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Universo dos Livros Editora Ltda.

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Unbirthday: A Twisted Tale
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Diretor editorial: Luis Matos


Gerente editorial: Marcia Batista
Assistentes editoriais: Letícia Nakamura e Raquel F. Abranches
Tradução: Anna Emília Soares
Preparação: Laura Folgueira
Revisão: Nilce Xavier e Beatriz Silvestri
Arte: Renato Klisman

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057
B832a Braswell, Liz
Alice às avessas : e se o País das Maravilhas estivesse em
perigo e Alice estivesse muito, muito atrasada? / Liz
Braswell ; tradução de Anna Emília Soares.
–– São Paulo : Universo dos Livros, 2022.
400 p. (Twisted Tales ; vol 3)

e-ISBN 978-65-5609-144-0
Título original: Unbirthday

1. Ficção infantojuvenil norte-americana 2. Carroll, Lewis I.


Título II. Soares, Anna Emília III. Série

21-3754 CDD 028.5


Para minha irmã, Sabrina. Nós não somos Mathilda e Alice, mas
temos um pouquinho de cada. Eu te perdoo por aquela vez que
você me enganou e me fez comer um chocolate chique com uma
bola de pelos dentro. Tipo isso.
— L. B.
Um gentil lembrete, caro leitor:
Como você provavelmente já sabe, este livro é fruto do absurdo.
Dito isso, nos convém lembrá-lo de que o Chapeleiro Maluco é um
personagem fictício e não se adequa às rígidas regras do nosso
mundo.
A saber: o mercúrio é mortalmente venenoso.
Costuma-se dizer que chapeleiros enlouqueciam mesmo, no
século XIX, por causa da exposição ao mercúrio durante o processo
de fabricação de chapéus: de fato, eles sofriam envenenamento por
mercúrio a longo prazo.
Não se pode comer, ainda hoje, os peixes de muitos rios e lagos
dos Estados Unidos por causa dos níveis letais de mercúrio que
repousam eternamente nos seus fundos lamacentos como resultado
da poluição industrial tóxica.
Neste livro, o Chapeleiro bebe mercúrio.
Você, caro leitor, não pode beber.
Isso o mataria.
— L. Braswell
Alice
COMO VOCÊ SE LEMBRA DELA
Capítulo 1

OS RAIOS DE SOL matutinos acenaram um alegre olá no papel de


parede de um quarto igualmente alegre. Chovera durante a noite,
uma chuva de verdade — forte e com grandes gotas —, e o dia
começou com um frescor limpo e animado. O ar que soprava
através da janela aberta era fresco e penetrante, com um toque
estimulante. Um bando de pequenos pardais que dividiam um ninho
há pouco mais de uma semana gorjeavam animadamente para cá e
para lá, o que por fim resultaria em um repentino voo coletivo ou em
um combate emplumado.
Até as batidas dos saltos sólidos da sra. Anderbee martelavam o
piso do andar de baixo de modo mais macio e energético do que de
costume.
A garota deitada tão pacificamente na cama com cabeceira de
latão, cujos grossos cabelos dourados espalhavam-se ao redor da
cabeça e do pescoço tais quais a auréola resplandecente de um
anjo, foi convencida a deixar o sono para acordar de uma vez
devido à abundância de todos esses barulhos animados. Seus olhos
se abriram de súbito, os longos cílios tremulando feito trigo com o
movimento repentino das pálpebras.
— Hoje — Alice declarou — é um dia perfeito para aventura!
Sorriu por um momento, deleitando-se com a glória de sua
decisão e então saltou da cama. Dinah, uma gata ao mesmo tempo
rabugenta e indisposta a ver o dia como realmente era, esticou-se
sem sair do lugar (onde antes estavam os pés aquecidos de sua
dona), então fechou os olhos idosos para o dia e voltou a dormir
segundos depois.
— Me desculpe, meninona! — disse Alice, beijando a gata. —
Mas você sabe: o tempo voa e não espera por ninguém!
É claro que, considerando a época e o lugar, aventureiras não
podiam simplesmente correr porta afora vestidas de camisola. Seria
escandaloso. E por isso Alice começou o processo tedioso de vestir
todas as camadas de roupa necessárias para sair pelo mundo como
uma respeitável dama inglesa. Ela tinha:
Calçolas que chegavam até o joelho.
Uma crinolina que parecia uma mistura de apiário e gaiola. Era
basicamente uma série de aros de aço com circunferência cada vez
menor que circulavam a metade inferior de seu corpo, das
panturrilhas até a cintura. Isso mantinha as saias, usadas por cima
desses aros, armadas como um sino gigantesco cujo badalo eram
suas pernas.
Espartilho.
Não usava o espartilho com o intuito de afinar a cintura, apesar da
moda e da pressão das amigas. Nesse aspecto, Alice e sua irmã
concordavam: era pura tolice. Sua cintura estava ótima do jeito que
estava, muito obrigada, e ela deixava o espartilho para sua função
principal: manter as costas alinhadas e seus atributos femininos
ajeitados e no lugar.
Anágua.
Anágua.
Vestido de verdade. Um belo guingão de verão em azul e branco.
Casaco e chapéu.
E, por fim, uma bolsa para a câmera.
Alice se apressou para vestir tudo isso o mais rápido que pôde e
depois quase saltitou como uma menina muito mais jovem que seus
dezoito anos enquanto descia as escadas… Até lembrar-se de que
deveria tentar manter seus passos silenciosos no último — já tarde
demais — minuto.
— Alice! — gritou uma estridente voz feminina. Mathilda, sua
irmã. Claro.
Bem, já que tinha sido ouvida, bem que poderia tomar café da
manhã.
— Bom dia, pai, mãe, irmã — disse pomposamente, adentrando a
sala de jantar. Sua família estava reunida na extremidade da longa
mesa feito esquilos refinados, quebrando a casca de ovos cozidos,
espalhando geleia na torrada, bebericando chá e café e, em geral,
parecendo completamente à vontade na sala formal e cheia de
bibelôs. A mãe ofereceu a bochecha rechonchuda e sempre rosada
para um beijo, e Alice a obedeceu. O rosto do pai estava quase
inteiramente escondido atrás do jornal, mas ela conseguiu dar-lhe
um beijinho rápido, não exatamente nas costeletas.
Ela deu tapinhas no ombro da irmã com desdém, como se
estivesse removendo caspa.
— Já está casada? — o pai perguntou de trás do jornal.
— Não, papai.
— Já tem ações?
— Não, papai.
— Hum. Bom. — Ele balançou o jornal para facilitar o virar e o
dobrar de página e então continuou a ler sobre acontecimentos em
lugares estrangeiros, seu tipo preferido de história.
— Tem certeza de que é bom, papai? — Mathilda perguntou. Ela
era austera e bonita de um jeito ligeiramente desconcertante, os
cabelos, os cílios e os olhos eram tão escuros quanto os de sua
irmã eram claros. Seu vestido era tão sóbrio e apagado quanto o
vestido azul e branco de Alice era vistoso e veranil. Mas se as duas
tivessem algum dia se esforçado para saírem juntas — e se
Mathilda alguma vez se preocupasse com a aparência para além de
pentear o cabelo —, elas poderiam ter dominado toda a cidade de
Kexford.
Não que Alice quisesse dominar Kexford, mas teria sido muito
divertido ter, pelo menos, uma festa.
— Ela já tem dezoito anos, sabe — Mathilda provocou enquanto
passava geleia na torrada com toda a seriedade.
— E eu acho que você tem vinte e seis — a mãe observou.
— Eu tenho opções.
— Sim, sim, você tem — a mãe disse rápida e suavemente.
— Eu vou manter minha filhinha Alice por perto tanto quanto for
possível — o pai falou por trás do jornal. — Não interfira nisso.
— Meu querido amigo sr. Headstrewth tem um amigo chamado
Richard Coney — disse Mathilda, dirigindo-se a Alice e ignorando os
pais. — Acho que já falei dele para você algumas vezes. Talvez
você até já o conheça. Um jovem muito inteligente. Bonito. Com um
grande futuro pela frente, ele já está trabalhando na campanha
eleitoral de Gilbert Ramsbottom. Eu o convidei…
— Ah, sim, ele parece adorável, sim, deveras interessante,
fantástico, mantenha-me informada a respeito dos feitos dele, com
certeza! Bom dia e adeus!
Alice piscou para a mãe, que se esforçou muito para não rir.
Depois ela deu um largo sorriso e virou-se para sair, e foi só
quando Mathilda voltou-se para seu café da manhã, bufando, que se
deu conta de que sua torrada, cuidadosamente preparada com
manteiga e geleia, havia sumido.

Descendo pela rua ensolarada, Alice desfrutou plenamente de


seu café da manhã surrupiado, preparado habilmente com manteiga
e geleia. Depois de limpar os lábios e as bochechas com a parte de
trás da mão, levantou o rosto para o sol feito um gato, aproveitando
o calor que atingia sua pele. Só por um momento, claro, antes que
pudesse causar algum dano sério. Ela ajustou o chapéu e…
— Ai, ai.
Havia esquecido as luvas.
— Ai, os meus bigodes — suspirou. — Nem um pouco respeitável
hoje.
Um sentimento momentâneo apoderou-se de Alice. Não era
tristeza exatamente. Mas também não era nostalgia. Havia uma
gota dourada de felicidade no sentimento, o que quer que fosse,
quente e agradável como a luz do sol. Uma lembrança de sonhos
antigos que se desgastou feito uma confortável fronha que ninguém
tinha coragem de jogar fora.
País das Maravilhas.
Os detalhes se esvaíram muito tempo antes, mas os sentimentos
permaneceram: aventura, magia, criaturas fascinantes. Na verdade,
nem todas as aventuras imaginadas no País das Maravilhas tinham
sido divertidas ou seguras. E nem todas as criaturas tinham sido
particularmente gentis ou educadas. Algumas flores no País das
Maravilhas eram bem violentas.
E a Rainha de Copas?! Ela queria Alice morta! “Cortem-lhe a
cabeça!”. A frase ainda a fazia se arrepiar dos pés à cabeça.
Mas…
Ela nunca mais teve um sonho como esse desde então.
— Que absurdo — Alice declarou, meneando a cabeça. — É um
belo dia! Vamos encontrar a magia aqui mesmo.
Aqui mesmo era, claro, Kexford, uma ilustre cidadezinha de
professores universitários, salões antigos, gloriosos parques verdes
e canais deslumbrantes. Havia caminhos de cascalho branco,
velhos edifícios de pedra, e jardins pequeninos e luminosos que
quase cintilavam feito joias. Tudo era organizado, perfeito e antigo
nesse solo sagrado, até mesmo os estudantes trôpegos e vestidos
com togas, apressados para a aula depois de festejar ou discutir
Petrarca até tarde da noite.
(A casa de Alice ficava ao norte da área da universidade, um lugar
amplo e sofisticado com jardins e um gramado; a uma caminhada
não muito distante do centro, onde tudo acontecia, mas não perto o
bastante para ouvir “Gaudeamus Igitur” sendo cantada a plenos
pulmões às três horas da manhã.)
Depois de sair daquele sonho mágico de muito tempo atrás, a
pequena Alice dedicara todo o seu tempo livre a explorar a cidade
em busca de qualquer coisa que a lembrasse do País das
Maravilhas. Nenhum lugar era poupado de suas explorações: cada
torre de sino onde ela conseguia esgueirar-se, cada beco por onde
conseguia escapulir quando seus pais lhe davam as costas. De alto
a baixo, por toda parte, não restou pedra sobre pedra.
(Principalmente baixo: tocas de coelho e cogumelos, pequenas
lagartas e grandes teias de aranha, elevadores monta-prato e portas
surpreendentemente pequenas nas casas das pessoas, as quais ela
não devia ter explorado nem aberto.)
Sua caixinha de tesouros feita de madeira continha bem mais
bugigangas do que a maioria das crianças tende a colecionar:
chaves de latão minúsculas, garrafas de vidro minúsculas, sobras
de biscoitos incomuns, uma luva branca para a mão esquerda, uma
luva amarelada para a mão direita, pedaços de papel com os
dizeres coma-me e beba-me escritos laboriosamente repetidas
vezes, enquanto tentava encaixar esses floreios na memória.
Alice não era uma garota taciturna, longe disso, mas se
perguntava se o motivo de nunca mais ter sonhado com o País das
Maravilhas era culpa sua.

“Eu nunca vi tanta tolice... este é o chá mais bobo que eu já vi em


toda a minha vida!”
“Estou farta de maluquices. Vou pra casa, agora mesmo.”
“Ah, não, por favor. Chega de absurdos.”
Chega de absurdos. Pronto, ela mesma dissera. E seu
subconsciente havia atendido e limitado suas excursões noturnas a
um mundo com poucos absurdos, de fato.
Então Alice tentava forçar sua mão a desenhar o que se lembrava
do sonho (o Mestre Gato, o Coelho Branco, uma bela chavezinha
dourada) ou as coisas curiosas que vira em suas explorações (um
estudante com orelhas surpreendentemente pontiagudas, um
montinho interessante de limo, uma parede de pedra coberta de
videiras que dava a impressão de que poderia ser empurrada para
revelar uma passagem secreta para um lugar fantástico).
— Hum… — emitira o pai, analisando seus esboços.
— Pois é, não há muita habilidade artística no meu lado da família
— a mãe havia comentado.
— Ela percebe muitas… coisas obscuras. Mesmo que não
consiga… reproduzi-las.
— Sim, ela perde parte considerável do tempo livre percebendo
coisas. Talvez precise de algum foco, quero dizer, além de
desenhar?
E foi aí que Tia Vivian apareceu.
Ela também não sabia desenhar, mas sabia esculpir bastante
bem, era anfitriã de salões literários, ocasionalmente se envolvia em
feitos um tanto quanto escandalosos e usava calças tal e qual uma
trabalhadora de mina de carvão. A casa dela era abarrotada de
luminárias com franjas, obras de arte feitas pelos amigos,
incensários e veludo. Ela não era casada. Ne verdade, era
exatamente tudo que uma família poderia esperar de uma ovelha
negra.
E ajudou seu irmão e a esposa (e a filha deles), cumprindo
perfeitamente esse papel: comprou uma bela câmera para Alice.
Um dos modelos mais recentes, uma câmera box Phoebus. Era
um negocinho precioso e portátil, que não requeria tripé nem foles.
Cabia perfeitamente dentro de um estojo de tamanho médio e podia
ser retirada rapidamente para capturar qualquer coisa que
despertasse a imaginação de Alice — contanto que houvesse luz
suficiente.
(Tia Vivian tinha uma câmara escura grande o bastante para
revelar as fotografias registradas nas placas de vidro; ela era
famosa pelos retratos que batia em seus salões com uma câmera
enorme e muito mais tradicional.)
Alice estava maravilhada. Havia um toque de País das Maravilhas
nesse processo: luz e sombra, espelhos e vidro, lentes e imagens
que apareciam magicamente.
Um efeito colateral do seu novo hobby era passar muito mais
tempo com a tia, para alívio dos pais (que se inquietavam por ela
ficar vagando sozinha pelas ruas de Kexford) e preocupação da
irmã (que acreditava que Tia Vivian era uma péssima influência, não
tanto por ser moderna, mas mais por ser extravagante). Contudo,
Mathilda não precisava se preocupar; Alice amava a tia, mas já tinha
dezoito anos e os próprios interesses — que não tinham nada a ver
com artistas, vermute, papoulas ou calças.
Alice, claro, usava a câmera para documentar o que quer que lhe
parecesse remotamente misterioso. Passava os dias naquilo que
chamava de “passeios fotográficos”: procurando objetos e pessoas
que sugerissem um lado escondido, encantado ou selvagem, que
ela tentaria capturar com a câmera. Quando encontrava um alvo em
potencial, trabalhava longa e duramente para compor a fotografia,
às vezes com espelhos extras ou uma lanterna, caso estivesse em
um beco mal iluminado. Revelava as fotos na câmara escura da tia
e depois as dispunha ao redor do próprio quarto para analisá-las e
tentar conjurar o mundo que via ali. Orvalhos brilhantes em teias de
aranha, sótãos sombrios, uma pilha de lixo que poderia esconder
um monstro ou um poema. As qualidades élficas de uma criança,
cujos olhos eram inocentes e envelhecidos ao mesmo tempo.
Jamais contou aos pais (ou à irmã) sobre as visitas a essas partes
menos fabulosas de Kexford. Mas era onde as coisas não estavam
tão limpas, perfeitas ou ordenadas que Alice sentia que a mágica e
o absurdo poderiam florescer.
E era para lá que estava indo naquele dia glorioso.
Descendo a rua em direção ao sul… E depois a leste, longe de
belos campi e estudantes irritantes. Escolheu uma rota que passava
pela loja de chá da sra. Yao. Era realmente um lindo dia para uma
xícara de chá oolong e fofoca, mas ainda estava cheia do pão com
geleia furtado para comer um pão doce. De qualquer forma, virou na
pequena rua sinuosa e se contentou com um sorriso e um aceno
para a mulher detrás da vitrine. A sra. Yao sorriu e acenou de volta.
Ela servia seus clientes em xícaras e pratos adoravelmente
descombinados, louça vinda da Inglaterra, China e Rússia — o que
era mágico e lembrava um pouco o País das Maravilhas.
Logo depois da loja de chá, debaixo de uma calha, havia uma
samambaia minúscula e delicada que não estava lá na semana
anterior. Os olhos questionadores de Alice imediatamente
localizaram seu verde lustroso fora de lugar, sua fronde padronizada
abrindo-se de maneira graciosa. Sem dúvida, era mágico. Avaliou a
luz e apertou os lábios tristemente. A rua estreita era sombria e
escura, Alice não tinha espelho nem lanterna e só dispunha de
apenas mais algumas placas de filmes. Não podia desperdiçar em
fotos potencialmente ruins.
— Minhas desculpas, dona jovem samambaia — disse, fazendo
uma breve reverência. — Talvez da próxima vez, quando você já
estiver mais crescida.
Ou aberta como um telescópio, na verdade.
Seguindo pela rua sinuosa, por um emaranho de prédios antigos,
inclinou-se para atravessar um arco baixo e por fim emergiu no seu
verdadeiro destino. No passado, a pequena área aberta era
oficialmente chamada praça Wellington, mas agora era apenas a
Praça. Era na Praça que muitas das crianças do local se
encontravam e brincavam, em geral os filhos e filhas (ou órfãos) de
imigrantes que não eram, necessariamente, bem-vindos em parques
mais bonitos. Alice tirava fotos e ouvia suas histórias a respeito da
terra natal e das viagens à Inglaterra — algumas das quais, em
especial no caso das babás mais jovens, misturavam-se aos contos
de fadas dos países de origem.
Hoje, várias crianças jogavam bola em um canto, rolando na
sujeira. Em outro canto, três meninas brincavam com um jogo de
contar, alternando, sem esforço, entre os idiomas inglês, russo e
iídiche. Alice sacou a câmera e começou a compor mentalmente
possíveis imagens.
— Ora, vejam, é a famosa garota inglesa que veio tirar fotos das
crianças estrangeiras, que são tão bonitas mesmo sendo tão
pobres.
Alice virou-se, afrontada tanto pelas palavras quanto pelo tom.
Um rapaz não muito mais velho do que ela, inclinado
preguiçosamente sobre uma estátua de canhão corroída, deu-lhe
um sorriso indecifrável. Suas roupas eram muito diferentes das do
restante das pessoas ali: eram roupas de adulto, sem dúvida,
passadas, limpas, cinzentas e profissionais. O paletó era impecável,
o colete, bem ajustado. Ele não tinha relógio, mas sua gravata
vitoriana roxa parecia cara e sedosa. O chapéu estava
cuidadosamente escovado. Debaixo dele, o cabelo era tão vermelho
que parecia preto, aparado muito bem ao redor das orelhas e do
pescoço. Seus olhos eram cor de mel, quase laranja. As bochechas
irradiavam um tom de rosa sadio.
— Diga-me — ele continuou, abaixando-se para acariciar um gato
de rua que logo desapareceu na esquina —, seus clientes gostam
de chorar lágrimas de crocodilo ao verem os retratos dessas outras
pessoas e a forma como elas vivem?
— Perdão — Alice respondeu friamente, empertigando a coluna
até estalar. — Essas fotos são para uso pessoal, e para eventual
apreciação privada com minha tia e um público seleto e discreto. Eu
não sou nenhuma vampira de caridade aproveitando-se
inescrupulosamente da infelicidade dos outros.
— Ah, é? E o que você sabe sobre a infelicidade deles? O que
sabe sobre eles de fato? — o rapaz pressionou.
Alice o observou com frieza por um momento.
— Aquela menina ali, de casaco com o grande botão de osso. O
nome dela é Adina. Ela é de uma cidadezinha judaica longe demais
de São Petersburgo para ficar a salvo da perseguição religiosa. A
mãe dela é falecida; o pai e a tia Silvy são a única família que lhe
resta neste mundo. — Alice gesticulou para outra criança. — Aquele
é Sasha. Ele deve ter uns cinco anos e prefere queijo a doces. Sua
mãe é costureira, seu pai coleta os retalhos para as empresas de
papel e sua irmã está morrendo de tuberculose, embora ele ainda
não entenda isso muito bem. Eu nunca falo com eles de forma
paternalista e nunca ofereço moedas ou doces para que posem
para mim. Se eu trago qualquer coisa, é suficiente para todos e só
faço isso porque me agrada. Trato até o menorzinho deles com a
mesma gentileza e o mesmo respeito com que trato e espero de
todo mundo — Alice disse a última parte com ênfase, encarando o
estranho.
— Tudo bem, tudo bem. — O jovem riu sem esforço. — Peço
desculpas. Eu fiz uma acusação sem saber do que falava. Fui um
patife e um canalha.
Ele fez uma reverência, sem qualquer ironia.
— Você está desculpado — Alice disse, educada, mas ainda fria.
— Posso saber a quem tenho... o prazer... de me dirigir?
— Katz — ele se apresentou, tirando o chapéu. — Abraham
Joseph Katz, advogado. Trabalho para Alexandros e Ivy. Mas pode
me chamar de Katz. Ao seu dispor.
— Eu sou… — ela começou a se apresentar.
— Ah, todo mundo aqui conhece Alice e sua câmera — disse o
homem, gesticulando. — A primeira e única Alice. Não me leve a
mal, mas você precisa entender que essas crianças, mesmo
aquelas que cresceram aqui, não tiveram a melhor das experiências
com seus compatriotas. Ou nós somos tratados com desprezo e
escárnio ou recebemos falsa caridade e exploração. Raramente
existe um meio-termo.
— Nós? Você soa… Você parece… — Alice titubeou, na dúvida
se estava sendo mal-educada. — Britânico.
— Eu nasci aqui. Meus pais, não — ele explicou, dando de
ombros. — Eles se mataram de trabalhar e eu me matei de estudar.
Agora ajudo quando posso com algum trabalhinho pro bono. Às
vezes, alguém com poderes legais precisa intervir e salvar a criança
do abrigo para pobres ou salvar o adulto da cadeia. Ou pior. Às
vezes, um benfeitor, digamos, com uma câmera, leva embora de
vez a criança de quem ele gosta. Para exibição ou para ostentar
caridade ou para… coisas que é melhor não serem ditas.
— Que horrível — Alice disse, chocada. — Eu sinto muito, muito
mesmo por tudo isso. De qualquer forma, não pode me culpar pelas
ações de uns poucos compatriotas terríveis. Seria o mesmo se eu
tratasse todos vocês mal por causa de uma maçã podre que veio da
Rússia.
— Um argumento perfeitamente bem colocado — ele concordou
de imediato. — Nesse caso, ofereço meu formidável semblante caso
você decida voltar e tirar um retrato de mim. Sou adulto e filho de
imigrantes, e posso concordar legalmente com o uso adequado da
minha imagem, caso chegue a isso.
Não havia nada de impróprio no tom dele. Katz não piscou para
ela nem enunciou qualquer palavra de forma sugestiva. Ele sorriu
sem segundas intenções; e nem mesmo inclinou a cabeça de forma
dramática, como se estivesse representando. Alice não percebeu
um flerte nem uma ameaça.
Foi um pouco estranho.
— Seu inglês é melhor do que o de muitos de meus
“compatriotas” — ela disse lentamente enquanto tentava entender o
que aquilo significava. — Meus vizinhos, ao menos.
O que estava dizendo? Será que tinha sido grosseira? Ele
cresceu ali, acabara de contar! É claro que falava inglês
perfeitamente bem.
— Ah, sim: advogado, lembra? Também sei latim além de russo e
inglês. Quo usque tandem1 e tudo mais. É bem possível que eu
aprenda francês, para pronunciar ao menos os nomes dos vinhos.
Alice sentiu o mundo girar um pouco, como se estivesse caindo
pela toca de um coelho. Que homem esquisito para se conhecer em
uma situação tão estranha! Normalmente, evitaria os rapazes
apresentados pela irmã ou esqueceria com rapidez aqueles que
conhecia por conta própria. A maioria deles era enfadonha e seria
improvável encontrá-los nessa praça abandonada. Todos faziam
piadas obscenas e sem graça, além das referências aos estudiosos
romanos que achavam que Alice não entenderia.
Ela nunca desejou tirar a foto de nenhum deles.
À diferença do sr. Katz.
— Não trouxe filme suficiente hoje — mentiu. Mas ela tinha vários
filmes aguardando revelação na casa de Tia Vivian. Na verdade, era
isso que deveria estar fazendo em vez de passar o dia se
aventurando. — Eu tinha acabado de me dar conta disso quando
você me abordou.
— Ah, eu estava brincando sobre a foto. É que eu não tenho
nada, além de minha boa aparência, para te oferecer, para
compensar meus insultos. Eu devia ter um pacotinho de doces
comigo o tempo todo. Lembre-se disso: sempre tenha um doce por
perto para emergências. Algum dia, isso pode salvar sua vida. Ou,
caso existam ratos perto da sua casa, posso apanhá-los para você.
Tenho um amigo que é especialista nisso.
— Não será necessário — Alice respondeu rapidamente. —
Tenho bastante certeza de que nosso jardim está livre de ratos.
— Não sei... Ratos são bem sorrateiros. Às vezes, eles
conseguem chegar até mesmo a cargos eletivos. E, às vezes, se
não forem controlados, até se tornam prefeitos.
Alice não conseguiu reprimir um sorriso, que quase se tornou uma
risadinha. Ele estava se referindo, obviamente, a Ramsbottom, o
candidato que sua irmã e o entediante sr. Headstrewth apoiavam
com tanto fervor. Havia apenas mais uma pessoa concorrendo, mas,
nem que disso dependesse sua vida, Alice não conseguia lembrar o
nome do candidato (ele era bastante esquecível, considerando que
não estava afiliado a nenhum partido e não escrevia cartas para o
Kexford Weekly sobre construir centros de trabalho compulsório
para os pobres, expulsar imigrantes ou oferecer clubes maiores à
polícia).
— Bom, eu preciso ir, então — anunciou Alice, guardando a
câmera com firmeza na bolsa.
— Volte logo — Katz rogou. — Você é a pessoa mais interessante
com quem conversei em tempos.
Nada de você é uma luz brilhante em um canto escuro do mundo,
ou um belo rosto em uma cercania sombria, nem uma musa, ou
uma ninfa, ou um anjo com um sorriso róseo para conceder à sua
própria vontade aos suplicantes. Nada dessa bobagem verborreica
que homens costumavam oferecer a ela. Ele pediu que ela
retornasse simplesmente porque queria conversar com ela.
Alice fez uma mesura, porque é sempre bom fazer uma mesura
enquanto se está pensando no que responder, depois partiu
apressada, incapaz de pensar em uma resposta.
- Referência à locução Quo usque tandem abutere, Catilina,
patientia nostra?, do célebre orador latino Cícero. Em tradução
literal, significa “Até quando abusarás, Catilina, de nossa
paciência?”.
Capítulo 2

ELA SE PEGOU ANDANDO rápido para longe da praça Wellington


— mais rápido do que antes e muito mais rápido do que seria
estritamente necessário. Alice se forçou a diminuir o ritmo para um
passeio mais apropriado a uma dama e se concentrou em ajustar a
respiração (não tão difícil já que o espartilho restringia respirações
mais profundas). Suas bochechas estavam quentes e
provavelmente em um belo tom de rosa.
Não era uma mentira completa. Agora, ela realmente estava indo
direto para a casa de Tia Vivian revelar as fotos. Lembrou-se a
tempo de atravessar para o outro lado da rua a fim de dar uma
olhada na vitrine do requintado armarinho do sr. Willard. O letreiro
tinha letras douradas e ornamentos prateados, e os chapéus
ficavam habilmente empilhados na vitrine, um por cima do outro,
como um desfile de Carnaval, com direito a plumas e fitas e
lantejoulas sofisticadas. Era encantador e parecia, de alguma forma,
familiar. Na verdade, Alice fez amizade com o sr. Willard porque ele
a lembrava de alguém que ela havia conhecido em um sonho,
alguém de quem não conseguia se lembrar muito bem.
Quando ele compartilhava uma xícara de chá com Alice, as
xícaras se combinavam, os dois se sentavam calmamente e ele
discutia as vantagens de um sistema econômico em que as pessoas
comuns controlavam os meios de produção — ou, ao menos, os
regulavam — com assistência médica e jurídica de graça para
todos. Bem como o ensino escolar e universitário ofertados
gratuitamente.
Embora esse papo fosse um pouco chato, também era muito
doido, e seu cabelo era branco e rebelde. Ele e sua tia se entendiam
esplendidamente bem — não romanticamente, mas se tornaram
amigos do peito na mesma hora, e ele era presença garantida nos
salões dela.
Hoje ele não estava à sua mesa de trabalho, mas de pé do lado
de fora da loja, com olhos fechados e o rosto inclinado em direção
ao sol, como uma flor aproveitando os raios solares.
— Como vai, sr. Willard? — Alice perguntou, fazendo uma
mesura. Ele abriu os olhos e sorriu para ela, com as bochechas
enrugando-se em milhares de vincos de felicidade.
— Ah, minha querida, eu estava só aproveitando este dia. O sol
ainda é gratuito para todos, nunca se esqueça disso. Todos nós
podemos aproveitar esse calor que dá vida.
— Absolutamente verdade, sr. Willard. Tão verdadeiro quanto o
céu é azul.
— Correto, minha garota! Diga-me, você revelou aquele retrato
que tirou de mim? Não que eu seja vaidoso ou algo parecido, tudo
bem, talvez eu seja. Um velho deveras bobo! Mas eu gostaria
sinceramente de vê-lo e mostrá-lo à minha amiga, sra. Alexandros.
Ela é fascinada por fotografia, mas talvez não seja tão corajosa
quanto você para fazer disso um hobby.
— Ora, estou justamente a caminho da casa de Tia Vivian agora
mesmo, sr. Willard. Devo revelar seu retrato daqui a pouco.
— Ah, excelente. E mande um olá para sua tia, está bem? Diga--
lhe que tenho um chapéu que acho que ela vai simplesmente amar.
Também tenho um panfleto a respeito de princípios científicos que
podem provar de uma vez por todas que a aloparentalidade, o ato
de um não progenitor ajudar a criar uma criança, um sobrinho ou
sobrinha, por exemplo, não é apenas normal como é, na verdade,
vital para nossa evolução como uma espécie superior! Nem todo
mundo precisa de uma ninhada de gatinhos para ser parte do
grande círculo humano, quero dizer.
— Aloparentalidade, gatinhos. Sim. Direi, sr. Willard. Bom dia! —
disse Alice, fazendo novamente uma mesura.
— Bom dia, Alice!
Ela passeou feliz pelo caminho cheio da bonomia do momento,
com o sol e um dia repleto com a possibilidade de tudo. Claro,
também havia aquele jovem que acabara de conhecer… Ele
certamente adicionara ao ar uma sensação de fascínio e potencial.
Alice se perdeu nos pensamentos, ponderando acerca disso, e
cortou caminho pela feira: ora era um lugar maravilhosamente
interessante para fotografias, ora era um tédio, cheio de fofoqueiros
que tinham convicções bastante firmes a respeito das perspectivas
dela. A garota começou a esquivar-se e a curvar-se antes de que se
desse conta.
— Alice — disse a si mesma em um tom paciente, porém
repreensivo —, você já tem dezoito anos, é uma adulta totalmente
crescida e não pode mais ser mandada e intimidada por outros
adultos. Por favor, comporte-se como tal.
Respirou fundo, agradecendo a si mesma pelo lembrete, e se
endireitou, avançando pelas barracas de repolho com a cabeça
altiva.
— ALICE!
Ela desmoronou.
— Olá, sra. Pogysdunhow — ela disse tão educadamente quanto
pôde. — Bom dia, sra. Pogysdunhow.
A mulher baixinha e de cara vermelha (Porcasdunhow, como Alice
costumava chamá-la para Dinah) abriu caminho até ela para
conversar. Estava exatamente igual a quando Alice ainda tinha
idade para correr dela à primeira vista: o cabelo liso grisalho puxado
para trás em uma touca antiquada, um vestido escuro, fora de
moda, sem crinolina nem meias finas sofisticadas. Apesar de ser
dona de uma casa bastante respeitável na mesma rua da família de
Alice, ela gastava e se vestia como um pão-duro de um século
remoto e gritava como uma matrona de taverna de um milênio
remoto. Apesar disso, ou provavelmente por causa disso, os pais de
Alice ocasionalmente a contratavam para cuidar de Alice e da irmã
quando elas eram mais novas. A comida dela era terrível e o bafo,
pior ainda. De alguma forma, ela estava sempre com bebês, fossem
filhos ou netos ou outros pequenos, inocentes e, até o momento,
inofensivos membros de sua família estendida.
— ALICE, COMO ESTÁ SUA MÃE?
Ela tinha um bebê debaixo do braço esquerdo, como se fosse
uma bola, dobrado e contido apesar de suas contorções à procura
de liberdade.
— Ela está bem, sra. Pogysdunhow. Obrigada.
— ELA CONSEGUIU SE RECUPERAR DAQUELE PRINCÍPIO
DE GOTA QUE A ESTAVA AFETANDO?
— Ah, sim, sra. Pogysdunhow. Ela está bastante bem agora,
obrigada.
— É POR COMER MUITA CARNE, SABE — a mulher mais velha
confidenciou, o que significou baixar a voz para um volume
equivalente a um grito mais contido. — É SEMPRE BOM
ALTERNAR A CARNE ASSADA COM MINGAU DE AVEIA POR
UNS DIAS OU GUISADO LOGO DEPOIS. UM BOM GUISADO DE
NABO AJUDA A MELHORAR.
Alice se esforçou muito para não estremecer.
— Parece sensato, sra. Pogysdunhow. Excelente conselho. Mas
me dê licença, estou a caminho de ver minha tia para revelar uns
retratos que tirei na semana passada. Incluindo um da senhora.
A mulher balançou a cabeça.
— AH, SUA TIA. BEM, TODO REBANHO TEM UMA OVELHA
NEGRA, MAS É SEMPRE POSSÍVEL UTILIZAR A LÃ ESCURA
PARA FAZER UM XALE, CREIO EU. MANDE MINHAS
LEMBRAÇAS À SUA MÃE E MINHA COMPAIXÃO AO SEU PAI.
— Sim, sra. Pogysdunhow. Farei isso.
Aliviada quase ao ponto de desmaiar por livrar-se dela com tanta
facilidade, Alice tentou não sair correndo. Embora a relação das
duas tivesse melhorado ligeiramente desde que a rica viúva tinha
posado para Alice — com vários bebês — para um retrato, ela ainda
era sobretudo uma mulher repolhuda e desagradável cujos hábitos
envolviam obrigar as jovens Alice e Mathilda a ler longas e arcaicas
passagens a respeito da importância de… bem, coisas das quais
Alice não se lembrava. Ela estremeceu à lembrança das horas
intermináveis de frases intermináveis em livros que não faziam
sentido.
E que provavelmente não custaram nada à mulher, Alice
acrescentou mentalmente, conhecendo bem sua sovinice.
Descendo a colina agora, Alice chegou à parte mais boêmia da
cidade, uma área pobre com bolsões de moradores estranhamente
otimistas. Alguns eram filósofos sem um centavo que prefeririam ler
a comer; alguns eram artistas que gastavam sua última moeda em
suprimentos e recusavam qualquer caridade. Alguns eram de
descendência semiaristocrática, desfrutando a atmosfera decadente
junto de amigos artistas (e algumas vezes até mesmo contribuindo
ativamente). Tia Vivian era parte do último grupo.
Ela tinha todo um prédio para si, em vez de apenas um
apartamento, o qual estava em estado ligeiramente melhor do que
aqueles ao redor. Alice tocou a campainha e entrou; a porta nunca
estava trancada. Começou a tossir no mesmo instante. Além de
todo o aparato habitual relacionado ao estilo de vida artístico
(divisores de luz, seda com franjas por todo lado, suficiente para
cobrir um teatro pequeno, belas e terríveis pinturas penduradas em
cada centímetro quadrado de parede etc.), sua tia era uma adepta
do incenso. Havia braseiros por todo lado, e uma densa fumaça
azulada pairava em cada cômodo, como um dossel de lã áspera.
Alice engoliu vários bocados de ar através dos dedos, tentando se
acostumar ao ambiente antes de a tia aparecer.
— Alice.
A tia veio do corredor a passos largos, com o típico jeito
dramático, e até bateu palmas. Ela vestia calças macias que
desciam até as panturrilhas, deixando exposto um par de botas
chiques e reluzentes. Uma grossa túnica de veludo servia como
camisa, protegida por um pequeno avental. Ela também usava
óculos pequenos de armação dourada e estava com o cabelo
castanho-claro preso em um coque, o que indicava que estava
esculpindo.
As duas mulheres se abraçaram e a tia beijou, à moda europeia,
cada uma das bochechas da sobrinha.
— Você tem certo acúmulo na câmara escura — a mulher mais
velha disse em um tom levemente acusatório, enquanto Alice tirava
cuidadosamente o chapéu e a bolsa. — Teremos que trabalhar
juntas, com hora extra, para revelarmos tudo. É bom que eu tenha
encomendado todos aqueles compostos da farmácia. Eu sabia que
tínhamos um montão de coisa…
Alice não estava escutando de verdade. Estava olhando os vários
retratos ao redor da sala que já havia visto milhares de vezes:
fazendeiros, atores, políticos, operários, parteiras, uma princesa,
meninos, meninas, bebês, todos em tons vivos e opulentos. A
fotografia registrava alguém exatamente como era, mas deixava de
fora a cor das bochechas. Se ela fosse tirar uma foto de Katz, não
iria registrá-lo por inteiro, a não ser que depois usasse um pastel
rosa no rosto dele.
— Ei? Alice? Onde você está? — Vivian perguntou, estreitando
seus pálidos olhos acinzentados. Levantou um dedo para a
sobrinha. — Você não está aqui. Estava completamente em outro
lugar. No que estava pensando?
— Ah, na diferença entre a arte de fotografar e de pintar…
A tia a observou em silêncio.
— Eu conheci alguém, é só isso — Alice acrescentou então,
aguardando seu rosto corar, mas isso não aconteceu.
— Um menino?
— Um rapaz. Um advogado. Ele estava com as crianças na
Praça. Ele ajuda algumas famílias de lá de vez em quando. Os pais
dele também eram imigrantes.
— Ah. Um menino judeu. Seus pais vão amar isso — disse Vivian
com um sorriso maldoso. Ela agarrou a mão de Alice e a puxou para
dentro da casa, para o porão onde ficava a câmara escura.
— Não, não é bem assim…
— Sem conversa. Sem mentiras. Apenas trabalho. Trabalho e
arte!
Ao andar, Vivian apanhou um incenso já aceso de um suporte de
latão e o agitou diante de si como se estivesse purificando o ar.
Depois de vestirem aventais (maiores), as duas mulheres ficaram
praticamente em silêncio pela hora seguinte. A câmara escura era
apertada e cheirava a químicos frescos e mágicos. Com bastante
prática no que precisava ser feito, cada mulher trabalhava como se
soubesse de antemão os movimentos da outra: despejar esta
solução naquela tina. Mergulhar nela a placa seca. Mergulhar a
placa no interruptor fotográfico. Cuidadosamente remover para
secar. Repetir.
A maioria dos materiais em que estavam trabalhando era de Alice
(embora poucas fotografias fossem de sua tia, uma em particular
era uma recriação detalhada em grande formato de A morte de
Sócrates). Ela mal podia esperar para dar uma olhada nelas sob luz
de verdade; sob o brilho fraco emanado da lanterna com o filtro
vermelho, mal conseguia enxergar qualquer coisa, mesmo quando
semicerrava os olhos e virava as fotos para frente e para trás.
Enfim, terminaram, limparam os químicos derramados e deixaram
as placas secando em meia dúzia de toalhas para chá, limpas e
passadas.
— Vou tomar um golinho de vermute e ver se a Monique nos
prepara um almoço leve — disse Vivian com um suspiro pesado,
como se elas tivessem passado a última hora erguendo pesos.
Enfiou com irritação uma mecha de cabelo de volta ao coque e
sumiu além dos cômodos enfumaçados.
Elas deveriam esperar mais ou menos uma hora antes de
manusear as placas, mas, sempre impulsiva, Alice não conseguiu
se controlar. Apanhou uma placa de fininho, sabendo que, se fosse
pega, sua tia lhe faria um discurso sobre como Espera e Paciência
eram as irmãs gêmeas perdidas das outras musas, aquelas sobre
as quais ninguém nunca fala (em comparação com as mais vistosas
Terpsícore e Urânia). Alice rapidamente se dirigiu ao pequeno
solário do lado de fora do cômodo, onde estaria a luz mais brilhante
da casa.
O retrato que havia apanhado era o da sra. Pogysdunhow; viu de
relance na foto o sofá do cenário onde havia feito o retrato. Alice
não lembrava se a modelo estava carrancuda ou sorrindo com suas
duas fileiras estranhamente largas de dentinhos brancos. Talvez
fosse uma obra-prima do realismo artístico ou talvez fosse apenas
um escárnio horrível que ela jamais poderia mostrar à pobre mulher.
Os bebês estavam se contorcendo. O tempo de exposição tinha
sido de aproximadamente meio segundo, o que era muito pouco
para fixar os nenéns na foto, eles teriam ficado com as
extremidades borradas. Mas, afinal, bebês não estavam sempre
com as extremidades um pouco borradas, pela baba e pelas
cobertas e pelos cabelos bagunçados?
Alice deslizou para o sol ardente no solário e inclinou a mão
ansiosamente, tentando dar uma boa olhada sem reflexo.
Seus olhos se arregalaram quando viu o que realmente estava
segurando.
Não era um retrato da sra. Pogysdunhow de forma alguma.
Era a Rainha de Copas.
Capítulo 3

ALICE ENCAROU A PLACA de vidro que tinha na mão,


escorregadia, fina e plana feito um espelho, e tentou se convencer
de que estava enganada.
— É um efeito da luz — murmurou em voz alta para tornar aquilo
verdade. Estava com medo demais para acreditar.
Era uma mancha, um respingo, um defeito químico. Uma
distorção que era culpa sua por não ter se assegurado de que as
soluções estivessem devidamente misturadas e devidamente
espalhadas. Havia uma bolha no fixador.
Mas quando ergueu o negativo contra o céu azul, além das
vidraças — também retangulares, como a placa da foto –, não havia
dúvida. A criatura horrenda e travessa que estava boquiaberta no
meio da fotografia tinha uma cabeça grande demais e um sorriso
cruel demais até mesmo para a sra. Pogysdunhow. E não havia
bebês.
Além disso, ela estava usando uma coroa.
Uma coroa distorcida, angulosa, estranha e minúscula: o tipo de
coroa que se daria a uma carta do baralho caso ela ganhasse vida.
A Rainha abanava um leque (em formato de coração) para a
espectadora, como se dissesse: “Sim, sou eu mesma, não desvie o
olhar, sua garota horrenda”. As mãos e os pés eram minúsculos.
Minúsculos demais para o corpo em formato de barril.
Alice só se deu conta de que não estava respirando depois de
vários segundos.
País das Maravilhas!
Exatamente do seu sonho.
Mas…
Era… real?
Alice imaginou se era assim que outras garotas se sentiam
quando alegavam que iam desmaiar. O ar no pequeno solário
estava um pouco abafado. Todavia, em vez de sufocá-la, o calor do
sol parecia ter vida ao esquentar sua mão, a pele absorvendo seu
poder com satisfação. No entanto, isso e todo o resto — o céu, e a
luminosidade, e o lindo dia — tornaram-se pálidos e irreais diante da
imagem bizarra em preto e cinza estampada na placa.
Alice deu mais uma conferida de canto de olho, receosa de que a
figura tivesse sumido, receosa de que fosse uma ilusão de histeria
momentânea substituída para sempre pelo triste retrato de uma
pessoa completamente não ficcional. As Pogysdunhow do mundo
eram reais demais para se negar.
Mas, não, a Rainha continuava lá.
Alice riu alto e quase dançou pelos confins do pequeno solário.
Seu sorriso e os cabelos dourados ofuscavam o glorioso dia. Ela
tinha o País das Maravilhas em mãos!
— Imagine só — suspirou.
E ainda…
Alice examinou a foto mais atentamente. Havia ódio nos olhos
brilhantes de negativo da Rainha. O sorriso dela era triunfante, cruel
e parecia capaz de engolir cidades. De fato, a Rainha de Copas era
malévola e, em linguajar atual, desequilibrada em seu desejo
sociopata e constante de cortar cabeças, que ela levava a cabo com
a antipatia impiedosa de uma criança ao brincar de bonecas. Sem
nenhum sentimento real a respeito da situação.
— Alice!
Ela pulou com o grito. Sua tia a procurava, zunindo para dentro e
fora de cômodos com movimentos lânguidos mas eficientes, as
pernas da calça farfalhando uma na outra.
— Sim, Tia Vivian?
Ela saiu pela porta do solário, com a pequena maçaneta de latão
trazendo-lhe à memória outras coisas: chaves minúsculas, mesas
de vidro minúsculas, portas minúsculas…
— Ah, aproveitando um pouco o sol, é? — perguntou de modo
inquisitivo a tia, olhando por sobre os óculos. — Provavelmente algo
bastante saudável depois da câmara escura. Abre os poros. Aqui,
isso acabou de chegar para você no correio da manhã.
Alice pegou as correspondências com surpresa. Quem poderia
saber onde ela estava, quem era tão formal e precisava dela? Quais
duas pessoas?
Esbaforida, abriu a primeira correspondência. No seu estado de
excitação, perguntou-se tontamente: estaria escrito coma-me? Ou
beba-me? Ou seria algum tipo de convite para um jogo de cartas?
Tudo era possível!
Mas ela reconheceu imediata e tristemente a escrita como sendo
da irmã.

Minha querida Alice,


Você não me deixou concluir a fala no café da manhã em sua
pressa para ir até a casa de nossa tia.
Você ficará encantada ao saber, tenho certeza, que o sr.
Headstrewth nos visitará em seu horário de folga. Mais do que isso,
contudo, ele trará seu bom amigo sr. Richard A. Coney, sobre o qual
eu estava lhe contando no café da manhã.
Deixe-me refrescar sua memória a respeito dos bons atributos do
sr. Coney, caso você tenha esquecido. Ele é um jovem inteligente e
educado, destinado a grandes conquistas no seu partido e no
mundo de modo geral. O cabelo dele é de um brilho platinado em
oposição ao seu dourado, e eu estou segura de que vocês dois se
darão formidavelmente bem.
Nós os receberemos ao meio-dia, um chá leve será servido.
Sempre sua,
Mathilda
— Não — gemeu Alice, com uma decepção tão profunda que
parecia uma disfunção gástrica. Ou talvez tenha sido apenas a
menção a Coney. — Definitivamente, não.
— Eu não a culpo — disse a tia, depois de ler a carta por sobre os
ombros de Alice. — Parece medonho e burguês.
Em uma espécie de desespero febril, Alice abriu a outra
correspondência. Na melhor das possibilidades, haveria ali uma
pequena marca de coelho.
Mas não havia.

Querida Alice,
Por favor, nem se dê ao trabalho de inventar uma desculpa em
que, de qualquer forma, nós nunca acreditaríamos.
Venha ou sua irmã jamais nos dará sossego.
Com amor, sua mãe.

Vivian deixou escapar uma risada latida terrível e nem um pouco


sofisticada.
— Ela te pegou com essa.
— Gatos e ratos — Alice praguejou, fechando as mãos em
punhos. — Que droga…
— Arrá, linguajar — a tia disse, em desaprovação. — É melhor
você ir. Caso contrário, duvido que lhe permitirão vir aqui de novo.
— Mas as outras placas de filme! — Alice lamentou
desesperadamente. — Eu quero vê-las! Estão quase secas. Vamos
dar só uma olhadinha…
— As placas estarão bem aqui esperando por você. Ou não: eu
posso enviá-las no correio da tarde. Ou pelo garoto de recado. Junto
de sua câmera. Agora vá, precisa se apressar se quiser chegar em
casa a tempo. E jamais deixe que a vejam correndo, claro.

Mas Alice correu. E correu tão rápido quanto os sapatos de couro,


o espartilho e a crinolina permitiram. Sentia-se estranhamente nua
sem a bolsa da câmera e, ao mesmo tempo, livre e leve — a única
coisa que carregava era a placa de vidro da Rainha de Copas
(praticamente não cortava sua mão enquanto a segurava pelas
bordas afiadas). Seu cabelo estava repuxado em um coque
arrumado às pressas. Por um momento, abriu os braços para trás
como se fossem asas, lembranças da liberdade de correr atrás de
um coelho branco sem pensar em mais nada além de apanhá-lo.
Enquanto contornava a esquina de casa, desacelerou e ajustou a
respiração, recobrando o fôlego. Passou a mão pelos cabelos para
ajeitá-los. Não que ela realmente se importasse, mas não queria
ouvir a irmã fazer comentários maldosos sobre isso.
Tranquila e calma, subiu pelos paralelepípedos e entrou.
Todos já estavam na sala de estar e olharam para Alice em
expectativa enquanto ela se aproximava. Os homens se levantaram.
Primeiro e mais importante, estava Corwin Headstrewth, o “jovem”
de Mathilda; sete anos mais velho do que ela, um tiquinho
sobrecarregado de riqueza e saúde. Ele era todo marrom-claro:
paletó, calça, colete, cabelo, pele e sobrancelhas. Tal e qual um
roedor contente. Os lábios obstinados descansavam nervosamente
quando não estavam se mexendo (o que acontecia quase sempre).
Próximo a Headstrewth estava um homem mais jovem, quase seu
exato oposto. Ele era de uma palidez leitosa, olhos azul-claros que
seriam bonitos se não fossem contornados por pálpebras
avermelhadas e cílios quase transparentes. O cabelo, em um tom
de dourado bastante aceitável, continha tanta pomada que parecia
crocante.
— Estávamos apenas lhe esperando — Mathilda disse
cordialmente. A irmã usava um vestido mídi com pequenas rosas no
decote que lhe ficava especialmente atraente. E havia um resquício
de pó no rosto dela? Em Mathilda?
Alice olhou para a mãe, a única pessoa na sala para quem valia a
pena olhar. Ela tinha um sorriso luminoso e olhos confusos, talvez
uma sombra da mulher idosa que se tornaria um dia. No momento,
havia menos demência e mais Bem, cá estou eu, mas será que não
estaria melhor em outro lugar — com minhas costuras ou no jardim,
talvez? O pai estava em algum local onde não podia ser encontrado.
Não gostava de rapazes vindo atrás de suas garotas e tinha
decidido que o futuro podia ser evitado ao evitar os rapazes em
geral.
— Ah, sim, claro — respondeu Alice. — Como estão? — Ela
estendeu a mão educadamente para o amigo de Headstrewth.
— Richard Coney — o homem anunciou, inclinando-se para lhe
beijar a mão em vez de apertá-la. Alice dirigiu outro olhar à mãe,
que cobriu a boca com os dedos, para esconder um sorriso
malicioso que lembrava a menina que ela fora um dia. Alice gemeu
internamente: não teria qualquer ajuda ali. — Sua irmã me contou
muito a seu respeito.
— Mesmo? — disse Alice sem emoção. — Tipicamente.
Ninguém percebeu a falta de adjetivos: de maneira certeira, Alice
deduziu que cada um preencheria com qualquer adjetivo que
achasse mais apropriado.
— Ah, vamos tomar um chá — a mãe convidou, tocando o sininho
ao seu lado. — Sei que é um pouco cedo para uma refeição, mas a
sra. Anderbee acabou de preparar uma travessa de macarons.
— Formidável, mamãe — falou Mathilda.
Alice não disse nada: estava tentando dar mais uma olhada na
placa de vidro em sua mão. E lá estava ela, presa em um chá com
dois dos homens mais entediantes que já conhecera — era o que
supunha —, quando todo o País das Maravilhas estava esperando
por ela!
— O que tem aí? — a irmã perguntou. — Não quer compartilhar
conosco?
— Ah, é só uma foto que revelei na casa de Tia Vivian. Não ficou
do jeito que eu esperava — Alice disse, segurando o vidro e
tentando movimentá-lo para frente e para trás a fim de evitar que
alguém focasse a imagem.
— É a sra. Pogysdunhow — disse Mathilda, com os olhos
aguçados enxergando no mesmo instante — com as duas
sobrinhas-netas. Que modelo mais inusitada. Te saúdo pela
caridade.
De cenho franzido, Alice checou novo a placa. Não: para ela,
ainda era a singular Rainha de Copas. Fascinante!
— Então você é uma daquelas “loucas por fotos”? — Coney
disse, sem nem se dar ao trabalho de dar uma olhada. — Tirando
fotos de tudo e de todos?
— Como? Eu sempre peço permissão. Jamais invadiria a
privacidade de alguém.
— Richard também tem um hobby — Headstrewth disse
desajeitadamente, talvez participando de alguma competição
desconhecida sobre a pior mudança de assunto de todos os
tempos. — Ele ajuda a imprimir e distribuir panfletos para a
campanha de Ramsbottom. É gerente da campanha, junto a
Quagley Ramsbottom. Também está organizando o grande comício
da próxima terça-feira.
— Não diga — Alice disse, sem ao menos tentar esconder seu
tédio. E voltou sua atenção à sra. Anderbee, que tinha entrado com
a travessa de chá. A mãe não se ofereceu para servir, olhando de
modo distraído para fora da janela, provavelmente pensando em
pássaros.
— Ramsbottom é o cara para se seguir. A Inglaterra está
mudando — Coney discorria animadamente sobre o novo tópico. —
Estamos em uma época de grandes mudanças. Fábricas por todo
lado, novas tecnologias, crescimento sem precedentes, ora, a
própria definição de trabalho está mudando. É uma época realmente
empolgante para se viver. Mas, com todas essas mudanças, é vital
preservar a Inglaterra, sabem, a Inglaterra. Valores ingleses, ideias
inglesas, cidadãos ingleses.
Alice se perguntava se a dor repentina na ponta do nariz era o
começo de algo semelhante às dores de cabeça que a mãe tinha
sempre que o pai pegava a caixa de ferramentas e dizia que ele
mesmo iria consertar algo.
— Esse chá, acredito, é da Índia — ela disse em voz alta,
indicando com a cabeça para a delicada xícara coberta de rosas
que pegara com a sra. Anderbee. — Esta xícara, da China. O tecido
do vestido de Mathilda é de Paris. Meu medalhão foi feito na Itália.
Sem dúvida, há mais países representados nesta sala do que há
cidadãos ingleses de verdade.
E também há algo do País das Maravilhas, Alice acrescentou
mentalmente.
— Não há problema algum nisso — Coney disse, rebatendo o
argumento com entusiasmo. Mathilda e Headstrewth trocaram
sorrisos enjoativamente íntimos e astutos. — Contanto que os
fabricantes do medalhão continuem na Itália e os produtores de chá
na Índia. Se você entende o que quero dizer.
— Eu com certeza não entendo o que você quer dizer — Alice
respondeu, com um sorriso dissimuladamente inocente.
— Ah, mas vejam essas fotos adoráveis que Alice tirou das
crianças no distrito judeu — a mãe comentou inutilmente, apontando
para Coney um par de belos porta-retratos de moldura prateada.
Alice gostava particularmente desses; era próxima das duas irmãs.
Quando a família se mudou para York, elas mantiveram contato por
cartas.
— A senhora não preferiria estar mostrando fotos adoráveis de
seus netos? — Headstrewth perguntou à mãe delas com um sorriso
astuto.
— Você e Mathilda já vão marcar a data então? — a mulher mais
velha respondeu com inocência, tomando um gole afetado do chá.
Mathilda lhe dirigiu um olhar feio. Alice quase se engasgou, o chá
quase lhe saindo pelo nariz.
— Sim, sim, são retratos bem pitorescos — Coney atalhou. — E
essas órfãs são, à sua maneira, bastante interessantes.
— Elas não são órfãs, elas são…
— Sim, sim, certamente. Você tem o objetivo de salvá-los, isso é
muito caridoso da sua parte. Mas veja, por que não vem à palestra
que estamos organizando para arrecadar fundos para o comício?
Será um evento bastante reservado e divertido, apenas para os
apoiadores mais próximos de Ramsbottom. Ele fará um breve
discurso, curto, eu prometo, e responderá a perguntas. Veja isso
pelo seu lado: pode abrir um pouco seus olhos. Você seria minha
convidada.
— Oh, seria divertido — disse Mathilda com entusiasmo. —
Poderíamos fazer disso um passeio. Um quarteto!
— Ah, parece adorável — Alice falou. — Uma noite tomada por
uma reflexão informativa sobre xenofobia com, não tenho dúvida,
um ou dois apartes sobre os benefícios do ludismo. Mas lamento
informar que já tenho compromisso para essa data.
— Nós não dissemos a data ainda — Mathilda retrucou,
estreitando os olhos.
— Sim — Alice concordou vivamente.
A campainha tocou, e a sra. Anderbee foi atender.
— Tantos visitantes — disse a mãe de Alice. — Talvez eu devesse
ficar por perto para recebê-los com mais frequência.
Ou… talvez devesse se mudar para mais longe da cidade, Alice
acrescentou em pensamento.
Mas a sra. Anderbee não voltou com novos visitantes, em vez
disso carregava a bolsa de Alice e um pacote pequeno amarrado
com fitas.
— Minhas fotografias! — Alice exclamou, saltando alegremente
para pegá-las.
— As crianças de hoje em dia — Headstrewth suspirou —,
sempre conferindo o correio, ansiosas demais para saber as
notícias e as novidades dos amigos que não estão presentes de
verdade, ocupadas demais com essa comunicação intangível…
— Com licença — pediu Alice, fazendo uma reverência feito a
criança que fora acusada de ser. — Eu estava aguardando por isso.
Foi um prazer conhecê-lo, sr. Coney.
— Alice, você não está se retirando, não é? — Mathilda disse,
incrédula.
— Receio que sim. Isto definitivamente não pode esperar. Boa
sorte com… qualquer coisa — Alice assentiu para os homens e se
apressou para seu quarto. Haveria alguma penitência digna de
Hades mais tarde? Por parte da irmã dela ou, relutantemente, da
mãe?
Quem se importa?, pensou com determinação.
Espalhou-se na cama e desmanchou o perfeito laço de veludo.
Havia três fotografias: uma supostamente do sr. Willard, outra de
um menininho chamado Ilya e uma terceira de um belo pinheiro
moldado pelo vento em um parque, ao lado do rio.
O sr. Willard, de pé atrás da mesa, uma pilha de chapéus de cada
lado, com certeza não estava ali. No lugar dele estava…
— O Chapeleiro Maluco! — Alice praticamente gritou de emoção
conforme a memória voltava. O chá, as canções! As charadas! Lá
estava ele, exatamente como ela lembrava: baixo, com um nariz que
dominava a cara inteira e um chapéu do tamanho de seu pequeno
corpo. Ele vestia uma cartola enorme com uma etiqueta igualmente
enorme que dizia NESTE ESTILO 10/6. Devia estar de pé em uma
cadeira, porque pairava sobre uma mesa, com as mãos firmemente
colocadas sobre ela enquanto se inclinava para a frente.
Mas… ele estava virado, como se algo fora do enquadramento
tivesse chamado sua atenção. Ele parecia menos Maluco e mais
preocupado com o que quer que tivesse visto, como se estivesse
prestes a rogar à expectadora, implorar a Alice por algo, quando foi
interrompido.
Embora isso fosse esquisito, mesmo para uma terra esquisita,
Alice passou rapidamente à próxima placa, ávida para ver o que
havia ali. Nessa foto, Ilya tinha se tornado um pássaro com cara de
óculos, um daqueles que tinham ficado com pena de Alice quando
ela se sentiu mais perdida e sozinha no País das Maravilhas. O
menino tinha um rosto delicado na vida real; o pássaro na foto
parecia igualmente empático, apesar das lentes no lugar dos olhos e
da haste afiada como bico. Ele estava correndo, com as penas
borradas.
— Isso é tão incrível! — Alice comentou, estarrecida. — A
câmera, de alguma forma, vê além do mundo real e registra o País
das Maravilhas no lugar!
Claro que existiam excêntricos que usavam as novas tecnologias
da fotografia para alegar que podiam capturar fantasmas, ou fadas,
ou a aura das pessoas, “cientificamente”: com produtos químicos e
luz e espelhos. Mas isso era obviamente diferente. Alice tinha
controle completo do seu equipamento, do processo e das placas. E
não havia nada de nebuloso, embaçado ou irreal nessas imagens.
A árvore na última foto tinha se tornado uma flor.
Uma flor oscilante do tamanho de uma casa (ou talvez a câmera e
a artista tivessem encolhido) com lábios ao final das pétalas. Alice
nem tinha certeza de qual tipo de flor era, nada facilmente
identificável como uma rosa ou um junquilho. Mesmo que fosse uma
rosa ou um junquilho com olhos.
— Ah, aposto que ela pode cantar! — Alice exclamou. — Que
fantástico! Meus sonhos eram todos reais! Aqui estão eles, bem
diante dos meus olhos!
No entanto, por que eles tinham decidido se deixar conhecer
somente agora? Por que ninguém mais podia vê-los? E, se tudo era
real, onde esteve o País das Maravilhas nos últimos onze anos?
Alice não ouviu um pio nem teve sequer vislumbre desse mundo —
e olha que esteve buscando com todo o afinco! Ela tinha dezenas
de fotos de crianças angelicais e de muitas personalidades
interessantes de toda a cidade, de um período de vários anos, no
mínimo. E também de muros e flores e desenhos nos
paralelepípedos e até algumas na praia e, até hoje, todas as fotos
se assemelhavam aos objetos originalmente retratados.
— É melhor não questionar a magia — Alice decidiu. Sempre
quando tentava questionar alguma coisa no País das Maravilhas
durante sua última… visita… nunca recebia uma resposta direta;
algumas vezes as pessoas eram ainda mais grosseiras com ela
como resultado da pergunta.
Então: a Rainha de Copas, o Chapeleiro Maluco, um pássaro--
óculos e uma flor cantante. Cada uma de suas placas representava
um vislumbre do País das Maravilhas.
— Será um mundo que espelha o nosso? Escondido de alguma
forma? Eu me pergunto se todo mundo, se tudo tem um duplo,
como um reflexo — Alice disse pensativa. — Cada vez mais curioso!
Bem, havia apenas uma forma de descobrir.
Reorganizou a bolsa da câmera e checou o filme: restavam mais
quatro placas secas. Apenas quatro! Era hora de encomendar ou
produzir mais algumas.
Dinah, que tinha passado a manhã nos pés da cama de Alice sem
se mover um centímetro, observou sua dona com um único olho
preguiçosamente aberto.
— Dinah! Claro que é você! Eu aposto que você é o Mestre Gato!
— Alice exclamou, esfregando o nariz no focinho da grande dama.
Então ela preparou cuidadosamente a câmera para tirar uma foto
lenta e longa da gata, pois o quarto estava mal iluminado. Nem
precisava ter se preocupado, na verdade, pois a velha gatinha
adormeceu, ou fingiu adormecer, e não moveu um músculo até que
ela tivesse terminado.
Nem mesmo depois, na verdade.
Alice então trocou cuidadosamente o filme, correu para o andar
de baixo e já estava saindo pela porta quando se lembrou do
chapéu.
— Ah, minhas orelhas e meus bigodes — praguejou
animadamente, indo para a sala de estar onde havia deixado o
chapéu. Lá viu que Headstrewth e Coney estavam se despedindo
formalmente na porta principal. Mathilda estava usando o próprio
chapéu e um xale, talvez estivesse indo acompanhar o sr.
Headstrewth à cidade.
— Salva por um chapéu — Alice disse com um suspiro profundo
de gratidão, tocando o chapéu na cabeça com reverência. Era o tipo
de coisa absurda típica do País das Maravilhas. Voltou de fininho
pelo caminho por onde viera e partiu pela porta da cozinha.
Com apenas três placas sobrando, Alice precisava escolher seus
modelos com cuidado. Tentou encontrar o sr. Katz — só para dar
umas risadas, só para tirar seu retrato, nada além disso, que ficasse
bem claro — entretanto, nenhum dos meninos ou meninas da Praça
o tinham visto desde a manhã. Então tirou uma foto de Adina.
Depois fez Tia Vivian posar, apesar de seus protestos fracos sobre
letargia e sobre já ter sido fotografada antes. Vivian encontrou,
mesmo assim, a energia para buscar um turbante com uma longa
pena e uma capa dourada e vestiu ambos. Jogou-se em um sofá
confortável e segurou um incenso em cada mão, como a figura de
alguma carta de tarô desconhecida.
E então… Quem para a última placa?
Alice já sabia mesmo antes de apanhar a câmera. No fundo da
mente, sabia desde o princípio.
Posicionou a câmera com cuidado sobre uma mesa,
direcionando-a para a parede oposta. Depois, pegou uma das
bengalas com cabo de marfim da tia, ficou imóvel na frente da
parede e disparou a câmera com o braço, batendo levemente no
botão do obturador com a ponta da bengala.
Seu primeiro — e único — autorretrato.

Revelar o filme foi pura agonia.


Suas mãos tremiam. Queria aprontá-lo logo, mas precisava ser
ainda mais cuidadosa. Levou bastante tempo. Queria que ficasse
perfeito. Queria…
Ela se obrigou a sair da câmara escura para dar uma caminhada
enquanto as placas secavam. Não olharia para elas enquanto
estivessem imperfeitas e molhadas, o que encorajaria especulações
e adivinhações ensandecidas. Mordiscou sanduíches de pepino e
uma fatia fria de torrada com queijo galês (o queijo tinha se
solidificado e estava um pouco duro, exatamente do jeito que ela
gostava).Perguntou-se em que resultaria a fotografia disto: um prato
de biscoitos glaceados com capacidade de induzir crescimento
repentino. Ou será que algumas coisas do mundo real
permaneceriam o que eram: coisas do mundo real?
Por fim, incapaz de postergar mais e enlouquecida pelos próprios
pensamentos, Alice retornou e olhou para as placas contra a luz da
sala de estar.
Dinah era… Dinah. Apenas uma gata.
Alice mordeu o lábio em desapontamento. Estava certa de que
Dinah iria se transformar em seu adorado Mestre Gato, a estranha
besta sorridente que ora ajudava, ora atrapalhava suas viagens pelo
País das Maravilhas. A gatinha na frente dela parecia tão normal,
sonolenta e rabugenta como sempre; sem nenhum vislumbre de
sorriso.
Bem, isso respondia à pergunta: alguns objetos e pessoas (ou
gatos) eram somente deste mundo, sem duplos no País das
Maravilhas.
A menos que…
E se o momento mágico tivesse acabado? E se Alice agora
voltasse a tirar fotos de coisas reais, normais, coisas que
continuariam reais, normais?
Passou rapidamente à próxima placa.
Todas as suas preocupações foram imediatamente dissolvidas
quando viu o que estava ali: Adina era um pássaro com pescoço
delicado e um espelho no lugar do rosto. Sem os olhos era difícil
saber o que ela estava pensando ou sentindo, mas não havia traço
de felicidade ao redor do bico. Sua cabeça estava inclinada,
observando a espectadora de forma um tanto atenta demais,
considerando que não havia nada no local onde deveria estar o
rosto, apenas um reflexo fantasmagórico da própria câmera.
Alice se apressou para pôr a foto de lado.
Conferiu a próxima e, em um primeiro momento, não conseguia
se lembrar do que ou de quem estava ali originalmente; todos os
elementos do mundo real tinham sido deslocados para as bordas ou
inteiramente apagados. A criatura que a encarava no retrato era
grande e segmentada — e bastante assustadora — até que, de
repente, lembrou quem era.
A Lagarta estava languidamente recostada no topo de seu
cogumelo gigante, nuvens de vapor rodopiavam ao redor dos
apêndices superiores em formas grossas e quase reconhecíveis.
Alice estava dividida entre alegria e incômodo. A Lagarta tinha no
rosto o mesmo sorriso desagradável e de pouca ajuda que exibia na
primeira vez que Alice a viu. Muito desagradável.
Por outro lado, estava mesmo ali, resplandecente nos detalhes do
nariz até os sapatinhos dourados.
— Minha nossa! Ela é a Tia Vivian! — Alice se deu conta de
repente. Os braços curtos estavam espalhados da forma como
tinham estado os longos braços de Vivian, um para cada lado, e o
topo do cogumelo era quase como um sofá. Alice não conseguiu
conter o riso, cobrindo a boca com a mão, embora fosse a única ali.
— Eu não tinha ideia de que você tinha tantos pés na sua alma, Titia
Vivi.
Depois, sabendo quem estava por vir, puxou lentamente a última
placa.
E sentiu um calafrio repentino.
Não tinha preconcepções nem ideias do que esperar; claro que
visões de criaturas de cores vivas e ostras cambaleantes passaram-
lhe pela cabeça como possibilidade, mas o que realmente pensava
que veria era… Alice. Ela era a única Alice em todo o País das
Maravilhas, até onde sabia. Alice no mundo real e Alice no outro
mundo.
Mas… isso…
Essa outra Alice, essa Alice do País das Maravilhas, na placa de
vidro, era alguém totalmente diferente.
Ela tinha cabelos escuros, para começar, longos, despenteados e
sebosos. Era difícil distinguir as características restantes por causa
de uma venda branca, larga e esfarrapada, amarrada ao redor da
cabeça. Por debaixo da venda, um sangue grosso e enegrecido
escorria e manchava suas bochechas. Seus lábios também estavam
feridos e sangravam, o pescoço e os ombros, expostos e imundos
de sujeira.
Alice engoliu em seco. Nunca tinha visto algo assim. Mesmo no
teatro, o sangue era vermelho vivo e fluía desimpedido, sem
empelotar. Isso não era uma representação teatral, não era sangue
falso. Era realista demais, como se saído de uma cena de guerra,
uma história de terror, o pior pesadelo que Alice já imaginara.
E então a foto se mexeu.
De repente, a outra Alice pareceu gritar ou abrir um grande
sorriso, impossível diferenciar com os dentes lambuzados por mais
sangue, conforme os lábios se abriam. Ela segurava um cartaz
escrito em letras ornamentais, apesar da pobreza do entorno
aparente.
FELIZ DESANIVERSÁRIO
Capítulo 4

ALICE QUASE DERRUBOU A PLACA.


A imagem não voltou a se mexer.
Ela estava congelada, a outra garota, gritando ou sorrindo
eternamente com a sua horrenda mensagem.
O coração de Alice batia forte dentro da gaiola dupla de costelas e
espartilho. A casa ao redor de si estava silenciosa e a luz não
mudou, mas, de alguma forma, a jovem sentiu que tudo havia se
alterado enquanto não estava olhando. Opostos da mesma emoção
lhe davam frio na barriga: medo de que a casa tivesse se
transformado em um pesadelo previsto ou em uma versão do País
das Maravilhas; e medo de que não tivesse se transformado.
Examinou os arredores.
Não tinha se transformado.
Nas paredes, as fotos eram todas iguais, no chão, os tapetes
eram os mesmos, os móveis… Tudo igual, igual, igual.
— Feliz desaniversário — Alice sussurrou.
Além do aspecto terrível da foto como um todo, era óbvio que a
razão de ser, talvez a razão de ser para todas as imagens do País
das Maravilhas, era aquela mensagem escrita. Uma mensagem
para ela, a Alice do mundo real, de sua contraparte deplorável.
Quem era ela, exatamente? Alice fechou os olhos e tentou se
lembrar. Quem se parecia minimamente com ela naquele outro
mundo?
Recordou algo sobre o Coelho Branco, aquele que começou tudo.
Ele nunca deixou que ela o apanhasse. E ele nem parecia enxergar
Alice como um ser humano diferente: sempre a confundia com
alguém de nome Mary Ann. Aquela garota parecia ser a criada dele,
responsável pelas luvas que ele constantemente perdia.
Seria ela? Seria Mary Ann?
Alice correu um dedo pela borda da foto, a borda do cartaz,
pensando em desaniversários. O Chapeleiro Maluco dissera que ela
tinha apenas um aniversário por ano, o que significava outros 364
dias para comemorar os desaniversários.
Mas o que isso tinha a ver?, Alice se perguntava. Não era o
Chapeleiro Maluco a cumprimentá-la nem qualquer outra pessoa da
hora do chá. Ali estava alguém que ela não conhecia, não havia chá
envolvido e, com certeza, não parecia feliz. Era um mistério.
— Ou um enigma, talvez — disse pensativamente.
Não existiam enigmas no País das Maravilhas? Ficar do tamanho
certo para atravessar uma porta, comer ou beber a coisa certa para
o efeito desejado?
Alice se ajoelhou no chão na frente do sofá e pegou todas as
fotografias, colocando-as cuidadosamente lado a lado na superfície
de veludo macia, como se fosse um jogo de Paciência.
Todos os moradores do País das Maravilhas pareciam chateados.
Nervosos. Assustados. Os pássaros, em especial, pareciam
amedrontados. Era um pouco difícil decifrar o Chapeleiro, porque
ele nem estava olhando para a câmera. Mas por que não estava? A
flor parecia estar abaixando a cabeça, tentando não ser vista. E a
Lagarta não parecia tão presunçosa quanto Alice pensou
inicialmente, ela tinha interpretado a imagem de acordo com as
próprias lembranças. Os olhos dela não estavam desdenhosos, mas
tristes e esquisitos. E espere…
Ela passou os olhos pelas nuvens ao redor da cabeça e das mãos
da Lagarta. Eram formas quase reconhecíveis. Havia algo de
bastante esquisito nelas… Se Alice tivesse um projetor ou um
ampliador decente, poderia enxergar melhor, mas eram
equipamentos que sua tia não tinha adquirido ainda (e Alice, sempre
uma boa garota, não era do tipo de impor nada). Levantou-se de um
salto e correu até a escrivaninha da tia, revirando freneticamente as
gavetas e os compartimentos. Vivian tinha, em algum lugar, uma
bela lente de aumento, com um cabo de jacarandá e enfeites
chiques no entorno, mas não estava ali. O mais próximo disso que
Alice encontrou foi um monóculo deixado por algum amigo
sofisticado da tia.
Com muito cuidado, colocou o monóculo da melhor forma que
pôde.
Na verdade, era surpreendente como funcionava bem!
Formas nebulosas se transformaram em letras, da mesma forma
como acontecera quando a Lagarta estava implicando
impiedosamente com ela. Quase podia ouvir sua voz de novo.
AJUDE-NOS
As nuvens pareciam rodopiar, Alice não sabia dizer se era a
magia nas fotos do País das Maravilhas ou apenas seus olhos que
estavam ficando marejados por causa do uso do monóculo.
— Desaniversário… — murmurou. — Ajude-nos…
Esfregou a cabeça e coçou a sobrancelha acima do monóculo.
Ajudá-los em quê?
Voltando a sentar-se no chão, Alice olhou através da janela para o
céu como se esperasse encontrar a resposta ali na luz do dia. A
tarde estava se convertendo em um abraço de início de verão,
suntuosamente quente e sonolento. Enquanto estava em uma sala
escura e enfumaçada, preocupada com criaturas que achava serem
apenas parte de um sonho, havia, provavelmente, alguma menina lá
fora no parque, tecendo alegremente uma coroa de margaridas.
Assim como Alice quando ela…
— Ah! — ela exclamou de repente. — Era um dia muito parecido
com este quando eu adormeci e sonhei com o País das Maravilhas!
Então Alice pegou sua bolsa e remexeu nela até encontrar o
diário em que anotava observações sobre o processo fotográfico.
Era um caderno fino, de capa de couro, impresso com todo tipo de
informação útil na frente, incluindo um calendário quase permanente
de vinte anos (bem como receitas para bálsamos e cremes
caseiros). Os números minúsculos no calendário sobretudo
decorativo eram quase impossíveis de decifrar. Mais uma vez, o
monóculo se provou útil.
— Creio que era maio quando fui ao parque com Mathilda para as
leituras, alguns anos atrás. Princípios de maio. Era uma quinta-feira.
Lembro com clareza porque eu queria contar ao papai e à mamãe
tudo que eu tinha sonhado, as aventuras que me aconteceram, mas
eles tinham ido jantar com os Ruthersford naquela mesma quinta-
feira. Então eu tomei chá no quarto das crianças e tive de contar
tudo à sra. Anderbee, pobre mulher. E à Dinah também. — Procurou
até encontrar a data. — Pelas estrelas! Foi hoje! Exatamente hoje!
Onze anos atrás!
Ela coçou o nariz, um hábito que tanto a irmã quanto a mãe
tentavam dissuadi-la de ter, mas Alice jurava que a ajudava a
pensar, como uma espécie de ginástica para o cérebro.
— Onze… É um número primo e um aniversário estranho. Por
que eles não vieram até mim com cinco ou dez anos? Teria sido
algo muito mais convencional. Mas claro… Estamos falando do País
das Maravilhas, afinal.
Encarou todos os seus velhos conhecidos distribuídos como
cartas de baralho. Eles olharam de volta para ela, assustados e
desolados. E a Rainha de Copas parecia insana e triunfante.
Alice estremeceu, lembrando como a pequenina mulher havia
sido terrível. Apesar do tamanho e do comportamento ridículo — de
fato, um comportamento muito inapropriado e inaceitável para
qualquer adulto, ainda mais para um membro da realeza —, a
rainha era aterrorizante. Porque tudo que ela dizia realmente
acontecia se o marido, mais gentil e educado, não estivesse por
perto para impedi-la. Os criados e os soldados de carta faziam tudo
o que a rainha ordenava. Todos tremiam de medo quando ela se
aproximava.
— Algo está acontecendo no País das Maravilhas, algo ruim. É
por isso que eles estão me procurando agora. E tem algo a ver com
a Rainha de Copas — Alice disse lentamente. — E é algo tão ruim
que eles precisam da minha ajuda. A outra eu parece estar bem…
indisposta. Eles estão vindo até o mundo real para me buscar.
Para buscar Alice, a pequena Alice que havia sido perseguida e
ridicularizada no País das Maravilhas, a menina que havia
experimentado e chorado, que havia cantado com os nativos, mas
nunca fora aceita como um deles. Ela que pensou neles por anos
após acordar e depois, aos poucos, os esqueceu.
Eles se lembravam dela, aparentemente, e pensavam que ela
podia fazer algo.
Eu tenho que salvá-los, decidiu. Ela ergueu o rosto. Eu tenho que
ir para o País das Maravilhas. Eu vou… achar a toca do coelho de
novo, ou o coelho, ou alguém que seja estranho e peludo para
perseguir.
Voltaria ao parque. Essa era a primeira atitude a tomar.
Encontraria a árvore que havia escalado enquanto a irmã falava
sem parar sobre um livro terrivelmente chato e sem figuras.
Claro que ela era adulta agora e não tinha companhia, então
precisaria fazer tudo de forma ligeiramente diferente. Apanhou a
capa dourada da tia de uma cadeira e enfiou na bolsa para estendê-
la depois no chão, como se fosse fazer um piquenique sozinha. E
talvez até colocasse na bolsa uns lanches, tanto para tornar tudo
mais crível quanto para se fortalecer para a missão.
— Nossa! Isso é diferente.
Do nada, sua tia estava na porta para a sala de estar, com um
dedo acusatório diretamente apontado para a sobrinha.
Alice saltou, arrancada de seus pensamentos e estranhamente
com medo de que ela e o País das Maravilhas tivessem sido
descobertos. Será que a tia suspeitava de que algo estranho estava
acontecendo? Teria percebido algo inadequado em Alice?
Estava aborrecida por Alice pegar a capa emprestada?
— O monóculo — Vivian disse, apontando para ele. — Eu amei.
Minha nossa, você pode lançar moda. Eu me pergunto se tenho
mais algum…
E, com isso, girou sobre os calcanhares, enquanto o monóculo
esquecido caiu ironicamente do olho de Alice, balançando
pendurado em sua longa fita de veludo preto.

Alice dirigiu-se ao parque o mais rápido que pôde.


A lembrança daquele dia ensolarado, no entanto, daquela tarde
dourada quando escorregou, pela primeira vez, para o País das
Maravilhas, não era tão precisa, detalhada ou completa quanto ela
esperava. Recordou-se do cheiro doce e úmido das flores adeptas
ao sol, do flutuar de insetos e poeira na luz amarela intensa, da
sensação sonolenta de toda a terra envolvendo crianças em seus
braços quentes e reconfortantes. Lembrou-se do rio à deriva, da
relva serpenteante, das árvores e da grama, da irmã, do livro
entediante, do coelho.
Mas qual era a árvore certa? Onde ela vira o coelho pela primeira
vez?
Ela subiu um morrinho atrás do outro, observando atentamente a
paisagem entre carrinhos de bebê, pintores e pessoas fazendo
piquenique, tudo parecia diferente.
— Bem, é claro que tudo parece diferente, porque eu cresci como
um telescópio desde então — disse, suspirando. — Estou mais de
trinta centímetros mais alta. — Tudo pareceria diferente, diferente da
velocidade com que ela mudava de tamanho no País das
Maravilhas, a passagem do tempo e o envelhecimento neste mundo
chegaram lentamente e, ainda assim, Alice se sentia estranhamente
despreparada.
Tentou se ajoelhar para ter uma visão mais próxima à de uma
criança. Estranho e desconcertante. E também não pareceu ajudar.
Talvez eu devesse começar pelo tipo de lugar de que um coelho
gostaria. Um campo aberto, com flores e brotinhos deliciosos, perto
de uma moita, um lugar seguro para se esconder.
Com essa ideia na cabeça, endireitou o chapéu, ajeitou a bolsa e
andou a passos largos, feito uma aventureira corajosa em uma trilha
no coração da África.
Duas horas mais tarde, ainda não havia coelho, nem tocas de
coelho (ou, ao menos, tocas ocupadas) nem País das Maravilhas.
Apenas uma Alice vermelha e sem fôlego, com pés e ombros
doloridos.
— Você está aqui, eu sei disso — gritou, despreocupada com
quem pudesse ouvi-la. — Eu vi as fotos! Você é real. Então apareça!
Onde você está?
— Perdão? No fim das contas, você tirou fotografias secretas de
mim?
Alice se virou.
Olhando-a curiosamente um pouco atrás dela estava o sr. Katz.
Ele tinha um sorriso tímido nos lábios, mas seus olhos
demonstravam verdadeira preocupação pelo comportamento
esquisito de Alice. O paletó estava jogado descuidadamente por
cima do ombro e ele havia tirado o chapéu devido ao tempo quente.
Não havia, contudo, afrouxado a gravata vitoriana de um roxo
vibrante, que brilhava como o peito de um pássaro jovem e
esquisito.
— Não, não estava falando com você, eu estava… Ah, poxa. —
Alice meneou a cabeça. — É complicado e um pouco doido.
— Bem, agora você me deixou curioso. Posso acompanhá-la um
pouco em suas perambulações?
— Estou muito cansada, na verdade. Estou perambulando há
quase três horas, à procura de um coelho. Ou da toca de um coelho.
Ou do lugar onde antes eu vi um coelho. Com minha irmã. Eu me
sentei em uma árvore, será que foi esta árvore? Que vergonha, eu
não consigo lembrar!
Exausta, ela se sentou na base da questionável árvore, um
carvalho solitário com longos galhos que se espalhavam feito braços
estendidos, divertidos e úteis para que pequenas meninas
pudessem sentar-se (diferentemente dos carvalhos compactos e
verticais da Pelgrew Street que produziam bolotas compactas e
estreitas. Esta poderia muito bem ter sido a sua árvore).
No seu suor e exaustão, e sob o olhar suavemente divertido de
Katz, Alice se deu conta de que havia esquecido por completo seu
hábil estratagema envolvendo a toalha e o piquenique falso.
Recordou-se agora dos pequenos sanduíches e dos bolinhos que
tinha embrulhado. Estendeu a mão e pegou um bolinho, lembrando-
se, no último momento, de parti-lo em dois para oferecer um pedaço
ao companheiro.
— Obrigado. — Katz pegou-o de maneira bem adequada e o
levou à boca, talvez mais por educação do que por vontade de fato.
Ele se agachou para ficar de cócoras, as costas apoiadas na árvore;
aparentemente, ao contrário da outrora respeitável garota ao seu
lado, ele estava indisposto a sentar-se no chão.
— Mas o que você está fazendo aqui, sr. Katz? — Alice
perguntou, curiosa.
— Um amigo me pediu para ajudar um amigo, da maneira mais
amigável… Soa um pouco enigmático, não? Mas eu cortei caminho
pelo parque, um atalho longo em vez de curto, porque é um dia tão
bonito. Mais cedo ou mais tarde, terei de cumprir minha promessa.
Mas, por enquanto, diga-me: o que há de tão especial nesse coelho
ou toca?
Alice mastigou pensativamente o bolinho. Qual tinha sido o gosto
das pequenas guloseimas no País das Maravilhas? Mais doce, ela
pensou. Será que elas eram doces demais agora? Além de ter
crescido e amadurecido, houve outras mudanças nela. Dada a
escolha entre um biscoitinho com cobertura açucarada ou um pouco
de gordura de um assado suculento, ela escolheria o último.
— Se eu te contasse, você não acreditaria em mim. Mas
simplesmente preciso encontrá-lo. Logo. É imperativo. Depois de
um breve descanso.
— Tudo bem, então. Você tira uma soneca e eu manterei ladrões
e passarinhos afastados — ele ofereceu, cavalheiresco.
— E a promessa para seu amigo? E eu não vou dormir — Alice
insistiu. — Certamente não deveria dormir. Sinto que não
conseguiria acordar por horas e horas.
— Ah, eu cumpro todas minhas promessas — Katz disse com um
sorriso reconfortante. — Não tenha medo.
— Mantenha-me acordada então, se não se importa em atrasar
um pouco a sua missão. Conte-me algo interessante, sr. Katz. Conte
uma história sobre sua vida. Conte sobre a vida de seus pais. Sobre
a chegada aqui, sobre como eles tiveram você e sobre como se
tornou um advogado. Tem bastante assunto.
— Ah, bem, imagino que seja minimamente interessante para
algumas pessoas, mas duvido que minhas histórias sobre estudar
Direito iriam mantê-la acordada. Que tal se, em vez disso, eu te
contasse histórias que, aposto, você nunca ouviu, sobre uma cidade
fantástica chamada Chelm, cheia de loucos e tolos?
— Parece perfeito. Eu tenho que encontrar, de fato, um bando de
loucos — Alice disse, entusiasmada, antes que lembrasse como
soava boba.
— Bem, como os ingleses adoram dizer, era uma vez… — E Katz,
por fim, sentou-se no chão.
Era um pouco inapropriado, talvez, o rapaz estar tão perto dela,
mas os dois não estavam se tocando e não havia nada de
estupidamente fantástico ou romântico acontecendo, enquanto Alice
adormecia lentamente, exausta do dia, apoiada nele. Katz não
ofereceu seu casaco para mantê-la aquecida. Estava tudo bem.
— Na grande cidade de Chelm, na Polônia, existiam muitos
sábios que passavam os dias debatendo sobre tudo, desde o
número de anjos que poderia dançar na cabeça de um alfinete até a
melhor forma de salvar a Lua de se afogar no lago durante a noite.
Um dia, o padeiro da cidade foi até o rabino com uma pergunta
enigmática…
Alice escutava tão bem quanto podia: ele falava com um sotaque
educado e acadêmico, e parecia alguém bastante habituado a
contar histórias.
O dia, porém, foi lançando seu lento feitiço sobre ela e foi ficando
cada vez mais difícil se concentrar. Em vez de mantê-la acordada e
interessada, a história a embalava perigosamente em direção a uma
sonhadora perda de consciência. Alice observava os patos
brincarem na beira da água entre a relva, com uma diminuição no
interesse pelos acontecimentos do padeiro e todos os seus
parentes.
Que belos juncos onde os patos estão brincando, pensou
enquanto Katz continuava a história. Certa vez, colhi alguns com
cheiro bem adocicado, enquanto estávamos remando. Quem estava
comigo? Mathilda? Não me lembro. Mas o que os patos estão
comendo? Sapos? Raízes?
Veja como o rio reflete o céu. A água próxima reflete os patos. O
céu e as nuvens não se alteram por estarem invertidos, mas os
patos ficam de ponta-cabeça. Veja aquele pato engraçado de ponta-
cabeça, olhando feio para mim como se soubesse de algo. Como se
soubesse de qualquer coisa. Pato bobo. Bem, claro, um pato do
outro lado do reflexo pode saber de algo. Patos do outro lado seriam
diferentes. Todo o mundo se torna sábio e estranho na superfície do
rio… ah!
Ela sentou-se de repente. O pato do reflexo a estava encarando.
Através da água.
— Ajude-nos — ele disse, menos implicante que irritadiço.
— Eu ouvi isso! — Alice gritou. — É isso então, é o rio! Ele reflete
o oposto das coisas, ao contrário!
Alice pôs-se de pé em um salto, cheia de uma energia que não
tinha um momento antes, saiu correndo colina abaixo em direção ao
pato. Uma pequena parte dela estava preocupada que Katz
pudesse detê-la, obviamente porque aquelas ações não eram de
uma garota em sã consciência. Provavelmente, Alice parecia
prestes a se afogar, como uma Ofélia inglesa.
Mas se ele estava atrás dela, estava muito devagar e silencioso.
— Eu te vejo! Você aí, pato! Não finja! — Alice gritou e se atirou
na água.
Capítulo 5

ELA CAIU, CAIU, CAIU, puxada para baixo por anáguas e


crinolinas e meias e sapatos, com braços e pernas enroscando-se
nas relvas e nos juncos e em coisas pontudas e pegajosas que
tentavam agarrar e afogá-la.
A autopreservação finalmente entrou em ação, assim como as
pernas de Alice. Um pensamento lhe ocorreu enquanto ela se
debatia e girava para endireitar-se, com a cabeça apontando para o
céu e os dedos dos pés para baixo, em direção às profundezas: a
água na beira do rio não parecia tão profunda. Pouco além das
margens, ela havia observado patos nadarem em alguns
centímetros de água, apenas o bastante para sapos mergulharem
rápido caso alguém chegasse perto demais. Não tinha como ela
flutuar suspensa na água e chutar e, ainda assim, não tocar o fundo
com os pés.
Mesmo assim ela sentiu o peso vazio do líquido ilimitado, um
oceano, em todas as direções. Flutuou nesse lugar por um
momento, sem respirar, antes de conseguir impulsionar-se
relutantemente para a superfície.
Alice arquejou quando a cabeça foi ejetada para fora da água, o
coque desfeito em uma juba que derramava gotas e rios. Ela estava
sentada, claro. Desengonçada e estranha. Em uma piscina rasa.
Era uma piscina retangular e decorativa, como podia ser vista em
um livro sobre vilas da Roma Antiga. Havia algumas plantas
decorativas — relva — enfiadas nos cantos de maneira naturalista.
Elas eram vermelhas.
Na verdade, tudo era vermelho.
Alice tirou os braços da água com um grito, acreditando estar
coberta em sangue.
Quando algumas gotas brilhantes feito diamante voaram, ela
percebeu que apenas a piscina propriamente dita era vermelha: os
ladrilhos, e as paredes, e o piso ao redor. A água era normal e
transparente, mas refratava muito, muito vermelho.
— Curioso — exclamou, mas um pouco enojada. Levantou-se, e
água se derramava dela; se estivesse prestando atenção, teria
notado que a água secou bem mais rápido do que seria estritamente
natural. — Eu consegui! Não estou sonhando! Estou acordada, viva
e no… País das Maravilhas?
Ela estava dentro do que se parecia muito com os restos de uma
vila romana, mas toda explodida e plana ou talvez desenhada por
um estudante dos clássicos pouco talentoso e inspirado. Os
mosaicos debaixo de seus pés foram construídos no que devem ter
sido imagens e padrões, mas eram todos vermelhos. Uma única
parede com uma única passagem surgiu diante de si, também
vermelha. Através da porta, à distância, podia ver o começo de uma
exuberante floresta, estranhamente gotejante nas pontas, e muito
vermelha.
(Mas, se Alice estreitasse os olhos, poderia enxergar tons
orgânicos aqui e acolá: um pouco de verde ou marrom às
escondidas.)
A parede à sua frente era úmida e perfumada.
Alice se esguichou em sua direção, os pés ainda pesados da
copiosa quantidade de água espirrando dos sapatos de couro.
Estendendo um único dedo, tocou delicadamente a parede. O
vermelho transferiu-se para a ponta. Levou o dedo ao nariz.
— Tinta à base de leite — murmurou, não inteiramente surpresa.
Além da porta aberta para lugar nenhum, havia um pequeno e
belo pomar de laranjeiras, cada um dos frutos redondos e de um
vermelho perfeito. Pareciam maçãs de um livro ilustrado. Sentiu-se
inquieta e ansiosa, como se algo terrível tivesse acontecido ou
estivesse prestes a acontecer, como as descrições que lera em um
livro sobre os campos de batalha durante a Guerra Civil Americana,
quando um companheiro encontrava outro companheiro de armas
que vestia cores do lado oponente. As situações eram familiares,
mas horríveis. Tudo era vermelho e assustador. Se existissem
fotografias coloridas, tinha certeza de que a foto da Rainha de
Copas seria em todos esses tons de vermelho.
De repente, começou um barulho terrível, horroroso e alto, muito
difícil de classificar. Alice encolheu-se, cobrindo as orelhas e
envolvendo a cabeça para tentar abafar o som (provavelmente,
transferindo tinta vermelha para o cabelo). O som se assemelhava
um pouco a uma pilha de objetos se estatelando, mas uma pilha
gigante, uma montanha imensa de panelas e caçarolas. Também
soava um pouco como um gongo, como o pequeno gongo que havia
na loja de chá da sra. Yao, mas multiplicado por mil e tocado por
milhares de macacos enlouquecidos.
Alice fechou os olhos e caiu ajoelhada, pedindo por silêncio.
Por fim, o barulho parou e os ecos sumiram.
Ela destapou as orelhas e viu que o som tinha surtido efeito na
paisagem outrora vazia: além do pomar de laranjeiras, figuras
passavam apressadas, encolhidas, ao longo da base de uma
muralha vermelha e alta que aparecera do nada e tinha um tom de
vermelho ligeiramente diferente do resto: um pouco mais claro e
empoeirado, como se fosse mais antigo. Um portão levadiço se
abriu apenas o suficiente para que as criaturas passassem e
fechou-se logo depois, trancando-as lá dentro.
Então tudo voltou a ficar quieto e silencioso.
— Isso não se parece com o País das Maravilhas — observou
Alice. A paisagem estava imóvel agora, nem uma única criatura
circulava ou dava as caras a céu aberto ou nas sombras; nem um
mome rath, ou rato, ou capturandam, ou qualquer uma das centenas
de criaturas que normalmente lotavam os caminhos e atalhos do
País das Maravilhas. Não havia nem mesmo flores acordadas.
( — Mome rath! Capturandam! Agora me lembro de todos eles e
de seus nomes engraçados também! — Alice percebeu com
alegria.)
Ela se sentiu inquieta e ansiosa, como se algo terrível tivesse
acontecido ou estivesse prestes a acontecer, como as descrições
que ela leu em um livro sobre os campos de batalha durante a
Guerra Civil Americana, quando um companheiro encontrava outro
companheiro de armas, vestindo cores do lado oponente. As coisas
eram familiares, mas horríveis. Tudo era vermelho e assustador. Se
existissem fotografias coloridas, ela tinha certeza de que sua foto da
Rainha de Copas seria em todos esses tons de vermelho.
Ela andou até o portão levadiço, afinal estava no País das
Maravilhas, apesar do clima novo e estranho, e o que mais havia
para fazer? Deveria seguir o óbvio, aquilo que lhe provocava
interesse, seguindo o que quer que a intrigasse, feito uma criança.
Era assim que as coisas progrediam.
Seu corpo se lembrava de saltitar pelos terrenos de País das
Maravilhas com a excitação de uma menininha; suas pernas adultas
estavam um pouco menos propensas a tal movimento. Ainda assim,
dava passos rápidos e, ocasionalmente, adotava um meio-galope
quando não conseguia resistir ao impulso. Fosse sua perspectiva,
ou imaginação, ou o próprio País das Maravilhas, a muralha se
ampliou muito mais rapidamente do que deveria conforme se
aproximava, de repente pairando sobre ela como um gato prestes a
saltar sobre um indefeso novelo de lã. A fachada era lisa, claro, com
exceção das linhas e saliências onde os blocos de pedra se
encontravam e das eventuais pedras decorativas em formato de
coração. Não havia portão levadiço em lugar algum.
— Mas é claro — Alice murmurou.
A porta havia desaparecido, como sempre costuma acontecer
com portas em sonhos quando algum lugar não deseja ser
encontrado.
Mas um homem apareceu em seu lugar, como se estivesse ali o
tempo todo, e isso tampouco deixou Alice surpresa.
Ele estava todo de preto, um preto desgastado de um terno
requintado comprado em um mercado de segunda mão por um
trabalhador rural que nutre noções equivocadas sobre como
impressionar seus pares com uma roupa inadequada para o
trabalho ao ar livre. Calças elegantemente largas foram enfiadas
nos canos altos de botas de montaria de couro duro. O colete era
atravessado por cintos que pareciam náuticos e continham
mosquetes e balas. O paletó curto que ele vestia parecia bem
apropriado, exceto pelo fato de que a corrente dourada, presa a um
bolso, levava a uma adaga, não a um relógio de bolso. O chapéu do
homem era um chapéu-coco velho e empoeirado, mas tinha uma
enorme pluma preta espetada, feito uma criança brincando de usar
roupas de gala.
O rosto dele era tão real que surpreendeu Alice; não havia nada
de onírico ou nebuloso no nariz pontudo e estreito, nos sulcos
pronunciados acima do lábio, nos pés-de-galinha cansados ao redor
dos olhos ou na nitidez de suas pupilas vermelho-escuras. Se ainda
tivesse qualquer dúvida de que estava acordada, isso a esclareceu
de imediato.
O sujeito segurava uma pena e um pergaminho, examinava bem
de perto o que estava escrito ali e não parecia surpreso por Alice
estar de pé à sua frente.
— Todos os assentos VIP para as execuções da hora do chá de
hoje já estão ocupados — informou, olhando para cima apenas no
último momento, depois, de forma míope, como se a estivesse
fitando por cima de um par de óculos. — Volte amanhã. Com
certeza haverá mais assentos.
— Execuções? — Alice perguntou em choque. Se bem que, com
os sons terríveis, e dos movimentos encurvados, e da vermelhidão
geral do lugar, esse desenrolar não era inteiramente inesperado.
Além da Rainha de Copas e tudo o mais.
— Decapitações, sabe. “Cortem a cabeça dela, dele, disso
etecetera” — o homem disse, deslizando o dedo casualmente em
sentido perpendicular ao pescoço. — Se você ainda não
demonstrou seu patriotismo neste trimestre, sugiro que compareça o
quanto antes na seção exclusiva para lugares em pé. Há uma lista
de espera que inicia às treze e meia.
— Perdão. Estou um pouco confusa. Podemos recomeçar? Eu
sou Alice. — Ela fez uma pequena mesura, sentindo-se novamente
uma criança. — E o senhor, quem seria?
— Eu sou o Valete de Contabilidade — o homem respondeu com
secura, porém surpreso.
— O Valete de… — Alice piscou. — Mas por quê…
— Eu sei, por que estou aqui fora agindo como nada mais que um
vulgar porteiro? — ele concordou, com um aceno de cabeça. —
Maldito desperdício inútil de minhas habilidades, mas, por outro
lado, eu também sou responsável pela programação, então talvez
tudo faça sentido. Falando nisso, você parece VIP. Posso escrevê-la
para ama… Ah, não, não tem execuções amanhã. É Dia do
Críquete. Talvez para a Quintambor-feira seguinte?
Alice detestava desapontar os outros, ele parecia tão ansioso. Ela
era o único ser vivente à vista e, possivelmente, a única que havia
tirado um momento para conversar com o valete. Será que ele
ficava ali de pé o dia inteiro, aguardando?
— Desculpe, mas quem deve ser executado hoje, se não se
importa que eu pergunte?
— Ah, vamos ver, seria… — Ele enrolou e desenrolou o
pergaminho, linhas de corações vermelhos decorativos deslizavam
para dentro e fora das margens como um zootrópio. — Ah, sim, o
Chapeleiro, o Dodô e o Arganaz. Uma escalação de primeira linha,
se quer saber minha opinião.
— O Chapeleiro! O Arganaz! O Dodô? — Alice gritou. — Prestes
a serem mortos? Não! Isso é terrível!
— Que engraçado — disse o valete, encarando-a novamente. —
Depois que eu leio os nomes, a maior parte das pessoas diz: “O que
eles fizeram?”. É traição, provavelmente, se quer saber. Essa
costuma ser a razão apresentada.
— Mas o Rei, ou alguém, sempre intervém! — Alice protestou. —
Ninguém nunca é morto de verdade.
— Sim, diga isso aos cadáveres pendurados no jardim de rosas.
Quanto ao Rei, bem, imagino que você não seja daqui, certo?
Longe disso. Ela com certeza queria saber do Rei, só que mais
tarde. Agora, tinha amigos em apuros.
— Não. Mas, por favor, quando eles serão executados?
O valete apontou para a bota direita; na ponta dela, havia um
relógio que Alice não tinha notado antes. Na bota esquerda, havia
um copo de conhaque.
— Em cerca de um quarto de hora.
— Ah, deixe-me entrar! Eu tenho que parar já esta farsa! — ela
rogou, estendendo as mãos desesperadamente para descobrir onde
o portão levadiço tinha se escondido.
— Não tem como — ele disse de maneira tristonha. — A seção
VIP está lotada.
— Mas e o espaço destinado a pessoas em pé?
— Ah, essa é a primeira escolha para as pessoas cumprirem sua
cota. Também esgotado, obviamente.
— Mezanino?
— Cheio de mulheres da corte, eu receio.
— Estou tentando resgatar meus amigos prestes a serem
executados. Estou prestes a cometer algo que você provavelmente
também chamaria de traição. E você ainda insiste que eu preciso de
um ingresso adequado?
— Existem regras sobre esses eventos — desculpou-se ele.
— Infelizmente, deixei minhas luvas embaixo do assento ontem —
Alice falou entre dentes cerrados. — No meio da animação e do
sangue, eu simplesmente esqueci. Só vou entrar rapidinho para
apanhá-las.
— Meninas bem-comportadas não mentem — repreendeu o
valete.
— Por favor, não tente me explicar o que meninas bem-
comportadas fazem ou deixam de fazer nem deduza que eu sou
uma menina bem-comportada ou deseje ser bem-comportada, ou
mesmo que eu seja uma menina. Eu tenho dezoito anos agora,
sabe — Alice respondeu friamente, endireitando-se para ficar o mais
alta possível, o que significava um bom tanto menor do que o Valete
de Contabilidade. — Se ser malcriada vai salvar o Chapeleiro, eu
serei a mulher mais malcriada e levada que você já teve a
infelicidade de conhecer. Agora, abra o portão.
Em silêncio, o valete pestanejou por um momento.
Depois enterrou o rosto no pergaminho.
— Talvez exista alguma regra que permita aos clientes que
entrem a fim de procurar propriedade perdida.
— Ah, pelo amor de Deus. Deixe-me dar uma olhada — Alice
indignou-se. Em um ato de extravagância, talvez porque o valete
parecesse ele próprio ter dificuldades para enxergar, talvez para
manter suas mãos ocupadas ou talvez apenas por capricho (ela
nunca seria capaz de explicar com certeza mais tarde), Alice tirou o
monóculo e posicionou-o no rosto.
— Ah! Eu não tinha me dado conta de que você também era da
Contabilidade! — o valete exclamou, olhando para ela com
surpresa. Ele também ergueu um monóculo, um que ele não usava,
aparentemente. Não era tão bonito quanto o de Alice, o acabamento
era de metal cinza enferrujado e tinha uma corrente bastante longa.
— Ou do Jurídico. Minhas desculpas. Por favor, permita-me. Uma
cortesia profissional.
Ele fez uma ampla reverência e, ao mesmo tempo, o portão
levadiço apareceu, materializando-se de cima para baixo e depois
elevando-se.
— Muito obrigada — Alice retribuiu com a mesura mais breve que
conseguiu fazer. Com a cabeça erguida, enquanto tentava não
derrubar o monóculo, atravessou o portão.
Capítulo 6

ALICE EMPALIDECEU QUANDO SUA mente finalmente conseguiu


discernir o que via.
Metade da cena era um absurdo onírico do País das Maravilhas.
Havia arquibancadas e assentos com fileiras em diferentes níveis,
feitos de todos os tipos de objetos inapropriados: um sofá com patas
que estava em perigo iminente de ficar entediado e ir embora
carregando espectadores ainda sentados nele; tronos de vime com
guarda-sóis acoplados; cadeiras usadas do jeito errado, de ponta-
cabeça.
A área exclusiva para ficar em pé era cercada por garfos de
madeira gigantes e devia ser tão estridente quanto espaços
semelhantes nas partidas de críquete ou nos discursos políticos na
Inglaterra, especialmente considerando os elefantes em miniatura,
as formigas de bocas enormes e os humanos de formatos
estranhos, todos se empurrando para conseguir enxergar.
Não importava, entretanto, em qual fileira estivessem ou que tipo
de criatura fossem, todos os espectadores estavam — com razão —
subjugados. À diferença da primeira visita de Alice, quando a
Rainha de Copas simplesmente gritava Cortem-lhe a cabeça aonde
quer que fosse — campo de croquet, jardins, desfiles de rua —, este
lugar fora feito sob medida para suas ordens abomináveis.
O foco da atenção era uma grande e esquisita pilha de entulho
que assombrava o centro da arena. Era feita de todo tipo de
quinquilharia e detritos de um mundo de fantasia: bules e castelos
minúsculos, ovos dourados e latas de lixo, baús trancados e
armaduras que não pareciam totalmente esvaziadas de seus
proprietários.
Equilibrando-se precariamente no topo disso, estava um palco
manchado em um tom de vermelho diferente de todos os outros que
haviam sido pintados. Mais escuro. Mais permanente.
O castelo ao fundo era o mesmo de que Alice se lembrava do seu
sonho, de um vermelho tão escuro que parecia preto, mas agora ele
era o ponto mais alto em qualquer direção daquela terra vermelha,
achatada e destroçada. Uma fumaça preta e ameaçadora saía aos
montes das brechas e dos buracos assassinos. Tudo cheirava
levemente a tortas queimadas.
Em um estranho e pequeno pavilhão à esquerda da pilha, havia
um gigantesco coração vermelho inflado. De pé (seguros atrás de
uma grade protetora) no patamar acima disso, estava um par de
velhos rostos conhecidos: Tweedledee e Tweedledum. Eles
ostentavam um sorriso largo, a boca praticamente dividindo o rosto
ridículo, e acenavam para a multidão como se fossem a atração
principal do evento. Tweedledum usava um broche enorme que dizia
melhor menino. Tweedledee usava um broche enorme que dizia
menino, melhor. Abaixo de cada um dos ornamentos, havia um
segundo broche, grande e brilhante e cafona: um coração vermelho-
rubi.
— Bem — Alice disse para si mesma —, é fácil apostar a que lado
eles se juntaram. Mas onde está a Rainha de Copas? Ela não
deveria estar supervisionando esse negócio?
Uma corneta soou: uma bela corneta, longa e dourada, com
estandartes vermelhos pendurados, que seria dolorosamente
adorável se o que ela anunciava não fosse tão hediondo.
(Além disso, o instrumento tocava a si mesmo; não havia um
corneteiro presente.)
Os prisioneiros entraram, amarrados e tristemente arrastados por
algo que Alice decidiu ser uma espécie de ogro, além de um
elefante de aspecto rabugento, de pé sobre as patas traseiras. Alice
perdeu o fôlego. O Chapeleiro, o pequeno Arganaz e o Dodô
estavam arrasados. Não apavorados, como ela esperaria. Exaustos,
sujos, esgotados e envelhecidos, velhos demais antes do tempo. O
Chapeleiro fitava a multidão com uma expressão que não suplicava,
apenas perguntava por quê.
De trás deles surgiu o que devia ser o método de execução e o
carrasco, em uma só figura: uma criatura gigantesca usando um
capuz preto sobre os olhos, as orelhas e o topo da cabeça, com o
focinho arrebitado e a bocarra repleta de dentes afiados
escancarada, pronta para arrancar cabeças fora.
Ao lado desse desfile abominável, vieram os soldados. Centenas
de cartas marchavam adiante e atentas, olhos ilegíveis e espadas
pontiagudas, todas igualmente de prontidão. Se Alice fosse para
cima deles, seria morta com centenas de cortes de papel.
— A maioria dos baralhos só tem cinquenta cartas, cinquenta e
duas no máximo, com certeza — ela suspirou.
— Ah, a Rainha está ampliando os alistados de novo, você não
ouviu falar? — disse uma velha ovelha fofoqueira, mudando o tricô
de lado para poder olhar Alice por cima dos óculos. Ela baixou a voz
para um sussurro rouco: — Jogando mexe-mexe e um novo jogo
chamado Maldade & Má-lice para potencializar sua ofensiva.
— Mas onde ela está? Onde está a Rainha?
— Ah, ela não vem mais às execuções. São muitas. — A ovelha
fungou. — Creio que nós temos de assistir por ela.
— É disso que se trata, a cota? Tudo mundo precisa estar aqui
por um motivo?
— Você deve ser do Conselho Externo ou tão burra quanto um
chapéu em um touvo. Claro que nós temos que estar aqui, pelo
menos uma vez por trimestre, caso contrário, é traição. Peço licença
agora. Não quero perder meu lugar. — A velha ovelha passou por
Alice em direção à fileira do meio, onde ergueu um ingresso em
formato de coração para o tamanduá lanterninha e foi então
acompanhada até um banco longo de madeira.
— E todos eles simplesmente vêm e assistem às execuções? — a
jovem se perguntou, espantada.
Como diabos salvaria seus velhos amigos? Se os soldados eram
incontáveis e era improvável que o público se rebelasse, temendo
pela própria vida, o que ela poderia fazer?
Tinha que haver algo. Sempre havia uma resposta no País das
Maravilhas, bastava saber onde — ou como — procurar.
Então ela viu.
Na seção vip, havia uma mesa lindamente posta com comes e
bebes disponíveis para a elite. Havia chá, ponche, longas taças de
cristal com o que só poderia ser champanhe, delicados sanduíches
no formato de coração e bandejas e mais bandejas de tortas e
biscoitos.
(Ironicamente, as outras seções também tinham comida, tortas e
cidras e quitutes do tipo, mas os petiscos eram vendidos. Os comes
e bebes para os ricos eram de graça. “Mais um absurdo do País das
Maravilhas”, pensou Alice.)
Ela foi atraída a uma barraca em particular, feita de vidro e
delicados fios de ouro, que continha bandejas de biscoitinhos com
cobertura açucarada delicadamente glaceada com os dizeres coma-
me.
— Devem servir para algo! — Alice exclamou. — Ou vão me
permitir crescer e passar por cima de todos os soldados, ou vão me
encolher para que eu possa deslizar por entre suas pernas!
Abriu caminho até o portão da entrada vip, onde um raposo com
um elegante chapéu a parou.
— Somente vips — ele ronronou educadamente.
— Mas eu sou um valete — Alice disse rapidamente, colocando o
monóculo de novo. — Da Contabilidade — acrescentou, um pouco
mais hesitante.
— Ah, muito bem, então — a raposa falou, dando um passo para
o lado e abrindo o portão para Alice. Ele sussurrou: — Já não era
sem tempo, se quer saber! Mulheres têm muito mais a oferecer do
que apenas ser rainhas e damas de companhia. Eu tenho uma
raposinha que adoraria ser espiã se tivesse a oportunidade.
Alice assentiu educadamente, com medo de que falar muito
pudesse entregá-la.
Estava vagamente ciente de como seria feio disparar para os
comes e bebes em vez de trocar cordialidades com as marquesas
se pavoneando debaixo de sombrinhas, os duques quase extintos,
os viscondes e os grão-abutres. Todos ali eram severamente
elegantes e conversavam entre si a meia-voz, e os vestidos eram
grandes e adoráveis. Mas o tempo estava passando.
Alice apanhou um adorável biscoito quadrado que parecia de
baunilha com pitadas de lavanda por cima e estava prestes a enfiá-
lo inteiro na boca quando se lembrou, no último instante, de
mordiscá-lo.
“Na última vez em que comi rápido demais, meu pescoço se
alongou até parecer uma serpente e assustou muito o pobre
pássaro!”
Engoliu em seco. E esperou.
Os dedos dos pés estavam formigando?
As pontas dos dedos estavam coçando?
O chão estava, de repente, mais longe ou muito mais perto?
Não. Nada disso.
Nada aconteceu.
Outra corneta soou. Alice assistiu com desânimo enquanto os
prisioneiros e o carrasco foram conduzidos por uma escada bamba
para a plataforma. Uma criatura com aparência oficiosa que parecia
ser metade pangolim tirou um megafone (na verdade, um tucano
segurado pelos pés, de bico aberto) e começou a berrar uma lista
de quais foram, supostamente, os crimes dos condenados, mas,
entre o barulho da multidão e a apatia do tucano, era impossível
ouvir quais eram com exatidão.
Alice mordiscou ansiosamente, mas com cautela, mais um pouco
do biscoitinho.
O Pangolim na plataforma fez uma reverência e recuou, tendo
terminado o anúncio de quaisquer acusações forjadas. O elefante e
o ogro deram cutucões nos prisioneiros para empurrá-los para a
frente da plataforma até que se ajoelhassem. O Carrasco galopava
atrás deles inesperadamente, em suas quatro grandes patas.
Alice não cresceu.
Nem encolheu.
Ela enfiou o resto do doce goela abaixo e agarrou uma xícara de
chá em cada mão, engolindo o agradável líquido cítrico feito um
marinheiro bêbado.
nada!
Nada aconteceu.
— O que é que eu vou fazer? — lamentou.
— Reduza um pouco o lanche entre as refeições, eu diria, moça
— sugeriu o criado urso, que rapidamente repunha as guloseimas
que ela havia devorado.
O Carrasco abriu a imensa boca. Uma língua bonitinha e
surpreendentemente rosa, com quilômetros de extensão,
acomodou-se para lado. Não havia nada de bonitinho nos dentes,
porém; de cor marfim, afiados como a morte, saindo de gengivas
pretas como piche. Inclinando-se sobre os prisioneiros…
— pare! — gritou Alice, incapaz de pensar em outra coisa para
fazer.
Todo mundo, de fato, parou.
Todo mundo.
Todos se viraram para encará-la.
— Pare com esse absurdo de uma vez! — Alice ordenou,
tentando soar majestosa. Mas sua voz estava trêmula.
Os prisioneiros também a viram, e a expressão do Chapeleiro
partiu o coração de Alice: a exaustão dele se desfez em um sorriso
de alívio. Não havia ali nada de Maluco. Como se… como se agora
que Alice estava ali tudo fosse ficar bem.
— Que loucura é essa? — o Pangolim exigiu saber, sua voz
perfeitamente audível sem o tucano (a pobre ave estava pendurada,
esquecida, ao seu lado). A multidão olhou para ele com deleite. —
Isso é completamente incomum. Totalmente fora do ordinário.
— Liberte os prisioneiros agora mesmo! — Alice exigiu em
resposta, apontando. Era uma grosseria, mas essas eram
circunstâncias extremas.
A multidão virava a cabeça para olhá-la de novo, como se
estivesse assistindo a uma partida de tênis.
— Libertar os prisioneiros? — o Pangolim gritou. — Eles são
inimigos do Estado. São traidores, uns canalhas abobalhados. Você
não ouviu os crimes deles? Reunir-se com o objetivo de solapar a
autoridade da Rainha, espalhar mentiras espúrias sobre a Rainha,
roubar tortas, redistribuir propriedade devidamente apreendida pelo
Estado e em domínio eminente… Está tudo aí, e você quer que eu
os liberte? Não seja maluca.
— Tudo aqui é maluco! — Alice gritou. — Houve ao menos um
julgamento? Com um juiz e jurados e advogados e chá?
A multidão começou a cochichar e conversar entre si, assentindo
para demonstrar que esse fora um bom argumento.
— A Rainha não precisa de um juiz — respondeu o Pangolim com
altivez. — Ela é a Autoridade Suprema.
— Bem! — retrucou Alice, insegura de como continuar a partir daí.
— Eu discordo. Agora, solte-os antes que eu desça aí e faça isso eu
mesma.
— Você é um valete ou… uma rainha? — o guarda raposo
sussurrou com admiração. — Com certeza, não é um peão.
O Pangolim, enquanto isso, estava bufando de tanto rir. A
multidão se aquietou, admirada, enquanto ele gargalhava,
engasgava e fazia outros ruídos terríveis com o nariz. Ele se curvou
com os braços cruzados na frente da barriga.
— Você? — ele finalmente conseguiu dizer, ao fim do evidente
ataque de riso. — Contra o exército de Sua Majestade?
— Eles são apenas cartas — falou Alice, dando um passo à
frente, mas lentamente. — Não deve ser um problema.
Os prisioneiros não perderam tempo enquanto todos estavam
distraídos; eles sussurravam entre si e desatavam suas amarras.
— Suba nas minhas costas — o Dodô ordenou ao Chapeleiro.
O Chapeleiro levantou o Arganaz com uma das mãos; com a
outra, agarrou o pescoço do Dodô e montou.
— Vão embora! — Alice gritou para os soldados de carta, fazendo
movimentos amplos com as mãos. — Xô! Ou eu vou espalhar todos
vocês e deixar a empregada varrê-los. Serão todos substituídos por
um belo e novo pacote de cartas limpas e bem-comportadas.
Ela avançou ameaçadora. Espectadores preocupados saíam do
caminho de Alice.
Como sempre foi o caso com a perspectiva no País das
Maravilhas, ela mudou rapidamente; de um momento para outro,
Alice havia descido para o campo e percebeu que não era mais alta
do que as cartas. Embora fosse um bocado mais larga no meio, um
deles poderia facilmente se enrolar em torno dela como um tapete e
espremer, para acabar com Alice sem nem mesmo tocar a espada.
— Lá vou eu! Lá vou eu! — o Dodô gritou.
E, de fato, ele estava indo.
Alice, os espectadores, os soldados de carta, o Pangolim e o
raposo-porteiro, todos assistiam admirados enquanto o pássaro
desengonçado batia loucamente as asas e decolava para o céu. O
Chapeleiro sorriu triunfante e acenou para a multidão feito um
membro da realeza.
(Ele acenou com a mão que segurava o Arganaz, que parecia um
pouco infeliz, o pobre coitado.)
— Eu achava que os dodôs não podiam voar — disse Alice,
maravilhada.
— Podem muito bem, já que estão extintos — a ovelha tricotadora
respondeu, com um sábio dar de ombros.
Assim que os fugitivos desapareceram no céu, toda a atenção
voltou-se para Alice.
— Você é a responsável pela fuga dos prisioneiros! — o Pangolim
cuspiu em um acesso espumoso de raiva. Todos os soldados se
curvaram em posição, como se fossem um só, com ímpeto e raiva.
— Não seriam aqueles dois? — Alice sugeriu, apontando para o
ogro e o elefante. Os guardas se entreolharam, surpresos. O
Carrasco estava entediado e, por um instante, tinha começado a
perseguir o próprio rabo, girando e girando.
— Idiotas! — o Pangolim vociferou.
— Se me dão licença — Alice disse educadamente para as
pessoas à frente, passando por elas.
— Não a deixem fugir também! — o Pangolim gritou.
E então Alice correu.
Capítulo 7

ALIC E OUVIA O FLIP flip flip das cartas que a perseguiam. Como
desejou ser enorme, para poder virar-se e apanhá-los e enfiá-los no
bolso como as criaturinhas malcriadas que eram.
Se morresse no País das Maravilhas, morreria na vida real?
Ela afastou pessoas e criaturas (e pessoas-criaturas) do caminho,
e disparou para o portão levadiço do outro lado. Teve uma breve
visão, à sua direita, do Valete da Contabilidade, que aparentava
estar surpreso, mas mal registrou a cena. O País das Maravilhas
tinha se alterado um pouco, como de hábito, enquanto ela esteve na
arena, embora isso não alterasse o plano de fuga de Alice pelo
simples fato de que ela não tinha um. Lançou-se para a direita e
permaneceu próximo à muralha, com a remota esperança de que os
soldados deduziriam que ela teria corrido para a planície além do
castelo, de volta ao laranjal.
A muralha que cercava a arena se dividiu em duas, que então se
uniram em uma série de paredes menores e espessas em ângulos
esquisitos. Por sua vez, essas paredes foram substituídas por buxos
e topiaria. Alice entendeu de súbito: agora estava no labirinto
horrendo que quase a prendera para sempre na sua última visita ao
País das Maravilhas!
Era ainda mais ameaçador agora, todo pintado de vermelho.
Grandes pedaços densos e gotejantes de tinta amontoavam-se em
cima de folhas encaracoladas e moribundas.
Alice arriscou um olhar rápido para trás.
Os soldados não foram enganados. Eles se aproximaram, pernas
marchando perfeitamente e braços levantados de forma idêntica,
lanças curtas a postos. Onde estavam as cartas bobas de antes?
Os bufões estabanados que pintavam rosas muito mal e serviam de
aros de croquet? E o mais assustador não era a compleição física
exótica ou a bizarrice geral de objetos inanimados atacarem
conscientemente, mas a sincronia perfeita com que o faziam.
Mas eles não tinham um comandante ou servo que não fosse
carta. A Rainha ainda estava ausente, o que, para a surpresa de
Alice, trazia-lhe certo alívio. Tudo parecia mais sobrevivível e menos
confuso sem os ininterruptos gritos de ameaças de morte.
— Você ganhou — Alice rugiu para o labirinto. Poderia resultar em
problemas depois, mas naquele momento seu único objetivo era
despistar os perseguidores.
Escolheu um caminho aleatório: esquerda, direita, direita,
esquerda e depois uma pequena subida. A tinta se acumulava no
chão debaixo dos arbustos em linhas grossas e pegajosas, uma
lambança horrorosa de poeira e lama vermelha. Seu cabelo estava
completamente desfeito agora e, quando resvalou em uma parede
ao dobrar uma esquina, sujou as madeixas, que ficaram pesadas e
grudentas.
Sons ecoavam estranhamente por entre os altos bastiões de
árvores e arbustos vermelhos e, como da última vez, não era claro
se o céu acima era o mesmo do lado externo do labirinto ou era só
um teto muito alto. O barulho das cartas atrás de si foi sumindo e
Alice começou a se sentir mais segura: tão segura quanto um rato
fugindo de um gato dentro de um labirinto. Saindo da frigideira para
cair no laboratório.
Diminuiu o ritmo, e seus passos soavam alto. A solidão aumentou
exponencialmente em função do tempo que a afastava da entrada
do labirinto.
Engoliu um soluço incipiente e quase se engasgou com a poeira e
com a própria garganta ressecada. Os ouvidos zumbiam com as
batidas do coração. O fôlego vinha em arquejos curtos.
— Quando voltar à Inglaterra, realmente preciso adotar uma rotina
de exercícios e ginástica — Alice disse a si mesma, focando no fato
de estar fora de forma, não em estar sozinha e assustada. — Nunca
se sabe quando será necessário fugir de um exército de cartas de
baralho. Ou de cães bravos.
Ela seguiu por um caminho aleatório, pois que diferença fazia?
Passou por um cruzamento. Ao final de um dos caminhos, havia
uma figura: um sujeito esquisito, humano, na maior parte, usando
uma vestimenta em formato de sino, em vermelho vivo, que ia até o
chão e um chapéu combinando, no formato de sino invertido. Os
pontos da costura eram largos e obviamente apressados. Alice
estava muito segura de ter visto um ou dois pregos tortos usados no
lugar de alfinetes para unir a peça.
— Abençoada seja, criança — o homem esquisito a saudou,
fazendo um gesto com a mão.
— Perdão? — Alice perguntou educadamente.
— Somos todos peões torcendo para chegar ao fim do jogo.
— Peão? Você parece mais um bispo — Alice disse,
enfaticamente, olhando para o chapéu dele.
— Somos todos peões — o homem repetiu, também com ênfase.
— Chegamos ao fim do jogo iguais e sem medo. Na verdade, com
muito medo. Salve a Rainha de Copas!
— Que jogo? — Alice indagou, avançando na direção dele. —
Não é de cartas? Seria xadrez? Ou vagamos por domínios
completamente diferentes agora, como pachisi ou quoits? Isso tem
algo a ver com as execuções?
— Que Ela seja a última a prevalecer! — O peão olhou em volta
nervoso. — Diga — instou-a em um sussurro desesperado.
— Por quê? — Alice também sussurrou.
— Eles escutam em todos os lugares, você sabe disso. diga!
— Não quero que ela seja a última a prevalecer. Eu não desejo
nada para ela, muito menos que prevaleça. Ela parece ter ficado
completamente fora de controle desde minha última vez aqui. O
País das Maravilhas parece ter sido destruído por um ciclone terrível
ou por algum ato de Deus. Agora repito: que jogo, que final, qual é a
razão e por que o comportamento assassino dela de repente se
tornou tão… rigoroso e sistemático? E por que todos estão adulando
os caprichos dela? Ela é ridícula. Unidos, vocês não precisariam ter
medo.
O homem viu algo além de Alice, por cima de seu ombro, e
empalideceu de desespero:
— Veja! Eles ouviram. Lá vêm eles!
Alice olhou para trás. Não havia ninguém.
Quando se virou novamente, o homem havia sumido.
— Pessoas vem e vão dos jeitos mais curiosos por aqui —
suspirou.
— Você não respondeu. É a favor da Rainha de Copas? — sibilou
uma voz de dentro da parede, próximo à cabeça de Alice.
Ela espiou entre os galhos avermelhados, espinhosos e
ressecados. Lá dentro rastejava uma pequena serpente, verde-
clara, com grandes olhos pretos. Parecia adorável e bastante
inofensiva, mas Alice havia lido vários contos educativos a respeito
de cobras da África cujo veneno era tão forte que mataria um
homem em dez passos depois da picada.
Além disso, havia a Bíblia e tudo mais.
— Não posso ser a favor de algo ou alguém a não ser que eu
conheça toda a situação — Alice disse educadamente. — Mas diria
que provavelmente não sou. Foi por sua causa que o pobre homem
desapareceu? É você quem está escutando pela Rainha de Copas?
— Por que uma menina boba precisa conhecer toda a situação?
E, de qualquer forma, eu trabalho para o Coelho Branco, não para a
Rainha de Copas. É uma pergunta simples: você é a favor ou contra
ela? — A cobra empurrou um graveto para poder ver melhor Alice: a
moça estava quase certa de que antes ele não tinha os apêndices
frontais pálidos e quase translúcidos.
— Ah, pare com essa falação — Alice disse, irritada. — Uma
serpente em um jardim murado, francamente. Muito sutil. Duvido
que o diabo seria tão grosseiro.
— Registrarei sua relutância e obstinação em responder
prontamente! — a coisinha chiou.
— Faça isso. Por favor. Eu insisto — Alice rebateu, soltando o
galho para a posição original. O grito da víbora ao voar foi
diminuindo conforme ela caía nas profundezas do arbusto.
Alice respirou fundo e seguiu em frente.
— Agora, como sair daqui e ajudar meus amigos?
Enquanto vagava por um caminho estreito, pensou em como
aquilo era estranho: o termo amigos. Nenhuma das três criaturas
que ela ajudou a salvar era, exatamente, amiga dela, nem sequer a
tratavam bem. Ainda assim, pensava neles como tal: velhos e
queridos amigos de quem sentia falta, que não via há anos e com
quem estava ansiosa para se reunir. O que era estranho, pois, até
as fotografias, havia se esquecido da maioria deles. Estava claro
que, fossem quais fossem os termos em que seu relacionamento
tinha acabado antes — Alice pisando duro ao deixar um chá maluco
para o qual não tinha sido convidada —, o Chapeleiro, ao menos,
pensava nela da mesma forma: com esperança e nostalgia. Vira
isso nos olhos dele.
Graças aos céus, eles tinham conseguido fugir, apesar de seu
fracasso em organizar um resgate. Era inquietante o fato de
biscoitos e chá do País das Maravilhas não terem qualquer efeito
sobre ela. Da última vez em que esteve ali, não podia comer ou
beber nada sem que algo acontecesse. Cogumelos, elixires, bolos…
Mesmo luvas perfumadas haviam alterado dramaticamente seu
físico.
Seria a Rainha de Copas também responsável por essas
mudanças? Ela parecia ter dominado, literalmente, a maior parte do
País das Maravilhas. Teria agora influência sobre suas regras e
seus efeitos?
Quantas coisas terríveis devem ter acontecido enquanto estive
fora, pensou, com tristeza.
É claro que os habitantes do País das Maravilhas temiam a
Rainha de Copas antes, mas não insanamente como o Homem Sino
Vermelho ou as multidões abatidas que iam obrigadas assistir às
execuções de seus companheiros de mundo da fantasia. E o que
era aquela história sobre ser a última a prevalecer?
Alice explorou o labirinto timidamente, sem um objetivo em mente
além de evitar os soldados e tentar encontrar o Chapeleiro e a
explicação de tudo.
— Mas você nunca deveria ter partido.
Alice olhou ao redor: não havia nada ali.
Esperou impaciente.
Cruzou os braços e bateu repetidamente o pé no chão.
Por fim, uma boca cheia de dentes surgiu, mas seu sorriso não
era o mesmo sorriso largo e prateado de outrora, era irônico. Um
par de olhos por fim surgiu acima, mais resignados do que malucos.
— Mestre Gato! Já era hora. O que você quer dizer com “eu
nunca deveria ter partido”?
— Você estava dizendo, quer dizer, você estava pensando… — O
restante do gato surgiu no ar, torcendo-se languidamente como se
estivesse rolando em cima de um sofá macio e estofado. — Eu
estou meio confuso. É um problema com a minha hipergatividade.
Na sua cabeça um instante atrás, não em voz alta, agorinha mesmo.
Mas é tão verdadeiro como nunca. Vocês jamais deveriam ter
partido, vocês duas.
Alice precisou resistir à vontade de estender a mão para acariciar
o pescoço do gato, como Dinah teria gostado. Não se deve tocar
criaturas sencientes sem a expressa permissão delas, pelo menos
não no primeiro encontro. Ela se perguntou se haveria algum livro
infantil no País das Maravilhas, cheio de regras úteis de etiqueta e
de comportamentos adequados para bons meninos e boas meninas
ali.
— Mas o que você quer dizer, que eu nunca deveria ter partido?
— ela perguntou. — Não quis partir, apesar de temer pela minha
vida: a Rainha queria me matar. Eu simplesmente, sabe, meio que
acordei.
— Sim, mas acordou cedo demais. Você não compreendeu até o
fim, porque Mary Ann ainda não tinha dado fim.
— Mary Ann… A Mary Ann do Coelho Branco? Então era ela
quem estava com o cartaz de desaniversário. Ela… me chamou
aqui!
— Uma igual chamando outra igual — o gato disse, agora
entediado. — Uma ou outra. Você salva, ela salva, ele, ela, isso
salva, nós todos salvamos. Em latim, é pipsquo.
— Não é bem assim. Mas… — Suas lembranças do País das
Maravilhas eram caóticas: uma rainha cabeçuda gritando matanças
sangrentas e cortem-lhe a cabeça, soldados e todo mundo correndo
em todas as direções, Alice desejando gritar e chorar. — Mas… por
que esperar por mim então?
— Por que não você? Você não é daqui, mas está aqui. Você é
Alice de outra terra: Inglaterra. Não tão boa quanto Mary Ann, mas
você tentou. Mostrou-se à altura. Literalmente.
— Mas não posso me mostrar à altura agora — Alice protestou.
— Não posso crescer como pão. Eu comi os biscoitos “coma-me” e
tomei as bebidas, e nada aconteceu.
— Bem, claro. — O gato rodopiou de novo, mas só o corpo
listrado de rosa e roxo: ele girava ao redor enquanto a cabeça e os
olhos permaneciam fixos nela. — Você parou de crescer e encolher
agora. Atingiu seu ponto alto. Não pode ser mais alta do que o mais
alto possível, ó, minha Alice.
— Isso é uma assonância — Alice sinalizou com presunção. —
Claro, vou ajudar você e Mary Ann se eu puder. Mas o que
precisamente está acontecendo aqui? Qual jogo a Rainha de Copas
está jogando?
As palavras, uma a uma, rolaram pela língua de Alice como se
tivessem esperado durante toda sua vida pelo diálogo apropriado
com outra pessoa para poderem brincar. Parecia um jogo, um jogo
de gente crescida que ela não jogava há anos. A sensação era boa.
O gato a observava com uma sobrancelha erguida.
— Ela tem mãos, mas não pode agarrar. Ela tem dentes, mas não
pode morder. Ela tem pés, mas são frios de rachar. Ela tem olhos,
mas não pode entrever — ele recitou.
Ele desceu para o chão, os pés primeiro, claro, e olhou para ela
de forma inescrutável. Como um gato normal.
— Ah, você não ajuda — Alice disse, irritada. — Com toda a
recriminação e as charadas.
— Você que não ajuda. Certamente não é Mary Ann. Ela é a
verdadeira heroína. Se quer meu conselho… Desvende minha
charada e encontre-a. A heroína.
Parecia que falar tão diretamente causava dor física ao Mestre
Gato. Ele ficou verde, bufou e tossiu até cuspir uma bola de pelos,
abriu os olhos que estavam cor-de-rosa brilhantes e saiu correndo
para os arbustos.
— Justo. — Apesar de sentir uma pontinha de ciúme dessa garota
superior, Alice precisava se concentrar no fato de que,
independentemente do tipo de heroína que fosse, Mary Ann estava
em apuros. E precisava de ajuda. Todo o País das Maravilhas
precisava. — Mas como eu faço isso?
— Pergunte por aí… — o gato disse, voltando a flutuar. Ele
bocejou e apoiou a cabeça nas patas. — Mantenha os ouvidos no
Conta-pabeça, se quiser.
— Conta-pabeça? — Alice perguntou. — O quê? Onde? Por quê?
Ah… Ele se foi.
O sorriso permaneceu, inanimado, no ar.
— Claro — Alice suspirou. — A propósito, a resposta é boneca —
ela acrescentou, mostrando a língua para o sorriso flutuante. —
Essa é velha. Você está dizendo que a Rainha de Copas é uma
boneca? Ou que Mary Ann é?
Então um grito distante chamou sua atenção.
Lá em cima, no céu resplandecente, uma mancha transformou-se
em um grande pássaro desajeitado e seu cavaleiro com um grande
chapéu. Eles balançavam e agitavam-se conforme avançavam.
Alguém do castelo deve ter, por fim, encontrado uma arma antiaérea
apropriada e estava disparando virotes gigantes contra eles. Alice
se encolheu, mas a artilharia pesada, feita de queijo laranja escuro,
ficava muito aquém de seu alvo.
— Chapeleiro! Arganaz! Dodô! Estou indo! — ela exclamou e
partiu em disparada atrás deles.
Capítulo 8

ALICE TENTOU FICAR DE olho no trio que voava acima dela, mas
logo o perdeu de vista atrás das paredes altas do labirinto. Agora,
prestou pouca atenção às voltas e reviravoltas, entrando e saindo
dos becos ao acaso, sem se importar em memorizar as mudanças
de direção que fazia como resultado disso. Criaturas rastejavam
atrás de si e moviam-se com leves ruídos à sua frente, mas não
prestou atenção nelas. Tudo com que realmente se importou foi o
comprimento e a largura de suas saias, que a impediam de acelerar,
e, vez ou outra, percebia placas tortas que apontavam para lugar
nenhum.
Em dado momento, o labirinto, felizmente, desapareceu.
Os lados do labirinto foram substituídos por arbustos espessos e
selvagens que imitavam precariamente o buxo. Um pássaro-óculos,
empoleirado com seus dedos gigantes em volta de um galho baixo,
trocava de peso de um pé para outro, como se estivesse vigiando,
ou talvez apenas observando, a entrada imaginária para o labirinto.
— Com licença, mas você viu o Chapeleiro Maluco? — Alice
perguntou educadamente.
O pássaro-coisa olhou para a moça inescrutavelmente, nem um
pingo de gentileza, interesse ou curiosidade em seus olhos
estranhos. E isso era o mais estranho de tudo. Na última vez em
que estivera ali, Alice foi gentilmente abordada por todos os tipos de
criaturas estranhas e inofensivas, uma fauna curiosa que queria
brincar com ela ou fugir dela, ou talvez espreitá-la
ameaçadoramente, para mantê-la longe de seu território. Mas eles
nunca tinham exibido esse desinteresse frígido.
— Eu me pergunto se estou entrando de novo no bosque de
Tulgey Wood — Alice disse com casualidade forçada, afastando-se
do pássaro e sentindo-se estranhamente envergonhada, como se
ela fosse a causa de alguma gafe no País das Maravilhas.
(Tulgey Wood! Lembrava tão claramente o nome e o local. Mas se
alguém lhe perguntasse em que rua morava no mundo real, ela teria
dito: “Baxterflashenhall!”. E depois: “Não, isso não está certo de jeito
nenhum…”)
E parecia mesmo a floresta de sua última visita: as árvores tinham
troncos grossos com galhos de contos de fadas, e a escuridão se
ampliava sob suas folhas como uma entidade viva que respirava.
Um musgo verde fantasmagórico brilhava e se espalhava ao redor
das raízes. Pequenas flores, sem olhos, sem boca, floresciam em
formato de estrela no chão da floresta. Luzes estranhas e pálidas
piscavam, ligando e desligando, a distâncias imprevisíveis. Tudo
parecia muito familiar.
Contudo…
Antigamente havia sinais em todos os lugares expondo o absurdo:
POR AQUI, ou POR ALI, ou POR LÁ, vários deles pregados a uma
árvore, esculpidos de qualquer jeito em formas pontiagudas. Os
sinais ainda estavam lá, mas, no lugar das palavras amigáveis e
inúteis, estavam corações ensanguentados pintados de forma
desleixada. Gotas de vermelho, grossas e feias, escorriam feito
lágrimas.
— Todos os caminhos levam à Rainha — Alice repetiu para si
mesma com um estremecimento.
Adentrou a floresta.
E imediatamente notou como tudo estava silencioso; bipes, pios,
riachos borbulhantes e os patos de buzina estavam em silêncio.
Claro que não havia nenhuma trilha e ela só tinha uma remota ideia
da direção que seus amigos haviam seguido. Era como perseguir o
Coelho Branco mais uma vez.
— E onde está o Coelho Branco, afinal? — Alice refletiu. Ele não
estava nas execuções. Normalmente, ele está bem à vista da
Rainha e de outras pessoas importantes. Só que a Rainha não
estava lá… Então talvez ele esteja com ela, onde quer que ela
esteja. O que aquela coisa viperina disse? Que trabalhava para o
Coelho Branco? O que isso quer dizer?
De repente, Alice avistou algo na base de uma das árvores
sombrias: um pequeno lampejo de cor não natural. Inclinou-se para
baixo e viu um único mome rath, um rosa brilhante, tentando
desesperadamente fingir que era uma flor.
— Com licença — Alice disse gentilmente —, entendo que você
possa ser incapaz de diferenciar pessoas, especialmente meninas,
mas não estou nem um pouco associada à Rainha de Copas. E
realmente preciso de sua ajuda. Se não se importar.
A cabecinha de tufos se elevou apenas um tiquinho para que o
topo de dois olhos grandes e inocentes pudessem avaliar a
confiabilidade dela.
— Sério — Alice garantiu com toda calma e paciência que podia
—, você pode ver que não há nenhuma mancha vermelha em mim.
Acabei de libertar meus amigos do Carrasco e agora estou
procurando por eles. São o Chapeleiro, o Dodô e o Arganaz. Mas se
você conhecer mais alguém que sobrou, a Lebre de Março, por
exemplo, eu adoraria revê-los também.
O mome rath se ergueu do chão em um par de pernas cautelosas
de cor rosa-arroxeado. Sem tirar os grandes olhos dela, cambaleou,
não convencido, em torno de seus pés. Alice ficou perfeitamente
imóvel, resistindo à vontade de contrair e retirar os dedos dos pés.
Finalmente, a coisinha se decidiu e foi girando para dentro da
floresta. Alice não sabia ao certo se ele tinha decidido ajudá-la ou se
estava partindo em missão própria, mas o seguiu apesar disso.
— Achei que vocês sempre viajassem em grupo — disse para
puxar conversa. — Na última vez que estive aqui, só vi vocês em
bandos. Ou ninhadas, ou melhor… Como vocês falam o coletivo de
mome raths? Uma manada? Um rebanho? Uma bênção?
A criatura parou por tempo suficiente para encarar Alice com
olhos tristes e funestos. Então abriu as pernas para o lado e caiu
para o chão, de olhos fechados.
— Ah. Entendi. Eles foram pisoteados — Alice disse suavemente.
— Eu sinto muito.
O mome rath lançou-lhe outro olhar que, sem boca ou outro ponto
de referência, era impossível de decifrar. Em seguida, saltou e
retomou o andar cambaleante. Alice o seguiu, continuando a
conversa — mas, desta vez, consigo mesma. Desse jeito, não havia
mais chance de acidentalmente dizer algo ofensivo para os outros.
— Onze anos depois e ainda continuo estragando tudo — ela se
repreendeu. — Eu costumava rir da pequena Alice por contar ao
Arganaz tudo sobre Dinah. Que atitude mais imprópria, gabar-se de
um gato para um rato! E agora aqui estou eu em uma terra
devastada pela guerra, perguntando sobre as últimas vítimas da
Rainha de Copas como se não fossem mais do que uma… imagem
de fundo, uma fotografia ou ilustração sem sentimentos de verdade.
Alice malvada. Seja mais cuidadosa! Pense antes de falar! Lembre-
se do que aconteceu da última vez e aprenda com isso!
Abriu a boca para dizer algo gentil e consolador para a criaturinha,
mas o mome rath tinha desaparecido. Tinha desvanecido como se
nunca tivesse estado lá. Alice se viu ao lado de um pequeno riacho
que se dividia e espumava sobre as rochas formando uma linda
piscininha logo abaixo, mas tudo estava absolutamente silencioso.
Impossivelmente silencioso.
— Não, nada disso. Nada é impossível no País das Maravilhas —
disse com um suspiro, afundando a mão na água e espirrando-a
com os dedos. Mesmo isso não fez barulho.
Então ouviu a mais leve partícula de algo. Uma música que
começou e parou de repente… um coro? No meio da floresta?
— Ora, isso é bastante maluco — notou, ao inclinar a cabeça para
ouvir. — Ah! — exclamou, percebendo o que a música a fazia
lembrar. — Isso é Maluco! Maluco como um Chapeleiro!
Alice escolheu, com cautela, seu caminho rumo aos sons. Foi
bem mais difícil do que deveria ser: as vozes agora muito
reconhecíveis dos habitantes do País das Maravilhas ficaram mais
altas sem motivo aparente e então, de repente, sumiram, como se
uma porta tivesse se fechado. Teve que parar, esperar e, então, dar
meia-volta, testando direções diferentes. Suspeitou que fossem as
árvores. Elas dispersavam os sons de que não gostavam ou não
queriam ouvir, ou talvez traduzissem para algo mais próximo de
arvorês.
Contornou um carvalho particularmente grande e a fonte, por fim,
se revelou. E quase partiu o coração da pobre Alice.
Os prisioneiros fugitivos haviam encontrado o esconderijo
camuflado perfeito: uma pequena clareira entre árvores tão grandes
que seus galhos se emaranhavam lá no alto.
(Literalmente, Alice viu-se suspeitando que alguns dos galhos
emaranhados não vinham, de fato, das árvores, mas tinham
acabado de crescer a partir do nada naquele lugar.)
No chão, havia várias pedras grandes e achatadas adequadas
para sentar-se. Entre elas, tufos de grama alta tinham sido
trançados de forma rápida e inexperiente para fazer uma espécie de
superfície plana. Esse tampo delicado e oscilante estava posto com
um número de objetos improváveis: algumas xícaras de chá
quebradas; uma concha; uma pedra côncava e lisa; uma caixa de
rapé. Todos estavam cheios de água e repousados sobre folhas
largas.
Dois dos velhos amigos estavam afundados de cansaço nas
grandes rochas. Mas o Chapeleiro Maluco manteve as costas
eretas, ombros para trás, cotovelos próximos ao corpo e dedinho
levantado enquanto pegava a caixa de rapé com uma mão e, com a
outra, segurava uma folha embaixo para apanhar qualquer
derramamento.
Além de sua conhecida cartola verde com a etiqueta colada por
fora, o Chapeleiro agora exibia uma muito menor no olho esquerdo.
Alice engasgou quando se deu conta de que o chapéu de veludo do
tamanho apropriado para uma boneca estava lá para cobrir o que
provavelmente era uma órbita vazia; havia arranhões terríveis em
torno da pálpebra e na bochecha. A pele sob o olho direito tinha
bolsas. Ele rangia os dentes.
E também parecia mais alto do que da última vez, altura quase
normal, e sua cabeça de um tamanho mais convencional. Normal e
convencional sendo palavras-chaves aqui e, portanto, assustadoras.
— Não, certamente agora, vamos, e… — ele dizia com um sorriso
forçado.
O Dodô, sem peruca e com várias penas a menos, pegou sua
própria “xícara de chá”, a pedra côncava, com um olhar resignado
no rosto.
— É aqui que ele começaria a cantar — o Chapeleiro recordou à
meia-voz. — A Lebre de Março. Ele cantaria: Ohhh, um bom
desaniv…
— Lamento não saber a letra, mas posso aprendê-las se você
quiser. Ou podemos apostar uma corrida em vez disso? — o Dodô
sugeriu. — Isso pode nos animar! Uma boa corrida da convenção à
moda antiga!
O Arganaz ergueu a cabeça para fora da caixa de rapé da qual o
Chapeleiro estava prestes a bebericar. Também parecia exausto,
mas seus olhos estavam arregalados e sem piscar, e ele tremia um
pouco.
— Brilha, brilha, morceguinho — ele gritou. — se eu fosse
um morcego, poderia voar como todos para longe de tudo!
— Psiu! — disse o Chapeleiro, fechando a caixa de rapé
desesperadamente. Quando a água esguichou pelas laterais, ele de
repente percebeu o perigo para o amigo e abriu-a novamente. O
Arganaz saltou de volta como um joão-bobo, molhado, mas com o
mesmo olhar desvairado.
— Minha nossa! Minha nossa! Minha nossa! — exclamou Alice,
dando um passo à frente, incapaz de assistir por mais tempo.
Ela provavelmente deveria ter se contido um pouco. O Chapeleiro
deu um pulo, puxando a caixa de rapé para perto do peito e
esticando a outra mão para… o quê? Evitar um ataque?
Desarmado? Era um tremendo gesto de bravura. O Dodô se virou
aos tropeços e tentou sibilar como uma víbora ou algo muito mais
perigoso. E embora ele não fosse em nada uma criatura perigosa,
tinha o olhar louco, apesar de sua aparência já ser estranha como
um todo, de alguém que, definitivamente, não tinha mais nada a
perder.
— Alice! — exclamou o Chapeleiro. E, mais uma vez, aquela
mudança de expressão no rosto dele: a suavidade, o alívio, o
desespero atingiram Alice direto no coração. Nunca o vira menos
Maluco do que então.
— Alice? O que é uma Alice? — o Dodô perguntou, apalpando-se
à procura de um par de óculos ou algo que obviamente não possuía
mais. — Ah, eu te conheço… Você alguma vez já correu para se
secar, minha querida?
— Já, sim, obrigada — ela respondeu. — Estou tão feliz que
conseguiram escapar!
— Sim, nós conseguimos — disse o Chapeleiro, o rosto voltando
a desmontar. — Sim, nós escapamos — repetiu suavemente.
— Por favor, conte-me o que está acontecendo — ela suplicou. —
Eu recebi sua mensagem, seu grito por socorro. Eu estou aqui
agora. O que posso fazer?
— É monstruoso. Ela é monstruosa — suspirou o Arganaz em sua
voz trêmula, balançando na caixa de rapé feito uma naja hipnotizada
por uma flauta.
— Maldita seja a Rainha de Copas e sua proibição da corrida da
convenção! — o Dodô disse, tentando esmurrar a mesa com o
punho (asa), o que resultou em nada além da grama sendo
entortada e esmagada por sua força. A concha de água deslizou
precipitadamente em direção ao solo. — Eu beberei até a sua
remoção! — Ele agarrou a própria pedra côncava, brindou a todos e
tomou um gole. — Excelente safra — observou.
— Mas qual é exatamente o plano da Rainha? Qual é o escopo
de suas operações? Quais são suas intenções?
— Escopo? Intenções? — disse o Chapeleiro Maluco, de repente
encarando Alice com olhos brilhantes e aquosos que ficaram claros
apenas por um instante. — Que pergunta! Isso importa? Ela está
arrastando seus exércitos por toda a terra e queimando tudo por
onde passa. Está jogando todos na prisão. Está apreendendo a
propriedade de todos. Está executando qualquer um que a confronte
ou que se atreva a perguntar o porquê. Executando! Por quê? Eu
não tenho ideia do porquê. Pergunte ao olho que não tenho mais.
Pergunte aos amigos que não estão mais aqui. É porque ela…
simplesmente… quer. Quer tudo. Todo o bolo. Tanto faz.
— Ah, um bom pedaço de bolo cairia bem com este vinho do
Porto — o Dodô observou.
— É chá — corrigiu delicadamente o Arganaz, como se o Dodô
fosse maluco e exigisse cautela no trato. — Mas experimente o
pudim de castanha. É maravilhoso.
E, com isso, arremessou um joio espinhoso na cabeça do
pássaro: não era castanha, muito menos pudim. O Dodô apanhou o
joio com seu copo de pedra e o engoliu, o que, claro, resultou em
um ataque de tosse e engasgo conforme os pequenos ganchos se
agarraram ao interior de sua garganta.
Alice fechou os olhos e contou até dez. Eles eram todos malucos
ali. Tinha que se lembrar disso.
— Será que não ajudaria se soubéssemos qual é o objetivo final
dela? Croquet e cartas: a questão é sempre ganhar um jogo. O que
ela quer ganhar? Reger todo o País das Maravilhas? Sozinha?
— Reger? — o Chapeleiro zombou. — Regência é para
governantes. E linguistas. E talvez músicos.
— Bem, alguém pode até se perguntar qual é a utilidade da
Batalha — o Dodô disse filosoficamente. — Não tem propósito.
Basta puxar as cartas uma e outra vez, e vence quem tiver mais
cartas no fim.
— Não tem propósito — o Chapeleiro repetiu de uma maneira
sombria. — É só uma questão de liberar soldados uma e outra vez e
vence quem tiver mais corpos no fim.
É claro que isso tinha alguma lógica estranha no País das
Maravilhas: no fim das contas, a Rainha de Copas nada mais era do
que uma carta cujo poder subiu à cabeça. Alice costumava jogar
Batalha — ou Rapidez — o tempo todo quando era pequena.
Principalmente contra Dinah ou suas bonecas, já que Mathilda e os
adultos achavam o jogo aleatório, cansativo, sem sentido e bobo.
Corou ao lembrar que, às vezes, costumava empilhar secretamente
sua metade do baralho com valetes, reis e rainhas de todos os
naipes, para ganhar vantagem contra a oponente felina.
Ainda assim, era no mínimo estranho que a Rainha fosse tão
enérgica e direta em sua violência indefinida. Algo não se encaixava
bem.
— Então, até onde sabemos, ela só está enfurecida, destruindo
todo o País das Maravilhas?
— Ou até que o Grande Relógio chegue ao fim — disse o
Chapeleiro com um suspiro exaurido. Ele coçou distraidamente a
minúscula cartola de veludo sobre o olho esquerdo.
— Sim, o que você viu no Reino de Copas é apenas o começo —
o Dodô falou com outro suspiro. — Uma amostra do que está por vir.
— Muito bem, temos um Napoleão louco em nossas mãos —
Alice disse bruscamente. — Ainda não sei o que posso fazer para
ajudar: ela tem um bando horroroso de soldados do lado dela e,
como você viu, não posso mais crescer e encolher como costumava
fazer.
— Não pode mais crescer porque decidiu que parou de crescer —
comentou o Chapeleiro timidamente. — Você não cresceu em anos
e perdeu o jeito.
— Queira me desculpar se, no meu mundo, você não decide se
deve ou não parar de crescer. Minha mãe é bastante baixa, meu pai
não é muito alto, e eu acredito que estou na média para uma moça
inglesa.
— Você “acredita” — refletiu o Chapeleiro. — Houve um tempo
em que você costumava acreditar em seis coisas impossíveis antes
do café da manhã, se não estou enganado.
Alice começou a contestar, mas então sentou-se sobre os
calcanhares e refletiu: ela era um estranho no ninho ali, por assim
dizer. Esses locais conheciam a realidade e as normas de sua
própria terra. Talvez ela tivesse decidido parar de crescer. Parecia
possível, já que ela tinha uma resposta pronta e fácil sobre seus
pais.
— Você não cresceu muito, na verdade — o Dodô disse, de forma
um pouco rude. — Exceto pela sua altura, quero dizer. Você
continuou a mesma, na mesma casa, tentando fazer as mesmas
coisas que sempre fez.
— Alto lá! — Alice interveio, de cenho franzido. — Agora eu tenho
uma paixão pela fotografia e terminei meus estudos. Se vocês
tivessem me contatado antes, talvez eu pudesse ter vindo mais
cedo e evitado um pouco dessa bagunça.
— Bagunça? — o Chapeleiro disse, com ironia. — Eu me
pergunto se a Lebre de Março chamaria isso de bagunça, que a
pobre alma orelhuda descanse em paz.
— Ah… — Alice se encolheu.
Todos ficaram em silêncio. O Arganaz se balançou tristemente.
— Sinto muito, muito mesmo — ela disse suavemente. — Eu não
queria desrespeitar o coitado. — Alice respirou fundo. — Mas se
queremos evitar que tais ocorrências horrendas aconteçam a outras
pessoas, devemos bolar estratégias. Trabalhar juntos. Planejar. Não
é por isso que você me queria aqui? Para ajudar?
— Mary Ann queria você aqui — respondeu o Chapeleiro, mal-
humorado. — Ela estava tentando parar tudo. Teve a estranha
percepção de que você poderia ajudar.
Mary Ann pensou que ela poderia ajudar? Alice tentou não deixar
esse pensamento distraí-la. Mas como essa outra garota poderia
saber alguma coisa sobre ela?
— Mary Ann! — o Dodô grasnou. Mas não como alguém
imaginaria um dodô grasnar, ou qualquer outra ave; ele grasnou
feito um homem excessivamente dramático. — Agora ela é o
petardo do tardígrado!
— O… desculpe, não tenho ideia do que isso significa — Alice
disse, sem confiança em si mesma para repetir corretamente a frase
confusa.
— Petardo do tardígrado. O falarapo da equidna. Você sabe.
— Lamento, mas não sei. Suponho que seja algo bom?
— Algo bom? Uma raridade, de fato! — o Chapeleiro bufou. —
Você já viu um petardo tão minúsculo que ficaria bem em um
tardígrado? O Dodô é um pouco lerdo às vezes, mas acertou em
cheio aí: Mary Ann poderia consertar tudo.
— Tudo bem — Alice concordou, incerta. Era estranho e um
pouco perverso, mas não podia deixar de se sentir um pouco
incomodada com o elogio constante a Mary Ann, essa outra versão
de si mesma. Na primeira vez que esteve no País das Maravilhas,
com todo o crescimento e encolhimento, ela se perguntou se ainda
era a mesma Alice depois. Até considerou a possibilidade de ter se
tornado completamente outra garota. Incluindo garotas específicas
que ela conhecia e que tinham vidas terrivelmente chatas, cheias de
lições e sem brinquedos. Como isso teria sido terrível!
Mas aqui Mary Ann era a salvadora do reino de fantasia, Alice, a
garota da Inglaterra que levava uma vida comparativamente chata e
normal até que foi chamada para ajudar. Bem, que bela reviravolta!
E um tanto dolorosa para o ego.
Francamente, querida menina, ela se reprovou, mesmo que essa
Mary Ann seja mais irritante pessoalmente do que é nas histórias, é
ela quem parece ser mais capaz de salvar todo mundo. Deixe seus
pensamentos infantis de lado e faça o que é certo!
Em voz alta, Alice disse:
— Como ela conseguiu? Quero dizer, entrar em contato comigo?
O Chapeleiro deu de ombros:
— Ela teve que esperar pelo seu desaniversário. O certo, quero
dizer: o décimo primeiro aniversário da sua primeira visita. Imagino
que não houvesse nada mais para fazer na prisão, além de
aguardar, e esperar, e torcer.
— Isso explica por que ela apareceu do jeito que apareceu na
fotografia — disse Alice, arrepiando-se ao lembrar-se da venda e
das feridas. — Ela certamente parecia estar em uma prisão.
— Ela viajou até você por meio de uma fotografia? — o Dodô
perguntou, com curiosidade.
— Ela apareceu em uma fotografia. Minha. Na verdade, alguns de
vocês apareceram em fotos no lugar das pessoas que eu conhecia.
Desconfio que cada um aqui reflita uma outra versão de si mesmo
no mundo real, perdão, no mundo da Inglaterra.
— Sério? Como assim?
— Bem, Chapeleiro, no meu mundo você é… Bem, um
chapeleiro.
— Ah, é? — ele perguntou, parecendo encantado pela primeira
vez desde que ela havia chegado. — Eu sou um chapeleiro nesse
outro reino? Que emocionante! E que tipo de chapéus eu faço?
— De todos os tipos. Em especial grandes e elegantes para
mulheres.
— Imagine só! Chapéus para mulheres! — Ele tomou um gole
sonhador da caixa de rapé, esquecendo-se do Arganaz. O rato
parecia mais curioso do que chateado.
— Mas Mary Ann não está mais na prisão, agora — o Dodô disse.
— Ela está livre! Com base no que você disse, prefiro pensar que
talvez ela tenha fugido por fotografia.
— Mesmo?! Que maravilha! — Alice disse, batendo palmas. —
Então acho que o melhor a fazer é a encontrarmos e nos unirmos a
ela.
O Arganaz se balançava sonhadoramente:
— Dizem que ela está se escondendo no Verso do Além…
— Eu ouvi falar que ela foi até Helenbach — o Chapeleiro
acrescentou casualmente, bebericando sua água como se
estivessem discutindo onde um amigo estava passando o verão.
— Ouvi falar que ela estava organizando um movimento de
resistência, reunindo revolucionários e mendicantes — confidenciou
o Dodô.
— Ouvi falar que eram flautas — refletiu o Chapeleiro.
— Flautinha agudinha batidinha chupetinha menininha — o
Arganaz cantou assobiando antes de tombar, dormindo, na água,
espirrando um pouco para fora.
— Independentemente de ser bateria ou flauta — Alice atalhou,
antes de começarem outra digressão típica do País das Maravilhas
—, ela poderia estar em algum lugar chamado Conta-pabeça?
Todos olharam para ela em choque.
— Como conseguiu essa informação? — o Chapeleiro perguntou,
desconfiado. — Ninguém sabe exatamente onde ela está!
— O Mestre Gato me contou — disse Alice, sem ver motivo para
esconder a verdade.
— Ah. Bem, ele é ninguém — reconheceu o Dodô, assentindo. —
Na maior parte do tempo. E em lugar nenhum o resto do tempo.
— O que é o Conta-pabeça, posso saber? — a garota perguntou
timidamente.
O Chapeleiro bateu na xícara de chá com impaciência:
— Sabe quando você está procurando segredos ou o lugar onde
escondeu aquele último torrão de açúcar, ou para onde os ladrões
vão para vender suas tortas roubadas? Você resmunga por aí
procurando pela coisa certa e errada.
— É claro — disse Alice, levando a mão à cabeça. — Conta-
pabeça. Isso faz muito sentido. Enfim, como chegamos lá?
— Geralmente, a pé — disse o Chapeleiro, dando de ombros.
— Eu prefiro ir de cadeira de balanço — o Dodô refletiu.
— Não restaram muitas por aí desde a Sina Vermelha — disse o
Chapeleiro, meneando a cabeça. — Eu me pergunto se ela matou
todas ou se as atirou em estábulos.
— É mais rápido ir por garrafa, por causa do Mar de Lágrimas —
disse o Dodô, com um olhar significativo e acusador para Alice.
— Tudo bem, podemos encolher de alguma forma? Para caber
em uma garrafa? — ela perguntou rapidamente. Fora Alice que
criara o Mar de Lágrimas alguns anos atrás, quando era uma
menina gigante que chorava por causa de sua situação. Acabou
inundando o lugar e deixando vários habitantes do País das
Maravilhas molhados e rabugentos.
— Não, mas depende sempre de mim, não é? — o Chapeleiro
disse, com rabugice. — Atualmente não é permitido ficar Maluco
nem mesmo um quarto do dia. — Ele saltou e começou a apalpar o
paletó, vasculhando os bolsos.
— É verdade — sussurrou o Dodô para Alice. — O pobre sujeito
teve o absurdo arrancado de si junto com o olho. Não é o mesmo
desde então.
— Minha nossa — Alice sussurrou de volta, preocupada. Isso
explicava a altura e cabeça normais; ele estava ficando são.
— Ele continua tentando. Ser Maluco, quero dizer — o Dodô
continuou, com tristeza. — Simplesmente não vem mais com
naturalidade.
Desta vez, pelo menos, o Chapeleiro conseguiu: ele tirou um
enorme guarda-chuva de dentro do colete. Com um gesto teatral,
abriu a coisa preta e com arabescos. Gotas de chuva caíram
debaixo do guarda-chuva até que ele sacudiu para secar.
— Eu não… — Alice começou.
— Você nunca — suspirou o Chapeleiro.
E, dizendo isso, ele o jogou, com o cabo para cima, no riacho
onde Alice havia mergulhado a mão antes (água que decerto
fornecera o “chá” para a reunião deles). Embora ela tivesse quase
certeza de que, até aquele exato momento, o riacho não estava bem
ao lado deles. Prímulas amarelas sorriram das margens,
literalmente, é claro. Suas cabeças assentiam e acenavam alegres,
como Alice sempre imaginou que flores silvestres felizes fariam.
Com uma reverência educada e outro floreio de mãos, o Chapeleiro
sinalizou para Alice entrar no guarda-chuva.
— Obrigada, caro senhor — agradeceu com uma pequena
mesura e, tentando não mostrar qualquer relutância, entrou. Se ela
encolheu ou se o guarda-chuva cresceu, não importava no fim das
contas; embarcar nele não foi fácil nem gracioso como se pode
imaginar em um conto de fadas. Ele balançava exatamente como
faria no mundo real, e Alice passou por maus bocados, oscilando e
se equilibrando, para não virar a coisa toda. O Dodô meio que
voejou para o lado dela, mais como um canário delicado do que
como uma ave grande que (praticamente) não voa. O Chapeleiro
saltou entre eles.
E o guarda-chuva começou a flutuar rio abaixo.
Capítulo 9

SE A MISSÃO NÃO fosse tão urgente, Alice teria realmente


desfrutado a viagem de guarda-chuva. Foi relaxante, e todos os três
fugitivos da Rainha estavam pálidos, exaustos e absolutamente
imundos onde não havia manchas de sangue. Parecia que eles
poderiam dormir por uma semana.
O Chapeleiro coçou distraidamente sob a cartola minúscula que
cobria a órbita do olho.
— Se não se importa que eu pergunte, Chapeleiro — Alice
perguntou, sabendo que não deveria. Mas sempre fora uma garota
curiosa —, o que aconteceu com o seu olho?
Ele a fitou e ela se alarmou com o momento de lucidez no único
olho que lhe restara.
— Pássaros jubjub — ele disse tristemente. — Ela me jogou em
um ninho deles, que mantinha famintos apenas para tal propósito.
Queria saber onde Mary Ann estava. Eu nunca contei. Não fui eu
quem a traiu.
— Ah, como você é corajoso — Alice suspirou. — Eu sinto muito.
— Coragem é pra monarcas e porcas sem asas. Eu sou apenas
um Chapeleiro Maluco. Bem, eu fui, em um tempo distante.
Todos ficaram em silêncio de novo. O guarda-chuva rodopiou e a
paisagem virou, um pouco devagar demais para o gosto de Alice.
— Eu ainda não ouvi nenhuma poesia — Alice atreveu-se a dizer,
enfim. — Sempre há muita poesia no País das Maravilhas. A Rainha
de Copas acabou com isso também?
— Poesia! Boa! Poesia! — o Dodô concordou, batendo uma asa
na outra. Precisamos de um tiquinho de poesia. Arganaz, acorde.
Arganaz! Uma bela poesia revigorante! Venha, venha!
Dispensando sem aviso os habituais estágios sonolentos entre a
inconsciência e a consciência, o Arganaz se levantou de súbito, com
as costas eretas, mais do que pronto para o recital.
Um cachorro e um gato e um marsupial divertido
Fugiram para o Mar Similusser.
O sol brilhava forte no azul imutável
Tão dialicioso quanto um dia pode ser.
“Eu espio um peixe!”, disse o gato crítico (que gostava de
truta
frita em pudim de sal).
“Não temos um poste!”, o cachorrinho latiu
enquanto o morcego enfiava o pé.

Um linguado saltou e olhou para os três


“Nossa espécie não é para seu prazer!
Voltem para as areias da terra do velho Inglês.
Na praia lá vocês encontrarão
… inúmeras conchas e algo muito brilhante e
bonito para levar para casa e colocar em um armário, talvez”.

E, com isso, o Arganaz caiu de cara na alça do guarda-chuva e


começou a roncar.
— Ah... — disse Alice, tentando entender o que tinha acabado de
ouvir. — Isso não terminou direito.
— Perdoe-me, mas sou obrigado a discordar. Terminou bastante
direito — disse o Dodô, dando petelecos no punho da manga para
tirar uns poucos fiapos. — Eles deixaram o peixe em paz e acharam
alguma coisa adorável como uma pérola ou um osciloscópio para
trazer de volta para a mãe.
— Mas, mas… não deveria ter terminado: “Na praia vocês
encontrarão um tesouro a haver?”. Faz mais sentido e, além disso,
rima com prazer, como nas outras estrofes que fazem a segunda e
a quarta linhas rimar.
— Você pediu poesia — o Dodô enfatizou. — Eu certamente não
pedi uma lição poética. Da próxima vez, recite algo você mesma. Na
verdade, esta é a próxima vez, porque você é a próxima. Levante-
se, menina, recite.
— Ah, eu não deveria — disse Alice rapidamente. — Tudo que eu
tento dizer aqui sempre sai totalmente errado.
— Tente algo bem fácil — disse o Chapeleiro casualmente, mas
possivelmente também com certa malícia. — Seu hino nacional, por
exemplo.
— Ah! Claro! Eu sei “Deus Salve a Rainha” de trás para frente —
respondeu Alice. — Minha irmã e seu amigo bobo cantam o tempo
todo, mesmo antes de irem para um de seus comícios ridículos.
— Tente de frente para trás, por favor — o Dodô disse
apressadamente. — Não creio que temos tempo para o inverso
também.
— Não consigo ficar em pé no guarda-chuva sem virá-lo — disse
Alice, movendo lentamente os pés. — Espero que ninguém se
ofenda. — Então, ela pigarreou e cantou a conhecida melodia:

My country, ’tis of thee


Sweet land of liberty
Of thee I sing…

— Não, espere, isso não está certo — interrompeu-se Alice,


franzindo o cenho. — Nem ao menos menciona a Rainha.
— Eu gosto bastante — disse o Chapeleiro. — De qualquer
forma, é disso que precisamos agora. Liberdade. Sem mais rainhas.
Nunca mais.
Sem que Alice percebesse, as árvores tinham desaparecido; a
floresta aconchegante foi substituída pelo que parecia água
prateada infinita, que ondulava e se agitava aleatoriamente. Alice
mergulhou um dedo e provou uma gota; era, de fato, salgada, talvez
ainda mais salgada do que a do Mar do Norte. E muito, muito mais
quente. Temperatura corporal, podia-se até dizer. Tinham chegado
ao Mar de Lágrimas.
— Isso vai nos levar ao corredor com o buraco da fechadura? —
ela perguntou.
— Só em março. Todo mundo fora! — o Chapeleiro ordenou.
O Dodô pegou o Arganaz e deu um passo à frente; agora o
guarda--chuva deslizava, inexplicavelmente, por um chão de
ladrilhos, estava muito mais estável, e a ave desembarcou com
grande desenvoltura. Alice o seguiu e o Chapeleiro foi o último,
empurrando o guarda-chuva de volta para a água.
— Não vai pegá-lo de volta? — Alice perguntou.
— Não, ele já cumpriu seu tempo de serviço. Hora de ser
libertado. — Ele tirou o chapéu (o grande) e acenou um adeus. A
alça do guarda-chuva se desenrolou e, sinistramente, acenou de
volta. Então ela meio que se esticou e mergulhou feito uma serpente
marinha, o tecido e as hastes se dividiram em duas barbatanas
traseiras.
O piso de ladrilhos preto e branco onde agora pisavam seguia até
uma subida íngreme que se afastava da água, ocasionalmente
fazendo curvas acentuadas para cima, em formato de ondas
paradas — demorou um pouco para Alice perceber que eram dunas.
Os quadrados mudavam de tamanho para se encaixar
corretamente, mas nunca entortavam ou alteravam suas linhas e
seus ângulos retos; o mosaico resultante era vertiginoso e
impossível de focar. Passando isso, chegaram a um gramado
monocromático bem cortado e, depois, a uma pequena e adorável
aldeia inglesa.
À primeira vista, em todo caso, parecia ser uma pequena e
adorável aldeia inglesa: havia casas, uma rua principal, uma fonte
para os cavalos, pessoas apressadas na feira. Todas as cores
estavam certas; todos os movimentos pareciam normais.
As casas, no entanto, eram construídas uma em cima da outra.
Literalmente. Uma grande casa de família, pintada de amarelo vivo,
com uma varanda arejada e telhas de ardósia, equilibrava-se sobre
a adorável laje de um belo chalé feito de pedras, de um só cômodo;
exatamente em cima dela, havia uma casa de tijolos estreita, de três
andares. O castelo de uma bruxa verde, com torres redondas e
beirais intricadamente decorados, sustentava uma sólida casa de
fazenda, perfeitamente simétrica, com três janelas no andar de cima
e uma porta entre duas janelas no andar de baixo. As chaminés
projetavam-se para os lados, é claro, porque essa morada tinha o
que parecia ser uma choupana à beira-mar — incluindo uma casa
de banho no alto.
A fonte ou o cocho para cavalos na praça da feira parecia não
estar funcionando e, além disso, era alta demais para cavalos. Uma
pilastra de pedra sustentava um disco largo e côncavo, cheio de
água. Quando alguém queria beber, se empoleirava na borda e se
curvava, tomando goles delicados.
E aí estava a grande surpresa (ou talvez nem tanto, considerando
que era o País das Maravilhas). O povo dessa aldeia tinha
tendências um tanto aviárias. A maioria tinha bicos. Muitos tinham
penas, embora as mulheres, na maioria, as mantivessem sob
chapéus ou com gel para formar penteados extravagantes e cachos
que, à primeira vista, pareciam chapéus. Asas eram usadas como
mãos e pés descalços tinham garras.
— Que diabos está acontecendo aqui? — o Chapeleiro
perguntou, chocado com a cena.
Alice o encarou com surpresa: não era possível que ele tivesse
achado algo particularmente incomum naquela cena. Esta era sua
terra natal e o estranho era o normal; o excêntrico, o cotidiano para
os habitantes do País das Maravilhas.
Então examinou tudo mais uma vez, tentando imaginar que era
uma moradora local.
Aí notou.
Os habitantes se moviam como se estivessem amedrontados.
Esgueiravam-se de maneira não natural para aves, agachando para
que os ossos das asas fizessem parecer que eram corcundas. As
cabeças viravam rapidamente de um lado para outro, observando a
paisagem em olhares rápidos e ferozes.
Por todo canto, as placas foram corrigidas às pressas com
respingos de tinta: o símbolo de um coelho adicionado a uma loja de
doces, um açougue, uma alfaiataria. Às vezes, era um coração
vermelho, mas, sobretudo, um coelho. Às vezes o coelho era
vermelho, mas, sobretudo, era branco.
Na feira ao redor do bebedouro para pássaros, havia uma estátua
grande, feia e feita às pressas, como se alguém a tivesse montado
com pedaços de madeira sobressalentes. Tal e qual um santuário
gigante, sua base estava repleta de ofertas de todos os tipos de
comida. Mas, a princípio, Alice não conseguiu entender o que era a
estátua; com várias tábuas projetando-se para fora a torto e a
direito.
Então, quando estava inclinando a cabeça e dando um passo
para trás, entendeu de repente e de uma vez:
Era um coelho.
— Chapeleiro — chamou, nervosa, mas sem saber por quê.
— Não, eu não gosto disso, não, não — disse o Chapeleiro, mais
ou menos concordando, mas estava claro que finalmente estava um
pouco Maluco e não era de nenhuma ajuda em absoluto. Até
parecia ter encolhido um pouco. O Dodô estava ocupado lavando
suas feridas no bebedouro, e o Arganaz estava dormindo, é claro.
Então Alice reuniu coragem e se aproximou de um dos lóris que
passava apressado, com uma cesta no braço. Não estava, como
Alice teria imaginado, cheia de sementes. Em vez disso, havia um
monte de feno macio com cheiro gostoso e três cenouras
lindamente lavadas.
— Com licença… Ah, nossa.
Não foi o enorme bico laranja em formato de gancho ou o lindo
coque chignon em azul e amarelo da matrona que deixou Alice
chocada; foi seu lenço amarrado às pressas. As duas pontas longas
eram engomadas e levemente torcidas para se parecerem com
orelhas de coelho.
— O que está acontecendo aqui? Por que esse monte de
coelhos?
— Existe apenas um coelho! — a mulher respondeu com raiva,
entre um chio e um assobio. — Se ele aparecer, estaremos prontos.
Nós gostamos de coelhos aqui. Abençoado seja o Coelho e que ele
e sua senhora fiquem em segurança. E bem longe da nossa vida.
— Somos uma boa cidade, sim, somos — insistiu um periquito--
australiano de casaco e chapéu-coco, enquanto passava. Havia um
pouco de penugem branca costurada em sua parte traseira feito um
rabo pequeno. — Absolutamente leais. Nós nos rendemos
imediatamente, nos rendemos.
— A quem? À Rainha de Copas?
— Jamais! Aos homens do Coelho. Ele que é confiável, claro. Se
ele diz que é isso que a Rainha quer, é isso que vamos fazer —
disse a pássara lóri, com uma fungada e um ar decidido. — Diga
isso a ele se o vir. O que quer que ele diga, nós o apoiamos. Quiçá
ele nos recomende positivamente à Rainha. Talvez ela nos ignore
em seu próximo ataque.
— Mas é claro que, quem quer que o Coelho apoie, estaremos
com ele — o periquito-australiano acrescentou rapidamente.
Alice sabia que havia uma música sobre uma situação assim, mas
não conseguia lembrar direito naquele momento.
(Na verdade, estava pensando em “The Vicar of Bray”, mas,
quando tentou se lembrar da letra sobre o homem que trocava de
lado para apoiar quem que estivesse no poder, tudo que lhe vinha à
mente era “Whatsoever,” sings the train, “Still I’ll be quicker in May,
sir!”)
— Alice, não gosto daqui — disse o Chapeleiro, em desamparo.
— Vamos seguir adiante.
— Olhe bem aqui — falou a lóri, apontando com orgulho para uma
pilha crescente de produtos naturais, oferendas, aos pés da estátua
de coelho. — Uma pilha de alface. Ofertados por mim. Tal qual o
agrada.
— E salada de alfafa? — o Dodô perguntou, interessado.
— Também o acalma — o periquito-australiano concordou
sabiamente.
— Espere, isso não está certo — disse Alice, mas não estava
mais prestando atenção à conversa.
Por mais estranho que fosse ver uma cidade de pássaros ser
repentinamente dominada por uma lealdade bajuladora aos coelhos,
algo ainda mais estranho conseguiu chamar sua atenção. Uma
figura de xale estava adicionando a oferta dele (dela?) à pilha de
agrados ao coelho; ele ou ela estava totalmente coberto com túnicas
e capas e mantos e estava ainda mais curvado que os demais.
Agarrava firmemente a borda do pano, com garras que não eram
aviárias em nada.
Alice correu, agarrou o xale e puxou.
— Arrá! — ela gritou.
(Perguntando-se — vagamente, no fundo de sua mente —
quando tinha decidido que estava tudo bem agir outra vez como
uma criança encrenqueira de sete anos.)
Deslizando debaixo da capa de linho e lã não estava um pássaro,
embora ele realmente tivesse algumas características um tanto
passarinhescas: o bico e as asas certamente permitiam que ele se
escondesse entre os pássaros do local, mas suas orelhas, a cauda
e o traseiro de leão precisavam ficar firmemente sob o pano para
passarem despercebidos. A criatura soltou um ganido medonho,
expondo os dentes dentro do bico — mais uma vez, certamente
nada passarinhesco. Em seguida, trouxe rapidamente os braços
para junto de si, como se protegesse algo.
— Ah — disse o Chapeleiro, como se nada inquietante tivesse
acontecido. — Olá, Grifo.
— Um grifo! — Alice gritou. — Sempre pensei que vocês fossem
feras imaginárias e fantásticas!
— Bem, esse é um belo “como vai” — disse o Grifo com um
pouco de ironia, olhando para a esquerda e para a direita, tentando
proteger o que quer que tivesse nos braços. — Acho que é
desnecessário dizer que, neste momento, você é a única menina
pequena no País das Maravilhas, tão imaginária e fantástica
quanto?
— Ela não é mais pequena — o Dodô sinalizou, ainda alisando as
penas.
— Mas e quanto a Mary Ann? — Alice perguntou.
— Quieta! Quieta! — o Grifo disse com medo, colocando
desajeitadamente uma pata com garras sobre a boca da garota,
mantendo a outra enrolada protetoramente em algo. — Quer matar
todos nós?
— O que é isso que você tem aí? — Alice perguntou (a voz um
pouco abafada), incapaz de conter a curiosidade, estendendo a mão
para a pata dele. Ela se afastou com um grito quando algo horrível e
tentaculoso se estendeu e retraiu. O que quer que fosse, serpenteou
rapidamente pelo braço do Grifo, sob o punho volumoso de seu
casaco, reaparecendo como um caroço na nuca.
Depois de um momento, a cabeça coberta de uma coisa verde
clara, com olhos dourados, apareceu.
— Ah! — Alice exclamou de alívio. Não era, como ela temia, a
víbora horrenda do labirinto. — Abílio! Coitado do velho Abílio, o
jardineiro!
Mas, em vez de ficar igualmente animado com esta reunião, o
pequeno lagarto desmaiou completamente, resmungando algo
sobre ela ser “ainda maior desta vez”.
— Não entendo nada disso — reclamou Alice, franzindo a testa.
— Tenho o mesmo tamanho que os pássaros deste local, que
deveriam ser pequenos como pássaros de verdade, não é? Mas sou
uma garota de tamanho normal em comparação com Abílio. Somos
todos pequenos ou são os pássaros do local que são grandes? Ou
algo aconteceu com Abílio?
— Deixe que Alice fale sobre o tamanho geral das coisas quando
estivermos prestes a sermos mortos — disse o Grifo tristemente. —
Criaturas tolas e fantásticas, essas meninas pequenas.
— Na verdade, estamos a caminho de nos unir a M-A agora — o
Chapeleiro informou, com importância.
— Venha se juntar a nós — sussurrou o Dodô. — Viajaremos para
Conta-pabeça juntos.
— Ela nunca vai caber lá. É muito grande! — o Grifo grasnou em
um sussurro.
— Agora qual besta imaginária fantástica está perdendo tempo
falando sobre o meu tamanho? — Alice quis saber, com as mãos na
cintura. — Aaah… olhe para isso.
Uma loja havia aberto e desdobrado uma de suas persianas
horizontais, prendendo-a para formar uma prateleira. Em cima dela,
um padeiro colocou tortas para esfriar (cardo-mariano com caramelo
e minhoca de gengibre) junto com pedacinhos de bolo de sementes
que cheiravam muito bem. Não que Alice já tivesse cheirado um
bolo de sementes antes ou soubesse de antemão que cheiro bom
era aquele; talvez o tempo na cidade dos pássaros a estivesse
mudando. No topo de cada bolo, sementes de pinoli formavam a
palavra COMA-ME.
— Deixem-me provar um destes. Talvez eu possa me fechar
como um telescópio — ela disse, pegando um e mordiscando-o. A
mão alada do padeiro lhe deu um tapa ineficaz, mas não houve
outras consequências. O bolo era de nozes e amanteigado, com um
toque distinto de gafanhoto.
Todos os cinco esperaram para ver o que aconteceria: o Dodô, o
Chapeleiro, o Arganaz e até mesmo o Grifo e Abílio, prendendo a
respiração coletivamente.
Nada.
Alice engoliu o resto do bolo, mal mastigando — o que era um
desperdício, pois estava delicioso.
Nada ainda.
— Talvez você realmente tenha esquecido como fazer — disse o
Dodô.
— Não pode ser — disse Alice. — Eu lembro exatamente o que
sentia…
— Lembrar não é o mesmo que saber — o Grifo disse
acusadoramente. — Sua escola foi muito fraca se você acha que é
assim.
— É isso! — o Chapeleiro gritou. — Você encheu sua cabeça com
todas as coisas erradas desde que partiu. E empurrou todas as
coisas boas para fora. Você precisa desaprendê-las. Deslembrá-las.
— Lá vem você com os seus “des” — disse Alice com ternura. —
Como desaniversários. Mas tudo que aprendi é necessário no meu
mundo… E, de qualquer maneira, eu não conseguiria desaprender
tudo nem se tentasse.
— Mas você nem tentou. Quanto é nove vezes dez? Esqueça! —
o Chapeleiro gritou.
— Qual é a capital da Cúmbria? Esqueça! — o Dodô gritou.
— Qual é a velocidade no ar de um pardal sem carga? esqueça!
— gritou o Grifo, aparentemente também esquecendo que ele
estava se escondendo de alguém ou alguma coisa.
— Peço licença — disse um pardal que passava sem carga,
exceto por uma pasta pequena.
Os quatro viajantes (Abílio ainda estava desmaiado) começaram a
cantar:

Esqueça o queijo e esqueça o pífaro


Esqueça as moscas zumbindo
Esqueça aquilo sobre os dois primos
de tijolo vermelho de Bristol
Esqueça seu nome e esqueça sua carne
Esqueça o Conde de encanar
Esqueça o tempo e esqueça as palavras
E tudo começa com cantarolar!
E, claro, eles cantarolaram a última estrofe, o que quer que isso
fosse.
— Vamos levá-la para a Floresta do Esquecimento! — o
Chapeleiro gritou. — Então ela vai esquecer todas as bobagens do
outro mundo e vai crescer e encolher de novo e vai se tornar uma
arma poderosa e então poderemos chegar a Conta-pabeça e
encontraremos Mary Ann e todos vamos tomar chá!
— Não sei se gosto da ideia de esquecer tudo — Alice disse
inquieta. — Ou de ser algum tipo de arma poderosa. Mas, se for
para o bem do País das Maravilhas, acho que vale a pena tentar. —
Também tinha suspeitado da coisa de crescer e encolher da
primeira vez, mas rapidamente se habituara àquilo. Talvez fosse o
mesmo dessa vez.
E o Chapeleiro estava, pelo menos, começando a agir como
antigamente. Um pouco mais lógico do que de costume, mas
gritando absurdos, canções e poesia. E agora sua cabeça parecia
só um tiquinho maior.
— Lá vamos nós, então eu e você… — ele começou, levando-a
galantemente pela mão.
— Não! Agora sem poesia dramática, sem sentido implícito ou
versos livres. Pare, chega disso. Apenas rimas — ralhou o Dodô,
arrastando-o pela orelha.

Enquanto eles saíam da aldeia para a luz do sol forte, Alice


observou como devia ser estranho para seus companheiros ficarem
com ela. Geralmente, no País das Maravilhas, ela somente passava
pouco tempo com cada criatura ou pessoa, ou ambos, antes de tudo
mudar e ela seguir para a próxima etapa. Mas agora eles eram uma
pequena banda marcial, o Chapeleiro até mesmo agitando os
braços como um líder de banda. O Grifo quase sempre andava
ereto ao lado dele, mas às vezes caía de quatro e trotava como um
cão gigantesco com asas. O Dodô ria para si mesmo e Abílio
consentiu em cavalgar em seu bico, mantendo um olho cauteloso e
desconfiado em Alice. O Arganaz dormia no bolso de alguém.
A paisagem fez aquilo de sempre: silenciosa e
imperceptivelmente diluiu-se em algo totalmente diferente. O vago
ar litorâneo acompanhado de gramíneas e do piso xadrez em preto
e branco se tornou um prado dourado, que, como costumava
acontecer no fim da tarde, acabava em uma sombra profunda e
exuberante de algum monte ou colina que ninguém podia enxergar.
Uma linda floresta brotou de repente, como se uma névoa tivesse se
dissipado e revelado o que escondia: pinho macio, e carvalho mole,
e manchas rajadas de luz do sol, como uma pintura de Corot. Um
córrego ridiculamente reto — quase um canal — margeava a
paisagem, mas era aparentemente natural, tão natural quanto
qualquer coisa podia ser no País das Maravilhas.
— Estou me lembrando de tudo agora — Alice refletiu consigo
mesma. — Tudo aqui muda inesperadamente… Mas, de algum jeito,
você sempre acaba exatamente onde a próxima etapa, a próxima
parcela de ação está. Quando eu era pequena, eu fazia e acontecia
e seguia meus impulsos para chegar ao próximo lugar. Tenho que
manter isso em mente. O País das Maravilhas sabe onde está te
levando. Eu deveria confiar nisso.
Só havia dois detalhes naquele lugar que, do contrário, seria um
cenário bucólico perfeito. O primeiro era um odor de fumaça que
vinha de algum lugar além da floresta. Não era fogo de lenha e
cheirava mal.
O segundo era uma placa martelada no que outrora fora um
carvalho inocente, caiada de branco e pintada de vermelho:
LIVRE DE TRAIDORES INSPECIONADO POR COELHO B.
QUARTA-FEIRA
Um símbolo tosco de um coelho fora pintado às pressas na parte
inferior.
— Que quarta-feira, eu me pergunto — o Grifo refletiu, coçando o
queixo. — Uma do último lote, imagino?
— Acho que os próximos estão todos cheios — disse o Dodô,
tirando um relógio de bolso.
— Ainda é sempre hora do chá para você, Chapeleiro? — Alice
perguntou curiosamente.
— Ah, a Hora e eu nos reconciliamos há muito tempo — o
Chapeleiro disse, melancólico. — Ela queria acertar os ponteiros
antes de ir. E, com a Rainha de Copas no comando, não há mais
chá. Para ninguém.
— Não é engraçado? — falou Alice, estendendo a mão para
tentar tocar na placa. — Na última vez que estive aqui, eu só queria
perseguir e encontrar o Coelho Branco. E, desta vez, não importa o
quanto eu tente evitá-lo, a presença dele está por todos os lados.
— Tudo bem, lá vamos nós, então! — o Dodô disse, estufando o
peito e passando um pé grande e desajeitado por cima do riacho.
— Você não, seu pássaro tolo! — o Chapeleiro gritou, puxando-o
de volta. — A gente precisa pescar a Alice nova em folha do outro
lado, quando ela voltar a ser o que era. Uma menina vazia. Não
podemos fazer isso se também tivermos esquecido quem somos e o
que fazemos.
— Menina vazia? — Alice disse. — Eu acho que não…
— Lá vai você! — o Grifo gritou corajosamente e empurrou Alice
no riacho.
Capítulo 10

ELA TROPEÇOU E CAIU contra o tronco de uma árvore


confortável, mas quase perdeu os sapatos no riacho.
— Minha nossa, o que acabou de acontecer? Eu tropecei…
Espere, esta é a floresta em que eu deveria estar? — ela se
perguntou, tirando os sapatos e despejando a água deles. — Eu me
esqueci… onde… eu estava indo…
Alice calçou os sapatos de novo e olhou em volta. O riacho
parecia molhado, então ela foi na direção contrária. A grama onde
ela pisava era doce, e os pinheiros que ela adentrou também tinham
um cheiro adorável. Uma borboleta-pão batia as asas
languidamente, o probóscide para fora, procurando por um chá
fraco.
— Você sabe para onde eu estava indo ou quem eu sou? — ela
perguntou, meio que se dirigindo ao inseto. Ela não estava nem um
pouco preocupada, apenas ligeiramente perplexa. — Tenho quase
certeza de que sou uma garota, pelo meu vestido, quero dizer. E,
bem, me sinto uma garota. Ah, mas espere! E se eu for um lagarto
ou um sátiro indo para uma festa à fantasia? Como seria assustador
descobrir isso só porque não consigo lembrar nada da minha vida…
— Ela estendeu uma mão diante de si e tateou a cabeça e o rosto
com a outra. — Não, macio e adorável. Sem escamas. Sem chifres.
Seria um horror ter esquecido quem eu era para então descobrir ser
outra pessoa inteiramente diferente.
Esquivou-se sob a borboleta-pão e deu um pulinho:
— Bem, acho que agora posso ser quem eu quiser, já que não
sou ninguém. Também posso fazer o que quiser. E ninguém poderá
me repreender mais tarde: como você ousa fazer isso ou aquilo;
você não sabe quem é você? E eu poderei dizer: mas eu não sei
quem eu sou. Então provavelmente não é justo. O que será que eu
sempre quis fazer e não conseguia antes, antes de esquecer tudo.
Voar? Será que poderia voar agora? Ou deixar crescer um bigode?
Se agora não sou ninguém, significa que eu poderia ser qualquer
um. Talvez eu possa escolher. Vejamos: poderia ser rainha, acho.
Mas creio que, apesar de todos os desfiles e festas, seria sobretudo
chato e monótono, e eu não teria tempo para mim mesma. Eu
poderia ser casada com um maridinho meigo e ter algumas crianças
enormes e robustas em uma casa de campo com jardim e beirais
pintados. Seria adorável, embora um pouco enfadonho. Algum dia,
talvez. Suponho que o que eu realmente gostaria, acima de tudo, é
de ser eu mesma, quem quer que seja, e ter todos os tipos de
aventuras em reinos encantados e maravilhosos, quando eu quiser.
Mas não todo o tempo. Eu precisaria de dias para pensar e contar
minhas histórias para amigos e me fortalecer para a próxima
aventura… Ah!
Estava realmente se divertindo com esse devaneio quando quase
tropeçou em outro habitante da floresta outrora vazia. Ele tinha uma
aparência descontraída, um sujeito magro estirado na base da
árvore. Mas devia ser alguém um pouco elegante, pois vestia um
adorável chapéu pontudo com penas longas e uma linda túnica de
veludo vermelho-sangue sobre bombachas pretas. Havia migalhas
em seus lábios e o que parecia um vestígio de geleia de framboesa
— ou sangue — na bochecha.
— Com licença. Como vai? — ela perguntou educadamente.
— Não tenho a mais remota ideia — disse o homem com um
sorriso. Ela ficou impressionada com o brilho no olho dele e com a
expressão lamentosa, embora irônica, em seu rosto. — Não consigo
lembrar como eu estou ou o que faço no momento.
— Eu também não consigo. Você comeu uma torta? — Alice
perguntou com curiosidade, apontando para seu rosto.
— Uma torta aberta, na verdade. Framboesa — o homem
confirmou, com satisfação. Ele ainda não tinha se levantado, o que
era um pouco grosseiro. — Encontrei várias delas comigo quando
corri para cá. Eu ofereceria uma a você, mas comi todas elas.
— Ah, que glutão!
— Parece que sim — disse ele com um dar de ombros
despreocupado. — Não havia mais ninguém aqui no momento. Se
você estivesse aqui, eu teria dividido, é claro. Elas eram muito
saborosas.
O sujeito saltou de repente com elasticidade, considerando sua
magreza de papel, Alice pensou. As migalhas caíram do tecido
suntuoso em seu colo e ele limpou o restante com dedos
artisticamente graciosos e estreitos. Sua elegante pena balançava e
acenava com vida própria, combinando com o arco das
sobrancelhas despreocupadas.
Ela se sentiu bastante surpresa por um momento.
Ele não era nada como…
… como…
— Senhor Ninguém de Lugar Algum — ele se apresentou
grandiosamente com uma reverência intrincada em que tocou a
cintura com uma mão e posicionou a outra atrás de si e depois
imediatamente deu um jeito de pegar a mão dela e levá-la quase
aos lábios, mas não exatamente. — Ao seu dispor.
— Senhorita Nada de Nunca Foi — Alice respondeu com um
sorriso e uma mesura. — Que tal caminharmos juntos?
— Nada me daria mais prazer — ele disse sem pestanejar, e ela
se viu rindo.
Alice pegou o braço esticado dele e os dois passearam por uma
pequena trilha, com cascas de árvore e poeira entre os espinhos de
pinheiro. Tudo era encantador. Ela nem estava preocupada com sua
incapacidade de lembrar algo. Era como… um feriado para o
cérebro. Perguntou-se vagamente o que estaria acontecendo em
sua vida para que seu cérebro precisasse de férias. Olhou suas
roupas e saias novamente para ver se revelariam sua ocupação,
mas não conseguiu chegar a conclusão nenhuma. Eram um tanto
limpas, bem costuradas e, sobretudo, confortáveis, embora um
pouco restritivas.
— Só estar ao seu lado é absolutamente agradável — o homem
ao lado dela disse por fim. — Lamento não estar conversando, mas
parece que não sei e não me lembro de nada… E nada agrada mais
aos meus olhos do que você. Então não há muito a dizer, não é?
— “Tempo agradável” — ela comentou ironicamente e apertou o
braço dele. Era fino e duro. — Está tudo bem. Vamos apenas…
estar.
Cedo demais, ou depois de muitas horas, ou algo no meio-termo,
as árvores detiveram-se de repente, como se ordenadas por um
sargento mau. Um riacho estreito corria na orla das árvores e era
habitado por peixes dourados corpulentos que permaneceram
solidamente no fundo, bamboleando as barbatanas com grande
esforço, por aqui e acolá. Na outra margem, sentados de costas
para o casal que passeava, havia uma coleção estranha de criaturas
se aquecendo ao sol. Suas silhuetas escuras eram livres de
detalhes finos, o que apenas acentuava as formas estranhas:
cabeças altas, bicos longos, muitas patas.
— Espere… — ela disse vagamente enquanto o cavalheiro estava
prestes a cruzar o riacho.
— Qual é o problema? — ele perguntou, preocupado.
Alice franziu a testa, tentando pensar:
— Eu sinto como se, depois de atravessarmos, tudo fosse mudar.
— Mudar nem sempre é ruim — disse o companheiro, dando
tapinhas no braço dela para confortá-la. — Não há aventura sem
mudança. E nada de comprar doces também. Você já tentou
comprar um pirulito com uma nota de mil libras? Desastroso.
— Acho que… — Alice disse timidamente. Seu ponto de vista
fazia centavo, embora não parecesse se aplicar especificamente a
essa situação. Agarrando o braço dele, ela deu uma passada larga
sobre a água… — Eu sou Alice! — ela exclamou. — Sempre e para
sempre Alice!
Por alguma razão, o pensamento a animou imensamente. Ela era
uma jovem mulher da Inglaterra, com cabelo bonito, de uma boa
família, que tinha uma linda câmera, uma tia legal e uma irmã chata
e tudo era geralmente bom.
— E eu tenho uma linda casa para onde regressar e aventuras do
País das Maravilhas! Não é simplesmente perfeito?! — ela
exclamou.
Seu amigo cavalheiro teve uma reação igualmente alegre: ele
saltou sobre o riacho com tanta graça e habilidade quanto alguém
brincando de amarelinha e pousou triunfante no outro lado.
— Bem, você não sabe de nada! — ele gritou, rindo. — Eu sou
um valete! Quão fortuito!
As figuras indistintas além da berma tinham ouvido os gritos e se
colocado de pé com um salto. Alice correu para encontrá-las.
— Não! Não mais por aqui, chega — implorou o Chapeleiro. —
Um ou dois córregos, tudo bem, mas se você cruzar outro e outro,
depois do oitavo você não será mais nossa pequena Alice, será uma
rainha…
— Acho que eu seria uma boa rainha — disse Alice, seu desejo
de reunir os amigos em um grande abraço de reencontro foi
moderado pelas palavras dele.
Conforme suas memórias voltavam, as lembranças tomaram um
caminho mais rápido do que o normal, como quando alguém está
tentando concluir logo uma palavra cruzada e não consegue lembrar
a palavra certa. Alice vazia tornou-se Alice cheia em menos de um
minuto; ela viu, através de novos olhos, sua altura quase adulta e
todas as mudanças e o crescimento que teve nos últimos onze
anos. Todas as sutilezas que a tornavam quem ela é hoje, aquela
que seus amigos do País das Maravilhas não conseguiam ver. Sutil
não era uma função do País das Maravilhas.
— Mas ainda não — implorou o Chapeleiro.
— Alice! Afaste-se desse homem! — o Grifo gritou, sibilando para
o sujeito bonito que comia tortas e agarrando-a com as garras. Ele
bem que podia ter dado uma boa aparada nas unhas, Alice pensou
com irritação ao sentir que elas beliscavam sua pele através do
vestido.
— Ah, despertadores e sinos de urso! — o Dodô disse,
balançando a cabeça. — Alice, você não sabe quem está ao seu
lado?
— Valete de Copas, ao seu dispor — disse o companheiro com
uma reverência, dessa vez tirando o lindo chapéu e piscando para
ela.
— Ele é um chamariz para a Rainha! — o Chapeleiro sussurrou
alto demais. — Ele vai denunciar todos nós!
— Ah, acho que não, não mais — disse o Valete com um suspiro,
sacudindo dramaticamente mais migalhas de seu colete. — Estou
na lista de procurados agora. Eu roubei todas as tortas dela, as que
ela estava guardando para o chá.
O Chapeleiro o encarou com ceticismo:
— Você roubou as tortas da Rainha? Mas por quê? Você era o
favorito dela, o segundo no comando.
O Valete deu de ombros:
— Estavam deliciosas.
— E ela mesma fez as tortas, não foi? — Alice disse, lembrando
da rima:

A Rainha de Copas, ela fez algumas tortas


Todas em um dia de verão
O Valete de Copas, ele roubou as tortas
E as levou bem rapidão.

— Até parece que ela tem tempo para fazer tortas com todas as
guerras e matanças e execuções — disse o Dodô, em
desaprovação. — Mas não me impressiona você ter fugido. Ela
colocaria sua cabeça em uma lança, com certeza.
— Não… O Rei iria castigá-lo — falou Alice. — Só isso. E o Valete
devolveria as tortas. De acordo com a rima, quero dizer.
— Alice, o Rei está morto ou preso ou fora de serviço há mais de
duas semanas… Você não tem prestado atenção? — perguntou o
Chapeleiro, exasperado.
— Bem, de qualquer maneira, agora não posso devolver as tortas,
posso? — o Valete disse com um suspiro. — O Dodô tem razão, a
Rainha cortaria minha cabeça e, em seguida, usaria para decorar
suas muralhas. Foi tolice de minha parte fugir para a Floresta do
Esquecimento. Eu esqueci e comi.
— Você poderia ter, ao menos, poupado uma — disse Alice,
aborrecida. — Eu podia ter usado uma torta para ver se conseguia
crescer novamente.
— Ah! E como você se sente, pequena Alice? — o Chapeleiro
perguntou, dançando. — Nova em folha? Pronta para recomeçar
tudo de novo? Está deslembrada agora? Pode crescer e encolher
conforme o momento exige?
— Por favor, não me chame de pequena. Pelo menos não até eu
encolher. Você e eu temos quase o mesmo tamanho — observou
Alice. — E eu sou totalmente cres… ah, uma adulta agora. Assim
como você. Eu não sou sua pequena coisa nenhuma.
— Bah, parece que ela ainda sabe matemática e tudo — o Dodô
disse. — Que fracasso!
— Bem, não saberemos até encontrarmos alguma guloseima. E,
de qualquer maneira, pode-se muito bem presumir que a
experiência de vida e os conhecimentos adquiridos nos últimos onze
anos me ensinaram a crescer ou encolher ainda melhor do que eu
fazia antes.
— E ainda assim você não cresce nem encolhe — observou o
Chapeleiro. — Como queríamos demonstrar.
— Isso tudo é uma perda de tempo. Podemos muito bem seguir
para M… — o Grifo começou a dizer, mas o Chapeleiro tirou o
chapéu e jogou nele.
— Para onde estão indo? — o Valete perguntou, sacando
imediatamente que havia um segredo ali.
— Não é da sua conta, homem da Rainha — disse o Dodô com
altivez.
— Já disse que não sirvo mais a ela — falou o Valete, mãos
estendidas e abertas em súplica. — Estarei com os minutos
contados se eu aparecer em qualquer lugar perto do castelo. Então
bem que poderiam me levar com vocês. Talvez eu possa até ajudar,
se vocês estiverem… Sabe, planejando algo.
— Você é bom com a espada? — perguntou o Chapeleiro.
— Ou com um cadarço? — o Dodô acrescentou.
— Com ambos, e ambos seriam dedicados… à causa — o Valete
disse com uma reverência. — Ou pelo menos à senhorita aqui.
— Tudo bem, mas terá que carregar Abílio, então — o Dodô
disse, colocando sua asa para fora para que o pequeno lagarto de
capa pudesse engatinhar e subir na manga extravagante da carta. O
rosto do Valete pareceu se contorcer por um momento em uma
expressão de nojo, mas logo se suavizou. Alice não podia culpá-lo
por isso. Não tinha certeza se iria querer particularmente um lagarto
estranho tão perto assim de repente, rastejando em sua pele.
— Talvez, depois de termos sido devidamente apresentados e
depois de conversarmos um pouco, estaria tudo bem — disse ela
para si mesma.
O grupo partiu em uma direção que foi debatida várias vezes
antes que todos conseguissem concordar. O ar parecia crepuscular,
o sol, contudo, sentia-se vagaroso e estava pendurado no céu,
longe da hora de dormir. A leste, a lua, amuada no horizonte, se
afastou de seu irmão, que sempre parecia monopolizar a atenção.
Àquela luz, a planície gramada rapidamente se tornou uma
paisagem aconchegante de arbustos emaranhados, velhas
macieiras e um bosque de aveleiras abandonado, cujos residentes
arborizados preferiram crescer seus novos brotos em espirais, feito
o cabelo selvagem e indomável de uma menininha — muito difícil de
colher. Os pássaros-espelho amavam se empoleirar neles, no
entanto, e Alice não podia deixar de parar de vez em quando para
conferir sua aparência, apenas pela novidade dos tipos de armação
que exibiam. Alguns dos reflexos até mudavam o cabelo, os lábios e
a cor da pele! Seus amigos apressaram-se à frente, conversando
entre si e escutando um pouco absortos demais as histórias da corte
real em sua atual fase mortal, contada pelo Valete.
Alice se demorou em um pássaro-espelho em particular, cujo
reflexo mostrou sardas no rosto da imagem. A moda na Inglaterra
era, claro, tentar minimizar o bronzeamento e outros efeitos do sol,
pelo menos entre jovens mulheres de criação elevada, pelo uso de
pó ou chapéus de sol. Mas ela gostou bastante da aparência
saudável e amigável que as pintinhas conferiram a seu rosto outrora
sem marcas.
— Vejo que Alice enxergou a si mesma — disse uma voz
pensativa por trás dela. Como Alice já sabia quem era, não se virou
imediatamente, preferindo dar uma última enrugada do nariz para
ver o quanto as sardas lhe conferiam um ar de bruxinha.
O Mestre Gato estava, é claro, girando em um ramo espiralado
atrás dela, ele próprio como uma série de círculos: sobre o ramo
circular, a cabeça e o corpo enrolados, seus olhos pareciam quicar
um pouco no rosto como se para enfatizar a presunção.
— Que original de sua parte — comentou Alice, seca. — Mas eu
ainda gosto de gatos, por mais ingênuos que pareçam, para sua
sorte. De gatinhos, bem como de bichanos velhos, listrados e
sarnentos. — Ela coçou abaixo do queixo dele para suavizar as
palavras.
— Humm… — O gato rolava o corpo e balançava as patas,
obviamente gostando. Mas a cabeça dele permaneceu exatamente
na mesma posição, é claro: impossível.
— Por que não vem conosco, em vez de aparecer só de vez em
quando? — Alice sugeriu. — Eu gostaria muito da sua companhia e
acho que você pode ajudar o Chapeleiro a recuperar um pouco do
absurdo. Pode se sentar nos meus ombros, se quiser, ou eu poderia
carregá-lo.
— Ahhhh, e receber carinho o tempo todo da Grande e Poderosa
Alice — disse atrevidamente o Mestre Gato. Ele se torceu para que
ela pudesse alcançar melhor a sua barriga, mas a cabeça dele
sumiu por um momento para fazê-la piscar. — Pelo menos até
chegarmos a Mary Ann.
Alice parou de fazer carinho nele e olhou feio.
— Tudo bem, tudo bem, farei uma reverência silenciosa quando
ela assumir o controle do seu bando. Eu não sou uma líder nem sou
treinada em rebeliões ou desobediência civil. Não tenho muito a
oferecer ao seu lado. Mas ainda vou me consolar em ver a Rainha
de Copas destronada e punida por suas ações para que todos
possam voltar ao normal, digo, ao absurdo, e às vidas seguras no
País das Maravilhas. Então, em vez de fazer piadas, venha com a
gente e ajude!
O Mestre Gato lançou a ela um olhar inescrutável. Depois fingiu
estar fatigado.
— Mas estou ajudando… Você não sabe como é difícil manter um
pensamento direto em um lugar como este. — O corpo dele de
repente tornou-se uma série de ângulos retos e agudos, de orelhas
retangulares até a longa cauda em espiral que agora era uma
espiral de viradas de não-exatamente-noventa-graus. Ele se
destacava em uma austeridade rosa e roxa em contraste com o
orgânico espiralado das árvores atrás de si.
— O tempo está se esgotando. Ele nem mesmo pagou sua parte
da conta.
Agora o felino se levantou e fez um triângulo com as patas acima
da cabeça; então a cabeça começou a drenar seu corpo como uma
ampulheta de areia:
— Cuidado com o que igrejas e naipes e prisões têm em comum.
— Isso é outra charada? — Alice quis saber. — É isso… Ah, ele
se foi.
É claro que o gato sumiu de vista, os olhos por último, que
rolaram para cima na cabeça agora invisível. Então eles quicaram e
rolaram pelos galhos em espiral feito pequenas bolas de croquet.
— Que coisa! Como as pessoas ainda vêm e vão neste lugar! —
Ela se permitiu apenas uma interjeição de indignação e bateu o pé
só uma vez, como a menina de sete anos que já tinha sido, depois
correu atrás dos amigos. Eles estavam falando absurdos uns para
os outros sem nem mesmo perceber que ela não estava ali. A
charada do gato a lembrou de outra charada, muito antiga, do País
das Maravilhas.
— Chapeleiro! Chapeleiro! Você se lembra da sua antiga
charada? Uma que você me disse da última vez em que estive
aqui?
— Eu não tenho nenhuma charada — ele respondeu, puxando os
bolsos para fora para mostrar como estavam vazios. Agulhas e
alfinetes caíram. Eles correram para o lado da trilha para não serem
pisados. — Eu peguei uma emprestada uma vez, mas duvido que a
Lebre de Março será capaz de cobrá-la agora.
Alice respirou fundo.
— O que é, o que é que o corvo tem em comum com uma mesa?
— ela perguntou.
— Não sei, o quê? — ele perguntou resolutamente.
— Não… Você me perguntou isso da última vez. Eu não consegui
descobrir a resposta sozinha. Mas perguntei a todo mundo quando
acordei e voltei para a Inglaterra, e até li um grande número de
livros sobre enigmas e charadas para tentar resolvê-la. Então agora
eu sei várias respostas. Então me diga qual é a certa!
Alice começou a contar nos dedos.
— Um: os dois têm penas mergulhadas em tinta.
Seu público apenas a olhava com gravidade.
Alice passou para o próximo.
— Dois: o autor americano, sr. Edgar Allan Poe, escreveu sobre
ambos.
O Dodô e o Grifo se entreolharam e encolheram os ombros,
desamparados.
— E três, meu amigo Charles veio com essa, cada um pode
produzir algumas notas, que podem até ser musicais!
Alice sentou-se sobre os calcanhares, muito satisfeita consigo
mesma, e esperou por uma reação.
O Chapeleiro a segurou delicadamente pela mão:
— Ah… Não existe uma resposta, minha querida menina. Esse é
o objetivo de uma charada.
— Esse não é o objetivo de uma charada! — Alice quase gritou.
— Eu acho que o calor a afetou — o Dodô sussurrou seriamente
para o Grifo.
— Mas acabei de dar três respostas!
— Bem, é melhor pegá-las de volta, elas teriam melhor uso em
outro lugar. Aqui estão — disse o Chapeleiro graciosamente.
Alice olhou em silêncio para todos eles por um longo momento:
— Estou me lembrando disso da última vez — ela disse
finalmente. — Nada satisfaz no País das Maravilhas. Você sempre
acha que disse a coisa certa, fez a coisa certa, descobriu a maldita
resposta, mas está sempre errada. Sempre! A chave está longe
demais. Você é muito baixa. As regras de etiqueta são todas
distorcidas. As regras do croquet são insanas. É como o mais lindo,
porém pior tipo de sonho, onde tudo está com frequência de ponta-
cabeça e poderia ser bonito e perfeito, mas, em vez disso, é
enlouquecedor!
— Definitivamente o calor — o Grifo sussurrou de volta.
— Bem, como é no seu mundo? — o Dodô indagou
educadamente.
— Na Inglaterra, se aprender e seguir corretamente as regras,
você geralmente chega aonde deseja ou recebe o que quer ter.
— Parece chato — disse o Dodô.
— Parece fácil — disse Abílio.
— Não importa quem você é? Não importa a sua altura? — o
Chapeleiro perguntou curiosamente.
— Não importa a sua aparência ou… — Alice fez uma pausa,
pensando nas crianças da Praça. — Bem, talvez seja um pouco
mais fácil se você for nascido na Inglaterra.
— E se não tiver essa sorte? — o Chapeleiro perguntou. — Pode
mudar isso?
— O lugar onde nasceu? Claro que não!
— Parece um pouco arbitrário para mim — disse o Chapeleiro. —
Parece mais difícil do que aqui, onde você simplesmente precisa
correr duas vezes mais rápido para chegar a qualquer lugar. Pelo
menos, você pode escolher como correr.
Alice esfregou as têmporas. Ele não estava errado. Por um breve
momento, teve um desejo cruel de que todos seus amigos do País
das Maravilhas pudessem passar uma semana em Londres,
descobrindo os trens e como conseguir uma xícara de chá pela qual
teriam que pagar, conversando com gatos de rua e arganazes que
não sabem falar.
— Bem, enfim, esqueça minha charada. Talvez você possa me
ajudar com uma nova.
— Achei que ela tivesse dito que a charada era do Chapeleiro —
o Arganaz sussurrou para Abílio. As duas coisinhas assentiram
conscientemente um para o outro.
— Já estamos aqui fora e não tem como entrarmos — o Grifo
disse irritado. — Fale com clareza, menina.
— Me chame de menina de novo e vou colocá-lo em uma coleira
antes que você possa dizer Capturandam — Alice disparou. Os
olhos do Grifo se arregalaram e ele se encolheu atrás do Dodô. E
mais uma lembrança sobre o País das Maravilhas: as ameaças
constantes envolvendo uma crueldade abjeta e aleatória. Bem,
quando em Roma… — O que igrejas e naipes e prisões têm em
comum?
— Ah, essa é boa! Não sei! O que igrejas e naipes e prisões têm
em comum? — o Dodô perguntou, ansioso.
— Eu… não… sei — disse Alice entredentes. — Me falaram essa
charada, mas não a resposta e pode ser importante para nossa
missão.
— Isso é um tanto quanto grosseiro — observou o Valete. —
Exigir a resposta de uma charada para a qual você não tem
resposta.
— Experimente uma das outras respostas que você guardou — o
Chapeleiro sugeriu, ávido. — Poe escreveu sobre ambos, talvez?
— Não… — Alice começou. — Além disso, são três coisas, não
“ambos”.
— Uma igreja produz notas? — o Grifo perguntou ao Dodô.
— Se sinos tocam ou se é luterana — disse o Dodô sabiamente.
— Todos eles têm penas mergulhadas em tinta? — Abílio sugeriu
com entusiasmo.
— Ah, esqueçam! — Alice gritou. — Vou desvendá-la sozinha.
Vocês não ajudam em nada com seus absurdos. Vamos só
continuar até Mary Ann.
Os olhos do Valete se arregalaram quando Alice disse isso, mas
ele não falou nada.
Capítulo 11

O DESFECHO DA BUSCA foi monótono e decepcionante. Mesmo


nas peças da Grécia Antiga, o deus ex machina era um sujeito
deixado em uma cesta envolto em flores e tecido de ouro ou algo do
tipo para que todos pudessem dizer que um deus tinha vindo para
salvar o herói no último minuto. Ridículo, mas era glamoroso e
contribuía para o bom teatro.
Mas nossos heróis viajantes somente chegaram a um lugar ainda
menos maravilhoso do que o habitual no País das Maravilhas: uma
margem arbustiva de nada. Havia folhas e plantas mortas, não
rasteladas, zanzando feiamente. A grama verde de pontas afiadas
que crescia aqui era entremeada por muitas companheiras amarelas
e mortas. Os arbustos e as aveleiras tinham folhas pequenas,
menores do que deveriam ser, e pareciam, no geral, desgrenhados.
Todo o lugar se assemelhava a um parque abandonado em uma
parte ruim da cidade.
Éisso, Alice se deu conta; o lugar parecia tão descuidado quanto
no mundo real. Não o aspecto selvagem de “uma gravura misteriosa
de uma charneca romântica” nem o aspecto selvagem de “jardins
cuidadosamente planejados, abandonados e cheios de loucura dos
ricos”. Aspecto selvagem ruim. Desgovernado e, possivelmente,
com ursos.
— Aí está! — o Chapeleiro exclamou. Em seguida, ele olhou em
volta, alarmado. — Aí está — ele sussurrou.
Alice, por fim, também viu: uma placa desgastada e corroída pelo
tempo, cujas cores vibrantes haviam desbotado para os tons
apagados da vegetação ao redor, onde se lia: conta-pabeça por
aqui. Ela apontava para um buraco simples na terra, cujas bordas
uniformes tinham endurecido com raízes ao longo do tempo. Não
era diferente da toca do coelho por onde Alice caíra na primeira vez,
exceto que era ainda menor.
— Ah, o que devemos fazer? — o Dodô gemeu.
— Nós poderíamos cavar — sugeriu o Grifo, erguendo as garras.
— Você sabe que as defesas estão preparadas para isso — o
Chapeleiro disse, em tom acusatório.
— Que defesas? — o Valete perguntou, despreocupado.
Os outros três lhe lançaram olhares silenciosos e gélidos.
— Deixe os pequenos irem primeiro. Abílio e Arganaz — sugeriu
Alice. — Talvez eles possam convencer os que estão abaixo a nos
deixar entrar. Ou, pelo menos, podem ver a configuração do terreno.
O Chapeleiro deu de ombros e tirou o chapéu. O Arganaz, que
estava dormindo na sua aba, caiu para o braço do Chapeleiro e
rolou habilmente para o buraco, feito uma bola de bilhar, sem nem
mesmo dar um pio. Alice se perguntou se a queda acordara o
pobrezinho. Em seguida, o Valete arrancou Abílio de seu peito como
uma enorme medalha militar e o deixou cair, rápido e ligeiro, no
buraco após o Arganaz. Ele também rolou, pés sobre pés, mas, no
último segundo, chicoteou sua cauda e pousou, agarrando-se às
laterais da entrada. Apesar da expressão antropomórfica e
sonolenta (e do chapéu), ele moveu-se, sobretudo, à maneira de um
lagarto, para dentro da escuridão.
— Bem, temos aqui uma saia justa. E você não é nem capaz de
encolher — disse o Chapeleiro, depois cruzou os braços e sentou--
se, bufando.
— E você? — Alice quis saber, fazendo bico. — Como você, o
Dodô e o Grifo seriam capazes de descer?
— Ah, não somos importantes, você sabe disso — o Chapeleiro
disse com rabugice, gesticulando com a mão feito um senhorzinho
de noventa anos de idade.
— Então este é o esconderijo da infame Mary Ann — o Valete
comentou com uma fungada de reprovação, chutando um pouco de
terra para o buraco. Sacou um pequeno frasco, desatarraxou a
minúscula tampa de ouro e se preparou para tomar um trago. —
Não me admira que os rebeldes estejam perdendo. À Rainha! Hã…
Quer dizer, à derrota da Rainha. — E se preparou para beber.
— Não! Me dê isso aqui! — Alice exclamou, perdendo as
estribeiras e todas as boas maneiras (Irônico, ela observou; já tinha
saído da Floresta do Esquecimento há algum tempo). Ela pegou a
garrafa da mão do Valete e, sem uma palavra de desculpa ou
justificativa, entornou todo o conteúdo. Queimava com um quê de
cardamomo, canela e peônia.
— Com certeza terá algum efeito — ela pensou. — Parece forte!
— Eu que o diga — disse o Valete, um pouco chateado que seu
trago tinha sido aniquilado.
Somente o Dodô e o Grifo pareciam esperançosos. O Chapeleiro
apenas se virou e revirou os olhos, resmungando.
Alice se levantou, braços abertos, pernas afastadas, partes do
corpo liberadas de outras partes do corpo, dedos das mãos e dos
pés esticados e nada tocando-se, esperando que a magia viesse.
Nada aconteceu.
— Entende? — o Chapeleiro disse amargamente. — Você está
crescida demais. Você…
— Ah, cale a boca já — Alice retrucou. — Quer saber, o meu
cansaço a respeito de seus constantes comentários sobre mim e
minha relação física com o País das Maravilhas é crescente. Por
que eu deveria crescer e encolher, afinal? Por que eu deveria
lembrar ou esquecer de acordo com o que você acha que vai
funcionar? “Encolha para caber na porta minúscula, Alice.” “Cresça
para pegar a chave, Alice.” Cresça muito e assuste os pássaros.
Encolha e os pássaros e ratos andam por cima de você. Estou
cansada de mudar para as outras pessoas. Já passou muito da hora
de o País das Maravilhas começar a mudar para mim.
E, sem ter muita certeza do que estava fazendo, mas ruborizada e
colérica, Alice marchou até o buraco e começou a puxar para
alargá-lo.
Foi um pouco complicado e não cedeu no início, como um pedaço
de couro duro, mas depois de um ou dois puxões e um gemido nada
apropriado para uma dama, ela conseguiu esticar a largura do
buraco em vários centímetros, grande o bastante para si, o Valete, o
cabeçudo Chapeleiro, o hexápode Grifo e o corpulento Dodô.
Todos piscaram surpresos.
Alice se recuperou rapidamente e tentou não parecer surpresa
também.
Conseguiu. Como soube que conseguiria? Ela sabia? Ao mesmo
tempo, era e não era como um sonho em que você percebe que tem
que fazer algo e, de alguma forma, funciona. Em sonhos, tudo era
turvo, sem um começo claro ou fins embaraçosos; aqui ela poderia
ter fracassado espetacularmente e acabar ferindo-se agarrando a
terra seca.
Tinha acabado de confiar em si mesma e no País das Maravilhas
e… funcionou.
— Lembre-se disso — disse para si mesma, maravilhada. —
Confie em si e no País das Maravilhas.
O Chapeleiro gritou de alegria, tirando o chapéu e batendo com
ele no Dodô.
— Ela conseguiu! Alice conseguiu!
— Alice sempre consegue — disse o Dodô com orgulho, como se
ela fosse sua filha.
— Mas nunca da forma como você espera — acrescentou o Grifo,
também como se ela fosse sua filha.
Alice revirou os olhos para eles:
— Tudo bem, eu sou a primeira. Lá vamos nós!
E ela saltou na escuridão desconhecida, pois era o que Alice
sempre fazia.
Mas não aterrissou em um corredor abandonado com uma porta
encantada que levava a um jardim ainda mais encantado. Também
não era uma floresta, nem um castelo, nem um banquete enorme,
nem uma cesta em um mar de lágrimas.
Era diferente de tudo que Alice já tinha experimentado antes.
Era barulhento. Dezenas, talvez centenas de vozes diferentes
proferindo murmúrios e xingamentos e lamentos e consolos e falas
e sussurros com uma risada estridente ecoando tanto em tanto.
Criaturas de todas as estaturas e feitios estavam sentadas, em pé,
vagando, perambulando ou deitadas em bancos no que parecia ser,
bem, algum tipo de construção. O lugar era grande e cavernoso com
um teto abobadado. Pelo cheiro (lúpulo) e o tamanho
(aparentemente infinito com cantos sombreados), Alice deduziu que
podia ser uma taberna ou, talvez, uma maloca viking, ou algo que
ela não sabia nomear, e estava repleto de pessoas de todas as
idades reunidas, mas não era uma igreja, e fedia um pouco.
— Feridos nos quartos, por favor — um pato de pescoço
comprido disse a ela, cansado. Seu chapéu estava surrado até a
aba e o lenço de pescoço, em amarelo vivo, estava manchado de
sangue. Ele segurava uma prancheta e, o que Alice não pôde deixar
de notar, uma caneta de pena, mas preta. Mergulhada em tinta. A
pena de outra ave.
— Um corvo, talvez — ela refletiu.
Mas, antes que pudesse concentrar seus pensamentos no que
estava realmente acontecendo, o Chapeleiro a atingiu em cheio na
cabeça após cair da claraboia (que estava escura, óbvio, e se abria
para absolutamente nada). Ela caiu de lado e conseguiu evitar ser
acertada novamente, desta vez pelo Dodô. O Grifo abriu as asas
elegantes e pousou em cima do que parecia muito com um bar.
— Minha nossa, este lugar mudou um pouco — disse o
Chapeleiro, engolindo em seco.
— Não me diga que você frequentava este estabelecimento
infame — o Dodô falou, com uma piscadela e uma cotovelada nas
costelas.
— Quando eu era mais jovem e um pouco menos Maluco — o
Chapeleiro disse com dignidade, puxando os punhos da manga e
endireitando a coluna. — Mas havia mais comes e bebes na época.
E menos… feridos…
O pato decidiu que os recém-chegados estavam bem e se
afastou, verificando outras aterrisagens recentes.
— Mas quem são todas essas pessoas? — Alice perguntou
enquanto algo parecido com um ouriço enorme e três tufinhos de
filhotes passavam por ela, em um gingado triste. A mãe, Alice
deduzia, agarrava uma bolsa pateticamente pequena de pertences e
tinha uma atadura em torno de um braço quebrado, o que realmente
não funcionava por causa dos espinhos que rasgavam a lã.
— Gente que não tem outro lugar para ir — respondeu o
Chapeleiro com um aceno de cabeça. — Pensei que o Conta-
pabeça tivesse se tornado um lugar para conspiradores se
encontrarem, para a resistência se reunir, mas parece que o local do
esconderijo vazou. — São todos refugiados da guerra da Rainha de
Copas.
— Minha boneca! Eles levaram minha boneca! — Um dos tufinhos
de filhotes chorava.
Alice franziu o cenho.
Ela tem mãos, mas não pode agarrar…
Nada no País das Maravilhas era uma coincidência. Menos ainda
com o Mestre Gato ajudando.
— Quem pegou sua boneca? — ela perguntou o mais gentilmente
que pôde, ajoelhando-se para olhá-la por entre os pelos.
— Os soldados, é claro — a mãe retrucou, puxando a filhote
protetoramente. — Eles também pegaram o caneco e a bola de
Earnest! Facínoras! Brutamontes!
— Mas você ainda tem sua bolsa… e um colar… — Alice falou,
confusa. — Por que eles se importariam com brinquedos e a
deixariam manter os objetos de valor?
— Vai saber? Mas o pai deles está desaparecido e nós não temos
casa. A boneca é o menor dos nossos problemas agora — a mãe
respondeu, esforçando-se para não chorar, enquanto franzia a testa
e marchava embora.
— Estranho — disse o Chapeleiro, o que também era estranho
para ele.
— Vamos encontrar Mary Ann — instigou Alice, engolindo em
seco quando viu um… Bem, difícil dizer o que era. Algo longo e
peludo e enfaixado da cabeça ao casco com uma longa atadura.
Sua boca azul soltou um gemido quando uma dupla de porcos
tentou carregá-lo delicadamente para um banco. — Talvez ela possa
esclarecer este mistério para nós.
— Eles devem estar nos fundos, no cassino escondido — opinou
o Chapeleiro, apontando. — Atrás do armário falso.
Como ele sabia disso era mais do que Alice queria pensar no
momento. Ela abriu caminho pela multidão em direção ao fundo do
bar. Nem em milhares de anos, nunca imaginaria que se encontraria
em um lugar daqueles, fosse no mundo real ou no País das
Maravilhas. Houve uma época, na infância, que ela achava que os
homens e as mulheres que ficavam atrás dos balcões em bares não
tinham pernas e que eram apenas fantoches que se moviam para lá
e para cá atrás de palcos de madeira enquanto, magicamente,
produziam copos e espuma.
Alice se esgueirou ao longo do grande conjunto de prateleiras de
madeira que antes deviam estar cheias de garrafas de tudo o que
era considerado bebível no País das Maravilhas. Lá restavam,
empoeirados em uma prateleira inferior, alguns potinhos marrons de
licores e de cerveja preta; ela apressadamente agarrou e enfiou
esses em sua manga. beba-me dizia o primeiro, violetas dizia o
segundo, horas dizia o terceiro.
Tentou afastar o armário da parede como se estivesse abrindo
uma porta normal, embora de formato estranho. Ele não se moveu.
— Outro quebra-cabeça do País das Maravilhas não — Alice
gemeu.
— Porta de correr, menina tola! — o Chapeleiro disse com
impaciência. — Nunca esteve em uma sala secreta antes?
Alice empurrou, e a coisa toda simplesmente deslizou para o lado
sem muito esforço. Permitiu-se exatamente um segundo (do País
das Maravilhas) de decepção. Um vento frio e úmido soprou da
abertura retangular estreita, como se estivesse tentando fugir do
que quer que estivesse lá dentro. Relutantemente, Alice entrou,
segurando a asa do Dodô e a mão do Chapeleiro e puxando-os
atrás de si.
(O Grifo ficou para trás. Quando o viu pela última vez, ele estava
permitindo que uma pessoa doente fosse carregada em seu dorso
macio e peludo para que um pássaro médico pudesse examinar
melhor.)
O cômodo em que eles entraram era exatamente como Alice
imaginaria a base escondida de uma causa rebelde secreta: frio e
escuro, exceto por uma vela sobre um caixote usado como mesa. O
cheiro rançoso de suor e exaustão preenchiam a escuridão, em uma
extremidade do espectro do cheiro sentia-se azedume e, na outra,
terra e mofo. Quatro criaturas cansadas até os ossos amontoavam-
se em sacos de suprimentos: um grande rato-almiscarado, um
homem todo vestido de jornal, um pássaro branco de olhos rubi e
uma…
— Lagarta! — Alice exclamou.
Não era como a Lagarta deveria ser. O bocado arrogante e
rechonchudo, perfeito demais para um pássaro abocanhar, agora
estava magro nos lugares errados e flácido nos outros, como uma
lagarta que, sem as coisas certas para comer ou pensar, se
encolhera feito uma esponja. Havia bolsas profundas sob seus
olhos.
Alice se perguntou por um momento insano se, caso lhe
oferecesse uma folha grande e suculenta ou um copo de limonada,
ela se inflaria de volta para a antiga glória.
Pelo menos, o comportamento era o mesmo: virou uma cabeça
fortuita em direção a ela e examinou a garota com olhos exaustos,
cansados do mundo.
— Claro que é você — ele falou com a voz arrastada. — Quem é
você?
— Eu vou te dizer quem ela não é — o rato-almiscarado disse
rispidamente, com uma voz áspera e quase interrompendo
totalmente. — Ela não é… — Mas a Lagarta, hábil e
surpreendentemente, tapou-lhe a boca com uma pata atarracada.
O pássaro branco começou a esvoaçar e arrulhar. Sacudiu a
cabeça, e as asas e penas voaram de debaixo dos braços.
— Onde está Mary Ann? — o Chapeleiro perguntou, olhando ao
redor como se esperasse que ela pulasse de trás de um barril ou
das sombras e gritasse: Surpresa! — Viemos nos juntar a ela e a
vocês. Eu acho que Alice… Esse é o nome dela, sabe. A maioria
das meninas têm. Nomes, quero dizer, não Alices. Ela foi convocada
aqui por Mary Ann especificamente para nos ajudar contra a tirana.
— Nenhum de nós sabe do que você está falando — o rato--
almiscarado murmurou, desviando o olhar.
— Ah, pelo amor de Deus! — Alice ralhou. — Vocês estão em
uma sala escondida em um lugar escondido chamado Conta-
pabeça. Estão cuidando dos feridos e assustados lá fora e estão
planejando o próximo passo contra a Rainha de Copas aqui dentro.
Mary Ann veio até mim… Ela me chamou aqui para ajudar. E você
também, Lagarta! Então, por favor, apresentem ela de uma vez!
— Apresentem ela — o pássaro cacarejou histericamente. —
Rima com berinjela. Sim, sim. Também podiam trazer uma abóbora
ou um ovo. Isso seria muito, muito melhor. Adubo.
— Ora, que grosseria! — Alice repreendeu. — Falar assim de sua
líder.
— Não… Você não entende. Somos inúteis sem ela. Estamos
perdidos — disse o homem de jornal com tristeza, observando o
pássaro. — Suas palavras valiam mil libras por letra.
— Sim, dá para perceber — respondeu Alice, respirando fundo e
tentando permanecer paciente. — Onde. Está. Ela?
O pássaro cacarejou novamente:
— Onde alguém está quando não está no País das Maravilhas?
Quando o outro venceu e você é Desfeito?
— Eu não… — Alice foi dizer, mas começou a suspeitar.
O homem de jornal a mirou com olhos tristes e gentis.
— Mary Ann está morta.
Capítulo 12

— O QUÊ? — Alice arquejou. — Não! Na foto, quando a vi…


Bem, verdade fosse dita, e Alice costumava dizer a verdade, pelo
menos para si mesma, a menina não parecia nada bem na
fotografia. Ela parecia estar encarcerada. Havia sangue e uma
venda. Mas ela estava viva.
— Onde foi isso? — o rato-almiscarado quis saber.
— Você não quer dizer quando? — Alice perguntou, trêmula. —
Há quanto tempo foi?
— O tempo não tem sentido, a menos que ele esteja se
oferecendo para pagar, você sabe disso — disse o Chapeleiro, mas
suas palavras eram fracas e estridentes, não havia emoção nelas.
— Ela estava sendo mantida contra a vontade em algum lugar.
Mas pensei que ela tinha fugido!
Alice torceu as mãos e espremeu os lábios para segurar o choro.
Por que estava tão aflita? Não conhecera Mary Ann. Nem mesmo
durante sua primeira vez no País das Maravilhas. Mary Ann sempre
pareceu uma ficção, um fantasma fora de alcance, um coelho
branco. Agora ela estava fora do alcance de Alice para sempre.
Ela não sentiu nada quando a outra garota morreu, sentiu? Algum
tipo de tremor ou eco de sentimento? Se cada residente aqui tinha
uma contraparte na Inglaterra, com certeza alguma conexão tinha
se interrompido quando ela morreu, certo? Uma dor fantasma no
pescoço de Alice?
Com certeza…
Cortem-lhe a cabeça…
— A Rainha de Copas — Alice murmurou. — Foi ela, não foi? Ela
encontrou e executou Mary Ann.
— Menos execução e mais assassinato. Menos capitalismo e
mais pena capital — disse a Lagarta amargamente.
O Dodô sentou-se repentinamente ao lado de Alice, desabando,
como um menino humano em vez de uma ave, as patas afastadas e
uma expressão embasbacada no rosto.
— Ela não voltou aqui… Não queria atrair a atenção da Rainha
para cá, para que ela não descobrisse sobre nós e os refugiados.
Esperávamos que ela chegasse ao Improvável, mas não chegou —
o rato-almiscarado lamentou.
— Mary Ann sempre escapa — disse o pássaro branco. — Ela
sempre se safa de alguma forma.
— Acho que a sorte dela fugiu com o carteiro — o homem de
jornal disse tristemente.
Todos ficaram em silêncio. Era a única pista de Alice, o único
objetivo, e ela se fora.
Ela verbalizou o que todos estavam pensando.
— O que vamos fazer agora?
— Ora, você deve assumir a resistência e nos levar à vitória no
lugar dela, é claro! — exclamou o Chapeleiro. Então ele franziu o
rosto de dor e puxou o chapéu gigante para baixo, para cobri-lo. —
Aiii, dói fazer sentido!
— Eu não tenho um grama de conhecimento tático ou militar! —
Alice retorquiu. — Você seria um tolo se colocasse o seu destino e o
de todos em minhas mãos! Aparentemente, posso alargar
buracos… Agora esse é meu único talento aqui. Eu não posso…
— Silêncio! — o rato-almiscarado sibilou.
— Eu não posso! — Alice gritou. — Ouçam de uma vez! Vocês
precisam de um líder com experiência. O País das Maravilhas
sempre coloca a gente nas posições mais ridículas… Julgando
corridas da convenção, escolhendo entre irmãos idênticos… Mas
desta vez é mortalmente sério! Acabei de saber que uma pobre
inocente morreu e agora vocês querem que eu pegue em armas
como um centurião! Eu deveria levá-los até Mary Ann, não levar o
lugar dela.
— Mas Mary Ann achava que você conseguiria — disse o Dodô
suavemente. — Ela trouxe você aqui.
— Não, quietos. Vocês ouviram isso? — o rato-almiscarado
repetiu, inclinando a cabeça.
Todos ficaram quietos imediatamente, mas, aos ouvidos de Alice,
não havia nada além dos altos e baixos do caos lá fora.
— Chapeleiro, Dodô, vamos logo encontrar o Grifo, Abílio e o
Arganaz — disse ela depois de um momento, tentando trazer
alguma aparência de ordem aos seus pensamentos. — E o Valete.
Infelizmente, vocês são o mais próximo que tenho de um conselho
consultivo. Não sei como, mas vou decifrar tudo isso.
Alice se levantou e dirigiu-se de volta para a porta secreta,
desesperada para sair da sala úmida, sufocante e cheia de gente
triste.
Pois, apesar de seus protestos, ela já estava superando a triste
revelação da morte de Mary Ann. A discussão com o Chapeleiro foi
uma reação meramente instintiva. Prometera levá-los a Mary Ann e
tinha feito o seu melhor. Agora havia outro trabalho a ser feito. Ela
não tinha ideia do que fazer ou como fazer, só sabia que devia fazer.
Era tão inevitável e sólido quanto uma entediante estátua de granito
em um parque, representando algum líder de peruca de épocas
passadas. Da mesma forma que ela, quando criança, tinha feito,
agora ela apenas faria. Talvez funcionasse. A falecida Mary Ann, ao
que tudo indicava, tinha posto todas as esperanças em Alice. Que
outra escolha havia?
A pergunta era: o que ela poderia fazer? Não era uma nativa do
País das Maravilhas, bem versada em suas regras e leis e na
mudança de geografia. Não tinha grande conhecimento militar,
tendo ignorado todas as lições chatas da irmã quando era criança
(imagine isso realmente voltando para assombrá-la!). Nunca tinha
se envolvido de verdade em qualquer tipo de trabalho nem
coordenado outras pessoas para fazer o que quer que fosse.
Por outro lado, as pobres criaturas do País das Maravilhas não
conseguiam se organizar, nem mesmo quando tentavam ativamente
se ajudar. Dentro da sala secreta, os líderes da rebelião estavam
apenas sentados e enlutados, esperando outra Mary Ann vir salvá-
los. Do lado de fora, na ala hospitalar temporária…
Alice observou enquanto uma toupeira corria para cima e para
baixo com um bom pedaço de couro esterilizado na pata, gritando
“consegui isto, consegui isto!” e, como o grito de resposta de um
pato para acasalar (uma pata parteira, na verdade), veio um
grasnado: “Eu preciso disso, eu preciso disso! Onde está o couro de
toupeira?”.
Quem mais, no fim das contas, poderia salvá-los?
Apenas Alice.
— Lá está o Grifo — disse ela, avistando a criatura, que permitia,
gentilmente, que alguns filhotes perdidos cavalgassem em suas
costas para animá-los. — Não sei como vamos encontrar os outros,
eles são tão pequenos. abílio! arganaz! — ela gritou, com as mãos
em forma de concha ao redor da boca.
— Você viu um lagarto, mais ou menos dessa altura? — o
Chapeleiro perguntou a uma corujinha. Ele ainda estava com o rosto
coberto pelo chapéu, mas, de alguma forma, fazia corretamente os
gestos com as mãos para demonstrar o tamanho.
— Um pequeno arganaz, provavelmente dormindo em algum
lugar — o Dodô explicou a um ganso metade abajur, metade bicho.
— E o Valete, precisamos achá-lo também. — Alice olhou ao
redor, surpresa por não poder vê-lo. Com certeza ele se destacaria
com o chapéu e o imaculado gibão de veludo vermelho. Na verdade,
ele seria a única pessoa ali com elegantes trajes combinando.
Trajes combinando…
— Um Valete com trajes combinando — disse para si mesma. —
Por que isso parece um aviso?
Mas era difícil se concentrar no início do que parecia ser um
pensamento bastante importante: uma vibração baixa começou a
tamborilar pelo Conta-pabeça, irritante e perturbadora.
Ba-boom. Estrondo. Estrondo.
Não parava, vinha abrindo caminho até os ossos de Alice de
forma muito inquietante, igual ao pensamento que ela não
conseguia concluir exatamente.
— Chapeleiro — chamou lentamente.
Estrondo. As vibrações ficaram mais altas, como se um gigante
estivesse golpeando a terra com um martelo enorme.
Estrondo.
Estrondo.
— Lá está ele — disse o Chapeleiro, dando pulos e gesticulando
para um lustre ao qual o Arganaz se pendurava. A criaturinha estava
estranhamente acordada e apontava desesperadamente.
Alice se virou para olhar. Na outra ponta do grande salão, havia
um teto abobadado e uma rosácea com múltiplos painéis que,
juntos, pareciam a abside de uma igreja. O vidro fino estremeceu
com as estranhas vibrações, arqueando para dentro e para fora com
a força das pancadas.
— Engraçado — Alice disse para si mesma —, se esta é mesmo
a abside, então o bar da taverna é o presbitério! E o lugar onde caí é
como a nave… Ah! — exclamou quando tudo fez sentido de
repente.
Estrondo.
Estrondo.
Estrondo.
Tudo chacoalhava; criaturas gritavam.
Trajes combinando.
— Chapeleiro! — Alice pegou a mão dele, o que o deixou imóvel
de tanta surpresa, parecia até que estava ultrajado com o gesto. —
O que igrejas, naipes e prisões têm em comum?
— Alice, não é hora para charadas…
— Vigários, valetes e vigaristas, Chapeleiro! Palavras com V!
O Chapeleiro piscou.
— As igrejas têm vigários, as cadeias têm vigaristas e todos os
naipes do baralho têm um valete! Ele se foi! Eu nem sei se ele
desceu aqui conosco!
— Ele correu de volta para a Rainha — disse o Chapeleiro,
engolindo em seco.
— Ah, o Mestre Gato sabia! Ele tentou me avisar… — Alice
lamentou. — Temos que deixar este lugar imediatamente. Não sei o
que está acontecendo, mas não deve ser uma coincidência a
ausência do Valete e o que está acontecendo agora…
— Rápido, saiam pela porta dos fundos — disse o Dodô,
acenando com a cabeça.
— Estamos no Conta-pabeça! — o Chapeleiro gritou. — Não
existe uma “porta dos fundos”.
— Claro que existe. Este é o País das Maravilhas — disse Alice
com fervor. — Sempre existe uma árvore com uma porta ou um
buraco no chão ou uma porta em uma porta. Vamos. Vamos
encontrá-los e então…
E então os estrondos cessaram. Assim como todo o resto no
Conta-pabeça: por um momento mágico, todo o caos ficou estático,
cada olho e antena congelados; cada bico, focinho, lábio e boca
aberta, mas em silêncio, todos imóveis, à espera.
E então as paredes desabaram.
— Igualzinho a um castelo de cartas — Alice observou, levemente
insana. — Ou uma casa de papelão muito barato, ou um balão de
papel que seu tio gosta de fazer com as folhas de uma revista
descartada.
Não havia tijolos reais por trás das paredes de tijolos, nem pedras
ou troncos de madeira para sustentá-las, nem mesmo sujeira, como
seria de se esperar embaixo da terra.
As bordas da construção dobraram-se para dentro, finas e frágeis,
e soldados marcharam sobre as ruínas amassadas.
Não que os soldados fossem muito mais robustos do que o
Conta-pabeça em si, mas havia muitos deles: dez, noves, oitos e
ases, todos em armadura vermelho-sangue. Empunhavam espadas
curtas e feias, e machados cruelmente afiados. Fileira após fileira,
marchavam sobre as ruínas da velha taberna, esmagando-as até
virar poeira sob seus pés e fluindo sobre os destroços em uma
inundação implacável.
— Corram! — Alice gritou. — Todos, corram! Corram!
Desta vez, ela se manteve firme.
Não tinha ideia de quão grande era em comparação às cartas; a
visão delas era tão aterrorizante que nem parou para ver se poderia
colocá-las no bolso. Como formigas loucas, diferente de tudo que
ela já tinha imaginado, as cartas preenchiam cada pedacinho de
espaço desocupado e atacavam todas as criaturas do País das
Maravilhas pelo caminho.
— Não! — ela gritou.
Alice atirou as mãos para a frente, incapaz de pensar em outra
coisa para fazer.
— Não! Não termina assim! não!
Capítulo 13

E ENTÃO, É CLARO, ela acordou.


Alice
COMO ELA É
Capítulo 14

— CALMA, RELAXA! — uma voz estava dizendo.


Uma voz agradável, mas, apesar de soar amigável, uma voz que
irritou Alice profundamente. Tom errado, hora errada…
Ela continuou a lutar e atacar com as mãos, mas sua mente
desperta já sabia a verdade irrefutável de quando e onde estava.
— Não! Você não pode! Tenho que voltar!
— Voltar para onde? — o jovem perguntou com leve divertimento.
Alice parou com as simulações pugilísticas e se sentou. Estava
debaixo de uma árvore: o carvalho de grandes galhos sob o qual
tinha adormecido tantos anos antes, como, aparentemente, tinha
feito agora. O solo estava duro e um pouco frio, mesmo com a capa
dourada que ela colocara. Katz tinha cuidadosamente posto sobre
ela o seu casaco. Cheirava levemente a loção pós-barba com notas
quentes e agradáveis de musgo. Havia ali, uma parte ociosa de sua
mente percebeu, um único cabelo ou fio roxo preso na parte de trás.
Nas mãos dela havia folhas mortas, que sobraram do ano
passado, talvez, esmagando-se como cartas frágeis.
Katz sorria para ela, um pouco confuso, mas não preocupado.
— Sabe, voltar — ela disse de repente. — Eu tenho que voltar
para… para…
Mas se interrompeu, sentindo-se tão perdida quanto seu corpo.
Suas últimas aventuras no País das Maravilhas já estavam se
dissipando, girando de volta, como uma brisa, para o lugar de onde
vieram, frágeis demais para permanecer muito tempo neste mundo.
A urgência que sentia tinha a urgência de qualquer pesadelo ao
acordar. Real, mas irreal.
— Tenho que encontrar um jeito de voltar lá — disse
desamparada. — Eles precisam de mim. Eu os abandonei de novo.
— Se você fosse outra pessoa, eu perguntaria se talvez não
estaria exagerando no láudano — brincou Katz, oferecendo a mão
para ajudá-la a se levantar.
— Não mesmo, sinto dizer. — Ela suspirou, aceitando a mão dele
e levantando-se com um rangido. E desejou poder contar tudo a ele,
mesmo que fosse apenas como contar um sonho. Poderia ajudar a
manter as memórias na cabeça por mais tempo e seria bom,
finalmente, compartilhar as histórias com alguém. — Seria uma
desculpa muito conveniente — disse em vez disso. — O láudano,
quero dizer. Embora fosse uma revelação terrível. Tome aqui seu
casaco de volta… Desculpe, mas esmigalhei algumas folhas nele.
— Ah, não, folhas, os céus me defendam — disse ele
suavemente, e o espaço sob as sobrancelhas castanhas, arqueadas
e sólidas formava dois pequenos amanheceres de pele; ele era um
homem que podia sorrir com cada parte do rosto e não ter que
mexer os lábios. Ele pegou o casaco e jogou-o por cima do ombro,
despojado.
Alice se ocupou em dar tapinhas no vestido, sacudir
cuidadosamente a capa e dobrá-la de novo, enquanto corava,
tentando não olhar para Katz.
Ela precisava descobrir como voltar para seus amigos e salvá-los,
porque eles estavam encrencados, não estavam? Tudo estava
difuso e embaçado agora. A Rainha de Copas estava envolvida de
alguma forma… Ela tinha que ser derrotada… Certo?
Só que Alice também tinha que voltar para casa antes que alguém
tivesse um ataque por ela ficar fora por tanto tempo. O sol
finalmente ansiava pelo horizonte, os raios se estendiam até o
oeste, como se mal pudessem esperar para chegar lá.
Os dois andaram em silêncio por algum tempo, e Alice ficou
extremamente grata por isso. Katz parecia sentir que ela precisava
de um pouco de tempo consigo mesma. Ele não estava fazendo
perguntas nem exigindo o zelo de uma etiqueta sexista que
geralmente acompanhava esse tipo de situação: Pronto, eu fiquei de
vigília e emprestei meu casaco, agora você me deve pelo menos
uma conversa. De certa maneira, estar com ele tinha a facilidade de
estar com um morador do País das Maravilhas. Agora experiente,
depois de duas visitas, Alice percebeu que, apesar de todos os
maneirismos frustrantes, pelo menos ninguém precisaria se sentir
em dívida ou obrigado a seguir os mandamentos dos costumes
sociais por lá. Era como tomar chá com um bebê que engatinha:
uma bagunça, mas sem culpa nem regras.
(Embora, diferentemente do povo do País das Maravilhas, Katz
era totalmente humano e tinha lábios da mesma cor das bochechas,
apenas vários tons mais escuros.)
— O quê… Que diabos está acontecendo aqui?
Alice olhou ao redor do parque, esperando algum tipo de crime ou
outra malandrice sendo perpetrada. Mas não havia nada. Adiante,
no caminho, estavam uma governanta e seus dois jovens tutorados
que corriam alegremente para lá e para cá. Mais adiante, um casal
de idosos corcundas subia uma colina de mãos dadas. A cena era
tão serena quanto poderia ser.
Atrás deles, no entanto, estava o sr. Coney (sério, que azar!),
andando rapidamente para alcançá-los. Agora ele vestia um terno
cor de chocolate moderadamente moderno, com calças largas,
paletó comprido e um chapéu de palha impecável. Este estava
colocado quase perfeitamente sobre o cabelo volumoso com óleo de
macassar; Alice se perguntou se ele tinha que passar o óleo
enquanto ainda penteava os cachos. Se ela não conhecesse o
cheiro nem a consistência, até poderia achar que parecia muito
elegante.
Teve a impressão de ouvir um tico do suspiro de Katz, mas foi só:
seus olhos castanhos sorridentes se cristalizaram em uma
suavidade estoica.
— Quem é você? Este homem está lhe incomodando? Pare agora
mesmo de assediar esta senhorita! — Coney ordenou. — Deixe-a
em paz.
As crianças que brincavam adiante riram do comportamento dele.
Era mais do que óbvio que Katz e Alice eram amigos e ninguém
estava incomodando ninguém.
Alice se sentiu mal por todos os envolvidos e por todos que
assistiam à situação, incluindo Coney, mas acima de tudo, desejou
que ele desaparecesse. Pela toca de um coelho, de preferência.
— Em paz? — ela perguntou secamente. — Do quê?
— Eu não tinha percebido que minha aparência era tão
assustadora. A menos que você já soubesse que sou um advogado
— Katz disse tranquilamente, com uma pequena reverência
zombeteira.
— Agora que te vejo de perto, percebo que te conheço. Você é
aquele tipinho que está sempre se envolvendo com todos os
miseráveis e a ralé da praça Wellington — disse Coney
acusadoramente. — Anda por lá com pretensões e ares de bem-
querer, mas, na verdade, são esquemas e motivos questionáveis.
Um tom de rosa mais profundo do que o normal passou pelo rosto
de Katz, feito uma única marola em uma lagoa outrora estática. Não
deixou nada em seu encalço, desaparecendo por completo.
— Sem pretensões, bom senhor. Deixo isso para aqueles que têm
tempo livre e chapéus elegantes. As crianças e as famílias da
Praça, muitas vezes, estão à mercê de um sistema que pende
contra o interesse delas, eu bem sei. Eu apenas ajudo, mesmo que
as chances sejam pequenas.
— Sr. Coney — disse Alice o mais educadamente que pôde —, é
um prazer vê-lo novamente. Para onde está indo?
Ela esperava que ele entendesse a dica não tão sutil. Indo. Ou
seja, indo embora.
— Na verdade, estou justamente correndo para uma reunião
sobre como salvar nosso país desses… daqueles… parasitas
pestilentos — ele respondeu com uma quantidade impressionante
de presunção. — Antes que eles acabem ficando aqui de forma
permanente, conspirando para destruir a Inglaterra como estão
tentando fazer na Rússia. Eles não têm patriotismo, sabe, até
mesmo os chamados cidadãos nascidos aqui. Não têm lealdade a
nada, exceto uns ao outros e a suas… suas…. moedas douradas.
— Shekels, acho que você quer dizer — Katz corrigiu
educadamente.
— Eles estão tentando derrubar o czar!
— Você está de brincadeira comigo? — o outro homem disse, por
fim perdendo a compostura. Seu rosto era uma mistura de
descrença genuína e um cansaço terrível; por um momento, as
bordas de seus olhos o fizeram parecer muito mais velho do que
realmente era. A distinta ausência de raiva e a inteligência por trás
desse fato cintilaram em seus olhos como um tesouro antigo e
precioso.
Alice sentiu o peito apertar. Machucou e foi maravilhoso ao
mesmo tempo.
— Essa história é apenas isso: uma história. É uma porcaria
antissemita. Meu povo tem sofrido nas mãos do czar e de nossos
compatriotas, não o contrário.
— Claro que você diria isso — disse Coney, invadindo o espaço
de Katz, olhando de cima para o homem ligeiramente mais baixo.
Katz sustentou o olhar, impassível.
Alice se perguntou, talvez pela primeira vez, embora certamente
não pela última, se todos os conflitos humanos eram iniciados por
homens que acreditavam estar fazendo isso por uma mulher.
— Não sei ao certo por que você está preocupado com o destino
do czar da Rússia — disse ela, interrompendo o que parecia ser
uma partida de tirar o fôlego —, mas tenho certeza de que está
sendo imperdoavelmente grosseiro. O sr. Katz e eu somos amigos e
nós nos esbarramos por acaso no parque. Da mesma forma como
agora você acabou de esbarrar conosco. Ele estava se oferecendo
para me acompanhar até minha casa.
Katz pestanejou diante da afirmação inesperada e sorriu
estupidamente antes de se recuperar.
— É mesmo? — Coney disse com uma longa inalação. — Bem,
devo aliviá-lo desse dever. Eu estava indo nessa direção para me
encontrar com Corwin e depois buscar sua irmã. Vamos todos
participar de uma reunião organizada para arrecadação de fundos
da campanha do Ramsbottom amanhã à noite. Eu sou responsável
pelos broches de brinde.
— Ah, mas é claro que você está apoiando Gilbert Ramsbottom.
Aquele troglodita xenófobo — falou Katz, revirando os olhos. — Eu
me pergunto quem você vai contratar para esfregar o chão, buscar o
carvão e amamentar os bebês quando ele tiver chutado para fora
todos que não têm o nome de Harold, ou Arthur, ou William. Desejo-
-lhe boa tarde, então; divirta-se sacudindo seus fasces na ralé.
Alice.
Katz ofereceu a ela uma rápida reverência e saiu caminhando
casualmente para o entardecer, assobiando. Alice, admirada,
observou-o partir: ele dera um jeito de sair de cena sem parecer ter
perdido a discussão.
— Alice? — Coney perguntou chocado. — Como ele tem a
audácia de te chamar pelo nome de batismo?
— Ah, cale a boca — disse Alice, no último minuto tentando dar
um toque divertido a suas palavras. Se fosse natural do País das
Maravilhas, claro que não teria se incomodado. — Se vai me
acompanhar até em casa, vamos nos apressar, ao menos.
E ela partiu soturnamente para a saída do parque.

Esperava se livrar do detestável rapaz antes mesmo de se


aproximar da porta de casa; se ele fosse visto por um de seus pais
ou, Deus me livre, sua irmã, sem dúvida seria convidado a entrar e
então ela teria que suportar ainda mais sua presença agora
repugnante. Pousou o que aparentava ser uma mão delicada na
maçaneta de latão, mas agarrou o objeto com uma força que
rivalizava com a de um fisiculturista de circo.
— Obrigada, sr. Coney, boa noite — disse, abrindo a porta o
mínimo possível.
— Alice? Você está em casa? Quem está aí? — a mãe chamou
do saguão de entrada.
— É sua mãe? — Coney perguntou.
— Não mesmo — Alice prontamente mentiu. — Boa noite, sr.
Coney.
Ela entrou de lado, esgueirou-se ao redor da porta para o interior
da maneira mais deselegante e sinuosa e fechou-a atrás de si,
encostando-se nela como se quisesse manter fora todos os
visigodos.
— Pretendente indesejado? — a mãe perguntou gentilmente.
— Você poderia, por favor, dizer à minha irmã que não se meta
nos meus assuntos? Para sempre? — Alice exigiu. Ela fez menção
de subir as escadas, pois, em sua mente, havia outras questões
muito mais importantes para avaliar e considerar do que essas
bobagens com garotos.
Seus planos, todavia, foram desmontados por uma única
declaração ligeira e infinitamente irritante da mãe.
— Ela tem boas intenções, você sabe disso.
— Para quem ela tem boas intenções? — Alice exclamou,
virando-se. — Mathilda tem ideias fixas na cabeça que não são
alteradas por nada, apesar do fato de que todo o resto do mundo
não vive nessa mesma cabeça, com as mesmas regras dessa
cabeça. E se eu tentasse apresentá-la a alguém que eu
considerasse um rapaz adorável? Um pintor, talvez? Ou um
barqueiro?
— Você mesma nunca se entenderia com um pintor, Alice — a
mãe disse com um sorriso malicioso. — Você tem mais imaginação
e resiliência do que uma centena de jovens artistas. Agora um
barqueiro, que poderia levá-la em incontáveis viagens por rios
pacatos e ganhar uns trocados enquanto faz isso, eu já consigo
imaginar. Seu pai ficaria desapontado, é claro, e preocupado com o
seu futuro financeiro, mas talvez nem tanto se pudesse pescar um
pouco da proa.
— Contanto que eu tivesse um marido bondoso, amoroso e bem
financeiramente, não teria problema? — Alice provocou, fingindo
não entender perfeitamente por que essa questão de repente se
tornara tão importante. — Não teria nenhum problema quem ele é
ou o que ele faz? Nem quem é a família dele?
— De jeito nenhum. Contanto que você esteja feliz, ao contrário
da sua… — E aqui os olhos de sua mãe se desviaram
momentaneamente.
— Ao contrário de minha tia — Alice concluiu suavemente. — Ela
é feliz, sabe. E financeiramente o futuro dela é bom.
— Mas o que você sabe sobre isso? As finanças, quero dizer, não
a parte sobre ser feliz — a mãe atalhou rapidamente, evitando
pensar nas coisas não convencionais que fariam feliz a cunhada
eternamente solteira.
— Ah, deixa para lá. Estou exausta da minha atual “resiliência”.
Você se importaria se a sra. Anderbee me trouxesse um pouco de
leite morno? Acho que vou pular o jantar e me deitar cedo hoje.
— E também vai “pular” a companhia de sua irmã à mesa? — a
mãe perguntou, matreira.
Alice fingiu não ouvir.
Duas vezes, de fato, estivera no País das Maravilhas e não
apenas sonhado com ele. E duas vezes ela deixara o País das
Maravilhas ao acordar. Talvez o sono fosse meramente uma porta, o
caminho de volta.
Arrancou as muitas camadas de roupa tão rápido quanto pôde e
vestiu sua camisola mais quente e aconchegante. Apanhou Dinah
de onde a pobrezinha estava descansando sob o sol no parapeito
da janela e levou-a para a cama com ela, enroscada em seu próprio
cabelo loiro. Dinah não resistiu e até mesmo se enrolou em torno da
cabeça dela, ronronando em seu ouvido.
A sra. Anderbee apareceu com o leite e uma carranca suspeita.
— Não é o momento certo para suas flores — disse em seu
carregado sotaque do Norte. — É melhor não ficar doente.
— Obrigada pelo monitoramento tão atento da minha saúde —
Alice falou com leve divertimento, pegando o leite. — Flores foi uma
metáfora adorável para isso. Mas sinto mesmo um leve mal-estar.
— As meninas de hoje com seus humores e mal-estar — a sra.
Anderbee murmurou. — Na minha época, você se embrulhava nos
trapos que precisava e seguia com o trabalho. Fazendas não
esperam indisposição nenhuma passar.
— Obrigada, sra. Anderbee — Alice disse entre um sorriso e um
gole de leite. Pelo menos, se estivesse lá fora conduzindo uma
charrete em um campo, ela pensou, não precisaria se preocupar em
sangrar acidentalmente sobre o caríssimo bordado de uma
almofada. A velha criada saiu e fechou a porta o mais
silenciosamente possível. Por baixo da dureza exterior, ela se
importava. Só era preciso ignorar o que ela dizia e prestar atenção
no que ela fazia.
Leite quente para dentro, Alice se viu deslizando agradavelmente
para o sono, como se não tivesse passado metade da tarde
cochilando sob uma árvore em um parque.
Capítulo 15

MAS É CLARO QUE ela acordou em Kexford.


Capítulo 16

EMBORA ALICE NÃO TENHA voltado ao País das Maravilhas


naquela noite, ela chegou muito perto; disso tinha certeza. Acordou
com uma sensação de limiar, como se sua eu-do-sonho tivesse
acabado de tocar na película que separava a Inglaterra daquele
outro lugar.
É muito parecido, pensou com uma estranha premonição, a uma
pessoa idosa que sonha com a juventude. Não muito jovem de novo
na realidade, mas perto o bastante para que, ao acordar, ocorra
certa confusão sobre qual versão de idade habitava o corpo atual.
Teve um vislumbre horripilante de corpos estranhos de criaturas
do País das Maravilhas tombando uns sobre os outros enquanto
fugiam dos soldados de cartas. Bicos, caudas, olhos dourados
inumanos e enlouquecidos e pessoas com chapéus estranhos.
Havia o sorriso do Valete — aaah, como queria arrancá-lo com uma
bofetada.
Havia sangue gotejando de rosas. Não tinta vermelha.
Também um vislumbre de um castelo plácido em um vale remoto
que parecia ser importante. Ela o conhecia? Era familiar? O que
significava?
Se ao menos pudesse alcançar e dar um jeito de forçar a
passagem!
— Oras, acorde, sua preguiçosa! — disse uma voz que não era
de Alice. Você dormiu por dez horas ou mais! Isso é o que acontece
quando não se tem um projeto de verdade, ou mesmo um
pretendente, ou qualquer atividade para ocupar o tempo.
Alice manteve os olhos fechados, torcendo para que a voz fosse
embora, tentando manter nítidos os poucos momentos de que se
lembrava. O castelo era importante. As criaturas feridas fugindo
eram importantes.
Tudo era importante, menos aquela voz irritante chamando-a para
longe do País das Maravilhas.
— Sério! Estou falando com você, Alice. Abra já os olhos! Eu sei
que você está acordada.
— Cale a boca — Alice disse à irmã enquanto se contraía ainda
mais sob as cobertas e colocava um travesseiro sobre a cabeça.
Mathilda tinha que sumir. Se Alice tivesse apenas alguns instantes
para si mesma, talvez pudesse se lembrar e descobriria o sentido de
tudo. — É muito grosseira por entrar sem bater. Estou muito
ocupada no momento. Vá embora.
— Não vou, não — a irmã disse com algum divertimento.
Alice abriu um olho e viu Mathilda, severamente de touca,
observando desconfiada e quase com um brilho no olhar.
— Por favor. Vá embora — disse Alice o mais seriamente que
pôde. — Estou tentando me lembrar de algo muito importante, e
você está impossibilitando isso.
— Que bobagem. Tentando se lembrar de um sonho? Isso é não
estar ocupada. Preciso falar com você.
Alice tirou o travesseiro da cabeça e apenas encarou a irmã, sem
entender. Lá estava ela, plena, serena e presunçosa em sua
posição, empoleirada na ponta da cama. Como se a única forma
adequada de o universo funcionar fosse quando irmãs mais velhas
com ideias que consideravam importantes irrompiam em quartos
sem ser solicitadas, acordando pessoas alegremente adormecidas,
para corrigi-las de suas (supostamente defeituosas) rotinas e vidas
pessoais.
Isso era o que realmente a irritava a respeito de Mathilda, Alice
compreendeu de repente. Além das lições não solicitadas quando
ela era mais nova, das apresentações indesejáveis a rapazes
repugnantes agora que estava mais velha, dos constantes e
implacáveis sermões em voz alta sobre suas crenças e sua visão
política, além disso tudo, havia o verniz de uma presunção
inabalável, uma certeza invencível sobre tudo o que ela fazia. E a
irmã agia sem hesitar ou perguntar. Existia apenas uma visão de
mundo possível, e era a de Mathilda. Não era nem que ela
rejeitasse as crenças de outras pessoas; ela literalmente não as
enxergava.
— Você tem dois minutos — Alice disse calmamente. — E se
sequer entrar no meu quarto novamente sem permissão, vai acordar
na manhã seguinte com um manjar branco escorrendo pelo rosto.
Os olhos castanhos de Mathilda se arregalaram em um choque
extremamente satisfatório.
— Esse é precisamente o tipo de comportamento que eu queria
discutir com você, Alice — ela disse, em um tom um pouco mais
estridente do que provavelmente pretendia.
(Outro fator insuportavelmente irritante era o tom constantemente
calmo e condescendente dela. Mathilda perdê-lo representava uma
marca de “missão cumprida” no tabuleiro mental de Alice.)
— Ontem você foi excessivamente grosseira com meu amigo sr.
Coney.
— Ele foi extremamente grosseiro! — Alice retrucou. — Ele se
comportou horrivelmente, como um tio, um irmão mais velho ou um
tratador encarregado da besta Alice. Ele disse coisas terríveis e
muito cruéis para meu amigo sr. Katz. E ele começou, eu devo dizer.
Mathilda ficou chocada em um silêncio momentâneo. Obviamente
não havia sido informada de toda a história pelo fofoqueiro que a
passara adiante.
Mas não questionou o que Alice disse.
— Bem, mas o sr. Katz não é… nosso… conhecido… — ela
começou, justificando-se. Era muito óbvio o que não é nosso
conhecido realmente significava.
— Ele podia ser um sátiro ou um demônio e ainda assim caberia a
um cavalheiro inglês comportar-se com o mínimo de educação, se
ele não foi insultado pela outra parte — Alice disse friamente. — E,
como o sr. Katz não é nenhum dos dois, mas um advogado, talvez
até mereça o mínimo de respeito.
Mathilda suspirou e depois assentiu, olhando para cá e para lá,
quase nervosa. Alisou a frente do vestido:
— Você tem razão, claro. Eu acabei de… Coney é um amigo
próximo de Corwin e é braço direito de Gilbert Ramsbottom.
Alice se surpreendeu um pouco com o que ouviu: agora o sr.
Headstrewth era Corwin para sua irmã. Isso era um passo adiante!
— Ele terá um grande futuro na política, talvez não em um
verdadeiro cargo eletivo, como o próprio Ramsbottom, mas nos
bastidores. Um organizador, um executor. Mas isso não importa, é
claro — acrescentou rapidamente, vendo a expressão de Alice. — É
que agora ele está tornando as coisas um pouco difíceis para
Corwin por causa da… interação de vocês ontem. O que me
colocou em uma posição muito difícil. Talvez eu jamais devesse tê-
los apresentado da maneira que fiz, mas agora… Ele não consegue
se tocar nem largar o osso... Como um buldogue quando trava as
mandíbulas.
Alice estava surpresa tanto com a metáfora estranhamente vívida
de sua irmã outrora monótona e plácida, quanto com o quase
pedido de desculpas que a antecedeu.
— Corwin entende que você não quer nada com Coney… Acho
que um pombo de passagem perceberia isso… mas o sujeito é
amigo dele. Você poderia… eu não estou pedindo para encontrar-se
com ele como um favor para mim, mas poderia, talvez… talvez
deixar o relacionamento entre vocês com um gosto menos amargo
do que uma porta literalmente batendo na cara dele?
Alice queria gritar. E não só por causa da imposição que estava
sendo obrigada a suportar, que era tudo consequência da
intromissão inicial da irmã. A tola Mathilda a fazia perder tempo
divagando sobre garotos, e amizades, e relacionamentos, e o que
era pouco mais do que fofoca enquanto um mundo inteiro estava à
beira de um colapso.
Enquanto o destino de seus amigos estava à beira de um
desastre.
No entanto, conforme as horas iam e vinham desde que fora
expulsa do País das Maravilhas, mesmo com o sonho da noite
anterior, a urgência da situação tinha diminuído ainda mais, pelo
menos emocionalmente. O sentimento de desespero rapidamente
se tornava mais parecido com o desejo de voltar a um livro cujo
enredo acaba de atingir o clímax quando alguém é rudemente
afastado por questões rotineiras. O leitor devoto está ansioso para
retornar a essas páginas… Mas tal necessidade não é sentida tão
fortemente quanto, digamos, a necessidade de garantir que há leite
suficiente para o bebê.
Quando Alice voltou a se concentrar na irmã, viu uma moça
irascível que estava preocupada com os amigos e com o
relacionamento com seu pretendente, que ela obviamente amava. E
basicamente admitira isso para sua “tola” irmã mais nova. Ela havia
admitido fraqueza.
Tudo isso era comovente, mas Alice ainda tinha que tirá-la do
quarto o mais rápido possível.
— Oktudobemtantofaz — ela disse mal-humorada. — Falo com
ele uma última, última, vez com você e Corwin presentes. Mas sem
compromissos de longo prazo nem nada íntimo como um passeio
de carruagem ou um jantar no clube. E algo que tenha um término
predefinido.
— Esplêndido! Eu tenho a ocasião perfeita! — Mathilda exclamou,
os olhos se iluminando. Entretanto, não disse obrigada, notou Alice.
Em vez disso, puxou um de seus panfletos repugnantes. O coração
de Alice afundou. — Hoje à noite é a palestra para arrecadar fundos
para o comício. O sr. Ramsbottom vai falar para os apoiadores mais
próximos. Haverá comes e bebes. Nós quatro vamos comparecer e,
dessa forma, eu consigo fazê-la participar de uma de minhas
reuniões.
— Ótimo, sim, fantástico, você venceu, agora sai daqui — disse
Alice, escorregando feito uma minhoca de volta para as cobertas e
colocando todos os travesseiros sobre a cabeça. Sentiu a cama e a
pressão no ar mudarem quando a irmã se levantou e saiu do quarto.
— Paus — disse Alice sem um bom motivo e voltou a tentar
sonhar.

No entanto, não chegou nem perto de deixar a Inglaterra ou


mesmo pegar no sono. E, surpreendentemente, à medida que o dia
avançava, o País das Maravilhas esvaía-se tanto que esquecera-se
dele inteiramente por minutos. Tomar banho, se vestir, checar a
pouca correspondência que tinha e evitar qualquer outro contato
com a irmã ocupou a maior parte da tarde. Quando descobriu que
Mathilda havia convidado o sr. Headstrewth (Corwin) para um breve
chá antes da palestra, Alice escapuliu de casa com a justificativa de
que ela também iria se fortalecer para a noite… mas na loja de chá
da sra. Yao.
(Lá no estoque dela, havia vários chás especiais que induziam o
sono: lavanda, camomila, raiz de valeriana, entre outros, e Alice
pensou que poderia se beneficiar deles.)
Este dia não era nem de perto tão glorioso quanto os anteriores.
Estava escuro e nebuloso, o que praticamente implorava por um
sono prolongado. Um dia para o edredom, como uma das amigas
mais próximas de Alice costumava dizer. Com certeza, não era um
dia para assistir a palestras chatas e odiosas.
— Por outro lado, talvez eu fique tão sonolenta e entediada na
palestra esta noite que simplesmente vá cochilar… Como fiz
enquanto minha irmã estava lendo para mim tanto tempo atrás… e
assim conseguirei voltar ao País das Maravilhas!
Esse pensamento a deixou com o humor muito mais animado,
pelo menos até dobrar a esquina e ver a loja de chá. A vitrine
delicada estava quebrada em pedaços, a placa, rachada em duas.
— Pelos céus! — Alice gritou, correndo porta adentro. Pelo
menos, os sinos que tilintaram alegremente após sua entrada não
tinham sido destruídos.
A sra. Yao estava sentada, curvada sobre o balcão, com o lábio
inferior tristemente caído. Mas ela abriu um sorriso assim que viu
Alice e rapidamente se ocupou em medir a quantidade correta do
chá favorito de Alice, despejando água quente de uma chaleira que
estava sempre fervendo.
— Não, pare — Alice pediu. — Deixe-me fazer algo… Você
parece devastada.
— Estar ocupada me impede de ficar triste — disse a sra. Yao
com um sorriso amargo. — Além disso, tenho que pagar pelo dano
de alguma forma. Posso te vender dois biscoitos desta vez?
— Pode me vender meia dúzia. O que aconteceu? Foi um
pássaro?
— Sim. Se os pássaros despencarem como pedras do ar — a
proprietária disse amargamente. E levantou a pedra em questão de
uma poça de vidro estilhaçado que parecia gelo. Era lisa e do
tamanho de um punho e diferente de algo que se apanha na beira
do caminho ou em uma rua de paralelepípedos. Era uma pedra de
praia, com origens distantes de Kexford. Em torno da pedra, um
cordão foi amarrado firmemente, ao qual estava preso um bilhete
surpreendentemente bem escrito:
volte para o lugar donde veio
— Ah, querida — consolou Alice –, que horror!
— Eu sei quem fez isso — disse a sra. Yao, voltando a preparar o
chá. — Aquele menino perverso chamado Danny Flannigan. Mas
não acho que tenha sido ideia dele. Ele não sabe escrever. Nem ler.
A sra. Yao ofereceu a Alice uma linda bandeja com duas xícaras
de chá e pires descombinados, alguns petiscos mimosos e um bule
esmaltado cujo vapor tinha um cheiro divino.
— Você já passou por isso antes?
— Ah, é impossível viver aqui, parecendo diferente de todo
mundo, e não ouvir coisas assim de vez em quando. Quebrar a
vitrine é novidade. Mas já me disseram coisas piores.
— Sinto muito — Alice murmurou. — Eu não tinha ideia.
— Por que teria? Mas agradeço sua simpatia, de verdade. É bom
pensar que tenho uma aliada… com bom gosto para chás.
Alice sorriu e serviu uma xícara para a amiga e depois para si
mesma, inalando o vapor perfumado que o bule emitia.
— Por que não fala com os pais de Danny? Mesmo que o menino
não possa pagar por uma vitrine nova, ele pode ajudar no conserto
ou dar uma mão nas tarefas até que vocês estejam quites.
— Tenho certeza de que ele fez isso persuadido por outra pessoa.
Não é tão esperto. É só um pestinha. — Ela sorriu, matreira. —
Também tínhamos pestinhas em Nanquim e eles também atacavam
proprietários de lojas chineses.
Alice suspirou:
— Só queria que houvesse algo que eu pudesse fazer. Ah! — Seu
rosto se iluminou de repente com uma ideia. — Posso tirar uma foto
sua? Ao lado da vitrine? Segurando a pedra? Eu poderia enviar para
o jornal. “A cena de um crime odioso!”. Pode não ajudar muito, mas
lançaria luz sobre esse tipo de problema e também pode funcionar
como propaganda para seu negócio.
— Ah, que ideia interessante! Mas não quero o nome de Danny
no jornal. Não acredito que ele seja o verdadeiro bandido e, de todo
modo, estou bastante certa de que o pai bateria nele por causa
disso.

Alice passou a hora seguinte montando a cena. Foi complicado


por causa da luz de fundo da própria vitrine, mas ela precisava dos
cacos delineados. Além disso, a sra. Yao queria sorrir para a
câmera; Alice tinha que ficar dizendo a ela para parecer severa ou
triste.
Mas enquanto trabalhava, não conseguia parar de pensar:
Será que ela tem um duplo do País das Maravilhas e quem pode
ser…
Capítulo 17

DEPOIS QUE SAIU DA loja de chá, Alice passou o restinho da


tarde à procura de pistas do País das Maravilhas por todos os
cantos, tirando fotos de qualquer coisa ou pessoa que achava que
poderia ser um candidato provável para um duplo no outro mundo.
Depois tentou cochilar de novo, esperando vagamente que o mundo
acabasse antes que ela acordasse.
A noite chegou, apesar de seus esforços para evitá-la. Antes do
esperado, Mathilda — cabelo com penteado especial, mais daquele
pó no rosto! — apareceu à porta de seu quarto. Pareceu um pouco
decepcionada com a roupa de Alice, inalterada desde a manhã. Elas
não compareceriam a um jantar formal (e Alice não queria ir, de
qualquer maneira), então o vestido bastante simples com losangos
vermelhos parecia aceitável. Engraxou um pouco os sapatos para
tirar o pó e desembaraçou e arrumou o cabelo, mas só.
— Pronta? — Mathilda perguntou, visivelmente se controlando
para não comentar a escolha de roupa de Alice.
— Como nunca estive.
— Isso não é… Você não está levando sua câmera, né?
— Claro que estou. Por quê? Os membros do seu partido farão
algo que não querem que eu fotografe?
— Não, não, claro que não.
Mathilda balançou a cabeça rapidamente, mais como um cachorro
do que como uma pessoa, tentando sem sutileza reiniciar a
conversa:
— Não é divertido? Nós vamos passear juntas! Na cidade!
— Très divertido — Alice respondeu, não exatamente sem revirar
os olhos.
No andar de baixo, Corwin Headstrewth estava tomando um
conhaque com o pai de Alice. Coney as encontraria na palestra.
Pelo menos isso.
— Que encanto! — Headstrewth bradou, radiante. — Terei uma
irmã em cada braço esta noite.
— Só poderá ter o uso permanente de uma — o pai de Alice
disse, com muito menos humor do que aquele tipo de declaração
brincalhona exigia. — E isso eu concedo com bastante relutância.
— Devíamos tirar uma foto para lembrar desta feliz ocasião —
disse Alice e apenas o pai detectou seu tom. Ele escondeu o sorriso
atrás do cálice de conhaque que segurava.
Mathilda emitiu alguns sons negativos, mas Headstrewth ficou
radiante com a ideia. Alisou a frente da roupa, afastou
cuidadosamente um cacho rebelde na testa de Mathilda (um toque
tão íntimo!) e a segurou orgulhosamente na frente dele.
Com certeza um par de capturandans, Alice pensou. Mal podia
esperar para ver o que revelaria.
Durante a caminhada, porém, até ela teve que admitir que
Headstrewth às vezes podia ser charmoso, apesar de barulhento.
Ele não mencionou a palestra, Ramsbottom ou Coney, mas manteve
um diálogo bastante divertido sobre as lojas e pessoas por onde
passavam e até sobre a própria rua.
Mathilda deve tê-lo instruído sobre quais assuntos evitar, Alice
pensou com um risinho entredentes.
Em voz alta, ela disse:
— Ah, vocês estão sabendo? A loja de chá da sra. Yao teve uma
das vitrines quebrada, por um pequeno vândalo com uma pedra.
— Que pena — disse Mathilda com simpatia. — Ela é uma mulher
adorável.
— Decerto foi um daqueles jovens delinquentes estrangeiros,
não? — Headstrewth interrompeu, com mais naturalidade do que
malícia. — Daquela gangue da Praça?
— Nada disso — disse Alice com os dentes cerrados. — Foi um
dos Flannigan, mas encorajado e instigado por alguém que escreve
com uma letra bonita. Eu tirei uma foto da sra. Yao e do bilhete. Se
sair no jornal, talvez alguém reconheça a caligrafia e nós poderemos
descobrir a verdade.
— De fato! — Headstrewth disse como se isso fosse a ideia mais
brilhante e emocionante que já tinha ouvido.
Alice fumegou e focou a atenção na sarjeta, por onde acabara de
escorrer toda a sua boa vontade para com o homem ao seu lado.

O local da palestra era uma casa grande e adorável, muito mais


imponente do que a de Alice e Mathilda, com uma sala especial
adjacente à biblioteca apenas para reuniões como esta. Nela havia
um palco com púlpito e espaço para, no mínimo, cinquenta lugares.
Bandeirolas vermelhas, brancas e azuis foram penduradas em torno
das janelas, mas qualquer potencial festivo era reprimido pelas
conversas intensas dos participantes, todos com olhares sérios e
bocas severas. Um rapaz macilento com uma barba aparada estava
em uma mesa oferecendo broches e faixas onde se lia
ramsbottom para prefeito. Havia também uma pequena pilha de
panfletos dos quais Mathilda tanto gostava.
Nem um pouco divertido. Alice suspirou.
— Ah! Estou tão feliz que tenham vindo!
O sr. Coney se aproximou do trio com alegria, braços abertos para
envolver, pelo menos, o conjunto de Mathilda, Alice e Headstrewth.
Alice notou a expressão nos olhos dele: era deleite, com certeza.
Mas não era um deleite entusiasmado, o tipo de emoção que se
pode esperar de um jovem apaixonado por uma moça que parecia
tê-lo em boas graças mais uma vez.
Eu me pergunto o quanto ele realmente gosta de mim, Alice
refletiu consigo mesma, e o quanto seria apenas bom para sua
carreira se casar com a irmã de Mathilda. Mathilda e Corwin, Alice e
Richard, indo a palestras e promovendo prefeitos e fazendo o Grand
Tour e indo para Londres encontrar pessoas com ideias políticas
semelhantes.
Mathilda e Headstrewth trocaram um olhar rápido, muito familiar,
feito um casal de idosos. Preocupação/esperança/aflição/medo do
constrangimento.
— Não perderia por nada — disse Headstrewth em voz alta.
— Apoiamos totalmente Ramsbottom, como você sabe —
Mathilda acrescentou.
— Eu trouxe meu caderno — falou Alice, puxando o diário — para
que pudesse tomar notas. E minha câmera para mais tarde.
— Esplêndido! — Coney disse com entusiasmo. — Eu guardei
quatro assentos bem na frente para nós. Normalmente, eu estaria lá
em cima, com os broches e pins, sabe. Mas eu queria passar esse
tempo nas trincheiras, por assim dizer, com vocês.
Alice, incapaz de pensar em algo para dizer que não fosse
sarcástico, mordaz ou irônico, não disse nada. Aparentemente
satisfeito com o silêncio dela, Coney os conduziu a seus lugares e
trocou risadas com Headstrewth.
No fim, ficou sabendo que Quagley Ramsbottom era o sujeito
soturno substituindo Coney na mesa com os broches e panfletos.
Aparentemente, os dois irmãos eram gêmeos. Mas, além de suas
teorias políticas, eles tinham pouco em comum, pelo menos
fisicamente: Gilbert, o político, era forte, de aparência amigável,
propenso a sorrisos.
— Cavalheiros Tweedles Dee e Dum, não tenho a menor dúvida
— Alice murmurou, tirando silenciosamente sua câmera e
preparando uma foto.
— Obrigado a todos por terem vindo esta noite — Gilbert
começou. Alice percebeu que ele tinha um broche de ramsbottom
para prefeito na lapela. Seria normal ou pura egolatria?
Depois disso, mal ouviu o que ele falava e foi acotovelada apenas
uma vez por Mathilda por esboçar muito obviamente o Chapeleiro
em seu caderno, que era o verdadeiro motivo de tê-lo trazido.
Palavras e frases, vez ou outra, se faziam chegar a um de seus
ouvidos e daí para sua mente: “… todo mundo, é claro, mas com
foco no verdadeiro pilar da Inglaterra: seus próprios filhos…”, “…
escurecendo nossas soleiras…”, “… filosofias e religiões e até
mesmo alimentos exóticos, anátema para nossas tradições…”.
Alice olhou para Mathilda nesta última:
— Alimentos também? — sussurrou.
A irmã mais velha parecia um pouco incomodada, mas deu de
ombros, lábios apertados.
A maior parte do que Gilbert disse tinha uma entonação otimista e
positiva, na superfície, pelo menos. Ele mencionou como os
imigrantes deviam ser tristes, tão longe de suas verdadeiras casas.
Do mesmo modo, homens e mulheres na plateia murmuraram em
simpatia, assentindo. Falou da necessidade de cuidar deles (embora
isso soasse mais ameaçador do que caridoso) e de como o planeta
tinha, convenientemente, colocado corpos gigantes de água para
separar as várias raças de homens. A audiência engoliu tudo.
Quando terminou, Alice não aplaudiu.
— Há uma sessão de perguntas e respostas — Coney lhe
informou com um sorriso triunfante. — Você não vai ficar?
— Ah — disse Alice —, acho que tenho todas as respostas de
que necessito, obrigada. E o que preciso agora é de uma bebida
gelada.
— Absolutamente! Vou me juntar a você lá fora em um instante!
Eu estarei muito longe até lá, Alice prometeu a si mesma, mas
não disse em voz alta. Dirigiu-se à saída tão rápida e discretamente
quanto pôde, sem esperar pela irmã. Fora da sala da palestra, havia
comes e bebes, e pessoas zanzando, falando mais animadamente
do que antes, os espíritos despertos pela baboseira odiosa e
otimista do aspirante a prefeito. Alice desejou ter trazido um leque.
Estava quente e ela queria partir logo, mas seria grosseiro sem a
irmã. Encontrou a tigela de ponche e serviu-se uma caneca, depois
ficou no canto para beber tão culposamente quanto uma criança
emburrada que deseja passar despercebida com seu copo de leite.
Mas então viu algo que quase a fez engasgar com o primeiro
gole: tia Vivian.
Ela também estava sozinha e bebendo ponche! Mas o fazia sem
parecer solitária; portava-se como se fosse a rainha da sala,
vagamente entediada, esperando algum tapado se aproximar dela.
Seu vestido consistia em camadas de veludo esmeralda, seda e
borlas, encimado por um pequeno, mas sofisticado chapéu
poligonal.
— Tia Vivian! — Alice exclamou, aproximando-se com mais
gratidão do que cabia em seu corpo.
Os olhos da tia, cansados do mundo, se arregalaram.
— Alice, querida, o que está fazendo aqui?
— Estou com minha irmã e o sr. Headstrewth. E Coney —
acrescentou depois de um momento.
— Ah, é verdade, sua irmã acredita nessa bobagem. Eu sempre
me esqueço; ela é tão equilibrada em todos os outros aspectos da
vida.
— Mas o que você está fazendo aqui? Não me diga que apoia
Ramsbottom?
— Que os céus me defendam! Estou aqui como um favor para
Willard — explicou com um giro do pulso e um revirar de olhos. —
Ele foi impedido de participar dessas reuniõezinhas depois da
última. Ele deu uma baita reprimenda em Gilbert e seus comparsas
desagradáveis. Estou aqui para relatar os últimos acontecimentos!
Mas, infelizmente, não tenho muito a dizer além do disparate usual
para semear o ódio que esse público engole.
— Se Willard está tão disposto a se opor a Ramsbottom, talvez
ele devesse se candidatar a prefeito — disse Alice um pouco
maliciosamente, pensando no Chapeleiro e em sua busca constante
por outras pessoas para liderar o caminho. Mary Ann, ela mesma…
— Que ideia! — Vivian disse, chocada. — Eu absolutamente
amei. Ah, quieta, quieta, querida. Eles estão se aproximando.
Vivian acenou com a cabeça por cima do ombro de Alice. O
próprio Gilbert veio até elas, flanqueado por Coney e Quagley. O
aspirante a prefeito estava balançando a cabeça e sorrindo,
enquanto seus pequenos ajudantes abriam caminho, Coney
praticamente pulando de entusiasmo. Mathilda e Corwin vinham
atrás.
— Está linda como sempre, senhorita… — Ramsbottom disse,
acenando para Vivian. — Ainda é senhorita, não é? Há algum
senhor em jogo?
Ela poderia ter dito “infelizmente, não” ou “ainda não,
lamentavelmente”, mas, em vez disso, ela o fitou nos olhos e disse
simplesmente:
— Não.
— Ah, mas a senhorita vem de uma linhagem familiar tão boa e
forte, inglesa até a alma — disse Gilbert com um sorriso, os lábios
carnudos fechados sobre os dentes, apenas os cantos da boca
erguidos. — Precisamos que boas mulheres como a senhorita
garantam que haja futuras gerações iguais.
— Mas há outra geração — Vivian disse serenamente, colocando
a mão no ombro de Alice —, eu não trocaria minhas sobrinhas por
nada.
— Tenho uma lei em mente para situações como esta, caso
algum dia eu tenha a sorte de chegar a um cargo mais alto do que o
de prefeito — Ramsbottom continuou com a ameaça no mesmo tom
afável de sempre. — Uma lei sobre… mulheres não esposadas.
Prevenindo o estilo de vida libertino que a ausência de um
casamento estabilizador com um homem encoraja.
Alice não reagiu; estava muito ocupada observando Mathilda e
Headstrewth, cujos olhos se arregalaram em choque.
— Ah, bem, é um país livre, Gilbert — Headstrewth gerenciou. —
Vivian não é um fardo para o sistema. Ela mesma se sustenta.
Pelo jeito, até eles têm um limite, pensou Alice.
Coney não disse nada, mas sorriu como se seu mestre e seu
amigo tivessem dito as coisas mais inteligentes do mundo e ele
estivesse ansioso por um embate entre os dois.
— Bem, espero que as mulheres possam votar antes que sua lei
seja seriamente discutida — disse Vivian, virando o resto da bebida.
— Quero dizer, todas nós, mulheres, possamos votar, incluindo
aquelas que você teme que estejam invadindo nosso país. Alice,
venha para casa comigo, ainda é cedo e já passou da hora de você
começar a ganhar seu sustento na minha câmara escura. Tenho
uma amiga que quer um retrato da sobrinha, linda e inglesa. Mas
talvez ela seja galesa, ou até francesa, não tenho tanta certeza.
E, com isso, tia Vivian virou-se com a graça de uma deusa e saiu
da sala, Alice praticamente rindo enquanto a seguia.
Ela tomou grandes goles do ar fresco da noite e aproveitou a
sensação de seu rubor indo embora. Os cheiros abafados da festa
foram substituídos por umidade e cavalos e folhagem noturna. A rua
estava silenciosa. Alice sentiu-se desenrolar como uma samambaia.
Então, um trio de homens saiu do clube ao lado, falando alto e
rindo ruidosamente, bem-humorados, embora estridentes.
— Ah, vejam, o evento idiota de Ramsbottom é hoje — um dos
homens mais velhos disse, apontando a bengala com cabo de prata,
sobretudo, para Alice e sua tia, embora o objetivo fosse a
construção atrás delas. — Já sei! Vamos invadir a festa!
— George, sim, vamos lá! — outro distinto cavalheiro de cabelos
brancos concordou com entusiasmo. — Ouvi dizer que eles têm um
banquete e tanto. Ah, seria tão engraçado beliscar as entradinhas
nojentas. Ele não se atreveria a nos expulsar! Teria de nos aceitar,
esperando pelo nosso apoio!
— Melhor não, senhores — o membro mais jovem do grupo disse
suavemente, com paciência e humor. — Deveríamos mesmo
encerrar a noite… Alice?
Ela teve uma terrível premonição de quem seria pouco antes de
ele se virar, premonição de verdade.
(Terrível?)
(Ou esperançosa?)
Era A. Joseph Katz, Adv., é claro, e aqueles eram provavelmente
Alexandros e Ivy, também advogados, os sócios na empresa onde
ele trabalhava.
Qualquer empolgação que ela pudesse ou não ter admitido ao ver
o rapaz foi imediatamente diminuída pela expressão dele: Katz deu
uma olhada na casa de onde ela e sua tia obviamente vinham e seu
rosto caiu em desapontamento quando percebeu por que elas
estavam ali.
— Não tinha me dado conta de que você era tão política, afinal —
ele disse com um sorriso forçado.
— Estou aqui por causa da minha irmã — respondeu Alice
rapidamente, sem nem mesmo a cortesia de uma saudação
adequada, muito ansiosa para corrigir a suposição dele. — Eu devia
um favor a ela. Só isso.
— Vivian, quanto tempo! — George (Alice deduziu) chamou,
balançando a bengala. — O que diabos você está fazendo na casa
de Ramsbottom?
— Roubando a prataria, é claro — a tia de Alice gracejou. —
Como está a sua esposa?
— Ah, ela é uma lutadora! Está indo muito bem, a velha mulher!
Logo estará bem e faremos aquela viagem para a Itália que eu
prometi assim que ela melhorasse! O ar de lá fará um bem danado a
ela, tenho certeza!
O outro advogado ainda olhava de forma um pouco míope para
Alice e Katz, que se encaravam em silêncio.
— Você conhece essa moça, Katz? — ele perguntou.
— Somos conhecidos — Katz disse brevemente.
— George, me acompanha? À frente? Com seu sócio? — Vivian
sugeriu, inclinando a cabeça para os mais novos, direcionando ao
amigo um olhar astuto.
— Com certeza! Sempre disposto a ajudar uma donzela em
perigo! — ele disse, puxando o sr. Ivy atrás de si.
— Mas eu teria gostado de roubar um pouco da prataria — o
outro advogado disse desejosamente — ou, pelo menos, uma taça
de vinho.
As três pessoas mais velhas caminharam à frente, e Alice e Katz,
um tanto constrangidos, os seguiram. Alice colocou a mão no braço
dele. Eles caminharam em um silêncio constrangedor.
— Eu acho que Ramsbottom é abominável — Alice desabafou por
fim. — Ele é repugnante. Não sei por que minha irmã o apoia. Ela
tem muitos defeitos, mas não é idiota. Enfim, paguei minha dívida
com ela e não voltarei para um bis.
— Fico satisfeito — disse Katz com um sorriso.
— Está satisfeito por eu não apoiar o sr. Ramsbottom? Ou
satisfeito por eu não me misturar com seus apoiadores? — ela
perguntou, com um brilho malicioso nos olhos.
Katz não respondeu, a princípio parecendo envergonhado, e
então sorriu pela própria obviedade. Alice sentiu uma emoção leve e
engraçada quando ele lhe dirigiu um olhar enviesado, conspiratório:
ah, você me pegou aqui!
— As duas coisas, para ser honesto. Mas você já resolveu aquela
questão dos amigos-coelho-árvore-parque?
Alice deu risada, o que foi perfeitamente natural, gargalhadas
leves que tiraram o peso de mil pedras de seus ombros.
— Não, não resolvi, sr. Katz. Não resolvi. E, por mais maluco que
possa parecer, ainda me preocupa. São charadas, mistérios e
detalhes que estou começando a esquecer completamente, por
mais não devesse. Nada disso faz o menor sentido. Você gosta de
charadas, sr. Katz?
— Você sabe algo sobre nosso sistema judiciário? — ele
respondeu ironicamente. — É preciso amar enigmas no meu
trabalho. Na verdade, ouvi uma boa outro dia, de um amigo querido
que, como eu, como você, também adora charadas.
— Ah, vamos ouvir!
— Muito bem. Quem sabe, talvez desvendar essa charada te
ajude a resolver os próprios problemas. Elas funcionam assim,
sabe. Expandem o cérebro ou exercitam a mente, ou algo do
gênero. Fazem a gente raciocinar de um jeito diferente. Lá vai:

Eu tenho a minha e você tem a sua


É necessária em uma pintura
Ninguém concorda sobre qual é
O tal significado da criatura.

— Ah, essa é difícil — disse Alice, pensando. — Poderia ser


qualquer coisa. Qualidade? Cor? O que é?
— Terá que desvendar sozinha — disse Katz com um dos seus
sorrisinhos enlouquecedores.
Eles pararam de andar e estavam bem na frente da casa de tia
Vivian.
Alice teve a súbita impressão de que ele iria beliscar o nariz dela
ou fazer alguma coisa, quando um dos sócios seniores, de repente,
voltou a notar os dois.
— Ei, isso é uma câmera? — George perguntou, mirando com
olhos de coruja a bolsa obviamente técnica. — Estou pensando em
comprar uma para mim ou para a minha esposa. Ah! Tenha a
bondade de tirar uma foto desses três coroas, por favor. E pode
revelar um retrato meu? Quero ver o que isso pode fazer!
— Claro, mas a luz… Ah, vocês não estão mais ouvindo. — Alice
suspirou, sentindo que isso era, de alguma forma, previsível. Quase
um quê de País das Maravilhas. Os dois velhos advogados a
ignoravam totalmente, passando as mãos nos cabelos e
endireitando as gravatas. Vivian deu um sorriso simpático à
sobrinha e cuidadosamente conduziu-os o mais próximo possível a
um lampião a gás, para que as chamas iluminassem, pelo menos
um pouco, suas feições.
Por um momento, Alice se perguntou quais criaturas do País das
Maravilhas eles seriam. E então, de repente, foi tomada pelo
pensamento de que esses três eram velhos amigos, todos ainda se
dando maravilhosamente bem, sem todas as regras bobas de
Mathilda sobre o que era um comportamento adequado para
homens e mulheres. Ela tirou a foto, tentando se lembrar do
Chapeleiro.
— Onde a foto será publicada? — o outro advogado perguntou
com interesse.
— Ah, não seja ridículo — disse Vivian, balançando a cabeça e
dando-lhe um abraço na altura dos ombros. — Precisamos entrar e
revelar as placas. Na verdade, faremos isso depois de tirarmos
outro retrato que prometi. Alice?
— Boa noite, Sr. Katz — disse ela com melancolia.
— Até a próxima — disse Katz com uma reverência. — E Alice,
desvende a charada. Acho que você irá considerar útil a solução. E
eu dependo da sua resposta!
— Ah, poxa — suspirou Alice, por muitos motivos, um deles era o
fato de que as três pessoas mais velhas os observavam.
Capítulo 18

CHARLIE ERA O NOME da menina aterrorizada de seis anos de


quem Alice faria um retrato. Ela tinha cachos pretos, lindos e bem
penteados e um belo vestidinho branco com uma faixa azul, como a
própria Alice usava naquela idade. Com palavras suaves para
encorajá-la a explorar os bibelôs extraordinários de Vivian, Alice,
enfim, conseguiu extrair um sorriso da menina séria. Supôs que a tia
quisesse uma pose à moda antiga, conforme se faz com as câmeras
de grande formato em estúdios com fundos de veludo, mas também
tirou uma da menina rindo e se pendurando de ponta-cabeça no
divã, os grossos cachos pretos escovando o chão, feito pontas de
pincéis.
Dentro de cem anos, Alice pensou enquanto revelava as fotos,
alguém vai ver essa foto e realmente enxergar Charlie. Não vai
apenas se perguntar sobre a menininha de cara fechada com as
mãos e o rosto posado na outra fotografia. Terá uma ideia de como
ela era de verdade.
Ficou um pouco surpresa quando a foto “divertida”, ao ser
revelada, permaneceu a mesma, Charlie de ponta-cabeça, mas a
fotografia séria revelou um pássaro guarda-chuva do País das
Maravilhas:
— Imagino que todas as crianças se transformem nas criaturinhas
do País das Maravilhas — ponderou enquanto a placa secava,
pensando em Adina e em como isso era agradável. Embora o
pássaro guarda-chuva em questão parecesse se esconder atrás de
uma árvore e espiar nervosamente por trás dela.
Alice também revelou a foto que havia tirado da sra. Yao e da
pedra fatal. Mas em vez de uma foto incriminadora de jornal, a cena
era de uma pessoa alta e austera, com a pele escura e um diadema
escuro com berloques pretos sobre a cabeça. Ela mantinha os
braços cruzados sobre o peito e encarava diretamente a
observadora, com um olhar avaliador. Em sua mão direita,
empunhava uma arma estranha, com três guizos ou esferas na
ponta da haste.
— Paus? — Alice se perguntou em voz alta.
A sra. Yao era do naipe de paus no outro mundo.
Mas por quê?
Até agora, não havia nada em suas aventuras que envolvesse
outro naipe além do de copas.
Lembrou-se de duas meninas em um dia sufocante de verão,
cortinas longas e pesadas escureciam o escritório, mas pareciam
manter o calor e a poeira dentro do cômodo, em vez de mantê-lo
fresco. Um baralho, dividido, estava entre elas. Alice tinha um laço
vermelho que escorregava do cabelo; Missy Fedgington, uma bela
touca preta que tinha caído no chão. Os pais delas eram amigos, os
dois unidos apenas pelo tédio e pela idade. Cada uma virava uma
carta e, apesar da extrema lassidão da tarde, Alice não conseguia
impedir o peso da derrota cada vez que perdia uma rodada…
Pequenas rainhas vermelhas e pretas, trocando cartas infinitamente
em um jogo com o qual ninguém se importava.
A lembrança voltou com força para Alice, como um sonho
repentinamente recordado.
Basta puxar as cartas uma e outra vez, e vence quem tiver mais
cartas no fim.
Olhou para a foto. Os berloques pretos quase pareciam uma
coroa do jeito que Yao os usava.
Era isso!
No País das Maravilhas, seu duplo era a Rainha de Paus!
— Existe outra rainha — ela murmurou. — Existe outra rainha no
País das Maravilhas! Tão poderosa quanto a Rainha de Copas e
muito provavelmente sua inimiga. Talvez ela possa nos ajudar!
Alice estudou a imagem na foto. A mulher nela parecia um pouco
severa e austera, mas não parecia louca. Ou, pelo menos, não
louca do tipo de espumar pela boca. Alguém com quem, talvez,
fosse possível argumentar.
Bem, era o início de um plano, se algum dia Alice conseguisse
voltar ao País das Maravilhas. Limpou tudo rapidamente, deixou o
resto das placas para revelar em outro momento e praticamente
saiu correndo da casa.
— Estou indo — prometeu ao Chapeleiro enquanto corria pelas
ruas. — Dormir! — declarou, irrompendo em sua casa e subindo as
escadas correndo para o quarto. — Agorinha!
(O que de fato não foi tão difícil depois de um dia extremamente
cansativo.)

Mas acordou na manhã seguinte com nada mais do que alguns


sonhos parcialmente recordados, de bochechas rosadas e olhos
sábios.
Então tentou cochilar na grande poltrona onde o pai tirava uma
soneca depois do jantar.
Tentou no sofá, olhando para a imagem da Rainha de Paus antes
de fechar os olhos.
Tentou no jardim sobre um cobertor em um canto quente.
Até fez com que uma confusa sra. Anderbee recitasse histórias
longas e divagantes sobre crescer em Yorkshire até ela adormecer.
A velha ficou lisonjeada, e os sonhos diurnos de Alice eram cheios
de frutas vermelhas e tojo, água de nascente límpida e fria e peru no
Natal. Mas não havia entrada para o País das Maravilhas.
Talvez estivesse vendo coisas, mas, em certo momento, teve a
impressão de que a Rainha de Paus da foto tinha se virado
ligeiramente para olhar para ela. Como se dissesse: “E então, você
vem?”.
O tempo estava passando, independentemente de você ter
amizade com ele ou não.
— Tudo bem, vamos analisar isso com lógica — disse Alice,
pensando no amigo Charles e na lógica dele.
Na primeira vez, perseguiu um coelho até o outro mundo; na
segunda vez, foi direcionada até lá por um pato. Talvez dormir não
fosse a resposta; talvez animais fossem os interlocutores do País
das Maravilhas: as Nices, os Carontes, os Castores e Póluxes, os
psicopompos. Tudo que tinha a fazer era encontrar o certo!
O que, é claro, resultou em situações que iam de moderadamente
divertidas a totalmente chocantes. Embora nunca tivesse se
importado com o que os outros pensavam dela, Alice ainda teve que
tolerar os comentários da família sobre a raposa que perseguiu até
o jardim, o terrier escocês que ela jurou que estava olhando
engraçado para ela, o rato que quase fez a irmã normalmente
impassível gritar.
(Em vez de evitar cuidadosamente o monstro peludo que as duas
flagraram na rua, que é o que adultos sensatos fazem ao encontrar
a variante de roedor urbano, gordo e sem medo de humanos, Alice
se ajoelhou e tentou argumentar com ele. E quando o rato
mentalmente são decidiu que esta humana era maluca e, portanto,
potencialmente perigosa e tentou escapar, ela correu atrás dele.)
Houve também o chapim-azul brilhante no jardim de sua mãe que
ela meramente aborreceu ao tirar uma foto dele.
Tudo bem, Alice disse para si mesma. Talvez eu não deva contar
com encontrar aleatoriamente algum cidadão animal do País das
Maravilhas. Eu mesma deveria tomar as rédeas da situação. O que
mais esteve relacionado com a passagem para o outro mundo?
Sua mente rápida e analítica, resultado de muitos triunfos sobre o
pai no xadrez, selecionava as informações que tinha sobre o País
das Maravilhas e a passagem, e expunha para revisão: sono,
animais, desaniversários. Foi chamada ao País das Maravilhas na
segunda vez; a primeira vez fora apenas um acaso? O que mais
havia?
Arrá! Duas pessoas estiveram presentes quando sonhou e
chegou até o País das Maravilhas. A primeira era a irmã; a segunda,
Katz. E embora a irmã estivesse lá embaixo e extremamente
acessível, pelo menos fisicamente, para conversar, Alice não
imaginava que a conversa iria muito longe.
— Com licença, Mathilda, poderia pausar sua dobra de panfletos
por apenas um momento para retroceder sua mente mais de dez
anos de volta ao passado e lembrar exatamente o que eu estava
fazendo antes de você me acordar debaixo da árvore aquela vez no
parque?
Mesmo que Mathilda não descartasse isso imediatamente como
um absurdo, o resto ainda se provaria estranho e inútil.
Katz… por outro lado…
Isso não era, disse a si mesma, uma desculpa para encontrá-lo
(era sim).
Ele não seria obrigado a discutir com ela tais questões
aparentemente absurdas somente porque ele se sentia de certa
maneira em relação a ela (ele obviamente sentia algo).
Alice só estava fazendo isso porque era vital para retornar ao País
das Maravilhas e salvar seus amigos (quase inteiramente verdade).
Havia dois problemas com seu plano. Um era que não tinha uma
resposta para a charada dele, outro era que aparecer
aleatoriamente em seu escritório poderia parecer impulsivo e um
pouco desesperado, em especial para observadores externos.
Então começaria na Praça, onde, ao que tudo indicava, ele
passava algum tempo.
No caminho para lá, Alice parou na pequena samambaia (agora
alguns centímetros mais alta e mais desenrolada) e fez uma pausa
para perguntar se a plantinha poderia ajudá-la.
A planta permaneceu num silêncio desdenhoso sobre o assunto.
A Praça também estava estranhamente silenciosa. Havia menos
crianças do que o normal, e as existentes estavam quietas e
desanimadas.
— Olá — Alice cumprimentou alegremente o garoto mais próximo.
— O sr. Katz está aqui, por acaso?
O menino deu de ombros:
— Katz não esteve aqui hoje. A gente torceu para ele vir. Josh…
Eles levaram Josh embora. E um monte de outros. Talvez o sr. Katz
pudesse ter impedido.
— Levaram Joshua embora? Quem levou? Para onde? — Alice
quis saber.
— A polícia e alguém mais com eles. Disseram que eles
cometeram um crime, quebraram uma vitrine ou algo assim. Josh
me deve uma rodada com a bola. Ele me deve uma rodada com a
bola e ia me emprestar esta tarde.
O menino disse isso com o timbre de uma raiva justificada, mas
os olhos estavam arregalados e marejados.
— Quebrou uma vitrine? Mas não pode ser. Foi Danny Flannigan.
Eu não estou entendendo nada. Conte-me tudo — Alice pediu com
severidade, ajoelhando-se para que seu rosto ficasse na altura do
dele. Lidar com crianças era isso: você não mentia para elas nem as
tratava como seres inferiores. Alice conseguia excelentes resultados
com seus pequenos modelos sendo tão respeitosa e educada como
faria com um pároco.
— Dois policiais chegaram e agarraram Josh e três amigos dele.
Órfãos imundos, eles disseram. Josh não é órfão. Ele tem uma irmã
e um gato.
— Claro. Não se preocupe, eles provavelmente estão na
delegacia — disse Alice. — Eu vou encontrar o sr. Katz e vamos
resolver isso imediatamente.
Tudo bem, talvez essa parte fosse mentira, pensou enquanto se
endireitava e corria para deixar a praça. Não tinha certeza se ele
não deveria se preocupar. Não tinha certeza se eles poderiam
resolver tudo imediatamente. Tampouco tinha certeza de onde era o
escritório de Katz. Mas o encontraria.
Alice correu por becos e ruelas sinuosas, erguendo as saias, os
saltos martelando os paralelepípedos, batidas de pés ecoando nas
paredes. Conhecia um atalho que a levaria quase diretamente à rua
principal, onde ficavam todos os negócios importantes; aqui ela se
sentia tão em casa quanto um coelho em sua toca labiríntica.
Tentou organizar pensamentos e prioridades desenfreados
enquanto lutava para respirar e correr. Primeiro, tentaria encontrar
Katz para contar o que tinha acontecido com as crianças. Com
sorte, ele poderia tomar alguma providência. Depois, levaria a
fotografia da sra. Yao para o jornal. Ou para a polícia. Ela não tinha
decidido para quem. Então poderia voltar seus pensamentos para o
País das Maravilhas.
Tanta coisa para fazer… E como, de repente, cabia a ela
consertar tudo? Alice não tinha experiência em justiça social,
jornais, polícia ou políticos. Era tudo ridículo. Absurdo, de fato.
Mais uma vez, passou pela pequena samambaia verdejante e,
olhando para ela em vez de para as pedras à sua frente, quase
tropeçou no meio-fio.
Um braço forte a impediu de cair e depois a agarrou ao redor do
pescoço, uma mão enluvada tapando-lhe a boca.
— entrega tudo! — rosnou uma voz abafada.
Alice tentou se libertar de seu agressor, cujo rosto, ela viu, estava
coberto por um lenço para ocultar seus traços. Seu casaco estava
do avesso para esconder qualquer detalhe.
Ele não estava tentando estrangulá-la, Alice percebeu
rapidamente; estava apenas tentando segurá-la com uma mão
enquanto, com a outra, tateava à procura da bolsa.
— Vai embora! — ela gritou, com a voz abafada. — Bandido!
A jovem se contorceu e se debateu, tentando se livrar dele.
— apenas me dê a bolsa! — ele… implorou?… ainda em uma
voz rouca, disfarçada.
Alice deu um forte puxão na bolsa.
Ele a soltou.
Ela voou para trás, colidindo com a parede de pedra de uma casa
atrás de si.
Enquanto o mundo escurecia, Alice percebeu que, logo além da
pequena samambaia que ela tanto admirava, havia um jardim verde
e gloriosamente exuberante.
Capítulo 19

JARDINS NÃO ERAM NADA incomuns em Kexford, mas este tipo


de jardim nesta parte de Kexford, sim. Qualquer um teria piscado
duas vezes e se apaixonado por ele; a perfeição dos detalhes, a
exuberância das flores, a cor das folhas, o posicionamento preciso,
mas natural, das parreiras, a pintura lustrosa da casa, os repolhos
arrumadinhos em suas miniestufas artisticamente desalinhadas.
Alice imediatamente reconheceu o que era: País das Maravilhas.
E, além do mais, um País das Maravilhas familiar.
— Ora, é a casa do Coelho Branco!
Sem pensar, colocou a mão no pescoço e depois na cabeça: eles
doíam um momento atrás? Estava com dor de cabeça? Tanto faz,
tudo tinha passado.
E então a Alice de sete anos lembrou que agora era a Alice de
dezoito anos e que aquele não era um coelhinho branco inofensivo:
era um representante da Rainha. Mas, por outro lado, Alice disse
para si mesma, ele também não parecia tão inofensivo naquela
época. Ora, quando ele me mandava buscar suas luvas, pensando
que eu fosse Mary Ann, eu saía para procurá-las na mesma hora,
com medo de desobedecer!
Havia, porém, outras diferenças nas duas visitas, além da idade e
da atitude de Alice: guardas do naipe de Copas marchavam ao
redor, com um ar ameaçador e mortal, usando capacetes que
revelavam apenas pontos vermelhos brilhantes no lugar dos olhos.
Fortificações, que não estavam lá antes, foram erguidas ao redor da
casa; um novo muro aqui e um saco de areia ali, tudo condizente
com a figura de alguém importante e indispensável para uma rainha
em guerra.
— Por que estou aqui? — Alice se perguntou.
Pensou que, se conseguisse voltar ao País das Maravilhas,
regressaria ao lugar de onde tinha sido arrancada de seus amigos
de forma tão repentina e horrível: a batalha no Conta-pabeça. Havia
se preparado para voltar e enfrentar o que quer que tivesse
acontecido, resgatar aqueles que não conseguiram escapar e se
vingar por aqueles que não conseguiram sair vivos.
Aqui, exceto pelos soldados de carta e pelos muros, tudo era paz
e raio de sol: nenhuma revelação ou pista real sobre a guerra sendo
travada.
— Além disso, na última vez que estive aqui, eu era do tamanho
de um coelho ou lagarto e, de repente, fiquei do tamanho de um
gigante e me entalei na casa. Pobre Abílio! Espero que ele não
tenha sido capturado pelas cartas. Ele sempre dá azar.
Alice olhou para si mesma e depois para a casa: parecia ter o
tamanho certo para entrar. A Alice de antigamente não teria
pensado duas vezes, mas a Alice de agora se perguntava se isso
era proposital, se estava destinada a entrar na casa. Ou havia
soldados esperando por ela lá dentro? A Alice de antigamente teria
subido de imediato os degraus da frente e batido à porta ou mesmo
entrado de uma vez e sem bater, talvez se sentindo um pouco
malcriada, mas principalmente aventureira.
— Acho que vou pelo menos evitar os guardas — a Alice de
agora decidiu.
Isso provou não ser muito difícil.
Muito parecidos com Tweedledum e Tweedledee brigando por um
chocalho, os guardas, apesar de assustadores, estavam muito perto
de serem inúteis. Eles marchavam pomposos e barulhentos ao
redor da casa, no sentido horário e anti-horário, e trombavam-se
ocasionalmente, talvez porque fosse quase impossível de enxergar
com aqueles capacetes medonhos.
Alice esperou para se movimentar quando uma colisão
acontecesse do lado da casa mais afastado dela (não conseguia
ver, mas ouviu o barulho dos capacetes e os palavrões
resmungados). Andando rápido na ponta dos pés, atravessou a
porta da cozinha, cujo conforto e marcenaria fina eram quase de
partir o coração. No meio, havia uma janelinha em formato de
coração, de vidro vermelho.
Dentro havia biscoitos recém-glaceados e dispostos em uma
assadeira confeitados com os dizeres coma-me. Mais por costume
do que por qualquer outra razão, Alice apanhou alguns e enfiou nos
bolsos. Os murmúrios de uma governanta ou cozinheira iam e
vinham da despensa, então Alice logo seguiu adiante.
Ainda não tinha certeza do que estava procurando. Luvas? Abílio?
Planos de guerra que poderia roubar e assim bolar algum tipo de
contra-ataque? Improvável. Alice não tinha experiência militar, como
já mencionado, e, mesmo se tivesse, estava bastante certa de que
os habitantes do País das Maravilhas não agiam de modo tão lógico
e tático.
O que ela encontrou foi o Dodô.
Ele estava acorrentado em um pequeno escritório, certamente
não a mais desconfortável das prisões. Havia um tapete macio e um
fogo aconchegante. Parecia que o Coelho Branco não tinha a menor
ideia da forma apropriada de tratar criminosos traidores. O pobre
pássaro estava empoleirado no chão, as patas encolhidas debaixo
de si, com aspecto cansado e imundo. Havia um talho sobre um dos
olhos e as asas estavam bem dobradas contra o corpo, de forma
muito mais aviária do que a criatura geralmente se portava. Tinha
perdido algumas penas da cauda e o paletó estava rasgado e sem
botões.
— Ah, Dodô! — Alice sussurrou, apreensiva, correndo até ele.
— Alice! — o Dodô se iluminou. — Eu sabia que você viria! Eu
disse. E aqui está você.
— Psiu. Vamos ver se conseguimos tirar isso de você — ela
disse, puxando a cruel corrente de ferro. A grilheta era bastante
firme e dimensionada perfeitamente para a pata do Dodô, não muito
apertada, tampouco larga para se livrar dela. Havia uma fechadura
em formato de coração na lateral, o que, é claro, exigiria a procura
habitual do País das Maravilhas por uma chave de ferro (com um
coração também, sem dúvida). Alice apostaria sua câmera que a
chave estaria pendurada ao redor do pescoço do Coelho em uma
versão minúscula e delicada da corrente de ferro em torno da pata
do Dodô. Ou pendurada em uma estante alta, ou…
— Não temos tempo para esse absurdo — Alice murmurou,
pegando um dos biscoitos surrupiados e engolindo de uma vez. Em
seguida, posicionou as mãos em cada lado da grilheta e puxou
gentilmente.
O metal se expandiu sob seu toque e o Dodô maravilhado
deslizou facilmente o pé para fora dela.
— Impressionante! — disse o Dodô, sacudindo as patas.
— Onde está o Chapeleiro? — Alice sussurrou.
— Não sei. Ele correu em uma direção diferente da minha. Foi um
grande pandemônio quando as cartas…
— Há mais alguém preso aqui? — Alice pressionou, não
querendo entrar em uma longa conversa típica do País das
Maravilhas enquanto corriam o risco de serem descobertos.
— Não, só eu. Fui o único que eles trouxeram para cá — o Dodô
disse, um pouco pesaroso. — Eu insisti em liberdade condicional,
em encontrar com o Coelho Branco. Abílio estava comigo no
começo, mas a governanta o ajudou a fugir.
Bem, fazia algum sentido; ele costumava trabalhar aqui, claro. E o
pobre e velho Abílio certamente merecia um desconto depois de
tudo o que passou.
Alice olhou pela janela. Era a troca da guarda. Ela se amaldiçoou
por perder a vantagem do momento tão ritualizado e que estava se
prolongando.
— Receio que teremos de sair de fininho pela frente,
imediatamente. Vamos. — Alice pegou a asa do Dodô e o conduziu
pelo corredor o mais silenciosamente possível. A casa, não pôde
deixar de notar, era do tamanho exato para ela na forma presente,
mas não era proporcional; fora construída para os movimentos e
hábitos de um coelho. As portas eram mais grossas, redondas e
mais baixas. Pinturas adoráveis de cenouras e aneto estavam
dispostas artisticamente no papel de parede com estampa de alface,
juntamente às habituais silhuetas de orelhas compridas. Lindas
cadeirinhas no estilo Luís xiv eram mais como pufes para descansar
todas as (quatro) patas esticadas para cima.
Eles passavam por um conjunto delicado de degraus de madeira
que subiam em formato de caracol quando Alice pôde jurar que
ouviu um choramingo lá em cima; um som triste e pesaroso, muito
semelhante aos que a Tartaruga Falsa emitia.
— Há outro prisioneiro — ela sussurrou para o Dodô. — Vá na
frente. Encontro você na sebe do lado de fora do portão.
O Dodô fez uma continência, e Alice teve o pensamento
engraçado de substituir a peruca dele, há muito perdida, por um
quepe de comandante.
Subiu na ponta dos pés um lance de escadas pesadas e cor de
mel, sem fazer ruído. A parte dela que ainda gostava de bonecas
ansiava por uma casinha como esta. A decoração era bem pensada;
cada detalhe foi planejado com cuidado. A janelinha na escada não
tinha um grão de poeira, e a pintura era recente.
Lembrou-se do cômodo onde tinha procurado pelas luvas do
coelho, onde tinha crescido demais até ficar entalada, e aquele
parecia ser o lugar de onde vinha o choro. Avançou tão
silenciosamente quanto pôde e espiou pelo batente da porta.
Era o Coelho Branco que estava sentado lá, chorando.
— Mary Ann — ele gemeu sobre um par de luvas brancas —,
você não merecia isso. Ah, Mary Ann…
Chorar era um negócio complicado para o Coelho Branco:
lágrimas rolavam de seus olhos e, em seguida, iam parar em seu
bigode, às vezes, fluindo para baixo, fazendo os fios envergarem e,
em seguida, subirem de forma indigna quando as lágrimas, por fim,
caíam ao chão. Mas, às vezes, elas fluíam de volta para o rosto dele
e se emaranhavam com o pelo ali.
O coelhinho cavalheiresco, ainda de colete elegante (agora ele
também tinha uma braçadeira com emblema de coração e o que
parecia ser uma pequena medalha de heroísmo), parecia muito
abalado.
— Eu deveria te esganar aí mesmo — Alice se viu dizendo em
voz alta, apesar da surpresa com a reação dele ao destino infeliz da
garota.
O Coelho a encarou com a surpresa irracional de um lagomorfo
normal: olhos vermelhos arregalados e estáticos, orelhas para cima,
patas para baixo. Feito um de seus primos selvagens justo antes de
decidir sair em disparada.
— Eu deveria usar sua pele para um regalo — acrescentou Alice,
chocada consigo mesma, mas intencionando cada palavra conforme
avançava. A fúria a libertou de qualquer medo de soldados de cartas
estúpidos e das consequências. O Coelho Branco pareceu
recuperar a senciência; acomodou-se na cadeira, mergulhando em
desespero.
— Eu mereço — ele murmurou.
Alice piscou, surpresa.
— Eu só estava tentando fazer o que era melhor. Só estava
tentando terminar com esse absurdo, essa loucura. Quanto mais
cedo tudo acabar, melhor — disse ele, acenando com a pata
cansada. Mas a voz tinha recuperado um pouco de sua irritante
autoridade. — Não achei que ela se envolveria. Ela só precisava ter
esperado o Fim dos Tempos. Eu estava apressando a Rainha. Já
tínhamos tantos brinquedos… O fim está tão perto…
— Tantos brinquedos? Tipo bonecas? — Alice interrompeu. A
charada do Mestre Gato… E o tufinho de filhote no Conta-pabeça…
Bonecas e brinquedos e mais bonecas! — Que tagarelice é essa,
Coelho? A rainha está destruindo tudo no País das Maravilhas e
pegando todos os brinquedos para si? Por quê?
— Ela quer todos os brinquedos, a maioria dos brinquedos, é
claro. O que mais você esperaria da Rainha de Copas? — ele disse
com tristeza. — Estou ajudando… a adquiri-los. Às vezes, há
resistência.
— Que coelho terrível você é — disse Alice, imaginando se essas
palavras já tinham sido ditas em inglês (ou em qualquer outro
idioma) antes.
— Pegue o Dodô e vão embora — disse o Coelho Branco
debilmente, sem prestar muita atenção à garota. Ele acariciava as
pequenas luvas brancas. — Terei que chamar os guardas em breve.
Alice recuou para fora da porta, um pouco abalada pelas palavras
e pelo comportamento estranhos dele. Antes de sair, contudo, viu
que estava certa: havia, de fato, uma fina corrente de ferro preta em
torno do pescoço dele, da qual pendia uma chave cujo arco na
ponta da haste tinha o formato de coração.

O Dodô, ainda bem, estava exatamente onde a garota disse para


ele estar. O que era estranhamente surpreendente.
— Muito bem, então — disse Alice, agachando-se na aveleira ao
lado dele. — Me conte o que aconteceu lá no Conta-pabeça quando
eu desapareci! Alguém mais foi capturado? Alguém se feriu?
— Ah, havia muitas pessoas feridas — lamentou o Dodô. —
Embora talvez um pouco menos do que poderia ter havido. Os
soldados ficaram muito surpresos com o seu súbito
desaparecimento. Tão surpresos, na verdade, que meio que
marcharam uns contra os outros e caíram em uma pilha
terrivelmente bagunçada. Cartas, sabe como é. Assustam pelo
número, especialmente os naipes mais altos, mas são um pouco
atrapalhadas às vezes.
— Ah, ainda bem — disse Alice com sinceridade. — Eu não
queria deixá-los, sabe… Fui puxada de volta. Assim como da última
vez, quando pensei que tudo era um sonho.
— Eu sei — disse o Dodô, um pouco triste, olhando no fundo dos
olhos dela. — Você tem outro mundo com que se preocupar, além
do nosso País das Maravilhas.
— Bem, não sei se… — Alice começou a corrigi-lo sobre a própria
importância naquele outro mundo, que era muito menos importância
do que ali, e então decidiu que não valia a pena conversar sobre o
assunto naquele momento. No entanto, era engraçada a impressão
que as criaturas aqui tinham sobre ela! Parecia que só conseguiam
pensar em Alice como uma menina boba e inútil, que não conhecia
nenhuma das regras de vida dali, ou então como algum tipo de
salvadora substituta. Nada no meio-termo. — O que aconteceu com
o Chapeleiro? E o Grifo? E o Arganaz?
— O Grifo lutou, cravando as garras poderosas no inimigo —
disse o Dodô, os olhos se iluminando com a lembrança. — Puxa, ele
foi glorioso. Acho que rasgou várias cartas bem no meio. O Arganaz
ainda estava no lustre, eu acho, quando caiu. O Chapeleiro…
Alice sentiu o coração apertar.
— O Chapeleiro tentou levar todos os feridos e as crianças para
algum lugar seguro — disse o Dodô com um suspiro. — Não sei o
que aconteceu no fim das contas, mas ele estava conduzindo um
grupo para a saída. Tinha um prato e uma colher nos ombros na
última vez que olhei. Mas eu sabia que você precisaria de ajuda
para montar seu exército, agora que é nossa líder.
— De fato — concordou Alice, beijando-o acima do bico. — Bom
e leal Dodô. Muito obrigada pela confiança, talvez imerecida, em
mim. Mas como sabia que eu acabaria aqui?
O Dodô deu de ombros.
— Você… Mary Ann… o Coelho Branco. Vocês são todos
enrolados.
Alice suspirou. Claro. A lógica do País das Maravilhas.
— Acho que não tenho nenhuma das habilidades que a falecida
Mary Ann tinha para organizar as criaturas do País das Maravilhas e
chamá-las às armas; cuidar dos feridos no Conta-pabeça já foi um
caos absoluto.
— Todos nós temos uma mente muito independente — disse o
Dodô com uma fungada. — Quando você se identifica como um
Dodô, é um Dodô até o fim. Papagaios-do-mar simplesmente não
conseguem entender as coisas do seu ponto de vista. Quero dizer,
eles até podem, melhor do que, digamos, baleias, mas não sabem
realmente o que é ser um Dodô. Nós temos nossos próprios
problemas e necessidades específicas.
Alice esfregou a cabeça. Talvez fosse isso o que Coney realmente
temia: Kexford ser invadida por mil ideias diferentes e votos
exóticos. Corridas da convenção, com certeza. Ainda assim, era
uma democracia; todos os pontos de vista deveriam ser bem-vindos.
— Exceto para as cartas — acrescentou o Dodô sombriamente.
— Elas todas se organizam muito facilmente em baralhos
desagradáveis.
— Sim — Alice disse com um suspiro. — Se ao menos
pudéssemos aproveitar isso para o bem.
Então, de repente, ela se lembrou: a foto da sra. Yao! A rainha,
linda e negra, segurando uma clava. Uma rainha de Paus.
— Dodô! Conte-me sobre os outros naipes, a Rainha de Paus, em
particular.
— Ah, ela é uma governante feroz e respeitável — disse o Dodô,
alisando o peito, distraído pelos pensamentos. — Ela e a Rainha de
Copas já se desentenderam mil vezes, problemas de fronteira, mas
sempre conseguiram evitar um sério jogo de Batalha no fim. Do
contrário, seria realmente sanguinolento.
— Você acha que ela nos ajudaria?
O Dodô parecia em dúvida:
— A Rainha de Copas está conduzindo uma campanha contra
seu próprio povo. Por que a Rainha de Paus se envolveria?
— Porque ela é uma boa carta? — Alice sugeriu esperançosa.
— Bem, não vejo alternativa — concedeu o Dodô. — E não temos
o Chapeleiro e seu bom senso para nos guiar. Desde que ele
perdeu seu absurdo, quero dizer; isso foi, de fato, um aspecto
positivo.
— O Chapeleiro…? Bom senso…? — Alice disse pensativa.
Imagine um mundo onde o Chapeleiro Maluco fosse considerado
um sujeito sensato e sábio! Mas talvez, ao seu próprio modo, ele
tivesse uma ideia mais apurada do que funcionava ou não no País
das Maravilhas. — Meu bom e velho Dodô, vamos encontrar a
Rainha de Paus, então.
— Dança, dança! — o Dodô gritou de repente, pulando e
saltitando sem nem olhar para trás para ver se Alice o
acompanhava.
— Quê?! O que está fazendo? Quer que os guardas nos
encontrem? — Alice perguntou assustada, correndo atrás dele.
Mas… não estava exatamente correndo.
Era como se Alice estivesse correndo, mas, ao mesmo tempo,
tudo era muito sonolento e sonhador para alguém correr. Observou
o formato das pernas sob a saia volumosa com algum
deslumbramento: elas se moviam da maneira que deveriam caso
estivesse realmente correndo assustada, mas tão devagar… Como
se ela estivesse se movendo em uma poça de melaço.
Olhou ao redor e a paisagem parecia inclinar-se para a frente, os
objetos próximos a ela embaçados como se realmente quisessem
que ela corresse, para serem levados em seu vento de cauda, para
acabar com a realidade que os pés dela estavam sugerindo.
E ainda assim Alice não tinha saído um centímetro do lugar.
— Isso não é bom! — o Dodô ralhou, enquanto se curvava e dava
uma pirueta. — dance!
— Mas não estamos indo a lugar nenhum! — Alice reclamou.
Arriscou um olhar para trás. Um quatro e um sete de Copas tinham
acabado de notar a tentativa de fuga e estavam reagindo muito,
muito devagar.
O Dodô começou a bater a asa esquerda enquanto apertava o
peito com a asa direita:
— Dance! Ou estaremos fritos! — ele ofegou.
Bem, correr não estava funcionando e este era o País das
Maravilhas, então por que não dançar?
Alice girou, sentindo-se um pouco ridícula, as mãos erguidas
como se um parceiro invisível estivesse conduzindo.
Os passos do Dodô batiam no ritmo.

Um, dois, venha já não depois


Se pegar os tijolos, esqueça os bolos
Na cadeira, a coelha dança com gosto
Sei eira nem beira, dance, é imposto

Três, quatro, é como um teatro


Uma valsa legal pra Rainha de Paus
Um quilômetro, uma milha, estamos na linha
Dançaremos até chegar ao palácio da Rainha!

O Dodô também estava rodando agora, em frente a Alice. Ela


agarrou as pontas das asas dele e os dois fizeram piruetas, cada
vez mais rápido até que a força da rotação os separasse e os
fizesse rolar colina abaixo.
Capítulo 20

ALICE RIA COMO UMA menina, os pés rolando sobre a cabeça,


dando cambalhotas inofensivas na grama quente e macia. Isto era o
País das Maravilhas em sua essência mais pura. Dançando do
perigo e da morte para terminar desfrutando um dia de verão
perfeito da infância. Sentou-se e examinou os arredores: é claro que
a casa do Coelho Branco tinha sumido. O Dodô estava se
levantando com cuidado e batendo a poeira de maneira muito
meticulosa, tirando sementes espinhosas do paletó.
— Não consigo viajar como antes — murmurava para si mesmo.
— A idade requer mais tratamento de primeira classe. Condutores
de carruagem e fornecimento de mosquitos.
— Você está bem? — Alice perguntou, solícita.
— Muito melhor do que nossos velhos companheiros, presumo —
respondeu o Dodô, taciturno por um instante. Então ele se sacudiu,
alisou algumas penas do pescoço e endireitou os ombros. —
Vamos, então! Para a Rainha de Paus! Será um tanto complicado
daqui em diante, portanto fique atenta e cuidado para não nos
separarmos.
Alice pisou com cautela na grama, vigilante. Eles estavam em um
prado que subia suavemente ao final de uma espécie de vale.
Penhascos cinzentos como fortalezas delimitavam ambos os lados
da vista. Muito adiante, faixas escuras de vegetação podiam ser
vistas ziguezagueando pelas colinas suaves. O ocasional trecho de
árvores podia esconder monstros ou pássaros jubjub, mas nada na
paisagem parecia imediatamente ameaçador ou perigoso.
— Não há nada com que se preocupar aqui. Não há ninguém ao
redor. É tão seguro quanto uma casa — alegou.
— E casas são seguras? — o Dodô perguntou. — Mocinhas
podem queimá-las e explodi-las o tempo todo.
Alice decidiu não rebater esse argumento, especialmente porque
tinha sido uma mocinha que, de fato, explodira uma casa.
Os dois subiram uma colina e desceram do outro lado. Ali, a
grama era mais granulada e verde-escura. Logo à frente havia uma
bela pradaria coberta com florezinhas brancas e Alice se abaixou
para cheirá-las.
— Ei, pare de meter esse nariz onde não é chamada — uma
delas chiou. — Vai saber onde ele esteve?
— Até parece que elas próprias nunca foram cheiradas — outra
flor disse, farejando. — Caso contrário, pensariam duas vezes antes
de cheirar os outros, ah, sim.
— Que vergonha! — uma terceira gritou, acolhendo um pequeno
botão sob suas folhas protetoras. — Fedendo em cima de uma tão
pequenina. Sua… sapeca!
— Certo — disse Alice, levantando-se. — Eu mereci isso.
E continuaram caminhando.
A colina foi ficando cada vez mais íngreme até que acabou se
transformando na lateral verde de um rochedo pequeno e
perfeitamente quadrado. Alice tinha certeza de que não o vira antes,
e deveria ter visto, considerando o campo tranquilo com linhas de
visão quase infinitas em que estavam há alguns minutos. Apenas
quando o caminho se tornou impossível e quase vertical, um
conveniente conjunto de degraus apareceu, esculpido no penhasco.
Rochas se projetavam em locais úteis para apoiar a mão e se
equilibrar.
— É claro — disse Alice. — Bem País das Maravilhas. Sempre
providencial, mas não da maneira que se espera.
Ela subiu se sentindo confiante, lembrando com facilidade os
movimentos de uma infância escalando árvores.
No topo, havia uma encantadora charneca alpina com grama
verde-dourada curta e lindos montes de flores rosadas e de cor
púrpura, mas Alice decidiu não analisar de perto. Muito embora, à
segunda vista, tenha ficado óbvio que a gloriosa luz do sol não
estava se refletindo no orvalho, era o brilho das próprias pétalas:
cada flor era uma joia, talvez de vidro, e soava feito sininhos ao
vento.
O Dodô veio logo atrás dela, bufando um pouco.
— Ah, quase dá para ver a propriedade da Rainha de Paus daqui
— ele disse, puxando um pequeno telescópio e olhando pelo lado
errado. Ele se retraiu quando a lente tocou o corte na pálpebra. — É
bem pequena, mas cresce bastante quando se está perto. Está
vendo brilhar?
E lá na distância, muito abaixo deles, como um besouro brilhante,
havia uma bolha de algo preto e deslocado do mundo em que
pareciam estar. Antinatural e artificial. O castelo da Rainha de Paus!
Alice teve vontade de pular; talvez fosse o ar ou a altura (altura
nunca a incomodou). Estava inebriada de felicidade enquanto
caminhavam ao longo do que se provou ser um planalto, não uma
montanha isolada, afinal. Um pequeno riacho fluía lentamente de
algumas pedras decorativas. Ao lado, havia uma placa velha e gasta
com letras douradas reluzentes que diziam pode me beber. com
gratidão.
— Ah, queria que a gente tivesse trazido um piquenique — disse
Alice, ajoelhando-se para tomar um gole.
— Você não… — o Dodô começou.
O chão cedeu e Alice caiu, de forma muito menos agradável desta
vez.
Ela batia para frente e para trás no que parecia ser um túnel
aberto. Era duro, frio e tão liso e escorregadio que ela não
conseguia desacelerar, apesar dos ladrilhos hexagonais que
compunham sua superfície marrom e amarela. As ranhuras entre
eles eram finas e rasas demais para cravar as unhas.
Continuou caindo.
Tentou enrijecer todo o corpo e usar a fricção para desacelerar a
descida; resultou em um cotovelo ralado e no vestido rasgado na
altura dos joelhos.
Chegou ao fundo com um baque.
Um raminho de flores brancas a centímetros de seu rosto olhava
para ela duvidosamente, enquanto Alice permaneceu imóvel (com
muita dor) por um instante.
Baque!
O Dodô pousou bem ao lado dela.
— Alice! Estávamos indo tão bem! — ele ralhou. — E daí você
tinha que ir e estragar tudo.
— Estragar tudo? Estragar o quê? O que eu fiz? — ela protestou,
tentando se levantar. Sentia dor no corpo todo.
Ela inclinou a cabeça para trás para ver de onde eles tinham
vindo. O lugar por onde deslizaram era… bem… um escorregador.
Marrom e amarelo, que serpenteava para frente e para trás, subindo
a encosta da colina até o riacho no topo.
— Você pegou água da nascente. Você bebeu, mas sem gratidão,
menina malcriada. Que tipo de líder e salvadora você é, afinal?
— Eu não sou… Mas eu nunca tive que demonstrar gratidão
antes! — Alice exclamou. — Aqui é o País das Maravilhas, todo
mundo faz exatamente o que lhe dá na telha. Sem um mínimo de
comportamento civilizado e agradecido. A placa dizia pode me
beber, então eu bebi!
— Não, dizia: “Pode me beber. Com gratidão”. Muito adequado e
educado. Você está aqui agora, nas cercanias de Paus — o Dodô
disse com afetação, tirando um pincenê e polindo-o com uma pena
da asa. — Regras são regras. E a Rainha de Paus tem algumas
delas para mantê-la segura do resto do reino. Todas as áreas de
fronteira ao redor do castelo são rígidas quanto a isso.
— Tá bom, tá bom, até que dá para entender o porquê —
respondeu Alice pensativamente. Cada vez mais, a Rainha de Paus
parecia ser uma pessoa normal e sensata. Como a sra. Yao.
Alice examinou atentamente o escorregador por onde haviam
descido. Fosse uma ilusão de ótica ou do padrão hipnótico dos
ladrilhos, em vez de parecerem escavados, de repente, se tornaram
justo o oposto: cheio de curvas e relevos.
O fim do relevo, ou melhor, a cabeça elevou-se e sibilou para
Alice, revelando duas presas e uma grande língua bifurcada.
— Ah! — Alice soltou, caindo de medo diante dos olhos de fenda
verdes. Mas a cabeça não fez mais do que serpentear para frente e
para trás enquanto o resto da criatura ficou grudada na encosta da
colina.
— Uma cobra gigante! Pelos céus… ah! Entendi!
Levantou-se e esquadrinhou o lugar, examinando
cuidadosamente o vale em miniatura em que estavam agora. Havia
quadrados perfeitinhos de grama mais escura à frente e de cada
lado deles. À esquerda, havia uma árvore com degraus martelados
em torno do tronco, formando uma espiral que levava a algum lugar
acima da copa das árvores.
— É um jogo gigante de Cobras e Escadas! — ela exclamou.
— Ora, é claro que é — disse o Dodô simplesmente. — Agora
pode, por gentileza, seguir meu comando, já que aparentemente
não compreende bem o jogo, ou não teve uma boa criação, para
proceder corretamente? Se realmente conhecesse Cobras e
Escadas, você lembraria que características como Futilidade e
Avareza deslizam para trás, às vezes um bom tanto. Hábitos como
Bondade e Piedade nos fazem avançar. Seu Comportamento
Indelicado de antes quase nos mandou de volta para o início.
Alice se sentiu ultrajada. Em primeiro lugar, era uma absoluta
mestra de todo e qualquer jogo em sua casa. Jogava este quase
desde antes de aprender a contar.
Além disso, nunca demonstrava nada além de um comportamento
adequado. Sempre dizia “por favor” e “obrigada” e fazia uma mesura
quando estava tentando pensar no que dizer. Alguém poderia até
reclamar de sua falta de respeito pelas convenções sociais quando
se tratava de sua câmera, seus amigos ou dos hábitos de
caminhada vez ou outra masculinos, mas, em uma conversa
durante um jantar social, havia poucos à sua altura.
— Ora essa! Por acaso, você se lembra das corridas da
convenção? E… da hora do chá? Eu fui educada enquanto todo
mundo era extraordinariamente grosseiro!
— Há um Tempo e um Lugar para tudo — o Dodô disse. — E o
Tempo está se esgotando. Poderíamos esperá-lo aqui, para
encerrar tudo, ou podemos prosseguir para a Rainha de Paus e
salvar quem quer que tenha sobrado de nossos amigos. Malcriação,
sabe, faz você recuar cinco casas. E Orgulho em excesso também.
Com a bronca, Alice corou (merecidamente).
— Tem toda razão. Sinto muito, Dodô. Por favor, mostre o
caminho.
— Escolha o caminho que preferir — disse o Dodô, magnânimo.
— Escolha dois, se assim desejar. Você decide e eu dou o exemplo.
Sabe… Generosidade. Devemos avançar muito em breve.
Alice fez uma mesura, muito educadamente:
— Depois de você, sr. Dodô.
— Muito obrigado, srta. Alice — ele disse, também fazendo uma
mesura, o que era estranho. As penas da cauda se levantaram e as
patas meio que ficaram curvadas para o lado.
Alice decidiu não comentar nada sobre aquilo, mas se perguntou
se Tato era uma característica aprovada — e útil — neste jogo.
Capítulo 21

COMO SE PRESUME QUE o leitor tenha mais do que um


conhecimento superficial sobre as aventuras anteriores de Alice,
podemos encurtar um pouco a conversa, caso contrário, você não
faria nada em todo este capítulo além de assistir a um jogo bastante
lento, tendo uma jovem moça e um velho pássaro como jogadores.
Eles evitaram um quadrado em cujo centro havia uma pilha
reluzente de todos os tipos de tesouros extravagantes empilhados
em uma mesa de vidro: coroas, diademas, cetros, anéis e outras
quinquilharias espalhafatosas. A Cobiça não era a maneira de
vencer o jogo.
Alice pediu ao Dodô para perdoá-la por fazê-los voltar vários
quadrados e se desculpou profusamente por isso, e assim eles
escalaram um conjunto de degraus que surgiu de repente,
estranhamente solitário (para Penitência) e que parecia não levar a
lugar nenhum, mas que, na verdade, os levou para o outro lado de
um córrego profundo e veloz, impossível de cruzar de qualquer
outra maneira.
Ela se lembrava vagamente de outro fluxo de água como esse, ou
talvez fosse um rio, onde havia remado uma vez e quase caído.
Alice mordeu o lábio com a lembrança de sua outra vida. Claro
que tinha que salvar um mundo inteiro aqui, mas também havia
emergências esperando por ela quando retornasse para a
Inglaterra. Quais precisamente, Alice não conseguia lembrar. Algo a
ver com crianças e chá e vitrines…
— Pegue isso aqui — uma voz disse atrás dela.
Ela se virou: o Mestre Gato estava de costas na grama, brincando
com uma margarida. Literalmente, é claro: uma garra estava
brincando de dar palminhas nas folhas do jovem botão.
— O que devo pegar? — Alice perguntou educadamente.
— Sua mente. Perdeu-se inteiramente no tabuleiro. Isso é
perigoso no País das Maravilhas, sabe. — Ele fluiu para cima em
uma posição sentada e as listras da cauda moveram-se um pouco,
piscando e desligando. Alice estendeu a mão para acariciá-lo; seu
pelo estava quente do sol. Há quanto tempo ele estava lá, ou em
qualquer outro lugar, observando-a?
O Dodô estava distraído, murmurando para si mesmo, analisando
o que estava além da fronteira de seu atual quadrado, nas margens
adjacentes ao rio.
— Eu estava pensando em como parece que tenho dois mundos
com que me preocupar agora — Alice disse com um suspiro. — Um
de verdade e este aqui. Não consigo parar de pensar na bagunça
que deixei lá em casa… Crianças sob custódia…
— E aquelas que foram atiradas nas masmorras da Rainha de
Copas, cujos brinquedos foram saqueados, são menos reais do que
os seus pequenos maltrapilhos? — o gato perguntou,
preguiçosamente como sempre.
— Bem, de repente você se torna bem claro quando algo o tira do
sério! — Alice retrucou, retirando a mão de cima do gato e
colocando-a em seu quadril. — Talvez eu tenha me expressado mal,
mas passei toda a minha vida naquele outro mundo e só estive
neste aqui algumas vezes. E este mundo… se dissipa ou
desaparece da minha memória quando estou lá, como se fosse um
sonho, nem um pouco real.
— Só este desaparece? — o gato perguntou, as patas traseiras
subindo um lance de escadas invisíveis e depois caindo pela
beirada até seu rosto. — Conte-me sobre o seu outro… mundo
“real”. Qual é o nome da sua tia?
— Hatexepsute — Alice disse prontamente. — Tia Hatexepsute.
Ela franziu o cenho.
O gato esperou pacientemente.
— Não, isso não está certo, está? — ela disse com um suspiro.
— E o que é que a aborrece tanto a respeito de sua irmã?
— Ora, é o papagaio dela, é claro. É sempre um incômodo,
sempre nas minhas coisas pessoais, um verdadeiro estorvo, a voz
alta…
Alice continuou falando, esperando que algum bom senso
surgisse por fim. Mas ficava pior e pior conforme falava.
O Mestre Gato não disse nada, pela primeira vez se comportando
como um gato inglês, encarando-a com olhos grandes e fixos
enquanto Alice percebia a verdade por si mesma.
— É como se o real… Quero dizer, meu mundo apagasse o
absurdo de minhas memórias… Coisas que não deveriam
simplesmente desaparecer… Mas o País das Maravilhas substitui o
real… Ah… Coisas do meu mundo com absurdo.
— Muito profundo — disse o Mestre Gato. Ele se enrolou,
formando um círculo perfeito com o corpo. Através dele havia um
poço, escuro e sem fim. Alice se inclinou e espiou lá dentro, mas
não conseguiu ver o fundo. O gato se espreguiçou e desceu os
pequenos degraus em caracol ao longo de suas paredes (no próprio
corpo!) até que finalmente as patas traseiras seguiram. — Muito…
profundo… na verdade… — sua voz ecoou de volta.
De repente, seu rosto apareceu no ar, de ponta-cabeça, a
centímetros de Alice.
— Seria de se perguntar por que você vai e volta. Por que traz o
pouco que carrega de um mundo para o outro? E o que é isso e
como pode ser útil?
— Não tenho ideia do que está falando — disse Alice, balançando
a cabeça. — Não entendi nem uma única palavra desta vez. E nem
é uma charada.
— Uma charada, você disse? — o gato disse, de repente
congelado pelo deleite. — Eu simplesmente amo charadas. Eu
correria quilômetros para contar um enigma a uma alma receptiva.
Mas você está perdendo o Tempo, e o Coelho Branco está correndo
para ele. E a Rainha de Copas assa suas tortas com as lágrimas
das criancinhas. Enquanto você está procurando por ajuda
duvidosa, ele enviou para você, ah, alguns amigos para brincar…
— Ajuda duvidosa? O que quer dizer? A Rainha de Paus é a
nossa única esperança!
— Quando o País das Maravilhas girou em torno de algo além de
Alice? — o Mestre Gato perguntou, mas não em tom de tristeza ou
acusação. Foi mais como uma declaração. — Para Alice, quero
dizer.
— Desculpe, mas não estou simplesmente pensando em mim.
Outros sugeriram que eu deveria liderar exércitos contra a Rainha
de Copas, o que é ridículo. Sei minhas limitações e eu, pelo visto,
não sou uma rainha ou uma Mary Ann. Mas estou dando o meu
melhor para ajudar da forma como posso, o que não é muito,
admito! Mas o que você quer dizer com o Coelho Branco está
correndo para o Tempo? E que amigos ele enviou? Para jogar o que
com a gente? Um jogo melhor? Um… metajogo?
Mas o Mestre Gato havia sumido de vista e tudo que restou foram
duas pupilas pretas em forma de fenda, que caíram com um tilintar
no chão, feito pedras, quando o resto do gato desapareceu por
completo.
— Você e suas charadas idiotas! — Alice disse, enojada. Embora
ele não tivesse realmente feito uma charada desta vez.
Mas não havia outra charada? Uma de verdade, que ela ainda
não respondera? Uma que alguém tinha lhe dito que deveria
responder? Logo?
— Acho que devemos prosseguir, depressa, srta. Alice — o Dodô
disse, correndo de volta para ela. — Os próximos quadrados estão
livres. Não faz sentido ficar vagabundeando.
— Existem outros jogadores? — Alice perguntou. Uma pergunta
que ela percebeu que deveria ter feito no início desta aventura
específica. Nenhum jogo era jogado sozinho, exceto Paciência.
— Claro!
— E onde eles estão?
— Não sei… Por aí, eu acho — disse o Dodô vagamente.
— Não estamos jogando contra alguém? O que a gente ganha? O
que eles ganham? Qual é o objetivo? Quem chegar à Rainha de
Paus primeiro ganha seu apoio ou algo parecido?
— Talvez? — o Dodô respondeu, um pouco desesperado. — Esta
não é a minha área de especialização, querida menina. Eu sei de
tartarugas e impeachments. Vamos, antes de descobrirmos da
maneira mais difícil: como perdedores do jogo.
Um argumento justo. Alice levantou suas saias e caminhou
rapidamente ao lado dele.
Tudo ficou quieto por mais alguns quadrados entediantes, sem
Cobras nem Escadas para enfrentar. No quinto quadrado, ela
finalmente viu alguma coisa no tabuleiro.
Outra coisa, na verdade.
Várias coisas.
A princípio, parecia só uma cena saída diretamente de uma
ilustração de um livro sobre a natureza: uma manada de veados
estranhos saltitando no campo à frente deles. Eram lindos quando
saltavam, brilhando como vidro ou fragmentos de algo quebrando
em câmera lenta. Mas depois que voltavam ao solo, seu correr
parecia estranho e desconjuntado. Apesar de terem uma vantagem
formidável sobre o Dodô e Alice, ela se pegava estremecendo
sempre que um deles cambaleava e parecia prestes a cair. Por fim,
um de fato caiu e passou um sufoco se recuperando. Ele rolou,
projetou as patas longas e balançantes e…
— Eles não têm joelhos! — Alice percebeu. Era por isso que
pareciam tão irreais e graciosos no ar e terríveis no chão.
— Não têm joelhos? Quem? Ah! — O Dodô colocou um par de
óculos de teatro (mais uma vez, ao contrário) e então guinchou,
largando-os. — Ossotálopes! Corra! Eles nos viram?
— Agora sim — Alice disse, seca.
As delicadas criaturas voltaram suas longas orelhas para os dois.
Bateram os cascos minúsculos e afiados no chão e baixaram os
pescoços graciosos de modo que uma dúzia de pares de chifres
terrivelmente metálicos foram todos apontados para Alice e o amigo.
Em seguida, galoparam desajeitadamente em uma formação
ameaçadora de flecha com um líder na frente. Ele (ou ela) emitia um
barulho estranho, feito o som de uma buzina, mas também o
chamado de um touro, com um pequeno trinado de rouxinol no fim.
As criaturas partiram para cima deles.
Alice gritou.
Os ossotálopes de repente caíram para trás, bufando de
frustração. Haviam atingido a fronteira de seu quadrado e não
podiam avançar.
— Ufa! — disse o Dodô, puxando um lenço branco (ainda limpo!)
do bolso e enxugando a testa. — Estamos a salvo!
— É isso que o Mestre Gato quis dizer! Eles são emissários do
Coelho Branco, enviados para nos barrar. Mas estão jogando
segundo as regras — disse Alice lentamente. — Eles só podem
seguir em frente.
— Bem, isso é um alívio, então — disse o Dodô. — Sim, enquanto
a gente ficar aqui. Mas temos que vencer.
Sua mente começou a se acelerar, como fazia quando estava
jogando contra sua irmã ou outro companheiro em qualquer jogo de
estratégia. Era como se dezenas de Alices pequeninas se soltassem
da mente da Alice principal e saíssem correndo por todas as
direções, procurando uma resposta ou uma saída. Vinte cabeças
eram melhores do que uma.
Às vezes, lembrou a si mesma, você tem que dançar quando
precisa chegar a algum lugar. Ou fazer aquilo que parecia não ter
muito sentido.
— Veja! — ela disse em voz alta, apontando. — Se subirmos um
quadrado podemos Bater Boca e, em seguida, escorregar para
baixo por aquela cobra ali — Ela apontou, agarrando o braço do
Dodô.
— Mas isso é insano. Minha querida menina, não podemos
voltar…
— Não, você vê? Dois quadrados acima está Pena, cuja escada
nos leva um quadrado à frente dos, ah, ossotálopes.
— Perder de propósito… Voltar para seguir em frente? Acho que
pode funcionar — disse o Dodô em dúvida, olhando de novo para a
direção errada através dos óculos.
— Vamos! — Alice exclamou. — Vamos tentar!
Aquilo parecia certo ao estilo do País das Maravilhas, e Alice
quase pulou de entusiasmo para testar sua teoria.
O Dodô, no entanto, por ser uma ave, mesmo que uma ave
antiga, era, como todas as aves, não muito afeiçoado a cobras ou
serpentes. A ideia de montar propositadamente em uma para
escorregar para baixo em suas costas horríveis e escamosas era
quase inconcebível. Tirou um velho escorredor de macarrão de um
dos bolsos e colocou-o sobre a cabeça, a fim de não enxergar nada.
— Cuco — ele disse, ecoando de dentro do escorredor.
Eles entraram no próximo quadrado, asa e mão dadas.
— Ah, estou farta disso! — Alice afirmou, tentando começar a
Bater Boca. — Toda a sua… falação! E os absurdos! E… as
tentativas de me juntar com jovens cavalheiros com quem eu não
tenho a menor vontade de conversar, muito menos casar!
— Hã, o quê? — o Dodô perguntou de dentro do escorredor.
— Não se meta na minha vida, sua ridícula! Irmã imperiosa! Cuida
da sua vidinha besta, com suas visões mesquinhas sobre o que é e
o que não é certo. Case-se com aquele inexpressivo com cabeçorra
de ovelha e deixe o resto de nós fora da sua ideia do que seria uma
Inglaterra perfeita!
— Com licença — disse o Dodô, ecoando, mas com alguma
dignidade. — Eu realmente não me importo bulhufas com sua
Inglaterra e não gostei nada do seu tom, srta. Alice…
— Escolha um lado, seu pássaro ridículo! Você nem mesmo
conhece minha irmã ou seu papagaio, mas você me conhece! Não
posso acreditar que vai defendê-la! Ave impudente!
O pobre pássaro, praticamente extinto, estava tendo dificuldade,
de fato, com sua parte da discussão fingida.
— Hã… você! — o Dodô tentou, pensando muito. — Então! Vá
catar… coquinho… pelas bandas de, deixe-me ver, um sofá bem
curtinho! Sim!
— Vai te catar! — Alice exclamou, sorrindo.
E então a cobra, com uma expressão confusa e entediada nos
grandes olhos dourados, atirou-os no ar e os dois escorregaram de
volta vários quadrados.
Eles caíram com um baque duplo, dessa vez um bem ao lado do
outro. E, estando preparada para escorregar, Alice não se
machucou e conseguiu colocar-se de pé logo em seguida.
Depois de se levantar, o Dodô guardou o escorredor com
movimentos peculiares e dignidade afrontada:
— Bem, não me surpreende que sua irmã queira controlá-la um
pouco. Você pode ser uma monstrinha.
O quadrado em que estavam era mais verde, úmido e fresco do
que aqueles ao redor. Árvores e arbustos pequenos projetavam
sombras necessárias na paisagem outrora descampada do jogo.
— Ah, uma rosa-chá, excelente — o Dodô disse encantado,
observando os arredores. — Exatamente o que precisamos.
Alice estava prestes a repreendê-lo por esse absurdo, mas é claro
que a rosa-chá tinha botões gordos que, quando fechados,
formavam xícaras de chá perfeitas, cheias de chá cheiroso e
fumegante dentro. Na verdade, uma boa xícara de chá não seria tão
ruim nesse momento.
— Tudo bem, para o próximo quadrado, Pena — Alice declarou.
— Por que é uma pena? — o Dodô perguntou, um pouco
estupidamente.
— Não… É o quadrado da “Pena”. Temos que alcançar a “Pena”
agora.
— Mas eu já sou cheio de penas! — grasnou o Dodô, indignado.
— Você parece ter deixado sua cabeça à deriva lá atrás. E
enlouqueceu completamente se pensa que vou deixar que alcance
minhas penas.
— Deixa pra lá — Alice murmurou. — Absurdo.
Os dois caminharam para o próximo quadrado, onde uma escada
linda e oscilante, tão leve quanto névoa, se elevava no ar fora de
alcance por um triz. Sua outra extremidade balançava
languidamente em uma pedra coberta de musgo logo além dos
ossotálopes.
Alice fechou os olhos e pensou nos pássaros-óculos e pássaros--
espelho levados pela polícia.
— Tenho pena das pobres crianças, arrancadas da Chácara,
sabe-se lá para onde.
— Tenho pena da sua irmã — murmurou o Dodô. — Seu
temperamento é formidável.
A escada se desenrolou lenta e deliciosamente para as mãos
estendidas de Alice. Os contrariados ossotálopes relincharam e
rincharam de frustração um quadrado atrás. Eles, de fato, eram
lindos em sua própria maneira frágil e desajeitada.
Mesmo assim, Alice teve que resistir ao impulso de colocar o
polegar no nariz e balançar os dedos para eles.
Enquanto subia para o próximo quadrado, viu uma nuvem branca
esquisita pairando diretamente acima deles. Não era preciso olhar
muito atentamente para constatar sua forte semelhança a um coelho
e é claro que era toda branca e macia. Conforme os ventos
sopraram, uma pata parecia mover-se para uma correntinha e puxar
um relógio… A nuvem piscou para ela? Uma Alice mais nova teria
ficado encantada. A Alice mais velha observava inquieta e se
perguntava o que o Mestre Gato quis dizer quando falou que o
Coelho estava correndo em direção ao Tempo.
Neste instante, um pequeno focinho espiralado enfiou a cabeça
sobre um toco, os olhos pretos e cintilantes olharam para Alice sem
piscar.
— Olá! — ela disse. — Lamento muito não termos tempo para
conversar, mas…
Um segundo focinho encaracolado apareceu.
— Touvos — o Dodô comentou. — Esguios, ainda por cima.
— Eles são perigosos? — Alice perguntou.
Um terceiro focinho apareceu. As três criaturas pareciam debater,
de alguma forma esfregando os focinhos saca-rolhas entre si, sem
enroscá-los.
— Não quando considerados isoladamente — disse o Dodô
pensativamente.
Um quarto e um quinto touvo percorreram a parte inferior do coto.
Suas patas eram um pouco grandes e fortes demais para o gosto de
Alice, garras um pouco curvas demais. Muito parecido com um
texugo. O que, se Alice se lembrava direito, também era
relativamente inofensivo quando encontrado sozinho, contanto que
não fosse encurralado.
Agora havia uma dúzia.
E eles começaram a se aproximar.
— Dodô — Alice disse com insegurança.
Presos ao pelo do peito das ferinhas, havia minúsculos corações
vermelho-rubi.
Ela agarrou a asa do velho pássaro e correu, puxando-o atrás de
si.
Os touvos zurraram e se lançaram para a frente.
Alice sentiu uma dor repentina no tornozelo: não havia se movido
rápido o bastante! Uma das criaturas conectou-se com sucesso à
sua pele. Ela caiu no chão e a força da queda derrubou a criatura
horrível, mas não antes que sentisse o bicho girando e se
contorcendo, tentando afundar o focinho horrível e perigosamente
afiado dentro de sua pele.
Com um rosnado, outro saltou para frente. As garras abriram
sulcos na lateral de Alice, cortando suas roupas em mil fitas
minúsculas.
Ela se levantou do chão o melhor que pôde com a dor lancinante
no tornozelo. Os touvos rosnaram e investiram contra ela. O pobre
Dodô choramingou, rodeado por seis touvos que abaixavam as
cabeças se preparando para impelir seus focinhos na barriga dele.
Alice procurou desesperadamente em seu bolso por um dos
biscoitos que pegou na casa do Coelho Branco. Engoliu tudo de
uma vez, sem mastigar, é claro, Moderadamente Rude. Uma
pequena cobra deslizou para cima, ao redor dela e do Dodô, e os
puxou para baixo, direto para o quadrado com os ossotálopes.
— Sair da frigideira para… — ela gemeu.
— Como ousa falar uma coisa dessas! Alguns de meus ave-avós
foram assassinados em uma frigideira quente com crosta
empanada! — o Dodô gritou para ela.
Mas os efeitos do biscoito se faziam sentir em seu organismo.
Alice olhou em volta pensando no que fazer. O castelo da Rainha
de Paus estava à vista, mas muito à frente deles: um bloco de
escuridão feito um besouro brilhante aninhado na base de
montanhas distantes, atrás de um rio formidável.
Ela estendeu a mão e… puxou.
O tabuleiro do jogo se esticou e distendeu feito uma bola de
borracha. O estômago de Alice parecia fazer o mesmo. No entanto,
ela enganchou os polegares naquilo que podia melhor segurar — a
outra margem do rio — e puxou com força para si mesma.
— Vamos! Corra! — disse ao Dodô.
— Isso é trapacear! — a líder dos ossotálopes gritou e ressoou
feito um clarim, uma besta medonha com nada menos do que seis
chifres de faca afiados brotando do crânio. A criatura feroz abaixou
a cabeça e galopou loucamente, quase quebrando os apêndices
esbeltos e sem joelhos em fúria.
O Dodô saltou para a língua de terra esticada e correu para o
castelo, ficando imediatamente menor como uma ilusão ou um
truque de desenho.
Um touvo se chocou contra a carne da panturrilha de Alice e
começou a girar, operando profundamente sua espiral.
Alice gritou.
Nunca havia sentido uma dor assim em toda a sua vida.
Conseguia sentir a ponta afiada e mortal movendo-se através da
carne, cortando tendões e músculos.
O ossotálope saltou.
Alice soltou e caiu. A terra se afastou dela. Tentou agarrar-se
desesperadamente à margem do rio, mas, em vez disso, mergulhou
na escuridão fria e úmida.
Capítulo 22

ALICE ACORDOU.
Uma leve brisa roçou suas bochechas; tinha um cheiro seco e
doce. A cama em que estava deitada era macia e cedia nos locais
certos. Um lençol de linho espesso e limpo que havia sido colocado
sobre seu corpo a protegia do ar apenas o suficiente para mantê-la
aquecida, sem esquentar demais. A luz era suave. Nada de sons
metálicos, buzinas, gritos, ferraduras sobre paralelepípedos,
grandes rodas sobre buracos, gritos de entregadores ou de
mulheres ou alunos recebendo seus exames de volta. Nada
cheirava a carvão. Tudo era paz e tranquilidade.
Acordara, mas não na Inglaterra.
A primeira emoção que tomou conta de Alice e a fez atravessar a
escuridão da recuperação pós-colapso foi alívio.
O último pensamento que lhe passou pela mente antes de apagar
foi justamente que acordaria em casa, mais uma vez perdendo o
imediatismo dos perigos no País das Maravilhas ao passo que seria
obrigada a lidar com os problemas de seu próprio mundo.
(Só para regressar mais tarde, talvez, com tudo indo de mal a
pior.)
A segunda emoção de Alice foi… nada.
Nem alegria, tristeza, medo ou raiva. Somente tranquilidade.
Não havia mais ninguém no cômodo e ela podia, pela primeira
vez em muito tempo, apenas parar e pensar e ser.
Ponderou o que teria acontecido se tivesse morrido no País das
Maravilhas. Será que seu espírito ficaria preso (livre) lá? Aqui?
Morreria também no mundo real? Havia um Deus e um paraíso para
o País das Maravilhas? Seria Ele tão cheio de absurdos como as
criações Dele? Jamais teria que voltar para casa, para a realidade
monótona e irmãs enfadonhas e flores que permaneciam
firmemente em silêncio…
… e rapazes com bochechas rosadas…?
Será que poderia ficar para sempre em um mundo onde suas
palavras eram constantemente distorcidas? Onde nada nem
ninguém se comportava adequadamente? Onde tudo era um
absurdo o tempo todo, gostando ou não?
— Gostaria de um mundo no meio-termo, eu acho — murmurou
para si mesma, se mexendo um pouco por fim. — Fantasias e
caprichos que não sabem muito bem o seu lugar, mas que
tampouco tentam te matar. Elas seriam agradáveis ou irritantes, mas
pequenas e fáceis de lidar. E o mesmo com o mundo real.
Problemas simples e algum tipo de consistência. Não, isso parece
mais com um desejo pelo fim de todos os problemas do que um
mundo real para se viver. Muito preguiçoso da sua parte, Alice. E
quanto a… problemas grandes e porventura solucionáveis em um
mundo com regras que podem não fazer sentido, mas, pelo menos,
permanecem consistentes? Com amigos, e criaturas, e lugares
ocasionalmente propensos ao absurdo?
Suspirou e se sentou. O penteado tinha se desfeito por completo
e caía um pouco sem graça em torno dos ombros. Seu vestido havia
sumido, mas a roupa íntima permanecera. Com um pouquinho de
dor, conseguiu se endireitar, descansando as costas contra uma
pilha, sem dúvida enorme, de travesseiros.
Não estava em um quarto propriamente dito, era mais um cômodo
amplo simbolicamente delineado por arcos de pedra que
mergulhavam do teto quase até o chão, mas então paravam de
repente, como se tivessem ficado entediados com todo o processo.
Além dos arcos, de um lado, havia uma parede externa com janelas
gigantes abertas (estranhamente indefensáveis). No outro lado da
cama, corredores largos, ou talvez outros cômodos conjugados,
continuavam até o infinito, com paredes internas angulando dentro e
fora aqui e acolá.
Tudo era construído em pedra cinza-clara, vagamente perolada,
como uma concha que Alice poderia pegar à beira-mar e passar
longos momentos contemplando antes de decidir mantê-la ou
abandoná-la. O interior de um mexilhão roxo, talvez, fascinante em
seu prateado que poderia ser o começo de uma joia ou somente
uma mancha da lama em que vivia.
Tudo isso a fez questionar: havia ganhado o jogo? Estava no
castelo da Rainha de Paus? Porque não parecia tão preto como do
lado de fora…
As preocupações de Alice foram, em certa medida, aliviadas
quando uma furoa gigante, escura como a noite (incluindo o vestido,
o avental e o chapeuzinho de enfermeira), veio caminhando
silenciosamente nas patas traseiras. O pescoço era curvado e torto
para que ela pudesse observar e equilibrar cuidadosamente os itens
na bandeja preta lustrosa que carregava: uma garrafinha de um
tônico escuro que dizia, claro, BEBA-ME em letras rebuscadas
prateadas, um copo de vidro preto reluzente e um biscoito digestivo
preto que Alice decidiu imediatamente que não colocaria nem perto
de sua boca, não importava o que estivesse escrito nele. Parecia
eminentemente intragável e muito desagradável.
— Como está a paciente? Levou uma queda bastante
desagradável — a coisa disse em uma voz áspera, muito mais
profunda e masculina do que Alice teria esperado.
— Melhor do que nunca. Me sinto maravilhosa — respondeu
Alice, obviamente manipulando a verdade, rápido demais para
bloquear qualquer sugestão contrária.
Mas uma dor aguda na perna a fez se contrair apesar dos
melhores esforços.
A enfermeira colocou cuidadosamente o conteúdo da bandeja em
uma mesinha de cabeceira, a qual Alice tinha quase certeza de que
não estava lá antes. Depois gentilmente puxou o lençol da metade
inferior de Alice. A panturrilha esquerda, onde o touvo enfiou o
focinho bem fundo no músculo, estava bem enfaixada e cheirando a
algum bálsamo de odor adocicado. Mas a carne pulsava e latejava
com uma magnitude quase insuportável quando ela esticava, ou
simplesmente movia, o dedo do pé.
— Touvos são bichos difíceis — a furoa gemeu, solidária. — Eles
pegam todas as porcarias desagradáveis que vivem debaixo de
relógios de sol, como venenos e maus humores. Sua perna está
infectada. Nós a limpamos da melhor maneira que pudemos, mas
não temos certeza de que removemos todos os feitiços e bestas
ruins.
Alice estava prestes a abrir a boca para corrigir esta noção
ultrapassada de ciência e medicina; graças ao Monsieur Pasteur,
todo mundo sabia que a infecção não era causada por magia ou
espíritos ou criaturas comuns. Apenas minúsculos, microscópicos…
E então uma coisinha azul, menos inseto e mais uma espécie de
estrela com muitas pernas, puxou-se para fora da atadura e olhou
em volta com cautela.
A furoa estalou uma pata antes que Alice pudesse reagir (e, de
qualquer maneira, a reação dela teria sido basicamente gritar de
horror).
Triunfantemente, a enfermeira ergueu a coisa e esmagou entre as
garras.
— Peguei!
Alice desviou o olhar, preocupada que a enfermeira atirasse o
bicho na boca.
Mas a furoa era profissional demais para isso e delicadamente
colocou-o de volta na bandeja e cobriu com um pano.
— Provavelmente será um dos últimos, não se preocupe — ela
disse suavemente. — Agora beba seu remédio.
Alice obedientemente pegou o copinho (muito pesado!) depois
que a enfermeira o encheu até a borda com um líquido preto,
espesso e viscoso. Sentiu-se literalmente incomodada com a
quantidade e virou tudo o mais rápido que pôde, sem saber se
deveria esperar o sabor desagradável de óleo de bacalhau que
vinha com goles de remédios do mundo real ou de poção deliciosa e
complicada que era a especialidade do País das Maravilhas.
Não tinha gosto de nada.
Literalmente.
Era como… água espessa. Meio refrescante, mas difícil de
engolir.
No mesmo instante, Alice sentiu um calor adorável relaxando
todos os pedaços retraídos dentro de si, desatando-os, aliviando a
dor, desenrolando o que não deveria estar emaranhado, queimando
todas as criaturas malignas que permaneciam em sua perna.
— Seu xixi pode ficar um pouco lilás na próxima semana. Não se
assuste — aconselhou a furoa, que depois se afastou com a longa
cauda balançando no ar.
Alice, sentindo-se muito melhor, levantou-se da cama que estava
tão estranhamente colocada no meio do nada e viu mais itens que
não tinha notado antes, que provavelmente não estavam lá antes. A
mais aparente era um vestido pendurado no ar que obviamente era
para ela. Não era nada parecido com seu vestido anterior; era mais
curto e tinha o que parecia calças largas em vez de uma saia de
verdade. As mangas desciam apenas três quartos do caminho e
terminavam em detalhes de tricô em vez de um punho adequado. O
tecido era cinza com linhas em padrão diagonal, muito bonito e
parecia que poderia cintilar um pouco na luz certa.
Sobre o seio direito estava preso um broche brilhante: três clavas
pretas e reluzentes bem juntas. Como paus de um baralho de
cartas.
— Então eu realmente consegui e este é, de fato, o castelo da
Rainha de Paus — Alice murmurou, satisfeita e talvez apenas um
tiquinho presunçosa. — No entanto, não gosto de usar o emblema
dela. Ainda não tratamos, nem mesmo conversamos. Não posso
sair por aí usando a benesse de uma rainha sem saber a opinião
dela sobre certos assuntos.
Enquanto falava, sorriu para si mesma em leve zombaria. Por um
lado, parecia uma menininha tentando fingir que compreendia o
mundo e os políticos e tudo que acontecia entre eles (como fazia o
papagaio de Mathilda). Por outro lado… compreendia, um pouco.
Sabia qual era a orientação nojenta do partido de Ramsés e sobre
as próximas eleições para prefeito e os problemas com o
antissemiotismo.
(Não, não era bem assim. Mas o sentimento e o impulso básico
por trás estavam corretos.)
Então, talvez ela não fosse embaixadora ou espiã, mas sabia o
bastante para perguntar: qual era a opinião da Rainha de Paus
sobre a guerra da Rainha de Copas contra seu próprio povo, e ela
ajudaria?
— Engraçado — Alice disse pensativa. — É como o Mestre Gato
disse: eu carrego mesmo um pouco do mundo real aqui. Apenas
juízo o suficiente ou algo do gênero para me ajudar. Como se
chama isso? Essa coisinha, esse ponto de vista? Aquele jeito de ver
algo diferente de outra pessoa?
Suspirando com tal memória curiosa neste mundo curioso, Alice
retirou cuidadosamente o broche e colocou-o sobre o travesseiro na
cama, e só então vestiu a roupa estranha.

Ela vagou pelos corredores do castelo um pouco chocada com a


própria liberdade. Claro, havia uma quantidade de servos e
cortesãos estranhos que lhe dirigiam olhares severos quando ela
passava, mas quando perguntados eles indicavam, com relutância,
o caminho para a Rainha.
(Os únicos que não responderam foram os que estavam em uma
fileira ordenada de criaturas que podiam ser pombos ou biguatingas;
difícil dizer. Eles caminharam com pés silenciosos, cabeças
curvadas e pontas de asas cruzadas, usando toucados ou plumas.)
Os guardas de paus, em posição de sentido, ficavam em frente a
certos “cômodos” ou desfilavam em duplas pelos corredores, mas
não fizeram mais do que dar uma olhadela.
O castelo também era um pouco simples demais em sua
arquitetura, Alice pensou; passou por cômodos onde aparentemente
estavam acontecendo reuniões privadas entre membros do
conselho (e uma designação).
A decoração parecia descuidada e feita às pressas, embora tudo
combinasse. As tapeçarias assimétricas nas paredes e os tapetes
no chão eram pretos ou cinza. Mesas de apoio minúsculas contra as
paredes tinham uma peça cinza ou bibelô preto minúsculo, às vezes
um vaso com uma flor que parecia recém-colhida e quase sempre
pendente.
Algumas das janelas que davam para o mundo do lado de fora
não deveriam estar lá, pois estavam nas paredes internas. Alice
parou em uma e ficou na ponta dos pés para espiar. Claramente
inspirado em uma pintura do início do Renascimento, estava o
tabuleiro completo de Cobras e Escadas. O jogo se espalhava nas
planícies além do pequeno vale aconchegante onde o castelo
repousava, protegido por seu fosso prateado. Cartas e outras
criaturas estavam consertando a margem do rio que Alice tinha
arrancado acidentalmente ao tentar salvar a si mesma e ao Dodô.
Sentia-se mal por isso, claro, mas se perguntava sobre a opulência
do solo assim exposto e a natureza bucólica da cena. Era a temática
oposta de encontrar as cartas pintando as rosas de vermelho ou o
labirinto de buxo moribundo; essas criaturas estavam trabalhando
juntas, em silêncio, para reparar a natureza, e, pelo que tudo
indicava, felizes.
Alice se apressou e, por fim, encontrou… Bem, se não a sala do
trono, então pelo menos a sala de estar da Rainha. Pois a própria
Rainha estava lá, sentada em uma cadeira alta e elegante. O Dodô
também estava presente, descansando em um sofá estofado com
uma xícara de chá e uma coruja do estado empoleirada inquieta por
perto, esticando a cabeça em um longo pescoço de acordeão. Ele
(parecia uma coruja macho) mantinha o pássaro quase extinto sob
sua vista, sem piscar os grandes olhos. Um cachorrinho branco
perseguia o próprio rabo e uma bola preta brilhante em um tapete
felpudo cinza. Uma mesa de centro estava posta com todos os tipos
de petiscos e guloseimas, embora nenhum deles fosse doce. Mais
biscoitos pretos, mais queijo laranja vívido e sanduíches frios que
eram pretos com algum tipo de recheio vermelho-sangue. Nada
parecia minimamente apetitoso, embora rendesse uma bela foto. O
Dodô, Alice percebeu, não estava realmente bebericando seu chá.
— Vossa Majestade — saudou Alice, fazendo uma reverência.
A Rainha virou lentamente a cabeça elegante para encarar Alice.
Ela era alta, muito alta, tão alta quanto a Rainha de Copas era
baixa. Ela estava serena, repousada e tinha olhos pretos até os
cantos, nada de branco. As maçãs do rosto eram altas e angulosas
como as de uma estátua estilizada, e seu cabelo era preto e
brilhante e intrincadamente penteado em curvas e bolas ao redor de
um adereço de estrutura semelhante, então era difícil dizer onde um
começava e o outro terminava. Um longo véu dourado descia de
sua coroa sobre os ombros e as costas. O resto do vestido era uma
mistura familiar de quadriculados, estrelas de seis pontas e insígnias
de paus em azul-escuro, preto e dourado.
Mais parecida com a carta de verdade, pensou Alice.
— Alice! Que bom que está bem! — o Dodô exclamou. — Foi por
um triz!
Alice esticou a perna: a atadura e o ferimento foram totalmente
expostos pelo vestido escandalosamente curto. A dor já não era tão
insuportável. Ela se perguntava o que aconteceria quando o efeito
da bebida preta passasse.
O Dodô empalideceu ao ver o tamanho do dano.
Até a coruja piou, incapaz de se conter.
— Parabéns por vencer o jogo — a Rainha disse formalmente,
inclinando um pouco a cabeça. — Você vai querer um prêmio, é
claro. Aqui.
Ela acenou com a cabeça e um ser que parecia meio porco-
espinho, meio pássaro arrastou-se para a frente com uma pequena
arca de madeira, que abriu com grande cerimônia. Ali dentro havia
uma pilha estranhamente familiar de quinquilharias espalhafatosas,
apesar de não serem, obviamente, quinquilharias: havia joias
cintilantes gigantes penduradas em cordões de ouro, braceletes
cobertos por guizos de prata, minúsculas coroas de diamante em
grampos de cabelo e todos os tipos de anéis grandes e exagerados.
Alice escolheu um relógio de pulso bonito e delicado, cujo grande
mostrador tinha pérolas marcando os números. Era o que havia de
bom gosto naquele conjunto e, de qualquer maneira, Alice sempre
quis um relógio de pulso. Isso deixaria suas mãos livres para a
câmera enquanto cronometrava o tempo de exposição e tal.
— Obrigada, Vossa Majestade.
— Eu escolhi um alfinete de gravata. — O Dodô se envaideceu,
mostrando uma haste dourada que tinha a frase vencedor número
um com diamantes em formato de estrela ao redor, feito fogos de
artifício.
— Você arriscou sua vida e sua perna para vir até mim — a
Rainha disse em uma voz profunda e ressonante —, hoje em dia,
quase ninguém tenta o jogo, muito menos o ganha. Sobretudo
depois que aquele coelhinho desprezível liberou todas aquelas
criaturas perigosas e horríveis no tabuleiro. Muito curioso…
Normalmente touvos não atacam de modo tão rápido e cruel.
— Sim, mas minha perna tende a discordar — Alice disse com um
sorriso pálido.
— Mesmo? O que você própria tem a dizer sobre isso? — a
Rainha perguntou à perna de Alice com interesse.
Por um instante, Alice ficou apavorada de que sua perna fosse
responder. Não sabia o que faria se isso acontecesse.
— Creio que tanto eu quanto minha perna estamos muito
agradecidas pelo auxílio de seus servos — ela respondeu
rapidamente com outra mesura.
A rainha pareceu gostar do comentário, dando uma pequena
fungada.
— Nós… Quero dizer, minha perna, o Dodô e eu… Viemos aqui
para implorar a Vossa Majestade que ajude um povo doente… —
Alice começou, limpando a garganta.
— Ah, não estávamos esperando por isso — disse a Rainha, um
pouco desconcertada. Ela se apalpou e encontrou uma única moeda
(de ouro, na forma de paus) e jogou para Alice. — Você não parece
uma mendiga.
— Não, Vossa Majestade, por favor. — Alice fez uma reverência
novamente, mas honestamente não conseguia tirar os olhos da
curiosa moeda de ouro. Era muito brilhante e intrigante. — Eu vim
pedir sua ajuda contra a Rainha de Copas.
Os olhos da Rainha de Paus se arregalaram. Em seguida, ela deu
risada. Balançava-se rigidamente, como um homem velho em um
espartilho fingindo achar graça de uma piada:
— Por que precisa de nossa ajuda contra ela? Estamos contra
ela, de paus e alma, desde o início do Tempo. Nós jogamos Batalha
contra ela repetidamente.
— E quem vence? — Alice perguntou, educada.
— Às vezes nós vencemos, às vezes ela vence. Mais
frequentemente nós — a Rainha disse, talvez mentindo. Parecia um
pouco dissimulada. — Eu cansei disso. É chato.
— Alguns dizem que não é um jogo adequado — acrescentou o
Dodô, tentando fazer parte da conversa. — Porque as cartas são
aleatórias, mas definidas no início do jogo, e não há escolha de
verdade nem quaisquer elementos aleatórios adicionais durante o
jogo… Você só vira as cartas e o resultado é predeterminado…
— Não seja absurdo — a coruja arrulhou.
A Rainha ergueu a mão com impaciência:
— Não temos tempo para absurdos agora, Dodô. Sentimos que
essa garota tem assuntos urgentes na cabeça. Agora, nós
respondemos à sua pergunta?
— Perdão? — Alice disse, piscando.
— Já dissemos: estamos sempre contra a Rainha de Copas. Isso
é tudo que você queria saber?
— Ah, não, Vossa Majestade — disse Alice, fazendo ainda outra
mesura enquanto pensava, confusa. — Eu estava me perguntando
se a senhora seria… Ah, ativamente contra ela. Por exemplo,
ajudando os súditos a derrubá-la.
— Ajudar súditos a derrubar sua monarca? — a Rainha de Paus
perguntou. Sua boca ficou quadrada, ou talvez trapezoidal, o lábio
superior descendo e os cantos puxados para fora, de tensão e
repulsa.
Alice entendia como essa ideia podia soar um tanto controversa
aos olhos de outra rainha.
— Vossa Majestade, ela está descontrolada, executando,
assassinando, prendendo e torturando o próprio povo, muitas vezes
sem razão aparente. E está apreendendo todos os brinquedos —
adicionou. Ainda achava que parecia uma tolice, mas o Dodô
assentiu seriamente, e a coruja soltou um assobio baixo de choque.
O rosto da Rainha congelou como se estivesse prestes a fazer
outra expressão, mas ela o forçara, por vontade própria, a parar.
— Apreendendo… todos… os brinquedos, você disse — ela
balbuciou.
— Sim. Mas também devastando o campo e executando pessoas
e…
— Eles são… os súditos dela. Ela pode governar como quiser. —
Mas, mesmo com a voz formal e indiferente, Alice percebeu que a
Rainha não estava convencida pelas próprias palavras.
— A senhora sabe quem é Mary Ann? — Alice arriscou.
— Claro. Quem não sabe? — a Rainha disse, revirando os olhos.
Provavelmente. Era difícil dizer sem nenhuma parte branca.
— A Rainha de Copas mandou matá-la, depois de torturá-la. Eu
acho… Eu acho que ela a cegou, ou arrancou seus olhos, ou algo
parecido. — Alice tremia enquanto falava, descrevendo a fotografia.
A rainha empalideceu. Talvez. A pele dela não mudou de cor,
mas, de alguma forma, deu a impressão de mudar.
— Mary Ann? — ela sussurrou. — O Coelho Branco… a garota do
Coelho?
— Sim, é horrível. Mas já vi maldades semelhantes serem feitas a
pessoas de quem a senhora talvez não tenha ouvido falar. Crianças,
e lagartas, e a maior parte da hora do chá do Chapeleiro. O
Chapeleiro perdeu um olho para um dos pássaros jubjub. Ela está
matando e mutilando todos aqueles que querem impedi-la de levar
todos os, hum, brinquedos.
A Rainha bateu nos braços de sua cadeira com as unhas pretas
longas e pontiagudas.
— E nem mesmo faz sentido… Ou absurdo, não importa — disse
Alice, mais para si mesma ou para o mundo do que para a Rainha.
— Eu não sei o que ela espera ganhar com isso.
— Ora, ela quer vencer, é claro — disse a Rainha, surpresa. — A
menina que tiver mais brinquedos quando morrer vence. No fim de
tudo, claro. Todo mundo sabe.
Alice refletiu sobre isso.
— Então ela pretende morrer? Para… quê? Reunir todos os
brinquedos do mundo e depois…? O que quer dizer com “no fim de
tudo”?
— O Fim dos Tempos, sua menina boba. Ela vai causar o Fim dos
Tempos e o fim do País das Maravilhas.
Capítulo 23

ALICE SE CONSIDERAVA UMA garota sensata, fora do País das


Maravilhas, é claro, mas, por algum motivo, simplesmente não
conseguia fazer sua mente, em geral lógica e entupida de
aforismos, processar o que a Rainha de Paus acabara de dizer.
— Mas… — Em seguida Alice decidiu arquivar sua pergunta de
aprofundamento e prosseguir para a próxima-informação-mais-óbvia
que parecia estar faltando. — O que ela ganha? Se o próprio Tempo
acabar, está tudo acabado, se o próprio País das Maravilhas acabar
e todos, incluindo ela mesma, se forem, o que resta? Para ganhar?
— Ela simplesmente vence. Tudo. O que você não consegue
entender, menina? — A Rainha bufou impaciente. — Ela é a
vencedora. Se ela tiver mais brinquedos. Quando todos nós
morrermos.
— Então ela… Só ela conseguirá viver depois do Fim dos
Tempos?
— É o Fim dos Tempos, sua tola — disse a Rainha, inclinando-se
para frente para olhá-la nos olhos. — Não sabemos como o Tempo
funciona no seu mundo ou no que ele trabalha…
— Talvez seja um boticário — sugeriu a coruja.
— Talvez um boticário. — A Rainha assentiu. — Ou um sapateiro.
Mas aqui o Fim dos Tempos é o que parece. Ele, e tudo, acaba.
— Mas então — disse Alice, relutante em irritar a Rainha, mas
incapaz de deixar passar o assunto confuso —, se a Rainha de
Copas… junto com todo o resto… acaba… qual é o objetivo de
vencer?
— É simplesmente vencer. Porque ela… Há algo de errado com
essa menina? — A Rainha se virou em desespero para o Dodô, que
deu de ombros e sorriu de leve, como o avô de uma neta
particularmente enfadonha, mas bonita.
— Tudo bem, tudo bem — Alice disse, apressada. Só lhe cabia
aceitar; este era o País das Maravilhas, e a visão de mundo deles
simplesmente não era a dela. Vencer era importante mesmo que
você não estivesse por perto para desfrutar de brinquedos, aplausos
ou espólios. O Fim dos Tempos era, de fato, o fim de tudo, mas pelo
jeito não o bastante para despertar pânico e terror imediatos no
coração (ou no naipe de paus) dos habitantes locais. Era assim que
era. — Então ela pretende obter todos os brinquedos, ou a maioria
dos brinquedos, e, em seguida, provocar o Fim dos Tempos
rapidamente para que possa ser declarada vencedora — disse tão
lenta e claramente quanto podia.
— Enfim a menina está fazendo algum sentido — a Rainha disse
para a coruja, não exatamente sussurrando. — Levou muito Tempo,
no entanto.
Alice pensou muito. Havia ganhado Cobras e Escadas; era capaz
de resolver isso também. Certo?
Seu “plano” até agora tinha sido contar com a misericórdia da
Rainha de Paus, algo irresponsável e irrefletido, considerando o
egoísmo e a irracionalidade geral de todos os nativos do País das
Maravilhas. Precisava de algo que tivesse muito mais força, muito
mais apelo para alguém do País das Maravilhas.
— A senhora acha que todos os brinquedos de todos os súditos
da Rainha de Copas seriam… suficientes… para ela se sentir
confortável com suas chances de vencer? Ou será que ela poderia
achar que não é exatamente suficiente e buscar brinquedos além de
suas fronteiras, em outros reinos?
A Rainha de Paus estreitou os olhos, parecendo refletir a respeito.
Arrá, pensou Alice. Isso chamou a atenção dela.
— Não sabemos. Normalmente, as rainhas refletem sobre esse
tipo de assunto somente quando há ramificações políticas. Vindo de
gente como você, soa como uma questão tática, menina. Como se
estivesse procurando maneiras de atrair Nossa Realeza para a
ridícula tolice de Copas.
Alice ficou surpresa com a rapidez com que a Rainha não se
deixou iludir por seu plano astuto e, também, manipulador. A
governante de Paus era bem mais inteligente do que muitos
habitantes do País das Maravilhas.
— Bem, sim; foi por isso mesmo que vim aqui — Alice admitiu,
estendendo as mãos abertas. — Para rogar sua ajuda de qualquer
maneira que pudesse. A Rainha de Copas está destruindo o próprio
reino, saqueando, matando, torturando e prendendo seus súditos
sem trégua. Eu tive esperanças de que a senhora fosse ajudar a
impedir esta farsa graças à bondade do seu coração…
— Do QUÊ? — A Rainha ficou de pé em seu pequeno descanso
para os pés, o que a deixou ainda mais alta. Ela parecia ter um
quilômetro de altura, e um truque da luz fez com que seus olhos
parecessem profundos e aterrorizantes.
— De seus paus, quis dizer, Vossa Majestade, me perdoe! —
Alice imediatamente saltou do sofá e fez uma mesura tão baixa
quanto podia, baixando a cabeça. Seu cabelo dourado caiu em
torno dos ombros e brilhou à luz do sol. Talvez isso tenha
incentivado positivamente o julgamento da Rainha. — Graças à
bondade do naipe de paus, eu quis dizer.
— Você está perdoada — a Rainha disse com altivez, sentando-
se.
— … mas mesmo que seja indiferente à terrível situação do povo
de Copas, talvez a senhora pudesse se envolver para proteger seu
próprio povo e seus, ah, recursos de brinquedo.
Será que tinha soado sábio? Acadêmico? Inteligente? Alice viu a
si mesma e a Rainha dividindo um globo enquanto discutiam
atentamente as minas de bonecas da Europa Oriental ou os centros
de fabricação de barcos de brinquedo nas Hébridas Exteriores.
— Mas é claro — disse a Rainha, estreitando os olhos tão
dramaticamente para encarar Alice que eles quase se fecharam por
completo. Ela sorriu e disse calorosamente: — É isso que uma
rainha faz, proteger seus súditos. Por que você acha que colocamos
nosso castelo aqui, com um jogo terrível de um lado e o Improvável
do outro? Estamos muito protegidos neste vale estreito. Se a Rainha
de Copas algum dia decidir voltar seus exércitos para cá para nos
invadir, ela terá muito trabalho. Nossos brinquedos estão seguros.
O Dodô piscava cílios longos e emplumados para Alice,
obviamente ainda depositando toda sua fé nela, mas se
perguntando o que fazer a seguir, para onde ir em seguida. Sua
confiança e lealdade eram assustadoramente infinitas. Alice se
empertigou sob o olhar aviário.
A Rainha continuou despreocupadamente:
— Não nos envolveremos nos assuntos domésticos ou problemas
de outras rainhas. Não temos provas do que ela está fazendo ou se
está fora do normal de como ela reina. — A monarca torceu o nariz.
— Ah, a senhora tem evidências suficientes, aposto. Aposto que
tem espiões, valetes e afins que a mantêm informada — o Dodô
disse inesperadamente. — Se a Rainha de Copas mantém os olhos
dela em você, você com certeza faz o oposto e ao contrário — ele
acrescentou, bebericando o chá um pouco presunçosamente com
seu bico longo.
Depois tossiu, arruinando a cena, obviamente tendo esquecido
que detestara o líquido preto.
A Rainha de Paus escureceu, escureceu de verdade, com a pele
ficando lustrosa e preta feito ônix. Parecia descontente.
— Por favor, Vossa Majestade — Alice implorou. — A Rainha de
Copas é um monstro, está mutilando, executando e torturando
mesmo aqueles que já foram leais a ela! A senhora não faria tais
atrocidades, faria?
— Não, mas Nós somos uma rainha boa — disse com um
evidente autoelogio.
Só para o próprio povo, Alice pensou com raiva. Claro… Se este
fosse o mundo real e ela estivesse discutindo com uma verdadeira
chefe de Estado da Europa, quase poderia ver alguma lógica por
trás dos pensamentos da Rainha, por mais retrógrados e
indiferentes que soassem. A Rainha de Paus era, de fato, uma
“rainha boa”, mas, se interferisse nos mandos de outra rainha sobre
seu próprio povo… O que impediria outra pessoa de fazer o mesmo
contra ela? E se um rei considerasse que ser obrigado a usar
pequenos broches com o naipe de paus era malicioso e cruel e
invadisse o reino para “salvar” essas pessoas? Porque ele também
se considerava bom?
Alice poderia discutir a situação do reino de Copas até ficar roxa
de raiva, mas o naipe de Paus aqui não tomaria qualquer atitude
que pudesse pôr em risco o próprio governo.
— Agora, se seus súditos de fato se insurgirem contra ela, muitos
súditos, queremos dizer — a Rainha de Paus disse suavemente —,
seria uma situação totalmente diferente.
Alice piscou, processando devagar o que ela disse com uma
mistura de desconfiança e fascínio.
— Se a maioria do povo julgar que é governado por uma rainha
malvada, uma tirana vingativa, cruel e sem coração, e que sofreu o
bastante, tornando isso público, ora, ficaríamos mais do que
satisfeitos em intervir e dar uma mão. Talvez até mesmo uma mão
de flush ou um straight, como no pôquer.
A coruja esticou a cabeça em seu longo pescoço de acordeão,
surpreso com as palavras de sua senhora.
— Faríamos isso pela generosidade de nosso naipe de paus —
ela continuou serenamente — e apenas receberíamos nossa justa
recompensa no fim: quaisquer brinquedos da déspota deposta
apreendidos pelos nossos soldados.
Arrá. Ali estava o ponto de vista do País das Maravilhas. Alice
resistiu muito a esfregar a testa de exaustão. Não sabia se seria
uma gafe diante da realeza, mas desconfiava que sim. Também
tentou não suspirar.
— Então — disse em vez disso, respirando fundo —, se
pudermos demonstrar adequadamente que os súditos da Rainha de
Copas estão todos, ou quase todos, resistindo aos seus esforços
para destruí-los, confiscar suas propriedades e causar o Fim dos
Tempos e de todo o País das Maravilhas, que eles próprios estão
prontos para derrubá-la, aí podemos contar com a senhora para
assistência militar?
— Pode contar com quem você quiser — disse a Rainha
generosamente. — Até o nosso cachorro, se quiser, embora haja
apenas um, então seria uma contagem bastante rápida. Nós
comprometeremos tropas. Até pares de tropas.
Alice não tinha ideia de como fazer o que havia acabado de
propor. Considerando a batida selvagem e brutal com que seus
amigos haviam sido apreendidos e a incapacidade deles de
organizar até mesmo a menor, a mais fácil operação, a tarefa de
organizar uma revolução parecia impossível. Mas, pelo menos,
agora havia uma chance. E iria aproveitá-la.
— Era exatamente nisso que Mary Ann era tão boa — a Rainha
comentou, um pouco triste. — Ela sabia precisamente o que dizer e
conhecia todo mundo, sabia o que dizer a todos que encontrava.
— Além disso, ela conhecia o coração do Coelho — a coruja
concordou, balançando afirmativamente a cabeça. — E todos os
planos dele. Por consequência… Todos os planos da Rainha.
— Sim, considerando isso, não estamos… surpresos com a
remoção de Mary Ann por meios violentos — concordou a Rainha.
— Foi muito eficiente da parte da Rainha de Copas, vamos
reconhecer. Mas duvido que essa medida a tenha tornado benquista
aos olhos do Coelho Branco.
Por que a conversa sobre Mary Ann ainda irritava Alice, mesmo
que de leve? A pobre garota estava morta, tinha morrido tentando
salvar todo mundo. Ela merecia ser considerada uma heroína, não
um ideal impossível de ser alcançado.
Alice teve vergonha de seu eu interior e prometeu se devotar à
Penitência, quando tivesse tempo.
— Devo partir imediatamente para reunir o povo — disse em voz
alta, levantando-se para fazer uma nova mesura. — Como a
senhora vai saber quando… pessoas suficientes decidirem investir
juntas contra a Rainha de Copas? Mesmo com, ah, espiões, eles
não podem estar em todos os lugares ao mesmo tempo.
— Leve isso.
A Rainha acenou para a coruja.
Ele regurgitou e tossiu, e tossiu e regurgitou de maneira bastante
assustadora. Alice olhou para o Dodô para confirmar se era algo
normal no País das Maravilhas: corujas tossirem secreções ou
comida regurgitada em público sob ordem da Rainha.
Todavia, o Dodô parecia horrorizado, constrangido e
desconfortável, e começou a balançar a cabeça para frente e para
trás como se também estivesse prestes a vomitar ou estivesse
procurando um lugar para se esconder ou se retirar.
Por fim, a coruja atingiu um crescendo e se inclinou. A Rainha
estendeu a mão. Ele prontamente tossiu um ovo pequeno e perfeito
em cor de marfim.
Alice piscou de surpresa. A coruja não era macho? Mas, e
principalmente, era assim que se botavam ovos no País das
Maravilhas? E…
A Rainha sorriu satisfeita e virou o ovo com suas longas unhas
pretas. Na casca, em leve relevo, havia um conjunto perfeito do
símbolo preto de paus. A Rainha estendeu o ovo para Alice, que o
pegou com as duas mãos o mais cuidadosamente que pôde.
— Leve isso com você. Mantenha-o sempre em segurança.
Revele para ele a vontade do povo. Se tudo for como você diz,
iremos quando for conveniente fazê-lo, com nosso exército.
A Rainha desceu da cadeira. Agora ela estava vestindo uma capa
preta e espessa, com uma longa cauda que se estendia para fora da
sala, e que surgiu bem a tempo para ela se virar e fazê-la girar de
maneira elegante e dramática quando saiu.
— Vocês sairão pela porta dos fundos, claro — ela acrescentou,
sem se preocupar em olhar para eles. — Os ossotálopes os
seguiram para a frente e as cobras não pegaram todos eles.
— Obrigada, Vossa Majestade, sim, Vossa Majestade — Alice
disse, levantando-se de um salto e fazendo uma mesura, apesar de
não ter certeza de que era necessário, já que a Rainha nem estava
olhando. Ainda assim, havia um par de casuares pretos que agora
estavam de guarda em cada lado da porta através da qual a Rainha
tinha saído, com olhares bastante maldosos. Então talvez fosse
bom, em nome da formalidade.
Um mome rath todo preto, particularmente grande e com olhos de
partir o coração e um prato equilibrado na cabeça esbarrou na perna
de Alice, obviamente encorajando-a a colocar ali os itens utilizados
para o chá. Ela não tinha nenhum item, claro, porque o chá e seus
acompanhamentos tinham um aspecto nojento.
— Bem, isso é empolgante — disse o Dodô (pensativo, sem soar
nada empolgado) enquanto seguiam a criatura pelos corredores. —
Na verdade, tudo tem sido muito empolgante ultimamente. Isso é
menos empolgante do que alguns dos acontecimentos empolgantes
anteriores. É mais empolgante do que a empolgação normal, mas
menos do que a empolgação recente. E menos violento também,
com sorte.
— O quê? — Alice perguntou, tentando prestar atenção. Mas
estavam passando pelo que parecia ser uma padaria em miniatura
espremida em uma das estranhas alcovas do castelo, onde tortas e
biscoitos foram colocados para esfriar junto a uma janela aberta que
pendia do teto. Alice não pôde deixar de apanhar alguns, só por
precaução. Os biscoitos eram rosa e cor de areia e estava escrito
COMA-ME sobre eles, com nozes que pareciam pecã, mas ela não
tinha certeza; Alice nunca as tinha visto antes.
— … o Improvável — refletia o Dodô. — A última vez que estive lá
eu era um filhote.
— E como foi?
— Ora, improvável, sua pateta — o Dodô resmungou, revirando
os olhos. — A Rainha tem razão…. Você leva muito tempo para
fazer as coisas entrarem nessa sua cabeça.
Alice, é claro, sentiu-se um pouco desanimada. Especialmente
porque falhara na única tarefa a que se propusera quando eles
imploraram que ela assumisse o lugar de Mary Ann: obter ajuda da
Rainha de Paus.
— Dodô, você tem alguma ideia de como devemos lidar com
isso? Sinto que, até agora, não tivemos muita sorte em reunir as
forças do bem.
— Você reuniu a hora do chá — disse o Dodô filosoficamente. —
E nos trouxe para o Conta-pabeça. E voltou e me resgatou. Então,
somos dois agora.
— Ah, eu realmente achei que passaria as rédeas para Mary Ann
quando a encontrássemos! — Alice disse, tentando não reclamar. —
Receio que a Rainha de Paus esteja certa. Eu não sou mesmo uma
salvadora muito boa, em comparação a ela.
Esperava que o Dodô discordasse? Só um pouco? Ela espiou
pelos cantos dos olhos para ver a reação dele.
— Bem, não há ninguém como Mary Ann — foi tudo que ele
disse.
— Ninguém se parece no País das Maravilhas — Alice murmurou.
— Nem você, nem Abílio, nem o Chapeleiro… Ah! Eis o que vamos
fazer! — Alice bateu palmas. — Vamos conversar e reunir todos os
súditos de Copas que encontrarmos pelo caminho, mas primeiro
encontraremos o Chapeleiro! Supondo, claro, que ele tenha
escapado e não… bem, se ido. Sem o absurdo, ele quase tem
momentos de clareza e determinação e com certeza sabe como
falar com todos os habitantes do País das Maravilhas.
De repente, Alice ficou receosa de que pudesse ter ofendido o
Dodô. O amável, meigo, meio que ridículo Dodô, que era leal a
ponto de esperar na porteira do inimigo para ela voltar. Que ficou ao
lado dela, percorrendo Cobras e Escadas e enfrentando os touvos
para encontrar a Rainha.
Ele, porém, não pareceu notar nenhum elogio indevido ao amigo,
ou melhor, não pareceu se incomodar com isso.
O mome rath preto indicou o fim de um longo corredor com uma
contração indiferente de perna e, em seguida, voltou pelo caminho
por onde tinham vindo, ricocheteando nas paredes aqui e acolá
conforme a criatura (ele?) partia.
O corredor ridiculamente longo se reduzia a uma extremidade
ridiculamente minúscula, mas é claro que, à medida que andavam
por ele, tudo mudou e eles se viram diante de uma gigante parede
vazia no meio da qual havia uma portinha de cozinha, acinzentada e
ordinária. Uma placa gigante acima dela dizia SAÍDA, com uma seta
indicando a porta caso o leitor não entendesse bem.
— Tudo bem — Alice disse, colocando a mão na (ligeiramente
ensebada?) maçaneta. Ela se abriu, tortuosamente, como se uma
das dobradiças não estivesse bem fixada. A luz estava tão
ofuscante depois dos corredores escuros e frescos do Castelo de
Paus que o Dodô piscou e grasnou e Alice protegeu os olhos.
Eles saíram.
Alice esperava qualquer coisa: uma floresta feita de brócolis, uma
planície vasta que se dissolveria em um pântano nebuloso, uma
feira de cidade em cores vívidas e extravagantes com cúpulas de
porcelana alemã e cadeiras voadoras. Mas o que ela viu foi…
A casa.
Sua casa.
Capítulo 24

— MAS… MAS… NÃO entendo! — Alice exclamou.


A casa não era, mas parecia, muito maior do que era de fato,
ocupando a maior parte do seu referencial. Deveriam existir outras
casas com gramados em ambos os lados, mas não conseguia ver
nenhuma, como se elas não fossem importantes o bastante para
aparecer. Tudo era perfeito e genuíno até o último detalhe, incluindo
a pedra angular rachada sobre a segunda janela à esquerda da
biblioteca.
Exceto…
Alice franziu o cenho.
No mundo real (ou em casa, ou o que quer que seja), a janela
com a pedra angular rachada ficava do lado direito da casa para
quem a olhava de frente. Uma verificação rápida de outros detalhes
pertinentes comprovou ainda mais sua suspeita: a casa estava
invertida. A pequena horta da mãe podia ser vista despontando no
lado esquerdo.
— Impressionante — Alice murmurou. Outra pessoa
provavelmente teria dito assustador ou perturbador, mas esta era
Alice no País das Maravilhas e tudo era incrível. — Dodô, é aqui que
eu moro! — ela acrescentou com entusiasmo.
— É claro — disse o Dodô com indiferença, endireitando os
punhos. — Muito Improvável estar aqui.
— Certo — disse Alice. — Sei que temos a missão de reunir os
súditos de Copas, mas eu adoraria dar uma espiada lá dentro.
Quero te mostrar meu quarto!
O Dodô deu de ombros. Não parecia interessado nem ansioso.
Então, mais uma vez, ela se lembrou de sua primeira visita ao País
das Maravilhas e de como todos os caminhos tinham o hábito de
levar ao mesmo lugar. Tanto ignorar quanto entrar em sua casa
poderia não ter qualquer efeito em derrotar a Rainha de Copas.
Alice praticamente saltou até a porta da frente, que tentou
escapar de seu alcance uma ou duas vezes antes de
relutantemente deixá-la entrar. No entanto, parecia ser apenas
rabugice, não uma decisão obstinada de mantê-la fora.
— Veja! — ela exclamou. — Tudo é igual… só que diferente!
À primeira vista, parecia ser exatamente a sua casa de verdade
(porém invertida). Além da simetria, contudo, todos os outros
detalhes estavam ligeiramente alterados. Retratos na parede
estavam ocasionalmente sem pessoas, como se seus retratados
tivessem se entediado e se afastado. Muitos dos objetos inanimados
menores, como o vaso favorito de sua mãe e um pote de doces feito
de vidro soprado, tinham rostinhos e personalidades. Alice tentou
ver quais eram os doces no País das Maravilhas; no mundo real, ela
comia todos os bons, só o de alcaçuz sobrava. Mas o pote fugiu
dela e emitiu pequenos resmungos de desaprovação, quase agudos
demais para qualquer ouvido, o que foi realmente o mais irritante.
— Não sou mais criança — protestou Alice. — Posso comer
quantos doces eu quiser!
— Parece que você não mantém sua casa muito em ordem —
censurou o Dodô. — Deveria repreender mais. Poupe a vara,
estrague a casa, como dizem.
— Deveria mesmo — Alice concordou.
O piano estava dormindo com as teclas perturbadoramente
mornas. A fruta lustrosa na cesta riu e se dissolveu sob o toque
dela. O tapete sofisticado revelou, uma após a outra, cenas de
prados distantes, outros lugares.
— Se o tapete em casa fosse realmente assim, eu nunca sairia da
sala! — Alice afirmou, fascinada. Com essas visões mágicas, sua
infância teria sido diferente. Talvez ela não tivesse feito mais nada
além de ficar ali.
A lareira do andar de baixo estava apagada e Alice tinha a nítida
sensação de que a lareira bocejava toda vez que ela se virava. E
o…
De repente, ela se voltou para a lareira, percebendo que algo
mais estava errado, mesmo para uma casa invertida do País das
Maravilhas.
Lá estava a vassourinha para varrer as cinzas, ali o assustador
atiçador feito de ferro preto, no qual ela não tinha permissão para
mexer quando era pequena. Mas, no lugar da pazinha normalmente
usada para retirar as brasas, estava um pássaro-pá verde-escuro.
Ele ficou bem parado, com o bico de pá para baixo do mesmo jeito
que a pá verdadeira estaria. As pernas de cor laranja opaco eram
mantidas juntas para imitar a alça e ele parecia prender a respiração
para ficar mais magro e semelhante a uma pá normal.
Havia um arranhão em seu peito e no olho direito e uma atadura
logo acima do joelho direito.
Alice sentiu o coração derreter.
— Ah, por que a cisma com os olhos? — perguntou ao Dodô, com
tristeza. — O Chapeleiro, o seu ferimento e este pobrezinho aqui. O
que isto significa? Parece que a Rainha de Copas sempre quer
arrancar olhos. Por quê?
— U poderia ser a próxima letra, eu acho — disse o Dodô
pensativo, coçando a ferida em cicatrização na própria fronte. —
Faz sentido. Olhos, Umbigo e então ela vai voltar e fazer o
Abdômen, o Estômago e o Intestino também.
Alice balançou a cabeça com nojo e voltou sua atenção para a
(outra) ave.
— Oi. Não vou te machucar — disse com delicadeza, sem
estender a mão por medo de assustá-lo ainda mais.
O pássaro-pá abriu um olho e olhou para ela inexpressivamente.
— Venha, venha — Alice arrulhou. Colocou lentamente a mão no
bolso da roupa nova e puxou um dos biscoitos do Castelo de Paus.
— Aqui está. Esta é minha casa e não vou te machucar.
Lentamente, o pássaro deu passos desajeitados e cambaleantes
em torno das outras ferramentas da lareira, desembaraçando-se
com eficiência, se não com graça. Chegou a cerca de trinta
centímetros de Alice e a encarou por um momento, depois disparou
seu bico de pá e pegou o biscoito da mão dela, de maneira
impecável e habilidosa, arrancando-o de seus dedos com o bico
pontudo. Jogou o doce no ar e deixou-o cair com precisão na
garganta e no estômago. Alice pôde ver a forma do biscoito
enquanto descia pelo interior de seu pescoço esquelético.
— Muito bem. Venha conosco! A Rainha de Paus disse que, se a
gente fizer um levante em massa contra a Rainha de Copas, ela virá
em nosso auxílio e vai ajudar a derrubá-la!
E este foi o primeiro discurso incitador de Alice para conquistar
súditos de Copas para sua causa.
Não se saiu, ela refletiu, muito bem.
A criatura olhou para ela de lado, então começou a bicar o chão,
procurando migalhas perdidas.
— Tudo bem. Acho que você ainda não tem uma boa razão para
confiar em mim. — Alice suspirou. — Bem, quando partirmos, ainda
devo tentar levá-lo comigo, em vez de deixá-lo aqui, escondendo--
se entre as cinzas. Se bem que… é engraçado… — Ela mordeu o
lábio, lembrando. — Quando eu era… muito pequena… costumava
me perguntar como seria me esconder ali. Imaginava meu pai me
confundindo com o atiçador e me levantando pela cabeça para
cutucar as toras com minhas pernas… Devia ser bem pequena para
imaginar isso, se podia caber ali. A sra. Anderbee e minha babá
estavam sempre me dando bronca para eu me afastar do fogo. Eu
me pergunto se há mais refugiados escondidos aqui, em lugares
onde eu costumava me esconder! Dodô, vou procurar na cozinha,
você procura na despensa. Não… Vamos fazer o contrário. Eu
mesma costumava me enfiar na despensa e fingir que as tortas
eram barcos que me levariam para Pudimlândia.
— Já existe uma Pudimlândia — o Dodô corrigiu. — Peraí… É
Puddinglane. Ou talvez Penny Lane. Como diz a canção, in my eyes
e tudo mais…
— O pudim está nos seus olhos? — Alice perguntou.
— Melhor do que moedas — respondeu o Dodô com sabedoria.
— O que significaria que eu estaria morto.
— Verdade. — Ela o afagou solicitamente. — E não queremos
isso. Vamos!
Na cozinha, as panelas e frigideiras de cobre estavam obviamente
fofocando ou envolvidas em alguma outra atividade imprópria,
porque, no momento em que os dois entraram, elas imediatamente
voaram para longe da pequena multidão amontoada e tentaram
recolocar--se nos respectivos ganchos, batendo e fazendo uma
barulheira tão estrondosa que Alice teve que tapar os ouvidos.
Na verdade, analisando melhor, elas pareciam gostar do barulho
que faziam e não pareciam estar tentando se arrumar.
— Parem logo com isso! — Alice gritou.
A represália só as fez bater e tinir ainda mais alto. Agora
risadinhas e zombarias foram adicionadas ao clamor. Uma panela
mais atrevida, na verdade, fez uma pausa longa o bastante para
colocar o polegar no cabo e balançar os dedos provocativamente
para ela.
— Parem já com isso! — Alice ordenou. Então enfiou um biscoito
na boca e abriu os braços, fazendo um gesto como se abarcasse
todas as panelas, que realmente se moveram ao comando, e então
Alice foi juntando as mãos até elas quase se tocaram.
As panelas, frigideiras e tampas encolheram, é claro, suas
lamúrias ficando cada vez mais agudas à medida que quase
desapareciam. Alice esperou um momento, então abriu as mãos de
novo. As panelas cresceram e gritaram com ela.
Então ela fechou os braços até as palmas se tocarem.
Esperou um momento.
Em seguida soltou, lentamente, e desta vez os utensílios de
cozinha ficaram em silêncio e pareciam completamente
repreendidos.
— Obrigada — Alice disse, um pouco ríspida. Um tanto
amedrontados, eles voltaram para a prateleira e se penduraram na
posição adequada. — Não tenho nenhum problema em vocês
socializarem: é o seu comportamento enquanto fazem isso que é
inadequado.
— Muito bem também — aprovou o Dodô. — Manter uma casa
em ordem é o primeiro princípio da civilização. Ah, eu encontrei
estes aqui, escondidos na caçarola.
Aconchegando-se na palma de sua asa, estava uma família de
ratos com fitas como rabo, botões como olhos e lenços de bolso
como orelhas. Eram malhados e tremiam miseravelmente.
— Vocês estão fugindo dos soldados de Copas? — Alice
perguntou, evitando dar um gritinho de alegria. Um dos menores,
provavelmente algum tipo de bebê, segurou uma boneca pequenina
e sacudiu-a desafiadoramente. O brinquedo não era maior do que a
unha do mindinho de Alice e tinha o que pareciam ser sementes de
papoula costuradas como olhos. — Ah, minha nossa, ela está atrás
até de brinquedos tão pequenos assim?
Os ratos assentiram de modo feroz. Uma outra filhotinha começou
a chorar, provavelmente porque seu brinquedo já havia sido perdido
para a Rainha de Copas. Com relutância, seu irmão entregou a
boneca para confortá-la.
— Que maluquice — Alice praguejou.
— Aqui tudo é maluco — disse o Dodô com um pouco de tristeza,
obviamente pensando no Chapeleiro.
— Sabe — disse Alice suavemente para o camundongo que
chorava —, eu costumava esconder minha boneca, o nome dela era
Sophia, na caçarola. Brincávamos de esconde-esconde e era muito
difícil fingir não saber onde ela estava. Eu tentava me esquecer,
porque a Mathilda não a escondia para mim. Nunca. Ela nunca
estava disposta a qualquer tipo de jogo, exceto charadas com a
família e amigos. Ela é uma mala.
— Não diga! — disse o Dodô, intrigado. — Pensei que em um
mundo chato como o seu ela seria uma menina, como você.
Alice decidiu ignorar o comentário. Não era provável que o Dodô
encontrasse Mathilda, então, ela nunca teria mesmo que explicar.
— Venham conosco, ratinhos — Alice propôs, tentando de novo.
— A Rainha de Paus prometeu ajudar contanto que nós comecemos
a nos rebelar contra a Rainha de Copas. Se ela perceber que todo o
país está alinhado contra a rainha malvada, virá com tropas para
salvar todos nós.
Os ratos pais balançaram a cabeça e puxaram os filhos para
perto.
— Bem, por favor, pensem a respeito. Aqui: não é um suborno,
apenas um presente de despedida. — Ela tirou um de seus biscoitos
e partiu ao meio, entregando um pedaço. Os ratos adultos o
apanharam com garras pequenas feito alfinetes.
Quando eles se viraram para a despensa, Alice franziu o cenho,
pensando.
— Dodô, como todas essas criaturas escaparam da Rainha de
Copas e chegaram aqui? Eles não teriam que passar pelas Cobras
e Escadas e vencer?
— Existem muitas maneiras diferentes de entrar no Improvável. —
O Dodô deu de ombros. — Mas a maioria é minúscula.
— Sucinto, mas sem sentido — observou Alice. — Ah, olha… Que
surpresa. Um mome rath na despensa.
Era rosa e verde vivo, o topete da cabeça de um rosa mais
escuro. Entre biscoitos velhos e potes de geleia que murmuravam
baixinho, o mome rath se destacava como uma cortina de chita
estampada e vívida no meio de madeira antiga. Não pertencia
àquele lugar de forma alguma; pois mesmo a sua casa na versão do
País das Maravilhas tinha cores mais opacas do que o resto do
mundo imaginário.
Esta criatura não mostrou nenhuma hesitação e imediatamente se
atirou nos braços de Alice. Foi um pouco chocante, era muito peludo
e excepcionalmente macio. A garota o abraçou de volta, tentando
ignorar seus olhos um tanto enormes.
— Não é um monstro… É apenas uma coisinha aterrorizada —
disse a si mesma. — Pronto, pronto — agora sussurrou em voz alta.
Será que devia oferecer um biscoito? Ele ao menos tinha uma
boca? Seria grosseiro oferecer um biscoito para algo que não tem
boca? — Eu não brincava só de mentirinha na despensa. Sempre
corria para lá quando estava… quando estava triste ou com medo.
Ou me sentia mal.
Sentiu tudo girar por um momento em um déjà-vu. De repente,
teve a impressão de que estava confortando uma Alice muito mais
nova, não uma criaturazinha bizarra do País das Maravilhas. A sala
não girou de fato, mas ela se sentia zonza, como se tudo estivesse
mudando atrás de seus olhos, seu cérebro se recompondo para
uma realidade diferente.
— Dodô — ela disse baixinho, colocando uma mão na cabeça. —
Ainda estamos no País das Maravilhas, não é?
— Estamos onde temos estado — respondeu o Dodô gentilmente.
— Eu sempre estive aqui. Ainda estou.
— Não estou realmente em casa, em um período diferente,
estou? — ela perguntou, olhando em volta. Pois, quando não olhava
muito de perto, as diferenças bizarras não eram prontamente
aparentes e o movimento de objetos normalmente inanimados pelo
canto dos olhos se assemelhava mais ao início de tontura ou a um
desmaio. — Não é no passado que estou quando eu era uma
menininha… Ou no futuro, quando estarei vagando pelos quartos,
velha e maluca?
— Você pode estar velha… Não sei como as pessoas
envelhecem no lugar de onde você vem…. Mas com certeza está
maluca — disse o Dodô suavemente.
— Não é estranho que, em cada lugar onde eu tenho uma
lembrança de esconder algo, seja um objeto ou eu mesma,
encontramos outro refugiado da Rainha de Copas? — Alice se
ajoelhou para olhar o Dodô direto nos olhos. — Especificamente em
cada lugar que eu lembro, mas não em nenhum outro lugar? É
como… se eles soubessem que é onde eu me escondia e me sentia
segura ou… todos eles são só um produto da minha mente?
O Dodô piscou para ela e, por um momento gélido, tudo o que
Alice viu foram olhos confusos de ave.
— Dodô, por favor, me diga! Existem mome raths na minha
cabeça? — Alice implorou. — Carrego por aí meu absurdo aonde
quer que eu vá? Mesmo na Inglaterra? É isso que o Mestre Gato
queria dizer? O que tudo isso significa?
— Significa que, com todos esses bons companheiros que
estamos encontrando, temos uma grande vantagem em contar a
todos sobre a Grande Revolta de Copas! — disse o Dodô, dando
tapinhas na cabeça do pequeno mome rath, de forma afetuosa,
mas, em última análise, condescendente.
— Mas, mas… — Alice inquietou-se. — É muito confuso. Sinto
que estou à beira de um grande precipício ou de uma expansão
repentina dos limites de meu conhecimento. Para onde eu vou
quando estou no País das Maravilhas? Ou é apenas a minha mente,
enquanto meu corpo fica em casa, possivelmente dormindo? Algo
volta comigo? Literalmente? Os pequenos mome raths e os ratos
malhados passeiam às escondidas nesta… casa da minha mente?
Como é que esqueço fatos, dados e memórias do mundo de onde
venho enquanto estou aqui e, enquanto estou lá, o País das
Maravilhas parece se distanciar totalmente? Pois, quando estou lá,
quase esqueço por completo a importância do que está
acontecendo aqui.
— De fato — disse o Dodô —, é trágico. É como pagar um pintor
com rojão em vez de moedas.
Alice o fitou, perplexa. Ali estava ela tendo um ataque de
existencialismo e tudo o que teve em resposta foi absurdo.
O Dodô deu de ombros:
— Sou um político. Fale com um filósofo sobre esses
problemas… Geralmente, você pode encontrá-los revirando latas de
lixo. Fale comigo sobre corridas da convenção. Mas eu não terei
nenhum constituinte se a Rainha de Copas pegar seus brinquedos e
matá-los.
A que mundo eu realmente pertenço? foi uma pergunta que
passou pela mente de Alice por um décimo do tique-taque de um
ponteiro de segundos em um relógio de pêndulo chique. Era, na
verdade, irrelevante. Ambos os mundos precisavam ser salvos.
— Esqueci o que é realmente importante. Não é o que está
passando na minha cabeça… São acontecimentos reais
acontecendo com pessoas reais, no País das Maravilhas e na
Inglaterra — ela disse, repreendendo-se. — Perdi totalmente minha
perspectiva. Ela piscou de repente. — Perspectiva! — gritou alto.
— Ninguém está respondendo a esse nome — disse o Dodô,
olhando em volta.
— Não, ouça! — ela disse empolgada.

Eu tenho a minha e você tem a sua


É necessária em uma pintura
Ninguém concorda sobre qual é
O tal significado da criatura.

— A resposta é perspectiva! É uma charada que um amigo me


contou. Eu esqueci o nome dele.
— E ainda assim se lembra da charada — observou o Dodô.
— Ora, é verdade, não é? — Alice disse, devagar. — Como posso
me lembrar disso tão claramente?
— Não se esqueça de contá-la para o Mestre Gato quando o
encontrar de novo. Ele adora charadas. Mais do que o Chapeleiro,
na verdade. Agora, acho que você ia me mostrar seu quarto?
— Isso mesmo — Alice disse, distraída, com aquela mesma
sensação de quando, às vezes, uma conversa com alguém não
seguia exatamente como esperado e, por mais que repetisse e
repensasse o diálogo mais tarde, não conseguia entender o que
tinha dado errado, mas ainda se sentia mal por isso. Precisava se
retirar ou sentar-se quieta perto da janela, possivelmente com um
gatinho.
Quem havia lhe contado a charada? Ele disse que era importante.
Que dependia disso ou algo do tipo.
Alice sentiu o fardo de dois mundos cair pesadamente sobre seus
ombros. Muitas pessoas dependiam dela agora!
Mas quando colocou a mão no corrimão, de repente sentiu
exatamente o oposto.
Sem entender bem como tinha começado, Alice se viu flutuando
lentamente escada acima, cheia de propósito, um dedo mantendo-a
ancorada no gradil.
— Claro — disse maravilhada, como se tivesse acabado de
redescobrir este método de subir escadas, como podia ter
esquecido? — Devo me lembrar de fazer isso quando chegar em
casa, uma maneira muito melhor de me deslocar entre os andares!
Estou surpresa que ninguém mais tenha lançado a moda.
As gravuras penduradas na parede, lembranças de visitas a
lugares estrangeiros, ficaram deleitadas quando Alice passou por
elas: um pequeno veleiro em Veneza passou pela Basílica de São
Marcos; corvos circulavam as cúpulas em forma de gota de São
Petersburgo enquanto bandeiras tremulavam ao vento silencioso.
Um salmão saltou e cintilou (em uma espécie de sépia) de uma
cachoeira.
— Nunca tinha notado isso antes — ela observou.
— Adorável, simplesmente adorável — disse o Dodô, flutuando
atrás dela. Ele agora usava um par de óculos de leitura,
equilibrando-os desajeitadamente em seu bico, com as hastes
posicionadas no lado errado, longe do rosto.
No topo da escada estava um cachorro-vassoura que
aparentemente não podia permanecer escondido enquanto havia
bagunça para limpar. O bigode e a barba longa e espessa, como os
de um terrier escocês muito saudável, compunham uma espécie de
escova; varrer a cabeça para frente e para trás permitia que ele
organizasse uma pequena pilha de poeira (e, se deixasse algo
passar, a outra escova, a pequenina no fim de sua cauda, rabiscava
para a frente e terminava). Alice tinha visto um muito parecido com
este em sua primeira viagem ao País das Maravilhas, mas aquele
cachorro era marrom e este era mais acinzentado.
Alguns de seus bigodes estavam dobrados e quebrados, mas, por
outro lado, ele parecia bem.
— Oi, oi. Bom menino — disse Alice, estendendo a mão. Como a
maioria das criaturas do País das Maravilhas, ele era acanhado, na
melhor das hipóteses; uma orelha felpuda se ergueu, deixando as
cerdas balançando abaixo, mas depois continuou varrendo. —
Queria ter você por perto lá em casa. Assim a sra. Anderbee poderia
descansar e pôr os pés para cima de vez em quando. Talvez tomar
uma xícara de chá enquanto você cuida da sala de estar. Eu me
pergunto quem é você na Inglaterra.
Quando se aproximaram da porta de seu próprio quarto, Alice
reparou que as sombras ali dentro estavam ligeiramente apagadas.
E, embora a casa fosse uma mixórdia de memórias e história, ficou
tensa na hora. Havia algo errado ali. Havia algo mais. Algo vivo.
Esperando por ela.
Alice respirou fundo e colocou a mão no que seria o ombro do
Dodô se ele fosse humano. Ele balançou a cabeça, mas não disse
nada.
A jovem ultrapassou a soleira, o salto do sapato fazendo muito
mais barulho no piso de madeira do que ela desejava.
Esperava que as cartas atacassem, esperava o cão carrasco,
esperava muitas coisas…
… mas não a protuberância trêmula atrás da cama, que parecia
alguém fazendo um péssimo trabalho de se agachar e se esconder
atrás dela.
— Aham — Alice disse, pigarreando.
A protuberância se ergueu e cresceu hesitantemente, assumindo
a forma de uma bastante…. grande…
Cartola…
Capítulo 25

— CHAPELEIRO! — ALICE exclamou.


O chapéu se elevou ainda mais, parecendo crescer. Um rosto
apareceu debaixo dele: cauteloso, emoldurado por cabelos
desgrenhados e finalizado com uma bocarra que revelava dois
grandes dentes, que mais pareciam de coelho. O olho bom piscava
lentamente. No lugar da minúscula cartola, sobre o olho ferido, havia
metade de um par de óculos de proteção. As lentes de mica eram
escuras, escondendo o que quer que estivesse por baixo.
— Chapeleiro! — Alice exclamou de novo e se jogou sobre a
cama em um movimento nada elegante. Deu-lhe um abraço bem
apertado.
— Alice…? — o Chapeleiro disse incerta e lentamente, uma
aparição de sorriso começando a se formar na boca larga.
— Ora, ora, velho Chapeleiro — disse o Dodô. — Bom ver que
você está de volta à ativa.
O Chapeleiro abandonou sua posição agachada — estava
agachado para proteger um grupo de animaizinhos. Entre eles,
havia um gato do tamanho de um ovo, vários mome raths, uma
chaleira com pernas e o que provavelmente era uma libélula-dragão:
um lagarto minúsculo com olhos enormes e asas coriáceas, um
pouco de fumaça saindo da cauda e da boca.
— Foi por pouco. De volta à ativa. — O Chapeleiro olhou para si
mesmo e deu um tapinha nos próprios ombros e no peito. — Quase
fui apanhado por aquelas cartas maldosas. Elas acabaram com o
que restava de absurdo em mim. Temo que podem ter pegado os
outros… Eu não vi o Grifo nem o Abílio, se bem que ele é muito
pequeno.
— O Abílio está bem. Ele escapou com a ajuda da governanta do
Coelho — o Dodô disse a ele.
— Mas… e o Arganaz? — Alice perguntou hesitante.
Em resposta a isso, o Chapeleiro tirou o chapéu. Lá em sua
careca dormia a coisinha tola, ambas as patas dianteiras com
curativos. O Chapeleiro recolocou o chapéu, gentil como uma mãe.
— Ah, Chapeleiro, estou tão aliviada. Que tempos terríveis são
estes — Alice suspirou.
— Hoje em dia, o Tempo é um atirador de pés totalmente infame,
com o perdão da linguagem — murmurou o Chapeleiro. — Não vou
mandar um presente de Natal para ele, posso garantir.
— Mas o que está fazendo aqui? No meu quarto?
— Onde mais eu estaria? — o Chapeleiro perguntou
curiosamente. — Tão seguro quanto uma casa na própria casa.
Mais seguro no seu quarto.
E se Alice não refletisse muito sobre isso, até que fazia certo
sentido.
— Claro — ela concordou suavemente, apertando seu ombro. —
Claro que você está aqui, no meu… sanctum sanctorum. Onde
sempre esteve. Onde sempre estará. Você é o Absurdo na minha
cabeça que não deve ser ignorado. É o pedaço de mim que
enlouquece a todos, principalmente minha irmã.
O Chapeleiro deu um sorriso cansado e não disse nada, o que
talvez tenha sido a coisa mais sábia que ele já disse.
— Chapeleiro, fui ver a Rainha de Paus…
— Por quê? — ele perguntou, surpreso.
— Para formar uma aliança com ela e derrotar a Rainha de
Copas.
— Mas elas já estão sempre em Batalha — disse o Chapeleiro. —
E as duas são rainhas. Por que ela nos ajudaria? E o que a
impediria de pegar todos os brinquedos e dominar Copas se ela
invadir?
— Você tem uma ideia melhor? — Quão rápido seus sentimentos
tinham passado do alívio ao vê-lo vivo à frustração! — Eu não sou
Mary Ann e não tenho nenhuma ideia melhor.
— A Rainha já tem todos os brinquedos? Ou ainda está
coletando? — o Dodô perguntou rapidamente, tentando mudar de
assunto.
— Engraçado você perguntar isso. Em nosso caminho para cá,
vimos carroças cheias de brinquedos sendo carregados e
transportados. Tudo indica que os soldados estão passando de casa
em casa para confiscar brinquedos… E depois queimar as casas.
— Pelo jeito, ela ainda não tem o suficiente. Então, se ela finalizar
o Tempo agora, talvez não vença — disse Alice pensativamente.
— Arrá! É isso que ela está fazendo? Tentando ser aquela com
mais brinquedos no fim? — disse o Chapeleiro, balançando a
cabeça, de repente entendendo tudo. — Ela já tem muitos. Montes.
Montanhas. Mas, conhecendo a rainha, ela provavelmente quer o
dobro para ter certeza de que tem o suficiente antes de mandar o
Coelho Branco parar o Grande Relógio.
— Muito tático da parte dela — concordou o Dodô. — Eu sempre
faço isso com minhas metades. Quando dois e dois são quatro, eu
sempre digo oito, apenas para ter o dobro de certeza.
Alice o ignorou:
— Chapeleiro, isso foi surpreendentemente lógico e conciso.
Parabéns!
Ele, no entanto, começou a tremer:
— Eu te disse que eles acabaram com o Absurdo em mim. Não
sou mais eu mesmo… não, não dê continuidade a isso, Dodô. Não
me cai bem.
E, de fato, ele parecia um pouco pálido e abatido nas
extremidades. Esfomeado. Alto. Alice tinha quase certeza de que
tanto a lógica quanto o absurdo não eram necessidades básicas
para se viver com saúde no mundo real, não de um jeito comezinho,
mas vai saber aqui? Talvez fosse ruim para a alma não ter isso e o
corpo era afetado em seguida.
— Alice… — ele começou suavemente. — Por que você nos
deixou quando mais precisávamos de você?
— Eu não queria deixá-los, Chapeleiro! — Alice exclamou. —
Queria ficar e ajudar… Só não sabia o que fazer! Estava apavorada,
mas pronta para lutar até o fim. Não tinha a menor ideia de que eu
seria levada de volta para casa. Se fui responsável por isso de
alguma forma, sinto muitíssimo. Da primeira vez que deixei o País
das Maravilhas, eu estava muito, muito triste e sentia saudade de
casa, depois fui atacada pela Rainha de Copas e acordei em outro
lugar, satisfeita por estar em casa. Por um tempo, pelo menos — ela
admitiu. — Mas desta vez eu não tinha a menor vontade de voltar
para casa! Talvez minha casa apenas tenha me puxado de volta, sei
lá, sentindo que eu estava em perigo.
— Chapeleiro, meu velho — interveio o Dodô gentilmente —, esta
menina tapada entrou na casa do próprio Coelho para me resgatar.
Cercada por cartas e guardas. Ela não é carente de força de
vontade ou bravura.
— Não, claro que não — concordou o Chapeleiro sem pestanejar,
mas seu olho bom nunca desgrudou dos dois olhos azuis de Alice,
como se estivesse se certificando de que ela ainda estava lá. —
Perdoe-me. Eu supus que, com Mary Ann sumida, você
naturalmente desapareceria também.
— Não sou Mary Ann — Alice rosnou, quase batendo o pé. — E
ela não desapareceu, ela foi assassinada. Por favor, não confunda
as bolas. O que aconteceu com ela foi o resultado direto de uma
ordem da Rainha. Não atribua isso a acontecimentos aleatórios do
País das Maravilhas. E eu voltei e quase fui morta por um bando de
touvos raivosos e quase perdi um jogo de Cobras e Escadas ao
tentar chegar à Rainha de Paus, que pensei ser a melhor solução
para salvar todos. Reconheço que meus métodos são mais ao estilo
do mundo real do que ao estilo do País das Maravilhas, mas é tudo
o que tenho!
— E se a gente vencer? — o Chapeleiro perguntou
inesperadamente.
— Como? — Alice perguntou, ainda enfurecida, mas tentando se
acalmar. Ah, por que as comparações com a pobre garota morta a
incomodavam tanto?
— Se a gente vencer… você vai ficar? — Seu tom não era de
queixa; era curiosidade genuína. — Para sempre?
Alice foi pega de surpresa.
— Ora… Não sei, Chapeleiro.
A situação no País das Maravilhas seria diferente se eles
vencessem graças a Alice. Se fosse como da última vez, eles
provavelmente a tornariam Rainha de Alguma Coisa e talvez até a
escutassem de vez em quando.
Mas… e o mundo real?
E quanto ao prefeito Ramsés e os mome raths da Chácara?
E… sua mãe e seu pai sentiriam falta dela. Talvez a irmã também,
embora talvez ela ficasse muito ocupada tentando evitar o
escândalo de ter uma irmã desaparecida para ter tempo de chorar
pela pequena Alice.
E aquele rapaz… havia um rapaz, não havia?
E se ela vencesse lá, no mundo real?
Se Alice salvasse os… seja o que for, e derrotasse o prefeito
Ramsés e… bem… rolasse alguma coisa com o garoto… não
pensaria nisso agora… isso seria vencer? Seria o bastante para que
ela nunca mais quisesse voltar ao País das Maravilhas? E se eles a
tornassem Rainha do Mundo lá? Ou só das Américas? Seria o
bastante para ocupar suas ideias e banir pensamentos de
borogóvios e pão-e-borboletas?
— Neste momento, vamos nos concentrar em derrotar a Rainha
de Copas — Alice disse, um pouco rápido demais. — Meu futuro
pessoal é muito menos importante do que impedi-la de prender e
executar inocentes e, depois, acabar com o mundo.
— Verdade, verdade — arrulhou o Dodô.
— A Rainha de Paus diz que vai ajudar se houver uma revolta em
massa contra a Rainha de Copas. Ela precisa perceber que isso é o
que as pessoas realmente querem. Portanto, devemos convencer
os habitantes outrora tímidos e ariscos do reino a vir se unir,
enfrentar seus medos e resistir, em vez de apenas fugir e se
esconder, por mais conveniente que essa ideia possa parecer.
Alice dirigiu esta última parte a um guarda-chuva casualmente
apoiado contra o guarda-roupa, tentando parecer um objeto
inanimado em vez do abutre que realmente era.
A cabeça bicuda e normalmente assustadora olhou atentamente
para ela, em um pesar quase cômico.
— Você já teve um pensamento que não conseguia apanhar? — o
Chapeleiro perguntou. — Ele só… desliza ao redor das bordas de
sua mente enquanto você está discutindo com alguém e só mais
tarde ele aparece e você diz a si mesmo: sim, era isso que eu
deveria ter dito? “Onde você estava quando eu mais precisei de
você, seu pensamento tolinho?”.
Ele assentiu, usando o queixo para apontar as várias criaturas
escondidas ao redor da sala. Era o mesmo que tentar apanhar as
criaturas do País das Maravilhas e argumentar com elas, era o que
ele estava tentando dizer.
— Bem, até que alguém apareça com um plano melhor, isso é
tudo que temos. Só temos que tentar — Alice disse com firmeza,
espremendo os lábios. — E liderar pelo exemplo. Criaturas?
Moradores do País das Maravilhas? Les enfants? — Ela bateu
palmas da maneira que tinha visto governantas estrangeiras
fazerem quando levavam vários de seus tutelados ao parque. —
Venham comigo agora. É hora de ir.
Uma dúzia de diferentes nativos do País das Maravilhas
espicharam as cabeças de grandes olhos para fora de vários
esconderijos. Alice não ficou totalmente surpresa ao ver um
pássaro-espelho descer de sua penteadeira (chique e nova,
diferente de sua casa de verdade) ou um pássaro-lápis se esgueirar
para fora de sua mesinha de criança (da qual havia se livrado anos
atrás), mas a ratagarta de dezoito pés que saiu rastejando de
debaixo da cama foi um pouco chocante. O mais surpreendente de
tudo, no entanto, foi a coisa que lembrava uma mistura de guirlanda
com cordão de pompons e que esvoaçava pelo quarto em asas
instáveis. Alice teve medo de que ela se enroscasse em seu cabelo.
A criatura se acomodou de forma bastante afetuosa em torno dos
ombros do Dodô e ele impensadamente a ajustou como um
cachecol e deu um tapinha em uma das bolinhas felpudas do seu
corpo.
— Muito atraente — Alice disse com aprovação. — Vamos partir;
é hora de deixar o Improvável.
E, tentando projetar uma aura de liderança calma e indiscutível
(mais uma vez, como uma governanta estrangeira), Alice saiu do
quarto e desceu as escadas flutuando, sem ousar olhar para trás
para ver se alguém a seguia.
Capítulo 26

ELA, NO ENTANTO, OUVIU o Dodô e o Chapeleiro pisando


levemente nos degraus atrás de si; aparentemente eles não
flutuavam ou não quiseram flutuar. E Alice desejou muito que os
sussurros suaves e o farfalhar de tecido que estavam apenas no
limiar de sua audição fossem do restante da pequena e diversificada
estirpe do País das Maravilhas que a seguia.
E se eu abrir a porta da frente, pensou enquanto alcançava a
maçaneta, e nós formos imediatamente cercados por cartas de
Copas?
Quando a abriu (em uma velocidade intermediária entre bravura e
cautela: muito lenta para uma verdadeira bravata, mas muito rápida
para resultar em algo bom caso houvesse um perigo), não havia
nada ali.
Bem, não exatamente nada. Por um lado, o castelo da Rainha de
Paus não estava mais à vista. Talvez agora estivesse atrás da casa
ou talvez ele ou a casa tivessem se escondido inteiramente em
outro lugar. Fosse qual fosse o caso, os terrenos que agora se
estendiam embaixo da residência eram suaves e infinitos. Colinas e
árvores amigáveis convidavam o observador a andar, não, a correr
para o abraço delas, impulsionado por lembranças de infância
parcialmente rememoradas. O ar que soprava era doce, em algum
lugar entre a erva-coalheira e o mar. Um trem minúsculo percorria
alegremente os cumes das colinas e desaparecia, apenas para
reaparecer novamente soltando baforadas brancas de fumaça que
borbulhavam para o céu na forma de peixes, baleias e sóis em
miniatura.
A princípio, Alice ficou encantada, depois, imediatamente
desconfiada.
Nenhum de seus companheiros estranhou a vista, mas todos se
amontoaram ao redor da porta (atrás dela, claro) e olharam para a
paisagem com cautela.
— Bem — Alice disse, tentando soar animada —, aqui vamos
nós!
O outro não-exatamente-nada revelado pela porta aberta era um
pedaço colorido de penugem no meio do caminho, muito fino para
ser o tufo de um mome rath enterrado. Alice tentou pegá-lo, mas era
muito mais pesado do que parecia e estava preso — na própria
cena, aparentemente.
— Com licença! — uma voz gritou, roxa de indignação.
— Ah! — Alice largou o punhado peludo, mas ele permaneceu
raivosamente onde estava.
E então, é claro, surgiu o resto do Mestre Gato, andando de um
lado para outro acima do solo com a altivez que só um gato
verdadeiramente afrontado poderia ostentar.
— O que está fazendo aqui? — Alice perguntou, acariciando-o na
parte de trás do pescoço. Ele se espreguiçou para aproveitar
melhor, a ponta de sua cauda estendendo-se muito além dos limites
supostamente naturais, o espaço entre as listras roxas aumentando
trinta centímetros ou mais. Em seguida, voltou a formar uma espiral
apertada. — Por que não está se escondendo lá dentro com os
outros?
— Eu não fui convidado — disse o gato com dignidade fria, de
repente virando de costas e usando uma cartola, óculos e com a
aparência geral de um cavalheiro.
— Lindo chapéu, Mestre Gato — elogiou o Chapeleiro por trás de
Alice.
O gato revirou os olhos:
— Claro que ele está aqui. Antes de cortar-lhe a cabeça, ela teria
que tirar seu chapéu, não é? E isso seria difícil…
O Chapeleiro tirou o chapéu para revelar o Arganaz. Os olhos do
gato se arregalaram e ele saltou sobre o pobre adormecido com o
uivo e o frenesi de um gato de verdade, óculos e chapéu
esquecidos.
O Chapeleiro imediatamente prendeu o chapéu de volta na
cabeça e segurou-o com força, sobre as orelhas. O Mestre Gato
freou no meio do ar, parando a pouco tempo de evitar uma colisão.
— Escolha um lado, gato — rosnou o Chapeleiro.
— Ouso dizer, Chapeleiro, meu velho — disse o Dodô, alarmado.
— Isso é um pouco absurdo. Quão louco você está? Calma!
— Eu escolho dentro — disse o gato, abrindo bem a boca e
engolindo o próprio traseiro e a cauda até desaparecer por
completo.
— Não, pelo contrário, fora é melhor — a voz dele ecoou distante
e oca. Ele reapareceu no ar, deitado contente de lado.
Alice respirou fundo para se acalmar.
— Mestre Gato, será que pode nos ajudar? Precisamos suscitar…
não — corrigiu-se apressadamente —, precisamos encorajar todos
a resistirem à Rainha de Copas por conta própria e então a Rainha
de Paus nos ajudará a detê-la.
— E a Rainha de Ouros jantará com sofisticação, e a Rainha de
Espadas pedirá compensação — Mestre Gato cantou.
— Estou falando sério, gato — disse Alice, franzindo a testa ao
perceber que estava falando como o Chapeleiro. — A vida de
pessoas está em risco.
— Mary Ann tentou reuni-los a um homem e agora ela não existe
mais — o gato disse pensativo, olhando as próprias garras. — O
que a faz pensar que pode se sair melhor do que ela?
— Eu sei que não sou Mary Ann! Mas estou tentando o meu
melhor! Além disso, eu trago… uma perspectiva externa para a
coisa toda! — ela se surpreendeu ao dizer.
— Aqui vai um enigma, Alice “Liddell”: então por que está
tentando ser Mary Ann? Por que está perseguindo um plano tão
complicado?
— Você tem uma ideia melhor? — Alice quis saber.
— Eu não. Mas eu sou um gato, docinho. — Ele girou, virou-se e
olhou para ela com olhos preguiçosos. — Mary Ann e o Coelho, o
Coelho e Mary Ann. Existem sempre dois. Eu e…
… ele sorriu e desapareceu.
— Que chatice — praguejou Alice, chutando a terra sobre a qual
ele estava flutuando. — Ele sempre me faz sentir inquieta e idiota.
Venham, todos vocês. Por qual caminho vamos?
Dois dos mome raths, um grande e um pequeno, engatinharam
para frente e se jogaram no chão, formando uma seta.
— Tudo bem — Alice sibilou e tentou marchar com alguma
dignidade naquela direção.

A paisagem mudou exatamente como Alice agora esperava; isto


é, ela esperava que mudasse de forma perturbadora, mas não
podia, é claro, prever em que mudaria. De alguma forma, as colinas
de verão dissiparam-se e o pequeno bando entrou em uma floresta
escura de árvores enormes, muito maiores do que aquelas em
Tulgey Wood. O chão subiu em corcovas sobre suas raízes. Estava
tão escuro no caminho que Alice não conseguia ver claramente que
tipo de folhas ou galhos estavam acima; pinho, pensou,
considerando a forma cilíndrica de algumas das silhuetas que
conseguiu distinguir. Mas não havia a menor indicação de verde-
escuro ou verde-claro ou qualquer verde: esta era aparentemente
uma floresta de outono onde os tons eram todos marrom e cinza e
preto e sombra.
Às vezes, as árvores estremeciam.
E, em vez do gorjeio suave de pássaros e das folhas farfalhando
com os animais pequenos passando, havia resmungos e murmúrios
estranhos e conspiratórios. Como em uma conversa na qual não se
consegue entender uma palavra, os sons perambulando
enlouquecedoramente apenas no limite da compreensão.
— Onde estamos? — Alice perguntou ao Chapeleiro e ao Dodô.
As criaturas menores os seguiam como em um desfile multicolorido
com seus próprios murmúrios e fungadas, o cão-vassoura na
retaguarda. Seria muito alegre na verdade, se o clima na floresta
não fosse tão misterioso e sinistro.
— Ainda no limite do Improvável, suponho — o Dodô respondeu,
olhando ao redor.
— Na Floresta Prendente, eu acho — disse o Chapeleiro
pesaroso. — Não se sai daqui sem um arranhão, isso é certo.
Com isso, o Dodô estendeu seu grande bico de aparência
bufônica e o raspou no pulso esquerdo do Chapeleiro. Deixou uma
linha esfolada marcada na pele e alguns pontinhos de sangue rosa.
— Para que isso? — o Chapeleiro, ultrajado, quis saber.
— Você tem um arranhão. Agora podemos sair — o Dodô disse
simplesmente.
— Realmente não sei quanto mais disso eu aguento — Alice
murmurou. Estava começando a se lembrar de uma Alice muito
mais nova chorando em Tulgey Wood, cansada de todo o absurdo.
Conseguia se imaginar vivendo aqui para sempre? Mesmo se fosse
rainha? Sua propensão para o absurdo era menor do que quando
era criança, mas mais do que o Chapeleiro poderia suportar no
momento e muito mais do que a maioria dos adultos da Inglaterra
tolerariam. — Eu vi um trem nas colinas, podemos tomar um trem
para o Reino de Copas?
— Por que iríamos tomar um trem? Ninguém consegue beber um
trem — o Dodô disse incisivamente.
— Existe uma estação por aqui? — ela perguntou entredentes.
— Acho que sim.
— Bem, vamos sair desta floresta o mais rápido possível e
encontrá--la — Alice decidiu. E então dobrou a velocidade e
caminhou de nariz empinado, para longe do mistério das árvores
sussurrantes.
Um trem; enfim algo sensato. E civilizado. Em que medida o País
das Maravilhas poderia desvirtuar algo tão real, tão mecânico, tão
inventado por humanos?
Teve a impressão de ter visto o caminho se iluminar um pouco
adiante, como se estivesse se abrindo, logo após dois carvalhos
com estampa de losangos. Talvez fosse apenas um pequeno
bosque, como em um parque! Sim, um parque da cidade. Então, a
estação ferroviária estaria próxima e…
… carvalhos com estampa de losangos?
Alice parou. Deu uma olhada — uma boa olhada — nas árvores
ao redor. Todas elas estavam em pares, bem combinadas. As
protuberâncias na base de cada uma delas, que pensou serem
pedregulhos ou raízes, eram pretas e marrons e brilhavam
fracamente. E eram rendadas.
Os cones e cilindros que revestiam os troncos grossos eram lã, é
claro…
— Murmure, murmure, Alice sem chance…
— Pequena pretensiosa, murmure? Ache defeitos nela…
ttttamanho… tamanho… cortador de cartas vai…
— Olá! — Alice gritou, tentando não entrar em pânico. — Eu
consigo ouvir vocês! É muito rude falar sobre alguém que está logo
abaixo do seu nariz!
— Se acha tão importante… irrelevante como um chapéu de
touvo…
Risos de adultos ressoavam distantes. Um par de pés femininos,
de salto e meia-calça, batucava para cima e para baixo, como se
incapaz de esconder sua alegria por qualquer coisa desdenhosa
que estava sendo dita.
— Eu não consigo entender exatamente o que vocês estão
falando, mas sei que é sobre mim! — Alice continuou. — E sei que é
muito indelicado. O que é? Sobre um cortador?
As pernas e os pés, agora que os reconhecia como tais, eram
muito, muito convencionais. Não havia uma meia brilhante ou um
Arganaz escondido entre eles. Eles eram muito mundo real.
Um pensamento horrível ocorreu a Alice: ela de fato conhecia
essas pessoas? Não conseguia reconhecê-las, claro, mas ela não
passava muito tempo admirando os calçados das pessoas. Algo que
devo me empenhar para corrigir no futuro, repreendeu-se.
Então as conversas recomeçaram, incompreensíveis, baixinhas e
casuais, como se todos estivessem discutindo um momento
embaraçoso. Como se ela fosse uma vergonha a ser
silenciosamente ignorada por todos. E, esperançosamente,
removida.
— Olá! Sou real! Estou bem aqui! Olá! — Alice acenou, tentando
manter a raiva, mas se sentindo estranha, como se estivesse se
dissipando de dentro para fora.
— Alice sensata, falando com as árvores — o Dodô disse, sem
maldade. — Querida menina, a estação ferroviária está à frente.
— Mas… elas estão falando de mim — Alice protestou. — Eu
escutei. Você não escutou? Elas estão caçoando. Disseram… que
eu não importava. Elas estavam rindo, como se eu fosse uma
piada…
— Claro que elas estavam, querida — disse o Dodô suavemente.
— Vento nos galhos. Vamos, então. Quer um doce?
Ele ergueu uma balinha embrulhada em papel. Sem saber o que
mais fazer e se sentindo muito deprimida, Alice pegou.
— Existe algo como um cortador de cartas aqui, Dodô? Tipo um
crupiê ou alguém que apenas corta um baralho de cartas, antes de
um jogo — Alice perguntou desanimada.
— Um crupiê? Ah, não, de jeito nenhum. O Cortador de Cartas é
assustador — disse o Chapeleiro, parecendo pálido e sério. — Nem
mencione o nome dele! Ele vai sentir o cheiro!
E lá, diante deles, estava a estação.
Capítulo 27

A BILHETERIA ERA FEITA de papel. Tijolos de blocos de papel,


pasta cinza de velhas embalagens úmidas de peixe como
argamassa, a placa Estação Prendente feita de seções de jornal
enroladas. A janela tinha papel-manteiga para permitir a entrada de
luz e a louva-a-deus sentada lá dentro usava um chapéu de papel
translúcido branco.
— Bem, adiante, adiante — ela disse, mas não de forma
indelicada. — Para onde será, então?
— Boa tarde — respondeu Alice, um pouco distraída. —
Desculpe, mas cheguei aqui um pouco mais repentinamente do que
esperava.
— Será a Ferrovia Nacional para você! — a louva-a-deus
cacarejou, o que foi estranho, e então tocou com exaltação uma
pequena buzina, o que também era estranho. — Agora, você vai de
primeira classe ou premium?
— Eu não sei quanto custa — admitiu Alice. — Quanto é uma
passagem só de ida, sem retorno, para o Reino de Copas?
A louva-a-deus piscou, o que, para falar a verdade, foi difícil, pois
ela não tinha cílios nem pálpebras:
— O Parador-Nove para o Reino de Copas não é recomendado,
por razões de guerra civil sanguinolenta. Em vez disso, tente um
lugar diferente. O parque não é muito longe da estação TulgVapCo e
ouvi dizer que é adorável nesta época do ano.
— Obrigada, mas será o Reino de Copas mesmo — disse Alice,
colocando as mãos nos bolsos. — Uma passagem para mim e todos
os meus…
Ela se virou, mas ninguém estava lá, exceto o Chapeleiro, que
agora era um Chapeleiro ligeiramente curvado, de meia-idade e
muito simples, com um chapéu grande, com certeza, e um nariz
proeminente, mas só.
— … e meu amigo aqui — ela completou desajeitadamente.
Talvez eles tenham ido na frente, disse a si mesma. Talvez eles
estejam correndo para contar a todos os amigos, para divulgar o
plano da Rainha de Paus e como eles devem se rebelar contra a
Rainha de Copas!
Sentiu-se um pouco triste sem os mome raths coloridos, e o
Dodô, e os pássaros-pá. Era assustador liderá-los, mas solitário
sem eles.
— Não está à venda — disse a louva-a-deus rapidamente,
estendendo a mão para tentar baixar o papel-manteiga.
Sem pensar, Alice estendeu a mão também. Apesar de ter braços
mais curtos do que os do inseto gigante, conseguiu agarrar a beira
da janela de papel primeiro e rasgá-la, na verdade arrancando-a
inteiramente da parede.
— Terei minha passagem para o Reino de Copas, muito obrigada!
— disse ela, bufando um pouco. — E meu amigo também!
A louva-a-deus soltou um assobio terrível, estalando as
mandíbulas. Alice manteve o rosto firme diante dessa exibição
aterrorizante. Quando era criança, capturou um certa vez e, embora
fosse inquietante e surpreendente o quão forte eram as pernas
delgadas e frágeis do inseto, ele não tinha mordido, nem mesmo
tentado.
A presente louva-a-deus finalmente se remexeu sob sua mesa,
arrancou duas passagens de um rolo e, de mau humor, jogou-as na
frente de Alice:
— Sem retorno, de fato. Estou no meu intervalo para o chá agora.
Bom dia. E boa sorte.
— Que senhora encantadora — Alice murmurou. Entregou ao
companheiro sua passagem, como se ele fosse uma criança. —
Não perca isso… quer que eu guarde para você? Para onde todo
mundo foi?
— Longe. Para… reunir todo mundo. — O Chapeleiro deu de
ombros, colocando as mãos nos bolsos e caminhando ao lado dela.
Parecia a cena mais natural do mundo. Pelos cresciam no interior
de suas orelhas. A metade impressionante dos óculos de proteção
tinha se tornado um tapa-olho de aparência puída.
— Bem, isso é bom! Exatamente o que eu pensei.
Eles vagaram até o único trilho que emergia da horrenda Floresta
Prendente. Uma névoa pesada pairava sobre a paisagem agora,
então era impossível ver as copas das “árvores”. Alice torceu para
que se transformasse em chuva e encharcasse as calças de
quaisquer pernas que compunham a floresta.
Um trem entrou rapidamente, lançando fumaça e esguichando até
parar de modo muito mais desagradável do que os pequenos apitos
que ela tinha ouvido ao longe na encosta. Alice puxou o Chapeleiro
pelo braço e foi para a primeira classe, de cabeça erguida, tentando
parecer pertencer ali. Ela não pertencia àquele lugar, considerando
que todos os outros passageiros que esperavam eram, em ordem,
um pote de geleia metade vazio, uma vaca com chifres muito
longos, uma dupla de criaturas peludas que pareciam patos, apesar
das crinas e caudas, um pequeno bando de ovos com pés e uma
mulher com um caranguejo gigante na cabeça.
Certa vez, Alice e sua família fizeram uma agradável viagem de
barco para a França e seu pai tinha contratado carruagens na parte
badalada do deque. Alice tinha observado, com divertimento, a mãe,
um tanto disfarçadamente, tentando arrumar e amarrar o xale em
volta do chapéu à maneira glamorosa (e jovial) das senhoras ricas
recém-iniciadas no Grand Tour.
(Mathilda também tinha notado e começou a ensinar à própria
mãe sobre o pecado da vaidade.)
Agora Alice meio que desejava ter um caranguejo para colocar na
cabeça também.
Eles tinham um compartimento pequeno e aconchegante para si.
Uma morsa velha e gentil pegou suas passagens e cacarejou
quando viu o destino deles.
— Ahh, eu não iria lá se pudessse escolher, sssenhorita. Não é
um lugar ssseguro para visssitar por essses dias.
Alice supôs que as presas eram o motivo de ele cecear.
— Obrigada — disse educadamente. — Mas temos assuntos
inadiáveis lá.
— Bem, salve a Rainha de Copasss — a morsa disse sem
emoção. Alice percebeu, enquanto ele gingava para sair, que, entre
os desenhos artísticos pretos que decoravam suas presas, um
coração novo e vermelho-sangue se destacava. Isso a deixou
desconfortável.
Alice estremeceu e se voltou para o companheiro:
— Caro Chapeleiro, você está bem? Parece que a última gota de
absurdo foi… drenada de você.
— É isso, precisamente — o Chapeleiro concordou. — Eu
também vi muita coisa e nada era engraçado. A Rainha de Copas
arruinou o mundo, ou a mim. Você tem que fazê-la parar, Alice —
ele implorou. — Por favor.
— Estou tentando, caro Chapeleiro. Estou tentando. — Alice
colocou a mão dela nas dele.
Pobre homem! Ele estava todo sugado pelos horrores da
realidade que vivenciara. Tudo o que restou foi bom senso, o que o
estava envelhecendo terrivelmente.
Era isso estava acontecendo com todo o País das Maravilhas?
Era este o futuro de todos os seus sonhos e criaturas? Era tarde
demais, mesmo que ela evitasse o Fim dos Tempos? Salvar o
mundo era uma coisa. Consertar era outra.
— Vou buscar um pouco de chá no vagão-restaurante — Alice
disse, tentando afastar a preocupação e o pânico. — E talvez um
biscoito ou dois. Isso deve nos fazer muito bem.
O Chapeleiro assentiu taciturnamente e olhou através da janela.
Talvez eu possa trazer para ele uma torta falante ou algo
parecido, pensou Alice enquanto descia graciosamente o corredor
oscilante para o próximo vagão. Darei a ele a próxima coisa que
disser coma-me ou beba-me em vez de comer eu mesma.
Passou por todos os tipos de passageiros e, depois, pelo vagão
de fumantes que estava, literalmente, fumando. Fechado,
impenetrável, cujas janelas cinzentas não mostravam nada do
mundo exterior; seus ocupantes eram entregues apenas por uma
cauda escamosa ou um tentáculo que serpenteava pela parte
inferior da porta. Depois disso havia um vagão de bagagem, que se
estreitou consideravelmente de modo que Alice teve que virar de
lado para passar. Não foi tão difícil em seu novo traje do Reino de
Paus, mas ainda era um pouco apertado. E então um homem
apareceu na frente dela.
Não o viu a princípio porque ele também estava de lado; e como
ele era magro feito papel, era praticamente invisível até mesmo em
sua seda e veludos luxuosos.
E pena ridícula.
— Alice! — ele ronronou, bloqueando a frente de seu caminho e
inclinando-se para que ela fosse forçada a um compartimento de
bagagem.
— Valete! Seu… porco nojento! — Alice gritou, cuspindo raiva.
Desejou poder cuspir, como tinha visto outras pessoas fazerem.
Claro que Mathilda e Alice não tinham sido criadas dessa forma e
Alice estava com medo de que isso fosse dar totalmente errado
caso ela tentasse agora. — Na verdade, nada de porco! — então
acrescentou, pensando nos touvos. — Pelo menos eles são
honestos sobre suas alianças, lealdades e afeições!
— Ora, Alice — disse o Valete, e ela não conseguia,
honestamente, dizer se a surpresa dele era genuína ou zombeteira.
— Eu parti seu coração?
— Você me traiu e traiu meus amigos e pode ser responsável pela
morte de alguns deles!
— Ah, é isso — disse o Valete, um pouco desapontado. — É
Guerra, querida.
— Não é Guerra! — Alice sibilou. — É uma tirana insana infligindo
violência contra o próprio povo. E o que você fez não foi um ato de
guerra, foi um ato de covardia. Um traidor correndo atrás da Rainha
para revelar a localização do Conta-pabeça, condenando dezenas
de vítimas inocentes sem precisar se arriscar ou tomar um único
tiro! Você nem mesmo demonstra a repulsa típica de um homem
comum que, ao ser alistado, atira porque foi mandado. Teve escolha
e se escondeu atrás das saias da Rainha quando a violência de
verdade aconteceu!
Talvez o Valete tenha corado, talvez tenha ficado pálido: era difícil
dizer por trás do acabamento lustroso da carta.
— Tenho certeza de que os inocentes serão libertados — ele
murmurou.
— Mary Ann foi executada, o Chapeleiro quase foi executado…
— Eles eram inimigos do Estado! Infringiram a lei. Conspiraram
para derrubar a Rainha.
— Uma rainha louca. Uma rainha incapaz! Uma rainha que estava
trancafiando e torturando e apreendendo propriedades e matando
todo mundo! Uma tirana insana!
— Lei é lei, Alice — disse o Valete com um sorriso. — Rainha é
rainha. Mesmo em seu mundo existe uma rainha que governa.
— Minha rainha nunca atacaria o próprio povo nem tentaria
causar o fim do mundo.
— Então ela se considera uma boa rainha, hein? Para… todos,
tem certeza?
Alice o encarou friamente:
— Vitória nunca tiraria brinquedos de bebês. E quanto a todo esse
negócio de a Rainha vencer? Soube que, quando ela tiver
brinquedos suficientes, causará o Fim dos Tempos e, portanto, o fim
do mundo, e é assim que ela vence. Você é mesmo a favor disso?
O Valete abriu um sorriso radiante:
— Sou um mero valete, sem poder nem voz nesses assuntos: os
interesses e as glórias de rainhas e reis. A guerra dos tronos. Mas, o
que quer que aconteça, pretendo ficar por cima até o fim.
— Que filosofia agradável. Permite que você não sinta culpa e
apenas acompanhe a decisão de quem quer que esteja no
comando, deixando-o livre de pensamentos ou deveres além do
próximo instante.
O Valete suspirou.
— O que você está fazendo voltando para o Reino de Copas? —
ele perguntou, cansado. — É o pior lugar para você estar… Se
conseguiu sair de lá, deveria ficar longe. Há um preço pela sua
cabeça: mil tortas e um joão-bobo confiscado de uma das formigas-
leões.
— Como você me achou? — Alice rebateu. — Está me seguindo?
— Claro que estou te seguindo! — disse ele, exasperado. Todo o
seu semblante de bravata e entusiasmo ruiu. Parecia simplesmente
cansado, como todos no País das Maravilhas atualmente. — A
princípio pensamos que você estava morta ou tinha sido pisoteada
ou tinha dado um jeito de desaparecer para sempre após a batida
no Conta-pabeça. Quando ficou óbvio que você tinha escapado, a
Rainha me fez te encontrar e te seguir.
— Você não poderia ter me seguido para onde eu havia escapado
— Alice disse. — Você não pode ir para a Inglaterra.
— Alguns podem. E vão.
Ao passarem por um pomar cujas frutas eram todas letras pretas
e brilhantes que reluziam ao sol, um clarão irradiou pela janela
estreita que iluminava o compartimento escuro de bagagem. Alice
teve um único vislumbre de um coelho de aparência satisfeita, um
marrom, segurando um E e pronto para dar uma mordida.
— Mas eu não posso. Admito que a estrada está fechada para
mim — o Valete disse por fim. — Seja como for, encontrei seu rastro
assim que retornou ao nosso formoso reino. Ainda há um preço pela
minha própria cabeça, sabe? As tortas. As idiotas, idiotas e
deliciosas tortas que comi na Floresta do Esquecimento. Devo
compensar meu erro servindo a Rainha de qualquer maneira que
ela quiser.
— E agora? — Alice perguntou.
E se obrigou a encará-lo bem no fundo dos olhos — olhos
impressos e pretos.
— Agora eu te entrego — disse o Valete, direto e reto. Reto como
uma carta prensada. Ambos ficaram em silêncio por um instante.
— Ou talvez eu te rasgue em dois — Alice sugeriu. Não tinha
ideia se os novos poderes que adquirira no País das Maravilhas
iriam funcionar agora que não possuía mais biscoitos ou bebidas.
Mas seus dedos delicados se contorceram para agarrar a carta e
rasgá-la.
— Ou talvez você chame o Chapeleiro — disse o Valete. — Ou
talvez o condutor. Ou talvez simplesmente vá me empurrar para fora
por baixo da porta…
A carta não estava zombando dela desta vez; seu olho deslizou
para a fresta estreita sob a porta, de onde vinha o som estrondoso
das rodas no trilho. Ele passaria por lá.
E estava… sugerindo isso.
— Por quê? — Alice perguntou suavemente.
Ele deu de ombros e sorriu tristemente.
— A próxima vez que eu te vir, terei que entregá-la. Me escute:
não volte para o Reino de Copas. Será sua sentença de morte. A
rainha está tão furiosa com você e Mary Ann que provavelmente
deixaria tudo de lado somente para te caçar e te punir. Existem
alguns… diferentes de mim… que não têm coração de papel. Eles
têm tesouras para rasgar, cortar e destruir.
Os olhos de Alice se arregalaram. Tesoura para cortar?
— Quer dizer o Cortador de Cartas? As Árvores Prendentes
mencionaram algo sobre isso… O Chapeleiro estava apavorado!
O Valete balançou a cabeça com impaciência.
— Faça — ele sussurrou. — Agora ou nunca!
— Chapeleiro… ? — Alice chamou. — Chapeleiro! — Então
agarrou o Valete pelas laterais e o carregou para a porta feito uma
correspondência entregue no endereço errado, quando alguém a
desliza pela fresta e para fora. — Chapeleiro!
O Chapeleiro chegou correndo bem a tempo de ver o Valete ser
sugado para fora do vagão e voar para além dos campos, levado
por uma brisa fresca, rodopiando para o céu azul até desaparecer.
Ele não chegou a tempo de ver o Valete acenar atrevido e soprar
um beijo para Alice antes de ir.
— Ah — disse o Chapeleiro, surpreso, mas não desanimado.
Notou que Alice estava ilesa e segura, o que foi o bastante para ele.
Não tinha um machismo escancarado nem o desejo de bancar o
herói se não fosse preciso. Somente quando necessário. Alice
apreciava essa atitude; era tão diferente de todos os homens e
meninos que já conhecera (exceto por seu primo Cuthbert). — Você
está bem, então. Aquilo era o Valete?
— Era, sim — confirmou Alice, respirando pesadamente pelo
esforço e… todo o resto. A roupa nova que usava tinha um
espartilho muito mais folgado, o que tornava o processo mais fácil e
mais agradável, mas ela se perguntava o quão eficiente era para
sustentar suas costas. — Ou ele estava apenas reunindo
informações, ou realmente há um preço pela minha cabeça. Ou pela
de Mary Ann. Não tenho certeza se a Rainha percebe a diferença…
Não tenho certeza se algum de vocês percebe.
— Ah, isso não é justo — disse o Chapeleiro sensatamente.
— Vamos pegar aquele chá — Alice decidiu, dando um tapinha
para limpar as calças. — Tenho a impressão de que pode demorar
um pouco antes de termos outra oportunidade para isso.
Capítulo 28

O CAVALHEIRO DE ROSTO comprido atrás do balcão no vagão-


restaurante olhou gravemente para eles quando Alice pediu dois
chás com creme e um pacote de doces. Ela se deu conta de que
não tinha pensado no pagamento — era sempre, de alguma forma,
resolvido por si só no País das Maravilhas —, e o atendente
definitivamente parecia desconfiado da situação.
— Qual é a sua afiliação? — ele perguntou cuidadosamente com
seus dentes grandes, evitando qualquer sugestão de sotaque
cavalar. — Vocês não usam nenhuma indicação.
— Eu não sabia que era necessário em uma viagem de trem.
Qual é a sua?
— A grande Ferrovia Nacional, óbvio. — Ele fungou pelas narinas
largas. — Está além de qualquer lealdade local e geográfica. Sou
um cidadão do mundo. Seu chá, senhorita. — E deu as costas para
ela. Alice ergueu uma sobrancelha para o Chapeleiro.
— Note que ele não lhe apresentou os biscoitos — ele sussurrou.
— Conheço essa raça.
— Não tinha ideia que os Appaloosas eram tão grosseiros —
murmurou Alice.
Mas o sujeito não disse nenhuma outra palavra, guardando para
si mesmo qualquer preconceito que tivesse contra a dupla de
viajantes, enquanto deslizava uma bandeja de biscoitos e bolinhos
com um saco de doces que pareciam estar se remexendo na
tentativa de se acomodar para o passeio. COMA-NOS tinha sido
rabiscado em nata coalhada e sublinhado com geleia (de
framboesa, aparentemente) na bandeja.
— Muito chique — disse Alice com admiração. — Coma,
Chapeleiro, meu velho camarada! Com alguma sorte, isso vai fazer
você se sentir como antigamente.
Eles se empoleiraram nos banquinhos e Alice mordiscou um
bolinho enquanto o Chapeleiro literalmente jogou todo o resto na
boca. Ela mal conseguiu segurar o saco de doces, mas ficou
encantada ao ver que a boca dele parecia um pouco maior e
desproporcional em comparação à de um ser humano normal.
Talvez ele fosse ficar bem.
Mas então ele tirou um pequeno cantil do bolso e, com cuidado,
derramou uma única gota de prata brilhante nas profundidades
fumegantes de seu chá.
— Chapeleiro! — Alice exclamou, consternada. — Não é nem
meio-dia! Eu acho… — ela acrescentou, insegura.
— Está tudo bem. É só mercúrio — ele a tranquilizou. — Para eu
me sentir como antigamente.
— Mas isso é veneno!
— Sim, assim como o arsênico e todas as outras tranqueiras que
as mulheres ridículas do seu mundo usam para ter a pele perfeita —
ele disse com indiferença. — Faço isso para manter minha
Maluquice intacta.
— Como sabe disso? Sobre o arsênico e as mulheres do meu
mundo? — Alice perguntou, desconfiada. Claro que ela e Mathilda
nunca tinham usado nada disso; com pais que achavam que elas
eram perfeitamente bonitas da forma como eram e com a cabeça no
lugar, o máximo que elas usavam era (recentemente, para Mathilda,
pelo menos) blush e cosméticos normais.
— Mestre Gato — disse o Chapeleiro com um dar de ombros,
como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. — Ele tem um amigo
por lá.
Alice tomou um gole de seu chá não batizado e ficou pensando.
— Reino de copas — gritou a morsa depois de horas ou minutos,
andando e recolhendo os canhotos de passagens dos assentos. —
Todos os imbefis desçam para seu destino violento.
Antes que Alice pudesse olhar em volta e recolher seus pertences
(para então se lembrar de que não tinha nada para recolher), o trem
foi totalmente esquecido, e ela e o Chapeleiro estavam em uma
plataforma ao lado de uma pilha desordenada de louças que
funcionava como bilheteria.
Uma estrada bem pavimentada saía da estação… de cor
vermelho vivo e pegajoso, pingando sangue.
— Alice — disse o Chapeleiro, com um fio de voz.
Por todos os lados, tudo era um carmim molhado: árvores, muros,
igrejinhas, caixas de correio. Alice deu um passo para a frente —
hesitante — e se ajoelhou para olhar mais de perto, com o
Chapeleiro agarrado a ela.
(Talvez ele estivesse um pouco menor do que antes do chá?
Encolhendo para seu tamanho antigo? Ela não tinha certeza.)
— É tinta — ela garantiu, tentando tranquilizá-lo, mas se curvou
para cheirar, só para ter certeza. — Ela cobriu absolutamente tudo
com tinta.
Também havia placas afixadas em absolutamente todos os cantos
ao longo da estrada.
REINO DE COPAS
O REINO DA RAINHA DE COPAS
FIQUE LONGE A MENOS QUE JURE LEALDADE
TODOS OS BRINQUEDOS SERÃO
CONFISCADOS NA FRONTEIRA
TRAIDORES SERÃO EXECUTADOS
VIAJANTES SEM DOCUMENTOS SERÃO EXECUTADOS
TODOS SERÃO EXECUTADOS APENAS POR SEGURANÇA
A RAINHA MAIS VENCEDORA DE TODAS
POR AQUI PARA O GRANDE REINO DE COPAS
POR LÁ PARA PERDEDORES
COPAS VÃO VENCER
— Bem, ninguém pode acusá-la de ser insegura — Alice
observou.
— Vamos percorrer esse caminho até a nossa morte, não vamos?
— disse o Chapeleiro melancolicamente.
— Pegue um doce — sugeriu Alice, segurando o pacote e
sacudindo para ele, como faria com uma criança pequena ou um
cachorro. Mal-humorado, ele pegou um e comeu, depois sorriu feito
um neném que acidentalmente escolhera seu sabor favorito.
Alice tirou o ovo do bolso e, sentindo-se um pouco ridícula,
ergueu e “mostrou” tudo, perguntando-se se a Rainha de Paus
realmente veria:
— Eis o que sobrou do reino por aqui — narrou com tanta
seriedade quanto pôde. — Vamos, Chapeleiro! — ela acrescentou
com animação, pisando com cuidado para a tinta não sujar as
laterais dos sapatos. — Estamos prontos para conquistar mentes e
corações. Lembre-se disso: mentes e corações.
— Por favor, não diga isso. Não diga nada que lembre copas — o
Chapeleiro pediu.

A área logo após a estação ferroviária era desolada e


despovoada, pelo menos até recentemente. Dispersas pelos
campos áridos estavam ruínas ainda em chamas do que uma vez
poderiam ter sido casas de fazenda. A fumaça que saía desse lixo
em chamas criava formas de coração que seriam perfeitas para o
Dia dos Namorados se não fossem tão terrivelmente escuras e
oleosas, desfazendo-se desordenadamente nas bordas.
O Sol e a Lua se encontraram brevemente no céu e deviam ter
tido algum tipo de discussão; a Lua recuou para o caminho de onde
tinha vindo, ainda mais mal-humorada do que antes. O Sol brilhou
mais forte e presunçosamente depois disso, o dia ficou quente e a
tinta ao redor, opaca e rachada.
— Traz um significado totalmente novo para “assistir à tinta
secar”, né? — Alice perguntou, cutucando o Chapeleiro. —
Entendeu? Desta vez é realmente muito rápido.
— Pode ser tão rápido quanto um linguadodô — disse o
Chapeleiro tristemente. Pode ser tão lento quanto um Lóris
Corredor.
Alice não respondeu, com medo de criar esperanças. Mas suas
palavras eram bobas e ele parecia ter encolhido um pouco. E o
chapéu talvez estivesse apenas um pouco maior do que antes.
A primeira aldeia habitada que encontraram era uma fazenda
miúda. Apenas metade dos pomares do entorno pareciam ter sido
incendiados e ardiam lenta e ineficazmente. As casas minúsculas se
agachavam e se arqueavam feito animais contra o que quer que
atacasse.
— Olá? — Alice chamou, saindo da estrada principal e indo para
um caminho empoeirado que tinha sido apenas levemente
respingado, em vez de pintado. A poeira eliminou o líquido, como
esperado; formaram-se coágulos secos em grumos e torrões
horríveis. — Olá? — ela gritou de novo. — Sou Alice. Estou aqui
para ajudar. O… convalescente Chapeleiro Maluco está aqui. Olá?
Não vamos machucá-los!
Por fim, a insistência e a suavidade produziram algum resultado:
várias criaturas peludas muito estranhas, vestidas com roupas de
fazendeiro, espicharam a cabeça para fora de portas, buracos e
poços. Eram de um dourado reluzente, quase perfeitamente
redondas e não pareciam ter olhos. Seus narizes grandes e
adoráveis farejavam o ar rapidamente, como coelhos.
— vá embora! — um gritou, voltando-se para Alice,
aparentemente localizando-a pelo cheiro ou som. — Deixe-nos
chorar pela nossa família e fazenda em paz.
— Não haverá paz para ninguém — Alice respondeu
sensatamente. — Não haverá mais ninguém. Quando a Rainha de
Copas conseguir uma pilha significativa de brinquedos, ela planeja
causar o Fim dos Tempos e o fim do mundo.
Uma das toupeiras douradas uivou ao ouvir isso e agarrou seu
bebê, que era a coisinha mais minúscula, redonda e fofa que Alice
já tinha visto e, apesar da urgência de sua missão, seus dedos
realmente coçaram para segurá-lo.
— Não, não, não — outro gritou. — Traga os capturandam e
linguados-ranheta, mas vamos acabar com isso de uma vez.
— Ela está falando a verdade — disse o Chapeleiro, erguendo a
voz. — Ela esteve no Conta-pabeça. E recebeu mensagens de Mary
Ann. Em certo sentido, ela foi enviada por Mary Ann.
— Mary Ann? — uma das criaturas disse suavemente.
— Eu trago isso — disse Alice, tirando o ovo do bolso. Uma dúzia
de narizes, alguns cujos donos ela não podia ver por inteiro,
cheiraram e investigaram o ar com entusiasmo. Ela virou o símbolo
de paus para que ficasse de frente para eles, embora ela não
tivesse ideia se eles podiam enxergá-lo ou se estavam
simplesmente famintos pelo ovo fresco. — Temos uma aliada na
Rainha de Paus. Se ela vir que todos se opõem à Rainha de Copas,
virá com seus exércitos e nos salvará.
— E Mary Ann organizou tudo isso? — uma toupeira diferente, ou
talvez uma das primeiras, Alice honestamente não sabia dizer,
perguntou esperançosamente.
— Não, eu organizei — disse Alice entredentes. — Mas… porque
Mary Ann me convocou.
As Toupeiras Douradas sussurravam entre si e confabulavam
entre farejos e assobios.
— Mary Ann trará a Rainha de Paus.
— Exércitos de cartas vão para a Batalha e seremos salvos.
— Seremos salvos e todos os nossos brinquedos devolvidos.
— E o Fim dos Tempos não chegará antes do normal!
— Nós ouvimos — uma toupeira fêmea falou. Pelo menos, Alice
presumiu que era fêmea; sua voz era um pouco mais aguda e tinha
um lenço azul vívido amarrado perfeitamente em torno de onde
seria o pescoço, caso ela não fosse uma criatura tão deliciosamente
redonda.
(Claro, este era o País das Maravilhas e não se deveria fazer
suposições.)
— E nós sentimos. Nós contaremos.
— Vamos contar! Mary Ann e os Portadores da Esperança!
E então, sem outra palavra, todas as criaturas empinaram a
cauda — embora não tivessem caudas de verdade — e se enfiaram
em qualquer pedaço de solo que estivesse mais próximo. Alice
observou alarmada enquanto suas formas afastavam a terra e
zuniam logo abaixo da superfície, mais rápido do que ela sentia que
era estritamente aceitável para velocidade subterrânea sem um
túnel preexistente. Se eles não fossem tão fofos e peludos
pessoalmente, seriam aterrorizantes.
— Imagine se eles viajassem assim no gramado e jardim de
minha mãe lá em casa — ela murmurou. — Correu bem. Eu acho —
ela acrescentou mais alto.
— Na verdade, eles eram mais rápidos do que linguadodôs — o
Chapeleiro refletiu. — Mas não espere que todos sejam tão
agradáveis.
E, claro, ninguém mais agiu assim, porque não existiam duas
pessoas ou grupos de pessoas semelhantes no País das
Maravilhas. A próxima criatura que encontraram foi um castelo
minúsculo e muito detalhado, com arcos e recôncavos muito
precisos. Alice caminhou ao redor sorrindo de prazer, desejando ter
tido algo parecido quando era uma menininha. Poderia facilmente
ter se agachado e se escondido no pátio externo, com um ou dois
bons livros, ou talvez um lanche… E teria feito seus bonecos
guarnecerem as ameias.
Confortavelmente acomodados dentro das muralhas, estavam
vários bebês armados até os dentes, uma com uma coroa na
cabeça que parecia feita de brotos de espinheiro e cola de gemas.
Alice tentou apresentar seu caso o melhor que pôde para tal
público, mas foi imediatamente interrompida.
— podemos nos defender! sumam daqui! — um bebê, cuja
fralda caiu precipitadamente, gritou.
— Mas vocês são apenas crianças pequeninas — argumentou
Alice, alarmada. — E vejo que há uma boneca ali no canto e um
urso de pelúcia. O exército de Copas vai apreender tudo
imediatamente.
— somos invulneráveis contra a rainha de copas! — a bebê
rainha berrou. — ninguém nos conquistará enquanto a torre
de madeira permanecer em pé.
— A… Ah, entendo. Mas aqui, vejam. — Alice mostrou o ovo,
perguntando-se se não seria uma má ideia: se a Rainha de Paus
visse esses bebês rebeldes, talvez supusesse que mais habitantes
de Copas não quisessem resgate. — A Rainha de Paus vai nos
salvar e nos proteger só se vocês resistirem contra a Rainha de
Copas, em palavras e em ações. Vocês sabem que ela pretende
destruir o mundo?
— não confiamos em exércitos estrangeiros — a pequena
rainha gritou. — e você também não confiaria se tivesse algum
bom senso. salve-se ou salve você mesma seu mundo. outras
pessoas não servem para nada, só para trocar fraldas e
comprar leite.
— Bem! — Alice disse, colocando as mãos nos quadris. — Vocês
são um bando de bebês travessos!
Com isso, o quarteto começou a gritar, chorar, berrar mais alto e a
ficar com o rosto vermelho. Alice encontrou apressadamente uma
chupeta nas muralhas orientais e enfiou-a na boca redonda e
uivante da rainha. A bebê calou-se de imediato, mas continuou a
olhar para Alice com olhos grandes e belos.
— Eu avisei — disse o Chapeleiro enquanto eles se afastavam.
— Sim, mas eram apenas bebês — Alice respondeu, sem saber o
que isso queria dizer. — Seja como for, nos contos de fadas, os
eventos sempre vão em trios, então, no próximo lugar, devemos ter
uma ideia real de como tudo vai se desenrolar.
Alice ficou em silêncio por um momento enquanto caminhavam,
ainda ruminando a interação.
— Mas, francamente: “Outras pessoas só servem para trocar
fraldas”. Que grosseria.
— Bem, já imaginou um monte de bebês promovendo os
benefícios da autossuficiência em vez disso? — perguntou o
Chapeleiro. — Na melhor das hipóteses, seria bastante irônico, não
acha?
Alice honestamente não sabia dizer se isso era um absurdo ou
bom senso. Ela estava começando a misturar as duas coisas.

Um tanto tolamente, Alice não perguntou como eles eram


capazes de se deslocar com tanta liberdade pela estrada principal
(que era pontilhada com avisos especificamente para intimidar
pessoas como eles) sem realmente serem caçados ou capturados.
Ela era Alice. Este era o País das Maravilhas. E, embora cada lugar
e cada pessoa aqui fosse diferente, todos eram dotados de uma
singular falta de atenção. Alice não teve dúvidas de que a Rainha,
tendo mandado pintar a estrada de vermelho, tinha esquecido dela
prontamente.
Em vez disso, seus pensamentos vagaram. Ela se perguntou se
Mary Ann já tinha passado por essa mesma estrada antes de todos
os acontecimentos terríveis começarem. Se sim, havia uma chance
de que os sapatos de Alice estivessem, de fato, seguindo os passos
da outra garota! Que pensamento estranho. Ela estremeceu,
imaginando fantasmas e rastros fantasmagóricos desaparecendo
enquanto ela os apagava com os próprios pés — presumivelmente
— do mesmo tamanho.
Um guincho inesperado ecoou do chapéu do Chapeleiro. Em
resposta ao aviso do Arganaz, o Chapeleiro agarrou Alice e os três
foram aos tropeços para a beira da estrada, se manchando com a
tinta terrível enquanto rolavam.
Alice estava prestes a protestar indignada com esse tratamento
bruto e com a destruição de sua roupa do Reino de Paus (da qual
ela estava realmente começando a gostar) até que viu as cartas
marchando pela estrada em direção a eles.
Não eram apenas cartas desta vez; havia todo tipo de criatura de
aparência desagradável: angulares e espinhosas, altas e
irregulares, bulbosas e cobertas de pústulas, todas vestindo uma
armadura vermelho-rubi reluzente que brilhava ao sol. Um deles, em
um capacete gigante dimensionado para sua cabeça deformada,
estava sentado nos ombros de uma criatura grande e triste, com
cabelo comprido e presas curtas. Esse boi ou ieti puxava uma
carroça enjaulada cheia de brinquedos e várias vítimas
desafortunadas, que tentavam encontrar espaço entre pilhas de
braços de boneca, trabucos em miniatura e soldadinhos de chumbo.
O Chapeleiro colocou a mão sobre a boca de Alice antes que ela
pudesse gritar de choque e raiva.
O Arganaz permaneceu acordado tempo suficiente para levantar
a ponta do chapéu do Chapeleiro e assobiar baixo e tristemente
para a cena.
Um dos guardas da retaguarda se virou, ouvindo o barulho.
Os três amigos congelaram.
Alice se esforçou ao máximo para não fechar os olhos: em caso
de morte ou captura iminente, enfrentaria pronta e de cabeça
erguida.
Foi difícil.
Um longo, longo momento se passou enquanto a comitiva descia
a estrada, desaparecendo, e esta única carta inteligente ficou para
trás, procurando de um lado para outro na estrada, usando a lança
para cutucar os arbustos.
Os segundos se passaram.
A carta chegou perto de onde eles se escondiam.
Por fim, cuspiu e se virou, marchando atrás do resto dos
companheiros.
Alice e o Chapeleiro estremeceram de alívio, mas o Arganaz já
estava dormindo novamente.
Capítulo 29

DEPOIS DE SE RECUPERAREM brevemente, os três continuaram,


mas com mais cuidado agora, mantendo-se na beira da estrada e
muito mais cautelosos. O caminho logo se dividiu, uma estrada
menor levando para a direita. Claro que a bifurcação era indicada
por placas.
ORNITOLÂNDIA POR AQUI — APENAS LEGALISTAS!
BRINQUEDOS POR LÁ
Cada placa estava carimbada com o símbolo do Coelho, às
pressas e descuidadamente, então a tinta branca escorreu e se
misturou com a tinta vermelha na madeira. Resultou em um tom
bastante bonito de rosa, se você não prestasse atenção ao
significado.
— Voltamos por todo o caminho — murmurou o Chapeleiro,
maravilhado.
— Ornitolândia! Tipo, do grego ornitho, que significa pássaro? —
Alice exclamou. — É aquela primeira aldeia onde todos estavam tão
amedrontados e fiéis ao Coelho Branco?
— Sim — suspirou o Chapeleiro, fechando os olhos. — Seria
maluquice voltar lá, direto para o cor… ah, a barriga dos bajuladores
e leais à Rainha.
— Mas é precisamente para lá que devemos ir, para mudar as
mentes das pessoas — observou Alice. — Se a Rainha de Paus vir
que encorajamos aqueles pássaros covardes, ela certamente nos
ajudaria!
— Claro que uma Alice diria esse tipo de coisa — o Chapeleiro
murmurou.
Mas ela sentia com todo o seu ser que essa era a decisão correta,
especialmente porque seu companheiro disse que era Maluquice. E
isso também era o que ele precisava agora, mais do que qualquer
outra coisa. E não parecia ter encolhido apenas um tiquinho mais?
Também havia a questão do ovo. Nada no País das Maravilhas
fazia sentido, então talvez não houvesse conexão, mas era muito
curioso que a Rainha de Paus tivesse decidido enviar Alice com um
ovo, e aqui estava ela de volta para uma aldeia de pássaros.
— Suponho que poderiam ser crocodilos — murmurou Alice pra si
mesma. — Ou jacarés.
Havia algo de diferente naqueles ovos, claro; mas óbvio que
agora ela não conseguia lembrar o que era. Eles eram macios, ao
contrário de ovos de galinha, ou eram do avesso? Melequentos e
amarelos por fora? De todo modo, eram opostos aos ovos de
pássaros…
Pegaram a estrada para Ornitolândia e a seguiram assiduamente,
mesmo quando ela se enrolava e os devolvia a apenas trinta
centímetros de onde haviam entrado no trevo.
(O que era duplamente estranho, porque Alice tinha certeza de
que não havia uma estrada de fato para Ornitolândia quando eles
chegaram lá pela última vez; o lugar parecia apenas estar jogado no
meio do nada, como tudo no País das Maravilhas.)
Na feira, uma mulher estava discutindo com um homem, baixinho,
mas furiosamente, em pios e assobios, enquanto balançava um
pedaço de papel para ela e erguia um selo de Coelho
ameaçadoramente. Ela tinha dois filhotes choramingando a seus
pés. Um era majoritariamente humano, o outro, tão peludo e com
um bico tão grande quanto um jovem passarinho.
— Ora, deixe-a em paz — disse Alice, avançando e fazendo
movimentos de enxotar com as mãos. O quíscalo oficial pulou de
volta. — Não percebe que está chateando as crianças?
— Se o Coelho soubesse que ela estava escondendo uma bola
junto com alguns brotos de alfafa extrafinos, ele viria atrás dos
filhotes e dela também!
— Não se preocupe. Eu vou fazer um pronunciamento que vai
mudar tudo. Chapeleiro, uma mãozinha?
Alice foi subir no bebedouro de pássaros, mas é claro que o
Chapeleiro não deu atenção e apenas começou a aplaudir: com
entusiasmo, para ninguém e nada em particular.
— Que engraçado — Alice murmurou. Ficou feliz em ver o
Absurdo dele voltando com tanta força, mas tinha que ser justo
quando ela precisava dele? Apoiando sua bota com cuidado contra
o mármore, ela conseguiu se içar e, em seguida, equilibrar-se na
borda só com o mínimo de oscilação.
— Bom povo de Ornitolândia! Posso ter sua atenção, por favor?
Olá? Só um momento do seu tempo, é tudo que peço! Oi! Perto da
fonte, aqui! Eu tenho um pronunciamento a fazer!
De imediato, os pássaros voltaram seus olhos brilhantes para o
centro da praça e começaram a se aglomerar na direção de Alice.
Monóculos cintilavam na luz; cartolas foram removidas para que
outros pudessem ver.
— Ah, outro maldito político. Achei que eles já tivessem migrado
— uma andorinha gemeu.
— Ouvi dizer que haverá ponche e torta depois — um tetraz disse
a ele sabiamente.
Alguém montou uma barraca para distribuir folhetos e broches;
Alice não conseguia distinguir a insígnia ou os slogans. Limonada foi
servida, o que causou certa confusão porque acabou que não havia
nenhuma torta.
Agora, cem ou mais pássaros estavam encarando Alice, ciscando
o chão, alisando as penas e esperando impacientemente que ela
começasse. Embora ela estivesse no alto e fora do alcance imediato
deles, não podia deixar de ficar um pouco aflita pelos olhos alertas e
bicos afiados. Não é uma multidão para se ter por perto caso o clima
esquente. Alguns dos galos tinham esporas verdadeiramente
formidáveis.
— Senhoras pássaras, aves de caça e senhores — Alice
conclamou —, o tempo de sentir medo acabou. O tempo de
esconder brinquedos e ofertar tributos ridículos àqueles que estão
no poder acabou. O reinado da própria Rainha de Copas acabou!
Se vocês quiserem. Venho com uma grande notícia: a Rainha de
Paus vai nos ajudar com suas forças e libertar…
— … nos libertar das cartas de Copas e devolver todos nossos
brinquedos, sim, nós já ouvimos tudo isso — um ganso com bico de
pinça grasnou.
Alice piscou surpresa.
— E nós ouvimos isso de um Dodô — uma pequena coruja-
buraqueira disse, com um sotaque caipira acentuado. — Uma fonte
muito mais confiável do que uma menina humana, devo dizer.
— Chapeleiro! — Alice exclamou de alegria. — Eles já passaram
por aqui, divulgando o plano! Todos os nossos amigos!
— Eu não falei que eles tinham ido na frente? — ele respondeu
com um pouco de irritação. — Lá na estação de trem enquanto você
fazia bullying com aquela pobre louva-a-deus?
— Então vocês estão comigo? E contra a Rainha de Copas? —
Alice gritou.
— Estamos discutindo a ideia em nossas reuniões do comitê. Há
alguma dúvida sobre a seriedade da alegação — um pássaro gritou
de volta. — Alguma demonstração das intenções da Rainha de
Paus seria útil. Basicamente estamos com o Dodô. E com Mary
Ann. Alguns de nós, pelo menos. Ela é quase tão boa quanto um
pássaro. Você deveria ouvi-la cantar.
— Mas ela está… — Alice não sabia o que fazer. Desta vez, não
era nem mesmo irritação com a constante menção à Mary Ann. A
pobre garota estava morta. Teria coragem de contar a essa
multidão? Será que ainda não sabiam? Será que isso enfraqueceria
seus espíritos? — A memória de Mary Ann vive — disse ela, sem
revelar a verdade nem reconhecer o comentário. — Mas vocês
precisam se esforçar para a própria salvação. Sei que tem sido
difícil ter seus, ah, brinquedos confiscados e ver seus amigos serem
presos, às vezes, torturados, às vezes, mortos. Mas ninguém, nem
Mary Ann, surgirá para salvá-los se vocês não tentarem se salvar.
Tornem a rebelião pública, e a Rainha de Paus verá e enviará seus
exércitos. Ela vai lutar contra a Rainha de Copas e vai vencer,
libertando todos vocês. Mas ela precisa ter certeza de que vocês
querem ser libertados. Ela não vai invadir para tomar o domínio de
outra rainha sem um apelo.
— Fora com todas as rainhas — um ganso-de-face-preta falou,
balançando a cabeça e tentando não desafinar no meio da fala. —
Mas se Mary Ann diz que podemos nos salvar, nós podemos. Eu vi
Mary Ann. Tão bem quanto aquela menina lá em cima na fonte. Na
verdade, aquela menina realmente se parece muito com ela. Nunca
vi nenhuma Rainha de Paus. Mas se ela fala por Mary Ann, eu sei
que estamos salvos.
Houve murmúrios na multidão, pássaros assentindo e olhando
para Alice e comentando sobre as semelhanças. A cabeça de Alice
girou. Eles estavam mesmo concordando em fazer o que ela pediu
apenas porque pensavam que uma garota morta ainda estava viva e
pedindo isso? Ou porque Alice se parecia um pouco com essa
garota? Nada fazia sentido. Era tudo, claro, Absurdo. O que era real
eram os tratados, os pactos, os exércitos e as armas.
Foi preciso alguém do mundo real para perceber isso. Alguém
com a perspectiva do mundo real.
— Isso é ridículo — Alice se queixou com o Chapeleiro.
— Você ainda não entendeu, né? — o Chapeleiro disse com um
suspiro. — Esse plano inteiro é ridículo. Não tem a ver com
exércitos, tem a ver com você. Sempre teve a ver com você, Alice.
— Parece mais que tem a ver com Mary Ann — Alice resmungou.
Mas ela tirou cuidadosamente o ovo do bolso e ergueu-o no alto.
Isso chamou a atenção da multidão.
— O que ela tem?
— Um ovo? É o ovo dela?
— Meninas humanas também podem botar ovos?
— Não, mas elas comem ovos!
— Pelo amor de Deus! ela vai comer esse ovo?
— O que é isso?
— Ora, é um ovo do naipe de Paus!
— Ela fala pelos pássaros!
— Vou seguir aquele ovo para qualquer lugar!
— Abaixo a Rainha de Copas! Abaixo a Rainha de Copas!
— Viva a Rainhaquaquá de Paus!
— liberdade!
Enquanto eles gritavam e Alice segurava o ovo, com o lado de
Paus para fora, uma rachadura apareceu na lateral.
A rachadura aumentou e aumentou feito um raio sobre um campo
com um horizonte distante, quando se pode ver todo o raio estalar
de ponta a ponta. Seus rastros se dividiram e se dividiram, e se
multiplicaram em mais rachaduras até que o ovo estava repleto
delas e a casca parecia mais um quebra-cabeça do que uma
superfície sólida.
De repente, explodiu.
Uma coruja branca, adulta, totalmente formada, completa com um
pescoço de acordeão, decolou direto para o céu como se estivesse
voando para o sol. Ela pairou por um momento no alto, com as asas
abertas em arco enquanto observava a multidão e sentia o vento.
Em seguida, arremeteu para longe, na direção do Improvável.
A multidão arfou em meio a interjeições de ahh e ohh.
— Então é assim que funciona — Alice concluiu, observando
enquanto partia.
Capítulo 30

— NÃO PODE SER tão fácil assim… — ela acrescentou, tirando os


olhos do céu e voltando-os para a multidão. Pássaros estavam
falando animadamente, discutindo ferozmente, tomando grandes
goles de limonada e afixando vários broches em suas penas. Alguns
dos broches eram de corações, alguns de paus, alguns eram
coelhos, alguns eram pontos de interrogação esquisitos, que
pareciam ter sido cortados de um ponto de exclamação. Alguns,
usados pelos mais decadentes, velhos ou filosóficos, mostravam a
imagem de um relógio com o ponteiro dos minutos se aproximando
do treze.
— Vamos encontrar o Dodô. Devemos estar bem atrás dele —
disse o Chapeleiro, mas, se ele estava respondendo ou não ao que
ela pensava, Alice não sabia dizer. — Aposto que o Grifo também
está com ele. Ambos têm asas, sabe.
— Mas se a Rainha de Paus for convocada ou informada por
aquela tal ave, então muito em breve ela estará a caminho com seu
exército. Direto para o castelo da Rainha de Copas, eu presumo,
para guerrear lá. Devemos continuar nessa direção, divulgando o
plano e angariando apoio, e então ajudando a Rainha de Paus da
forma que a gente puder.
— Temia que você dissesse algo assim — o Chapeleiro gemeu.
Os dois (três com o Arganaz) saíram à francesa para a estrada de
Ornitolândia.
— Quero muito evitar a Floresta do Esquecimento — Alice disse.
— Devíamos ir diretamente pela planície quadriculada.
— Como preferir — suspirou o Chapeleiro.
Eles se afastaram da aldeia de pássaros e se aproximaram do
castelo, invertendo o trajeto de Alice, e a paisagem e o ambiente
começaram a mudar. De imediato, é claro, não com a lenta
progressão de cores e geografia que alguém poderia esperar em um
mundo mais parecido com a Inglaterra. E, enquanto caminhava por
aquela paisagem mutante, Alice percebeu que não pedira ao
Chapeleiro para guiar o caminho, nem mesmo se preocupara em
como chegar lá. Todas as ações e placas — algumas literalmente —
apontavam para a Rainha de Copas. Era lá que o próximo,
esperançosamente o último, confronto entre todos deveria ocorrer.
Então, é claro que o País das Maravilhas levaria Alice até lá.
Ela se perguntou como teria sido crescer como Mary Ann,
acostumada a viajar pela inevitabilidade. Tinha levado três visitas
para Alice pegar o jeito.
A planície quadriculada surgiu depressa e rápido, mas agora
estava infértil e empoeirada. A tinta vermelha estava seca e recobria
tudo, arbustos e grama, matando as plantas por inteiro e
transformando-as em manchas rubras e macilentas na paisagem. O
céu estava escuro com fumaça vermelho-sangue, e o ar tinha uma
densidade pungente. Brasas pavorosas dançavam nas alturas,
girando e descendo e às vezes sumindo, como demônios malévolos
dos livros do mundo de Alice. Como absolutamente nada do País
das Maravilhas.
— Não gosto da aparência disso — disse o Chapeleiro, apesar de
ser incapaz de se virar.
Alice se sentiu tomada por uma espécie de pavor que raramente
experimentara desde que era criança: o medo de um terror ainda
maior por vir, da punição futura de um dos pais depois que o
primeiro ralhou, prometendo o pior para mais tarde.
Pegou a mão do Chapeleiro e ele a apertou de volta, um pouco
distraído, mas com firmeza. Caminharam em silêncio tal e qual uma
versão sombria de João e Maria, soturnos na paisagem desoladora.
Antes do esperado, eles se depararam com a causa de tal
poluição rançosa.
Bloqueando a luz do sol e projetando sombras na terra ao redor,
havia pilhas gigantes em chamas, queimando e liberando grandes
massas vermelhas oleosas.
Tapando a boca com a mão e tentando respirar apenas pelo nariz,
Alice se aproximou do monte mais próximo. Pensou que seriam
brinquedos, o que, obviamente, não fazia sentido porque a Rainha
tinha que ter brinquedos inteiros para vencer (Alice presumiu). Mas
que sentido havia atualmente em qualquer coisa no Reino de
Copas?
Na verdade, as pilhas em chamas continham de tudo, menos
brinquedos. Cadeiras, bicicletas, chaleiras, lápis, mantas de bebês,
óculos, pudins de ameixa, abajures, tijolos, pantalonas, armários,
caixas de rapé, quepes de policiais, pães de passas amanhecidos,
selas, alpendres e escadas, bolsas de couro, toucas, linotipos de
impressão… Tudo e qualquer coisa que Alice pudesse nomear
estava acumulada nessas pilhas gigantes e intermináveis de lixo
incendiado.
O Chapeleiro olhou e cutucou a pilha com interesse; até mesmo o
Arganaz pôs a cabeça para fora e apontou para uma colher de chá
de prata que brilhava um pouco nas chamas. O Chapeleiro
obedientemente a recolheu (envolvendo a mão no regalo primeiro) e
entregou-a ao companheiro, que suspirou de alegria e prontamente
voltou a dormir, embalando-se nela para se aquecer.
Andando apressadas ao redor da base dessas colinas, formigas
gigantes empurravam caçambas vermelhas. Com base em alguma
razão, lógica ou padrão conhecido apenas por ela mesma, cada
uma pegava um carrinho, apanhava um objeto — antenas movendo-
se no ar como se estivessem recebendo sinais sobre o que fazer —
e depois jogava-o em uma fogueira específica.
De repente, uma das formigas menores começou a gesticular
descontroladamente com suas antenas e patas.
Peguei um! Peguei um!
Alice colocou as mãos nas têmporas, não era adequado receber
esse tipo de comunicação. Machucava. O Chapeleiro puxou o
chapéu todo até cobrir a cabeça.
Uma dúzia de outras formigas correu para aquela que gritava, as
antenas agitando-se.
A formiga ergueu seu achado: uma pequena boneca sem cabeça.
Lixo isso é lixo
É um brinquedo
É uma boneca sem cabeça uma boneca
É algo para brincar
É como se um irmão tivesse arrancado a cabeça fora
Ainda é um jogo?
Não importa, veja!, a primeira formiga disse, revirando
triunfantemente seu carrinho um pouco mais e segurando uma
coisinha coberta de cabelos. Aqui está a cabeça! É uma boneca, por
qualquer definição! Um brinquedo!
Um brinquedo, um brinquedo, um brinquedo!, todas as outras se
juntaram.
Estalando as mandíbulas com alegria, a formiga saiu correndo,
erguendo o brinquedo no ar.
Imediatamente as outras formigas escalaram a lateral do carrinho
e começaram a examinar metodicamente o resto da pilha dela para
ver se havia mais sorte, se havia mais brinquedos.
— Que inteligente, imagino — disse Alice, pegando o Chapeleiro
e puxando os dois para longe dos insetos desconfortavelmente
grandes. — Usar formigas para revirar tudo. Como o conto de fadas
sobre a princesa que espalhou sacos de grãos pela grama e obrigou
um pobre pretendente a encontrá-los e reencher todos os sacos,
mas algumas formigas amigáveis fizeram o trabalho por ele.
— Com certeza, exceto que a boneca sem cabeça era horrível, as
formigas gigantes são horríveis, e tudo isso é horrível — o
Chapeleiro sinalizou.
Havia um esqueleto em lenta carbonização em uma das pilhas e
Alice não sabia ao certo se era um cadáver ou um modelo do
laboratório de um pesquisador.
A pilha se mexeu quando algo, por fim, desabou, carbonizado
demais para suportar o peso por mais tempo, de modo que o
esqueleto virou ligeiramente, como se estivesse olhando para Alice.
— Ah — gemeu Alice, virando e engolindo em seco, tentando não
vomitar. Contudo, apesar de muito chocada, ela estava mais
preocupada com o Chapeleiro, que tinha um aspecto sombrio e
impassível. Ele estava se endireitando de novo, mais alto, com o
chapéu e a cabeça menores.
— Já provou um caramelo voador? — ela perguntou rapidamente.
— Não, o que é…
Alice pegou um doce e jogou na cabeça dele. Bateu na aba do
chapéu e caiu… direto em sua boca aberta, que ele abriu bem a
tempo.
— Para o castelo! — Alice disse animada, jogando outro doce na
própria boca. Fechou um olho e moveu a mão como se fosse
remover a pilha em chamas… e então deslizou para o fundo de
forma improvável e imperceptível, um truque óptico transformado
em realidade.
— Para o castelo! — o Chapeleiro concordou, chupando o doce,
pegou a mão dela de novo e saltitou. Alice estava prestes a lhe dizer
que não era bom saltitar com um doce na boca, pois poderia se
engasgar, mas sabiamente decidiu não dizer nada.
(Foi bom ela ter guardado aquele pacote de doces. Bem como
alguém havia lhe dito — quem foi? Sempre mantenha um pacote de
doces consigo? A vida de alguém dependeria disso? Não conseguia
lembrar exatamente se…)
As formigas não prestaram atenção neles, assim como não fariam
no mundo real, a menos que uma Alice mais nova e travessa tivesse
colocado um obstáculo em sua fila de progressão: uma pedra ou um
pouco de mel, digamos. Quando os dois companheiros fizeram
qualquer esforço para olhar nos carrinhos ou nos itens sendo
separados, ambos tentaram fazer observações despretensiosas.
Esse é um pufe de formato incomum ou minha tia costumava ter um
batedor de ovos assim. Do contrário, progrediam entre os montes de
lixo quase em silêncio, exceto pelo barulho de clique das formigas.
Então, uma sensação estranha começou a tomar conta de Alice.
Uma sensação de medo feito um inseto rastejante e,
estranhamente, não tinha nada a ver com as formigas.
Virou-se para observar a desolação atrás de si. Era como estar
em uma festa cheia e chique e sentir algo pisando em seu vestido.
Ou prestes a pisar.
— O que está fazendo? — o Chapeleiro quis saber na terceira vez
que ela parou. — Está tão nervosa quanto um filhote de touvo em
um capturandam.
— Sinto que estamos sendo seguidos — Alice admitiu, mais uma
vez se virando e examinando o horizonte. O Chapeleiro olhou ao
redor, mas tudo o que podiam ver eram as formigas irracionais.
— Não tem nada atrás da gente — disse o Chapeleiro.
— Isso é porque sua morte está à frente — respondeu uma voz
sussurrante e seca.
Alice se virou.
Lá estava um esqueleto, muito parecido com o da pilha de
entulhos em chamas: havia marcas carbonizadas em seus ossos
aqui e acolá. Talvez fosse ele. Vendo mais de perto, ele era
estranhamente anguloso, com órbitas oculares geodésicas e um
trapézio de ponta-cabeça como crânio. Ele também parecia…
achatado. Mais fino do que um carta, mesmo quando se curvou para
desembainhar a espada, uma meia tesoura de aparência maligna. O
buraco onde seu nariz estaria era a única parte dele que era curva;
parecia um coração de ponta-cabeça.
— O Cortador de Cartas — sussurrou o Chapeleiro, a voz densa
de medo.
— Olá — Alice saudou com uma pequena mesura. — Estamos só
de passagem, se não se importa…
— Mas eu me importo — o esqueleto rebateu, se aproximando.
Os dedos dos pés, chatos e ossudos, tilintavam no chão. — Eu sou
o nivelador de disparidades. Eu torno todos os jogos justos. Sou o
grande equalizador. Eu elimino as vantagens fruto de trapaça. E
estou aqui por você.
— Para quê? — Alice quis saber, tentando não deixar a voz falhar.
— Eu nunca trapaceio. Muito. Atualmente. Sou adulta, não criança.
— Definitivamente, você está tentando trapacear, pequena Alice.
Está trazendo um novo baralho para este jogo. Não é justo para
Copas.
— Como é que é?! — Alice retorquiu. — Sua Rainha tem todas as
armas, todos os soldados, todos os exércitos, todo o poder, todos os
brinquedos…
— Todos os brinquedos não, ainda não — o esqueleto
interrompeu. — Em breve.
— … todas as estradas e cidades e prisões e cadeias e garrotes
contra o desafortunado povo de Copas e você me acusa de
trapacear porque quero nivelar as disparidades? Por trazer uma
aliada igualmente poderosa?
— Ela não estava no começo do jogo, quando as regras foram
determinadas — disse o esqueleto, mudando sua postura e a
pegada na meia tesoura.
— Nunca houve um começo preciso para essa maluquice e
ninguém nunca determinou as regras!
— É o que você diz.
— Parece que você está apenas inventando uma justificativa para
seja lá qual for a razão de estar atrás de mim — Alice retrucou. —
Ou você só pode fazer aquilo que é sua obrigação e a Rainha de
Copas distorceu os comandos e as regras para fazer você pensar
que está agindo corretamente. Quando, na verdade…
O que quer que ela fosse dizer a seguir, todavia, provavelmente
mais algum bocado útil da sabedoria de Alice, foi interrompido
quando o Cortador de Cartas, silenciosa e repentinamente, desceu
sua foice-tesoura na cabeça dela.
O Chapeleiro puxou Alice para fora do caminho.
Mas não totalmente fora do caminho.
Por um momento aparentemente interminável e silencioso, ela viu
um lindo triângulo de tecido se soltar de suas calças e flutuar para a
frente e para trás em direção ao chão. Uma mecha curta de cabelo,
não mais do que uma vírgula loira, em seguida. Na sujeira já estava
uma lasca do sapato de couro de Alice.
— alice! — o Chapeleiro rugiu, empurrando-a para longe de
novo.
Tempo reiniciado. O Cortador de Cartas gingou, a meia tesoura,
dessa vez, fazendo zapt e zupt, embora tivesse apenas uma parte.
Alice girou para fora do caminho histericamente, sem saber o que
fazer. A única luta que tivera de verdade foi contra Mathilda e
envolveu puxões de cabelo.
— Faça alguma coisa! — o Chapeleiro sibilou.
— Que injustiça! — Alice gritou enquanto a tesoura retinia
novamente ao lado dela, temporariamente espetada entre duas
pedras. Sem um grunhido ou um bufo ou qualquer outro barulho, o
magérrimo esqueleto se curvou após puxá-la. Alice tropeçou e
enfiou as mãos nos bolsos, mas os dedos em pânico não
conseguiram encontrar o pacote de doces agora.
Então realmente parecia um bom momento para…
— Corra! — ela gritou, agarrando o Chapeleiro pela mão. Não
eram lutadores, os dois. Tratava-se de sobrevivência, não covardia.
Dispararam pelo caminho contornando o esqueleto, passando por
ele; o pouco bom senso que restava em Alice a fez escolher fugir na
direção de seu destino final. As pernas do Chapeleiro eram muito
mais curtas do que as dela, e ele tinha dificuldade ao tentar
acompanhá-la, especialmente com uma mão no gigantesco chapéu.
Embora os próprios batimentos cardíacos e a respiração
estivessem altos e o medo parecesse fazer um barulho próprio,
depois de um tempo Alice não conseguia ouvir mais nada. Os
únicos barulhos do mundo ao redor eram as chamas estalando e
queimando as pilhas de entulho. Não havia indício de perseguição,
não havia zunido da metade da tesoura.
Alice estava dividida. Por um lado: empolgação! Será que tinham
realmente escapado do agressor tão facilmente?
E por outro: inquietação. Ele os deixou ir porque estavam
correndo para a cova dos leões, por assim dizer? Mais perto do
castelo?
Será que deveriam ter dançado para longe em vez disso?
Mas suas emoções foram rapidamente dissipadas por uma carta
suja e abandonada soprada pelo vento, que arqueou no alto e caiu
na frente dela.
O Cortador de Cartas se levantou, brandindo a meia tesoura em
triunfo.
Alice e o Chapeleiro frearam o impulso de avançar na hora certa.
— Vocês não podem escapar da equidade — disse o esqueleto
com um largo sorriso ossudo. — A justiça vem para todos no fim;
todos se tornam alimento para os vermes, igualmente. Este mundo
está quase acabando. Considerem-se os pioneiros sortudos do
próximo.
Alice se virou para correr de novo.
— Não podemos fugir dele — o Chapeleiro sibilou loucamente,
dentes batendo de medo. — Ele pode ir a qualquer lugar… surgir
em qualquer lugar. Ele corta as cartas onde quer que elas estejam.
Ele é implacável.
— Eu não sou uma carta! — Alice gritou, tanto para o Chapeleiro
quanto para o esqueleto.
O esqueleto fez uma meia reverência zombeteira:
— Mas parece que está tentando se tornar uma rainha; você
disputa os Jogos das Rainhas.
De repente, ele se lançou para frente, girando a arma e trazendo-
a na horizontal desta vez, com a intenção de cortar os dois amigos
na metade.
O Chapeleiro e Alice se esquivaram.
O topo do chapéu gigante foi cortado.
— Meu chapéu! — o Chapeleiro gritou, agarrando cada lado da
aba. Alice o empurrou para longe da rota do contra-ataque do
esqueleto: ele girou completamente, lançando a arma como uma
foice, ele a deixou seguir seu embalo para cima e sobre o ombro de
marfim apenas para voltar direto para baixo bem em cima dos dois.
— Alice! — o Arganaz gritou, surgindo no topo do triste chapéu do
Chapeleiro. — Os doces! coma-os!
Alice cavou desesperadamente os bolsos de novo, mas estava
tão distraída que acabou tropeçando nos próprios pés. Ela tropeçou
e caiu na poeira e na tinta seca, batendo a cabeça no sapato do
Chapeleiro.
Conseguiu pegar um único doce, um alcaçuz, e jogá-lo na boca.
Sua língua sentiu repulsa com o gosto odioso. Forçou-se a
engolir.
Sua visão do céu foi interrompida por uma caveira sorridente: o
esqueleto usou um pé de aparência estranhamente delicada para
chutar o Chapeleiro para longe de Alice. O pobre homem saiu
voando pelo ar.
O Cortador de Cartas ergueu a meia tesoura; a lâmina cintilou
lindamente, dourada e afiada.
— Cale sua boca como um telescópio — Alice sussurrou,
estendendo a mão e prendendo o crânio dele entre seu polegar e o
indicador. E então espremeu como se fosse esmagar a cabeça dele.
Houve um barulho terrível que deve ter sido de ossos contra
ossos: triturando e rangendo e raspando feito dentes forçados a
fazer algo que não deveriam.
Se o crânio diminuiu e caiu do pescoço, matando o esqueleto; ou
se continuou lá, mas sofreu uma mudança tão drástica e repentina
que o esqueleto não aguentou; ou se tudo o que servia como
cérebro ou alma encolheu em inutilidade junto com a proteção
craniana, Alice nunca descobriu.
Mas os braços dele ainda se moviam, apanhados no meio de seu
último golpe, e a metade da tesoura desceu diretamente para o
coração dela.
Capítulo 31

— ALICE! — O Chapeleiro gritou.


Que engraçado, ela pensou, olhando para a meia tesoura
parcialmente enfiada naquela parte do corpo que fica entre as
costelas. Naquele órgão pulsante, carnudo e irregular. Tem o
mesmo símbolo de Ouros, é isso? Ou não, de Espadas? Ela se
perguntou.
A tesoura meio que balançou para frente e para trás, e, apenas
por um instante, pareceu tão fina quanto o próprio esqueleto, mas
claro que ainda assim era puro metal, dourado e afiado. Latão,
talvez, ela concluiu.
— Criatura vil! — o Chapeleiro praguejou, agarrando-a com
ambas as mãos e quase cortando os dedos no processo.
— Não! — Alice começou a gritar, pois, embora tivesse pouco
conhecimento de medicina, tinha um pressentimento ou talvez uma
lembrança de uma história ou… Enfim, a questão era que não se
deveria…
Fosse o que fosse, era tarde demais.
O Chapeleiro puxou a tesoura e, com ela, jorraram grandes jatos
de sangue. Sangue de verdade, não tinta vermelha. Cheirava a
carne e cobre e, quando salpicou seus lábios, Alice conseguiu sentir
seu sabor. Os olhos do Chapeleiro se arregalaram em choque e,
incapaz de pensar em qualquer outra coisa, agarrou seu chapéu e o
segurou sobre o fluxo. Não funcionou muito bem sem a parte
superior.
— As coisas não… deveriam… doer… no País das Maravilhas…
— Alice murmurou.
— Alice, você tem que ir para casa agora. Volte para o lugar de
onde vêm as Alices — implorou o Chapeleiro. — Ou vai morrer aqui.
— Não! — Alice lutou para se sentar. — Vocês todos vão morrer
aqui! Será o fim do mundo! Faça um curativo, ponha uma atadura…
Isso não vai me matar… Eu não morro no País das Maravilhas.
Neste momento, qualquer choque que tinha amenizado a maior
parte de sua dor inicial desapareceu. Um estranho esguicho
percorria todo o corpo de Alice, parte náusea, parte calor, parte
outra coisa.
Meia tesoura, ela pensou. Uma luz branca e brilhante de dor,
diferente de tudo que já sentira antes, dividiu o tórax de seu torso,
como se a arma afiada tivesse se recolocado ali.
Ela gritou, incapaz de se conter.
— Alice, vá para casa, isso é uma ordem — disse o Chapeleiro,
fazendo uma continência. — Volte assim que puder. Você não vai
nos ajudar se morrer.
— Pode ser uma boa mártir para a causa… — o Arganaz sugeriu,
sonolento no meio de sua cabeça pelada.
— Nós já temos Mary Ann para isso, seu roedor desalmado —
disse o Chapeleiro sem rodeios. — Alice… nós precisamos de você.
Alice. Somente Alice. Viva. Volte para nós. Em breve…
— Eu não sei como! — Alice disse, sentindo a escuridão se
abater sobre si. Não era agradável como adormecer. Era como se
mil caranguejos delicados caíssem sobre ela lentamente, abrindo
caminho para dentro de seu corpo. Por que a barriga doía se seu
braço quase fora cortado? Espere, era o braço dela?
— Não… — ela disse, agarrando a mão do Chapeleiro.
Ela tentou memorizá-la: os pelinhos, alguns dos quais eram
grisalhos, em torno dos nós dos dedos. Os furinhos dos poros onde
eles entraram na pele. Uma pequena cicatriz. Uma impressão digital
de verdade. Todas esses detalhes, exclusivos do Chapeleiro, e tão
reais quanto, tão reais quanto…
Capítulo 32

ALICE RECOBROU A CONSCIÊNCIA em um beco.


Sentia-se estranhamente atrapalhada e chutava, tentando se
libertar de colchas e amarras que a prendiam… e então percebeu
que eram apenas suas próprias saias, anáguas e várias roupas
íntimas. Estava pensando na outra roupa, na roupa do País das
Maravilhas.
— O Chapeleiro! A mão do Chapeleiro! — Exclamou, tentando
lembrar. Era a mão de um homem mais velho, ainda com um pouco
de volume ao redor dos nós dos dedos, mas diminuindo ao redor
dos ossos. — Não, não! Detalhes! — Mas seu cérebro inteligente
substituiu palavras descritivas por fatos específicos, encobrindo a
aparência que ele realmente tinha pela que ele provavelmente
deveria ter. Exatamente como qualquer cérebro faria ao acordar,
preenchendo os pedaços esquecidos ou não imaginados do sonho.
Chapéu grande, cabelo bagunçado, nariz grande, baixa estatura,
como em uma ilustração infantil em um livro de poemas divertidos…
— O Cortador de Cartas! Estávamos quase no castelo!
Mostramos o ovo aos habitantes de Ornitolândia e a Rainha de
Paus virá! Quase vencemos!
Duas das crianças da Praça pairavam sobre ela, olhando-a com
preocupação. Uma era Zara. Alice não tinha ideia de qual era o
nome do menino.
— Senhora Alice, você está bem? — o menino perguntou solícito.
— Está muito branca.
Tudo estava entrando e saindo de foco.
— Eu preciso voltar — disse Alice, tentando agarrar os
sentimentos que teve apenas alguns momentos antes. Infelizmente,
tudo o que a envolvia era uma dor tremenda e depois fraqueza, com
todas as preocupações do mundo desaparecendo.
O Cortador de Cartas. As pilhas de lixo em chamas. A rainha
louca. O fim do mundo… o desespero…
Agarre-se a isso, Alice!, disse a si mesma.
Ela gritou de um jeito muito des-Alice: era mais um gemido
forçado, que escapou enquanto todo o seu corpo e sua alma
tentavam expulsar o mundo real e as sensações que invadiam sua
mente.
Raspou as unhas ao longo dos braços, deixando arranhões
longos e esbranquiçados com pontinhos de sangue feito pérolas. A
dor ajudaria a se concentrar. A dor ajudaria a se lembrar…
— O que está fazendo? — O menino exclamou. — pare!
Zara era mais prática e simplesmente estendeu as duas
mãozinhas fortes e rechonchudas e a segurou.
— Só estou tentando lembrar — Alice explicou calmamente.
— Então que tal amarrar uma fita em volta do dedo? — Zara
sugeriu com uma ironia despreocupada que parecia juvenil demais
para uma menina de sete anos. Pois é, essa era a mesma idade
que Alice tinha quando retrucava monstros e criaturas daquele outro
mundo.
Só não adultos desse aqui.
Alice lhe deu um sorriso fraco. O gosto era terrível. Estalou a
língua de forma um tanto indelicada, para dissipar o sabor do que
quer que fosse.
— Sua câmera sumiu — informou o menino, apanhando a bolsa
dela e sacudindo sua óbvia leveza. Ele espiou. — Mas as outras
coisas ainda estão aqui dentro.
— Minha câmera?! — Alice gritou em choque. Então: — Não,
espere, não é importante. As outras coisas são mais importantes.
Um mundo inteiro…
— Acho mesmo que deveria ir ao médico — o menino disse,
sério. — Você teve um ataque ou algo do tipo.
— Não, eu estou bem. Talvez eu só tenha desmaiado e alguém
veio, me viu e roubou meus objetos de valor.
Só que a verdade não era bem assim, era? Tinha uma lembrança
de tropeçar, e de um braço, e de não conseguir respirar e de um
agressor…
— Você ainda está com seu colar e anel — a garotinha apontou
prontamente.
— E com a bolsinha de dinheiro — disse o menino, pegando-a e
sacudindo.
— Alguém me assaltou… só para levar minha câmera? Por que
não todo o resto também?
Seu braço coçou por um instante enquanto pensava sobre as
implicações disso. Coçou preguiçosamente e então lembrou por que
o ferimento estava lá.
— Não, não, tudo isso é irrelevante. Tenho outros problemas com
que me preocupar. — Levantou-se, desequilibrada, mas
determinada. — Meus queridos, muito obrigada por me resgatarem.
Se não for um incômodo, posso oferecer uma recompensa para
vocês me acompanharem em segurança até minha casa?
— Sem recompensa — o menino disse simplesmente. A garota
cuspiu de desgosto.
Arrá! Alice pensou. É assim que se faz. Vou me lembrar!
— Posso reembolsá-los pela tarefa de me ajudar a chegar lá,
então, carregando a bolsa para mim? — ela perguntou
educadamente. — E será que conseguiriam se lembrar de todas as
maluquices que eu disser ao longo do caminho, se eu perguntar
sobre elas mais tarde?
— Casa ou vrach? — Zara disse, revirando os olhos.
— Médico — o menino traduziu.
— Casa. Um tostão a mais se não mencionarem o médico de
novo — Alice disse com um sorriso.
E, na verdade, foi bom eles terem ido com ela: caminhar estava
um pouco mais difícil do que deveria ser. A cabeça dela estava
nadando com os resquícios de seu sonho ou pela queda; a
realidade movia-se devagar ao redor, paisagem e objetos apenas
lentamente alcançando o que seu corpo e os olhos lhe diziam o que
estava acontecendo. Meio que o contrário do País das Maravilhas,
onde a paisagem acelerava. Cada vez que havia uma mudança
repentina de altitude, um declive ou uma subida, ela bamboleava e o
mundo rodava. O pior foi um conjunto de quatro degraus
descendentes. Na base deles, tudo ficou vertiginosamente
embaçado e uma dor aguda perfurou seu peito com tanta
intensidade que ela começou a desfalecer.
— Alice, é você? Afastem-se dela agora mesmo!
Alice assustou-se com o grito conforme uma dupla indesejada de
intrusos vinha investigar sua decrepitude.
Era, ela viu o brilho dolorosamente ofuscante que reluzia em meia
dúzia de botõezinhos feito sóis zangados, um policial e…
— Você está bem? Chispem daqui, vermes!
Alice fechou os olhos. Coney. Claro, Coney. Mais uma vez,
Coney! Mesmo quando tentava evitá-lo, ele reaparecia na sua vida.
Como… quase como…
Ela tinha na ponta da língua, mas não conseguia lembrar.
— Estou bem — Alice gemeu de irritação. — Estou bem. Só
acabo de ser roubada…
— Seus ladrõezinhos! Policial, leve esses dois embora de uma
vez! Este é o corpo, a moça, quero dizer, que eu disse ter visto no
beco! Esses dois devem ter se aproveitado para roubar a câmera
enquanto ela estava caída!
— Não, não, não — Alice finalmente conseguiu abrir os olhos o
bastante para encarar o rosto odioso de Coney, pálido e cercado por
um halo de cabelos ridiculamente pálidos e opacos. — Eles me
encontraram. Eles me salvaram. Alguém me atacou e eles vieram
me socorrer…
— Até parece! Você é muito boazinha, Alice. Policial, reviste logo
esses dois para achar a câmera desaparecida! — Coney ordenou.
O policial dirigiu às crianças um olhar desconfiado, mas
condescendente:
— Eles são ratos de sarjeta imundos, ladrões, estrangeiros, com
certeza — disse quase com pesar —, mas não acho que haja
espaço neles mesmos para esconder uma câmera. E por que
ficariam por perto depois do crime?
Alice encarou Coney desafiadoramente.
— Para… despistá-lo…? — ele arriscou, sem jeito.
— Fico feliz que esteja bem — disse Zara, fazendo uma mesura
perfeita, segurando o avental remendado, mas quase todo limpo,
entre dedos delicadamente dispostos. Alice tinha quase certeza de
que apenas ela (e possivelmente o policial) percebeu o brilho
sarcástico nos olhos da menina enquanto ela executava o gesto.
O irmão e a irmã se viraram para ir embora.
— Esperem… — Alice disse, vasculhando a bolsa. O menino
balançou a cabeça rápida, mas quase imperceptivelmente. Seus
olhos dardejaram para os dois homens, faiscando de vergonha e
raiva, Alice entendeu: dar-lhes dinheiro apenas encorajaria Coney a
alegar que eles estavam lucrando da vulnerabilidade dela. O policial
iria questionar mais as crianças, prolongando o encontro, vai saber.
Causaria problemas. As crianças queriam sair de lá o mais rápido
possível, sem mais confusão ou atenção. — Obrigada.
Os irmãos correram embora, felizes por escapar.
— Vou acompanhá-la até sua casa — disse o policial, oferecendo-
-lhe o braço. — E quando tiver descansado, pode prestar uma
queixa completa sobre o roubo.
— Leve-me para a casa de minha tia. Está mais perto.
— Eu cuido dela — disse Coney ao policial com ares de
superioridade masculina. Alice desejou fortemente que pudesse lhe
dar uma lição. Não conseguia se lembrar direito do quê, mas no
País das Maravilhas poderia ter dado uma resposta física e final.
— Só procure passar na estação ou eu pedirei a um dos meus
homens para passar na sua casa — disse o policial, ignorando
Coney e suas caras e bocas. — Foi um ataque estranho e sério.
Você ainda tem suas joias e a bolsa. O desgraçado só queria a
câmera. Quanto mais cedo tivermos todos os detalhes, mais cedo
poderemos apreender esse criminoso e proteger outras mulheres.
Alice sacudiu a cabeça sem emoção. Esses argumentos eram
todos excelentes e o policial só estava fazendo seu trabalho, mas,
além do aborrecimento de ter que comprar uma nova câmera, nada
importava. O policial inclinou o quepe para ela e se afastou.
A jovem suportou a caminhada até a casa da tia o melhor que
pôde, aguentando o aperto cuidadoso de Coney em seu braço e as
constantes observações para se apoiar nele caso necessário. Foi
uma agonia. Felizmente, a casa de Vivian não era muito longe, e o
alívio que Alice sentiu ao ver a excêntrica porta pintada de verde foi
tão maravilhoso e completo quanto limonada em um dia quente de
verão.
— Obrigada — disse educada e sucintamente quando abriu a
porta. — Ficarei bem agora.
— Devo acompanhá-la até lá dentro? Eu estou muito… estou
muito preocupado com sua saúde. Eu não te reconheci quando vi
seu corpo inconsciente no chão. Apenas corri e busquei o policial…
— Deixando toda a bajulação de lado, Coney realmente parecia
preocupado.
— Não, por favor, não entre. — Alice passou pelo umbral e se
virou, mantendo a porta semicerrada entre eles antes de dar sua
palavra final: — Eu nunca disse que a minha câmera tinha sido
roubada.
E bateu a porta na cara dele.

Com a cabeça ainda doendo, Alice adentrou aos tropeços pelo


interior abençoadamente fresco, escuro e, pela primeira vez, sem
incenso. Vivian apareceu coberta de argila e de cenho franzido;
confusa e preocupada.
— Alice! Você está péssima. Está tudo bem?
— Nem um pouco. Acabei de ser atacada e assaltada por um
indivíduo realmente detestável que roubou minha câmera… para
pegar, imagino, alguma imagem que ele pensou ter sido capturada
no filme. Prova de alguma coisa. Mas tudo o que havia nas placas
da câmera era a foto de um passarinho azul inofensivo. O agressor
deixou na bolsa todas as outras placas, porque é um idiota, além de
ladrão. Tenho que revelar todas imediatamente para ver o que ele
estava procurando.
— Alice, que horror! O que aconteceu…
— Mas muito mais importante — Alice interrompeu, erguendo a
mão — há todo um mundo fantástico sob cerco para o qual preciso
voltar com urgência. O bandido que roubou minha câmera é só uma
distração. Estou começando a esquecer o porquê de tudo isso.
A tia a encarou estreitando gradualmente os olhos, como um
lagarto dominado pelo frio.
— Por acaso, você não mexeu nas minhas coisas pessoais… e
pegou alguma coisa do meu armário de jacarandá no estúdio, não
é?
— Não, tia Vivian.
— Ah, bom... Só queria confirmar. Então… este roubo da câmera.
Você não está fisicamente machucada nem parece estar muito
chateada com o crime. Embora eu deva dizer que seu diálogo está
um tanto quanto inconvencional para… a sociedade normal. Só um
conselho de amiga. Talvez que seja melhor consultar um médico
para quaisquer efeitos persistentes do trauma. Quanto a suas outras
preocupações, seu “mundo fantástico”, quero dizer. Entendo que
você está menos chateada com o crime do que com o fato de o
ladrão da câmera ser uma pessoa de Porlock, que interrompeu sua
visita a algum tipo de Xanadu particular?
— Digamos que sim, tia Vivian. Mas e se Xanadu fosse real e
corresse perigo de ser destruída.
— Mas Xanadu foi destruída assim que Coleridge acordou. Ele
nunca mais voltou.
— Mas eu posso. Eu preciso. Eu devo voltar.
Vivian ficou em silêncio por um momento.
— Tudo bem. O que posso fazer por você agora? — ela
finalmente inquiriu, energética e profissional.
— Eu prometi muito a todos, em ambos os mundos — Alice disse,
com um movimento impaciente dos braços. — Lá, eu tenho que
salvar o mundo. Aqui, preciso revelar o filme que sobrou. E ainda
tenho que ir ao jornal com aquela foto da sra. Yao. Além disso, um
pouco de chá me faria bem.
— E sanduíches, sem dúvida — acrescentou Vivian, assentindo
seriamente. — Vou cuidar disso. Vá colocar um dos aventais de
trabalho e eu já volto com um prato. Amo muito meu irmão — ela
acrescentou, aparentemente sem emoção — mas como eu queria
que você fosse minha própria filha.
Alice tinha um sorriso torto no rosto quando Vivian saiu do
cômodo. Também amava a tia, claro. Mas havia algo mais. O que
ela sentia era um afeto só comparável aos sentimentos que nutria
pelas criaturas do País das Maravilhas. Amor, mas também uma
alegria por tais criaturas existirem, para começar.
E certa dose de curiosidade, teve que admitir. Sempre havia
alguma omissão com os habitantes do País das Maravilhas, algum
mistério ou verdade adicional que eles revelariam em seu próprio
tempo. Alice se perguntou, por um instante, qual seria o da sua tia.
Capítulo 33

CLARO QUE TODAS AS placas que ela revelou acabaram exibindo


apenas habitantes do País das Maravilhas — pelo menos para
Alice. E nenhum deles pressagiava nada de bom.
A primeira fotografia era dos srs. Tweedledee e Tweedledum.
Eram, exatamente como Alice esperava, Gilbert e Quagley
Ramsbottom. Eles sorriam, estavam de mãos dadas e usavam
emblemas de Copas.
— Mas é claro — Alice murmurou. — Eles parecem
absolutamente alegres.
A segunda era do Dodô. Com uma ovelha gigante — um carneiro
— que estava chorando.
Alice quase deixou esta cair quando a pegou. O Dodô estava
olhando diretamente para a câmera e tinha as asas abertas em
súplica: volte.
— Vou voltar! Ah, Dodô, estou tentando! — exclamou.
Alice procurou em sua bolsa até encontrar o monóculo que meio
que cooptara da tia. Quem era ele, afinal? Neste mundo? Não
houve muita ajuda do plano de fundo, a maior parte estava coberta
pela ovelha gigante. Parecia um cenário básico do País das
Maravilhas… uma planície gramada, algumas árvores, o que
parecia ser um trem… Ali. Mais perto, quase escondida pela
corpulência do carneiro, havia uma mesa lateral que parecia
colocada lá para os objetos extras dos retratados, para que eles não
precisassem segurá-las. Mas, em vez da peruca do Dodô, ou de um
de seus telescópios, ou de um sino para as ovelhas, havia um par
de luvas de couro com laços especialmente grandes e feios sobre
os pulsos. Elas não eram femininas e delicadas, já que talvez
fossem mais apropriados a uma coleira canina.
Alice teria reconhecido essas luvas em qualquer lugar.
— Mathilda…? — disse maravilhada.
Sentou-se, estupefata.
O Dodô. O doce e leal Dodô. O menos absurdo de toda a hora do
chá. Sempre adequado. Sempre tentando falar de política e de
corridas da convenção. Ele confiou que Alice voltaria… e foi direto
para as mãos do inimigo, sabendo que ela iria resgatá-lo. Ele
acreditava em Alice.
Claro que Willard não era realmente o Chapeleiro Maluco e a sra.
Pogysdunhow era muito, muito mais gentil que a Rainha de Copas
(provavelmente; ela sempre tratou bem Alice e Mathilda, pelo
menos). Headstrewth não era encabulado como uma ovelha,
embora em alguns aspectos fosse grande e inofensivo.
Os duplos do outro mundo possuíam apenas sutis semelhanças.
Mas…
E se, sob todos os passatempos, e sermões irritantes, e
recriminações, Mathilda realmente achasse que estava fazendo o
que era certo? Que estava apenas controlando os loucos? E se a
tentativa de administrar a vida de Alice fosse porque queria que a
irmã fosse feliz, mas exatamente como ela mesma? Não era por
falta de bondade ou amor, mas por falta de imaginação. Ela
literalmente não conhecia nenhuma outra maneira de ser.
Pensamentos para outra hora, Alice disse a si mesma. Era, na
verdade, algo a se considerar, mas não quando havia um mundo
para salvar e um mistério para resolver.
A última fotografia foi um pesadelo que Alice quase derrubou em
repulsa.
Era um trio. A Lagarta, um cachorro terrier escocês e a Lebre de
Março.
Que era um cadáver.
A Lagarta parecia apavorada, como se algo estivesse prestes a
acertá-la no rosto. O cachorro estava gritando, olhando para um
relógio de ouro na ponta de uma corrente feita de besouros. E a
Lebre de Março… estava rígida e branca, com olhos opacos e sem
vida e braços cruzados sobre o peito.
Alice soltou um gemido antes que conseguisse se conter.
Ela sabia que o pobrezinho estava morto. O Chapeleiro tinha lhe
dito. Mas era muito diferente de ver tal prova medonha.
Esta era a fotografia de tia Vivian com os dois advogados. Ivy era
o cachorro terrier, Alexandros era a Lebre de Março.
Alice enxugou as lágrimas que escorriam silenciosamente de seus
olhos, tentando manter isso em mente. A Lebre de Março podia
estar morta ali, mas aqui ele estava vivo e bem. Uma parte dele
permaneceu.
— Eu tenho que voltar — Alice sussurrou. — Devo vingá-lo.
Relutantemente, ela deixou essa foto de lado.
Ainda havia o mistério do que Coney queria de sua câmera. Não
havia nada incriminador em qualquer um dos retratos. Folheou
todas as fotos mais de uma vez, tentando enxergar algo novo.
— Como está tudo, querida? — Vivian perguntou, enfiando a
cabeça no quarto de hóspedes onde Alice estava analisando os
negativos. Ela cumprira sua palavra: entregou um conjunto de
sanduíches em uma bandeja de três andares, que foram totalmente
engolidos pela sobrinha, não sobrou uma migalha, bem como dois
pequenos bules de chá.
— Por favor, me diga o que você vê aqui — pediu Alice, cansada.
Ela ergueu a antiga imagem da Rainha de Paus com sua clava,
agora erguida bem acima de sua cabeça em uma pose de guerreira.
— Ah meu Deus, essa é a sra. Yao e a vitrine quebrada — Vivian
disse, colocando o pincenê. — Ela está segurando o tijolo do crime,
não é? Ah não, é uma pedra. E um bilhete? O que diz ele? É muito
pequeno para esses olhos velhos, e muito invertido.
— Não lembro exatamente. Alguma bobagem sobre “volte para
casa”. Vou levar esta foto para o jornal. Quero que todos saibam
sobre o ataque. Eles já acusaram várias crianças, que eu acho que
nem sabem escrever em inglês, pelo crime, falsamente e sem
provas. Acho que, se eu ampliar a foto o bastante, a caligrafia pode
denunciar a identidade do perpetrador. Ah…
Alice de repente percebeu a verdade.
— Esta é a imagem que o ladrão queria roubar! Ele pensou que
isso poderia incriminá-lo! E é tão imbecil que achou que ainda
estava na minha câmera!
— Brilhante! Você é um verdadeiro Dupin! — Tia Vivian exclamou.
— Mas… quem sabia que você tinha tirado aquela fotografia? Quero
dizer, além de você e da sra. Yao?
— Apenas minha irmã, e Headstrewth, e… — O grande ovelhesco
Headstrewth tinha uma boca grande feito uma ovelha, embora ele
nunca quisesse realmente fazer mal. — A quem mais Headstrewth
contou, o que provavelmente significa todo mundo. Honestamente,
tia Vivian, tenho certeza de que o ladrão é Richard Coney. Ele
apareceu surpreendentemente rápido depois que recobrei a
consciência, com um policial a tiracolo, ainda por cima, e parecia já
saber sobre o roubo.
— Aaaah, adorável — Vivian disse com um sorriso duro e cheio
de dentes. — Coloque essa foto no jornal e todos vão descobrir por
si mesmos. Quer Coney seja ou não condenado pelo crime, eu diria
que seu tempo em Kexford acabou. E talvez o de Ramsbottom
também! Você vai ao jornal agora? Uma caminhada me faria bem. E
a você também, pelo que parece. Está pálida como um cogumelo
depois de passar tanto tempo na câmara escura. Deixe-me pegar
meu chapéu e minha bengala.
Não era possível dizer não para tia Viv; ela era uma força da
natureza quando queria. O que Alice realmente queria era deitar e
dormir por mil horas e, com sorte, despertar de novo no País das
Maravilhas.
Ela, porém, se levantou, organizou seu trabalho e, por fim, reuniu
a energia para encontrar a tia na porta da frente, quando ela foi
repentinamente aberta e o sr. Willard se materializou dentro.
— Consegui! — ele anunciou grandiosamente, os olhos azuis
claros em chamas e um sorriso chocante revelando um conjunto de
dentes quadrados, muito uniformes e amarelos.
— Conseguiu o quê, sr. Willard? — perguntou tia Vivian, entrando
com um chapéu (uma das criações dele; com vários pássaros) e
uma bengala cujo cabo de prata era uma cabeça de lobo.
— Ora, o que você sugeriu: inscrevi meu nome para prefeito de
nossa bela cidade! — Ele fez uma reverência profunda e impecável.
— Ah! Que bom, sr. Willard, muito bom de fato! — Tia Vivian disse
com surpresa. Ela estendeu a mão e apertou a dele vigorosamente.
— Estou muito, muito feliz com esta reviravolta.
— Certamente — disse Willard com um sorriso aristocrático
fingido. — Precisamos planejar, discutir política, definir quais serão
nossos próximos passos. Cartazes, panfletos, anúncios pró-Willard!
— Ah, e broches — tia Vivian falou, sabiamente. — Todo mundo
ama broches.
— Precisamente! — Willard concordou, gargalhando.
— Bem, por adorável coincidência, definitivamente é hora do chá,
então vamos ao Hendrick para um pouco de artemísia e algum
planejamento político! Querida, se importa se a acompanharmos até
o café e você seguir o resto do caminho sozinha?
— Eu vou ficar bem, tia Vivian — Alice respondeu com um sorriso.
— Não tenho mais medo de ladrões de câmeras.
— Vamos, então — disse Willard com uma reverência,
gesticulando para a porta aberta. — Depois de você, senhorita.
Posso contar com seu apoio na eleição?
— Se eu pudesse votar, com certeza teria o meu voto — Alice
falou, um pouco maliciosamente. — Mas pode contar com meu
apoio, contanto que prometa ajudar as crianças da Praça de uma
forma atenciosa e sensata.
— Mas é claro! — Willard disse indignado. — E um pedido seu
deve ir para minha lista de prioridades. Junto com a democratização
das fábricas têxteis locais e a entrega dos meios de produção para
os trabalhadores.
— Ah, sim, se quiser ser eleito, talvez seja melhor baixar um
pouco o tom desse socialismo — disse tia Vivian sem rodeios. —
Podemos discutir isso mais adiante com bebidas.
Os três saíram para a rua, cheios de boa vontade e alguma
hilaridade. Mesmo exausta e abatida por causa da Lebre de Março,
Alice sentiu seu humor um pouco mais leve.
Vou ao jornal com a fotografia, informarei o sr. Katz sobre a prisão
do pobre Joshua e seus amigos, e então poderei finalmente me
concentrar em voltar ao País das Maravilhas, disse a si mesma.
Simples assim!
À medida que se aproximavam do que servia como a rua principal
da pequena cidade, os três viram o que parecia algum tipo de
festividade acontecendo perto do grande chafariz. Uma mesa foi
montada e estava cercada por uma multidão composta de todos os
tipos de pessoas: jovens, velhos, crianças, adultos, operários,
fazendeiros e moradores da cidade. Havia balões de cores vivas,
faixas e bandeirolas amarradas por todo lado.
Pássaros, por algum motivo, Alice de repente pensou que eles se
pareciam.
Ramsbottom estava sentado atrás da mesa. Seu semblante
radiante e jocoso parecia iluminar-se no rosto de cada pessoa e a
mão direita dele movia-se mais rápido do que a de um mágico para
acenar um caloroso olá. Durante essa exibição, ele também
conseguiu dirigir um olhar rápido e odiosamente presunçoso para
Alice e seu grupo. Coney estava bem ao lado dele, distribuindo
broches, e pareceu atordoado e um pouco pálido quando viu Alice.
— Sr. Willard — Ramsbottom chamou de modo alegremente
agressivo. — Ouvi dizer que você declarou sua candidatura contra
mim. Boa sorte.
O sr. Willard começou a revirar os olhos, mas tia Vivian acertou-o
no braço.
— Para você também — o chapeleiro acrescentou rapidamente.
— Eu também sou candidato — anunciou um homem discreto em
uma mesinha solitária só para si. Alice achou que o reconheceu de
alguma parte da cidade, dos correios, talvez.
— Sou Mallory Griffle Frundus. Minha plataforma é baseada
sobretudo na reformulação completa e há muito necessária do
sistema de esgoto metropolitano e na imposição de alguma
regulamentação ao crescimento descontrolado das fábricas ao
longo do rio, tudo isso simultaneamente ao incentivo ao progresso e
à criação de empregos para aqueles agora excluídos da agricultura.
Broche? — Ele estendeu uma roseta azul e vermelha com a frase
frundus – por nós!
Alice sorriu com simpatia:
— Receio estar apoiando o sr. Willard aqui, mas vou usar seu
broche também, se o senhor achar que isso ajuda.
— Ah, qualquer coisa ajuda neste momento — disse o homem
com bom humor. — Também farei uma pequena reunião no café da
manhã de terça-feira, um fórum para as pessoas participarem e
discutirem as questões importantes para elas. Principalmente no
que se refere a melhorias urbanas, claro. Esgotos, escolas e
similares.
— Nós também faremos uma grande manifestação neste dia! —
Ramsbottom anunciou. — Um desfile pelo Orgulho da Inglaterra.
Todos os cidadãos de boas famílias são bem-vindos. E “boas” não
significa prósperas. Homens fortes da terra, como vocês gostam de
dizer, estão convidados, qualquer um está, contanto que tenha o
coração moldado por séculos de amor geracional no calor nutridor
do solo inglês.
Alice suspirou. Entender de verdade Ramsbottom era como
decifrar uma charada. E o que ela desvendou no fim eram mais
vitrines quebradas, ódio e fúria disfarçados de patriotismo. Quantos
daqueles que assinavam suas petições e pegavam seus balões
entendiam e deliberadamente queriam participar disso? Quantos
deles não entendiam direito, mas aprovavam de qualquer maneira?
— Todo mundo adora um comício — Coney acrescentou sem
entusiasmo.
— Acho que não vou conseguir participar — disse Willard. —
Amar o próximo pode assumir muitas formas diferentes, mas esta
não é uma delas.
— Alice, você vem? — Coney perguntou nervosamente.
A garota olhou para ele, mas antes que uma resposta real saísse
de sua boca, o sorriso de Ramsbottom se ampliou ainda mais.
— Lamento que apenas homens possam marchar. Mulheres
podem assistir e depois fazer a limpeza, e tomar um pouco de
ponche, claro, fornecido pela minha campanha. Justo como deve
ser na política inglesa.
Era difícil discernir se ele estava se referindo às mulheres na
política ou a ponche grátis na política, mas o candidato a prefeito
ergueu a voz na última parte e olhou para a multidão balançando os
braços como se dissesse estou certo? A multidão respondeu
imediatamente com vivas; sabe-se lá o que eles estavam
aplaudindo, mas ele os tinha nas palmas das mãos ensebadas.
Alice, Vivian e o chapeleiro saíram da praça melancólicos e
perturbados.
— Isso é ruim — comentou Willard sombriamente. — Não apenas
para minha campanha, mas para Kexford em geral. É como se ele
estivesse direcionando as massas para algum tipo de besta odiosa.
A sra. Yao não será a última vítima dessa xenofobia patrocinada
pelo Estado.
— Eu não discordo — respondeu tia Vivian com preocupação. —
Não sei o que fazer… Mesmo que você não ganhe como prefeito,
tem que haver alguma coisa.
— Titia — Alice falou, devagar, pensando no que Ramsbottom
havia dito, especialmente sobre as mulheres. — Você acha que o
jornal vai sequer me ouvir? Será que vai publicar a foto e a história
se for entregue a eles por uma mulher?
— Alice — tia Vivian disse severamente —, é a sua foto e é a
história da sra. Yao. Você é amiga dela. Você deve defender
mulheres de todos os lugares e lutar para que te ouçam.
— Mas se o objetivo é obter visibilidade e justiça para a sra. Yao,
não é mais importante que a fotografia seja publicada,
independentemente da forma como chegar lá? Não é isso que
realmente importa aqui?
— Ambos são bons argumentos. No fim das contas, no entanto,
só pode e deve fazer o que você acha que é certo — ponderou
Willard gentilmente. — Bem-vinda ao mundo da política, Alice. No
fim das contas, é tudo absurdo e bobagem.
Capítulo 34

“ABSURDO E BOBAGEM.”
Que escolha estranha — e particular — de palavras, Alice pensou
consigo mesma.
Ela refletiu sobre todos os gêmeos dos dois mundos: ela mesma e
Mary Ann, o Dodô e sua irmã, a Lebre de Março e Alexandros…
Havia algo além disso? Será que acontecimentos, geografias, toda a
vida também era refletida? Será que a disputa para prefeito e o
comício de Ramsbottom, de alguma forma, estavam relacionados
com os eventos ou acontecimentos no País das Maravilhas? Será
que o jogo insano e assassino da Rainha de Copas, de alguma
forma, incitava os eventos em Kexford, atribuindo às próximas
eleições emoções e significados que, de outra forma, seriam
ignorados? Se Ramsbottom vencesse, se as crianças na Praça
continuassem a ser assediadas e presas por crimes que nunca
cometeram e a sra. Yao nunca recebesse justiça… seria tudo isso
por causa de seus duplos?
Ou isso era só maluquice da Inglaterra?
Ou havia uma resposta no meio-termo: cada mundo tinha algum
tipo de efeito no outro?
E se a maluquice que estava acontecendo na Inglaterra pudesse
afetar o País das Maravilhas? Alice de repente se perguntou.
E se a Rainha de Copas estivesse decidida a vencer o mais tolo e
definitivo jogo por causa do que estava acontecendo em Kexford?
Além disso, o Chapeleiro sabia coisas deste mundo porque o
Mestre Gato havia lhe contado, provavelmente porque o próprio
Mestre Gato esteve aqui em algum momento. E o Valete disse que
algumas pessoas podiam ir e voltar! Não apenas Alice. Havia algum
tipo de fluidez entre os dois lugares; ideias, e personalidades, e até
pessoas às vezes poderiam atravessar quaisquer muros que
normalmente os mantinha separados.
Então… possivelmente… tudo o que ela fizesse para resolver os
problemas de um mundo ajudaria o outro. Ou o contrário: se ela
falhasse, destruiria ambos.
Soa terrivelmente injusto, ela pensou. Parece que eu recebi uma
missão irremediável ou peças para um jogo sem quaisquer regras e
um número variável de oponentes, e então tudo depende de eu
desvendar o jogo e vencer.
Bem típico do País das Maravilhas.
Conforme caminhava, a rua ficava mais movimentada e
abarrotada de lojas e escritórios no que era considerado o centro de
Kexford. Alice observava todos os homens de negócios e
empregados e pessoas comprando e conversando e acenando olá
uns para os outros e desejou ter alguém com quem ela pudesse
conversar. Sobre qualquer assunto. Alguém ao mesmo tempo
racional e um pouco maluco. E talvez não tão próximo e preocupado
quanto tia Vivian (abençoada seja, no entanto).
Seu subconsciente já sabia em quem ela estava pensando, e
Alice riu um pouco de sua falsa ingenuidade. Parou brevemente,
debatendo os prós e os contras, literalmente, em uma encruzilhada.
Então virou à esquerda, ciente de que sua mente tinha se decidido
há bastante tempo.
Lá estava: alexandros & ivy, advogados de defesa. Letras
douradas finamente pintadas em madeira.
Hesitou por um instante… Alguém estava olhando? Haveria
boatos sobre a jovem e solteira Alice sozinha em um escritório de
advocacia? Este escritório de advocacia em particular?
Ela entrou.
(E o que Mary Ann teria feito? Ficaria ali parada, impotente,
esperando que a Inglaterra a levasse para o próximo lugar que
precisava dela?)
O interior era fresco e escuro, todo revestido de madeira. Tudo
cheirava a tinta, papel, livros mofados e cera fresca. Um secretário,
sentado a uma mesa, levantou-se após sua entrada. De aparência
jovem, ele era magro, talvez precisasse lavar o cabelo, e dirigiu a
Alice um olhar de tal rejeição que ela quis muito puxá-lo pela orelha
e gritar com ele do jeito que sua vizinha às vezes fazia com os
netos.
— Posso ajudar? — ele perguntou, parecendo que não tinha
intenção de fazer tal coisa.
— Estou procurando o sr. Katz — ela disse educadamente. —
Tenho alguns assuntos para tratar com ele.
— Tem horário agendado?
— Não — Alice admitiu. — Mas tenho certeza de que ele vai me
receber.
E ela tinha mesmo. Podia ter um verdadeiro furacão de absurdo
voando por aí, mas ele tinha ficado com ela no parque e a cobrira
com seu paletó. Havia lhe contado uma charada. Ele a receberia,
tão certo quanto ela sorriria após ver as bochechas rosadas dele.
— Verificarei se ele deseja ser incomodado — disse o secretário,
em um tom que fez Alice perceber de súbito que ele decerto subiria
as escadas, fingiria conferir, então voltaria para lhe dizer que
infelizmente o advogado estava ocupado.
— Eu mesma farei isso. Não se preocupe — Alice disse
serenamente, subindo as escadas apoiando uma delicada mão
enluvada no corrimão.
— Não, eu insisto, ele não deve ser incomodado… — O
secretário foi impedi-la, estendendo a mão.
Alice apenas arregalou os olhos e fez uma pausa: só isso. O
sentido ficou claro o bastante. Você ousa colocar a mão em uma
senhorita? E espera manter seu emprego?
Ele não ousaria.
O homem murchou tão visivelmente quanto um botão de
centáurea azul quando o sol é encoberto por nuvens.
Alice deu-lhe um aceno gélido e continuou escada acima.
Qualquer pânico incipiente que teve quanto a parecer uma idiota
uma vez no topo da escada foi rapidamente dissipado: ao contrário
do País das Maravilhas, as portas aqui estavam claramente
identificadas com plaquinhas bem organizadas. Bateu naquela que
dizia sr. a. joseph katz, adv.
Uma voz respondeu lá dentro:
— Droga, Brigsby, eu disse que iria até a sra. Bickler mais tarde
e… — A porta se abriu. — Ah, é você.
Ele ficou perplexo.
Alice se deu conta de que prendia a respiração.
Eles estavam lá no andar de cima sozinhos, Katz de um lado da
porta, ela do outro, e tal situação se deu somente porque ela
decidira ir vê-lo. Este momento só existia porque ela o procurara, e
esse fato pairava no ar muito palpavelmente. Os olhos castanhos
dele pareciam mais amplos e profundos. Alice sentiu as próprias
bochechas começarem a ficar vermelhas como as dele. O momento
se arrastou. Nenhum dos dois disse nada.
— Desvendei sua charada — ela disse por fim. — É perspectiva.
— De fato! — Seus olhos se enrugaram de alívio e alegria. — E
essa resposta foi útil? Para outras situações na sua vida?
— Sim, mas não totalmente útil, nem para todas as ocasiões.
Existem alguns problemas que as charadas não podem resolver,
infelizmente — ela disse com um suspiro. — E eu tenho um baita
problema. Não é uma questão legal, mas um dilema pessoal, se me
permite, e eu adoraria ter a perspectiva de alguém de fora, se você
tiver um momento.
— Para você, eu tenho cada momento, todos eles — Katz disse
com franqueza. — Vou cancelar meus compromissos do dia, da
próxima semana, se você quiser.
Alice sorriu.
— Espero que não demore todo esse tempo — disse ela, dando
um passo para dentro.
— Espero que sim — Katz disse com sentimento. Em seguida,
sorriu. — Isso é encantador.
O escritório era pequeno, bem equipado e cheio de livros. A mesa
era quase toda organizada — mata-borrão arrumado, canetas e
tinteiros caros, mas simples, várias folhas de papel em pilhas bem
organizadas; o único item fora de lugar era o Kexford Weekly em um
monte desarrumado ao centro, como se tivesse sido jogado lá.
— Ah! — Alice disse. — Foi mais ou menos por isso que eu vim
vê-lo.
Katz fez uma careta e se jogou na cadeira com a força e a
magreza de um rapaz que não abandonou exatamente as
acrobacias infantis, mas era contido pelo elegante terno que vestia.
Alice não pôde deixar de notar o quão bonitos eram seus lábios
mesmo quando estavam franzidos de desgosto.
— É sobre o “comício de Ramsbottom”? Haverá casas queimando
até o final disso, esse tolo idiota — ele cuspiu. — É sempre uma boa
ideia unir o proletariado com ódio e ponche grátis.
— Ah, não, embora tia Vivian e o sr. Willard estejam tão
preocupados quanto você. Eu também estou — ela acrescentou
apressadamente. — Só não vejo o que pode ser feito sobre isso. É
um país livre, sr. Katz, e Ramsbottom pode fazer um comício se ele
quiser e tiver todas as licenças.
— É um país livre para você e o sr. Coney — concordou Katz. —
Alguns de nós podem achar desconfortável continuar vivendo em
uma cidade dominada por ele.
Alice interpretou isso não exatamente como um tapa na cara. Ali
estava ela, que aparecera arbitrariamente na porta dele, enquanto
ele arremessava suas diferenças na cara dela, fazendo-a se sentir
mal sobre isso.
— Sim. Suponho que sou livre. Mas em quem você votou na
última eleição? — Alice perguntou incisivamente.
— Ora, em Garretty, é claro. Ele… Ah — Katz olhou para ela em
divertimento irônico. — Entendi o que acabou de fazer. Você não
votou, é claro. Porque é mulher. Boa jogada, Alice, boa jogada. Fui
justamente colocado no meu lugar.
Ela sorriu:
— Creio que talvez você nunca tenha tido um oponente como eu.
De qualquer forma, vim para pedir o conselho de um amigo, não
para discutir. É por isso que estou aqui. — Ela puxou a foto de Yao
com a pedra de sua bolsa e entregou a ele. Katz teve que estreitar
os olhos e segurá-la sob a luminária verde para vê-la claramente.
— Não entendo — Katz admitiu na mesma hora.
— Algum malandro atirou uma pedra na vitrine da sra. Yao com
um bilhete ameaçador, você poderia ler, se a foto fosse um pouco
maior, mas a nota sugeria que ela deixasse a cidade antes que algo
pior acontecesse à sua loja. Ela teve que refazer a vitrine por conta
própria, e a polícia não fez nenhum esforço para tentar pegar o
verdadeiro bandido. Em vez disso, cercaram e prenderam algumas
crianças inocentes da Praça. Eu pensei que publicar esta foto no
jornal talvez desse um gás na polícia, por assim dizer, para
encontrar o verdadeiro bandido, para liberar as crianças… Ou, no
mínimo, para despertar a simpatia local para a situação dela.
— Hmm, não é um plano ruim — disse Katz. — Além disso, seria
uma boa propaganda para a loja de chá, certamente ajudaria nos
negócios. Alice: “Salvadora branca e inglesa entra em ação” de
novo, né?
— Às vezes você é tão desagradável, sr. Katz — Alice respondeu,
estreitando os olhos para ele. — Não é sobre mim. É sobre minha
amiga e as crianças da Praça. Eu estou perfeitamente disposta a
nem mesmo levar crédito pela foto, estou aqui pensando em você
levar a foto para o jornal, já que eles podem nem mesmo aceitar a
foto de uma mulher.
— Bem, aí eu acho que você está errada. Não sobre eu ser
desagradável, sou inteiramente desagradável. Sou advogado.
Sempre somos desagradáveis. Se agradássemos todos o tempo
todo, não haveria nenhum processo judicial. Acho que todo mundo
em Kexford conhece a Alice, a fotógrafa da cidade, e só ajudaria
saber que você esteve envolvida nisso. Acredito… — Ele puxou
uma lupa e segurou-a sobre a foto, franzindo a testa. — Eu ainda
não consigo ler inteiramente o que diz o bilhete, mas aquela
caligrafia parece terrivelmente caprichada e graciosa para algum
brutamontes aleatório sem escolaridade, muito menos um imigrante
da Rússia… Basta olhar para o floreado no final.
— Sim… Tenho quase certeza de que já sei quem é o canalha. A
polícia, com algum esforço de verdade, também poderia descobrir
quem escreveu o bilhete e pagou outra pessoa para fazer o trabalho
sujo. Provavelmente a mesma pessoa que roubou minha câmera na
tentativa de recuperar o filme.
— Sua câmera? — Katz perguntou, desconcertado. — Foi
roubada?
— Sim, me assaltaram mesmo. Vou lidar com tudo isso em breve.
— Alguém te atacou? — Katz perguntou, levantando-se. — E
roubou sua câmera? Você parece muito tranquila sobre o crime que
foi perpetrado contra você!
— Há tanto acontecendo agora, sr. Katz — Alice disse cansada.
— Por mais estranho que possa parecer, essa não é minha maior
preocupação. Minha cabeça está bem. A câmera pode ser
substituída. O criminoso será pego. Eu tenho outras questões para
voltar minha atenção. Tenho que voltar para um mundo… ah, um
mundo de outras preocupações. Outras coisas precisam de mais
salvação do que eu, sr. Katz.
— Tipo o quê? Uma jovem como você teria que se preocupar
com… com que outras coisas?
— Queria poder te contar. Compartilhar alguns desses problemas
acalmaria bastante a minha mente — admitiu Alice com um sorriso
fraco. — Mas depois você nunca mais falaria comigo… Você me
mandaria direto para o hospício.
— Ah, duvido disso — Katz disse, arqueando uma sobrancelha.
— Quero dizer, não precisamos de um lugar especial para isso. Aqui
tudo é maluco.
Alice o encarou abismada. Mas Katz estava apenas dando seu
sorriso sincero de costume… com talvez um pouco de brilho extra.
Teve o desejo de fazer uma mesura, de ganhar algum tempo
enquanto pensava em algo para dizer. O momento acabou e era
intenso e claro feito um raio de sol ao fim da tarde atravessando
uma janela empoeirada.
— Por que seu nome não está na placa do lado de fora? — por
fim, ela se viu dizendo, um tanto estupidamente.
— Ah — Katz revirou os olhos. — Ainda não sou sócio, faltam
mais seis meses e outro contato com o procurador certo, eu acho.
Falta pouco, nem você, nem minha mãe devem se preocupar com
isso. Olhe, eu tenho toda a parafernália necessária! — Ele foi até
um pequeno guarda-roupa e, com mais energia do que o
estritamente necessário, puxou com um gesto teatral uma toga e
uma peruca. — Até tenho um espelho para ter certeza de que
nenhum fio está fora do lugar.
Ele abriu toda a porta do guarda-roupa e revelou um espelho
simples, mas comprido, que refletia uma versão ligeiramente torta
do belo rapaz: a papada estava puxada para fora em comprimentos
horizontais ridículos e as pontas dos pés se transformaram em
pontas finíssimas. Ele sorriu e colocou a peruca de modo frouxo e
torto, e o resultado fez Alice rir, em voz alta, pela primeira vez em
dias no mundo real.
— Tudo bem, é um tanto carnavalesca — admitiu ele, tirando a
peruca depois de fazer uma última careta. — Mas assim que eu for
sócio pleno, vou comprar uma bem elegante. E uma casa —
acrescentou rapidamente.
Katz parecia indeciso, e esperançoso, e nervoso e…
E Alice se deu conta de que estava gostando muito de tudo isso.
— Uma casa. Muito bem, Sr. Katz. Não tinha percebido que elas
eram um requisito para advogados, ou procuradores, ou mesmo
escriturários. Além do uniforme, quero dizer.
Katz corou, mas também sorriu de bom humor.
— Deixe que eu cuido da sua fotografia e da sra. Yao e das
crianças — ele ofereceu. — O que é um pouco mais de pro bono
entre amigos? Qualquer auxílio que acalme sua mente e alivie seus
problemas seria um prazer para mim. E isso permitiria que você se
concentrasse no seu… outro… problema… seja qual for. Salvar o
mundo.
— Obrigada, sr. Katz — agradeceu Alice, levantando-se e
preparando-se para se despedir. Ficou aliviada e sentiu que poderia
mesmo confiar que ele faria a coisa certa. Mas também estava triste
pela conversa estar chegando ao fim. Ela estendeu a mão. — Mas
eu não vou, ah, salvar o mundo. Eu só preciso… preciso encontrar
um jeito de…
— Voltar para aquele mundo? — ele perguntou suavemente.
— Não tenho ideia do que está falando, sr. Katz.
Mas ele estava apontando para o espelho.
Alice arquejou.
Curiosamente, no lugar do reflexo do escritório mal iluminado de
Katz que deveria estar no espelho, havia uma cena de um campo
sombrio, mas iluminado pelo sol: um tabuleiro de xadrez com
fogueiras queimando e fumaça…
Alice olhou para o advogado e se viu procurando uma câmera que
já não tinha mais.
Katz balançou a cabeça:
— Você sabe quem eu sou naquele outro mundo, Alice. Não
precisa de uma fotografia.
— Kat-z — Alice balbuciou. — Mestre Gato!
Ele fez uma reverência com a mesma facilidade que ela poderia
imaginá-lo desaparecendo no meio do movimento ou virando em
uma cambalhota ou qualquer outro gesto bizarro, mas gracioso.
Ele não fez nada disso, no entanto.
— Mas como? E como você… sabe disso tudo?
Katz deu de ombros:
— Como você viaja de um lado para o outro? Minha outra metade
também consegue e vem me visitar. Ele me traz charadas.
— E você dá charadas em troca — disse Alice, lentamente, de
repente vendo todas as suas interações recentes com o Mestre
Gato sob uma nova ótica. Ambos estavam tentando ajudá-la,
durante todo esse tempo.
De maneiras irritantemente misteriosas.
— Volte ao País das Maravilhas — disse Katz, fitando-a nos
olhos. — Salve o mundo deles. Mas… volte para o meu.
— Isso é bastante atrevido de sua parte, sr. Gato.
Ele sorriu. Mas não era exatamente como o sorriso do Mestre
Gato. Havia ali calor e até mesmo amor.
— Não sou eu a moça solteira que fica batendo nas portas de
advogados desconhecidos — ele ressaltou.
— Hum — Alice disse, fungando. — Excelente argumento.
Ele ofereceu a mão para ela. Alice pegou as saias com a outra e
começou a atravessar o espelho, que era macio e se dissipava,
como ela, de alguma forma, imaginava.
Parou antes de atravessar de vez e se virou para olhar para ele.
— Bem, até depois, sr. Katz?
— Até depois — Ele se inclinou para frente e tirou uma mecha de
cabelo do rosto dela. — Boa sorte, Alice. Lembre, o tempo está
sempre do seu lado. Ou no seu pulso, na verdade, se estiver
usando um relógio.
E então ela caiu de costas no País das Maravilhas.
PARA SEMPRE

Alice
Capítulo 35

ELA MEIO QUE MERGULHOU, caiu e flutuou, tudo ao mesmo


tempo.
Estou me debatendo, Alice decidiu.
Rápido e violento, mas também pacífico e silencioso. De um lado
para outro, de pernas para o ar, girando devagar como se fosse uma
folha caindo vagarosamente de um galho para o chão. Suas saias
se abaularam ao seu redor e ela ficou um pouco chateada ao
reparar que eram as roupas da Inglaterra, não o conjunto elegante
que a Rainha de Paus lhe dera. Ainda assim, as camadas de tecido
se abriram e esvoaçaram como uma linda flor enquanto ela
continuava sua jornada para baixo.
Agitou os braços e tentou girar, endireitando-se para cima. Chutou
as pernas para se impulsionar mais rápido no ar, mas sem sucesso.
A gravidade conduziu a garota no seu próprio tempo agradável, feito
uma semente de cardo, através de nuvens baixas e fofas e bolsas
de ar de diferentes temperaturas, flutuando através de bandos de
pássaros voando rápido.
— Saia da pista da direita, que é só para quem voa rápido e
ligeiro! — um ganso zangado grasnou para ela.
Bem longe lá embaixo, como uma daquelas pinturas divertidas
que exigem uma lupa para que você possa ver bem todos os
detalhes, havia um vasto jogo de tabuleiro — um campo — no qual
dois oponentes — exércitos — haviam preparado seus lados. Na
verdade, desenhado, embora não tão parecido com uma figura de
um baralho de cartas, claro. Esses soldados estavam bem
organizados na base de ambos os lados, mas havia dezenas e mais
dezenas de outras cartas vermelhas e pretas patrulhando as
extremidades, organizando o apoio, tentando espiar e checando as
armas.
Alice se perguntou onde estavam as Espadas e os Ouros.
— Bem, aventura para outra hora, imagino.
No lado das cartas vermelhas, protegidas por elas, estavam as
pilhas de lixo que queimavam devagar e uma montanha realmente
gigante de brinquedos.
Todos os brinquedos do mundo, era o que parecia.
Havia todo tipo de boneca: aquelas rústicas sem rostos e as
angelicais de porcelana francesa, cujos olhos se fechavam quando
elas eram colocadas para dormir. Havia carrinhos de mão e
trenzinhos elétricos e velocípedes minúsculos para bebês e
carrinhos de passeio e bambolês e aqueles patinhos de madeira
com uma corda que você puxa para eles abrirem e fecharem o bico
e balançarem a cabeça. Havia jogos de gramado, como croquet e
dardos, e vários cavalinhos de madeira muito bonitos e videogames
e bolinhas de gude e caixinhas de música e joões-bobos. E também
havia itens que Alice não conseguia classificar, pois eram
brinquedos exclusivos do País das Maravilhas e libertos das
restrições da imaginação inglesa.
E por cima disso, sorrindo horrivelmente, balançando as pernas e
brandindo com deleite uma espada cruel, preta e retorcida, acima da
cabeça, estava a Rainha de Copas.
Na mesma hora, Alice ficou com tanta raiva que o que ela mais
queria era estender a mão e sacudir a imbecil rainha das cartas até
a cabeça dela estourar como uma flor.
— Você… sua assassina… imbecil… mimada! — Alice gritou,
pensando nas piores palavras de que era capaz. — Eu vou acabar
com você!
Não tinha outros planos além de despencar sobre a criaturinha
malvada, esmagando-a; até mesmo a atual Alice tinha seus
momentos de agir sem pensar.
Razão pela qual era bom ela ter amigos.
Sentindo algo estranho, a Rainha de Copas parou de rir. Olhou
para cima com seus olhos grandes e esbugalhados que se
arregalaram ainda mais quando viu o que estava caindo do céu
sobre ela. Escancarou a boca, mais e mais, como se ela não
conseguisse decidir se iria gritar ou engolir o perigo que se
aproximava.
Alice sentiu a própria boca se contrair em um sorriso cáustico.
Todos os seus dentes estavam expostos.
Não foi realmente no último momento; ela ainda tinha vários
metros para cair, de fato, mas perto do fim algo como um vento
violento zuniu e agarrou Alice, tirando-a do curso e levando-a para o
lado.
(É claro que Alice, muito frustrada e zangada, não conseguiu ver
a reação da Rainha de Copas; basta dizer que a Rainha pareceu
perplexa só por um momento, depois retomou a calma.
— Devia estar prestes a chover canivete e então veio um
mecânico — a Rainha decidiu, bastante sensatamente para o País
das Maravilhas.)
— Não! — Alice gritou. — Me solte!
— Matar a si mesma e a Rainha não salvará o mundo. Nem
mesmo matar a Rainha e se ferir levemente salvaria o mundo —
veio a voz da coisa que a tinha agarrado. Alice notou que estava
nas garras de quatro patas fortes, duas de leão e duas de águia.
Assim que notou isso, eles mudaram de direção rapidamente e ela
teve que se concentrar em não perder os muitos sanduíches que
tinha comido na Inglaterra.
Assim que seu estômago se endireitou, eles terminaram: o vento
parou e ela foi solta. Alice caiu despretensiosamente no chão, e o
Grifo apenas ficou de pé por um instante, alisando um pelo fora do
lugar no pescoço, sem dizer uma palavra: ele era meio leão, afinal.
Ela se levantou cambaleante. Estavam em um pequeno bosque
que se projetava para fora do campo de batalha, uma península
pequena e estranha de árvores e matagais que pareciam protegidos
e seguros. Uma pequena variedade de criaturas do País das
Maravilhas também estava lá (se escondendo), incluindo o
Chapeleiro, o Arganaz, o Dodô e Abílio.
— Chapeleiro! — Alice gritou, correu e o abraçou. — Dodô! —
acrescentou feliz. — Arganaz, Abílio — ela disse, pegando
cuidadosamente suas patinhas e sacudindo delicadamente, mas da
forma apropriada. — E Grifo. Desculpe por resistir, mas…
— Sem problemas. Meus resgates são sempre uma afronta. É só
o jeito da família.
— Estou tão feliz que todos vocês estejam a salvo — disse Alice.
— Não somos todos nós — disse o Chapeleiro. — Mas estamos
contentes que você não sangrou até a morte ou o que quer você
faça naquele outro mundo.
— Vejo que o plano funcionou. A Rainha de Paus está aqui para
salvar o dia! — Alice exclamou, admirando os dois exércitos à
distância. Sua amiga da realeza montava uma criatura gigante e
felpuda que Alice decidiu chamar de baquecorcunda para referência
futura. Estava basicamente calmo, mas ocasionalmente batia no
chão com os peludos cascos dianteiros. A Rainha usava um elmo
preto com um conjunto do símbolo de paus, pretos e brilhantes, na
parte de cima e uma longa crina de cavalo preta na parte de trás. A
coruja de pescoço de acordeão mais velha estava sentada no
ombro dela, usando penas pretas para a ocasião; seu filho, ou o
gêmeo minúsculo, estava empoleirado bem a seu lado. O exército
de Paus estava distribuído em ambos os lados da Rainha até onde
a vista alcançava, alguns montados em porcos pretos.
Alice achou interessante que a Rainha estivesse junto com os
combatentes, em vez de permanecer acima do exército como a
Rainha de Copas.
Do outro lado, Tweedledum e Tweedledee giravam e giravam ao
redor da base da pilha de brinquedos, em direções opostas,
cantando. Eles colidiam um com o outro, claro, caindo de costas
com as pernas balançando no ar. Em seguida, saltaram de pé, com
muito mais habilidade do que parecia provável, apertavam-se as
mãos, faziam uma reverência, davam os braços e rodavam em torno
um do outro. Seus broches de coração de cor rubi brilhavam à
pouca luz que havia.
Alice não conseguia decidir se as palhaçadas dos dois eram
divertidas ou arrepiantes.
— Renda-se agora! — a Rainha de Paus ordenou, levantando sua
clava. — Você não pode esperar vencer este jogo de Batalha.
— Como assim? Vencer? E vencer apenas a Batalha? Eu
pretendo vencer todos os jogos! O jogo final! Eu terei mais
brinquedos! — a Rainha de Copas gritou de volta, gargalhando. Ela
quase se cortou na própria lâmina preta e sinuosa com suas
palhaçadas dramáticas.
— Ela pode vencer, não pode? A Rainha de Paus, quero dizer? —
Alice perguntou um pouco nervosa. — Ali tem um montão de cartas.
Mais do que suficiente para um jogo de Batalha.
— Diga-nos você — disse o Dodô, sem ser indelicado. — Foi
você quem organizou tudo isso.
— Eu? Sim, fui eu, mas eu não tinha certeza de como exatamente
acabaria… E o que mais havia para fazer? Ninguém me disse isso
até agora — Alice falou um pouco irritada. — Foi a única solução
que bolei que poderia pôr em prática.
— Não envolve você em nada — disse o Chapeleiro
enigmaticamente. Ou talvez não tão enigmaticamente, considerando
a sobrancelha que ele ergueu para ela feito uma pistola de duelo.
— Por que está aqui? — a Rainha de Copas gritou para a outra
rainha. — Só para testemunhar a excelente vitória desta realeza no
jogo final?
— Estamos aqui para libertar seu povo e tomar como recompensa
quaisquer bens e tesouros mundanos que você tenha — gritou a
Rainha de Paus (um pouco sincera demais, na opinião de Alice). —
Você traiu toda a nobre responsabilidade de ser uma rainha. Você
assusta, tortura, assassina, apreende, aprisiona e rouba seus
súditos, a torto e a direito, sem mesmo um mandado ou um anúncio
no jornal sobre isso. Você é, em uma palavra, incapaz de ser rainha.
Renuncie de boa vontade e não vamos executá-la em excesso.
Com isso, a Rainha de Copas jogou a cabeça para trás e deu
risada:
— Renunciar? Quando estou prestes a vencer? Faremos uma
contagem final e em seguida o jogo acaba… Eu venço para sempre!
Coelho! Coelho! Onde está a lista? Quantos brinquedos eu tenho
agora? Coelho…? — A Rainha de Copas olhou em volta, a princípio
aborrecida e depois completamente perplexa. — Valete! Onde está
aquele maldito coelho? Ele deveria estar fazendo a contagem para
mim!
O Valete, Alice viu, estava na base da montanha de brinquedos,
junto de vários dos conselheiros mais próximos da Rainha (um era o
Valete da Contabilidade — claro que ele seria responsável pelas
listas de brinquedos). Nenhum era o Coelho, no entanto, e todos
estavam balançando a cabeça, erguendo os ombros e negando e
parecendo, em geral, muito preocupados e agitados.
— Devemos executar o Coelho duas vezes — a Rainha de Paus
anunciou. — Por ser um traidor do próprio povo e por cumprir suas
ordens horrendas.
Mas ninguém estava prestando atenção nela.
O Valete colocou um pé relutante na base da pilha de brinquedos,
em seguida, desistiu de qualquer pretensão de tentar escalar a
estrutura que estava caindo aos pedaços.
— Ninguém sabe onde ele está — admitiu aos berros.
— O quê? — a Rainha de Copas gritou, colocando a mão em
torno do ouvido.
— Ele sumiu! — o Valete gritou de volta.
Em seguida, algo pequeno feito um rato-do-mato, mas com um
focinho mais longo, olhos vermelhos e pés palmados onde as
orelhas normalmente deveriam estar, arrastou-se até o Valete e
sussurrou algo em seu ouvido.
— Parece que ele foi para o Grande Relógio… O quê? — o Valete
quis saber, surpreso, interrompendo-se. Ele fez uma pergunta,
rápida e em voz baixa. A coisa assentiu. — Tudo bem. Parece que
ele partiu para a Planície do Tempo para adiantar o relógio.
— Mas isso é ridículo! — a Rainha disse do jeito mais ponderado
possível para ela. — Não fizemos uma contagem final. E ainda não
sei se tenho brinquedos suficientes.
— Eles estão prestes a serem meus de qualquer maneira — a
Rainha de Paus disse prestativamente.
— E quanto ao Dono dos Ingressos? — a coruja da Rainha de
Copas exclamou. — Você conferiu os dele? Ele coleciona
brinquedos desde o início dos últimos tempos. Ele com certeza tinha
mais joões-bobos do que qualquer outra pessoa, inúmeros deles.
— Sim, não faz sentido acabar com o mundo antes de termos
certeza — a Rainha de Copas concordou. — Pode nunca fazer
sentido. Aquele coelho é um traidor! Ele vai estragar tudo! Cortem-
lhe a cabeça!
— Ataque-surpresa! — a Rainha de Paus gritou de repente.
Uma carta preta correu para a frente e se jogou no meio do
campo de batalha, diretamente entre os dois exércitos. Ele se virou.
A carta era um nove.
Todos os espectadores… de onde vieram? De repente, eles
estavam lá nas arquibancadas, exclamando de surpresa. A multidão
era uma amostra representativa perfeita do País das Maravilhas:
criaturas do Improvável e do Reino de Paus tinham olhos vivos e
ansiosos, estavam bem-vestidos e passavam seus pacotinhos de
lanches uns para os outros. Aqueles do Reino de Copas estavam
cansados, ensanguentados, tristes, feridos, com ataduras e tipoias e
tapa-olhos. Mas acompanhavam o campo de batalha com
esperança.
— Apostas, apostas sobre a guerra, o fim do mundo, o número de
brinquedos — um amistoso porco de boina gritava, subindo e
descendo os corredores, agitando notas de libra no ar.
— Vou jogar sete contra um contra a Rainha de Paus — um pato
declarou, entregando o que parecia ser uma bolsinha de botões.
— Limonada, ponche, jogos e confeitos. Biscoitos e pãoboletas —
gritou uma mulher com uma bandeja de guloseimas.
— Todos nós vamos chegar ao fim do mundo em alguns instantes
— o Grifo a lembrou. — Ninguém conseguiria terminar um saco de
confeitos a tempo.
A mulher não parecia preocupada.
— Isso é terrível! — Alice exclamou. — Não entendo! Eu tinha
resolvido tudo! Ah, por que o Coelho Branco está indo à frente para
tentar acabar com o mundo se a Rainha de Copas não está pronta?
— De todas as questões que dizem respeito a esta situação, essa
é realmente a mais oportuna? — perguntou o Chapeleiro.
— Mas os dois exércitos… eles não vão determinar o vencedor?
E o Coelho? O que devemos fazer… — Alice olhou em volta para
seus rostos expectantes, como se estivesse prestes a tirar uma
Lebre de Março da cartola. — Não, o que eu devo fazer — ela disse
lentamente. — Eu sou a única que pode nos tirar disso. Isso é o que
vocês têm dito durante todo esse tempo. Eu simplesmente não
acreditava até agora. Que eu tivesse qualquer coisa a oferecer para
o País das Maravilhas, em comparação com vocês, nativos.
— Eu disse que ela não era uma menina idiota — disse o Dodô
suavemente, mexendo o chá. — Ela só demora um pouco para
chegar à resposta certa. Ela é lenta, só isso. Mas acho que todos na
Inglaterra também são. Não sejam duros com ela.
— Onde fica a Planície do Tempo? — Alice perguntou.
— Ah, é uma viagem e tanto — disse o Grifo, carrancudo. —
Primeiro você tem que passar pelo Labirinto de Dióspiros
Movediços. Então deve atravessar o Mar Afundante. Se sobreviver a
isso, haverá o reino de…
Enquanto ele falava, o Arganaz rolou do chapéu do Chapeleiro
com um grande biscoito glaceado, mirando para o Dodô para molhá-
-lo no chá.
— Sim, sim, não — disse Alice, tirando o biscoito das mãos do
pobre ratinho. Ela o jogou na própria boca. — Desculpe. Apreendido
para medidas de emergência.
Então ela juntou todos os dedos como se estivesse segurando
uma bola muito pequena e pegajosa… e os separou. Dentro do
espaço que ela criou, havia a cena de uma padraria serena, embora
vazia e sem fim. Bem no meio dela havia uma torre que lembrava
muito o Big Ben, se o Big Ben tivesse treze em vez de doze
números.
— Desejem-me sorte — disse Alice, avançando.
— Estamos contando com você — disse o Dodô, erguendo sua
xícara de chá.
— É um coelho — disse Alice, consciente da estupidez do que
dizia. — Quão difícil pode ser?
Capítulo 36

A PLANÍCIE DO TEMPO tinha um cheiro engraçado.


— É assim — disse Alice — que alguém conclui que não é um
sonho, mas sim a realidade: na maioria das vezes, não é possível
lembrar os cheiros em sonhos.
No ar havia… um certo cheiro de queimado? Não havia nada
precisamente que ela pudesse ver, mas algo definitivamente
lembrava o cheiro de céu. Faíscas. Limpo, como antes de uma
tempestade ou depois de um raio particularmente próximo. O oposto
das pilhas de lixo fumegantes no Reino de Copas. Sentiu os pelos
dos braços se arrepiarem e o coração disparar. Algo emocionante
estava prestes a acontecer.
E, ainda assim, não parecia um lugar onde qualquer coisa
emocionante pudesse acontecer; parecia uma savana africana ou
um campo alpino plano que se estendia infinitamente. A grama era
baixa e não tinha um verde vivo ou um verde-esmeralda como um
campo de verdade, mas sim toques de palha e sálvia. As flores
eram delicadas e minúsculas. As sombras eram estranhas porque o
Sol e todas as Luas estavam um ao lado do outro no céu em uma
espécie de impasse. O Sol tinha fogo, naturalmente, mas havia pelo
menos oito Luas em suas diferentes fases e algumas das curvas
das luas crescentes pareciam bastante afiadas, de fato.
A torre do relógio ficava no meio do campo ou, na verdade,
poderia estar em qualquer canto, na parte inferior, ou perto do topo,
porque o campo se espalhava infinitamente, então quem poderia
dizer onde estava o meio, de fato? Se os relógios funcionassem
como neste mundo, parecia que faltava cerca de uma hora e meia
até treze horas. Embora, através do portal, o Grande Relógio
parecesse reinar austero e severo no espaço vazio, de perto Alice
viu que tinha bochechas rosadas e um sorriso atrevido e olhos que
se moviam para a esquerda e para a direita com os segundos.
Surpreendentemente amigável para algo que poderia causar o fim
do mundo.
À sua direita, estava o Coelho Branco.
Os dois se olharam por um longo momento. Ele usava seu
pequeno colete. Segurava o relógio de bolso (com a correntinha em
formato de coração), mas o mostrador parecia rachado. A
expressão do Coelho estava calma e estranha e seus olhos
vermelhos encararam os dela sem medo, mas não com a
inexpressividade normalmente associada a lagomorfos.
Era uma pausa antes da tempestade, a respiração antes de uma
bronca, um último momento de paz antes de a gritaria começar.
Em seguida, ele colocou o relógio no bolso e… correu em
disparada.
De quatro, como um coelho.
— Não! — Alice gritou e correu atrás dele.

Havia muitas desvantagens para a garota.


Para começo de conversa, ela não foi feita para correr do mesmo
jeito que um coelho. A pobrezinha tinha somente duas pernas. Além
disso, o vestido, espartilho, crinolina e anáguas eram ridiculamente
limitadores. (Um riiiiiiip estrondoso e satisfatório pôde ser ouvido
quando ela ampliou um pouco mais a passada, acelerando o ritmo
das pernas abaixo de si.) Seus sapatos eram estúpidos. E não
estava acostumada a fazer exercícios.
Ela tinha o destino de um mundo e o pânico dentro de si, mas o
que quer que motivasse o Coelho o impulsionava impiedosa e
loucamente.
Alice era maior do que o Coelho, o que era uma pequena
vantagem; seus passos tinham três ou quatro vezes o comprimento
do corpo dele. A certa altura, sentiu que poderia, se soubesse como
fazer isso, se jogar por cima dele.
Mas coelhos são feitos para fugir de carnívoros; o jeito que eles
correm é complicado e astuto. Ele mudava de direção
repentinamente, ziguezagueando a cada salto, gerando tanta
confusão e frustração quanto qualquer coelho que uma criança
persegue ao cair da noite. É como se eles conseguissem prever os
caminhos lineares e enfadonhos dos pequeninos que os
perseguem.
O Coelho dançou em torno de uma pequena rocha; Alice saltou
por cima dela.
O Coelho cruzou um córrego (não exatamente um riacho) em um
único salto, mas a bota de couro de Alice afundou na lama, ficando
presa ali por segundos preciosos.
O Coelho, de repente, virou à direita, uma virada perfeita de
noventa graus, e Alice tropeçou nele tentando parar e mudar a
própria direção.
Ela não conseguia ouvir nada além das patas traseiras do Coelho
batendo no chão feito um tambor e a própria respiração em seus
ouvidos, muito alta e insuficiente.
O Coelho deu um salto enorme e pousou no primeiro degrau da
torre do relógio. Sem nem mesmo uma pausa, ele saltou para cima
e para cima e para cima, vencendo vários degraus de uma vez, sem
nunca retomar a postura ereta e humana.
Alice praticamente caiu no primeiro degrau, tropeçando para a
frente e batendo as mãos com força no quinto e no sexto degraus.
Ela sangrou, mas continuou o movimento para frente e para cima,
agora com todos os membros cambaleando fora de sincronia.
Tinha que continuar. O mundo dependia dela.
Girando e girando, seguiu o Coelho pelo lado de fora da torre.
Procurou biscoitos em seus bolsos. Tentou criar uma janela ou
uma porta enquanto tentava não tropeçar.
Antes do esperado — ou tarde demais —, ela estava na passarela
que levava aos ponteiros gigantes do mostrador do relógio rosado e
sorridente.
O Coelho tinha o ponteiro das horas nas patas.
— não! — Alice gritou.
O Coelho balançou com força e empurrou para o treze.
— Tinha que ser assim — disse o Coelho.
O chão (o mundo inteiro) começou a tremer. Alice levantou os
braços para tentar se equilibrar na passarela estreita.
— não! Tem que haver outra maneira. Sempre há outra maneira
no País das Maravilhas! — ela gritou em desespero. Agarrou o
ponteiro das horas para puxá-lo de volta, mas não se moveu. O
Coelho nem tentou impedi-la.
Enquanto Alice lutava e gemia, seu vestido se esticava e rasgava
mais, agora nas costuras dos braços. O pano se encolhia nos
bíceps à medida que rasgava, expondo seus pulsos e antebraços.
E também o relógio que ganhara da Rainha de Paus.
— Meu relógio… — ela murmurou.
O que alguém disse mesmo?
O tempo está sempre do seu lado, Alice. Ou no seu pulso, se
estiver usando um relógio.
O Coelho a fitava com curiosidade e pesar. A torre começou a
tremer tanto que ela tropeçou, quase caindo da plataforma.
Estranhas rachaduras de raios pretos e roxos cortavam o céu.
Alice agarrou o botão do relógio com a mão direita e puxou.
Tudo parou.
Tudo…
… estava…
… em silêncio.
Capítulo 37

ALICE CAIU PARA FRENTE com o embalo, seu corpo já


acostumado aos movimentos do mundo em desintegração. Uma
horrível faixa preta de um não raio congelou no céu; a meia-lua
crescente foi flagrada com uma expressão de surpresa e horror. Os
olhos do coelho estavam vidrados e arregalados como os de um
bicho empalhado.
Alice soluçou, recuperando o fôlego. O som ecoando
estranhamente através da pradaria.
Tudo estava imóvel, exceto ela.
Alice, todavia, não parou para perguntar e agora? Talvez a
pequena Alice teria feito isso.
Com muito cuidado, abriu o relógio, que também tinha treze
números, cada um em uma fonte e um estilo diferente, e tentou
empurrar os ponteiros para trás.
Como o da própria torre, o ponteiro das horas não se moveu.
Nem o ponteiro dos minutos.
Hesitante, prendendo a respiração, Alice tentou o ponteiro dos
segundos.
Sucesso!
Soluçou de novo, de alívio.
Girou o ponteiro para trás… uma vez… duas vezes…
… e foi puxada para cima pelo ar, como se a mão de Deus
estivesse brincando de boneca com ela. Seu cabelo se ondulou do
jeito errado e, apesar de seu corpo repetir os movimentos que a
levaram para onde ela estava agora, sua mente não voltou de trás
para frente. Ela ainda pensava para a frente e conseguia examinar o
estranho percurso que ela e o Coelho haviam feito no campo.
De repente, ela parou com um solavanco, metade para dentro,
metade para fora da janela que havia criado para chegar à Planície
do Tempo.
Dois minutos e quatorze segundos.
Era o máximo que podia voltar.
Talvez a janela fosse o ponto final; talvez o tempo não pudesse
viajar através da janela da maneira que fazia no espaço local. Alice
estava congelada no início, pouco antes de o Coelho aparecer ao
lado dela. Podia vê-lo pulando em direção à torre, mas apenas
começando a virar na direção onde ela tinha surgido do nada.
— Isso é fácil de consertar — ela disse. Mas suas palavras
soaram estranhas e sem vida, como se também não pudessem
viajar pelo ar do tempo interrompido.
Pôs-se em direção ao Coelho, tirando o cinto. Tudo que tinha de
fazer era amarrá-lo enquanto ele estava congelado e fim de jogo.
— Não — disse a si mesma, apesar do som horrível de sua voz.
— Chega de metáforas de jogo. Terminamos com isso.
Porém, conforme Alice se aproximava do Coelho Branco, a
atmosfera parecia mais densa, como se ela estivesse empurrando
um vento forte. Fechou os olhos e cravou os pés, mas a força ficou
mais forte em resposta. Logo ficou tão difícil quanto andar no meio
da água ou lama. Um som pujante e oco emanava toda vez que ela
forçava um pé ou uma mão para frente, mesmo que um centímetro,
tentando dividir o ar com os dedos.
Por fim, desistiu. Não conseguia mais empurrar. E ainda estava a
vários metros do Coelho.
Bem, se não podia chegar ao Coelho, então a resposta óbvia era
ir para a torre, talvez com um pedaço de pau ou uma pedra, e
esperar por ele ali para acertá-lo na cabeça.
Para azar dela, o Tempo tinha outras ideias.
Enquanto Alice se afastava do ponto de partida, mais uma vez o
ar se ergueu contra ela. Estava a pouco mais da metade do
caminho para a Torre quando não pôde mais se mover, mesmo
deslizando os pés para a frente na sujeira um pouquinho de cada
vez. O som estrondoso tornou-se insuportável.
— Tudo bem, então. Não posso me afastar muito do meu ponto
de origem, no tempo ou no espaço — concluiu. — Vou apenas me
posicionar bem na frente do Coelho, o mais perto possível, e agarrá-
lo quando ele passar correndo. Ele ficará tão surpreso com a minha
aparição repentina que não será capaz de fazer nada a não ser
continuar avançando para mim. É uma armadilha que praticamente
se monta sozinha.
Alice chegou o mais perto do Coelho que pôde e caminhou para
frente e para trás dele várias vezes, verificando os ângulos,
certificando-se de que estava exatamente na frente da trajetória
dele. Não havia margem para erros.
Então se agachou com as mãos estendidas feito um jogador de
críquete pronto para a apanhar a bola.
Respirou fundo e colocou um dedo no botão do relógio.
— Três… dois… um… vai!
Ela apertou o botão.
Capítulo 38

TEMPO REINICIADO.
O Coelho Branco começou a se mover, mas lentamente, como se
o Tempo estivesse se aquecendo, se alongando.
De repente, ele disparou adiante.
Seus olhos às vezes humanos viram a garota que apareceu
inexplicavelmente entre ele e a torre do relógio. Eles se arregalaram
de choque. Ficou óbvio apenas com aquele pequeno movimento
que ele não tinha ideia de que Alice era capaz de algo como aquilo:
qualquer atitude surpreendente ou perigosa. Alice se lembraria disso
mais tarde.
Mas agora estava muito ocupada sendo confrontada com um
simples fato da natureza. À parte Coelhos Brancos em coletes com
relógios de bolso, coelhos em geral eram criaturas selvagens com
pouco cérebro, mas muito instinto. Ele podia não ter entendido como
Alice chegou lá, mas o quebra-cabeça não significava nada para a
coelhice inerente a ele.
Sem pensar, ele bateu com as patas traseiras para o lado e
contornou em disparada o obstáculo inesperado.
Alice gritou em choque quando ele passou voando por ela, a pata
batendo duas vezes no chão em um baque duplo para compensar a
curva fechada à direita. Pelos de coelho voaram até o nariz de Alice.
Sendo humana (e ainda por cima vitoriana), a garota tinha pouco
instinto e muita racionalidade: precisou de um ou dois preciosos
milissegundos para processar o que aconteceu e, em seguida,
virou-se e correu atrás dele.
Embora seu plano não tivesse funcionado da maneira que tinha
esperado, ela estava, pelo menos, muito, muito mais perto dele do
que na corrida anterior. Alice se obrigou a correr mais rápido,
bombeando os braços e pernas e correndo na ponta dos pés. Foi
fácil porque o vestido já estava rasgado.
O Coelho saltou a grande rocha como antes; desta vez, ela
passou direto por ela.
Lá estavam o córrego e o lamaçal — ele saltou direto sobre eles.
Alice perdeu um ou dois segundos parando para ver qual era a
melhor trajetória para que não empacasse como da última vez. Lá
havia um tufo de mato que parecia perfeito para atravessar… e
pronto. Forte e robusto e flexível, deu a ela uns passos de
vantagem, o que recuperou um pouco dos preciosos metros
perdidos.
O Coelho cometeu um erro humano: olhar em volta, procurando
por ela, assim que ele começou a pular as escadas da torre.
Alice se jogou para a frente para agarrá-lo, mas errou e mais uma
vez caiu contra os degraus de pedra dura, raspando as palmas e as
canelas desta vez. Com um urro de frustração, levantou-se e
praticamente rastejou degraus acima antes de legitimamente
recuperar o apoio dos pés.
Apesar de todas as suas agitações, estava no encalço do Coelho.
Quando os dois chegaram ao topo, ele estava novamente ao
alcance de sua mão.
Sem pensar no perigo da passarela sem grade de proteção e na
altura em que estavam, Alice se lançou para a frente e o agarrou.
Um dedo pegou um pedaço de colete; a mão esquerda mais
sortuda conseguiu o que parecia ser uma dobra no pescoço e um
pouco de carne.
Mas o coelho se debateu e esperneou, e seus pelos se soltaram
nos dedos dela; ele escorregou feito sabão de suas mãos deixando
grandes tufos de pelo branco de coelho.
Ele saltou e se agarrou no ponteiro das horas do relógio. Seu
peso e embalo foram suficientes para empurrar até o treze.
O mundo começou a tremer.
Alice puxou o botão de seu relógio…
Capítulo 39

FOI BOM TER O mundo inteiro parado e congelado e poder gritar o


quanto quisesse. Ninguém ouvia, e todos esperariam que ela
terminasse.
Por fim, Alice enxugou a testa com o pulso, com cuidado para não
esbarrar no relógio. Olhou para o coelho idiota pendurado no
ponteiro das horas e, por um instante, teve uma visão dele
amarrado com outros coelhos sobre o ombro de um caçador
voltando para casa depois de um bom dia de trabalho.
Imediatamente, sentiu-se culpada por isso; o Coelho Branco era
um ser inteligente que não merecia ser comido nem alvejado com
um tiro.
Embora ele estivesse decidido a acabar com o mundo inteiro,
matando todo mundo, por vontade própria! Nem mesmo eram
ordens da Rainha de Copas; ele era um aspirante a assassino em
massa!
Alice girou lentamente o ponteiro dos segundos do relógio no
sentido anti-horário, observando tudo com atenção de trás para
frente enquanto era puxada para trás em direção ao início: o início
da corrida, a rocha, o pântano, as escadas, ela caindo…
Então parou um momento para respirar e pensar.
Caminhou até a rocha (o ar engrossava só um pouco a essa
distância) e, quebrando várias unhas e raspando as pontas dos
dedos em carne viva, conseguiu puxá-la para fora do lugar e virá-la
de lado, revelando um buraco no chão. Cobriu o buraco com grama
e juncos.
Bateu as mãos para tirar o pó, satisfeita com seu trabalho.
— Ele está tão focado na torre do relógio que não vai notar
mudanças na paisagem. Só vai correr adiante e pronto… Se não
bater de cabeça na pedra, com certeza vai ficar preso no buraco,
mesmo que por um momento.
Alice sorriu, alongou-se e preparou-se.
— Três… dois… um… vai!
E apertou o botão.
Capítulo 40

TEMPO REINICIADO.
A pedra o pegou desprevenido.
Ele quase saltou de cara com ela. No último minuto, tentou mudar
de direção, mas caiu de costas no buraco.
— Rá! — Alice exclamou. — Te peguei agora!
Como um brinquedo de criança — ou Abílio, empurrado para fora
de uma chaminé — o Coelho Branco saltou para fora do buraco,
movido apenas pela força de suas patas traseiras. Ele pairou no ar
por um momento como um balão confuso e depois caiu de volta
para baixo, com uma única garra esquerda tocando no topo da
pedra vertical.
Ele se valeu disso para ganhar impulso de novo e continuou em
direção à torre.
— Droga! — Alice gritou.
Ela perseguiu.
Ele correu.
Ele subiu os degraus de pedra.
Ela tropeçou.
Não tão feio desta vez: nem sequer raspou as mãos. Elas só
ficaram vermelhas.
O Coelho saltou para os ponteiros do relógio.
— Eu fiz isso por… — ele gritou.
Alice puxou o botão de seu relógio. O tempo parou.
Capítulo 41

TEMPO REINICIADO.
Tempo reiniciado.
Tempo reiniciado.
Alice ganhou um corte na testa, um tornozelo ligeiramente torcido,
uma escoriação subindo por toda a panturrilha esquerda, vários
ferimentos nos braços e sujeira incrustada na bochecha. E perdeu
uma bota.
Também perdeu o corpete ao tentar armar uma rede para ludibriá-
lo.
Ela gritou, chutou e jogou pedras no Coelho. Mas elas
desaceleravam à medida que se aproximavam de sua figura e
caíam igualmente lentas no chão, longe de causar dano.
Alice estava de camisa de baixo e espartilho, coberta de lama,
suor e sangue, o cabelo solto caindo-lhe pelas costas e pelos
ombros, parecendo uma bruxa de Macbeth.
Ela se deitou na grama da Planície do Tempo por um instante,
observando o Sol e as Luas estranhas e mastigando um talo de
grama do tempo.
— É só mais uma charada idiota do País das Maravilhas —
refletiu. — Não consigo capturar o coelho. Nunca. Nem antes, nem
agora. Pelo jeito, isso não é permitido. Alice nunca pega o Coelho
Branco. Então o que eu posso fazer? Deixar o mundo acabar?
Alguém me disse que o tempo estava do meu lado… Desvendei
essa parte, pelo menos, com o relógio. Mas se eu não posso pegar
o coelho, quem pode? Como posso impedi-lo? Como posso impedi-
lo de chegar ao relógio e acabar com o mundo? O que é que só eu
tenho para resolver isso? Como a perspectiva pode resolver isso?
Ela encarou a torre, a coisa estranha saída de um sonho ou
pesadelo infantil. Parecia tão inofensia com as bochechas rosadas e
os olhos que se mexiam. Mesmo os degraus de pedra antigos
podiam ser vistos como parte do bloco da torre que uma criança
imaginativa construiu enquanto murmurava para si mesma sobre o
Tempo e coelhos e Cobras e Escadas e jogos de Batalha e pilhas de
brinquedos e sóis e luas e em impedir o fim do mundo. Em ser um
herói. Tantas brincadeiras diferentes da infância, todas misturadas
na mente louca de uma criança solitária. Tudo tão antigo e familiar.
Alice piscou.
— Perspectiva. Eu não tenho a certa! Você se depara com um
coelho e uma torre e uma contagem regressiva e pensa que precisa
parar o coelho. Mas está jogando o jogo errado, Alice — ela disse,
começando a sorrir. — Esqueça o Coelho! A torre é o objetivo deste
jogo! Apenas chegue lá primeiro!
Ela sorriu, levantou-se e tirou a outra bota. Então se alongou e se
preparou, fazendo agachamentos do jeito que tinha visto corredores
profissionais fazerem.
— O último é a mulher do padre — ela disse, por cima do ombro,
ao coelho congelado. — Três… dois… um… vai!
Alice apertou o botão.
Capítulo 42

TEMPO REINICIADO.
Alice não olhou para a esquerda, nem para a direita, nem para
trás. Nem se preocupou em imaginar o olhar surpreso no rosto
bigodudo do Coelho Branco quando ela, de repente, surgiu do nada
na frente dele, correndo rumo ao mesmo objetivo. Ela o ignorou.
Ela bombeou os braços e cravou os pés no chão macio. Foi de
fato muito agradável senti-los se conectar com uma alegria
primordial que não experimentava desde que era uma garotinha na
praia. A terra a empurrava a cada passada, ajudando-a a saltar até
o final. Seus longos cabelos dourados caíam atrás de si, o sangue e
a lama seca se descamando.
Por um breve instante, algo branco apareceu abaixo e à direita
dela, perigosamente perto de seus pés. Era o Coelho, aproximando-
-se mais rápido e mais forte do que nunca. Ele estava tão perto que
Alice poderia ter perdido um segundo para chutá-lo para longe de
seu caminho, para fora da corrida.
Mas não chutou.
Concentrou-se em correr e seguiu em frente.
Preocupou-se, por um momento extático enquanto saltava o
pântano, que estivesse, na verdade, perdendo momentos preciosos
no ar enquanto pairava abaixo dos absurdos orbes celestes.
Mas pousou e continuou mesmo assim.
Os degraus.
Ela chegou lá primeiro. Ela só não podia…
… cair.
Sem pensar, estendeu as pernas e saltou. Não se preocupou com
a aterrissagem.
E então pousou sete degraus acima e o impulso para frente no
final de seu salto só a impulsionou mais adiante.
Ela correu pelo caracol, dois, três degraus de cada vez,
inclinando--se para a torre e deixando seu próprio peso mantê-la em
segurança.
Atrás de si, podia ouvir os pequenos baques na pedra produzidos
pelas patas traseiras do coelho, batendo na pedra cinza.
Com um grito de triunfo, Alice irrompeu na passarela abaixo do
mostrador do relógio. Virou-se para encarar o Coelho Branco, que
arriscou um último e valente salto sobre ela a fim de pousar no
ponteiro das horas. Alice socou direto para cima e o jogou no nariz
do relógio, onde os dois ponteiros de ferro estavam presos.
O Coelho caiu amontoado a seus pés.
— rá! — Alice gritou, ajoelhando-se e agarrando-o. — eu venci!
A Rainha de Copas perdeu! O mundo está a salvo de sua terrível
senhora e também de você e seus atos terríveis, terríveis de vilania!
O Coelho estava estremecendo e tremendo. Alice virou-o para
encará-la, para obrigá-lo a olhar nos olhos dela… e viu que ele
estava chorando.
— A Rainha não pode te machucar — disse ela, hesitante,
confusa. Não mais do que eu e meus amigos podemos, quero dizer.
Ela perdeu. O mundo está salvo e ela será punida. Você também
será, mas em um julgamento justo.
— Vencer…? — o Coelho Branco gemeu. — Eu nunca quis que
ela vencesse. Não estou nem aí para vencer. Eu só queria acabar
com tudo.
— Perdão? — Alice perguntou, sem saber se tinha ouvido direito.
A adrenalina e o triunfo ainda pulsavam em seus ouvidos, tornando
difícil entender.
— Acabar com tudo… Acabar com os ataques, as torturas,
execuções, prisões, os saques, incêndios… Acabar com tudo.
Acabar com a dor. Acabar com o reinado dela. Acabar com o mundo
onde minha Mary Ann foi morta.
— Você?— perguntou mais uma vez, tentando entender. —
Queria destruir o mundo? Você? Não a Rainha de Copas? Vir aqui
para adiantar o relógio não era um plano dela?
— Ela queria ter todos os brinquedos quando o mundo acabasse,
independentemente de quando acabasse — disse o Coelho,
apontando tristemente para o relógio. Lágrimas rolaram e molharam
o pelo do rosto, eventualmente afundando e puxando os bigodes
para baixo. Sem pensar, Alice puxou o que restava de seu último
lenço e tentou lhe entregar. Ele nem sequer viu. O pequeno,
respeitável, ridículo Coelho Branco não se importava mais com tais
sutilezas insignificantes. Por algum motivo, isso foi mais chocante
do que qualquer coisa que ele tenha dito. Alice fez o seu melhor
para limpar a maioria das lágrimas ela mesma enquanto ele se
deitava de bruços em seu colo. — Quando ela tivesse certeza de
que tinha mais brinquedos, provavelmente adiantaria o Tempo para
que ninguém tivesse a chance de superá-la e vencê-la. Não estou
nem aí. Eu só quero que este mundo acabe, para recomeçar com
Mary Ann viva novamente. Mesmo se eu não conhecê-la, mesmo
que a gente nunca mais se encontre. Ela estaria viva. E a salvo. E
ninguém mais estaria com dor ou na prisão. Todo mundo voltaria. E
talvez até a Rainha de Copas renascesse como alguém melhor.
Quem sabe?
A cabeça de Alice estava zumbindo.
— Este relógio não acaba com o mundo? Ele… reinicia? — ela
perguntou.
— Faz as duas coisas, sua lerda. Termina um jogo e começa o
próximo. Você não sabe como funcionam os jogos com contagem
de tempo? Você é mesmo uma menina muito devagar quando
comparada à minha Mary Ann. Às vezes. Mas às vezes passa a
perna no Coelho… — ele refletiu.
Alice colocou a mão na têmpora, exausta e confusa por essa
revelação, esquecendo o suor seco e os pedaços de sujeira que
descascaram quando ela fez isso.
— três hurras para a rainha alice!
Alice se inclinou — perigosamente — e olhou para a planície
abaixo.
Havia uma pequena, mas crescente multidão de criaturas
imundas e animadas do País das Maravilhas, batendo palmas,
gritando, pulando e cambaleando.
— Ela salvou o mundo!
— Ela venceu a Rainha de Copas!
— Ela venceu!
— Eu não… — Alice começou, levantando-se para se dirigir
melhor a eles. O Coelho ainda estava em seus braços, deitado,
aparentemente despreocupado com o que aconteceria a seguir.
De repente, Alice sentiu um peso curioso na cabeça.
Embalando o Coelho com a mão esquerda, estendeu com
cuidado a direita e encontrou lá exatamente o que esperava: uma
coroa gigante, provavelmente dourada, pesada, ornamentada e,
pelos pontos de luz que viu refletidos no mostrador do relógio,
muito, muito brilhante. De algum modo, uma capa escorregou sobre
seus ombros, e Alice torceu muito para que a pele macia nas bordas
não fosse de arminho. Tinha visto vários arminhos nesta aventura.
Agora, a multidão abaixo era muito grande: Alice conseguia
distinguir, como formas nas nuvens, pessoas dos vários lugares por
onde tinha passado: havia um contingente de Ornitolândia, muito
dignos, mas com um entusiasmado vendedor de sidra entre eles. A
Rainha de Paus estava à frente de uma procissão fantástica,
montando seu baquecorcunda. Ela deu um largo sorriso para Alice,
aparentemente nem um pouco descontente com sua coroação. Lá
estava o cavalo à frente de um trem, brindando-a com uma xícara
fedorenta de chá de trem.
O coração de Alice disparou quando ela viu o Chapeleiro, o Grifo,
o Dodô e alguns dos outros acenando loucamente bem na base da
torre, dizendo a quem quisesse ouvir como eles a conheciam
pessoalmente. Ela acenou de volta, o que era difícil amparando um
coelho em uma mão e segurando um cetro na outra.
— Que chatice — ela reclamou.
Com cuidado, certificando-se de não tropeçar na capa, desceu da
passarela, percorrendo lentamente o longo caminho até o chão. Na
base dos degraus havia um carro alegórico cerimonial que foi
preparado em sua homenagem, completo, com uma cadeira alta
que lembrava um pouco a torre do relógio, onde ela deveria se
sentar e acenar. Era tão vacilante que Alice se sentia muito mais
tonta e insegura em cima dela do que no alto da própria torre.
A Rainha de Copas estava dentro de uma gaiola em uma carroça,
fazendo beicinho furiosamente. A princípio, Alice achou difícil ficar
com raiva de uma criatura tão ridícula… mas depois pensou em
Mary Ann, na Lebre de Março, no olho do Chapeleiro e em todas as
atrocidades que a Rainha havia perpetrado contra o bom povo do
País das Maravilhas.
— Você é uma criatura vil — Alice disse a ela friamente. —
Desprovida de um pingo sequer de Absurdo. É mal-intencionada,
cruel e odiosa. Você não merece viver, muito menos viver no País
das Maravilhas.
Os olhos da Rainha de Copas arregalaram-se mais do que
parecia possível. De todas as reações que esperava de Alice, esta
era obviamente a mais distante de todas e pior do que qualquer
outra que ela pudesse ter imaginado.
De repente, dois meninos em forma de bola apareceram entre a
gaiola e o carro alegórico de Alice. Da boca deles, saiu um pedido
de desculpas na forma de sons irritantes e bajuladores. As orelhas
de Alice quase se contorceram com horror.
— Sentimos muito, Alice, Alice.
Aquele era Tweedledee.
— Alice, sentimos muito.
Este era Tweedledum, que ergueu as sobrancelhas para o irmão
para mostrar que ele estava mais arrependido.
— Ela pegou todos os nossos brinquedos…
— Mas disse que poderíamos ter novos…
— Quando o mundo acabasse — eles concluíram juntos.
Alice olhou para eles friamente.
Valia a pena sinalizar o quanto o suas palavras eram infames?
— Podemos cantar uma música para você? — Tweedledee
ofertou.
— É muito boa — acrescentou Tweedledum ansiosamente.
Eles abriram a boca…
— Não — Alice cortou, avistando na multidão abaixo algumas
pessoas com quem preferia muito mais passar o tempo. Escorregou
da cadeira e correu até essas pessoas, ainda embalando o Coelho
Branco. O Chapeleiro olhou a criatura com desconfiança.
— Acho que ele está se punindo o bastante — admitiu Alice. —
Ele queria acabar com o mundo para colocar um ponto final em
todas as barbaridades que estavam acontecendo… e porque não
queria viver sem Mary Ann.
— Hum — disse o Chapeleiro pensativamente.
— Mas agora estamos todos a salvo, a Rainha está atrás das
grades e nós podemos viver felizes para sempre — disse Alice com
um sorriso. Ratos e mosquitos estavam (discretamente) substituindo
sua roupa por um vestido de festa dourado e ela nem se importou.
— Isso mesmo! Pelo menos, por mais uma hora, mais ou menos
— o Grifo concordou alegremente.
— Sim, pelo menos por… O quê? O que quer dizer?
— O relógio — disse o Chapeleiro, apontando para ele. — Este
dia está quase acabando. O mundo está prestes a chegar ao fim.
— Bem, devemos impedir isso! — Alice deu um pulo, colocando o
coelho catatônico de volta ao vagão. — Vamos mover os ponteiros
para trás… !
O Chapeleiro a encarou como se ela fosse Maluca:
— Não pode impedir o fim do mundo. Menina tola. Talvez você
tenha roubado meu Absurdo — ele acrescentou, desconfiado.
— Mas! Mas! Isso é terrível! Tudo foi em vão! — Alice gritou,
sentindo o pânico tomar conta de seu corpo, braços e pernas.
— Não é verdade — disse o Mestre Gato, esfregando-se contra
as pernas dela. — Você derrotou a Rainha de Copas. Você evitou
que ela vencesse. Você pegou o Coelho Branco. Você venceu,
tornou-se rainha e acabou com toda a dor e a tristeza neste mundo.
— Mas vocês só têm mais uma hora! — ela lamentou.
— Todos os jogos acabam, Alice — o gato disse suavemente. —
Todos os sonhos enfim acabam com o despertar.
— O mesmo jogo para sempre seria chato — o Dodô pontuou. —
Até para mim.
— Sim, com certeza é hora de algo novo — o Chapeleiro
concordou.
— Mas eu não quero que vocês… — O quê? Morram?
Desapareçam? Reiniciem? — Eu não quero dizer adeus.
— Então não diga — afirmou o Grifo, dando de ombros. Uma
língua bifurcada apareceu e lambeu as lágrimas dela. Era quente e
úmida como a de um cachorro; não totalmente desagradável.
— Mas o que a gente faz então? — Alice perguntou
melancolicamente.
— Agora isso depende de você — disse o Chapeleiro
simplesmente. — Você é a Rainha.
Alice olhou ao redor. Todas as criaturas do País das Maravilhas
que ela conheceu e salvou, as que evitou e aquelas que lutaram ao
seu lado, aquelas com quem cantou canções e outras de quem
fugiu, todas as cartas, e capturandam, e mome raths, e borogóvios,
e gente vestida de jornal e libélulas-dragão, animais e pássaros e
insetos e pessoas, todos olhavam para ela com expectativa.
(O Valete também olhou para ela com curiosidade, brindando-a
com sua sidra.)
— Eu… — Alice pensou muito.
O que mais havia para fazer?
— Eu… declaro hora do chá e Absurdo até o Fim dos Tempos!
Capítulo 43

UM BRAMIDO ENSURDECEDOR do tipo que até o País das


Maravilhas nunca tinha ouvido antes dominou a Planície do Tempo.
Todos dançaram, e gritaram, e saltaram, e pularam e voaram.
Houve aplausos e um desfile cheio de serpentinas e confetes,
estouros de algum tipo de canhão, ou arma, ou talvez champanhe e
uma banda de morsas que marchavam soprando suas presas. Chá
foi servido em todos os lugares, de chaleiras grandes e pequenas
em canecas comemorativas pela coroação. Bandejas e bandejas de
biscoitos com os dizeres coma-me foram distribuídas. Não seria
exagero dizer que foi a festa mais animada, barulhenta e cheia
considerando qualquer lugar e qualquer Tempo.
Alice se sentou no vagão, balançando as pernas para o lado, uma
mão no Coelho que se recuperava lentamente, a outra nas costas
do Mestre Gato. Seu cetro estava sendo usado para misturar um
pouco de limão em uma xícara de chá do tamanho de uma igreja.
Sua coroa estava torta na cabeça.
Ela se sentia muito, muito esquisita.
Queria chorar, mas era óbvio que ninguém mais estava triste… e
ninguém queria alguém triste por perto na festa.
— Talvez desta vez eu volte como um sapateiro — o Chapeleiro
contava ansiosamente a uma linda galinha jovem. — Esta, sim,
seria uma mudança divertida.
— Acho que não é o meu caso. Serei um Dodô, eu acho — o
Dodô refletiu. — Talvez com uma peruca diferente.
— Mestre Gato — disse Alice, lembrando-se de repente —, você
me disse que Mary Ann era a verdadeira heroína. Você disse: “Se
quer meu conselho… encontre-a”.
— E você encontrou — disse o Mestre Gato, lambendo o rabo. —
Você a encontrou… ou encontrou uma heroína… ou algo que levou
a isso tudo. Dentro de si. Ah, mas precisou muito da minha ajuda!
Até enviei Katz para ajudá-la a encontrar o caminho de volta,
através da lagoa e da velha árvore…
Alice suspirou, pela primeira vez não distraída por pensamentos
sobre o rapaz (embora fosse bom lembrar o nome dele).
— Eu queria ter conhecido Mary Ann. Sinto que estava logo atrás
dela, todo o tempo deixando-a escapar, incapaz de agarrá-la…
como o Coelho Branco. Fui tola por ter ciúmes dela por tanto
tempo… É que ela sempre parecia saber o que ia fazer, e todos a
amavam por isso. Ela sabia quem era, e o que fazer, e como mudar
seu mundo. Isso me fez sentir tão inútil e insegura. Eu deveria
apenas ter aprendido com ela. E acho que aprendi, de certa forma.
Adoraria conhecê-la. Suponho que… com o mundo recomeçando…
ela vai voltar. Eu vou poder voltar aqui, Mestre Gato?
— Um homem não pode se banhar duas vezes no mesmo rio,
pois na segunda vez ele não é o mesmo homem, tampouco é o
mesmo rio — o Mestre Gato respondeu.
— Eu não sou um homem e isto não é um rio — disse Alice,
revirando os olhos. Ela gesticulou para os amigos, que agora
estavam cantando, até mesmo o Arganaz. — Será que eles vão se
lembrar de mim?
— Katz vai se lembrar de você — disse o Mestre Gato com um
sorriso, o corpo ora desaparecendo, ora reaparecendo. Com as
garras, subia e descia de seu colo, feito um gato de verdade,
embora um que ficasse invisível. Ele suspirou de contentamento
enquanto se acomodava e se enrolava. — Não consigo me lembrar
de nada agora.
E todos viveram muito, muito felizes até o relógio atingir o treze.
Capítulo 44

ALICE ACORDOU LENTAMENTE.


Estava em casa, na própria cama, e era de manhã, tarde, mas
não tarde demais; raios de um sol dourado pálido brilhavam na
parede em frente. Ela observou por um tempo, sentindo-se triste…
não, melancólica. Apesar disso, não se virou nem tentou voltar a
dormir. Só ficou acordada em silêncio. Dinah a encarou mal abrindo
os olhos sonolentos.
Quando finalmente desceu para o café da manhã, ninguém
estava lá, o que foi um alívio. Alice se sentou e desfrutou do
primeiro gole de chá quente só para si. Fechou os olhos e apenas
sentiu o silêncio dentro de si, o silêncio. Não era uma sensação de
vazio. Era uma pausa, uma respiração antes de um parto. Era a
espera.
O jornal estava ao lado da manteiga, dobrado de forma que o topo
da primeira página mostrasse: comício de ramsbottom terça-
feira à noite. Alice estremeceu. Havia algo tão desolador e
ameaçador nessas palavras. Elas prenunciavam que
acontecimentos verdadeiramente terríveis estavam por vir. Neste
mundo, os vilões não eram excêntricos: aqui as ruas nunca ficariam
vermelhas com tinta à base de leite, mas com sangue de verdade.
Alice estava de volta à terra onde nunca havia Absurdo.
Possivelmente para sempre.
Como poderia consertar isso? Salvara um mundo inteiro…
conseguira; agora os detalhes estavam sumindo aos poucos. Mas
ela sabia que tinha conseguido porque teve a vantagem de vir do
mundo real, com uma mente estratégica do mundo real. Aqui ela era
apenas uma cidadã comum da Inglaterra, sem vantagens especiais
ou qualquer perspectiva.
Mathilda entrou e, quando viu Alice sentada lá, começou a abrir a
boca… e então fechou. Em vez disso, sentou-se e preparou o
próprio chá, mas sem os tinidos e ruídos extras que diziam muito
obviamente estou preparando meu chá e não estou falando
com você — tática que ambas as irmãs ocasionalmente
empregavam.
Mathilda folheou algumas cartas e disse muito casualmente:
— Acho que Corwin e eu não estaremos presentes no comício
desta noite.
Alice piscou, surpresa, mas permaneceu em silêncio, esperando,
olhando para a irmã por cima da borda da xícara.
— É tudo um pouco… — Mathilda franziu o cenho, procurando a
palavra certa de desdém. — Desagradável. Corwin e eu temos a
crença aguerrida de que a Inglaterra deve cuidar primeiro de seus
próprios cidadãos. Mas, dito isso, aqueles da Praça são parte da
Inglaterra agora. E devemos tratá-los com nada menos do que
tolerância.
— Hum — Alice emitiu, não querendo dizer nada que pudesse
estragar o momento. Assentiu com a cabeça, como se essa fosse a
única conclusão lógica e adequada possível.
— E Corwin lamenta muito por sugerir apresentá-la a Coney —
Mathilda acrescentou. — Ele virá mais tarde apresentar seu próprio
pedido de desculpas e, provavelmente, um presente muito grande e
feio. Por favor, apenas aceite e acene com a cabeça e depois faça o
quiser com o presente.
Alice sorriu:
— Mas por que essa mudança de opinião, tão de repente?
— Corwin… procura ver o melhor em todos, talvez até o ponto de
uma certa cegueira. Mas ele não tem dificuldade em reconhecer um
comportamento criminoso.
Ela ergueu um exemplar matinal do Kexford Weekly.
Na primeira página, estava a foto da sra. Yao. Havia até uma
ampliação e uma chamada para o bilhete que ela segurava — a
caligrafia muito clara — e um apelo para qualquer cidadão de bem
que reconhecesse a caligrafia denunciar o bandido imediatamente à
polícia.
A foto foi creditada a A.
Logo todos em Kexford descobririam quem eram o criminoso e a
fotógrafa.
— Na verdade, meu chá oolong que a sra. Yao fornece está
acabando — Mathilda acrescentou contemplativamente. — Creio
que passarei na loja dela mais tarde. Talvez o negócio a ajude a
pagar por esse episódio absurdo.
Em nenhum momento Mathilda, de fato, se desculpou.
Em voz alta.
Mas foi o suficiente.
Alice abriu a boca para dizer algo bom e significativo e fraterno,
mas o que saiu foi…
— Episódio absurdo! Absurdo… Mas é claro! É isso! Eu tenho
mesmo uma vantagem e perspectiva diferente de todos aqui! Engula
essa, Mary Ann! Mathilda, você é um gênio! — E levantou-se de um
salto, tascou um beijo na bochecha da irmã e saiu correndo da sala.
— Bem — sua irmã murmurou depois que ela saiu —, pelo menos
alguém nesta família ridícula finalmente reconhece isso.

Uma única visita ao respeitável escritório de advocacia de


Alexandros e Ivy era incomum. Duas seria suspeito. Então, em vez
disso, Alice foi para a Praça e agarrou a primeira criança que
encontrou: Zara, aquela que a encontrou depois que sua câmera foi
roubada.
— Olá! Preciso de um favor… Preciso enviar uma mensagem a
um amigo. Você faria isso por mim? Pagarei pelo seu tempo — ela
disse, abrindo a bolsa.
— É o Katz, não é? — a garota falou categoricamente. Sem
nenhum tom de intriga nem acusação.
Alice encarou essa menina que não era ela, que ela nunca tinha
sido. Mas havia uma faísca em seu olhar, uma centelha de Alice.
Humor, obstinação e curiosidade. Simplesmente tinham assumido
uma forma diferente. A menina tentou não sorrir com malícia e
quase foi bem-sucedida.
— Sim — Alice admitiu.
— É uma carta de amor?
— Não. Ainda não, pelo menos. Olha, você quer ganhar meio
tostão ou não?
— Sempre — a menina disse prontamente. — Mas eu ainda vou
ganhar se souber onde ele está e não for no trabalho dele? Se ele
estiver em um lugar público onde vocês podem se encontrar e
conversar, mas for um lugar muito barulhento, então vocês dois não
serão ouvidos? Um lugar perfeito para um encontro secreto?
Alice fingiu pensar por um momento.
— Ora, muito bem. Você sabe barganhar.
— Ele está no Samovar agora, lendo as notícias e provavelmente
ficando mal-humorado.
Tratava-se de um café dirigido por um senhor inglês, mas com
uma espécie de temática russa porque ele amava romances russos.
Todos os estudantes que podiam pagar iam lá para discutir
literatura, jogar xadrez e debater ideias revolucionárias que
esqueceriam mais tarde em seus copos.
— Muito obrigada! Foi um prazer fazer negócios com você, srta.
Sarah. Aqui está sua recompensa.
A menina olhou maravilhada para a grande moeda de cobre que
lhe foi entregue.
— Eu não tenho troco para um tostão inteiro — ela disse com
pesar.
— Não por isso! É todo seu. Meio tostão pela informação. Meio
tostão pelo seu silêncio.
Zara sorriu, fez uma mesura e depois saiu correndo, tomada pela
vontade de compartilhar sua sorte com os amigos ou, pelo menos, a
novidade.

Katz estava no Samovar, mas não estava lendo as notícias;


estava estudando um problema de xadrez disposto na mesa diante
de si. As peças eram primorosamente esculpidas em vermelho e
branco, mas o tabuleiro fora rabiscado em giz sobre a mesa pelo
que parecia uma mão bastante embriagada. Katz estava tão
concentrado, com o cenho tão franzido, que não a viu se aproximar.
Alice estendeu a mão e derrubou a rainha vermelha.
— Alice! — exclamou. Seu rosto se abriu em um sorriso que
abrangia todo seu ser e dava a impressão de que todos os dias
seriam ensolarados para sempre. Alice queria viver naquele sorriso.
— Que surpresa! Duas vezes em uma semana e as duas vezes de
forma inesperada.
Ela se sentou diante dele. Uma rápida olhada ao redor revelou
estudantes em togas, outros em roupas comuns, alguns professores
mais velhos e até mesmo alguns bibliotecários amigos da tia Vivian
(que pareciam um pouco contrariados com a balbúrdia ao redor).
— Posso pegar um chá para você? — ele ofereceu. — É terrível.
— Que oferta amável, mas não, obrigada.
Ambos ficaram em silêncio por um instante, mas não foi tão
embaraçoso quanto pensaram que seria.
— Você é realmente o Mestre Gato? — ela enfim perguntou,
suavemente.
Katz abriu um largo sorriso e deu de ombros de forma
enlouquecedora.
— Não acho que eu seja ele. Eu o conheço. Ele me conhece. Nós
somos únicos em nossos mundos separados.
— Eis uma resposta digna do Mestre Gato, se é que já ouvi
alguma — Alice disse com um suspiro. — Ele vai se lembrar de mim
se eu voltar? Algum deles vai?
— Ninguém jamais poderia esquecer Alice — Katz disse,
envolvendo as mãos dela nas suas.
— Será que vou… vou vê-los de novo?
— Acho que as chances são boas. Mas quem pode dizer? Você
veio só para falar comigo sobre aquele outro lugar e aquele outro
eu? — ele perguntou, em tom ligeiramente acusador.
Alice sorriu:
— Não, claro que não. Vim falar com você sobre o que
poderíamos fazer a respeito do comício ridículo de Ramsbottom.
As mãos de Katz congelaram nas dela, rígidas como um
esqueleto. Seu queixo não caiu para valer, mas caiu um pouco, e o
rosto dele se desmontou.
Recuperou-se rapidamente e se afastou, soltando as mãos de
Alice e sacudindo os ombros, movendo a mandíbula de um lado
para outro para dissipar qualquer emoção remanescente.
— Ah, claro, claro. Excelente. Estou interessado em ouvir
qualquer uma de suas ideias. Vai ser terrível, não importa o que
aconteça, muito… você sabe… ruim para a comunidade… e ruim…
basicamente… de modo geral…
Alice não conseguiu manter uma cara séria. Explodiu em
risadinhas histéricas e travessas, cobrindo a boca com uma mão
enluvada tão lindamente quanto qualquer coquete, mas realmente
com medo de “borrifar” seu companheiro.
— Claro que quero falar com você sobre outros assuntos também,
seu bobinho! Você é tão sério e sensível quanto… quanto, bem, eu
quando fui pela primeira vez ao País das Maravilhas.
Katz parecia confuso, o rosto bonito com uma expressão perdida
até que relaxou em um sorriso triste.
— Você… eu… com certeza… — O advogado estava sem
palavras. Então sorriu e indicou as mãos dela. — Posso?
— Claro — disse Alice, estendendo-as. Ele segurou corretamente
desta vez, juntou-as e beijou as mãos dela.
— Vai ser difícil — ele disse, suave e sério. — Sua família, minha
família…
— Todas as coisas incríveis e novas são difíceis — disse Alice,
apertando as mãos dele de volta. — Mas a maioria acaba valendo a
pena. E todo o resto é um absurdo. O que, ironicamente, é o outro
assunto que eu vim tratar com você…

O dia do comício estava cinzento e um pouco frio, um pouco


úmido, o que já podia ter arrefecido alguns espíritos. Mathilda tinha
anunciado afetadamente que ela e Corwin estavam “indo passear
no campo com mamãe e papai”; iriam evitar toda a situação. E,
embora parecesse um pouco covarde, Alice não podia culpá-los
inteiramente.
— Pena que vamos perder toda a diversão — a mãe de Alice
disse melancolicamente.
— Sim, acho que preferiria qualquer coisa a passar um dia frio e
úmido sentado em uma carruagem sacolejante com aquele homem
que parece uma ovelha gigante olhando para o quê? Campos?
Florestas? O horizonte? Eu não acho que vai dar para fazer nem um
piquenique — o pai de Alice adicionou tristemente. — E o que eu
vou fazer com isso agora? — Ele puxou um ridículo lenço
multicolorido cuja barra tinha uma franja de moedas douradas e
pendurou na cabeça. — Eu tinha outros planos!
Alice se solidarizou e abraçou os pais de uma só vez.
— Corwin está aqui — anunciou Mathilda, entrando na sala e
vestindo as luvas marrons horrivelmente feias, aquelas com os laços
grandes. O grandalhão entrou pela porta depois de uma única
batida (falta de educação!) carregando uma caixa grande.
— Olá a todos! — bradou cordialmente.
Sério, Alice pensou, estremecendo, ele seria muito mais tolerável
se apenas baixasse a voz!
— Isto é para você, Alice! — ele gritou, empurrando a caixa em
direção a ela. Então seu rosto ficou um pouco vermelho e sua voz
ficou mais baixa, de forma atípica. Ele até olhou para os pés. —
Eu… ah… nós… Sabe, ele parecia tão… mas depois, claro…
Interferindo onde não somos necessários, obviamente! Acabou…
mesmo que eles não processem — concluiu.
Alice assentiu, tentando parecer séria.
— Obrigada. Agradeço muito pelo pedido de desculpas. Mais do
que qualquer presente — ela disse e abriu a caixa. Então: — Ah!
— Meu Deus — exclamou o pai, olhando sobre o ombro dela.
Era uma câmera. Um modelo top de linha, a última geração da
versão que havia sido roubada.
— Obrigada — Alice disse novamente, para valer desta vez.
Até Mathilda pareceu surpresa.
— Hum — ela emitiu, aparentemente esperando algo feio e inútil.
Alice ponderou: pelo jeito, sua irmã não tinha lhe dito o que comprar.
Apesar de quaisquer falhas e preconceitos e visões equivocadas de
Corwin, pelo menos ele prestava atenção. Sabia o que era
importante para Alice, o que significava que sabia o que era
importante para Mathilda. Alice podia não concordar com ele em
absolutamente nada, mas era óbvio que ele amava sua irmã e tinha
um bom coração. Mesmo que a cabeça e a boca não funcionassem
tão bem.
Ainda assim, as conversas durante os passeios de férias seriam
um suplício de agora em diante.
Especialmente quando… em algum momento… Alice
apresentasse Katz a todos eles. Então as coisas ficariam realmente
interessantes.

Na feira, Ramsbottom sorria e tinha o espírito de um animador de


circo; ele até usava uma casaca cinza imaculada e uma cartola com
uma rosa vermelha vívida, como algum tipo de mestre de
cerimônias. Seu irmão estava vestido mais discretamente, em tons
de marrom, ajudando a montar o palco em silêncio e gerenciando as
multidões. Coney ia e vinha em torno dele feito o Coelho Branco que
Alice sabia que era.
(Em breve, seria também tão irrelevante quanto um lagomorfo.)
Quase todos de todas as partes de Kexford estavam se reunindo
para o evento, de olho nas mesas agora vazias que logo seriam
preparadas com ponche e guloseimas, mas só depois que todos
prestassem bem atenção a tudo que seria dito. E aplaudissem
apropriadamente.
Alice acompanhou tudo isso detrás de uma árvore.
Usava uma roupa da Alice menina; um vestido curto e ridículo
com uma faixa azul enorme, um laço azul gigante em seu cabelo
(como era tudo grande, usou calcinhas ao estilo francês sob o
vestido, então estava tudo adequado). O lenço de cor vibrante do
pai estava amarrado em torno de seu pulso. Ele estava lá em
espírito.
— Tudo pronto, querida? — Katz perguntou, esgueirando-se para
o lado dela atrás da árvore.
Ela estendeu a mão e apertou a dele com entusiasmo.
— Vai ser incrível!
— Não consigo imaginar que isto vá fazer maravilhas pela minha
carreira — Katz disse com um suspiro, indicando o terno listrado de
roxo brilhante e branco que usava sob o casaco e as botas mais
discretas. Um pedaço extra do material estava pendurado na parte
de trás como um rabo.
— É por isso que estamos preparados — Alice apontou para sua
máscara veneziana, indicando que ele deveria fazer o mesmo. —
Ah, veja, eles estão começando. Lembre: espere pelo sinal!
A multidão havia aumentado tanto quanto possível. Gilbert olhou
para eles, exibindo-se como um nativo de Ornitolândia, esticando o
peito e sorrindo. Bandeiras vermelhas, brancas e azuis foram
entregues ao público, que as sacudiam patrioticamente. Tudo
parecia perfeito.
— Meus amigos e compatriotas — ele berrou com um sorriso. —
Obrigado por se juntarem a mim! Estamos reunidos aqui para
celebrar o governo e nossa gloriosa Inglaterra! Mas nem tudo é
perfeito na nossa grande nação. Recentemente, existe uma
tendência de…
— Lá vão eles! — Alice sussurrou. — Perfeito!
Do outro lado da feira, apareceram dois palhaços dançando. Eles
usavam chapéus combinando e roupas com grandes armações de
saias, o efeito resultante fazia-os parecer bolas gigantes
perfeitamente redondas. No peito, cada um usava um broche
gigante, um dizia gilbert e o outro dizia quagley. Eles deram as
mãos no alto e piruetaram em torno um do outro, tentando parecer
sérios enquanto se equilibram na ponta dos pés.
A multidão explodiu em risadas de aprovação.
O olhar no rosto de Gilbert não era de aprovação. Era muito,
muito sombrio.
Mas ele conhecia seu público.
Então, deu um sorriso brincalhão e gritou:
— Ora, ora, sim, muito divertido. Os chapéus são um belo
detalhe.
— quero ser prefeito — gritou o palhaço Gilbert.
— quero chutar o traseiro de criancinhas — gritou o
palhaço Quagley.
— elas são tão perigosas! — o palhaço Gilbert concordou. Eles
assentiram, apertaram as mãos e fizeram uma reverência.
— Quem são esses dois? — Katz sussurrou.
— Amigos da tia Viv. Pintores de cartazes e ex-artistas
performáticos — Alice sussurrou. — AGORA! — ela acrescentou,
sacudindo o lenço multicolorido para cima e para baixo como um
sinal.
De repente, de toda a multidão, apareceram crianças correndo: as
crianças da Praça, usando capas chamativas, coroas de flores e
segurando buquês. Elas circularam por toda a plateia, dando flores
às pessoas e jogando punhados de doces no ar.
— estrangeiros! peguem eles! — o palhaço Gilbert gritou.
— prendam as crianças! prendam! — o palhaço Quagley gritou.
Os dois se trombaram, caíram e depois correram atrás das crianças.
Atrapalhados.
O público estava adorando. Todo mundo estava rindo.
O verdadeiro Gilbert estava furioso.
Ele pigarreou.
— Piada é piada, mas estes são tempos sérios, meu povo…
— nãooooooo! minha inglaterra! minha preciosa
inglaterra!
Era a a tia Vivian em carne, osso e camadas e camadas de
vestidos antiquados, pelo menos três espartilhos, todos pretos, e
uma cauda de renda preta. O rosto maquiado com pó branco como
um fantasma, um blush vermelho feio e uma pintinha falsa (e
máscara). Andava com sapatos de salto quase tão altos quanto
pernas de pau e elevava-se acima da multidão como um monstro de
teatro.
— melhor morrer viúva do que viver mulher! — ela gritou,
então desmaiou nos braços de um rapaz de aparência robusta na
frente da multidão. Os amigos dele assobiaram e zombaram. No
começo, ele parecia inseguro, mas depois entrou no espírito da
coisa e deu um beijo em tia Vivian.
— aaah, seu jovem atrevido — disse tia Viv, batendo nele
levemente com o leque.
— expulse-os! chute todos para fora! — Este era um palhaço
vestido de policial, com uma clava feita de um pedaço gigante de
pão. Ele fingiu verificar as identidades de todos. — papéis!
certidões de nascimento! registros de batismo! artigos de
jornal!
Agora Gilbert e Quagley — os verdadeiros — estavam gritando
um para o outro, discutindo com rostos muito acalorados. Não
podiam ser ouvidos por causa do tumulto. Coney, ao lado deles,
parecia meio desanimado.
— Preparada para nossa grande entrada? — Katz perguntou.
— Claro! — Alice respondeu.
E, já que estavam usando máscaras e ninguém podia ver nem
saber, eles se beijaram.
Pela segunda e escandalosa vez.
Em seguida, eles se juntaram à aglomeração de outros palhaços
que saíam de seus esconderijos, dançando com o público, tocando
buzinas, jogando confete de flores no ar e, de modo geral,
propagando Absurdo.
— Porque, é claro, o mundo real precisa de algum Absurdo de
vez em quando — Alice explicou a Katz no Samovar, ao revelar seu
plano. — Não sempre, mas não nunca. Apenas o bastante para nos
fazer lembrar quando as situações reais ficam ridículas demais para
se suportar. E às vezes temos que criar esse Absurdo nós mesmos.
— O mundo real precisa é de Alice — Katz respondeu. — E o
País das Maravilhas também.
E essa foi a primeira vez que ele a beijou.
Willard chegou bem no final da apresentação, montado nos
ombros de um dos palhaços mais fortes. Não vestia nada muito
estrambólico além de um gigante chapéu vermelho, branco e azul
que ele mesmo havia confeccionado. Ele acenou e distribuiu doces
e apertou mãos e beijou bebês: tanto bebês reais quanto bonecos
dos palhaços.
E depois houve ponche para todos.
Epílogo

CARO LEITOR, IMAGINO QUE tenha algumas perguntas. Ao


contrário do Dodô, do Chapeleiro e do Arganaz, você não se
contenta com as coisas apenas sendo do jeito que são: você quer
saber o futuro, as consequências, os motivos. Então eu vou te dar
três respostas, somente três, pois esse é o número mágico em
contos de fadas.

Pergunta número três:


Willard foi eleito prefeito, salvando, assim, a cidade de Kexford e
todos seus habitantes ou, talvez, condenando-os a viver em uma
cidade sem humor, onde cada um trabalha de acordo com sua
habilidade e recebe de acordo com sua necessidade, para sempre?

Resposta:
Não, ele não foi eleito.
No entanto, sua participação na eleição (e a cena no comício de
Ramsbottom) trouxe à luz algumas das crenças menos palatáveis
da outra parte.
Então foi Mallory Griffle Frundus (Frundus – Por nós!) que foi
eleito. E ele fez um ótimo trabalho ao reconstituir o sistema de
esgoto da cidade.
(Até mesmo Willard aprovou, relutante, suas negociações com os
proprietários de fábricas para obter salários justos para os
funcionários em troca de uma reorganização dos bairros da cidade.)
Uma vez eleito, Frundus foi questionado sobre o que pensava
sobre as crianças imigrantes e indisciplinadas da Praça e foi levado
até lá por alguns membros preconceituosos da comunidade para
observar tal comportamento sujo e vergonhoso. Ele observou as
crianças por um instante, franziu a testa e, em seguida, declarou:
— Vocês estão jogando bolinhas de gude errado! Deixem-me
mostrar como fazíamos quando eu era moleque.

Pergunta número dois:


Alice e Katz se casaram e viveram felizes para sempre?

Resposta:
Sim.
Foi difícil (muito difícil) no começo; os pais de nenhum dos dois
aprovavam o casal. Mas amor e determinação venceram.
(E netos também. Netos conseguem derreter o coração até dos
idosos mais mal-humorados e difíceis.)
Katz tornou-se sócio pleno do escritório de advocacia; Alice se
tornou ainda mais Alice, expondo suas fotografias e fazendo turnês
pela Europa com ele e ocasionalmente com tia Vivian, que a
apresentou a lugares estranhamente familiares, como o Cabaret
Voltaire. Você não ouvirá falar de Alice ao ler sobre o início do
movimento dadaísta, mas pode ter certeza de que ela estava lá e
desempenhou um papel fundamental em seus anos iniciais.

Pergunta número um:


Alice alguma vez conseguiu voltar para o País das Maravilhas?

Resposta:
Ora, caro leitor, acho que você já sabe a resposta desta pergunta.

Um fato era certo, o gatinho branco não teve nada a ver com isso:
foi culpa inteiramente do gatinho preto. Posto que o gatinho branco
tinha a face lambida pelo gato mais velho pelo último quarto de hora
(e, diga-se de passagem, comportou-se muito bem); então perceba
que ele não poderia ter tido qualquer participação na travessura.
Alice estava sentada, aninhada em um canto da grande poltrona,
sua barriga grande e redonda finalmente confortável agora que seu
minúsculo ocupante se conformara um pouco. O gatinho havia
brincado muito com o novelo de lã que Alice estava usando para
tricotar um pequeno suéter, rolando de um lado para outro até que
tudo se desenrolasse; e lá ficou, a lã espalhada sobre o tapete da
lareira, cheia de nós e emaranhados, com o gatinho no meio,
correndo atrás do próprio rabo.
— Ah, sua coisinha perversa! — exclamou Alice, pegando o
gatinho e dando-lhe um beijinho para fazê-lo entender que havia
caído em desgraça. — Sério, Dinah deveria ter te ensinado boas
maneiras! Agora, se me acompanhar, Kitty, e deixar meu tricô em
paz, vou te contar tudo sobre a Casa do Espelho. Lá tudo é invertido
e o doce foge de sua mão. É encantador, com certeza. Ah, seria tão
bom se pudéssemos atravessar mais uma vez para a Casa do
Espelho! Vamos fingir que existe alguma maneira de voltar. Vamos
fingir que o vidro está macio como uma cortina, para que a gente
consiga passar. Ora, está se tornando uma espécie de névoa agora,
veja! Vai ser fácil atravessar… — Ela estava de pé, encostada na
cornija da lareira quando disse isso, embora mal soubesse como
tinha chegado ali. E certamente o vidro estava começando a
derreter, feito uma névoa prateada e brilhante…
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TWISTED TALES
ESTA OBRA INÉDITA NO BRASIL TRAZ A DISTORÇÃO DA
HISTÓRIA MUNDIALMENTE CONHECIDA, EXPLORANDO UMA
VERSÃO OUSADA E SOMBRIA DE UM DOS MAIORES
SUCESSOS DA DISNEY!

Quando Jafar rouba a lâmpada do Gênio, ele faz uso de seus dois
primeiros desejos para se tornar sultão e o feiticeiro mais poderoso
do mundo. Assim, Agrabah passa a viver sob o medo, à espera do
terceiro e último desejo de seu novo líder. A fim de parar a loucura
do ambicioso feiticeiro, Aladdin e a princesa Jasmine, agora
deposta, precisarão unir a população de Agrabah em uma rebelião.
No entanto, a luta por liberdade passa a ameaçar a integridade do
reino, acendendo as chamas de uma guerra civil sem precedentes.

O que acontece a seguir? Um pivete se torna líder. Uma princesa


se torna revolucionária. E os leitores nunca mais irão enxergar a
história de Aladdin da mesma maneira.
COMO FUTURA RAINHA DE ARENDELLE, A PRINCESA ELSA
LEVA UMA VIDA CHEIA DE EXPECTATIVAS E
RESPONSABILIDADES – SEM FALAR DAS DÚVIDAS. QUE TIPO
DE GOVERNANTE ELA SERÁ? QUANDO TERÁ DE ESCOLHER
UM PRETENDENTE? E POR QUE SEMPRE TEVE O
SENTIMENTO DE QUE TEM UM PEDAÇO IMPORTANTE DELA
FALTANDO?

Depois da morte inesperada dos pais, Elsa é forçada a responder


a essas perguntas mais cedo do que esperava, tornando-se a única
governante de seu reino e ficando mais solitária do que nunca. Mas,
quando poderes misteriosos começam a se revelar, Elsa passa a se
lembrar de fragmentos da infância que parecem ter sido apagados –
fragmentos que incluem uma garota de aparência familiar.
Determinada a preencher o vazio que sempre sentiu, Elsa deve
cruzar seu reino gelado em uma jornada angustiante a fim de
quebrar uma terrível maldição… e encontrar a princesa perdida de
Arendelle.

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