Você está na página 1de 2

domingo de manhã, por exemplo, os banhos de mar fazem séria concorrência à

missa. Tampouco foram iluminados por uma súbita conversão. Mas, por um lado,
com a cidade fechada e o porto interditado, os banhos não eram possíveis e, por
outro lado, encontravam-se num estado de espírito bem singular em que, sem
terem admitido no fundo de si próprios os acontecimentos surpreendentes que os
atingiam, sentiam efetivamente que algo, é óbvio, mudara. No entanto, muitos
continuavam a esperar que a epidemia parasse e que eles fossem poupados, com
suas famílias. Por conseguinte, não se sentiam ainda obrigados a nada. A peste
nada mais era para eles do que uma visita desagradável que havia de partir um
dia, já que tinha vindo. Assustados, mas não desesperados, não chegara ainda o
momento em que a peste lhes surgiria como a própria forma de sua vida e em que
esqueceriam a existência que até agora tinham podido levar. Em suma, estavam
na expectativa. No que se refere à religião, como a muitos outros problemas, a
peste tinha-lhes dado uma singular disposição de espírito, tão afastada da
indiferença como da paixão, que podia definir-se pela palavra ”objetividade”. A
maior parte dos que seguiram a semana de preces poderia ter feito sua a frase
que um dos fiéis havia proferido diante do Dr. Ríeux: ”De qualquer maneira, mal
não pode fazer”. O próprio Tarrou, depois de ter anotado em seus cadernos que
os chineses, em casos semelhantes, vão tocar tambor diante do génio da peste,
observava que era absolutamente impossível saber se, na realidade, o
instrumento se mostrava mais eficaz que as medidas profiláticas. Acrescentava,
apenas, que para decidir a questão seria preciso estar informado sobre a
existência de um génio da peste e que a nossa ignorância sobre esse ponto
tornava estéreis todas as opiniões que se pudessem ter.
De qualquer modo, a catedral de nossa cidade esteve quase cheia de fiéis
durante toda a semana. Nos primeiros dias, muitos habitantes ficavam ainda nos
jardins de palmeiras e romãzeiras que se estendem diante do pórtico para ouvir a
maré de invocações e de preces que refluíam até as ruas. Pouco a pouco, com o
auxílio do exemplo, os mesmos ouvintes decidiram-se a entrar e a mesclar uma
voz tímida aos responsos da assistência. E, no domingo, uma multidão
considerável invadiu a nave, transbordando até o adro e os últimos degraus da
escadaria. Desde a véspera, o céu tinha-se toldado, a chuva caía pesadamente.
Os que estavam do lado de fora tinham aberto os guarda-chuvas. Um cheiro de
incenso e de molhado flutuava na catedral quando o Padre Paneloux subiu ao
púlpito.
Era de estatura mediana, mas robusto. Quando se apoiou ao rebordo do
púlpito, apertando a madeira entre as mãos grandes, não se via nele senão uma
forma espessa e negra, encimada pelas manchas de duas faces rubicundas sob
os óculos de metal. Tinha uma voz forte, apaixonada, que alcançava longe, e
quando atacou a assistência com uma única frase veemente e martelada:
”Irmãos, caístes em desgraça, irmãos, vós o merecestes”, a assistência se
tumultuou.
Logicamente, o que se seguiu não parecia estar de acordo com esse
exórdio patético. Só a sequência do discurso fez compreender aos nossos
concidadãos que, por um hábil processo oratório, o padre tinha dado de uma só
vez, como um golpe que se desfecha, o tema de todo o seu sermão. Logo depois
dessa frase, Paneloux citou o texto do êxodo relativo à peste do Egito e disse: ”A
primeira vez em que esse flagelo aparece na história é para atacar os inimigos de
Deus. O faraó opõe-se aos desígnios eternos, e a peste o faz então cair de joelhos.
Desde o princípio de toda a história, o flagelo de Deus põe a seus pés os
orgulhosos e os cegos. Meditai sobre isso e caí de joelhos”.
A chuva redobrava lá fora e esta última frase pronunciada no meio de um
silêncio absoluto, que se tornou ainda mais profundo pelo crepitar da tempestade
sobre os vitrais, ressoou com tal inflexão, que alguns ouvintes, depois de um
segundo de hesitação, deixaram-se deslizar da cadeira para o genuflexório.
Outros julgaram que era necessário seguir o exemplo, de tal modo que, de vizinho
a vizinho, sem outro ruído que não fosse o ranger de alguma cadeira, todo o
auditório se encontrou logo ajoelhado. Paneloux endireitou-se então, respirou
profundamente e continuou, num tom mais veemente: ”Se hoje a peste vos olha,
é porque chegou o momento de refletir. Os justos não podem temê-la, mas os
maus têm razão para tremer. Na imensa granja do universo, o flagelo implacável
baterá o trigo humano até que o joio se separe do trigo. Haverá mais joio que
trigo, mais chamados que eleitos e essa desgraça não foi desejada por Deus. Por
longo tempo, este mundo compactuou com o mal, repousou na misericórdia
divina. Bastava arrepender-se, tudo era permitido. E para se arrependerem, todos
se sentiam fortes. Chegado o momento, o arrependimento viria por certo. Até lá, o
mais fácil era deixar-se levar, a misericórdia divina faria o resto. Pois bem! Isso
não podia durar. Deus, que durante tanto tempo baixou sobre os homens desta
cidade seu rosto de piedade, cansado de esperar, desiludido na sua eterna
esperança, acabara de afastar o olhar. Privados da luz de Deus, eis-nos por muito
tempo nas trevas da peste!”
Na sala, alguém resfolegou como um cavalo impaciente. Depois de uma
curta pausa, o padre continuou, num tom mais baixo: ”Lê-se na Legende dorêe
que no tempo do Rei Humberto, na Lombardia, a Itália foi devastada por uma
peste tão violenta que os vivos mal chegavam para enterrar os mortos. Essa peste
castigava sobretudo Roma e Pavia. E um anjo bom apareceu nitidamente dando
ordens ao anjo mau, que trazia uma lança de caça, ordenando-lhe que batesse
nas casas. E tantas vezes quantas uma casa recebia pancadas, tantos mortos
havia que dela saíam”.
Paneloux estendeu aqui os dois braços curtos na direção do adro, como
se mostrasse alguma coisa por detrás da cortina móvel da chuva. ”Meus irmãos”,
disse com força, ”é a mesma caçada mortal que hoje prossegue nas nossas ruas.
Vede-o, esse anjo da peste, belo como Lúcifer e brilhante como o próprio mal,
erguido acima dos vossos telhados, empunhando a lança vermelha à altura da
cabeça, designando com a mão esquerda uma de vossas casas. Nesse mesmo
instante, talvez, o seu dedo se estende para a vossa porta, a lança ressoa sobre a
madeira: mais um instante e a peste entra em vossa casa, senta-se no vosso
quarto e espera o vosso regresso. Ela está lá, paciente e atenta, segura como a
própria ordem do mundo. Essa mão que ela vos estenderá, nenhum poder
humano, nem sequer, vede bem, a vã ciência humana, pode fazer com que a
eviteis. E, batidos na eira sangrenta da dor, sereis repelidos como a palha.”
Aqui, o padre retomou, com mais amplidão ainda, a imagem patética do
flagelo. Evocou a imensa lança volteando por cima da cidade, atacando ao acaso e
erguendo-se de novo, ensanguentada; espalhando, enfim, o sangue e a dor
humana ”para as sementeiras que preparariam as searas da verdade”.
Ao fim desse longo período, o Padre Paneloux parou, com os cabelos
caídos sobre a fronte, o corpo agitado por um tremor que as mãos comunicavam
ao púlpito, e prosseguiu, mais surdamente mas em tom acusador: ”Sim, chegou a
hora de refletir. Pensastes que vos bastaria visitar Deus aos domingos para
ficardes com vossos dias livres. Pensastes que algumas genuflexões bastariam

Você também pode gostar