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ALBERT CAMUS [An

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interrogação de olhos verdes, magra e delicada, subitamente
possuída pela demência, lutando contra as sombras.
— E uma questão de glândulas internas — dizia Rose. Depois
ria, toda entregue ao seu riso, sob os cabelos ondulados, franzindo os
olhos alegres, por trás dos óculos redondos, até que Gula saltasse
sobre ela (favor especial); com os dedos errando no pêlo luzidio, Rose
suavizou-se, descontraiu-se e tornou-se gata de olhos ternos,
acalmando o animal com mãos suaves e fraternas. Isto porque os
gatos eram a porta de saída de Rose para o mundo, assim como a
nudez de Catherine. Claire preferia o outro gato, Cali. Ele era manso e
ingênuo, com o seu pêlo de um branco sujo, e deixava-se torturar.
Claire, com o seu rosto florentino, sentia, então, a alma magnífica.
Silenciosa e fechada, com rompantes bruscos, tinha bom apetite. E,
vendo-a engordar, Patrice a censurava:
— Você nos decepciona — dizia. — “Um ser belo não tem o
direito de enfear.”
Mas Rose intervinha:
— Quando vai parar de ralhar com essa criança!
— Coma, minha irmã Claire.
E o dia passava do nascente ao poente, à volta das colinas e
sobre o mar, em meio ao delicado sol. Ria-se, brincava-se e faziam-se
projetos. Todos sorriam às aparências e fingiam submeter-se a elas.
Patrice ia da fisionomia do mundo aos rostos graves e sorridentes das
moças. As vezes, espantava-se com aquele universo surgido à sua
volta. Confiança e amizade, sol e casas brancas, matizes apenas
perceptíveis, daí nasciam as felicidades intactas, cuja exata
ressonância ele media. A Casa Diante do Mundo, diziam entre si, não
é uma casa onde as pessoas se divertem, e sim uma casa onde se é
feliz. Patrice sentia-o efetivamente, quando, com o rosto voltado para
a tarde, todos deixavam impregnar-se, com a última brisa, da
tentação humana e perigosa de não se parecer com coisa alguma.
Hoje, depois do banho de sol, Catherine (2) foi para o escritório.
— Meu caro Patrice — diz Rose, surgindo de repente — tenho
uma boa notícia para lhe anunciar.
No terraço, o “garoto”, nesse dia, está corajosamente estendido
num sofá, com um romance policial nas mãos.
— Minha querida Rose, sou todo ouvidos.
— Hoje é a sua vez de cozinhar.
— Está bem — diz Patrice, sem se mexer.
Rose sai, com sua pasta de estudante, na qual ela põe,
indiferentemente, os pimentões do almoço e o volume III da História,
tediosa, de Lavisse. Patrice, encarregado de preparar lentilhas, fica
flanando até 11 horas, contempla a grande peça de paredes ocre,
mobiliada com sofás e estantes, com máscaras verdes, amarelas e
vermelhas, com tapeçarias listradas. Depois, com pressa, separa as
lentilhas, põe azeite na panela, uma cebola para refogar, um tomate,
um molho de salsa e cebolinha, muito atarefado, amaldiçoando Gula

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e Cali, que protestam a sua fome. No entanto, Rose lhes explicou
ontem:
— Saibam, bichos — disse ela — que no verão faz calor demais
para se ter fome.
As quinze para o meio-dia, chega Catherine, com um vestido
leve e sandálias. Precisa de um chuveiro e de um banho de sol Será a
última a vir para a mesa. Rose dirá com severidade: “Catherine, você
é insuportável.” A água sibila no banheiro e eis Claire ofegante:
— Está fazendo lentilhas? Tenho uma receita ótima...
— Eu sei. Pego o creme de leite... Volte mais tarde, minha cara
Claire.
E verdade que as receitas de Claire começam sempre pelo
creme de leite (3).
— Ele tem razão — diz Rose, que acaba de chegar.
— Sim — diz o “garoto”. — Está na mesa.
Comem numa cozinha que parece também uma loja de
acessórios. Há de tudo, até mesmo uma agenda para anotar as
tiradas de Rose. Claire diz:
— Sejamos finos, mas simples — e come a sua lingüiça com os
dedos. Catherine chega com o atraso conveniente, embriagada e
preguiçosa, com os olhos pálidos de sono. Tem a alma carregada de
amargura em relação ao seu escritório, oito horas que ela subtrai ao
mundo e à sua vida para dá-las a uma máquina de escrever. As
amigas compreendem e imaginam o que seriam as suas vidas
amputadas dessas oito horas. Patrice se cala.
— Sim — diz Rose, que não gosta de sentimentalismo — no
fundo, isso a ocupa. E você nos fala todos os dias do seu escritório.
Nós cortamos a sua palavra.
— Mas... — suspira Catherine.
— Nesse caso, vamos votar. Um, dois, três, a maioria é contra
você.
— Está vendo — diz Claire.
Chegam as lentilhas, secas demais, e todos comem em silêncio.
Claire, quando cozinha, ao experimentar a comida à mesa,
acrescenta sempre, com um ar satisfeito:
— Mas está excelente!
Patrice, que tem a sua dignidade, prefere calar-se até o
momento em que todos começam a rir. Catherine, hoje sem
inspiração, mas que desejaria conseguir a semana de 40 horas, pede,
então, que a acompanhem à C.G.T.* (Confederação Geral do
Trabalho, poderoso órgão sindical. (N. da T.))
— Não — diz Rose — afinal, é você quem trabalha.
Exasperada, a “força da natureza (4)” vai deitar-se ao sol. Mas
logo os outros se juntam a ela. E, acariciando negligentemente os
cabelos de Catherine, Claire acha efetivamente que o que falta a
“essa criança” é um homem. Isto porque é uso corrente na Casa
Diante do Mundo decidir o destino de Catherine, atribuir-lhe

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