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FORMAÇÃO DO

PENSAMENTO POLÍTICO
BRASILEIRO

Autoria: Sidelmar Alves da Silva Kunz

1ª Edição
Indaial - 2021
UNIASSELVI-PÓS
CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito
Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC
Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090

Reitor: Prof. Hermínio Kloch

Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol

Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD:


Carlos Fabiano Fistarol
Ilana Gunilda Gerber Cavichioli
Cristiane Lisandra Danna
Norberto Siegel
Camila Roczanski
Julia dos Santos
Ariana Monique Dalri
Bárbara Pricila Franz
Marcelo Bucci

Revisão de Conteúdo: Bárbara Pricila Franz


Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais

Diagramação e Capa:
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Copyright © UNIASSELVI 2021


Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri
UNIASSELVI – Indaial.
K96f

Kunz, Sidelmar Alves da Silva

Formação do pensamento político brasileiro. / Sidelmar Alves


da Silva Kunz – Indaial: UNIASSELVI, 2021.

143 p.; il.

ISBN 978-65-5646-408-4
ISBN Digital 978-65-5646-409-1
1. Romantismo. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo da Vinci.

CDD 869

Impresso por:
Sumário

APRESENTAÇÃO.............................................................................5

CAPÍTULO 1
Formação do Campo Intelectual Brasileiro.............................. 7

CAPÍTULO 2
Intelectuais do Século XIX: Entre o Liberalismo e o Conser-
vadorismo...................................................................................... 47

CAPÍTULO 3
Século XX: Tensões e Disputas na Edificação da Modernidade
Brasileira....................................................................................... 99
APRESENTAÇÃO
Prezado/a, este livro é dedicado à reflexão dos principais aspectos que
marcaram a formação do pensamento político brasileiro. Compreender o que é
o pensamento político, como ele se constituiu e os principais fatos que assinalam
sua edificação no Brasil, são os eixos centrais desta obra.

Um pensamento que se ergueu no Brasil com o advento do campo intelectual


no século  XIX, quando determinadas condições institucionais (como a criação
de editoras, livrarias, salões de arte, Jardim Botânico e cafés) produziram
polos produtor e receptor dos discursos elaborados pelos homens das letras.
Tudo isso em sintonia com a política, marcada pela emergência do Estado
nacional. Ou seja, o campo intelectual nasceu no mesmo instante que o Estado
Nação. O campo intelectual e o campo político são lugares independentes, mas
que mantém uma estreita aproximação. Ambos os espaços usufruem de uma
autonomia relativa. O primeiro, está sob o jugo perene da política. E esta está
sob o jugo contínuo dos poderes (como o econômico, interesses de classe e
ideológicos) que limitam sua emancipação.

A observação de autores consagrados - como José Bonifácio, José de Alencar,


Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, expoentes das
ideologias liberais, conservadoras, românticas e raciais, somada aos debates
intelectuais dos anos 1950 a 1970 - é fundamental para a decodificação das
gêneses das culturas ilustrada e política brasileiras. A fim de estudá-las, esta
escritura é organizada em três capítulos.

O Capítulo 1, intitulado de Formação do campo intelectual brasileiro,


evidencia ciência e política como elementos intrínsecos na configuração do
pensamento político brasileiro. Para isso, esta unidade está assentada em três
seções. Na primeira, “Da política ao poder: considerações preliminares” explora
política e poder a fim de entender o que são, bem como seus lugares de atuação.
Além disso, o conceito de teoria política, área do saber da qual emerge a reflexão
sobre o pensamento político, é tematizado. Na segunda seção, “Conceituando
campo intelectual”, apresenta o conceito campo intelectual, as condições históricas
que propiciaram sua germinação e a relação entre escritores e a formação
política do Estado Nação, no século XIX. Na terceira, “Do campo intelectual à
protoformação do pensamento político brasileiro no século XIX”, examina as
características que compõem o pensamento político nacional, protagonizado
pelo campo intelectual brasileiro, baseado no interesse comercial, na influência
liberal, no desafio da acomodação das especificidades da terra e de suas gentes
(natureza, índio e negro) e na influência estrangeira (artística, literária, científica e
teórica).
O Capítulo 2, nomeado de Intelectuais do século XIX: entre o liberalismo
e o conservadorismo, toma o liberalismo, conservadorismo, romantismo e
racismo como paradigmas ideológicos constituintes não só do campo científico,
mas também do campo político, performatizado pela jovem nação brasileira.
Esta unidade, assim como a anterior, está estruturada em três seções. A
primeira, “José Bonifácio: um liberal conservador”, rastreia, nas letras do texto de
Bonifácio, as disposições ideológicas do liberalismo e do conservadorismo que
caracterizam sua escrita. A segunda, “José de Alencar: do romantismo indigenista
ao conservadorismo”, mapeia o romantismo estético e o conservadorismo na obra
do escritor. A terceira, “Joaquim Nabuco: um intérprete abolicionista do Brasil”,
analisa a presença do liberalismo e do racismo na textualidade de Nabuco.

O Capítulo 3, designado de Século XX: tensões e disputas na edificação


da modernidade brasileira, esboça as mudanças ocorridas no relacionamento
entre o campo intelectual e o campo político no século XX, mediadas pela transição
de paradigmas, da raça para a cultura, guiada pelo desejo de modernização do
Estado. A última unidade também é amparada por três seções. A primeira, “Gilberto
Freyre: raça, cultura e poder”, traz a contribuição do escritor pernambucano pelo
abandono relativo da raça para o uso da cultura, a fim de agregar o negro e o índio
no projeto de identidade nacional. A segunda seção, “Sérgio Buarque de Holanda:
um intérprete das raízes brasileiras”, exibe o homem cordial como síntese do
passado colonial e o presente moderno. A terceira seção, “Dos anos 1950 a 1970:
campo intelectual e a modernização do Estado Nacional”, apresenta o planejamento
modernizador da nação, oscilante entre o conservadorismo e o progressismo, e as
disputas pelo protagonismo narrativo encenadas pelo Instituto Superior de Estudos
Brasileiros, Centro Populares de Cultura, Cinema Novo, Campanha Nacional do
Folclore, Movimento Tropicalista, entre outros.

Eis acima os principais elementos que tonificam o campo intelectual


brasileiro. Tais elementos ajudam na decodificação dos principais componentes
que singularizam a formação do pensamento político brasileiro, marcado pela
aproximação ambígua entre ciência e política. Se o desejo é o de entendimento de
como o Brasil “deu no que deu”, é vital recuar às instituições. O campo intelectual
é uma alternativa para a qual se deve voltar.

Trata-se de uma instituição que deu suporte na invenção do Estado. O campo


intelectual não só inventou o Estado, mas também pessoas, o povo, sujeitos
históricos. E também foi inventado pelo Estado. Por isso, é desejável estarmos
atentos/as para as ideias que, ao longo do pretérito nacional, dão à tônica do
discurso e das ações. Afinal, são as ideias os verdadeiros agentes sociais, vetores
de transformações. Importa, portanto, atentarmos para as ideias de cada tempo
para entender o fenômeno do poder. Só assim será possível retirar o véu de Maya.

Boa leitura!
C APÍTULO 1
FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL
BRASILEIRO

A partir da perspectiva do saber-fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Introduzir noções básicas sobre política, poder e teoria política.


 Situar cada uma delas no bojo da reflexão sobre campo intelectual.
 Apresentar conhecimentos teóricos acerca do campo intelectual.
 Entender as condições históricas que propiciaram sua criação, bem como sua
relação com a formação política do Estado Nação, no século XIX.
 Reconhecer as características que tipificam a construção do pensamento
político nacional, baseado no interesse comercial, na interferência liberal,
na acolhida das especificidades (espaciais e populacionais) e na influência
estrangeira.
 Exibir a formação do pensamento político brasileiro a partir do fenômeno do
campo intelectual como resultante do poder e da teoria política.
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

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Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

1 CONTEXTUALIZAÇÃO
O capítulo 1, Formação do campo intelectual brasileiro, oferece ao/a
leitor/a um olhar preliminar a respeito dos alicerces que constituem a gênese do
pensamento político brasileiro. A fim de cumprir com esse intento, o capítulo está
dividido em três seções.

A primeira seção, “Da política ao poder: considerações preliminares”, versa


sobre três conceitos nucleares para os estudos da formação do pensamento
político nacional: política, poder e teoria política. Para entender o que é política,
é explorada noções gerais sobre a mesma e como ela opera na vida social,
organizando o cotidiano, promovendo continuidades e rupturas na vida do
sujeito. Para isso, recupera-se sua origem, cunhada pela tradição de pensamento
ocidental. Na sequência, é tematizado os lugares de sua atuação. Outro aspecto
abordado são as características da política. Por fim, dialoga-se com a concepção
de política elaborada pela teórica política contemporânea judia alemã, naturalizada
norte-americana em oposição ao nazismo, Hannah Arendt (2002).

Na sequência, é explorada a distinção entre política e poder a partir da


explicação do que é o poder. Como ele é exercido entre os indivíduos. Além
da reflexão de quem são os atores sociais que o detém, bem como de suas
motivações. Para finalizar, a palavra é facultada ao filósofo francês Michel
Foucault, que traz contribuições a respeito da categoria poder. A teoria política é
explorada a fim de examinar a esfera na qual brotam às reflexões sobre política
e poder. Esse é o objetivo do espaço cedido ao conceito de teoria política.
Conceituar teoria política e entendê-la como solo fecundo dedicado à análise dos
estudos do poder, experimentado pelo campo intelectual, é o que se propõe à
tematização dessa abordagem.

A segunda seção, “Conceituando campo intelectual”, apresenta o conceito


campo intelectual, as condições históricas que propiciaram sua germinação e a
relação entre escritores e a formação política do Estado Nação, no século XIX.

A terceira e última seção do primeiro capítulo, “Do campo intelectual


à protoformação do pensamento político brasileiro no século XIX”, toma as
características que compõem o pensamento político nacional, performatizado
pelo campo intelectual brasileiro, calcado no interesse comercial, na influência
liberal, no desafio da acomodação das especificidades da terra e de suas gentes
(natureza, índio e negro) e na influência estrangeira (artística, literária, científica e
teórica).

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Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

2 DA POLÍTICA AO PODER:
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Em nossos dias, é comum a rejeição do sujeito aos assuntos ligados à esfera
pública, independentemente da classe social, da etnia, da língua, da cultura e
do lugar. Essa rejeição nasce do descredito pela política. O indivíduo entende
que ela não dá suporte na resolução de seus problemas práticos. Por exemplo,
aqueles ligados ao acesso e permanência à saúde, emprego, renda, educação e
bem estar são objeto, ou pelo menos deveriam ser, da política. Tomando como
ponto de partida esse desencanto, uma pergunta se impõe: afinal o que é política?

A fim de colaborar para a compreensão do que é política,


indicamos assistir ao vídeo “O que é política?”, do canal “EVC -
CAMARA DOS DEPUTADOS”, disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=lcdqEIPalbM

Para respondê-la, a palavra será franqueada ao historiador, filósofo e escritor


Norberto Bobbio (1998). Ele ensina que a política se refere à cidade. Política
diz respeito a tudo que é urbano. Isso porque a história do termo remonta à
Grécia clássica. As pessoas se reuniam na praça pública para tratar de assuntos
coletivos. Por isso, a política, em sua etimologia, está ligada à cidade, à polis, ou
à urbes, como diriam os romanos.

FIGURA 1 – POLÍTICA

FONTE: <https://www.todamateria.com.br/o-que-e-politica/>. Acesso em: 18 abr. 2021.

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Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

O histórico do termo ganhou destaque com o filósofo grego Aristóteles, por


meio da obra Política. Com esse livro houve a difusão do conceito. Isso porque
trata-se do primeiro tratado dedicado ao Estado, à ciência do governo. Um Estado
que age em prol da cidade. Nela o autor explica as formas de governo e o devir da
política: o bem comum. Isso porque a política é entendida como ação. E como a
ação política é um desdobramento da ética, que tem como finalidade o bem e não
o mal, o fim perseguido por essa ação é o bem comum. Portanto, o bem comum
é o objeto perseguido pelos sujeitos vistos como cidadãos da praça pública
ateniense.

Eram entendidos como cidadãos no contexto ateniense: homens adultos,


naturais da cidade, proprietários de terras e de escravos. Os demais, mulheres,
crianças, idosos, escravos e estrangeiros não eram vistos como cidadãos. Os
homens cidadãos eram aptos ao exercício da cidadania, integrados ao corpo
coletivo dedicado à tomada de decisões da polis.

Com o propósito de aprofundar seus estudos acerca da


democracia ateniense, contribuindo para a diferenciação entre
aquela democracia e a que temos na contemporaneidade, sugerimos
assistir ao vídeo “Grécia Antiga: Democracia Ateniense”, do canal
“Profa Anelize”, disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=kWOYoL0st5M

Com Aristóteles aprendemos que a política está comprometida com as


atividades humanas. Atividades que dizem respeito às coisas do Estado, às coisas
da cidade. Traduzindo para o nosso cotidiano, as atividades humanas movidas
pelo Estado são: o acesso à alimentação, ao lazer, às determinações do Estado
e às responsabilidades por essas escolhas também. Portanto, a política trata de
tudo aquilo que é comum e das ações direcionadas para por em prática aquilo
que foi designado como comum. Como dito acima, a política diz respeito não só
às ações coletivas, mas aborda também as responsabilidades por elas.

A fim de ilustrar a questão da política como manifestação das


responsabilidades, toma-se como exemplo o modelo político ocidental em vigor,
a democracia representativa. Se ocorrer de enquanto cidadãos escolhermos
mal nossos gestores públicos, teremos, enquanto coletividade, que assumir as

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Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

consequências de nossas ações, quaisquer que sejam, desencadeadas pelas


escolhas erradas. Mesmo mirando o bem comum, pode ocorrer de agirmos mal,
de, por algum motivo (histórico, estrutural, carência de instrução, alienação,
desencanto, má fé, entre outros), escolhermos de maneira incorreta. Isso é
comum no âmbito democrático, pautado na deliberação da vontade geral. Isso é a
responsabilização coletiva pelas consequências políticas de nossas ações.

O tema da responsabilidade como alicerce da política é trazido para falar de


ética. Ética diz respeito ao bem. Toda ação ética, como dito acima, mira o bem. E
toda ação política, embasada na ética, também mira o bem. Ao passo que, toda
ação anti-política, contrária à ética, mira o mal. Isso porque diverge da finalidade
da ética e da política, que é o bem. Agir bem, mesmo quando erramos, mesmo
quando se escolhe mal, tanto no campo da ética quanto no campo da política, é
se responsabilizar pelas escolhas feitas.

FIGURA 2 – ÉTICA

FONTE: <http://www.ppd.net.br/trabalhando-com-charges/>. Acesso em: 18 abr. 2021.

Dito isso, outro olhar é dispensado para a política. Quem o lança é a


pensadora Hannah Arendt (2002), naturalizada norte-americana como resistência
ao regime nazista. Diante da catástrofe contemporânea na primeira metade do
século XX – assinalada pelas duas guerras mundiais, que fizeram com que ela
abandonasse a Alemanha e se refugiasse nos Estados Unidos da América –
dedicou as últimas décadas de sua vida ao pensamento do fenômeno da política.
Para isso, recuou à história do pensamento ocidental a fim de entender o caos do
espaço público na atualidade que gerou tal catástrofe, marcado pela diluição das
fronteiras entre as esferas coletiva e privada. Posto que vivemos em um momento
no qual o que é privado passa a ser público. E o que é público passa a ser privado.

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Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

Com o intuito de ampliar a sua compreensão dos regimes


totalitários (nazismo e facismo) que têm como marca o nacionalismo,
o militarismo, o posicionamento anti-democrático, o anti-liberalismo e
a ideologia anti-marxista, indicamos assistir ao vídeo “17 - Regimes
totalitários (nazismo e facismo) - história (aula 17)(360p_H.264-
AAC)”, do canal “Marcelo Bortoloso”, disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=vlVz66WBxVE

A fim de vislumbrar outras experiências diferentes daquelas que marcaram


o início do século passado (século XX), e assim reabilitar o sentido da política,
a teórica fez uma viagem pelo tempo e desembarcou na Antiguidade Clássica.
E lá compreendeu que a política é pluralidade. Política é a convivência com os
diferentes. Seu sentido repousa na liberdade. Liberdade de ser visto, de ver o
outro, de ser ouvido, de ouvir o outro e de geração de vínculo com a coisa pública.

FIGURA 3 – LIBERDADE POLÍTICA

FONTE: <https://br.pinterest.com/pin/584623595352840551/>. Acesso em: 18 abr. 2021.

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Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Pensando ainda na experiência da polis grega assim como Aristóteles,


a autora concluiu que o lugar no qual a política acontece é a esfera pública,
espacialidade onde se desenvolve os negócios humanos. Localidade na qual os
homens se inscrevem com palavras e atos no mundo. Uma inscrição que sela o
segundo nascimento do indivíduo. Um nascimento marcado pela compreensão
mútua e pela persuasão. Segundo Arendt (2002), essas características sublinham
o segundo nascimento humano: o nascimento na vida pública e para a vida
pública.

Diante de um tempo marcado pelo declínio da vida em coletividade, pela


recusa à apreciação a esse segundo nascimento, pela decadência de tudo
aquilo que diz respeito à pluralidade, no qual as pessoas optam, sem nenhum
constrangimento, pelo empenho às atividades do oikos (expressão grega que
significa tudo aquilo que é proveniente da casa, da família e da propriedade),
e abdicam dos lugares públicos, pautas e decisões coletivas, uma pergunta se
impõe: qual é o sentido da política? Nas palavras de Arendt (2002), o sentido da
política é a liberdade. Liberdade de inserção na esfera pública. Liberdade de ser
visto e de ver os outros. Liberdade de participação. Liberdade de fala e de escuta.
De acordo com a autora, esse é o sentido da política que carece de reabilitação
em nossos dias.

A fim de complementar as suas reflexões concernentes à


política e as suas possibilidades, sob a ótica de Hannah Arendt,
recomendamos assistir ao vídeo “Entenda a Política em Hannah
Arendt em 5 Minutos!!”, do canal “Atualize Educação”, disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=qef7DPmxAXQ

Em face do exposto, voltemos então ao início da argumentação desta seção,


que versou sobre a rejeição à política. Esse é um assunto complexo e polêmico,
que não queremos esgotá-lo aqui, devido à diversidade de leituras a respeito.
Mas recuamos para indicar que o desapreço à política carrega duas marcas:
a primeira, de acordo com Hannah Arendt, é histórica. O preconceito contra a
política oculta fragmentos do passado. Pensando nisso, basta observarmos, no
Brasil, o tratamento conferido pelas instituições políticas aos mais desvalidos no
que tange ao acesso à cidadania (direitos civis, políticos e sociais). Nota-se, pelo
recuo ao passado, um severo déficit de cidadania acumulado. Por isso o indivíduo
comum rejeita a política porque ela também o rejeita.

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Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

O analfabeto político

O pior analfabeto é o analfabeto político.


Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da
farinha, do aluguel,
do sapato e do remédio dependem de decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito
dizendo que odeia a política.
Não sabe o imbecil que, da sua ignorância nasce a prostituta, o menor
abandonado, o assaltante e o pior dos bandidos, que é o político
vigarista, pilantra, corrupto e lacaio dos exploradores do povo.

Bertolt Brecht (1987)

Por mais paradoxal que seja, a segunda marca versa sobre o preconceito
contra a política como expressão da ação política. Uma ação de natureza contra-
política, que gera consequências não só para quem é emissário dela, mas
para todo o corpo social que se move em benefício da política. Ambos estão
subordinados a tal desencanto. Isso porque o coro dos descontentes é maioria.
Uma maioria direcionada por uma minoria, composta por aqueles que são estão
vinculados à política, que, ardilosamente, não só se beneficiam dos desencantos
do coletivo, como também os insuflam. As vozes bem intencionadas, pautadas
na ética, são uma parcela limitada. Essa é uma realidade que necessita ser
enfrentada para que se possa restaurar o gosto pela socialização com os assuntos
coletivos.

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Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

FIGURA 4 – PARTICIPAÇÃO DAS PESSOAS NAS DIRETAS JÁ!

FONTE: <https://acervo.oglobo.globo.com/rio-de-historias/comicio-
das-diretas-levou-milhoes-de-pessoas-as-ruas-no-rio-em-sao-
paulo-em-1984-8883947>. Acesso em: 18 abr. 2021.

Após tecer algumas considerações sobre a política, vamos à reflexão do


segundo conceito que anda de mãos dadas com ele e que por isso é confundido
com a política, trata-se do poder. Vimos que a política diz respeito à ação humana,
desenvolvida na cidade, voltada para o coletivo. O poder é o caminho escolhido
para a realização do fim ético almejado pela política, que é o bem, o bem comum.
Dito de outra maneira, o poder é o meio para concretização da política.

FIGURA 5 – PODER

FONTE: <http://www.mimosoinfoco.com.br/politica/de-
quem-e-o-poder/>. Acesso em: 18 abr. 2021.

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Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

Para ficar nítido o que foi dito acima, vamos a um exemplo. Suponhamos
que um coletivo de moradores deseja construir uma praça recreativa em um
terreno público, próximo de um conjunto de casas populares, localizado em uma
modesta cidade. São as relações de poder com a prefeitura e a secretaria de
obras e infraestrutura que mobilizarão recursos, maquinário e mão de obra para
a materialização dessa iniciativa. Essas relações serão acionadas e conduzidas
pelo coletivo de moradores, que será beneficiado por essa ação política da
prefeitura, via secretaria. Nesse exemplo, observa-se que a política é a ação
humana voltada para o bem comum da coletividade pela construção da praça
recreativa. E o poder são os meios empregados para conquistar o que se deseja,
o diálogo com a prefeitura e com a secretaria de obras e infraestrutura no qual
conferiu sua estrutura (recursos, tecnologia e pessoas) para a realização desse
desejo coletivo de ter a praça.

Ainda com esse exemplo, observa-se que a ação política é protagonizada


pelo sujeito. E pelo poder também, mas com um diferencial. O poder se coloca
na dimensão da persuasão e da compreensão mútua citados anteriormente por
Arendt (2002). Mas aqui, com uma singularidade: o poder se mostra de modo
hierárquico. O poder de um sujeito sobre outro. Ainda em diálogo com o exemplo
trazido, quem tem mais poder, muito embora eleito pelo povo (maioria), é o prefeito
(minoria). E depois, a secretaria, subordinada às decisões do gestor público, e, na
sequência, o povo.

Com vistas a obter um melhor dimensionamento do pensamento


de Hannah Arendt, indicamos a leitura do artigo científico intitulado
Ação plural, singularidade e poder em Hannah Arendt, de autoria
do pesquisador Rogério Luis da Rocha Seixas, publicado na revista
Intuitio, v. 2, n. 1, p. 201-216, no ano de 2009. Resumo do artigo: Para
Hannah Arendt a dimensão da ação plural política é indubitavelmente
a que mais humaniza o ser do homem. Ação que promove a liberdade
dos homens enquanto inserida na pluralidade, os tornando aptos a
revelarem suas singularidades e ainda em concerto, determinarem o
verdadeiro poder político, essencial para constituição e preservação
da esfera pública contra a prática da violência. A desobediência civil
é destacada como um modo de ação plural que reforça a condição
política, tanto institucional quanto cidadã. Nosso texto tem como
objetivo, expor estes pontos essenciais da reflexão política de Arendt
e os relacionar com as questões do reconhecimento da singularidade
no espaço público e a necessidade de se valorizar a participação

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Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

política direta dos indivíduos em nossa atualidade de apatia. Essa


produção pode ser acessada por meio do seguinte endereço
eletrônico:

https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/intuitio/article/
view/5226

Com essa descrição, queremos apresentar três formas de expressão do


poder. A primeira, pelo viés econômico. O prefeito e a secretaria detêm os recursos
financeiros necessários para implementação da praça almejada pelo coletivo
de moradores. É bom ressaltar que, em muitos outros casos, quando o recurso
financeiro é limitado, o gestor público o emprega como dispositivo de controle,
moeda de troca, para quem não o possui (o povo) para que as intenções de quem
o possui (o prefeito), nunca sejam violadas pela maioria desprovida de renda.

A segunda forma pela qual o poder se apresenta é pelo viés ideológico. São
as ideias dos moradores, representadas pelo desejo de construção de uma praça
recreativa em um espaço público não utilizado, que fazem o papel persuasivo no
gestor público, a ponto deste dispensar recursos, maquinário e mão de obra na
viabilização desse ideal. Ainda falando de poder, essa concessão pública não é
desinteressada. Lançando outra hipótese sobre esse exemplo, pode ocorrer que,
ao fazer isso, o prefeito, no próximo pleito, queira uma atenção especial desses
moradores, no sentido de apoio, votos, engajamento em sua provável campanha,
para se manter na gestão.

E isso é o que move sua boa vontade imediata para o atendimento da


demanda colocada pelo coletivo de moradores. Com isso, o que se quer dizer
é: toda ação humana é interessada. Segundo o filósofo alemão Immanuel Kant
(2008), a única ação desinteressada é a das flores. Estas, em sua exuberância
e beleza, existem apenas para cumprir a sua finalidade, exalar beleza e odores
aprazíveis. As demais ações, sobretudo as humanas, são dotadas de interesse,
miram a obtenção de vantagem, benefício, pecúlio, prestígio, reconhecimento etc.

A terceira, e última, forma de expressão do poder é o político. O prefeito


detém não apenas o poder econômico, que é um tipo importante de poder. Mas
também a força. Vamos supor que, por algum motivo, o prefeito não pudesse ou
se recusasse em receber os representantes dos moradores para diálogo para a
construção da tal praça recreativa. E vamos supor ainda que, esses representantes
insistissem para serem recebidos ou que, devido à recusa do prefeito, teimassem
e construíssem a praça recreativa, os moradores mesmos, em um local público,

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Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

sem a devida autorização da prefeitura. O destino dos envolvidos e da praça seria


trágico. Os primeiros seriam implicados judicialmente. E se houvesse confronto
com as autoridades policiais encarregadas da interdição da obra finalizada,
pela visita popular ao espaço construído sem a devida liberação estatal, os
frequentadores e responsáveis pela construção seriam enquadrados na força
policial e no Código Penal em vigor. Com isso, caracteriza-se o poder político,
calcado no uso da força frente aos demais segmentos sociais e contextos sociais.
Posto que o Estado detém o monopólio da coerção física.

FIGURA 6 – MANIFESTAÇÕES DO PODER

FONTE: <https://descomplica.com.br/artigo/questoes-
comentadas-tipos-de-democracia/4nQ/>.
Acesso em: 18 abr. 2021.

Em face do exposto sobre o poder, podemos sintetizá-lo, de acordo com o


teórico Márcio Stoppino (1998), a partir de três características:

1) O poder é um atributo do sujeito ou coletividade aplicado em um indivíduo


ou em sociedade. Dito em outras palavras, indivíduos e grupos sociais são, ao
mesmo tempo, agentes e objetos do poder;
2) O poder é assimétrico (desigual). Por exemplo: pensando na relação entre
cidadão e prefeito. O poder que o primeiro detém é inferior frente ao poder que o
segundo dispõe;
3) O poder é manifesto em instrumentos e coisas. Como ilustração, é citado
o caso da construção da praça recreativa, mediada pela estrutura da prefeitura
(homens, máquinas, tecnologia etc.).

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Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

FIGURA 7 – O PODER E O POVO

FONTE: <https://br.pinterest.com/pin/470063279840112859/>. Acesso em: 18 abr. 2021.

Após compartilhar algumas noções preliminares sobre poder, oferecemos


outra compreensão sobre o assunto. Quem responderá por ela é o filósofo francês
Michel Foucault (1979). Vimos acima que o Estado detém o monopólio da coerção
física como expressão do poder. Pelo fato do poder ter essa característica, durante
muito tempo, acreditou-se que apenas o Estado era o seu expoente. Ou seja, era
comum a crença que só o Estado detinha o poder.

Na segunda metade do século XX, Foucault revolucionou o pensamento


político com a interpretação de que o poder era identificado não só nas instituições
políticas (como a prefeitura e câmara dos vereadores), mas também em outras
instituições não oficiais, como família, igrejas, escolas e hospitais psiquiátricos.
Com isso, o pensador quis dizer que a posse do poder não está limitada ao
Estado. Ela ultrapassa o cotidiano estatal e alcança, por exemplo, a família, por
meio da hierarquização, do mando, da obediência e das transgressões dos seus
integrantes. Tudo isso é poder. Tudo isso testemunha a presença do poder no
cotidiano social.

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Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

Para ampliar as suas reflexões concernentes ao poder,


pensando e analisando a sociedade e as extrapolações de poder nas
relações cotidianas no Brasil, sob a perspectiva de Michel Foucault,
recomendamos assistir ao vídeo “Microfísica do poder #1: Você sabe
com quem está falando? Leandro Karnal”, do canal “Prazer, Karnal -
Canal Oficial de Leandro Karnal”, disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=8SnLpe5WAhY

A atenção do autor recaiu na percepção de como o poder, presente em


instituições não oficiais, é vivenciado em seu bojo e como isso se relaciona com
o poder presente em instituições oficiais. Em outras palavras, o autor buscou
entender a proximidade que há entre ambas instituições a partir do poder. O
filósofo enxergou o poder como algo intrínseco às relações sociais. O poder está
em tudo. O poder se apresenta em todas formas humanas de socialização. Isso
ocorre porque é determinado por um sistema de conhecimento, que determina as
formas de poder das instituições.

FIGURA 8 – O PODER E O CONHECIMENTO

FONTE: <https://www.em.com.br/app/charge/2020/02/08/interna_
charge,1120330/o-poder-da-ignorancia.shtml>. Acesso em: 18 abr. 2021.

21
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

O sistema de conhecimento que determina as formas de poder das


instituições, opera por meio de discursos. Ele é capaz de mobilizar as pessoas
para que cumpram os desígnios anunciados por seu portador. Os discursos são
verdadeiras máquinas de sujeição dos indivíduos. Vejam o caso dos discursos
proferidos pelos pais em uma relação pedagógica, os progenitores atuam na
subjetividade de sua prole, para o bem ou para o mal, por meio dos discursos.
O mesmo ocorre com professores, lideranças religiosas, lideranças políticas e
por aí segue a extensa lista de instituições não oficiais e oficiais que reiteram a
manutenção do poder pelo uso do discurso.

FIGURA 9 – DISCURSOS E O PODER

FONTE: <https://mobilizacoessociaisnasruasdobrasil.wordpress.com/2014/09/27/
analise-de-discurso-das-charges/>. Acesso em: 18 abr. 2021.

As formas de mando, obediência, hierarquias e resistências, que são vetores


de poder dos discursos, são organizadas ao longo do espaço e do tempo. Para
Foucault (1979), o poder não se apresenta em uma única pessoa, mas nas
relações constituídas entre as pessoas. Por isso que o poder é uma construção
social. Para ficar nítido o que se está sendo dito aqui, vamos recorrer mais uma vez
uma ilustração. Lembra do caso da praça recreativa que os moradores desejavam
construir? Esse é um caso típico de manifestação de poder pelo discurso. O
poder está presente tanto na articulação interna feita pelos moradores, como na
articulação externa, estabelecida com a prefeitura e a secretaria de infraestrutura
para viabilização da praça recreativa. Com isso, vemos que o poder, de fato, está
em todos os lugares. Nesse caso, cada grupo social, movido por seu interesse,
fazendo concessões para ter aquilo que almeja, que é entendido, dentro de cada
realidade específica, como bem comum.

22
Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

Foucault (1979) assegura que há instituições que a manifestação do


poder é explicita. É o caso de escolas, prisões e hospitais psiquiátricos. Nelas
imperam rígidos sistemas de hierarquia e disciplina que determinam as relações
socialmente estabelecidas. Tudo isso configura o aspecto assimétrico, base de
sustentação do poder.

Outro aspecto da leitura elaborada por Foucault (1979) é que o poder não
é um artifício natural. Isto é, não é algo que nasce com o sujeito. O poder é uma
invenção sócio-histórica. Trata-se de um exercício aprendido no tempo, posto em
circulação pelos indivíduos por meio das relações estabelecidas baseadas no
poder.

Antes de encerrar esta seção, voltada à conceituação da política e do poder,


é apresentada ao leitor/a a área do conhecimento na qual brotam essas reflexões.
Trata-se da teoria política. Segundo o pensador Alessandro D’Entreves (1998), a
teoria política é uma vertente do conhecimento, também conhecida como filosofia
política, que se dedica ao estudo do ideal do Estado perfeito. A teoria política por
ser oriunda da filosofia, área do conhecimento dedicada ao exame das ideias,
busca, a partir da observação da realidade, identificar em que medida o ideal do
Estado, pautado na realização do bem, se cumpre ou não.

O ideal de Estado apoiado no bem é o republicano. Esse ideal foi concebido


pela tradição de pensamento ocidental, na Antiguidade Clássica, iniciada com
Platão. Portanto, a utopia republicana platônica é o termômetro que começou a
medir a temperatura do exercício político. O sentido da política, arte do bem viver
na cidade, princípio republicano por excelência que traduz o espírito da política,
é o fio condutor da teoria política. É ele quem baliza o julgamento da realidade
empregado pela filosofia política e/ou teoria política.

Utopia republicana platônica

De acordo com Colonnelli (2017, p. 109):

A República é uma obra que emprega vários recursos


argumentativos como lógicos, consensuais, concretos,
etc. Dentre essa gama de recursos três tipos foram
destacados em momentos diferentes na obra que
podemos relacionar com os sentidos de utopia aludidos
no início dessa comunicação. Os momentos diferentes
na argumentação mudam o caráter da obra. A primeira
e a segunda linha de arguição, ou seja, a crítica ao
senso comum e o estabelecimento de novas diretrizes

23
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

políticas, claramente se coadunam como uma única


fase de desenvolvimento da obra, aproximando-a
da noção de utopia como sistema de aprimoramento
político. Quanto à terceira forma de arguição, o uso
dos mitos e da analogia parece desenvolver uma
nova etapa argumentativa, interna à obra. De qualquer
forma, o termo utopia pode ser bem empregado quando
se referir ao projeto político inovador e como sistema
concreto realizável, mas não a um projeto apenas
idealizado sem possibilidades de realização. De fato, a
analogia da caverna ocupa um lugar central na obra no
tocante à argumentação, pois a sua imagem pode ser
amplamente ressignificada, funcionando como o lugar
por excelência da utopia na obra. Não seria, portanto,
exagerado afirmar que a analogia da caverna é o τόπος
por excelência da utopia.

Como toda área do saber, a teoria política também não é homogênea, isto é,
há uma variedade de estudiosos que a entendem de maneira distinta. Para ilustrar
essa afirmação, toma-se o caso dos teóricos utopistas e dos teóricos descritores
de sociedades perfeitas. Da primeira vertente, cita-se o nome de Platão, dedicado
a pensar um ideal de sociedade sem projeção com a realidade. E da segunda
vertente, lembram-se dos nomes de Cícero e Thomas de Aquino, focados no
entendimento da legitimidade do Estado a partir da realidade.

Acerca do pensamento de Platão que tratou da teoria do


conhecimento, da política e da ética, sugerimos assistir ao vídeo
“Filosofia - Aula 4: Filosofia Clássica: O pensamento de Platão”,
do canal “SeduES”, disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=mgaF0TV62Tc

24
Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

Em relação ao pensamento de Cícero que foi um filósofo que


viveu no final da República romana e produziu uma vasta obra política
e filosófica, indicamos assistir ao vídeo “República – Pensamento
Republicano – Cícero – Introdução”, do canal “Roberto Novaes”,
disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UyptRhOFE90

Concernente ao pensamento de Thomas de Aquino que


associou fé com razão, promovendo argumentos ancorados na
base aristotélica, recomendamos assistir ao vídeo “SÃO TOMÁS DE
AQUINO | FILOSOFIA | Prof.ª Paula”, do canal “Curso Enem Gratuito”,
disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oj3eaClm6Bw

Ciente de que a teoria política está longe de ser uma área do conhecimento
homogênea, mas sim plural, que existem teorias políticas, observa-se que a teoria
política é um horizonte do saber dedicado a pensar a polis, a cidade, as tramas
e dilemas que cercam a vida urbana em comunidade. Nesse sentido, ao meditar
sobre tais tramas e dilemas, ela considera os limites e possibilidades do Estado
como expressão da política. A teoria política, portanto, é dedicada a pensar o
Estado.

O diagrama de Nolan é uma oportunidade de sair do desenho restrito


de pensar a política sob a ótica de direita e esquerda e ter a possibilidade de
aprofundar a compreensão da busca pela igualdade e as mudanças da ordem
social, bem como o sentido do reconhecimento da desigualdade como algo
permanente no ser humano, dando espaço para entender outras tendências
políticas.

25
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

FIGURA 10 – DIAGRAMA DE NOLAN

FONTE: <https://www.monolitonimbus.com.br/diagrama-
de-nolan/>. Acesso em: 18 abr. 2021.

Imbuída desse esforço de compreender o Estado, a teoria política parte


sempre de uma difícil equação para ser elucidada à medida que a própria política
acontece: rastrear a ligação, a dificuldade de estabelecê-la, bem como a ruptura
entre teoria (ideal) e prática (realidade). Ao longo da história, da antiguidade à
contemporaneidade, esse é o desafio de aplicação do ideal de Estado em uma
realidade turbulenta, que muitas vezes, como já foi dito aqui, até repele a política.
Desafio este que sempre incomodou e tirou o sossego dos teóricos políticos.

A teoria política, ao se deparar com uma realidade que destoa do modelo


projetado, lança mão do questionamento, seja do discurso político, cheio de
ambiguidades, ou da ação política performatizada pelos agentes do poder com
vistas a uma depuração da própria política. Ou seja, a fim de tentar aproximar a
política exercida da utopia comunitária projetada pela filosofia política, entram em
ação os teóricos políticos, problematizando o que se vive. Apontando contradições,
conflitos, limitações e com isso sondar as possibilidades de instauração do sonho
republicano de Estado.

Enquanto área do conhecimento, qual é o objeto de atenção da teoria


política? Seu objeto de atenção é a subjetividade dos atores sociais que integram
a estrutura do Estado. Quando se fala em subjetividade, pensa-se em sentimentos
e ressentimentos que constituem o campo do político, como medo, raiva, covardia,

26
Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

vingança, gratidão, afeto e desafetos. Tudo isso mobiliza as ações políticas do


Estado.

A relação entre teoria política e ideologia é destacada e mantém vínculo


com o conteúdo que será abordado nas próximas seções deste capítulo,
“Conceituando campo intelectual” e “Do campo intelectual à protoformação do
pensamento político brasileiro no século XIX”. Isso porque a ideologia diz respeito
a um juízo de valor que é transformado em fato. É institucionalizado e assim
ganha forma nas instituições políticas.

Para deixar nítido para o/a leitor/a esse importante argumento que comunica
um traço marcante da teoria, vamos a outro exemplo. Os partidos políticos de
um sistema democrático pautado na representação são as vozes da população
que elegeu determinado candidato/a para um cargo público, vereador, prefeito,
deputado, senador e presidente da república. Classificar as diferenças partidárias
é comum. Podemos dizer que, historicamente, o DEM (Democratas), partido
político de centro-direita, de legenda liberal, atua em prol dos interesses do
empresariado nacional. Ao afirmarmos que uma legenda é liberal, estamos
assinalando que se trata de uma ideologia política que almeja a intervenção
mínima do Estado nos assuntos econômicos. O vocábulo liberal é empregado
para assinalar a liberdade econômica, a não prestação de contas para o Estado
das decisões financeiras empregada pela iniciativa privada.

E que, historicamente, o PT (Partido do Trabalhadores), partido político


de esquerda, atua em prol dos interesses dos trabalhadores. Assinalar que é
de esquerda implica a identificação de que se trata de uma ideologia política
que almeja a promoção da justiça social ou a igualdade material. Para isso a
socialização dos meios de produção é o caminho ambicionado para instauração
desse intento. É pertinente observar que, muito embora o PT seja visto pelo
senso comum como partido político de esquerda, ele, ao longo dos anos, foi se
distanciando cada vez mais dessa ideologia. Posto que, para ser de esquerda e
assim fazer a justiça social, é necessária a ruptura com o capital (representado
pelos banqueiros e pelas grandes empresas detentoras dos meios de produção).
Observando a história política do Brasil, nota-se que o PT se distanciou dessa
ideologia cada vez que se fez presente em cargos públicos do executivo e do
legislativo. Logo, o emprego da identidade de esquerda ao PT é equivocada.

Eis um exemplo de classificação a partir de projetos distintos de sociedade


elaborados por ambos os partidos. Quando migramos da classificação para
hierarquização, dizendo que o DEM merece destaque na cena pública porque é
honesto, ou o contrário, que o PT merece destaque porque é honesto, estamos

27
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

instaurando uma hierarquia. As hierarquizações são movidas por ideologias. A


ideologia em cena é assistida no apelo à justificativa de acesso ao poder pelo
argumento da honestidade. Tal partido precisa estar no poder porque é honesto.

Nesse caso, estamos diante do flagrante exemplo de como a teoria


política caminha de mãos dadas com as ideologias. As ideologias, antes de se
transformarem em fato, por exemplo, a crença de que determinado partido não
merece o poder porque não dispõe de honestidade, é uma elaboração científica.
Ou seja, foi pensada, cuidadosamente, por algum teórico político, afinado com
algum grupo político, para que pudesse persuadir um grande número de pessoas.
Para que assim o Estado elaborado pelo grupo que criou tal ideologia possa ser
posto em evidência.

Após entendermos o que é política, poder e teoria política, vamos aprender,


na próxima seção, o que é o campo intelectual, esfera responsável pela
elaboração das ideias políticas aplicadas à sociedade.

1 Leia o texto a seguir:

Ideologia, de Cazuza

Meu partido
É um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Eu nem acredito ah
Que aquele garoto que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Frequenta agora as festas do “Grand Monde”
Meus heróis morreram de overdose
Eh, meus inimigos estão no poder
Ideologia
Eu quero uma pra viver
Ideologia
Eu quero uma pra viver
O meu tesão
Agora é risco de vida
Meu sex and drugs não tem nenhum rock ‘n’ roll
Eu vou pagar a conta do analista

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Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

Pra nunca mais ter que saber quem eu sou


Saber quem eu sou
Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Agora assiste a tudo em cima do muro, em cima do muro
Meus heróis morreram de overdose eh
Meus inimigos estão no poder
Ideologia
Eu quero uma pra viver…

Após a leitura da música do Cazuza e com base nas reflexões


desenvolvidas até aqui, apresente um conceito para ideologia e
explique a sua relação com a política.

3 CONCEITUANDO CAMPO
INTELECTUAL
Esta seção visa discorrer a respeito da categoria campo intelectual. Para
compreendê-la, de imediato, duas perguntas se impõem. O que é o campo
intelectual? E o que é o intelectual? Para responder à indagação sobre o que
é o campo intelectual, dialogaremos com o sociólogo francês Pierre Bourdieu
(2004), responsável pela formulação da categoria. E para retomar à interrogação
sobre o que é o intelectual, a palavra será concedida ao sociólogo húngaro Karl
Mannheim (2001).

Pierre Bourdieu (2004) é convocado para reponder à pergunta: o que é o


campo intelectual? Segundo o autor, o campo intelectual é uma espacialidade
singular. Ela é habitada por agentes e instituições responsáveis pela produção
e pela disseminação da arte, política, literatura e ciência. Tal espacialidade é
guiada por um itinerário próprio, do mesmo modo como os outros campos, como
o religioso por exemplo. As leis do campo intelectual, que determinam o que
pode e o que não pode ser feito por seu pares, são elaboradas de acordo com os
interesses deles, mas também em diálogo com a sociedade.

29
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

A título de complemento às ideias aqui tratadas, recomendamos


a leitura do texto a seguir: FOUCAULT, M.; DELEUZE, G. Os
intelectuais e o poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio
de Janeiro: Graal, 1979.

Esse conteúdo pode ser acessado no seguinte endereço


eletrônico:

https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/81012/mod_resource/
content/1/Texto%2016%20Os%20intelectuais%20e%20o%20poder.
pdf

Quando falamos que as leis do campo intelectual são elaboradas com


interlocução com a sociedade, isso quer dizer as leis pensadas pelos membros do
campo passam pela interferência externa. Essa interferência externa é representa
pelo poder político. Vamos recorrer a um exemplo que fica mais nítido para o/a
leitor/a acessar o argumento. Vamos supor que os membros do campo intelectual
estejam motivados a estudar o impacto da monocultura da soja na alimentação
nacional. Com receios de ter, de algum modo, os seus interesses econômicos
afetados, o empresariado aciona o parlamento, eleito com seu capital, com intuito
de ameaçar o campo intelectual caso tal pesquisa seja levada adiante. Com isso,
o intento científico desse campo é abortado devido à influência externa. Com esse
exemplo, temos acesso à ação externa ao campo intelectual. Nesse caso, uma
ação negativa.

Ainda de posse desse exemplo, o contrário também poderia ocorrer, isto


é, caso fosse conveniente para as forças externas, elas mobilizariam recursos
orçamentários e políticos para viabilização científica desse estudo encabeçado
pelo campo intelectual. Isso seria feito devido os ganhos que o empresariado
obteria com tais estudos. Por isso, eles não só veriam com bons olhos essa
iniciativa científica, como também entrariam com dinheiro e suporte político para
garantir a realização da pesquisa.

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Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

FIGURA 11 – INTELECTUAIS E A SOCIEDADE

FONTE: <https://www.caoquefuma.com/2020/09/os-intelectuais-
e-sociedade.html>. Acesso em: 18 abr. 2021.

De acordo com o que foi dito acima, entende-se um dos traços do campo
intelectual: ele é portador de uma autonomia relativa. É relativa porque mesmo
dispondo de uma agenda própria, de leis específicas, ele sempre é passível
de influência externa, conforme observado no exemplo registrado. Os poderes
internos, representados pelo próprio campo intelectual, estarão sempre em conflito
com os poderes externos, identificados em outros campos, como o político. Mas
outros campos também rivalizam com o campo intelectual, o religioso, o jurídico e
outros tantos.

Para se desvencilhar da contínua interferência externa, denominada por


Bourdieu de poder temporal, é necessário a disciplina. A disciplina é o nome
dado às leis próprias criadas pelo campo intelectual e cumpridas, à risca, por seu
membros, que minimizam a interferência do poder temporal. Quanto maior for a
interferência externa, menor será a autonomia do campo intelectual. Quanto maior
for a autonomia do campo intelectual, menor será a influência externa.

Uma vez minimizada a influência externa, o campo intelectual é orientado por


uma lógica particular de poder. Isto é, internamente concorrem dois poderes. Eles
passam a determinar a atuação dos integrantes e, consequentemente, do próprio
campo intelectual. Trata-se do poder político (temporal) e do poder de prestígio. O
poder político é exercido pelos membros que, para vencer as disputas por poder e
voz dentro do campo intelectual, recorrem à influência externa.

31
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Vamos a mais um exemplo:

O de um pesquisador universitário motivado em garantir financiamento para


a sua pesquisa, mas não tem um bom currículo, com publicações frequentes,
inéditas, autorais e em revistas científicas qualificadas. Para garantir à realização
desse fim - sabendo que não tem chances de ser contemplado em editais de
financiamento científico público, pois concorreria com seus colegas com
bons currículos, detentores de publicações de ponta - esse professor recorre
à iniciativa privada, portanto ao poder externo (ou poder político) ao campo
intelectual, figurado por um grande empresário industrial, dono de uma importante
fabricante nacional de cosméticos, um empresário afamado, amigo de políticos e
de personalidades midiáticas. Daí o pesquisador em tela obtém gordos recursos
financeiros e fama para a realização da sua pesquisa. Com essa iniciativa, ele
aprimora seu currículo e se inscreve no páreo intelectual para disputar junto aos
seus correligionários o poder do campo intelectual. Eis aí um exemplo de poder
político e/ou temporal.

Para facilitar o acesso às ideias desenvolvidas por Pierre


Bourdieu, indicamos assistir à entrevista transmitida pelo vídeo
intitulado “Entrevista com Pierre Bourdieu - Legendada - Completa”,
do canal “Amphitheatrum Sapientiae Aeternae”, disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=F2WXVTdfAOk

Outro poder que atua de modo recorrente no campo intelectual é o poder de


prestígio. O poder de prestígio é pessoal. Ele é notado na acumulação de títulos,
diplomações, publicações em revistas de excelência, honrarias e na capacidade
persuasiva, a partir da posse desse capital simbólico, usufruído pelo seu detentor.
Para ilustrar o que foi dito, recorre-se à imagem do pesquisador que aufere
benefícios orçamentários para viabilizar sua produção científica por meio do
capital simbólico, poder de prestígio, acumulado. Ou, dito em outras palavras, é o
pesquisador que adquire recursos financeiros por meio do mérito pessoal (títulos,
honrarias etc.).

O que os detentores do poder de prestígio reivindicam? Eles reivindicam


o monopólio da autoridade científica. Toma-se outro exemplo: o concurso de
provas e de títulos para selecionar candidatos/as para um curso de mestrado em

32
Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

biologia molecular. Serão aprovados/as os/as inscritos/as com bom desempenho


em todas as etapas do certame. E uma das etapas decisivas é a entrevista e
a análise de currículo. Na entrevista, o/a candidato/a será indagado sobre seu
projeto de pesquisa, que dará vida à dissertação mestrado, fluência teórica sobre
o assunto e domínio no tema a ser investigado. Na análise de currículo, pesará a
quantidade de publicação, a qualificação das revistas nas quais o/a candidato/a
registrou seus artigos. E para que tudo disso? Ora, para que ele/a possa, ao
término do curso, ser diplomado, portanto, certificado como autoridade do assunto
pesquisado e assim deter o monopólio da autoridade científica.

O exercício do poder político e do poder de prestígio no bojo do campo


intelectual, se dá por dois tipos de moedas simbólicas: capital científico puro
e capital institucionalizado. O capital científico se dá quando há o emprego do
prestígio pessoal, dons pessoais, empenhados no progresso científico. Pensando
nisso, vamos a mais um exemplo. Lima Barreto foi um importante escritor nascido
no final do século XIX e com publicações na primeira metade do século XX.
Barreto, por mais que tivesse severas contestações ao campo intelectual de sua
época, ainda assim contribuiu com seu talento pessoal (pela escrita peculiar,
marcada pelo humor ácido ao império decadente e à República nascente, delator
das mazelas sociais e do racismo) ao fortalecimento do campo literário nacional
do seu tempo. Barreto deixou sua marca no campo intelectual por meio do seu
capital científico.

O capital institucionalizado versa sobre o prestígio que o sujeito acumula por


meio das instituições. Exemplos de acumulações desse capital e que acirram as
disputas internas do campo intelectual são as participações em bancas, comissões
de qualquer natureza, colóquios, concursos, etc. Quem detém qualquer um
desses capitais, outorgados pelas instituições, está devidamente municiado para
fazer os devidos enfrentamentos que o campo intelectual pede.

A partir do que foi registrado acima, vamos ao encerramento da explicação


voltada para o campo intelectual. É oportuno erodir com uma crença que embala
o senso comum: a crença da neutralidade científica. Durante muito tempo,
embalados pela perspectiva cartesiana que fundou a ciência moderna, acreditou-
se que toda ciência é neutra. Isto é, que a ciência não tem lado; que a ciência não
opina, apenas investiga; que a ciência é cega para as ideologias que movimentam
o corpo social.

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Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

FIGURA 12 – NEUTRALIDADE CIENTÍFICA

FONTE: <https://divagacoesligeiras.blogs.sapo.pt/286793.html>. Acesso em: 18 abr. 2021.

Segundo o sociólogo Pierre Bourdieu, isso é uma ficção que nunca teve
correspondência com a realidade. Isso porque toda ciência é intencional; toda
ciência tem um lado; toda ciência é dotada de opinião; toda ciência é guiada por
alguma ideologia. Por exemplo, na modernidade, orientada pelo campo intelectual,
a ciência foi adepta da ideologia racial. Não só adepta, como parteira desta. O
racismo é uma ideologia elabora nas entranhas da ciência, no interior do campo
intelectual. Ou seja, a hierarquização racial, baseada na crença da superioridade
branca e na inferioridade negra, foi legitimada pela ciência produzida no campo
intelectual.

Discursos científicos foram produzidos, como os dos europeus. Nesse


sentido, lembramos nomes como os de Joseph Arthur de Gobineau, Cesare
Lombroso e Conde de Buffon. Esses autores criaram, no berço do campo
intelectual, essas ideias baseadas na hierarquização racial, nomeada de racismo,
para fortalecer a convicção da superioridade branca.

34
Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

FIGURA 13 – RACISMO CIENTÍFICO

FONTE: <http://www.cienciaecultura.ufba.br/agenciadenoticias/noticias/o-lado-sujo-
da-ciencia-e-a-consolidacao-do-racismo-cientifico/>. Acesso em: 18 abr. 2021.

Para o aprofundamento acerca do “racismo científico” e as


tentativas de justificar o racismo por meio do espaço acadêmico,
sugerimos assistir ao vídeo “Videoaulas Poliedro | Racismo
“Científico””, do canal “Poliedro Educação”, disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=XW_JFbPgaI4

O sociólogo Karl Mannheim (2001), no livro Sociologia da cultura, um


autor clássico para as ciências humanas, aborda o conceito intelectual. É ele
quem ajuda a compreender à indagação: o que é o intelectual? Para respondê-
la, Mannheim utiliza um conceito empregado pelos intelectuais russos, chamado
de intelligentsia. A intelligentsia é uma categoria elaborada para nomear o grupo
social responsável pela elaboração da visão de mundo da sociedade. Dito outro
modo, intelligentsia é o nome que se dá para o coletivo seletivo de pessoas
dedicadas à formação da opinião pública que guia os rumos da nação. Diante
disso, o/a leitor/a pode perguntar: intelectual é intelligentsia são sinônimos? A
resposta para essa pergunta é sim. Intelligentsia é o conceito, de origem russa,
empregado por Mannheim, para explicar o que é o intelectual.

35
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

O intelectual, por meio da intelligentsia, elabora sínteses históricas,


interpretações totalizadoras, leituras universais, para nortear a visão de mundo
social e assim promover o bem viver. Essa é a utopia de intelectual que se tem.
Mas, na prática, ou seja, na realidade, nem sempre isso acontece.

Vamos para um exemplo para deixar cristalino para o/a leitor/a o que está
sendo dito. Um exemplo positivo de quando a intelligentsia age em prol do
bem estar social. O ano de 2020 é assolado por uma pandemia que devasta
todo o globo, devido a infecção provocada pelo novo Corona Vírus. A tarefa de
decodificação da realidade, marcada pela crise sanitária, bem como os caminhos
para prevenção e imunização das vidas, cabem aos intelectuais. São eles – nas
figuras profissionais de médicos/as, infectologistas, enfermeiros/as, biólogos/as,
biomédicos/as, cientistas sociais, entre outros expoentes do campo intelectual
– os responsáveis pela condução da humanidade, para que assim possamos
sair desse tortuoso labirinto pandêmico que vem ceifando tantas vidas em
todo o mundo, causando pânico, dores e sofrimentos. Dito isso, retomamos à
caracterização da inquietante figura do intelectual.

Um traço típico da intelligentsia é a sua localização social. Isto é, a sua


classe social. Pensando nisso, uma pergunta se levanta: a que classe social o
intelectual pertence? Uma pergunta complexa e polêmica de responder. Antes de
respondê-la, uma breve revisão do que já foi tratado aqui. Conforme vimos acima
com Bourdieu, o campo intelectual, lugar de atuação do intelectual, é marcado
por disputas internas e externas e, por isso, é passível de interferência temporal.
Mas a pergunta ainda ecoa: a que classe social o intelectual pertence? Segundo o
sociólogo Mannheim (2001), o intelectual está situado entre as classes. Isso quer
dizer que ele está posicionado em diálogo permanente com os grupos integrantes
das classes.

Essa afirmação é sintetizada pelo autor com a categoria: envolvimento


múltiplo. Esse conceito, pensando pelo autor, diz respeito ao trânsito entre os
grupos sociais palmilhado pelo intelectual. Mannheim (2001) entende o intelectual
como ciente dos lugares e posicionamentos defendidos por cada grupo social.
Mas não advoga para nenhum para que o ofício do intelectual, de elaboração de
sínteses históricas, não seja corrompido. Dito de outra forma, Mannheim defende
a tese da neutralidade científica pautada pela atuação da intelligentsia.

Pausa na apresentação da visão de intelligentsia Mannheim. Um


apontamento crítico é necessário neste momento. A concepção do intelectual
situado entre as classes, isento, que não toma partido das opiniões (doxas) que
estão sendo disputadas, diverge da visão de Bourdieu, que, de acordo com o que

36
Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

foi estudado, concluiu a exposição sobre o campo intelectual dizendo que não
existe neutralidade científica. Para corroborar com o que foi dito, basta olharmos
para o campo intelectual brasileiro.

Basta olharmos para seus intelectuais, tal como Gilberto Freyre, que será
estudado no terceiro capítulo deste livro. Trata-se de um intelectual que não é
descendente de uma classe pobre, mas o contrário, é descendente de uma classe
abastada. E isso repercutiu na invenção do Brasil disseminada em suas obras.
Um Brasil observado a partir dos lugares sociais que este importante intérprete do
Brasil ocupou historicamente no país. Freyre inventou o Brasil da varanda da Casa
Grande. Este que é, como sabemos, um lugar elitista, mensageiro dos privilégios
de classes. Suas textualidades trazem essa marca. Por isso, as contribuições de
Freyre não são isentas do ethos (essência) de sua classe social. Ele contribui
com a consolidação dessa classe, a dos detentores dos meios de produção, em
suas obras. Por isso, voltando a Mannheim, sua visão de intelectual apartado de
um posicionamento de classe não se sustenta diante da multifacetada realidade
social.

É interessante observarmos, na qualidade de analistas sociais, as


contradições dos autores estudados e extrair delas, neste caso a do Mannheim,
aquilo que é oportuno. E o que nos é oportuno em Mannheim é a descrição
do ofício do intelectual: produtor de sínteses sócio-históricas que guiam a
humanidade. Ainda, pensando com Mannheim, a tarefa que nos cabe ao
direcionar a nossa atenção para esse coletivo é: rastrear as ideologias em voga
em cada momento histórico estudado, para entendermos por onde caminha e/ou
caminhou a sociedade.

Com Mannheim também aprendemos que para esmiuçar o ofício da


intelligentsia, é indispensável olhar para as ideologias que a mobiliza. Pois
elas são o testemunho das sínteses sócio-históricas produzidas por um tempo,
são provas incontestáveis do alcance da força das ideias nas vidas de uma
comunidade no espaço e no tempo. São as ideologias também, elaboradas pela
intelligentsia, que diferenciam um campo intelectual do outro. São as ideologias
que diferenciam a gênese de uma intelectualidade da outra, assim como também
são elas que distinguem uma comunidade sócio-histórica de outra.

É de Mannheim também que vem o entendimento que a longevidade da


intelligentsia se apresenta no enraizamento de uma produção científica, marcada
pela presença ideológica de um tempo. Como exemplo, toma-se a espacialidade.
No Brasil de hoje, a fauna e flora é enaltecida, pela presença indígena, pelo verde
das matas, etc. Aspectos que ressaltam a ideologia da diversidade, cunhada pelo
campo intelectual do século XIX. Mas nem sempre foi assim. Antes do século
XIX, os intelectuais repeliam a peculiaridade da espacialidade brasileira. Por ter

37
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

sido ocupada pelos nativos da terra, os inventores do Brasil, a intelligentsia, viam


esses traços como atraso, selvageria anti-civilização. E isso distanciava o Brasil
do modelo europeu disseminado pela metrópole portuguesa e demais povos
dedicados à rapinagem, como franceses e ingleses. A partir do século XIX, com
a criação oficial do campo intelectual no Brasil e guiado por ideologias, entre elas
a nacional, as singularidades das terras brasileiras passam a ser enaltecidas.
Com esse exemplo, observamos a potência de uma ideologia na vida de uma
comunidade.

Após entendermos, de posse das contribuições de Pierre Bourdieu, o que é o


campo intelectual e de Karl Mannheim, o que é o intelectual, daremos sequência
à exposição. Na próxima seção, da singularidade formativa do campo intelectual
brasileiro será contemplada.

2 Qual é a relação entre racismo e produção científica no Brasil e


como essa relação impacta no nosso pensamento político?

3.1 DO CAMPO INTELECTUAL


À PROTOFORMAÇÃO DO
PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO
NO SÉCULO XIX
Para dar conta da explanação dos processos históricos que singularizam
a organização do campo intelectual brasileiro, alguns autores serão visitados.
Autores como Luís Costa Lima, Lúcia Neves, Mariza Veloso e Angélica Madeira.

O nascimento do campo intelectual brasileiro ocorre no século XIX. Esse


advento é marcado por um fato histórico que selou a vida da então colônia de
Portugal: a vinda da família real para o Brasil, que se deu no ano de 1808. E por
que esse evento histórico é tomado como marco fundante do campo intelectual?
Ora, porque antes dele, segundo o crítico literário Luís Costa Lima, não havia no
Brasil um polo produtor de leitura e um polo receptor, nem mesmo imprensa, cujas
atividades foram interrompidas ainda durante o período colonial.

38
Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

FIGURA 14 – FAMÍLIA REAL PORTUGUESA E O RIO DE JANEIRO

FONTE: <http://cariricult.blogspot.com/2008/03/8-de-maro-h-200-anos-famlia-real.html>.
Acesso em: 18 abr. 2021.

Assim essa afirmação é possível a partir de 1808, porque data a chegada


da Corte de Dom João VI ao Brasil. Falando em Brasil, este sofreu mudanças
econômicas, políticas e sociais para acolher o líder metropolitano. No plano
econômico e político, houve a abertura dos portos às nações amigas de Portugal,
como a Inglaterra. Na esfera social, houve à criação de instituições que hoje são
conhecidas de todos nós, como os Correios, Banco do Brasil, Jardim Botânico e a
Biblioteca Real.

Diante do que foi apresentado, o/a leitor/a pode perguntar: a quem essas
instituições serviram? Qual é a relação delas com o recém-nascido campo
intelectual brasileiro? Vamos por parte. A resposta à primeira pergunta, a quem
serviu essas instituições, diz respeito à instauração no Brasil da Corte Real. Ou
seja, essas instituições atenderam, a um só tempo, Dom João VI e sua comitiva,
assim como também o campo intelectual brasileiro nascente. A segunda pergunta,
calcada na relação dessas instituições com o campo intelectual brasileiro, versa
sobre a aproximação entre o campo intelectual e o poder temporal. À medida
que os intelectuais brasileiros se beneficiaram de tais instituições, nota-se o
estabelecimento de uma estreita relação entre ambos.

Outras mudanças no plano político ocorreram (como a independência do


Brasil, em 1822; pactuação com as doutrinas liberais, que garantiram liberdade
econômica às províncias e manutenção das desigualdades e da escravidão) e,

39
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

paralelo a elas, se deu, no Segundo Reinado, ocorrido entre os anos de 1840 a


1889, a criação de instituições intelectuais brasileiras a partir da estreita relação
com a política. Estas, por sua vez, estiveram a serviço da política, do poder
temporal, dedicadas ao suporte à Corte imperial no desenvolvimento do Estado
nacional brasileiro. Instituições como o Instituto Histórico e Academias Artísticas e
Científicas são exemplos de espacialidades intelectuais, lapidadas no século XIX,
direcionadas a essa finalidade.

Já na Primeira República, de 1889-1930, essa relação de dependência do


campo intelectual com as instituições políticas é alterada. A configuração da
ABL (Academia Brasileira de Letras), em 1897, inaugura um dado emancipatório
relativo do campo intelectual em relação à influência externa. Os intelectuais
passaram a ter uma esfera específica de produção discursiva, caracterizada, aos
poucos, pela ruptura profunda com a política.

Outras esferas agregadas à ABL germinaram também na época, como cafés,


bares destinados à boemia dos homens das letras e a diálogos intelectuais,
imitando o modelo de Paris. Esses lugares enfatizavam uma discreta emancipação
entre o saber e a política. Um aspecto peculiar chama a atenção: tal proximidade,
tanto no Segundo Reinado, quanto na Primeira República, não era abertamente
declarada. Mas era patente tanto para os homens das letras, quanto para o poder
político, dessa estreita relação.

FIGURA 15 – ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

FONTE: <https://biblioo.info/a-academia-brasileira-de-letras-e-as-suas-escolhas/>.
Acesso em: 18 abr. 2021.

Em face do exposto uma indagação se levanta: por que era comum tal
aproximação entre ambos os campos intelectual e político? Quem responde a
esta pergunta é a cientista social Lúcia Neves. Nas palavras da autora, isso isso
foi necessário devido à precariedade do campo intelectual nascente, que não
dispunha de instituições próprias, para que assim pudesse caminhar de maneira
autônoma.

40
Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

Para situar o/a leitor/a diante de um entre tantos outros exemplos que
sustentam essa afirmação, a da proximidade entre os campos intelectual e
político, recuamos às palavras da antropóloga Mariza Veloso e da crítica literária
Angélica Madeira. São elas que explicam que essa relação era benéfica para
ambos os campos. O campo intelectual tinha vez e voz junto às instituições
políticas. Este auxiliou o campo político, como já foi dito, na árdua tarefa de
pensar o Estado nacional moderno brasileiro. A geração dos homens das letras
da segunda metade do século XIX, denominada de Geração de 1870, foi a que
assumiu de modo aberto, essa gloriosa missão. O campo político era beneficiado,
pois tinha o desafio de pensar a nação brasileira diante da heterogeneidade de
seu povo e suas terras. Esse desafio é traduzido na seguinte pergunta: qual é
o lugar do índio, do negro e da singularidade geográfica nacional, a selva, na
constituição de um país administrado por eurodecendentes?

Pensando nisso, a Geração de 1870 tematizou o lugar da raça e do meio


geográfico na constituição do Brasil. E o que os intelectuais receberam em troca
desse suporte prestado ao Estado? Receberam o privilégio de uma comunicação
direta com o poder institucional, fato que deu a oportunidade de indicar membros
do campo intelectual para ocupação de rentáveis cargos públicos, ligados à
diplomacia, à gestão, etc. Lugares de poder político e de prestígio. Por isso, como
descrito acima, ambos os campos ganharam com essa proximidade.

A palavra e o discurso foram as armas de trabalho empunhadas pela


intelectualidade brasileira a fim de auxiliar na invenção da nação. O pensamento
político brasileiro se ergue paralelo ao Estado e o elaborando. São os homens das
letras que ditaram às diretrizes políticas e burocráticas de formação do Estado
nacional moderno.

Além da palavra, os ilustres das letras se valiam, como objeto de trabalho,


da importação de categorias intelectuais vindas da Europa, tais como ciência,
progresso e razão, típicas do período da ilustração, do Iluminismo, bradadas pelos
intelectuais europeus. No processo inventivo da nação, que tanto caracteriza à
edificação do pensamento político brasileiro, contou com os homens das letras.
Estes sempre olharam para o para o Brasil buscando vislumbrar à Europa.
Conforme já comentado, o Estado nacional brasileiro foi inventado para: garantir o
desenvolvimento econômico das elites dirigentes e para perpetuar a manutenção
dos privilégios de classe. Mais uma vez, Bourdieu é evocado. Posto que notamos
na formação política brasileira a ausência de neutralidade científica já afirmada
anteriormente pelo sociólogo francês.

Tanto as instituições do campo intelectual e do campo político, miravam à


importação de idéias europeias. O trabalho hercúleo da intelectualidade era
o de identificar os elementos que distanciavam ambos os campos do modelo

41
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

europeu e o de expurgá-los. E inserir, no lugar dos componentes indesejados, as


referencias civilizacionais europeias. Para que assim a formação do pensamento
político brasileiro fosse consolidada à luz do campo intelectual ocidental. Essa era
a intenção dos ilustres da época.

Para deixar nítido esse argumento, vamos a um exemplo retirado do passado


do pensamento político brasileiro. Durante o Segundo Reinado, os homens das
ciências, imbuídos dos esforços de imaginar a nação brasileira, esbarraram no
componente indígena e na singularidade da fauna e da flora brasileiras. Para
eliminar essas barreiras e assim minimizar a distância do modelo europeu,
inventaram o indianismo e o nativismo como expressão dessa época. Elogio
desses componentes foram dispensados pela literatura. Escritores como José de
Alencar é expoente desse movimento. O movimento científico e artístico europeu,
designado de romantismo, serviu de alicerce para situar os elementos indesejáveis
na composição nacional: a natureza tropical e o indígena. Assim observa-se a
presença das categorias europeias, raça e natureza, na forja nacional.

A raça e a natureza são ideologias formuladas no seio do campo intelectual


europeu a partir da doutrina do racismo científico (hierarquização social dos
indivíduos baseada na ausência de melanina, não-negros, e na presença de
melanina, não-brancos, os primeiros são signatários dos melhores lugares sociais
por não terem melanina, e os segundos, os piores lugares, por ter na composição
fenotípica melanina). Esse foi o parâmetro adotado pelas gentes da ciência
na imaginação da nação brasileira. Por isso as páginas das obras de autores
europeus como Gobineau Herbert Spencer foram reviradas com entusiasmo pelo
pensamento político, gestado no campo intelectual, em seu processo constitutivo.

Como já abordado aqui, todo campo intelectual é orientado por uma ideologia.
E a ideologia formativa dos homens das letras do século XIX era a racial. Nesse
sentido, não apenas o indígena e o meio geográfico eram perseguidos por essa
gente. Mas também o negro, trazido para as Américas, sobretudo para o Brasil,
durante o período colonial, no regime escravista.

Outro fato também já assegurado aqui é: tanto os campos intelectuais


como o artístico, foram tomados como instrumentos da invenção tardia da nação
brasileira. Dizemos tardia porque enquanto as nações européias já tinham
se adiantado no processo constitutivo, o Brasil estava atrasado. Ficou nítido,
até aqui, a explicação do compromisso do campo intelectual no atendimento
dessa demanda dada pelo poder temporal e aceita pelos ilustres das ciências.
No entanto, restou dizer do papel executado pelas instituições artísticas nessa
missão.

42
Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

As missões artísticas na primeira metade do século XIX, na qual vieram para


o Brasil artistas como o francês Jean-Baptiste Debret, cumpriram esse papel
de catalogar o cotidiano da terra aspirante à nação. Não só as artes plásticas
cumpriram esse papel, mas também a literatura, vide o trabalho operado pela
Geração de 1870. Portanto as artes estão voltadas não apenas à fruição estética,
mas também estão aliançadas com os donos do poder. Estética e política
caminham de mãos dadas.

Vimos nesta seção os principais fatos que marcaram a constituição do


pensamento político pelo nascimento do campo intelectual, no século XIX. Agora
resta estudarmos, no capítulo 2, alguns autores importantes que fizeram história
na constituição da intelectualidade nacional. São eles: José Bonifácio, José de
Alencar e Joaquim Nabuco. Veremos as contribuições desses autores, por meio
de suas obras, na formação da nacionalidade e do pensamento político do Brasil.

3 Considere os debates realizados nesse capítulo e assista ao


vídeo intitulado:
“Debret e a escravidão no Brasil” do Canal “Fome de Saber”,
disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GhAYoPjmYfo
e responda ao seguinte questionamento:

Qual o papel do artista Jean-Baptiste Debret no cenário da escravidão


no Brasil?

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Este capítulo, intitulado de A formação do campo intelectual brasileiro,
foi dividido em três seções, nas quais buscou-se salientar para o/a leitor/a os
principais fatos que inauguraram à configuração da intelectualidade nacional.
Essa tarefa foi necessária para o entendimento da construção desse campo como
desdobramento da criação do pensamento político brasileiro.

Para isso, o estudo foi iniciado com a seção “Da política ao poder:
considerações preliminares”. Ali a política foi conceituada a partir da visita aos
teóricos Aristóteles, Norberto Bobbio e Hannah Arendt. Ainda nessa seção
abordou-se o poder. Para que o/a leitor/a compreendesse a singularidade
existente entre política e poder e o lócus de atuação de ambos. Para pensar o

43
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

poder, autores como Immanuel Kant, Michel Foucault e Márcio Stoppino foram
consultados. O conceito de teoria política também encontrou passagem nesta
seção. Aprendemos o que é teoria política e suas especificidades. Para entender
o que é essa importante área do saber que deu vida ao desenvolvimento do
pensamento político brasileiro, dialogamos com Alessandro D`Entreves.

Na segunda seção, “Conceituando campo intelectual”, esboçamos o que é o


campo intelectual e o que é o intelectual. Pierre Bourdieu e Karl Mannheim foram
indispensáveis no cumprimento desse intento explicativo.

Na terceira seção, “Do campo intelectual à protoformação do pensamento


político brasileiro no século XIX”, fizemos o percurso sócio-histórico que deu vida
ao desenvolvimento do campo intelectual brasileiro. Desenvolvimento este que
caminhou de mãos dadas com a criação do pensamento político nacional e suas
singularidades.

44
Capítulo 1 FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO

REFERÊNCIAS
ARENDT, H. O que é política? Tradução Reinaldo
Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

ARISTÓTELES. Política. Tradução Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1997.

BOBBIO, N. Verbete política. In: BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO (orgs.).


Dicionário de política. Tradução Carmen C. e Varriale et al. Brasília: UnB, 1998.

BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do


campo científico. Tradução Denise Bárbara Catani. São Paulo: UNESP, 2004.

COLONNELLI, M. V. C. O lugar da utopia na República de Platão: o mito


da caverna. Revista Graphos, v. 19, n. 3, p. 97-110, 28 dez. 2017.

D’ENTREVES, A. P. Verbete filosofia política. In: BOBBIO;


MATTEUCCI; PASQUINO (orgs.). Dicionário de política.
Tradução Carmen C. e Varriale et al. Brasília: UnB, 1998.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução Roberto


Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Tradução Valério


Rohden. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

LIMA, L. C. Da existência precária: O sistema intelectual brasileiro. In:


Dispersa demanda. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1981.

MANNHEIM, K. O problema da intelligentsia. In: Sociologia da cultura.


Tradução Roberto Gambini. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001.

NEVES, L. M. B. P. Intelectuais brasileiros nos oitocentos: A


constituição de uma “família” sob a proteção do poder imperial (1821-
1838). In: O Estado como vocação: idéias e práticas políticas
no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Ed. Acces, 1999.

STOPPINO, M. Verbete poder. In: BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO (orgs.).


Dicionário de política. Tradução Carmen C. e Varriale et al. Brasília: UnB, 1998.

VELOSO, M.; MADEIRA, A. Leituras brasileiras: itinerários no


pensamento social e na literatura. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1999.

45
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

46
C APÍTULO 2
INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX:
ENTRE O LIBERALISMO E O CONSERVA-
DORISMO

A partir da perspectiva do saber-fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Apresentar os autores José Bonifácio, José de Alencar e Joaquim Nabuco e


suas principais obras como expoentes das ideologias liberais e conservadoras.

 Identificar, na textualidade de cada um do pensadores do século XIX, o


liberalismo e o conservadorismo.

 Conhecer nos pensamentos de José Bonifácio, José de Alencar e Joaquim


Nabuco as características que os vinculam ao liberalismo e ao conservadorismo.

 Mapear, na formação do pensamento político brasileiro, as matrizes ideológicas


(liberalismo e racismo) e estéticas (romantismo) que deram vida a essas obras
e o modo como foram apropriadas pelos homens da ciência, no século XIX.
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

48
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

1 CONTEXTUALIZAÇÃO
Este capítulo tem como pano de fundo as discussões do campo intelectual
do século XIX, perpassadas pelas ideologias liberais e conservadoras que
envolviam não somente o plano da política institucionalizada por meio de partidos
políticos, mas também alcançava todos os meandros do tecido social mergulhado
em visões de mundo específicas, assinaladas pela manutenção das hierarquias
sociais, espaciais e raciais, que marcaram a nossa estrutura política e que ainda
impactam o pensamento político da atualidade.

Nesse sentido, são explorados o liberalismo, o conservadorismo, o


romantismo e o racismo como chaves de leitura para o entendimento dos
pensadores trabalhados, assim como os mecanismos capazes de revelar os
paradigmas ideológicos constituintes não só do campo científico, mas também do
campo político, performatizado pela jovem nação brasileira.

Esta unidade, assim como a anterior, está estruturada em três seções. A


primeira, “José Bonifácio: um liberal conservador”, rastreia, nas letras do texto de
Bonifácio, as disposições ideológicas do liberalismo e do conservadorismo que
caracterizam sua escrita. A segunda, “José de Alencar: do romantismo indigenista
ao conservadorismo”, mapeia o romantismo estético e o conservadorismo na obra
do escritor. A terceira, “Joaquim Nabuco: um intérprete abolicionista do Brasil”,
analisa a presença do liberalismo e do racismo na textualidade de Nabuco.

2 JOSÉ BONIFÁCIO: UM LIBERAL


CONSERVADOR
Ao ensinar história do Brasil nos espaços escolares se explora pouco as
personalidades importantes para a composição do pensamento político brasileiro.
E o nome de José Bonifácio é um desses que precisa ser explorado para entender
a independência e as forças das personalidades humanas que ali atuavam. Ao
pensarmos nesse nome, recorremos à explicação seguinte produzida por Falcão
(1963, p. 151):

Na humilde vila de Santos do século XVIII, circunscrita então ao


atual centro comercial da cidade, tendo como limites extremos
dum lado o final da rua dos Quartéis, além da primitiva igreja
matriz, e do outro o vetusto convento franciscano do Valongo,
na rua chamada Direita (hoje 15 de Novembro), numa casa
situada da banda do campo, a qual nunca se conseguiu
identificar com segurança, fronteira decerto àquela onde veio
a residir durante muito tempo sua família, especialmente seu

49
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

irmão mais môço, Martim Francisco, e em que teve ensejo


de morar igualmente, casa esta demolida há menos de meio
século e substituída pelo presente edifício do Banco Comércio
e Indústria de São Paulo, — nasceu no dia de Santo Antônio
(13 de junho) do ano de 1763, uma criança do sexo masculino,
segundo rebento do casal Bonifácio José de Andrada, militar,
servidor público e abastado comerciante do lugarejo, e D.
Maria Bárbara da Silva, a qual foi levada à pia batismal com o
nome de José Antônio, mais adiante transmutado, ao receber
o santo sacramento do Crisma, para José Bonifácio.

Faz-se relevante entender que as personalidades humanas integram as


variadas influências e características que podem ser explicadas por meio do
exercício de reportar a determinados quadros teóricos e o papel desempenhado
por indivíduos na consolidação das ideias políticas da época.

Os pensadores criam as ideias. Entendê-las como resultante do campo


intelectual requer a compreensão dos enlaces, desenlaces, tensões, disputas e
contradições de um determinado tempo que singularizam a formação das ideias
político-brasileiras. É preciso ir aos documentos, neste caso, nas obras produzidas
pelos homens ilustres, que são a um só tempo testemunho das relações políticas
historicamente estabelecidas e verificar quais eram as relações construídas entre
os homens das letras, campo intelectual e poder temporal. A explicação com base
no pensamento político é complexa e se constitui em um trabalho de resgate
e nos reporta a uma nova compreensão resultante da demanda que pretende
descortinar as máscaras sociais. Acerca do conservadorismo e do liberalismo no
Brasil do século XIX, assinala-se que

Não obstante o heroísmo de alguns liberais e a retórica de


muitos, o Primeiro Reinado (1822-1831) e a Regência (1831-
1840) foram marcados pelo predomínio de um espírito
conservador que se estenderia por todo o Império. A época
da fundação do Império brasileiro foi de um conservadorismo
que sempre conviveu com o liberalismo. Ou, à inversa, foi
dominada por um sentimento no qual o liberalismo esteve
sempre enquadrado por um forte senso realista e por um
grande pragmatismo (WEFFORT, 2011, p. 154).

50
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

FIGURA 1 – CONSERVADORISMO E LIBERALISMO (SÉCULO XIX)

FONTE: <https://docplayer.com.br/71012308-Brasil-no-seculo-xix-segundo-reinado.html>.
Acesso em: 2 maio 2021.

Diante dessa afirmação, pausa na argumentação para uma reflexão


conceitual tão recorrente na área da teoria da política, tal como vimos no
Capítulo 1. No parágrafo anterior, foram evocados os conceitos de liberalismo
e conservadorismo. Diante disso, o/a leitor/a pode indagar: afinal o que são o
liberalismo e o conservadorismo? Segundo o teórico político Nicola Matteucci,
uma definição precisa sobre o liberalismo é difícil de tecer, devido à diversidade de
interpretações de cunho histórico, filosófico e político. Posto que esse é um campo
de frequentes disputas interpretativas. Mas, em síntese, podemos compreender o
liberalismo como uma ideologia elaborada na modernidade, baseada na defesa
das liberdades individuais, expressas no campo econômico, político, intelectual
e religioso. Fala-se de defesa das liberdades porque, naquele período, elas eram
limitadas pelo regime político absolutista, portanto, subordinadas ao rei.

Já o conservadorismo, para o teórico político Tiziano Bonazzi, nasce também


na modernidade. Ocorre em resposta à visão de mundo antropocêntrica, ou
seja, um olhar que toma o sujeito como centro do mundo, imbuída do paradigma
científico e materialista histórico-dialético que, a partir do século XIX, sacudiu à
Europa. Em contraposição à visão antropocêntrica, que reivindicava mudanças
sociais a partir da filosofia Iluminista, da ciência e do materialismo, houve a
visão teocêntrica, a conservação do ethos (essência) social estabelecido pela
religião, cristianismo católico e pela política de natureza absolutista. A palavra
conservadorismo nasce daí, desse anseio europeu de frear as mudanças sociais,

51
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

de natureza antropocêntricas, em curso. Por isso, da defesa do modelo histórico


em vigência, o teocentrismo monoteísta cristão, e do regime politico que garantia
os privilégios sócio-econômicos da elite europeia.

O propósito desta seção é apontar como o liberalismo e o conservadorismo


foram plasmados na formação do sistema político brasileiro a partir do século
XIX, pelos homens do poder, e rastrear suas raízes incontestes no emergente
campo intelectual, pelos homens das letras. Para cumprir com esse propósito
investigativo, voltamos a atenção para José Bonifácio. Identificar em seu projeto
de nação as ideologias liberal e conservadora é o objeto de atenção desta seção.

Nesse cenário, tratar de José Bonifácio é mostrar como uma personalidade


grande do Brasil se formou de modo a alargar as suas possibilidades de intervir
no mundo. É uma figura que tinha muitas faces e, em função disso, foi muito útil
ao desenvolvimento das áreas que se dedicou.

O seu nome figura como nome de ruas ou praças ou monumentos em


cidades brasileiras e essa escalada deve-se ao fato da sua importância histórica.
Em São Paulo, a Praça do Patriarca foi criada em homenagem ao patriarca da
independência. Nesta praça tem uma estátua do José Bonifácio de costas para a
Praça do Patriarca, mas de frente para a Praça da Sé que localiza o marco zero
da cidade de São Paulo. Por outro lado, a estátua fica de frente para os que vem
da área central.

FIGURA 2 – JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA, NO


MONUMENTO DA INDEPENDÊNCIA, EM SÃO PAULO

FONTE: <http://www.ambientelegal.com.br/jose-bonifacio-de-andrada-e-
silva-e-precursor-do-direito-ambiental/>. Acesso em: 2 maio 2021.

52
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

Em 2022, provavelmente teremos a ampliação do debate sobre esse


personagem nascido em Santos, em São Paulo, que foi estudar em Coimbra e
se especializou em mineralogia que era um curso de grande importância para
o império colonial. A exploração de minério deu a José Bonifácio o status de
cientista relevante para o aparelho do Estado Português que buscava fazer uma
reforma geral do Império Português.

É relevante salientar que José Bonifácio de Andrada e Silva foi estudar em


Coimbra, recebeu uma bolsa e ficou estudando na Europa durante dez anos,
inclusive conheceu Paris durante a Revolução Francesa. Estudou na Alemanha,
fez uma carreira internacional como mineralogista e em Coimbra atuou de
modo efetivo como professor. Falcão (1963, p. 152) assinala que como “Aluno
distintíssimo, principal figura acadêmica do seu tempo, não tardou em ser
aproveitado pelo governo português, ciente de seu valor inconteste”.

FIGURA 3 – PAÍSES EM QUE JOSÉ BONIFÁCIO MOROU DURANTE SUA FORMAÇÃO

FONTE: <https://jesuegraciliano.wordpress.com/reflexoes/
jose-bonifacio-uma-grande-lideranca-do-brasil/>.
Acesso em: 2 maio 2021.

Depois da aposentadoria veio ao Brasil. Weffort (2011, p. 159) esclarece que


“foi um cientista europeu de renome, homem da Corte no reinado de D. Maria I e
conselheiro de D. João VI. Como outros de sua época, formou-se em Coimbra, na
universidade reformada que sobrevivera à "viradeira" de D. Maria I”.

53
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Sua vocação nata de mineralogista encontrou campo propício


para desenvolver-se na capital da França. Ligando-se à escola
de Lavoisier, o famoso sábio gaulês, aperfeiçoou durante um
ano seus conhecimentos na seara da química, ouvindo lições
de Chaptal e Fourcroy, bem como no domínio da botânica e da
mineralogia, escutando os ensinamentos de Jussieu e Haüy,
em cada uma destas duas últimas disciplinas, respectivamente.
De Paris, onde elaborou magistral monografia sôbre os
diamantes do Brasil, apresentada à Sociedade de História
Natural dessa capital, viajou para a Alemanha, fixando-
se em Freyberg, na Saxônia, e matriculando-se em sua
famosa Academia, na qual pontificava como mineralogista
Abraham Gottlob Werner, "êmulo do francês Haüy nos
estudos montanísticos”. Em Freyberg travou relações, como
condiscípulo, com Alexander von Humboldt, tornando-se
grande amigo do futuro e formidável naturalista germânico.
Terminados os estudos com Werner, partiu para a Áustria e
para a Itália, e, dedicando-se a análises do solo em diferentes
regiões, teve ensejo de investigar os depósitos minerais do
Tirol, da Estíria e da Caríntia. Em Pávia, tomou lições com
Volta, o famoso físico, descobridor, mais tarde, da pilha elétrica
úmida acidulada, composta de cobre e zinco, que leva o seu
nome. EM Pádua, pesquisou a constituição geológica dos
Montes Eugâneos, redigindo a esse propósito valioso trabalho,
divulgado somente quase vinte anos mais tarde (1812), no
qual rebateu com segurança a teoria vulcanista da formação
dos mesmos. Rumou, pouco depois, para a Escandinávia,
em cujo território veio a descobrir e determinar doze novos
minerais (quatro espécies inteiramente novas — Petalita,
Espodumênio, Escapolita e Criolita — e oito variedades
desconhecidas de espécies já descritas — Acanticônio, Salita,
Cocolita, Ictioftalniita, Indicolita, Afrizita, Alacroita e Wernerita).
Atingiu aí o apogeu de sua fama como emérito mineralogista,
sendo na ocasião convidado pelo Príncipe Real da Dinamarca
para o cargo de intendente geral das minas da Noruega, o qual
recusou delicadamente (FALCÃO, 1963, p. 152-153).

54
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

FIGURA 4 – JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA EM UM PARQUE DE NOVA IORQUE


– BRYANT PARK ON 6TH AVENUE BETWEEN 40TH AND 42ND STREETS

FONTE: <https://jesuegraciliano.wordpress.com/reflexoes/
jose-bonifacio-uma-grande-lideranca-do-brasil/>.
Acesso em: 2 maio 2021.

O José Bonifácio foi um cientista da área mineralogista muito importante,


tanto é que conseguiu descobrir 4 minérios. Até mesmo após a sua morte foi
homenageado com o nome do minério andradita. A sua formação em engenharia,
metalurgia e mineralogia, permitiu que pertencesse a distintas academias
científicas.

Chamaram-no, assim, sucessivamente, ao seu seio, a


Sociedade Filomática de Paris e a Sociedade de História
Natural da mesma cidade (1791), a Sociedade dos
Investigadores da Natureza de Berlim (1797), a Academia Real
de Ciências de Estocolmo (1797), a Sociedade Mineralógica
de Iena, a Academia Real de Ciências de Turim (1801), a
Sociedade Werneriana de Edinburgo (1802), a Academia Real
das Ciências de Copenhague (1801), a Sociedade Lineana de
Londres, a de Ciências Físicas e História Natural de Gênova e
a de Ciências Filosóficas de Filadélfia. Finalmente, em 1819,
entrou para o Instituto de França, como sócio correspondente
da respectiva Academia de Ciências (FALCÃO, 1963, p. 154-
155).

Suas pesquisas ganharam destaque na Europa, sendo um dos descobridores


do lítio. Estava envolvido na atividade de reformar ou reverter a decadência do
Império Português. Essa sua obstinação chegou ao limite de quando “Invadido
Portugal, em 1807, pelas hostes napoleônicas, foi dos primeiros a alistar-se

55
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

no Batalhão Acadêmico, formado em Coimbra, para combater os franceses. A


princípio como major, depois como tenente-coronel, pegou em armas contra os
invasores” (FALCÃO, 1963, p. 153).

Indicamos visitar o site Clube da Química no endereço eletrônico


https://clubedaquimica.com/2016/09/23/o-litio-e-jose-bonifacio/,
nesse espaço é apresentada a descoberta do lítio e a contribuição
de José Bonifácio para esse feito. Se difere de metais alcalinos como
sódio e potássio conhecidos até então, início do século XIX. Essa
descoberta foi designada a José Bonifácio, em 1818, pelo grande
cientista Johan August Arfwedson que trabalhava no laboratório de
Berzelius. Inicialmente, Bonifácio chamava esse mineral de petalita.

Ao se aposentar quando concedido por “Dom João VI afastamento de


todas as funções públicas por tempo indeterminado, sem perda de vencimentos”
(FALCÃO, 1963, p. 154) voltou ao Brasil e foi tomado pelas ideias das revoluções
liberais. Então, “[...] atraído pelo canto de sereia da política, mudou de rumo a 90°,
dedicando-se de corpo e alma à campanha da emancipação do Brasil” (FALCÃO,
1963, p. 156).

FIGURA 5 – INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

FONTE: <http://profedeborahistoria.blogspot.com/2012/03/231-
e-232-questoes-sobre-independencia.html>.
Acesso em: 2 maio 2021.

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Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

Do confronto entre as cortes de Portugal e as elites brasileiras surge a ideia


de independência do Brasil. Weffort (2001, p. 159) pontua que Bonifácio foi “o
principal dirigente da independência, foi mentor de D. Pedro I (1798-1834), tutor de
D. Pedro II (1825- 1891), e pode ser visto ainda como o mais típico representante
da transição brasileira da colônia ao Império”.

A ideia separatista vinha de longa data criando corpo na mente


dos brasileiros natos, cansados das espoliações praticadas
pela metrópole portuguesa. Desde a abortada conspiração de
Vila-Rica em 1789, com passagem pela malograda "revolta dos
alfaiates" da Bahia, de 1798, até a encarniçada e mal sucedida
luta desenvolvida em Pernambuco, em 1817, tomara vulto o
fermento da secessão. Não era mais possível continuarem
unidos Portugal e Brasil da forma pela qual se achava em vigor
essa união (FALCÃO, 1963, p. 156).

No movimento de constituição de um novo modelo, a figura de José Bonifácio


intelectual formado na Europa e que assistiu a Revolução Francesa e se envolveu
com o projeto de transformar o Brasil em um grande império ao sul. Na proposta
de Bonfiácio era preciso não deixar acontecer com o Brasil o que ocorreu com a
América espanhola.

Compreendendo perfeitamente o problema político que se lhe


antepunha aos olhos, não trepidou José Bonifácio de dar seu
decidido apoio à causa da emancipação brasileira, entrando
com espírito superior na campanha, sem visar mesquinhos
interesses, mas animado do pensamento de construir uma
nação livre e soberana, dentro da modalidade de governo que
melhor se coadunasse com as circunstâncias do momento.
Sucessivamente aceitou postos de comando, nos quais acabou
por alcançar a direção suprema, orientando e arregimentando
as correntes diversas que batalhavam em torno do mesmo
ideal, no bom sentido da vitória, com a menor soma possível
de sacrifícios pessoais (FALCÃO, 1963, p. 156).

Defendia a unidade territorial como expressão corporal do Império. E no


que se refere ao tráfico de escravos tinha a compreensão que deveria ter fim
imediato, enquanto que a escravidão precisava ver o seu fim gradualmente. Essa
sua posição em sua época era vista como minoritária em face da sua realidade de
convivio com uma elite de proprietários de escravos. A integração dos indígenas
vendo-os como descolados da sociedade brasileira. A sua posição era contrária
ao extermínio físico indígena, apesar de ser um passo crucial para o extermínio
cultural dos indígenas.

57
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Formado no Iluminismo europeu, José Bonifácio foi um


visionário no Brasil. Em inícios do século XIX, foi o primeiro
homem público do país a falar da necessidade da civilização
dos índios, da abolição do tráfico e da escravatura, da
miscigenação das etnias, da expansão do ensino básico e
secundário, bem como da instauração de cursos superiores,
inclusive de uma universidade (como paulista, ele a reivindicava
para São Paulo) (WEFFORT, 2011, p. 160).

Na sua concepção era possível fundir brancos, negros e indígenas para dar
origem a uma população mestiça que no século XX se tornou uma visão de mundo
com teorias que ampliaram, ressignificaram e reconfiguraram essa ideologia da
mestiçagem. Ademais, defendia a construção de uma nova capital para o Brasil e
na sua versão a região seria onde na atualidade é Brasília. O nome de Brasília foi
sugerido por esse grande personagem da nossa história. Acerca desse assunto,
vale a pena recorrermos a seguinte explicação:

Foi também o primeiro a propor a mudança da capital para o


interior, o que, como se sabe, só veio a ocorrer um século e
meio depois, com a criação de Brasília. E propôs, entre outras
especificações, que a nova capital se localizasse " (...) em 15
graus de latitude, em sítio sadio, ameno, fértil e junto a algum
rio navegável". E que, a partir da nova residência da corte, "(...)
dever-se-ão logo abrir estradas para as diversas províncias e
portos de mar para que se favoreça por elas o comércio interno
do vasto Império do Brasil" (WEFFORT, 2011, p. 160-161).

O seu pensamento político foi influenciado por Humboldt e isso lhe gerou a
ideia de que uma parte importante das riquezas do Império estava na preservação
da biodiversidade. Considerando esse aspecto, Weffort (2011, p. 161) afirma que
possuía a “[...] preocupação ecológica de obrigar a que os proprietários de terra
deixem para matos e arvoredos a sexta parte do terreno, que nunca poderá ser
derrubada e queimada sem que se façam novas plantações de bosques”. Assim,
em sua visão era possível construir um Império rico, próspero e grande, para
tanto, era preciso repensar as raízes do Brasil como forma de ancorar os grandes
projetos nacionais que deveriam ser fruto de discussões amplas e amadurecidas.

58
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

FIGURA 6 – BONIFÁCIO E HUMBOLDT

FONTE: <https://apaixonadosporhistoriacanal.com/2020/10/02/jose-
bonifacio-de-andrada-e-silva-o-patriarca/>. Acesso em: 2 maio 2021.

Ele é considerado o patriarca da independência porque nesse processo se


consolidou como o principal articulador e consultor de Dom Pedro I nos momentos
anteriores à Independência. Era visto como filósofo, cientista, político e advogado.
Em Portugal pertenceu à Academia de Ciências de Lisboa e presenciou naquele
território muitos movimentos liberais e no retorno ao Brasil teve que conviver com
as lógicas políticas brasileiras.

Percebeu que se articulasse com Dom Pedro I era possível ocorrer a


Independência sob os auspícios de Dom Pedro I. No cenário português havia
o pedido do retorno de Dom Pedro I para Portugal. José Bonifácio escreveu
uma carta na qual pedia que Dom Pedro I ficasse no Brasil. Lembrando que
José Bonifácio era vice-presidente da Província de São Paulo e afirmava que
os brasileiros estavam com Dom Pedro I. Então, houve uma responsabilidade
significativa desse personagem para configurar o Dia do Fico que foi fundamental
para o processo inicial de Independência brasileira. Falcão (1963, p. 156) elucida
que

A partir de 23 de junho de 1821, quando, por aclamação


popular, é eleito vice-presidente da junta governativa de São
Paulo, inicia a grande jornada em prol da causa brasileira,
procurando aproximação eficiente com o Príncipe Regente,
no Rio de Janeiro, induzindo-o a abraçá-la francamente.
Sete meses mais tarde, vem a integrar o primeiro gabinete
ministerial, formado logo após o histórico Fico de 9 de
janeiro de 1822, desobediência inicial aberta do herdeiro da
Corôa Portuguesa às determinações de Lisboa, para a qual
concorrera decisivamente com o famoso manifesto de 24 de
dezembro de 1821, subscrito na capital paulista.

59
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

FIGURA 7 – DIA DO FICO

FONTE: <https://conhecimentocientifico.r7.com/dia-do-fico/>.
Acesso em: 2 maio 2021.

A independência de um país não pode ser uma obra de um homem ou de


um pequeno conjunto de autoridades. Trata-se de um processo sociológico,
econômico e cultural que demanda um espírito nacional. No caso de José
Bonifácio, teve a coragem de ver e enfrentar, bem como de acreditar na afirmação
da nacionalidade.

Com isso Dom Pedro I nomeou José Bonifácio ministro do reino e dos
estrangeiros e com o cargo e articulação política foi buscar apoio para a
independência do Brasil em Londres, em Paris, na Argentina e assim sedimentou
todo o contexto favorável para que em 7 de setembro de 1822 gritasse a
independência.

Uma figura de grande influência no primeiro imperador, tanto que se tornou


ministro e se apresentou como crucial para a noção de que era preciso aceitar a
Constituição e um parlamento eleito. Ao mesmo tempo convenceu os republicanos
a aceitarem o monarca e consolidar uma monarquia constitucional no Brasil.

Era um liberal que prezava muito pelas liberdades individuais que não
estavam fixadas em códigos, leis e constituições. Naquela época, fez a defesa
na constituinte uma posição de finalização progressiva da escravatura. Pontua-
se que, em 1822 e 1823, essa manifestação era vista como radical, em função
de que nenhuma colônia inglesa havia abolido a escravidão e se tinha notícia
somente do Haiti que havia enfrentado essa realidade e as consequências foram
o desmantelamento da economia. Falcão (1963, p. 156-157) contextualiza que

60
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

No Conselho de Ministros empossado a 16 de janeiro daquele


outro milésimo, é chamado a ocupar a pasta política por
excelência, isto é, a de Ministro do Reino e dos Negócios
Estrangeiros. Daí por diante acentua-se a influência de José
Bonifácio nas decisões de Dom Pedro, fazendo-o tomar atitudes
cada vez mais hostis às Cortes de Portugal, para culminar com
o brado de independência lançado às margens do Ipiranga
a 7 de setembro imediato. Instrumento de relêvo de que se
serviu para conseguir os fins em apreço foram as sociedades
secretas da época, representadas pela maçonaria, dentro da
qual atingiu os mais elevados graus, tornando-se grão-mestre
geral da federação maçônica brasileira, fundada em 17 de
junho de 1822. São por demais sabidos os passos dados pelo
grande santista para formação da nova nação americana,
inclusive a organização da defesa, confiando os postos de
comando militar a experimentados chefes, como o general
Pedro Labatut e o almirante Lord Cochrane, comandantes
supremos das forças de terra e mar respectivamente, por fim
vitoriosas nas refregas da Bahia, ainda jungida à metrópole
por poderosos contingentes reinóis do general Madeira,
expulso finalmente do solo baiano a 2 de julho de 1823.
Ministro do Império do Brasil independente nascido a 12 de
outubro de 1822, mantém-se José Bonifácio no poder por
pouco tempo. Seu espírito altivo, inconciliável com ações
menos dignas, leva-o a divergir profundamente do Imperador
Pedro I, tornando-se por último acérrimos adversários no seio
da Assembléia Constituinte, convocada para traçar a carta
magna do Brasil. A 15 de julho de 1823, deixa definitivamente
o governo, demitindo-se do cargo de primeiro-ministro. Dentro
da Assembléia move tenaz oposição ao soberano. E a 12 de
novembro seguinte, dissolvida violentamente aquela câmara
de representantes do povo, por decreto imperial, é preso José
Bonifácio e atirado numa infecta enxovia. Triste destino de
um homem que, meses antes, todo-poderoso, fosse o artífice
máximo da Pátria Brasileira.

As suas defesas não agradaram as elites brasileiras e isso incomodou a


Dom Pedro I. O fato é que “Mais do que qualquer outro dos líderes da época,
ele assinalou os compromissos liberais que estavam na raiz da independência,
o que não foi bastante para livrá-lo das contradições inevitáveis na sociedade
conservadora e escravocrata em que vivia” (WEFFORT, 2011, p. 159).

Essa dificuldade de diálogo resultou em asilo político na França durante seis


anos. No retorno ao Brasil exerceu importante papel na política local de Santos.
Sem dúvida, esse aluno superdotado que sabia falar várias línguas. Formado
em Direito em São Paulo, nomeado catedrático de direito civil na Faculdade de
Direito de Pernambuco, se notabilizou como um grande professor e exímio orador
com apego às liberdades. Teve como alunos notáveis os seguintes nomes: Rui
Barbosa, Joaquim Nabuco, Castro Alves, Afonso Pena e Rodrigues Alves.

61
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Exercia seu magistério em escolas brasileiras destinadas à elite brasileira.


Como parlamentar se distinguiu pela formidável oratória. Quando assumia a
tribuna para se pronunciar no parlamento o público se enchia de emoção. As suas
defesas eram eloquentes e tocavam nos pontos fundantes da sociedade imperial
questionando a representatividade nacional, bem como a promoção de tiranias
que sacrificavam os interesses do povo brasileiro. Defendia o voto para todos no
Senado Federal.

Em 1883 o imperador o convidou para ser primeiro ministro e ele recusou


porque manifestou que não podia ser primeiro ministro de um gabinete escravista
porque iria contra todo o seu passado. Possuía uma grande admiração de Luiz
Gama em razão do seu posicionamento e coragem. A história de Luiz Gama é
marcada pela resistência à escravidão e por invenções negras de liberdade. Foi
vendido como escravo pelo próprio pai. Mas conseguiu se alfabetizar e se alforriar.
Como advogado prático, um rábula que não tinha formação jurídica, mas atuava
como advogado. Em São Paulo também como jornalista aceitava as causas de
libertação de escravo que lhe chegavam. Montava às defesas em benefício da
comunidade negra privada de liberdade e conseguiu apoio na Faculdade de
Direito de São Paulo, tanto de José Bonifácio quanto de seus parentes, que
começaram a fazer pareceres jurídicos de grande peso que eram apresentados
nos processos em defesa dos seres humanos em regime de escravidão.

José Bonifácio lutou muito pela abolição, sobretudo mais ao final de sua
vida, e ajudava em causas que colaboraram para a criação de uma nova ordem
social. Desenvolveu toda uma compreensão de que a justiça estava distante da
legalidade e a sua morte acontece antes da abolição da escravatura.

Foi também uma das primeiras autoridades públicas do


Brasil a propor a abolição da escravatura. Em seus tempos
de convivência com a Corte portuguesa já se percebia o
visionário, como nestas palavras de um poema em que apela
a D. João VI: "Ilumina teus Povos; dá socorro,/Pronto e seguro,
ao Índio tosco, ao Negro,/Ao pobre desvalido". Fundador do
novo Estado sob as roupagens da monarquia constitucional,
Bonifácio antecipou temas fundamentais da história do
Império, alguns dos quais se estendem até hoje (WEFFORT,
2011, p. 159).

Esse personagem é emblemático para a história do Brasil Percorreu a


Prússia e os Estados Nórdicos em um momento em que Napoleão estava agindo
com suas tropas e mergulhando a Europa em uma grande sombra. Viveu em
Portugal durante 34 anos e retorna ao Brasil e traz ideias liberais e participou de
modo ativo na emancipação. A sua presença como ministro do reino é cheia de
percalços, conflitos e inimigos. Defendeu intransigentemente a ideia de unidade
territorial e do poder brasileiro. O Brasil como o grande maciço territorial do

62
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

hemisfério sul e a maior nação deste hemisfério. As elites políticas brasileiras


tinham um projeto de Estado com poder centralizado. E a ideologia de Estado que
prevaleceu no Brasil sustentava o pensamento de uma unidade territorial que foi
capaz de conter a divisão do Brasil em outros países.

E a vinda da família real foi importante, mas o pensamento de José Bonifácio


como o principal defensor dessa noção do Brasil como um país único que promove
a integração da Amazônia ao Rio Grande do Sul sedimentada na concepção de
três raças. É uma ideia fundadora que divergia do pensamento de Frei Caneca
que se posicionava em referenciais federalistas de independência.

Lembrando que a vinda da família real foi um fato novo inclusive na Europa,
pois muitos monarcas se exilaram em outros territórios quando sentiram a expansão
dos efeitos da Revolução Francesa para todo o velho mundo, mas nenhum deles
se exilou no próprio Império. Weffort (2011, p. 155) nos ensina que “Embora de
há muito prevista pelos estadistas portugueses como uma possibilidade, e nas
circunstâncias da política europeia, admitida como conveniente pelos ingleses,
a vinda da Corte para o Brasil foi uma surpresa para os brasileiros”. No entanto,
foi mais que uma surpresa se constituiu como uma nova maneira de pensar e de
posicionar o Brasil no pensamento político da época, dado que agora estaria mais
próximo do poder ou seja do centro de decisão.

Em 1808, a sede do reino transferiu-se de Lisboa para o Rio de


Janeiro, então com apenas cinqüenta mil habitantes. Até 1817
chegaram ao Rio cerca de 24 mil portugueses, somados os que
vieram com o rei e os que vieram depois, em sucessivas levas.
Juntando aos recém-chegados de Portugal os que vieram da
própria colônia, estimulados com a notícia de que a cidade se
convertera em sede da Corte, o Rio dobrou de tamanho de
1808 a 1817. Logo depois da chegada de D. João, abriram-se
os portos, tornou-se livre a indústria e o comércio, e tomaram-
se medidas que converteriam o Rio de Janeiro numa "cópia de
Lisboa". 4 As mudanças vividas pela cidade antecipavam nos
fatos a Independência do país, que, em caráter político formal,
chegaria em 1822 (WEFFORT, 2011, p. 155).

Como se percebe pelo registro, foi um fato extraordinário que remonta a


perspectiva de que o que fosse porventura perdido na Europa seria recuperado
no Brasil que se poderia tornar um poderoso império em função de suas
potencialidades que com uma boa administração poderia ser uma boa alternativa
em face da possibilidade de invasão das forças napoleônicas. É o Brasil se
despontando como oportunidade para o Império se firmar e conquistar territórios
e expandir perante as colônias espanholas. Essa empreitada contou com o apoio
inglês.

63
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

A continuidade entre a colônia e o Brasil independente se


tornaria em pouco tempo evidente aos observadores que
dessem atenção ao significado da permanência de um ramo
da dinastia dos Bragança dirigindo os destinos da nova
nação. Mas havia algo mais profundo e que vinha de há mais
tempo: a colônia havia gerado sinais de independência que se
evidenciavam desde o século XVII nas guerras holandesas e
no reconhecimento dos Bragança pelos colonos. Como diria
Martins, "o império português na América é bem a obra dos
brasileiros, de sua energia, de sua audácia". 7 Mas, embora
cada vez mais independente de Portugal, o país se tornaria,
desde a vinda da Corte de D. João, cada vez mais dependente
da Inglaterra. Uma dependência que também vinha de longe,
desde o tratado de Methuen (1703), que levou todo o Império
português a uma "forçada vassalagem ao comércio britânico"
(WEFFORT, 2011, p. 156).

Na perspectiva de José Bonifácio, a consciência geográfica do Brasil e de sua


unidade nacional edificou a compreensão da organização fundiária e dos desafios
que isso reporta para a necessidade de desmontar o sistema de sesmaria do
Brasil ao mesmo tempo que se deparava com a construção explícita da história do
Brasil iluminada por uma nova realidade na qual se precisava edificar um quadro
cultural próprio do Brasil, assim como da concepção do território brasileiro como a
base para a vida social e política que estava em construção.

FIGURA 8 – O POLÍTICO JOSÉ BONIFÁCIO

FONTE: <https://www.pinterest.ch/pin/297659856601494104/>.
Acesso em: 2 maio 2021.

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Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

É um homem ambicioso, que queria ser nobre, fidalgo, no entanto, luta contra
o sistema do antigo regime. Se queria abolicionista, mas era tolerante ao processo
de escravidão. Cultiva ideias sobre reforma agrária reconhecendo a necessidade
de mudar as leis sobre as propriedades de terra. Ainda a esse respeito defendia
uma sesmaria pequena para serem doadas aos pobres, aos indígenas, aos
mulatos, aos negros forros, dentre outros, como forma de favorecer o cultivo e o
estabelecimento dessas pessoas com dignidade (WEFFORT, 2001).

Bonifácio fez também defesa da inserção de indígenas, entretanto, nos deixa


a concepção de mestiçagem no Brasil. Recorre a perspectiva do amalgamamento
para sustentar a lógica da união entre os brasileiros contrária a ótica da divisão
racial. É um caminho que sustentava o horizonte em que todos dariam as mãos.

Na sua defesa da educação técnica e da industrialização percebe-se a sua


visão resultante da vivência que teve com a Revolução Industrial na Europa. Sabia
da importância desse passo na nossa história, no entanto, a nossa industrialização
só veio a acontecer tardiamente. Foi o primeiro chanceler do Império brasileiro
e conseguiu promover os primeiros reconhecimentos da nova nação brasileiro
defendendo uma política externa de dignidade nacional, universalismo e boa
convivência.

O seu espírito brasileiro sempre esteve aceso e se alimentou de um ideal


de país que teve relação com o seu enraizamento com os anseios nacionais e
vislumbramento das nossas potencialidades que iluminam a ideia de uma enorme
nação. As aspirações fortíssimas de grandes pensadores como é o caso de José
Bonifácio que foi reconhecido pelo Barão do Rio Branco.

Não resta dúvida que José Bonifácio foi marcado por muitas contradições,
haja vista que era um liberal e conservador, também era portador de um
autoritarismo instrumental ou pedagógico. Além disso era um idealista assentado
no pragmatismo e um brasileiro convicto e concomitantemente cosmopolita.
Preocupado com a liberdade individual e com o progresso social. Sem dúvida
um ser contraditório, mas que traduz a complexidade de um país de dimensão
continental que assegurou a unidade territorial. Foi o fundador que teve a
perspectiva ou o horizonte de um país magnífico e potente.

65
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

1 Leia o poema Ode aos baianos, escrito por José Bonifácio, e


responda a questão que será apresentada na sequência.

ODE AOS BAIANOS

[...]

Duas vezes, Bahianos, me escolhestes


Para a voz levantar a pró da pátria
Na assembléia geral; mas duas vezes
Foram baldados votos.

Porém enquanto me animar o peito,


Este sopro de vida, que ainda dura
O nome da Bahia, agradecido
Repetirei com júbilo.

Amei a liberdade, e a independência


Da doce cara pátria, a quem o Luso
Oprimia sem dó, com riso e mofa —
Eis o meu crime todo.

Cingida a fronte de sangrentos loiros


Horror jamais inspirará meu nome;
Nunca a viúva há de pedir-me o esposo,
Nem seu pai a criança.

Nunca aspirei a flagelar humanos —


Meu nome acabe, para sempre acabe,
Se para o libertar do eterno olvido
Forem precisos crimes.

66
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

Morrerei no desterro em terra estranha,


Que no Brasil só vis escravos medram —
Para mim o Brasil não é mais pátria,
Pois faltou a justiça.

[...]

Publicado no livro Poesias (1861)

BONIFÁCIO, José. Poesias. Edição fac-similar da Príncipe, de 1825,


extremamente rara; com as poesias ajuntadas na edição de 1861, muito
rara; com uma contribuição inédita. Rio de Janeiro: Publicações da
Academia Brasileira, 1942. p.157-158 (Coleção Afrânio Peixoto).
NOTA: Poema composto de 136 quadras
Disponível em: https://www.escritas.org/pt/t/12571/ode-aos-baianos
Acesso em: 27 abr. 2021.

A partir da leitura do poema e das reflexões desenvolvidas até o momento


acerca desse autor responda a seguinte questão: Qual a importância que José
Bonifácio atribuiu para as potencialidades brasileiras?

2.1 JOSÉ DE ALENCAR: DO


ROMANTISMO INDIGENISTA AO
CONSERVADORISMO
José de Alencar teve papel essencial na projeção de uma literatura brasileira,
reconhecido inclusive por Machado de Assis. Em seus romances, ele aborda
geograficamente e historicamente o nosso país. A sua literatura era um projeto
de brasilidade manifestadas por expressões e comportamentos dos personagens.

Acerca da relação entre Machado de Assis e José de Alencar, pontuamos


que a estética do realismo se opôs a do romantismo porque buscava externar
versões mais realistas de fatos e comportamentos humanos, bem como mostras
aspectos mais realistas dos costumes da sociedade de sua época. Ressalta-se
que, mesmo aparentemente opostos, o realismo e o romantismo tinham pontos
em comum porque na interpretação literária é possível conceber o realismo com
uma continuidade do próprio romantismo, haja vista que elegem o homem como
o centro de suas produções. Assim, Gadelha (2014, p. 8) apresenta o seguinte
entendimento:

67
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Entende-se, desse modo, que há uma confluência de


características entre as estéticas, por apresentarem
personagens mais humanos, portadores de vícios e virtudes;
descrições com o intuito de conceder verdade à ficção, de
forma condizente à realidade; bem como em virtude da crítica
a sociedade. Assim, não se deve considerar as correntes
como opostas, quando na verdade elas se interagem e se
complementam.

Dito isso, fica evidenciado que a produção literária de Machado de Assis


e de José de Alencar se aproximaram de modo a contrariar as fragmentações
interpretativas que se costuma enquadrar tais autores. Essa realidade se torna
evidenciada na explicação de Gadelha (2014, p. 8) ao afirmar que

[...] tanto o autor de Iracema como o de Dom Casmurro


observaram, criticaram e representaram a sociedade de seu
tempo, trazendo à luz personagens ambíguos e densamente
humanos. Entende-se, portanto, que esse diálogo comparativo
se faz possível, visto que ambos os escritores não se
delimitaram aos preceitos literários das correntes a que
pertenceram.

Não se trata do primeiro a produzir romance no Brasil, mas a sua escrita


de Guarani, em folhetins, construiu um projeto de nacionalidade brasileira. Os
romances de José de Alencar têm toda uma conotação teatral e que causam
encantamento em seus leitores. Pondera-se que o século XIX passou por
profundas transformações que mantinham divisões do mundo em classes e
o Brasil clamou por sua independência. Nesse contexto, Alencar penetrou nos
dilemas de sua época e deixou suas marcas na história.

Para tornar mais explícito o papel da literatura produzida por José de Alencar,
cabe ressaltar o sentido do romantismo que surgiu na Europa por volta de 1770.
Em tal contexto europeu, de uma maior liberdade formal, assumiu a feição de
contraposição ao ambiente clássico que prevalecia no século XVIII. Por mais que
seja notória a manutenção de algumas características semelhantes às clássicas
nas obras românticas. Como ilustração disso, Gadelha (2014, p. 10) assinala que
“A natureza, bem como o mito e o símbolo, instrumentos poéticos independentes
do período, eram recorrentes tanto na poesia clássica quanto na romântica,
diferindo, todavia, na maneira em que eram empregados”.

Essa perspectiva coaduna com o entendimento de que o classicismo estava


dedicado à promoção dos valores greco-romanos e para isso articulou os seus
elementos míticos e simbólicos, fazendo com que a natureza figurasse como
cenário, enquanto no romantismo os elementos míticos e simbólicos assumem
a característica conceitual associada à ideia de “nativo”, pois os românticos
construíam suas obras focados em

68
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

[...] aspectos que remetessem a um povo, a um lugar específico,


a um herói representativo firmando, assim, uma identidade
através das descrições dos costumes, da cultura, dos trajes,
dos ambientes, das pessoas e da sociedade da época; ou seja,
“acentuar a peculiaridade vegetativa de cada povo”; de modo
que a natureza, agora, ganha vida, está interligada ao poeta,
é o local em que se busca inspiração. Apresentando, portanto,
um posicionamento anticlássico, o romantismo propunha o
fim da submissão aos arquétipos, à imitação desses padrões,
bem como ao equilíbrio, à objetividade e à conformidade
(GADELHA, 2014, p. 10).

Diante dessa realidade, o romantismo se firma como uma proposta inovadora


que prezava pela imaginação e pela criatividade dos seus autores. Uma grande
oportunidade de explorar o subjetivismo da escrita literária em que o interior do
escritor dialoga com o exterior da ação política de modo indissociável.

Não somente no gênero poético se concretizou a ruptura


com os ideais clássicos. Com o romance romântico, o
escritor apresenta narrativas caracterizadas pela presença do
sentimento amoroso, por personagens heroicos vivenciando
aventuras, mas sempre rompendo de algum modo com a
tradição clássica. Além desses enredos que seguiam o estilo
das novelas de cavalaria medievais, com o amadurecimento
do romantismo e com as mudanças pelas quais estava
passando a sociedade, como o surgimento e a consolidação
da burguesia, a prosa romântica, no geral, passa a colocar em
cena o indivíduo em conflito com o mundo, uma espécie de
desajustamento, ou incompatibilidade, que o leva a refugiar-se
na natureza ou mesmo na morte, como forma de escapismo
(GADELHA, 2014, p. 11).

Em face dessas características sedimentadas no território europeu, o


romantismo brasileiro edificou uma estética nacional que tinha como propósito fazer
a ruptura com o neoclassicismo, assim como consolidar uma estética que desse
conta de colaborar para o esculpir de um ideário de uma nova nação pulsante por
reconhecer a sua identidade nacional que conflitava com o pensamento literário
da corte portuguesa. Nesse sentido, recorreu-se a “[...] criação de um passado
histórico com heróis tipicamente brasileiros, principalmente na figura do índio; e
a celebração da natureza, das peculiaridades do país, em suma, a valorização
da cor local” (GADELHA, 2014, p. 11). Em face do movimento de independência
no campo da política a corrente romântica ganhou força e convergência com os
ideias daquele tempo. À vista disso, o nome de José de Alencar assume grande
envergadura no debate acerca do pensamento político brasileiro.

Esse intelectual que articulou sua vida política com a literatura no período
do Império e todas as suas nuances teve a história de sua família marcada
por posições tidas como revolucionárias para a época. Cabe destaque o nome

69
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

significativo de sua avó, Bárbara Pereira de Alencar, que ganhou relevo como
revolucionária chegando a ser a primeira presa política da história do Brasil,
momento em que foi brutalmente torturada na Fortaleza de Nossa Senhora de
Assunção, e que teve singular participação na Revolução Pernambucana e na
Confederação do Equador.

FIGURA 9 – PRISÃO E MORTE DOS REVOLUCIONÁRIOS


DA REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817

FONTE: <http://revolucaopernambucanade1817.blogspot.com/2017/03/9-
prisao-e-morte-dos-revolucionarios-de.html>. Acesso em: 2 maio 2021.

Pondera-se que a Revolução Pernambucana de 1817 lutava pela


independência e pela república. Esse movimento tinha semelhanças com a
Inconfidência Mineira ocorrida no final do século XVIII, como, por exemplo,
envolver apenas parte do Brasil, até mesmo porque essa ideia de Brasil como
única nação ainda não imperava no imaginário brasileiro. O sistema de governo
dos Estados Unidos da América era uma inspiração republicana para os
revolucionários pernambucanos. Entendiam que os regimes políticos não davam
conta das demandas dos governos locais. Uma parte da elite representada por
proprietários rurais, comerciantes, militares e clero estava descontente com as
medidas adotadas pelo governo de Portugal. Assim, a Revolução Pernambucana
decretou a liberdade de imprensa, a liberdade de culto e a igualdade entre
pessoas livres e assim recebeu apoio dos Estados Unidos. Desse modo, foi uma
primeira experiência republicana no Brasil que marcou a nossa história política.

70
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

FIGURA 10 – CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR: REPÚBLICA DO NORDESTE

FONTE: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/
confederacao-equador-historia-brasil.phtml>. Acesso em: 2 maio 2021.

Por sua vez, a Confederação do Equador tinha como ideais os pensamentos


republicanos e liberais em busca da separação do Brasil. A elite agrária que
começou a participar dessa proposta percebeu a noção de centralização,
pregando o fim do tráfico de seres humanos oriundos do continente africano e as
camadas populares queriam a abolição total da escravidão. Essas divergências
complicaram as relações na Confederação do Equador e os embates em torno
dos interesses divergentes provocaram clivagens que facilitaram a atuação de
Dom Pedro I e isso implicou no fim do movimento liderado por Frei Caneca. Então,
esse foi um momento em que o Nordeste quase se tornou uma outra constituição
de espaço republicano antes da proclamação da República.

Feitas essas considerações acerca da Revolução Pernambucana e da


Confederação do Equador, fica patente o significado desses eventos para o
nosso pensamento político com matiz nordestina. E, Bárbara Alencar se firmou
nesses episódios como uma heroína republicana que acumulou uma história
política de proclamação da república em Crato no Ceará. Essa atuação garantiu a
inscrição do nome de Bárbara Alencar no Livro dos Heróis da Pátria por força da
lei 13.056/2014.

Outros nomes relevantes de sua família foram os de seu tio Tristão


Gonçalves, Leonel e o próprio pai de José de Alencar, o José Martiniano Pereira
de Alencar, que foi revolucionário e se tornou articulador do golpe da maioridade
de Dom Pedro II. Lembrando que seu tio Tristão Gonçalves foi uma das figuras
mais relevantes da Confederação do Equador. Assim, Alencar teve uma vida
de herdeiro próximo à elite imperial e, dessa forma, pôde estudar nas melhores
instituições educacionais de sua época.

71
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Alencar não escreveu uma biografia do pai, que foi, contudo, um


político de nomeada, membro de uma família de proprietários
de terras e de escravos. Mas suas lembranças de infância e
adolescência são coerentes com o cenário da grande inflexão
histórica que vivia o país. As origens de Alencar fariam prever
o rebelde mais do que o liberal conservador que se tornou em
sua atividade política (WEFFORT, 2011, p. 179).

Esse grande ícone da escola romântica brasileira deixou suas marcas


profundas por meio da linguagem de folhetim, o qual se destacou como essencial
divulgador das expressões culturais do século XIX no Brasil. A tradição de José
de Alencar foi herdeira de sua trajetória de vida em busca da construção de um
herói nacional. Isso porque o campo intelectual do século XIX estava empenhado
na invenção da nação brasileira.

Nesse tom, virgulamos que uma viagem ainda com seus nove anos de idade
deixou traços profundos em seu horizonte e que nortearam as suas produções
literárias. Nessa viagem saiu de Crato (CE) até o Rio de Janeiro (RJ). Dessa longa
viagem despertou o seu amor pela natureza brasileira. Recorremos ao verbete da
Enciclopédia Itaú Cultural que elucida o peso das viagens em sua caminhada na
política e no seu repertório imaginativo para a produção de suas obras literárias.

Seus primeiros anos de vida são marcados por mudanças


e viagens, determinadas pela vida política do pai, também
José Martiniano de Alencar, até que, em 1839, se muda
definitivamente para o Rio de Janeiro. Entre 1837 e 1838, José
de Alencar faz com os pais uma viagem ao sertão da Bahia,
cuja paisagem fica marcada em sua memória e é inspiração
para seus futuros romances: O Sertanejo, O Guarani e Iracema
(JOSÉ, 2021, p. 1).

72
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

FIGURA 11 – O SERTANEJO, DE JOSÉ DE ALENCAR

FONTE: <https://www.traca.com.br/livro/786395/sertanejo/>.
Acesso em: 2 maio 2021.

Foi criado em meio a livros de aventuras e romances. Teve a oportunidade


de estudar na Faculdade de Direito de São Paulo, por excelência, destinada aos
filhos da elite imperial, onde pôde ler grandes pensadores franceses. O terceiro
ano de direito cursou na Faculdade de Direito de Olinda e isso foi fundamental
em razão da sua presença na Biblioteca do Mosteiro de São Bento construída
no estilo arquitetônico barroco, onde foi o primeiro mosteiro beneditino brasileiro,
lugar em que teve acesso aos cronistas brasileiros da época do Brasil colonial e,
desse modo, pôde aprofundar suas leituras e interpretações acerca da invasão
holandesa. Além desse aspecto, pôde também ter conhecimento de atas, cartas e
demais documentos que envolviam a obra evangelizadora no Brasil. Esclarece-se
que “Durante o tempo de estudante publica artigos de crítica na revista Ensaios
Litterarios e, em 1854, estreia no jornal Diário do Rio de Janeiro, como cronista.
No mesmo ano transfere-se para o Correio Mercantil, em que assina a seção Ao
Correr da Pena” (JOSÉ, 2021, p. 1).

Nesse tempo, a Europa vivia a força avassaladora da Revolução Industrial


e os trabalhadores reagiam como forma de luta pela sobrevivência em face da
força destruidora que o sistema capitalista fazia a imposição de cargas horárias
maçantes e condições indignas de trabalho com salários irrisórios. No Brasil, o
Império enfrentava mais uma crise após a abdicação de Dom Pedro I e a força
dos conservadores das elites rurais emparedava o país com suas ideias.

73
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

O Golpe da Maioridade conseguiu dar vida nova ao Império. José de Alencar


escreveu as famosas cartas sobre a Confederação dos Tamoios, as quais
acatavam os poemas do poeta do Imperador, Gonçalves de Magalhães, que
escreveu em 1856 o poema épico Confederação dos Tamoios.

FIGURA 12 – GOLPE DA MAIORIDADE

FONTE: <https://periodorengencial.wordpress.com/golpe-da-maioridade/>.
Acesso em: 2 maio 2021.

Esse romancista e político conservador construiu sua literatura em busca de


um herói brasileiro e de uma Eva nacional, devido, como já mencionado, à tarefa
de invenção do Brasil enquanto nação. Montou um antimodelo de epopéia e se
tornou o escritor mais popular do Brasil por meio da obra O Guarani. Essa obra
prima foi escrita originalmente para o jornal e isso envolvia a população como
se fosse uma novela, provocando comoção pública para saber o desenrolar das
histórias. Prendia o leitor como ninguém em seus fascículos. A nacionalidade
heróica foi criada em figura de um símbolo capaz de gerar legados para o
imaginário brasileiro e construiu um espaço de prestígio para a literatura nacional
como meio de edificar a síntese da brasilidade.

De um modo ou de outro, a mitologia de Alencar persistiu e


abriu caminho para um dos ramos do romance brasileiro que
prosseguiu até o século XX. Os mitos de Alencar cumpriram
algumas das funções que se espera de uma ideologia,
iluminando alguns aspectos da realidade, colocando outros na
penumbra, senão apagando-os de todo (WEFFORT, 2001, p.
182).

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Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

Discurso de José de Alencar na Câmara


dos Deputados no ano de 1871

Eis o que nós queremos. É a redenção do corpo e da alma; é a


reabilitação da criatura racional; é a liberdade como símbolo da
civilização, e não como um facho de extermínio. Queremos
fazer homens livres, membros úteis da Sociedade, cidadãos
inteligentes, e não hordas de selvagens atiradas de repente no seio
de um povo culto (José de Alencar em discurso na Câmara dos
Deputados, 1871).

Como deputado e jornalista fazia pronunciamentos e publicações contrários


a Dom Pedro II, denunciando os absurdos com a Guerra do Paraguai. Em nome
da tradição política da sua família, consolidou-se como alguém convicto de seus
projetos e perspectivas para o Brasil. Enfrentou grandes desafios e chegou a ser
ministro da justiça no governo de Dom Pedro II. Entendia que a política era uma
oportunidade de lutar pela nacionalidade.

FIGURA 13 – A VERGONHA DA GUERRA DO PARAGUAI

FONTE: <https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/as-
feridas-da-guerra-com-paraguai-ainda-latejam/>.
Acesso em: 2 maio 2021.

75
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

O cenário das colônias era de sustentação das aristocracias rurais e trabalho


escravo. O período foi marcante pela imigração de europeus, sobretudo alemães
e italianos para o sul do Brasil como alternativa para substituir a mão-de-obra
escrava. Nas obras de Alencar se apresenta uma sociedade de brancos e
indígenas, uma sociedade mestiça em que o negro não figurava como elemento
fundador da nação.

Na visão dele, o trabalho escravo não era um elemento fundador da nação.


A lei do Ventre Livre e a lei dos Sexagenários tiveram em José de Alencar uma
oposição ferrenha. Defendia a finalização da escravidão lenta e gradual. Trata-se
de uma leitura que tinha como argumento que ainda não estava organizado o
mercado de trabalho. Considerando os embates e os posicionamentos de José de
Alencar acerca da Lei do Ventre Livre, esclarece-se que

José de Alencar resistiu firmemente e posicionou-se contra


a medida de 1871 juntamente com outros 34 Deputados.
Número insuficiente para barrá-la. Depois de aprovada com
61 votos a favor pela Câmara dos Deputados, em 29 de
agosto, a medida passou pelo Senado e o executivo, na figura
da Princesa Isabel, sancionou-a. Sob os ditames de um
Gabinete conservador se instituiu a Lei do Ventre Livre em
28 de setembro de 1871. Dentre alguns pontos da lei estão: a
concessão da liberdade aos filhos de mulher escrava, nascidos
a partir daquela data; a criação de um Fundo de Emancipação;
a permissão ao escravo de formar pecúlio e a instituição de
uma matrícula de todos os escravos existentes no Império. A lei
que para Joaquim Nabuco representou, apesar dos pesares,
“o primeiro ato de legislação humanitária da nossa História”
(NABUCO, 2003, p. 78), parecia aos olhos de José de
Alencar um arriscado golpe contra o futuro da Nação (SIMÕES,
2011, p. 179).

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Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

FIGURA 14 – LEI DO VENTRE LIVRE

FONTE: <https://www.historiafacil.com.br/artigos/historia-do-brasil/lei-do-ventre-livre/>.
Acesso em: 3 maio 2021.

FIGURA 15 – LEI DOS SEXAGENÁRIOS

FONTE: <https://brainly.com.br/tarefa/35791364>.
Acesso em: 3 maio 2021.

Dado que estava associado aos cafeicultores do Rio de Janeiro. Dessa


forma, defendia os indígenas e os portugueses, mas desconsiderava os negros.
Essa discussão que envolve a emancipação dos escravos, desde o final dos anos
1860, renderam volumosas produções e José de Alencar se destacou porque se
posicionou

77
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

contra a tentativa de emancipação dos nascituros, proposta


pela Lei do Ventre Livre, em 1871. Defendendo uma
emancipação espontânea, pela revolução social dos costumes,
Alencar argumentou que a escravidão possuía uma missão
civilizatória e que, há seu tempo, permitiria ao escravo civilizar-
se pelo trabalho, habilitando-o a apreciar a liberdade como ser
independente e racional. Liberdade e civilização aparecem
como conceitos chave de sua elaboração teórica, os quais
não podem ser perfeitamente compreendidos sem levar-se em
consideração, primeiramente, a construção de uma identidade
nacional pelo romantismo brasileiro do século XIX, visto que
Alencar nela se inseriu e, em segundo lugar, o arcabouço
teórico mais amplo de José de Alencar contido em sua obra
política, O sistema representativo, de 1868 (SIMÕES, 2011,
p. 177).

FIGURA 16 – CAFEZAIS NO RIO DE JANEIRO

FONTE: <https://ferdinandodesousa.com/2020/08/27/a-
chegada-dos-cafezais-ao-rio-de-janeiro/>.
Acesso em: 3 maio 2021.

Ficou conhecido como o chefe da literatura brasileira. Ele revolucionou a


escrita com Iracema haja vista que ficava no limite entre a poesia e a prosa. Foi
realmente uma vanguarda para o seu tempo. O mito da nacionalidade brasileira
colabora para a ideia de gênese do povo brasileiro. Teve uma grande audácia
porque conseguiu estabelecer a fusão do tupi com o português adequado ao
Brasil. Promoveu nossos elementos linguísticos originais em distinção aos traços
marcantes do português de Portugal. Ainda podemos ressaltar que as concepções
de liberdade e de civilização permeiam a produção política e literária de José de
Alencar.
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Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

FIGURA 17 – IRACEMA, DE JOSÉ DE ALENCAR

FONTE: <http://proffernandapantoja.blogspot.com/2011/04/
normal-0-21-false-false-false-pt-br-x.html>.
Acesso em: 2 maio 2021.

Esse autor trabalha “[...] com a afirmação de uma identidade nacional,


essencialmente romântica, que excluía o negro de sua composição” (SIMÕES,
2011, p. 180) na qual reportava ao pensamento político e literário que tinha como
foco a consolidação do entendimento conservador de “[...] homem, o cidadão,
o voto, a representação política” (SIMÕES, 2011, p. 180). E, dessa forma,
asseguraria uma transição lenta, gradual e com garantias para os padrões de
civilização que reconhecera como essenciais para civilizar o negro, tornando-o
digno de usufruir da liberdade.

Feitas essas considerações, acrescenta-se que contribuiu fundamentalmente


para a sedimentação de uma linguagem brasileira. Trabalhou poeticamente os
termos indígenas e em sua época os tradicionalistas o criticavam por isso. As
suas temáticas para a história da literatura foram capazes de inventar uma nova
literatura que consome suas energias. O índio se apresenta como herói em seus
romances indianistas, além disso, buscou mostrar as nuances regionais acerca
de tipos como o gaúcho e o sertanejo.

Iracema é o encontro de um guerreiro branco, militar, português e colonizador


com uma índia filha do pajé e romanticamente estabelece uma relação fortíssima.
O filho do casal recebe o nome Moacir (filho do sofrimento) que é entregue ao
guerreiro branco para que ele simbolicamente ficasse com o filho após a Iracema

79
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

(a América) tenha morrido. Também se voltou a trabalhar sobre a realidade


urbana, com romances de perfis de mulheres como, por exemplo, Diva, Lucíola,
Til, Cinco Minutos, Senhora etc.

FIGURA 18 – CINCO MINUTOS, DE JOSÉ DE ALENCAR

FONTE: <http://www.senhoradoseculo.com.br/cinco-
minutos-romance-de-jose-de-alencar/>.
Acesso em: 3 maio 2021.

Nos romances indianistas de Alencar há sempre uma retomada histórica. Em


Iracema houve uma procedência histórica e isso é explícito até mesmo no fato de
que o índio Poti foi batizado cristão com o nome de Felipe Camarão que chegou
a participar em combates contra os holandeses. Então, se nota abonações
históricas na construção desses romances. Após a construção de Iracema, ela se
incorporou no imaginário brasileiro de modo contundente.

Registra-se o cuidado de Alencar em fundar, em bases documentais, os seus


personagens e realidades retratadas em suas imaginações. Em O Guarani não foi
diferente porque fundou em documentos a sua imaginação, que são as fontes dos
Anais do Rio de Janeiro escrita por Baltazar da Silva Lisboa. Retrata um fidalgo
português em um ideal de homem que poderia não existir concretamente. Em
certa forma, era um exercício de nostalgia de retratar uma nobreza portuguesa
que estava em decadência.

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Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

FIGURA 19 – O GUARANI, DE JOSÉ DE ALENCAR

FONTE: <https://nacaomestica.org/blog4/?p=20741>.
Acesso em: 2 maio 2021.

Se percebe que o romance indianista de Alencar desenvolvia a função


de mapear a vida brasileira no tocante às suas peculiaridades. Por sua vez,
Alencar pensava que o romance histórico exige estudos e pesquisas em fontes
do passado que torne possível a reconstrução do nosso passado. Estabelecia o
que ele entendia por verdade histórica que fazia com que a sua produção literária
tivesse um compromisso com pontos sólidos que tornasse viável a reconstrução
do passado em uma moldura literária.

A criação ficcional se amparava no rigor documental e se tratava de um misto


de fidelidade à verdade dos fatos e de contribuição com base na invenção. Seus
romances históricos não eram fantasias desvinculadas da pesquisa, no entanto,
não poluiu o texto literário com as abonações históricas. Garantiu a qualidade
da produção literária sem perder o fundo histórico. Um intelectual de peso que
marcou seu tempo com distintos tipos de romances: indigenista, regional, urbano
e de costumes.

81
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

FIGURA 20 – GUERRA DOS MASCATES, DE JOSÉ DE ALENCAR

FONTE: <https://www.revistapessoa.com/artigo/161/a-guerra-dos-mascates>.
Acesso em: 3 maio 2021.

Obras como As minas de prata, Guerra dos Mascates e Alfarrábios são


produções de extrema qualidade como romances históricos. Em As minas de
prata é o mais histórico que elege como protagonista uma figura mediana, o
Estácio, que transitava entre as camadas mais altas e populares. Buscava um
corte transversal para transitar na sociedade da época de modo a captar as
pulsões daquele tempo. Em Guerra dos Mascates deu popularidade ao conflito
em meio a uma história de amor contrariada. E nos Alfarrábios se procederam
crônicas dos tempos coloniais.

FIGURA 21 – AS MINAS DE PRATA, DE JOSÉ DE ALENCAR

FONTE: <https://www.traca.com.br/livro/451617/>.
Acesseo em: 3 maio 2021.

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Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

É interessante ressaltar que a ideia de liberdade em José de Alencar expressa


um matiz antropológico, haja vista que o homem comporta em si as contradições
de uma dualidade que marca a sua condição social e individual posto que

Enquanto a primeira face designaria o homem em sociedade,


membro de um corpo político e a ele destinado, a outra
preservaria o que é propriamente seu, sua particularidade,
isolando-o “dos outros no círculo de sua liberdade” (ALENCAR,
1868, p. 26). Fora dessa soma, o homem estaria ou jogado
à multidão dispersa e amorfa, ou não seria mais que
um animal, ambos abaixo do critério humano. Não nos
admira a posição de inferioridade atribuída ao escravo. Sem
liberdade, sem humanidade (SIMÕES, 2011, p. 194).

Extremamente tímido, reservado e solitário se dedicou de modo expressivo


para a produção intelectual e a tuberculose atrapalhou a sua renovação literária,
haja vista que poderia ter feito o que Machado de Assis conseguiu realizar: iniciar
como romântico e depois se tornar um realista com ares inovadores.

No século XIX tivemos uma política institucional, partidária, que nos legou
uma experiência e base discursiva do que se trata hoje no espaço político como
o papel do Estado, os direitos individuais, a soberania popular, dentre outros.
O Iluminismo francês e a Revolução Americana exerceram influências no
pensamento nacional expressos em movimentos como a Inconfidência Mineira
e Conjuração Baiana que contestavam a autoridade colonial. No entanto, é no
século XIX que essas ideias serão disseminadas e materializadas na Constituição
de 1824, com a inspiração em Benjamim Constant.

Benjamim Constant foi crucial na França porque fez parte do processo


de restauração do antigo regime e buscava dar freios aos ímpetos populares.
Assumia os valores de igualdade, de liberdade e de fraternidade, desde que
conciliasse tais ideias com os valores do antigo regime francês. E, no caso do
Brasil, se inspira nessas ideias contra revolucionárias que nasce um Império por
intermédio de uma monarquia constitucional em resposta a Revolução Francesa.
Buscava-se conciliar conservadorismo e liberalismo.

Essa face que oferece o arcabouço para a relevância e longevidade dos


partidos conservador e liberal durante o segundo reinado. Por sua vez, José
de Alencar ingressa na política institucional por meio do Partido Liberal e não
consegue se eleger. Em 1860, foi eleito pelo Partido Conservador e já era um
escritor com destaque na literatura da época. É bom salientar que o Partido
Liberal estava mais próximo de demandas locais, enquanto que o Partido
Conservador estava mais associado à política da situação. Alencar contrariou a
carreira parlamentar de legenda partidária de sua família, porém na sua visão era
uma questão de perspectiva pragmática pois o Partido Conservador era dotado

83
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

de maior hegemonia na monarquia constitucional se posicionando como situação.


Além disso, a rigor, relatamos que alguns membros do Partido Conservador
também eram amigos do pai de José de Alencar (FREITAS, 2018).

Assim, manifesta-se que havia uma relação entre os partidos gerando uma
harmonia entre as elites, e assim garantindo os interesses independente da
composição dos gabinetes ministeriais. Os partidos políticos no Brasil imperial
convergiam, em certa medida, em torno de temas como foi o caso da escravidão
que foi defendida tanto por membros do Partido Liberal quanto pelos membros do
Partido Conservador. Os latifundiários estavam em ambos os partidos. José de
Alencar era um dos opositores da escravidão e pertencia ao partido conservador.

FIGURA 22 – O TRONCO DO IPÊ, DE JOSÉ DE ALENCAR

FONTE: <https://www.traca.com.br/livro/1226619/tronco-ipe/>.
Acesso em: 3 maio 2021.

Em O Tronco do Ipê, Alencar escreve para a classe senhorial e faz um


apelo para não deixar o clima da realidade nostálgica se perder com a abolição
da escravidão. Fazendo uso de uma antropologia bíblica de cunho político faz
uma defesa da escravidão nos escritos denominados Cartas de Erasmo, cujas
relações de defesa da escravidão dialogam com o proposto no livro O Tronco do
Ipê. E a economia nesse sentido liberal era colocada acima da vida humana e
isso impactou a produção política do Alencar e influencia a nossa mentalidade na
atualidade.

84
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

2 Leia acerca da polêmica entre José de Alencar e Gonçalves de


Magalhães registrada na citação transcrita, a seguir, e responda a
pergunta na sequência.

A publicação, em 1856, do poema épico Confederação dos


Tamoios, de Gonçalves de Magalhães (1811 - 1882), torna-
se evento marcante do Romantismo brasileiro por dois
fatores: primeiro, a grande expectativa gerada em torno de
seu lançamento, afinal Magalhães é a ponta de lança das
novas idéias literárias; segundo, pela polêmica criada devido
às cartas assinadas sob o pseudônimo “Ig.”, que refutam
a qualidade literária da obra. Essas cartas são escritas na
verdade pelo jovem José de Alencar (1829 - 1877), então
redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro e pouco conhecido
nos meios literários da corte. São oito cartas no total, onde
Alencar busca deliberadamente a polêmica, como ele mesmo
afirma em uma delas. A crítica incisiva ao poema de Magalhães
faz com que Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806 - 1879) e o
imperador Dom Pedro II (1825 - 1891), este último patrocinador
da obra, escrevam em sua defesa sob o pseudônimo “O
amigo do poeta”. Algumas outras cartas são publicadas em
favor de um ou outro lado, mas aquelas constituem as mais
significativas. A polêmica estava, antes mesmo de entrar na
argumentação de Alencar, no fato em si de se criticar a figura
até então absoluta do nosso Romantismo. Gonçalves de
Magalhães instituiu a nova escola em 1836 com a publicação,
juntamente com Porto-Alegre e outros intelectuais, da Niterói:
revista brasiliense, em que o espírito romântico é exaltado.
No entanto, o caráter reformador de seu pensamento não se
concretiza em suas composições literárias. Após incursões nos
gêneros lírico e dramático, em Confederação dos Tamoios -
que se baseia no episódio real da história do Brasil, quando
um grupo de tamoios confederados junta-se aos franceses na
luta contra os portugueses no Rio de Janeiro e em São Paulo,
em 1555 - Magalhães busca a afirmação da nacionalidade
a partir da figura do índio, convertido em herói e símbolo da
coletividade brasileira em oposição ao elemento lusitano, o
colonizador. Afora o indianismo, que vigora como fator comum
aos românticos da primeira geração, a crítica de Alencar
volta-se, sobretudo, para a conformação estética do poema,
sua fraca musicalidade e unidade narrativa, além da “falta
de arte” na descrição da natureza brasileira e dos costumes
indígenas. Quanto ao tipo de composição adotado, critica-se
ainda a escolha do modelo épico, afinal, conforme se afirma
na segunda carta, “a forma com que Homero cantou os gregos
não serve para cantar os índios”. Com isso, Alencar instaura
como que uma segunda reforma romântica, em que ele próprio
e o já consagrado Gonçalves Dias (1823 - 1864) surgem
como nomes proeminentes da expressão literária nacional. Ao
publicar as cartas em livro no mesmo ano da polêmica, Alencar
de certa forma prepara o lançamento, no ano seguinte, de seu

85
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

romance indianista fundamental: O Guarani, 1857. Por meio


do romance - gênero mais afeito às aspirações expressivas da
modernidade -, Alencar atesta as teses defendidas nas cartas
e procura demonstrar que a obra de Gonçalves de Magalhães
ainda estava muito atrelada às formas clássicas, apesar de
historicamente ele ter sido o principal propagador das idéias
românticas no Brasil (POLÊMICA, 2021, p. 1).

Tendo em vista esses pontos apresentados acerca da polêmica


entre esses autores e considerando os conhecimentos adquiridos
em relação a José de Alencar, responda a seguinte pergunta: Quais
eram os enquadramentos literários e políticos de José de Alencar?

2.2 JOAQUIM NABUCO: UM


INTÉRPRETE ABOLICIONISTA DO
BRASIL
A história de vida de Joaquim Nabuco foi marcada pelo contato com as
dinâmicas da escravidão que o incomodava. Em sua realidade, desde a tenra
idade demonstrou preocupação com a escravidão e transformou esse assunto
como base para a sua plataforma política. Ao longo de sua formação acadêmica
teve a oportunidade de fazer contatos pessoais com intelectuais e políticos de
seu tempo, uma característica comum do campo intelectual. Quem sintetizou a
trajetória de Nabuco foi o cientista político Francisco Weffort.

Nas condições do Império, não era, porém, um prisma


qualquer esse que, no mesmo ano de 1868, deu-lhe motivo
para um pequeno e valioso livro, precisamente com o título
A escravidão, que durante muito tempo esteve entre os
guardados da família e só recentemente veio à luz em forma
impressa. Quando o escreveu, Nabuco, rebento de uma
família de advogados, promotores e juízes, alguns dos quais,
como seu pai, dedicados à política, era um jovem estudante
da Faculdade de Direito do Recife. Entre os estudantes, então
agitados pelas idéias de Tobias Barreto (1839-1889) e Sílvio
Romero (1851-1914) e pelas manifestações anti-escravistas
de Castro Alves, o jovem Nabuco escrevia ensaios e defendia
perante o tribunal negros acusados de crimes diversos, entre
os quais assassínio (WEFFORT, 2011, p. 190-191).

Em sua atuação como advogado pode alargar a sua capacidade de


argumentação tratando do grande crime da escravidão e dos seus impasses na
vida social e cultural da sociedade do seu tempo. Filho da elite brasileira, assim

86
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

como outros intelectuais circulou pelos salões e espaços públicos europeus


durante um ano. Weffort (2011, p. 191) afirmar que “Esse pensador brasileiro de um
tema radicalmente brasileiro era, contudo, um personagem seduzido pela Europa.
Filho, neto e bisneto de senadores do Império, o aristocrata Joaquim Nabuco
foi sempre um homem do mundo”. Teve contato com políticos e intelectuais do
período e passou a ser muito admirado por sua elegância, educação aristocrática,
jovem orador, bem como pelos investimentos significativos em vestimentas e jóias
da moda europeia.

Joaquim Nabuco foi, sem dúvida, um homem de extrema


generosidade e coragem, que abraçou a mais relevante causa
nacional e popular do seu tempo. Alguns dos seus escritos
podem por isso surpreender o leitor de hoje pelo pedantismo
com que na juventude mencionou seu país. Diferente de
Alencar, conservador e escravocrata, que dizia construir
a sua literatura a partir de seu amor pelos espaços e pelas
florestas do país, Nabuco, um monarquista liberal que se
tornou um campeão do abolicionismo, manifesta às vezes um
desinteresse pelas paisagens brasileiras que se estende a
todo o Novo Mundo (WEFFORT, 2011, p. 191).

Obteve o diploma de direito concedido pela Faculdade de Direito de São


Paulo e na Faculdade de Direito de Olinda, uma formação em diálogo com as
elites do sul e do norte do Brasil. Exerceu militância no partido liberal e teve a
clareza de que a política no Brasil imperial se realizava de cima para baixo e o
regime monárquico era parlamentarista tendo o Imperador como o conciliador das
forças entre os partidos conservador e liberal.

O Partido Conservador era um caldo cultural constituído das ideias da


grande propriedade rural, dos pensamentos escravocratas e da noção burocrática
que sedimentava a classe dos formados em direito. Era, na prática, um núcleo
do Estado joanino que ficou estabelecido no Brasil em apoio ao príncipe. Sendo
assim, um território em que a centralização era a noção de unidade territorial
como meio de garantir a força da Coroa e a ordem. Em outro projeto, os liberais
queriam o federalismo e eram herdeiros das concepções das oligarquias ligadas à
cana-de-açúcar que queriam um Brasil descentralizado como forma de ingressar
o país em uma nova frente de desenvolvimento. Joaquim Nabuco declara que

Eu era monarquista porque a lógica me dizia que não se devia


absolutamente aproveitar para nenhuma fundação nacional
o ressentimento do escravismo; por prever que a Monarquia
Parlamentar só podia ter como sucessora revolucionária a
Ditadura Militar, quando sua legítima sucessora evolutiva
era a Democracia Civil; por pensar que a República no Brasil
seria a pseudorrepública que é em toda a América Latina. Eu
dizia que a República não poderia funcionar como governo
livre; e que, desde o dia em que ela fosse proclamada,

87
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

desapareceria a confiança, que levamos tantos anos a adquirir


sob a Monarquia, de que a nossa liberdade dentro da lei era
intangível (NABUCO, 1999, p. 60).

Em sua passagem pela Europa, se filiou à Sociedade Britânica que lutava


contra a escravidão, assim como fez contatos com outros abolicionistas e obteve
atuação nas colônias. Como pensador, Joaquim Nabuco teve uma atuação
representativa de seu tempo. Trouxe a discussão da formação como uma
problemática a ser enfrentada pelos intelectuais como forma de interpretação de
sua época. Ao mesmo tempo, trabalha a sua vida como representativa do Brasil
em uma escala maior. A vida pública dele teve grandes momentos, com destaque
para os debates abolicionistas e as questões que envolviam a diplomacia
brasileira.

Figura ilustre como diplomata, visto como patrono da aliança brasileira com
os Estados Unidos. Foi o primeiro embaixador brasileiro nos Estados Unidos.
Antes dele a representação era feita por ministros de Estado. Entendia que as
ameaças imperialistas para o Brasil se originavam na Europa, uma vez que a
atuação britânica e francesa era expressivamente agressiva para países com
histórias parecidas com a do Brasil.

Participou do movimento abolicionista em conciliação com a Monarquia


balizada pela dinastia dos braganças. Então teve uma posição fervorosa e
contraditória como abolicionista e monarquista. Tal condição proporcionou críticas
e indisposições com a classe dos escravocratas e dos conservadores e isso
resultou em mudanças de suas visões ideológicas em nome de uma recomposição
ao cenário político.

FIGURA 24 – NABUCO E A ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO

FONTE: <https://horadopovo.com.br/nabuco-a-propriedade-
nao-tem-apenas-direitos-tem-deveres/>.
Acesso em: 3 maio 2021.

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Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

Joaquim Nabuco entrou em conflitos intelectuais com autores consagrados,


como foi o caso emblemático da polêmica com José de Alencar que era um grande
ideólogo da imagem do segundo reinado e grande representante do romantismo
da época, sendo responsável por uma concepção que legitima a ordem política em
nome de um bom português e nobre colonizador. É bom lembrar que o polemismo,
as disputas entre os ilustres devido a divergência de opinião, sempre é um traço
fundante de todo o campo intelectual. Por isso Nabuco e Alencar se envolveram
em uma. Um dos autores do período conhecido por ser grande polemista é o
Silvio Romero, já citado neste capítulo.

Retomando a argumentação, o movimento abolicionista precisava quebrar


com essa representação, desse modo, era preciso desconstruir essa imagem de
uma nação sem a presença da comunidade negra em condição de escravidão. É
muito mais que acabar com a escravidão, é reconhecer que existe outra nação
que não está presente no campo literário. O debate de Nabuco construiu uma
visão de mundo a partir de sua posição aristocrática com afirmação dos valores
ocidentais em detrimento do discurso nacionalista provinciano.

Quanto ao fascínio pela Europa, Nabuco não apenas era


diferente de Alencar, o que será óbvio a quem tenha lido a
polêmica que travaram em 1875. Era diferente também de
José Bonifácio, que, mais europeu do que ele pela experiência
de vida, insistiu em que havia de afirmar a beleza dos nossos
usos e costumes, "ainda que a Europa se ria de nós". Tinha,
porém, em comum com Alencar e Bonifácio o interesse pela
política e pelas letras, como era, aliás, frequente entre os
políticos e as elites do Império, que, com maior ou menor
intensidade, cultivavam as coisas do espírito. E nesse cultivo,
como sabemos, as elites do Império, como as que vieram
depois, na República, tinham sempre, quaisquer que tenham
sido as variações do seu ânimo cosmopolita ou nacionalista,
um olhar voltado para a Europa (WEFFORT, 2011, p. 192).

Tinha uma relação estética com a política em busca de uma glória pessoal
e assumia as discussões acerca da modernização da economia. Trazia como
norteamento a monarquia democrática ou popular e que isso serviria de
plataforma para a democratização do Brasil em médio prazo. Essas ideias de
corte liberal dialogava com André Rebouças e com parte do núcleo principal do
movimento abolicionista. O seu liberalismo trabalhava a ideia de liberdade com o
fator da justiça social, sendo assim, havia um choque com o que se praticava no
Brasil dado que tolerância, pluralismo e Estado de Direito não eram as pautas do
cotidiano e nem com as grandes questões na política brasileira que convivia com
uma escravidão secular imersa na cultura e no modo político-econômico. Então, o
liberalismo praticado estava centrado no campo retórico e enfrentar a escravidão
rendeu conflitos intelectuais e políticos de grande monta porque exigia mudanças
da bases da sociedade.

89
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

A escravidão, no século XIX, como um sistema de propriedade estava


atrelada à ideia de cidadania e remontava ao status social dos proprietários.
Nesse processo o sujeito negro não era um igual porque não era reconhecido
como cidadão. O liberalismo deu vida nova para a escravidão no Brasil, inclusive
atribuiu vigor em função da ampliação da demanda da escravidão e teias de
negócios que tornavam letras mortas as leis contra a escravidão. A lavoura de
café ganhou espaço porque havia consumidores na Europa e isso implicava o
desrespeito da lei de 1831 com a entrada de grande escalas de escravos no Rio
de Janeiro e São Paulo. Nessa rede de negócios a defesa da escravidão era feita
no parlamento brasileiro.

De 1850 a 1880 houve uma redistribuição de escravos no território brasileiro,


através de comércio interprovincial da comunidade negra. Transferências de
escravos para as fazendas de café e os fazendeiros sobretudo do oeste paulista
compraram fortemente seres humanos não-brancos, sobretudo nos anos 1870
esse comércio chegou no seu período áureo, reportando lucros altíssimos para
esses empresários.

O livro Abolicionismo traz a tese de que a escravidão não se sustenta


pelo direito, aprofundando discussões acerca do direito natural defendendo
que a escravidão é um crime realizado pelos ocidentais e que se trata de uma
instituição na nossa sociedade que ultrapassa a dimensão de um fato da vida
econômica e percebe a escravidão como uma operação que se materializa na
composição da mentalidade brasileira em todos os seus meandros. Explicita a
gravidade da escravidão e a necessidade de desconstruir a obra desse problema
que gera danos para as condições de vida e liberdade. Manifestava que o país
iria enfrentar graves problemas sociais após se ruir a instituição da escravidão.

FIGURA 25 – O ABOLICIONISMO, DE JOAQUIM NABUCO

FONTE: <https://librivox.org/o-abolicionismo-by-joaquim-nabuco/>.
Acesso em: 3 maio 2021.

90
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

Na visão de Nabuco, a escravidão deixou uma nódoa profunda na mentalidade


nacional. É bom deixar nítido que até mesmo no livro Abolicionismo se verifica um
sujeito que não era antirracista, haja vista que o próprio Joaquim Nabuco faz uma
produção que expressa o pensamento de um homem que, a rigor, era um sujeito
próximo às ideologias racialistas, que hierarquizavam pessoas, liam os brancos
como superiores aos negros.

No Abolicionismo, as teses da ilegalidade e ilegitimidade da escravidão que


não tinha base no direito natural nem na legislação positiva, da incompatibilidade
da escravidão com a modernidade, da herança colonial decadente por meio do
latifúndio, monocultura e a escravidão e da escravidão como uma instituição
social total espraiada em todos os âmbitos da sociedade foram as teses
principais. Além disso, Nabuco percebe que na memória coletiva a escravidão
gera efeitos maléficos para todas as instâncias e que isso implica a necessidade
de uma refundação. Diante disso, o seu projeto é baseado na escravidão e na
consolidação de uma sociedade baseada na pequena propriedade, com educação
ampla e atração de imigrantes europeus de classe média. Trata-se de uma ideia
moderada que envolve uma anistia do passado e indenização econômica aos
proprietários de escravos pela abolição.

Tais teses entraram para o pensamento brasileiro como uma visão do


Joaquim Nabuco, no entanto, suas posições também estavam nos trabalhos
de outros abolicionistas como Agricultura Nacional de André Rebouças ou em A
Fórmula da Civilização Brasileira de Aníbal Falcão. O estilo de Nabuco permitiu
uma leitura mais agradável para os leitores e que envolve as emoções e recorre
ao racional de quem está lendo. A qualidade do livro contendo teses potentes
recebeu contribuições das ideias contemporâneas e o aprendizado editorial que
havia acumulado como jornalista. Na época foi lido como radical e exigente por
muitos e para os abolicionistas foi visto como moderado.

A leitura dos seus escritos mostra que foi feita a defesa de uma narrativa na
qual a família real aparece como relevante para o abolicionismo. Isso deixa o seu
pensamento atual porque esse debate que envolve a ideia de uma nova direita
liberal no Brasil tem recomposto o pensamento dos monarquistas como ícones
devido à noção social de respeito em nome da produção intelectual e estilo de
escrita agradável capaz de atribuir uma identidade não escravocrata. Por outro
ângulo, a esquerda brasileira ancorada no marxismo tem desconstruído o seu
cânone como liberal radical e reposicionado-o como nostálgico da escravidão
como característica estruturadora do imaginário brasileiro, no qual Joaquim
Nabuco tece críticas a mentalidade que ele compartilha.

91
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Antecipando-se quase um século às elites às quais pertencia,


Nabuco inaugurou no pensamento político brasileiro o complexo
processo intelectual do reconhecimento da existência do
povo. Porque a escravidão tomou no Brasil o caráter de um
"fenômeno social total", o abolicionismo tomaria o caráter de
uma "reforma política primordial" (WEFFORT, 2011, p. 200).

A abolição não foi uma dádiva da Coroa, dado que as instituições foram
pressionadas pelas manifestações que se desenvolviam no povo. Uma história
de luta e resistência pela liberdade, pela preservação da memória cultural e pela
manutenção de seus saberes e experiências vividos na África. Os movimentos
de rua engajaram a população em prol da luta negra requerendo a liberdade e a
emancipação humana.

A expressiva luta contra a escravidão foi feita pela coletividade negra no


cotidiano em suas ações de resistências. A posição das elites representaram
práticas autoritárias em função do medo de perder bens e propriedades. Nas
elites não existia um exercício democrático e sim discursos republicanos e
democráticos que não se consolidavam na realidade. A campanha abolicionista
não foi elitista. Essa campanha tinha uma proposta pós-abolição que não fazia
parte dos interesses dos senhores de engenho. As ideias de Nabuco tinham
consistência no combate às desigualdades raciais.

Na perspectiva de Nabuco a cidadania estava associada ao acesso à


educação e isso ficou evidente durante a sua formação no Colégio Pedro II no Rio
de Janeiro. Entendia que a escravidão encobria o futuro e o projeto de sociedade
para o Brasil. Não se tratava apenas da libertação dos indivíduos negros, mas a
inclusão de todos que não eram considerados como cidadãos, como humanos,
como sujeitos portadores de direitos. Dentre as suas ideias, destaca-se o
oferecimento amplo de escolas técnicas para valorizar o trabalho do operário e
garantir a universalização da educação.

Nabuco, que competia em paixão e clarividência com o


Patriarca, mais uma vez estava certo. Suas idéias deveriam
ter um destino similar, muitas delas até hoje esperando pela
oportunidade de se realizar. O abolicionismo venceu, mas
a "obra da escravidão", sob muitos aspectos, permanece
(WEFFORT, 2011, p. 204).

Pregava medidas imediatas após a abolição. Essas medidas não foram


implementadas condenando os negros ao descaso, a falta de carteira assinada,
sem o direito à moradia, à falta de acesso à educação, sem a terra, enfim,
manteve-se o estigma da escravidão dando continuidade ao abismo social.
Somente a abolição não conseguiu construir dias melhores para a condição de
vida da população.

92
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

A Academia Brasileira de Letras teve como um de seus fundadores o


Joaquim Nabuco que era muito amigo de Machado de Assis. O seu papel na
criação da Casa foi tão significativo que além de colaborar na escolha do nome,
fez o discurso inaugural e assumiu a função de secretário perpétuo.

3 Leia o texto poético da canção “Yá Yá Massemba”, assinada por


Roberto Mendes e Capinam, gravada no disco Brasileirinho (ao
vivo), no ano de 2015, da cantora baiana Maria Bethânia.

Que noite mais funda, calunga


No porão de um navio negreiro
Que viagem mais longa, candonga
Ouvindo o batuque das ondas
Compasso de um coração de pássaro
No fundo do cativeiro
É o semba do mundo, calunga
Batendo samba em meu peito
Kawô kabiecile kawô
Okê arô okê!
Quem me pariu foi o ventre de um navio
Quem me ouviu foi o vento no vazio
Do ventre escuro de um porão
Vou baixar no seu terreiro
Epa raio, machado, trovão
Epa justiça de guerreiro
Ê semba ê, ê samba á
O batuque das ondas nas noites mais longas
Me ensinou a cantar
Ê semba ê, ê samba á
Dor é o lugar mais fundo, é o umbigo do mundo
É o fundo do mar
Ê semba ê, ê samba á
No balanço das ondas
Okê arô me ensinou a bater seu tambor
Ê semba ê, ê samba á
No escuro porão eu vi o clarão do giro do mundo
Que noite mais funda calunga
No porão de um navio negreiro
Que viagem mais longa candonga
Ouvindo o batuque das ondas

93
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Compasso de um coração de pássaro


No fundo do cativeiro
É o semba do mundo calunga
Batendo samba em meu peito
Kawô kabiecile kawô
Okê arô okê!
Quem me pariu foi o ventre de um navio
Quem me ouviu foi o vento no vazio
Do ventre escuro de um porão
Vou baixar no seu terreiro
Epa raio, machado, trovão
Epa justiça de guerreiro
Ê semba ê, ê samba á
Foi o céu que cobriu nas noites de frio
Minha solidão
Ê semba ê, ê samba á
É oceano sem, fim sem amor, sem irmão
Ê kaô quero ser seu tambor
Ê semba ê, ê samba á
Eu faço a lua brilhar o esplendor e clarão
Luar de Luanda em meu coração
Umbigo da cor, abrigo da dor
Primeira umbigada Massemba yá yá
Yá yá Massemba é o samba que dá
Vou aprender a ler
Pra ensinar os meu camaradas
Vou aprender a ler
Pra ensinar os meu camaradas
Aprender a ler
Pra ensinar os meu camaradas
Vou aprender a ler
Pra ensinar os meu camaradas
Vou aprender a ler

Os versos refrão da canção, “vou aprender a ler / Pra ensinar os


meus camaradas”, guardam relação com o projeto abolicionista e
Joaquim Nabuco? Justifique a sua resposta.

94
Capítulo 2 INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX: ENTRE O L. E O C.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
É relevante lançar olhar na consciência política do século XIX para que o
conhecimento sobre o pensamento político possa ficar mais explícito no nosso
cotidiano como brasileiros. Haja vista que a atuação política exerce profundo
impacto em nossas vidas e a sua compreensão se apresenta como salutar. Nesse
capítulo recorremos a autores que se consagraram no campo da atuação política
institucionalizada e na construção do pensamento por meio da literatura, do
jornalismo, da diplomacia e em outras formas de exercício de suas atividades de
modo que são lembrados por distintas áreas do saber.

Entendemos que essa opção se deve ao fato que a educação política deve
ocupar lugar privilegiado que cabe não somente aos partidos políticos, mas a
todas as instituições políticas da sociedade brasileira como forma de avançar
a democracia e, de fato, se consolidar uma cidadania viva, participante e
democrática.

Os elementos aqui tratados deixam nítidas as formas de como se fazia


política no século XIX e os seus efeitos nas nossas instituições na atualidade. A
abordagem privilegiou uma abordagem com base em intelectuais que transitaram
nas mais notáveis instituições da época, tanto no Brasil quanto no exterior.

Esses intelectuais explicitaram os acordos, as propostas, os interesses e


os subterfúgios para se edificar uma ideia de país, de povo, de território e de
soberania, bem como para dar sentido a um projeto específico de nação e de
sociedade em distintas perspectivas matizadas por anseios vinculados aos
propósitos econômicos, culturais, políticos e religiosos.

A motivação analítica destes escritos foi a de indicar a presença das


ideologias liberal e conservadora e da categoria romantismo como elementos
intrínsecos do campo intelectual e da formação do pensamento político brasileiro,
por meio da exibição das principais teses que atravessam as reflexões de José
Bonifácio, José de Alencar e Joaquim Nabuco. Esse exercício compreensivo é
necessário porque o campo intelectual, como já estudado no Capítulo 1, nasceu
adjunto com o campo político. Isso pressupõe examinar, in loco, as idiossincrasias
do campo intelectual e o modo como influenciou na arquitetura do pensamento
político brasileiro.

95
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

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Alencar. Brasília: Câmara dos Deputados, 1977.

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Tradução Roberto Gambini. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001.

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97
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

98
C APÍTULO 3
SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA
EDIFICAÇÃO DA MODERNIDADE BRASI-
LEIRA

A partir da perspectiva do saber-fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Introduzir as principais pautas do campo intelectual do século XX, marcadas


pelo esforço de nacionalizar o país pelo paradigma da modernidade.
 Situar o discurso nacionalista, tarefa autoatribuída às
cabeças pensantes, no campo intelectual brasileiro.
 Relacionar o campo intelectual com o pensamento político do século XX.
 Entender as condições históricas que singularizam o campo
intelectual do século XX, bem como sua interseção com a
formação nacional pela modernização do Estado.
 Apontar a presença ideológica do nacionalismo e da modernidade
nos discursos de intelectuais como Gilberto Freyre e Sérgio
Buarque de Holanda, expoentes do pensamento político.
 Mapear as principais mudanças ocorridas no cenário cultural
do país, a partir da segunda metade do século XX, e como tais
mudanças influenciaram o pensamento político brasileiro.
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

100
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

1 CONTEXTUALIZAÇÃO
O capítulo 3, Século XX: tensões e disputas na edificação da modernidade
brasileira, oferece ao/a leitor/a uma visão panorâmica acerca dos principais traços
que deram à tônica da formação de nossa nacionalidade. Para alcançar esse
intento, o capítulo está dividido em três seções.

A primeira seção, “Gilberto Freyre: raça, cultura e poder”, é tributada ao


pensador pernambucano Gilberto Freyre. Aborda-se as principais características
- tais como cultura, modernidade, nacionalidade, universalidade, civilização,
evolucionismo e positivismo - que singularizam a obra do autor e que auxiliaram
na formatação do campo intelectual brasileiro no século XX.

A segunda seção, “Sérgio Buarque de Holanda: um intérprete das raízes


brasileiras”, observa o homem cordial como síntese do passado colonial e o
presente moderno. Esta parte do livro é dedicada ao pensador brasileiro que não
abdicou da árdua tarefa de cartografar as raízes do Brasil.

A terceira seção, “Dos anos 1950 a 1970: campo intelectual e a modernização


do Estado Nacional”, exibe o planejamento moderno da nação, que titubeia entre
o conservadorismo e o progressismo, e as disputas pelo protagonismo narrativo
encenadas pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros, Centro Populares de
Cultura, Cinema Novo, Campanha Nacional do Folclore, Movimento Tropicalista,
entre outros.

2 GILBERTO FREYRE: RAÇA,


CULTURA E PODER
Gilberto Freyre foi um pensador que influenciou a cultura brasileira do século
XX. Nasceu em 1900, na cidade de Recife. Despediu-se da vida no ano de 1987,
também em Recife. Foi um sujeito de formação interdisciplinar, navegou pelas
veredas da sociologia, antropologia, história social e fez morada no terreno
da palavra, como escritor. Estudou nos Estados Unidos, na Universidade de
Colúmbia. Por lá teve contato com o professor e pesquisador o antropólogo Franz
Boas. A interdisciplinaridade, tão característica de sua formação, marcou também
a sua obra e o campo intelectual do seu tempo.

101
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Acerca da importância e significado do pensamento do


antropólogo Franz Boas, sugerimos assistir ao vídeo intitulado
“Estranhos no Exterior - As Correntes da Tradição (Franz Boas)”, do
Canal Fábio Henrique Luiz, disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=zK5lYPeAbDM

Não apenas o ensaio, gênero textual eleito para disseminação de suas ideias,
esteve no radar do autor e selou a sua biografia, mas também a política. Como já
estudado no capítulo 1, o campo intelectual guarda proximidade com o campo da
política. Freyre é testemunha ocular de tal proximidade. Tanto que sempre esteve
às voltas com o poder institucional. Para detalhar o envolvimento de Gilberto com
a política, a palavra será cedida para o cientista político Francisco Weffort (2011,
p. 258).

Como para os intelectuais do Império e da Primeira República,


a política foi sempre uma atração para os “intérpretes do
Brasil”. Gilberto Freyre foi chefe de gabinete do governo de
Estácio Coimbra (1872-1937), em Pernambuco, derrubado
pela revolução de 1930. Ter participado do último governo
da velha República em seu estado custou-lhe um período de
exílio em Portugal e nos Estados Unidos, onde esteve como
professor visitante da Universidade Stanford. Depois da queda
do Estado Novo, em 1945, elegeu-se deputado federal (1946-
1950), quando tomou a iniciativa de propor ao Congresso a
fundação do Instituto Joaquim Nabuco (1949), com sede em
Recife, sua terra, e no âmbito do Ministério da Educação.

102
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

FIGURA 1 – FUNDAÇÃO DO INSTITUTO JOAQUIM NABUCO INICIATIVA


DE GILBERTO FREYRE

FONTE: <https://robertajungmann.com.br/2020/08/24/fundacao-joaquim-
nabuco-prepara-programacao-especial-de-natal/>. Acesso em: 1 jun. 2021.

Devido seu lugar de fala, aristocracia nordestina, proprietário de engenhos,


detentor de privilégios materiais e culturais e devido também às influências
teóricas que o formou, como será visto adiante, Freyre teve uma concepção de
sociedade identificada como conservadora, divergente daquelas disseminadas
pelo campo intelectual do seu tempo, lidas como de esquerda. Esse fato fez com
que se aproximasse do governo português, da gestão de Salazar.

Antônio de Oliveira Salazar foi um chefe de governo que esteve


à frente de Portugal entre os anos de 1933 a 1968. Salazar ficou
conhecido pela implementação da ditadura, durante o Estado Novo,
nome dado às restrições de liberdades públicas entre os anos de
1933 a 1974.

Quem amplia a nossa compreensão sobre o argumento é novamente Weffort


(2011, p. 258).

103
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Embora tenha se retirado da política depois de seu período


parlamentar, Gilberto Freyre se manteve presente na imprensa,
como articulista, e suas opiniões conservadoras lhe valeram
um afastamento dos intelectuais de esquerda. Em relação a
estes, maior terá sido talvez o distanciamento gerado por seus
contatos com o governo de Portugal, sob o regime salazarista.
Na época, suas idéias sobre o "luso- tropicalismo" foram
entendidas por muitos como um elogio do colonialismo.

Falando ainda no campo intelectual, este, no século XX, esteve situado


em um contexto social assolado pelas ideologias nacionalistas e modernistas.
A primeira ideologia foi evocada como princípio de aglutinação das diferenças
constituintes do Brasil (índio, negro, branco, paisagem e costumes). O
nacionalismo se fez presente desde o século XIX, no processo de Independência,
na Geração de Intelectuais de 1870 e na Primeira República, tematizado com
apreço pelos articuladores do Movimento Modernista. Sobre a presença da
ideologia de modernização nacional, não restrita apenas à esfera política, mas
também presente nos âmbitos econômico e cultural, conforme a explicação de
Veloso e Madeira (1999, p. 137):

Ao lado do ideário nacionalista, ocorre ainda intenso processo


de modernização do país, o que também faz com que haja
todo um repensar sobre as estruturas sociais e as estruturas
políticas até então vigentes. Esse processo de modernização
pode ser caracterizado, brevemente, a partir da crescente
urbanização, da formação de um proletariado, com a migração
internacional, da formação de um mercado interno consumidor,
da industrialização, da criação de uma indústria editorial, da
fundação de universidades e de outras mudanças significativas
nos âmbitos econômico e político.

Em paralelo à indução das ideologias nacionalista e modernista, houve


também o reposicionamento de paradigmas que guiaram os debates do campo
intelectual. Conforme estudado nos capítulos anteriores, o século XIX foi
orientado pelo paradigma racial. Isto é, autores como José Bonifácio, José de
Alencar e Joaquim Nabuco produziram suas obras a partir do conceito de raça.
O Brasil inventado por esses intérpretes foi elaborado em termos raciais a fim de
alocar os elementos negro e indígena que o distanciavam do modelo europeu de
nacionalidade.

Já o Brasil do século XX foi pautado em termos culturais. Dito de outra


forma, o Brasil dos anos 1930, aquele projetado por Gilberto Freyre, começa a
ser pensado não em termos raciais, mas em termos culturais. Em vista disso,
assinala-se que

104
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

A “Revolução” de 30 conforma mais uma transição pelo alto;


com rupturas e continuidades controladas. O novo regime
representa um pacto de compromisso entre estes novos atores
e as velhas elites agrárias, no qual inovação e conservação
lutam sem embates radicais. Industrialização; urbanização;
modernismo cultural e construção do estado nacional
centralizado, política e administrativamente, são algumas das
faces do renovado país (RUBIM, 2007, p. 103).

A cultura é o elemento fundante da brasilidade moderna. Isso devido devido


à inspiração e formação com Franz Boas.

Em meio à sofisticada formação intelectual de Gilberto Freyre


há diversas razões teóricas para explicar os caminhos que ele
tomou em seu primeiro grande livro. A primeira dessas razões é
a influência de Franz Boas (1858-1942) e sua separação entre
raça e cultura, que distanciou Gilberto Freyre dos pressupostos
teóricos da maioria dos intelectuais da época. "Foi o estudo de
antropologia sob a orientação do professor Boas que primeiro
me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados
dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência
cultural". (WEFFORT, 2011, p. 264).

A cultura foi portanto o paradigma determinante utilizado pelos homens das


letras, pertencentes ao campo intelectual, aqueles responsáveis pela transformação
dos padrões estéticos, que tomavam pra si, em diálogo estreito com o campo
político, a missão de organização da identidade histórico-social do país.

FIGURA 2 – DEMOCRACIA RACIAL E O MITO DE QUE NÃO EXISTE RACISMO

FONTE: <http://twixar.me/1l7m>. Acesso em: 1 jun. 2021.

105
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Eles tomavam essa missão pra si porque, de acordo com Veloso e Madeira
(1999, p. 139), dispunham de um complexo de culpa. Complexo de culpa porque
eram letrados, bem estudados, falavam mais de dois idiomas, com trânsito livre
pela tradição de pensamento europeu, tão caro à intelectualidade da época.
Era um grupo seleto de pensadores constituído em um país de analfabetos,
profundamente desigual. Por isso, a instauração do sentimento de culpa. Para
pacificá-lo, davam a si mesmos à incumbência de pensar o Brasil e o brasileiro.

Outra interpretação possível para o complexo de culpa é oferecida por Weffort


(2011, p. 265), que chama atenção para o desempenho do racismo na psiquê
dos ilustres. O complexo de culpa se manifesta em face da ação do racismo na
subjetividade dos pensadores - alguns de origem negra, como Tobias Barreto e
Guerreiro Ramos, nomes que não serão estudados aqui devido o nosso recorte
temático, mas que sem dúvida são expoentes da tradição intelectual construída no
Brasil - devido à rejeição social do componente negro na constituição da nação.

A fim de esclarecer o papel de Tobias Barreto nesse debate e


o seu significado histórico para a sociedade brasileira, assim como
para o movimento negro, recomendamos assistir a fala do genial
Ariano Suassuna presente no vídeo intitulado “Sobre Tobias Barreto”,
do Canal SitePatosTv, disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=ueo8Zke_8ok

Acerca do pensamento e importância de Alberto Guerreiro


Ramos, um extraordinário pensador brasileiro, no entanto pouco
lido na academia brasilieira e que deve ser resgatado na atualidade,
sugerimos assistir ao vídeo intitulado “Pensadores da Pátria Grande
- Alberto Guerreiro Ramos”, do Canal Iela ufsc, disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=-Y41S_P1nO4

106
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

Uma vez identificada a incapacidade intelectual de encarar o negro como


constituinte do país, pelas razões já expostas, ou seja, pela força da operação
racial (racismo), esse gesto denota uma incapacidade de não reconhecimento do
Brasil como um todo.

De um modo ou de outro, o essencial dessa alusão ao "complexo


de inferioridade" é que, vinda de intelectuais mestiços, brancos
ou negros, a incapacidade de reconhecer a dignidade de negros
e mestiços em geral se tornava equivalente à incapacidade de
reconhecer o próprio povo (WEFFORT, 2011, p. 265).

Dito isso, retoma-se o diálogo em torno dos paradigmas que deram vida à
obra de Freyre e ao campo intelectual de seu tempo. Além do uso dos conceitos
nacionalismo, modernismo e cultura, a categoria civilização é empregada por
Freyre. Motivado pela tradição de pensamento francês, o autor se propôs com
sua obra capital – intitulada de Casa grande & senzala, publicada em 1933, a ser
esmiuçada adiante ainda nesta seção – a descortinar e a revitalizar as instituições
sociais e a edificar novos espaços a fim de cumprir com esse fim, a saber, o
de civilizar o Brasil. Colocar tais instituições a serviço do processo civilizador
orientado por Freyre na qualidade de intelectual.

FIGURA 3 – CASA GRANDE E SENZALA, DE GILBERTO FREYRE

FONTE: <https://www.raroruido.com.br/produtos/casa-grande-senzala-gilberto-freyre/>.
Acesso em: 1 jun. 2021.

107
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Para viabilizar a utopia civilizadora do Brasil, se inscreveu o ideal universalista.


Para explicar esse ideal, mais uma vez recua-se à ideologia nacionalista. Seguindo
os passos do Ocidente e de suas instituições, calculado sob o assombro universal
(povo, língua, território e unidade), Freyre tratou de imaginar a identidade nacional
do Brasil. Ser nacional foi a condição imposta para que se pudesse ser universal
e assim ser civilizado. Quem assumiu à missão de nacionalizar o Brasil foram os
intelectuais. Não só Gilberto Freyre, mas também Mário de Andrade, expoente do
Movimento Modernista, e demais signatários da palavra.

FIGURA 4 – MÁRIO DE ANDRADE E A MISSÃO DE NACIONALIZAR O BRASIL

FONTE: <https://imirante.com/oestadoma/noticias/2016/01/05/obras-de-mario-
de-andrade-entram-em-dominio-publico-este-ano/>. Acesso em: 1 jun. 2021.

Para nacionalizar o Brasil era indispensável descortinar a cultura brasileira.

O projeto dos modernistas, e igualmente o de Gilberto Freyre,


era mostrar o lado autêntico da nação, conferir-lhe visibilidade,
por meio de suas manifestações culturais. Alguns vão destacar,
como traço de originalidade, a nossa arquitetura barroca. Já
Gilberto Freyre (1993) afirmava: “É a culinária; são os doces;
é a forma de relacionamento; é a Casa Grande e a Senzala;
é a construção de um sistema autônomo, como é o sistema
escravocrata, latifundiário, patriarcal, enfim, são processos
sociais concretos, empíricos, capazes de serem intensificados
por qualquer pessoa o que constitui a cultura brasileira”
(VELOSO; MADEIRA, 1999, p. 145).

Para cumprir essa missão civilizadora, de caráter universalista, e assim


colocar o Brasil nos trilhos do progresso, pavimentados pelo Ocidente, o caminho
adotado a exemplo de Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, este último que
será apresentado na próxima seção, foi o de recuo ao passado colonial. Recuo
ao passado colonial para rastrear a singularidade oculta da cultura brasileira. Por

108
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

que recuo ao passado colonial? Porque devido à forte influência do nacionalismo


universalista, ansioso da singularidade brasileira para que se pudesse apresentar
frente a outras nações já constituídas, e assim inscrever o Brasil na galeria de
nações modernas, civilizadas, desenvolvidas.

Recomendamos assistir a fala descortinadora do intelectual


negro Silvio de Almeida, na qual expõe os meandros da constituição
ideológica intrínseca ao discurso da democracia racial que visa
edificar a inferioridade e a subordinação como processo social
histórico de convivência entre as raças. Esse discurso foi elaborado
e absorvido no cotidiano popular e formou a dinâmica das
insituições no Brasil até a atualidade. A democracia racial é mais
que um discurso é a materialização explícita de uma ideologia que
se naturaliza na realidade da pobreza, do encarceramento e nas
desigualdades educacionais em nosso país. Essa fala pode ser
vista na vídeo “Democracia Racial - Silvio de Almeida”, do Canal TV
Campus UFSM.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=34hiFz_Pu2o

Por isso, buscou-se com esse intento rastrear no pretérito aquilo que não
havia sido pontuado ainda. Destacar o elemento que singularizava o Brasil perante
as outras nações. A esperança era que o mergulho no passado colonial pudesse
guiar os rumos da nação no presente e lançar novos horizontes de expectativas
no futuro. Nesse sentido, Gilberto Freyre tomou para si essa missão: formular e
fazer ecoar a identidade nacional.

Assim, participaríamos “do concerto das nações cultas”. Essa é


uma frase que também ficou famosa, e diz respeito à sensação
de que o nosso relógio estava atrasado em relação ao relógio
universal; a sensação de que nós ainda não participávamos do
conjunto das nações civilizadas, gerando o desejo de estar em
sintonia com o concerto dessas nações, pois isso significava a
possibilidade de sermos uma civilização e, portanto, de sermos
universais. Era preciso encontrar, na nossa cultura, algo de
civilização, algo de universalidade, para que atingíssemos a
modernidade de que tais nações já participavam (VELOSO;
MADEIRA, 1999, p. 141).

109
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Parte do projeto de Freyre pautado na utopia civilizadora, nas ideologias


nacionalistas e modernistas deitam suas raízes na forte influência do campo
intelectual europeu. Como já foi citado, Freyre estudou com Franz Boas. Este autor
pautou as teses do pernambucano em questão. Não somente Boas influenciou o
autor brasileiro em tela, mas também os paradigmas evolucionistas e positivistas
são expressões da influência do campo intelectual europeu no campo intelectual
brasileiro do século XX por meio de Gilberto Freyre.

Diante do que foi comentado no parágrafo anterior o/a leitor/a pode


indagar: o que são o evolucionismo e positivismo? O evolucionismo é uma
reflexão científica, elaborada por pensadores, entre eles Charles Robert Darwin,
que diz respeito à concepção da sociedade como um contínuo processo evolutivo.
Ao longo do tempo, a cultura vai se aprimorando, se transformando, de algo
rudimentar para algo consistente, robusto. Para essa visão, o destino da evolução
social, guiada pela razão, é sempre o sucesso.

Para aprofundamento das ideias acerca do evolucionismo que


se constitui como uma teoria que trata da evolução das espécies e
suas afirmações que revolucionaram a maneira com que pensamos
os mecanismos da seleção natural e, por conseguinte, transformando
a maneira de lidar com os conceitos da biologia. Charles Robert
Darwin percorreu vários continentes e as pistas que teve ao ter
contato com distintos exemplares vivos e fósseis buscou produzir
as diferenças entre as espécies e as variedades observadas. Foi
influenciado por Thomas Robert Malthus, economista britânico do
século XVIII, que trabalhava com a ideia de luta pela sobrevivência.
Por analogia, econtrou achados reflexivos para pensar o mundo
animal, considerando a evolução conforme os ancestrais. As suas
ideias se apresentaram como um terremoto para seu tempo e colocou
o ser humano no mesmo degrau evolutivo que os demais seres
vivos. A evolução passou a ser um fato em que o ser humano não
pode escapar. Esse vídeo intitulado “O que é a teoria da evolução
de Charles Darwin e o que inspirou suas ideias revolucionárias”, do
Canal BBC News Brasil, disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=ambANBIHjCI

110
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

O positivismo é um paradigma elaborado por Auguste Comte com vistas ao


progresso social perene. A história, para essa leitura científica, é testemunha do
sucesso. A sociologia é a área do conhecimento positivista, que tem Comte como
seu idealizador.

O modo de pensar de Augusto Comte, conhecido como o


fundador do positivismo. Trata-se de um filósofo crítico em busca de
avançar o pensamento iluminista em nome da racionalidade, mas
ultrapassa esse enfoque ao acreditar que os fenômenos da natureza
não podem ser alterados diretamente, assim como no campo das
humanidades. Comte criou um método de estudo da sociedade
inserindo-a em regras para interpretá-la. Na sua visão a natureza se
sobrepõe as ações humanas, haja vista que as ciências humanas
são entendidas sob a ótica de uma ordem natural. Essa perspectiva
postula uma evolução natural para o campo social e tal orientação
impacta na maneira de lidar com os fenômenos humanos e, desse
modo, a ideia de progresso instaura uma concepção positivista
que desconsidera outros fatores e rupturas nas relações humanas,
podendo dar substrato para a subjugação de determinados grupos
humanos emanados por uma noção de superioridade ancorada na
linearidade de pensamento herdada da visão de evolução natural.
Com o intuito de colaborar com essa compreensão do positivismo,
indicamos assistir ao vídeo: “O QUE É O POSITIVISMO DE
AUGUSTE COMTE? - Aula 21”, do Canal Parabólica.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wvkslsfuY4c

Esse componentes citados – nacionalismo, modernismo, universalismo,


evolucionismo e o positivismo – constituem a base do pensamento social brasileiro
articulado por Gilberto Freyre. A soma desses componentes deram outros
contornos para o nosso campo intelectual, desejoso de novos direcionamentos,
concomitante o Estado nacional que ambicionava pela transformação social de
caráter progressista, para encaminhar o país e sua economia, tão cara à elite
dirigente. Tudo isso se deu em meio a um quadro de severas desigualdades,
perpetuado desde à Colônia, que atravessou o Império e a recente República. Por
isso Freyre se pôs em direção da captação da singularidade histórica brasileira,
que seria extraída do passado colonial, para apontar as vias do progresso.

111
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

No plano das ideias, a modernidade brasileira caracteriza-


se pela operatividade das categorias de cultura, história,
universalidade e, ao mesmo tempo, singularidade e
subjetividade. Quer dizer, é montada uma equação entre
o singular e o universal, mediados pela ideia de nação, de
tradição, de singular e de subjetivo; articulações inéditas na
cultura brasileira. Surge exatamente nesse momento, e não
antes. No plano político, destacam-se as categorias povo, de
nação e de Estado nacional. Adquirem relevância tanto as
categorias, quanto as discussões em torno delas. (VELOSO;
MADEIRA, 1999, p. 143).

Essa postura de resgate do passado já havia sido provada por outros


intérpretes do Brasil de gerações anteriores. Vide o exemplo dos românticos, dos
positivistas e até dos neocoloniais. Mas com os intelectuais da geração de Freyre,
inscritos na corrente Modernista, havia um novo direcionamento de leitura das
memórias da colonização. Segundo Mariza Veloso e Angélica Madeira (1999, p.
144) o aspecto diferencial era: “voltar ao passado para descobrir um futuro para
o Brasil”. Tomar posse da singularidade histórica que formou o Brasil para que
assim pudesse alcançar a universalidade, promessa de um amanhã promissor.

Observando por esse ângulo, Freyre, com suas obras, sempre partiu do
pressuposto da existência de um modelo civilizador ibérico que foi dissipado para
toda a América Latina. Dito de outra forma, a civilização ibérica é a singularidade
constituinte do Brasil. Para atestar a sua tese, o pernambucano concentrou
atenção nos séculos XVI e XVII. A espacialidade na qual teria surgido o Brasil foi
a nordestina. Na qualidade de um dos expoentes do movimento Modernista, esse
foi o caminho escolhido por Freyre para atestar a força do passado colonial na
constituição do Brasil.

Freyre, ao seu modo e diga-se de passagem de um modo cercado de


controvérsias, devido à visão ensolarada das práticas ibéricas no processo de
colonização, que o impediu de visualizar espoliações, mazelas, violências e
sofrimentos no processo de colonização trazidos para a população nativa e
afro-brasileira - reinterpretou a história social brasileira. Uma visão da história
pautada no apontamento da singularidade da nação brasileira. Tal singularidade
é intrínseca à sua visão da história. Uma história vista a partir da celebração do
passado e da tradição.

Ser moderno a qualquer custo, esse foi um dos lemas que instigou os
modernistas à sua formulação da história. Retomar o passado e a tradição para
ser moderno, eis a questão! Segundo Veloso e Madeira (1999, p. 145) “[...] ser
moderno não era romper definitivamente com o passado e com a tradição, muito
pelo contrário, era incorporar a tradição”.

112
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

Portanto, para o campo intelectual do século XX, norteado pelo Movimento


Modernista, a história é herdeira da tradição progressiva. Isso quer dizer que a
história – explicitamente conduzida pelos paradigmas evolucionistas e positivistas,
não restritos apenas a Freyre, mas também a um tempo – é resultante da ação
social positiva, revestida das influências civilizadoras, com mira no progresso.

A visão do passado arquitetada pelo campo intelectual modernista do século


passado, do qual Freyre foi um dos artífices, nada mais é do que uma expressão
edênica do tempo. Isto é, uma visão profética, cujo o destino é salvar o futuro
pelo resgate do passado a partir de um presente ambicioso, com carência de
ser nação. Inventar o presente a partir da imaginação do passado, eis o desafio
imposto aos homens das letras. Esse exercício nada mais era do que inventar a
história, inventar o tempo, inventar a nação, inventar o Brasil.

Com esse intuito a obra clássica de Gilberto Freyre, Casa grande &
senzala, buscou sublinhar a importância do componente civilizacional ibérico
na organização da nação. Esse componente se sobrepôs aos demais, negro e
indígena. Por que Freyre adotou esse caminho? Ora, porque o modelo de nação
perseguido para adequar o Brasil é o europeu. E a Europa, como se sabe, é
edificada pela historiografia oficial escrita por não-negros. É pelos portugueses
que o Brasil se vinculou, com Freyre, à tradição nacionalista, universalista,
modernista e progressista ocidental. Por isso, o destaque dado por Freyre à
tradição portuguesa. Esse grupo é o baluarte civilizacional a ser seguido para que
o Brasil se faça como nação. Ou seja, é pela tradição civilizacional ibérica que o
Brasil se conecta ao padrão universalista da Europa. Esse foi o preço pago pelo
Brasil para ter acesso ao status civilizacional tão cobiçado pelo campo intelectual
e pelo campo político da época.

Observando por esse ângulo, cabe ressaltar a mestiçagem, difundida no


imaginário social do brasileiro graças ao alcance de Casa Grande e Senzala. A
mestiçagem é recuperada toda vez que se diz que o Brasil não é eivado pela
ideologia racista. Entretanto, vale a pena dizer que a mestiçagem difundida por
Freyre e praticada no âmbito da cultura nacional está longe de ser algo situado
no plano da mistura de povos e tradições. Talvez essa seja a grande limitação de
Freyre. Isso porque não houve mistura, mas composição cultural determinada, de
modo hierárquico, pelo segmento social ibérico. Se houvesse mistura, seríamos
de fato um povo híbrido, de confluências de culturas. E não uma comunidade
pautada pelo elogio da civilidade portuguesa para atingir o ideário nacionalista
europeu. Esse fato fez com que Freyre compreendesse a elaboração do Brasil
a partir da cultura ibérica, da varanda da casa grande, e visse a cultura negra e
indígena com algo secundário, por não ser moldada nos parâmetros civilizacionais
exigidos pelos paradigmas disseminados pelo campo intelectual.

113
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

FIGURA 5 – VARANDA DA CASA GRANDE

FONTE: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_
content&view=article&id=831&Itemid=1>. Acesso em: 1 jun. 2021.

Essa leitura crítica encontra sustentação, por exemplo, na só no lastro textual


de Freyre como também na recepção de sua obra pelos seus críticos. É o caso
do cientista político Francisco Weffort (2011, p. 270) que, seguindo os rastros do
pernambucano, apresenta uma leitura da mestiçagem na qual o negro é lido a
partir do mestiço e não partiu da visão do negro para entender negro. E da família
patriarcal ibérica para compreender o ibérico.

Gilberto Freyre partiu do mestiço para compreender o negro,


na mesma lógica partiu da observação do escravo na família
patriarcal, para compreender o escravo no eito. Realizou o
mesmo movimento para chegar à esfera do econômico: partiu
da observação da família patriarcal, na casa-grande, ou à sua
volta, na senzala, com as suas relações pessoais, afetivas,
religiosas e seus hábitos sexuais, para chegar ao latifúndio, ao
engenho como unidade de produção. Não partiu da produção
econômica em que o negro escravizado era coisa, besta de
carga, animal, mas da família e do mestiço (WEFFORT, 2001,
p. 270).

É nesse sentido que Freyre com Casa Grande e Senzala se coloca como
porta-vozes desse projeto civilizacionista que abdicou da racialidade em prol
da culturalidade para projetar um Brasil plural, de múltiplas dimensões. Ainda
que tal projeto seja apenas multi no ponto de vista da idealização, posto que a
pluralidade é protagonizada pela cultura ibérica e as demais, negra e indígena
são coadjuvantes, o pernambucano se tornou um pensador inaugural no bojo do
pensamento social brasileiro pelo modo como contou essa história. Esse fato, os
traços que impulsionaram seu modo como inventou o Brasil, será visto a partir
de agora, com a abordagem do livro em questão. Um autor e uma obra que são
leituras obrigatórias a todos/as aqueles/as que querem, assim como Gilberto,
entender a constituição do presente nas malhas do passado.

114
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

Como já foi dito, a obra de Freyre é assinalada por um traço peculiar para
seu tempo, a interdisciplinaridade. O diálogo com algumas áreas do saber, como
a história, a sociologia, a psicologia e a antropologia possibilitaram ao autor
imprimir a marca do ineditismo literário. Tal marca é notada na metodologia eleita,
que guiou à produção do livro. A interdisciplinaridade subsidiou o mergulho do
pesquisador no espesso cotidiano doméstico do brasileiro, um feito inédito até
então. O intento do autor era de, com esse recuo à rotina doméstica, nacionalizar o
Brasil. Como sabemos, diante do que já foi exibido até aqui, um dos pressupostos
da nacionalização é a totalidade, homogeneizar as diferenças em benefício da
unidade nacional.

Essa ideia contém a perspectiva da totalidade. Assim, o trabalho


científico é visto como se fosse uma novela, um romance em
que as partes se inter-relacionam. Freyre assinalou o elemento
proustiano na sua obra, como já foi dito, no prefácio da edição
inglesa de Casa grande & senzala, em que argumenta que
procura entender o caráter e a formação do brasileiro a
partir da rotina doméstica da casa grande. Isso é totalmente
inovador. Segundo o próprio Gilberto Freyre, “estudando a
vida doméstica dos antepassados, sentimo-nos aos poucos a
nos contemplar, é outro meio de procurar o tempo perdido”
(VELOSO; MADEIRA, 1999, p. 152).

Assim, Casa grande é o livro de ciências sociais que sintetiza a história do


Brasil sob o olhar totalizador da cultura. Dito de outro modo, Casa grande é o
exemplo de narrativa na qual tem início à cultura brasileira. Isso porque o fato
social total pulsa naquelas páginas.

Falando em narrativa totalizadora ou de fato social total, um dos componentes


presentes no livro em análise que sustenta essa afirmação é o religioso. A religião
é tomada como ingrediente de aglutinação da sociedade conjecturada por Freyre.
Para ele, a religião é o ponto de contato, conexão e de geração de vínculos
da cultura nacional. Negros e brancos testemunham pela cultura religiosa a
composição do que foi designado como democracia racial, igualdade entre grupos
étnicos estabelecida pela religião. A religião é uma das bases que possibilitam a
miscigenação racial, a mistura de povos, tradições e culturas.

Dito isso, destacamos outro traço inédito dos escrito do pernambucano, as


fontes consultadas. Elas são um aspecto a parte que merece destaque. Freyre
lançou mão do uso de jornais, fotografias, diários íntimos, livros de receitas e
testamentos para compor sua obra. Esse pensador nesse sentido foi inaugural.
Tanto que influenciou todo o campo intelectual desde então a partir desse feito,
pela inovação das fontes para a produção de conhecimento.

115
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Sobre Casa grande discorremos até aqui acerca de sua metodologia, de


natureza interdisciplinar, da variedade de fontes examinadas, na qual ambas
conferem o status de singularidade de sua obra. Diante do que foi tematizado até
aqui, uma pergunta se faz: essa metodologia e fontes foram direcionadas para
analisar quem?

A metodologia e as fontes foram direcionadas para analisar o brasileiro.


Um brasileiro situado em três esferas: na casa, na família e na subjetividade. A
análise da casa se impõe porque ela foi tomada como apêndice do mundo social.
Já a família é perscrutada porque é nela que o sujeito cria um espaço seu, uma
espécie de micro-mundo. E a subjetividade é observada porque é vista como polo
de produção de saber caracterizado pela intersecção entre particular e universal.
Penando nisso que “para compreender a história de um povo, a história de uma
época, é preciso perseguir não apenas os grandes feitos, mas também os que
compõem o cotidiano e o imaginário de uma sociedade.” (VELOSO; MADEIRA,
1999, p. 155).

Sua análise sobre a casa e a família são tomadas como desdobramento da


atuação do patriarcado, este último é outro aspecto no qual recai a atenção do
autor. Pensando o patriarcado em uma lógica evolucionista, tão preciosa a Freyre,
ele é dividido em três etapas: patriarcado rural, patriarcado urbano e patriarcado
industrial. A observação da casa e da família sob essa perspectiva possibilitou a
compreensão do Brasil sob o signo da continuidade histórico-cultural.

Assim, o autor vê a continuidade, como a mudança, numa outra


perspectiva, não como ruptura, como o marxismo propunha,
amálgama como movimento de transformações graduais.
Essa espécie de amálgama trazida com a miscigenação e a
forma de organização das casas grandes e senzalas garantem
continuidade que vai gerando mudança. Por esse motivo,
pode-se ler em sua obra a modulação de um patriarcado rural
a um patriarcado urbano e, ainda, a um patriarcado industrial.
Enfim, uma leitura contemporânea pode mostrar como a
sociedade brasileira continua presa aos marcos históricos
do personalismo familiar patriarcal e privatista que a formam
(VELOSO; MADEIRA, 1999, p. 156).

Casa grande assim como as demais obras do pernambucano em pauta,


trazem uma marca própria como já anunciado no início desta seção: a vinculação
ao gênero textual do ensaísmo, uma característica típica de alguns intérpretes
do Brasil e quiçá da América. Não convém avançar nesse argumento que, por
si só, já seria objeto de atenção de outra escritura diferente desta, empenhada
na apresentação de alguns dos principais nomes, ritmos e tramas responsáveis
pela formação do pensamento político brasileiro. No entanto, convém registrar
para o/a leitor/a a existência desse traço da textualidade de Gilberto e do campo

116
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

intelectual, para que se perceba que a escrita não é desligada da sociedade.


Mas é o contrário. Ela é intimamente ligada à sociedade e também carregada de
intenções. O gênero ensaísmo não é eleito ao acaso. É escolhido para conversar
diretamente com o/a leitor/a. Aguçar sua sensibilidade, falar com seu coração.
Como Freyre tematiza o cotidiano, toma como fontes, por exemplo, como já dito
aqui, livros de receitas e diários íntimos, a escolha do ensaísmo vem para cumprir
essa tarefa: aproximar o/a leitor/a da obra pelo conteúdo tratado pela tipologia
textual. Tudo isso com a finalidade de persuadi-lo/a, envolvê-lo/a, na trama de
ideias e intenções tecida.

Outro componente que, seguramente, auxilia no cumprimento desse intento


de persuasão do/a receptor/a da obra, que age pari passu que o gênero textual,
é o estilo de escrita. Como já lido no segundo capítulo, os sujeitos promotores
dos discursos anunciados pelo campo intelectual são assinantes também de
textos ficcionais, vide o caso de José de Alencar com Iracema. Isso faz com
que disponham de uma facilidade na arte do manuseio da palavra e seduzam
seu público. Não por acaso que as obras de Freyre flertaram com os signos
discursivos de autores adeptos da prosa, fieis, portanto, a uma tradição literária
por excelência. Autores que com sua escritas comungavam de uma paixão, a
dimensão afetiva, outra característica do ensaísmo. Neste caso, a paixão ufanista
pelo Brasil.

Então, o seu diálogo mais assíduo e essencial tinha sempre


sido com a tradição, infinitamente mais literária do que
científica, do ensaísmo verde-amarelo, de um Joaquim
Nabuco e Oliveira Lima, de um Euclides da Cunha, de Graça
Aranha, de João Ribeiro, e até o historiador Sérgio Buarque de
Holanda (VELOSO; MADEIRA, 1999, p. 157).

A paixão ufanista é uma característica que não passou desapercebida pelos


críticos de sua obra. Assim como também outras, como a de ser de um pensador
narcisista, devido o seu envolvimento com o objeto de estudo, o povo brasileiro,
quando se vinculou com os ancestrais eurodescendentes no resgate da memória
colonial do país.

Freyre apontou ainda dois pilares de nossa nacionalidade: a religião e a


família, esta última já trazida nesta seção. Pensando no Brasil do século XXI
e a julgar pela força com que ambas vem sendo repercutidas nas três últimas
décadas da história da República, em especial no pleito para o cargo do executivo
federal do ano de 2018, nota-se a atualidade dos temas para decodificação do
Brasil atual. Para entender a disposição religiosa na formação do Brasil, em

117
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

especial na obra Casa grande & Senzala, mais uma vez a palavra será concedida
à antropóloga Mariza Veloso e a estudiosa da linguagem Angélica Madeira (1999,
p. 159).

Um elemento de atividade da obra em questão, ainda hoje


de especial relevância na constituição da cultura brasileira,
diz respeito à presença constante de valores religiosos na
definição das condutas sociais. Freyre mostra a instituição
do cristianismo no Brasil ancorada numa exacerbação do
“cristianismo familiar”, sem maiores discussões metafísicas:
uma religião que supunha intimidade com os santos e
ensejava a penetração de uma visão mágica na vida
cotidiana. Parece-nos ainda atual ver a cultura brasileira por
meio das manifestações mágico-religiosas, em suas diferentes
vertentes, manifestações que organizam formas específicas de
sociabilidade, orientadas por poderes simbólicos igualmente
específicos.

A família é o núcleo de reiteração da ideologia patriarcal. Isso também já


foi pautado neste espaço e também afirmado por Freyre. Tanto que para ele a
família é o lócus de compreensão do Brasil em suas potencialidades quanto em
suas fragilidades, limitações. É por isso que a religião e a família são alicerces
institucionais composição do Brasil.

Freyre foi um dos primeiros pensadores brasileiros a pautar as esferas


pública e privada e o modo singular como o brasileiro as vive. E mais do que
isso, como tal modo integra à formação nacional. Uma dessas especificidades de
conceber ambos os espaços é o apreço dado à vida doméstica e a dificuldade de
composição de uma esfera pública robusta. Isso também foi apontado por Freyre
em Casa grande.

Esse ethos de formação das esferas privada e pública, esta última selada
de precariedades porque é corrida pelos interesses do oikos, e a não existência
de uma fronteira que separe ambos, faz com que o Estado nacional brasileiro
seja mensageiro dessa ambiguidade. O que vimos com Freyre é a indicação da
presença de uma moralidade patriarcal, típica da esfera privada, na ação política
performatizada pelo Estado. Certamente esse é o mérito mais saliente da da obra
do pernambucano.

118
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

1 Pensando na questão do racismo, ainda profundamente arraigado


em nossa sociedade, leia a charge a seguir.

Com base nos conhecimentos construídos ao longo da leitura e


reflexão sobre o conteúdo tratado, aborde a relação entre produção
cultural e a moral escravista presente na sociedade brasileira.

3 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA:


UM INTÉRPRETE DAS RAÍZES
BRASILEIRAS
Para apresentar Sérgio Buarque de Holanda, autor a quem esta seção se
dedica, recuperaremos as palavras do cientista político Francisco Weffort (2011,
p. 258). Ele sintetizou bem a trajetória do paulistano, oriundo de classe média, que
nos idos dos anos 1920 mudou-se para o Rio de Janeiro, residiu de modo breve
na Europa, fora influenciado pelos escritos do historiador, filósofo e sociólogo
alemão Max Weber.

119
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Como herdeiro dessa tradição de pesquisa, inaugurou uma leitura weberiana


na qual incorporou as contribuições da reflexão da sociologia compreensiva
e dos tipos ideias para dentro da sua sociologia. Cabe sinalizar que no Brasil
dos anos 1930 ainda não tinhamos a publicação das principais obras produzidas
pelos autores clássicos, então, em função disso, as obras de Sérgio Buarque de
Holanda ganharam significado para divulgar as teses clássicas.

Foi visto como um influente pensador brasileiro do século XX com repercussão


na academia internacional, destacando-se como professor na Universidade de
Roma. Produziu pesquisas sobre a realidade brasileira e teve seus trabalhos
divulgados em distintos centros de produção de conhecimento pelo mundo. De
acordo com Sanches (2001, p. 130), “[...] acreditava na democracia, não como
forma de governo, e, sim, como forma de sociedade”. Em sua atuação política se
apresentava como um pensador contrário ao fascismo e ao comunismo.

Pondera-se, com base em Sanches (2001), que nos anos 1920 e 1930
tivemos no Brasil uma afervescência que conjugava forças politicas, culturais
e literárias. Nesse tocante, ressaltamos a polarização política dos intelectuais
entre “[...] o pensamento político autoritário e o pensamento político democrático”
(SANCHES, 2001, p. 121).

Para se ter uma visão breve da biografia de Sérgio Buarque de


Holanda, indicamos assistir ao vídeo Biografia - Sergio Buarque de
Holanda, do Canal Othavio Cavalaro.
Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=9Xn4IKGvQ5A

Sublinhamos que, mesmo não se tratando de um representante típico da


esquerda, em muitas oportunidades manifestou seu apoio como foi o caso da
oposição à Ditadura do governo de Getúlio Vargas, da participação na fundação
da Associação Brasileira de Escritores que pregava as liberdades democráticas,
da atuação como membro fundador do Partido Socialista (1947), da posição
firme contra a Ditadura instaurada em 1964. Teve trânsito pelo jornalismo, pela
pesquisa histórica, pelo magistério superior e fez da palavra sua morada. Muito
embora tivesse uma ligação com menos intensidade pela política institucional se
comparado aos seus colegas de ofício intelectual, mais tarde, em 1980, foi um
dos assinantes da ata de fundação do Partido do Trabalhadores (PT).

120
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

Sérgio Buarque de Holanda, (…) paulista de nascimento (sua


família mudou-se para o Rio de Janeiro em inícios dos anos
1920), foi menos ligado à política do que seus colegas. Em
1929, foi representante de um jornal brasileiro em Berlim, onde
assistiu a aulas na universidade, embora sem regularidade.
Mas isso foi o bastante para que tomasse contato com a
cultura alemã da época, em que primavam nomes como os
de Friedrich Meinecke (1862-1954) e Max Weber (1864-1920).
Regressando ao Brasil em 1931, voltou também ao jornalismo.
Dedicou-se à pesquisa histórica e à atividade de docente
universitário, sempre com enorme êxito. Embora mais distante
da política do que outros ensaístas, ele tinha preferências
por idéias socialistas democráticas, que o levaram, quase
ao fim da vida, a assinar a ata de fundação do Partido dos
Trabalhadores, em 1979 (WEFFORT, 2011, p. 258).

Com o propósito de apresentar informações acerca da trajetória


histórica do Partido dos Trabalhadores (PT) correspondente ao
período de sua fundação em 1980 até o ano de 1989, etapa entendida
como os primeiros tempos que vai da luta contra a Ditadura até as
primeiras eleições presidenciais, recomendamos assistir ao vídeo 20
Minutos História - A trajetória do PT: Primeiros tempos (1980 -1989),
do Canal Opera Mundi.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BJbs0Z1KqfI

Conforme já comentado nesta obra, um aspecto determinante na constituição


do pensamento político brasileiro é que os homens de ciência, integrantes do
campo intelectual, boa parte deles são oriundos de setores sociais privilegiados.
Frisamos que “[...] é preciso que se observe a construção teórica do binômio –
formação/desenvolvimento do Brasil para assim compreender a relação do público
e do privado, bem como a visão dual – tradicional/moderno e por fim, a gênese
do pensamento social brasileiro” (ALMEIDA, 2011, p. 164). Os nomes estudados
aqui, a exemplo de Nabuco e Freyre, figuram essa seletiva lista. Mas também
Sérgio Buarque, “[...] um homem de classe média tradicional que se dedicou à
crítica literária nos jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde se fixou, como
professor universitário” (WEFFORT, 2011, p. 259).

Holanda se notabilizou entre seus pares com a publicação do livro: Raízes


do Brasil, no ano de 1936, em um tempo sacudido pelos ventos modernistas.
Uma obra que se consagrou como clássico para a compreensão do pensamento
político brasileiro. Na visão de Almeida (2011, p. 165):

121
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

A obra Raízes do Brasil (1984), marca a década de 30 no que


concerne à formação da identidade brasileira. Publicada em
1936, o autor, Sergio Buarque de Holanda, propõe severas
críticas a formação oligárquica do país a partir de reflexões
sociológicas pautadas na metodologia weberiana. Não apenas
Sergio Buarque de Holanda, mas, juntamente com Caio Prado
Junior e Gilberto Freyre marcaram a década de 30 no que
tange a formação da identidade brasileira do ponto de vista
da elaboração teórica. A chamada tríade do pensamento de
30, formada pelos pensadores mencionados, dedicou-se a
compreender a formação e desenvolvimento da sociedade
de um país em “formação”, bem como marcaram a história do
pensamento social e econômico do Brasil, a ponto de tornarem-
se referências capitais para historiografia oficial deste período
(ALMEIDA, 2011, 165).

FIGURA 6 – RAÍZES DO BRASIL, DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

FONTE: <https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2017/01/28/raizes-do-brasil/>.
Acesso em: 2 jun. 2021.

Um texto que ambiciona a decodificação da cultura brasileira. Nas palavras


de Veloso e Madeira (1999, p. 163 e 164):

122
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

Raízes do Brasil é referência obrigatória para o estudo do


pensamento social e o conjunto das ideias sobre o Brasil.
Surge aqui mais um último desafio: publicada em 1936, ainda
no contexto do movimento modernista, a obra integra um
conjunto de interpretações da cultura brasileira cuja atualidade
e pertinência fazem do saber produzido por aquela geração,
também chamada a dos “explicadores”, uma fonte de sugestões
para a compreensão dos problemas contemporâneos.

O que há em Raízes que fez dela uma leitura indispensável a todos/as


que desejam compreender a composição da cultura brasileira? A uma espécie
de self cultura nacional. Uma codificação do Brasil e de sua gente que não é
engessada, mas transitória, que segundo Holanda, é legada dos ibéricos,
devido à identificação do elemento individualista europeu. Esse livro tinha como
grande questão a relação do indivíduo com o Estado e com os pactos políticos,
considerando as pulsões e os desejos em um cenário do entreguerras. É bom
ressaltar que o liberalismo nesse contexto estava em crise e a reflexão de Sérgio
Buarque vai nessa direção lançando luz no pacto liberal sem perder de vista a
noção de democracia. A metáfora do homem cordial é uma idealização criada
buscando recuperar um traço histórico, um verdadeiro tipo constituido, no qual
o sujeito se apresenta como capaz de restaurar o afeto na família, nas relações
públicas e na política. Apontando, no limite, para uma visão de homem bom na
cultura política.

Recomendamos assistir a entrevista com a historiadora


Lillia Moritz Schwarcz, uma das organizadoras da edição crítica
comemorativa de 80 anos de Raízes do Brasil, ensaio de Sérgio
Buarque de Holanda. Em sua entrevista Lillia fala das mudanças que
o autor fez em sucessivas edições do texto, e explica seu conceito
mais importante: o homem cordial. Dito isso, sugerimos assistir
esse vídeo Raízes do Brasil, 80 anos de um clássico, do Canal
vejapontocom.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vIbWzC6l6wk

123
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Assim como Casa grande, Raízes também é emoldurada em torno ensaísmo.


Um livro menos suave e prosaico que Casa grande, devido à influência alemã de
Weber. Mas nem por isso Raízes perde sua força, qualidade e caráter inaugural,
situados na identificação dos males de origem que compõem o enredo do Brasil.

Dito isso, sobre o ensaísmo como marca dialogal, imagística e literária, uma
pergunta se impõe: por que o nome do livro é raízes? Qual é a intencionalidade do
autor e da obra ao empregar a imagem raiz para pensar o Brasil? Uma pergunta
interessante para abrir os nossos trabalhos analíticos. Para explicar a razão de
ser do uso dessa imagem, franquearemos a palavra a Veloso e Madeira (1999, p.
166).

Consideremos o valor conceitual e a intenção retórica que


presidiu à escolha dessa imagem fitomórfica. Por que raízes?
Sérgio Buarque faz apelo a uma metáfora orgânica: se há
raízes, há solo, plantas, árvores, frutos. Tudo o que frutificou
aqui - e o verbo é utilizado inúmeras vezes, ao longo do livro
- alimentou-se dessa seiva primeira, o impulso trazido pelo
colonizador. Na cópia negativa, do outro lado do
retrato do Brasil, estão assinaladas as ranhuras e os estragos,
os aspectos conflitivos de nossa formação cultural, marcada
por esse estigma, ou fantasma reprimido: a colonização.

As autoras em tela ainda asseveram que a imagem raízes é impensável fora


do âmbito rural, o qual marcou, desde o processo de colonização, formatação
do Brasil. Por isso, mais uma vez, a palavra será dada elas para que possamos
entender a importância dessa imagística empregada por Holanda para
interpretação do Brasil.

A metáfora “raízes” é impensável fora da natureza rural que


marcou indelevelmente a sociedade brasileira. Eis aí a nossa
herança, os erros e acertos de nossos ancestrais, tanto quanto
a origem colonial de nossa civilização, mal caracterizada como
“civilização de transplante”. Essa ideia, usada por inúmeros
intérpretes do Brasil, construiu uma imagem de nós mesmos
como uma extensão, um prolongamento do mercantilismo
europeu. Formados no pensamento periférico, não fomos
capazes de reverter tal perspectiva e localizar o albor da
produção capitalista, no tráfico de escravos e na exploração
da prata e do ouro americanos (VELOSO; MADEIRA, 1999,
p. 166).

Holanda, assim como Freyre, recua ao pretérito colonial com vistas a resgatar
a singularidade nacional. Civilizar e modernizar o Brasil também foram tarefas que
Sérgio se auto-atribuiu. Novamente outro aspecto em Raízes traz a lembrança
Casa grande. Trata-se da tematização do patriarcalismo. A imagística raízes

124
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

recupera a tradição patriarcal que funda a nação. Elementos como hierarquia,


autoritarismo, submissão, mas também revolta dão sustentação às páginas do
ensaísmo proposto pelo pensador paulistano.

Ou seja, o povo brasileiro descrito por Holanda, a partir do mergulho no


passado colonial, não é apenas pacífico diante da regência do patriarcalismo.
Mas também é insubordinado a tal ideologia. Pesando nas ambivalências do jeito
de ser brasileiro, o autor elaborou a categoria de homem cordial. O homem cordial
é emissário não só de negatividade, mas também de positividade. Essas são uma
das raízes que permitem compreender a frondosa árvore chamada de Brasil.

Patriarcalismo – Se diferencia de família nuclear e tem suas


marcas na ruralidade, ultrapassando a ideia de laços sanguíneos.
É uma família sob o peso da figura masculina em uma sociedade
patriarcal que sustenta as relações sociais, políticas, culturais e
econômicas desde o período colonial. Historicamente, a família
patriarcal brasileira se enraizou em estruturas culturais escravagistas,
monocultoras e machistas. A sociedade patriarcal e suas marcas
estão retratadas na literatura brasileira, como exemplo, podemos
citar a obra Sítio do Pica Pau Amarelo de Monteiro Lobato.

Entender a cultura brasileira como ela é, com limitações e potencialidades,


permite acessar a constituição polissêmica de um Brasil multifacetado. E assim
colocá-lo nas rotas de modernização desejadas pela elite do período.

Outro traço da escrita de Holanda pela obra em exame traz à lembrança o


legado de Freyre. Trata-se da valoração do componente cultural ibérico. Para ele,
são os ibéricos que dão à tônica da mistura de tradições que gestam o Brasil.
São também, portanto, os ibéricos que dão a chave de acesso do Brasil para tão
sonhada rota do nacionalismo europeu.

Seguindo a metáfora fitomórfica, diríamos que se são lusitanas


as raízes a elas vieram se enlear rizomas, fluxos migratórios
vindos de todos os continentes, misturas de valores e normas
culturais, redes sutilíssimas de mensagens e bens de
consumo, várias redes superficiais, fasciculadas e superpostas,
que fornecem outras imagens, outras possibilidades de leitura
e, para isso, exigem novas categorias para se pensar sobre a
sociedade brasileira (VELOSO; MADEIRA, 1999, p. 167).

125
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

É do mundo ibérico que emerge também o método que possibilita à


construção de Raízes. Posto que o livro gira em torno das espacialidades
geográfica e cultural lusitanas. Isso possibilita o nascimento das instituições
nacionais brasileiras. Esse caminho, por si só, ainda segundo Veloso e Madeira
(1999, p. 173), explica o método eleito por Buarque que fora aplicado à sua obra
e que buscava dar uma conotação para nossas instituições de valores, noções
e ideias que não valorizam nem legitimam o Brasil como um país autêntico e
preocupado em resolver os seus erros históricos.

2 Acerca do pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, historiador


e sociólogo brasileiro, comente a relevância ou o significado
histórico-geográfico de sua obra intitulada Raízes do Brasil para
pensar a nossa realidade política.

4 DOS ANOS 1950 A 1970: CAMPO


INTELECTUAL E A MODERNIZAÇÃO
DO ESTADO NACIONAL
Para discutirmos as décadas de 1950, 1960 e 1970, é importante termos
em perspectiva que o longo modernismo é uma convergência das elites política
e cultural que desenvolveram ações de ordem econômica e cultural destinadas
à modernização do país, sem perder a conciliação entre modernidade,
modernização e modernismo.

A glorificação do modernismo no Brasil é um processo que


perpassa todo o século XX e que envolve um conjunto de
agentes – críticos, historiadores, curadores de arte – e diversas
práticas sociais, como o mercado de arte, as aquisições
realizadas pelos museus e, ainda por vezes, uma política
cultural explicita levada a cabo pelo Estado, em sua dimensão
nacional ou regional (SIMIONI, 2013, p. 1).

Essa conjuntura abalizou-se em um processo de modernização sob o


ponto de vista urbano, industrial e tecnológico, no qual buscava se rebater na
modernidade no sentido da sensibilidade e no modernismo como movimento
ligado à atualização cultural na perspectiva estética. Esses eixos não acontecem,
necessariamente, ao mesmo tempo.

126
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

Os conceitos de modernização e modernismo se diferenciam, haja vista que


modernização se refere ao conjunto de transformações ou mudanças econômicas,
políticas e culturais que constroem a contemporaneidade. Sendo assim, envolvem
a racionalização, a acumulação de capital, a evolução da complexidade social,
dentre outros aspectos associados à modernização.

A visão de modernização que trabalhamos no Brasil é um legado do


pensamento europeu e se refere às bases iniciadas no século XVIII e se
consolidaram no século XIX no continente europeu. Essas sociedades modernas
europeias passaram por mudanças políticas profundas como a Revolução
Francesa ou a experiência inglesa que colmatou pactuações deixando marcos e
ideias que se arrastaram até o plano político brasileiro rebatendo no caldo político
cultural do Brasil no século XX. Cabe assinalar que Simioni (2013) externa que o
processo do modernismo pode ser lido em três fases distintas:

O primeiro momento, que compreende o intervalo de 1917 a


1940, caracteriza-se pela construção de uma história da arte
moderna no Brasil em que se toma como ponto de vista a fala
dos próprios participantes do movimento. A segunda fase, que
vai da década de 1940 até o final da década de 1970, pode ser
entendida como o momento de institucionalização da crença
no valor da arte moderna no Brasil, processo que contou com
a chancela dos trabalhos produzidos no interior do sistema
universitário, bem como das aquisições oficiais de acervos
notórios de artistas modernistas. No final da década de 1970,
inicia-se um momento de revisionismo crítico marcado pela
emergência de diversos tipos de contestação sobre o caráter
efetivamente moderno do modernismo brasileiro, sobre os
limites formais desse movimento e ainda sobre a posição
central de certos grupos e regiões do país na construção de um
discurso canônico, ao mesmo tempo em que houve tentativas
de se repensar, de maneira mais matizada, o alcance e a
especificidade de tais produções no país (SIMIONI, 2013, p.
2).

O modernismo cultural olhou para os processos de modernidade política e


econômica e se apresentou como um projeto modernizante da economia e da
política. As transformações sociais foram antecedidas por um projeto modernista
que dependeu da mudança política, as quais foram gestadas pelas forças culturais
ainda na década de 1920. Pondera-se acerca desse processo que:

A oligárquica república brasileira dos finais do século 19


até os anos 1930 também não teve condições de forjar um
cenário propício para o surgimento das políticas culturais
nacionais. Apenas foram realizadas ações culturais pontuais,
em especial, na área de patrimônio, preocupação presente em
alguns estados. Nada que possa ser tomado como uma efetiva
política cultural (RUBIM, 2007, p. 103).

127
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

FIGURA 7 – SEMANA DE ARTE MODERNA, SÃO PAULO, 1922

FONTE: <https://www.revistaprosaversoearte.com/semana-de-arte-moderna-de-1922/>.
Acesso em: 2 jun. 2021.

A reflexão sobre a cultura e o Brasil se converteu em um projeto político


e econômico. No pensamento social e político que se inaugura na literatura se
converteu em uma base sociológica que busca identificar as suas peculiaridades que
possam externar “Quem é o Brasil?” e “O que de fato é a cultura brasileira moderna?”.

Com o propósito de pensar a relação entre o modernismo e a


literatura brasileira, a partir da reflexão acerca do pré-modernismo ou
transição, ruptura ou fase heróica, consolidação com o regionalismo,
poesia de 1930, influências do pós-modernismo, concretismo,
poesia social e poesia marginal, recomendamos assisitr ao vídeo O
Modernismo na Literatura brasileira, do Canal Tapioca com Poesia,
disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PHTVd_T2ceQ

A partir de Veloso e Madeira (1999), ao pensarmos as décadas que se


seguiram ao modernismo se percebe que o campo intelectual partiu para um
esforço mais concentrado na sua especialização e, por conseguinte, se nota uma
maior diferenciação entre a produção de cunho artístico e os feitos com ênfase na
estruturação de um pensamento social. Na realidade, a modernização brasileira
instaurada após a II Guerra Mundial refletiam um cenário de “[...] consolidação do
parque industrial, o processo acelerado de urbanização e a entrada maciça de
indústrias e capital estrangeiro no país” (VELOSO; MADEIRA, 1999, p. 179).

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Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

FIGURA 8 – PICASSO E A II GUERRA MUNDIAL

FONTE: <https://www.dw.com/pt-br/picasso-e-a-segunda-guerra-mundial/g-52381037>.
Acesso em: 2 jun. 2021.

Rubim (2007, p. 101) nos esclarece que “A história das políticas culturais
do Estado nacional brasileiro pode ser condensada pelo acionamento de
expressões como: ausência, autoritarismo e instabilidade”. Diante dessa
consideração, considerando o aporte ideológico, o projeto de modernismo
passou tanto nos circuitos da esquerda quanto nos da direita. Esses amálgamas
são expressivos, porque o nacionalismo como expressão do modernismo, por
exemplo, foi formulado na direita nos anos 1930 e translada para a esquerda nos
anos 1950 recuperando elementos de brasilidade e identidade nacional que já
haviam sido tratados inicialmente nos anos 1930. Pontuamos acerca do período
de 1945 a 1964 que, com base em Rubim (2007, p. 105), que “O esplendoroso
desenvolvimento da cultura brasileira que acontece no período, em praticamente
todas as suas áreas, não tem qualquer correspondência com o que ocorre nas
políticas culturais do Estado brasileiro”.

Do ponto de vista estético, o nacional-popular como tradição cultural e a


formação de vanguardas cosmopolitas conectadas ao modernismo compõem ao
que se entende como o longo modernismo de modo que situamos as décadas
de 1950 a 1970 como o período que assinala de modo contundente o intelectual
como arauto da sociedade, a discussão da identidade nacional e o olhar para
o experimentalismo formal. Então, nesse período, essa agenda ocupa lugar
especial nas demarcações de um Brasil na perspectiva do pensamento político
e de sua memória social. Assinala-se, complementarmente, a partir da lente de
Alves (2011), que esse processo se deu em função do

129
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

movimento de valorização social, intelectual e política da


categoria de cultura popular, ensejado, sobretudo, por meio
das guerras culturais de uma série de gerações intelectuais
ao longo das décadas de 1950, 1960 e 1970. A disputa desses
grupos no sentido de conquistar o estatuto de voz autorizada
sobre o popular e, consequentemente, sobre o nacional, fora
decisiva na conformação do que Alves designa como “estatuto
social da pureza”, cuja principal consequência é a construção
do valor social da tradição, incluída aí a tradição sertanejo-
nordestina e o seu imbricamento com os mercados de bens
simbólicos em expansão (ALVES, 2011, p. 412)

A década de 1950 é de grande valor em função do lugar que ocupa na


memória social, combinando pensamentos de um país arcaico, provinciano e
tradicional com o avanço industrial e da urbanização como forma de abertura
para o futuro. Uma relação de passado com o futuro. Essas contradições são
manifestadas nas produções artísticas do período que tentaram perspectivar a
tradição e uma ideia de nostalgia em relação a uma suposta harmonia de um
tempo lento que estava em processo de alteração. Concomitantemente, a arte
repensava a sensibilidade de novas configurações da modernização e acenou
para as suas possibilidades de avanços econômicos, cosmopolitismo, liberdades
individuais, otimismo em face do futuro.

O governo de Juscelino Kubitschek (JK) de 1956 a 1961 se estabeleceu


como o encontro dessas perspectivas contraditórias, porque assenta no debate
a dimensão tradicional do nacionalismo com a visão de futuro demarcada no
desenvolvimentismo. São dois tempos idealizados se encontrando; o passado
harmônico equacionando com o futuro promissor. O discurso sobre o avanço
industrial se apresentou como articulado e muito otimista.

FIGURA 9 – BRASÍLIA NAS MÃOS DE JK

FONTE: <https://facesaoventomin2.wordpress.com/2013/09/19/50-anos-em-5-governo-jk/>.
Acesso em: 2 jun. 2021.

130
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

A política cultural de JK foi fragmentada e desarticulada deixando o plano


educativo fora de seu horizonte de modernização do Brasil. As classes populares
foram deixadas de lado nos debates políticos sobre a cultura brasileira. No que se
refere à expansão do sistema universitário nas capitais, podemos assinalar que
esse espaço foi consagrado como o epicentro da dinamização da vida cultural
e da participação dos jovens na cultura. Essa lógica de criação cultural nas
universidades vai perdurar sobretudo até a década de 1980.

O Partido Comunista Brasileiro (PCB) se pautou por duas vertentes culturais


ao longo das décadas de 1940 e 1950. O realismo socialista herdeiro dos debates
ocorridos nos anos 1930 na antiga União Soviética. Influenciou os partidos
comunistas e se pautou em apresentar uma arte mais próxima do povo e muito
preocupada em trazer para as artes o real e os seus conflitos, fazendo uso de
peças melódicas de fácil comunicação, incorporar músicas e materiais folclóricos,
na literatura utiliza-se uma narrativa direta com representação de forças histórias,
no cinema a retórica que encarna a luta dos oprimidos passando uma mensagem
otimista que estimula a ação.

FIGURA 10 – FOTO DOS FUNDADORES DO PCB

FONTE: <https://internacional.estadao.com.br/fotos/geral,imagem-de-
1922-com-os-fundadores-do-partido-comunista-brasileiro,813719>.
Acesso em: 2 jun. 2021.

No final dos anos 1950, o realismo socialista entra em crise e o PCB inaugura
o frentismo político e cultural propondo uma aliança de classes e uma linguagem
cultural que reforçasse essa aliança, retirando a ênfase ou a exclusividade do
olhar para o proletário. Então esse frentismo cultural incorporou elementos da
herança burguesa em nome da construção de uma consciência progressista
nas massas. Entende-se por frentismo cultural “as intervenções dos comunistas

131
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

brasileiros e chilenos nos debates artísticos e literários de seus países baseadas


no interesse de tornar o campo da produção cultural um local de articulação e
difusão social das suas propostas políticas” (DALMÁS, 2013, p. 226).

Nesse sentido, o frentismo cultural demarca quais são as experiências


estéticas que pudessem promover mensagens de engajamento. Desenvolve uma
política cultural sustentada no nacional-popular, articulando elementos culturais e
estéticos de vários países e de distintas classes sociais. O princípio teórico que
orientava o entendimento do PCB entendi o povo como um conjunto das classes
revolucionárias em que na etapa nacional-democrática a revolução seria obra de
várias classes, inclusive de membros da burguesia nacionalista.

Duas instituições ganharam destaques no campo acadêmico como


referências para o debate do campo intelectual brasileiro quanto a produção
científica, a Universidade de São Paulo (USP) e o Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB), no Rio de Janeiro.

A USP adota critérios que afirmam a autonomia da


pesquisa acadêmica e da universidade diante de outras
instâncias de poder, buscando pôr em prática um ethos e os
procedimentos científicos internacionalmente válidos. Surge,
nessa instituição, um grupo de pesquisadores, liderados por
Florestan Fernandes, que garante a continuidade dos estudos
sobre o modo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
Daí decorre o interesse por problemas macrossociológicos,
tais como a mudança histórico-estrutural ocorrida na transição
do século XIX para o XX, a formação da classe operária e da
burguesia nacional e as relações raciais (VELOSO; MADEIRA,
1999, p. 180).

Destacamos que, em termos de produção alinhada com a cultura engajada


de esquerda, temos o ISEB fundamentado no reformismo e no nacional-
desenvolvimentismo. Rubim (2007, p. 105) assevera que “O Iseb dedica-se
a estudos, pesquisas e reflexões sobre a realidade brasileira e será o maior
produtor do ideário nacional-desenvolvimentismo no país, uma verdadeira
‘fábrica de ideologias’”. Na prática, esse instituto se mostrou muito plural em
suas composições e compreensões da realidade brasileira. O nacionalismo
de esquerda foi o ponto em comum na composição dos intelectuais que ali se
destacaram com uma visão de que a nação deveria ter consciência de seu papel
histórico como forma de reafirmação perante as outras nações.

Apesar do Iseb não ser estritamente uma instituição voltada para


as políticas culturais, ele terá um enorme impacto, através da
invenção de um imaginário social que perpassa o pensamento
e a ação de governantes (Juscelino Kubitschek e Brasília são os
exemplos imediatamente lembrados) e as mentes e corações
dos criadores e suas obras (RUBIM, 2007, p. 105).

132
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

O ISEB, uma instituição vinculada ao quadro institucional do Ministério da


Educação, entendia o povo como o conjunto da sociedade civil voltada para o
desenvolvimento do nacional-desenvolvimentismo, que demandava estímulo
pelos pensadores brasileiros. Os cientistas sociais estavam empenhados em
construir um modelo de desenvolvimento a ser adotado pela sociedade brasileira.
Veloso e Madeira (1999, p. 181) acentuam que “Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira
Pinto, Roland Corbisier e Nelson Werneck Sodré preconizam uma relação estreita
entre ciência e política e, como Mannheim havia teorizado em Ideologia e Utopia,
acreditam na força operacional das ideias”.

Nesse sentido, os isebianos elaboraram um nacionalismo estruturado em


uma racionalidade que busca traduzir os sentimentos vividos pelos contingentes
populares, haja vista que, para eles, o ser nacional precisa ter consciência para
conseguir interferir na realidade de modo mais expressivo e significativo na
construção do futuro. A via da cultura é vista como indissociável da via política.
Além disso, os isebianos acreditavam na inserção do país no cenário internacional
por meio de um desenvolvimentismo que inspirou a atuação do grupo na
elaboração do plano de metas do governo de Juscelino Kubitscheck.

FIGURA 11 – JK INAUGURANDO O ISEB

FONTE: <https://jk.cpdoc.fgv.br/imagem-som/fatos-eventos/
instituto-superior-de-estudos-brasileiros-iseb>.
Acesso em: 2 jun. 2021.

133
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Destarte, os dois grupos, o PCB e o ISEB exerceram profundas influências


no nacionalismo de esquerda que estava sendo forjado no debate político da
época. Nessa década de 1950 emergiram vanguardas que em muitos pontos
retomaram os debates sobre o experimentalismo do modernismo dos anos 1920.
Atuaram em espaços como a Bienal de São Paulo, em museus e na explosão da
arquitetura moderna brasileira que repercutiu na sua consolidação na inauguração
da nova capital, Brasília, no início dos anos 1960. Os movimentos de artes
plásticas incorporaram experimentações vanguardistas como o abstracionismo, o
concretismo e o neoconcretismo.

Na face literária, ressaltamos a poesia concreta que dialoga com a música,


com a arquitetura, com as artes visuais, dentre outras manifestações.

FIGURA 12 – EXEMPLO DE POESIA CONCRETA

FONTE: <https://brainly.com.br/tarefa/21630412>. Acesso em: 2 jun. 2021.

A poesia concreta ataca o lirismo poético e defende o poema como jogo


de palavras trazendo a materialidade do fonema, reportando a língua aos seus
limites mais profundos de modo a explorar o plano visual.

A busca de maior apuro formal marcou a produção cultural da


época. O concretismo na poesia, o construtivismo nas artes
plásticas, a expansão da capacidade expressiva da linguagem,
tal como encontramos nos melhores momentos do Cinema
Novo, ou na escrita de Guimarães Rosa ou na de Clarice
Lispector, são exemplares de um programa estético baseado
na originalidade, no purismo e no bom acabamento (VELOSO;
MADEIRA, 1999, p. 179).

134
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

As artes modernas se conectam e se faz uma crítica ao nacionalismo e ao


folclorismo. O país precisava de uma arte voltada para o futuro, para os novos
tempos, para a universalidade, etc. O povo passa a ser visto como mais aberto às
novas formas de comunicação e associado aos veículos de comunicação.

O movimento folclorista compreendia que cabia ao intelectual preservar a


tradição e assegurar a identidade nacional como forma de garantir uma base para
a modernização e o povo, nessa ótica, é tratado como um ideal que reservava
a identidade do país. É uma versão tributária das formulações românticas
referentes à identidade nacional e ao conceito de popular. Então, de acordo com
Veloso e Madeira (1999), essa preocupação com a produção de investigações,
a preservação e a institucionalização de práticas culturais ancoradas na tradição
deu origem a Campanha Nacional do Folclore, de 1947, dirigida por Renato de
Almeida e que contou com nomes importantes de intelectuais como Manuel
Diegues, Joaquim Ribeiro, Edson Carneiro, Rossini Tavares, Câmara Cascudo,
Cecília Meireles e Olneida Alvarenga. Assim, o intelectual se enxergava como
responsável por divulgar e proteger a cultura popular, preparando futuros artistas
a fim de aplacar a força estrangeira que ocupava cada vez mais espaço na
cultura brasileira. As produções desses intelectuais eram orientadas pela Carta
do Folclore Brasileiro criada no primeiro congresso desse grupo em 1951.

A tradição é vista por eles como uma continuidade do passado;


sendo assim, ela seria suscetível a rápido desaparecimento,
sob a ameaça do progresso. A Carta de 1951 afirma a
necessidade de criar “um organismo, de caráter nacional,
que se destine à defesa do patrimônio folclórico do Brasil e à
proteção das artes populares”. O movimento dos folcloristas
brasileiros, ao valorizar a “autenticidade” da manifestação
folclórica, encontram uma forma de vinculá-la aos temas da
“identidade” e da “nacionalidade” que dominavam os debates
intelectuais da época (VELOSO; MADEIRA, 1999, p. 182).

No final dos anos 1950 e início dos anos 1960 amplia-se o tema acerca da
cultura popular em um contexto em que se nota uma guinada à esquerda por
parte dos intelectuais. Veloso e Madeira (1999) asseveram que a partir dos anos
1960 se tem uma nítida mudança de visão porque o que se entende por tradição
do povo passa a ser vista em uma outra lente que não é o folclore, dando espaço
para a interpretação de uma cultura popular.

Destaca-se o Movimento de cultura Popular de Recife que se aproximaram


de ideias em torno de intelectuais católicos de esquerda e se aproximam das
culturas populares: um alinhamento da comunicação entre o povo e os intelectuais.
Rubim (2007, p. 105) destaca expressivamente a relevância do “Movimento de
Cultura Popular, desencadeado na cidade de Recife (1960) e depois no estado

135
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

de Pernambuco (1963), pelos governos municipal e estadual de Miguel Arraes,


no qual aparece a notável figura de Paulo Freire com seu método pedagógico que
conjuga educação e cultura”.

Como exemplo disso, temos o método de Paulo Freire que nasce na ideia
de que a consciência popular é resultante de uma experiência da comunidade
popular e se firma como espaço de resistência à exploração capitalista. Esse
movimento foi dissolvido em 1964 com o Golpe Militar. Rubim (2007, p. 105)
assevera que “O movimento se expandiu para outros estados e quando, em 1964,
ele tinha sido assumido pelo Governo Federal foi bloqueado pelo Golpe Militar”.

No Brasil, com a implantação do regime militar de 1964,


ocorreram redefinições políticas e ideológicas que
transformaram, de modo radical, as condições de produção
cultural e artística. Assiste-se o desmantelamento dos grupos
políticos, artísticos e científicos estabelecidos e instala-se o
controle rígido da produção cultural pela censura. Essa ruptura
política suscita diferentes respostas, reveladoras das posições
conflitantes e, muitas vezes, antagônicas, sustentadas pelos
intelectuais e artistas do período (VELOSO; MADEIRA, 1999,
p. 183).

De acordo com Rubim (2007, p. 105) “Os famosos Centros Populares de


Cultura da União Nacional dos Estudantes, instalados no Rio de Janeiro (1961)
e em outras cidades, ainda que com vida curta, agitam os sonhos políticos e
culturais da juventude brasileira, em especial da universitária”. Assinala-se que o
Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE recebeu influências do ISEB e do PCB.
Também teve presença importante de intelectuais conectados à esquerda católica
cuja ideia era trabalhar a consciência por intermédio da arte materializada em
poesias, panfletos, peças de teatro, musicais, etc. Para o CPC o artista engajado
deveria introduzir um conteúdo engajado e estabelecer a comunicação com as
massas. Nesse sentido, o artista se transforma em povo e produz a arte popular
revolucionária.

O Cinema Novo, 1962, se assumiu como engajado e experimentalista na


linguagem cinematográfica e se aproxima do teatro, com destaque para Glauber
Rocha e Ruy Guerra. São expressões máximas os filmes Deus e o Diabo na Terra
do Sol, de Glauber Rocha, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Os
Fuzis, de Ruy Guerra. Produções cinematográficas que manifestavam uma visão
direta e sem idealizações das contradições mais profundas da realidade brasileira.
Asseveramos que a inteligência dos intelectuais desse tempo associados ao
Cinema Novo, ou minimamente simpáticos a esse movimento, externava uma
“[...] visão da crítica e do público sobre as obras exibidas, os cineastas, seus
filmes e personagens, bem como a sociedade que os produziu, são elementos
fundamentais para a compreensão do significado do Cinema Novo” (CARVALHO,

136
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

2006, p. 289), o qual utlrapassava o cinema em si e pretendi transformar a


realidade política do país por intermédio da mudança de mentalidade. Essa
perspectiva se sustenta no fato que os cinemanovistas pretendiam viam que a

[...] recuperação da história do Brasil pelo cinema poderia ser


uma resposta à "situação colonial" então vigente no país, em
especial na área cinematográfica. Conhecer a própria história,
ser capaz de analisá-la e, mais importante, aprender com ela
para construir um futuro melhor eram parte do seu ideário
(CARVALHO, 2006, p. 291).

No campo cultural, podemos assinalar o lugar ocupado pelo Cinema Novo


que se apresentou como uma vanguarda para a produção de filmes. Em relação
ao Cinema Novo e o seu ambiente intelectual imbricado com projetos políticos,
Carvalho (2006) relata que

Foi em clima de otimismo e crença na transformação da


sociedade que nasceu o cinema brasileiro moderno, do qual
o Cinema Novo foi um exemplo maior. Os cinemanovistas
- formados nas sessões dos cineclubes, na crítica
cinematográfica produzida nas páginas de cultura dos jornais
e, sobretudo, nas longas e constantes discussões em torno
do cinema e da realidade do país - desejavam, acima de tudo,
fazer filmes, ainda que fossem "ruins" ou "mal feitos", embora
"estimulantes", conforme opiniões da época. Inspirados pelo
despojamento do neo-realismo italiano, pelas inovações da
Nouvelle Vague francesa e, mais proximamente, pelo cinema
independente brasileiro dos anos 1950, os cinemanovistas
não queriam - nem poderiam - fazer filmes nos padrões do
tradicional cinema narrativo de "qualidade", americano em sua
maioria, que o público brasileiro estava acostumado a ver. O
cinema que pretendiam fazer deveria ser "novo" no conteúdo
e na forma, pois seus novos temas exigiriam também um novo
modo de filmar (CARVALHO, 2006, p. 289-290).

Em 1965, a Música Popular Brasileira (MPB) trabalha o engajamento na


música dotando as canções de um grande potencial poético capaz de avançar
o mercado de produções de música no país. E a tropicália, em 1968, surge em
meio aos festivais da MPB e faz uma crítica à esquerda e à direita porque se
constituiu como uma crítica à ideia de autenticidade da cultura brasileira ou de
nação autêntica. Além disso, trouxe elementos da contracultura estadunidense,
articulando com a tradição modernista e incorpora o concretismo.

Assim, a arte engajada no Brasil antes do Golpe de 1964 faz a defesa das
reformas de base, bem como faz uma crítica do imperialismo, das relações de
poder, do atraso, etc. e depois do Golpe de 1964 estabelece uma resistência
cultural ou constrói um diagnóstico da derrota política e cultural da esquerda
brasileira resultante da realidade instaurada com a Ditadura Militar.

137
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

Com o Golpe Militar de 1964 o papel dos intelectuais e dos artistas tornaram-
se fundamentais para as redefinições e defesa de posições antagônicas.
Nessa luta as reformas universitárias ganharam relevo porque impulsionaram a
aposentadoria de professores e pesquisadores que movimentavam a formação
de opinião daquela época. Foram instituídas ações que ampliaram o controle
ideológico sobre os grupos de pesquisa e as associações científicas.

Além da violência, a ditadura age estimulando a transição


que começa a se operar nestes anos com a passagem
da predominância de circuito cultural escolar-universitário
para um dominado por uma dinâmica de cultura midiatizada
(RUBIM & RUBIM, 2004). Com este objetivo, a instalação da
infra-estrutura de telecomunicações; a criação de empresas
com a Telebrás e a Embratel e a implantação de uma lógica
de indústria cultural são realizações dos governos militares,
que controlam rigidamente os meios audiovisuais e buscam
integrar simbolicamente o país, de acordo com a política de
“segurança nacional”. Na contramão, intelectuais “tradicionais”,
como diria Gramsci, que apóiam o regime, instalados no recém
instituído Conselho Federal de Cultura (1966), demonstram
sua preocupação com a penetração da mídia e seu impacto
sobre as culturas regionais e populares, concebidas por eles
em perspectiva conservadora (RUBIM, 2007, p. 106).

Os anos 1970 mergulham em um ambiente conflituoso em que se nota o


desgaste das relações impactadas pela dureza da década de 1960 marcada
pelo Golpe Militar de 1964. A atuação da ditadura sufocou a produção intelectual,
artística e cultural da época maculada pela censura promovida pelas instituições
do Estado. O período de 1968 a 1974 foi visto como

o mais brutal da ditadura, é dominado pela violência, prisões,


tortura, assassinatos e censura sistemática, bloqueando toda
a dinâmica cultural anterior. Época de vazio cultural, apenas
contrariado por projetos culturais e estéticas marginais,
marcado pela imposição crescente de uma cultura midiática
controlada e reprodutora da ideologia oficial, mas tecnicamente
sofisticada, em especial em seu olhar televisivo (RUBIM, 2007,
p. 106).

Uma parte da produção artística dos anos 1970 se aproximou dos valores
internacionais rompendo com o modernismo. Nota-se que:

Passa-se da poesia concreta à poesia marginal; do cinema


novo ao cinema marginal; do construtivismo à arte conceitual
e à antiarte. A literatura dos anos 70, e os anos 70, em todos
os campos das artes, ressaltam a presença da qualificação
de marginal tomada em sentido positivo. Assim como nos
anos 50, cognominados de “anos dourados”, tudo era “novo” -
Bossa-Nova, Cinema Novo -, nos 60 tudo se tornou “popular”
- Centro Popular de Cultura (CPC), música popular brasileira

138
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

(MPB) -, nos anos 70, todas as manifestações estéticas que


não se identificavam com o status quo eram denominadas
“marginais” (VELOSO; MADEIRA, 1999, p. 186).

Com base nessa explicação, podemos afirmar que a marginalidade na


produção cultural representa uma alternativa para o desenho oficial constituído
para a cultura brasileira. Uma forma de atuar com liberdade e autonomia sem se
submeter aos mandos do sistema oficial que se caracterizava pelo autoritarismo
e violência.

Logia e mitologia

Meu coração
de mil e novecentos e setenta e dois
já não palpita fagueiro
sabe que há morcegos de pesadas olheiras
que há cabras malignas que há
cardumes de hienas infiltradas
no vão da unha na alma
um porco belicoso de radar
e que sangra e ri
e que sangra e ri
a vida anoitece provisória
centuriões sentinelas
do Oiapoque ao Chuí.

CACASO. Lero-lero. Rio de Janeiro: 7Letras; São Paulo:


Cosac & Naify, 2002.

Esse poema que compõe o repertório de poesias marginais ou geração do


mimeógrafo dos anos 1970 foi escrito sob a vigilância da polícia daquela época.
É uma poesia anárquica sem se filiar a outra estética particular. A demarcação
do ano de 1972 demonstra o momento tenso da produção e a sobrecarga da
Ditadura pesava sobre as costas dos artistas que sonhavam com um outro país
que fosse capaz de oferecer um outro momento para as geografias brasileiras.
É uma poesia marginal também em função dos meios utilizados para divulgar
como, por exemplo, os folhetos, impressões em mimeógrafos, a distribuição
no corpo a corpo, na tomada de consciência, o diálogo nas praças, etc. e isso
tornava possível a poesia marginal chegar ao dia a dia das pessoas. Em essência
é um texto de contestação da falta de liberdade. Considerando o período a partir
de 1974 se nota, na visão de Rubim (2007, p. 107), que “A ditadura realiza a
transição para a cultura midiática, assentada em padrões de mercado, sem
nenhuma interação com as políticas de cultura do Estado. Em suma: institui-se
um fosso entre políticas culturais nacionais e o circuito cultural agora dominante
no país”.

139
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

E os textos dessa época se parecem muito com os poemas da Semana de


Arte Moderna no que se refere a linguagem simples, espontânea e irreverente,
mas agora com uma aproximação com tendências como a tropicália, da cultura
de massa, da propaganda, da influência da Jovem Guarda, do Rock ́n Roll,
dentre outras influências, reaproximando o poeta com o público. Assinalamos a
importância de autores como Cacaso, Ana Cristina César, Chacal, Paulo Leminsky
e Mário Jorge Vieira.

Com o tropicalismo se oportunizou amalgamar tendências e perspectivas


distintas que articulavam, arte, cinema, música, poesia, teatro, etc. lançando luz
nos corpos, na criatividade em uma aproximação com enfoques que estavam em
curso em outros países do mundo, naquela época. O lugar da América Latina
fica evidenciado e se demarca por meio das diversas manifestações artísticas
a composição de um imaginário de Brasil, plural e complexo resultantes da
exploração do corpo e do humor.

No campo da literatura, ressaltamos o surgimento da literatura pop


inaugurada com romances como Pan América e Nações Unidas, ambos de
José Agripino de Paula. Veloso e Madeira (1999) nos explica que se trata de
uma literatura ao estilo de histórias em quadrinhos que se pauta na velocidade
e na agilidade. Os contos e romances de Rubem Fonseca também integrantes
dessa estética expressam uma representação exacerbada em um ficcionalismo
característico e com feições de jogo e videogame. Nesse sentido, essa literatura
pop assume uma marca literária que é ausente de profundidade psicológica, pois
atua basicamente na superfície dos acontecimentos não se comprometendo com
a densidade da linguagem.

3 Comente as temáticas e as características presentes no


movimento Cinema Novo que podem ser identificadas como
contribuições para o pensamento político de seu tempo. Nesse
sentido, citamos produçõs relacionadas como os seguintes filmes:
Ganga Zumba, rei de Palmares (1963) e Os herdeiros (1970), de
Carlos Diegues; O desafio (Paulo César Saraceni, 1965); Deus
e o diabo na terra do sol (1964), Terra em transe (1967) e O
dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), de Glauber
Rocha; Porto das Caixas (Paulo César Saraceni, 1962); O padre
e a moça (Joaquim Pedro de Andrade, 1965); A grande cidade
(Carlos Diegues, 1966); A falecida (1965) e Garota de Ipanema
(1967), ambos de Leon Hirszman, e Macunaíma (Joaquim Pedro
de Andrade, 1969); Memória de Helena (David Neves, 1969).

140
Capítulo 3 SÉCULO XX: TENSÕES E DISPUTAS NA EDIFICAÇÃO DA M. B.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A partir dos aspectos tratados, foi possível mergulhar em um oceano de
reflexões que proporcionaram perspectivas e ângulos distintos para pensar a
formação do pensamento político. Nesse sentido, é as principais balizas do século
XX que marcaram à formação do pensamento político brasileiro foram discutidas
de modo a oportunizar a edificação de um entendimento mais amplo das variáveis
que perpassam a política contemporânea. Esse exercício foi feito considerando a
literatura e a cultura como pano de fundo para interpretar os rumos assumidos que
impactam na nossa mentalidade brasileira atual, forjando discursos e narrativas
nos círuculos políticos, culturais, sociais e literários.

As postulações apresentadas se ergueram no alicerce intelectual do século


XIX com seus discursos que atravessaram o tempo e que ainda permanecem
vivos entre nós estabelecendo harmonia com os encominhamentos da política
vigente com todas as suas nuances e vicissitudes capazes de promover clivagens
até nas estruturas mais sólidas do nosso tempo. Nesse sentido, lançamos olhar
especial para o debate do Estado Nação e seu lugar na constituição da identidade
nacional.

Reconhecemos que o campo intelectual e o campo político são lugares


independentes, porém percebemos que se tratam de movimentos combinados que
demandam interpretação para descortinar a nossa realidade política resultante
da aproximação desses polos. Os autores abordados nos ofereceram insumos
suficientes para, a partir do mundo das letras, traduzir as ideologias liberais,
conservadoras, românticas e raciais que perpassam a nossa história sóciopolítica.

Destarte, ao discutirmos o século XX levando em conta as suas tensões e


disputas em face da modernidade brasileira, pudemos ver explicitamente que
existiram transformações no comportamento do campo intelectual pátrio com o
campo político. Novso são os paradigmas que se instauraram e isso gerou efeitos
para pensar de modo diferente a raça e a cultura. Tal mudança foi ancorada na
ideia de modernidade, modernismo e modernização para pensar a identidade
nacional, o lugar do negro na sociedade, o papel da cultura, o conservadorismo
e as disputas pelo protagonismo narrativo encenadas pelo Instituto Superior de
Estudos Brasileiros, Centro Populares de Cultura, Cinema Novo, Campanha
Nacional do Folclore, Movimento Tropicalista, entre outros.

141
Formação do Pensamento PolÍtico Brasileiro

REFERÊNCIAS
ALVES, E. P. M. A economia simbólica da cultura popular sertanejo-
nordestina. Universidade Federal de Alagoas. UFAL, 2011.

ALMEIDA, A. C. S. A formação político-cultural do Brasil: excertos do


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