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Ficha Técnica

Título: A Música das Abelhas


Título original: The Music of Bees
Autor: Eileen Garvin
Tradução: Ana Lourenço
Revisão: Carlos Monteiro
capa: Maria Manuel Lacerda/Leya
ISBN: 9789896614058

CASA DAS LETRAS


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Índice
Capa
Ficha Técnica
1 - Voo de Orientação
2 - Doze Rainhas
3 - Procura de alimento
4 - Abelha Jovem
5 - Disseminar a Feromona
6 - Localização da colmeia
7 - Trapalhonas
8 - Espaço-Abelha
9 - Obreiras
10 - Manutenção da colmeia
11 - Batedoras
12 - Perturbação
13 - Som Harmónico
14 - Vida dos Zângãos
15 - Direito da Rainha
16 - Colapso da colónia
17 - Abelha Glória
18 - Congregação
19 - Na Colmeia
20 - Dança das Abelhas
21 - Substituição da Rainha
22 - Alerta de enxameação
23 - Vigilantes
24 - Desdobramento de colmeias
25 - Roubos
26 - Dia das Abelhas
Agradecimentos
EILEEN GARVIN
A MÚSICA
DAS
ABELHAS
Tradução
Ana Lourenço
Para todas as criaturas selvagens
e todos os que as amam
1
VOO DE ORIENTAÇÃO
Aqueles que supõem que a nova colónia consiste apenas em abelhas
jovens, forçadas a emigrar pelas mais velhas, se examinarem de perto
um novo enxame, descobrirão que enquanto algumas têm as asas
irregulares da velhice outras são tão jovens que mal conseguem voar.
A PRACTICAL TREATISE ON THE HIVE AND HONEY-BEE
L. L. LANGSTROTH, 1878

Jacob Stevenson tinha o moicano mais alto da história da Escola Secundária


de Hood River Valley. Mesmo antes de ser um recorde oficial no anuário, ele
tinha a certeza disso. Na sua fotografia do último ano, era uma obra-prima
preto-azulada que atingia uma altura de 41,91 cm. Bem, quase. Era mais
41,49 cm. Mas suficientemente perto para silenciar qualquer reclamação.
Jacob dedicara seis meses ao crescimento da massa espetada, que esculpira
em quatro secções, e ela atingira a altura ideal antes dos exames da primavera
do ano anterior.
Naquela manhã, ele examinou a obra-prima do seu cabelo no espelho e
sentiu uma certa satisfação por ter conseguido mantê-lo por mais de um ano,
apesar de desafios imprevistos. A verdade inegável de um moicano é que a
pessoa lutava sempre contra a gravidade e, a certa altura, perdia. Tinha de se
ser realista. A ideia era alcançar o volume máximo que aguentasse um dia
inteiro. Um moicano caído seria uma vergonha, especialmente para um rapaz
de dezoito anos. Jacob experimentara vários produtos para o manter na
vertical: clara de ovo, cera para o bigode, laca e até uma cola da
marcenaria… um episódio infeliz. Todas essas experiências revelaram que
uma mistura de cera extrafirme e laca de nível profissional era a melhor
escolha para sustentar aquela conquista de 41,91 cm.
Noah Katz fizera a medição oficial na noite do concerto da banda de jazz
na primavera. Ambos vestiam os tradicionais smokings pretos que os
membros da banda de jazz da Escola Secundária de Hood River Valley
tinham usado nos últimos vinte anos. Jacob achara então que o seu cabelo
contrastava bem com a faixa e o lacinho azuis-claros. Posou com o seu
trompete, enquanto Noah tirava uma fotografia, a rir, o telemóvel a parecer
minúsculo na sua patorra. As suas bochechas tremeram enquanto ele ria.
– Altamente, Stevenson!
Katz era um tipo corpulento bem-humorado. Tinham-se tornado amigos na
Escola Primária de May Street, na banda do quinto ano – Jacob no trompete e
Noah no trombone. Noah não tinha um moicano. O seu cabelo era demasiado
encaracolado, e ele chamava-lhe «A Situação». Ao contrário de Jacob, não
precisava de nenhum produto para fazer o cabelo resistir à gravidade.
Deixava os caracóis crescerem para cima e para fora, principalmente para
irritar a mãe.
– Cuidado, meninas! – gritou ele, puxando os caracóis com a mão para se
parecer com um dente-de-leão humano. Tirou uma selfie. Em seguida,
entraram na pickup de Noah e atravessaram a cidade até à escola. Tinham
chegado atrasados, como de costume, e o Sr. Schaffer ficara furioso, mas o
professor da banda parecia estar sempre à procura de um motivo para gritar
com os dois rapazes, portanto, não foi nada de especial.
Recordar aquela noite fez Jacob sorrir. Virou a cabeça da direita para a
esquerda. De cada lado do moicano via pedaços de cabelo a despontar no
crânio rapado. Abriu a torneira e humedeceu um pano turco na água morna
para molhar a cabeça. Premiu a parte de cima da embalagem, depositando
uma bola de creme de barbear na palma da mão e aplicou-a no crânio. A
espuma branca e cítrica cheirava a hospital e fê-lo sentir-se um pouco
enjoado. Respirou pela boca e pegou na navalha.
Um moicano requeria disciplina. Ele tinha de lavar ou pelo menos molhar o
cabelo, depois penteá-lo, aplicar-lhe cera, dividi-lo em madeixas e secá-lo
com um secador potente antes de aplicar laca e, em seguida, rapar a cabeça.
O processo fazia-o transpirar em dias quentes como aquele. Era um grande
investimento de tempo, na verdade. Mas tudo bem. Atualmente tempo era
coisa que não lhe faltava. Duas horas passadas a pentear-se não eram um
problema.
A realidade disso atingiu-o como um soco na garganta, como sempre
acontecia quando se sentava diante do espelho da casa de banho pela manhã.
Os pequenos cabelos escuros no seu couro cabeludo espreitavam da espuma
branca, erguendo-se em sentido sem vacilar, ao passo que Jacob Stevenson –
ou Jake, como todos menos os pais lhe chamavam – não. Jake engoliu em
seco. Parecia tão estúpido – o próprio moicano e o recorde do moicano, tendo
em conta que, além de ter o moicano mais alto da história da Escola
Secundária de Hood River Valley, provavelmente era também o único rapaz
que tivera um naquela povoação rural, que era pobre em punks e grande em
rodeos. Também era estúpido porque já não frequentava a escola, tendo
concluído o secundário na primavera anterior. Mas, principalmente, parecia
estúpido porque era tudo o que ele tinha para fazer num determinado dia,
pentear a porra do cabelo, agora que as idas ao médico tinham diminuído e a
fisioterapia era apenas uma vez por mês e ele dispunha de todo o tempo do
mundo para enfrentar o resto da sua vida numa cadeira de rodas.
Jake afastou-se do espelho e olhou para o seu corpo – magro e musculoso
no torso e braços. As pernas não pareciam muito diferentes de antes. Mas às
vezes ele quase sentia que pertenciam a outra pessoa.
A cadeira de rodas era a razão pela qual ele «mais ou menos» concluíra o
secundário. O conselho diretivo enviara o seu diploma para a casa dos pais,
enquanto Jake estava no hospital a noventa e seis quilómetros dali, em
Portland. Todos os professores o tinham passado, embora tivesse sido
necessária uma forcinha em algumas disciplinas, como educação física, já
que ele tinha o hábito de faltar e ir a casa de Noah após o segundo tempo para
ficar com a moca antes do almoço. Não entrara no ginásio desde antes das
férias de Natal. Mas nem o Sr. McKenna era suficientemente cruel para
reprovar a educação física um aluno que iria passar o resto da vida
paraplégico. Ironia, iô!
A mãe de Jake dissera-lhe que iria terminar o secundário quando ele ainda
estava dopado durante os primeiros dias no hospital. Encontrava-se sentada
ao lado da cama, os olhos inchados por trás dos óculos de armação cor-de-
rosa. Tentava não chorar diante dele, embora mal saísse da cadeira ao lado da
cama. Passava ali horas, a segurar-lhe a mão e a murmurar que Deus estava a
olhar por ele. Enumerara a lista de pessoas que tinham ligado e mandado e-
mails com os seus desejos de melhoras – professores, vizinhos, o carteiro,
pessoas da igreja. Pessoas das quais ele nunca tinha ouvido falar, mas não o
disse porque teria ferido os sentimentos da mãe. Ela animou-se quando
chegou à parte sobre a cerimónia de formatura, que, naquele momento, ainda
estava a semanas de distância.
– Estamos tão orgulhosos de ti, querido – disse ela. – O teu nome estará no
programa. Pediram ao Noah para receber o diploma em teu nome, já que não
vais poder…
A sua voz vacilou e ela parou.
Jake estremeceu, o seu sorriso uma careta.
– Já que não vou poder andar, queres tu dizer?
O riso dele saiu em latidos curtos e a seguir não conseguiu parar. Culpou as
drogas, mas havia mais naquilo. Riu e riu da palavra «andar», que tinha
assumido um significado tão diferente agora que ele perdera o uso das pernas,
as suas pernas jovens e fortes de rapaz, pernas que tinham andado de skate e
corrido e escalado, pernas que tomara como certas todos os dias da sua
estúpida vida até ao dia em que deixou de poder usá-las. Não conseguia parar
de rir, mesmo quando a mãe cobriu o rosto com as mãos e chorou. Ele era um
idiota, pensou, sentado diante do espelho. Rolou para a frente e olhou para si
mesmo, percebendo que estava mais magro do que na primavera anterior.
Rira-se porque a palavra «andar» o fizera pensar no pai, Ed Stevenson, e no
seu rosto carnudo e zangado.
– O mínimo que podes fazer é mexer esse cu preguiçoso e andar até ao
palco para receberes o diploma – dissera Ed. – Quando fizeres dezoito anos,
damos-te uma faca e um garfo e vais à tua vidinha.
Isso fora nas férias do Natal do seu último ano, quando Jake percebera que
as suas notas não importavam, agora que tinha perdido a bolsa de estudos
para a escola de música, e parecia que podia realmente reprovar.
– Não te preocupes comigo, Ed – respondera Jake.
Começara a tratar o pai pelo primeiro nome quando entrara no secundário,
sabendo que isso o irritava.
– Vou sair daqui tão depressa que nem vais ver-me partir.
Jake decidira mudar-se para Portland depois de o sonho da escola de
música se tornar uma impossibilidade no ano anterior. Calculou que podia
trabalhar numa loja de instrumentos musicais ou num café perto dos clubes
da zona leste. Não pensara nos pormenores, mas seria assim tão difícil
arranjar emprego numa cidade grande?
No entanto, desde que Jake magoara a medula espinal, o seu cu preguiçoso
estava firmemente plantado na casa dos pais. Não iria a lado nenhum tão
cedo, e não havia nada que Ed ou qualquer outra pessoa pudesse fazer a
respeito disso.
Rapou o lado direito da cabeça, enxugou-o com a toalha e começou no lado
esquerdo, arrastando a navalha ao longo da curva do crânio. O som era meio
emocionante, meio nauseante.
O pai fazia parte de uma equipa de seis homens na empresa Klare
Construction. Isso significava que trabalhava longas horas em dias de semana
como aquele, e essas horas, mesmo quando se estendiam vazias, eram um
alívio para Jake. Os fins de semana eram mais difíceis, quando Ed se
instalava em frente à televisão com várias latas de cerveja Pabst Blue Ribbon
e um saco de amendoins. Jake ficava no quarto, a ouvir música ou a navegar
na Internet. Os seus auriculares abafavam o som da tosse do pai, o ping de
cascas de amendoim na tigela, o ruído dos adeptos aos gritos, que soava
sempre igual em qualquer desporto.
Jake olhou para o lavatório e para o espelho rebaixados, a cadeira no duche,
para as barras de apoio, e a porta alargada. Sendo um carpinteiro experiente,
o pai podia facilmente ter feito aquelas remodelações em alguns dias para se
preparar para o regresso do único filho do centro de reabilitação, para onde
Jake fora depois do hospital. Mas Ed não levantara um dedo. O grupo da
igreja da mãe tinha feito aquilo, todos ansiosos por ajudar Tansy Stevenson,
assistente administrativa do pastor, durante aquele momento difícil com o
filho. Fizeram uma coleta para pagar as obras e organizaram uma equipa de
voluntários antes de Jake voltar para casa.
A mãe contara-lhe isso quando fora visitá-lo. Sentava-se ao lado da
marquesa com um vestido florido e sapatos confortáveis, indumentária
geralmente reservada para a igreja ou dias festivos. Ele percebeu que ela não
quisera dar muita importância às obras para poupar o seu orgulho. Mas sabia
que Tansy Stevenson via como um sinal do amor de Deus o facto de todas
aquelas pessoas a terem vindo ajudar com o seu filho. Jake jazia na marquesa
e o fisioterapeuta mostrou à mãe os exercícios que ela tinha de ajudá-lo a
fazer para prevenir contraturas – encurtamentos permanentes dos músculos
que o tornariam uma aberração ainda maior. Ele observou o seu pé a
aproximar-se e afastar-se do seu rosto nas mãos do fisioterapeuta. Não
perguntou se Ed tinha ficado sentado em frente à televisão a mamar cervejas
enquanto os membros da congregação remodelavam a casa de banho. Não
precisou de perguntar porque sabia que Ed não teria a decência de sair de
casa enquanto eles estavam a fazer o trabalho que ele devia ter feito. Isso
também havia sido com certeza difícil para a mãe. De qualquer forma, ele
estava grato por poder usar a maldita casa de banho sozinho.
Jake abriu a janela e ouviu o barulho de um carro a passar, o rádio a tocar
em altos berros «I Will Wait» dos Mumford & Sons. Aquela música. Sentiu
um nó no estômago. Rodou a cadeira e pegou na laca. Examinou o peito nu e
os ombros no espelho, flexionou os bíceps e esboçou um sorriso sombrio. A
parte superior do seu corpo estava mais forte do que nunca, pois ele começara
a levantar pesos para preencher os longos dias.
Quando voltara do centro de reabilitação no outono anterior, a mãe tentara
convencê-lo a continuar a frequentar o grupo de apoio em Portland.
Massacrou-o para ligar ao mentor local que lhe fora atribuído – um esquiador
paraolímpico que morava ali perto, em Mosier. Ficou parada à porta do
quarto dele, a mala no braço, enquanto se preparava para ir à igreja.
– Devias sair de casa, Jacob – disse ela. – Precisas de ver pessoas e
continuar a viver.
Continuar a viver. O seu corpo ruborizou-se devido à fúria, mas ele não
disse nada. Limitou-se a enfiar os auriculares e a voltar-se para o computador.
Estava a jogar Tomb Raider e a ganhar – uma vitória vazia, já que jogava
contra si próprio. Pelo menos não respondeu nada horrível. A mãe era uma
mulher doce, temente a Deus. Não tinha culpa que o seu único filho, que já
era meio transtornado, se tivesse lixado tanto.
Não estavam bêbedos, nem sequer um pouco tocados, naquele dia
estranhamente quente de abril do ano anterior. Alguém montara um Slip’N
Slide no relvado da casa de Tom Pomeroy, e eles tinham-se revezado a
deslizar de barriga no plástico amarelo. Havia cerca de vinte pessoas
presentes, todas do último e do penúltimo ano letivo. Os rapazes berravam e
as raparigas gritavam enquanto deslizavam pelo relvado. Quando Jake se
atirou para a língua molhada do slide, sentiu uma onda de alegria. Permitiu-se
esquecer a pressão da vida após o fim do secundário e o stresse dos exames
finais a que tinha a certeza de que chumbaria. Afastou os pensamentos da
bolsa de estudos perdida para a escola de música, que tinha doído tanto no
início e, finalmente, se transformara numa dor surda que ele podia ignorar de
vez em quando. Enquanto caminhava entre os amigos sob o sol quente,
sentiu-se de novo como uma criança. Subiu para o alpendre quando alguém
ligou a aparelhagem. «Mumford.» Aquela música. Foram apenas alguns
momentos, um conjunto comum de segundos que teve um impacto
extraordinário na sua vida.
Jake tirou uma cerveja do frigorífico e cravou um American Spirit. Não
fumava, mas aquilo era uma festa, portanto, porque não? Subiu as escadas
para o primeiro andar atrás de Megan Shine, que estava a contar a sua viagem
a Mazatlán nas férias da primavera, para onde os seus pais ricos a tinham
levado e às irmãs. Megan era supersimpática, embora não precisasse, porque
também era linda. Ao nível das chefes de claque. Loira e tudo isso. Não o
tipo dele, mas ainda assim. Ela riu de qualquer coisa que ele disse e tirou-lhe
a cerveja, inclinando a cabeça para trás para beber, e ele admirou os seus
belos seios. Com certeza ela não se importaria mesmo que notasse os seus
olhos a descer para a parte de cima do seu biquíni, para o seu adorável ventre
liso, os pequenos calções cor-de-rosa. Alguém o agarrou por trás. Pomeroy
apertou Jake com um braço e deu-lhe uma palmada brincalhona na parte
lateral da cabeça rapada.
Pomeroy era um bom tipo, embora uma espécie de macaco. Um daqueles
rapazes que tinham sempre de estar a fazer qualquer coisa física –
competição de flexões ou a saltar da ponte para o rio ou a andar de skate
pelos túneis de Mosier no escuro – e a incitar todos os outros a fazer o
mesmo. Nada o perturbava. Estava sempre a fazer merdas que poderiam tê-lo
magoado, mas ele era como um gato, que caía sempre de pé.
Era maior e mais forte do que Jake. Pomeroy jogava futebol, portanto Jake
normalmente teria evitado aquele tipo de luta. Mas, por qualquer motivo,
largou o cigarro e deu meia-volta para agarrar o torso carnudo de Pomeroy.
Talvez porque Megan estava a assistir e a rir. Jake lançou-se ao rapaz maior,
envolvendo a cintura dele com os braços. O amigo cambaleou sob o seu peso.
– Caramba, Stevenson! – gritou ele enquanto escorregava.
Não teria sido nada de especial, só que estavam no telhado do primeiro
andar sobre o pátio. Jake caiu, o seu corpo a girar no ar, e aterrou com um
baque doentio no muro baixo que separava o roseiral da senhora Pomeroy do
caminho de acesso. Olhou para cima e viu Megan e Pomeroy a espreitar da
beira do telhado. Quis rir-se para eles, dizer que estava bem, mas não estava.
E as coisas nunca mais seriam as mesmas.
Tivera azar, disseram-lhe os médicos mais tarde. Foi o que chamaram à
lesão incompleta da medula espinal em T11 e T12, na parte inferior das
costas.
Jake sentiu-se mal ao recordar aquilo. Respirou fundo e deslizou pelo
corredor até ao seu quarto. O loop começara na sua cabeça.
Nunca mais voltaria a andar, disse o cirurgião, mas pelo menos tinha um
bom controlo da parte superior do corpo, já que a lesão era apenas parcial.
«Pode estar grato por isso.»
Jake olhara para o homem. Grato? A gratidão estava longe, muito longe da
sua mente na altura.
Vestiu a sua camisa cinzenta Dickies preferida, abotoou-a, pegou na
mochila e prendeu-a na cadeira.
Tinha sorte por poder usar as mãos e os braços, dissera-lhe a enfermeira
ruiva, apesar da assimetria de força de um lado.
Enfiou os óculos de sol no bolso da camisa.
Ele era jovem e de resto saudável, disse várias vezes o fisioterapeuta.
Poderia ter uma ótima vida.
Jake levantou uma perna para o descanso dos pés com as duas mãos e
depois a outra. Calçou as Doc Martens, apertou os atacadores e rolou pela
casa, saiu pela porta e desceu a rampa.
«Uma carreira de sucesso», dissera o fisioterapeuta.
Colocou os óculos escuros e os auriculares. Aumentou o volume do seu
iPhone e o som familiar de música ska-punk encheu-lhe a cabeça.
«Talvez programador informático», sugeriu a mãe, assentindo para a
assistente social e depois para Jake. «Gostas tanto daqueles jogos, não é?»
Fez avançar a cadeira pelo caminho de gravilha até à ciclovia, que
serpenteava ao longo de Belmont. As suas rodas levantaram pó e bocados de
gravilha. Sorriu com a sua velocidade. A cadeira era muito estilosa. Os
colegas de turma fizeram uma coleta para ele a poder comprar. Caso
contrário, teria aquela cadeira fatela que o seguro do pai cobria. Tinham
anunciado isso na cerimónia de fim do secundário, contara-lhe Noah. Sentia-
se contente por não ter lá estado para lhes agradecer, o que teria sido bastante
humilhante, embora estivesse grato por isso. Passaria a tarde, como fazia
ultimamente, agora que as chuvas da primavera estavam a diminuir, perto dos
pomares, onde sabia que não encontraria nenhum dos amigos. Aqueles que
não andavam na faculdade, como Noah, que começara a trabalhar para juntar
dinheiro para viajar, estariam no trabalho ou no parque de skate.
O ar tinha um cheiro verde e fresco. Comoveu-o. Aquela estação – quando
as chuvas inesperadas varriam o fundo do vale e o vento transformava os
pomares em ondas de flores – sempre o enchera de esperança. As rãs
coaxavam nas valas de irrigação e os dias cresciam impercetivelmente. Os
falcões empoleiravam-se ao longo das vedações e pequenos tentilhões
voavam disparados. Os picanços lamentavam-se nas sombras da floresta. Ele
nunca disse a ninguém que reparava nessas coisas. Mas a primavera trazia-
lhe sempre uma alegria secreta, a promessa de algo novo. Sentiu o coração
tentar elevar-se e cair derrotado.
Aumentou o som da música. Era «Connecticut Ska» dos Spring Heeled
Jack, que lançara a banda na cena punk dos EUA no início da década de
1990, pouco antes de Jake ter nascido. Jake iria concentrar-se no trompete de
Pat Gingras e analisaria como o som da banda estava a mudar antes de
Gingras ser substituído por Tyler Jones. Inventava discussões na sua cabeça,
naquele dia assumindo a posição de que o estilo de Jones mantinha o som
ska-punk clássico da banda, mas quem acreditava nisso, realmente? Qualquer
pessoa com ouvido poderia sentir os Spring Heeled Jack rumar em direção ao
som mainstream dos Mighty Mighty Bosstones, que acabaria por engolir
alguns dos seus membros. Noutros dias, conjeturava que o som de Gingras
era autêntico e fiel à verdadeira missão da música, que era aquilo em que ele
realmente acreditava. Assim como todos os outros fãs genuínos de ska. Não
importava. Era como os seus jogos Tomb Raider. Apenas a passar o tempo na
prisão que era a sua vida. Aquela vida substituíra a vida que ele devia ter –
uma vida de música e promessas, a outra vida que agora parecia algo que ele
imaginara.
A competência musical de Jake, que fora óbvia desde cedo, era um mistério
para os pais, que não eram músicos. Felizmente, os professores repararam e
sugeriram que ele se juntasse à banda da escola. Tocava trompete desde a
primária. Não conseguia lembrar-se da vida sem música. Não tinha palavras
para explicar aquela coisa intensa que vivia nele.
No outono do seu último ano, Jake recebera a oferta de uma bolsa de
estudos quase completa para o Cornish College of the Arts em Seattle,
principalmente com base na sua competência musical e cartas de
recomendação. Se as suas notas tivessem sido melhores, poderia ter sido uma
bolsa completa, mas 75 por cento era o suficiente. Ele iria estudar teoria
musical, história e performance com o trompete como seu instrumento
principal. Manteve a carta de aceitação no estojo do trompete durante meses e
tirava-a para a reler quando estava sozinho, embora praticamente já a tivesse
decorado.
«Caro Sr. Stevenson. É com grande prazer que o recebemos na comunidade
do Cornish College of the Arts...» As palavras deixaram-no tonto. Mas então,
quando chegou a hora de enviar à escola um adiantamento, o pai recusou
emprestar-lhe o dinheiro. Ed não deu ouvidos às súplicas da mulher e mal
tirou os olhos da televisão para responder.
– Escola de música? Por favor – zombou ele. – Eu trabalhava a tempo
inteiro na idade dele.
Caso encerrado. Jake não queria pensar nisso, naquela perda avassaladora.
Mas ao som do trompete de Gingras, a sua mente foi invadida por perguntas
sem resposta que tocavam num loop interminável: e se o pai lhe tivesse
emprestado o dinheiro? E se ele tivesse tido uma média melhor e conseguido
a bolsa completa? E se tivesse trabalhado aos fins de semana e juntado algum
dinheiro? Que patético ver fugir aquela coisa que tanto desejava por não se
ter esforçado um pouco.
As perguntas seguiram-se a partir daí como sempre, tornando-se mais e
mais impossíveis. E se ele não tivesse estado em casa de Pomeroy naquele
dia, mas tivesse limpado o jardim como a mãe lhe pedira? Em vez disso,
contornara o ancinho e os sacos das folhas, prometendo a si mesmo que iria à
festa uma hora e terminaria o jardim antes de ela chegar a casa. E se não
estivesse a exibir-se para Megan Shine? E se pudesse fazer tudo aquilo de
novo?
Jake aumentou o volume da música para afogar os seus pensamentos.
Chegou ao sopé da colina perto do Indian Creek Golf Course e começou a
subir. As nuvens haviam-se dissipado e o céu passava de laranja para amarelo
acima do cume. As macieiras e pereiras estavam lindas, as suas flores a
ondular pelo vale até ao sopé de Mount Hood, que estava coberto de neve. A
temperatura desceu e Jake inalou o cheiro verde húmido dos pomares
regados. Sentia na parte de trás da garganta o gosto ténue e acre daquilo que
aplicavam nas árvores. Disse a si mesmo que os pesticidas lhe faziam arder
os olhos.
Desceu a colina seguinte, ignorando o velho que parara o seu carrinho de
golfe para olhar embasbacado para o rapaz com o moicano na cadeira de
rodas a voar em direção ao cruzamento. Não se preocupe comigo, velhote,
pensou ele. O pior já aconteceu.
Seria isso verdade? Talvez o pior já tivesse acontecido e que nada mais iria
acontecer na sua miserável vida. Dali a um mês, a Escola Secundária de
Hood River Valley seria palco de outra festa de final de ano. Turma de 2014.
Hip, hip hurra! Duzentos jovens seguiriam com as suas vidas para a
faculdade, para um emprego ou pelo menos para algum outro sítio diferente
daquela terra de pacóvios. Ele tinha pensado nisso toda a semana. Estava
mesmo ali na sua cara, o aniversário do dia em que a sua vida parara. Bom
trabalho, Jake. Deste cabo de tudo. Exatamente como o teu velho disse
durante toda a tua vida. Bom trabalho, seu merdas.
A tarde transformou-se em crepúsculo e Jake passou veloz pela velha Oak
Grove Schoolhouse, que lançava longas sombras nos pomares de maçãs. No
meio das árvores viu as luzes acenderem-se nas cabanas dos trabalhadores
sazonais. Via pessoas em escadas, as suas sombras compridas entre as filas de
árvores. Rolou para sul em direção à forma de Mount Hood, que projetava
um brilho vermelho contra o horizonte verde-amarelado.
Damos-te uma faca e um garfo e vais à tua vidinha.
As palavras ecoaram na sua cabeça e pôs a música no máximo. Sentia o
cheiro do seu suor, que agora era diferente. Cheirava como um velho, como
alguém doente, como um desconhecido. Tentou concentrar-se no risco branco
da estrada, que não era uma ciclovia tão longe da cidade nos pomares, apenas
uma berma estreita.
Lutou contra uma enxurrada de imagens: o sorriso de Megan Shine e o sol
a brilhar no biquíni. Os seus dedos a voarem ao longo das válvulas enquanto
tocava um solo de trompete com o coração na garganta na competição
estadual de bandas de jazz. Ver Noah fazer o halfpipe no parque de skate.
Passar uma lata de tabaco de mascar na parte de trás do autocarro da banda.
Correr atrás do seu cão malhado no banco de areia. Tudo isso desaparecera.
Essas coisas faziam parte da vida que ele costumava ter, aquela que se
perdera para ele. O seu coração doía e ele odiou-se por isso. Odiava as
lágrimas que corriam pelo seu rosto, e já não podia fingir que eram suor.
Odiava o que tinha feito com a sua vida estúpida e não ter mais ninguém para
culpar. Naquele momento sentiu-se derrotado de uma forma que não poderia
ser desfeita.
Jake estava tão focado no seu interior que não ouviu o som da pickup atrás
dele. Ia de costas para ela e não teria visto a roda dentro da linha branca da
berma. Uma pickup cujo condutor não viu o rapaz no crepúsculo até que os
faróis iluminaram o encosto da sua cadeira. Então Jake ouviu o barulho dos
travões acima do som da música e tudo parou.
2
DOZE RAINHAS
A rainha é a única fêmea perfeita na colmeia e todos os ovos são
postos por ela.
– L. L. LANGSTROTH

Alice Holtzman avaliou o seu humor abaixo da média mesmo antes de se


deparar com a parede de trânsito que descia a Interestadual 84 de regresso a
Hood River. Culpou os jovens imbecis da Sunnyvale Bee Company, em
Portland, que se tinham enganado na sua encomenda, o que a fizera partir
mais tarde e ir parar àquele mar de carros e camiões de fim de tarde. Para ser
mais precisa, não sabiam da sua encomenda, o que era frustrante porque
Alice era uma cliente regular em Sunnyvale e também porque, por motivo de
orgulho pessoal, se esforçava ao máximo para ser conscienciosa.
As coisas eram sempre agitadas no Dia das Abelhas, um evento anual em
abril, e ela reconhecia isso. Afinal, a Sunnyvale Bee Company via centenas
de milhões de abelhas a passarem pelo seu pátio naquele único dia. Quando
Alice chegou, viu centenas de caixas de abelhas à espera de serem recolhidas.
Cada pequena caixa com rede continha dez mil abelhas, todas a zumbir
confusas com a sua recente separação das colmeias do sul do Oregon, de
onde tinham vindo. A carga preciosa, transportada antes do amanhecer, tinha
de ser recolhida, transportada e colocada em colmeias no espaço de vinte e
quatro horas.
Centenas de apicultores iam a Sunnyvale levantar as suas abelhas num Dia
das Abelhas normal, pelo que as coisas podiam ficar agitadas.
O carro à sua frente avançou um pouco e travou. Alice exalou pelo nariz
com impaciência. Olhou para o relógio e suspirou. Sim, Alice sabia que o Dia
das Abelhas seria uma loucura. Por isso metera férias. Era uma quinta-feira.
Nunca se podia esperar que as abelhas chegassem a um fim de semana.
Vinham, como os bebés, de forma imprevisível e muitas vezes inconveniente.
Alice e outros apicultores ansiosos tinham de esperar até que as colmeias do
sul povoadas de abelhas jovens e as chuvas do início da primavera
diminuíssem. As recolhas eram reprogramadas a toda a hora. Um apostador
não colocaria dinheiro no Dia das Abelhas. Alice sabia disso. Por esse motivo
ligara dois dias antes, como sempre fazia, para reconfirmar a sua encomenda
com Tim, o alegre gerente da loja que estava lá, ela sabia, há mais de vinte
anos. Era impossível dizer quantos anos Tim tinha. Era um daqueles homens
que parecera velho aos vinte, provavelmente perdendo o cabelo logo após o
secundário, e agora parecia não ter idade. Tim, sempre imperturbável. Alice
nem sabia o seu apelido, mas, nos últimos anos, Tim fora uma parte regular
da sua vida. Não um amigo, exatamente. Mais como uma placa de sinalização
amigável, um indicador feliz que dizia que era primavera, o inverno do
Oregon acabara finalmente e estava na hora de uma nova vida no apiário.
Apesar de todos os inconvenientes, Alice geralmente adorava o Dia das
Abelhas.
Mas naquele ano Tim não atendera o telefone quando ela ligara. Fora
atendida por uma jovem que se identificou como Joyful.
– Como posso ajudar a tornar o seu dia incrível? – perguntara ela.
Alice dissera o seu nome e o número da encomenda enquanto se
perguntava se Joyful seria um nome verdadeiro. Joyful garantira-lhe que
todos os pedidos seriam atendidos normalmente e que teriam muito gosto em
vê-la dentro de dois dias. Não se recusou propriamente a procurar a
encomenda de Alice, mas também não o fizera.
– Fique bem! – exclamara e desligara antes que Alice pudesse dizer
qualquer outra coisa.
Assim, enquanto Alice via Joyful com os seus dreadlocks loiros em volta
do rosto a vasculhar a pilha de encomendas e não conseguia encontrar a de
Alice, ela quis dizer, «eu avisei». Queria dizer outras coisas – coisas que
teriam desapontado a sua mãe. Cruzou os braços sobre o peito, respirou
fundo e encostou-se ao balcão.
– Menina, eu liguei-lhe há dois dias. Chamo-me Holtzman. Alice
Holtzman. Sou de Hood River. Encomendei doze colmeias núcleo.
Tentou parecer calma e recuou um pouco quando percebeu que estava a
bater com um dedo no balcão.
– Sem rainhas extras. O Tim geralmente deixa as minhas coisas no pátio. –
Alice apontou para uma área fechada à esquerda. Há anos que Tim separava
as encomendas de apicultores experientes como ela, das dos iniciantes que
tinham tendência para se demorar com perguntas, criando assim a sua própria
confusão barulhenta no Dia das Abelhas.
– Porque não me deixa ir lá dar uma olhadela? Tenho a certeza de que
posso encontrá-las sozinha.
Mas Joyful, com as sobrancelhas franzidas e os dreadlocks no rosto e a não
ter um dia maravilhoso, não cedeu. Ergueu os olhos da confusão de papéis e
fixou em Alice um olhar severo.
– Minha senhora, diz que é uma cliente antiga e respeito isso. Mas temos
um sistema em funcionamento aqui, e vai ter de esperar a sua vez como toda
a gente.
Alice corou de vergonha e recuou, comprimindo os lábios e sentindo-se
uma criança admoestada. Ficou sem fôlego e pensou na doutora Zimmerman,
que lhe pedira que reparasse nesses momentos. Puxou as jardineiras para
cima e juntou-se aos outros apicultores que circulavam e conversavam
enquanto esperavam pelas suas encomendas. Alice não conversou.
O sol da primavera aqueceu-lhe a cabeça. Tirou o chapéu de sol e afastou o
cabelo do pescoço, que estava coberto de suor. Olhou para as mãos, as unhas
roídas até ao sabugo, e enfiou-as nos bolsos de trás. Mudou o peso de um pé
para o outro, os pés a inchar nas botas de trabalho. Olhou para cima e viu-se
no monitor de segurança e desviou o olhar, puxando as alças das jardineiras.
Estar imóvel punha-a doida. Meia hora depois, a sua encomenda foi
encontrada no chão sob os pés de Joyful com as suas Birkenstock.
«Alice Holtzman, Hood River. 12 colmeias núcleo. Sem rainhas extras.
Pátio lateral.» Rabiscado a vermelho na folha havia ainda «VIP!!!»
Joyful parecia chateada, mas não se desculpou. Entregou a Alice o papel
amarrotado e indicou a área de recolha.
A situação não era novidade para Alice. Afinal, ela era uma Holtzman.
Germano-americana, racional, planeava sempre com antecedência e refletia
nas coisas como os pais lhe tinham ensinado. Tentava prever o que poderia
correr mal e trabalhar com antecedência para evitar surpresas. Sabia que a
maioria das pessoas não era tão conscienciosa. Muitas vezes, dava por si à
espera que os outros acompanhassem o seu raciocínio, tendo falhado antes
mesmo de começarem. Então, como explicava aquele sentimento agora,
aquela impaciência, o desejo infantil de estender a mão sobre o balcão e
puxar os dreadlocks de Joyful? Pegou na folha e foi até ao pátio lateral.
Dois funcionários antigos, Nick e Steve, ajudaram Alice a aplicar fita
adesiva no cimo das caixas de cartão e colocar cuidadosamente cada uma na
traseira da sua pickup. Prendeu as bases das caixas com uma correia para
evitar que deslizassem.
– Desculpe, Alice – disse Nick, revirando os olhos na direção de Joyful.
Era um tipo simpático mais ou menos da idade dela, com um bigode
semelhante a um guiador. – Nova gerência enquanto o Tim está no Arizona.
Assuntos de família, acho.
Alice encolheu os ombros, tentou sorrir e não conseguiu. Fechou a porta da
pickup com mais força do que precisava. Não era culpa de Nick que ela
tivesse perdido mais de uma hora no que devia ter sido uma paragem de
quinze minutos, mas não iria ficar ali a fazer conversa.
– Obrigada, Nick. Peça ao Tim para me ligar sobre aquele extrator de mel
quando ele voltar.
Agora na via rápida congestionada, Alice resfolegou de aborrecimento.
Esticou o braço e pegou no saco de minibolachas Chips Ahoy! que sabia que
não devia ter comprado no Costco algumas horas antes. Tirou uma mão-cheia
de bolachas e enfiou-as na boca.
Detestava admiti-lo, mas já ia atrasada muito antes de chegar a Sunnyvale.
Parara na Serração Tillicum e depois no Costco, aquele grande supermercado
que não tinham na pequena Hood River. As pessoas empurraram-na e uma
mãe de dois filhos, com ar alvoroçado, batera com o carrinho nas pernas de
Alice e nem sequer pedira desculpa. Alice esperara uma eternidade na fila da
caixa, o que a deixou stressada. A seguir perdera uma hora à espera das suas
abelhas e agora estava parada no meio do trânsito da tarde que tanto tentara
evitar. Por isso ligara dois dias antes. Por isso metera o dia e levantara-se
cedo. Esforçava-se tanto para ter tudo organizado. Eram as outras pessoas
que davam cabo das coisas. Sentiu uma onda de ansiedade. Os carros
avançavam lentamente e ela sentiu uma pressão no peito. Abriu a janela, mas
o cheiro quente do alcatrão ardeu-lhe nas narinas e voltou a fechá-la. Olhou
para os carros de ambos os lados. Mais ninguém parecia importar-se por estar
ali. Todos olhavam para os seus telemóveis. Ela agarrou o volante, sentindo o
aperto subir na garganta. Então ouviu a voz calma da doutora Zimmerman na
sua cabeça: Sabe de onde vem essa sensação, Alice? Consegue seguir o fio?
Alice respirou fundo e flexionou as mãos. Estar quieta era tão difícil para
ela nos dias de hoje. Se se mantivesse focada, continuasse a trabalhar, os
pensamentos não poderiam cegá-la. Não, doutora Zimmerman, pensou, não
conseguia seguir o fio. Não com 120 000 abelhas na parte de trás da pickup.
Comeu outra mão-cheia de bolachas e olhou através do espelho retrovisor
para as colmeias núcleo. O sol da primavera era ameno, portanto não estava
preocupada com o sobreaquecimento das abelhas no caminho para casa, por
mais lento que fosse. Uma vez lá, tencionava pô-las nas colmeias antes do
pôr do Sol. Conseguiria fazer isso rapidamente sozinha, as doze caixas, tinha
a certeza. Era eficiente e deixara as suas ferramentas preparadas na noite
anterior, todas limpas e polidas. Recordar isso fez aumentar novamente a sua
ansiedade. Ficara acordada até tarde para preparar as coisas, a fim de poder
voltar mais cedo e instalar as suas colmeias antes de escurecer. Respirou
fundo, tentando abrandar o coração. Atirou o saco de bolachas para o banco
de trás, onde não conseguia chegar-lhe.
Na saída para Multnomah Falls, que assinalava o meio do caminho para
Hood River, viu dois carros parados na berma – um toque, ao que parecia. A
faixa de rodagem estava desobstruída quando os alcançou, mas os condutores
continuavam a tirar medidas. Viu dois homens ao lado dos seus carros batidos
a falar ao telemóvel. Provavelmente algum turista a tentar tirar uma
fotografia sem se dar ao trabalho de parar. Acontecia a toda a hora – pessoas
a inclinarem-se para fora da janela para tirar uma fotografia da cascata de
cento e oitenta e seis metros.
Após o acidente, a estrada ficou desimpedida, e pouco depois ela ia a cento
e trinta, rumo a leste enquanto o Sol se punha na sua retaguarda. A liberdade
de movimentos fazia-a sentir-se mais calma. Tirou o chapéu e os óculos
escuros. Desabotoou uma alça das jardineiras, uma admissão de que
realmente já não lhe serviam, mas não se importou. Aumentou o som da
música: «Born to Run», de Springsteen.
Alice não gostava de Portland, com a sua confusa rede de pontes, trânsito
intenso e condutores agressivos. Mas adorava a estrada desimpedida que saía
da cidade. Penhascos de basalto sobrepunham-se numa paisagem que se
estendia quilómetro após quilómetro ao longo do rio Columbia. Ela conhecia
de cor os diversos monólitos – Rooster Rock, Wind Mountain, Beacon Rock.
Ao fim da tarde, as colinas verdes e as rochas estavam banhadas por uma luz
rosa. Parecia uma pintura, um sonho. Alice nunca se cansava de olhar para a
paisagem, para aquela beleza impossível na qual vivera durante quarenta e
quatro anos. Passou por um camião com atrelado e olhou para o rio largo à
sua esquerda. A água verde-escura era agitada pelo vento, as ondas com
espuma branca indo contra a corrente. Viu um bando de pelicanos brancos a
descansar num banco de areia reluzente e pinheiros altos debruçados sobre a
água. Uma águia-pesqueira descrevia círculos sobre o rio, piando. À direita,
viu o farol de um comboio a aproximar-se. Passou por Alice e ela ouviu o
apito soar e afastar-se. O sol poente lançava uma luz ténue sobre a água e
Alice sentiu-se descontrair.
Meteu pela saída 62, diminuiu a velocidade e parou no cimo da rampa.
Abriu a janela e o vento fresco do rio Columbia soprou pela picukp e agitou
alguns cabelos em volta do seu rosto. Sentia o cheiro da água, dos pinheiros
ao longo da estrada e de lenha a queimar. Sentia o cheiro verde distinto da
primavera. Passou pela Red Carpet Tavern, com o telhado abaulado, e notou
que o parque de estacionamento, como sempre, estava cheio de pickups de
tipos que paravam para beber uma cerveja a caminho de casa. Sorriu ao
lembrar-se do pai tantas vezes no meio deles – esguio e reticente, mas
atraindo outros com a força da sua bondade sob o sentido de humor mordaz.
A estrada que passava pelo bar iria levá-la para sul, para a sua casinha fora do
centro, num vale ao fundo de Reed Road. Havia um pomar de um lado e uma
floresta do outro. Era o local perfeito para as abelhas – protegidas do vento e
com Susan Creek a descer a encosta fornecendo água às suas meninas, como
ela gostava de chamar-lhes. Ao lado das valas de irrigação havia quilómetros
de trevos emaranhados, amoras e dentes-de-leão. O paraíso das abelhas.
O vale também era perfeito para Alice, porque ela quase nunca encontrava
ninguém. Tirando Doug Ransom, cujo grande pomar se espalhava
agradavelmente a oeste dela, não tinha vizinhos, a menos que contasse com
Strawberry Hollow, um amontoado de caravanas no sopé de Anson Road.
Não conhecia ninguém que vivesse lá e mantinha a sua distância.
Metanfetamina e pit bulls, imaginava. Violadores e malfeitores de todos os
tipos, pensou. Começou a inventar cabeçalhos.
«Dez detidos em apreensão de drogas no parque de caravanas.»
«Campa Rasa Descoberta em Strawberry Hollow.»
Depois conteve-se. Tal como a ansiedade, aquilo também era novo –
inventar histórias horríveis sobre pessoas que não conhecia.
– São apenas pensamentos, Alice, e esse padrão dá azo a uma perspetiva
negativa – disse-lhe a doutora Zimmerman. – Mas pode mudar esses padrões
e o seu pensamento. Só requer prática.
A doutora Zimmerman era obviamente muito inteligente. Tinha diplomas
de Harvard e Stanford na parede. Trabalhara em Palo Alto, a tratar os
malucos por tecnologia, antes de se mudar para Hood River para uma
semirreforma. Apesar dos diplomas e da sua aparência chique, que eram raros
neste cu de judas, não era arrogante. Apenas confiante. E bondosa. Ainda
assim, o facto de ela, Alice Holtzman, andar numa psicóloga era absurdo.
Uma pessoa tinha de se rir, pensou ela. Só que não era engraçado, pois não?
Alice conduziu a pickup para sul em direção a Mount Hood, rumo à casa
que comprara com a ajuda dos pais. Eram ambos donos de pomares de
terceira geração. Um trabalho árduo, mas adoravam-no.
«Nunca tenhas medo do trabalho duro, Alice», dizia a mãe.
«Ou eu volto do túmulo e dou-te um chuto no traseiro, minha querida»,
acrescentaria o pai com um sorriso travesso.
Uma vida vivida ao ar livre, diziam sempre, era uma vida boa.
– Uma vida boa – disse ela em voz alta, olhando através do espelho
retrovisor para as doze colmeias núcleo, cada uma contendo uma rainha e as
suas operárias e tantas promessas. – Estamos quase em casa, meninas. Vocês
terão uma vida boa. Prometo.
Embora já não fosse o lugar tranquilo e atrasado de quando Alice nascera,
Hood River continuava a ser um ótimo lugar para viver. A década de 1980
trouxera os windsurfers com as suas carrinhas e cabelos compridos. Houvera
algumas altercações entre eles e os madeireiros e agricultores locais, como os
que frequentavam o Red Carpet. Mas os hippies que causavam problemas
acabaram por se ir embora. Os que ficaram constituíram família, repararam as
casas antigas da povoação e abriram negócios – cafés, pizarias e lojas de
windsurf. A cidade cresceu. A última década vira uma explosão de lojas de
vinho, lojas de roupa elegantes, cervejarias e restaurantes. Já não era a mesma
vila, mas para pessoas como os Holtzman, que viviam fora de tudo isso, não
importava. As suas vidas continuavam a seguir o mesmo trilho. Os turistas
bronzeados que se arrastavam pelo centro com cafés gelados não faziam ideia
de que o coração daquele lugar ficava longe de Oak Street, vale acima e nos
pomares. Aquelas longas filas de árvores eram muito mais do que um cenário
de postal para os seus passeios panorâmicos. Eram história, parte de uma
tradição que tinha mais de cem anos.
A família de Alice fazia parte dessa história. Os pomares dos Holtzman
eram pequenos, mas eram todos relíquias da família dos anos 1900 – maçãs
Gravensteins, Pippins e Winesaps – muito diferentes das maçãs Red
Delicious farinhentas de um almoço escolar comum. Era uma fruta boa e
saborosa. Al e Marina Holtzman tinham recebido o pomar dos pais de Al, que
o haviam herdado dos avós dele – imigrantes alemães que chegaram ao vale
antes da Primeira Guerra Mundial. Al e Marina ganhavam a vida para si e
para Alice, a única filha. Tinham sido felizes ali.
Alice parou na Country Club Road, fez pisca para a direita e olhou para a
esquerda, atenta a qualquer trator lento que se podia encontrar numa noite de
primavera como aquela. A estrada tranquila estava vazia. Ela virou à direita e
continuou em direção a casa.
Tencionara tomar conta do pomar dos seus pais desde os dez anos de idade.
Quando chegasse a hora, sabia que teria de trabalhar no duro e manter o
emprego no município para sobreviver. Mas, para seu choque, Al e Marina
tinham decidido vendê-lo oito anos antes. O pai ficara desanimado com as
mudanças no setor. Os grandes produtores forçaram leis de pulverização no
município que os pequenos agricultores não queriam. Não que a operação
Holtzman alguma vez tenha sido totalmente biológica. Al Holtzman era
demasiado libertário para deixar essas palavras saírem dos seus lábios. Mas
era alemão, afinal. Sensato. Pulverizava o mínimo e à mão. As
regulamentações do município eram de mais, dissera ele, e iam longe de
mais.
– É veneno, Alice – disse ele, abanando a cabeça. – Os tolos estão a dar um
tiro no pé.
Ela não gostou de ver os pais postos de parte pelas exigências dos donos
dos grandes pomares, que eram demasiado inflexíveis, estavam demasiado
ocupados ou eram simplesmente teimosos para considerar opções diferentes.
Quanto ao município, bem, Alice trabalhava no gabinete de planeamento.
Sabia como as coisas podiam ser retrógradas. Às vezes eram necessários anos
para mudar uma simples portaria sobre a posição e localização das caixas de
correio. Desejou mais tarde ter argumentado com ele sobre isso, desejou ter-
lhe dito o quanto queria o pomar. Mas não queria que ele se sentisse pior. Os
seus olhos encheram-se de lágrimas ao recordar. Limpou-os com a parte de
trás do pulso.
Al e Marina deram a Alice algum dinheiro da venda do pomar, que ela
usou para comprar a sua casa no vale tranquilo – uma casa térrea com dois
hectares de terreno. Pensou que eles acabariam por ir morar com ela. Mas
eles queriam ser independentes e mudaram-se para uma casa na povoação.
Morreram com seis meses de intervalo – Al primeiro. Alice sentia a falta
deles.
Também conversou com a doutora Zimmerman sobre os pais. Mencionou
que parecia ouvir as vozes deles na cabeça e às vezes lhes respondia, embora
isso pudesse parecer uma loucura. A doutora Zimmerman olhou para Alice
por cima dos óculos. Alice corou. Calculou que não era de bom-tom dizer
«loucura».
Mas a doutora Zimmerman limitou-se a assentir.
– Deve ser reconfortante para si – disse ela.
Porém, ambas sabiam que o motivo pelo qual Alice consultava a simpática
doutora não era sentir a falta dos pais.
Alice diminuiu a velocidade devido a um grande camião de fruta que
atravessou o cruzamento perto da estrada para o reservatório Kingsley. Olhou
para o sul para encontrar Mount Hood no horizonte, beijado pelo pôr do Sol.
Levantou o som do rádio, que agora passava uma das suas músicas favoritas
de Springsteen, «Thunder Road».
Alice tinha começado a consultar a doutora Zimmerman depois de ter tido
o que parecia ser um ataque cardíaco no meio da secção de frescos no Little
Bit Grocery and Ranch Supply três meses antes. Estivera ao lado de Carlos, o
simpático e bonito empregado, aquele que a tratava sempre por «Minha
senhora» ou «Menina Alice» e tinha histórias para contar sobre os filhos ou
as notícias. Pela primeira vez, sentira aquela faixa invisível em torno do peito
e não conseguia recuperar o fôlego. Deslizou para o chão, arrastando uma
pilha de couves com ela. Carlos sentou-a encostada a uma estante com
couves-de-bruxelas. Via os lábios dele moverem-se, mas não conseguia ouvir
nenhum som. Estava suficientemente próxima para ver que ele tinha um
bocadinho de creme de barbear na pele lisa e morena atrás da orelha. Sentiu
que precisava de lhe dizer e teve vontade de rir disso. Os paramédicos
chegaram, e parecia que metade do município de Hood River estava parada a
olhar para Alice Holtzman sentada no chão, com o peito a arfar e o rosto
vermelho. Corou agora ao lembrar-se.
Também conhecia quase toda a gente nas pequenas urgências. Jim Verk,
seu colega no segundo ano, estava de plantão naquela noite e disse-lhe que
ela tivera um ataque de pânico. Alice foi consultar a doutora Zimmerman por
sua recomendação. Ninguém na história da família Holtzman tinha ido a um
psicólogo, mas a experiência em Little Bit envergonhara tanto Alice que ela
estava disposta a tentar qualquer coisa para evitar uma repetição do episódio.
Olhou para a estrada e percebeu que segurava o volante com demasiada
força enquanto se lembrava. Obrigou-se a descontrair. O pôr do Sol estava a
ganhar a corrida quando ela chegou à Oak Grove Schoolhouse. Acelerou ao
subir a colina, que era sombreada por altos abetos-de-douglas que
assinalavam os limites das terras florestais do município. Pela janela sentiu o
ar fresco no cimo da colina e olhou novamente para as abelhas através do
espelho retrovisor. As novas colmeias núcleo eram a raiz da sua ansiedade,
percebeu. Cada passo do seu dia cuidadosamente planeado fora direcionado
para o sucesso da colmeia. Aquelas abelhas dependiam dela. Mas àquela hora
a temperatura seria ainda mais baixa na sua ravina sombreada, e ela não
queria stressar as meninas com a exposição ao ar frio e escuro e à luz
artificial da oficina. Teriam de esperar até ao dia seguinte, disse a si mesma.
Tinham mel nos seus favos para comer e ficariam bem por uma noite nas suas
caixas. Melhor fazer as transferências quando estivesse descansada para
evitar erros tolos.
Sê razoável e controla-te, disse a voz da mãe.
Alice suspirou e desistiu da tarefa.
– Amanhã de manhã, antes do trabalho, então – disse em voz alta.
Recostou-se no assento e agarrou o volante enquanto seguia as curvas
familiares de Reed Road. Deixou a mente vaguear, esperando que os seus
pensamentos se portassem bem, esperando que a sua autodisciplina habitual
mantivesse as memórias preocupantes juntas como ovelhas obedientes
guardadas por um collie. Mas a seguir lembrou-se da sua última sessão com a
doutora Zimmerman. A psicóloga andava a conduzir Alice em direção ao
tópico proibido há já algum tempo, mas ainda lá não tinham chegado. Alice
mantinha certos pensamentos atrás de uma porta firmemente fechada na sua
mente e resistia aos suaves incitamentos da doutora Zimmerman. Naquele
momento, sem aviso, a porta entreabriu-se uma fresta. Mais tarde, ela
culparia o cansaço pela sua argumentação descuidada. Vou apenas pensar no
rosto dele, pensou. Só isso. Então a porta escancarou-se e as memórias
inundaram-na.
Bud a rir atrás do balcão da loja John Deere. Uma fotografia de Bud no seu
uniforme do departamento de parques na primeira página do Hood River
News. Bud parecia tão sério que ela pensou que ele estava a acabar com ela,
mas em vez disso pedira-a em casamento. Naquele dia no tribunal, no dia em
que ele se mudou, no dia em que levaram os pintainhos do Little Bit para
casa e se sentaram no chão a vê-los espreitar e saltitar sob a lâmpada de
aquecimento. Buddy a dançar com a mãe sorridente na sala de estar depois do
jantar de domingo ao som de «Fly Me to the Moon» de Sinatra. Buddy a pôr
os sobrinhos pequenos na carrinha para irem pescar e a correr de volta a casa
para dar um beijo de adeus a Alice.
Alice não percebeu que ia em excesso de velocidade quando chegou à
curva no cimo da colina. Estava a pensar no marido, Robert Ryan, que todos
conheciam como Buddy. Buddy, que chegara tão de repente à sua vida
tranquila, trazendo uma felicidade inesperada. Buddy, que agora partira.
A pressão aumentou no seu peito e a sua garganta ficou bloqueada. Depois
respirou de forma irregular e superficial e, em seguida, explodiu em soluços.
A sua visão turvou-se quando os olhos se encheram de lágrimas.
Desencadeada, a sua dor soltou-se como um carregamento de grandes vigas
de madeira de um dos camiões madeireiros que se cruzou com ela na via
rápida.
Alice limpou os olhos lacrimejantes com o braço enquanto guinava para a
berma. Nos feixes gémeos dos seus faróis viu uma forma na berma. Travou a
fundo, desviou-se e parou ao embater num poste de uma cerca.
Sentiu as 120 000 abelhas a colidir na traseira da pickup. A sua cabeça
oscilou quando o cinto de segurança a prendeu. O tempo abrandou. Ouviu um
zumbido no interior da cabeça. Viu manchas brancas e azuis no seu campo de
visão. Olhou para o espelho retrovisor e viu uma cadeira de rodas tombada de
lado, uma das rodas a girar como uma roda gigante em fuga.
Alice saiu da pickup e atravessou a estrada a correr. Não conseguia mover-
se suficientemente depressa e tinha a sensação de estar a nadar no ar frio.
Começou a rezar, os seus olhos a analisar a erva alta na pouca luz. Viu uma
pessoa no chão ao lado da cadeira. Estaria ferida? Alice agachou-se, com as
mãos nos joelhos, e olhou para baixo. A figura rolou e ficou de barriga para
cima. Alice esperava ver um velho confuso, um homenzinho de roupão e
chinelos a fugir do Riverdale Retirement Center estrada acima. Mas viu um
rapaz – um adolescente com um penteado maluco e um emaranhado de
auriculares e óculos escuros no rosto. Caramba! Atropelara um maldito
miúdo!
O rapaz tirou os óculos de sol e olhou para ela. Sorriu. O alívio invadiu-a e
ela teve vontade de chorar. Em vez disso, gritou.
– Caraças, rapaz! Que diabo estás a tentar fazer? Matar-te?
3
PROCURA DE ALIMENTO
Os zângãos começam a aparecer em abril ou maio; mais cedo ou mais
tarde, de acordo com o andamento da temporada. Em colónias muito
fracas para enxamear, regra geral, nenhum é criado; pois nessas
colmeias, como não há nenhuma jovem rainha, os zângãos seriam
apenas consumidores inúteis.
– L. L. LANGSTROTH

Se Harry Stokes tivesse de escolher uma palavra para descrever como se


sentia naquela manhã em particular, teria dito, inequivocamente, «faminto».
Mas era apenas um tipo de fome mediana, nada sério. Não era «esfaimado»
ou «esfomeado». E, no entanto, estava muito além de «ter um ratinho». Era o
tipo de fome que o fazia prestar atenção, uma fome que o deixava bem ciente
de que a sua situação atual era insustentável.
Estava sentado nos degraus da caravana do tio e arrastou o dedo ao longo
do fundo do frasco de manteiga de amendoim. Chupou a ponta do dedo,
confirmando que o recipiente de plástico não continha nada além de uma
vaga lembrança do seu conteúdo anterior. Olhou melancolicamente para o
fundo e, em seguida, atirou-o na direção da pilha de lixo. Caiu com um baque
e rolou na direção dele. Soprou uma leve brisa que envolveu o seu pescoço
fino como um lenço frio. Harry estremeceu e levantou o capuz. Era meio da
manhã, mas o sol ainda não penetrara na parede de abetos-de-douglas altos
que se erguiam em redor da clareira onde estava a caravana. O seu estômago
roncou, desenrolando-se como uma mola de desenho animado.
Para se distrair do bocejo vazio do seu apetite, Harry pegou no caderno e
abriu-o numa folha meio cheia, na qual estava a enumerar os prós e os
contras da sua situação atual. Pegou na caneta e olhou em volta. Aquilo de
que Harry mais gostava sobre o local onde se encontrava, decidiu, era o
ambiente. O rio Klickitat rugia atrás da caravana, uma sequência de rápidos
que abafava todos os outros ruídos. Nem se conseguia ouvir ali a estrada.
Harry também gostava da vista de Mount Adams. O vulcão adormecido a
norte, coberto com um manto de neve da primavera como um monstro
branco.
«Beleza Pastoral», escreveu Harry na coluna da esquerda do caderno. Não
se lembrava bem do que significava «pastoral» – qualquer coisa ao ar livre –
mas soava bem. De qualquer forma, era uma boa palavra para uma lista –
breve e contundente.
Aquela estratégia de fazer listas era algo que Harry usara durante pelo
menos duas décadas da sua jovem vida. Era um hábito concebido no dia em
que ia sentado numa cadeirinha no banco de trás do Lincoln Town Car da
mãe, segurando um lápis de cera cor de laranja no seu punho de quatro anos.
Aquele foi o dia em que a mãe saíra de carro do Mississípi em direção à
cidade de Nova Iorque, deixando o pai e o sufocante sul para trás. Harry mal
conseguia lembrar-se do pai. Mas lembrava-se do calor húmido do dia de
verão e da alegria no rosto da mãe quando chegaram aos limites da cidade de
Hattiesburg. Acendeu um cigarro e abriu a janela.
– O que há em Nova Iorque, mamã? – perguntou ele.
Ela soprou o fumo pela janela e olhou para ele através do espelho
retrovisor.
– A Estátua da Liberdade, filho. E o Empire State Building. A Broadway,
para onde vão todos os atores famosos. O Central Park tem um lago e um
jardim zoológico. Em Nova Iorque há polícias a cavalo. Vais adorar, Harry.
Ela sorriu, afastando com a mão o fumo do rosto, e Harry quis acreditar
nela porque gostava quando a mãe sorria.
– E o papá? – perguntou ele.
Houve uma pausa e ela disse:
– Não. O teu papá não vai estar em Nova Iorque.
Pelo menos era assim que Harry recordava – o cheiro a tabaco, Patsy Cline
no rádio e a mãe a cantar. Na sua mente, Harry podia ver o lápis de cera cor
de laranja e o papel. Desenhara um cavalo, um polícia e um tigre enjaulado
num lado da folha e o pai no outro – assinalando assim a sua primeira
contagem dos prós e contras da vida. Harry continuou a usar essa estratégia
quando jovem. Fazer a lista ajudava, ou pelo menos Harry gostava de
acreditar que ajudava, já que muitas vezes ficava preso entre o presente e o
futuro.
«Paralisia por análise», gozara Sal. «O miúdo não conseguiria decidir como
sair de um saco de papel.»
A mãe mandara calar o seu padrasto, dizendo que Harry estava ótimo, que
estava a considerar ativamente as suas opções quando fazia as listas. No
entanto, nem sequer ela diria que Harry estava a fazer alguma coisa
remotamente ativa naquele momento – a viver na caravana do tio junto à
Highway 141 na floresta perto da BZ Corner. Harry estivera satisfeito com a
sua situação até recentemente. Gostava de paz e sossego. Esses eram mais
dois itens para a coluna da esquerda. E de privacidade. Harry não vira uma
única pessoa desde que o tio se fora embora. Apenas pássaros tagarelas e
vislumbres de pequenas criaturas na vegetação rasteira.
«Vida selvagem», escreveu ele sob «Privacidade», embora a vida selvagem
nem sempre fosse um elemento positivo na vida rural. Os bicos-grossos
dourados que pousavam na estrada ensolarada eram lindos. Mas o guaxinim
agressivo que guardava a pilha de lixo não era. Harry tinha quase a certeza de
ter visto um coiote, o seu corpo esguio e castanho rente ao chão, a rondar a
propriedade.
– A minha propidade! – dizia sempre o tio H, o seu sotaque do Mississípi
ainda forte, mesmo depois de décadas no oeste. – Propidade privada! Eles
não têm nenhuma razão para entrar no meu terreno, pois não?
Harry não sabia bem quem poderiam ser, «eles», visto que ninguém visitara
o tio nos dois meses em que ali estivera. O refilão tio H – diminutivo de
Harold, apelido Goodwin – não gostava de visitas. Harry calculou que
houvera uma liquidação nas placas de «Entrada Proibida» na loja de
ferragens, já que havia dezenas delas penduradas ao longo do caminho
coberto de mato até à caixa do correio. O tio H prendera-as com pregos,
tachas e fita adesiva. Enferrujadas e sopradas pelo vento, contribuíam para a
atmosfera geral de abandono que rodeava a dilapidada caravana.
Harry perguntou a si mesmo se o tio tinha realmente alguma «propidade»
ali na floresta escura perto de BZ Corner. Parecia possível ter ocupado o local
e o dono da terra não se dar ao trabalho de correr com ele ou sequer saber que
ele ali estava. BZ não era mais do que um ponto na estrada a norte de Hood
River. No pouco tempo que levava ali, Harry determinou que as pessoas que
viviam em BZ pareciam ser de três tipos: 1) lenhadores aposentados tementes
a Deus que gostavam de caçar, pescar e ficar isolados. 2) Os cautelosos e
desempregados, que tinham um ar tão manhoso que uma pessoa queria
manter a distância. 3) Segundos proprietários de casas de Portland que
tinham construído casas de férias rústicas que raramente ocupavam.
Harry não lhe diria isso na cara, mas o tio H parecia estar firmemente na
segunda categoria. Não era claro como o velho ali fora parar ou porque
ficara. Tinha ainda uma filha e netos no Mississípi, dissera a mãe de Harry.
Harry não fazia ideia de onde ele arranjava o dinheiro, que parecia ser pouco.
Quando mandava Harry à loja, tirava dos bolsos notas amarrotadas de um e
de cinco dólares para pagar as compras. O estatuto de Harry como convidado
era ténue e ele não podia fazer perguntas. A única coisa que impedia o tio de
confundi-lo com aqueles outros invasores da sua «propidade», pensou Harry,
era o facto de o tio H sempre ter gostado da mãe de Harry, a filha da irmã do
tio H.
– A tua mãe é uma boa mulher. Um verdadeiro coração de ouro – dizia ele
sempre que ela vinha à baila. – Artigo genuíno.
Ainda assim, a questão de «propidade» era parte do motivo pelo qual Harry
vivia com o tio na pequena caravana miserável na floresta. Ou seja, Harry
não tinha nenhuma.
A caravana. Isso iria definitivamente para a coluna da direita.
– Desculpa, tio H – disse ele em voz alta –, mas é uma bela merda.
A caravana já vira dias melhores. Entre as suas falhas: o revestimento solto
que balançava com o vento e o isolamento a sair dos painéis baratos. Não
tinha água canalizada, a eletricidade falhava e havia grandes buracos no chão.
À noite, Harry ouvia os ratos correrem atrás das paredes. A certa altura as
escadas tinham cedido, portanto, quando Harry chegou em fevereiro, o velho,
que estava perto dos noventa, usava uma escada improvisada para subir e
descer da caravana. Parecia tão imperturbável ao ver o seu sobrinho-neto
subir o caminho lamacento sem qualquer pré-aviso como a entrar e sair da
caravana para as duas viagens à casa de banho exterior. O tio H não
questionara a história do jovem acerca de querer ver o Oeste. Se tinha falado
com Lydia sobre os «problemas» de Harry, como a mãe gostava de dizer, o
tio H não deixou transparecer nada.
Harry gostava do tio, que parecia adorar falar pelos dois durante horas a
fio. Falou dos seus anos como engenheiro ferroviário na BNSF, a viajar de
costa a costa. Como andara à boleia por todas as províncias do Canadá, até ao
remoto território da Terra Nova, de frente para o selvagem mar do Labrador.
Regalou Harry com histórias de mulheres bonitas que conhecera nas suas
viagens. Harry era um bom ouvinte. Talvez por isso, depois de passar ali uma
semana, o tio não lhe perguntou quando se ia embora. Em vez disso, mandou-
o a BZ comprar mantimentos e gelo para a geleira, que ele usava desde que o
frigorífico se avariara. Harry comprou as poucas coisas que o tio H
considerava básicas: manteiga de amendoim, macarrão com queijo, Spam,
batatas, cerveja light, papel higiénico e aperitivos de queijo. Depois disso,
Harry fazia as compras a cada três ou quatro dias.
Caíram numa rotina agradável. O tio H desfrutava de uma audiência para as
suas histórias e intermináveis jogos de cribbage. Harry, preso como estava
entre o recente desastre do seu passado e a incerteza do seu futuro, saboreava
aquela pausa, suspenso entre o que tinha feito e o que poderia vir a fazer.
Enquanto as chuvas da primavera varriam a grande floresta, os dois
sentavam-se à mesa na caravana bolorenta a jogar às cartas ou a ler a
biblioteca do tio H, que consistia em guias de vida selvagem, livros com
histórias do Pacífico Noroeste e alguns policiais muito manuseados. O tio H
puxava alegremente o seu cabelo branco e crespo sempre que ganhava ao
sobrinho-neto às cartas, o que acontecia com frequência. À tarde, o tio H
deitava-se e dormia uma sesta. Quando a chuva diminuiu, Harry explorou a
floresta acima do rio. Uma vez tentou arrumar a caravana, vasculhando o lixo
para ver o que poderia ser aproveitado ou reciclável, mas o tio gritou-lhe que
se metesse na sua vida e tirasse as mãos das coisas dele. Subira as escadas
com uma ferocidade que alarmara Harry, dada a sua idade e a integridade das
escadas, e batera com a porta frágil. Harry passou o resto daquele dia na
margem do rio. Quando voltou, o tio H estava a fritar Spam com batatas para
o jantar. Venceu Harry no cribbage pela centésima vez e não mencionou o
incidente.
Depois disso, Harry ateve-se às tarefas autorizadas, como consertar o
exterior da caravana e reforçar as escadas. Era bom nesse tipo de coisas e o
tio parecia gostar disso. Também ia a pé ou pedia boleia até à pequena
mercearia. Estendia o polegar na berma da estrada, obrigando-se a parecer
seguro e amigável nas suas calças engorduradas e gorro de lã. As pessoas
provavelmente parariam mais depressa por um velho cambaleante, pensou
ele. A visão do tio H nas suas ceroulas usadas com calções e meias até ao
joelho devia ter sido o que levara os serviços sociais a aparecer dois dias
antes. Ou melhor, a não visão dele, depois de Harry passar a fazer as
compras.
BZ era uma pequena comunidade. Alguém devia ter notado que o tio H não
fazia a viagem há algum tempo. Ninguém teria percebido que o seu sobrinho-
neto lhe fazia as compras. Harry nunca falava com ninguém no
supermercado. O tio H não tinha telefone, portanto ninguém podia ligar-lhe
para saber como ele estava. Harry ouvira-o resmungar que o seu médico o
massacrara para arranjar um telefone. Por isso, embora o tio H pudesse não
ter ficado admirado ao ver a malta do município, Harry ficara.
Quando o carro branco e a ambulância subiram lentamente o caminho de
acesso, dois dias antes, o velho estava a dormir, como fazia cada vez mais e
não apenas nos dias de chuva. Harry estava a urinar na berma da clareira
onde a floresta começava. Um carro a dizer no capô «Uso oficial do
município de Hood River» vinha à frente. Saíram duas mulheres – uma
passageira com o uniforme rosa do hospital e a condutora com calças caqui e
casaco de malha azul-escuro. Harry viu um rapaz mais ou menos da sua idade
descer da ambulância. A condutora disse-lhe qualquer coisa e ele assentiu,
encostou-se à porta da ambulância e começou a escrever no telemóvel. As
duas mulheres caminharam em direção à caravana.
– Boa tarde! Senhor Goodwin?
A condutora tirou os óculos ao aproximar-se da porta.
– Senhor Goodwin? Está em casa?
Harry quis ser hospitaleiro e ao mesmo tempo protetor. Fez menção de
avançar para a luz do sol e apresentar-se como sobrinho-neto e homónimo de
Harold Goodwin. Perguntaria àquelas pessoas quem eram e do que
precisavam. Entraria e ajudaria o tio a descer a escada, embora o tio H tenha
ficado zangado quando Harry se oferecera para o ajudar.
Mas Harry não fez nada disso. Virou-se e desatou a correr. Não soube dizer
quanto tempo correu no estreito trilho de caça acima do rio, mas quando
finalmente parou, a suar e ofegante, deu por si num lugar onde nunca fora, no
meio da floresta. Deixou-se cair na terra argilosa e tentou desacelerar o seu
coração. Pensou na mãe. «Exasperante!», diria ela. Como quando, no
primeiro ano e incapaz de abrir o botão rígido das novas calças de ganga,
Harry se mijara na escola. Quando ela o foi buscar, perguntou: «Harry,
porque não pediste ajuda a um professor?» Harry limitou-se a encolher os
ombros e a limpar o nariz à manga. «Exasperante», murmurou ela pela
primeira de mil vezes.
Encostando-se a um tronco, Harry não teria argumentado. Não tinha uma
explicação razoável para fugir. Não conseguia expressar aquele pânico
infantil em palavras condizentes com o comportamento adulto. Com certeza
poderia fazer melhor do que aquilo. Pelo menos ninguém o tinha visto.
Levantou-se e fez o caminho de regresso à caravana. Respirou fundo e
ensaiou as palavras na sua cabeça.
«Olá. Sou o Harry Stokes, sobrinho-neto do senhor Goodwin. Sou de Long
Island e vim visitá-lo. Em que posso ajudar?»
Era isso que diria. No entanto, quando voltou para a caravana, o caminho
de acesso estava vazio. Harry suspirou de alívio. Afinal não teria de dizer
nada, mas estaria pronto da próxima vez. Entrou na caravana, animado por se
ter safado por pouco.
– Olá, tio H – chamou ele. – Já acordou?
O tio não respondeu porque o tio não estava ali. Harry saiu e verificou a
casa de banho exterior para confirmar a verdade. Aquelas pessoas tinham-no
levado.
Isso fora há dois dias. Harry calculou que tinham levado o tio H para o
hospital naquela ambulância, e parte dele ficou aliviado. O tio H andara a
dormir muito e a agir de forma estranha. Na semana anterior, levantara os
olhos das cartas durante um jogo de cartas e olhara para Harry carrancudo.
– Quem te deixou entrar aqui? – resmungou ele.
– Foi o senhor, tio H – respondeu Harry com nervosismo.
A carranca do velho desapareceu e ele riu.
Se o tio H tivesse mencionado o sobrinho-neto, as pessoas do município
não teriam acreditado no velho excêntrico. Harry tencionava apanhar boleia
até ao hospital e ver como ele estava. Mas não tinha ido naquele primeiro dia
ou na véspera. Aquele era o terceiro dia. Podia pelo menos ter ligado do
telefone público em BZ Corner. Não queria pensar no motivo por que não o
fizera. Sentiu vergonha de si mesmo, o que fez a fome desaparecer
brevemente. Afastou o pensamento e olhou para o caminho de acesso coberto
de mato.
«Segurança», escreveu Harry na sua coluna da esquerda, agora completa.
No entanto, esses prós ficavam cada vez menos atraentes perante os outros
factos: ele estava sujo, com fome, um pouco preocupado com uma
intoxicação alimentar devido à situação da geleira, e infeliz por acordar
sozinho na floresta escura. Não se sentia chegado ao tio, exatamente, mas ele
era alguém com quem conversar ou pelo menos ouvir. No entanto, as
semanas que Harry passara na casa do tio não o deixaram mais perto de
resolver os seus próprios problemas, que eram consideráveis. Voltou para a
lista que estava a crescer.
Sob o título «Relatório da Primavera de 2014», escrevera o seguinte:
«Problemas: sem-abrigo (sem contar a caravana), desempregado, conta-
corrente: $ 318,57, devo à mãe e ao Sal $ 1 468,25.»
Harry suspirou. Precisava de dinheiro. Sabia que a mãe lhe enviaria algum
se pedisse. Fazia-o sempre, dizendo que era apenas para ajudá-lo a erguer-se.
Mas aquilo não era uma crise. Ele simplesmente ficara sem dinheiro, como
acontecia sempre quando chegava a um beco sem saída, porque não tinha
nenhum plano. Não, não podia ligar à mãe. Além disso, ela perguntaria pelo
tio H. Harry sentiu um peso de chumbo no estômago ao pensar no velho
sozinho no hospital.
Virou a página e escreveu uma nova lista.
«Tarefas para abril de 2014: Atualizar currículo, candidatar-me a empregos,
ir ver H, ligar à mãe.» Desenhou uma seta e moveu «ir ver H» para o cimo da
lista, o que o fez sentir-se melhor. A ideia de procurar trabalho deixava-lhe o
estômago embrulhado. O trabalho não era o problema. Harry era um
trabalhador esforçado. O problema era a entrevista, conversar com as
pessoas, fechar o negócio.
«Nunca terminas nada, rapaz!», gritaria Sal. «Aquele último lugar
ofereceu-te um emprego e nunca retribuíste a chamada! Qual é o teu
problema?»
Exasperante.
Harry não tinha uma explicação razoável. Como poderia descrever o
conjunto paralisante de perguntas que uma nova situação apresentaria? Qual
era o melhor trajeto para ir para o trabalho de manhã? O que deveria vestir?
As pessoas levavam almoço ou comiam fora? E se ele tivesse de usar a casa
de banho, tipo, usar mesmo? Não podia fazer essas perguntas a ninguém, pelo
que era mais fácil inventar mentiras inocentes: o ordenado era mau, o horário
era péssimo, o chefe parecia ser um idiota.
Harry bateu com a caneta no lábio superior. Conseguir trabalho daquela vez
seria mais difícil do que o normal, não apenas porque vivia na floresta e não
tinha carro. Havia também o pormenor irritante de ser um criminoso. Ou ter
sido. Pretérito. Mas ele cumprira a sua pena por isso. Ficara para trás, disse a
si mesmo. Primeiro o mais importante. Tinha de encontrar o tio.
Pegou numa toalha, em sabonete e numa muda de roupa e entrou na
floresta indo na direção do rio. Apesar de toda a imprecisão do termo «beleza
pastoral», Harry apaixonara-se realmente pela grande floresta escura em volta
da casa do tio H. Nos dias em que vagueava pelas árvores acima do rio,
ficava chocado com a beleza das coisas mais simples: o musgo verde-elétrico
a crescer no tronco de uma árvore; um nascer do sol inesperado a iluminar o
fantasma de uma casca de árvore. Uma vez, enquanto caminhava, um bando
de passarinhos agitados saiu a voar das árvores e atravessou o seu caminho.
Tinham estado tão absortos na sua tagarelice que nem deram por ele. «Uma
revoada de pardais.» Era assim que o livro de pássaros lhes chamava. Outra
noite, pouco antes de se deitar, Harry ficou no escuro lá fora e olhou para as
estrelas, que eram tão brilhantes ali, longe de qualquer cidade, mais
brilhantes do que as que já tinha visto. Então ouviu o piar profundo e pulsante
de uma coruja a latejar pela floresta à sua volta. Harry não sabia em que
árvore o grande pássaro estava, pois o chamamento parecia vir de todo o lado
ao mesmo tempo. O piar ouviu-se de novo e Harry sentiu-o invadir o seu
peito e encher o seu coração. Filho do subúrbio, nunca estivera tão perto da
natureza e não sabia que ela o afetaria tanto. Ter-lhe-ia chamado felicidade se
alguém lhe tivesse perguntado. Mas não havia ninguém para o fazer.
Harry caminhou pelo trilho até um pequeno banco de areia no rio onde a
corrente forte circulava sobre si mesma e criava um remoinho calmo. Despiu-
se, ficando com a pele pálida toda arrepiada, respirou fundo e saltou para a
água gelada, o que lhe roubou o fôlego. Tocou no fundo arenoso antes de sair
para ensaboar o cabelo e o corpo na ténue luz do sol. Então entrou novamente
na água, para se enxaguar.
De volta à margem, secou-se e vestiu o mais limpo dos seus dois pares de
calças e uma das camisas do tio, uma axadrezada de lã ainda com as
etiquetas. O seu corpo formigou enquanto voltava para a caravana. Fez a
barba no pequeno espelho que o tio pendurara numa árvore. Careca aos vinte
e quatro anos, ou a ficar, pelo menos, ele suspirou. Pensara em rapar tudo,
mas lembrou-se de como um desafio do secundário revelara o seu crânio de
Neandertal cheio de altos.
No entanto, queria fazer alguma coisa para assinalar uma mudança e um
novo começo. Quando viera para o oeste, planeara fazer uma tatuagem, mas
não conseguira decidir qual o desenho certo. Passara uma hora na loja de
tatuagens em Seattle, a folhear os livros antes de sair com um aceno tímido.
O grandalhão ergueu os olhos do cliente em que estava a trabalhar e apontou
com o queixo para Harry.
– Às vezes leva-se tempo a decidir, meu – disse ele.
Estaria a gozar? E se estivesse? Harry sentia-se um nerd. Porque se
importava com o que aquele tipo pensava, aquele desconhecido?
Harry barbeou o queixo e o pescoço magros, mas deixou a barba por fazer
no lábio superior. Ia deixar crescer um bigode. No rio, vira recentemente
pessoas em caiaques com bigodes. Tipos da idade dele. Podia ser fixe.
Enfiou o gorro sobre o cabelo húmido e pegou na mochila, que continha o
seu caderno, uma caneta, uma garrafa de água e uma laranja ligeiramente
tocada. Desceu o caminho de gravilha passando pelas placas velhas de
«Proibida a Entrada» até à estrada e virou para sul, aquecendo enquanto
avançava e olhando para as grandes árvores escuras.
Para onde vais, pequeno Harry Stokes?
Quase conseguia ouvir a voz da mãe. Ela perguntava-lhe sempre aquilo
quando o via a preparar-se para sair de casa quando era pequeno.
Harry, diminutivo de Harold. Harold Stokes. Nome do meio, Courtland. O
nome completo era ridículo, realmente. Harold Courtland Stokes III. Parecia
o membro de um country club sobre o qual se lê na Times. As famílias dos
pais dele eram pobres, mas os nomes ostentosos eram comuns no sul. Harry
tinha uma vaga lembrança de Harold Courtland Stokes II, um homem alto a
rir enquanto passava uísque na língua de Harry com o dedo mindinho, fumo
de tabaco em volta da sua mão grande.
Uma tarde, quando estava no secundário, ele reuniu coragem para
perguntar à mãe pelo pai enquanto a ajudava a descarregar uma carrinha
cheia de adubo. Como se conheceram? Porque se viera ela embora? O pai
alguma vez perguntou por ele?
– O teu pai é um idiota – disse ela, apagando o cigarro com o salto da bota
e calçando as luvas. Ele não voltou a perguntar.
Quando levou Harry para Nova Iorque, Lydia queria ser atriz. Em vez
disso, acabou a servir às mesas num clube de golfe em Long Island, onde
conheceu e se casou com um tipo simpático chamado Sal Romano. Sal tinha
uma empresa de paisagismo e fora o único pai que Harry conhecera. O bom e
velho Sal.
Harry ouviu um carro a aproximar-se e virou-se, espetando o polegar. Era
uma carrinha Subaru com uma jovem família no interior. O pai não tirou os
olhos da estrada. A mãe olhou para ele e desviou o olhar. Culpa. Medo. Duas
cadeirinhas no banco de trás. Harry não podia culpá-los. Continuou a andar.
Sal e Lydia tinham anunciado em janeiro que iam vender a casa de Long
Island e se mudariam de vez para a Florida. Sarasota, onde passariam o
inverno, conquistara-os. Sal estava farto do negócio do paisagismo,
especialmente depois do furacão Sandy. Lydia estava cansada da neve. Em
Sarasota, ela começara a praticar pickleball e Sal queria sentar-se à beira da
piscina a ler os livros de história militar de que gostava. Harry lutou para
esconder a sua desilusão.
– Isso é ótimo! – conseguira ele dizer. – À vossa! – Ergueu a cerveja para
brindar com os copos de vinho deles. O seu entusiasmo era fraco e ele sabia
que isso se notava. Não lhe passou despercebido que o anúncio deles
coincidiu com o fim da sua liberdade condicional duas semanas antes,
deixando-o livre para sair do estado se quisesse. Morar na cave deles sempre
fora considerada uma solução temporária, mas custava-lhe pensar que tinha
de seguir em frente sozinho. A mãe pousou o copo e estendeu a mão sobre a
mesa, os olhos toldados.
– Vais ficar bem, Harry. Um novo começo, querido. E, se precisares de um
lugar para ficar, podes sempre...
– Eh lá! – Sal ergueu a mão grande como um sinal de stop. – Não te
entusiasmes, querida Lydia. – Ergueu o copo novamente. – Ao futuro do
Harry. Que seja tão brilhante como os olhos da sua mãe.
Lydia fungou e ergueu o copo. Harry obrigou-se a sorrir e bebeu um gole
de cerveja.
O vento aumentou e ele sentiu um arrepio. Abotoou a camisa de lã. O Sol
escondeu-se atrás de uma nuvem e o pavimento à sua frente ficou salpicado
de gotas de chuva. Harry baixou o gorro e curvou os ombros.
Ouviu o barulho de um motor a aproximar-se e espetou o polegar. Uma
carrinha Ford Econoline passou por ele e parou. Harry correu até à janela e
viu uma jovem ao volante. Olhos azuis brilhantes, um boné vermelho, tranças
castanhas e uma camisa de flanela axadrezada. Ela sorriu e abriu a janela.
– Olá! Hum, estou, tipo, completamente perdida! Sabes onde é a saída para
o desfiladeiro Klickitat? Vou entregar o almoço a uma excursão de rafting da
Wet Planet.
Harry sabia que a saída ficava perto. Costumava ver os barcos de borracha
amarelos descerem os rápidos atrás da casa do tio H e parar na praia arenosa.
Apontou para sul e explicou onde virar.
A jovem riu e revirou os olhos.
– Sou péssima com direções. Não podes mostrar-me?
Foi assim que Harry se viu na carrinha quente e seca, a mastigar uma
enorme sanduíche de pastrami do River Daze Cafe com a bela Moira. Depois
de ela deixar os almoços, sentou-se de novo ao volante e perguntou a Harry
para onde ele ia.
– Vou para Hood River se quiseres boleia – disse ela.
Ele hesitou. Não queria falar do tio, por isso disse apenas que estava à
procura de trabalho.
– Não sei o que procuras, mas há mais empregos em Hood River do que em
BZ – comentou ela.
Harry assentiu, decidindo que iria ver o tio H quando regressasse de Hood
River.
Moira subiu o volume da música. Harry sorriu, deu uma dentada na sua
sanduíche e lançou uma olhadela às pernas compridas e bronzeadas dela nos
calções de ganga. Ela segurou o volante com os joelhos e acendeu um charro,
inclinou a cabeça para trás e cantou com os Grateful Dead.
– What a loooooong strange trip it’s been!
Inalou, tossiu, sorriu a Harry e passou-lhe o charro. Pela primeira vez em
muito tempo, Harry sentiu que as coisas estavam a melhorar.
4
ABELHA JOVEM
Todos os seus movimentos perto das colmeias devem ser suaves e
lentos. Habitue as abelhas à sua presença: nunca as esmague ou
magoe, nem respire sobre elas em qualquer operação.
– L. L. LANGSTROTH

O ano tinha finalmente virado as costas ao inverno sombrio do Oregon e


sugeria a promessa do verão. Em noites assim, depois do pôr do Sol, o céu
escurecia e depois adquiria aquele improvável verde-amarelado contra a
encosta negra. Jake sempre gostara da luz que se agarrava como uma antis-
sombra à crista. Olhou para ela naquele momento, lembrando-se da primeira
vez em que tivera idade suficiente para estar até tão tarde na rua. No pátio da
escola, em noite de reunião de pais. Descreveu círculos no balouço feito com
um pneu, vendo o céu escurecer enquanto esperava pela mãe, sentindo-se
muito crescido.
Ouvia as águas do degelo da primavera a correr pela vala de irrigação ao
longo de Reed Road. No fim de março, a neve derretida de Mount Hood
inundava os esgotos do vale e enchia o ar da noite com um cheiro verde
limpo, aquele cheiro característico da primavera. Essa era uma das razões
pelas quais sempre adorara estar nos pomares ao crepúsculo, mesmo antes do
acidente.
Deitou-se de barriga para cima e concentrou-se no coaxar estridente das rãs
na vala. Recordou o seu eterno debate com Noah acerca do destino das
criaturas do tamanho de um polegar no inverno. Hibernavam ou morriam?
Como sabiam quando estava na altura de ressurgir e começar a cantar com
tanta esperança no ar frio? Porque estava ele deitado perto da vala? O tempo
abrandara e as rãs minúsculas coaxavam como um metrónomo naquele lugar
intermédio. Metrónomo. Acompanhando o tempo, como a cauda enorme e
tamborilante de Cheney.
A irmã de Noah, Angela, encontrara Cheney na rua depois das aulas, no
outono do penúltimo ano dos rapazes. O seu dorso magro e malhado e a falta
de uma coleira marcavam-no como um cão vadio. Duas divertidas orelhas
saídas para os lados não conseguiam decidir se ficavam para cima ou para
baixo. A sua cauda batia ao ritmo da sua felicidade enquanto corria sobre as
patas enormes, com meias brancas em três pernas. Tinha um focinho grosso e
curto e a boca larga esboçava um sorriso eterno. Um olho era azul e o outro
castanho. Foi Noah quem disse que o cão parecia o ex-vice-presidente Dick
Cheney, se o homem alguma vez tivesse sorrido. O nome pegou.
No dia em que Angela o levou para casa, Cheney saltou para cima de Jake
e depois de Noah, as suas grandes patas a percorrerem os braços e as pernas
deles.
– Ai! Oh, meu Deus! Calma, cão. Para baixo! Sai! Que animal! – gritou
Jake.
O cão largou-o, correndo em círculos apertados e felizes pela sala.
A esperança de Noah e Angela de ficarem com o grande cão vadio
evaporou-se no segundo em que a mãe entrou em casa.
– Nem pensar – disse a senhora Katz. – Levem-no para o canil do
município. Imediatamente.
Ninguém discutia com a senhora Katz. Jake desejou que a sua mãe se
zangasse de vez em quando ou pelo menos respondesse ao seu pai. Talvez
tenha sido por despeito ao pai que ele decidiu levar o cão para casa.
– Acho-o fixe. Seu pequeno punk rocker! – exclamou, puxando as orelhas
grandes do cão. – Vou comprar-lhe uma coleira com picos. Queres ir para
casa comigo, rapaz?
O cão bateu nos ombros de Jake.
A senhora Katz interrompeu a picagem das cebolas e apontou a faca a Jake.
– Jacob Stevenson. Não digas à coitada da tua mãe que te incentivei a levar
esse cão para casa.
– Ele nunca aqui esteve, senhora K – respondeu Jake, levantando dois
dedos. – Palavra de escuteiro. Encontrei-o na escola.
A senhora Katz riu-se e abanou a cabeça.
– Boa sorte, Jacob.
Assim que Cheney entrou na sua vida, Jake não conseguia imaginá-la sem
ele. Cheney esparramado para que lhe coçassem a barriga de manhã. O
focinho feliz de Cheney a espreitar da janela do quarto quando Jake chegava
de skate vindo da escola. Os seus saltos alegres na ponta da trela. Aquela vez
em que encontrou uma tartaruga, de certeza um animal de estimação em fuga,
e a farejara com uma combinação hilariante de preocupação e surpresa.
Cheney a entrar cada vez mais no rio até descobrir que sabia nadar. Uma vez,
espantou uma dezena de perus selvagens nas colinas a leste enquanto Jake e
Noah andavam à procura de sinais de veados com o pai de Noah. Correu atrás
dos pássaros desajeitados, que pareciam mais irritados do que medrosos,
voltando-se ocasionalmente para Jake e ladrando como se dissesse: «OH,
MEU DEUS! Não é INCRÍVEL? PERUS!»
Jake nunca se importara de ser filho único, mas depois da chegada de
Cheney sentiu que houvera um vazio na sua vida, um pequeno armário de
tristeza que agora estava preenchido por aquela criatura eternamente
animada. O cão era uma presença alegre na casa da família Stevenson, que se
tornara mais silenciosa e triste a cada ano que passava. Quando o pai de Jake
não estava por perto, Jake pensava que ele, a mãe e o cão quase pareciam de
novo uma família. Ficava feliz por ver a mãe rir das travessuras de Cheney,
da maneira como ele tentava subir para o colo dela com os seus trinta quilos.
Cheney foi o primeiro amor verdadeiro de Jake.
Ed estivera a trabalhar em Salem quando Jake levara Cheney para casa. A
mãe também já estava apaixonada, mas Jake tinha a certeza de que o que
conquistou Ed foi o seu argumento de ter um cão de guarda. Ele não gostava
dos vizinhos e reclamava constantemente do seu uso do caminho de acesso,
onde colocavam os caixotes do lixo, ou do barulho das festas no jardim.
Havia sempre alguma a irritar Ed. Agradou-lhe a ideia de que Cheney poderia
assustar as pessoas.
– Não quero vê-lo, ouvi-lo ou cheirá-lo – disse Ed, apontando com o
cigarro e olhando para o cão. – Toma conta do animal ou ele vai-se embora.
«O animal»; claro que era assim que o pai lhe chamaria. Não veria que o
cão era um amigo nem o quanto Cheney se esforçava. Quando falhava,
Cheney ficava muito triste – como quando roubou um pedaço de queijo da
bancada. Ou quando partiu a porta de rede durante os seus cumprimentos
selvagens. Percebia-se que ele queria ser bom. Depois de ter tombado a mãe
de Jake algumas vezes, compreendeu que precisava de manter a calma perto
dela. Sentava-se aos seus pés, a tremer, enquanto ela lhe coçava as orelhas e a
estrela branca no peito.
O pai tinha a certeza de que Jake não seria capaz de cuidar do cão e estava
à espera que ele cometesse um erro. Mas Jake fez tudo: passeou-o,
alimentou-o, escovou-o. Enchia a sua tigela com água e mantinha-o preso
quando estavam juntos no quintal. Jake mandou-o castrar, e o pobre Cheney
batia nas superfícies da casa com aquele grande cone de plástico. A mãe
ajudou-o a pagar a cirurgia e a licença do cão, mas não contaram a Ed. De
qualquer forma, ele prometeu devolver-lhe o dinheiro.
O que dissera a mãe de Noah naquele dia?
«Boa sorte, Jacob.»
Dean dissera a mesma coisa.
«Boa sorte, miúdo.»
Dean era o seu fisioterapeuta grande e corpulento no Providence Rehab.
«Vais sair-te bem.»
Espera. Isso foi depois. Isso foi mais tarde. Cheney veio antes do acidente.
As suas recordações estavam todas misturadas. Onde estava ele? Na vala.
Abriu novamente os olhos e viu o céu escuro acima dele.
Distinguiu Oak Grove Schoolhouse erguida contra as colinas do leste. Ele
estivera na Reed Road a ouvir Spring Heeled Jack. Então, como é que caíra
da cadeira perto da vala de irrigação?
E Cheney, onde estava Cheney, o seu cão, o seu companheiro constante?
No dia da festa em casa dos Pomeroy, Jake trancara Cheney no seu quarto.
Só estaria ausente uma hora. A seguir o cão poderia fazer-lhe companhia no
quintal enquanto ele juntava as folhas. Cheney pareceu triste enquanto via o
rapaz apertar os atacadores das suas Doc Martens. Jake atirou-lhe um snack
Kong com manteiga de amendoim tirado do congelador. A última vez que viu
Cheney, ele andava aos saltos como um coelho gigante com o Kong vermelho
na boca.
Jake levou a mão ao rosto. Tentou sentar-se e tudo girou. Voltou a deitar-se
no chão frio e lembrou-se do dia em que voltara da fisioterapia. A ausência
do cão grande foi a primeira coisa que notou. Rolou para dentro da casa e viu
que a trela não estava no gancho perto da porta. Tentou em vão ouvir o clique
das unhas no linóleo. Não houve nenhum latido feliz vindo do seu quarto.
Aquela pequena faísca que mantinha a depressão afastada apagou-se.
Nunca saberia ao certo o que acontecera a Cheney. O pai ergueu os olhos
da televisão. Ed, que fora visitar Jake ao hospital apenas uma vez e encarara
o filho com o rosto cerrado como um punho, tinha agora a mesma expressão.
Voltou a concentrar-se na televisão e bebeu um gole de cerveja.
– Como eu disse. Toma conta do animal ou ele vai-se embora.
– Sinto muito, querido – sussurrou a mãe atrás dele. – Eu não sabia.
Jake dirigiu-se ao seu quarto. A porta fora alargada para deixar passar a
cadeira. A sua velha cama de solteiro com lençóis da Guerra das Estrelas
desaparecera e havia uma cama articulada no seu lugar. Por cima da cama
havia um pendural. Os seus pósteres e jogos ainda lá estavam, tal como a
escrivaninha e o computador. Tudo limpo e arrumado, demasiado arrumado.
Ele fechou a porta para não ouvir o som da voz baixa da mãe e da de Ed a
subir para abafar a dela.
Estava exausto, mas não conseguia dormir. Ficou acordado a ver a Lua
deslocar-se no céu até que tudo escureceu de novo. Queria estar em qualquer
outro lado, menos ali. No entanto, para onde poderia ir? Por fim, adormeceu.
Sonhou com um rio dourado. Inundou as margens, arrancou-o da cadeira de
rodas e ele nadou, leve e feliz. Acordou de manhã com o peso esmagador do
seu futuro.
Depois disso, Jake deslizou para um lugar sombrio. O inverno de 2013
estabeleceu um recorde de chuva – sessenta centímetros em três meses.
Achou que poderia enlouquecer. Acordava no escuro a ouvir os pais sair para
o trabalho e via a noite chegar às 15h00.
Todos os dias enfrentava as horas vazias. Mais um dia de espera. Mais um
dia de exercícios de fisioterapia que pareciam ter estagnado. Posts no
Instagram de amigos que tinham avançado para outras coisas. Mensagens de
e-mail que ele não tinha coragem de abrir. Dormia até mais tarde para matar o
tempo. Tinha dezoito anos e matava o tempo. A sua vida era como uma
prisão. Teria chorado, mas já fizera isso durante meses e não ajudara.
Pensou brevemente em matar-se. Sentou-se em frente ao estojo da
espingarda de Ed uma tarde, a pensar em como o faria. Uma das coisas que o
deteve foi pensar na mãe e no que lhe aconteceria se ele fizesse porcaria e
ficasse ainda pior do que estava. E, de qualquer maneira, ainda era ele
mesmo, não era?
Ouvia música – The Clash, Ramones, Dead Kennedys e todas as bandas de
ska dos Estados Unidos, quanto mais alto, melhor. Mas não conseguia tocar o
seu trompete. Essa música estava demasiado perto do seu coração. Só a ideia
de tocar fazia-o sentir-se destroçado. A caixa do trompete continuou no canto
do seu quarto demasiado arrumado até que um dia ele não aguentou mais e
enfiou-a no fundo do armário.
Então enfrentou as suas limitações físicas de frente. Sim, estava
extremamente grato por poder tomar duche, usar a casa de banho sozinho e
sentar-se e sair da cadeira sozinho. Aprendeu a usar um cateter para esvaziar
a bexiga várias vezes ao dia. Tomava nota das vezes que defecava para evitar
o tipo de situação que dera ao termo «tempestade de merda» um novo
significado. Fora uma curva de aprendizagem íngreme, mas ele conseguira,
graças a Deus. A humilhação das enfermeiras e da mãe a ajudá-lo permanecia
nítida na sua mente.
No entanto, a lista de coisas que já não podia fazer era enorme. Não podia
conduzir sem algum tipo de carro modificado, o que parecia um objetivo
intransponível – nem sequer entrar na pickup de Noah sem preocupações.
Não podia andar de skate, o que também significava que não havia mais idas
ao parque. O que faria ele: pediria à mãe que o deixasse perto do halfpipe?
Mover-se livremente em público era coisa do passado. Como a única vez em
que foi ao supermercado com a mãe depois de uma consulta. A recordação
fê-lo sentir-se mal. As luzes brilhantes do teto nos seus olhos, os produtos
estúpidos de Halloween a bloquear os corredores. Só queria uns malditos
cereais Chex Mix e prendeu a porra da roda num recorte de cartão de uma
abóbora sorridente que atravancava o corredor. Uma velhinha tentou ajudá-lo,
o que tornou tudo ainda pior. Nem a palavra «humilhante» conseguia
descrever a situação. Ele não tinha palavras. Com apenas dezoito anos não
deveria sequer de ter as palavras.
Ficou em casa depois disso. Jogou Tomb Raider, ignorou os e-mails e não
respondeu aos SMS. Na altura já eram apenas de Noah, de qualquer maneira.
Ele ainda mandava mensagens a cada dois dias e até lhe ligava de vez em
quando, deixando mensagens engraçadas, fingindo ser outra pessoa, mais
recentemente um vendedor de uísque escocês chamado Headachy
McDrinkerstein. Não se falavam pessoalmente desde antes da véspera de
Natal. Noah tinha lá ido com Celia Martinez, e Jake não foi capaz de sair do
quarto. Ouviu as vozes deles a conversar com a sua mãe, o som da porta a
fechar-se, a pickup de Noah a afastar-se. Era mais fácil ficar sozinho. Estar
com o seu velho amigo era demasiado doloroso, especialmente com a sua
nova namorada. Ele gostava de Celia, mas ela era um lembrete de que as
vidas deles estavam a mudar e a sua não. E agora? Essa era a eterna pergunta.
A última coisa em que pensava à noite e a primeira coisa pela manhã era:
Que porra vou fazer agora?
Pegara no caderno de desenho uma ou duas vezes, mas deprimia-o olhar
para as cenas que desenhara da sua vida antiga. Tentou consolar-se com a
ideia de que ainda poderia desenhar sentado. Mas esse pensamento deixou-o
tão zangado que atirou o caderno para o outro lado do quarto.
Começou a levantar pesos apenas para passar as horas e sentiu-se
surpreendentemente melhor. Quando o tempo melhorou, aventurou-se a sair
sozinho, esperando até os pais saírem para trabalhar. Foi cada vez mais longe,
fortalecendo os braços, até fazer aquela volta pelo pomar pelo menos duas
vezes por semana. Mover o corpo era um alívio tão grande.
No seu último check-up em Portland, o neurologista ficou radiante.
– Estás em forma, rapaz – disse o doutor Gunheim, puxando o cós das
calças sentado em frente ao computador.
Só não consigo usar a porra das pernas, quis Jake dizer.
– Alguma pergunta?
Jake ficou contente por ter pedido à mãe para deixar de entrar no
consultório com ele. Nem sentiu vergonha de perguntar e o doutor Gunheim
não pareceu admirado. Que rapaz de dezoito anos não se perguntaria sobre a
sua pila? Infelizmente, o médico não tinha uma resposta definitiva.
– É muito provável que tenhas um funcionamento sexual adequado, mas
teremos de esperar para ver. Vou marcar-te uma consulta de urologia para
daqui a dois meses. Ainda estás a curar-te, Jake. Tenta ter paciência.
Paciência? Ele gostava do doutor Gunheim, mas em momentos como
aquele tinha vontade de lhe esmurrar a cabeça.
Naquele momento, a sua própria cabeça latejava. Olhou através do pomar
em direção à linha de árvores onde a floresta começava. A luz verde do
crepúsculo engolira o sol. Vénus brilhava entre as primeiras estrelas fracas. A
brisa da noite soprava da encosta, trazendo o cheiro de pinheiros. O olhar de
Jake vagueou, pousando na cadeira, que estava tombada.
Junto dela, viu uma pessoa, uma mulher baixa de jardineiras que parecia
mais velha do que a sua mãe. Inclinou-se para a frente e olhou para Jake. A
sua expressão era preocupada e aliviada ao mesmo tempo. Lembrou-lhe
Cheney quando lhe levara aquela tartaruga entre os dentes, com uma
expressão de curiosidade e preocupação com aquela coisa desconhecida. A
recordação fez Jake querer rir. Em seguida, a testa da mulher franziu-se.
– Caraças, rapaz! Que diabo estás a tentar fazer? Matar-te? – gritou ela.
5
DISSEMINAR A FEROMONA
Membros de diferentes colónias parecem reconhecer as suas
companheiras de colmeia através do olfato e, se houver mil abelhas no
apiário, qualquer uma detetará prontamente uma abelha estranha;
assim como cada mãe num grande rebanho de ovelhas é capaz, pelo
mesmo sentido, na noite mais escura, de distinguir o seu próprio
cordeiro no meio de todos os outros.
– L. L. LANGSTROTH

Quando uma colónia de abelhas sofre uma perturbação, mesmo algo tão leve
como a abertura da colmeia pelo apicultor para avaliar as reservas de mel ou
fontes de pólen, o primeiro instinto das abelhas é comunicar umas com as
outras. Algumas obreiras-guarda voarão para avaliar a ameaça em questão,
mas a maioria das abelhas aterrará imediatamente expondo a sua glândula de
Nasonov e agitará as asas, espalhando assim a feromona da rainha por toda a
colmeia. Essa ação é como uma chamada tranquilizadora que diz aos
habitantes que está tudo bem.
Alice, por outro lado, estava sozinha naquele momento de urgência e não
tinha ninguém que a pudesse orientar ou confortar. Nunca tivera um acidente
desde o secundário, mas reconheceu rapidamente que gritar era inapropriado,
em especial dadas as circunstâncias – ou seja, que podia ter ferido um menor
numa cadeira de rodas. Olhou para o rapaz e baixou a voz.
– Estás bem, rapaz? Consegues... consegues sentar-te?
O rapaz não disse nada, mas ainda sorria. Isso não parecia certo. Teria
algum atraso mental? Ou… paralisia cerebral? Raios! Alice procurou o
telemóvel.
– Vou chamar o cento e doze – murmurou para si mesma.
O sorriso do rapaz desapareceu então e ele levantou a mão.
– Não. Não faça isso. Estou bem. Só preciso de um minuto. Recuperar o
fôlego.
A sua voz era baixa, mas de resto soava normal, e isso fez Alice perceber
que estava demasiado perto dele. Deu um passo atrás. O que fazia ele ali no
escuro? Ela olhou em volta e não viu ninguém.
– Estás sozinho? – perguntou.
O rapaz assentiu.
Alice sentiu culpa e vergonha espalharem-se pelo seu corpo como uma
droga. Sentia o cheiro do seu próprio suor. Olhou para um lado e para o outro
da estrada, que estava escura e silenciosa. Em seguida, correu para a sua
pickup, desligou o motor e ligou os quatro piscas. Quando voltou, o rapaz não
se mexera.
Ela sentou-se no chão, cruzou as pernas e observou o rosto do rapaz. Ele
pestanejou e ela viu o seu peito subir e descer.
– Isso é bom. Respira fundo algumas vezes. Vamos ficar aqui mais um
bocadinho – disse ela.
O crepúsculo intensificou-se e o ar escureceu. Os faróis da carrinha
projetavam dois feixes de luz nos pomares. Ela conseguia ver abelhas a
esvoaçar. Os quatro piscas soavam como um relógio de cozinha frenético e o
coração de Alice batia ao mesmo ritmo. O rapaz olhava para o céu.
– Volto já – disse ela. Foi à pickup, pegou na sua garrafa de água e olhou
para os destroços das colmeias na base da caixa aberta da pickup e na vala.
Centenas de abelhas tinham pousado aí e faziam soar o alarme como loucas.
Com os ventres levantados e as suas glândulas de Nasonov expostas,
espalhavam feromonas tentando localizar as suas rainhas. Que confusão. Isso
teria de esperar.
Voltou para junto do rapaz e ergueu a garrafa.
– Tens sede?
Ele abanou a cabeça e Alice sentou-se de novo ao lado dele.
– Estás magoado? – perguntou e arrependeu-se. Ele estava numa cadeira de
rodas, pelo amor de Deus. – Tens dores?
Ele tornou a abanar a cabeça.
Aquele cabelo! O nariz bicudo destacava-se nitidamente no seu rosto
pálido. Com as calças de ganga justas e botas da tropa, parecia tão deslocado
em Hood River como se tivesse caído do céu.
– Bateste com a cabeça?
Ele assentiu.
– Não com força. Apenas... ressaltou quando caí.
Alice percebeu que estava a suster a respiração e exalou.
– Como te chamas?
– Jake.
– Jake. Sou a Alice. Alice Holtzman.
Ele olhou diretamente para ela e anuiu. Alice descontraiu-se um bocadinho.
Sentia o cheiro da água fria da vala de irrigação abaixo deles e estava grata
por o rapaz não ter caído lá dentro. Contorceu-se quando a gravilha a
magoou. O rosto pálido do rapaz era claro sob o penteado maluco. Alice
olhou para o relógio.
– Ouve, Jake, eu devia ligar aos teus pais para lhes dizer onde estás. Dás-
me o número deles?
Ele abanou a cabeça e fez um esgar.
– Não. Está tudo bem. Eu levanto-me daqui a nada. Eles não estão em casa,
de qualquer maneira.
Aquela última parte soava a mentira e, tendo em conta que eles
provavelmente tinham telemóveis, irrelevante.
– Certo – disse ela devagar, sem saber o que mais dizer. Não convivia com
rapazes adolescentes desde que ela mesma era adolescente.
– Acho que consigo sentar-me – disse ele.
Soergueu-se nos cotovelos e tirou o emaranhado de auriculares e óculos de
sol do pescoço. Pestanejou e olhou em volta.
– Que barulho é esse? – perguntou.
O ar em redor deles pulsava e vibrava. Alice via as abelhas numa nuvem
latejante acima da carrinha. Perguntas agitadas ecoavam pelo ar. Onde estava
a rainha? As crias estavam seguras? As obreiras-guarda estavam de serviço?
Onde estavam todas? Onde era a casa? Apesar da situação mais urgente do
rapaz na cadeira, ela sentiu lágrimas quentes nos olhos pelo que fizera às suas
abelhas. Pigarreou.
– São abelhas. Abelhas melíferas – respondeu Alice. – Tinha algumas
colmeias na parte de trás da pickup, e elas estão um pouco confusas agora.
Peço desculpa por isto. Não te vi. Provavelmente ia demasiado depressa, mas
esta é a minha estrada e quase nunca vejo ninguém aqui. E não estava à
espera...
Parou, nervosa. O rapaz observava-a e ela pensou ter visto os cantos da
boca dele subirem.
– Não estava à espera de ver uma cadeira de rodas a deslizar por Reed
Road? – perguntou.
Ela não soube o que responder.
O rapaz mudou de posição e olhou por cima do ombro em direção à
carrinha.
– Então, abelhas? Porque tem abelhas na sua carrinha?
– Sou apicultora – respondeu ela, grata por ter algo sobre que conversar. –
É apenas um passatempo, na verdade. – Gesticulou na direção de casa. –
Tenho algumas colmeias.
– Colmeias. Uau.
Ele observou as abelhas a esvoaçar à luz dos faróis.
– Parecem zangadas – disse ele.
Alice abanou a cabeça.
– Não, não estão zangadas. Estão confusas.
Como se chamava ele? Bolas, a sua memória! Tentou manter a voz calma.
– Estão mais ou menos a conversar agora, certificando-se de que se
encontram bem. Deviam estar nas suas caixas. Alguns delas caíram da
carrinha quando bati na cerca.
Ela olhou para o lado do seu rosto magro. O que se devia fazer quando
alguém batia com a cabeça? Fazer-lhe perguntas? Jake! Ele chamava-se Jake.
– Como está a tua cabeça, Jake? Melhor?
Ele levou a mão à cabeça rapada e assentiu.
– Sabes onde estás? O que andavas aqui a fazer?
Ele sorriu.
– Não se preocupe. Não tenho uma concussão. Estou em Reed Road. É dia
dez de abril de dois mil e catorze. Moro em Hood River, Oregon, e o Barack
Obama é o presidente dos Estados Unidos.
O sorriso desapareceu e ele franziu a testa.
– Mas não consigo lembrar-me do seu nome.
– Alice Holtzman – disse ela.
– Estou bem, senhora Holtzman.
O rapaz parecia bem. Ela olhou para a carrinha. Teria de arrumar tudo para
levar o rapaz a casa.
– Ouve, Jake, se não te importas, vou ver como estão as abelhas.
– Ah, sim. Não há problema.
– Tens a certeza?
– Absoluta.
– Fica sentado – disse ela, levantando-se.
– Okay. Não vou fugir.
Ela hesitou. Aquilo fora uma piada?
Ele acenou com um braço comprido.
– Estou bem, a sério. Vá ver as suas abelhas, senhora Holtzman.
– Trata-me por Alice – disse ela. – A minha mãe é que é a senhora
Holtzman.
– Está bem, Alice – disse Jake.
Alice calçou as luvas, colocou o chapéu com o véu e acendeu uma lanterna
vermelha, preparando-se para os danos. Sete colmeias núcleo continuavam na
pickup. Endireitou-as e prendeu melhor as tampas. As outras cinco estavam
espalhadas pela estrada. Ela sabia que haveria muitas abelhas mortas, mas
tinha de se concentrar nas que poderia salvar naquele momento.
– Aquilo ali parece um filme de terror – gritou o rapaz.
– Não, está tudo bem – respondeu Alice. – Só preciso de uns minutos para
resolver isto. Sentes-te bem?
– Sim – respondeu ele.
Em cerca de vinte minutos, ela recolhera todos os quadros e pusera as
colmeias em ordem. Foi picada duas vezes nos antebraços. Isso não podia ser
evitado. Tinha de se concentrar naquelas que poderia salvar. Voltou para junto
de Jake, que estava sentado com as costas contra uma pedra. Com aquele
cabelo e as suas longas pernas, ele parecia uma espécie de pássaro exótico.
Alice baixou-se e agarrou num lado da cadeira de rodas. O rapaz olhou
para ela zangado. Ela recuou, envergonhada, e perguntou-se como o teria
ofendido.
– Pensei em dar uma olhadela à tua cadeira?
Ele descontraiu-se e assentiu. Alice endireitou a cadeira de rodas e
iluminou com a lanterna o lado direito. Viu arranhadelas, provavelmente por
causa da queda. Mas, quando girou a roda, ela parecia direita, o que era bom.
Ainda conseguia ouvir as abelhas, embora o zumbido estivesse a diminuir.
Ainda devia haver centenas a voar.
O rapaz mudou de posição contra a rocha e olhou além dela.
– Então, elas vivem, tipo, nessas caixas?
– Apenas temporariamente – respondeu Alice. – Têm umas belas colmeias
à sua espera em minha casa. Aquelas caixas são para a viagem, como um
camião de gado – disse ela, examinando o lado esquerdo da cadeira, que
parecia intacto.
– Como é que as traz de volta? – perguntou Jake. – Pequenos cães
pastores? Pequenos laços?
Ela olhou para ele e viu que sorria de novo. Miúdo engraçado, pensou.
– Bem, elas vão voltar a entrar assim que o ar ficar escuro e frio –
respondeu ela. – Tenho de lhes dar alguns minutos. Depois dou-te boleia para
casa.
– Não há pressa – disse ele.
– Olha, eu sentia-me melhor se ligasses para aos teus pais, Jake. A sério.
Ele suspirou e tirou o telemóvel do bolso.
– Tudo bem. Eu trato disso. – Digitou uma mensagem. – Feito – disse e
sorriu.
– Obrigada – disse ela. – Não quero que os teus pais se preocupem. Já me
sinto suficientemente mal com tudo isto...
Alice inclinou a cadeira para a direita e girou a roda esquerda, que também
se movia livremente e parecia direita. Não era especialista em mecânica, mas
a cadeira de rodas parecia em bom estado. Insistiria em pagar qualquer
reparação. Afinava-se uma cadeira de rodas como uma bicicleta?, interrogou-
se ela.
– Bem, tecnicamente a senhora não fez nada. Eu caí a tentar sair da sua
frente. Portanto, vou apenas dizer-lhes que me fez sair da estrada.
Alice franziu a testa, ainda a olhar para a cadeira, e não respondeu. Estaria
ele a tentar ser engraçado?
– Estou bem, a sério. Ia apenas...
Calou-se e olhou para a pickup atrás dela. Então deslocou-se ligeiramente
para encará-la.
– Quanto às abelhas, Alice. Espera até que eles entrem nessas caixas?
Alice assentiu.
– Sim. Elas encontrarão o caminho de volta. Querem voltar para casa.
– O que acontece se ficarem na rua depois do recolher obrigatório? A mãe
abelha fecha a porta?
Alice pousou a cadeira, mas não olhou para ele.
– Se não chegarem a casa antes de a temperatura descer, não se safam.
– O que quer dizer?
– Bem – disse ela –, se não voltarem para a colmeia à noite, morrem do
lado de fora. Está demasiado frio.
Viu uma expressão de preocupação no rosto dele, surpreendendo-a.
Desligou a lanterna.
– A maioria vai ficar bem. São resistentes – disse, querendo tranquilizá-lo.
Ficou sensibilizada por um adolescente poder preocupar-se com o destino das
pequenas criaturas. – O meu pai costumava chamar-lhes duronas.
Ele sorriu e olhou para trás dela.
– Então podem simplesmente entrar em qualquer uma daquelas caixas? –
perguntou.
– Queres mesmo saber?
Ele assentiu.
Alice olhou para a pequena nuvem de abelhas que zumbia sobre a carrinha
no crepúsculo. Adorava a história das abelhas, que parecia um conto de fadas.
Mesmo que se fosse um cientista ou uma pessoa religiosa, não se podia negar
que as abelhas tinham verdadeira magia.
Uma colmeia de sessenta mil abelhas, explicou ela, tinha uma rainha – líder
e mãe de todas elas. E 97 por cento dos outros minúsculos corpos dourados
que zumbiam lá dentro pertenciam às suas filhas. O punhado restante era
formado por machos, chamados zângãos. Filhas e filhos reconheciam a
rainha pelo seu cheiro, que se chamava feromona. A feromona da rainha
dizia: «Está tudo bem.» Dizia: «Estamos juntos.» Dizia: «O vosso lugar é
aqui.»
Desde o momento em que emergiam dos seus alvéolos operculados,
aquelas criaturas douradas sabiam exatamente o que fazer. As filhas
chamavam-se obreiras, explicou Alice a Jake enquanto a luz diminuía. A
primeira coisa que faziam após a eclosão, era limpar o alvéolo em que tinham
nascido. Em seguida, começavam a cuidar das outras abelhas bebés,
alimentando-as e tampando os alvéolos das larvas e ajudando as outras
abelhas emergentes a aprender a contribuir para a colmeia. Contou a Jake
como as obreiras eram promovidas à medida que envelheciam, movendo-se
em direção à porta para receber o néctar e o pólen das abelhas que o
recolhiam no campo. Algumas obreiras acabavam por passar a ir buscar
alimento ou tornavam-se guardas, explicou ela. As guardas vigiavam a
entrada e só deixavam entrar as outras abelhas que ali pertenciam.
– Como sabem elas? – perguntou Jake. – Quem é quem, quero dizer?
Sabiam pelo cheiro, respondeu Alice. Desde que a rainha estivesse
saudável e pusesse ovos, a sua feromona mantinha-as todas unidas. Se
tivessem alguma preocupação, paravam imediatamente o que estavam a fazer
e expunham a glândula de Nasonov nos seus abdómens, passando um cheiro
característico de limão de abelha para abelha. As abelhas que recolhiam
alimento levavam aquele cheiro com elas e traziam-no de volta para a
colmeia. O cheiro permitia que as guardas as identificassem como residentes
e não ladrões.
– O que quer dizer? Elas roubam umas às outras?
Alice anuiu.
– As abelhas de colmeias famintas roubam mel, portanto, todas são
verificadas à entrada. As vespas também tentam entrar. Comem as larvas e os
ovos… estuporzinhos carnívoros.
Ups!, pensou ela. Olha a linguagem! Olhou para o relógio. Há quanto
tempo estavam ali? Queria levar o rapaz para casa o mais depressa possível.
O zumbido tinha diminuído e poucas abelhas permaneciam no ar.
– Quase prontas. Pelo menos na medida do possível.
Alice levantou-se, limpou o traseiro das jardineiras e virou-se na direção da
pickup. Não queria que o rapaz lhe visse o rosto. Ficava perturbada ao pensar
na possibilidade de perder sequer uma abelha.
Estremeceu, sentindo a queda repentina de temperatura que era comum em
noites de abril como aquela. Virou-se para encarar Jake e o problema de fazê-
lo levantar-se, escolhendo, como sempre fazia, ser direta.
– Então muito bem – disse ela. – Diz-me como ajudar-te a levantar e eu
levo-te a casa.
Jake explicou como posicionar a cadeira de rodas travada e, em seguida,
içou-se para ela. Alice fez menção de ajudá-lo, mas parou quando viu que ele
era claramente capaz de se desenvencilhar sozinho. Instalou-se no assento e
usou as duas mãos para levantar cada perna e colocar os pés nos apoios.
Olhou para o chão escuro e irregular e hesitou. Alice percebeu o seu
constrangimento.
– Olha – disse ela –, vou empurrar-te até à carrinha. Faz a vontade a uma
mulher nervosa, okay?
Ele encolheu os ombros em aquiescência, mas não encontrou o olhar dela.
Alice empurrou-o para a lateral do veículo e abriu a porta. O habitáculo,
como sempre, estava um caos. Embaraçada, lançou uma pilha de papéis e
livros para o banco de trás para arranjar espaço. Então afastou-se e viu o
rapaz avaliar o espaço. Quando ela perguntou se podia ajudar, ele abanou a
cabeça. Jake aproximou primeiro os joelhos da porta. Ergueu os pés, um de
cada vez, para o chão do habitáculo. Então, com a precisão de um alpinista,
estendeu os braços, apoiou-se no banco e no puxador da porta e içou-se para
cima e para dentro.
Recostou-se e Alice reparou que ele estava a transpirar devido ao esforço.
Entregou-lhe a mochila e ele explicou como dobrar a cadeira. Era mais leve
do que ela esperava e prendeu-a na parte de trás com uma correia. Sentou-se
ao volante e olhou para Jake, que examinava o céu escuro.
– Parece que tinha razão. Não vejo mais nenhuma lá fora.
Alice assentiu, mas não disse nada. Pensou nos corpos dourados e imóveis
que vira espalhados ao longo da estrada.
– Então muito bem. Para onde?
– Greenwood Court. Atrás do NAPA Auto – disse ele.
– Estás a brincar comigo? Santo Deus! Vieste dar uma voltinha de
dezasseis quilómetros? – Abanou a cabeça com admiração e viu-o esconder
um sorriso.
Rodou a chave e a voz de Bruce Springsteen rugiu na cabina: «Oh, oh, oh,
oh! Thunder Road!»
– Caramba! – exclamou ela e desligou o rádio. Sentiu um suor frio surgir
no rosto e nas mãos.
O rapaz inclinou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.
– Não admira que não me tenha visto, Alice – disse ele. – A cantar com o
Boss! E tem um leitor de cassetes! Isto é tão incrível!
Jake bateu palmas e Alice permitiu-se sorrir, recuperando o fôlego. Ele
descobriu a sua coleção de cassetes na consola central.
– Posso? – perguntou.
– Estás à vontade – respondeu ela e rumou à cidade enquanto ele
vasculhava as cassetes. Ela ligou o rádio com o volume baixo.
– Vejamos... Bob Dylan. Clássico. Os Fixx. Aceitável. Claro, o único
álbum bom deles foi o Reach the Beach. E aqui temos… caramba, Alice. Phil
Collins? Isso é criminoso. Demasiado trágico! É melhor deixar-me sair aqui.
Estavam num stop e ele fingiu abrir a porta.
– Os Genesis são perfeitamente respeitáveis! – protestou ela. – Não sei
como é que o material a solo dele veio aqui parar!
– Francamente. Sinto vergonha por si, Alice.
Que espertinho! Ela encostou-se ao volante e riu. Quando fora a última vez
que se rira?
Jake estava a acusá-la de ter um esconderijo secreto de cassetes de
Madonna quando ela entrou em Greenwood Court; então o seu sorriso
desapareceu. Abrandou no caminho de acesso esburacado e passou por um
burro de cerâmica com pernas a esboroar e uma cesta de flores de plástico
velhas. O burro estragado deprimiu Alice por algum motivo.
– Pode deixar-me sair aqui – disse Jake em voz baixa.
Diante de uma casa azul, os faróis de Alice iluminaram as pernas de uma
mulher e, em seguida, os seus braços cruzados e rosto ansioso. Desligou o
motor.
– Deve ser a tua mãe?
– Sim.
– Eu vou explicar – disse ela e saltou da carrinha.
– Não, Alice. Espere!
A mãe do rapaz avançou pelo caminho de gravilha, encurtando a distância
entre eles e apertando o casaco de malha cinzenta em torno do corpo. Antes
que Alice pudesse explicar completamente o que tinha acontecido, ela
aproximou-se da pickup.
– Jacob, querido! Estás bem?
– Estou ótimo, mãe – disse o rapaz. – E não foi culpa da Alice. Eu não
estava a prestar atenção.
– Espera. O quê? – A mãe virou-se para Alice. – Disse que o encontrou.
Atropelou o meu filho? – Brandiu um dedo junto ao rosto de Alice. – Esteve
a beber? Que tipo de pessoa irresponsável…
– Não, não foi isso…
A mãe de Jake começou então a gritar e Alice levantou a voz para tentar
fazer-se ouvir.
– Minha senhora! Se se acalmar, posso...
A porta da casa abriu-se com estrondo e um homem caminhou em direção a
eles, o rosto queimado do sol contraído de raiva.
– Que diabo se passa aqui?! – gritou ele.
A mãe de Jake tentava abrir a porta traseira da pickup e chorava
audivelmente.
Jake debruçou-se na janela e chamou-a.
– Mãe! Acalma-te! – Alice virou-se para o pai para lhe assegurar que o
filho estava bem, mas rapidamente percebeu que ele estava apenas chateado
por lhe terem interrompido o serão. Ele inclinou-se, brandindo um dedo junto
ao rosto de Alice e disse uma série de coisas irrepetíveis. De repente, o rapaz
estava ao lado dela.
– Ed! Cala-te! – gritou.
O homem olhou com desdém para o rapaz, cuspiu para o chão junto aos
pés de Alice e voltou para dentro.
– Alice… – começou Jake.
Ela olhou para ele e não falou. Deu meia-volta e dirigiu-se à pickup.
– Espere! – chamou o rapaz.
Sentou-se ao volante e viu Jake afastar-se da mãe e vir na sua direção.
Ficou com a sensação de que estava a abandoná-lo. Ridículo. Nem o
conhecia. Afastou o pensamento enquanto saía dali. Voou em direção a casa
como uma obreira errante a tentar encontrar o caminho para a segurança da
colmeia enquanto a escuridão tomava conta do vale.
6
LOCALIZAÇÃO DA COLMEIA
Uma colmeia de construção mais simples possível, é uma imitação
aproximada da morada das abelhas em estado natural; sendo um mero
recetáculo oco, onde, protegidas das intempéries, podem guardar as
suas reservas.
– L. L. LANGSTROTH

O vento fustigou a casa a noite toda como se estivesse à procura de algo que
tinha perdido. Entrou por baixo dos peitoris das janelas e soprou nos cantos,
chocalhando as maçanetas das portas e assobiando pelo corredor. Alice
ouvia-o deitada na cama. Viver ali no vale entre o velho vulcão e a garganta
do rio era viver com o vento. Crescera com os ventos de oeste quase
constantes que enchiam o rio de espuma durante todo o verão e golpeavam as
florestas com neve no inverno. Quando era menina, pensava no vento como
uma coisa viva, como uma enorme criatura alada a galopar pelo vale. Alguns
dias dançava sobre os pomares com as suas volumosas saias a esvoaçar.
Outras vezes, era fino como uma flecha e projetava-se entre as montras das
lojas e os becos estreitos do centro da povoação. Naquela noite, o vento
estava fraco e agitado, zumbindo como uma abelha perdida apanhada no
canto da sala. Era como uma memória, um desejo ou um sonho esquecido.
Ouviu o piar latejante de uma coruja, um sinal de que o amanhecer estava
distante e a noite ainda dominava. Dormitou até acordar com o arrulhar das
pombas que desceram numa rajada cinzenta para o bebedouro das galinhas
por volta das cinco da manhã. Então, Red Head Ned, o seu sempre fiel galo,
começou a cantar antes do amanhecer. Era o vento, os pássaros e as galinhas
que a mantinham acordada, disse a si mesma ao despertar totalmente. Não o
rapaz. Rendeu-se à vigília quando esse pensamento surgiu e se alojou no seu
peito, como um gato teimoso, sem vontade de sair. O rapaz. Tirou os pés da
cama e sentou-se com um suspiro. Claro que era o rapaz. Também tinha
pensado nele o dia todo na véspera durante o trabalho.
Alice fez café e sentou-se, apoiou os cotovelos na mesa de fórmica e olhou
para o quintal. O rapaz estava claramente bem. A cadeira também, mas ela
não tivera tempo de falar sobre isso antes de toda a gritaria começar duas
noites atrás. Percebia que a mãe estivera apenas preocupada com ele. Nem
sequer se incomodara com o que o idiota do pai do rapaz lhe tinha dito. Mas
tinha dúvidas sobre o bem-estar dele. O que fazia Jake o dia todo? Teria um
emprego? Iria à escola? Tinha a impressão de que ele dissera que já acabara o
secundário. Mas com o que preenchia a sua vida? Como era viver com um
pai assim?
Alice, querida. O que podes fazer pelo menino, afinal?
Quase podia ouvir a voz do pai – a sua cadência rápida e os resquícios de
uma entoação alemã.
Ele não é responsabilidade tua. Tem família.
Era isso que Al diria. Mas olha quem falava. Apesar de toda a sua
insistência para que as pessoas não se metessem na vida dos outros, Al
Holtzman fora um filantropo em série. Não se envolvera nos problemas das
pessoas. Envolvera-se nas suas soluções. Era o que dizia. Alice veio a
compreender que ele fazia sempre essa pergunta – o que podes tu fazer,
afinal? – porque, se conseguisse ver uma maneira específica de ajudar, fá-la-
ia. Ajudava na sua forma discreta, não querendo chamar a atenção. Pagava as
compras da senhora Travis quando estava suficientemente longe da sua
cabeça branca e encaracolada na fila do Little Bit para que ela não o ouvisse,
porque sabia que vivia de uma pensão de viuvez. Deixou três metros cúbicos
de lenha na casa de Tom Connolly num dia frio de outono, queixando-se de
que não arderia nada. Pagara a hipoteca da oficina de Juan Garcia. Marina
ficou furiosa com isso. Mas Al disse apenas que Garcia era um bom homem e
tinha quatro filhos pequenos. Estivera internado com uma hérnia discal. Era
um mistério como é que Al sabia todas essas coisas. O modesto pai de Alice
conhecia as complexidades de tantas vidas.
O que podes fazer pelo menino, afinal, querida Alice?
A menos que houvesse uma resposta clara, não havia razão para continuar a
considerar a questão. Esse era o conselho claro de Al, mesmo do túmulo.
Alice suspirou.
Nada que me ocorra, pai.
Deitou cereais Raisin Bran numa tigela e comeu-os em pé junto ao lava-
louça. Deitou açúcar noutra chávena de café. Sabia que os seus hábitos
alimentares eram terríveis, mas não se importava. Acabara as Chips Ahoy! na
noite anterior, uma a uma, como se fosse trabalho. Sabia que o vazio que
sentia constantemente não era fome, mas o açúcar era uma solução de curto
prazo.
Alice levou o caderno para o apiário, a fim de planificar o seu dia, grata por
ser sábado e não ter de ir ao escritório. O vento tinha parado de soprar e a
manhã estava gloriosa. A luz do sol fluía pelos ramos dos choupos perto do
riacho. Aqueceu os lados brancos das colmeias para que as meninas saíssem
com força total, os seus corpos dourados a voar sobre o trevo e para o pomar
de Doug Ransom, e depois sabia-se lá para onde. Podiam procurar alimento
ao longo de mais de cinco quilómetros. Alice desejou que houvesse uma
maneira de segui-las e aprender os seus segredos de abelha. Pequenas
webcams, pensou, o que a fez recordar a piada de Jake sobre os pequenos
cães pastores e laços.
Sentou-se num tronco e olhou para as suas anotações da véspera, quando
instalara as colmeias núcleo antes de ir trabalhar.
Sexta-feira, 11 de abril de 2014 Nascer do Sol: 6h27, Temp: 17ºC / 6º
C, Velocidades do vento 16-12 KM/H, Precipitação: o, pôr do Sol:
19h47 Total de colmeias até ao momento: 24. Notas: Instaladas 12
colmeias núcleo no lado nordeste do pátio das abelhas. Cada colmeia
com cinco quadros de criação, pólen e mel. Colmeias datadas e
marcadas com o n.º 13-4. Transferência sem incidentes.
Sorriu com ironia ao ler a última parte. A transferência das colmeias tinha
corrido bem, mas ela sentia que devia haver alguma maneira de tomar nota
do estranho episódio em que tirara da estrada um adolescente numa cadeira
de rodas na noite antes de instalar as abelhas. Colocou um asterisco após a
palavra «incidentes» e escreveu «(Jake Stevenson*)» como nota de rodapé ao
fundo da página e a seguir virou para o trabalho daquele dia.
«Sábado, 12 de abril de 2014», escreveu. Anotou a hora do nascer do Sol, a
previsão de temperaturas máximas e mínimas e a velocidade do vento. Em
seguida, escreveu: «Tarefas: completar inspeção regular das colmeias n.º 1-
2.» Isso iria mantê-la ocupada durante várias horas.
Alice colocou o chapéu de apicultor, calçou as luvas e começou o trabalho
cuidadoso de inspecionar as doze colmeias originais, cada uma com duas
alças. Abriu a primeira tampa, colocou-a de lado e removeu a tampa interior.
Soltou um quadro e tirou-o. Segurando-o, procurou ovos, larvas e alvéolos
operculados. Verificou os depósitos de pólen e mel. Colocou aquele quadro
de lado e tirou o seguinte. À medida que o Sol ia subindo no céu, completou
aquela ação para os dez quadros nas alças superior e inferior das doze
colmeias. Apenas dois não pareciam prosperar. Provavelmente as suas
rainhas não tinham sobrevivido ao inverno. Nelas viu muitas larvas de
zângãos, o que era sinal de uma operária poedeira, mas não fora criado
nenhum alvéolo real. Alice decidiu adicionar-lhes quadros de colmeias mais
saudáveis para as impulsionar.
Olhou para as suas anotações e identificou duas das colmeias mais fortes.
Na primeira, encontrou quadros com mel, faixas de pólen dourado e laranja
por baixo, e fila após fila de alvéolos com larvas saudáveis. Alice respirou o
doce aroma de cera e mel. Aquilo serviria muito bem. Se as rainhas nas
colmeias enfermas tivessem morrido, obreiras robustas como aquelas
poderiam produzir outra em três semanas. Tomou nota para verificar se havia
alvéolos reais dali a cinco dias e depois começou a trabalhar, cantarolando
para si mesma, transferindo quadros saudáveis para as duas colmeias frágeis.
Alice sempre gostara da parte de resolução de problemas da apicultura.
Cada colmeia era um organismo vivo com necessidades diferentes. As
abelhas fascinavam-na, essas criaturas obstinadas que trabalhavam
incansavelmente para a comunidade. E criavam tanta beleza – os depósitos de
mel, sim, mas também a base de cera e os depósitos brilhantes de pólen, que
variavam entre cor de limão, cor de abóbora e cor de rubi. Espantava-a o
facto de o seu passatempo simples ter crescido de uma colmeia para vinte e
quatro. Estava ali ao sol com as abelhas a zumbir à volta da sua cabeça
velada quando percebeu a importância do número. Vinte e quatro era quase
metade de cinquenta. Parecia um ponto de viragem. Tirou o chapéu, sentou-
se à sombra do meio-dia e olhou para o apiário, roendo o lápis. Havia muito
espaço para crescer ali. Poderia chegar a cinquenta colmeias no fim do verão
se fosse metódica quanto a divisões e captura de enxames.
A ideia entusiasmou-a como ela há muito tempo não se entusiasmava.
Prática por natureza e com tendência a considerar primeiro os obstáculos,
naquele momento apenas pensou: porque não? Folheou o caderno até ao
verão anterior, onde anotara os pormenores da colheita de mel que rendera
entre 26 a 37 litros de cada uma das doze colmeias. Vendera-o a vinte dólares
o litro na feira e arrecadara seis mil dólares após as despesas. Uma bela
maquia. O seu entusiasmo cresceu. O que poderia fazer com mais colmeias,
com mais mel? O pensamento surgiu de imediato: poderia dar-se ao luxo de
plantar um pomar. Analisou o seu terreno onde a terra era plana e ensolarada.
Algo pequeno, nada como o pomar histórico da família Holtzman. Mas dela.
Sim. Porque não?
Precisaria de ajuda. Isso era certo. A colheita de agosto seria muito
trabalhosa e a seguir alguém teria de a ajudar com o plantio de árvores no
outono. Mas podia dar-se ao luxo de contratar uma pessoa, especialmente
com a expectativa da venda do mel e talvez até de criar rainhas. Percorreu o
apiário para determinar quantas colmeias caberiam e o seu entusiasmo
cresceu.
De volta a casa, abriu a página do mercado do biológico no computador e
leu os anúncios classificados. As pessoas não estavam a oferecer muito. Dez
a quinze dólares por hora ou menos para os VOMQB. Alice zombou.
– Podem ficar com eles todos – disse em voz alta.
Voluntários de Oportunidades Mundiais em Quintas Biológicas. Já os vira,
jovens da Austrália mais recentemente, a tomar conta das bancas no mercado.
Cabelo sujo e roupas hippie, como Joyful. Trabalhavam em troca de
alojamento e alimentação. Não, obrigada, pensou ela. Não queria ser uma
guia turística e não estava interessada em ter alguém a viver em sua casa.
Gostava de estar sozinha ali no vale. A expressão «vida em comunidade»
provocava-lhe pele de galinha. Desde pequena que gostava da sua solidão.
Ilha Alice, dizia a mãe a brincar. Alice Sozinha. O pai compreendia. Os seus
pais também tinham sido pessoas solitárias. Convinha-lhe muito bem. Na
maioria dos dias, pelo menos.
Abriu o formulário de publicação de anúncios e escreveu: «Precisa-se de
funcionário: trabalhador de verão a meio tempo para um apiário. Não é
necessária experiência. Deve ser capaz de levantar até 45 kg. Capacidade
básica de construção será uma vantagem. $13 - $15 por hora, negociável.
Ligue para 541-555-2337 para obter informações ou envie um e-mail para
al.holtzman@gorge.net.»
Calculou que conseguiria um rapaz do secundário por aquele preço e a
maior parte do trabalho estaria concluída no início do ano letivo.
Naquela tarde, Alice foi às compras – ao Ace Hardware para lixas e pincéis
e, por mais que a temesse, a maldita mercearia para outra coisa que não
cereais. Temia ir ao Little Bit, e não apenas por causa do ataque de pânico. A
única mercearia de Hood River era como a praça da cidade, e Alice detestava
conversa fiada. Os idosos faziam compras de manhã e as famílias jovens à
tarde. Em ambas as ocasiões, ela estava sujeita a encontrar alguma amiga da
mãe ou alguém que ela conhecia do secundário. Fazia compras à noite e
nunca aos fins de semana. À noite eram apenas rapazes e famílias latinas.
Também não queriam parar para conversar, pelo menos não com ela. Mas o
frigorífico estava vazio, então tinha de aguentar isso.
À porta do Ace sentou-se ao volante e colocou o saco de papel com as
compras no chão. Atirou o corta-vento para o lado para ter espaço. Então viu
a pequena mochila. Já sabendo que devia ser de Jake, abriu-a e tirou uma
carteira. Lá estava o grande sorriso do rapaz e aquele cabelo maluco a
desaparecer no cimo da imagem. Jacob Todd Stevenson, nascido a 2 de
fevereiro de 1996. Olhos castanhos, cabelo preto. Altura: 1,77 m; peso: 65
kg. Claro, rapaz. Talvez se estivesses a usar um cinto com lastro. Pelos
vistos, os rapazes e as mulheres mentiam sobre o seu peso em direções
opostas. Vou ter de o deixar em casa, pensou, e por algum motivo sentiu-se
animada.
Alice foi à mercearia, onde encontrou Mary Condon. Mary fora próxima da
mãe de Alice e falou-lhe da sua recente operação à anca. Alice realmente não
se importava de ouvir. Era mais fácil do que conversar com os seus próprios
amigos, que ficariam com aquela expressão triste e lhe tocariam no braço.
«Como vais, Alice?» Que pergunta.
Enquanto ela empurrava o carrinho em direção ao corredor de cereais, viu
as costas de Debi Jeffreys, a chefe do gabinete de planeamento, o seu
carrinho atafulhado e três meninos pendurados de lado a gritar como piratas.
Alice decidiu que afinal não precisava de cereais e foi para a fila da caixa.
Desceu Twelfth Street e virou para Greenwood Court. O Ford Focus
amarelo estacionado em frente ao número onze tinha um autocolante que
dizia: «Deus é o meu copiloto.» O seu pulso acelerou quando pensou na cena
ali duas noites antes e respirou fundo. Desligou o motor e ficou sentada,
deixando os segundos passarem. Isso era a boa educação de uma cidade
pequena – aguardar no caminho de acesso quando não se era esperado. Ao
fim de alguns minutos, a porta abriu-se e a mãe do rapaz saiu, protegendo os
olhos do sol com a mão. Acenou e desceu os degraus em direção a Alice,
sorrindo. Alice desceu e ergueu a mochila como uma bandeira de rendição.
– Olá! Não quero incomodar. Só vim deixar isto.
A mãe de Jake ainda sorria. Ao aproximar-se de Alice, estendeu a mão.
– Sou a Tansy. Tansy Stevenson – disse. – É Alice, certo?
Alice assentiu e sorriu. Tansy agarrou-lhe a mão e apertou-a. Segurou
durante uns segundos a mais, o que deixou Alice constrangida, pois o gesto
parecia tão íntimo. Retirou a mão, mas Tansy não pareceu reparar.
– Lamento muito o que aconteceu na outra noite. Senti-me péssima quando
o Jacob explicou o que aconteceu. O Edward e eu estamos muito gratos por o
ter trazido para casa em segurança. Agradecemos a Deus a Alice ter lá estado
para o ajudar.
Alice duvidava que o marido de Tansy agradecesse a Deus qualquer coisa,
mas viu as lágrimas surgir atrás dos óculos de armação cor-de-rosa da mulher
sob a franja enrolada e sentiu pena dela. Tansy era mais jovem do que ela e
vestia uma saia de poliéster direita e meias de náilon com sapatos rasos. Alice
ficou de repente envergonhada das suas jardineiras sujas e chapéu a tapar o
cabelo.
– Não foi nada – disse Alice. – Era o mínimo que eu podia fazer. Lamento
o que aconteceu. Simplesmente não o vi no escuro.
Tansy suspirou, levou os dedos às têmporas e abanou a cabeça.
– Tentei fazê-lo prometer-me que não sairia por aí sozinho, mas ele é
teimoso.
Esforçou-se por rir, mas Alice ainda via as lágrimas a brilhar nos seus
olhos.
– O Jacob gosta de tão poucas coisas hoje em dia... – Calou-se.
Alice não sabia o que dizer. A tristeza na voz da mulher dizia muito sobre a
vida limitada do filho.
– Bem – disse Alice –, quero pagar quaisquer reparações de que a cadeira
precise.
Tansy sorriu, tirou um lenço de papel do punho e limpou os olhos.
– A cadeira parece estar bem, mas obrigada por se oferecer.
Por precaução, deviam trocar números de telefone, disse Alice. Foi à
carrinha buscar uma caneta. Rabiscou o seu endereço de e-mail e número de
telefone no recibo do Ace e percebeu que estava a empatar, na esperança de
ver o rapaz. A porta de rede abriu-se e lá estava ele, com moicano e tudo. Viu
as olheiras escuras e o seu rosto pálido. O sorriso dele floresceu hesitante.
– Olá, Alice! – exclamou.
Desceu a rampa da cadeira de rodas e travou junto aos pés dela. Alice
notou o seu movimento fluido, até gracioso, com a cadeira. Na luz clara do
dia, ele parecia ainda mais novo. Ela arrependeu-se de ter arrancado de forma
tão abrupta duas noites antes, apesar do que o estúpido do pai dele dissera.
Jake viu a mochila aos pés da mãe.
– Obrigado. Já tinha dado pela falta dela.
– De nada – disse ela, retribuindo o sorriso.
– Como estão as meninas? – perguntou ele. – Todas bem depois da grande
aventura?
Alice soltou uma gargalhada.
– Sim, estão a acomodar-se bem.
– Certo. Como disse, duronas. Todas a trabalhar no duro para criar os
bebés?
Alice ficou satisfeita por ele se ter lembrado das suas palavras.
– Podes crer – disse ela.
Tansy olhou de Alice para Jake e de novo para Alice.
– Abelhas, mãe! Eu disse-te. A Alice é apicultora – explicou Jake. Agitou
as mãos no ar, os olhos arregalados. – Tem milhares de abelhas em casa.
Milhares!
– Bem, dezenas de milhar, na verdade – disse Alice. – Cada uma daquelas
caixas continha cerca de dez mil abelhas.
– Porra! Isso é incrível!
– Jacob. Olha a linguagem, por favor.
– Desculpa, mãe – disse ele. – Mas a sério.
Ele inclinou a cabeça e baixou a voz.
– Devias tê-las visto a voar depois de a Alice bater na cerca. As caixas
caíram por todo o lado. Ela simplesmente entrou lá como se não fosse nada.
Pegou-lhes e colocou-as de volta na pickup.
Tansy estremeceu.
– Elas picam-lhe?
Alice encolheu os ombros. Aquela era a primeira pergunta de toda a gente.
– Às vezes. Mas, como eu disse ao Jake, só picam quando se sentem
ameaçadas.
Embora Alice detestasse conversa fiada, adorava falar de abelhas. Pensou
em falar a Tansy sobre as obreiras-guarda, se ela estivesse realmente
interessada. Mas Jake já estava a fazê-lo. Olhou para Alice.
– Sim, pesquisei ontem. Muito fixe. É como o Gandalf em O Senhor dos
Anéis. «Não passarão!» Também li sobre os roubos das vespas. O que faz?
Monta armadilhas ou deixa-as lutar?
Alice começou a responder, mas então ouviu o ronco baixo de um motor a
gasóleo no caminho atrás dela. Virou-se e viu o pai de Jake a fitá-la de um
Ford F-250 prateado. O motor gemeu quando ele fez marcha-atrás e
estacionou na rua. Caminhou em direção a eles, o seu rosto franzido de fúria,
cada passo pesado com a tragédia da sua inconveniência.
– … estacionar no seu próprio caminho de acesso! – resmungava ao
aproximar-se. O sorriso desaparecera do rosto de Jake e Tansy parecia
nervosa. O pai de Jake fitou-os com ar zangado. Algo disse a Alice que isso
acontecia constantemente.
– O que está aqui a fazer? Além de me bloquear o acesso?
Vestia umas Wranglers engomadas e uma camisa xadrez com um crachá
que dizia: «Olá! Sou o Edward!» numa alegre caligrafia feminina, claramente
de algum evento de trabalho. O contraste com o seu rosto mal-humorado fez
Alice sorrir sem querer.
– Acha isso engraçado, hem?
– Edward, querido – interveio Tansy. – A Alice veio trazer a mochila do
Jacob…
– Acho que lhe disse para sair do meu acesso – disse ele, ignorando a
mulher. – E manter-se longe. Isso é tão difícil de entender?
A sua voz elevara-se e ele soava como uma criança petulante.
Alice não disse nada. Crescera com um pai tão meigo, tirando a sua
linguagem colorida. Mas encontrara aquele tipo de homem antes. Todas as
mulheres na América já o tinham conhecido quando chegavam aos vinte e
cinco anos. Ela trabalhara com homens para os quais o bullying era um estilo
de gestão normal. Envenenamento por testosterona, dizia ela e a amiga Nancy
na brincadeira. E, no entanto, as mulheres é que eram consideradas histéricas.
Eram como criancinhas, aqueles homens zangados, pensou ela. Sempre a
fazer birras.
Algo clicou na mente de Alice então. Criancinhas. Edward Stevenson.
Eddie.
– Eddie Stevenson – disse ela em voz alta. – O Eddie Stevenson de Hatch
Street.
O rosto de Edward revelou surpresa.
– Sou a Alice Holtzman – disse ela, olhando atentamente para ele. Sim, ele
tinha quase quarenta anos, cerca de sete anos menos que ela. – Eu era a
vizinha da sua ama. Jeannine Sharp. Lembra-se? – Estalou os dedos e riu. –
Ajudei-a a dar-lhe banho quando você tinha três anos.
Recordou Jeannine, muito engraçada, sempre tão paciente com as crianças.
Alice estava sentada no chão da casa de banho a ver o menino salpicar na
banheira enquanto Jeannine mudava a fralda da irmã mais nova.
Ed mexeu-se desconfortavelmente e empalideceu. Jake parecia cético,
como se não pudesse acreditar que o pai já tinha sido uma criança pequena e
nua. Alice viu algo no rosto de Ed semelhante a vergonha. E medo.
O que era? Recordou a história horrível. Ela estava no décimo ano quando
ouvira falar disso num jogo de futebol. Os rapazes tinham apanhado um gato
selvagem no recreio depois das aulas. Torturaram-no até à morte. Alice olhou
para ele e viu o menino no rosto daquele homem. Imaginou o ranho seco no
nariz dele, o pescoço queimado do sol, o cabelo curto e os calções rasgados.
Ele deveria ter uns nove anos então. Mandaram-no para casa de uns parentes
em Spokane.
– Sim – disse ela devagar. – Foi expulso da primária de May Street. Você e
o Craig Stone.
Aquela crueldade em crianças era rara na pequena cidade, algo que não se
esquecia. A pobre criatura indefesa, que não fora merecedora de tal fim. E
Jake, com um pai assim.
Alice sentiu um nó na garganta e a sua respiração tornou-se mais
superficial. O tempo abrandou. Manteve-se muito quieta e esperou que a
respiração a deixasse, esperou por aquele aperto no peito. Mas isso não
aconteceu. Aquilo era diferente. A sua visão, em vez de se turvar, tornou-se
mais nítida e a sua audição mais apurada. Ouviu o crocitar desdenhoso de um
corvo e sentiu o hálito fresco do vento da primavera na nuca. Em vez de
sentir que podia fragmentar-se em mil pedaços, sentiu uma coerência quente
e branca. Pairava sobre a sua cabeça como uma bênção.
Ed continuou calado, o seu rosto pálido, e pareceu encolher-se para dentro
de si mesmo. Alice olhou para Tansy, agarrada ao corrimão da rampa da
cadeira de rodas, os olhos fechados, o rímel a deixar rastos nas suas faces.
Sabia com quem tinha casado.
Afinal o que podes fazer pelo rapaz, Alice?, murmurou o pai ao seu ouvido.
Alice deu um passo atrás e exalou.
– Tenho de ir andando – disse ela, desviando o olhar de Ed e olhando para
o rapaz. – Mas tenho uma proposta para ti.
Entregou-lhe o recibo do Ace com o seu número de telefone e endereço de
e-mail.
– Estou a contratar. Preciso de ajuda com as abelhas. Não é necessária
experiência e é a tempo parcial. Acabei de publicar o anúncio hoje. Verifica o
quadro de empregos em gorge.net. Se quiseres experimentar, liga-me.
Ouviu-se dizer que cama e mesa eram negociáveis como parte do
ordenado. Não importava que tivesse zombado da ideia naquela mesma
manhã. As palavras continuaram a sair da sua boca.
O rapaz olhou para o papel, sem expressão e claramente tão admirado com
a ideia como Alice. Ed voltou à vida então.
– Meta-se na sua maldita vida! Corro-a daqui ao pontapé se não sair do
meu caminho de acesso!
– Edward, por favor! – Tansy agarrou o braço do marido.
Alice sentiu o calor branco descer novamente e considerou a alegre fantasia
de magoar aquele homem. Ouvia os vizinhos a abrir as janelas e portas para
ouvir. A sua parte racional sabia que ela nunca poderia magoar ninguém.
Claro que não. Era uma Holtzman. Ainda assim, sentiu aquela sensação
estranha percorrê-la – um arrebatamento que de alguma forma a fez sentir-se
mortalmente calma. Olhou diretamente para os olhos de Ed.
– Experimente fazer isso – disse ela calmamente. – E eu ligo ao xerife. Ele
é meu cunhado.
– Se sabe o que é bom para si… – Silvou Ed.
– Parece-me ótimo, Alice! – exclamou Jake ao lado dela. – Vou já consigo
para dar uma olhadela.
A mãe do rapaz recuara, com os braços cruzados, apoiando-se ao alpendre.
– Jacob – soluçou ela.
Ed olhou para o filho com ar de gozo.
– Trabalhador, hem? Como achas que isso vai funcionar para ti?
Os olhos de Jake brilharam enquanto ele olhava para o pai.
– Acho que teremos de ver, não é? Eddie.
Quando ele chamou Eddie ao pai, Alice viu o homem encolher-se. Abriu a
boca e não saiu nada.
O rapaz endireitou-se na cadeira, como se a fúria de Alice tivesse acendido
algo nele também. Brilhava com força nos seus olhos e impeliu-o para a
frente. E a seguir Alice viu-se a sair do caminho de acesso empoeirado, a
passar pelo burro derrotado e a rumar ao sol forte de abril com Jake
Stevenson, de dezoito anos, sentado ao seu lado, os olhos a brilhar e Bruce
Springsteen a cantar nas colunas.
Que diabo fiz eu agora?, pensou Alice.
7
TRAPALHONAS
Descobri que as abelhas costumam reconhecer estranhas pelas suas
ações, mesmo quando têm o mesmo cheiro; pois uma abelha
assustada curva-se numa atitude amedrontada, que inequivocamente
proclama que tem a consciência de ser um intruso.
– L. L. LANGSTROTH

Se Harry aprendera alguma coisa em quase um quarto de século de vida na


terra foi que, à primeira vista, a maioria das pessoas pensava que ele era um
idiota. Realmente não podia culpá-las. Ele era um seguidor e às vezes ia
aonde os outros o levavam, apesar das placas de «Caminho Errado» afixadas
a cada esquina.
«Não agrades tanto às pessoas», aconselhava a sua mãe. Dizia-lhe isso
desde o quarto ano, quando ele deixara alguns rapazes mais velhos «levarem
emprestado» o dinheiro do almoço e voltara para casa com fome. Ela estava a
tentar ajudá-lo, Harry sabia-o, mas era apenas uma maneira mais simpática de
dizer que ele era um idiota.
«Esses rapazes não querem ser teus amigos, filho», disse a mãe. «Sabes
como consegues perceber?»
Harry abanou a cabeça e mordeu a sanduíche de manteiga de amendoim
que ela lhe fizera.
«Porque eles querem tirar-te algo. Amigos devem ser apenas amigos
porque gostam uns dos outros.»
Harry assentiu, sem realmente entender. Pensaria nas palavras dela da vez
seguinte que perdesse o dinheiro do almoço. E no dia em que deixou os
rapazes do bairro andarem na sua bicicleta no terreno baldio voltando para
casa com uma roda torta. Depois, houve uma vez em que foi preso por ajudar
os amigos a deslocar uma carrinha cheia de televisores de ecrã plano
roubados.
«No que estavas a pensar!?», gritou a mãe no carro depois de lhe pagar a
caução. Não era uma pergunta a que ele pudesse responder. Harry afundou-se
no assento, com vergonha e cansaço. Passara a noite na prisão ao lado de um
velho bêbedo que cheirava a urina e reunira coragem para ligar à mãe quando
não aguentou mais o cheiro.
«Harry! Explica-te, filho!»
A mãe raramente gritava, dizendo que era indigno, portanto, o facto de ela
o fazer ressaltava a seriedade da situação. Mas Harry não tinha uma
explicação para lhe dar. Só podia reconhecer que fora suficientemente
estúpido para permitir que os amigos o convencessem a conduzir uma
carrinha cheia de televisores roubados até um comprador que se revelou um
polícia disfarçado.
No que estivera ele a pensar? Com certeza não que a justificação de Marty
fazia algum sentido.
«Meu. Nada mudou desde o Occupy», disse Marty numa tarde, enquanto
estavam no exterior do Three-O-One Saloon. «Aquele um por cento ainda
tem todo o poder. O sistema está manipulado. Eles devem-nos isto.»
Marty puxou uma baforada no cigarro e atirou-o para a rua, onde ficou a
fumegar. Sam anuiu e Harry imitou-o, embora não estivesse realmente a
concordar. Só não queria que eles pensassem que era um mariquinhas. Na sua
opinião, Marty fazia parte do um por cento. Pelo menos o pai fazia – um
homem que possuía uma série de casas de repouso ao longo da costa do
Atlântico. Marty costumava gabar-se que o pai desviara dinheiro da Medicare
e que a família tinha uma casa de férias em Florida Keys. O pai também o
empregava. E, embora Marty dissesse detestar trabalhar para ele, herdaria os
negócios da família. Assim, o fundamento lógico de Robin Hood não fazia
muito sentido. Harry sabia isso – a proposta de Marty de retirar uma remessa
de equipamento eletrónico da loja onde o primo trabalhava não era uma
revolução. Era apenas um crime.
Harry acabou como condutor e mais tarde perguntou a si mesmo se Marty e
Sam teriam combinado isso antecipadamente. Fugiram quando o polícia
exibiu o seu distintivo. Harry estava sentado na cabina a olhar para o seu feed
do Facebook e não percebera. O polícia teve de bater na janela para lhe
chamar a atenção. Harry foi o único a ser preso.
O juiz condenou-o a vinte e quatro meses numa prisão de baixa segurança
por tentativa de furto. Parecia desapontado, o que fez Harry sentir-se ainda
pior.
– Senhor Stokes – disse ele –, esta seria uma boa altura para endireitar a
sua vida. Faça uma mudança antes de ir longe de mais nessa estrada.
A mãe assoou-se e reprimiu um soluço. Sal estava sentado ao lado dela
com os braços cruzados e as narinas dilatadas.
Harry esperara deixar a sua má decisão para trás indo para oeste, o que
parecera uma mudança. Os pais queriam acreditar que isso sinalizava uma
nova direção. Aceitar a ideia de que Harry estava finalmente a conduzir a sua
própria vida permitiria que a mãe e Sal se mudassem para a Florida sem
culpa. Harry não queria que se preocupassem mais com ele. Mas Seattle fora
demasiado grande e confusa. O amigo do secundário que lhe dissera para o ir
visitar a qualquer altura não pareceu satisfeito quando ele apareceu. Devia ter
ligado primeiro, pensou Harry então.
Mesmo assim, foi simpático da parte de Jeff deixá-lo ficar uma semana. A
namorada de Jeff, Sylvia, declarara alto e bom som que não o queria ali. Ela
ficava no quarto quando chegava a casa do trabalho e atravessava a sala até à
cozinha sem falar com Harry ou Jeff enquanto eles rememoravam os tempos
do secundário. O silêncio furioso de Sylvia deixou-o desconfortável e ele
começou à procura de um pequeno apartamento. Até falou com o gerente do
prédio de Jeff e começou a preencher um formulário. Mas então chegou à
parte sobre a verificação de antecedentes. Enfiou o papel na mochila e
resmungou qualquer coisa sobre se ter esquecido da identificação. Quem
alugaria uma casa a um criminoso?
Caminhou pela sombria orla marítima de Seattle, onde havia enormes
navios com contentores atracados nos cais volumosos. O ar cheirava a
creosoto e água do mar. As gaivotas saltitavam no passeio, piando e lutando
pelo lixo. O vento tempestuoso de fevereiro soprava de Puget Sound e nuvens
escuras obscureciam as Olympic Mountains. A chuva caiu em gotas gordas e
depois começou a sério, desabando numa torrente ofuscante. Harry abrigou-
se sob o telhado seco do Pike Place Market e viu-se ao lado de uma torre de
maçãs polidas. «Seleção: maçãs Pippins, Braeburns e Gravensteins de Hood
River Valley!» dizia o cartaz. Harry pegou numa e, enquanto a polpa doce
descia pela sua garganta, lembrou-se de que o tio da mãe morava algures
perto de Hood River. Despediu-se de Jeff, apanhou um autocarro até Hood
River e a seguir boleia até BZ Corner. Depois de Sylvia, as boas-vindas do tio
H pareceram muito calorosas. Harry não sabia se era hospitalidade ou
senilidade e não queria saber. No entanto, qualquer ímpeto que tivesse
ganhado parou ali na floresta.
No River Daze Cafe, Moira deixou Harry usar o seu portátil e mostrou-lhe
os anúncios de emprego locais. Ele olhou primeiro para as listas de
paisagismo, já que trabalhara para a mãe e Sal durante anos, mas o
pagamento era péssimo. Trabalhadores migrantes do México eram
contratados para esses empregos, disse Moira, e isso fazia o ordenado descer.
– Olha para a secção de restaurantes – sugeriu ela enquanto colocava uma
bandeja de pães num forno enorme. Harry viu os músculos das suas belas
costas bronzeadas ondularem sob o top de alças. Suspirou e voltou para o
computador.
Pegou no bloco de notas e começou uma lista de perspetivas de emprego.
Servir às mesas pagava melhor, mas ele não tinha experiência nem roupas
limpas para isso. Lavara pratos numa pizaria em Long Island durante o
secundário. Mas uma cozinha quente e húmida parecia um lugar infernal para
passar o verão. Olhou para a secção de agricultores. Havia um post
interessante de uma apicultora. Não era muito bem pago, mas mencionava
construção. Ele preferia trabalhar no exterior, decidiu, mais do que se
apercebera quando vivia em Nova Iorque.
Em casa do tio H, mesmo quando se estava no interior, estava-se quase no
exterior dado o estado da caravana. Harry aprendera a amar as vozes do rio
selvagem e o vento sempre presente nas árvores enormes. A floresta estava
cheia de pássaros e de pequenos animais que vagueavam livremente na
ausência de humanos. Só via de vez em quando um dos tipos dos caiaques
enquanto ia a pé ao supermercado. E o tio H muitas vezes não falava durante
horas, exceto para resmungar para si mesmo. Harry habituou-se a ouvir o
murmúrio do mundo exterior.
Respondeu a três anúncios – a pizaria, a banca de um agricultor e a
apicultora. Poderia colocar Jeff como referência. Jeff não sabia que ele
estivera preso e Harry não o mencionara. Quem mais? O seu agente da
liberdade condicional? Ideia estúpida. Os pais? Não. Rodou no banco para
olhar para Moira, que estava a estender massa com o rolo.
– Ei, Moira. Posso dar o teu nome como referência?
Ela riu-se e afastou o cabelo do rosto.
– Tão atrevido, Harry! Quer dizer, acabei de te conhecer.
Ele corou.
– Oh, certo. Desculpa. Vou só…
– Estava a brincar, meu! Claro que podes dar o meu nome. Não és um
assassino com um machado nem nada, certo?
Não, apenas um pequeno criminoso, pensou ele. Nem sequer bom.
Ela deu-lhe o seu apelido e endereço de e-mail. Também o convidou para
uma festa em sua casa. Disse-lhe para voltar ao café às cinco da tarde e
poderia ir de boleia com ela.
– Os meus amigos são porreiros. Vais gostar deles.
O coração de Harry acelerou. Ela era tão bonita e cheirava a canela e
manteiga derretida. As coisas estavam a melhorar. Acenou-lhe e saiu do café,
fingindo que tinha para onde ir. Para matar tempo até às cinco da tarde,
caminhou pelo pequeno centro de Hood River até à beira-rio.
O vento aumentou quando se aproximou do rio e assobiou-lhe nos ouvidos.
Viu espuma branca na água verde e bastante atividade no meio do canal.
Tinha visto windsurfers na costa de Nova Jérsia, e havia alguns deles ali, às
voltas como tubarões de plástico furiosos. Mas havia outras coisas – grandes
coisas parecidas com parapentes a voar alto sobre a água. Harry aproximou-
se e viu uma placa que dizia: «Lançamento de kiteboarding. Os espectadores
devem ter cuidado.»
Pessoas em fatos de mergulho bombeavam ar nos grandes parapentes.
Harry viu um rapaz com uma prancha fazer sinal a uma mulher que segurava
um parapente do outro lado do relvado. Ela soltou-o e o homem conduziu-o
para cima. Harry observou o rapaz descer até ao rio com o parapente a voar
acima dele. Em seguida, saltou para uma prancha e deslizou pela água. Era
hipnotizante. As pessoas deslizavam sobre o rio e voltavam. Erguiam-se no
ar, suspensos por longos e impossíveis segundos. Davam cambalhotas no ar e
faziam outras coisas complicadas. No grande banco de areia que se
derramava no rio, viu dezenas de figuras em fatos de mergulho a lançar e a
aterrar os grandes parapentes coloridos.
Harry mordeu um dos bolos de canela que Moira lhe dera, ainda quente do
forno. Coberto de mel, fez-lhe doer os dentes. Um tipo grande surgiu no seu
campo de visão com um kite rosa vivo debaixo de um braço e uma prancha
do outro. Pousou o equipamento ao lado de Harry.
– Porra! Bem, foi um dia de trabalho árduo – disse ele com uma risada, e
afastou o cabelo comprido e molhado do rosto. – Devia ter ficado em casa a
arrumar a gaveta das meias.
Parecia estar a falar com Harry.
– Um dia mau? – perguntou ele.
O homem grande fez estalar o pescoço.
– Ná. Não foi assim tão mau. O vento está a diminuir. Tem estado irregular
– disse, fazendo nadar a mão no ar. – Para cima e para baixo. Mas olha…
qualquer dia aqui é melhor do que um dia no escritório, certo?
Virou o kite ao contrário e abriu uma válvula. O ar saiu rapidamente e o
kite desinflou, tornando-se uma superfície flácida.
Harry viu-o começar a dobrá-lo.
– Isso é difícil de aprender? – perguntou.
O outro homem riu e apontou com o polegar para uma série de caravanas
perto da água.
– As escolas de kitesurf dirão que é fácil. Mas eu sou um homem razoável,
portanto, digo a verdade às pessoas. É um desafio. Tens de ir para ali, ficar ali
e descobrir sozinho. As escolas têm apoio de Jet Ski e walkie-talkies e tudo
isso, mas o principal é aprenderes o que o vento quer fazer e depois
agarrares-te quando a coisa corre mal!
Olhou para os bolos de canela.
– River Daze? Oh, pá, adoro os bolos de mel deles.
– Toma um – disse Harry, empurrando a caixa na direção dele. – Não
consigo comer os dois.
Harry insistiu quando o grandalhão protestou, e ele pegou no bolo,
fazendo-o parecer pequeno na sua manápula.
– Aposto que é caro – comentou Harry.
O homem desenrolou o caracol de canela, enfiou um pedaço na boca e
assentiu enquanto mastigava.
– Bem, equipamento novo, um conjunto completo de kites, linhas, arnês e
prancha… podes gastar quatro ou cinco mil.
Harry olhou atentamente para ele. O tipo não parecia ter quatro ou cinco
mil dólares para gastar.
– Mas podes usar equipamento usado por uma fração disso. Aqui, no fim
do verão, às vezes as pessoas simplesmente dão o material.
Harry fez uma expressão cética e o tipo sorriu.
– A sério, meu. Algumas dessas pessoas não sabem o que fazer com todo o
seu dinheiro. É por isso que precisamos de uma revolução!
Deu um soco no ar. Harry pensou em Marty e empalideceu, mas o
grandalhão riu-se.
– Estou a brincar! Sou demasiado preguiçoso para essa merda. Além disso,
só preciso é de vento. – Afastou o cabelo molhado do rosto. – E de cerveja.
Agora preciso mesmo de uma cerveja.
Limpou as mãos na relva, endireitou-se e apanhou o kite dobrado. Fechou a
outra mão num punho e aproximou-o de Harry.
– Obrigado, irmão. Chamo-me Yogi – disse ele.
– Harry.
– Vemo-nos por aí, Harry.
Harry olhou para a água novamente, para o banco de areia, onde duas
dezenas de kites tinham pousado e as pessoas estavam a enrolar as linhas na
barra. Talvez Moira achasse que seria fixe se ele se tornasse um kiter, pensou
Harry e acariciou o lábio superior.
O que Moira achava fixe ficou claro mais tarde na sua festa. Harry era um
entre uma dezena de convidados – todos rapazes, exceto uma rapariga de
expressão azeda, que olhava para o telemóvel e não falava com ninguém.
Quando Moira disse que ele iria gostar dos amigos dela, deve ter pensado que
ele gostava dos tipos que andavam de caiaque… rapazes pesados com vozes
altas e barbas grandes que faziam Harry sentir-se magricela e mais incapaz do
que nunca.
Ela fora muito simpática para ele, mas ele percebeu que ela era simpática
para muitos rapazes. Circulava pela festa, namoriscando com todos sem se
concentrar muito numa pessoa. Entregara o grelhador ao rapaz maior, um tipo
chamado Hootie, que tinha uma carrinha de comida algures em Portland. Ele
parecia capaz de pegar em Moira com uma das mãos e virar hambúrgueres
com a outra. Claramente o alfa. Os outros rodeavam-no, gabando-se das suas
sessões no rio.
Parecia de novo o secundário, só que eram os tipos dos caiaques em vez da
equipa de futebol. Harry nunca dominara a camaradagem de machos
necessária para se encaixar. Em vez disso, ia para a oficina depois das aulas
quando não queria voltar para uma casa vazia. O Sr. O’Brien, o velho e
rabugento professor de artes oficinais, ensinara-lhe a usar todas as
ferramentas: a serra de mesa, a serra de corte, o ensamblador, a plaina e a
fresadora. Mas ninguém com menos de trinta anos sabia o que era uma
fresadora. Fazer sambladuras definitivamente não era tão fixe como deslizar
por rápidos.
Com a camisa de lã do tio e as calças sujas, Harry sentia-se como Bilbo
Baggins quando os trolls estavam prestes a fazer dele uma refeição. Sentou-
se perto da fogueira, bebeu um gole de cerveja, taciturno, e pensou na longa
viagem de regresso pela Highway 141 até BZ. Que idiota fora por pensar que
alguém como Moira poderia realmente gostar dele. Pelo menos ela oferecera-
se para lhe emprestar uma bicicleta – uma velha Schwinn que a última colega
de quarto deixara lá ficar.
Moira estava a rir de qualquer coisa que Hootie dissera. Harry não iria
dormir no sofá dela, como ela sugerira antes. Percebia que teria muita
competição para isso. Levantou-se e saiu da luz da fogueira para as sombras.
Contornou a casa, agarrou na velha Schwinn e foi-se embora.
O vento aumentou na escuridão e soprou sobre Harry como uma bênção
enquanto ele subia a estrada em direção à caravana do tio H. Sentiu-se
melhor e percebeu que estar sozinho nem sempre era mau. Às vezes, estar
sozinho era melhor do que estar na companhia errada. Sentiu-se bem por
escolher isso. Ainda não tinha um plano claro, nenhum emprego e nenhum
amigo por aquelas bandas. Mas estava tudo bem. De alguma forma, sabia que
tudo ficaria bem. E iria ver o tio ao hospital no dia seguinte.
O vento soprou e fustigou a bicicleta. Harry, que raramente tinha confiança
na sua capacidade de fazer boas escolhas, sentiu-se muito feliz por breves
momentos e não soube porquê. Olhou para o céu. Uma faixa de estrelas
cintilava no longo corredor de árvores. Ouvia os ramos a estalar e a gemer
enquanto o vento soprava pela floresta, tornando-se mais forte enquanto uma
frente se movia através do profundo desfiladeiro do rio. Pensou nos kites e na
espuma branca das ondas no rio verde largo. Percorreu dezanove quilómetros
colina acima e nem se sentiu cansado.
Desmontou junto à caixa de correio do tio H e desceu a estrada esburacada
até à caravana a comer um biscoito River Daze, o seu último sabor agridoce
do dia com Moira. Fez uma lista mental das coisas boas e más que tinham
acontecido e pensou em como iria anotá-las no seu caderno. Encostou a
bicicleta a uma árvore, subiu a escada e parou na porta, olhando para as
estrelas antes de se enfiar na cama. Não sentiu os olhos sobre ele no escuro,
logo depois da primeira fila de árvores. A observar. Com fome.
8
ESPAÇO-ABELHA
Requisitos de uma colmeia completa...

5. Nenhum movimento desnecessário deve ser exigido a uma única


abelha.
– L. L. LANGSTROTH

Alice acordou com uma cãibra no pescoço e uma sensação de mau agouro.
Não tinha dormido bem, atenta aos sons do quarto de hóspedes que
indicassem que o rapaz poderia precisar de ajuda. Embora não tivesse ouvido
nada, a sua preocupação manteve-a desperta. Foi como quando a mãe estava
nos cuidados paliativos e Alice passara as últimas semanas a dormir no sofá
da casa dos pais na cidade. Embora houvesse uma enfermeira de serviço à
noite, Alice apenas dormitava algumas horas de cada vez com o ouvido
voltado para o quarto da mãe. Uma noite, Alice caiu num sono pesado e a
enfermeira sacudiu-a para acordá-la e lhe dizer que Marina morrera.
Na noite anterior estivera à escuta, não ouvira nada e perguntou-se de novo
em que diabo pensara ao trazer o rapaz para casa. Era tão diferente dela, tão
impulsivo. E provocar Ed Stevenson! Simplesmente não era normal. Não se
envolvia nos dramas de outras pessoas. Bem, pelos vistos, envolvia, porque
não parara para pensar. Era como sair de uma margem seca e entrar num rio
impetuoso antes de avaliar a sua profundidade.
A menos de um quilómetro da casa dos Stevenson, a fúria evaporara-se e a
adrenalina vitoriosa de enfrentar um homem violento abandonara-a como o ar
abandona um balão de aniversário. Por um lado, a ameaça de ligar para o
cunhado fora um bluff. Embora Ron Ryan fosse, na verdade, xerife do
município de Hood River, ele não falava com Alice há meses e não teria
atendido o telefone se ela ligasse. E, embora fosse verdade que ela estava à
procura de alguém para contratar, não tinha trabalho para Jake. Precisava de
alguém capaz para ajudá-la na quinta. Alguém que pudesse levantar coisas
pesadas e cavar buracos.
E a ideia de oferecer cama e mesa – de onde diabo viera isso?
Ouviu as vozes dos pais na cabeça.
Agressivamente compassiva!, exclamou Al. Linda menina.
Diz o roto ao nu, acrescentou Marina.
Ela olhara para Jake, que estava sentado com a cabeça para trás e os olhos
fechados, sorrindo, e mordeu o interior da bochecha frustrada consigo
mesma.
Assim que chegaram à quinta, pareceu correto convidar o rapaz a passar ali
a noite. Ela fez o jantar e tiveram uma conversa estranha que evitou a
descrição do trabalho por parte dela e qualquer menção ao comportamento do
pai por parte da dele.
Agora Alice estava deitada na cama a olhar para o teto, os olhos secos pela
falta de sono. Não fazia ideia de quais eram as necessidades físicas dele. Fora
ela quem o convidara, mas tinha de cuidar dele agora?
O rapaz não é um cão, Alice, ralhou a voz da mãe na sua mente. Faz-lhe o
pequeno-almoço e deixa as perguntas difíceis para depois.
Pragmática mesmo na vida após a morte – assim era Marina Holtzman.
Alice saiu da cama e vestiu-se. Ouviu uma porta abrir-se e o som de água
corrente no quarto de hóspedes. Isso era alguma coisa. A sua ansiedade
diminuiu e ela dirigiu-se à cozinha.
Enquanto fazia café, refletiu ironicamente que a acessibilidade da casa fora
comprovada, de qualquer maneira. Ela remodelara a casa térrea pensando que
os pais se mudariam para lá um dia: a rampa, portas alargadas e um quarto de
hóspedes totalmente acessível com casa de banho anexa. Mas ninguém
deslizara pelos corredores até à noite anterior. Jake empurrara a cadeira pela
porta da frente e pelo corredor. Fizera-a girar e sorrira.
– Bela casa, Alice – dissera ele.
Apesar do sorriso, parecia cansado. Alice também estava exausta e feliz por
se deitar cedo quando terminaram o jantar e ele disse que não precisava de
nada.
Alice olhou para o campo, onde o sol iluminava as colmeias brancas.
Percebeu que já havia vento ao ver os ramos dos choupos e dos abetos
agitarem-se. Não era o tempo ideal para verificar as novas colmeias nucleares
como planeara.
Primeiro, o café, querida. Primeiro sempre o café, disse a voz do pai.
Sentou-se à mesa e abriu a previsão do tempo no portátil. O vento sopraria
cedo, diminuindo gradualmente no fim da manhã. Poderia fazer a verificação
das colmeias mais tarde. Por enquanto, podia mostrar a quinta a Jake e
apresentá-lo às abelhas. Arranjaria forma de abordar o assunto do trabalho
real envolvido e fazê-lo entender que ele não poderia fazer o que ela
precisava – levantar quadros de criação volumosos e alças com quarenta
quilos de mel e cavar buracos para cercas e coisas afins. Tanto quanto ela
podia ver, ele não conseguia fazer nada disso sentado. Mas podia deixá-lo
ficar ali alguns dias, até que o pai se acalmasse. Isso fazia sentido e, com
certeza, ele entenderia.
Ouviu o barulho de rodas no linóleo atrás dela e virou-se, sorrindo com a
falsa alegria de alguém habituado a estar sozinha de manhã e a gostar, mas
que fora ensinada a fazer o esforço de ser educada.
– Bom-dia – cumprimentou ela, e então estacou ao ver o cabelo comprido e
molhado caído atrás de um ombro como uma sereia punk.
Ele pareceu envergonhado e puxou a longa madeixa com uma das mãos.
– Radical, hem? – comentou, tentando sorrir e encolhendo os ombros. –
Estava a precisar de um duche.
Parecia muito novo e vulnerável com o seu penteado louco desfeito e Alice
sentiu-se amolecer.
– Não somos muito formais por estas bandas – disse ela, apontando para a
sua camisa amarrotada e jardineiras Carhartt. – Isto é a indumentária normal
para o café.
O rosto dele iluminou-se e ele olhou por cima do ombro dela para a
cozinha.
– Há café?
Alice fez menção de se levantar, mas Jake rolou até à bancada e serviu-se
de uma chávena. Deslizou até à mesa, parou ao lado dela e olhou pela janela.
– Uau! Nunca estive tão dentro dos pomares. Que sítio incrível. Aquilo lá
fora é tudo seu?
Alice adorava a beleza do prado iluminado pelo sol e a floresta adjacente,
mas surpreendeu-a que um adolescente notasse. Assentiu e apontou para sul.
– Até à cerca é tudo meu. E deste lado, para lá do celeiro. Depois, para
norte, até à estrada. Mostro-te tudo depois do pequeno-almoço. Tens fome?
Ele assentiu e fez menção de a seguir enquanto Alice se levantava e ia para
a cozinha.
– Deixe-me ajudar – pediu ele. – Faço umas ótimas torradas.
Alice virou-se e esboçou o sorriso educado do anfitrião relutante.
– Eu faço o pequeno-almoço esta manhã e depois veremos... – Calou-se.
Ao ouvi-la hesitar, o sorriso de Jake esmoreceu. Com certeza percebeu que
aquilo nunca funcionaria.
Baixou os olhos e depois tornou a olhar para ela como se estivesse a ganhar
coragem.
– Ouça, Alice. Fez-me um grande favor a noite passada. Não serei um
fardo para si. Farei o meu trabalho. Vou…
Ela agitou a mão para ele, fingindo descontração. Pensou no que a mãe
diria numa situação daquelas, embora Marina Holtzman nunca fizesse algo
tão precipitado como imiscuir-se no conflito de outra família. E depois havia
a cadeira de rodas. Ela não fazia ideia de que tipo de necessidades o rapaz
tinha.
– Não te preocupes com isso, Jake. Havemos de arranjar alguma coisa.
Falou com uma facilidade e confiança que não sentia e funcionou. O rapaz
sorriu e voltou para a mesa. Folheou um exemplar do Hood River News da
véspera enquanto Alice preparava o pequeno-almoço.
Enquanto comiam ovos mexidos e torradas, ela falou-lhe do apiário, que
tinha atualmente vinte e quatro colmeias e que ela esperava aumentar para
cinquenta ou mais durante o verão. Explicou-lhe o ano das abelhas, que
começava na primavera e ia até ao outono. As suas colmeias eram todas
colmeias Langstroth, projetadas por Lorenzo Langstroth em meados do
século XIX e que tinham revolucionado a apicultura nos Estados Unidos. Por
terem quadros amovíveis, eram as mais fáceis para os apicultores
principiantes, disse Alice.
Jake comentou que ela não parecia uma principiante com vinte e quatro
colmeias, mas Alice limitou-se a encolher os ombros. Ainda se considerava
uma principiante. Quando saíram para o celeiro depois do pequeno-almoço,
Alice caminhou mais devagar do que o normal e tentou fingir que não. Ao
contrário da casa, o quintal não tinha sido modificado para uma cadeira de
rodas e de repente pareceu-lhe acidentado enquanto o observava a navegar
por ele. As galinhas cacarejaram alarmadas quando eles se aproximaram e
espalharam-se. Red Head Ned aterrou diante de Alice e olhou para eles,
lembrando-a de que estava de plantão. Alice apontou para ele e sorriu.
– Cuidado com aquele galo. É bastante temperamental.
O celeiro estava dividido em área da oficina e dormitório. Na oficina, Alice
mostrou a Jake uma colmeia vazia e tirou os quadros para lhe mostrar como
era a base antes de as abelhas construírem o favo de mel. Tinham agarrados
pedaços de cera de abelha velha e Jake pegou num deles e encostou-o ao
nariz, inspirando o fantasma do mel.
Alice mostrou-lhe a diferença entre um quadro de criação e um de mel, que
na verdade era apenas uma questão de localização. Os de mel ficavam em
cima dos quadros de criação, que eram viveiros de abelhas. Explicou como
estas construíam os favos e como uma colmeia se desenvolvia com o seu
ninho no meio e mel e pólen nas extremidades como depósitos de alimentos.
O excesso de mel nas alças era o que ela podia colher, porque significava que
as abelhas tinham uma boa reserva para o inverno, quando se agrupavam e
não podiam voar.
Jake encostou o dedo a um resíduo castanho pegajoso.
– Isto é mel?
Alice abanou a cabeça.
– Não. Chama-se própolis. Elas recolhem-no nas árvores aqui à volta e
usam-no para tapar quaisquer fendas ou buracos. Mais ou menos como
calafetagem natural.
– Vão buscá-lo e trazem-no de volta para a colmeia?
Ela assentiu. O própolis, que as abelhas usavam para tapar todas as
aberturas numa colmeia, era apenas um dos muitos milagres deslumbrantes
das abelhas.
O rapaz parecia realmente interessado, então ela verificou a leitura do
vento no telemóvel e decidiu que afinal não parecia muito forte. Agarrou o
chapéu e as luvas e olhou para Jake.
– Se quiseres, posso abrir uma colmeia para poderes ver as abelhas a
trabalhar. Tenho um fato de apicultor completo, se quiseres vesti-lo. Também
tenho um casaco e outro chapéu com véu. Isso pode ser mais fácil, mas as
tuas pernas não estarão protegidas. Elas não são agressivas, mas podem picar-
te se se sentirem protetoras. Depende apenas do grau de conforto que achas
que vais sentir.
– O casaco serve, Alice – disse ele, sorrindo.
– Tens a certeza?
Ele assentiu.
– Não consigo sentir as pernas, de qualquer maneira, portanto, se elas
começarem a picar-me, não vou dar por nada.
Alice olhou para ele com atenção, vendo um brilho nos seus olhos.
Travesso ou amargo? Não percebeu e não soube o que dizer.
Ele agitou a mão.
– Não sou alérgico. Prometo – garantiu ele.
Alice entregou-lhe o chapéu e o casaco.
– Pelo menos hoje o meu cabelo cabe debaixo dessa coisa – comentou ele
com uma risada, enfiando o chapéu na cabeça e correndo habilmente o fecho
do casaco.
Ela agarrou no saco das ferramentas e foi à frente até ao quintal. O solo era
mais plano ali e Jake parecia ter mais facilidade em rolar sobre ele.
O apiário estava rodeado por uma cerca para deter os guaxinins, que
andavam por toda a parte, e os ursos, que eram visitantes menos frequentes,
mas ocasionais. Alice abriu o portão do recinto onde as colmeias de madeira
branca estavam dispostas em filas. Doze delas – as colmeias mais antigas –
tinham duas alças de altura. As doze novas colmeias, habitadas pelas recém-
chegadas que Alice trouxera de Sunnyvale, eram caixas individuais. O ar
vibrava com o som das abelhas, mas elas estavam demasiado ocupadas para
prestar atenção aos dois humanos.
Alice parou ao lado de uma das colmeias de dois níveis. «Italianas, 2013,
N.º 11» estava rabiscado na parte lateral com caneta preta. Um zumbido
quente emanava do seu núcleo, um pulsar constante como um batimento
cardíaco ou um pequeno motor. Abelhas douradas entravam e saíam da fenda,
algumas de cada vez. Alice chamou a atenção para o facto de cada uma delas
parar por um momento e, em seguida, partir mais ou menos na mesma
direção. O rapaz viu-as apanhar o vento e desaparecer.
Alice tirou uma pequena lata de metal do saco e enfiou nela pedaços de
papel e serapilheira.
– Isto chama-se fumigador – disse, acendendo o papel e bombeando o
pequeno fole de couro da lata. – Uso-o só um bocadinho para as acalmar.
Utilizou uma ferramenta de metal para levantar a parte superior da colmeia
e, em seguida, soltou-a para um lado com a tampa interna. O zumbido
aumentou um pouco. Algumas abelhas saíram da frente da colmeia e
pairaram em torno do rosto velado de Alice.
– Bom-dia, meninas – disse ela baixinho. – Só vim dar uma olhadela. Não
precisam de se preocupar.
Bombeou fumo frio para a colmeia em três rajadas curtas. As abelhas
desceram para dentro e desapareceram. Alice colocou o fumigador de lado e
usou a ferramenta para soltar uma das pontas de um quadro de madeira e
depois a outra. Tirou-o e segurou-o nas pontas dos dedos enluvadas para Jake
ver. Em voz baixa, explicou para o que ele estava a olhar – mel operculado,
mel desoperculado, pólen, alvéolos com larvas de obreiras e um punhado de
alvéolos de zângão. Se ele olhasse com atenção, disse ela, veria pequenos
ovos de abelha no fundo de alguns alvéolos abertos, como bagos de arroz. A
trepar por todo aquele material estava uma massa murmurante de corpos
pretos e dourados. Cada uma diligentemente dedicada à sua tarefa, as abelhas
moviam-se pelo quadro com um propósito.
Alice interpretou o silêncio dele como nervosismo e fez menção de colocar
o quadro de volta na caixa.
Ele estendeu as mãos enluvadas.
– Posso segurá-lo? – perguntou. – Terei muito cuidado.
Surpreendida, ela assentiu e transferiu o quadro das suas mãos enluvadas
para as dele. Jake segurou-o diante do rosto e olhou para as obreiras, algumas
a espalhar feromonas, outras alheias.
Não é assustadiço, de qualquer maneira, pensou Alice.
Depois de examinarem cada quadro de criação, depois de Alice lhe ter
mostrado a diferença entre um zângão e uma obreira, e depois de terem
identificado o corpo longo e esguio da rainha no meio da caixa, Jake tinha
cem perguntas.
Porque estava a rainha no meio e porque vivia mais do que as outras?
Porque tinha uma pinta verde? Como é que as obreiras sabiam qual era o seu
trabalho? O que lhes acontecia no inverno? E os zângãos? Onde é que as
abelhas obtinham o pólen e o néctar, e qual era a diferença entre néctar e
mel? Como sabiam para onde voar? De onde vinha a cera? Porque é que
apenas a rainha punha ovos?
A maioria das pessoas restringia as suas perguntas às picadas e ao mel.
Algumas perguntavam sobre o inverno. O interesse de Jake agradou a Alice.
Ela falava e o rapaz ouvia. Ouvia mesmo. O sol subiu sobre o campo quando
se sentaram a uma mesa de piquenique sob o grande choupo e observaram a
dança das abelhas. Alice falou-lhe da geleia real, dos períodos de gestação,
do espaço-abelha e das áreas de congregação dos zângãos. Conversaram
durante muito tempo.
Alice foi a casa e trouxe chá gelado. Ficaram sentados num silêncio
agradável, a observar a saída das abelhas das colmeias para a floresta e os
campos. Alice sentiu-se admirada por estar à vontade ali sentada com o
rapaz. Enquanto mulher sem filhos, não estava habituada a adolescentes, que,
via de regra, a deixavam pouco à vontade. Os únicos que via regularmente
eram a progénie taciturna dos seus colegas de trabalho, que mal erguiam os
olhos dos seus telemóveis para a cumprimentar quando incitados pelos pais.
– Então começou apenas com uma colmeia? – perguntou Jake.
Alice anuiu e sorriu. Levantou o cabelo do pescoço e apanhou-o com um
elástico. Apontou para a Colmeia n.º 1 perto da cerca oeste.
– Aquela foi a primeira. Nunca pensei que viria a ter vinte e quatro.
– E quer ter cinquenta até ao fim do verão?
– Sim. Se não retirar tanto mel e dividir as colmeias fortes, acho que
poderia funcionar. A maioria está a sair-se muito bem porque tivemos uma
boa primavera. Provavelmente também posso capturar alguns enxames
selvagens para fazer novas colmeias.
Desde que nenhum dia demasiado quente de primavera faça murchar as
delicadas flores, pensou ela. Desde que nenhuma grande tempestade sopre
pelo pomar, dizimando as flores. Achou que o rapaz lhe iria perguntar como
se apanhava um enxame. Em vez disso, ele fez a única pergunta que ela não
esperava, a pergunta mais óbvia que alguém faria.
– Como obteve a sua primeira colmeia?
Houve uma longa pausa e Alice pousou o copo com estrondo. Não
conseguia falar. Olhou para trás através do campo e depois para a casa. Ele
estava à espera que ela respondesse. O peso do seu silêncio abateu-se entre
eles como uma corda com roupa molhada. Alice sentiu a sua respiração
tornar-se superficial e o seu peito contrair-se. Não ali. Não naquele momento.
Não podia passar-se diante do rapaz, e não conseguia responder à sua
pergunta sem se passar.
– Caramba! – exclamou, levantando-se de um salto. – Esqueci-me que
devia... Ouve, volto daqui a uma hora. Tenho de ir à cidade. Desculpa!
Sem olhar para trás, correu até à pickup, apanhou as chaves do banco e
desapareceu no longo caminho de acesso.
Assim que a casa desapareceu de vista, ela parou e desligou o motor.
Inclinou a cabeça para trás e tentou abrandar a respiração. O seu coração
batia loucamente e um zumbido agudo soou nos seus ouvidos.
Siga o fio, dissera a doutora Zimmerman. O seu riso foi um soluço. Sem
problemas daquela vez. Uma pergunta inocente era uma armadilha da
memória. Por isso era mais fácil evitar falar com as pessoas. Invariavelmente,
alguém a apanharia desprevenida com uma pergunta simples como a de Jake.
Alice tinha visto a sua primeira colmeia na Feira do Município de Hood
River numa saída com Bud Ryan há mais de dez anos. Não era a primeira vez
que Bud a convidava para sair, depois de meses a namoriscar com ela na loja
da John Deere. Na altura, ele trabalhava no departamento de manutenção e
tornara-se amigo do seu pai, que levara lá o trator para substituir a correia. O
alto e bonito Bud Ryan. Alice nunca percebeu o que ele viu em si. O pai não
conseguia entender por que motivo ela não queria sair com ele.
– É só um almoço, Alice! – exclamara o pai. – Vai lá almoçar com o
homem, pelo amor da santa!
Ela disse não. Disse que trabalhava à hora do almoço. Disse que tinha
planos com os pais. Disse que tinha uma coisa de trabalho. Estava a ajudar o
pai com a poda. Finalmente, Bud convidou-a para a feira do município.
– Os prémios são amanhã, menina Holtzman. É um grande dia para todos
os nossos futuros agricultores. Faça-o pelas crianças, está bem?
Ela rira disso, derrotada e feliz, aceitando. Qual era o problema, afinal? A
sua inquietação voltou enquanto esperava que ele a fosse buscar naquela
manhã. Devia passar o dia a ajudar o pai no pomar, pensou. Tinham tanto que
fazer. Pegou no telemóvel para cancelar e parou. Quando ele saiu da carrinha,
sorridente, ela sentiu-se feliz. Bud era meigo e de convívio fácil. Sentia-se
bem na sua própria pele e fazia-a sentir o mesmo.
Alice sempre adorara a feira e ficou satisfeita quando Bud a conduziu para
os concursos dos animais. Na avaliação dos cordeiros, aplaudiram uma
menina chamada Luz Quinto, que ganhou uma fita azul pelo seu cordeirinho
muito bem-comportado. Ela conduziu-o num círculo com uma corda, e todos
podiam ver que o animal a adorava. Quando o leilão começou, Alice sentiu
um aperto no coração. Fazia parte, mas ela detestava a ideia de ver aquela
menina separada do seu animal de estimação, embora soubesse que ela usaria
o dinheiro para comprar outro. Com consternação, viu Bud levantar a mão.
Ela não queria participar da tristeza da menina. Bud ofereceu uma quantia
exorbitante pelo animal, muito mais do que valia para criação de gado ou
carne. Terminada a licitação, Luz Quinto entregou-lhe o bilhete com grandes
lágrimas nos olhos escuros. Bud baixou-se e sussurrou-lhe algo ao ouvido e
devolveu-lhe o bilhete. O rosto dela iluminou-se. Correu para junto dos pais,
o cordeiro a escoicear atrás dela.
– É um coração mole – comentou Alice.
– É que estou a pensar em tornar-me vegano – respondeu Bud, dando uma
palmada na sua grande barriga, e os dois riram.
Passaram a tarde a percorrer os cercados de vacas, cabras e porcos.
Provaram tartes, geleias, chutney e maçãs e peras frescas. Evitaram o barulho
e as luzes das diversões sem sequer falar no assunto. Bud parecia entender
que Alice não gostaria disso – os carrosséis, os adultos bêbedos e as
multidões de crianças em movimento. Passearam pelos celeiros, vendo as
galinhas, porcas e javalis, os enormes touros que mais tarde seriam usados no
rodeo. Do outro lado da área dos animais encontraram as colmeias.
Mais tarde, Alice saberia os nomes das diferentes colmeias que viu naquele
dia – Langstroth, top bar, horizontal. Havia até uma colmeia feita de vime.
Essas peças tinham sido ali colocadas pela associação apícola local. Estavam
todas vazias, exceto uma colmeia Langstroth que tinha uma janela de
visualização de plástico de um lado.
Alice sentou-se no banco em frente à colmeia, encantada com o que via.
Milhares de abelhas rastejavam sobre os favos, sem pressa, cada uma
executando obstinadamente a sua tarefa. Abelhas carregadas de pólen
enfiavam um pó laranja brilhante nos alvéolos e assentavam-no com as patas.
Viu uma abelha alimentar uma larva branca desajeitada. Viu uma abelha a
emergir de um alvéolo, completa e perfeita. Que mundo pequeno, incrível e
ordenado.
Bud leu a placa diante da colmeia.
– «Esta colmeia, construída ao estilo do apicultor americano Lorenzo
Langstroth, contém aproximadamente cinquenta mil abelhas quando em
pleno funcionamento. Uma colmeia saudável produzirá entre dezoito e trinta
e seis litros de mel por ano. As colmeias de abelhas locais são uma bênção
para pomares e quintas. As colmeias Langstroth estão disponíveis com
desconto através da Associação de Apicultores de Hood River.»
Sentou-se ao lado de Alice e observaram em silêncio durante algum tempo.
Alice nunca se sentira tão à vontade com um homem. Não pensara que fosse
possível. Bud simplesmente entrou no seu mundo tranquilo.
– Devia comprar uma – sugeriu ele ao fim de algum tempo. – Iriam adorar
o pomar da casa dos seus pais.
Alice abanou a cabeça.
– Eu não saberia o que fazer – respondeu.
Bud tinha outra opinião e apareceu no celeiro dos seus pais no sábado
seguinte com uma colmeia Langstroth desmontada na traseira da sua pickup.
– Pensei que talvez pudesse ajudar-me a montá-la – disse ele, sorrindo e
erguendo as mãos grandes. – Sou muito desajeitado com estes preguinhos.
Alice deixou-se levar pelo estratagema. Pois porque não? Juntos, montaram
quarenta armações de madeira, dois quadros de criação e duas alças.
Aplicaram primário nas caixas, pintaram-nas e construíram um suporte para
colmeias. O processo demorou vários sábados e Marina convidava Bud para
jantar com eles todas as semanas. Quando a colmeia ficou montada, era
demasiado tarde para dizer não a qualquer coisa que Bud Ryan lhe pedisse.
Aquele homem grande e sorridente não se importava com o silêncio dela.
Não o considerava, como muitos, hostilidade. Bud entendia-a de uma forma
que a maioria das pessoas não entendia. Alice sentia-se ela mesma perto dele.
Nem pensava em coisas como amor ou casamento. Não houve decisão. Eles
simplesmente eram.
– Como deve ser – disse Marina três meses depois, embora ainda irritada
pelo facto de a sua única filha ter ido à conservatória numa tarde de sexta-
feira e casado sem contar a ninguém.
Mas esses dias já tinham passado. Alice agarrou o volante e sentiu todo o
seu corpo tremer. Havia um buraco enorme dentro dela. A doutora
Zimmerman disse que levaria tempo e muito trabalho para que ele
diminuísse. Disse que nunca iria sarar completamente. A dor fazia agora
parte da sua vida. Ela tinha de lhe dar um nome e aprender a regulá-la para
não sentir pânico e perda de controlo.
Cerrou os punhos e tentou respirar. Pensou no rapaz que deixara na sua
quinta e isso piorou tudo. Não aguentava ter outra pessoa em casa quando
podia ir-se abaixo daquela maneira. Jake teria de ir para casa em breve – isso
era claro. O pensamento acalmou-a. Pelo menos ainda tinha controlo sobre a
sua casa, a sua quinta. Poderia estar lá na Ilha Alice com a ponte levadiça
subida. A sua respiração desacelerou. Limpou os olhos e sentiu um peso
calmo espalhar-se pelo seu interior.
Ligou o motor e foi em direção ao Little Bit comprar alguns fardos de feno.
Precisava de fazer uma nova vedação para cortar o vento de qualquer maneira
e os fardos seriam uma desculpa plausível para a sua partida apressada.
Tentou pensar nas palavras que diria para desiludir o rapaz com facilidade.
Até os pais concordariam com esse plano, com certeza.
– Vai correr tudo bem, certo? – perguntou ela em voz alta. – Ele vai
entender que é assim que tem de ser?
Mas as vozes dos seus pais mantiveram-se silenciosas.
9
OBREIRAS
As obreiras, ou abelhas comuns, constituem a maior parte da
população de uma colmeia... Já se afirmou que as obreiras são todas as
fêmeas cujos ovários são demasiado imperfeitos para permitir a
postura de ovos.
– L. L. LANGSTROTH

Quando Alice Holtzman tinha dez anos, levantou-se diante da sua turma do
quarto ano e contou a história de como os Holtzman cultivavam o pomar da
família há três gerações. Explicou que os bisavós tinham vindo da Alemanha
para Hood River Valley e plantado as primeiras árvores. Que tinham passado
o pomar aos seus avós, que o passaram a Al e Marina. Desenhos coloridos
acompanharam a sua apresentação enquanto ela explicava as estações de
poda, irrigação e colheita. Falou em pormenor das tonelagens das colheitas
anuais e as variedades das maçãs dos Holtzman, incluindo Pippins,
Gravensteins e Braeburns. Para a última imagem, Alice desenhara-se em
jardineiras a conduzir o trator verde entre as filas de macieiras. Era assim que
se imaginava em adulta, a assumir o lugar dos pais como a quarta geração de
agricultores Holtzman.
Assim que ela terminou, a professora, a senhora Tooksbury, bateu palmas
com as suas lindas mãos e pediu aos colegas de turma de Alice que fizessem
o mesmo. Alice estava a guardar os seus desenhos quando David Hanson
gritou do fundo da sala.
– Não podes ser agricultora! Mulher de agricultor, queres tu dizer!
Curvou-se sobre a mesa a rir e a sala irrompeu em gargalhadas. Alice ficou
imóvel diante da turma. A senhora Tooksbury repreendeu David, dizendo que
Alice poderia ser o que quisesse.
– Sim, até mesmo uma astronauta, David – disse ela, franzindo a testa.
Mas, quando a senhora Tooksbury olhou para ela e desviou novamente o
olhar semicerrado, Alice percebeu que a professora realmente não acreditava
que ela pudesse ser uma astronauta ou uma agricultora. Foi a primeira vez
que percebeu que os adultos às vezes mentiam. Depois das aulas, contou ao
pai o que se passara enquanto o ajudava a cortar e lixar estacas de árvores
para os novos enxertos. Al ouviu, acenando com a cabeça, mas não disse
nada. Ela pressionou-o, embora soubesse que o pai falava apenas quando
tinha alguma coisa a dizer.
– Mas ela é minha professora – lamuriou-se Alice. – E acha que o David
tinha razão!
O pai parou de lixar e olhou para ela, partículas de serradura a flutuar no ar
entre eles.
– A senhora Tooksbury está aqui a cortar estacas de árvores?
Alice abanou a cabeça.
– Estará aqui amanhã, quando começarmos os enxertos?
De novo, Alice abanou a cabeça.
– Bem, acho que sabemos que a senhora Tooksbury não está a aprender a
ser agricultora. Mas quem sabe? As pessoas mudam.
E foi tudo o que disse sobre o assunto. Alice abraçou-o com mais força do
que o normal quando foi para a cama naquela noite. Al Holtzman era um
homem de poucas palavras, mas ela sabia que o pai achava que ela seria uma
grande agricultora.
E, no entanto, trinta e quatro anos depois, Alice não estava a cortar árvores
nem a enxertar ramos. Al morrera, o pomar desaparecera e Alice ainda
trabalhava no gabinete de planeamento do município. Não era agricultora ou
sequer mulher de um agricultor.
Na segunda-feira, enquanto conduzia para o trabalho, refletiu no que
acontecera entre o quarto ano e os seus quarenta e quatro anos. A sua situação
não era rara. As pessoas abandonavam os seus sonhos de infância e
embalavam as suas vidas em caixas práticas e previsíveis, certo? A ideia
deprimiu-a e fê-la sentir-se ainda pior por Jake.
A tarde já ia no fim quando voltara do Little Bit e descarregara os fardos de
feno da pickup. Jake estava no apiário, então ela acenou-lhe e gritou o que
estava a fazer. Ele viu-a usar o trator para posicionar os fardos para cortar o
vento e a atividade amenizou a estranheza da sua partida, já que não podiam
conversar. Quando Alice terminou e foi até ao apiário, ele sorriu e gesticulou
em seu redor com uma felicidade silenciosa. Ela sentiu um aperto no coração.
Não podia dizer-lhe naquele momento. De qualquer forma, era quase hora do
jantar. Mais uma noite não faria mal, pensou.
Depois de o rapaz desaparecer no quarto de hóspedes, ela esboçou
mentalmente uma explicação concisa do motivo por que ele precisava de ir
para casa. Seria apenas objetiva sobre a parte física do trabalho. Ensaiou, para
que ele só pudesse concordar e ligar para a mãe. Tudo terminaria depois do
pequeno-almoço e ele ter-se-ia ido embora quando ela voltasse do trabalho.
Ficou animada com a ideia de como a sua casa estaria silenciosa. Dormiu
bem e, quando acordou naquela manhã, sabia que era a coisa certa a fazer. Só
precisava de estar sozinha.
Encontrou Jake na cozinha com um bule de café muito forte. Engasgou-se
com o primeiro gole, mas Jake não percebeu porque estava a falar sobre as
abelhas. Estivera acordado até às duas da manhã a ler o seu livro Backyard
Beekeeping e tinha várias perguntas sobre os zângãos, as áreas de
congregação, se a população de zângãos poderia ser usada para avaliar a
saúde da colmeia. A varroose e a polémica sobre tratar ou não tratar. Contra
sua vontade, Alice foi atraída para a conversa porque eram questões muito
interessantes. Reparou que já estava atrasada e que teria de falar com ele
sobre ir-se embora depois do trabalho. Praguejou baixinho enquanto
acelerava em direção à cidade.
Estacionou e ficou no passeio, a olhar colina abaixo em direção à água. Já
havia vento. Kitesurfers e windsurfers formavam aglomerados coloridos no
rio cheio de ondulação branca, provavelmente moradores locais a aproveitar
um momento de lazer antes do trabalho. A zona ribeirinha estaria cheia de
turistas em junho. Ela podia ver a longa faixa de relva verde onde as pessoas
se reuniam – caçadores de vento e espectadores.
Admirara aquela vista toda a vida e nunca se cansava – a faixa esmeralda
de relva, o banco de areia a derramar-se no rio e os penhascos escarpados da
garganta a elevar-se da água. Recordações de verões passados surgiram na
sua mente. Agora não, pensou, e repeliu-os com firmeza.
– Bom-dia, Alice!
A voz junto ao seu ombro fê-la dar um salto. Era Rich Carlson, o diretor
financeiro e de recursos humanos dos serviços municipais. Como de costume,
Rich estava de fato enquanto todos aderiam ao código de indumentária que
Alice descrevia como «informal agrícola». Em doze anos, ela nunca vira Rich
sem gravata. Nem mesmo no piquenique de verão. Ele estava no passeio a
bater com um jornal enrolado na coxa. Rich era um buraco negro de tempo
sobre duas pernas. Conseguia sugar quase uma hora ao parar junto de uma
secretária para conversar. Alice sentia-se desconfortável perto de Rich
mesmo antes da festa de Natal do escritório, seis anos antes, quando ele a
encurralara sob o visco-branco. Ela recuara e os lábios secos dele tinham
roçado o seu pescoço. Sempre que se via a sós com Rich, lembrava-se disso –
da sensação de poliéster áspero, da loção pós-barba que cheirava a
ambientador de carro.
– Bom-dia, Rich – disse ela, fingindo um sorriso.
– Grande dia hoje – disse ele com um sorriso largo. – Prontos para a nossa
reunião com a CP?
Alice manteve o sorriso no rosto e gemeu interiormente. Como tantas
cidades do oeste, Hood River crescera com a chegada do comboio no século
XIX. A Cascadia Pacific, por sua vez, desenvolvera-se a partir de uma
empresa ferroviária para um enorme conglomerado, que agora incluía linhas
de fibra ótica e contratos com empresas de tecnologia, bem como outras
diversificações aparentemente não relacionadas do século XXI. Alice tinha-se
esquecido completamente de que os representantes da Cascadia Pacific
viriam naquele dia para a reunião anual. Representantes do Serviço Florestal,
da aliança de agricultores e do grupo da bacia hidrográfica também estariam
lá. Alice sabia que era um gesto inútil mostrar aos acionistas da CP que
tinham um bom relacionamento com a cidade pequena, mas era obrigatório.
– Prontos como sempre estaremos, Rich – respondeu ela.
Rich adorava reuniões. Tomava imensos apontamentos no portátil e
arquivava-os sabia-se lá para quê. Alice sentiu pena dos funcionários do
departamento dele. Peneirar os constantes e-mails de Rich devia ser um
trabalho quase a tempo inteiro. Alice lançou uma olhadela ao relógio. Tinha
pouco mais de uma hora para se recompor.
– ... passei o fim de semana a reformatar os meus relatórios – estava Rich a
dizer – para que todos possam ter acesso. Guardo uma cópia no servidor. Vou
buscar um café ao Ground. Quer fazer-me companhia?
Alice não conseguiu pensar em nada que preferisse fazer menos. Ergueu a
sua caneca de viagem.
– Já estou servida. Mas obrigada na mesma.
Rich não fez menção de sair da frente dela.
– Bem, é melhor deitar mãos à obra – disse ela e contornou-o.
– Atire-se a eles, tigre! – Rich deu-lhe um toque no ombro com o jornal
quando ela passou. Alice encolheu-se e sentiu uma onda de fúria.
Como de costume, foi a primeira a chegar ao escritório. A cadeira de
Nancy estava vazia e a porta de Bill fechada. Ligou o computador e abriu o
perfil do departamento, que precisaria de enviar para a reunião com a CP.
Copiou o relatório do ano anterior e começou a atualizá-lo. Não demoraria
muito. As finanças eram o principal. Mandou um e-mail a Debi Jeffreys, a
chefe do gabinete, suando enquanto digitava e marcava o assunto como
«urgente». Debi costumava ficar mal-humorada quando lhe pediam essas
coisas. Alice teria preferido obter a informação diretamente do departamento
de contabilidade, mas como Debi também era extremamente passivo-
agressiva, insistia que todos os pedidos passassem por ela. No seu e-mail,
Alice desculpou-se por esperar até ao último minuto. Debi respondeu
imediatamente com os ficheiros anexados.
«Não foste a única a esquecer-te», escreveu ela. «Mas a única a desculpar-
se por esperar até esta manhã! ;)»
Alice suspirou de alívio por ter apanhado Debi de bom humor. Abriu a
folha de cálculo, analisou-a em busca das informações pertinentes e cortou-as
e colou-as no seu relatório, trabalhando rapidamente nas três primeiras
páginas. Os números eram sólidos em todos os aspetos – alvarás de
construção, registos de transporte, impostos. Ela seria capaz de fazer aquele
trabalho de olhos fechados.
O gabinete de planeamento do município de Hood River deveria ser um
trampolim para Alice. Mas, quando olhava para trás, era fácil perceber como
se instalara ali. Após o secundário, frequentara a Oregon State University e
formara-se em agricultura e gestão. Em casa, Al era o especialista em árvores
e Marina cuidava da contabilidade. Alice queria estar preparada para fazer as
duas coisas. Formara-se com distinção e trabalhara alguns anos numa quinta
de trigo com uma pequena exploração de gado em Willamette Valley, como
diretora de operações. Quando foi para a Eugene para fazer o mestrado, a
pequena quinta fora engolida pela indústria do vinho em expansão. Não
pensara muito sobre isso porque tencionava voltar para o pomar.
Mudou-se para casa em 1996 e trabalhou ao lado do pai nas noites e fins de
semana. O gabinete de planeamento seria temporário até que Al e Marina
estivessem prontos para entregar a quinta. Só que isso não aconteceu. Alice
tinha visto as coisas ficarem cada vez mais difíceis para os pais –
regulamentos, taxas e preços muito baixos ameaçavam também os pequenos
produtores. Depois vieram os regulamentos de pulverização. Quando
decidiram vender, ela entendeu, embora lhe tivesse custado.
Então ficara ali. O seu chefe, Bill Chenowith, deixara claro que ela seria a
primeira da fila quando ele se aposentasse. Era a cenoura que Bill sempre
mostrava – a sua posição de diretor de planeamento do município.
Na avaliação anual dela em março, ele exibira-a como uma salva de
despedida.
– Sabe que estou a pensar em aposentar-me em breve, Alice – disse ele. –
Sempre disse que seria a melhor candidata para a transição.
Ela estava pronta para esse desafio. E, no ano anterior, o trabalho dera-lhe
algo em que se concentrar, onde desaparecer. O seu emprego podia ser
enfadonho e previsível, mas fornecia fronteiras claras e seguras dentro das
quais operar. Ela bebeu um gole de café e concentrou-se nas folhas de
cálculo. Trabalho mecânico – era um alívio.
Na sala de reuniões, Alice percebeu que o representante da Cascadia
Pacific, um homem louro e esbelto de Seattle, era a única pessoa de fato além
de Rich. Parecia um tipo simpático, apesar da linguagem corporativa sem
sentido: «desenvolvimento da comunidade», «prosperidade partilhada» e
«brainstorming criativo». Aquilo era apenas uma demonstração da fidelidade
de uma pequena cidade a uma grande corporação que financiava os seus
subsídios locais e fazia grandes doações para escolas e parques. Em troca, a
CP obtinha o direito de passar o seu cabo de fibra ótica ao longo do
município e ao longo do coração do desfiladeiro do rio Columbia para apoiar
as empresas de tecnologia que estavam a mudar-se para ali. Melhor chamá-lo
pelo que era – intercâmbio financeiro, um casamento combinado, se se
quisesse. Mas ninguém o faria.
Muitos dos seus colegas tinham os portáteis abertos. Rich martelava no
teclado, tomando apontamentos meticulosos. Outros, pelo que ela via,
estavam a ler os seus e-mails. Nancy via fotografias dos filhos no Facebook.
O seu grande sorriso tolo denunciava-a. A mente de Alice vagueou para as
abelhas. Fez algumas anotações no seu portátil – materiais de construção,
tinta para novas colmeias. Iria passar na serração para ver o que poderia
encontrar para os suportes de colmeias. Pensou novamente em Jake e no seu
enorme entusiasmo. Ele seguira-a durante as verificações completas de três
colmeias, fazendo perguntas e segurando as suas ferramentas enquanto ela
avançava, o que fora útil.
Sentiu-se furiosa consigo si mesma. O que vais fazer? Obrigar o miúdo a
seguir-te e a segurar as tuas ferramentas?
– ... Comemorando vinte anos de parceria interagências!
O representante da CP estava a terminar e todos batiam palmas.
– E como parte da nossa missão de diversificação, tornámo-nos o
distribuidor regional da SupraGro, que faz produtos de valor acrescentado
para o setor agropecuário. Esperamos ser a ponte entre a SupraGro e as
quintas, ranchos e pomares locais. Aqui está o catálogo deste ano, com os
meus contactos na parte inferior. Por favor, liguem-me com qualquer dúvida
e, mais uma vez, obrigado!
Os catálogos brilhantes estavam espalhados pela mesa da sala de reuniões.
Bill agradeceu ao representante da CP a apresentação. Houve mais aplausos e
as pessoas começaram a sair. Alice empurrou a sua cadeira para trás, mas viu
a cadeira ao lado ainda ocupada por Stan Hinatsu, da Watershed Alliance.
Stan tinha mais ou menos a idade de Alice, nipo-americano, com cabelo
grisalho. Sempre o achara um homem bonito, mas naquele momento, a
brandir um catálogo colorido, parecia zangado.
– SupraGro! – exclamou ele. – Estão a brincar? Destruíram a bacia
hidrográfica do salmão nas Sierras. Em Truckee. Houve um grande processo
judicial.
Alice reconheceu vagamente o nome da pequena cidade da Califórnia.
– Vão impingir-nos isto como se não notássemos? – Levantou-se e falou
para o outro lado da sala. – Desculpem! Bill? Bill! Podemos conversar sobre
este último item?
Bill conversava com o representante da CP. Puxou as suas calças caqui para
cima e lançou um sorriso vazio na direção de Stan.
Stan juntou as suas coisas, murmurando:
– ... Completamente inaceitável. Não posso acreditar…
Caminhou em direção à porta e gritou:
– Bill! Vou ligar-lhe e marcar uma reunião!
Bill sorriu e acenou. Stan saiu da sala.
– O que foi aquilo?
Nancy estava ao lado da cadeira de Alice com um copo de papel na mão,
deslocando o peso de um pé para o outro, a saia floral cor-de-rosa a balançar.
– Com o que está o velho Stan chateado agora?
Nancy tinha uma permanente nova e usava brincos a condizer com os
óculos de armação roxa. Como Alice, Nancy era uma funcionária de longa
data do município. Tinham andado juntas no secundário – Nancy terminara
dois anos antes de Alice. Nancy ria com frequência e ainda exibia o mesmo
entusiasmo que tivera como chefe de claque na escola secundária. Ambas
eram assistentes de Bill em título, mas aceitavam tacitamente que Alice fazia
a maior parte do trabalho. Bill chegava tarde, saía cedo e não se incomodava
com a papelada, o que era basicamente o objetivo do departamento.
– Qualquer coisa sobre a SupraGro e um processo na Califórnia –
respondeu Alice.
– Que fiteiro – comentou Nancy, revirando os olhos. – Sempre chateados
com alguma coisa, aqueles ativistas.
Alice sentiu-se na defensiva. Gostava de Stan.
– Não sei, Nancy. Lembras-te de quando aqueles comboios da Cascadia
descarrilaram em Mosier? Foi o grupo do Stan que os obrigou a limpar tudo.
Nancy fez uma careta e riu.
– Caramba! Não sejas tão séria, Alice. É segunda-feira de manhã. A
propósito, contactaste o pessoal de Heights na semana passada? Eu estava à
espera que me desses as estatísticas habitacionais para poder criar a previsão.
Voltaram juntas para o escritório.
Alice sentiu-se inquieta durante o resto do dia. À hora do almoço desceu
até ao rio, passou pela praia dos kiteboards e continuou para leste em direção
aos hotéis à beira-rio, ao museu e à pequena marina, protegida do vento. Os
veleiros balançavam na brisa leve, o cordame a tilintar ligeiramente. Viu o
barco de Bill entre eles – o Kathy Sue, que tinha o nome da mulher com quem
estava casado há quarenta anos. Olhou para os velhos edifícios de tijolo na
encosta acima de Oak Street. Hood River ainda era uma bela cidadezinha.
Todos compareciam ao desfile do Quatro de Julho e ao primeiro jogo do ano
na escola secundária. As pessoas evitavam buzinar e travavam para os perus
que percorriam a cidade no outono.
Alice foi até meio da ponte e olhou para o rio. Viu dois pescadores com
água pelas ancas, e a luz do sol refletia-se nas suas linhas enquanto as
lançavam para a frente e as puxavam no ar. Mount Hood erguia-se a sul,
plácido sob a neve da primavera.
Ela adorava aquele lugar, mas nunca esperara acabar encalhada no gabinete
de planeamento do município toda a sua carreira. Uma vida passada ao ar
livre era uma vida boa, sempre tinham dito os pais. Animou-se ao pensar no
seu plano de aumentar o apiário e ganhar dinheiro suficiente para construir
um pequeno pomar. Precisava de contratar alguém para a ajudar a fazer
avançar as coisas. Esse era ainda mais um motivo pelo qual precisava de
mandar Jake para casa, pensou Alice. O rapaz entenderia. E se não
entendesse, bem, isso não era problema dela. Ele tinha pais, não tinha? Não
era responsabilidade dela.
Passou o resto do dia imersa na gigantesca tarefa de agendar avaliações
para os edifícios comerciais da cidade. Um a um, os colegas foram-se embora
até ficarem apenas ela, Nancy, e o estagiário ruivo, Casey. Nancy
convencera-o a ir à happy hour na taqueria e tentou convencer Alice a ir
também para não parecer que estava a atirar-se ao pobre rapaz.
Ela escusou-se, dizendo que tinha coisas a fazer em casa.
– Como queiras, amiga – disse Nancy. – Acho que somos só nós os dois,
Casey.
A risada dela ecoou pelo átrio quando saíram.
Alice sabia que estava a empatar. Conduziu para sul em direção a sua casa
e pensou em comprar tacos no Nobi’s. Sentiu um lampejo de impaciência.
Não ia fazer outra vez o jantar para o rapaz. Queria ficar irritada, percebeu.
Precisava de justificar mandá-lo para casa. Mas gostava dele, o que não era
insignificante. Por regra, Alice não gostava da maioria das pessoas que
conhecia. Mas havia algo especial no rapaz. E fora ela quem o convidara.
Afinal, sobre o que fora aquele grande gesto? Discutiu consigo mesma
durante o trajeto para casa.
Percorreu a longa curva do caminho de acesso e viu uma carrinha
estacionada diante da sua casa. Sentiu um nó no estômago quando ouviu
vozes elevadas e, em seguida, gritos. Outra discussão da família Stevenson?
Claro que Ed Stevenson viria à procura do filho. Porque não pensara nisso? O
seu coração acelerou. Temia confrontos, mas raios a partissem se Ed
Stevenson pensava que podia gritar com qualquer pessoa na sua casa.
Acelerou o passo e abriu a porta, pronta para uma discussão.
10
MANUTENÇÃO DA COLMEIA
Requisitos de uma colmeia completa...

1. Uma boa colmeia deve dar ao apicultor um controlo perfeito de


todos os favos, para que eles possam ser facilmente retirados sem os
cortar ou enfurecer as abelhas.
– L. L. LANGSTROTH

Jake não tinha palavras para explicar o que sentiu quando Alice lhe entregou
o quadro da colmeia naquela primeira manhã. Ficou simplesmente
maravilhado com a beleza daquilo. O retângulo de madeira pendeu pesado
nos seus dedos quando o puxou em direção ao rosto. Viu uma tapeçaria de
pólen multicolorido, mel operculado e néctar brilhante. Inspirou o doce
aroma de cera de abelha fresca e mel fermentado e sentiu o tremor de mil
minúsculos corpos a vibrar em sintonia. Isso atingiu-o no coração como uma
droga. A reverberação correu pelas suas mãos e subiu pelos seus braços.
Sentiu uma dor no peito e pensou que o coração ia explodir. Era um peso
calmante, uma pedra de toque invisível, um sinal a dizer «Você está aqui».
O quadro polvilhado de pólen estava coberto com cera branca delicada. Em
toda aquela superfície as abelhas douradas felpudas moviam-se com um
propósito. Ignoraram Jake. Algumas estavam ocupadas a empacotar o pólen;
outras contorciam-se nos favos cheios de mel. Abelhas alimentavam larvas
ou carregavam os corpos das mortas. Abelhas que procuravam comida,
abelhas-amas, abelhas que limpavam a colmeia das mortas. Alice disse os
seus nomes enquanto Jake observava a tapeçaria viva dourada, ocre e
escarlate. Inspirou o perfume de tudo aquilo, uma fragrância mais intensa do
que algodão-doce e sentiu o desejo de lhe encostar o rosto. Mas o que mais
recordaria era que a massa zumbidora parecia habitar o seu corpo. Sentia a
ressonância no peito, como quando tocava trompete. A sensação viajou do
seu plexo solar, passando pela caixa torácica, até ao seu coração pulsante de
dezoito anos – uma vibração de felicidade e contentamento. Isso fê-lo querer
cantar. Não disse nada a Alice. Pensou que pareceria maluco. Mas a
experiência fê-lo ter a certeza de que queria aquele emprego. Estudou os
livros de Alice até tarde e, quanto mais lia, mais lhe parecia o destino, como
uma espécie de porta a abrir-se.
Depois de Alice sair para o trabalho, Jake ficou no alpendre e sentiu o
vento oeste a soprar sobre o cume enquanto a manhã aquecia. Viu o vento
mover-se através das árvores na orla da floresta e ouviu um picanço nas
profundezas dela. As galinhas cacarejaram e um cão ladrou. Por força do
hábito, colocou os auriculares e ligou o iPhone, mas depois desligou-o.
Ouviu novamente o vento, os pássaros, o coaxar fraco dos sapos ao longe.
Era um tipo de música muito próprio e ele queria ouvi-la.
Desceu a rampa para avaliar as limitações do pátio. Lentamente, moveu-se
ao longo do perímetro para ver onde não poderia ir com a cadeira. Sentiu-se
contente por não haver ninguém a ver as suas dificuldades no terreno
irregular. Passou pelo apiário e foi em direção ao celeiro, tentando encontrar
o melhor percurso.
Recordou os recentes acontecimentos em casa dos pais. A sua bondosa
mãe, que trabalhava na igreja e ajudava as pessoas o dia todo, a descontrolar-
se com Alice. Tansy Stevenson era uma mulher doce e temente a Deus que
acreditava em ajudar os vizinhos e amar os inimigos. Decorava a cozinha
com patos e gansos enfeitados com gorros e adorava ver vídeos engraçados
de gatos na Internet. Mas se alguma coisa parecia ameaçar o seu único filho,
bem, isso trazia ao de cima o pit bull dentro ela. Era um pequeno pit bull,
mais parecido com um chihuahua zangado, mas temível.
E aquela maldita história sobre Ed! Alice contara-lha, resumidamente, na
pickup. Jake não teve dificuldade em acreditar, embora ficasse maldisposto.
Ed batera-lhe com o cinto quando ele era pequeno. As tareias pararam
quando um vizinho viu Ed bater em Jake, então com doze anos, e ameaçou
denunciá-lo. Ed nunca mais lhe bateu, mas Jake sabia que queria. Não
admirava que Ed tivesse sido violento em criança.
Uma onda inesperada de tristeza tomou conta de Jake então. O pai nem
sempre fora tão mau. Lembrava-se da sensação da mão grande do pai sobre a
sua enquanto caminhava até à beira da piscina para a sua primeira aula de
natação. Com apenas cinco anos, ele tinha medo de águas fundas e
estremeceu no fato de banho do SpongeBob. Começou a chorar quando Ed o
entregou à professora e se virou para partir. O pai ficava geralmente zangado
quando ele chorava. Mas, daquela vez, Ed agachou-se e colocou as mãos
grandes nos ombros de Jake.
– Eu vou ficar além a ver – disse Ed. – Vai correr tudo bem.
Jake sentiu a preocupação abandoná-lo quando o pai lhe apertou o ombro e
foi sentar-se na bancada. Parou de chorar e desceu a escada para se juntar à
turma na parte pouco funda. Esperneou, esbracejou e soprou bolhas. A sua
confiança aumentou até ele fazer algo inconcebível e meter a cabeça debaixo
de água. Sacudiu a cabeça para tirar a água dos olhos e procurou o seu pai na
multidão de pais. Viu-o então, o seu rosto com uma expressão que Jake não
entendera na altura. Achou que Ed estava zangado porque a aula nunca mais
acabava. Mas agora sabia que fora medo. Ed tivera medo de que Jake não
saísse da água vivo.
Jake fez uma pausa na sua circum-navegação do pátio. Considerou aquela
memória quase contra sua vontade, mas sabia que era verdade. Havia outras.
O cheiro a tabaco, enquanto o pai corria atrás da bicicleta de Jake, a segurar o
selim para equilibrá-lo e batendo palmas como um louco quando Jake rodou
sozinho. Quando ele fez oito anos, o pai deu-lhe um buggy de controle
remoto e passaram a tarde a fazê-lo andar para cima e para baixo no caminho
de acesso esburacado. O pai tinha rido e parecera uma criança. Havia
domingos em que todos iam à igreja e o pai tinha ido com Jake comprar um
donut e um chocolate quente ao salão paroquial depois. Isso tudo foi antes de
Ed deixar de ir à igreja, antes de ser despedido da Middle Mountain
Surveyors, onde fora supervisor, e ir trabalhar para a Klare Construction. Jake
era muito pequeno para perceber por que motivo o pai fora despedido.
Apenas sabia que as coisas mudaram depois disso.
Jake olhou para o cume e mordeu o lábio inferior. Sacudiu a cabeça. Para
aquele punhado de boas lembranças havia muitos anos de más. Lembrava-se
de Ed a atirar ao chão o peru de Natal porque a mãe sugerira que ele fosse à
missa com ela pela manhã. Ed a gritar com os Chavez, os seus simpáticos
vizinhos, por tocarem música ranchera durante um churrasco de domingo à
tarde. E, mais tarde, a dar um pontapé no cãozinho deles quando ele se
aproximou do canteiro de flores dos Stevenson e ergueu a pata gordinha para
urinar. Quando Jake deixou crescer o moicano, o pai zombou dele uma ou
duas vezes por causa do penteado esquisito e depois deixou de falar com ele.
Jake preferia o silêncio pesado às coisas feias que Ed dizia, como aquelas que
gritara a Alice.
A ideia de ir para casa fazia Jake sentir-se gelado. Não tinha fisicamente
medo de Ed, mas a ideia de voltar à casa daquele homem fazia-o sentir-se
encurralado. Empurrou a cadeira ao longo do perímetro do quintal, sentindo a
emoção crescer no seu peito. Não podia voltar para aquela casa acanhada, o
ar tão pesado com a tensão que quase se podia sentir o cheiro. As horas de
espera para estar sozinho, algo que era apenas um pouco menos terrível do
que estar em casa com eles. Então, o que fazer? Poderia viver e trabalhar ali?
E se Alice mudasse de ideias? Ele mal a conhecia, e ela não lhe devia nada.
Jake acertou num buraco e a sua roda dianteira direita ficou presa.
Balançou-se para a frente e para trás para se libertar. Enquanto lutava, a sua
certeza cresceu. Não podia voltar para casa dos pais. Impossível. Iria
primeiro para um centro de assistência a adultos ou para aquele lar merdoso
em The Dalles onde a sua assistente social o levara. Todas as pessoas ali
tinham o dobro da sua idade e algumas eram deficientes mentais. «Pessoas
com incapacidade intelectual» era a terminologia correta, recordara-lhe a sua
assistente social quando voltaram para o carro. A linguagem não importava;
ele nunca poderia viver ali. Não era como eles, disse-lhe. Mas agora até o lar
parecia preferível a viver com Ed. Ficava doente ao imaginar-se a subir de
novo a rampa sob o olhar exultante do pai. Nem pensar. Nem morto!
Jake empurrou com mais força e a cadeira tombou. O seu ombro bateu na
terra com um baque. Sentiu a gravilha na cara e o peso familiar do desespero
começou a abater-se sobre o seu coração. Aquela era agora a sua vida, a porra
do seu corpo. Ouviu um rosnado baixo então e, quando olhou para cima, viu
o galo apoiado sobre uma pata, a fitá-lo. A visão da ave excessivamente
confiante fê-lo rir alto e Ned afastou-se. Jake ficou deitado a olhar para o
celeiro, esforçando-se para acalmar a respiração. Provavelmente ninguém
apareceria, o que o fez-se sentir-se grato. Tirou uma pedrinha da cara e
recompôs-se.
Primeiro o mais importante. Para ficar ali teria de provar o seu valor de
alguma forma. Para começar, precisava de sair da porra do chão. Lentamente,
arrastou-se até à cerca, puxando a cadeira com um braço, grato pelas horas
que passara a levantar pesos por causa do tédio. Demorou, mas conseguiu
sentar-se e endireitar a cadeira. Travou as rodas e içou-se para cima. Ficou
sentado ao sol, transpirado, vitorioso e exausto. Então rolou de volta para
casa.
Da cozinha, inspecionou os quartos pequenos e arrumados de Alice, que
eram convenientemente acessíveis a cadeiras de rodas nas formas mais
básicas. No entanto, a sala de estar era um problema. Uma grande estante
com livros projetava-se para o corredor e um labirinto de pequenas mesas
enchia a sala. O caminho para o celeiro e em redor do apiário também era
problemático. Ele sabia que precisava de ajuda.
Hesitou, então pegou no telemóvel e marcou o número. Noah Katz atendeu
ao segundo toque e comportou-se como se tivessem falado no dia anterior,
tratando-o pelos habituais nomes depreciativos. Como um verdadeiro amigo,
não mencionou os meses em que Jake evitou as suas visitas e não respondeu
aos SMS, e-mails e telefonemas. O bom e velho Katz.
Depois de trocar insultos por alguns minutos, Jake foi direto ao assunto.
– Ouve, mano, preciso de um favor – disse ele. – Podes passar por aqui
hoje, tipo, daqui uma hora? E trazer alguém contigo que possa levantar
coisas? Certo. Fixe. Sim, agora seria ótimo! Ah, e tenho de te dar a morada.
Mudei-me.
Jake desligou. Era típico de Katz dizer que podia vir imediatamente, que
por acaso já ia naquela direção. Katz sempre o protegera, mesmo quando ele
não merecia – como quando o senhor Schaffer o expulsou do autocarro da
banda em The Dalles por se pôr na palhaçada a caminho de um jogo de
futebol. O que estivera ele a fazer daquela vez? Ah, certo – a acender
fósforos e a atirá-los a Matt Swenson no banco de trás. O rosto magro do
diretor da banda estava vermelho de fúria quando mandou Jake sair do
autocarro no estacionamento do Walmart e lhe disse para ligar aos pais a
pedir boleia. Não iria tocar com a banda de jazz no jogo HRVHS contra The
Dalles, que seria o último jogo do seu último ano. Schaffer esperava que ele
entendesse isso.
– Pobre de mim! – disse Jake enquanto se levantava para sair. – Acabou-se
o futebol. Uá! Uá! Uá!
As raparigas à volta dele riram-se e Schaffer ficou ainda mais vermelho.
Jake agarrou no estojo do seu trompete e desceu do autocarro.
– Até já, malta! – gritou por cima do ombro.
Quando saiu encontrou Noah atrás de si, solidário. Schaffer mandou Noah
voltar para o autocarro. Noah abanou a cabeça e acenou, sorrindo. O diretor
da banda bateu com a porta do autocarro e arrancou. Jake pediu boleia à mãe.
Enquanto esperavam, tocaram em frente ao Walmart.
Jake lembrava-se de como se sentira feliz por ter Katz ao seu lado, mesmo
quando estava a ser um idiota. Depois a mãe apareceu, com os lábios
franzidos de deceção, e Jake sentiu o profundo e vazio arrependimento de
perder o último jogo do seu último ano. Por sugestão da mãe, pediu desculpa
e Schaffer concordou em deixá-lo tocar no concerto de primavera, que foi
agendado para uma semana depois de ele ter ido parar ao hospital. A última
vez que tocara trompete para qualquer tipo de público fora no Walmart com
Noah.
Os dois rapazes sempre tinham partilhado a música desde que entraram
para a banda em crianças. No secundário, Noah interessara-se mais pelo jazz
da velha guarda, enquanto Jake se inclinava ainda mais para o som punk
hard-core – Misfits, Black Flag e Dead Kennedys. Aumentava o volume
quando andava de skate ou quando estava em casa para abafar a voz do pai e
o som da televisão.
Fora Noah quem lhe apresentara os Slapstick, uma banda de Chicago dos
anos 90 que misturava punk e ska. Gostava do som do trompete ali, enquanto
a banda ria de si mesma pelo que era ou não era, como na música «Almost
Punk Enough». Isso descrevia Jake. Muito daquilo era postura. Ele sabia-o –
a música, o cabelo, as roupas. Mas adorava realmente o trompete. Sentados
diante do Walmart naquele dia, Katz tocou a linha melódica de «Almost Punk
Enough» e Jake tocou zombeteiramente por cima no seu trompete.
– Precisa de começar a levar-se a sério, senhor Stevenson! – gritara
Schaffer nas costas de Jake.
Jake resfolegou, mas sabia que Schaffer estava certo. Fora Schaffer quem
sugerira o Cornish College of the Arts. Fora a carta de recomendação dele
que o ajudara a entrar, sabia-o. O diretor da banda fora vê-lo uma vez ao
hospital e Jake fingira estar a dormir. O que poderia ele dizer-lhe?
Jake viu a pickup de Noah descer o longo caminho de acesso de Alice e
sorriu ao ver o amigo corpulento sair do habitáculo. O brincalhão do Noah
com o seu cabelo comprido e sorriso enorme. Jake gemeu interiormente ao
ver Celia no banco do passageiro. Não esperara que Katz a trouxesse. Pensou
que ele podia ter chamado um dos gajos para ajudar.
– Meu!
Noah bateu na mão de Jake à laia de cumprimento e curvou-se para lhe dar
um abraço. Recuou e avaliou-o.
– O cabelo está supertriste. Que cena é essa do rabo-de-cavalo? E olha-me
este sítio! Que diabo? Viraste camponês!
– Sabes que sempre quis ser agricultor – disse Jake, recostando-se e
apoiando as mãos nos joelhos. – Estou apenas a explorar os meus sonhos.
– Estás a arrasar, meu! – exclamou Noah, apontando para as calças de
ganga skinny de Jake e as suas Doc Martens. – Mal te reconheci.
A porta do passageiro abriu-se e Celia, a quem todos chamavam Cece, saiu.
Ele teve de lhe sorrir, embora desejasse que ela não tivesse vindo. Cece
inclinou-se para o abraçar e Jake inspirou o seu cheiro feminino a pastilha de
mentol e perfume.
– Olá, Jake! Que bom ver-te!
Ela olhou para ele e puxou a sua longa trança preta com uma das mãos. Os
seus olhos castanhos brilhavam e ela parecia prestes a chorar. Jake sentiu um
lampejo de fúria. Porque achavam as pessoas que ele se sentia melhor quando
a sua vida as deixava tristes? Levantou as mãos a fingir indignação.
– Caramba, Katz! Eu disse-te para trazeres alguém com músculos. Não esta
magricela. La flaca, wey? Cece es la flaca. Talvez devesses ter trazido antes a
tua avó.
Noah riu-se e Celia guinchou em protesto.
– No soy la flaca, wey! Órale!
Ela flexionou os músculos e cerrou os dentes. Jake riu. Aquilo era melhor.
E Celia era suficientemente forte para ajudar Noah no que Jake precisava, de
qualquer maneira. Não parou para se permitir sentir o constrangimento de
pedir ajuda. Conduziu-os para dentro de casa e mostrou os móveis que
precisava que mudassem. Noah manteve um fluxo constante de piadas sobre
a nova identidade de agricultor de Jake, o que ajudou.
– Como conheceste esta senhora? – perguntou Celia enquanto ela e Noah
reposicionavam a mesinha de centro. – É amiga da tua mãe?
Noah revirou os olhos para Jake. As raparigas faziam sempre perguntas.
– É uma longa história – respondeu Jake. E deixou o assunto ficar por ali.
A cozinha tinha menos móveis, mas era mais importante, e ali Celia foi a
heroína. Como a mais velha de uma grande família, sabia cozinhar. Separou
as panelas e as frigideiras e as coisas da despensa, colocando à mão o que ele
usaria todos os dias. Também explicou a diferença entre cozer e assar.
Olharam para o micro-ondas, demasiado acima do fogão para ele o alcançar,
e ela zombou.
– Não precisas dessa coisa. Tresandam e fazem um grande chiqueiro, de
qualquer forma.
Jake levou-os até lá fora para ver o celeiro, o galinheiro e o apiário. Evitou
os seus olhos e indicou rapidamente as secções difíceis do caminho. Não
mencionou a queda. Noah encontrou pás e ancinhos no celeiro e Celia
ajudou-o a espalhar a terra para nivelar o caminho. Jake deu uma volta de
teste e confirmou que era mais fácil de percorrer. Noah disse que voltaria e
faria outra revisão, mas não deu muita importância a isso.
Jake ofereceu-se para lhes mostrar as colmeias e, embora estivessem
intrigados, não se aventuraram dentro da cerca do apiário. Enquanto Jake lhes
contava um pouco do que aprendera, as abelhas pareciam cantar para ele. O
ar estava cheio de corpos dourados, alguns a sair para ir procurar alimento e
outros a regressar. Em frente a uma colmeia próxima – uma das novas
colmeias núcleo de Sunnyvale – uma dúzia de abelhas ziguezagueava
descontroladamente para a frente e para trás em rajadas curtas. Aquilo era um
voo de orientação, explicara-lhe Alice.
– As mais velhas estão a ensinar as mais novas a encontrar o caminho para
casa. Não é fixe? – perguntou Jake.
Noah estava atrás de Celia, que estava atrás de Jake. Muito fixe,
concordaram.
– Quando tiveres o mel, dou-te a receita de torta de miel da minha abuela.
É uma delícia. Vais adorar – disse Celia.
Jake virou-se e sorriu-lhe.
– Cece, és um génio. Preciso da tua ajuda com outra coisa.
A disciplina de economia doméstica tivera aprovação/ /reprovação baseada
na assiduidade, portanto, Jake e Noah tinham estado na brincadeira ao fundo
da aula da senhora Trainor sem aprender nada. Celia, por outro lado, já sabia
cozinhar para uma casa cheia de gente. Mandou Noah à loja com uma lista, à
qual Jake adicionara produtos para o cabelo. Enquanto esperavam por Noah,
ela ensinou a Jake algumas coisas básicas – ovos mexidos, panquecas, tostas
de queijo e burritos. Quando Noah voltou, ela ajudou Jake a fazer o seu
primeiro jantar – enchiladas de frango com molho de chile verde.
– E uma salada. Tens de comer legumes. Não, a sério, meninos! – protestou
enquanto eles gozaram, chamando-lhe Vegetariana Nazi.
Já passava das cinco e meia e Alice ainda não tinha voltado. Jake estava
nervoso, a limpar as bancadas e a verificar o telemóvel.
– Porque não ficam mais um pouco? – convidou ele.
Noah pôs a mesa para quatro. Jake tirou as enchiladas do forno e tapou-as
para as manter quentes. Começou a fazer o arroz como Celia lhe ensinara.
Noah pegou no telemóvel para mostrar a Jake um vídeo do seu amigo Mikey
na pista de skate. Celia já tinha visto aquilo várias vezes e revirou os olhos
enquanto os rapazes se inclinavam sobre o ecrã. Folheou o jornal. Jake
sentia-se cansado e feliz. Tivera saudades de Noah. Celia também era boa
gente. Não se lamuriava nem era uma lapa. Recordou a última vez em que
tinham ido todos a Lost Lake. Noah e Celia não namoravam oficialmente na
altura. Celia fora no banco de trás com Cheney deitado no colo. Cheney.
Recordar o seu cão deixou-o muito triste. Mesmo assim, era bom estar com
os amigos. Celia foi a primeira a reparar no fumo.
– O arroz! O arroz! – Atravessou a cozinha a correr e agarrou no tacho
fumegante pela pega com um pano da louça. O detetor de fumo emitiu bipes
curtos.
– Abre as janelas! – gritou Jake.
Noah abriu as janelas da cozinha e Celia subiu para uma cadeira e agitou o
pano diante do detetor.
– Isto não é um exercício! – gritou ela, rindo. – Dirijam-se à saída mais
próxima e os vossos professores irão orientar-vos!
– Que caraças! As tuas aulas de culinária acabam sempre mal, rapariga? –
gritou Jake.
– I fell into a burning ring of fire! – cantou Noah.
A cozinha estava cheia de fumo, risos e gritos.
– Noah, leva essa maldita coisa lá para fora! – gritou Jake.
Noah agarrou no tacho e abriu a porta, quase colidindo com Alice.
– Que diabo se passa aqui? – gritou ela.
11
BATEDORAS
Não há dúvida de que as abelhas enviam batedores em busca de uma
morada adequada. Os enxames foram encaminhados diretamente até à
sua nova casa, num voo em linha reta, seja da sua colmeia ou do local
onde se agruparam após pousarem.
– L. L. LANGSTROTH

O relógio do peixe-gato dançarino sobre a zona de refeições contorceu-se e


agitou a cabeça e a cauda pintalgados para anunciar que eram sete da manhã.
Harry acordara horas antes com o rosnado dos guaxinins na pilha de lixo
antes do amanhecer. Pareciam pequenos ursos a correr sob o luar ténue e
soavam como bebés humanos enlouquecidos. Quando ele abriu a janela e
lhes gritou, eles pareceram mais irritados do que assustados, mas finalmente
desapareceram na floresta.
A fome dele fora saciada com a descoberta de um esconderijo de comida
sob o banco onde o tio costumava dormir. O seu olhar pousara no puxador
enquanto vasculhara a caravana em busca de quaisquer mantimentos. Bingo!
Um frasco de manteiga de amendoim, três tabletes de chocolate Hershey,
dois pães infelizmente bolorentos, uma caixa de bolachas salgadas e um litro
de uísque.
Ele estremeceu na humidade fria da caravana, saiu e sentou-se nos degraus
ao sol da manhã com um prato de bolachas com manteiga de amendoim.
Pegou na garrafa de uísque, desenroscou a tampa e ingeriu um gole do
líquido dourado. Ardeu-lhe ao descer pela garganta. Tossiu e fechou a tampa,
percebendo a impraticabilidade de se embebedar enquanto esperava que a
biblioteca abrisse para ir ver o seu e-mail. Lavou os dentes e examinou o
rosto no espelho lascado.
Em muitos aspetos, o rosto de vinte e quatro anos de Harry era o mesmo
que ele tinha em criança. A sua fotografia do jardim infantil mostrava um
menino com cabelo castanho-avermelhado, um punhado de sardas na pele cor
de alabastro e uma testa franzida. Os seus olhos azul-claros olhavam para o
hirizonte, inseguros. Com certeza estavam a mandá-lo sorrir, mas os seus
lábios encontravam-se contraídos numa linha reta. A expressão neutra fazia-o
parecer antiquado, como um homem em miniatura num daguerreótipo. A mãe
riu-se ao vê-lo.
– Pareces mesmo o meu pai! – exclamou ela.
Se toda a gente tinha um núcleo, o de Harry tinha cinco anos – magro,
pouco corajoso, mas não queixinhas. Não pedia ajuda por não querer
incomodar. Aguentava as coisas. Apegava-se às pessoas de uma forma
silenciosa, esperando que elas não notassem, apenas querendo pertencer.
Durante todo o período da escola, ele era o rapaz do lado de fora do círculo,
fazendo barulho suficiente para se encaixar, mas não se destacar.
No entanto, como o episódio dos televisores roubados mostrara, Harry não
era aquilo a que se chamaria um bom avaliador de caráter quando se tratava
de amigos. Sam tinha ido visitá-lo uma vez. Agradeceu profusamente a Harry
por não o denunciar e prometeu visitá-lo com frequência. Harry não tivera
mais notícias dele depois disso. Marty nunca se dera ao trabalho de aparecer.
Foram precisos mais seis meses de silêncio dos seus alegados amigos para
que ele percebesse que Marty e Sam nunca tinham sido aliados. Conhecera-
os no secundário, mas não conseguia lembrar-se de um único gesto bondoso
que qualquer um deles tivesse tido para com ele. Ficava deitado no seu
beliche à noite, o rosto corado de vergonha. Os outros nem sequer gostavam
dele. Que idiota.
Reuniu-se com o seu advogado e deu os nomes deles, um gesto que lhe
reduziu consideravelmente a pena. Saiu do Centro Correcional de Stonybrook
ao fim de nove meses, ainda magro, ainda sem coragem e agora queixinhas.
O advogado tentou ajudá-lo a ver as coisas de outra forma.
– O que fariam o Sam e o Marty no teu lugar, Harry?
Harry sabia que eles o teriam denunciado. A constatação chocou-o – não o
facto de os amigos não serem de confiança, mas sim o que ele andara a fazer
durante toda a vida. Fora sempre o bode expiatório. Não, o problema na vida
de Harry era Harry. Ele sabia isso. Precisava de mudar. Apenas não sabia
como.
– Segue a tua felicidade! – Os professores diziam-lhe isso desde o sexto
ano.
O que significava tal coisa? Seria que as pessoas sentiam realmente uma
bússola semelhante a Oprah a orientar as suas vidas?
– Trabalhar, Harry. Trabalhar muito, filho. Essa é a minha paixão – disse a
mãe quando na escola o mandaram escrever sobre o poder da paixão pessoal.
Ela tirou o cabelo dos olhos com o pulso enluvado e abriu a porta traseira da
carrinha. – E uvas zinfandel. Agora ajuda-me a descarregar estas árvores.
Sal também não foi uma grande ajuda.
– A minha paixão são as loiras, rapaz. Como a tua mãe – disse, e piscou o
olho.
Harry escreveu a sua redação sobre ter uma paixão por pesca à linha, o que
realmente não o interessava. Teve um Satisfaz.
Havia que esquecer a paixão. O problema de Harry era muito mais simples
e assustador. Como seguir em frente? Tudo o que ele sabia depois de um
período na prisão, uma viagem de autocarro pelo país e dois meses na floresta
era que ainda não tinha ideia de como dirigir a sua própria vida. Harry
suspirou e passou os dedos pelo lábio superior. Precisava de se recompor.
Pensou no tio H e sentiu uma onda de culpa. Não tinha ido vê-lo ao
hospital na véspera, como planeado. Telefonara, mas a enfermeira disse que
não podia divulgar informações sobre o paciente a alguém que não era da
família. Ele desligou sem dizer que era da família, a única família na área.
Devia ter ido direito ao hospital, mas não fora. Porque não fora era outra
pergunta a que ele simplesmente não conseguia responder, e de facto a
mesma pergunta que o perseguira toda a vida – como o dinheiro do almoço, a
bicicleta, o roubo, o seu fracasso geral em prosperar. Por que motivo Harry
era um passageiro no veículo que era a sua vida?
Lavou-se no remoinho gelado atrás da caravana e sentou-se na velha
Schwinn, que era frágil, mas mais rápida do que pedir boleia. O vento frio no
rosto animou-o. Foi pela via rápida de duas faixas, descrevendo ziguezagues
enquanto avançava. Ouviu o barulho de um grande motor atrás dele e
deslocou-se para a direita. Quando um camião de madeira passou a grande
velocidade, ele guinou para não acertar numa pilha vermelha e castanha que
devia ser algo morto, um cão ou um coiote. Harry viu a cabeça e o focinho
intactos como se o animal estivesse a sorrir acima do corpo dilacerado. Teve
ânsias de vómito ao passar e desejou não ter visto.
Não havia ninguém na pequena biblioteca de BZ além da bibliotecária, que
acenou com a cabeça a Harry e disse bom dia. Deu-lhe o código de login do
computador, que não mudara durante os dois meses que ele ali fora, mas
nenhum dos dois reconheceu isso. Abriu o e-mail e sentiu o estômago
embrulhado ao ver as cinco mensagens da mãe. Todas tinham o mesmo
assunto: «Liga-me!»
Ele suspirou e não abriu esses e-mails.
Foi descendo, apagando conforme avançava. Spam. Boletins políticos que
ele nunca lia. Um e-mail de um tipo que ele conhecera na prisão e a quem,
lamentavelmente, dera o seu endereço de e-mail. Em seguida, um do quadro
de empregos gorge.net. Era uma resposta a uma das suas candidaturas, a
coisa das abelhas. No seu caderno, ele listara os prós e os contras de cada
emprego ao qual se candidatara e, sob as abelhas, escrevera: «Positivo:
trabalhar no exterior, oportunidade de aprendizagem, agricultura,
carpintaria.» O último e mais importante: «Nenhuma solicitação de
verificação de antecedentes.» Na coluna negativa, escrevera apenas
«abelhas». Estremeceu. Detestava insetos, todos os tipos. Mas a ideia do
trabalho de carpintaria animou-o. Mandou uma mensagem rápida ao
agricultor. Sim, poderia estar lá na tarde seguinte às 13h00 para uma
entrevista. Imprimiu o e-mail, pagou à bibliotecária e saiu.
Harry levou a bicicleta até à bomba de gasolina e encostou-a à vedação
gasta junto ao telefone público. Não via um telefone público desde criança,
mas a pobreza e a pouca rede de telemóvel em BZ significavam que aquele
tinha bastante uso. Ligou à mãe a cobrar no destinatário e sentiu um aperto no
coração quando a ouviu concordar em pagar. Recordou-o de quando lhe
ligava da prisão. Vinte e quatro anos e ainda não tinha dinheiro para ligar à
mãe.
– Filho! Tenho estado tão preocupada. Ouve, querido, quero ouvir tudo
sobre o teu novo emprego, mas, primeiro, como está ele? Ainda está
inconsciente? Ainda o têm a oxigénio hoje?
Harry sentiu o peso da vergonha. Claro que o hospital lhe tinha ligado.
– Hum. Não me deram nenhuma informação quando liguei. Por isso, não
sei como estão as coisas hoje – respondeu.
– O que queres dizer? Não estás no hospital?
Harry olhou para os grandes abetos inclinados sobre a estrada como se
pudesse encontrar ali a resposta.
– Tenho estado muito ocupado com o trabalho – disse ele. – Tem sido
difícil tirar uma folga durante o horário de visitas.
Os hospitais ainda tinham horário de visitas? Ele detestava mentir à mãe,
mas não queria tentar explicar porque não pusera os pés no Hospital Skyline
nos quatro dias desde que os serviços sociais tinham levado o tio.
Espantava-o que a mãe escolhesse sempre acreditar nele, mas sentiu-se
grato por isso naquele momento.
– Ouve, filho. Diz ao teu chefe que isto é um assunto de família importante.
Somos a única família do tio H. Bem, a única boa, de qualquer maneira.
Liguei à Jenny. «Para mim ele morreu há vários anos», disse-me ela.
Acreditas? Está zangada porque ele perdeu todo o seu dinheiro naquele
esquema em Powder River. Bem, ela devia ter estado de olho nele, por isso só
se pode culpar a ela própria.
Fez uma pausa e Harry ouviu-a acender um cigarro e exalar.
– Ouve, Harry. Gostava de poder estar aí, mas agora não posso afastar-me.
O Sal não está muito bem. Não é nada sério, mas precisa de ser operado à
vista e tenho de levá-lo às consultas nas próximas semanas. Irei assim que
puder. Entretanto, conto contigo para me manteres informada. Liga-me a
cobrar no destino até arranjares um telefone. Agora, como estás? Tens
comido o suficiente? Fizeste amigos? Como é o teu trabalho?
Harry contou à mãe mais algumas mentiras acerca de como as coisas
estavam bestiais e prometeu ligar-lhe no dia seguinte. Sentia-se um enorme
fracassado.
Desceu a colina até ao pequeno hospital, forçou-se a passar pelas portas.
Apresentou-se como sobrinho do tio H e a mulher na receção mandou-o
seguir pelo corredor. Harry caminhou lentamente, olhando para os quartos.
Os televisores estavam aos berros e os idosos deitados, a maior parte a
dormir.
O tio H estava ao fundo do corredor. Debaixo de um cobertor, parecia mais
pequeno e mais frágil do que Harry se lembrava. Tinha o cabelo branco
desgrenhado como de costume, os olhos fechados e a sua respiração era
superficial e irregular. Encontrava-se ligado a uma data de máquinas que
apitavam e piscavam. Havia tubos de plástico a entrar pelas suas narinas. Os
lábios estavam metidos para dentro, como se alguém lhe tivesse retirado a
dentadura. O rosto tinha uma cor acinzentada.
– Tio H? – sussurrou Harry, esperando que o velho abrisse os olhos e
dissesse alguma coisa agressiva. Mas isso não aconteceu. A sua respiração
arrastava-se para dentro e para fora. As máquinas apitavam; as suas luzes
piscavam. O quarto cheirava a desinfetante e estava decorado apenas com
uma jarra de flores na mesa. Harry soube que eram da sua mãe antes de ler o
cartão. «Ponha-se bom depressa, tio H! Com muito amor, Lydia e Sal», dizia.
Harry engoliu em seco. Sentou-se e olhou pela janela. Conseguia ver o rio
dali de cima, mas duvidava que o tio tivesse apreciado a vista. Harry olhou
para um calendário na parede. Abril. Como é que já era abril? Ele vivia com
o tio há dois meses.
Um médico entrou pela porta e olhou para o tablet que trazia. Era alto e
magro e parecia irritado até que viu Harry. Então sorriu e estendeu a mão.
– Olá. Sou o doutor Chimosky.
Harry levantou-se e apertou-lhe a mão.
– Eu sou o Harry Stokes. O sobrinho dele.
O médico anuiu e olhou de novo para o tablet.
– Contactámos a sua mãe, creio?
Harry confirmou e esperou que o médico não lhe perguntasse onde estivera
nos últimos quatro dias.
– Bem, o seu tio teve uma noite difícil. Estava a recuperar bem do enfarte
inicial, mas está muito frágil e o seu coração entrou em arritmia durante
algum tempo e depois voltou a acelerar. Está a oxigénio desde que chegou.
Encontra-se estável agora, mas não há muito que possamos fazer por ele.
Legalmente, temos de seguir o seu testamento vital.
Harry esforçou-se por entender o fluxo de informações.
– Enfarte? O que é um testamento vital?
O médico parecia impaciente.
– Pelo que percebemos, o seu tio teve pelo menos um enfarte antes de os
serviços sociais o trazerem. O testamento vital descreve que tipo de
tratamento ele deseja receber se for hospitalizado. Assinou-o no outono
passado. Diz que não quer ser admitido na UCI ou colocado num ventilador
ou alimentado por sonda. Só podemos oferecer-lhe coisas limitadas, como
soro, e mantê-lo confortável.
Harry abanou a cabeça.
– Não sabia.
O médico encolheu os ombros, não parecendo admirado.
– Está a viver com ele agora?
Harry assentiu.
O médico franziu a testa para o seu tablet.
– Parece que a caravana dele está em péssimo estado. Se ele recuperar,
provavelmente irá para um lar durante algum tempo, mas depois precisará de
melhores condições. Vai ficar com ele? Ele precisaria de ajuda para tomar
banho, comer, ir a consultas de acompanhamento...
Harry, que tinha apenas 297,75 dólares, meio frasco de manteiga de
amendoim, duas embalagens de Saltines, uma tablete de Hershey e um litro
de uísque, disse:
– Sim, senhor doutor. Claro, senhor doutor.
O médico sorriu.
– É ótimo ouvir isso – disse ele. – É muito mais fácil quando a família
ajuda.
Colocou o tablet debaixo do braço e estendeu a mão para apertar a de
Harry novamente.
– Passo por cá mais tarde. Diga às enfermeiras se tiver alguma dúvida.
O médico saiu do quarto.
Harry sentou-se e olhou para o tio, que respirava a custo, e não soube o que
sentir. Gostava do tio H, mas realmente não o conhecia como a sua mãe.
Culpava-se por não sentir algo mais intenso. Mas podia estar ali pela mãe.
Isso era alguma coisa.
Por volta das 17h, uma das enfermeiras trouxe a bandeja do jantar.
– Oh, acho que ele não consegue comer isso – disse Harry.
– Mais alguém aqui tem fome? – perguntou ela com uma piscadela de olho.
Frango com arroz, milho, salada, uma bolacha. Harry comeu tudo,
envergonhado e grato. Adormeceu na cadeira e acordou quando outra
enfermeira apareceu de manhã. Durante todo aquele tempo, o tio H não tinha
aberto os olhos ou proferido um som que não fosse a respiração entrecortada
que lhe saía da boca. Sem os óculos e a dentadura, parecia um bebé. O seu
braço magro tinha uma nódoa negra em redor da agulha do soro. Harry
pegou-lhe na mão, que estava fria e parecia papel.
– Volto esta tarde, tio H – disse ele. – Trago cartas e podemos jogar rummy.
Harry desceu a colina até Hood River e atravessou a ponte. Passou por
River Daze e viu o rosto de Moira na janela da padaria. Sentiu um aperto no
coração e o seu estômago roncou. Pensou melancolicamente nas bandejas do
pequeno-almoço do hospital que vira a passar pela porta. A enfermeira da
manhã não lhe oferecera nada nem parecera muito simpática, por isso Harry
não pedira nada.
Parou numa rulote a seguir ao centro e comprou um burrito. Aprendera um
pouco de espanhol com os funcionários da empresa de paisagismo dos pais.
Portanto disse bom dia e fez o pedido em espanhol. O homem sorriu-lhe e
disse uma série de coisas que Harry não percebeu. Ofereceu a Harry um
sumo de laranja e apontou para uma cadeira de plástico ao lado da rulote.
Harry sentou-se e devorou o burrito, lambeu os dedos e esvaziou o pacote de
sumo. Olhou para as filas metódicas de árvores que formavam os pomares.
As suas flores brancas agitavam-se com a brisa. O vale abria-se ali e ele via
Mount Hood a sul e mais pomares na paisagem. Ouviu a tosse de um motor a
gasóleo e viu um homem a conduzir um trator vermelho entre filas de
árvores. O motor assustou um bando de pássaros, que voou sobre a estrada,
piando alarmados e batendo as suas asas quase inúteis. Um bando de
codornizes, recordou Harry do livro de pássaros ao ouvir os seus pios
alarmados. Limpou as mãos nas calças e agarrou na Schwinn.
– Gracias, señor! Buen día! – despediu-se o homem.
– Gracias! – respondeu Harry, acenando enquanto pedalava.
Estacionou a bicicleta à sombra junto a um riacho para esperar até quase à
uma da tarde. Tentou pensar no que dizer ao agricultor. Deveria ter trazido
uma cópia do seu currículo? A ideia aumentou a sua ansiedade. Não pensava
em entrevistas de emprego desde a sua reunião de coaching no centro
correcional.
O seu conselheiro era um italiano magro chamado Anthony Barone.
Anthony usava uma camisa azul impecável, gravata e um pequeno brinco de
ouro numa das orelhas. O seu gabinete cheirava fortemente a loção pós-barba
de cedro, o que não era desagradável. Harry sentou-se na cadeira que ele
indicou. Uma das rodas estava a soltar-se e a cadeira tombava para trás se
Harry mudasse de posição. Ele sentou-se inclinado para a frente e viu
Anthony folhear o seu dossiê, sentindo-se como se estivesse no gabinete do
diretor da escola.
– Senhor Stokes. Muito bem. Então, terminou o secundário. Ótimo. Oh,
universitário! Não vejo isso todos os dias. Como diabo acabou aqui com uma
educação universitária? – Levantou os olhos do dossiê de Harry e ergueu uma
sobrancelha grossa.
Harry baixou a cabeça.
– Era apenas uma faculdade comunitária – murmurou.
Anthony cruzou as mãos e olhou carrancudo para Harry.
– Senhor Stokes, a maioria dos homens aqui não passou do oitavo ano.
Sabe o que é procurar trabalho sem um diploma? E ainda por cima com
cadastro? E pele morena?
Harry abanou a cabeça, corando.
– Não, não sabe. Isso mesmo. Lembre-se disso. Não considere garantidas
as suas vantagens. Sinta-se grato por ter recebido essa educação, está bem,
Harry?
Harry assentiu.
– Que competências tem, então? Vamos ver. Fez um pouco de paisagismo.
Parece que foi para a empresa dos seus pais. Que mais? Trabalhou num
restaurante durante algum tempo. O que fez lá?
Harry encolheu os ombros e a cadeira inclinou-se. Ele viu Anthony franzir
a testa e endireitou-se.
– Hum, fiz um pouco de tudo. Ajudante de empregado de mesa, lavador de
pratos, cozinheiro, reposição de stocks, entregas. Todas essas coisas – disse
Harry. – Era um sítio pequeno.
Isso resumia o problema de Harry. Ele não era bom em nada em particular.
Anthony pareceu desapontado quando viu que Harry não preenchera a sua
folha de objetivos. Fê-la deslizar pela mesa com uma das mãos.
– Leve isto outra vez, Harry. Passe algum tempo a preenchê-la. Vai ficar
admirado por ver o quando pode ajudar. Conversaremos sobre isso na
próxima vez.
Esboçou um breve sorriso e Harry saiu sentindo-se encorajado.
Infelizmente, não houve uma próxima vez. O psicólogo na segunda e última
consulta de Harry era uma mulher impaciente mais velha do que a sua mãe e
que não se apresentou. Pareceu irritada quando ele perguntou por Anthony e
disse que não era trabalho seu controlar os funcionários. Também não
perguntou sobre a sua folha de objetivos. Fez deslizar pela mesa uma pilha de
formulários para ele assinar e dedicou-se às palavras cruzadas enquanto ele
os preenchia. Pegou-lhes sem dizer palavra quando ele terminou e apontou
para a porta, indicando que ele estava pronto para enfrentar o mundo do
trabalho fora da prisão.
Harry consultou o e-mail para saber como chegar à quinta e pedalou
estrada abaixo. Abetos altos cresciam ali muito próximos e curvavam-se em
cima, formando um túnel verde. Harry acelerou na descida, esperando ir na
direção certa para não ter de voltar atrás. Viu o nome «Holtzman» numa
caixa do correio no final de um caminho de acesso, saltou da bicicleta e
caminhou em direção à casa azul, enfiando a camisa dentro das calças.
Ouviu vozes junto a um grande celeiro e, quando dobrou a esquina, viu
uma pessoa baixa numa escada sob um pinheiro alto. A mulher usava um
panamá branco e equilibrava uma caixa de cartão entre a anca e a escada.
Segurava uma tesoura de poda.
Ao fundo da escada havia um rapaz numa cadeira de rodas. Inclinou-se
para trás e chamou a mulher, que murmurou de volta. Harry não conseguiu
ouvir o que disseram.
Sal ensinara-o a nunca surpreender ninguém numa escada, então deixou-se
ficar ali e viu a mulher largar a tesoura, levantar a caixa e partir um ramo. Um
grande bocado de madeira preta caiu na caixa. Harry viu-a fechar a caixa,
desequilibrar-se, tentar endireitar-se e deixar cair a caixa. A caixa pareceu
ficar suspensa no ar durante um longo segundo enquanto ela tentava agarrá-la
e falhava. Em seguida, bateu na escada e caiu no colo do rapaz na cadeira de
rodas.
Harry conseguiu ouvir tudo o que a mulher disse depois disso. A sequência
de palavrões que lhe chegaram em alto e bom som superou a do seu colega de
cela no Centro Correcional de Stonybrook. Harry viu-a descer a escada até
junto do rapaz a rir a bandeiras despregadas, envolto numa nuvem zumbidora
que, percebeu Harry, eram abelhas.
12
PERTURBAÇÃO
Como a extremidade do aguilhão tem farpas como uma flecha, a
abelha raramente consegue retirá-lo, se o alvo for tenaz. Ao perder o
ferrão, ela perde uma parte dos seus intestinos e morre em breve.
– L. L. LANGSTROTH
*
Embora enxamear abelhas possa ser doloroso para o apicultor, um enxame é
na verdade sinal de uma colmeia saudável e produtiva. As filhas mais velhas
decidem que a colónia está sobrelotada e, deixando metade das suas irmãs
com alvéolos de rainha saudáveis, fogem com a mãe para um local mais
acolhedor. Se esse local pertencer a outro apicultor, essa perda transforma-se
num presente oportuno. Alice considerara o enxame no pinheiro um presente,
pelo menos antes de estragá-lo tanto.
Agarrou a última farpa com uma pinça e tirou o ferrão do seu antebraço
quente, que tinha inchado como um jarrete de presunto. Viu o bigode fraco do
jovem estremecer enquanto ela o arrancava.
– Bem, este já está – disse ela e esfregou as mãos nos braços.
– Dói? – perguntou Harry.
– Não. Só faz um bocadinho de comichão.
Queria minimizar todo o episódio embaraçoso com o enxame, que não teria
acontecido se não estivesse apressada.
Todos os erros que cometera com as abelhas tinham sido por causa da
pressa. Naquele dia fora a casa à hora do almoço para entrevistar Harry e vira
o enxame enquanto esperava por ele. Tinha a certeza de que aquelas abelhas
não eram suas e não podia perder a oportunidade de apanhar um enxame. Em
retrospetiva, foi uma ideia terrível – ir atrás das abelhas agrupadas sem um
segundo par de mãos. Já para não falar em deixar cair a caixa em cima de
Jake.
Fora um milagre o rapaz não ter sido picado. Ele ainda estava a rir quando
Alice o alcançou e tirou a caixa do seu colo.
– Caraças – praguejou ela baixinho. – Bem, foi uma ideia muito estúpida.
A docilidade de um enxame tinha os seus limites, e aquele elevara-se para
proteger a rainha enquanto Alice afastava a cadeira de Jake para longe. Ela
fora picada três vezes, mas Jake nenhuma.
Jake pôs a mão na barriga e respirou fundo.
– Oh, Alice! A sua cara! Ficou tão surpreendida, como quem pensa, «como
é que isto aconteceu»?
Embora Alice lamentasse as três obreiras que morreram por a ter picado, a
provocação de Jake fizera-a finalmente rir, em especial depois de ver que ele
não estava ferido. Jake jurou referir-se ao evento depois disso como o seu
batismo de abelha. Poucas pessoas, disse ele, podiam alegar ter tido um
enxame inteiro de abelhas largado no seu colo. Enquanto ele limpava as
lágrimas dos olhos, viu Harry imóvel na extremidade do terreno.
– Acho que a sua entrevista chegou, chefe – disse Jake.
O jovem olhou por cima do ombro como se estivesse a pensar em correr na
outra direção, depois ergueu a mão hesitantemente à laia de saudação e
dirigiu-se a eles.
Alice apresentou-se e depois Jake. O jovem, que disse chamar-se Harry,
olhou para trás dela como se estivesse à espera de outra pessoa.
– Hum, e o senhor Holtzman, minha senhora? Al Holtzman?– perguntou
Harry.
Alice soltou uma gargalhada.
– Oh, o meu endereço de e-mail? Eu sou a Al Holtzman. Al de Alice. Não
há nenhum senhor Holtzman. Tudo bem para ti?
Harry corou e gaguejou:
– Não, minha senhora, quero dizer, sim, minha senhora. – E conseguiu
acrescentar: – Obrigado pela entrevista.
Alice viu-o debater-se, divertida. Ele hesitou e depois perguntou se a coisa
com a escada era uma parte normal do trabalho.
– Não, não. Foi apenas aquilo a que podes chamar «má decisão» –
respondeu ela com secura. – Foi mais irregular do que normal.
A declaração divertiu Jake de novo, e ele riu até que as lágrimas lhe
correram pelo rosto. Harry olhou para ele preocupado enquanto Jake rolava
em direção à casa.
Harry e Alice sentaram-se à mesa de piquenique e, depois de ter tratado dos
ferrões, Alice abriu o portátil para ver de novo o CV de Harry. Perguntou-lhe
onde vivia e ele disse BZ, aquela pequena povoação no cimo da floresta. Ela
comentou que devia ser aborrecido em comparação com Nova Iorque. Harry
encolheu os ombros e murmurou que era agradável.
Não é muito falador, pensou Alice. Afastou o cabelo dos olhos e indicou o
apiário.
– Tenho vinte e quatro colmeias agora e, no fim do verão, gostaria de ter
cinquenta. O meu objetivo é ter cem no próximo verão.
O trabalho era muito simples, explicou ela. Queria alguém que soubesse
seguir instruções, levantar até quarenta e cinco quilos e tomar a iniciativa de
ver o que mais precisava de ser feito. Precisava de novas colmeias
construídas como parte do processo de expansão. Além da apicultura, havia a
erva para aparar, cercas para consertar e algumas macieiras e pereiras para
cuidar. Os pequenos projetos não tinham fim, percebeu ela, olhando em volta.
As coisas tinham-se descontrolado no ano anterior.
– Portanto, um pouco de carpintaria, um pouco de levantamento de peso e
ajudar a manter o sítio em ordem – disse ela em resumo.
Harry assentiu.
Alice esperou que ele dissesse alguma coisa, percebeu que isso não iria
acontecer e olhou de novo para o ecrã, à procura de mais uma pergunta.
A porta das traseiras abriu-se com estrondo e Jake rolou na direção deles
com uma bandeja de chá gelado e copos equilibrada no colo, assobiando.
Harry olhou para ele e de novo para Alice.
– O seu filho está, hum. Está... doente? – perguntou Harry em voz baixa.
Alice sentiu-se furiosa em nome de Jake.
– Ele não está doente. É paraplégico – declarou ela. – E não é meu filho.
É… – Parou, confusa, sem saber como explicar Jake. – É amigo da família –
concluiu.
Harry corou e murmurou um pedido de desculpas.
Jake pousou a bandeja na mesa.
– Posso juntar-me, chefe? – perguntou ele.
Alice anuiu e voltou-se para o computador.
– Então... algumas competências de construção. O que me podes dizer
sobre isso?
Ela viu Harry respirar fundo e endireitar-se.
– Sou bom com a serra de mesa, a plaina, o ensamblador, a lixadora… o
básico. Aprendi a usar tudo isso a trabalhar para a minha mãe e o meu
padrasto. Na Romano Landscaping – disse ele, apontando para o seu
currículo no ecrã. – Fazíamos pequenos trabalhos comerciais e residenciais
em Long Island. Um pouco de tudo.
Paisagismo, sistemas de irrigação e poda, leu Alice. Tudo isso poderia ser
útil no futuro pomar, pensou.
Acenou com a cabeça em aprovação.
– Trabalhaste para a tua mãe. És de confiança, deduzo?
Harry não disse nada. Houve uma longa pausa. Alice fechou o portátil e
sugeriu que dessem uma olhadela às abelhas.
Do exterior do apiário, Alice explicou a configuração da colmeia e a
orientação do apiário. O ar estava cheio de corpos dourados a esvoaçar. O
olho não treinado veria apenas movimentos aleatórios, mas, se se observasse
os padrões de voo como ela observava, percebia que cada grupo se dirigia a
um destino específico e regressava. O pátio zumbia; uma brisa agitava a erva
e depois os ramos dos grandes abetos. Um picanço saudava-os do bosque.
Alice abriu o portão e olhou para a colmeia mais próxima. Tirou uma tesoura
da caixa de ferramentas e cortou a relva com alguns cortes rápidos. O
cortador não conseguia chegar tão perto e as meninas não gostavam do
comedor de erva barulhento. Esse era o tipo de tarefa aleatória para a qual ela
precisava de ajuda, explicou. A ventilação adequada era a chave para a
sobrevivência da colmeia. Isso significava manter as entradas sem relva no
verão e sem neve no inverno. Ela inclinou-se para aparar outra entrada
enquanto falava.
Os três deslocaram-se ao longo do perímetro do pátio das abelhas e Alice
assinalou a diferença entre os quadros de criação e as alças. Explicou como
ficavam pesadas com mel no fim do verão. Era por isso que precisava de
costas fortes. Uma alça podia pesar até cinquenta quilos.
Falou brevemente sobre como poderia aumentar o número de colmeias com
divisões e enxames, mas não quis entrar em muitos pormenores. Apontou
para a escada caída e o aglomerado de abelhas que se voltara a reunir na
mesma árvore.
– Foi uma captura de enxame que correu mal – disse. – Em geral é bastante
fácil.
Harry assentiu, parecendo pouco convencido, e Jake resfolegou.
Alice olhou para o enxame e pensou em pedir ao jovem que a ajudasse a
capturá-lo como uma espécie de teste. Uma olhadela ao relógio no seu braço
ainda latejante disse-lhe que precisava de voltar para o escritório. Então
acompanhou Harry até ao celeiro, onde lhe mostrou uma colmeia vazia,
retirando os quadros para que ele pudesse entender onde as abelhas faziam a
cera, punham os ovos e armazenavam o mel. Jake ouviu, com uma expressão
concentrada.
– Posso ensinar-te tudo o que precisas de saber. Provavelmente começaria
por te pôr a fazer a manutenção do quintal e a cortar relva. Como estava a
dizer, a ventilação é muito importante quando aquece, portanto, a relva é uma
tarefa diária.
Estava a oferecer-lhe o trabalho? A ideia de entrevistar mais pessoas
cansava-a, e ele parecia-lhe bem. Ainda assim, gostaria que ele dissesse
alguma coisa. Harry ficou em silêncio, desmontando a colmeia vazia e
olhando para os quadros. Levantou e tirou a tampa, girando-a nas mãos. Os
segundos passaram. Alice estava impaciente para voltar ao trabalho e irritada
por ele parecer não estar a ouvir.
Pigarreou.
– Então? Alguma pergunta sobre o trabalho, Harry? Calculo que pareça
bastante…
– Porque não faz a entrada em cima? – interrompeu ele. – É como a porta
da frente, certo? Se a relva e a neve bloquearem a entrada são um grande
problema, então parece que deve apenas mudar a porta da frente para o cimo.
Aquela ali tem uma porta superior. Porque não as outras?
Alice seguiu o olhar dele até uma das novas colmeias que ela criara e
voltou para o apiário. A entrada da frente, percebeu ela exasperada, estava
tapada por erva. As abelhas entravam e saíam por uma racha no cimo do
quadro de criação, onde a tampa não tinha encaixado corretamente.
– Que diabo… – resmungou ela.
Agarrou no chapéu e no véu, calçou as luvas e abriu a colmeia, retirando
um quadro do meio. Estava exatamente como devia – com alvéolos cheios de
ovos, mel e pólen. Colocou-o no sítio, com cuidado para deixar a tampa
inclinada e manter a entrada aberta. Os seus pensamentos rodopiavam. Nunca
tinha ouvido falar de alguém a fazer uma entrada superior numa colmeia
Langstroth, mas não conseguia pensar numa razão para que não funcionasse.
E, se funcionasse, o rapaz acabara de eliminar incontáveis horas de
manutenção.
Voltou para junto dos rapazes, como já lhes chamava mentalmente, e
sorriu.
– Quando podes começar? – perguntou.
Naquela noite, depois do trabalho, sentou-se à mesa da cozinha a examinar
o calendário e a olhar para o seu extrato bancário enquanto se esforçava para
não coçar os antebraços devido à comichão. O orçamento seria apertado, mas
pagaria a Harry apenas vinte horas por semana. Abanou a cabeça. Ele era
esquisito – ou muito calado ou demasiado falador. Teve de rir de si mesma.
Alice Holtzman com um empregado estranho a meio tempo e um
companheiro de casa adolescente. Quem diria?
Abriu um saco de Nutter Butters e olhou pela janela para Jake, que rolava
lentamente pelo perímetro do quintal. Com o seu cabelo preto espetado,
parecia um sentinela romano. Ela suspirou e mastigou uma bolacha. Tinha
um adolescente a viver com ela. Alice, a introvertida. Ilha Alice. Ele e os
amigos tinham conseguido convencê-la a deixá-lo ficar durante um tempo.
Ela sorriu, recordando como entrara em casa pronta a lutar contra Ed
Stevenson e em vez disso encontrara três adolescentes e um tacho de arroz
queimado.
Depois de o fumo se ter dissipado e de Alice parar de gritar, conhecera os
dois jovens amigos de Jake – Noah e Celia – que tinham reorganizado a sua
mobília, o que foi desorientador. Mas também tinham feito o jantar. Teria
sido indelicado recusar, ela sabia. Sentou-se para comer com eles, a
contragosto, e disse a Jake que tinham coisas para discutir depois do jantar. O
humor sombrio de Alice abateu-se sobre a mesa. O silêncio foi quebrado
apenas pelo som dos garfos nos pratos e da mastigação.
Esses jovens são teus convidados, Alice!, ouviu ela a voz do pai a sibilar no
seu ouvido.
Alice suspirou e largou o garfo.
– Isto está mesmo delicioso – disse ela, forçando um sorriso. – Obrigada,
Celia.
Celia falou como se tivesse estado à espera de uma abertura.
– Na verdade, senhora Holtzman, foi o Jake quem fez o jantar. Eu só o
ajudei com a receita. Ele fez o trabalho todo.
Ela olhou para Jake, que olhou para a mesa.
– Pedi-lhes que me ajudassem a organizar a sua cozinha para conseguir
chegar aos tachos – disse Jake. – Vamos pôr tudo como estava. Não se
preocupe.
Alice olhou para a sua sala de estar reorganizada, entendendo. Deu outra
dentada nas enchiladas de frango, que estavam muito boas. O feijão também.
O rapaz tinha feito uma salada, pelo amor de Deus. Alice não se lembrava da
última vez que comera uma refeição caseira ou de um jantar que não tinha
comido em pé. Quando terminou, limpou a boca ao guardanapo e levantou-
se.
– Mostra-me – pediu.
Jake explicou a reorganização cuidadosa de Celia dos utensílios de cozinha.
A princípio hesitante, a sua confiança cresceu ao ver que Alice estava
intrigada. Os amigos ficaram atrás da bancada, interferindo como se fossem a
sua claque.
– Mostra-lhe as coisas da despensa – disse Noah. – E como pendurámos as
frigideiras para conseguires chegar-lhes.
– E a máquina de fazer gelados está lá em cima com os enlatados, senhora
Holtzman – disse Celia.
Alice assentiu, impressionada. Afinal, os Holtzman admiravam a iniciativa
e a organização. Também foi conquistada pelo entusiasmo adolescente, que
não lhe era familiar. Ali estava uma força a ser reconhecida.
– Bem – disse ela. – Bom trabalho. Estou impressionada. Obrigada pelo
jantar. Agora tenho de trabalhar um bocadinho. Podem os três tratar da loiça
antes de o Noah e da Celia irem para casa? – perguntou a Jake.
Pediu licença e foi para o quarto para fingir que não os via a darem mais
cinco uns aos outros e a comemorarem. Isso fora há duas semanas, e ela
estava admirada por ver como se habituara a tê-lo ali.
Contratar Harry resolvera o seu problema laboral. Quanto a Jake, ele seria
seu convidado por enquanto. Da mesa da cozinha, Alice viu-o deter-se junto a
uma das novas colmeias. Depois de os amigos se terem ido embora naquela
noite, ela conversou com ele francamente sobre as exigências físicas do
trabalho para o qual estava a contratar, e ele concordou que era mais do que
seria capaz de fazer. A sua expressão abatera-se e Alice sentira um nó no
estômago.
– Sinto muito, Jake – disse ela. – Devia ter sido mais clara.
Ele abanou a cabeça e tentou sorrir, dizendo que sabia que ela estava
apenas a tentar ajudar. Sentada ali a olhar para o seu rosto jovem, não se
sentia com coragem de mandá-lo para casa. Sugeriu que ele ficasse algum
tempo até poder decidir o próximo passo. A ideia pareceu animá-lo e ele
agradeceu. Ela ficou um pouco angustiada quando percebeu que se tinha
encurralado, mas não seria para sempre. Além disso, admirava-a o quanto
estimava aquele rapaz engraçado e inteligente. Sempre gostara de estar
sozinha. Preferira, realmente. Estar perto de outras pessoas deixava-a
cansada, quase mais isolada. Mas depois Bud mudara tudo, pensou ela.
Pensar em Buddy apanhou-a de surpresa e a solidão agarrou-a pelo
pescoço. Pegou na embalagem de bolachas e comeu-as todas, tentando conter
a dor crescente. Não funcionou. Agarrou nas chaves, fechou a porta com
estrondo e acenou ao rapaz.
– Afazeres! – exclamou.
Ele acenou em resposta.
Alice meteu-se na pickup e acelerou pela estrada sob a luz ofuscante do sol
poente. Estar em movimento ajudava a acalmá-la. De alguma forma, estar na
pickup com as janelas abertas e o vento nos ouvidos tornava mais fácil conter
a dor dentro dos limites do seu corpo. Caso contrário, podia ter-se partido em
duas. Uma vez, chegara a meio do caminho para Seattle sem nenhuma
lembrança da longa viagem. Apenas quilómetro após quilómetro a dizer a si
mesma recompõe-te, Alice. És capaz. Engole isso. Desde que chegasse ao
gabinete de planeamento às 8h30, cinco dias por semana, ninguém precisava
de saber que Alice Holtzman era feita de um milhão de pequenos pedaços
quebrados unidos por bolachas, condução solitária e da determinação de não
enlouquecer em público.
Sentiu o ar quente da noite soprar no seu rosto e concentrou-se na
respiração. Disse o nome dos marcos familiares ao passar por eles, deixando
a sua mente pousar apenas na superfície das coisas. McCurdy Farms, Twin
Peaks Drive-in, Western Antique Airplane and Automobile Museum, Eagle
One Thrift, Novedades Ortiz, Bette’s Place, biblioteca. Só aquele edifício e o
próximo. Betão e tijolo, sem necessidade de pensar nos seus sentimentos.
Chegou à cidade com aquela estratégia e viu-se à beira-rio. Decidiu que uma
caminhada lhe arejaria as ideias.
O pôr do Sol transformou o rio numa fita dourada, desanuviando-lhe o
coração com a sua beleza. Um punhado de kitesurfers aproveitava o vento,
entusiastas do início da temporada que não desperdiçavam um único minuto.
Perto do jardim, viu uma pequena multidão reunida sob o abrigo dos
piqueniques. Aproximou-se e foi em direção à berma para continuar sozinha.
Avistou Stan Hinatsu numa pequena elevação do relvado com um cartaz que
dizia: «Mantenham a SupraGro fora do Desfiladeiro!» Lembrou-se de como
ele estava zangado no final da reunião com a PC. Aproximou-se e ficou atrás.
– ... Carvão que transportam através das nossas comunidades e ao longo do
rio. Não preciso de vos lembrar do comboio da Cascadia Pacific que
descarrilou em Mosier e derramou uma carga de crude a menos de cem
metros da Escola Comunitária de Mosier. Agora não são apenas os comboios.
A Cascadia comprou recentemente a SupraGro, uma empresa de pesticidas
que está a ser processada por grupos comunitários no Nebraska e no norte da
Califórnia por contaminar bacias hidrográficas locais. E como parte dessa
parceria, a Cascadia está a oferecer os seus produtos com um grande desconto
a agricultores e pomares locais para uso aqui no desfiladeiro do rio Columbia.
Isso afetará todas as fontes de água do vale. Estou a falar de comunidades
desde Parkdale e Pine Grove a Mosier e The Dalles. E fontes de água desde
Dog River e Hood River até White Salmon e Klickitat. O escoamento irá
diretamente para as bacias de onde obtemos a nossa água potável, onde os
nossos filhos nadam e onde os salmões desovam.
Era muito urgente agir, disse ele. Stan pediu às pessoas que ligassem para
os comissários regionais, que comparecessem na reunião do conselho
municipal na semana seguinte e se oferecessem para fazer campanha
localmente.
Alice ouviu, incomodada por um pensamento. Pegou no telemóvel e
pesquisou a SupraGro no Google. Ali estava. A SupraGro dizimara
populações locais de abelhas naquelas cidades da Califórnia e do Nebraska –
de apicultores profissionais e de amadores como ela. Até mesmo uma quinta
associada à Universidade do Nebraska. Milhares de colmeias tinham morrido.
Milhões de abelhas.
Alice lera sobre isso num blogue de abelhas, que tinha um link para um
artigo no Washington Post. A parte das abelhas estava enterrada no fundo da
história sobre os processos, que se centravam na qualidade da água potável.
A história dizia que as abelhas tinham morrido pela contaminação da água ou
pela pulverização. Anos depois, não tinham recuperado e as perdas
continuaram ano após ano nas cidades onde a empresa de pesticidas ainda
tinha uma grande influência.
Alice ouviu o clique de uma máquina fotográfica ao seu lado e viu Pete
Malone a tirar uma fotografia de Stan e da multidão. Ela gostava de Pete, que
fora da sua turma de inglês no último ano. Escrevia para o Hood River News
há décadas. Pete estava sempre presente a fazer perguntas e a tirar fotografias
– na feira do município, no conselho municipal, no Wild Weiner Days e o
Dachshund Dash. Pete chamou a sua atenção e acenou com a cabeça.
Stan estava a terminar. Agradeceu a presença de todos e pediu que fizessem
um like na página do Facebook da bacia hidrográfica. Quando acabou, as
pessoas viraram-se umas para as outras e começaram a falar, pois em Hood
River até o ativismo ambiental oferecia uma oportunidade de conversar. Viu
Stan a abrir caminho no meio da multidão e sobressaltou-se quando ele parou
diante dela.
– Olá, Alice. Obrigado por vir. É bom saber que alguém do município está
a prestar atenção.
– O quê? Eu… não, desculpe. Estava a passar e parei para o ouvir. Não
estou aqui a representar o município ou...
Stan sorriu-lhe e oscilou sobre os calcanhares, os braços cruzados sobre a
prancheta.
– Certo. Eu sei. Não está a trabalhar. Não é uma funcionária do município
neste momento. É a Alice Holtzman, cidadã preocupada. Certo?
Ouviu o clique da máquina fotográfica e viu Pete pelo canto do olho.
– Não. Quero dizer, sim. Sou uma cidadã preocupada. Preocupo-me com
esta comunidade e com quem fazemos negócios. Claro que sim.
Clique, clique, clique, fazia a máquina.
– Certo, é só isso que estou a dizer – disse Stan.
Clique, clique, clique.
– Mas eu não... não sou... bolas, Pete. Queres parar?
A voz de Alice elevou-se. Ela olhou para Pete, que parecia apenas meio
envergonhado.
– Estamos em público, Alice – disse Pete, e encolheu os ombros enquanto
virava a sua máquina para o resto da multidão.
Alice voltou-se para Stan, que ainda sorria.
– Olhe. Sim, sou uma cidadã preocupada, mas não me cite nem tente fazer-
me passar por uma espécie de representante do município. Ainda nem eu
entendo a situação.
Mas entendia o suficiente. Apenas não sabia que raio podia fazer sobre
isso. Stan devia ter visto isso na sua expressão. Estendeu-lhe a prancheta.
– Dê-me apenas o seu e-mail, Alice. Queremos mantê-la informada.
Ela exalou, pegou na caneta e rabiscou o seu endereço de e-mail.
Clique, clique, clique.
Quando ela olhou para cima, Pete misturara-se na multidão. Ficou irritada
ao notar que Stan ficava ainda mais bonito quando sorria.
– Obrigado, Alice. Entrarei em contacto, okay?
– Claro, Stan. Até logo.
Caminhou ao longo do rio onde o Sol se pusera atrás da linha do cume e o
céu ficara verde-claro acima das árvores. O vento oeste acariciou o seu rosto.
O que dissera a doutora Zimmerman? Rompa com os velhos padrões.
Encontre um caminho para sair da velha maneira de fazer as coisas e forjar
uma nova. Podia parecer desconfortável, mas era a única saída. As coisas
precisavam de parecer diferentes para se tornarem diferentes, disse ela. Bem,
«diferentes» era uma boa descrição para isso, pensou Alice. Avançou até o
caminho terminar na água e então, porque não tinha alternativa, virou-se e
voltou por onde viera.
13
SOM HARMÓNICO
Quem observar cuidadosamente os hábitos das abelhas sentir-se-á
muitas vezes inclinado a falar das suas pequenas favoritas como tendo
uma inteligência muito próxima da razão.
– L. L. LANGSTROTH
*
Jake saboreava o sol da tarde diante das colmeias e fechou os olhos, sentindo
um zumbido quente no peito. Adorava o som que ouvia, o barulho diário das
abelhas a trabalhar. Perguntou a si mesmo por que motivo nenhum dos livros
de apicultura falava sobre aquele zumbido musical, aquele hino dourado,
aquela música. Parecia-lhe tão significativo. Perguntara a Alice o que elas
diziam, mas ela também não soubera. Disse que envolvia a vibração das asas
delicadas, que era facilmente ouvida quando uma abelha voava. Mas não
sabia o que comunicavam dentro da colmeia. A rainha e a maioria das
obreiras vivia sempre naquele interior pulsante e sem luz, portanto, o som
devia ter sido algum tipo de ferramenta. Talvez ouvissem o tom como Jake.
Para ele, dizia: «Estamos aqui e está tudo bem.» Dizia: «Estamos em casa.»
Jake não se sentia em casa desde muito pequeno, mas sentia algo parecido
com isso agora. Essa nova sensação alojara-se no seu peito. Pousou a mão no
esterno e sentiu a sua respiração entrar e sair. Qual era a sensação? Demorou
algum tempo a dar nome ao que sentia. Calma.
O tempo que passava com as abelhas, aqueles minutos e horas, construíam
nele uma sensação de calma lenta, mas de forma segura, tal como as abelhas
aumentavam as suas reservas de mel.
Embora vivesse com Alice há mais de duas semanas, Jake ainda sentia uma
explosão de alívio todas as manhãs quando acordava e percebia que não
estava na casa dos pais. Naquela manhã, ficara na cama a ouvir o piar
alarmado das codornizes e o som dos pássaros que Alice disse serem rolas-
carpideiras. Levantou-se da cama quando o galo já estava a cantar há algum
tempo. Alice levantara-se primeiro e ele ouviu-a fazer café na cozinha. Sentiu
saudades da mãe, mas não suficientes para querer estar de volta àquela casa.
A mãe não falara muito quando aparecera no outro dia. Embora ele lhe
tivesse garantido por telefone que estava bem e que Noah poderia ir buscar as
suas coisas, ela insistira em vê-lo. Trouxera um saco de viagem com a roupa
dele, caixas de cateteres descartáveis, o portátil e o trompete, que devia ter
encontrado no fundo do seu armário. Por último, tirou a longboard dele do
banco de trás do carro, o que fez Jake sorrir. Querida mãe. Claro que se
lembraria daquilo.
Sentaram-se à mesa de piquenique sob a sombra do grande choupo e Jake
falou-lhe das abelhas – a rainha, as obreiras e os zângãos. Descreveu o par de
corujas que ouvia piarem na floresta à noite e o coiote que via na beira do
lago ao anoitecer. Não lhe disse que de cada vez que via aquele coiote sentia
um aperto no coração ao pensar em Cheney.
A mãe tinha as mãos fechadas no regaço e Jake sabia que ela não estava
realmente interessada nas abelhas. As lágrimas escorriam pelo seu rosto.
Tirou os óculos, puxou um lenço de papel do punho da camisola e limpou os
olhos.
– Mãe, está tudo bem, a sério. Estou bem aqui. Não precisas de te
preocupar.
Ela abanou a cabeça e estendeu o braço sobre a mesa para lhe apertar a
mão.
– Sou tua mãe, Jacob. É minha obrigação preocupar-me contigo.
As perguntas por fazer pairavam, pressionando-os. O que aconteceria a
Jake? Que tipo de vida poderia ele ter? Conseguiria cuidar de si mesmo?
Conseguiria um emprego? Iria para a faculdade um dia? Essas perguntas
tinham surgido quando a sua vida explodiu, um ano antes, e ainda não havia
respostas claras. Jake evitava falar sobre as especificidades da sua situação
com a mãe, mas sabia que ela estava tão ciente delas como ele.
– Olha, mãe. Tu és incrível, mas eu ainda... estou preso nesta cidade.
Preciso de descobrir as coisas por mim. E viver com o pai realmente não
estava a ajudar. Em nada.
Ela limpou os olhos e assentiu. Nem tentou defender Ed, o que foi um
alívio. Jake detestava quando ela dizia que o pai não falava a sério e que
realmente amava Jake. Blá blá blá. A fúria cresceu dentro dele ao pensar
naquele rosto vermelho e zombeteiro. Cerrou os punhos na mesa.
– Ele é um idiota, mãe!
Tansy abanou a cabeça, enfiou a mão na mala e tirou um rebuçado para a
tosse. Jake viu-a desembrulhá-lo, metê-lo na boca e dobrar o papel num
pequeno quadrado que enfiou na mala. Dessa forma recompôs-se e assumiu a
expressão serena que exibia, quer estivesse a rezar, quer a ver o idiota do
marido gritar com a televisão ou coisa pior. Jake vira aquela expressão pela
primeira vez quando Ed atirara o seu prato à parede e saíra furioso de casa. A
mãe limpara o chiqueiro e fizera macarrão com queijo para Jake, com dez
anos, enquanto cantarolava «Make Me a Channel of Your Peace».
Ela tentou sorrir.
– És um rapaz inteligente, Jacob. Vais ter uma boa vida. Se quiseres ficar
com a senhora Holtzman por enquanto, tudo bem. Ela parece ser uma boa
mulher cristã, e estamos gratos pela sua bondade.
Jake reprimiu um sorriso ao lembrar-se de Alice a praguejar quando
afogara o motor do trator na véspera.
A mãe apertou-lhe novamente a mão.
– Irei sempre ajudar-te, querido. E rezarei por ti todos os dias.
Abraçou-o e fê-lo prometer que lhe ligaria pelo menos uma vez por
semana. Ele viu-a ir-se embora e sentiu-se um pouco triste. Doce mãe.
Mais tarde, quando vasculhou a mochila, encontrou o seu caderno de
desenhos entre calças de ganga, camisolas, meias e roupa interior, tudo
dobrado com cuidado. Ficou admirado ao perceber que não desenhara nada
desde antes do acidente. Abriu o caderno e as imagens surgiram como cenas
da vida de outra pessoa. Noah a fazer um ollie no skatepark e Noah com o
seu trombone. Havia uma das chefes de claque alinhadas atrás da banda de
jazz num jogo de futebol, os seus rostos esborratados. Havia um grupo de
jovens na bancada e uma rapariga com cabelo azul e aparelho nos dentes
estava a fazer rir as outras.
Virou a folha e sobressaltou-se. O corpo esguio de Cheney a saltar da doca
em Lost Lake. Cheney com o focinho fora da janela do carro, a sorrir para o
vento. Cheney a dormir na ponta da cama de Jake, a sua cabeçorra apoiada
nas patas, parecendo de alguma forma delicada. Doía recordar e Jake fechou
o caderno de desenho.
Pegou num envelope com «Jacob» escrito à frente. Lá dentro estavam dez
notas de vinte dólares e alguns cartões de oração – um da Virgem Maria,
Rainha Mãe, e um de St. Giles. A mãe escrevera nas costas daquele: «Filho
de uma ateniense e um eremita, Giles é o santo padroeiro dos deficientes.»
Jake riu-se. Só a mãe. Sob os cartões havia outro papel. Era um formulário
oficial do estado de Oregon. A mãe preenchera-o, retirando-se a si mesma e a
Ed como seus encarregados de educação. Como adulto emancipado, Jake
receberia agora todos os cheques de invalidez diretamente, dizia o
formulário. Ela preenchera a secção de mudança de endereço com a de Alice
e pusera um selo no envelope. O seu cheque mensal de invalidez estava preso
a um clipe de papel, assinado na letra perfeita da mãe.
Jake abanou a cabeça.
– Uau! Muito bem, mãe!
Subestimara-a. Os vestidos floridos, o cabelo cuidadosamente enrolado e o
comportamento cristão educado ocultavam uma mulher de ação. Na maioria
das vezes, ela mantinha a paz e navegava em torno do marido taciturno. Mas
tinha os seus limites. Jake lembrava-se de quando ela se cansara de pedir a Ed
que apanhasse as suas latas de cerveja vazias do chão da sala à noite. Um dia,
quando ele estava no trabalho, ela enfiou-as num saco de lixo e colocou-o no
chão ao lado do sofá com uma almofada e um cobertor e foi para a cama
cedo. Ed voltou para uma casa escura, sem jantar e com a porta do quarto
trancada. Nunca falaram do assunto, mas depois disso as latas dele iam para a
reciclagem.
Jake ficou aflito ao pensar no que aconteceria quando o pai percebesse que
o cheque não fora depositado na conta bancária conjunta. Jake ouvira-os
discutir sobre isso algumas semanas depois de ter voltado do centro de
reabilitação em Portland.
– O Jacob precisa de poupar para o seu futuro, Edward.
A voz da mãe chegara-lhe através da parede fina do quarto. Ed disse
qualquer que ele não conseguiu ouvir.
– Isso não é verdade, Edward – disse a mãe.
Jake abriu a porta.
– O rapaz não vai a lado nenhum. Sempre foi preguiçoso. Com certeza não
vou dar-lhe mais abébias.
Jake contraiu o maxilar, lembrando-se. Certo, Ed. Estou a ter umas
grandes abébias aqui na minha cadeira de rodas. Ainda assim, esperava que
a mãe não pagasse por isso.
Ouviu novamente a reverberação dourada da colmeia à sua frente. Tinha
vontade de se aproximar e ver a intrincada vida interior. Pensou em Harry e
sentiu ciúmes. O tipo nem parecia interessado nas abelhas. Jake já sabia
muito pelo que tinha lido. Mas as malditas colmeias eram muito altas e Jake
tinha consciência de que não poderia fazer o trabalho de que Alice precisava.
Olhou para a Colmeia n.º 6, que incluía duas alças com quadros de criação
e ainda uma terceira alça. A tampa estava bem acima da sua cabeça. Não
conseguiria abri-la como vira Alice fazer, muito menos ver os quadros. Era
tão frustrante. Desde que voltara da reabilitação não se preocupara com nada.
Nada tinha penetrado na bolha escura em que vivia enquanto renunciava a
qualquer expectativa para o futuro. Agora, aquela coisa viva e brilhante
chamava-o – a vida mágica de colmeia. Flexionou as mãos, querendo
trabalhar. Estava mesmo à sua frente, mas era impossível.
Passou pelas colmeias mais novas que Alice trouxera de Portland e parou.
Pintadas de branco e marcados do n.º 13 ao n.º 24 a caneta preta, as novas
tinham apenas uma alça de altura. Jake parou ao lado da n.º 13. Podia
facilmente alcançar as molduras daquela colmeia, percebeu com crescente
excitação. Devia esperar e perguntar a Alice. Ela chegaria dentro de algumas
horas. Mas a seguir ele pensou: Que diabo? Que mal faria?
Fechou os olhos e viu os passos que a vira dar tantas vezes – acender o
fumigador, abrir a tampa, uma baforada de fumo, tirar a tampa. Ele poderia
fazer isso. Ouviu o zumbido, sentiu-o reverberar na sua cavidade torácica
como se houvesse uma colmeia dourada dentro do seu corpo. Então ouviu
outra coisa. O novo som possuía um tom completamente distinto. Prestou
atenção e ouviu novamente. Era uma nota etérea um pouco mais alta do que
as outras, como um som harmónico. O que era aquilo? Ele tinha de saber.
Pegou numa ferramenta e num par de luvas. Quando tentou colocar o
chapéu e o véu sobre a cabeça, não coube por causa do cabelo. Largou o
chapéu e olhou para o fumigador. Tinha lido que nem todos os apicultores
usavam fumo, de qualquer maneira. O apicultor nos vídeos da OSU que ele
vira nem sequer usava véu ou luvas. Largou também as luvas. Entraria
simplesmente assim – leve e rápido. Aproximou a cadeira para que a n.º 13
ficasse à sua direita, que era o seu lado forte. Fechou os olhos e ouviu. O
zumbido instalou-se no seu peito. A sua respiração abrandou e ele ouviu-a
novamente aquela nota dourada acima de tudo. Emitiu também um zumbido,
imitando-a. Inalou, exalou e abriu a tampa. Saiu facilmente porque a colmeia
era nova e ainda não estava bem selada com própolis. A seguir arrancou a
tampa interna e colocou-a de lado. Um trio de abelhas zumbiu para cima e
para fora, voando em redor do rosto de Jake. Ele ficou muito quieto com as
mãos no colo e os olhos fechados.
– Olá, meninas – murmurou, imitando Alice. – Vim só dar uma olhadela.
Não precisam de se preocupar.
As abelhas-guarda analisaram o seu rosto e pescoço por um minuto ou
mais. Jake manteve-se imóvel enquanto elas voavam diante dos seus olhos
fechados, dos seus ouvidos e da sua boca. Em seguida, voltaram para a
colmeia, tendo decidido que ele não era uma ameaça. Jake ficou espantado
com a sua própria calma e deitou mãos à obra. Usou a ferramenta para soltar
um quadro, levantou-o lentamente com dois dedos e segurou-o diante do
rosto. Ali não se passava muita coisa. Algumas abelhas e apenas o início de
uma camada de cera. Jake encostou-o à parede da colmeia, soltou outro e
puxou-o para fora. Retirou os dois quadros seguintes, reparando que cada um
mostrava mais atividade. O quarto foi mais difícil de extrair. Ergueu um lado,
pegajoso com própolis e ele escorregou de novo para baixo. As abelhas
zumbiram em reclamação. Jake ficou imóvel quando as abelhas-guarda
voaram para cima, pairaram e dispersaram novamente. Puxou o quadro para
cima e para fora. Era pesado nas pontas dos dedos. Assim como as
fotografias dos livros, tinha um anel de mel do lado de fora com uma faixa de
pólen no centro e alvéolos operculados na parte inferior. O quadro começou a
escorregar dos seus dedos e ele obrigou-se a concentrar-se. Exalou, guardou o
quadro no lugar e continuou.
O quarto quadro também estava cheio, mas ele sentiu algo diferente ao
retirá-lo. Ouviu uma mudança de som. Ali estava – a nota semelhante a um
sino. Juraria que era um sol sustenido. Ergueu o quadro ao nível dos olhos.
Ali, no meio da superfície coberta de cera, as obreiras moviam-se lentamente
em torno de um ponto central. E lá estava ela. No meio dos corpos rastejantes
dourados, Jake viu a rainha. A sua figura longa e afilada tinha um ponto
verde brilhante, exatamente como Alice havia dito. Era visivelmente maior
do que as obreiras – as asas desciam-lhe pelo dorso. Os seus movimentos
eram mais lentos e graciosos do que os das outras. Ele inclinou-se para a
frente. Sim, agora tinha a certeza. Aquele outro som, aquela nota, vinha da
rainha.
Fechou os olhos e inspirou o cheiro de mel e cera. O seu coração bateu com
força; todo o seu corpo sentia a vibração. Jake sabia que segurava a vida da
colmeia nas mãos. Se alguma coisa acontecesse à rainha, as outras não
sobreviveriam. Sentiu-se estranhamente calmo e confiante, percebeu. Nunca
deixaria que nada de mau lhe acontecesse. Abriu os olhos e olhou para ela
novamente e a seguir baixou o quadro, arrumou os outros e colocou a tampa
no lugar.
À medida que o sol se movia pelo prado, Jake abriu seis das doze novas
colmeias – sem chapéu, sem luvas e sem fumigador – com cuidado lento e
metódico. Não foi picado uma única vez. Depois de fechar a segunda
colmeia, lembrou-se do livro de registo de Alice e foi buscá-lo ao celeiro para
tomar notas. Imitou as entradas dela o melhor que pôde com a data, hora,
temperatura, número da colmeia e uma descrição do que viu lá dentro. Fez
alguns esboços. Também destacou aquele tom extra com um asterisco no
final da anotação. Em todas as seis, ouvira aquele som e localizara a rainha –
seis beldades pontilhadas de verde. Sentiu-se exultante. Pensou em Harry,
que estaria ali na tarde seguinte para receber as primeiras instruções. Jake não
queria partilhar as abelhas com ele e também não queria partilhar a casa de
Alice. Pensou em convidar Katz novamente quando Alice estivesse no
trabalho. Mas agora aquele tipo passaria ali metade do dia.
O vento aumentou e Jake entrou na oficina. Limpou a ferramenta com
álcool mineral e arrumou-a na caixa. Sentia-se fisicamente cansado como não
sentia há meses. Um bom cansaço. Voltou para a sombra, esvaziou a garrafa
de água e adormeceu.
Não se lembrava dos detalhes do sonho, apenas que nele andava outra vez
de skate, a deslizar ao longo do trilho à beira-rio. E Cheney estava com ele.
Que felicidade. Quando acordou, sentiu uma penetrante sensação de perda.
Às vezes, ocorria-lhe assim. No sono, esquecia-se. Depois acordava com a
compreensão de que já não era apenas Jake, o idiota mediano com toda a sua
vida pela frente. Era ele o idiota em particular – 18 anos, desempregado, não
estava na escola de música e andava de cadeira de rodas. Um nó formou-se
na sua garganta e um peso abateu-se sobre o seu coração enquanto ele
considerava o estado da sua vida. Mas então olhou para o apiário. Flexionou
as mãos cansadas. Lembrou-se do som que ouvira e da beleza que vira.
Pensou em tudo o que diria a Alice. O peso mudou e uma centelha de alegria
floresceu no seu coração. Aquela coisa nova, aquela maravilha.
14
VIDA DOS ZÂNGÃOS
As abelhas saem das suas colmeias com o humor mais pacífico que se
possa imaginar; e, a menos que sejam maltratadas, permitem-se a ser
tratadas com grande familiaridade.
– L. L. LANGSTROTH

O sol batia nas omoplatas de Harry enquanto ele pedalava para longe da
quinta de Alice Holtzman. O seu estômago roncou. Não comia desde o
burrito do pequeno-almoço. Conseguir o emprego animava-o, mas não
mudava o facto de estar quase sem dinheiro. Ele e Alice haviam concordado
com o valor a pagar por hora, e ela pediu-lhe que voltasse na tarde seguinte
para planearem o seu horário de trabalho. A seguir Alice perguntou se havia
mais alguma coisa de que ele queria falar. Harry quase pediu o almoço, mas
conteve-se, sentindo que seria um pedido estranho.
A sua fome aumentou enquanto subia a longa colina rumo à povoação.
Parou na mercearia para ir à casa de banho e ver as amostras da charcutaria.
Mordiscou o queijo e empilhou fatias de salame num guardanapo até que a
senhora da charcutaria o fulminou com o olhar. Ele saiu, enfiando os
pedacinhos de carne na boca e sentindo mais fome, como se os petiscos
apenas tivessem aguçado o seu apetite. Montou de novo na Schwinn e rumou
a norte em direção à ponte, ao hospital e ao tio com um pavor crescente.
À beira-rio, a corrente da bicicleta emperrou e Harry desmontou para soltá-
la. Lavou as mãos sujas de óleo na casa de banho pública e, ao sair, ouviu a
voz de um homem num sistema de som.
– Teste um. Teste dois. Teste três. Teste, teste, teste. Olá, Hood River! Sim,
acho que está bem, Doug – disse a voz.
Harry viu uma banda a preparar os instrumentos na relva – três tipos com
um baixo, uma bateria e uma guitarra. Sentiu o cheiro de carne grelhada e viu
uma mulher a abrir uma embalagem alta de copos plásticos vermelhos ao
lado de um barril de cerveja suado. Harry aproximou-se e viu uma longa
mesa coberta com travessas de alumínio – salada de batata, feijão, alface e
tarte. As pessoas faziam fila em frente ao grelhador para os hambúrgueres e
cachorros-quentes. Ele sentiu-se tonto de fome.
– Ei, meu. Estás na fila?
Harry virou-se e viu o grandalhão da praia dos kites. O cabelo comprido
caía-lhe sobre o rosto e a camisola de alças revelava braços musculosos e
bronzeados.
– Oh, olá! O homem dos bolos de mel! Tudo bem? – O tipo cumprimentou-
o como se fossem velhos amigos. – Harry, certo?
Harry assentiu, surpreendido. Não estava habituado a que se lembrassem
dele.
– Yogi – disse o grandalhão, batendo no peito com um polegar grosso. – É
bom ver-te, meu. Arranja-me um prato, pode ser?
Harry entregou-lhe um prato de papel e Yogi começou a empilhá-lo com
comida.
– Vai-te servir, meu – disse Yogi. – Eu não queria passar à frente de
ninguém.
– Ah, não. Não paguei, eu não… – começou Harry, mas Yogi abanou a
cabeça, o cabelo comprido a balançar em torno do rosto.
– Ná. É à borla! O porto faz isto todas as primaveras, no início da
temporada. É um churrasco em homenagem à malta do kitesurf. Mantém os
nativos dóceis.
Yogi riu-se e afastou o cabelo do rosto. Harry, incapaz de acreditar na sua
sorte, encheu um prato e seguiu Yogi até à grelha. Com dois hambúrgueres e
uma cerveja gelada cada, sentaram-se no relvado à sombra de uma árvore.
Entre garfadas, Yogi lançou-se num monólogo interessante, embora confuso,
sobre a sua sessão matinal de kite e um novo truque que estava a tentar
dominar chamado «Dark Star».
Harry anuiu enquanto ouvia, sem entender nada, e tentou mastigar entre
dentadas e goles.
Yogi bebeu um gole de cerveja e limpou a boca ao pulso.
– Já experimentaste, meu? Fizeste body dragging ou fizeste voar um kite?
Harry abanou a cabeça. Hesitou, pouco habituado a falar de si, e disse a
Yogi que estivera ocupado à procura de trabalho e conseguira um emprego.
– Excelente! – exclamou Yogi. Levantou de novo a manápula e Harry deu-
lhe uma palmada.
Harry costumava detestar quando alguém fazia aquilo, mas Yogi parecia
sincero. Pensou que poderia falar a Yogi das abelhas, mas Yogi estava de
novo embalado a falar do kitesurf.
– Ouve. Na tua próxima folga, vem até aqui e eu dou-te uma aula. Tenho
equipamento extra e posso emprestar-to, ensinar-te o básico. A sério, não é
assim tão difícil de aprender. Não precisas de pagar centenas de dólares a
uma delas – disse ele, apontando com o polegar para o aglomerado de
caravanas de escolas de kitesurf. – Quero dizer, elas são boas para pessoas
com dinheiro. Mas nós, gajos normais, temos de nos manter juntos.
Harry assentiu, inquieto. Da última vez que alguém lhe dissera que tinham
de se manter juntos, ele acabara na prisão.
Yogi pousou a cerveja na relva. Apanhou o cabelo num rabo-de-cavalo com
um elástico.
– Vou contar-te o segredo, o que as escolas de kitesurf não te contam, se
quiseres. Pareces o tipo de gajo que entenderia.
Harry anuiu.
Yogi estendeu as mãos à sua frente, as palmas para cima. A sua voz baixou
para um sussurro.
– Okay. O segredo é: tens de sentir. O vento.
Fechou os olhos, recostou-se e rolou os ombros largos.
Harry começou a rir, mas percebeu que ele falava a sério. Yogi, com os
olhos ainda fechados, virou as palmas das mãos para cima. Falou num
murmúrio.
– Tens de te perguntar: o que está o vento a fazer e como posso capturá-lo?
Como posso mover-me dentro dele? Qual é o meu lugar neste belo momento
atmosférico? Neste. Aqui. Agora mesmo. Tens de ouvir o universo e ouvir o
que ele está a dizer-te.
O grande homem inalou pelo nariz e exalou pela boca.
Harry não sabia o que dizer. Yogi abriu os olhos e riu, a sua voz a voltar ao
normal.
– É mágico, meu. A sério. Super Zen. Tento viver assim. Momento a
momento. – Deu um soco no ombro de Harry. – E tu vais conseguir, porra!
Consigo perceber!
Passou um dedo grosso pelo prato e lambeu-o.
– Certo. Tenho de ir. Vou fazer um downwind com uns gajos. Mas a sério,
meu, no teu próximo dia de folga… vem ter comigo. Estou aqui todos os
dias. Até breve, Harry.
Estendeu o punho e Harry bateu-lhe com o seu desajeitadamente. Viu Yogi
afastar-se, acenando e chamando as pessoas enquanto caminhava.
Tenho um emprego, pensou Harry. E talvez um amigo. Sorriu e deitou-se à
sombra da árvore, com a barriga cheia. Iria apenas fechar os olhos um
minuto, pensou, e então adormeceu.
Quando acordou, a festa acabara e o Sol namoriscava com o horizonte.
Lembrou-se do tio e da promessa de ligar à mãe. Saltou para a bicicleta e
atravessou a ponte. Quando subiu a colina para o hospital, o crepúsculo
instalara-se ao longo da cordilheira e o rio era uma faixa de escuridão. As
portas do hospital abriram-se com um chiado e o odor a antisséptico atingiu-
lhe as narinas. Harry correu para o quarto do tio H e parou à porta. As
máquinas dos estalidos e dos bipes tinham desaparecido. Assim como as
flores que a mãe enviara e também o tio. O couro cabeludo de Harry
arrepiou-se como se alguém tivesse entornado água fria na sua cabeça. Voltou
rapidamente para a receção.
– Hum, estou à procura de Harold Goodwin. Ele estava no quarto nove.
Era a enfermeira simpática, aquela que lhe oferecera o jantar. Levantou-se e
contornou o balcão, o rosto sério e os braços cruzados.
– Lamento imenso. O seu tio faleceu esta tarde. Teve uma paragem
respiratória, o que não é raro após um enfarte.
Esperou um pouco, deixando Harry assimilar a notícia. Explicou que o
inchaço no cérebro do tio H o fizera parar de respirar. Recordou-lhe o
testamento vital e disse que o tio não sentira dor.
Harry sentiu a cabeça à roda e as mãos húmidas. Os ouvidos zumbiram e o
suor cobriu-lhe a testa. A enfermeira estava a dizer que tinham ligado para a
família. Então a mãe já saberia. O corpo fora transferido para a morgue. A
enfermeira agarrou no cotovelo de Harry e conduziu-o até uma cadeira. O
estofo rosa recordou a Harry a sala de visitas na prisão. Ela sentou-se e tirou
uma caneta e um bloco do bolso do peito.
– Vou dar-lhe o número e pode ligar para eles amanhã para tratar dos
preparativos – disse ela, escrevendo no papel. – E junto também o número do
telemóvel do doutor Chimosky. Ele disse para lhe ligar se tivesse alguma
dúvida.
Entregou-lhe o papel. Harry dobrou-o e desdobrou-o e não soube o que
dizer. Como devia sentir-se? A enfermeira inclinou a cabeça e olhou para ele.
– O seu tio estava muito doente, sabe? Caramba, era um velhote rijo – disse
ela.
Contou-lhe que o tio H fora internado três vezes desde o Natal. Da última
vez, estava tão frágil que a equipa decidiu transferi-lo para um lar. Mas o tio
H ouviu-os falar disso e rebelou-se. Saiu do hospital quando os apanhou
distraídos e encontraram-no a tentar apanhar boleia vestindo apenas a bata do
hospital e umas meias.
Harry tentou sorrir. Aquilo soava ao tio H.
A enfermeira perguntou-lhe se queria que ela telefonasse a alguém. Harry
abanou a cabeça.
– Olhe, fique aqui o tempo que quiser. Eu estou no balcão se precisar de
mim.
Ele murmurou um obrigado e olhou para o chão. Sentia-se estranhamente
constrangido por não chorar. Aquilo era uma perda? Harry começara a gostar
do seu tio maluco nos últimos dois meses, embora não fossem chegados. E,
no entanto, o pobre tio H morrera sozinho. Pior, a mãe saberia que Harry não
estava lá. Fossem ou não chegados, o tio H ajudara-o. O velho aceitara-o
como alguém com quem jogar às cartas e partilhar uma sanduíche de spam.
Harry não precisara de muito mais do que isso. Nunca tivera muitos amigos,
apesar de a mãe estar sempre a dizer-lhe que ele precisava de conhecer
pessoas.
«Não precisas de gostar muito delas, Harry. Tens apenas de estar com
pessoas. É normal, filho.»
Mas ele nunca sabia o que dizer às pessoas. Marty e Sam tinham sido seus
amigos desde o secundário apenas porque eram da mesma turma e vejam
como acabou. Anos atrás, houvera Shane, que vivia com a mãe no mesmo
prédio de Harry.
«Vai brincar com o Shane», dizia-lhe a mãe. Harry não gostava de Shane.
Depois Shane destruiu a sua coleção de Hot Wheels – batendo com uma
pedra pesada no tejadilho dos carrinhos; como ele não parava, Harry deu-lhe
um soco no nariz. Shane correu para a mãe e Harry levou uma tareia. O seu
histórico de amizades não melhorara muito desde então. Mas ele sabia que a
mãe estava certa. Precisava de fazer amigos. Simplesmente não sabia como.
Harry dirigiu-se lentamente à cabina telefónica em BZ, temendo a conversa
com a mãe. Como explicar porque não estivera com o tio H quando ele
morrera? O que lhe dissera sobre o seu trabalho, o imaginário que tivera antes
do real? As suas mentiras inofensivas quase sempre o deixavam encurralado.
«Bolas! Diz apenas a verdade, Harry!», gritava Sal. «É mais fácil de
lembrar, miúdo!»
Mas Harry não teve de explicar nada. Ouviu a mãe a chorar ao aceitar
pagar a chamada. Ela disse que se sentia contente por ele estar ali. Ter-se-ia
sentido péssima se o tio H tivesse morrido sozinho. Família era família, e
Harry tinha feito um bom trabalho ao lembrá-lo de que ele não estava
sozinho.
Harry animou-se ao ouvir a versão da mãe. Era tudo tecnicamente verdade.
Afinal, ele tinha ido ver o tio. Embora o tio H estivesse inconsciente quando
ele chegara, talvez soubesse que Harry estava ali com ele. Talvez tivesse
ajudado. Harry falou à mãe da morgue. Disse-lhe que iria levantar os restos
mortais do tio H. Ela assoou o nariz.
– Ele era um homem tão bom. Harry, gostava que o tivesses conhecido
quando era mais novo. Olha, filho, vou aí assim que puder e podemos
espalhar as cinzas do tio H juntos. Isso vai ser bom, não vai?
Harry desligou o telefone e endireitou-se. Inclinou a cabeça para trás e
olhou para a cúpula negra do céu – cravejada de estrelas e brilhante. Ele tinha
estado lá para o tio, mais ou menos. Começaria no novo emprego e tudo
ficaria bem. Iria trabalhar no duro. Seria de confiança. As coisas iriam mudar.
Podia senti-lo.
Subindo a estrada, entrou no corredor de árvores altas e a escuridão
engoliu-o. Forçou-se a confiar que a estrada estava à sua frente enquanto
pedalava a velha bicicleta frágil na noite. Pensou no animal morto que tinha
visto na berma e estremeceu. Isso fez os cabelos da sua nuca arrepiarem-se.
Para se distrair, pensou no que compraria com o seu primeiro ordenado –
piza, macarrão com queijo, um pouco do spam de que o tio H o fizera gostar.
Uma embalagem de seis cervejas, talvez. Quando chegou ao caminho de
acesso acidentado, desceu da bicicleta e caminhou até à caravana, tentando
ignorar a sensação de estar a ser seguido. Ficou parado no escuro e tentou
livrar-se dela, mas imaginou alguém a observá-lo enquanto subia a escada.
Da porta, olhou para a floresta e tentou ver o que quer que pudesse estar lá
fora. Nada. Em seguida, um ramo partiu-se e um pássaro levantou voo no
escuro. Harry sentiu medo. Fechou a porta fina, trancou-a e colocou uma
almofada sobre a cabeça. Levou muito tempo a adormecer e dormiu mal,
acordando a cada hora a pensar ter ouvido algo farfalhar do lado de fora da
caravana. Levantou-se de madrugada para beber água e finalmente caiu num
sono profundo.
Quando acordou, a floresta estava silenciosa. Recordou os acontecimentos
do dia anterior de forma desordenada, como portas de um armário a abrirem-
se – o olhar zangado da senhora da charcutaria, as abelhas a cair, Yogi com os
olhos fechados, o rapaz do moicano, o homem do burrito, o tio a tentar a
custo respirar, a cama de hospital vazia. Sentou-se e passou as pernas por
cima do beliche. O relógio do peixe-gato dizia que passava das 13h00.
Ele olhou-se no espelho, o seu tronco magro nu acima das ceroulas largas.
Endireitou-se e respirou fundo. Aquele era o primeiro dia de uma nova vida,
prometeu a si mesmo. Repararia aquele sítio – teria de novo água corrente e
eletricidade. Poderia começar de novo ali. Iria poupar e comprar um carro.
Iria conhecer pessoas. Pensou em Yogi e na praia de kitesurf. Porque não?
Talvez não fosse tão difícil fazer amigos. Abriu a porta e desceu a escada
para ir urinar.
Algo se mexeu na pilha de lixo e uma forma moveu-se na sua direção com
uma rapidez animal. Puma? Coiote? Guaxinim raivoso? Era grande, branco e
castanho. Fora aquela coisa que o espreitara na floresta na noite anterior.
Estava certo disso.
Harry gritou, tentou subir a escada e perdeu o equilíbrio. Ouviu um ganido
estranho. Virou-se e viu a criatura imóvel. Tinha um corpo largo malhado,
patas grandes e uma cauda longa e grossa. Onde deveria haver uma cabeça
havia um grande balde de plástico com o rótulo «Ração para Frangos
Premium». O latido do cão foi abafado pelo plástico. Harry levantou-se e
aproximou-se devagar, agarrou no recipiente e puxou. Quando se soltou,
Harry viu um par de orelhas enormes, olhos arregalados e uma boca gigante,
que o cão abriu para revelar dentes enormes. Harry deu um passo para trás e
o cão lançou-se a ele.
O grande focinho atingiu-o primeiro e depois as patas esmurraram o seu
peito antes de pararem abruptamente. Quando ele abriu os olhos, viu o cão a
correr num amplo círculo pela clareira. Virou-se de repente e correu de volta
para Harry, lançou as patas ao seu peito e lambeu-lhe o rosto antes de fugir
novamente. Harry observou o grande animal a correr em círculos amplos e
felizes. Seguiu para a floresta em direção ao rio e depois voltou, encharcado,
e caiu aos pés de Harry com um baque molhado.
Harry nunca convivera muito com cães, mas aquele parecia estar a sorrir.
Baixou-se, hesitante, para lhe acariciar a cabeça. O animal enfiou o focinho
na mão de Harry e bufou, então deitou-se de barriga para cima, expondo pelo
emaranhado e uma barriga rosa. Harry fez-lhe festas e o cão contorceu-se.
Um esquilo repreendeu-o e o cão deu um salto e afastou-se a correr. Harry
riu-se, aliviado, e percebeu que ainda precisava de fazer chichi. Quando
estendeu a mão para a braguilha das ceroulas agora enlameadas, ouviu o som
de um motor e virou-se. Um jipe subia ruidosamente o caminho e parou. O
selo na porta dizia «Departamento do Xerife do Município de Hood River».
O homem baixo que saiu tinha cabelo escuro e usava um uniforme
castanho bem engomado. Olhou para Harry, que ainda tinha a mão na
braguilha. Afastou-a e, sem saber onde colocá-la, juntou as mãos atrás das
costas nuas. O polícia enfiou a mão no carro e tirou um chapéu, que colocou
na cabeça e endireitou com as duas mãos. Parecia grande de mais e de
alguma forma fazia-o parecer um escuteiro. Fechou a porta do jipe e avançou,
os seus sapatos engraxados a levantar pó. O homem era latino e tinha a idade
de Harry. Era bonito e estava bem barbeado. Harry tocou no lábio superior
com pesar.
– Bom-dia, senhor – disse o homem. – Pertenço ao Departamento do Xerife
do Município de Hood River.
Com dois dedos, estendeu um cartão de visita, que Harry agarrou, leu e, em
seguida, como não tinha bolsos, fechou na mão. O agente perguntou se
aquela era a residência de Harold Goodwin.
– Sim – disse Harry, encontrando a voz –, ele é meu tio. Era meu tio.
O homem assentiu, o rosto impassível.
– Lamento muito a sua perda, senhor. Sabemos que o senhor Goodwin
faleceu.
Harry anuiu.
– Obrigado – disse ele. – Já estava doente há algum tempo, portanto...
Calou-se enquanto seguia o olhar do agente, que observava a
desarrumação, a casa de banho exterior, a pilha de lixo, a escada improvisada.
– Há algum tempo que tentamos entrar em contacto com o seu tio – disse o
homem. – Fui vê-lo ao hospital da última vez que foi internado. O município
queria demolir esta caravana em janeiro, mas o seu tio recusou-se a falar
comigo.
Ergueu um papel com um carimbo de aspeto oficial.
– Vou ter de lhe pedir que desocupe o local. Vem aí uma equipa deitar isto
abaixo.
Levariam a caravana para o aterro, explicou. Harry deveria retirar
imediatamente as coisas com que queria ficar.
Ficou abatido. Lá se iam os seus planos para reparar a caravana. Lá se ia o
novo começo.
– Mas eu… não tenho outro sítio onde morar – disse ele. Precisava de duas
semanas, explicou. Tinha acabado de começar num novo emprego e teria
algum dinheiro para arranjar um quarto quando fosse pago.
O agente não se comoveu e disse que não podia fazer nada. Encolheu os
ombros e enfiou o papel dentro do casaco.
Aquele encolher de ombros. Recordações. Sam sentado à sua frente durante
a única visita à prisão.
«Tu ofereceste-te para conduzir, meu», dissera, encolhendo os ombros.
O diretor da escola a pegar no telefone para ligar à sua mãe enquanto
Harry, com o ranho a escorrer pelo lábio superior, insistia que não tinha sido
ele a roubar o dinheiro da cantina.
«Não sejas tão seguidor dos outros, Harry», dissera o diretor.
Moira vira-o no churrasco e acenara-lhe, mas não fora falar com ele.
Harry sentiu uma pequena chama acender-se no peito. A chama formou
uma palavra, e a palavra era não. Estava cansado de ser o tipo simpático e de
nunca ter uma oportunidade. Só precisava de uma oportunidade. De duas
semanas.
Ouviu um barulho e o cão saiu da floresta atrás do agente, o seu corpo
lustroso e molhado do rio. Correu entre os dois homens, roçando-lhes os
joelhos. O agente gritou e Harry começou a rir, mas então viu a arma. Um
esquilo fez barulho, o cão desapareceu e a arma brilhou à luz do sol. Os olhos
de Harry seguiram o cano que subiu para o céu e passou pelo seu rosto.
Fechou os olhos.
O som do tiro foi ensurdecedor e Harry tapou os ouvidos com as mãos
enquanto o tempo abrandava. Quando os abriu, o homenzinho estava de
joelhos, sem chapéu e o rosto da cor de papel.
– Oh, foda-se! Oh, foda-se! – exclamou. – Não lhe acertei, pois não? Pois
não?!
Harry olhou para os seus braços e peito, que estavam manchados de lama
do cão, e abanou a cabeça.
O agente levantou-se e andou de um lado para o outro, praguejando e
segurando o chapéu. Disse qualquer coisa sobre ir ser processado novamente
e que lhe iriam reduzir o ordenado ou despedi-lo daquela vez. Ele era um
idiota, disse, claramente para si mesmo e não para Harry.
– Pensei que era a porra de um lobo ou um coiote ou algo assim! –
exclamou, falando cada vez mais alto. – Quer dizer, mandam-me sozinho
para o maldito bosque e aquele hijo de puta aparece a voar…
Depois começou a falar num espanhol rápido que Harry não conseguiu
entender.
Harry teve pena dele e ia começar a tranquilizá-lo, a dizer-lhe que estava
tudo bem, que não acontecera nada. Isso era o que ele normalmente teria
feito. Mas então aquela chama voltou, o pequeno carvão no seu peito. Não,
não estava tudo bem. Ele podia ter levado um tiro! Só precisava de duas
míseras semanas. E ainda precisava de mijar. Viu o agente parar de andar
para verificar se a arma estava travada. Harry sentiu uma espécie de
determinação. Endireitou os ombros e olhou o tipo nos olhos, explicando
novamente a sua situação. Por favor, disse ele.
O agente abanou a cabeça.
– Lamento imenso. Gostava de poder ajudá-lo, mas a equipa de demolição
já está marcada. E eu sou novo. Ninguém me dá ouvidos. Pensam que sou um
idiota. E se alguém descobrir sobre a arma…
Estava prestes a chorar e desviou o olhar. Parecia realmente lamentar.
Harry pediu-lhe que esperasse um minuto, dizendo que tinha de ir urinar.
Enquanto urinava, olhou em volta, para a caravana e para a Schwinn, e
formou um plano. Voltou para junto do polícia, que estava encostado ao jipe a
girar o chapéu nas mãos.
– Pode dar-me boleia para a cidade? – perguntou Harry.
O tipo suspirou e olhou para a Highway 141.
– Não posso levá-lo agora. Tenho uma reunião na Estação de Rangers de
Mt. Adams. Mas posso passar por aqui dentro de duas horas, no regresso.
Harry assentiu.
– Obrigado.
O agente foi-se embora e Harry juntou as suas coisas, o que não demorou
muito.
Enquanto esperava pela boleia, sentou-se na escada com o caderno e fez
uma lista dos seus objetivos para o novo emprego. O cão voltou da sua
corrida pela floresta e aninhou-se aos seus pés. Os dois dormitaram ao sol da
tarde.
Quando o agente reapareceu, Harry sentou-se no banco da frente do jipe e
pousou a mochila aos pés. Da caravana do tio H, tirara apenas duas das
camisas de lã, o livro dos pássaros e o tabuleiro de cribbage. Lançou um
último olhar à caravana enquanto se afastavam. Em breve estaria no aterro. A
pilha de lixo seria limpa. Os guaxinins furiosos voltariam no escuro e não
encontrariam nada.
O cão saltitava alegremente no banco de trás, radiante por estar em
movimento. O agente, que disse chamar-se Ronnie, concordou em levá-lo
para o canil depois de deixar Harry.
Harry olhou pela janela enquanto o jipe acelerava. Iria trabalhar. Depois
veria onde ficar. Pensou em Yogi. Recostou-se no assento e sentiu a brisa no
rosto. Perguntou a si mesmo qual era o seu lugar naquele belo momento
atmosférico – apenas aquele. Ali. Agora. Esperou, ouvindo o universo,
ouvindo com atenção. Mas não houve resposta.
15
DIREITO DA RAINHA
Existe uma característica nas abelhas que é digna de profundo
respeito. Tamanha é a sua energia indomável e perseverança, que, em
circunstâncias aparentemente sem esperança, trabalham ao máximo
para recuperar as suas perdas e sustentar o Estado que está a afundar-
se.
– L. L. LANGSTROTH

Já se cronometraram abelhas a voar a uma velocidade de trinta e dois


quilómetros por hora – uma boa média para um inseto que pesa cerca de um
décimo de grama. Mas isso não é nada comparado com a velocidade com que
as notícias viajam numa povoação pequena. Alice encontrou o Hood River
News na sua secretária de manhã. A fotografia de primeira página de Pete
apanhara Alice e Stan a segurar a prancheta entre eles como um casal a cortar
um bolo de casamento. Stan sorria e Alice não. O título dizia, «Bacias
hidrográficas contra contrato com Cascadia». Alice estava identificada como
Alice Holtzman, residente no município. Alguém, provavelmente Nancy,
desenhara um rosto sorridente sobre as cabeças deles com uma esferográfica.
Alice leu na diagonal a notícia, que não dizia nada que ela já não soubesse.
Pete enumerava as objeções do grupo das bacias hidrográficas ao contrato do
município com a SupraGro e mencionava brevemente as ações judiciais que
outras comunidades haviam movido contra a empresa no passado. Não havia
nenhuma citação dela, embora a legenda dissesse que ela estava entre outros
«cidadãos preocupados» na manifestação. Obrigada por nada, Pete. O
município não fizera nenhum comentário oficial, dizia a notícia.
Ela meteu o jornal na reciclagem, sentou-se e ligou o computador. A porta
do gabinete de Bill abriu-se e Nancy saiu, a rir enquanto a fechava. Sorriu
para Alice. Nancy tinha quarenta e seis anos, mas levaria até ao túmulo
aquela cara de menina travessa, pensou Alice.
– Bom-dia, Menina Primeira Página! – cumprimentou ela, acenando para
Alice com as pontas dos dedos. – Hoje em dia é só paparazzi e estranhos
altos e morenos, hem?
– Chegaste cedo, Nance – disse Alice. Nancy nunca entrava antes de Alice.
Nancy apontou por cima do ombro para a porta de Bill.
– Ele está cá esta manhã.
Abriu o e-mail e viu a mensagem: reunião de todos os funcionários, quarta-
feira, 9h30. Fora enviado às 19h36 da véspera. Desde quando é que deviam
verificar os e-mails depois do expediente?
O seu estômago embrulhou-se enquanto lia a mensagem. Esperavam-se
todos os funcionários do município numa revisão obrigatória dos acordos
com empresas privadas. Tinha a ver com o protesto das bacias hidrográficas,
pensou Alice. Já passara por aquilo antes, quando o comboio do petróleo da
Cascadia descarrilara em Mosier e ameaçou a água potável do município, a
água de rega e toda a bacia hidrográfica ao longo daquele trecho do rio. Os
cidadãos normalmente educados estavam zangados e organizaram um
protesto no centro da cidade. Os advogados do município tinha convocado
uma reunião semelhante na altura para lembrá-los que, como funcionários do
município, eram obrigados a calar-se quanto aos contratos locais. Tradução:
não falem sobre o derramamento de petróleo.
Na altura, Alice não tinha pensado muito sobre a postura defensiva do
município. Estivera ocupada a ajudar os pais na mudança e, embora o
derramamento de petróleo a angustiasse, acreditara realmente que o
município faria o correto, que era forçar a Cascadia a limpar os vagões e o
petróleo gorduroso antes de os comboios voltarem a circular ao longo do rio
novamente. Também devia obrigar a Cascadia a definir limites de velocidade
para diminuir a probabilidade de um futuro descarrilamento. Só que o
município não obrigara a Cascadia a fazer nada disso. Fora necessário um
processo do grupo bacia hidrográfica, não fora?
Alice leu o resto do e-mail furiosa. Porque não deixar as pessoas
conversarem entre si? Eram membros da comunidade, não robôs do
município. E o município não deveria cuidar dos seus residentes?
Pelos vistos, Alice não era a única que não vira o e-mail. Houve uma
disputa por lugares na sala de reuniões. Bill estava sentado à cabeceira da
mesa, a respirar pelo nariz e a tamborilar com os dedos na mesa. Puxou a
camisola para baixo sobre a barriga enquanto esperava que as pessoas se
acomodassem.
Nancy estava a provocar o novo estagiário, Casey, sobre uma fotografia da
sua namorada no telemóvel. O rapaz corara desde a nuca até ao cabelo ruivo.
Alice sentia o cheiro do palito de plástico quente na eterna caneca de café de
Nancy. As cadeiras rangeram e gemeram enquanto as pessoas abriam espaço
umas para as outras.
Bill pigarreou.
– Bom-dia. Obrigado a todos por estarem aqui. Acho que sabem porque
nos reunimos, portanto vou direito ao assunto.
E de volta ao meu jogo de golfe, pensou Alice.
Bill pôs os óculos e leu um papel.
– «Todos os funcionários do município de Hood River estão vinculados aos
acordos individuais de confidencialidade que assinaram ao aceitar o emprego
e que devem ser renovados automaticamente a cada ano. Os referidos acordos
incluem todos e quaisquer assuntos do município, bem como assuntos entre
adjudicatários individuais e empresas privadas.»
Bill largou o papel na mesa e tirou um lenço do bolso, tossiu e limpou a
boca.
– Vou passar a palavra ao departamento jurídico para os pormenores.
O advogado principal do município, Jim Murphy, acenou de onde estava
sentado na frente da sala. Magro e amigável, Jim usava uma camisa
desbotada e calças caqui amarrotadas. Abriu o portátil e começou a explicar
as letras miúdas do acordo de confidencialidade. Alice não estava realmente a
ouvir. Pensava no derramamento de petróleo da Cascadia em Mosier. Pensava
nos neonicotinóides dos pesticidas da SupraGro que tinham matado abelhas
no Nebraska e noutros estados. Pelo canto do olho, viu Bill recostar-se na
cadeira e julgou que ele estava a olhar para ela, mas era para Nancy, que
ainda sussurrava para Casey.
Jim parou de repente de ler.
– Sim, Rich. Perguntas?
Todos os olhos se voltaram para Rich Carlson, que levantara a mão.
Rich baixou o braço coberto por poliéster e cruzou as mãos à frente como
um menino do coro.
– Como é que esse último artigo afetaria um funcionário do município?
Essa secção sobre a comunicação com os media, quero eu dizer?
Jim olhou para o ecrã e de novo para Rich.
– Bem, acho que os termos são bem claros, Rich. Significa apenas que
nenhum funcionário do município está autorizado a falar com os media a
respeito de qualquer política do município, a menos que seja instruído pelo
chefe. Por outras palavras, nada de entrevistas.
– Obrigado, Jim – disse Rich. Olhou para Alice, inclinou-se para a frente e
escreveu no seu portátil, os lábios finos a curvarem-se num sorriso malicioso.
Alice pensou na foto de Pete e corou.
– Mais alguma coisa, Rich? Está bem, então. Vou continuar – disse Jim.
Depois da reunião, Alice esperou que os colegas saíssem da sala. Viu Rich
conversar com alguém no corredor e bloquear a passagem. Batia na careca
com as pontas dos dedos enquanto falava. Recordou o visco-branco, os lábios
secos de Rich. Estremeceu. Jim, um dos últimos a sair, chamou a sua atenção
e piscou o olho.
Alice voltou para o seu gabinete, na esperança de encontrar Bill. Queria
rever os rascunhos dos regulamentos do projeto da zona ribeirinha para a
reunião da tarde no estaleiro de obras. Mas o gabinete de Bill estava às
escuras. Alice suspirou. Provavelmente já tinha voltado para casa. A cadeira
de Nancy também estava vazia. Alice sentou-se, sabendo que devia tratar dos
relatórios semanais. Em vez disso, abriu o Google e digitou «SupraGro morte
de abelhas».
Ali estava, notícia após notícia, e não apenas em fóruns de apicultura.
Havia artigos no San Francisco Chronicle, no Oklahoma Observer e no
Huffington Post. O processo mais recente fora em Sacramento, onde os
apicultores comerciais haviam relatado perdas de 75 por cento em relação ao
ano anterior. Os cientistas tinham atribuído as mortes ao SupraGro usado em
pomares de amendoeiras e em torno do Vale Central da Califórnia. Aquele
processo era importante porque a indústria da amêndoa dependia muito dos
apicultores comerciais. A Califórnia tinha tão poucas abelhas remanescentes
que tivera de transportar colmeias de todo o oeste para polinizar as suas
plantações. Isso significava que as abelhas que morreram tinham vindo de
Oregon, Washington, Montana e Canadá. Estimava-se que sete milhões de
abelhas tinham morrido durante um período de cinco dias.
Alice continuou a ler, analisando as histórias sobre a recusa da SupraGro
em até mesmo considerar a ciência por detrás das reclamações em município
após município por todo o Oeste. Quando Nancy voltou, Alice reabriu os
seus relatórios e ignorou a colega, que queria falar de Jim Murph e da sua
mulher muito mais nova. Fez beicinho quando Alice não se juntou a ela para
um smoothie no Ground e saiu. A manhã arrastou-se. Alice tentou
concentrar-se no trabalho, mas a sua cabeça estava nas notícias sobre as
abelhas e no processo multiestadual contra a SupraGro. Stan tinha de saber
disso, não é verdade? A Watershed Alliance estava nessa luta? Alice queria
fazer alguns telefonemas que não podia fazer no trabalho – para Stan, Chuck
Sauer do clube de apicultores e para aquele tipo do departamento agrícola
estadual... Qual era o nome dele? Michaels?
A porta abriu-se e ela olhou para cima, esperando ver Nancy entrar com um
smoothie na mão. Em vez disso, era Rich Carlson, a bater com uma revista na
perna e sorrindo agressivamente. Os olhos muito juntos e dentes estreitos
faziam Alice pensar num furão. O dente frontal direito estava ligeiramente
amarelado, reparou ela.
– Alice. Ainda bem que a apanho! Tenho de falar consigo.
Rich agarrou numa cadeira e apoiou os cotovelos na mesa de Alice. Ela
recostou-se abruptamente.
– Acho que o Bill não vai voltar hoje – disse Alice, sabendo que ele não
estava ali para falar com Bill.
Ele esboçou um sorriso tenso e disse que era com Alice que queria falar.
Ela preparou-se.
– Olhe, Rich – começou ela –, eu estava a passear na zona ribeirinha e o
Stan disse olá. Sabe como é o Pete.
Assim que as palavras saíram da sua boca, sentiu-se estúpida. Parecia uma
aluna com problemas com o professor.
Rich fingiu-se confuso.
Alice tirou o jornal da reciclagem e ergueu-o.
Rich inclinou-se para a frente e semicerrou os olhos.
– Ah! Não tinha visto isso. Queria falar consigo sobre o seu plano de
pensões
– O meu plano de pensões?
Rich assentiu e recostou-se na cadeira com as mãos atrás da cabeça,
afastando os cotovelos e joelhos um do outro de uma forma que Alice sempre
achara ligeiramente obscena. Porque é que os homens faziam aquilo?
– ... está aqui há quase vinte anos – dizia Rich. – O desembolso da sua
pensão começaria em dois anos a partir de um de julho, caso decidisse
aposentar-se.
Vinte anos. Ela sabia isso, claro, mas a dura realidade atingiu-a à mesma.
Quase vinte anos atrás, ela era uma jovem recém-licenciada enérgica e o
emprego no município era temporário até que o pomar passasse para ela.
Rich estava a dizer qualquer coisa sobre a avaliação anual e como uma
sanção afetaria a data do pagamento da pensão. Uma má avaliação podia
passá-lo para dali a quatro anos, dependendo da decisão. Múltiplas críticas
negativas podiam anular totalmente o acordo de pensão, disse ele.
– Claro que isso nunca aconteceu antes – disse ele. – Não durante a minha
gestão. É apenas a política oficial do município, compreende. E os
responsáveis devem receber uma reclamação formal através do departamento
jurídico sobre o incumprimento do funcionário. O Jim Murphy diz que não há
nada com que nos preocuparmos agora.
Inclinou-se de novo para a frente, ainda a esboçar aquele não-sorriso, e
tirou uma embalagem de pastilhas do bolso do casaco. Enfiou uma na boca e
mastigou vigorosamente, quebrando a pastilha com os dentes.
– Vamos manter a coisa assim, hem, Alice? – Levantou-se e bateu com a
revista na palma da mão. – Vamos! Diga ao Bill que achei a reunião de hoje
muito boa. Tenha um bom dia, Alice.
Deixou a porta aberta e Alice ouviu-o assobiar enquanto caminhava pelo
corredor. Sentiu-se enjoada, e os seus ouvidos zumbiram quando as palavras
dele foram absorvidas. Ele ameaçava dar-lhe cabo da pensão por causa
daquela fotografia dela com Stan por nada. Empurrou a cadeira para trás e
levantou-se, olhando para o ar onde estivera o rosto estreito de Rich Carlson,
que parecia vibrar de eletricidade. Pegou na mala e dirigiu-se para a frente do
edifício. Nancy estava ao lado da fotocopiadora, a provocar Casey e a beber o
seu smoothie. O vestido floral de malha retesava-se nas ancas, e ela
inclinava-se na direção do estagiário com aquela grande gargalhada enquanto
ele se encolhia. Ela sorriu para Alice.
– Onde é o incêndio? – perguntou.
– Tenho uma reunião no estaleiro junto à zona ribeirinha. Volto depois do
almoço – respondeu Alice, sem abrandar.
– Sim, senhora, Alice. Assuntos importantes para tratar. – Nancy riu-se e
olhou para o estagiário, tentando atraí-lo para a conversa.
Alice parou e virou-se.
– Estou apenas a tentar fazer o meu trabalho, Nancy. O que estás tu a fazer?
Empurrou a porta da rua, deixando para trás o rosto surpreendido de Nancy,
e caminhou rapidamente pelo passeio. Não sabia para onde ia e viu-se a
descer Oak Street. Sentia a roupa apertada e tentou recuperar o fôlego. A
sensação de vazio cresceu dentro dela e o buraco no seu centro abriu-se.
Raios. Maldito Rich Carlson.
Passou por Bette’s Place e foi necessário um grande esforço para não
empurrar a porta de vidro e correr para o balcão. Imaginou-se a devorar uma
tarte inteira sozinha, creme de banana ou ruibarbo e morango, diante de Bette
e Grace, que trabalhavam ali há trinta anos e conheciam Alice desde que ela
nascera. Alice viu Bette pela janela, o cabelo branco acima daquele avental
rosa idiota, a atender uma mesa cheia. Ela acenou. Alice acenou em resposta.
Não podia fazer aquilo. Seria drama a mais para uma manhã de um dia de
semana no centro de Hood River – exibição pública, pegar na sua dor pela
mão como uma criança pequena e monstruosa e exibi-la para todos verem.
Virou-se em direção ao rio e tentou controlar a ansiedade, com o coração a
bater disparado e a respiração acelerada.
– Onde começou a sensação? – perguntara-lhe a doutora Zimmerman
meses atrás, durante a terceira consulta.
A terapeuta trabalhava numa suíte nas traseiras de uma casa elegante de
dois andares com vista para o rio desde um penhasco alto. Alice sentia-se à
vontade ali. Não parecia uma coisa clínica, como teria parecido o hospital.
Também valorizava a privacidade, o que era difícil de conseguir numa
povoação tão pequena. O facto de a doutora Zimmerman ser nova em Hood
River também ajudava. A doutora Zimmerman não a conhecia desde criança.
Nunca conhecera Al ou Marina. A sua família não tivera um pomar e ela não
entendia a complexa rede de antigas alianças, rancores e mexericos que
formavam cercas invisíveis em torno das pessoas que ali viviam. Também
tornava mais difícil explicar as coisas, porque Alice não podia recorrer à
estenografia habitual de uma pequena povoação.
Uma chuva de outubro açoitava as janelas e as claraboias enquanto Alice se
recostava na poltrona rosa. Sentia-se como se estivesse a faltar às aulas. Saíra
do trabalho para aquela consulta, dizendo apenas a Nancy que tinha uma
consulta médica. Nancy metediça. Mesmo ali, no consultório particular, Alice
sentia que os residentes da pequena povoação estivam todos à escuta para
ouvi-la falar sobre os seus pensamentos mais íntimos.
– Lembra-se como isso começou? No que estava a pensar quando essa
ansiedade foi desencadeada pela primeira vez?
Alice contou que estava no parque de estacionamento do supermercado a
reparar que se encontrava cheio. Era uma manhã de domingo e a missa em
espanhol acabara de terminar na igreja. Pensou em voltar mais tarde, mas
disse a si mesma que estava a ser tola por evitar as pessoas e forçou-se a
passar pela porta.
A doutora Zimmerman assentiu e escreveu qualquer coisa. Alice foi
distraída pela elegância casual da mulher – camisola de cachemira azul-
ardósia e calças de lã escura. Não saberia que as roupas que ela usava numa
terça-feira chuvosa eram mais caras do que as que algumas pessoas usavam
em ocasiões especiais naquela povoação. Não que isso importasse. A doutora
Zimmerman parecia pertencer a qualquer sítio onde escolhesse estar –
confortável na sua própria pele.
Alice cruzou e descruzou as pernas. Enfiou o polegar no cós das calças.
Disse que tinha pegado numa cesta de compras de plástico azul, tencionando
apenas comprar algumas coisas, como leite, cereais e Tylenol. Avançou pela
multidão – principalmente famílias latinas, todas vestidas a rigor para a
missa. Na fila para a caixa viu uma menina com um vestido rosa com folhos,
sapatos de couro envernizados e soquetes brancas. Agarrava a mão da mãe e
olhava para a mulher mais velha, fazendo uma pergunta em espanhol. O olhar
dela pousou em Alice quando passou e Alice recordou Luz Quinto, da Feira
do Município de Hood River quando ela e Buddy saíram no seu primeiro
encontro. Luz e o seu cordeiro. Luz e o seu rostinho luminoso de alegria
quando Buddy lho devolveu.
Alice sentiu falta de ar ao contar a história à doutora Zimmerman. Claro
que não fora Luz Quinto no supermercado. Ela já devia estar no secundário.
Mas o rosto em forma de coração, os olhos castanhos e o sorriso luminoso
trouxeram tudo de volta. Alice deu meia-volta e dirigiu-se aos produtos
frescos para ficar longe da menina e das recordações que inundaram a sua
mente: Buddy na feira. Buddy na cozinha. Buddy a sair para o trabalho pela
última vez.
A doutora Zimmerman assentiu.
– Então foi a menina e a recordação daquele dia?
Alice abanou a cabeça e esfregou o rosto, tentando encontrar as palavras.
Não, não tinham sido apenas as recordações, disse. Foi a constatação de que
o tempo passara. Alice já não era uma jovem com opções. Quando conhecera
Bud, a sua vida abrira-se de formas que ela nunca tinha imaginado. Esperara
passar a vida sozinha e contentara-se com isso. Mas depois tivera aquele
parceiro de vida extraordinário. Até pensou que podiam ter filhos – algo que
ela nunca considerara possível antes. Ela, Alice – mãe de alguém! Al e
Marina podiam ter sido avós. Bud iria ajudá-la a cuidar do pomar dos pais, e
ela poderia deixar o trabalho no município para se dedicar à quinta da
família. Poderia ensinar aos filhos tudo o que Al e Marina lhe tinham
ensinado sobre o negócio da fruta e como se comportar no mundo. Deixaria
um legado. Mas agora não. Todas essas possibilidades tinham desaparecido.
Alice era uma viúva de meia-idade sem filhos e a última da sua família. Os
tesouros que nem sabia que queria antes tinham-se evaporado durante a noite.
Sentia-se – procurou nas orlas da emoção pela palavra certa – roubada. Os
seus sonhos tinham desaparecido assim que ela se dera conta da sua
existência.
Sentia-se segura a falar daquelas coisas com a doutora Zimmerman no seu
consultório aconchegante. E a médica dera-lhe uma estratégia para ajudar
sempre que se sentisse avassalada, quando perdesse o fôlego. Seguir o fio. O
que a fazia sentir-se descontrolada? O que lhe roubava o fôlego?
Alice caminhou em direção ao rio. Pensou no rosto bicudo e no sorriso
maldoso de Rich Carlson. Recordou a festa de Natal, o rosto dele demasiado
perto do dela. Normalmente, essa memória trazia vergonha e desconforto,
mas naquele momento sentiu um lampejo de indignação. Como se atrevera
ele a tocar-lhe. E agora, aquela ameaça de dar cabo da sua pensão, o dinheiro
pelo qual tanto trabalhara. Ela, que nunca ligara a dizer que estava doente.
Ela, que chegava cedo e ficava até tarde. A Leal Alice. Porque faria ele isso?
Mais especificamente, porque é que isso a fazia sentir aquele pânico
crescente? Toda a gente sabia que Alice fazia o trabalho de Bill. Se a
despedissem, nada seria feito. O projeto da orla marítima, o maior
empreendimento do município em anos, ficaria paralisado durante meses
enquanto tentavam convencer o velho a sair do campo de golfe. Mesmo que o
trouxessem de volta ao escritório, descobririam que Alice fizera o trabalho
dele durante tanto tempo que ele realmente já não sabia como as coisas
funcionavam. Ou poderiam contratar alguém novo para substituí-la. De
qualquer forma, não podiam perder tempo.
Então aquilo não se tratava do seu medo de ser despedida. E também não
tinha vergonha de estar ligada a Stan. Como dissera a Nancy, respeitava o que
a organização de Stan fizera pelos agricultores como os seus pais. Era outra
coisa. O quê?
És demasiado boa, Alice.
Do nada, ouviu a voz de Buddy.
Sabes isso, querida.
A compreensão repentina foi como uma cortina puxada para o lado para
revelar uma sala escondida, o funcionamento do coração de Alice, as suas
motivações, equivocadas e escondidas até de si mesma.
Quantas vezes ficava até tarde numa sexta-feira para terminar algo que
Nancy descarregara em cima dela? Não que ela tivesse planos, de qualquer
forma.
– És tão boa para mim, Alice! – exclamava Nancy ao sair. – Obrigada!
Demasiado boa.
Porque fizera ela o trabalho de Bill por ele em vez de exigir uma
promoção? Ficar depois do piquenique do Dia do Trabalhador para as
limpezas. Voluntariar-se para a angariação de fundos para a equipa de futebol
da escola todos os anos, quando era a única funcionária sem filhos. Ficar
sentada na banca o dia todo à chuva, e ela que detestava futebol.
Demasiado boa. Demasiado boa para dizer não.
O seu rosto ficou vermelho de vergonha. Não, com demasiado medo de
dizer não. Com medo de se defender e dizer o que pensava. Com medo de ser
ela mesma.
Nunca compreendera isso de forma tão clara. Mas agora era só o que
conseguia ver. Sentira a forma disso naquela noite em que confrontara Ed
Stevenson. Estava enterrado bem fundo, aquele calor branco, a fúria que
parecia vir de nenhures. Alice sentia-se profundamente irritada por ter fingido
ser alguém que não era durante tanto tempo. Porque o fizera? Só para evitar
incomodar outras pessoas, como Rich Carlson? Viu o seu rosto de furão, o
seu penteado a disfarçar a careca. A fúria cresceu dentro dela como uma
parede de fogo. Como ousava desiludir os pais daquela maneira. Como
ousava falhar a si própria.
Continuou a andar e passou pela praia fluvial. Desceu a margem rochosa e
saiu para o largo banco de areia que se derramava na confluência dos rios
Hood e Columbia. Contornou os grandes troncos e pedras que haviam caído
de Mount Hood degelo após degelo. A água impetuosa empurrara aqueles
obstáculos montanha abaixo um quilómetro de cada vez. O vento feriu-lhe o
rosto ao soprar de oeste trazendo chuva. Quando chegou ao fim do banco de
areia, parou sob a chuva torrencial e deixou tudo transbordar – a sua fúria,
tristeza, perda e desespero. Foi para ali que o fio a levou, doutora
Zimmerman.
Enumerou tudo: Buddy, os pais, o pomar, os filhos que podia ter tido e a
passagem irrevogável do tempo. Deixou tudo correr através dela, tudo o que
tinha perdido e nunca poderia recuperar. O seu corpo latejava com a
compreensão de que estava sozinha no mundo. Estivera sozinha antes de Bud
e estaria agora até morrer. Ilha Alice, ponte levadiça erguida. Alice
Completamente Sozinha.
Mas não se importara antes, pois não? Isso era essencialmente quem ela era
no seu âmago. Apenas Alice. Então estaria tudo bem. Sim, pensou, a sua
respiração a abrandar. Poderia contentar-se com isso, contentar-se exatamente
com quem era. Poderia ser ela própria. Pertenceria inteiramente a si mesma.
E como a água de uma torneira fechada, a ansiedade simplesmente parou.
Sentia as extremidades claras da sua dor, mas era uma coisa contida e
controlável. Ficou parada à beira do rio, sem se importar com a sua aparência
– uma mulher rechonchuda de meia-idade a chorar no meio de uma chuvada
de primavera.
O nó afrouxou no seu peito e atenuou o aperto na sua garganta. Viu-os
todos alinhados na sua mente – Buddy, Marina e Al. Todos a tinham amado.
Isso ainda importava. E esperavam que ela fosse ela própria. A seguir, a
última gota de medo voou como um balão cortado de um cordel. Ela sorriu,
limpou os olhos e riu-se. Sentia-se cem por cento Alice Holtzman – filha de
Al e Marina, mulher de Buddy Ryan e apicultora. Era muito ela própria e
estava profundamente irritada.
Enfiou a mão no bolso, tirou o telemóvel e marcou um número.
– Olá, Stan – disse ela. – É a Alice Holtzman. Tem tempo para um café?
16
COLAPSO DA COLÓNIA
Se o apicultor mantiver o seu enxame forte, ele geralmente será o seu
melhor protetor e, a menos que seja guardado por milhares de abelhas
prontas a morrer em sua defesa, estará sempre sujeito a ser vítima de
alguns dos seus muitos inimigos.
– L. L. LANGSTROTH

O princípio orientador da colmeia era a ordem, percebeu Jake. E o primeiro


elemento era a comida. Uma rainha podia pôr mais de dois mil ovos por dia,
mas se as recoletoras não localizassem néctar e pólen suficientes, esses ovos
simplesmente não sobreviveriam. O segundo elemento da ordem era a
cooperação. As abelhas mais experientes, as recoletoras, visitavam vários
milhares de flores num único dia, durante a recolha de recursos para a
colónia. As obreiras eram responsáveis por entregar esse alimento às abelhas-
amas, que alimentavam os ovos, as larvas e as abelhas jovens. A comitiva da
rainha mantinha-a alimentada e limpa para que ela pudesse continuar a fazer
o trabalho que precisava de fazer. Era um sistema perfeito de
interdependência, uma casa de alto rendimento.
Não muito diferente dos humanos, pensou Jake enquanto migava couve
para fazer chili de frango com feijão branco. Na casa da sua família, não
houvera um sentido de cooperação. Quase parecia que os três viviam juntos
separadamente. Mas na casa de Alice, quando ele começou a cozinhar, sentiu
que estava a contribuir. Tinham comido juntos todas as noites na mesa da sala
de jantar desde que Jake se mudara. Ele gostava de se sentar com ela ao final
do dia e de conversar sobre as abelhas. Também ficou admirado ao descobrir
que tinha um talento especial para cozinhar. Não importava que Noah agora
lhe chamasse la dueña de la casa.
– Só te falta um avental florido, meu! – brincou Noah quando lhe Jake
ofereceu um prato de pudim flã, uma das receitas da família de Celia.
Esta deu uma cotovelada a Noah, aceitou o seu prato e entregou a Jake um
pequeno pacote embrulhado em papel de seda. Ele abriu-o e encontrou um
retábulo de São Pasqual pintado em chapa martelada – o santo padroeiro das
cozinhas, explicou Celia.
– Da minha mãe – disse ela, revirando os olhos. – «Cada cocina lo
necesita, mi’ja» – disse ela, elevando a voz para imitar a sua mãe mandona. –
Deves pendurá-lo perto do fogão.
Debaixo havia um segundo retábulo, este de Celia – Santa Deborah.
– A padroeira das abelhas – explicou ela, sorrindo timidamente.
Noah, entretanto, devorava o pudim.
– Meu, isto está mesmo bom. Não, a sério! – exclamou quando Jake
zombou.
Celia e Jake debruçaram-se sobre a nova aplicação de culinária que ele
estava a usar. Tinha um link para uma lista de compras que ele mandava por
SMS a Noah e Celia para que eles pudessem trazer-lhe os alimentos.
Custava-lhe pedir ajuda, mas sabia que não conseguiria ocupar-se disso
agora. A ideia de rolar pela Little Bit Grocery and Ranch Supply pela
primeira vez em mais de um ano – bem, seria quase o mesmo que fazer isso
nu, pensou. Todas aquelas pessoas a olhar para ele e a querer parar e
conversar. Nem pensar. Ainda não. Consolava-o o facto de que, com a ajuda
dos amigos, contribuía para a casa de Alice e lhe dava algum valor como
hóspede.
Depois de guardarem os mantimentos, Celia quis ver novamente as
abelhas. Daquela vez, vestiu o traje completo de apicultor de Alice e
aproximou-se da colmeia com Jake que, como sempre, ia de cabeça
descoberta.
Noah ficou junto ao portão.
– Vais ficar cheia de picadas, Cece! Depois não venhas chorar para o pé de
mim, mariquinhas.
– No soy nena! – gritou-lhe Celia. – Tu é que és o mariquinhas!
– Estou a ver uma no teu ombro agora. Vai perfurar-te o ouvido e comer-te
o cérebro!
Em breve Noah cansou-se de reclamar e começou a lançar uma bola de
ténis à parede do celeiro.
Pararam ao lado de uma das colmeias mais antigas e Jake disse a Celia para
se agachar perto da entrada para poder observar as abelhas a entrar e a sair.
Ela moveu-se lentamente, como ele dissera, e as abelhas continuaram
imperturbáveis. Uma abelha-guarda zumbiu em redor do rosto nu de Jake.
Ele fechou os olhos e respirou, mantendo-se imóvel até que ela decidisse que
ele não era uma ameaça e continuasse com o seu trabalho. Ele ouviu Celia
arquejar.
– Oh, meu Deus! Olha para as pernas delas! Tão laranja! E amarelas!
Jake sorriu. As abelhas pousavam na entrada da colmeia como pequenos
aviões, uma após a outra. As suas vesículas melíferas estavam carregadas
com tons exagerados de laranja, amarelo e vermelho. Algumas estavam
cobertas de pólen da cabeça às patas e paradas na tábua da colmeia, a pentear
o pólen sobre a cabeça e para baixo nas patas. Jake apontou para uma com
um par de patas traseiras amarelo vivo.
– Aquilo chama-se corbícula. É um pequeno compartimento onde ela pode
guardar o pólen. Vai entrar e entregá-lo a outra abelha, que o embalará para
alimentar os bebés mais tarde. Enchem os lados inteiros do quadro. Quase
parece uma pintura.
– Quero ver! – exclamou Celia.
Jake hesitou antes de conduzir Celia para uma das novas colmeias. Sentiu
um certo arrependimento por não ter contado a Alice que as abrira enquanto
ela estava no trabalho na véspera. Também não conseguira ficar longe delas
naquela manhã. Completara as inspeções da outra metade das novas colmeias
que Alice trouxera para casa da Sunnyvale Bee Company – números 19 a 24,
que ainda tinham apenas uma alça e estavam posicionadas na orla leste do
apiário. Estava fascinado pela sua indústria, a sua beleza e o mistério da
música da rainha. Jake colocou a mão no cimo da n.º 17 e fechou os olhos. A
caixa zumbia, calma e uniforme. Ouviu durante mais um pouco, visualizando
o centro dos quadros, a sua respiração a abrandar até ser capaz de ouvi-lo, o
som fraco daquele sol sustenido – a nota que lhe dizia que a rainha estava lá.
Jake enfiou a ferramenta sob a tampa. Pousou a tampa de lado com a tampa
interna e puxou um quadro, que ainda estava vazio de cera e abelhas. Fez
deslizar os outros quadros, retirou o central e ergueu-o para que Celia
pudesse ver.
Jake ouviu-a inspirar rapidamente.
– Incrível! – sussurrou ela e uniu as mãos.
Jake apoiou o quadro no braço da cadeira. As abelhas cuidavam dos seus
assuntos, sem pressa e com firmeza. Ele apontou para a faixa de pólen
brilhante acumulado nos favos. Mostrou-lhe onde o mel era armazenado,
onde as larvas eram operculadas e quais eram os ovos não operculados. No
meio da massa de corpos em movimento, viu o corpo elegante da rainha,
ainda marcado com o ponto verde brilhante.
– Aí está ela, Cece – disse. – A senhora que faz tudo acontecer.
Jake tinha lido que os primeiros apicultores e cientistas partiram do
princípio de que aquela abelha maior era um macho e chamaram-lhe rei. Só
em meados do século XVII é que um naturalista holandês dissecou os ovários
e descobriu esse erro. Celia também achou isso engraçado.
– Típico pensamento masculino. Mas isto faz todo o sentido, no entanto –
comentou ela, gesticulando para a massa de corpos trémulos que cercavam a
rainha. – É como o Natal na minha casa. É a abuelita no meio e as minhas
tias e a minha mãe muito atarefadas a fazer tudo o que ela manda. Ela ia
adorar isto! E a parte sobre os zângãos a rondar sem fazer nada… órale! –
Estalou os dedos.
Pessoalmente, Jake achava o destino dos zângãos um pouco angustiante.
Viviam apenas para acasalar uma vez e morriam após o ato. Aqueles que
nunca acasalavam eram expulsos da colmeia no outono porque, uma vez que
não estavam programados para criar ninhadas ou buscar alimento, eram
excesso de bagagem.
O som da bola de ténis cessou.
– Desculpa estragar-te a festa, Neil Armstrong – gritou Noah –, mas tenho
de ir trabalhar!
Celia caminhou em direção a ele em câmara lenta, respirando através do
protetor facial.
– Luke. Sou o teu pai – disse com voz rouca.
– Cor errada, Cece! O Vader veste preto, não branco – disse Noah.
Jake ajudou Celia a tirar o fato e seguiu os amigos até à pickup, não
querendo que eles se fossem embora. Receava a chegada do novo empregado
de Alice, Harry, naquela tarde.
Noah encostou-se à porta e olhou para o telemóvel.
– Vamos tocar no Pomeroy’s este fim de semana. Devias ir lá, meu. Todos
te querem ver.
A garagem de Pomeroy era uma caverna perfeita para gajos, com dois sofás
velhos, uma mesa de pingue-pongue, um frigorífico com cerveja e um bom
sistema de som. A mãe deixara-o ficar com ela depois de se divorciar do
marido. Jake recordou com gosto estar ali. Sem fazer nada, a beber cerveja e
a tocar uns acordes no seu trompete.
– Tenho certeza de que ainda te podia dar uma tareia no pingue-pongue,
Stevenson.
Jake encolheu os ombros.
– Dou-te um handicap – brincou Noah, batendo na cadeira de Jake com o
joelho. – Só para ser justo.
Jake tentou sorrir, sabendo que o amigo não queria ser indelicado. Mas a
seguir disse:
– Meu, sabes que isso não é muito engraçado, certo?
Noah corou até à ponta das orelhas e pareceu arrependido.
– Porra, Stevenson. Desculpa. Eu só…
Jake deu-lhe um soco no flanco para o interromper.
– Eu sei – disse ele. – Só não quero ter de te dar uma tareia.
O alívio inundou o rosto do amigo.
– Vou pensar no Pomeroy’s – disse Jake.
Celia inclinou-se sobre o banco e sacudiu Noah.
– Pensei que estavas cheio de pressa, wey! – exclamou.
– Manda-me uma mensagem se quiseres boleia, mano – disse Noah. Bateu
no punho de Jake, enfiou o seu grande corpo atrás do volante e arrancou.
Jake ficou sentado à janela da cozinha a ver os corpos dourados voarem em
direção ao pomar do vizinho. Recordou-se de parar na garagem de Pomeroy.
Todos os tipos a olhar e a fingir não o fazer. Foi demasiado. Não importava
que não pegasse no trompete há muito tempo.
Colocou os auriculares e percorreu a música no seu telemóvel. Não havia
nada que quisesse ouvir, então tirou-os novamente. Percebeu que muitas
vezes estivera a bloquear o som dos pais a moverem-se pela casa. A casa de
Alice era tão silenciosa, e havia muito mais para ouvir. Ali sentado, ouvia o
vento nas árvores, o cacarejar das galinhas. Uma abelha zumbiu junto à porta
de rede e voou para longe.
Abriu a aplicação de receitas no telemóvel, tirou a couve do frigorífico e
colocou-a na tábua de cortar.
«Mariquinhas», chamara Celia a Noah.
«Mariquinhas», murmurou Ed na sua mente.
O pai não ficaria impressionado por Jake estar a aprender a cozinhar. Ed
detestava tudo o que não parecesse exteriormente masculino no sentido mais
chungoso do termo. Os homens conduziam camiões, bebiam cerveja,
governavam o poleiro e caçavam no outono. O trabalho manual era algo a ser
admirado, mas apenas se ocorresse fora das paredes da casa. Quanto aos
cozinhados da mulher, limpeza e administração da casa, isso era
simplesmente esperado, embora ela também trabalhasse a tempo inteiro. Jake
nunca tinha ouvido o pai agradecer-lhe por fazer o jantar ou oferecer-se para
limpar.
– Mariquinhas – dissera o pai quando voltara para casa e encontrara Jake,
de doze anos, a praticar no caminho de acesso com o seu novo skate.
Acendera um cigarro.
– Devias estar a jogar futebol, não a brincar com essa coisa estúpida.
Jake não disse ao pai que não havia equipa de futebol no sétimo ano.
Também não mencionou que alguns dos melhores snowboarders olímpicos,
como Shaun White, tinham começado nos skates. O pai provavelmente
também pensava que o snowboard era estúpido.
Quando chegou ao secundário, andava no longboard que a mãe trouxera, e
foi a sua liberdade. Levava-o à escola, ao parque de skate e a casa de Katz.
Aquela tábua ainda era preciosa para ele, embora já não pudesse andar nela.
Estava no canto do seu quarto na casa de Alice. Isso deixaria Ed feliz?
Pôs o chili em lume brando. Com a tarde pela frente, decidiu visitar outra
vez as novas colmeias. E, quando Alice chegasse a casa naquela noite, ele iria
confessar.
A inspeção levou-lhe a maior parte da tarde. Enquanto trabalhava, refletiu
que o seu tempo com elas estava a diminuir. As abelhas já tinham enchido
aqueles primeiros quadros de criação quase até à capacidade máxima. Em
breve Alice adicionaria outra alça a cada uma, para que as abelhas pudessem
fazer mais favos de cera para as crias. Depois as colmeias ficariam demasiado
altas para ele abrir sentado na sua cadeira. Estava a tornar-se bom a detetar
ovos, larvas não operculadas, larvas operculadas e ninhadas de zângãos e de
obreiras. A arte de localizar a rainha era como um jogo. Ouvir, encontrar o
som sol sustenido, abrir a colmeia e encontrar a rainha. O seu peito inchava
de orgulho de cada vez que ele conseguia localizá-la.
O som era o mesmo em todas as colmeias. Na noite anterior, ele encontrara
uma referência na Internet a explicar isso. Um investigador da Washington
State University verificara que as rainhas tinham um tom próprio – sol
sustenido/ /lá bemol. Porquê esse mesmo tom?, perguntou-se. Estaria a cantar
para os filhos ou para si mesma, e o que dizia?
Verificou as colmeias sem problemas e então algo estranho aconteceu
quando chegou à colmeia n.º 23. Teve de se esforçar para encontrar o som. E
quando abriu a colmeia e olhou lá para dentro, o seu estômago embrulhou-se.
A rainha estava no quinto quadro, mas parecia letárgica. As assistentes
rodeavam-na, limpando o seu corpo e as suas asas. O seu zumbido era
intermitente e fraco. Jake fechou a colmeia com uma sensação de frio nas
entranhas. A n.º 24 era pior. Não havia som de rainha, e ele não conseguiu
encontrar a sua figura longa e estreita entre a massa vibrante de obreiras.
Uma camada de suor brotou no seu couro cabeludo e lábio superior. O que
fizera ele? Devia apenas tê-las deixado em paz. Porra. Alice ficaria tão
chateada. Sem as rainhas, aquelas duas novas colmeias estavam condenadas.
Ela dera uma palmadinha na n.º 23 no primeiro dia em que lhe mostrara as
colmeias.
– Vocês, meninas, são o futuro – ouvira-a Jake dizer. – Façam a vossa cena
e eu mantenho-vos seguras.
Jake passou as horas seguintes online em fóruns de abelhas, mas tudo o que
leu o fez sentir-se pior. Quando ouviu a pickup de Alice, sentiu um nó no
estômago. Ainda considerou não lhe dizer nada sobre as rainhas feridas. Não
sabia quanto tempo ela levaria a reparar – provavelmente alguns dias. Mas
depressa descartou esse pensamento. Quanto mais ele esperasse, maior a
probabilidade de as colmeias não sobreviverem.
Alice entrou e atirou a mala para o sofá.
– Olá, rapaz – disse ela. – Cheira bem. Acho que me livrei outra vez de
fazer o jantar, hem?
Ela sorriu e Jake detestou-se pelo que estava prestes a dizer-lhe.
– Olá, Alice. Um dia bom?
Ela dirigiu-lhe um sorriso de esguelha.
– Sim, pode-se dizer que sim. De uma forma estranha – respondeu ela.
Quando regressou à sala de jardineiras, Jake pegou no seu diário de
apicultura e colocou-o sobre a mesa.
– Alice, preciso de lhe contar uma coisa. É melhor sentar-se.
De forma rápida e sucinta, contou-lhe que abrira as novas colmeias.
– Credo! Tu o quê? Como é que... – Elevou a voz e gesticulou para a
cadeira dele.
– Estar numa cadeira de rodas não faz de mim um incapaz, Alice – disse
ele calmamente. – Agora, se não se importa de me ouvir.
Ela corou, pediu desculpa e acenou com a cabeça. Jake contou-lhe que
tinha ouvido as rainhas nas suas novas colmeias. Entregou-lhe o diário com
as suas anotações. Fora o mais detalhado possível, usando as entradas dela
como modelo: data, temperatura, hora do dia, avistamentos de rainhas,
avistamentos de ovos. Também fez desenhos para documentar o que viu –
alvéolos de zângãos, padrões de pólen, larvas emergentes.
Ela assentiu enquanto olhava para as páginas e as virava lentamente.
Pousou o caderno.
– Fizeste um bom trabalho, Jake. Os desenhos também são impressionantes
– disse ela e sorriu pesarosa. – Desculpa ter explodido. Não queria insultar-te.
Apenas não esperava isto. É muito útil, na verdade. Os teus registos são
incríveis.
Jake sentiu os seus ombros descontraírem.
– Não está zangada?
Ela abanou a cabeça.
– Não, não estou zangada– disse ela. – Acho que fui substituída. –
Empurrou o bloco de notas sobre a mesa para ele. – De agora em diante, estás
encarregado dos diários da colmeia.
Jake ficou radiante e por momentos não conseguiu falar. Não sabia explicar
o que sentia – que as abelhas estavam a atraí-lo para algo novo e
maravilhoso. Aquela sensação, aquela vibração dourada no seu núcleo
quando as observava, era algo que nunca esperara.
– Há outra coisa – disse ele.
Falou-lhe do som de Sol agudo que distinguira sobre o tom do resto da
colmeia. Alice pareceu confusa e depois surpreendida. Jake mencionou o
investigador da WSU e mostrou-lhe as suas anotações sobre o assunto no
diário. Sentia que estava a partilhar o seu segredo mais precioso com a única
pessoa que poderia entender.
– Isso é espantoso – murmurou ela, olhando para as páginas e erguendo os
olhos para ele. – Porque fazem elas isso? Ouviste-o de todas as vezes, hem?
O sorriso de Jake esmoreceu. Olhou pela janela, depois para Alice, e falou-
lhe das rainhas doentes.
A expressão de Alice ficou abatida. Ela suspirou e levantou-se da cadeira.
– Vamos dar uma olhadela.
No apiário, Alice colocou o seu chapéu, véu e luvas. Ficou admirada
quando Jake disse que não os usava nem ao fumigador.
– Okay. Tu mandas, rapaz.
Ela indicou-lhe que abrisse a n.º 23. As mãos de Jake tremeram a princípio,
mas ele fechou os olhos, respirou fundo algumas vezes e entrou com o
cuidado de sempre. Não demorou muito a confirmar o que havia dito. A
rainha na n.º 23 já nem se mexia e não conseguiram encontrar a rainha na n.º
24.
– Raios! – praguejou Alice.
Ela empurrou o caderno para ele.
– Morte da rainha. Escreve isso, assim – ordenou ela. – Nas colmeias vinte
e três e vinte e quatro e a data.
Jake sentiu-se indisposto enquanto escrevia.
– Aquelas duas terão de ter novas rainhas imediatamente e as colmeias
podem falhar de qualquer maneira. São demasiado jovens para fazer a sua
própria rainha, portanto, vou ter de mandar vir umas quantas – disse Alice.
Descalçou as luvas, sentou-se nos fardos de feno e observou Jake.
– Ei, rapaz, não fiques tão abatido. Às vezes isso acontece. O meu despiste
com a pickup não deve ter ajudado. Estas duas colmeias são jovens e
provavelmente ficarão bem com novas rainhas.
Jake olhou para ela, o seu estômago num nó.
– Então, eu não… não acha que provoquei isso? Que as magoei, quero
dizer.
– Ah, não. Uh, uh – respondeu ela, abanando a cabeça. – Não… não
magoaste nada. Já vi que és muito cuidadoso. Tens um verdadeiro talento
com a apicultura. Ir assim com a cabeça descoberta? E essa coisa do som?
Caramba, Eu faço isto há anos. Estou com ciúmes, para ser sincera.
Jake foi-se descontraindo à medida que a preocupação o abandonava.
Sentiu aquele zumbido dourado na cavidade torácica, como se fosse uma
árvore oca preenchida com uma colónia de abelhas. O sentimento viera a
crescer e ele finalmente lembrou-se do que era. Sentira o mesmo no primeiro
dia em que acordara com Cheney no seu quarto. Sentira o mesmo quando a
mãe lhe comprou o primeiro skate e quando Noah aparecera para ajudá-lo em
casa de Alice sem fazer perguntas. E agora com as abelhas. Esse sentimento
era apenas amor. Mais nada. Acarinhou o conhecimento no coração e não
falou.
Alice olhou para o relógio.
– O Harry deve estar a chegar – disse ela.
Avançaram ao longo do lado oeste do apiário, passando pelas colmeias
mais antigas e bem estabelecidas que tinham duas ou três alças. Embora Jake
não tivesse conseguido abrir essas colmeias, monitorizara os sons das
rainhas. E ficou perturbado com o que não ouviu. Parou e encostou a mão à
colmeia mais próxima.
– Alice, acho melhor verificarmos estas.
O que encontraram dentro dessas colmeias foi uma devastação chocante e
completa. Em cinco das colmeias mais antigas de Alice, todas as abelhas
estavam mortas ou a morrer. Os corpos das obreiras encontravam-se
amontoados, uma massa imóvel de criaturas outrora douradas ressequidas e a
ficar castanhas. Numa colmeia, as abelhas estavam na fase final da vida.
Giravam em círculos e zumbiam intermitentemente como se estivessem em
curto-circuito enquanto rastejavam sobre os corpos das suas irmãs mortas.
– Não! – exclamou Alice. – Não, não, não, não!
Ficou mais agitada à medida que analisava mais colmeias, praguejando
baixinho. A n.º 6 ainda estava saudável, ainda tinha a rainha. Colocou a
tampa no lugar e sentou-se, a olhar para as colmeias mortas. Jake não disse
nada. Agarrava o caderno e esperou que ela explicasse como é que uma
colmeia inteira podia morrer de uma vez – ou cinco, para ser mais preciso.
– ... Não faz sentido... nunca li sobre isto no ciclo normal da primavera... –
dizia para si mesma. Os seus olhos percorreram a fronteira oeste do apiário, o
seu terreno e o pomar do vizinho. O vento oeste aumentara como era costume
naqueles dias quentes de primavera e as macieiras do pomar balançavam os
seus ramos floridos. Alice respirou fundo, sentindo o cheiro do ar.
– Pesticida – disse ela. – Merda.
Atravessou o campo até à extremidade oeste e Jake seguiu-a. Ela inalou, e
Jake imitou-a, reconhecendo o cheiro acre do pesticida. Lembrava-se de ter
visto ali trabalhadores poucos dias antes, mas calculou que estivessem a
podar as árvores.
Alice pegou no telemóvel e ligou para o vizinho, Doug Ransom. Colocou a
chamada em alta-voz. Jake ouviu-a fazer conversa de circunstância até poder
fazer a sua pergunta. Ora, sim, Doug acabara de pulverizar e esperava que o
cheiro não a incomodasse. Mudara de produto naquele ano. Conseguira uma
amostra grátis do vendedor, e todos pareciam pensar que era um produto
superior. Alice deveria ir lá visitá-lo. Ele tinha saudades de a ver e a Buddy.
Vem a qualquer hora, disse Doug.
Alice desligou, enfiou o telemóvel no bolso e colocou as mãos no rosto.
Afastou-se de Jake e foi em direção à fila de colmeias devastadas, que
ficavam mais próximas do pomar de Doug. Virou-se para ele, e ele viu a
tristeza nua no seu rosto. Um nó de empatia subiu pela sua garganta. Ouviu
um motor e os dois ergueram os olhos para se depararem com um jipe do
departamento do xerife a descer o caminho de acesso.
– Santo Deus. O que foi agora? – murmurou Alice e foram juntos ao seu
encontro.
17
ABELHA GLÓRIA
Embora as abelhas voem em busca de alimento por mais de cinco
quilómetros, ainda assim, se não estiverem dentro de um círculo de
cerca de três quilómetros em todas as direções do apiário, serão
capazes de apenas armazenar um pouco de mel excedente.
– L. L. LANGSTROTH

Apesar de todo o consolo fornecido pelo seu caderno – listas de prós e


contras, objetivos e aspirações, listas de afazeres e checklists e escolhas
pensadas de palavras – Harry sabia que o caderno não tinha nenhuma
utilidade real para si em momentos como aquele, momentos que realmente
contavam. A vida decorria, e um diário cuidadoso nunca poderia ajudá-lo a
descobrir o que fazer. As únicas palavras que poderia conjurar para descrever
aquele momento presente eram «desconfortável», «incontornável» e
«inevitável». Só naquele momento reconheceu a principal desvantagem de
pedir boleia a Ronnie. Ou seja, que tinha de explicar à sua nova chefe por que
motivo um assistente do xerife o deixava ali no seu primeiro dia de trabalho.
«Diz a verdade, rapaz! É mais fácil de lembrar», ecoou a voz de Sal na sua
cabeça.
Não parecia valer a pena partilhar nada dessa verdade com Alice Holtzman.
A verdade é que ele era um criminoso condenado sem abrigo. Mesmo assim,
ao descer do jipe, Harry preparou-se para dar o melhor de si. Afinal, aquele
era um novo começo.
Enquanto Alice atravessava o quintal para ir ao seu encontro, Harry notou
que o rapaz vinha com ela. A visão da cadeira e do cabelo, ainda
surpreendente, distraiu-o. Largou a mochila volumosa aos seus pés, limpou as
palmas das mãos suadas nas calças e tentou recompor-se. Havia com certeza
um fiapo de confiança nele algures. Ergueu o queixo e tentou sentir-se
corajoso.
– Olá, senhora Holtzman – disse ele. – Desculpe vir atrasado.
Alice anuiu, franzindo a testa.
– Então, aconteceu uma coisa engraçada – começou Harry. – É uma longa
história. Eu estava em Seattle em fevereiro e começou a chover e fui ao Pike
Place Market...
Parou, repreendendo-se. Vai direito ao assunto, Harry, pensou. Não lhe
contes a história da tua vida. Recomeçou.
– E, então, o meu tio mora em BZ Corner. Sabe, a norte na cento e quarenta
e um?
Não, não podia começar por ali, com a caravana e a morte do tio H.
Desconcertado, perdeu o ímpeto e não soube o que dizer. Alice Holtzman
transferiu o seu olhar fulminante para o polícia.
– Olá, Ronnie. Ouvi dizer que entraste para a equipa – disse ela.
O polícia tirou o chapéu, baixou a cabeça como se estivesse em apuros e
disse:
– Olá, tia Alice.
Alice franziu a testa para ele e olhou para Harry, que queria voltar para o
jipe e ir para muito, muito longe. Qualquer fragmento de coragem
abandonou-o sob o olhar de Alice. Ele era uma deceção, pura e
simplesmente. Não havia nada que pudesse dizer para se explicar. Quis pegar
na mochila e desaparecer na estrada.
Alice olhou para a mochila em questão como se lhe tivesse lido o
pensamento.
– Vai a algum lado, senhor Stokes? – perguntou.
Ele ouviu a voz da mãe na sua cabeça.
«Para onde vais, Harry Stokes?»
Sacudiu a cabeça e olhou para a gravilha no chão, sentindo vertigens. O
chão inclinou-se e cada pedra cinzento-azulada pareceu aumentar e encolher
novamente. Ele arrastou os olhos de volta para o rosto carrancudo de Alice e
abriu a boca.
– É que... o sítio onde eu estava hospedado… o município decidiu demoli-
lo. E então o Ronnie apareceu... e vão deitá-lo abaixo, portanto preciso...
Harry ficou sem palavras e sem fôlego ao mesmo tempo. Não sabia mais o
que dizer. O rosto de Alice parecia dizer o mesmo que os rostos de outras
pessoas durante toda a sua vida: «Idiota.» Já conseguia imaginar a conversa
com a sua mãe, que terminaria com ela a pagar-lhe uma viagem de autocarro
para a Florida. Ele atravessaria o país num Greyhound fedorento como o que
apanhara para oeste em fevereiro. Sal ficaria chateado, mas deixá-lo-ia
mudar-se para lá. Depois o que faria ele?
Mas Ronnie começara a falar.
– Tivemos uma grande festa para as bodas de ouro da abuela e do abuelo
no mês passado em casa da tia Connie – dizia ele. – Sentimos a tua falta.
Caramba, foi espetacular! Assámos uma cabra, sabes. Fizemos birria e tudo.
Toda a gente estava lá, menos tu e...
Ele hesitou e então concluiu:
– Todos, menos tu.
Alice limitou-se a olhar para ele, mas não disse nada. Ronnie, que mal
parecia ter idade para fazer a barba, acabara de fazer vinte e um anos quando
o tio morrera e Alice só o vira uma ou duas vezes desde então – no funeral,
claro, e uma vez perto dos correios no inverno anterior, quando ela
atravessara a rua para evitar ser vista pela família do falecido marido. Não
devolvera os seus telefonemas e fechara as cortinas quando tinham ido lá a
casa, o que haviam deixado de fazer meses atrás. Observou Ronnie, com o
rosto inexpressivo, enquanto ele mudava o peso de um pé para o outro. Virou
o chapéu várias vezes nas mãos.
Ela ouviu o barulho da cadeira de rodas de Jake na gravilha atrás de si.
Ronnie olhou por cima do ombro de Alice para o jovem com o moicano na
cadeira de rodas. O seu rosto revelou confusão e depois constrangimento
quando o silêncio se abateu sobre todos eles. O seu olhar pousou nas
colmeias e ele sorriu, como se estivesse grato por ter algo sobre que falar.
– Oh! As abelhas! Como estão as tuas abelhas, tia?
A mãe de Ronnie, Evangelina, era de Michoacán, como tantos imigrantes
mexicanos no vale. Consequentemente, Ronnie era baixo e moreno, mas o
seu pai era o irmão mais velho de Buddy, Ron. E, quando sorria, o seu
sobrinho parecia-se tanto com o falecido marido que ela mal conseguia olhar
para ele. Ele sorriu-lhe naquele momento e apontou para as colmeias. Ela
pensou na sua primeira colmeia, agora morta junto à cerca oeste, e como
Buddy a trouxera para casa dos seus pais naquele sábado depois da feira.
Buddy a rir de si mesmo no seu volumoso traje de apicultor. A fazer
sapateado no quintal para que ela se risse. O coração de Alice, que se dobrara
ao meio ao ver o sobrinho, abriu-se naquele momento.
Pousou as mãos nos joelhos e lutou para respirar. O sentimento abateu-se
sobre ela e não conseguiu fugir. Sentiu o buraco dentro dela abrir-se ali na
entrada. O seu querido Buddy. As circunstâncias estúpidas e inúteis da sua
morte. Alice sentiu-se dividida em duas e a sua angústia escapou. Era uma
dor primitiva e animal.
Ronnie ficou imóvel e Harry parecia pronto a fugir. Os sons que saíram da
boca de Alice não pareciam ingleses ou sequer bastante humanos. Os dois
jovens estavam completamente perdidos – ambos em silêncio e apavorados.
Mas Jake não tinha medo. Sentado atrás dela na garagem, ouviu apenas a
sua terrível tristeza. Percebeu claramente que Alice estava em sofrimento,
algo que os outros provavelmente não eram capazes. Empurrou a cadeira para
a frente até ficar ao lado dela. Então estendeu o braço e agarrou no pulso dela
com a sua mão esguia.
– Oh, Alice. Respire.
Não levantou a voz, nem precisou.
Ela ficou em silêncio. Olhou para Jake e depois para o sobrinho.
– Buddy – disse ela.
As suas pernas cederam e o chão apanhou-a. Cobriu o rosto com as mãos e
chorou como uma criança, como não fazia desde aquele dia em que a polícia
estadual lhe batera à porta e dissera que o seu marido divertido e meigo tivera
um acidente e fora declarado morto no local. Aquilo tomou conta dela
novamente, a perda terrível que se abria e abria até que era impossível de
conter. Finalmente inundara a sua vida.
Jake pousou a mão no seu ombro e deu-lhe umas palmadinhas. Alice
continuou sentada no chão e chorou com o sol a brilhar e a beleza irrefletida
da primavera em volta deles.
– Está tudo bem, Alice – murmurou ele. – Vai ficar tudo bem.
Foi tudo o que conseguiu pensar em dizer, mas, naquele momento, foi o
suficiente. A mãe dissera-lhe a mesma coisa, uma e outra vez no ano anterior,
sentada ao lado da sua cama de hospital. Ele não acreditara nela então, mas
ouvir aquilo ajudara de alguma forma.
Jake sabia qual era a sensação quando finalmente entendíamos que a vida
que tínhamos desaparecera e que nunca, jamais a recuperaríamos. Isso
acontecera-lhe num momento brutal, no início da fisioterapia, deitado num
tapete, encharcado em suor e a tentar reaprender a sentar-se sozinho. Naquele
dia, sentira-se uma versão quebrada de si mesmo.
Tinha vivido com essa perda durante mais de um ano. Todas as manhãs, a
visão da cadeira trazia tudo de volta. A sua antiga vida desaparecera e ele
nunca ficaria bem de novo. Mas isso não era verdade. Agora Jake entendia
que a sua vida andava a mudar impercetivelmente há meses. Não se sentia
quebrado há já algum tempo. Estava a tornar-se outra coisa. Ali sentado com
Alice, percebeu que tinha saído do outro lado. O seu ponto de referência para
o acidente fora «antes». Agora havia um «depois». O seu depois era a quinta.
O seu depois eram as abelhas. O seu depois era ajudar a sua nova amiga
Alice a suportar a sua terrível tristeza simplesmente porque podia.
Alice continuou sentada com o rosto nas mãos, os ombros a subir e a
descer. Os três jovens entreolharam-se e não falaram. Limitaram-se a esperar,
sem saber mais o que fazer.
Então todos ouviram – um latido terrível e soluçante, um grito canino
angustiado do banco de trás do jipe e um arranhar de unhas na janela
enquanto o cão tentava como um louco chegar até ao rapaz que não tinha
visto durante um ano.
Anos depois, Jake tinha a certeza de que nunca esqueceria os pormenores
do dia em que Cheney voltou. O cheiro doce a lilases era intenso no quintal
de Alice. Um tordo piou na floresta logo depois do prado. Ele vestia a sua T-
shirt preferida dos Ramones. E sentiu uma explosão impossível de alegria
quando ouviu o latido adorado e familiar que pensara estar perdido para
sempre.
Harry debateu-se com a porta do jipe. Já era suficientemente mau Alice
Holtzman parecer pronta a castrá-los a todos. Agora, aquele rafeiro que
encontrara não se calava.
Cheney saltou do jipe e lançou o seu corpo magro a Jake, ameaçando
tombar a cadeira de rodas. Lambeu furiosamente o rosto do rapaz. Então
correu para Alice e enfiou o focinho no seu cabelo, antes de voltar para Jake.
Depois saltou pelo campo como um coelho gigante, a emitir um latido feliz
como se a sua alegria fosse demasiado grande para ser contida no seu corpo e
devesse ser partilhada com o grande mundo.
Alice voltou a si naquele momento. Pegou na bandana, limpou o rosto e
assoou-se. Levantou-se com um pequeno grunhido e olhou para Jake. O rapaz
observava o cão a correr com lágrimas a escorrer pelo rosto. Ria e ria e não
conseguia falar.
Harry tinha agora a certeza de que perdera o emprego antes mesmo de ter
começado.
– Sinto muito. Eu apenas... encontrei-o na floresta, e não pude deixá-lo lá.
O Ronnie disse que o levava para o canil – explicou.
Alice viu o cão voltar para o rapaz e cair no seu colo. Jake colocou os
braços em volta do pescoço de Cheney e enterrou o rosto nas grandes orelhas
malucas do animal.
Alice pigarreou.
– Tudo bem, Harry. Acho que este cão é do Jake. Certo. – Respirou fundo.
– Porque não vamos sentar-nos um minuto para nos organizarmos? Anda,
Ronnie. Podes ajudar-me a tratar das bebidas.
E foi assim que Alice Holtzman, de quarenta e quatro anos, assistente do
diretor de planeamento do condado, apicultora, órfã, viúva e mãe de ninguém
se viu sentada sob o choupo com três rapazes, a beber limonada e a ouvir as
suas histórias. Era um pequeno grupo estranho ali reunido, chorando e rindo
alternadamente. Mas às vezes acontecia assim. A tristeza libertava a pessoa
das restrições comuns e, na sua tristeza, elas podiam ser verdadeiras. Se os
outros escolhiam testemunhar tal coisa, ver realmente os outros, bem, isso
mudava tudo.
Jake tinha uma das mãos no pescoço de Cheney como se não suportasse
parar de lhe tocar. Contou-lhes que Cheney tinha desaparecido enquanto ele
estava no hospital. Harry explicou que confundira Cheney com um animal
selvagem. Ronnie surpreendeu todos ao desatar a chorar enquanto dizia a
Alice o quanto sentia a falta do tio. Claro que sim, pensou Alice. Ronnie
crescera com Buddy. Ele fora um segundo pai para o rapaz. Claro que
sentiam a falta dele, todos os Ryan, tanto ou talvez até mais do que ela.
Buddy pertencera a todos eles.
Ronnie enxugou os olhos com a manga e fungou.
– Também sinto a tua falta, tia. Todos sentimos.
Alice debruçou-se sobre a mesa e apertou-lhe a mão.
– Eu também senti a vossa falta, Ronnie. Lamento não ter ido visitar-vos.
Lamento imenso.
Ronnie sorriu e abanou a cabeça.
– Está tudo bem, tia. Nós entendemos. A mãe disse que só precisavas de
tempo.
Ela sorriu.
– Acho que sim.
– Mas agora, cuidado. Assim que eles souberem, não vais conseguir correr
com eles. Os Ryan vão invadir este lugar. Os Salazar também. Sabes como
somos! Há sempre os anos ou um aniversário de casamento ou uma
quinceañera. Oh, certo. O da Angie é no próximo fim de semana. A mais
nova da Connie. Viste, eu disse-te! Agora estás oficialmente convidada.
Todos vocês estão! – gesticulou para incluir Harry e Jake.
Alice riu-se e disse que parecia ótimo. Sabia que o pai de Ronnie pensaria
de outra forma, mas ela não queria ferir os sentimentos do sobrinho, portanto
não disse nada. Ronnie provavelmente não sabia o que se passara entre ela e
Ron Sénior no dia em que Buddy morrera, tudo o que fora dito e nunca
poderia ser desdito.
Alice pediu a Jake para fazer uma visita guiada a Harry pela quinta. No
celeiro, ele apontou para a bancada de ferramentas, os materiais do galinheiro
e o equipamento de apicultura. Cheney caminhou ao lado deles, farejando e
marcando os postes da cerca. Jake observou o seu traseiro magro mover-se de
um lado para o outro e viu as suas costelas através do pelo sujo. Os dois
jovens pararam à entrada do apiário. Cheney farejou o ar e tentou abocanhar
os corpos dourados em movimento.
– Acho que a Alice te vai mostrar as colmeias mais tarde – disse Jake,
passando a mão ao longo do corpo do cão, entre o ombro e o flanco, radiante
por tocá-lo novamente. Hesitou, depois acrescentou: – Ela recebeu más
notícias sobre elas hoje, por isso não faças muitas perguntas, está bem?
Harry assentiu. Sentia-se chocado por ainda estar empregado e não ia
perguntar nada a ninguém. O seu estômago roncou.
Jake sorriu.
– Anda. Podes ajudar-me com o jantar.
Os dois jovens entraram na casa e Cheney correu para o alpendre das
traseiras até à porta de correr. Jake colocou o chili de frango em lume brando
e procurou no frigorífico alguns restos para o cão – sobras de panquecas, que
ele misturou com quatro ovos numa tarteira. Equilibrando-a no colo, abriu a
porta de correr, pousou a tarteira no alpendre e viu o cão devorar tudo. Jake
pegou na tarteira e encheu-a com água. O cão esvaziou-a três vezes e depois
desabou com o focinho nas patas e olhou para o menino com olhos cheios de
amor.
Jake sentiu o seu coração a transbordar e fechou a porta de rede.
– Conta-me outra vez como é que o encontraste.
Harry repetiu a história do balde de ração para galinhas e Jake riu até as
lágrimas correrem pelo seu rosto. Ambos fingiram que era por a imagem ser
hilariante e não porque o coração de Jake estava a sarar.
Jake encheu um jarro com água e entregou-o a Harry. Tirou pratos e copos
dos armários e, juntos, puseram a mesa.
– Então, a senhora Holtzman é amiga dos teus pais ou coisa parecida? –
perguntou Harry, dispondo os talheres.
Jake riu.
– Não, não é. E não lhe chames senhora Holtzman ou ela passa-se. É Alice.
Apenas Alice. – Fez uma pausa e esfregou o couro cabeludo. – Ela, mais ou
menos, salvou-me Acho que é a maneira mais simples de o explicar. Os meus
pais... – Calou-se e abanou a cabeça. – Estou só a passar aqui algum tempo.
Harry assentiu. Não ia questionar ninguém sobre as suas origens.
– Então, estás animado com as abelhas? – perguntou Jake, tentando manter
o ciúme fora da sua voz.
Harry encolheu os ombros.
– Não sei. O anúncio dizia construção leve e tarefas domésticas. Não sei
nada sobre abelhas.
Jake sorriu.
– Elas são muito fixes, meu. Isso é só o que posso dizer. Vais ficar passado.
Alice e Ronnie entraram e os quatro sentaram-se à mesa da cozinha a
comer o chili de Jake. Alice queria rir, mas sabia que não devia. Aqueles
pobres rapazes já tinham visto loucura suficiente por um dia. Ainda assim, foi
engraçado. Três convidados a jantar na Ilha Alice.
Harry apertou a mão a Ronnie antes de ele se ir embora.
– Obrigado – disse ele.
– Não, eu é que te agradeço – disse Ronnie em voz baixa. – A porra da
arma. Jesus!
– Não te preocupes.
Alice acompanhou Ronnie até ao jipe. Abraçou o sobrinho e prometeu que
ligaria à família sobre a festa de Angie. Ronnie beijou-a no rosto e saiu.
Alice voltou para casa e viu Cheney, de cabeça inclinada, a olhar para Red
Head Ned, que fitava o cão e caminhava na sua direção. Alice apontou para o
galinheiro e disse:
– Nada de galinhas. Percebido? Tem cuidado, cão. Ou ficas sem casa outra
vez.
Cheney olhou para ela, pestanejou e trotou de volta para casa. Ela suspirou.
Primeiro um adolescente, agora um cão. Abanou a cabeça. Disse a Harry que
ele podia dormir no dormitório do celeiro até encontrar um sítio.
Enfiou as mãos nos bolsos e virou a cabeça para as colmeias. Os seus olhos
pousaram nas mortas. Mesmo à distância, pareciam tão imóveis. Começaria
por ali com Harry, decidiu. Ia pedir-lhe que as desmontasse e raspasse toda a
cera e os corpos. Primeiro o mais importante. Ainda havia luz suficiente para
mostrar as abelhas a Harry.
A apresentação de Harry às abelhas foi rápida, mas não da maneira que
Alice esperara. Foram precisos menos de dez segundos para Harry comunicar
a Alice, Jake, Cheney e a qualquer vizinho num raio de dois quilómetros que
as abelhas o assustavam de morte.
Seguindo o exemplo de Jake, ele recusou o chapéu e o véu. Então, quando
Alice abriu a primeira colmeia e as abelhas-guarda voaram suavemente em
redor do seu rosto, Harry gritou e bateu-lhes. As abelhas-guarda responderam
com uma feromona de alarme e então Harry foi atacado. Desatou a correr
colina acima, com Cheney aos pinotes atrás dele.
Alice recolocou a tampa na colmeia e viu Harry desaparecer na floresta.
– Bem – disse ela com um suspiro –, a culpa é minha. Tu desabituaste-me
dos novatos.
Jake sorriu.
– Teremos de ir devagar com o jovem Harry. Se ele voltar, claro –
acrescentou Alice.
Sentou-se num fardo de feno e pegou no diário das colmeias para olhar
outra vez para as anotações de Jake.
– Estimativa de contagem – disse ela, olhando para ele. – Como fizeste
isso?
Jake encolheu os ombros.
– Foi uma coisa que li na Internet. Contamos as abelhas de cada lado do
quadro do meio e multiplicamos por dez numa nuclear com uma semana.
Ela ergueu uma sobrancelha.
– Eu tinha muito tempo para me entreter – disse ele, tentando soar terra-a-
terra.
Alice folheou as entradas e voltou à série de esboços – corpos de abelhas,
asas, antenas, pernas e cestos de pólen. A cabeça de uma abelha a emergir do
seu favo.
– Uau, rapaz! Estão realmente bons.
Ele encolheu os ombros, envergonhado.
– Não, a sério, Jake. Isto está muito detalhado. A sério. Agora, fala-me do
som novamente.
Aquela era uma história da qual ele nunca se cansaria. Jake fechou os olhos
e descreveu o zumbir de uma colmeia saudável e aquela canção mágica da
rainha, aquele Sol agudo.
– Mostra-me – pediu Alice.
Os dois percorreram uma fila de colmeias e Jake parou perto de cada uma e
ficou de olhos fechados e cabeça inclinada.
– Rainha – dizia assim que ouvia.
Ela acreditou nele. Obviamente, o rapaz tinha um jeito especial para as
abelhas.
– Anda cá. – Caminhou em direção à extremidade oeste do campo, rumo às
colmeias mortas, e parou na fila diante deles, colmeias n.º 7 a n.º 12. Apontou
para a fila.
– E estas? – perguntou.
Jake avançou, à escuta.
Na 7, ele acenou com a cabeça. Na 8, o mesmo. Na 9, o som era mais fraco,
mas ainda o ouvia. Na 10, abanou a cabeça. Alice suspirou e olhou para o
pomar de Doug Ransom e depois para as colmeias. Virou-se para Jake e
sorriu sombriamente.
– Tens planos para amanhã à noite? – perguntou.
18
CONGREGAÇÃO
As abelhas melíferas só podem prosperar quando associadas em
grande número, como numa colónia. Num estado solitário, uma única
abelha fica quase tão desamparada como uma criança recém-nascida,
sendo paralisada pelo frio de uma noite fresca de verão.
– L. L. LANGSTROTH
*
A vida numa colónia de abelhas melíferas é governada pelas estações. No
verão, as abelhas diligentes saem para recolher alimento assim que a primeira
luz do amanhecer aquece a colmeia elas trabalham incansavelmente até às
horas frescas do crepúsculo. No outono aventuram-se em bosques e prados
húmidos entre aguaceiros e ventos fortes. As colmeias de inverno ficam
cobertas de neve e paradas até à primavera, quando as abelhas se separam
para retomar o seu trabalho – limpar a colmeia, construir novos favos e
recolher néctar e pólen para reconstruir a família.
A vida dos humanos é organizada de forma semelhante, especialmente
numa cidade agrícola como Hood River. A cada primavera, os cidadãos eram
atraídos de novo para a companhia uns dos outros. Enquanto os lilases
floresciam, a neve derretida enchia o rio e os dias alongavam-se de forma
quase impercetível. As pessoas juntavam-se com a sensação de expectativa
que só a primavera pode invocar. Até Alice, que gostava da sua solidão,
sentia a atração enquanto conduzia pela cidade com Jake.
Passaram pela biblioteca e viram que o parque de estacionamento estava
cheio.
O cartaz no passeio anunciava dois eventos noturnos simultâneos: a reunião
dos apicultores de Hood River Valley e uma exibição ao vivo de «Karl, o
Homem Cobra». Alice praguejou baixinho e contornou novamente o
quarteirão, olhando para Jake. Estacionar era algo em que ela não tinha
pensado.
Depois de Alice ter dado a volta ao edifício pela terceira vez, Jake suspirou
e enfiou um braço magro na sua mochila. Tirou um cartão de estacionamento
para pessoas com deficiência e prendeu-o no espelho retrovisor. Olhou para
Alice com uma expressão impassível.
– Deixe-me ajudá-la, senhora Holtzman – disse ele. – Não quero vê-la
andar tanto, sendo tão velha e tudo.
– Oh, querido Harry – comentou Alice, rindo enquanto estacionava num
lugar para deficientes perto da porta da frente. – Ele é realmente único, não
é?
Sabia que Jake estava a referir-se à noite anterior. Depois de Harry voltar
da corrida pela floresta com Cheney a trotar na sua peugada, oferecera-se
para conhecer novamente as abelhas, determinado, ao que parecia, a redimir-
se.
Alice abanara a cabeça.
– Amanhã – dissera. – Está a ficar escuro. Vamos instalar-te.
O rapaz pareceu tão aliviado que ela quase se riu.
Alice levara-o até ao pequeno quarto no celeiro que Buddy construíra há
muitos anos para os sobrinhos. Era simples, mas limpo e tinha uma pequena
casa de banho. Com uma certa mágoa, lembrou-se das noites de verão que
Ronnie, os seus irmãos e primos tinham lá passado. Havia uma fotografia de
Buddy na parede, com os braços em volta dos sobrinhos, cada um com uma
cana de pesca. Alice tirara a fotografia quando os rapazes ainda tinham as
suas caras de bebé. Mesmo assim, a semelhança entre os sobrinhos e o
marido era incrível. Virou costas à fotografia e às recordações que ela
ameaçava desencadear.
No dia seguinte, chegara a casa depois do trabalho e encontrara Harry no
celeiro. Reparou que ele tinha varrido o chão e empilhado novamente a
madeira.
– Vejo que estás a adaptar-te – disse ela. Queria agradecer-lhe por arrumar
tudo, mas as palavras ficaram presas na sua garganta. Era tão chocante ver
outra pessoa no espaço de Buddy. – Espera. Tenho um projeto para ti.
Levou um carrinho de mão até ao apiário e recuperou as cinco colmeias
agora silenciosas. Jake, que estava a fazer anotações no diário da colmeia,
cumprimentou-a com um aceno e seguiu-a de volta ao celeiro.
Alice colocou uma das alças na bancada de trabalho. Olhou para o quadro
onde as ferramentas de Buddy estavam penduradas. Entre as chaves de
fendas, alicates e martelos empoeirados havia outra fotografia – uma
desbotada dos dois sentados nos degraus da frente da casa no primeiro verão
juntos. Buddy tinha o seu grande braço em volta de Alice. Oh, como fora
bom encostar-se ao ombro dele. Sentira-se segura. Amada. Obrigou-se a
desviar os olhos e abriu a alça para Harry.
– Esta coisa pegajosa aqui chama-se própolis – explicou. – As abelhas
recolhem-no das árvores para selar todas as fendas. – Harry anuiu. – Algumas
pessoas chamam-lhe cimento da natureza.
Ele não disse nada. Era um rapaz muito calado, pensou.
Alice soltou um quadro e puxou-a para fora da alça. Ficou abalada ao
examinar a devastação – ovos secos nos seus favos, larvas ressequidas e
obreiras adultas mortas na cera.
Não adianta ser sentimental, pensou ela.
– Quero que limpes tudo – instruiu.
Ensinou-lhe a raspar os corpos adultos para um grande recipiente de
plástico com uma escova e, em seguida, a usar o raspador para retirar a cera
para outro.
– Quero abelhas soltas neste primeiro recipiente e o resto no segundo. Toda
a cera e os ovos e as larvas. Raspa até à base, okay?
Olhou-o nos olhos e ele assentiu com a cabeça.
– Sim, senhora Holtzman – disse Harry.
– Trata-me por Alice, Harry – pediu ela. A sua mãe era a senhora
Holtzman. Ou tinha sido.
Harry corou e assentiu. Coelhinho nervoso, pensou ela. Passou-lhe a
moldura e ele pegou-lhe cuidadosamente com a ponta de dois dedos.
– Não te preocupes, rapaz. Não serás picado. Essas abelhas estão todas
mortas.
Alice tentava aligeirar o ambiente, mas não achava que fosse engraçada e
sabia que soava impaciente. Harry corou e ela arrependeu-se. Olhou para
Jake, que os observava. Harry era jovem, pensou ela, não muito mais velho
do que Jake, na verdade. Ela devia ser mais paciente. Esboçou um sorriso.
– Tens alguma pergunta, Harry?
Ele abanou a cabeça e, após um silêncio constrangedor, Alice virou-se.
– Certo – disse ela. – Grita se precisares de alguma coisa.
– Elas sempre ficam assim depois que lhes tirar o mel? – perguntou Harry
para as costas dela.
Alice virou-se e fitou-o.
– Desculpa?
– As abelhas – disse ele. – Morrem sempre quando tira o mel? Como lhe
chamou… crestar?
Ela fez uma pausa e respirou fundo.
– Não, Harry – disse ela, em voz baixa. – Eu não crestei o mel. Esta
colmeia morreu.
Harry engoliu em seco.
– Sinto muito, senhora Holtzman, eu não... – gaguejou ele.
– Não te preocupes com isso – disse Alice. Apontou para a bancada de
trabalho. – Usa tudo o que precisares dali, está bem?
Harry anuiu, olhando em volta, e o seu olhar pousou na fotografia dela e de
Buddy.
– Oh! – exclamou ele. – Então esta é a oficina do seu filho?
Os segundos passaram enquanto Alice olhava para a fotografia. Tinha
medo de abrir a boca e depois decidiu que podia confiar em si mesma para
falar, mesmo que a custo. Tornou a olhar para Harry.
– Não, esse não é o meu filho – disse lentamente. – É o meu falecido
marido.
O rosto de Harry passou de pálido para rosa e de novo para pálido. Ela
olhou para Jake e ele sustentou o seu olhar. Afinal, era verdade. Bud Ryan era
o seu falecido marido.
– Daqui a pouco venho ver como te estás a sair – disse Alice.
Deixou os dois jovens no celeiro e fez uma longa caminhada ao longo da
vedação. Sentia o nó no peito apertar-se e obrigou-se a inspirar e expirar,
inspirar e expirar. Olhou para o pomar de Doug Ransom, onde as árvores
agitavam os seus ramos. A dor diminuiu um pouco e conseguiu respirar
novamente. Permitiu-se pensar na fotografia de Buddy com os meninos.
Tinham sido dias maravilhosos. Pensou na sua conversa com o sobrinho. O
doce Ronnie, era evidente, não sabia o que seu pai pensava de Alice.
No dia em que Bud morrera na primavera anterior, Alice tinha visto o Jeep
de Ron aproximar-se a grande velocidade da sua casa. Ela quisera ir ver os
pais dele, mas não conseguira mover-se do chão da cozinha, onde ficara caída
depois de os dois polícias estaduais se terem ido embora.
Disseram que o acidente ocorrera perto de Boardman. Um carro que seguia
para leste atravessara a faixa central e quase colidira com Bud, que ia para
oeste em direção a casa na sua pickup. Buddy guinara para evitar o carro,
partira o rail e rolou para a lama. Foi declarado morto no local. O outro
condutor estava bêbedo, já tinha sido apanhado antes a conduzir com álcool e
seria acusado, disseram os polícias. As palavras deles soaram distantes.
Podiam ligar a alguém para vir ter com ela? Alice abanou a cabeça.
Levantou-se do chão quando ouviu o som do Jeep de Ron. Ele vinha buscá-
la para a levar para junto da família, pensou. Saiu ao encontro dele, com as
pernas bambas, o sol estranhamente frio no seu couro cabeludo. Ron saltou
do carro e correu para ela.
– A culpa é tua! – gritou, apontando para ela, com as mãos a tremer. –
Disseste-lhe para aceitar aquele trabalho. Ele estaria vivo se não fosses tu!
Alice ouviu aquelas palavras como se estivesse debaixo de água e não
pudesse falar. Buddy estivera tão animado como uma criança com o trabalho
com o camião grande. A decisão fora toda dele.
Ron agarrou-a pelos ombros como se quisesse magoá-la e disse coisas
terríveis. Força, pensou ela, olhando para o rosto contorcido do cunhado. O
pior já aconteceu. Ron empurrou-a e dobrou-se ao meio. Alice estendeu a
mão para confortá-lo e ele cambaleou até ao jipe e arrancou.
As memórias voltaram rapidamente, e Alice teve medo de se afogar nelas,
mas depois sentiu os limites da sua tristeza. Permitiu-se reviver a dor daquele
dia, que incluía Ron. Era outra perda separada e parte de perder Buddy.
Sentiu aquela dor deslocar-se dentro dela e soube que o seu corpo podia
contê-la. Ela estava bem. Tudo ficaria bem. A sua tristeza voltou para o lugar
seguro de que precisava para viver quando ela estava perto de pessoas.
Alice sentou-se num fardo de feno e olhou para o apiário e para as colmeias
restantes. Aquela era a sua casa, o seu lugar. Uma ferocidade cresceu nela
então e sentiu a urgência de proteger as suas abelhas. Tirou do bolso o diário
da colmeia e tomou algumas notas para a reunião de apicultores.
Quando voltou ao celeiro, Jake ajudara Harry a limpar todas as colmeias
mortas. Ela acenou com a cabeça para o material que eles tinham recolhido e
examinou os quadros.
– Bom trabalho – disse. Fechou as tampas dos recipientes.
– Preciso de levar isto para a reunião de apicultores – disse ela. – Harry,
trazes essa?
– Claro, senhora… hum, Alice – disse ele. – Deixe-me levar isso. É pesado
e a senhora não devia...
Sem palavras, ela pegou no recipiente e levou-o até à pickup. Harry foi
atrás dela com o outro e Jake seguiu-os, a rir.
Agora, diante da biblioteca, Alice ficou admirada e grata por poder rir-se
disso. Olhou para Jake e percebeu que ele examinava o passeio com
nervosismo. Olhou para o cartaz que ele pendurara no espelho, pensando que
devia ter-lhe custado bastante pô-lo ali. Estava grata por ele ter concordado
em vir, aquele surpreendente novo aliado. Saltou da carrinha e tirou a cadeira
dele da parte de trás, colocou-a ao lado da porta e esperou enquanto ele
descia cuidadosamente e se acomodava. Seguiu Jake pela rampa e ele tocou
no interruptor para abrir a porta.
Os membros do clube de apicultores, a maioria homens, tinham-se reunido
em grupos de dois ou três. Alguns conheciam Alice e sorriram-lhe e
acenaram com a cabeça. Olharam para Jake com curiosidade. Ela não parou
para falar com ninguém. Muitos eram agricultores e outros amadores como
ela. Havia alguns grandes apicultores como Chuck Sauer, que era atualmente
o presidente da associação de apicultores e também um eterno rabugento.
Voluntariara-se não por altruísmo, mas para tentar impedir que os
«agricultores idiotas de fim de semana», como lhes chamava, dessem cabo
das suas colmeias comerciais espalhando varroa.
Alice dirigiu-se à frente da sala, onde Chuck segurava uma prancheta
carrancudo.
– Olá, Chuck – disse ela.
Chuck resmungou.
– Tenho um tema para apresentar – disse ela.
Chuck fitou-a com o rosto impassível e disse que a agenda já fora impressa.
Ela devia ter-lhe mandado um e-mail há uma semana, como diziam as regras.
– Tenho a certeza de que os membros vão querer ouvir o que tenho para
dizer. E de qualquer maneira essas regras sobre a agenda são suas. Não estão
nos nossos estatutos.
Mostrou-lhe o telemóvel e leu no ecrã.
– «Qualquer membro pode apresentar novos temas significativos no final
da reunião após notificação verbal ao presidente.»
A carranca de Chuck aprofundou-se e Alice pensou nos rostos enrugados
das bonecas que a sua avó alemã fizera uma vez com maçãs secas. Ele
acenou com a mão.
– Muito bem, senhora Holtzman. Vou adicioná-lo no final. Por favor, esteja
pronta com o seu comentário. Não queremos desperdiçar o tempo das
pessoas. Agora, se não se importa, gostaria de começar – disse ele, afastando-
se a passos largos.
Alice revirou os olhos para Jake e os dois sentaram-se perto da frente.
Chuck bateu com o punho no pódio para iniciar a reunião e seguiu a agenda
com uma precisão quase militar. Aprovação da ata do mês anterior. Discussão
de um lema para o clube. Planos para o desfile do Quatro de Julho. Alice
olhou para o telemóvel e para a porta. Viu Stan Hinatsu sentar-se atrás. Ele
olhou em volta e acenou com a cabeça quando a viu.
A reunião arrastou-se enquanto Chuck exauria a discussão do carro
alegórico do desfile além da tolerância até do mais paciente. As pessoas
começavam a ficar inquietas e alguns membros mais velhos já haviam saído,
empurrando as cadeiras para trás e falando alto ao sair.
– Muito bem – disse Chuck por fim. – Isto é tudo da agenda oficial. Recebi
um pedido para uma intervenção.
Olhou para Alice e afastou-se para um lado da sala.
Alice levantou-se, tirou do bolso o seu bloco de notas e foi para trás do
pódio. Acenou com a mão para a sala.
– Hum, olá a todos. A maioria de vocês conhece-me. Sou a Alice
Holtzman. Vou ser rápida, mas sei que vão querer ouvir o que tenho a dizer.
A sua voz tremeu e ela olhou para as anotações. Tinha as mãos a tremer e
cerrou-as em punhos.
– Sou membro deste clube há nove anos e atualmente tenho vinte e quatro
colmeias no vale sul.
As pessoas tinham começado a levantar-se e a falar enquanto se dirigiam à
saída. Alice levantou a voz para ser ouvida.
– Ontem, após uma inspeção de rotina, descobri que cinco das minhas
colmeias estavam mortas. Eram as cinco mais antigas das vinte e quatro.
Chuck estava a guardar as suas anotações na mala, fazendo barulho com os
papéis.
– As cinco colmeias mais robustas – disse Alice. Calou-se.
Cinco colmeias. O que estava ela a dizer? Viu Jake olhar em volta. As
conversas ficaram mais altas. Chuck riu-se de algo que o homem ao lado dele
dissera. Não estavam a ouvir. O que importava aquilo? Cinco das suas
colmeias estavam mortas. «Como estão as tuas abelhas, tia?», perguntara
Ronnie. «A culpa é tua», dissera Ron. Bud Ryan era o seu falecido marido.
Ela era a Ilha Alice. Então ouviu a voz da mãe, impaciente e mordaz na sua
cabeça.
Alice Marina Holtzman! Endireita-te e para de balbuciar!
Alice voltou a si mesma. Então foi a sua própria voz que ouviu.
– Ei! Vocês aí atrás! Eu tenho a palavra. Portanto ou saiam ou sentem-se e
calem-se!
A sala ficou em silêncio. Chuck Sauers sentou-se. Os que tinham estado
reunidos no corredor entraram e ficaram atrás, de braços cruzados.
– Obrigada – disse Alice. Fechou o bloco de notas e saiu de trás do pódio.
A sua voz estava firme. – Cinco das minhas colmeias morreram durante a
noite. Duas outras estão doentes. Eram colmeias fortes e saudáveis. Tenho
quase certeza de que foi o resultado dos pesticidas do pomar de Doug
Ransom.
Começaram os murmúrios e ela ergueu as mãos.
– O Doug é meu amigo. Temos trabalhado bem juntos… ele escolhe as
datas de pulverização para quando há vento fraco ou vento leste, e tem
funcionado bem. Pulverizou na segunda-feira, que não teve vento, portanto
não devia haver problema. Mas este ano o Doug usou um novo produto nas
suas árvores. Foi uma amostra que a SupraGro lhe ofereceu.
A sala estava agora totalmente silenciosa. Outros agricultores mexeram-se
nas cadeiras, olhando uns para os outros.
– Tenho a certeza de que o Doug não sabe isto, mas os pesticidas da
SupraGro foram associados à devastação de colmeias em grande escala no
Nebraska, no Dakota do Norte e norte da Califórnia, bem como à destruição
de bacias hidrográficas e sistemas ribeirinhos. Mandei analisar as minhas
colmeias mortas quanto a resíduos, e tenho a certeza de que encontraremos
nelas os neonicotinóides da SupraGro.
Queixo erguido, querida, disse a voz de Al. Eles estão a ouvir.
Alice endireitou os ombros e ergueu o olhar.
– Entretanto, proponho que a Associação de Apicultores do Município de
Hood River solicite uma proibição temporária do uso do SupraGro em River
Hood Valley até determinarmos se ele é prejudicial às populações de abelhas
locais. Alguém me apoia?
Uma mão ergueu-se na lateral da sala.
– Eu apoio! – gritou um homem.
– Senhor presidente, podemos votar, por favor?
Todos começaram a falar ao mesmo tempo. Chuck levantou-se e tentou
impor ordem na sala, mas as vozes continuaram a aumentar.
– Silêncio! – gritou ele, e bateu na mesa com a sua prancheta.
As vozes baixaram para um murmúrio.
– Certo – rosnou Chuck através do bigode, olhando para Alice –, já que
tivemos uma moção e alguém a apoiá-la, somos obrigados pelos estatutos a
discutir o assunto. Sei que alguns de vocês querem voltar para casa. Quem
quiser sair agora pode fazê-lo, mas lembrem-se de que perdem o direito de
votar. Se precisam de sair, façam-no agora.
Ninguém saiu. As cadeiras rangeram. Chuck suspirou, sentou-se e acenou
com a mão.
– O assunto está oficialmente aberto para discussão – disse ele. – Um de
cada vez, por favor. E digam o vosso nome.
Muitas pessoas levantaram-se para falar. A sala estava cheia de velhos, e
eles tinham opiniões fortes. Alguns pareciam preocupados com a
possibilidade de o município lhes ir impor regras se eles agitassem as ondas.
Alguns tinham recebido amostras grátis da SupraGro. Claro, não queriam
prejudicar as abelhas, mas viviam dos pomares. O pesticida da SupraGro era
mais barato e a ciência dizia que era mais eficaz do que os pesticidas que
usavam. Como poderiam dizer não a isso? Outros disseram que tinham lido
que a ideia de os pesticidas prejudicarem as abelhas era uma farsa. Alguns
afirmaram que deveriam proibir o uso apenas em grandes pomares, não nos
pequenos. Depois de os membros do clube falarem, Stan levantou-se.
– Chamo-me Stan Hinatsu. Sou o diretor executivo da Hood River
Watershed Alliance…
– Os não-membros não estão autorizados a participar do debate oficial –
interrompeu Chuck com um rosnado.
Alice levantou-se e acenou com o telemóvel.
– Estão autorizados se forem chamados como especialistas por outro
membro. Eu pedi ao Stan para vir – disse ela. – Os estatutos dizem…
– Está bem! – exclamou Chuck. – Continue.
– Obrigado – disse Stan.
– ... Hippy arrogante – murmurou alguém atrás dele e Stan fingiu não ouvir.
– Nome e afiliação, por favor – disse Chuck com um suspiro.
– Chamo-me Stan Hinatsu. Sou o diretor executivo da Hood River
Watershed Alliance. Durante a semana passada, conversei com outros grupos
de bacias hidrográficas e associações agrícolas em todo o oeste, e posso dizer,
inequivocamente, que a SupraGro é responsável por devastar as populações
de abelhas em todo o oeste dos Estados Unidos.
Apresentou dados científicos, disse que a força extra do pesticida da
SupraGro nada mais era do que uma dose dupla de neonicotinóides.
– Nem vou entrar no resto. No que aquilo faz à bacia hidrográfica e ao
salmão – disse Stan.
– ... a seguir vão querer acabar com as barragens – resmungou alguém.
Stan esperou até se fazer novamente silêncio.
– Olhem, sei que muitos de vocês têm pomares ou que os vossos vizinhos
têm. A economia do pomar é a força vital desta comunidade. Isto não é uma
questão antiagricultura. – Fez uma pausa. – Os dados mais recentes da
Universidade da Califórnia mostram que nas comunidades onde as colmeias
falharam, a primavera seguinte mostrou uma queda de quarenta e cinco por
cento na produção de fruta devido à ausência de polinizadores locais. Além
disso, a pesquisa mostrou uma aceleração nas árvores de fruto doentes e
perda total de árvores. Isto não é uma conspiração de esquerda. É uma
informação de cientistas do Departamento de Agricultura dos Estados
Unidos. Aqui estão todas as informações que temos até ao momento.
Stan passou fotocópias pela sala. As vozes aumentaram enquanto os
membros conversavam entre si. Stan respondeu a perguntas sobre dados e
fontes de pesquisa. A maioria das perguntas era respeitosa, mas um homem,
zombeteiro, perguntou se o grupo da bacia hidrográfica se considerava
imparcial.
– De maneira nenhuma – respondeu Stan. – Estamos cem por cento do lado
da vida selvagem e da flora do vale e nada interessados em apoiar grandes
empresas como a SupraGro. Obrigado por perguntar.
O homem bufou e sentou-se. Alguém perguntou a Chuck de que forma o
pedido deles poderia obrigar o município a agir.
– Legalmente não compromete o município – disse Chuck lentamente,
puxando o bigode. – Mas, no passado, ofereciam um período de duas
semanas como cortesia para tópicos que gostaríamos de pesquisar. Imagino
que poderíamos pedir isso enquanto as colmeias são analisadas.
»Quando a vocês não sei, mas eu já ouvi o suficiente – continuou Chuck. –
Os factos científicos e as colmeias da senhora Holtzman parecem razão
suficiente para levar este problema ao município. Proponho que o
coloquemos a votos.
– Eu apoio! – gritou alguém.
– Todos a favor?
Cerca de dois terços das mãos levantaram-se.
– Contra?
Menos de um terço levantou-se desta vez e algumas pessoas mantiveram as
mãos no colo.
– A moção foi aprovada – disse Chuck. Virou-se para o secretário do clube,
Matt Garcia, e pediu-lhe que redigisse uma declaração para o conselho
municipal.
– Reunião encerrada! – gritou Chuck e levantou-se, juntando as suas
coisas. Acenou com a cabeça para Alice quando saiu.
– Obrigado, senhora Holtzman – disse ele.
Alice exalou. Era um começo.
Jake sorriu-lhe.
– Bom trabalho, Alice. Para uma senhora idosa, quero dizer.
Ela riu e levantou-se quando viu Stan a aproximar-se.
– Muito obrigada por ter vindo, Stan. Aquilo foi, bem, exatamente o que
precisávamos.
– Tenho muito gosto em estar aqui, Alice – disse ele.
Sentou-se ao lado de Jake e Alice percebeu como isso era uma cortesia
simples.
– Acho que não nos conhecemos. Sou o Stan – disse ele, apertando a mão
de Jake.
– Eu sou o Jake – disse ele e sorriu. – Aprendiz da Alice.
Alice riu-se e enfiou as mãos nos bolsos de trás.
– Acho que é o contrário. Stan, não ia acreditar no que este rapaz consegue
fazer.
Alguém lhe tocou no ombro e ela virou-se, vendo a fila de apicultores à
espera de a cumprimentar, de lhe apertar a mão e agradecer. Ver aquela fila de
rostos amigáveis, bem, pareceu uma espécie de regresso ao lar.
Stan ofereceu-se para levar os resíduos da colmeia para análise.
– Tenho uma reunião com o Michaels amanhã, de qualquer maneira –
disse.
Então transferiram os recipientes para o carro dele. Stan acenou enquanto
se afastava.
Ao atravessarem a cidade a caminho de casa, Jake deu uma olhadela à
coleção de cassetes. Colocou uma no leitor e a voz de Tom Petty fluiu para a
noite de primavera:
– Time to move on. Time to get goin’. What lies ahead, I have no way of
knowin.1
Jake baixou a janela e surfou com a mão na brisa.
– Quem era aquele calmeirão com quem estava a conversar à porta? –
perguntou.
– O Tiny Castañares – respondeu Alice. – Um velho amigo do meu pai. E
meu – acrescentou.
Jake olhou pela janela para a pequena cidade que passava rapidamente.
– Tem bons amigos, Alice.
Ela assentiu com a cabeça e o seu coração inchou de alegria. Tinha bons
amigos e lembrar-se disso fê-la ver que estava a regressar à vida. Sentiu
aquele recipiente dentro dela. Sentiu a dor, e em torno dessa tristeza sentiu o
resto da sua vida e tudo nela a crescer como um pedaço de cera para
amortecer a sua tristeza. Conduziu para sul em direção à montanha enquanto
o Sol se punha sobre o rio e o vento amainava. As abelhas foram para as suas
colmeias e as pessoas do vale dormiram.
1 É hora de seguir em frente. É hora de começar. O que está por vir, não
tenho como saber. (N. da T.)
19
NA COLMEIA
Coloque-se diante de uma colmeia e veja a energia infatigável
daquelas veteranas industriosas, a labutar com os seus fardos pesados,
lado a lado com as suas companheiras mais jovens... Deixe que o
alegre zumbido da sua atarefada velhice o inspire com melhores
resoluções e lhe ensine como é mais nobre morrer com arreios, no
desempenho ativo dos deveres da vida.
– L. L. LANGSTROTH

Jake acordou de repente com o som de alguém a gritar. Olhou para o teto,
sem saber onde estava e sentindo um aperto na garganta. No sonho, andava
de skate à beira-mar com Cheney a correr ao seu lado. O cão desviara-se para
a estrada e fora atropelado por um carro. O alívio inundou-o então. Estava em
casa de Alice e Cheney continuava vivo. Cheney estava ali mesmo, a enfiar o
seu grande focinho molhado na mão de Jake.
O sonho parecera tão real, a sensação de velocidade e movimento enquanto
ele fluía no skate. Quase podia sentir o ar quente da primavera nos braços nus
e o balanço das ancas enquanto deslocava o seu peso. Sentira-se tão livre. À
medida que o sonho ia passando, lembrou-se de que as coisas eram diferentes
agora. Já não andava de longboard. Usava uma cadeira de rodas. O seu olhar
pousou na cadeira ao lado da cama, à espera dele como a sua acompanhante
eterna. Aquele era quem ele era agora. Em vez de um rapaz com
possibilidades ilimitadas, era uma pessoa com limitações muito específicas.
Mas naquela manhã, talvez pela primeira vez, entendeu de forma clara que
um mundo inteiramente novo se abrira para ele. Nas semanas desde que ele
aterrara em casa de Alice, a ideia de quem ele era e de como se movia no
mundo havia mudado, de forma impercetível de início, mas inegavelmente
agora. Sim, havia coisas que ele já não podia fazer e nunca mais voltaria a
andar. Mas tinha algo precioso que nunca imaginara antes – a sua vida com as
abelhas melíferas. Vivia com centenas de milhares de abelhas. Estava a
aprender a ser apicultor e era bom nisso, melhor que a média. O mais incrível
de tudo é que ele conseguia fazer algo que a maioria dos apicultores não
conseguia. Por alguma razão, fora dotado com a capacidade de distinguir o
tom das adoráveis abelhas-rainhas, as supermães. Foi invadido pela cor e a
textura da sua nova vida. Esticou os braços sobre a cabeça e sorriu.
Cheney bateu com as patas dianteiras na cama e içou-se num alongamento
em câmara lenta. A seguir ergueu as orelhas e abanou a cauda enquanto
olhava para o colchão ao lado do rapaz.
Jake sentou-se, agarrou nas suas orelhas grandes e riu-se.
– Não abuses da tua sorte, meu.
Jake empurrou o cão grande para fora da cama, transferiu-se para a sua
cadeira e rolou até à casa de banho. Usou um novo cateter descartável para
esvaziar a bexiga, puxou o autoclismo e lavou as mãos e o rosto. O sonho
ainda pairava sobre ele – a alegria do movimento e a devastação de perder
Cheney novamente. Repeliu-o. Fora apenas um sonho.
Jake olhou-se no espelho. Tomara duche na noite anterior e o cabelo caía
solto sobre os ombros. A cor preto-azulada estava a desbotar e podia ver o
seu castanho natural a aparecer. Isso recordou-lhe aqueles primeiros dias no
hospital, quando a enfermeira lhe tentara cortar o cabelo e ele tivera um
ataque de fúria. Estava todo dopado, mas suficientemente consciente para
lutar por isso, e a mãe apoiou-o.
A enfermeira suspirou e semicerrou os olhos.
– A sério, senhora Stevenson. Já vai ser difícil cuidar dele. Assim é mais
fácil.
A mãe insistira, educadamente, mas com firmeza, recordou Jake, e
apanhara-o num rabo-de-cavalo. Estava todo emaranhado. Quando
finalmente conseguiu sentar-se, demorou horas a pentear-se e não deixou que
a mãe nem as enfermeiras o ajudassem. Passou um pente pelos nós um
centímetro de cada vez. Passaram-se semanas antes que ele pudesse pintá-lo
novamente e meses antes que conseguisse penteá-lo na vertical num moicano
recorde de quarenta centímetros.
Agarrou numa nova embalagem de Midnight Blue # 47. Olhou para o
relógio e abriu a torneira. Tinha tempo para aplicar a tinta antes do pequeno-
almoço. Colocou uma das mãos sob o jato de água, esperando que aquecesse,
e leu os ingredientes em que nunca reparara antes: amoníaco, acetato de
chumbo, citrato de bismuto, p fenilenodiamina. Jake abriu a embalagem e
inspirou, e o cheiro forte do amoníaco atingiu o fundo da sua garganta.
Sempre adorara o cheiro, que fazia parte do ritual do seu penteado. Mas agora
fazia-o pensar nos dias em que aplicavam inseticida no pomar, aquele gosto
metálico de produtos químicos no ar.
Nos seus estudos, Jake aprendera todos os tipos de coisas sobre as abelhas.
Encontrara muitas tradições interessantes e arcaicas nas suas leituras – por
exemplo, se o apicultor casasse, teria de apresentar a noiva às colmeias. E se
um apicultor morresse, os amigos tinham de contar às abelhas. Uma coisa
que realmente o impressionou foi a ideia de cuidar das abelhas «sem vícios».
Lera que elas não gostavam do cheiro da cebola ou do alho. Os apicultores
eram incentivados a não serem «rudes ou a estarem bêbedos». Ele escrevera:
«Cuida das colmeias com limpeza e sobriedade.» Reparara que Alice lavava
sempre as mãos antes de calçar as luvas e colocar o véu e desconfiava que ela
também lavava os dentes.
Ela não lhe dera uma resposta direta quando ele perguntara.
«Toda a gente tem os seus próprios rituais, rapaz. Tu terás os teus.»
Olhou de novo para os ingredientes na parte de trás da embalagem. O que
quer que fosse a p fenilenodiamina, provavelmente não era saudável. Jake
fechou a tampa da embalagem e deitou-a no lixo.
De um momento para o outro, tinha acabado com o seu cabelo, com o seu
moicano recorde, a sua bandeira de excêntrico, a sua marca. Jacob Stevenson,
que tivera o moicano mais alto da história da Escola Secundária de Hood
River Valley, seguira em frente. No mínimo, parecia um disparate passar
horas a pentear o cabelo agora que tinha tantas outras coisas para fazer.
Olhou para o seu reflexo e pegou na tesoura.
Uma hora depois, Harry entrou em casa para o pequeno-almoço e
encontrou Jake a virar panquecas e a sorrir sob a sua careca reluzente.
– Uau! Uau! Cortaste… como é que tu… porque é que... quer dizer, não,
está ótimo...
Jake sorriu e passou a mão pelo crânio.
– Eu sei. Agora pareço um doente com cancro. Mas estava na hora. Queres
tocar-lhe?
Harry passou a palma da mão sobre o crânio de Jake, estremeceu e baixou
o braço.
– Altamente, meu – disse ele.
Sentaram-se para comer e Cheney andou às voltas debaixo da mesa como
um pequeno cavalo até que Jake o deixou sair pela porta de correr.
– Vai lá, Cheney! Esquilo!
O cão grande desatou a correr num arco amplo que era o seu ritual matinal.
Quando Jake voltou para a mesa, Harry estava a devorar o pequeno-almoço
como se tivesse medo de que alguém lhe tirasse o prato.
– Calma, meu! Há muito mais – disse ele, rindo, e Harry corou.
Gostava bastante de Harry. Embora fosse seis anos mais novo, Jake sentia-
se protetor em relação a ele. No dia em que Harry fora contratado, quando
estavam a limpar as colmeias de Alice, sentira a inveja abandoná-lo. Harry
simplesmente não conseguia dizer nada bem. Fizera aquela pergunta estúpida
sobre o filho de Alice e depois ficara em silêncio quando ela saíra do celeiro.
Uma abelha morta caiu e roçou-lhe as costas da mão. Ele gritou e largou o
quadro com estrépito.
Jake riu-se.
– Meu, tens de te descontrair – disse ele, estendendo as mãos com as
palmas para baixo. – A sério.
Harry praguejou baixinho e pegou no quadro. Raspou as abelhas para o
recipiente de plástico como Alice pedira. Algumas caíram no chão. Harry
pegou-lhes com as mãos enluvadas, fazendo uma careta.
Jake empurrou o recipiente para mais perto da bancada.
– Que idade tens, Harry? – perguntou.
– Vinte e quatro – murmurou Harry.
– Bem, a Alice tem quarenta e quatro, portanto, tecnicamente, tem idade
suficiente para ser tua mãe. Mas não mãe daquele tipo – disse ele, apontando
para a fotografia de Bud e Alice.
– Agora vejo isso – respondeu Harry com um suspiro, raspando a moldura.
Jake recostou-se na cadeira e viu Harry trabalhar. Ele era um rapaz
estranho. Mas trouxera Cheney de volta, não trouxera? Jake olhou para o cão,
esparramado no chão e a roncar junto à porta, e sentiu uma enorme alegria.
Jake decidiu que iria ajudá-lo.
– Dá-me esses quadros. Eu limpo as abelhas e tu podes tratar da cera –
disse Jake.
Enquanto trabalhavam, Jake contou a Harry o que sabia sobre Alice, o seu
trabalho e a sua família. Que ela queria aumentar o apiário. Harry ouviu,
alerta, mas em silêncio. Os seus olhos arregalaram-se quando Jake descreveu
como se tinham conhecido, a pickup quase a chocar com a cadeira. Jake
aligeirou a discussão dela com Ed Stevenson, dizendo apenas que Alice se
oferecera para deixá-lo ficar na quinta algum tempo. Ele não sabia quanto
tempo.
– Ela é fixe, Harry. Vai dar-te uma oportunidade se trabalhares com afinco.
Tens é de deixar de dizer merdas estúpidas e tentar descontrair-te, okay?
Harry assentiu. Os dois trabalharam lado a lado na primeira alça. Harry foi
buscar a segunda à porta, onde Alice as deixara no carrinho.
– Aquele longboard no alpendre é teu? – perguntou Harry.
Jake ficou admirado. Não julgara que Harry fosse um skater. Assentiu.
– Não tenho andado muito ultimamente.
Harry fez uma pausa, como se estivesse a tentar decidir se aquilo era uma
piada. Então disse:
– No secundário eu tinha um longboard pintail.
– A sério?
– Sim. Antiquado, eu sei. Viste Os Reis de Dogtown?
– Podes crer! – exclamou Jake e citou a frase da famosa cena de skate na
piscina. – «Não consigo sentir os pés! Mas também nunca consigo sentir os
pés.»
Os dois riram, mas então Harry olhou para a cadeira de Jake e parou de rir.
Harry tirou outro quadro da caixa e escovou os corpos das abelhas, com
menos cautela agora, para o recipiente.
– Estive outro dia à beira do rio e vi um tipo a praticar longboarding no
estacionamento com um kite. Como kitesurf, sabes. Mas com uma tábua
muito pequena. Foi espetacular! – exclamou Harry.
Jake não conseguia lembrar-se da última vez que tinha estado à beira do rio
ou na pista de skate adjacente, onde parava dantes. Sentia falta da água e do
céu, de ver Cheney a galopar ao longo do banco de areia, a perseguir gaivotas
e a morder as ondas.
– Esse tipo que conheci disse que me ensinaria a fazer kitesurf de graça –
continuou Harry. – Disse que me emprestava o equipamento e tudo. – A sua
voz elevou-se com entusiasmo e depois esmoreceu. – Mas não sei.
– Posso ir? – perguntou Jake.
– O quê?
– À praia do kitesurf. Posso ir contigo? E, meu, se alguém te oferece aulas
de kitesurf grátis, serias estúpido se recusasses. Estou apenas a dizer.
– Sim, claro. Podes vir comigo. Ele disse para aparecer qualquer dia. Está
sempre lá.
Jake sorriu para si mesmo – o rio, o vento, o banco de areia. Há quanto
tempo fora?
Trabalharam juntos num silêncio amigável até que Jake saiu com Alice
para a reunião de apicultores.
Depois disso, a casa entrou numa espécie de rotina com o passar dos dias.
Foi inquietante no início. Harry era tão desajeitado, cheio de nervos por
poder dizer a coisa errada a Alice. Ficava na oficina, a menos que fosse
convidado a entrar. A preocupação dele era palpável e deixava-a irritada.
Uma noite, Alice foi chamá-los para jantar e Harry largou a vassoura com
estrépito. Ela ficou à porta, a examinar o espaço, que Harry reorganizara. Ele
começou a desculpar-se por ter deslocado as coisas e Alice suspirou e cruzou
os braços.
– Harry, obviamente precisamos de estabelecer algumas regras básicas.
Explicou-lhe tudo de forma clara. A oficina era o espaço dele, e ele poderia
reorganizá-la como quisesse, e estava muito bem arrumada, a propósito. Era
bem-vindo em casa quando não estivesse a trabalhar. Ela gostaria que ele
passasse a pôr a mesa. Podia usar o computador. Podia usar a máquina de
lavar roupa e a de secar. Mas tinha de parar de se desculpar sempre que abria
a boca. Se não parasse de fazer isso, ela teria de lhe pedir que se fosse
embora. Jake sabia que aquela última parte era brincadeira, mas Harry não.
– Certo, senhora... quero dizer, Alice. Desculpe, não... – gaguejou ele e
tapou a boca com a mão.
A gargalhada de Alice ecoou nas vigas.
– Não te preocupes, Harry. Desculpo-te essa. Agora vem jantar.
À mesa do pequeno-almoço com Harry, Jake pegou no diário da colmeia e
explicou-lhe como as colmeias mais novas estavam a desenvolver-se. Harry
passara vários dias apenas a fazer trabalho de manutenção na quinta para
Alice. Ela queria agora que ele construísse alças com entradas superiores para
metade das colmeias mais novas, para que ela pudesse seguir o progresso
delas e compará-las com as outras colmeias com entradas tradicionais pela
parte inferior.
Harry acenou com a cabeça.
– Hoje vou construir as primeiras – disse ele. – Para as colmeias de treze a
dezoito.
No celeiro, Harry acendeu as luzes. Jake rolou até à bancada de trabalho e
colocou um alça vazia no seu colo, virando-a.
– Então, como é que vais fazer as entradas em cima?
Harry explicou-lhe que construiria as novas alças como as antigas, apenas a
entrada seria em cima. Apontou para o esboço feito por Alice.
– Tenho de abrir entradas superiores nas novas caixas e, em seguida,
desbastar com a fresa as bordas para que os quadros possam encaixar.
– Chamam-se ranhuras – disse Jake, exibindo-se. – As bordas.
– Oh. Ranhuras. Certo, então acho que a Alice vai pôr os quadros nas
novas caixas e usar as mesmas tampas e tudo?
– Não pareces muito seguro – disse Jake.
Harry franziu a testa.
– Acho que foi isso que ela disse, não?
– Estou a brincar, Stokes! Sim, vamos transferir os quadros. Em seguida,
transformaremos as alças. Depois terás de bloquear as entradas antigas e
adicionar-lhes as ranhuras.
– Sim, tenho de me certificar de que os quadros estão bem encaixados... –
disse Harry.
Colocou a alça na bancada e olhou para ela. Então foi lá fora olhar para as
colmeias, depois voltou e olhou para a alça, resmungando para si mesmo.
Jake observou-o.
– Dá-me essa tampa, está bem, Jake?
Ele passou-a a Harry, que continuou a murmurar para si mesmo. Virou a
caixa e colocou a tampa, em seguida, enfiou o dedo por baixo da saliência
para medir o espaço ali. Agarrou numa fita métrica e enfiou-a na abertura.
– Qual é o espaço abelha outra vez? Trinta e cinco milímetros?
Jake abanou a cabeça.
– Entre trinta e trinta e dois.
Harry endireitou-se e sorriu. Apontou para a alça.
– Uma já está e faltam cinco – disse ele, sorrindo.
Jake olhou para ele confuso. Harry mostrou-lhe a fita métrica.
– Há espaço suficiente para a entrada sob a tampa telescópica. E as
ranhuras já estão feitas nessas caixas. Elas são reversíveis. Tudo o que temos
que fazer é virá-las de cabeça para baixo e voilà, a entrada inferior é a
superior!
Jake olhou para a caixa e compreendeu.
– Mais um ponto para Stokes! A trabalhar da maneira mais inteligente, não
mais difícil!
Deu mais cinco a Harry e rolou para trás, olhando para a alça.
– Ainda precisaremos de transferir os quadros – disse Jake, o seu
entusiasmo a aumentar. – Se colocarmos os da colmeia treze neste, podemos
virar essa alça e transferir os quadros da colmeia catorze e assim por diante.
Superfácil.
Aquelas jovens colmeias, ainda apenas com a altura de uma alça,
continuavam acessíveis. Ele podia fazer aquilo sozinho. Sabia que podia.
– Acho que consigo mudá-las todas esta manhã – disse ele, falando mais
para si mesmo do que para Harry. – Só preciso de pôr esta assim, e a outra
assim...
Pegou numa alça vazia e moveu-a pelo ar, tentando esboçar o fluxo de
trabalho da transferência pela parte lateral da sua cadeira. Mas não funcionou.
Não conseguia inclinar-se sobre duas colmeias colocadas lado a lado à sua
direita. E não tinha força muscular para trabalhar numa do seu lado esquerdo.
Jake sentiu então a amargura das suas limitações físicas.
Soltou uma risada curta e infeliz.
– Bem, porra. Não consigo fazer isto.
– Fazer o quê?
– Chegar mais além do que o comprimento das duas alças. Ou sobre o meu
colo. É muito longe e…
Tentou rir daquilo e girou a alça várias vezes nas mãos. Mas era isso, ele
sabia. Chegara ao fim do seu tempo com as colmeias. Aquelas novas
receberiam as suas segundas alças na semana seguinte e seriam demasiado
altas para ele. Não era capaz de fazer aquela última maldita coisa. A
desilusão subiu na sua garganta e sufocou-o.
– Existe o espaço abelha e, em seguida, existe o espaço Jake. Está bem. Eu
só… merda!
Atirou a alça, que fez ricochete no chão da oficina e aterrou perto do cão
que ressonava. Cheney deu um salto e saiu do celeiro com um olhar
magoado.
Harry observava-o, perplexo.
Igual ao meu pai, pensou Jake. Sou um idiota. Empurrou a cadeira para ir
atrás do cão, mas Cheney desaparecera. Ele suspirou e girou para encarar
Harry.
– Desculpa. É apenas... frustrante. Pensei que conseguia, mas teremos de
esperar pela Alice. Ainda assim, ela vai ficar realmente satisfeita por teres
descoberto como revertê-las. Bom trabalho, Harry.
Harry estava a olhar para um ponto acima do ombro de Jake e a resmungar
para si próprio. Esticou os braços de cada lado dele.
– … para conseguires deslizar por baixo dela. Isso é catorze vezes dois, o
que dá apenas vinte e oito. Não é assim tão mau – murmurou. – Estende as
mãos – ordenou.
Jake obedeceu e Harry esticou a fita métrica entre elas e mediu a largura da
alça.
– … vezes dois. Sim, vai funcionar – disse para si mesmo. Endireitou-se e
sorriu para Jake. – Só precisas de uma bancada de trabalho, meu.
Mediu a altura da cadeira de Jake a partir dos apoios para os braços e o
alcance natural de Jake, e, em meia hora, fizera uma mesa portátil capaz de
conter duas alças, lado a lado, sobre o colo de Jake. Jake rolou a cadeira para
debaixo da mesa e riu.
– És um génio do caraças, Stokes!
O rapaz mais velho corou de prazer.
– Não é nada de especial. Apenas madeira e pregos.
– Meu, estás a falar com alguém que chumbou a trabalhos oficinais!
Harry riu-se, incrédulo.
– A sério? Como é que alguém chumba a isso?
Jake inclinou a cabeça careca para trás, olhou para o teto e contou pelos
dedos.
– Vamos ver: faltar à aula. Aparecer com a moca. Chegar atrasado e não
terminar o trabalho. Ah, e colar os livros de uma rapariga à mesa.
Aquela última fora ideia de Noah, mas fora Jake quem a executara. De
alguma forma, parecera hilariante naquele dia. Riu-se, mas Harry não sorria.
– Uau. Isso é estranho, meu. Hum... não parece algo que farias – comentou
Harry.
Jake inclinou a cabeça.
– Que parte?
– Bem, tudo – respondeu Harry. – Quero dizer, pareces tão sólido aqui.
Jake percebeu que era verdade. Não brincava assim na casa de Alice. Não
com as abelhas ou qualquer coisa na quinta.
– Isso foi antes – disse ele em voz baixa.
Harry acenou com a cabeça e olhou para a cadeira.
– Mas terminaste o secundário, certo?
Jake soltou uma risada.
– Bem, tenho um diploma! Não podem tirar-mo.
Abanou a cabeça e olhou para as alças, depois para o apiário. Aquela era a
sua nova vida, lembrou a si mesmo. Ele era assistente da apicultora. Sabia o
que fazer.
– Ouve, Harry. Acho que consigo fazer isto muito rapidamente. Mas vou
precisar de ajuda.
Jake disse-lhe para lavar as mãos e o rosto, lavar os dentes e vestir uma
camisa limpa.
– Confia em mim – pediu.
Quando Harry reapareceu, Jake apontou para o traje completo de apicultor
e Harry vestiu-o sem protestar.
– Enfia as calças nas botas. Toma. – Jake entregou-lhe um par de luvas.
Harry calçou as mãos trémulas. – Senta-te.
Harry sentou-se, respirando de forma superficial.
– Respira, Harry.
O rapaz mais velho inspirou profundamente e soltou o ar.
– Ouve. Se estiveres calmo, elas ficarão calmas. Se te passares e lhe bateres
como da outra vez, elas libertam uma feromona de alarme e vão atrás de ti. E
não podes largar a alça ou colocá-la no chão depressa, entendido?
Harry pestanejou e anuiu.
– Ótimo. Vou dizer-te o que deves fazer a cada etapa. Só tens de me ouvir.
Finge que estás em câmara lenta. Como se estivesses debaixo de água, como
o Tai Chi. Não estou a brincar. Consegues fazer isso?
– Sim. Consigo.
Jake fê-lo respirar lentamente dez vezes e correu o fecho do chapéu sobre a
cabeça de Harry.
Cheney ofegava deitado na relva ensolarada e viu os dois jovens entrarem
no apiário – um vestido como um astronauta e o outro com uma T-shirt cor de
laranja e calças de ganga, a cabeça calva a brilhar ao sol. Jake orientou Harry
através da remoção da primeira alça do seu suporte usando a ferramenta. A
seguir Harry ergueu lentamente a alça para a bancada de trabalho
improvisada sobre o colo de Jake e pousou-a ao lado da alça vazia. Harry
afastou-se para uma distância mais segura e abriu o chapéu. Jake ficou
sentado de olhos fechados, a respirar devagar e a pensar nos passos seguintes.
Quando abriu os olhos, viu Harry a observá-lo. Soltou a tampa da colmeia e
retirou-a cuidadosamente. Duas ou três abelhas saíram e pairaram perto do
rosto de Jake, em seguida, em torno da sua T-shirt. Um aterrou na sua cabeça
recém-rapada e ele sorriu.
– Olá, meninas – murmurou ele. – Chegaram os homens das mudanças. Vai
tudo correr bem.
Soltou e transferiu os quadros para a alça com a entrada agora em cima, e
depois recolocou a tampa. Acenou para Harry.
– Okay, Stokes. Esta já está. Leva-a de volta!
Assistir ao envolvimento silencioso de Jake com as abelhas parecia tê-lo
encorajado e Harry estava mais calmo. As seis alças foram transferidas numa
hora. Viram que as abelhas que tinham ido buscar alimento estavam a
encontrar o seu caminho através das entradas superiores das novas colmeias.
Jake bateu palmas.
– Fixe, hoje já estamos despachados – disse ele.
Olhou para os grandes pinheiros na orla do prado, que agitavam os seus
ramos com o vento oeste.
– Levantou-se o vento! Vamos até à praia dos kites!
20
DANÇA DAS ABELHAS
Quando em voo, as abelhas intercomunicam com uma rapidez tão
surpreendente que os sinais telegráficos dificilmente são mais
instantâneos.
– L. L. LANGSTROTH

Cada membro de uma colónia de abelhas está unido por um elo comum – a
feromona da sua mãe e rainha, um perfume que se espalha pela colmeia como
uma marca de pertença. Essa feromona de limão é uma garantia constante
para cada uma das cinquenta mil abelhas murmurantes de que ela está em
casa. Os humanos não têm tais interconexões óbvias, pelo menos fora das
suas famílias. E Jake, claro, não tinha a sensação de pertencer nem mesmo à
casa da sua família. Em vez disso, o lar era algo de que ele ansiava por
escapar, juntamente com toda a povoação de Hood River.
Durante as suas primeiras semanas no hospital, ele desenhara o mapa de
Hood River diversas vezes na sua mente. O bairro de Heights, onde os
habitantes locais viviam e faziam compras. Os três blocos quadrados de
butiques, bares e restaurantes do centro da cidade, por onde os turistas
passeavam com cafés nas mãos, a bloquear o trânsito enquanto serpenteavam
pelas passadeiras. A zona ribeirinha para onde os moradores e visitantes
convergiam. Esta última era o recreio de Jake – a pista de skate ao lado da
praia dos kites e o banco de areia gigante que se derramava no Columbia. Ali
ele correra com Cheney e sentira o vento soprar na sua pele nua pelo que
pareceram incontáveis horas. Dentro daquelas fronteiras encontrara algumas
coisas boas e outras más, mas esperara escapar de tudo, se não para Seattle,
pelo menos para Portland. Mas, deitado no quarto de hospital, a sua terra
natal surgia no horizonte como um tanque de contenção permanente. No dia
em que a mãe o levara da clínica de reabilitação para casa, as ruas estavam
sujas de lama e uma abóboda cinzenta de céu pressionava o desfiladeiro. Ele
sentira um peso frio instalar-se no estômago quando viraram para o caminho
de acesso.
À medida que os meses passavam, crescia também a sensação esmagadora
de claustrofobia. Ele ouvia os pais e vizinhos saírem para trabalhar de manhã
e depois ouvia a circulação dos camiões a descerem Tucker Road o dia todo.
Os mesmos vizinhos e pais voltavam à mesma hora todas as tardes. Mesmo
quando ele estivera no centro de reabilitação em Portland, tivera a certeza de
que a vida continuava inalterada naquela pequena povoação. Na sua mente,
os autocarros iam e vinham para a primária de May Street. No verão, a faixa
do Elks Club voava sobre Jackson Park a anunciar a festa Summer Family
Daze. A piscina ecoava com as vozes das crianças e os jogos de futebol
juvenil tomavam conta dos campos de jogos aos fins de semana. Houve um
pequeno-almoço com panquecas nos bombeiros, uma fila de carros clássicos
no desfile do Quatro de Julho e os Wild Weiner Days e Dachshund Dash
anuais. Nada mudava ali.
Mas agora, a atravessar a povoação com Harry, algo mudara. Jake teve a
estranha sensação de que estivera noutro lado durante muito tempo. Olhou
para o cenário familiar e sentiu o brilho da sua beleza.
Harry conduzia a velha pickup de Alice, que era mais pequena e mais baixa
do que a sua nova carrinha. Ele amarrara uma correia em redor do volante
para Jake entrar e sair com mais facilidade. Havia espaço de sobra na caixa
aberta para a cadeira e para Cheney, que entrou e se apoiou na janela traseira,
sorrindo para o vento enquanto saíam do vale e rumavam à cidade.
Jake pousou o braço ao longo da janela aberta e inclinou a cabeça para trás.
Quando a pickup desceu para a cidade, a vista abriu-se e Jake sentiu uma
grande alegria. Via a vasta extensão do rio Columbia com as ondas
espumosas açoitadas pelo vento, o sol nos penhascos de basalto a norte e
nuvens de algodão-doce a subir para as nuvens de tempestade a oeste. Fechou
os olhos, respirando o cheiro a fermento da pFriem Family Brewers
misturado com o aroma de grãos torrados do Dog River Coffee. O vento
soprava forte e açoitava o pequeno veículo.
Na zona ribeirinha, Jake esperou que Harry tirasse a sua cadeira enquanto
observava a cena à sua frente. Na pista de skate, um miúdo desceu para o
halfpipe e aterrou do outro lado com estrépito. A longa faixa verde de relva
estava cheia de gente em fatos de neopreno a encher os kites. No banco de
areia, o grande rio verde banhava a costa arenosa. Jake praticamente vivera
ali durante o secundário. Ele e Noah costumavam ir para a pista de skate logo
depois das aulas e, em seguida, descansavam na relva até ao pôr do Sol. No
verão, a luz sobre o cume perdurava até quase às 22h00. Ele passara ali
centenas de horas. Por um momento sentiu uma profunda tristeza por aquela
vida passada. Mas então Harry apareceu com a sua cadeira e ele afastou a
sensação.
Cheney puxou a coleira enquanto eles se deslocavam em direção à relva e
Jake sentiu-se grato pelo caminho acessível a pessoas com deficiência, em
que nunca reparara nos velhos tempos porque não precisara. Enquanto
avançava, sentia as pessoas a olhar para ele e para a cadeira. Se encontravam
os seus olhos, desviavam o olhar como se estivessem envergonhados. Parecia
que todos estavam a olhar. Jake sentiu-se repentinamente nu. Talvez fosse
demasiada exposição – ir à beira-rio pela primeira vez desde o acidente.
Mas então olhou para Harry, que examinava a multidão de praticantes de
kitesurf, e reparou na sua palidez. Também não falara muito durante a
descida. Jake viu gotas de suor a brotar da testa de Harry e ocorreu-lhe que
fora ele quem sugerira que procurassem o amigo do kitesurf de Harry, não o
próprio Harry.
– Sabes, o Yogi pode nem estar aqui. Portanto, podemos voltar, sabes, tipo,
quando quisermos – disse Harry.
A sua voz era aguda de ansiedade e Jake sentiu a sua própria preocupação
diminuir com uma onda de empatia. Pobre Stokes, pensou ele. Inclinou-se
para trás e equilibrou-se nas rodas traseiras, sorrindo para Harry.
– Está-se bem – disse ele. – Vamos aguardar um pouco.
Avançaram por entre os kiters e Jake soltou Cheney, que correu em direção
ao banco de areia. Jake viu o grande cão cair de barriga no canal e depois
olhar em busca do seu rapaz. Sentiu um nó na garganta quando o cão correu
para ele, o borrifou com água do rio e beijos, e se afastou de novo. Correu ao
longo da beira da água, latindo e tentando morder as gaivotas. A tristeza de
Jake diminuiu um pouco com a alegria do cão. Fechou os olhos e cheirou o
rio, sentiu o vento quente na pele nua.
– Merda! – sussurrou Harry.
Os seus olhos estavam fixos num homem grande que subia pela relva num
fato de mergulho a pingar, o cabelo comprido penteado para trás. O homem
sorriu abertamente e deu um soco no ombro de Harry.
– Meu homem! As condições são perfeitas. Vai ser épico!
Olhou para Jake e a potência do seu sorriso aumentou ainda mais.
– Como vais, irmão? – Estendeu o punho carnudo. – Sou o Yogi.
Jake bateu no punho dele.
– Jake.
– Prazer em conhecer-te, irmão. O Harry vai adorar esta merda, não vais,
Harry?
Jake reconheceu o terror silencioso nos olhos do seu novo amigo, mas Yogi
não pareceu notar.
O grandalhão bateu palmas.
– Vai ser altamente! Okay, eis o que vamos fazer hoje. Introdução ao
equipamento e noções básicas de kitesurf. Vamos lá. Tenho tudo preparado.
Yogi afastou-se do passeio em direção a um grupo de rapazes adolescentes
e de uma rapariga sentados em volta de uma pilha de equipamento na relva,
os braços magros cruzados sobre o peito para se protegerem do vento frio.
Jake seguiu Harry depois de confirmar que o chão era navegável. Os jovens
olharam sem palavras para a cadeira de Jake e a sua careca. A seguir olharam
para Yogi.
– Okay! Ouçam, malta! Regra número um: isto não é uma aula de kitesurf.
Eu não sou um instrutor. Estou simplesmente aqui parado a falar sobre
kitesurf e por acaso vocês estão aqui perto. Se algum de vocês disser aos
vossos pais que vos dei uma aula, dou-vos um chuto no cu. Considerem isto
um anúncio de utilidade pública, certo? Tudo bem, Tommy?
Virou-se para o rapaz mais próximo, um ruivo pálido que parecia pesar
menos do que Cheney.
– Hum. Sim. Certo, Yogi. Não é uma aula de kitesurf – disse ele num suave
soprano.
– Ótimo. Certo. Regra número dois: conheçam o vosso equipamento.
Os jovens inclinaram-se enquanto Yogi lhes mostrava o equipamento: fato
de neopreno, capacete, colete de flutuação, arnês, barra, linhas, prancha e o
kite em forma de banana. Explicou como o equipamento funcionava em
conjunto, mostrou os procedimentos de segurança e de emergência e
sublinhou a necessidade de cuidar do próprio equipamento. Isso significava
guardá-lo corretamente quando não estava a uso e não deixá-lo exposto ao
sol. Desenrolou o kite, que era rosa florescente, e os jovens revezaram-se na
bomba, os braços magros a subir e a descer, até ele estar completamente
cheio. Yogi virou-o de modo a ficar de frente para o vento e prendeu-o com a
prancha para mantê-lo no lugar.
– Bom trabalho! – disse ele, batendo palmas. – Bem. Okay. Regra número
três: não sejam uns palhaços na praia!
Falou sobre a janela de vento, a força do kite, descolar e aterrar em
segurança e etiqueta na praia. Explicou-lhes onde ficar quando estivessem
entre os kites no banco de areia e como estar atento às pessoas em volta.
Disse-lhes como era importante olhar para os outros kiters para manter a
segurança. Os jovens bebiam cada palavra.
– Qual é a regra número três?
– Não ser um palhaço na praia!
– Isso mesmo!
A rapariga levantou a mão.
– Autumn?
– O que acontece se o kite bater na água?
– Tens de relançar a maldita coisa – respondeu Yogi. – Não há uma maneira
certa. Depende do vento e da corrente. Uma coisa é certa, porém. A vossa
atitude é tudo. Se querem que aquele bebé voe, têm de acreditar que
conseguem fazer isso acontecer. Faz sentido?
Os jovens assentiram e Yogi sorriu.
– Ótimo! Agora, vocês pintinhos são ainda muito magros para
experimentar isto. Mas aqui o Harry Stokes vai nessa!
Agarrou em Harry pelos ombros e sacudiu-o. Jake viu o rosto de Harry
ficar cinzento.
– Vamos praticar a descolagem e a aterragem no banco de areia. Podem vir
assistir, mas, novamente, qual é a regra número um? Isto não é...
– Uma aula de kite! – gritaram os jovens.
– Tommy, leva o kite. Autumn, leva a barra e as linhas. Os outros sigam-nos
e levem aquele kite. Harry, veste o equipamento – disse ele.
A pequena multidão desatou a correr e Yogi pegou na prancha e seguiu-os.
Harry enfiou-se a custo no fato de neopreno, que era demasiado grande para
ele, sendo do tamanho de Yogi. Pendia nas virilhas e estava muito largo em
volta do pescoço. Colocou o capacete, com o rosto coberto de suor, e
entregou as chaves da pickup a Jake, murmurando:
– Não acho... Devo estar de volta bastante... Se eu...
– Ei, Harry – disse Jake. – Respira, meu.
Harry encontrou os olhos de Jake, engoliu em seco e acenou com a cabeça.
– Anima-te, Stokes! – gritou Yogi da beira da água.
Jake viu o amigo caminhar em direção ao banco de areia, com os ombros
caídos e os olhos fixos nos pés, parecendo que estava a ir para a prisão. Jake
ouvia a voz encorajadora de Yogi acima do som do vento. Ele tinha
entusiasmo suficiente pelos dois, pensou Jake. Atravessaram o canal até ao
banco de areia e depois Jake deixou de conseguir ouvir Yogi.
O sol da primavera aqueceu-lhe a cabeça e ombros enquanto ele olhava
para o rio. O parque não estava tão cheio como no verão. Cerca de duas
dezenas de kites pontilhavam o banco de areia, a aguardar o lançamento, e
um punhado de velas de windsurf brilharam nas ondas brancas. Uma barcaça
entrou no meio do canal e emitiu um aviso enquanto os praticantes de kitesurf
e windsurf saíam do seu caminho.
Jake sentiu uma descontração inesperada. Ninguém estava a olhar para ele,
pelo menos fixamente. Claro, as pessoas reparavam na cadeira, mas e daí?
Não fazia mal. Fechou os olhos e sentiu o sol aquecer-lhe a T-shirt. Ouviu um
zumbido familiar e olhou para o relvado à sua frente. Uma abelha pousou
num aglomerado de dentes-de-leão e avançou por entre as grandes nuvens de
pólen, logo acompanhada por outras. Uma pousou no peito de Jake e andou
um pouco, talvez confundindo a sua T-shirt laranja com uma flor gigante, e
depois voltou para os dentes-de-leão.
– Olá, meninas – murmurou Jake.
Examinou o banco de areia e viu Cheney correr para Harry e Yogi e colocar
as patas no peito de Harry. Então o cão encostou o focinho no chão e voltou
pelo canal e subiu pela relva. Deitou-se aos pés de Jake, ofegante e sorrindo.
Jake acariciou-lhe a cabeça larga.
– Lindo menino, Cheney.
O cão apoiou o queixo nas patas e adormeceu.
Jake ouviu o barulho de um skate e um rapaz pré-adolescente a gritar como
o Tarzan. Mas isso não o deixou triste. Sentia-se quase despreocupado,
sentado no seu lugar favorito com Cheney. Sol, vento, abelhas e um cão a
roncar. Tentou perceber como se sentia e ficou admirado com a resposta.
Sentia-se feliz. Sim, feliz por estar sentado ao sol à beira do rio com o cão
num dia de semana ventoso. Era bom.
Observou as abelhas nos dentes-de-leão e a sua mente voltou ao que
estivera a ler naquela manhã sobre o movimento das abelhas – aquela
estranha dança circular e em oito que as abelhas realizavam para demonstrar
a localização e a qualidade de uma boa reserva de néctar. Quanto melhor a
fonte, mais entusiástica a dança. As outras iriam replicá-la até que a tivessem
aprendido de cor – a que distância, em que ângulo em relação ao sol, em que
direção e que quantidade. Tudo isso era incrível.
O movimento das abelhas fê-lo pensar em «Wiggle Waggle», a música que
o seu sexteto de jazz tocara no primeiro ano. Ele e Noah eram os metais.
Foram perfeitos naquele dia – leves e vigorosos – e ficaram em primeiro
lugar. Mais do que o prémio, ele lembrava-se da sensação – as válvulas sob
os dedos, a pressão do bocal contra os lábios, a regulação da abertura. Outro
dia tirara o trompete da caixa e segurara-o nas mãos. Levara-o à boca, mas a
emoção não lhe permitira tocar, portanto tornara a guardá-lo. Sentiu uma
profunda vontade de tocar naquele momento. Talvez lhe pegasse quando
voltasse para casa de Alice e tocasse um pouco. Talvez pudesse tocar a
escala. Perguntou-se o que pensariam as abelhas se ele tocasse «Wiggle
Waggle» para elas.
Jake bebeu um gole da garrafa de água e examinou o banco de areia. Viu
Harry e os miúdos em volta do grande kite rosa na extremidade norte. Ouviu
uma rapariga rir e olhou para um grupo de adolescentes atrás dele.
Reconheceu alguns da escola. Eram raparigas e só um rapaz. Uma delas era a
irmã mais nova de Megan Shine. Como se chamava ela? Michelle? Era loira
e tinha o mesmo corpo de chefe de claque que a irmã. O rapaz segurava um
Husky pela trela. Michelle inclinou-se para acariciar o cão, que olhava na
direção de Jake. Cheney levantou-se de um pulo, rosnando, e correu para ele.
– Ah, merda! – murmurou Jake. Soltou o travão da cadeira e seguiu-o. –
Cheney! – gritou ele. – Anda cá, rapaz!
Os dois cães ficaram frente a frente, fazendo uma dança de pernas rígidas
com as caudas erguidas. Cheney fez uma vénia profunda e então correu em
direção à água. O Husky arrancou a trela da mão do rapaz e foi atrás de
Cheney. O rapaz correu atrás dele, chamando:
– Yuki, anda cá! Yuki! Cão mau!
Jake suspirou e viu-os partir. Colocou a trela de Cheney nos ombros.
– Eles vão voltar – disse para ninguém em particular.
Sentia as raparigas a olharem para ele por detrás dos óculos de sol e disse a
si mesmo que não importava.
– O Landon é hilariante – disse Michelle, rindo. – Quero dizer, a Yuki foge
a cada cinco minutos.
Jake voltou para o seu lugar na relva.
– Ei! Hum, andaste aqui na secundária? – perguntou uma voz. Uma
rapariga de cabelo preto curto afastou-se do grupo. Deu um passo em direção
a Jake e empurrou os óculos escuros para o cimo da cabeça. Usava uma T-
shirt preta, calções de ganga e Chuck Taylors vermelhos. A sua pele era
pálida e sob o seu cabelo escuro havia um par de olhos verdes intensos.
– Sim. Turma de dois mil e treze – respondeu Jake.
A rapariga aproximou-se e enfiou as mãos nos bolsos de trás. Curvou-se e
cruzou um tornozelo sobre o outro. Não parecia uma chefe de claque. Nem
um pouco e Jake não conseguia tirar os olhos dela: os seus braços e pernas
esguios de Bugs Bunny, o seu cabelo desgrenhado e aqueles olhos verdes.
– Acho que estava sentada à tua frente nos ensaios da banda – disse ela. –
Tocava clarinete. Lembro-me de ti e do teu amigo, o grandalhão com o
cabelo encaracolado?
– Katz. Noah Katz – disse Jake. – Sim, a turma do Schaffer.
– Vocês eram terríveis, hem? Eu estava lá naquele dia em que deitaste leite
na tuba do Matt Swenson – disse ela.
O sorriso de Jake desapareceu. Aquilo parecera divertido na altura. Ele
desviou o olhar.
– Sim, bem. Estávamos a ser uns idiotas. Que merda estúpida.
Ela corou.
– Desculpa! Não queria...
– Não te preocupes com isso – disse Jake, sorrindo. – Eu sou o idiota. Não
tu.
Ela sorriu, o rosto ainda corado e os seus olhos verdes pareceram
ensombrar-se. Ele lembrava-se vagamente dela da aula de música. Fora
caloira. Clarinete. Sim, isso mesmo. Usava o cabelo mais comprido.
Uma mancha castanha surgiu entre eles e Cheney sacudiu-se da cabeça ao
rabo, projetando areia. A rapariga gritou.
– Malvado! – gritou Jake, levantando as mãos. – Desculpa.
A rapariga riu-se e limpou o rosto com o braço.
– Não há problema. Eu já estava cheia de areia. Ele é fofo. Como se
chama?
Ajoelhou-se ao lado do cão grande, que rolou e lhe ofereceu a barriga
arenosa.
– Cheney. É um amante, não um lutador – disse Jake.
O rapaz chamado Landon voltou a subir o relvado com o Husky a puxar a
sua trela. Cheney deu um salto, ganindo, e Jake agarrou-o pela coleira.
– Meu! Sabes que é obrigatório os cães andarem de trela aqui, certo? –
perguntou o rapaz, olhando para Jake.
– Caramba, Landon – murmurou uma das raparigas.
– Cheney, senta-te – ordenou Jake e Cheney obedeceu. Indicou com a
cabeça o Husky. – Belo cão – disse. – Parece que eles querem ser amigos.
– Isto é um Husky do Alasca com pedigree – retorquiu o rapaz com ar de
desdém. – Vai criar cães de trenó campeões. Não engravidar de um maldito
rafeiro de praia.
– Ei, meu – disse Jake e ergueu as mãos. – Porque não te acalmas um
pouco?
Ouviu-se um silvo alto quando alguém esvaziou um kite. Yuki levantou-se
com o som e correu em direção à água, puxando pela trela. As raparigas
riram-se enquanto Landon perseguia a sua cadela. Jake soltou a coleira de
Cheney e deixou-o juntar-se à perseguição.
– Ups – fez ele e a rapariga de olhos verdes riu-se.
– Ei, Amri! – chamou uma das outras. – Vamos embora. Queres boleia ou
não?
– Sim! Esperem por mim! – Ela voltou-se para ele. – Bem. Hum. Prazer em
ver-te de novo. Chamas-te Jake, certo?
Ele assentiu.
– Boa memória. Amri?
– Diminutivo de Amrita. – Ela revirou os olhos e passou a mão pelo cabelo
curto. – Os meus pais são velhos hippies.
Jake recostou-se na cadeira e sorriu-lhe.
– Acho que é um bom nome.
Ela corou novamente.
– Amri! Vamos! – chamou a amiga.
– Bom, vemo-nos por aí – disse ela.
– Isso – respondeu Jake.
Ela correu para alcançar as amigas, acenou-lhe por cima do ombro e foi-se
embora. Jake voltou-se para a água. Viu as abelhas nos dentes-de-leão. Viu
Cheney correr no relvado. Viu o kite rosa de Yogi no ar acima da água.
Pensou nos olhos verdes de Amri, que escureciam quando ela sorria.
21
SUBSTITUIÇÃO DA RAINHA
Se não conseguem encontrar [a rainha], elas voltam para casa
desoladas e, com os seus tons tristes, revelam um profundo sentimento
de calamidade. A sua nota em tais ocasiões, mais especialmente
quando primeiro percebem a sua perda, é de um caráter peculiarmente
triste; soa um pouco como uma sucessão de gemidos graves.
– L. L. LANGSTROTH

Alice olhou para Nancy como se ela estivesse a falar uma língua estrangeira.
Atrás dos óculos de armação roxa, os grandes olhos castanhos da amiga
pestanejaram sob a sombra azul e o rímel espesso. Nancy usava a mesma
maquilhagem desde o secundário?, interrogou-se Alice.
Prestara pouca atenção à tagarelice de Nancy do outro lado da mesa na sala
de reuniões enquanto enchiam os envelopes com o mailing sobre ervas
daninhas.
– Estamos mesmo a usar a nossa educação – brincou Alice, irritada por lhe
ter calhado aquele trabalho.
O estagiário estava a resolver um problema qualquer nos servidores e Debi
Jeffreys, a chefe do gabinete, alegou que não tinha espaço na sua pequena
secretária para tratar do mailing. No ano anterior, pedira uma indemnização
porque dissera que os arquivos não estavam ergonomicamente corretos e lhe
causavam dores no pescoço. Desde então, a regra tácita era tudo o que Debi
queria, Debi conseguia.
Rich Carlson, que estava encarregado de todo o dinheiro do subsídio anual
do estado, disse que o mailing tinha de ser enviado até à meia-noite para
poderem receber o financiamento. Alice não ficou admirada por Rich
controlar o mailing sem realmente ajudar e aborrecida por ele ter esperado até
ao último minuto.
– Trabalho em equipa! É isso que mantém este lugar a funcionar – dissera
Rich, largando uma grande caixa sobre a mesa com um baque.
Alice olhou carrancuda para as costas dele. A lembrança da conversa que
haviam tido sobre o seu plano de reforma ainda estava fresca.
– Bem, acho que o velho Rich não está na equipa – disse ela, sorrindo
maliciosamente para Nancy e pegando numa pilha de folhetos.
– Ora, Alice, estou certa de que o senhor Carlson tem coisas importantes
para fazer hoje.
Alice resfolegou, mas Nancy não sorriu.
– Certo! – disse Alice. – Com certeza está agora no seu escritório a fazer
uma folha de cálculo codificada por cores das suas folhas de cálculo.
Dizia-se que Rich ocupava o seu tempo sem realmente fazer nada. Andava
pelo escritório a verificar todos os outros, mas não desempenhando nenhuma
função específica. Todos sabiam que ele recebia um salário de nível um com
um aumento anual de cinco por cento e um prémio anual. Alice não era
aumentada há quatro anos.
– Desculpe, Alice – dissera Bill na avaliação anual em março, abanando a
cabeça grande e franzindo a testa. – A recessão, sabe. O nosso orçamento está
congelado. Eu aumentava-a se pudesse. É inestimável para nós.
– ... não sabes a que pressão os gerentes podem estar sujeitos, Alice – dizia
Nancy. – Fazem muito trabalho que não vemos… trabalho importante.
Alice ficou a olhar para ela. Estaria a falar a sério?
– Ei, Nance. Olá? Estás aí? – Alice bateu na mesa. – Invasão dos
violadores?
Nancy fechou os lábios numa linha afetada e enfiou um folheto num
envelope, humedeceu-o com uma esponja e alisou-o para o fechar.
– Só acho que devias mostrar um pouco de respeito – disse ela
categoricamente.
Alice recostou-se na cadeira e soltou uma risada curta.
– Bem, saíste-me uma graxista – comentou.
Rich entrou pela porta com outra caixa.
– Obrigado, minhas senhoras! – cantarolou. – Ah, e façam uma pausa às
dez e meia. Precisamos da sala para a reunião.
– Que reunião? – perguntou Alice.
– A trimestral com toda a gente. Não leu o e-mail, Alice? – repreendeu ele
com voz de professor, apontando um dedo para ela. Sorriu para Nancy. –
Tenho a certeza de que a Nancy sabe da reunião.
Alice observou o rosto da amiga franzir-se num sorriso de menina quando
Rich saiu da sala.
– Uau. És uma graxista de primeira classe, Nance.
Nancy corou.
– Julgas que sabes tudo – silvou ela. Levantou-se da cadeira e saiu.
Alice recostou-se e olhou para uma mancha castanha no teto. Tinha a forma
da Florida e já ali estava no dia em que ela fora entrevistada para aquele
trabalho, quase vinte anos antes. Sentira-se tão animada na altura por ser
contratada. Mas agora estava apenas exausta. Pegou noutro folheto, daquela
vez lendo-o enquanto o dobrava.
«Programa anual de ervas daninhas nocivas do município de Hood River!»
declarava e expunha os perigos do problema das ervas daninhas: sufocavam
pantanais, estrangulavam plantas nativas, prejudicavam a vida selvagem. O
desenho de uma codorniz com ar desesperado fora feito por um estagiário de
verão há cerca de seis anos. Ainda usavam a mesma cópia.
No final da página, Alice viu uma nova linha: «SupraGro é um
patrocinador orgulhoso do Programa de Ervas Daninhas Nocivas do
Município de Hood River.» A sua respiração ficou presa. Tirou uma
fotografia àquilo e mandou-a numa mensagem de texto a Stan. «Leia o fim»,
escreveu.
Os testes feitos às colmeias mortas de Alice tinham mostrado uma clara
saturação de produtos químicos iguais aos da SupraGro. Mas o programa de
ervas daninhas aumentava consideravelmente a parada. Aquilo ia além de
pulverizar os pomares, o que já era suficientemente mau. Era um projeto que
abrangia todo o município com centenas de quilómetros quadrados e
começaria no início do verão. Isso significava que os pesticidas da SupraGro
seriam pulverizados em todas as estradas, parques, escolas, terrenos baldios e
bueiros em todo o município. Podia matar as ervas daninhas, mas também
envenenaria o trevo, os dentes-de-leão, os ásteres e os girassóis. O
escoamento seria então drenado das valas para os riachos e rios até
contaminar toda a bacia hidrográfica do desfiladeiro do rio Columbia.
As pessoas começaram a entrar na sala para a reunião.
O telefone de Alice vibrou. Stan tinha respondido: «Bestial! Vamos
processá-los com a PDX Riverkeeper. Mantenho-a informada. Obrigado!»
Aquilo era alguma coisa. O aperto no seu peito diminuiu e ela sentiu uma
nesga de esperança.
Bill entrou pesadamente na sala, puxando as calças para cima e o pólo para
baixo antes de se sentar numa cadeira. Nancy entrou e sentou-se perto da
frente. Bill pigarreou.
– Obrigado a todos por arranjarem espaço nas vossas agendas hoje. Isto vai
ser rápido. Apenas um ou dois assuntos no trimestre.
Colocou os óculos de leitura.
– O primeiro é apenas um lembrete de que o novo seguro de saúde entra em
vigor a partir do dia um de junho, portanto, esperem ver isso no vosso e-mail
em breve. Não vos custa mais, mas inclui complementos como cessação
tabágica, aconselhamento nutricional e saúde cardíaca.
Bill declamou um endereço de e-mail e o número de telefone do
atendimento ao cliente, caso alguém tivesse dúvidas. Então afastou o papel e
recostou-se. A sua cadeira rangeu e ele riu-se enquanto os olhava por baixo
das sobrancelhas grossas.
– Este segundo anúncio não vai surpreender muitos de vocês – disse ele. –
Como sabem, estou no município há quase trinta e cinco anos. Vi-o crescer e
tive muito orgulho em liderar a minha equipa na construção do futuro de
Hood River. Passámos de uma pequena povoação com pomares de que
ninguém ouvira falar para um destino de turismo internacional e empresas de
tecnologia! Estou orgulhoso disso. Estou orgulhoso de vocês.
Gesticulou com as suas mãos gordas e depois fechou-as em punhos sobre a
mesa. Houve aplausos dispersos.
– Obrigado – disse ele. – Mas realmente o trabalho foi todo vosso. Eu só
pilotei o navio. – Fez uma pausa. – No entanto, tudo o que é bom acaba.
O coração de Alice começou a bater mais depressa. Seria agora? Não
conseguia acreditar que estava por fim a acontecer. Porque não a avisara ele?
Teria deixado escapar algum e-mail?
– A minha mulher quer que eu me reforme, e chegou a hora. Vou deixar
oficialmente o município no final deste mês, no fim do nosso ano fiscal.
Alice endireitou-se e agora todos estavam a aplaudir.
– Obrigado! Obrigado a todos – disse Bill. – A sério. São muito amáveis.
Agora, qualquer transição leva algum tempo. E quero que saibam que vou
deixá-los em boas mãos.
Olhou para Alice e depois desviou o olhar.
Ela corou. A sua respiração acelerou. Demorara muito tempo, isso era
certo. Tivera anos para pensar como geriria o gabinete depois de estar no
comando. Por enquanto, manteria as coisas simples. Sorriria e diria obrigada.
– ... uma liderança que vos orientará durante os próximos anos e manterá o
município de Hood River na direção certa – disse Bill.
Debi Jeffreys deu uma cotovelada a Alice e outras pessoas começaram a
murmurar.
– Vou trabalhar muito para ajudar a prepará-la para ocupar o cargo. Mas sei
que ela não terá problemas em substituir-me. É com grande prazer que
apresento a vossa nova diretora interina: Nancy Gates!
Bill bateu palmas e sorriu para Nancy. Houve uma pausa, e então outras
pessoas juntaram-se a ele, olhando para Alice e depois para Nancy. Nancy
soltou uma risada e esboçou um pequeno aceno. Alice tentou recuperar o
fôlego. Os seus ouvidos zumbiam.
– Inacreditável – murmurou Debi. – Alice, sinto muito.
Bill estava a terminar.
– ... quero que saibam que estarei aqui para responder a quaisquer
perguntas durante este mês de transição. A minha porta está sempre aberta!
Afastou-se da mesa e levantou-se. Houve mais aplausos. Alice viu Nancy,
na sua mente, a sair do escritório de Bill. Também viu o que se recusara a
admitir: a mão de Bill no traseiro de Nancy. No dia da reunião da SupraGro,
quando os dois desapareceram, não foi a primeira vez que Alice não
conseguiu encontrar ambos.
Esperou que todos saíssem. Jim Murphy encolheu os ombros e abanou a
cabeça para ela ao passar. Outros olharam para ela como se quisessem dizer
alguma coisa, mas não o fizeram. Quando a sala ficou vazia, ela levantou-se e
voltou para a sua secretária.
Nancy estava sentada muito direita e com os olhos no monitor.
– O senhor Carlson quer falar contigo, Alice – disse ela, sem erguer os
olhos.
Alice ignorou-a e bateu à porta de Bill.
– O senhor Chenowith foi almoçar mais cedo – informou Nancy, a sua boca
numa linha afetada. – Podes deixar recado comigo, se quiseres.
Alice encarou-a e a bravata de Nancy derreteu sob o seu olhar. O mais
surpreendente não era a traição de Nancy, percebeu Alice, mas o facto de ela
não a ter antecipado. Nancy copiara os seus testes de espanhol no secundário.
Deixara Alice assumir a carga de trabalho enquanto Bill fazia cada vez
menos. Chegava tarde, saía mais cedo e passava horas a circular pelo
escritório com uma caneca de café, a sua risada em todos os cantos, a
recolher mexericos. Sabia qualquer coisa sobre todos. Nancy recolhera
podres como um tesouro e guardara-os para mais tarde. Alice abanou a
cabeça, todas as peças a encaixarem-se.
– És perfeita para o trabalho, Nance – disse ela.
Nancy esboçou um sorriso fraco.
– Obrigada, Alice. Quer dizer, tenho a certeza de que estás desapontada…
– Não, és perfeita. És uma graxista e não fazes a ponta de um corno.
Agarrou na mala e dirigiu-se para a porta da rua. Ao passar pela receção,
Debi lançou-lhe um olhar de advertência:
– O Carlson anda à tua procura.
Alice continuou em direção à saída. Uma ova é que ia falar com Rich
Carlson naquele momento.
Como se convocado, ele apareceu à porta do seu gabinete e sorriu para ela,
o dente amarelo a sair do lábio superior fino.
– Exatamente a pessoa que eu procurava! Por favor, entre.
Alice suspirou, entrou e estremeceu quando ele fechou a porta atrás dela.
– Sente-se! Por favor!
Ele ajeitou o casaco e puxou a cadeira para a frente, apoiando os cotovelos
na secretária.
– Muito bem, Alice. Tenho a certeza de que ficou um tanto admirada com o
anúncio do Bill hoje. Talvez um pouco desapontada, hem? – Ele fez uma
carranca, como se Alice fosse uma criança que acabara de deixar cair o
gelado. – Bem, não vale a pena insistir nisso. A sua vez chegará quando for a
hora certa. O Bill fez a sua escolha, e tenho certeza de que a Nancy fará um
excelente trabalho, especialmente consigo a bordo para apoiá-la como apoiou
o Bill.
Alice não disse nada. Observou Rich como se de muito longe.
Rich abriu uma pasta.
– Não é segredo que o Bill falou da sua candidatura em tempos.
Alice ficou em silêncio.
– E apreciamos o seu trabalho. Por isso, gostaríamos de a promover! Tenho
aqui um novo contrato que entrará em vigor no início do próximo mês. A
Alice será a diretora sénior da equipa do gabinete de planeamento e isso virá
com um aumento de quinze por cento! Não é despiciendo, pois não?
Empurrou o papel sobre a mesa para ela, mas Alice não o olhou.
– Diretora sénior – repetiu ela. – Quem estaria eu a dirigir? Quem vai
substituir a Nancy?
Rich fez uma careta numa tentativa de sorrir. Esfregou as mãos magras. O
som da sua pele seca fez Alice estremecer.
– Bem, não vamos preencher já a posição. Como parte da reorganização,
isso dá-nos o dinheiro extra para o seu aumento.
– Estou a ver. Então quer que eu faça o meu trabalho e o da Nancy por mais
quinze por cento? É isso?
Rich pareceu irritado e recostou-se.
– Isso é olhar para o copo meio vazio, Alice. Pense na oportunidade de
liderança que terá aqui.
Alice riu-se.
– O quê, liderar-me a mim própria? Já faço isso, Richard.
Rich não gostava de ser ridicularizado. Também não gostava que o
tratassem por Richard e Alice sabia. Uma vez dissera-lhe que só a mãe lhe
chamava isso. Inclinou-se para a frente novamente e virou os seus olhos
redondos para os dela.
– Olhe, Alice. Francamente, você não tem jogado em equipa nos últimos
tempos – disse ele. Abriu outro dossiê e espalhou o seu conteúdo pela mesa.
Alice viu o artigo de jornal e a fotografia com Stan. Viu e-mails de Nancy.
Um olhar superficial mostrou-lhe que andara a documentar os comentários e
piadas de Alice sobre o diretor e os outros membros da administração.
Rich recostou-se na cadeira, sorrindo presunçosamente e unindo os dedos
em pirâmide.
– Tenho a certeza de que vê como isto parece do nosso ponto de vista –
murmurou ele. – É realmente do seu interesse portar-se bem, Alice. Vai ter de
trabalhar com a Nancy, goste ou não, e com o Bill também.
– O que quer dizer? – perguntou ela. – O Bill vai-se reformar.
Rich abanou a cabeça, unindo os lábios.
– O Bill vai-se reformar do município – disse ele. – Trabalhará connosco
como consultor externo. Pela SupraGro.
Alice olhou para a linha do cabelo a recuar de Rich e as zonas nuas do seu
couro cabeludo. A caspa cobria o poliéster escuro dos seus ombros. Olhou
para trás dele e pela janela em direção à água. Lembrava-se daquele dia no
quarto ano, quando dissera que queria ser agricultora e a turma se rira. A
senhora Tooksbury casara e mudara-se para Portland quando Alice estava no
sexto ano. Ela gostaria de dizer à professora que não era verdade – que uma
pessoa não podia ser o que queria. A vida era muito mais complicada do que
isso. Mas sabia agora, com a mesma certeza, que uma pessoa também não
podia ser o que as outras pessoas queriam que ela fosse.
Empurrou o contrato na direção de Rich.
– Não, obrigada – disse ela e levantou-se, pondo a mala ao ombro.
Ele pareceu irritado.
– Vamos, Alice. Isto é uma ótima oferta. Ambos sabemos que não vai
conseguir mais do que isto.
– Pois não – concordou Alice. – Tem razão.
– Bem, vamos despachar isto? – Estendeu-lhe uma caneta.
– Sim, vamos – respondeu ela. – Demito-me.
Pela primeira vez, Rich Carlson ficou sem palavras. Alice deixou a porta
aberta e saiu do edifício do município de Hood River para o sol de maio.
Alice Holtzman nunca desistira de nada na sua vida. Era de confiança,
estável e leal. Alice Capaz. Mas agora ia-se embora, sem mais nem menos.
Sentiu uma onda de alegria ao descer Oak Street. Passou pela loja John Deere
onde conhecera Buddy. Passou pelo banco, onde o pai a levara para abrir uma
conta quando arranjara o seu primeiro emprego. Lá estava a biblioteca e, do
outro lado da rua, a Livraria Waucoma. Hood River era a sua casa há
quarenta e quatro anos. Devia algo àquele sítio.
Devia ter um ar tão ansioso quando entrou nos escritórios da Watershed
Alliance que a rececionista presumiu que ela estava lá para a reunião e a
conduziu para a sala.
Stan encontrava-se diante de um quadro branco, a gesticular com um
marcador.
– ... apresentar uma moção de censura no final da tarde – dizia ele a um
grupo de cerca de dez pessoas. Parou ao ver Alice e sorriu. – Dão-me licença
um minuto? – perguntou ao grupo e atravessou a sala até ela. – Olá! – O seu
sorriso esmaeceu quando a alcançou e a sua testa franziu-se. – Está tudo
bem?
– Sim, lembrei-me de passar por aqui para ver se há alguma coisa que eu
possa fazer para ajudar.
O rosto de Stan descontraiu-se.
– Essa última parte é fundamental. Temos aqui a Portland Riverkeeper, a
associação de produtores biológicos e o pessoal do programa de educação ao
ar livre.
Virou-se para o grupo.
– Pessoal, esta é a Alice Holtzman, do gabinete de planeamento do
município. Creio que a maioria a conhece?
Alice acenou com a cabeça aos homens e mulheres em volta da mesa.
– Não quero interromper – disse ela. – Mas avise-me se houver mais
alguma coisa que eu possa fazer – acrescentou para Stan. Foi em direção à
porta.
– Por acaso, estávamos a olhar para um mapa do vale – disse Stan. – A
Alice conhece a maioria dos pomares, não é?
Ela anuiu e aproximou-se do mapa.
– Estamos a tentar descobrir onde eles vão começar a pulverizar. Sabemos
que o município cria um calendário e que depende do vento. Tem alguma
ideia de como decidem? – perguntou Stan.
Alice assentiu. As licenças vinham através do seu departamento, disse ela.
– Os pomares menores farão a sua própria pulverização e podem começar a
qualquer momento depois de quinze de abril – disse ela, pensando em Doug
Ransom. – Mas os grandes pomares precisam de pedir uma licença ao
município e anotar o dia da sua preferência. Elaboramos um calendário
dependente da previsão do vento.
Os presentes acenaram com a cabeça, murmurando.
– Por quem começam geralmente? – perguntou Stan.
– Isso muda de ano para ano – respondeu Alice e pousou a mala. – Porque
não damos uma olhadela? – sugeriu, tirando o portátil da mala.
Ligou-se à rede e clicou no calendário de pulverização. Ali estava,
perfeitamente codificado por cores e organizado por área. Como era uma das
poucas tarefas de Nancy, Alice teve um prazer extra em agarrar no ficheiro e
enviá-lo para si mesma por e-mail, com cópia para Stan.
– Está tudo ali – disse ela, desligando-se da rede. – Datas, horários e
moradas.
Stan abriu o ficheiro no seu computador e as pessoas sentadas perto dele
inclinaram-se para ver.
– Vão começar de amanhã a duas semanas – disse ele. – Pelo pomar do
Randy Osaka em Odell. Esse é um dos maiores.
Ele ergueu os olhos, com ar de triunfo.
– Podemos estar prontos nessa altura, não podemos?
O grupo assentiu, murmurando em concordância.
– Vamos organizar-nos – disse ele. – Começando com a lista de tarefas
principais: jurídicas, alcance comunitário e comunicação social.
Alice levantou-se e pôs a mala do computador ao ombro.
– Vou deixar-vos tratar disso – disse ela e preparou-se para sair.
– Vai voltar ao trabalho? – perguntou Stan, acompanhando-a até à porta.
– Não. Na verdade, acabei de pedir a demissão! – exclamou ela com uma
risada.
– Uau! Parece que há aí uma história – observou Stan, inclinando a cabeça.
– Está feliz com isso?
– Nunca estive mais feliz – respondeu Alice.
– Bem, então não se vá já embora. Precisamos da sua ajuda.
Ela teve todo o gosto em ficar. Fez uma lista dos donos de pomares que
conhecia, ordenada por aqueles que poderiam estar recetivos à mensagem do
grupo. O objetivo era forçar o município a abandonar o contrato com a
SupraGro e voltar para um dos muitos herbicidas menos tóxicos aprovados
pela coligação local, que era formada pela Hood River Watershed Alliance,
Portland Riverkeeper, o programa de educação ao ar livre, o grupo de
agricultores biológicos, e uma longa lista de residentes, incluindo médicos e
enfermeiros de todo o vale. Alice falou-lhes da petição dos apicultores.
Achava que poderia convencê-los a juntarem-se à luta.
Stan perguntou-lhe se estaria disposta a abordar alguns dos donos dos
pomares. Alice concordou, percebendo que pelo menos três deles também
eram apicultores e tinham estado na reunião quando ela falara. Tinha a
certeza de que a ouviriam. Outros seriam mais difíceis, mas começaria no dia
seguinte, fazendo uma visita e falando com eles frente a frente. Sabia que,
quando necessário, iria invocar a memória do seu generoso pai, que todos
tinham estimado.
Olhou para Stan e para as outras pessoas que trabalhavam juntas para
proteger aquele sítio encantador a que todos chamavam lar. Pensou na sua
pequena casa no vale, onde Jake e Harry a aguardavam. Eles eram os seus…
o que eram eles? «Empregados» não era a palavra certa. Jake considerava-se
o seu aprendiz. Amigos, decidiu ela. Eles eram os seus amigos. Os seus
jovens amigos engraçados, atrapalhados e inspiradores. A Ilha Alice, ao que
parecia, poderia receber visitas regulares quando a ponte levadiça estivesse
baixada. Pensou neles enquanto conduzia para sul em direção à montanha,
em direção ao vale, em direção às abelhas e em direção a casa.
22
ALERTA DE ENXAMEAÇÃO
A partir dessas considerações, é evidente que a enxameação, longe de
ser o evento forçado ou não natural que alguns imaginam, é algo que
não poderia ser dispensado na natureza.
– L. L. LANGSTROTH
*
Harry Stokes era um homem transformado. À mesa de jantar, Alice notou que
a sua reticência e gaguez habituais tinham desaparecido enquanto ele pregava
sobre a sua recém-descoberta religião do kitesurf. Normalmente o primeiro a
acabar de comer – curvado sobre o prato e devorando a comida à espera de
poder repetir – deixou o jantar arrefecer enquanto desenhava a física do
kitesurf num guardanapo. Explicou a janela do vento, o desenho do kite, a
força das linhas e o movimento da prancha na água. Para Harry, aquilo era
mágico, percebeu Alice.
Observou-o, divertida, àquele jovem geralmente trapalhão que encontrara
confiança num lugar tão improvável. Jake sorriu para ele e abanou a cabeça.
Harry estava tão admirado como eles. Contou como as suas mãos tremiam
quando se afastara de Jake e ia para o banco de areia atrás de Yogi.
– Pensei que ia vomitar, meu!
Jake riu-se e bateu com o punho na mesa. Alice franziu a testa e Harry
baixou a cabeça.
– Desculpe, Alice! Mas, meu, não queria envergonhar-me diante de todos
aqueles miúdos. O Yogi disse que pode deixar-me fazer mais duas sessões –
continuou ele, radiante. – Disse que aprendo depressa.
Alice, que assistira ao aparecimento da febre do kitesurf nos últimos anos,
disse:
– Bem, acho que vocês são todos malucos. Não se enredam todos? Aquilo
parece um caos.
Harry sorriu.
– Sim, é um bocadinho caótico. Mas basta aguentarmo-nos. E as pessoas
gostam de abrir espaço para os novatos. É uma malta generosa.
Alice reparou que nunca tinha ouvido tantas palavras saírem da boca de
Harry de uma vez.
– Não me deixes dar cabo do teu entusiasmo, Harry. Só não quero ter de
ligar para a tua mãe quando partires uma perna – provocou ela.
O sorriso de Harry esmoreceu.
– Ei! Estava só a brincar. Não quero ser desmancha-prazeres.
Harry encolheu os ombros.
– Não. É que eu não lhe ligo há um tempo. Deixei passar os anos dela na
semana passada. Sinto-me mal, mas ainda não comprei um telemóvel e não
há telefones públicos no vale.
Alice suspirou exasperada e arrastou a cadeira para trás. Estendeu a mão
para a bancada da cozinha e colocou o telefone sem fios diante dele.
– Ligue para a sua mãe, senhor Stokes. Quando quiser. Considere isso uma
regalia. E esta coisa também funciona no celeiro.
Levantou-se com o seu prato e talheres e olhou para Jake.
– Também podes querer ligar à tua mãe, Jake.
Pousou a louça no lava-louça.
– Obrigada pelo jantar, rapazes. Tenho trabalho a fazer, portanto vão ter de
me dar licença.
No seu quarto, Alice descalçou os sapatos e deitou-se na cama. A tensão do
dia instalara-se nos seus ombros e a sua cabeça latejava.
Não disse nada a Jake ou Harry sobre ter-se despedido. Não fora o
momento certo, com Harry nas nuvens sobre o kitesurf e os dois tão
animados com as colmeias – especialmente Jake, que concluíra a
transferência quase sozinho. Ela percebia o quanto isso significava para ele. E
Harry estava orgulhoso por ter descoberto como reverter as alças.
Afeiçoara-se àqueles dois. Mas a expansão da colmeia, o plano de plantar
um pomar – tudo isso parecia impossível agora. Primeiro, precisava de
arranjar um novo emprego, o que, numa povoação daquele tamanho, não
seria tarefa fácil. Não se arrependia de sair do escritório de Rich Carlson.
Nem um pouco. Mas o trabalho do município tinha sido uma ponte para os
seus sonhos. Agora que a destruíra, precisava de construir algo novo. Não
conseguiria manter Harry, o que era uma pena. Talvez pudesse deixar Jake
ficar algum tempo.
Sentou-se, abriu o portátil e tentou ligar-se à rede do município. O acesso
foi-lhe negado e ela sorriu com ar sombrio. Rich devia ter finalmente ligado
para os informáticos. Pelo menos tivera tempo de entrar e descarregar o
calendário de pulverização para o grupo de Stan.
Olhou para a lista de quintas que prometera visitar e dividiu-as por moradas
ao longo de duas semanas. Tinham quinze dias antes de a pulverização
começar. Era muito terreno a percorrer. Mas ela estava pronta para isso.
Caramba, se estava. Sentiu-se ficar vermelha ao pensar em Bill, em Nancy,
em Rich.
Analisou as outras informações que tinham chegado às suas mãos numa
reviravolta surpreendente após a reunião no escritório de Stan.
Ele acompanhara-a à porta. Ficaram no passeio sob o sol de primavera.
Stan cruzou as mãos atrás das costas e sorriu para ela. Ela reparou novamente
que ele tinha olhos bonitos.
– Estamos muito gratos pela sua ajuda, Alice. Temos argumentos. Essa
informação do município foi uma grande ajuda. Enorme! O programa de
ervas daninhas com a rede de pomares é um golpe duplo. Parques, escolas,
vias públicas. Todos os pais nesta cidade vão ouvir agora. Não sei como lhe
agradecer.
Alice ajeitou a alça da mala do computador no ombro.
– Que tal oferecer-me uma cerveja no pFriem quando tudo isto acabar? –
sugeriu ela.
– Combinado – respondeu ele, sorrindo.
Ao afastar-se, Alice sentia-se feliz, percebeu ela, mais feliz do que nos
últimos meses. Deixar o emprego fazia-a sentir-se livre, imprudente e
animada. Dera cabo da sua reforma e das referências ao sair. E daí?
Preocupar-se-ia com isso mais tarde. Sempre fora tão cuidadosa, a confiável,
uma obreira. Onde a levara isso? Pela primeira vez, iria aproveitar o
momento.
Alice dirigiu-se ao estacionamento do município, esperando não encontrar
nenhum dos colegas de trabalho. Faltava pouco para as duas da tarde e o
parque ainda estava cheio. Caminhou rapidamente até à sua pickup azul,
abriu a porta e atirou a mala para o banco do passageiro.
Quando se preparava para entrar, sentiu uma mão no cotovelo. O sangue
rugiu nos seus ouvidos e ela virou-se para encarar Rich Carlson e o veneno
que ele iria atirar-lhe daquela vez. Mas não era Rich. Era o estagiário, o
jovem estudante ruivo. Ele saltou para trás com as mãos levantadas.
– Oh! Des-desculpe, senhora Holtzman! Não queria assustá-la – gaguejou
ele, corando.
– Credo, Casey! – exclamou ela, pousando as mãos nos joelhos e baixando
a cabeça, respirando profundamente. – Quase me provocavas um ataque
cardíaco.
– Desculpe! Peço imensa desculpa! Só… bem, tenho estado à sua espera.
Sei que se despediu hoje. Toda a gente fala disso. Todos ouviram. Estamos do
seu lado. Quero dizer, deram à Nancy o seu trabalho e tudo...
Alice ergueu a cabeça e olhou para ele, com o rosto impassível, e ele corou
novamente.
– Sei que não é da minha conta. É que… a senhora foi sempre tão
simpática para mim…
Alice acenou com a mão.
– Não, tudo bem. Foi apenas um dia difícil. Agora, o que posso fazer por
ti? Precisas que assine a tua papelada ou coisa parecida? A Nancy pode fazer
isso agora, já que é diretora interina. Não terás dificuldade em encontrar a
velha Nance, tenho a certeza.
Casey pareceu encolher-se.
– Não, não preciso de nada. Só queria avisá-la.
Alice franziu a testa.
– Avisar-me? O que queres dizer?
Casey respirou fundo e falou rapidamente.
– Ouvi o senhor Carlson falar sobre si na sala dos servidores. – Olhou para
o passeio. – Eu não estava a bisbilhotar. Estava a trabalhar nos servidores, e
ele entrou e não me viu. Assim que ouvi o que ele começou a dizer, achei
melhor ficar quieto até que ele fosse embora.
O estômago de Alice contraiu-se. Pestanejou e viu Rich a olhá-la de
sobrolho franzido do outro lado da secretária.
– Conta-me – pediu ela.
– Ele disse que a senhora era... – O jovem corou. – Ele estava a dizer a
alguém que foi pessoal, ter-se demitido, que eles realmente precisavam de
culpá-la. Disse que sabia exatamente o que iria afetá-la. Não fez sentido para
mim, mas calculei que faria sentido para si. Falou de uma Evangelina Ryan.
Quando Casey disse o nome de Evangelina, Alice gelou, como se alguém
lhe tivesse deitado água fria em cima. Evangelina. Ficou imóvel enquanto
Casey lhe contava o resto do que ouvira o desprezível Rich dizer sobre a doce
cunhada de Bud, Evangelina.
– Obrigada, Casey. Fico muito grata pela informação. Não te vou explicar
nada. Acho que é melhor não saberes pormenores.
Ele assentiu.
– Há mais uma coisa – disse, e estendeu-lhe um pequeno objeto preto. Era
uma pen. – Estes são todos os documentos sobre o acordo do condado com a
SupraGro. Mandaram-me transferir tudo do computador do senhor
Chenowith para o da Nancy hoje e, bem, fiz uma cópia. Vi a sua fotografia no
jornal com as pessoas da bacia hidrográfica e pensei, não sei, que talvez
alguém devesse olhar para isto.
Alice riu-se.
– Bem! És o Edward Snowden de Hood River! – Depois, com uma
expressão séria, acrescentou: – Obrigada, Casey. Se alguém descobrir que
tenho isto, direi que fui eu que fiz a cópia. Fico-te a dever uma, rapaz.
Casey assentiu e desapareceu no edifício.
– Não há um momento de tédio no gabinete de planeamento – murmurou
Alice enquanto se sentava na pickup.
Agora, sentada no quarto, analisou o ficheiro e tomou nota dos documentos
que podiam ser úteis para o grupo de Stan. Para começar, os pormenores do
contrato com a SupraGro e os autores do chamado estudo científico. Deviam
ter pago um bom dinheiro pelos dados manipulados ali reunidos. Em seguida,
havia a informação do pacote de reforma de Bill, sete dígitos, e os seus
honorários anuais de consultoria, que era mais do que Alice ganhara nos
últimos cinco anos juntos. Jesus. Pensou nas eternas reclamações de Bill
sobre o orçamento apertado. Fechou o portátil. Falaria com os donos dos
pomares no dia seguinte, começando pelo seu vizinho Doug Ransom. O bom
e velho Doug. Ele iria ouvir.
Mas primeiro aquela coisa com Evangelina.
Gostaria de poder ter aquela conversa com os pais de Bud e não com Ron.
Seria muito mais fácil, apesar de Alice não falar com eles há mais de um ano.
Mas não, era com Ron que precisava de conversar sobre o perigo para a sua
mulher.
Lembrou-se de Evangelina no dia do funeral de Bud. Os Ryan eram
católicos, portanto, o serviço fúnebre de Buddy tivera lugar na Igreja do
Sagrado Coração. Alice sentou-se com os pais de Bud à frente. Evangelina,
Ron e os filhos sentaram-se no banco atrás. No cemitério, Evangelina
aproximou-se e colocou o braço em volta da cintura de Alice. Foi um gesto
tão pequeno, mas Alice sentiu-se imensamente consolada quando se inclinou
para o braço da amiga. Nas festas de família turbulentas dos Ryan era sempre
Evangelina quem a fazia sentir-se bem-vinda. Gostavam da companhia uma
da outra, embora houvesse lacunas significativas entre o inglês de Evangelina
e o espanhol de Alice. Mas naquele momento, quando não havia linguagem
para tal perda, Evangelina devia ter entendido melhor do que ninguém como
Alice se sentia ao perder o seu companheiro tão cedo. Podia ter feito a si
própria as mesmas perguntas torturantes que Alice se colocara: Qual foi a
última coisa que eu lhe disse? Dei-lhe um beijo de despedida antes de ele
partir para a última viagem? Disse-lhe que o amava? Foi o suficiente?
E, no entanto, Alice sentiu a sua própria dor eclipsada pela tristeza dos pais
idosos de Bud. Os pais não deviam ter de enterrar os filhos. De alguma
forma, Alice sentiu que não tinha o direito de mostrar a sua tristeza diante da
perda deles. Em casa, depois do serviço fúnebre, abraçou-os e não soube o
que dizer. Pensou nos funerais dos seus próprios pais e como tivera Bud ao
seu lado. Era demasiado em que pensar. Desculpou-se para ir buscar uma
camisola à pickup, com a intenção de voltar para casa. Parada no caminho de
acesso, viu a família alargada e os velhos amigos reunirem-se em torno dos
Ryan, e parecia que um círculo se fechara para ela. Antes que percebesse,
estava ao volante e a meio caminho de casa.
A família ligou, mas Alice não atendeu o telefone. Mandaram o jovem
Ronnie, e ele bateu à porta bastante tempo antes de desistir. Continuaram a
ligar durante semanas. Ela sabia que devia retribuir as chamadas. Mesmo
com os fantasmas dos pais a criticarem-na, não conseguiu. Era fisicamente
incapaz de se meter na pickup e conduzir até casa dos sogros. Quando a
dormência passou, foi substituída por uma dor que ela não pensava ser
possível.
Meteu baixa durante um mês. Quando voltou, o trabalho era o único
vestígio da sua antiga vida. Deixou de ir às reuniões do clube de apicultores.
Deixou expirar a sua filiação no clube de vela. Não retribuiu chamadas.
Voltou-se para dentro. Foi quando começou a ir à mercearia depois das nove
da noite – a essa hora achou que não encontraria ninguém conhecido. Juntou-
se ali a uma multidão solitária. Começou a reconhecer os seus rostos. A
maioria era homens na fila com cerveja e tabaco ou cestos cheios de jantares
congelados. Uma vez viu Evangelina ali com a filha, as duas debruçadas
sobre os medicamentos para a constipação. Virou-se ao vê-las e escondeu-se
na secção das carnes até calcular que se tinham ido embora. Cobarde, pensou
agora.
Gostaria de poder falar com Evangelina, mas precisava de ter a certeza de
que iria comunicar aquela informação da forma mais clara possível. Tinha de
ser Ron. Pegou no telemóvel e mandou-lhe uma mensagem de texto.
«Vai ter comigo amanhã ao Twin Peaks», escreveu. «Escolhe a hora. É
importante. É sobre a Evangelina.»
Esperava que ele pensasse duas vezes antes de apagar a sua mensagem.
Adormeceu apesar do latejar na cabeça.
No dia seguinte, sentou-se com Doug Ransom e pensou que o pai teria a
mesma idade se ainda fosse vivo. Doug era um velho cavalheiro, feito do
mesmo material que Al. Os dois homens eram amigos muito antes de Alice
comprar a sua casa ao lado do pomar de Doug. Era mais fácil começar por
Doug na tentativa de recrutar os donos dos pomares para boicotar a
SupraGro.
Doug insistiu em fazer chá para Alice. A sua mulher, Marilyn, morrera há
cinco anos, percebeu Alice enquanto estava na cozinha a olhar para o papel
de parede – porcos com chapéus de cowboy com leitões a andar atrás deles.
Lembrou-se da primeira vez que Doug e Marilyn a receberam e a Bud há
muitos anos. O tempo passava num abrir e fechar de olhos. Olhou para as
fotografias no frigorífico enquanto Doug recolhia chávenas e colheres. Três
filhos, vários netos. Doug sorriu quando a viu olhar.
– Não os vejo tanto como gostaria, sabes – disse ele, abanando a cabeça
branca e sorrindo. – Muito ocupados.
Sentaram-se no alpendre e olharam para as macieiras e pereiras de Doug.
Alice vira-as florescer todas as primaveras com uma espécie de alegria
colaborativa. Sabia que as suas meninas estavam ali a polinizar.
Doug acenou com a mão para ela.
– Não precisas de tentar convencer-me de nada, Alice. Sei que as abelhas
estão a ajudar-me. A minha produção tem sido melhor desde que tu e o Bud
colocaram as colmeias – disse ele. – O Bud Ryan era um bom homem. Sinto
a falta dele.
Alice assentiu com a cabeça e sorriu. Sentia-se comovida, mas não ao
ponto de se ir abaixo. Buddy também gostara de Doug. Partilhavam um amor
por máquinas agrícolas decrépitas. Vintage, gostava Buddy de dizer. Sucata,
respondera Alice.
Doug apontou para a petição que Alice trouxera com ela.
– Vou assinar isso. O que quiseres. Lamento muito ter usado aquilo. Devia
ter feito primeiro a minha própria investigação. Já estou neste negócio há
tempo suficiente para saber. – Passou a mão pelo rosto enrugado. – A verdade
é que estou quase a sair daqui, Alice. Os meus filhos não querem o pomar.
Foram todos para oeste. Empregos técnicos em Portland e Seattle. Querem
que eu me mude para lá, que venda isto. – Ergueu as sobrancelhas hirsutas. –
Eu na cidade. Consegues imaginar?
Ambos riram. Doug costumava ir na sua moto 4 ao supermercado,
empatando o trânsito enquanto avançava devagar pela berma.
Quando Alice saiu, voltou para casa por entre as árvores de Doug.
Entristecia-a pensar que Doug ia vender o seu pomar. Ele era da velha
guarda, um dos últimos pequenos donos de pomares da geração do seu pai.
Parou entre duas filas de pereiras e olhou para as flores a formar nuvens
brancas de cada lado. Ouviu o zumbido acima dela, um telhado de som, e viu
centenas de abelhas a trabalhar.
Perguntou a si mesma se Doug faria a colheita naquele outono ou se já teria
vendido o terreno na altura. Os terrenos vendiam-se depressa no município.
Um lugar como aquele seria comprado num ápice, e não por um agricultor.
Era o cenário perfeito para o tipo de empreendimento que arruinara a casa
dos seus pais. Tentou imaginar como ficaria a terra à sua volta sem árvores e
repleta de casas de férias idênticas em forma de caixa. O pomar de Doug
também era maior – pelo menos trinta hectares. Suspirou. Casas para turistas,
a pequena estrada rural entupida de carros, o silêncio interrompido pela
música alta das festas cheias de bêbedos. Não podia fazer nada sobre isso,
mas poderia terminar aquela luta.
A sua mão fechou-se em torno da lista no seu bolso, feita com a elegante
caligrafia de Doug. Era uma contagem de aliados – com números de telefone
e moradas, que Doug sabia de cor. Entregou-lha depois de levá-la até ao fim
do caminho de acesso. Ela estendeu-lhe a mão, mas ele inclinou-se e beijou-a
no rosto, depois bateu-lhe no ombro com a mão magra.
– Vai-te a eles, Alice Holtzman. Deixa os teus pais orgulhosos.
23
VIGILANTES
A defesa da colónia contra os inimigos, a construção dos favos, e
enchê-los com mel e pólen, a criação das larvas e, em suma, todo o
trabalho da colmeia, exceto a postura dos ovos, é realizado pelas
pequenas trabalhadoras industriosas.
– L. L. LANGSTROTH

Harry entendeu que a física do kiteboarding tinha a ver com as leis do


movimento de Newton. A combinação de sustentação e arrasto mantinha o
kite no ar, e a tensão entre o kite e o peso corporal de uma pessoa era um feito
de aerodinâmica cuidadosamente calibrado. Era uma relação ténue, nunca
garantida. Mesmo assim, ter pessoalmente sentido a personificação desses
princípios deu a Harry uma nova sensação de possibilidade.
Sentara-se com Jake à mesa de piquenique sob o grande choupo, que
largava lanugem sobre as suas cabeças. Um manto de nuvens cobria o céu
azul-claro e o vento da manhã aumentara, sacudindo os ramos do pomar de
Doug Ransom. Harry desenhou a mecânica das linhas e o seu papel no
processo de lançamento do kite. Jake estava a limpar as peças desmontadas
do trompete enquanto ouvia e indicou com a cabeça o diagrama que Harry
desenhava no seu caderno.
– Muito fixe, meu – disse Jake. – Vais até lá mais logo?
Harry animou-se com a ideia e começou a verificar de novo a previsão do
vento, mas então Alice atravessou o quintal para se sentar com eles e o que
ela tinha a dizer fez tudo desabar.
Harry percebeu que a demissão dela não fora uma coisa amigável, mas sim
um «porra, vou-me embora daqui». E, embora ela não o tenha dito, ele
imaginou que a sua saída estava relacionada com a outra coisa: aquele seu
protesto contra o município e a grande empresa agrícola.
– Vocês os dois não devem envolver-se nisto – disse ela, rodando a caneca
de café nas mãos. – Os vossos pais provavelmente gostariam que assim fosse.
Levou a caneca à boca e entornou café na frente das jardineiras. Limpou-o
com a mão e Jake entregou-lhe um pano da louça. Harry gostava de Alice,
aquela senhora das abelhas ligeiramente mal-humorada que era quase tão
velha como a sua mãe e diferente de qualquer mulher que ele conhecera –
professoras, tias e várias vizinhas. Não apaparicava, não era disciplinadora
nem fingia ser simpática. Até a sua mãe tinha excesso de delicadeza para com
as pessoas. Alice era diferente. Alice era apenas, bem, Alice.
– A minha mãe pediu-me que lhe dissesse uma coisa – dizia Jake.
Alice ergueu uma sobrancelha.
– Ai sim?
– Queria que eu lhe dissesse que tem rezado por si na igreja. Não apenas
aos domingos. Todos os dias. E todo o seu grupo de oração.
Alice riu, dizendo que não estava habituada a ser lembrada em orações e
pediu a Jake que lhe agradecesse. O seu rosto ficou novamente sério.
– Olhem, vivi aqui a minha vida inteira e conheço esta terra. As coisas
podem ficar feias. Vocês deviam distanciar-se disso, de mim.
Ocorreu a Harry que ela estava preocupada com eles, com ele. Além dos
pais, Harry não conseguia lembrar-se da última vez que alguém se preocupara
com o seu bem-estar. Alice disse a Jake que ele poderia ficar com ela por
enquanto, mas que não sabia o que o futuro lhe reservava.
Sorriu para Harry e os seus olhos pareciam tristes.
– Posso pagar-te o mês, Harry, mas depois... bem, eu própria não sei como
vou ganhar a vida. Vou dar-te ótimas referências, rapaz.
Harry sentiu então aqueles gémeos familiares – preocupação e dúvida –
instalarem-se de novo nos seus ombros.
– Tenho muita pena de te dispensar, Harry. Podes ficar aqui o tempo de que
precisares enquanto procuras casa – disse Alice.
Harry queria dizer que trabalharia em troca de cama e mesa. Mas precisava
do dinheiro. Ainda devia à mãe os honorários do advogado. Gemeu
interiormente ao pensar na mãe. Tinha de lhe ligar. Mas não até ter as cinzas
do tio H.
Alice apoiou as mãos nos joelhos.
– Vou começar hoje a visitar os agricultores por causa da petição da bacia
hidrográfica. Porque não tratam da próxima fase do nosso projeto de
colmeias aqui? Jake, verifica a oito e a nove para ver se estão quase a
enxamear. Harry, vou precisar de suportes para todas as novas colmeias que
montaste. Mesma altura que as outras, okay?
Alice levantou-se e subiu o fecho do corta-vento.
– Até logo.
Viram-na atravessar o apiário e entrar no pomar de Doug Ransom.
Harry sentia os olhos de Jake nele. O rapaz fez um cavalinho na cadeira de
rodas e descreveu um círculo, assobiando.
– Caramba! Gostava de ter lá estado para ver a Alice rebentar com as
portas do gabinete de planeamento – disse Jake. – Boom! Acabou de
acontecer!
Harry esboçou um sorriso a custo.
Jake deu-lhe um soco ao de leve no ombro.
– Vá lá, meu. Não te preocupes com isso. Hás de encontrar alguma coisa.
Há muitos trabalhos que podes fazer por estas bandas.
Harry encolheu os ombros, sentindo-se derrotado, e observou Jake montar
o seu trompete. Encostou o instrumento à boca e franziu os lábios.
– Quanto a mim, vou começar uma banda, fazer todos os casamentos e
festas de quinceañeras por aqui. Vou pôr Hood River no mapa, yo!
Encostou novamente o trompete aos lábios, tocou alguns acordes de «La
Cucaracha» e sorriu para Harry.
– Demasiado assustador?
Harry percebeu que o amigo estava a tentar animá-lo. Ocorreu-lhe que esse
futuro incerto era ainda pior para Jake, que enfrentava os mesmos problemas,
mas com menos opções. Harry sabia conduzir. Harry podia usar as pernas.
Podia arranjar outro emprego a fazer trabalho manual com bastante
facilidade. Sentiu-se um idiota por ficar de mau humor quando Jake tinha
obstáculos que ele não tinha.
– Não sei, meu. Com essa cabeça, já assustas – disse Harry.
– Oh, pá! – Jake riu-se. – Só por isso, vou fazer-te um segundo pequeno-
almoço antes de começarmos a trabalhar.
Em casa, Jake rolou para a cozinha e começou a tirar comida do frigorífico,
cantando para si mesmo.
– La cucaracha, la cucaracha. Ya no puede caminar.
Harry pegou na lista telefónica. Olhou para Jake, começou a explicar, mas
depois calou-se. Ligou para a morgue.
– Olá. Hum, chamo-me Harry Stokes. Sim. Eu, hum, preciso de ir buscar o
meu tio. Harold Goodwin. Sim, certo. Os seus restos?
Jake ergueu os olhos da tábua onde estava a ralar queijo.
– Certo. Identificação e quinhentos dólares. Ótimo. Okay. Obrigado.
Desligou e cobriu o rosto com as mãos.
– Meu?
– É uma longa história – respondeu Harry.
Começou pelo princípio, bem, quase pelo princípio, e falou a Jake sobre
Seattle, a caravana, a fragilidade do tio e o hospital. Não disse nada sobre a
prisão.
– Pá, quando disseste que o teu tio tinha morrido, parecia que tinha sido há
algum tempo. A Alice sabe?
– Nem pensar! – exclamou Harry. – O que ia eu dizer? «Obrigado pelo
trabalho! Posso levar a pickup emprestada para ir buscar o meu falecido tio?»
Achei que conseguiria passar por lá quando fosse fazer alguma coisa de
trabalho, mas fica em Bingen. Continuei a adiar...
– Espera – interrompeu Jake. – Quando morreu ele?
Harry olhou para o teto.
– Vinte e nove de abril? Acho.
– No dia da tua entrevista?
Harry suspirou e anuiu.
– Caramba, Harry! Porque não disseste nada?
Harry enfiou as mãos nos cabelos e encolheu os ombros.
– Tu também não falas muito sobre ti, meu – murmurou.
Jake resfolegou.
– Não há muito para falar, Harry. Quer dizer, conheces a minha história. Eu
era um fracassado no secundário e dei cabo das pernas numa festa idiota.
Harry olhou para ele e não disse nada. Jake sustentou o seu olhar.
– Não culpo ninguém. Foi apenas um acidente estúpido, mas era eu que
estava na palhaçada no telhado. Eu sou o responsável.
Jake olhou para o outro lado do quintal, os seus lábios pressionados numa
linha fina. Abanou a cabeça e olhou para Harry.
– Olha, Harry. Sei que isto parece marado, mas sinto que tenho outra
hipótese aqui. Quer dizer, olha, andar seria muito mais fácil do que usar esta
cadeira, certo? Mas o estranho é que há muita coisa na minha vida de que
gosto bastante mais do que antes. – Fez uma pausa. – Gosto mais de mim.
Gosto mais das outras pessoas.
Harry assentiu.
Jake passou as mãos pela barba por fazer e olhou pela janela. Harry seguiu
os seus olhos até ao apiário, o ar cheio de balas douradas.
– É como se as abelhas me tivessem salvado ou coisa parecida. Quer dizer,
muito da minha vida ainda é uma confusão do caraças, mas quando estou no
apiário... meu, simplesmente sinto que pertenço a este sítio, que faço parte
dele.
Harry ouviu o rapaz mais novo dizer aquilo sem constrangimento. Ficou
impressionado e com alguma inveja.
Jake encontrou o seu olhar.
– Quero ficar aqui se puder. Vou ajudar a Alice. O que quer que isso
signifique.
A coragem de Jake era contagiante. O que tinha ele a perder, afinal?
– Eu também – disse Harry.
Estavam juntos naquilo. O pensamento galvanizou-o e depois o seu
entusiasmo diminuiu um pouco. Primeiro as coisas importantes.
– Vou à morgue antes que a Alice volte. Queres vir?
– Raios, sim! Viagem para a morgue!
Depois do pequeno-almoço, pegaram na pequena pickup e deixaram
Cheney ir na cabina, o seu grande corpo no colo de Jake com o focinho a
manchar a janela. O pequeno motor avançou pelo longo caminho de acesso,
através dos pomares e entrou na cidade.
Enquanto se dirigiam para a ponte, Harry olhou pela janela para o banco de
areia.
– Há kites no ar! Vejo dois, três, talvez quatro. Oh, pá! Não era para soprar
hoje. Eu disse ao Yogi que estaria lá amanhã.
Jake riu-se.
– Estás obcecado, meu.
Harry sorriu e bateu no volante com a palma da mão. Sentia-se outra vez
como o novo Harry.
– Não há nada como aquilo! Quer dizer, fiz uma figura triste, a debater-me
na água. Mas quando subi no ar? Foi como andar de longboard, mas cem
vezes melhor. Tão suave. E ver aqueles tipos com aquele vento? Mal posso
esperar.
O trânsito seguia lento atrás de um camião de madeira e Harry olhou
boquiaberto para o rio abaixo, procurando na água o grande kite rosa. O carro
atrás dele buzinou e ele deu um salto.
A morgue ficava num edifício decrépito em Bingen, uma pequena
povoação do outro lado da ponte em relação a Hood River. Um edifício
abrigava todos os principais serviços municipais – câmara, polícia, impostos,
centro de saúde e a morgue – e ficava ao lado da linha do comboio. Harry
estacionou quando um comboio passou a trovejar. Jake fez sinal de que
esperaria ali.
O corredor escuro estava iluminado por uma luz amarela suja e cheirava a
fósforo molhado. Harry olhou para a lista de serviços à entrada e viu que a
morgue ficava na cave. Entrou no elevador estreito, que deu um solavanco
quando as portas se fecharam e rangeu ao descer. Harry murmurou uma
pequena prece para não ficar ali preso. Depois de vários segundos, o elevador
parou, deu outro solavanco e abriu-se com um rangido.
Harry viu uma mulher de idade indeterminada sentada atrás de um balcão
baixo. A luz do teto conferia à sua pele um tom esverdeado. O seu cabelo
crespo era da cor de salada de atum. Os seus ombros largos enchiam uma
bata cinzenta.
Olhava para o ecrã do computador, batia no teclado com os indicadores e
não ergueu os olhos quando Harry se aproximou. Ele esperou e os segundos
arrastaram-se enquanto ela continuava a digitar. Harry inclinou-se para frente
e pigarreou.
– Desculpe, eu…
Sem olhar para ele, a mulher ergueu um dedo e continuou a escrever.
Harry olhou em volta, à procura de alguma coisa para ler, e não encontrou
nada. Mudou o peso de um pé para o outro e ouviu o barulho das teclas e o
zumbido das luzes. Ao fim de um longo minuto, a mulher soltou um grande
suspiro, afastou a cadeira de rodas do teclado e cruzou os braços pálidos
sobre o peito. Semicerrou os olhos para Harry.
– Sim?
– Vim... vim buscar o meu tio. Quero dizer, os res-restos dele – gaguejou
Harry. – Chama-se Goodwin. Harold Goodwin?
A mulher exalou pelo nariz e olhou para o ecrã. Sem uma palavra, rolou
para junto da mesa e martelou no teclado.
Harry esperou.
– ID – disse ela laconicamente.
Ele deu um salto.
– O quê?
– Iden-ti-fi-ca-ção – disse ela, prolongando a palavra como se estivesse a
falar com uma criança. – Tem a sua iden-ti-fi-ca-ção?
Harry puxou a custo a carteira do bolso e deixou-a cair no chão. Procurou a
carta de condução e tirou-a. A mulher olhou para o documento e empurrou-o
para ele.
– Não – disse ela.
– Desculpe? É uma carta de Nova Iorque, mas está válida. Veja. A data de
validade está aqui.
A mulher abanou a cabeça.
– Não está autorizado a levantar os restos mortais do senhor Goodwin.
– Mas eu liguei para cá e disseram que eu só precisava da minha
identificação e de quinhentos dólares.
– Sim, quem lhe disse isso fui eu, mas o senhor não está autorizado a levar
os restos mortais do senhor Goodwin.
– Bem… quero dizer. Quem autoriza isso?
– O senhor Goodwin – disse ela, mal movendo os lábios.
– Mas… ele está morto – balbuciou Harry.
– Sim. Eu sei. Estamos na morgue – disse a mulher. – Lamento muito não
poder ajudá-lo.
Não parecia lamentar nada.
– Porquê?
– Só podemos entregar restos mortais a pessoas autorizadas. – Disse
«pessoas» como se tivesse um «z» no fim.
– Quem está autorizado, então? Pode dizer-me?
A mulher exalou pelo nariz e olhou para o ecrã.
– Lydia Romano.
Harry animou-se.
– Oh, que bom! É a minha mãe. Mas ela vive na Florida. A senhora pode
ligar-lhe. Ou eu posso ligar-lhe.
Amaldiçoou-se por não ter um telemóvel, mas sabia que poderia ir buscar o
de Jake.
– Vou buscar o meu telemóvel – disse ele.
A mulher abanou a cabeça
– Só. Pessoas. Autorizadas.
Harry sentiu a sua coragem esmorecer. Só queria tratar daquela coisa
simples pela sua mãe. Era sempre assim quando chegava a um beco sem
saída. Não podia seguir em frente da forma como planeara, e pronto. Os seus
ombros curvaram-se e ele começou a virar-se. Mas então pensou no que Yogi
havia dito a Autumn sobre o relançamento do kite. A atitude é tudo, dissera.
Tens de acreditar que podes fazer isto acontecer.
Harry voltou-se para a funcionária e sorriu timidamente.
– Minha senhora – disse ele –, lamento incomodá-la.
Explicou que estivera a viver com o Sr. Goodwin, que era seu tio-avô.
Vinha levantar as cinzas em vez da sua mãe, porque ela estava na Florida.
Talvez ela pudesse ligar para o Dr. Chimosky no Skyline e pedir-lhe que
confirmasse tudo isso. Podia ser? Ou haveria um formulário que ele poderia
enviar por e-mail para a sua mãe para que a senhora lhe entregasse as cinzas?
Deve haver algum processo, pensou. Só precisava de ser paciente e ir até
ao fim. Enquanto ele falava, a expressão da mulher suavizou-se.
– O Chimosky era o médico dele, hem? Sim, acho que pode funcionar.
Harry mostrou-lhe o número que tinha na sua carteira. Ela pegou no
telefone, olhou para o papel e marcou o número.
– Obrigada – disse ela, soando quase simpática.
Minutos depois, entregava-lhe um pequeno recipiente de plástico. Harry
assinou a autorização e agradeceu-lhe. Ela sorriu e Harry percebeu que o que
quer que a deixara tão irritada não tinha nada a ver com ele.
– Lamento muito a sua perda – disse ela. – E a da sua família.
Ele assentiu com a cabeça e agradeceu-lhe novamente. Saiu sentindo-se
extremamente satisfeito consigo mesmo. Tinha honrado o tio. Iria ligar à
mãe. Harry Stokes era um homem capaz de resolver os seus próprios
problemas. Saiu para o sol de maio e voltou para a pickup, onde o seu novo
amigo Jake o esperava. Harry estava pronto para o que quer que viesse a
seguir.
24
DESDOBRAMENTO DE COLMEIAS
O plano de multiplicar as colónias, dividindo uma colmeia inteira em
duas partes e adicionando uma metade vazia a cada uma, exigirá um
certo grau de habilidade e conhecimento, muito além do que se pode
esperar dos apicultores comuns.
– L. L. LANGSTROTH

O índice Schmidt da dor de picadas foi publicado pela primeira vez na década
de 1980 pelo entomologista Justin Schmidt numa tentativa de catalogar e
comparar a dor infligida por vários insetos que picam. A abelha ocidental
ficou no nível 2 de 4 possíveis e com uma duração típica de dez minutos.
Alice não poderia ter afirmado com toda a certeza em que lugar da escala
ficava a picada de abelha (algures entre a da formiga de fogo tropical e a
vespa do papel), mas sabia que a geralmente meiga Apis mellifera picava
apenas em último recurso, porque era um gesto fatal. Assim que uma abelha
inseria a sua pequena lanceta farpada sob a pele de uma criatura ofensiva, era
incapaz de retirá-la sem rasgar o seu corpo no processo. Quando libertava o
veneno de apitoxina através do ferrão, emitia simultaneamente uma feromona
para aumentar o alarme entre as suas irmãs. Mais abelhas se juntariam à luta
e bombardeariam o inimigo com fúria crescente enquanto as suas próprias
picadas suicidas transmitiam a mensagem de que a colónia estava sob ataque.
Mais tarde, Alice lembrar-se-ia de que sentira a clássica fragrância de
banana da feromona. Mas Jake disse-lhe que a única coisa em que reparara
fora no som. Ouviu o murmúrio satisfeito da colónia subir para um tom de
defesa. E um momento depois sentiu a primeira daquelas picadas de nível 2.
Alice percebeu que ele não levou isso a peito. Ela correra para a
extremidade mais distante do apiário enquanto as abelhas desciam numa
nuvem furiosa. Viu Jake girar devagar na sua cadeira e sair calmamente do
apiário. Quando ele chegou a casa, estava envolto por um redemoinho de
corpos a zumbir, mas nunca as enxotou. Apenas aguentou. Ela nunca tinha
visto nada parecido.
Sentada à mesa da cozinha, Alice pressionou cuidadosamente a pele macia
sob o olho dele com uma pinça. A zona inchara consideravelmente enquanto
ela estava ocupada a arrancar-lhe ferrões do couro cabeludo. Praguejou
baixinho ao agarrar na pequena farpa e tirá-la.
– Acho que é o último.
Entregou-lhe um saco de gelo e recostou-se para olhá-lo.
– Raios, Jake. Sinto muito. Foi um erro estúpido.
Jake tocou na área inchada sob o olho com o dedo indicador.
– Está tudo bem, Alice. Pelo menos agora sei que não sou alérgico.
Ela olhou para o relógio.
– Ainda não estamos fora de perigo. Tirei-te pelo menos vinte ferrões. Fica
quieto e avisa-me se te sentires tonto ou com dificuldade em respirar.
Tomaste o Benadryl, certo?
Ele assentiu. Ela queria usar a caneta de epinefrina, mas ele insistiu que o
saco de gelo e o Benadryl eram suficientes.
Tinham conseguido desdobrar duas colmeias antes de as coisas começarem
a correr mal. Quando começaram a terceira, Jake permaneceu de cabeça
descoberta e sem véu como de costume, à espera que Alice lhe entregasse um
quadro completo. Estava inchado com crias operculadas e carregado de
abelhas. Alice estendeu-lho, deixou-o escorregar e cair ao lado da cadeira de
rodas. Bateu no chão e as abelhas voaram para cima.
Olhando para o rosto inchado do rapaz, ela sentiu-se furiosa consigo
mesma por magoar as abelhas e fazer com que Jake fosse picado. Sabia que
não devia trabalhar nas colmeias quando estava distraída. Estivera a pensar
no que Fred Paris dissera. Fred arrogante e de rosto rosado. O que esperara
ela? Mesmo o seu pai não tinha nada de bom a dizer sobre Fred Paris, e Al
Holtzman gostava de quase toda a gente.
Algumas horas antes, depois da sua conversa com Doug Ransom, Alice
visitara Victor Bello e Dennis Yasui, ambos na lista de aliados de Doug. Eles
ouviram o que ela tinha a dizer sobre o processo, fizeram algumas perguntas
e assinaram a petição. Ela sentiu uma esperança crescente. Talvez não fosse
impossível unir os donos dos pomares do vale sul naquela causa, pensou. Não
planeara parar na casa de Paris. Ele não estava na lista de Doug, mas a sua
caixa de correio ficava perto da de Victor. Hesitou e depois abriu o portão.
Estacionou atrás do Ford branco de Fred e caminhou até à porta das
traseiras. Ouvia The Dr. Laura Show no rádio da cozinha. A mulher de Fred,
Ellen, apareceu, com um ar pouco simpático, e dirigiu Alice para o celeiro
antes de deixar a porta de rede fechar-se. Fred saiu do celeiro a limpar as
mãos a um pano.
– Ena, Alice Holtzman! Vejam só. Não te via há séculos.
Fred era cerca de dez anos mais velho do que Alice e, embora tivesse
crescido no vale como ela, por algum motivo falava com um sotaque sulista.
Fred tinha sempre muito cuidado com a aparência. As suas Wranglers
estavam engomadas com um vinco e as botas brilhavam. Usava o cabelo
ruivo curto e gostava de fivelas ornamentadas no cinto.
«Galaró», chamara-lhe a sua mãe. «Ele é um idiota», dissera Al, mas
também lhe recordara que ela não precisava de gostar de todos, apenas dar-se
bem com eles. Fred era dono de um pomar de terceira geração. Crescera a
cultivar com os avós. Com certeza que iria ouvi-la.
Alice forçou-se a sorrir.
– É verdade, Fred. Acho que não te via desde o funeral do meu pai.
Ele assentiu e limpou a ponta de uma bota brilhante na parte de trás das
calças de ganga e dobrou o pano num quadrado perfeito.
– Um bom homem, o teu pai. Já não se fazem mais como ele.
– Obrigada, Fred.
– Partiu-se a forma.
Embora o pai não tivesse gostado de Fred, Fred gostara de Al. Havia
muitos homens assim, reparou Alice, na receção após o funeral. Metade do
município tinha aparecido por Al no Elks Club, ao que parecia. As pessoas
circulavam pela sala, apertando-lhe a mão e apresentando as suas
condolências. Alguns, como Fred, choraram enquanto contavam histórias
sobre Al. Era uma prova da diplomacia do seu pai, supunha ela. Pensou nisso
enquanto decidia o que dizer a Fred sobre a SupraGro, esperando que o
respeito dele pelo seu pai pudesse facilitar o caminho. Tirou a prancheta que
segurava debaixo do braço.
– Olha, Fred, sabes que os meus pais venderam a casa antes de morrer,
portanto já não tenho o pomar.
Ele anuiu, dobrou o pano novamente e atirou-o para o capô da carrinha.
– Ainda assim, preocupo-me bastante com a indústria e em manter estas
árvores saudáveis.
Detestou a maneira como soava. Empolada, como se estivesse a ler um
anúncio.
– Claro, Alice. Sei que sim – disse ele, fazendo estalar os nós dos dedos.
Encorajada, ela continuou.
– Pode parecer estranho, mas comecei a ter colmeias nos últimos anos.
– Não me digas – comentou Fred, erguendo as sobrancelhas.
Alice soltou uma risada constrangida.
– É fascinante, na verdade. Mas o que é realmente interessante é a ligação
entre as populações de abelhas locais e a saúde dos pomares. O departamento
de agricultura fez um estudo que mostrou que os pomares próximos de
populações saudáveis de abelhas melíferas tiveram um aumento de vinte e
cinco por cento na produção de fruta.
– Não me digas.
Ela acenou com a cabeça.
– Sim, esses números eram de dois mil e doze. Tenho aqui uma cópia do
estudo, se quiseres dar uma olhadela.
Mexeu na prancheta e soltou o folheto. Estendeu-o e Fred olhou para ele,
mas não lhe pegou.
– Isso é muito interessante – comentou ele. – Tem graça, estive a ler um
estudo diferente que dizia que os pomares aumentavam a sua produção em
cinquenta por cento usando um herbicida. Na verdade, esse estudo mostrava
que, com o tempo, o rendimento pode aumentar até sessenta por cento. São
muitas maçãs, Alice.
O seu sorriso tornou-se zombeteiro.
Ela agarrou na prancheta.
– Fred, os investigadores que fizeram esse estudo foram pagos pela
SupraGro. Isso não é propriamente o que podemos considerar ciência
objetiva, pois não?
Fred tirou um palito do bolso da camisa e palitou os dentes.
– Objetiva? Não sei, Alice. Suponho que depende da pessoa a quem
perguntares. Os teus amigos hippies da bacia hidrográfica não são exatamente
conhecidos pela sua objetividade, pois não? Calúnias e difamação, foi o que
ouvi.
Ela abanou a cabeça.
– Do que estás a falar?
– Pergunta ao teu velho amigo Stan. Aquele processo contra as barragens
no ano passado deixou furiosa muito boa gente. Vocês – zombou ele. – «Oh,
o meio ambiente! O clima está a mudar!» – A sua voz subiu para um falsete e
ele agitou as mãos no ar. – Adoram o drama, não é? Vou ficar do lado dos
meus amigos nisso. O Chenowith pediu-me para ser o interlocutor local para
a pulverização da primavera. Eu disse que sim, por cortesia, claro. Os amigos
mantêm-se unidos.
Enfiou a mão no bolso de trás e tirou um catálogo, que ela reconheceu da
reunião com a Cascadia Pacific. Atirou-o para a prancheta de Alice.
– Dá uma olhadela a isso e avisa-me se tiveres dúvidas, Alice.
Afastou-se, deixando-a especada no caminho de acesso cheio de pó.
As mãos dela tremiam e o seu rosto ardia. O que teria o pai dito? Para
começar, Fred nunca teria falado com o seu pai assim, ou com qualquer outro
homem, pensou. Atirou o catálogo da SupraGro para o chão e foi-se embora.
Rumou a sul em direção à quinta de Dan McCurdy, a próxima na lista de
Doug, mas parou e desligou o motor e tentou abrandar a respiração. Como
poderia argumentar com alguém como Fred Paris? Os tipos conservadores
confiariam em Bill Chenowith e na chamada ciência da empresa de
pesticidas. As pessoas pensavam que Stan era um hippy louco, embora ele
tivesse um mestrado em ciências ambientais e um diploma em direito. Aquela
cidade era tão mesquinha às vezes.
Os McCurdy não estavam. Desanimada, ela voltou para casa. Jake
encontrava-se junto à mesa de piquenique, a olhar para o seu portátil e
acenou enquanto ela se aproximava.
– Olá, rapaz – disse ela e sentou-se com um baque. – Onde está o Coisa
Dois?
Jake apontou para o celeiro.
– A falar com a mãe.
– Ah, lindo menino.
Jake olhou atentamente para ela.
– Como correu? Com o senhor Ransom, quero dizer.
Alice deixou escapar um suspiro exasperado.
– Bem! As coisas correram bem com o Doug. São aqueles outros idiotas
que tenho de convencer! – Bateu com o mapa do vale na mesa. – As pessoas
aqui pensam que o aquecimento global é uma farsa inventada pelos yuppies
de Portland que querem transformar a interestadual numa ciclovia gigante e
desmantelar o capitalismo em favor das comunas socialistas e substituir as
plantações de trigo por marijuana.
Os olhos de Jake arregalaram-se.
– Não olhes assim para mim. Eu não sou a maluca!
Mas sentia-se maluca ou, pelo menos, um pouco perturbada. Deixar o
emprego fizera-a sentir que estava a viver de forma errada. A sua vida fora
comprimida durante aqueles últimos anos. Não apenas por causa de Bud,
fechada na sua bolha de dor. Assistira a reuniões intermináveis e não falara
sobre más políticas. Fizera o trabalho de Bill por ele porque era mais fácil do
que falar abertamente. Não dissera ao pai o quanto queria o pomar. Passara
anos a tentar não incomodar as outras pessoas. A alegria de sair do escritório
de Rich Carlson fora substituída por uma sensação de urgência. Tinha de
compensar o tempo perdido.
Também precisas de te acalmar, querida, ouviu a mãe dizer na sua cabeça.
Voltou ao presente.
– Desculpa. Tive uma péssima manhã – disse ela. – Que tal tratarmos
daqueles desdobramentos no outro lado do quintal?
Jake assentiu e sorriu, sempre ansioso para trabalhar. As coisas tinham
corrido bem até que ela deixara cair o quadro e ele fora todo picado.
Agora Alice olhou para a sua cabeça rapada, cheia de altos das picadas, e
para o seu rosto inchado. Riu-se.
– Caramba, rapaz. Olha só para ti! Os vizinhos vão chamar os serviços
sociais!
Ele riu-se, esfregou o couro cabeludo com as duas mãos e tocou com
cuidado na bochecha inchada.
– Esta é a única que faz comichão – disse ele. – As outras… não sei… não
me incomodam.
– Então muito bem. Desde que não te transformes num daqueles
curandeiros New Age que defende a apiterapia…
Ele ergueu a mão.
– Palavra de escuteiro, Alice – disse ele. – Vamos terminar aquilo.
Quando ele a convenceu de que realmente estava bem, trabalharam o resto
da tarde. Jake insistiu em voltar ao apiário sem chapéu ou véu, como de
costume. Harry saiu do celeiro e observou-os de longe antes de ir ao Ace
Hardware. Alice e Jake instalaram os seis desdobramentos nas novas
colmeias que Harry construíra. Eram iguais às antigas colmeias de Langstroth
no estilo, mas tinham sido feitas com muito cuidado, cada canto ensamblado
e lixado.
– O Harry é um verdadeiro solucionador de problemas, não é? A tua
bancada de trabalho também está muito jeitosa.
Jake passou a mão pela plataforma.
– Ele diz que vai fazer-me uma ainda melhor – comentou ele. – Assim
consigo transferir quadros e verificar se há criação e isso. Ainda preciso de
outra pessoa para tirar as alças, mas é melhor do que nada.
Ela ouviu um tom de frustração na voz dele, o que era raro. Estivera mais
calado naquele dia, ainda antes das picadas, notou Alice. Calculou que devia
estar a pensar na notícia que ela lhe dera de manhã e na fragilidade do seu
próprio futuro.
– Tens verdadeiro talento, Jake. Deves orgulhar-te do teu trabalho.
Ele encolheu os ombros.
– Ei, estou a falar a sério! Aquela coisa do som da rainha. E és o único
apicultor que conheço que trabalhou com a cabeça descoberta desde o
primeiro dia.
Jake olhou para o apiário, mas não encontrou o olhar de Alice. Ela fez um
gesto amplo.
– Olha o que fizemos hoje. Seis novas colmeias. Eu não conseguiria ter
feito isso sozinha. Tens sido uma grande ajuda.
Jake abanou a cabeça e desviou o olhar.
– Um macaco poderia fazer isso – disse ele.
Alice resfolegou.
– Um macaco, hem? Olha, rapaz… sei que podes achar que estou sempre a
elogiar as pessoas, mas não acolho adolescentes rebeldes todos os dias. Se
não trabalhasses bem, tinhas-te ido embora num instante. Posso parecer uma
espécie de Madre Teresa, mas...
Jake inclinou a cabeça para trás e riu.
– Madre Teresa! Esse vai ser o seu novo nome no Twitter, Alice. MomT!
Ela também se riu e depois prendeu a respiração. Voltou-se para as
ferramentas, a sua visão turva. Não queria que Jake se fosse embora.
Afeiçoara-se àquele rapaz engraçado e ao outro também – o nervoso Harry.
Alice Holtzman não gostava de muitas pessoas. Mas percebeu agora que os
amava – àqueles dois rapazes ligeiramente perdidos que pareciam seus
sobrinhos.
Viu Jake fingir não notar a sua emoção. Ele abriu o fumigador e olhou para
o fundo.
– Sei que não sabe o que vai acontecer com o trabalho e tudo. Mas
obrigado por me deixar ficar por enquanto. Quero ajudá-la com o processo.
Estou empenhado, Alice – disse, olhando para ela.
Ela encontrou o seu olhar e acenou com a cabeça.
– Obrigada, Jake.
Olhou para o relógio. Eram quase cinco horas. Ron tinha respondido à sua
mensagem, pelo menos. «Twin Peaks, 17:30», escrevera, e nada mais. O
estômago dela embrulhou-se. Mas pensou em Evangelina, o que fortaleceu a
sua determinação. Ron não era seu inimigo, disse a si mesma, embora ela
pudesse ser dele.
– Tenho uma reunião na cidade – disse ela a Jake.
– Outro dono de pomar?
Ela abanou a cabeça.
– Não… é um assunto pessoal. Volto daqui a uma ou duas horas.
Em Twin Peaks, Alice encontrou uma mesa à sombra e sentou-se com um
chá gelado. O drive-in da década de 1950 ficava em frente ao aeródromo do
município. Viam-se algumas avionetas no solo como um bando de pássaros.
Uma tinha o motor a trabalhar. A escotilha encontrava-se aberta e o piloto
estava na asa. Alice lembrou-se de uma noite de verão, anos atrás, quando o
amigo de Buddy, Vince, os levou a jantar em Portland de avião. Buddy iria
com ou sem ela, disse ele. Quando ela hesitou, ele perguntou-lhe do que tinha
medo.
– Hum, de cair? De morrer? O que achas, seu grande idiota?
Ele riu-se e lembrou-lhe que, estatisticamente falando, ela tinha mais
probabilidade de morrer num acidente de carro do que num acidente de avião.
Então ela foi. Lembrava-se de como fora lindo aquele voo noturno. O céu
estava nublado quando descolaram, o vento oeste fustigava o pequeno avião
enquanto levantava voo. Uma vez no ar, voaram suavemente. Alice olhou por
sobre as nuvens para ver os antigos vulcões a projetarem-se acima do mar
branco. Estavam alinhados com a luz rosada – Mount Hood e Mount
Jefferson a sul e Mount Adams, Mount Saint Helens e Mount Rainier a norte.
Ia sentada no banco de trás do pequeno avião e olhou para o perfil do marido.
Quando Vince o deixou assumir os comandos, Alice sentiu que a sua
preocupação a abandonava. Olhou para o rio de nuvens que serpenteava
acima da garganta numa imagem espelhada do rio. Seguiria Bud Ryan para
qualquer lado.
A porta de um carro bateu e ela viu Ron dirigir-se a si no seu uniforme de
xerife. Levantou-se quando ele se aproximou. Ele não sorria, mas também
não estava carrancudo. Ela não sabia o que fazer. Apertar-lhe a mão? Ron
parecia tão constrangido como ela quando se encararam.
– Olá, Alice – disse ele.
– Olá, Ron. Obrigada por te encontrares comigo – disse ela.
Houve uma pausa. Ela indicou o uniforme dele.
– Estás de serviço?
Ele abanou a cabeça.
– Acabei de sair. Não tive tempo de ir a casa trocar de roupa.
Ela anuiu e observou-o com mais atenção. Será que parecia nervoso?
– Vou só buscar uma... – Apontou com o polegar por cima do ombro. –
Queres alguma coisa?
Ela abanou a cabeça. Ron foi até à máquina de refrigerantes e voltou com
uma Coca-Cola. Sentou-se em frente a ela, rolando a lata gelada nas mãos.
– Há quanto tempo – disse ele.
Ela assentiu.
– Sim, é verdade. – Mais de um ano, pensou, embora ambos o soubessem.
Olhou para o rosto dele, tão familiar. Ron era seis anos mais velho que
Alice, portanto faria cinquenta naquele ano. O seu cabelo loiro estava mais
grisalho. Os pés de galinha tinham-se aprofundado em torno dos seus olhos.
Mas fora isso era o mesmo Ron de sempre. Em tempos ela sentira um amor
fraternal por aquele homem. Não importava se Ron ainda a odiava e a
culpava pela morte de Bud. Ela só precisava de lhe dar aquele recado e
poderiam voltar ao silêncio do ano anterior. Mas, por algum motivo, ela
continuou a falar sobre outras coisas.
– Vi o Ronnie – disse ela. – Ouvi dizer que ele entrou para o departamento.
– Sim. No outono passado – confirmou Ron, e soltou uma risada curta,
esfregando a nuca com uma das mãos. – Conheces o Ronnie. Ainda está a
tentar ambientar-se.
Alice anuiu.
– Ele vai ficar bem. É um bom rapaz.
Ron desviou o olhar para o aeródromo e depois de novo para Alice.
– Ele disse-me que tens dois rapazes a trabalhar para ti.
Ergueu as sobrancelhas, diplomático. Com certeza Ronnie falara-lhe da
velha caravana de Harry em BZ Corner e na cadeira de rodas e no cabelo
excêntrico de Jake.
– São muito habilidosos – disse ela.
– É bom teres alguém para te ajudar. – O seu tom era formal. – Sabes que
podes sempre ligar-nos – disse ele. Olhou para ela e olhou novamente para o
aeródromo. – A mim e aos meus rapazes, quero eu dizer.
Alice ficou sem palavras.
Ron pigarreou e olhou para a mesa. O silêncio prolongou-se enquanto
Alice esperava que Ron falasse. Quando ele finalmente encontrou o olhar
dela, o seu rosto estava tenso de tristeza.
– Olha, Alice. Eu disse-te coisas terríveis depois... – Parou e respirou
fundo. – Depois de o Bud morrer. Provavelmente coisas imperdoáveis. Eu
estava... custou-me tanto perdê-lo.
Ron olhou para as suas mãos cerradas e ela viu as lágrimas acumularem-se
nos seus olhos.
– Penso nele todos os dias e nas coisas que te disse. Queria ligar-te para
explicar o quanto lamento. Achei que nunca mais falarias comigo. Eu... sinto
muito. Nunca devia… – A sua voz falhou.
Alice percebeu novamente que não conseguira dar valor à dor da família de
Buddy. Presa na sua própria dor, não considerara a deles. Afinal, tinham-se
uns aos outros, pensara ela, o que de alguma forma tornava tudo mais fácil.
Como pudera ser tão egoísta? Estendeu a mão e tocou-lhe na manga.
– Não há nada a perdoar, Ron. São águas passadas. O Buddy havia de
gostar que fôssemos amigos.
O homem corpulento ergueu a cabeça, assentindo. Limpou os olhos.
– Pois havia, Alice. Tens razão. – Tentou rir. – Não me podes culpar!
Conheces o lema da família Ryan: «Dispara primeiro e pergunta depois.» –
Alice sorriu. – Mas não o Buddy. Ele saía à avó June. Sempre feliz, aquele
rapaz.
Alice fez que sim com cabeça. Sentia a emoção aumentar dentro dela. O
coração batia forte no peito e ela permitiu-se pensar no rosto dele. O grande
sorriso provocador de Bud. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, mas tudo
bem. Podia abarcar o seu amor e a sua dor ao mesmo tempo.
Ron observou-a, cruzando e descruzando os braços enquanto ela se
recompunha.
– A tua mãe disse sempre que a veia maldosa dos Ryan saltou a vossa
geração – comentou ela, limpando os olhos.
Ron riu-se, mas depois o seu rosto ficou sério.
– Então, o que é isso sobre a Evie?
Alice respirou fundo e falou-lhe, da forma mais concisa que pôde, do
contrato da SupraGro com o município, da reforma de Bill, que Rich Carlson
a ameaçara e que ela se despedira.
A expressão de Ron ficou tempestuosa.
– Aqueles dois – disse com desdém. – Que vigaristas.
Alice acenou com a cabeça.
– E a Evie? E quanto à Evie?
Alice escolheu as suas palavras com cuidado.
– Alguém me disse isto. Não ouvi diretamente.
Contou-lhe que uma pessoa ouvira Rich dizer que alguns dos empregados
de Evangelina na taqueria não tinham visto de trabalho. Que podiam fechá-la
por causa disso e apresentar queixa por encargos sociais não pagos.
Alice sabia que Evangelina trabalhara durante anos para tornar o
restaurante um sucesso. Era popular entre famílias mexicanas e brancas – um
raro espaço comum para as duas comunidades de Hood River. Não era apenas
Evangelina que aquele ataque magoaria, como Alice sabia. Os seus
funcionários de longa data contavam com o envio de dinheiro para as suas
famílias no México.
Ron praguejou e esfregou o rosto.
– O Rich disse que faria uma denúncia anónima à autoridade tributária… é
uma forma de se vingar de mim através de vocês, claro. Pensei em ligar eu
mesma à Evie, mas o meu espanhol é péssimo e queria ter a certeza de que
ela entendia. Realmente lamento muito, Ron – disse Alice.
Ron suspirou.
– A culpa não é tua, Alice. O Rich Carlson é uma doninha. E deves saber
que nada disso é verdade. A Evie tem tudo muito bem controlado, em
especial nos dias de hoje. Praticamente gere uma empresa de assistência
jurídica gratuita, ajudando as pessoas a renovar os seus vistos de trabalho e
solicitar residência permanente e nacionalidade. A propósito, não és a
primeira pessoa a dizer-me isso. Carlson. O merdinhas. Não admira que ande
a espalhar isso. Obrigado por me avisares.
Alice sentiu os seus ombros descontraírem-se. Muitas pessoas achavam que
a imigração era uma questão a preto e branco – legal ou ilegal. Era muito
mais complicado do que isso. Ali no vale, todos viviam com os cinzentos.
Mais de 25 por cento dos residentes a tempo inteiro do município eram
mexicanos-americanos. Muitos trabalhadores de pomares eram mexicanos
que trabalhavam sazonalmente no Oregon e voltavam para casa no inverno.
A situação legal era uma questão complicada. O pai ensinara-lhe que isso não
era da conta de ninguém.
– Esses fanfarrões querem deportar toda a gente que não tem um green
card – dizia Al, furioso. – Essas famílias estão aqui há gerações. Pagam
impostos. Têm o direito de estar aqui e devemos facilitar-lhes as coisas para
ficarem.
Ron mexeu-se no banco. O seu rosto abriu-se num sorriso.
– Então, mandaste o velho Rich Carlson ir dar uma volta ao bilhar grande.
Que bom para ti, Alice. O que vais fazer agora?
Ela respondeu que não sabia. Disse que primeiro tinha de aguardar o fim do
processo da Watershed Alliance e o protesto contra a pulverização de sexta-
feira a uma semana. Desdobrou o mapa e mostrou a Ron os pomares. Falou-
lhe da lista de Doug Ransom e tirou-a do bolso, alisando-a com a mão. Ver a
caligrafia graciosa de Doug fê-la pensar novamente no pai e sentiu uma onda
de otimismo.
Ron estendeu a mão.
– Deixa-me ver essa lista. Quero ajudar.
25
ROUBOS
As abelhas são tão propensas a roubar às outras que, a menos que
sejam tomadas grandes precauções, o apicultor perderá muitas vezes
algumas das suas reservas mais promissoras.
– L. L. LANGSTROTH

O dia do protesto amanheceu frio, como se a primavera não quisesse


abandonar o vale, mesmo quando os pomares e as quintas em flor se
aproximavam do verão. O vento, que soprara a noite toda, diminuíra para
uma brisa que chegava a todos os cantos da quinta de Alice. As colmeias
estavam silenciosas enquanto as abelhas esperavam que o aquecimento do sol
as chamasse.
Alice encontrava-se sentada na cama a olhar para as fotografias na sua
cómoda – dos seus pais, sobrinhos e de Buddy. A foto mais recente de Buddy
fora tirada cerca de uma semana antes de ele morrer. Estava ao lado da cabina
do grande camião TIR, a sorrir como um adolescente.
– Sinto-me um homem ao volante desta coisa – dissera ele a Alice naquele
dia, rindo.
Pousou as mãos na cintura e inchou o peito.
– Força. Pede para veres o meu cartão de homem.
– És um rapaz que cresceu de mais, Bud Ryan – disse ela. – Cuidado, ou
terás todos os homens-criança neste vale aqui em baixo a querer conduzir o
teu novo brinquedo.
Bud levara-a a dar um passeio pela cidade antes de partir para o seu
primeiro trabalho, que o levou a Salt Lake City e de regresso como
contratado para a Home Depot. Alice teve de admitir que a vista alta do
banco era boa, e sabia que Bud, que adorava conduzir, se divertiria na
estrada. Quando ele voltou daquela primeira viagem, o seu entusiasmo
contagiante fê-la prometer que iria com ele na próxima viagem ao sudoeste.
Tiraria férias, para variar, disse ela. Mas não teve tempo para isso. Estava
ocupada; ele continuou a conduzir. E então fez aquela viagem final para Las
Vegas, e pronto.
Alice ainda não conseguia lembrar-se das últimas palavras que tinham
trocado. Com certeza fora algo rotineiro, alguma palavra meiga. Nunca
discutiam. Ela não se lembrava de lhe ter dado um beijo de despedida,
embora devesse ter dado, nem o que ele vestia. Durante as primeiras semanas
após a sua morte, a compulsão para se lembrar de tais pormenores mantinha-a
acordada. Vagueava pela casa o tempo todo a tentar lembrar-se. Mas agora
percebia que nada disso importava. Bud partira, e nada mudaria isso, nem o
facto de se terem amado.
Alice passou uma escova pelo cabelo. Bud aprovaria o que ela estava a
fazer. O pensamento deu-lhe forças. Os eventos das últimas duas semanas
eram indistintos – reuniões com Stan e os seus parceiros, visitas aos pomares
do vale, e mensagens de texto com Ron, que, fiel à sua palavra, ajudara e
visitara alguns agricultores do vale em pessoa. Alice também recrutara Chuck
Sauer e o grupo dos apicultores. A jovem amiga de Jake, Celia, pusera-os em
contacto com o Sindicato dos Trabalhadores Mexicano-Americanos. O
pessoal da Riverkeeper ia trazer estudantes universitários de Portland. Alice
apertou o cinto. Sentia que ia marchar para a batalha.
Com Cheney na caixa aberta, Alice levou os rapazes até ao recinto de feiras
perto da escola secundária, onde a marcha começaria. Havia cerca de cem
pessoas em grupos, a conversarem enquanto esperavam. Harry foi buscar a
cadeira de Jake e Alice disse-lhes que ia registá-los na tenda branca.
Enquanto caminhava pela multidão, achou que o ambiente parecia quase
festivo – mais o de um desfile do que o de um protesto ambiental. Acenou a
alguns dos homens do clube de apicultores e viu o doce Doug Ransom com a
sua filha mais velha, Victoria.
– Bom trabalho, minha querida – disse ele, radiante.
Alice viu as jovens da Riverkeeper, a malta dos peixes e da vida selvagem
e um homem dos parques estaduais. Ao dar os nomes do seu grupo à jovem
que fazia o check-in, ficou admirada ao ver Casey, o estagiário ruivo, sentado
atrás dela. Olhava para um portátil enquanto em simultâneo digitava
furiosamente no telemóvel. Acenou timidamente quando viu Alice.
– Vens juntar-te à resistência, rapaz?
Ele levantou-se e cruzou os braços, curvando-se para frente.
– Bem, o meu estágio termina para a semana, por isso pensei: porque não?
Estou a tratar das redes sociais para o Stan. Publicarei tweets em direto
durante todo o evento.
Alice assentiu.
– Não faço ideia do que isso significa, mas obrigada pela ajuda.
Casey baixou a cabeça e voltou para os seus ecrãs.
Alice encontrou Stan no exterior da tenda, a franzir a testa para um papel.
O seu rosto iluminou-se ao vê-la.
– Alice! Um ótimo dia para um motim, hem?
Stan pediu-lhe para liderar os donos dos pomares e os apicultores durante a
marcha e apontou para uma mesa onde os alunos de Portland tinham feito
cartazes a representar os vários grupos. Alice encontrou Dennis Yasui, Vic
Bello e um punhado de outros donos de pomares, juntamente com membros
do grupo de apicultores. Chamou-os e distribuiu cartazes que proclamavam:
«Marcha pelas abelhas!» e «Dois terços das colheitas da América polinizadas
por abelhas!» e «Sem Quintas = Sem Comida!» Pouco depois, Stan subiu
para uma cadeira em frente à tenda, acenou com a mão e assobiou. As vozes
calaram-se.
– Obrigado a todos! Muito obrigado por virem hoje apoiar a Hood River
Watershed Alliance, a PDX Riverkeeper e a Clean Air Alliance. Também
temos a companhia de representantes das Tribos Confederadas de Warm
Springs, do Sindicato dos Trabalhadores Mexicano-Americanos, La Clínica
del Cariño e da Associação de Apicultores do Município de Hood River. E
queremos agradecer aos estudantes universitários da PSU por terem vindo
ajudar também. Sei que faltaram ao trabalho e às aulas para estarem aqui, e
agradeço. Um aplauso por defenderem o meio ambiente!
A multidão aplaudiu e gritou. Alice olhou em volta para os rostos
sorridentes e sentiu a boa energia em todos. Fazia parte de algo bom.
Stan delineou o percurso da marcha. O grupo caminharia por Fir Mountain
Road até chegar à entrada de Randy Osaka. Não iriam entrar, mas
bloqueariam a estrada para que o camião da pulverização não pudesse passar.
Stan lembrou a todos que aquele era um protesto pacífico e que nenhum
insulto ou violência seria tolerado. Disse que poderiam ser presos por
bloquear a estrada. Se alguém tivesse dúvidas sobre a participação, ninguém
os julgaria por desistir. Olhou para Alice. Ela sabia que aquilo era verdade.
Ron conversara com os donos dos pomares enquanto cidadão, mas deixara
claro que não poderia ajudá-la além disso. Ela endireitou-se. Tinha a certeza
daquilo. Fazia mais sentido do que qualquer coisa fizera ao longo do ano.
– Então muito bem. Vamos! – gritou Stan.
Desceu da cadeira e conduziu o grupo para fora do estacionamento.
Alguém gritou: «Yee-haw!» na parte de trás e as pessoas aplaudiram. Alice
ouviu a batida de um tambor. Viu Harry e Jake atrás com Noah. Esperou que
eles a alcançassem. Cheney, com trela, ergueu-se e lambeu-a. As pessoas
batiam palmas ao ritmo do tambor e alguém começou a cantar «Give Peace a
Chance». Outros juntaram-se-lhe. Os alunos da PSU balançavam Hula-
Hoops e agitavam bandeiras de arco-íris.
O frio deixou o ar quando o sol de maio os aqueceu. Passaram pela escola
secundária, onde os alunos estavam no estacionamento à espera do primeiro
toque. Vários correram em direção à fila e juntaram-se-lhe. Alice viu uma
figura solitária – um corpo esguio com cabelo curto – empurrar um skate e
descer a colina. Parou junto de Jake e saltou para o chão. O rapaz tinha o
coração estampado no rosto.
– Olá, Amri – disse ele.
– Calculei que eras tu.
– O que me denunciou? – perguntou ele.
Ela sorriu.
– O cão, claro.
– Deduzo que recebeste a minha mensagem de texto.
– Sim, recebi.
– Olá, Alice, esta é a Amri – apresentou Jake. – A Alice é a nossa mãe
emprestada.
Alice suspirou e assentiu com a cabeça para a rapariga. Sentiu-se protetora
em relação a Jake. Não lhe destroces o coração, pensou.
– Prazer em conhecer-te, Amri – disse ela.
A marcha desceu a colina e passou pelo campo de golfe. O pessoal do
Sindicato dos Trabalhadores Mexicano-Americanos começou a entoar «Sí se
puede» e o resto do grupo juntou-se-lhe. Os carros e camiões que passavam
apitaram e acenaram enquanto o grupo serpenteava pela estrada. Alice viu
um Honda encostar e Pete Malone saiu. Juntou-se ao grupo de pessoas,
andando às arrecuas e tirando fotografias. Uma sombra caiu sobre o rosto de
Alice, e ela olhou para cima para ver um homem grande de cabelo comprido
em calções e camisola com capuz a cumprimentar Harry e depois Jake.
– Hombres! É uma revolução!
Devia ser Yogi, o instrutor de kitesurf que não era instrutor de kitesurf,
pensou ela. O seu grande rosto abriu-se num sorriso. Não tentou dar um high-
five a Alice, mas apertou-lhe a mão educadamente e começou a andar ao lado
de Harry.
Parecemos os músicos de Bremen, pensou Alice.
Ao aproximarem-se da quinta de Osaka, o grupo diminuiu a velocidade e
juntou-se. Stan ficou de lado, dizendo às pessoas para se sentarem. Alice viu
Jake avançar na direção da frente do grupo. Cheney gania e puxava a trela.
Jake olhou por cima do ombro.
– Quero estar à frente – disse ele. – Segura o Cheney por mim, okay?
Passou a trela para Harry e manobrou a cadeira para ficar na frente e no
centro. Alice seguiu-o, e também Harry, arrastado por Cheney, assim como
Amri e Yogi, o gigante meigo. Alice viu Pete Malone tirar uma fotografia
deles e pensou que os cinco pareciam os líderes do bando de manifestantes –
apicultores, donos de pomares, conservacionistas ambientais, trabalhadores
agrícolas e estudantes. Seguravam cartazes de cores vivas que diziam «Claro
que não, SupraGro!» e «Protejam a nossa bacia hidrográfica». Alguém
acenou com um punhado de balões de hélio. O tambor soou e as pessoas
cantaram «America the Beautiful». Alice riu enquanto olhava em volta.
Parecia uma festa. Provavelmente não foi isso que pareceu ao condutor que
subiu a colina num camião cor de laranja e avançou em direção ao desvio
para o pomar de Osaka, onde devia começar a pulverizar às 9h00.
Acima da cantoria, Alice ouviu o barulho dos travões do camião enquanto
o condutor diminuía a velocidade. Viu a sua expressão de alarme ao abarcar a
cena. Colocou o camião em ponto-morto, olhou para a multidão e pegou no
telemóvel. Houve uma ovação e Stan gritou para que todos permanecessem
sentados.
Na confusão que se seguiu, Alice pensou vagamente que o motorista ligara
a Fred Paris. Isso não podia ter sido verdade. Provavelmente ligara para a sua
empresa para saber o que deveria fazer, já que não podia conduzir o veículo
para cima de uma multidão de manifestantes pacíficos, alguns dos quais eram
menores.
Alice ouviu um motor aproximar-se por trás. Virou-se e viu uma fila de
pickups a vir da outra direção. Dirigiram-se à berma da estrada municipal e
contornaram os manifestantes, levantando pó, e estacionaram entre o camião
e as pessoas sentadas na estrada. As portas bateram quando os homens
desceram e formaram uma linha do outro lado da estrada. Alice viu Fred
Paris sair da sua Ford branca e deter-se com as mãos na cintura. Olhou para a
multidão e então aproximou-se do camião, fazendo sinal ao condutor para
que descesse.
Alice viu coldres com armas. Vários homens tinham tacos de basebol.
Algumas das pessoas sentadas começaram a levantar-se e outras puxaram-nas
de volta para baixo. As suas vozes elevaram-se em confusão. Stan não dissera
o que fazer naquele tipo de situação, provavelmente porque não esperara
milícias populares. Mais pickups apareceram e contornaram a multidão, que
estava sentada no meio de Fir Mountain Road, corajosamente a tentar manter
a calma. Alice endireitou os ombros. Ouvia Stan a pedir a todos para
permanecerem calmos, mas não conseguia vê-lo. Alguém começou a cantar
«Give Peace a Chance» novamente, mas parou quando ninguém aderiu.
Fred afastou-se do condutor do camião e voltou para junto da fila de
homens.
– Saiam da estrada! – gritou. – Estão a obstruir propriedade privada!
Fez sinal aos homens que avançassem para a multidão sentada e
começaram aos empurrões e pontapés.
Alice ouviu alguém gritar que aquilo era um protesto pacífico. Viu Yogi
levantar-se de um pulo e lançar-se aos intrusos. Alguém empurrou Harry e
Cheney levantou as patas da frente, ladrando. Viu Yogi da sua grande altura
dar um soco na cara de Fred Paris. Então perdeu toda a gente de vista. As
pessoas empurraram-se. Mas mais homens de Fred estavam a vir pela parte
de trás. O tempo pareceu abrandar. Ela tentou levantar-se e alguém lhe deu
uma cotovelada no olho. Ouviu sirenes, viu luzes a piscar e levou um pontapé
no queixo enquanto tentava manter-se de pé. Caiu sobre os corpos, lutando
contra eles, esforçando-se por recuperar o fôlego. Na confusão, olhou para o
lado e viu Amri, a jovem de olhos verdes e cabelo escuro, levantar o seu
skate e bater com ele nos ombros de um homem com o dobro do seu
tamanho, e riu como uma louca.
*
Jake estava deitado de lado e meio fora da cadeira. Tentava levantar a cabeça.
Perdera Amri de vista. Onde estava Cheney? Um grande par de mãos puxou-
o para a cadeira e endireitou-o. Yogi, o seu longo cabelo pegajoso de suor,
um corte ensanguentado na sobrancelha, sorriu para ele.
– Meu! Tens de sair daqui. Aqueles idiotas estão…
Um punho atingiu-o na boca. A cabeça de Yogi balançou e ele rosnou de
alegria e socou um homem mais baixo. Agarrou a cadeira de Jake e tirou-o da
confusão.
– Já te venho buscar! – gritou antes de voltar para a luta.
Jake procurou Noah, Alice. Não conseguia vê-los em lado nenhum. As
pessoas desferiam socos, empurravam-se e gritavam. Ele não reconheceu
ninguém.
Uma mão pousou no seu ombro e ele olhou para cima para ver um homem
de meia-idade com um uniforme de xerife a olhar carrancudo para ele.
– Mete este tipo na segunda carrinha! – ordenou o xerife antes de
prosseguir.
Ronnie apareceu ao lado da sua cadeira, parecendo envergonhado.
– Desculpa, pá! Tenho de fazer isso. Ele é o meu chefe. E meu pai –
acrescentou e empurrou Jake na sua cadeira para longe da multidão.
*
Pouco antes de o xerife chegar, Harry percebeu que os rufias estavam a
conseguir abrir caminho para a entrada de Randy Osaka. A injustiça daquilo
revoltou-o. A multidão não estivera preparada para uma luta, mas estava
prestes a perder uma. Viu Jake fora do caos. Viu Yogi a desferir socos com
alegria. Não viu Alice ou o cão. Cheney soltara-se na refrega. Ouviram-se
sirenes e a seguir o xerife gritou para a multidão com um megafone. Harry
virou-se e olhou para o grande camião cor de laranja, parado na estrada.
Nos meses após a sua prisão em Nova Iorque, ninguém perguntara a Harry
por que motivo ele concordara em ajudar os amigos no roubo fracassado –
por que razão, especificamente, decidira sentar-se ao volante de uma carrinha
cheio de equipamento eletrónico que os amigos tinham decidido roubar. A
mãe perguntara: «No que estavas a pensar?» Mas isso não era a mesma coisa
que perguntar-lhe qual fora a sua motivação.
Embora nunca lhe tivessem perguntado, Harry sabia exatamente por que
razão fizera aquilo. Naquele dia no bar com Marty e Sam, ele começara a ir-
se embora. Esvaziou a sua cerveja e colocara a lata vazia no balcão. Então
Marty virara-se para ele e perguntara:
– Não tens uma ideia melhor, pois não, Stokes? Não tiveste um pensamento
original em toda a tua vida. Portanto, não finjas que és melhor do que nós.
Harry não dissera nada, mas pensou que Marty tinha razão. Ele não era
nada de especial. Que tipo de vida teria com o seu diploma e a viver nos
subúrbios com os pais? A economia estava em crise, e não havia nada em
Harry que o diferenciasse dos milhares de outros desempregados da sua
idade. Então, porque não fazer aquilo?
Fora uma decisão, percebeu, depois de pensar nisso todos aqueles meses na
prisão, tomada por aversão a si próprio. Descuidada e dolorosa para os pais,
com certeza, mas também para ele. Não podia apenas parar de tentar. Tinha
de acreditar em algo. E, se não gostava dele próprio, como podia esperar que
outras pessoas gostassem?
Harry olhou para o caos em Fir Mountain Road. Sabia que Jake entenderia
se ele pudesse explicar-lhe. Alice também. Talvez pudesse contar-lhes um
dia. Entretanto, sabia o que precisava de acontecer a seguir, e daquela vez a
sua motivação era clara como o dia. Era amor.
O condutor do camião, de costas para a estrada e a gritar ao telemóvel, não
percebeu que Harry subira para a cabina. Não ouviu Harry engatar a
mudança. Quando se virou, Harry acelerara e subia a longa colina para a
cidade.
Harry sabia que aquele gesto era uma violação da sua liberdade
condicional. Compreendia que provavelmente acabaria de novo na prisão,
desta vez por um mínimo de dois anos. Alice e Jake descobririam que ele era
um mentiroso e um criminoso. Destroçaria outra vez o coração da mãe. Mas
fez aquilo à mesma. Harry, que não tinha a certeza sobre a maioria das coisas
na vida, que questionava todas as decisões que tomava e se considerava um
grande idiota, sabia inequivocamente que aquela era a coisa certa a fazer
naquele momento. Mesmo que atrasasse a pulverização por apenas um ou
dois dias, passaria uma mensagem. Alice e Jake entenderiam que ele tinha
feito aquilo por eles, pelas abelhas, porque podia.
E quando atravessou a ponte e pagou a portagem, a portageira nem sequer
ergueu os olhos do ecrã quando Harold Courtland Stokes III cruzou o rio e se
dirigiu à grande floresta escura da Gifford Pinchot num semirreboque
roubado cheio de pesticida.
Na Highway 141, Harry virou o camião para a clareira onde estivera a
caravana do seu tio. Desligou o motor e baixou a janela. Sentiu a brisa soprar
no rosto e o seu corpo descontraiu-se. O espaço estava agora livre de lixo e
de vidros partidos. Tinham desaparecido os cartazes de «Entrada Proibida» e
pedaços de isolamento rosa. Não se ouvia o tapume solto a bater com o
vento. Ouviu o som dos rápidos atrás da clareira. Ouviu o piar de uma águia-
pesqueira no remoinho do rio. Encostou a cabeça à porta e olhou para as
árvores altas e escuras. Pensou nas vidas secretas das criaturas que aquela
floresta mantinha no seu coração. Pensou em como seria agradável descer do
camião e desaparecer naquela floresta para sempre.
Quanto tempo passara? Não sabia. Pareceu uma vida inteira e pareceu
minutos até Harry ouvir o som de um veículo a aproximar-se. Olhou pelo
espelho e viu o que estava à espera – o jipe do xerife com as suas luzes azuis
e vermelhas. Suspirou e desceu. Tinha o coração pesado. Tinha o coração
leve. Caminhou em direção ao seu futuro com as mãos erguidas em sinal de
rendição.
*
O tribunal do município de Hood River era um edifício grande e imponente
com colunas neoclássicas, uma fachada ornamentada e um grande mural a
retratar a viagem angustiante do Trilho do Oregon – colonos a lutar contra
incêndios nas pradarias, rios inundados e desfiladeiros cheios de neve para
chegar às verdejantes terras agrícolas supostamente vazias do Oregon.
Quando pintado pela primeira vez na década de 1950, o mural retratava
colonos a lutar contra nativos americanos hostis. Fora editado na década de
1980 para mostrar membros das tribos Wasco e Wishram a dar as boas-vindas
aos seus novos vizinhos brancos. Essa também não era toda a verdade, mas
inclinava-se na direção certa. As tribos locais tinham-se mostrado curiosas e
prestáveis quando os primeiros brancos chegaram. Em troca, foram mal
compreendidas, vítimas de maus tratos e por fim despojadas das suas terras.
Os construtores do tribunal claramente anteciparam um Oeste mais
selvagem e tinham construído um amplo espaço para a prisão na cave do
tribunal. A única outra vez em que estivera tão cheia foi num dia de 1942,
quando o condado prendera os residentes nipo-americanos antes de enviá-los
em comboios para campos de internamento em todo o país. Esse capítulo da
história também não era representado no mural.
Jake aguardava na cave do tribunal com os outros homens detidos em Fir
Mountain Road. Não conhecia nenhum deles, mas era fácil saber quem era
quem. Os tipos que tinham começado a luta estavam juntos, a olhar
carrancudos para os restantes. Jake sentou-se o mais longe que pôde com os
alunos da PSU e um tipo chamado Casey, que disse ter trabalhado com Alice.
Casey estava sentado em cima das mãos, como se tentasse impedir que as
suas calças caqui ficassem sujas.
– Universitário – zombou um dos homens mais velhos. Tinha o nariz torto
e o colarinho estava rasgado.
Casey empalideceu, mas depois voltou-se para Jake, o seu rosto a iluminar-
se.
– Estava a tweetar ao vivo o protesto – disse ele em voz baixa. – E as
reações foram ótimas! Fomos «retweeados» por um jornalista da Associated
Press de Los Angeles e outro da Reuters de Nova Iorque.
Casey disse que o seu vídeo do ataque aos manifestantes fora partilhado
por pessoas de todo o mundo antes de a polícia lhe confiscar o telemóvel e o
portátil.
Jake esticou o pescoço e olhou em volta. Não via Noah, Harry ou Yogi
desde que Ronnie o entregara a outro agente. O homem não recolheu as
impressões digitais de Jake nem lhe tirara uma fotografia. Apenas pediu a
Jake para assinar um papel a confirmar que dera entrada na prisão por
perturbar a paz.
Jake recusara, furioso. O agente tirara-o da cadeira e sentara-o no banco da
frente da carrinha, repetindo o processo inverso na prisão. Em seguida,
empurraram-no escadas acima para o edifício. Tudo aquilo parecia uma
agressão.
– Não vou assinar isso. Nem devia estar aqui. E o senhor amolgou a minha
cadeira. Além disso, os seus rapazes deixaram o meu cão lá fora.
– Como queiras – disse o agente, empurrando-o pelo corredor até à cela.
Jake gritou que iria processá-los por discriminação, mas o homem
simplesmente afastou-se.
Jake sentiu-se doente ao pensar em Cheney. O cão não tinha uma etiqueta
na coleira. Talvez Harry, onde quer que se encontrasse, ainda o tivesse. Não
suportaria perder Cheney novamente. Também pensou em Amri, que estivera
naquela confusão porque ele a convidara. Estaria bem?
O homem que zombara de Casey olhava agora para ele. Olhou-o de cima a
baixo e sorriu maldosamente.
– Anormal.
Jake sentiu uma onda de energia. Tinha-se esquecido completamente da sua
cadeira. Tinha-se esquecido de se preocupar com a possibilidade de as
pessoas estarem a olhar. O aspeto que devia ter para aquele tipo: cabeça
rapada, Doc Martens, T-shirt com símbolo da anarquia e cadeira de rodas.
Houvera um tempo em que poderia ter-se importado com o que um tipo como
aquele pensava de si. Parecia tão absurdo agora. Estava-se nas tintas. Sim,
este sou eu, pensou. Sentiu a voz na garganta, que se transformou num grito.
Inclinou a cabeça para trás e riu como um louco. O homem encolheu-se.
Deixou Jake e Casey em paz depois disso.
*
Alice exigiu usar o telefone.
– Quero ligar ao meu advogado – disse ela à secretária do xerife. Denise
conduzira todas as senhoras para a sala dos funcionários do tribunal. Eram
apenas cerca de vinte, e disse que seria indelicado colocá-las nas celas da
cave com todos os homens. Alice conhecia Denise há anos. Não eram
exatamente amigas, mas falavam bem.
– Vá lá, Neesie. Não podes manter-nos aqui o dia todo.
Denise abanou a cabeça.
– Desculpa, Alice. Vais ter de esperar pelo Ron. Não sei o que eles vão
fazer convosco.
Alice voltou a sentar-se com uma mulher da Riverkeeper chamada Kate e
encostou um saco de gelo ao queixo. As universitárias estavam todas
sentadas no chão, de pernas cruzadas, a falar sobre os seus planos para o fim
de semana e não pareciam mais preocupadas do que se estivessem à espera
do autocarro. Ela calculou que tinham mais prática naquele tipo de coisa.
Lá se fora o protesto pacífico. Pensou no grande camião cor de laranja e no
seu condutor. Olhou para o relógio na parede. Já passava do meio-dia. O
camião já teria terminado o pomar de Osaka e provavelmente os dois
seguintes. Sentiu-se desanimar. Pensou nos homens da associação de
apicultores que tinham comparecido por ela. E o querido Doug Ransom com
a sua filha. O Sindicato dos Trabalhadores Mexicano-Americanos também –
pessoas que colhiam fruta nos pomares e sofriam com os produtos químicos
usados. Era como se nenhum deles importasse, pensou. O dinheiro vencia
novamente.
Pensou nas colmeias que lhe restavam. O uso em grande escala do
pesticida da SupraGro envenenaria inevitavelmente tudo o que as suas
abelhas trouxessem para a colmeia. Poderia tentar alimentá-las, embora não
achasse que o excesso de água com açúcar desencorajaria o seu instinto de
recolher pólen. Talvez algumas sobrevivessem ao verão. Como os seus
sonhos, as abelhas agora enfrentavam a extinção. Ela protegeria o que
sobrara. Era tudo o que podia fazer.
*
Jake não fez perguntas quando o agente chamou o seu nome e o levou para
fora da cave.
A porta fechou-se e ele procurou Alice, mas não a viu. A única outra
pessoa no átrio era um homem que Jake nunca tinha visto. Ele levantou-se e
caminhou em direção a Jake. Era um homem elegante, de rosto amável,
cabelo pelos ombros, camisa branca e gravata azul. Estendeu a mão.
– Olá, Jake. Sou o Ken Christensen – disse ele. – O pai da Amri.
Apertaram as mãos.
– É um prazer conhecer-te, apesar das circunstâncias – disse Ken. Estendeu
um envelope pardo. – Aqui estão o teu telemóvel e a carteira. Deram-me isto
lá à frente.
– Obrigado – disse Jake. – A Amri está aí?
Ken abanou a cabeça e Jake respirou aliviado. Ken sentou-se num banco e
tirou um bloco de notas amarelo.
– Ela disse-te que eu era advogado?
Jake abanou a cabeça.
– Disse que o senhor era um velho hippie – respondeu ele sem pensar.
Ken riu e Jake viu que ele tinha os mesmos olhos verde-escuros da filha.
– Vou ter de lhe ralhar por isso – disse ele, sorrindo. – De qualquer forma, a
Amri ligou-me a dizer que um amigo fora preso e podia precisar de
representação. O rececionista disse que tu e todos os outros foram acusados
de perturbar a paz. Queres contar-me o que aconteceu?
Jake falou-lhe da Watershed Alliance, da manifestação pacífica e do ataque
dos homens.
A expressão de Ken ficou sombria. Tomou notas enquanto Jake falava.
– Parece-me que há potencial para acusações de agressão – disse ele.
– Devia era falar com a Alice – observou Jake. – Ela provavelmente
também foi presa. Caso contrário, já teria pagado a minha caução. Alice
Holtzman. Eu moro com ela.
– Volto já – disse Ken.
Tornou a entrar e voltou alguns minutos depois com Alice, que parecia
satisfeita.
– Então a jovem Amri salvou-nos, foi? Acho que devo ter causado uma
ótima impressão na tua nova amiga.
Jake sentiu-se corar e não falou.
No exterior do tribunal encontraram Amri sentada num banco sob uma
cerejeira em flor. Segurava a coleira de Cheney e o cão grande apoiava todo o
seu peso nos joelhos dela como se a conhecesse desde sempre. Amri sorriu
quando viu Jake e ele sentiu o mundo abrir-se.
– Olá – disse ela, levantando-se.
– Viva.
Cheney bocejou, abanou a cauda e enfiou a cabeça no colo de Jake como se
o tivesse visto há apenas cinco minutos.
– Obrigado por cuidares dele. E por ligares ao teu pai.
– Bem, o Cheney encontrou-me no meio da confusão – explicou ela,
coçando as orelhas ao animal. – De qualquer forma, é para isso que servem
os amigos.
Os seus olhos verdes brilharam e o coração de Jake parecia grande de mais
para o seu corpo.
Amri sentou-se ao lado dele no banco de trás do Subaru do pai enquanto
Ken conversava com Alice sobre o protesto e voltavam para o recinto da
feira. Jake estava muito ciente da proximidade do braço de Amri no banco.
Sentia a força magnética da sua presença como a carga elétrica que puxava o
pólen para uma abelha. Quando o carro passou por uma lomba e o seu braço
roçou o dela, ele sentiu um choque percorrer o seu corpo.
Quando que Ken os deixou junto à pickup de Alice, a história estava em
todos os noticiários. Manifestantes pacíficos tinham sido atacados por uma
milícia em Hood River durante uma manifestação contra o uso de pesticidas
em pomares locais. Ao cair da noite, graças aos tweets de Casey em direto a
história tornara-se viral. No espaço de dois dias, Stan Hinatsu recebeu
telefonemas de jornalistas em Seattle, Los Angeles, Nova Iorque, Londres,
Paris e Berlim. A história de Hood River encorajou outras pequenas cidades
por todo o país a manifestarem-se e, uma semana depois, a SupraGro estava
sob ataque feroz.
Numa reunião na semana seguinte nos escritórios da bacia hidrográfica,
Jake sentou-se ao lado de Alice e ouviu Stan contar como a SupraGro, não
admitindo qualquer ligação formal a Fred Paris e os seus capangas,
concordara em pagar uma indemnização às pessoas feridas no ataque em Fir
Mountain Road. A empresa também disse que estava a reavaliar o seu
contrato com o município de Hood River.
– Parece que os obrigámos a carregar no botão de pausa. Vocês todos
fizeram isto acontecer, pessoal! Devem sentir-se muito orgulhosos – disse
Stan.
Stan abriu caminho através da multidão em festa até Alice e Jake. Sorriu
para Alice.
– Então que tal aquela cerveja no pFriem?
E Alice disse que sim.
Jake observou-os, mas estava a quilómetros de distância. Pensava em como
subira para a pickup ao mesmo tempo que Alice trocava números de telefone
com Ken. Enquanto Ken se afastava, Amri baixou a janela, inclinou-se para
fora e acenou-lhe. Jake retribuiu e, quando o carro desapareceu na subida da
estrada, sentiu que o seu coração fora com ele, deixando o seu corpo vazio
como um enxame a abandonar a colmeia.
26
DIA DAS ABELHAS
Quando as abelhas começam o seu trabalho na primavera, geralmente
indicam se tudo está bem ou se a ruína se esconde dentro; mas se o seu
primeiro voo não for notado, às vezes é difícil, nas colmeias comuns,
chegar à verdade.
– L. L. LANGSTROTH

Jacob Stevenson teve a pontuação mais alta da história no exame do


Programa de Aprendiz de Apicultor da Oregon State University – 125 por
cento, contando com uma pergunta de crédito extra sobre a criação de
rainhas. Mesmo antes de a notícia aparecer na newsletter de abril, ele tinha a
certeza disso. Durante o outono e inverno fizera grande parte do trabalho do
curso online e participara em reuniões de grupos de apicultores locais para
obter a sua certificação. No dia do teste, a mãe levou-o de carro até ao
campus da universidade em Portland. Era um sábado de meados de março. O
tempo estava mau – um vento de primavera a soprar arco-íris e chuva para o
desfiladeiro. Viu uma tempestade de vento sobre o rio e o seu estômago deu
cambalhotas. Porém, assim que começou o exame, sentiu-se muito calmo.
Conhecia colmeias por dentro e por fora porque eram importantes para ele.
Portanto, embora estivesse satisfeito por ter uma pontuação mais do que
perfeita, não ficou muito surpreendido.
Claro, o teste era apenas metade do programa de certificação de apicultor.
A segunda metade envolvia quarenta horas de serviço comunitário. Para isso,
Jake fizera uma parceria com uma professora de ciências da escola primária
de May Street, concordando em ajudar as turmas do terceiro e quarto anos a
desenvolverem as suas próprias colmeias. Desde janeiro, Jake estava a falar-
lhes sobre o ciclo de vida das abelhas. Usando fotografias e desenhos,
explicara o que eram as obreiras, os zângãos e a rainha. Contou às crianças
que as abelhas transformavam o néctar em mel e falou-lhes das várias
ameaças a uma colmeia saudável – varroa, traças da cera, fome e, o mais
importante, pesticidas feitos pelo homem.
Ainda como parte do serviço comunitário, Jake ajudou a ligar apicultores
locais a estudantes de pós-graduação que analisavam o impacto dos
pesticidas comerciais nas abelhas. Após a disputa com a SupraGro, um grupo
de alunos foi dar um passeio pelo vale. Quatro deles propuseram um estudo
para examinar a relação entre a produção local de pomares e as populações de
abelhas. Compreender o valor simbiótico dos dois ecossistemas trazia alguma
esperança, supunha Jake.
Naquele dia de abril, ele estava à porta da escola no jardim de borboletas
onde ele e a professora tinham decidido instalar as colmeias. O jardim fazia
parte do novo edifício das ciências, que era o que havia de mais moderno em
termos de acessibilidades. Noah deixara-o ali e ajudara-o a descarregar as
colmeias núcleo. Jake quisera ir a conduzir, mas o seu Subaru adaptado, pago
com uma doação do Mobility Resource, só estaria pronto dali a uma semana.
Mal podia esperar para se sentar ao volante do seu próprio carro.
O seu mentor, Chris, deixara-o praticar no seu carro, um Honda Pilot,
depois de Jake passar no exame de condução. Jake levara ambos a Portland
para uma reunião com o seu grupo de apoio. Quando entrara na autoestrada e
acelerara, sentira uma onda de adrenalina e gritou a plenos pulmões.
Chris rira-se e dera-lhe um soco no ombro.
– Não estragues o meu carro, homenzinho! – exclamara.
Jake sabia que estava adiantado, mas queria ficar ao sol à espera das
crianças da aula da professora Unalitin. Pousou a mão em ambas as caixas de
madeira que trouxera e sentiu a vibração silenciosa das abelhas. Cada
colmeia núcleo continha cinco caixas de favos, abelhas, crias saudáveis e
uma grande rainha gorda. Já eram uma unidade familiar feliz, portanto a
transferência dos quadros seria um processo tranquilo. Jake podia mostrar às
crianças as crias operculadas, as larvas não operculadas e os ovos nos
quadros antes de transferi-los para as colmeias recém-pintadas. Se tivessem
tempo, Jake fá-las-ia procurar a rainha. A maioria das crianças estaria
demasiado nervosa para lidar com os quadros, mas, se alguém quisesse tentar,
ele mostrar-lhe-ia como trabalhar devagar e com cuidado, assim como Alice
o ensinara no ano anterior.
E tal como ele ensinara Amri. Mais cautelosa do que ele, ela vestira um
traje completo de apicultor nas primeiras três ou quatro vezes e ficara apenas
a vê-lo trabalhar. Lembrando-se da apresentação de Harry às abelhas, Jake
não a pressionou. Ela fez perguntas enquanto ele examinava as estruturas e
documentava o desenvolvimento de cada nova colmeia. Não se apaixonou
por elas imediatamente como Jake, o que era típico dela. Amri sentia as
coisas profundamente, mas demorava um pouco a demonstrar os seus
sentimentos.
Nesse sentido, era diferente dos pais. Como Ken, a sua mulher, Olivia, era
advogada, mas fora professora de ioga quando estava grávida de Amrita, cujo
nome significava «néctar» em sânscrito. As crianças mais novas tinham
nomes mais terrenos – River, Sage e Tierra – mas os pais de Amri
continuavam a comunicar e a partilhar os seus sentimentos. A primeira vez
que convidaram Jake, Olivia ligou antes para dizer que a casa tinha uma
rampa e seria navegável para a sua cadeira. Mesmo que Amri já lhe tivesse
dito, ele achou muito simpático da parte dela. Sentados à mesa, revezaram-se
a dizer pelo que estavam gratos antes de comer. Amri revirou os olhos. As
crianças mais novas tiveram mais facilidade. Gelados, triciclos e cuecas com
unicórnios encabeçaram a lista de Tierra, que recentemente aprendera a usar
o bacio e estava apaixonada pelas suas cuecas de menina. Para Jake, cuja
família deixara de jantar junta quando ele fizera doze anos e que não tinha
irmãos, era fixe. Disse que estava grato pelas abelhas, pelos bons amigos e
pelo seu cão, não necessariamente nessa ordem. Ainda assim, entendia que
Amri parecia reservada por fora enquanto sentia as coisas intensamente. E
assim que percebeu isso sobre ela, conseguiu facilmente ler a sua afeição. Ela
amava-o, sabia. O pensamento ainda o deixava tonto.
Na véspera à noite ela dissera que queria faltar às aulas e ir com ele naquela
manhã, mas Jake não a deixou.
– Não sejas idiota! Fica na escola! – disse ele na sua melhor imitação de
Mr. T. – Podes ir ajudar-me depois.
Ela encolheu os ombros e inclinou-se para beijá-lo antes de entrar no carro.
– Até breve, lindo – despediu-se ela, os seus olhos verdes a brilhar sob o
cabelo escuro.
Ali vai a minha namorada, pensou ele. Havia quase um ano, mas as
palavras ainda faziam o seu coração disparar. Não estavam a apressar nada,
mas ele podia dizer ao Dr. Gunheim no seu próximo exame que tudo no seu
corpo parecia estar a funcionar.
Depois de Amri partir, Jake rolou para o quintal para ver o pôr do Sol.
Pegou no trompete. O peso do latão polido parecia familiar e reconfortante
nas suas mãos. Percorreu a escala durante algum tempo, o que deixava
sempre Red Head Ned desconfiado. O pequeno galo caminhou em direção a
Jake e a seguir patrulhou o espaço entre o rapaz e o galinheiro durante alguns
minutos, como se para lembrá-lo de quem era o chefe. Jake terminou a escala
e tocou «Up Jumped Spring», uma peça em que trabalhara durante o inverno.
Parecia uma música apropriada para a temporada e para as abelhas. As notas
espelhavam o movimento rápido e gracioso das abelhas e os seus padrões de
voo satisfeitos e ocupados sobre o campo. Conseguiriam as abelhas-rainhas
ouvir?, perguntou-se ele. Esperava que sim. Talvez entendessem o que era –
uma canção de amor, uma oferta, um hino de gratidão pela sua nova vida e as
alegrias inesperadas que ela trouxera.
Jake olhou para as duas colmeias que as turmas do terceiro e quarto anos
tinham construído para abrigar aquelas duas. A colmeia do terceiro ano era
uma Langstroth tradicional como as que ele vira pela primeira vez em casa de
Alice. A colmeia do quarto ano era essencialmente uma colmeia Langstroth
disposta horizontalmente. Tinha o mesmo número de quadros, a mesma
tampa interior e parte de cima telescópica. Era apenas longa em vez de alta.
Aquela era uma colmeia Stokes, diria ele às crianças, com um sorriso irónico.
Jake estava a cuidar de três, e prosperavam ao lado das colmeias Langstroth
tradicionais, exatamente como Harry previra.
Harry disse que a ideia da colmeia horizontal surgira depois da sua
primeira aula de kitesurf com Yogi – uma invenção nascida de olhar para a
física de um problema de vários ângulos. Se fosse completamente horizontal,
Jake poderia adicionar quadros nas extremidades. As abelhas iriam apenas
construir para fora em vez de para cima.
– Fizeram os ninhos durante milhares de anos em troncos e buracos
aleatórios antes de inventarmos as colmeias, então porque não? – comentara
ele quando Jake arvorara uma expressão cética.
Foi um presente inesperado. Harry dera-lhe a colmeia na manhã da marcha
em maio passado. O dia em que os capangas de Fred Paris os atacaram. Que
fiasco. Stokes, o trapalhão. Sentia a falta dele.
Jake estremeceu no frio de abril e mudou a posição da cadeira para que o
sol lhe batesse no rosto. Pousou a mão numa caixa e depois na outra. Fechou
os olhos e ouviu. Lá estava ele – aquele sol sustenido bastante claro.
Soou o toque.
A porta abriu-se com estrondo e o ar encheu-se com as vozes animadas de
vinte e dois alunos do terceiro ano, a saírem atrás da professora. Acenaram,
sorriram e gritaram o nome de Jake.
No primeiro dia em que ele fora à aula em janeiro, quando entrara na sala,
eles olharam para a sua careca brilhante e para a cadeira. A professora
Unalitin apresentou-o e disse às crianças que ele lhes contaria tudo sobre as
abelhas. Uma menina baixou a cabeça e começou a chorar baixinho. A
professora pareceu envergonhada.
– Então, Ruby – disse ela. – Lembras-te do que falámos?
Mas Jake acenou com a mão.
– Está tudo bem, professora U. Posso tratá-la por professora U? A maioria
das crianças nunca viu uma cadeira de rodas tão fixe como a minha. Não sabe
o que pensar.
Voltou-se para a turma.
– Muito bem, quantos de vocês sabem andar de bicicleta?
Várias crianças levantaram hesitantemente as mãos. Ele inclinou a cabeça.
– A sério? Só seis? Mais ninguém sabe andar de bicicleta?
Mais mãos se levantaram.
– Assim está melhor – disse ele. – E quantos de vocês, ciclistas, conseguem
fazer um cavalinho?
Mãos subiram novamente e as crianças inclinaram-se para a frente nas suas
carteiras.
– Impressionante! – exclamou Jake. – E quantos de vocês conseguem fazer
uma manual?
As crianças baixaram as mãos e pareceram inseguras.
– Uma manual – disse Jake – é um cavalinho mais uma volta de trezentos e
sessenta graus.
– Oh! – gritou um menino rechonchudo, ajoelhando-se na cadeira e
acenando com a mão. – O meu irmão mais velho consegue fazer isso! Ele
sobe e dá a volta!
O menino saltou da cadeira e descreveu num círculo. As outras crianças
riram.
– Senta-te, Joshua! – instruiu a professora Unalitin, mas sorria.
As crianças olharam para Jake.
– Bem – disse ele –, a minha cadeira consegue fazer ainda melhor do que
isso. Vejam. – Fez um cavalinho, descreveu um círculo numa direção e
depois na outra. – Isto são setecentos e vinte graus, crianças! Cavalinho com
uma manual dupla. Olhem para mim!
Elas aplaudiram e gritaram:
– Outra vez! Faz outra vez!
Agora corriam na sua direção, os seus rostinhos tão familiares. Ruby, a
menina que tinha chorado, aproximou-se e encostou-se ao braço da sua
cadeira. O seu hálito cheirava a bolachas de água e sal. As crianças rodearam-
no e abriram os fechos dos seus casacos no ar quente.
– Olá, pequenitos!
– Olá, Jake! – gritaram eles.
– É ótimo ver-vos hoje, porque é um dia muito especial. Alguém se lembra
porquê?
Algumas mãozinhas ergueram-se e Jake apontou para Barbara, uma
beldade desdentada com longas tranças pretas que era prima de Celia. Ela
ficou tímida quando ele disse o seu nome.
– É o dia das abelhas – sussurrou ela. – Día de las abejas.
– Isso mesmo! – exclamou Jake. – É o Dia das Abelhas em May Street!
Trago uma rainha para vocês conhecerem, as suas filhas obreiras e alguns
zângãos preguiçosos. Vamos começar.
*
Alice Holtzman estivera de bom humor durante toda a manhã, mesmo antes
de confirmar que o seu vestido azul preferido lhe servia novamente. Enfiou-o
pela cabeça e alisou o tecido em redor das ancas. Prendeu o cinto e olhou-se
no espelho, endireitou os ombros e puxou o cabelo para trás das orelhas. Era
um vestido bonito que costumava estar reservado para ocasiões especiais.
Quando fora a última vez que o usara? Num dos aniversários da família
Ryan? Ela adorava aquele azul-ardósia, que combinava com a sua pele pálida.
Mas despiu-o, decidindo que era demasiado elegante. Umas calças e uma
camisa bonita bastariam para a sua ida ao tribunal naquele dia.
Alice não esperara o processo no gabinete de planeamento. O aumento do
escrutínio após o conflito com a SupraGro revelara grandes problemas dentro
do orçamento do município, e veio à luz que Bill Chenowith desviara mais de
um milhão de dólares. Naquele dia, o juiz Weisfield leria a sentença formal,
que já fora relatada no jornal. Bill passaria os próximos vinte a quarenta anos
na Penitenciária do Estado de Oregon.
Fora Debi Jeffreys quem descobrira. Debi, a chefe do gabinete descontente.
Debi examinou meticulosamente as finanças e concluiu que Bill desviava
dinheiro há anos. Debi também não via um aumento há vários anos e tinha
três filhos pequenos para sustentar.
São sempre os mais calados que temos de observar, pensou Alice para
consigo.
Calçou um par de sapatos azul-escuros com um salto baixo. Estavam
apertados, então trocou as meias.
Pensou em Bill e resfolegou. A revelação esclarecera muitas questões,
como por que motivo o orçamento era sempre tão apertado e como é que Bill
pagara o belo barco que estava atracado na marina de Hood River. Nancy foi
imediatamente despromovida para a sua antiga posição, e o município ainda
andava à procura de um substituto para Bill. Rich Carlson mandara-lhe um e-
mail a perguntar se ela consideraria candidatar-se ao cargo de Bill. Quando os
crimes de Bill vieram à tona, Rich mudara de opinião, escreveu ele. Não dera
valor ao bom trabalho que ela fizera. Esperava sinceramente que ela
considerasse voltar e, de qualquer forma, a sua pensão seria paga conforme o
planeado a partir do ano seguinte. Alice apagara o e-mail sem responder.
Saiu para o alpendre. Automaticamente, olhou na direção do celeiro, à
espera de ver Harry. Sentia um pequeno sobressalto sempre que o fazia e via
a porta do quarto fechada como um olho adormecido. Tinha saudades daquele
rapaz trapalhão.
Olhou para o relógio e viu que ainda tinha algum tempo antes de ir para o
tribunal. Desceu os degraus e dirigiu-se ao antigo espaço do apiário – o
espaço vedado que chegara a ter cinquenta colmeias no ano anterior, quando
Jake viera para ficar. Ela sorriu. O ano anterior fora bastante agitado. Parou
junto à vedação e olhou para o grande espaço onde antes estavam as
colmeias. Agora, em vez das caixas brancas pintadas em cima das estruturas
de suporte, o terreno estava cheio de flores – as que desabrochavam cedo
como a urze, a dedaleira e o heliotrópio – que se destacavam em salpicos de
rosa, lilás e azul. O ar cheirava a elas, uma mistura de plantas boas para as
abelhas. Alice fechou os olhos, respirando fundo. O verão traria sálvia,
hissopo, alfazema, perovskia e girassóis. O jardim de flores fora ideia de
Jake. Achou que seria mais uma ótima ferramenta para ensinar as crianças de
May Street.
O ar em seu redor estava vivo com os corpos dourados das abelhas a cruzar
o campo para pousar nas flores. No final do verão do ano anterior, Alice
percebera que cem colmeias não era uma meta impossível, apesar das perdas
no início da primavera. Mas não tinha espaço para tantas no antigo apiário,
então mudara-as para o pomar de Ransom, onde havia mais espaço. Todas as
colmeias, exceto uma, sobreviveram ao inverno. Agora ela tinha o espaço e
recursos para crescer tanto quanto desejasse. Com sorte e desdobramentos,
ela poderia ter até cento e cinquenta colmeias em julho.
Alice olhou em direção ao pomar. As árvores exibiam rebentos que em
breve se renderiam aos dias quentes de primavera e explodiriam num manto
branco que se agitaria como espuma com o vento oeste. Então as abelhas
estariam muito ocupadas. E Alice também, já que agora era duplamente
abençoada com mel e fruta.
Comprara o velho pomar a Doug no final do verão. Ele sugerira isso num
dia de agosto, enquanto ele e Alice bebiam chá no alpendre. Estavam a
conversar sobre a reunião dos comissários regionais, onde Stan apresentara
uma proposta para banir alguns pesticidas nos pomares e limitar outros. Não
era uma reversão completa, mas era um começo.
– Os velhos hábitos custam a desaparecer – refletiu ela.
Doug assentiu.
– Mas as pessoas podem mudar, Alice. Estes tipos são antiquados, mas
adoram as suas árvores. Dá-lhes tempo. E tu? Qual é o próximo passo?
Alice disse a Doug que não sabia. Andava à procura de emprego em
Portland, o que envolveria uma deslocação diária, mas não encontrara nada.
Foi quando ele fez a sua proposta sobre o pomar.
– Sabes que os meus filhos não querem o pomar, Alice. E eu não quero
mudar-me para Seattle. Eu na cidade? Impossível.
Doug insistiu em receber o dinheiro a prestações para que ela não
precisasse de contrair um empréstimo. Alice tentou recusar aquela oferta
generosa, mas o seu coração não deixou. Claro que queria o pomar. Era o que
sempre quisera desde a quarta classe, na turma da senhora Tooksbury. Sim,
disse ela, absolutamente. Doug ficaria na casa o tempo que quisesse, o tempo
que pudesse e sem pagar renda. Como parte do acordo, Alice prometeu aos
filhos dele que o visitaria todos os dias e o ajudaria com as compras e
recados. E passar tempo com Doug não era difícil. Ajudava a atenuar as
saudades que tinha dos pais.
Alice Holtzman era agora dona de um pomar e apicultora. Teria a sua
primeira produção de peras e maçãs nesse outono juntamente com outra
enorme cresta de mel. Tudo parecia tão certo, como se as coisas tivessem
acabado por se encaixar. Fora isso que ela dissera à Dr.ª Zimmerman na sua
última sessão, quando ambas concordaram que Alice parecia estar a curar-se
e a seguir em frente.
Estás de novo a manobrar o teu barco, ouviu ela a voz da mãe dizer.
Rija como um bife de dois dólares. Linda menina, disse o pai.
Alice ouviu um latido e viu o corpo castanho de Cheney a atravessar o
campo vindo da casa de Doug. Cheney e Doug eram ótimos amigos agora. O
cão devorava o pequeno-almoço que Jake deitava na sua tigela e, em seguida,
ia até à casa de Doug para qualquer petisco que o idoso tivesse guardado para
ele.
Alice deixou Cheney entrar.
– Porta-te bem, grandalhão. Não te deites na cama.
Ele bateu com a cauda no chão e trotou pelo corredor até ao quarto de Jake.
Jake era seu sócio no negócio da apicultura, que ultrapassara oficialmente o
estatuto de passatempo no verão passado, quando crestaram mil e quinhentos
litros de mel no fim da temporada. Tinham levado quase uma semana, com a
ajuda de Amri, Noah e Celia para recolher e engarrafar a safra. A oficina fora
transformada numa linha de montagem, onde se revezavam a retirar os
opérculos aos quadros. Trabalharam juntos para levar os quadros a gotejar
para o extrator, monitorizando o fluxo e coando o xarope dourado espesso
que jorrava. Foi um trabalho pegajoso e maravilhoso. Celia coara os
opérculos e fizera velas. O mel foi vendido a vinte dólares o litro na feira
municipal no outono. Depois disso, tinham recrutado a mãe de Jake para
tratar da contabilidade e a Queen of G Honey nascera. Ron e os sobrinhos
ajudaram a transportar as colmeias para o pomar e também construíram a
rede de rampas que Jake projetou para passar pelo apiário.
Jake tinha mais iniciativa do que a maioria dos jovens da sua idade. Estava
a sair-se financeiramente melhor do que ela aos dezanove anos, pensou Alice
ironicamente. Graças ao pai advogado de Amri, o rapaz tinha um
fideicomisso que protegia a sua participação no negócio do mel e os seus
benefícios fiscais por ser portador de deficiência. E ainda bem. Tinha planos
para fazer criação de rainhas e cruzamentos de abelhas resistentes à varroa
que manteriam a Queen of G a crescer em novas direções que ela nunca teria
imaginado. Riu-se e abanou a cabeça. O entusiasmo dele nunca deixava de
surpreendê-la.
Entrou na sua pickup e dirigiu-se à cidade. Passou pela escola secundária e
pelo posto de gasolina. Abrandou a velocidade junto à taqueria e tomou nota
para ligar a Evangelina e perguntar o que poderia levar para a quinceañera da
sua filha mais nova no fim de semana seguinte. Na segunda-feira a seguir à
festa extravagante da rapariga seria o aniversário de Bud. Animava-a saber
que iria passar o dia anterior com os pais dele, com Ron e Evie, com o
pequeno Ronnie e os outros sobrinhos. A sua família. Jake e Amri também
iriam, e ela achou que iria convidar Stan.
Stan, como ela suspeitara, era um homem que valia a pena conhecer.
Depois daquela primeira cerveja no pFriem no verão anterior tinham ido
subir Mount Hood.
A fazeres caminhadas! Ficas com um ar saudável! Quase podia ouvir a
mãe a rir.
Os Holtzman sempre limitaram o exercício físico ao trabalho árduo, mas
Alice começara a fazer caminhadas. Durante o verão, Stan mostrou-lhe os
seus trilhos preferidos ao longo de riachos e cascatas na montanha. Ela e
Stan… o que teria dito o seu pai antiquado? Faziam companhia um ao outro.
Nada sério.
Alice passou pela Little Bit Grocery and Ranch Supply, a que já não ia a
desoras. Agora, quando lá ia, ansiava por ver as pessoas que conhecia –
velhos e novos amigos. Afastou o cinto de segurança do pescoço e abriu o
botão das calças, o que a fez sentir-se melhor. Pôs o cotovelo fora da janela e
conduziu através da sua pequena cidade até ao tribunal para ver ser feita
justiça.
*
Harry esperava na fila para o duche, segurando a roupa limpa debaixo de um
braço e a bolsa com os produtos de higiene debaixo do outro. Aprendera à
sua custa que qualquer coisa deixada para trás seria roubada por um dos
outros tipos.
Encostou-se ao lavatório e olhou-se ao espelho. Tinham-no deixado ficar
com o bigode fino, pelo que estava grato. Demorara a crescer. Seria uma pena
ter de rapá-lo por causa de alguma regulamentação vaga sobre pelos faciais.
Também tinha um ar mais forte. Estava orgulhoso disso. Levantava pesos e
corria três vezes por semana e sentia-se mais em forma do que nunca. O
trabalho que o punham a fazer era tão físico que valia a pena estar o mais em
forma possível, para não se magoar.
A água num dos cubículos foi fechada e Harry ouviu um assobio alto e um
barítono profundo a cantar «Shake Your Moneymaker». A cortina abriu-se e
Yogi saiu com uns calções lavados e uma T-shirt. Viu Harry, largou a roupa
suja e lançou-se num solo de air guitar, sacudindo o cabelo comprido e
molhado, terminando com um pontapé e um salto.
Harry bateu palmas lentamente enquanto Yogi fazia o som de fãs aos gritos
através das mãos em concha.
– Obrigado, South Padre! – exclamou.
Harry riu-se.
– Estás animado para hoje, Stokes? – perguntou Yogi. – Temos outra vez
aquele bando de miúdos de Los Angeles.
Harry gemeu e curvou-se no chuveiro.
– Tens de ficar com aqueles gémeos horríveis, Yogi. Eles não ouvem.
– Isso é porque têm os cérebros nos tomates. Têm quinze anos. O que
esperavas? Consegues lidar com eles, Stokes. Sabes porquê? Porque estás
sempre animado!
Gritou aquela última parte ao sair da casa de banho
Yogi arranjara emprego a Harry para a temporada na South Padre
Kiteboarding Adventures. A temporada do Texas ia de outubro a maio, que
eram os meses escuros e chuvosos no norte. Yogi trabalhava para a SPKA há
anos. Depois de ver Harry destacar-se durante o verão, ofereceu-se para falar
com o seu chefe. Harry aproveitou a oportunidade. Não pôde ajudar na cresta
de mel do outono, mas Alice disse que o esperava de volta no final da
primavera.
– Contamos com todos este verão, Harry – disse ela.
Harry estava exultante por ainda ter um lugar lá. Não soubera se ela iria
mantê-lo depois de lhe contar sobre o roubo dos televisores e a sua prisão.
Lembrava-se de estar na cozinha e de contar toda a história idiota no dia em
que roubara o camião da SupraGro. Dissera as palavras rapidamente, olhando
para os pés de Alice. Ela descalçara as botas de trabalho e Harry reparou que
tinha um buraco na meia.
Alice pousou as mãos nos joelhos e exalou quando ele terminou. Parecia
furiosa. Harry preparou-se.
– Esses merdinhas! – exclamou ela. – Deixarem-te arcar com as culpas
todas. Parece que precisam de um bom pontapé no traseiro.
Harry ficou a olhar para ela e Alice encolheu os ombros.
– Olha, não te perguntei se tinhas cadastro. E tu não me contaste. Deste-me
referências e não lhes liguei. Então. – Levantou-se. – Quem quer mais tarte?
Foi até à cozinha.
Harry olhou para Jake, que reprimiu uma gargalhada.
Sabia bem confessar tudo, embora realmente não tivesse precisado de lhe
contar. Julgara que tudo se saberia quando ele fosse preso por roubar o
camião.
Na antiga casa do tio H, ele descera da cabina para enfrentar as luzes azuis
e vermelhas do jipe do departamento do xerife. Não se arrependia do que
tinha feito, nem um pouco, mesmo enquanto enfrentava a prisão. Queria
ajudar, mesmo que o seu gesto apenas atrasasse a pulverização um ou dois
dias. Era alguma coisa.
A porta do jipe abriu-se e Ronnie apareceu. Bateu com a porta e caminhou
em direção a Harry.
– Companheiro! Que diabo estás a fazer?! – perguntou Ronnie, o seu rosto
a brilhar de suor. – Venho com as luzes acesas desde a ponte.
– Oh, desculpa, meu. N… não percebi. Teria parado…
– Não consigo descobrir como ligar a maldita sirene! – exclamou Ronnie,
com ar infeliz. – Deve haver um curto-circuito ou coisa parecida. Caralho.
Harry abriu a porta do jipe e localizou a caixa de fusíveis. Encontrou o
fusível que disparara e pô-lo na posição normal. Premiu o botão da sirene e
deixou-a soar mais uma ou duas vezes.
– Jesus! Obrigado, meu – disse Ronnie.
Harry sabia que Ronnie teria de detê-lo. Falou-lhe do seu registo criminal e
disse para que município Ronnie deveria ligar para obter os pormenores.
Ronnie encostou-se à porta do jipe, tirou o chapéu e passou a mão pelo
cabelo curto e escuro. Isso não podia ser, disse ele.
Por um lado, não queria a tia Alice zangada com ele de novo, e prender o
seu faz-tudo iria com certeza irritá-la. Além disso, Harry não tinha contado a
ninguém que Ronnie disparara a sua arma. Isso podia ter-lhe custado o
emprego. Aquela coisa da sirene era insignificante, mas os colegas teriam
implicado com ele durante semanas.
– Tenho uma ideia – disse Ronnie.
Pegou no rádio e comunicou que retirara o camião da SupraGro do protesto
em Fir Mountain Road para apaziguar os ânimos. Não conseguiu encontrar o
condutor, por isso, na confusão, pedira a um civil para fazer isso por ele. Era
uma questão de segurança, disse. Harry sentou-se outra vez ao volante e
seguiu Ronnie para a cidade, onde Ronnie mandou confiscar o camião. E,
pela segunda vez, Harry foi deixado à porta de Alice, cortesia do
Departamento do Xerife do município de Hood River.
Depois disso, Harry quis revelar tudo, independentemente das
consequências. Queria ser responsabilizado pelas suas decisões. Compreendia
o poder de assumir a responsabilidade pelas suas ações. Podia fazer as coisas
acontecerem, percebia agora. Como andar de kite e a colmeia horizontal que
projetara para Jake. E Jake a andar de kite.
Essa foi, sem dúvida, a maior conquista da jovem vida de Harry. Depois de
ver um tipo da velha guarda na praia a descrever círculos em volta das
pessoas sentado naquilo a que chamava «cadeira de ar», Harry resolveu
colocar Jake na água. O rapaz tinha muita força na parte superior do corpo.
Só precisava de uma alternativa para a prancha. Então Harry fez-lhe uma
cadeira de ar à medida e preparou o arnês para que pudessem voar juntos
enquanto ele ensinava Jake a manobrar o kite.
Naquele primeiro dia na água, Harry tivera um lampejo de dúvida enquanto
lutava para posicionar Jake e enganchar o arnês com as ondas a rebentarem
nas suas costas e o vento a assobiar através do seu capacete. Mas então olhou
para o rosto do amigo, louco de expectativa, e a confiança envolveu-o como
uma mão gigante vinda de cima. Yogi lançou o kite e os dois jovens voaram
através do rio. Jake gritou e uivou acima do som do vento, sentindo uma nova
e inesperada felicidade. Era um presente que Harry nunca esperara receber –
ser responsável pela alegria de outra pessoa.
Harry tomou duche e vestiu calções e uma camisola de natação. Voltou
para o dormitório, largou a bolsa dos produtos de higiene e pendurou a toalha
molhada. Parou junto à porta de enrolar e olhou para a água azul que se
estendia para o golfo do México.
Iria estar o dia todo com água morna pela cintura, a ensinar pacientemente
aos gémeos mimados de Los Angeles, que estavam ali a passar as férias da
primavera, técnicas seguras de aterragem e lançamento. Ensiná-los-ia a
respeitar a força do vento e falar-lhes-ia da etiqueta de praia, que eles eram
demasiado egocêntricos para entender. No mês seguinte, faria as malas e
entraria num avião de regresso ao Oregon. Voltaria para a pequena quinta ao
fundo da estrada onde os amigos esperavam, onde as abelhas voavam, onde o
vento lhe cantava para adormecer, e tudo isso o chamava a casa.
AGRADECIMENTOS
Escrever é um esforço solitário, mas publicar não. Estou grata pelo apoio e
trabalho árduo de muitas pessoas que ajudaram a divulgar este livro ao
mundo.
Molly Friedrich e Heather Carr, obrigada por verem o potencial desta
história e por insistirem na primeira revisão implacável que a tornou muito
melhor. Têm estado comigo a cada passo, e sentir-me-ia perdida sem vocês.
Obrigada, Hannah Brattesani e Lucy Carson, por todo o trabalho nos
bastidores. Laurie Frankel, a tua disposição em ajudares uma colega escritora
fez toda a diferença, e estou profundamente grata. Lindsey Rose, obrigada
por veres a promessa no manuscrito. As tuas perguntas inteligentes e
alterações melhoraram muito a história. Desde o início, confiei que serias a
melhor guia para este livro. Maya Ziv, obrigada pela tua orientação, apoio e
diligência. Sinto-me tão feliz por teres lá estado para me ajudar. A Emily
Canders, Katie Taylor e todos os membros das equipas de publicidade e
marketing da Dutton, muita gratidão pelo vosso entusiasmo e trabalho árduo
em nome deste livro. Vi-An Nguyen, obrigada pela linda capa.
Várias pessoas contribuíram para me ajudar a criar a personagem de Jake o
mais fielmente que pude. Muito obrigada a todos: Mathew Lucero, Lindsey
Freysinger, Jessica Russo, Nate Ullrich e Tina Catania.
Estou em dívida com o Programa de Aprendiz de Apicultor da Oregon
State University por me ensinar tanto sobre as abelhas. Agradecimentos
especiais ao meu mentor, Zip Krummel.
Matthew Lore, estou muito grata pelo teu apoio, incentivo e amizade. Cory
Jubitz, obrigada por seres uma grande caixa de ressonância. Nancy Foley, és
uma primeira leitora generosa e o «grupo de escritores» que sempre quis.
Muito obrigada e muito apreço à minha família e amigos que me
incentivaram ao longo do caminho.
E a Brendan Ramey, amor infinito e profundo agradecimento. És a minha
casa.

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