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ALBERT CAMUS [An

o]
pouco de surpresa, sem, contudo, deixar de se preocupar com seus
vestidos de linho branco bem passados.
Ele saía, então, para o campo, mas com Lucienne. Redescobriu
sua cumplicidade com o mundo, mas com a sua mão no ombro de
Lucienne. E, refugiado na qualidade de homem, escapava, assim, de
seu medo secreto. No entanto, dois dias depois, Lucienne o
incomodava. Ela escolheu esse momento para lhe pedir que vivessem
juntos. Estavam jantando, e Mersault recusara claramente, sem
levantar os olhos do prato.
Após um silêncio, Lucienne acrescentara, com uma voz neutra:
— Você não gosta de mim.
Mersault ergueu a cabeça. Ela estava com os olhos cheios de
lágrimas. Ele se enterneceu.
— Mas eu nunca lhe disse isso, minha pequena.
— E verdade — respondera Lucienne. — E por isso mesmo.
Mersault levantou-se e encaminhou-se para a janela. Entre os
dois pinheiros, as estrelas fulguravam na noite. E Patrice talvez nunca
tivesse sentido, ao mesmo tempo, a sua angústia e uma total repulsa
pelos dias que acabaram de passar.
— Você é bela, Lucienne. Só vou até aí. Não lhe peço mais nada
(10). Isso basta a nós dois.
— Eu sei — respondeu Lucienne. Voltava as costas a Patrice e
arranhava a toalha com a ponta da faca. Ele aproximou-se dela e
segurou-a pela nuca.
— Acredite: não há grandes dores, nem grandes
arrependimentos, nem grandes recordações. Tudo se esquece (11),
até mesmo os grandes amores. É o que há de triste e ao mesmo
tempo de exaltante na vida. Há apenas uma certa maneira de ver as
coisas, e ela surge de vez em quando. E por isso que, apesar de tudo,
é bom ter tido um grande amor, uma paixão infeliz na vida. Isso
constitui pelo menos um álibi para os desesperos sem razão que se
apoderam de nós.
Após uma pausa, Mersault refletiu e acrescentou:
— Não sei se você me compreende.
— Acho que sim — respondeu Lucienne. E, voltando-se
bruscamente para ele: — Você não é feliz.
— Vou sê-lo. E preciso que eu seja feliz — respondeu Mersault,
violento. — Tenho de sê-lo. Com esta noite, este mar e esta nuca
entre os meus dedos.
Voltara-se para a janela e apertara a mão no pescoço de
Lucienne. Ela estava calada.
— Ao menos — disse, sem olhar para ele — sente alguma
amizade por mim?
Patrice ajoelhou-se junto dela e mordeu-lhe o ombro.
— Amizade, certamente, como tenho pela noite. Você é a
alegria dos meus olhos, e não sabe o lugar que essa alegria ocupa no
meu coração.

3
ALBERT CAMUS [An
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Lucienne partiu no dia seguinte. Um dia depois, Mersault,
incapaz de se concentrar, chegava de automóvel a Argel. Foi primeiro
à Casa Diante do Mundo. As amigas prometeram ir vê-lo no fim do
mês. Patrice quis, então, rever o seu bairro.
Sua casa fora alugada a um dono de botequim. Perguntou pelo
tanoeiro, mas ninguém soube dar informações suas. Constava que
tinha ido para Paris, à procura de trabalho. Mersault deu um passeio.
No restaurante, Céleste envelhecera pouco. René continuava lá, com
sua tuberculose e o seu ar grave. Ficaram todos contentes de rever
Patrice, e ele próprio ficou comovido com aquele reencontro (12).
— Oh, Mersault — disse-lhe Céleste — você não mudou.
Continua o mesmo, oh!
— Sim — respondeu Mersault.
Admirava a estranha cegueira pela qual os homens, por mais
bem informados sobre as mudanças que se produzem neles próprios,
impõem aos amigos a imagem que, de uma vez por todas, fizeram
deles. Quanto a ele, julgavam-no segundo o que ele tinha sido. Assim
como um cão não muda de caráter, os homens são como os cães
para os outros homens. E, na própria medida em que Céleste, René e
os outros o tinham conhecido bem, Patrice tornava-se para eles tão
estranho e tão fechado quanto um planeta desabitado. Deixou-os, no
entanto, com amizade. E, ao sair do restaurante, encontrou Marthe.
Vendo-a, tomou consciência de que quase a esquecera, e que, ao
mesmo tempo, esperava reencontrá-la. Ela conservava o mesmo
rosto de deusa pintada. Desejou-a surdamente, mas sem convicção.
Caminharam juntos.
— Oh, Patrice — dizia ela — como fiquei contente! Que é feito
de você?
— Nada, como vê. Vivo no campo.
— Que bom! Sempre sonhei com isso. — E após um silêncio: —
Sabe, não sinto raiva de você.
— Sim, então arranjou um consolo — comentou Mersault, rindo.
Marthe respondeu num tom que ele jamais ouvira:
— Não seja mau, está bem? Sabia muito bem que isso
terminaria assim, um dia. Você era um sujeito estranho. E eu não
passo de uma menina, como você dizia. Então, quando aconteceu,
fiquei com raiva, é claro, você compreende... Mas acabei dizendo a
mim mesma que você era infeliz. E é engraçado, não sei bem como
dizer isso, foi a primeira vez que o que houve entre nós me fez ficar
triste e feliz ao mesmo tempo.
Surpreso, Mersault olhou para ela. De repente, verificava que
Marthe sempre se portara bem com ele. Aceitara-o como ele era e
tinha-lhe feito esquecer bastante a sua solidão. Fora injusto. Ao
mesmo tempo que a sua imaginação e a sua vaidade a tinham
valorizado em demasia, o seu orgulho não lhe dera o suficiente.
Sentia o paradoxo cruel pelo qual nos enganamos sempre duas vezes
em relação aos seres que amamos: em seu favor primeiro, e, em

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