSS tinha
apresentado um ultimato à Estónia –, informou, com voz trémula, do
ataque alemão, os estónios sentiram tudo menos condescendência.
Pelo contrário, entre muitos surgiu a esperança de que essa reviravolta,
trouxesse o que trouxesse, pelo menos atrasaria um pouco a morte do
nosso povo.»66
Leida regressou ao trabalho clandestino e conseguiu mesmo
iludir os ocupantes nazis durante algum tempo, mas, a 11 de
Setembro de 1942, foi detida pela Gestapo e encerrada na Prisão
Central de Tallinn, onde já duas irmãs e a mãe cumpriam penas
por actividades políticas.
A comunista Vera Alekseevna Dobrolinskaja, que esteve com
Leida nessa prisão e, mais tarde, num campo de concentração
alemão, escreveu, depois da Segunda Guerra Mundial, quando
Leida lutava por ser reintegrada no Partido Comunista da Rússia
(bolchevique), pormenores interessantes que nos permitem
compreender melhor a vida e o comportamento de Leida na
reclusão:

«A camarada Holm cumpria pena de prisão por causa das suas ideias
comunistas e devido à sua actividade no tempo socialista. Ao mesmo
tempo, estavam presas a sua mãe de 70 anos, Liisa Blumthal (por ter
criado comunistas), as irmãs Helene Türk e Linda Junmann.»

A mãe, Liisa, e a irmã Linda foram assassinadas em Agosto de


1944 na Prisão Central de Tallinn e sepultadas numa vala comum
do Metsakalmistu («Cemitério no Bosque»). Mais tarde, sem nunca
terem sabido deste facto, foram sepultados no mesmo cemitério o
sogro de Leida Holm, Mihkel Sõerd (1961), a própria Leida (1983)
e o filho, Jaak Sõerd (2018).
O assassinato de Liisa e Linda ocorreu quando as tropas alemãs
recuavam, apressadas, perante o avanço do Exército Vermelho e a
Gestapo começou apressadamente, antes de deixar a Estónia, a
liquidar prisioneiros de guerra e deportados russos, presos
políticos estónios e judeus.

«No campo de concentração de Klooga, perto de Tallinn, só no dia 19


de Setembro de 1944, foram fuziladas cerca de três mil pessoas: 800
soldados, oficiais e deportados soviéticos, 700 presos políticos estónios
e 1500 judeus. Os condenados à morte foram obrigados a preparar
lenha para quatro grandes fogueiras. Era colocada uma fileira de lenha,
depois uma fila apertada de prisioneiros. Depois de serem fuzilados à
metralhadora, outros reclusos repetiam a operação. Quando os nazis
abatiam de oito a dez fileiras, regavam a lenha e os cadáveres com
gasolina para os incinerar. As três fogueiras arderam durante mais de
dois dias e a quarta não chegou a ser acesa, porque os nazis foram
obrigados a retirar-se. Os nazis reuniram oitocentos prisioneiros num
enorme barracão e abateram-nos com tiros na nuca, após o que
lançaram gasolina e lançaram fogo à barraca para esconder os rastos
do crime.»67

«Cruzei-me pela primeira vez com a camarada Holm na oficina


de costura da Prisão Central de Tallinn (então chamada ‘campo de
reeducação’) em Janeiro de 1943, tendo trabalhado juntas
enquanto reclusas até Abril de 1943», acrescenta Vera
Dobrolinskaj. E sublinha: «Ela continuava a ser uma mulher muito
reservada, até fechada, e não era frequente vê-la participar em
conversas com os presos políticos mais activos. Ao mesmo tempo,
dava sempre bons conselhos e, com o seu comportamento, servia
de exemplo para os outros.»
É curioso salientar as razões que a levavam a comportar-se
dessa forma. A testemunha abonatória de Leida explica assim:

«Como a família da camarada Holm era conhecida na prisão


enquanto profundamente comunista, compreendia-se que a camarada
Holm fosse mais reservada por causa do nome ‘famoso’ da sua família.
No geral, a família da camarada Holm era vista pela administração da
prisão de forma negativa (por causa da sua ideologia) e por isso sempre
com segurança reforçada.»68

Conforme já vimos anteriormente, Linda não se cansava de


apresentar queixas à administração do presídio e de exigir
melhores condições para os presos políticos.
À medida que a guerra avançava e a Alemanha nazi tinha cada
vez maior necessidade de mão-de-obra escrava para manter a
máquina militar activa, os habitantes dos países ocupados eram
utilizados em trabalhos mais e mais difíceis, principalmente quando
se tratava de pessoas de outras etnias ou de opositores políticos
alemães. Por isso, Vera foi transportada para um campo de
trabalho forçado em Lavassaare, perto da cidade de Pärnu, em
cujo lago as prisioneiras, vindas de várias regiões da Rússia e da
Estónia, extraíam turfa para a indústria alemã. Porém, Leida e Vera
encontraram-se novamente na carruagem que as levaria até ao
campo de concentração de Ravensbrück, na Alemanha.69

61 Sabbo, H., Võimatu vaikida. I. Tallinn, 1996, lk. 818-819 (Sabbo, H., «É impossível ficar
calado», I. Tallinn, 1996, pp. 818-819).

62 Ibidem.

63 Oras, A. «Eesti saatuslik aastad 1939-1941». Tallinn, 2002. Lk. 131-132 (Oras, A. «Anos
Trágicos para a Estónia, 1939-1941». Tallinn, pp. 131-132).

64 Karjaharm, T., Sirk.V., «Kohanemine já vastupanu Eesti haritlaskond, 1940-1987»


(«Adaptação e Resistência da Intelectualidade Estónia, 1940-1987»).

65 Karjaharm, T., Adamson, A. (org.), Momentos Fulcrais na História da Estónia.


Documentos e materiais para escolas médias, Tallinn: Argo, 2008, p. 248.

66 Oras, A., op. cit., pp. 144-147.

67 «Estonia. Krovavii sled natzisma: 1941-1944». Sbornik arkhivnikh dokumentov o


prestupleniakh estonskikh kollaboratzionistov b godi Vtoroi mirovoi voini. Moskva, 2006. C.
52-54. («Estónia. Rasto sangrento do nazismo: 1941-1944»: colectânea de documentos de
arquivo sobre os crimes dos colaboracionistas estónios nos anos da Segunda Guerra
Mundial. Moscovo, 2006, pp. 52-54).

68 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERAF.2.1.1763; ERAF.287.6.98;


ERAF287.4.128; ERAF.25.2.53; ERA.R-16.3k.2240; EEA.V-157.1k. 914.

69 Ibidem.
MORTE NO BLOQUEIO DE LENINEGRADO

«A fome entrou em Leninegrado de forma imperceptível, a


palavra ‘bloqueio’ surgiu muito mais tarde, inicialmente
utilizava-se a expressão militar comum ‘cerco’, era mais
leve, porque se podia sair dele.»
Dmitri Granin

– E onde estava, nessa altura, o meu avô? – perguntou Siiri certa


vez, pois pouco ou nada sabia do seu destino. – Lembro-me de
que na família se contava, sem grandes pormenores, que ele
falecera em Leninegrado, talvez isso tivesse acontecido durante o
bloqueio.
– É verdade – respondeu Liina, deixando escapar que o destino
de Erich se manteve impiedoso. – A parte mais trágica ainda está
para vir, acrescentou, pousando em cima da mesa novos
documentos conseguidos nos vários arquivos.
Em 1940, Erich regressou a Leninegrado e foi viver para o
apartamento do irmão Oskar, que, talvez por ironia do destino,
vivia na Rua Felix Dzerjinsk, em honra do fundador da polícia
política soviética que já tinha criado sérios problemas à família.
Oskar e Erich tinham origem numa família de operários
ferroviários qualificados. O seu pai, Mihkel Sõerd (1864-1961), era
maquinista de locomotivas em Tallinn, tendo participado em greves
e revoluções. A mãe, Leena Sõerd (1866-1936), era dona de casa.
Erich e Oskar tinham mais duas irmãs: Olga Vilhelmine Sõerd, que
faleceu com apenas quatro meses de idade (14 de Setembro de
1896 a 28 de Dezembro de 1896) e Pauline Katarine Sõerd, que
nasceu em 1897 e morreu, em condições que não conseguimos
apurar, em 1920 ou 1922 na região siberiana de Krasnoyarsk, na
Rússia soviética. Tendo em conta o espírito revolucionário reinante
nesta família, não podemos excluir a possibilidade de ela ter
perecido durante a guerra civil que opôs vermelhos e brancos
entre 1917 e 1922. Numerosos estónios participaram nela de
ambos os lados da barricada.
O destino desta família não seria o mesmo se, em 1905, durante
uma revolução que atingiu grandes regiões do Império Russo,
Mihkel não tivesse escapado quase por milagre a uma carga da
polícia. Segundo ele contava à família, «certo dia, em 1905, em
vez de ir para as manifestações, fui com um camarada beber
cerveja num café próximo. Os meus amigos que ficaram na rua
foram todos assassinados pela polícia».
Erich, o mais novo dos irmãos, nasceu a 10 de Julho de 1901,
em Tallinn. Aos nove anos, começou a estudar na Escola dos
Caminhos-de-Ferro da capital estónia e, a seguir, passou a
frequentar a Escola Básica Catarina II dessa cidade. Porém, as
difíceis condições económicas desta família operária obrigaram-no
a interromper os estudos e a procurar emprego. Começou a
trabalhar na fábrica de material eléctrico SA Volta como aprendiz
de serralheiro, onde laborou durante ano e meio.
A Revolução de Fevereiro de 1917, na Rússia, que deu origem à
formação de um governo provisório multipartidário em Petrogrado
e ao aumento da actividade política em praticamente todo o
império, levou Erich a dedicar-se à actividade política, aderindo à
Associação Operária de Abstémios «Valvaja» (Vigilante), que
combatia o alcoolismo no movimento operário. Como se justificava
então, tratava-se de «uma das formas de tornar as massas mais
conscientes e menos expostas às manobras da burguesia».
A breve experiência democrática na Rússia terminou com a
tomada do poder pelos comunistas bolcheviques, dirigidos por
Vladimir Lenine, em 25 de Outubro / 7 Novembro de 1917. A fim de
não perder todo o imenso território do Império Russo, o dirigente
bolchevique viu-se obrigado a ceder partes dele à Alemanha e a
dar a independência a países como a Estónia, a Finlândia, a
Letónia e a Lituânia.
No caso concreto da Estónia, era a primeira vez que o pouco
numeroso povo chamava a si a construção de um Estado
independente, mas a tarefa revelou-se difícil. Os graves problemas
económicos provocados pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
e pela desintegração do Império Russo atingiram fortemente todas
as camadas da população, principalmente as mais desprotegidas.
Em 1918 e 1919, Erich Sõerd viu-se na necessidade de fazer
biscates para apoiar a família. A seguir, voltou a encontrar
emprego, desta vez no porto naval de Tallinn, o qual manteve
durante pouco mais de um ano. Em Dezembro de 1920, foi
despedido por ter participado numa greve de quatro meses. No
ano seguinte, passou a trabalhar nos Estaleiros Navais de Pedro, o
Grande, de onde foi recrutado para as Forças Armadas da Estónia.
O serviço militar foi passado a laborar numa linha de montagem,
entre 1921 e 1923. Desmobilizado, voltou a trabalhar na SA Volta
apenas três meses e meio, acabando por ser despedido por causa
das suas ideias políticas. Depois, ele e o irmão Oskar encontraram
emprego como funcionários da Sovtorgflot, delegação da Marinha
Mercante da URSS em Tallinn. Como muitas das importações e
exportações da União Soviética eram realizadas através da capital
estónia, principalmente durante o Inverno, quando todos os portos
soviéticos do Báltico ficavam fechados pelo gelo, os
revolucionários utilizavam esse canal para receber panfletos,
jornais, revistas e armas.
Era cada vez maior o empenho e o envolvimento dos irmãos na
vida política. Em 1920, Erich aderiu ao Sindicado dos Metalúrgicos
e, em 1923, foi eleito membro da direcção juvenil do Sindicato dos
Metalúrgicos. Nas eleições autárquicas de 1920, o Conselho
Central dos Sindicatos de Tallinn conseguiu eleger cinco
deputados para a Assembleia Municipal de Tallinn, estando Erich
entre eles. Em Abril de 1923 Erich tornou-se membro do Partido
Comunista da Estónia e, no ano seguinte, foi eleito para a direcção
da Central das Organizações de Operários e Empregados de
Serviços, ocupando também cargos na direcção do Sindicato de
Metalúrgicos e na direcção juvenil da mesma organização sindical.
Não obstante a intensa actividade política, Erich ainda
encontrava tempo para o canto coral, arte muito popular no seu
país, bem como para o desporto. Em 1924, trabalhou na secção
cultural da União Central de Tallinn e participou no coro dessa
organização. No ano anterior, em 1923, aderira à União de
Desportistas «Spartacus» e foi membro da sua direcção. Após o
encerramento da «Spartacus» pela polícia de segurança, foi eleito
membro fundador da comissão instaladora da Associação da
Cultura Física «Vanguarda». Paralelamente, era membro da
Associação de Construtores e fazia parte da comissão de controlo
da Casa do Operário. A partir de 1923, integrou o Comité de
Activistas, onde trabalhou até à sua detenção. É de salientar que
todas essas organizações culturais, recreativas e desportivas não
passavam de cobertura para as actividades ilegais dos
comunistas.70
Erich foi detido pela polícia a 9 de Novembro de 1924 e sujeito a
prisão preventiva na Penitenciária Central de Tallinn (Patarei), pois
as autoridades policiais receavam que, se o deixassem sair em
liberdade condicional, ele poderia «fugir ou destruir documentos
importantes para o processo». A 13 de Dezembro do mesmo ano,
Erich e mais nove indivíduos foram acusados de «participarem, de
forma voluntária, numa organização comunista secreta, que tinha
por objectivo pôr em causa a independência conseguida pelo povo
estónio na Guerra de Libertação, bem como a ordem
constitucional, recorrendo a meios violentos».
O levantamento armado organizado pelos comunistas, em que
Oskar Sõerd participou activamente, realizou-se a 1 de Dezembro,
mas foi derrotado de forma operativa pelas forças policiais e
militares da Estónia, pois, além de mal preparado, os comunistas
não gozavam de apoio entre a população.
As autoridades desse país não tinham dúvidas de que eles não
passavam de «agentes soviéticos», tanto mais que não escondiam
que o principal objectivo era a criação da República Socialista da
Estónia enquanto parte integrante da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, criada em 1922. Não obstante, as
autoridades locais pareciam mais interessadas em que os detidos
aceitassem ir para a URSS. Por isso, no final de Dezembro, depois
de cerca de um mês na Penitenciária Central de Tallinn, a polícia
de segurança aconselhou Erich e os seus nove camaradas a
abandonarem o país e a não voltarem, porque, se o fizessem,
seriam imediatamente detidos e condenados a pesadas penas de
prisão.
A 2 de Fevereiro de 1925, Erich Sõerd escreveu à administração
da prisão: «Estou de acordo em abandonar a República da Estónia
e peço que me libertem sob vigilância policial para que possa tratar
dos meus assuntos pessoais.»71 Uma semana depois, o chefe da
prisão pediu à polícia de segurança que acompanhasse Erich até à
fronteira com a Rússia, o que foi realizado a 23 de Abril do mesmo
ano. Nesse dia, Erich entrou na União Soviética e requereu
cidadania desse país, pois tinha sido privado de toda a
documentação estónia antes de atravessar a fronteira.72
A 22 de Outubro do mesmo ano, uma carta assinada por
Viatcheslav Molotov, depois conhecido ministro dos Negócios
Estrangeiros de Estaline, confirmava que «o camarada Sõerd,
E.M., antigo membro do PCE, é realmente militante do PCR desde
Abril de 1923»73.
Como já tivemos oportunidade de ver, Erich foi também estudar
na KUNMZ («Universidade Comunista para Minorias Nacionais do
Ocidente»), onde conheceu a sua futura esposa Leida Blumthal e,
depois de terminar os estudos, foi enviado como «instrutor
político» e «propagandista» para a região de Tomsk, na Sibéria,
onde permaneceu entre 1929 e 1930. Entre 1930 e 1932,
leccionou na Escola da Juventude Kolkhoziana (distrito de
Leninegrado) e, a partir de 1934, passou a dirigir a secção
pedagógica da Escola do Partido Comunista da Estónia
«Kingisepp».
Entretanto, o irmão Oskar, que permanecera no seu país,
assumiu um lugar importante na direcção da Organização da
Juventude Comunista da Estónia. Heinrich Ross descreveu nas
suas memórias:

«Naquela noite, o encontro seguinte teve lugar na Rua Rannamäe,


em frente a uma central eléctrica. Ao nosso encontro veio um jovem
forte, de rosto alegre, vestia um sobretudo outonal largo. Era Oskar
Sõerd, membro do Partido Comunista da Estónia desde 1924, que
trabalhava no porto como funcionário do escritório da Sovtorgflot.»74
Segundo o enviado da Internacional Comunista à Estónia, Oskar,
além de dirigir uma célula de comunistas nessa empresa soviética,
era também membro da direcção do Comité de Tallinn do PCE e
da OJCE.
Mas o mais significativo é a importância que Oskar tinha na
realização de tarefas extremamente delicadas, como a montagem
do esquema de «importação» de material de agitação e
propaganda da União Soviética e a organização da fuga para o
estrangeiro de comunistas procurados pela polícia política estónia.
Recorremos novamente às memórias de Ross:

«Oskar Sõerd descreveu-nos minuciosamente o trabalho e as tarefas


do partido no porto. Nesses anos, principalmente no Inverno, o Golfo da
Finlândia congelava fortemente e os navios não podiam entrar no porto
de Leninegrado, atracavam em Tallinn. Em conformidade com o acordo
comercial, as mercadorias soviéticas eram enviadas de Leninegrado
para Tallinn por via férrea. Em sentido contrário, as mercadorias de
exportação soviéticas eram transportadas através do porto de Tallinn.
Isso era feito por operários estónios, embora todo o processo fosse
dirigido a partir da URSS, através da representação da Sovtorgflot.
Nesses trabalhos empregavam principalmente pessoas com ideias de
esquerda, por recomendação dos nossos clandestinos, enviavam para
lá pessoas que tinham sido despedidas de empresas por actividades
revolucionárias e que não eram muito desejadas noutros locais. Isso
significava que grande parte dos trabalhadores da Sovtorgflot eram
militantes do PCE e da OJCE, experientes participantes da actividade
revolucionária.»75

Oskar Sõerd, que era o controleiro da célula comunista da


Sovtorgflot, respondia pelas acções mais delicadas:

«Durante o terror da burguesia, na clandestinidade profunda do PCE,


era difícil publicar material de propaganda. Nesses anos, o PCE
organizou o transporte de literatura marxista e sobretudo de brochuras e
panfletos da URSS e de outros países. Esta ‘mercadoria’ tão necessária
chegava a Tallinn pelo porto ou em navios de carga ou de comboio. O
envio de material clandestino de Leninegrado era dirigido por Johannes
Kaspert, que, utilizando diferentes canais, comunicava a O. Sõerd em
que navio ou carruagem se encontrava a nossa mercadoria e quando
fora enviada. Sõerd e outros membros da organização recebiam
mensagens, escondiam a mercadoria em lugares nos armazéns
antecipadamente preparados para isso; depois, entregavam-na aos
clandestinos.»

O enviado de Leninegrado não poupou elogios ao trabalho


desenvolvido por Oskar Sõerd no porto de Tallinn, que, segundo
ele, nem sequer era do conhecimento da direcção da Sovtorgflot.
Isto devia-se ao facto de a actividade revolucionária estar sob a
alçada dos serviços secretos soviéticos:

«Houve casos em que revolucionários ameaçados de prisão eram


transportados escondidos em navios ou carruagens, entre caixas e
sacos, para o estrangeiro, com a ajuda desses camaradas. E tudo corria
bem. Não me lembro de qualquer fracasso, embora a polícia política
fizesse grandes rusgas no porto. O trabalho de O. Sõerd era
considerado tão importante e de responsabilidade que ele não podia ser
sobrecarregado com mais nenhuma tarefa.»76

O assassinato do dirigente comunista estónio Aleksander Leiner


veio dificultar fortemente o trabalho clandestino em Tallinn, tendo-
se reflectido no destino não só de Oskar Sõerd, mas também de
toda a família Blumthal. Tratou-se de um autêntico ponto de
viragem nos seus destinos.
Leiner e Ross estavam a descansar numa casa de Verão nos
arredores da capital estónia e, no dia 3 de Agosto de 1927,
dirigiram-se de bicicleta para Tallinn, onde deviam encontrar-se
com membros da rede clandestina. Os encontros, normalmente,
realizavam-se à noite, nas estreitas ruas da capital, para não atrair
as atenções da polícia.
Depois de se separarem, Leiner foi encontrar-se com a militante
clandestina Dagmar Vorik. Por volta das dez da noite, Ross e a
pessoa com que se encontrou ouviram tiroteio numa das ruas
próximas, viram a luz de lanternas de bolso e pessoas vestidas à
civil a correr. Apressaram-se a fugir no sentido contrário, como
mandavam as regras do trabalho clandestino, e Ross, depois de
percorrer várias ruas, refugiou-se no apartamento dos Türk, onde
deveria esperar pela chegada de Leiner.

«Eu entrei», escreve Ross no seu livro, «mas Leiner ainda não tinha
chegado, apesar da hora tardia. Fiquei à espera, apaguei a luz e
mantive-me sentado perto da janela para controlar o jardim e a porta de
entrada. Enquanto esperava, ficava cada vez mais nervoso. Os
ponteiros chegaram devagar à meia-noite. Algo tinha acontecido, pois
ele era disciplinado e pontual. Minuto a minuto aumentava o sentimento
angustiante de que algo tinha acontecido a Leiner. Partilhei o meu
pensamento com a dona da casa, Helene Türk. O dono já dormia,
cansado, e decidimos não o acordar. Resolvemos juntar todos os
materiais clandestinos e escondê-los no sótão. Quando a dona voltou
do sótão, disse-me que, se a polícia cercasse a casa, eu poderia fugir
pela janela do sótão para o telhado da casa vizinha. Ela abrira a janela
do telhado junto à qual colocara um banco. E ainda atara uma corda
para ser mais fácil descer.»

Leiner não regressou até de manhã e Ross decidiu esclarecer a


situação, mas, antes de sair do apartamento de Helene,
encarregou-a de se dirigir imediatamente para as casas de Linda,
Ida e Leida para lhes «dizer que ‘limpassem’ os seus
apartamentos, era preciso queimar tudo o que não pudesse ser
guardado em segurança. Tive ainda nesse dia um encontro com
Ida para me entregar numa mala a máquina de escrever, o
reprógrafo e toda a propaganda ilegal que tinha em casa. Levei
rapidamente essa valiosa ‘mercadoria’ para outro apartamento».
Aconteceu o pior dos cenários para os comunistas estónios: um
dos seus mais influentes líderes, que chegara da União Soviética
para reorganizar o PCE, tinha sido abatido a tiro durante um
confronto com a polícia política:

«O assassinato de Leiner foi semelhante à caça a feras na floresta. A


polícia tinha medo de se aproximar dele. Dezenas de homens cercaram
o lugar onde Leiner se devia encontrar com Dagmar Vorik. Eles
encontraram-se e foram imediatamente iluminados por lanternas de
bolso. Os homens gritaram: ‘Mãos ao alto! Rendam-se!’ Leiner não se
rendeu e disparou de uma Browning contra o que gritara, ele caiu
durante um forte tiroteio.»77

No dia seguinte, a imprensa estónia fez da morte a primeira


página, sublinhando que Leiner tinha provocado o tiroteio e ferido
um dos polícias antes de ser abatido. Além disso, os jornais
revelaram que o dirigente comunista levava no bolso uma lista de
nomes e de moradas clandestinas. Ross desmente essa
afirmação, mas o facto é que a polícia política estónia lançou uma
operação «para prender A. Luik, deputado do Parlamento, e O.
Sõerd, membro do Comité de Tallinn do PCE».
Todavia, as rusgas policiais falharam, porque procuraram os dois
homens em casa, quando eles já tinham mudado de residência.
Segundo Ross, «com a ajuda dos trabalhadores do porto,
enviámo-los para fora da Estónia. O seu afastamento das funções
que lhes competiam paralisou seriamente o nosso trabalho, porque
ambos eram activos, tinham numerosas ligações legais»78.
Oskar Sõerd foi juntar-se ao irmão, que já se encontrava na
União Soviética. Chegado a Leninegrado, frequentou a
Universidade KUNMZ durante um ano e, em finais de 1927, a
Organização Internacional de Ajuda aos Trabalhadores [MOPR],
da Internacional Comunista, tentou empregá-lo numa das
empresas metalúrgicas daquela cidade, o que não se revelou
tarefa fácil. Porém, acabou por ser admitido como trabalhador na
fábrica de metalurgia Krasnii Treugolnik («Triângulo Vermelho»).
No início de década de 1930, Erich e Oskar Sõerd viveram na
vila Domkino, na região de Leninegrado, onde residiam numerosos
estónios. No jornal Edasi, publicado em língua estónia na URSS,
de 4 de Abril de 1931, informava-se que a célula juvenil estoniana
daquela localidade conseguira reunir 40 rublos para a construção
de uma coluna de tanques, enquanto os «Pioneiros Estónios»
(organização infantil) juntaram dez rublos com o mesmo objectivo.
«Erich Sõerd respondeu ao desafio de Oskar Sõerd e contribuiu
para a coluna de tanques com 20 rublos em dinheiro e 230 rublos
em títulos do tesouro e convida todos a fazerem o mesmo»,
sublinhava o jornal.79
Erich participou também activamente na realização da política de
colectivização da agricultura, nomeadamente no processo que em
russo recebeu o nome de «raskulatchivanie», ou seja, de
destruição dos «kulakes como classe». Os comunistas chamavam
«kulakes» aos camponeses ricos, mas a gigantesca onda
repressiva atingiu também camponeses médios e até pobres.
*

A 15 de Fevereiro de 1928, um artigo do jornal Pravda, órgão


central do PCR(b), desmascarava os camponeses ricos que
tinham criado uma situação insuportável nas aldeias, que
continuavam a explorar os pobres e se tinham infiltrado mesmo na
direcção de algumas células do partido. A expropriação das
reservas de cereais aos camponeses ricos e médios era
considerada «medida extraordinária temporária», mas foi suficiente
para levar os expropriados a não investirem no alargamento das
terras cultivadas, medida que privou os assalariados rurais de
emprego.
Mas as medidas extraordinárias logo passaram de temporárias a
constantes e desaguaram na «liquidação dos kulakes como
classe». O «tiro de partida» foi dado pelo ditador José Estaline:

«Para acabar com os kulakes como classe, é necessário destruir, em


combate aberto, a resistência dessa classe e privá-la das suas fontes
produtivas de existência e de desenvolvimento (da livre utilização das
terras, dos meios de produção, do direito a contratar trabalhadores,
etc.).
Este é o ponto de viragem para a política de liquidação dos kulakes
como classe. Sem isso, as conversas sobre o desaparecimento dos
kulakes enquanto classe não passam de paleio oco, favorável e
vantajoso apenas aos desviadores de direita.»80

A 30 de Janeiro de 1930, o Bureau Político do CC do PCR(b)


aprovou o decreto «Sobre as iniciativas com vista à liquidação das
propriedades dos kulakes nas regiões de total colectivização», que
dividia essa classe social em três categorias: 1) a parte contra-
revolucionária activa, os organizadores de actos terroristas e de
revoltas; 2) a restante parte do activo contra-revolucionário,
constituída pelos kulakes e semi-latifundiários ricos; 3) os restantes
kulakes.
Os pais das famílias da primeira categoria eram detidos e
entregues a «troikas» formadas por representantes da Direcção
Política Estatal Unida (OGPU – polícia política soviética), das
organizações regionais do PCR(b) e da Procuradoria-Geral da
URSS. Os membros das famílias dos kulakes de primeira e
segunda categorias eram desterrados em regiões distantes da
União Soviética, onde ficavam com residência fixa. Os kulakes da
segunda categoria eram obrigados a viver nas regiões mais
distantes do distrito ou república de onde provinham. Os
camponeses ricos da terceira categoria deviam ir viver para
regiões especialmente demarcadas, fora das terras dos kolkhozes.
Quanto à parte contra-revolucionária activa dos kulakes, foi
decidido «liquidá-la através do envio para campos de
concentração, recorrendo à pena de morte para com os
organizadores de actos terroristas, de levantamentos contra-
revolucionários e de organizações de guerrilha».
Escusado será dizer que os kulakes e as suas famílias eram
espoliados de praticamente todos os bens: «meios de produção,
gado, casas, empresas, reservas de cereais e dinheiro em
numerário», ou seja, eram enviados para regiões inóspitas sem
praticamente nada.
Dados oficiais dos órgãos repressivos soviéticos, referentes a 1
de Outubro de 1930, mostram que, no primeiro período de
extermínio dos kulakes, ou seja, entre Janeiro e Abril do mesmo
ano, os detidos da primeira categoria se distribuíram assim:
140 724 pessoas, das quais 79 330 kulakes; 5028 membros do
clero ortodoxo; 4405 antigos latifundiários e industriais e 51 961
elementos anti-soviéticos. Na segunda fase, entre 15 de Abril e 1
de Outubro de 1930, foram detidas 142 993 pessoas, das quais
45 559 kulakes e 97 434 anti-soviéticos. Em Janeiro do ano a
seguinte, foram registadas 36 698 detenções. Segundo dados da
Secção de Residentes Fixos do GULAG da OGPU, em 1930-1931
foram deportadas 381 026 famílias, ou seja, 1 803 392 pessoas.
Entre 1932 e 1940 foram desterrados mais 489 822 kulakes.
*

No jornal Edasi de 14 de Setembro de 1931, Erich Sõerd acusou


Mölder, outro estónio que dirigia a Escola Técnica de Agricultura
Estónia e Finlandesa, de «aceitar entre os alunos filhos de kulakes
e até a filha de um guarda branco», sublinhando que o próprio
Mölder «trabalhava mal», «era filho de kulakes». Além disso, Erich,
que era o dirigente da célula comunista dessa instituição de
ensino, revelou que Mölder tinha sido expulso do sindicato como
«elemento mau», «desertor da frente pedagógica». O artigo
termina com as «indignadas» palavras de ordem da época:
«Corra-se da escola com o falsificador do sistema educativo
comunista!», «Fora com os sabotadores do trabalho dos kolkhozes
e apoiantes dos kulakes.»81
Em finais de 1933, o Partido Comunista da Rússia (b) decidiu
proceder à troca do cartão de militante de Erich Sõerd, tal como já
antes fizera com o da sua esposa. Os comunistas eram sujeitos a
um pequeno mas exigente interrogatório pelos seus camaradas de
célula. Algumas das perguntas e respostas aqui transcritas dão
uma ideia do ambiente ideológico reinante naquela altura:

«Pergunta: Conhece o programa [do Partido Comunista]? O que lá se


diz sobre a morte inevitável do capitalismo? – A contradição
fundamental.
Resposta de Sõerd: A morte é inevitável devido às contradições entre
o trabalho e o capital.
Ele não respondeu à contradição fundamental.
P.: Diferenças entre as ideologias materialista e idealista.
Não respondeu.
P.: Sobre a utilização de especialistas do antigo regime.
...
P.: Em que consiste a essência anti-revolucionária do trotskismo?
R.: Trotski não considera o campesinato um aliado. Nega a
possibilidade da construção do socialismo num país, deu uma arma
para as mãos da burguesia. É contra a disciplina. Tem manifestações
contra-revolucionárias.
P.: Mostrar, com base numa qualquer formação social, as leis da
dialéctica.
Não sabe.
P.: O que é o leninismo?
R.: A teoria e a prática da ditadura do proletariado na época do
imperialismo.»

Isto foi seguido de intervenções de camaradas de Erich, que lhe


fizeram algumas críticas, com muito poucos elogios à mistura. Um
tal Danilov declarou: «O camarada Sõerd é muito bom enquanto
camarada, mas é calado, tímido e pouco activo.» Outro, Peld,
retorquiu: «Claro que ele é calado, mas não no sentido da luta. Vi-
o a trabalhar no campo. Trabalhava muito activamente. Lutou pela
liquidação dos kulakes. Cumpriu bem o seu trabalho.» Glovatski foi
mais longe: «O camarada Sõerd trabalhou bem como pós-
graduado, mas, pela sua intervenção, vê-se que não se aperfeiçoa,
não lê o jornal da KUNMZ. Espanta o seu total analfabetismo
político. Deve aperfeiçoar-se.» Um quarto, Mutone, considera que
«o camarada Sõerd abandonou a pós-graduação por questões
familiares. Não está confiante no seu próprio conhecimento e nas
questões».82
Não obstante as respostas dadas e as críticas que lhe foram
dirigidas, Erich recebeu um novo cartão do partido.
Todavia, a 22 de Julho de 1936, quando uma das principais
palavras de ordem do regime estalinista era «Os quadros resolvem
tudo!», um artigo não assinado no mesmo jornal lançava duras
críticas a Erich Sõerd. O autor, anónimo, começa por criticar o
comunista Nikolai Pellinen, finlandês nascido no distrito de
Leninegrado que na altura dirigia a Escola Técnica de Agricultura
Estónia e Finlandesa, de não ter cumprido a missão de preparar
quadros para os kolkhozes. Os estudantes queixaram-se, numa
carta enviada a um jornal publicado em Leninegrado, de o director
se preocupar mais com os seus problemas pessoais do que com
os deles, de ser «um burocrata sem alma que não tenciona mudar
nada, não emenda os erros, mas procura culpados do sucedido».
Sõerd, em vez de desmascarar o «burocrata sem alma», teria
tido «longas conversas fúteis» sobre algumas insuficiências e
exigido que os estudantes escrevessem para o jornal para
desmentir o que haviam escrito antes, «mas nada fez para que a
escola funcionasse melhor».
«Sim, o camarada Sõerd comunicou ao Comité Regional a
situação na Escola, mas isso não teve qualquer importância
pedagógica porque o castigo foi mantido em segredo», sublinha o
autor do artigo.83
Desta vez, o director não foi apenas despedido do cargo, como
antes acontecia, mas detido e fuzilado por «participar numa
organização nacionalista contra-revolucionaria finlandesa, por ter
realizado propaganda anti-soviética contra iniciativas do partido e
do Governo Soviético». No que respeita à escola agrícola, deixou-
se de leccionar em estónio e finlandês e passou-se apenas para a
língua russa.
Nessa altura, o regime estalinista entrava na fase da perseguição
total e, se não confiava nos próprios comunistas soviéticos, muito
menos acreditava nos estrangeiros. Erich e os seus nove
camaradas, que tinham, juntos, atravessado a fronteira estónio-
soviética, não mais foram escolhidos para realizar operações
clandestinas na Estónia, uma vez que não tinham sido expulsos do
seu país por decisão judicial, mas por terem chegado a um acordo
com a polícia.84 No fundo, podiam ser agentes enviados pelos
serviços secretos estónios para trabalhar na URSS.
Por conseguinte, aumentava o interesse da polícia política
soviética pelos exilados políticos estónios. A 25 de Fevereiro de
1937, um camarada estónio de Erich dava a sua opinião sobre ele,
provavelmente no âmbito do processo que levaria à sua detenção
no ano seguinte:

«Conheço Erich Sõerd enquanto bom camarada do partido, que em


diversas áreas do trabalho, como o trabalho na terra, numa fase difícil
que se seguiu à liquidação dos kulakes. O camarada Sõerd trabalhou
enquanto secretário do partido na junta da aldeia de Domkino (URSS),
demonstrando uma luta de classes desprovida de interesse próprio, na
liquidação dos kulakes e na fundação de kolkhozes, ao mesmo tempo
estudando e trabalhando na Escola Comunista. Comportou-se como um
maduro camarada lutador da classe. Eu não reparei em quaisquer
desvios da sua parte da linha do partido, fosse do estónio ou do
russo.»85

Este tipo de apreciação parece não ter convencido o


Comissariado do Povo para Assuntos Internos (NKVD), pois Erich
Sõerd não conseguiu escapar completamente às grandes purgas
estalinistas. No dia 21 de Dezembro de 1937, a célula de base da
Escola Técnica de Agricultura Estónia e Finlandesa decidiu
expulsá-lo do PCR(b), em cujo documento se lê:

«Por descuido e cegueira política, o que fez com que os inimigos


pudessem actuar na escola, pelo apoio directo aos inimigos do povo
(como Pellinen, a sua esposa, Nukainen, Maurer), por esconder a sua
ligação com o estrangeiro, pelo boicote ao trabalho partidário e
educativo e deturpação das orientações durante a campanha eleitoral
para o Soviete Supremo da URSS, expulsar das fileiras Sõerd, Erich,
membro do partido desde 1923.»86

Erich apela para a instância superior, mas a decisão é


confirmada pelo Comité Regional de Vsevolodski do PCR(b) a 30
de Dezembro do mesmo ano, que aponta mais alguns erros do
passado ao camarada:

«Recebeu uma severa repreensão por ter afrouxado a vigilância de


classe. Sõerd trabalhou na Escola como chefe da secção estónia, foi
dirigente da célula do partido, acostumou-se ao antigo director da
Escola Técnica de Agricultura Estónia e Finlandesa, Pellinen, contribuiu
para que ele destruísse a actividade desse instituto. Tinha ligação com
os inimigos do povo Maurer e Kalk, que trabalhavam no jornal Edasi. Ia
a casa deles, convidava-os para dar aulas anti-religiosas na Escola.
Quando antes trabalhou como bibliotecário da escola, atirou para um
armazém não fechado literatura contra-revolucionária e religiosa, que
depois era novamente levada e distribuída entre os estudantes.
A secção estónia da escola está entupida por elementos de classe
estranhos (Vagistren, aluno do III ano, cujos pais foram alvo de
repressão), o professor Huttonen, expulso do partido, lecciona
Economia Política. O próprio Sõerd tem ligações na Estónia. Escondeu-
as da organização do partido.»87

Entre Fevereiro de 1938 e 22 de Junho de 1939, Erich esteve


detido, pois os órgãos do NKVD acusaram-no de «agitação contra-
revolucionária» (Art. 58-10 do Código Penal da URSS). Se fosse
considerado culpado, seria condenado a dez anos de trabalhos
forçados, mas – e isto aconteceu muito raramente durante a
ditadura estalinista – o tribunal não encontrou razão para o mandar
para a Sibéria. Numa sessão realizada à porta fechada, os juízes
do Tribunal Distrital de Leninegrado tomaram a seguinte decisão:

«Os documentos do processo sobre a culpa de Sõerd, verificados


pela investigação, não permitiram encontrar agitação contra-
revolucionária. Não foi confirmada de forma alguma a acusação de que
ele tenha elogiado o sistema capitalista e difamado a situação dos
trabalhadores na URSS, visto que a testemunha Vassiliev não ouviu
nada de anti-soviético da parte de Sõerd e, nas suas explicações,
transmitiu a conversa que teve lugar entre o réu e Toivokaynen, que,
como se deduz das declarações da última, não tinha conteúdo contra-
revolucionário: a testemunha Liiv não desmascarou Sõerd dos crimes
de que é acusado e fala apenas de disposições retrógradas, expressas
pelo réu na sua presença.
Visto que no processo não há mais provas e as declarações de
Reinvald não foram confirmadas pela investigação judicial, o tribunal,
depois de avaliar os materiais analisados, concluiu que a culpa de
Sõerd não ficou provada, por isso, não encontrando crime nas suas
acções (…), suspende a sua pena de prisão e decreta a libertação
imediata.»88

Esta «misericórdia» pode dever-se à política, inicialmente


realizada por Lavrenti Béria à frente dos órgãos repressivos
soviéticos, de redução brusca das condenações à morte por
«actividades contra-revolucionárias» e de libertação de numerosos
presos políticos enviados para campos de concentração em 1937
e 1938. Tratou-se de uma «operação de cosmética», pois as
repressões continuaram, mas algumas pessoas conseguiram
escapar à máquina da morte.89
Saído da prisão, Erich tentou novamente ser readmitido nas
fileiras do PCR(b), o que lhe foi negado pelo Comité Distrital de
Leninegrado do PCR(b) em Setembro de 1939. O medo não
permitia reabilitações, pois Erich poderia, como aconteceu com
tantos outros, ser detido mais uma vez. É importante assinalar que
esse órgão comunista tão-pouco levou em consideração o facto de
ele ter sido absolvido das acusações que lhe foram feitas, mas
acrescentou novas. Nomeadamente, lembraram-lhe a situação
familiar: «A esposa de Sõerd, Holm Leida Rudolfovna, que tinha
chegado da Estónia em 1930, foi condenada pelos órgãos do
NKVD a dez anos de prisão por actividade contra-
revolucionária.»90 A 1 de Outubro de 1940, a Comissão de
Controlo do Comité Central do PCR(b), que, na altura, constituía a
última instância de apelo no aparelho do partido, decidiu confirmar
a sua expulsão definitiva das fileiras comunistas.
Foi-nos impossível, infelizmente, encontrar documentos que o
provem, mas não se pode excluir a possibilidade de Leida ter sido
libertada também devido à «amnistia de Béria», pois a intervenção
pessoal do marido seria insuficiente.
Entretanto, em 1932, o irmão Oskar é enviado para estudar na
Escola de Marxismo-Leninismo de Moscovo e, no mesmo ano,
torna-se operador de rádio do Comité Executivo da Internacional
Comunista. Foi enviado em comissões de serviço para Irkutsk, na
Sibéria, no Extremo Oriente. Tratava-se de operações secretas
com vista a enviar e receber mensagens de agentes secretos
soviéticos no estrangeiro. Por isso, adoptou o apelido de Adamson.
Em 1937, os órgãos do partido afastam-no desse trabalho depois
de receberem denúncias de que Oskar alegadamente tivera
mantido ligações com «membros da oposição» e «trotskistas».
Tudo começou com denúncias de camaradas «mais vigilantes»
do partido, baseando-se naquilo que terceiros disseram. No dia 5
de Maio, o camarada Ivanov alertava:
«Recentemente, não me recordo das datas, encontrei-me no
apartamento do camarada Peychev com o camarada Torgov (Lavrov).
Numa conversa comigo, ele comunicou-me que soube que Adamson
supostamente trabalhava connosco (no primeiro posto) e que ele,
Lavrov, o conhecia já do segundo posto, quando Adamson lá estudava.
Mais à frente, na conversa, o camarada Lavrov disse que Adamson não
se comportou bem aí e que tinha pontos de vista e opiniões muito maus
sobre uma série de questões que diziam respeito à política interna do
nosso partido e que eles apenas discutiam frequentemente com ele
sobre esse tema. Além disso, na sua conversa, o camarada Lavrov deu-
me a entender que Adamson não era politicamente fidedigno, que era
incorrigível, e que era necessário segui-lo constantemente.»91

Lavrov confirmou tudo e, para mostrar trabalho, não fosse


acusado de falta de iniciativa, avançou com novas acusações:

«Desde o período em que ele estudava connosco na escola, conheço


o camarada Adamson como absolutamente passivo. Quanto ao trabalho
conjunto em Vladivostoque, posso dizer o seguinte: não tínhamos, no
verdadeiro sentido dessas palavras, vida partidária para nos
conhecermos um ao outro, mas, por conversas dispersas com ele,
podia-se considerar que ele não tinha uma orientação correcta do
partido sobre diversas questões. Por exemplo, quando tínhamos de
discutir, com base nos artigos encontrados nos jornais locais Krasnoe
Znamie (‘Bandeira Vermelha’) ou Tikho-Okeanskaya Zvezda (‘Estrela do
Pacífico’), sobre o movimento stakhanovista92, o cumprimento e o
recumprimento das normas pelos trabalhadores nas fábricas, ele dizia
que ‘não acreditava nesses números e que não compreendia como tudo
isso se fazia, visto que ele também trabalhou numa fábrica’. Resumindo,
pelas discussões com ele, podia-se entender que não era necessário
acreditar no que escreviam os jornais do partido.
Outro exemplo: quando li o relatório do camarada Kossarev93 ao
último congresso do Komsomol e disse que Kossarev deu um contributo
notável, ele respondeu: ‘paleio como o dos outros’, mas penso que se
lesse o relatório do camarada Kossarev, tanto mais se é membro do
partido ou do Komsomol, não poderia fazer a avaliação feita pelo
camarada Adamson.
Quando lemos os materiais sobre o processo Zinoviev-Kamenev94,
ele, embora abertamente não dissesse que eles não eram culpados,
afirmou: ‘não se compreende quem é culpado e quem não é’. Quem leu
atentamente a acusação final e seguiu o processo deveria compreender
quem é o culpado e qual a culpa, e se for do partido, não pode dizer
‘não compreendo’.
Numa conversa comigo, ele declarou que, quando trabalhava na
fábrica em Leninegrado, os operários apartidários gostavam muito dele.
Claro que isso é muito bom quando os operários apartidários gostam de
um comunista, mas da conversa dele depreendia-se que os operários
gostavam porque lá havia muitas dificuldades no que respeitava ao
fornecimento de alimentos, a comida era má e, em vez de ele, enquanto
membro do partido, explicar porque é que isso acontecia, compartilhava
com eles a insatisfação.
Quanto ao trabalho, ele fazia-o de forma aplicada e bem. A explicação
desta sua disposição reside no afastamento da verdadeira vida
partidária nos últimos dois anos. Porém, essa disposição deve ser
condenada.»95

No mês seguinte, o Comité Executivo da Internacional


Comunista (CEIC) acrescentou às acusações os anteriores
«pecados» de Oskar:

«A Comissão de Mandatos da Escola Marxista-Leninista enviou a


seguinte informação sobre ele a 1 de Novembro de 1932: ‘Sõerd tem
pontos de vista oportunistas sobre as condições dos trabalhadores na
URSS. O camarada é politicamente fraco. Se não foi cumpridor, enviem-
no novamente para a secção’.
O comunista estónio tinha também sido acusado de ligações ‘contra-
revolucionárias’ e ‘trotskistas’ quando trabalhava em Moscovo, mas o
CEIC não conseguiu confirmar, sublinhando que essa ‘informação’ tinha
sido transmitida por Merin, antigo representante do Comité Central do
Partido Comunista da Estónia, actualmente preso pelo NKVD.»96

A 7 de Junho de 1937, Oskar foi retirado da reserva do CEIC e


despedido «devido à redução do número de quadros», sendo-lhe
permitido regressar a Leninegrado e à fábrica.
No documento citado, chama-se também a atenção para uma
«ligação» entre Oskar e uma comunista italiana S. Rossi. Embora
ambos trabalhassem no CEIC, as autoridades estalinistas não
aplaudiam os contactos entre os cidadãos soviéticos e os
estrangeiros. A desconfiança face a este tipo de relações manteve-
se até ao fim da URSS. A mania da espionagem estava
entranhada na sociedade soviética, tal como em qualquer regime
ditatorial. Exemplo desta política foi o destino de numerosos
espanhóis que procuraram refúgio na União Soviética depois da
Guerra Civil de 1936-1939. Segundo números publicados pelo
diário castelhano El País, cerca de 300 republicanos passaram por
campos de concentração soviéticos.97
Erich juntou-se ao irmão em Leninegrado em finais de 1940. Mas
o último acto da vida trágica destes dois comunistas iria
desenrolar-se durante o cerco lançado pelas tropas nazis contra a
segunda maior cidade soviética.
*

O Bloqueio de Leninegrado – assim ficou conhecido o mais longo


cerco feito a uma cidade durante a história da humanidade (cerca
de 872 dias) – prolongou-se entre 8 de Setembro de 1941 e 27 de
Janeiro de 1944.
As ligações ferroviárias com o mundo exterior foram bloqueadas
rapidamente, a 27 de Agosto, o que fez com que, além dos cerca
de três milhões de habitantes, a cidade tivesse de albergar mais de
300 mil refugiados dos países bálticos e de regiões limítrofes.
Leninegrado tinha provisões para uma semana e, por isso, as
autoridades recorreram às senhas de racionamento, proibiram a
venda livre de produtos, encerraram as escolas e impuseram uma
rigorosa censura militar: as cartas com descrições da grave
situação criada ou com prognósticos pessimistas não chegavam
ao destinatário.
Por seu lado, o objectivo de Hitler em relação à cidade-berço da
revolução comunista de Outubro/Novembro de 1917 era muito
claro. Numa ordem secreta do chefe do Estado Maior da Armada
da Alemanha, de 22 de Setembro de 1941, pode ler-se:

«2. O Führer decidiu limpar a cidade de Leninegrado da face da Terra.


Depois da derrota da Rússia soviética, a posterior existência dessa
grande localidade não tem qualquer interesse […]
4. Propõe-se rodear a cidade com um forte cerco e, com
bombardeamentos de artilharia de todos os calibres, com
bombardeamentos aéreos permanentes, limpá-la da Terra. Se, devido à
situação criada na cidade, forem lançados pedidos de rendição, serão
recusados, visto que os problemas ligados à sobrevivência da
população na cidade e ao fornecimento de víveres não poderão e não
deverão ser resolvidos por nós. Nesta guerra, que é feita pelo direito à
existência, não estamos interessados na conservação nem sequer de
uma parte da população.»98

Em Outubro começou a sentir-se falta de produtos alimentares e,


no mês seguinte, a fome tornou-se parte do quotidiano dos
leninegradenses. Elena Skriabina, escritora russa que viveu esse
inferno, escreve no seu diário a 7 de Novembro de 1941: «Agora
morrem simplesmente: primeiro, deixam de se interessar pelo que
quer que seja, depois deitam-se na cama e não se levantam
mais.»
Uma semana depois, fixou no papel:

«A morte é dona da cidade. As pessoas morrem e morrem. Hoje,


quando eu passava na rua, ia um homem à minha frente. Ele mal
movimentava as pernas. Depois de o ultrapassar, prestei
involuntariamente atenção ao seu terrível rosto azul. Pensei para mim:
talvez morra em breve. Era caso para realmente dizer que a marca da
morte se encontrava no rosto do homem. Alguns passos depois, virei-
me para trás, parei, segui-o com olhar. Ele deixou-se cair na calçada, os
olhos rodaram, depois começou a escorregar pelo chão. Quando me
aproximei dele, já estava morto. As pessoas estavam tão enfraquecidas
pela fome que não resistiam à morte. Morriam como que
adormecessem. As pessoas semivivas que as rodeavam não lhes
prestavam qualquer atenção. A morte tornou-se um fenómeno
observado a cada passo. Tinham-se habituado a ela, surgiu a
indiferença total: se não fosse hoje, amanhã cada um poderia ter a
mesma sorte. Quando, de manhã, sais de casa, tropeças em cadáveres
caídos na soleira, na rua. Os cadáveres ficavam muito tempo nas ruas,
pois não havia ninguém para os retirar.»99
Por exemplo, em Dezembro de 1941, os operários recebiam uma
ração diária de 350 gramas de pão, os funcionários públicos, as
crianças e pessoas a cargo de terceiros – 200 gramas. Os militares
tinham direito a 600 gramas na frente de combate e 400 gramas na
retaguarda.100
A situação agravou-se ainda mais devido ao facto de o Inverno
de 1941-1942 ter sido um dos mais rigorosos de que havia
memória na cidade: o mercúrio nos termómetros desceu até aos
32 graus negativos e a altura da neve atingiu os 41 centímetros.
Estes factores rigorosos, aliados à escassez de combustíveis para
aquecer as casas e à falta de transportes públicos, transformaram
a vida de milhões de pessoas num autêntico inferno gelado.
Nas suas memórias sobre o bloqueio, o filólogo e académico
russo Dmitri Likhatchov registou:

«O frio parecia estar no interior de nós. Atravessava tudo. O corpo


produzia demasiadamente pouco calor.
O intelecto humano era o último a morrer. Se as mãos e as pernas já
não te obedeciam, se os dedos já não podiam apertar os botões do
sobretudo, se a pessoa já não tinha quaisquer forças para cobrir a boca
com o cachecol, se a pele em redor da boca se tornara escura, se a
cara se assemelhava à caveira de um morto com os dentes da frente
descobertos, o cérebro continuava a trabalhar. As pessoas escreviam e
acreditavam que conseguiriam sobreviver mais um dia.»101

Verdade seja dita, a nomenclatura comunista da cidade mártir


não tinha razões de queixa no que respeitava à alimentação. Nas
«casas de saúde» do Comité da Cidade do Partido Comunista
nada faltava para que os seus dirigentes restabelecessem as
forças. Isso mesmo registou o funcionário comunista Nikolai
Ribkovski no seu diário:

«O Neva [rio que desagua em São Petersburgo], estou um tanto


cansado, vejo-me numa casa com quartos quentes e confortáveis,
pernas descontraidamente estendidas… Todos os dias há carne:
borrego, fiambre, frango, ganso, peru, mortadela; peixe: sargo, arenque,
osmeru, frito, cozido, em gelatina. Caviar, esturjão, queijo, bolos, cacau,
café, chá, 300 gramas de pão branco e o mesmo de preto por dia… e,
além disso, 50 gramas de vinho, de vinho do Porto, ao almoço e ao
jantar. A comida é encomendada no dia anterior segundo o gosto…
Que pode haver de melhor? Comemos, bebemos, passeamos,
dormimos ou simplesmente não fazemos nada, ouvimos gramofone,
trocamos piadas, jogamos ao dominó ou às cartas… Resumindo,
descansamos!…»102

Escusado será dizer que memórias deste tipo só se tornaram


públicas após a queda do comunismo soviético, pois estragavam o
quadro do «sofrimento» da nomenclatura soviética, pondo a nu a
desigualdade existente entre as pessoas comuns e os líderes
comunistas da cidade.
Talvez por serem bem alimentados é que os agentes da polícia
política de Leninegrado continuavam a dedicar grande atenção aos
«espiões», «traidores». Em 1941 e 1942, entre 200 a 300
funcionários de escolas superiores e suas famílias foram detidos
sob a acusação de «actividade anti-soviética, contra-
revolucionária, traidora». O Tribunal Militar de Leninegrado
condenou à morte 32 especialistas altamente qualificados e os
restantes foram condenados a diversas penas de prisão, tendo
muitos dos detidos morrido em prisão preventiva ou em campos de
concentração. Em 1954-55, após a morte de Estaline, todos eles
foram reabilitados.103
Olga Berggoltz, conhecida poetisa soviética, autora do famoso
poema sobre as vítimas do bloqueio – «Ninguém e nada será
esquecido» –, escreveu no seu diário, só publicado em 2010:

«Mesquinhas preocupações das autoridades e do partido, pelas quais


tenho vergonha dolorosa… Como conseguiram fazer com que
Leninegrado ficasse cercada, Kiev cercada, Odessa cercada. Os
alemães avançam e avançam… A artilharia dispara constantemente…
Não sei o que há mais em mim: ódio para com os alemães ou irritação,
colérica, dolorida, misturada com piedade selvagem para com o nosso
governo… A isso chamava-se: ‘Estamos prontos para a guerra’. Oh
canalhas, aventureiros, canalhas sem piedade!»104
Foi neste ambiente que Erich e o irmão viveram os seus últimos
dias. Documentos oficiais revelaram que Erich morreu devido a
difteria e foi sepultado em Abril de 1942 numa das muitas valas
comuns do gigantesco Cemitério Piskariov. Aberto em 1939, este
campo santo foi um dos lugares escolhidos para sepultar as
vítimas do Bloqueio de Leninegrado. Desconhece-se o número de
pessoas que foram enterradas nessa altura, pois o controlo era
praticamente inexistente. Alguns estudiosos falam em cerca de
500 000, mas outros apontam um número bem superior: cerca de
três milhões.
Oskar ainda sobreviveu a Erich mais de um ano, mas não
assistiu ao rompimento do bloqueio, tendo falecido em Junho de
1943 e desconhecendo-se o local onde foi sepultado.105
É irresistível deixar aqui a tradução do poema que Olga
Berggoltz, também ela vítima dos carrascos estalinistas e dos
sofrimentos e privações do bloqueio, dedicou a todos os que
morreram em Leninegrado:

Ninguém e nada será esquecido


Através de todas as gerações e épocas.
Foi paga esta terrível guerra
Com cabelos brancos dos vivos e sangue dos mortos.

Não há alegria maior que a Vitória


Mas a dor da perda vive em nós.
Que não se envergonhem os honrosos avós
Das intermináveis lágrimas que caem dos olhos…

E, se as vissem, os que morreram


Diriam: Não chorem, sejam fiéis
Aos nossos sonhos puros. Ao que conquistamos.
Sejam firmes, como nós fomos.

Esta Vitória afirmámos


A liberdade à humanidade levámos,
Ainda hoje o mundo admira
A fé na Vitória que esperámos…
Que todos se recordem pelo que não passaram.
Saibam como as viúvas são sempre fiéis
E esperam um toque à porta numa noite azul,
Esquecendo-se que os amados dormem na eternidade.

Ninguém e nada será esquecido


Mesmo que seja dolorosa a alegria da Vitória.
Aos mortos prestamos homenagem
Quando a Primavera chega à Rússia.

70 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERAF.2.1.2234; ERAF.1.7.8295;


ERAF. 24.2.2388; ERA. 1868.1.1165.

71 Ibidem.

72 Ibidem.

73 Ibidem.

74 Ross, H., op.cit., p. 90.

75 Ross, H., op.cit., pp. 89-91.

76 Ross, H., op. cit., p. 91.

77 Ross, H., op. cit., pp. 141-142.

78 Ross, H., op. cit., p. 143.

79 Edasi, 4 de Abril de 1931.

80 Estaline, J.V. «Sobre a questão da liquidação dos kulakes enquanto classe», Krasnaia
Zvezda, n.º 18, 21 de Janeiro de 1930.

81 Edasi, n.º 122, 14 de Setembro de 1931.

82 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERAF.2.1.2234; ERAF.1.7.8295;


ERAF. 24.2.2388; ERA. 1868.1.1165.

83 Edasi, n.º 29, 22 de Julho de 1936.

84 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERAF.2.1.2234; ERAF.1.7.8295;


ERAF. 24.2.2388; ERA. 1868.1.1165.

85 Ibidem.
86 Ibidem.

87 Ibidem.

88 Ibidem.

89 Ver: Milhazes, José, Lavrenti Béria: O carrasco ao serviço de Estaline, Alfragide, Oficina
do Livro, 2018.

90 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERAF.2.1.2234; ERAF.1.7.8295;


ERAF. 24.2.2388; ERA. 1868.1.1165.

91 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERA.927.3.2944; ERAF. 27.7.42;


ERAF.247.19. 61; ERAF. 247.18.59; ERAF. 24.2. 2389; ERAF.24.2.2389; ERA.49.2.3801;
ERAF.25.2.1416.

92 O stakhanovismo foi um movimento que nasceu na União Soviética por iniciativa do


mineiro Alexei Stakhanov (1906-1977) e que defendia o aumento da produtividade operária
com base na própria força de vontade dos trabalhadores. No dia 31 de Agosto de 1935,
Stakhanov – operário de uma mina de carvão em Donetz – conseguiu extrair 102 toneladas
de carvão, superando 14 vezes os padrões de extracção, ou seja, a sua quota diária.
Devido a esta façanha, que marcou a introdução de métodos tayloristas na mineração
soviética, iniciou-se um movimento para a elevação do rendimento de produção do
trabalho, com aplicação em todos os sectores da indústria da União Soviética. Este
movimento não foi bem recebido por todos os engenheiros e operários. Os primeiros
consideravam que esse trabalho provocava avarias nas máquinas, e os segundos não
viam os seus salários aumentados depois do aumento das quotas de produção. Alguns
estudiosos consideram que Stakhanov só conseguiu bater recordes por lhe terem criado
condições de trabalho muito especiais.

93 Aleksandr Kossarev (1903-1939), político soviético que dirigiu o Komsomol entre 1929 e
1938. Em Agosto de 1937, foi acusado de «ter manifestado um descuido político
inaceitável e não ter visto os métodos especiais de trabalho de sabotagem dos inimigos do
povo». Detido em 1938, foi fuzilado no ano seguinte como «inimigo do povo».

94 O primeiro dos «Processos de Moscovo», que oficialmente recebeu o nome de


«Processo do Centro Zinoviev-Trotski Unido Anti-soviético», ou «Processo dos Dezasseis».
Em Agosto de 1936, 16 conhecidos dirigentes soviéticos foram julgados por alegadamente,
sob a orientação de Lev Trotski, terem criado uma organização clandestina para «matar
Estaline e outros líderes do Partido e do Governo» e, por fim, «tomar o poder». Todos os
ex-camaradas foram condenados ao fuzilamento por um Tribunal Militar. A sua reabilitação
política ocorreu apenas em 1988.

95 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERA.927.3.2944; ERAF. 27.7.42;


ERAF.247.19. 61; ERAF. 247.18.59; ERAF. 24.2. 2389; ERAF.24.2.2389; ERA.49.2.3801;
ERAF.25.2.1416.

96 Ibidem.
97 El País, 5 de Outubro de 2013, in:
https://elpais.com/politica/2013/10/05/actualidad/1380989110_759511.html.

98 Ordem do comandante do Estado-Maior da Marinha da Alemanha sobre a destruição de


Leninegrado, 22 de Setembro de 1941. In:
http://www.hrono.ru/dokum/194_dok/19410922.php.

99 Skriabina, Elena Aleksandrovna, «Anos de Andanças. Do diário de uma


leninegradense», p. 3. In: https://www.litmir.me/br/?b=69849&p=3.

100 Kovaltchuk, V.M., Leninegrado e a Retaguarda. – L.: Nauka, 1975, pp. 130, 170.)

101 Likhatchov, D.S., «Memórias». – Spb.: Logos, 1995; «Memórias. Moscovo, Vagrius,
2006, pp. 295-352: «Bloqueio», «Duas cartas sobre o Bloqueio de Leninegrado».

102 Kozlova. N.N., «Cenas da vida de um ‘funcionário libertado’». In:


http://ecsocman.hse.ru/data/088/352/1216/010.KOZLOVA.pdf.

103 «Por detrás do processo de reabilitação. Documentos sobre os cientistas


leninegradenses reprimidos durante a Grande Guerra Pátria. 1957-1970». In:
http://www.alexanderyakovlev.org/almanah/inside/almanah-intro/1016684.

104 Kantor, Iú.Z,. «Verdades sobre o bloqueio que o poder soviético sempre temeu».
Rossiiskaia gazeta (18.01.2013). In: https://rg.ru/2013/01/18/blokada.html.

105 Lista das vítimas do Bloqueio. In: https://pomnirod.ru/materialy-k-statyam/vojna/2-


mirovaya/blokada-alfavitnyj-spisok-pogibshih/блокада.-алфавитный-список-погибших.-с/
блокада.-алфавитный-список-погибших.-степановик-сячинтова.html.
O MARTÍRIO DE RAVENSBRÜCK

«O comunismo distingue-se fundamentalmente do fascismo


porque foi o primeiro.»
Vergílio Ferreira

«Durante a ocupação [nazi], sofri muito», escreveu Leida a 20 de


Abril de 1956, num dos vários pedidos de aumento da sua reforma.
Só soubemos disto tardiamente. Quando iniciámos a pesquisa,
sabíamos que ela tinha passado por um campo de concentração
alemão, mas desconhecíamos qual. O primeiro passo foi escrever
uma carta para a ITS (Internationaler Suchdiest), organização que
guarda arquivos e informações sobre os campos de trabalhos
forçados nazis. A missiva foi enviada em Novembro de 2012 e a
resposta chegou em Junho do ano seguinte. Confirmava a nossa
suposição, informando-nos do campo de concentração por onde
Leida passara e pouco mais:

«HOLM, Leida, born on 27.04.1901, nationality: Estonian, was


admitted on 18th March 1944 from Reval [antigo nome de Tallinn] to
Concentracion Camp Ravensbrück, prisioner n.º 32269, category:
«polit.» (=politisch-political). Further information is not avaibable here.»

Era preciso continuar a perseguir novas pistas, e posteriores


investigações nos arquivos estónios mostraram que Leida não foi o
único membro da família a ser vítima da repressão hitleriana. Ao
mesmo tempo que ela era transportada para a Alemanha
hitleriana, a irmã Linda e a mãe Liisa foram condenadas à morte e
fuziladas pelos ocupantes nazis em 1944.
Leida, segundo os documentos que chegaram até nós106, já
tinha sido anteriormente condenada pelo serviço de segurança
alemão (SD) a cinco anos de prisão (de 14 de Setembro de 1942
até Setembro de 1947) por ser militante comunista. Mas, como a
máquina de guerra nazi necessitava de mão-de-obra escrava, não
teve o mesmo destino da mãe e da irmã mais velha e, no dia 11 de
Março de 1944, foi atirada para uma carruagem utilizada para
transporte de gado e enviada para o campo de concentração de
Ravensbrück, cujo centro fse situava 90 quilómetros a norte de
Berlim. Era a primeira numa lista de transporte de reclusas
estónias para a viagem, em condições precárias, que durou sete
longos dias. Como já vimos, Leida Holm entrou no mais terrível e
cruel campo de concentração nazi para mulheres a 18 de Março
de 1944 e recebeu o número 32269.
Ravensbrück, no fundo, não era apenas um campo de
concentração nazi construído para mulheres, pois a ele estavam
agregadas várias dezenas de subcampos espalhados entre a
Áustria e o Mar Báltico. Entre 1939 e 1945, por lá passaram mais
de 130 000 pessoas107, incluindo 135 cidadãs estónias.108
Quanto ao número de prisioneiras mortas à fome, assassinadas
a tiro ou em câmaras de gás, é muito difícil avançar números
exactos, pois grande parte da documentação foi destruída pelas
autoridades nazis para esconder os seus hediondos crimes. Os
estudiosos falam de um número situado entre os 20 000 e os 90
000. A sua construção começou em Novembro de 1938, sob a
direcção de Heinrich Himmler, Reichsführer das Schutzstaffel
(«Comandante Militar da SS»), que o visitava com alguma
frequência, pois a poucos quilómetros dessa fábrica da morte vivia
uma das suas amantes. O campo cresceu constantemente, até
atingir uma área de 170 hectares.
Inicialmente, para essa prisão foram enviadas as alemãs que
tinham «envergonhado a nação» ou que eram «marginais»:
«criminosas», «prostitutas» e testemunhas de Jeová, bem como
judias. Depois, foram também para lá deportadas ciganas, polacas,
checas, soviéticas, francesas, etc.
Desde a entrada para o campo de trabalhos forçados, as
mulheres eram tratadas pior do que animais, sujeitas às mais
impensáveis humilhações. Blanka Rothschild, uma das reclusas
que conseguiram escapar com vida, recordaria:
«Ravensbrück, na verdade, era um inferno. As nossas roupas foram
tiradas. Passámos por um exame médico que era muito mais do que
constrangedor, porque as pessoas que realizavam os exames eram
desumanas. Elas eram menos do que animais. Nós éramos jovens
garotas que nunca tinham feito exames ginecológicos, e eles pareciam
procurar, só Deus sabe, diamantes ou coisa assim. Nós fomos
submetidas a isso. Eu nunca antes vira uma cadeira como aquela.
Éramos humilhadas o tempo todo.»109

O cabelo das prisioneiras era-lhes rapado e ficavam privadas de


todos os objectos pessoais, incluindo roupas e calçado, recebendo
apenas um vestido às riscas e tamancos de madeira.
Depois, eram distribuídas por vários grupos, identificadas com
um número na manga esquerda e acima deste um triângulo de cor:
vermelho para as presas políticas e participantes na resistência
contra o nazismo; amarelo para as judias; verde para as autoras
de delitos comuns; roxo para as testemunhas de Jeová; preto para
as ciganas, prostitutas, lésbicas e ladras. No centro do triângulo
estava gravada a primeira letra do país a que pertenciam as
reclusas.
A carga de trabalhos pesados rapidamente as transformava em
farrapos humanos. As mulheres tinham de se levantar às quatro
horas da madrugada e, depois da chamada na parada, que podia
durar várias horas, fizesse calor ou frio, tinham de trabalhar entre
12 e 14 horas por dia. Após o trabalho, voltavam ao local da
parada e, só após a longa chamada, podiam deitar-se a dormir em
beliches imundos. A ração das prisioneiras era constituída por
meio copo de um líquido semelhante a café de manhã, uma sopa
muito líquida ao almoço, e «café» e pão à noite. Nos primeiros
anos de funcionamento destes campos de escravatura, as reclusas
que deixavam de ser capazes de trabalhar eram liquidadas com
um tiro na nuca, mas, mais tarde, os carrascos alemães
começaram a recorrer às câmaras de gás.
O sadismo dos guardas alemães não tinha limites. Do pouco que
falava sobre a sua passagem por Ravensbrück, Leida recordava o
seguinte episódio:
«As prisioneiras escavavam um grande buraco na terra, onde cabiam
várias pessoas. Os guardas cobriam o fundo com comida e colocavam
as prisioneiras famintas à volta dele. O buraco era feito de maneira que
as que se atiravam para apanhar comida não conseguissem sair. Quem
não aguentava esta experiência, atirava-se e morria afogada em
comida. Quem conseguia resistir, ficava viva.»

O tema da fome está presente em praticamente todos os


testemunhos das mulheres que passaram por esse calvário nazi.
Valentina Binkevitch-Sidiropulo, cidadã soviética detida em Riga,
capital da Letónia, que esteve naquele campo ao mesmo tempo
que Leida, lembra:

«As fracas enlouqueciam. E ainda mais 12 horas de trabalho e fome,


que sentíamos constantemente. Todas as manhãs e noites, as que
estavam de serviço iam à cozinha buscar ‘café’ quente. Tratava-se de
um líquido colorido, tínhamos direito a meio litro. A panela levava de 25
a 30 litros, mas nós, prisioneiras enfraquecidas, íamos às oito-dez
pessoas para o trazer. Duas pegavam nas panelas pelas asas e as
restantes traçavam os braços nos ombros e faziam uma espécie de
apoio vivo. Recordo-me de uma vez em que as minhas pernas
enfraquecidas não aguentaram e eu caí, entornando o líquido quente
por cima de mim. Fiquei desesperada não pela dor, mas pela
consciência de que as reclusas iriam ficar sem o ‘café’ quente.
Andávamos e balançávamos de fome, pois o nosso peso, com os
tamancos e a roupa, não ia além dos 35-40 quilos.»110

Muitas das mulheres foram utilizadas como cobaias humanas em


experiências médicas, mais precisamente no teste de
medicamentos antibacterianos contra ferimentos provocados por
armas de fogo. Em feridas profundas na parte superior da coxa,
eram-lhes injectados estafilococos, tétano, vários tipos de
bactérias, introduzidos pedaços de madeira, metal e vidro.
Outro tipo de experiências era dedicado ao estudo das
possibilidades de transplantação de tecido ósseo, músculos e
nervos. Os médicos amputavam membros de umas mulheres e
implantavam-nos noutras, fazendo cortes nos tecidos a fim de
observar o processo.
As judias e polacas eram as principais «cobaias humanas».
Leida escapou às experiências médicas por ter sido detida por
«actividades subversivas» e não ser considerada judia, mas
comunista. Porém, não evitou os trabalhos forçados em
Grüneberg, um dos vários subcampos de trabalho escravo de
Ravensbrück que fornecia mão-de-obra gratuita a uma das
fábricas de munições da empresa Metall-Poltekonzern.
Ravensbrück forneceu também escravas a outras empresas
alemãs da indústria militar, incluindo a famosa Siemens.
Entre 1939 e 1945, pelo campo da morte de Ravensbrück
passaram 132 000 mulheres e crianças, 20 000 homens e mil
raparigas jovens. Nesse período, os carrascos nazis mataram de
50 000 a 92 000 reclusos.
Entre os milhares de pessoas que passaram por aqui, citamos os
nomes de algumas mulheres mundialmente mais conhecidas,
como Olga Benario Prestes (Gutmann) (1908-1942), revolucionária
alemã de origem judaica que casou com Luís Carlos Prestes
(1898-1990), um dos mais conhecidos dirigentes do Partido
Comunista Brasileiro111; Ângela Autsch (1900-1944), religiosa
trinitária112; Geneviève de Gaulle-Anthonioz (1920-2002), sobrinha
do general De Gaulle, membro da Resistência Francesa113; a
baronesa Élisabeth Pelletier de Rothschild (1902-1945)114; a freira
russa Maria Skobtsova (1891-1945), canonizada pela Igreja
Ortodoxa de Constantinopla115; Ondina Peteani (1925-2003),
conhecida guerrilheira italiana116, etc.
Quando o fim da guerra se aproximava, quando os recursos
militares chegavam ao fim e as tropas aliadas (URSS, Grã-
Bretanha e Estados Unidos) encurralavam Hitler e o seu regime no
covil de onde estes tinham saído, os nazis começaram a retirar os
reclusos de outros países para o interior da Alemanha. Inicialmente
eram transportados em comboios, mas, depois, tinham de fazer
grandes percursos a pé, que passaram a chamar-se «marchas da
morte». Leida recordava:
«Éramos obrigadas a fazer longas caminhadas a pé, sem pão nem
água, nem descanso. Fuzilavam as que já não conseguiam andar e
abandonavam os cadáveres pelo caminho. Não sabíamos para onde
nos levavam e o que se estava a passar à nossa volta. Estavam a
utilizar-nos como escudos humanos, talvez para chegar à frente
ocidental, pois os carrascos tinham muito mais medo dos soviéticos do
que dos americanos e ingleses. De repente, abandonaram-nos no meio
de um bosque, andámos vários dias perdidas, até que encontrámos
tropas soviéticas.»

Valentina Vinkevitch, que estava entre as participantes de outra


«marcha da morte», afirma que o destino do seu grupo poderia ter
sido muito mais trágico:

«A 22 de Abril de 1945 (…) não estando em condições de aniquilar


todas nas câmaras de gás, começaram a empurrá-las, semivivas, para
fora dos portões do campo de concentração. Eu estava entre elas. Por
ordem de Himmler, nós e os homens trazidos de Sachsenhausen fomos
escoltados até ao mar para, depois de nos fazerem embarcar numa
barcaça e lançá-la ao mar, afogar-nos com uma bala. Mas esses planos
não se realizaram… No dia 1 de Maio de 1945, os guardas fugiram
inesperadamente e, no dia seguinte, nos arredores de Malchow, fomos
libertados pelo Exército Vermelho.»117

No campo de concentração nazi de Ravensbrück havia mulheres


de várias convicções religiosas e políticas, o que naturalmente
dava azo a discussões e discórdias, tanto mais que o sectarismo
político estava presente também aí. Actos de solidariedade e
humanismo viviam ao lado do colaboracionismo e da delação. Nas
memórias de algumas das mulheres que passaram por esta prisão
aborda-se o tema das acesas discussões que por diversas
ocasiões tiveram lugar entre as comunistas alemãs que tinham
passado por campos de trabalhos forçados soviéticos e nazis e as
que iam parar às prisões alemãs por motivos políticos.
Em Fevereiro de 1940, Estaline entregou 24 militantes
comunistas alemães, dois dos quais mulheres, que tinha ido
buscar aos seus campos de concentração para oferecer a Hitler.
Tratava-se de uma forma de realizar e reforçar o Pacto Molotov-
Ribbentrop, assinado em Agosto de 1939, o qual permitiu às tropas
nazis invadirem a Polónia. Uma das mulheres era Margarete
(Grete) Buber-Neumann, esposa de Heinz Neumann. Este cidadão
alemão de origem judaica desempenhou importantes cargos no
seio do Partido Comunista Alemão e da Internacional Comunista.
Caiu em desgraça quando fez sérias críticas à política de Estaline
e de Ernst Thälmann, líder comunista alemão, face ao nazismo.
Neumann considerava que, ao contrário do que Estaline e
Thälmann afirmavam, o principal perigo para o futuro político da
Alemanha vinha do nazismo, e não da social-democracia, a que
Moscovo chamava então de «social-fascismo».
Depois de passar por Espanha, Neumann viu-se na necessidade
de receber refúgio na URSS, pois Hitler chegara ao poder no seu
país. Chegou a Moscovo em 1935, tendo sido fuzilado em 1937.
Grete foi também detida com o marido, mas a «justiça
estalinista» não a fuzilou, condenando-a a trabalhos forçados em
Karaganda, região do Cazaquistão, na Ásia Central, onde tinha
sido construído um dos muitos campos de concentração do
sistema do GULAG.
Não será difícil imaginar o aspecto físico de pessoas que tinham
sido submetidas a maus-tratos, fome, frio e calor extremos durante
mais de dois anos. Mas, quando queria encobrir os seus crimes,
não havia obstáculos insuperáveis para a ditadura comunista,
mesmo diante de aliados igualmente criminosos. Estaline não
podia oferecer ao seu novo aliado Hitler alemães esqueléticos,
pois queria mostrar que até os «inimigos do povo» eram bem
alimentados nos «campos de reeducação» na União Soviética. Por
isso, os prisioneiros foram sujeitos a um «estágio» na capital
soviética, de modo a recuperarem o aspecto humano:

«Antes de partir para a fronteira, ela [Grete] e os outros passaram


algum tempo em Moscovo, onde se recompuseram o suficiente para
que os nazis não fizessem uma ideia errada sobre o tratamento que
tinham sofrido. Mas nada poderia restaurar a fé de Grete no
comunismo. Ao voltar à sua Alemanha natal, era uma mulher azeda,
cheia de repugnância por Estaline e receando o que o regresso à pátria
lhe traria…»

Por conseguinte, a comparação dos campos de concentração


criados por ideologias supostamente opostas era inevitável logo à
chegada a Ravensbrück:

«Grete fitou com fascínio e temor o campo nazi, que comparou com o
que tinha conhecido em Karaganda. A vedação de arame alta, os
guardas, os berros – os russos gritavam Davai, Davai e os alemães
gritavam Raus, Raus – eram familiares. Mas quando se aproximou as
diferenças tornaram-se evidentes.
Em comparação, o campo de concentração nazi era minúsculo.
Quando Grete chegou, albergava cerca de quatro mil mulheres;
Karaganda detinha 35 000. As suas recordações da Sibéria seriam
sempre de Inverno, a época do ano em que tinha partido – um
acampamento vasto, cinzento, gélido, onde exércitos de prisioneiros, na
sua maioria homens, labutavam na estepe do Cazaquistão sob um céu
de um cinzento de aço (…).
O barracão ‘parecia um palácio’ comparado com as barracas toscas
de tijolos no Gulag. Lá, Grete saía para a estepe quando precisava de
fazer as suas necessidades; aqui havia sanitas e lavatórios, assim como
mobília – bancos, uma mesa e armários. Cada nova prisioneira recebeu
o seu kit – caneca, colher e tigela – e dois cobertores de lã, um lençol
branco e uma camisa de noite comprida às riscas azuis e brancas.
Foram-lhes comunicadas as regras sobre a higiene pessoal, a
alimentação e a arrumação.»

O confronto ideológico com as reclusas comunistas era


inevitável, pois Grete não escondia as suas ideias e as suas ex-
camaradas certamente não queriam acreditar que na URSS
pudesse existir algo semelhante ou pior do que o inferno em que
viviam:

«Os dias foram passando e Grete foi-se mantendo atenta às


comunistas. Provavelmente conhecia algumas dos velhos tempos e
receava encontrar-se com elas. Tal como as outras comunistas que
encontrara desde a partida da Rússia, nenhuma delas quereria ouvir o
que ela tinha a dizer sobre Estaline. Não lhes agradaria o facto de ela
ter sido trazida para ali de Moscovo. Suspeitariam dela.
Ao fim de uma semana, deu-se o confronto. Grete estava sentada a
tricotar meias quando um grupo de prisioneiras com braçadeiras
vermelhas entrou no bloco e chamou pelo seu nome. Uma delas era
Minna Rupp. O trio levou Grete para o dormitório, onde normalmente as
prisioneiras não tinham autorização para entrar durante o dia, e o seu
interrogatório começou.
‘Foste presa em Moscovo? Porquê?’
Grete compreendeu que se tratava de um interrogatório político em
nome das comunistas do campo de concentração. Respondeu com
franqueza, contando a história da perseguição de Estaline.
‘Está bem’, disse Minna Rupp. ‘Tu és uma trotskista, é o que és.’ Com
isso, Rupp queria dizer que Grete era uma traidora à verdadeira causa
estalinista. A partir daquele momento, foi ostracizada. Grete era de novo
considerada uma inimiga do povo, desta vez pelas suas antigas
camaradas alemãs, agora prisioneiras como ela num campo de
concentração nazi.»

Ironia do destino ou talvez não, à medida que o tempo passava,


Grete continuava a ser a mesma mulher, enquanto a fervorosa
comunista Minna Rupp não teve pejo em colaborar com os algozes
nazis no controlo das restantes prisioneiras depois de ser
nomeada chefe de um dos Blocos (Blockova). Depois da guerra,
em 1948, Maria Wiedmaier, outra estalinista que passara por
Ravensbrück, denunciou Rupp às autoridades soviéticas por
crimes cometidos no campo de concentração. Rupp confessaria no
seu julgamento que seleccionara prisioneiras para serem enviadas
para as câmaras de gás e foi condenada a 25 anos de trabalhos
forçados numa prisão de Dresden, na República Democrática
Alemã.
Nem mesmo a situação desumana em que se encontravam
comunistas, judias, testemunhas de Jeová, sociais-democratas,
prostitutas levou as primeiras a aplacar o sectarismo
revolucionário. As antigas camaradas de Grete lançaram boatos de
que ela teria sido trazida para Ravensbrück pela SS para caluniar
a política de Estaline.118
Judith Buber Agassi, filha de Grete, recorda os sofrimentos
causados à mãe e a outras reclusas pelas comunistas, pois estas
não conseguiam renunciar à cegueira ideológica tão própria do
marxismo-leninismo-estalinismo:

«Para a minha mãe, foi a pior coisa. Considerava os comunistas


preconceituosos. Quem não fosse comunista tinha menos valor, até
mesmo no campo de concentração. Quer alguém estivesse no campo
por ser prostituta, testemunha de Jeová ou judia, era tudo a mesma
coisa. As mulheres comunistas eram um grupo de vistas estreitas. A
minha mãe não suportava isso.»119

«A vida em Ravensbrück era de completa desumanidade»,


escreveu Leida a 20 de Abril de 1956 na autobiografia apresentada
para pedir uma «reforma pessoal», pensão concedida por
especiais serviços prestados ao Partido Comunista da União
Soviética ou ao Estado Soviético.120
Libertadas do terror do nazismo, as vítimas ficaram à guarda dos
vencedores. Nos últimos anos, depois de longas décadas de
silêncio, muito se tem escrito sobre as facetas negras da entrada
do Exército Vermelho na Europa oriental, nomeadamente sobre os
milhares de mulheres alemãs que foram violadas pelos soldados
soviéticos. Há também numerosos relatos de prisioneiras não
alemãs de campos de concentração nazis que não escaparam a
esse tipo de violência após a sua libertação pelo Exército
Vermelho.
O escritor e historiador britânico Antony James Beevor, autor de
A Queda de Berlim – 1945, abordou esse tema, mas as actuais
autoridades russas apressaram-se a chamar-lhe «caluniador»,
«mentiroso», etc. Os senhores do Kremlin preferem tentar manter
viva a lenda do papel exclusivamente libertador do Exército
Vermelho, considerando o resto «danos colaterais». Por isso,
mantêm escondidos milhões de documentos relativos à ditadura
soviética.
Todavia, são hoje conhecidos numerosos testemunhos de
mulheres alemãs estupradas. A escritora Sarah Helm cita vários
relatos de vítimas de violação sexual por parte de soldados
soviéticos, mesmo de mulheres que nem sequer eram alemãs,
antes cidadãs de países aliados da União Soviética,
nomeadamente polacas e francesas.
A polaca Izabela Rek testemunhou:

«Estávamos a caminhar na direcção de um rio e subitamente os


soldados russos chegaram. Um soldado disse-me que não me
preocupasse, mas as outras foram arrastadas e eu ouvia-as gritarem
muito aflitas ali perto; a chorarem e a berrarem. Depois, eles atacaram-
nas a todas e violaram-nos, embora soubessem que éramos
prisioneiras. Quando denunciámos o que tinha acontecido a outro grupo
de soldados, eles disseram, venham connosco e nós tomamos conta de
vós. Duas raparigas foram com eles, mas nunca mais voltámos a vê-
las.»121

Não há dúvida de que o Exército Vermelho desempenhou um


papel decisivo na derrota do nazismo alemão, mas não trouxe a
liberdade esperada pelos povos oprimidos, antes substituiu uma
ditadura por outra.
O conhecido escritor soviético Vassily Grossman, no seu
romance A Vida e o Destino, por muitos considerado o Guerra e
Paz do século XX, criou uma conversa entre uma alta patente da
SS e um recluso russo, bolchevique de longa data. Aqui ficam as
palavras do oficial alemão:

«Quando olhamos no rosto um do outro, não olhamos apenas para


um rosto odiado, olhamos para o espelho. Nisto reside a tragédia da
época, será que não vos reconheceis, a vossa vontade em nós? Será
que para vós o mundo não é a vossa vontade, será possível fazer-vos
hesitar, travar? (…) Parece-vos que vós nos odiais, mas isso é apenas
aparente: vós odiais-vos a vós próprios em nós. (…) Nós lançamos um
ataque contra o vosso exército, mas atacamo-nos a nós próprios. Os
nossos tanques romperam não só a vossa fronteira, mas também a
nossa, as lagartas dos nossos tanques esmagam o nacional-socialismo
alemão. (…) Isto pode acabar de forma trágica para nós. (…) Se nós
vencermos, nós, vencedores, ficaremos sem vós, sozinhos contra um
mundo estranho que nos odeia. (…) Dois pólos! Claro que é assim! Se
isso não fosse completamente exacto, esta guerra terrível não teria hoje
lugar. Nós somos vossos inimigos mortais, sim, sim. Mas a nossa vitória
é a vossa vitória. Se vós vencerdes, nós pereceremos e iremos viver na
vossa vitória. Isto é como um paradoxo: se perdermos a guerra, nós
venceremos a guerra, iremos desenvolver-nos de outra forma, mas a
essência será igual. (…) Pense! Quem estará nos nossos campos de
concentração se não houver guerra, se neles não estiverem prisioneiros
de guerra? Nos nossos campos de concentração, se não houver guerra,
estarão presos os inimigos do partido, os inimigos do povo. Os vossos
conhecidos, eles serão reclusos também dos nossos campos de
concentração. (…) Os vossos contingentes são os nossos contingentes.
(…) Hoje assusta-vos o nosso ódio para com o judaísmo. Talvez
amanhã vós assimilareis a nossa experiência. (…) Eu percorri um
caminho longo e difícil, fui conduzido por um grande homem. Vós
também fostes conduzidos por um grande homem, também
percorrestes um caminho longo e difícil. (…) E tortura-me: o vosso terror
matou milhões de pessoas e em todo o mundo só nós, os alemães,
compreendemos: assim deve ser. (…) Hoje, olham para nós com terror
e, para vós, com amor e esperança? Acredite que os que olham para
nós com terror, olham para vós com terror também. (…) Não há
diferença! A diferença foi inventada. Nós somos a forma de uma
essência: o Estado do partido. Os nossos capitalistas não são donos. O
Estado dá-lhes um plano e um programa. O Estado retira-lhes a
produção e o lucro. (…) O vosso Estado do partido também define o
plano, o programa, retira a produção. Aqueles a quem chamais donos –
os operários – também recebem salário do vosso Estado do partido. (…)
Também sobre o Estado popular está desfraldada a bandeira operária
vermelha, nós também apelamos ao heroísmo e unidade nacional e
laboral, nós também dizemos: «O partido exprime o sonho do
trabalhador alemão.» (…) E vós, tal como nós, sabeis: o nacionalismo é
a principal força do século XX. O nacionalismo é a alma da época! O
socialismo num país é a expressão suprema do nacionalismo! (…) Eu
acredito que a cabeça do vosso Estaline não está turvada pelo ódio e a
dor. Ele vê a verdade através do fogo e do fumo da guerra. Ele conhece
o seu inimigo. Na Terra há dois grandes revolucionários: Estaline e o
nosso chefe. A sua vontade deu à luz o socialismo nacional do Estado.
Para mim, a irmandade convosco é mais importante do que a guerra
entre nós pelo espaço oriental. Nós construímos duas casas. Elas
devem estar uma ao lado da outra. (…) Vós sois os nossos mestres,
professores. Lenine criou o partido de novo tipo. Ele foi o primeiro a
compreender que só o partido e o chefe exprimem o impulso da nação.
(…) Depois, Estaline ensinou-nos muito. Para edificar o socialismo num
país é preciso liquidar a liberdade camponesa de semear e vender, e
Estaline não vacilou: liquidou milhões de camponeses. O nosso Hitler
viu o inimigo: o judaísmo dificulta o movimento alemão nacional,
socialista. E ele decidiu liquidar milhões de judeus. Mas Hitler não é
apenas um aprendiz, é igualmente um génio! A vossa limpeza do
partido em 1937 Estaline viu na nossa limpeza de Röhm, Hitler também
não vacilou (…).»

Ao terminar este longo monólogo, o oficial nazi conclui: «Mestre,


irá sempre ensinar-nos e aprender sempre connosco.»

106 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERAF.2.1.1763; ERAF.287.6.98;


ERAF287.4.128; ERAF.25.2.53; ERA.R-16.3k.2240; EEA.V-157.1k. 914.

107 Helm, Sarah, Se Isto É Uma Mulher, Barcarena, Editorial Presença, 2015. Este livro é,
sem dúvida, a investigação mais completa sobre os terrores no campo de concentração de
Ravensbrück.

108 Postimees, 19 de Abril de 2015.

109 Enciclopédia do Holocausto, in: https://www.ushmm.org/wlc/ptbr/media_oi.php?


ModuleId=0&MediaId=340.

110 «Memórias da antiga reclusa dos campos da morte Salaspils e Ravensbrück, Valentina
Binkevitch (Sidiropulo)». In:
http://www.russkije.lv/ru/journalism/read/rgrg/rgrg_vospominanija_ravensbrjuk.html.

111 Ler mais em: http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT794517-1655,00.html.

112 Ler mais em: http://www.trinitarias.net/sor-angela-autsch/.

113 Ler mais em: http://www.larousse.fr/encyclopedie/personnage/Geneviève_de_Gaulle-


Anthonioz/187657.

114 Ler mais em: https://www.findagrave.com/memorial/46715519/elisabeth-de_rothschild.

115 Ler mais em: http://www.jacwell.org/Fall_Winter99/Plekon_Mother_Maria.htm.

116 Ler mais em: http://www.enciclopediadelledonne.it/biografie/ondina-peteani/.

117 In: http://www.russkije.lv/ru/journalism/read/rgrg/rgrg_vospominanija_ravensbrjuk.html.

118 Helm, Sarah, op. cit., pp. 95-97.


119 Helm, Sarah, op. cit., p. 102.

120 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERAF.2.1.1763; ERAF.287.6.98;


ERAF287.4.128; ERAF.25.2.53; ERA.R-16.3k.2240; EEA.V-157.1k. 914.

121 Helm, Sarah, op. cit., p. 644.


NOVAS PROVAÇÕES NO REGRESSO A CASA

«Verifica antes de acreditares.»


Provérbio popular russo

Tanto mulheres como homens soviéticos que regressaram vivos


do inferno nazi foram recebidos com desconfiança pelas
autoridades estalinistas. Todos eram vistos como potenciais
«traidores» ou «colaboracionistas». No fundo, tinham de explicar
por que razão conseguiram resistir aos maus-tratos e torturas. Por
isso, foram sujeitos a duras e longas investigações, algumas das
quais com desfecho trágico.
Gruni Grigorieva, uma das prisioneiras soviéticas de
Ravensbrück libertadas pelo Exército Vermelho, registou o modo
como os soldados as encaravam: «(…) olhavam para nós como
para traidoras. Isso abalou-nos. Não esperávamos um encontro
assim. Os nossos davam preferência às francesas, às polacas, às
estrangeiras.»122
Ainda ninguém conseguiu provar que José Estaline tivesse
afirmado, durante a Segunda Guerra Mundial, «nós não temos
prisioneiros, apenas traidores!», mas é certo que os órgãos
repressivos soviéticos actuavam segundo esse princípio.
Alexandra Maks, uma das 15 prisioneiras soviéticas que saíram
vivas de um dos campos da morte nazis, conta o que ouviu,
durante um dos interrogatórios num dos «campos de filtração», da
boca de um dos oficiais da SMERSH (contra-espionagem militar
soviética):

«‘Não têm vergonha de terem sido feitas prisioneiras?’ Eu discuti com


ele: ‘Mas que deveríamos ter feito?’ Ao que ele retorquiu: ‘Deviam ter-se
suicidado com um tiro, mas não se renderem!’ Eu respondi: ‘E onde é
que tínhamos as pistolas?’ – ‘Bem, podiam enforcar-se, suicidar-se. Mas
não se entregarem.’»123
Sarah Helm, na sua obra já citada, conta um caso bem mais
dramático:

«Yevgenia Klemm nunca conseguiu esquecer o seu passado. Mal


regressou a Odessa, tentou reconstruir a sua vida. Tinham-lhe tirado o
apartamento, mas uma colega professora deu-lhe alojamento e ela
recuperou o seu posto de professora de História no Colégio da Odessa.
O assédio do SMERSH não tardou a recomeçar. Em Março de 1946,
seis mulheres de Ravensbrück foram consideradas culpadas de
colaborar com ‘os fascistas’ por um tribunal de Leninegrado e enviadas
para o exílio na Sibéria. Depois disso, todos os sobreviventes viviam
aterrorizados. Stella Kugelman, com cinco anos quando a guerra
terminou, foi levada pela sua última mãe do campo de concentração, a
Tia Olympiada, para um orfanato nos arredores de Moscovo. A Tia
Olympiada nunca mais voltou. ‘Ninguém vinha ver-me, porque não
queriam que se soubesse que tinha estado no campo de concentração,
e ninguém queria adoptar-me porque eu era demasiado magra e
amarelada’, diz Stella. ‘No orfanato ensinaram-nos a não rir e a não
chorar e a mantermo-nos o mais silenciosas possível, para não nos
acontecer nada, e foi o que eu fiz.’
O terror atingiu o seu auge em 1949, quando se realizou o julgamento
dos médicos em Simferopol, em resultado do qual as três médicas de
Ravensbrück – Lyusya Malygina, Maria Klyugman e Anna Fedchenko –
foram consideradas culpadas de colaborarem com a SS e enviadas
para campos de trabalhos forçados na Sibéria.
Klemm foi frequentemente interrogada durante esta investigação, mas
não acusada. Contudo, no início da década de 1950 começou a
campanha de Estaline contra os ‘cosmopolitas’ – estrangeiros e judeus
– e espalhou-se o boato no colégio de Odessa de que Klemm devia ser
espia, porque tinha estado no Ocidente durante a guerra. Em
consequência, reduziram-lhe o horário de trabalho. Amigas suas
falariam mais tarde de ‘acusações malvadas e injustas feitas contra
Klemm’ por camaradas que trabalhavam para os órgãos – para o
SMERSH.
Em Março de 1953, com a morte de Estaline, o ambiente começou a
desanuviar-se, mas dentro do colégio de Odessa o assédio a Klemm
intensificava-se e, no início de Setembro, nas vésperas de um novo
período lectivo, ela recebeu a notícia de que não poderia continuar a dar
aulas. Na manhã seguinte – 3 de Setembro de 1953 –, Yevgenia foi
encontrada morta. Tinha-se enforcado na pequena cozinha do
apartamento da sua amiga. Numa nota de suicídio disse que se matara
porque a tinham proibido de dar aulas e ninguém se dera ao trabalho de
lhe dizer porquê.
‘Toda a minha vida trabalhei honestamente, com toda a minha alma e
energia. E até hoje não sei o que fiz de errado… Foi por ter sido feita
prisioneira pelos fascistas em Sebastopol e ter passado quase três anos
num campo de morte? Sou realmente uma tal criminosa que não
mereço que falem comigo? Já não posso mais viver.’
Durante muitos anos, não foi possível falar do suicídio de Klemm; a
maior parte das suas camaradas nunca chegou a saber que ela tinha
morrido. O seu corpo foi sepultado numa campa anónima.»124

Será que esta mulher judia terá esgotado as suas forças e a


capacidade de resistência na luta contra os carrascos nazis, pela
sobrevivência das suas irmãs na desgraça? Aqui fica apenas um
episódio:

«Entre as prisioneiras de guerra soviéticas em Ravensbrück havia


algumas judias que se escondiam por detrás de apelidos eslavos.
Muitas prisioneiras sabiam disso, mas só algumas traíram para tentar
cair nas graças dos nazis: ‘Olga-moldava, Lena-picada (tinha a cara
cheia de bexigas), Chura-depravada (distribuía a comida). Elas fizeram
uma lista de judias e entregaram-na à chefe do bloco, a polaca Magosia,
para que esta comunicasse aos alemães. Porém, Magosia foi contar
tudo a Y.L. Klemm e esta aconselhou-a a acusar as delatoras de
sabotagem e mentira. Alguns dias depois, as delatoras foram mandadas
chamar pela guarda alemã Binz, que, segundo as antigas reclusas, era
sádica. Apenas se pode imaginar o que lhe contou Magosia, mas Binz
espancou as delatoras quase até à morte. Não houve mais delações
entre as prisioneiras de guerra.’»125

Leida não se suicidou nem foi enviada novamente para a Sibéria,


mas não escapou a uma série de «filtros» para que pudesse voltar
a entrar na sociedade socialista e ser novamente candidata a
membro do Partido Comunista da Rússia (b).
Após ter sido sujeita a investigações por parte dos serviços
secretos soviéticos na Alemanha, regressou a Tallinn a 10 de Julho
de 1945, onde passou a viver na casa de uma das irmãs, Helene,
que também sobrevivera à ocupação nazi, e à custa desta, pois
não tinha ainda emprego. A seguir, começou a trabalhar como
comissária num dos departamentos da Direcção Principal para
Assuntos da Literatura e das Editoras (GLAVLIT) da República
Socialista Soviética da Estónia. Esta organização dirigia a censura
e a defesa dos segredos de Estado nas obras escritas e meios de
informação. Aqui, tiveram em conta o facto de ela, durante algum
tempo, ter estado ligada ao jornalismo.
Entretanto, Leida requereu a abertura de um processo de
candidatura a membro do Partido Comunista da Rússia (b). Ou
seja, não podia ser simplesmente readmitida nas fileiras
comunistas, tinha de percorrer um longo percurso, como se nunca
tivesse sido militante. No fundo, tratava-se de mais um filtro do
regime soviético para detectar «colaboracionistas», «traidores»,
«inimigos do povo», etc.
A 10 de Junho de 1946, ou seja, quase um ano depois de
regressar à sua pátria, dirigida agora por antigos e novos
camaradas escolhidos por Moscovo e impostos à força aos
estónios, Leida Holm apresentou, finalmente, o seguinte pedido:

«Declaro o meu desejo de me apresentar ao Bureau Estónio do


Comité Central do Partido Comunista Russo (bolchevique) enquanto
candidata a membro do Partido Comunista na luta do partido por um
melhor futuro para humanidade, enquanto membro consciente da classe
trabalhadora e por todos os que trabalham.
Sinto que é meu dever aderir às fileiras do PCR(b) e dedicar todas as
minhas forças ao cumprimento dos planos quinquenais que garantam a
vitória do regime socialista.
Peço à Direcção Principal para Assuntos da Literatura e das Editoras
da República Socialista da Estónia, enquanto organização base do
partido, que aceite a minha requisição para discussão.
Anexo a minha autobiografia e o impresso.»126

Juntamente com esta requisição era obrigatório também


apresentar testemunhos escritos (recomendações) de pelo menos
três militantes comunistas, que confirmavam o seu bom
comportamento político nas prisões por onde passara na Estónia,
bem como no campo de concentração nazi.
Como já tivemos oportunidade de ler, Vera Dobrolinskaja,
directora do Departamento de Quadros e Instituições de Ensino do
Comité de Assuntos Culturais e de Educação junto da Presidência
de Conselho de Ministros da Estónia Soviética, abonou a
idoneidade política da sua camarada, frisando que, «durante o
tempo em que estive em contacto com a camarada Holm, ela
deixou-me uma impressão estável e boa enquanto prisioneira
política»:

«O principal em toda esta história é que a camarada Holm, bem como


os restantes membros da família, estavam, na prisão dos ocupantes,
entre os poucos que se mantiveram fiéis, firmes e confiantes na URSS.
Posso responder plenamente pela sua consciência de classe e
espírito pró-soviético.»127

A comunista estónia Linda Vaalmets testemunhou o


comportamento firme de Leida não só na Estónia, como também
na Alemanha nazi:

«Conheço a camarada Holm Leida desde 1943. Fomos ambas


prisioneiras políticas da Prisão Central ‘Patarei’, em Tallinn.
A 11 de Março de 1944, aquando do primeiro envio de presos para os
campos de concentração da Alemanha, estávamos juntas nesse grupo.
Desde aquela altura até Abril de 1945 trabalhámos juntas no campo de
prisioneiras de Grüneberg (tratava-se de um dos vários subcampos de
trabalho de Ravensbrück, onde se encontrava a fábrica de munições
Metall-Poltekonzern). Quanto ao tempo no campo de concentração,
posso dizer que a camarada Holm continuou a caminhar em linha recta,
em frente. Não se tornou numa traidora ou queixinhas, mas dava-se
bem com os outros presos, estando sempre pronta a ajudar.»128

Outra comunista, Hilda Verro, escreveu:

«Estive com a camarada Holm Leida, filha de Rudolfo, desde o ano de


1941 até Abril do ano de 1945 na mesma prisão. Entre 1941 e Março de
1944 na Prisão Central «Patarei», em Tallinn, e depois na Alemanha, no
campo de concentração.
Posso dizer acerca da camarada Holm que esta se comportou,
durante todo o tempo em que estivemos juntas, como uma cidadã da
URSS. Revelou coragem e amizade em relação aos outros
reclusos.»129

Três testemunhos abonatórios de mulheres que estiveram com


Leida nos momentos mais dramáticos. Não seriam suficientes para
que ela fosse reintegrada no «partido de vanguarda»?
A célula de base, a partir de todos os documentos apresentados,
considerou, em Julho de 1946, que Leida deveria tornar-se
candidata a militante do PCR(b), mas nem as declarações das três
camaradas, nem o apoio da célula de base foram suficientes. Após
a análise desses documentos, a 26 de Setembro de 1946, a
organização do PCR(b) em Tallinn é da opinião que Leida
«trabalha bem no cargo de comissária na Direcção Principal para
Assuntos da Literatura e das Editoras da República Socialista da
Estónia. Ela participa activamente no trabalho social»,
determinando, porém: «suspender a admissão da camarada Holm
L.R. a candidata a militante do PCR(b) até que fique claro o seu
comportamento na prisão e no território ocupado pelos
alemães»130.
As recomendações das suas camaradas, que tinham vivido e
sofrido como ela, não eram bastantes para demonstrar a
integridade ideológica e política de Leida. Era preciso receber
confirmação dos serviços secretos soviéticos. Além da «mania da
espionagem», os funcionários comunistas receavam tomar
decisões que lhes pudessem vir a estragar a carreira,
raciocinavam segundo o princípio «mais vale prevenir do que
remediar». Suponhamos – e uma situação destas era frequente no
período estalinista – que o camarada, no fim de contas, revelou ser
um «agente do imperialismo». Os que deixavam passar esse
«facto» eram imediatamente acusados de «falta de vigilância» ou
até de «conivência com o inimigo». Por isso, nunca era de
descartar mais uma «investigação».
Leida conseguiu ultrapassar esse obstáculo quase um ano
depois e, a 21 de Agosto de 1947, apresentou um pedido para ser
aceite no seio do PCR(b) como militante de pleno direito:
«Pretendo passar a ser membro de pleno direito e considero ser
meu dever dar todas as minhas forças para a consolidação da
ordem comunista. Tudo farei para cumprir antecipadamente o
plano quinquenal, que consolida a vitória da ordem socialista.»
Este pedido era acompanhado de mais um formulário onde Leida
escreveu, a julgar pelos documentos que consultámos, pela
primeira e única vez, que esteve «reclusa» na República Socialista
Autónoma dos Komi, mas sem acrescentar mais nenhum
pormenor. É curioso assinalar que à pergunta do formulário:
«Viveu no estrangeiro, onde, quando, quanto tempo, causas do
regresso à URSS», ela responde: «De Março de 1944 e até 1 de
Maio de 1945, vivi na Alemanha, num campo de concentração.»
A propósito, sempre que um cidadão soviético tinha de
preencher um formulário, as respostas a essas perguntas eram
obrigatórias. Além disso, deveriam também indicar se tinham
parentes no estrangeiro. Escusado será dizer que as respostas
afirmativas a essas perguntas dificultavam, por exemplo, viagens
ao estrangeiro ou o ingresso em universidades. Aliás, para obter o
visto ou a autorização de residência, a essas e outras perguntas
tinham de responder os estrangeiros que pretendiam visitar ou
viver na União Soviética.
Além desses documentos, Leida teve de apresentar outras
recomendações positivas de três camaradas: Alvine Puunsepp,
Ksenia Plukk e Ida Meeli. A 30 de Agosto de 1947, dois anos após
o regresso à pátria, Leida foi finalmente aceite no PCR(b), depois
Partido Comunista da União Soviética (PCUS).131
Como Erich tinha sido alvo de repressão e fora, tal como ela,
expulso do partido, Leida dedicou-se também ao seu processo de
reabilitação, ainda que apenas mais tarde, depois da morte de
Estaline e da tomada do poder por Nikita Khruschov.
Em Junho de 1958, apresentou ao PCUS o pedido de
«reabilitação a título póstumo» do seu marido:
«Dado que deixaram de existir as acusações políticas pelas quais
Erich Sõerd foi detido em 1938 e excluído das fileiras do partido,
alterando assim a decisão da Comissão de Controlo do PCR(b) de 1 de
Outubro de 1940 sobre a expulsão de Erich Sõerd do partido, peço a
reabilitação no seio do partido (a título póstumo).»

A este documento juntaram-se numerosos outros que


requeremos aos arquivos centrais soviéticos e que nos permitiram
acompanhar os trágicos últimos anos da vida de Erich. Entre eles
encontram-se declarações de seus antigos camaradas a atestar
que ele era um verdadeiro comunista. O militante estónio F. Ross
escreveu:

«A começar em 1924 e até 1936, conheci E. Sõerd como firme


comunista-leninista que dedicou todas as suas forças e sabedoria à
causa da classe operária e nunca se desviou da linha geral do partido.
Considero ser necessário readmiti-lo, a título póstumo, nas fileiras do
PCUS.»132

Outro Ross, Heinrich, revelou que o conheceu «pessoalmente


entre Abril de 1925 e até 1936, aquando do trabalho conjunto na
cidade de Leninegrado, na Universidade e na Casa da Educação
da Estónia ‘Kingissep’. Sõerd, Erich era um firme e fiel
comunista»133.
Erich acabou por ser reabilitado.

122 Sheer, Aron, Prisioneiro, «Capítulo V. Mulheres militares nas prisões alemãs». In:
http://www.jewniverse.ru/RED/Shneyer/glava5otv%5B1%5D.htm.

123 Maks, A.I. «Desterram-me para a Alemanha!», Bremen, 1999, p. 148.

124 Helm, Sarah, op. cit., pp. 660-661.

125 Sheer, Aron, op. cit.

126 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERAF.2.1.1763; ERAF.287.6.98;


ERAF287.4.128; ERAF.25.2.53; ERA.R-16.3k.2240; EEA.V-157.1k. 914.

127 Ibidem.
128 Ibidem.

129 Ibidem.

130 Ibidem.

131 Ibidem.

132 Ibidem.

133 Ibidem.
«REFORMA PESSOAL»

«Não recrimines antes de teres examinado; indaga


primeiro, depois julga.»
Eclesiástico 11:7

Após ter novamente ingressado na única força política existente


na URSS, Leida passou a ocupar cargos de maior relevância
política, mas nunca foi longe na carreira, pois não parava muito
tempo no mesmo emprego. Os traumas causados pelas
perseguições e pelas passagens por prisões e campos de
concentração deixaram profundas marcas na sua personalidade,
tornando-a ainda mais reservada e solitária. Mesmo após a morte
de José Estaline, em Março de 1953, ela receava sempre
represálias do regime comunista em relação a si e aos seus
familiares.
Além do mais, não obstante o poder comunista ter proclamado a
igualdade de direitos entre homens e mulheres, isso não passou
de uma das muitas promessas que os comunistas não
conseguiram cumprir. É verdade que as mulheres tiveram a
oportunidade de ocupar muitos cargos anteriormente reservados
aos homens, mas, por exemplo, ao alto nível político, estavam
muito mal representadas. Em 1917, as mulheres constituíam seis
por cento do total dos militantes do Partido Comunista da Rússia
(b), tendo atingido o número máximo de 29,9 por cento em 1988.
No Comité Central desse partido, o número de mulheres era igual
a zero em 1917 e a 4,4 por cento do total em 1988. Quanto ao
Bureau Político do Comité Central do Partido Comunista da União
Soviética, órgão máximo do poder comunista, por ele passaram
apenas três mulheres.134
Leida passou por dez empregos até à idade da reforma, que
naquela altura era de 55 anos para as mulheres, ou seja, até 1 de
Agosto de 1956. Entre Agosto de 1945 e Janeiro de 1948, foi
comissária da censura; de Fevereiro a Abril do mesmo ano,
ocupou o cargo de inspectora da cultura no Comité da Cidade de
Tallinn do Partido Comunista da Estónia e, logo a seguir, foi
enviada para a Fábrica de Vidro «Tarbeklaas», onde trabalhou até
Dezembro de 1950, chegando a vice-chefe da secção de quadros.
Por esta secção, como indica o nome, passava a gestão dos
quadros, a admissão, a carreira e o despedimento de
trabalhadores.
Logo a seguir, e durante apenas oito meses, foi directora de um
condomínio na cidade de Tallinn e, entre Agosto de 1951 e Maio de
1952, foi transferida para o cargo de vice-chefe da secção de
quadros da organização comunista do Bairro Morskoi, na capital
estónia, onde trabalhou menos de meio ano. Depois foi exercer as
funções de vice-chefe da secção do trabalho com a cultura e
massas da cooperativa de inválidos «Põhja».
Leida recebeu a notícia da morte do ditador soviético José
Estaline, ocorrida a 5 de Março de 1953, como encadernadora na
mesma cooperativa, profissão que exerceu até Agosto de 1955.
As transformações ocorridas na sociedade soviética com a
subida de Nikita Khrutschov ao poder não se reflectiram de forma
significativa na carreira da antiga comunista clandestina. Ela foi
totalmente reabilitada pela justiça comunista apenas em 1959, e a
política de Khrutschov, que sucedeu a Estaline na chefia do Estado
soviético, destruiu grande parte do regime repressivo no país, mas
não o libertou da ditadura comunista. Uma mistura de fanatismo e
de medo há muito tomara conta da vida de Leida, sendo
impossível avaliar agora o que predominava. Ela era
extremamente fechada e nunca deixou para trás o receio de novas
repressões da parte dos seus camaradas, coisa que, como já
vimos, tanto ela como muitos familiares sentiram directamente na
pele.
Leida preparou-se atempadamente para a idade da reforma, pois
a burocracia soviética era morosa e exigente, tanto mais que ela
podia aspirar a uma pensão privilegiada: «reforma pessoal ao nível
de república». Por isso, começou a tratar da papelada enquanto
dirigia a Sauna Pública n.º 3 do Complexo de Banhos e
Lavandarias da cidade de Tallinn.
*

Em meados da década de 1950, foi dado início à criação de um


sistema nacional de pensões que deveria cobrir todas as camadas
da sociedade soviética. A lei determinou que os homens podiam
reformar-se aos 60 anos e as mulheres aos 50.
O decreto do Conselho de Ministros da URSS n.º 1475, de 14 de
Novembro de 1956, lançou as bases do sistema das «pensões
pessoais». Segundo essa lei, cada cidadão que tivesse prestado
serviços relevantes ao Estado tinha direito a uma reforma especial:
a «reforma pessoal». No final dos anos 20 e nos anos 30, a
legislação soviética já previa direitos e privilégios para alguns
pensionistas da URSS, que se tinham destacado por serviços
prestados à revolução comunista de 1917, na vida sindical e social,
bem como no campo da ciência, da arte e da tecnologia. Podiam
requerer essas reformas: 1) membros dos partidos revolucionários
que tinham lutado activamente pelo poder do proletariado; 2)
membros de organizações de desterrados e exilados políticos; 3)
pessoas que tivessem recebido do Conselho de Ministros da
URSS o título de artista do povo ou de activista emérito no campo
da ciência, da arte e da tecnologia.
Na URSS existiam três níveis de «reformas pessoais»: o nível da
união, o da república e o local, sendo estes níveis determinados,
respectivamente, pelas Comissões do Conselho de Ministro da
URSS, do Conselho de Ministros das repúblicas que faziam parte
da União Soviética, pelos sovietes dos trabalhadores das regiões,
distritos ou cidades. A importância a pagar era definida caso a
caso, dependendo dos serviços prestados, da situação material e
das pessoas que o reformado tinha a cargo. Nas décadas de 1950
e 1960, os reformados pessoais de importância nacional recebiam
dois mil rublos, os de nível das repúblicas 1200 rublos e os de
nível regional e local 600 rublos135. Em 1977, esses valores
atingiram o máximo: 2500, 1600 e 1400 rublos, respectivamente.
Para compreender o que esses números significavam, é preciso
frisar que a reforma média na URSS rondava os 1200 rublos e o
salário mínimo era de 800.136
Além disso, se o «reformado pessoal» tivesse militado no PCUS
ao longo de 50 ou mais anos, recebia, anualmente, um subsídio
equivalente a dois meses de reforma; para os que atingiam os 30 e
mais anos de militância, estava previsto o pagamento de mais uma
reforma e meia.
*

O processo de obtenção de uma «reforma pessoal» a nível de


república era moroso e penoso, exigia quase tantas reuniões e
documentos quantos os necessários para o ingresso no Partido
Comunista.
Tudo devia começar na célula de base do candidato a essa
pensão. Como Leida trabalhava no Complexo de Banhos e
Lavandarias de Tallinn, teve de apresentar o pedido aí, devendo
este documento ser acompanhado da autobiografia de Leida, de
recomendações de três comunistas, bem como de outros
documentos retirados dos arquivos do Ministério do Interior da
Estónia, para provar os «serviços» prestados ao partido e ao
Estado soviético.
«Entre 1927 e 1930, ela pôs sistematicamente o seu
apartamento clandestino ao serviço dos revolucionários da Estónia
que trabalhavam ilegalmente», lê-se num desses documentos,
onde se informa também que, «em 1935, foi afastada das fileiras
do PCUS, mas voltou a ingressar»137.
A 21 de Julho de 1956, o Bureau de Tallinn do Partido Comunista
apoiou essa recomendação e, no dia 1 de Agosto, o Ministério da
Segurança Social da República Soviética Socialista da Estónia
(RSSE) concedeu a Leida Holm uma «reforma pessoal» de 400
rublos mensais. Porém, ela considerou a importância atribuída
insuficiente e pediu aumento em Dezembro do mesmo ano. E todo
o processo se repetiu.
A célula de base apoiou o novo pedido, porque «a camarada
Holm é boa trabalhadora, cumpre bem as suas tarefas, prestou
serviços ao Estado». O pedido, acompanhado novamente de
declarações de três veteranos comunistas segundo os quais Leida
tinha sido boa revolucionária, etc., foi enviado para o Bureau de
Tallinn do Partido Comunista da Estónia que, em Dezembro do
mesmo ano, apoiou essa decisão, pedindo à Comissão de
Reformas Pessoais junto do Conselho de Ministros da RSSE que a
reforma fosse aumentada de 400 para 500 rublos.
A resposta chegou a 8 de Fevereiro de 1957 e ultrapassou as
expectativas, pois o aumento foi para 600 rublos mensais. A
mesma comissão, a 3 de Abril de 1959, elevou a reforma para 700
rublos.
Entre 1959 e 1962, Leida viveu apenas da reforma, mas, por ser
insuficiente, voltou a trabalhar de Janeiro de 1962 a Fevereiro de
1963, como chefe de vigilância. No ano seguinte, passou a viver
novamente da pensão pessoal, tendo apenas trabalhado durante
um mês como «agitadora nas escolas da Direcção de Reciclagem
da Estónia».
Entre 1965 e 1967, recebeu apenas a reforma. Porém, em 1968,
viu-se obrigada a trabalhar como operária numa fábrica de
plásticos «Salvo», de onde saiu em 1972.
Entretanto, a 26 de Março de 1969, Leida requereu uma vez
mais um aumento de reforma, mas, desta vez, não obstante o
apoio da célula de base e do Bureau de Tallinn do PCE, o pedido
foi recusado pela comissão junto do Conselho de Ministros.138
Nove anos depois, Leida repete a tentativa, uma vez mais
fundamentando o seu pedido com um grande número de
documentos. Em Setembro de 1978, pede à célula de base do
partido comunista, desta vez do Condomínio n.º 27 de Tallinn, que
apoie o seu pedido e recebe uma resposta positiva. No documento
enviado por essa célula à organização de bairro do partido
comunista lê-se, nomeadamente:

«O seu estado de saúde piorou (tem 77 anos). A reforma não chega


para fazer os tratamentos recomendados pelos médicos, adquirir
medicamentos e melhorar a alimentação.
É uma comunista disciplinada, vai a todas as reuniões do partido e a
outras iniciativas, bem como paga atempadamente as quotas.»139

Este documento desmente um dos muitos contos de fadas dos


comunistas, de acordo com o qual a assistência médica na URSS
era completamente gratuita.
A Organização de Bairro do PCE enviou o pedido à instância
superior – o Bureau de Tallinn – mas acrescentou, pela primeira
vez, alguns pormenores da biografia de Leida Holm, que antes não
mereciam a atenção dos camaradas: «Durante a ocupação em
1942, foi presa pelos fascistas por resistir às ordens do poder.
Depois, foi desterrada para um campo de concentração na
Alemanha.»140
No Bureau de Tallinn do PCE, a biografia de Leida apresenta um
«novo episódio»: «Em 1938, foi condenada a dez anos de prisão
por motivos políticos. Em Setembro de 1940, foi reabilitada
administrativamente… Em 1959, foi reabilitada.»141
Finalmente, a 28 de Fevereiro de 1979, Leida vê a sua reforma
aumentar de 700 para 900 rublos. Nessa altura, um estudante
estrangeiro, como era o caso do autor deste livro, recebia uma
bolsa mensal de exactamente 900 rublos. Esta quantia era
superior à das reformas que a maioria dos pensionistas
reformados recebia, mas não se pode dizer que tenha garantido a
Leida uma velhice desafogada.
Esta mulher estava habituada a uma vida espartana e não
andava constantemente a «puxar dos galões» para ver
aumentados os seus privilégios. Prova disso é o facto de ter vivido
até 1982 em «apartamentos ou casas comunais», onde cada
família possuía apenas um quarto, sendo a cozinha e a casa de
banho partilhadas com os restantes moradores do apartamento,
que poderia albergar quatro ou mais famílias.
*
Este tipo de habitação foi organizado pelos bolcheviques como
uma medida temporária para resolver rapidamente o problema
habitacional. Vladimir Lenine implementou medidas draconianas
com esse objectivo. Ordenou que a nobreza, a burguesia e os
capitalistas cedessem parte dos seus apartamentos aos operários.
Uma pessoa passava a ter direito a uma área de dez metros
quadrados e, após 1924, de apenas oito.

«Cidadão, aperte-se em dois quartos no Inverno e prepare outros dois


para que duas famílias saiam da cave para se instalar neles. Porque
enquanto nós, com a ajuda dos engenheiros (você não é engenheiro?),
não construirmos bons apartamentos para todos, tem obrigatoriamente
de se apertar. O seu telefone irá servir dez famílias. Isso economizará
cem horas de trabalho, correrias pelas lojas, etc. Além disso, na sua
família há dois semi-operários capazes de fazer trabalho leve: uma
cidadã de 55 anos e um cidadão de 14. Eles irão estar diariamente
ocupados durante três horas, para controlar a repartição correcta dos
produtos e tirar as notas necessárias para isso.»

O fundador do Estado soviético também não excluía a


possibilidade de despejos:

«O Estado tem de despejar à força do apartamento uma família e


instalar lá outra. Isso é feito frequentemente no Estado capitalista, e
também irá ser feito pelo nosso Estado socialista e proletário.»142

Nada há de mais permanente do que o temporário, dizem os


russos, por isso os apartamentos e as casas comunais continuam
hoje a existir na Rússia e nalgumas ex-repúblicas soviéticas.
Aliás, este tema foi alvo de sátira por parte de grandes escritores
russos e soviéticos. No imortal romance O Mestre e Margarita, de
Mikhail Bulgakov, Voland, uma das personagens principais,
declara:

«As pessoas são como pessoas. Gostam de dinheiro, mas, na


verdade, nem sempre foi assim… A humanidade gosta de dinheiro, seja
de que material for: de pele, papel, de bronze ou de ouro. Bem, são
levianas… e depois…, mas a caridade bate-lhes por vezes à porta…
são pessoas comuns… resumindo, fazem lembrar as anteriores… e só
o problema habitacional é que as estragou…»

Em Ovos Fatídicos e Outras Narrativas, Bulgakov escreveu:

«Em 1919, retiraram ao professor três dos cinco quartos. Então, ele
declarou a Maria Stepanova: – Se não puserem fim a esta pouca
vergonha, vou para o estrangeiro.»

Com frequência, a vida nos apartamentos comunais criava sérios


problemas e gritos entre vizinhos de quarto. Uma zanga devido ao
excesso de barulho, de álcool ou de fumo de tabaco podia terminar
numa ruptura total de relações ou mesmo em confrontos físicos.
No romance satírico O Bezerro de Ouro, publicado na década de
1920, os escritores Ilf e Petrov descrevem a cena de uma das suas
personagens, inquilino de um «apartamento comunal», que foi
chicoteada pelos restantes moradores por se ter esquecido de
apagar a luz da casa de banho. Frequentemente, uns vizinhos
escreviam denúncias anónimas à polícia secreta acusando outros
de serem «espiões», «inimigos do povo», «anti-soviéticos»,
«contra-revolucionários», «elementos anti-sociais». Desse modo,
esperavam que estes últimos fossem presos pela polícia política e
deixassem mais espaço livre para os delatores. Esta era, ao
mesmo tempo, uma forma de o regime estalinista manter um
numeroso contingente de «bufos».
Em meados da década de 1950, a direcção política da URSS
deu início a uma nova política com vista a pôr fim às casas e aos
apartamentos colectivos no país. O decreto conjunto do CC do
PCUS e do Conselho de Ministros de 3 de Julho de 1957 «Sobre o
desenvolvimento da construção civil na URSS» justificava a
necessidade da rápida edificação de apartamentos para o povo:

«O apartamento comunal não foi um projecto do poder soviético, mas


uma medida indispensável para economizar meios durante a
industrialização; a presença num apartamento de várias famílias já não
pode aumentar radicalmente o nível de vida dessas famílias; os
apartamentos comunais são um tipo de residência economicamente não
vantajoso, que não corresponde às necessidades actuais; o problema
dos apartamentos comunais poderá ser resolvido através da construção
em massa com o emprego de novas tecnologias, que permita às
famílias viver em apartamentos separados.»143

Graças a esse programa, foram construídas numerosas casas,


igualmente temporárias, que ficaram conhecidas como
«khruschovki», em memória de Nikita Kruschov, o líder comunista
que deu início à sua realização. Embora tenham sido construídos
como temporários, esses edifícios continuam a fazer parte da
paisagem urbana de muitas cidades no espaço pós-soviético.
*

Só pouco antes da sua morte, em 1982, devido à insistência da


neta junto das autoridades municipais, Leida recebeu um T0 num
dos bairros novos de Tallinn, no terceiro andar de um edifício sem
elevador. A 26 de Fevereiro de 1983, faleceu de crise cardíaca. Foi
sepultada no Cemitério do Bosque, em Tallinn, assim chamado por
as campas serem rasas e dispersas entre árvores, assemelhando-
se a um jardim. Algures, num lugar desconhecido desse campo
santo, descansam, numa vala comum, entre centenas de
anónimos, os restos mortais da sua mãe e irmã mais velha,
assassinadas pelos nazis.
O que teria levado Leida e outros jovens a envolverem-se de
alma e coração na luta pelo comunismo? Uma parte significativa
era atraída pela libertação social proposta por essa ideologia.
Saídos das camadas desfavorecidas da população, discriminados
por razões sociais, étnicas, religiosas e políticas, os jovens viam
nessa nova teoria a fórmula mágica e rápida para a solução dos
seus problemas. Quem não gostaria de viver numa sociedade
igualitária, onde todos fossem iguais, tivessem as mesmas
oportunidades? O capitalismo então existente ainda dava os
primeiros passos, muito pequenos, na criação de sistemas de
segurança social para os trabalhadores, e as discrepâncias entre
classes eram gritantes.
É de salientar também que Leida e outras personagens deste
livro aderiram à ideia do comunismo, sob a forma de marxismo-
leninismo, num momento em que ele se começava a impor num
único país: a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o que
contribuía para uma curiosidade ainda maior da parte não só de
jovens, mas também de numerosos intelectuais.
Nessa altura, a crueldade que o novo Estado soviético começava
a revelar com uma intensidade crescente e as suas consequências
eram vistas por muitos como «danos colaterais», justificados pela
edificação do «futuro radioso da Humanidade». E mesmo quando
se tornavam vítimas das repressões desencadeadas por si e pelos
seus camaradas, muitos comunistas não culpavam o sistema, mas
justificavam-no, sublinhando que se tratava de «erros» ou de
acções de «oportunistas infiltrados no partido». Quantos
escreveram cartas a Estaline e a outros ditadores comunistas na
esperança de que o «timoneiro supremo» as lesse e emendasse o
erro da «justiça proletária»?
Os comunistas argumentaram e continuam a argumentar que as
suas lutas, a actividade clandestina e os sacrifícios foram vitais
para o derrube de ditaduras de direita, realidade que não levanta
grandes objecções, a não ser da parte dos sectários de extrema-
direita. Todavia, neste contexto, deve-se acrescentar outra
pergunta: qual a alternativa política, económica e social que os
chamados marxistas-leninistas propunham e propõem? Um regime
totalitário que, nos países onde foi realizado, mostrou ser tão ou
mais cruel do que as ditaduras de extrema-direita.
Os adeptos de ideologias de extrema-direita também se
consideram lutadores contra o comunismo, o bolchevismo, etc.,
mas as alternativas propostas competem com os seus adversários
na violação dos mais elementares direitos humanos.
E que dizer do argumento segundo o qual o comunismo e o
fascismo têm bases ideológicas diferentes, opostas? Deixo isso
para os especialistas em ciências políticas. Para o caso que aqui
me interessa, importam os meios utilizados e as consequências da
chegada ao poder de forças da extrema-esquerda e da extrema-
direita.
Leida não sobreviveu até à ruína total do sonho pelo qual lutara,
que veio a ocorrer poucos anos depois, em 1991, mas, mesmo
durante a ocupação soviética da Estónia, a maioria dos cidadãos
locais olhava para os seus concidadãos comunistas de soslaio, via
neles traidores, condutores da política de russificação da
sociedade estónia levada a cabo por Moscovo. Nas décadas de
1980 e 1990, tive a oportunidade de sentir em mim próprio essa
atitude. Os apartidários estónios olhavam para os militantes
comunistas estrangeiros como para uma espécie de loucos, pois
não conseguiam compreender como é que, por exemplo, europeus
ocidentais ainda acreditavam na propaganda soviética.
Não me enganarei se disser que a maior parte da população
estónia era anti-soviética e anticomunista e que grande número de
membros do Partido Comunista da Estónia eram-no apenas para
fazer carreira, evitar problemas com as autoridades, ter uma vida
melhor para si e as suas famílias. Esta foi uma das causas por que
as repúblicas do Báltico – Estónia, Letónia e Lituânia – estiveram
na linha da frente na luta pela restauração da independência logo
após a chegada de Gorbatchov ao poder em Moscovo, no ano de
1985. Ainda eram muitos os estónios que tinham nascido e
crescido no seu país independente, que transmitiam aos seus
filhos e netos a fé na independência.
Se as ideias comunistas tinham alguma força, era entre as
centenas de milhares de russos, ucranianos e bielorrussos,
presentemente conhecidos como «russófonos», que foram
enviados para a Estónia após a Segunda Guerra Mundial. Em
teoria, eles deveriam servir para consolidar a classe operária, que,
segundo o marxismo-leninismo, constituía a mais politicamente
consciente. Todavia, na prática, como já foi assinalado, era uma
forma de russificar esses três Estados ocupados, o que foi
conseguido parcialmente, mas não o suficiente para arrancar as
raízes nacionais dos estónios, letões e lituanos.
É verdade que o poder soviético tentou comprar o apoio e a
fidelidade dos habitantes dos países bálticos através de um nível
de vida um pouco mais alto do que na Rússia e noutras repúblicas
soviéticas. Havia um pouco mais de liberdade de criação artística,
intelectual. Os soviéticos iam ao Báltico como se fossem ao
estrangeiro. Em Tallinn havia cafés, podia-se assistir a
espectáculos de cabaret, etc. Porém, tudo isso foi em vão.
Todos esses factores tornavam ainda mais complicada,
principalmente do ponto de vista moral, a vida daqueles que se
tinham dedicado a lutar pelo «poder dos sovietes». Por isso, é
perfeitamente legítimo colocar questões como: será que os
sacrifícios e privações das personagens reais deste livro valeram a
pena? Valeu a pena lutar por um regime ditatorial que proibia os
estónios de sonharem com um Estado pluralista, democrático e
independente, na convicção de que o comunismo traria maior
felicidade ao seu povo?
Como tantos outros, estes familiares de Siiri foram quase todos
vítimas dos dois sistemas políticos mais cruéis do século XX: o
comunismo e o nazismo. É caso para dizer, «entre um e outro,
venha o diabo e escolha».
No século XXI, as ideologias totalitárias emergiram outra vez em
força, como portadoras de soluções rápidas e eficazes para os
complexos problemas do mundo, ganhando terreno em numerosos
países. O populismo, a xenofobia e o racismo reemergem no
chamado mundo ocidental. As experiências socialistas radicais
conduzem à ruína países como Cuba, Venezuela, Nicarágua e
Coreia do Norte. Será que a História não nos ensina mesmo nada,
que estamos condenados a assistir à sua repetição? Não gostaria
que os meus filhos e netos tivessem de enfrentar estes
novos/velhos monstros.

134 «Reconstrução por géneros dos sistemas políticos. Colectânea sob a redacção de:
Stepanova, N.M, Kiritchenko, M.M., Kotchkina, E.V.», Spb.: ISPG-Aleteia, 2003, p. 991.

135 Em 1961, Nikita Khruschov realizou uma reforma do rublo subtraindo um zero nas
notas, pelo que nestes casos o valor apresentado nas notas seria de 120, 160 e 140
rublos, respectivamente.

136 «Sobre as reformas estatais»: Lei da URSS de 14 de Julho de 1956 // Segurança


Social na URSS: colectânea de documentos oficiais. Moscovo, Profizdat, 1960, pp. 7-22;
«Lei das Reformas Pessoais aprovada pelo Decreto do Conselho de Ministros da URSS de
14.11.1956// Segurança Social na URSS. Moscovo, Profizdat, 1960, p. 102.
137 Rahvusarhiiv (Arquivo Estatal da Estónia). Processos: ERAF.2.1.1763; ERAF.287.6.98;
ERAF287.4.128; ERAF.25.2.53; ERA.R-16.3k.2240; EEA.V-157.1k. 914.

138 Ibidem.

139 Ibidem.

140 Ibidem.

141 Ibidem.

142 Lenine, V.I., «Serão os bolcheviques capazes de manter o poder de Estado?», Obras
Completas, vol. 34, pp. 313-315.

143 Krestianskii, Vladimir, «O problema habitacional na URSS». In:


http://maxpark.com/user/3954823297/content/1278628.
«Como eu gostaria que tudo o que o leitor acabou de ler
fosse ficção!»
Siiri, 2018
EXTRATEXTO
Erich Sõerd e sua mãe, Leena.
Oskar Sõerd. Tallinn, 1921.
Erich com outros participantes da Revolta de 1924.
É o primeiro à direita da fila de cima.
Erich, sentado ao centro, posa para a fotografia. Moscovo, 1928.
Erich e Leida Holm (Blumthal). URSS, anos 1930.
Leida quando jovem.
Leida e seu filho, Jaak Sõerd. URSS, 26 de Abril de 1935.
Liisa Ots Blumthal, mãe de Adolf, Helen-Marie, Ida, Karl, Leida e Linda.
Helene-Marie Türk (Bumthal) à esquerda e Linda Jumann (Blumthal) à
direita.
Retratos de polícia de Linda.
Linda Jumann (Blumthal).
Helene-Marie Türk (Blumthal).
Ida (Lisseta) Baumann (Blumthal).
Adolf Baumann (Blumthal).
Adolf com a mulher e filhos. URSS, 1934.
Casa clandestina de Ida e de Leida. Rua Lille, n.º 13, R/c, Tallin, anos
de 1920.
Casa clandestina de Helene-Marie. Rua Kalju, n.º 8-5, Tallin, anos de
1920.
Lista de envio para Ravensbrück. Leida Holm é a primeira.
Gulag Vorkuta, um dos maiores campos de trabalho soviéticos.
No portão da mina de carvão está escrito: «Trabalhar na URSS fará de
ti um herói.»
URSS, República de Komi, 1945.
Prisioneiros constroem caminho-de-ferro nas cercanias do gulag de
Vorkuta.
Prisioneiros de um gulag a caminho do trabalho.
Kulaks num campo de concentração. URSS, década de 1930.
Prisioneiros descansam num barracão de um gulag.
Prisioneiros serram madeira no campo 13, Orzelag. URSS, 1951.
Campo de concentração de Ravensbrück. Alemanha, 1943-1944.
Prisioneiras trabalham próximo do campo de concentração de
Ravensbrück.
Barracão e crematório do campo de concentração de Ravensbrück.
Residentes de Leninegrado recolhem água de um cano destruído na
Avenida Nevsky
durante o certo nazi à cidade. URSS, 1941.
Cerca de meio milhão de mortos do Bloqueio de Leninegrado estão
sepultados no cemitério Piskarevskoye. Entre eles, incluem-se Erick e
Oskar.

Você também pode gostar