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FICHA TÉCNICA

Título: E Três Maçãs Caíram do Céu


Título original: С неба упали три яблока (Three Apples Fell from the Sky)
Autora: Nariné Abgarian
Copyright © Narine Abgaryan 2015
Edição original em russo publicada por Astrel Imprint, São Petersburgo, Rússia
Edição portuguesa publicada por acordo com Banke, Goumen & Smirnova Literary Agency.
Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2024
Tradução do russo: Nina Guerra e Filipe Guerra
Revisão: Helder Guégués/Editorial Presença
Design da capa: Angela Rotaru
Ilustrações da capa: Freepik
Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Grá cas, Lda.
1.a edição em papel, Lisboa, fevereiro, 2024

Reservados todos os direitos


para a língua portuguesa (exceto Brasil) à
EDITORIAL PRESENÇA
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Queluz de Baixo
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PRIMEIRA PARTE
PARA QUEM VIU
CAPÍTULO 1

Na sexta-feira, logo a seguir ao meio-dia, quando o Sol ultrapassou o zénite e,


cheio de dignidade, rolou até à extremidade ocidental do vale, Sevoiants
Anatólia deitou-se para morrer.
Antes de passar desta para melhor, regou cuidadosamente a horta e deu às
galinhas uma ração maior do que era costume — sabia-se lá quando os vizinhos
descobririam o seu corpo inanimado, e a criação não podia rapar fome. Depois
abriu as tampas dos barris debaixo das goteiras — para que, no caso de uma
súbita tempestade, não fosse a água caída do algeroz estragar os alicerces da
casa. A seguir, vasculhou nas prateleiras da cozinha, juntou todas as sobras de
víveres, malgas com manteiga, queijo e mel, um naco de pão e meio frango
cozido, e levou tudo para a cave fresca. Tirou do roupeiro a vestimenta fúnebre:
um vestido de lã fechado com colarinho de renda branca, um avental comprido
com bolsos bordados a ponto cheio, sapatos rasos, gulpas1 de malha (toda a vida
teve frio nos pés), roupa interior cuidadosamente lavada e passada a ferro, e
ainda o rosário da bisavó com uma cruzinha de prata — Iassaman vai perceber
que tem de lho pôr nas mãos.
Deixou a roupa no lugar mais visível da sala de visitas, em cima da pesada
mesa de carvalho, coberta com toalha de linho (se lhe levantarmos a ponta,
descobriremos na madeira duas marcas profundas e nítidas de machadadas), pôs
em cima da pilha um sobrescrito com dinheiro para as despesas do funeral,
tirou da cómoda um velho oleado axadrezado e foi para o quarto de dormir. Ali
chegada, abriu a cama, cortou o oleado ao meio, estendeu metade em cima do
lençol, deitou-se, cobriu-se com a outra metade e, por cima, com o cobertor,
cruzou as mãos no peito, mexeu a cabeça, acomodando-a em cima da almofada,
suspirou fundo e fechou os olhos. Mas logo se levantou para escancarar ambos os
batentes da janela, escorou-os com vasos de gerânios para que não se fechassem
e voltou a deitar-se. Agora podia car descansada: a alma, ao abandonar o seu
corpo mortal, não iria vaguear, desnorteada, pelo quarto. Liberta, voaria logo
pela janela aberta, direitinha ao céu.
Estes minuciosos, escrupulosos preparativos tinham um motivo muito
signi cativo e triste — era já o segundo dia em que Sevoiants Anatólia estava a
esvair-se em sangue. Quando descobriu na roupa interior umas
incompreensíveis manchas pardas, primeiro cou aturdida, depois examinou-as
com atenção e, ao perceber que aquilo era mesmo sangue, amargurou-se e
chorou. Mas logo teve vergonha do seu medo, reteve-se, chamou-se à ordem,
limpou as lágrimas com a ponta do lenço. Se o irremediável chegou, chorar para
quê? A cada qual a sua morte, a um desliga o coração, de outro escarnece ao
privá-lo de juízo, e a ela, Anatólia, destinou a mo na o escorrimento imparável
de sangue.
Anatólia não duvidava: era uma doença incurável, fatal e de rápido desfecho.
Não por acaso lhe atacara a parte mais inútil e absurda do corpo, o útero.
Aquele mal parecia insinuar-lhe a punição de não ter cumprido o seu destino
principal, o de dar à luz.
Proibindo-se então choros e lamentações, resignada ao inevitável, Anatólia
acalmou-se com uma rapidez espantosa. Procurou no baú da roupa um lençol
velho, cortou-o às tiras, improvisou pensos. À noite, contudo, o caudal do
sangue tornou-se tão abundante que parecia ter rebentado dentro dela uma veia
grande e inesgotável. Viu-se obrigada a tirar algodão da pequena reserva que
guardava em casa. Como esta reserva se esgotaria rapidamente, Anatólia
arrancou da borda de um edredão uns tufos de lã de ovelha, lavou-os muito bem
e pô-los a secar no peitoril da janela. É claro que poderia passar pela casa de
Chlapkants Iassaman e pedir-lhe um pouco de algodão, mas rejeitou tal ideia
— tinha medo de não aguentar, de se desfazer em lágrimas à frente da amiga,
de lhe contar tudo sobre a sua doença mortal. Iassaman caria então muito
a ita, iria ter logo com Satenik para esta mandar um telegrama urgente para o
vale a pedir uma ambulância… Ora, Anatólia não estava para médicos nem para
tratamentos dolorosos e inúteis. Melhor morrer em paz e sossego, com
dignidade, dentro da casa onde passou toda a sua vida difícil e estéril.
Deitou-se tarde, folheou ainda durante muito tempo o álbum da família — e
as caras dos parentes havia muito mergulhados no Letes tinham, sob a luz parca
do candeeiro de querosene, um ar muito triste e pensativo. Em breve nos
veremos, sussurrava Anatólia, acariciando cada fotogra a com os seus dedos
calejados pelos duros trabalhos do campo, em breve nos veremos. Apesar do seu
estado deprimido e alarmado, adormeceu facilmente e dormiu até de manhã.
Acordou-a o grito alvoroçado do galo — a criação agitava-se na capoeira, as
frangas esperavam com impaciência a hora em que as deixassem passear pelos
canteiros da horta. Anatólia escutou com atenção o seu corpo. De niu o seu
estado como razoável — além de uma algia na zona dos rins e de uma ligeira
tontura, não sentia nada. Levantou-se com cuidado, foi à retrete, convenceu-se
com maldosa satisfação de que a sangria era ainda maior. Voltou a entrar em
casa, fez um penso de um tufo de lã e um farrapo de tecido. A continuar assim,
antes da manhã do dia seguinte caria completamente exangue. Ou seja, não
veria mais nenhum amanhecer da sua vida.
Ficou parada no terraço, absorvendo com cada célula a terna luz matinal. Foi a
casa da vizinha — para a cumprimentar, perguntar como passava. Iassaman
estava a braços com uma grande barrela da roupa, de momento punha em cima
do fogão a lenha um pesado caldeiro de água. Enquanto a água aquecia, elas
conversavam, permutavam coisas da vida. Não tardaria a amora a amadurar, ia
ser preciso abanar a árvore, colher as bagas — uma parte cozida para o xarope,
outra para secar, uma terceira para fermentar na pipa de madeira e depois fazer a
vodca caseira. Também era a altura de ir apanhar azedas-bravas, mais uma ou
duas semanas e já seria tarde: ao sol quente de junho as folhas iam enrijar
rapidamente e car sem préstimo para comer. Anatólia despediu-se da amiga
quando a água no caldeiro levantou fervura. Já podia car descansada, Iassaman
não se lembraria dela até à manhã seguinte. Ainda tinha de lavar e pôr a corar a
roupa e engomá-la, estendê-la ao sol, apanhá-la e passá-la a ferro. Acabaria tudo
só à noite. Anatólia tinha portanto muito tempo para, nas calmas, passar desta
para melhor.
Assim tranquilizada, passou toda a manhã em vagarosos afazeres de rotina e só
depois do meio-dia, quando o Sol, atravessando a cúpula do céu, rolou sem
pressas até à extremidade ocidental do vale, se deitou para morrer.
Anatólia era a mais nova das três lhas de Sevoiants Kapiton e a única de toda
a família que conseguiu chegar a uma idade avançada. Feito inédito: em
fevereiro festejou ela os seus cinquenta e oito anos, idade incrível para os seus
familiares.
Lembrava-se mal da mãe, que morreu tinha Anatólia sete anos. Os olhos
amendoados da mãe lançavam um raro fulgor de matiz dourado, os caracóis do
seu cabelo eram espessos, cor de mel. O seu nome soava em conformidade:
Voske2. A mãe trançava o maravilhoso cabelo, prendia na nuca a trança apertada
com ganchos de madeira num puxo grosso e compacto e andava com a cabeça
ligeiramente empinada. Muitas vezes tocava com os dedos no pescoço,
queixava-se de o sentir entorpecido. Uma vez por ano, o pai de Anatólia sentava
a mãe à janela, penteava-lhe o cabelo com cuidado e cortava-o com cuidado ao
nível da região lombar — a mãe não o deixava cortar mais do que isso. E
também nunca cortava as tranças às lhas: o cabelo comprido devia protegê-las
da maldição que lhes pairava sobre as cabeças havia já doze anos, desde o dia em
que ela se casara com Sevoiants Kapiton.
Na verdade, era Tatevik, sua irmã mais velha, que devia casar-se com ele.
Naquela altura, Tatevik tinha dezasseis anos, e Voske, dois anos mais nova, a
segunda moça casadoira na grande família de Agulissants Gareguin, era das
mais ativas nos preparativos da festa. Por tradição secular, respeitada por muitas
gerações da população de Maran, depois da cerimónia do casamento na igreja
deviam celebrar-se duas bodas, primeiro em casa da noiva e, depois, em casa do
noivo. Mas os chefes das famílias de Kapiton e de Tatevik, rebentos de duas
linhagens ricas e respeitáveis de Maran, resolveram juntar-se e fazer um único e
grande festejo no meidan3. A festa prometia uma envergadura nunca vista. O pai
de Kapiton, desejando impressionar os seus numerosos convidados, mandou ao
vale dois genros seus para que contratassem para as bodas os músicos do teatro
de câmara. Os genros voltaram cansados mas contentes e anunciaram que os
presunçosos músicos (que coisa, convidar uma orquestra teatral para a aldeia!)
aplacaram-se de imediato quando souberam do generoso honorário de duas
moedas de ouro para cada um, mais provisões de víveres para uma semana que
os genros prometeram levar ao teatro depois da festa. Quanto ao pai de Tatevik,
preparou uma surpresa: chamou para as bodas o mais famoso interpretador de
sonhos do vale. Por dez moedas de ouro, o homem aceitou praticar o seu ofício
durante todo o dia, e a única coisa que pediu foi ajuda no transporte do
equipamento necessário para o seu trabalho: uma tenda, uma bola de cristal
sobre um maciço suporte de bronze, uma mesa para a adivinhação, uma
otomana larga, dois vasos com plantas frondosas e de cheiro forte, uma espécie
nunca vista na região, e velas espiraladas e muito singulares feitas de madeira
especial, triturada e compactada, velas que ardiam vários meses seguidos, sem
se extinguirem, propagando um aroma de gengibre e almíscar. Além dos
moradores de Maran, meia centena de habitantes do vale foram convidados para
o casamento, na sua maioria gente respeitável e abastada. Até os jornais
escreveram sobre esta festa, que prometia transformar-se num evento
memorável, ou quase, um feito dos mais honrosos porque nunca antes a
imprensa mencionara celebrações de famílias que não fossem de origem dalga.
Aconteceu, no entanto, o inesperado: quatro dias antes da cerimónia a noiva
caiu enferma com febres, sofreu em delírio durante vinte e quatro horas, e
faleceu sem ter recuperado a consciência.
No dia do seu funeral, umas quaisquer portas escuras escancararam-se por
cima de Maran, pelos vistos, e deixaram entrar e avançar outras forças,
diferentes e opostas às celestes; outra coisa não podia haver, além de um
desarranjo dos sisos, para explicar o comportamento dos patriarcas de ambas as
famílias: logo após a missa de corpo presente, realizaram um curto concílio
entre eles e decidiram não cancelar o casamento.
— Que as despesas não sejam em vão — anunciou o poupado Agulissants
Gareguin à mesa do banquete fúnebre. — O Kapiton é bom rapaz, trabalhador
e respeitador, qualquer um gostaria de arranjar um genro assim. Deus chamou
ao seu reino a Tatevik, portanto tinha de ser, queixar-se da Sua vontade é um
pecado. Mas temos mais uma lha casadoira. Assim, eu e Anés decidimos que a
Voske casará com o Kapiton.
Ninguém se atreveu a contrariar os homens, e Voske, inconsolável depois da
perda da irmã adorada, não tinha outro remédio senão casar-se com Kapiton. O
luto por Tatevik foi adiado uma semana. Celebraram-se então umas senhoras
bodas, tudo à grande, barulhentas e muito fartas, o vinho e a aguardente caseira
de amora corriam em torrentes, as mesas servidas a céu aberto estavam
atulhadas de pratos muito variados, a orquestra de sobrecasacas escuras e com as
botas engraxadas tocava polcas e minuetos, o que levou os maranenses, durante
algum tempo, a escutarem com embaraço aquela música clássica e estranha aos
seus ouvidos; mas não tardou a que toda a gente, já bastante embriagada,
esquecesse as conveniências e se lançasse a dançar à moda aldeã.
Poucas pessoas se aventuraram a entrar na tenda do intérprete de sonhos — os
convidados esquentados com a abundância de iguarias e bebidas não estavam
para isso. Uma tia em segundo grau, preocupada, introduziu na tenda a noiva
Voske, que, aproveitando um minuto livre, contara à tia, em poucas palavras,
um sonho que tivera na véspera do casamento. O interpretador era um velho
minúsculo, magrinho e incrivelmente feio, até metia medo. Indicou com a mão
o sítio onde Voske devia sentar-se, e a rapariga cou aturdida ao reparar no
mindinho da mão direita do velho: uma unha compridíssima, escura e que
havia muitos anos não era cortada, envolvia-lhe a polpa do dedo e crescia ao
longo da palma da mão na direção do pulso torto, tolhendo-lhe inclusive o
movimento da mão. O velho expulsou sem cerimónias a tia da tenda,
mandando-a vigiar a entrada, depois acomodou-se em frente de Voske, abrindo
muito as pernas vestidas de exóticas calças largas e deixando pender entre os
joelhos as suas mãos compridas e esqueléticas. Em silêncio, cravou os olhos em
Voske.
— Sonhei com a minha irmã — respondeu a rapariga à sua pergunta não
formulada. — Estava de costas para mim, com um vestido bonito e um o de
pérolas entrelaçado na trança. Quis abraçá-la, mas ela não deixou. Virou-se para
mim, e a cara dela, não sei porquê, era velha e cheia de rugas. E a boca… era
como se a língua não coubesse lá dentro. Comecei a chorar, a minha irmã
afastou-se para um canto, cuspiu um líquido escuro para as mãos, estendeu-as
para mim e disse: «Não verás a felicidade, Voske.» Assustei-me e acordei. Mas o
mais medonho aconteceu depois, quando abri os olhos e percebi que o sonho
continuava. Era cedo, a hora do enbachti4, os galos ainda não cantavam, fui beber
água, olhei para cima, não sei porquê, para o teto, e vi no erdik5 o rosto triste da
Tatevik. Ela atirou-me aos pés a sua grinalda com o véu e desapareceu. E a
grinalda com o véu, quando tocaram no chão, des zeram-se em pó.
Voske desatou num choro penoso, as lágrimas espalharam-lhe pelas faces a
tinta preta das pestanas — o único cosmético que utilizavam as mulheres de
Maran. Os seus pulsos frágeis, infantis, assomavam das aberturas da sua
mintana6 de seda, orladas de rendas caras e moedas de prata; uma veia azulada,
desamparada, pulsou-lhe, assustada, na têmpora.
O interpretador de sonhos expirou ruidosamente o ar num som arrastado e
irritante para o ouvido. Voske calou-se e olhou, temerosa, para ele.
— Ouve-me, lha — rangeu o velho —, não te vou explicar o sonho, não
teria proveito nenhum, em qualquer caso é impossível mudar seja o que for. A
única coisa que te posso aconselhar: nunca cortes o cabelo, que te cubra sempre
as costas. Cada pessoa tem o seu talismã protetor. O meu — e abanou a mão
diante do nariz de Voske — é a unha do mindinho. E o teu é, portanto, o
cabelo.
— Está bem — sussurrou Voske. Aguardou um pouco com a esperança de
ouvir mais indicações, mas o interpretador guardava um silêncio tenebroso.
Então, a moça levantou-se para sair, mas encheu-se de coragem e perguntou: —
Mas sabe porque tem de ser precisamente o cabelo?
— Não sei. Mas já que ela te lançou a grinalda do cabelo com o véu, quer
dizer que queria cobrir o que te podia proteger da maldição — respondeu o
velho sem desviar os olhos da vela fumegante.
Voske, dilacerada entre sentimentos mistos, saiu da tenda. Por um lado, já
estava menos preocupada porque deixara uma parte da ansiedade ao
interpretador de sonhos. Ao mesmo tempo, não a deixava em paz a ideia de que
se obrigara, embora sem maldade, a apresentar aos olhos de um estranho a
imagem da sua falecida irmã quase como a de uma bruxa. Quando Voske
contou à tia, que não parava quieta à entrada da tenda, a profecia do velho, esta,
por qualquer razão, cou contentíssima:
— O principal é que não temos nada a temer. Faz o que ele te aconselhou, e
tudo se vai arranjar às mil maravilhas. E ao quadragésimo dia a alma da Tatevik
vai abandonar a nossa terra pecaminosa e deixa-te em paz.
Voske voltou à mesa do copo-d’água, sentou-se ao pé do jovem marido e
sorriu-lhe timidamente. Este embaraçou-se, sorriu em resposta e, de repente,
corou muito — apesar dos seus vinte anos, idade séria de acordo com a bitola
patriarcal, Kapiton era muito tímido e acanhado. Três meses antes, quando na
sua família se começou a falar de que chegara a altura de o casar, o marido da
sua irmã mais velha fez-lhe uma prenda — levou-o ao vale e pagou para ele
uma noite num prostíbulo. Kapiton voltou a Maran num estado de grande
confusão. Não que lhe desagradasse aquela noite de prazeres nos abraços da
prostituta cheirosa a água de rosas, cravinho e suor. Pelo contrário, aturdiram-
no e enfeitiçaram-no os carinhos cálidos e extenuantes que ela lhe ofereceu
generosamente. Só que não o deixava em paz uma vaga sensação de
repugnância, uma ligeira náusea que o acometeu no momento em que captou a
expressão do rosto da mulher — coleando como uma cobra, emitindo gemidos
surdos e acariciando-o hábil e apaixonadamente, ela mantinha uma cara tão
impassível e pétrea como se não fosse amor aquilo que estava a fazer, mas outra
coisa de todo rotineira. Apressado, sem ponderar muito a situação, como não é
raro na sua idade, Kapiton concluiu que esse comportamento calculista e
desavergonhado na cama era próprio de todas as mulheres e não esperava nada
bom do seu casamento. E quando o seu pai anunciou que, depois da morte da
lha mais velha de Agulissants Gareguin, Kapiton devia casar-se com a lha
mais nova, foi por causa daquela conclusão que o rapaz, em silêncio, assentiu
com a cabeça. Não fazia diferença com quem se casasse. Todas as mulheres
eram, pela sua natureza, mentirosas e incapazes de sentimentos sinceros.
À noite, quando os criados começaram a servir fatias suculentas de presunto
assado com especiarias e papas de painço com toucinho e cebola refogada, os
consogros, bem bebidos, sob acompanhamento do uivo esganiçado da zurná7 e
do rumorejo aprovador dos convidados, levaram os recém-casados ao quarto e
trancaram a porta, prometendo que a destrancariam de manhã. Ao car a sós
com o marido, Voske desatou num choro amargo, mas quando Kapiton quis
abraçá-la e consolá-la, não o repeliu — pelo contrário, apertou-se contra ele e
aquietou-se, apenas soluçava e fungava comicamente.
— Tenho medo — disse, levantando a sua carita banhada em lágrimas.
— Também eu — respondeu simplesmente Kapiton.
Este diálogo singelo, mas penetrante pela sua sinceridade enternecedora,
pronunciado num sussurro envergonhado, juntou para sempre e
indissoluvelmente os seus corações jovens e sequiosos de amor. Depois, na cama,
apertando ao peito a sua jovem esposa e captando com gratidão cada
movimento, cada suspiro, cada terno toque dela, Kapiton ardia de vergonha por
se ter atrevido a compará-la com aquela mulher do vale. Nos seus abraços,
Voske luzia e rutilava como uma gema preciosa, aquecia e enchia de sentido
tudo o que o rodeava, e desde este momento e para todo o sempre se tornou
uma coisa mais querida da sua vida.
Passada uma semana, quando Agulissants Gareguin e os seus genros,
desbarretados e mudos, todos vestidos de preto, mataram três vitelos de puro
sangue, cozeram carne sem sal e a distribuíram pela aldeia, levando-a nas
travessas grandes, as pessoas abriam as portas e, em silêncio, pegavam na sua
dose porque está interdito falar quando nos trazem a carne do animal sacri cal,
Voske encortinou as janelas do seu quarto com um tecido não transparente e
resolveu pôr luto pela irmã até ao m dos seus dias. Morti cava o corpo com
jejuns in ndáveis e passava na igreja longas horas da tarde, rezando pela paz da
alma de Tatevik e implorando-lhe perdão; e, uma vez por semana, na
companhia amargurada da mãe, das cunhadas e das tias em segundo grau,
visitava o cemitério para cuidar da campa da irmã. Era como se as horas claras e
as escuras tivessem trocado de lugar para ela — de noite amava e aquentava
como o sol, de dia transformava-se numa criatura sombria e tristonha. Tatevik
não voltou a visitá-la, o que muito entristecia Voske. Não me perdoou, senão,
voltaria a aparecer-me em sonho — dizia ao marido, engolindo as lágrimas,
partilhando as suas mágoas com ele.
Para distrair um pouco a mulher dos pensamentos tristes, Kapiton sugeriu-
lhe arranjar a casa que lhes deram depois do casamento com uma nova mobília.
Dantes, esta casa era habitada por uma tia solteira de Kapiton e pela sua avó,
babó8 Mané, mas depois elas mudaram-se para a casa do pai de Kapiton,
deixando ao jovem casal uma habitação sólida, de paredes grossas e um pouco
escura, mas cuidada e acolhedora, com um grande terraço de madeira, um sótão
alto e um pomar em bom estado. Voske, de início, recusava-se a mudar-se
porque a casa se encontrava na outra extremidade de Maran. Mas Kapiton
insistia: vivendo longe dos parentes em luto, Voske recordaria menos a irmã e
resignar-se-ia à sua perda mais depressa.
Depois de ceder com muita relutância às insistências do marido, Voske,
inesperadamente para si própria, entusiasmou-se com o novo trabalho, e com
tanto zelo que chegou a encomendar no vale algumas revistas dedicadas a
interiores. Depois de as ter estudado com atenção, decidiu-se por uma sala de
jantar de carvalho ebanizado: mesa oval, quatro otomanas largas forradas de
veludo verde-escuro, três dezenas de cadeiras (era preciso ter muitos assentos
porque a casa estaria sempre cheia de convidados) e vários aparadores adornados
de entalhaduras artísticas, com altas portas de vidro, onde seria possível guardar
a baixela requintada para vinte e quatro pessoas e outra loiça numerosa, prendas
de casamento da parte dos convidados. O carpinteiro Minas, que se encarregou
de reproduzir os móveis da revista com toda a precisão, tendo três ajudantes,
viu-se obrigado a contratar mais dois para cumprir o prazo combinado. Isto
porque Voske já engravidara do seu primeiro lho e queria acabar o arranjo da
casa antes de ele nascer. À espera do parto, passava o tempo em trabalhos de
mãos: juntamente com a mãe, bordou várias toalhas de mesa e várias colchas,
dois conjuntos de roupa de cama, um enxoval do bebé e um vestido para o
batismo. Uma vez por semana, depois da visita ritual ao cemitério, passava pela
o cina de Minas, supervisionando o seu trabalho. Minas suspirava e carregava o
sobrolho, mas aturava sem protestar as visitas de Voske; contudo, mandava-a
rapidamente para casa, sob o pretexto de que a uma mulher, sobretudo grávida,
fazia mal car numa o cina impregnada do cheiro venenoso a esmalte e a suor
masculino. Mas as visitas à o cina tiveram o seu resultado: os móveis foram
acabados a tempo, e Voske, logo depois de pôr a casa em ordem e de festejar a
mudança, entrou em trabalho de parto. Vinte e quatro horas depois brindou o
seu Kapiton com uma lha a que chamaram Nazeli. Passados dois anos, nasceu
Salomé e, ano e meio depois, uma terceira, Anatólia.
Se era carinhosa e atenciosa com o marido, já com as lhas Voske era
reservada, pouco falava com elas — Anatólia não se lembrava de a mãe as tratar
por diminutivos ou nomes carinhosos, nem de as cobrir de beijos, como faziam
as outras mães. Nunca as elogiava, mas também não as criticava. Quando não
gostava de alguma coisa, cerrava em silêncio os lábios ou levantava uma
sobrancelha. As miúdas temiam mais aquela sobrancelha erguida do que os
resmungos permanentes da velhinha babó Mané, única parente que se salvou do
terrível terramoto que varreu para o abismo o ombro ocidental do monte
Manich-Kar. A calamidade aconteceu no ano em que ia nascer Salomé. A babó
Mané passou a viver em casa deles para ajudar a tratar da pequena Nazeli: para
Voske, que sofria duros ataques de náuseas, era difícil cuidar da criança
irrequieta. A desgraça estourou num meio-dia frio de dezembro: a terra tremeu
e mexeu-se debaixo dos pés, bramiu arrastadamente, com um uivo dilacerante
para a alma, quebrou o ombro do Manich-Kar, que se desmoronou para o
abismo, arrastando consigo as casas com anexos e quintais, as pessoas que
gritavam desesperadamente e o gado que, pressentindo o perigo iminente, se
agitava nos estábulos e currais, tentando em vão chamar a atenção dos donos,
avisá-los.
A parte ilesa da aldeia suportou o golpe da Natureza com coragem e
dignidade: celebraram-se os ofícios de defuntos numa capela minúscula (a igreja
de Grigóri, o Iluminador, erguida na extremidade da aldeia, foi a primeira a cair
no precipício) e as pessoas dispersaram-se pelas casas, para reforçarem as paredes
cheias de brechas profundas e os telhados caídos, para pôr em ordem as
paliçadas de madeira cambadas. Naquele tempo ainda não se ouviam conversas
sobre a necessidade de se mudar para as baixadas mais seguras — começaram
muito mais tarde. Depois do sismo, o meidan cou deserto, nunca mais se
organizaram lá festas barulhentas. Os ciganos subiam várias vezes do vale, tal
como costumavam fazer outrora, e contavam que o uxo de lama levara para
longe, até outras aldeias a ocidente, uma parte das casas caídas no vórtice, e que
os moradores dessas casas estavam sãos e salvos, mas nunca mais voltariam
porque o medo que viveram os privou da memória e já nem sabiam que tinham
vivido em tempos no cume da montanha coberta por uma oresta secular e com
pastagens ricas. As pessoas ouviam os ciganos com gratidão, ofereciam-lhes
todo o género de trastes, de roupa velha — e despediam-se deles, e cada um
esperava no fundo da alma que eles tivessem contado a verdade, que os
desgraçados habitantes da falda ocidental do Manich-Kar estavam vivos. E até o
facto de eles falarem agora outras línguas e de usarem outra roupa não tinha
importância: a nal de contas, o céu é igualmente azul por todo o lado, e o vento
sopra tal qual como na terra onde tivemos a sorte de nascer.
Os ciganos vieram mais vezes, mas depois deixaram de aparecer, foram os
primeiros a sentir a aproximação de uma nova catástrofe e, de repente, levaram
sumiço, silenciosamente e para sempre, dissolvendo-se no mormaço quente do
sol meridional, dourado e ofuscante, como as moedas com que pagavam no
meidan, apanhados em agrante a cometerem um roubo ritual.
Anatólia nasceu na noite que antecedia o último aparecimento dos ciganos na
aldeia. A babó Mané levou para casa de uma vizinha as bisnetas mais velhas para
deixar descansar uma Voske extenuada depois do parto difícil. Ao lado da mãe
estava a dormir, agasalhada carinhosamente com um cobertor quente, a
pequenina Anatólia, a única das lhas de Sevoiants Kapiton que era uma cópia
do seu avô moreno, por isso a sua família era Sevoiants de apelido, sendo que a
palavra «sev» em maranês signi ca «preto». Uma cigana, mulher um tanto
gorda e baixota, com uma cicatriz quase impercetível na bochecha esquerda,
penetrou sem impedimento na casa, passou sem parar por todas as salas e
entrou, sem bater à porta, no quarto de Voske — esta assustou-se, soergueu-se,
apoiando-se no cotovelo, cobriu a bebé. A cigana fez um gesto tranquilizador
com a mão, «não tenhas medo, não te faço mal», aproximou-se da cama, olhou
para a carita da criança.
— Como lhe vais chamar?
— Anatólia.
— Um nome bonito.
Endireitou-se, dobrou a ponta do cobertor e do lençol, arregaçou as saias
multicores com folhos e sentou-se, abrindo as pernas à maneira masculina e
deixando pender entre os joelhos as mãos compridas e nas. Aquela pose
pareceu vagamente familiar a Voske, já alguém uma vez lhe dissera palavras
importantes, sentado do mesmo modo, apoiando os cotovelos nos joelhos
escanchados, mas, por qualquer razão, não conseguia lembrar-se quem — como
se lhe apagassem a memória com um gesto da mão.
— Nunca mais voltaremos cá, nunca. Dá-me um dos teus enfeites, aquele de
que gostarias de te livrar. É preciso — disse lentamente a cigana. A sua voz era
rouca, de fumadora, entrecortava-se muito nos nais das palavras, como se lhe
faltasse o fôlego.
A Voske nem passou pela cabeça objetar: havia no olhar concentrado e pesado
e na expressão do rosto da inesperada visitante qualquer coisa que despertava
uma con ança incontestável. Por isso, Voske, num gesto habitual, tirou de
baixo das costas a gavela do seu cabelo comprido cor de mel, lançou-o para cima
da almofada, estar deitada assim era mais cómodo, cruzou as mãos no peito e
pôs-se a pensar. Tinha poucas joias, e todas elas oferecidas pelos parentes que
morreram no terramoto. Entregar-lhe alguma coisa dessas signi cava rejeitar a
memória dos mortos.
— Abre a gaveta de cima da cómoda, há lá um estojo. Escolhe tu própria —
disse por m Voske, depois de certa hesitação.
A cigana levantou-se pesadamente, alisou o lençol e o cobertor, abriu a gaveta,
meteu lá a mão, tirou uma joia sem olhar, guardou-a no peito e dirigiu-se para a
saída.
— Porque não vão voltar? — fê-la parar Voske.
A cigana pôs a mão na maçaneta.
— Não posso dizer-to.
Hesitou um pouco e disse:
— Chamo-me Patrina.
Voske quis também apresentar-se, mas a cigana abanou bruscamente a cabeça:
não! Depois agasalhou-se bem no xaile quente, acenou com a cabeça e saiu. Mal
a porta se fechou atrás dela, Voske sentiu uma tontura. Reclinou a cabeça sobre
a almofada, cou um pouco deitada com os olhos fechados para que a náusea
passasse e, subitamente, adormeceu. Acordou com toda a certeza de que a visita
da cigana fora um sonho, mas a gaveta aberta da cómoda dizia o contrário.
Pediu à babó Mané que lhe desse o escrínio das joias e não encontrou entre elas
um pesado anel de prata com uma ametista azul. Era o anel da avó que, pela lei,
devia ser herdado pela sua neta mais velha, Tatevik. Mas foi herdado por Voske.
No quarto cheira à frescura do anoitecer e um pouquinho ao amargor da
camomila. Já orvalha, o rocio extrai das ores sonolentas um aroma e derrama-o
por cima da terra. Mais uma hora ou duas e vai cair a noite, cobrir o Manich-
Kar súbita e vertiginosamente, como a saltar de trás da esquina, parece que
ainda há um instante o horizonte rutilava com os raios do ocaso, mas já tudo se
inunda de modorra, o céu está muito baixo, salpicado generosamente de
estrelas, e os grilos cantam como se fosse a última vez que cantavam.
— Seria bom saber o que estão eles a cantar — murmurou Anatólia e, sem ela
própria se dar conta, riu muito, mas de modo tão desajeitado que se engasgou
com a saliva. Pigarreou, soergueu-se sobre o cotovelo, bebeu um pouco do copo
— o jarro com água estava sempre na mesa de cabeceira, hábito que remontava
aos tempos de casada: o marido bebia água em quantidades enormes, mesmo de
noite, e para não se levantar da cama queria que ela, à noite, lhe pusesse sempre
o jarro de água fresca em cima da mesa de cabeceira. Há já vinte anos que ele
desapareceu sem deixar rasto, mas Anatólia, como dantes, enchia o jarro de água
no início da noite. Na manhã seguinte, aproveitava a água para regar as plantas
nos vasos, depois voltava a encher o jarro. E era assim todos os dias, vinte anos
seguidos.
Depois de beber água, virou-se com muitíssimo cuidado para o lado e apalpou
debaixo da coxa, ajeitando o oleado. Entre as pernas, sentiu com a mão uma
abominável humidade: o penso preparado com tanto cuidado —
precavidamente, Anatólia introduzira estopa, para durar mais — deixara passar
o sangue, a camisa de noite estava molhada e colada ao corpo. Foi preciso
levantar-se e mudar de roupa. Anatólia fez todas estas manipulações reprimindo
a náusea, por qualquer razão, tudo o que estava a acontecer lhe provocava um
nojo e uma irritação monstruosos. Corria ainda mais sangue, jorrava com uma
força insuperável e maldosa, como se quisesse abandonar-lhe as entranhas o mais
depressa possível. Anatólia pôs a roupa suja longe da vista, debaixo da cama,
deitou-se, alisou o segundo bocado de oleado, cobriu-se com ele, lançou por
cima o cobertor, agasalhando bem os pés — gelavam-lhe mesmo no verão, no
calor mais forte.
— Oxalá morra depressa — suspirou, fechou os olhos e mergulhou, submissa,
no fundão das recordações. Com elas, o tempo corria mais depressa.
Tinha sete anos quando a mãe morreu — aqueceu a sauna, deu banho às
lhas, deitou-as na cama, mas fechou o tapador da chaminé do fogão para
manter o calor enquanto tratava das lhas. Depois esqueceu-se de o abrir e
morreu na sauna, intoxicada pelo monóxido de carbono. Kapiton, cansado
depois do trabalho duro, adormeceu sozinho e, ao acordar a meio da noite, não a
viu ao lado, arrombou a porta da sauna e tirou-a de lá em braços. Voske, caindo,
bateu na portinhola do fogão, esta abriu-se, e algumas brasas que não se
apagaram no chão húmido queimaram os seus divinos caracóis cor de mel.
— A maldição da Tatevik atingiu-nos! — chorava alto a velhinha babó Mané,
elevando aos céus as mãos morenas e tortas; naquela altura já tinha mais de cem
anos e, meio cega, enfermiça e débil, passava dias inteiros na otomana,
entrincheirada no meio dos mutakas9 e, des ando as contas transparentes do
rosário, sussurrava orações. A morte de Voske obrigou-a a levantar-se e a
carregar nos ombros curvos a lida da casa; viveu ainda cinco anos e morreu nos
tempos em que grassava uma fome pavorosa, depois de fazer o funeral das
bisnetas mais velhas mortas por subnutrição. Salomé foi a primeira a apagar-se,
Nazeli morreu no dia seguinte, meteram as raparigas no mesmo caixão,
cobriram-nas com os seus cabelos compridos — a fome, além da saúde e da
beleza, roubara-lhes as tranças bastas, cor de mel, como as da mãe. A babó Mané
lavou as tranças em água de lavanda, secou-as à corrente de ar, penteou-as e
cobriu, como com dois mantos, os corpos das bisnetinhas emaciados até à
transparência.
Kapiton levou a lha mais nova para o vale e deixou-a a uns parentes
afastados, entregando-lhes o escrínio com as joias de Voske e o dinheiro
poupado durante todos aqueles anos de trabalho duro na lavoura: quarenta e
três moedas de ouro. De cada vez que Anatólia fechava os olhos, o pai surgia à
sua vista interior: uma carga de ossos de faces cavadas e olhos apagados, um
homem ainda novo que, em curto prazo, se transformara num velho gasto, e ela
retinha o fôlego para que a dor terri cante que a dilacerava por dentro não a
zesse chorar ao recordar como o pai a apertava ao peito e lhe sussurrava ao
ouvido: ao menos tu, minha lha, ca viva; e como saiu de casa, fechando bem a
porta, para nunca mais voltar, nunca.
Anatólia regressou a Maran sete longos anos depois; naquele tempo, a família
que lhe dera abrigo já desbaratara as joias da mãe, e a única que restou a
Anatólia foi um camafeu de madrepérola natural, delicadamente rosada e
matizada de bege, com a artística gura talhada de uma jovem sentada de per l
num minúsculo banco sob os ramos de salgueiro, olhando para alguém ao
longe. No vale, nos anos que lá passou, Anatólia aprendeu muita coisa, em
primeiro lugar a ler, a escrever e a fazer contas; não que a mandassem à escola,
justi cando-o com a falta de dinheiro, mas a mulher do tio em terceiro grau,
desgraçada e submissa, desempenhando na família o papel de criada de servir, e
não de dona da casa, condenada a suportar durante toda a vida os desatinos
bêbedos do marido e dos lhos, ensinou a Anatólia tudo o que sabia. Nunca a
tratou mal, era muito carinhosa e atenta com ela, defendia-a da grosseria e da
rudeza dos primos, e antes de se nar — teve uma longa e dolorosa morte, por
via de uma qualquer doença desconhecida que lhe ia destruindo lentamente a
saúde —, mandou Anatólia, com dezanove anos, num furgão dos correios, de
volta para Maran.
Por esta altura, Anatólia já era uma rapariga bonita — olhos negro-azulados,
herdados do avô, pele olivácea, os caracóis da mãe, compridos, até meio da
cintura, inesperadamente cor de linho, com laivos de mel. Fazia uma trança
grossa, dispunha-a na nuca num puxo pesado e andava como Voske, empinando
ligeiramente a cabeça. A mãe velhinha de Iassaman, ao vê-la depois de tantos
anos, soltou um «ah!» e levou a mão ao coração: estás muito parecida com
ambos os teus pais, como se unisses as suas almas desgraçadas na tua! Anatólia
cou muito feliz ao ver que os vizinhos tinham sobrevivido à fome. Iassaman,
vinte e dois anos mais velha do que ela, já avó do primeiro neto, ofereceu-se,
juntamente com o marido Ovanés, a pôr em ordem a casa decrépita de Anatólia
e a tratar da horta. Reforçaram com escoras a parede traseira, tiraram os aros
ressequidos das janelas e puseram outros novos, remendaram o chão concavado
do terraço. Pouco a pouco, Anatólia afeiçoou-se sinceramente a eles, e este
sentimento era recíproco. Ovanés tratava com carinho e atenção paternal
Anatólia, única lha sobrevivente do vizinho e amigo; quanto a Iassaman,
tornou-se tudo para ela — mãe, irmã, amiga, ombro em que podia apoiar-se
quando a vida se tornava insuportável.
Durante os anos que viveu no vale, Anatólia desacostumou-se do duro
trabalho da aldeia, e decorreu bastante tempo antes de aprender de novo a tratar
da horta, a cozinhar e a arrumar a casa. Para facilitar a sua vida, fechou a
maioria das salas, deixando para si o quarto dos pais, a sala de estar e a cozinha;
contudo, de duas em duas semanas, era obrigada a arrumar toda a casa, a limpar
o pó, a arejar ao sol ou ao frio invernal fresco e rescendente a geada os cobertores
pesados de lã de ovelha, as almofadas, os mutakas e os tapetes. Pouco a pouco,
arranjou uns galináceos — Iassaman ofereceu-lhe uma galinha que, nos
primeiros tempos, continuou a viver na velha capoeira para não car sem galo.
Mas depois, quando a galinha chocou os ovos, Anatólia levou-a com toda a
ninhada irrequieta e pipilante para a sua casa, e um dos pintainhos, brigão e
caprichoso desde os primeiros dias de vida, transformou-se num belo galo, um
verdadeiro femeeiro que cobria de bom grado não só o seu próprio harém, mas
também a galinhada das casas vizinhas, pelo que, por mais de uma vez, entrava
em brigas sangrentas, saindo delas, aliás, sempre vencedor, cacarejando depois
longamente em cima da cerca e lançando o pavor aos seus adversários
derrubados. Depois, Anatólia arranjou uma cabra, aprendeu a preparar o
matsun10 e, corretamente, a brinza11 — macia, húmida ao corte. Nos primeiros
tempos, cozeu pão sob a vigilância de Iassamat, depois assentou a mão e já
conseguia fazê-lo sozinha. Aos domingos, de manhã cedo, ia ao cemitério e à
capela, para alembrar os familiares. Durante os anos da sua ausência, o cemitério
duplicara de tamanho. Anatólia passava ao longo das silentes cruzes de pedra,
lendo nelas os nomes de famílias inteiras.
Meio ano depois do seu regresso, arranjou trabalho na biblioteca. Foi
admitida apesar de não ter formação, simplesmente porque não havia mais
ninguém — a antiga bibliotecária não sobrevivera à fome, e, com um salário tão
miserável para passar cinco dias por semana num recinto cheio de prateleiras de
livros cobertos de pó, não encontraram ninguém que aceitasse o lugar. Já não
havia crianças em Maran, a única sobrevivente, um neto de Melikants Vanó,
acabava de fazer cinco anos, e a escola e a biblioteca construídas pouco antes dos
anos da fome estavam praticamente vazias. Mas Anatólia não desanimou: a vida
abriria caminho por todo o lado, uma nova geração de crianças não tardaria a
nascer, e tudo voltaria à normalidade.
A biblioteca pareceu-lhe um paraíso onde podia descansar da quotidiana e
monótona lida da casa. Anatólia lavou com cuidado as prateleiras, encerou-as
até ao brilho com cera caseira, pôs em ordem as chas dos leitores, dispôs os
livros de outro modo, menoscabando os códigos e a ordem alfabética, e
orientando-se exclusivamente pelas suas preferências de cor: em baixo, os livros
de capas escuras, em cima, os de capas claras. Introduziu plantas na biblioteca: a
ervilha-de-cheiro, o aloé e o gerânio, no lugar de vasos utilizou os jarros de
barro com gargalos largos, abandonados inutilmente na cave; apenas passou pela
o cina do carpinteiro Minas e pediu que lhes zesse uns buraquinhos no fundo
para a drenagem. O ajudante de Minas, homenzinho troncudo e baixote, viúvo
sem lhos que, nos anos da fome, perdera toda a sua família, cou de olho nela.
Levou pessoalmente os jarros à biblioteca, depois ainda passou por lá várias
vezes, supostamente para perguntar se Anatólia precisava de ajuda, cava lá até
tarde sem desviar os olhos de uma Anatólia envergonhada e, um mês depois,
apresentou-se em casa dela para a pedir em casamento. Anatólia não gostava
dele, sabia que nunca o iria amar, mas aceitou o pedido, simplesmente porque
não havia ninguém mais, não havia na aldeia homens livres ou, dos que havia,
nenhum tinha a idade adequada: ou eram demasiado jovens ou demasiado
velhos. O matrimónio foi infeliz, e Anatólia, nos dezoito longos anos vividos
com o marido nunca recebeu uma palavra de carinho, um gesto atencioso. O
homem era uma pessoa incrivelmente insensível e indiferente, era desajeitado e
pouco compreensivo na cama, aos pedidos tímidos de Anatólia para ser um
pouco mais terno respondia com gargalhadas grosseiras, muitas vezes tomava-a
à força — e ela, depois disso, cava prostrada, impregnada do cheiro a suor do
corpo sujo dele, e, engolindo as lágrimas, sentia um ódio profundo a si mesma.
O destino recusou-lhe o seu único sonho, o de ter lhos e se dedicar à sua
educação: não conseguia engravidar. O marido, de início, apenas a acusava de
ser estéril, mas, com a passagem dos anos, tornou-se cada vez mais soturno e
mais intolerante; e, fora de si com a submissão tácita dela, enfurecia-se,
acabando por ganhar o hábito de se embebedar e de lhe bater, de a atirar por
terra e a arrastar pelas tranças por toda a casa, sem falhar nenhuma sala; depois
fechava-a até de manhã na arrecadação húmida. Cada vez mais implacável,
algum dia tê-la-ia matado se não tivesse medo do grandalhão Ovanés que, ao
reparar uma vez numa equimose na maçã do rosto de Anatólia, não disse nada,
mas foi diretamente à o cina, arrancou o homem de trás da bancada de
carpinteiro, arrastou-o pelo cachaço através do pátio e lançou-o para cima da
pilha de lenha. Foi-se embora, chispando dos olhos:
— Se mais alguma vez levantares a mão contra ela, mato-te sem mais
conversas, ouviste?
A proteção de Ovanés salvou a vida de Anatólia, mas transformou os seus dias
numa insuportável tortura — agora o marido martirizava-a com esmeros, num
silêncio absoluto: torcia-lhe as mãos, batia-lhe nas articulações para que não se
vissem as marcas, atormentava-a com críticas ofensivas, achincalhava-a.
Anatólia suportava tudo em silêncio, não se queixava, com medo de que Ovanés
cumprisse o prometido e matasse o seu imprestável marido. Não queria fazer
mal a ninguém.
O único escape na sua vida desgraçada era a leitura. Nos primeiros anos,
quando a biblioteca estava sempre deserta, entregava-se ao seu passatempo
preferido durante todas as horas de trabalho. Pouco a pouco, graças a um bom
gosto inato, aprendeu a distinguir a boa literatura da fraca, apaixonou-se pelos
clássicos russos e franceses, mas ganhou um ódio incondicional e eterno ao
conde Tolstói — isto logo depois de ter lido Anna Karénina. Ao entrever na sua
atitude pelas heroínas dos seus livros uma desumanidade e uma arrogância
insuportáveis, passou a quali car o conde como uma pessoa arbitrária e
despótica, e guardou os grossos volumes dos seus livros longe dos olhos — para
que não a desanimassem. Levada pela crueldade do marido até ao último grau
de desespero, não desejava de maneira nenhuma resignar-se a esta injustiça
também nas páginas dos livros.
Nas horas em que não lia, Anatólia arranjava a biblioteca, queria-a bonita e
acolhedora: pôs nas janelas uns estores leves de chita, de meio comprimento,
para não privar as plantas da luz do sol, trouxe de casa um tapete e estendeu-o
ao longo da parede com retratos de escritores, enfeitou os assentos incómodos
dos bancos corridos com almofadas de cores alegres que ela própria costurou
com retalhos multicores.
A biblioteca parecia agora, ao mesmo tempo, uma sala de leitura e uma estufa
bem cuidada: todos os peitoris de janelas e as passagens entre as prateleiras
estavam cheios de jarros e vasos com plantas; Anatólia trouxe da antiga herdade
de Archak-bek (que agora era a Casa da Cultura entaipada e esquecida) oito
vasos da pseudo-Antiguidade clássica e plantou neles rosas-chá, madressilva
fragrante e lírios-do-monte. As rosas oriam desordenadamente e cheiravam
tanto que atraíam as abelhas; estas entravam pelos postigos abertos e, depois de
procurarem algum tempo o caminho até às rosas nas pregas das cortinas de
chita, encontravam-no infalivelmente. Colhiam o pólen, iam-se embora, depois
voltavam. Num dia de outono, todo um enxame, atraído pelo aroma amargo-
doce dos frutos de madressilva, entrou pela janela e, metendo-se atrás de uma
trave do teto, tencionou, pelos vistos, instalar-se ali para sempre. Anatólia viu-
se obrigada a percorrer toda a aldeia à procura do colmeal de onde as abelhas
fugiram. Na arrecadação da cave surgiu um grande formigueiro — os trajetos
de formigas, serpenteando, estendiam-se pelas tábuas até à porta de entrada e
desapareciam atrás da soleira. Todo o perímetro da cornija do telhado estava
cheio de ninhos de andorinhas que, ano após ano, iam ali criar os lhotes. No
outono, logo depois da partida das aves, Anatólia era obrigada a lavar com uma
vassoura enrolada em trapos as paredes exteriores cobertas de esterco e outra
sujidade. Uma vez encontrou um ninho de pardais dentro da chaminé e foi
obrigada a esperar até ao momento de as crias nascerem, ganharem forças e
partirem, e só depois disso, com cuidado, retirou o ninho e levou-o para uma
árvore, onde o acomodou. De outro modo, havia o risco de os pardais
abandonarem o ninho e, assim, enjeitarem os ovos ainda não chocados.
Com o tempo, a biblioteca começou a lembrar uma Babilónia de criaturas
vivas: qualquer passarinho, qualquer bichinho encontrava nela um abrigo e ali
procriava com uma espantosa aplicação. Anatólia punha nos peitoris pires com
água açucarada para borboletas e joaninhas, construiu vários comedouros para
pássaros e plantou no pátio uma pequena horta, alegria das formigas. Assim,
folheando os livros adorados com encadernações cheirando a couro, passava no
trabalho os seus dias a mulher privada de lhos e de felicidade, mas rodeada de
criaturas inocentes; e, na casa paterna, passava-os sujeita ao ódio do esposo, que
a martirizava.
Algum tempo depois, a escola conseguiu arranjar alunos para a primeira
classe, e os pequenos leitores apareceram nalmente na biblioteca. Anatólia
descarregou neles todo o amor materno que nela acumulara em vão. Na mesa,
ao lado da caixa de madeira com as chas dos leitores, tinha sempre uma taça
com fruta seca e bolachas caseiras. Quando as crianças pediam alguma coisa para
beber, dava-lhes chá ou calda de fruta cozida. Divertia-as com histórias que
tinha lido ou que ela própria inventava. Os adultos quase nunca iam à
biblioteca, não tinham tempo para os livros, mas as crianças — cómicas,
curiosas, de olhos que apanhavam tudo — passavam lá horas a o. Com um
cuidado comovente, vagueavam entre os vasos com plantas, cheirando cada or,
observando o voo das abelhas; acrescentavam mais água açucarada nos pires,
liam, faziam os trabalhos de casa, não parando de a metralhar com perguntas.
Quando se despediam, nunca deixavam de lhe expor uma bochecha para o beijo.
Anatólia acreditava sinceramente que o amor das crianças era uma consolação
que o céu lhe mandava para a sua esterilidade.
— Que seja pelo menos assim — concordava, submissa, com o seu destino.
A torturante e dura vida pessoal que, durante dezoito anos, rolava para o
abismo, acabou numa grande tragédia. O marido, enfurecido porque toda a
gente tratava Anatólia com carinho, decidiu estragar-lhe a vida de nitivamente
e, um dia, exigiu que se despedisse do trabalho. Anatólia, normalmente
cordata, dessa vez respondeu, inesperadamente para si própria, com uma recusa
resoluta. E, quando o homem levantou a mão para ela, ameaçou-o que se
queixaria a Ovanés.
— Que ele te dê uma boa ensinadela — disparou fora de si. — E se não
ganhares juízo, divorcio-me de ti. Lembra-te, em casa do meu pai nunca mais
levantas a mão contra mim!
O marido estreitou malevolamente os olhos e não respondeu. Mas, quando
Anatólia foi para o trabalho, arrasou a casa: arrancou as portas de todas as salas,
partiu os móveis à machadada, não poupou sequer o baú onde Anatólia
guardava como à menina dos seus olhos os vestidinhos, sapatos e brinquedos das
irmãs falecidas, cobertos com lavanda e folhas de menta.
Ao ouvir barulho, Iassaman teve medo de entrar na casa, mandou o neto à
biblioteca para avisar a amiga e foi buscar o marido, correndo para a outra
extremidade da aldeia. Quando o ofegante Ovanés chegou ao lugar, Anatólia,
espancada e semimorta, estava prostrada sem sentidos no chão da sala de estar;
e, no tampo liso da mesa oval havia duas mossas profundas de machadadas — o
marido, enfurecido, deitara-a em cima da mesa e cortara de raiz as suas
maravilhosas tranças cor de mel, gritando-lhe na cara com alegria maldosa:
«Agora vais esticar o pernil sem esse teu cabelo!» E fugiu, levando todas as
parcas poupanças da mulher. A perseguição não deu resultado: o homem
conseguiu partir num furgão dos correios para o vale, onde desapareceu sem
deixar rasto. E nunca daria notícias.
Iassaman tratou a amiga com rezas e infusões medicinais. A aldeia, abalada
com o acontecimento, vivia numa silenciosa e preocupada espera — todos se
lembravam da maldição lançada por Tatevik à família de Voske e Kapiton. Mas
Anatólia, para alívio de todos, convalesceu rapidamente e voltou ao trabalho.
Ainda lhe doeu o corpo durante muito tempo, sobretudo quando o tempo
mudava, e a vista piorou-lhe por causa do golpe na cabeça, tendo ela de ir ao
vale encomendar uns óculos, mas Anatólia não se queixava e até parecia feliz
porque se libertara nalmente do medo sufocante que a tinha perseguido
durante os longos anos de casada.
O velho Minas esperou até ela convalescer, foi visitá-la e, suspirando com
vergonha, pediu-lhe desculpa pelo seu ajudante desencaminhado; e ofereceu-se
para consertar os móveis estragados, mas Anatólia recusou-se a recuperar tudo
aquilo. Foi retirando aos poucos os móveis desfeitos da casa e queimou-os. A
única coisa que deixou foi a mesa oval de carvalho ebanizado com as marcas do
machado. Ovanés trouxe-lhe um pequeno guarda-roupa, Eibogants Valinka
ofereceu-lhe uma cama e uma otomana, e Iakulitchants Magtakhiné uma
grande arca de madeira. Minas consertou as portas interiores e pintou as tábuas
do soalho. Não restava nada do antigo interior rico da casa, mas Anatólia não se
entristecia com o aspeto agora pobre da habitação, sabia sempre satisfazer-se
com o mínimo. Estava até felicíssima porque, por milagre, o álbum das
fotogra as se salvara: antes da tragédia levara-o para o trabalho com a intenção
de lhe restaurar a lombada e esquecera-o lá, em cima da mesa.
Faltavam cinco anos até à guerra que, como uma iminente ameaça, pairava
sobre o vale, e Anatólia viveu todos esses anos num sossego despreocupado e
delicioso. Passava as horas diurnas na biblioteca e, as tardes, em casa dela ou na
de Iassaman; aos ns de semana, visitava os familiares que repousavam no
cemitério: o chorão plantado na campa do pai cresceu, pendeu por cima das
cruzes de pedra os seus ramos longos e nos, ramalhava orações in nitas com as
folhas verde-prateadas. Anatólia acomodava-se entre as lajes tumulares e cava
ali, se o tempo o permitisse, até muito tarde, até ao pôr do sol lilacíneo. Às
vezes adormecia, encostando a cabeça à pedra fresca da cruz. À esquerda jaziam
a mãe e o pai, à direita, as irmãs e a babó Mané, e Anatólia sentava-se, abraçando
os joelhos, e contava-lhes histórias felizes: sobre as crianças que, graças a Deus,
nasciam cada vez mais todos os anos, sobre as rosas-chá que atraíam com o seu
aroma enxames inteiros de abelhas, sobre os carreiros das formigas que se
estendiam, em minúsculo pesponto, saindo de baixo do soalho e esticando-se
até à soleira da biblioteca.
Assim vivia e envelhecia, constante e lentamente, rodeada pelos fantasmas
queridos ao seu coração, solitária mas na felicidade da paz e sossego. Iassaman,
preocupada com a solidão da amiga, insinuou-lhe várias vezes que não seria mau
se voltasse a casar-se, mas Anatólia abanava negativamente a cabeça: já era tarde
e também não valia a pena: dera-lhe o primeiro marido alguma alegria? Então,
porque poderia esperá-la de outro?
A guerra aconteceu no ano em que ela fez quarenta e dois. Primeiro,
começaram a chegar do vale vagas notícias sobre tiroteios, depois Ovanés, que
lia os jornais com muita atenção, espalhou informações mais alarmantes. A
julgar pelas notícias de última hora sobre os combates, a situação estava péssima
nas fronteiras, primeiro na do Leste, depois na do Sudoeste. No inverno, chegou
a informação sobre a mobilização geral e, passado um mês, todos os homens de
Maran capazes de segurarem armas nas mãos foram levados para a frente.
Depois, a guerra chegou realmente ao vale. Esticou-se como uma gigantesca
fera de colmilhos a ados, girando e apanhando no seu monstruoso turbilhão as
casas e as pessoas. O declive do Manich-Kar, pelo qual serpenteava o único
caminho até Maran, cobriu-se de buracos, vestígios dos tiros de obuses. A aldeia
mergulhou por longos anos nas trevas, na fome e no frio. Os bombardeamentos
rasgaram as linhas elétricas e quebraram os vidros das janelas. Foi preciso esticar
nos caixilhos folhas de polietileno, não havia maneira de arranjar vidros novos
nem faria sentido instalá-los, sabendo-se já que o próximo bombardeio iria
convertê-los em montões de estilhaços. Os bombardeamentos eram ainda mais
implacáveis na época das sementeiras, intencionalmente, para impedir o
trabalho nos campos, e a produção das hortas, de tão miserável, dava para pouco
tempo. Era praticamente impossível arranjar lenha para aquecer fogões e, pelo
menos, mitigar um pouco o martírio do frio, porque a oresta estava cheia de
grupos armados que não poupavam ninguém, nem mulheres, nem velhos.
Foram obrigados a aquecer as casas queimando cercas e paliçadas e, depois, os
sótãos e as barracas, acabando até por desmontar os terraços de madeira.
O primeiro inverno foi o mais torturante. Anatólia teve de passar a viver na
cozinha, mais perto do fogão. No resto da casa era impossível aguentar sem
aquecimento: as janelas com aquela película de plástico a servir de vidro não
protegiam da humidade e do frio, as paredes e os tetos cobriram-se de uma
grossa camada de gelo que, se surgisse algum calor, se derretia e formava
charcos nos móveis, cobertores e tapetes, estragando-os irrecuperavelmente. As
poucas reservas de querosene para os candeeiros esgotavam-se depressa, a seguir
gastavam-se as velas. Com a chegada do frio, a escola foi fechada, a biblioteca,
vazia, também não funcionava. Anatólia carregou um carrinho de mão com os
livros que tencionava reler durante o inverno, e também com as plantas
envasadas, e levou tudo isso para casa, onde havia um mínimo de calor. Fez uma
divisória num canto da cozinha, cobriu o chão de palha e pôs lá a cabra prenha
que, em nais de janeiro, pariu dois cabritos. Assim passou Anatólia aquele
inverno frio que nunca mais acabava — ao lado do fogão, rodeada de plantas,
dos livros preferidos e das cabras que soltavam balidos curtos. Tomava banho
por partes, numa tina de madeira: primeiro, lavava a cabeça, depois a parte
superior do corpo, depois o resto. Fazia as abluções virando-se pudicamente de
costas para as cabras. Como era um inverno de muita neve, não era preciso ir
buscar água à nascente, e Anatólia enchia baldes com neve, deixando uma parte
a repousar, para beber e cozinhar, e aquecia outra parte no fogão para a lavagem
da roupa e da loiça. Às quintas e sextas-feiras, era preciso levar a água das
lavagens para o terraço, pô-la ao ar frio e só mais tarde despejá-la. Pelo costume
antigo, cumprido rigorosamente em Maran, às quintas e sextas estava interdito
despejar água quente na terra — para não queimar os pés de Cristo.
Os dias invernais eram tão parecidos uns com os outros como as contas
transparentes do rosário da babó Mané, de que Anatólia nunca se separava. De
manhã, ia ao galinheiro, para dar a ração às aves e recolher os ovos, depois dava
de comer às cabras, arrumava a cozinha e preparava alguma comida rápida, e
seguia-se o mergulho na leitura durante o curto e sombrio dia. Quando chegava
a escuridão da noite, dormitava na otomana, agasalhada em vários cobertores,
ou deixava-se car deitada, sem sono, olhando para a luz cada vez mais fraca das
brasas através da pequena abertura da porta do fogão. O álbum com as
fotogra as dos familiares estava-lhe sempre à mão, folheava-o, limpando as
lágrimas com a manga, sempre calada. Não tinha nada para lhes contar, e não
queria incomodá-los com queixumes.
A primavera chegou um pouco atrasada, só em meados de março a extenuada
aldeia de Maran suspirou nalmente de alívio, fez ranger portas e cancelas,
abriu as janelas, deixando entrar nas casas a luz do sol. A alegria de que o
inverno gélido e sem vislumbres de esperança acabara, até que en m, foi tão
grande, que abafou em todos o medo da morte. Os maranenses estavam tão
habituados aos bombardeamentos, que, sem lhes prestarem atenção, se puseram
a tratar das suas vidas, e o trabalho não era pouco. Ninguém previra sequer que
o frio e a humidade, ao penetrarem nas casas, pudessem causar tantos danos aos
haveres. Foi preciso arejar bem e secar as salas húmidas para levar de vencida
um bolor ubíquo que conseguira en ar-se em todos os baús e guarda-vestidos.
Foi preciso tratar as paredes, os soalhos e os móveis com soluções de alúmen e
caparrosa; e, quanto à lavagem das roupas, foi tarefa para um mês inteiro
porque foi necessária a barrela de tudo, desde a roupa de cama e vestidos até aos
tapetes e alcatifas. O trabalho era tanto que Anatólia só conseguiu ir à
biblioteca no m de abril, quando os bombardeamentos caram menos intensos
e a escola recomeçou as aulas.
Anatólia esfregou a face contra a almofada e suspirou com amargura,
reprimindo as lágrimas. Muitos anos se passaram desde aquele dia, mas de cada
vez que recordava o estado catastró co em que fora encontrar a biblioteca
custava-lhe muito ultrapassar aquela dor de alma tão profunda. A humidade,
depois de entrar pelas janelas tapadas com a frágil película de plástico, alastrou
por todo o lado, até às mais altas prateleiras, cobrindo com manchas
monstruosas de bolor as encadernações de couro e as folhas amarelecidas e
encarquilhadas dos livros. Santo Deus, santo Deus, chorava Anatólia, passando
ao longo das prateleiras cheias de cadáveres de livros, o que eu z, porque foi
que não os protegi?
A diretora da escola, passando pela biblioteca, encontrou-a à porta. Anatólia
estava sentada, agarrava-se à cabeça com as mãos e, baloiçando o corpo,
desconsolada, chorava baba e ranho, como uma criança. A diretora, senhora
corpulenta de certa idade, de pesada mandíbula masculina e ombros possantes,
ouviu em silêncio as suas explicações incoerentes, depois passeou-se pela
biblioteca, tirou à sorte vários livros das prateleiras, folheou-os e abanou a
cabeça. Pô-los no lugar, cheirou os dedos, franziu a cara. Pegou no lenço e,
enojada, limpou as mãos.
— Ouve, Anatólia, o que podias tu fazer? Os livros não tinham hipótese de
sobreviver.
— Mas como foi possível? Como? A antiga bibliotecária salvou-os nos tempos
da fome, e eu não o z durante a guerra.
— Naquela altura as janelas tinham os vidros, mas agora… Quem podia
prever tudo isso?
Anatólia lançou-se numa tentativa desesperada de salvar os livros. Muniu-se
de um rolo de corda, estendeu uma dúzia delas no pátio. Pendurou os livros em
todas as cordas, com a esperança de que o sol e o vento secassem aquela
humidade e de que, depois, talvez se arranjasse maneira de restaurar os livros. O
estendal, visto de lado, lembrava um bando de pássaros multicores esvoaçantes
por cima do pátio da biblioteca — um bando que voou e parou no ar, baixando
com tristeza as asas sem préstimo. Anatólia andava pelo meio dessas las, mexia
nas páginas. Passou a noite na biblioteca, não fosse cair chuva. No segundo dia,
os livros encarquilharam-se ainda mais e começaram a perder as páginas, como
folhas de outono. Anatólia tirou os livros, despejou-os para o lado de fora da
cerca, fechou a biblioteca à chave e nunca mais lá voltou.
Correram mais sete anos duros, e a guerra terminou, levando consigo a
geração jovem. Uns morreram, outros, para salvar as famílias, partiram para
terras mais calmas e prósperas. Quando Anatólia fez os seus cinquenta e oito
anos, só os velhos continuavam a viver em Maran, não queriam abandonar a
terra onde jaziam os seus antepassados. Sendo embora a mais nova moradora da
aldeia, Anatólia, pelo seu aspeto físico, em nada diferia, por exemplo, de
Iassaman, que poderia ser mãe dela. Usava, como todas as velhas, vestidos de lã
compridos e avental, cobria o cabelo com um lenço que atava em nó so sticado
na nuca. Na gola do vestido abotoado até ao pescoço trazia sempre o camafeu, a
única joia da mãe que lhe restava. Nenhum maranense alimentava a esperança
de que a vida algum dia mudasse para melhor. A aldeia submissa e condenada
vivia os seus últimos anos e, com ela, Anatólia.
A noite meridional diluiu-se do outro lado da janela, afagando o peitoril com
tímidos raios de luar, e narrava, a compasso do suave canto do grilo, os sonhos
do mundo. Anatólia, deitada em cima das almofadas, apertava ao peito o álbum
com as fotogra as dos familiares e chorava.

1 Gulpas — meias grossas (arménio [arm]). (NT)


2 Voske — dourada (arm.). (NT)
3 Meidan — praça central nas pequenas povoações, espaço de reuniões dos habitantes locais (arm.). (NT)
4 Enbachti — espaço do tempo entre as 3 horas de madrugada e as 6 de manhã (arm.). (NT)
5 Erdik — janela no teto do quarto (arm.). (NT)
6 Mintana — vestido de gala (arm.). (NT)
7 Zurná — instrumento musical de sopro entre os povos do Cáucaso e da Ásia Central. (NT)
8 Babó — forma respeitosa de tratamento de uma parente idosa. (NT)
9 Mutaka — travesseiro de divã (arm.). (NT)
10 Matsun — laticínio que, pelo seu sabor, se assemelha ao leite coalhado. (NT)
11 Brinza — queijo de leite de ovelha. (NT)
CAPÍTULO 2

Chalvarants Ovanés, trincolejando fragorosamente com o garfo, estava a bater


gemas com açúcar para preparar uma rica espuma de gógol-mógol12. Todas as
manhãs, independentemente da estação do ano, das circunstâncias e mesmo do
seu estado de saúde, comia ao pequeno-almoço o seu prato preferido, depois
preparava chá forte com tomilho, enrolava um cigarro e fumava-o com prazer,
contemplando o vapor quente e aromático que se levantava sobre a chávena de
ancas redondas.
Era preciso ser poupado com o papel para os cigarros improvisados. Dantes,
nada disso acontecia — no vale, podia faltar tudo menos a imprensa atoleimada.
O furgão dos correios, bufando com esforço, rodava cinco vezes por semana pelo
declive do Manich-Kar, transportando grandes resmas de jornais ainda com o
cheiro húmido da tinta tipográ ca. Ovanés passava os olhos, honestamente, por
cada página. Todos os títulos eram berrantes, o conteúdo sempre oco, o que
reforçava a opinião de Ovanés: qualquer palavra impressa, em comparação com
a palavra dita, é zero.
— É melhor pensar cem vezes e depois dizer uma vez do que propagar
irre etidamente cada disparate — resmungava um irritado Ovanés, restolhando
com as folhas dos jornais.
— Mas talvez eles pensassem cem vezes antes de imprimir? — objetava
Iassaman.
— Se ponderassem cem vezes cada palavra, os jornais sairiam uma vez por
mês, no melhor dos casos. Será possível criar num dia tantas páginas com coisas
inteligentes?
— É impossível.
— Isso mesmo!
Aliás, o conteúdo fútil da folha de jornal não in uenciava a qualidade
gustativa do tabaco, pelo que Ovanés continuava a encomendar a imprensa.
Infelizmente, com o início da guerra era cada vez mais raro que o furgão dos
correios subisse o declive do Manich-Kar, até deixar de aparecer — no vale,
aconteciam grandes falhas no fornecimento de combustível, e este era
canalizado para necessidades mais importantes e imprescindíveis.
Com a cessação do trabalho dos correios, começaram os problemas com o
papel. Desenvencilhavam-se de todas as maneiras. Primeiro, utilizavam os
jornais velhos, depois os livros estragados que Sevoiants Anatólia, em desespero,
amontoara atrás da cerca da biblioteca. Os velhos levaram os volumes de
Shakespeare, Tchékhov, Dostoiévski, Faulkner e Balzac, cobertos de mofo,
cheirando a humidade e a silêncio triste. As grossas capas dos livros foram
utilizadas como bases para os tachos quentes tirados do lume, e as páginas
estragadas como acendalhas e para outras necessidades domésticas. Os cigarros
enrolados neste papel sabiam a amargo, fumegavam e estavam sempre a apagar-
se. Chalvarants Ovanés semicerrava os olhos e praguejava, não parava,
queimando-se, de os reacender nas brasas que tinha de tirar do forno de cada vez
— na aldeia, os fósforos também estavam em dé ce, era necessário poupá-los.
A guerra, que durante oito anos insuportáveis fez pelo mundo a sua colheita
de almas humanas, sufocou nalmente e recuou, uivando e lambendo as patas
em sangue. Como antes, faltava o combustível, mas a vida começou a
regularizar-se pouco a pouco, voltando a entrar nos eixos, embora a grande
custo. Só que estas mudanças, por qualquer razão, não abrangiam Maran —
ninguém se lembrava nem tencionava lembrar-se da aldeia. O único carro que
subia à aldeia era a ambulância, só possível de chamar por telegrama urgente —
Maran não tinha outra ligação com o mundo. Pelos vistos, há muito que no vale
tinham decidido esquecer um punhado de velhos teimosos que, em tempos, se
recusaram a descer do cocuruto do Manich-Kar e instalar-se em baixo.
Agora era o carteiro Mamikon que ajudava com o papel. A cada duas semanas
(ou mais, só quando havia cartas, muito raras), trazia na sua bolsa a tiracolo
maços de prospetos de publicidade absolutamente inúteis e que abarrotavam o
vale, e deixava-os nos Correios. A telegra sta Satenik dividia os prospetos em
vinte e três partes iguais, de acordo com o número de casas habitadas da aldeia,
e punha-os no balcão, ao lado da janela. Até à noite, os moradores levavam
tudo.
Antes de enrolar no papel publicitário mais uma porção de tabaco, Ovanés
estudava com atenção a folha. A julgar pelo conteúdo, a quantidade de ideias
inteligentes dos habitantes do vale não aumentara, antes pelo contrário. Isto
porque, vistas as coisas pelo conteúdo destas folhas, aquela gente passava agora
a vida a ir às bruxas para lançar feitiços aos namorados, a pedir dinheiro
emprestado aos bancos para comprar tralha desnecessária e a tosquiar os animais
de estimação em cabeleireiros especializados caríssimos.
— Se Deus quiser castigar o homem, priva-o, em primeiro lugar, da razão —
abanava a cabeça Ovanés, aspirando o fumo amargo do tabaco.
Cultivava o seu próprio tabaco num lote de terra abandonado que pertencera
dantes ao seu irmão. O irmão falecera havia muito, os lhos dele dispersaram-se
pelo mundo, e a terra deixada sem cuidados dos homens não tardou a ser
invadida pelas ervas daninhas e pela alpista-brava. Assim, Ovanés resolveu
cultivar lá o tabaco — era bom para a terra e uma alegria para Iassaman: deste
modo, cava livre uma parte da sua horta onde poderia plantar batatas. Para
secar o tabaco, destinou o terraço: cravou pregos em ambas as extremidades e
transformou-os em ganchos dobrando-os ao meio. Conforme o amadurecimento
do tabaco, colhia as folhas, obrigatoriamente à noite, para que tivessem o
mínimo de humidade, depois en ava as folhas em cordas com a ajuda de uma
agulha, estendia-as em molduras portáteis que levava a madurar para uma
divisão escura de casa. Depois punha as molduras no terraço ensolarado,
estendia nos ganchos as cordas com as folhas amarelecidas e deixava-as lá para
secarem completamente.
O resultado era um excelente tabaco — aromático, macio, ligeiramente
amargo. Aos sábados, quando no meidan da aldeia se fazia uma pequena feira,
Ovanés punha as folhas secas de tabaco numa cesta, levava ainda o jogo de
gamão e ia fazer o seu comércio. Iassaman caminhava solenemente ao seu lado,
pequena, ágil, de lenço bonito e avental de seda festivo. Punha este avental só
nos dias das festas religiosas e aos ns de semana: no sábado, para ir ao meidan,
no domingo, para ir à capela assistir às raras missas matinais que o ter13 Azária
celebrava uma vez por mês, quando vinha à aldeia.
Aos sábados, se o tempo o permitisse, toda a população da aldeia se juntava no
meidan. Cada um trazia os seus produtos: legumes, fruta e verduras da época,
queijo, manteiga, requeijão e natas azedas, carne seca com especiarias, ambre,
bolos simples. Era raro pagarem em dinheiro, praticavam a troca direta. Por
uma dezena de ovos de galinha podia-se obter uma faca, um par de sapatos
trekh14 podia ser trocado por um grvankan15 de queijo branco de ovelha ou por
três quartos de grvankan de queijo de cabra; um jarro de manteiga fervida a fogo
lento trocava-se por dois jarros de mel de ores; a lã bruta de uma ovelha
tosquiada trocava-se por quatro grvankan de queijo de ovelha.
Dantes, quando as economias agrícolas eram grandes e havia na aldeia
quinhentos fogos, o meidan juntava uma enorme multidão. As bancas estavam
atulhadas de todo o género de iguarias — leiras de laticínios, correntezas de
frutas… e a gritaria era tal que apetecia tapar os ouvidos. Por trás da praça, logo
a seguir às leiras de legumes, havia um curral onde reinavam regras de troca
especiais, rigorosas, estabelecidas pelos longínquos antepassados maranenses.
Por uma vaca, dava-se um cavalo, um mózi16 anejo trocava-se por duas ovelhas,
por um porco era possível obter uma ovelha e um carneiro, por uma vaca prenha
pela primeira vez, três cabras, mas pela vaca já parideira, um boi.
No dia de feira, chegavam as carroças cobertas dos zíngaros, numa la
comprida; os ciganos instalavam as suas tendas coloridas atrás da aldeia e
invadiam a feira numa multidão bulhenta e rutilante, regateavam sem freio,
tentavam sempre surripiar alguma coisinha, mas, apanhados em agrante, riam
e pagavam com moedas de ouro; depois dispersavam-se pelas casas e praticavam
a cartomancia e a pedincha de alguma roupinha velha e sem préstimo. Ao m
da tarde, terminada a mercancia, os ciganos partiam, deixando no local do
acampamento o cheiro a fumo das fogueiras e o eco longínquo das violas.
Nos dias das grandes festas, vinha um circo ambulante, explodia o ar com um
clamor de zurná, estendia por cima do meidan uma corda, punha os funâmbulos
a andarem no ar — equilibravam-se a uma altura tão grande que a gente cava
com a respiração presa; depois, largando as varas, executavam o salto mortal,
acertando de cada vez, numa impecável precisão, com as solas estreitas dos pés
na corda inquieta e que ameaçava fugir debaixo deles.
Em baixo, sobre tapetinhos descoloridos estendidos no pó do chão, estavam
sentados os encantadores de cobras, de caras escuras e olhos amarelos, e
sopravam nos seus púngui17 de cana, extraindo deles uns sons arrastados e
hipnóticos. Provocando nos espectadores um terror místico, as cobras
enfeitiçadas baloiçavam-se numa dança monótona. E por todo o lado, varrendo
o lixo da feira com as saias compridas, vagueavam as vendedoras de doces
orientais, apregoando tâmaras e bolinhos com caju, exótico nestas paragens.
Era o que acontecia, mas noutros tempos longínquos e incríveis. Agora,
esquecida por todos e para sempre, a aldeia dependurava-se, órfã como uma
canga sem carga, no ombro do Manich-Kar. O meidan encolheu-se até ao
tamanho de um dedal — vários balcões pobres mais o bater compassado dos
dados —, o dia corria em conversas ocas e em recordações, e à noite os velhos
dispersavam-se pelas casas sem terem vendido nada, levando a sua mercadoria
para casa, a troca não fazia sentido, já que todos tinham produtos iguais. Em
janeiro, restavam só Kudamants Vassíli e Chalvarants Ovanés: no primeiro,
podia-se a ar as alfaias de jardinagem embotadas, ou trocá-las por novas,
mediante algum pagamento adicional; no segundo, encher um saquinho com
tabaco.
Além da feira de sábado, era possível fazer compras na lojeca de Nemetsants
Mukutch. Este, duas vezes por semana, atrelava a carroça e ia ao vale, de onde
trazia um pouco de cada coisa: açúcar, sal, arroz, feijão, fósforos, sabão,
conservas de peixe, alguma roupa e calçado, obrigatoriamente por encomenda,
combinando a devolução se o tamanho estivesse errado. Ajudava muito no
tocante aos artigos de farmácia, ligaduras, algodão, iodo, permanganato de
potássio.
Na aldeia, as doenças eram curadas com remédios e infusões tradicionais
preparados por Chlapkants Iassaman. Os velhos olhavam para os medicamentos
da farmácia com descon ança e desaprovação.
Iassaman atarefava-se com as suas infusões todos os dias, sempre de
madrugada, antes do nascer do Sol, ou então depois do ocaso. Enquanto a
mulher preparava, numa divisão da cave, as suas ervas medicinais, Ovanés batia
duas gemas com açúcar (várias colheres de sopa) até formarem um creme
espesso e espumoso, preparava chá forte e depois fumava à janela aberta da
cozinha, contemplando os remendos pálidos do céu transparente emaranhados
nos ramos da amoreira.
— Ohai! — acompanhava ele cada gole com esta exclamação contente.
Depois, assomava-se até à cintura pela janela e chamava a mulher:
— Chlapkants! Ó Chlapkants! Estás a ouvir? Chlapkants Iassaman!
— O que queres, Chalvarants Ovanés? — respondia irritadamente Iassaman.
Ovanés ria-se.
Era o mais engraçado casal da aldeia. O apelido de Iassaman, Chlapkants,
signi cava que era da linhagem dos Chlapka18, o apelido de Ovanés,
Chalvarants, indicava a sua proveniência da linhagem dos Chalvar19.
Cada linhagem da aldeia de Maran tinha a sua alcunha. Na maioria dos casos,
era cómica e engraçada, às vezes irónica, mas havia, embora raramente, as muito
ofensivas. A alcunha da linhagem estava em conformidade com o
comportamento da pessoa, boa ou indecente, e depois o apelido era herdado
pelos descendentes.
Por exemplo, o bisavô de Iassaman, na sua juventude, visitava muito o seu
primo, ator principal de um dos maiores teatros do vale. O primo levava-o aos
espetáculos, apresentava-o nos círculos da alta-roda, ensinava-lhe como era
preciso vestir-se. Uma vez, o bisavô voltou do vale com um chapéu nunca visto,
até provocatório do ponto de vista dos conterrâneos. Quando lhe perguntaram
que coisa era aquela que trazia en ada na cabeça, o bisavô respondeu em tom de
desa o: «Chlapka!» Pelo que foi apelidado de Chlapka, e os seus descendentes,
de Chlapkants.
Quanto à alcunha da linhagem dos Chalvarants, a história foi outra. O avô de
Ovanés preparou-se para a guerra mundial como se fosse para uma festa:
retorceu o bigode, en ou na testa o gorro, cingiu a tiracolo duas cartucheiras
em cruz, vestiu umas calças novas, caríssimas. Não chegou, porém, a juntar-se
ao seu regimento, pelo caminho viu-se sob um canhoneio. Um estilhaço
atingiu-lhe uma perna abaixo do joelho, o ferimento foi tão grave que lhe
amputaram uma parte da perna e, acabado o tratamento, mandaram-no para
casa. No hospital, o avô de Ovanés, em vez de se preocupar com a perna
mutilada, lamentou as calças novas que teve de deitar fora.
— Chalvars, chalvars — queixava-se às irmãs de misericórdia e aos médicos.
Pelo que foi alcunhado de Chalvar, e todos os seus descendentes, de
Chalvarants.
Na aldeia, brincavam que Iassaman e Ovanés se completavam como peças de
vestuário.
Ovanés gostava muito de brincar com a mulher e, muitas vezes, não a
chamava pelo primeiro nome, mas por Chlapkants. Iassaman, obviamente,
pagava-lhe na mesma moeda, lembrando-lhe a história do seu avô azarento que
cara incapacitado sem ter combatido sequer um minuto.
Também hoje, tendo trocado com a mulher as amabilidades habituais, Ovanés
acabou o seu cigarro e já ia afastar-se da janela quando, de repente, ouviu a
cancela a bater. Esticou o pescoço para ver o visitante temporão. Era o ferreiro
Vassíli, homem alto e robusto de olhos grandes, cor de cinza, e sobrolho basto,
aos tufos, que se aproximava da porta, trazendo ao ombro uma gadanha. Com os
seus sessenta e sete anos, aparentava ser muito mais jovem: embora de cabelo
grisalho, era aprumado, com ombros possantes e uns punhos enormes,
invencíveis. Uma ocasião, ainda na juventude, chegou a matar, por aposta, o
touro de Nemetsants Mukutch. Depois, Mukutch, praguejando, foi obrigado a
preparar com a carne do animal a kavurmá20, não ousando exigir dinheiro a
Vassíli, o que também não fazia sentido, já que ele próprio, feito parvo, zera a
aposta e tentara provar, escumando da boca, que era impossível matar o seu
touro só com um murro.
— Queres ver? — sorriu então Vassíli.
— Quero!
Vassíli tirou o colete, arregaçou para cima dos cotovelos as mangas do
arkhaluk21 e entrou para debaixo do alpendre onde um enorme touro negro-
azulado, atado a uma estaca, bufava e sacudia a cabeça testuda.
— Não te vais arrepender? — sussurraram os vizinhos às costas de Mukutch.
Este, em vez de resposta, soltou um risinho de desprezo. Vassíli voltou a
sorrir, levantou o punho — e derrubou o touro com um golpe certeiro no
cachaço. Depois deste caso, nenhum homem da aldeia se atrevia a bater-se ao
punho ou sequer a discutir com Vassíli. Homem de poucas palavras — falava só
quando lhe perguntavam alguma coisa —, Vassíli era daqueles que, apenas com
o seu ar teimoso, provocava incontestável respeito.
— O zakhrmar22 cai-lhe em gotas do sobrolho! — diziam dele as gentes de
Maran, estalando a língua com respeito.
Sendo modesto por natureza, Vassíli era irónico em relação ao respeito dos
conterrâneos, mas nunca o mostrava. Era sombrio, por vezes até grosseiro e
intratável, mas a sua má educação ngida não assustava os clientes: tinha fama
de ser excelente ferreiro, de ter bom coração e, se o devedor não tinha dinheiro,
estava pronto a esperar tanto quanto fosse preciso. Toda a aldeia lhe devia
dinheiro, mas nunca o lembrava a ninguém. Depois da guerra, a forja parou,
quase não havia trabalho, mas ele não se queixava, «vivemos como todos os
outros», respondia às permanentes lamentações da mulher por causa da falta de
dinheiro, fazendo-a perder as estribeiras. Iakulitchants Magtakhiné, com quem
Vassíli viveu quase meio século, era uma mulher cuidadosa e trabalhadeira, mas
exageradamente loquaz, quando lhe dava para falar podia metralhar sem m,
fazendo pausas de um segundo só para encher os pulmões de ar. Vassíli
aguentava, aguentava, depois pegava-a pelo cotovelo, levava-a para um quarto
dos fundos e trancava-a lá dentro.

— Quando te fartares de falar, chama-me!


Furiosa pela atitude descarada do marido, Magtakhiné punha-se, em voz alta,
para que ele ouvisse tudo, a queixar-se do seu destino infeliz, a começar pelos
pais que, para se verem livres dela, a casaram com este cepo abrutalhado e, para
todas as outras lhas, arranjaram famílias decentes, sobretudo para a mais nova,
Chuchanik, o ai-jesus deles, e a quem deram, a propósito, o dote mais rico: três
tapetes, dois baús de roupa, um lote de terra fértil, três vacas, uma porca e vinte
galinhas poedeiras, e ainda tanto ouro que, se Chuchanik o pusesse no corpo
todo de uma vez, partiria a sua miserável espinha, e a Magtakhiné calhou o
quê?, um dote duas vezes mais pequeno, e deram-lhe uns enfeites de prata, nada
de ouro, mas Deus não dorme, o tempo pôs tudo no seu lugar, os outros lhos,
decerto como castigo pela atitude injusta dos pais para com ela, Magtakhiné,
deixaram este mundo à frente dela, as irmãs mais velhas não sobreviveram à
fome, o seu único irmão morreu fulminado por um raio, e Chuchanik, a
preferida, morreu de angina de peito, as xiada no próprio vómito, portanto aos
pais, até ao m dos seus dias, não restou mais ninguém a não ser ela, que não os
deixou car mal, é claro, sempre ao lado deles, sempre abnegada e carinhosa,
cuidava deles e auxiliava-os, despejava o penico do pai quando ele perdeu o uso
das pernas, punha emplastros quentes de vinagre nos calcanhares da mãe para
lhe aliviar aquelas enxaquecas que não a largavam e que por sinal ainda se
tornaram mais frequentes quando Chuchanik passou desta para melhor, mas
depois os pais morreram, o pai faleceu primeiro, no dia do aniversário da lha,
quando ela fez sessenta anos, pelo que agora passa no cemitério todos os dias de
anos dela, cuida-lhe da campa, e a seguir ao pai nou-se a mãe, mas antes ainda
deu cabo de todos os nervos da lha porque no m da vida perdeu o juízo por
completo, sujava as cuecas e desenhava nas paredes e no chão com, com licença,
a trampa, foi preciso fechá-la no quarto, senão espalhava por toda a casa aquela
sua arte e, quando a mãe morreu, ela, Magtakhiné, raspou com as próprias mãos
o estuque para fazer reparações no quarto, e é que não havia poucas obras da
artista nessas malfadadas paredes, isto porque os intestinos da falecida, ao
contrário dos miolos, funcionavam bem, pontuais, e, já se sabe, não é admiração
nenhuma: defecar não é o mesmo que usar a cabeça, mas agora, quando toda a
família se foi, cou ela, Magtakhiné, sozinha no mundo, sem contar com o cepo
do marido com quem é impossível trocar duas palavras, dantes ainda era
possível conversar com a mãe através da porta fechada porque, mesmo que a
pobre já tivesse perdido o uso da razão, ainda sabia manter uma conversa,
dizíamos-lhe uma coisa, ela respondia outra qualquer a despropósito, mas ao
menos falava, havia comunicação, alguma atenção pelo próximo, e por que
culpa lhe calhou este fado amargo, ser mal-amada por toda a gente e depois
morrer sem amor, como aquele cão velho que temos pena de matar, mas
também não faz sentido dar-lhe de comer, já que vai morrer na mesma!
Depois de desabafar um pouco, Magtakhiné, gemendo, saía pela janela e,
despejando maldições e tateando cada degrau com a sola do sapato gasto, descia
pelo escadote de madeira que tinha sempre debaixo do peitoril do quarto onde o
marido a costumava fechar. Nesta altura, Vassíli estava já na forja, matando
tempo em mais um dia sem trabalho e, chupando o fumo do cachimbo,
recordava o tempo em que havia tanto trabalho que não tinha um minuto para
endireitar as costas e em que a mulher, cheia de afazeres na casa, era quieta e
mansa como uma noite nevada.
Magtakhiné tinha a certeza de que ia sobreviver ao marido — era isso mesmo
que lhe dizia sempre: o que vou fazer quando morreres? Mas aconteceu o
contrário: a mulher, à hora da torreira do sol, lembrou-se de ir mondar os
canteiros e caiu morta, acometida por uma hemorragia cerebral. Vassíli chorou
por ela, habituando-se a grande custo ao silêncio abafado que invadiu a casa
como lodo viscoso. Apesar do seu feitio espinhoso, Magtakhiné era boa mulher
para ele, não se pode dizer que fosse carinhosa, foi precisamente o carinho que
faltou a Vassíli durante toda a vida, mas de certeza era abnegada e atenciosa, e
estava sempre ao lado dele, na desgraça e na alegria, nos dias fartos e na miséria.
Quanto às lidas domésticas, era a telegra sta Satenik, prima em segundo grau
de Vassíli, quem agora o ajudava. Foi ela que lhe deu a ideia de prestar atenção
a Sevoiants Anatólia. A princípio, Vassíli nem a queria ouvir, mas a prima não
desistia: eu própria, dizia, tenho quase oitenta anos, hoje estou aqui, amanhã
desapareço, ora o primo é, de certeza, um bom mestre ferreiro, mas nas lidas
domésticas é como uma criança, não sabe cozinhar nem lavar a roupa e,
também, a solidão para um homem é pior do que a mais terrível doença, ora a
Anatólia ainda é nova, é bonita, e ainda por cima solitária e calada, é como o
Vassíli gosta, então porque não se podem juntar?
— E o principal — lançou Satenik o argumento mais forte —, é inteligente,
leu montões de livros!
É verdade, a prima sabia em que botão devia carregar. Vassíli, desde a
infância, nutria um grande respeito pela gente culta. Sendo ele próprio um
camponês analfabeto, naqueles anos, não havia escola em Maran, e a sua mãe
pobre não poderia pagar-lhe os estudos no vale, Vassíli suou sangue para dar um
bom ensino aos lhos. Também não perdia a esperança de, algum dia, ele
próprio aprender a ler e a escrever. Em tempos, planeava-se abrir em Maran
uma escola noturna, uma grande alegria para Vassíli; mas começou a fome que
aniquilou metade da população da aldeia, e não houve mais conversas sobre a
escola noturna.
A guerra roubou-lhe o irmão mais novo e os lhos. Os lhos foram levados da
academia para a guerra, pelo que Vassíli e Magtakhiné nem puderam despedir-
se deles. Ora, o irmão foi levado diretamente da forja. Até hoje Vassíli não
esqueceu o olhar do irmão — embaraçado e volvendo-se, num instante, infantil
—, e a sua mão esquerda levantada, mão que tinha uma profunda cicatriz
precisamente onde a linha da vida, contornando o polegar, se desviava para o
lado. A cicatriz era a marca do momento em que Vassíli não conseguiu segurar
a caixa com o metal fundido e a deixou cair. Uma das gotas de metal saltou e
acertou na palma da mão do irmão, e queimou-a, quase a atravessou. A ferida
sarava demoradamente, com dores, supurava e sangrava, Chlapkants Iassaman
gastou com ela quase todas as suas reservas de pomadas medicinais. Na altura
em que a queimadura nalmente cicatrizou e o irmão já podia de novo pegar no
martelo, começou a guerra. De cada vez que Vassíli se lembrava do irmão, a sua
mão entorpecia. Então, carregava o sobrolho, gemia, esfregava a palma da mão
vezes sem m, rangia os dentes e pestanejava rapidamente, para secar as
lágrimas. Nunca recordava os lhos — proibiu-o a si próprio de uma vez por
todas, mal se recompôs da monstruosa dor que viveu ao receber a notícia da
morte deles. Proibiu também à mulher que mencionasse os nomes dos lhos
nos seus in nitos monólogos.
— Quando morrermos e nos encontrarmos com eles, conversaremos à
vontade.
Magtakhiné aceitou-o com uma facilidade inesperada e nunca mais
pronunciou os nomes dos lhos na presença do marido. Vassíli, comovido com a
sua complacência, durante algum tempo aturou pacientemente a sua irrefreável
cascata verbal, até que um dia, ao voltar a casa antes da hora normal, apanhou a
mulher em frente do espelho com as fotogra as dos lhos nas mãos —
baloiçando cadenciadamente o tronco e passando os olhos de uma fotogra a
para outra, estava a queixar-se do seu destino: do avô deles, entrevado, preso à
cadeira de baloiço com assento para as necessidades que Vassíli re zera de tal
modo que se podia deslocar a tampa e meter em baixo o penico sem levantar o
velho; Magtakhiné fora obrigada a refazer as calças do velho de modo a
permitir-lhe fazer as necessidades sem as tirar — de outro modo era impossível,
queixava-se ela aos lhos, não tenho forças para o levantar e não tenho quem me
ajude, o vosso pai está na forja de manhã até à noite, e a vossa avó também é
imprestável, não faz outra coisa senão vaguear por casa dos vizinhos e colher
mexericos, tornou-se esquisita, não gosta disto, não gosta daquilo, às vezes
penso, Deus me perdoe, que ela variou da cabeça, há dias encontrei-a na cave,
metida num cantinho, com os olhos a luzirem, estou à espera que o vento
abrande, disse ela, e pergunto-lhe eu: qual vento, mamã? — e ela: tu não podes
compreender que vento — e eu: é claro, como é que eu, com a minha
inteligência curta, posso compreender?, não sou como a tua adorada Chuchanik
— e ela, mal ouviu o nome da vossa tia mais nova, saltou do lugar, guinchou,
alvoroçou-se toda pela cave, por pouco não partiu todos os karás23, acalmei-a
mais ou menos, levei-a para cima, dei-lhe chá de menta, esfreguei-lhe as fontes
com vodca de amora, parecia ter sossegado e, durante um mês, andou calma,
mas ontem voltou a fazer asneira: foi a casa da Eibogants Valinka, parou à
entrada — chama a tua mãe, disse-lhe, tenho um assunto a tratar com ela —,
ou seja, queria conversar com a Eibogants Katinka, que já morreu há quase
cinquenta anos, ainda bem que a Valinka não se ofendeu, percebeu logo que
uma pessoa no seu perfeito juízo não faria semelhante coisa, convidou-a a entrar,
sentou-a na otomana: espera um pouco, disse, já vou chamar a minha mãe — e
foi buscar-me a correr: ouve, Magtakhiné, parece que a tua mãe não está bem de
cabeça; fomos a casa dela, e vimos a vossa avó sentada no chão com os mutakas à
volta dela como a mulher do xá — sirvam-nos, disse ela, khalvá24 com sésamo e
um grvakan de passas de uva, e vejam lá que as passas não tenham grainhas —,
e depois virou-se para a parede vazia e começou a conversar com ela, chamando-
lhe Katinka.
No dia seguinte, quando a mulher saiu para a horta, Vassíli embrulhou as
fotogra as dos lhos em papel de jornal, levou-as à casa de Satenik e pediu-lhe
para as guardar num sítio onde Magtakhiné não as pudesse encontrar. Satenik
pegou no embrulho e perguntou apenas porque estava ele a ser tão severo para
com a mulher.
— Ela tem-me dado cabo dos miolos com as suas queixas, e agora passou a
atenazar os lhos. Não deixo que ela os incomode! — disse bruscamente Vassíli.
Satenik andou muito tempo por toda a casa à procura de um bom esconderijo,
acabando por meter as fotogra as numa caixa de metal originalmente cheia de
rebuçados, e guardou a caixa no fundo do baú da roupa, debaixo dos saquinhos
de chita com lavanda seca e naftalina. Ao descobrir que as fotos desapareceram,
Magtakhiné não se atreveu a armar escândalo ao marido e foi queixar-se a
Satenik, que teve de cerrar nos punhos toda a sua força de vontade para não se
trair. Depois de longas exortações, conseguiu convencê-la a não fazer mais
conversa nenhuma com Vassíli a propósito das fotogra as desaparecidas.
Magtakhiné deu-lhe ouvidos, mas continuou a guardar grande rancor ao marido
e, por vingança, enriqueceu a corrente caudalosa das suas in nitas lamentações
com novas insinuações nebulosas de que mesmo o mais insensível cepo não seria
capaz de apagar as imagens das pessoas amadas do coração dela, que era grande
e sem fundo, nada que se comparasse com os miseráveis corações de gente que
tinha o descaramento de levar de casa o mais precioso bem de qualquer mãe
abnegada, cheia de amor e infeliz, e se essa gente insensível sabia fechar a sua
mágoa à chave, ela não tinha forças para isso, já as suas forças estavam a esgotar-
se, e a alma dela era como um animal caído na armadilha e que não podia
libertar-se nem morrer de imediato, mas apenas esperar, humilhado, a sua
morte iminente e terrível. Vassíli aturava as suas queixas em silêncio, carregava
o sobrolho e suspirava, depois ia para a forja, cava sentado ao lado do forno frio
até à noite, fumava o cachimbo e esfregava sem parar a palma da mão esquerda
— tentando em vão acalmar a dor surda.
Depois da morte de Magtakhiné, Satenik queria devolver a Vassíli as
fotogra as dos lhos, mas depois resolveu adiar — para lhe dar tempo de
recobrar o ânimo depois da desgraça. E agora estas fotogra as, tendo
sobrevivido ao frio e à invasão do bolor graças à lata dos rebuçados, mudaram-se
do baú da roupa para um escrínio de madeira e esperavam com paciência pela
hora de regressar à proteção paterna.
Entretanto, Satenik encarregou-se de organizar a vida pessoal do primo. Em
primeiro lugar, trocou algumas palavras com Chlapkants Iassaman. Contente
com a possibilidade de pôr m à solidão da amiga, Iassaman prometeu a
Satenik falar com Anatólia. Tendo assegurado o apoio de Iassaman, Satenik
começou a tentar persuadir o primo. De início, Vassíli esquivava-se, não levava
as palavras dela a sério, mas depois aceitou a sugestão a contragosto porque
sabia perfeitamente que havia pouca coisa mais dolorosa do que a velhice
solitária.
Vassíli tinha grande respeito por Anatólia e, ainda antes da guerra, por várias
vezes quis ir à biblioteca e pedir-lhe um manual autodidático de leitura, mas de
cada vez, sentindo uma desagradável timidez, passava ao lado porque, um dia,
viu como Anatólia, ao enrolar trapos na vassoura e ao molhá-la numa fraca
solução de vinagre, estava a lavar a parede de pedra debaixo dos ninhos de
andorinhas, contornando com cuidado cada ninho em baixo, evitando tocar-lhe
e derrubá-lo sem querer. Lembrou-se de si próprio, jovem e parvo, capaz de
matar, por aposta, um touro inocente — e teve vergonha. É esta a diferença
entre uma pessoa culta e uma analfabeta, pensou Vassíli, afastando-se da
biblioteca e voltando à sua forja quente: o culto receia destruir um ninho vazio,
mas o analfabeto está pronto a dar cabo de uma criatura inocente, apenas para
provar a sua força idiota.
— Ela é inteligente, mulher de muitas leituras, para que precisa de um cepo
abrutalhado como eu? — partilhou as suas dúvidas com a prima.
— E o marido dela também era inteligente e de muitas leituras? — sorriu
Satenik. — Esse herodes sem coração espancava-a até à morte, mas ela, tão
culta, aturava-lhe tudo. Olha para ti: és um homem decente, trabalhador,
seguro. Nem uma vez levantaste a mão contra a Magtakhiné, embora ela, que
descanse em paz, bem merecia uma boa ensinadela de vez em quando. A
cultura, Vassó-djan25, não estará aqui — e Satenik bateu com o dedo na testa
do primo —, mas aqui, no coração — e apertou a mão ao peito dele.
Cedendo às suas persuasões, Vassíli esperou até que o tabaco lhe acabasse e foi
à casa de Ovanés. Comprou-lhe tabaco e, a propósito, titubeando e pigarreando
embaraçadamente, perguntou-lhe por Anatólia. Ovanés interrompeu-o:
— Por mim, caria contente se se juntassem. Mas também é verdade que a
Iassaman diz que a Anatólia não tem vontade de se casar outra vez, mas tu sabes
como são as mulheres. Hoje têm na cabeça uma coisa, amanhã outra. Dá-lhe
tempo para se habituar à ideia. E logo se vê.
Desde então, Vassíli visitava muito Ovanés e Iassaman, para conversar, para
uma partida de gamão. Um dia lá apanhou em casa deles Anatólia,
cumprimentou-a educadamente, mas ela, sabia-se lá porquê, desconcertou-se,
pediu a Iassaman um pouco de sal e apressou-se a sair.
— Ouve, lha, parece que te queixaste de que a tua gadanha estava embotada,
pede ao Vassíli, ele vai a á-la — tentou detê-la Ovanés.
— Obrigada, não é preciso, já a a ei — recusou-se meigamente Anatólia e
dirigiu-se para a porta.
— É teimosa como uma burra. Saiu ao pai — lamentou Ovánes quando ela se
foi embora.
— Ela é lha do seu pai, e eu sou lho do meu. Vamos lá ver quem leva a
melhor — sorriu Vassíli.
Ovanés, então, deu uma palmada nos joelhos e riu.
E agora, sorrindo para a barba, estava a olhar para a lâmina cuidadosamente
a ada e brilhante ao sol, com o cabo lindamente polido, que Vassíli carregava ao
ombro.
— Estou a ver que trouxeste uma prenda — gritou Ovanés.
Vassíli começou a subir a escada, apanhando com a folha da gadanha a videira
que trepava pelo corrimão e pelos balaústres de madeira do terraço.
— Não era melhor deixares a gadanha em baixo? — não aguentou Ovanés.
Vassíli embaraçou-se, tirou a gadanha do ombro e encostou-a ao corrimão com
cuidado, não fosse cair.
— Bem, eu... Vim visitar a Anatólia. Fiz para ela uma gadanha nova, já que a
velha cou toda embotada.
— Mas confundiste as casas?
— Foi porque… Ontem, fui vê-la ao pôr do Sol, mas tinha todas as luzes
apagadas. Fui lá hoje de manhã, mas vi que as aves continuavam no galinheiro e
o chão no pátio estava seco, portanto, não foi borrifado nem varrido. Chamei à
porta, mas não abriram.
— Talvez esteja ainda a dormir.
— Talvez. Queria pedir, então… Que a Iassaman vá à casa dela, a ver como
está.
— A Iassaman está a fazer infusões. Quando acabar, vai lá ver. Aliás — disse
Ovanés signi cativamente —, no teu lugar eu próprio resolveria o assunto, já
que, graças a Deus, tomaste nalmente a decisão.
Vassíli coçou a nuca, voltou a pôr a gadanha ao ombro.
— Vou bater à porta mais uma vez.
— Ao menos deixa a gadanha aqui. Parece que estás amarrado a ela. Não lhe
acontece nada, depois vais lá levá-la.
— Não, assim é melhor.
— Pois é, com uma alfaia na mão dá mais jeito namorar.
— O quê?
— Desejo-te sorte, disse eu. Depois passa por cá, contas o que conseguiste.
Ovanés esperou até Vassíli sair pela cancela, calçou os trekh, meteu dentro do
calçado os atacadores para não tropeçar neles e foi a correr ao anexo onde estava
a mulher. Iassaman, nesse momento, estava a verter a infusão arrefecida,
ltrando-a através da gaze, numa garrafa de vidro escuro. No recinto, pairava o
cheiro forte a ervas secas e a vodca caseira de cornizolo com que sempre
preparava os remédios medicinais.
— Ouve, Iassaman… — Ovanés fechou com cuidado a porta, para que não
entrassem os raios da luz perniciosos para as infusões.
— Com quem estavas a falar ali?
— Com o Vassíli. Diz que a Anatólia não lhe abre a porta.
— Como é que não abre?
— Não abre e pronto. Pelos vistos, tem medo da gadanha.
Iassaman imobilizou-se com o coador na mão.
— Qual gadanha?
— A gadanha com que ele foi visitá-la. Ficou farto de esperar pelas suas boas
graças e foi vê-la com a gadanha na mão. Lá queria ele dizer: se me recusares,
corto-te a cabeça.
Iassaman soltou uma risada, olhando de viés para o marido. Este, com um ar
impassível, examinava a garrafa da infusão à contraluz. Depois pô-la outra vez
na prateleira e sorriu.
— Queria ir regar o tabaco, mas tenho de esperar pelo Vassíli. Gostaria de
saber no que tudo isto vai dar.
— Seria bom se a convencesse — suspirou Iassaman.

12 Gógol-mógol — em tempos, este prato era muito popular, sobretudo entre as crianças (em inglês
chama-se hug-mug, ou hugger-mugger; em polaco, kogel-mogel; em alemão, Kuddelmuddel). (NT)
13 Ter — padre. (NT)
14 Trekh — calçado de camponeses arménios, feito de couro de boi. (NT)
15 Grvankan — medida de peso: 1 grvankan equivale a 408 gramas. (NT)
16 Mózi — novilho (arm.). (NT)
17 Púngui — instrumento musical de sopro proveniente da Índia. (NT)
18 Chlapka — palavra russa «chliapka» (chapéu) pronunciada com sotaque arménio. (NT)
19 Chalvar — calças. (NT)
20 Kavurmá — prato turco de carne estufada que se guarda muito tempo e se utiliza para a preparação
de outros pratos. (NT)
21 Arkhaluk — cafetão caucasiano justo ao corpo e com gola alta. (NT)
22 Zakhrmar — veneno de cobra (arm.). (NT)
23 Karás — jarro de barro de forma elipsoide. (NT)
24 Khalvá — doce oriental preparado de caramelo batido, nozes, amendoim, sésamo, mel e outros
ingredientes. (NT)
25 Vassó-djan — diminutivo carinhoso de Vassíli. (NT)
CAPÍTULO 3

De cada vez que o pai, coxeando da perna esquerda e fazendo um movimento


largo com o braço direito, cortava mais uma faixa de erva, Anatólia via como se
contraíam os seus músculos debaixo do arkhaluk e das calças en adas nos canos
das botas. «Se calhar, é incómodo trabalhar com a roupa tão justa ao corpo»,
pensou ela. Chovia — a chuva era forte, mas espantosamente leve, quase não se
sentia. Anatólia expôs as mãos à chuva, sentiu-a como à tímida respiração do
vitelo Grucha a que, na infância, oferecia cenouras todas as manhãs, ao comer a
guloseima, o vitelo respirava com carinho nas suas mãos e olhava-a com grandes
olhos húmidos sob as pestanas esbranquiçadas e vaporosas.
— Gruucha — enternecia-se Anatólia —, Gruucha.
— Miiu — respondia o vitelo, estremecendo com as orelhas grandes —,
miiu.
Anatólia inspirou profundamente o ar húmido e sentiu uma tontura com o
cheiro forte das maçãs temporãs, minúsculas, de cores delicadas, com manchas
rosadas ao corte e caroços carmesins, a mãe fazia dessas maçãs um doce com mel
e canela, a irmã mais velha apanhava da tigela uma maçã pelo rabinho
comprido, punha-lhe a mão por baixo para não pingar no chão e dava-a a
Anatólia: come!
A chuva caía como se lavasse todas as amarguras. Afagava-lhe o cabelo,
abraçava-lhe os ombros, fazia-lhe cócegas na nuca. Anatólia expôs o rosto à
chuva, mas não fechou os olhos para não perder de vista o pai. Ficou contente
por ver que o pai escolhera bem o tempo para o trabalho, é mais fácil gadanhar
no tempo húmido.
— A-ai-rik!26 — chamou-o arrastadamente. — A-ai-rik!
O pai não a ouviu. Abanando cadenciadamente, sem esforço visível, a pesada
gadanha com folha de nove mãos27, avançava até ao outro extremo do campo —
com alfaias tão grandes só trabalhavam os homens de estatura e força hercúleas,
a quem em Maran chamavam ajdaak, ou seja, gigantes. Sevoiants Kapiton era
realmente da raça dos gigantes: possante, dois metros de altura, duro como
rocha, com ombros tão largos que sentava num ombro as duas lhas mais velhas
e, no outro, Voske e Anatólia, e rodopiava com elas, que exultavam em
guinchos felizes, pelo pátio fora, sob o acompanhamento de lamentações
assustadas da velhinha babó Mané — não as deixes cair, Kapiton-djan, não as
deixes cair!
— Não deixo — ria Kapiton.
A chuva caía numa corrente salutar, envolvia, embalava, puxava pelos ombros
para trás, para onde havia barulho e desconforto, para onde não apetecia virar a
cabeça e regressar. Os jorros de água tornavam-se mais espessos e pesados, não
deixavam Anatólia ver o pai — ela alarmou-se, tentou dar um passo até ele,
mas os pés não obedeciam, o barulho nas costas, no início quase indistinto,
aumentava, crescia e, nalmente, ao superar alguns obstáculos desconhecidos,
apanhou-a num turbilhão de clamor insistente, arrastado, desesperado:
— Anatólia! Ó Anatólia! A-na-tó-li-a!
Anatólia abriu os olhos. E viu logo um o muito no de teia que baloiçava à
corrente de ar, pendendo de uma trave de madeira do teto. A babó Mané caria
zangada — uma boa dona da casa não pode deixar teias de aranha no teto, uma
boa dona da casa deve, pelo menos de dois em dois dias, passar a vassoura
enrolada em trapos secos pelos cantos superiores do quarto, para não ter fama de
desleixada em toda a aldeia.
Anatólia afundou a cara nas mãos, suspirou gravemente. Não morreu.
Tirou o cobertor, sentou-se com enorme cuidado. O oleado posto
precavidamente estava coberto de sangue quase até às bordas, a camisa de noite
molhada subia-lhe até ao peito. Zuniam-lhe os ouvidos, tinha a boca amarga,
era muito desagradável. Anatólia franziu a cara, encheu o copo de água, bebeu.
A tontura diminuiu um pouco, mas os rins doíam-lhe muito, como se não
tivesse passado o dia anterior na cama, mas na horta, a labutar. Anatólia olhou
para o raio de sol, parado à margem do peitoril, e espantou-se: dormira quase
até ao meio-dia. Já queria levantar-se quando ouviu passos na sala vizinha. Mal
teve tempo de cair sobre as almofadas e cobrir-se com o cobertor, bateram
ligeiramente à porta.
— Anatólia? É o Vassíli.
Anatólia assustou-se. Provavelmente, trazia alguma má notícia.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou.
A porta rangeu, abriu-se só um pouquinho.
— Bati, bati à porta, mas sem resultado. Passei à volta da casa, vi uma janela
aberta. Chamei-te, não respondeste. Resolvi entrar, sabia-se lá, podias precisar
de ajuda.
Anatólia suspirou. Foi este clamor insistente que a fez voltar à vida. Sentou-
se, tirou do espaldar da cadeira a jaqueta, vestiu-a, abotoou todos os botões,
passou a mão pelo cabelo, pondo-o em ordem. Compôs o cobertor de tal modo
que cobrisse todo o lençol.
Atrás da porta, mexeram-se. A seguir, ambos os seus batentes se escancararam
e deixaram entrar no quarto a lâmina bem a ada da gadanha. Anatólia,
aturdida, olhava em silêncio como Vassíli, tentando não tocar o guarda-roupa,
virava a gadanha de lâmina para baixo e a encostava à parede. Depois voltou-se
para Anatólia e acenou-lhe:
— Bom dia.
Ela acenou lentamente em resposta, sem desviar os olhos pasmados da
gadanha.
— Estás doente? Queres que vá pedir algum remédio à Iassaman? —
perguntou-lhe Vassíli.
Anatólia abanou a cabeça e, devagar, desviou o olhar para os pés do visitante.
Ao entrar em casa, ele tinha tirado as botas e agora apresentava-se à frente dela
de meias, uma de cada nação — num pé era castanha, no outro multicor, às
riscas azuis, amarelas e verdes. Vassíli seguiu-lhe o olhar e, aí, embaraçou-se
de nitivamente. Murmurando «calcei as primeiras que me calharam», pôs-se a
marcar passo, perdido, tentou meter as manzorras pesadas nos bolsos das calças,
mas fracassou e escondeu-as atrás das costas. Carregou o sobrolho.
— Então, vou-me embora?
— Mas porque é que vieste? — perguntou Anatólia, recuperando por m o
dom da palavra.
— Para te oferecer a gadanha. — Vassíli pigarreou, atrapalhado e, ao mesmo
tempo, irritado por ser um parvo tão indeciso, e acrescentou em tom
quezilento: — E também queria pedir-te em casamento.
Anatólia revirou os olhos. O homem andou tanto, deu tantas voltas, foi à casa
do Ovanés, a pretexto de jogar o gamão, pediu a Iassaman que falasse com ela.
Agora veio pessoalmente e trouxe uma gadanha nova, sabe-se lá porquê. E está
ali especado, como se lhe tivessem coberto o rabo de cinzas: apetece-lhe sacudi-
las, mas tem medo de sujar o chão.
Cada maranense sabia todos os segredos dos vizinhos, cada um conhecia os
outros como às palmas das mãos, com todas as suas tristezas, ofensas, doenças e
as muito raras alegrias, mas sempre muito desejadas e ansiadas. A atitude
mútua dos aldeões era a da a nidade atenciosa, subentendendo a boa
vizinhança, e mais nada. Anatólia não chegava a perceber por que razão passou
pela cabeça de Vassíli perturbar esta ordem de vida tão bem estabelecida. Toda a
vida adulta dele — desde aquele dia outonal em que ela, aos dezoito anos,
regressou a casa do pai (e foi precisamente nesse dia que nasceu o primogénito
de Vassíli) até ao dia em que morreu a Magtakhiné, deixando-o viúvo solitário
— decorreu à frente dos olhos de Anatólia. Não sentia por ele nada além da
simpatia de parentesco e não tencionava juntar-se a ele. Mas também tinha
vergonha de lhe dar um desgosto — vejam que carrancudo ele está, a tá-la de
soslaio com os seus olhos grandes, um pouco desorbitados, cor de cinza
arrefecida — e num silêncio desolado.
Alarmado com o longo silêncio de Anatólia, Vassíli, sem desviar os olhos da
cara desnorteada dela, pensava que, se ela o rejeitasse, iria sem demora ao
telégrafo e arrancaria a coluna vertebral à sua prima, para que deixasse de o
compelir a fazer asneiras. Vegetou durante os últimos três anos como viúvo e
podia continuar na mesma. Há aleijados que vivem os seus últimos dias
sozinhos e não se queixam.
Não fazia sentido adiar a resposta — Vassíli cobria-se de nuvens de
tempestade a olhos vistos. Então, Anatólia decidiu-se. Em qualquer caso, se lhe
restam poucos dias de vida, que ele ao menos não lhe que a guardar rancor por
causa de uma recusa. Chamando a si todas as forças, ela sorriu e acenou com a
cabeça.
— No sentido de… sim? — pasmou-se Vassíli.
— Sim — respondeu Anatólia com simplicidade.
Vassíli cou confuso. Tendo elaborado minuciosamente as vias de retirada em
caso de circunstâncias desfavoráveis, não previu, por qualquer razão, uma reação
à resposta positiva. Por isso ali estava ele agora especado, como que atingido por
um raio, apanhando o ar com a boca.
— Mudaste de ideias, foi? — riu-se Anatólia.
— Não! — caiu em si nalmente Vassíli, pigarreou de embaraço e foi
rapidamente para a saída. — Vou buscar a Satenik ao telégrafo.
— Para quê?
— Para fazer o pedido de casamento como deve ser. Para cumprir a tradição.
— Não temos vinte anos — respondeu meigamente Anatólia. — Vamos
prescindir dessas cerimónias.
— Então, já que é sem cerimónias, não vale a pena esperar! — animou-se
Vassíli. — Prepara as tuas coisas, muda-te para minha casa.
— Não. Vamos viver em minha casa. Quero que seja assim.
— Se é isso que queres, está bem. Então vou eu preparar as minhas coisas. À
noite, mudo-me.
Anatólia ergueu as mãos, suplicante.
— Dá-me pelo menos dois dias.
— Porquê?
— Bem… para me habituar. E para preparar a casa para a tua mudança.
— Está bem, seja como dizes.
Vassíli pegou na gadanha, pô-la ao ombro.
— Onde guardas as alfaias?
— Na cave grande. Desce a escada e vira à direita.
— Vou levá-la. E depois sossego a Iassaman e o Ovanés, digo que não tens
problemas. Creio que estão preocupados.
— Preocupados porquê?
— Sei lá!
— Diz-lhes que vou vê-los mais tarde.
— Então, eu também vou. — E Vassíli saiu do quarto e fechou a porta.
Anatólia escutava os seus passos. Os remorsos atormentavam-na, mas não
poderia ter feito outra coisa, e aquilo de que mais precisava no momento era,
em primeiro lugar, ver-se livre do visitante inesperado. Foi por isso que assentiu
ao pedido dele. Não faz mal, não é nenhuma criança, ele aguenta. Afastou o
cobertor e levantou-se com cuidado. Em primeiro lugar, franzindo a cara e
contendo a grande custo a náusea, tirou do corpo a roupa suja. Nunca antes —
mesmo naqueles anos em que cada novo cataménio aniquilava, gota a gota, a
sua esperança de engravidar —, sentira, como agora, tão inexplicável
repugnância pelo seu próprio corpo. Toda a vida sofreu com as menstruações,
que só acabaram aos cinquenta anos: arrasavam-lhe os nervos e eram sempre
acompanhadas de dores tão monstruosas que, de cada vez, tinha vontade de se
matar, só para deixar de suportá-las. A mistura de gordura de ganso e a infusão
de pimenta que aplicava obedientemente no baixo-ventre não lhe dava alívio, os
remédios de Iassaman também não surtiam efeito, e Anatólia agasalhava-se com
um xaile de penugem e passava quatro longos dias curvada na cadeira — nesta
posição a dor tornava-se um pouquinho mais tolerável. Suportava esta tortura
mensal estoicamente, sem se queixar, tirando aquelas poucas ocasiões em que,
no auge do desespero, nem tanto pela dor como pelo ressentimento, ela chorava
no ombro de Iassaman. Não sabia o que estava a acontecer-lhe agora, oito anos
após a última menstruação, mas não se preocupava — que sentido fazia
preocupar-se se, no melhor dos casos, lhe restavam poucas horas de vida?
Não havia tempo para re etir, precisava de se pôr em ordem. Anatólia
começou a respirar lenta e profundamente para reprimir a náusea. Para vencer as
tonturas, fechou os olhos e, segurando-se à parede, resolveu andar. Chegada à
cozinha, primeiro procurou algo para comer. Encontrou na prateleira um frasco
esquecido de doce de rosas, engoliu os restos sem lhes sentir o sabor. O doce
deu-lhe algumas forças. Lavou-se, vestiu roupa limpa. Cobriu o cabelo molhado
com o lenço, sentou-se, descansou. Mudou a roupa da cama. Depois, trouxe
água da pipa onde se recolhia a da chuva, dissolveu nela uma pitada de
bicarbonato de sódio para que fosse mais fácil tirar as nódoas e deixou a roupa a
demolhar. Deixou que as galinhas saíssem da capoeira, colheu um molho de
melissa. Foi buscar mel à cave. A gadanha nova estava pendurada no cravo, e a
velha gadanha, embotada, desaparecera — provavelmente, o Vassíli levou-a
para a consertar. Os remorsos voltaram a referver-lhe na alma, mas Anatólia
enxotou-os — não tinha tempo para emoções. Voltou para cima, levando a
malga com o mel. Preparar uma limonada com melissa e mel, acompanhá-la
com uma côdea — era do que precisava, já lhe daria para se aguentar em pé
algum tempo mais.
Iassaman apareceu quando ela estava a estender a roupa lavada no quintal.
— Nunca mais aparecias, então vim cá eu — disse Iassaman em lugar de a
cumprimentar.
— Perdi a noção do tempo com tantos afazeres, já estou a acabar —
respondeu Anatólia.
Iassaman observou-a com preocupação.
— Estás muito pálida. Não te dói a cabeça?
— Dormi mal, é por isso.
— Não queres que te traga uma infusão de menta?
— Não, obrigada, já a preparei.
Acabadas as cerimónias, Iassaman pôs as mãos nos quadris, inclinou a cabeça
para o ombro — tomava sempre esta pose quando reclamava.
— O Vassíli foi lá a casa. Disse que se entenderam. E tu não me dizes nada?
— Pois!
— Qual pois, conta lá!
Anatólia tirou o lenço, desfez a trança feita à pressa — para secar o cabelo
mais depressa. Apanhou do chão o alguidar em que trouxera a roupa lavada,
mas não o levou para a cave, encostou-o à pilha de lenha, para meter mais tarde
a roupa seca.
— Não há nada que contar. Pediu-me em casamento, aceitei. Porque, em
qualquer caso, vocês não me iam deixar em paz até eu concordar, não é verdade?
— É verdade — disse Iassaman.
— Por isso aceitei o pedido.
— E zeste bem. O Vassíli é bom homem, decente. Porque havíeis de viver
em solidão, tu e ele?
— Vamos entrar, estamos aqui ao sol — sugeriu Anatólia, desejando desviar a
conversa, mas logo se lembrou da pilha de roupa fúnebre que deixara na sala de
estar, no lugar mais à vista. A Iassaman não é o Vassíli, vai perceber logo para
que é esta roupa.
— Não, é melhor carmos no terraço, lá dentro está muito abafado —
encontrou rapidamente a solução. — Queres limonada? Não tenho mais nada
para te oferecer, não tive tempo de fazer o almoço.
— Vamos antes para a minha casa. Pus a massa a levedar, vou fazer um bolo
de queijo. E apanhei rama de beterraba e morugem. Ajudas-me a prepará-las
com alho e matsun. Quando o Ovanés voltar, já estará tudo pronto. O Vassíli
também vai aparecer, prometeu — e Iassaman olhou para a amiga com um
sorriso manhoso, mas logo cou séria. — Não me agrada a tua cara, estás muito
branca, de mais.
A lavagem da roupa esgotara-lhe as últimas forças, e a única coisa que
apetecia agora a Anatólia era deitar-se em paz e sossego. Mas não havia remédio,
a sua recusa poderia alarmar Iassaman ainda mais. Por isso não disse nada e
dirigiu-se para a cancela. Vou aguentar. Se Deus quiser, aguento.
Primeiro, Iassaman deu-lhe a infusão de hipericão e obrigou-a a comer um
pouco de mel em favos, dizendo-lhe para não cuspir a cera, mas engoli-la. A
infusão deu a Anatólia um grande alívio, os ouvidos deixaram de lhe zumbir e a
náusea desapareceu, mas a sede que sofria desde a manhã aumentou. Pediu
água, mas bebeu-a em pequenos goles, com medo de a sangria aumentar.
Na cozinha dos vizinhos cheirava deliciosamente à massa fermentada —
Anatólia sempre gostara do seu aroma acídulo, com um toque de humidade e
frescura. Enquanto Iassaman tratava do bolo de queijo, Anatólia escolheu ramas
de beterraba e morugem, lavou-as com cuidado em água fria e começou a
cozinhar: refogou com manteiga um grande molho de cebolinho, acrescentou-
lhe as verduras picadas, cobriu tudo com a tampa. Mal as verduras largaram o
suco e quase ferveram, tirou o tacho do lume, pôs sal e deixou descansar.
Descascou vários dentes de alho, pô-los no almofariz de pedra, acrescentou-lhes
sal grosso, pisou o alho, acrescentou-lhe o matsun frio, bateu tudo — e também
o pôs de lado. O matsun iria impregnar-se do aroma do alho e, então, as verduras
refogadas seriam regadas com este molho.
Até à chegada dos homens, as amigas passaram o tempo no terraço. A vide,
agarrando-se com as gavinhas às pesadas traves de madeira, esticava-se para o
alto, até ao telhado de ardósia. O bolo de queijo com a côdea aloirada estava a
arrefecer na cozinha; no pomar, um grilo solitário, tendo confundido a tarde
com a noite, desatava num canto triste, o Sol rolava lentamente até ao poente,
escondendo-se atrás das nuvens raras, como se experimentasse e logo rejeitasse
ora um, ora outro traje de nuvens. Anatólia estava sentada, apertando as costas
contra a parede de pedra fresca, Iassaman cantarolava baixinho um orovel28.
— Sonhei com o meu pai — confessou Anatólia.
Iassaman interrompeu o canto, mas não virou a cabeça, apenas cruzou as mãos
no peito.
— Ele disse alguma coisa? — perguntou passado um minuto.
— Não. Nem sequer olhou para mim.
Iassaman descruzou as mãos com visível alívio.
— Que dia da semana é hoje?
— Quinta-feira.
— A quinta-feira é um dia bom.
Os maranenses davam especial importância aos sonhos. Contavam-nos uns aos
outros, tentando adivinhar o sentido secreto que neles se escondia. Averiguavam
obrigatoriamente o dia da semana. Se fosse domingo, não havia razão para
preocupações — o sonho domingueiro é oco, não promete nem vaticina nada.
Mas é preciso guardar na memória tudo o que vimos em sonho na noite da terça
para quarta-feira porque, precisamente na quarta, entre o primeiro e o segundo
canto do galo, os sonhos trazem presságios.
— Se fosse possível saber como ele está lá… — suspirou Anatólia.
— Se apareceu no sonho, está bem.
— Achas?
— Digo-o tal como o entendo.
— Queres dizer que me queres poupar.
— Será somente a ti que eu quero poupar? A mim própria também.
Na noite de maio, o céu é baixo e viscoso, com laivos de azul-mirtilo. Se
passarmos um dedo pelo rmamento, ele abre-se, assustado, ondulando,
desnudando as suas entranhas vivas, macias e aveludadas.
— Antes de morrermos não saberemos como eles estão lá, sem nós —
sussurrou Anatólia, dirigindo-se algures para o alto.
Iassaman acenou reservadamente com a cabeça. Tirou do braço da otomana a
manta dobrada em quatro, passou o dedo torto por uma costura lateral
esburacada. É preciso cerzi-la, ou não vai aguentar mais uma lavagem.

26 Airik — pai (arm.). (NT)


27 A folha de gadanha media-se apertando-a com a mão desde a ponta até ao cabo, podia ser de 4 até 10
mãos. (NT)
28 Orovel — género de cantiga tradicional arménia, em que o lavrador fala com o seu boi. (NT)
CAPÍTULO 4

«A memória humana é seletiva. Ficas terrivelmente ressentido, mas esqueces


logo como a mãe te açoitou implacavelmente com a vara de malhar a lã por
causa de uma roda que surripiaste da barraca dos vizinhos. A carroça há muito
que não está entre nós, mas a roda cou — grande, redonda, sólida. Lança-la
para baixo pelo caminho esburacado da aldeia — e corres atrás dela, saltando
com fascínio e enleio do coração por cima dos charcos opacos por causa da argila
amarela. À mãe perdoas a ofensa, e esqueces, mas ao vizinho Unan,
homenzarrão de sobrolho peludo e mandíbulas ferozes, nunca — não perdoas
nem esqueces. Em vez de te dar uma cacholeta, como é direito do homem, e te
tirar a roda, arrastou-te para casa e entregou-te à mãe. E o que pode uma mãe?
Há dois anos que ca a dever a Unan três grvakan de manteiga fervida. E nunca
consegue devolvê-la porque Unan, por qualquer razão, não a aceita por partes,
mas juntar meio jarro de manteiga, tirando-a da boca dos lhos famintos, é
obra, a mãe não o consegue. Foi por isso que aliviou a alma retaliando nas tuas
costas de tal maneira que, depois, só podias dormir de barriga para baixo.
«A mãe provinha da outra extremidade do vale e compreendia mal o dialeto
local. Tendo-se salvado do grande massacre por milagre, fugiu com quatro
lhos para Maran e instalou-se na herdade de Archak-bek. Archak-bek, Deus o
tenha, era uma pessoa generosa e moral, abrigou a desgraçada família, ajudou-a
com os materiais para a construção da casa. Prometeu dar-lhes dinheiro para os
primeiros tempos, mas não aconteceu — foi obrigado a fugir dos bolcheviques
para o Sul e, de lá, ao que diziam, para o Ocidente, através do mar. A herdade,
depois do derrube do czar, foi pilhada, e a mãe com os lhos não teve outro
remédio senão mudar-se para a casa meio construída no declive ocidental do
Manich-Kar. Nada de seu, nem modo de vida, nem comida. Foi obrigada a ir
falar com o vizinho Unan, suplicar-lhe ajuda. Trocaram no meidan metade da
manteiga fervida que lhes emprestara por um grvakan de trigo e um balde de
batatas, e a restante manteiga ajudou, mais ou menos, a viverem até à
primavera. Em março, apareceram as verduras, e semearam a horta. E a vida
começou a andar.
«A cada aviso do Unan de que era altura de devolver a manteiga, a mãe
respondia humildemente no seu dialeto: ku dam. De início, Unan gozava com
ela, arremedando, depois começou a chamar-lhe Kudam. E mesmo quando ela
lhe devolveu a manteiga, continuou a tratá-la pela alcunha. Por isso, meu lho,
somos os Kudamants. Provém de “ku dam”, devolvo.»

Kudamants Vassíli desprendeu a lâmina do cabo, com marteladas leves


desbastou o o, depois começou a a á-la com uma pedra de amolar abrasiva.
Trabalhava com movimentos secos, exatos, elaborados durante anos. A forja era
escura e fresca, as ferramentas havia muito não utilizadas tinham-se coberto e
impregnado de pó — de vez em quando Vassíli, ao pegar nalguma coisa sem
olhar e praguejando com irritação, sacudia das mãos autênticos farrapos de
poeira.
Dantes, quando havia tantos clientes que nem tinha tempo para endireitar as
costas e quando o bafo quente da forja tornava o ar insuportavelmente corrosivo
e picante, de tal modo que queimava a garganta não só ao inspirar mas também
ao expirar, os detritos do trabalho com o metal eram o único lixo da forja.
Agora, esquecida e inútil, a forja envolvia-se num casulo de pó, tombavam dela
bocados de telha e estava coberta de rachaduras e amolgadelas — envelhecia e
morria, inútil para todos.
— Não há nada mais destruidor do que a ociosidade — gostava de repetir o
pai. — Os braços cruzados e o ócio privam a vida de sentido.
Agora Vassíli compreendia a razão das suas palavras. Verdade verdadeira, a
vida perde o sentido no exato momento em que o homem deixa de ser útil para
os outros. Mas como pode o homem ser útil? Somente com o seu trabalho.
Meio século passou após o dia em que o pai levou à forja o Vassíli, miúdo de
oito anos para, pouco a pouco, começar a habituá-lo ao ofício. Mostrou-se um
ajudante esperto e laborioso, aprendia tudo de imediato e, algum tempo depois,
já se encarregava de uma parte do trabalho. O pai morreu quando Vassíli
acabava de fazer quinze anos. Vassíli não esqueceu esse dia durante toda a vida,
era manhã, ainda muito cedo, mas a aldeia já não dormia: as cancelas abriam-se
e fechavam-se, rangendo, os cães ladravam, os galos cantavam; o gado ia para o
pasto, mugindo arrastadamente e levantando o pó ruivo do caminho — à
frente, as vacas cor de palha, de ancos arredondados, a seguir as cabras e as
ovelhas, e a procissão era fechada pelo pastor com dois lhos com um ano de
diferença, um deles levava uma trouxa com comida, enquanto o outro, com uma
vara na mão e gritando em voz sonora «eia-eia», apressava desajeitadamente o
rebanho quando este se estendia de mais; Vassíli e o pai afastaram-se para o
lado, esperaram na berma que passasse a corrente animal, cheirando a curral
húmido e a estrume amargo, o pai roçou a mão pela estacada coberta de orvalho,
quis dizer qualquer coisa, mas, de súbito e bruscamente, encostou-se com o
ombro à estacada e deslizou para o chão, sorvendo o ar com a boca.
A mãe estava no segundo mês da gravidez, adoeceu e cou acamada logo
depois do funeral, continuou doente muito tempo, recuperou apenas seis meses
mais tarde. Vassíli não deixava ninguém aproximar-se dela, tratava da mãe
sozinho, abnegada e humildemente: dava-lhe de comer com a colher, dava-lhe a
beber infusões, ajudava-a a tomar banho — enchia a tina com água quentinha,
dissolvia nela uma pitada de cinzas e raspas de sabão, despia-a até à camisa de
noite, lavava-lhe o cabelo e os pés, esfregava-lhe as costas magrinhas — através
do tecido molhado, espetavam-se desamparadamente as costelas e as vértebras
agudas —, depois deixava-a sozinha, mas cava atrás da porta, escutando com
atenção como ela, gemendo, tirava a camisa, se lavava até ao m e vestia roupa
limpa. Levava-a para a otomana, agasalhava-a com o cobertor, servia-lhe chá,
continuava sentado a seu lado até ela adormecer. Se o tempo o permitisse, levava
a mãe ao pomar, para respirar ar fresco, ela tinha o peso de uma cotovia, apenas
a barriga se lhe espetava para a frente, grande e redonda. Vassíli sentava-a no
banco debaixo da pereira, e ela, apoiando as costas ao tronco áspero, observava
como ele tratava da terra: escari cava, regava, mondava.
Ia à forja da parte da tarde, deixando a mãe aos cuidados da tia ou da Satenik,
que, naquele tempo, já era casada e mãe de dois lhos.
A mãe, por um qualquer milagre, conseguiu levar a gravidez até ao m, o
lho nasceu fraco e enfermiço, mas vivo — o primeiro bebé que sobreviveu
entre os oito que nasceram depois de Vassíli. Os outros sete morreram antes do
parto, os pais choraram amargamente por todos, mas não perdiam a esperança
de ter pelo menos mais um lho, as famílias de Maran eram patriarcais,
grandes, e apenas a família deles não estava destinada a tal felicidade.
O nascimento do lho fez a mãe voltar à vida, a casa nalmente acordou,
respirou os cheiros habituais desde a infância, de que Vassíli tinha tantas
saudades: a presunto curado, cheirando a fumo e especiarias, o doce de nozes e a
brinza de ovelha com ervas secas do monte. Agora a casa, em vez do silêncio dos
mortos, recebia Vassíli com as batidas de malaxador, com o roçar pétreo do
moinho de mão e com o calor do tonir29, em que a mãe, depois de ter cozido o
lavach30, assava a fogo lento o borrego condimentado.
O menino, que em honra do pai foi chamado Akop, o segundo Kudamats
Akop na linhagem de Arussiak, a avó de Vassíli, apelidada insultuosamente de
Kudam pelo desavergonhado vizinho, crescia como rapazinho esperto, mas
estranhamente quieto e pensativo. Vassíli gostava dele até à dor no peito, mas
não o mimava nem deixava que a mãe o mimasse, e estava muito contente com
a escola construída em Maran — era imprescindível ensinar o irmão a ler e a
escrever. A forja dava um lucro modesto mas estável, Vassíli entregava à mãe
quase todo o dinheiro que ganhava, mas poupava um pouco para o futuro:
planeava mandar Akop para o vale, para um bom ensino. Na primavera, Vassíli
fez dezanove anos, era altura de se casar, a mãe insinuou-lhe várias vezes que
prestasse atenção a Iakulitchants Magtakhiné, menina de ouro, modesta e
laboriosa, valia a pena pedir a sua mão, mas Vassíli adiava sempre porque
duvidava que Iakulitchants Petros aceitasse o casamento da lha com um rude
ferreiro. A mãe, sem lhe pedir licença, juntou numa trouxa as poucas joias de
ouro que tinha: brincos, dois anéis e uma pulseira — e foi a casa de Petros.
Receberam-na com uma certa tensão, mas de modo hospitaleiro, puseram a
mesa com iguarias ricas — pétalas de rosa açucaradas, pastilá31 de nozes,
bolachas com avelãs. A mãe cou tímida, mas obrigou-se a levar o seu plano até
ao m, afastou o prato, desatou a trouxa, despejou o conteúdo em cima da
toalha:
— É tudo o que posso oferecer à vossa Magtakhiné.
— Nem uma vez desviou o olhar, não disse nem uma palavra a mais — viria a
contar, passados muitos anos, Petros a Vassíli. — Estava ali de costas direitas,
com as mãos em cima dos joelhos, e falava comigo de igual para igual. Foi por
isso que aceitei casar a minha lha contigo.
Segundo o costume, decidiram celebrar o casamento no outono, depois das
colheitas, mas foi preciso esperar cinco anos — primeiro, por causa do luto pelo
irmão mais novo de Magtakhiné que morreu atingido por um relâmpago,
depois por causa da fome cuja ameaça pairava por cima do Manich-Kar e que se
desencadeou logo ao primeiro verão seco, inelutavelmente e, ao que parecia,
para sempre. Mais tarde, passados muitos anos, os maranenses recordavam que a
fome, como se brincasse com eles ao gato e ao rato, lhes tinha mandado
mensageiros, ou para avisá-los, ou talvez para escarnecer deles… Contudo, as
pessoas, mergulhadas na sua rotina, infelizmente não conseguiram perceber o
sentido secreto desses sinais. Tudo começou naquela noite em que a aldeia foi
acordada por um barulho esquisito e pôde observar das janelas, com terror,
como os ratos e as ratazanas, juntando-se de todos os lados numa mole
gigantesca, como estreitos riachos con uindo para a grande e caudalosa
corrente, avançavam para o meidan. À frente, silenciosos e terríveis, cobertos de
cicatrizes ganhas nos muitos combates, iam os machos, atrás deles as crias,
atafulhando-se numa desordem confusa — os mais pequenos agarravam-se às
caudas dos adultos e tentavam encavalitar-se-lhes nas costas, mas, cruelmente
mordidos, piando de ofensa, caíam e eram esmagados pelos que vinham atrás.
As fêmeas fechavam a procissão, estranhamente indiferentes à morte das suas
crias, troteavam em las irregulares, contornando impassivelmente os corpinhos
cobertos de sangue que se torciam em agonia. A Lua pendia do céu como uma
mó enorme, nos pátios os cães, enormes e zambros, que costumavam reagir com
rugidos assustadores aos barulhos mais insigni cantes, guardavam um estranho
silêncio; e as pessoas, mudas de pavor, com medo de saírem para os terraços,
observavam pelas janelas esse êxodo inexplicável e sinistro. O bando de ratos, ao
chegar ao meidan, juntou-se numa horda fervilhante, lançou-se, como um
vagalhão largo, para a extrema da aldeia e desapareceu, dissolvido na pálida
luminescência da Lua, deixando atrás de si o fedor da podridão húmida e o
caminho rural semeado de pequenos cadáveres hirtos. Maran recebeu a manhã
sem ouvir os habituais barulhinhos nas caves, mas as donas de casa, precavendo-
se do possível regresso da rataria, continuaram a cobrir a terra à volta das arcas
de cereais com sementes de língua-de-cão, a encher as tocas vazias com vidro
esmigalhado e arsénico, e a afastar das paredes as prateleiras com alimentos até
uma distância inatingível para os roedores. No vale corriam rumores de que os
ratos fugiram para o Leste, onde marulhavam as águas escuras do mar-oceano
in nito e que os habitantes da costa os tinham visto a atirarem-se para as ondas
irisadas sob o sol poente, e que esses ratos, mexendo as patas ensanguentadas
pelas longas andanças, nadavam até que, ao perderem as últimas forças, chiando
lamentosamente e sufocando, imergiam, em novelos inteiros, para o fundo
morto do mar, coberto de lodo.
Talvez as gentes tivessem continuado a discutir ainda durante muito tempo o
acontecimento invulgar, se não fosse um desastre que se abateu sobre elas a
seguir, na véspera da Anunciação, num meio-dia calmo e ensolarado de abril. O
céu, pací co e desanuviado de manhã, prometendo um tempo quentinho e
muito sol, cobriu-se subitamente de uma impenetrável cortina de negrura, de
um extremo ao outro do horizonte, e rebentou num estridular sinistro. Mal as
mulheres, atrapalhando-se em pânico com as molas, conseguiram arrancar das
cordas a roupa que secava e meter as aves nos galinheiros, as nuvens de
tempestade, metamorfoseadas de repente em enxames de pesadas moscas de asas
a ladas, desmoronaram-se sobre a aldeia, tencionando por certo cobrir com
aquele abominável e mexediço mistifório tudo o que apanhavam pelo caminho:
pomares, hortas, cercas, casas, barracas. Eram tão numerosas, que se julgaria a
ira de Deus para com os homens por mor de algum pecado, e que o castigo
divino era aquela chuva de insetos. Giravam no ar em chusmas impertinentes,
penetravam na boca, colavam-se aos olhos, trincavam os jovens rebentos das
plantas, esvaziavam os comedouros da criação doméstica e até tentavam roubar
a ração do gado. En avam-se nas casas pelas condutas de fumo, rastejavam pelos
cantos e pelas ssuras, deixando nas paredes manchas escuras impossíveis de
eliminar. Eram gigantescas e medonhas — do comprimento de um mindinho,
com asas transparentes amarelo-esverdeadas, com cinco riscas longitudinais nas
costas e cinco riscas transversais na pesada barriga acinzentada. Multiplicavam-
se com uma rapidez tão monstruosa como se tencionassem invadir tudo. Os
machos, atraindo as fêmeas, emitiam com as asas uma forte e rangente
estridulação que entupia os ouvidos. Acasalavam no ar, caindo como pedras para
baixo e rodopiando loucamente, as fêmeas gemiam e guinchavam, mas não
podiam escapar porque os machos as imobilizavam, borrifando-as com excreções
venenosas das glândulas salivares. As larvas que nasciam algumas horas depois
eram insaciáveis e omnívoras, e num abrir e fechar de olhos transformavam-se
em vermes enormes, gelatinosos, nojentos, atingindo o tamanho de uma palma
de mão, devorando não só as plantas, mas também os bichos pequenos:
formigas, besouros, abelhas. Os maranenses organizavam a defesa na medida das
suas possibilidades: tapavam as condutas de fumo, fechavam as galinhas e os
cães nas caves, não levavam o gado para as pastagens, não abriam as janelas e
encortinavam as aberturas das portas de entrada com lençóis. Na rua, viram-se
obrigados a usar roupa segura e resistente, que cobria todo o corpo, enrolavam
cachecóis no pescoço e lenços na cabeça, deixando só uma fenda estreita para os
olhos. Para exterminarem os insetos que penetravam nas casas, utilizavam os
batedores de tapetes, mas depois passaram a apanhá-los e a deitá-los fora
porque, ao morrerem, as moscas deixavam um charco de veneno que feria as
mãos de quem o limpava. Depois disso, as chagas supuravam e eram difíceis de
sarar. Os inseticidas domésticos não surtiam efeito, as moscas mostraram-se
resistentes até ao vinagre concentrado e ao arsénico. Chlapkants Iassaman
preparou um caldeirão de infusão de mamona, veratro e beladona, e pô-lo no
quintal, mas nem isso fez mossa às moscas. Os mensageiros enviados ao vale à
procura de ajuda voltaram de mãos a abanar: os inseticidas químicos dantes
utilizados não funcionavam, e muita gente sofreu por causa da sua utilização
exagerada e descuidada. Ficaram a saber que a situação no vale era ainda pior do
que na aldeia situada no cocuruto do Manich-Kar porque a massa principal dos
insetos preferia as serenas e prósperas depressões ao cume do monte exposto a
todos os ventos. Os mensageiros, de regresso a Maran, contaram que no vale o
pânico começara no terceiro dia de invasão das moscas. Alguém lançou o boato
de que em breve não haveria comida porque as reservas estavam quase esgotadas
e não haveria novas porque a produção estagnara. O pânico fez o seu trabalho
negro: primeiro caram vazias as lojas de alimentos, depois todos os armazéns
foram pilhados. No momento em que o governo, nalmente, tomou medidas
pondo em ação as tropas e declarando o recolher obrigatório, já não havia nada
para salvar — depois de levarem para as suas casas as provisões roubadas, os
maranenses estavam decididos a protegê-las ao custo das próprias vidas. O que
se passou a seguir no vale, isso os habitantes de Maran já não o sabiam nem
conjeturavam. Conhecendo a natureza humana, que sentido fazia deitarem-se a
adivinhar?
As moscas desapareceram apenas em nais de maio. Esvoaçaram em enxames
pesados e estridulantes, andaram às voltas por cima do vale e do Manich-Kar —
e retiraram-se rumo a norte, deixando atrás de si as pastagens carcomidas até à
última erva, as orestas desnudas e a água envenenada. A Natureza tentou
recuperar — lançou folhas novinhas, tingiu de verde os campos in nitos, uma
vez que, logo depois do desaparecimento das moscas, aconteceu toda uma
semana de chuvas, lavando a imundície deixada pela invasão: dejetos tóxicos,
cascas de larvas, cadáveres de aves devorados até aos ossos e detritos de todo o
género de insetos. Mas às chuvas sucedeu uma grande seca. Um Sol enorme,
incandescente até ao máximo limite, pendia, qual bola gigantesca, por cima do
vale, evaporando toda a humidade, queimando por completo a verdura ainda
mal recuperada, cobrindo o mundo com a sua mão ígnea, não o deixando
endireitar-se nem respirar. A terra desidratada cobriu-se dos ziguezagues de
rachaduras, de poeira baça, chiou como um ferro de passar aquecido em cima do
fogão — fchchch, chchch. Os rios baixaram de nível, depois desapareceram por
completo, as nascentes deixaram de manar, as sombras perderam a frescura
salubre, as árvores secaram e não passavam de galhos tortos como as lascas de
mastros quebrados pela tempestade.
Foi como se a fome mandasse a seca à sua frente como último mensageiro. E a
seguir à seca, irrompeu ela, transportada no seu carro de vento quente, de olhos
húmidos, nojenta, a que não conhece piedade nem misericórdia, mais pavorosa
do que o mais pavoroso que há no mundo — do que a própria morte. De cada
vez que recordava aquele tempo monstruoso, Vassíli era acometido por uma
tosse dura, dilacerante, que o engasgava. Bebia várias chávenas de água
seguidas, mas não conseguia saciar a sede, apenas se sufocava, torturado por
aquela tosse cortante, e dobrava-se, vertendo lágrimas impotentes. Recordava
como matou o último carneiro — a seca queimara os miseráveis restos de ervas,
não havia mais ração, o gado caía morto, enterravam-se as carcaças dos animais,
matando-se à pressa os que estavam à beira da morte, esquartejavam-se e,
depois de se manter algum tempo a carne numa salmoura forte, secava-se ao
vento. Em tempos, o pai pagara por esse carneiro uma fortuna: era enorme,
semental, de raça criada para dar carne e lã, um animal que já no inverno pesava
quase quinhentos grvakan, mas no quarto mês da seca cou um esqueleto quase
ressequido e perdeu os dentes. Vassíli deitou o animal para o lado, imobilizou-o
facilmente apertando-o com o joelho… Dantes, para o imobilizar, eram precisos
vários homens robustos, mas agora cedia, obediente, apenas mugia
lamentosamente como uma vaca, pressentindo a morte. Vassíli desviou o olhar,
cortou a garganta indefesa com uma faca a ada, esperou até as convulsões
cessarem, levantou a carcaça mole com uma mão e pendurou-a por um tendão
no gancho de ferro para escorrer o sangue. Akop, com cinco anos, estava por
perto, retendo a respiração, e observava em silêncio como o irmão mais velho,
com golpes curtos e precisos da faca, esfolava o carneiro. No estômago do
desgraçado animal encontraram umas tiras de polietileno, uma mola e uma
sandália de Akop que desaparecera na véspera. A mãe esfregou a sandália
primeiro com cinzas (era preciso poupar rigorosamente a água), depois com um
trapo molhado em vodca, mas a criança recusou-se resolutamente a calçá-la.
Os anos da fome negrejavam na memória de Vassíli como um abismo — não
se permitia olhar para trás, com medo de recordar alguma coisa que depois seria
para ele uma ferida incurável. Mas não conseguia anular por completo as
recordações que emergiam do redemoinho do passado e durante muito tempo
lhe vinham dilacerando a alma com os seus pormenores. Ainda hoje Vassíli
sentia na boca o ressaibo de uma sopa magra que a mãe aprendera a cozer de
raízes, pinhas de abeto e casca de árvores. Era impossível arranjar, por dinheiro
nenhum, legumes e cereais, com as reservas de carne seca do gado que mataram
sobreviveram nos primeiros meses, poucos, mas estas reservas também se
esgotaram, até que no m já não havia mais nada para comer. A seca apenas
recuou no m do outono, dando a possibilidade à Natureza sequiosa da chuva
de novembro de se cobrir timidamente de verdura por um minúsculo período
de tempo até à chegada das neves. Foi com esta pouca erva, com as raízes
desenterradas, com pinhas e casca de árvores que a aldeia se sustentou até
março, tendo perdido pelo m do inverno metade dos seus habitantes. Fevereiro
transformou-se num mês de funerais, e todas as manhãs Vassíli, com outros
homens, percorria as casas e levava os mortos; enterravam-nos em valas comuns,
ninguém tinha já forças para abrir covas individuais. Os primeiros a narem-se
foram os velhos e as crianças, a seguir, as mulheres, os homens aguentavam-se
mais tempo, o que era uma maldição insuportável, sobre-humana —
despedirem-se, um atrás de outro, dos entes mais amados do que a vida. O
único homem jovem que morreu no primeiro ano da fome foi o pai de Anatólia,
Sevoiants Kapiton. Depois do funeral das lhas mais velhas, levou Anatólia para
o vale, entregou-a aos cuidados de uns parentes longínquos e, depois da morte
da velhinha babó Mané, num momento de profundo desespero, recusou-se a
beber e a tomar o escasso alimento. Nos primeiros dois dias, enquanto ainda
tinha forças, ainda ajudou a recolher cadáveres pela aldeia, mas ao terceiro dia,
enfraquecendo bruscamente, caiu de cama para nunca mais se levantar. Só
Ovanés sabia que Kapiton decidira acabar com a vida. Por mais de uma vez
tentou dissuadir o amigo de cometer o pecado do suicídio e lembrou-lhe que
ainda existia a sua Anatólia; mas Kapiton respondia a todas as persuasões com
um frio silêncio. Só falou uma vez, antes de falecer, pedindo que o enterrassem
ao lado da mulher e das lhas, que não o atirassem para a vala comum. Ovanés
pediu ajuda a Vassíli, e ambos, superando a extraordinária fraqueza, abriram a
campa de Voske e baixaram sobre o seu féretro meio decomposto o corpo de
Kapiton envolto num cobertor — havia tantos mortos que ninguém pensava
em caixões, era necessário e urgente inumá-los o mais depressa possível. Depois
fumaram em silêncio durante muito tempo, sem prestarem atenção ao frio e à
neve mordaz que se lhes en ava dentro das golas. Vassíli adivinhava vagamente
qual a causa da morte de Kapiton, mas não perguntou nada. Contudo, uma vez
por ano, em fevereiro, ia juntamente com Ovanés, sem falhar, visitar a campa do
seu amigo. Ficavam lá, encostando-se à cerca fria, calados. Só uma vez, passado
muito tempo, Ovanés tomou a liberdade de con denciar um pouco com ele:
— Quem somos nós para censurar o que alguém fez? — suspirou ele,
desembrulhando o incenso.
— Há decisões e ações que não são sujeitas a censura — foi a única coisa que
disse Vassíli.
Ovanés não respondeu, mas à despedida apertou-lhe a mão com força. Desde
então, deixaram de visitar a campa de Kapiton. Provavelmente, as palavras de
Vassíli convenceram Ovanés, nem tanto de que Kapiton tivera razão, pelo
menos de que o passo dele fora inevitável. E Ovanés deixou o amigo descansar
em paz.
Vassíli guardou na memória o primeiro fevereiro dos tempos da fome, não só
com os seus funerais in ndáveis, mas também com o comportamento
inexplicável do seu irmãozinho. Akop, magríssimo como um esqueleto, mas
espantosamente ágil e saudável graças a um karás de mel oferecido pela família
de Magtakhiné — a mãe dissolvia uma colher de mel no jarro com água tépida,
acrescentava pinhas e dava ao lho esta bebida de manhã, à tarde e à noite; por
isso, apesar da sua magreza transparente, o miúdo continuava animado e
divertido; contudo, alegrando os familiares com a sua boa forma física,
entristecia-os com o seu estado mental. Barulhento e imparável durante todo o
dia, à noite fraquejava, recusava deitar-se na cama e passava metade da noite
sentado à janela coberta de espirais de geada. Agasalhado no cobertor de lã,
perscrutava com os olhos a escuridão e, à pergunta sobre o que tentava ver lá,
respondia: colunas azuis. A mãe, perscrutando também as trevas, não via nada,
assustava-se, chorava, mas Akop fazia de conta que não reparava nas suas
lágrimas e não respondia aos pedidos de ir para a cama. E quando, uma noite,
Vassíli tentou levá-lo para a cama em braços, o miúdo desfez-se em lágrimas tão
amargas que foi preciso sentá-lo outra vez à janela. Agora os adultos eram
obrigados a passar as noites sem dormir, e a mãe, convencida de que a alma do
lho mais novo fora raptada por um dev32, rezava, limpando sorrateiramente as
lágrimas, enquanto Vassíli distraía o irmão com conversas. Akop respondia de
boa vontade, mas não desviava os olhos da janela, por vezes calava-se a meio da
conversa, mexia os lábios, dobrava os dedos, esticava o pescoço e, apertando a
testa ao vidro da janela, levantava e baixava os olhos. Passada uma ou duas
horas, talvez convencido de que não distinguiria mais nada no escuro,
levantava-se com um suspiro, e comunicava: hoje havia cinco mais quatro
colunas (sabia contar apenas até cinco) e ia deitar-se. Uma vez, Vassíli, nem
sabia porquê, comparou o número de vizinhos falecidos durante a noite com o
das «colunas azuis» de que falou o Akop e descobriu, aterrorizado, que os
números coincidiam. Não quis dizer nada à mãe, para não a assustar ainda mais,
mas passou a noite seguinte a observar o irmão com atenção. Akop não
manifestava medo nenhum, mas às vezes estremecia, como se fosse apanhado
desprevenido, e depois imobilizava-se, respirava aceleradamente, não se mexia,
apenas olhava algures para cima.
— Conta-me o que vês — pediu-lhe Vassíli.
— Be-em — hesitou Akop —, primeiro, uma luz acende-se no céu, parece
uma estrela. Depois, desce de lá uma coluna. Como a água, mas azul. E um
pouco violeta.
— Como a água em que sentido? Corre para baixo como um rio?
— Não, é transparente como a água. Por isso se vê o que tem lá dentro.
— Mas o que tem lá dentro?
— Estão lá duas pessoas. Não, primeiro uma pessoa. Desce de cima. Tem asas.
Mas não voa, as asas estão penduradas nas costas. Esta pessoa com asas desce e,
depois, sobe e leva consigo uma menina ou um menino, ou uma velha, ou um
velho.
— Para onde os leva?
— Para cima.
— Mas o que há lá em cima?
— Uma luz azul.
Vassíli virou-se para a mãe. Estava sentada com as mãos caídas nos joelhos,
lágrimas amargas corriam-lhe pela cara pálida e extenuada. Vassíli sentiu medo
por ela, tão desamparada e perdida.
— Ele vê os anjos da morte — sorriu para ela e apressou-se a tapar os lábios
com a mão, os lábios tremiam-lhe, revelando o pânico e o medo.
Naquela noite, Akop contou «cinco, cinco e três colunas azuis». De dia,
enterraram na aldeia treze pessoas. Na noite seguinte, Vassíli agasalhou o irmão
com um cobertor de lã e levou-o ao colo até à estrema da aldeia, felizmente não
era longe: por trás de cinco casas, uma encosta do Manich-Kar derrubada pelo
terramoto arreganhava as aguçadas rochas dentadas. Vassíli aproximou-se da
beira da escarpa e virou-se de maneira que Akop pudesse ver as trevas
impenetráveis que inundavam o vale.
— O que estás a ver ali?
— Ali há luz como de dia — respondeu o miúdo sem virar a cabeça.
— Por causa do sol?
— Não, Vassó-djan. Há lá muitas colunas azuis, por isso há tanta luz.
Era impossível resignar-se ao facto de o rapazinho ver os mensageiros que
vinham buscar os mortos, mas a mãe tentou, pelo menos, habituar-se à ideia. É
verdade, conseguia-o a grande custo — continuava a chorar e a rezar orações em
voz baixinha, enquanto Vassíli não tinha nada a fazer, apenas dormitar na
otomana à espera da hora em que Akop, acabando de contar as últimas almas
humanas que esvoaçaram para o céu, pedia para ir dormir. Agora deitavam-no
sempre ao lado do irmão, a mãe tinha medo de que os anjos da morte, ao
perceberem que tinham cado visíveis, viessem buscar a criança. Os anjos da
morte, porém, estavam ocupados — não tinham mãos a medir, recebendo e
acompanhando para os céus mais e mais almas que deixaram de sofrer.
— Enbachti, horas terríveis — revelou uma vez, em sussurro, a mãe ao lho
mais velho —, a vossa avó, a falecida Arussiak, contou-me que as pessoas, na
maioria das vezes, morrem precisamente quando os galos dormem. E os galos
dormem como pedras nas horas de enbachti, desde a meia-noite até ao início da
aurora.
— O que têm a ver com isso os galos a dormir? — perguntou Vassíli,
lançando um olhar ao irmãozinho imóvel à janela.
— Porque assustam a morte com o seu canto. Se uma pessoa morreu à luz do
dia, aconteceu porque o galo não cantou a tempo.
Vassíli abanou a cabeça, suspirou gravemente.
— Em breve chega a primavera, a fome vai desaparecer, as pessoas deixarão de
morrer. E o Akop vai acalmar-se, vais ver.
Sucedeu precisamente como ele vaticinou. Passada uma semana ou duas,
quando, com o aparecimento das primeiras ervas primaveris — urtiga, bolsa-
de-pastor e malvaísco —, a aldeia reduzida a metade começou a animar-se
devagarinho, a tratar das hortas e dos pomares, tirou dos esconderijos as
sementes de legumes, guardadas como à menina dos olhos, Akop adormeceu
pela primeira vez a uma hora normal para as crianças, e não a meio da noite.
Desde então, dormia calma e profundamente até ao almoço, compensando pelos
vistos as noites sem sono passadas à janela.
Abril já estava à porta quando no vale se lembraram nalmente de Maran.
Um dia, chegou de lá um camião escoltado por soldados com sementes de trigo
e batatas, entregaram a cada família três grvakan de cereal e quatro grvakan de
batatas de semente. O cereal era normal, local, pelos vistos nem todos os
armazéns do Governo tinham sido pilhados pelas pessoas que a fome
enlouquecera, mas as batatas eram de uma categoria nova — uns tubérculos
alongados, lisos, sem uma única ruga e sardentos, cada um como um rebuçado
brilhante. Os soldados explicaram que era uma ajuda que viera de além-mar,
havia pouca esperança de que esta batata pegasse na nossa terra, mas era
indispensável plantá-la porque não restavam alimentos nenhuns, e tinham de
aguentar de alguma maneira até à colheita. Uma semana depois, chegou ao vale
nova ajuda, várias dezenas de vagões de animais domésticos — desta feita
surgira do lado da passagem montanhosa do Norte, a que separava o vale e o
mundo exterior pelos montes em semicírculo.
Depois da distribuição meticulosa, calharam a Maran uma vaca, uma ovelha,
duas cabras e uma porca — esta espantou sobremaneira as gentes de Maran:
lembrava um nabo redondinho e limpinho, como se o tivessem lavado
cuidadosamente sob a água corrente. A aldeia suspirou, estalou a língua,
observou a porca de todos os lados, admirou as suas orelhas pequenas e a pele
lisa. Os porcos locais eram conhecidos em todas as redondezas pelas suas orelhas
enormes, quase como as do elefante, e por serem muitíssimo peludos, mas esta
porca era uma delicada criatura rosada-leitosa, com focinho em forma de
coração e cascos minúsculos. Saciados de admirarem a estranha porca, os
maranenses caíram em si e começaram a pensar no que podiam fazer com esta
ajuda. Foi tomada a decisão de manter os animais no mais espaçoso e limpo
estábulo, o de Melikants Vanó, e partilhar rigorosamente o leite entre as
famílias em que havia ainda crianças. Mas quando nascessem as crias, distribuí-
las-iam entre as casas, então em cada família haveria, pouco a pouco, animais
próprios, e a aldeia juntaria um novo rebanho… Aliás, de que crias se podia
falar, lembraram-se de repente, se nos trouxeram só fêmeas? Quem as ia
fecundar? A resposta ao telegrama urgente enviada pela telegra sta Satenik para
o vale nunca chegou, mas uma semana depois chegou o segundo camião, com os
almejados efetivos masculinos e todo um bando de aves domésticas — perus,
patos, galinhas-da-índia e gansos. Para que o gado não pisasse as aves, estas
foram trazidas em dezoito caixas de madeira fechadas com pregos, e quando
abriram a última saiu dela um pavão branco de neve, deixando toda a gente
profundamente espantada. Ao ver-se em liberdade, o pavão pupilou com ar
ofendido e foi andando, coxeando e mergulhando na lama formada pelas chuvas
primaveris as penas quebradas na viagem. O camião, depois de descarregar os
animais e as aves, há muito que partira, não havia ninguém para perguntar de
onde surgira o pavão e o que deviam fazer com ele. A pedido de Vanó, que
agora era responsável pelo gado de Noé vindo do Norte, Satenik enviou novo
telegrama, e a resposta, desta vez, chegou depressa: o vale reagia com uma
réplica curta, mas irada, mais ou menos no sentido de: «temos mais que fazer
do que ler as vossas chalaças inconvenientes».
O pavão foi instalado juntamente com as outras aves, mas chorava e recusava
alimentar-se do comedouro comum. A mulher de Vanó, Eibogants Valinka,
levou-o para casa, deu-lhe banho na tina, vertendo com cuidado a água da
concha, e passou mais de uma hora a secar o pavão ao colo, agasalhado com um
velho lençol — vejam só, tanta beleza, mas cheira como uma simples galinha
molhada, espantava-se Valinka. Depois de secar, o pavão saltou pesadamente
para o chão, troteou até à porta, gritou lamentosamente, pedindo para sair em
liberdade. Valinka deixou-o sair, ele deu umas voltas sem tino pelo pátio,
passou sem virar a cabeça ao lado da chusma barulhenta de galinhas, de
galinhas-da-índia e de gansos, voltou ao terraço, meteu-se debaixo do banco de
madeira e cou ali quieto. Não havia maneira de o tirar de lá — o pavão
chorava e gritava cada vez que alguém tentava aproximar-se dele mais do que a
dois passos, por isso Valinka lhe deixou uma tigela de água, urtiga e azedas
cortadas e proibiu que os familiares parassem no terraço, para não assustarem o
bicho. O pavão acalmou-se, saiu de baixo do banco, comeu as urtigas, passou
um dia inteiro no terraço passeando para a frente e para trás, e à noite esvoaçou
sobre o corrimão e adormeceu, deixando pender até ao chão a cauda luxuosa.
Passado algum tempo, habituou-se ao novo lugar, até pedia para sair pela
cancela, passeava ao longo do caminho, olhava para os lados e, quando chegava à
beira da escarpa, imobilizava-se por muito tempo, bonito e majestoso, de coroa
branca da neve e com as penas cobertas de pó cor de ferrugem, olhava para
cima, às vezes soltava um grito dilacerante. Viveu todo o ano no terraço. Vanó
fabricou para ele uma grande caixa, encheu-a de feno, mas o pavão desprezava-a,
metia-se nela apenas quando o frio era de rachar e, en ando-se debaixo da velha
manta de lã com que Valinka o agasalhava carinhosamente, calava-se, sombrio,
seguindo com olhos impassíveis os ocos de neve que entravam raramente no
alpendre. Por vezes saía para o pátio invernal, tornando-se num instante quase
invisível em cima da camada da neve e, inconvenientemente luxuoso no meio
da realidade aldeã que o rodeava, contemplava durante uns parcos minutos a
nevasca. Depois, batendo as pesadas asas molhadas, esvoaçava para o terraço,
parava por um segundo em cima do corrimão — e voltava a mergulhar na caixa
com feno.
Os outros animais trazidos do vale acostumaram-se depressa ao novo lugar, a
vaca, as cabras e a ovelha davam tanto leite, que, às vezes, os maranenses
utilizavam uma parte para fazer manteiga e queijo, embora numa quantidade
tão pequena que dava apenas para as famílias com crianças. Até ao verão, a
aldeia recuperou, cobriu-se da verdura de hortas e pomares, sarapintou-se de
groselhas e framboesas, mas a alegria da vida que renascia era ensombrada pelo
medo da seca que podia voltar. E voltou, menos longa do que a do ano anterior,
mas maldosa, cálida e ígnea, e as pessoas apenas se desenvencilharam porque
chegou tarde, no m de julho, tendo conseguido salvar uma parte das colheitas.
As batatas importadas não germinaram, mas na horta de Vassíli vários
tubérculos de batatas velhas, esquecidos, por sorte, na terra desde a última
colheita, foram avante. Depois, a mãe arrancou-as e guardou-as até à primavera,
para as semear de novo. No segundo ano, os maranenses aguentaram-se com
pepinos, tomates, bagas e cogumelos salgados, com nozes, avelãs e frutos de
faia, e ainda com mel (as abelhas, graças a Deus, sobreviveram à fome e, antes
do grande calor, conseguiram fazer grandes reservas de mel, e depois
acrescentaram mais algum em outubro quando o calor, nalmente, baixou).
A mãe morreu no segundo inverno da fome, aguentou até ao m dos grandes
frios, foi-se ao meio-dia: deitou-se para uma sesta e já não acordou. Os lhos
estavam na forja, Vassíli levava para lá Akop para o distrair das visões noturnas
que recomeçaram com a chegada do inverno; o miúdo, observando como o
irmão vertia o metal fundido num molde, endireitou-se de repente, empurrou
com o cotovelo Vassíli, que só por milagre não derramou o metal sobre o seu
corpo, ia ralhar ao miúdo, mas calou-se: Akop, lívido, sorvia o ar com a boca,
tentava dizer qualquer coisa, mas não conseguia. Vassíli assustou-se, pensando
que dentro da forja sobreaquecida faltava ar ao irmão, tirou-o em braços para
fora, e o rapaz, recuperando nalmente o fôlego, soluçou e chorou: Vassó-djan, o
anjo veio buscar a mamã.
Vassíli deitou a correr sem ver o caminho, atropelando-se com o avental
comprido de ferreiro, apertando Akop ao peito, tentando protegê-lo com as
mãos — estava frio, e eles estavam sem roupa quente. Um silêncio de desespero
diluía-se pela casa, a mãe estava deitada com as mãos juntas debaixo da
bochecha, como uma criança. Vassíli sentou o irmão na borda da otomana,
rastejou até à mãe de joelhos, apertou os lábios à sua têmpora, sentiu a frescura
mortal da pele — e chorou.
Foi a primeira noite de inverno que Akop não passou junto à janela. Depois
de chorar um dia inteiro ao lado da mãe morta, pela noite perdeu as forças,
depois teve um grande acesso de febre. Iassaman, chamada em socorro, quis
levá-lo para sua casa e tratar dele lá, mas o rapazinho resistiu: co aqui, quero
estar aqui. Iassaman despiu-o, esfregou-lhe o corpo com vodca de amora,
agasalhou-o com um cobertor de lã, deu-lhe a beber uma infusão de ervas e
caroços de cornizolo, deixou-o suar, voltou a esfregá-lo com a vodca e foi-se
embora ao ver que a febre baixara um pouco; prometeu que voltaria de manhã
cedo. De noite, apertando a testa quente ao ombro de Vassíli, Akop confessou:
sabia que a mãe ia morrer no inverno.
— Por isso cava à janela, olhava para onde eles voavam. Se eu tivesse cado
em casa… Se não fosse contigo para a forja…
— Mas o que terias feito então?
— Tinha-lhes pedido que não a levassem.
— O anjo não te daria ouvidos.
— Daria ouvidos, sim.
Desde aquele dia, Akop deixou de vigiar à janela e respondeu a uma pergunta
delicada de Vassíli com as palavras de que já não era preciso preocupar-se
porque em casa deles ninguém mais ia morrer.
O segundo inverno foi menos desesperado do que o primeiro, mesmo assim
muita gente deixou este mundo. Não se morria tanto da fome quanto da saúde
minada pela subalimentação. Neste inverno, Vassíli e Akop perderam a mãe,
Iassaman e Ovanés, o lho e dois netos, os pais de Magtakhiné, três lhas.
Nesta família de Iakulitchants Petros sobreviveram só duas lhas, Magtakhiné,
de dezoito anos, e Chuchanik, de dez — esta, até à primavera, convalesceu por
milagre depois de uma grave pneumonia. Petros, morti cado pela desgraça,
sugeriu generosamente que Vassíli lhes entregasse Akop, argumentando que a
criança de seis anos precisava de cuidado e carinho feminino, mas Vassíli
agradeceu educadamente e recusou: desenvencilhamo-nos sozinhos. Não quis
falar do casamento — que casamento podia haver quando toda a aldeia estava
de luto? Mas o próprio futuro sogro disse:
— Esperemos mais um ano. Casam-se na próxima primavera, se
sobrevivermos ao inverno.
Magtakhiné, naquela altura, transformou-se numa verdadeira beldade:
franzina, transparente, de cabelo e olhos escuros, muito alta, quase da mesma
estatura que Vassíli, só que delicadamente esculpida, com a testa alta, o nariz
regular, o pescoço no e comprido, as mãos e os pés estreitos. Não se intimidava
à frente do noivo, visitava-o uma vez por semana na companhia da mãe, para
ajudarem nas arrumações e na cozinha, e uma vez, ao car por pouco tempo a
sós com ele, deixou que lhe pegasse na mão e a beijasse na bochecha. Foi a única
liberdade que admitiu antes do casamento: em Maran, os costumes eram
rigorosos, as raparigas casavam-se castas e sem conhecerem beijos; as mulheres,
quando enviuvavam, raramente se permitiam um segundo casamento e punham
luto pelo marido toda a vida.
Aos domingos, Vassíli e Akop pagavam as visitas a Magtakhiné. Levavam
sempre alguma prenda: ora morangos, ora cogumelos, ora meia dúzia de maçãs.
A mãe de Magtakhiné aceitava as dádivas modestas muito contrariada,
recusando-as primeiro, revirando os olhos — na aldeia, cada migalha de comida
era contada. A fome apagou as diferenças entre ricos e pobres, pôs toda a gente,
como no dia do Juízo Final, na mesma la humilhante à beira do túmulo;
escarnecia de todos, muito e com evidente prazer: ou queimava com o sol uma
seara nova, ou descarregava em cima dos campos chuvadas sem m,
transformando-os em pântanos intransitáveis, ora adensava as nuvens e
bombardeava a frágil or das árvores de fruto com um granizo do tamanho de
ovos de galinha. Era parco o alimento de toda a gente, havia muito que não se
via carne, restava pouca caça na oresta — os animais que sobreviveram à seca
foram exterminados no inverno anterior, e os poucos que se salvaram dos
caçadores escondiam-se nas brenhas, sem assomarem a ponta do focinho. Mas
também não havia dúvidas de que a vida voltava, conquistando à fome,
milímetro a milímetro, a aldeia. No inverno, o «rebanho de Noé» deu prole,
multiplicando-se quase por dois, e na primavera os frangos e os patinhos de
meio ano já corriam pelo quintal de Eibogants Valinka, prontos a
transformarem-se, no outono, em aves adultas; a porca pariu uma prole
inesperada: doze leitões orelhudos e cobertos de pelo; as pessoas que vinham vê-
los admiravam-nos e estalavam a língua: como era possível que os porcos lisos e
brancos do Norte gerassem crias que em nada se pareciam com eles?
A fome recuou passados três anos, deixando atrás de si um cemitério do
tamanho da aldeia petri cada de tristeza.

Por vezes, quando apetecia a Vassíli sentir a felicidade havia muito esquecida,
contornava mentalmente, com cuidado, retendo a respiração, tudo o que lhe
dilacerava o coração: a morte do pai, a morte da mãe, a morte do irmão, a morte
de Magtakhiné, a morte de três lhos — e espreitava mais para trás, para mais
longe, para onde o verão não tinha m e as árvores eram tão altas que cravavam
as copas no céu. Recordava-se em pequeno, com cinco aninhos, ao colo da vovó
Arussiak — ela afagava-lhe o cabelo com a mão seca e contava-lhe histórias;
recordava a mãe — jovem, bonita, a voltar da nascente com o cântaro no
ombro, num andamento cuidadoso, olhava para o chão com medo de tropeçar,
depois via o lho e sorria-lhe com ternura; recordava o pai — de cabelo
prematuramente grisalho, mas jovem e robusto, com pestanas e sobrancelhas
chamuscadas pelo bafo da forja; às vezes, quando anoitecia e a frescura noturna
se espalhava pelo pátio, o pai saía por pouco tempo da forja, descansava
encostado à parede de madeira e contava a história da família, da sua mãe, que,
ao salvar-se por milagre do grande massacre, fugira para aqui com quatro lhos,
da generosidade de Archak-bek, desaparecido sem deixar rasto, que abrigara a
família em desgraça, do vizinho Unan, um velhaco, que se recusava a aceitar a
devolução da manteiga por partes e inventara para Arussiak uma alcunha
insultuosa, Kudam.
— É por isso, meu lho, que somos Kudamants — terminava o pai a sua
história deste modo sempre igual. — Provém de «ku dam», devolvo.

29 Tonir, ou tandir — um forno de forma circular para a preparação da comida, entre os povos da Ásia,
do Cáucaso e dos Balcãs. (NT)
30 Lavach, ou pão-folha — pão típico da Arménia. (NT)
31 Pastilá — produto de confeitaria, preparado pelo processo de secagem do puré ou sumo de fruta.
(NT)
32 Dev — espírito maligno (arm.). (NT)
CAPÍTULO 5

Anatólia não morreu, nem no dia seguinte nem ainda no outro. Ao quarto dia
deixou de sangrar, mas o zumbido nos ouvidos não parava, e sofria de um
tormentoso quebranto que lhe sobrevinha em ondas, por vezes tão forte que era
obrigada, agarrando-se à parede, a deslizar devagarinho para o chão e a car
sentada com os olhos fechados, para suportar melhor as vertigens. À algia em
todo o corpo e à dor surda no baixo-ventre acrescentou-se o entorpecimento das
mãos: ao pegar no copo de chá, Anatólia cou espantada por ter arrefecido tão
depressa, e só quando bebeu um gole percebeu que estava quente: os seus dedos
haviam perdido a sensibilidade. Não estava disposta a assustar-se e, ainda
menos, a armar uma tragédia por causa do seu estado, continuava na maior das
calmas a tratar da casa; às perguntas da alarmada Iassaman quando esta a
apanhou sentada no chão no meio do pátio, Anatólia mentiu: que se envenenara
com o repolho salgado do ano passado, que já tinha azedado — não se atrevera a
desperdiçar as couvinhas. Iassaman apressou-se a curá-la com infusões contra o
desarranjo intestinal e ainda, depois de lhe apalpar o pulso, com sumo cozido de
abrunhos-de-jardim e cornizolos. No dia seguinte, Anatólia sentiu-se um pouco
melhor, mas o quebranto e as dores, e ainda as tonturas, continuavam.
Mas não era isso que a preocupava, e sim a mudança próxima de Vassíli para a
sua casa. Não se sentia com forças para ir à casa dele desculpar-se e recusar-lhe o
pedido de casamento, por isso instou Ovanés para que o zesse por ela. Ovanés,
a contragosto, prometeu que ia, mas, para sua indizível alegria, não teve tempo
de o fazer porque ao m da mesma tarde o próprio noivo apareceu,
acompanhado pela prima, com uma muda de roupa, a gadanha consertada, uma
pilha de panquecas de milho acabadas de fazer e uma tigela de morangos que
Satenik trazia nas mãos com ar imponente. Atrás deles, dirigidos pelo enorme
gampr33 branco de neve, vinham também, agitando-se e balindo
desa nadamente, uma cabra com dois cabritos já crescidinhos e duas ovelhas
egmáticas. A procissão era fechada por um carneiro velho, praticamente
semimorto, com um corno partido e cataratas num olho.
Anatólia, neste momento, voltava da cave, onde fora buscar a manteiga
fervida. Ao ver os visitantes inesperados, recuou um passo, encontrou às
apalpadelas o corrimão da escada e, sem virar a cabeça, inclinou-se com cuidado
e colocou a tigela com manteiga no degrau inferior.
— Boa tarde, minha cunhada — cumprimentou-a Satenik.
— Parece que estava combinado para amanhã — balbuciou Anatólia.
— Segura a cancela, para os animais entrarem — pediu-lhe Vassíli sem ter
ouvido as suas palavras.
Anatólia foi até à cerca, matutando febrilmente como ia desenvencilhar-se da
situação embaraçosa. Como não tivesse inventado nada, abriu a cancela, esperou
que os animais, empurrando-se, entrassem no pátio. Vassíli deixou junto à cerca
a trouxa com as suas coisas, entregou-lhe a bandeja com as panquecas ainda
quentes e, resolutamente, tocou os animais até ao estábulo que havia já meio
ano estava vazio — as cabras de Anatólia tinham adoecido e morrido já no
inverno, e ela planeava arranjar novos animais no m do verão, já combinara
com Iassaman que caria com a cabrita quando esta crescesse o bastante para
viver separada da mãe. O gampr, primeiro, acompanhou o rebanho até ao
estábulo, depois voltou, espetou o nariz húmido nas saias de Anatólia, cheirou,
levantou a sua grande cabeça orelhuda e soltou um latido curto.
— Reconheceu-te — riu-se Satenik. — Patró-djan, é a tua nova dona.
Anatólia afagou maquinalmente a cabeça do cão, coçou-o atrás da orelha.
— Parece que estava combinado para amanhã — repetiu, olhando para Vassíli
que, fechando o estábulo, se dirigiu à cave para guardar lá a gadanha
consertada.
— Amanhã? — surpreendeu-se Satenik. — O primo disse-me que o
mandaste vir depois de amanhã.
— Eu disse: daqui a dois dias.
— Então, percebeu mal. Então, minha cunhada, tenho de car aqui ao pé da
cerca ou convidas-me a entrar?
— Entrem, claro — apressou-se a dizer Anatólia.
— Deixa a trouxa lá, o Vassíli trá-la depois. — E Satenik dirigiu-se para a
escada. — Não te esqueças da manteiga, senão, o Patró devora tudo num
instante. Não é, Patró-djan?
O Patró ladrou a rmativamente, e o seu rabo dançou.
— Onde vai ele dormir, no estábulo? — perguntou Anatólia.
— Na casota dele. O primo vai trazê-la mais tarde.
Vassíli saiu da cave, fechou bem a porta. Ameaçou o cão com o dedo, disse
severamente:
— Não podes entrar aqui, percebes?
O Patró lamuriou-se, troteou cabisbaixo até ao dono, mexendo comicamente
as patas enormes.
— Ontem deixei o queijo de meio sal descoberto, nem um segundo demorei
e, zás, já ele o tinha roubado e engolido — explicou Vassíli ao apanhar o olhar
espantado de Anatólia. — Amanhã vou pôr uma tranca do lado de fora da porta
da cave, para o cão não entrar lá. E também na porta de entrada.
Anatólia dirigiu-se em silêncio para a escada e começou a subi-la, apertando
ao peito a bandeja com as panquecas. Tinha vertigens, os pés fraquejavam-lhe
traiçoeiramente. Não pensava, e a única pergunta que lhe girava na ponta da
língua, «porquê?», era mais dirigida a si própria do que a Satenik e a Vassíli.
Que culpa têm eles se foi ela própria quem arranjou todos os sarilhos? «Sirvo-
lhes o chá, peço desculpa e mando-os embora», decidiu por m.
Satenik levantou do degrau a manteiga esquecida por Anatólia, entrou na
cozinha, limpou a tigela com a aba do avental, pousou-a na mesa e sentou-se,
apoiando a face enrugada na mão, enquanto Vassíli, batendo com a porta de
entrada no nariz do Patró — vai correr para o pátio, seu focinho descarado! —,
introduziu a trouxa no corredor, hesitou por um segundo, desejando pelos vistos
perguntar onde a devia pôr, mas abanou a mão e atirou-a para cima do braço da
otomana — que que aqui por enquanto, logo se vê. Enquanto os convidados se
acomodavam, Anatólia abriu o registo do fogão e esticou-se para tirar os
fósforos da prateleira. Foi salva pelo lado largo do fogão — derrubada pelo
ataque de vertigens, Anatólia tombou nele de borco, batendo fortemente com o
anco, e perdeu os sentidos. Voltou a si na sua cama, por causa do cheiro forte
da pomada com que Iassaman estava a esfregar-lhe as têmporas. Satenik,
sentada à beira da cama, massajava-lhe os pés, carregando muito nos pontos
entre o peito do pé e os dedos; no quarto contíguo, Ovanés e Vassíli
conversavam, e Anatólia apanhou alguns fragmentos de frases da conversa:
«Está adoentada, já vai no quarto dia, a minha mulher não consegue descobrir o
que ela tem», «foi em má hora que z esta mudança», «pelo contrário, cará
alguém ao lado dela durante a noite».
— Se não melhorares até de manhã, mando um telegrama para o vale, para
que enviem uma ambulância — disse nalmente Satenik em voz baixa.
«Deixem-me em paz», queria pedir Anatólia, mas em vez disso foi um
gemido arrastado que se lhe arrancou da garganta.
— O quê? — debruçou-se Iassaman por cima dela.
Anatólia tentou captar-lhe o olhar, mas as suas pálpebras pareciam de
chumbo, fechou os olhos, mexeu a mão no ar à toa, agarrou os dedos da amiga,
apertou-lhos debilmente.
— Não — sussurrou —, não.
O Patró desatou aos latidos fortes e exigentes. Satenik pousou com cuidado os
pés de Anatólia sobre o lençol, levantou-se, foi à janela, brandiu um dedo
ameaçador na direção do pátio: para de ladrar, seu berrão, ou cas acorrentado!
O Patró precipitou-se para Satenik sem ver o caminho, bateu com toda a força
na pipa, derramou-a e estacou, hirto, todo molhado pela água da chuva já meio
podre. A pipa rolou pelo chão com o estrondo ensurdecedor de um tambor,
bateu contra a cerca de madeira, as aves, alarmadas, armaram grande gritaria, as
ovelhas e as cabras enervaram-se no estábulo e, no quarto ao lado, ouviram-se
passos apressados — era Vassíli a correr ao pátio para ver o que se passava.
«Com esta gente, nem sequer é possível morrer em paz», pensou Anatólia e,
com súbito alívio, mergulhou num sono contínuo e salví co. Só abriu os olhos
ao meio-dia seguinte, acordada pelos latidos e pelo patear do mesmo Patró:
pisando as ervas com as patas pesadas, agitava-se ao longo da parede, ralhando
com a penugem dos dentes-de-leão, ainda raros em maio, mas que, nos inícios
de junho, quando iria ainda orescer o bosquete de álamos, se transformaria
numa verdadeira nevada.
Do espaldar da cadeira pendia, cuidadosamente dobrado, o vestido de
Anatólia. Vestiu-o, abotoou todos os botões, procurou as pantufas, não as
encontrou, levantou-se devagarinho — o corpo parecia-lhe estranhamente leve,
quase sem peso, a dor tinha desaparecido, era-lhe muito mais fácil respirar —,
encheu o peito de ar, expirou com cuidado e sentiu uma vertigem, mas ligeira.
Na cozinha, a loiça tilintou, devia ser Iassaman a cozinhar, Anatólia saiu, foi à
sala de estar, a otomana estava aberta, alguém passara ali a noite, vigiando-lhe o
sono, o corredor, comprido, com o soalho rangente, com a luz do sol a bater nas
janelas, seguia a direito, depois virava à esquerda, até à porta da cozinha. Ia
devagar, com as plantas dos pés impregnando-se do calor das tábuas, franzia a
cara, sentindo às vezes os ciscos debaixo dos pés — já ia no quinto dia sem
arrumações, era preciso juntar as forças e, pelo menos, varrer o chão e, amanhã,
se houver forças, lavá-lo —, a porta da cozinha estava aberta de par em par, a
corrente de ar enfolava as cortinas de chita nas janelas, e Vassíli, à mesa,
semicerrando os olhos e mascando a ponta do cachimbo apagado, raspava
desajeitadamente a casca frágil das pequenas batatas primaveris.
Levantou-se de imediato, quis ajudá-la a chegar à cadeira, mas Anatólia fez
um gesto proibitivo com a mão — não é preciso, posso fazê-lo sozinha.
— Já vou buscar as tuas pantufas; ontem a Iassaman, sem querer, verteu por
cima delas a infusão da garrafa, foi preciso passá-las por água e pô-las a secar. Já
devem estar secas.
Foi ao terraço, voltou com as pantufas e, pigarreando, inclinou-se para as
pousar no chão.
— Ajudo-te a calçá-las…
— Era só o que me faltava — indignou-se Anatólia.
— Como queiras — não quis discutir Vassíli, e voltou a pegar na faca. — A
Iassaman passou por aqui de manhã, ouviu o teu coração, disse que estavas
melhor. Mandou-me descascar batatas e aquecer o fogão. Cá estou a descascá-
las, a tentar...
— Mas quem dormiu na sala ao lado?
— Fui eu. Vinha espreitar ao teu quarto várias vezes, para ouvir como
respiravas. Quase encostava o ouvido aos teus lábios, tens uma respiração leve,
mal se ouve.
Anatólia passou a mão pelas plantas dos pés, para tirar os ciscos, calçou as
pantufas. Noutras circunstâncias, teria vergonha de que um homem estranho
pernoitasse na sala contígua ao seu quarto e espreitasse, mas agora, posta fora
dos eixos pela doença, não sentia nada além de uma ligeira apatia. Contudo, se
era possível tratar da apatia mais tarde, já resolver a situação estúpida da
mudança de Vassíli para sua casa era preciso fazê-lo de imediato. Recorreu a
toda a sua força de vontade para dizer a Vassíli:
— Tens de voltar para a tua casa.
Vassíli atirou para a tigela uma batata descascada.
— Porquê?
— Fizemos asneira.
— Talvez seja asneira. Mas então, por que diabo é preciso agravá-la?
Anatólia captou o olhar irónico dele. E zangou-se.
— Agravá-la em que sentido?
— Na nossa idade, correr de um lado para outro, às idas e vindas, não é
sensato. Já que nos juntámos, para que é preciso separar-nos? O que vão pensar
de nós as pessoas?
— Na nossa idade, o que menos nos deve preocupar é a opinião alheia —
arremedou-o Anatólia.
Vassíli soltou uma risada, passou o cachimbo de um canto da boca para outro,
levantou-se, pôs bruscamente a faca em frente de Anatólia:
— Já que és tão ágil e expedita, trabalha, vá lá. E eu, entretanto, vou acender
o fogão.
Anatólia encolheu o ombro, mas pegou na faca.
Iassaman e Ovanés chegaram e apanharam uma cena da vida familiar deliciosa
para os olhos: Anatólia, cerrando teimosamente os lábios, raspava a casca na
das batatas, e Vassíli, de joelhos, soprava para avivar o fogo no fogão. Ao ver os
vizinhos, fechou a portinhola, levantou-se e estendeu a mão a Ovanés:
— Bom dia.
— Para ti também, vizinho.
Iassaman pôs na mesa uma panela com o spas34 frio e aproximou-se de
Anatólia.
— Vamos lá ver como estás. Senta-te direita. Olha para a ponta do meu dedo.
Anatólia obedeceu sem discutir. Iassaman moveu o dedo da sua têmpora
direita até à esquerda, e vice-versa, seguindo com atenção o olhar da amiga.
Suspirou com alívio:
— As pupilas não saltitam, parece que as tonturas desapareceram.
— Sim, estou melhor — concordou Anatólia.
— Cozi-te bagas de rosa-brava com hortelã, deixei a infusão em casa para
arrefecer. Depois trago-ta. Vais bebê-la todo o dia. O Melikants Vanó vai matar
hoje um carneiro, prometeu que nos dava o fígado e o coração. Vou estufá-los
com cebola, também deves comê-lo. Deixa de franzir a cara, adoeceste, então
tens de ser tratada.
Anatólia suspirou.
— Estou absolutamente bem. Acho que foi uma quebra de tensão, acontece a
todos. Tenho outra preocupação: mandei o Vassíli voltar para casa dele, mas não
concorda. Diz: para que vou cobrir-me de vergonha na minha velhice, arrastar-
me para a frente e para trás com os meus haveres?
Vassíli, como se não estivessem a falar dele, abriu a porta do fogão com um ar
impassível e mexeu nas achas com o atiçador, ajudando o fogo a apanhá-las de
todos os lados.
— Mas vais mandá-lo embora porquê? E nós que já decidimos celebrar…
humm… a vossa festa — espantou-se Ovanés. — Pôr a mesa no nosso pátio,
sentar-nos… A Satenik já avisou toda a aldeia, está a preparar a pakhlavá35 das
bodas.
— Qual pakhlavá?! — assustou-se Anatólia. — Querem fazer de nós alvo de
gozo?
— Uma pakhlavá normal, de bodas, com nozes e mel, e uma moeda da sorte.
A quem calhar, vai casar-se a seguir — riu-se Ovanés.
Anatólia cou pasmada.
— Mas o que é isto? Estão doidos ou quê?
— Ouve, tem cuidado com a língua.
— Mas será possível falar de outro modo convosco?
— Não só é possível, mas obrigatório!
Enquanto Anatólia e Ovanés discutiam, Iassaman lavou as batatas
descascadas, pôs em cima do fogão uma frigideira de fundo largo com uma
colher de manteiga fervida, esperou que derretesse, pôs lá as batatinhas e tapou-
a bem.
— Ovanés, ide os dois para a horta, trazei ervas. Ide também buscar queijo.
Quando as batatas carem prontas, vamos almoçar.
— A horta não foi regada desde ontem — lembrou-se Anatólia.
— Já a reguei de manhã — atirou-lhe Vassíli em tom de censura e dirigiu-se
para a saída. Ovanés, resmungando com indignação, foi atrás dele.
Iassaman esperou até os homens saírem, aproximou a cadeira da amiga e
sentou-se em frente dela.
— Porque estás a exibir o teu caráter?
— Porque não quero viver com ele.
— Apetece-te envelhecer sozinha?
— Que diferença faz, sozinha ou não? Envelhecemos na mesma.
— Se é na mesma, então porque teimas?
Anatólia tamborilou com os dedos no tampo da mesa.
— Não sou teimosa. Simplesmente não gosto nada destas coisas — e começou
a dobrar os dedos, enumerando-as: — Nem desta sua mudança apressada, nem
do cão que ladra no pátio, nem dos animais no estábulo que ele trouxe sem
perguntar se os quero ou não. Porta-se como se fosse o dono da minha casa.
— Mas como deve ele comportar-se?
— Não sei. Podia ao menos pedir licença.
— Desde quando os homens da nossa aldeia pedem licença?
Anatólia reclinou-se no espaldar da cadeira e, cansada, esfregou os olhos.
— Havia de ter recusado logo de início.
— Mas não recusaste, que sentido faz agora indignares-te?
— Será que a minha palavra não pode ter efeitos retroativos?
— Mas então que palavra é essa, que se pode dar e depois retirar?
Anatólia não encontrou resposta. Iassaman levantou-se, encheu os pratos com
o spas, cortou o pão. Mexeu as batatas com a colher de pau, acrescentou sal.
Anatólia, ressentida, observava-a de lábios cerrados. Não compreendia por que
razão a amiga, em vez de a apoiar, tentava convencê-la a resignar-se com a
situação.
Iassaman apanhou o seu olhar triste.
— Se soubesses, lha, como é pavoroso envelhecermos sozinhos — disse com
amargura.
— Sei, sim — abrandou-se Anatólia.
— Bem, se sabes… Não vês como vivemos? À espera da morte, de um funeral
até outro. O que temos pela frente? Nem alívio, nem esperança. Então, porque
queres rejeitar a possibilidade de fazer alguém pelo menos um poucochinho
mais feliz? Se não pensas em ti, pensa pelo menos nele.
O soalho do terraço rangeu — Ovanés e Vassíli voltaram da horta. Atrás
deles, lamurioso, arrastava-se o Patró. Iassaman olhou pela janela:
— Porque está o cão a choramingar?
— Está a pedir queijo. Dei-lhe um bocadinho, mas para ele é sempre pouco.
Que velho parvo eu fui ao arranjar um cão. A Satenik convenceu-me: ca com
ele, ca. — Vassíli arremedou comicamente a voz rangente da prima. — O cão
faz-te companhia, disse ela, vais sentir-te menos sozinho.
— A tua prima nunca para. Ora te arranja um cão, ora te arranja uma mulher.
Vassíli riu-se, envergonhado, partiu mais um bocado de queijo, atirou-o ao
Patró.
— É o último, já não há mais.
O cão engoliu a guloseima num instante, quis voltar à mesma cantiga
lamentosa, mas esbarrou no olhar severo do dono e percebeu que pedinchar
mais era inútil. Descendo os degraus da escada em dois saltos, precipitou-se
para o pátio e deitou a correr atrás das galinhas.
Almoçaram em paz e sossego. Falaram pouco, exclusivamente sobre temas
abstratos, e havia tanta coisa habitual e natural no bater das colheres, nos
pedidos de chegar o sal ou de cortar um bocado de queijo, na côdea um pouco
seca de pão caseiro e no gole de água que Anatólia, pela primeira vez, não sentiu
a vida como um facto adquirido, mas como uma dádiva. Sorrateiramente,
passava o olhar de Iassaman para Ovanés, depois para Vassíli, captava-lhes cada
gesto vagaroso e comedido, aceitando-o mentalmente, e surpreendia-se: como é
que não reparava antes nesta ligação incontestável entre ela própria e tudo o que
a rodeava — pessoas, aves, lajes no velho cemitério? «Não há paraíso nem
inferno», compreendeu de repente. «A felicidade é o paraíso, a desgraça é o
inferno. E o nosso Deus está por todo o lado não só porque é todo-poderoso,
mas também porque Ele é aqueles os desconhecidos que criam a ligação entre
nós.»
Depois do almoço, deixou obedientemente que Iassaman lhe desse a beber a
infusão de bagas de roseira-brava e a pusesse na cama. Dormiu até ao m da
tarde e acordou no momento em que o rebanho, com cheiro ao sol poente e ao
campo de maio, estava de volta à aldeia. O gado andava devagar pela rua torta,
tornando-se menos numeroso junto a cada cancela. Quando Anatólia saiu de
casa, Vassíli estava a receber as suas cabras e ovelhas. Depois de trocar algumas
palavras rotineiras com o pastor, levou os animais para o estábulo. Ao ver
Anatólia no terraço, abrandou o passo, sorriu pelo canto da boca — e só neste
momento Anatólia distinguiu o invulgar matiz de aço dos seus olhos. Pousou os
cotovelos no corrimão, fez-lhe um aceno reservado:
— Vou mungi-las. Mas traz água para o estábulo, é preciso primeiro lavá-las.
— Eu vou mungi-las, não há problema. A Satenik ensinou-me.
— Ensinou-te a mungir?
— Foi.
— E consegues?
— Por enquanto, as ovelhas ainda não se queixaram.
Anatólia tapou a cara com as mãos, riu-se.
— Traz água. Hoje, está bem, vais mungir tu. E eu co a ver.

33 Gampr — cão lobeiro de raça arménia. (NT)


34 Spas — sopa de leite coalhado com grãos de trigo que, no verão, se come frio e, no inverno, quente.
(NT)
35 Pakhlavá — bolo com pasta de nozes trituradas envolvida em massa folhada e banhada em mel ou
xarope. (NT)
SEGUNDA PARTE
PARA QUEM CONTOU
CAPÍTULO 1

A casa de Melikants Vanó cava na beira do ombro do Manich-Kar, que se


desmoronou para o abismo. A rocha partiu-se ao meio e tombou, deixando
intacta uma estilha em que, rodeada de todos os lados por uma cerca sólida, se
erguia uma casa de dois pisos com um enorme pomar, uma horta e várias
construções rmes para as atividades económicas da lavoura. Aos olhos dos
maranenses, parecia incrível que uma coisa dessas tivesse acontecido: as casas
vizinhas caíram no precipício, mas a família de Vanó não só sobreviveu, como
também conservou todos os seus haveres, inclusivamente o montão de troncos
atrás da cerca, à espera do rachador da lenha.
Valinka tinha a certeza de que a Providência não os salvara por misericórdia,
mas por acaso, por descuido. Provavelmente, quando ela marcava com a sua
mão mortífera a linha que ia separar a parte viva da aldeia da parte morta,
passou ao lado, por distração, da casa deles. Diferentemente da sua mulher,
Vanó não viu na ocorrência nada de sobrenatural. Pelo contrário, irritava-se
terrivelmente quando ela começava a suspirar e a lamentar-se, imaginando o
que teria podido acontecer se o desmoronamento da terra levasse a sua casa para
o abismo.
— Esticaríamos o pernil, mais nada! — retorquia ele com raiva.
A ofendida Valinka soltava um «ah!» e agarrava-se ao coração, Vanó batia
com a porta e ia para o fundo do pomar. Lá, sob uma torta ginjeira velha, havia
um banco curto — duas pessoas adultas não cabiam nele, mas uma pessoa
apenas também não cava lá muito confortável: uma perna apodreceu e
quebrou-se, por isso, para não cair, era preciso a pessoa sentar-se numa das
pontas.
Vanó era capaz de car debaixo da ginjeira velha até às primeiras estrelas,
recordando os parentes que abandonaram este mundo. A sua mãe era irmã de
Archak-bek, obrigado a fugir, no início do século passado, do novo poder que
derrubou o czar. O avô dela, Levon-bek, descendente do ramo oriental da
família dalga dos Luzinian (o avô costumava mencionar com orgulho que um
antepassado longínquo da sua família era considerado Levon VI Luzinian,
último rei da Cilícia, cavaleiro da Ordem de Espada e senescal de Jerusalém),
era contra o casamento da neta com um plebeu. Mas a mãe de Vanó, rapariga
voluntariosa que, nos anos que passara no instituto das meninas nobres,
assimilara muitas ideias sobre a igualdade e a fraternidade, e ainda as tendências
sufragistas, foi contra a vontade do velho e uniu-se pelos laços do casamento
com o lho de um camponês, embora abastado, mas bastante rude. A menina
sabia perfeitamente que a família não daria autorização para aquele casamento
desigual, por isso fugiu com o namorado para o vale e só voltou quando
descobriu que estava grávida.
Levon-bek, enfurecido com o voluntarismo da neta, jurou riscá-la da sua vida
de uma vez por todas. Cumpriu a sua jura, mas de modo muito peculiar. A mãe
de Vanó contava como ia à casa do pai e entrava diretamente no gabinete do avô
em que este passava quase todo o tempo, lendo e tomando notas. Ela sentava-se
no chão e punha a cabeça nos joelhos dele. O avô afagava-lhe o cabelo em
silêncio, e cada toque da sua leve mão senil parecia uma bênção. Naquela altura,
a mãe estava nos últimos dias de gravidez e sofria muito com os ataques de
náuseas que recomeçaram no último mês, mas acalmava-se estranhamente a sós
com o avô e até era capaz de comer alguma coisa — em todas as outras situações
só o cheiro da comida lhe provocava vómitos. O avô morreu sem ter dirigido
uma única palavra à neta, mas foi precisamente a ela que deixou em herança o
retrato artesanal de Levon VI com panóplia de cruzado e com a bandeira
adornada com o brasão branco-azul da família Luzinian, a drapejar-lhe por trás.
Fê-lo talvez com uma intenção edi cante, ou talvez como reprimenda. A mãe,
neta digna do seu avô, nem sequer pestanejou, pôs o retrato na parede da sala de
estar, no lugar mais visível, e cuidava de que as ores no vaso debaixo dele
estivessem sempre frescas.
Sofreu muito com a separação do irmão obrigado a fugir do novo poder, o seu
coração sentia que já não se iam encontrar nesta vida. Não a perseguiram, mas
ela, prudentemente, nunca apareceu na sua herdade, nessa altura já pilhada e
nacionalizada; quanto ao retrato do antepassado real, tirou-o da parede e
guardou-o no sótão, rejeitando iradamente a proposta do marido para o queimar
na fogueira, à cautela.
— Não vou destruir a única lembrança do meu avô — disse resolutamente, e
escondeu o retrato atrás de uma grande arca de madeira para todo o género de
tralha inútil, e desde então estava lá, emporcalhado pelas moscas, dentro do
casulo empoeirado das teias de aranha, impregnado de humidade e descolorido
durante aqueles cem anos de solidão a que fora condenado pelos indiferentes
descendentes longínquos.
Para confundir de nitivamente o rasto e não enervar o novo poder com a sua
origem dalga, a mãe tomou o apelido do marido. Foi um caso inédito para
Maran, já que todas as raparigas, quando se casavam, não mudavam os apelidos,
para não renegarem a sua linhagem e carem para sempre uma parte inalienável
dessa linhagem. Os aldeões guardavam religiosamente o segredo do verdadeiro
apelido da mãe de Vanó, mas entre eles chamavam ao seu marido «Melikants-
genro»36. Por causa disso, a família de Vanó tinha agora o apelido Melikants.
Principesco.
Melikants Tigran, primeiro e único neto de Vanó, nasceu no ano do advento
do rebanho de Noé à aldeia e foi o único bebé que nasceu no ano da fome e
sobreviveu. Vanó lembrava-se em todos os pormenores da manhã em que a sua
nora, depois de um sofrimento in ndo de dez horas, ao amanhecer deu à luz um
menino — tão minúsculo e magro que o seu corpinho cabia todo na mão do
avô. A nora morreu na noite seguinte, exangue e extenuada nem tanto pelo
parto quanto pela fome — e todos os cuidados com o recém-nascido recaíram
sobre os ombros de Valinka, que, naquela altura, já perdera as duas lhas mais
novas.
Na manhã em que Tigran nasceu, o pavão branco foi pela primeira vez até à
beira do precipício, cou lá parado, imóvel e inabalável, como que a montar
guarda, e voltou para casa apenas ao m da tarde — sem forças, com falhas de
penas no dorso e nas asas, continuando depois a perder penas durante um mês.
Valinka varria todos os dias dos cantos do terraço um montão de penas e metia-
as num saco, para depois as selecionar e fazer um colchão para o bebé. Durante
todo esse in ndável mês, o pequenino balançava entre a vida e a morte, mas
salvou-se e começou a convalescer pouco a pouco, enquanto o pavão, livre das
penas velhas, se cobria devagarinho de uma penugem argêntea, leve como
respiração de criança. Ninguém prestava atenção a essas coincidências estranhas,
até que Valinka, ao dispor nalmente de algum tempo livre, desatou o saco e
descobriu lá dentro, em vez das penas, um caruncho muito semelhante a cinzas
nas de madeira. Apanhou uma mancheia e levou-a aos olhos, para ver melhor.
As cinzas eram mais leves do que pó, cintilavam como neve ao sol e rescendiam
a canela e amêndoa. Vanó ordenou à mulher que não contasse aquilo a ninguém
— nem tanto pelo medo de os considerarem malucos, mas porque não achava
explicação para o fenómeno. Enterrou o saco com as cinzas junto à cerca e,
sabia-se lá porquê, espetou na terra uma cruz de ramos mortos atados à pressa;
as varas mortas ressuscitaram e cresceu um louro-cerejo torto, mas frutífero. A
despeito de todas as tentativas de lhe endireitar o tronco, o louro-cerejo estendia
teimosamente os ramos obliquamente, apontando para onde, no terramoto, o
ombro esquerdo do Manich-Kar se desmoronara; no verão, o arbusto deixava
cair no precipício triste as suas bagas cor de sangue e, no outono, as folhas
rubras.
Tigran era uma criança doentia e nervosa, não dormia de noite, não parava de
chorar. Começou a ganhar forças apenas aos cinco anos, na mesma altura em que
começou a falar, embora durante muito tempo ainda só dissesse coisas simples:
dá-me água, quero pão. Os avós, que, nos anos da fome, perderam todos os seus
lhos, traziam-no nas palminhas. Valinka nunca o deixava sozinho, até o levava
sempre consigo quando visitava as vizinhas: enquanto as mulheres, sem
pararem com os seus trabalhos de mãos (umas bordavam, outras tricotavam com
quatro agulhas as meias de lã, outras ainda remendavam a roupa esburacada),
discutiam em sussurro os seus problemas, Tigran brincava com soldadinhos de
madeira ou com pedrinhas. No m da tarde, Valinka entregava-o aos cuidados
do marido e, enquanto ela tratava da casa, o avô e o neto mondavam a horta e
fechavam as aves no galinheiro, depois acomodavam-se no banco debaixo do
jovem louro-cerejo, ambos magros e esgrouviados, Vanó contava histórias,
inventadas e reais, e Tigran ouvia, apoiando a bochecha no punho, era um petiz
franzino e transparente, passando-lhe a mão pelas costas podia-se contar todas as
suas vértebras salientes. Quando o miúdo corria pelo pátio, num passo incerto,
tropeçando com as biqueiras dos sapatos até nas pedras mais pequenas, à beira
de cair e partir o nariz, os avós transformavam-se em duas estátuas que o
seguiam com olhos preocupados, e Valinka ainda esboçava o gesto impulsivo de
se precipitar para o neto de cada vez que ele tropeçava, mas Vanó, pelo
contrário, não se mexia e agarrava a mulher pelo cotovelo: não faças isso, que ele
caia, é rapaz, então tem de cair e de se levantar. Nesses momentos o pavão —
insociável e indiferente a tudo à sua volta — esvoaçava bruscamente para o
corrimão, pupilava com preocupação e girava a cabeça bonita com uma coroa
real branca de neve sem desviar os olhos da criança. Tigran era a única criatura
pela qual o pavão manifestava interesse, o resto do mundo não existia para ele.
Vanó descon ava que o pavão não caíra ali no meio deles porque sim, mas que
havia um qualquer grande objetivo por trás, ou mesmo uma missão. Um dia
rebobinou o tempo ao contrário, confrontou datas e lembrou-se de que o camião
com as aves chegara à aldeia precisamente no dia em que a nora os informara da
sua gravidez. Sendo um homem de bom senso, cético em relação a todas as
coisas inexplicáveis, também neste caso Vanó tentou encontrar uma
interpretação racional do acontecido. Contudo, derrotado nesse intento,
desistiu, resignado com o facto de que existiam coisas impossíveis de explicação
por meio de palavras normais e de compreensão por meio do nosso cérebro
humano. Descon ava apenas que o aparecimento do pavão tinha uma qualquer
ligação com Tigran, mas não quis falar disso à mulher, não fosse ela reincidir
com os seus «ah!», agarrar-se ao coração, conjeturar coisas e loisas e, sabe-se lá,
criar exaltação entre os vizinhos: os maranenses, embora gente sensata,
acreditavam nos sonhos e nos sinais, por isso voltariam para observarem outra
vez a ave e a enervarem com a sua atenção e curiosidade, como sucedeu nos
primeiros dias em que a aldeia, pasmada com a beleza altiva do pavão,
enxameava o pátio, estalando a língua e tentando afagar-lhe as penas luxuosas
de cada vez que a ave estava menos alerta e deixava que alguém se aproximasse
dela mais do que a dois passos.
Impregnado de respeito pelo pavão, Vanó resolveu manifestar-lhe a sua
gratidão com todos os meios possíveis: estendeu um tapete no terraço, pregou à
cerca um poleiro de três degraus para que fosse mais fácil à ave subir ao
corrimão, deu ordem à mulher para que enchesse o comedouro apenas com o
melhor trigo, com passas de uva e, várias vezes ao dia, mudava-lhe pessoalmente
a água no bebedouro. Mas o pavão não atentava sequer nestes sinais de atenção
— comia sem grande vontade, mexendo, enojado, na tigela com os cereais,
menosprezava o poleiro, esvoaçando para o corrimão com as asas a baterem
pesadamente e imobilizava-se empoleirado nele, olhando sem as ver para as aves
domésticas que se agitavam em baixo. Vanó foi ao vale e voltou com uma fêmea
que comprou por alto preço — não, não era branca, mas colorida, no vale não
havia pavões brancos, e mesmo os coloridos eram só três. Com muito cuidado,
pôs a pavoa no terraço, mas o pavão nem sequer virou a cabeça. A pavoa
passeou-se pelo tapete ornamentado, bicou o trigo, bebeu água, depois desceu
ao pátio e misturou-se com galinhas e peruas. Durante meio ano, Vanó
observou-os com atenção e, ao convencer-se de que o pavão nunca chegou nem
chegaria a interessar-se pela fêmea, desceu de novo ao vale para a devolver ao
antigo proprietário. Este aceitou a contragosto a devolução da pavoa, mas
restituiu a Vanó apenas metade do dinheiro que este pagara pela ave. Aliás, o
dinheiro não preocupava muito Vanó, só uma única dúvida o não deixava em
paz: teria feito tudo para agradecer ao salvador do neto? Isto porque Vanó tinha
a certeza absoluta de que Tigran só sobrevivera graças ao pavão. Sim, o pavão
respondia aos cuidados que lhe prestavam com total indiferença, não prestava
atenção a ninguém a não ser a Tigran, andava normalmente silencioso e
impassível, mas por vezes ia à beira do precipício e lançava ao alto um clamor
triste, dilacerante, como se pedisse que o levassem às esferas celestes, de onde
fora injustamente expulso. Como não era atendido pelos céus, voltava para casa,
varrendo com as penas branquíssimas o pó do caminho, metia-se num canto e
não saía de lá por muito tempo.
Diferentemente de Vanó, Tigran, habituado desde nascença ao pavão branco,
admitia o facto da sua existência no terraço da casa como a coisa mais natural do
mundo e olhava para ele do mesmo modo que para qualquer outra ave
doméstica. Só uma vez perguntou por que razão as galinhas e as peruas
dormiam no galinheiro, e o pavão no terraço.
— Para as suas penas compridas não incomodarem as outras aves — inventou
Vanó.
— Está bem — concordou logo Tigran com facilidade. Acreditava cegamente
nos avós, era uma criança de coração aberto, muito ativo e curioso, ia com
grande vontade à escola em que era o único aluno — outras crianças nascidas
depois da fome mal tinham aprendido a falar quando ele entrou para a primeira
classe. Ia às aulas duas vezes por semana, estudava com aplicação, embora não
inventasse a pólvora, mas em compensação lia muito, pelo que Anatólia, que,
naquela altura, começou o seu trabalho de bibliotecária, adorava o rapazinho e
deixava-o reter os livros em casa mais do que o prazo estabelecido. Nos afazeres
da quinta, estava sempre pronto a ajudar: ora o avô, a cavar a horta, ora a buscar
água, ora a levar um recado, em passo de corrida, a casa da vizinha; e às vezes,
com enorme rapidez, moía o trigo no moinho manual — a avó precisava de
metade do dia para fazer este trabalho.
Aos catorze anos tornou-se um adolescente esperto, laborioso e totalmente
satisfeito da vida. Se havia coisa que o incomodava, era a solidão. Isto porque
não havia ninguém com quem travasse amizade, o único jovem de Maran,
irmão mais novo do ferreiro Vassíli, tinha vinte e dois anos, mas não se
relacionava quase com ninguém por causa dos problemas de saúde; ora, brincar
com crianças de sete anos era aborrecido e nada interessante para Tigran, rapaz
já com penugem por cima do lábio e voz grave. Por isso, quando terminou o
oitavo ano da escola, os avós, cedendo a contragosto às persuasões da diretora e
de Anatólia, mandaram-no para o vale completar o ensino. Despediram-se do
neto como se fosse cortado deles à facada. Depois disso, Vanó sofreu de insónias
durante muito tempo, e Valinka, pior ainda, caiu de cama com um ataque de
nervos que, menos mal, não teve consequências graves: chorou uma semana
inteira e levantou-se, magra e envelhecida, mas viva. Tigran alojou-se em casa
de uns parentes afastados da diretora, os avós pagavam-lhes em géneros — uma
vez por semana, Valinka preparava e mandava para o vale, no furgão dos
correios, dois sacos. Um com a comida: queijo, manteiga fervida, carne seca,
mel, fruta seca, legumes em salmoura e uma grande pilha de pão lavach. No
outro ia a roupa lavada e passada a ferro de Tigran (no furgão seguinte
regressava a roupa que precisava de ser lavada). Tigran visitava os velhos duas
vezes por ano, nas férias do Natal e nas de verão. No m do curso, cresceu
bruscamente e fez-se homem, falava com os avós lá de cima, parecia do teto,
com uma carinhosa voz grave, não os deixava fazer nada em casa: mondava a
horta, fazia a colheita, reparava o telhado, cortava a lenha para o outono, tendo
o cuidado de formar a pilha de tal modo que as achas secas do ano anterior
cassem em cima e as húmidas em baixo.
Depois da escola, entrou na academia militar, aos vinte e cinco anos já tinha
uma alta patente, ia casar-se, mas tal não aconteceu — começou a guerra. O
regimento que comandava caiu no cerco, e depois, durante oito longos anos, não
houve notícias dele, Valinka debulhava-se em lágrimas e rezava todos os dias, a
toda a hora, ia muito à capela velha; Vanó tinha problemas graves com as veias,
doíam-lhe as pernas, ardiam-lhe em fogo, mas o velho aguentava, não se
queixava. O pavão, naquela altura já bastante decrépito, continuava
estranhamente enérgico e saudável, o que dava forças a Vanó — não tinha
dúvidas de que o neto estava vivo, não podia ser outro o sinal. Quando foi
preciso desmontar o soalho do terraço para alimentar o fogão com as tábuas,
Valinka levou o pavão para dentro da casa, que vivesse ali. Este não objetou e
instalou-se na cozinha, observava à noite as imagens ígneas que o fogão
desenhava na parede e perdia as penas. Vanó apanhava-as e guardava-as dentro
de uma fronha. Valinka tricotava gulpas e camisolas — para a frente de combate
—, punha em cada encomenda anónima uma minúscula gura de madeira da
Mãe de Deus, obra de Vanó, e uma pena do pavão, e como as encomendas não
levavam o endereço do remetente, nunca eram devolvidas, enquanto as outras
casas de Maran recebiam, em vez dos avisos de morte, a correspondência
devolvida.
Vanó guardou na memória, tão bem como o dia do nascimento de Tigran e
até aos últimos pormenores, a primavera do ano em que a guerra acabou. Na
véspera pusera-se a fazer contas, sem saber bem para quê, e descobriu que
tinham passado trinta e três anos exatos desde o dia em que o pavão aparecera
em sua casa. No dia seguinte, ele e Valinka foram acordados pelo grito roufenho
da ave: conseguindo chegar até à porta de entrada (no último inverno já não
andava e até lhe custava endireitar a cabeça), o pavão arranhava-a com o bico,
tentando abri-la, e chamava por socorro. Vanó levou-o ao colo e saiu para o
terraço no mesmo momento em que a cancela se abriu, dando passagem ao neto,
que entrou para o pátio — esquelético, coberto de cicatrizes, mas vivo. O pavão
morreu na mesma noite, ao colo de Tigran, enquanto este contava como caíra no
cerco, como, por milagre, fugira da prisão e como, durante todos esses anos, era
guerrilheiro nas orestas, como tinha sido ferido na perna — precisaram de
cauterizar-lhe uma parte da anca sem anestesia para que a infeção não alastrasse,
e cara com uma cicatriz profunda, feia, que lhe tolhia o músculo e não o
deixava desdobrar a perna completamente. No meio da narração do neto, Vanó
sentiu claramente um leve sopro vindo dos céus, eram eles que desciam aos
sopés dos montes, abriam as janelas, entravam em casa, entrelaçavam as mãos,
formando um berço, deitavam nele a alma cintilante da ave rainha e esvoaçavam
para cima, deixando atrás de si um ligeiro aroma a canela, amêndoa e qualquer
outra coisa — impercetível e inconcebível, mas in nitamente bela.
O pavão foi enterrado à beira do precipício. Tigran encomendou a Vassíli a
construção de um gradeamento baixinho e rendilhado e plantou na campa
lírios-brancos. Desejoso de viver na aldeia até ao m da vida, foi ao vale,
rejeitou a patente militar e as condecorações; contudo, cedendo às súplicas dos
avós, passado um ano, partiu para lá da passagem montanhosa do Norte, à
procura de outra vida, para as terras onde não seria apanhado por uma nova
guerra. Foi o único homem de Maran que voltou vivo da guerra e o último dos
jovens a abandonar a aldeia dos velhotes. No Norte, a sua vida não foi fácil, mas
não se queixava nem desanimava. Arranjou trabalho, passado algum tempo
casou-se com uma mulher do lugar, já mãe de uma criança de um ano, mulher
com um lindo e melodioso nome — Nastássia. Vanó e Valinka silabavam-no:
Naz-stass-ia. Só a conheciam das fotogra as — bonita, maçãs do rosto altas e
lábios cheios, cabelo loiro e encaracolado, olhos grandes, talvez azul-claros,
talvez verdes. Já haviam passado seis anos desde a partida do neto, e este nem
uma vez visitou Maran durante todo esse tempo. Em compensação, alegrou os
avós com uma notícia feliz: em dezembro, a mulher deu-lhe um lho, puseram-
lhe o nome de Kirakos, em honra do avô de Vanó.
De lá, do outro lado da passagem montanhosa que contornava o vale como
uma larga ferradura, chegavam cartas de Tigran com a promessa de aparecer em
breve, Valinka cobria as cartas com lavanda seca e guardava-as na cómoda, e
embora soubesse de cor o conteúdo de cada uma, ia muitas vezes ter com
Anatólia, pedindo que lhas relesse. E Vanó, sentado debaixo do louro-cerejo
velho, relembrava os familiares que desapareceram no Letes, sem desviar os
olhos da beira da escarpa. Nos dias claros, a escarpa banhava-se em raios de sol,
nos dias nublados era triste e penada, e cheirava a pedras húmidas. Por vezes,
uma luminescência ondulosa surgia por cima da campa do pavão. Vanó, ao ver
essa luz, levantava-se com esforço do banco, aproximava-se da paliçada, mas não
saía pela cancela — tinha medo. Punha a mão em pala por cima dos olhos e,
semicerrando-os, contemplava a solitária silhueta prateada, o leque arqueado
das penas, a cabeça orgulhosamente levantada com a coroa aérea e o olhar
perdido, dirigido para cima, para os céus sem resposta, silentes.

36 Melik — príncipe (arm.). (NT)


CAPÍTULO 2

Vanó morreu na véspera do Domingo Verde37. Almoçou, deitou-se para


descansar e não acordou. Para Valinka, era como se soubesse que alguma coisa ia
acontecer ao marido. Desde a manhã que não se afastava dele — trabalharam
juntos na horta, desceram juntos até ao prado na estrema da aldeia, para
apanharem azedas para um bolo, depois passaram pelo meidan, para
cumprimentarem os vizinhos e verem o que eles tinham trazido para trocar; no
caminho de volta, entraram na loja de Nemetsants Mukutch, para receberem as
botas encomendadas para Vanó.
As botas eram ótimas: de boa qualidade, bom couro, as solas robustas, capazes
de resistir aos caminhos acidentados da aldeia, e sem atacadores, o que lhe
facilitava muito o processo de calçar — não era preciso inclinar-se, gemebundo,
e esforçar-se, semicerrando os olhos fracos, a atá-los. Estavam-lhe grandes, mas
isso até lhe agradava porque, com aquele seu problema das veias, qualquer
desconforto nos pés causava-lhe um sofrimento insuportável — Valinka até lhe
tricotava os gulpas sem canelado, para não lhe apertarem a pele sensível do
tornozelo.
Vanó experimentou as botas, passeou-se de um lado para outro na loja,
apanhou o seu re exo nos restos do espelho coberto de manchas ruivas. Suspirou
com alívio. Já queria levar nos pés as botas novas, mas Valinka não deixou.
— Vais estreá-las no Dia da Trindade — e estendeu ao marido o seu velho
calçado gasto. — A festa existe precisamente para estrear coisas novas.
Vanó não quis discutir, pagou em silêncio e saiu, mas deixou acintosamente
em cima do balcão a trouxa com as azedas e as botas novas. Valinka abanou a
cabeça, pegou nas coisas, despediu-se de Mukutch e foi atrás do marido, que
caminhava sem virar a cabeça, juntando atrás das costas as suas grandes mãos
deformadas pelo trabalho.
— Leva ao menos as azedas! — gritou-lhe a mulher.
— Não levo — resmungou Vanó sem virar a cabeça.
— Mas que foi que eu disse de mal para cares tão ressentido? O Dia da
Trindade é daqui a dois dias, não podes esperar?
Vanó não respondeu. Valinka estugou o passo, apanhou o marido, meteu-lhe
na mão a caixa com as botas. Vanó pegou nela, mas não virou a cabeça para a
mulher.
— Com a idade, caste completamente estragado. Ofendes-te por tudo e por
nada — suspirou Valinka.
— Não inventes esse nada, senão, vou mesmo ofender-me.
— Mas o que é que eu disse assim tão grave?
— Nada.
— Isso mesmo, nada. Só desejo o teu bem. Já alguma vez na vida te dei um
mau conselho?
Ela abriu a cancela e afastou-se, para deixar passar Vanó, mas este seguiu
ostensivamente ao longo da cerca até esta acabar, no sítio onde uma parte da
paliçada estava caída em cima do arbusto de groselha que havia muito não dava
fruto. Valinka, com as mãos cruzadas no peito e cerrando os lábios nos,
observava o marido a virar-se de lado, erguendo a caixa das botas e a trouxa das
azedas acima da cabeça, e a en ar-se na abertura estreita da cerca. Valinka
abanou a mão no gesto de enfado e entrou em casa — estava na hora de aquecer
o almoço. «Ele vai comer e, com o estômago cheio, já ca menos intratável»,
pensou.
Um galho que se espetava da paliçada agarrou-se às calças de Vanó, que puxou
a perna para se libertar e praguejou ao ouvir o som do tecido a rasgar-se. Depois
de libertar a perna, examinou as calças: o tecido rasgara-se e pendia, pondo à
vista uma parte da barriga da perna. Pisou o rasgão, arrancou-o e deixou-o em
cima das ervas.
— Fica aí, é esse o teu lugar, mereces! — lançou com raiva, ou para o pano ou
para si próprio, e foi caminhando através do pomar onde a oração
delicadamente rosada e branca já começava a cair.
Chegado ao terraço, sentou-se no degrau superior da escada, enrolou um
cigarro e começou a fumar, cuspindo com irritação os pequenos apos de
tabaco. Valinka, sem dúvida, tem razão. Com a idade, o seu carácter deteriorou-
se. Mas o feitio dela também não cou melhor! Resmungona, irreconciliável.
Não para de o serrazinar de manhã à noite. Ou porque não pendurou a toalha
como é devido, ou porque derramou água, ou não abriu su cientemente a
janela, ou olhou como não devia, ou pensou o que não devia pensar. Hoje ao
pequeno-almoço, não parou de o atenazar por causa do chá derramado. Porque,
disse ela, é preciso primeiro pôr o açúcar no copo e só depois a água fervida.
Então já não vais encher o copo com água a mais nem vais derramar o chá
quando o mexeres.
— Porque estás aí nas escadas? Apanhas uma corrente do ar e depois não
consegues endireitar as costas! — disse Valinka, assomando a cabeça pela porta
e como se ouvisse os pensamentos dele.
— Se calhar é isto que eu quero!
— Isto, o quê?
— Apanhar uma corrente de ar nas costas.
— Vanó!
— O quê?
A Valinka queria, como era seu hábito, disparar mais alguma farpa, mas
conteve-se.
— Nada. Vamos comer, o almoço está aquecido.
Vanó, já preparado para mais um sermão, de que estava farto, embaraçou-se,
mas não o mostrou.
— Acabo de fumar e vou.
Valinka deixou a porta entreaberta e foi para dentro. Pela janela aberta da
cozinha, Vanó ouvia como ela arrastava a concha pelo fundo da panela,
enchendo os pratos com os restos da sopa da véspera. O segundo prato seriam
batatas com um bocado de peru, depois pêssegos cozidos em calda; na cave
restavam os dois últimos frascos, Valinka queria guardá-los para o Dia da
Trindade, mas depois — que seja, não faz mal — abriu um dos frascos para
agradar ao marido. As metades do pêssego eram a sua guloseima preferida,
comia-as como uma criança que nalmente recebeu um doce proibido,
engasgando-se com a pressa, lambendo os dedos e revirando os olhos de prazer.
Depois do almoço, Vanó, como costumava, deitou-se a descansar, enquanto
Valinka se pôs a pespontar os edredões de lã. Era preciso fazê-lo no chão, senão a
lã, cuidadosamente distribuída pelo saco, formava bolas. Sentada no chão,
movia-se pelo perímetro do edredão, pespontando-o com pontos largos e,
quando chegou ao centro, fez um círculo do sol — assim o fazia a sua mãe
Katinka, famosa em todas as redondezas por ter mãozinhas de ouro e pelo seu
amor à ordem. A mãe habituou as lhas aos trabalhos manuais e ao asseio, por
isso as consideravam as mais desejadas meninas casadoiras de Maran. Saruí, a
mais velha, vivia à beira do des ladeiro, só a igreja de Grigóri Lussavóritch se
situava mais perto da escarpa; todas as semanas, voltando da missa, Valinka
passava pela casa de Saruí, que raramente ia à igreja: cuidava do sogro
gravemente doente que tinha acessos de as xia; então Valinka encarregava-se,
nesses dias, de todos os afazeres de casa, cozinhando, fazendo arrumações,
tratando das crianças, acompanhando o sogro da irmã acamado, que se desfazia
numa tosse grave — dava assim à irmã a possibilidade de dormir um pouco, de
descansar. Muitas vezes, levava os sobrinhos para sua casa, então a sua mãe que,
depois do casamento de Valinka, passara a viver com ela, partilhava com ela os
trabalhos. O terramoto levou toda a família de Saruí, o marido, o sogro e os três
lhos — uma menina e dois meninos —, e a alma de Valinka entrava em
agonia cada vez que recordava como a mãe, enlouquecida pela inconcebível
desgraça, se agitava à beira do precipício, chamando a lha e os netos mortos.
Desde esse dia terrível, a mãe acordava de manhã com a cara banhada em
lágrimas e chorava o dia inteiro, sem soluços nem gemidos, cozinhava, lavava a
roupa, arrumava a casa, ia às compras e escoava-se, escoava-se em lágrimas.
Todas as manhãs Valinka lhe enrolava lenços nos pulsos para a mãe limpar a
cara com eles, mudando, de hora a hora, os encharcados por secos. Foi assim que
Katinka se nou, carpindo sem m a sua desgraçada lha, num tempo de chuva
e aguaceiros que não cessaram nos sete dias que se seguiram à sua morte, e só
amainaram um pouco para deixar que o cortejo fúnebre chegasse até ao
cemitério e entregasse à terra o caixão.
Uma vez em cada dois ou três anos, Valinka lavava os cobertores de lã e
traçava a pesponto, no centro, o imutável círculo do sol — em memória da mãe,
da irmã, dos irmãos e das crianças que se foram, como a areia entre os dedos,
para a não existência, para aquela margem do Universo fechada com sete selos
enormes, interdita aos mortais, e cada selo é do tamanho de um buraco da
agulha e pesado como uma montanha — impossível de ver para se abrir,
impossível de afastar para se passar.
Com a passagem do tempo, cresceu e subiu até ao teto, na parede do quarto
dos cônjuges, uma racha quase invisível, surgida durante o terramoto. Ao
atingir o teto, começou a alastrar, conquistando na pedra, pedaço a pedaço, um
espaço estreitinho através do qual, durante o dia, penetrava um raio solitário do
sol e, de noite, um re exo baço da lua. Vanó reforçou esse lado da casa com
vigas de madeira e tapou a ssura com argamassa, mas a casa parecia respirar e
mexer-se, os contraventos e as paredes rangiam, de maneira que a argamassa não
resistia e, passado algum tempo, começava a esmigalhar-se, desnudando de
novo a ferida irregular da parede. Vanó irritava-se, voltava a tapá-la com
cimento, mas em vão — um ou dois anos depois o cimento caía, e os sítios mais
abertos da racha cobriam-se de ervas frágeis que, a despeito de tudo, cresciam
na pedra. Quando Vanó, fora de si, se punha a tapar de novo a ssura, já as
aranhas estendiam nas ervas as suas redes invisíveis e uma faixa estreita e
dentada, gravada pelo persistente calor do sol, aparecia no soalho pintado de
azul.
— Há vida por todo o lado — espantava-se Valinka, observando as teias de
aranha cheias de cadáveres secos de insetos e os caules estiolados das ervas que
penetravam no quarto —, por todo o lado há morte… e vida.
No sítio da racha, a parede tinha sido alisada a última vez há dois verões e,
nesses dois anos, conseguiu perder a argamassa e cobrir-se de ervas, pelo que
Vanó planeava já tratar outra vez da parede, mas decidiu fazê-lo apenas no
outono, quando o calor abrandasse. Valinka esperava com temor o início de
mais reparações — aparentemente, não era nada de especial, mas signi cava um
dia inteiro de trabalho e, depois, uma semana de arrumações. Valinka estava
pronta a fechar à chave a porta do quarto de dormir, pondo-o à disposição da
racha, e passar a dormir na sala dos convidados, mas o marido era contra. «O
terramoto não conseguiu expulsar-me do meu lugar, e esta fendazita vai
consegui-lo?», acenava com raiva na direção da parede rachada. Valinka discutia
com ele muitas vezes, mas acabava por lhe obedecer — está bem, assim seja.
Uma vez que o marido, anos e anos, se atarefou na luta contra a maldita racha,
que faça o que quiser. Cada um tem o seu próprio sentido da vida e trava a sua
própria guerra.
Terminado o trabalho de pespontar os edredões, tirou-os para o pátio e
pendurou-os na corda — que respirem, durante o dia, o calor e o vento. À noite
será preciso cobri-los de lavanda e guardá-los na arca da roupa até chegarem os
frios. Valinka trouxe da cave matsun, pão e queijo para a merenda, e foi chamar
o marido, que não havia meio de acordar. Ao longo de todo o caminho até ao
quarto de dormir — através do pequeno vestíbulo, dos dois quartos e da sala
dos convidados com móveis velhos, utilizada só duas vezes por ano, no Natal e
na Páscoa, únicas festas com convidados para quem era preciso pôr uma mesa
grande —, nem uma brilha da sua alma estremeceu e doeu, a avisá-la.
Contudo, ao abrir a porta, Valinka tomou consciência num repente do ocorrido,
deu por inércia mais uns passos e só depois parou, incapaz de desviar os olhos
do seu homem: Vanó estava deitado sem vida, com a cabeça empinada, a mão
esquerda presa nas travessas da cabeceira, o cobertor amarrotado aos pés, e o
quarto, apesar de o Sol já ter passado para o lado contrário, estava cheio da luz
ofuscante que se vertia da racha na parede num jorro incessante, irrefreável e
deslumbrante, e re etia-se nos olhos de Vanó com um brilho vítreo.
— Vanó-djan? — chamou-o Valinka em sussurro.
Enquanto a ambulância, assustando os animais domésticos das redondezas
com o uivo desvairado da sirene, corria pelo caminho áspero e esburacado da
aldeia, Valinka tapou os espelhos com lençóis e fumigou o quarto de dormir
com incenso. No momento da chegada do médico, já o pátio tinha sido varrido
e borrifado de água, e as galinhas e as peruas, para não irritarem as pessoas com
os seus ares inconvenientes, ociosos e estúpidos, foram fechadas na capoeira.
Valinka, toda de preto, silenciosa e rigorosa, estava sentada à cabeceira da cama
de Vanó e, com as mãos nos joelhos, observava a racha na parede.
— E agora quem a vai tapar? — perguntou, dirigindo-se a ninguém.
O médico, homem incrivelmente magro, de nariz adunco e os olhos
in amados por ter dormido pouco, virou a cara, a contragosto, para a rachadura
larga, de três centímetros, que coleava do soalho ao teto. Encolheu
inde nidamente o ombro, cou calado. Depois quis saber:
— Uma bomba?
— Um terramoto.
O médico decidiu não perguntar como fora possível terem vivido meio século
com uma parede rachada de lado a lado. Redigiu a declaração de óbito e partiu
para o vale, acompanhado pela gritaria das aves domésticas mexeriqueiras que
comentavam o uivo estridente da sirene.
Para o funeral, Valinka vestiu o marido com o velho fato de tweed e as botas
gastas. Quanto às novas, nunca usadas, resolveu devolvê-las a Nemetsants
Mukutch.
A seguir, a história agitou o rabo e virou para um trajeto absolutamente
inesperado. Na noite após o funeral, Valinka sonhou com Vanó — soturno, de
fato e meias, olhando para ela com censura:
— Arrebanhaste-me as botas novas!
Valinka acordou banhada em suor frio, revirou-se muito tempo na cama. De
manhã correu à capela, acendeu uma vela pela paz da sua alma. Depois foi à loja
de Mukutch, perguntou se podia devolver as botas. Disseram-lhe que sim.
De noite, Vanó voltou a aparecer-lhe no sonho. Agora estava nu, parado no
meio do pântano, atolado até aos joelhos — calado, com ar acusador.
— Mas porque estás assim? — desconcertou-se Valinka. — É que é possível
devolver as botas. Algum dinheiro mais faz sempre falta!
Vanó virou-se e avançou através do pântano, coxeando, mexendo com esforço
as pernas magras, de veias inchadas.
O coração de Valinka apertou-se.
— Aguenta um pouco, quando alguém morrer mando-as com ele — gritou.
Vanó assentiu, mas não virou a cabeça, apenas acelerou o passo. Valinka olhou:
deixara de coxear.
Durante um mês ninguém morreu em Maran. Finalmente, surgiu a ocasião
para enviar a encomenda: faleceu a sogra de Bekhlvants Mariam. Valinka
embrulhou numa toalha de cozinha limpa as botas do marido, foi ter com ela.
Pediu para as pôr no caixão com a falecida.
— Mas onde é que as posso en ar? — abriu as mãos Mariam. — Sabes bem
como ela é gorda. — Então titubeou, olhou à volta e continuou num sussurro:
— Foi preciso encomendar o caixão mais largo para que ela coubesse lá dentro!
Valinka desatou num choro. Contou a Mariam que não deixara Vanó calçar as
botas novas, como ele estava deitado com a mão presa na cabeceira da cama,
como se arrastara todo nu pelo pântano com as suas pernas doentes, azuis por
causa das varizes. Mariam mascou com os lábios, suspirou. Pegou nas botas.
— Olha, vou calçá-las à sogra. Para ela, acho eu, tanto faz o que ela leva
calçado para andar no mundo do além.
E foi isso que decidiram.

37 Ou seja, do Dia da Santíssima Trindade. (NT)


CAPÍTULO 3

O sobrescrito era grande e muito amarrotado, com numerosos selos multicores.


O carteiro, homem esquelético, nervudo, de boné gasto e calças enfoladas e
coçadas até ao lustro nos joelhos, tirou-o da bolsa que trazia ao ombro, virou-o
nas mãos, releu o endereço, embora o soubesse de cor: aldeia de Maran, última
casa no declive ocidental do Manich-Kar.
— Espero bem que a notícia seja boa — murmurou. — Não gostaria de me
arrastar até tão longe com uma notícia má.
— Para tudo há a vontade de Deus — respondeu egmaticamente o ter
Azária.
O carteiro guardou o sobrescrito na bolsa, puxou com cuidado o fecho de
correr. Mascou com os lábios.
— Ter Azária, posso fazer mais uma pergunta?
— Não recomeces, Mamikon! — retorquiu o sacerdote com irritação, cobriu
com a mão a pesada cruz de peito (para que não baloiçasse) e estugou o passo.
Mamikon via como o ter Azária, com as mangas e a aba da sotaina a
drapejarem ao vento seco e poeirento, calcorreava o acidentado caminho do
monte. O dia era de calor, cheirava a pedras incandescentes, a ervas recém-
segadas e a folhas secas do hipericão. Um bando de andorinhas-aldeãs esvoaçou,
piando esganiçadamente, vindo do des ladeiro, girou por cima das cabeças dos
homens e voou para oriente — ao encontro do sol.
Mamikon hesitou, marcando passo, encheu o peito de ar, expirou lentamente.
Ajeitou no ombro a pega da bolsa, tirou da cabeça o boné, sacudiu-o com
cuidado. Puxou as calças para cima das botas. Executou todas as operações sem
desviar os olhos das costas do sacerdote, que se afastava.
O ter Azária parecia sentir nas costas os olhos de Mamikon. Andava numa
passada larga, mas vagarosa, sem olhar para trás. Apenas quando chegou ao m
do caminho — a seguir, este virava para a direita e desaparecia por trás de uma
rocha abrupta —, parou, olhou para trás com desgosto.
— Vens ou não vens?
— Terei escolha, ter air38? É claro que vou! — E Mamikon, contente por ter
levado a melhor sobre o interlocutor, pôs-se a caminho.
— Teimoso como um jumento — não aguentou o ter Azária.
— De certo modo — respondeu o carteiro com dignidade.
A conversa com o ter Azária descambou logo no sopé do Manich-Kar, a partir
do momento em que Mamikon se atreveu a duvidar de que fosse razoável a
a rmação de termos de oferecer também a face direita se um qualquer nos bater
na face esquerda. O sacerdote, ofendido até ao fundo da alma com aquela falta
de respeito, desatou num sermão completo, tentando explicar ao oponente o
carácter infundado das suas dúvidas. Depois de ouvir com atenção a palestra do
ter Azária, Mamikon estalou várias vezes a língua, empurrou o boné para a nuca,
coçou a testa e disse:
— Ter air, imagina agora que as palavras «se qualquer um te bater na face
direita, oferece-lhe também a outra» não são ditas por Jesus, mas por um senhor
das terras, dirigidas ao seu criado privado de direitos e da palavra. Será que estas
palavras vão provocar ao criado qualquer outra coisa além do ódio?
— Porque dizes semelhante coisa?
— Porque o sentido das palavras não deve variar dependendo de quem as
pronuncia. Senão, que utilidade terão?
O ter Azária quis objetar, mas abanou a mão. Conhecia muito bem como
argumentava Mamikon. Quando começa a teimar, é impossível lidar com ele.
Portanto, não vale a pena o esforço. Fizeram o resto do caminho trocando frases
sem sentido. O ter Azária coibia-se resolutamente de qualquer tentativa de
recomeçar a discussão teológica.
Mamikon, à distância de alguns passos do sacerdote, parou e inclinou numa
reverência jocosa a sua cabeça seca e nariguda.
— Então, o que me dirá sobre a falta de sentido de certos juízos? —
perguntou com acinte.
— Vives na toleima e vais morrer atoleimado — retorquiu o ter Azária.
— Ter air, podias explicar em vez de insultar.
— Que sentido faz explicar-te? Nunca mudas de opinião.
— Pois não.
O ter Azária tirou do bolso o rosário e foi andando, des ando as contas
coçadas. Mamikon foi atrás dele, cantarolando baixinho.
Faltava-lhes pouco caminho, apenas três quilómetros, mas sempre a subir. Lá,
no cocuruto do Manich-Kar, esperava-os a velhinha aldeia de pedra, nadando
em pomares. O ter Azária ia celebrar uma missa de corpo presente, Mamikon ia
entregar uma carta.
Era quarta-feira, o Sol levantara-se antes dos galos, e o orvalho da manhã era
tão abundante que dava para encher as mãos. Finalmente, chegava o verão.

Um caixão não muito comprido, mas surpreendentemente largo, estava em


cima da mesa, de pés para a saída, como devia ser. À volta dele, várias mulheres
idosas sentadas, com as camisas escuras abotoadas até ao pescoço e os cabelos
grisalhos apertados em puxos compactos, rigorosos.
Nenhuma chorava nem fazia de conta que estava triste. Só uma mulher de
nariz a lado, sentada na extremidade e à vista do sacerdote, soluçou e assoou o
nariz com um som de trombeta. As outras levantaram-se em silêncio, zeram-
lhe uma vénia e dispersaram-se pelos cantos.
O ter Azária contornou a mesa, postou-se à cabeceira. Passou os olhos pela
falecida. O caixão era visivelmente acanhado para ela. A defunta estava
encaixada com muito aperto dos lados, com os ombros grossos erguidos até às
orelhas, descontente e sombria. Em cima da barriga grande e redonda,
pousavam-lhe as mãos — a esquerda a cobrir a direita, uma aliança velha
lançando um brilho baço do dedo anelar. De baixo da coberta de seda lilás que
cobria o corpo do peito até aos pés assomavam-se as biqueiras de grandes botas
masculinas. De tamanho quarenta e cinco, mais ou menos.
O ter Azária, ao tropeçar com os olhos nas botas, embaraçou-se, mas ngiu
que não reparou nelas. Abriu o missal, suspirou fundo e começou a ler uma
oração sem desviar os olhos do texto; contudo, para seu terror, confundia-se
volta e meia, titubeava estupidamente e repetia palavras. Para se concentrar,
pigarreou, carregou o sobrolho, mudou o peso de um pé para o outro, repuxou
com dor a barba, mas fê-lo com força a mais, de tal maneira que se engasgou e
tossiu.
Serviram-lhe água. Bebeu, apertando os olhos para não esbarrar com eles nas
botas assomadas absurdamente do tecido de cerimónia. Tudo em vão. Depois de
devolver o copo, voltou a cravar os olhos nelas. Aquelas botas enormes atraíam-
no como um íman, impedindo-o de se concentrar, de se impregnar do espírito
fúnebre. As velhas, com as mãos cruzadas no peito, mantinham-se numa
expectativa silenciosa ao longo das paredes. Delas, só a velha do nariz a lado
não parava quieta: traz água para uma, tira o lenço a outra, dobra-o
cuidadosamente e põe-no no espaldar de uma poltrona solitária, postada num
canto, com o assento concavado.
«Tenho de arranjar maneira de aguentar», sugeriu a si próprio o ter Azária,
suspirou sem barulho e voltou a abrir o missal.
No pátio, vários velhos decrépitos, lado a lado em cima de um madeiro
comprido, fumavam e conversavam baixinho. Debaixo de uma nogueira
ramalhuda estava uma mesa posta para o banquete fúnebre, e as abas da toalha
tremiam ao vento. Aliás, além da loiça e dos saleiros, nada mais havia na mesa.
A comida seria trazida logo depois do funeral. Seria assim: uma das velhas
estaria ao lado da cancela, com uma toalha pendurada no ombro, poria ao seu
lado um balde de água e caria à espera com paciência. Cada um, ao voltar do
cemitério, iria aproximar-se dela com as mãos em concha. Ela tiraria água do
balde com uma caneca e vertê-la-ia nas mãos expostas, lavando delas a tristeza
do cemitério. Depois da lavagem, as pessoas limpariam as mãos com a toalha
pendente do ombro da velha e só depois disso passariam ao pátio, onde os
esperaria a mesa fúnebre posta de acordo com todas as regras.
Os tormentos do ter Azária com o réquiem duraram, segundo o ritual, até ao
meio-dia. Depois os homens entraram em casa para levar o caixão. Custou-lhes
muito — cinco velhos e mais Mamikon, que chegou a tempo de ajudar, mal
conseguiam levantar o pesadíssimo ataúde. Depois, o féretro não passava pelo
vão da porta, visto a sua largura antinatural, e foi preciso incliná-lo um pouco,
segurando ao mesmo tempo a falecida para que ela, Deus nos livrasse, não
caísse. Do lado de fora da cancela esperava-os uma carroça de madeira rangente,
atrelada a um burrito, a mesma em que Mukutch, duas vezes por semana, ia ao
vale buscar as mercadorias. O caixão, que alívio, foi posto na carroça, o cortejo
arrancou e foi subindo pelo estreito caminho pedregoso na direção do velho
cemitério invadido pelas ervas daninhas.
— Arre, arre, burro! — estimulava Mukutch o jumentinho, num sussurro
angustiado, o mais conveniente para a ocasião.
Ficaram em casa a senhora de nariz a lado e mais uma: Eibogants Valinka —
alta, muito magra, de cabelo encanecido e deslumbrantes olhos azuis, neta de
um tal Onik que, depois de combater na guerra no exército czarista, foi
desmobilizado e, a cada palavra, introduzia na sua fala uma expressão
incompreensível para os maranenses: «ei-bógu»39 —, pelo que foi alcunhado de
Eibog, e todos os seus descendentes adquiriram o apelido Eibogants. As
mulheres atarefavam-se na cozinha: cortavam em grandes fatias o pão da aldeia,
um pouco ácido, punham nos grandes pratos achatados bocados de presunto
caseiro e carne fria de vaca, rabanetes e molhos de ervas lavadas. Levariam a
comida para o pátio mais perto da hora de regresso de toda a gente, para não
secar nem ser atacada pelas moscas.
— O ter Azária por pouco não esqueceu todas as palavras do missal quando
viu a defunta — disse a mulher do nariz a lado, ao mesmo tempo que soltava
um risinho e passava por água as bolas gordurosas da brinza.
— Não o devíamos ter avisado de que ela levava nos pés as botas do meu
marido? — perguntou Valinka pensativamente.
— Talvez. Só que não nos lembrámos disso a tempo, e depois já era
inconveniente.
Como o ter Azária não sabia nada sobre a história misteriosa das botas, neste
momento, desistindo de quaisquer tentativas de dar à cara uma expressão mais
ou menos impassível, olhava com tremor para três velhos que, pressionando
com todo o corpo a tampa do caixão, orlada com o estúpido folhado carmesim,
se esforçavam por fechá-la bem com pregos. A tampa resistia, deslizava, não
assentava no lugar — ou eram as botas que não deixavam, ou era o volumoso
ventre da falecida. As velhas soltavam «oi-oi!» baixinho, reviravam os olhos,
mas não se intrometiam com conselhos — de resto, o que podiam aconselhar se
elas próprias não sabiam o que fazer?
Parecia que toda uma eternidade passou nesses trabalhos desajeitados.
Finalmente, depois de pregar mais ou menos a tampa, os homens desceram o
caixão na sepultura, cobriram-no à pressa com terra e recuaram.
O ter Azária caiu em si, murmurou a oração fúnebre, os velhos ouviram de
olhos baixos. Um deles começou a tossir, afastou-se para não incomodar o
sacerdote, depois foi para trás da cerca, já que a tosse não parava. Terminada a
oração, o ter Azária benzeu o cortejo fúnebre com o sinal da cruz e dirigiu-se
para o portão.
Levaram-no para casa da falecida na mesma carroça em que o caixão fora
transportado ao cemitério.
O ter Azária viajava agarrando-se às tábuas mal acepilhadas da borda. Apesar
da baixa velocidade, a carroça ia aos solavancos. É claro que poderia pedir a
Mukutch que parasse e o deixasse ir a pé, mas com isso podia ofendê-lo
mortalmente, razão por que o ter Azária aguentava, cerrando os dedos, olhava só
para a frente e contava as curvas até à casa da falecida. Aliás, só uma vez olhou
para trás, procurando Mamikon. Ao ver o boné familiar, acalmou-se um pouco.
Eram duas da tarde, faltava pouco tempo. Haveria o banquete fúnebre, depois
voltaria para o vale. Descer dez quilómetros pelo declive do Manich-Kar não é,
obviamente, o mesmo que subi-los. Mas tinham pela frente um longo caminho,
chegariam só ao pôr do sol.

38 Ter air — reverendo (arm.). (NT)


39 Ei-bógu — expressão russa que signi ca «juro por Deus». (NT)
CAPÍTULO 4

O Sol nascia vagarosamente, como contrariado, como que brincando ao gato e


ao rato: mostrava um lado, depois outro, cobria-se com uma nuvem, voltava a
assomar a cara. Por m, farto de brincar, apartou-se num impulso da ponta
longínqua do horizonte, pôs-se em pé e inundou o céu com os seus raios de
fogo.
Até ao amanhecer, Valinka teve tempo de fazer quase tudo: deixou a criação
sair do galinheiro, galinhas e perus dispersaram-se num instante pelo quintal,
cacarejando e gorgolejando, espreitando debaixo de cada erva à procura de
alguma minhoca distraída ou de qualquer outro bicho imprudente, mungiu os
animais e fê-los sair e juntar-se ao rebanho, mondou a horta à pressa. Trouxe a
água da chuva que enchia a pipa, regou os canteiros (com uma aplicação
especial, regou os agriões e os coentros, que sofrem com o calor mais do que
outros vegetais).
Terminados os trabalhos no quintal, Valinka entrou em casa, para cozinhar.
Antes de fechar a porta, parou e passou os olhos, onde brilhava a satisfação, pelo
pátio perfeitamente arrumado. As achas nas pilhas estavam dispostas em las
regulares, a roupa lavada e um pouco anilada, estendida por ordem rigorosa,
drapejava nas cordas ao vento matinal, e as caldeiras de cobre, esfregadas com
areia, recuperando o ânimo depois da lavagem implacável, estavam a secar
debaixo da cerca e luziam tanto que por pouco não ofuscavam o Sol.
A cozinha estava limpa até ao brilho: nem um cisco no chão esfregado, por
mais que procurássemos; a loiça no aparador colocada em pilhas regulares,
menos altas, as chávenas com as asas viradas para a direita para que se pudesse
tirar uma sem mexer nas outras e sem violar a sua ordem perfeita.
Valinka acendeu o fogão a lenha, pôs a cozer a galinha depenada e destripada
na véspera à tarde e ia descer à cave, para buscar farinha, estava na hora de
preparar a massa para sali40. A carta trazida por Mamikon continha uma boa
nova: nalmente, Tigran vinha, e não sozinho, mas com a sua família —
mulher, lha adotiva e lho de seis meses, de nome Kirakos, a quem chamavam
à maneira estranha do Norte: Kirill.
— Ki-rill — repetia Valinka, pronunciando-o de várias maneiras e escutando
os sons nada habituais do nome do seu bisneto —, Kir-ill.
O sobrescrito estava no terraço: Mamikon, como não encontrasse a dona em
casa, deixou-o no chão, mas com uma pedra em cima para que não fosse levado
pelo vento.
— Quis levá-lo ao funeral, mas depois pensei: e se nos desencontrarmos? Por
isso deixei-o junto à porta — disse quando viu Valinka em casa de Bekhlvants
Mariam e abriu os braços com ar culpado.
— Não sabes o que vinha lá escrito? — interrompeu-o ela com impaciência.
— Como o posso saber? — ofendeu-se Mamikon. — Não leio as cartas
alheias.
Valinka aproveitou um momento, correu para casa, na medida em que lho
permitia a sua idade respeitável, para ver a carta. No sobrescrito, além de uma
folha de caderno preenchida com letra miúda, descobriu três fotogra as. Olhou
demoradamente, com o coração esmorecido, para o bisneto rechonchudo de
bochechas rosadas. Está a dormir na sua caminha, com a cabeça virada para o
lado e com os punhos assomando de baixo do cobertor. Valinka estalou a língua
com tristeza: porque não o enrolaram nas fraldas? É preciso enrolar os bebés nas
fraldas, apertá-los com elas, até ao oitavo mês, só assim eles dormem
calmamente. Noutra foto, esboça um sorriso torto na boca desdentada. Não foi
por acaso que puseram o nome de Kirakos, o avô Kirakos do seu trisavô, aos
cem anos, sorria do mesmo modo, com a boca torta e desdentada. Na terceira
fotogra a, estava toda a família: um Tigran visivelmente grisalho e anafado
abraçava os ombros da lha adotiva de sete anos, ao lado estava a sua mulher,
rindo e apertando ao peito o bebé carrancudo. «Ena», pensou Valinka com
orgulho, admirando a carita descontente do bisneto, «é tão pequenino, mas já
mostra caráter!»
Anatólia não foi ao banquete fúnebre; como ainda não recuperara as forças
depois da doença, cou em casa. Valinka abordou a telegra sta Satenik, mas
esta, sem óculos, não conseguiu decifrar sequer uma linha da carta. Foi preciso
ter paciência e esperar pelo m da cerimónia fúnebre. Apetecia-lhe muito
deixar tudo e correr o mais que pudesse a casa de Anatólia, mas era
inconveniente deixar sozinha Mariam, que lhe prestara ajuda naquele problema
bicudo da entrega do calçado ao mundo do além. Esperou com paciência que as
pessoas se despedissem e fossem para as suas casas, depois ainda ajudou a
levantar a mesa e a lavar a loiça. Assim, somente pôde ir à casa de Anatólia
quase à hora do ocaso: a noite meridional de cara escura não tardaria a cobrir o
Manich-Kar.
Encontrou Anatólia no pátio — com as mãos cruzadas no peito, Anatólia
olhava para o Patró, que, feliz da vida, revirando os olhos e soltando ganidos,
estava a roer um grande osso com tutano.
— Há para quem um osso da sopa é quanto baste para ser feliz — disse à
visitante em vez de saudação.
— Mas há para quem baste uma carta do neto — e Valinka abanou
alegremente o sobrescrito.
Anatólia tirou as fotogra as, mas pô-las de lado — vejo-as depois, primeiro é
preciso saber o que diz a carta. Percorreu rapidamente as linhas com os olhos —
fazia-o sempre, para o caso de notícias imprevistas, para ter tempo de encontrar
palavras certas e avisar o destinatário. Valinka esperava, mudando de um pé
para o outro e a arder de impaciência.
— O Tigran vem aí! — levantou as mãos Anatólia. — Com toda a família!
A respiração de Valinka entrecortou-se.
— Q-quando vem? — mal conseguiu dizer.
— No dia 3 de junho.
— E que dia é hoje?
Anatólia ergueu os olhos ao céu, tentando lembrar-se, senão da data, pelo
menos do dia da semana, mas abanou a mão e apressou-se a entrar em casa.
Valinka corria atrás dela, revirando nas mãos o sobrescrito vazio.
— Vassó, ó Vassó! — chamou Anatólia, abrindo a porta de entrada.
— Diz, Nató-djan! — respondeu Vassíli algures do fundo da casa.
Anatólia, envergonhada com a palavra carinhosa do marido, olhou de viés
para Valinka. Mas esta, enlevada com a feliz notícia sobre a vinda do neto, não
reparou em nada, ou então fez de conta.
— Vassó — perguntou Anatólia. — Que dia é hoje?
— Dia um!
— Dia um! — Valinka cou imóvel como se atingida por um raio, depois
caiu em si, deu uma palmada nos joelhos e apressou-se a descer a escada. — O
que é isso? Quer dizer que vêm depois de amanhã?!
— A carta! — gritou-lhe às costas Anatólia.
— A carta! — virou-se Valinka bruscamente.
No momento em que Vassíli apareceu à porta, Valinka já estava longe.
— O que aconteceu? — perguntou ele.
— O Melikants Tigran vem depois de amanhã. Com a família.
— Oh!... — Vassíli primeiro cou contente, depois, ao lembrar-se dos seus
lhos, desanimou. Os seus olhos grandes e argênteos embaciaram-se, as
comissuras dos lábios estremeceram e deslizaram para baixo.
Anatólia abraçou-o, apertou-se ao seu peito. «Ch-ch-ch, ch-ch». Vassíli
suspirou fundo, afagou-lhe a cabeça. «Tudo bem, Nató-djan. Tudo bem.»
Ao lado da cerca do pomar, atrapalhando-se por causa da pressa sôfrega com as
suas próprias patas e ameaçando inimigos invisíveis com rosnidos, o felizardo
Patró estava a enterrar o osso que não roera até ao m.

Era preciso ir buscar a farinha à cave. As paredes da divisão de pedra, que


conservavam a frescura mesmo no mais quente meio-dia, estavam cheias de
molhos de ervas secas e de espigas de milho vermelho. Nas prateleiras de
madeira, descansavam, de gargalo para baixo, os frascos vazios — as reservas do
ano anterior haviam-se esgotado durante o inverno, e ainda não chegara o
tempo do novo aprovisionamento. Na prateleira mais alta havia uma caixa
pequena de cartolina cheia de saquinhos brancos. Valinka pôs-se em bicos de
pés, estendeu o braço, tirou um saquinho, foi à janela, encontrou com os seus
olhos fracos os números do prazo de validade. Ficou contente, pegou na caixa e
levou-a rapidamente para o pátio.
Três anos atrás, Tigran abrira uma padaria na sua cidade do Norte. Passado
algum tempo, precisamente na véspera do Natal, chegou uma pesadíssima
encomenda dele — Mamikon, praguejando, levou metade do dia a transportá-la
até ao cocuruto do Manich-Kar. Chegou, tiritando de frio, com a cara azulada e
o bigode coberto de gelo. Valinka serviu-lhe sopa quente de feijão e, para que
não resmungasse tanto, pôs na mesa uma garrafa de vodca de amora. Mamikon
acompanhou a sopa com selo-de-salomão em vinagre e uma fatia de pão caseiro,
bebeu dois copinhos de vodca caseira, pediu que lhe dessem um lenço de lã de
cabra, enrolou-o à volta do pescoço e da cara, até aos olhos, e preparou-se para
sair. Mas antes de enfrentar o caminho de regresso, ajudou Vanó a abrir a
encomenda. Na caixa com carimbos azuis, inapagáveis, do serviço de correios do
Norte, havia várias latas de carne estufada, de conservas de peixe, de chouriço
em embalagem a vácuo, três maços de chá preto em folhas e uma grande
embalagem (50 saquinhos) de fermento seco.
— O que é isto? — perguntou Valinka, revirando o saquinho nas mãos.
— É uma merda — sorriu Mamikon com desprezo.
— Uma merda em que sentido?
— É um fermento, a minha nora põe-no na massa em vez da levedura. Com
isto, a massa cresce depressa, mas o pão sai sem gosto nenhum. É como
mastigar algodão.
Depois, estalando a língua com tristeza, en ou o nariz no lenço de lã, abanou
a mão à despedida e, intrépido, mergulhou na nevasca.
Valinka levantou a mesa, lavou a loiça. Sentou-se, re etiu um pouco. E, sem
adiar o assunto, preparou um pouco de massa com este fermento, para
experimentar, e cozeu algumas panquecas no forno de lenha. Cortou um pouco,
mastigou a panqueca, primeiro com queijo, depois com mel, depois com
manteiga. Vanó arrancou um bocadinho, comeu, torceu a cara.
— Não vou comer isto!
Valinka lançou pelos ombros uma pesada jaqueta de malha, embrulhou
metade da panqueca no guardanapo, foi a casa de uma vizinha.
— Intragável — pronunciou esta o seu implacável veredito, cuspindo o pão.
— É mesmo intragável — concordou Valinka com um suspiro.
Não teve coragem de deitar fora o fermento mandado por Tigran. Por isso
guardou os restantes saquinhos na cave e prometeu a si própria que se livraria
deles logo que se esgotasse o prazo de validade.
E esse dia, coincidindo surpreendentemente com a véspera da visita de
Tigran, chegou. Valinka levou solenemente o fermento para o pátio. Os
saquinhos branco-prateados brilhavam festivamente ao sol. Valinka virou-os nas
mãos, pensou um pouco, foi buscar uma tesoura, cortou cada saquinho,
despejou o conteúdo numa tigela. Depois deitou o fermento para a fossa, juntou
os saquinhos numa pilha, atou tudo com um o grosso e guardou-o no armário
mais alto da cozinha. Podiam ter alguma utilidade.
Finalmente, com o sentimento do dever cumprido, começou a preparar sali.
Preparou a massa com água, sal e farinha, acrescentou, camada a camada, a
manteiga derretida até ganhar um gostinho de noz e levou a massa para a cave
fria, até ao dia seguinte. O sali deve ser comido quente, pelo que iria cozê-lo
depois da chegada dos queridos convidados. Entretanto, a galinha estava pronta,
Valinka coou a canja gordurosa, pôs sal, lavou o trigo — excelente, cada grão
—, acrescentou-o à canja, mexeu, deixou-o cozer em lume brando. Sentou-se
para desossar a galinha.
Na prateleira de cima do armário, estava uma fotogra a de Vanó. Valinka,
com as suas próprias mãos, fez para ela uma moldura da tampa da caixa de
calçado (sim, dessa). Nesta fotogra a, Vanó tinha quarenta e um anos, a mesma
idade que agora tinha o neto Tigran.
— Vanó-djan — levantou Valinka os olhos para o marido sorridente. — Vou
sair-me bem e não vou envergonhar o teu nome. Vou recebê-los como é devido:
sirvo-lhes comida saborosa, preparo-lhes camas limpas, serei carinhosa e
paciente. Por isso, ca descansado. A Naz-stas-ia cará contente.

40 Sali — panquecas com açúcar. (NT)


CAPÍTULO 5

As estrelas ainda não se tinham dissolvido no céu, mas as primeiras abelhas,


cientes da sua missão, já voavam, zumbindo, ao encontro das plantas que
estavam a acordar, e os passarinhos apaixonados chilreavam o seu canto solene
ao novo dia. O mundo estava belo e despreocupado, o mundo alegrava-se e
cantava como uma criança lavada e amamentada depois do longo sono. O ar
tilintava com uma voz na e sonora, o ar uía e gotejava.
O ar pairava, enchia, voava, marulhava, respirava e… cheirava. Cheirava de tal
modo que a aldeia em força acorreu à casa de Eibogants Valinka, tirando
Nemetsants Mukutch, que se ausentara para o vale e o velho Anés, a quem
calhou, precisamente neste dia, car acamado com um ataque de gota. Até
Anatólia apareceu — de braço dado com Vassíli, era a primeira vez que saía à
sociedade acompanhada pelo marido, e por isso se comportava com reserva para
não atrair interesse a mais, o que aliás era desnecessário: não era ela que prendia
a atenção geral, mas a assustada Valinka, que, com a cara tapada com o lenço,
marcava passo à beira do conteúdo da fossa que, durante a noite, transbordara e
inundara uma parte do pátio.
O pátio, desde sempre limpinho e cuidadosamente varrido, apresentava agora
um espetáculo tão miserável que cada um que chegava, ao espreitar para lá da
cancela, recuava e, praguejando ou erguendo os olhos ao céu, como que
clamando pela sua misericórdia, afastava-se de imediato.
— Como foi isto acontecer? — não paravam de perguntar as pessoas.
— Também gostávamos de saber! — respondiam os que tinham vindo mais
cedo.
— É o fermento — expirou Valinka. Virou-se de lado, en ou-se na cancela,
tirou o lenço, passou a mão pelo cabelo, ajeitando as madeixas saídas do puxo,
depois tapou a cara com as mãos e desfez-se em choro.
— Qual fermento? — alarmaram-se as pessoas.
— Aquele que o Tigran me mandou há três anos. Era imprestável, por isso o
deitei fora. Mas o fermento, pelos vistos, não perdeu a força. É verão, aquilo
levedou durante a noite, e depois… — pôs-se Valinka a contar, titubeando, por
entre as lágrimas que a sufocavam.
Instalou-se um silêncio ensurdecedor. Os maranenses trocavam olhares
descon ados e voltavam a cravar os olhos nela, esperando provavelmente
alguma continuação ou pelo menos uma explicação pormenorizada da
ocorrência. Mas Valinka apenas soluçou e abriu os braços, dando a entender que,
pronto, não havia mais nada a esclarecer.
— O que foi que ela disse? — rangeu Petinants Suren, nonagenário
musguento e meio surdo. — Quem é que cagou aqui tanto durante a noite?
Ovanés soltou uma risada. A seguir, os outros homens também gargalharam.
Suren passou os olhos perplexos de um vizinho para outro, depois abanou a mão
e riu-se também.
— Ajudem-me a limpar! O meu neto chega hoje. E ainda por cima não vem
sozinho, mas com a família.
— Então, se viesse sozinho, podias prescindir da limpeza? — ironizou com
maldade Ovanés.
— Porque estás a achincalhá-la, homem? — atacou-o Iassaman. As mulheres
não partilhavam a animação dos homens, mas, com as mãos no peito e os lábios
cerrados severamente, esperavam o m da risota. — Se o Tigran viesse sozinho,
ele próprio arrumaria tudo. Não é daqueles que se deixa espantar com a…
substância da aldeia. Outra coisa é a sua mulher do Norte!
— Pois, pois. No Norte, pelos vistos, cagam ores! Não são como nós!
Iassaman estalou a língua e afastou-se, zangada. Os velhos, por algum tempo,
continuaram a divertir-se por conta de Valinka, que, sem pensar duas vezes,
deitara o fermento para a fossa, mas depois aquietaram-se e começaram a
discutir a maneira de ultrapassar a calamidade que inundara o pátio.
Depois de breves altercações, foi decidido cavar um buraco, meter nele os
dejetos, cobrir tudo com terra e aplanar, e também tapar o buraco da retrete
com tábuas e verter em cima cimento.
— Senão, aquilo vai levedar e cheirar até ao inverno — concluiu Ovanés.
— Mas onde é que vamos fazer as necessidades? — tentou objetar Valinka.
Ovanés queria dizer uma piada, mas esbarrou com o olhar severo da mulher e
reconsiderou:
— Por enquanto, vão utilizar a casinha da vizinha. Quando vier o Tigran,
construímos-vos uma nova retrete. Por enquanto, paciência. Quem tem
cimento?
Havia cimento em casa da telegra sta Satenik. Velho, mas não fazia mal.
Os trabalhos de limpeza ocuparam a maior parte do dia. Apenas à noite,
extenuados, os velhos se dispersaram pelas casas. Valinka sugeriu pôr a mesa
para eles, mas recusaram-se educadamente. Precisavam de tomar banho, de
mudar de roupa e, além disso, depois de terem chafurdado na… resumindo, não
apetece comer, vizinha, depois de labutar com a… numa palavra, não apetece,
vizinha, desculpa.
— Eu queria receber o neto da melhor maneira, e olha… — limpava as
lágrimas Valinka, passando os olhos pelo pátio destruído.
— Mas, pelo contrário, não há mal que não venha por bem — retorquiu
Vassíli, que foi o último a ir-se embora. — Cada provação afasta uma desgraça.
Considera que pagaste um resgate para evitares um mal pior.
Valinka assentiu, mas isso não a consolou. Depois de se despedir de toda a
gente, acendeu o fogão e, enquanto a água estava a aquecer, tentou, na medida
do possível, pôr em ordem o pátio: varreu, sacudiu e dobrou o saco de papel
onde estivera o cimento — para o devolver depois a Satenik, podia ser útil —,
levou para a barraca o balde com água em que estavam a molhar-se as pás
cobertas de cimento. O fedor que, de manhã cedo, levantara o alvoroço em toda
a aldeia, dissipou-se pouco a pouco, restava apenas o cheiro húmido do cimento
que estava a solidi car-se, mas não incomodava Valinka. Depois de acabar a
arrumação, tomou um banho rápido, esfregando implacavelmente o corpo com
a esponja áspera. Quanto à roupa com que andara durante o dia, atou-a numa
trouxa e escondeu-a no seu quarto — para lavar depois.
Penteou-se, fez duas tranças com o cabelo ainda molhado, prendeu-as com
ganchos na nuca. Ataviou-se com um vestido limpo, com um avental de seda.
O fogão soltava estalidos pací cos, perdendo pouco a pouco o calor. Valinka
desceu à cave, trouxe a arissá41, pô-la a aquecer, saiu para o terraço, sentou-se no
banco que lá estava numa posição tal que tapava o lugar onde dantes vivia o
pavão, juntou as mãos nos joelhos e começou a esperar com paciência. No
momento em que a carroça de Nemetsants Mukutch parou junto à cancela,
Valinka dormia serenamente, extenuada pelo dia extremamente azafamado e
pela longa espera.

41 Arissá — papas de trigo com carne. (NT)


CAPÍTULO 6

A aldeia, a nal, era tal qual Nastássia a imaginava depois de o marido lha ter
descrito: de pedra, com telhas velhas e gastas a caírem, com cercas decrépitas e
tortas e chaminés dos fogões a lenha tão altas que se agarravam às abas do céu.
No segundo dia após a chegada, Nastássia percorreu toda a aldeia em menos de
uma hora. Kiriucha42 dormia, enroscado, no porta-bebés que Valinka
improvisara num instante de um grande lenço axadrezado. Alice brincava ao
lado, ora vinha a correr com mais uma or felpuda de malva amarela — mamã,
cheira, tem um cheiro cómico! —, ora corria para a frente e depois esperava,
saltitando impaciente num só pé — olha, esta casa está completamente
estragada, vês? O telhado tem buracos e a porta está aberta, vamos entrar,
vamos?
— Vamos — concordava Nastássia, mas, por precaução, não entrava em
habitações: e se uma parede ou o teto ruíssem? Parava nos pátios, estudando
com atenção os suportes de madeira dos terraços carcomidos pelo bicho;
nalguns sítios era possível distinguir ainda um ou outro ornamento simples:
taças, cruzes e o disco do sol. Videiras assilvestradas cobriam as fachadas das
casas, tranquetas de cancelas, so sticadas e completamente enferrujadas,
rangiam com angústia, como se dissessem aos visitantes não convidados que
voltassem ao caminho — um caminho áspero, duro como pedra e impróprio
para passeios —, e as árvores de fruto, já sem fruto há muito, curvadas pelas
doenças, suspiravam, despedindo-se deles. No terraço de uma casa abandonada
pendiam, em várias las, folhas de tabaco: pelos vistos, algum morador da
aldeia aproveitara a casa para as suas necessidades. Mãe, o que é isto?, perguntou
Alice, virando para Nastássia a sua carita sardenta. É tabaco, explicou ela.
— Quem poderia pensar que os cigarros se faziam de ervas! — abanou a
cabeça uma Alice incrédula.
Nastássia riu baixinho, para não acordar o lho adormecido. A curiosidade da
lha divertia-a, mas não a deixava concentrar-se.
— Não te importas se eu, na próxima vez, vier passear sem ti? — perguntou.
— Estou a incomodar-te? — e Alice fez beicinho.
— Não me incomodas. Só que gostaria de me concentrar, percebes?
— Precisas de pensar outra vez?
— Preciso.
— Está bem. Amanhã podes vir sem mim. Fico com o pai.
— Obrigada, lha — comoveu-se Nastássia.
— De nada! — E Alice correu para a frente, saltando habilmente de um
socalco para outro no caminho escalavrado pelas chuvas.
Valinka recebeu-os ao lado da cancela, protegendo-se do sol com a mão em
pala sobre os olhos. Nastássia admirou mais uma vez a sua beleza singela: olhos
de um azul deslumbrante na cara bronzeada, nariz direito e comprido, lábios
nos teimosamente cerrados. Estava contente por Tigran lhes ter ensinado, a ela
e à Alice, a falar um pouco a língua de Maran, de outro modo como poderiam
falar com aquela avó-sogra?
— Estais cansadas? — perguntou Valinka, pegando no bebé sonolento.
— Não! — gritou Alice numa voz sonora e correu ao pé de Tigran, que estava
a trabalhar na barraca da lenha que Valinka destinara para ser a nova retrete.
— Não faz sentido construir uma coisa tão sólida — abanou a mão quando
Tigran lhe propôs uma casa de banho de pedra. — Vivo aqui sozinha, também
há muito que não utilizo a barraca. A lenha, como vês, ca debaixo do alpendre,
assim está mais à mão. Cava apenas um buraco no canto, cobre-o com tábuas e
coloca um biombo. É quanto basta.
— Quando acabar a retrete, vou tratar da parede do quarto — prometeu
Tigran.
— Não toques na parede. A alma do teu avô foi-se embora por aquela racha.
E já não falta muito para ser a minha vez de voar através dela.
— Então, foi por isso que ele andou toda a vida à volta daquela racha. Sabia
que ia acabar assim — respondeu Tigran. Para ele, falar da morte do avô era
insuportável: os remorsos roíam-no. Adiou muito tempo aquela visita, ora um
problema, ora outro e, quando nalmente se decidiu, não o encontrou vivo.
Nem sequer foi ao funeral, mas disso não tinha culpa, só soube da sua morte
passada uma semana quando o telegrama, por qualquer fatalidade malévola
perdido nos meandros dos Correios, nalmente chegou. E só um mês depois
teve possibilidade de partir para Maran. Aliás, pensava ir sozinho porque não
planeava passar lá muito tempo, mas levar a avó da aldeia. A mulher, contudo,
insistiu que fossem todos juntos.
— Quando terei ainda oportunidade de ver a tua terra natal?
Tigran pediu-lhe que não revelasse, por enquanto, o verdadeiro objetivo da
visita.
— Ela vai recusar. Não quererá deixar ao abandono, sem cuidados, os túmulos
dos familiares. Que se habitue primeiro a vocês. Quando se habituar, já vai ser
mais difícil separar-se da nossa família. Nessa altura, propomos-lhe que parta
connosco.
— E se não aceitar?
— Convencemo-la.
Em primeiro lugar, ele e Nastássia, deixando as crianças com Valinka, foram
ao túmulo de Vanó. O cemitério quase não mudara desde o dia da partida de
Tigran, apenas apareceram cerca de uma dezena de novas cruzes — nos últimos
anos, desde que o pedreiro morreu, essas cruzes substituíam as lápides
tumulares tradicionais. Nastássia deixou o marido sozinho para que chorasse a
sua dor em solidão, e foi vaguear pelo cemitério invadido de festuca colorida e
bistorta. Era complicado passar até às campas mais antigas através do ervaçal
espesso, mas Nastássia não desistia — para ela, era importante aproximar-se
delas para ver melhor os ornamentos de pedra coberta de manchas de líquen,
passava a mão pelas cruzes rendilhadas entalhadas nas lajes, admirando a sua
beleza humilde, tentava guardar na memória a meiga consolação que sentia com
o toque tímido da sua mão nas suas partes laterais quentes. As lápides exalavam
o ar dos séculos e a sensação do irremediável.
Nastássia não percebeu à primeira que as lápides não estavam à cabeceira, mas
aos pés dos falecidos, viradas para ocidente. Para veri car a sua suposição,
voltou aos túmulos novos e percebeu que era verdade: as cruzes de madeira dos
novos, diferentemente daquelas, erguiam-se à cabeceira. Não quis incomodar o
marido com perguntas — Tigran estava soturno e silencioso, quando voltou do
cemitério afastou-se para o fundo do pomar e passou lá muito tempo, fumando
sem parar e não desviando os olhos da beira da escarpa.
— São as portas — explicou-lhe Valinka num sussurro (na otomana, rodeadas
de todos os lados dos mutakas, as crianças dormiam, extenuadas pelo ar rarefeito
dos montes, e ela acomodara-se ao lado, guardando o sono delas). — Quando
chegar o dia do Juízo Final, o falecido vai levantar-se, abrir a porta e entrar no
paraíso. É por isso que as lápides com cruzes se põem aos pés dos defuntos.
— Mas como será com aqueles que têm as simples cruzes de madeira?
— Outros mortos vão levá-los consigo.
— Mas que coisa… — conseguiu apenas murmurar Nastássia. Kiriucha
mexeu-se, estalou os lábios, suspirou fundo. Nastássia estendeu-se até ele, mas
Valinka foi mais rápida — ajudou o bebé a virar-se para o lado, afagou-lhe as
costas, alisou o colarinho da camisa para que não se esfregasse na pele terna.
Levantou-se, cedendo lugar à nora:
— Deita-te enquanto as crianças dormem, descansa, vou tratar do almoço.
— Eu ajudo.
— Ajudas amanhã. Hoje és ainda uma convidada. Ao terceiro dia, já não serás
convidada. E poderás ajudar.
— Mas o que serei então amanhã? — sorriu Nastássia.
Valinka apertou na nuca as pontas do lenço, sacudiu o avental.
— Serás a dona da casa. Naz-stas-ia-djan.
— Chame-me Stássia.
— Como?
— Stássia.
— Está bem, serás Stássia. Descansa, lha, porque depois haverá muito
trabalho. Amanhã de manhã cedo vamos colher o aveluk43. Também vais
conhecer as velhas da nossa aldeia. O Tigran vai encontrar-se com os velhos,
terão muito que falar. No domingo, vamos pôr a mesa, convidamos toda a
gente. Para que te conheçam na aldeia.
Apetecia a Nastássia perguntar para que eram necessárias tantas cerimónias,
mas conteve-se.
— Está bem.
Quando Valinka saiu do quarto, Nastássia tirou os sapatos, deitou-se com
cuidado aos pés dos lhos, meteu debaixo da cabeça um mutaka rijo. Sentia no
peito picadas e pressão, como antes de amamentar, o que a preocupava muito —
o leite já desaparecera há um mês, numa só noite, quando teve uma gripe grave.
Por que razão o peito lhe doía agora, como se estivesse a encher-se de leite,
Nastássia não sabia. Prometeu a si própria ir à consulta do especialista logo
depois do regresso. Acalmou-se, fechou os olhos. Recordou a última semana —
preparações longas, e como de repente Alice, na véspera da partida, apanhou
frio e se constipou, e como, durante toda a viagem, Kiriucha sofria com dores
nas gengivas e choramingava, e como subiu a tensão arterial do marido, mas
não havia à mão comprimidos, e ela chegou a amaldiçoar cem vezes o dia e a
hora em que insistira em fazer a viagem com as crianças, mas já era impossível
mudar alguma coisa. Farta de sofrer durante a longa viagem, Nastássia não
esperava alegria nenhuma no encontro com Maran, por isso, quando no vale os
recebeu Nemetsants Mukutch, que devia transportá-los na sua carroça até ao
cocuruto do Manich-Kar, mal continha as lágrimas. Nemetsants Mukutch,
velho de estatura gigantesca, de cabelo branco e olhos castanhos, abraçou
Tigran, depois estendeu a mão a Nastássia — Como estás, lha? — Porque se
chama Nemetsants? — perguntou-lhe Nastássia, apertando a sua mão seca. —
Porque o meu avô voltou da guerra mundial com a mulher alemã, então
começaram a chamar-nos Nemetsants em memória da avó44 — respondeu
Mukutch e, com dois dedos, fez um gesto e uma momice cómicos a Kiriucha,
este sorriu, esticou-se até ao desconhecido de barba branca, é tal qual Kirakos,
riu-se o velho e olhou interrogativamente para Nastássia, pedindo licença para
pegar no bebé ao colo. Nastássia entregou-lhe o lho e sorriu. — A propósito, o
meu bisavô também andou naquela guerra e também voltou com a mulher
alemã. — Estás a ver que bom, respondeu o velho, brincando de modo
comovente com Kiriucha, o mundo é pequeno, e nós somos grandes, embora,
por ingenuidade e estupidez, achemos que é o contrário.
— Stássia-djan, tem cuidado, não arranques a raiz, senão a planta ofende-se e
não cresce no próximo ano — explicava Iassaman, mostrando como se cortava
corretamente o talo da azeda com a faca, de modo a deixar um minúsculo
bocado espetado da terra.
Nastássia assentia, escutando tensamente aquela fala difícil e áspera, às vezes
estrídula.
— Por favor, fale… como é?... mais brando… para eu perceber — pediu.
— E eu estou a berrar? — espantou-se Iassaman.
Valinka riu-se.
— Ela quer dizer: fale mais devagar. Metralhas e não paras de metralhar, e ela
não compreende.
— Vou falar devagar — prometeu Iassaman.
Nastássia virou-se para um enorme carvalho ramalhudo, debaixo do qual
Kiriucha estava deitado em cima de uma manta caseira dobrada. Anatólia,
sentada ao lado dele, fez um gesto tranquilizador — tudo em ordem, não te
preocupes. A saúde fraca de Anatólia não lhe permitiu apanhar muitas azedas:
ao m de trinta minutos sentiu vertigens, um vómito subiu-lhe à garganta. Por
isso lhe con aram a missão de vigiar a criança, enquanto as outras mulheres,
dobrando-se, subiam lentamente o declive, cortando com as facas e metendo nos
sacos as folhas de margens onduladas do aveluk, tentando conservar todo o
comprimento do talo.
— Os talos também são comestíveis? — quis saber Nastássia.
— Não, depois deitam-se fora — respondeu Valinka.
Nastássia pensou que ela estava a ironizar, mas Valinka não sorria.
— Primeiro acabamos de colher o aveluk, depois vais ver para que precisamos
dos talos.
Alice apanhava os primeiros morangos, ainda pouco maduros e azedos, e
comia-os, franzindo a cara.
— Porque os estragas? Deixa-os amadurecer — disse-lhe Nastássia.
— Gosto deles assim!
— Quando amadurecerem, são mais saborosos.
— Está bem, como mais dois e acabou-se!
O Sol havia muito que subira no céu, mas calhou-lhes um dia
misericordiosamente nebulado, com a neblina empurrada pelo vento a tapar o
céu de uma ponta à outra, com o ar dourado e húmido, cheirando intensamente
àquelas ervas apimentadas de que Nastássia desconhecia os nomes. Respirava
fundo e livremente, adaptando-se à nova sensação de existência compassada que
impregnava tudo ao redor — desde a oresta antiga que rodeava o cume do
Manich-Kar, onde cada árvore parecia falar a sua própria língua, até às pessoas.
As velhas trabalhavam sem pressas, arregaçando os aventais de tal modo que
estes formavam uma abada onde se podia meter o aveluk. Ao colhê-lo em
quantidade su ciente, troteavam até aos sacos, pondo neles os molhos húmidos
de verdura. Deram um avental também a Nastássia, mas não sabia arregaçá-lo
de maneira que não se desprendesse, pelo que o segurava com a mão.
— Não queres descansar, lha? — sugeriu-lhe Valinka.
— Como? — embaraçou-se Nastássia. — Vocês vão trabalhar, e eu descansar?
— Mas é o que fazemos toda a vida. Estamos habituadas.
— Para mim é um prazer.
— Então, se é um prazer…
Nastássia cortou com cuidado o talo de um aveluk, juntou-o ao molho,
estendeu a mão ao seguinte e, de repente, parou. O peito cheio de dor cou-lhe
de repente hirto e húmido. Nastássia endireitou-se bruscamente, meteu a mão
na abertura do vestido, apalpou um mamilo inchado, depois o outro. Abriu o
sutiã — estava encharcado.
— Só um momento — sussurrou a Valinka e correu até ao carvalho secular.
Kiriucha, balbuciando e fazendo bolhas com a boca, rastejava pela borda da
manta e arrancava com entusiasmo ervinhas que Anatólia logo retirava dos seus
punhos rechonchudos.
— Só um momento — repetiu Nastássia, tirou da sacola um lenço, escondeu-
se atrás do tronco largo da árvore, desabotoou o vestido, libertou o peito e
soltou um «ah!». Os mamilos vertiam leite. O primeiro impulso foi dar o peito
ao bebé, mas conteve-se, teve medo de que o leite que voltara tão
inesperadamente pudesse fazer mal à criança. Sem pensar duas vezes, dobrou-se
e começou a vazar o peito, apertando-o com as mãos na direção dos mamilos. O
leite jorrava sobre as miosótis que cresciam debaixo do carvalho, corria pelas
suas pétalas e pelas ervas, desaparecia na terra.
— Estás bem? — gritou-lhe Anatólia.
— Estou, estou — apressou-se a responder Nastássia.
Ao acabar o vazamento, pôs-se em ordem, rasgou o lenço ao meio, meteu as
tiras nas taças do sutiã para proteger os mamilos. Kiriucha viu a mãe,
choramingou, pediu colo. Nastássia pegou nele, apertou-o ao peito, beijou-o
nas bochechas redondas, en ou o nariz na preguinha do seu pescoço, inspirou o
aroma adorado da tenra pele infantil.
— Meu -i-ilho.
Anatólia olhava para ela e sorria. Depois suspirou com amargura, baixou os
olhos.
— E eu não consegui ter um lho.
Nastássia deitou Kiriucha na manta, ele choramingou, descontente, já, já, já,
espera, pediu ela, encontrou na sacola o biberão com leite arti cial para bebés e
estendeu-o a Anatólia — por favor, pode dar-lho?
— Claro. — Anatólia virou o bebé para o lado mais cómodo para ele beber,
colocou uma fralda debaixo da bochecha. — Não te preocupes, Stássia-djan, sei
tratar das crianças. Pergunta à Iassaman. Dantes cuidei dos netos dela sei lá
quanto tempo!
— Mas onde estão agora os netos da Iassaman?
— Morreram na guerra.
— E os lhos?
— Alguns morreram nos tempos da fome, outros durante a guerra.
— Se calhar… É claro, não me atrevo a a rmá-lo — começou Nastássia,
indecisa —, mas pensei que… talvez a Anatólia não tenha lhos porque Deus
quis poupá-la, protegê-la da desgraça insuportável?
Anatólia levantou para ela uns olhos estranhamente escuros — nem se
distinguia a pupila.
— Talvez, lha.
Ao m da tarde, Nastássia foi dar uma volta por Maran. À frente dela corria
Alice, via os seus calcanhares empoeirados a relampadejar e ouvia-a a chilrear
alegremente. Kiriucha dormia enroscado dentro do porta-bebé — depois de se
ter aconselhado com Valinka, Nastássia decidiu dar-lhe de mamar, ele tomou o
mamilo a contragosto, acostumado pelos vistos ao leite doce do biberão, mas
depois habituou-se e adormeceu ao peito, e quando o tentaram deitar na
otomana, choramingou e agarrou-se com as gengivas doridas ao mamilo.
Nastássia, apertando o lho ao peito, vagueava pela aldeia, de uma casa
abandonada a outra, parava ao lado de cada cancela, perscrutava com os olhos os
aros cegos das janelas, as paredes com o estuque caído — nas rachas havia muito
que os pássaros faziam os ninhos; olhava para as goteiras enferrujadas e cheias de
lixo trazido pelo vento, para as cercas ressequidas — as varas das paliçadas
espetavam-se da terra como dentes podres de um dragão pré-histórico. Por
vezes, depois de saciar os olhos com mais uma construção, passava os dedos pelo
ar, como que desejando captar a essência fugitiva da solidão ensurdecedora que
soprava de cada casa, habitada ou desabitada. Como podia isto acontecer? —
interrogava-se Nastássia e não achava resposta. A aldeia guardava silêncio,
embalando nos seus braços de pedra uma in nita tristeza.
As mãos cheiravam-lhe a suco amargo — lembrou-se de como tinha feito,
hoje, tranças de aveluk, acrescentando a cada madeixa uma nova folha e
deixando os talos espetados para fora — dava uma coisa parecida a uma espiga
de trigo, só que comprida, de um metro e meio ou dois. Depois, os talos
espetados cortavam-se à tesoura — agora percebes para que precisamos deles?
— explicou-lhe a avó-sogra Valinka. — Para ser mais fácil fazer tranças de
folhas.
— E agora o que se faz com elas?
— Damos os restos de talos ao gado, as tranças penduram-se na corda e secam
muito bem. Depois, metemo-las nos saquinhos de linho e guardamo-las para o
inverno.
— Mas como se cozinham?
— É simples. Cozem-se em água a ferver, estufam-se com cebola salteada,
regam-se com matsun e alho, comem-se com pão e brinza. Se for para uma festa,
espalham-se por cima bagos de romã e nozes trituradas. Assim é mais bonito.
— É saboroso?
— Tu não vais gostar — riu Valinka.
— Porquê?
— Sem nos acostumarmos a qualquer comida, não parece saborosa.
— Vou acostumar-me — prometeu-lhe, sem saber porquê, Nastássia.
Valinka atou a ponta da trança de aveluk com um o grosso, pô-la de lado,
pegou noutra trança.
— Resta um pouco disto do último inverno. Vou cozinhá-lo. Logo se vê se
vais gostar.
Quando Nastássia foi passear, dezoito tranças grossas de aveluk já estavam a
secar na corda, baloiçando ao ritmo da respiração do vento. Tigran
acompanhou-a até ao m da rua, depois, cedendo à insistência da mulher de que
não havia necessidade de a acompanhar mais, voltou à barraca da lenha, para
trabalhar.
E Nastássia viu-se cara a cara com Maran.
Regressou passadas duas horas, concentrada e pensativa.
— Sabes do que tenho pena? — perguntou quando, depois de dar banho aos
lhos e de os deitar, ela e o marido estavam no terraço a tomar chá com tomilho
preparado por Valinka. — Tenho pena de não ter à mão lápis e papel.
— Podemos pedir ao Nemetsants Mukutch que os traga do vale.
— Pede, por favor. Não tenho a certeza de que vai resultar, há muitos anos
que não desenho. Mas agora apetece-me.
Tigran abraçou-a pelos ombros, beijou-a nas fontes.
— Está bem.

42 Kiriucha — diminutivo do nome russo Kirill. (NT)


43 Aveluk — Rumex confertus, azeda-brava. (NT)
44 Némets — em russo signi ca «alemão». (NT)
CAPÍTULO 7

No m da segunda semana, estava uma grande pilha de esboços a lápis no


peitoril da janela. Valinka pegava nas folhas ásperas, riscadas pela gra te escura,
observava-as prolongada e pensativamente, suspirava, estalava a língua. Não
conseguia conversar razoavelmente com a nora — os cuidados com as crianças
exigiam muito tempo e forças, ainda por cima Nastássia falava mal a língua de
Maran e muitas vezes irritava-se consigo própria quando não conseguia
formular corretamente e expor à avó-sogra uma ideia. Tigran estava fora dias a
o, andava pelas casas dos velhos, consertava tudo o que podia: reforçava as
cercas, cortava árvores secas, cortava lenha, remendava mais ou menos os
telhados, limpava chaminés dos fogões, levava para fora da aldeia e queimava
tralha inútil, batia ao sol os tapetes decrépitos e descoloridos, livrando-os do pó.
Ajudava na medida do possível. Alice ia muitas vezes com ele, não o largava,
conversava à vontade com os velhos, contava-lhes as suas histórias, os velhos
animavam-se, ouvindo o seu chilreio, tornavam-se mais loquazes, sorriam.
Fabricavam para ela brinquedos tortos, ofereciam-lhe bugigangas e ensinavam-
na a fazer bonecos de ores: um botão de papoila vira-se do avesso, tira-se a
parte central e espeta-se no caule, as pétalas abrem-se — e pronto, temos uma
cigana de cabelo preto e saia encarnada. Alice olhava, retendo a respiração — a
carita sardenta, um pequeno sol, os olhos verdes, felinos, o cabelo cor de palha,
leve como a penugem do dente-de-leão. Com cada boneco de ores corria para
junto de Tigran — olha, papá, que beleza! Respondendo às perguntas de
Valinka, o neto mencionou em duas palavras e a contragosto o divórcio difícil
de Nastássia e a falta de vontade do pai biológico de contactar com a lha e de
participar de alguma maneira na sua educação. Valinka abanou a cabeça,
suspirou e, no dia seguinte, depois de passar pelas casas das vizinhas e de
arranjar os ingredientes que lhe faltavam, fez um grande bolo de canela que
exigia muito trabalho — cinco camadas de massa areada embebidas em creme
de nozes, amêndoas e avelãs cozidas em mel; antigamente, este bolo era servido
nas festas de batizado, ora Valinka fê-lo para a miúda que, pela lei da vida, não
tinha nada que ver com ela, mas pela lei do coração era mais próxima e querida
do que o seu próprio neto. Alice comeu o bolo, luzindo de felicidade, gabou-o
muito e pediu mais.
— Fazes para mim o mesmo bolo depois? — perguntava à mãe.
Nastássia foi obrigada a apontar, sob ditado da avó, a receita pormenorizada e
a jurar à lha que faria o bolo de canela para o Natal.
— Consegues? — perguntou Alice com descon ança. As mulheres trocaram
olhares e riram. As conversas da garota com os velhos não passaram sem
consequências: Alice adotou o tom rabugento e as maneiras deles — com as
mãos nas ancas e o pescoço esticado, olhando de viés.
— Apre, como tu és! — Nastássia puxou a trança da lha. Esta libertou-se,
apanhou da mesa uma mancheia de mirabelas e correu para junto do pai.
Valinka observava a nora e a sua lha com um sorriso. Eram espantosamente
parecidas — leves, elegantes, pernilongas.
— O nosso povo é diferente — disse ela pensativamente —, somos
corpulentos, sólidos, de narizes aduncos e pesadões. Ora, vocês esvoaçam como
borboletas.
— Vocês são muito bonitos — respondeu Nastássia. — E… parecem de
pedra. Em Maran, a meu ver, tudo é de pedra. As casas. As árvores. As pessoas.
E… — Estalou os dedos, querendo lembrar-se da palavra. — Esculpidos, sim.
São esculpidos em pedra.
Quando a nora, nalmente, depois de dar o peito e deitar Kirakos, saía para
desenhar a aldeia, Valinka sentava-se para ver os esboços dela: o cemitério, um
raio oblíquo na janela estreita da capela, pipas para a água da chuva, uma roda
de carroça, um burro atado a uma árvore solitária, os karás de barro, um arbusto
de alteia. Numa pilha à parte estavam vários retratos inacabados de Anatólia —
ela e Iassaman muitas vezes vinham de visita, Nastássia sentava Anatólia à
janela e desenhava-a, enquanto Iassaman, deixando Valinka descansar, tratava
do bebé. Anatólia desfazia a trança: o seu cabelo, apesar da idade, conservou-se
espesso e com um espantoso matiz de mel. E Nastássia abria a boca de
admiração: é incrível, que combinação rara e admirável de pele morena e cabelo
cor de trigo com laivos ruivos, uma beleza! Anatólia encolhia os ombros: nada
de especial, Stássia-djan, herdei uma coisa do pai, outra da mãe, e daí é que vem
este aspeto físico.
Iassaman, num sussurro, queixava-se a Valinka da amiga: a sua saúde, apesar
do tratamento com ervas, não melhorava.
— Não consigo convencê-la a ir ao vale consultar os médicos. Não dá ouvidos
a ninguém, nem a mim, nem ao Vassíli, nem ao Ovanés. Enfraqueceu, ora tem
vertigens, ora os pés recusam-se a andar. Na semana passada desmaiou, foi a
grande custo que conseguimos que recobrasse os sentidos.
— Queres que fale com ela?
— É inútil. Vai fazer sempre o que muito bem entende. Ainda vai car
ressentida comigo por eu me queixar por ela!
— Nada a fazer. Não é nenhuma criança, não podemos obrigá-la.
— Pois, nada a fazer.
Apesar do ar doentio, Anatólia era representada nos retratos de Nastássia
como uma verdadeira beldade — jovem, penetrada de luz, comovedora. Às
vezes parecia a Valinka que a nora embelezava Anatólia de propósito, mas
outras vezes achava que não era nada disso, que ela via Anatólia exatamente
assim. E toda a aldeia, nos seus desenhos, surgia com um aspeto que Maran não
tinha havia muito tempo. Como se Nastássia ignorasse intencionalmente as
marcas de envelhecimento e de destruição triste, deixando para Maran a
serenidade e um feliz apaziguamento. Como se tivesse para com esta terra alheia
essa compaixão e compreensão porque sentia responsabilidade pessoal pelo
destino amargo que lhe calhara. Conseguia, estranhamente, captar ou desvendar
por instinto as coisas em que os velhos não reparavam havia muito. Valinka
pegou no desenho pormenorizado do comedouro de aves no quintal de
Nemetsants Mukutch. À primeira vista, era um comedouro vulgar, baixinho,
torto, coberto de esterco de galinhas. Mas aconteceu, por uma razão
inexplicável, que tinha sido precisamente esse comedouro que atraíra os
tentilhões da aldeia. Aos ns de tarde vinham em bandos e armavam grande
alvoroço no comedouro. A criação doméstica observava tudo isso de longe, e
apenas o peru velho, um resmungão apalermado, ao qual Mukutch nunca mais
se decidia a torcer o pescoço, andava em volta e grugulejava raivosamente,
sacudindo a excrescência rubra por cima do bico. Aliás, os tentilhões não se
preocupavam com a indignação do peru. Depois de terem armado, durante
algum tempo, a sua balbúrdia e de comerem tudinho, esvoaçavam e
desapareciam para os lados da oresta. Às perguntas de Nastássia: porque é que
os tentilhões escolheram precisamente o quintal dele? — o velho Mukutch
abria os braços: como é que posso sabê-lo, lha, pelos vistos foi destinado assim,
já que isto acontece desde sempre. Os habitantes de Maran há muito que se
habituaram ao comportamento estranho dos tentilhões, ora Nastássia, depois de
apenas duas semanas na aldeia, não só reparou nisso, mas ainda conseguiu
desenhar o comedouro torto cheio de passarada. Valinka perguntou-lhe porque
quis ela fazê-lo, e Nastássia respondeu com uma franqueza desarmante: olhe,
nem sei, porque sim.
Ou, por exemplo, a cerca à beira da escarpa onde foi enterrado o pavão. Todas
as tardes Vanó olhava para esta cerca através dos raios do ocaso, Valinka cuidava
dos lírios do monte que Tigran plantara na campa, mas nenhum deles
descon ou que nos cantos, onde passava a linha de soldadura, o ornamento
forjado formava as letras «K» e «V».
Nastássia descobriu-as, copiou-as e mostrou-as ao marido. Tigran não
acreditou nos próprios olhos, foi ver a cerca, convenceu-se de que a mulher
tinha razão.
— Mas como conseguiste? Se não conheces o nosso alfabeto?
— Vi estas letras nas pedras com cruzes e caram-me na memória!
Valinka olhava com espanto para o ornamento da cerca desenhado pela nora.
Ela e Vanó mal conseguiam juntar as letras em palavras, mas conheciam as
letras e . Contudo, não repararam, não perceberam.
Em várias folhas, Nastássia desenhou, com todo o pormenor, o terraço
derruído da casa de Iakulitchants Magtakhiné cuja mãe, em tempos, antes de
enlouquecer de nitivamente, era amiga de Valinka. Nastássia captou um
escorço em que as traves podres, ruídas e havia muito cobertas de musgo
formavam o per l de uma cara senil. Se olharmos com atenção, vemos a cara do
pai de Magtakhiné — nariz ligeiramente adunco, sobrolho carregado, lábios
nos. Valinka foi lá de propósito, para ver. Era verdade: Iakulitchants Petros,
exatamente como no dia do seu funeral. Foi-se, mas cou nas ruínas da sua casa.
Depois de ver os desenhos da nora, Valinka juntava-os numa pilha e punha-os
em cima do peitoril. Levantava o baldaquim do berço, escutava a respiração de
Kirakos adormecido. Ei-lo, o último menino de Maran. Não há outros nem
haverá. Os jovens foram-se embora, e os velhos vão morrer sem deixar sequer
recordações.
— Não faz mal, que assim seja — aceitava Valinka, sem protestar, a realidade
amarga. — Pelos vistos, foi assim destinado e assim será.
Foi por puro acaso que se lembrou do quadro guardado no sótão. Estava a
explicar à nora como se estendia corretamente na corda a roupa lavada — de
acordo com o tipo e a cor.
— Vejam só quantas regras — ria-se Nastássia, endireitando a borda de um
lençol.
— O que é que tu achas? Era pela maneira de a mulher estender a roupa que
as pessoas julgavam se era ou não boa dona da casa. Acredita, até os homens
conheciam essas minúcias. Até a minha sogra, que descanse em paz, as
conhecia, embora tivesse sangue principesco, não sabia preparar o chá, mas
sabia como se estende corretamente a roupa!
— A sua sogra era princesa? — surpreendeu-se Nastássia. — A bisavó do
Tigran?
— Ele não te contou? É porque não achou importante. É por isso que a sua
família se chama Melikants… — Então, Valinka interrompeu-se, pestanejou,
depois deu a si própria uma palmada na testa. — Como é que fui esquecer-me
disso?! Vamos, Stássia-djan, vou mostrar-te uma coisa. És desenhadora, será
interessante para ti.
E, deixando de estender a roupa, entrou rapidamente em casa, limpando as
mãos ao avental e descompondo-se por ser uma esquecida.
A escada para o sótão situava-se numa grande sala de canto, no segundo piso,
onde Valinka guardava cobertores de lã, colchões e almofadas duras, recheadas
de penugem de ganso. Desde a chegada dos convidados, a porta desta sala
mantinha-se fechada à chave — por receio de que Alice se lembrasse de subir a
escada insegura para o sótão, com os degraus velhos que respondiam a cada
passo com um rangido descontente, deixando cair lascas e concavando-se — a
madeira, nalguns lados, estava podre e ameaçava ceder.
— É preciso pedir ao Tigran que a reforce — disse Nastássia, examinando
com descon ança cada degrau. Nastássia ia atrás de Valinka, pondo o pé no
mesmo sítio que esta, sustendo a respiração e apoiando-se à parede — tinha
medo de tocar no corrimão inseguro.
Valinka arrastava os pés, gemendo:
— Estou velha, doem-me os joelhos, preciso de fazer à noite emplastros de
batata.
— Isso ajuda?
— Ajuda um bocado. Rala-se a batata crua, acrescenta-se uma colher de sal
grosso, põe-se tudo em cima dos joelhos, enrola-se com um lenço e põe-se
debaixo deles um mutaka. — Valinka empurrou a porta do sótão, esta abriu-se
com um rangido, soprou na cara das mulheres com o cheiro triste das coisas
abandonadas. — Há muito que não arrumo aqui, lha, faltam-me as forças.
Cuidado, não te sujes.
Nastássia olhou através da porta e soltou um «ah!»: o sótão espaçoso, mas
completamente atulhado de coisas passadas de prazo, pareceu-lhe um lugar
onde o tempo não só parou, mas cou esquecido e confuso. Tudo em volta
estava repleto de velhos baús cobertos de camadas de pó e teias de aranha, de
caldeiras e caldeirões, de karás de barro vazios, de móveis estragados — um
guarda-vestidos, bancos, uma cadeira partida. Em primeiro plano, virado para
ela com a sua asa torta, estava um cântaro de cobre, alto, de pescoço comprido,
coberto de manchas de óxido azul-turquesa. Nastássia não se conteve, passou
sorrateiramente a mão pelo seu anco poeirento, tentou abrir a tampa, mas em
vão, não se mexia.
— Faz-se assim — Valinka inclinou-se, premiu com um dedo um botão
invisível, e a tampa saltou com um estalido para o lado, abrindo o gargalo
estreito do cântaro. — Sabes quem o fabricou? Foi o tio do Vassíli. Kudamants
Arussiak tinha bons lhos, com mãos de ouro. O pai do Vassíli era um
excelente ferreiro, e o tio era caldeireiro. Em tempos, todas as mulheres de
Maran iam buscar água da nascente com estes cântaro. Os cântaro tinham uma
característica importante: zesse o calor que zesse, a água mantinha-se fria lá
dentro.
Valinka virou o cântaro, mostrou o fundo esburacado.
— Há muito que tem buracos, mas não há ninguém para o consertar. E tenho
pena de o deitar fora.
— Claro, como se pode deitar fora esta beleza?
— Na verdade, não é por causa da beleza que o guardo — objetou Valinka
—, mas em memória das pessoas que conheci. Vês estes karás? Foram feitos
pelo avô do Belkhvants Mariam, nora daquela velha com quem mandei para o
outro mundo as botas do Vanó. Este baú — e Valinka deu palmadas na tampa
pesada — foi fabricado pelo carpinteiro Minas. Era um bom velho, de alta
moral. Morreu durante a guerra, passados dois dias chegou a notícia da morte
do seu lho na frente de combate. Deus teve pena dele, levou-o antes.
Valinka espreitou para trás de um grande baú de madeira, apalpou, sentiu
com a mão o canto da moldura.
— Stássia-djan, ajuda-me, não consigo tirá-lo sozinha.
Nastássia agarrou-se a outro canto da moldura e tirou com cuidado um
quadro pesadíssimo e monstruosamente sujo. Valinka encontrou no baú uns
trapos, deu-os à nora — limpa tu, lha, tenho medo de o estragar. Nastássia
pôs-se a limpar a camada densa de sujidade, mas o resultado foi fraco: a tela
cobrira-se de tanta sujidade que era impossível perceber o que nela estava
pintado.
— Foi a minha sogra que o escondeu aqui. — Valinka abriu de par em par a
única janela do sótão, teve um ataque violento de tosse. Recuperou o fôlego a
grande custo, limpou as lágrimas com as costas da mão. — O pó sempre me fez
tossir, toda a vida.
Nastássia preocupou-se.
— Vá para baixo, já vou descer também. Só quero levar o quadro para o
anexo, a ver se consigo… — Tentou encontrar a tradução para a língua de
Maran da palavra «restaurar», mas logo desistiu —, se consigo consertá-lo.
Valinka assentiu.
— Como queiras, lha. Então, vou acabar de estender a roupa.
— Há quantos anos está aqui? — perguntou Nastássia.
Valinka parou à porta do sótão.
— Acho que há um século inteiro. Na verdade, eu e o Vanó não o vimos uma
única vez. Enquanto a minha sogra foi viva, não deixava ninguém aproximar-se
dele, e quando morreu, esquecemo-nos do quadro por completo. Nem percebo
como é que me lembrei hoje dele!
A moldura caía, reduzida a pó. Foi preciso separá-la do quadro, o que foi fácil,
uma vez que as tachas que prendiam a tela estavam enferrujadas e se partiam
com a pressão do dedo. Deixando os pedaços podres atrás do baú, Nastássia
levou a tela para baixo e colocou-a de maneira que o sol incidisse nela. À forte
luz do dia, uma silhueta humana transpareceu na tela. Na parte inferior do
quadro, havia uma mancha baça e esbranquiçada.
Ouviu a vozinha de Kiriucha, apressou-se a descer, foi ao lavatório, lavou as
mãos, mudou rapidamente de roupa, foi ter com o lho — a sogra estava a
mudar-lhe o macacão molhado. Ao ver a mãe, balbuciou alegremente, estendeu
as mãos. Deu-lhe de mamar — tinha tanto leite que era difícil a deglutição para
a criança, era preciso tirar-lhe o mamilo da boca para ele recuperar o fôlego.
Nastássia pensou de repente que noutras circunstâncias e noutro lugar teria
considerado milagre o reaparecimento do leite. Ora, em Maran, viu este facto
como coisa natural. «Pelos vistos, tinha de ser, porque foi destinado
precisamente assim», repetiu mentalmente o refrão preferido dos velhos e
sorriu. Quanto mais simples as palavras, mais signi cativas elas são.
Tigran e Alice voltaram — vamos almoçar e depois vamos outra vez embora,
comunicou a lha, irrompendo no quarto, toda alegre, beijou o irmão na
bochecha redonda, depois deu um beijo à mãe — mamã, há lá uma avó
(esqueci-me do nome dela) que está a ensinar-me a fazer malha, já z duas
carreiras, imagina!
Enquanto Alice estava distraída na conversa com a mãe, Valinka mandou
Tigran para cima, para ver o quadro, e começou a pôr a mesa do almoço: encheu
os pratos com okrochka45 na base de matsun, pôs na mesa carne de galinha
cozida, brinza, tomates em salmoura ligeira com aroma a erva-doce, verduras,
pepinos frescos e rabanetes. Tigran voltou com um ar perplexo — como
Nastássia, também soube pela primeira vez da existência do quadro.
— Como é que tu e o avô nunca se lembraram dele? — perguntou.
— Eu própria não percebo! — disse Valinka com tristeza.
— Sei mais ou menos como se limpam as pinturas — disse Nastássia. — Vou
tentar. Vai levar muito tempo, mas acho que consigo antes da nossa partida. A
única coisa de que preciso é óleo vegetal. Arranja-se?
— Arranjamos.
Depois do almoço, Tigran e Alice voltaram à casa do velho Anés, ele para
cortar a lenha, ela para aprender com a mulher meio cega do velho a tricotar
uma meia de lã, Valinka começou a preparar a massa para um bolo com cebola e
ovos, e Nastássia, depois de pedir a Valinka óleo vegetal e um trapo macio, foi
limpar o quadro. Começou o trabalho com grande receio, tinha medo de que as
condições de conservação inconvenientes e a camada densa de sujidade tivessem
estragado irrecuperavelmente a tela; contudo, sob a película de pó, de teias e de
manchas escuras deixadas pela invasão de moscas, descobriu-se a tinta de óleo
bastante descolorida, mas razoavelmente conservada. Em três horas de trabalho
aplicado, Nastássia conseguiu limpar um pequeno fragmento da tela — uma
margem do brasão, ou do escudo com riscas azuis e brancas, e um bocado da
parede de pedra. Transcorrida uma semana, transpareceu na tela um jovem
cruzado — testa alta, olhos fundos, nariz direito, barbicha curta e espessa.
Envergava uma couraça leve e exível, com uma capa pesada por cima, de
veludo rubro e dourado, a gola da camisa estava apertada com uma corrente, e
cada elo desta era adornado com um enfeite so sticado, impossível,
infelizmente, de observar em pormenor.
Nastássia deixou a mancha esbranquiçada para o m do trabalho. Começando
a limpá-la, pensou que era, o mais provável, o bolor que deteriorara
irremediavelmente esta parte da tela. Contudo, conforme a restauração
avançava, a sujidade secular e dura, cedendo aos toques cuidadosos do trapinho
com óleo, abria pouco a pouco uma imagem, à vista da qual Valinka, ao entrar
na sala com o pequeno Kirakos ao colo, empalideceu, levou a mão ao coração e
parou, incapaz de se mexer. Nastássia teve medo de que a sogra deixasse cair a
criança, mas a velha acalmou-a — está tudo bem, lha —, entregou-lhe o bebé
e, em passo miúdo, aproximou-se do quadro, com muitos «ah!» e abanando
tristemente a cabeça, e depois desatou a chorar, mas de visível alívio, como se
tivesse obtido a resposta a uma pergunta que a tinha atormentado toda a vida.
Aos pés do cruzado, esticando para cima a cabeça elegante ornada de uma coroa
luxuosa, estava um grande pavão real, branco de neve, e olhava para ela com uns
maravilhosos olhos transparentes, cor de bago de romã.
Post Scriptum. Obviamente, Valinka recusou-se a abandonar a aldeia.
45 Okrochka — a palavra é russa, signi ca uma sopa fria com legumes cozidos e frescos, ervas etc., na
base de kvass, ou de ke r, aqui na base de matsun. (NT)
TERCEIRA PARTE
PARA QUEM OUVIU
CAPÍTULO 1

Magtakhiné vinha ao anoitecer, quando as raras luzes se acendiam nas janelas e


a noite misericordiosa de setembro estendia a sua concha estelar por cima da
aldeia. Magtakhiné cava no terraço, de mãos juntas no peito, e olhava para o
pátio. Vassíli já se habituara às visitas da falecida mulher. Quando pela primeira
vez distinguiu a sua silhueta transparente no pano de fundo do céu escurecido,
Vassíli, apesar da situação irreal, não sentiu medo, e sim um sentimento de
embaraço e impotência. Naquele momento, Anatólia já se deitara: como se
sentia adoentada, passava todo o tempo livre dos afazeres de casa ou na
otomana, fazendo trabalhos manuais não cansativos, ou na cama. Vassíli cuidava
dela abnegadamente: preparava-lhe o chá, agasalhava-lhe os pés sempre gelados
com a manta e não se esquecia de lhe servir a tempo a infusão de ervas que era
preciso tomar três vezes ao dia, rigorosamente, antes das refeições. Quando
precisava de ir para a forja, avisava sempre Iassaman e Ovanés, para que não a
deixassem sem vigilância. A atenção de Vassíli comovia Anatólia até ao fundo
da alma. Não estava habituada a atenções e ao carinho, por isso tentava, na
medida do que a saúde lhe permitia, responder-lhe com o mesmo: preparava os
pratos preferidos dele, punha em ordem todo o seu pobre vestuário — virou do
avesso o seu velho casaco, remendou-lhe e cerziu-lhe várias peças de roupa,
tricotou-lhe vários pares de meias de lã, costurou-lhe duas camisas do tecido de
algodão que tinha guardado para si própria. À noite, ensinava-lhe a ler e
escrever — Vassíli, muito aplicado, com a ponta da língua de fora, rabiscava as
letras, segurando a custo o lápis nos seus dedos desajeitados, deformados pelo
duro trabalho de ferreiro. Depois, carregando o sobrolho e atrapalhando-se, lia,
pronunciando as sílabas com a mesma aplicação. Deixando-o descansar dos
estudos, Anatólia lia-lhe os livros que trouxera da biblioteca no primeiro
inverno frio, salvando-os com isso do perecimento. Anatólia sabia de cor o
conteúdo destes livros, mas vendo o interesse sincero de Vassíli pelo texto
literário, lia-lhos em voz alta com o mesmo prazer de quem pega neles pela
primeira vez. Adormeciam abraçados. Anatólia sorria, ciente de que a felicidade
humana podia ter muitas caras e que também era misericordiosa em todas as
suas manifestações. Embaraçava-se e corava ao recordar a primeira noite
desajeitada de amor, uma semana após a mudança de Vassíli para a casa dela.
Posso abraçar-te? — perguntou ele, esticando-se timidamente até ela. Anatólia
cou tão surpreendida com a pergunta — o ex-marido tomava-a sem pedir
licença, quase sempre contra a vontade dela, exaltando-se com o seu silêncio
desesperado e as suas lágrimas impotentes —, por isso este pedido carinhoso,
dito num sussurro pudico e tornando a recusa impossível, foi uma revelação tão
grande na sua vida que ela própria se estendeu até ele e o abraçou, cheia de
vergonha pelo seu impulso. Vassíli, apesar do seu aspeto físico rude e o feitio
um pouco grosseiro, mostrou-se incrivelmente atencioso na cama, recebia a
ternura dela com gratidão e era com ela tão cuidadoso e carinhoso que Anatólia,
pela primeira vez, sentiu o lado íntimo da vida como uma felicidade, e não
como um martírio humilhante. É claro que, com a idade deles, os seus
sentimentos não tinham aquele ardor e paixão que enevoa a consciência, além
de que os seus corpos já não podiam fazer amor com a frequência própria da
juventude, mas cada um deles aceitava o inevitável com compreensão e cava
in nitamente grato aos céus pela possibilidade bendita de partilhar o outono da
vida com a pessoa verdadeiramente querida. «Se me dissessem que eu devia
voltar a sofrer tudo o que sofri com o meu ex-marido só para car depois
contigo, aceitá-lo-ia», confessou uma vez Anatólia a Vassíli. Este cou
profundamente comovido, mas embaraçou-se de tal modo que não encontrou
resposta. A seguir, passou um dia inteiro na forja e, à noite, trouxe para casa
uma rosa toscamente forjada — foi a primeira or que fabricou nos seus muitos
anos de trabalho como ferreiro. «Não sei, como tu, dizer as coisas em palavras»,
confessou e começou a titubear sem saber como completar corretamente a sua
ideia. «Por isso resolveste forjar os teus sentimentos em ferro?», ajudou-o
Anatólia. «Sim», respondeu ele.
No dia em que a falecida mulher apareceu a Vassíli pela primeira vez,
Anatólia deitou-se mais cedo, extenuada pela tempestade. Desde manhã que o
tempo estava abafado e viscoso, tornava muito difícil a respiração. O verão
estava no m, o mês de agosto despedia-se com birras e histeria, tornava-se um
forno ao meio-dia e, mais perto da noite, desencadeava tempestades de força
monstruosa, rasgando o ar com as lanças dos ajdaak46 celestes, derramava sobre
a terra torrentes quentes de chuva, mas essa chuva não trazia o alívio almejado.
Vassíli espreitou para o quarto, veri cou se Anatólia já dormia — além dos
ataques de fraqueza, tinha ultimamente problemas nas pernas, queixava-se de
dores nas articulações e de inchaços, pelo que dormia com uma manta dobrada
em quatro debaixo dos joelhos. Lamentava ter engordado, toda a vida fora
magricela, mas agora cresceram-lhe as ancas e a barriga, não tardaria a car
redonda como uma bola de queijo, brincava ela, não faz mal, vou amar-te
também gorda, sorria forçadamente Vassíli. O estado de saúde de Anatólia não
cessava de piorar, cava claro que a viagem para a consulta dos médicos do vale
se tornava imprescindível, mas Anatólia resistia e desfazia-se em pranto sempre
que alguém falava disso. Vassíli deixou a porta do quarto entreaberta para a
ouvir no caso de ela chamar, e foi à cozinha preparar chá com hortelã. A porta
de entrada, por qualquer razão, estava escancarada, foi fechá-la e nisso, de
repente, viu Magtakhiné. Estava parada, apertando a barriga contra o corrimão
do terraço, sem lenço na cabeça e, estranhamente, com o cabelo curto; e, com as
mãos cruzadas no peito, olhava para o canto do pátio onde se encontrava a
casota do Patró. Apesar de ter emagrecido muito e cado um palmo mais baixa,
Vassíli reconheceu-a de imediato pela silhueta — uma vez, ainda na juventude,
ela virou-se de modo desastrado, emaranhou o pé na franja da passadeira,
tropeçou e tombou com toda a sua grande estatura, magoando o ombro. Desde
então, doía-lhe muitas vezes, sobretudo nas mudanças de tempo, e Magtakhiné,
por instinto, erguia-o, mantendo as mãos juntas no peito, temendo bater
nalguma coisa com o cotovelo, agravando a dor. Vassíli quis aproximar-se dela,
mas Magtakhiné virou para ele o rosto inesperadamente jovem, sem uma única
ruga, e abanou a cabeça com agastamento. O sopro do vento fechou a porta e,
quando Vassíli voltou a abri-la, o terraço estava vazio.
Desde então, Magtakhiné aparecia-lhe quase todos os dias, sempre à noite,
esperando pela hora em que Anatólia adormecia. Vassíli adivinhava
infalivelmente a sua chegada, espreitava para o terraço e lá estava ela com as
mãos no peito a olhar para o pátio. Ele desistiu das tentativas de ir ter com ela,
mas sabia que ela não vinha porque sim, que queria dizer-lhe alguma coisa, mas
que, para já, o adiava, sabia-se lá porquê. As visitas da defunta mulher não
assustavam Vassíli, Magtakhiné, apesar do seu caráter, que piorou muito com a
idade, era uma mulher bondosa e sem rancores, cuidava com abnegação dos pais
e, embora os censurasse por gostarem pouco dela, fazia-o mais por hábito do
que por ressentimento. Ela e Vassíli casaram-se um ano após a época da fome, e
ela aceitou e amou Akop de nove anos como se fora seu lho. E também mais
tarde, quando já tinham três lhos, tratava os meninos de modo igual, dava a
Akop muita ternura e não se afastava dele quando o rapaz tinha aqueles acessos
inexplicáveis de febre. Vassíli carregava o sobrolho e suspirava gravemente,
recordando os sofrimentos do irmãozinho. O primeiro ataque aconteceu
passados alguns meses após a morte da mãe: Vassíli chamou o irmão para jantar
e não ouviu a resposta dele, foi procurá-lo pela casa e encontrou-o no chão da
sala de estar. Akop tinha uma febre tão alta que Vassíli, quando lhe tocou na
testa, retirou bruscamente a mão, assustado. Vassíli despiu a criança, esfregou-
lhe o corpo com vodca caseira, deitou-o na cama e foi buscar Iassaman. Quando
esta chegou, Akop estava de novo no chão, esticando o corpo quente nas tábuas
frescas, e delirava. Enquanto Iassaman tentava dar-lhe a beber infusões, ele
resistia e gemia, e depois, deitado na cama debaixo de dois cobertores para suar,
chorava e pedia que tirassem de baixo da almofada a espada que lá deixara o
maldoso dev Aslan-Balassar. Era preciso levantar a almofada, mostrar-lhe que
não havia lá espada nenhuma, mas Akop não se aquietava, rebolava para outro
lado da cama, estendia a mão para a janela — olhem, ele está à espera para vir e
nos matar com a espada. Vassíli levou-o para outro quarto, mais longe da
malfadada janela, mas sem resultado — Akop chorava desesperadamente e
implorava que tirassem dali a espada, ou não haveria salvação para ninguém. A
febre manteve-se toda a noite, cedeu apenas ao amanhecer e, ao meio-dia, o
rapaz acordou incrivelmente saudável, apenas fraco, e não se lembrava de nada
além de que perdera os sentidos por causa do pavor que lhe regelava a alma:
sentira às suas costas a presença de alguém pavoroso e caíra. Depois, os ataques
repetiam-se todos os meses, por vezes com mais frequência ainda, demorando
Akop vários dias a recuperar, com medo da escuridão e tentando nunca car
sozinho. Vassíli fez tudo para o ajudar: levou-o várias vezes ao vale, para
tratamento, levava-o aos interpretadores de sonhos e aos curandeiros, convidou
o sacerdote. Infelizmente, todos os esforços foram em vão: os médicos não
encontraram problemas de saúde no rapaz, as palavras mágicas dos curandeiros
não surtiam efeito, os interpretadores de sonhos, por mais que perscrutassem as
suas bolas de cristal, não conseguiam ver nada; e quanto ao sacerdote, o jovem
ter Azária, chamado lá a casa e cuja chegada coincidiu com mais um ataque de
Akop, depois de rezar ao lado dele durante várias e duríssimas horas noturnas,
não aguentou a tensão e desatou num choro impotente, apertando a sua testa à
mão quente do rapaz.
A única pessoa que conseguiu adivinhar a causa dos ataques extenuantes de
Akop foi Magtakhiné. Ao contrário de Vassíli, que evitava falar com o irmão
sobre a sua doença para não o obrigar a reviver tudo de novo, ela incitava o
rapaz, meiga mas persistentemente, para esta conversa, compunha um quadro
geral, embora privado de sentido por enquanto, a partir de grãozinhos e de
pequenos fragmentos de recordações. Com o tempo, aprendeu a prever os
ataques, apesar de não saber explicar ao marido como o conseguia, descobrindo
a sua aproximação apenas por intuição, apoiando-se nas suas sensações. Nesses
dias, Akop cava em casa, sob a vigilância dela, enquanto Vassíli, sem ajuda do
irmão, se via obrigado a passar na forja quase vinte e quatro horas por dia,
porque o trabalho era muito. No entanto, por mais que Magtakhiné se
esforçasse por manter Akop no campo da sua visão, não conseguia apanhar o
início do ataque, o que a desconcertava e enraivecia muito, uma vez que tinha a
certeza, por qualquer razão inexplicável, que o segredo da doença residia
precisamente naqueles poucos segundos que antecediam o seu desmaio. Vassíli
via nesta certeza da mulher uma fantasia, por vezes até troçava dela, mas no
fundo da alma alimentava a esperança de que Magtakhiné conseguisse descobrir
a causa da estranha doença do irmão.
Então, dois longos anos depois, quando já todos estavam desesperados e
desiludidos, Magtakhiné conseguiu descobrir a causa. Nesse dia, cando em
casa por insistência dela, Akop estava a empilhar a lenha cortada. No terraço, o
seu sobrinhito Karapet, primogénito de Vassíli e Madtakhiné, estava a dormir
no berço, embrulhado num cobertor quente. Magtakhiné, ao ver que a criança
adormecera, desceu ao pátio para estar mais perto de Akop e, mal desceu o
último degrau, Akop, sem se virar para o terraço, murmurou em apressado
sussurro: a criança vai cair. Magtakhiné virou-se, assustada, e — ah! Tendo-se
desembrulhado do cobertor de qualquer maneira misteriosa, o pequeno
assomou-se do berço e debruçou-se sobre a sua borda baixa. Magtakhiné subiu a
escada em três saltos, agarrou o lho, apertou-o ao peito, e o coração batia-lhe
com tanta força que mais parecia não estar dentro da caixa torácica, mas fora.
Depois de acalmar um pouco o coração, foi até à beira do terraço e viu o que já
esperava ver: no meio do pátio, em cima do montão de lenha cortada, um Akop
de cara lívida estava prostrado e gemia, atacado por uma febre que lhe
queimava as entranhas.
— Se calhar adoeces precisamente porque sabes prever as coisas. — supôs com
cuidado Magtakhiné no dia seguinte.
Akop, não se lembrando de nada além do medo que lhe gelava a alma, fechou
ao de leve os olhos.
— Que sentido isso faz se me esqueço de tudo logo a seguir? — sussurrou.
— Não sei.
Passado algum tempo, Bekhlvants Mariam, que viera pedir um pouco de
farinha de milho, foi testemunha do seu ataque. Magtakhiné estava a dar banho
ao bebé, e Akop esperava ao lado com uma toalha nas mãos. De repente, o
rapazinho recuou um passo, apalpou a parede, encostou-se, revirou os olhos,
deslizou lentamente ao chão e, um segundo antes de desmaiar, pronunciou entre
os dentes cerrados: ustá47 Samó. Magtakhiné pôs nos braços de Mariam o lho
molhado e precipitou-se para junto de Akop.
— Não faças perguntas — disse de passagem, virando a cabeça sobre o ombro
—, muda a roupa do bebé e corre depois a casa da Serbuí, avisa-a de que
aconteceu uma desgraça ao pai dela.
Encontraram o ustá Samó, o pastor, na orla do carvalhal. O velho estava
deitado, rodeado do rebanho el e silencioso, e chorava com dores como uma
criança: dera um passo em falso, caiu mal e partiu o tornozelo.
A notícia de que o irmão mais novo de Vassíli previa as desgraças propagou-se
rapidamente pela aldeia. As pessoas começaram a vir à casa de Vassíli para
saberem o seu futuro, mas Akop abria os braços: ver, vê, mas não se lembra de
nada. Os habitantes de Maran ouviam as suas explicações incoerentes com
descon ança, ofendiam-se, acusavam o rapaz de insensibilidade e de falta de
vontade de ajudar. A velha Parandzém, cujas aves domésticas, todas, tinham
morrido de uma qualquer doença desconhecida, foi ainda mais longe. Chegou à
conclusão, sabia-se lá porquê, de que a causa das desgraças eram os ataques que
Akop sofria e fez correr o boato de que o rapaz não pressentia os males, mas,
pelo contrário, os provocava. Ninguém gostava da velha, pelo seu feitio
maldoso e pela sua má-língua abominável, mas, mesmo assim, houve quem
acabasse por acreditar nos mexericos de Parandzém e começasse a tratar Akop
como um leproso. Escondiam dele os lhos, não entravam na forja quando ele se
encontrava lá e, se se cruzassem com ele na rua, passavam para o outro lado do
caminho, benzendo-se com medo e desviando os olhos.
Embora Akop enfrentasse tudo isso com um sangue-frio nada próprio da sua
idade jovem e até o aceitasse com alegria — que pensem o que quiserem, o
principal é não o importunarem —, semelhante atitude ofendia e feria Vassíli.
Por várias vezes, tentou esclarecer os conterrâneos, altercou com eles,
argumentou com ardor, chegou mesmo a armar uma zaragata, mas o efeito foi o
contrário: os aldeões, doravante, passaram a evitá-lo também a ele. De resto, o
trabalho na forja não diminuía por causa disso — medo é medo, mas havia
poucos mestres capazes de, como ele, fazer uma enxada de qualidade, que
durasse tanto e sem se estragar mesmo a bater e a partir constantemente as
pedras (e no cume do Manich-Kar era tanta a pedra como a terra). Por isso, os
aldeões continuavam a ir à forja, e Vassíli, apesar da ofensa, aceitava as
encomendas em silêncio e cumpria o seu trabalho com aplicação e, muitas
vezes, a ado e nunca recusando o pagamento a prestações a quem não pudesse
pagar logo na totalidade.
A tensão entre a aldeia e a família de Vassíli poderia durar ainda muitos anos,
acabando por transformar o ferreiro e o seu irmão em proscritos, se não fosse um
acontecimento ocorrido na mesma primavera, virando do avesso a atitude de
Maran para com Akop. Na altura, os ataques frequentes do rapaz tornaram-se
tão extenuantes, que cada novo dava a ideia de que poderia ser o último. Era
seguido constantemente por Iassaman, que lutava pela saúde do jovem na
medida das suas possibilidades. O extrato especial de várias ervas que elaborou
para Akop devia ajudá-lo a suportar os ataques mais graves. O rapaz cumpria
com aplicação todas as suas prescrições: tomava infusões amargas, dormia com a
janela aberta em quaisquer condições do tempo, fazia abluções com água fria,
respirava pelo sistema que ela lhe ensinara — quinze inspirações e expirações de
manhã, logo ao acordar, e as mesmas antes de adormecer. O tratamento ajudava,
sem dúvida, porque em todos esses anos Akop não só não teve qualquer doença
séria, mas também nem sequer uma constipação banal; e a epidemia de varicela
que se abateu sobre a aldeia e da qual ninguém escapou, mesmo os velhos,
passou-lhe ao lado, como se não reparasse nele. Os tratamentos de Iassaman,
funcionando para umas coisas, eram, contudo, incapazes de vencer os ataques de
Akop. Dolorosos e graves, tornaram-se nalmente tão insuportáveis que Akop,
apanhado desprevenido, perdia a consciência de imediato, sem ter tempo não só
de avisar sobre a desgraça que vira, mas também de ter a perceção do que lhe
acontecia.
Perdendo a esperança de aliviar o estado do irmão, Vassíli empreendeu mais
uma viagem ao vale. Mas esta visita aos médicos também não deu em nada.
Pior ainda: quando não descobriram quaisquer distúrbios no organismo do
jovem, não inventaram nada melhor do que sugerirem interná-lo na clínica para
doentes mentais. Um Vassíli furioso levou Akop dali e tomou a rme decisão de
nunca mais voltar ao vale.
— Se o destino dele for morrer do ataque, mais vale que isso aconteça nas
minhas mãos do que lá no meio dos malucos — declarou.
Akop angustiava-se mais por Vassíli do que por si próprio, por isso nunca se
queixava. Fazia tudo para não desanimar — ao recuperar depois de mais um
ataque da doença, ajudava na forja —, trabalhava agilmente e com entusiasmo,
sem exigir facilidades para ele, ofendia-se muito quando Vassíli lhe propunha
que descansasse ou quando deixava o trabalho mais duro para si próprio. Akop
estava in nitamente grato a Magtakhiné pelos cuidados, gostava dela como de
uma irmã, era atencioso e carinhoso com os pais dela — os velhos,
preocupando-se dolorosamente pela saúde instável da sua lha mais nova,
Chuchanik, enfraqueceram muito: Petros cou paralisado da perna esquerda, e a
esposa, a quem a insónia levou ao extremo da anemia, foi atingida pela maleita
nervosa a que o povo chama jimajanka, doença do crepúsculo48. Akop ajudava
com muito a nco nos afazeres da casa — arrumava, lavava a roupa, cozinhava,
brincava com os seus sobrinhos adorados, o mais velho dos quais tinha sete
anos, o segundo cinco e, o terceiro, três aninhos. Os miúdos já sabiam tudo
sobre a doença do tio e andavam pela casa em bicos de pés, deixando-o dormir
em sossego depois de cada ataque grave. O coração de Vassíli sangrava quando
olhava para os lhos, o irmão, para a sua desgraçada Magtakhiné, que não tinha
mãos a medir, cuidando dos pais e da família; quando chegava mais um janeiro,
Vassíli suspirava de alívio com a esperança de que o novo ano fosse mais
misericordioso e feliz do que o velho; mas, chegados a dezembro, Vassíli via
com amargura que a vida não tencionava tornar-se mais fácil, antes trazia mais e
mais provações.
Ao caso que mudou a atitude dos habitantes de Maran para com Akop viriam
a chamar depois «o dia em que o neto mais novo de Kudamants Arussiak nos
salvou da morte». No lado abrupto do Manich-Kar, oposto àquele que ruíra
durante o terramoto, havia uma larga e funda calvície — todos os anos, depois
de as neves derreterem, um uxo de lama descia, esmagando os arbustos de
ameixa-brava que lá cresciam teimosamente. As pessoas estavam há muito
habituadas ao estrondo da avalancha vertiginosa que se despenhava no abismo,
sempre pelo mesmo trajeto batido, deixando atrás de si uma cicatriz rota,
molhada, parda, com cheiro a terra húmida. A aldeia era protegida do deslize da
lama por um enorme dente vulcânico, um colmilho que se espetava um pouco
acima das últimas casas — de cada vez, a avalancha de lama tropeçava contra o
seu inquebrável corpo, desviava-se para a direita e ia-se embora sem causar
danos a Maran. As pessoas, acreditando religiosamente que o dente de pedra era
inabalável porque resistiu mesmo durante o famoso terramoto, eram
indiferentes e despreocupadas em relação ao deslize da lama — não faz sentido
ter medo do que nunca nos vai atingir!
Foi Akop quem teve um dia a visão de que o dente não caria de pé. Foi a
única vez em que, voltando a si depois do ataque, recordou em pormenor o
quadro que vira: a avalancha gelada e mortífera, precipitando-se para baixo,
fraturava em pedaços pequenos a rocha salvadora e, devorando com voracidade
monstruosa toda a aldeia, casa após casa, arrastava-a para o abismo e não deixava
ninguém vivo.
Como nunca antes conseguira relembrar o vaticínio, Akop não lhe deu
importância, achando que era uma ilusão da memória. Contudo, no dia
seguinte, cheio de uma vaga preocupação, foi ver o declive oriental, apenas para
se convencer de que estava lá tudo em ordem. Para o contornar pelo perímetro,
precisou de uma hora, a enorme rocha de asbesto erguia-se na extremidade da
aldeia, sólida e sem uma única rachadura, parecendo inquebrável. Acalmado,
Akop estendeu debaixo dela o arkhaluk, deitou-se ao sol para descansar um
pouco e começou a olhar para o céu. A terra estava fria, mas já se cobrira de
rebentos tenros de erva, as campainhas-brancas já haviam murchado, dando
lugar às violetas azul-pálidas dos montes, que já tinham aberto as suas folhas
tímidas, mas ainda não oriam. Quase não havia vento, tudo estava sereno, e
uma nuvem baixinha, diluindo à sua volta um silêncio leitoso e tocando o cume
do Manich-Kar com a sua aba de vestido de noiva, navegou-lhe lentamente por
cima da cabeça… Akop pôs as mãos debaixo da nuca, sorriu, inspirou a plenos
pulmões o ar leve com cheiro a neve derretida, fechou os olhos — e viu,
subitamente, no interior das pálpebras, duas crateras ocas. Estas giravam com
monstruosa velocidade, triturando, reduzindo a pó morto com as suas paletas
geladas a capela de pedra de Maran, e era possível distinguir a cruz na sua
cúpula que cintilava no buraco cego como uma ave caída numa cilada, tentando
escapar, abrindo no voo sem sentido as suas asas nas.
Akop emergiu do pesadelo gelado com a certeza absoluta de que, desta vez, o
dente vulcânico não ia resistir e que a única hipótese de salvar a aldeia era
construir uma barreira de pedra entre o dente e as casas da parte oriental. Não
havia necessidade em convencer o irmão do perigo que pairava sobre Maran —
Vassíli acreditava sem reservas em Akop. Mas como ia convencer disso todos os
outros homens, sobretudo aqueles que estavam contra ele, quando havia
pouquíssimo tempo e cada par de mãos era precioso para a construção da
barreira salvadora?
Sem pensar duas vezes, Akop foi a casa de Melikants Vanó, por quem os
habitantes de Maran nutriam um respeito especial, o que era natural, tendo em
conta que este homem zera tudo o que dele dependia para multiplicar o
rebanho de Noé e salvar com isso a aldeia da morte. Vanó ouviu-o sem o
interromper, não fez perguntas e não prometeu nada. Depois de se despedir de
Akop, foi à forja e falou com Vassíli. Na mesma noite, reuniu no seu pátio toda
a população masculina de Maran. Que palavras Vanó empregou para convencer
os homens, isso os irmãos Kudamants não sabiam, visto terem-se recusado
peremptoriamente a ir à tal reunião — Vassíli, porque nunca perdoou aos
conterrâneos a sua atitude preconceituosa e supersticiosa para com o irmão; e
Akop, porque não via nisso qualquer necessidade.
Os homens de Maran ergueram um muro protetor ao longo da extremidade
oriental da aldeia durante quase um mês. No início da Semana Florífera49, o
muro já cingia o dente de pedra do lado em que se situavam as três últimas
casas. Por insistência de Akop, o muro foi ainda reforçado com vigas sólidas e
sacos de terra. A avalancha desceu na véspera do Domingo de Ramos, no mais
terrível e silencioso momento da noite — o enbachti. Devido ao turbilhão de
neve que atingiu toda a aldeia, as pessoas não conseguiram ver nada e, de
manhã, encontraram apenas a parte inferior do muro protetor, uma vez que a
sua metade superior cedeu, ao aparar choque de força monstruosa, quebrou-se e
tombou no abismo, arrastando consigo as vigas e os sacos de terra. No lugar do
colmilho de pedra que, durante muitos séculos, protegera a aldeia, cou um
fosso grosseiro, como se alguém tivesse passado pelo declive do Manich-Kar
com um enorme arado, cortando-lhe o ombro vivo com a sua relha larga.
Akop aproximou-se do muro semidestruído, encostou-lhe a mão, escutou.
Virou-se para os conterrâneos:
— Temos um ano para o reconstruir. Ouço o estrondo de outras avalanchas,
serão menos fortes e não farão mal à aldeia. Mas é preciso reforçar o muro, para
o que der e vier.
Os homens afastaram-se em silêncio, deixando passar o seu salvador, alguém
lhe estendeu a mão:
— Desculpa.
Akop abanou a cabeça.
— Não é preciso pedir desculpa.
Furava através da multidão, magro e extenuado, com os olhos inquietos, cor
de cinza arrefecida, empalidecendo vertiginosamente. Vassíli, que não desviava
os olhos do irmão, sentiu de imediato o perigo, correu, afastando as pessoas às
cotoveladas e conseguiu agarrar Akop um segundo antes do seu desmaio. O
corpo do rapaz ardia numa febre descomunal, as pernas torciam-se-lhe em
convulsões, a cabeça caiu-lhe para trás, e um gemido rouco e arrastado
arrancou-se-lhe da garganta. Quem testemunhava pela primeira vez um dos
seus ataques atrapalhou-se e, com o susto, parou; mas logo o levantaram e
ajudaram a levá-lo para casa. Magtakhiné foi pôr os lhos em casa dos avós para
que não se assustassem com os gemidos do tio e, quando voltou, encontrou o
marido, extenuado pelas preocupações, ao lado da cama de Akop.
— Como posso ajudar-te, como? — repetia Vassíli, agarrando as mãos do
irmão, que se agitava em delírio. Magtakhiné abraçou o marido, apertou a
cabeça dele ao seu peito, Vassíli fez uma fraca tentativa para se libertar, mas
enfraqueceu e desfez-se num choro impotente. — Não posso mais, não vou
aguentar.
Ao contrário do habitual, na manhã seguinte o ataque não terminou, Akop
ora perdia a consciência, ora a recuperava, agitava-se na cama, a cabeça
rebentava-lhe com dores insuportáveis, os olhos ardiam-lhe como se lhe
espetassem duas varas em brasa nas pupilas. Às dez da manhã, quando o sol de
abril inundou a aldeia com a sua luz curativa e o ofício festivo começou na
capela, Vassíli saiu de casa com o irmão nos braços. Ao lado dele, Magtakhiné
indicava-lhe aonde tinha de ir. Passados muitos anos, quando ela,
completamente desfeita pelas desgraças, com o seu descontentamento e
queixumes sem m, iria transformar a vida do marido numa tortura contínua,
Vassíli nunca iria permitir-se qualquer objeção: aguentando até à última
possibilidade, levava depois a mulher ao quarto dos fundos, trancando a porta;
e, depois de veri car se estava uma escada de madeira debaixo da janela, ia para
a forja e lá cava, sem fazer nada, durante o resto do longo e inútil dia.
Magtakhiné queixava-se do seu destino amargo, da ingratidão dos pais, da dor
insuportável alojada na sua alma desde a morte dos lhos, mas nem uma vez
mencionava o nome de Akop, nem uma vez repreendia o marido pelos doze
anos de noites sem sono quando era preciso velar junto à cama do doente, e não
para ajudar — que ajuda é possível quando a doença é incurável? — mas
simplesmente para estar perto. Naquela manhã, Vassíli saiu ao terraço para
pedir à mulher que mudasse a roupa de cama encharcada em suor de Akop, ela
estava encostada ao corrimão e, apertando as mãos ao peito, olhava para o canto
do pátio onde, passados trinta anos, Vassíli colocaria a casota do cão;
Magtakhiné virou-se ao som dos seus passos e disse: sei por que razão ele sofre
tanto, é porque de cada vez luta com a morte, arrancando das suas garras a vida
de alguém, mas a morte não perdoa a ninguém, vinga-se dele com aqueles
ataques da doença. Vassíli não encontrou resposta, olhava para ela como se um
raio o tivesse atingido. Magtakhiné, depois de uma pausa, acrescentou: não te
preocupes, parece que percebi o que temos de fazer, agasalha-o com o cobertor e
tira-o de casa, vamos ao meidan. Vassíli fez o que ela pediu, saiu com Akop em
braços como naquela noite fria da época da fome quando levara o irmão de cinco
anos até à beira do abismo e soubera que todo o vale estava cheio de luzes azuis.
Magtakhiné caminhava em silêncio ao seu lado, apertando as mãos ao peito.
Maran parecia uma aldeia morta: as pessoas tinham ido para o ofício da festa, e
só os animais domésticos e as aves no céu eram testemunhas de como os dois
levavam para o meidan o jovem extenuado, moribundo. A praça, bem lavada
para o Domingo de Ramos, brilhava ao sol como os vidros limpos com que as
crianças apanham os raios de sol. Magtakhiné levou Vassíli para o centro do
meidan, pediu-lhe que tirasse o cobertor e pusesse Akop no chão — este acordou
e, sentindo a frescura, abriu os olhos. Magtakhiné ajoelhou-se ao lado dele,
afagou-lhe as faces e a testa: Akop-djan, diz que não queres mais, não quero
mais, sussurrou Akop, mal mexendo os lábios exangues, não o digas a mim,
mas a ela, zangou-se Magtakhiné, sabes bem quem te tortura, diz-lhe a ela que
não queres mais, grita uma vez só, mas que ela te oiça, Akop assentiu com um
aceno quase impercetível e fechou os olhos, inspirou fundo e expeliu um berro
terrível, insuportável, que lhe feriu a garganta. Um berro, transformado em mil
estilhaços de gelo que se lhe espetaram na alma, lha viraram do avesso, lha
imobilizaram e privaram de toda a vontade, lhe transmudou as entranhas
desamparadas para a banda do bafo gélido dos vórtices que giravam sob as suas
pálpebras e, numa explosão ofuscante, invadiu tudo, sem deixar a mínima
esperança de salvação. A alma de Akop pendeu, como um farrapo miserável, por
cima do abismo frio e depois despenhou-se para os seus gelos eternos, para as
suas in nitas trevas mortas. Mas no último instante, quando ruíram todas as
abóbadas celestes e se desmoronaram os últimos suportes, quando o tempo
gelou sob a exalação impassível dos vórtices, a alma esquivou-se e libertou-se
por um instante curto para expirar o ar, queimada: NÃO QUERO MAIS. Alma
aturdida, derrubada, arrastada para o abismo, atirada contra as margens cobertas
de cardos, aspirada pela escuridão fedorenta, atravessada por uma dor tão
monstruosa que se espalhou em gotas de mercúrio pelo espaço, pirogravando
labirintos de fogo no seu corpo sombrio. E de repente, mesmo à beira, quando
já não havia nada além da perdição irremediável, quando o sofrimento já diluíra
a fronteira entre a vida e a morte e desligou a última luz — caiu um silêncio
absoluto.
«Levanta-te!», alguém ordenou numa voz que não tolerava objeções.
E Akop abriu os olhos.

Desde o dia em que a Magtakhiné começou a aparecer a Vassíli, o estado de


Anatólia agravou-se cada vez mais: agora, além da fraqueza geral, martirizavam-
na náuseas insuportáveis, qualquer migalha que engolisse não lhe cava no
estômago, queria ser expelida. Se em agosto ela se queixava de ter engordado,
pelo mês de outubro já emagrecera tanto que era possível contar-lhe todas as
costelas, e uma noite Vassíli acordou porque ela, sem ter conseguido ir à retrete
— não se aguentava nas pernas —, estava sentada no chão e chorava,
lamentando o seu destino amargo. Vassíli ajudou-a a ir fazer as necessidades,
deitou-a na cama, ajeitou-lhe a almofada para car mais alta — assim, a náusea
diminuía. Pôs a chaleira ao lume e, enquanto a água aquecia, cou sentado ao
lado dela, acariciando-lhe a mão. Anatólia chorava, por vergonha da sua
fraqueza, por ser para ele um fardo pesado. Por várias vezes tentou pedir-lhe
desculpa, mas Vassíli interrompia-a — não me ofendas com essas palavras, não
as mereço. Preparou um chá forte com açúcar, deu-lho a beber do pires,
soprando no chá antes de cada gole para o arrefecer, Anatólia bebeu um terço da
chávena, não conseguia mais, caiu sobre a almofada, fechou os olhos. Vassíli
deitou-se ao lado dela, abraçou-a com cuidado, beijou-a na têmpora.
— Sou culpada para contigo — sussurrou Anatólia.
— Não comeces — interrompeu-a Vassíli.
— Deixa-me dizer — suplicou ela.
Vassíli ouviu em silêncio o relato sobre a hemorragia inesperada, de como
escondeu isso de Iassaman, de como foi pusilânime quando aceitou a proposta
dele para viverem juntos, de como, depois, não encontrou palavras para o
obrigar a mudar de ideias.
— Sabia que isto não ia acabar bem, mas não ousei dizer-te a verdade.
— Estás arrependida por estarmos juntos? — perguntou Vassíli.
— Não, nada disso! — Anatólia tapou a cara com as mãos. — Lamento ter-te
complicado a vida.
— Não foi a mim que a complicaste, mas a ti própria. Se falasses a tempo
sobre a hemorragia, a Iassaman saberia que tratamento te dar.
— Ela não me ia tratar. Pediria que a Satenik chamasse a ambulância. Mas eu
não queria ir para o vale. Queria morrer.
— Porquê?
— Porque estava cansada de viver.
— Agora também queres morrer? — perguntou Vassíli com um sorriso
amargo.
Anatólia chorou.
— Agora quero viver o mais possível.
Vassíli esperou até ela adormecer, levantou-se com cuidado, lançou pelos
ombros o arkhaluk, saiu para o terraço. Magtakhiné esperava-o junto ao
corrimão. Desta vez não estava de costas, mas de cara para ele e era tal qual a
vira no dia do casamento — jovem e bonita, de mintana argênteo-perolino e um
véu de rendas, orlando o delicado oval do rosto. Sorriu, mas não o deixou
aproximar-se — levantou a mão num gesto precautório.
— Porque é que vens? — perguntou Vassíli.
Magtakhiné não respondeu.
— Desde que começaste a aparecer, ela sente-se cada vez pior. Vens buscá-la?
Magtakhiné, ressentida, abanou a cabeça de maneira muito infantil.
— Peço-te, ajuda-a. Já que salvaste o Akop, podes salvá-la também.
Ao ouvir o nome de Akop, Magtakhiné cintilou, rutilante de faíscas douradas.
Um segundo depois desapareceu, dissolvendo-se no ar sem deixar rasto. Vassíli
acercou-se do lugar onde ela estivera, tocou no corrimão. Estava quentinho,
como se nele se tivesse encostado uma pessoa viva. Vassíli cou um pouco ali,
inspirando a plenos pulmões o ar picante do outono. A levante nascia a aurora,
dispersando a bruma noturna. Caía, ainda parco, o primeiro orvalho. Chegada a
manhã, haveria o segundo orvalho, abundante, com o cheiro a ervas e à terra
húmida. Na estrema da aldeia, erguia-se o muro de proteção — desde o dia em
que Akop renegara o seu dom e se libertara para sempre dos ataques da doença,
houve vinte e dois deslizes de terra do cume do Manich-Kar, mas todos
passaram ao lado, sem causar danos à aldeia.
De manhã cedo, Satenik mandou um telegrama para o vale. E, passadas duas
horas, depois do exame preliminar, mas minucioso, a ambulância, atroando com
a buzina por todas as redondezas, levou Anatólia para o hospital, deixando a
aldeia aturdida com a notícia inesperada. Aos cinquenta e oito anos, depois de
sobreviver quase meio século aos últimos familiares, tendo vivido a fome, o frio,
a traição e a guerra, mas conseguindo, a despeito das graves provações,
conservar o coração bondoso e a sensibilidade, a lha mais nova de Sevoiants
Kapiton e Agulissants Voske estava no quinto mês de gravidez.

46 Ajdahak — um dos vulcões na Arménia, o ponto mais alto das montanhas Gegham. (NT)
47 Ustá — tratamento respeitoso para senhor e mestre (tur.). (NT)
48 Uma forma grave de depressão. (NT)
49 Semana Florífera — semana que antecede o Domingo de Ramos. (NT)
CAPÍTULO 2

Depois da partida da ambulância, os velhos de Maran esperavam, de coração


desfalecido, as notícias do vale trazidas por Mukutch, que ia lá às compras, ou
pelo carteiro Mamikon, que, uma vez a cada duas semanas, com uma teimosia
de carneiro, superava o caminho longo pelo declive acima até à aldeia para
entregar na estação dos Correios a imprensa inútil e os folhetos de publicidade.
Havia, infelizmente, poucas notícias porque a entrada na enfermaria com
equipamento especial, onde Anatólia estava internada sob observação dos
médicos, estava vedada não só a estranhos, mas também a Vassíli. Apenas o
autorizavam a entregar, através da enfermeira, os seus bilhetinhos rabiscados em
letra de imprensa, aos quais Anatólia respondia com missivas longas,
tranquilizadoras e persuasivas de que era muito bem tratada, de que a comida
era saborosa, de que não a deixavam levantar-se por receio de perder o bebé —
fosse como fosse, a idade dela era avançada —, tudo vai correr bem, meu
amado, escrevia Anatólia, e Vassíli, lendo sílaba a sílaba as suas cartas, tropeçava
sempre nas palavras de carinho e repetia-as mentalmente: amado, amado. Vivia
numa pensão miserável, a três horas de caminho do hospital e, para pagar o
quarto barato e sem aquecimento, arranjou trabalho de varredor, contrataram-
no a contragosto, alegando a sua idade, mas acabaram por ser compreensivos.
Agora Vassíli dormia pouquíssimo porque varria as folhas outonais desde
manhã cedo nas ruelas periféricas da cidade, e depois, até à noite, quando no
hospital apagavam as luzes, cava debaixo das janelas da enfermaria de
Anatólia, protegendo o seu sossego. Podia, é claro, car em Maran e visitar o
vale com Nemetsants Mukutch, mas temia abandonar a cidade: o seu medo
supersticioso era o de que, sem ele por perto, podia acontecer alguma coisa
irremediável a Anatólia. Por mais estranho que pareça, não pensava na criança e
até não acreditava muito na sua existência, visto que a urgência com que
Anatólia foi internada e o rigoroso secretismo com que foi rodeada criaram nele
a ideia de que ela, muito provavelmente, tinha uma doença tão desconhecida
para a ciência como a de Akop, só que, se no caso de Akop conseguira levar a
melhor sobre os médicos, agora eles conseguiram o que queriam e privaram-no
da única pessoa que, para ele, era mais preciosa do que a vida. Vassíli não falava
a ninguém dos seus receios nem escrevia sobre eles nos bilhetes a Anatólia —
uma enfermeira, por azar, podia ler algum deles e mostrá-lo aos chefes, então
iam proibir-lhe para sempre a entrada no hospital. Já zera uma tentativa de a
tirar do cativeiro: foi falar com o médico-chefe do hospital e exigiu que dessem
imediatamente alta a Anatólia; o médico-chefe, espantado com esse ataque,
primeiro mostrou-lhe umas fotogra as quaisquer e uns papéis com rabiscos
incompreensíveis, depois tentou chamá-lo à razão, mas Vassíli não quis ouvi-lo,
exigiu que o deixassem ir à enfermaria e, perante a recusa, chamou ao médico
cachorro tinhoso. Foi agarrado pelos guardas, expulso para fora das instalações
do hospital e, agora, a única coisa que lhe permitiam era entregar os bilhetinhos
e car sentado debaixo das janelas da enfermaria.
Todas as semanas Mukutch lhe trazia comida que os velhos da aldeia lhe
arranjavam: pão, queijo, nozes, fruta seca, alguns legumes em salmoura,
manteiga fervida e pastelaria, sali e gatá50. Vassíli, in nitamente grato pela
ajuda, reservou do dinheiro poupado uma pequena importância, comprou numa
retrosaria oito conjuntos para bordado — tecido e linha de seda de várias cores
— e mandou-os para a aldeia: os homens podem passar sem prendas, mas quero
agradecer às mulheres, explicou ele a Mukutch. Este, primeiro, disse que não
havia necessidade, mas depois levou as prendas e, passadas duas semanas, trouxe
a Vassíli oito almofadinhas bordadas, todas iguais — as velhas pediram que as
entregasse a Anatólia, para que lhe fosse mais cómodo estar deitada. No
hospital não aceitaram as almofadas, dizendo que Anatólia estava numa
enfermaria de ambiente esterilizado, não queriam lá infeções. Um ofendido
Vassíli guardou-as no quarto da pensão para depois as levar para Maran.
No m de novembro, chegou do lado de lá da passagem montanhosa do
Norte uma grande encomenda com provisões e uma remessa de dinheiro em
vale postal. Mamikon, limpando o suor da fronte, levou-as ao hotel. Vassíli
pensou, primeiro, que era uma encomenda para Eibogants Valinka que devia ser
transportada por Mukutch para Maran, mas Mamikon ofendeu-se: o carteiro
sou eu, e sou eu que entrego as encomendas, já levei uma para a Valinka na
semana passada, por pouco não dei cabo das costas; esta é para ti, remetida pelo
Tigran e pela mulher dele, como é que ela se chama, ah, sim, Nastássia.
A encomenda continha conservas de peixe e de carne, leite condensado e
várias embalagens de bolachas de massa areada, e ainda, dentro de um papel
bonito, um pequeno cobertor branquíssimo, delicado e macio, de malha
levezinha.
— E isto é para quem? — espantou-se Vassíli.
— Para a criança, é de supor — estalou a língua o admirado Mamikon.
Vassíli não objetou, só encolheu os ombros. Guardou o cobertor debaixo das
almofadas bordadas, dispôs as conservas em cima do peitoril. Tentou dar
algumas latas a Mamikon, mas este abanou as mãos, recuou até à saída — estás
doido, não tens dinheiro para o pão, e agora queres desperdiçar a comida.
O dinheiro mandado por Tigran dava à justa para pagar dois meses adiantados
da pensão, e um comovido Vassíli foi aos Correios e mandou um telegrama com
palavras de gratidão e a promessa de devolver o dinheiro logo que o ganhasse. A
resposta não se fez esperar: no dia seguinte a criada de quarto entregou a Vassíli
uma folha dobrada duas vezes, ele tentou ler, mas não conseguiu — as letras
eram minúsculas, por isso foi pedir ajuda ao porteiro. Este pegou no telegrama,
pôs no nariz os óculos, pigarreou e leu, fazendo pausas signi cativas no m de
cada frase: «Tio Vassó, não é preciso devolver nada. Tenho só um pedido: espere
pela minha chegada. Serei eu o padrinho da criança».
— Qual criança? — interrompeu a leitura o porteiro.
Vassíli coçou a nuca, suspirou e, inesperadamente para si próprio, contou ao
estranho a desgraça que aconteceu a Anatólia, que toda a gente estava contente
com a sua gravidez, mas que ele, Vassíli, não acreditava nisso porque não
con ava nos médicos. Se tiver o lho ao colo, está bem, então os médicos não
mentiram, mas se isso não acontecer, vai lutar contra o hospital, só que por
enquanto não sabe como o fará.
— O lho de quem? — não percebeu o porteiro.
— Meu — resmungou Vassíli, irritado com o bronco do porteiro, e pegou no
telegrama, foi aos Correios e ditou a resposta: «Se Deus quiser, com certeza».
De noite, ao voltar da guarda debaixo das janelas de Anatólia, encontrou à
porta do seu quarto um jovem esbranquiçado, como que coberto de farinha, e
muito saltarilho que, espetando-lhe na cara uma caixinha metálica com os,
metralhou qualquer coisa sobre a gravidez da velha.
— Qual velha? — estreitou os olhos Vassíli.
— Bem, a sua esposa — esclareceu o jovem. — Conte como foi que na sua
velhice o senhor conseguiu conceber uma criança. E porque foi que fecharam a
sua esposa na enfermaria? Talvez tenha alguma doença perigosa para os
circundantes. Ou não está tudo bem com a criança?
Vassíli deu-lhe uma cachaçada e correu-o ao pontapé pelas escadas abaixo,
depois foi ter com o porteiro, levantou-o pelos colarinhos e, durante alguns
minutos, sacudiu-o no ar; a seguir, prometendo arrancar-lhe a espinha dorsal se
ainda tagarelasse com alguém sobre Anatólia, pousou-o com cuidado no chão.
O porteiro procurou com a mão o espaldar da cadeira, sentou-se, verteu na água
umas gotas de calmante e bateu os dentes no vidro do copo. No dia seguinte, ao
exigir a devolução do dinheiro pago adiantado pelo quarto, Vassíli mudou-se
para outro hotel, mas a notícia apanhada pela imprensa percorreu rapidamente
o vale e, agora, nas páginas de todos os jornais surgiam artigos sobre uma
centenária de uma aldeia montanhosa que, por qualquer milagre, engravidara.
A cada dia que passava, as notícias tornavam-se mais disparatadas e absurdas:
que a velha era a última moradora da aldeia e que engravidou de um espírito
maligno, que foi fechada no hospital porque a criança que ela esperava mais não
era do que uma encarnação do mal e que, em breve, renascida na imagem
humana, levaria à perdição todo o vale. Outros jornais, decerto para se oporem
aos primeiros, escreviam que a criança, pelo contrário, fora concebida pelo
Espírito Santo e que, nalmente, haveria o advento de um novo Redentor que
levaria a toda a humanidade a almejada paz e prosperidade. O território do
hospital estava agora rodeado pelo círculo denso de papa-moscas, fanáticos
religiosos e jornalistas que não deixavam em paz os trabalhadores da saúde. O
hospital foi obrigado a triplicar o número de guardas e a facultar ao pessoal
médico, quando terminava o trabalho, o acesso aos corredores da cave
(felizmente a saída era através do edifício vizinho, em que se situava um
escritório jurídico muito movimentado, pelo que não era muito difícil ao
pessoal passar despercebido, misturando-se com os clientes dos advogados).
Numa das noites de novembro, Vassíli, observando os mirones atrás de uma
esquina, esbarrou com o médico-chefe do hospital, que, com o chapéu de coco
en ado sobre os olhos e a gola do sobretudo levantada, saltou do escritório
jurídico e se precipitou na direção contrária ao hospital. Ao reconhecer Vassíli,
agarrou-o pelo cotovelo e, durante algum tempo, sem abrandar o passo, levou-o
pela rua acima e depois, virando para o vão de um portão e veri cando que
ninguém os estava a ouvir, disse-lhe num sussurro:
— Este sítio aqui é perigoso para o senhor. Não sei como os jornalistas
souberam da sua mulher, mas agora não deixam ninguém em paz. Dou-lhe a
minha morada e o senhor passa por minha casa uma vez por semana para saber
notícias. É insensato ir mais vezes, podem espiá-lo.
Vassíli não teve coragem de confessar que a causa do barulho levantado à volta
do hospital foi a sua sinceridade imprudente.
— Como está a minha mulher? — perguntou.
— Não está muito bem — disse o médico, empurrando o chapéu de coco para
a nuca. Vassíli só então reparou que o médico era jovem, de uns trinta e três ou,
no máximo, trinta e cinco anos, mas com um aspeto de muito mais velho por
causa dos olhos empapuçados e da expressão de grande cansaço na cara. — Tem
a tensão arterial baixa e as análises não são muito boas, estamos a tentar que
chegue ao sétimo mês para lhe fazermos a cesariana.
— Que… sétimo mês? Que… cesariana?
O médico-chefe passou por ele um olhar cansado, en ou o chapéu para o
sobrolho, enterrou o nariz na gola do sobretudo.
— Vejo que o senhor continua a não acreditar na gravidez da sua mulher, não
é verdade? Não faz mal, quando tiver a criança ao colo, a cantiga será outra.
E, escrevendo à pressa o seu endereço numa folha de papel, desapareceu no
escuro.
Mukutch, com quem Vassíli se encontrou alguns dias depois, contou-lhe que
em Maran, pela primeira vez no último meio século, tinha aparecido gente do
vale, uns desgraçados que se apresentaram como jornalistas e se mostraram
muito interessados em Anatólia. Por sorte, foram primeiro a casa de Iassaman, e
Ovanés, farto da imprensa do vale até aos cabelos, não se atrapalhou nem esteve
com meias-medidas: girou o dedo na têmpora e expulsou-os, a rmando que em
Maran nunca existiu uma senhora com esse nome. Depois de vaguearem pela
aldeia metade do dia e sem conseguirem respostas razoáveis dos outros velhos,
os adventícios do vale abalaram e não apareceram mais.
Passou-se uma semana, e Vassíli embrulhou em papel de jornal uma lata de
anchovas e uma embalagem de bolachas e foi visitar o médico-chefe. Prendeu
com um al nete ao forro do casaco a folha de papel com o endereço, mais por
precaução do que por necessidade de consultar o papelinho, uma vez que
decorou o endereço logo que o leu: Quarteirão de Tijolo, rua do Jasmim Branco,
8. A casa do doutor situava-se logo ao virar da esquina de uma estreita viela
empedrada e, com os braços abertos, era possível tocar nas grades de ferro de
ambos os lados. Apesar do nome da rua, não se viam jasmins nenhuns, os pátios
estavam completamente revestidos de lajes de betão, e os ramos largos de
plantas arti ciais erguiam-se dos vasos baixos ao lado das paredes. Vassíli sentia
tristeza e falta de ar no meio daquela monotonia sem alma, no meio das casas
cinzentas e insociáveis com janelas tapadas com estores pesados e impenetráveis.
Caminhava respirando pela boca o ar frio de novembro, parando de vez em vez
para pigarrear e expulsar da boca o sabor da neblina urbana que lhe adstringia o
céu da boca.
Uma senhora jovem e bonita abriu-lhe a porta, levou-o para a sala de estar,
Vassíli admirou a modéstia da sala — os móveis eram velhos, o forro nos braços
da poltrona em que ele se sentou com cuidado estava tão coçado que, nalguns
sítios, se assomava a grosseira guarnição de morim. A senhora apresentou-se:
Maria —, pediu desculpa por o marido não estar em casa, mas de serviço,
entregou a Vassíli a carta de Anatólia, acendeu a luz do teto, os quebra-luzes de
plástico piscaram e inundaram a sala com uma luz amarelada e baça, depois a
senhora saiu delicadamente, deixando-o sozinho. Vassíli desdobrou o papel
preenchido com letras de imprensa (Anatólia escrevia assim para facilitar-lhe a
leitura), suspirou gravemente ao encontrar logo na primeira frase a palavra
«amado» e começou a ler, mexendo em silêncio os lábios. Infelizmente, não
soube nada de novo, Anatólia escrevia que estava tudo bem, que o principal era
aguentar até aos sete meses, e que então poderiam fazer-lhe a operação.
Vassíli espreitou para o vestíbulo, não havia ninguém — as portas para outros
quartos estavam fechadas. Tendo vergonha de incomodar, resolveu ir-se embora
sem se despedir. Maria, ao voltar um minuto depois com uma chávena de chá e
pão com manteiga, não encontrou ninguém, apenas em cima da mesa pequena
uma lata de anchovas, uma embalagem de bolachas, um sobrescrito e uma tira
de papel com uma instrução desajeitada: «CARTA PRA ANATOLIA E A
COMIDA PRA VOS».
Vassíli caminhava através do crepúsculo de novembro e chorava de felicidade.
Agora acreditava, nalmente, que Anatólia não estava no hospital por causa de
uma doença grave, mas porque trazia no ventre uma criança sua. Coisa estranha,
não foram as suas cartas nem os olhos do médico das urgências quando,
premindo ligeiramente o ventre de Anatólia com os seus dedos curtos e grossos,
levantou de repente os olhos surpreendidos e pronunciou num sussurro confuso:
«Não pode ser!» —, nem sequer os resultados dos exames que naquele dia o
jovem diretor do hospital pôs à sua frente em leque, que convenceram Vassíli.
Foi o interior modesto da casa do médico que o convenceu: o homem que dirige
uma grande clínica, mas vive em condições tão precárias, não podia enganá-lo,
pensava Vassíli, e tinha sem dúvida razão. Um homem com tantas
possibilidades de roubar mas que não cede à tentação não pode, por natureza,
mentir.
Sete dias exatos depois, Vassíli embrulhou em papel de jornal uma lata de
cavala e uma embalagem de bolachas, e preparou-se de novo para visitar o
médico. Passara a última semana em re exões penosas. Mal se lhe dissipou a
primeira alegria, um medo sombrio e viscoso começou a oprimir-lhe a alma. Ele
e Anatólia há muito que não eram jovens, já lhes restava pouco tempo antes de
abandonarem este mundo. A quem iam deixar a criança? Além disso, Maran
não servia para um pequeno viver lá, tinha carência de muita coisa: de escola, de
jogos, da companhia dos coetâneos. O que seria dele a crescer no meio dos
velhos, passando a vida a fazer-lhes os funerais?
Vassíli partilhou os seus receios com Mamikon e com o ter Azária, que o
visitaram. Era incrível como os dois, que desde sempre tiveram opiniões
diametralmente opostas em todas as questões, desta vez estavam solidários,
embora exprimissem os seus juízos à sua maneira imutável e mutuamente
incompatível:
— Não há Deus no desânimo… — proferiu sentenciosamente o ter Azária.
Mamikon interrompeu-o:
— Uma vez em séculos o galo no teu galinheiro pôs o ovo, mas estás triste!
Tens de te alegrar!
O ter Azária olhou para ele de soslaio e revirou os olhos para o teto. Mamikon
piscou o olho a Vassíli e esboçou um sorriso desdentado:
— Parece que te embaracei, reverendo.
— Como se eu só te conhecesse há um dia!
— Pois é, mas foi desde o dia em que me conheceste que a tua vida adquiriu
verdadeiro sentido!
O ter Azária soltou um risinho, mas não respondeu. Mexeu nas contas do
rosário, guardou-o no bolso.
— Digo-te o seguinte, Vassó — disse, tossindo. — Sem o conhecimento e a
vontade de Deus, um curto momento de felicidade humana não se multiplica
em dias e semanas. Fica como foi, um momento, passageiro e efémero. Doaram-
te uma felicidade, aceita-a com gratidão. Não ofendas as boas intenções dos céus
com a tua descon ança, sê digno da dádiva que te mandaram.
— Já tive semelhante dádiva. Até três dádivas, três lhos — objetou Vassíli
em voz rouca. — Deus ofereceu-mos, depois tirou-mos…
— Então, quis o destino que assim fosse.
— Ter Azária, acha que estas palavras são de algum consolo? — ofendeu-se
Vassíli.
— Este não vê nada além da sua Escritura Sagrada, por isso consola as pessoas
de tal modo que apetece fechá-lo numa cave e enterrar a chave para que não fuja
— riu-se Mamikon.
— Mas que parvalhão! — retorquiu o sacerdote sem qualquer raiva.
— Vassó, vou explicar-te com palavras simples — abanou a mão Mamikon.
— Francamente, se me calhasse esta situação, também andaria desconcertado.
Só que o homem nasce homem precisamente para duvidar, mas nunca recuar.
Está certo?
— Está certo — aprovou Vassíli.
— Bem, se está certo, consegues lidar com o problema. Por isso, basta de
dúvidas. E vê lá se tiras essa expressão azeda da cara. As pessoas vão pensar que
te dói um dente — concluiu Mamikon.
Vassíli esboçou um sorriso amarelo. Não se pode dizer que a conversa lhe
tirasse o peso do coração, mas ajudou-o a resignar-se com as mudanças
inesperadas na sua vida e ganhar um estado de ânimo mais positivo.
Na segunda visita, o doutor estava em casa. Ele próprio abriu a porta, afastou-
se para deixar entrar Vassíli no pequeno vestíbulo. À esquerda da entrada, havia
uma cadeira, pelos vistos para as pessoas se calçarem sentadas. No assento
estavam a lata de anchovas e a embalagem de bolachas.
— Hoje também veio com presentes? — perguntou o doutor e pegou no
embrulho trazido por Vassíli. — Oh, pique de cavala! E mais bolachas. Deixe
tudo aqui, depois vai levá-lo.
— É do fundo do coração… Não pense que… — começou a justi car-se
Vassíli.
— Eu também, do fundo do coração. Muito obrigado, mas não é preciso
trazer-nos nada. Entre na sala de estar, sente-se. Temos de falar.
Mal se acomodaram nas poltronas, Maria entrou na sala, trazendo uma
bandeja com chá. Vassíli, embaraçado, levantou-se.
— Sente-se, sente-se — sorriu ela e pôs a bandeja na mesa. — Podem servir-
se sozinhos, eu saio, não os vou incomodar.
O doutor serviu o chá, pôs no prato de Vassíli uma fatia de bolo, chegou-lhe o
açucareiro. Vassíli agradeceu e olhou para ele interrogativamente.
— Coma, o bolo é muito bom, foi a Maria que o fez.
— Tenho um nó na garganta.
— Não faz mal, vamos falar, depois come.
A conversa com o doutor não foi longa, mas preocupante. Primeiro, o médico
falou do estado de saúde de Anatólia. Vassíli percebia pouca coisa das suas
explicações, mas, a julgar pelo tom preocupado, a situação não era famosa. O
doutor falou da tensão arterial baixa, de uma albumina qualquer na urina, da
fraqueza geral que nunca mais conseguiam vencer.
— Falta aguentar um mês. Mas, se o seu estado não melhorar, seremos
obrigados a operá-la antes do prazo. — Enlaçou os dedos no joelho e logo os
separou. Era visível que estava emocionado. — Em qualquer caso, a vida de
Anatólia continua para nós prioritária, pelo que faremos tudo o que depende de
nós para a salvar.
— O que é isso, priori…tária?
— Mais importante. Se nos virmos perante a escolha de quem vamos salvar,
escolhemos a mãe. Mas acredite em mim, faremos tudo para salvar ambos.
Vassíli apertou e desapertou várias vezes os seus enormes punhos, deformados
pelo duro trabalho de ferreiro. Não levantava os olhos para não revelar o
desespero e a dor.
O doutor inclinou-se por cima da mesinha, tocou-lhe na mão:
— Vai correr tudo bem, prometo.
— Como posso agradecer a sua bondade? — pronunciou Vassíli, tentando
dominar-se.
— Não pode. Vou ser absolutamente franco consigo: o vosso caso é único. E
se tudo acabar bem, isso elevará o prestígio da nossa clínica, está a entender?
Esta história é vantajosa para todos nós. Garantimos à sua mulher o tratamento
e cuidados excelentes, tudo gratuito, o que também é importante, mas em
compensação, quando tudo terminar, obtemos bónus complementares em forma
de nanciamento do erário, da possibilidade de abrir um laboratório de
investigação e de um maior número de pacientes que vão querer o tratamento
precisamente na nossa clínica.
Vassíli ouvia com atenção, tentando perceber o raciocínio do doutor e
ignorando as palavras incompreensíveis que este, entusiasmado, metralhava sem
poupar o interlocutor.
— Ou seja, para vós próprios é importante salvar a criança? — especi cou
Vassíli com cuidado.
— É.
— E farão tudo para isso?
— Faremos.
— E não vos devemos nada por isso?
O doutor hesitou.
— A única coisa que lhe queria pedir é dar uma entrevista. Para um jornal
bom e sério. Quando tudo acabar, vamos organizar um encontro em que
descreveremos em pormenor o vosso caso. E o senhor vai con rmar tudo. Ao
mesmo tempo, haverá um conselho cientí co, apresentaremos aos colegas os
métodos do tratamento que aplicámos. É que tratámos do estado de saúde da
sua esposa com novos métodos, pode dizer-se que os fomos elaborando no
decurso da sua observação. E, se tudo resultar bem, isso dar-nos-á o direito de
tratar outras mulheres com os mesmos métodos. Pela enormíssima ajuda que
nos deram, agradecemos muito.
Vassíli ouviu sem interromper. Animado pelo seu silêncio, o doutor
continuou:
— A criança e a mãe vão car sob observação durante duas ou três semanas,
ou talvez um mês, precisamos de ter a certeza de que estará tudo bem com elas.
Não se preocupe, depois do parto poderá visitá-las. Não me atrevo a fazer
prognósticos, mas creio que, se tudo correr bem, dar-lhes-emos alta em meados
de fevereiro.
Vassíli acenou rapidamente com a cabeça.
— Que seja assim.
O doutor expirou com alívio.
— Tem de perceber que não o faço para meu próprio proveito — disse
apressadamente, justi cando-se —, para mim…
— Acredito em ti, lho — interrompeu-o Vassíli. — E não há nada superior
à con ança.
Em nais de novembro, sem esperar pelo inverno do calendário, nevou
desenfreadamente, a neve cobriu o vale, de uma extremidade à outra, com uma
grossa camada de silêncio, embaciou a luz, apagou as cores, deixando apenas a
cor preta para orlar os seus mantos brancos.
A vinte e três de dezembro, Anatólia adormeceu, mas na manhã seguinte não
acordou. Os médicos, assustados, agitavam-se na enfermaria como um enxame
de abelhas alarmadas, mas não conseguiram acordá-la. O estado geral da
paciente não piorava, antes pelo contrário e para espanto geral, até estabilizou
um pouco, por isso foi tomada a decisão de não empreender nada, de apenas se
fazer tudo para manter os seus parâmetros físicos. As enfermeiras mudavam os
instiladores, mudavam-na de hora a hora de um lado para o outro, para evitar as
escaras, lavavam-lhe com esponjas húmidas o corpo emagrecido até à
transparência, faziam-lhe massagens, ajudando a circulação sanguínea. Anatólia
dormiu profundamente durante sete longos dias e, no oitavo dia, foi acordada
pela voz do Patró — o cão cavava freneticamente a terra debaixo da macieira
velha, ladrando com insistência, correndo de vez em quando até junto de
Anatólia, agarrava delicadamente a aba do seu vestido e puxava-a. Anatólia foi
atrás dele sem protestar, mas, quando lhe faltavam alguns passos, parou. O
Patró vociferou, como que a censurá-la, e o seu latido ofendido acordou
Anatólia, que abriu os olhos e tentou sentar-se, mas logo caiu em cima da
almofada — teve uma vertigem. No mesmo dia foi operada e, no dia seguinte,
Mamikon, gelado até aos ossos depois de fazer a pé todo o caminho nevado do
sopé ao cume do Manich-Kar, trouxe à aldeia invernal a notícia de que todos,
treze velhas e oito velhos, estavam à espera com o coração esmorecido. No
sexagésimo sétimo ano de vida, o neto daquela Arussiak, salva durante o grande
massacre e abrigada na sua herdade por Archak-bek, descendente direto de
Levon Sexto Luzinian, último governador de um reino outrora grande, mas
agora desaparecido no Letes, ou seja, o seu neto Kudamants Vassíli, severo como
uma rocha e de coração brando como o do anho, que perdeu todos a quem
amava: pai, mãe, irmão, três lhos e a sua desgraçada mulher — e que no ocaso
da vida foi recompensado pelos sofrimentos com o sentimento salvador do
verdadeiro amor, este homem foi pai de uma menina saudável e maravilhosa.
Em honra da sua avó, deram-lhe o nome de Voske. Dourada.

50 Sali — uma espécie de panquecas; Gatá — bolos doces. (NT)


CAPÍTULO 3

O mês de fevereiro, normalmente implacável, de ventos espinhosos, neste ano


foi misericordioso e cheio de neve. As manhãs, taciturnas e sonolentas,
agasalhadas até aos olhos com xailes franjados de caramelo gelado, despontavam
tarde e a contragosto, enxotando com a sua respiração fraca as brumas noturnas.
Os galos gritavam pouco e preguiçosamente. Lança o galo o seu cocorocó e cala-
se, escutando impassivelmente a resposta que parece chegar dos con ns do
mundo. Os cães não ladravam, apenas resmungavam, seguindo com olhos
descontentes a dança dos ocos de neve, graúdos e fofos. Eram graúdos, então
não ia nevar muito tempo. Mas o mês de fevereiro era manhoso, sacudia das
mangas a neve em grãos miúdos e espalhava generosamente mancheias deles
pelos quintais adormecidos.
As casas acordavam com o fumo das chaminés. O fumo esticava-se para cima
e, dissolvendo-se nos turbilhões da neve, deixava atrás de si o cheiro a achas
ardentes e o aroma das fatias de pão caseiro poroso que se torrava no fogão. O
gado, mungido e alimentado, dormitava nos estábulos; e as galinhas, depois de
suportarem com êxito a postura dos ovos, tortura de todas as manhãs, bicavam
nos comedouros, os perus narcisistas grugulejavam pretensiosamente, as
galinhas-da-índia altercavam, lutando pelo lugar junto ao bebedouro.
Do terraço da casa de Chalvarants Ovanés, os quatro carreiros estreitos, de
duas plantas de pés, estendiam-se na neve em quatro direções. Um levava ao
estábulo e ao galinheiro, outro à cave, o terceiro à retrete, o quarto à cancela. O
restante espaço do pátio repousava sob uma camada de neve friável, seca, sem
qualquer degelo — pelos vistos, ia durar muito. Apesar da agitação no
galinheiro, o silêncio em volta era tal que parecia que alguém baixara
propositadamente o som, para que se ouvisse apenas a respiração quase
indistinta do vento e o sussurro dos ocos de neve.
Chalvarants Ovanés, sentado com os pés cruzados em cima da arca de madeira
à porta da cozinha, estava a preparar o seu imutável pequeno-almoço, batendo
duas gemas do ovo de galinha com seis colheres de sopa de açúcar, até criar um
denso creme espumoso. Na chaleira, o vapor quente assobiava, saindo do bico
de esmalte descascado, a água estava quase a ferver. Na mesa, as grandes fatias
de pão tostadas no fogão estavam a arrefecer, encostando as suas côdeas
estaladiças às bordas do prato grosso de barro.
— Vais tirar a chaleira do lume, ou posso aproximar-me dele? — quis saber
Ovanés.
Iassaman, molhando em água com sabão a serapilheira com que estava a lavar
o chão, retorquiu raivosamente:
— Fica quieto onde estás. Eu tiro-a.
— Não posso dar um passo sem licença na minha própria casa!
— Não me provoques!
Ovanés provou o gógol-mógol, sentiu com desgosto nos dentes as migalhas de
açúcar e bateu tudo de novo com o garfo, ruidosamente e com aplicação
duplicada.
— O açúcar, desta vez, é graúdo de mais, dissolve-se mal. É preciso dizer ao
Mukutch que não compre deste açúcar.
— Graúdo não é obrigatoriamente fraco — respondeu Iassaman. Depois de
lavar com cuidado o chão debaixo da mesa, começou a deslocar-se até à porta,
esfregando a alcatifa.
— Talvez este açúcar seja bom, mas já dei cabo da mão a batê-lo.
— Grande coisa, bater ovos não é o mesmo que lavar o chão!
Ovanés estalou a língua com irritação.
— Não te propus ajuda?
— Com a tua ajuda, teria depois um trabalho duplo: lavar o que sujas e pôr
tudo em ordem! — Iassaman, para poupar as forças, falava nos intervalos entre
os movimentos da esfregona.
— Arrumaste a casa deles, isso sim, muito bem. Mas para que é preciso
limpar também a nossa até brilhar? — resmungou Ovanés.
Iassaman acabou de lavar a alcatifa, passou a serapilheira por água limpa,
passou a esfregona mais uma vez pela cozinha, sentou-se ao lado do marido,
juntou nos joelhos as mãos cansadas e avermelhadas por causa da água fria, e
cou assim à espera de que o chão secasse.
— Para que é preciso? Para não levar para lá alguma infeção, percebeste? —
dignou-o com uma resposta Iassaman quando recuperou o fôlego. — Já te
esqueceste do que é um bebé?
— Não me esqueci. Só que, se tens medo da infeção, em vez de lavares o chão,
é melhor não te aproximares da criança.
Iassaman virou-se lentamente para o marido, levantou o sobrolho.
— Tens oitenta e cinco anos, mas a inteligência do tamanho de uma caganita
de cão!
Ovanés queria, por sua vez, achincalhar a mulher, mas reconsiderou —
Iassaman está nervosa desde manhã, é melhor não a provocar.
— Então, já posso sentar-me à mesa? Está na hora de preparar chá, senão, a
água arrefece — disse, apaziguador.
Iassaman passou os olhos exigentes pelo chão da cozinha.
— Parece que já secou. Vai despejar a água suja e lava o balde. E eu trato do
pequeno-almoço.
Pegou na tigela com o gógol-mógol, levantou-se com esforço. O relógio por
cima do aparador, com um retinido senil, soou as nove horas. Era ainda cedo,
mas havia muitos afazeres — às onze, as velhas deviam reunir-se em casa da
telegra sta Satenik para preparar os pratos da mesa festiva. Entretanto, os
velhos, munidos de pás, iam limpar o caminho até Maran. Seria um trabalho
inútil, já que não parava de nevar, mas era preciso fazer alguma coisa para
facilitar a passagem da carroça de Nemetsants Mukutch — neste dia, de manhã
cedo, devia ir buscar ao vale Vassíli, Anatólia e a pequena Voske, e transportá-
los para casa através da nevasca. A tentativa de os trazer na ambulância falhou: o
carro derrapou no caminho nevado e serpenteante dos montes, e voltou para a
clínica. Mukutch, acordado ontem ao meio-dia com um telegrama, aqueceu a
carroça com cobertores de lã, meteu nela as pesadas capas de pele para agasalhar
Anatólia e a bebé e, levando consigo mais um velho como ajudante, partiu no
meio da nevasca. Se tudo corresse bem, às três da tarde deviam chegar a Maran.
Foi Eibogants Valinka quem se propôs recebê-los, organizando uma mesa
festiva. Ao despedir-se de Mukutch, os maranenses decidiram, em vez de se
dispersarem pelas casas, car todos juntos em casa de alguém. Passaram o m
da tarde numa conversa tranquila ao lado do fogão bem aquecido, comendo
batatas assadas acompanhadas com sumo cozido de mirabela e evitando falar do
dia seguinte, com medo supersticioso de atraírem, involuntariamente, um azar.
Depois de comerem, os homens sentaram-se a jogar o gamão, enquanto as
mulheres, tendo lavado e arrumado a loiça, começaram a cerzir e a fazer malha.
Foi neste momento que, depois de passar os olhos pela sala silenciosa, Valinka
propôs que servissem a mesa festiva em honra do regresso de Anatólia. Os
velhos não gostaram muito desta ideia.
— Que primeiro venham sem problemas, depois é que vamos pensar na festa
— disse Bekhlvants Mariam, abanando com susto as mãos e exprimindo o
receio geral.
Mas Eibogants Valinka soltou um risinho:
— O que é isso de «vamos pensar»? A Anatólia deu à luz uma criança,
prolongando com isso a nossa vida, sim, sim, não me olhem com esses olhos
esbugalhados, é mesmo assim, já estávamos preparados para morrer, mas como
podemos morrer agora, tendo esta responsabilidade: a de cuidar da criança, de a
pôr no bom caminho da vida?
Por um momento, o silêncio reinou na sala, interrompido apenas pelo crepitar
das achas no fogão.
— Que a Satenik fale, é parente próxima do Vassíli — disse, nalmente,
Iassaman.
Os velhos olharam para Satenik. Esta mascou com os lábios, pigarreou:
— Acho que será muito agradável para a Anatólia e o Vassíli se os recebermos
como é devido, com amor e respeito, e ainda com um banquete obrigatório
nesta ocasião solene.
Passaram o resto do serão elaborando a lista dos pratos — queriam muito
servir uma mesa que desse prazer aos novos pais. Foi decidido preparar
khokhob51 de carne de peru, pasta de feijão, ganso assado com cornizolo seco,
salada de galinha cozida com nozes trituradas e também fatias fritas de brinza
em polme de farinha de milho e vinho branco. Para a sobremesa, escolheram
krkeni — gatá especial cozida exclusivamente dentro das cinzas e que era servida
nos eventos mais importantes.
Às onze da manhã, os homens, agasalhados com capas de pele e munidos com
pás, foram limpar da neve os acessos a Maran, e as mulheres começaram a
cozinhar. Umas aloiravam a carne de peru para a estufarem depois com cebola e
romã, outras tratavam do ganso, da salada e das entradas. O krkeni foi con ado a
Valinka e Iassaman, as mais hábeis cozinheiras de Maran. Enquanto Iassaman,
gemendo do esforço, estava a tirar a neve de um canto do pátio, abrindo espaço
para a fogueira, Valinka preparou dois tipos de massa e fez o recheio de
manteiga fervida, açúcar, baunilha e avelãs fritas bem trituradas. A seguir, as
duas rolaram a massa areada, puseram o recheio e juntaram as bordas,
premindo-as com cuidado com as pontas dos dedos, e formaram assim dois
bolos grandes. A seguir, rolaram a massa não levedada, polvilharam-na
generosamente com farinha, embrulharam nela os bolos de massa areada,
cuidando em não deixar fendas nenhumas — e enterraram-nos nas cinzas
quentes. Pelas três da tarde, quando a carroça de Nemetsants Mukutch, com as
rodas a rangerem, trouxe para Maran Anatólia e a bebé agasalhadas com
cobertores de lã quentes, os krkeni estavam prontos. Iassaman e Valinka tiraram
os bolos, limparam deles as cinzas, bateram-nos com um rolo de madeira — e a
casca queimada rebentou e cobriu-se de ssuras. Faltava apenas retirar os
rasgões de massa não levedada já inútil e libertar com cuidado a parte interior
— os bolos redondos de farinha areada, delicadamente dourados. E naquele
mesmo momento em que Mukutch, acompanhado pelos velhos da aldeia,
chegou a casa de Satenik, Valinka e Iassaman, pondo nos ombros os xailes
festivos e com as cabeças orgulhosamente levantadas, saíram com as rodelas cor
do sol dos krkeni ígneos e levaram-nos sob os ocos da neve, e a seguir,
atrasando-se delas dois passos, ia Satenik com um grande sorriso e um
embrulho de fotogra as dos lhos de Vassíli, que outrora lhe foram entregues
para guardar. Chegara a altura de lhas devolver, agora o primo terá a força de
ânimo de os olhar nos seus olhos belos e queridos.

51 Khokhob — prato de ave, cebola e romã. (NT)


CAPÍTULO FINAL

Aos seis meses, Voske aprendeu a gatinhar, mexendo comicamente os braços e


as pernas rechonchudas; a sentar-se e, até, a fazer tentativas de se pôr em pé
agarrando-se às pernas da mãe e zangando-se muito quando não o conseguia.
Pelo aspeto físico, saiu ao pai: olhos cor de cinzas arrefecidas, sobrolho alto,
pestanas compridas e escuras. Herdou da mãe o cabelo de raríssimo matiz de
cobre, por enquanto esbranquiçado, mas Anatólia sabia que com idade ia
escurecer e impregnar-se daquele ouro trigueiro que, ainda hoje, rutilava nas
suas tranças encanecidas depois do parto.
Apesar do cansaço e da falta de sono, Anatólia sentia-se rejuvenescida e cheia
de forças, não parava com os afazeres domésticos, cozinhava, lavava a roupa,
arrumava a casa. Vassíli encarregava-se da horta e dos animais domésticos,
regava, mondava, semeava e fazia a colheita, mungia cabras e ovelhas, e até
aprendeu a fazer queijo — Anatólia queixava-se, brincando, que a brinza dele
saía mais saborosa do que a dela, embora tivesse aprendido a prepará-la quase na
véspera.
Nos ns da tarde, ao pôr a criança no carrinho — Vassíli construíra-o com as
suas próprias mãos, trabalhou bastante na forja, o carrinho era pesado, mas
muito cómodo de manobrar —, ia dar uma volta por Maran, parando em cada
cancela, cumprimentando os velhos. Voske chilreava e balbuciava, ia à vontade
ao colo de todos e ria contagiosamente sempre que lhe diziam os versinhos
sobre a cabra que dá chifradas, mostrando-lhe os chifres com os dedos.
Nas férias da Páscoa, vieram Tigran e Nastássia, o ter Azária batizou
solenemente Voske: a criança, macambúzia ao colo do padrinho durante toda a
cerimónia, desatou aos berros indignados durante o mergulho e por pouco não
revirou o alguidar de cobre que serviu de pia batismal, alguidar este em que, na
véspera, Valinka cozera o doce de morango, primeiro nessa temporada, e na
manhã seguinte, depois de o ter esfregado até ao brilho e tendo atado nele, em
cruz, uma ta de renda, o levou para o sacramento do batismo. As paredes da
capela de Maran estremeceram com o grito infantil e gemeram, encolhendo os
seus ombros entumecidos, e Kirakos, de um ano e meio, que estava a dormitar
serenamente ao colo da avó, acordou e, com uma grande prontidão, secundou o
choro de Voske, enchendo as redondezas com trinados tão potentes que até
Petinants Suren, já de nitivamente surdo, os ouviu, enquanto Mamikon, rindo
para a sua barba, não evitou brincar: as crianças já cantam em uníssono, o que é
que isto poderá signi car?
Na véspera do solstício, Anatólia saiu para o pátio e viu o Patró debaixo da
macieira ressequida que, a pedido dela, Vassíli não cortara — era a árvore
preferida da babó Mané, que que em memória dela. O cão cavava
freneticamente debaixo da árvore morta, espalhando à volta torrões húmidos de
terra e, ao farejar a presença de Anatólia, ladrou alto, atirou-se a ela, aferrou-se à
aba do vestido, puxou. Anatólia, aturdida perante o sonho cumprido, deixou
que o cão a levasse até ao pequeno buraco que cavara, espreitou para lá. Não
tem nada, Patró-djan, e tentou acalmar o cão, mas o Patró uivava e gania,
espalhando a terra com as patas, e depois guinchou com alegria, tirou qualquer
coisa e depositou-a aos pés da dona. Anatólia inclinou-se, viu um bocado de
tecido meio podre e enrolado, desenrolou-o com cuidado e descobriu dentro
dele um pesado anel de prata escurecida pelo tempo com uma grande gema
azul, cujo nome não conhecia. Depois de limpar dele a sujidade e a placa,
guardou-o no escrínio ao lado da única joia que herdara da mãe, um camafeu de
concha natural, delicadamente rosada com um matiz bege, com a gura talhada
com esmero de uma jovem sentada de per l, olhando ao longe à espera de
alguém. Quando Voske crescer, vai usá-lo.
À noite, embalando a lha, Anatólia cantava-lhe cantigas que, em tempos, lhe
cantava a mãe: sobre o sol e a chuva no dia em que a loba teve lhos, sobre os
seus sete lobinhos que se dispersaram pelo mundo, mas voltaram, já lobos
robustos, no dia em que a mãe já perdera a esperança de os ver; sobre o vento
que traz nas suas asas céleres as notícias das pessoas que havia muito se foram;
sobre a videira que se estendeu até ao céu, com os ramos em que dormem aves
do paraíso…
Voske ouvia, retendo a respiração, e ao lado, com o nariz en ado nos seus
caracóis macios, estava Vassíli, ela não sabia adormecer de outro modo, a mãe
devia cantar uma cantiga de embalar, o pai devia simplesmente estar ao lado, e
assim estava certo, a pequena Voske não sabia nada sobre o grande mundo,
tinha o seu próprio mundo minúsculo, uma casa de pedra, uma macieira seca,
trinta velhos e uma capela onde, nos dias de festa, um sacerdote de visita
celebrava as missas, um muro sólido protegia o lado oriental da aldeia das
avalanchas, e o lado ocidental ruíra irremediavelmente para o abismo, o único
caminho até ao vale tornava-se cada vez mais intransitável a cada ano que
passava, invadido de cardos e ervas daninhas, e apenas o rasto da carroça de
Nemetsants Mukutch que ia às compras não o deixavam desaparecer por
completo sob as ervas porque traçava dois sulcos estreitos e esbranquiçados ao
longo de todo o trajeto desde o cocuruto do Manich-Kar até ao grande mundo;
no terraço da casa de Anatólia, estava a invisível Magtakhiné com as mãos
cruzadas no peito, anjo da guarda de Voske; em casa de Eibogants Valinka, a
racha na parede continuava a respirar — ora se alargava, ora se estreitava, mas
nunca se fechava, como um coração partido ao meio pela desgraça, coração que
dói mas continua a viver; no baú da roupa, embalados numa fronha de chita
para não se desbotarem, estavam os desenhos de Nastássia, toda a gente já se
esquecera das letras que ela descobrira na cerca da campa do pavão branco, mas
Maran há muito reconheceu nelas as iniciais dos seus únicos descendentes, rapaz
e rapariga, cujo destino era ou cortar a história da aldeia, ou então inventar uma
nova página para ela, mas quem pode saber o que vai acontecer no futuro, quem
sabe? Na casota de madeira, com a cabeça orelhuda posta nas patas grandes,
dormia Patró, cão el que encontrara nas raízes da macieira seca o anel,
escondido no dia de nascimento de Anatólia pela cigana Patrina; e por cima do
mundo minúsculo da pequena Voske abriu-se a noite estival sem fundo e
contava histórias sobre a força do espírito humano, sobre a delidade e a
nobreza, contava que a vida são os círculos deixados na água pelas gotas de
chuva, onde cada acontecimento é um re exo do que aconteceu antes, só que
não é dado a ninguém adivinhá-lo, a não ser aos eleitos que, depois de
aparecerem uma vez neste mundo, nunca mais voltam porque bebem a sua taça
de imediato e até ao fundo, mas agora não se trata disso, agora trata-se de que
um ano e um mês antes, na sexta-feira, logo depois do meio-dia, quando o Sol,
passando o ponto do zénite, rolou cheio de dignidade até à extremidade
ocidental do vale, Sevoiants Anatólia se deitou para morrer, sem saber quanta
coisa maravilhosa tinha pela frente, e a nal esta coisa maravilhosa veio e respira
com leveza e carinho, e que isso dure muito, e que assim seja para sempre, e a
noite vai fazer feitiços, protegendo a sua felicidade, e rolar nas suas mãos frescas
três maçãs que depois, tal como rezam as lendas de Maran, deixará cair do céu
na terra — uma para quem viu, outra para quem contou e a terceira para quem
ouviu e acreditou no bem.
CONTOS
MATCHUTCHA

SEIS

— Inclina um pouquinho a cabeça para o ombro. Sorri. Sorri! Não sabes sorrir?
Mostra que sabes. Linda menina. Não pestanejes. Olha aqui, vai sair o
passarinho.
Matchutcha é esgrouviado, muito moreno e com os olhos estranhamente
cinzentos. Para captar o seu olhar, é preciso lançar a cabeça muito para trás.
Olhando-o de baixo, parece um gigante — pernas longas, muito longas, mãos
grandes com dedos nervosos, mexe-os como se tocasse um instrumento
invisível. «Pelos vistos, toca auta», penso eu. Não me atrevo a perguntar.
Matchutcha é bonito. Ora a mim, menina de seis anos, os homens bonitos não
me provocam nada além de descon ança.
O cabelo de Matchutcha é encaracolado, cor de breu, as pestanas são espessas e
fofas, o bigode contorna-lhe o lábio superior, formando dois ângulos retos —
deixou-o crescer recentemente, pelo que parece que foi desenhado a marcador.
Não gosto do seu bigode, o que declaro de imediato, mas Matchutcha diz que
lhe confere mais imponência. Tenho preguiça de perguntar que coisa é essa da
imponência, por isso faço uma cara signi cativa e assinto. Que que a pensar
que sei.
O estúdio fotográ co de Matchutcha chama-se Berd. Tem o mesmo nome da
cidadezinha onde habitamos, eu e ele. Eu moro num prédio de pedra de dois
pisos, no alto de um outeiro, quando há vento uma macieira-do-paraíso bate na
janela do meu quarto, e a lua, de noite, desenha no soalho um pálido quadrado
prateado. Matchutcha vive numa casa térrea na rua vizinha, à esquina, tem uma
mãe velha, Nubar, que fala o dialeto arménio ocidental que eu mal compreendo.
Também fala inglês e, quando nos encontramos, cumprimenta-me assim: Good
day, darling, how are you? — I’m ne, respondo. É a única coisa que sei
responder-lhe. Onde está o pai de Matchutcha, isso não sei. Talvez tenha
morrido, ou talvez os haja abandonado e partido para outra cidade, como fez o
marido da minha tia. Agora a minha tia vê-se obrigada a trabalhar três turnos
para dar de comer às lhas, o marido telefona-lhe uma vez por mês só para lhe
dizer que não haverá dinheiro dele e que se desenvencilhem sozinhas. O marido
da minha tia é bonito.
Antes de tirar uma fotogra a, resolvo pôr-me bonita. O espelho encontra-se
num cantinho fechado por um biombo. Uma cadeira coxa, pelos vistos para os
clientes que não gostam de se pôr bonitos de pé, está encostada à parede. Por
cima da cadeira há um pequeno mapa. Se for virado para a esquerda, parece o
desenho de um gigante de camisa comprida. Está de per l, com a cabeça
empinada e as mãos erguidas, como se chamasse os céus em seu socorro. Passo
algum tempo a estudar o mapa, depois uma prateleira atrai a minha atenção —
para ver o que se encontra lá preciso de me pôr em bicos de pés. Descubro na
prateleira um pente de plástico e vários ganchos.
— Alguém esqueceu aqui as suas coisas! — grito a Matchutcha.
— Que coisas? — diz ele, espreitando para o meu canto.
— Estas!
— Fui eu, pu-las para o caso de alguma cliente querer mudar de penteado.
Então, já estás pronta?
Ponho para trás das orelhas as madeixas que saíram do meu rabo de cavalo.
— Estou pronta!
Matchutcha senta-me na poltrona. Atrás de mim, num vaso pesado, está uma
palmeira arti cial frondosa que cheira a plástico. Viro a cabeça para a observar
melhor.
— Para quieta! — manda-me Matchutcha. Foca em mim a luz das lâmpadas,
olha para mim com ar exigente. — Queres obrigatoriamente tirar uma foto
com esta lebre?
— Quero.
Ele estala a língua. Vejo que não gosta da lebre. É velha e coçada, os olhos
dela são botões, dois botões diferentes — um é verde e pequeno, outro é azul e
maior. O olho verde é mesmo dele, mas o azul foi tirado do sobretudo de
crimplene52 da minha mãe. Matchutcha vira a lebre para que que de per l. Eu
protesto — para mim é importante que na fotogra a o seu retrato seja
completo.
— Porque é que tem um olho de cada nação? Assim está a olhar como uma
zarolha imbecil — espanta-se Matchutcha.
— Um botão perdeu-se, pregámos outro — murmuro. Fico ofendida pela
lebre, ela é boa, foi a avó que ma ofereceu.
Matchutcha suspira.
— Está bem.
Mergulha para debaixo do véu preto da máquina fotográ ca, cala-se.
— Inclina um pouco a cabeça para o ombro. Sorri. Sorri! Não sabes sorrir?
Mostra que sabes. Linda menina. E não pestanejes. Olha para aqui, já vai sair o
passarinho.
A fotogra a saiu de tal maneira que os meus pais, depois, choraram a rir:
numa grande poltrona concavada, no pano de fundo da palmeira arti cial, estou
eu, carrancuda, apertando ao peito a lebre feita de trapos, coçada e de olhos
desirmanados.

DEZASSEIS
Irrompo no estúdio fotográ co — tenho pouquíssimo tempo. Matchutcha
interrompe o processo meticuloso de passar uma fatura. Semicerra os olhos com
ironia:
— Aonde vais com essa pressa?
Gostaria de mentir, mas em vez disso e inesperadamente para mim própria,
disparo a verdade:
— Para um encontro.
— Oh! Se é um encontro, tudo bem.
A voz de Matchutcha é tal que não dá razão a descon ança — é regular e
impassível, e o olhar é frontal e benevolente. Talvez alguém se deixasse enganar,
mas eu não. Sinto com todas as entranhas que ele está a gozar comigo. Noutra
altura qualquer, não deixaria de altercar, de entrar em discussão, mas nesta
altura não posso: há duas semanas foi o funeral da mãe dele. Eu também assisti
à cerimónia do último adeus e, francamente, não queria muito ir, mas a minha
mãe disse que era uma vergonha, que a Nubar me tinha visto crescer, que eu
tinha obrigação de ir ao enterro. Pois bem, armei um pequeno escândalo para
que não pensasse que era muito fácil fazer-me mudar de ideias, e acabei por ir.
Havia bastante pouca gente — num dia útil poucos conseguiram arranjar
dispensa para se ausentarem do trabalho. Nubar estava no caixão — velhinha e
apaziguada. Matchutcha, sentado à sua cabeceira, com os seus compridos e
inquietos dedos entrelaçados, olhava para o chão. A minha mãe aproximou-se
dele, sussurrou-lhe palavras de condolência. Quanto a mim, não fui ter com ele,
mas quando Matchutcha olhou para mim, confundi-me e abanei a mão
estupidamente. Então, ele tapou a cara com as mãos e chorou. Vamos embora,
sussurrou-me a mãe. Deixei junto ao caixão um ramo de rosas-chá e fui atrás da
minha mãe. Ela caminhava pela rua fora, alta e bonita, com o cabelo comprido a
esvoaçar ao vento, e eu arrastava-me atrás dela, sentindo-me uma nulidade.
— Trinta anos, mas chorou como uma criança — exprimi-me nalmente.
Mas acho que seria melhor ter-me calado.
— É natural — respondeu a minha mãe.
Depois, as mãos doeram-me todo o dia — tinha apertado os caules das rosas
com tanta força que piquei os dedos todos.
— Preciso de tirar uma foto tipo passe. Para o passaporte — digo a
Matchutcha.
Ele põe de lado a fatura, levanta-se da mesa. Pelos meus dezasseis anos, eu
havia-me transformado num espicho desajeitado, mesmo assim olho para ele de
baixo para cima. O seu cabelo tem agora algumas brancas, os olhos são da cor da
neve derretida. Há nele tanta segurança e tanta reservada beleza masculina que
apetece insuportavelmente dizer-lhe alguma porcaria.
— Sabes o que dizem de ti as mulheres? — Parece que estou possuída pelo
diabo. — Que és bonitinho como o Alain Delon.
Matchutcha olha para mim de tal modo que sinto chamas no ventre.
— Vai, vai pôr-te bonita — responde depois de uma curta pausa.
No canto cheira a pó e ao perfume barato de alguém. Na parede está o mesmo
mapa, o tempo desgastou-o e amareleceu-o, mas ainda é possível enxergar o
gigante com as mãos erguidas aos céus. Risco desajeitadamente os lábios com o
bâton cor-de-rosa (roubei-o do estojo de cosméticos da minha mãe), tiro da
prateleira um gancho e prendo o cabelo por cima da testa de maneira que me
emoldure lindamente a cara e caia pelos ombros em ondas.
Matchutcha foca em mim as luzes. Solta um risinho. Tira do bolso um lenço,
estende-mo:
— Limpa a boca.
— Porquê?
— Limpa a boca, ouviste?
Limpo, zangada, os lábios. Amarroto o lenço.
— Então, com quem é esse encontro? — Assim exprime ironicamente a sua
curiosidade Matchutcha, observando-me através da objetiva.
— Com o lho de Vanoiants Édik.
— Conheço. É um rapaz bonitinho.
— E depois?
Ele faz de conta que não ouviu a minha pergunta:
— Senta-te direita, não te curves. Baixa o ombro esquerdo, porque o levantas?
Fecha os olhos, agora abre-os um pouco. Sorri um pouquinho, só com as
comissuras dos lábios. Linda menina. Olha aqui, já vai sair o passarinho.
Na fotogra a do passaporte, tenho um ar de uma miúda pequena e parvinha
com aquele penteado estúpido, o olhar atrapalhado. Sabe-se lá porquê, z um
beicinho com o lábio inferior, talvez descontente por me terem obrigado a
limpar o bâton. Poderia fazer outra fotogra a, mas tenho preocupações mais
importantes — o primeiro amor, a entrada na faculdade. Não tarda a que me vá
embora desta bolorenta cidadezinha provinciana com as suas ruelas tortas e a
capela semidestruída. Vou para a cidade grande, para os seus in nitos espaços
dourados. Que diferença faz que a foto no meu passaporte seja bonita ou feia?
Que se amole, ca esta.

VINTE E DOIS
As sombras da cidade da minha infância são sonolentas e taciturnas,
estendem-se de um prédio a outro, como se, com os seus dedos gelados, se
agarrassem para não caírem no abismo. Se fechar os olhos, posso recordar como
era dantes — verde e enevoada, cheirando a chuvas pressurosas e a lírios-dos-
montes cheios de frio pela manhãzinha.
A montra do estúdio de fotogra a está coberta com película de polietileno —
os vidros foram partidos pela onda de uma explosão, colocar vidros novos não
fazia sentido, seriam destruídos por novo bombardeamento. Se não me virar
para a montra estraçalhada, terei a impressão ilusória de que nada mudou. Se
não me virar para a montra e se não olhar Matchutcha nos olhos.
— Olá — digo eu.
— Olá.
A cara de Matchutcha é pálida, quase extenuada. Coxeia muito da perna
mutilada. Da têmpora até ao intercílio, contornando a maçã do rosto, estende-se
uma cicatriz longa e grosseira. Só os olhos continuam os mesmos — vivos e
penetrantes, rutilando com cores de mercúrio e prata.
— Preciso de fotogra as normais a preto-e-branco, dez ou doze. Mudo-me
para o estrangeiro, lá será necessário fazer alguns documentos, não quero
percorrer uma cidade desconhecida à procura de fotógrafo — metralho,
saltitando com os olhos pela parede atrás dele. É insuportável olhar Matchutcha
nos olhos e ngir que nada mudou.
Ora, nos últimos seis anos parece que tudo mudou. Apaixonei-me três vezes,
foi estúpido e absurdo, z um curso na faculdade, trabalhei como auxiliar no
hospital para os soldados mutilados na guerra. Matchutcha combateu, foi
gravemente ferido, desmobilizado. Casou-se com uma refugiada com dois
lhos, a mais velha, de oito anos, o pequeno, de quatro, as crianças gostam dele
como do seu verdadeiro pai, a mulher adora-o.
— Portanto, vais-te embora — diz ele.
— Vou.
Limpo o bâton com um toalhete, encontro às apalpadelas um gancho na
prateleira, faço um puxo duro do cabelo. Na parede, há um mapa com um
gigante imaginário. Viro a cabeça para, nalmente, o examinar melhor. Mas a
porta de entrada bate, são outros clientes. É preciso desocupar o canto.
Matchutcha observa-me através da objetiva. Aproxima-se, coxeando
pesadamente. Vejo que tem dores ao andar.
— Porque não arranjas uma bengala?
— Passo bem sem ela. — Toca o meu queixo com a ponta do dedo, faz-me
levantar um pouco a cabeça. — Aprende a não esconder a cara. E não te
esqueças: és uma beldade.
Olho para ele como na infância, de baixo para cima.
— Sorri — pede ele.
Estou a sorrir.

QUARENTA E TRÊS
Uma das recordações queridas da minha infância são as primeiras horas da
manhã em novembro. O verão há muito cou para trás, as aves, lançando gritos
divinos toda a noite, voam daqui — para o Sul, para o Sul. Os galos, alarmados
pelos seus gritos de despedida, armam uma troca de cocoricós de madrugada. O
chamamento agitado dos cavaleiros da aurora precipita-se de um quintal a
outro, de uma cancela a outra, de uma colina a outra, e depois de abanar o
pesado rabo multicor esvoaça para cima — para onde voou o último bando de
grous. Para o Sul, para o Sul.
O jardim lavado pela chuva noturna emaranhou-se na cortina de névoa que se
estende pelas copas das árvores, que pousa como grandes novelos de algodão em
cima dos ombros felpudos dos ciprestes, que jorra entre os ramos do marmeleiro
grande — e os frutos amarelos, cobertos de penugem áspera, destacam-se como
aplicações contrastantes no tecido leitoso.
O nevoeiro dissipa-se — e as colinas tingem-se do ouro e da vermelhidão dos
bordos, enchem as redondezas de um denso aroma de nespereiras e rosas-bravas,
soltam o cheiro forte das coníferas e silvas lavadas pela manhã — no m do
outono, as suas bagas são melí uas, graúdas, três amoras não cabem na palma
da mão.
Visito a minha casa precisamente em novembro, com os grous que migram
para o Sul. É agora muito diferente, esta cidade da minha infância, está
inundada de luzes de néon e pisca com os painéis de publicidade, e onde dantes
era o estúdio de fotogra a situa-se agora um escritório notarial. Eu e a minha
mãe passamos ao lado sem virarmos as cabeças. Levo um ramo de rosas-chá.
O cemitério está calmo e deserto, só o vento deambula no meio das lápides
tumulares, dissipando o fumo adocicado do incenso. O nevoeiro agasalha o
cume da Colina Oriental — daqui a pouco, ele vai descer e inundar toda a
extensão do mundo.
Nazaretian Taron, 1957-2005. Há nove anos que não está entre nós. Na
fotogra a, é muito jovem, é como tentei guardá-lo na memória — um gigante
moreno de olhos cinzentos. Leio várias vezes o epitá o, tentando inutilmente
penetrar no seu sentido. Por m, consigo: «Para o melhor marido e pai do
mundo — da mulher, da lha e do lho que o adoram».
— Porque foi enterrado aqui e não ao lado da Nubar?
A mãe estende-me o saquinho de papel com incenso.
— A Nubar está no cemitério velho, lá já não enterram ninguém. Por isso
cou aqui.
Deito no vaso metálico migalhas do incenso, acendo um fósforo. A mãe dispõe
debaixo da lápide as rosas-chá. Conta, mas como se não falasse comigo, e sim
consigo própria: «Quando a Nubar e o Gareguin se estabeleceram na nossa
cidade, o teu pai tinha seis anos ou assim. Ele lembra-se da vida dura que
tinham — mal conseguiam dar um jeito à vida. Mas pouco a pouco
conseguiram regularizar as coisas, construíram uma casa. Recordavam muitas
vezes Boston de onde partiram quando, depois da Segunda Guerra Mundial, as
fronteiras foram abertas por um curto período. Abandonaram lá tudo em prol
do sonho de voltar à pátria dos antepassados. Jovens, bonitos, crianças que por
milagre se tinham salvado do massacre.
«A Nubar teve um lho muito tarde, aos quarenta e dois anos. Passada uma
semana, o Gareguin morreu de um ataque cardíaco, deixando-a sozinha com o
bebé de peito. Deu-lhe o nome de Taron, em memória da terra dos seus
antepassados.
«Crescia bom rapaz, e tenho a certeza de que podia conseguir muito na vida.
Perseguindo um grande sonho, as pessoas partem para as cidades grandes, mas
ele não podia permitir-se essa liberdade porque não tinha com quem deixar a
mãe velha e doente. Arranjou trabalho no estúdio de fotogra a, aprendeu a
tocar clarinete. Uma vez, quando era ainda pequeno, perguntaram-lhe como se
chamava o Estado americano de onde vieram os seus pais. Respondeu,
deturpando muito o nome: Matchutcha. Desde aquele dia, tinha esta alcunha.
Não objetava, até gostava disso.
«Lembras-te, pelos vistos, do mapa velho que estava na parede do estúdio
fotográ co. Era o mapa de Massachusetts. Uma vez confessou ao teu pai que
sonhava ir a Boston, ver a cidade onde cresceram os seus pais. Não chegou a
fazê-lo.
«No pátio da sua casa, vivia um cão ruivo que se movia nas patas dianteiras,
arrastando as traseiras — durante um bombardeamento, um estilhaço partiu-
lhe a coluna vertebral. Dantes, vivia na rua, olhava os transeuntes nos olhos.
Cada um pensava: oxalá alguém lhe dê um tiro para deixar de sofrer —, mas
dava-lhe de comer sorrateiramente. Ora, Taron voltou da guerra e levou o cão
para casa. Coxeando, levava o cão ao colo quando este cou muito velho e
decrépito.»
A mãe guarda a taça de incenso no nicho, deixa ao lado o saquinho de papel
com incenso. O nevoeiro desliza vertiginosamente da Colina Oriental,
reconquistando palmo a palmo o seu espaço.
Antes de me ir embora, limpo a sua fotogra a com a mão. As manchas sujas
cam-me na mão. Ele olha, mas não para mim, com os seus olhos prateados, da
cor do céu de novembro.
Adeus, Matchutcha. Adeus.

52 Crimplene — tecido de bra sintética muito em voga na URSS dos anos 60. (NT)
HADDUM

Era assim mesmo que chamavam à velha Haddum: a Velha Haddum. Não por
causa da idade provecta — dois anos antes, os netos festejaram solenemente o
seu octogésimo aniversário —, mas por respeito. Velho signi ca sábio. Com a
data do jubileu, surgiu uma complicação: no início do século , emitiam as
certidões das crianças nascidas na sua fortaleza de pedra berberesca com muito
atraso, quando as mães extenuadas pelas noites sem dormir já se lembravam mal
do dia e do mês em que deram à luz mais um bebé, pelo que a certidão de
nascimento da Velha rezava o seguinte: «Haddum Laalluch, quinta lha de
Ismail Laalluch e Buchrá Alauí, nascida na temporada dos aguaceiros, no
terceiro dia do mês de djumad al-ul».
No passaporte, emitido já nos anos do pós-guerra à Haddum quinquagenária,
constava a data, cremos que tirada à sorte, de 28 de dezembro de 1903. Ora,
para os netos que organizaram a festa de aniversário era importante calcular o
dia correto do nascimento da sua respeitável parente. Girando em sentido
contrário a rodinha do calendário lunar e depois de vasculharem os documentos
de arquivo e os artigos de jornais de há um século, calcularam uma data
aproximada. De acordo com estes cálculos, foi o dia 5 de janeiro de 1905 —
dois anos e oito dias após a data indicada na certidão de nascimento. Aqui, um
problema surgiu aos olhos dos perplexos descendentes: para que data deviam
marcar a celebração, tendo em conta que a saúde de Haddum estava a piorar e
havia grande possibilidade de a idosa não chegar à data do seu verdadeiro
octogésimo aniversário? Depois de longas re exões, foi decidido celebrar a festa
de acordo com a data indicada no passaporte, mas se Alá permitisse à Velha
Haddum viver até ao verdadeiro jubileu, seria possível festejar mais uma vez,
com fausto igual, ou talvez maior.
Haddum aceitou a celebração com benevolência, mas também com uma certa
esquiva: não provou sequer um nico do caríssimo bolo da pastelaria francesa
famosa em todo o mundo, bolo trazido de Casablanca, num saco frigorí co
especial, pelo neto Mohammed, lho de Naimá, a mais nova das lhas de
Haddum. As mesas foram postas em frente da casa: estenderam o toldo entre as
tamareiras que cresciam nos cantos do pátio queimado pelo implacável sol do
verão, um pátio que mesmo no inverno cheirava a barro incandescente e às
opúncias grossas e poeirentas típicas da época dos calores insuportáveis —
Haddum, até hoje, lembrava-se do cheiro da escova com que a Grande
Maamma tirava das suas folhas espinhosas a cochonilha, para extrair dela uma
tinta carmim de rara beleza; cozinharam tantos pratos que a comida deu para
três dias e acabou exatamente no momento da partida da bisneta mais velha que
se atrevera, sem pedir a autorização da bisavó, a apresentar-se na festa na
companhia de um jovem admirador, um francês irrequieto de olhos claros que,
em vez de se juntar à decorosa conversa masculina entabulada na mesa farta,
vagueava pela casa e, disparando admirativos «magni que!», tirava fotogra as a
tudo o que lhe calhava à vista. Nem sequer passou ao lado do vaso de defecar,
tentou tirá-lo de baixo da cama para o fotografar à luz do dia. Mal conseguiram
afastá-lo. De resto, o que se podia esperar deste estrangeiro com o qual, a julgar
pelas conversas, a bisneta Miriam planeava vincular a sua vida? Não falta aos
in éis descaramento.
Haddum passou no seu quarto todos os três dias de confusão. Os netos e os
bisnetos não a incomodavam muito — vinham vê-la de manhã para lhe
beijarem a mão e lhe desejarem um bom-dia, e à noite para lhe pedirem a
bênção antes de se deitarem. Falavam uma áspera língua marroquina,
compreendendo mal os farfalhos da língua berbere da avó, pelo que a
comunicação se resumia a frases gerais. Em compensação, os lhos e as lhas
passavam muito tempo com ela: sentados ao seu lado, conversavam uns com os
outros. Haddum ouvia-os sem atenção, não porque menosprezasse o convívio,
mas porque sabia que não diriam nada de novo, que a cantiga seria sempre a
mesma. Comia no quarto, absolutamente sozinha, considerando o processo de
ingestão do alimento à vista dos outros muito vergonhoso e humilhante para a
dignidade da pessoa. A mãe dela contou em tempos que Haddum, ainda bebé
de peito, parava de mamar se alguém entrasse no quarto e chorava
lamentosamente, só se acalmando quando os indesejáveis saíam do quarto.
Desde um ano de idade, comia sozinha, escondendo-se de toda a gente no
quarto de dormir dos pais.
Tendo em conta este hábito de Haddum, os lhos abandonavam o quarto mal
chegava a hora da refeição. A criada Zuhrá, mulher taciturna e bexigosa, com
um lenço na cabeça, que cou solteirona por causa da varíola que lhe deformara
a cara, ao veri car que a patroa estava sozinha, trazia-lhe a refeição na bandeja.
Haddum era pouco exigente e conservadora quanto à sua dieta: para o pequeno-
almoço, serviam-lhe o invariável mel com óleo de argão, azeitonas, pão de trigo
com côdea de espelta de moagem grossa e queijo de cabra macio; para o almoço,
a infalível sopa e o cuscuz com legumes — havia já mais de cinquenta anos que
não comia carne, desde o dia em que Ali faleceu de doença grave. O pequeno-
almoço e o almoço terminavam com o chá marroquino tradicional, Haddum
preferia chá sem açúcar, acompanhando-o com as minúsculas bolachas de
amêndoa. Jantava raramente, limitando-se a tomar, quase sempre, duas refeições
por dia. Depois do almoço, quando não fazia um calor abrasador, saía até ao
pátio, sentava-se por muito tempo debaixo da tamareira, deitando aos pássaros
migalhas de pão. Os pássaros esperavam-na em cima da cerca, numa la
chilreante. Ao verem que Haddum saía de casa, esvoaçavam num instante do
poleiro e precipitavam-se ao seu encontro, batendo as asas multicores. Haddum
sentava-se de maneira a poder contemplar o pico do Monte Calvo, que se erguia
por cima da fortaleza; esse monte, apesar da oresta espessa que lhe cobria os
declives, tinha um cume calvo como um cotovelo, daí o seu nome. Haddum
esmigalhava o pão para os pássaros e não desviava os olhos do monte que se
erguia para os céus como uma lança espetada — conhecia cada curva, cada ruga,
cada caverna da montanha. Havia já oitenta anos que a observava daqui, do seu
pátio, procurando de cada vez alguma coisa nova no seu aspeto, mas não
encontrava nada diferente: as árvores férreas continuavam altas como na sua
infância, os carvalhos pétreos tinham os troncos imutavelmente largos, os
cedros, cortando com as suas cúpulas o céu amarelo, continuavam inacessíveis, e
as cavernas mantinham as goelas escuras tão silentes e assustadoras como os
buracos no tempo — mergulhamos neles e já não encontramos o caminho de
volta. Aliás, os oitenta anos terrenos da Velha Haddum, em comparação com a
idade bíblica do Monte Calvo, não são mais que um bater da asa transparente da
libélula. Se havia alguém que reparava nas mudanças, era o monte: observava
com fria indiferença a fortaleza de pedra que cresceu no seu sopé trezentos anos
atrás. Ao longo desses trezentos anos, as caravanas passavam através da fortaleza,
levando à longínqua Agadir, onde se situavam os armazéns dos mercadores, as
cargas preciosas de sedas, cobres, trigos, azeites e óleos de argão, as especiarias,
os tapetes. As caravanas arrastavam-se ao longo da orla inferior da oresta
milenária do Monte Calvo, ao lado dos campos cobertos de arbustos de zimbro e
tamargais, através dos prados de oleandro, chamado aqui «louro rosado», até às
margens arenosas e aos oásis das baixadas. Ao longo de todo o caminho, as
cá las de camelos carregados eram acompanhadas pela guarda armada dos
berberes que, substituindo-se, passavam-nas como numa estafeta, de mão a
mão. Foi o pai de Haddum, o mulaí53 Ismail, o responsável pela segurança do
caminho ao longo do sopé do Monte Calvo até às primeiras dunas arenosas. Era
um gigante espadaúdo da tribo antiga dos berberes da montanha chamados
aari54 em honra do terreno de onde eram originários. O Monte Calvo era
património dos aari, gente de compleição gigantesca e espantosa beleza
forasteira: pele dourada, matiz ígneo do cabelo espesso, olhos azul-claros. As
mulheres da tribo aari eram consideradas as mais belas noivas do Médio Atlas, e
os homens, os mais desejáveis pretendentes para qualquer família respeitável.
Aliás, naqueles anos não havia casamentos mistos entre os representantes de
tribos diferentes, e aqueles que raramente aconteciam celebravam-se
exclusivamente para pôr m à hostilidade de sangue.
Ismail Laalluch, responsável pela paz nas terras dos aari, tinha um
destacamento de guerreiros a cavalo que defendia as caravanas das incursões dos
assaltantes. O próprio Ismail, homem devoto e respeitado, que não conhecia o
medo nem o ódio, somente um frio desprezo por aqueles que não cumpriam as
leis humanas, ganhou, pela sua incorruptibilidade e intrepidez, a estima não só
dos citadinos e mercadores, mas também dos tra cantes obscuros de escravos
que levavam para Essaouira os desgraçados homens, mulheres e crianças
destinados à venda. Os tra cantes contornavam à distância de milhas as terras
dos aari, e os assaltantes não se aproximavam das caravanas acompanhadas pelo
destacamento equestre do mulaí Ismail. Se, por qualquer razão, o pai de
Haddum algum dia não encabeçava o seu destacamento, os guerreiros eram
liderados pelo cavalo dele com uma jelaba azul-escura em cima da sela, com o
símbolo da linhagem Laalluch: a espada e o punhal cruzados, cujas pontas
tinham um adorno de ramos nos de oliveira. Este símbolo repetia-se nos
tapetes e tecidos fabricados pelas mestras da família Laalluch, e ainda no
ornamento artístico feito com tinta de hena que as mulheres desenhavam nas
palmas de mãos e nas plantas dos pés nos dias festivos. O mesmo símbolo era
tatuado na testa e nos pulsos de todas as raparigas da família Laalluch — como
um talismã, como herança dos antepassados, como um terrível aviso de que
qualquer tentativa de atentar contra elas seria punida pela ira dos homens da
tribo aari.
Com a passagem do tempo, essas tatuagens descoloriam-se, mas não
desapareciam por completo, e era possível distingui-las até nas caras enrugadas
das mais decrépitas velhas. Haddum era a última rapariga da família Laalluch a
quem zeram a tatuagem. Foi desenhada nela e em mais uma rapariguinha que
não tinha nada que ver com a sua família. Haddum não se lembrava do
verdadeiro nome da rapariga — o nome era lento e restolhava como uma mó
quando gira, transformando em farinha grosseira o trigo secado sob o sol cálido.
A Grande Maamma, avó do mulaí Ismail, sussurrou por cima dela uma reza e
deu-lhe o nome de Fatimá, e escondeu no fundo do pote das fragrâncias a
minúscula cruz tirada do seu pescoço. A miúda não viveu muito, dois ou três
meses, e morreu da pneumonia grave que a Grande Maamma, que curava todas
as maleitas, não conseguiu vencer. Foi enterrada na hora do ocaso, e as únicas
coisas de que Haddum se lembrava eram as plantas magoadas dos seus pés que
deixaram de sangrar só depois da sua morte e ainda os olhos negros de beleza
incrível orlados de pestanas compridas e espessas. O rapazinho sobreviveu. A
Grande Maamma deu-lhe o nome de Ali e, quanto à sua cruz de peito, não a
encontrou.
Foi o pai que trouxe as crianças — encontrou-as no trilho secreto dos
tra cantes. Deixaram-nas ali para se afogarem na sua própria tosse na margem
da planície arenosa que contornava em arco as terras dos aari. As crianças
estavam tão fracas que nem conseguiam beber sozinhas, ambas tinham calafrios,
deliravam numa língua qualquer lá deles, áspera, que arranhava o ouvido,
sufocadas pelos ataques de tosse, batendo na esteira com os calcanhares
macerados e ensanguentados. O miúdo não tinha mais de cinco anos, a rapariga
talvez nove, e eram espantosamente parecidos — de cabelo escuro, olhos
enormes e rosto de traços nos. Passada uma semana, o miúdo convalesceu, a
rapariga cou adoentada mais tempo, mas também melhorava pouco a pouco, e
foi então que surgiu a questão da tatuagem — a mãe de Haddum insistiu nela
para proteger a criança dos gozos das outras crianças. Se soubessem que ia
morrer, não a obrigariam a isso. Mas quem podia adivinhar? A Grande
Maamma tinha a certeza: se o miúdo se salvou, a rapariga também iria
recuperar a saúde. As conversas do que fariam com eles depois nem sequer
aconteciam na família de Ismail Laalluch, uma vez que deviam educá-los como
seus próprios lhos, ajudá-los a tornarem-se boa gente, e era tudo, não podendo
ser outra coisa.
Na primeira metade do dia, enquanto as demais crianças estavam na escola
primária, Ali brincava em casa; na parte da tarde, corria com a rapaziada pela
fortaleza, assustando os pardais, ou então brincava com pedrinhas até à alta
noite.
— Quando deixar de chorar, mandamo-lo também à escola — decidiu a
Grande Maamma.
Ali chorava de noite, no meio do sono. Gemia no mesmo tom triste de um
lobinho — u-u-u, u-u-u. Corriam-lhe lágrimas quentes e salgadas pela cara, a
Grande Maamma acordava, atravessava toda a casa, descendo do terceiro piso
para o primeiro onde dormiam os rapazes, sentava-se à cabeceira de Ali e rezava.
O menino não parava de chorar, mas acalmava-se, dormia enroscado, soluçando.
Quando acordava, não se lembrava de nada.
A rapariga, ao contrário do irmão, nunca chorava nem gemia. Durante todos
esses meses cou acamada no quarto da Grande Maamma, para onde esta a
trouxera a m de estar sempre ao seu lado. Naquele ano, Haddum fez treze anos
e foi encarregada de lavar o chão nos quartos de dormir. Uma vez por semana
batia à porta do quarto da Grande Maamma (ninguém entrava lá sem
autorização, nem sequer o pai), e depois esfregava o chão, tentando não olhar
para a rapariga deitada de cara para a parede com as plantas dos pés feridas e
untadas com óleo de eucalipto. Não chegou a pôr-se em pé — qualquer
tentativa de dar um passo acabava em cãibras fortes e hemorragia. A Grande
Maamma pedia, às vezes, que levassem a rapariga ao pátio, sentava-se,
arregaçando as suas saias e as mangas compridas da jelaba, desnudando os
pulsos tatuados, sentava a rapariga nos joelhos, apertava-a ao peito. A menina
guardava silêncio, com os olhos semicerrados, às vezes tossia, tremendo dos
ombros magrinhos, Ali punha-se ao lado, pegava-lhe na mão, mas depois,
cansado da imobilidade, deitava a correr, dando voltas e mais voltas pelo pátio,
a Grande Maamma cantava baixinho as tristes canções berberes sem desviar os
olhos do cume do Monte Calvo, e um enxame dourado de borboletas
efemerópteras voava por cima da sua cabeça.
Nunca chegaram a descobrir como as crianças caíram nas mãos dos tra cantes
de escravos — elas não compreendiam a língua berbere. Se a rapariga
sobrevivesse, então, ao aprender nalmente a língua, poderia pelos vistos contar
a sua desgraça. Mas morreu, e Ali era demasiado pequeno para se lembrar de
alguma coisa. A Grande Maamma, que observava as crianças com muita
atenção, um dia fez uma descoberta dilacerante: as crianças tinham muito medo
do grito do muezim do alto da almenara — o miúdo cava hirto, a rapariga
retinha o fôlego, só as suas pálpebras azuladas estremeciam. Mais tarde, as
crianças habituaram-se, deixaram de assustar-se, e a Grande Maamma cou
tranquila. Um dia, uma caravana que atravessava as terras dos aari trouxe a
notícia sobre os rios de sangue em que o Império dos Otomanos afundou os seus
povos. O mulaí Ismail soltou uma risada — os turcos já se tinham aproximado
das suas terras também, mas retiraram-se, lambendo as feridas —, porque
partiram os dentes contra as inexpugnáveis fortalezas berberes. Mas transmitiu
à Grande Maamma, palavra a palavra, o relato de que uma parte das pessoas fora
vendida para a escravidão pelos militares turcos. Ela suspirou gravemente,
meneou a cabeça. Era muito possível que as crianças fossem de lá. Mas, se assim
fosse, a única coisa que se podia fazer por elas era nunca mencionar o passado.
Não avives as feridas, senão, nunca aprenderás a ser feliz, acreditava a Grande
Maamma. Pediu ao neto que não contasse esta conversa a ninguém. Ismail
prometeu-lho e cumpriu a sua palavra.
Passado um mês, apesar de Ali continuar a chorar de noite, Ismail deu ordem
para o mandarem à escola e respondeu às objeções da Grande Maamma que a
mudança de ambiente ajudaria o rapaz a vencer os seus medos. Haddum
ofereceu-se para ajudar nos preparativos e passou vários dias a construir o
quadro de escrever. Ali não a largava, repetia as palavras, deturpando-as
comicamente. Haddum contava-lhe em todos os pormenores como se preparava
o quadro: primeiro, era preciso arranjar junto do lenhador um quadrado de
madeira do tamanho necessário, depois furar nele um buraquinho para o
pendurar no prego, depois poli-lo bem, até ao lustro mate, com uma mancheia
de argila dura. Ali ouvia sem compreender quase nada, mas Haddum tinha a
certeza: o miúdo, por um inexplicável instinto, descobria o sentido das suas
palavras.
— Na escola escrevem com penas cortadas do bambu, e a tinta provém do
cedro: acendem uma fogueira sobre as raízes da árvore que se aquece e chora
com lágrimas negras e viscosas. Depois, a parte queimada do tronco é retirada
com cuidado e coberta com uma infusão especial de ervas. A ferida da árvore
sara pouco a pouco, cobre-se de casca. O cedro continua vivo, mas junto às
raízes ca um pequeno buraco em que, enroscada, a pessoa pode proteger-se da
chuva. Compreendes-me?
— Compreendes-me! — repetia a rmativamente o rapaz e esboçava um
sorriso desdentado: caíra-lhe havia pouco o primeiro dente de leite, e a fenda
entre os dentes dava à sua carita uma expressão muito cómica. Haddum ria e
afagava-lhe a cabecinha topetuda. Ganhou-lhe um amor profundo, até gostava
mais dele do que dos próprios irmãos, talvez pela pena que lhe causava o rapaz
que por tantos sofrimentos passara. Sabe Deus por que martírios passaram estas
duas crianças, o rapaz e a rapariga, dois irmãos separados da família e levados
para um país alheio com a intenção de serem vendidos no mercado negro dos
escravos em Essaouira…
Ali dava valor à bondade de Haddum, correspondia-lhe com afeição recíproca
e, quando a sua irmã morreu, não falava com ninguém, só com ela, nos
primeiros tempos recusava-se a comer, apenas chorava, inconsolável,
introduzindo na sua incompreensível fala marulhante umas raras palavras
berberes: «dói muito», «ajuda-me». Quando Haddum não o conseguia acalmar,
a Grande Maamma tomava conta dele, saía com ele ao pátio, sentava-se de
frente para o Monte Calvo, levava o miúdo ao colo, sussurrava rezas. Ali
chorava, mergulhando a cara nas pregas da sua jelaba de seda.
Foi às aulas no início da estação das chuvas, nos primeiros tempos a própria
Haddum o levava e ia buscar à escola. Observava-o sorrateiramente pela janela
— Ali, o mais novo dos alunos, perdido e assustado, metia-se num canto,
apertando ao peito o quadro de escrever. A sua cabeleira com poupa destacava-
se, como uma mancha escura, no meio das outras cabeças ruivo-douradas, e
parecia que uma grande ave preta de penas eriçadas pousara na margem de um
prado orido e depois se esqueceu de voltar a voar.
O mulá que ensinava às crianças a ler e escrever era um homem severo e
in exível, os alunos guardaram para sempre na memória o peso da vara com que
lhes batia quando se distraíam das lições. Haddum, como ouvira da boca dos
irmãos muitas histórias sobre a crueldade do homem, preocupava-se muito com
Ali, mas não tinha razão: o rapazinho adaptou-se rapidamente ao processo de
estudo, passado pouco tempo já escrevia sem di culdade no quadro, com a pena
de bambu, as suratas do Alcorão e, depois, juntando a custo as sílabas, lia-as no
meio do barulho de vozes — os rapazes decoravam as suratas em voz alta, e cada
um a sua, diferente das dos outros — considerava-se que aquele que aprendesse
a ouvir a sua própria voz no meio da vozearia saberia distinguir no silêncio os
pensamentos alheios.
Na primavera, casaram Haddum com um seu primo em segundo grau — o
sogro era seu tio em segundo grau e a sogra era sua tia por a nidade. A casa do
marido era contígua à casa do pai de Haddum, com as cercas juntas e, para
visitar a Grande Maamma, não era preciso sair ao pátio, bastava subir ao telhado
plano de pedra, passar para o telhado da casa do pai e descer pelos pequenos
degraus para o terceiro piso. Por isso, Haddum não teve grandes emoções por
causa do casamento, mudou-se simplesmente de uma família dela para outra
também dela. Engravidou de imediato e, por altura da estação das chuvas
seguinte, deu à luz uma lha a que chamaram Aicha. Ali vinha às vezes para
brincar com a criança, Haddum sorria, olhando como ele tratava da pequenina
— cantava-lhe, brincava com ela, embalava-a.
— Quando cresceres, casas-te com ela — disse uma vez por brincadeira.
— Está bem — consentiu ele.
Foi isso mesmo que aconteceu. Passados dezasseis anos, Ali casou-se com a
lha mais velha da sua irmã adotiva e tornou-se seu genro. Mas, passadas mais
três temporadas de aguaceiros, depois de assistir ao nascimento do lho Iunes,
ele morreu de uma grave doença, incurável, que lhe atingiu os pulmões. Os
irmãos levaram-no a Casablanca para ser visto pelos médicos. Um deles voltou
passados dez dias, amargurado e desanimado, contou que foram obrigados a
deixar Ali no hospital sob observação médica, que estava muito mal e era
preciso ir lá rapidamente para se despedirem dele. Haddum preparou-se em
poucos minutos — levou os lhos a casa da sogra, vestiu a jelaba, correu ao
quarto da Grande Maamma — depois da sua morte ninguém vivia lá, e o
quarto encontrava-se praticamente no mesmo estado que em vida da velha.
Haddum não guardou na memória o caminho extenuante até Casablanca, a
única coisa que se lhe cravou na sua memória foi Aicha assustada, a embalar o
lho de três meses e o pai ao seu lado — Haddum, pela primeira vez, via o seu
pai tão desconcertado. A viagem foi longa: na carroça até à cidade próxima,
depois quase vinte e quatro horas no autocarro desengonçado pelo caminho
acidentado e poeirento, com o motor a fumegar e a gemer, Haddum assustava-
se e encolhia os pés, mas não largava das mãos a sacola, apertando-a com força
ao peito.
Ali estava muitíssimo fraco, mas consciente, como que à espera da despedida.
Era ainda muito jovem, tinha vinte e quatro anos, nenhuma branca na cabeleira
basta, os traços nos do rosto, os olhos enormes sem fundo.
Aicha pôs-lhe no peito o bebé adormecido, sentou-se ao lado, chorou.
— Não chores — franziu a cara Ali. Ela calou-se.
Haddum pôs na mesa de cabeceira a sacola, tirou dela o pote das fragrâncias
que encontrara no quarto da Grande Maamma, pegou na minúscula cruz,
meteu-a na mão dele.
— É tudo o que resta da tua irmã.
Ali percebeu o que ela lhe pôs na mão, apertou o punho com tanta força que
as pontas dos dedos lhe caram brancas.
— Obrigado.
Morreu na mesma noite, não chegou por pouco ao amanhecer. O doutor, que
estava sempre ao lado, perguntou depois a Aicha por que razão o falecido falava
a língua grega.
— Grega?
— Sim. Antes de morrer falou em grego. Estudei em Atenas, compreendo a
língua. Dez anos…
— O que disse ele? — interrompeu-o Haddum.
— Erkhome se sas. Vou ter contigo.
— Erkhome se sas — repetiu Haddum mentalmente. — Erkhome se sas.
Ali foi enterrado em Casablanca. Voltaram no mesmo autocarro — durante
todo o caminho, trincolejava, o motor falhava, o motorista mexia nele,
insultando-o, chamando-lhe iblis55, Haddum apertava ao peito o pote das
fragrâncias, o turbilhão de areia arranhava o vidro baço, Iunes dormia, estalando
com os lábios expressivos herdados ao pai, a sombra das pestanas fofas caía-lhe
na bochecha.
Passados três anos, Aicha voltou a casar-se, teve ainda cinco lhos. Haddum
foi avó pela primeira vez aos trinta e um anos, e aos cinquenta já tinha vinte e
oito netos — dez rapazes e dezoito raparigas. Tratava-os a todos da mesma
maneira, mas mesmo assim gostava mais de Iunes — o único descendente
moreno da grande família Laalluch. Iunes sabia que era grego e que os seus
antepassados eram cristãos, mas mantinha-se na religião da família que adotara
o seu pai, cumpria rigorosamente o jejum do mês do Ramadão, tirou o curso de
Medicina, mudou-se para Marraquexe, casou-se com uma árabe, o que partiu o
coração da sua avó — Haddum, berbere de puro sangue, tinha pelos árabes
barulhentos uma atitude de certa descon ança e ligeiro desprezo — o que se
pode esperar desses adventícios descarados? Logo depois do casamento, os
recém-casados vieram de visita, e Haddum, que naquela altura já se mudara
para o quarto da Grande Maamma, tratava a mulher do neto com reserva, quase
com frieza, e ganhou um ódio profundo à gata dela (não lhe bastava vir cá,
ainda por cima trouxe esta criatura pulguenta!). Para sua desgraça, a gata
escolheu para os seus banhos de sol o terceiro piso da casa, e Haddum por várias
vezes tropeçou nela quando saía do quarto. Uma vez, quando a gata, saltando-
lhe de baixo dos pés, rolou da escada com um rugido zangado, Haddum, fora de
si, arremessou-lhe um chinelo. Sana, a mulher de Iunes, sábia apesar da jovem
idade, ngia não reparar na antipatia da velha senhora, era bem-educada e
atenciosa para com ela. Para agradar aos parentes do marido, todos os dias cozia
pão — pão verdadeiro, berbere, com a côdea de farinha de moagem grosseira.
Haddum recusou-se a comê-lo, queixando-se de azia, e pediu que lhe
trouxessem pão feito pela nora mais jovem. Durante duas semanas gabou esse
pão, acentuando o facto de que só as raparigas da tribo aari sabiam cozer
corretamente o pão berbere. Os familiares trocavam sorrateiramente olhares,
mas calavam-se. Uma vez, ao sair do quarto mais cedo do que era costume,
Haddum viu como Sana estava a mandar Iunes a qualquer lado, e este, levando
debaixo do braço um embrulho com uma fatia de pão, saiu da cerca, esperou
um pouco, depois voltou, batendo com a cancela ruidosamente, de propósito.
Haddum voltou ao seu quarto, sentou-se no catre, sorriu. No peitoril de pedra
alumiado pelos raios do sol nascente, estava o pote das fragrâncias.
— Queres dizer que, com a idade, o meu carácter começou a piorar? —
perguntou Haddum. Não sabia a quem estava a dirigir-se — à Grande
Maamma, a Ali, à cruzinha da sua irmã ou simplesmente ao pote. O importante
era ouvir a resposta. E ouviu-a.
— Sana, lha — chamou, assomando-se à porta.
Em baixo, na sala de estar barulhenta onde estavam a pôr a mesa para o
pequeno-almoço, fez-se um silêncio de alerta.
— Miau! — respondeu, rabugenta, a gata.
«Que Alá te transforme num cão!», retorquiu mentalmente Haddum, mas
logo a seguir arrependeu-se e admoestou-se a si própria.
— Sa-ana! — voltou a chamar.
— Sim, vovó — disse a árabe, batendo com os saltos na escada.
— A partir de hoje, vou comer o pão que tu fazes — comunicou-lhe Haddum
e, sem esperar pela resposta, fechou a porta. — Não me peças mais do que isto!
— espetou o dedo no pote das fragrâncias. O pote, sensatamente, guardou
silêncio.
A vida mudava tão vertiginosamente que Haddum não tinha tempo não só de
se habituar, mas também de reparar nessas mudanças. Contudo, algumas coisas
não escapavam à sua atenção. Na fortaleza foi instalada luz elétrica, a água
canalizada apareceu nas casas — já não era preciso trazê-la dos poços, dando
cabo das costas. Uma vez, explodindo o ar com um estrondo insuportável,
rodou pelas ruas um montão de metal, a que toda a gente chamava, com
veneração, mobilette, conduzida pelo lho do zarolho Hakim. Haddum até foi
ver essa tal mobilette. Não valeu a pena. O lho de Hakim consertava-a à
martelada e com o aparelho de soldar, ora solda, ora martela, e abastecia-a, a
olho, com uma mistura de óleo e gasolina. A mobilette deitava tanto fumo, que
Haddum, depois, teve náuseas metade do dia.
Passado algum tempo, na sala de visitas instalaram solenemente uma
televisão. Haddum menosprezou-a durante um mês, depois não aguentou,
desceu para dar uma vista de olhos. Os familiares, rindo, viam um espetáculo
com dois homens que, gozando com a complicada cozinha marroquina,
contavam o método de cozinhar uma perdiz. «Pegamos numa perdiz,
recheamo-la com cuscuz. Pegamos numa galinha caseira, recheamo-la com a
perdiz. Pegamos num ganso, recheamo-lo com a galinha. Recheamos um
carneiro com o ganso, uma vaca com o carneiro, um camelo com a vaca, um
elefante com o camelo. Assamos durante 24 horas em lume brando, regando
com molho. Serve-se do modo seguinte: corta-se o elefante, tira-se o camelo, do
camelo tira-se a vaca, da vaca o carneiro, do carneiro o ganso, do ganso a
galinha, da galinha a perdiz. Comemos a perdiz com o sentimento de dever
cumprido porque cou maravilhosa.»
Haddum abanou a mão, saiu ao pátio, sentou-se virada para o Monte Calvo.
Tinha vivido tanto tempo que se sentia a si mesma um monte. Aprendeu a ver a
vaidade humana alheadamente e de longe, e resignou-se com o seu caráter
efémero. Chegará o dia de amanhã — e não haverá nada: nem as ruas tortas de
pedra, nem as paredes com azulejo colorido, nem as portas decrépitas,
carcomidas pelo bicho da madeira, nem as copas das tamareiras queimadas pelo
sol — passamos a mão por tudo, e desaparece, reduzido a pó de palha.
«A vida é parecida ao sonho do meio-dia, curto, colorido, cálido — pensava
Haddum. — Soa com o riso dos nossos lhos, verte-se em lágrimas pelos nossos
familiares mortos. Cheira a oceano, a vento do deserto, a panquecas de milho, a
chá de hortelã — cheira a tudo o que não podemos levar connosco.»
Haddum raramente falava com Alá — evitava incomodá-Lo com ninharias.
Ficava triste, observando a grande azáfama que as pessoas estúpidas levantavam
à volta d’Ele. Nunca fez o Haje, mas punha de lado escrupulosamente o
dinheiro que teria gasto com a peregrinação e doava-o a alguma família
necessitada. Sabia que a fé devia estar no coração, e não à mostra.
Por vezes, embora raramente, atrevia-se a dirigir-se a Ele. Pedia que lhe
mandasse um sinal quando chegasse a sua hora. Para ter tempo de se lavar, de
vestir roupa limpa, de ler a chahada, oração de despedida.
— E se for possível — acrescentava, levantando ao céu os seus olhos
descoloridos —, deixa-me ainda um meio suspiro para eu repetir as palavras
que Ali disse antes da morte.
Haddum acreditava que eles iam ouvi-la, o rapaz e a rapariga salvos em
tempos pelo seu pai, crianças desgraçadas que não conseguiram escapar ao seu
destino amargo. Quando chegar a hora, no m do seu último suspiro ela vai
repetir as palavras de Ali: erkhome se sas. Alá é misericordioso, vai permitir-lho.

53 Mulaí — tratamento respeitoso para homem. (NT)


54 Aari — montanha (berb.). (NT)
55 Iblis — demónio, Satanás. (NT)
A GUERRA

A MINHA GUERRA

Não me lembro quando ela, a minha guerra, começou.


Talvez no dia em que a minha prima Luciné deixou de sair da cave. A cave era
o único lugar onde era possível à gente proteger-se dos bombardeamentos. Se
acontecesse um impacto direto no prédio, ninguém se salvava. Não havia onde
se esconder, e a família do meu tio corria para a cave. Os grandes karás de barro
estavam em la ao longo das paredes, esses karás lembravam-se das mãos da
minha avó Tata. Os gos dourados e transparentes estavam a amadurecer nas
prateleiras largas, bastava tocá-los para verterem lágrimas doces e viscosas.
Num canto, havia uma velha otomana de madeira, larga, com o encosto
talhado, com tinta escura descascada nos braços. Luciné sentava-se com os pés
na otomana e abraçava os joelhos. Às vezes chorava silenciosamente.
Quando os projéteis caíam muito perto, a casa gemia como um ser vivo.
Cambaleava, suspirava gravemente. Migalhas de pedra caíam.
Talvez fosse no dia em que a minha prima Luciné se recusou para sempre a
sair da cave e, quando tentavam convencê-la a espreitar, pelo menos, para o
pátio, a sua cara cobria-se de lividez, faltava-lhe o ar, desmaiava — terá sido
precisamente nesse dia que começou a minha guerra?

Ou foi no dia em que, depois dos exames na faculdade, eu regressava de


Erevan para casa? Dez horas in nitamente longas por um terreno intransitável
— a única estrada cou do outro lado da fronteira — e o enorme autocarro
Icarus atolava-se pelos joelhos na lama da estreita serpentina montanhosa. Pela
berma, com as lagartas perigosamente à beira do abismo, movia-se um
minúsculo e gasto trator, rebocando o nosso autocarro impotente.
Depois começou o canhoneio. Escondermo-nos era impossível, o declive onde
cámos atascados era visível do outro lado como às palmas das mãos. À espera
da morte, os homens não se mexiam, protegendo com os seus corpos as
mulheres e as crianças. Só o trator, sem prestar atenção aos tiros, continuava a
puxar teimosamente o Icarus.
— Deixa-te disso — gritavam-lhe —, deixa-te disso!!!

Mas o trator não desistia. Com um ruído desesperado, continuava a subir, a


subir, e as pessoas, durante algum tempo, olhavam para ele como que
hipnotizadas e não tardaram a ir atrás dele, até as crianças deixaram de gritar,
apenas choravam baixinho e as mulheres se lamentavam com amargura.
— A morte é menos pavorosa em andamento — gritou à despedida o
tratorista, homenzinho de cabelo branco, casaco ensebado e calças amarrotadas
metidas dentro das botas de pano-couro. Abanou a mão e foi descendo de volta
pela serpentina — era preciso libertar da prisão da lama mais um autocarro de
carreira. Os heróis têm sempre caras muito simples, só no cinema eles fazem
trejeitos com os músculos do rosto, salvando o mundo. Os verdadeiros heróis
têm sempre caras muito singelas.
— Já é o quinto dia que ele trabalha sozinho neste troço do caminho —
contou depois o motorista, virando até à represa. — Está dia e noite aqui na
passagem dos montes.
— Não há ninguém para o substituir?
— Não há. O segundo tratorista foi morto na semana passada.
— A morte é menos pavorosa em andamento — lembrou-se alguém das suas
palavras.
— O seu substituto foi morto precisamente em andamento — abanou a
cabeça o motorista. — Aliás, tem razão, é claro. Mais vale fazer alguma coisa do
que esperar com submissão.
Terá sido nesse dia que começou a minha guerra? Naquele momento
humilhante de desamparo absoluto em que nos sentimos alvos vivos e nada
mais. NADA mais.
Ou foi no dia em que uma bomba acertou no jardinzinho da nossa casa? A
noite ia alta, a onda de choque de uma explosão partiu as janelas, as minhas
irmãs, que dormiam, foram arremessadas ao chão, caíam de cima os estilhaços
de vidro, rasgões dos cobertores estraçalhados e das cortinas carbonizadas num
instante giravam no ar… A Gaiané, depois, não dormia de noite durante várias
semanas e mirava com aqueles seus olhos dourados e assustados de tal modo que
me apetecia apertá-la ao peito e não a largar. A Sónetchka tinha apenas dez
anos, e eu, comparando-me com ela aos dez anos, uivava de dor: como somos
diferentes, que infância mais difícil era a que a ela calhava…

O nosso pai nunca estava em casa. Quando vinha, deitava-se ao pé da porta.


Para poder correr ao hospital mal ouvia a sirene da ambulância — as
ambulâncias só ligavam as sirenes quando levavam feridos, existia esta regra
tácita para alertar os médicos. Muitas vezes o nosso pai tinha de ir ao hospital
durante os bombardeamentos. E não sabíamos se ele tinha lá chegado bem ou
não, porque não havia maneira de telefonar, os telefones estavam mudos.
Uma vez encontrou no meio da rua um jovem a sangrar, mortalmente ferido
— um estilhaço partira-lhe a coluna vertebral.
— Doutor — gemeu ele quando o meu pai o colocou no assento traseiro do
carro —, doutor, eu vou viver, não vou?
— Ainda vamos festejar o teu casamento — prometeu-lhe o meu pai.
Não conseguiu chegar ao hospital com ele vivo. Naquele dia embebedou-se
terrivelmente, disse que sentira sicamente que a morte levou o rapaz.
O carro lavado com lixívia cou parado com as portas abertas durante uma
semana, mas o cheiro pesado a carne queimada não se dissipou. Foi preciso fazer
forros novos, depois o nosso pai vendeu o carro. Não conseguia andar nele.
Não sei quando começou a minha guerra.
Lembro-me de que, no seu auge, era um verão tardio, cálido, languidamente
maravilhoso, com cachos maduros de estrelas muito baixos.
Aos olhos das pessoas, tanta beleza parecia gozo. Observar a dança das cores
num momento em que a nossa vida é uma tortura é ainda mais penoso. A
guerra ou transforma os seres humanos em ateus ou em profundamente crentes.
Não lhes é dada uma terceira via. A guerra, em geral, não tolera os meios-tons e
as meias insinuações. Ela odeia-nos com toda a alma e não exige uma atitude
condescendente para consigo própria. É uma adversária de força sobre-humana e
abominável.

Pensei que enterrara a guerra ali, nos montes. Mas, desde que uma vez a
olhámos nos olhos, ela já nunca mais nos deixa em paz. A guerra irá sempre
voltar para nós como um delírio peganhento, com visões estranhas, com ataques
incontroláveis de medo, com lágrimas sem motivo…
E de cada vez, como se procurássemos a salvação, corremos ao quarto do lho,
rastejamos de joelhos até à sua cama, torcemos a boca num choro silencioso,
beijamos-lhe os caracóis macios, afagamos-lhe as mãos e sussurramos: Deus
Nosso Senhor, nunca, Deus Nosso Senhor, nunca, Santo Deus, nunca mais!

ZANAZAN
— Zanazan! Ó Zanazan! Queres uma pera?
Zanazan tem as pestanas longas e os olhos liláceos. O cabelo é basto, cor de
cobre, sem brancas. Coleia em madeixas desobedientes junto às têmporas.
Dou-lhe a pera. Olha através de mim, o seu olhar é imóvel.
— Toma lá a pera, Zanazan.
Abana a cabeça.
A pele de Zanazan é olivácea, com sardas ruivas. É extraordinária, não há
outra como ela.
— Mas o que te posso dar, com que te posso regalar?
Ela tapa a boca com as costas da mão — vejo a sua linha da vida pouco nítida,
curta, acaba a meio caminho.
— Zanazan?
— Hum?
— Fala comigo.
Silêncio. Os seus dedos são pálidos, compridos, no indicador da mão esquerda
tem um anel simples. Está de pé, cruzando comicamente as pernas. No
tornozelo tem um arranhão em semicírculo.
— Quando foi que te feriste?
Faz um trejeito com os ombros. Sorri, distraída, como para dentro de si.
Apetece-me abraçá-la, apertá-la ao peito, mas não se pode. Zanazan não gosta
que lhe toquem.
— Se eu soubesse, desenharia o teu retrato.
Olha com descon ança. Hesita um pouco, mas pega na pera.
— Diz-me alguma coisa, Zanazan.
Ela sai, fechando com cuidado a porta.
Com o olhar interior, sigo-a a descer os degraus — um patamar da escada,
outro. Emerge do frio do vestíbulo de entrada para o pátio banhado de sol.
— Zanazan! Ó Zanazan! — grita-lhe a rapaziada.
Ela caminha sem virar a cabeça, com a trança lançada por cima do ombro e
apertada na ponta com um elástico ridículo.
Vinte anos antes houve guerra. Ela estava grávida. As contrações começaram
durante um bombardeamento. Era impossível chamar a ambulância — os
telefones estavam mudos. Era impossível pedir ajuda aos vizinhos — como se
podia obrigar os outros a arriscarem a vida? Aguentou até à última
possibilidade. Quando as dores se tornaram insuportáveis, ela e o marido foram
ao hospital. Sob as bombas. O marido foi cortado pelos estilhaços, não
conseguiram salvar o bebé.
— Zanazan! Ó Zanazan! — grita-lhe a rapaziada.
Ela caminha sem virar a cabeça.
Vive com a sogra velhinha.
— Com quem te vou deixar quando morrer? — chora a sogra.
Zanazan sorri meiga e despreocupadamente. Dá a pera à velhota.
— M-mm-m.
Tem pestanas compridas e bastas, olhos liláceos. Alguém já viu olhos liláceos?
Eu vi. Os de Zanazan.

EU VIVO
Vika diz que não há tempo nem distância, que cada encontro nosso é
predestinado, tal como cada despedida. Diz: não chores se levaste alguém da
família, não chores se te levaram alguém, tu não decides nada, segues
simplesmente o rasto traçado por aquele que inventou a tua vida desde o
primeiro ao último dia. Con o em Vika mais do que em mim própria. Ela
estava onde não me calhou estar, viu o que não vi nem em sonhos. Vika
encontrou-se com os anjos — são diferentes, alados e incontornáveis, alguns
têm caras tão medonhas que dói olhar para elas. Vika sabe desenhar o mundo do
além em tons de aguarela tais que até parece o seguinte: a pessoa que criou essas
coisas nunca conheceu a desgraça. Se lhe perguntarmos o que ela viu e sabe,
responde: nada. E olha por cima do nosso ombro. Ela é uma parte da minha
alma que me apetece cobrir com as mãos e não mostrar a ninguém. É um bem
meu, querido e secreto. Não dou.
Marina diz: o que inventaste desta vez, e para quê? Deixa-te disso já, tens
tanta coisa maravilhosa pela frente e metes-te nesses disparates. Tira tudo isso
da cabeça, já, diz Marina. Às vezes conta coisas — com uma voz baixinha e
prosaica — sobre as pessoas que estão sempre com ela, sobre o tio velhinho
Vanó que aguentou até à última possibilidade na sua Sukhúmi, todos partiram,
mas ele cou porque a casa e a vinha… com quem as ia deixar? Espancavam-no,
ameaçavam mutilá-lo, mas ele aguentava e só deixou de resistir quando tudo
isso se tornou insuportável, foi para casa da lha com um molho de alhos e de
meias diferentes, morreu de saudade. Ou sobre o sobrinho, ordenaram-lhe que
deitasse fora um embrulho que trazia da casa do pai, abandonando-a para
sempre, deita isso fora, disseram-lhe e bateram-lhe com a culatra nas costelas,
recusou-se, e fuzilaram-no, e quando o embrulho caiu no chão e se desfez,
espalharam-se em leque as fotogra as da família — avôs e avós georgianos,
acácias no jardim botânico e a costa quente do mar. Não haverá mais nada disso
na nossa vida, nunca, diz com rmeza Marina e olha-me nos olhos. Con o nela
mais do que em mim própria. Ela é uma parte da minha alma que me apetece
mostrar nas palmas das mãos e de que me gabo: olhem, vejam o que eu tenho. É
meu, querido e secreto. Não dou.

A minha vida compõe-se de quadros-recordações, alguns deslavam-se com a


passagem dos anos e desaparecem, outros não querem saber do tempo nem das
distâncias. Por exemplo, as sandálias. De sola alta, com correias de cabedal bege
e velas douradas. Eram demasiado grandes, vários tamanhos acima, por isso a
menina andava como um funâmbulo kiandrbaztchi — abrindo os braços. O
vestido era de musselina, macio, de cores lilácea e azul-turquesa, a aba comprida
voava ao vento, no pulso esquerdo baloiçava uma pulseira de ouro — ela
apertou o punho para a pulseira não deslizar. Era, pelos vistos, o ano de 1992, a
minha cidade, na periferia do país, em guerra, sem sossego, em bruma cinzenta,
riscada pelas sombras rotas que se estendiam de cada casa semidestruída, a
minha cidade perdida e desconcertada olhava, encantada, para a menina de dez
anos que ia pela rua fora — de vestido de senhora, de sandálias com sola alta e
com joias caras. Depois, alguém caiu em si, barrou-lhe o caminho, estendeu-lhe
silenciosamente a mão. Ela, con ante, deu-lhe a sua. E levou-a para casa. Lá, a
história era muito banal para a guerra — a mãe e o irmão mais novo morreram
durante o bombardeamento, a menina e o seu pai caram sozinhos. Um dia,
várias semanas depois do funeral, ela vestiu as coisas mais bonitas da mãe e saiu
para a cidade em guerra. Andava — e sorria.
Quando a recordo, muda-me o timbre da voz e os meus olhos embaciam-se,
mas Vika diz que não nos está destinado andar pelos caminhos por que já
passámos, e a Marina diz: tudo o que deixámos para trás nunca vai voltar, e
con o nelas mais do que em mim própria porque de outro modo é impossível:
ou se tem fé e se vive, ou se renega e se morre. Eu vivo.
BERD

JANEIRO
De todas as estações, nós as crianças destacávamos só o inverno. Talvez porque
não era tão longo como desejávamos. E com menos neve do que na passagem
dos montes que nos separava do resto do mundo — a neve amontoava-se no alto
dos montes e mantinha-nos no cativeiro até à primavera.
O inverno chegava em janeiro. Girava e girava com o vento frio por cima das
casas cansadas da espera e depois, numa só noite — de chofre aquietada —,
cobria-as com uma colcha macia. Acordamos de manhã e vemos do outro lado
da janela um mundo que parece ter sido apagado com uma borracha. Apenas
aqui e ali, como fragmentos de esboços a lápis, vemos um bocado da cerca de
madeira ou um trilho solitário deixado no caminho por uma carroça.
Fartos de brincar na neve, corríamos em chusma barulhenta à casa da nani56.
Tirávamos com os dentes as luvas cobertas de gelo, descalçávamos as botas,
atirávamos os casacos e os chapéus para cima da tarimba que estava no corredor
e corríamos, batendo os pés pelo soalho — até hoje lembro-me do rangido
ofendido das tábuas — para a cozinha. A nani esperava-nos. Servia-nos uma
espessa sopa de feijão, punha em cima toucinho frito, cortava a couve roxa de
salmoura, esfregava com alho fatias de pão caseiro aquecidas no fogão…
Mmmm, não conheço nada mais saboroso do que uma simples comida aldeã.
Depois do almoço farto, sentava-nos à sua volta e contava uma parábola sobre
os anjos de sete asas. Aqueles que têm cada asa de alguma das cores do arco-íris,
com as penas, cada uma das quais mata sete devs sinistros. Os devs saem de noite
de trás da extremidade do mundo para roubar as almas das pessoas adormecidas,
mas os anjos arremessam-lhes as suas penas como echas.
— Então, enquanto vocês dormem o bem e o mal lutam para conquistá-los —
assim concluía a nani a sua história.
— Mas o que fazem eles de dia, quando não dormimos? — perguntava
sempre alguma criança.
— Os anjos deixam crescer asas novas e os devs, novos colmilhos.
Ouvíamos, retendo o fôlego. A minha irmã mais nova não aguentava a tensão
e começava a soluçar. «Chiu!», mandava-a calar toda a gente, e ela, coitadinha,
tapava a boca com a mão.
Uma vez, quando a nani, a nosso pedido, começou de novo a contar a sua
história, entrou na cozinha o tio Jora que, naquele ano, ingressara no instituto
politécnico. Ao ouvir a história dos anjos de sete asas, começou a perguntar
como é que eles voavam.
— Como as aves — respondeu a nani com dignidade.
— Sete não se divide por dois, certo? — insistiu o tio.
— Certo.
— Quer dizer, três asas estão atrás de um ombro e mais três atrás do outro.
Onde estará então a sétima asa?
A nani atrapalhou-se. E nós cámos tristes — o mito dos anjos estava a
desmoronar-se a olhos vistos. A minha irmãzinha até deixou de ter soluços, os
seus olhos banharam-se de lágrimas. Nisto, o meu avô irrompeu no quarto e
deu ao tio Jora uma valente cacholeta.
— A sétima asa é de reserva, está bem? Presa a uma correia. Haverá mais
perguntas?
O tio Jora não tinha mais perguntas.

FEVEREIRO
— Ontem telefonei-te oito vezes. Mas não atendeste — ofende-se a minha
mãe.
— Telefonaste? O meu telefone não deu sinal.
— Telefonei-te pelo Skype!
— Mãe, sabes, ao menos, se eu estava na rede?
— Sei lá!
A minha mãe tem maquilhagem, brincos, um lenço no pescoço, um penteado.
Desfaço o meu rabinho de cavalo, aliso as sobrancelhas. Escondo as mãos para
ela não ver a ausência de manicura.
— És a minha beldade — diz a mãe.
Assinto com a cabeça. Sim, sou uma beldade. Quem disser o contrário, será o
seu inimigo número um. E não sou doida, não vou estragar as relações com a
minha própria mãe!
— Nariné, encontrei uma excelente receita de máscara. Escreve. Ralar no ralo
pequeno 40 gramas de saramago, acrescentar duas colheres de chá de gengibre
triturado, cobrir com água a ferver… Estás a escrever?
— Si-im!
— Estás a mentir?
— Não.
— Achas que não sei que estás a mentir? Escreve, vá.
Sou obrigada a escrever e depois ainda a ler em voz alta. Deus me livre de
omitir alguma coisa.
— Preparámos uma pequena encomenda para vocês — diz a mãe como que
por acaso.
— Mais uma? — assusto-me. — Ainda não comemos a do Ano Novo.
— Gabardinents Ervand vai a Moscovo. Como é que o homem pode ir de
carro vazio?
— Que vá de carro vazio.
— Não quero saber. Chega daqui a três dias. Dei-lhe o teu endereço. Vai levar
tudo diretamente a vossa casa.
— Consegue encontrar?
— Consegue. Tem aquilo, como é? O aparelho para indicar o caminho.
Gipirecé.
— Mamã! — Sufoco de riso.
— Zakhrmar!57. Então como é que se diz? Gipiceré?
— GPS, dji-pi-ésse!
— Não me chateies, foi isso mesmo que eu disse. Numa palavra, esperem.
Será para breve.
— Mas quem é esse tal Gabardinents Ervand? E porque se chama
Gabardinents? O seu antepassado foi o primeiro em Berd a vestir gabardina?
— Não sei. É preciso perguntar ao teu pai. Conhece bem a família
Gabardinents. Tem-lhes tratado dos dentes toda a vida.
Sim, a encomenda chega sem atraso, três dias certos depois. Reconheço de
imediato a carrinha de Gabardinents Ervand. Em primeiro lugar, pelo tejadilho
enferrujado e os lados desbotados. Em segundo, por uma pequena multidão de
citadinos curiosos que, esquecidos da soberba da capital, rodearam a máquina
pré-histórica de todos os lados. Em terceiro, pelas rodas tortas e pelas molas
encurvadas para o lado contrário. Mesmo do meu décimo sexto andar via-se que
o carro vinha sobrelotado.
Gabardinents Ervand é um homenzinho extremamente prestimoso e de
bigode enorme.
— Tenho muito respeito pelo teu pai, por isso, lha, foste a primeira a quem
vim — e extrai do carro um enorme baú —, mostra-me o caminho, para onde o
levo?
Entra no apartamento com muito respeito, estala a língua com admiração,
olhando para a arca de madeira envelhecida, apalpa os radiadores do
aquecimento central — não têm frio? Não? Muito bem! Passa os olhos pelas
paredes, encontra na prateleira um bilhete postal com o desenho do Ararat e
acalma-se. Recusa-se a almoçar e, depois de tomar uma chávena de café, começa
a despedir-se:
— Tenho de ir. Ainda devo passar por Novokossinó. Depois, por Mitíchi.
Para entregar as encomendas.
— Muito obrigada.
— Porquê obrigada? Uma pessoa não pode andar de carro vazio. Por isso
trouxe as prendas. É bom para vocês, e é um prazer para mim.
Acompanho o mensageiro de Berd até ao elevador, volto ao apartamento.
Desembrulho as prendas embaladas com amor. Cinco quilos de mel, um saco de
nozes descascadas, duas garrafas de vodca caseira de cornizolo. E também um
pouquinho disto, um pouquinho daquilo: presunto caseiro (uma perna inteira),
basturmá, sudjukh58. Três quilos de lavach de farinha de alta qualidade. Brinza
curada caseira. Saquinhos com verduras secas.
Podemos não ir às compras até à primavera.

MARÇO
Descubro os meus conterrâneos num segundo, com um faro animalesco.
Levei as botas para o sapateiro.
Um homem corpulento, de olhos azuis e cabelo loiro-escuro, está a passar a
minha fatura. Pelo aspeto físico, é um habitante típico das terras centrais da
Rússia. Mas eu vejo que é nosso. Ainda por cima da mesma terra, de Berd, ou
talvez de Karabakh.
— Bom dia — digo eu —, queria mudar os reforços.
No inverno, uns imbecis quaisquer desenharam uma suástica na porta desta
o cina. O sapateiro pintou-a com tinta, transformando os quatro braços em
pétalas. Saiu uma folha de trevo, um pouquinho torta. Símbolo de felicidade.
Pega nas botas, examina os tacões, carrega o sobrolho, descontente. Posso
apostar que está a pensar: «Vê-se logo que não é de fabrico arménio. Se as
zessem os arménios, os reforços não teriam caído tão depressa.» Oh, esta
grande presunção dos povos pequenos!
— Trezentos rublos — diz ele, começando a passar a fatura. — O seu
apelido?
— Abgarian — respondo, escondendo o sorriso.
Levanta os olhos:
— Da Arménia?
— Sou. E o senhor?
— Também.
— De onde?
— De Berd.
— Já sabia! Percebi de imediato que é meu conterrâneo.
— É lha de quem? (Nunca perguntam o primeiro nome. Sempre « lha de
quem?» Ou «de que família?»)
— Do doutor Abgarian.
— Oh, e eu sou da família Melikian. Sei que a sua avó também era Melikian.
Então, setenta rublos. Cobro apenas pelo material, o trabalho é oferta.
— Não, é inconveniente para mim. Deixe-me pagar como toda a gente.
— Não me ofenda, irmã. Ou não venha mais aqui, ou pague o que lhe disse.
Regateei desalmadamente. Paguei cento e vinte rublos.
Há dias, estou a voltar a casa depois de fazer compras, e ele assoma-se da
janela pela cintura.
— Espere. A senhora é Nariné Abgarian?
— Sou.
— Um momento! — Sai a correr da o cina, abana um livro.
— Assine, por favor, para as minhas lhas. Há uma semana que espero por si,
percebi que é a senhora pela fotogra a no livro.
— Como se chamam as suas lhas?
— Dária e Mariné.
— Deram-lhes nomes de origem diferente?
— Sim, a minha mulher é russa. Foi uma partilha honesta.
— E se tiverem um rapaz?
— Se tivermos um rapaz, damos-lhe um nome inde nido.
— Como é isso, inde nido?
— Maxim. Dá para ambas as partes.
Rimos.
Faço uma marca na memória: Stepan Melikian, sapateiro, lho de Amiram
Melikian. Basta puxar o o — e as recordações transformam-se numa ta de
Möbius — por mais longe que nos afastemos, voltamos sempre ao ponto de
partida. Uma casa de pedra com terraço de madeira escurecido pelo tempo, um
grande pomar de macieiras, uma amoreira obrigatória no pátio — em junho,
Amiram vai sacudir as bagas maduras, doces, batendo ligeiramente com um
pau nos ramos. E os familiares vão apanhar no toldo grande as bagas que
escurecem vertiginosamente por causa do suco meloso.
O toldo responde, rufando como um tambor, à queda da fruta. Se nos
escondermos debaixo dele, parece-nos que está a cair um verdadeiro granizo. O
pequeno Stepan expõe as costas às bagas cadentes, solta «oi-oi». Sai gatinhando,
feliz, pegajoso e doce como um sorvete, coberto de cabeça até aos pés com o
sumo das amoras.
As bagas frescas serão para cozer doce e para xarope, das bagas fermentadas
farão uma vodca caseira — insuportavelmente pesada, se a bebermos, daremos
graças a Deus por termos sobrevivido. Em Berd, bebem o que os forasteiros são
incapazes de digerir. Verdade verdadeira, o que é bom para os nossos, para os
outros é mortal. É o nosso esteio.

A porta da o cina fecha-se com barulho — Stepan foi receber mais uma
encomenda. Estou especada, aturdida, no meio de Moscovo. A neve de março
rodopia no ar. Se a apanharmos na ponta da língua, sentimos o sabor da
nascente dos montes. E um pouquinho de campainhas-brancas.

ABRIL
— Os jovens, hoje em dia, são espertos, não se discute com eles!
A velhinha Iassaman sacode do avental as migalhas invisíveis, puxa a manga
do vestido escuro. Aperta na nuca o lenço num nó pesado, lança as pontas por
cima do peito. Senta-se na beira da otomana rangente, junta as mãos nos
joelhos, abana tristemente a cabeça.
— Disse ao Míchik assim mesmo: se quiseres, casa-te. Porque não posso
proibir-lho. Mas a noiva, além de que não é arménia, nasceu na cidade, não
conhece as nossas regras, não sabe cozinhar nem servir. Estendeu do avesso a
roupa lavada — fui obrigada a estendê-la como deve ser, à pressa, para não ter
vergonha aos olhos dos vizinhos.
Iassaman levanta-se com di culdade, tira da gaveta da cómoda um saquinho
de papel amarrotado, deita algumas migalhas de incenso numa taça especial,
acende o fósforo. O quarto enche-se do fumo adocicado da resina de igreja.
— Faz o sinal da cruz de outra maneira. É que nós fazemo-lo da esquerda, do
coração, para a direita. E eles, da direita para a esquerda, até ao coração. Está
bem, que ela se persigne como está habituada. Mas porque não pode vestir uma
saia normal? A saia dela é tão curta que quando se inclina temos de desviar os
olhos para não ver a cor das suas cuecas. Como é, tem as trompas de Falópio nos
sovacos? Não tem medo de apanharem frio?

O relógio de parede acorda. Iassaman cala-se, espera que acabe o seu rangido
senil. O relógio, tossindo dolorosamente, toca as sete horas. Cala-se.
— Levanta-se de manhã e toca a correr pela aldeia, a mexer na lama de abril.
Diz que é um corta-mato. Ai balam59, que corta-mato? As vacas deixaram de
dar leite por causa desse corta-mato. Corre, baloiça os peitos. Os peitos dela são
tais que… que Deus dê tanta saúde a todos. O corpo é magro como uma lasca,
mas o peito é do número XL. Até as vacas cam nervosas.

Iassaman masca com os lábios, suspira.


— Mas o pior é que não tem um grama de respeito. Por exemplo, eu trato a
sua mãe por «você». Digo: bom dia para si, Tatiana Valdislávovna60, como está,
Tatiana Valdislávovna, como vão as saúdes, Tatiana Valdislávovna. Mas a minha
nora não me chama de modo nenhum. Ou trata-me pelo primeiro nome. Quero
pôr a mesa e ela diz: «Iassaman» e começa a pôr a mesa. Quero lavar o chão e
ela diz: «Iassaman», tira-me a esfregona das mãos e lava o chão. Nunca diz
«mamã-djan». Ou pelo menos Iassaman Petrossovna. Iassaman, sempre
Iassaman!
Fui obrigada a recorrer a todas as minhas reservas de eloquência para
convencê-la de que a nora não diz «Iassaman», mas «iá samá»61.

MAIO
Tenho um sonho secreto — quero ver-me pequena.
Por exemplo, com cinco aninhos. De bochechas redondas, de corpinho
rechonchudo, com o cabelo descolorido sob o sol de maio, cor de palha. De
sandálias cómicas calçadas sem meias. Gostava de conversar com as lagartas.
Fazia-lhes perguntas e esperava com paciência as respostas. As lagartas
enroscavam-se ou iam-se embora. Caladas.
Tínhamos uma cadela — pequena, peluda, maliciosa, uma verdadeira rafeira.
Chamava-se Belka. Incansável como uma bolinha de mercúrio — todo o dia
corria pelo pátio, esclarecendo sem parar as relações com a sua própria sombra,
tentando ganhar-lhe na corrida. No pomar da nani Tamar havia grandes
girassóis. A nani Tamar cobria-os com o papel de jornal para que os pardais
omnipresentes não bicassem as sementes. Mas os pardais não desistiam,
rasgavam as margens do papel e roubavam as sementes. A Belka era o
espantalho emérito do pomar da nani Tamar — inspecionava rigorosamente
cada girassol e, logo que detetava um passarinho hostil, precipitava-se, com os
caracóis ao vento, contra o indesejável. Latia-lhe insultuosamente,
amaldiçoando-o até à sétima geração. Salvava a colheita.
Adorava o tupinambo. Na época do tupinambo, transformava-se numa
toupeira — vasculhava nos arbustos, desenterrava os bolbos suculentos e comia-
os de imediato com grande barulho e revirando os olhos. Por um bocadinho de
tchurtchkhela62, estava pronta a vender a alma.
Uma vez, o tio Jora veio de visita. Naquele dia, estava absolutamente
irresistível: grandes suíças, uma camisa justa com o colarinho grande como asas,
calças à boca de sino. Ao andar, as calças desenvolviam uma amplitude tão
poderosa que, volta e meia, agarrando-se uma boca com a outra, se enrolavam
nas pernas como casulos. A Belka antipatizou com estas calças de imediato,
tomando, pelos vistos, a agitação descarada das pantalonas por um insulto
pessoal. Foi pôr-se atrás da amoreira, eriçada, as suas orelhas desgrenhadas
estremeciam. Periodicamente, corria ao pomar para ladrar contra os bandos de
pardais. De passagem, ladrava também às calças. Nem de propósito, calhou
uma tarde ventosa, as calças do meu tio drapejavam de tal modo que parecia
que, a qualquer momento, ele ia esvoaçar apanhado pelas lufadas de vento. No
momento em que a Belka, mais uma vez, corria ao lado do tio, as bocas de sino
esvoaçaram como enormes asas de um morcego. Aqui, a paciência da Belka
chegou ao m: ferrou os dentes nas calças e não as largou até as ter rasgado em
tiras. Rasgava-as voluptuosamente, deliciada, soltando uivos de prazer.
O tio recusou-se a vestir outras calças, foi para casa pelas traseiras, com as
franjas a esvoaçarem ao vento. Ralhámos com a Belka, até lhe batemos com um
jornal nas orelhas. A cadela tinha um ar falsamente culpado, deslocava-se pelo
pátio como um diversionista na retaguarda do inimigo — rastejando de
barriga, movendo as pequenas omoplatas. Só se animava à vista de mais um
bando de pardais. Mas também a eles assustava com cautela, olhando de viés
para nós — estamos zangados ou não? Ao apanhar o sorriso irre etido de
alguém, corria até ele a sete patas, desatando aos latidos felizes. Apressávamo-
nos a pôr caras severas. A Belka desanimava, deixava cair as orelhas e, agitando
em movimentos miúdos o rabo, afastava-se rastejando.
Lembro-me de mim aos cinco anos a correr atrás da nossa cadelinha.
Corríamos através dos pátios — um, outro, um terceiro, saltando por cima das
cercas velhas e cambadas, das framboeseiras baixas e espinhosas, dos arbustos
frondosos de alteia em or, e os aquénios peganhentos das bardanas colavam-se
a nós. Corríamos para cima, e ainda mais para cima, pelo caminho quente e
poeirento até ao ponto onde, virando bruscamente, começava a descer pelo
declive até à vinha grande, até ao rio espumoso, até às ruínas da fortaleza de
pedra…
Apanhávamos o ar com o peito, o sol com as mãos, enchíamo-nos,
impregnávamo-nos de felicidade até às bordas, até às pontas dos dedos.
Tenho um sonho secreto — quero ver-me pequena. Por exemplo, de cinco
aninhos. De bochechas redondas, com sardas, com o cabelo descolorido sob o sol
meridional, cor de palha. Na margem do rio. Com a Belka sempre a meter-se
debaixo dos meus pés.
Abraçar, apertar ao peito. Ficar calada.
Este desejo é tão grande que às vezes acredito: vai acontecer.

JUNHO
Quando não nos apetecia comer, mas era necessário, o meu pai inventava
histórias. Bem, antes disso ele cozinhava alguma coisa simples, sempre simples.
Cozia batatas, punha em cima manteiga derretida, sal graúdo e anéis de cebola
forte. Pegava ainda em brinza de ovelha, numa fatia de pão caseiro, vários
tomates — polposos, doces. E levava-nos para o ombro da colina.
No cume, de anco ao sol, estava a nossa minúscula casa de verão — de
madeira, rangente, com uma grande otomana coberta com alcatifa às riscas e
com um fogão de chapa. O fogão cheirava a calor e a fumo, e ainda a chuvisco
de junho, pelos vistos porque o aquecíamos quando chovia.
O pai colocava a comida na bandeja e levava-nos, tal qual Moisés, até à faia
secular, solitária e absurda, a espetar-se do ombro da nossa colina.
— A mais velha senta-se à direita, a segunda à esquerda — mandava ele.
— E eu? — preocupava-se Gaiané, de dois anos.
— E tu sentas-te em frente e ouves com atenção.

O pai cortava tomates e queijo, arrancava da côdea pequenos bocados,


molhava-os com manteiga, metia-os na boca, fechava os olhos.
— Mmm. Delicioso.
— Então? — apressávamo-lo.
— Bem. Sabem como cozi estas batatas?
— Sabemos. Na água.
— Não sabem nada. Primeiro fui até ao rio. Hoje havia lá tantos peixes que
até se atropelavam uns aos outros. Os peixes não me deixavam tirar água,
diziam: nós próprios temos falta de água. Mas expliquei-lhes que não era para
mim, mas para as crianças. Se for para as crianças, então podes, responderam os
peixes.
O pai pegava numa rodela de batata com um anel de cebola, comia isso com
brinza, estalando os lábios.
— Meu Deus, que saboroso! — dizia, dirigindo-se a alguém lá em cima.
Empinávamos as cabeças. Em cima havia nuvens, o Sol e o vento. E mais nada,
provavelmente. Mas o pai olhava como se estivesse a ver alguém.

Trocávamos olhares indecisos. Estendíamos as mãos até ao pão e ao queijo. O


pai fazia de conta que não reparava nisso. Continuava a contar a partir do ponto
em que parara:
— Depois acendi o fogão. Pus as batatas a cozer. Entretanto, sabem onde fui?
— Onde?
— Fui colher ranúnculos amarelos. Um grande ramo. Depois arranquei as
pétalas e pu-las nas batatas. Acham que isto é manteiga? Nada disso. Nos
montes não cozinham com manteiga, mas com ores. Entenderam?
— Entendemos.
A batata com pétalas de ranúnculos era incrível, in nitamente saborosa.
Enquanto a comíamos, o pai, sentado ao lado, olhava para o des ladeiro.
Para o jantar, punha uma côdea esmigalhada no matsun, cobria tudo com
açúcar, mexia com uma colher, contava que em vez de açúcar pusera trevo —
sabem que doces são as suas in orescências, não sabem? Não? Então agora vão
saber.

Também nos ensinava a disparar com ores. Enrolava o caule à volta da


in orescência peluda da bistorta, puxava bruscamente, e a or voava como uma
echa. É para nos defendermos dos lobos se nos cercarem de todos os lados.
Ou mostrava-nos como fazer um colar de agulhas de abeto: passar uma ponta
entre dentes para car mais mole, espetar nela a ponta aguçada — ca um elo.
Apanhar o elo com a segunda agulha, fazer mais um anel… Os colares
cheiravam a resina e a chuva. Pelos vistos, porque os fazíamos durante a chuva,
quando não havia mais nada para fazer.
O pai ensinava-nos ainda a brincar às adivinhas com a erva colorida da festuca.
Pergunta-se: galo ou galinha? Depois apertamos com força a base da espiga e
cortamos bruscamente. Se uma «pena» se espetar do feixe, é galo. Se o feixe for
redondinho, é galinha. O vencedor recebe uma avelã açucarada. O vencido, duas
avelãs. Como consolação.
Há dias, z uma lista das coisas que ainda não ensinei ao meu lho.
Na primeira alínea está uma nota belicosa: «mostrar como se dispara com a
or da bistorta».

JULHO
Tata dizia: os velhos e as crianças estão mais próximos dos céus. Os velhos,
porque lhes falta pouco até se irem, as crianças, porque vieram há pouco. Os
primeiros já adivinham, os segundos ainda não se esqueceram como cheiram os
céus.

Eu era pequena e parvinha. Ouvia sem atenção, não parava quieta. Parecia-
me: não há nada complicado nisto. Os céus cheiram a ar. Às vezes, a ar quente,
às vezes, a ar picante. Ou a chuva quando chove. Ou a neve. Em geral, estão
aqui, muito perto, basta pôr-se em bicos de pés — e pode-se tocá-los. Quando
vivemos à beira do des ladeiro azul, não é nada difícil estender a mão e tocar no
céu.

Tata dizia: o meu irmão mais novo, por exemplo. E calava-se. Eu estava
sentada ao lado, mexia na ponta da manga. Esperava a continuação, mas ela
calava-se. Se calhar, via o futuro e não me queria entristecer. Ou talvez fosse
aquela a única coisa que achava necessário contar-me. O meu irmão mais novo,
por exemplo. De resto, o silêncio.
Tata há muito que não está entre nós, e eu agora conto até ao m por ela. O
teu irmão mais novo, por exemplo. Um velho desgraçado que renegou toda a
gente, inclusivamente os seus próprios lhos. Um génio louco, fechado dentro
de si para sempre… Conto, escrevo até ao m o que ela não me quis revelar.
Às vezes andava atrás dela, não a largava. Onde ia ela, ia eu também. Andava
em silêncio, acertava o passo com ela. Tata ngia que não reparava em mim,
tratava dos seus afazeres. Apenas raciocinava em voz alta. A jovem nora de
Iassaman, por exemplo — dizia. Estendeu a roupa lavada de tal modo que se vê
logo: a rapariga não é da nossa terra. Porque é preciso que seja pelo tamanho,
pelo tipo, pela cor. Aqui a roupa pequena, ali a roupa grande. A escura, mais
perto do terraço, a clara, mais longe.
Estávamos paradas, protegendo, de modo igual, com a mão em pala os olhos
do sol de julho e olhávamos como drapejava ao vento a roupa estendida
desordenadamente pela nora de Iassaman.
Um grande pirata e um pequeno. Ela e eu.
Tata amava silenciosamente. Apertava ao peito — e largava de imediato.
Beijava com cuidado, no cocuruto. Tratava pelo nome sem diminutivo, sem
gracinhas. Olhava nos olhos. Só uma vez desviou os olhos. Quando lhe
perguntei se ela ia convalescer. Não quis enganar-me.

Passados muitos anos, sonhei com ela. Olhava de soslaio, não sorria. Eu
compreendia-a, não chorava, não pedia desculpa. Estendi-me para abraçá-la,
mas fez um gesto proibitivo — não, agora não. A partir deste sonho, tento
perdoar-me o erro que cometi muitos anos atrás. Não o conto a ninguém, nem
ao meu lho, calo-me.
Meu lho, a minha vida, por exemplo… De resto, o silêncio. Se adivinhares,
contarás depois por mim.

Há muito que não sou pequena e, se calhar, já não sou parvinha. Não sei
quantos dias me foram destinados e se o amanhã algum dia chegará.
Mas de uma coisa tenho toda a certeza: os céus cheiram como cheiravam as
mãos da minha Tata. A pão recém-cozido, a maçãs secas e a tomilho.

AGOSTO
O agosto vem mais cedo do que esperamos. Antes de chegarmos a perceber
que o verão que parecia eterno está a terminar. A esgotar-se.
Os dias são quentes e abafados, os peixes dormem sob as pedras, e o musgo
das rochas na margem do rio seca de tal modo que, se o esfregarmos nas mãos,
reduz-se a um nada de pó.
O estridular das cigarras aproxima o meio-dia, o cricrilar dos grilos aproxima
a meia-noite. Assim vivemos, das cigarras até aos grilos. Quando se calarem,
chegará o outono, mandará à sua frente as las de nuvens, para o levante, para o
levante, ao encontro do sol. Será uma longa espera do sol. Até à primavera.

O teto do terraço está cheio de tchurtchkhelas compridas a secarem.


— Uiu-uiu — chora Belka.
— Zakhrmar! — censura-a Tata. — Uma vergonha de cadela.
A Belka esconde o nariz nas patas. A orelha esquerda espeta-se — tem uma
ligadura. Corria sem ver o caminho, en ou a cabeça entre os balaústres, cou
presa. Mal conseguimos libertá-la. Rasgou uma orelha, coitadinha, agora
queixa-se a toda a gente.
— Onde é que tinhas os olhos? — pergunta-lhe Tata.
A Belka, envergonhada, olha de viés para o teto do terraço.
— Oh, que castigo — suspira Tata, arrancando um bocadinho de tchurtchkhela
e dando-lho a comer à mão.
Agosto, o tempo desacelerou o seu andar e alterou a essência das coisas. Se nos
pusermos à esquerda do louro-cerejo torto e olharmos para cima, parece que a
concha da Ursa Maior agarra com o rabo a chaminé da casa dos vizinhos. Quem
pesa mais, a casa ou as estrelas? A casa está aqui, pertinho, cheira a pedra, pão e
mãos humanas. Mas como estão as estrelas, lá, nos céus longínquos — só Deus
sabe! Ou não sabe?
A sogra de Zanazan morreu. Levaram o caixão numa carroça velha, pela rua
aldeã abaixo.
— Arre, arre — apressava o burro o carroceiro. O burrito mexia os cascos
coçados e chorava com lágrimas invisíveis.
Deitaram-na ao lado do lho e do neto nado-morto. Zanazan olhava sem
desviar os olhos. O vento desgrenhava-lhe no ombro a trança cor de cobre.
Coitada da Zanazan, agora cou absolutamente sozinha. Nesta cidade, toda a
gente enlouqueceu por causa da guerra, mas ninguém o percebe. Só a Zanazan
sabe. Sabe, por isso anda calada.
Agosto, o céu mais baixo do que os montes, as abelhas estão preguiçosas e
vagarosas, as noites insuportavelmente mudas, e de manhã forma-se tanto
orvalho que se pode encher uma mão com ele.
— O verão partiu as costas — diz Tata.
Adeus, verão. Adeus.

SETEMBRO
A primeira paciente para quem o meu pai fez uma dentadura postiça foi a
amiga nonagenária de Charakan, sua bisavó.
— Para que hás de ir a outros especialistas quando o nosso Iúrik é médico? —
avançou Charakan o argumento irrefutável e levou a sua amiga à consulta do
bisneto que apenas na semana anterior começara a trabalhar na policlínica.
O meu pai cou extremamente nervoso. Pudera! Era a primeira dentadura
postiça da sua vida, praticamente um batismo de fogo. Ao recuperar a grande
custo o autodomínio, preparou o gesso e, sem querer, tapou com ele a garganta
da paciente. Assustado, receando que ela morresse as xiada, apressou-se a
extraí-lo. Charakan percebeu que o bisneto zera asneira, repeliu-o com o
ombro e esboçou um sorriso radiante:
— Está tudo bem, Vardanuch, tudo bem.
Vardanuch mugiu tristemente em resposta.
— Iúrik-djan — dirigiu-se Charakan ao bisneto com uma reprimenda. — Do
cimento que gastaste com ela era possível construir uma casa de dois pisos.
Com um anexo para o gado. Como é possível seres tão perdulário?
— Enganei-me um pouco nos cálculos — murmurou o meu pai com ar
culpado.
Charakan teve pena dele.
— Não faz mal, tu consegues. Antes de mais, aprende a poupar.
E, pondo-se em bicos de pés, afagou-lhe o ombro.
Chegou o dia da prova. As velhotas vieram à policlínica ataviadas, de lenços
claros e aventais de seda. A bisavó sentou a amiga na cadeira, postou-se ao lado
e acenou ao bisneto: começa.
O meu pai mandou a Vardanuch abrir a boca, colocou-lhe as próteses e cou
regelado: os dentes eram três vezes maiores do que os humanos. Com eles,
Vardanuch tinha o aspeto de um tubarão do imperialismo das páginas da revista
satírica Crocodilo.
— Fecha a boca — ordenou-lhe a bisavó.
Vardanuch, obediente, bateu os dentes. Quanto a fechar a boca, nem pensar.
Os lábios da paciente mal cobriam as margens das gengivas arti ciais.
— Vardanuch-djan, os dentes são magní cos, magní cos! — tilintou
Charakan como uma campainha e afastou-se da cadeira de tal modo que a amiga
não a pudesse ver.
— Iúrik, porque lhe zeste uns dentes de burro? — perguntou ela num
sussurro ensurdecedor.
Vardanuch soluçou.
— Não são de burro, nada disso — ofendeu-se o meu pai.
— É claro que não são de burro, o burro morreria de fome com dentes como
estes. Com eles nem mastigar é possível!
Vardanuch levantou-se da cadeira, tirou com o dedo as próteses, colocou-as
em cima da mesa e ceceou:
— Filho, quando as encurtares um bocadinho, chama-me. E eu, por agora,
vou para casa.
E dirigiu-se para a saída. A bisavó suspirou e seguiu a amiga. À porta, virou-
se:
— Iúrik-djan, em primeiro lugar, aprende a poupar. Olha, se serrares estes
dentes ao meio, vão dar duas próteses normais. Serra, uma será para ela e outra
para eu usar. Deitar as coisas fora é pecado.
E saiu.
Depois, obviamente, o meu pai fez uma prótese normal. Mas enquanto se
atarefava com ela, Vardanuch usava a primeira, com dentuças. Apenas cobria a
boca com o lenço à maneira das mulheres do Karabakh. Para não assustar as
pessoas e não apanhar frio com a garganta exposta à frescura noturna de
setembro.

OUTUBRO
Em Berd, o tempo corre de modo muito diferente do das grandes cidades,
aqui é lento e viscoso, como um rio de agosto esquecido das chuvas. Volto a
habituar-me a tudo do que me desabituei na cidade — ao trabalhar barulhento
do relógio mecânico que, uma vez em cada meia hora, toca com uma tosse
pesada; ao ladrar dos cães nos pátios e ao cacarejar descontente das aves
domésticas, ao sabor do pão caseiro acidulado, feito com levedura verdadeira, às
pilhas regulares de lenha, protegida cuidadosamente da humidade com lonas —
lembram-se de como cheira a lenha cortada? Sabem, em geral, que ela cheira?
Em Berd, tenho pena de dormir. Às cinco da manhã é noite cerrada do lado de
fora da janela, as casas de pedra taciturnas e as árvores outonais que ainda não se
desnudaram. A Lua pende por cima do Hali-kar como uma mó pesada e
vagarosa, o primeiro orvalho cai sem barulho, exalando, ao amanhecer, aromas
de ervas e de uva moscatel um pouco adstringente — aqui as videiras
serpenteiam vertiginosamente até pelas fachadas dos prédios de quatro andares,
já sem falar das moradias particulares com os seus terraços de madeira e os
chuchaband63 envidraçados em que os cachos pendem como as bolas de cristal na
árvore de Natal.

No centro da cidadezinha, está uma nova igreja branca — eu e a minha irmã,


ao passarmos ao lado, desviamos os olhos, a igreja tem paredes lisas e brancas,
tem um ar imponente, ergue as suas cúpulas por cima dos velhos telhados de
ardósia e telhas, por cima das chaminés tortas dos fogões de lenha, por cima das
nogueiras e amoreiras seculares, por cima do mundo. Será que numa
cidadezinha fronteiriça e desempregada, onde há uma capela velhinha, mas
bastante bonita do século , uma nova igreja era uma necessidade
absolutamente urgente? Será que não havia outras preocupações? Nunca o
compreendi nem vou compreender, por isso passo ao lado, desviando os olhos.
Deus não está onde as pessoas lhe destinaram estar. Deus está em todo o lado.
Passeámos pelo caminho que leva à escola. Para baixo, para a ponte grande,
depois para cima, para o outeiro. A minha irmã contou comicamente como, um
dia, voltava para casa depois das aulas, o dia entediante não prometia nada
imprevisível, e ela arrastava-se pelo caminho, carregando a sua pasta pesada,
virava a cabeça, contemplando a tristonha paisagem de outubro. De repente,
uma bicicleta apareceu em cima — ela teve tempo de enxergar o lho de dez
anos da tia Silva, nossa vizinha, que, com grande segurança, sem fazer tentativas
de travar, rodou velozmente do outeiro, esbarrou contra o resguardo da ponte e,
com incrível autodomínio e uma impassível expressão do rosto, descrevendo no
ar um arco bonito, voou para baixo. A minha irmã, assustada, deixou cair a
pasta. Teve medo de se aproximar da margem da ponte, mas escutou. Quando
não ouviu nada além do barulho do rio, foi buscar, correndo, a tia Silva. A tia
Silva estava a estender a roupa lavada. À vista da transtornada lha dos
vizinhos, não fez perguntas inúteis e, tal como estava, de roupão e com bigudis
de alumínio no cabelo, correu para salvar o lho. Ora, debaixo da ponte, no
meio dos arbustos partidos e outra ora muito vitimada, estava sentado o Araik
traquinas e azougado que, tentando não mexer a perna partida, consertava, em
silêncio e frenesi, a sua bicicleta.
A cidade muda, já não é a minha, aliás nunca foi a minha, mas não me falem
disso, não quero saber. Deambulamos pelas velhas ruelas, procuramos as vistas
habituais desde a infância, mas na verdade, pelos vistos, estamos à procura de
nós próprias — junto ao resguardo da ponte, por cima do telhado derruído, à
sombra do enorme bordo — crescemos, mas o bordo continuou grande,
reparaste que os bordos são árvores que envelhecem lindamente, perguntei, e a
minha irmã acenou — sei.
Há no mundo muita beleza — cataratas altas, dunas de areia dourada, serras
dentadas e azuis, in nitos campos de alfazema. E toda esta beleza não é minha.
A minha beleza está atrás das paliçadas tortas, atrás das soleiras de pedra baixas,
dos soalhos de madeira rangentes, dos candeeiros de querosene fumegantes, dos
karás de barro, no gargalo estreito do jarro de cobre da minha nani. A minha
beleza está onde eu já não estou.

NOVEMBRO
O mês das re exões. Um mês espinhoso, um mês condimentado. Com cheiro
a romã, a nozes e ao marmelo áspero e adstringente, rapidamente escurecido no
corte.
Tata mergulha o miolo de noz no mel, protege-o por baixo com a mão em
concha — para não gotejar na toalha — e estende-mo — come.
Como.
— Ouviste os gritos dos grous? — Tata tem olhos dourados e pestanas
longas. Uma veia solitária pulsa-lhe na têmpora, um pouco acima do sobrolho.
— Ouvi — murmuro.
Finge que acredita.
— Sabes o que eles gritaram?
— Não.
— Voltaremos.
Tata arranca do pão caseiro redondo uma côdea, tira o miolo, põe-no de lado
— para as galinhas. Coloca no lugar do miolo as metades de nozes e dá-me a
côdea.
— Come.
Como.
— Compreendes a língua dos grous, Tata?
— Não.
— Então, como é que sabes o que eles gritam?
— Disse-mo a avó.
— E tu acreditaste?
Tata olha para mim com os seus olhos cor de avelã.
— Acreditei.
Novembro.
Os nevoeiros tornaram-se mais espessos e impenetráveis, dissipam-se
lentamente, a contragosto, agarrando-se com as abas de tule às cercas de
madeira. Ouve-se o longínquo clamor do rio — frio e espumoso, o rio corre,
resfolegando, ultrapassando-se a si próprio, contando a cada um que as neves
avançam contra a passagem montanhosa, ele viu, ele sabe.
— Queres vinho? — O tio Jora estende-me uma chávena de barro.
— Achas que posso?
— É vinho novo, de três dias, muito jovem. Quando fermentar, não poderás
bebê-lo. Por enquanto podes. Bebe.
Bebo.
O vinho faz cócegas doces no nariz. Estalo os lábios.
— Saboroso. Parece uma limonada.
— Sim, saboroso.
O tio Jora é um pouquinho louco. O meu pai diz que é um génio em
matemática. Um dia o seu cérebro não aguentou e enlouqueceu. Em novembro,
o tio Jora sente-se muito pior. Vai para a oresta, alimenta-se de bolotas, bagas
de rosa-brava e nêsperas ainda verdes. Passa horas a olhar para o céu, mexe
silenciosamente os lábios, como que a falar com alguém. Escreve com um
raminho seco na terra húmida as estranhas fórmulas matemáticas. Depois
apaga-as e chora.
No m do outono, o tio Jora chora muito. O inverno aproxima-se, sente-o.
Ele viu, ele sabe.
O início da noite cheira ao mugido espesso das vacas, à tranca enferrujada da
cancela e a fogão de lenha. A nani corta as batatas em rodelas nas, dispõe-nas
em cima do fogão incandescente, salga-as com sal grosso. As rodelas de batatas
cobrem-se de casca aloirada, rechinam. A nani apanha-os com a faca, vira-os.
Agarro na tranca com o atiçador, abro a porta, mexo na lenha. O fogão uiva de
prazer, sopra o calor.
— Tslik Amram não esperava uma traição como esta. Coisa inédita: a mulher
amada engana-o com o czar que ele serviu abnegadamente toda a vida! Fechou-a
na fortaleza e levantou um motim contra o czar. E quando sofreu a derrota,
ofereceu todo o seu principado ao czar da Geórgia. Para não o deixar ao czar
arménio.
— E o que aconteceu a seguir?
— O que aconteceu? A princesa enforcou-se na fortaleza, não suportou o
opróbrio. O czar georgiano devolveu as propriedades de Tslik Amram ao czar
arménio, porque estes dois czares eram primos em segundo grau, ambos da
linhagem de Bagratuni. Então, Tslik Amram perdeu tudo: a mulher, o
principado, a antiga grandeza.
A nani suspira, abana a cabeça.
A velha fortaleza ergue-se no cimo da colina. O nevoeiro, regressado à noite,
cobre com o seu manto impenetrável as ruínas. Algures aqui, nestas ruínas
inundadas de nevoeiro, o fantasma da princesa Aspram vagueia até hoje.
— E o que aconteceu a Tslik Amram?
— Não sei. Provavelmente, morreu de amargura. Quem pode sobreviver a
uma coisa dessas?
A nani põe o tsipul64 pronto num prato de fundo grosso, unta cada bocado de
batata com manteiga, põe em cima um pouco de brinza. Sopra no tsipul para
arrefecer depressa. Estende-mo:
— Come.
Como.

DEZEMBRO
O inverno invade de chofre a passagem nos montes, sem aviso nem
misericórdia, desligando os sons e apagando as cores. Como se não houvesse
ainda ontem o novembro com as suas bagas azuladas e como que poeirentas do
abrunheiro-bravo, com as bagas demasiado maduras da rosa-brava — a casca
rachou, deixando à vista o miolo com penugem e caroços agudos —, com cheiro
a vinho fermentado; por enquanto, está picante, doce e espumoso, em meados
de dezembro ganha sabor, amadurece, adquire travo e ligeira acidez, e no copo
vai aliciar o bebedor com uma enganosa leveza. Quem o bebeu conhece o preço
desta leveza: basta exagerar um pouco, e dormimos como uma pedra até de
manhã.

Quando o inverno vem para a passagem da montanha, as pessoas, por algum


tempo, perdem o dom da palavra. Esta mudez é abençoada e curativa — cala-te,
olha à janela, habitua-te a ti próprio. Não há nada que nos esconda e proteja de
nós próprios — nem o lixo azafamado do outono, nem as chuvas curtas do
verão, nem o chilrear primaveril dos pássaros. Tu a sós contigo.
Lá, por trás dos ombros gelados da passagem montanhosa, há gigantes da
costa do mar nórdico, já são poucos, mas ainda existem — gente de pedra,
severa e inacessível. Cada um deles é uma célula do teu coração, uma partícula
da tua alma. Mais de uma avalancha deve passar até que volte a abrir-se o trilho
que leva àquelas paragens. Por enquanto, será assim. Sem comunicação com o
exterior, na fantasmagoria da neve, no silêncio ensurdecedor, todo-poderoso,
cintilante.
Quando o inverno vem para a passagem dos montes, antes de mais tira da
manga os brinquedos. Prende-lhes um o grosso, pendura-os num ramo de
abeto, acende as luzes. Admira e enrola no dedo os dias: da Anna Escura, na
hora da batalha das forças terríveis com a luz de Deus; do Emelian Inverniço,
alerta e taciturno; das Papas de Mulheres com gritos de parturientes; das
cantigas dos mascarados nas festas de Natal; de Afanássi Quebra-Narizes que
enxota as bruxas; de Oníssim Ovelheiro que derruba o corno do inverno; a
Semana do Fariseu, a Semana do Juízo Final…
Enchemos o peito de ar, mergulhamos no país das serpentes tricéfalas e das
aves de penas douradas, dos espíritos dos pântanos, dos lobos maus e das moças
sábias. A ver se teremos fôlego para emergir.
E a seguir andas sozinho. Pelo gelo tímido, nas costas do peixe siluro, pelo
rasto pálido da estrela solitária — para onde o inverno faz as suas rendas. Onde
as crianças dormem enroscadas. Onde a avó arménia canta o orovel, e a avó russa
faz o feitiço dos sonhos com água e reza diante de um nicho vazio na parede.
Guarda na memória tudo o que te contam os teus mortos porque sabem falar só
nas noites de neve. Os antepassados da costa do mar nórdico sabiam-no bem,
esperavam pelos mortos, acendiam a lenha no fogão, deixavam um pouco de
comida — se, por acaso, os mortos tiverem fome —, e uma infusão de
morochka65 se tiverem sede. O principal é não fazer barulho nem se agitar. Fecha
os olhos e ouve. Guarda silêncio. O inverno é o tempo dos que se foram.

56 Nani — tratamento carinhoso de parente idosa. (NT)


57 Praga para insultar uma pessoa no sentido de «Que comas o veneno da cobra!». (NT)
58 Basturmá — carne de bovino, muito temperada, seca ao ar. Sudjukh — salsicha seca picante. (NT)
59 Ai balam — assim os adultos se dirigem a uma criança ou adolescente e, às vezes, a um parente
próximo. (NT)
60 Patronímico russo deturpado: Vladislávovna. (NT)
61 Iá samá — em russo, «eu vou fazê-lo». (NT)
62 Tchurtchkhela — guloseima preparada com sumo de uva, farinha e nozes. (NT)
63 Chuchaband — varanda envidraçada. (NT)
64 Tsipul — batatas assadas. (NT)
65 Morochka — amora-ártica. (NT)
POSFÁCIO

então, o que queria eu dizer


o que dói mais não são as cidades que deixamos para trás, nem as ruas que já
não vamos palmilhar, nem as árvores que vão perder as folhas pelas janelas dos
outros, nem as estrelas a que não vamos chegar com a mão
não é a cancela meio apodrecida com a tranca enferrujada — há cem anos foi
forjada pelo teu trisavô Vassíli, homem severo e in exível, mas in nitamente
adorado,
leva-la contigo como lembrança — e por estupidez, por uma imperdoável
estupidez mete-la na bagagem de mão, os Argos vigilantes do aeroporto tiram-
ta, implacáveis perante as tuas súplicas,
e deitam-na fora, para onde, pela lei do tempo mas não pela lei do teu coração, é
o lugar devido desta tranca, não é a loiça antiga da tua bisavó — de cobre, com
bordas irregulares, muitas vezes remendada, a dormitar enrolada em teias de
aranha, e se olharmos com atenção podemos descobrir uma inscrição gravada ao
longo do seu lado miseravelmente torto: «Anatólia Ter-Movsessi Ananian,
1897»
ninguém mais vai cozer nesta loiça o pokhindz — papas tradicionais de cereais
triturados e tostados, com sal, com manteiga derretida até deitar um fuminho
escuro —, mas se apertares bem os olhos podes ver por um segundo como a
bisavó mexe as papas com uma colher de madeira,
é muito pequena, magrinha, com tranças compridas sobre os ombros,
e há nela tanto amor quanto nunca poderás abarcar, mas a única coisa agora
permitida é guardar a sua imagem no coração até ao momento quando lá, no
limiar do outro mundo, ela te receber e disser: doravante, estás sempre
connosco, lha
então, o que queria eu dizer
o que dói mais é que as cidades morrem exatamente no dia em que as
abandonamos — temporariamente ou para sempre,
elas fecham as suas portas com todas as trancas, enchem-se de lixo — de pó e de
cinzas, transformam-se em neblina, em miragem,
corremos pelo caminho de volta — como os lhos e as lhas pródigos —, aos
saltos, competindo com o nosso coração
para onde há muito não existe ninguém
estávamos a amadurecer tempo a mais
estávamos a aprender a separar o joio do trigo tempo a mais
o que dói mais é a impossibilidade de abraçar aqueles que não te chegaram a ver

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