Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Quando uma colónia de abelhas sofre uma perturbação, mesmo algo tão leve
como a abertura da colmeia pelo apicultor para avaliar as reservas de mel ou
fontes de pólen, o primeiro instinto das abelhas é comunicar umas com as
outras. Algumas obreiras-guarda voarão para avaliar a ameaça em questão,
mas a maioria das abelhas aterrará imediatamente expondo a sua glândula de
Nasonov e agitará as asas, espalhando assim a feromona da rainha por toda a
colmeia. Essa ação é como uma chamada tranquilizadora que diz aos
habitantes que está tudo bem.
Alice, por outro lado, estava sozinha naquele momento de urgência e não
tinha ninguém que a pudesse orientar ou confortar. Nunca tivera um acidente
desde o secundário, mas reconheceu rapidamente que gritar era inapropriado,
em especial dadas as circunstâncias – ou seja, que podia ter ferido um menor
numa cadeira de rodas. Olhou para o rapaz e baixou a voz.
– Estás bem, rapaz? Consegues... consegues sentar-te?
O rapaz não disse nada, mas ainda sorria. Isso não parecia certo. Teria
algum atraso mental? Ou… paralisia cerebral? Raios! Alice procurou o
telemóvel.
– Vou chamar o cento e doze – murmurou para si mesma.
O sorriso do rapaz desapareceu então e ele levantou a mão.
– Não. Não faça isso. Estou bem. Só preciso de um minuto. Recuperar o
fôlego.
A sua voz era baixa, mas de resto soava normal, e isso fez Alice perceber
que estava demasiado perto dele. Deu um passo atrás. O que fazia ele ali no
escuro? Ela olhou em volta e não viu ninguém.
– Estás sozinho? – perguntou.
O rapaz assentiu.
Alice sentiu culpa e vergonha espalharem-se pelo seu corpo como uma
droga. Sentia o cheiro do seu próprio suor. Olhou para um lado e para o outro
da estrada, que estava escura e silenciosa. Em seguida, correu para a sua
pickup, desligou o motor e ligou os quatro piscas. Quando voltou, o rapaz não
se mexera.
Ela sentou-se no chão, cruzou as pernas e observou o rosto do rapaz. Ele
pestanejou e ela viu o seu peito subir e descer.
– Isso é bom. Respira fundo algumas vezes. Vamos ficar aqui mais um
bocadinho – disse ela.
O crepúsculo intensificou-se e o ar escureceu. Os faróis da carrinha
projetavam dois feixes de luz nos pomares. Ela conseguia ver abelhas a
esvoaçar. Os quatro piscas soavam como um relógio de cozinha frenético e o
coração de Alice batia ao mesmo ritmo. O rapaz olhava para o céu.
– Volto já – disse ela. Foi à pickup, pegou na sua garrafa de água e olhou
para os destroços das colmeias na base da caixa aberta da pickup e na vala.
Centenas de abelhas tinham pousado aí e faziam soar o alarme como loucas.
Com os ventres levantados e as suas glândulas de Nasonov expostas,
espalhavam feromonas tentando localizar as suas rainhas. Que confusão. Isso
teria de esperar.
Voltou para junto do rapaz e ergueu a garrafa.
– Tens sede?
Ele abanou a cabeça e Alice sentou-se de novo ao lado dele.
– Estás magoado? – perguntou e arrependeu-se. Ele estava numa cadeira de
rodas, pelo amor de Deus. – Tens dores?
Ele tornou a abanar a cabeça.
Aquele cabelo! O nariz bicudo destacava-se nitidamente no seu rosto
pálido. Com as calças de ganga justas e botas da tropa, parecia tão deslocado
em Hood River como se tivesse caído do céu.
– Bateste com a cabeça?
Ele assentiu.
– Não com força. Apenas... ressaltou quando caí.
Alice percebeu que estava a suster a respiração e exalou.
– Como te chamas?
– Jake.
– Jake. Sou a Alice. Alice Holtzman.
Ele olhou diretamente para ela e anuiu. Alice descontraiu-se um bocadinho.
Sentia o cheiro da água fria da vala de irrigação abaixo deles e estava grata
por o rapaz não ter caído lá dentro. Contorceu-se quando a gravilha a
magoou. O rosto pálido do rapaz era claro sob o penteado maluco. Alice
olhou para o relógio.
– Ouve, Jake, eu devia ligar aos teus pais para lhes dizer onde estás. Dás-
me o número deles?
Ele abanou a cabeça e fez um esgar.
– Não. Está tudo bem. Eu levanto-me daqui a nada. Eles não estão em casa,
de qualquer maneira.
Aquela última parte soava a mentira e, tendo em conta que eles
provavelmente tinham telemóveis, irrelevante.
– Certo – disse ela devagar, sem saber o que mais dizer. Não convivia com
rapazes adolescentes desde que ela mesma era adolescente.
– Acho que consigo sentar-me – disse ele.
Soergueu-se nos cotovelos e tirou o emaranhado de auriculares e óculos de
sol do pescoço. Pestanejou e olhou em volta.
– Que barulho é esse? – perguntou.
O ar em redor deles pulsava e vibrava. Alice via as abelhas numa nuvem
latejante acima da carrinha. Perguntas agitadas ecoavam pelo ar. Onde estava
a rainha? As crias estavam seguras? As obreiras-guarda estavam de serviço?
Onde estavam todas? Onde era a casa? Apesar da situação mais urgente do
rapaz na cadeira, ela sentiu lágrimas quentes nos olhos pelo que fizera às suas
abelhas. Pigarreou.
– São abelhas. Abelhas melíferas – respondeu Alice. – Tinha algumas
colmeias na parte de trás da pickup, e elas estão um pouco confusas agora.
Peço desculpa por isto. Não te vi. Provavelmente ia demasiado depressa, mas
esta é a minha estrada e quase nunca vejo ninguém aqui. E não estava à
espera...
Parou, nervosa. O rapaz observava-a e ela pensou ter visto os cantos da
boca dele subirem.
– Não estava à espera de ver uma cadeira de rodas a deslizar por Reed
Road? – perguntou.
Ela não soube o que responder.
O rapaz mudou de posição e olhou por cima do ombro em direção à
carrinha.
– Então, abelhas? Porque tem abelhas na sua carrinha?
– Sou apicultora – respondeu ela, grata por ter algo sobre que conversar. –
É apenas um passatempo, na verdade. – Gesticulou na direção de casa. –
Tenho algumas colmeias.
– Colmeias. Uau.
Ele observou as abelhas a esvoaçar à luz dos faróis.
– Parecem zangadas – disse ele.
Alice abanou a cabeça.
– Não, não estão zangadas. Estão confusas.
Como se chamava ele? Bolas, a sua memória! Tentou manter a voz calma.
– Estão mais ou menos a conversar agora, certificando-se de que se
encontram bem. Deviam estar nas suas caixas. Alguns delas caíram da
carrinha quando bati na cerca.
Ela olhou para o lado do seu rosto magro. O que se devia fazer quando
alguém batia com a cabeça? Fazer-lhe perguntas? Jake! Ele chamava-se Jake.
– Como está a tua cabeça, Jake? Melhor?
Ele levou a mão à cabeça rapada e assentiu.
– Sabes onde estás? O que andavas aqui a fazer?
Ele sorriu.
– Não se preocupe. Não tenho uma concussão. Estou em Reed Road. É dia
dez de abril de dois mil e catorze. Moro em Hood River, Oregon, e o Barack
Obama é o presidente dos Estados Unidos.
O sorriso desapareceu e ele franziu a testa.
– Mas não consigo lembrar-me do seu nome.
– Alice Holtzman – disse ela.
– Estou bem, senhora Holtzman.
O rapaz parecia bem. Ela olhou para a carrinha. Teria de arrumar tudo para
levar o rapaz a casa.
– Ouve, Jake, se não te importas, vou ver como estão as abelhas.
– Ah, sim. Não há problema.
– Tens a certeza?
– Absoluta.
– Fica sentado – disse ela, levantando-se.
– Okay. Não vou fugir.
Ela hesitou. Aquilo fora uma piada?
Ele acenou com um braço comprido.
– Estou bem, a sério. Vá ver as suas abelhas, senhora Holtzman.
– Trata-me por Alice – disse ela. – A minha mãe é que é a senhora
Holtzman.
– Está bem, Alice – disse Jake.
Alice calçou as luvas, colocou o chapéu com o véu e acendeu uma lanterna
vermelha, preparando-se para os danos. Sete colmeias núcleo continuavam na
pickup. Endireitou-as e prendeu melhor as tampas. As outras cinco estavam
espalhadas pela estrada. Ela sabia que haveria muitas abelhas mortas, mas
tinha de se concentrar nas que poderia salvar naquele momento.
– Aquilo ali parece um filme de terror – gritou o rapaz.
– Não, está tudo bem – respondeu Alice. – Só preciso de uns minutos para
resolver isto. Sentes-te bem?
– Sim – respondeu ele.
Em cerca de vinte minutos, ela recolhera todos os quadros e pusera as
colmeias em ordem. Foi picada duas vezes nos antebraços. Isso não podia ser
evitado. Tinha de se concentrar naquelas que poderia salvar. Voltou para junto
de Jake, que estava sentado com as costas contra uma pedra. Com aquele
cabelo e as suas longas pernas, ele parecia uma espécie de pássaro exótico.
Alice baixou-se e agarrou num lado da cadeira de rodas. O rapaz olhou
para ela zangado. Ela recuou, envergonhada, e perguntou-se como o teria
ofendido.
– Pensei em dar uma olhadela à tua cadeira?
Ele descontraiu-se e assentiu. Alice endireitou a cadeira de rodas e
iluminou com a lanterna o lado direito. Viu arranhadelas, provavelmente por
causa da queda. Mas, quando girou a roda, ela parecia direita, o que era bom.
Ainda conseguia ouvir as abelhas, embora o zumbido estivesse a diminuir.
Ainda devia haver centenas a voar.
O rapaz mudou de posição contra a rocha e olhou além dela.
– Então, elas vivem, tipo, nessas caixas?
– Apenas temporariamente – respondeu Alice. – Têm umas belas colmeias
à sua espera em minha casa. Aquelas caixas são para a viagem, como um
camião de gado – disse ela, examinando o lado esquerdo da cadeira, que
parecia intacto.
– Como é que as traz de volta? – perguntou Jake. – Pequenos cães
pastores? Pequenos laços?
Ela olhou para ele e viu que sorria de novo. Miúdo engraçado, pensou.
– Bem, elas vão voltar a entrar assim que o ar ficar escuro e frio –
respondeu ela. – Tenho de lhes dar alguns minutos. Depois dou-te boleia para
casa.
– Não há pressa – disse ele.
– Olha, eu sentia-me melhor se ligasses para aos teus pais, Jake. A sério.
Ele suspirou e tirou o telemóvel do bolso.
– Tudo bem. Eu trato disso. – Digitou uma mensagem. – Feito – disse e
sorriu.
– Obrigada – disse ela. – Não quero que os teus pais se preocupem. Já me
sinto suficientemente mal com tudo isto...
Alice inclinou a cadeira para a direita e girou a roda esquerda, que também
se movia livremente e parecia direita. Não era especialista em mecânica, mas
a cadeira de rodas parecia em bom estado. Insistiria em pagar qualquer
reparação. Afinava-se uma cadeira de rodas como uma bicicleta?, interrogou-
se ela.
– Bem, tecnicamente a senhora não fez nada. Eu caí a tentar sair da sua
frente. Portanto, vou apenas dizer-lhes que me fez sair da estrada.
Alice franziu a testa, ainda a olhar para a cadeira, e não respondeu. Estaria
ele a tentar ser engraçado?
– Estou bem, a sério. Ia apenas...
Calou-se e olhou para a pickup atrás dela. Então deslocou-se ligeiramente
para encará-la.
– Quanto às abelhas, Alice. Espera até que eles entrem nessas caixas?
Alice assentiu.
– Sim. Elas encontrarão o caminho de volta. Querem voltar para casa.
– O que acontece se ficarem na rua depois do recolher obrigatório? A mãe
abelha fecha a porta?
Alice pousou a cadeira, mas não olhou para ele.
– Se não chegarem a casa antes de a temperatura descer, não se safam.
– O que quer dizer?
– Bem – disse ela –, se não voltarem para a colmeia à noite, morrem do
lado de fora. Está demasiado frio.
Viu uma expressão de preocupação no rosto dele, surpreendendo-a.
Desligou a lanterna.
– A maioria vai ficar bem. São resistentes – disse, querendo tranquilizá-lo.
Ficou sensibilizada por um adolescente poder preocupar-se com o destino das
pequenas criaturas. – O meu pai costumava chamar-lhes duronas.
Ele sorriu e olhou para trás dela.
– Então podem simplesmente entrar em qualquer uma daquelas caixas? –
perguntou.
– Queres mesmo saber?
Ele assentiu.
Alice olhou para a pequena nuvem de abelhas que zumbia sobre a carrinha
no crepúsculo. Adorava a história das abelhas, que parecia um conto de fadas.
Mesmo que se fosse um cientista ou uma pessoa religiosa, não se podia negar
que as abelhas tinham verdadeira magia.
Uma colmeia de sessenta mil abelhas, explicou ela, tinha uma rainha – líder
e mãe de todas elas. E 97 por cento dos outros minúsculos corpos dourados
que zumbiam lá dentro pertenciam às suas filhas. O punhado restante era
formado por machos, chamados zângãos. Filhas e filhos reconheciam a
rainha pelo seu cheiro, que se chamava feromona. A feromona da rainha
dizia: «Está tudo bem.» Dizia: «Estamos juntos.» Dizia: «O vosso lugar é
aqui.»
Desde o momento em que emergiam dos seus alvéolos operculados,
aquelas criaturas douradas sabiam exatamente o que fazer. As filhas
chamavam-se obreiras, explicou Alice a Jake enquanto a luz diminuía. A
primeira coisa que faziam após a eclosão, era limpar o alvéolo em que tinham
nascido. Em seguida, começavam a cuidar das outras abelhas bebés,
alimentando-as e tampando os alvéolos das larvas e ajudando as outras
abelhas emergentes a aprender a contribuir para a colmeia. Contou a Jake
como as obreiras eram promovidas à medida que envelheciam, movendo-se
em direção à porta para receber o néctar e o pólen das abelhas que o
recolhiam no campo. Algumas obreiras acabavam por passar a ir buscar
alimento ou tornavam-se guardas, explicou ela. As guardas vigiavam a
entrada e só deixavam entrar as outras abelhas que ali pertenciam.
– Como sabem elas? – perguntou Jake. – Quem é quem, quero dizer?
Sabiam pelo cheiro, respondeu Alice. Desde que a rainha estivesse
saudável e pusesse ovos, a sua feromona mantinha-as todas unidas. Se
tivessem alguma preocupação, paravam imediatamente o que estavam a fazer
e expunham a glândula de Nasonov nos seus abdómens, passando um cheiro
característico de limão de abelha para abelha. As abelhas que recolhiam
alimento levavam aquele cheiro com elas e traziam-no de volta para a
colmeia. O cheiro permitia que as guardas as identificassem como residentes
e não ladrões.
– O que quer dizer? Elas roubam umas às outras?
Alice anuiu.
– As abelhas de colmeias famintas roubam mel, portanto, todas são
verificadas à entrada. As vespas também tentam entrar. Comem as larvas e os
ovos… estuporzinhos carnívoros.
Ups!, pensou ela. Olha a linguagem! Olhou para o relógio. Há quanto
tempo estavam ali? Queria levar o rapaz para casa o mais depressa possível.
O zumbido tinha diminuído e poucas abelhas permaneciam no ar.
– Quase prontas. Pelo menos na medida do possível.
Alice levantou-se, limpou o traseiro das jardineiras e virou-se na direção da
pickup. Não queria que o rapaz lhe visse o rosto. Ficava perturbada ao pensar
na possibilidade de perder sequer uma abelha.
Estremeceu, sentindo a queda repentina de temperatura que era comum em
noites de abril como aquela. Virou-se para encarar Jake e o problema de fazê-
lo levantar-se, escolhendo, como sempre fazia, ser direta.
– Então muito bem – disse ela. – Diz-me como ajudar-te a levantar e eu
levo-te a casa.
Jake explicou como posicionar a cadeira de rodas travada e, em seguida,
içou-se para ela. Alice fez menção de ajudá-lo, mas parou quando viu que ele
era claramente capaz de se desenvencilhar sozinho. Instalou-se no assento e
usou as duas mãos para levantar cada perna e colocar os pés nos apoios.
Olhou para o chão escuro e irregular e hesitou. Alice percebeu o seu
constrangimento.
– Olha – disse ela –, vou empurrar-te até à carrinha. Faz a vontade a uma
mulher nervosa, okay?
Ele encolheu os ombros em aquiescência, mas não encontrou o olhar dela.
Alice empurrou-o para a lateral do veículo e abriu a porta. O habitáculo,
como sempre, estava um caos. Embaraçada, lançou uma pilha de papéis e
livros para o banco de trás para arranjar espaço. Então afastou-se e viu o
rapaz avaliar o espaço. Quando ela perguntou se podia ajudar, ele abanou a
cabeça. Jake aproximou primeiro os joelhos da porta. Ergueu os pés, um de
cada vez, para o chão do habitáculo. Então, com a precisão de um alpinista,
estendeu os braços, apoiou-se no banco e no puxador da porta e içou-se para
cima e para dentro.
Recostou-se e Alice reparou que ele estava a transpirar devido ao esforço.
Entregou-lhe a mochila e ele explicou como dobrar a cadeira. Era mais leve
do que ela esperava e prendeu-a na parte de trás com uma correia. Sentou-se
ao volante e olhou para Jake, que examinava o céu escuro.
– Parece que tinha razão. Não vejo mais nenhuma lá fora.
Alice assentiu, mas não disse nada. Pensou nos corpos dourados e imóveis
que vira espalhados ao longo da estrada.
– Então muito bem. Para onde?
– Greenwood Court. Atrás do NAPA Auto – disse ele.
– Estás a brincar comigo? Santo Deus! Vieste dar uma voltinha de
dezasseis quilómetros? – Abanou a cabeça com admiração e viu-o esconder
um sorriso.
Rodou a chave e a voz de Bruce Springsteen rugiu na cabina: «Oh, oh, oh,
oh! Thunder Road!»
– Caramba! – exclamou ela e desligou o rádio. Sentiu um suor frio surgir
no rosto e nas mãos.
O rapaz inclinou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.
– Não admira que não me tenha visto, Alice – disse ele. – A cantar com o
Boss! E tem um leitor de cassetes! Isto é tão incrível!
Jake bateu palmas e Alice permitiu-se sorrir, recuperando o fôlego. Ele
descobriu a sua coleção de cassetes na consola central.
– Posso? – perguntou.
– Estás à vontade – respondeu ela e rumou à cidade enquanto ele
vasculhava as cassetes. Ela ligou o rádio com o volume baixo.
– Vejamos... Bob Dylan. Clássico. Os Fixx. Aceitável. Claro, o único
álbum bom deles foi o Reach the Beach. E aqui temos… caramba, Alice. Phil
Collins? Isso é criminoso. Demasiado trágico! É melhor deixar-me sair aqui.
Estavam num stop e ele fingiu abrir a porta.
– Os Genesis são perfeitamente respeitáveis! – protestou ela. – Não sei
como é que o material a solo dele veio aqui parar!
– Francamente. Sinto vergonha por si, Alice.
Que espertinho! Ela encostou-se ao volante e riu. Quando fora a última vez
que se rira?
Jake estava a acusá-la de ter um esconderijo secreto de cassetes de
Madonna quando ela entrou em Greenwood Court; então o seu sorriso
desapareceu. Abrandou no caminho de acesso esburacado e passou por um
burro de cerâmica com pernas a esboroar e uma cesta de flores de plástico
velhas. O burro estragado deprimiu Alice por algum motivo.
– Pode deixar-me sair aqui – disse Jake em voz baixa.
Diante de uma casa azul, os faróis de Alice iluminaram as pernas de uma
mulher e, em seguida, os seus braços cruzados e rosto ansioso. Desligou o
motor.
– Deve ser a tua mãe?
– Sim.
– Eu vou explicar – disse ela e saltou da carrinha.
– Não, Alice. Espere!
A mãe do rapaz avançou pelo caminho de gravilha, encurtando a distância
entre eles e apertando o casaco de malha cinzenta em torno do corpo. Antes
que Alice pudesse explicar completamente o que tinha acontecido, ela
aproximou-se da pickup.
– Jacob, querido! Estás bem?
– Estou ótimo, mãe – disse o rapaz. – E não foi culpa da Alice. Eu não
estava a prestar atenção.
– Espera. O quê? – A mãe virou-se para Alice. – Disse que o encontrou.
Atropelou o meu filho? – Brandiu um dedo junto ao rosto de Alice. – Esteve
a beber? Que tipo de pessoa irresponsável…
– Não, não foi isso…
A mãe de Jake começou então a gritar e Alice levantou a voz para tentar
fazer-se ouvir.
– Minha senhora! Se se acalmar, posso...
A porta da casa abriu-se com estrondo e um homem caminhou em direção a
eles, o rosto queimado do sol contraído de raiva.
– Que diabo se passa aqui?! – gritou ele.
A mãe de Jake tentava abrir a porta traseira da pickup e chorava
audivelmente.
Jake debruçou-se na janela e chamou-a.
– Mãe! Acalma-te! – Alice virou-se para o pai para lhe assegurar que o
filho estava bem, mas rapidamente percebeu que ele estava apenas chateado
por lhe terem interrompido o serão. Ele inclinou-se, brandindo um dedo junto
ao rosto de Alice e disse uma série de coisas irrepetíveis. De repente, o rapaz
estava ao lado dela.
– Ed! Cala-te! – gritou.
O homem olhou com desdém para o rapaz, cuspiu para o chão junto aos
pés de Alice e voltou para dentro.
– Alice… – começou Jake.
Ela olhou para ele e não falou. Deu meia-volta e dirigiu-se à pickup.
– Espere! – chamou o rapaz.
Sentou-se ao volante e viu Jake afastar-se da mãe e vir na sua direção.
Ficou com a sensação de que estava a abandoná-lo. Ridículo. Nem o
conhecia. Afastou o pensamento enquanto saía dali. Voou em direção a casa
como uma obreira errante a tentar encontrar o caminho para a segurança da
colmeia enquanto a escuridão tomava conta do vale.
6
LOCALIZAÇÃO DA COLMEIA
Uma colmeia de construção mais simples possível, é uma imitação
aproximada da morada das abelhas em estado natural; sendo um mero
recetáculo oco, onde, protegidas das intempéries, podem guardar as
suas reservas.
– L. L. LANGSTROTH
O vento fustigou a casa a noite toda como se estivesse à procura de algo que
tinha perdido. Entrou por baixo dos peitoris das janelas e soprou nos cantos,
chocalhando as maçanetas das portas e assobiando pelo corredor. Alice
ouvia-o deitada na cama. Viver ali no vale entre o velho vulcão e a garganta
do rio era viver com o vento. Crescera com os ventos de oeste quase
constantes que enchiam o rio de espuma durante todo o verão e golpeavam as
florestas com neve no inverno. Quando era menina, pensava no vento como
uma coisa viva, como uma enorme criatura alada a galopar pelo vale. Alguns
dias dançava sobre os pomares com as suas volumosas saias a esvoaçar.
Outras vezes, era fino como uma flecha e projetava-se entre as montras das
lojas e os becos estreitos do centro da povoação. Naquela noite, o vento
estava fraco e agitado, zumbindo como uma abelha perdida apanhada no
canto da sala. Era como uma memória, um desejo ou um sonho esquecido.
Ouviu o piar latejante de uma coruja, um sinal de que o amanhecer estava
distante e a noite ainda dominava. Dormitou até acordar com o arrulhar das
pombas que desceram numa rajada cinzenta para o bebedouro das galinhas
por volta das cinco da manhã. Então, Red Head Ned, o seu sempre fiel galo,
começou a cantar antes do amanhecer. Era o vento, os pássaros e as galinhas
que a mantinham acordada, disse a si mesma ao despertar totalmente. Não o
rapaz. Rendeu-se à vigília quando esse pensamento surgiu e se alojou no seu
peito, como um gato teimoso, sem vontade de sair. O rapaz. Tirou os pés da
cama e sentou-se com um suspiro. Claro que era o rapaz. Também tinha
pensado nele o dia todo na véspera durante o trabalho.
Alice fez café e sentou-se, apoiou os cotovelos na mesa de fórmica e olhou
para o quintal. O rapaz estava claramente bem. A cadeira também, mas ela
não tivera tempo de falar sobre isso antes de toda a gritaria começar duas
noites atrás. Percebia que a mãe estivera apenas preocupada com ele. Nem
sequer se incomodara com o que o idiota do pai do rapaz lhe tinha dito. Mas
tinha dúvidas sobre o bem-estar dele. O que fazia Jake o dia todo? Teria um
emprego? Iria à escola? Tinha a impressão de que ele dissera que já acabara o
secundário. Mas com o que preenchia a sua vida? Como era viver com um
pai assim?
Alice, querida. O que podes fazer pelo menino, afinal?
Quase podia ouvir a voz do pai – a sua cadência rápida e os resquícios de
uma entoação alemã.
Ele não é responsabilidade tua. Tem família.
Era isso que Al diria. Mas olha quem falava. Apesar de toda a sua
insistência para que as pessoas não se metessem na vida dos outros, Al
Holtzman fora um filantropo em série. Não se envolvera nos problemas das
pessoas. Envolvera-se nas suas soluções. Era o que dizia. Alice veio a
compreender que ele fazia sempre essa pergunta – o que podes tu fazer,
afinal? – porque, se conseguisse ver uma maneira específica de ajudar, fá-la-
ia. Ajudava na sua forma discreta, não querendo chamar a atenção. Pagava as
compras da senhora Travis quando estava suficientemente longe da sua
cabeça branca e encaracolada na fila do Little Bit para que ela não o ouvisse,
porque sabia que vivia de uma pensão de viuvez. Deixou três metros cúbicos
de lenha na casa de Tom Connolly num dia frio de outono, queixando-se de
que não arderia nada. Pagara a hipoteca da oficina de Juan Garcia. Marina
ficou furiosa com isso. Mas Al disse apenas que Garcia era um bom homem e
tinha quatro filhos pequenos. Estivera internado com uma hérnia discal. Era
um mistério como é que Al sabia todas essas coisas. O modesto pai de Alice
conhecia as complexidades de tantas vidas.
O que podes fazer pelo menino, afinal, querida Alice?
A menos que houvesse uma resposta clara, não havia razão para continuar a
considerar a questão. Esse era o conselho claro de Al, mesmo do túmulo.
Alice suspirou.
Nada que me ocorra, pai.
Deitou cereais Raisin Bran numa tigela e comeu-os em pé junto ao lava-
louça. Deitou açúcar noutra chávena de café. Sabia que os seus hábitos
alimentares eram terríveis, mas não se importava. Acabara as Chips Ahoy! na
noite anterior, uma a uma, como se fosse trabalho. Sabia que o vazio que
sentia constantemente não era fome, mas o açúcar era uma solução de curto
prazo.
Alice levou o caderno para o apiário, a fim de planificar o seu dia, grata por
ser sábado e não ter de ir ao escritório. O vento tinha parado de soprar e a
manhã estava gloriosa. A luz do sol fluía pelos ramos dos choupos perto do
riacho. Aqueceu os lados brancos das colmeias para que as meninas saíssem
com força total, os seus corpos dourados a voar sobre o trevo e para o pomar
de Doug Ransom, e depois sabia-se lá para onde. Podiam procurar alimento
ao longo de mais de cinco quilómetros. Alice desejou que houvesse uma
maneira de segui-las e aprender os seus segredos de abelha. Pequenas
webcams, pensou, o que a fez recordar a piada de Jake sobre os pequenos
cães pastores e laços.
Sentou-se num tronco e olhou para as suas anotações da véspera, quando
instalara as colmeias núcleo antes de ir trabalhar.
Sexta-feira, 11 de abril de 2014 Nascer do Sol: 6h27, Temp: 17ºC / 6º
C, Velocidades do vento 16-12 KM/H, Precipitação: o, pôr do Sol:
19h47 Total de colmeias até ao momento: 24. Notas: Instaladas 12
colmeias núcleo no lado nordeste do pátio das abelhas. Cada colmeia
com cinco quadros de criação, pólen e mel. Colmeias datadas e
marcadas com o n.º 13-4. Transferência sem incidentes.
Sorriu com ironia ao ler a última parte. A transferência das colmeias tinha
corrido bem, mas ela sentia que devia haver alguma maneira de tomar nota
do estranho episódio em que tirara da estrada um adolescente numa cadeira
de rodas na noite antes de instalar as abelhas. Colocou um asterisco após a
palavra «incidentes» e escreveu «(Jake Stevenson*)» como nota de rodapé ao
fundo da página e a seguir virou para o trabalho daquele dia.
«Sábado, 12 de abril de 2014», escreveu. Anotou a hora do nascer do Sol, a
previsão de temperaturas máximas e mínimas e a velocidade do vento. Em
seguida, escreveu: «Tarefas: completar inspeção regular das colmeias n.º 1-
2.» Isso iria mantê-la ocupada durante várias horas.
Alice colocou o chapéu de apicultor, calçou as luvas e começou o trabalho
cuidadoso de inspecionar as doze colmeias originais, cada uma com duas
alças. Abriu a primeira tampa, colocou-a de lado e removeu a tampa interior.
Soltou um quadro e tirou-o. Segurando-o, procurou ovos, larvas e alvéolos
operculados. Verificou os depósitos de pólen e mel. Colocou aquele quadro
de lado e tirou o seguinte. À medida que o Sol ia subindo no céu, completou
aquela ação para os dez quadros nas alças superior e inferior das doze
colmeias. Apenas dois não pareciam prosperar. Provavelmente as suas
rainhas não tinham sobrevivido ao inverno. Nelas viu muitas larvas de
zângãos, o que era sinal de uma operária poedeira, mas não fora criado
nenhum alvéolo real. Alice decidiu adicionar-lhes quadros de colmeias mais
saudáveis para as impulsionar.
Olhou para as suas anotações e identificou duas das colmeias mais fortes.
Na primeira, encontrou quadros com mel, faixas de pólen dourado e laranja
por baixo, e fila após fila de alvéolos com larvas saudáveis. Alice respirou o
doce aroma de cera e mel. Aquilo serviria muito bem. Se as rainhas nas
colmeias enfermas tivessem morrido, obreiras robustas como aquelas
poderiam produzir outra em três semanas. Tomou nota para verificar se havia
alvéolos reais dali a cinco dias e depois começou a trabalhar, cantarolando
para si mesma, transferindo quadros saudáveis para as duas colmeias frágeis.
Alice sempre gostara da parte de resolução de problemas da apicultura.
Cada colmeia era um organismo vivo com necessidades diferentes. As
abelhas fascinavam-na, essas criaturas obstinadas que trabalhavam
incansavelmente para a comunidade. E criavam tanta beleza – os depósitos de
mel, sim, mas também a base de cera e os depósitos brilhantes de pólen, que
variavam entre cor de limão, cor de abóbora e cor de rubi. Espantava-a o
facto de o seu passatempo simples ter crescido de uma colmeia para vinte e
quatro. Estava ali ao sol com as abelhas a zumbir à volta da sua cabeça
velada quando percebeu a importância do número. Vinte e quatro era quase
metade de cinquenta. Parecia um ponto de viragem. Tirou o chapéu, sentou-
se à sombra do meio-dia e olhou para o apiário, roendo o lápis. Havia muito
espaço para crescer ali. Poderia chegar a cinquenta colmeias no fim do verão
se fosse metódica quanto a divisões e captura de enxames.
A ideia entusiasmou-a como ela há muito tempo não se entusiasmava.
Prática por natureza e com tendência a considerar primeiro os obstáculos,
naquele momento apenas pensou: porque não? Folheou o caderno até ao
verão anterior, onde anotara os pormenores da colheita de mel que rendera
entre 26 a 37 litros de cada uma das doze colmeias. Vendera-o a vinte dólares
o litro na feira e arrecadara seis mil dólares após as despesas. Uma bela
maquia. O seu entusiasmo cresceu. O que poderia fazer com mais colmeias,
com mais mel? O pensamento surgiu de imediato: poderia dar-se ao luxo de
plantar um pomar. Analisou o seu terreno onde a terra era plana e ensolarada.
Algo pequeno, nada como o pomar histórico da família Holtzman. Mas dela.
Sim. Porque não?
Precisaria de ajuda. Isso era certo. A colheita de agosto seria muito
trabalhosa e a seguir alguém teria de a ajudar com o plantio de árvores no
outono. Mas podia dar-se ao luxo de contratar uma pessoa, especialmente
com a expectativa da venda do mel e talvez até de criar rainhas. Percorreu o
apiário para determinar quantas colmeias caberiam e o seu entusiasmo
cresceu.
De volta a casa, abriu a página do mercado do biológico no computador e
leu os anúncios classificados. As pessoas não estavam a oferecer muito. Dez
a quinze dólares por hora ou menos para os VOMQB. Alice zombou.
– Podem ficar com eles todos – disse em voz alta.
Voluntários de Oportunidades Mundiais em Quintas Biológicas. Já os vira,
jovens da Austrália mais recentemente, a tomar conta das bancas no mercado.
Cabelo sujo e roupas hippie, como Joyful. Trabalhavam em troca de
alojamento e alimentação. Não, obrigada, pensou ela. Não queria ser uma
guia turística e não estava interessada em ter alguém a viver em sua casa.
Gostava de estar sozinha ali no vale. A expressão «vida em comunidade»
provocava-lhe pele de galinha. Desde pequena que gostava da sua solidão.
Ilha Alice, dizia a mãe a brincar. Alice Sozinha. O pai compreendia. Os seus
pais também tinham sido pessoas solitárias. Convinha-lhe muito bem. Na
maioria dos dias, pelo menos.
Abriu o formulário de publicação de anúncios e escreveu: «Precisa-se de
funcionário: trabalhador de verão a meio tempo para um apiário. Não é
necessária experiência. Deve ser capaz de levantar até 45 kg. Capacidade
básica de construção será uma vantagem. $13 - $15 por hora, negociável.
Ligue para 541-555-2337 para obter informações ou envie um e-mail para
al.holtzman@gorge.net.»
Calculou que conseguiria um rapaz do secundário por aquele preço e a
maior parte do trabalho estaria concluída no início do ano letivo.
Naquela tarde, Alice foi às compras – ao Ace Hardware para lixas e pincéis
e, por mais que a temesse, a maldita mercearia para outra coisa que não
cereais. Temia ir ao Little Bit, e não apenas por causa do ataque de pânico. A
única mercearia de Hood River era como a praça da cidade, e Alice detestava
conversa fiada. Os idosos faziam compras de manhã e as famílias jovens à
tarde. Em ambas as ocasiões, ela estava sujeita a encontrar alguma amiga da
mãe ou alguém que ela conhecia do secundário. Fazia compras à noite e
nunca aos fins de semana. À noite eram apenas rapazes e famílias latinas.
Também não queriam parar para conversar, pelo menos não com ela. Mas o
frigorífico estava vazio, então tinha de aguentar isso.
À porta do Ace sentou-se ao volante e colocou o saco de papel com as
compras no chão. Atirou o corta-vento para o lado para ter espaço. Então viu
a pequena mochila. Já sabendo que devia ser de Jake, abriu-a e tirou uma
carteira. Lá estava o grande sorriso do rapaz e aquele cabelo maluco a
desaparecer no cimo da imagem. Jacob Todd Stevenson, nascido a 2 de
fevereiro de 1996. Olhos castanhos, cabelo preto. Altura: 1,77 m; peso: 65
kg. Claro, rapaz. Talvez se estivesses a usar um cinto com lastro. Pelos
vistos, os rapazes e as mulheres mentiam sobre o seu peso em direções
opostas. Vou ter de o deixar em casa, pensou, e por algum motivo sentiu-se
animada.
Alice foi à mercearia, onde encontrou Mary Condon. Mary fora próxima da
mãe de Alice e falou-lhe da sua recente operação à anca. Alice realmente não
se importava de ouvir. Era mais fácil do que conversar com os seus próprios
amigos, que ficariam com aquela expressão triste e lhe tocariam no braço.
«Como vais, Alice?» Que pergunta.
Enquanto ela empurrava o carrinho em direção ao corredor de cereais, viu
as costas de Debi Jeffreys, a chefe do gabinete de planeamento, o seu
carrinho atafulhado e três meninos pendurados de lado a gritar como piratas.
Alice decidiu que afinal não precisava de cereais e foi para a fila da caixa.
Desceu Twelfth Street e virou para Greenwood Court. O Ford Focus
amarelo estacionado em frente ao número onze tinha um autocolante que
dizia: «Deus é o meu copiloto.» O seu pulso acelerou quando pensou na cena
ali duas noites antes e respirou fundo. Desligou o motor e ficou sentada,
deixando os segundos passarem. Isso era a boa educação de uma cidade
pequena – aguardar no caminho de acesso quando não se era esperado. Ao
fim de alguns minutos, a porta abriu-se e a mãe do rapaz saiu, protegendo os
olhos do sol com a mão. Acenou e desceu os degraus em direção a Alice,
sorrindo. Alice desceu e ergueu a mochila como uma bandeira de rendição.
– Olá! Não quero incomodar. Só vim deixar isto.
A mãe de Jake ainda sorria. Ao aproximar-se de Alice, estendeu a mão.
– Sou a Tansy. Tansy Stevenson – disse. – É Alice, certo?
Alice assentiu e sorriu. Tansy agarrou-lhe a mão e apertou-a. Segurou
durante uns segundos a mais, o que deixou Alice constrangida, pois o gesto
parecia tão íntimo. Retirou a mão, mas Tansy não pareceu reparar.
– Lamento muito o que aconteceu na outra noite. Senti-me péssima quando
o Jacob explicou o que aconteceu. O Edward e eu estamos muito gratos por o
ter trazido para casa em segurança. Agradecemos a Deus a Alice ter lá estado
para o ajudar.
Alice duvidava que o marido de Tansy agradecesse a Deus qualquer coisa,
mas viu as lágrimas surgir atrás dos óculos de armação cor-de-rosa da mulher
sob a franja enrolada e sentiu pena dela. Tansy era mais jovem do que ela e
vestia uma saia de poliéster direita e meias de náilon com sapatos rasos. Alice
ficou de repente envergonhada das suas jardineiras sujas e chapéu a tapar o
cabelo.
– Não foi nada – disse Alice. – Era o mínimo que eu podia fazer. Lamento
o que aconteceu. Simplesmente não o vi no escuro.
Tansy suspirou, levou os dedos às têmporas e abanou a cabeça.
– Tentei fazê-lo prometer-me que não sairia por aí sozinho, mas ele é
teimoso.
Esforçou-se por rir, mas Alice ainda via as lágrimas a brilhar nos seus
olhos.
– O Jacob gosta de tão poucas coisas hoje em dia... – Calou-se.
Alice não sabia o que dizer. A tristeza na voz da mulher dizia muito sobre a
vida limitada do filho.
– Bem – disse Alice –, quero pagar quaisquer reparações de que a cadeira
precise.
Tansy sorriu, tirou um lenço de papel do punho e limpou os olhos.
– A cadeira parece estar bem, mas obrigada por se oferecer.
Por precaução, deviam trocar números de telefone, disse Alice. Foi à
carrinha buscar uma caneta. Rabiscou o seu endereço de e-mail e número de
telefone no recibo do Ace e percebeu que estava a empatar, na esperança de
ver o rapaz. A porta de rede abriu-se e lá estava ele, com moicano e tudo. Viu
as olheiras escuras e o seu rosto pálido. O sorriso dele floresceu hesitante.
– Olá, Alice! – exclamou.
Desceu a rampa da cadeira de rodas e travou junto aos pés dela. Alice
notou o seu movimento fluido, até gracioso, com a cadeira. Na luz clara do
dia, ele parecia ainda mais novo. Ela arrependeu-se de ter arrancado de forma
tão abrupta duas noites antes, apesar do que o estúpido do pai dele dissera.
Jake viu a mochila aos pés da mãe.
– Obrigado. Já tinha dado pela falta dela.
– De nada – disse ela, retribuindo o sorriso.
– Como estão as meninas? – perguntou ele. – Todas bem depois da grande
aventura?
Alice soltou uma gargalhada.
– Sim, estão a acomodar-se bem.
– Certo. Como disse, duronas. Todas a trabalhar no duro para criar os
bebés?
Alice ficou satisfeita por ele se ter lembrado das suas palavras.
– Podes crer – disse ela.
Tansy olhou de Alice para Jake e de novo para Alice.
– Abelhas, mãe! Eu disse-te. A Alice é apicultora – explicou Jake. Agitou
as mãos no ar, os olhos arregalados. – Tem milhares de abelhas em casa.
Milhares!
– Bem, dezenas de milhar, na verdade – disse Alice. – Cada uma daquelas
caixas continha cerca de dez mil abelhas.
– Porra! Isso é incrível!
– Jacob. Olha a linguagem, por favor.
– Desculpa, mãe – disse ele. – Mas a sério.
Ele inclinou a cabeça e baixou a voz.
– Devias tê-las visto a voar depois de a Alice bater na cerca. As caixas
caíram por todo o lado. Ela simplesmente entrou lá como se não fosse nada.
Pegou-lhes e colocou-as de volta na pickup.
Tansy estremeceu.
– Elas picam-lhe?
Alice encolheu os ombros. Aquela era a primeira pergunta de toda a gente.
– Às vezes. Mas, como eu disse ao Jake, só picam quando se sentem
ameaçadas.
Embora Alice detestasse conversa fiada, adorava falar de abelhas. Pensou
em falar a Tansy sobre as obreiras-guarda, se ela estivesse realmente
interessada. Mas Jake já estava a fazê-lo. Olhou para Alice.
– Sim, pesquisei ontem. Muito fixe. É como o Gandalf em O Senhor dos
Anéis. «Não passarão!» Também li sobre os roubos das vespas. O que faz?
Monta armadilhas ou deixa-as lutar?
Alice começou a responder, mas então ouviu o ronco baixo de um motor a
gasóleo no caminho atrás dela. Virou-se e viu o pai de Jake a fitá-la de um
Ford F-250 prateado. O motor gemeu quando ele fez marcha-atrás e
estacionou na rua. Caminhou em direção a eles, o seu rosto franzido de fúria,
cada passo pesado com a tragédia da sua inconveniência.
– … estacionar no seu próprio caminho de acesso! – resmungava ao
aproximar-se. O sorriso desaparecera do rosto de Jake e Tansy parecia
nervosa. O pai de Jake fitou-os com ar zangado. Algo disse a Alice que isso
acontecia constantemente.
– O que está aqui a fazer? Além de me bloquear o acesso?
Vestia umas Wranglers engomadas e uma camisa xadrez com um crachá
que dizia: «Olá! Sou o Edward!» numa alegre caligrafia feminina, claramente
de algum evento de trabalho. O contraste com o seu rosto mal-humorado fez
Alice sorrir sem querer.
– Acha isso engraçado, hem?
– Edward, querido – interveio Tansy. – A Alice veio trazer a mochila do
Jacob…
– Acho que lhe disse para sair do meu acesso – disse ele, ignorando a
mulher. – E manter-se longe. Isso é tão difícil de entender?
A sua voz elevara-se e ele soava como uma criança petulante.
Alice não disse nada. Crescera com um pai tão meigo, tirando a sua
linguagem colorida. Mas encontrara aquele tipo de homem antes. Todas as
mulheres na América já o tinham conhecido quando chegavam aos vinte e
cinco anos. Ela trabalhara com homens para os quais o bullying era um estilo
de gestão normal. Envenenamento por testosterona, dizia ela e a amiga Nancy
na brincadeira. E, no entanto, as mulheres é que eram consideradas histéricas.
Eram como criancinhas, aqueles homens zangados, pensou ela. Sempre a
fazer birras.
Algo clicou na mente de Alice então. Criancinhas. Edward Stevenson.
Eddie.
– Eddie Stevenson – disse ela em voz alta. – O Eddie Stevenson de Hatch
Street.
O rosto de Edward revelou surpresa.
– Sou a Alice Holtzman – disse ela, olhando atentamente para ele. Sim, ele
tinha quase quarenta anos, cerca de sete anos menos que ela. – Eu era a
vizinha da sua ama. Jeannine Sharp. Lembra-se? – Estalou os dedos e riu. –
Ajudei-a a dar-lhe banho quando você tinha três anos.
Recordou Jeannine, muito engraçada, sempre tão paciente com as crianças.
Alice estava sentada no chão da casa de banho a ver o menino salpicar na
banheira enquanto Jeannine mudava a fralda da irmã mais nova.
Ed mexeu-se desconfortavelmente e empalideceu. Jake parecia cético,
como se não pudesse acreditar que o pai já tinha sido uma criança pequena e
nua. Alice viu algo no rosto de Ed semelhante a vergonha. E medo.
O que era? Recordou a história horrível. Ela estava no décimo ano quando
ouvira falar disso num jogo de futebol. Os rapazes tinham apanhado um gato
selvagem no recreio depois das aulas. Torturaram-no até à morte. Alice olhou
para ele e viu o menino no rosto daquele homem. Imaginou o ranho seco no
nariz dele, o pescoço queimado do sol, o cabelo curto e os calções rasgados.
Ele deveria ter uns nove anos então. Mandaram-no para casa de uns parentes
em Spokane.
– Sim – disse ela devagar. – Foi expulso da primária de May Street. Você e
o Craig Stone.
Aquela crueldade em crianças era rara na pequena cidade, algo que não se
esquecia. A pobre criatura indefesa, que não fora merecedora de tal fim. E
Jake, com um pai assim.
Alice sentiu um nó na garganta e a sua respiração tornou-se mais
superficial. O tempo abrandou. Manteve-se muito quieta e esperou que a
respiração a deixasse, esperou por aquele aperto no peito. Mas isso não
aconteceu. Aquilo era diferente. A sua visão, em vez de se turvar, tornou-se
mais nítida e a sua audição mais apurada. Ouviu o crocitar desdenhoso de um
corvo e sentiu o hálito fresco do vento da primavera na nuca. Em vez de
sentir que podia fragmentar-se em mil pedaços, sentiu uma coerência quente
e branca. Pairava sobre a sua cabeça como uma bênção.
Ed continuou calado, o seu rosto pálido, e pareceu encolher-se para dentro
de si mesmo. Alice olhou para Tansy, agarrada ao corrimão da rampa da
cadeira de rodas, os olhos fechados, o rímel a deixar rastos nas suas faces.
Sabia com quem tinha casado.
Afinal o que podes fazer pelo rapaz, Alice?, murmurou o pai ao seu ouvido.
Alice deu um passo atrás e exalou.
– Tenho de ir andando – disse ela, desviando o olhar de Ed e olhando para
o rapaz. – Mas tenho uma proposta para ti.
Entregou-lhe o recibo do Ace com o seu número de telefone e endereço de
e-mail.
– Estou a contratar. Preciso de ajuda com as abelhas. Não é necessária
experiência e é a tempo parcial. Acabei de publicar o anúncio hoje. Verifica o
quadro de empregos em gorge.net. Se quiseres experimentar, liga-me.
Ouviu-se dizer que cama e mesa eram negociáveis como parte do
ordenado. Não importava que tivesse zombado da ideia naquela mesma
manhã. As palavras continuaram a sair da sua boca.
O rapaz olhou para o papel, sem expressão e claramente tão admirado com
a ideia como Alice. Ed voltou à vida então.
– Meta-se na sua maldita vida! Corro-a daqui ao pontapé se não sair do
meu caminho de acesso!
– Edward, por favor! – Tansy agarrou o braço do marido.
Alice sentiu o calor branco descer novamente e considerou a alegre fantasia
de magoar aquele homem. Ouvia os vizinhos a abrir as janelas e portas para
ouvir. A sua parte racional sabia que ela nunca poderia magoar ninguém.
Claro que não. Era uma Holtzman. Ainda assim, sentiu aquela sensação
estranha percorrê-la – um arrebatamento que de alguma forma a fez sentir-se
mortalmente calma. Olhou diretamente para os olhos de Ed.
– Experimente fazer isso – disse ela calmamente. – E eu ligo ao xerife. Ele
é meu cunhado.
– Se sabe o que é bom para si… – Silvou Ed.
– Parece-me ótimo, Alice! – exclamou Jake ao lado dela. – Vou já consigo
para dar uma olhadela.
A mãe do rapaz recuara, com os braços cruzados, apoiando-se ao alpendre.
– Jacob – soluçou ela.
Ed olhou para o filho com ar de gozo.
– Trabalhador, hem? Como achas que isso vai funcionar para ti?
Os olhos de Jake brilharam enquanto ele olhava para o pai.
– Acho que teremos de ver, não é? Eddie.
Quando ele chamou Eddie ao pai, Alice viu o homem encolher-se. Abriu a
boca e não saiu nada.
O rapaz endireitou-se na cadeira, como se a fúria de Alice tivesse acendido
algo nele também. Brilhava com força nos seus olhos e impeliu-o para a
frente. E a seguir Alice viu-se a sair do caminho de acesso empoeirado, a
passar pelo burro derrotado e a rumar ao sol forte de abril com Jake
Stevenson, de dezoito anos, sentado ao seu lado, os olhos a brilhar e Bruce
Springsteen a cantar nas colunas.
Que diabo fiz eu agora?, pensou Alice.
7
TRAPALHONAS
Descobri que as abelhas costumam reconhecer estranhas pelas suas
ações, mesmo quando têm o mesmo cheiro; pois uma abelha
assustada curva-se numa atitude amedrontada, que inequivocamente
proclama que tem a consciência de ser um intruso.
– L. L. LANGSTROTH
Alice acordou com uma cãibra no pescoço e uma sensação de mau agouro.
Não tinha dormido bem, atenta aos sons do quarto de hóspedes que
indicassem que o rapaz poderia precisar de ajuda. Embora não tivesse ouvido
nada, a sua preocupação manteve-a desperta. Foi como quando a mãe estava
nos cuidados paliativos e Alice passara as últimas semanas a dormir no sofá
da casa dos pais na cidade. Embora houvesse uma enfermeira de serviço à
noite, Alice apenas dormitava algumas horas de cada vez com o ouvido
voltado para o quarto da mãe. Uma noite, Alice caiu num sono pesado e a
enfermeira sacudiu-a para acordá-la e lhe dizer que Marina morrera.
Na noite anterior estivera à escuta, não ouvira nada e perguntou-se de novo
em que diabo pensara ao trazer o rapaz para casa. Era tão diferente dela, tão
impulsivo. E provocar Ed Stevenson! Simplesmente não era normal. Não se
envolvia nos dramas de outras pessoas. Bem, pelos vistos, envolvia, porque
não parara para pensar. Era como sair de uma margem seca e entrar num rio
impetuoso antes de avaliar a sua profundidade.
A menos de um quilómetro da casa dos Stevenson, a fúria evaporara-se e a
adrenalina vitoriosa de enfrentar um homem violento abandonara-a como o ar
abandona um balão de aniversário. Por um lado, a ameaça de ligar para o
cunhado fora um bluff. Embora Ron Ryan fosse, na verdade, xerife do
município de Hood River, ele não falava com Alice há meses e não teria
atendido o telefone se ela ligasse. E, embora fosse verdade que ela estava à
procura de alguém para contratar, não tinha trabalho para Jake. Precisava de
alguém capaz para ajudá-la na quinta. Alguém que pudesse levantar coisas
pesadas e cavar buracos.
E a ideia de oferecer cama e mesa – de onde diabo viera isso?
Ouviu as vozes dos pais na cabeça.
Agressivamente compassiva!, exclamou Al. Linda menina.
Diz o roto ao nu, acrescentou Marina.
Ela olhara para Jake, que estava sentado com a cabeça para trás e os olhos
fechados, sorrindo, e mordeu o interior da bochecha frustrada consigo
mesma.
Assim que chegaram à quinta, pareceu correto convidar o rapaz a passar ali
a noite. Ela fez o jantar e tiveram uma conversa estranha que evitou a
descrição do trabalho por parte dela e qualquer menção ao comportamento do
pai por parte da dele.
Agora Alice estava deitada na cama a olhar para o teto, os olhos secos pela
falta de sono. Não fazia ideia de quais eram as necessidades físicas dele. Fora
ela quem o convidara, mas tinha de cuidar dele agora?
O rapaz não é um cão, Alice, ralhou a voz da mãe na sua mente. Faz-lhe o
pequeno-almoço e deixa as perguntas difíceis para depois.
Pragmática mesmo na vida após a morte – assim era Marina Holtzman.
Alice saiu da cama e vestiu-se. Ouviu uma porta abrir-se e o som de água
corrente no quarto de hóspedes. Isso era alguma coisa. A sua ansiedade
diminuiu e ela dirigiu-se à cozinha.
Enquanto fazia café, refletiu ironicamente que a acessibilidade da casa fora
comprovada, de qualquer maneira. Ela remodelara a casa térrea pensando que
os pais se mudariam para lá um dia: a rampa, portas alargadas e um quarto de
hóspedes totalmente acessível com casa de banho anexa. Mas ninguém
deslizara pelos corredores até à noite anterior. Jake empurrara a cadeira pela
porta da frente e pelo corredor. Fizera-a girar e sorrira.
– Bela casa, Alice – dissera ele.
Apesar do sorriso, parecia cansado. Alice também estava exausta e feliz por
se deitar cedo quando terminaram o jantar e ele disse que não precisava de
nada.
Alice olhou para o campo, onde o sol iluminava as colmeias brancas.
Percebeu que já havia vento ao ver os ramos dos choupos e dos abetos
agitarem-se. Não era o tempo ideal para verificar as novas colmeias nucleares
como planeara.
Primeiro, o café, querida. Primeiro sempre o café, disse a voz do pai.
Sentou-se à mesa e abriu a previsão do tempo no portátil. O vento sopraria
cedo, diminuindo gradualmente no fim da manhã. Poderia fazer a verificação
das colmeias mais tarde. Por enquanto, podia mostrar a quinta a Jake e
apresentá-lo às abelhas. Arranjaria forma de abordar o assunto do trabalho
real envolvido e fazê-lo entender que ele não poderia fazer o que ela
precisava – levantar quadros de criação volumosos e alças com quarenta
quilos de mel e cavar buracos para cercas e coisas afins. Tanto quanto ela
podia ver, ele não conseguia fazer nada disso sentado. Mas podia deixá-lo
ficar ali alguns dias, até que o pai se acalmasse. Isso fazia sentido e, com
certeza, ele entenderia.
Ouviu o barulho de rodas no linóleo atrás dela e virou-se, sorrindo com a
falsa alegria de alguém habituado a estar sozinha de manhã e a gostar, mas
que fora ensinada a fazer o esforço de ser educada.
– Bom-dia – cumprimentou ela, e então estacou ao ver o cabelo comprido e
molhado caído atrás de um ombro como uma sereia punk.
Ele pareceu envergonhado e puxou a longa madeixa com uma das mãos.
– Radical, hem? – comentou, tentando sorrir e encolhendo os ombros. –
Estava a precisar de um duche.
Parecia muito novo e vulnerável com o seu penteado louco desfeito e Alice
sentiu-se amolecer.
– Não somos muito formais por estas bandas – disse ela, apontando para a
sua camisa amarrotada e jardineiras Carhartt. – Isto é a indumentária normal
para o café.
O rosto dele iluminou-se e ele olhou por cima do ombro dela para a
cozinha.
– Há café?
Alice fez menção de se levantar, mas Jake rolou até à bancada e serviu-se
de uma chávena. Deslizou até à mesa, parou ao lado dela e olhou pela janela.
– Uau! Nunca estive tão dentro dos pomares. Que sítio incrível. Aquilo lá
fora é tudo seu?
Alice adorava a beleza do prado iluminado pelo sol e a floresta adjacente,
mas surpreendeu-a que um adolescente notasse. Assentiu e apontou para sul.
– Até à cerca é tudo meu. E deste lado, para lá do celeiro. Depois, para
norte, até à estrada. Mostro-te tudo depois do pequeno-almoço. Tens fome?
Ele assentiu e fez menção de a seguir enquanto Alice se levantava e ia para
a cozinha.
– Deixe-me ajudar – pediu ele. – Faço umas ótimas torradas.
Alice virou-se e esboçou o sorriso educado do anfitrião relutante.
– Eu faço o pequeno-almoço esta manhã e depois veremos... – Calou-se.
Ao ouvi-la hesitar, o sorriso de Jake esmoreceu. Com certeza percebeu que
aquilo nunca funcionaria.
Baixou os olhos e depois tornou a olhar para ela como se estivesse a ganhar
coragem.
– Ouça, Alice. Fez-me um grande favor a noite passada. Não serei um
fardo para si. Farei o meu trabalho. Vou…
Ela agitou a mão para ele, fingindo descontração. Pensou no que a mãe
diria numa situação daquelas, embora Marina Holtzman nunca fizesse algo
tão precipitado como imiscuir-se no conflito de outra família. E depois havia
a cadeira de rodas. Ela não fazia ideia de que tipo de necessidades o rapaz
tinha.
– Não te preocupes com isso, Jake. Havemos de arranjar alguma coisa.
Falou com uma facilidade e confiança que não sentia e funcionou. O rapaz
sorriu e voltou para a mesa. Folheou um exemplar do Hood River News da
véspera enquanto Alice preparava o pequeno-almoço.
Enquanto comiam ovos mexidos e torradas, ela falou-lhe do apiário, que
tinha atualmente vinte e quatro colmeias e que ela esperava aumentar para
cinquenta ou mais durante o verão. Explicou-lhe o ano das abelhas, que
começava na primavera e ia até ao outono. As suas colmeias eram todas
colmeias Langstroth, projetadas por Lorenzo Langstroth em meados do
século XIX e que tinham revolucionado a apicultura nos Estados Unidos. Por
terem quadros amovíveis, eram as mais fáceis para os apicultores
principiantes, disse Alice.
Jake comentou que ela não parecia uma principiante com vinte e quatro
colmeias, mas Alice limitou-se a encolher os ombros. Ainda se considerava
uma principiante. Quando saíram para o celeiro depois do pequeno-almoço,
Alice caminhou mais devagar do que o normal e tentou fingir que não. Ao
contrário da casa, o quintal não tinha sido modificado para uma cadeira de
rodas e de repente pareceu-lhe acidentado enquanto o observava a navegar
por ele. As galinhas cacarejaram alarmadas quando eles se aproximaram e
espalharam-se. Red Head Ned aterrou diante de Alice e olhou para eles,
lembrando-a de que estava de plantão. Alice apontou para ele e sorriu.
– Cuidado com aquele galo. É bastante temperamental.
O celeiro estava dividido em área da oficina e dormitório. Na oficina, Alice
mostrou a Jake uma colmeia vazia e tirou os quadros para lhe mostrar como
era a base antes de as abelhas construírem o favo de mel. Tinham agarrados
pedaços de cera de abelha velha e Jake pegou num deles e encostou-o ao
nariz, inspirando o fantasma do mel.
Alice mostrou-lhe a diferença entre um quadro de criação e um de mel, que
na verdade era apenas uma questão de localização. Os de mel ficavam em
cima dos quadros de criação, que eram viveiros de abelhas. Explicou como
estas construíam os favos e como uma colmeia se desenvolvia com o seu
ninho no meio e mel e pólen nas extremidades como depósitos de alimentos.
O excesso de mel nas alças era o que ela podia colher, porque significava que
as abelhas tinham uma boa reserva para o inverno, quando se agrupavam e
não podiam voar.
Jake encostou o dedo a um resíduo castanho pegajoso.
– Isto é mel?
Alice abanou a cabeça.
– Não. Chama-se própolis. Elas recolhem-no nas árvores aqui à volta e
usam-no para tapar quaisquer fendas ou buracos. Mais ou menos como
calafetagem natural.
– Vão buscá-lo e trazem-no de volta para a colmeia?
Ela assentiu. O própolis, que as abelhas usavam para tapar todas as
aberturas numa colmeia, era apenas um dos muitos milagres deslumbrantes
das abelhas.
O rapaz parecia realmente interessado, então ela verificou a leitura do
vento no telemóvel e decidiu que afinal não parecia muito forte. Agarrou o
chapéu e as luvas e olhou para Jake.
– Se quiseres, posso abrir uma colmeia para poderes ver as abelhas a
trabalhar. Tenho um fato de apicultor completo, se quiseres vesti-lo. Também
tenho um casaco e outro chapéu com véu. Isso pode ser mais fácil, mas as
tuas pernas não estarão protegidas. Elas não são agressivas, mas podem picar-
te se se sentirem protetoras. Depende apenas do grau de conforto que achas
que vais sentir.
– O casaco serve, Alice – disse ele, sorrindo.
– Tens a certeza?
Ele assentiu.
– Não consigo sentir as pernas, de qualquer maneira, portanto, se elas
começarem a picar-me, não vou dar por nada.
Alice olhou para ele com atenção, vendo um brilho nos seus olhos.
Travesso ou amargo? Não percebeu e não soube o que dizer.
Ele agitou a mão.
– Não sou alérgico. Prometo – garantiu ele.
Alice entregou-lhe o chapéu e o casaco.
– Pelo menos hoje o meu cabelo cabe debaixo dessa coisa – comentou ele
com uma risada, enfiando o chapéu na cabeça e correndo habilmente o fecho
do casaco.
Ela agarrou no saco das ferramentas e foi à frente até ao quintal. O solo era
mais plano ali e Jake parecia ter mais facilidade em rolar sobre ele.
O apiário estava rodeado por uma cerca para deter os guaxinins, que
andavam por toda a parte, e os ursos, que eram visitantes menos frequentes,
mas ocasionais. Alice abriu o portão do recinto onde as colmeias de madeira
branca estavam dispostas em filas. Doze delas – as colmeias mais antigas –
tinham duas alças de altura. As doze novas colmeias, habitadas pelas recém-
chegadas que Alice trouxera de Sunnyvale, eram caixas individuais. O ar
vibrava com o som das abelhas, mas elas estavam demasiado ocupadas para
prestar atenção aos dois humanos.
Alice parou ao lado de uma das colmeias de dois níveis. «Italianas, 2013,
N.º 11» estava rabiscado na parte lateral com caneta preta. Um zumbido
quente emanava do seu núcleo, um pulsar constante como um batimento
cardíaco ou um pequeno motor. Abelhas douradas entravam e saíam da fenda,
algumas de cada vez. Alice chamou a atenção para o facto de cada uma delas
parar por um momento e, em seguida, partir mais ou menos na mesma
direção. O rapaz viu-as apanhar o vento e desaparecer.
Alice tirou uma pequena lata de metal do saco e enfiou nela pedaços de
papel e serapilheira.
– Isto chama-se fumigador – disse, acendendo o papel e bombeando o
pequeno fole de couro da lata. – Uso-o só um bocadinho para as acalmar.
Utilizou uma ferramenta de metal para levantar a parte superior da colmeia
e, em seguida, soltou-a para um lado com a tampa interna. O zumbido
aumentou um pouco. Algumas abelhas saíram da frente da colmeia e
pairaram em torno do rosto velado de Alice.
– Bom-dia, meninas – disse ela baixinho. – Só vim dar uma olhadela. Não
precisam de se preocupar.
Bombeou fumo frio para a colmeia em três rajadas curtas. As abelhas
desceram para dentro e desapareceram. Alice colocou o fumigador de lado e
usou a ferramenta para soltar uma das pontas de um quadro de madeira e
depois a outra. Tirou-o e segurou-o nas pontas dos dedos enluvadas para Jake
ver. Em voz baixa, explicou para o que ele estava a olhar – mel operculado,
mel desoperculado, pólen, alvéolos com larvas de obreiras e um punhado de
alvéolos de zângão. Se ele olhasse com atenção, disse ela, veria pequenos
ovos de abelha no fundo de alguns alvéolos abertos, como bagos de arroz. A
trepar por todo aquele material estava uma massa murmurante de corpos
pretos e dourados. Cada uma diligentemente dedicada à sua tarefa, as abelhas
moviam-se pelo quadro com um propósito.
Alice interpretou o silêncio dele como nervosismo e fez menção de colocar
o quadro de volta na caixa.
Ele estendeu as mãos enluvadas.
– Posso segurá-lo? – perguntou. – Terei muito cuidado.
Surpreendida, ela assentiu e transferiu o quadro das suas mãos enluvadas
para as dele. Jake segurou-o diante do rosto e olhou para as obreiras, algumas
a espalhar feromonas, outras alheias.
Não é assustadiço, de qualquer maneira, pensou Alice.
Depois de examinarem cada quadro de criação, depois de Alice lhe ter
mostrado a diferença entre um zângão e uma obreira, e depois de terem
identificado o corpo longo e esguio da rainha no meio da caixa, Jake tinha
cem perguntas.
Porque estava a rainha no meio e porque vivia mais do que as outras?
Porque tinha uma pinta verde? Como é que as obreiras sabiam qual era o seu
trabalho? O que lhes acontecia no inverno? E os zângãos? Onde é que as
abelhas obtinham o pólen e o néctar, e qual era a diferença entre néctar e
mel? Como sabiam para onde voar? De onde vinha a cera? Porque é que
apenas a rainha punha ovos?
A maioria das pessoas restringia as suas perguntas às picadas e ao mel.
Algumas perguntavam sobre o inverno. O interesse de Jake agradou a Alice.
Ela falava e o rapaz ouvia. Ouvia mesmo. O sol subiu sobre o campo quando
se sentaram a uma mesa de piquenique sob o grande choupo e observaram a
dança das abelhas. Alice falou-lhe da geleia real, dos períodos de gestação,
do espaço-abelha e das áreas de congregação dos zângãos. Conversaram
durante muito tempo.
Alice foi a casa e trouxe chá gelado. Ficaram sentados num silêncio
agradável, a observar a saída das abelhas das colmeias para a floresta e os
campos. Alice sentiu-se admirada por estar à vontade ali sentada com o
rapaz. Enquanto mulher sem filhos, não estava habituada a adolescentes, que,
via de regra, a deixavam pouco à vontade. Os únicos que via regularmente
eram a progénie taciturna dos seus colegas de trabalho, que mal erguiam os
olhos dos seus telemóveis para a cumprimentar quando incitados pelos pais.
– Então começou apenas com uma colmeia? – perguntou Jake.
Alice anuiu e sorriu. Levantou o cabelo do pescoço e apanhou-o com um
elástico. Apontou para a Colmeia n.º 1 perto da cerca oeste.
– Aquela foi a primeira. Nunca pensei que viria a ter vinte e quatro.
– E quer ter cinquenta até ao fim do verão?
– Sim. Se não retirar tanto mel e dividir as colmeias fortes, acho que
poderia funcionar. A maioria está a sair-se muito bem porque tivemos uma
boa primavera. Provavelmente também posso capturar alguns enxames
selvagens para fazer novas colmeias.
Desde que nenhum dia demasiado quente de primavera faça murchar as
delicadas flores, pensou ela. Desde que nenhuma grande tempestade sopre
pelo pomar, dizimando as flores. Achou que o rapaz lhe iria perguntar como
se apanhava um enxame. Em vez disso, ele fez a única pergunta que ela não
esperava, a pergunta mais óbvia que alguém faria.
– Como obteve a sua primeira colmeia?
Houve uma longa pausa e Alice pousou o copo com estrondo. Não
conseguia falar. Olhou para trás através do campo e depois para a casa. Ele
estava à espera que ela respondesse. O peso do seu silêncio abateu-se entre
eles como uma corda com roupa molhada. Alice sentiu a sua respiração
tornar-se superficial e o seu peito contrair-se. Não ali. Não naquele momento.
Não podia passar-se diante do rapaz, e não conseguia responder à sua
pergunta sem se passar.
– Caramba! – exclamou, levantando-se de um salto. – Esqueci-me que
devia... Ouve, volto daqui a uma hora. Tenho de ir à cidade. Desculpa!
Sem olhar para trás, correu até à pickup, apanhou as chaves do banco e
desapareceu no longo caminho de acesso.
Assim que a casa desapareceu de vista, ela parou e desligou o motor.
Inclinou a cabeça para trás e tentou abrandar a respiração. O seu coração
batia loucamente e um zumbido agudo soou nos seus ouvidos.
Siga o fio, dissera a doutora Zimmerman. O seu riso foi um soluço. Sem
problemas daquela vez. Uma pergunta inocente era uma armadilha da
memória. Por isso era mais fácil evitar falar com as pessoas. Invariavelmente,
alguém a apanharia desprevenida com uma pergunta simples como a de Jake.
Alice tinha visto a sua primeira colmeia na Feira do Município de Hood
River numa saída com Bud Ryan há mais de dez anos. Não era a primeira vez
que Bud a convidava para sair, depois de meses a namoriscar com ela na loja
da John Deere. Na altura, ele trabalhava no departamento de manutenção e
tornara-se amigo do seu pai, que levara lá o trator para substituir a correia. O
alto e bonito Bud Ryan. Alice nunca percebeu o que ele viu em si. O pai não
conseguia entender por que motivo ela não queria sair com ele.
– É só um almoço, Alice! – exclamara o pai. – Vai lá almoçar com o
homem, pelo amor da santa!
Ela disse não. Disse que trabalhava à hora do almoço. Disse que tinha
planos com os pais. Disse que tinha uma coisa de trabalho. Estava a ajudar o
pai com a poda. Finalmente, Bud convidou-a para a feira do município.
– Os prémios são amanhã, menina Holtzman. É um grande dia para todos
os nossos futuros agricultores. Faça-o pelas crianças, está bem?
Ela rira disso, derrotada e feliz, aceitando. Qual era o problema, afinal? A
sua inquietação voltou enquanto esperava que ele a fosse buscar naquela
manhã. Devia passar o dia a ajudar o pai no pomar, pensou. Tinham tanto que
fazer. Pegou no telemóvel para cancelar e parou. Quando ele saiu da carrinha,
sorridente, ela sentiu-se feliz. Bud era meigo e de convívio fácil. Sentia-se
bem na sua própria pele e fazia-a sentir o mesmo.
Alice sempre adorara a feira e ficou satisfeita quando Bud a conduziu para
os concursos dos animais. Na avaliação dos cordeiros, aplaudiram uma
menina chamada Luz Quinto, que ganhou uma fita azul pelo seu cordeirinho
muito bem-comportado. Ela conduziu-o num círculo com uma corda, e todos
podiam ver que o animal a adorava. Quando o leilão começou, Alice sentiu
um aperto no coração. Fazia parte, mas ela detestava a ideia de ver aquela
menina separada do seu animal de estimação, embora soubesse que ela usaria
o dinheiro para comprar outro. Com consternação, viu Bud levantar a mão.
Ela não queria participar da tristeza da menina. Bud ofereceu uma quantia
exorbitante pelo animal, muito mais do que valia para criação de gado ou
carne. Terminada a licitação, Luz Quinto entregou-lhe o bilhete com grandes
lágrimas nos olhos escuros. Bud baixou-se e sussurrou-lhe algo ao ouvido e
devolveu-lhe o bilhete. O rosto dela iluminou-se. Correu para junto dos pais,
o cordeiro a escoicear atrás dela.
– É um coração mole – comentou Alice.
– É que estou a pensar em tornar-me vegano – respondeu Bud, dando uma
palmada na sua grande barriga, e os dois riram.
Passaram a tarde a percorrer os cercados de vacas, cabras e porcos.
Provaram tartes, geleias, chutney e maçãs e peras frescas. Evitaram o barulho
e as luzes das diversões sem sequer falar no assunto. Bud parecia entender
que Alice não gostaria disso – os carrosséis, os adultos bêbedos e as
multidões de crianças em movimento. Passearam pelos celeiros, vendo as
galinhas, porcas e javalis, os enormes touros que mais tarde seriam usados no
rodeo. Do outro lado da área dos animais encontraram as colmeias.
Mais tarde, Alice saberia os nomes das diferentes colmeias que viu naquele
dia – Langstroth, top bar, horizontal. Havia até uma colmeia feita de vime.
Essas peças tinham sido ali colocadas pela associação apícola local. Estavam
todas vazias, exceto uma colmeia Langstroth que tinha uma janela de
visualização de plástico de um lado.
Alice sentou-se no banco em frente à colmeia, encantada com o que via.
Milhares de abelhas rastejavam sobre os favos, sem pressa, cada uma
executando obstinadamente a sua tarefa. Abelhas carregadas de pólen
enfiavam um pó laranja brilhante nos alvéolos e assentavam-no com as patas.
Viu uma abelha alimentar uma larva branca desajeitada. Viu uma abelha a
emergir de um alvéolo, completa e perfeita. Que mundo pequeno, incrível e
ordenado.
Bud leu a placa diante da colmeia.
– «Esta colmeia, construída ao estilo do apicultor americano Lorenzo
Langstroth, contém aproximadamente cinquenta mil abelhas quando em
pleno funcionamento. Uma colmeia saudável produzirá entre dezoito e trinta
e seis litros de mel por ano. As colmeias de abelhas locais são uma bênção
para pomares e quintas. As colmeias Langstroth estão disponíveis com
desconto através da Associação de Apicultores de Hood River.»
Sentou-se ao lado de Alice e observaram em silêncio durante algum tempo.
Alice nunca se sentira tão à vontade com um homem. Não pensara que fosse
possível. Bud simplesmente entrou no seu mundo tranquilo.
– Devia comprar uma – sugeriu ele ao fim de algum tempo. – Iriam adorar
o pomar da casa dos seus pais.
Alice abanou a cabeça.
– Eu não saberia o que fazer – respondeu.
Bud tinha outra opinião e apareceu no celeiro dos seus pais no sábado
seguinte com uma colmeia Langstroth desmontada na traseira da sua pickup.
– Pensei que talvez pudesse ajudar-me a montá-la – disse ele, sorrindo e
erguendo as mãos grandes. – Sou muito desajeitado com estes preguinhos.
Alice deixou-se levar pelo estratagema. Pois porque não? Juntos, montaram
quarenta armações de madeira, dois quadros de criação e duas alças.
Aplicaram primário nas caixas, pintaram-nas e construíram um suporte para
colmeias. O processo demorou vários sábados e Marina convidava Bud para
jantar com eles todas as semanas. Quando a colmeia ficou montada, era
demasiado tarde para dizer não a qualquer coisa que Bud Ryan lhe pedisse.
Aquele homem grande e sorridente não se importava com o silêncio dela.
Não o considerava, como muitos, hostilidade. Bud entendia-a de uma forma
que a maioria das pessoas não entendia. Alice sentia-se ela mesma perto dele.
Nem pensava em coisas como amor ou casamento. Não houve decisão. Eles
simplesmente eram.
– Como deve ser – disse Marina três meses depois, embora ainda irritada
pelo facto de a sua única filha ter ido à conservatória numa tarde de sexta-
feira e casado sem contar a ninguém.
Mas esses dias já tinham passado. Alice agarrou o volante e sentiu todo o
seu corpo tremer. Havia um buraco enorme dentro dela. A doutora
Zimmerman disse que levaria tempo e muito trabalho para que ele
diminuísse. Disse que nunca iria sarar completamente. A dor fazia agora
parte da sua vida. Ela tinha de lhe dar um nome e aprender a regulá-la para
não sentir pânico e perda de controlo.
Cerrou os punhos e tentou respirar. Pensou no rapaz que deixara na sua
quinta e isso piorou tudo. Não aguentava ter outra pessoa em casa quando
podia ir-se abaixo daquela maneira. Jake teria de ir para casa em breve – isso
era claro. O pensamento acalmou-a. Pelo menos ainda tinha controlo sobre a
sua casa, a sua quinta. Poderia estar lá na Ilha Alice com a ponte levadiça
subida. A sua respiração desacelerou. Limpou os olhos e sentiu um peso
calmo espalhar-se pelo seu interior.
Ligou o motor e foi em direção ao Little Bit comprar alguns fardos de feno.
Precisava de fazer uma nova vedação para cortar o vento de qualquer maneira
e os fardos seriam uma desculpa plausível para a sua partida apressada.
Tentou pensar nas palavras que diria para desiludir o rapaz com facilidade.
Até os pais concordariam com esse plano, com certeza.
– Vai correr tudo bem, certo? – perguntou ela em voz alta. – Ele vai
entender que é assim que tem de ser?
Mas as vozes dos seus pais mantiveram-se silenciosas.
9
OBREIRAS
As obreiras, ou abelhas comuns, constituem a maior parte da
população de uma colmeia... Já se afirmou que as obreiras são todas as
fêmeas cujos ovários são demasiado imperfeitos para permitir a
postura de ovos.
– L. L. LANGSTROTH
Quando Alice Holtzman tinha dez anos, levantou-se diante da sua turma do
quarto ano e contou a história de como os Holtzman cultivavam o pomar da
família há três gerações. Explicou que os bisavós tinham vindo da Alemanha
para Hood River Valley e plantado as primeiras árvores. Que tinham passado
o pomar aos seus avós, que o passaram a Al e Marina. Desenhos coloridos
acompanharam a sua apresentação enquanto ela explicava as estações de
poda, irrigação e colheita. Falou em pormenor das tonelagens das colheitas
anuais e as variedades das maçãs dos Holtzman, incluindo Pippins,
Gravensteins e Braeburns. Para a última imagem, Alice desenhara-se em
jardineiras a conduzir o trator verde entre as filas de macieiras. Era assim que
se imaginava em adulta, a assumir o lugar dos pais como a quarta geração de
agricultores Holtzman.
Assim que ela terminou, a professora, a senhora Tooksbury, bateu palmas
com as suas lindas mãos e pediu aos colegas de turma de Alice que fizessem
o mesmo. Alice estava a guardar os seus desenhos quando David Hanson
gritou do fundo da sala.
– Não podes ser agricultora! Mulher de agricultor, queres tu dizer!
Curvou-se sobre a mesa a rir e a sala irrompeu em gargalhadas. Alice ficou
imóvel diante da turma. A senhora Tooksbury repreendeu David, dizendo que
Alice poderia ser o que quisesse.
– Sim, até mesmo uma astronauta, David – disse ela, franzindo a testa.
Mas, quando a senhora Tooksbury olhou para ela e desviou novamente o
olhar semicerrado, Alice percebeu que a professora realmente não acreditava
que ela pudesse ser uma astronauta ou uma agricultora. Foi a primeira vez
que percebeu que os adultos às vezes mentiam. Depois das aulas, contou ao
pai o que se passara enquanto o ajudava a cortar e lixar estacas de árvores
para os novos enxertos. Al ouviu, acenando com a cabeça, mas não disse
nada. Ela pressionou-o, embora soubesse que o pai falava apenas quando
tinha alguma coisa a dizer.
– Mas ela é minha professora – lamuriou-se Alice. – E acha que o David
tinha razão!
O pai parou de lixar e olhou para ela, partículas de serradura a flutuar no ar
entre eles.
– A senhora Tooksbury está aqui a cortar estacas de árvores?
Alice abanou a cabeça.
– Estará aqui amanhã, quando começarmos os enxertos?
De novo, Alice abanou a cabeça.
– Bem, acho que sabemos que a senhora Tooksbury não está a aprender a
ser agricultora. Mas quem sabe? As pessoas mudam.
E foi tudo o que disse sobre o assunto. Alice abraçou-o com mais força do
que o normal quando foi para a cama naquela noite. Al Holtzman era um
homem de poucas palavras, mas ela sabia que o pai achava que ela seria uma
grande agricultora.
E, no entanto, trinta e quatro anos depois, Alice não estava a cortar árvores
nem a enxertar ramos. Al morrera, o pomar desaparecera e Alice ainda
trabalhava no gabinete de planeamento do município. Não era agricultora ou
sequer mulher de um agricultor.
Na segunda-feira, enquanto conduzia para o trabalho, refletiu no que
acontecera entre o quarto ano e os seus quarenta e quatro anos. A sua situação
não era rara. As pessoas abandonavam os seus sonhos de infância e
embalavam as suas vidas em caixas práticas e previsíveis, certo? A ideia
deprimiu-a e fê-la sentir-se ainda pior por Jake.
A tarde já ia no fim quando voltara do Little Bit e descarregara os fardos de
feno da pickup. Jake estava no apiário, então ela acenou-lhe e gritou o que
estava a fazer. Ele viu-a usar o trator para posicionar os fardos para cortar o
vento e a atividade amenizou a estranheza da sua partida, já que não podiam
conversar. Quando Alice terminou e foi até ao apiário, ele sorriu e gesticulou
em seu redor com uma felicidade silenciosa. Ela sentiu um aperto no coração.
Não podia dizer-lhe naquele momento. De qualquer forma, era quase hora do
jantar. Mais uma noite não faria mal, pensou.
Depois de o rapaz desaparecer no quarto de hóspedes, ela esboçou
mentalmente uma explicação concisa do motivo por que ele precisava de ir
para casa. Seria apenas objetiva sobre a parte física do trabalho. Ensaiou, para
que ele só pudesse concordar e ligar para a mãe. Tudo terminaria depois do
pequeno-almoço e ele ter-se-ia ido embora quando ela voltasse do trabalho.
Ficou animada com a ideia de como a sua casa estaria silenciosa. Dormiu
bem e, quando acordou naquela manhã, sabia que era a coisa certa a fazer. Só
precisava de estar sozinha.
Encontrou Jake na cozinha com um bule de café muito forte. Engasgou-se
com o primeiro gole, mas Jake não percebeu porque estava a falar sobre as
abelhas. Estivera acordado até às duas da manhã a ler o seu livro Backyard
Beekeeping e tinha várias perguntas sobre os zângãos, as áreas de
congregação, se a população de zângãos poderia ser usada para avaliar a
saúde da colmeia. A varroose e a polémica sobre tratar ou não tratar. Contra
sua vontade, Alice foi atraída para a conversa porque eram questões muito
interessantes. Reparou que já estava atrasada e que teria de falar com ele
sobre ir-se embora depois do trabalho. Praguejou baixinho enquanto
acelerava em direção à cidade.
Estacionou e ficou no passeio, a olhar colina abaixo em direção à água. Já
havia vento. Kitesurfers e windsurfers formavam aglomerados coloridos no
rio cheio de ondulação branca, provavelmente moradores locais a aproveitar
um momento de lazer antes do trabalho. A zona ribeirinha estaria cheia de
turistas em junho. Ela podia ver a longa faixa de relva verde onde as pessoas
se reuniam – caçadores de vento e espectadores.
Admirara aquela vista toda a vida e nunca se cansava – a faixa esmeralda
de relva, o banco de areia a derramar-se no rio e os penhascos escarpados da
garganta a elevar-se da água. Recordações de verões passados surgiram na
sua mente. Agora não, pensou, e repeliu-os com firmeza.
– Bom-dia, Alice!
A voz junto ao seu ombro fê-la dar um salto. Era Rich Carlson, o diretor
financeiro e de recursos humanos dos serviços municipais. Como de costume,
Rich estava de fato enquanto todos aderiam ao código de indumentária que
Alice descrevia como «informal agrícola». Em doze anos, ela nunca vira Rich
sem gravata. Nem mesmo no piquenique de verão. Ele estava no passeio a
bater com um jornal enrolado na coxa. Rich era um buraco negro de tempo
sobre duas pernas. Conseguia sugar quase uma hora ao parar junto de uma
secretária para conversar. Alice sentia-se desconfortável perto de Rich
mesmo antes da festa de Natal do escritório, seis anos antes, quando ele a
encurralara sob o visco-branco. Ela recuara e os lábios secos dele tinham
roçado o seu pescoço. Sempre que se via a sós com Rich, lembrava-se disso –
da sensação de poliéster áspero, da loção pós-barba que cheirava a
ambientador de carro.
– Bom-dia, Rich – disse ela, fingindo um sorriso.
– Grande dia hoje – disse ele com um sorriso largo. – Prontos para a nossa
reunião com a CP?
Alice manteve o sorriso no rosto e gemeu interiormente. Como tantas
cidades do oeste, Hood River crescera com a chegada do comboio no século
XIX. A Cascadia Pacific, por sua vez, desenvolvera-se a partir de uma
empresa ferroviária para um enorme conglomerado, que agora incluía linhas
de fibra ótica e contratos com empresas de tecnologia, bem como outras
diversificações aparentemente não relacionadas do século XXI. Alice tinha-se
esquecido completamente de que os representantes da Cascadia Pacific
viriam naquele dia para a reunião anual. Representantes do Serviço Florestal,
da aliança de agricultores e do grupo da bacia hidrográfica também estariam
lá. Alice sabia que era um gesto inútil mostrar aos acionistas da CP que
tinham um bom relacionamento com a cidade pequena, mas era obrigatório.
– Prontos como sempre estaremos, Rich – respondeu ela.
Rich adorava reuniões. Tomava imensos apontamentos no portátil e
arquivava-os sabia-se lá para quê. Alice sentiu pena dos funcionários do
departamento dele. Peneirar os constantes e-mails de Rich devia ser um
trabalho quase a tempo inteiro. Alice lançou uma olhadela ao relógio. Tinha
pouco mais de uma hora para se recompor.
– ... passei o fim de semana a reformatar os meus relatórios – estava Rich a
dizer – para que todos possam ter acesso. Guardo uma cópia no servidor. Vou
buscar um café ao Ground. Quer fazer-me companhia?
Alice não conseguiu pensar em nada que preferisse fazer menos. Ergueu a
sua caneca de viagem.
– Já estou servida. Mas obrigada na mesma.
Rich não fez menção de sair da frente dela.
– Bem, é melhor deitar mãos à obra – disse ela e contornou-o.
– Atire-se a eles, tigre! – Rich deu-lhe um toque no ombro com o jornal
quando ela passou. Alice encolheu-se e sentiu uma onda de fúria.
Como de costume, foi a primeira a chegar ao escritório. A cadeira de
Nancy estava vazia e a porta de Bill fechada. Ligou o computador e abriu o
perfil do departamento, que precisaria de enviar para a reunião com a CP.
Copiou o relatório do ano anterior e começou a atualizá-lo. Não demoraria
muito. As finanças eram o principal. Mandou um e-mail a Debi Jeffreys, a
chefe do gabinete, suando enquanto digitava e marcava o assunto como
«urgente». Debi costumava ficar mal-humorada quando lhe pediam essas
coisas. Alice teria preferido obter a informação diretamente do departamento
de contabilidade, mas como Debi também era extremamente passivo-
agressiva, insistia que todos os pedidos passassem por ela. No seu e-mail,
Alice desculpou-se por esperar até ao último minuto. Debi respondeu
imediatamente com os ficheiros anexados.
«Não foste a única a esquecer-te», escreveu ela. «Mas a única a desculpar-
se por esperar até esta manhã! ;)»
Alice suspirou de alívio por ter apanhado Debi de bom humor. Abriu a
folha de cálculo, analisou-a em busca das informações pertinentes e cortou-as
e colou-as no seu relatório, trabalhando rapidamente nas três primeiras
páginas. Os números eram sólidos em todos os aspetos – alvarás de
construção, registos de transporte, impostos. Ela seria capaz de fazer aquele
trabalho de olhos fechados.
O gabinete de planeamento do município de Hood River deveria ser um
trampolim para Alice. Mas, quando olhava para trás, era fácil perceber como
se instalara ali. Após o secundário, frequentara a Oregon State University e
formara-se em agricultura e gestão. Em casa, Al era o especialista em árvores
e Marina cuidava da contabilidade. Alice queria estar preparada para fazer as
duas coisas. Formara-se com distinção e trabalhara alguns anos numa quinta
de trigo com uma pequena exploração de gado em Willamette Valley, como
diretora de operações. Quando foi para a Eugene para fazer o mestrado, a
pequena quinta fora engolida pela indústria do vinho em expansão. Não
pensara muito sobre isso porque tencionava voltar para o pomar.
Mudou-se para casa em 1996 e trabalhou ao lado do pai nas noites e fins de
semana. O gabinete de planeamento seria temporário até que Al e Marina
estivessem prontos para entregar a quinta. Só que isso não aconteceu. Alice
tinha visto as coisas ficarem cada vez mais difíceis para os pais –
regulamentos, taxas e preços muito baixos ameaçavam também os pequenos
produtores. Depois vieram os regulamentos de pulverização. Quando
decidiram vender, ela entendeu, embora lhe tivesse custado.
Então ficara ali. O seu chefe, Bill Chenowith, deixara claro que ela seria a
primeira da fila quando ele se aposentasse. Era a cenoura que Bill sempre
mostrava – a sua posição de diretor de planeamento do município.
Na avaliação anual dela em março, ele exibira-a como uma salva de
despedida.
– Sabe que estou a pensar em aposentar-me em breve, Alice – disse ele. –
Sempre disse que seria a melhor candidata para a transição.
Ela estava pronta para esse desafio. E, no ano anterior, o trabalho dera-lhe
algo em que se concentrar, onde desaparecer. O seu emprego podia ser
enfadonho e previsível, mas fornecia fronteiras claras e seguras dentro das
quais operar. Ela bebeu um gole de café e concentrou-se nas folhas de
cálculo. Trabalho mecânico – era um alívio.
Na sala de reuniões, Alice percebeu que o representante da Cascadia
Pacific, um homem louro e esbelto de Seattle, era a única pessoa de fato além
de Rich. Parecia um tipo simpático, apesar da linguagem corporativa sem
sentido: «desenvolvimento da comunidade», «prosperidade partilhada» e
«brainstorming criativo». Aquilo era apenas uma demonstração da fidelidade
de uma pequena cidade a uma grande corporação que financiava os seus
subsídios locais e fazia grandes doações para escolas e parques. Em troca, a
CP obtinha o direito de passar o seu cabo de fibra ótica ao longo do
município e ao longo do coração do desfiladeiro do rio Columbia para apoiar
as empresas de tecnologia que estavam a mudar-se para ali. Melhor chamá-lo
pelo que era – intercâmbio financeiro, um casamento combinado, se se
quisesse. Mas ninguém o faria.
Muitos dos seus colegas tinham os portáteis abertos. Rich martelava no
teclado, tomando apontamentos meticulosos. Outros, pelo que ela via,
estavam a ler os seus e-mails. Nancy via fotografias dos filhos no Facebook.
O seu grande sorriso tolo denunciava-a. A mente de Alice vagueou para as
abelhas. Fez algumas anotações no seu portátil – materiais de construção,
tinta para novas colmeias. Iria passar na serração para ver o que poderia
encontrar para os suportes de colmeias. Pensou novamente em Jake e no seu
enorme entusiasmo. Ele seguira-a durante as verificações completas de três
colmeias, fazendo perguntas e segurando as suas ferramentas enquanto ela
avançava, o que fora útil.
Sentiu-se furiosa consigo si mesma. O que vais fazer? Obrigar o miúdo a
seguir-te e a segurar as tuas ferramentas?
– ... Comemorando vinte anos de parceria interagências!
O representante da CP estava a terminar e todos batiam palmas.
– E como parte da nossa missão de diversificação, tornámo-nos o
distribuidor regional da SupraGro, que faz produtos de valor acrescentado
para o setor agropecuário. Esperamos ser a ponte entre a SupraGro e as
quintas, ranchos e pomares locais. Aqui está o catálogo deste ano, com os
meus contactos na parte inferior. Por favor, liguem-me com qualquer dúvida
e, mais uma vez, obrigado!
Os catálogos brilhantes estavam espalhados pela mesa da sala de reuniões.
Bill agradeceu ao representante da CP a apresentação. Houve mais aplausos e
as pessoas começaram a sair. Alice empurrou a sua cadeira para trás, mas viu
a cadeira ao lado ainda ocupada por Stan Hinatsu, da Watershed Alliance.
Stan tinha mais ou menos a idade de Alice, nipo-americano, com cabelo
grisalho. Sempre o achara um homem bonito, mas naquele momento, a
brandir um catálogo colorido, parecia zangado.
– SupraGro! – exclamou ele. – Estão a brincar? Destruíram a bacia
hidrográfica do salmão nas Sierras. Em Truckee. Houve um grande processo
judicial.
Alice reconheceu vagamente o nome da pequena cidade da Califórnia.
– Vão impingir-nos isto como se não notássemos? – Levantou-se e falou
para o outro lado da sala. – Desculpem! Bill? Bill! Podemos conversar sobre
este último item?
Bill conversava com o representante da CP. Puxou as suas calças caqui para
cima e lançou um sorriso vazio na direção de Stan.
Stan juntou as suas coisas, murmurando:
– ... Completamente inaceitável. Não posso acreditar…
Caminhou em direção à porta e gritou:
– Bill! Vou ligar-lhe e marcar uma reunião!
Bill sorriu e acenou. Stan saiu da sala.
– O que foi aquilo?
Nancy estava ao lado da cadeira de Alice com um copo de papel na mão,
deslocando o peso de um pé para o outro, a saia floral cor-de-rosa a balançar.
– Com o que está o velho Stan chateado agora?
Nancy tinha uma permanente nova e usava brincos a condizer com os
óculos de armação roxa. Como Alice, Nancy era uma funcionária de longa
data do município. Tinham andado juntas no secundário – Nancy terminara
dois anos antes de Alice. Nancy ria com frequência e ainda exibia o mesmo
entusiasmo que tivera como chefe de claque na escola secundária. Ambas
eram assistentes de Bill em título, mas aceitavam tacitamente que Alice fazia
a maior parte do trabalho. Bill chegava tarde, saía cedo e não se incomodava
com a papelada, o que era basicamente o objetivo do departamento.
– Qualquer coisa sobre a SupraGro e um processo na Califórnia –
respondeu Alice.
– Que fiteiro – comentou Nancy, revirando os olhos. – Sempre chateados
com alguma coisa, aqueles ativistas.
Alice sentiu-se na defensiva. Gostava de Stan.
– Não sei, Nancy. Lembras-te de quando aqueles comboios da Cascadia
descarrilaram em Mosier? Foi o grupo do Stan que os obrigou a limpar tudo.
Nancy fez uma careta e riu.
– Caramba! Não sejas tão séria, Alice. É segunda-feira de manhã. A
propósito, contactaste o pessoal de Heights na semana passada? Eu estava à
espera que me desses as estatísticas habitacionais para poder criar a previsão.
Voltaram juntas para o escritório.
Alice sentiu-se inquieta durante o resto do dia. À hora do almoço desceu
até ao rio, passou pela praia dos kiteboards e continuou para leste em direção
aos hotéis à beira-rio, ao museu e à pequena marina, protegida do vento. Os
veleiros balançavam na brisa leve, o cordame a tilintar ligeiramente. Viu o
barco de Bill entre eles – o Kathy Sue, que tinha o nome da mulher com quem
estava casado há quarenta anos. Olhou para os velhos edifícios de tijolo na
encosta acima de Oak Street. Hood River ainda era uma bela cidadezinha.
Todos compareciam ao desfile do Quatro de Julho e ao primeiro jogo do ano
na escola secundária. As pessoas evitavam buzinar e travavam para os perus
que percorriam a cidade no outono.
Alice foi até meio da ponte e olhou para o rio. Viu dois pescadores com
água pelas ancas, e a luz do sol refletia-se nas suas linhas enquanto as
lançavam para a frente e as puxavam no ar. Mount Hood erguia-se a sul,
plácido sob a neve da primavera.
Ela adorava aquele lugar, mas nunca esperara acabar encalhada no gabinete
de planeamento do município toda a sua carreira. Uma vida passada ao ar
livre era uma vida boa, sempre tinham dito os pais. Animou-se ao pensar no
seu plano de aumentar o apiário e ganhar dinheiro suficiente para construir
um pequeno pomar. Precisava de contratar alguém para a ajudar a fazer
avançar as coisas. Esse era ainda mais um motivo pelo qual precisava de
mandar Jake para casa, pensou Alice. O rapaz entenderia. E se não
entendesse, bem, isso não era problema dela. Ele tinha pais, não tinha? Não
era responsabilidade dela.
Passou o resto do dia imersa na gigantesca tarefa de agendar avaliações
para os edifícios comerciais da cidade. Um a um, os colegas foram-se embora
até ficarem apenas ela, Nancy, e o estagiário ruivo, Casey. Nancy
convencera-o a ir à happy hour na taqueria e tentou convencer Alice a ir
também para não parecer que estava a atirar-se ao pobre rapaz.
Ela escusou-se, dizendo que tinha coisas a fazer em casa.
– Como queiras, amiga – disse Nancy. – Acho que somos só nós os dois,
Casey.
A risada dela ecoou pelo átrio quando saíram.
Alice sabia que estava a empatar. Conduziu para sul em direção a sua casa
e pensou em comprar tacos no Nobi’s. Sentiu um lampejo de impaciência.
Não ia fazer outra vez o jantar para o rapaz. Queria ficar irritada, percebeu.
Precisava de justificar mandá-lo para casa. Mas gostava dele, o que não era
insignificante. Por regra, Alice não gostava da maioria das pessoas que
conhecia. Mas havia algo especial no rapaz. E fora ela quem o convidara.
Afinal, sobre o que fora aquele grande gesto? Discutiu consigo mesma
durante o trajeto para casa.
Percorreu a longa curva do caminho de acesso e viu uma carrinha
estacionada diante da sua casa. Sentiu um nó no estômago quando ouviu
vozes elevadas e, em seguida, gritos. Outra discussão da família Stevenson?
Claro que Ed Stevenson viria à procura do filho. Porque não pensara nisso? O
seu coração acelerou. Temia confrontos, mas raios a partissem se Ed
Stevenson pensava que podia gritar com qualquer pessoa na sua casa.
Acelerou o passo e abriu a porta, pronta para uma discussão.
10
MANUTENÇÃO DA COLMEIA
Requisitos de uma colmeia completa...
Jake não tinha palavras para explicar o que sentiu quando Alice lhe entregou
o quadro da colmeia naquela primeira manhã. Ficou simplesmente
maravilhado com a beleza daquilo. O retângulo de madeira pendeu pesado
nos seus dedos quando o puxou em direção ao rosto. Viu uma tapeçaria de
pólen multicolorido, mel operculado e néctar brilhante. Inspirou o doce
aroma de cera de abelha fresca e mel fermentado e sentiu o tremor de mil
minúsculos corpos a vibrar em sintonia. Isso atingiu-o no coração como uma
droga. A reverberação correu pelas suas mãos e subiu pelos seus braços.
Sentiu uma dor no peito e pensou que o coração ia explodir. Era um peso
calmante, uma pedra de toque invisível, um sinal a dizer «Você está aqui».
O quadro polvilhado de pólen estava coberto com cera branca delicada. Em
toda aquela superfície as abelhas douradas felpudas moviam-se com um
propósito. Ignoraram Jake. Algumas estavam ocupadas a empacotar o pólen;
outras contorciam-se nos favos cheios de mel. Abelhas alimentavam larvas
ou carregavam os corpos das mortas. Abelhas que procuravam comida,
abelhas-amas, abelhas que limpavam a colmeia das mortas. Alice disse os
seus nomes enquanto Jake observava a tapeçaria viva dourada, ocre e
escarlate. Inspirou o perfume de tudo aquilo, uma fragrância mais intensa do
que algodão-doce e sentiu o desejo de lhe encostar o rosto. Mas o que mais
recordaria era que a massa zumbidora parecia habitar o seu corpo. Sentia a
ressonância no peito, como quando tocava trompete. A sensação viajou do
seu plexo solar, passando pela caixa torácica, até ao seu coração pulsante de
dezoito anos – uma vibração de felicidade e contentamento. Isso fê-lo querer
cantar. Não disse nada a Alice. Pensou que pareceria maluco. Mas a
experiência fê-lo ter a certeza de que queria aquele emprego. Estudou os
livros de Alice até tarde e, quanto mais lia, mais lhe parecia o destino, como
uma espécie de porta a abrir-se.
Depois de Alice sair para o trabalho, Jake ficou no alpendre e sentiu o
vento oeste a soprar sobre o cume enquanto a manhã aquecia. Viu o vento
mover-se através das árvores na orla da floresta e ouviu um picanço nas
profundezas dela. As galinhas cacarejaram e um cão ladrou. Por força do
hábito, colocou os auriculares e ligou o iPhone, mas depois desligou-o.
Ouviu novamente o vento, os pássaros, o coaxar fraco dos sapos ao longe.
Era um tipo de música muito próprio e ele queria ouvi-la.
Desceu a rampa para avaliar as limitações do pátio. Lentamente, moveu-se
ao longo do perímetro para ver onde não poderia ir com a cadeira. Sentiu-se
contente por não haver ninguém a ver as suas dificuldades no terreno
irregular. Passou pelo apiário e foi em direção ao celeiro, tentando encontrar
o melhor percurso.
Recordou os recentes acontecimentos em casa dos pais. A sua bondosa
mãe, que trabalhava na igreja e ajudava as pessoas o dia todo, a descontrolar-
se com Alice. Tansy Stevenson era uma mulher doce e temente a Deus que
acreditava em ajudar os vizinhos e amar os inimigos. Decorava a cozinha
com patos e gansos enfeitados com gorros e adorava ver vídeos engraçados
de gatos na Internet. Mas se alguma coisa parecia ameaçar o seu único filho,
bem, isso trazia ao de cima o pit bull dentro ela. Era um pequeno pit bull,
mais parecido com um chihuahua zangado, mas temível.
E aquela maldita história sobre Ed! Alice contara-lha, resumidamente, na
pickup. Jake não teve dificuldade em acreditar, embora ficasse maldisposto.
Ed batera-lhe com o cinto quando ele era pequeno. As tareias pararam
quando um vizinho viu Ed bater em Jake, então com doze anos, e ameaçou
denunciá-lo. Ed nunca mais lhe bateu, mas Jake sabia que queria. Não
admirava que Ed tivesse sido violento em criança.
Uma onda inesperada de tristeza tomou conta de Jake então. O pai nem
sempre fora tão mau. Lembrava-se da sensação da mão grande do pai sobre a
sua enquanto caminhava até à beira da piscina para a sua primeira aula de
natação. Com apenas cinco anos, ele tinha medo de águas fundas e
estremeceu no fato de banho do SpongeBob. Começou a chorar quando Ed o
entregou à professora e se virou para partir. O pai ficava geralmente zangado
quando ele chorava. Mas, daquela vez, Ed agachou-se e colocou as mãos
grandes nos ombros de Jake.
– Eu vou ficar além a ver – disse Ed. – Vai correr tudo bem.
Jake sentiu a preocupação abandoná-lo quando o pai lhe apertou o ombro e
foi sentar-se na bancada. Parou de chorar e desceu a escada para se juntar à
turma na parte pouco funda. Esperneou, esbracejou e soprou bolhas. A sua
confiança aumentou até ele fazer algo inconcebível e meter a cabeça debaixo
de água. Sacudiu a cabeça para tirar a água dos olhos e procurou o seu pai na
multidão de pais. Viu-o então, o seu rosto com uma expressão que Jake não
entendera na altura. Achou que Ed estava zangado porque a aula nunca mais
acabava. Mas agora sabia que fora medo. Ed tivera medo de que Jake não
saísse da água vivo.
Jake fez uma pausa na sua circum-navegação do pátio. Considerou aquela
memória quase contra sua vontade, mas sabia que era verdade. Havia outras.
O cheiro a tabaco, enquanto o pai corria atrás da bicicleta de Jake, a segurar o
selim para equilibrá-lo e batendo palmas como um louco quando Jake rodou
sozinho. Quando ele fez oito anos, o pai deu-lhe um buggy de controle
remoto e passaram a tarde a fazê-lo andar para cima e para baixo no caminho
de acesso esburacado. O pai tinha rido e parecera uma criança. Havia
domingos em que todos iam à igreja e o pai tinha ido com Jake comprar um
donut e um chocolate quente ao salão paroquial depois. Isso tudo foi antes de
Ed deixar de ir à igreja, antes de ser despedido da Middle Mountain
Surveyors, onde fora supervisor, e ir trabalhar para a Klare Construction. Jake
era muito pequeno para perceber por que motivo o pai fora despedido.
Apenas sabia que as coisas mudaram depois disso.
Jake olhou para o cume e mordeu o lábio inferior. Sacudiu a cabeça. Para
aquele punhado de boas lembranças havia muitos anos de más. Lembrava-se
de Ed a atirar ao chão o peru de Natal porque a mãe sugerira que ele fosse à
missa com ela pela manhã. Ed a gritar com os Chavez, os seus simpáticos
vizinhos, por tocarem música ranchera durante um churrasco de domingo à
tarde. E, mais tarde, a dar um pontapé no cãozinho deles quando ele se
aproximou do canteiro de flores dos Stevenson e ergueu a pata gordinha para
urinar. Quando Jake deixou crescer o moicano, o pai zombou dele uma ou
duas vezes por causa do penteado esquisito e depois deixou de falar com ele.
Jake preferia o silêncio pesado às coisas feias que Ed dizia, como aquelas que
gritara a Alice.
A ideia de ir para casa fazia Jake sentir-se gelado. Não tinha fisicamente
medo de Ed, mas a ideia de voltar à casa daquele homem fazia-o sentir-se
encurralado. Empurrou a cadeira ao longo do perímetro do quintal, sentindo a
emoção crescer no seu peito. Não podia voltar para aquela casa acanhada, o
ar tão pesado com a tensão que quase se podia sentir o cheiro. As horas de
espera para estar sozinho, algo que era apenas um pouco menos terrível do
que estar em casa com eles. Então, o que fazer? Poderia viver e trabalhar ali?
E se Alice mudasse de ideias? Ele mal a conhecia, e ela não lhe devia nada.
Jake acertou num buraco e a sua roda dianteira direita ficou presa.
Balançou-se para a frente e para trás para se libertar. Enquanto lutava, a sua
certeza cresceu. Não podia voltar para casa dos pais. Impossível. Iria
primeiro para um centro de assistência a adultos ou para aquele lar merdoso
em The Dalles onde a sua assistente social o levara. Todas as pessoas ali
tinham o dobro da sua idade e algumas eram deficientes mentais. «Pessoas
com incapacidade intelectual» era a terminologia correta, recordara-lhe a sua
assistente social quando voltaram para o carro. A linguagem não importava;
ele nunca poderia viver ali. Não era como eles, disse-lhe. Mas agora até o lar
parecia preferível a viver com Ed. Ficava doente ao imaginar-se a subir de
novo a rampa sob o olhar exultante do pai. Nem pensar. Nem morto!
Jake empurrou com mais força e a cadeira tombou. O seu ombro bateu na
terra com um baque. Sentiu a gravilha na cara e o peso familiar do desespero
começou a abater-se sobre o seu coração. Aquela era agora a sua vida, a porra
do seu corpo. Ouviu um rosnado baixo então e, quando olhou para cima, viu
o galo apoiado sobre uma pata, a fitá-lo. A visão da ave excessivamente
confiante fê-lo rir alto e Ned afastou-se. Jake ficou deitado a olhar para o
celeiro, esforçando-se para acalmar a respiração. Provavelmente ninguém
apareceria, o que o fez-se sentir-se grato. Tirou uma pedrinha da cara e
recompôs-se.
Primeiro o mais importante. Para ficar ali teria de provar o seu valor de
alguma forma. Para começar, precisava de sair da porra do chão. Lentamente,
arrastou-se até à cerca, puxando a cadeira com um braço, grato pelas horas
que passara a levantar pesos por causa do tédio. Demorou, mas conseguiu
sentar-se e endireitar a cadeira. Travou as rodas e içou-se para cima. Ficou
sentado ao sol, transpirado, vitorioso e exausto. Então rolou de volta para
casa.
Da cozinha, inspecionou os quartos pequenos e arrumados de Alice, que
eram convenientemente acessíveis a cadeiras de rodas nas formas mais
básicas. No entanto, a sala de estar era um problema. Uma grande estante
com livros projetava-se para o corredor e um labirinto de pequenas mesas
enchia a sala. O caminho para o celeiro e em redor do apiário também era
problemático. Ele sabia que precisava de ajuda.
Hesitou, então pegou no telemóvel e marcou o número. Noah Katz atendeu
ao segundo toque e comportou-se como se tivessem falado no dia anterior,
tratando-o pelos habituais nomes depreciativos. Como um verdadeiro amigo,
não mencionou os meses em que Jake evitou as suas visitas e não respondeu
aos SMS, e-mails e telefonemas. O bom e velho Katz.
Depois de trocar insultos por alguns minutos, Jake foi direto ao assunto.
– Ouve, mano, preciso de um favor – disse ele. – Podes passar por aqui
hoje, tipo, daqui uma hora? E trazer alguém contigo que possa levantar
coisas? Certo. Fixe. Sim, agora seria ótimo! Ah, e tenho de te dar a morada.
Mudei-me.
Jake desligou. Era típico de Katz dizer que podia vir imediatamente, que
por acaso já ia naquela direção. Katz sempre o protegera, mesmo quando ele
não merecia – como quando o senhor Schaffer o expulsou do autocarro da
banda em The Dalles por se pôr na palhaçada a caminho de um jogo de
futebol. O que estivera ele a fazer daquela vez? Ah, certo – a acender
fósforos e a atirá-los a Matt Swenson no banco de trás. O rosto magro do
diretor da banda estava vermelho de fúria quando mandou Jake sair do
autocarro no estacionamento do Walmart e lhe disse para ligar aos pais a
pedir boleia. Não iria tocar com a banda de jazz no jogo HRVHS contra The
Dalles, que seria o último jogo do seu último ano. Schaffer esperava que ele
entendesse isso.
– Pobre de mim! – disse Jake enquanto se levantava para sair. – Acabou-se
o futebol. Uá! Uá! Uá!
As raparigas à volta dele riram-se e Schaffer ficou ainda mais vermelho.
Jake agarrou no estojo do seu trompete e desceu do autocarro.
– Até já, malta! – gritou por cima do ombro.
Quando saiu encontrou Noah atrás de si, solidário. Schaffer mandou Noah
voltar para o autocarro. Noah abanou a cabeça e acenou, sorrindo. O diretor
da banda bateu com a porta do autocarro e arrancou. Jake pediu boleia à mãe.
Enquanto esperavam, tocaram em frente ao Walmart.
Jake lembrava-se de como se sentira feliz por ter Katz ao seu lado, mesmo
quando estava a ser um idiota. Depois a mãe apareceu, com os lábios
franzidos de deceção, e Jake sentiu o profundo e vazio arrependimento de
perder o último jogo do seu último ano. Por sugestão da mãe, pediu desculpa
e Schaffer concordou em deixá-lo tocar no concerto de primavera, que foi
agendado para uma semana depois de ele ter ido parar ao hospital. A última
vez que tocara trompete para qualquer tipo de público fora no Walmart com
Noah.
Os dois rapazes sempre tinham partilhado a música desde que entraram
para a banda em crianças. No secundário, Noah interessara-se mais pelo jazz
da velha guarda, enquanto Jake se inclinava ainda mais para o som punk
hard-core – Misfits, Black Flag e Dead Kennedys. Aumentava o volume
quando andava de skate ou quando estava em casa para abafar a voz do pai e
o som da televisão.
Fora Noah quem lhe apresentara os Slapstick, uma banda de Chicago dos
anos 90 que misturava punk e ska. Gostava do som do trompete ali, enquanto
a banda ria de si mesma pelo que era ou não era, como na música «Almost
Punk Enough». Isso descrevia Jake. Muito daquilo era postura. Ele sabia-o –
a música, o cabelo, as roupas. Mas adorava realmente o trompete. Sentados
diante do Walmart naquele dia, Katz tocou a linha melódica de «Almost Punk
Enough» e Jake tocou zombeteiramente por cima no seu trompete.
– Precisa de começar a levar-se a sério, senhor Stevenson! – gritara
Schaffer nas costas de Jake.
Jake resfolegou, mas sabia que Schaffer estava certo. Fora Schaffer quem
sugerira o Cornish College of the Arts. Fora a carta de recomendação dele
que o ajudara a entrar, sabia-o. O diretor da banda fora vê-lo uma vez ao
hospital e Jake fingira estar a dormir. O que poderia ele dizer-lhe?
Jake viu a pickup de Noah descer o longo caminho de acesso de Alice e
sorriu ao ver o amigo corpulento sair do habitáculo. O brincalhão do Noah
com o seu cabelo comprido e sorriso enorme. Jake gemeu interiormente ao
ver Celia no banco do passageiro. Não esperara que Katz a trouxesse. Pensou
que ele podia ter chamado um dos gajos para ajudar.
– Meu!
Noah bateu na mão de Jake à laia de cumprimento e curvou-se para lhe dar
um abraço. Recuou e avaliou-o.
– O cabelo está supertriste. Que cena é essa do rabo-de-cavalo? E olha-me
este sítio! Que diabo? Viraste camponês!
– Sabes que sempre quis ser agricultor – disse Jake, recostando-se e
apoiando as mãos nos joelhos. – Estou apenas a explorar os meus sonhos.
– Estás a arrasar, meu! – exclamou Noah, apontando para as calças de
ganga skinny de Jake e as suas Doc Martens. – Mal te reconheci.
A porta do passageiro abriu-se e Celia, a quem todos chamavam Cece, saiu.
Ele teve de lhe sorrir, embora desejasse que ela não tivesse vindo. Cece
inclinou-se para o abraçar e Jake inspirou o seu cheiro feminino a pastilha de
mentol e perfume.
– Olá, Jake! Que bom ver-te!
Ela olhou para ele e puxou a sua longa trança preta com uma das mãos. Os
seus olhos castanhos brilhavam e ela parecia prestes a chorar. Jake sentiu um
lampejo de fúria. Porque achavam as pessoas que ele se sentia melhor quando
a sua vida as deixava tristes? Levantou as mãos a fingir indignação.
– Caramba, Katz! Eu disse-te para trazeres alguém com músculos. Não esta
magricela. La flaca, wey? Cece es la flaca. Talvez devesses ter trazido antes a
tua avó.
Noah riu-se e Celia guinchou em protesto.
– No soy la flaca, wey! Órale!
Ela flexionou os músculos e cerrou os dentes. Jake riu. Aquilo era melhor.
E Celia era suficientemente forte para ajudar Noah no que Jake precisava, de
qualquer maneira. Não parou para se permitir sentir o constrangimento de
pedir ajuda. Conduziu-os para dentro de casa e mostrou os móveis que
precisava que mudassem. Noah manteve um fluxo constante de piadas sobre
a nova identidade de agricultor de Jake, o que ajudou.
– Como conheceste esta senhora? – perguntou Celia enquanto ela e Noah
reposicionavam a mesinha de centro. – É amiga da tua mãe?
Noah revirou os olhos para Jake. As raparigas faziam sempre perguntas.
– É uma longa história – respondeu Jake. E deixou o assunto ficar por ali.
A cozinha tinha menos móveis, mas era mais importante, e ali Celia foi a
heroína. Como a mais velha de uma grande família, sabia cozinhar. Separou
as panelas e as frigideiras e as coisas da despensa, colocando à mão o que ele
usaria todos os dias. Também explicou a diferença entre cozer e assar.
Olharam para o micro-ondas, demasiado acima do fogão para ele o alcançar,
e ela zombou.
– Não precisas dessa coisa. Tresandam e fazem um grande chiqueiro, de
qualquer forma.
Jake levou-os até lá fora para ver o celeiro, o galinheiro e o apiário. Evitou
os seus olhos e indicou rapidamente as secções difíceis do caminho. Não
mencionou a queda. Noah encontrou pás e ancinhos no celeiro e Celia
ajudou-o a espalhar a terra para nivelar o caminho. Jake deu uma volta de
teste e confirmou que era mais fácil de percorrer. Noah disse que voltaria e
faria outra revisão, mas não deu muita importância a isso.
Jake ofereceu-se para lhes mostrar as colmeias e, embora estivessem
intrigados, não se aventuraram dentro da cerca do apiário. Enquanto Jake lhes
contava um pouco do que aprendera, as abelhas pareciam cantar para ele. O
ar estava cheio de corpos dourados, alguns a sair para ir procurar alimento e
outros a regressar. Em frente a uma colmeia próxima – uma das novas
colmeias núcleo de Sunnyvale – uma dúzia de abelhas ziguezagueava
descontroladamente para a frente e para trás em rajadas curtas. Aquilo era um
voo de orientação, explicara-lhe Alice.
– As mais velhas estão a ensinar as mais novas a encontrar o caminho para
casa. Não é fixe? – perguntou Jake.
Noah estava atrás de Celia, que estava atrás de Jake. Muito fixe,
concordaram.
– Quando tiveres o mel, dou-te a receita de torta de miel da minha abuela.
É uma delícia. Vais adorar – disse Celia.
Jake virou-se e sorriu-lhe.
– Cece, és um génio. Preciso da tua ajuda com outra coisa.
A disciplina de economia doméstica tivera aprovação/ /reprovação baseada
na assiduidade, portanto, Jake e Noah tinham estado na brincadeira ao fundo
da aula da senhora Trainor sem aprender nada. Celia, por outro lado, já sabia
cozinhar para uma casa cheia de gente. Mandou Noah à loja com uma lista, à
qual Jake adicionara produtos para o cabelo. Enquanto esperavam por Noah,
ela ensinou a Jake algumas coisas básicas – ovos mexidos, panquecas, tostas
de queijo e burritos. Quando Noah voltou, ela ajudou Jake a fazer o seu
primeiro jantar – enchiladas de frango com molho de chile verde.
– E uma salada. Tens de comer legumes. Não, a sério, meninos! – protestou
enquanto eles gozaram, chamando-lhe Vegetariana Nazi.
Já passava das cinco e meia e Alice ainda não tinha voltado. Jake estava
nervoso, a limpar as bancadas e a verificar o telemóvel.
– Porque não ficam mais um pouco? – convidou ele.
Noah pôs a mesa para quatro. Jake tirou as enchiladas do forno e tapou-as
para as manter quentes. Começou a fazer o arroz como Celia lhe ensinara.
Noah pegou no telemóvel para mostrar a Jake um vídeo do seu amigo Mikey
na pista de skate. Celia já tinha visto aquilo várias vezes e revirou os olhos
enquanto os rapazes se inclinavam sobre o ecrã. Folheou o jornal. Jake
sentia-se cansado e feliz. Tivera saudades de Noah. Celia também era boa
gente. Não se lamuriava nem era uma lapa. Recordou a última vez em que
tinham ido todos a Lost Lake. Noah e Celia não namoravam oficialmente na
altura. Celia fora no banco de trás com Cheney deitado no colo. Cheney.
Recordar o seu cão deixou-o muito triste. Mesmo assim, era bom estar com
os amigos. Celia foi a primeira a reparar no fumo.
– O arroz! O arroz! – Atravessou a cozinha a correr e agarrou no tacho
fumegante pela pega com um pano da louça. O detetor de fumo emitiu bipes
curtos.
– Abre as janelas! – gritou Jake.
Noah abriu as janelas da cozinha e Celia subiu para uma cadeira e agitou o
pano diante do detetor.
– Isto não é um exercício! – gritou ela, rindo. – Dirijam-se à saída mais
próxima e os vossos professores irão orientar-vos!
– Que caraças! As tuas aulas de culinária acabam sempre mal, rapariga? –
gritou Jake.
– I fell into a burning ring of fire! – cantou Noah.
A cozinha estava cheia de fumo, risos e gritos.
– Noah, leva essa maldita coisa lá para fora! – gritou Jake.
Noah agarrou no tacho e abriu a porta, quase colidindo com Alice.
– Que diabo se passa aqui? – gritou ela.
11
BATEDORAS
Não há dúvida de que as abelhas enviam batedores em busca de uma
morada adequada. Os enxames foram encaminhados diretamente até à
sua nova casa, num voo em linha reta, seja da sua colmeia ou do local
onde se agruparam após pousarem.
– L. L. LANGSTROTH
O sol batia nas omoplatas de Harry enquanto ele pedalava para longe da
quinta de Alice Holtzman. O seu estômago roncou. Não comia desde o
burrito do pequeno-almoço. Conseguir o emprego animava-o, mas não
mudava o facto de estar quase sem dinheiro. Ele e Alice haviam concordado
com o valor a pagar por hora, e ela pediu-lhe que voltasse na tarde seguinte
para planearem o seu horário de trabalho. A seguir Alice perguntou se havia
mais alguma coisa de que ele queria falar. Harry quase pediu o almoço, mas
conteve-se, sentindo que seria um pedido estranho.
A sua fome aumentou enquanto subia a longa colina rumo à povoação.
Parou na mercearia para ir à casa de banho e ver as amostras da charcutaria.
Mordiscou o queijo e empilhou fatias de salame num guardanapo até que a
senhora da charcutaria o fulminou com o olhar. Ele saiu, enfiando os
pedacinhos de carne na boca e sentindo mais fome, como se os petiscos
apenas tivessem aguçado o seu apetite. Montou de novo na Schwinn e rumou
a norte em direção à ponte, ao hospital e ao tio com um pavor crescente.
À beira-rio, a corrente da bicicleta emperrou e Harry desmontou para soltá-
la. Lavou as mãos sujas de óleo na casa de banho pública e, ao sair, ouviu a
voz de um homem num sistema de som.
– Teste um. Teste dois. Teste três. Teste, teste, teste. Olá, Hood River! Sim,
acho que está bem, Doug – disse a voz.
Harry viu uma banda a preparar os instrumentos na relva – três tipos com
um baixo, uma bateria e uma guitarra. Sentiu o cheiro de carne grelhada e viu
uma mulher a abrir uma embalagem alta de copos plásticos vermelhos ao
lado de um barril de cerveja suado. Harry aproximou-se e viu uma longa
mesa coberta com travessas de alumínio – salada de batata, feijão, alface e
tarte. As pessoas faziam fila em frente ao grelhador para os hambúrgueres e
cachorros-quentes. Ele sentiu-se tonto de fome.
– Ei, meu. Estás na fila?
Harry virou-se e viu o grandalhão da praia dos kites. O cabelo comprido
caía-lhe sobre o rosto e a camisola de alças revelava braços musculosos e
bronzeados.
– Oh, olá! O homem dos bolos de mel! Tudo bem? – O tipo cumprimentou-
o como se fossem velhos amigos. – Harry, certo?
Harry assentiu, surpreendido. Não estava habituado a que se lembrassem
dele.
– Yogi – disse o grandalhão, batendo no peito com um polegar grosso. – É
bom ver-te, meu. Arranja-me um prato, pode ser?
Harry entregou-lhe um prato de papel e Yogi começou a empilhá-lo com
comida.
– Vai-te servir, meu – disse Yogi. – Eu não queria passar à frente de
ninguém.
– Ah, não. Não paguei, eu não… – começou Harry, mas Yogi abanou a
cabeça, o cabelo comprido a balançar em torno do rosto.
– Ná. É à borla! O porto faz isto todas as primaveras, no início da
temporada. É um churrasco em homenagem à malta do kitesurf. Mantém os
nativos dóceis.
Yogi riu-se e afastou o cabelo do rosto. Harry, incapaz de acreditar na sua
sorte, encheu um prato e seguiu Yogi até à grelha. Com dois hambúrgueres e
uma cerveja gelada cada, sentaram-se no relvado à sombra de uma árvore.
Entre garfadas, Yogi lançou-se num monólogo interessante, embora confuso,
sobre a sua sessão matinal de kite e um novo truque que estava a tentar
dominar chamado «Dark Star».
Harry anuiu enquanto ouvia, sem entender nada, e tentou mastigar entre
dentadas e goles.
Yogi bebeu um gole de cerveja e limpou a boca ao pulso.
– Já experimentaste, meu? Fizeste body dragging ou fizeste voar um kite?
Harry abanou a cabeça. Hesitou, pouco habituado a falar de si, e disse a
Yogi que estivera ocupado à procura de trabalho e conseguira um emprego.
– Excelente! – exclamou Yogi. Levantou de novo a manápula e Harry deu-
lhe uma palmada.
Harry costumava detestar quando alguém fazia aquilo, mas Yogi parecia
sincero. Pensou que poderia falar a Yogi das abelhas, mas Yogi estava de
novo embalado a falar do kitesurf.
– Ouve. Na tua próxima folga, vem até aqui e eu dou-te uma aula. Tenho
equipamento extra e posso emprestar-to, ensinar-te o básico. A sério, não é
assim tão difícil de aprender. Não precisas de pagar centenas de dólares a
uma delas – disse ele, apontando com o polegar para o aglomerado de
caravanas de escolas de kitesurf. – Quero dizer, elas são boas para pessoas
com dinheiro. Mas nós, gajos normais, temos de nos manter juntos.
Harry assentiu, inquieto. Da última vez que alguém lhe dissera que tinham
de se manter juntos, ele acabara na prisão.
Yogi pousou a cerveja na relva. Apanhou o cabelo num rabo-de-cavalo com
um elástico.
– Vou contar-te o segredo, o que as escolas de kitesurf não te contam, se
quiseres. Pareces o tipo de gajo que entenderia.
Harry anuiu.
Yogi estendeu as mãos à sua frente, as palmas para cima. A sua voz baixou
para um sussurro.
– Okay. O segredo é: tens de sentir. O vento.
Fechou os olhos, recostou-se e rolou os ombros largos.
Harry começou a rir, mas percebeu que ele falava a sério. Yogi, com os
olhos ainda fechados, virou as palmas das mãos para cima. Falou num
murmúrio.
– Tens de te perguntar: o que está o vento a fazer e como posso capturá-lo?
Como posso mover-me dentro dele? Qual é o meu lugar neste belo momento
atmosférico? Neste. Aqui. Agora mesmo. Tens de ouvir o universo e ouvir o
que ele está a dizer-te.
O grande homem inalou pelo nariz e exalou pela boca.
Harry não sabia o que dizer. Yogi abriu os olhos e riu, a sua voz a voltar ao
normal.
– É mágico, meu. A sério. Super Zen. Tento viver assim. Momento a
momento. – Deu um soco no ombro de Harry. – E tu vais conseguir, porra!
Consigo perceber!
Passou um dedo grosso pelo prato e lambeu-o.
– Certo. Tenho de ir. Vou fazer um downwind com uns gajos. Mas a sério,
meu, no teu próximo dia de folga… vem ter comigo. Estou aqui todos os
dias. Até breve, Harry.
Estendeu o punho e Harry bateu-lhe com o seu desajeitadamente. Viu Yogi
afastar-se, acenando e chamando as pessoas enquanto caminhava.
Tenho um emprego, pensou Harry. E talvez um amigo. Sorriu e deitou-se à
sombra da árvore, com a barriga cheia. Iria apenas fechar os olhos um
minuto, pensou, e então adormeceu.
Quando acordou, a festa acabara e o Sol namoriscava com o horizonte.
Lembrou-se do tio e da promessa de ligar à mãe. Saltou para a bicicleta e
atravessou a ponte. Quando subiu a colina para o hospital, o crepúsculo
instalara-se ao longo da cordilheira e o rio era uma faixa de escuridão. As
portas do hospital abriram-se com um chiado e o odor a antisséptico atingiu-
lhe as narinas. Harry correu para o quarto do tio H e parou à porta. As
máquinas dos estalidos e dos bipes tinham desaparecido. Assim como as
flores que a mãe enviara e também o tio. O couro cabeludo de Harry
arrepiou-se como se alguém tivesse entornado água fria na sua cabeça. Voltou
rapidamente para a receção.
– Hum, estou à procura de Harold Goodwin. Ele estava no quarto nove.
Era a enfermeira simpática, aquela que lhe oferecera o jantar. Levantou-se e
contornou o balcão, o rosto sério e os braços cruzados.
– Lamento imenso. O seu tio faleceu esta tarde. Teve uma paragem
respiratória, o que não é raro após um enfarte.
Esperou um pouco, deixando Harry assimilar a notícia. Explicou que o
inchaço no cérebro do tio H o fizera parar de respirar. Recordou-lhe o
testamento vital e disse que o tio não sentira dor.
Harry sentiu a cabeça à roda e as mãos húmidas. Os ouvidos zumbiram e o
suor cobriu-lhe a testa. A enfermeira estava a dizer que tinham ligado para a
família. Então a mãe já saberia. O corpo fora transferido para a morgue. A
enfermeira agarrou no cotovelo de Harry e conduziu-o até uma cadeira. O
estofo rosa recordou a Harry a sala de visitas na prisão. Ela sentou-se e tirou
uma caneta e um bloco do bolso do peito.
– Vou dar-lhe o número e pode ligar para eles amanhã para tratar dos
preparativos – disse ela, escrevendo no papel. – E junto também o número do
telemóvel do doutor Chimosky. Ele disse para lhe ligar se tivesse alguma
dúvida.
Entregou-lhe o papel. Harry dobrou-o e desdobrou-o e não soube o que
dizer. Como devia sentir-se? A enfermeira inclinou a cabeça e olhou para ele.
– O seu tio estava muito doente, sabe? Caramba, era um velhote rijo – disse
ela.
Contou-lhe que o tio H fora internado três vezes desde o Natal. Da última
vez, estava tão frágil que a equipa decidiu transferi-lo para um lar. Mas o tio
H ouviu-os falar disso e rebelou-se. Saiu do hospital quando os apanhou
distraídos e encontraram-no a tentar apanhar boleia vestindo apenas a bata do
hospital e umas meias.
Harry tentou sorrir. Aquilo soava ao tio H.
A enfermeira perguntou-lhe se queria que ela telefonasse a alguém. Harry
abanou a cabeça.
– Olhe, fique aqui o tempo que quiser. Eu estou no balcão se precisar de
mim.
Ele murmurou um obrigado e olhou para o chão. Sentia-se estranhamente
constrangido por não chorar. Aquilo era uma perda? Harry começara a gostar
do seu tio maluco nos últimos dois meses, embora não fossem chegados. E,
no entanto, o pobre tio H morrera sozinho. Pior, a mãe saberia que Harry não
estava lá. Fossem ou não chegados, o tio H ajudara-o. O velho aceitara-o
como alguém com quem jogar às cartas e partilhar uma sanduíche de spam.
Harry não precisara de muito mais do que isso. Nunca tivera muitos amigos,
apesar de a mãe estar sempre a dizer-lhe que ele precisava de conhecer
pessoas.
«Não precisas de gostar muito delas, Harry. Tens apenas de estar com
pessoas. É normal, filho.»
Mas ele nunca sabia o que dizer às pessoas. Marty e Sam tinham sido seus
amigos desde o secundário apenas porque eram da mesma turma e vejam
como acabou. Anos atrás, houvera Shane, que vivia com a mãe no mesmo
prédio de Harry.
«Vai brincar com o Shane», dizia-lhe a mãe. Harry não gostava de Shane.
Depois Shane destruiu a sua coleção de Hot Wheels – batendo com uma
pedra pesada no tejadilho dos carrinhos; como ele não parava, Harry deu-lhe
um soco no nariz. Shane correu para a mãe e Harry levou uma tareia. O seu
histórico de amizades não melhorara muito desde então. Mas ele sabia que a
mãe estava certa. Precisava de fazer amigos. Simplesmente não sabia como.
Harry dirigiu-se lentamente à cabina telefónica em BZ, temendo a conversa
com a mãe. Como explicar porque não estivera com o tio H quando ele
morrera? O que lhe dissera sobre o seu trabalho, o imaginário que tivera antes
do real? As suas mentiras inofensivas quase sempre o deixavam encurralado.
«Bolas! Diz apenas a verdade, Harry!», gritava Sal. «É mais fácil de
lembrar, miúdo!»
Mas Harry não teve de explicar nada. Ouviu a mãe a chorar ao aceitar
pagar a chamada. Ela disse que se sentia contente por ele estar ali. Ter-se-ia
sentido péssima se o tio H tivesse morrido sozinho. Família era família, e
Harry tinha feito um bom trabalho ao lembrá-lo de que ele não estava
sozinho.
Harry animou-se ao ouvir a versão da mãe. Era tudo tecnicamente verdade.
Afinal, ele tinha ido ver o tio. Embora o tio H estivesse inconsciente quando
ele chegara, talvez soubesse que Harry estava ali com ele. Talvez tivesse
ajudado. Harry falou à mãe da morgue. Disse-lhe que iria levantar os restos
mortais do tio H. Ela assoou o nariz.
– Ele era um homem tão bom. Harry, gostava que o tivesses conhecido
quando era mais novo. Olha, filho, vou aí assim que puder e podemos
espalhar as cinzas do tio H juntos. Isso vai ser bom, não vai?
Harry desligou o telefone e endireitou-se. Inclinou a cabeça para trás e
olhou para a cúpula negra do céu – cravejada de estrelas e brilhante. Ele tinha
estado lá para o tio, mais ou menos. Começaria no novo emprego e tudo
ficaria bem. Iria trabalhar no duro. Seria de confiança. As coisas iriam mudar.
Podia senti-lo.
Subindo a estrada, entrou no corredor de árvores altas e a escuridão
engoliu-o. Forçou-se a confiar que a estrada estava à sua frente enquanto
pedalava a velha bicicleta frágil na noite. Pensou no animal morto que tinha
visto na berma e estremeceu. Isso fez os cabelos da sua nuca arrepiarem-se.
Para se distrair, pensou no que compraria com o seu primeiro ordenado –
piza, macarrão com queijo, um pouco do spam de que o tio H o fizera gostar.
Uma embalagem de seis cervejas, talvez. Quando chegou ao caminho de
acesso acidentado, desceu da bicicleta e caminhou até à caravana, tentando
ignorar a sensação de estar a ser seguido. Ficou parado no escuro e tentou
livrar-se dela, mas imaginou alguém a observá-lo enquanto subia a escada.
Da porta, olhou para a floresta e tentou ver o que quer que pudesse estar lá
fora. Nada. Em seguida, um ramo partiu-se e um pássaro levantou voo no
escuro. Harry sentiu medo. Fechou a porta fina, trancou-a e colocou uma
almofada sobre a cabeça. Levou muito tempo a adormecer e dormiu mal,
acordando a cada hora a pensar ter ouvido algo farfalhar do lado de fora da
caravana. Levantou-se de madrugada para beber água e finalmente caiu num
sono profundo.
Quando acordou, a floresta estava silenciosa. Recordou os acontecimentos
do dia anterior de forma desordenada, como portas de um armário a abrirem-
se – o olhar zangado da senhora da charcutaria, as abelhas a cair, Yogi com os
olhos fechados, o rapaz do moicano, o homem do burrito, o tio a tentar a
custo respirar, a cama de hospital vazia. Sentou-se e passou as pernas por
cima do beliche. O relógio do peixe-gato dizia que passava das 13h00.
Ele olhou-se no espelho, o seu tronco magro nu acima das ceroulas largas.
Endireitou-se e respirou fundo. Aquele era o primeiro dia de uma nova vida,
prometeu a si mesmo. Repararia aquele sítio – teria de novo água corrente e
eletricidade. Poderia começar de novo ali. Iria poupar e comprar um carro.
Iria conhecer pessoas. Pensou em Yogi e na praia de kitesurf. Porque não?
Talvez não fosse tão difícil fazer amigos. Abriu a porta e desceu a escada
para ir urinar.
Algo se mexeu na pilha de lixo e uma forma moveu-se na sua direção com
uma rapidez animal. Puma? Coiote? Guaxinim raivoso? Era grande, branco e
castanho. Fora aquela coisa que o espreitara na floresta na noite anterior.
Estava certo disso.
Harry gritou, tentou subir a escada e perdeu o equilíbrio. Ouviu um ganido
estranho. Virou-se e viu a criatura imóvel. Tinha um corpo largo malhado,
patas grandes e uma cauda longa e grossa. Onde deveria haver uma cabeça
havia um grande balde de plástico com o rótulo «Ração para Frangos
Premium». O latido do cão foi abafado pelo plástico. Harry levantou-se e
aproximou-se devagar, agarrou no recipiente e puxou. Quando se soltou,
Harry viu um par de orelhas enormes, olhos arregalados e uma boca gigante,
que o cão abriu para revelar dentes enormes. Harry deu um passo para trás e
o cão lançou-se a ele.
O grande focinho atingiu-o primeiro e depois as patas esmurraram o seu
peito antes de pararem abruptamente. Quando ele abriu os olhos, viu o cão a
correr num amplo círculo pela clareira. Virou-se de repente e correu de volta
para Harry, lançou as patas ao seu peito e lambeu-lhe o rosto antes de fugir
novamente. Harry observou o grande animal a correr em círculos amplos e
felizes. Seguiu para a floresta em direção ao rio e depois voltou, encharcado,
e caiu aos pés de Harry com um baque molhado.
Harry nunca convivera muito com cães, mas aquele parecia estar a sorrir.
Baixou-se, hesitante, para lhe acariciar a cabeça. O animal enfiou o focinho
na mão de Harry e bufou, então deitou-se de barriga para cima, expondo pelo
emaranhado e uma barriga rosa. Harry fez-lhe festas e o cão contorceu-se.
Um esquilo repreendeu-o e o cão deu um salto e afastou-se a correr. Harry
riu-se, aliviado, e percebeu que ainda precisava de fazer chichi. Quando
estendeu a mão para a braguilha das ceroulas agora enlameadas, ouviu o som
de um motor e virou-se. Um jipe subia ruidosamente o caminho e parou. O
selo na porta dizia «Departamento do Xerife do Município de Hood River».
O homem baixo que saiu tinha cabelo escuro e usava um uniforme
castanho bem engomado. Olhou para Harry, que ainda tinha a mão na
braguilha. Afastou-a e, sem saber onde colocá-la, juntou as mãos atrás das
costas nuas. O polícia enfiou a mão no carro e tirou um chapéu, que colocou
na cabeça e endireitou com as duas mãos. Parecia grande de mais e de
alguma forma fazia-o parecer um escuteiro. Fechou a porta do jipe e avançou,
os seus sapatos engraxados a levantar pó. O homem era latino e tinha a idade
de Harry. Era bonito e estava bem barbeado. Harry tocou no lábio superior
com pesar.
– Bom-dia, senhor – disse o homem. – Pertenço ao Departamento do Xerife
do Município de Hood River.
Com dois dedos, estendeu um cartão de visita, que Harry agarrou, leu e, em
seguida, como não tinha bolsos, fechou na mão. O agente perguntou se
aquela era a residência de Harold Goodwin.
– Sim – disse Harry, encontrando a voz –, ele é meu tio. Era meu tio.
O homem assentiu, o rosto impassível.
– Lamento muito a sua perda, senhor. Sabemos que o senhor Goodwin
faleceu.
Harry anuiu.
– Obrigado – disse ele. – Já estava doente há algum tempo, portanto...
Calou-se enquanto seguia o olhar do agente, que observava a
desarrumação, a casa de banho exterior, a pilha de lixo, a escada improvisada.
– Há algum tempo que tentamos entrar em contacto com o seu tio – disse o
homem. – Fui vê-lo ao hospital da última vez que foi internado. O município
queria demolir esta caravana em janeiro, mas o seu tio recusou-se a falar
comigo.
Ergueu um papel com um carimbo de aspeto oficial.
– Vou ter de lhe pedir que desocupe o local. Vem aí uma equipa deitar isto
abaixo.
Levariam a caravana para o aterro, explicou. Harry deveria retirar
imediatamente as coisas com que queria ficar.
Ficou abatido. Lá se iam os seus planos para reparar a caravana. Lá se ia o
novo começo.
– Mas eu… não tenho outro sítio onde morar – disse ele. Precisava de duas
semanas, explicou. Tinha acabado de começar num novo emprego e teria
algum dinheiro para arranjar um quarto quando fosse pago.
O agente não se comoveu e disse que não podia fazer nada. Encolheu os
ombros e enfiou o papel dentro do casaco.
Aquele encolher de ombros. Recordações. Sam sentado à sua frente durante
a única visita à prisão.
«Tu ofereceste-te para conduzir, meu», dissera, encolhendo os ombros.
O diretor da escola a pegar no telefone para ligar à sua mãe enquanto
Harry, com o ranho a escorrer pelo lábio superior, insistia que não tinha sido
ele a roubar o dinheiro da cantina.
«Não sejas tão seguidor dos outros, Harry», dissera o diretor.
Moira vira-o no churrasco e acenara-lhe, mas não fora falar com ele.
Harry sentiu uma pequena chama acender-se no peito. A chama formou
uma palavra, e a palavra era não. Estava cansado de ser o tipo simpático e de
nunca ter uma oportunidade. Só precisava de uma oportunidade. De duas
semanas.
Ouviu um barulho e o cão saiu da floresta atrás do agente, o seu corpo
lustroso e molhado do rio. Correu entre os dois homens, roçando-lhes os
joelhos. O agente gritou e Harry começou a rir, mas então viu a arma. Um
esquilo fez barulho, o cão desapareceu e a arma brilhou à luz do sol. Os olhos
de Harry seguiram o cano que subiu para o céu e passou pelo seu rosto.
Fechou os olhos.
O som do tiro foi ensurdecedor e Harry tapou os ouvidos com as mãos
enquanto o tempo abrandava. Quando os abriu, o homenzinho estava de
joelhos, sem chapéu e o rosto da cor de papel.
– Oh, foda-se! Oh, foda-se! – exclamou. – Não lhe acertei, pois não? Pois
não?!
Harry olhou para os seus braços e peito, que estavam manchados de lama
do cão, e abanou a cabeça.
O agente levantou-se e andou de um lado para o outro, praguejando e
segurando o chapéu. Disse qualquer coisa sobre ir ser processado novamente
e que lhe iriam reduzir o ordenado ou despedi-lo daquela vez. Ele era um
idiota, disse, claramente para si mesmo e não para Harry.
– Pensei que era a porra de um lobo ou um coiote ou algo assim! –
exclamou, falando cada vez mais alto. – Quer dizer, mandam-me sozinho
para o maldito bosque e aquele hijo de puta aparece a voar…
Depois começou a falar num espanhol rápido que Harry não conseguiu
entender.
Harry teve pena dele e ia começar a tranquilizá-lo, a dizer-lhe que estava
tudo bem, que não acontecera nada. Isso era o que ele normalmente teria
feito. Mas então aquela chama voltou, o pequeno carvão no seu peito. Não,
não estava tudo bem. Ele podia ter levado um tiro! Só precisava de duas
míseras semanas. E ainda precisava de mijar. Viu o agente parar de andar
para verificar se a arma estava travada. Harry sentiu uma espécie de
determinação. Endireitou os ombros e olhou o tipo nos olhos, explicando
novamente a sua situação. Por favor, disse ele.
O agente abanou a cabeça.
– Lamento imenso. Gostava de poder ajudá-lo, mas a equipa de demolição
já está marcada. E eu sou novo. Ninguém me dá ouvidos. Pensam que sou um
idiota. E se alguém descobrir sobre a arma…
Estava prestes a chorar e desviou o olhar. Parecia realmente lamentar.
Harry pediu-lhe que esperasse um minuto, dizendo que tinha de ir urinar.
Enquanto urinava, olhou em volta, para a caravana e para a Schwinn, e
formou um plano. Voltou para junto do polícia, que estava encostado ao jipe a
girar o chapéu nas mãos.
– Pode dar-me boleia para a cidade? – perguntou Harry.
O tipo suspirou e olhou para a Highway 141.
– Não posso levá-lo agora. Tenho uma reunião na Estação de Rangers de
Mt. Adams. Mas posso passar por aqui dentro de duas horas, no regresso.
Harry assentiu.
– Obrigado.
O agente foi-se embora e Harry juntou as suas coisas, o que não demorou
muito.
Enquanto esperava pela boleia, sentou-se na escada com o caderno e fez
uma lista dos seus objetivos para o novo emprego. O cão voltou da sua
corrida pela floresta e aninhou-se aos seus pés. Os dois dormitaram ao sol da
tarde.
Quando o agente reapareceu, Harry sentou-se no banco da frente do jipe e
pousou a mochila aos pés. Da caravana do tio H, tirara apenas duas das
camisas de lã, o livro dos pássaros e o tabuleiro de cribbage. Lançou um
último olhar à caravana enquanto se afastavam. Em breve estaria no aterro. A
pilha de lixo seria limpa. Os guaxinins furiosos voltariam no escuro e não
encontrariam nada.
O cão saltitava alegremente no banco de trás, radiante por estar em
movimento. O agente, que disse chamar-se Ronnie, concordou em levá-lo
para o canil depois de deixar Harry.
Harry olhou pela janela enquanto o jipe acelerava. Iria trabalhar. Depois
veria onde ficar. Pensou em Yogi. Recostou-se no assento e sentiu a brisa no
rosto. Perguntou a si mesmo qual era o seu lugar naquele belo momento
atmosférico – apenas aquele. Ali. Agora. Esperou, ouvindo o universo,
ouvindo com atenção. Mas não houve resposta.
15
DIREITO DA RAINHA
Existe uma característica nas abelhas que é digna de profundo
respeito. Tamanha é a sua energia indomável e perseverança, que, em
circunstâncias aparentemente sem esperança, trabalham ao máximo
para recuperar as suas perdas e sustentar o Estado que está a afundar-
se.
– L. L. LANGSTROTH
Jake acordou de repente com o som de alguém a gritar. Olhou para o teto,
sem saber onde estava e sentindo um aperto na garganta. No sonho, andava
de skate à beira-mar com Cheney a correr ao seu lado. O cão desviara-se para
a estrada e fora atropelado por um carro. O alívio inundou-o então. Estava em
casa de Alice e Cheney continuava vivo. Cheney estava ali mesmo, a enfiar o
seu grande focinho molhado na mão de Jake.
O sonho parecera tão real, a sensação de velocidade e movimento enquanto
ele fluía no skate. Quase podia sentir o ar quente da primavera nos braços nus
e o balanço das ancas enquanto deslocava o seu peso. Sentira-se tão livre. À
medida que o sonho ia passando, lembrou-se de que as coisas eram diferentes
agora. Já não andava de longboard. Usava uma cadeira de rodas. O seu olhar
pousou na cadeira ao lado da cama, à espera dele como a sua acompanhante
eterna. Aquele era quem ele era agora. Em vez de um rapaz com
possibilidades ilimitadas, era uma pessoa com limitações muito específicas.
Mas naquela manhã, talvez pela primeira vez, entendeu de forma clara que
um mundo inteiramente novo se abrira para ele. Nas semanas desde que ele
aterrara em casa de Alice, a ideia de quem ele era e de como se movia no
mundo havia mudado, de forma impercetível de início, mas inegavelmente
agora. Sim, havia coisas que ele já não podia fazer e nunca mais voltaria a
andar. Mas tinha algo precioso que nunca imaginara antes – a sua vida com as
abelhas melíferas. Vivia com centenas de milhares de abelhas. Estava a
aprender a ser apicultor e era bom nisso, melhor que a média. O mais incrível
de tudo é que ele conseguia fazer algo que a maioria dos apicultores não
conseguia. Por alguma razão, fora dotado com a capacidade de distinguir o
tom das adoráveis abelhas-rainhas, as supermães. Foi invadido pela cor e a
textura da sua nova vida. Esticou os braços sobre a cabeça e sorriu.
Cheney bateu com as patas dianteiras na cama e içou-se num alongamento
em câmara lenta. A seguir ergueu as orelhas e abanou a cauda enquanto
olhava para o colchão ao lado do rapaz.
Jake sentou-se, agarrou nas suas orelhas grandes e riu-se.
– Não abuses da tua sorte, meu.
Jake empurrou o cão grande para fora da cama, transferiu-se para a sua
cadeira e rolou até à casa de banho. Usou um novo cateter descartável para
esvaziar a bexiga, puxou o autoclismo e lavou as mãos e o rosto. O sonho
ainda pairava sobre ele – a alegria do movimento e a devastação de perder
Cheney novamente. Repeliu-o. Fora apenas um sonho.
Jake olhou-se no espelho. Tomara duche na noite anterior e o cabelo caía
solto sobre os ombros. A cor preto-azulada estava a desbotar e podia ver o
seu castanho natural a aparecer. Isso recordou-lhe aqueles primeiros dias no
hospital, quando a enfermeira lhe tentara cortar o cabelo e ele tivera um
ataque de fúria. Estava todo dopado, mas suficientemente consciente para
lutar por isso, e a mãe apoiou-o.
A enfermeira suspirou e semicerrou os olhos.
– A sério, senhora Stevenson. Já vai ser difícil cuidar dele. Assim é mais
fácil.
A mãe insistira, educadamente, mas com firmeza, recordou Jake, e
apanhara-o num rabo-de-cavalo. Estava todo emaranhado. Quando
finalmente conseguiu sentar-se, demorou horas a pentear-se e não deixou que
a mãe nem as enfermeiras o ajudassem. Passou um pente pelos nós um
centímetro de cada vez. Passaram-se semanas antes que ele pudesse pintá-lo
novamente e meses antes que conseguisse penteá-lo na vertical num moicano
recorde de quarenta centímetros.
Agarrou numa nova embalagem de Midnight Blue # 47. Olhou para o
relógio e abriu a torneira. Tinha tempo para aplicar a tinta antes do pequeno-
almoço. Colocou uma das mãos sob o jato de água, esperando que aquecesse,
e leu os ingredientes em que nunca reparara antes: amoníaco, acetato de
chumbo, citrato de bismuto, p fenilenodiamina. Jake abriu a embalagem e
inspirou, e o cheiro forte do amoníaco atingiu o fundo da sua garganta.
Sempre adorara o cheiro, que fazia parte do ritual do seu penteado. Mas agora
fazia-o pensar nos dias em que aplicavam inseticida no pomar, aquele gosto
metálico de produtos químicos no ar.
Nos seus estudos, Jake aprendera todos os tipos de coisas sobre as abelhas.
Encontrara muitas tradições interessantes e arcaicas nas suas leituras – por
exemplo, se o apicultor casasse, teria de apresentar a noiva às colmeias. E se
um apicultor morresse, os amigos tinham de contar às abelhas. Uma coisa
que realmente o impressionou foi a ideia de cuidar das abelhas «sem vícios».
Lera que elas não gostavam do cheiro da cebola ou do alho. Os apicultores
eram incentivados a não serem «rudes ou a estarem bêbedos». Ele escrevera:
«Cuida das colmeias com limpeza e sobriedade.» Reparara que Alice lavava
sempre as mãos antes de calçar as luvas e colocar o véu e desconfiava que ela
também lavava os dentes.
Ela não lhe dera uma resposta direta quando ele perguntara.
«Toda a gente tem os seus próprios rituais, rapaz. Tu terás os teus.»
Olhou de novo para os ingredientes na parte de trás da embalagem. O que
quer que fosse a p fenilenodiamina, provavelmente não era saudável. Jake
fechou a tampa da embalagem e deitou-a no lixo.
De um momento para o outro, tinha acabado com o seu cabelo, com o seu
moicano recorde, a sua bandeira de excêntrico, a sua marca. Jacob Stevenson,
que tivera o moicano mais alto da história da Escola Secundária de Hood
River Valley, seguira em frente. No mínimo, parecia um disparate passar
horas a pentear o cabelo agora que tinha tantas outras coisas para fazer.
Olhou para o seu reflexo e pegou na tesoura.
Uma hora depois, Harry entrou em casa para o pequeno-almoço e
encontrou Jake a virar panquecas e a sorrir sob a sua careca reluzente.
– Uau! Uau! Cortaste… como é que tu… porque é que... quer dizer, não,
está ótimo...
Jake sorriu e passou a mão pelo crânio.
– Eu sei. Agora pareço um doente com cancro. Mas estava na hora. Queres
tocar-lhe?
Harry passou a palma da mão sobre o crânio de Jake, estremeceu e baixou
o braço.
– Altamente, meu – disse ele.
Sentaram-se para comer e Cheney andou às voltas debaixo da mesa como
um pequeno cavalo até que Jake o deixou sair pela porta de correr.
– Vai lá, Cheney! Esquilo!
O cão grande desatou a correr num arco amplo que era o seu ritual matinal.
Quando Jake voltou para a mesa, Harry estava a devorar o pequeno-almoço
como se tivesse medo de que alguém lhe tirasse o prato.
– Calma, meu! Há muito mais – disse ele, rindo, e Harry corou.
Gostava bastante de Harry. Embora fosse seis anos mais novo, Jake sentia-
se protetor em relação a ele. No dia em que Harry fora contratado, quando
estavam a limpar as colmeias de Alice, sentira a inveja abandoná-lo. Harry
simplesmente não conseguia dizer nada bem. Fizera aquela pergunta estúpida
sobre o filho de Alice e depois ficara em silêncio quando ela saíra do celeiro.
Uma abelha morta caiu e roçou-lhe as costas da mão. Ele gritou e largou o
quadro com estrépito.
Jake riu-se.
– Meu, tens de te descontrair – disse ele, estendendo as mãos com as
palmas para baixo. – A sério.
Harry praguejou baixinho e pegou no quadro. Raspou as abelhas para o
recipiente de plástico como Alice pedira. Algumas caíram no chão. Harry
pegou-lhes com as mãos enluvadas, fazendo uma careta.
Jake empurrou o recipiente para mais perto da bancada.
– Que idade tens, Harry? – perguntou.
– Vinte e quatro – murmurou Harry.
– Bem, a Alice tem quarenta e quatro, portanto, tecnicamente, tem idade
suficiente para ser tua mãe. Mas não mãe daquele tipo – disse ele, apontando
para a fotografia de Bud e Alice.
– Agora vejo isso – respondeu Harry com um suspiro, raspando a moldura.
Jake recostou-se na cadeira e viu Harry trabalhar. Ele era um rapaz
estranho. Mas trouxera Cheney de volta, não trouxera? Jake olhou para o cão,
esparramado no chão e a roncar junto à porta, e sentiu uma enorme alegria.
Jake decidiu que iria ajudá-lo.
– Dá-me esses quadros. Eu limpo as abelhas e tu podes tratar da cera –
disse Jake.
Enquanto trabalhavam, Jake contou a Harry o que sabia sobre Alice, o seu
trabalho e a sua família. Que ela queria aumentar o apiário. Harry ouviu,
alerta, mas em silêncio. Os seus olhos arregalaram-se quando Jake descreveu
como se tinham conhecido, a pickup quase a chocar com a cadeira. Jake
aligeirou a discussão dela com Ed Stevenson, dizendo apenas que Alice se
oferecera para deixá-lo ficar na quinta algum tempo. Ele não sabia quanto
tempo.
– Ela é fixe, Harry. Vai dar-te uma oportunidade se trabalhares com afinco.
Tens é de deixar de dizer merdas estúpidas e tentar descontrair-te, okay?
Harry assentiu. Os dois trabalharam lado a lado na primeira alça. Harry foi
buscar a segunda à porta, onde Alice as deixara no carrinho.
– Aquele longboard no alpendre é teu? – perguntou Harry.
Jake ficou admirado. Não julgara que Harry fosse um skater. Assentiu.
– Não tenho andado muito ultimamente.
Harry fez uma pausa, como se estivesse a tentar decidir se aquilo era uma
piada. Então disse:
– No secundário eu tinha um longboard pintail.
– A sério?
– Sim. Antiquado, eu sei. Viste Os Reis de Dogtown?
– Podes crer! – exclamou Jake e citou a frase da famosa cena de skate na
piscina. – «Não consigo sentir os pés! Mas também nunca consigo sentir os
pés.»
Os dois riram, mas então Harry olhou para a cadeira de Jake e parou de rir.
Harry tirou outro quadro da caixa e escovou os corpos das abelhas, com
menos cautela agora, para o recipiente.
– Estive outro dia à beira do rio e vi um tipo a praticar longboarding no
estacionamento com um kite. Como kitesurf, sabes. Mas com uma tábua
muito pequena. Foi espetacular! – exclamou Harry.
Jake não conseguia lembrar-se da última vez que tinha estado à beira do rio
ou na pista de skate adjacente, onde parava dantes. Sentia falta da água e do
céu, de ver Cheney a galopar ao longo do banco de areia, a perseguir gaivotas
e a morder as ondas.
– Esse tipo que conheci disse que me ensinaria a fazer kitesurf de graça –
continuou Harry. – Disse que me emprestava o equipamento e tudo. – A sua
voz elevou-se com entusiasmo e depois esmoreceu. – Mas não sei.
– Posso ir? – perguntou Jake.
– O quê?
– À praia do kitesurf. Posso ir contigo? E, meu, se alguém te oferece aulas
de kitesurf grátis, serias estúpido se recusasses. Estou apenas a dizer.
– Sim, claro. Podes vir comigo. Ele disse para aparecer qualquer dia. Está
sempre lá.
Jake sorriu para si mesmo – o rio, o vento, o banco de areia. Há quanto
tempo fora?
Trabalharam juntos num silêncio amigável até que Jake saiu com Alice
para a reunião de apicultores.
Depois disso, a casa entrou numa espécie de rotina com o passar dos dias.
Foi inquietante no início. Harry era tão desajeitado, cheio de nervos por
poder dizer a coisa errada a Alice. Ficava na oficina, a menos que fosse
convidado a entrar. A preocupação dele era palpável e deixava-a irritada.
Uma noite, Alice foi chamá-los para jantar e Harry largou a vassoura com
estrépito. Ela ficou à porta, a examinar o espaço, que Harry reorganizara. Ele
começou a desculpar-se por ter deslocado as coisas e Alice suspirou e cruzou
os braços.
– Harry, obviamente precisamos de estabelecer algumas regras básicas.
Explicou-lhe tudo de forma clara. A oficina era o espaço dele, e ele poderia
reorganizá-la como quisesse, e estava muito bem arrumada, a propósito. Era
bem-vindo em casa quando não estivesse a trabalhar. Ela gostaria que ele
passasse a pôr a mesa. Podia usar o computador. Podia usar a máquina de
lavar roupa e a de secar. Mas tinha de parar de se desculpar sempre que abria
a boca. Se não parasse de fazer isso, ela teria de lhe pedir que se fosse
embora. Jake sabia que aquela última parte era brincadeira, mas Harry não.
– Certo, senhora... quero dizer, Alice. Desculpe, não... – gaguejou ele e
tapou a boca com a mão.
A gargalhada de Alice ecoou nas vigas.
– Não te preocupes, Harry. Desculpo-te essa. Agora vem jantar.
À mesa do pequeno-almoço com Harry, Jake pegou no diário da colmeia e
explicou-lhe como as colmeias mais novas estavam a desenvolver-se. Harry
passara vários dias apenas a fazer trabalho de manutenção na quinta para
Alice. Ela queria agora que ele construísse alças com entradas superiores para
metade das colmeias mais novas, para que ela pudesse seguir o progresso
delas e compará-las com as outras colmeias com entradas tradicionais pela
parte inferior.
Harry acenou com a cabeça.
– Hoje vou construir as primeiras – disse ele. – Para as colmeias de treze a
dezoito.
No celeiro, Harry acendeu as luzes. Jake rolou até à bancada de trabalho e
colocou um alça vazia no seu colo, virando-a.
– Então, como é que vais fazer as entradas em cima?
Harry explicou-lhe que construiria as novas alças como as antigas, apenas a
entrada seria em cima. Apontou para o esboço feito por Alice.
– Tenho de abrir entradas superiores nas novas caixas e, em seguida,
desbastar com a fresa as bordas para que os quadros possam encaixar.
– Chamam-se ranhuras – disse Jake, exibindo-se. – As bordas.
– Oh. Ranhuras. Certo, então acho que a Alice vai pôr os quadros nas
novas caixas e usar as mesmas tampas e tudo?
– Não pareces muito seguro – disse Jake.
Harry franziu a testa.
– Acho que foi isso que ela disse, não?
– Estou a brincar, Stokes! Sim, vamos transferir os quadros. Em seguida,
transformaremos as alças. Depois terás de bloquear as entradas antigas e
adicionar-lhes as ranhuras.
– Sim, tenho de me certificar de que os quadros estão bem encaixados... –
disse Harry.
Colocou a alça na bancada e olhou para ela. Então foi lá fora olhar para as
colmeias, depois voltou e olhou para a alça, resmungando para si mesmo.
Jake observou-o.
– Dá-me essa tampa, está bem, Jake?
Ele passou-a a Harry, que continuou a murmurar para si mesmo. Virou a
caixa e colocou a tampa, em seguida, enfiou o dedo por baixo da saliência
para medir o espaço ali. Agarrou numa fita métrica e enfiou-a na abertura.
– Qual é o espaço abelha outra vez? Trinta e cinco milímetros?
Jake abanou a cabeça.
– Entre trinta e trinta e dois.
Harry endireitou-se e sorriu. Apontou para a alça.
– Uma já está e faltam cinco – disse ele, sorrindo.
Jake olhou para ele confuso. Harry mostrou-lhe a fita métrica.
– Há espaço suficiente para a entrada sob a tampa telescópica. E as
ranhuras já estão feitas nessas caixas. Elas são reversíveis. Tudo o que temos
que fazer é virá-las de cabeça para baixo e voilà, a entrada inferior é a
superior!
Jake olhou para a caixa e compreendeu.
– Mais um ponto para Stokes! A trabalhar da maneira mais inteligente, não
mais difícil!
Deu mais cinco a Harry e rolou para trás, olhando para a alça.
– Ainda precisaremos de transferir os quadros – disse Jake, o seu
entusiasmo a aumentar. – Se colocarmos os da colmeia treze neste, podemos
virar essa alça e transferir os quadros da colmeia catorze e assim por diante.
Superfácil.
Aquelas jovens colmeias, ainda apenas com a altura de uma alça,
continuavam acessíveis. Ele podia fazer aquilo sozinho. Sabia que podia.
– Acho que consigo mudá-las todas esta manhã – disse ele, falando mais
para si mesmo do que para Harry. – Só preciso de pôr esta assim, e a outra
assim...
Pegou numa alça vazia e moveu-a pelo ar, tentando esboçar o fluxo de
trabalho da transferência pela parte lateral da sua cadeira. Mas não funcionou.
Não conseguia inclinar-se sobre duas colmeias colocadas lado a lado à sua
direita. E não tinha força muscular para trabalhar numa do seu lado esquerdo.
Jake sentiu então a amargura das suas limitações físicas.
Soltou uma risada curta e infeliz.
– Bem, porra. Não consigo fazer isto.
– Fazer o quê?
– Chegar mais além do que o comprimento das duas alças. Ou sobre o meu
colo. É muito longe e…
Tentou rir daquilo e girou a alça várias vezes nas mãos. Mas era isso, ele
sabia. Chegara ao fim do seu tempo com as colmeias. Aquelas novas
receberiam as suas segundas alças na semana seguinte e seriam demasiado
altas para ele. Não era capaz de fazer aquela última maldita coisa. A
desilusão subiu na sua garganta e sufocou-o.
– Existe o espaço abelha e, em seguida, existe o espaço Jake. Está bem. Eu
só… merda!
Atirou a alça, que fez ricochete no chão da oficina e aterrou perto do cão
que ressonava. Cheney deu um salto e saiu do celeiro com um olhar
magoado.
Harry observava-o, perplexo.
Igual ao meu pai, pensou Jake. Sou um idiota. Empurrou a cadeira para ir
atrás do cão, mas Cheney desaparecera. Ele suspirou e girou para encarar
Harry.
– Desculpa. É apenas... frustrante. Pensei que conseguia, mas teremos de
esperar pela Alice. Ainda assim, ela vai ficar realmente satisfeita por teres
descoberto como revertê-las. Bom trabalho, Harry.
Harry estava a olhar para um ponto acima do ombro de Jake e a resmungar
para si próprio. Esticou os braços de cada lado dele.
– … para conseguires deslizar por baixo dela. Isso é catorze vezes dois, o
que dá apenas vinte e oito. Não é assim tão mau – murmurou. – Estende as
mãos – ordenou.
Jake obedeceu e Harry esticou a fita métrica entre elas e mediu a largura da
alça.
– … vezes dois. Sim, vai funcionar – disse para si mesmo. Endireitou-se e
sorriu para Jake. – Só precisas de uma bancada de trabalho, meu.
Mediu a altura da cadeira de Jake a partir dos apoios para os braços e o
alcance natural de Jake, e, em meia hora, fizera uma mesa portátil capaz de
conter duas alças, lado a lado, sobre o colo de Jake. Jake rolou a cadeira para
debaixo da mesa e riu.
– És um génio do caraças, Stokes!
O rapaz mais velho corou de prazer.
– Não é nada de especial. Apenas madeira e pregos.
– Meu, estás a falar com alguém que chumbou a trabalhos oficinais!
Harry riu-se, incrédulo.
– A sério? Como é que alguém chumba a isso?
Jake inclinou a cabeça careca para trás, olhou para o teto e contou pelos
dedos.
– Vamos ver: faltar à aula. Aparecer com a moca. Chegar atrasado e não
terminar o trabalho. Ah, e colar os livros de uma rapariga à mesa.
Aquela última fora ideia de Noah, mas fora Jake quem a executara. De
alguma forma, parecera hilariante naquele dia. Riu-se, mas Harry não sorria.
– Uau. Isso é estranho, meu. Hum... não parece algo que farias – comentou
Harry.
Jake inclinou a cabeça.
– Que parte?
– Bem, tudo – respondeu Harry. – Quero dizer, pareces tão sólido aqui.
Jake percebeu que era verdade. Não brincava assim na casa de Alice. Não
com as abelhas ou qualquer coisa na quinta.
– Isso foi antes – disse ele em voz baixa.
Harry acenou com a cabeça e olhou para a cadeira.
– Mas terminaste o secundário, certo?
Jake soltou uma risada.
– Bem, tenho um diploma! Não podem tirar-mo.
Abanou a cabeça e olhou para as alças, depois para o apiário. Aquela era a
sua nova vida, lembrou a si mesmo. Ele era assistente da apicultora. Sabia o
que fazer.
– Ouve, Harry. Acho que consigo fazer isto muito rapidamente. Mas vou
precisar de ajuda.
Jake disse-lhe para lavar as mãos e o rosto, lavar os dentes e vestir uma
camisa limpa.
– Confia em mim – pediu.
Quando Harry reapareceu, Jake apontou para o traje completo de apicultor
e Harry vestiu-o sem protestar.
– Enfia as calças nas botas. Toma. – Jake entregou-lhe um par de luvas.
Harry calçou as mãos trémulas. – Senta-te.
Harry sentou-se, respirando de forma superficial.
– Respira, Harry.
O rapaz mais velho inspirou profundamente e soltou o ar.
– Ouve. Se estiveres calmo, elas ficarão calmas. Se te passares e lhe bateres
como da outra vez, elas libertam uma feromona de alarme e vão atrás de ti. E
não podes largar a alça ou colocá-la no chão depressa, entendido?
Harry pestanejou e anuiu.
– Ótimo. Vou dizer-te o que deves fazer a cada etapa. Só tens de me ouvir.
Finge que estás em câmara lenta. Como se estivesses debaixo de água, como
o Tai Chi. Não estou a brincar. Consegues fazer isso?
– Sim. Consigo.
Jake fê-lo respirar lentamente dez vezes e correu o fecho do chapéu sobre a
cabeça de Harry.
Cheney ofegava deitado na relva ensolarada e viu os dois jovens entrarem
no apiário – um vestido como um astronauta e o outro com uma T-shirt cor de
laranja e calças de ganga, a cabeça calva a brilhar ao sol. Jake orientou Harry
através da remoção da primeira alça do seu suporte usando a ferramenta. A
seguir Harry ergueu lentamente a alça para a bancada de trabalho
improvisada sobre o colo de Jake e pousou-a ao lado da alça vazia. Harry
afastou-se para uma distância mais segura e abriu o chapéu. Jake ficou
sentado de olhos fechados, a respirar devagar e a pensar nos passos seguintes.
Quando abriu os olhos, viu Harry a observá-lo. Soltou a tampa da colmeia e
retirou-a cuidadosamente. Duas ou três abelhas saíram e pairaram perto do
rosto de Jake, em seguida, em torno da sua T-shirt. Um aterrou na sua cabeça
recém-rapada e ele sorriu.
– Olá, meninas – murmurou ele. – Chegaram os homens das mudanças. Vai
tudo correr bem.
Soltou e transferiu os quadros para a alça com a entrada agora em cima, e
depois recolocou a tampa. Acenou para Harry.
– Okay, Stokes. Esta já está. Leva-a de volta!
Assistir ao envolvimento silencioso de Jake com as abelhas parecia tê-lo
encorajado e Harry estava mais calmo. As seis alças foram transferidas numa
hora. Viram que as abelhas que tinham ido buscar alimento estavam a
encontrar o seu caminho através das entradas superiores das novas colmeias.
Jake bateu palmas.
– Fixe, hoje já estamos despachados – disse ele.
Olhou para os grandes pinheiros na orla do prado, que agitavam os seus
ramos com o vento oeste.
– Levantou-se o vento! Vamos até à praia dos kites!
20
DANÇA DAS ABELHAS
Quando em voo, as abelhas intercomunicam com uma rapidez tão
surpreendente que os sinais telegráficos dificilmente são mais
instantâneos.
– L. L. LANGSTROTH
Cada membro de uma colónia de abelhas está unido por um elo comum – a
feromona da sua mãe e rainha, um perfume que se espalha pela colmeia como
uma marca de pertença. Essa feromona de limão é uma garantia constante
para cada uma das cinquenta mil abelhas murmurantes de que ela está em
casa. Os humanos não têm tais interconexões óbvias, pelo menos fora das
suas famílias. E Jake, claro, não tinha a sensação de pertencer nem mesmo à
casa da sua família. Em vez disso, o lar era algo de que ele ansiava por
escapar, juntamente com toda a povoação de Hood River.
Durante as suas primeiras semanas no hospital, ele desenhara o mapa de
Hood River diversas vezes na sua mente. O bairro de Heights, onde os
habitantes locais viviam e faziam compras. Os três blocos quadrados de
butiques, bares e restaurantes do centro da cidade, por onde os turistas
passeavam com cafés nas mãos, a bloquear o trânsito enquanto serpenteavam
pelas passadeiras. A zona ribeirinha para onde os moradores e visitantes
convergiam. Esta última era o recreio de Jake – a pista de skate ao lado da
praia dos kites e o banco de areia gigante que se derramava no Columbia. Ali
ele correra com Cheney e sentira o vento soprar na sua pele nua pelo que
pareceram incontáveis horas. Dentro daquelas fronteiras encontrara algumas
coisas boas e outras más, mas esperara escapar de tudo, se não para Seattle,
pelo menos para Portland. Mas, deitado no quarto de hospital, a sua terra
natal surgia no horizonte como um tanque de contenção permanente. No dia
em que a mãe o levara da clínica de reabilitação para casa, as ruas estavam
sujas de lama e uma abóboda cinzenta de céu pressionava o desfiladeiro. Ele
sentira um peso frio instalar-se no estômago quando viraram para o caminho
de acesso.
À medida que os meses passavam, crescia também a sensação esmagadora
de claustrofobia. Ele ouvia os pais e vizinhos saírem para trabalhar de manhã
e depois ouvia a circulação dos camiões a descerem Tucker Road o dia todo.
Os mesmos vizinhos e pais voltavam à mesma hora todas as tardes. Mesmo
quando ele estivera no centro de reabilitação em Portland, tivera a certeza de
que a vida continuava inalterada naquela pequena povoação. Na sua mente,
os autocarros iam e vinham para a primária de May Street. No verão, a faixa
do Elks Club voava sobre Jackson Park a anunciar a festa Summer Family
Daze. A piscina ecoava com as vozes das crianças e os jogos de futebol
juvenil tomavam conta dos campos de jogos aos fins de semana. Houve um
pequeno-almoço com panquecas nos bombeiros, uma fila de carros clássicos
no desfile do Quatro de Julho e os Wild Weiner Days e Dachshund Dash
anuais. Nada mudava ali.
Mas agora, a atravessar a povoação com Harry, algo mudara. Jake teve a
estranha sensação de que estivera noutro lado durante muito tempo. Olhou
para o cenário familiar e sentiu o brilho da sua beleza.
Harry conduzia a velha pickup de Alice, que era mais pequena e mais baixa
do que a sua nova carrinha. Ele amarrara uma correia em redor do volante
para Jake entrar e sair com mais facilidade. Havia espaço de sobra na caixa
aberta para a cadeira e para Cheney, que entrou e se apoiou na janela traseira,
sorrindo para o vento enquanto saíam do vale e rumavam à cidade.
Jake pousou o braço ao longo da janela aberta e inclinou a cabeça para trás.
Quando a pickup desceu para a cidade, a vista abriu-se e Jake sentiu uma
grande alegria. Via a vasta extensão do rio Columbia com as ondas
espumosas açoitadas pelo vento, o sol nos penhascos de basalto a norte e
nuvens de algodão-doce a subir para as nuvens de tempestade a oeste. Fechou
os olhos, respirando o cheiro a fermento da pFriem Family Brewers
misturado com o aroma de grãos torrados do Dog River Coffee. O vento
soprava forte e açoitava o pequeno veículo.
Na zona ribeirinha, Jake esperou que Harry tirasse a sua cadeira enquanto
observava a cena à sua frente. Na pista de skate, um miúdo desceu para o
halfpipe e aterrou do outro lado com estrépito. A longa faixa verde de relva
estava cheia de gente em fatos de neopreno a encher os kites. No banco de
areia, o grande rio verde banhava a costa arenosa. Jake praticamente vivera
ali durante o secundário. Ele e Noah costumavam ir para a pista de skate logo
depois das aulas e, em seguida, descansavam na relva até ao pôr do Sol. No
verão, a luz sobre o cume perdurava até quase às 22h00. Ele passara ali
centenas de horas. Por um momento sentiu uma profunda tristeza por aquela
vida passada. Mas então Harry apareceu com a sua cadeira e ele afastou a
sensação.
Cheney puxou a coleira enquanto eles se deslocavam em direção à relva e
Jake sentiu-se grato pelo caminho acessível a pessoas com deficiência, em
que nunca reparara nos velhos tempos porque não precisara. Enquanto
avançava, sentia as pessoas a olhar para ele e para a cadeira. Se encontravam
os seus olhos, desviavam o olhar como se estivessem envergonhados. Parecia
que todos estavam a olhar. Jake sentiu-se repentinamente nu. Talvez fosse
demasiada exposição – ir à beira-rio pela primeira vez desde o acidente.
Mas então olhou para Harry, que examinava a multidão de praticantes de
kitesurf, e reparou na sua palidez. Também não falara muito durante a
descida. Jake viu gotas de suor a brotar da testa de Harry e ocorreu-lhe que
fora ele quem sugerira que procurassem o amigo do kitesurf de Harry, não o
próprio Harry.
– Sabes, o Yogi pode nem estar aqui. Portanto, podemos voltar, sabes, tipo,
quando quisermos – disse Harry.
A sua voz era aguda de ansiedade e Jake sentiu a sua própria preocupação
diminuir com uma onda de empatia. Pobre Stokes, pensou ele. Inclinou-se
para trás e equilibrou-se nas rodas traseiras, sorrindo para Harry.
– Está-se bem – disse ele. – Vamos aguardar um pouco.
Avançaram por entre os kiters e Jake soltou Cheney, que correu em direção
ao banco de areia. Jake viu o grande cão cair de barriga no canal e depois
olhar em busca do seu rapaz. Sentiu um nó na garganta quando o cão correu
para ele, o borrifou com água do rio e beijos, e se afastou de novo. Correu ao
longo da beira da água, latindo e tentando morder as gaivotas. A tristeza de
Jake diminuiu um pouco com a alegria do cão. Fechou os olhos e cheirou o
rio, sentiu o vento quente na pele nua.
– Merda! – sussurrou Harry.
Os seus olhos estavam fixos num homem grande que subia pela relva num
fato de mergulho a pingar, o cabelo comprido penteado para trás. O homem
sorriu abertamente e deu um soco no ombro de Harry.
– Meu homem! As condições são perfeitas. Vai ser épico!
Olhou para Jake e a potência do seu sorriso aumentou ainda mais.
– Como vais, irmão? – Estendeu o punho carnudo. – Sou o Yogi.
Jake bateu no punho dele.
– Jake.
– Prazer em conhecer-te, irmão. O Harry vai adorar esta merda, não vais,
Harry?
Jake reconheceu o terror silencioso nos olhos do seu novo amigo, mas Yogi
não pareceu notar.
O grandalhão bateu palmas.
– Vai ser altamente! Okay, eis o que vamos fazer hoje. Introdução ao
equipamento e noções básicas de kitesurf. Vamos lá. Tenho tudo preparado.
Yogi afastou-se do passeio em direção a um grupo de rapazes adolescentes
e de uma rapariga sentados em volta de uma pilha de equipamento na relva,
os braços magros cruzados sobre o peito para se protegerem do vento frio.
Jake seguiu Harry depois de confirmar que o chão era navegável. Os jovens
olharam sem palavras para a cadeira de Jake e a sua careca. A seguir olharam
para Yogi.
– Okay! Ouçam, malta! Regra número um: isto não é uma aula de kitesurf.
Eu não sou um instrutor. Estou simplesmente aqui parado a falar sobre
kitesurf e por acaso vocês estão aqui perto. Se algum de vocês disser aos
vossos pais que vos dei uma aula, dou-vos um chuto no cu. Considerem isto
um anúncio de utilidade pública, certo? Tudo bem, Tommy?
Virou-se para o rapaz mais próximo, um ruivo pálido que parecia pesar
menos do que Cheney.
– Hum. Sim. Certo, Yogi. Não é uma aula de kitesurf – disse ele num suave
soprano.
– Ótimo. Certo. Regra número dois: conheçam o vosso equipamento.
Os jovens inclinaram-se enquanto Yogi lhes mostrava o equipamento: fato
de neopreno, capacete, colete de flutuação, arnês, barra, linhas, prancha e o
kite em forma de banana. Explicou como o equipamento funcionava em
conjunto, mostrou os procedimentos de segurança e de emergência e
sublinhou a necessidade de cuidar do próprio equipamento. Isso significava
guardá-lo corretamente quando não estava a uso e não deixá-lo exposto ao
sol. Desenrolou o kite, que era rosa florescente, e os jovens revezaram-se na
bomba, os braços magros a subir e a descer, até ele estar completamente
cheio. Yogi virou-o de modo a ficar de frente para o vento e prendeu-o com a
prancha para mantê-lo no lugar.
– Bom trabalho! – disse ele, batendo palmas. – Bem. Okay. Regra número
três: não sejam uns palhaços na praia!
Falou sobre a janela de vento, a força do kite, descolar e aterrar em
segurança e etiqueta na praia. Explicou-lhes onde ficar quando estivessem
entre os kites no banco de areia e como estar atento às pessoas em volta.
Disse-lhes como era importante olhar para os outros kiters para manter a
segurança. Os jovens bebiam cada palavra.
– Qual é a regra número três?
– Não ser um palhaço na praia!
– Isso mesmo!
A rapariga levantou a mão.
– Autumn?
– O que acontece se o kite bater na água?
– Tens de relançar a maldita coisa – respondeu Yogi. – Não há uma maneira
certa. Depende do vento e da corrente. Uma coisa é certa, porém. A vossa
atitude é tudo. Se querem que aquele bebé voe, têm de acreditar que
conseguem fazer isso acontecer. Faz sentido?
Os jovens assentiram e Yogi sorriu.
– Ótimo! Agora, vocês pintinhos são ainda muito magros para
experimentar isto. Mas aqui o Harry Stokes vai nessa!
Agarrou em Harry pelos ombros e sacudiu-o. Jake viu o rosto de Harry
ficar cinzento.
– Vamos praticar a descolagem e a aterragem no banco de areia. Podem vir
assistir, mas, novamente, qual é a regra número um? Isto não é...
– Uma aula de kite! – gritaram os jovens.
– Tommy, leva o kite. Autumn, leva a barra e as linhas. Os outros sigam-nos
e levem aquele kite. Harry, veste o equipamento – disse ele.
A pequena multidão desatou a correr e Yogi pegou na prancha e seguiu-os.
Harry enfiou-se a custo no fato de neopreno, que era demasiado grande para
ele, sendo do tamanho de Yogi. Pendia nas virilhas e estava muito largo em
volta do pescoço. Colocou o capacete, com o rosto coberto de suor, e
entregou as chaves da pickup a Jake, murmurando:
– Não acho... Devo estar de volta bastante... Se eu...
– Ei, Harry – disse Jake. – Respira, meu.
Harry encontrou os olhos de Jake, engoliu em seco e acenou com a cabeça.
– Anima-te, Stokes! – gritou Yogi da beira da água.
Jake viu o amigo caminhar em direção ao banco de areia, com os ombros
caídos e os olhos fixos nos pés, parecendo que estava a ir para a prisão. Jake
ouvia a voz encorajadora de Yogi acima do som do vento. Ele tinha
entusiasmo suficiente pelos dois, pensou Jake. Atravessaram o canal até ao
banco de areia e depois Jake deixou de conseguir ouvir Yogi.
O sol da primavera aqueceu-lhe a cabeça e ombros enquanto ele olhava
para o rio. O parque não estava tão cheio como no verão. Cerca de duas
dezenas de kites pontilhavam o banco de areia, a aguardar o lançamento, e
um punhado de velas de windsurf brilharam nas ondas brancas. Uma barcaça
entrou no meio do canal e emitiu um aviso enquanto os praticantes de kitesurf
e windsurf saíam do seu caminho.
Jake sentiu uma descontração inesperada. Ninguém estava a olhar para ele,
pelo menos fixamente. Claro, as pessoas reparavam na cadeira, mas e daí?
Não fazia mal. Fechou os olhos e sentiu o sol aquecer-lhe a T-shirt. Ouviu um
zumbido familiar e olhou para o relvado à sua frente. Uma abelha pousou
num aglomerado de dentes-de-leão e avançou por entre as grandes nuvens de
pólen, logo acompanhada por outras. Uma pousou no peito de Jake e andou
um pouco, talvez confundindo a sua T-shirt laranja com uma flor gigante, e
depois voltou para os dentes-de-leão.
– Olá, meninas – murmurou Jake.
Examinou o banco de areia e viu Cheney correr para Harry e Yogi e colocar
as patas no peito de Harry. Então o cão encostou o focinho no chão e voltou
pelo canal e subiu pela relva. Deitou-se aos pés de Jake, ofegante e sorrindo.
Jake acariciou-lhe a cabeça larga.
– Lindo menino, Cheney.
O cão apoiou o queixo nas patas e adormeceu.
Jake ouviu o barulho de um skate e um rapaz pré-adolescente a gritar como
o Tarzan. Mas isso não o deixou triste. Sentia-se quase despreocupado,
sentado no seu lugar favorito com Cheney. Sol, vento, abelhas e um cão a
roncar. Tentou perceber como se sentia e ficou admirado com a resposta.
Sentia-se feliz. Sim, feliz por estar sentado ao sol à beira do rio com o cão
num dia de semana ventoso. Era bom.
Observou as abelhas nos dentes-de-leão e a sua mente voltou ao que
estivera a ler naquela manhã sobre o movimento das abelhas – aquela
estranha dança circular e em oito que as abelhas realizavam para demonstrar
a localização e a qualidade de uma boa reserva de néctar. Quanto melhor a
fonte, mais entusiástica a dança. As outras iriam replicá-la até que a tivessem
aprendido de cor – a que distância, em que ângulo em relação ao sol, em que
direção e que quantidade. Tudo isso era incrível.
O movimento das abelhas fê-lo pensar em «Wiggle Waggle», a música que
o seu sexteto de jazz tocara no primeiro ano. Ele e Noah eram os metais.
Foram perfeitos naquele dia – leves e vigorosos – e ficaram em primeiro
lugar. Mais do que o prémio, ele lembrava-se da sensação – as válvulas sob
os dedos, a pressão do bocal contra os lábios, a regulação da abertura. Outro
dia tirara o trompete da caixa e segurara-o nas mãos. Levara-o à boca, mas a
emoção não lhe permitira tocar, portanto tornara a guardá-lo. Sentiu uma
profunda vontade de tocar naquele momento. Talvez lhe pegasse quando
voltasse para casa de Alice e tocasse um pouco. Talvez pudesse tocar a
escala. Perguntou-se o que pensariam as abelhas se ele tocasse «Wiggle
Waggle» para elas.
Jake bebeu um gole da garrafa de água e examinou o banco de areia. Viu
Harry e os miúdos em volta do grande kite rosa na extremidade norte. Ouviu
uma rapariga rir e olhou para um grupo de adolescentes atrás dele.
Reconheceu alguns da escola. Eram raparigas e só um rapaz. Uma delas era a
irmã mais nova de Megan Shine. Como se chamava ela? Michelle? Era loira
e tinha o mesmo corpo de chefe de claque que a irmã. O rapaz segurava um
Husky pela trela. Michelle inclinou-se para acariciar o cão, que olhava na
direção de Jake. Cheney levantou-se de um pulo, rosnando, e correu para ele.
– Ah, merda! – murmurou Jake. Soltou o travão da cadeira e seguiu-o. –
Cheney! – gritou ele. – Anda cá, rapaz!
Os dois cães ficaram frente a frente, fazendo uma dança de pernas rígidas
com as caudas erguidas. Cheney fez uma vénia profunda e então correu em
direção à água. O Husky arrancou a trela da mão do rapaz e foi atrás de
Cheney. O rapaz correu atrás dele, chamando:
– Yuki, anda cá! Yuki! Cão mau!
Jake suspirou e viu-os partir. Colocou a trela de Cheney nos ombros.
– Eles vão voltar – disse para ninguém em particular.
Sentia as raparigas a olharem para ele por detrás dos óculos de sol e disse a
si mesmo que não importava.
– O Landon é hilariante – disse Michelle, rindo. – Quero dizer, a Yuki foge
a cada cinco minutos.
Jake voltou para o seu lugar na relva.
– Ei! Hum, andaste aqui na secundária? – perguntou uma voz. Uma
rapariga de cabelo preto curto afastou-se do grupo. Deu um passo em direção
a Jake e empurrou os óculos escuros para o cimo da cabeça. Usava uma T-
shirt preta, calções de ganga e Chuck Taylors vermelhos. A sua pele era
pálida e sob o seu cabelo escuro havia um par de olhos verdes intensos.
– Sim. Turma de dois mil e treze – respondeu Jake.
A rapariga aproximou-se e enfiou as mãos nos bolsos de trás. Curvou-se e
cruzou um tornozelo sobre o outro. Não parecia uma chefe de claque. Nem
um pouco e Jake não conseguia tirar os olhos dela: os seus braços e pernas
esguios de Bugs Bunny, o seu cabelo desgrenhado e aqueles olhos verdes.
– Acho que estava sentada à tua frente nos ensaios da banda – disse ela. –
Tocava clarinete. Lembro-me de ti e do teu amigo, o grandalhão com o
cabelo encaracolado?
– Katz. Noah Katz – disse Jake. – Sim, a turma do Schaffer.
– Vocês eram terríveis, hem? Eu estava lá naquele dia em que deitaste leite
na tuba do Matt Swenson – disse ela.
O sorriso de Jake desapareceu. Aquilo parecera divertido na altura. Ele
desviou o olhar.
– Sim, bem. Estávamos a ser uns idiotas. Que merda estúpida.
Ela corou.
– Desculpa! Não queria...
– Não te preocupes com isso – disse Jake, sorrindo. – Eu sou o idiota. Não
tu.
Ela sorriu, o rosto ainda corado e os seus olhos verdes pareceram
ensombrar-se. Ele lembrava-se vagamente dela da aula de música. Fora
caloira. Clarinete. Sim, isso mesmo. Usava o cabelo mais comprido.
Uma mancha castanha surgiu entre eles e Cheney sacudiu-se da cabeça ao
rabo, projetando areia. A rapariga gritou.
– Malvado! – gritou Jake, levantando as mãos. – Desculpa.
A rapariga riu-se e limpou o rosto com o braço.
– Não há problema. Eu já estava cheia de areia. Ele é fofo. Como se
chama?
Ajoelhou-se ao lado do cão grande, que rolou e lhe ofereceu a barriga
arenosa.
– Cheney. É um amante, não um lutador – disse Jake.
O rapaz chamado Landon voltou a subir o relvado com o Husky a puxar a
sua trela. Cheney deu um salto, ganindo, e Jake agarrou-o pela coleira.
– Meu! Sabes que é obrigatório os cães andarem de trela aqui, certo? –
perguntou o rapaz, olhando para Jake.
– Caramba, Landon – murmurou uma das raparigas.
– Cheney, senta-te – ordenou Jake e Cheney obedeceu. Indicou com a
cabeça o Husky. – Belo cão – disse. – Parece que eles querem ser amigos.
– Isto é um Husky do Alasca com pedigree – retorquiu o rapaz com ar de
desdém. – Vai criar cães de trenó campeões. Não engravidar de um maldito
rafeiro de praia.
– Ei, meu – disse Jake e ergueu as mãos. – Porque não te acalmas um
pouco?
Ouviu-se um silvo alto quando alguém esvaziou um kite. Yuki levantou-se
com o som e correu em direção à água, puxando pela trela. As raparigas
riram-se enquanto Landon perseguia a sua cadela. Jake soltou a coleira de
Cheney e deixou-o juntar-se à perseguição.
– Ups – fez ele e a rapariga de olhos verdes riu-se.
– Ei, Amri! – chamou uma das outras. – Vamos embora. Queres boleia ou
não?
– Sim! Esperem por mim! – Ela voltou-se para ele. – Bem. Hum. Prazer em
ver-te de novo. Chamas-te Jake, certo?
Ele assentiu.
– Boa memória. Amri?
– Diminutivo de Amrita. – Ela revirou os olhos e passou a mão pelo cabelo
curto. – Os meus pais são velhos hippies.
Jake recostou-se na cadeira e sorriu-lhe.
– Acho que é um bom nome.
Ela corou novamente.
– Amri! Vamos! – chamou a amiga.
– Bom, vemo-nos por aí – disse ela.
– Isso – respondeu Jake.
Ela correu para alcançar as amigas, acenou-lhe por cima do ombro e foi-se
embora. Jake voltou-se para a água. Viu as abelhas nos dentes-de-leão. Viu
Cheney correr no relvado. Viu o kite rosa de Yogi no ar acima da água.
Pensou nos olhos verdes de Amri, que escureciam quando ela sorria.
21
SUBSTITUIÇÃO DA RAINHA
Se não conseguem encontrar [a rainha], elas voltam para casa
desoladas e, com os seus tons tristes, revelam um profundo sentimento
de calamidade. A sua nota em tais ocasiões, mais especialmente
quando primeiro percebem a sua perda, é de um caráter peculiarmente
triste; soa um pouco como uma sucessão de gemidos graves.
– L. L. LANGSTROTH
Alice olhou para Nancy como se ela estivesse a falar uma língua estrangeira.
Atrás dos óculos de armação roxa, os grandes olhos castanhos da amiga
pestanejaram sob a sombra azul e o rímel espesso. Nancy usava a mesma
maquilhagem desde o secundário?, interrogou-se Alice.
Prestara pouca atenção à tagarelice de Nancy do outro lado da mesa na sala
de reuniões enquanto enchiam os envelopes com o mailing sobre ervas
daninhas.
– Estamos mesmo a usar a nossa educação – brincou Alice, irritada por lhe
ter calhado aquele trabalho.
O estagiário estava a resolver um problema qualquer nos servidores e Debi
Jeffreys, a chefe do gabinete, alegou que não tinha espaço na sua pequena
secretária para tratar do mailing. No ano anterior, pedira uma indemnização
porque dissera que os arquivos não estavam ergonomicamente corretos e lhe
causavam dores no pescoço. Desde então, a regra tácita era tudo o que Debi
queria, Debi conseguia.
Rich Carlson, que estava encarregado de todo o dinheiro do subsídio anual
do estado, disse que o mailing tinha de ser enviado até à meia-noite para
poderem receber o financiamento. Alice não ficou admirada por Rich
controlar o mailing sem realmente ajudar e aborrecida por ele ter esperado até
ao último minuto.
– Trabalho em equipa! É isso que mantém este lugar a funcionar – dissera
Rich, largando uma grande caixa sobre a mesa com um baque.
Alice olhou carrancuda para as costas dele. A lembrança da conversa que
haviam tido sobre o seu plano de reforma ainda estava fresca.
– Bem, acho que o velho Rich não está na equipa – disse ela, sorrindo
maliciosamente para Nancy e pegando numa pilha de folhetos.
– Ora, Alice, estou certa de que o senhor Carlson tem coisas importantes
para fazer hoje.
Alice resfolegou, mas Nancy não sorriu.
– Certo! – disse Alice. – Com certeza está agora no seu escritório a fazer
uma folha de cálculo codificada por cores das suas folhas de cálculo.
Dizia-se que Rich ocupava o seu tempo sem realmente fazer nada. Andava
pelo escritório a verificar todos os outros, mas não desempenhando nenhuma
função específica. Todos sabiam que ele recebia um salário de nível um com
um aumento anual de cinco por cento e um prémio anual. Alice não era
aumentada há quatro anos.
– Desculpe, Alice – dissera Bill na avaliação anual em março, abanando a
cabeça grande e franzindo a testa. – A recessão, sabe. O nosso orçamento está
congelado. Eu aumentava-a se pudesse. É inestimável para nós.
– ... não sabes a que pressão os gerentes podem estar sujeitos, Alice – dizia
Nancy. – Fazem muito trabalho que não vemos… trabalho importante.
Alice ficou a olhar para ela. Estaria a falar a sério?
– Ei, Nance. Olá? Estás aí? – Alice bateu na mesa. – Invasão dos
violadores?
Nancy fechou os lábios numa linha afetada e enfiou um folheto num
envelope, humedeceu-o com uma esponja e alisou-o para o fechar.
– Só acho que devias mostrar um pouco de respeito – disse ela
categoricamente.
Alice recostou-se na cadeira e soltou uma risada curta.
– Bem, saíste-me uma graxista – comentou.
Rich entrou pela porta com outra caixa.
– Obrigado, minhas senhoras! – cantarolou. – Ah, e façam uma pausa às
dez e meia. Precisamos da sala para a reunião.
– Que reunião? – perguntou Alice.
– A trimestral com toda a gente. Não leu o e-mail, Alice? – repreendeu ele
com voz de professor, apontando um dedo para ela. Sorriu para Nancy. –
Tenho a certeza de que a Nancy sabe da reunião.
Alice observou o rosto da amiga franzir-se num sorriso de menina quando
Rich saiu da sala.
– Uau. És uma graxista de primeira classe, Nance.
Nancy corou.
– Julgas que sabes tudo – silvou ela. Levantou-se da cadeira e saiu.
Alice recostou-se e olhou para uma mancha castanha no teto. Tinha a forma
da Florida e já ali estava no dia em que ela fora entrevistada para aquele
trabalho, quase vinte anos antes. Sentira-se tão animada na altura por ser
contratada. Mas agora estava apenas exausta. Pegou noutro folheto, daquela
vez lendo-o enquanto o dobrava.
«Programa anual de ervas daninhas nocivas do município de Hood River!»
declarava e expunha os perigos do problema das ervas daninhas: sufocavam
pantanais, estrangulavam plantas nativas, prejudicavam a vida selvagem. O
desenho de uma codorniz com ar desesperado fora feito por um estagiário de
verão há cerca de seis anos. Ainda usavam a mesma cópia.
No final da página, Alice viu uma nova linha: «SupraGro é um
patrocinador orgulhoso do Programa de Ervas Daninhas Nocivas do
Município de Hood River.» A sua respiração ficou presa. Tirou uma
fotografia àquilo e mandou-a numa mensagem de texto a Stan. «Leia o fim»,
escreveu.
Os testes feitos às colmeias mortas de Alice tinham mostrado uma clara
saturação de produtos químicos iguais aos da SupraGro. Mas o programa de
ervas daninhas aumentava consideravelmente a parada. Aquilo ia além de
pulverizar os pomares, o que já era suficientemente mau. Era um projeto que
abrangia todo o município com centenas de quilómetros quadrados e
começaria no início do verão. Isso significava que os pesticidas da SupraGro
seriam pulverizados em todas as estradas, parques, escolas, terrenos baldios e
bueiros em todo o município. Podia matar as ervas daninhas, mas também
envenenaria o trevo, os dentes-de-leão, os ásteres e os girassóis. O
escoamento seria então drenado das valas para os riachos e rios até
contaminar toda a bacia hidrográfica do desfiladeiro do rio Columbia.
As pessoas começaram a entrar na sala para a reunião.
O telefone de Alice vibrou. Stan tinha respondido: «Bestial! Vamos
processá-los com a PDX Riverkeeper. Mantenho-a informada. Obrigado!»
Aquilo era alguma coisa. O aperto no seu peito diminuiu e ela sentiu uma
nesga de esperança.
Bill entrou pesadamente na sala, puxando as calças para cima e o pólo para
baixo antes de se sentar numa cadeira. Nancy entrou e sentou-se perto da
frente. Bill pigarreou.
– Obrigado a todos por arranjarem espaço nas vossas agendas hoje. Isto vai
ser rápido. Apenas um ou dois assuntos no trimestre.
Colocou os óculos de leitura.
– O primeiro é apenas um lembrete de que o novo seguro de saúde entra em
vigor a partir do dia um de junho, portanto, esperem ver isso no vosso e-mail
em breve. Não vos custa mais, mas inclui complementos como cessação
tabágica, aconselhamento nutricional e saúde cardíaca.
Bill declamou um endereço de e-mail e o número de telefone do
atendimento ao cliente, caso alguém tivesse dúvidas. Então afastou o papel e
recostou-se. A sua cadeira rangeu e ele riu-se enquanto os olhava por baixo
das sobrancelhas grossas.
– Este segundo anúncio não vai surpreender muitos de vocês – disse ele. –
Como sabem, estou no município há quase trinta e cinco anos. Vi-o crescer e
tive muito orgulho em liderar a minha equipa na construção do futuro de
Hood River. Passámos de uma pequena povoação com pomares de que
ninguém ouvira falar para um destino de turismo internacional e empresas de
tecnologia! Estou orgulhoso disso. Estou orgulhoso de vocês.
Gesticulou com as suas mãos gordas e depois fechou-as em punhos sobre a
mesa. Houve aplausos dispersos.
– Obrigado – disse ele. – Mas realmente o trabalho foi todo vosso. Eu só
pilotei o navio. – Fez uma pausa. – No entanto, tudo o que é bom acaba.
O coração de Alice começou a bater mais depressa. Seria agora? Não
conseguia acreditar que estava por fim a acontecer. Porque não a avisara ele?
Teria deixado escapar algum e-mail?
– A minha mulher quer que eu me reforme, e chegou a hora. Vou deixar
oficialmente o município no final deste mês, no fim do nosso ano fiscal.
Alice endireitou-se e agora todos estavam a aplaudir.
– Obrigado! Obrigado a todos – disse Bill. – A sério. São muito amáveis.
Agora, qualquer transição leva algum tempo. E quero que saibam que vou
deixá-los em boas mãos.
Olhou para Alice e depois desviou o olhar.
Ela corou. A sua respiração acelerou. Demorara muito tempo, isso era
certo. Tivera anos para pensar como geriria o gabinete depois de estar no
comando. Por enquanto, manteria as coisas simples. Sorriria e diria obrigada.
– ... uma liderança que vos orientará durante os próximos anos e manterá o
município de Hood River na direção certa – disse Bill.
Debi Jeffreys deu uma cotovelada a Alice e outras pessoas começaram a
murmurar.
– Vou trabalhar muito para ajudar a prepará-la para ocupar o cargo. Mas sei
que ela não terá problemas em substituir-me. É com grande prazer que
apresento a vossa nova diretora interina: Nancy Gates!
Bill bateu palmas e sorriu para Nancy. Houve uma pausa, e então outras
pessoas juntaram-se a ele, olhando para Alice e depois para Nancy. Nancy
soltou uma risada e esboçou um pequeno aceno. Alice tentou recuperar o
fôlego. Os seus ouvidos zumbiam.
– Inacreditável – murmurou Debi. – Alice, sinto muito.
Bill estava a terminar.
– ... quero que saibam que estarei aqui para responder a quaisquer
perguntas durante este mês de transição. A minha porta está sempre aberta!
Afastou-se da mesa e levantou-se. Houve mais aplausos. Alice viu Nancy,
na sua mente, a sair do escritório de Bill. Também viu o que se recusara a
admitir: a mão de Bill no traseiro de Nancy. No dia da reunião da SupraGro,
quando os dois desapareceram, não foi a primeira vez que Alice não
conseguiu encontrar ambos.
Esperou que todos saíssem. Jim Murphy encolheu os ombros e abanou a
cabeça para ela ao passar. Outros olharam para ela como se quisessem dizer
alguma coisa, mas não o fizeram. Quando a sala ficou vazia, ela levantou-se e
voltou para a sua secretária.
Nancy estava sentada muito direita e com os olhos no monitor.
– O senhor Carlson quer falar contigo, Alice – disse ela, sem erguer os
olhos.
Alice ignorou-a e bateu à porta de Bill.
– O senhor Chenowith foi almoçar mais cedo – informou Nancy, a sua boca
numa linha afetada. – Podes deixar recado comigo, se quiseres.
Alice encarou-a e a bravata de Nancy derreteu sob o seu olhar. O mais
surpreendente não era a traição de Nancy, percebeu Alice, mas o facto de ela
não a ter antecipado. Nancy copiara os seus testes de espanhol no secundário.
Deixara Alice assumir a carga de trabalho enquanto Bill fazia cada vez
menos. Chegava tarde, saía mais cedo e passava horas a circular pelo
escritório com uma caneca de café, a sua risada em todos os cantos, a
recolher mexericos. Sabia qualquer coisa sobre todos. Nancy recolhera
podres como um tesouro e guardara-os para mais tarde. Alice abanou a
cabeça, todas as peças a encaixarem-se.
– És perfeita para o trabalho, Nance – disse ela.
Nancy esboçou um sorriso fraco.
– Obrigada, Alice. Quer dizer, tenho a certeza de que estás desapontada…
– Não, és perfeita. És uma graxista e não fazes a ponta de um corno.
Agarrou na mala e dirigiu-se para a porta da rua. Ao passar pela receção,
Debi lançou-lhe um olhar de advertência:
– O Carlson anda à tua procura.
Alice continuou em direção à saída. Uma ova é que ia falar com Rich
Carlson naquele momento.
Como se convocado, ele apareceu à porta do seu gabinete e sorriu para ela,
o dente amarelo a sair do lábio superior fino.
– Exatamente a pessoa que eu procurava! Por favor, entre.
Alice suspirou, entrou e estremeceu quando ele fechou a porta atrás dela.
– Sente-se! Por favor!
Ele ajeitou o casaco e puxou a cadeira para a frente, apoiando os cotovelos
na secretária.
– Muito bem, Alice. Tenho a certeza de que ficou um tanto admirada com o
anúncio do Bill hoje. Talvez um pouco desapontada, hem? – Ele fez uma
carranca, como se Alice fosse uma criança que acabara de deixar cair o
gelado. – Bem, não vale a pena insistir nisso. A sua vez chegará quando for a
hora certa. O Bill fez a sua escolha, e tenho certeza de que a Nancy fará um
excelente trabalho, especialmente consigo a bordo para apoiá-la como apoiou
o Bill.
Alice não disse nada. Observou Rich como se de muito longe.
Rich abriu uma pasta.
– Não é segredo que o Bill falou da sua candidatura em tempos.
Alice ficou em silêncio.
– E apreciamos o seu trabalho. Por isso, gostaríamos de a promover! Tenho
aqui um novo contrato que entrará em vigor no início do próximo mês. A
Alice será a diretora sénior da equipa do gabinete de planeamento e isso virá
com um aumento de quinze por cento! Não é despiciendo, pois não?
Empurrou o papel sobre a mesa para ela, mas Alice não o olhou.
– Diretora sénior – repetiu ela. – Quem estaria eu a dirigir? Quem vai
substituir a Nancy?
Rich fez uma careta numa tentativa de sorrir. Esfregou as mãos magras. O
som da sua pele seca fez Alice estremecer.
– Bem, não vamos preencher já a posição. Como parte da reorganização,
isso dá-nos o dinheiro extra para o seu aumento.
– Estou a ver. Então quer que eu faça o meu trabalho e o da Nancy por mais
quinze por cento? É isso?
Rich pareceu irritado e recostou-se.
– Isso é olhar para o copo meio vazio, Alice. Pense na oportunidade de
liderança que terá aqui.
Alice riu-se.
– O quê, liderar-me a mim própria? Já faço isso, Richard.
Rich não gostava de ser ridicularizado. Também não gostava que o
tratassem por Richard e Alice sabia. Uma vez dissera-lhe que só a mãe lhe
chamava isso. Inclinou-se para a frente novamente e virou os seus olhos
redondos para os dela.
– Olhe, Alice. Francamente, você não tem jogado em equipa nos últimos
tempos – disse ele. Abriu outro dossiê e espalhou o seu conteúdo pela mesa.
Alice viu o artigo de jornal e a fotografia com Stan. Viu e-mails de Nancy.
Um olhar superficial mostrou-lhe que andara a documentar os comentários e
piadas de Alice sobre o diretor e os outros membros da administração.
Rich recostou-se na cadeira, sorrindo presunçosamente e unindo os dedos
em pirâmide.
– Tenho a certeza de que vê como isto parece do nosso ponto de vista –
murmurou ele. – É realmente do seu interesse portar-se bem, Alice. Vai ter de
trabalhar com a Nancy, goste ou não, e com o Bill também.
– O que quer dizer? – perguntou ela. – O Bill vai-se reformar.
Rich abanou a cabeça, unindo os lábios.
– O Bill vai-se reformar do município – disse ele. – Trabalhará connosco
como consultor externo. Pela SupraGro.
Alice olhou para a linha do cabelo a recuar de Rich e as zonas nuas do seu
couro cabeludo. A caspa cobria o poliéster escuro dos seus ombros. Olhou
para trás dele e pela janela em direção à água. Lembrava-se daquele dia no
quarto ano, quando dissera que queria ser agricultora e a turma se rira. A
senhora Tooksbury casara e mudara-se para Portland quando Alice estava no
sexto ano. Ela gostaria de dizer à professora que não era verdade – que uma
pessoa não podia ser o que queria. A vida era muito mais complicada do que
isso. Mas sabia agora, com a mesma certeza, que uma pessoa também não
podia ser o que as outras pessoas queriam que ela fosse.
Empurrou o contrato na direção de Rich.
– Não, obrigada – disse ela e levantou-se, pondo a mala ao ombro.
Ele pareceu irritado.
– Vamos, Alice. Isto é uma ótima oferta. Ambos sabemos que não vai
conseguir mais do que isto.
– Pois não – concordou Alice. – Tem razão.
– Bem, vamos despachar isto? – Estendeu-lhe uma caneta.
– Sim, vamos – respondeu ela. – Demito-me.
Pela primeira vez, Rich Carlson ficou sem palavras. Alice deixou a porta
aberta e saiu do edifício do município de Hood River para o sol de maio.
Alice Holtzman nunca desistira de nada na sua vida. Era de confiança,
estável e leal. Alice Capaz. Mas agora ia-se embora, sem mais nem menos.
Sentiu uma onda de alegria ao descer Oak Street. Passou pela loja John Deere
onde conhecera Buddy. Passou pelo banco, onde o pai a levara para abrir uma
conta quando arranjara o seu primeiro emprego. Lá estava a biblioteca e, do
outro lado da rua, a Livraria Waucoma. Hood River era a sua casa há
quarenta e quatro anos. Devia algo àquele sítio.
Devia ter um ar tão ansioso quando entrou nos escritórios da Watershed
Alliance que a rececionista presumiu que ela estava lá para a reunião e a
conduziu para a sala.
Stan encontrava-se diante de um quadro branco, a gesticular com um
marcador.
– ... apresentar uma moção de censura no final da tarde – dizia ele a um
grupo de cerca de dez pessoas. Parou ao ver Alice e sorriu. – Dão-me licença
um minuto? – perguntou ao grupo e atravessou a sala até ela. – Olá! – O seu
sorriso esmaeceu quando a alcançou e a sua testa franziu-se. – Está tudo
bem?
– Sim, lembrei-me de passar por aqui para ver se há alguma coisa que eu
possa fazer para ajudar.
O rosto de Stan descontraiu-se.
– Essa última parte é fundamental. Temos aqui a Portland Riverkeeper, a
associação de produtores biológicos e o pessoal do programa de educação ao
ar livre.
Virou-se para o grupo.
– Pessoal, esta é a Alice Holtzman, do gabinete de planeamento do
município. Creio que a maioria a conhece?
Alice acenou com a cabeça aos homens e mulheres em volta da mesa.
– Não quero interromper – disse ela. – Mas avise-me se houver mais
alguma coisa que eu possa fazer – acrescentou para Stan. Foi em direção à
porta.
– Por acaso, estávamos a olhar para um mapa do vale – disse Stan. – A
Alice conhece a maioria dos pomares, não é?
Ela anuiu e aproximou-se do mapa.
– Estamos a tentar descobrir onde eles vão começar a pulverizar. Sabemos
que o município cria um calendário e que depende do vento. Tem alguma
ideia de como decidem? – perguntou Stan.
Alice assentiu. As licenças vinham através do seu departamento, disse ela.
– Os pomares menores farão a sua própria pulverização e podem começar a
qualquer momento depois de quinze de abril – disse ela, pensando em Doug
Ransom. – Mas os grandes pomares precisam de pedir uma licença ao
município e anotar o dia da sua preferência. Elaboramos um calendário
dependente da previsão do vento.
Os presentes acenaram com a cabeça, murmurando.
– Por quem começam geralmente? – perguntou Stan.
– Isso muda de ano para ano – respondeu Alice e pousou a mala. – Porque
não damos uma olhadela? – sugeriu, tirando o portátil da mala.
Ligou-se à rede e clicou no calendário de pulverização. Ali estava,
perfeitamente codificado por cores e organizado por área. Como era uma das
poucas tarefas de Nancy, Alice teve um prazer extra em agarrar no ficheiro e
enviá-lo para si mesma por e-mail, com cópia para Stan.
– Está tudo ali – disse ela, desligando-se da rede. – Datas, horários e
moradas.
Stan abriu o ficheiro no seu computador e as pessoas sentadas perto dele
inclinaram-se para ver.
– Vão começar de amanhã a duas semanas – disse ele. – Pelo pomar do
Randy Osaka em Odell. Esse é um dos maiores.
Ele ergueu os olhos, com ar de triunfo.
– Podemos estar prontos nessa altura, não podemos?
O grupo assentiu, murmurando em concordância.
– Vamos organizar-nos – disse ele. – Começando com a lista de tarefas
principais: jurídicas, alcance comunitário e comunicação social.
Alice levantou-se e pôs a mala do computador ao ombro.
– Vou deixar-vos tratar disso – disse ela e preparou-se para sair.
– Vai voltar ao trabalho? – perguntou Stan, acompanhando-a até à porta.
– Não. Na verdade, acabei de pedir a demissão! – exclamou ela com uma
risada.
– Uau! Parece que há aí uma história – observou Stan, inclinando a cabeça.
– Está feliz com isso?
– Nunca estive mais feliz – respondeu Alice.
– Bem, então não se vá já embora. Precisamos da sua ajuda.
Ela teve todo o gosto em ficar. Fez uma lista dos donos de pomares que
conhecia, ordenada por aqueles que poderiam estar recetivos à mensagem do
grupo. O objetivo era forçar o município a abandonar o contrato com a
SupraGro e voltar para um dos muitos herbicidas menos tóxicos aprovados
pela coligação local, que era formada pela Hood River Watershed Alliance,
Portland Riverkeeper, o programa de educação ao ar livre, o grupo de
agricultores biológicos, e uma longa lista de residentes, incluindo médicos e
enfermeiros de todo o vale. Alice falou-lhes da petição dos apicultores.
Achava que poderia convencê-los a juntarem-se à luta.
Stan perguntou-lhe se estaria disposta a abordar alguns dos donos dos
pomares. Alice concordou, percebendo que pelo menos três deles também
eram apicultores e tinham estado na reunião quando ela falara. Tinha a
certeza de que a ouviriam. Outros seriam mais difíceis, mas começaria no dia
seguinte, fazendo uma visita e falando com eles frente a frente. Sabia que,
quando necessário, iria invocar a memória do seu generoso pai, que todos
tinham estimado.
Olhou para Stan e para as outras pessoas que trabalhavam juntas para
proteger aquele sítio encantador a que todos chamavam lar. Pensou na sua
pequena casa no vale, onde Jake e Harry a aguardavam. Eles eram os seus…
o que eram eles? «Empregados» não era a palavra certa. Jake considerava-se
o seu aprendiz. Amigos, decidiu ela. Eles eram os seus amigos. Os seus
jovens amigos engraçados, atrapalhados e inspiradores. A Ilha Alice, ao que
parecia, poderia receber visitas regulares quando a ponte levadiça estivesse
baixada. Pensou neles enquanto conduzia para sul em direção à montanha,
em direção ao vale, em direção às abelhas e em direção a casa.
22
ALERTA DE ENXAMEAÇÃO
A partir dessas considerações, é evidente que a enxameação, longe de
ser o evento forçado ou não natural que alguns imaginam, é algo que
não poderia ser dispensado na natureza.
– L. L. LANGSTROTH
*
Harry Stokes era um homem transformado. À mesa de jantar, Alice notou que
a sua reticência e gaguez habituais tinham desaparecido enquanto ele pregava
sobre a sua recém-descoberta religião do kitesurf. Normalmente o primeiro a
acabar de comer – curvado sobre o prato e devorando a comida à espera de
poder repetir – deixou o jantar arrefecer enquanto desenhava a física do
kitesurf num guardanapo. Explicou a janela do vento, o desenho do kite, a
força das linhas e o movimento da prancha na água. Para Harry, aquilo era
mágico, percebeu Alice.
Observou-o, divertida, àquele jovem geralmente trapalhão que encontrara
confiança num lugar tão improvável. Jake sorriu para ele e abanou a cabeça.
Harry estava tão admirado como eles. Contou como as suas mãos tremiam
quando se afastara de Jake e ia para o banco de areia atrás de Yogi.
– Pensei que ia vomitar, meu!
Jake riu-se e bateu com o punho na mesa. Alice franziu a testa e Harry
baixou a cabeça.
– Desculpe, Alice! Mas, meu, não queria envergonhar-me diante de todos
aqueles miúdos. O Yogi disse que pode deixar-me fazer mais duas sessões –
continuou ele, radiante. – Disse que aprendo depressa.
Alice, que assistira ao aparecimento da febre do kitesurf nos últimos anos,
disse:
– Bem, acho que vocês são todos malucos. Não se enredam todos? Aquilo
parece um caos.
Harry sorriu.
– Sim, é um bocadinho caótico. Mas basta aguentarmo-nos. E as pessoas
gostam de abrir espaço para os novatos. É uma malta generosa.
Alice reparou que nunca tinha ouvido tantas palavras saírem da boca de
Harry de uma vez.
– Não me deixes dar cabo do teu entusiasmo, Harry. Só não quero ter de
ligar para a tua mãe quando partires uma perna – provocou ela.
O sorriso de Harry esmoreceu.
– Ei! Estava só a brincar. Não quero ser desmancha-prazeres.
Harry encolheu os ombros.
– Não. É que eu não lhe ligo há um tempo. Deixei passar os anos dela na
semana passada. Sinto-me mal, mas ainda não comprei um telemóvel e não
há telefones públicos no vale.
Alice suspirou exasperada e arrastou a cadeira para trás. Estendeu a mão
para a bancada da cozinha e colocou o telefone sem fios diante dele.
– Ligue para a sua mãe, senhor Stokes. Quando quiser. Considere isso uma
regalia. E esta coisa também funciona no celeiro.
Levantou-se com o seu prato e talheres e olhou para Jake.
– Também podes querer ligar à tua mãe, Jake.
Pousou a louça no lava-louça.
– Obrigada pelo jantar, rapazes. Tenho trabalho a fazer, portanto vão ter de
me dar licença.
No seu quarto, Alice descalçou os sapatos e deitou-se na cama. A tensão do
dia instalara-se nos seus ombros e a sua cabeça latejava.
Não disse nada a Jake ou Harry sobre ter-se despedido. Não fora o
momento certo, com Harry nas nuvens sobre o kitesurf e os dois tão
animados com as colmeias – especialmente Jake, que concluíra a
transferência quase sozinho. Ela percebia o quanto isso significava para ele. E
Harry estava orgulhoso por ter descoberto como reverter as alças.
Afeiçoara-se àqueles dois. Mas a expansão da colmeia, o plano de plantar
um pomar – tudo isso parecia impossível agora. Primeiro, precisava de
arranjar um novo emprego, o que, numa povoação daquele tamanho, não
seria tarefa fácil. Não se arrependia de sair do escritório de Rich Carlson.
Nem um pouco. Mas o trabalho do município tinha sido uma ponte para os
seus sonhos. Agora que a destruíra, precisava de construir algo novo. Não
conseguiria manter Harry, o que era uma pena. Talvez pudesse deixar Jake
ficar algum tempo.
Sentou-se, abriu o portátil e tentou ligar-se à rede do município. O acesso
foi-lhe negado e ela sorriu com ar sombrio. Rich devia ter finalmente ligado
para os informáticos. Pelo menos tivera tempo de entrar e descarregar o
calendário de pulverização para o grupo de Stan.
Olhou para a lista de quintas que prometera visitar e dividiu-as por moradas
ao longo de duas semanas. Tinham quinze dias antes de a pulverização
começar. Era muito terreno a percorrer. Mas ela estava pronta para isso.
Caramba, se estava. Sentiu-se ficar vermelha ao pensar em Bill, em Nancy,
em Rich.
Analisou as outras informações que tinham chegado às suas mãos numa
reviravolta surpreendente após a reunião no escritório de Stan.
Ele acompanhara-a à porta. Ficaram no passeio sob o sol de primavera.
Stan cruzou as mãos atrás das costas e sorriu para ela. Ela reparou novamente
que ele tinha olhos bonitos.
– Estamos muito gratos pela sua ajuda, Alice. Temos argumentos. Essa
informação do município foi uma grande ajuda. Enorme! O programa de
ervas daninhas com a rede de pomares é um golpe duplo. Parques, escolas,
vias públicas. Todos os pais nesta cidade vão ouvir agora. Não sei como lhe
agradecer.
Alice ajeitou a alça da mala do computador no ombro.
– Que tal oferecer-me uma cerveja no pFriem quando tudo isto acabar? –
sugeriu ela.
– Combinado – respondeu ele, sorrindo.
Ao afastar-se, Alice sentia-se feliz, percebeu ela, mais feliz do que nos
últimos meses. Deixar o emprego fazia-a sentir-se livre, imprudente e
animada. Dera cabo da sua reforma e das referências ao sair. E daí?
Preocupar-se-ia com isso mais tarde. Sempre fora tão cuidadosa, a confiável,
uma obreira. Onde a levara isso? Pela primeira vez, iria aproveitar o
momento.
Alice dirigiu-se ao estacionamento do município, esperando não encontrar
nenhum dos colegas de trabalho. Faltava pouco para as duas da tarde e o
parque ainda estava cheio. Caminhou rapidamente até à sua pickup azul,
abriu a porta e atirou a mala para o banco do passageiro.
Quando se preparava para entrar, sentiu uma mão no cotovelo. O sangue
rugiu nos seus ouvidos e ela virou-se para encarar Rich Carlson e o veneno
que ele iria atirar-lhe daquela vez. Mas não era Rich. Era o estagiário, o
jovem estudante ruivo. Ele saltou para trás com as mãos levantadas.
– Oh! Des-desculpe, senhora Holtzman! Não queria assustá-la – gaguejou
ele, corando.
– Credo, Casey! – exclamou ela, pousando as mãos nos joelhos e baixando
a cabeça, respirando profundamente. – Quase me provocavas um ataque
cardíaco.
– Desculpe! Peço imensa desculpa! Só… bem, tenho estado à sua espera.
Sei que se despediu hoje. Toda a gente fala disso. Todos ouviram. Estamos do
seu lado. Quero dizer, deram à Nancy o seu trabalho e tudo...
Alice ergueu a cabeça e olhou para ele, com o rosto impassível, e ele corou
novamente.
– Sei que não é da minha conta. É que… a senhora foi sempre tão
simpática para mim…
Alice acenou com a mão.
– Não, tudo bem. Foi apenas um dia difícil. Agora, o que posso fazer por
ti? Precisas que assine a tua papelada ou coisa parecida? A Nancy pode fazer
isso agora, já que é diretora interina. Não terás dificuldade em encontrar a
velha Nance, tenho a certeza.
Casey pareceu encolher-se.
– Não, não preciso de nada. Só queria avisá-la.
Alice franziu a testa.
– Avisar-me? O que queres dizer?
Casey respirou fundo e falou rapidamente.
– Ouvi o senhor Carlson falar sobre si na sala dos servidores. – Olhou para
o passeio. – Eu não estava a bisbilhotar. Estava a trabalhar nos servidores, e
ele entrou e não me viu. Assim que ouvi o que ele começou a dizer, achei
melhor ficar quieto até que ele fosse embora.
O estômago de Alice contraiu-se. Pestanejou e viu Rich a olhá-la de
sobrolho franzido do outro lado da secretária.
– Conta-me – pediu ela.
– Ele disse que a senhora era... – O jovem corou. – Ele estava a dizer a
alguém que foi pessoal, ter-se demitido, que eles realmente precisavam de
culpá-la. Disse que sabia exatamente o que iria afetá-la. Não fez sentido para
mim, mas calculei que faria sentido para si. Falou de uma Evangelina Ryan.
Quando Casey disse o nome de Evangelina, Alice gelou, como se alguém
lhe tivesse deitado água fria em cima. Evangelina. Ficou imóvel enquanto
Casey lhe contava o resto do que ouvira o desprezível Rich dizer sobre a doce
cunhada de Bud, Evangelina.
– Obrigada, Casey. Fico muito grata pela informação. Não te vou explicar
nada. Acho que é melhor não saberes pormenores.
Ele assentiu.
– Há mais uma coisa – disse, e estendeu-lhe um pequeno objeto preto. Era
uma pen. – Estes são todos os documentos sobre o acordo do condado com a
SupraGro. Mandaram-me transferir tudo do computador do senhor
Chenowith para o da Nancy hoje e, bem, fiz uma cópia. Vi a sua fotografia no
jornal com as pessoas da bacia hidrográfica e pensei, não sei, que talvez
alguém devesse olhar para isto.
Alice riu-se.
– Bem! És o Edward Snowden de Hood River! – Depois, com uma
expressão séria, acrescentou: – Obrigada, Casey. Se alguém descobrir que
tenho isto, direi que fui eu que fiz a cópia. Fico-te a dever uma, rapaz.
Casey assentiu e desapareceu no edifício.
– Não há um momento de tédio no gabinete de planeamento – murmurou
Alice enquanto se sentava na pickup.
Agora, sentada no quarto, analisou o ficheiro e tomou nota dos documentos
que podiam ser úteis para o grupo de Stan. Para começar, os pormenores do
contrato com a SupraGro e os autores do chamado estudo científico. Deviam
ter pago um bom dinheiro pelos dados manipulados ali reunidos. Em seguida,
havia a informação do pacote de reforma de Bill, sete dígitos, e os seus
honorários anuais de consultoria, que era mais do que Alice ganhara nos
últimos cinco anos juntos. Jesus. Pensou nas eternas reclamações de Bill
sobre o orçamento apertado. Fechou o portátil. Falaria com os donos dos
pomares no dia seguinte, começando pelo seu vizinho Doug Ransom. O bom
e velho Doug. Ele iria ouvir.
Mas primeiro aquela coisa com Evangelina.
Gostaria de poder ter aquela conversa com os pais de Bud e não com Ron.
Seria muito mais fácil, apesar de Alice não falar com eles há mais de um ano.
Mas não, era com Ron que precisava de conversar sobre o perigo para a sua
mulher.
Lembrou-se de Evangelina no dia do funeral de Bud. Os Ryan eram
católicos, portanto, o serviço fúnebre de Buddy tivera lugar na Igreja do
Sagrado Coração. Alice sentou-se com os pais de Bud à frente. Evangelina,
Ron e os filhos sentaram-se no banco atrás. No cemitério, Evangelina
aproximou-se e colocou o braço em volta da cintura de Alice. Foi um gesto
tão pequeno, mas Alice sentiu-se imensamente consolada quando se inclinou
para o braço da amiga. Nas festas de família turbulentas dos Ryan era sempre
Evangelina quem a fazia sentir-se bem-vinda. Gostavam da companhia uma
da outra, embora houvesse lacunas significativas entre o inglês de Evangelina
e o espanhol de Alice. Mas naquele momento, quando não havia linguagem
para tal perda, Evangelina devia ter entendido melhor do que ninguém como
Alice se sentia ao perder o seu companheiro tão cedo. Podia ter feito a si
própria as mesmas perguntas torturantes que Alice se colocara: Qual foi a
última coisa que eu lhe disse? Dei-lhe um beijo de despedida antes de ele
partir para a última viagem? Disse-lhe que o amava? Foi o suficiente?
E, no entanto, Alice sentiu a sua própria dor eclipsada pela tristeza dos pais
idosos de Bud. Os pais não deviam ter de enterrar os filhos. De alguma
forma, Alice sentiu que não tinha o direito de mostrar a sua tristeza diante da
perda deles. Em casa, depois do serviço fúnebre, abraçou-os e não soube o
que dizer. Pensou nos funerais dos seus próprios pais e como tivera Bud ao
seu lado. Era demasiado em que pensar. Desculpou-se para ir buscar uma
camisola à pickup, com a intenção de voltar para casa. Parada no caminho de
acesso, viu a família alargada e os velhos amigos reunirem-se em torno dos
Ryan, e parecia que um círculo se fechara para ela. Antes que percebesse,
estava ao volante e a meio caminho de casa.
A família ligou, mas Alice não atendeu o telefone. Mandaram o jovem
Ronnie, e ele bateu à porta bastante tempo antes de desistir. Continuaram a
ligar durante semanas. Ela sabia que devia retribuir as chamadas. Mesmo
com os fantasmas dos pais a criticarem-na, não conseguiu. Era fisicamente
incapaz de se meter na pickup e conduzir até casa dos sogros. Quando a
dormência passou, foi substituída por uma dor que ela não pensava ser
possível.
Meteu baixa durante um mês. Quando voltou, o trabalho era o único
vestígio da sua antiga vida. Deixou de ir às reuniões do clube de apicultores.
Deixou expirar a sua filiação no clube de vela. Não retribuiu chamadas.
Voltou-se para dentro. Foi quando começou a ir à mercearia depois das nove
da noite – a essa hora achou que não encontraria ninguém conhecido. Juntou-
se ali a uma multidão solitária. Começou a reconhecer os seus rostos. A
maioria era homens na fila com cerveja e tabaco ou cestos cheios de jantares
congelados. Uma vez viu Evangelina ali com a filha, as duas debruçadas
sobre os medicamentos para a constipação. Virou-se ao vê-las e escondeu-se
na secção das carnes até calcular que se tinham ido embora. Cobarde, pensou
agora.
Gostaria de poder falar com Evangelina, mas precisava de ter a certeza de
que iria comunicar aquela informação da forma mais clara possível. Tinha de
ser Ron. Pegou no telemóvel e mandou-lhe uma mensagem de texto.
«Vai ter comigo amanhã ao Twin Peaks», escreveu. «Escolhe a hora. É
importante. É sobre a Evangelina.»
Esperava que ele pensasse duas vezes antes de apagar a sua mensagem.
Adormeceu apesar do latejar na cabeça.
No dia seguinte, sentou-se com Doug Ransom e pensou que o pai teria a
mesma idade se ainda fosse vivo. Doug era um velho cavalheiro, feito do
mesmo material que Al. Os dois homens eram amigos muito antes de Alice
comprar a sua casa ao lado do pomar de Doug. Era mais fácil começar por
Doug na tentativa de recrutar os donos dos pomares para boicotar a
SupraGro.
Doug insistiu em fazer chá para Alice. A sua mulher, Marilyn, morrera há
cinco anos, percebeu Alice enquanto estava na cozinha a olhar para o papel
de parede – porcos com chapéus de cowboy com leitões a andar atrás deles.
Lembrou-se da primeira vez que Doug e Marilyn a receberam e a Bud há
muitos anos. O tempo passava num abrir e fechar de olhos. Olhou para as
fotografias no frigorífico enquanto Doug recolhia chávenas e colheres. Três
filhos, vários netos. Doug sorriu quando a viu olhar.
– Não os vejo tanto como gostaria, sabes – disse ele, abanando a cabeça
branca e sorrindo. – Muito ocupados.
Sentaram-se no alpendre e olharam para as macieiras e pereiras de Doug.
Alice vira-as florescer todas as primaveras com uma espécie de alegria
colaborativa. Sabia que as suas meninas estavam ali a polinizar.
Doug acenou com a mão para ela.
– Não precisas de tentar convencer-me de nada, Alice. Sei que as abelhas
estão a ajudar-me. A minha produção tem sido melhor desde que tu e o Bud
colocaram as colmeias – disse ele. – O Bud Ryan era um bom homem. Sinto
a falta dele.
Alice assentiu com a cabeça e sorriu. Sentia-se comovida, mas não ao
ponto de se ir abaixo. Buddy também gostara de Doug. Partilhavam um amor
por máquinas agrícolas decrépitas. Vintage, gostava Buddy de dizer. Sucata,
respondera Alice.
Doug apontou para a petição que Alice trouxera com ela.
– Vou assinar isso. O que quiseres. Lamento muito ter usado aquilo. Devia
ter feito primeiro a minha própria investigação. Já estou neste negócio há
tempo suficiente para saber. – Passou a mão pelo rosto enrugado. – A verdade
é que estou quase a sair daqui, Alice. Os meus filhos não querem o pomar.
Foram todos para oeste. Empregos técnicos em Portland e Seattle. Querem
que eu me mude para lá, que venda isto. – Ergueu as sobrancelhas hirsutas. –
Eu na cidade. Consegues imaginar?
Ambos riram. Doug costumava ir na sua moto 4 ao supermercado,
empatando o trânsito enquanto avançava devagar pela berma.
Quando Alice saiu, voltou para casa por entre as árvores de Doug.
Entristecia-a pensar que Doug ia vender o seu pomar. Ele era da velha
guarda, um dos últimos pequenos donos de pomares da geração do seu pai.
Parou entre duas filas de pereiras e olhou para as flores a formar nuvens
brancas de cada lado. Ouviu o zumbido acima dela, um telhado de som, e viu
centenas de abelhas a trabalhar.
Perguntou a si mesma se Doug faria a colheita naquele outono ou se já teria
vendido o terreno na altura. Os terrenos vendiam-se depressa no município.
Um lugar como aquele seria comprado num ápice, e não por um agricultor.
Era o cenário perfeito para o tipo de empreendimento que arruinara a casa
dos seus pais. Tentou imaginar como ficaria a terra à sua volta sem árvores e
repleta de casas de férias idênticas em forma de caixa. O pomar de Doug
também era maior – pelo menos trinta hectares. Suspirou. Casas para turistas,
a pequena estrada rural entupida de carros, o silêncio interrompido pela
música alta das festas cheias de bêbedos. Não podia fazer nada sobre isso,
mas poderia terminar aquela luta.
A sua mão fechou-se em torno da lista no seu bolso, feita com a elegante
caligrafia de Doug. Era uma contagem de aliados – com números de telefone
e moradas, que Doug sabia de cor. Entregou-lha depois de levá-la até ao fim
do caminho de acesso. Ela estendeu-lhe a mão, mas ele inclinou-se e beijou-a
no rosto, depois bateu-lhe no ombro com a mão magra.
– Vai-te a eles, Alice Holtzman. Deixa os teus pais orgulhosos.
23
VIGILANTES
A defesa da colónia contra os inimigos, a construção dos favos, e
enchê-los com mel e pólen, a criação das larvas e, em suma, todo o
trabalho da colmeia, exceto a postura dos ovos, é realizado pelas
pequenas trabalhadoras industriosas.
– L. L. LANGSTROTH
O índice Schmidt da dor de picadas foi publicado pela primeira vez na década
de 1980 pelo entomologista Justin Schmidt numa tentativa de catalogar e
comparar a dor infligida por vários insetos que picam. A abelha ocidental
ficou no nível 2 de 4 possíveis e com uma duração típica de dez minutos.
Alice não poderia ter afirmado com toda a certeza em que lugar da escala
ficava a picada de abelha (algures entre a da formiga de fogo tropical e a
vespa do papel), mas sabia que a geralmente meiga Apis mellifera picava
apenas em último recurso, porque era um gesto fatal. Assim que uma abelha
inseria a sua pequena lanceta farpada sob a pele de uma criatura ofensiva, era
incapaz de retirá-la sem rasgar o seu corpo no processo. Quando libertava o
veneno de apitoxina através do ferrão, emitia simultaneamente uma feromona
para aumentar o alarme entre as suas irmãs. Mais abelhas se juntariam à luta
e bombardeariam o inimigo com fúria crescente enquanto as suas próprias
picadas suicidas transmitiam a mensagem de que a colónia estava sob ataque.
Mais tarde, Alice lembrar-se-ia de que sentira a clássica fragrância de
banana da feromona. Mas Jake disse-lhe que a única coisa em que reparara
fora no som. Ouviu o murmúrio satisfeito da colónia subir para um tom de
defesa. E um momento depois sentiu a primeira daquelas picadas de nível 2.
Alice percebeu que ele não levou isso a peito. Ela correra para a
extremidade mais distante do apiário enquanto as abelhas desciam numa
nuvem furiosa. Viu Jake girar devagar na sua cadeira e sair calmamente do
apiário. Quando ele chegou a casa, estava envolto por um redemoinho de
corpos a zumbir, mas nunca as enxotou. Apenas aguentou. Ela nunca tinha
visto nada parecido.
Sentada à mesa da cozinha, Alice pressionou cuidadosamente a pele macia
sob o olho dele com uma pinça. A zona inchara consideravelmente enquanto
ela estava ocupada a arrancar-lhe ferrões do couro cabeludo. Praguejou
baixinho ao agarrar na pequena farpa e tirá-la.
– Acho que é o último.
Entregou-lhe um saco de gelo e recostou-se para olhá-lo.
– Raios, Jake. Sinto muito. Foi um erro estúpido.
Jake tocou na área inchada sob o olho com o dedo indicador.
– Está tudo bem, Alice. Pelo menos agora sei que não sou alérgico.
Ela olhou para o relógio.
– Ainda não estamos fora de perigo. Tirei-te pelo menos vinte ferrões. Fica
quieto e avisa-me se te sentires tonto ou com dificuldade em respirar.
Tomaste o Benadryl, certo?
Ele assentiu. Ela queria usar a caneta de epinefrina, mas ele insistiu que o
saco de gelo e o Benadryl eram suficientes.
Tinham conseguido desdobrar duas colmeias antes de as coisas começarem
a correr mal. Quando começaram a terceira, Jake permaneceu de cabeça
descoberta e sem véu como de costume, à espera que Alice lhe entregasse um
quadro completo. Estava inchado com crias operculadas e carregado de
abelhas. Alice estendeu-lho, deixou-o escorregar e cair ao lado da cadeira de
rodas. Bateu no chão e as abelhas voaram para cima.
Olhando para o rosto inchado do rapaz, ela sentiu-se furiosa consigo
mesma por magoar as abelhas e fazer com que Jake fosse picado. Sabia que
não devia trabalhar nas colmeias quando estava distraída. Estivera a pensar
no que Fred Paris dissera. Fred arrogante e de rosto rosado. O que esperara
ela? Mesmo o seu pai não tinha nada de bom a dizer sobre Fred Paris, e Al
Holtzman gostava de quase toda a gente.
Algumas horas antes, depois da sua conversa com Doug Ransom, Alice
visitara Victor Bello e Dennis Yasui, ambos na lista de aliados de Doug. Eles
ouviram o que ela tinha a dizer sobre o processo, fizeram algumas perguntas
e assinaram a petição. Ela sentiu uma esperança crescente. Talvez não fosse
impossível unir os donos dos pomares do vale sul naquela causa, pensou. Não
planeara parar na casa de Paris. Ele não estava na lista de Doug, mas a sua
caixa de correio ficava perto da de Victor. Hesitou e depois abriu o portão.
Estacionou atrás do Ford branco de Fred e caminhou até à porta das
traseiras. Ouvia The Dr. Laura Show no rádio da cozinha. A mulher de Fred,
Ellen, apareceu, com um ar pouco simpático, e dirigiu Alice para o celeiro
antes de deixar a porta de rede fechar-se. Fred saiu do celeiro a limpar as
mãos a um pano.
– Ena, Alice Holtzman! Vejam só. Não te via há séculos.
Fred era cerca de dez anos mais velho do que Alice e, embora tivesse
crescido no vale como ela, por algum motivo falava com um sotaque sulista.
Fred tinha sempre muito cuidado com a aparência. As suas Wranglers
estavam engomadas com um vinco e as botas brilhavam. Usava o cabelo
ruivo curto e gostava de fivelas ornamentadas no cinto.
«Galaró», chamara-lhe a sua mãe. «Ele é um idiota», dissera Al, mas
também lhe recordara que ela não precisava de gostar de todos, apenas dar-se
bem com eles. Fred era dono de um pomar de terceira geração. Crescera a
cultivar com os avós. Com certeza que iria ouvi-la.
Alice forçou-se a sorrir.
– É verdade, Fred. Acho que não te via desde o funeral do meu pai.
Ele assentiu e limpou a ponta de uma bota brilhante na parte de trás das
calças de ganga e dobrou o pano num quadrado perfeito.
– Um bom homem, o teu pai. Já não se fazem mais como ele.
– Obrigada, Fred.
– Partiu-se a forma.
Embora o pai não tivesse gostado de Fred, Fred gostara de Al. Havia
muitos homens assim, reparou Alice, na receção após o funeral. Metade do
município tinha aparecido por Al no Elks Club, ao que parecia. As pessoas
circulavam pela sala, apertando-lhe a mão e apresentando as suas
condolências. Alguns, como Fred, choraram enquanto contavam histórias
sobre Al. Era uma prova da diplomacia do seu pai, supunha ela. Pensou nisso
enquanto decidia o que dizer a Fred sobre a SupraGro, esperando que o
respeito dele pelo seu pai pudesse facilitar o caminho. Tirou a prancheta que
segurava debaixo do braço.
– Olha, Fred, sabes que os meus pais venderam a casa antes de morrer,
portanto já não tenho o pomar.
Ele anuiu, dobrou o pano novamente e atirou-o para o capô da carrinha.
– Ainda assim, preocupo-me bastante com a indústria e em manter estas
árvores saudáveis.
Detestou a maneira como soava. Empolada, como se estivesse a ler um
anúncio.
– Claro, Alice. Sei que sim – disse ele, fazendo estalar os nós dos dedos.
Encorajada, ela continuou.
– Pode parecer estranho, mas comecei a ter colmeias nos últimos anos.
– Não me digas – comentou Fred, erguendo as sobrancelhas.
Alice soltou uma risada constrangida.
– É fascinante, na verdade. Mas o que é realmente interessante é a ligação
entre as populações de abelhas locais e a saúde dos pomares. O departamento
de agricultura fez um estudo que mostrou que os pomares próximos de
populações saudáveis de abelhas melíferas tiveram um aumento de vinte e
cinco por cento na produção de fruta.
– Não me digas.
Ela acenou com a cabeça.
– Sim, esses números eram de dois mil e doze. Tenho aqui uma cópia do
estudo, se quiseres dar uma olhadela.
Mexeu na prancheta e soltou o folheto. Estendeu-o e Fred olhou para ele,
mas não lhe pegou.
– Isso é muito interessante – comentou ele. – Tem graça, estive a ler um
estudo diferente que dizia que os pomares aumentavam a sua produção em
cinquenta por cento usando um herbicida. Na verdade, esse estudo mostrava
que, com o tempo, o rendimento pode aumentar até sessenta por cento. São
muitas maçãs, Alice.
O seu sorriso tornou-se zombeteiro.
Ela agarrou na prancheta.
– Fred, os investigadores que fizeram esse estudo foram pagos pela
SupraGro. Isso não é propriamente o que podemos considerar ciência
objetiva, pois não?
Fred tirou um palito do bolso da camisa e palitou os dentes.
– Objetiva? Não sei, Alice. Suponho que depende da pessoa a quem
perguntares. Os teus amigos hippies da bacia hidrográfica não são exatamente
conhecidos pela sua objetividade, pois não? Calúnias e difamação, foi o que
ouvi.
Ela abanou a cabeça.
– Do que estás a falar?
– Pergunta ao teu velho amigo Stan. Aquele processo contra as barragens
no ano passado deixou furiosa muito boa gente. Vocês – zombou ele. – «Oh,
o meio ambiente! O clima está a mudar!» – A sua voz subiu para um falsete e
ele agitou as mãos no ar. – Adoram o drama, não é? Vou ficar do lado dos
meus amigos nisso. O Chenowith pediu-me para ser o interlocutor local para
a pulverização da primavera. Eu disse que sim, por cortesia, claro. Os amigos
mantêm-se unidos.
Enfiou a mão no bolso de trás e tirou um catálogo, que ela reconheceu da
reunião com a Cascadia Pacific. Atirou-o para a prancheta de Alice.
– Dá uma olhadela a isso e avisa-me se tiveres dúvidas, Alice.
Afastou-se, deixando-a especada no caminho de acesso cheio de pó.
As mãos dela tremiam e o seu rosto ardia. O que teria o pai dito? Para
começar, Fred nunca teria falado com o seu pai assim, ou com qualquer outro
homem, pensou. Atirou o catálogo da SupraGro para o chão e foi-se embora.
Rumou a sul em direção à quinta de Dan McCurdy, a próxima na lista de
Doug, mas parou e desligou o motor e tentou abrandar a respiração. Como
poderia argumentar com alguém como Fred Paris? Os tipos conservadores
confiariam em Bill Chenowith e na chamada ciência da empresa de
pesticidas. As pessoas pensavam que Stan era um hippy louco, embora ele
tivesse um mestrado em ciências ambientais e um diploma em direito. Aquela
cidade era tão mesquinha às vezes.
Os McCurdy não estavam. Desanimada, ela voltou para casa. Jake
encontrava-se junto à mesa de piquenique, a olhar para o seu portátil e
acenou enquanto ela se aproximava.
– Olá, rapaz – disse ela e sentou-se com um baque. – Onde está o Coisa
Dois?
Jake apontou para o celeiro.
– A falar com a mãe.
– Ah, lindo menino.
Jake olhou atentamente para ela.
– Como correu? Com o senhor Ransom, quero dizer.
Alice deixou escapar um suspiro exasperado.
– Bem! As coisas correram bem com o Doug. São aqueles outros idiotas
que tenho de convencer! – Bateu com o mapa do vale na mesa. – As pessoas
aqui pensam que o aquecimento global é uma farsa inventada pelos yuppies
de Portland que querem transformar a interestadual numa ciclovia gigante e
desmantelar o capitalismo em favor das comunas socialistas e substituir as
plantações de trigo por marijuana.
Os olhos de Jake arregalaram-se.
– Não olhes assim para mim. Eu não sou a maluca!
Mas sentia-se maluca ou, pelo menos, um pouco perturbada. Deixar o
emprego fizera-a sentir que estava a viver de forma errada. A sua vida fora
comprimida durante aqueles últimos anos. Não apenas por causa de Bud,
fechada na sua bolha de dor. Assistira a reuniões intermináveis e não falara
sobre más políticas. Fizera o trabalho de Bill por ele porque era mais fácil do
que falar abertamente. Não dissera ao pai o quanto queria o pomar. Passara
anos a tentar não incomodar as outras pessoas. A alegria de sair do escritório
de Rich Carlson fora substituída por uma sensação de urgência. Tinha de
compensar o tempo perdido.
Também precisas de te acalmar, querida, ouviu a mãe dizer na sua cabeça.
Voltou ao presente.
– Desculpa. Tive uma péssima manhã – disse ela. – Que tal tratarmos
daqueles desdobramentos no outro lado do quintal?
Jake assentiu e sorriu, sempre ansioso para trabalhar. As coisas tinham
corrido bem até que ela deixara cair o quadro e ele fora todo picado.
Agora Alice olhou para a sua cabeça rapada, cheia de altos das picadas, e
para o seu rosto inchado. Riu-se.
– Caramba, rapaz. Olha só para ti! Os vizinhos vão chamar os serviços
sociais!
Ele riu-se, esfregou o couro cabeludo com as duas mãos e tocou com
cuidado na bochecha inchada.
– Esta é a única que faz comichão – disse ele. – As outras… não sei… não
me incomodam.
– Então muito bem. Desde que não te transformes num daqueles
curandeiros New Age que defende a apiterapia…
Ele ergueu a mão.
– Palavra de escuteiro, Alice – disse ele. – Vamos terminar aquilo.
Quando ele a convenceu de que realmente estava bem, trabalharam o resto
da tarde. Jake insistiu em voltar ao apiário sem chapéu ou véu, como de
costume. Harry saiu do celeiro e observou-os de longe antes de ir ao Ace
Hardware. Alice e Jake instalaram os seis desdobramentos nas novas
colmeias que Harry construíra. Eram iguais às antigas colmeias de Langstroth
no estilo, mas tinham sido feitas com muito cuidado, cada canto ensamblado
e lixado.
– O Harry é um verdadeiro solucionador de problemas, não é? A tua
bancada de trabalho também está muito jeitosa.
Jake passou a mão pela plataforma.
– Ele diz que vai fazer-me uma ainda melhor – comentou ele. – Assim
consigo transferir quadros e verificar se há criação e isso. Ainda preciso de
outra pessoa para tirar as alças, mas é melhor do que nada.
Ela ouviu um tom de frustração na voz dele, o que era raro. Estivera mais
calado naquele dia, ainda antes das picadas, notou Alice. Calculou que devia
estar a pensar na notícia que ela lhe dera de manhã e na fragilidade do seu
próprio futuro.
– Tens verdadeiro talento, Jake. Deves orgulhar-te do teu trabalho.
Ele encolheu os ombros.
– Ei, estou a falar a sério! Aquela coisa do som da rainha. E és o único
apicultor que conheço que trabalhou com a cabeça descoberta desde o
primeiro dia.
Jake olhou para o apiário, mas não encontrou o olhar de Alice. Ela fez um
gesto amplo.
– Olha o que fizemos hoje. Seis novas colmeias. Eu não conseguiria ter
feito isso sozinha. Tens sido uma grande ajuda.
Jake abanou a cabeça e desviou o olhar.
– Um macaco poderia fazer isso – disse ele.
Alice resfolegou.
– Um macaco, hem? Olha, rapaz… sei que podes achar que estou sempre a
elogiar as pessoas, mas não acolho adolescentes rebeldes todos os dias. Se
não trabalhasses bem, tinhas-te ido embora num instante. Posso parecer uma
espécie de Madre Teresa, mas...
Jake inclinou a cabeça para trás e riu.
– Madre Teresa! Esse vai ser o seu novo nome no Twitter, Alice. MomT!
Ela também se riu e depois prendeu a respiração. Voltou-se para as
ferramentas, a sua visão turva. Não queria que Jake se fosse embora.
Afeiçoara-se àquele rapaz engraçado e ao outro também – o nervoso Harry.
Alice Holtzman não gostava de muitas pessoas. Mas percebeu agora que os
amava – àqueles dois rapazes ligeiramente perdidos que pareciam seus
sobrinhos.
Viu Jake fingir não notar a sua emoção. Ele abriu o fumigador e olhou para
o fundo.
– Sei que não sabe o que vai acontecer com o trabalho e tudo. Mas
obrigado por me deixar ficar por enquanto. Quero ajudá-la com o processo.
Estou empenhado, Alice – disse, olhando para ela.
Ela encontrou o seu olhar e acenou com a cabeça.
– Obrigada, Jake.
Olhou para o relógio. Eram quase cinco horas. Ron tinha respondido à sua
mensagem, pelo menos. «Twin Peaks, 17:30», escrevera, e nada mais. O
estômago dela embrulhou-se. Mas pensou em Evangelina, o que fortaleceu a
sua determinação. Ron não era seu inimigo, disse a si mesma, embora ela
pudesse ser dele.
– Tenho uma reunião na cidade – disse ela a Jake.
– Outro dono de pomar?
Ela abanou a cabeça.
– Não… é um assunto pessoal. Volto daqui a uma ou duas horas.
Em Twin Peaks, Alice encontrou uma mesa à sombra e sentou-se com um
chá gelado. O drive-in da década de 1950 ficava em frente ao aeródromo do
município. Viam-se algumas avionetas no solo como um bando de pássaros.
Uma tinha o motor a trabalhar. A escotilha encontrava-se aberta e o piloto
estava na asa. Alice lembrou-se de uma noite de verão, anos atrás, quando o
amigo de Buddy, Vince, os levou a jantar em Portland de avião. Buddy iria
com ou sem ela, disse ele. Quando ela hesitou, ele perguntou-lhe do que tinha
medo.
– Hum, de cair? De morrer? O que achas, seu grande idiota?
Ele riu-se e lembrou-lhe que, estatisticamente falando, ela tinha mais
probabilidade de morrer num acidente de carro do que num acidente de avião.
Então ela foi. Lembrava-se de como fora lindo aquele voo noturno. O céu
estava nublado quando descolaram, o vento oeste fustigava o pequeno avião
enquanto levantava voo. Uma vez no ar, voaram suavemente. Alice olhou por
sobre as nuvens para ver os antigos vulcões a projetarem-se acima do mar
branco. Estavam alinhados com a luz rosada – Mount Hood e Mount
Jefferson a sul e Mount Adams, Mount Saint Helens e Mount Rainier a norte.
Ia sentada no banco de trás do pequeno avião e olhou para o perfil do marido.
Quando Vince o deixou assumir os comandos, Alice sentiu que a sua
preocupação a abandonava. Olhou para o rio de nuvens que serpenteava
acima da garganta numa imagem espelhada do rio. Seguiria Bud Ryan para
qualquer lado.
A porta de um carro bateu e ela viu Ron dirigir-se a si no seu uniforme de
xerife. Levantou-se quando ele se aproximou. Ele não sorria, mas também
não estava carrancudo. Ela não sabia o que fazer. Apertar-lhe a mão? Ron
parecia tão constrangido como ela quando se encararam.
– Olá, Alice – disse ele.
– Olá, Ron. Obrigada por te encontrares comigo – disse ela.
Houve uma pausa. Ela indicou o uniforme dele.
– Estás de serviço?
Ele abanou a cabeça.
– Acabei de sair. Não tive tempo de ir a casa trocar de roupa.
Ela anuiu e observou-o com mais atenção. Será que parecia nervoso?
– Vou só buscar uma... – Apontou com o polegar por cima do ombro. –
Queres alguma coisa?
Ela abanou a cabeça. Ron foi até à máquina de refrigerantes e voltou com
uma Coca-Cola. Sentou-se em frente a ela, rolando a lata gelada nas mãos.
– Há quanto tempo – disse ele.
Ela assentiu.
– Sim, é verdade. – Mais de um ano, pensou, embora ambos o soubessem.
Olhou para o rosto dele, tão familiar. Ron era seis anos mais velho que
Alice, portanto faria cinquenta naquele ano. O seu cabelo loiro estava mais
grisalho. Os pés de galinha tinham-se aprofundado em torno dos seus olhos.
Mas fora isso era o mesmo Ron de sempre. Em tempos ela sentira um amor
fraternal por aquele homem. Não importava se Ron ainda a odiava e a
culpava pela morte de Bud. Ela só precisava de lhe dar aquele recado e
poderiam voltar ao silêncio do ano anterior. Mas, por algum motivo, ela
continuou a falar sobre outras coisas.
– Vi o Ronnie – disse ela. – Ouvi dizer que ele entrou para o departamento.
– Sim. No outono passado – confirmou Ron, e soltou uma risada curta,
esfregando a nuca com uma das mãos. – Conheces o Ronnie. Ainda está a
tentar ambientar-se.
Alice anuiu.
– Ele vai ficar bem. É um bom rapaz.
Ron desviou o olhar para o aeródromo e depois de novo para Alice.
– Ele disse-me que tens dois rapazes a trabalhar para ti.
Ergueu as sobrancelhas, diplomático. Com certeza Ronnie falara-lhe da
velha caravana de Harry em BZ Corner e na cadeira de rodas e no cabelo
excêntrico de Jake.
– São muito habilidosos – disse ela.
– É bom teres alguém para te ajudar. – O seu tom era formal. – Sabes que
podes sempre ligar-nos – disse ele. Olhou para ela e olhou novamente para o
aeródromo. – A mim e aos meus rapazes, quero eu dizer.
Alice ficou sem palavras.
Ron pigarreou e olhou para a mesa. O silêncio prolongou-se enquanto
Alice esperava que Ron falasse. Quando ele finalmente encontrou o olhar
dela, o seu rosto estava tenso de tristeza.
– Olha, Alice. Eu disse-te coisas terríveis depois... – Parou e respirou
fundo. – Depois de o Bud morrer. Provavelmente coisas imperdoáveis. Eu
estava... custou-me tanto perdê-lo.
Ron olhou para as suas mãos cerradas e ela viu as lágrimas acumularem-se
nos seus olhos.
– Penso nele todos os dias e nas coisas que te disse. Queria ligar-te para
explicar o quanto lamento. Achei que nunca mais falarias comigo. Eu... sinto
muito. Nunca devia… – A sua voz falhou.
Alice percebeu novamente que não conseguira dar valor à dor da família de
Buddy. Presa na sua própria dor, não considerara a deles. Afinal, tinham-se
uns aos outros, pensara ela, o que de alguma forma tornava tudo mais fácil.
Como pudera ser tão egoísta? Estendeu a mão e tocou-lhe na manga.
– Não há nada a perdoar, Ron. São águas passadas. O Buddy havia de
gostar que fôssemos amigos.
O homem corpulento ergueu a cabeça, assentindo. Limpou os olhos.
– Pois havia, Alice. Tens razão. – Tentou rir. – Não me podes culpar!
Conheces o lema da família Ryan: «Dispara primeiro e pergunta depois.» –
Alice sorriu. – Mas não o Buddy. Ele saía à avó June. Sempre feliz, aquele
rapaz.
Alice fez que sim com cabeça. Sentia a emoção aumentar dentro dela. O
coração batia forte no peito e ela permitiu-se pensar no rosto dele. O grande
sorriso provocador de Bud. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, mas tudo
bem. Podia abarcar o seu amor e a sua dor ao mesmo tempo.
Ron observou-a, cruzando e descruzando os braços enquanto ela se
recompunha.
– A tua mãe disse sempre que a veia maldosa dos Ryan saltou a vossa
geração – comentou ela, limpando os olhos.
Ron riu-se, mas depois o seu rosto ficou sério.
– Então, o que é isso sobre a Evie?
Alice respirou fundo e falou-lhe, da forma mais concisa que pôde, do
contrato da SupraGro com o município, da reforma de Bill, que Rich Carlson
a ameaçara e que ela se despedira.
A expressão de Ron ficou tempestuosa.
– Aqueles dois – disse com desdém. – Que vigaristas.
Alice acenou com a cabeça.
– E a Evie? E quanto à Evie?
Alice escolheu as suas palavras com cuidado.
– Alguém me disse isto. Não ouvi diretamente.
Contou-lhe que uma pessoa ouvira Rich dizer que alguns dos empregados
de Evangelina na taqueria não tinham visto de trabalho. Que podiam fechá-la
por causa disso e apresentar queixa por encargos sociais não pagos.
Alice sabia que Evangelina trabalhara durante anos para tornar o
restaurante um sucesso. Era popular entre famílias mexicanas e brancas – um
raro espaço comum para as duas comunidades de Hood River. Não era apenas
Evangelina que aquele ataque magoaria, como Alice sabia. Os seus
funcionários de longa data contavam com o envio de dinheiro para as suas
famílias no México.
Ron praguejou e esfregou o rosto.
– O Rich disse que faria uma denúncia anónima à autoridade tributária… é
uma forma de se vingar de mim através de vocês, claro. Pensei em ligar eu
mesma à Evie, mas o meu espanhol é péssimo e queria ter a certeza de que
ela entendia. Realmente lamento muito, Ron – disse Alice.
Ron suspirou.
– A culpa não é tua, Alice. O Rich Carlson é uma doninha. E deves saber
que nada disso é verdade. A Evie tem tudo muito bem controlado, em
especial nos dias de hoje. Praticamente gere uma empresa de assistência
jurídica gratuita, ajudando as pessoas a renovar os seus vistos de trabalho e
solicitar residência permanente e nacionalidade. A propósito, não és a
primeira pessoa a dizer-me isso. Carlson. O merdinhas. Não admira que ande
a espalhar isso. Obrigado por me avisares.
Alice sentiu os seus ombros descontraírem-se. Muitas pessoas achavam que
a imigração era uma questão a preto e branco – legal ou ilegal. Era muito
mais complicado do que isso. Ali no vale, todos viviam com os cinzentos.
Mais de 25 por cento dos residentes a tempo inteiro do município eram
mexicanos-americanos. Muitos trabalhadores de pomares eram mexicanos
que trabalhavam sazonalmente no Oregon e voltavam para casa no inverno.
A situação legal era uma questão complicada. O pai ensinara-lhe que isso não
era da conta de ninguém.
– Esses fanfarrões querem deportar toda a gente que não tem um green
card – dizia Al, furioso. – Essas famílias estão aqui há gerações. Pagam
impostos. Têm o direito de estar aqui e devemos facilitar-lhes as coisas para
ficarem.
Ron mexeu-se no banco. O seu rosto abriu-se num sorriso.
– Então, mandaste o velho Rich Carlson ir dar uma volta ao bilhar grande.
Que bom para ti, Alice. O que vais fazer agora?
Ela respondeu que não sabia. Disse que primeiro tinha de aguardar o fim do
processo da Watershed Alliance e o protesto contra a pulverização de sexta-
feira a uma semana. Desdobrou o mapa e mostrou a Ron os pomares. Falou-
lhe da lista de Doug Ransom e tirou-a do bolso, alisando-a com a mão. Ver a
caligrafia graciosa de Doug fê-la pensar novamente no pai e sentiu uma onda
de otimismo.
Ron estendeu a mão.
– Deixa-me ver essa lista. Quero ajudar.
25
ROUBOS
As abelhas são tão propensas a roubar às outras que, a menos que
sejam tomadas grandes precauções, o apicultor perderá muitas vezes
algumas das suas reservas mais promissoras.
– L. L. LANGSTROTH