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entre as fontes da idéia de que o “espaço vital” do Terceiro Reich deveria chegar
até os Urais. Um aspecto pouco estudado pelos historiadores, do qual se voltou a
falar depois da queda do muro de Berlim.
Paolo Mattei
Em seu ensaio sobre o Nazismo mágico, o senhor identifica uma “ponte esotérica”
entre a Inglaterra e a Alemanha, entre teorias e sociedades esotéricas e ocultistas
presentes nas duas nações na passagem do século XIX para o XX. Essa ponte chegaria
até os fundadores do nazismo. Como seria isso?
GIORGIO GALLI: Entre o final do século XIX e o início do século XX, as tradições
esotéricas ganharam novo vigor tanto na Alemanha quanto na Inglaterra.
Efetivamente, uma “ponte esotérica” entre os dois Estados, a ponte da Ordem Rosa-
cruz, remonta já ao século XVII, inserida no quadro de uma cultura ocultista que
não foi estranha à Guerra dos Trinta Anos, que devastou a Alemanha. Nas últimas
décadas do século XIX, as relações entre os grupos esotéricos ingleses e alemães
recobram sua força, e estabelecem-se laços estreitos entre pessoas influentes –
baseados numa concepção “mágica” da realidade -, laços que se transmitem por
algumas gerações. Há também elementos inquietantes nessa reconstituição. Um deles
consiste na chamada “magia sexual”, ou seja, a conquista de poderes “especiais”
derivados de práticas sexuais: em 1888, ano seguinte ao da fundação da Hermetic
Order of the Golden Dawn, Londres foi agitada por uma série de crimes sexuais,
cometidos por Jack, o estripador. O mistério a respeito dele dura até hoje. Alguns
personagens e algumas relações marcam significativamente essa reimersão da cultura
esotérica na Europa, como o encontro, em Londres, entre o ocultista francês Eliphas
Levi, pseudônimo bíblico de Alphonse-Louis Constant, um ex-seminarista que depois
se tornou revolucionário em Paris em 1848, e Edward Bulwer-Lytton, que teria um
papel crucial no desenvolvimento da sociedade Rosa-cruz na hermética Golden Dawn.
Depois de várias peripécias, entre atividades políticas e ocultistas, Levi
escreveria um livro, A raça vindoura: nele, o autor fala do “Vril”, a forma de
energia que viria a dar o nome a uma sociedade que, ao lado da atividade do
fundador do Instituto de Geopolítica de Berlim, Karl Haushofer, forneceria uma
contribuição fundamental para a elaboração da ideologia nazista, no que diz
respeito à idéia de raça ariana e de “espaço vital”, o Lebensraum.
GALLI: Em primeiro lugar, uma concepção segundo a qual a história que conhecemos é
apenas uma parte da história da humanidade. Só algumas elites de iniciados conhecem
“toda” a história. A história antiqüíssima de civilizações puras e incorruptas.
Esse saber e esses conhecimentos, dos quais é possível haurir mediante práticas e
ritos ocultistas, transmitem um poder particular aos iniciados, que devem
desempenhar também um papel político para administrar o futuro de uma humanidade
decaída cujos dotes e características perdidos com o tempo é preciso restituir. Os
componentes dessa sociedade se consideram depositários de uma antiga sabedoria
primordial, que se manifesta muitas vezes em ritos particulares. Um fato
interessante é que alguns adeptos de grupos esotéricos ocupam funções também nos
serviços secretos de seus países. Um personagem chave, nesse sentido, é o alemão
Theodor Reuss, da sociedade ocultista Ordo Templi Orientis, mestre do inglês
Aleister Crowley. Crowley, também mestre do ocultismo e ao mesmo tempo agente do
serviço secreto inglês, no final do século XIX adere à célebre Golden Dawn – uma
derivação, como eu já disse, da Sociedade Rosa-cruz – e depois funda uma seção
inglesa da Ordo Templi Orientis. A Golden Dawn, por sua vez, está ligada a
associações alemãs conectadas à doutrina secreta da russa madame Elena Blavatskij –
fundadora da Sociedade Teosófica, em Nova York, em 1875 – e à antroposofia de
Rudolph Steiner.
GALLI: Minha hipótese é de que essa “ponte”, que, como expliquei, unia a cultura
esotérica, as ordens herméticas e os serviços secretos ingleses e alemães entre os
séculos XIX e XX, tenha continuado a existir também no período imediatamente
posterior, de modo tal que a formação intelectual de Hitler e de parte do grupo
dirigente nazista se dá nesse tipo de cultura ocultista. Reuni dados que me
permitem dizer também que esse grupo, que chegou à cúpula do Terceiro Reich,
discute em seu âmbito como pôr em prática uma estratégia derivada daquela cultura,
ou seja, a reconquista da “sabedoria ariana”. Da mesma forma, tenho condições de
afirmar que a decisão de Hitler de entrar em guerra, convicto de que a Inglaterra
não interviria, possa ser compreendida na ótica daquela cultura esotérica, a
respeito da qual ambientes na cúpula da vida política inglesa estavam também
informados. Toda a história do nazismo, a meu ver, deve ser lida levando em conta
esse fator também.
De que forma Hitler entrou em contato com as experiências esotéricas? Quem foram
seus mentores?
GALLI: O ponto de referência inicial pode ser a revista Ostara, da qual Hitler foi
leitor assíduo, nos anos que passou em Viena. A publicação – que leva o nome de uma
antiga deusa germânica da primavera, denotando, portanto, a ligação com a tradição
nórdica e com as velhas divindades pagãs anteriores à difusão do cristianismo na
Alemanha – foi fundada em 1905 por um ex-frade, Jörg Lanz von Liebenfels, que,
entre outras coisas, instituiu uma sede em Werfenstein, o “Castelo da Ordem”, onde
provavelmente, com o apoio financeiro de industriais, começou a patrocinar uma
organização baseado na teoria da superioridade da raça ariana. Outro ponto de
referência para a formação esotérica do futuro Führer é Rudolf von Sebottendorff,
estudioso da cabala, de textos alquímicos e rosa-crucianos e das práticas
ocultistas dos dervixes, e promotor, em Munique, no ano de 1918, da Thule
Gesellschaft, associação derivada da Germanorden, uma sociedade que nasceu nos
primeiros anos da década de 1910, fortemente caracterizada por elementos de anti-
semitismo e racismo. Ao redor da Thule gravitaram Hitler, Rudolf Hess, Karl
Haushofer e Hans Frank, o futuro governador-geral da Polônia. Era uma associação na
qual dominavam a cultura ocultista e as doutrinas secretas amadurecidas nas décadas
anteriores. A Thule – a mítica Atlântida, pátria dos hiperbóreos – foi, portanto, a
matriz do grupo de intelectuais que está na origem do nazismo. Von Sebottendorff,
além disso, publicou um livro em 1933, Antes que Hitler chegasse, no qual,
desejando reacender o debate em torno das origens esotéricas do nazismo, conta ter
sido o mestre ocultista do Führer. Mas aquele grupo de intelectuais, então já no
poder, decidira havia tempo que era conveniente manter ocultos os elementos
esotéricos e ocultistas a que fazia referência, para pôr em primeiro plano a
organização política. Hitler, no ano da publicação do livro de Von Sebottendorff,
já era chanceler do Reich. O ensaio, por isso, foi retirado das livrarias.
GALLI: É preciso dizer como premissa que uma das dificuldades quando se trabalha
neste campo é o fato de que a historiografia oficial, a historiografia acadêmica,
ocupa-se pouco dessas coisas. O trabalho sobre o setor da cultura esotérica é
deixado às vezes a estudiosos minoritários ou até a personagens muito
extravagantes, que de qualquer forma elaboram freqüentemente pesquisas marginais. O
fato de a historiografia oficial não se empenhar nessa direção torna mais difícil o
encontro de documentos seguros. Estou convencido de que, se houvesse mais
interesse, alguma coisa se encontraria. Mas respondo a sua pergunta. Mencionei
civilizações e patrimônios sapienciais antiquíssimos – a Atlântida é a referência
mais importante -, um componente cultural baseado na história fantástica, na
geografia fantástica, na cosmogonia fantástica e nas leis ocultas que as guiaram.
Hitler considera que as razões fundamentais de sua ação política se encontram nesse
passado distante, numa sabedoria mágica que deve ser recuperada e na qual está o
instrumento para forjar o futuro luminoso. O grupo de intelectuais da Thule, que na
década de 1920 decide transformar a seita ocultista em partido político de massas,
crê convictamente nessas coisas. Existem, portanto, duas dinâmicas: a profunda
convicção dos iniciados que trabalham nesses grupos e, ao mesmo tempo, uma certa
influência que eles, por motivações amplamente aprofundadas pelos estudiosos,
exercem em alguns momentos históricos sobre os movimentos políticos. Hitler,
Himmler, Hess, Rosenberg, Frank: eles se consideram os herdeiros de uma sabedoria
antiga que lhes permitirá serem construtores de uma nova civilização. Deve-se dizer
que até um historiador muito admirado e “tradicional” identificou e valorizou
alguns desses filões esotéricos: foi George Mosse, que, nas Origens culturais do
Terceiro Reich, aponta explicitamente para o esoterista Guido von List e sua
simbologia rúnica como um dos pontos de referência de Hitler. Das runas estudadas
por Von List provém a sigla das SS, as milícias que Himmler utilizará para pôr em
prática seus projetos elaborados no âmbito da cultura ocultista.
Hitler é descrito muitas vezes como um homem ignorante, um homem sem qualidades.
Como consegue se impor no grupo esotérico do qual faz parte?
No Mein Kampf são indicados os objetivos prefixados por Hitler: a criação de uma
Eurásia de fronteiras orientais indefinidas, um “condomínio” mundial com a
Inglaterra…
Mas há homens na cúpula do Terceiro Reich que não compartilham da mesma cultura de
Hitler e de seus companheiros…
GALLI: É verdade, mas eles também são influenciados pelo ocultismo: o pragmático
Göring interessa-se pela teoria da “terra oca”, Goebbels fica intrigado com
Nostradamus… De qualquer forma, Goebbels e Göring compartilham o programa de Hitler
justamente porque, de um modo ou de outro, são sugestionados por suas convicções
esotéricas.
Em seu livro, o senhor explica como Hitler procura chegar a um acordo com a
Inglaterra até o último minuto.
August von Galen, bispo de Münster durante o período nazista, definido peloNew York
Times como “o opositor mais obstinado do programa nacional-socialista anticristão”,
falou do nazismo como um “engano religioso”…
GALLI: De certa forma, é mesmo. Pio XI também demonstrou sua forte preocupação por
meio da publicação da Mit Brennender Sorge. Ele falava do neopaganismo. Na
realidade, pode-se falar de algo mais que o neopaganismo. Todas as cerimônias
nacional-socialistas seguem um modelo religioso: as luzes, o Führer que aparece
como uma revelação mágica. Todas têm um caráter de liturgia mágica.
Parece que Churchill, o grande opositor dos programas esotéricos do Führer, também
não desdenhava da companhia dos ocultistas…
GALLI: Em meu livro La politica e i maghi, eu explico como até mesmo Churchill
acreditava em videntes. Churchill era um conservador absoluto e um anticomunista
absoluto. Não nos esqueçamos de que colaborou com o Popolo d’Italia de Mussolini.
Em sua visão de mundo, só os povos de língua inglesa estão à altura da democracia.
Para os outros povos, serve qualquer forma de regime. Para ele, a história do
Ocidente coincide com a história dos povos anglófonos. Hitler, portanto, poderia
até tê-lo agradado, como agradava a certos setores conservadores da sociedade
inglesa. Mas, a meu ver, Churchill tinha relações com sociedades esotéricas que lhe
haviam fornecido certo número de informações relativas à “contra-iniciação do
Führer”.
Como assim?
Uma última pergunta, professor. René Girard disse recentemente numa entrevista que
“o desprezo nazista pela ternura cristã para com as vítimas não tem origem na
história”. O professor francês afirmou também temer que “no futuro alguém tente
reformular o princípio de maneira mais politicamente correta, talvez revestindo-o
de cristianismo”. O que o senhor diz disso?