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Dublinenses

Tradução
José Roberto O'Shea

...
EOITORA,SICILIANO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Joyce, James, 1882-1941.


Dublinenses /James Joyce; tradução José Roberto
O'Shea. -São Paulo: Siciliano, 1993.

ISBN 85-267-0517-2

1. Contos ingleses I. Título. Sumário

92-3165 CDD-823.91

Índices para catálogo sistemático:

1. Contos : Século 20: Literatura inglesa 823.91 Introdução do tradutor, 7


2. Século 20 : Contos : Literatura inglesa 823.91 As irmãs, 19
Um encontro, 29
Araby, 38
Eveline, 45
Depois da corrida, 51
Dois galãs, 58
A pensão, 70
Uma pequena nuvem, 78
Cópias, 93
Argila, 105
Um caso trágico, 112
Título original: Dubliners
Direitos exclusivos desta tradução cedidos à Dia de hera na sede do comitê, 123
Agência Siciliano de Livros, Jornais e Revistas Ltda. Mãe, 140
Av. Raimundo Pereira de Magalhães, 3305 Graça, 153
CEP 05145200 - São Paulo - Brasil
Os mortos, 177
Co,,rd. editorial: Ana Emília de Oliveira
Revisão da tradução: Marta Miranda O'Shea
Revisão das provas: Paulo Ieno, Audrey Souza Aguiar e
Patrída F. Camargo
Composição: Lasergraph Editoração Ltda.
Editora Siciliano, 1993

T
Com dificuldade de lembrar a razão de minha presença na
feira, fui até uma das barracas e examinei u11s vasos de porcelana
e uns aparelhos de chá ornados de flores. À porta da barraca uma
jovem conversava e ria ao lado de dois rapazes. Notei que tinham
sotaque inglês e pus-me a escutar vagamente a conversa.
- Ah, eu nunca disse uma coisa dessas!
-Ah, disse, sim!
- Ah, não disse, não!
-Ela não disse?
- Disse. Eu ouvi. Eveline
-Ah, que ... lorota!
Percebendo a minha presença a moça aproximou-se e pergun-
tou-me se desejava comprar alguma coisa. O tom de voz dela não
era .dos_mais c~nvida.tivos; parecia ter falado comigo mais por
obngaçao. Olhei humildemente para dois grandes jarros perfila-
dos como sentinelas orientais ao lado da entrada escura da barraca
e murmurei:
- Não, obrigado.
A jovem mudou a posição de um dos jarros e voltou para a
E la sentou-se à janela para ver a noite invadir a avenida.
Encostou a cabeça na cortina e o odor de cretone empoeirado
companhia dos dois rapazes. Continuaram a falar do mesmo
encheu-lhe as narinas. Sentia-se cansada.
assunto. Uma ou duas vezes a moça olhou para mim por cima do
Poucas pessoas por ali passavam. O sujeito que morava no fim
ombro.
da rua passou a caminho de casa; ela ouviu seus passos estalando
Embora soubesse que era inútil ficar ali, permaneci por uns
na calçada de concreto e em seguida rangendo sobre o caminho
momentos em frente à barraca, para fingir que estava realmente
coberto com cascalho em frente às casas vermelhas. Tempos atrás
interessado nas mercadorias. Então dei meia-volta lentamente e
havia ali um terreno baldio onde eles brincavam toda noite com
caminhei pelo centro do pavilhão. Os dois pennies tilintavam
os filhos dos vizinhos. Mais tarde um indivíduo de Delfast com-
dentro do meu bolso ao se chocarem contra a moeda de seis pence.
prara o terreno e construíra casas-mas não eram casas pequenas
Ouvi uma voz gritar do fundo da galeria que as luzes seriam
e escuras como aquelas em que eles moravam; eram casas vistosas
apagadas. A parte superior do pavilhão estava agora completa-
de tijolo e com telhados luzidios. As crianças que moravam na
mente às escuras.
avenida costmnavam reunir-se para brincar naquele terreno -
Olhando para a escuridão lá em cima vi a mim mesmo como
crianças das famílias Devine, Water, Dunns, o pequeno Keogh,
uma criatura comandada e ludibriada pela vaidade; meus olhos
que era manco, ela e seus irmãos e irmãs. Ernest, no entanto, nunca
queimavam de angústia e de raiva.
brincava: já estava crescido. O pai dela muitas vezes enxotava-os
do terreno com sua bengala de madeira preta; mas geralmente o
pequeno Keogh montava guarda e dava o alarme quando avistava
o homem se aproximando. Apesar de tudo consideravam-sebas-
tante felizes naquela época. Seu pai ainda não estava tão mal e,
além disso, a mãe ainda estava viva. Isso tudo acontecera há muito

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tempo; ela, seus irmãos e irmãs tinham crescido; a mãe estava trabalhava com decoração de igrejas, estava quase sempre ausen-
morta. Tizzie Dwm também morrera e a família Water havia te, viajando pelo sul do país. Além do mais, o inevitável bate-boca
retornado à Inglaterra. Tudo se modifica. Agora era a vez dela ir sobre dinheiro todo sábado à noite começava a deixá-la exausta,
embora, como os outros, ia sair de casa. mais do que qualquer outra coisa. Ela sempre entregava o salário
Casa! Correu os olhos pela sala, revendo todos os objetos inteiro - sete shillings - e Harry sempre enviava o que podia
conhecidos, por ela espanados uma vez por semana há tantos mas o problema era conseguir arrancar dinheiro do pai. Ele dizia
anos, e pergwltou-se de onde vinha tanta poeira. Talvez jamais que ela desperdiçava dinheiro, que não tinha juízo, que não lhe
voltasse a ver aqueles objetos conhecidos dos quais jamais imagi- daria o seu dinheiro suado para ser jogado fora, e dizia muito
nou separar-se um dia. Contudo, durante todos aqueles anos ela mais, pois geralmente ficava em péssimo estado nas noites de
nunca viera a saber o nome do padre cuja fotografia amarelada se sábado. Contudo, acabava dando-lhe o dinheiro e perguntava-lhe
encontrava pendurada na parede acima da pianola quebrada, ao se ia ou não comprar as provisões para o jantar de domingo. Então
lado da gravura em louvor à beata Margarida Maria Alacoque. O ela era obrigada a sair correndo para o mercado, segurando firme
padre fora colega de escola do pai dela. Sempre que mostrava a a bolsa preta de couro enquanto abria caminho na multidão com
foto a uma visita ele repetia mecanicamente a mesma frase: os cotovelos, e voltava para casa tarde, carregada de pacotes.
- Ele está em Melbourne agora. Trabalhava pesado para manter a casa em ordem e garantir às
Concordado em partir, em deixar a própria casa. Teria sido duas crianças que haviam ficado sob os seus cuidados a oportu-
uma decisão sensata? Tentou analisar cada lado da questão. Em nidade de freqüentar a escola devidamente alimentadas. O traba-
casa ao menos tinha um teto e comida; vivia entre pessoas que lho era pesado-uma vida difícil-mas agora que estava prestes
conhecia desde criança. É bem verdade que o trabalho era pesado, a deixar tudo para trás não considerava a vida que levava de todo
tanto em casa quanto no emprego. O que diriam na loja quando indesejável.
descobrissem que ela fugira de casa com um sujeito qualquer? Estava prestes a começar a explorar uma outra vida ao lado de
Que era uma idiota, talvez; e sua vaga seria preenchida através de Frank. Frank era um homem bom, viril, amoroso. Concordara em
um anúncio no jornal. Miss Gavan ficaria bem satisfeita. Sempre fugir com ele na barca noturna para tornar-se sua esposa e viver
implicara com ela, especialmente quando havia gente em volta. ao seu lado em Buenos Aires, onde ele possuía uma casa à espera
- Miss Hill, não está vendo estas senhoras esperando? dela. Com que nitidez se recordava da primeira vez em que o vira!
- Mexa-se, Miss Hill, por favor! Ele alugava um quarto numa casa na rua principa 1, que ela costu-
Ela não derramaria muitas lágrimas por deixar a loja. mava freqüentar. Tudo parecia ter acontecido há apenas algumas
Em seu novo lar, num país distante e desconhecido, tudo seria semanas: ele parado no portão, com o boné no cocuruto da cabeça
diferente. Estaria casada - ela, Eveline. As pessoas a tratariam e o cabelo despenteado caído sobre a testa bronzeada. Então
com respeito. Não seria tratada como a mãe o fora. Mesmo agora, começaram a se conhecer melhor. Ele costumava esperá-la todas
que estava com mais de dezenove anos, sentia-se às vezes amea- as noites à porta da loja para acompanhá-la até em casa. Levou-a
çada pela violência do pai. Sabia que tinha sido isso a causa para assistir The bohemian girl e ela ficou radiante por sentar-se ao
daquelas palpitações. Quando eram crianças ele nunca havia lado dele num setor do teatro onde não costumava ficar. Ele
batido nela, conforme batia em Harry e em Ernest, porque ela era adorava música e tinha uma voz razoável. As pessoas notavam
menina; mas ultimamente passara a ameaçá-la e a dizer o que faria que os dois estavam namorando e, sempre que ele cantava a
com ela não fosse a lembrança da mãe falecida. E agora não havia canção sobre a jovem que amava o marinheiro, ela sentia um
mais ninguém para protegê-la. Ernest estava morto e Harry, que agradável acanhamento. Ele gostava de chamá-la de Poppens,

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carinhosamente. A princípio a idéia de ter um namorado não - Italianos desgraçados! O que eles querem aqui?
passara de uma empolgação, mas logo começou a gostar dele de Enquanto divagava, a visão deplorável da vida que a mãe
verdade. Frank contara-lhe histórias de países distantes. Começa- levara tocou-a no fundo da alma - uma vida de sacrifícios banais
ra a vida como taifeiro ganhando uma libra por mês a bordo de culminando em loucura. Estremeceu quando voltou a ouvir a voz
um navio da Allan Line com destino ao Canadá. Disse-lhe tam- da mãe repetindo com urna desvairada insistência:
bém os nomes de todos os navios em que viajara bem como de - Derevaun Seraun! Derevaun Seraw1!
diversas companhias de navegação. Velejara pelo estreito de Ma- Levantou-se num sobressalto de pavor. Fugir! Precisava fugir!
galhães e contara-lhe histórias a respeito dos terríveis habitantes Frank a salvaria. Daria urna vida a ela, talvez, quem sabe, até
da Patagônia. Estabelecera-se em Buenos Aires, dizia ele, e voltara amor. E ela queria viver. Por que haveria de ser infeliz? Tinha
à velha terra natal apenas para passar férias. O pai dela, obvia- direito à felicidade. Frank a tornaria nos braços, a abraçaria. Ele a
mente, descobrira o namoro e a proibira de sequer dirigir-lhe a salvaria.
palavra.
-Conheço bem esses marinheiros -ele dizia. Lá estava ela no meio da multidão ondulante na estação de
Um dia o pai discutira com Frank e a partir de então ela fora embarque de North Wall. Ele segurava-lhe a mão e ela sabia que
obrigada a encontrar-se com o namorado às escondidas. estava se dirigindo a ela, repetindo alguma coisa a respeito das
A noite aprofundava-se na avenida. O reflexo branco de duas passagens. A estação estava repleta de soldados carregando ma las
cartas que tinha ao colo se tornava indistinto. Uma era para Harry; marrons. Através dos largos portões do embarcadouro ela podia
a outra, para o pai. Ernest era seu irmão preferido mas também ver o vulto negro do navio, atracado ao longo do cais comas vigias
gostava de Harry. O pai estava ficando velho, dava para notar; iluminadas. Ela nada respondia. Sentia o rosto pálido e frio e, num
sentiria a falta dela. Às vezes, ele sabia ser agradável. Há pouco labirinto de aflição, rezou pedindo a Deus que lhe guiasse, que lhe
tempo, quando ficara acamada um dia inteiro, ele lera para ela um apontasse o caminho. O navio lançou dentro da névoa um silvo
conto de terror e preparara-lhe umas torradas. Em outra ocasião, longo e triste. Se partisse, amanhã estaria no mar ao lado de Frank,
quando a mãe ainda estava viva, fizeram juntos um piquenique navegando em direção a Buenos Aires. As passagens dos dois já
em Hill of Howth. Lembrava-se do pai colocando o chapéu da estavam compradas. Seria possível voltar atrás depois de tudo o
mulher para divertir as crianças. que ele fizera por ela? A aflição que sentia lhe provocava náuseas
Estava chegando a hora mas ela continuava sentada à janela, e ela continuava a mover os lábios rezando fervorosamente em
silêncio.
com a cabeça encostada na cortina, aspirando o cheiro de cretone
empoeirado. Lá embaixo na avenida ouvia um realejo tocando. Um sino repicou em seu coração. Deu-se conta de que ele lhe
Conhecia a canção. Estranho que o realejo surgisse ali naquela agarrara a mão:
noite, como que para lembrá-la da promessa que fizera à mãe, de -Vem!
preservar o lar unido enquanto pudesse. Lembrou-se da noite em Todos os mares do mundo agitavam-se dentro de seu coração.
que a mãe morrera; era como se estivesse novamente no quarto Ele a estava levando para esses mares: ele a afogaria. Agarrou-se
fechado e escuro do outro lado do bali e lá fora ouvisse a melan- com as duas mãos às grades de ferro.
cólica canção italiana. Na ocasião, deram seis pence ao tocador de -Vem!
realejo e pediram-lhe que fosse embora. Lembrou-se do pai vol- Não! Não! Não! Era impossível. Suas mãos agarraram-se ao
tando ao quarto da enferma com um andar emproado, excla- ferro em desespero. No meio dos mares ela deu um grito de
mando: angústia!

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- Evelinel Evvyl
Ele correu para o outro lado do cordão de isolamento e a
chamou, para que o seguisse. Gritaram para que fosse em f~e~1te,
mas ele continuava a chamá-la. Ela o encarava com o rosto pahdo,
passivo, como um animal indefeso. Seus olh~s !1ão demonstra-
vam qualquer sinal de amor, saudade, ou gratidao.

Depois da corrida

O s carros deslizavam em direção a Dublin, numa ve-


locidade constante corno bolas na canaleta em Naas Road. No
topo da colina em Inchicore espectadores comprimiam-se para
ver os carros passarem disparados de volta ao ponto de partida;
naquele canal de miséria e passividade fluíam a riqueza e o fruto
do trabalho do Continente. De vez em quando os espectadores
vibravam como vibra o alegre povo oprimido. No entanto, sim-
patizavam mesmo era com os carros azuis - os carros de seus
amigos, os franceses.
Os franceses, afinal, seriam os vencedores morais. A equipe
conseguira um ótimo resultado; obtivera o segundo e o terceiro
lugares e o piloto do carro alemão, vencedor da corrida, era
supostamente belga. Cada carro azul que surgia, por conseguinte,
recebia urna ovação especial ao alcançar o alto da colina e as
saudações eram agradecidas com sorrisos e meneios de cabeça
pelos que estavam no interior dos veículos. Dentro de um dos
carros de linhas arrojadas viajava uma equipe de quatro rapazes
cujo estado de espírito estava naquele momento mais animado do
que o que se costuma observar nos gauleses vitoriosos: na verda-
de, os quatro rapazes estavam quase eufóricos. Eram Charles
Ségouin, proprietário do veículo; André Riviere, canadense de

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sejam honestos e viris perante Deus. Se as contas conferirem,
digam: ,
_Pois bem, examinei minhas contas. Tudo esta certo.
Porém, como costuma ocorrer, se houver algumas discrepân-
cias, admitam a verdade, sejam honestos e digam c01:no homens:
_Pois bem, examinei minhas contas. Encontrei este e este
erro. Mas com a graça de Deus farei as devidas correções; acertarei
as minhas contas.
Os mortos

L ily, a filha da empregada, não conseguia ficar sentada


um minuto sequer. Mal acabara de acompanhar um senhor até a
saleta localizada atrás do escritório no primeiro andar, e de aju-
dá-lo a tirar o sobretudo, quando o som sibilante da campainha
da porta ecoou novamente e ela teve de sair em disparada pelo
corredor vazio para receber mais um convidado. Felizmente não
estava escalada para recepcionar as senhoras também. Para esse
fim, Miss Kate e Miss Julia tinham convertido o banheiro do
segundo andar numa espécie de toalete feminino. Miss Kate e
Miss Julia estavam lá naquele momento, alvoroçadas, fofocando
e rindo, correndo a cada instante até a escada, olhando por cima
da balaustrada e chamando Lily para perguntar quem havia
chegado.
Era sempre um grande acontecimento o baile anual das irmãs
Morkan. Todo mundo que as conhecia vinha ao baile: parentes,
velhos amigos da família, integrantes do coro em que J ulia canta-
va, alunos de Kate que porventura já tivessem idade de freqüentar
bailes e até mesmo alguns alunos de Mary Jane. A festa jamais
fracassara. Ano após ano, o mais remotamente que se pudesse
recordar, tudo sempre transcorrera em grande estilo, desde que
Kate e Julia, depois da morte do irmão, Pat, mudaram-se da casa

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em Stoney Batter e levaram Mary Jane, sua única sobrinha, para Parou um instante sobre o capacho, raspando a neve das solas
viver com elas na casa escura e lúgubre em Usher's Island; aluga- das galochas, enquanto Lily conduzia Mrs. Conroy até o pé da
ram a parte superior da casa de Mr. Fulham, um negociante de escada, de onde gritou:
cereais que morava no andar térreo. Isso tinha sido há mais de - Miss Kate, Mrs. Conroy está aqui.
trinta anos. Mary Jane, que à época era uma garotinha, atualmente Kate e Julia desceram a escada escura um tanto trôpegas.
garantia o sustento da casa, pois era organista em Haddington Beijaram a mulher de Gabriel, disseram que ela devia estar morta
Road. Completara o curso no Conservatório e todo ano apresen- de cansada e perguntaram se Gabriel viera com ela.
tava um concerto com seus alunos na sala do segundo andar do -Aqui estou, conforme prometi, tia Kate! Podem subir. Subo
Antient Concert Rooms. Muitos de seus alunos provinham de já - disse Gabriel, do hall escuro.
boas famílias, residentes na linha de Kingstown e Dalkey. Apesar E continuou a limpar vigorosamente os pés, enquanto as três
de idosas, as tias faziam a sua parte. Julia, embora já bastante mulheres subiam a escada, rindo, em direção ao toalete feminino.
grisalha, atuava como primeiro soprano em encenações da histó- Nos ombros de seu sobretudo a neve formara uma fina camada,
ria de Adão e Eva e Kate, que já não tinha condições físicas para como uma capa, e nas pontas das galochas havia biqueiras bran-
sair muito à rua, dava lições de música para principiantes no velho cas; no momento em que os botões do sobretudo roçaram os frisos
piano no quarto dos fundos. Lily, filha da empregada, também da roupa enrijecidos pelo frio, produzindo um leve rangido, um
trabalhava para elas. Embora levassem uma vida modesta, gosta- aroma gélido de ar livre exalou das pregas e das dobras do traje
vam de comer bem, tudo do bom e do melhor: alcatra da boa, chá de Gabriel.
do mais caro que havia e sempre a melhor cerveja em garrafa. Uma -Está nevando de novo, Mr. Conroy? -perguntou Lily.
vez que raramente cometia deslizes ao encomendar mantimentos,
Ela caminhou à frente dele até a pequena sala, para ajudá-lo a
Lily tinha uma boa relação com as três patroas. Eram exigentes,
tirar o sobretudo. Gabriel sorriu ao ouvir a jovem pronunciar seu
só isso. A única coisa que absolutamente não toleravam era con-
sobrenome com forte sotaque e olhou para ela. Era esbelta, estava
testação.
na flor da idade, e tinha a tez pálida e os cabelos cor de feno. A luz
Obviamente tinham toda razão de serem exigentes naquela
da lamparina a gás que havia na saleta a tornava ainda mais
noite. Já passava das dez horas e nem sinal de Gabriel com a
pálida. Gabriel a conhecia desde a época em que ela era criança e
mulher. Além disso, estavam mortas de medo de que Freddy
costumava sentar-se no primeiro degrau da escada embalando
Malins aparecesse embriagado. Não queriam, por nada deste
mundo, que alguma aluna de Mary Jane o visse em tal estado; uma boneca de pano.
quando estava alto, às vezes, era muito difícil controlá-lo. Freddy - Está, Lily - ele respondeu -, e acho que vai continuar a
Malins sempre chegava tarde, mas o que poderia estar detendo noite toda.
Gabriel? Por isso a cada dois minutos as duas vinham até a escada Gabriel olhou para o teto da saleta, que tremia com o arrastar
para perguntar a Lily se Gabriel ou Freddy tinham chegado. e bater de pés no andar de cima, escutou o som do piano e voltou
-Ah, Mr. Conroy-disse Lily a Gabriel ao abrir-lhe a por- a olhar para a moça, que dobrava o sobretudo cuidadosamente,
ta-, Miss Kate e Miss Julia estavam pensando que o senhor colocando-o no canto de urna prateleira.
não chegaria nunca. Boa noite, Mrs. Conroy. - Diga-me uma coisa, Lily- ele disse, com um tom de voz
- Imagino que estivessem mesmo-disse Gabriel-, mas elas amável-, você ainda está na escola?
se esquecem que minha mulher leva três horas intermináveis para - Ah, não senhor - ela respondeu. - Acabei meus estudos
se arrumar? este ano; já chega.

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-Ah, nesse caso -disse Gabriel, brincando-, suponho que um pedaço de papel e passou os olhos sobre os tópicos a serem
qualquer dia seremos convidados para um casório; você e seu abordados no discurso. Estava hesitante com relação aos versos
noivo, hein? de Robert Browning, pois receava que não estivessem ao alcance
A moça olhou para ele por cima do ombro e disse com amar- dos ouvintes. Algo mais conhecido, de Shakespeare ou das Melo-
gura: dies de Thomas Moore, seria mais apropriado. O rude estalar de
-.Os homens de hoje só querem saber de conversa fiada e de
saltos e o arrastar das solas dos sapatos dos homens faziam-no
se aproveitar da gente.
lembrar que o nível cultural dos presentes não era o mesmo que
Gabriel enrubesceu como se tivesse cometido uma gafe e,
o seu. Faria papel ridículo ao citar versos que os presentes não
desviando o olhar, sacudiu os pés para livrar-se das galochas e,
pudessem compreender. Pensariam que estava exibindo sua edu-
com o cachecol, lustrou os sapatos de couro.
cação wüversitária. Deslizaria com eles assim como deslizara com
Era um jovem forte e de boa estatura. O tom corado de suas
a moça na saleta. Adotara o tom errado. O discurso era um
faces subia até quase a testa, e ali dispersava-se em manchas
amorfas e avermelhadas; em seu rosto escanhoado cintilavam as equívoco, um fracasso total.
Naquele momento as tias e a esposa saíram do toalete femini-
lentes cristalinas e os aros dourados dos óculos que lhe protegiam
os olhos suaves e ao mesmo tempo inquietos. Seu cabelo preto e no. As duas velhotas eram pequeninas e vestiam-se com discrição.
brilhante era repartido ao meio e penteado numa longa curva por Tia Julia era alguns centímetros mais alta que a irmã. Seu cabelo,
trás das orelhas, revelando uma pequena onda formada pela preso e encobrindo ligeiramente as orelhas, era acinzentado; e
marca do chapéu. igualmente acinzentado, com sombreados escuros, era seu rosto
Depois de lustrar os sapatos, levantou-se e endireitou a sobre- grande e flácido. Embora tivesse postura firme, o olhar vago e a
casaca, ajustando-a ao corpo robusto. Então, mais do que depres- boca entreaberta davam-lhe a aparência de alguém que não sabia
sa, retirou do bolso uma moeda. onde estava nem para onde ia. Tia Kate era mais animada. Seu
- Lily - ele disse, enfiando a moeda na mão da moça -, rosto, mais saudável do que o da irmã, era só rugas e sulcos, como
estamos na época do Natal, não é? É só ... uma pequena ... uma maçã vermelha e seca e enrugada, mas seu cabelo, trançado
E partiu em direção à escada. à moda antiga, conservava o tom de nozes maduras.
-Que é isso! - exclamou a moça, saindo atrás dele. - Num As duas beijaram Gabriel sem a menor cerimônia. Era o sobri-
posso, num posso aceitar isso do senhor. nho preferido, filho de Ellen, a irmã mais velha já falecida, que se
- Natal! Natal! - exclamou Gabriel, quase correndo em casara com T.J.Conroy, funcionário do cais do porto.
direção à escada e fazendo com a mão um gesto de desprezo aos -Gretta me disse que vocês não vão tomar um coche de volta
protestos dela. a Monkstown no final da noite, Gabriel -disse tia Kate.
A jovem, vendo que ele alcançara o topo da escada, gritou: - É verdade - disse Gabriel, virando-se para a mulher. -
- Então, obrigada, Mr. Conroy! Basta o que nos aconteceu no ano passado, não é? A senhora está
Gabriel aguardou em frente à porta fechada do salão até que a lembrada, tia Kate, do resfriado que Gretta pegou? As janelas do
valsa terminasse, ouvindo o roçar das saias e o arrastar dos pés. coche emperradas e o vento leste soprando depois que passamos
Ainda estava abalado devido à resposta amarga e inesperada que por Merrion. Só vendo. Gretta pegou um resfriado dos bons.
lhe dera Lily. As palavras tinham provocado nele uma certa Tia Kate franziu a testa e meneava a cabeça a cada palavra.
melancolia, que agora tentava afastar arrumando os punhos da - Está certo, Gabriel, está certo - ela disse. - Todo cuidado
camisa e o laço da gravata. Em seguida, tirou do bolso do colete
é pouco.

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- Mas, diga-me uma coisa, Gabriel -disse tia Kate, c?m todo
- Gretta não pensa assim - disse Gabriel; - se dependesse
tato. - Decerto, você verificou o quarto. Gretta estava dizendo ...
da vontade dela, voltaria pra casa caminhando na neve.
- Ah, o quarto é bom - replicou Gabriel. - Fiz reservas no
Mrs. Conroy riu.
Gresham.
- Não dê ouvidos a ele, tia Kate - ela disse. - É mesmo um
- Com certeza - disse tia Kate - foi a melhor providência
chato: abajur verde pra proteger a vista de Tom à noite; obriga o que poderia ter sido tomada. E as crianças, Gretta, você não fica
meníno a fazer halteres; força Eva a tomar mingau. Pobre criança!
preocupada? , .
E ela não consegl1e nem olhar pro mingau!. .. Ah, mas vocês nem - Ah, é só uma noite - disse Mrs. Conroy. - Alem disso,
imaginam o que ele me faz usar agora!
Bessie cuidará delas.
Deu urna gargalhada e olhou de relance para o marido, cujo - Com certeza - disse tia Kate, novamente. - Que sossego
olhar cheio de admiração e felicidade dirigira-se do vestido para ter uma moça como aquela, em quem se pode confiar! Vejam a
o rosto e em seguida fixara-se no cabelo da mulher. As duas tias Lily; não sei o que está acontecendo com ela ultimamente. Já não
também riram a valer, pois o excesso de preocupação por parte é mais a mesma.
de Gabriel era para elas motivo de constantes brincadeiras. Gabriel ia fazer algumas perguntas a respeito desse assunto,
- Galochas! - exclamou Mrs. Conroy. - Essa foi a última. mas tia Kate desviara subitamente o olhar em direção à irmã, que
Sempre que está molhado lá fora eu tenho que usar minhas começara a descer a escada e agora curvava-se por cima do
galochas. Até numa noite como a de hoje ele queria que eu usasse corrimão.
galochas, mas recusei-me. A próxima coisa que vai comprar pra - Um momento, por favor! - ela exclamou, ligeiramente
mim será um escafandro. irritada -Aonde vai a Julia? Julia! Julia! Aonde você vai?
Gabriel exibiu wn sorriso nervoso e endireitou o nó da gravata, Julia, que alcançara a metade da escada, voltou e anunciou
tentando aparentar segurança, enquanto tia Kate quase rolava de calmamente:
rir, de tanto que gostou da brincadeira. O sorriso logo desapareceu - Freddy chegou.
do rosto de tia Julia e seus olhos sisudos dirigiram-se ao rosto do Naquele instante, uma salva de palmas e os acordes finais ~a
sobrinho. Depois de uma pausa ela perguntou: pianista indicavam que a valsa tinha terminado. A porta do salao
- E o que são galochas, Gabriel? foi aberta pelo lado de dentro e alguns pares saíram. Tia Kate
-Galochas, Julia! - exclamou a irmã. - Deus do céu, você puxou Gabriel subitamente para um canto e murmurou-lhe ao
não sabe o que são galochas? A gente as coloca por cima dos ... ouvido:
por cima dos sapatos, não é, Gretta? - Dá um pulo lá embaixo, Gabriel, por favor~ e veja se ele está
- Exatamente - disse Mrs. Conroy. - São de guta-percha. em condições; e não permita que suba se estiver alto. Tenho
Cada um de nós tem agora um par. Gabriel diz que todo mundo certeza de que está alto; tenho certeza. .
usa galocha no continente. Gabriel foi até o topo da escada e pôs-se a escutar. Ouvia d~as
-Ah, no continente - murmurou tia Julia, meneando lenta- pessoas falando na saleta. Reconheceu a risada de Freddy Malms.
mente a cabeça. Então desceu a escada pisando duro.
Gabriel franziu a testa e disse, como se estivesse um pouco -Que alívio - disse tia Kate a Mrs. Conroy -Gabriel estar
zangado: aqui. Sempre fico mais tranqüila quando ele está a~ui ... Julia, Miss
Daly e Miss Power vão aceitar um refresco. Obngada pela bela
- Não é nada do outro mundo, mas Gretta acha muita graça
porque diz que a palavra a faz lembrar de Christy Minstrels. valsa, Miss Daly. Foi lindo.

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Um sujeito alto, de rosto enrugado, bigode rijo e grisalho e pele - Sabem de uma coisa, eu sou como a célebre Mrs. Cassidy,
morena, que saía da sala ao lado de sua partner, perguntou: que supostamente dizia: Olha, Mary Grimes, se eu não estiver beben-
-Nós podemos beber alguma coisa também, Miss Morkan? do, obrigue-me afazê-lo, pois sei que quero beber.
- Julia - disse tia Kate sumariamente -, acompanhe Mr. O rosto aquecido do homem tinha se aproximado das jovens
Browne e Miss Furlong. Leve-os jwltamente comMiss Daly e Miss com excessiva intimidade e a sua voz descambara para o sotaque
Power, Julia. rude das classes mais baixas de Dublin, de modo que as moças,
- Estou sempre bem acompanhado - disse Mr. Browne, instintivamente, permaneceram caladas após o gracejo. Miss Fur-
apertando os lábios até eriçar o bigode e sorrindo com todas as long, que era aluna de Mary Jane, perguntou a Miss Daly o nome
rugas. -A senhora sabe, Miss Morkan, o motivo para que gostem da bela valsa que acabara de executar; por sua vez, Mr. I3rowne,
tanto de mim é que ... percebendo que estava sendo ignorado, virou-se prontamente
Não terminou a frase; percebendo que tia Kate tinha se afasta- para os dois rapazes, que pareciam mais receptivos. .
do e que não o escutaria, conduziu imediatamente as três jovens Uma jovem de faces rosadas e vestido violeta entrou agitada
à sala de jantar. No meio da sala havia duas mesas quadradas, na sala, batendo palmas e gritando:
lado a lado, sobre as quais tia Julia e a empregada estavam -Quadrilles! Quadrilles!
estendendo uma grande toalha. No aparador havia travessas, Logo atrás dela entrou tia Kate, gritando:
pratos, copos e uma grande quantidade de facas, garfos e colheres. - Dois cavalheiros e três damas, Mary Jane!
A tampa do piano também servia de aparador, para doces e -Ah, Mr. Bergin e Mr. Kerrigan chegaram -disse Mary Jane.
salgados. Num canto da sala, de pé, jw1to a um aparador menor, - Mr. Kerrigan, o senhor dança com Miss Power? Miss Furlong,
dois rapazes tomavam refrescos.
por favor, a senhora fica com Mr. Bergin. Ah, agora está tudo certo.
Mr. I3rowne dirigiu suas protegidas para lá e convidou-as, em
-Três damas, Mary Jane -disse tia Kate.
tom de galhofa, a beber d o ponche especialmente preparado para
Os dois rapazes perguntaram às damas se lhes dariam o prazer
as senhoras, quentinho, forte e doce. Como as moças dissessem
que não bebiam nada forte, ele abriu três garrafas de limonada. de dançar, e Mary Jane voltou-se para Miss Daly.
Em seguida, pediu licença a um dos rapazes e, apoderando-se da - Miss Daly! Tem sido muito gentil; sei que acabam de tocar
garrafa, serviu-se de uma generosa dose de uísque. Os rapazes duas valsas, mas há tão poucas damas esta noite.
olharam-no com respeito, enquanto ele experimentava a bebida. - Não tem o menor problema, Miss Morkan.
- Que Deus me ajude - ele disse, sorrindo -, é prescrição - Tenho um par encantador para você, Mr. Bartell D' Arcy, o
médica. tenor. Vai cantar para nós, mais tarde. Toda Dublin está empol-
Em seu rosto enrugado abriu-se um sorriso largo e as três gada com ele.
jovens responderam ao gracejo com sonoras risadinhas que lhes - Voz belíssima, voz belíssima! - exclamou tia Kate.
sacudiram o corpo, fazendo-lhes tremer os ombros. A mais afoita No momento em que o piano repetiu a introdução da primeira
disse: quadrilha da noite, Mary Jane apressou-se em conduzir seu grupo
-Ora, Mr. Browne, tenho certeza de que o médico nunca lhe para o salão. Mal haviam saído quando tia Julia entrou, olhando
prescreveu esse tipo de remédio. para trás.
Mr. Browne tomou mais um gole do uísque e disse, preparan- - O que houve, Julia? - perguntou tia Kate preocupada.
do-se para fazer uma imitação desajeitada: -Quem está aí?

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Julia, que carregava uma pilha de guardanapos, virou-se para depois de chamar a atenção de Malins para o estado lastimável de
a irmã e disse, calmamente, como se a pergunta lhe causasse seus trajes, serviu-lhe um copo cheio de limonada. A mão esquer-
espécie: da de Freddy Malins aceitou mecanicamente o copo, já que a mão
- É Freddy, Kate; Gabriel está com ele. direita, também mecanicamente, ocupava-se em ajeitar a roupa.
De fato, logo atrás dela Gabriel podia ser visto guiando os Mr. Browne, cujo rosto voltara a se enrugar num sorriso, serviu-se
passos de Freddy Malins. Malins, homem de uns quarenta anos de mais uísque enquanto Freddy Malins, antes mesmo de chegar
de idade, tinha a altura e o porte de Gabriel, e os ombros um tanto ao clímax da história, explodia num ataque de riso estridente
caídos. Seu rosto era gordo e pálido e os únicos vestígios de cor misturado com um acesso de tosse e, colocando na mesa o copo
estavam localizados nos lóbulos carnudos das orelhas e nas nari- intato e transbordante, esfregava as costas da mão esquerda no
nas largas. Tinha traços grosseiros: nariz chato, a fronte convexa olho esquerdo, tentando repetir a última frase, à medida que a
e lábios inchados e protuberantes. As pálpebras pesadas e o cabelo tosse e o riso lhe permitiam.
ralo e emaranhado davam-lhe um aspecto sonolento. Gargalhava
estridentemente, devido a uma história que estivera contando a
Gabriel não conseguia prestar atenção à peça clássica, cheia de
Gabriel enquanto subiam a escada, e ao mesmo tempo esfregava
floreios e trechos difíceis, com a qual Mary Jane se graduara no
o olho esquerdo com as costas da mão.
Conservatório e que ora executava diante do salão silencioso.
- Boa noite, Freddy - disse tia Julia.
Gostava de música mas, para ele, a peça não era nada melódica e
Freddy Malins cumprimentou as irmãs Morkan de uma ma- duvidava que o fosse para os outros ouvintes, embora tivessem
neira que parecia displicente em virtude da voz um pouco engro- insistido para que Mary Jane tocasse algo. Quatro rapazes, que ao
lada e, vendo que Mr. Browne, de pé ao lado do aparador, sorria
ouvirem os primeiros acordes do piano tinham vindo da sala de
para ele, atravessou a sala um tanto cambaleante e começou a
jantar até a porta do salão, em questão de minutos, retiraram-se
repetir a meia voz a história que acabara de contar a Gabriel.
discretamente, dois de cada vez. Parecia que as únicas pessoas no
- Ele não está tão mal assim, não é? - perguntou tia Kate a recinto que acompanhavam a música eram a própria Mary Jane,
Gabriel.
cujas mãos escorregavam pelo teclado e, nas pausas, dele afasta-
Gabriel, com o cenho carregado, ergueu as sobrancelhas pron- vam-se tal e qual uma sacerdotisa durante uma imprecação, e tia
tamente e respondeu:
Kate, de pé a seu lado, virando as páginas da partitura.
- Não, não! Mal dá pra se notar. Os olhos de Gabriel, ofuscados pelo reflexo do lustre no assoa-
- Mas que sujeitinho terrível! - ela disse. - Pensar que a lho encerado, desviaram-se para a parede que ficava atrás do
pobre mãe na véspera do Ano Novo o fez jurar abstinência. Bem, piano. Nela havia um quadro da cena da sacada de Romeu e Julieta
vamos, Gabriel, para o salão. e, ao lado, um outro quadro tecido por tia Julia quando menina,
Antes de sair da sala de jantar ao lado de Gabriel, ela fez um em lã vermelha, azul e marrom, com os dois principezinhos
sinal com o dedo em riste para Mr. Browne. Mr. Browne balançou assassinados na Torre. Com certeza, aquele tipo de trabalho ma-
a cabeça indicando que compreendera o aviso e, assim que ela saiu nual era ensinado na escola que as tias freqüentaram quando
da sala, disse a Freddy Malins: crianças, pois, como presente de aniversário, sua mãe bordara
- Escuta aqui, Freddy, vou te servir um bom copo de limona- para ele umas pequenas cabeças de raposa num colete de seda
da pra você se sentir melhor. lilás, forrado de cetim marrom e com botões redondos em formato
Freddy Malins, que se aproximava do clímax da história, fez de amora. Era estranho que a mãe não tivesse nenhum talento
um gesto impaciente, recusando a sugestão, mas Mr. Browne, musical, pois tia Kate costumava referir-se a ela como o cérebro

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da família Morkan. Tanto Kate quanto Julia sempre deixaram - Ah, como é inocente! Descobri que você escreve para o
transparecer um certo orgulho da irmã sisuda e conservadora. Daily Express. Não se envergonha?
Havia um retrato dela em frente ao espelho do aparador. Trazia - Por que haveria de me envergonhar? -perguntou Gabriel,
ao colo um livro aberto onde apontava alguma coisa para Cons- piscando os olhos e tentando sorrir.
tantino, sentado a seus pés e vestido de marinheiro. Os nomes dos - Pois eu sinto vergonha por você - disse Miss Ivors com
filhos foram escolhidos por ela, visto que era muito ciosa da franqueza. - Escrever pra uma droga de jornal como aquele. Não
importância da vida em família. Graças a ela, Constantino era hoje imaginava que você fosse anglófilo.
pároco de Balbriggan e, graças a ela, Gabriel graduara-se pela Um ar de perplexidade estampou-se no rosto de Gabriel. Era
Royal University. Uma sombra abateu-se em seu rosto quando se verdade que escrevia uma coluna literária todas as quartas-feiras
lembrou da objeção sombria que a mãe fizera a seu casamento. para o Daily Express, pelo que recebia quinze shillings. Mas isso
Ainda sofria ao se lembrar de certas frases sarcásticas; certa vez, certamente não queria dizer que era anglófilo. Receber livros para
a mãe chamara Gretta de roceira esperta e isso, decididamente, resenhar era quase mais gratificante do que receber o mísero
não era verdade. Foi Gretta quem tratou dela durante o longo cheque. Sentia imenso prazer em manusear capas e virar páginas
período terminal de sua doença, na casa de Monkstown. de livros que acabavam de sair da máquina impressora. Quase
Gabriel sabia que Mary Jane se aproximava do final da peça, todos os dias quando terminava de dar suas aulas, costumava
pois agora tocava novamente a melodia do prelúdio, executando caminhar pelo cais até os sebos, o Hickey's em Bachelor's Walk, o
uma série de floreios após cada acorde, e, enquanto aguardava o Webb's ou o Massey's, em Aston's Quay, ou o O'Clohissey's, que
desfecho, seu ressentimento esmoreceu. A apresentação encerrou ficava numa travessa. Não sabia como se defender da acusação.
com um harpejo de oitavas agudas e uma forte oitava final, no Queria dizer a ela que a literatura estava acima da política. Mas
grave. Uma calorosa salva de palmas felicitou Mary Jane que, eram amigos há muitos anos e suas carreiras tinham transcorrido
enrubescendo e enrolando às pressas a partitura, fugiu do salão. paralelamente, primeiro na universidade e depois como professo-
Os aplausos mais fortes partiram dos quatro rapazes de pé próxi- res: não ousaria lhe responder com uma frase pedante. Continuou
mos à porta, que tinham se retirado para a sala de jantar no início a piscar os olhos, tentando sorrir, e apenas murmurou um tanto
da apresentação e que voltaram assim que o piano silenciou. desajeitado que não via nada de político no ato de escrever rese-
Organizou-se uma dança típica, lanceiros. Gabriel fez par com nhas literárias.
Miss Ivors, jovem franca e falante, de rosto sardento e grandes Quando chegou a vez de os dois atravessarem o salão, ele
olhos castanhos. Não usava decote e o largo broche preso à gola estava perplexo e avoado. Miss Ivors tomou-lhe calidamente a
de sua blusa estampava o emblema irlandês. mão e disse, com um tom de voz suave e amistoso:
Quando tomaram seus lugares, ela disse subitamente: -Que é isso, eu estava só brincando. Vamos, é nossa vez de
- Tenho uma questão pra acertar com você. atravessar o salão.
- Comigo? - disse Gabriel. Quando voltaram a ficar lado a lado, ela começou a falar a
Ela meneou a cabeça, com ar sério. respeito da universidade e Gabriel sentiu-se mais à vontade. Uma
- De que se trata? -perguntou Gabriel, sorrindo diante do amiga tinha-lhe mostrado a crítica que ele fizera dos poemas de
ar solene da jovem. Browning. Assim descobrira o segredo: mas ela gostara imensa-
- Quem é G.C.? - respondeu Miss Ivors, olhando firme para ele. mente do artigo. Então disse, subitamente:
Gabriel enrubesceu e começava a franzir a testa, como se não - Ah, Conroy, você faria uma excursão às Aran Isles no
compreendesse a pergunta, quando ela disse com franqueza: próximo verão? Vamos ficar por lá um mês inteiro. Vai ser mara-

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vilhoso, em pleno Atlântico. Você deveria ir. Mr. Clancy vai, e Gabriel tentou disfarçar o nervosismo dançando com grande
também Mr. Kilkelly e Kathleen Kearney. Seria maravilhoso para animação. Evitava olhá-la nos olhos, pois vira em seu rosto um ar
Gretta, se ela quisesse ir. Ela é de Connacht, não é? de rancor. Mas quando voltaram a se encontrar na roda, ficou
- A família dela - disse Gabriel secamente. surpreso ao sentir que ela lhe apertava a mão com firmeza. Ela
- Mas você vai, não vai? - disse Miss Ivors, com certa fitou-o inquisitivamente, até fazê-lo sorrir. Então, no momento
ansiedade e tocando o braço dele com sua mão cálida. em que a roda ia recomeçar a girar, pôs-se na ponta dos pés e
-A questão é -disse Gabriel -que pretendo ir ... sussurrou-lhe:
- Ir pra onde? -perguntou Miss Ivors. - Anglófilo!
- Bem, é que todo ano eu faço uma viagem de bicicleta com Quando a dança terminou, Gabriel dirigiu-se para um dos
uns amigos e assim ... cantos do salão, onde a mãe de Freddy Malins estava sentada. Era
- Mas onde? - insistiu Miss Ivors. uma velhota corpulenta e doente, de cabeça branca. Sua voz
- Bem, costumamos ir à França ou à Bélgica e, às vezes, à falhava como a do filho e era ligeiramente gaga. Tinha sido
Alemanha - disse Gabriel, com certo embaraço. informada de que Freddy chegara e que estava razoavelmente
- E por que França e Bélgica - disse Miss Ivors - em vez de sóbrio. Gabriel perguntou-lhe se tinha feito uma boa travessia. Ela
conhecer o nosso país? morava em Glasgow com a filha casada e visitava Dublin uma vez
- Dem -disse Gabriel-, por um lado pra praticar os idiomas por ano. A senhora respondeu placidamente que fizera uma
e por outro pra mudar de ares. travessia excelente e que o capitão do barco tinha sido muito
- E você não precisa praticar seu próprio idioma, o irlandês? atencioso com ela. Falou também a respeito da linda casa da filha
-perguntou Miss Ivors. em Glasgow e do ótimo círculo de amizades que tinha. Enquanto
- Bem - disse Gabriel-, se a questão é essa, pra ser sincero, a mulher tagarelava, Gabriel procurava tirar da cabeça o incidente
irlandês não é o meu idioma. desagradável entre ele e Miss Ivors. Obviamente, a moça, ou
Os pares mais próximos tinham se voltado e prestavam aten- mulher, ou seja lá o que for, era bastante patriota, mas tudo tem a
ção ao interrogatório. Nervoso, Gabriel olhava para a direita e sua hora. Talvez não devesse ter respondido daquela maneira.
para a esquerda, tentando manter o bom humor em meio àquela Mas ela não tinha o direito de chamá-lo de anglófilo em público,
situação constrangedora que começava a provocar uma vermelhi- nem de brincadeira. Tentara ridicularizá-lo na frente de todo
dão em sua fronte. mundo, fazendo-lhe perguntas embaraçosas e fitando-o com
- E por que não visita a sua terra -prosseguiu Miss Ivors-, aqueles olhos de coelho.
a respeito da qual é tão ignorante, a sua gente, o seu país? Viu a esposa caminhando em sua direção em meio aos pares
-Olha, pra dizer a verdade-retrucou Gabriel, bruscamente que ora valsavam. Quando chegou a seu lado, ela lhe sussurrou:
- estou farto do meu país, farto! -Gabriel, tia Kate quer saber se você vai trinchar o peru, como
- Por quê? - perguntou Miss Ivors. de costume. Miss Daly vai cortar o pernil e eu vou servir o suflê.
Gabriel calou-se, pois a resposta que dera deixara-o exaltado. - Está bem - disse Gabriel.
- Por quê? -repetiu Miss Ivors. - Ela vai mandar as crianças comerem lá dentro, assim que
Chegara o ponto da dança em que tinham de fazer a visita a terminar esta valsa, para que possamos ter a mesa só para nós.
outros pares e, como ele nada respondera, Miss Ivors disse, com - Você estava dançando? -pergwüou Gabriel.
irritação: - Claro que estava. Você não me viu? Que discussão foi
- Está claro que você não tem o que responder. aquela com Molly Ivors?

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- Nada. Por quê? Ela comentou alguma coisa com você? Miss Ivors elogiara a resenha. Teria sido sincera? Teria ela vida
- Por alto. Estou tentando convencer Mr. D' Arcy a cantar para própria por trás de todo aquele propagandismo? Nunca houvera
nós. Ele é muito convencido, eu acho. nenhum desentendimento entre os dois até aquela noite. Sentia-se
- Não foi discussão - disse Gabriel, mal-humorado -, ela abatido com a idéia de que ela estaria à mesa do jantar, observan-
queria que eu fizesse uma viagem ao oeste da Irlanda e eu disse do-o com aquele olhar crítico e inquisitivo, enquanto ele discur-
que não iria. sasse. Talvez nem se importasse em vê-lo fracassar. Veio-lhe à
A esposa juntou as mãos com alegria e deu um pequeno salto. mente uma idéia encorajadora. Diria, em alusão a tia Kate e tia
- Ah, vamos, Gabriel! - ela disse. - Eu adoraria rever Julia: Senhoras e Senhores, a geração que ora declina pode ter tido seus,.
Galway. defeitos ma"s, a meu ver, possui certas qualidades, como hospitalidade,
- Você pode ir, se quiser - disse Gabriel, com frieza. senso de humor, simpatia, que a nova geração, séria e intelectualizada,
Ela fitou-o por um instante e, então, virou-se para Mrs. Malins parece carecer; ótimo: palavras perfeitas para Miss Ivors. O que
e disse: importava se suas tias não passavam de duas velhas ignorantes?
- Eis um bom marido, Mrs. Malins. Um burburinho na sala atraiu-lhe a atenção. Mr. Browne apro-
Enquanto Gretta se afastava pelo meio do salão, Mrs. Malins, ximava-se, escoltando galantemente tia Julia, que, apoiada em seu
sem se abalar com a interrupção, começou a falar dos lindos braço, sorria inclinando a cabeça para o lado. Uma salva de
recantos e das lindas paisagens da Escócia. O genro todo ano palmas um tanto fraca acompanhou-a até o piano; quando Mary
levava a família aos lagos, onde costumavam pescar. O genro era Jane sentc)ll-se na banqueta e tia Julia, que já não sorria, voltou-se
um pescador de mão cheia. Certa vez pescara um peixe, um para os presentes de modo a projetar a voz na sala, as palmas
peixão lindo, azul, e o cozinheiro do hotel tinha preparado o peixe estancaram. Gabriel reconheceu a introdução. Era uma canção
para o jantar. antiga, preferida de tia Julia: Arrayed for the brida[. Sua voz forte e
Gabriel mal escutava o que ela dizia. Aproximava-se a hora da límpida dominava os trinados que embelezavam a melodia e
ceia e ele voltava a pensar no discurso e na citação. Ao ver Freddy embora cantasse numa cadência acelerada não atropelava uma
Malins atravessando o salão para falar com a mãe, Gabriel cedeu- nota sequer. Acompanhar aquela voz, sem olhar para o rosto da
lhe a cadeira e retirou-se para o vão da janela. O salão estava quase cantora, era deixar-se levar num vôo veloz e seguro. Gabriel e os
vazio e da sala de jantar ouvia-se o tilintar de pratos e talheres. As que estavam a sua volta aplaudiram vigorosamente quando a
pessoas que ainda se encontravam no salão pareciam fatigadas de canção terminou, unindo-se aos aplausos calorosos que vieram da
dançar e conversavam a meia voz em pequenos grupos. Gabriel sala de jantar. A ovação parecia tão autêntica que um pingo de
tamborilou os dedos trêmulos e cálidos na vidraça gelada da rubor surgiu nas faces de tia Julia, no momento em que se curvava
janela. Como devia estar frio lá fora! Como seria agradável sair para recolocar sobre o atril o velho livro de partituras encaderna-
caminhando sozinho ao longo do rio e pelo parque! A neve estaria do em couro, com suas iniciais gravadas na capa. Freddy Malins,
encobrindo os galhos das árvores e formando um chapéu lustroso que inclinara a cabeça para ouvir melhor, ainda aplaudia depois
na cabeça da estátua de Wellington. Como seria mais agradável que todos tinham parado e tagarelava com a mãe, que meneava a
ficar lá fora do que sentar-se àquela mesa! cabeça com um ar grave, em sinal de aprovação. Quando final-
Examinou os tópicos do discurso: hospitalidade irlandesa, mente parou de aplaudir, levantou-se com um salto e atravessou
tristes recordações, as Três Graças, Paris, a citação de 13rowning. a sala a passos largos em direção a tia Julia; com as duas mãos,
Lembrou-se de uma frase que escrevera na resenha: Temos a espremeu a mão da senhora, agitando-a quando as palavras lhe
sensação de estar ouvindo uma música atormentada pelo pensamento. faltavam ou a rouquidão impedia-o de falar.

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- Estava acabando de dizer pra mamãe -ele declarou -que fedelhos pra ocuparem seus lugares. Suponho que seja pelo bem
nunca ouvi a senhora cantar tão bem. Não, nunca ouvi a voz da da Igreja, já que a medida partiu do papa. Mas não é justo, Mary
senhora tão bela quanto esta noite. Acredita em mim? É a pura Jane; não está certo.
verdade. Palavra de honra que é verdade. Nunca ouvi a sua voz Tia Kate deixara-se levar pela emoção e teria prosseguido em
tão límpida e tão ... tão clara e límpida, nw1ca. defesa da irmã, visto que o assunto era para ela algo não resolvido,
Tia Julia abriu um grande sorriso e murmurou alguma coisa a mas Mary Jane, notando que os pares tinham voltado para o salão,
respeito de elogios, enquanto se desvencilhava das mãos de interveio em tom apaziguador:
Freddy. Mr. Browne estendeu-lhe a mão e disse aos que estavam - Calma, tia Kate, a senhora está dando um escândalo na
perto dele, como um mestre-de-cerimônias apresentando uma frente de Mr. Browne que pertence a outra fé.
estrela à platéia: Tia Kate virou-se para Mr. Browne, que sorria em virtude da
- Miss Julia Morkan, minha última descoberta! referência feita a sua religião, e apressou-se em dizer:
Mr. Browne ria a valer de suas próprias ·palavras, quando 3 - Não, eu não duvido que o papa esteja certo. Não passo d~
Freddy Malins virou-se para ele e disse:
- Olha, Browne, não sei se você está falando sério, mas uma
r uma velha ignorante e não me atreveria a uma coisa de~sas. E
apenas uma questão de cortesia e gratidão. Se fosse comigo, eu
descoberta melhor do que essa você não faria, não. O que eu posso teria dito ao próprio Padre Healy...
dizer é que nunca a ouvi cantar tão bem assim. É a pura verdade. - E além do mais, tia Kate - disse Mary Jane -, estamos to-
- Nem eu - concordou Mr. Browne. -Acho que a voz dela dos com fome e quando estamos com fome somos uns briguentos.
progrediu muito. - E quando estamos com sede também somos briguentos -
Tia J ulia deu de ombros e disse com um certo orgulho: aduziu Mr. Browne.
- Há trinta anos, até que eu tinha uma boa voz. - Então é melhor começar a ceia -disse Mary Jane -e deixar
-Eu sempre disse pra Julia -interveio tia Kate enfaticamente a discussão pra mais tarde.
- que ela estava perdendo tempo naquele coral. Mas ela nunca Em frente à porta do salão, no patamar da escada, Gabriel
me ouve. encontrou a mulher e Mary Jane tentando convencer Miss Ivors a
Com essas palavras, tia Kate virou-se como se desejass~ apelar ficar para a ceia. Mas Miss Ivors, que já estava de chapéu e ago:a
para o bom senso dos circunstantes no sentido de coibir uma abotoava a capa, recusava-se terminantemente a permanecer. Nao
criança teimosa, enquanto tia Julia olhava absorta para um ponto tinha a menor fome e já passava da hora de se retirar.
a sua frente, com um sorriso vago e reminiscente estampado no - Só mais dez minutos, Molly - dizia Mrs. Conroy. - Dez
rosto. minutos não vão atrasá-la tanto assim.
- Não - continuou tia Kate -, ela nunca ouviu nem obede- - Só pra dar uma beliscada - dizia Mary Jane. - Você
ceu a ninguém, se matando dia e noite naquele coral, noite e dia. dançou tanto!
Seis horas da manhã, em pleno dia de Natal! Tudo isso pra quê? - Realmente, não posso - respondeu Miss Ivors.
- Não seria para honrar a Deus, tia Kate? -perguntou Mary - Estou achando que você não se divertiu nada -disse Mary
Jane, girando na banqueta do piano e sorrindo. Jane, desapontada.
Tia Kate voltou-se indignada para a sobrinha e disse: -Claro que me diverti; pode ter certeza -disse Miss Ivors.
- Eu sei muito bem que é pra honrar a Deus, Mary Jane, mas - Mas agora tenho mesmo de ir embora.
não vejo nada de honrado quando o papa manda botar pra fora - Mas como você vai pra casa? -perguntou Mrs. Conroy.
do coral senhoras que se mataram a vida toda e recruta uns - Ah, daqui até o cais é um pulinho.

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Gabriel hesitou um instante e disse: mados na forma de um retângulo; um pudim com pedacinhos de
-Se me permite, Miss Ivors, acompanho a senhorita até a sua noz-moscada na cobertura; um pequeno pote com bombons de
casa; já que tem mesmo que ir embora. chocolate e confeitos embrulhados em papel dourado e prateado,
Miss I vors desvencilhou-se do trio. e uma jarra de cristal contendo longos talos de aipo. No centro da
- Nem me fale nisso! -exclamou. - Pelo amor de Deus, vão mesa, como sentinelas guardando uma fruteira que exibia uma
jantar e não se preocupem comigo. Sei muito bem cuidar de mim pirâmide de laranjas e maçãs importadas, havia duas bojudas
mesma. garrafas, urna com vinho do Porto e a outra com sherry. Sobre o
- Você é de fato um número, Molly-disse Mrs. Conroy, com piano via-se um pudim numa enorme travessa amarela, esperan-
franqueza. do o momento de ser servido; atrás do pudim, viam-se três
- Beannacht libh! -gritou Miss Ivors, em meio a uma risada esquadrões de garrafas_ de cerveja e água mineral, perfilados de
enquanto descia a escada correndo. acordo com as cores dos uniformes: as garrafas dos dois primeiros
Mary Jane assistiu à cena com uma expressão de perplexidade esquadrões eram escuras com rótulos nas cores marrom e verme-
estampada no rosto, enquanto Mrs. Conroy, debruçada sobre a lho e as do último eram menores, brancas, com faixas verdes
balaustrada, ouviu bater a porta do hall de entrada. Gabriel per- enviesadas.
guntou a si mesmo se não seria ele o responsável por aquela Gabriel ocupou resolutamente a cabeceira da mesa e, após
repentina saída. Mas Miss Ivors não parecia mal-humorada; fora examinar o fio da faca de trinchar, enterrou com firmeza o garfo
embora rindo. Ficou olhando pensativo para a escada. na carne do peru. Sentia-se confiante, pois trinchava uma ave
Naquele momento, tia Kate surgiu com seus passos trôpegos, como ninguém e gostava imensamente de ocupar a cabeceira de
vindo da sala de jantar, torcendo as mãos e bastante nervosa. uma mesa farta.
-Onde está Gabriel? -ela gritava. -Onde se meteu Gabriel? - Miss Furlong, o que a senhora deseja? - ele perguntou.
Os convidados estão esperando lá dentro, e ninguém para trin- - Uma asa ou um pedaço do peito?
char o peru! - Um pedacinho do peito.
-Aqui estou, tia Kate! -exclamou Gabriel, tomado de súbita - E a senhora, Miss Higgins?
animação. - Pronto para trinchar um bando de perus, se for -Ah, como queira, Mr. Conroy.
preciso. Enquanto Gabriel e Miss Daly serviam peru, pernil ou carne
Um peru gordo e bem assado encontrava-se numa das pontas assada, Lily passava, de convidado a convidado, uma travessa de
da mesa e na outra, em cima de uma camada de papel amassado batatas empanadas quentes cobertas por um guardanapo branco.
e enfeitado com raminhos de salsa, havia um grande pernil sem Isso tinha sido idéia de Mary Jane que sugerira, também, purê de
pele, polvilhado com farinha de rosca, o osso meticulosamente maçã para acompanhar o peru, mas tia Ka te dissera que peru
envolto com papel cortado em franjas; ao lado via-se um peso de assado simples, isto é, sem purê de maçã, sempre fora mais do que
carne assada. Entre os rivais, posicionados nas pontas da mesa, suficiente. Mary Jane servia os alunos, escolhendo para eles os
havia fileiras de pratos que serviam de acompanhamento: dois melhores pedaços, e tia Kate e tia Julia abriam e traziam de cima
pequenos potes com gelatina, vermelha e amarela; uma travessa do piano garrafas de cerveja para os senhores e garrafas de água
rasa cheia de cubos de manjar branco com calda vermelha; uma mineral para as senhoras. Houve urna certa balbúrdia, muito riso,
grande travessa verde, em formato de folha e com o cabo imitando ruído de vozes fazendo e corrigindo pedidos, de talheres, de
um talo, contendo rubros cachos de passas e amêndoas descasca- rolhas saltando. Assim que terminou a primeira rodada, Gabriel
das; urna travessa formando par, contendo figos de Smirna arru- começou a servir novas porções antes mesmo de ter se servido.

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Ninguém respondeu à pergunta e Mary Jane conduziu a con-
Houve protestos veementes e ele aquiesceu, tomando um grande
gole de cerveja, pois a função de trinchar o peru deixara-o enca- versa de volta à ópera legítima. Uma de suas alunas dera-lhe um
lorado. Mary Jane sentou-se discretamente para jantar, mas tia ingresso para assistir Mignon. A produção tinha sido muito boa,
Kate e tia Julia continuavam a cambalear à volta da mesa, uma disse ela, mas não fora capaz de tirar da cabeça a grande Georgina
atrás da outra, uma atrapalhando a outra, uma dando à outra Burns. Mr. Browne lembrava-se de uma época ainda mais remota,
ordens que nem sequer eram ouvidas. Mr; Browne e Gabriel quando as antigas companhias italianas costumavam vir a Dublin
exortaram-nas a sentar-se para jantar, mas elas afirmavam que - Tietjens, Uma de Murzka, Campanini, Trebelli, Guiglini, Ravelli,
mais tarde comeriam; por fim, Freddy Malins levantou-se e, agar- Aramburo. Naquele tempo, disse ele, ouvia-se em Dublin canto
rando tia Kate, achatou-a na cadeira em meio à risada geral. de verdade. Contou, também, como as galerias do velho Theatre
Quando todos estavam bem servidos, Gabriel anunciou, sor- Royal estavam sempre lotadas, noite após noite e como, certa
rindo: noite, um tenor italiano bisou cinco vezes o "Deixe-me tombar
- Se alguém mais quiser um pouco do que vulgarmente como soldado", sem omitir o dó de peito uma única vez, e, ainda,
chamamos de bóia, que se manifeste. como, em seu entusiasmo, os rapazes que freqüentavam as gale-
Um clamor de vozes insistiu para que Gabriel começasse a cear rias às vezes desatrelavam os cavalos do coche de uma prima donna
e Lily aproximou-se, trazendo-lhe três batatas por ela especial- e puxavam eles mesmos o veículo até o hotel. Por que não ence-
mente guardadas. navam mais as grandes óperas, Dinoralz, Lucrezia Borgia? Porque
- Muito bem - disse Gabriel, educadamente, enquanto to- não encontravam vozes capazes, essa era a razão.
mava mais um gole de cerveja - senhoras e senhores, por favor, - Ora - disse Mr. Bartell D' Arcy -, suponho que hoje em
esqueçam que eu existo, pelo menos por alguns minutos. dia existam cantores tão bons corno antigamente.
Começou a comer, mantendo-se fora da conversa que trans- - E onde estão esses cantores? -perguntou Mr. Browne, em
corria na mesa enquanto Lily retirava os pratos. O assunto era a tom de desafio.
companhia de ópera que ora se apresentava no Theatre Royal. Mr. - Em Londres, Paris, Milão -, disse Mr. Bartell D' Arcy um
Bartell D' Arcy, o tenor, jovem moreno com um belo bigode, pouco irritado. -Caruso, por exemplo, é muito bom, se não for me-
rasgou elogios à primeira contralto da companhia, mas Miss lhor, do que qualquer um dos cantores que o senhor mencionou.
Furlong disse que a moça tivera uma performance um tanto - Pode ser -disse Mr. Browne. - Mas confesso que duvido
vulgar. Freddy Malins declarou que havia um tenor negro cantan- muito.
do na segunda parte do show de variedades do Gaiety que era
- Ah, eu daria tudo pra ouvir Caruso cantar - disse Mary
dono de uma das mais belas vozes que ouvira em toda a sua vida.
Jane.
-O senhor já teve a oporturlidade de ouvi-lo? - ele pergun-
- Pra mim - disse tia Kate, que estivera às voltas com um
tou a Mr. Bartell D' Arcy, sentado do outro lado da mesa.
pedaço de osso - só existiu um tenor; do meu gosto, vocês
- Ainda não - respondeu Mr. Bartell D' Arcy, com descaso.
entendem. Mas imagino que nunca ouviram falar dele.
- Pois é - Freddy Malins acrescentou-, gostaria de saber o
-Quem foi, Miss Morkan? -perguntou Mr. Bartell D' Arcy,
que o senhor acha dele. Eu acho que o homem tem uma grande voz.
educadamente.
- Só mesmo o Freddy, pra descobrir as coisas que valem a
pena - disse Mr. Browne para que todos ouvissem. - Chamava-se - disse tia Kate - Parkinson. Ouvi-o cantar
quando estava no auge da carreira e, a meu ver, é impossível que
- E por que ele não teria uma boa voz? -perguntou Freddy
Malins com aspereza. - Só porque é preto? algum ser humano tenha uma voz mais límpida do que a dele.

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- Estranho - disse Mr. Bartell D' Arcy. - Realmente, nunca - Seria bom se tivéssemos uma instituição dessas em nossa
ouvi falar dele. igreja - disse Mr. Browne, com franqueza.
- É mesmo, Miss Morkan tem razão - disse Mr. Browne. - Ficou atônito quando informado de que os monges faziam
Já ouvi falar de Parkinson, mas não foi do meu tempo. voto de silêncio, levantavam-se às duas horas da manhã e dor-
- Foi um tenor inglês, bonito, com uma voz doce, límpida, miam em seus próprios caixões. Perguntou a razão de tal compor-
aveludada - disse tia Kate, vibrando de emoção. tamento.
Assim que Gabriel terminou, o enonne pudim foi trazido até a - São as regras da congregação - afirmou tia Kate.
mesa. O tilintar de talheres recomeçou. A mulher de Gabriel servia -Sim, mas por que isso?-perguntou Mr. Browne.
as fatias de pudim e passava os pratos pela mesa. A trajetória era Tia Kate repetiu que eram regras, nada mais. Mr. Browne,
interrompida por Mary Jane, que acrescentava gelatina de framboesa porém, continuava sem entender. Freddy Malins explicou, da
ou laranja, ou ainda manjar e calda. O pudim tinha sido feito por tia melhor maneira que pôde, que os monges procuravam reparar os
Julia e ela recebeu elogios de todos os cantos da mesa. Ela, entretanto, pecados cometidos por todos os pecadores do mundo. A explica-
achava que o mesmo não ficara bem dourado. ção não fez muito sentido, pois Mr. Browne sorriu e disse:
- Espero, Miss Morkan -disse Mr. Browne -, que a senhora -A idéia até que me agrada, mas um confortável colchão de
ache que eu esteja bem dourado, pois sou 'I3rowne' da cabeça aos molas não seria melhor que um caixão?
, * -O caixão -disse Mary Jane -é pra lembrar-lhes da morte.
pes.
Todos os senhores presentes, à exceção de Gabriel, experimen- O assunto tomara-se lúgubre e fora enterrado no silêncio da
taram o pudim, em deferência a tia Julia. Como Gabriel não mesa; nesse ínterim, ouvia-se Mrs. Malins dizer, a meia voz, à
gostava de doces, o aipo fora deixado especialmente para ele. pessoa que estava a seu lado na mesa:
Freddy Malins também comeu um talo de aipo juntamente com o - São homens de bom coração, os monges, muito devotos.
pudim. Tinha sido informado de que aipo era excelente para o Passas e amêndoas e figos e maçãs e laranjas e bombons de
sangue, e estava sob cuidados médicos. Mrs. Malins, que estivera chocolate e confeitos percorriam a mesa e tia Julia pedia aos
convidados que se servissem de vinho do Porto ou de sherry. A
calada durante toda a ceia, disse que o filho iria para Mount
princípio, Mr. Bartell D' Arcy nada aceitou mas foi cutucado por
Melleray dentro de uma ou duas semanas. Os presentes então
urna das pessoas que estavam a seu lado, que lhe sussurrou algo,
falaram de Mount Melleray, de como era puro o ar daquela região,
e resolveu aceitar. Aos poucos, à medida que as últimas taças iam
de como eram hospitaleiros os monges, que jamais pediam um sendo servidas, a conversa foi esmorecendo. Fez-se uma pausa,
único centavo aos hóspedes. interrompida apenas pelo ruído de vinho caindo nas taças e pelo
-Vocês estão dizendo-perguntou Mr.Browne, incrédulo- ranger de cadeiras. As três Morkan fixaram o olhar na toalha da
que um sujeito pode se hospedar lá, como se fosse um hotel, comer mesa. Alguém tossiu uma ou duas vezes e, então, alguns dos
e beber, e sair sem pagar um centavo? senhores começaram a dar umas pancadinhas no tampo da mesa,
- Ah, a maioria das pessoas na hora de ir embora faz uma pedindo silêncio. Fez-se silêncio; Gabriel empurrou a cadeira para
doação ao monastério - disse Mary Jane. trás e levantou-se.
As batidas na mesa tomaram-se imediatamente mais audíveis,
As palavras de Mr. Browne encerram um trocadilho intraduzível, em torno do como para encorajá-lo, e finalmente cessaram por completo. Ga-
verbo to brown, dourar, tostar, e do adjetivo brown, tostado, dourado (marrom) briel apoiou os dedos trêmulos sobre a toalha e sorriu para os
(N. doT.). presentes, sem conseguir esconder o nervosismo. Diante das filei-

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ras de rostos que o encaravam, ergueu os olhos para o lustre. O cordial, a nós legada por nossos antepassados e que por nós deve
piano tocava uma valsa e Gabriel ouvia o farfalhar das saias ser legada a nossos descendentes, há de permanecer viva.
roçando na porta do salão. Talvez houvesse pessoas no cais lá fora, Um burburinho de entusiástica aprovação percorreu a mesa.
na neve, olhando para as janelas iluminadas e ouvindo a valsa. O De súbito, veio à mente de Gabriel a lembrança de que Miss Ivors
ar lá fora era puro. Ao longe estendia-se o parque, com os galhos não se encontrava mais ali e que se retirara com uma atitude pouco
das árvores pesados de neve. A estátua de Wellington usava um cortês. Gabriel acrescentou com autoconfiança:
cintilante chapéu de neve que faiscava para o oeste como um farol, - Senhoras e Senhores. Uma nova geração cresce em nosso
por cima da brancura que cobria o parque Fifteen Acres. meio, uma geração impulsionada por novas idéias e novos prin-
Ele começou: cípios. É uma geração séria e entusiasmada e essas novas idéias e
- Senhoras e Senhores. Coube a mim esta noite, conforme esse entusiasmo, mesmo quando mal direcionados, são, a meu
sucedeu nos anos anteriores, desempenhar uma tarefa das mais ver, na maioria dos casos autênticos. Mas vivemos numa época
agradáveis, para a qual, todavia, receio sc.rem inadequadas mi- de ceticismo e, permitam-me dizer, numa época atormentadapelo
nhas pobres qualidades de orador. pensamento; e às vezes receio que essa nova geração, intelectua-
- Protesto! - exclamou Mr. Browne. lizada ou superintelectualizada, carecerá das qualidades huma-
- Mas, seja como for, peço apenas que levem em conta a nas, como a hospitalidade e o bom humor que caracterizaram um
minha intenção e que me ouçam por alguns momentos, para que tempo passado. Ouvindo há pouco os nomes de todos aqueles
grandes cantores e cantoras do passado, confesso que me pareceu
eu possa tentar traduzir em palavras tudo o que sinto esta noite.
estarmos vivendo numa época menos grandiosa. Aqueles dias,
-Senhoras e Senhores. Não é a primeira vez que nos reunimos
sem exagero, podem ser chamados de grandiosos. E se ora encon-
sob este teto hospitaleiro, à volta desta mesa farta. Não é a primei-
tram-se além de nossa lembrança, espero que pelo menos em
ra vez que somos alvo ou - talvez, melhor dizendo, vítimas -
congraçamentos como este ainda possamos recordá-los com or-
da hospitalidade de senhoras tão amáveis.
gulho e carinho, ainda possamos trazer em nossos corações a
Traçou com o braço um círculo no ar e parou. Todos riram e memória desses mortos ilustres, cuja glória o mundo não há de
olharam para tia Kate, tia Julia e Mary Jane, que enrubesceram de deixar perecer.
satisfação. Gabriel prosseguiu com mais segurança: -Muito bem! -exclamou Mr. Browne em voz alta.
- A cada ano que passa aumenta minha convicção de que - No entanto - continuou Gabriel, a voz assumindo uma
nenhuma tradição honra tanto o nosso país e deve ser defendida inflexão mais suave -, em encontros como este sempre nos
com mais fervor do que nossa hospitalidade. A meu ver, trata-se ocorrem tristes recordações: recordações do passado, da juventu-
de uma tradição ímpar (e tenho viajado bastante por esse mundo de, de como as coisas mudaram, de rostos ausentes. Nossa cami-
afora) entre as nações modernas. Alguns podem dizer que, no nhada pela vida é marcada por essas lembranças tristes; se nos
nosso caso, essa hospitalidade é mais um defeito do que uma permitíssemos ficar remoendo tais lembranças, não teríamos a
qualidade da qual devemos nos orgulhar. Mesmo que isso seja coragem de seguir em frente, com destemor, na nossa luta em
verdade, trata-se, creio eu, de um defeito magnífico, um defeito meio aos vivos. Todos temos deveres vivos e afeições vivas que
que espero seja sempre cultivado entre nós. De uma coisa pelo requerem, e têm o direito de requerer, toda a nossa incansável
menos estou certo: enquanto este teto abrigar as referidas e amá- dedicação.
veis senhoras-e desejo de coração que o faça por muitos e muitos - Destarte, não me deterei no passado. Não permitirei que
anos - a tradição da autêntica hospitalidade irlandesa, sincera e reflexões melancólicas de caráter moral se intrometam em nosso

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meio esta noite. Estamos aqui reunidos para uma breve pausa Todos os convidados levantaram-se, de taça na mão e, viran-
dentro do alvoroço de nossa vida cotidiana. Estamos aqui reuni- do-se para as três senhoras, cantaram em w1íssono, sob o coman-
dos como amigos, com espírito de amizade, como companheiros, do de Mr. Browne:
e por que não dizer, até éom espírito de camaraderie, e ainda como
convidados das -como haverei de chamá-las? -das Três Graças As três são boas companheiras,
do mundo musical de Dublin. As três são boas companheiras,
A mesa irrompeu em aplausos e risos diante dessa tirada. Tia As três são boas companheiras,
Julia, envaidecida, perguntou às pessoas que estavam a seu lado Ninguém pode negar.
na mesa o que fora mesmo que Gabriel dissera.
Tia Kate recorria abertamente ao lenço e até tia Julia parecia
- Disse que somos as Três Graças, tia Julia - explicou Mary
comovida. Freddy Malins marcava o ritmo com o garfo e os
Jane. cantores entreolhavam-se, como numa conversa melodiosa, en-
Tia Julia não compreendeu, mas ergueu os olhos, sorrindo para quanto concluíam, enfaticamente:
Gabriel, que prosseguiu no mesmo tom:
- Senhoras e Senhores. Não me atreverei a proceder aqui Mentiras não podem pregar,
como procedeu Páris em outra ocasião. Não ousarei fazer uma Mentiras não podem pregar.
escolha. A tarefa seria ao mesmo tempo antipática e acima de
minha pobre capacidade. Pois quando penso em cada uma delas, Em segtúda, voltando-se novamente para as anfitriãs, repetiram:
seja nossa principal anfitriã, cujo bom coração, bom até demais, é
objeto de elogio por todos que a conhecem; seja sua irmã, que As três são boas companheiras,
As três são boas companheiras,
parece dotada de eterna juventude e cujo canto foi para todos nós
As três são boas companheiras,
esta noite uma surpresa e uma revelação; ou, finalmente, quando
Ninguém pode negar.
penso em nossa mais jovem anfitriã, talentosa, alegre, esforçada,
a melhor sobrinha do mundo, confesso, senhoras e senhores, que A aclamação encontrou eco além da porta da sala de jantar, por
não sei a qual das três concederia o prêmio. parte de vários outros convidados, e Freddy Malins, de garfo em
Olhou de relance para as tias e vendo o largo sorriso estampa- pwillo, continuava a reger.
do no rosto de tia Julia e as lágrimas nos olhos de tia Kate
apressou-se em concluir o discurso. Ergueu garbosamente a taça O ar cortante da madrugada entrou no hall e tia Kate disse:
de vinho do Porto, enquanto todos os presentes tomavam nas - Fechem a porta, por favor. Mrs. Malins vai pegar um
mãos as suas respectivas taças, em expectativa, e disse com sono- resfriado.
ridade: -Mr. Browne está lá fora, tia Kate -disse Mary Jane.
- Brindemos às três. Brindemos à sua saúde, à sua prosperi- - Mr. Browne está em toda parte-disse tia Kate, abaixando
dade, longevidade e felicidade e que continuem por muito tempo o volume da voz.
a ocupar a invejável posição que, pelo seu próprio esforço, galga- Mary Jane riu do tom de voz da tia.
ram em suas profissões, bem como o lugar de honra e carinho que -Ora, tia Kate! - exclamou ela com malícia. - Ele até que é
ora ocupam no coração de cada um de nós. bastante atencioso.

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-Grudou aqui como esparadrapo - disse tia Ka te no mesmo
tom - durante todo o Natal. -O falecido e saudoso Patrick Morkan, ou seja, nosso avô -
Riu de suas próprias palavras e, então, acrescentou, amenizan- explicou Gabriel -, conhecido no fim da vida como o velho
do um pouco seu tom: cavalheiro, era fabricante de cola.
-Mas peça a ele que entre, Mary Jane, e feche a porta. Queira - Um momento, Gabriel - disse tia Kate, rindo-, ele fabri-
Deus que não me tenha ouvido. cava goma de amido.
Naquele momento a porta do hall de entrada abriu-se e Mr. - Seja lá cola ou goma - disse Gabriel -, o velho tinha um
Browne entrou, dobrando-se de rir. Vestia um sobretudo verde cavalo chamado Johnny. E Johnny trabalhava pro velho, dando
comprido, com punhos e gola imitando astracã, e trazia à cabeça volta atrás de volta pra ativar o moinho de amido. Até aí, tudo
um gorro de pele com formato ovalado. Apontou em direção ao bem; mas agora vem o lado trágico da história. Um belo dia, o
cais coberto de neve, de onde vinha um longo e sibilante assobio. velho resolveu acompanhar a fina flor local para assistir a uma
- Freddy vai atrair todos os coches de Dublin - ele disse. parada militar no parque.
Gabriel surgiu da saleta vestindo com dificuldade o sobretudo - Que Deus o tenha em bom lugar - disse tia Kate, com
e, olhando a sua volta no hall, disse: compaixão.
- Gretta ainda não desceu? -Amém - disse Gabriel. - Então, como eu dizia, o velho
- Foi apanhar as suas coisas, Gabriel - disse tia Kate. arreou Johnny, pôs a melhor cartola e o melhor colarinho, e partiu
- Quem está tocando lá em cima? - perguntou Gabriel. em grande estilo, saindo da mansão de seus antepassados, perto
- Ninguém. Todos já se foram. de Back Lane, creio eu.
- Não, não, tia Kate - disse Mary Jane. - Bartell D' Arcy e Todos riram, até Mrs. Malins, da maneira com que Gabriel
Miss O'Callaghan ainda não se foram. contava a história; tia Kate disse:
- Em todo caso, alguém está tocando piano -disse Gabriel. - Um momento, Gabriel, na verdade, ele não morava em Back
Mary Jane olhou para Gabriel e para Mr. Browne e disse, Lane. O moinho ficava lá.
sentindo um arrepio: - E da mansão dos antepassados - continuou Gabriel -
- Só de olhar pra vocês dois encapotados assim, já sinto frio. partiu ele, montado emJohnny E tudo correu muito bem, até que
Não gostaria de estar no lugar de vocês e ter que ir pra casa numa Jolmny avistou a estátua do Rei William. E se ele apaixonou-se
hora dessas. pelo cavalo montado pelo rei, o:.i se achou que estava de volta ao
- Pois nada me agradaria tanto neste momento -disse Mr. moinho, ninguém sabe. O fato é que começou a dar voltas em
Browne intrepidamente - quanto uma estimulante caminhada torno do monumento.
no campo ou um passeio de charrete em alta velocidade, puxada Já tendo calçado as galochas, Gabriel deu uma vo:ta pelo hall
por um animal fogoso. de entrada, em meio ao riso geral.
- Nós tínhamos um ótimo cavalo e uma charrete - disse tia - Uma volta, e outra volta, lá ia ele - disse Gabtiel - e o
Julia, com ar melancólico. velho, que era todo metido a elegante, ficou indignad0: Vamos,
- O inesquecível Johnny - disse Mary Jane, rindo. animal!· O que significa isso? Johnny! fohnny! Que comporto.menta é
Tia Kate e Gabriel também riram. esse! Como posso entender esse cavalo!
-O que havia de tão extraordinário nesse Jolmny? -pergun- As gargalhadas que se seguiram à encenação que Gabriel fez
tou Mr. Browne. do incidente foram interrompidas por sonoras batidas à porta da
rua. Mary Jane correu e fez entrar Freddy Malins. Freddy Malins,

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com o chapéu no topo da cabeça e os ombros encolhidos de frio, de pé, próxima ao primeiro patamar, igualmente na penumbra.
bufava em virtude do esforço despendido. Não podia ver o rosto dela, mas os babados da saia, em tons
- Só consegui um coche - disse ele. terra e salmão, eram visíveis e, na sombra, pareciam preto e
- Então, tente mais abaixo no cais - disse Gabriel. branco. Era sua esposa. Estava encostada no corrimão ouvindo
- Isso mesmo - disse tia Kate. - É melhor não deixar Mrs. alguma coisa. Gabriel surpreendeu-se ao vê-la tão imóvel e pres-
Malins exposta a correntes de ar. tou atenção para ouvir também. Mas não escutou nada a não ser
Mrs. Malins desceu os degraus da entrada da casa amparada o rumor das risadas e da conversa vindo da porta da rua, alguns
pelo filho e por Mr. Browne e, com muita dificuldade, foi içada acordes de piano e uma voz masculina cantando.
para dentro de um coche. Freddy Malins também entrou no coche Deteve-se ali na penumbra do hall, tentando identificar a canção
com dificuldade e levou um bom tempo para acomodá-la no que a voz cantava e com o olhar fixo na mulher. Havia em sua atitude
assento, tudo sob a orientação de Mr. Browne. Finalmente, a graça e mistério, como se ela fosse símbolo de algo. Gabriel pergun-
senhora foi acomodada e Freddy Malins convidou Mr. Browne a tou a si mesmo o que poderia simbolizar uma mulher na penumbra,
aproveitar a carona. Após um longo falatório, Mr. Browne entrou no topo de uma escada, ouvindo música ao longe. Se fosse um pintor,
no coche. O cocheiro ajeitou a manta que trazia sobre os joelhos e ele a retrataria naquela pose. O chapéu de feltro azul ressaltaria
curvou-se para ouvir o endereço. O falatório aumentou e o ho- o cabelo cor de bronze contrastando com o fw1do escuro, e os babados
mem recebeu instruções conflitantes de Freddy Malins e de Mr. da saia que estavam na sombra ressaltariam os que estavam na luz.
Browne, cada qual com a cabeça do lado de fora de uma janela do Música ao Longe, ele intitularia o quadro, se fosse pintor.
coche. O problema era decidir em que ponto do caminho deixa- A porta foi fechada e tia Kate, tia Julia e Mary Jane entraram
riam Mr. Browne, e tia Kate, tia Julia e Mary Jane, de pé na porta pelo hall, ainda rindo.
da casa, davam seus palpites, em meio a instruções truncadas, - Mas Freddy não é impossível? - disse Mary Jane. - É
contradições e muito riso. Quanto a Freddy Malins, já não podia mesmo impossível.
falar de tanto rir. Esticava a cabeça pela janela.e voltava a sentar-se, Gabriel nada respondeu e apontou escada acima, onde via-se
inúmeras vezes, arriscando perder o chapéu, e informava à mãe sua esposa. Com a porta da rua fechada, a voz e o piano estavam
sobre o progresso das negociações, até que, afinal, Mr. Browne deu bem mais audíveis. Gabriel fez um sinal com a mão para que as
um berro, assustando o cocheiro e abafando as gargalhadas: três ficassem caladas. A canção parecia composta numa tonalida-
- Sabe onde fica o Trinity College? de arcaica e o cantor estava inseguro tanto com relação à letra
- Sei, sim senhor - disse o cocheiro. quanto à voz. A voz, que parecia dorida em virtude da distância
- Então, vá direto em direção aos portões do Trinity College em que se encontrava o cantor bem como de uma forte rouquidão,
- disse Mr. Browne - e de lá nós lhe diremos como prosseguir. tentava em vão ressaltar a cadência da ária com palavras que
Entendeu? exprimiam sofrimento:
- Entendi, sim senhor -disse o cocheiro.
- Então, voando para o Trinity College! O, the rain falls on my heavy locks
- Sim, senhor - gritou o cocheiro. And the dew wets my skin,
O cavalo levou uma chibatada e o coche partiu sacolejando My babe lies cold .. .*
pelo cais, em meio a um coro de risos e despedidas.
Gabriel não fora até a porta juntar-se aos outros. Ficara numa "Ah, a chuva cai nos meus espessos ~achos / E o orvalho umedece a minha
parte eset~ra do hall olhando escada acima. Uma mulher estava pele,/ Meu filho jaz enregelado ... (N. do:.~.).

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-Ah! - exclamou Mary Jane. - É Bartell D' Arcy cantando; Mr. D' Arcy surgiu da saleta, todo enrolado e abotoado, e em
e recusou-se a noite toda a cantar. Mas vou fazer ele cantar uma tom de arrependimento explicou-lhes como apanhara o resfriado.
canção antes de ir embora. Todos deram-lhe conselhos, disseram que era umà pena vê-lo
- Ah, faz sim, Mary Jane - disse tia Kate. assim e que deveria proteger bem a garganta contra o sereno. ,
Mary Jane adiantou-se rapidamente e correu até a escada, mas Gabriel observava a esposa, que permanecera calada durante a ·
antes mesmo de alcançar o primeiro degrau o canto foi interrom- conversa. Ela estava de pé exatamente embaixo da clarabóia
pido e o teclado do piano foi fechado bruscamente. empoeirada e a chama da lamparina iluminava-lhe os cabelos cor
-Ah, que pena! -ela exclamou. -Ele está descendo, Gretta? de bronze, cabelos que poucos dias atrás ele a vira secar diante da
Gabriel ouviu a mulher responder que sim e descer a escada lareira. Gretta permanecia imóvel e parecia não se dar conta de
em sua direção. Logo atrás vinham Mr. Bartell D' Arcy e Miss que falavam dela. Finalmente, voltou-se para eles e Gabriel notou
O'Callaghan. que nas faces da esposa havia um rubor e que seus olhos brilha-
-Ah, Mr. D' Arcy! - exclamou Mary Jane. - Que maldade vam. Uma súbita onda de alegria tomou o coração de Gabriel..
sua parar de cantar, logo agora que nós estávamos entusiasmados - Mr. D' Arcy '--ela perguntou-, qual o nome dessa canção
ouvindo o senhor. que o senhor estava cantando?
- Insistimos tanto pra que ele cantasse -disse Miss O'Cal- -The lass ofAughrim-disse Mr. D' Arcy-, mas não consegui
laghan -, Mrs. Conroy e eu, e ele nos dizendo que estava com me lembrar da letra direito. Por quê? A senhora conhece a canção?
um resfriado horrível e que não podia cantar. - The lass of Aughrim -ela repetiu. - Não, nunca ouvi falar.
-Ah, Mr. D' Arcy - exclamou tia Kate -, mas que balela! - É uma linda canção - disse Mary Jane. - É uma pena o
-Vocês não perceberam que eu estou rouco como uma ara- senhor estar sem voz.
ra? - disse Mr. D' Arcy, com aspereza. - Ora, Mary Jane - disse tia Kate -, não amole Mr. D' Arcy.
Em seguida, entrou na saleta às pressas e vestiu o sobretudo. Não admito que o amolem.
O grupo, desconcertado diante da resposta grosseira, não sabia o Vendo que estavam prontos para sair, ela conduziu o grupo
que dizer. Tia Kate franziu a testa e fez sinal para os outros, até a porta, onde se despediram:
indicando que deixassem o assunto de lado. Mr. D' Arcy, com o - Então, boa noite, tia Kate, foi uma festa e tanto!
semblante carregado, agasalhava cuidadosamente o pescoço com - Boa noite, Gabriel. Boa noite, Gretta!
o cachecol. - Boa noite, tia Kate, e muito obrigada. Boa noite, tia Julia.
-É esse tempo-ponderou tia Julia, depois de uma pausa. -Ah, boa noite, Gretta. Eu não tinha visto você.
- Pois é, todo mundo anda resfriado -disse tia Kate, pron- - Boa noite, Mr. D' Arcy. Boa noite, Miss O'Callaghan.
tamente-, todo mundo. - Boa noite, Miss Morkan.
- Estão dizendo - acrescentou Mary Jane - que faz trinta - Mais uma vez, boa noite.
anos que não neva desse jeito. E li esta manhã no jornal que está - Boa noite a todos.
nevando em toda a Irlanda. - Boa noite. Boa noite.
- Adoro ver neve - disse tia Julia, com um ar triste. Ainda estava escuro. Uma luz pálida e amarelada pairava
- Eu também -disse Miss O'Callaghan. - Natal só é Natal sobre as casas e sobre o rio; o céu parecia estar despencando. As
com neve na rua. ruas estavam cobertas de neve meio derretida misturada com
- Mas o pobre Mr. D' Arcy não gosta de neve-disse tia Kate, lama; nos telhados, na mureta do cais e sobre os trilhos havia
sorrindo. apenas filetes de neve. Os lampiões ainda ardiam, refletindo sua

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luz avermelhada dentro do ar brumose e, do outro lado do rio, o de êxtase. A seu ver, os anos não tinham aniquilado suas almas.
palácio Four Courts erguia-se imponente, desafiando o céu carre- Os filhos do casal, os escritos dele e os afazeres domésticos dela
gado. não tinham apagado a delicada chama que traziam na alma. Em
Ela caminhava à frente dele, ao lado de Mr. Bartell D' Arcy, uma carta que escrevera a ela naquela época, dissera: Por que será
trazendo os sapatos debaixo do braço, dentro de um embrulho que palavras como estas parecem-me tão insípidas efrias? Será porque
marrom, e suspendendo a barra da saia com as mãos para não não existe palavra carinhosa o bastante para expressar o seu n.ome?
sujá-la. A mulher já não exibia uma postura elegante, mas os olhos Como música ao longe essas palavras por ele escritas anos
de Gabriel ainda brilhavam de felicidade. O sangue latejava-lhe antes chegavam até ele, vindas do passado. Desejava fic~r a sós
nas veias e os pensamentos precipitavam-se em sua mente, orgu- com ela. Quando todos tivessem ido embora, quando estivessem
lhosos, felizes, carinhosos, intrépidbs. no quarto do hotel, então estariam a sós. Ele pronunciaria seu
Ela caminhava a sua frente tão leve e tão ereta que ele desejava nome a meia voz:
alcançá-la na surdina, agarrá-la pelo ombro e sussurrar-lhe algo
-Gretta!
tolo e apaixonado. Parecia-lhe tão frágil que tinha ímpetos de Talvez ela não escutasse na primeira vez; estaria se despindo.
defendê-la contra algum perigo qualquer e então ficar a sós com Mas algo na voz dele chamaria sua atenção. Ela se voltaria para
ela. Momentos da vida íntima dos dois irromperam-lhe na memó-
olhá-lo ...
ria como estrelas: um envelope rosado ao lado da xícara de café e Na esquina de Winetavern Street encontraram um coche. Ga-
ele afagando o papel; passarinhos cantando na hera e o reflexo
briel sentiu-se aliviado ao constatar o ruído provocado pelo coche
ensolarado da cortina tremeluzindo no assoalho; naquela ocasião
sacolejante, pois tinha assim uma boa desculpa para não puxar
sentira-se tão feliz que não conseguira comer. Os dois numa
conversa. Ela olhava pela janela e parecia cansada. Os outros
plataforma repleta de gente e ele pressionando o tíquete da pas-
falavam pouco, apontando algum edifício ou alguma rua. O
sagem contra a palma de sua mão cálida e enluvada; os dois lado
cavalo galopava exausto, sob o céu sombrio da madrugada, pu-
a lado, no frio, espiando através de uma janela gradeada um
xando o coche sacolejante, e Gabriel sentiu-se novamente ao lado
homem fazendo garrafas de vidro diante de um forno ardente.
dela num coche, correndo para embarcar no navio, correndo para
Fazia muito frio. O rosto dela, exalando perfume no ar frio, estava
bem próximo ao dele; subitamente, ela dirigiu-se ao sujeito que a lua-de-mel.
estava diante do forno: Quando passaram pela O'Connell Bridge, Miss O'Callaghan
-O fogo está quente, moço? disse:
Mas o homem não pôde ouvi-la, devido ao ruído do forno. Foi - Dizem que sempre que a gente atravessa O'Connell Bridge
melhor assim. O sujeito poderia ter-lhe dado uma resposta gros- vê um cavalo branco.
seira. - Desta vez estou vendo um homem branco - disse Gabriel.
Uma onda de felicidade e carinho ainda mais intensa emergiu - Onde? - perguntou Mr. Bartell D' Arcy.
do coração de Gabriel e percorreu-lhe as artérias, numa cálida Gabriel apontou para a estátua, parcialmente coberta pela
torrente. Como o brilho suave das estrelas, momentos de sua vida neve. Em seguida, cumprimentou a estátua com um meneio de
em, comum, de que ninguém tinha e jamais teria conhecimento, cabeça e um aceno.
precipitavam-se iluminando-lhe a memória. Ansiava em fazê-la - Boa noite, Dan - ele disse, em tom jocoso.
lembrar-se daqueles momentos, fazê-la esquecer-se dos anos de Quando o coche parou na porta do hotel, Gabriel desceu
sua insípida vida conjugal e lembrar-se somente dos momentos rapidamente e, apesar dos protestos de Mr. D' Arcy, pagou a

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corrida. Deu ao cocheiro um shilling de gorjeta. O homem agra- - Não queremos luz nenhuma. A luz que vem da rua já basta.
deceu e disse: E digo mais - acrescentou, apontando para a vela -, o senhor
- Um próspero Ano Novo pro senhor, doutor. pode levar essa beleza de vela, por gentileza.
- Para você, também - respondeu Gabriel, cordialmente. O velho pegou a vela, ainda que com hesitação, pois ficou
Ao descer do coche Gretta apoiou-se no braço de Gabriel e surpreso com a ordem de Gabriel. Em seguida murmurou 'boa
assim permaneceu enquanto se despedia dos outros na calçada. noite' e retirou-se. Gabriel passou o trinco na porta.
Apoiava-se levemente no braço dele, com a mesma leveza com . A ~uz pálid,a do lampião da rua formava um longo facho que
que o fizera quando dançaram juntos algumas horas antes. Na- ia da Janela ate a porta. Gabriel atirou sobre o sofá o sobretudo e
quele momento Gabriel sentira-se orgulhoso e feliz, feliz por tê-la o chapéu e caminhou até a janela. Ficou olhando para a rua, com
para si, orgulhoso de sua postura nobre e elegante. Agora, após º.intuito de abrandar um pouco a emoção que sentia. Então,
tantas memórias agradáveis, o contato do corpo da mulher, mu- virou-se e encostou-se na cômoda, de costas para a luz. A mulher
sical, exótico e perfumado, despertava nele um desejo ardente. tirara o chapéu e o casaco e estava de pé diante de um grande
Diante do silêncio dela, pressionou-lhe o braço contra seu corpo espelho giratório, abrindo os colchetes do cós da saia. Gabriel
e, em frente à porta do hotel, teve a sensação de que haviam deteve-se um momento, observando-a e, então, disse:
escapado de suas próprias vidas e de suas obrigações, escapado -Gretta!
do lar e dos amigos, e fugido com corações exultantes para uma Ela se afastou lentamente do espelho e caminhou em direção
nova aventura. a ele ?entr_? do facho ~e luz. Tinha o rosto tão grave e cansado que
Um velho cochilava numa enorme poltrona no hall de entrada. ~abnel _nao consegum pronunciar uma palavra sequer. Não,
amda nao era o momento.
O homem acendeu uma vela e guiou-os até a escada. Os dois
- Parece cansada - ele disse.
seguiram-no em silêncio, com passos macios sobre o espesso
- Um pouco -ela respondeu.
tapete que cobria os degraus. Ela subia logo atrás do porteiro, de
- Sentindo alguma coisa?
cabeça baixa, com os ombros delicados curvados, como se estives-
sem suportando um peso, e com a saia firmemente segura. Gabriel -Não, apenas cansaço.
desejava abraçá-la na altura dos quadris e suspendê-la no ar, pois Ela foi até a janela e pôs-se a olhar a rua. Gabriel esperou um
seus braços tremiam de desejo e somente cravando as unhas na pouco mais e então, temeroso de que a timidez o dominasse, disse
bruscamente:
palma da mão pôde controlar o impulso de arrebatá-la. O velho
-A propósito, Gretta!
parou no meio da escada para endireitar a vela gotejante. Eles
-Sim?
também pararam, um degrau abaixo. No silêncio, ele podia ouvir
a cera derretida pingando no pratinho e o coração batendo-lhe no -Sabe, o coitado do Malins -ele disse, falando rapidamente.
- Sei, o que tem ele?
peito.
---: Pois é, coitado, até que é um sujeito decente - prosseguiu
O velho porteiro conduziu-os por um corredor e abriu uma
porta. Então, colocou sobre a mesa de cabeceira a vela instável e G.abn:I num tom d: v~z um tanto forçado. - Pagou aquele
d111he1ro ~ue me devia; sinceramente, eu nem esperava que fosse
perguntou a que horas gostariam de ser despertados.
pagar. Foi uma pena ele não sair do lado do Browne; no fundo
-Às oito - disse Gabriel. não é mau sujeito.
O velho apontou para o interruptor de luz elétrica e começou Sentia-se um tanto trêmulo de contrariedade. Por que se mos-
a balbuciar uma desculpa, mas Gabriel interrompeu-o. trava ela tão distante? Não sabia como começar. Será que ela

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~
também estava contrariada com alguma coisa? Se ao menos se Ela não respondeu de imediato. Então disse, em meio a uma
voltasse para ele, ou viesse ao seu encontro de livre e espontânea explosão de lágrimas:
vontade! Arrebatá-la naquele estado seria brutal. Não, aguarda- - Ah, estou me lembrando daquela canção, The lass of Aughrim.
ria até ver um pouco de ardor em seus olhos. Ansiava por desven- Desvencilhou-se dos braços dele e correu para a cama e, agar-
dar o motivo do estranho estado de espírito em que ela se rando-se à cabeceira, escondeu o rosto entre os braços. Gabriel
encontrava. ficou atônito durante alguns instantes e então foi ao encontro dela.
- Quando foi que você lhe emprestou dinheiro? - ela per- Quando passou na frente do espelho giratório, viu sua própria
guntou, após uma pausa. figura, em corpo inteiro, o tórax largo e robusto, o rosto, cuja
Gabriel esforçou-se para não explodir num linguajar grosseiro expressão sempre o intrigava quando diante de um espelho, e os
a respeito do bêbado do Malins e do dinheiro. Queria gritar-lhe óculos dourados, brilhantes. Deteve-se a alguns passos dela e
do fundo da alma, apertá-la contra seu corpo, subjugá-la. Mas disse:
disse: -O que tem a ver a canção? Por que te faz chorar?
-Ah, no Natal, quando ele abriu aquela lojinha de cartões de Ela ergueu a cabeça que estava apoiada no braço e enxugou os
boas-festas em Henry Street. olhos com as costas da mão, como urna criança. A voz de Gabriel
Estava em tal estado de exaltação e desejo que não ouviu quando assumiu um tom mais benévolo do que ele pretendia.
ela se aproximou, vindo da janela. Ela parou um instante diante dele, - Por que, Gretta? - repetiu.
fitando-o com um olhar estranho. Então, colocando-se subitamente - Estou me lembrando de urna pessoa que há muito tempo
na ponta dos pés e repousando as mãos suavemente nos ombros costumava cantar aquela canção.
dele, ela o beijou. - E que pessoa foi essa? -perguntou Gabriel, sorrindo.
- Você é uma pessoa muito generosa, Gabriel - ela disse. -Foi uma pessoa que conheci em Galway, quando eu morava
Gabriel, trêmulo de prazer diante do beijo inusitado e das com minha avó - ela disse.
palavras inusitadas, passou levemente as mãos nos cabelos da O sorriso desapareceu do rosto de Gabriel. Um sentimento de
mulher, quase sem tocá-los. Os cabelos estavam lavados e viçosos. raiva voltou a instalar-se em sua mente e o calor do desejo voltou
a esquentar-lhe as veias.
O coração dele transbordava de felicidade. Exatamente quando
mais a desejava, ela viera por vontade própria. Talvez os pensa- -Alguém por quem você esteve apaixonada? - ele pergun-
tou, ironicamente.
mentos dela estivessem correndo paralelamente aos dele. Talvez
ela tivesse percebido o desejo impetuoso que o consumia e resol- - Foi um rapaz que eu conheci - ela respondeu -, chama-
va-se Michael Furey. Costumava cantar essa canção, The lass of
vera ceder. Agora que ela se rendera tão facilmente aos seus
Augflrim. Era urna pessoa muito sensível.
braços, ele perguntava a si por que tinha sido tão tímido.
Gabriel ficou calado. Não queria que ela supusesse que ele
Segurou-lhe o rosto com as mãos e então, envolvendo-a com
estava interessado no tal rapaz sensível.
os braços e trazendo-a para junto de si, disse a meia voz:
- Lembro-me tão bem dele - ela disse, após um momento.
-Gretta, querida, em que você está pensando? -Que olhos: grandes, negros! E que expressão, que expressão!
Ela não respondeu; tarn f , 1co cedeu inteiramente ao abraço. -Ah, então você esteve mesmo apaixonada por ele - disse
Ele repetiu, a meia voz: Gabriel.
-Conta pra mim, Gretta. Acho que já sei do que se trata. Será - Costumava sair pra caminhar com ele - ela disse - na
que sei? época em que eu morava em Galway.

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Um pensamento passou pela mente de Gabriel. gível e vingativo o atacasse, reunindo em seu mundo obscuro
- Então era por isso que você queria ir a Galway com Molly forças para contra ele se precipitar. Contudo, procurando agir
Ivors? -pergw1tou com frieza. racionalmente, livrou-se da sensação e continuou a acariciar a
Ela olhou-o espantada e pergw1tou: mão da mulher. Não fez mais perguntas, pois começou a achar
-Para quê? que tudo se revelaria ,€Spontaneamente. A mão dela estava cálida
O olhar dela o desconcertou. Ele deu de ombros e disse: e úmida: não respondia ao seu toque, mas ele continuou a acari-
- Sei lá eu? Pra ver o tal rapaz, talvez. ciá-la, assim como tinha acariciado a primeira carta dela naquela
Ela desviou o olhar em direção ao facho de luz e à janela e manhã de primavera.
permaneceu em silêncio. - Foi no inverno - ela disse-, no início do inverno, quan-
- Ele está morto - ela disse, finalmente. - Morreu aos do eu estava prestes a deixar a casa de minha avó pra vir estudar
dezessete anos de idade. Não é terrível morrer tão jovem assim? aqui no colégio de freiras. Ele estava adoentado na pensão em
- O que ele fazia na vida? -perguntou Gabriel, ainda com Galway e não o deixavam sair. Escreveram pra a família dele, em
ironia. Oughterard. Estava definhando, foi o que disseram, ou qualquer
- Trabalhava no gasômetro - ela disse. coisa assim. Eu nunca soube ao certo.
Gabriel sentiu-se diminuído pelo fracasso de sua ironia e pela Fez uma pausa e suspirou.
evocação da figura do morto, um garoto que trabalhava no gasô- - Pobre rapaz - ela prosseguiu. - Gostava muito de mim, e
metro. Enquanto ele revivia as lembranças da vida íntima do como era sensível. Costumávamos sair juntos, caminhando, sabe
casal, cheio de carinho e felicidade e desejo, ela o comparava a um Gabriel, como de costume no interior. Ele ia estudar canto por
outro homem. Um grande sentimento de humilhação assaltou-o. motivo de saúde. Tinha uma ótima voz, pobre Michael Furey.
Via-se corno uma figura ridícula, como um menino fazendo graci- -Sim, e daí? -perguntou Gabriel.
nhas para as tias, como um sentimental nervoso e ingênuo discur- - E daí quando chegou o momento de eu ir embora de Galway
)
sando para plebeus e idealizando seus próprios desejos ridículos: e vir pro colégio interno, ele piorou muito e não me deixaram
era de fato o sujeito presunçoso que vira refletido no espelho. vê-lo; então escrevi urna carta dizendo que ia pra Dublin e que
Instintivarnen te, deu as costas para a luz, com receio de que Gretta voltaria no verão e que quando voltasse desejava vê-lo bem
percebesse a vergonha que lhe queimava o rosto.
melhor.
Procurou manter o tom frio de interrogatório, mas quando
Fez uma pausa para controlar a voz e depois prosseguiu:
voltou a falar a voz saiu com tom humilde e inócuo.
- Então, na véspera da partida, eu estava na casa da minha
- Imagino que você esteve apaixonada por esse Michael
avó em Nun's Island, fazendo as malas, quando ouvi urna pedri-
Furey, Gretta - ele disse.
nha bater na vidraça. A janela estava úmida e eu não conseguia
- Fui feliz ao lado dele, naquela época - ela disse.
ver nada lá fora, então do jeito que eu estava, desci a escada
Tinha a voz velada e triste. Gabriel, dando-se conta de que seria
inútil tentar levá-la na direção em que pretendera, acariciou a mão correndo, e saí pela porta dos fundos e lá estava o pobre coitado,
da mulher e disse, igualmente triste: no fundo do quintal, tiritando.
- E ele morreu de quê, Gretta, tão jovem? Foi tuberculose? - E você não disse a ele que voltasse pra casa? - perguntou
- Acho que morreu por mim - ela respondeu. Gabriel.
Ao ouvir a resposta um vago terror apossou-se de Gabriel - Eu implorei que voltasse imediatamente pra casa e disse que
como se no momento em que esperava triunfar algum ser intan- a chuva ia acabar com ele. Mas ele disse que não queria viver.

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Lembro-me muito bem dos olhos dele, muito bem! Lá estava ele abatido da senhora no momento em que cantava Arrayed for tlle
no canto do muro, ao lado de uma árvore. bridal. Talvez em breve ele estaria sentado naquele mesmo salão,
- E ele foi pra casa? - perguntou Gabriel. de luto, com o chapéu apoiado sobre os joelhos. As cortinas
- Foi, foi pra casa. E quando eu completei uma semana no estariam fechadas e tia Kate estaria sentada ao seu lado, chorando
colégio interno, ele morreu e foi enterrado em Oughterard, que é e assoando o nariz e contando como Julia morrera. Ele procuraria
a terra da família dele. Ah, o dia em que eu recebi a notícia que ... palavras de consolo e encontraria somente frases banais e inúteis.
que ele havia morrido! É verdade, isso aconteceria em breve.
Ela parou, sufocada pelos soluços e, prostrada pela emoção, O ar dentro do quarto estava gélido. Gabriel acomodou-se
atirou-se de bruços na carna, soluçando. Gabriel ainda lhe segurou cuidadosamente embaixo das cobertas e ficou deitado ao lado da
a mão um pouco, indeciso e, então, constrangido por imiscuir-se esposa. Um por um, estavam todos transformando-se em espec-
na dor da mulher, largou gentilmente a mão e caminhou em tros. Seria preferível passar para o outro mundo de maneira
silêncio até a janela. corajosa, na glória de uma paixão, do que murchar e secar lenta-
mente, na velhice. Gabriel pensou no fato de que aquela que
Gretta adormecera. estava ali a seu lado havia ocultado no coração durante tantos
Gabriel, com o corpo apoiado no cotovelo, olhou um instante anos aquela imagem dos olhos do amado dizendo a ela que
sem ressentimento para os cabelos emaranhados da mulher e para não queria viver.
a boca entreaberta, e ouviu sua respiração profunda. Então ela Lágrimas abundantes encheram-lhe os olhos. Ele próprio ja-
vivenciara aquele romance: um homem morrera por sua causa. mais tivera esse tipo de sentimento com relação a uma mulher,
Pouco importava a Gabriel agora o papel sem importância que mas sabia que aquilo era amor. Mais lágrimas vieram-lhe aos
ele, o marido, desempenhara na vida dela. Olhava para ela ador- olhos e na penumbra ele imaginou ver a figura de um rapaz
mecida corno se os dois jamais tivessem vivido como marido e parado embaixo de uma árvore de cujos galhos pingava a chuva
mulher. Seus olhos curiosos fitaram longamente aquele rosto e fria. Havia outras figuras em volta. Sua alma acercara-se da região
aqueles cabelos; ao imaginar como ela fora na época em que era habitada pela vasta legião dos mortos. Pressentia a existência
dotada daquela beleza infantil, um estranho sentimento de com- errática e perambulante dos mortos, embora fosse incapaz de
paixão invadiu-lhe a alma. Não ousava dizer nem para si mesmo apreendê-la. Sua própria identidade desaparecia num mundo
que o rosto dela já não era belo, mas sabia que já não era o rosto cinzento e incorpóreo; o mundo sólido, antes construído e habita-
pelo qual Michael Furey desafiara a morte. do por esses mortos, dissolvia-se, esvaía-se.
Talvez ela não tivesse lhe contado a história inteira. Desviou Urnas batidas leves na vidraça fizeram-no virar-se em direção
o olhar para a cadeira onde ela atirara algumas peças de roupa. à janela. Recomeçava a nevar. Sonolento, ele observou os flocos
Uma alça de combinação pendia. Urna bota estava de pé, com o prateados e escuros, caindo obliquamente contra a luz do lam-
cano caído; a outra estava tombada, ao lado. Gabriel lembrou-se pião. Chegara o momento de iniciar sua viagem para o oeste. É,
do turbilhão de emoções que sentira há uma hora. De onde surgira os jornais tinham acertado: nevava em toda a Irlanda. Caía neve
tudo aquilo? Tudo fora causado pela festa na casa da tia, pelo por toda a sombria planície central, nas montanhas desprovidas
discurso idiota, pelo vinho e pela dança, pelas despedidas alegres, de árvores, nevava com brandura sobre o 13og of Allen e, mais para
pelo prazer da caminhada na neve ao longo do rio. Pobre tia Julia! o oeste, nevava delicadamente sobre as ondas escuras e rebeldes
Ela também em breve seria um espectro, juntamente com o espec- de Shannon. Caía também no cemitério solitário da colina onde
tro de Patrick Morkan e seu cavalo. Ele bem que notara o olhar jazia Michael Furey. Acumulava sobre as cruzes inclinadas e sobre

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as lápides, sobre as pontas das grades do portão, sobre os espi-
nhos. Sua alma desfalecia-se lentamente enquanto ele ouvia a
neve precipitando-se placidamente no universo, placidamente
precipitando-se, descendo como a hora final sobre todos os vivos
e todos os mortos.

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