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12 Gógol-mógol — em tempos, este prato era muito popular, sobretudo entre as crianças (em inglês
chama-se hug-mug, ou hugger-mugger; em polaco, kogel-mogel; em alemão, Kuddelmuddel). (NT)
13 Ter — padre. (NT)
14 Trekh — calçado de camponeses arménios, feito de couro de boi. (NT)
15 Grvankan — medida de peso: 1 grvankan equivale a 408 gramas. (NT)
16 Mózi — novilho (arm.). (NT)
17 Púngui — instrumento musical de sopro proveniente da Índia. (NT)
18 Chlapka — palavra russa «chliapka» (chapéu) pronunciada com sotaque arménio. (NT)
19 Chalvar — calças. (NT)
20 Kavurmá — prato turco de carne estufada que se guarda muito tempo e se utiliza para a preparação
de outros pratos. (NT)
21 Arkhaluk — cafetão caucasiano justo ao corpo e com gola alta. (NT)
22 Zakhrmar — veneno de cobra (arm.). (NT)
23 Karás — jarro de barro de forma elipsoide. (NT)
24 Khalvá — doce oriental preparado de caramelo batido, nozes, amendoim, sésamo, mel e outros
ingredientes. (NT)
25 Vassó-djan — diminutivo carinhoso de Vassíli. (NT)
CAPÍTULO 3
Por vezes, quando apetecia a Vassíli sentir a felicidade havia muito esquecida,
contornava mentalmente, com cuidado, retendo a respiração, tudo o que lhe
dilacerava o coração: a morte do pai, a morte da mãe, a morte do irmão, a morte
de Magtakhiné, a morte de três lhos — e espreitava mais para trás, para mais
longe, para onde o verão não tinha m e as árvores eram tão altas que cravavam
as copas no céu. Recordava-se em pequeno, com cinco aninhos, ao colo da vovó
Arussiak — ela afagava-lhe o cabelo com a mão seca e contava-lhe histórias;
recordava a mãe — jovem, bonita, a voltar da nascente com o cântaro no
ombro, num andamento cuidadoso, olhava para o chão com medo de tropeçar,
depois via o lho e sorria-lhe com ternura; recordava o pai — de cabelo
prematuramente grisalho, mas jovem e robusto, com pestanas e sobrancelhas
chamuscadas pelo bafo da forja; às vezes, quando anoitecia e a frescura noturna
se espalhava pelo pátio, o pai saía por pouco tempo da forja, descansava
encostado à parede de madeira e contava a história da família, da sua mãe, que,
ao salvar-se por milagre do grande massacre, fugira para aqui com quatro lhos,
da generosidade de Archak-bek, desaparecido sem deixar rasto, que abrigara a
família em desgraça, do vizinho Unan, um velhaco, que se recusava a aceitar a
devolução da manteiga por partes e inventara para Arussiak uma alcunha
insultuosa, Kudam.
— É por isso, meu lho, que somos Kudamants — terminava o pai a sua
história deste modo sempre igual. — Provém de «ku dam», devolvo.
29 Tonir, ou tandir — um forno de forma circular para a preparação da comida, entre os povos da Ásia,
do Cáucaso e dos Balcãs. (NT)
30 Lavach, ou pão-folha — pão típico da Arménia. (NT)
31 Pastilá — produto de confeitaria, preparado pelo processo de secagem do puré ou sumo de fruta.
(NT)
32 Dev — espírito maligno (arm.). (NT)
CAPÍTULO 5
Anatólia não morreu, nem no dia seguinte nem ainda no outro. Ao quarto dia
deixou de sangrar, mas o zumbido nos ouvidos não parava, e sofria de um
tormentoso quebranto que lhe sobrevinha em ondas, por vezes tão forte que era
obrigada, agarrando-se à parede, a deslizar devagarinho para o chão e a car
sentada com os olhos fechados, para suportar melhor as vertigens. À algia em
todo o corpo e à dor surda no baixo-ventre acrescentou-se o entorpecimento das
mãos: ao pegar no copo de chá, Anatólia cou espantada por ter arrefecido tão
depressa, e só quando bebeu um gole percebeu que estava quente: os seus dedos
haviam perdido a sensibilidade. Não estava disposta a assustar-se e, ainda
menos, a armar uma tragédia por causa do seu estado, continuava na maior das
calmas a tratar da casa; às perguntas da alarmada Iassaman quando esta a
apanhou sentada no chão no meio do pátio, Anatólia mentiu: que se envenenara
com o repolho salgado do ano passado, que já tinha azedado — não se atrevera a
desperdiçar as couvinhas. Iassaman apressou-se a curá-la com infusões contra o
desarranjo intestinal e ainda, depois de lhe apalpar o pulso, com sumo cozido de
abrunhos-de-jardim e cornizolos. No dia seguinte, Anatólia sentiu-se um pouco
melhor, mas o quebranto e as dores, e ainda as tonturas, continuavam.
Mas não era isso que a preocupava, e sim a mudança próxima de Vassíli para a
sua casa. Não se sentia com forças para ir à casa dele desculpar-se e recusar-lhe o
pedido de casamento, por isso instou Ovanés para que o zesse por ela. Ovanés,
a contragosto, prometeu que ia, mas, para sua indizível alegria, não teve tempo
de o fazer porque ao m da mesma tarde o próprio noivo apareceu,
acompanhado pela prima, com uma muda de roupa, a gadanha consertada, uma
pilha de panquecas de milho acabadas de fazer e uma tigela de morangos que
Satenik trazia nas mãos com ar imponente. Atrás deles, dirigidos pelo enorme
gampr33 branco de neve, vinham também, agitando-se e balindo
desa nadamente, uma cabra com dois cabritos já crescidinhos e duas ovelhas
egmáticas. A procissão era fechada por um carneiro velho, praticamente
semimorto, com um corno partido e cataratas num olho.
Anatólia, neste momento, voltava da cave, onde fora buscar a manteiga
fervida. Ao ver os visitantes inesperados, recuou um passo, encontrou às
apalpadelas o corrimão da escada e, sem virar a cabeça, inclinou-se com cuidado
e colocou a tigela com manteiga no degrau inferior.
— Boa tarde, minha cunhada — cumprimentou-a Satenik.
— Parece que estava combinado para amanhã — balbuciou Anatólia.
— Segura a cancela, para os animais entrarem — pediu-lhe Vassíli sem ter
ouvido as suas palavras.
Anatólia foi até à cerca, matutando febrilmente como ia desenvencilhar-se da
situação embaraçosa. Como não tivesse inventado nada, abriu a cancela, esperou
que os animais, empurrando-se, entrassem no pátio. Vassíli deixou junto à cerca
a trouxa com as suas coisas, entregou-lhe a bandeja com as panquecas ainda
quentes e, resolutamente, tocou os animais até ao estábulo que havia já meio
ano estava vazio — as cabras de Anatólia tinham adoecido e morrido já no
inverno, e ela planeava arranjar novos animais no m do verão, já combinara
com Iassaman que caria com a cabrita quando esta crescesse o bastante para
viver separada da mãe. O gampr, primeiro, acompanhou o rebanho até ao
estábulo, depois voltou, espetou o nariz húmido nas saias de Anatólia, cheirou,
levantou a sua grande cabeça orelhuda e soltou um latido curto.
— Reconheceu-te — riu-se Satenik. — Patró-djan, é a tua nova dona.
Anatólia afagou maquinalmente a cabeça do cão, coçou-o atrás da orelha.
— Parece que estava combinado para amanhã — repetiu, olhando para Vassíli
que, fechando o estábulo, se dirigiu à cave para guardar lá a gadanha
consertada.
— Amanhã? — surpreendeu-se Satenik. — O primo disse-me que o
mandaste vir depois de amanhã.
— Eu disse: daqui a dois dias.
— Então, percebeu mal. Então, minha cunhada, tenho de car aqui ao pé da
cerca ou convidas-me a entrar?
— Entrem, claro — apressou-se a dizer Anatólia.
— Deixa a trouxa lá, o Vassíli trá-la depois. — E Satenik dirigiu-se para a
escada. — Não te esqueças da manteiga, senão, o Patró devora tudo num
instante. Não é, Patró-djan?
O Patró ladrou a rmativamente, e o seu rabo dançou.
— Onde vai ele dormir, no estábulo? — perguntou Anatólia.
— Na casota dele. O primo vai trazê-la mais tarde.
Vassíli saiu da cave, fechou bem a porta. Ameaçou o cão com o dedo, disse
severamente:
— Não podes entrar aqui, percebes?
O Patró lamuriou-se, troteou cabisbaixo até ao dono, mexendo comicamente
as patas enormes.
— Ontem deixei o queijo de meio sal descoberto, nem um segundo demorei
e, zás, já ele o tinha roubado e engolido — explicou Vassíli ao apanhar o olhar
espantado de Anatólia. — Amanhã vou pôr uma tranca do lado de fora da porta
da cave, para o cão não entrar lá. E também na porta de entrada.
Anatólia dirigiu-se em silêncio para a escada e começou a subi-la, apertando
ao peito a bandeja com as panquecas. Tinha vertigens, os pés fraquejavam-lhe
traiçoeiramente. Não pensava, e a única pergunta que lhe girava na ponta da
língua, «porquê?», era mais dirigida a si própria do que a Satenik e a Vassíli.
Que culpa têm eles se foi ela própria quem arranjou todos os sarilhos? «Sirvo-
lhes o chá, peço desculpa e mando-os embora», decidiu por m.
Satenik levantou do degrau a manteiga esquecida por Anatólia, entrou na
cozinha, limpou a tigela com a aba do avental, pousou-a na mesa e sentou-se,
apoiando a face enrugada na mão, enquanto Vassíli, batendo com a porta de
entrada no nariz do Patró — vai correr para o pátio, seu focinho descarado! —,
introduziu a trouxa no corredor, hesitou por um segundo, desejando pelos vistos
perguntar onde a devia pôr, mas abanou a mão e atirou-a para cima do braço da
otomana — que que aqui por enquanto, logo se vê. Enquanto os convidados se
acomodavam, Anatólia abriu o registo do fogão e esticou-se para tirar os
fósforos da prateleira. Foi salva pelo lado largo do fogão — derrubada pelo
ataque de vertigens, Anatólia tombou nele de borco, batendo fortemente com o
anco, e perdeu os sentidos. Voltou a si na sua cama, por causa do cheiro forte
da pomada com que Iassaman estava a esfregar-lhe as têmporas. Satenik,
sentada à beira da cama, massajava-lhe os pés, carregando muito nos pontos
entre o peito do pé e os dedos; no quarto contíguo, Ovanés e Vassíli
conversavam, e Anatólia apanhou alguns fragmentos de frases da conversa:
«Está adoentada, já vai no quarto dia, a minha mulher não consegue descobrir o
que ela tem», «foi em má hora que z esta mudança», «pelo contrário, cará
alguém ao lado dela durante a noite».
— Se não melhorares até de manhã, mando um telegrama para o vale, para
que enviem uma ambulância — disse nalmente Satenik em voz baixa.
«Deixem-me em paz», queria pedir Anatólia, mas em vez disso foi um
gemido arrastado que se lhe arrancou da garganta.
— O quê? — debruçou-se Iassaman por cima dela.
Anatólia tentou captar-lhe o olhar, mas as suas pálpebras pareciam de
chumbo, fechou os olhos, mexeu a mão no ar à toa, agarrou os dedos da amiga,
apertou-lhos debilmente.
— Não — sussurrou —, não.
O Patró desatou aos latidos fortes e exigentes. Satenik pousou com cuidado os
pés de Anatólia sobre o lençol, levantou-se, foi à janela, brandiu um dedo
ameaçador na direção do pátio: para de ladrar, seu berrão, ou cas acorrentado!
O Patró precipitou-se para Satenik sem ver o caminho, bateu com toda a força
na pipa, derramou-a e estacou, hirto, todo molhado pela água da chuva já meio
podre. A pipa rolou pelo chão com o estrondo ensurdecedor de um tambor,
bateu contra a cerca de madeira, as aves, alarmadas, armaram grande gritaria, as
ovelhas e as cabras enervaram-se no estábulo e, no quarto ao lado, ouviram-se
passos apressados — era Vassíli a correr ao pátio para ver o que se passava.
«Com esta gente, nem sequer é possível morrer em paz», pensou Anatólia e,
com súbito alívio, mergulhou num sono contínuo e salví co. Só abriu os olhos
ao meio-dia seguinte, acordada pelos latidos e pelo patear do mesmo Patró:
pisando as ervas com as patas pesadas, agitava-se ao longo da parede, ralhando
com a penugem dos dentes-de-leão, ainda raros em maio, mas que, nos inícios
de junho, quando iria ainda orescer o bosquete de álamos, se transformaria
numa verdadeira nevada.
Do espaldar da cadeira pendia, cuidadosamente dobrado, o vestido de
Anatólia. Vestiu-o, abotoou todos os botões, procurou as pantufas, não as
encontrou, levantou-se devagarinho — o corpo parecia-lhe estranhamente leve,
quase sem peso, a dor tinha desaparecido, era-lhe muito mais fácil respirar —,
encheu o peito de ar, expirou com cuidado e sentiu uma vertigem, mas ligeira.
Na cozinha, a loiça tilintou, devia ser Iassaman a cozinhar, Anatólia saiu, foi à
sala de estar, a otomana estava aberta, alguém passara ali a noite, vigiando-lhe o
sono, o corredor, comprido, com o soalho rangente, com a luz do sol a bater nas
janelas, seguia a direito, depois virava à esquerda, até à porta da cozinha. Ia
devagar, com as plantas dos pés impregnando-se do calor das tábuas, franzia a
cara, sentindo às vezes os ciscos debaixo dos pés — já ia no quinto dia sem
arrumações, era preciso juntar as forças e, pelo menos, varrer o chão e, amanhã,
se houver forças, lavá-lo —, a porta da cozinha estava aberta de par em par, a
corrente de ar enfolava as cortinas de chita nas janelas, e Vassíli, à mesa,
semicerrando os olhos e mascando a ponta do cachimbo apagado, raspava
desajeitadamente a casca frágil das pequenas batatas primaveris.
Levantou-se de imediato, quis ajudá-la a chegar à cadeira, mas Anatólia fez
um gesto proibitivo com a mão — não é preciso, posso fazê-lo sozinha.
— Já vou buscar as tuas pantufas; ontem a Iassaman, sem querer, verteu por
cima delas a infusão da garrafa, foi preciso passá-las por água e pô-las a secar. Já
devem estar secas.
Foi ao terraço, voltou com as pantufas e, pigarreando, inclinou-se para as
pousar no chão.
— Ajudo-te a calçá-las…
— Era só o que me faltava — indignou-se Anatólia.
— Como queiras — não quis discutir Vassíli, e voltou a pegar na faca. — A
Iassaman passou por aqui de manhã, ouviu o teu coração, disse que estavas
melhor. Mandou-me descascar batatas e aquecer o fogão. Cá estou a descascá-
las, a tentar...
— Mas quem dormiu na sala ao lado?
— Fui eu. Vinha espreitar ao teu quarto várias vezes, para ouvir como
respiravas. Quase encostava o ouvido aos teus lábios, tens uma respiração leve,
mal se ouve.
Anatólia passou a mão pelas plantas dos pés, para tirar os ciscos, calçou as
pantufas. Noutras circunstâncias, teria vergonha de que um homem estranho
pernoitasse na sala contígua ao seu quarto e espreitasse, mas agora, posta fora
dos eixos pela doença, não sentia nada além de uma ligeira apatia. Contudo, se
era possível tratar da apatia mais tarde, já resolver a situação estúpida da
mudança de Vassíli para sua casa era preciso fazê-lo de imediato. Recorreu a
toda a sua força de vontade para dizer a Vassíli:
— Tens de voltar para a tua casa.
Vassíli atirou para a tigela uma batata descascada.
— Porquê?
— Fizemos asneira.
— Talvez seja asneira. Mas então, por que diabo é preciso agravá-la?
Anatólia captou o olhar irónico dele. E zangou-se.
— Agravá-la em que sentido?
— Na nossa idade, correr de um lado para outro, às idas e vindas, não é
sensato. Já que nos juntámos, para que é preciso separar-nos? O que vão pensar
de nós as pessoas?
— Na nossa idade, o que menos nos deve preocupar é a opinião alheia —
arremedou-o Anatólia.
Vassíli soltou uma risada, passou o cachimbo de um canto da boca para outro,
levantou-se, pôs bruscamente a faca em frente de Anatólia:
— Já que és tão ágil e expedita, trabalha, vá lá. E eu, entretanto, vou acender
o fogão.
Anatólia encolheu o ombro, mas pegou na faca.
Iassaman e Ovanés chegaram e apanharam uma cena da vida familiar deliciosa
para os olhos: Anatólia, cerrando teimosamente os lábios, raspava a casca na
das batatas, e Vassíli, de joelhos, soprava para avivar o fogo no fogão. Ao ver os
vizinhos, fechou a portinhola, levantou-se e estendeu a mão a Ovanés:
— Bom dia.
— Para ti também, vizinho.
Iassaman pôs na mesa uma panela com o spas34 frio e aproximou-se de
Anatólia.
— Vamos lá ver como estás. Senta-te direita. Olha para a ponta do meu dedo.
Anatólia obedeceu sem discutir. Iassaman moveu o dedo da sua têmpora
direita até à esquerda, e vice-versa, seguindo com atenção o olhar da amiga.
Suspirou com alívio:
— As pupilas não saltitam, parece que as tonturas desapareceram.
— Sim, estou melhor — concordou Anatólia.
— Cozi-te bagas de rosa-brava com hortelã, deixei a infusão em casa para
arrefecer. Depois trago-ta. Vais bebê-la todo o dia. O Melikants Vanó vai matar
hoje um carneiro, prometeu que nos dava o fígado e o coração. Vou estufá-los
com cebola, também deves comê-lo. Deixa de franzir a cara, adoeceste, então
tens de ser tratada.
Anatólia suspirou.
— Estou absolutamente bem. Acho que foi uma quebra de tensão, acontece a
todos. Tenho outra preocupação: mandei o Vassíli voltar para casa dele, mas não
concorda. Diz: para que vou cobrir-me de vergonha na minha velhice, arrastar-
me para a frente e para trás com os meus haveres?
Vassíli, como se não estivessem a falar dele, abriu a porta do fogão com um ar
impassível e mexeu nas achas com o atiçador, ajudando o fogo a apanhá-las de
todos os lados.
— Mas vais mandá-lo embora porquê? E nós que já decidimos celebrar…
humm… a vossa festa — espantou-se Ovanés. — Pôr a mesa no nosso pátio,
sentar-nos… A Satenik já avisou toda a aldeia, está a preparar a pakhlavá35 das
bodas.
— Qual pakhlavá?! — assustou-se Anatólia. — Querem fazer de nós alvo de
gozo?
— Uma pakhlavá normal, de bodas, com nozes e mel, e uma moeda da sorte.
A quem calhar, vai casar-se a seguir — riu-se Ovanés.
Anatólia cou pasmada.
— Mas o que é isto? Estão doidos ou quê?
— Ouve, tem cuidado com a língua.
— Mas será possível falar de outro modo convosco?
— Não só é possível, mas obrigatório!
Enquanto Anatólia e Ovanés discutiam, Iassaman lavou as batatas
descascadas, pôs em cima do fogão uma frigideira de fundo largo com uma
colher de manteiga fervida, esperou que derretesse, pôs lá as batatinhas e tapou-
a bem.
— Ovanés, ide os dois para a horta, trazei ervas. Ide também buscar queijo.
Quando as batatas carem prontas, vamos almoçar.
— A horta não foi regada desde ontem — lembrou-se Anatólia.
— Já a reguei de manhã — atirou-lhe Vassíli em tom de censura e dirigiu-se
para a saída. Ovanés, resmungando com indignação, foi atrás dele.
Iassaman esperou até os homens saírem, aproximou a cadeira da amiga e
sentou-se em frente dela.
— Porque estás a exibir o teu caráter?
— Porque não quero viver com ele.
— Apetece-te envelhecer sozinha?
— Que diferença faz, sozinha ou não? Envelhecemos na mesma.
— Se é na mesma, então porque teimas?
Anatólia tamborilou com os dedos no tampo da mesa.
— Não sou teimosa. Simplesmente não gosto nada destas coisas — e começou
a dobrar os dedos, enumerando-as: — Nem desta sua mudança apressada, nem
do cão que ladra no pátio, nem dos animais no estábulo que ele trouxe sem
perguntar se os quero ou não. Porta-se como se fosse o dono da minha casa.
— Mas como deve ele comportar-se?
— Não sei. Podia ao menos pedir licença.
— Desde quando os homens da nossa aldeia pedem licença?
Anatólia reclinou-se no espaldar da cadeira e, cansada, esfregou os olhos.
— Havia de ter recusado logo de início.
— Mas não recusaste, que sentido faz agora indignares-te?
— Será que a minha palavra não pode ter efeitos retroativos?
— Mas então que palavra é essa, que se pode dar e depois retirar?
Anatólia não encontrou resposta. Iassaman levantou-se, encheu os pratos com
o spas, cortou o pão. Mexeu as batatas com a colher de pau, acrescentou sal.
Anatólia, ressentida, observava-a de lábios cerrados. Não compreendia por que
razão a amiga, em vez de a apoiar, tentava convencê-la a resignar-se com a
situação.
Iassaman apanhou o seu olhar triste.
— Se soubesses, lha, como é pavoroso envelhecermos sozinhos — disse com
amargura.
— Sei, sim — abrandou-se Anatólia.
— Bem, se sabes… Não vês como vivemos? À espera da morte, de um funeral
até outro. O que temos pela frente? Nem alívio, nem esperança. Então, porque
queres rejeitar a possibilidade de fazer alguém pelo menos um poucochinho
mais feliz? Se não pensas em ti, pensa pelo menos nele.
O soalho do terraço rangeu — Ovanés e Vassíli voltaram da horta. Atrás
deles, lamurioso, arrastava-se o Patró. Iassaman olhou pela janela:
— Porque está o cão a choramingar?
— Está a pedir queijo. Dei-lhe um bocadinho, mas para ele é sempre pouco.
Que velho parvo eu fui ao arranjar um cão. A Satenik convenceu-me: ca com
ele, ca. — Vassíli arremedou comicamente a voz rangente da prima. — O cão
faz-te companhia, disse ela, vais sentir-te menos sozinho.
— A tua prima nunca para. Ora te arranja um cão, ora te arranja uma mulher.
Vassíli riu-se, envergonhado, partiu mais um bocado de queijo, atirou-o ao
Patró.
— É o último, já não há mais.
O cão engoliu a guloseima num instante, quis voltar à mesma cantiga
lamentosa, mas esbarrou no olhar severo do dono e percebeu que pedinchar
mais era inútil. Descendo os degraus da escada em dois saltos, precipitou-se
para o pátio e deitou a correr atrás das galinhas.
Almoçaram em paz e sossego. Falaram pouco, exclusivamente sobre temas
abstratos, e havia tanta coisa habitual e natural no bater das colheres, nos
pedidos de chegar o sal ou de cortar um bocado de queijo, na côdea um pouco
seca de pão caseiro e no gole de água que Anatólia, pela primeira vez, não sentiu
a vida como um facto adquirido, mas como uma dádiva. Sorrateiramente,
passava o olhar de Iassaman para Ovanés, depois para Vassíli, captava-lhes cada
gesto vagaroso e comedido, aceitando-o mentalmente, e surpreendia-se: como é
que não reparava antes nesta ligação incontestável entre ela própria e tudo o que
a rodeava — pessoas, aves, lajes no velho cemitério? «Não há paraíso nem
inferno», compreendeu de repente. «A felicidade é o paraíso, a desgraça é o
inferno. E o nosso Deus está por todo o lado não só porque é todo-poderoso,
mas também porque Ele é aqueles os desconhecidos que criam a ligação entre
nós.»
Depois do almoço, deixou obedientemente que Iassaman lhe desse a beber a
infusão de bagas de roseira-brava e a pusesse na cama. Dormiu até ao m da
tarde e acordou no momento em que o rebanho, com cheiro ao sol poente e ao
campo de maio, estava de volta à aldeia. O gado andava devagar pela rua torta,
tornando-se menos numeroso junto a cada cancela. Quando Anatólia saiu de
casa, Vassíli estava a receber as suas cabras e ovelhas. Depois de trocar algumas
palavras rotineiras com o pastor, levou os animais para o estábulo. Ao ver
Anatólia no terraço, abrandou o passo, sorriu pelo canto da boca — e só neste
momento Anatólia distinguiu o invulgar matiz de aço dos seus olhos. Pousou os
cotovelos no corrimão, fez-lhe um aceno reservado:
— Vou mungi-las. Mas traz água para o estábulo, é preciso primeiro lavá-las.
— Eu vou mungi-las, não há problema. A Satenik ensinou-me.
— Ensinou-te a mungir?
— Foi.
— E consegues?
— Por enquanto, as ovelhas ainda não se queixaram.
Anatólia tapou a cara com as mãos, riu-se.
— Traz água. Hoje, está bem, vais mungir tu. E eu co a ver.
A aldeia, a nal, era tal qual Nastássia a imaginava depois de o marido lha ter
descrito: de pedra, com telhas velhas e gastas a caírem, com cercas decrépitas e
tortas e chaminés dos fogões a lenha tão altas que se agarravam às abas do céu.
No segundo dia após a chegada, Nastássia percorreu toda a aldeia em menos de
uma hora. Kiriucha42 dormia, enroscado, no porta-bebés que Valinka
improvisara num instante de um grande lenço axadrezado. Alice brincava ao
lado, ora vinha a correr com mais uma or felpuda de malva amarela — mamã,
cheira, tem um cheiro cómico! —, ora corria para a frente e depois esperava,
saltitando impaciente num só pé — olha, esta casa está completamente
estragada, vês? O telhado tem buracos e a porta está aberta, vamos entrar,
vamos?
— Vamos — concordava Nastássia, mas, por precaução, não entrava em
habitações: e se uma parede ou o teto ruíssem? Parava nos pátios, estudando
com atenção os suportes de madeira dos terraços carcomidos pelo bicho;
nalguns sítios era possível distinguir ainda um ou outro ornamento simples:
taças, cruzes e o disco do sol. Videiras assilvestradas cobriam as fachadas das
casas, tranquetas de cancelas, so sticadas e completamente enferrujadas,
rangiam com angústia, como se dissessem aos visitantes não convidados que
voltassem ao caminho — um caminho áspero, duro como pedra e impróprio
para passeios —, e as árvores de fruto, já sem fruto há muito, curvadas pelas
doenças, suspiravam, despedindo-se deles. No terraço de uma casa abandonada
pendiam, em várias las, folhas de tabaco: pelos vistos, algum morador da
aldeia aproveitara a casa para as suas necessidades. Mãe, o que é isto?, perguntou
Alice, virando para Nastássia a sua carita sardenta. É tabaco, explicou ela.
— Quem poderia pensar que os cigarros se faziam de ervas! — abanou a
cabeça uma Alice incrédula.
Nastássia riu baixinho, para não acordar o lho adormecido. A curiosidade da
lha divertia-a, mas não a deixava concentrar-se.
— Não te importas se eu, na próxima vez, vier passear sem ti? — perguntou.
— Estou a incomodar-te? — e Alice fez beicinho.
— Não me incomodas. Só que gostaria de me concentrar, percebes?
— Precisas de pensar outra vez?
— Preciso.
— Está bem. Amanhã podes vir sem mim. Fico com o pai.
— Obrigada, lha — comoveu-se Nastássia.
— De nada! — E Alice correu para a frente, saltando habilmente de um
socalco para outro no caminho escalavrado pelas chuvas.
Valinka recebeu-os ao lado da cancela, protegendo-se do sol com a mão em
pala sobre os olhos. Nastássia admirou mais uma vez a sua beleza singela: olhos
de um azul deslumbrante na cara bronzeada, nariz direito e comprido, lábios
nos teimosamente cerrados. Estava contente por Tigran lhes ter ensinado, a ela
e à Alice, a falar um pouco a língua de Maran, de outro modo como poderiam
falar com aquela avó-sogra?
— Estais cansadas? — perguntou Valinka, pegando no bebé sonolento.
— Não! — gritou Alice numa voz sonora e correu ao pé de Tigran, que estava
a trabalhar na barraca da lenha que Valinka destinara para ser a nova retrete.
— Não faz sentido construir uma coisa tão sólida — abanou a mão quando
Tigran lhe propôs uma casa de banho de pedra. — Vivo aqui sozinha, também
há muito que não utilizo a barraca. A lenha, como vês, ca debaixo do alpendre,
assim está mais à mão. Cava apenas um buraco no canto, cobre-o com tábuas e
coloca um biombo. É quanto basta.
— Quando acabar a retrete, vou tratar da parede do quarto — prometeu
Tigran.
— Não toques na parede. A alma do teu avô foi-se embora por aquela racha.
E já não falta muito para ser a minha vez de voar através dela.
— Então, foi por isso que ele andou toda a vida à volta daquela racha. Sabia
que ia acabar assim — respondeu Tigran. Para ele, falar da morte do avô era
insuportável: os remorsos roíam-no. Adiou muito tempo aquela visita, ora um
problema, ora outro e, quando nalmente se decidiu, não o encontrou vivo.
Nem sequer foi ao funeral, mas disso não tinha culpa, só soube da sua morte
passada uma semana quando o telegrama, por qualquer fatalidade malévola
perdido nos meandros dos Correios, nalmente chegou. E só um mês depois
teve possibilidade de partir para Maran. Aliás, pensava ir sozinho porque não
planeava passar lá muito tempo, mas levar a avó da aldeia. A mulher, contudo,
insistiu que fossem todos juntos.
— Quando terei ainda oportunidade de ver a tua terra natal?
Tigran pediu-lhe que não revelasse, por enquanto, o verdadeiro objetivo da
visita.
— Ela vai recusar. Não quererá deixar ao abandono, sem cuidados, os túmulos
dos familiares. Que se habitue primeiro a vocês. Quando se habituar, já vai ser
mais difícil separar-se da nossa família. Nessa altura, propomos-lhe que parta
connosco.
— E se não aceitar?
— Convencemo-la.
Em primeiro lugar, ele e Nastássia, deixando as crianças com Valinka, foram
ao túmulo de Vanó. O cemitério quase não mudara desde o dia da partida de
Tigran, apenas apareceram cerca de uma dezena de novas cruzes — nos últimos
anos, desde que o pedreiro morreu, essas cruzes substituíam as lápides
tumulares tradicionais. Nastássia deixou o marido sozinho para que chorasse a
sua dor em solidão, e foi vaguear pelo cemitério invadido de festuca colorida e
bistorta. Era complicado passar até às campas mais antigas através do ervaçal
espesso, mas Nastássia não desistia — para ela, era importante aproximar-se
delas para ver melhor os ornamentos de pedra coberta de manchas de líquen,
passava a mão pelas cruzes rendilhadas entalhadas nas lajes, admirando a sua
beleza humilde, tentava guardar na memória a meiga consolação que sentia com
o toque tímido da sua mão nas suas partes laterais quentes. As lápides exalavam
o ar dos séculos e a sensação do irremediável.
Nastássia não percebeu à primeira que as lápides não estavam à cabeceira, mas
aos pés dos falecidos, viradas para ocidente. Para veri car a sua suposição,
voltou aos túmulos novos e percebeu que era verdade: as cruzes de madeira dos
novos, diferentemente daquelas, erguiam-se à cabeceira. Não quis incomodar o
marido com perguntas — Tigran estava soturno e silencioso, quando voltou do
cemitério afastou-se para o fundo do pomar e passou lá muito tempo, fumando
sem parar e não desviando os olhos da beira da escarpa.
— São as portas — explicou-lhe Valinka num sussurro (na otomana, rodeadas
de todos os lados dos mutakas, as crianças dormiam, extenuadas pelo ar rarefeito
dos montes, e ela acomodara-se ao lado, guardando o sono delas). — Quando
chegar o dia do Juízo Final, o falecido vai levantar-se, abrir a porta e entrar no
paraíso. É por isso que as lápides com cruzes se põem aos pés dos defuntos.
— Mas como será com aqueles que têm as simples cruzes de madeira?
— Outros mortos vão levá-los consigo.
— Mas que coisa… — conseguiu apenas murmurar Nastássia. Kiriucha
mexeu-se, estalou os lábios, suspirou fundo. Nastássia estendeu-se até ele, mas
Valinka foi mais rápida — ajudou o bebé a virar-se para o lado, afagou-lhe as
costas, alisou o colarinho da camisa para que não se esfregasse na pele terna.
Levantou-se, cedendo lugar à nora:
— Deita-te enquanto as crianças dormem, descansa, vou tratar do almoço.
— Eu ajudo.
— Ajudas amanhã. Hoje és ainda uma convidada. Ao terceiro dia, já não serás
convidada. E poderás ajudar.
— Mas o que serei então amanhã? — sorriu Nastássia.
Valinka apertou na nuca as pontas do lenço, sacudiu o avental.
— Serás a dona da casa. Naz-stas-ia-djan.
— Chame-me Stássia.
— Como?
— Stássia.
— Está bem, serás Stássia. Descansa, lha, porque depois haverá muito
trabalho. Amanhã de manhã cedo vamos colher o aveluk43. Também vais
conhecer as velhas da nossa aldeia. O Tigran vai encontrar-se com os velhos,
terão muito que falar. No domingo, vamos pôr a mesa, convidamos toda a
gente. Para que te conheçam na aldeia.
Apetecia a Nastássia perguntar para que eram necessárias tantas cerimónias,
mas conteve-se.
— Está bem.
Quando Valinka saiu do quarto, Nastássia tirou os sapatos, deitou-se com
cuidado aos pés dos lhos, meteu debaixo da cabeça um mutaka rijo. Sentia no
peito picadas e pressão, como antes de amamentar, o que a preocupava muito —
o leite já desaparecera há um mês, numa só noite, quando teve uma gripe grave.
Por que razão o peito lhe doía agora, como se estivesse a encher-se de leite,
Nastássia não sabia. Prometeu a si própria ir à consulta do especialista logo
depois do regresso. Acalmou-se, fechou os olhos. Recordou a última semana —
preparações longas, e como de repente Alice, na véspera da partida, apanhou
frio e se constipou, e como, durante toda a viagem, Kiriucha sofria com dores
nas gengivas e choramingava, e como subiu a tensão arterial do marido, mas
não havia à mão comprimidos, e ela chegou a amaldiçoar cem vezes o dia e a
hora em que insistira em fazer a viagem com as crianças, mas já era impossível
mudar alguma coisa. Farta de sofrer durante a longa viagem, Nastássia não
esperava alegria nenhuma no encontro com Maran, por isso, quando no vale os
recebeu Nemetsants Mukutch, que devia transportá-los na sua carroça até ao
cocuruto do Manich-Kar, mal continha as lágrimas. Nemetsants Mukutch,
velho de estatura gigantesca, de cabelo branco e olhos castanhos, abraçou
Tigran, depois estendeu a mão a Nastássia — Como estás, lha? — Porque se
chama Nemetsants? — perguntou-lhe Nastássia, apertando a sua mão seca. —
Porque o meu avô voltou da guerra mundial com a mulher alemã, então
começaram a chamar-nos Nemetsants em memória da avó44 — respondeu
Mukutch e, com dois dedos, fez um gesto e uma momice cómicos a Kiriucha,
este sorriu, esticou-se até ao desconhecido de barba branca, é tal qual Kirakos,
riu-se o velho e olhou interrogativamente para Nastássia, pedindo licença para
pegar no bebé ao colo. Nastássia entregou-lhe o lho e sorriu. — A propósito, o
meu bisavô também andou naquela guerra e também voltou com a mulher
alemã. — Estás a ver que bom, respondeu o velho, brincando de modo
comovente com Kiriucha, o mundo é pequeno, e nós somos grandes, embora,
por ingenuidade e estupidez, achemos que é o contrário.
— Stássia-djan, tem cuidado, não arranques a raiz, senão a planta ofende-se e
não cresce no próximo ano — explicava Iassaman, mostrando como se cortava
corretamente o talo da azeda com a faca, de modo a deixar um minúsculo
bocado espetado da terra.
Nastássia assentia, escutando tensamente aquela fala difícil e áspera, às vezes
estrídula.
— Por favor, fale… como é?... mais brando… para eu perceber — pediu.
— E eu estou a berrar? — espantou-se Iassaman.
Valinka riu-se.
— Ela quer dizer: fale mais devagar. Metralhas e não paras de metralhar, e ela
não compreende.
— Vou falar devagar — prometeu Iassaman.
Nastássia virou-se para um enorme carvalho ramalhudo, debaixo do qual
Kiriucha estava deitado em cima de uma manta caseira dobrada. Anatólia,
sentada ao lado dele, fez um gesto tranquilizador — tudo em ordem, não te
preocupes. A saúde fraca de Anatólia não lhe permitiu apanhar muitas azedas:
ao m de trinta minutos sentiu vertigens, um vómito subiu-lhe à garganta. Por
isso lhe con aram a missão de vigiar a criança, enquanto as outras mulheres,
dobrando-se, subiam lentamente o declive, cortando com as facas e metendo nos
sacos as folhas de margens onduladas do aveluk, tentando conservar todo o
comprimento do talo.
— Os talos também são comestíveis? — quis saber Nastássia.
— Não, depois deitam-se fora — respondeu Valinka.
Nastássia pensou que ela estava a ironizar, mas Valinka não sorria.
— Primeiro acabamos de colher o aveluk, depois vais ver para que precisamos
dos talos.
Alice apanhava os primeiros morangos, ainda pouco maduros e azedos, e
comia-os, franzindo a cara.
— Porque os estragas? Deixa-os amadurecer — disse-lhe Nastássia.
— Gosto deles assim!
— Quando amadurecerem, são mais saborosos.
— Está bem, como mais dois e acabou-se!
O Sol havia muito que subira no céu, mas calhou-lhes um dia
misericordiosamente nebulado, com a neblina empurrada pelo vento a tapar o
céu de uma ponta à outra, com o ar dourado e húmido, cheirando intensamente
àquelas ervas apimentadas de que Nastássia desconhecia os nomes. Respirava
fundo e livremente, adaptando-se à nova sensação de existência compassada que
impregnava tudo ao redor — desde a oresta antiga que rodeava o cume do
Manich-Kar, onde cada árvore parecia falar a sua própria língua, até às pessoas.
As velhas trabalhavam sem pressas, arregaçando os aventais de tal modo que
estes formavam uma abada onde se podia meter o aveluk. Ao colhê-lo em
quantidade su ciente, troteavam até aos sacos, pondo neles os molhos húmidos
de verdura. Deram um avental também a Nastássia, mas não sabia arregaçá-lo
de maneira que não se desprendesse, pelo que o segurava com a mão.
— Não queres descansar, lha? — sugeriu-lhe Valinka.
— Como? — embaraçou-se Nastássia. — Vocês vão trabalhar, e eu descansar?
— Mas é o que fazemos toda a vida. Estamos habituadas.
— Para mim é um prazer.
— Então, se é um prazer…
Nastássia cortou com cuidado o talo de um aveluk, juntou-o ao molho,
estendeu a mão ao seguinte e, de repente, parou. O peito cheio de dor cou-lhe
de repente hirto e húmido. Nastássia endireitou-se bruscamente, meteu a mão
na abertura do vestido, apalpou um mamilo inchado, depois o outro. Abriu o
sutiã — estava encharcado.
— Só um momento — sussurrou a Valinka e correu até ao carvalho secular.
Kiriucha, balbuciando e fazendo bolhas com a boca, rastejava pela borda da
manta e arrancava com entusiasmo ervinhas que Anatólia logo retirava dos seus
punhos rechonchudos.
— Só um momento — repetiu Nastássia, tirou da sacola um lenço, escondeu-
se atrás do tronco largo da árvore, desabotoou o vestido, libertou o peito e
soltou um «ah!». Os mamilos vertiam leite. O primeiro impulso foi dar o peito
ao bebé, mas conteve-se, teve medo de que o leite que voltara tão
inesperadamente pudesse fazer mal à criança. Sem pensar duas vezes, dobrou-se
e começou a vazar o peito, apertando-o com as mãos na direção dos mamilos. O
leite jorrava sobre as miosótis que cresciam debaixo do carvalho, corria pelas
suas pétalas e pelas ervas, desaparecia na terra.
— Estás bem? — gritou-lhe Anatólia.
— Estou, estou — apressou-se a responder Nastássia.
Ao acabar o vazamento, pôs-se em ordem, rasgou o lenço ao meio, meteu as
tiras nas taças do sutiã para proteger os mamilos. Kiriucha viu a mãe,
choramingou, pediu colo. Nastássia pegou nele, apertou-o ao peito, beijou-o
nas bochechas redondas, en ou o nariz na preguinha do seu pescoço, inspirou o
aroma adorado da tenra pele infantil.
— Meu -i-ilho.
Anatólia olhava para ela e sorria. Depois suspirou com amargura, baixou os
olhos.
— E eu não consegui ter um lho.
Nastássia deitou Kiriucha na manta, ele choramingou, descontente, já, já, já,
espera, pediu ela, encontrou na sacola o biberão com leite arti cial para bebés e
estendeu-o a Anatólia — por favor, pode dar-lho?
— Claro. — Anatólia virou o bebé para o lado mais cómodo para ele beber,
colocou uma fralda debaixo da bochecha. — Não te preocupes, Stássia-djan, sei
tratar das crianças. Pergunta à Iassaman. Dantes cuidei dos netos dela sei lá
quanto tempo!
— Mas onde estão agora os netos da Iassaman?
— Morreram na guerra.
— E os lhos?
— Alguns morreram nos tempos da fome, outros durante a guerra.
— Se calhar… É claro, não me atrevo a a rmá-lo — começou Nastássia,
indecisa —, mas pensei que… talvez a Anatólia não tenha lhos porque Deus
quis poupá-la, protegê-la da desgraça insuportável?
Anatólia levantou para ela uns olhos estranhamente escuros — nem se
distinguia a pupila.
— Talvez, lha.
Ao m da tarde, Nastássia foi dar uma volta por Maran. À frente dela corria
Alice, via os seus calcanhares empoeirados a relampadejar e ouvia-a a chilrear
alegremente. Kiriucha dormia enroscado dentro do porta-bebé — depois de se
ter aconselhado com Valinka, Nastássia decidiu dar-lhe de mamar, ele tomou o
mamilo a contragosto, acostumado pelos vistos ao leite doce do biberão, mas
depois habituou-se e adormeceu ao peito, e quando o tentaram deitar na
otomana, choramingou e agarrou-se com as gengivas doridas ao mamilo.
Nastássia, apertando o lho ao peito, vagueava pela aldeia, de uma casa
abandonada a outra, parava ao lado de cada cancela, perscrutava com os olhos os
aros cegos das janelas, as paredes com o estuque caído — nas rachas havia muito
que os pássaros faziam os ninhos; olhava para as goteiras enferrujadas e cheias de
lixo trazido pelo vento, para as cercas ressequidas — as varas das paliçadas
espetavam-se da terra como dentes podres de um dragão pré-histórico. Por
vezes, depois de saciar os olhos com mais uma construção, passava os dedos pelo
ar, como que desejando captar a essência fugitiva da solidão ensurdecedora que
soprava de cada casa, habitada ou desabitada. Como podia isto acontecer? —
interrogava-se Nastássia e não achava resposta. A aldeia guardava silêncio,
embalando nos seus braços de pedra uma in nita tristeza.
As mãos cheiravam-lhe a suco amargo — lembrou-se de como tinha feito,
hoje, tranças de aveluk, acrescentando a cada madeixa uma nova folha e
deixando os talos espetados para fora — dava uma coisa parecida a uma espiga
de trigo, só que comprida, de um metro e meio ou dois. Depois, os talos
espetados cortavam-se à tesoura — agora percebes para que precisamos deles?
— explicou-lhe a avó-sogra Valinka. — Para ser mais fácil fazer tranças de
folhas.
— E agora o que se faz com elas?
— Damos os restos de talos ao gado, as tranças penduram-se na corda e secam
muito bem. Depois, metemo-las nos saquinhos de linho e guardamo-las para o
inverno.
— Mas como se cozinham?
— É simples. Cozem-se em água a ferver, estufam-se com cebola salteada,
regam-se com matsun e alho, comem-se com pão e brinza. Se for para uma festa,
espalham-se por cima bagos de romã e nozes trituradas. Assim é mais bonito.
— É saboroso?
— Tu não vais gostar — riu Valinka.
— Porquê?
— Sem nos acostumarmos a qualquer comida, não parece saborosa.
— Vou acostumar-me — prometeu-lhe, sem saber porquê, Nastássia.
Valinka atou a ponta da trança de aveluk com um o grosso, pô-la de lado,
pegou noutra trança.
— Resta um pouco disto do último inverno. Vou cozinhá-lo. Logo se vê se
vais gostar.
Quando Nastássia foi passear, dezoito tranças grossas de aveluk já estavam a
secar na corda, baloiçando ao ritmo da respiração do vento. Tigran
acompanhou-a até ao m da rua, depois, cedendo à insistência da mulher de que
não havia necessidade de a acompanhar mais, voltou à barraca da lenha, para
trabalhar.
E Nastássia viu-se cara a cara com Maran.
Regressou passadas duas horas, concentrada e pensativa.
— Sabes do que tenho pena? — perguntou quando, depois de dar banho aos
lhos e de os deitar, ela e o marido estavam no terraço a tomar chá com tomilho
preparado por Valinka. — Tenho pena de não ter à mão lápis e papel.
— Podemos pedir ao Nemetsants Mukutch que os traga do vale.
— Pede, por favor. Não tenho a certeza de que vai resultar, há muitos anos
que não desenho. Mas agora apetece-me.
Tigran abraçou-a pelos ombros, beijou-a nas fontes.
— Está bem.
46 Ajdahak — um dos vulcões na Arménia, o ponto mais alto das montanhas Gegham. (NT)
47 Ustá — tratamento respeitoso para senhor e mestre (tur.). (NT)
48 Uma forma grave de depressão. (NT)
49 Semana Florífera — semana que antecede o Domingo de Ramos. (NT)
CAPÍTULO 2
SEIS
— Inclina um pouquinho a cabeça para o ombro. Sorri. Sorri! Não sabes sorrir?
Mostra que sabes. Linda menina. Não pestanejes. Olha aqui, vai sair o
passarinho.
Matchutcha é esgrouviado, muito moreno e com os olhos estranhamente
cinzentos. Para captar o seu olhar, é preciso lançar a cabeça muito para trás.
Olhando-o de baixo, parece um gigante — pernas longas, muito longas, mãos
grandes com dedos nervosos, mexe-os como se tocasse um instrumento
invisível. «Pelos vistos, toca auta», penso eu. Não me atrevo a perguntar.
Matchutcha é bonito. Ora a mim, menina de seis anos, os homens bonitos não
me provocam nada além de descon ança.
O cabelo de Matchutcha é encaracolado, cor de breu, as pestanas são espessas e
fofas, o bigode contorna-lhe o lábio superior, formando dois ângulos retos —
deixou-o crescer recentemente, pelo que parece que foi desenhado a marcador.
Não gosto do seu bigode, o que declaro de imediato, mas Matchutcha diz que
lhe confere mais imponência. Tenho preguiça de perguntar que coisa é essa da
imponência, por isso faço uma cara signi cativa e assinto. Que que a pensar
que sei.
O estúdio fotográ co de Matchutcha chama-se Berd. Tem o mesmo nome da
cidadezinha onde habitamos, eu e ele. Eu moro num prédio de pedra de dois
pisos, no alto de um outeiro, quando há vento uma macieira-do-paraíso bate na
janela do meu quarto, e a lua, de noite, desenha no soalho um pálido quadrado
prateado. Matchutcha vive numa casa térrea na rua vizinha, à esquina, tem uma
mãe velha, Nubar, que fala o dialeto arménio ocidental que eu mal compreendo.
Também fala inglês e, quando nos encontramos, cumprimenta-me assim: Good
day, darling, how are you? — I’m ne, respondo. É a única coisa que sei
responder-lhe. Onde está o pai de Matchutcha, isso não sei. Talvez tenha
morrido, ou talvez os haja abandonado e partido para outra cidade, como fez o
marido da minha tia. Agora a minha tia vê-se obrigada a trabalhar três turnos
para dar de comer às lhas, o marido telefona-lhe uma vez por mês só para lhe
dizer que não haverá dinheiro dele e que se desenvencilhem sozinhas. O marido
da minha tia é bonito.
Antes de tirar uma fotogra a, resolvo pôr-me bonita. O espelho encontra-se
num cantinho fechado por um biombo. Uma cadeira coxa, pelos vistos para os
clientes que não gostam de se pôr bonitos de pé, está encostada à parede. Por
cima da cadeira há um pequeno mapa. Se for virado para a esquerda, parece o
desenho de um gigante de camisa comprida. Está de per l, com a cabeça
empinada e as mãos erguidas, como se chamasse os céus em seu socorro. Passo
algum tempo a estudar o mapa, depois uma prateleira atrai a minha atenção —
para ver o que se encontra lá preciso de me pôr em bicos de pés. Descubro na
prateleira um pente de plástico e vários ganchos.
— Alguém esqueceu aqui as suas coisas! — grito a Matchutcha.
— Que coisas? — diz ele, espreitando para o meu canto.
— Estas!
— Fui eu, pu-las para o caso de alguma cliente querer mudar de penteado.
Então, já estás pronta?
Ponho para trás das orelhas as madeixas que saíram do meu rabo de cavalo.
— Estou pronta!
Matchutcha senta-me na poltrona. Atrás de mim, num vaso pesado, está uma
palmeira arti cial frondosa que cheira a plástico. Viro a cabeça para a observar
melhor.
— Para quieta! — manda-me Matchutcha. Foca em mim a luz das lâmpadas,
olha para mim com ar exigente. — Queres obrigatoriamente tirar uma foto
com esta lebre?
— Quero.
Ele estala a língua. Vejo que não gosta da lebre. É velha e coçada, os olhos
dela são botões, dois botões diferentes — um é verde e pequeno, outro é azul e
maior. O olho verde é mesmo dele, mas o azul foi tirado do sobretudo de
crimplene52 da minha mãe. Matchutcha vira a lebre para que que de per l. Eu
protesto — para mim é importante que na fotogra a o seu retrato seja
completo.
— Porque é que tem um olho de cada nação? Assim está a olhar como uma
zarolha imbecil — espanta-se Matchutcha.
— Um botão perdeu-se, pregámos outro — murmuro. Fico ofendida pela
lebre, ela é boa, foi a avó que ma ofereceu.
Matchutcha suspira.
— Está bem.
Mergulha para debaixo do véu preto da máquina fotográ ca, cala-se.
— Inclina um pouco a cabeça para o ombro. Sorri. Sorri! Não sabes sorrir?
Mostra que sabes. Linda menina. E não pestanejes. Olha para aqui, já vai sair o
passarinho.
A fotogra a saiu de tal maneira que os meus pais, depois, choraram a rir:
numa grande poltrona concavada, no pano de fundo da palmeira arti cial, estou
eu, carrancuda, apertando ao peito a lebre feita de trapos, coçada e de olhos
desirmanados.
DEZASSEIS
Irrompo no estúdio fotográ co — tenho pouquíssimo tempo. Matchutcha
interrompe o processo meticuloso de passar uma fatura. Semicerra os olhos com
ironia:
— Aonde vais com essa pressa?
Gostaria de mentir, mas em vez disso e inesperadamente para mim própria,
disparo a verdade:
— Para um encontro.
— Oh! Se é um encontro, tudo bem.
A voz de Matchutcha é tal que não dá razão a descon ança — é regular e
impassível, e o olhar é frontal e benevolente. Talvez alguém se deixasse enganar,
mas eu não. Sinto com todas as entranhas que ele está a gozar comigo. Noutra
altura qualquer, não deixaria de altercar, de entrar em discussão, mas nesta
altura não posso: há duas semanas foi o funeral da mãe dele. Eu também assisti
à cerimónia do último adeus e, francamente, não queria muito ir, mas a minha
mãe disse que era uma vergonha, que a Nubar me tinha visto crescer, que eu
tinha obrigação de ir ao enterro. Pois bem, armei um pequeno escândalo para
que não pensasse que era muito fácil fazer-me mudar de ideias, e acabei por ir.
Havia bastante pouca gente — num dia útil poucos conseguiram arranjar
dispensa para se ausentarem do trabalho. Nubar estava no caixão — velhinha e
apaziguada. Matchutcha, sentado à sua cabeceira, com os seus compridos e
inquietos dedos entrelaçados, olhava para o chão. A minha mãe aproximou-se
dele, sussurrou-lhe palavras de condolência. Quanto a mim, não fui ter com ele,
mas quando Matchutcha olhou para mim, confundi-me e abanei a mão
estupidamente. Então, ele tapou a cara com as mãos e chorou. Vamos embora,
sussurrou-me a mãe. Deixei junto ao caixão um ramo de rosas-chá e fui atrás da
minha mãe. Ela caminhava pela rua fora, alta e bonita, com o cabelo comprido a
esvoaçar ao vento, e eu arrastava-me atrás dela, sentindo-me uma nulidade.
— Trinta anos, mas chorou como uma criança — exprimi-me nalmente.
Mas acho que seria melhor ter-me calado.
— É natural — respondeu a minha mãe.
Depois, as mãos doeram-me todo o dia — tinha apertado os caules das rosas
com tanta força que piquei os dedos todos.
— Preciso de tirar uma foto tipo passe. Para o passaporte — digo a
Matchutcha.
Ele põe de lado a fatura, levanta-se da mesa. Pelos meus dezasseis anos, eu
havia-me transformado num espicho desajeitado, mesmo assim olho para ele de
baixo para cima. O seu cabelo tem agora algumas brancas, os olhos são da cor da
neve derretida. Há nele tanta segurança e tanta reservada beleza masculina que
apetece insuportavelmente dizer-lhe alguma porcaria.
— Sabes o que dizem de ti as mulheres? — Parece que estou possuída pelo
diabo. — Que és bonitinho como o Alain Delon.
Matchutcha olha para mim de tal modo que sinto chamas no ventre.
— Vai, vai pôr-te bonita — responde depois de uma curta pausa.
No canto cheira a pó e ao perfume barato de alguém. Na parede está o mesmo
mapa, o tempo desgastou-o e amareleceu-o, mas ainda é possível enxergar o
gigante com as mãos erguidas aos céus. Risco desajeitadamente os lábios com o
bâton cor-de-rosa (roubei-o do estojo de cosméticos da minha mãe), tiro da
prateleira um gancho e prendo o cabelo por cima da testa de maneira que me
emoldure lindamente a cara e caia pelos ombros em ondas.
Matchutcha foca em mim as luzes. Solta um risinho. Tira do bolso um lenço,
estende-mo:
— Limpa a boca.
— Porquê?
— Limpa a boca, ouviste?
Limpo, zangada, os lábios. Amarroto o lenço.
— Então, com quem é esse encontro? — Assim exprime ironicamente a sua
curiosidade Matchutcha, observando-me através da objetiva.
— Com o lho de Vanoiants Édik.
— Conheço. É um rapaz bonitinho.
— E depois?
Ele faz de conta que não ouviu a minha pergunta:
— Senta-te direita, não te curves. Baixa o ombro esquerdo, porque o levantas?
Fecha os olhos, agora abre-os um pouco. Sorri um pouquinho, só com as
comissuras dos lábios. Linda menina. Olha aqui, já vai sair o passarinho.
Na fotogra a do passaporte, tenho um ar de uma miúda pequena e parvinha
com aquele penteado estúpido, o olhar atrapalhado. Sabe-se lá porquê, z um
beicinho com o lábio inferior, talvez descontente por me terem obrigado a
limpar o bâton. Poderia fazer outra fotogra a, mas tenho preocupações mais
importantes — o primeiro amor, a entrada na faculdade. Não tarda a que me vá
embora desta bolorenta cidadezinha provinciana com as suas ruelas tortas e a
capela semidestruída. Vou para a cidade grande, para os seus in nitos espaços
dourados. Que diferença faz que a foto no meu passaporte seja bonita ou feia?
Que se amole, ca esta.
VINTE E DOIS
As sombras da cidade da minha infância são sonolentas e taciturnas,
estendem-se de um prédio a outro, como se, com os seus dedos gelados, se
agarrassem para não caírem no abismo. Se fechar os olhos, posso recordar como
era dantes — verde e enevoada, cheirando a chuvas pressurosas e a lírios-dos-
montes cheios de frio pela manhãzinha.
A montra do estúdio de fotogra a está coberta com película de polietileno —
os vidros foram partidos pela onda de uma explosão, colocar vidros novos não
fazia sentido, seriam destruídos por novo bombardeamento. Se não me virar
para a montra estraçalhada, terei a impressão ilusória de que nada mudou. Se
não me virar para a montra e se não olhar Matchutcha nos olhos.
— Olá — digo eu.
— Olá.
A cara de Matchutcha é pálida, quase extenuada. Coxeia muito da perna
mutilada. Da têmpora até ao intercílio, contornando a maçã do rosto, estende-se
uma cicatriz longa e grosseira. Só os olhos continuam os mesmos — vivos e
penetrantes, rutilando com cores de mercúrio e prata.
— Preciso de fotogra as normais a preto-e-branco, dez ou doze. Mudo-me
para o estrangeiro, lá será necessário fazer alguns documentos, não quero
percorrer uma cidade desconhecida à procura de fotógrafo — metralho,
saltitando com os olhos pela parede atrás dele. É insuportável olhar Matchutcha
nos olhos e ngir que nada mudou.
Ora, nos últimos seis anos parece que tudo mudou. Apaixonei-me três vezes,
foi estúpido e absurdo, z um curso na faculdade, trabalhei como auxiliar no
hospital para os soldados mutilados na guerra. Matchutcha combateu, foi
gravemente ferido, desmobilizado. Casou-se com uma refugiada com dois
lhos, a mais velha, de oito anos, o pequeno, de quatro, as crianças gostam dele
como do seu verdadeiro pai, a mulher adora-o.
— Portanto, vais-te embora — diz ele.
— Vou.
Limpo o bâton com um toalhete, encontro às apalpadelas um gancho na
prateleira, faço um puxo duro do cabelo. Na parede, há um mapa com um
gigante imaginário. Viro a cabeça para, nalmente, o examinar melhor. Mas a
porta de entrada bate, são outros clientes. É preciso desocupar o canto.
Matchutcha observa-me através da objetiva. Aproxima-se, coxeando
pesadamente. Vejo que tem dores ao andar.
— Porque não arranjas uma bengala?
— Passo bem sem ela. — Toca o meu queixo com a ponta do dedo, faz-me
levantar um pouco a cabeça. — Aprende a não esconder a cara. E não te
esqueças: és uma beldade.
Olho para ele como na infância, de baixo para cima.
— Sorri — pede ele.
Estou a sorrir.
QUARENTA E TRÊS
Uma das recordações queridas da minha infância são as primeiras horas da
manhã em novembro. O verão há muito cou para trás, as aves, lançando gritos
divinos toda a noite, voam daqui — para o Sul, para o Sul. Os galos, alarmados
pelos seus gritos de despedida, armam uma troca de cocoricós de madrugada. O
chamamento agitado dos cavaleiros da aurora precipita-se de um quintal a
outro, de uma cancela a outra, de uma colina a outra, e depois de abanar o
pesado rabo multicor esvoaça para cima — para onde voou o último bando de
grous. Para o Sul, para o Sul.
O jardim lavado pela chuva noturna emaranhou-se na cortina de névoa que se
estende pelas copas das árvores, que pousa como grandes novelos de algodão em
cima dos ombros felpudos dos ciprestes, que jorra entre os ramos do marmeleiro
grande — e os frutos amarelos, cobertos de penugem áspera, destacam-se como
aplicações contrastantes no tecido leitoso.
O nevoeiro dissipa-se — e as colinas tingem-se do ouro e da vermelhidão dos
bordos, enchem as redondezas de um denso aroma de nespereiras e rosas-bravas,
soltam o cheiro forte das coníferas e silvas lavadas pela manhã — no m do
outono, as suas bagas são melí uas, graúdas, três amoras não cabem na palma
da mão.
Visito a minha casa precisamente em novembro, com os grous que migram
para o Sul. É agora muito diferente, esta cidade da minha infância, está
inundada de luzes de néon e pisca com os painéis de publicidade, e onde dantes
era o estúdio de fotogra a situa-se agora um escritório notarial. Eu e a minha
mãe passamos ao lado sem virarmos as cabeças. Levo um ramo de rosas-chá.
O cemitério está calmo e deserto, só o vento deambula no meio das lápides
tumulares, dissipando o fumo adocicado do incenso. O nevoeiro agasalha o
cume da Colina Oriental — daqui a pouco, ele vai descer e inundar toda a
extensão do mundo.
Nazaretian Taron, 1957-2005. Há nove anos que não está entre nós. Na
fotogra a, é muito jovem, é como tentei guardá-lo na memória — um gigante
moreno de olhos cinzentos. Leio várias vezes o epitá o, tentando inutilmente
penetrar no seu sentido. Por m, consigo: «Para o melhor marido e pai do
mundo — da mulher, da lha e do lho que o adoram».
— Porque foi enterrado aqui e não ao lado da Nubar?
A mãe estende-me o saquinho de papel com incenso.
— A Nubar está no cemitério velho, lá já não enterram ninguém. Por isso
cou aqui.
Deito no vaso metálico migalhas do incenso, acendo um fósforo. A mãe dispõe
debaixo da lápide as rosas-chá. Conta, mas como se não falasse comigo, e sim
consigo própria: «Quando a Nubar e o Gareguin se estabeleceram na nossa
cidade, o teu pai tinha seis anos ou assim. Ele lembra-se da vida dura que
tinham — mal conseguiam dar um jeito à vida. Mas pouco a pouco
conseguiram regularizar as coisas, construíram uma casa. Recordavam muitas
vezes Boston de onde partiram quando, depois da Segunda Guerra Mundial, as
fronteiras foram abertas por um curto período. Abandonaram lá tudo em prol
do sonho de voltar à pátria dos antepassados. Jovens, bonitos, crianças que por
milagre se tinham salvado do massacre.
«A Nubar teve um lho muito tarde, aos quarenta e dois anos. Passada uma
semana, o Gareguin morreu de um ataque cardíaco, deixando-a sozinha com o
bebé de peito. Deu-lhe o nome de Taron, em memória da terra dos seus
antepassados.
«Crescia bom rapaz, e tenho a certeza de que podia conseguir muito na vida.
Perseguindo um grande sonho, as pessoas partem para as cidades grandes, mas
ele não podia permitir-se essa liberdade porque não tinha com quem deixar a
mãe velha e doente. Arranjou trabalho no estúdio de fotogra a, aprendeu a
tocar clarinete. Uma vez, quando era ainda pequeno, perguntaram-lhe como se
chamava o Estado americano de onde vieram os seus pais. Respondeu,
deturpando muito o nome: Matchutcha. Desde aquele dia, tinha esta alcunha.
Não objetava, até gostava disso.
«Lembras-te, pelos vistos, do mapa velho que estava na parede do estúdio
fotográ co. Era o mapa de Massachusetts. Uma vez confessou ao teu pai que
sonhava ir a Boston, ver a cidade onde cresceram os seus pais. Não chegou a
fazê-lo.
«No pátio da sua casa, vivia um cão ruivo que se movia nas patas dianteiras,
arrastando as traseiras — durante um bombardeamento, um estilhaço partiu-
lhe a coluna vertebral. Dantes, vivia na rua, olhava os transeuntes nos olhos.
Cada um pensava: oxalá alguém lhe dê um tiro para deixar de sofrer —, mas
dava-lhe de comer sorrateiramente. Ora, Taron voltou da guerra e levou o cão
para casa. Coxeando, levava o cão ao colo quando este cou muito velho e
decrépito.»
A mãe guarda a taça de incenso no nicho, deixa ao lado o saquinho de papel
com incenso. O nevoeiro desliza vertiginosamente da Colina Oriental,
reconquistando palmo a palmo o seu espaço.
Antes de me ir embora, limpo a sua fotogra a com a mão. As manchas sujas
cam-me na mão. Ele olha, mas não para mim, com os seus olhos prateados, da
cor do céu de novembro.
Adeus, Matchutcha. Adeus.
52 Crimplene — tecido de bra sintética muito em voga na URSS dos anos 60. (NT)
HADDUM
Era assim mesmo que chamavam à velha Haddum: a Velha Haddum. Não por
causa da idade provecta — dois anos antes, os netos festejaram solenemente o
seu octogésimo aniversário —, mas por respeito. Velho signi ca sábio. Com a
data do jubileu, surgiu uma complicação: no início do século , emitiam as
certidões das crianças nascidas na sua fortaleza de pedra berberesca com muito
atraso, quando as mães extenuadas pelas noites sem dormir já se lembravam mal
do dia e do mês em que deram à luz mais um bebé, pelo que a certidão de
nascimento da Velha rezava o seguinte: «Haddum Laalluch, quinta lha de
Ismail Laalluch e Buchrá Alauí, nascida na temporada dos aguaceiros, no
terceiro dia do mês de djumad al-ul».
No passaporte, emitido já nos anos do pós-guerra à Haddum quinquagenária,
constava a data, cremos que tirada à sorte, de 28 de dezembro de 1903. Ora,
para os netos que organizaram a festa de aniversário era importante calcular o
dia correto do nascimento da sua respeitável parente. Girando em sentido
contrário a rodinha do calendário lunar e depois de vasculharem os documentos
de arquivo e os artigos de jornais de há um século, calcularam uma data
aproximada. De acordo com estes cálculos, foi o dia 5 de janeiro de 1905 —
dois anos e oito dias após a data indicada na certidão de nascimento. Aqui, um
problema surgiu aos olhos dos perplexos descendentes: para que data deviam
marcar a celebração, tendo em conta que a saúde de Haddum estava a piorar e
havia grande possibilidade de a idosa não chegar à data do seu verdadeiro
octogésimo aniversário? Depois de longas re exões, foi decidido celebrar a festa
de acordo com a data indicada no passaporte, mas se Alá permitisse à Velha
Haddum viver até ao verdadeiro jubileu, seria possível festejar mais uma vez,
com fausto igual, ou talvez maior.
Haddum aceitou a celebração com benevolência, mas também com uma certa
esquiva: não provou sequer um nico do caríssimo bolo da pastelaria francesa
famosa em todo o mundo, bolo trazido de Casablanca, num saco frigorí co
especial, pelo neto Mohammed, lho de Naimá, a mais nova das lhas de
Haddum. As mesas foram postas em frente da casa: estenderam o toldo entre as
tamareiras que cresciam nos cantos do pátio queimado pelo implacável sol do
verão, um pátio que mesmo no inverno cheirava a barro incandescente e às
opúncias grossas e poeirentas típicas da época dos calores insuportáveis —
Haddum, até hoje, lembrava-se do cheiro da escova com que a Grande
Maamma tirava das suas folhas espinhosas a cochonilha, para extrair dela uma
tinta carmim de rara beleza; cozinharam tantos pratos que a comida deu para
três dias e acabou exatamente no momento da partida da bisneta mais velha que
se atrevera, sem pedir a autorização da bisavó, a apresentar-se na festa na
companhia de um jovem admirador, um francês irrequieto de olhos claros que,
em vez de se juntar à decorosa conversa masculina entabulada na mesa farta,
vagueava pela casa e, disparando admirativos «magni que!», tirava fotogra as a
tudo o que lhe calhava à vista. Nem sequer passou ao lado do vaso de defecar,
tentou tirá-lo de baixo da cama para o fotografar à luz do dia. Mal conseguiram
afastá-lo. De resto, o que se podia esperar deste estrangeiro com o qual, a julgar
pelas conversas, a bisneta Miriam planeava vincular a sua vida? Não falta aos
in éis descaramento.
Haddum passou no seu quarto todos os três dias de confusão. Os netos e os
bisnetos não a incomodavam muito — vinham vê-la de manhã para lhe
beijarem a mão e lhe desejarem um bom-dia, e à noite para lhe pedirem a
bênção antes de se deitarem. Falavam uma áspera língua marroquina,
compreendendo mal os farfalhos da língua berbere da avó, pelo que a
comunicação se resumia a frases gerais. Em compensação, os lhos e as lhas
passavam muito tempo com ela: sentados ao seu lado, conversavam uns com os
outros. Haddum ouvia-os sem atenção, não porque menosprezasse o convívio,
mas porque sabia que não diriam nada de novo, que a cantiga seria sempre a
mesma. Comia no quarto, absolutamente sozinha, considerando o processo de
ingestão do alimento à vista dos outros muito vergonhoso e humilhante para a
dignidade da pessoa. A mãe dela contou em tempos que Haddum, ainda bebé
de peito, parava de mamar se alguém entrasse no quarto e chorava
lamentosamente, só se acalmando quando os indesejáveis saíam do quarto.
Desde um ano de idade, comia sozinha, escondendo-se de toda a gente no
quarto de dormir dos pais.
Tendo em conta este hábito de Haddum, os lhos abandonavam o quarto mal
chegava a hora da refeição. A criada Zuhrá, mulher taciturna e bexigosa, com
um lenço na cabeça, que cou solteirona por causa da varíola que lhe deformara
a cara, ao veri car que a patroa estava sozinha, trazia-lhe a refeição na bandeja.
Haddum era pouco exigente e conservadora quanto à sua dieta: para o pequeno-
almoço, serviam-lhe o invariável mel com óleo de argão, azeitonas, pão de trigo
com côdea de espelta de moagem grossa e queijo de cabra macio; para o almoço,
a infalível sopa e o cuscuz com legumes — havia já mais de cinquenta anos que
não comia carne, desde o dia em que Ali faleceu de doença grave. O pequeno-
almoço e o almoço terminavam com o chá marroquino tradicional, Haddum
preferia chá sem açúcar, acompanhando-o com as minúsculas bolachas de
amêndoa. Jantava raramente, limitando-se a tomar, quase sempre, duas refeições
por dia. Depois do almoço, quando não fazia um calor abrasador, saía até ao
pátio, sentava-se por muito tempo debaixo da tamareira, deitando aos pássaros
migalhas de pão. Os pássaros esperavam-na em cima da cerca, numa la
chilreante. Ao verem que Haddum saía de casa, esvoaçavam num instante do
poleiro e precipitavam-se ao seu encontro, batendo as asas multicores. Haddum
sentava-se de maneira a poder contemplar o pico do Monte Calvo, que se erguia
por cima da fortaleza; esse monte, apesar da oresta espessa que lhe cobria os
declives, tinha um cume calvo como um cotovelo, daí o seu nome. Haddum
esmigalhava o pão para os pássaros e não desviava os olhos do monte que se
erguia para os céus como uma lança espetada — conhecia cada curva, cada ruga,
cada caverna da montanha. Havia já oitenta anos que a observava daqui, do seu
pátio, procurando de cada vez alguma coisa nova no seu aspeto, mas não
encontrava nada diferente: as árvores férreas continuavam altas como na sua
infância, os carvalhos pétreos tinham os troncos imutavelmente largos, os
cedros, cortando com as suas cúpulas o céu amarelo, continuavam inacessíveis, e
as cavernas mantinham as goelas escuras tão silentes e assustadoras como os
buracos no tempo — mergulhamos neles e já não encontramos o caminho de
volta. Aliás, os oitenta anos terrenos da Velha Haddum, em comparação com a
idade bíblica do Monte Calvo, não são mais que um bater da asa transparente da
libélula. Se havia alguém que reparava nas mudanças, era o monte: observava
com fria indiferença a fortaleza de pedra que cresceu no seu sopé trezentos anos
atrás. Ao longo desses trezentos anos, as caravanas passavam através da fortaleza,
levando à longínqua Agadir, onde se situavam os armazéns dos mercadores, as
cargas preciosas de sedas, cobres, trigos, azeites e óleos de argão, as especiarias,
os tapetes. As caravanas arrastavam-se ao longo da orla inferior da oresta
milenária do Monte Calvo, ao lado dos campos cobertos de arbustos de zimbro e
tamargais, através dos prados de oleandro, chamado aqui «louro rosado», até às
margens arenosas e aos oásis das baixadas. Ao longo de todo o caminho, as
cá las de camelos carregados eram acompanhadas pela guarda armada dos
berberes que, substituindo-se, passavam-nas como numa estafeta, de mão a
mão. Foi o pai de Haddum, o mulaí53 Ismail, o responsável pela segurança do
caminho ao longo do sopé do Monte Calvo até às primeiras dunas arenosas. Era
um gigante espadaúdo da tribo antiga dos berberes da montanha chamados
aari54 em honra do terreno de onde eram originários. O Monte Calvo era
património dos aari, gente de compleição gigantesca e espantosa beleza
forasteira: pele dourada, matiz ígneo do cabelo espesso, olhos azul-claros. As
mulheres da tribo aari eram consideradas as mais belas noivas do Médio Atlas, e
os homens, os mais desejáveis pretendentes para qualquer família respeitável.
Aliás, naqueles anos não havia casamentos mistos entre os representantes de
tribos diferentes, e aqueles que raramente aconteciam celebravam-se
exclusivamente para pôr m à hostilidade de sangue.
Ismail Laalluch, responsável pela paz nas terras dos aari, tinha um
destacamento de guerreiros a cavalo que defendia as caravanas das incursões dos
assaltantes. O próprio Ismail, homem devoto e respeitado, que não conhecia o
medo nem o ódio, somente um frio desprezo por aqueles que não cumpriam as
leis humanas, ganhou, pela sua incorruptibilidade e intrepidez, a estima não só
dos citadinos e mercadores, mas também dos tra cantes obscuros de escravos
que levavam para Essaouira os desgraçados homens, mulheres e crianças
destinados à venda. Os tra cantes contornavam à distância de milhas as terras
dos aari, e os assaltantes não se aproximavam das caravanas acompanhadas pelo
destacamento equestre do mulaí Ismail. Se, por qualquer razão, o pai de
Haddum algum dia não encabeçava o seu destacamento, os guerreiros eram
liderados pelo cavalo dele com uma jelaba azul-escura em cima da sela, com o
símbolo da linhagem Laalluch: a espada e o punhal cruzados, cujas pontas
tinham um adorno de ramos nos de oliveira. Este símbolo repetia-se nos
tapetes e tecidos fabricados pelas mestras da família Laalluch, e ainda no
ornamento artístico feito com tinta de hena que as mulheres desenhavam nas
palmas de mãos e nas plantas dos pés nos dias festivos. O mesmo símbolo era
tatuado na testa e nos pulsos de todas as raparigas da família Laalluch — como
um talismã, como herança dos antepassados, como um terrível aviso de que
qualquer tentativa de atentar contra elas seria punida pela ira dos homens da
tribo aari.
Com a passagem do tempo, essas tatuagens descoloriam-se, mas não
desapareciam por completo, e era possível distingui-las até nas caras enrugadas
das mais decrépitas velhas. Haddum era a última rapariga da família Laalluch a
quem zeram a tatuagem. Foi desenhada nela e em mais uma rapariguinha que
não tinha nada que ver com a sua família. Haddum não se lembrava do
verdadeiro nome da rapariga — o nome era lento e restolhava como uma mó
quando gira, transformando em farinha grosseira o trigo secado sob o sol cálido.
A Grande Maamma, avó do mulaí Ismail, sussurrou por cima dela uma reza e
deu-lhe o nome de Fatimá, e escondeu no fundo do pote das fragrâncias a
minúscula cruz tirada do seu pescoço. A miúda não viveu muito, dois ou três
meses, e morreu da pneumonia grave que a Grande Maamma, que curava todas
as maleitas, não conseguiu vencer. Foi enterrada na hora do ocaso, e as únicas
coisas de que Haddum se lembrava eram as plantas magoadas dos seus pés que
deixaram de sangrar só depois da sua morte e ainda os olhos negros de beleza
incrível orlados de pestanas compridas e espessas. O rapazinho sobreviveu. A
Grande Maamma deu-lhe o nome de Ali e, quanto à sua cruz de peito, não a
encontrou.
Foi o pai que trouxe as crianças — encontrou-as no trilho secreto dos
tra cantes. Deixaram-nas ali para se afogarem na sua própria tosse na margem
da planície arenosa que contornava em arco as terras dos aari. As crianças
estavam tão fracas que nem conseguiam beber sozinhas, ambas tinham calafrios,
deliravam numa língua qualquer lá deles, áspera, que arranhava o ouvido,
sufocadas pelos ataques de tosse, batendo na esteira com os calcanhares
macerados e ensanguentados. O miúdo não tinha mais de cinco anos, a rapariga
talvez nove, e eram espantosamente parecidos — de cabelo escuro, olhos
enormes e rosto de traços nos. Passada uma semana, o miúdo convalesceu, a
rapariga cou adoentada mais tempo, mas também melhorava pouco a pouco, e
foi então que surgiu a questão da tatuagem — a mãe de Haddum insistiu nela
para proteger a criança dos gozos das outras crianças. Se soubessem que ia
morrer, não a obrigariam a isso. Mas quem podia adivinhar? A Grande
Maamma tinha a certeza: se o miúdo se salvou, a rapariga também iria
recuperar a saúde. As conversas do que fariam com eles depois nem sequer
aconteciam na família de Ismail Laalluch, uma vez que deviam educá-los como
seus próprios lhos, ajudá-los a tornarem-se boa gente, e era tudo, não podendo
ser outra coisa.
Na primeira metade do dia, enquanto as demais crianças estavam na escola
primária, Ali brincava em casa; na parte da tarde, corria com a rapaziada pela
fortaleza, assustando os pardais, ou então brincava com pedrinhas até à alta
noite.
— Quando deixar de chorar, mandamo-lo também à escola — decidiu a
Grande Maamma.
Ali chorava de noite, no meio do sono. Gemia no mesmo tom triste de um
lobinho — u-u-u, u-u-u. Corriam-lhe lágrimas quentes e salgadas pela cara, a
Grande Maamma acordava, atravessava toda a casa, descendo do terceiro piso
para o primeiro onde dormiam os rapazes, sentava-se à cabeceira de Ali e rezava.
O menino não parava de chorar, mas acalmava-se, dormia enroscado, soluçando.
Quando acordava, não se lembrava de nada.
A rapariga, ao contrário do irmão, nunca chorava nem gemia. Durante todos
esses meses cou acamada no quarto da Grande Maamma, para onde esta a
trouxera a m de estar sempre ao seu lado. Naquele ano, Haddum fez treze anos
e foi encarregada de lavar o chão nos quartos de dormir. Uma vez por semana
batia à porta do quarto da Grande Maamma (ninguém entrava lá sem
autorização, nem sequer o pai), e depois esfregava o chão, tentando não olhar
para a rapariga deitada de cara para a parede com as plantas dos pés feridas e
untadas com óleo de eucalipto. Não chegou a pôr-se em pé — qualquer
tentativa de dar um passo acabava em cãibras fortes e hemorragia. A Grande
Maamma pedia, às vezes, que levassem a rapariga ao pátio, sentava-se,
arregaçando as suas saias e as mangas compridas da jelaba, desnudando os
pulsos tatuados, sentava a rapariga nos joelhos, apertava-a ao peito. A menina
guardava silêncio, com os olhos semicerrados, às vezes tossia, tremendo dos
ombros magrinhos, Ali punha-se ao lado, pegava-lhe na mão, mas depois,
cansado da imobilidade, deitava a correr, dando voltas e mais voltas pelo pátio,
a Grande Maamma cantava baixinho as tristes canções berberes sem desviar os
olhos do cume do Monte Calvo, e um enxame dourado de borboletas
efemerópteras voava por cima da sua cabeça.
Nunca chegaram a descobrir como as crianças caíram nas mãos dos tra cantes
de escravos — elas não compreendiam a língua berbere. Se a rapariga
sobrevivesse, então, ao aprender nalmente a língua, poderia pelos vistos contar
a sua desgraça. Mas morreu, e Ali era demasiado pequeno para se lembrar de
alguma coisa. A Grande Maamma, que observava as crianças com muita
atenção, um dia fez uma descoberta dilacerante: as crianças tinham muito medo
do grito do muezim do alto da almenara — o miúdo cava hirto, a rapariga
retinha o fôlego, só as suas pálpebras azuladas estremeciam. Mais tarde, as
crianças habituaram-se, deixaram de assustar-se, e a Grande Maamma cou
tranquila. Um dia, uma caravana que atravessava as terras dos aari trouxe a
notícia sobre os rios de sangue em que o Império dos Otomanos afundou os seus
povos. O mulaí Ismail soltou uma risada — os turcos já se tinham aproximado
das suas terras também, mas retiraram-se, lambendo as feridas —, porque
partiram os dentes contra as inexpugnáveis fortalezas berberes. Mas transmitiu
à Grande Maamma, palavra a palavra, o relato de que uma parte das pessoas fora
vendida para a escravidão pelos militares turcos. Ela suspirou gravemente,
meneou a cabeça. Era muito possível que as crianças fossem de lá. Mas, se assim
fosse, a única coisa que se podia fazer por elas era nunca mencionar o passado.
Não avives as feridas, senão, nunca aprenderás a ser feliz, acreditava a Grande
Maamma. Pediu ao neto que não contasse esta conversa a ninguém. Ismail
prometeu-lho e cumpriu a sua palavra.
Passado um mês, apesar de Ali continuar a chorar de noite, Ismail deu ordem
para o mandarem à escola e respondeu às objeções da Grande Maamma que a
mudança de ambiente ajudaria o rapaz a vencer os seus medos. Haddum
ofereceu-se para ajudar nos preparativos e passou vários dias a construir o
quadro de escrever. Ali não a largava, repetia as palavras, deturpando-as
comicamente. Haddum contava-lhe em todos os pormenores como se preparava
o quadro: primeiro, era preciso arranjar junto do lenhador um quadrado de
madeira do tamanho necessário, depois furar nele um buraquinho para o
pendurar no prego, depois poli-lo bem, até ao lustro mate, com uma mancheia
de argila dura. Ali ouvia sem compreender quase nada, mas Haddum tinha a
certeza: o miúdo, por um inexplicável instinto, descobria o sentido das suas
palavras.
— Na escola escrevem com penas cortadas do bambu, e a tinta provém do
cedro: acendem uma fogueira sobre as raízes da árvore que se aquece e chora
com lágrimas negras e viscosas. Depois, a parte queimada do tronco é retirada
com cuidado e coberta com uma infusão especial de ervas. A ferida da árvore
sara pouco a pouco, cobre-se de casca. O cedro continua vivo, mas junto às
raízes ca um pequeno buraco em que, enroscada, a pessoa pode proteger-se da
chuva. Compreendes-me?
— Compreendes-me! — repetia a rmativamente o rapaz e esboçava um
sorriso desdentado: caíra-lhe havia pouco o primeiro dente de leite, e a fenda
entre os dentes dava à sua carita uma expressão muito cómica. Haddum ria e
afagava-lhe a cabecinha topetuda. Ganhou-lhe um amor profundo, até gostava
mais dele do que dos próprios irmãos, talvez pela pena que lhe causava o rapaz
que por tantos sofrimentos passara. Sabe Deus por que martírios passaram estas
duas crianças, o rapaz e a rapariga, dois irmãos separados da família e levados
para um país alheio com a intenção de serem vendidos no mercado negro dos
escravos em Essaouira…
Ali dava valor à bondade de Haddum, correspondia-lhe com afeição recíproca
e, quando a sua irmã morreu, não falava com ninguém, só com ela, nos
primeiros tempos recusava-se a comer, apenas chorava, inconsolável,
introduzindo na sua incompreensível fala marulhante umas raras palavras
berberes: «dói muito», «ajuda-me». Quando Haddum não o conseguia acalmar,
a Grande Maamma tomava conta dele, saía com ele ao pátio, sentava-se de
frente para o Monte Calvo, levava o miúdo ao colo, sussurrava rezas. Ali
chorava, mergulhando a cara nas pregas da sua jelaba de seda.
Foi às aulas no início da estação das chuvas, nos primeiros tempos a própria
Haddum o levava e ia buscar à escola. Observava-o sorrateiramente pela janela
— Ali, o mais novo dos alunos, perdido e assustado, metia-se num canto,
apertando ao peito o quadro de escrever. A sua cabeleira com poupa destacava-
se, como uma mancha escura, no meio das outras cabeças ruivo-douradas, e
parecia que uma grande ave preta de penas eriçadas pousara na margem de um
prado orido e depois se esqueceu de voltar a voar.
O mulá que ensinava às crianças a ler e escrever era um homem severo e
in exível, os alunos guardaram para sempre na memória o peso da vara com que
lhes batia quando se distraíam das lições. Haddum, como ouvira da boca dos
irmãos muitas histórias sobre a crueldade do homem, preocupava-se muito com
Ali, mas não tinha razão: o rapazinho adaptou-se rapidamente ao processo de
estudo, passado pouco tempo já escrevia sem di culdade no quadro, com a pena
de bambu, as suratas do Alcorão e, depois, juntando a custo as sílabas, lia-as no
meio do barulho de vozes — os rapazes decoravam as suratas em voz alta, e cada
um a sua, diferente das dos outros — considerava-se que aquele que aprendesse
a ouvir a sua própria voz no meio da vozearia saberia distinguir no silêncio os
pensamentos alheios.
Na primavera, casaram Haddum com um seu primo em segundo grau — o
sogro era seu tio em segundo grau e a sogra era sua tia por a nidade. A casa do
marido era contígua à casa do pai de Haddum, com as cercas juntas e, para
visitar a Grande Maamma, não era preciso sair ao pátio, bastava subir ao telhado
plano de pedra, passar para o telhado da casa do pai e descer pelos pequenos
degraus para o terceiro piso. Por isso, Haddum não teve grandes emoções por
causa do casamento, mudou-se simplesmente de uma família dela para outra
também dela. Engravidou de imediato e, por altura da estação das chuvas
seguinte, deu à luz uma lha a que chamaram Aicha. Ali vinha às vezes para
brincar com a criança, Haddum sorria, olhando como ele tratava da pequenina
— cantava-lhe, brincava com ela, embalava-a.
— Quando cresceres, casas-te com ela — disse uma vez por brincadeira.
— Está bem — consentiu ele.
Foi isso mesmo que aconteceu. Passados dezasseis anos, Ali casou-se com a
lha mais velha da sua irmã adotiva e tornou-se seu genro. Mas, passadas mais
três temporadas de aguaceiros, depois de assistir ao nascimento do lho Iunes,
ele morreu de uma grave doença, incurável, que lhe atingiu os pulmões. Os
irmãos levaram-no a Casablanca para ser visto pelos médicos. Um deles voltou
passados dez dias, amargurado e desanimado, contou que foram obrigados a
deixar Ali no hospital sob observação médica, que estava muito mal e era
preciso ir lá rapidamente para se despedirem dele. Haddum preparou-se em
poucos minutos — levou os lhos a casa da sogra, vestiu a jelaba, correu ao
quarto da Grande Maamma — depois da sua morte ninguém vivia lá, e o
quarto encontrava-se praticamente no mesmo estado que em vida da velha.
Haddum não guardou na memória o caminho extenuante até Casablanca, a
única coisa que se lhe cravou na sua memória foi Aicha assustada, a embalar o
lho de três meses e o pai ao seu lado — Haddum, pela primeira vez, via o seu
pai tão desconcertado. A viagem foi longa: na carroça até à cidade próxima,
depois quase vinte e quatro horas no autocarro desengonçado pelo caminho
acidentado e poeirento, com o motor a fumegar e a gemer, Haddum assustava-
se e encolhia os pés, mas não largava das mãos a sacola, apertando-a com força
ao peito.
Ali estava muitíssimo fraco, mas consciente, como que à espera da despedida.
Era ainda muito jovem, tinha vinte e quatro anos, nenhuma branca na cabeleira
basta, os traços nos do rosto, os olhos enormes sem fundo.
Aicha pôs-lhe no peito o bebé adormecido, sentou-se ao lado, chorou.
— Não chores — franziu a cara Ali. Ela calou-se.
Haddum pôs na mesa de cabeceira a sacola, tirou dela o pote das fragrâncias
que encontrara no quarto da Grande Maamma, pegou na minúscula cruz,
meteu-a na mão dele.
— É tudo o que resta da tua irmã.
Ali percebeu o que ela lhe pôs na mão, apertou o punho com tanta força que
as pontas dos dedos lhe caram brancas.
— Obrigado.
Morreu na mesma noite, não chegou por pouco ao amanhecer. O doutor, que
estava sempre ao lado, perguntou depois a Aicha por que razão o falecido falava
a língua grega.
— Grega?
— Sim. Antes de morrer falou em grego. Estudei em Atenas, compreendo a
língua. Dez anos…
— O que disse ele? — interrompeu-o Haddum.
— Erkhome se sas. Vou ter contigo.
— Erkhome se sas — repetiu Haddum mentalmente. — Erkhome se sas.
Ali foi enterrado em Casablanca. Voltaram no mesmo autocarro — durante
todo o caminho, trincolejava, o motor falhava, o motorista mexia nele,
insultando-o, chamando-lhe iblis55, Haddum apertava ao peito o pote das
fragrâncias, o turbilhão de areia arranhava o vidro baço, Iunes dormia, estalando
com os lábios expressivos herdados ao pai, a sombra das pestanas fofas caía-lhe
na bochecha.
Passados três anos, Aicha voltou a casar-se, teve ainda cinco lhos. Haddum
foi avó pela primeira vez aos trinta e um anos, e aos cinquenta já tinha vinte e
oito netos — dez rapazes e dezoito raparigas. Tratava-os a todos da mesma
maneira, mas mesmo assim gostava mais de Iunes — o único descendente
moreno da grande família Laalluch. Iunes sabia que era grego e que os seus
antepassados eram cristãos, mas mantinha-se na religião da família que adotara
o seu pai, cumpria rigorosamente o jejum do mês do Ramadão, tirou o curso de
Medicina, mudou-se para Marraquexe, casou-se com uma árabe, o que partiu o
coração da sua avó — Haddum, berbere de puro sangue, tinha pelos árabes
barulhentos uma atitude de certa descon ança e ligeiro desprezo — o que se
pode esperar desses adventícios descarados? Logo depois do casamento, os
recém-casados vieram de visita, e Haddum, que naquela altura já se mudara
para o quarto da Grande Maamma, tratava a mulher do neto com reserva, quase
com frieza, e ganhou um ódio profundo à gata dela (não lhe bastava vir cá,
ainda por cima trouxe esta criatura pulguenta!). Para sua desgraça, a gata
escolheu para os seus banhos de sol o terceiro piso da casa, e Haddum por várias
vezes tropeçou nela quando saía do quarto. Uma vez, quando a gata, saltando-
lhe de baixo dos pés, rolou da escada com um rugido zangado, Haddum, fora de
si, arremessou-lhe um chinelo. Sana, a mulher de Iunes, sábia apesar da jovem
idade, ngia não reparar na antipatia da velha senhora, era bem-educada e
atenciosa para com ela. Para agradar aos parentes do marido, todos os dias cozia
pão — pão verdadeiro, berbere, com a côdea de farinha de moagem grosseira.
Haddum recusou-se a comê-lo, queixando-se de azia, e pediu que lhe
trouxessem pão feito pela nora mais jovem. Durante duas semanas gabou esse
pão, acentuando o facto de que só as raparigas da tribo aari sabiam cozer
corretamente o pão berbere. Os familiares trocavam sorrateiramente olhares,
mas calavam-se. Uma vez, ao sair do quarto mais cedo do que era costume,
Haddum viu como Sana estava a mandar Iunes a qualquer lado, e este, levando
debaixo do braço um embrulho com uma fatia de pão, saiu da cerca, esperou
um pouco, depois voltou, batendo com a cancela ruidosamente, de propósito.
Haddum voltou ao seu quarto, sentou-se no catre, sorriu. No peitoril de pedra
alumiado pelos raios do sol nascente, estava o pote das fragrâncias.
— Queres dizer que, com a idade, o meu carácter começou a piorar? —
perguntou Haddum. Não sabia a quem estava a dirigir-se — à Grande
Maamma, a Ali, à cruzinha da sua irmã ou simplesmente ao pote. O importante
era ouvir a resposta. E ouviu-a.
— Sana, lha — chamou, assomando-se à porta.
Em baixo, na sala de estar barulhenta onde estavam a pôr a mesa para o
pequeno-almoço, fez-se um silêncio de alerta.
— Miau! — respondeu, rabugenta, a gata.
«Que Alá te transforme num cão!», retorquiu mentalmente Haddum, mas
logo a seguir arrependeu-se e admoestou-se a si própria.
— Sa-ana! — voltou a chamar.
— Sim, vovó — disse a árabe, batendo com os saltos na escada.
— A partir de hoje, vou comer o pão que tu fazes — comunicou-lhe Haddum
e, sem esperar pela resposta, fechou a porta. — Não me peças mais do que isto!
— espetou o dedo no pote das fragrâncias. O pote, sensatamente, guardou
silêncio.
A vida mudava tão vertiginosamente que Haddum não tinha tempo não só de
se habituar, mas também de reparar nessas mudanças. Contudo, algumas coisas
não escapavam à sua atenção. Na fortaleza foi instalada luz elétrica, a água
canalizada apareceu nas casas — já não era preciso trazê-la dos poços, dando
cabo das costas. Uma vez, explodindo o ar com um estrondo insuportável,
rodou pelas ruas um montão de metal, a que toda a gente chamava, com
veneração, mobilette, conduzida pelo lho do zarolho Hakim. Haddum até foi
ver essa tal mobilette. Não valeu a pena. O lho de Hakim consertava-a à
martelada e com o aparelho de soldar, ora solda, ora martela, e abastecia-a, a
olho, com uma mistura de óleo e gasolina. A mobilette deitava tanto fumo, que
Haddum, depois, teve náuseas metade do dia.
Passado algum tempo, na sala de visitas instalaram solenemente uma
televisão. Haddum menosprezou-a durante um mês, depois não aguentou,
desceu para dar uma vista de olhos. Os familiares, rindo, viam um espetáculo
com dois homens que, gozando com a complicada cozinha marroquina,
contavam o método de cozinhar uma perdiz. «Pegamos numa perdiz,
recheamo-la com cuscuz. Pegamos numa galinha caseira, recheamo-la com a
perdiz. Pegamos num ganso, recheamo-lo com a galinha. Recheamos um
carneiro com o ganso, uma vaca com o carneiro, um camelo com a vaca, um
elefante com o camelo. Assamos durante 24 horas em lume brando, regando
com molho. Serve-se do modo seguinte: corta-se o elefante, tira-se o camelo, do
camelo tira-se a vaca, da vaca o carneiro, do carneiro o ganso, do ganso a
galinha, da galinha a perdiz. Comemos a perdiz com o sentimento de dever
cumprido porque cou maravilhosa.»
Haddum abanou a mão, saiu ao pátio, sentou-se virada para o Monte Calvo.
Tinha vivido tanto tempo que se sentia a si mesma um monte. Aprendeu a ver a
vaidade humana alheadamente e de longe, e resignou-se com o seu caráter
efémero. Chegará o dia de amanhã — e não haverá nada: nem as ruas tortas de
pedra, nem as paredes com azulejo colorido, nem as portas decrépitas,
carcomidas pelo bicho da madeira, nem as copas das tamareiras queimadas pelo
sol — passamos a mão por tudo, e desaparece, reduzido a pó de palha.
«A vida é parecida ao sonho do meio-dia, curto, colorido, cálido — pensava
Haddum. — Soa com o riso dos nossos lhos, verte-se em lágrimas pelos nossos
familiares mortos. Cheira a oceano, a vento do deserto, a panquecas de milho, a
chá de hortelã — cheira a tudo o que não podemos levar connosco.»
Haddum raramente falava com Alá — evitava incomodá-Lo com ninharias.
Ficava triste, observando a grande azáfama que as pessoas estúpidas levantavam
à volta d’Ele. Nunca fez o Haje, mas punha de lado escrupulosamente o
dinheiro que teria gasto com a peregrinação e doava-o a alguma família
necessitada. Sabia que a fé devia estar no coração, e não à mostra.
Por vezes, embora raramente, atrevia-se a dirigir-se a Ele. Pedia que lhe
mandasse um sinal quando chegasse a sua hora. Para ter tempo de se lavar, de
vestir roupa limpa, de ler a chahada, oração de despedida.
— E se for possível — acrescentava, levantando ao céu os seus olhos
descoloridos —, deixa-me ainda um meio suspiro para eu repetir as palavras
que Ali disse antes da morte.
Haddum acreditava que eles iam ouvi-la, o rapaz e a rapariga salvos em
tempos pelo seu pai, crianças desgraçadas que não conseguiram escapar ao seu
destino amargo. Quando chegar a hora, no m do seu último suspiro ela vai
repetir as palavras de Ali: erkhome se sas. Alá é misericordioso, vai permitir-lho.
A MINHA GUERRA
Pensei que enterrara a guerra ali, nos montes. Mas, desde que uma vez a
olhámos nos olhos, ela já nunca mais nos deixa em paz. A guerra irá sempre
voltar para nós como um delírio peganhento, com visões estranhas, com ataques
incontroláveis de medo, com lágrimas sem motivo…
E de cada vez, como se procurássemos a salvação, corremos ao quarto do lho,
rastejamos de joelhos até à sua cama, torcemos a boca num choro silencioso,
beijamos-lhe os caracóis macios, afagamos-lhe as mãos e sussurramos: Deus
Nosso Senhor, nunca, Deus Nosso Senhor, nunca, Santo Deus, nunca mais!
ZANAZAN
— Zanazan! Ó Zanazan! Queres uma pera?
Zanazan tem as pestanas longas e os olhos liláceos. O cabelo é basto, cor de
cobre, sem brancas. Coleia em madeixas desobedientes junto às têmporas.
Dou-lhe a pera. Olha através de mim, o seu olhar é imóvel.
— Toma lá a pera, Zanazan.
Abana a cabeça.
A pele de Zanazan é olivácea, com sardas ruivas. É extraordinária, não há
outra como ela.
— Mas o que te posso dar, com que te posso regalar?
Ela tapa a boca com as costas da mão — vejo a sua linha da vida pouco nítida,
curta, acaba a meio caminho.
— Zanazan?
— Hum?
— Fala comigo.
Silêncio. Os seus dedos são pálidos, compridos, no indicador da mão esquerda
tem um anel simples. Está de pé, cruzando comicamente as pernas. No
tornozelo tem um arranhão em semicírculo.
— Quando foi que te feriste?
Faz um trejeito com os ombros. Sorri, distraída, como para dentro de si.
Apetece-me abraçá-la, apertá-la ao peito, mas não se pode. Zanazan não gosta
que lhe toquem.
— Se eu soubesse, desenharia o teu retrato.
Olha com descon ança. Hesita um pouco, mas pega na pera.
— Diz-me alguma coisa, Zanazan.
Ela sai, fechando com cuidado a porta.
Com o olhar interior, sigo-a a descer os degraus — um patamar da escada,
outro. Emerge do frio do vestíbulo de entrada para o pátio banhado de sol.
— Zanazan! Ó Zanazan! — grita-lhe a rapaziada.
Ela caminha sem virar a cabeça, com a trança lançada por cima do ombro e
apertada na ponta com um elástico ridículo.
Vinte anos antes houve guerra. Ela estava grávida. As contrações começaram
durante um bombardeamento. Era impossível chamar a ambulância — os
telefones estavam mudos. Era impossível pedir ajuda aos vizinhos — como se
podia obrigar os outros a arriscarem a vida? Aguentou até à última
possibilidade. Quando as dores se tornaram insuportáveis, ela e o marido foram
ao hospital. Sob as bombas. O marido foi cortado pelos estilhaços, não
conseguiram salvar o bebé.
— Zanazan! Ó Zanazan! — grita-lhe a rapaziada.
Ela caminha sem virar a cabeça.
Vive com a sogra velhinha.
— Com quem te vou deixar quando morrer? — chora a sogra.
Zanazan sorri meiga e despreocupadamente. Dá a pera à velhota.
— M-mm-m.
Tem pestanas compridas e bastas, olhos liláceos. Alguém já viu olhos liláceos?
Eu vi. Os de Zanazan.
EU VIVO
Vika diz que não há tempo nem distância, que cada encontro nosso é
predestinado, tal como cada despedida. Diz: não chores se levaste alguém da
família, não chores se te levaram alguém, tu não decides nada, segues
simplesmente o rasto traçado por aquele que inventou a tua vida desde o
primeiro ao último dia. Con o em Vika mais do que em mim própria. Ela
estava onde não me calhou estar, viu o que não vi nem em sonhos. Vika
encontrou-se com os anjos — são diferentes, alados e incontornáveis, alguns
têm caras tão medonhas que dói olhar para elas. Vika sabe desenhar o mundo do
além em tons de aguarela tais que até parece o seguinte: a pessoa que criou essas
coisas nunca conheceu a desgraça. Se lhe perguntarmos o que ela viu e sabe,
responde: nada. E olha por cima do nosso ombro. Ela é uma parte da minha
alma que me apetece cobrir com as mãos e não mostrar a ninguém. É um bem
meu, querido e secreto. Não dou.
Marina diz: o que inventaste desta vez, e para quê? Deixa-te disso já, tens
tanta coisa maravilhosa pela frente e metes-te nesses disparates. Tira tudo isso
da cabeça, já, diz Marina. Às vezes conta coisas — com uma voz baixinha e
prosaica — sobre as pessoas que estão sempre com ela, sobre o tio velhinho
Vanó que aguentou até à última possibilidade na sua Sukhúmi, todos partiram,
mas ele cou porque a casa e a vinha… com quem as ia deixar? Espancavam-no,
ameaçavam mutilá-lo, mas ele aguentava e só deixou de resistir quando tudo
isso se tornou insuportável, foi para casa da lha com um molho de alhos e de
meias diferentes, morreu de saudade. Ou sobre o sobrinho, ordenaram-lhe que
deitasse fora um embrulho que trazia da casa do pai, abandonando-a para
sempre, deita isso fora, disseram-lhe e bateram-lhe com a culatra nas costelas,
recusou-se, e fuzilaram-no, e quando o embrulho caiu no chão e se desfez,
espalharam-se em leque as fotogra as da família — avôs e avós georgianos,
acácias no jardim botânico e a costa quente do mar. Não haverá mais nada disso
na nossa vida, nunca, diz com rmeza Marina e olha-me nos olhos. Con o nela
mais do que em mim própria. Ela é uma parte da minha alma que me apetece
mostrar nas palmas das mãos e de que me gabo: olhem, vejam o que eu tenho. É
meu, querido e secreto. Não dou.
JANEIRO
De todas as estações, nós as crianças destacávamos só o inverno. Talvez porque
não era tão longo como desejávamos. E com menos neve do que na passagem
dos montes que nos separava do resto do mundo — a neve amontoava-se no alto
dos montes e mantinha-nos no cativeiro até à primavera.
O inverno chegava em janeiro. Girava e girava com o vento frio por cima das
casas cansadas da espera e depois, numa só noite — de chofre aquietada —,
cobria-as com uma colcha macia. Acordamos de manhã e vemos do outro lado
da janela um mundo que parece ter sido apagado com uma borracha. Apenas
aqui e ali, como fragmentos de esboços a lápis, vemos um bocado da cerca de
madeira ou um trilho solitário deixado no caminho por uma carroça.
Fartos de brincar na neve, corríamos em chusma barulhenta à casa da nani56.
Tirávamos com os dentes as luvas cobertas de gelo, descalçávamos as botas,
atirávamos os casacos e os chapéus para cima da tarimba que estava no corredor
e corríamos, batendo os pés pelo soalho — até hoje lembro-me do rangido
ofendido das tábuas — para a cozinha. A nani esperava-nos. Servia-nos uma
espessa sopa de feijão, punha em cima toucinho frito, cortava a couve roxa de
salmoura, esfregava com alho fatias de pão caseiro aquecidas no fogão…
Mmmm, não conheço nada mais saboroso do que uma simples comida aldeã.
Depois do almoço farto, sentava-nos à sua volta e contava uma parábola sobre
os anjos de sete asas. Aqueles que têm cada asa de alguma das cores do arco-íris,
com as penas, cada uma das quais mata sete devs sinistros. Os devs saem de noite
de trás da extremidade do mundo para roubar as almas das pessoas adormecidas,
mas os anjos arremessam-lhes as suas penas como echas.
— Então, enquanto vocês dormem o bem e o mal lutam para conquistá-los —
assim concluía a nani a sua história.
— Mas o que fazem eles de dia, quando não dormimos? — perguntava
sempre alguma criança.
— Os anjos deixam crescer asas novas e os devs, novos colmilhos.
Ouvíamos, retendo o fôlego. A minha irmã mais nova não aguentava a tensão
e começava a soluçar. «Chiu!», mandava-a calar toda a gente, e ela, coitadinha,
tapava a boca com a mão.
Uma vez, quando a nani, a nosso pedido, começou de novo a contar a sua
história, entrou na cozinha o tio Jora que, naquele ano, ingressara no instituto
politécnico. Ao ouvir a história dos anjos de sete asas, começou a perguntar
como é que eles voavam.
— Como as aves — respondeu a nani com dignidade.
— Sete não se divide por dois, certo? — insistiu o tio.
— Certo.
— Quer dizer, três asas estão atrás de um ombro e mais três atrás do outro.
Onde estará então a sétima asa?
A nani atrapalhou-se. E nós cámos tristes — o mito dos anjos estava a
desmoronar-se a olhos vistos. A minha irmãzinha até deixou de ter soluços, os
seus olhos banharam-se de lágrimas. Nisto, o meu avô irrompeu no quarto e
deu ao tio Jora uma valente cacholeta.
— A sétima asa é de reserva, está bem? Presa a uma correia. Haverá mais
perguntas?
O tio Jora não tinha mais perguntas.
FEVEREIRO
— Ontem telefonei-te oito vezes. Mas não atendeste — ofende-se a minha
mãe.
— Telefonaste? O meu telefone não deu sinal.
— Telefonei-te pelo Skype!
— Mãe, sabes, ao menos, se eu estava na rede?
— Sei lá!
A minha mãe tem maquilhagem, brincos, um lenço no pescoço, um penteado.
Desfaço o meu rabinho de cavalo, aliso as sobrancelhas. Escondo as mãos para
ela não ver a ausência de manicura.
— És a minha beldade — diz a mãe.
Assinto com a cabeça. Sim, sou uma beldade. Quem disser o contrário, será o
seu inimigo número um. E não sou doida, não vou estragar as relações com a
minha própria mãe!
— Nariné, encontrei uma excelente receita de máscara. Escreve. Ralar no ralo
pequeno 40 gramas de saramago, acrescentar duas colheres de chá de gengibre
triturado, cobrir com água a ferver… Estás a escrever?
— Si-im!
— Estás a mentir?
— Não.
— Achas que não sei que estás a mentir? Escreve, vá.
Sou obrigada a escrever e depois ainda a ler em voz alta. Deus me livre de
omitir alguma coisa.
— Preparámos uma pequena encomenda para vocês — diz a mãe como que
por acaso.
— Mais uma? — assusto-me. — Ainda não comemos a do Ano Novo.
— Gabardinents Ervand vai a Moscovo. Como é que o homem pode ir de
carro vazio?
— Que vá de carro vazio.
— Não quero saber. Chega daqui a três dias. Dei-lhe o teu endereço. Vai levar
tudo diretamente a vossa casa.
— Consegue encontrar?
— Consegue. Tem aquilo, como é? O aparelho para indicar o caminho.
Gipirecé.
— Mamã! — Sufoco de riso.
— Zakhrmar!57. Então como é que se diz? Gipiceré?
— GPS, dji-pi-ésse!
— Não me chateies, foi isso mesmo que eu disse. Numa palavra, esperem.
Será para breve.
— Mas quem é esse tal Gabardinents Ervand? E porque se chama
Gabardinents? O seu antepassado foi o primeiro em Berd a vestir gabardina?
— Não sei. É preciso perguntar ao teu pai. Conhece bem a família
Gabardinents. Tem-lhes tratado dos dentes toda a vida.
Sim, a encomenda chega sem atraso, três dias certos depois. Reconheço de
imediato a carrinha de Gabardinents Ervand. Em primeiro lugar, pelo tejadilho
enferrujado e os lados desbotados. Em segundo, por uma pequena multidão de
citadinos curiosos que, esquecidos da soberba da capital, rodearam a máquina
pré-histórica de todos os lados. Em terceiro, pelas rodas tortas e pelas molas
encurvadas para o lado contrário. Mesmo do meu décimo sexto andar via-se que
o carro vinha sobrelotado.
Gabardinents Ervand é um homenzinho extremamente prestimoso e de
bigode enorme.
— Tenho muito respeito pelo teu pai, por isso, lha, foste a primeira a quem
vim — e extrai do carro um enorme baú —, mostra-me o caminho, para onde o
levo?
Entra no apartamento com muito respeito, estala a língua com admiração,
olhando para a arca de madeira envelhecida, apalpa os radiadores do
aquecimento central — não têm frio? Não? Muito bem! Passa os olhos pelas
paredes, encontra na prateleira um bilhete postal com o desenho do Ararat e
acalma-se. Recusa-se a almoçar e, depois de tomar uma chávena de café, começa
a despedir-se:
— Tenho de ir. Ainda devo passar por Novokossinó. Depois, por Mitíchi.
Para entregar as encomendas.
— Muito obrigada.
— Porquê obrigada? Uma pessoa não pode andar de carro vazio. Por isso
trouxe as prendas. É bom para vocês, e é um prazer para mim.
Acompanho o mensageiro de Berd até ao elevador, volto ao apartamento.
Desembrulho as prendas embaladas com amor. Cinco quilos de mel, um saco de
nozes descascadas, duas garrafas de vodca caseira de cornizolo. E também um
pouquinho disto, um pouquinho daquilo: presunto caseiro (uma perna inteira),
basturmá, sudjukh58. Três quilos de lavach de farinha de alta qualidade. Brinza
curada caseira. Saquinhos com verduras secas.
Podemos não ir às compras até à primavera.
MARÇO
Descubro os meus conterrâneos num segundo, com um faro animalesco.
Levei as botas para o sapateiro.
Um homem corpulento, de olhos azuis e cabelo loiro-escuro, está a passar a
minha fatura. Pelo aspeto físico, é um habitante típico das terras centrais da
Rússia. Mas eu vejo que é nosso. Ainda por cima da mesma terra, de Berd, ou
talvez de Karabakh.
— Bom dia — digo eu —, queria mudar os reforços.
No inverno, uns imbecis quaisquer desenharam uma suástica na porta desta
o cina. O sapateiro pintou-a com tinta, transformando os quatro braços em
pétalas. Saiu uma folha de trevo, um pouquinho torta. Símbolo de felicidade.
Pega nas botas, examina os tacões, carrega o sobrolho, descontente. Posso
apostar que está a pensar: «Vê-se logo que não é de fabrico arménio. Se as
zessem os arménios, os reforços não teriam caído tão depressa.» Oh, esta
grande presunção dos povos pequenos!
— Trezentos rublos — diz ele, começando a passar a fatura. — O seu
apelido?
— Abgarian — respondo, escondendo o sorriso.
Levanta os olhos:
— Da Arménia?
— Sou. E o senhor?
— Também.
— De onde?
— De Berd.
— Já sabia! Percebi de imediato que é meu conterrâneo.
— É lha de quem? (Nunca perguntam o primeiro nome. Sempre « lha de
quem?» Ou «de que família?»)
— Do doutor Abgarian.
— Oh, e eu sou da família Melikian. Sei que a sua avó também era Melikian.
Então, setenta rublos. Cobro apenas pelo material, o trabalho é oferta.
— Não, é inconveniente para mim. Deixe-me pagar como toda a gente.
— Não me ofenda, irmã. Ou não venha mais aqui, ou pague o que lhe disse.
Regateei desalmadamente. Paguei cento e vinte rublos.
Há dias, estou a voltar a casa depois de fazer compras, e ele assoma-se da
janela pela cintura.
— Espere. A senhora é Nariné Abgarian?
— Sou.
— Um momento! — Sai a correr da o cina, abana um livro.
— Assine, por favor, para as minhas lhas. Há uma semana que espero por si,
percebi que é a senhora pela fotogra a no livro.
— Como se chamam as suas lhas?
— Dária e Mariné.
— Deram-lhes nomes de origem diferente?
— Sim, a minha mulher é russa. Foi uma partilha honesta.
— E se tiverem um rapaz?
— Se tivermos um rapaz, damos-lhe um nome inde nido.
— Como é isso, inde nido?
— Maxim. Dá para ambas as partes.
Rimos.
Faço uma marca na memória: Stepan Melikian, sapateiro, lho de Amiram
Melikian. Basta puxar o o — e as recordações transformam-se numa ta de
Möbius — por mais longe que nos afastemos, voltamos sempre ao ponto de
partida. Uma casa de pedra com terraço de madeira escurecido pelo tempo, um
grande pomar de macieiras, uma amoreira obrigatória no pátio — em junho,
Amiram vai sacudir as bagas maduras, doces, batendo ligeiramente com um
pau nos ramos. E os familiares vão apanhar no toldo grande as bagas que
escurecem vertiginosamente por causa do suco meloso.
O toldo responde, rufando como um tambor, à queda da fruta. Se nos
escondermos debaixo dele, parece-nos que está a cair um verdadeiro granizo. O
pequeno Stepan expõe as costas às bagas cadentes, solta «oi-oi». Sai gatinhando,
feliz, pegajoso e doce como um sorvete, coberto de cabeça até aos pés com o
sumo das amoras.
As bagas frescas serão para cozer doce e para xarope, das bagas fermentadas
farão uma vodca caseira — insuportavelmente pesada, se a bebermos, daremos
graças a Deus por termos sobrevivido. Em Berd, bebem o que os forasteiros são
incapazes de digerir. Verdade verdadeira, o que é bom para os nossos, para os
outros é mortal. É o nosso esteio.
A porta da o cina fecha-se com barulho — Stepan foi receber mais uma
encomenda. Estou especada, aturdida, no meio de Moscovo. A neve de março
rodopia no ar. Se a apanharmos na ponta da língua, sentimos o sabor da
nascente dos montes. E um pouquinho de campainhas-brancas.
ABRIL
— Os jovens, hoje em dia, são espertos, não se discute com eles!
A velhinha Iassaman sacode do avental as migalhas invisíveis, puxa a manga
do vestido escuro. Aperta na nuca o lenço num nó pesado, lança as pontas por
cima do peito. Senta-se na beira da otomana rangente, junta as mãos nos
joelhos, abana tristemente a cabeça.
— Disse ao Míchik assim mesmo: se quiseres, casa-te. Porque não posso
proibir-lho. Mas a noiva, além de que não é arménia, nasceu na cidade, não
conhece as nossas regras, não sabe cozinhar nem servir. Estendeu do avesso a
roupa lavada — fui obrigada a estendê-la como deve ser, à pressa, para não ter
vergonha aos olhos dos vizinhos.
Iassaman levanta-se com di culdade, tira da gaveta da cómoda um saquinho
de papel amarrotado, deita algumas migalhas de incenso numa taça especial,
acende o fósforo. O quarto enche-se do fumo adocicado da resina de igreja.
— Faz o sinal da cruz de outra maneira. É que nós fazemo-lo da esquerda, do
coração, para a direita. E eles, da direita para a esquerda, até ao coração. Está
bem, que ela se persigne como está habituada. Mas porque não pode vestir uma
saia normal? A saia dela é tão curta que quando se inclina temos de desviar os
olhos para não ver a cor das suas cuecas. Como é, tem as trompas de Falópio nos
sovacos? Não tem medo de apanharem frio?
O relógio de parede acorda. Iassaman cala-se, espera que acabe o seu rangido
senil. O relógio, tossindo dolorosamente, toca as sete horas. Cala-se.
— Levanta-se de manhã e toca a correr pela aldeia, a mexer na lama de abril.
Diz que é um corta-mato. Ai balam59, que corta-mato? As vacas deixaram de
dar leite por causa desse corta-mato. Corre, baloiça os peitos. Os peitos dela são
tais que… que Deus dê tanta saúde a todos. O corpo é magro como uma lasca,
mas o peito é do número XL. Até as vacas cam nervosas.
MAIO
Tenho um sonho secreto — quero ver-me pequena.
Por exemplo, com cinco aninhos. De bochechas redondas, de corpinho
rechonchudo, com o cabelo descolorido sob o sol de maio, cor de palha. De
sandálias cómicas calçadas sem meias. Gostava de conversar com as lagartas.
Fazia-lhes perguntas e esperava com paciência as respostas. As lagartas
enroscavam-se ou iam-se embora. Caladas.
Tínhamos uma cadela — pequena, peluda, maliciosa, uma verdadeira rafeira.
Chamava-se Belka. Incansável como uma bolinha de mercúrio — todo o dia
corria pelo pátio, esclarecendo sem parar as relações com a sua própria sombra,
tentando ganhar-lhe na corrida. No pomar da nani Tamar havia grandes
girassóis. A nani Tamar cobria-os com o papel de jornal para que os pardais
omnipresentes não bicassem as sementes. Mas os pardais não desistiam,
rasgavam as margens do papel e roubavam as sementes. A Belka era o
espantalho emérito do pomar da nani Tamar — inspecionava rigorosamente
cada girassol e, logo que detetava um passarinho hostil, precipitava-se, com os
caracóis ao vento, contra o indesejável. Latia-lhe insultuosamente,
amaldiçoando-o até à sétima geração. Salvava a colheita.
Adorava o tupinambo. Na época do tupinambo, transformava-se numa
toupeira — vasculhava nos arbustos, desenterrava os bolbos suculentos e comia-
os de imediato com grande barulho e revirando os olhos. Por um bocadinho de
tchurtchkhela62, estava pronta a vender a alma.
Uma vez, o tio Jora veio de visita. Naquele dia, estava absolutamente
irresistível: grandes suíças, uma camisa justa com o colarinho grande como asas,
calças à boca de sino. Ao andar, as calças desenvolviam uma amplitude tão
poderosa que, volta e meia, agarrando-se uma boca com a outra, se enrolavam
nas pernas como casulos. A Belka antipatizou com estas calças de imediato,
tomando, pelos vistos, a agitação descarada das pantalonas por um insulto
pessoal. Foi pôr-se atrás da amoreira, eriçada, as suas orelhas desgrenhadas
estremeciam. Periodicamente, corria ao pomar para ladrar contra os bandos de
pardais. De passagem, ladrava também às calças. Nem de propósito, calhou
uma tarde ventosa, as calças do meu tio drapejavam de tal modo que parecia
que, a qualquer momento, ele ia esvoaçar apanhado pelas lufadas de vento. No
momento em que a Belka, mais uma vez, corria ao lado do tio, as bocas de sino
esvoaçaram como enormes asas de um morcego. Aqui, a paciência da Belka
chegou ao m: ferrou os dentes nas calças e não as largou até as ter rasgado em
tiras. Rasgava-as voluptuosamente, deliciada, soltando uivos de prazer.
O tio recusou-se a vestir outras calças, foi para casa pelas traseiras, com as
franjas a esvoaçarem ao vento. Ralhámos com a Belka, até lhe batemos com um
jornal nas orelhas. A cadela tinha um ar falsamente culpado, deslocava-se pelo
pátio como um diversionista na retaguarda do inimigo — rastejando de
barriga, movendo as pequenas omoplatas. Só se animava à vista de mais um
bando de pardais. Mas também a eles assustava com cautela, olhando de viés
para nós — estamos zangados ou não? Ao apanhar o sorriso irre etido de
alguém, corria até ele a sete patas, desatando aos latidos felizes. Apressávamo-
nos a pôr caras severas. A Belka desanimava, deixava cair as orelhas e, agitando
em movimentos miúdos o rabo, afastava-se rastejando.
Lembro-me de mim aos cinco anos a correr atrás da nossa cadelinha.
Corríamos através dos pátios — um, outro, um terceiro, saltando por cima das
cercas velhas e cambadas, das framboeseiras baixas e espinhosas, dos arbustos
frondosos de alteia em or, e os aquénios peganhentos das bardanas colavam-se
a nós. Corríamos para cima, e ainda mais para cima, pelo caminho quente e
poeirento até ao ponto onde, virando bruscamente, começava a descer pelo
declive até à vinha grande, até ao rio espumoso, até às ruínas da fortaleza de
pedra…
Apanhávamos o ar com o peito, o sol com as mãos, enchíamo-nos,
impregnávamo-nos de felicidade até às bordas, até às pontas dos dedos.
Tenho um sonho secreto — quero ver-me pequena. Por exemplo, de cinco
aninhos. De bochechas redondas, com sardas, com o cabelo descolorido sob o sol
meridional, cor de palha. Na margem do rio. Com a Belka sempre a meter-se
debaixo dos meus pés.
Abraçar, apertar ao peito. Ficar calada.
Este desejo é tão grande que às vezes acredito: vai acontecer.
JUNHO
Quando não nos apetecia comer, mas era necessário, o meu pai inventava
histórias. Bem, antes disso ele cozinhava alguma coisa simples, sempre simples.
Cozia batatas, punha em cima manteiga derretida, sal graúdo e anéis de cebola
forte. Pegava ainda em brinza de ovelha, numa fatia de pão caseiro, vários
tomates — polposos, doces. E levava-nos para o ombro da colina.
No cume, de anco ao sol, estava a nossa minúscula casa de verão — de
madeira, rangente, com uma grande otomana coberta com alcatifa às riscas e
com um fogão de chapa. O fogão cheirava a calor e a fumo, e ainda a chuvisco
de junho, pelos vistos porque o aquecíamos quando chovia.
O pai colocava a comida na bandeja e levava-nos, tal qual Moisés, até à faia
secular, solitária e absurda, a espetar-se do ombro da nossa colina.
— A mais velha senta-se à direita, a segunda à esquerda — mandava ele.
— E eu? — preocupava-se Gaiané, de dois anos.
— E tu sentas-te em frente e ouves com atenção.
JULHO
Tata dizia: os velhos e as crianças estão mais próximos dos céus. Os velhos,
porque lhes falta pouco até se irem, as crianças, porque vieram há pouco. Os
primeiros já adivinham, os segundos ainda não se esqueceram como cheiram os
céus.
Eu era pequena e parvinha. Ouvia sem atenção, não parava quieta. Parecia-
me: não há nada complicado nisto. Os céus cheiram a ar. Às vezes, a ar quente,
às vezes, a ar picante. Ou a chuva quando chove. Ou a neve. Em geral, estão
aqui, muito perto, basta pôr-se em bicos de pés — e pode-se tocá-los. Quando
vivemos à beira do des ladeiro azul, não é nada difícil estender a mão e tocar no
céu.
Tata dizia: o meu irmão mais novo, por exemplo. E calava-se. Eu estava
sentada ao lado, mexia na ponta da manga. Esperava a continuação, mas ela
calava-se. Se calhar, via o futuro e não me queria entristecer. Ou talvez fosse
aquela a única coisa que achava necessário contar-me. O meu irmão mais novo,
por exemplo. De resto, o silêncio.
Tata há muito que não está entre nós, e eu agora conto até ao m por ela. O
teu irmão mais novo, por exemplo. Um velho desgraçado que renegou toda a
gente, inclusivamente os seus próprios lhos. Um génio louco, fechado dentro
de si para sempre… Conto, escrevo até ao m o que ela não me quis revelar.
Às vezes andava atrás dela, não a largava. Onde ia ela, ia eu também. Andava
em silêncio, acertava o passo com ela. Tata ngia que não reparava em mim,
tratava dos seus afazeres. Apenas raciocinava em voz alta. A jovem nora de
Iassaman, por exemplo — dizia. Estendeu a roupa lavada de tal modo que se vê
logo: a rapariga não é da nossa terra. Porque é preciso que seja pelo tamanho,
pelo tipo, pela cor. Aqui a roupa pequena, ali a roupa grande. A escura, mais
perto do terraço, a clara, mais longe.
Estávamos paradas, protegendo, de modo igual, com a mão em pala os olhos
do sol de julho e olhávamos como drapejava ao vento a roupa estendida
desordenadamente pela nora de Iassaman.
Um grande pirata e um pequeno. Ela e eu.
Tata amava silenciosamente. Apertava ao peito — e largava de imediato.
Beijava com cuidado, no cocuruto. Tratava pelo nome sem diminutivo, sem
gracinhas. Olhava nos olhos. Só uma vez desviou os olhos. Quando lhe
perguntei se ela ia convalescer. Não quis enganar-me.
Passados muitos anos, sonhei com ela. Olhava de soslaio, não sorria. Eu
compreendia-a, não chorava, não pedia desculpa. Estendi-me para abraçá-la,
mas fez um gesto proibitivo — não, agora não. A partir deste sonho, tento
perdoar-me o erro que cometi muitos anos atrás. Não o conto a ninguém, nem
ao meu lho, calo-me.
Meu lho, a minha vida, por exemplo… De resto, o silêncio. Se adivinhares,
contarás depois por mim.
Há muito que não sou pequena e, se calhar, já não sou parvinha. Não sei
quantos dias me foram destinados e se o amanhã algum dia chegará.
Mas de uma coisa tenho toda a certeza: os céus cheiram como cheiravam as
mãos da minha Tata. A pão recém-cozido, a maçãs secas e a tomilho.
AGOSTO
O agosto vem mais cedo do que esperamos. Antes de chegarmos a perceber
que o verão que parecia eterno está a terminar. A esgotar-se.
Os dias são quentes e abafados, os peixes dormem sob as pedras, e o musgo
das rochas na margem do rio seca de tal modo que, se o esfregarmos nas mãos,
reduz-se a um nada de pó.
O estridular das cigarras aproxima o meio-dia, o cricrilar dos grilos aproxima
a meia-noite. Assim vivemos, das cigarras até aos grilos. Quando se calarem,
chegará o outono, mandará à sua frente as las de nuvens, para o levante, para o
levante, ao encontro do sol. Será uma longa espera do sol. Até à primavera.
SETEMBRO
A primeira paciente para quem o meu pai fez uma dentadura postiça foi a
amiga nonagenária de Charakan, sua bisavó.
— Para que hás de ir a outros especialistas quando o nosso Iúrik é médico? —
avançou Charakan o argumento irrefutável e levou a sua amiga à consulta do
bisneto que apenas na semana anterior começara a trabalhar na policlínica.
O meu pai cou extremamente nervoso. Pudera! Era a primeira dentadura
postiça da sua vida, praticamente um batismo de fogo. Ao recuperar a grande
custo o autodomínio, preparou o gesso e, sem querer, tapou com ele a garganta
da paciente. Assustado, receando que ela morresse as xiada, apressou-se a
extraí-lo. Charakan percebeu que o bisneto zera asneira, repeliu-o com o
ombro e esboçou um sorriso radiante:
— Está tudo bem, Vardanuch, tudo bem.
Vardanuch mugiu tristemente em resposta.
— Iúrik-djan — dirigiu-se Charakan ao bisneto com uma reprimenda. — Do
cimento que gastaste com ela era possível construir uma casa de dois pisos.
Com um anexo para o gado. Como é possível seres tão perdulário?
— Enganei-me um pouco nos cálculos — murmurou o meu pai com ar
culpado.
Charakan teve pena dele.
— Não faz mal, tu consegues. Antes de mais, aprende a poupar.
E, pondo-se em bicos de pés, afagou-lhe o ombro.
Chegou o dia da prova. As velhotas vieram à policlínica ataviadas, de lenços
claros e aventais de seda. A bisavó sentou a amiga na cadeira, postou-se ao lado
e acenou ao bisneto: começa.
O meu pai mandou a Vardanuch abrir a boca, colocou-lhe as próteses e cou
regelado: os dentes eram três vezes maiores do que os humanos. Com eles,
Vardanuch tinha o aspeto de um tubarão do imperialismo das páginas da revista
satírica Crocodilo.
— Fecha a boca — ordenou-lhe a bisavó.
Vardanuch, obediente, bateu os dentes. Quanto a fechar a boca, nem pensar.
Os lábios da paciente mal cobriam as margens das gengivas arti ciais.
— Vardanuch-djan, os dentes são magní cos, magní cos! — tilintou
Charakan como uma campainha e afastou-se da cadeira de tal modo que a amiga
não a pudesse ver.
— Iúrik, porque lhe zeste uns dentes de burro? — perguntou ela num
sussurro ensurdecedor.
Vardanuch soluçou.
— Não são de burro, nada disso — ofendeu-se o meu pai.
— É claro que não são de burro, o burro morreria de fome com dentes como
estes. Com eles nem mastigar é possível!
Vardanuch levantou-se da cadeira, tirou com o dedo as próteses, colocou-as
em cima da mesa e ceceou:
— Filho, quando as encurtares um bocadinho, chama-me. E eu, por agora,
vou para casa.
E dirigiu-se para a saída. A bisavó suspirou e seguiu a amiga. À porta, virou-
se:
— Iúrik-djan, em primeiro lugar, aprende a poupar. Olha, se serrares estes
dentes ao meio, vão dar duas próteses normais. Serra, uma será para ela e outra
para eu usar. Deitar as coisas fora é pecado.
E saiu.
Depois, obviamente, o meu pai fez uma prótese normal. Mas enquanto se
atarefava com ela, Vardanuch usava a primeira, com dentuças. Apenas cobria a
boca com o lenço à maneira das mulheres do Karabakh. Para não assustar as
pessoas e não apanhar frio com a garganta exposta à frescura noturna de
setembro.
OUTUBRO
Em Berd, o tempo corre de modo muito diferente do das grandes cidades,
aqui é lento e viscoso, como um rio de agosto esquecido das chuvas. Volto a
habituar-me a tudo do que me desabituei na cidade — ao trabalhar barulhento
do relógio mecânico que, uma vez em cada meia hora, toca com uma tosse
pesada; ao ladrar dos cães nos pátios e ao cacarejar descontente das aves
domésticas, ao sabor do pão caseiro acidulado, feito com levedura verdadeira, às
pilhas regulares de lenha, protegida cuidadosamente da humidade com lonas —
lembram-se de como cheira a lenha cortada? Sabem, em geral, que ela cheira?
Em Berd, tenho pena de dormir. Às cinco da manhã é noite cerrada do lado de
fora da janela, as casas de pedra taciturnas e as árvores outonais que ainda não se
desnudaram. A Lua pende por cima do Hali-kar como uma mó pesada e
vagarosa, o primeiro orvalho cai sem barulho, exalando, ao amanhecer, aromas
de ervas e de uva moscatel um pouco adstringente — aqui as videiras
serpenteiam vertiginosamente até pelas fachadas dos prédios de quatro andares,
já sem falar das moradias particulares com os seus terraços de madeira e os
chuchaband63 envidraçados em que os cachos pendem como as bolas de cristal na
árvore de Natal.
NOVEMBRO
O mês das re exões. Um mês espinhoso, um mês condimentado. Com cheiro
a romã, a nozes e ao marmelo áspero e adstringente, rapidamente escurecido no
corte.
Tata mergulha o miolo de noz no mel, protege-o por baixo com a mão em
concha — para não gotejar na toalha — e estende-mo — come.
Como.
— Ouviste os gritos dos grous? — Tata tem olhos dourados e pestanas
longas. Uma veia solitária pulsa-lhe na têmpora, um pouco acima do sobrolho.
— Ouvi — murmuro.
Finge que acredita.
— Sabes o que eles gritaram?
— Não.
— Voltaremos.
Tata arranca do pão caseiro redondo uma côdea, tira o miolo, põe-no de lado
— para as galinhas. Coloca no lugar do miolo as metades de nozes e dá-me a
côdea.
— Come.
Como.
— Compreendes a língua dos grous, Tata?
— Não.
— Então, como é que sabes o que eles gritam?
— Disse-mo a avó.
— E tu acreditaste?
Tata olha para mim com os seus olhos cor de avelã.
— Acreditei.
Novembro.
Os nevoeiros tornaram-se mais espessos e impenetráveis, dissipam-se
lentamente, a contragosto, agarrando-se com as abas de tule às cercas de
madeira. Ouve-se o longínquo clamor do rio — frio e espumoso, o rio corre,
resfolegando, ultrapassando-se a si próprio, contando a cada um que as neves
avançam contra a passagem montanhosa, ele viu, ele sabe.
— Queres vinho? — O tio Jora estende-me uma chávena de barro.
— Achas que posso?
— É vinho novo, de três dias, muito jovem. Quando fermentar, não poderás
bebê-lo. Por enquanto podes. Bebe.
Bebo.
O vinho faz cócegas doces no nariz. Estalo os lábios.
— Saboroso. Parece uma limonada.
— Sim, saboroso.
O tio Jora é um pouquinho louco. O meu pai diz que é um génio em
matemática. Um dia o seu cérebro não aguentou e enlouqueceu. Em novembro,
o tio Jora sente-se muito pior. Vai para a oresta, alimenta-se de bolotas, bagas
de rosa-brava e nêsperas ainda verdes. Passa horas a olhar para o céu, mexe
silenciosamente os lábios, como que a falar com alguém. Escreve com um
raminho seco na terra húmida as estranhas fórmulas matemáticas. Depois
apaga-as e chora.
No m do outono, o tio Jora chora muito. O inverno aproxima-se, sente-o.
Ele viu, ele sabe.
O início da noite cheira ao mugido espesso das vacas, à tranca enferrujada da
cancela e a fogão de lenha. A nani corta as batatas em rodelas nas, dispõe-nas
em cima do fogão incandescente, salga-as com sal grosso. As rodelas de batatas
cobrem-se de casca aloirada, rechinam. A nani apanha-os com a faca, vira-os.
Agarro na tranca com o atiçador, abro a porta, mexo na lenha. O fogão uiva de
prazer, sopra o calor.
— Tslik Amram não esperava uma traição como esta. Coisa inédita: a mulher
amada engana-o com o czar que ele serviu abnegadamente toda a vida! Fechou-a
na fortaleza e levantou um motim contra o czar. E quando sofreu a derrota,
ofereceu todo o seu principado ao czar da Geórgia. Para não o deixar ao czar
arménio.
— E o que aconteceu a seguir?
— O que aconteceu? A princesa enforcou-se na fortaleza, não suportou o
opróbrio. O czar georgiano devolveu as propriedades de Tslik Amram ao czar
arménio, porque estes dois czares eram primos em segundo grau, ambos da
linhagem de Bagratuni. Então, Tslik Amram perdeu tudo: a mulher, o
principado, a antiga grandeza.
A nani suspira, abana a cabeça.
A velha fortaleza ergue-se no cimo da colina. O nevoeiro, regressado à noite,
cobre com o seu manto impenetrável as ruínas. Algures aqui, nestas ruínas
inundadas de nevoeiro, o fantasma da princesa Aspram vagueia até hoje.
— E o que aconteceu a Tslik Amram?
— Não sei. Provavelmente, morreu de amargura. Quem pode sobreviver a
uma coisa dessas?
A nani põe o tsipul64 pronto num prato de fundo grosso, unta cada bocado de
batata com manteiga, põe em cima um pouco de brinza. Sopra no tsipul para
arrefecer depressa. Estende-mo:
— Come.
Como.
DEZEMBRO
O inverno invade de chofre a passagem nos montes, sem aviso nem
misericórdia, desligando os sons e apagando as cores. Como se não houvesse
ainda ontem o novembro com as suas bagas azuladas e como que poeirentas do
abrunheiro-bravo, com as bagas demasiado maduras da rosa-brava — a casca
rachou, deixando à vista o miolo com penugem e caroços agudos —, com cheiro
a vinho fermentado; por enquanto, está picante, doce e espumoso, em meados
de dezembro ganha sabor, amadurece, adquire travo e ligeira acidez, e no copo
vai aliciar o bebedor com uma enganosa leveza. Quem o bebeu conhece o preço
desta leveza: basta exagerar um pouco, e dormimos como uma pedra até de
manhã.