Você está na página 1de 2

ALBERT CAMUS [An

o]
— Agora, vai ficar com isso na cabeça — disse ela. — Só foi meu
amante uma vez.
— Ah — disse Mersault.
— E, aliás, nem tirei os sapatos.
Mersault levantou-se. Via-a deitada, vestida, numa cama
parecida com esta, entregando-se inteira, sem reservas. Gritou:
— Cale a boca! — e caminhou até a janela.
— Oh, querido! — disse Marthe, sentada na cama, de meias no
chão.
Mersault acalmava-se, olhando o jogo das luzes nos trilhos.
Nunca se sentira tão próximo de Marthe. E, ao compreender que, ao
mesmo tempo, abria-se um pouco mais a ela, o orgulho queimava-lhe
os olhos. Voltou para ela, e, entre o indicador dobrado e o polegar,
pegou a sua orelha, a pele morna do pescoço. Sorriu.
— E esse Zagreus, quem é? E o único que não conheço.
— Esse — disse Marthe, rindo — eu o vejo ainda.
Mersault apertou os dedos sobre a pele.
— Foi o meu primeiro, compreenda. Eu era muito jovem (9). Era
um pouco mais velho. Agora, ele tem as duas pernas cortadas. Vive
sozinho. Então, às vezes eu vou vê-lo. E um sujeito fino e instruído. Lê
o tempo todo. Naquela época, ele era estudante. E muito alegre. Um
tipo, sabe. Aliás, ele fala como você, ele me diz: “Venha cá
aparência”.
Mersault refletia. Soltou Marthe, que se deitou na cama,
fechando os olhos. Momentos depois, sentou-se a seu lado e,
inclinando-se sobre os lábios entreabertos, procurou os sinais de sua
divindade de animal e o esquecimento de uma dor que ele achava
indigna. Mas abandonou a boca, sem ir adiante.
Ao acompanhar Marthe de volta, ela lhe falou de Zagreus:
— Falei sobre você com ele — disse. — Contei-lhe que meu
querido era muito bonito e muito forte. Então, ele me disse que
gostaria de conhecê-lo. Porque, como ele disse: “Ver um belo corpo
me ajuda a respirar’’.
— Esse aí é mais um complicado — disse Mersault.
Marthe queria agradecer-lhe e achou que chegara o momento
de fazer a pequena cena de ciúmes em que pensara e que achava lhe
ser devida, de algum modo.
— Oh, menos que as suas amigas.
— Que amigas? — perguntou Mersault, sinceramente
espantado.
— As “burrinhas”, sabe?
As burrinhas eram Rose e Claire (10), estudantes de Tunis (11),
que Mersault conhecera e com as quais mantinha a única
correspondência de sua vida. Sorriu e pegou Marthe pela nuca.
Caminharam durante muito tempo. A rua era longa e brilhava em
todas as janelas na parte superior, enquanto que a parte baixa, com
todas as lojas fechadas, estava escura e sinistra.

3
ALBERT CAMUS [An
o]
— Diga, querido, você não gosta das “burrinhas”, hem?
— Ah, não — respondeu Mersault.
Caminharam, a mão de Mersault na nuca de Marthe, coberta
pelo calor dos cabelos.
— Você me ama? — perguntou Marthe, sem transição.
De repente, Mersault animou-se e riu muito alto.
— Eis uma pergunta muito séria.
— Responda.
— Mas na nossa idade não se ama. Um agrada ao outro, só isso.
E só mais tarde, quando se fica velho e impotente, que se consegue
amar. Na nossa idade, a gente pensa que ama. E só isso, nada mais.
Ela pareceu triste, mas ele a beijou.
— Até logo, querido — disse.
Mersault voltou pelas ruas escuras. Caminhava rápido e
sensível ao jogo dos músculos da coxa ao longo do tecido macio da
calça; pensou em Zagreus e em suas pernas cortadas. Sentiu vontade
de conhecê-lo e decidiu pedir a Marthe que o apresentasse.
Na primeira vez em que Mersault viu Zagreus, ficou irritado
(12). No entanto, Zagreus tentara atenuar o que há de inconveniente
para a imaginação no encontro de dois amantes de uma mesma
mulher, na presença desta. Na verdade, ele tentara fazer de Mersault
um cúmplice, ao tratar Marthe de “boa menina” e rindo muito alto.
Mersault ficou ensimesmado. E o disse brutalmente a Marthe, quando
ficaram sozinhos:
— Não gosto de meias-porções. Isso me perturba. Impede-me
de pensar. E sobretudo meias-porções inteligentes.
— Ah, você — respondeu Marthe, que não compreendera — se
alguém ouvisse...
Mas, depois, o riso jovem que, no encontro com Zagreus o
irritara, a princípio, reteve sua atenção e seu interesse. Da mesma
forma, o ciúme mal disfarçado que guiava Mersault em seu
julgamento desaparecera ao ver Zagreus.
A Marthe, que relembrava, inocentemente, o tempo em que
conhecera Zagreus, aconselhou:
— Não perca seu tempo. Não consigo ter ciúmes de um sujeito
que não tem mais pernas. Por menos que pense nos dois, eu o vejo
como um grande verme em cima de você. Então, sabe, isto me
entedia. Não se canse, meu anjo.
E, em seguida, voltou sozinho à casa de Zagreus. Esse último
falava depressa e muito, ria, depois calava-se. Mersault sentia-se bem
naquela peça grande onde Zagreus ficava, entre seus livros e cobres
marroquinos, o fogo e seus reflexos no rosto discreto do buda khmer
sobre a escrivaninha. Escutava Zagreus. O que lhe chamara a
atenção no inválido é que refletia antes de falar (13). Quanto ao
resto, a paixão contida, a vida ardente que animava aquele tronco
ridículo bastavam para reter Mersault e fazer nascer nele alguma

Você também pode gostar