Você está na página 1de 18

A Arte da Ficção

Henry James
! 1

Seleção e Apresentação
Antônio Paulo Graça

Tradução
Daniel Piza
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

James, Henry, 1843-1916.


Sumário
A arte da ficção / Henry James; organização e apresentação Antonio
Paulo Graça; tradução Daniel Piza. - São Paulo: Editora Imaginário, 1995.
- (0 Olhar Criador)

ISBN 85-85362-24-3

1. Ficção - História e crítica 2. Maupassant, Guy de, 1850-1893 - Crítica Alegorias da consciência moral 7
e interpretação 3. Zola, Émile, 1840-1902 - Crítica e interpretação I. Graça, Antônio Paulo Graça
Antonio Paulo. II. Título III. Série.

95-4650 CDD-809.3 A Arte da Ficção 19


Crítica 47
Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção: História e crítica 809.3 O Futuro do Romance 55

Guy de Maupassant 69

Émile Zola 105

Projeto Editorial: Plínio Augusto Coelho


Ricardo Nakamiti '
Revisão: Ana Paula Landi
Ilustração e projeto de capa: Milton José de Almeida
Fotolito da capa: INI Artes Gráficas

Editora Imaginário
Rua Gen. Jardim, 228 conj. 11
Fone/ Fax: (011) 258-5998
01223-010 São Paulo - SP

Impresso no Brasil
Dezembro de 1995
A Arte da Ficção

Eu não deveria ter escolhido um título tão


abrangente para estas poucas observações, necessa-
riamente incompletas quando se trata de um as-
sunto sobre o qual poderíamos ir tão longe, se não
me parecesse ter descoberto um pretexto para tal
temeridade no interessante panfleto recém-publi~
cado sob esse título pelo sr. Walter Besant. A con-
ferência do sr. Besant na Royal Institution - a
fonte original de seu panfleto - aparece como-indí-
cio de que muitas pessoas estão interessadas na
arte da ficção, e de que não estão indiferentes às
observações que os que a praticam possam querer
fazer sobre ela. Estou ansioso, em conseqüência, por
não desperdiçar o benefício dessa associação favorá-
vel e acrescentar algumas palavras, acobertando-
me da atenção que o sr. Besant está certo de ter
chamado. Há algo muito encorajador no fato de ele
ter dado forma a certas idéias suas sobre o mistério
da narrativa.
Esse fato é uma prova de vitalidade e curiosi-
dade - curiosidade tanto por parte da irmandade
dos romancistas quanto por parte de seus leitores.
Há bem pouco tempo, era de supor que o romance
inglês não fosse o que os franceses chamam de
"discutable". Ele não aparentava ter uma teoria,
uma convicção, uma autoconsciência por trás de si
- a de ser a expressão de um credo artístico, o re-
sultado de escolha e comparação. Não digo que isso
fosse necessariamente ruim: seria preciso muito
mais coragem do que possuo para sugerir que a
A Arte da Ficção

Eu não deveria ter escolhido um título tão


abrangente para estas poucas observações, necessa-
riamente incompletas quando se trata de um as-
sunto sobre o qual poderíamos ir tão longe, se não
me parecesse ter descoberto um pretexto para tal
temeridade no interessante panfleto recém-publi-
cado sob esse título pelo sr. Walter Besant. A con-
ferência do sr. Besant na Royal Institution - a
fonte original de seu panfleto - aparece como- indí-
cio de que muitas pessoas estão interessadas na
arte da ficção, e de que não estão indiferentes às
observações que os que a praticam possam querer
fazer sobre ela. Estou ansioso, em conseqüência, por
não desperdiçar o benefício dessa associação favorá-
vel e acrescentar algumas palavras, acobertando-
me da atenção que o sr. Besant está certo de ter
chamado. Há algo muito encorajador no fato de ele
ter dado forma a certas idéias suas sobre o mistério
da narrativa.
Esse fato é uma prova de vitalidade e curiosi-
dade - curiosidade tanto por parte da irmandade
dos romancistas quanto por parte de seus leitores.
Há bem pouco tempo, era de supor que o romance
inglês não fosse o que os franceses chamam de
"discutable". Ele não aparentava ter uma teoria,
uma convicção, uma autoconsciência por trás de si
- a de ser a expressão de um credo artístico, o re-
sultado de escolha e comparação. Não digo que isso
fosse necessariamente ruim: seria preciso muito
mais coragem do que possuo para sugerir que a
20 A Arte da Ficção A Arte da Ficção 21

forma do romance como a viam Dickens e Thacke- por um tempo ele ameaçou deixar de ser - um inte-
ray (por exem_plo) tivesse qualquer sombra de in- resse sério, ativo, investigativo, sob cuja proteção
completudé;.Ísso;é no entanto, era na'if (se me per- esse agradável estudo pode, em momentos
mitem outra palavra francesa); e evidentemente, se confessionais, aventurar-se a dizer um pouco mais
se deve sofrer por causa da perda da na'iveté, existe sobre o que o romance pensa de si mesmo.
agora a idéia de que também se deve extrair as res- ~m~~~~~~-~~~~J~Y'.:l.1:-ª~ê-~Ei~J?.§!:!'Jl_g~~..9
pectivas vantagens. Durante o período a que aludi público o leve a sérioJ~mbém. A velha superstição
------~-,~·-,---~- .. ,,.,_,,.=.,,,~~"""""'"""~-

havia em outros países uma sensação confortável, sobre a ficção ser "íníqu~' sem dúvida morreu na
bem-aceita, de que um romance é um romance as- Inglaterra; mas seu espírito subsiste num certo
sim como um pudim é um pudim, e de que só nos olhar. ~blíquo que se dirige a qualquer história que
cabe engoli-lo. Mas em um ano ou dois, por um mo- não 1:1-dmita, mais ou menos, ser apenas uma an~­
tivo ou outro, houve sinais do retorno de uma ani- dota. Mesmo o romance mais anedótico sente de
mação - a era da discussão, ao que parece, estava algum modo o peso da proscrição que antes se diri-
sendo iniciada. A arte vive de discussão, de· experi- gia contra a leviandade literária: a anedota nem
mentação, de curiosidade, de variedade de tentati- sempre consegue passar por ortodoxia. Ainda se
vas, de troca de visões e de comparação de pontos de espera, embora as pessoas talvez tenham vergonha
vista; e presume-se que os tempos em que ninguém de dizer, que uma produção que, afinal, é apenas
tem nada de especial a dizer sobre ela e em que uma "simulação" (pois o que mais é uma história?)
ninguém oferece motivos para o que pratica ou pre- deva ser de algum modo apologética - deva renun-
fere, embora possam ser tempos honrados, não se- ciar à pretensão de tentar realmente representar a
jam tempos de evolução - talvez sejam tempos, até, vida. Isso, claro, qualquer história sensata, consci-
de uma certa monotonia. A prática bem-sucedida de
qualquer arte é um espetáculo agradável, mas a
ente, rejeita fazer, pois logo percebe que a tolerân-
·-
eia qy~Jh~-~'"~2~!l~rg~j;,ª'g;:L~Q1;>..§l.~.ê, ,Ç.()J:ldição.é'apenas -
teoria também é interessante; e, embora haja uma Un:í~ te11tativa. de .~11focá-la, disf~rÇ~ci~-:na-rorm·a de
grande quantidade da segunda sem a primeira, genero~icia<lê~ ··Â··;eih.~ ·11ü8tlí:íaade evàngeliea ·
........_~,<'~-~~~
ªº
suspeito de que nunca tenha havido um sucesso romance, que era tão explícita quanto estreita, e
genuíno que não tenha tido um âmago latente de que o considerava tão pouco favorável ao nosso ser
convicção. Discussão, sugestão, formulação, essas imortal quanto a peça de teatro, era na verdade
coisas são férteis quando são francas e sinceras. O bem menos insultuosa. 4-~~.~rª··~-,.tl~J;t­
sr. Besant deu um exemplo excelente ao dizer o que tênci~ ~-~~~!E:•.E2~~cé .é. ~~.~~~Jll~~l.~D1ª·~<i~Ji;tto
pensa que deva ser a maneira de escrever ficção, representar avida.-Quando ele desdenha essa ten-
assim como a maneira de publicá-la; pois sua visão tãtíVâ;·a:~~~;.ãt;~tativa que se vê na tela do pin-
da "arte", explicada no apêndice, abrange isto tam- tor, terá chegado a uma situação muito estranha.
bém. Outros trabalhadores da mesma área vão ler Não se espera de uma pintura que seja tão humilde
o argumento, colocá-lo à luz de sua experiência, e o que possa ser esquecida; e a analogia entre a arte
efeito certamente será. o de tornar nosso interesse do pintor e a arte do romancista é, até onde posso
pelo romànce um pouco maior do que aquele que ' ver, completa. Sua inspiração é a mesma, sua téc-
A Arte da Ficção A Arte da Ficção 23

nica (a despeito da qualidade diferente dos meios) é garantimos, quaisquer que sejam) do que o his-
~---~,,,~~-0,'Çf"'*'""~

a mesma, elas podem explicar e sustentar uma à toriador, e ao fazê-lo está se privando de uma pince-
outra. Seu motivo é o mesmo, e a honra de uma é a lada do quarto em que está. Representar e ilustrar o
honra da outra. Os maometanos pensam que a pin- passado, as ações do homem, é a tarefa de qualquer
tura é uma coisa profana, mas já se vai muito tempo escritor, e a única diferença que posso ver é a favor
desde que os cristãos pensavam assim, e portanto é do romancista, se bem-sucedido, porque ele tem
mais estranho que na mente cristã traços (ainda bem mais dificuldade do que o historiador em cole-
que dissimulados) de suspeita contra uma arte irmã tar suas provas, que estão longe de ser puramente
subsistam até hoje. A única maneira eficaz de literárias. Parece-me que lhe dá um grande caráter
apagá-los é enfatizar a analogia a que acabei de me o fato de ele ter em comum tanto com o filósofo
referir - é insistir no fato de que, se a pintura é como com o pintor; essa dupla analogia é uma he-
realidade, o romance é histó!"ia. Es~eaúnicãães­ rança magnífica.
crl~fro~""gênenêa7êfüeTfie··r~a justiça) que se pode É por isso evidente que o sr . Besant está certo
dar do romance. Mas a história também se permite ao insistir no fato de que ficção é uma das belas
representar a vida; não se espera dela, não mais do artes, merecedora por sua vez de todas as honras e
que da pintura, que faça apologias. O tema da ficção ganhos que até agora têm sido reservados às bem-
está arquivado, como em documentos e registros, e sucedidas profissões de músico, pintor, poeta, arqui-
para que seja explorado é preciso falar dele com teto: É difícil insistir tanto numa verdade tão im-
segurança, com a tonalidade do historiador. Alguns portante, e o lugar que o sr. Besant reclama para o
romancistas de renome têm um costume de trabalho de romancista pode ser representado, um
entregar-se que deve com freqüência levar às pouco menos abstratamente, dizendo-se que ele
lágrimas pessoas que tomam sua ficção a séri9. pede que seja reputado não só ç:omo artístico, de
Recentemente me espantei, ao ler muitas páginas fato, mas também como muito artístico. É ótimo que
de Anthony Trollope, com sua falta de discrição ele tenha feito soar essa nota, porque o fato de tê-lo
quanto a isso. Numa digressão, num parêntese ou feito indica que havia uma necessidade disso, que
aposto, ele concede ao leitor que ele e esse amigo sua proposição pode ser para muitas pessoas uma
confiante estão apenas "simulando acreditar". novidade. Esfregam-se os olhos diante desse pensa-
Admite que os eventos q11e nagQU 1.lãQ.ª,e:gnteceFam mento; mas o resto do ensaio do sr. Besant confirma
~.~~~n~~;~~5ll1~:I??~e muda!" . ~l1~ lit~E2!i~ ª-º~<.>.do a revelação. Na verdade, suspeito que seja possível
como·~~··· ~eitor .. preferir. T~!I!1Ç~:!~~v~~..."lun. 9ffçi9 confirmá-la ainda mais, e que não estaria errado
--~~i~~ié?. me pa:ece., con~esso, um cri~e_!~!Et~:~J; éra quem dissesse que, além das pessoas a quem nunca
o que eitquena dízér.qua!ídcn'àlêi sobre a atitude ocorreu que um romance ·deve ser artístico, há
de '"tfõi"ügià, e isso me choca, por menor que seja, muitos outros que, se lhes fosse explicado esse
tant.ctem Trollope quanto teria chocado em· Gibbon princípio, ficariam cheios de uma indefinível des-
ou Macaulay. Implica que o romancista est.~.lllenos confiança. Achariam difícil explicar sua repugnân-
ocupado em proc"lirâr a verdade(quero dizer,_claro, cia, mas isso os deixaria fortemente em guarda.
a-'vel'dacle que ele assume, as premissas qu.e lhe "Arte", nas nossas comunidades protestantes, em
24 A Arte da Ficção 25

que tantas coisas mudaram tão estranhamente, bado foi encontrado, e de modo que ele não seja
imagina-se em certos círculos que tenha algum desviado desse prazer por alguma análise ou
efeito vagamente injurioso sobre aqueles que a "descrição". Mas todos concor2:.ar~!~-3~ll,.,~.f!:.'"!2:~~a
consideram, que dão certo peso a ela. ~!-!P~!:~~<l\!~ ...
J "artística" trãr1ã "1:1.ríJi:Rii:"~J?iÊ~ ~.eu entreteni-
ela se oponh:;c .. !!~.,i;!-!~nia. maneira misterios~ic~J."r níeiifü:MUffi'''i'.•ãs~oéi~~ia com a descrÍÇão,
~-
·õ;f;o._a
mõr&l1!fãqg:.:iq.Jl;l~er, à educaÇao.'Quanâo~ê~~r;r in- veria revelada na ausência de simpatia. Sua hosti-
êorp~rada nu~~ c·:Pi~t:;;:;_.·à · (escultura é outro as- lidade a um final feliz seria evidente, e em alguns
sunto!) sabe-se o que ela é: ela está lá diante de casos até faria qualquer conclusão ser impossível. A
você, na honestidade do rosa e do verde e uma mol- ·"conclusão" do romance é, para muitas pessoas,
dura dourada; você pode ver a parte pior dela de como a de um bom jantar, uma seqüência de sobre-
relance e ainda se manter protegido. Mas quando mesas e sorvetes, e o artista na ficção é visto como
ela se introduz na literatura se torna mais insidiosa uma espécie de um médico chato que proíbe praze-
- há o perigo de que ela o machuque antes de você J res supérfluos. É portanto verdadeiro que essa con-
!
conhecê-la. li~ra,!_ura deveriaser. ou inst~~iX.ª~~Q!! cepção do sr. Besant do romance como uma forma
divertida, e háem mu:ltâs'caoeÇâsffea'lmpres;ão de superior encontra uma indiferença não só negativa
.ciue e~sa~- iii:~~~~~~{§8.s~âftlsticas,·~~~-t~§~c~~r mas também positiva. Pouco importa à essência da
forma, não ç9p.trib~§~ em nenhum dos .dois se.!lh.:. obra de arte que supra finais felizes, personagens
·são
dos,. e ·IT1esJno.iÜt~~f~;e"e1ll ··~i?h.ô's. ·~~it~·f;ívo­ simpáticos e um tom objetivo, como se fosse uma
l~s p~;~ ~er eciifi'~~t~-s ~~~iFo.sérias para ser di- obra mecânica: a associação de idéias, embora in-
vertidas; e, além disso, são pretensiosas e congruentes, pod~ria ser demais para ela se uma
paradoxais e supérfluas. Isso, creio, representa a voz elóqüente às vezes não se erguesse para chamar
maneira como o pensamento latente de muitas atenção para o fato de que a ficção é um ramo da
pessoas que lêem romances como um exercício fugaz literatura a um tempo tão livre e sério quanto qual-
poderia explicar a si mesmo se fosse articulado. quer outro.
Elas argumentariam, claro, que um romance tem de Certamente é preciso às vezes duvidar disso
ser "bom", mas interpretariam este termo à sua ma- na presença do enorme número de obras de ficção
neira, o que certamente iria variar bastante entre que apelam à credulidade da nossa geração, porque
um crítico e outro. Alguém diria que ser bom :Pode facilmente parecer que não deve h__11_yer ne-
significa representar personagens virtuosos e {\!nhuma grande personagem numa mJ.~fÇ_lidorÍ~ tão
1
inspiradores, situados em posições proeminentes; ' rápida e facilmente produzida. Deve-se admitir que

outro diria que isso depende de um "final feliz", bons roma'[}Çe.EL .são .. bastante C()Jl1prometidos por
uma distribuição final dos prêmios, pensões, mari- :W.®ª~~~"9"U~•.Q••Ç!l!UP'LS9!!1:2.:1Jn1"!949.êQfr:E) ..dE)~c:rédit.o
dos, mulheres, bebês, milhões, parágrafos anexos e qu3:~""49.. J?~.Pp~JJ?JlV,;Qª'dQ.•• Acho, no entanto, que essa
observações divertidas. Outro, ainda, diria que ser Tri.jliria é apenas superficial, e que a superabundân-
bom significa ser repleto de incidentes e movimento, cia de ficção nada prova contra o princípio em si.
de modo que ele queira saltar adiante, para ver Ela foi vulgarizada, como todos os outros tipos de
quem era o misterioso estranho e se o objeto rou-
A Arte da Ficção A Arte da Ficção 27
26

literatura, como tudo o mais hoje em dia, e provou uma linha a ser seguida, um tom a ser obtido, uma
mais do que os outros tipos ser acessível à vulgari- forma a ser preenchida, é uma limitação dessa li-
zação. Mas há tanta diferença quanto sempre houve berdade e uma supressão justamente daquilo por
entre um bom romance e um mau: o mau romance é que estamos mais curiosos. !1,2!!P-~kJ~.~~S~~Ill~·'· .é
varrido com todas as telas borradas e mármores para sel"Jl.,R!'~.c:i~sl,ª.Uellc2tíl'""dQ.Jato: só então a escolha
danificados em direção a um limbo não visitado, ou áci" ãútor terá sido feita, seu padrão indicado; só
para o infinito depósito de lixo atrás das janelas do então podemos seguir linhas e direções e comparar
\hl mundo, e o bom romance subsiste e emite sua luz e tonalidades e semelhanças. E, em suma, podemos
~~estimula nosso desejo por perfeição. Se posso tomar desfrutar um dos prazeres mais charmosos,
a liberdade de fazer uma única crítica ao sr. Besant, podemos avaliar a qualidade, podemos aplicar o
cujo texto é tão repleto do amor por sua arte, devo teste da execução. A execução pertence apenas ao
fazê-la agora. Ele me parece equivocado ao tentar autor; é o que há de mais pessoal, e o medimos por
dizer tão definitivamente no que consiste um bom ela. A vantagei11do 1:1rtista,o seu. lux?,. ~s~i~.•Ç2~9
romance. Indicar o perigo que existe nesse erro foi o seu tonn~~~jL~ii\i~iiiil2iii~~JJiii~<Ie;,I~ 4~ mi~.l!bª'9·. . . ..
propósito destas poucas páginas, como o de sugerir h-·T.:"'~~~r nl .
a i1Ill1ms ~~#w'l.-S!U~.~e,*,,,'l~.t,"',~"1"" tentar cw;un.
.•".'"'l••l/401 •••'/!?;'~
que certas tradições nesse campo, aplicadas a pri- e'Xeeut~~ry~ ·não há limites para seus..J!.Q~Í'\!:~il'i
ori, já tenham assumido responsabilidades demais, ~J5êfiillfilt;;;,·.~i\~tç:~%::i~isÇl~if!~;;··~?~i~~~tas. É
e que A boa sa1:19&_clt:L UI!IJL..ê:!'}e que .tão ill1;ec:liata- ~sp~~t;;:G;ie~te neste ponto que ele trâbàlha, passo a
mente ~~_çlispõtLJU.~l?X9QJ.!~ir a ;:Ja ··e~~~·q~~. ~~~ª= passo, como o seu amigo do pincel, de quem sempre
arfe ·seja. perfeitamente. livrn,,, Eia ~Ive·d~ ~x~rcício, dizemos que pinta da melhor maneira que conhece.
··e·o·p~ópriÕ. se;;:tid~···d~·~;~~~fcio é a liberdade. A eu estilo é seu Jl.Ç~~§.ª~J~.Il1~P-~~.~.Il1
única obrigação que devemos imputar previamente e ar i:i;:i:y!3ja. Ele não poderia revelá-lo em termos
a um romance, sem cair 111:Laçusação de arbitrarie- genéri~~~ ~~·quisesse; estaria perdido se quisesse
dade, é a de que seja i~teress;mte. Essa responsa- ensiná-lo a outros. Digo isso com a devida lem-
bilidade geral é a única qiie vejo repousar sobre ele. brança de que insisti na similaridade do método do
As formas como ele é livre para tentar atingir esse artista que pinta um quadro e o que escreve um
resultado (de ser interessante) são surpreendente- romance. D pintor é capaz de ensinar os rudimentos
mente numerosas, e só podem sofrer com as restri- de seu ofício, e é possível, com o estudo das boas
ções e prescrições. São tão variadas quanto o tem- obras (havendo a aptidão), tanto aprender a pintar
como a escrever. No ent~nto, continua sendo ver-
\-""---~---

peramento do homem, e bem~sliceditlas··à meêfiâa


(ilie..rêvéieiíf füriafil~nte particular;· dffeieiiféda Cios dade, sem injúria ao rapprochement, que o artista
H§i2~~.Um romance, ~~ ~ua cie.fi~~·~º ~!~~~EL~"~ literário seria obrigado a dizer para seu discípulo,
. ~~~[ci~1ljt~t~'Cu~~~il!1~,§da,: isso, para mais do que o outro, "Ah, bem, faça como você pu-
começar, constitui seu valor, que é maior ou menor der!" É uma diferença de graduação, uma questão
de acordo com a intensidade da impressão. Mas não de delicadeza. Se existem ciências exatas, também
haverá intensidade alguma, e portanto valor algum, existem artes exatas, e a gramática da pintura é tão
se não houver liberdade para sentir e dizer. Traçar mais definida que isso faz diferença.
28 A Arte da Ficção A Arte da Ficção 29

Tenho de acrescentar, entretanto, que se o sr. até mesmo inspiradoras, mas não são exatas,
Besant diz no começo de seu ensaio que "as leis da embora elas possam ser, dependendo do caso - o
ficção podem ser estabelecidas e ensinadas com que é uma prova da liberdade de interpretação que
tanta precisão e exatidão quanto as leis da harmo- defendi. Pois o valor dessas diferentes observações
nia, perspectiva e proporção", ele amortece o que - tão belas e tão vagas - está todo no significado
poderia parecer uma extravagância ao aplicar sua que cada um der a elas. As personagens, a situação
observação a regras "gerais" e ao expressar a maio- que assustam alguém por sua realidade serão as
ria dessas regras de um modo do qual certamente que mais o tocarem e interessarem, mas a medida
seria incômodo discordar. Que o romancista deve da realidade é difícil de fixar. A realidade de Don
escrever a partir de sua experiência, que seus per- Quixote e do sr. Micawber é uma sombra muito deli-
sonagens "devem ser reais e tais que poderiam ser cada· é uma realidade tão colorida pela visão do
encontrados na vida real"; que "uma jovem criada autor' que, por mais vívida que seja, hesita-se em
numa calma aldeia campestre deve impedir descri- propô-la como um modelo: perguntas muito emba-
ções de uma vida luxuosa" e "um escritor cujos ami- raçosas poderiam ser feitas pelo discípulo. ~-~·e! .. ~
gos e experiência pessoal pertencem à classe média preciso dizer que você não vai escrever u1llhºII1 ·

~~i~Yffl!i~;~~!~~~
baixa deve introduzir cuidadosamente seus perso-
nagens na sociedade"; que se devem colocar as pró-
prias notas em um livro de citações; que as figuras
devem ter contornos claros; que fazê~los claros por c1a"d~"feir!"um'amiríade d~Jórffi.as.~.o máxUJ!!Ul~~.s.e
algum truque de linguagem ou de procedimento é ttâ~~ar;~~~·~:~tr~:·~Jzy!líEls.ci~~·1i'ür~~·<l~·.usçfío.têm
um mau método, e "descrevê-las longamente" é pior õ';J~~·dêíá, outras não; já dizer a prin.:cípio . .ÇQP'l-() o
ainda; que a Ficção Inglesa deve ter um "propósito 6~q~'f'"a~~·rus.er···~?#1i)?§fa.1• .~ .•. o,~t!().·:~ssunto. É
moral consciente"; que é "quase impossível estimar igilàlme~te .excelente e inconclusivo dizer que se
em excesso o valor do artesanatocuidadoso ~. is~0.. deve escrever a partir da experiência; para nosso
é, o. estilo"; que "o pontõ.ffi:;J.I;I;;;;~;t~~t~·é··~·hÍ~tÓ­ hipotético aspirante, tal declaração pode ter sabor
ríâ";'qu~ "a história é tudo": esses são princípios de zombaria. Que tipo de experiência é pretendida,
com a maioria dos quais é certamente impossível e onde ela começa e termina?~~-~E~!',Í,,.~.!?:.S1!L~~!l$~.~.•
não simpatizar. A observação sobre o escritor de limitada e nunca é completa; ela é um~ Íllle:ns,ª
classe média baixa e sobre ele saber seu lugar ·~~nsitma~~~:··i;.~.·~~Eª,§K~~:ª~~~~~füI~l~J~-~~~~~!1~. . . .
talvez seja um tanto cruel; mas, quanto às restan- d.a·m~I;""fi~~ seda suspensa no quarto ·de noss11.
tes, acho ·difícil discordar de qualquer uma. Ao cüüscíên~i~,:iÉ.~nii~~~Q~:~EiEi§:~~~~iti~~!~.~ê~~~f'.~'§: .
mesmo tempo, acho difícil aderir a elas, com exce- seü' 'te.~i<lo: É a própria atmosfera. dà írierite; ·rê .•
ção, talvez, da que fala sobre colocar notas próprias ·q~a~d~· a mente é imaginativa - muito mais
em um livro de citações. Elas pouco me parecem ter quando acontece de ela ser a mente de um gênio -
a qualidade que o sr. Besant atribui às regras do ela leva para si mesma qs mais tênues vestígios de
romancista - a "precisão e exatidão" das "leis de vida, ela convext~,,~~,.P!~Eria,~,CPJJ1~"~'~,?~f,~,~,2,,~;",~'~'
harmonia, perspectiva e proporção". São sugestivas, revelações. X'}6~e~ qu~ :foi criada D.a aldeia tem de
30 A Arte da Ficção A Arte da Ficção 31

ser apenas a donzela com a qual nada se perde a experiência consiste em impressões, pode-se dizer
quando se faz parecer injusto (como me parece) que que as impressões são experiência, já que (não é o
ela declare nada ter a dizer sobre os militares. Já se que vimos?) são o próprio ar que respiramos. Por-
viram milagres maiores que, com ajuda da imagina- tanto, se eu dissesse a um novato: "Escreva a partir
ção, o de alguém como ela falar a verdade sobre da experiência e só dela", sentiria que se trata de
alguns desses cavalheiros. Lembro-me de uma ro- uma advertência tantalizante se não acrescentasse
mancista inglesa, uma mulher de talento, dizendo- imediatamente: "Tente ser uma das pessoas com
me que estava muito satisfeita com a impressão que quem nada se perde!"
conseguiu dar em uma de suas histórias sobre a Longe de mim pretender com isso minimizar
natureza e modo de vida da juventude protestante a importância da exatidão - da verdade do detalhe.
francesa. Perguntaram-lhe onde aprendeu tanto Cada um fala melhor daquilo 9,.l!.l3 .J:>f()Y!1_13:ritão
sobre essas pessoas tão recônditas, deram-lhe pa- posso me arriscar a dizer que oU.~!~.~e realidad~)(a
rabéns por ter tido oportunidades tão peculiares. solidez da especificação) parece-me ser~a· suprema
L.-.- . ............................ ~··-··············~····························-······-·~-......... ............. .
Essas oportunidades consistiam no fato de ela ter virtuéfe do romance - o mérito do qual todos os ou-
uma vez em Paris, ao subir uma escada, passado' • trõs"·~·érit~~~(Ínclusive o propósito moral consciente,
por uma porta aberta onde, na casa de um pasteur, de que o sr. Besant fala) inevitável e submissa-
alguns jovens protestantes estavam sentados ao 1 mente dependem. Se ele não existe os outros não

redor de uma mesa, ao fim da refeição. O olhar de são quase nada, e se estes existem devem seu efeito
relance constituiu uma pintura; durou apenas um ao sucesso com ·que o autor ,produziu a ilusão de
instante, mas esse instante foi experiência. Ela teve vida. O cultivo desse sucesso, o estudo desse exce-
uma impressão pessoal direta, e extraiu seu modelo. · 1ente processo formam, para o meu gosto, Q começo
Sabia que juventude era aquela, e que protestan- e o fim da arte do romancista. i São sua inspiração,
tismo; também tinha a vantagem de ter visto o que seu desespero, sua recompensa, seu tormento, sua
era ser francês, de modo que ela converteu essas delícia. É aqui, na verdade mesma, que ele compete
idéias numa imagem concreta e produziu uma com a vida; é aqui que ele compete com seu irmão, o
realidade. Acima de tudo, no entanto, ela foi aben- pintor, na sua tentativa .de produzir a visão das
çoada com a faculdade de quem recebe uma mão e coisas, a visão que comunica o significado delas, de
obtém um braço, e que para o artista é uma fonte de captar a cor, o relevo, a expressão, a superfície, a
poder maior do que qualquer acidente como o lugar substância do espetáculo humano. É por isso que o
de residência ou a posição social. 01 poder de_l!Q!°~i: sr. Besant está bem-intencionado quando diz ao
nhar ~.~~o~vi,sÉo cI<>Y!i'ltC>,••c!e tra,çar i;tlippfü~iÇ,ª-QJill.§ autor para tomar notas. Talvez ele não possa tomar
~ê>J!~§L.~~j,!!!garJgdi:J,.ª p.eça :pelo.p11Jlr.:ã2~.~.ç9µd,ição muitas, talvez não possa tomar as suficientes. A
de. s~?tir a v!ga em ~er11l. tã? comp~etamente. g,ue
vôêê se sente disposto a conhecer cada caiít~ Cí~í~
es_~~~~:~c~iri~Ic) dê .. capa~Íd~d~~ p;dê·····q~~;;····;;r
= vida toda o solicita, e "produzir" a mais simples
superfície, conseguir a mais momentânea ilusão, é
um negócio muito complicado. Seu trabalho seria
c~~.1!1.ª~º.cle,.e,_~:p~:r,i~nc:ia, e ocorre nS: cidade ou no mais fácil, e a regra mais exata, se o sr. Besant ti-
c·ampo, e nos mais diversos estágios de educação. Se vesse sido capaz de lhe dizer que notas tomar. Mas
32 A Arte da Ficção , A Arte da Ficção 33

isto, receio, ele nunca poderá aprender em qualquer tenda traçar uma geografia dos itens marcará al-
manual; é o objetivo de sua vida, Ele tem de tomar gumas fronteiras tão artificiais quanto, acredito,
muitas notas a fim de selecionar umas poucas, tem qualquer uma das conhecidas pela história. Há uma
de retrabalhá-las como puder, e mesmo os guias e velha distinção entre o romance de personagem e o
filósofos que poderiam ter muito a lhe dizer devem romance de incidente que deve ter provocado muito
deixá-lo sozinho quando chega a hora de aplicar os sorriso nos fabulistas conscientes que gostam de seu
preceitos, como se deixa o pintor em comunhão com trabalho. Essa é uma distinção tão pouco significa-
sua paleta, Que seus personagens "devem ter tiva para mim quanto a igualmente celebrada dis-
contornos claros", como diz o sr, Besant - ele sabe tinção entre "novel"I e "romance"2 - pouco corres-
disso em seu âmago; mas como deve fazer isso é um ponde a realidade alguma. Há bons e maus ro-
segredo entre seu anjo da guarda e ele mesmo. •• iiuances, assim como boas e más pinturas; mas esta
Seria absurdamente simples se a ele fosse ensinado l:;;l!é a única distinção em que vejo algum sentido, pois
que uma grande quantidade de "descrição" os faria •Anão posso me ver falando em romance de persona-
assim, ou que, ao contrário, a ausência de descrição gem assim como não posso me ver falando em pin-
e o cultivo do diálogo, ou a ausência de diálogo e a tura de personagem. Quando alguém diz pintura
multiplicação dos "incidentes", o salvaguardariam diz pintura de personagem, quando diz romance diz
das dificuldades. ,Nada, .J?,S>!:. exemplo, é mais romance de incidente, e os termos podem ser troca-
, 1"do que ele ter
poss1ve -""-·~·- -···----~··=-~·---~~---··-··--
um tipo de mente nara·a. qual" dos à vontade. O que é um personagem senão a de-
~sâ· -ópô81Ção"·õ1zãrrã ·e· litê~;i.í . -~ii"trê=~~§f!J'1~o·~·-e terminação do incidente? O que é um incidente se-
dlálõgo;iricí~e~t,~"f:aescnÇão-fem pouco si iFi~;a.~·· não a ilustração do personagem? O que são uma
e hím:iJi?~i~;;i~~: . A~- ..P-ess~~; .. ge~-~I~~~t~ faiam pintura ou um romance que não sejam de persona-
dessas coisas como se elas tivessem uma espécie de gem? O que mais procuramos e encontramos neles?
distinção intrínseca, em vez de se misturarem umas É um incidente para uma mulher que ela esteja em
às outras a cada respiração e serem partes intima- pé, com a mão apoiada sobre uma mesa, e olhe você
mente associadas de um esforço de expressão geral. de um certo modo; e se não é um incidente acho que
~~n~!:.~.22..IQQQ§içªQ.ê.&ê..tll..do . g!!l uma será difícil dizer o que é. Ao mesmo tempo é a ex-
~~t~~~~~ic,~~il:~~8~~1t{~~~;~~f1JJU!Lll.~r..rº~ª-~ç~ pressão de um personagem. Se você disser que não

âi~--;;:ã~"-tê'iiha·i~t;~ç·ã~is-a~~-;~ti;;~~If~;~t~.<!~~º
vê isso (um personagem nisso - allons donc!), eis
e- cl"''(f "''""''""" ""•·•••N··•··~·--"~'0~c,"""'"'""'•"'''•"''•'·'•"•'·• ""'"·"""'"'"~--·~··?''""'='9,l~'"hc de
por que o artista que tem suas próprias razões para

;::, ·-~u:;;;~I~!izi;;;~=i:~~:J~!;r~~iªº~~-Í~~~!i!i~
•-'·"•·''"•" •.-/.•'•"'''"· .•.•..•........ ············•' "q . ""• "v--~-1'.l•.,,.,",Jl.i.ex:.e.sse.•.Q...e
achar que vê isso deve mostrar a você. Quando um
jovem conclui que não tem fé bastante para entrar
q~:1'11:~E.•~!l!!~!~!1~:_gl1~-~.f9Ete,ypif:&.~J~J~.n.§;ri~a .do na igreja como pretendia, isso é um incidente, ainda
s~~§,§!;UliiL~i!ia obrti de ap;e -::-:- a de serilus~ati~;·,. que você não vá se apressar em direção ao final do
.in romance ;r·uma êoi;~ -~i.;~, e. à·~-~ãid';:··que e1i-· 0

capítulo para ver se talvez ele não mude de idéia de


ive será visto, cre.io, que em cada uma de suas par-
es há alguma coisa das outras. O,crítico que, diante
1 O que em português •chamamos de romance. (N. do T.)
da textura fechada de um trabalho acabado, pren- 2 No vocabulário inglês, uma história de amor. (N. do T.)
34 A Arte da Ficção , A Arte da Ficção 35

novo. Não estou dizendo que esses sejam incidentes e nem tentaram destacar nele coisas menores, que
extraordinários ou surpreendentes. Não tenho a eu saiba, para esse fim. Não vejo nenhuma
pretensão de avaliar o grau de interesse pro- obrigação que o "romancer" t enh a que o "novel'st"
i
cedente deles, pois isso dependerá da habilidade do não tenha; o padrão de execução é igualmente alto
pintor. Soa pueril dizer que alguns incidentes são para os dois. ~ claro . qu~ e~~~!llR~ falando <l.e

*~~&t~:Ci~~~l~t~~~~t~!e,~~ir~~{~~··t~i;!~·~te~e~t
intrinsecamente muito mais importantes que
outros, e preciso tomar essa precaução depois de ter
professado minha simpatia pelos incidentes maiores ;;:~it~ isso de. ~ista, o· que só produz intermináveis
ao observar que a única classificação do romance confusões e mal-entendidos, :Q~y~~se. garantir. ao
que posso entender é a de ele ter vida ou não. artista~ seu ,""·_.--,-,u'':~'."
assunto
.. ;, -_',., . • . '"
sua~-cc~_,,,idéia,
,.,,~·'!"."
,._,::_•v; -,~~-
sua d~nnú:' ,_-~.;-
•. ,,, ",-.,,_ .•• , _, __ ,••. •oo·:c-;'
a crítica
o·.',' .. · , ,- •

"Novel" e "romance", o romance de incidente e ··aevê·'sê~"·aplic~cla. apenas.. ao .. g~.~. el.~ Ja.z ...disso.
o de personagem - essas separações grosseiras me N;türai~~~t~. não. ·êst~u . cii~êndo . 'que estamos
parecem ter sido feitas por críticos e leitores para inclinados. a gostar disso. ou achar aquilo interes-
su,a própria conveniência, e para ajudá-los em sante: se não estamos, ~ossa atitude deve ser sim-
algumas situações eventualmente problemáticas, ples___:_ abandoná-1~. Podemos acreditar que de uma
mas me parecem ter pouco interesse ou realidade determinada idéia, mesmo o mais sincero roman -
para o criador, de cujo ponto de vista estamos ten- cista nada fàrá, e o fato poderá justificar perfeita-
tando considerar a arte da ficção. O caso é o mesmo mente nossa crença; mas a falência terá sido uma
em outra categoria nebulosa que o sr. Besant apa- falência na execução, e é nela que a fraqueza fatal
rentemente está disposto a estabelecer - a do estará registrada. Sé pretendemos realmente res-
"romance inglês moderno"; a não ser, certamente, peitar o artista, devemos permitir sua liberdade de
que ele tenha caído numa acidental confusão de escolha, mesmo apesar, em certos casos, de inúme-
pontos de vista. Não está claro se ele pretende, com ras presunções de que a opção não dará frutos. A ,
as observações em que alude a essa categoria, ser arte deriva uma parte considerável de seu exeréício ·
didático ou histórico. É tão difícil imaginar uma benéfico de enfrentar as presunções, e algumas das
pessoa pretendendo escrever um inglês moderno experiências mais interessantes de que ela é capaz
quanto imaginá-la pretendendo escrever um ro- estão ocultas no seio das coisas comuns. Gustave
mance inglês antigo: este é um rótulo questionável.
Flaubert escreveu uma história sobre a devoção de
Escreve-se um romance, pinta-se um quadro, com a uma empregada a um papagaio, e o resultado, al-
linguagem de seu tempo, e chamá-la de inglês tamente acabado como é, nã:o pode ser, de todo,
moderno não tornará a tarefa mais fácil. Tampouco, chamado de um sucesso. Somos perfeitamente li-
infelizmente, chamando este ou aquele trabalho
vres para considerá-lo superficial, mas eu o acho
artístico de "romance" - a não ser, claro, que seja interessante; e estou extremamente feliz por ele tê-
pelo prazer de fazê-lo, como quando Hawthorne
lo escrito; é uma contribuição para o nosso conheci-
assim qualificou seu romance Blíthedale. Os
mento do que pode ser feito - ou do que não pode.
franceses, que deram à teoria da ficção uma notável
Ivan Turgueniev escreveu um conto sobre um servo
completude, têm apenas um nome para o romance,
surdo e mudo e um cachorro vira-lata, e o resultado
36 A Arte da Ficção A Arte da Ficção 37

é tocante, adorável, uma pequena obra-prima. Ele existem todas as variedades de gosto: quem saberá
fez soar a nota da vida onde Gustave Flaubert a qual o melhor? Algumas pessoas, por motivos exce-
deixou escapar - ele enfrentou uma presunção e a lentes, não gostam de ler sobre carpinteiros; outras,
venceu. por motivos melhores ainda, não gostam de ler so-
Nada, claro, vai em algum dia tomar o lugar bre cortesãs. Muitos fazem objeções a americanos.
da velha e boa moda do "gostar" de uma obra de Outros (acredito que sejam principalmente editores
arte ou não gostar dela: a crítica mais evoluída não e editoras) não olharão para italianos. Alguns
abolirá esse teste primitivo, final. Menciono isso leitores não gostam de assuntos tranqüilos; outros
para me proteger da actisação de sugerir que a não gostam dos inquietantes. Alguns gostam de
idéia, o assunto, de um romance ou pintura não uma completa ilusão, outros da consciência de
importa. Importa, a meu ver, no mais alto grau, e se grandes privilégios. Escolhem os romances de
pudesse pregar uma regra ela seria a de que os ar- acordo com isso, e se não se preocupam com seu
tistas devem selecionar apenas os assuntos mais assunto também não se preocuparão, a fortiori, com
ricos. Alguns, como já reconheci antecipadamente, seu tratamento".
são muito mais recompensadores que outros, e este Volta-se, assim, rapidamente, à questão do
seria um mundo mais feliz se as pessoas que pre- gostar, apesar do sr. Zola, que racionaliza menos
tendessem tratar deles estivessem isentas de confu- poderosamente do que representa, e que não se
sões e equívocos. Essa condição afortunada só che- reconciliará com esse absolutismo do gosto, achando
gará, receio, no mesmo dia em que os críticos se que há certas coisas de que as pessoas devem gostar
purgarem de erros. Entretanto, repito, não julga- e de que elas podem ser levadas a gostar. Sinto-me
mos o artista com justiça se não lhe dizemos, "Eu bastante perdido se tiver de imaginar qualquer
lhe legitimo o ponto de partida, porque se não o coisa (em qualquer sentido, quanto à ficção) de que
fizesse estaria prescrevendo regras a você, e Deus as pessoas deveriam gostar ou não. A seleção cer-
me livre dessa responsabilidade. Se tenho a preten- tamente tomará conta de si mesma, pois tem um
são ·ªf))h~ çljzer o que não fazer ;"êiitaõ. voêê me motivo constante por trás. Esse motivo é simples-
clíâm_a_rií.Rªrn.<:li:zE)rQqÜ(dàzêr; e n~~~e ~~~;·~~t~;;i mente a experiência. Como as pessoas sentem a
'êííc:C:-e~cad~. _Além diss~, é 136 depois quê.rêêeoa··suas vida, sentirão a arte que for mais intimamente rela-
infõfma.Ções que posso avaliá-lo. Tenho um modelo, cionada a ela. Essa intimidade de relação não pode
um registro; não tenho o direito de mexer na sua ser esquecida quando se fala no esforço do romance.
flauta e então criticar sua música. Claro que não Muitas pessoas falam da ficção como uma forma
devo me preocupar com sua idéia, de modo algum; artificial, facciosa, um produto da engenhosidade,
ela pode ser tola, antiquada ou obscura; nesse caso cuja função é alterar e arranjar as coisas que nos
lavo minhas mãos imediatamente. Devo contentar- cercam, traduzi-las em moldes convencionais,
me em acreditar que você não vá conseguir ser inte- tradicionais. Essa, no entanto, é uma visão que não
ressante, mas, claro, não devo tentar demonstrar nos leva· longe, que condena a arte a uma eterna
isso, e você será tão indiferente para comigo quanto repetição de uns poucos clichês familiares, encurta
·eu para com você. Não preciso lembrar você de que seu desenvolvimento e nos leva em direção a um
38 A Arte da Ficção , A Arte da Ficção 39

muro letal. Capturar o verdadeiro~ tom e truque o manência até a noite; Mantenha-se à direita". O
'\"'""=-==<:-"~"'"':'f"":'.-;?:;'rPJ"''-9,-,-,/;\+e::,7~,;,.,;;~'''''''•,
,•,•- --_.-.,, -.·.•'• c - / -••:''· . e,-_ ' '•'

ritmo estranho e irregular da vida, essa'é''a jovem aspirante na linhagem da ficção que conti-
-~~~~Y~~~-~E~I~~~Y!g:c;,;~_j!ijliit~~- ·a: Fic§ãü' eill--_i)é:~à nuamos a imaginar não fará nada sem experimen-
proporção que vemos vida no que ela nos oferece tar, pois nesse caso a liberdade seria de pouco uso
sem rearranjos, sentimos que estamos tocando a para ele; mas a primeira vantagem de sua experi-
verdade; à proporção que a vemos com rearranjos, ência é revelar a ele o absurdo das pequenas ins-
sentimos que estamos diante de um substituto, uma crições e bilhetes. Se ele tiver gosto, devo acrescen-
acomodação e convenção. Não é incomum ouvir uma tar, certamente terá engenhosidade, e minha
asserção convicta quando se trata dessa questão do recente referência desrespeitosa a essa qualidade
rearranjo, do qual freqüentemente se fala como se nã~ queria dizer que elà fosse inútil na ficção. Mas
fosse a última palavra em arte. O sr. Besant paréce- trata-se de um recurso apenas secundário; o pri-
me à beira de cair nesse grande erro com sua cofi- meiro é a capacidade para receber impressões
versa um tanto descuidada em torno da "seleção". A diretas.
arte é essencialmente seleção, mas é uma seleção O sr. Besant tem algumas observações sobre
cuja preocupação central é ser típica, ser inclusiva. a questão da "história" que não tentarei criticar,
Para muitos, arte significa janelas róseas, e seleção embora me pareçam ter uma singular ambigüidade,
significa pegar um buquê para a sra. Grundy. Eles porque acho que não as entendo. Não entendo o que
vão lhe dizer loquazmente que considerações artís- ele quer dizer quando fala como se uma parte do ro-
ticas nada têm a ver com o desagradável, com o feio; mance fosse a história e a outra, por místicas ra-
vão gritar lugares-comuns vazios sobre a província zões, não fosse - a não ser, de fato, que a distinção
da arte e os limites da arte até que você sinta certo seja feita no sentido de que é difícil supor que al-
maravilhamento, em compensação, quanto à pro- guém tente comunicar algo. "A história", se repre-
víncia e aos limites da ignorância. Parece-me que senta alguma coisa, representa o assunto, a idéia, a
jamais alguém conseguiu fazer uma tentativa seria- donnée do romance; e certamente não há nenhuma
mente artística sem se tornar consciente de um "escola" - o sr. Besant fala em uma escola - que
incrível aumento - uma espécie de revelação - da proclame que um romance deva ser todo tratamento
liberd~de. Percebe-se nesse caso - sob a luz de um e não assunto. Seguramente deve haver algo do que
raio solar - que a província da arte é toda vida, tratar; todas as escolas estão intimamente conscien-
toda sentimento, toda observação, toda visão. Como tes disso. Essa noção da história como sendo uma
sr. Besant tão justamente sugere, é toda experiên- idéia, o ponto de partida do romance, é a única coisa
cia. Ei'lsa é uma resposta suficiente para os que sus- que entendo que se possa falar como álgo diferente
tentam que ela não deva tocar as partes mais tristes de seu todo orgânico; e, já que o trabalho é bem-
da vida, os que enfiam em seu peito divinamente in- sucedido à medida que a idéia o permeia e penetra,
consciente pequenas inscrições proibitórias na o informa e anima, cada palavra e cada pontuação
ponta de estacas, como se vê em jardins públicos - contribuem diretamente com a expressão, e da
"É proibido pisar a grama; É proibido tocar nas mesma forma perdemos nosso sentido da história
flores; Não é permitida a entrada de cães e a per- como uma espada que pode ser mais ou menos ti-
40 A Arte da Ficção A Arte da Ficção 41

de sua bainha. A história e o romance, a idéia certamente nenhum do~a que pretenda legitimar

~~~~~~~~i~!~:~~~~;~~k!~~~~~f;.
e a forma, são a agulha e o fio, e nunca ouvi falar de
alfaiates que recomendem o uso do fio sem a agu-
lha, ou da agulha sem o fio. O sr. Besant não é o 1icâ. eJ!!J?_é ou ~ai, à medida que parece ser ver-
único crítico a ter falado como se houvesse coisas na ctãdêr;ã·~{ig,'~ãõ.h'õ-;~. Besant, a meu ver, não ilu-
vida que constituem histórias e outras que não. mina o assunto ao sugerir que uma história deva,
Encontro a mesma conclusão esquisita num interes- sob a pena de não ser uma história, consistir em
sante artigo na "Pall Mall Gazette", dedicado, como "aventuras". Por que aventuras e não um par de
sói, à palestra do sr. Besant. "A história é o óculos verde? Ele menciona uma categoria de coi-
essencial!", diz o gracioso escritor, como num tom de sas impossíveis, e entre elas põe "ficção sem aven-
oposição a alguma outra idéia. Eu deveria pensar tura". Por que sem aventura, e não sem casamento,
que é isso mesmo, assim como o pintor, na hora em sem celibato, sem parto, sem cólera, sem hidropatia,
que se prepara para "mergulhar" em sua pintura, sem jansenismo? Isso me parece trazer o romance
olha para o infinito, em busca de algum assunto - de volta para o rôle pequeno e infeliz de ser uma
com o que qualquer artista ainda indeciso sobre seu coisa artificial, engenhosa - tirá-lo de sua natureza
tema certamente concordará. Há assuntos que fa- e livre e imensa que é ser uma ampla e notável

lam a nós e outros que não, mas seria um homem correspondência com a vida. E o que é aventura, por
mais esperto aquele que se submetesse a estipular falar nisso, e por que sinal deve o aluno-ouvinte
uma regra - um index expurgatorius - pelo qual reconhecê-la? É uma aventura - uma enorme
se distinga a história da não-história. É imµossível aventura - para mim escrever este pequeno artigo;
(ao menos para mim) imaginar uma tal regra que e para uma ninfa bostoniana rejeitar um duque
não seja arbitrária. O escritor na "Pall Mall" opõe o inglês é uma aventura menos excitante apenas,
delicioso (como suponho) romance Margot la Bala- devo dizer, do que para um duque inglês ser
frée a certos contos em que "ninfas bostonianas" rejeitado por uma ninfa bostoniana. Vejo dramas
parecem ter "rejeitado duques ingleses por razões dentro de dramas, e inumeráveis pontos de vista.
psicológicas". Não estou familiarizado com o ro- Uma razão psicológica é, para minha imaginação,
mance mencionado, e mal posso perdoar o crítico da um objeto adoravelmente pictórico; captar as tintas
"Pall Mall" por não ter citado o nome do autor, mas de sua complexidade - sinto que essa idéia pode
o título parece se referir a uma dama que teria ga- inspirar alguém a esforços ticiânicos. Há~,R~ll~~.coi­
nhado uma cicatriz numa aventura heróica. Nã9 sas mais estimulantes para mim, em s~ma, do que
posso me consolar por não c.onhecer o episódio, mas
me sinto terrivelmente perdido ao tentar explicar ~~?Jio~~~;.~~~i~i:~i;;~.
;rte~T;rrêc~~t;~~~t;;";:~-mesmo tempo, a deliciosa
por que ele é uma história quando a rejeição (ou
aceitação) de um duque não é, e por que uma razão, "IílstÓ~ia de A Ilha do Tesouro, do sr. Robert Louis
psicológica ou de outro tipo, não é um assunto Stevenson, e, de maneira menos conseqüente, o
quando uma cicatriz o é. Todos eles são partes de último relato do sr. Edmond de Goncourt, que se
uma vida múltipla com a qual o romance lida, e chama Chérie. Um desses trabalhos trata de
42 A Arte da Ficção A Arte da Ficção 43

assassinatos, mistérios, ilhas de reputação as- ele não tenha desenvolvido a idéia. Esse ramo do
sombrosa, fugas assustadoras, coincidências mira- assunto é de imensa importância, e as poucas pala-
culosas e dobrões enterrados. O outro trata de uma vras do sr. Besant apontam para considerações do
pequena garota francesa que vivia numa agradável maior alcance, que devem ser levadas a sério. Terá
casa em Paris e morreu com a sensibilidade ferida tratado com superficialidade a arte da ficção quem
porque ninguém quis se casar com ela. Chamei A não estiver preparado para avançar um pouco qu~
Ilha do Tesouro de delicioso, porque me parece ter seja na direção a que o levam essas considerações. E
se sucedido maravilhosamente bem em sua inten- por esse motivo que no início destas observações
ção; e ouso não conferir nenhum epíteto a Chérie, tive o cuidado de avisar ao leitor que minhas refle-
que me parece ter falhado deploravelmente em sua xões sobre um assunto tão vasto não tinham pre-
intenção - ou seja, traçar o desenvolvimento da tensão de esgotá-lo. Como o sr. Besant, deixei a
consciência moral de uma criança. Mas cada um questão da moralidade do romance para o final, e no
deles me surpreende como romance tanto quanto o final vi que meu espaço se acabava. É uma questão
outro, e por ter a mesma quantidade de ''história". A cercada de dificuldades, como pode testemunhar
consciência moral de uma criança é tão parte da quem nos encontra, sob a forma de uma pergunta
vida quanto as ilhas espanholas, e um tipo de geo- definitiva, dentro das trincheiras. Vagueza, em tal
grafia me parece conter tantas daquelas "surpresas" discussão, é fatal, e qual é o sentido da sua morali-
de que o sr. Besant fala quanto o outro. Para mim dade e do seu propósito moral consciente? Você não
(já que sempre se ter:rpina, como dito, na d.efinirá seus termos e explicará como (um romance
preferência individual), a imagem da experiência da sendo uma pintura) uma pintura pode ser moral ou
criança tem a vantagem de que posso, em passos imoral? Você deseja pintar um quadro moral ou
sucessivos (uma volúpia imensa, próxima ao "prazer esculpir uma estátua moral: não quer nos dizer
sensual" do qual a crítica na "Pall Mall" fala), dizer como fará isso? Estamos discutind? a Ar!e~A.~ :F'ic-
Sim ou Não, como quer que seja, diante do que o çªo: questões. ~:tíSi;iêás-·s~~=~~~fü~~ ~gntido
··cµ9 . .
artista dispõe diante de mim. Fui uma criança na i!iii~§4Cinrnl21.,g.~.~!isi!~~~;.f!i~i2~~. ~2r§ll~. ~~2 21:!t~º
realidade, mas só procurei por um tesouro ass~~to,e .você. não n.2~.•. c!~i~.ê:J.:ª'····,Y~.t.~$Ql!liL P9. e
escondido na suposição, e foi apenas um acidente achar tão íácif'mistti;~-fas? Essas coisas são tão
que com o sr. de Goncourt eu tenha precisado dizer o
~~l~ras para sr.B~~;;tqu~ ele deduziu delas uma
Não na maior parte do tempo. Com George Eliot, lei que vê encarnada na Ficção Inglesa, e que é
quando ela pintou aquele campo com uma "uma coisa realmente admirável e um grande mo-
inteligência bem distinta, eu sempre disse Sim. tivo de congratulação". É realmente um grande
A parte mais interessante da palestra do sr. motivo de congratulação quando problemas tão es-
Besant é infelizmente a passagem mais curta - sua pinhosos se tornam tão macios quanto seda. Devo
alusão bastante breve ao "propósito moral consci- acrescentar que, enquanto o sr. Besant acha que a
e!lt~." do romance. Aqui novaii:nmte nãó está claro sei Ficção Inglesa se dirigiu preponderantemente para
'~ie está registrando um fato ou estabelecendo um. essas questões delicadas, parecerá a muita gente ter
princípio; é uma grande pena que, no último caso, feito apenas uma vã descoberta. Essas pessoas fica-
44 A Arte da Ficção , A Arte da Ficção 45

rão positivamente surpresas, ao contrário, com a do criador. À medida que essa inteligência é
tímida moral do romancista inglês médio; com a refinada, o romance, a pintura e a escultura parti-
aversão dele (ou dela) a enfrentar as dificuldades cipam da substância de beleza e verdade. Ser cons-
que por todos os lados o lidar com a realidade sus- tituído de tais elementos é, a meu ver, ter propósito
cita. Ele é apto a ser extremamente tímido (ao passo bastante. Nenhum bom romance jamais virá de
que a imagem que o sr. Besant faz é uma de cora- uma mente superficial; esse me parece um axioma
gem) e o signo de seu trabalho, na maior parte, é que, para o artista da ficção, cobrirá todo o terreno
um silêncio prudente sobre certos assuntos. No ro- moral necessário: se o jovem aspirante o assumir
mance inglês (no que também incluo o americano com paixão ele lhe iluminará muitos dos mistérios
claro), mais do que em qualquer outro, há uma di~ do "propósito". Há muitas outras coisas úteis que
ferença tradicional entre o que as pessoas sabem e o podem ser ditas para ele, mas cheguei ao fim do
que elas concordam em admitir que sabem, entre o meu artigo e só posso tocar nelas de passagem. O
que vêem e o de que falam, entre o que sentem ser crítico na "Pall Mall Gazette", que já citei, chama
parte da vida e o que permitem entrar na litera- atenção para o perigo, ao falar na arte da ficção, de
tura. ~~,l!Jl1J:tZJ:ª:p,9-,iL'ª!ferença, em resumo, entre o generalizar. O perigo que ele tem em mente é antes,
que elas.aba~~~.~~ .co~y~rsàs' (?.·~~~:~li~::~;;:~: creio, o de particularizar, pois há algrtinas ob-
~~J>l)'!..~~srit2:.~ ~~~.~11cia d~ ene:rgil:l ~ornté pe~­ servações abrangentes que, além das presentes à
quisar y caI11Pº .to~o.,. e ·devo rev~~.t~I" .~: 9!:>1?~ry;ção sugestiva palestra do sr. Besant, sem o temor de
qo sr. Besant. e.dize:c.não que li!.}3)sçãoJJ}glt:)§ª.i~.m desvirtuar suas idéias podem ser endereçadas ao
l!m prop?sit9, m1:1.s.qµe tem um aca11l:iflmento. Em estudante engenhoso. Devo lembrá-lo primeiro da
que medida um propósito numa obra de arte é uma magnificência da forma que se abre diante dele, que
fonte de corrupção não tentarei saber; o que me oferece à vista tão poucas restrições e tão nume-
parece menos perigoso é o propósito de fazer uma rosas oportunidades. As outras artes, em compara-
obra perfeita. Quanto ao nosso romance, devo dizer ção, parecem confinadas e embaraçosas; as variadas
enfim que o que nesse sentido encontramos na In- condições sob as quais são exercidas são rígidas e
glaterra hoje me surpreende por se dirigir em larga definidas. Mas a única condição que posso pensar
escala aos 'jovens", e que isso, por si, faz presumir associada à composição do romance é, como já disse,
que ela seja um tanto tímida. Isso é certo, mas a a de que seja sincera. Essa liberdade é um privilégio
ausência de discussão não é um sintoma de paixão esplêndido, e a primeira lição do romancista é estar
moral. O propósito do romance inglês - "uma coisa à altura dela. "Aproveite-a como ela merece", eu lhe
realmente admirável e um grande motivo de con- diria; "tome posse dela, explore-a até a última con-
gratulação" - me surpreende, portanto, de modo seqüência, publique-a, regozije-se nela. Toda vida
bastante negativo. lhe pert~;rtc:e, e não dê ouvidos nem pará''os'que·Õ
Há um ponto em que o sentido moral e o sen- queren;fechá-lo num canto dela e lhe dizem que a
tido artístico se aproximam muito; e isso sob a luz arte reside apenas aqui ou ali, nem para os que
bastante óbvia de que a qualidade mais profunda de alegam que esse mensageiro dos céus faz seu cami-
uma obra de arte sempre será a qualidade da mente nho por fora da vida, respirando um ar super-rare-
46 A Arte da Ficção

feito, e virando o rosto para a verdade das coisas."


Não há impressão da vicfo,ne.nbnmJL!!!@~ira de vê-
la ou senti:l~~·; ~~~:º P!QJ~~? do. rom~ll~~it~- não
Jlossa dar ~ligar;. você tem apenas dê lembrar~que
táíe:ó.to~ tão. d~ssemelhantes como os de Alexandre Crítica
Dumas e Jane Austen, Charles Dickens e Gustave
Flaubert atuaram nesse campo com igual glória.
Não pense tanto em otimismo ou pessimismo; expe- Se se pode dizer que ~.crítica literári.~floresce
rimente e capture o colorido próprio da vida. Na entre nós agora, certamente ~Ia floresce em grande
França hoje vemos um esforço prodigioso (o de escala, pois flui pela imprensa como um rio que
Emile Zola, a cujo trabalho sólido e sério nenhum rompeu os diques. Sua quantidade é prodigiosa; e é
explorador da capacidade do romance pode aludir
U,ma mercadori.a q~~' Pº!~E"1-ªl?E~qY~.~~j1113:A~1!:';~<l,;!'t
sem respeito), vemos um extraordinário esforço ~8till1~d.â, .· .~· . s~primellto por ·.. ~~r_to .jll!J!lliê ...s.~rá
viciado pelo espírito do pessimismo em uma base 'illsufi~iénte. ·· 6 ql.l.ê.. iriá.18 ésp-®ta o observador,
estreita. O sr. Zola é magnífico, mas ele espanta um soõrefUCI~, em tal afluência, é a inesperada propor-
leitor inglês com sua ignorância; ele tem um ar de ção que o discurso leva para os objetos sobre os
quem trabalha no escuro; se tivesse tanta luz quais discorre - a paucidade de exemplos, de ilus-
quanto energia, seus resultados seriam da mais alta trações e produções, e o dilúvio de doutrina sus-
valia. Quanto às aberrações de um otimismo raso, o penso no vácuo; a profusão da conversa e a contra-
campo (da fição inglesa especialmente) está coberto ção do experimento, do que se poderia chamar de
de frágeis partículas assim como de vidros quebra- conduta literária. Isso, de fato, deixa de ser uma
dos. Se você quer se perder em conclusões, deixe-as anomalia assim que olhamos para as condições do
ter o sabor do amplo conhecimento. Lembre-se que jornalismo contemporâneo. Então vemos que essas
seu primeiro dever é ser tão completo quanto possí- condições engendraram a prática da "resenha" -
vel - fazer a obra perfeita. Seja generoso e delicado uma prática que no geral nada tem a ver com a arte
e persiga o prêmio."
da crítica. A i_gipre11~~-~-YJ!1ª.Yl:!êt,11 ~ºEl'l ::tl:>~!t~ q1:1e
t~m de ser periodi~amente a!i.111entada -:-.•~~-y_ãsp
de-enórni·e_ éap11§í~@iq1!~.t~TI?:. gg..~~l'..!l!:\:l.§Uiliido. E
c-;;mo-i:i.TI1·t;eID:regular que sai numa hora marcada,
mas que só pode sair se todos os lugares estiverem
ocupados. Os lugares são muitos, o trem é conside-
ravelmente longo, e daí a fabricação de bonecos
para as estações em que não há passageiros sufici-
entes. Um manequim é colocado no assento vazio,
onde passa por uma figura real até o final da jor-
nada. Parece-se bastante com um passageiro, e você
só percebe que ele não o é quando nota que não fala

Você também pode gostar