Você está na página 1de 3

ALBERT CAMUS [An

o]
melhor eu sair com meu filho. Quando ele arranja uma menina, eu
finjo que não vejo nada, pego um bonde. Até logo e obrigado. Fico
muito contente.” — Emmanuel ria. — E claro — falou Céleste — não
era uma autoridade, mas eu gostava dele. — E dirigia-se a Mersault.
— E, depois, gosto mais disso que de um amigo que tive. Quando
ficou importante, falava comigo levantando a cabeça e com pequenos
sinais. Agora, está menos prosa, perdeu tudo.
— Bem feito — disse Mersault.
— Ah, a gente não precisa ser sujo na vida. Ele aproveitou e
teve razão (7). Tinha 900 mil francos... Ah, se fosse eu!
— Você faria o quê? — perguntou Emmanuel.
— Compraria um barraco, poria um pouco de cola no umbigo e uma
bandeira. Assim, eu esperaria para ver de que lado sopra o vento (8).
Mersault comia (9) com tranqüilidade. Até que Emmanuel
começou a contar ao proprietário a sua famosa batalha no Mame.
— Nós, os zuavos, fizeram-nos ficar de atirador...
— Você está enchendo — disse Mersault, calmo.
— O comandante disse: “Atirar!” E depois a gente descia, era
uma espécie de barranco com árvores. Ele nos disse para atacar, mas
não havia ninguém diante de nós. Então, marchávamos,
marchávamos, sempre em frente, assim. E depois, de repente, as
metralhadoras começam a despejar tiros em cima de nós. Caímos
todos, uns sobre os outros. Havia tantos feridos e mortos que, no
fundo do barranco, o sangue poderia ser atravessado de canoa. Havia
uns que gritavam “Mamãe!” era terrível...
Mersault levantou-se e deu um nó no guardanapo. O
proprietário foi marcar com giz o almoço, atrás da porta da cozinha.
Esse era o seu livro de contas. Quando havia contestação, ele tirava a
porta das dobradiças e carregava as contas nas costas (10). Num
canto, René, o filho do dono, comia um ovo quente.
— Coitado — disse Emmanuel — vai morrer do peito.
Era verdade. René geralmente era silencioso e sério. Não era
magro demais, mas o olhar era brilhante. Naquele momento, um
consumidor lhe explicava que a tuberculose “com tempo e com
cuidado, se cura”. Ele concordava e respondia gravemente, entre
duas garfadas. Mersault aproximou-se dele no balcão para tomar um
café. O outro continuava:
— Conheceu o Jean Pérez? Aquele da Companhia de Gás.
Morreu. Só tinha um pulmão doente. Mas quis sair do hospital e voltar
para casa. Lá, ele tinha a mulher. Ela é um verdadeiro touro. E ele, a
doença o deixou assim. Sabe, estava sempre em cima dela. E ela não
queria. Mas ele era terrível, e isso, duas, três vezes por dia, isso
acaba matando um homem doente. — René, com um pedaço de pão
entre os dentes, tinha parado de comer e olhava fixo para o homem.
— Sim — disse, afinal — a doença vem depressa, mas demora
muito para ir embora.

3
ALBERT CAMUS [An
o]
Mersault escreveu o nome com o dedo numa cafeteira coberta
de vapor. Piscou os olhos. Do tuberculoso calmo a Emmanul cheio de
canções, sua vida oscilava todos os dias nos odores de café e
alcatrão, isolada dele próprio e de seu interesse, estranha a seu
coração e à sua verdade. As mesmas coisas que, em outras
circunstâncias, o teriam apaixonado, faziam-no calar sobre elas, já
que as vivia, até o momento em que se via novamente no quarto e
empenhava-se com toda a força e precaução para apagar a chama de
vida que lhe ardia no peito.
— Mersault, você que tem instrução, o que acha? — perguntava
o dono.
— Sim, tudo bem — falou Patrice — você vai sobreviver.
— Ah, você acordou com o pé esquerdo, hoje.
Mersault sorriu e, deixando o restaurante, atravessou a rua e
subiu até o quarto. Ficava em cima de um açougue de carne de
cavalo. Debruçando-se na varanda, chegava até ele o cheiro de
sangue e conseguia ler o cartaz: “A mais nobre conquista do
homem”.
Estendeu-se na cama, fumou um cigarro e pegou no sono.
Instalara-se no quarto de sua mãe. Durante muito tempo,
viveram no pequeno apartamento de três peças. Sozinho, Mersault
alugara dois cômodos a um amigo tanoeiro, que vivia com a irmã, e
conservara o quarto melhor. A mãe havia morrido aos 56 anos.
Bonita, achara que podia ser coquete, viver bem e brilhar. Por volta
dos 40, um terrível mal apossara-se dela. Fora despojada de vestidos
e de pintura, reduzida às camisolas dos doentes, o rosto deformado
por terríveis inchações, quase imobilizada por causa das pernas
inchadas e sem vigor, meio cega, enfim, tateando perdidamente num
apartamento sem cores, que deixava ao abandono. O golpe foi súbito
e rápido. Era portadora de diabetes, que não tratara e até favorecera
pela sua vida despreocupada. Ele fora obrigado a deixar os estudos
para trabalhar. Até a morte da mãe, continuara a ler e a refletir. E,
durante 10 anos, a doente suportara essa vida. O martírio havia
durado tanto, que os que a cercavam acostumaram-se à doença e
esqueceram que, gravemente doente, ela podia sucumbir. Um dia,
morreu. No bairro, todos ficaram com pena de Mersault. As
expectativas eram grandes em torno do enterro. Todos lembravam o
sentimento do filho pela mãe. Os parentes afastados foram obrigados
a jurar que não chorariam, para que Patrice não sentisse sua dor
aumentar. Suplicaram-lhes que o protegessem e a ele se dedicassem.
Patrice, no entanto, vestiu-se da melhor forma que pôde, e, de
chapéu na mão, contemplou os preparativos. Acompanhou o cortejo,
assistiu ao ofício religioso, jogou o seu punhado de terra e apertou a
mão de todos. Apenas uma vez espantou-se e manifestou seu
descontentamento com o fato de haver tão poucos carros para os
convidados. Foi só. No dia seguinte, viu-se numa das janelas do
apartamento o cartaz: “Aluga-se.” Agora, ele morava no quarto da

3
ALBERT CAMUS [An
o]
mãe. Antes, a pobreza junto da mãe tinha uma certa ternura. Quando
se reencontravam ao anoitecer e comiam em silêncio à volta do
lampião a querosene, havia uma felicidade secreta naquela
simplicidade e naquele recolhimento. O bairro à volta deles era
silencioso. Mersault olhava a boca cansada da mãe e sorria. Ela
também sorria. Ele tornava a comer. O lampião soltava um pouco de
fumaça. A mãe o regulava com o mesmo gesto gasto, apenas com o
braço direito estendido e o corpo caído para trás.
— Você não está com fome — dizia, pouco depois. — Não. — Ele
fumava ou lia. No primeiro caso, a mãe dizia: — Outra vez! — E no
segundo: — Chegue mais perto do lampião, vai cansar os olhos.
Agora, ao contrário, a pobreza na solidão era uma terrível
miséria. E quando Mersault pensava com tristeza na falecida, era para
si próprio, na verdade, que sua piedade se voltava. Ele teria podido
morar com mais conforto, mas gostava deste apartamento e de seu
cheiro de pobreza. Ali, pelo menos, reencontrava tudo o que fora, e,
numa vida em que procurava voluntariamente apagar-se, esse
confronto sórdido e paciente permitia-lhe, ainda, apelar para si
mesmo nas horas de tristeza e de arrependimento. Deixara na porta
um pedaço de papelão cinzento, roído nos bordos, em que sua mãe
escrevera o nome com um lápis azul. Conservara a velha cama de
cobre, forrada de cetim de algodão, o retrato do avô com sua
barbicha e os olhos claros imóveis. Sobre a lareira, pastores e
pastoras rodeavam um antigo relógio de pêndulo, parado, e um
lampião a querosene que ele quase nunca acendia. O cenário
duvidoso das cadeiras de palha um pouco afundadas, do armário com
o espelho amarelado e da penteadeira à qual faltava um canto, não
existia para ele, porque o hábito retocava tudo. Passeava na sombra
de um apartamento que não lhe exigia nenhum esforço. Em um outro
quarto, seria preciso habituar-se ao novo, e, mesmo assim, lutar.
Queria diminuir a superfície que oferecia ao mundo e dormir até que
tudo se consumasse. Para estes fins, o quarto servia. Lima parte dava
para a rua, e outra, para um pátio sempre coberto de roupa, e, além
do pátio, para pequenos jardins de laranjeiras comprimidas entre
muros altos. As vezes, nas noites de verão, ele deixava o quarto
escuro e abria a janela para o pátio e os jardins escuros. Da noite
para noite, o cheiro de laranja chegava forte e o envolvia com seus
mantos leves. Todas as noites de verão, ele e o quarto ficavam
imersos naquele perfume, ao mesmo tempo sutil e denso, e era como
se, morto durante longos dias, abrisse pela primeira vez a janela para
a vida.
Despertou com a boca cheia de sono e coberto de suor. Era
muito tarde. Penteou-se, desceu correndo e pegou um bonde. As
14h05min estava no escritório. Trabalhava numa peça grande, cujas
quatro paredes eram cobertas por 414 nichos onde se amontoavam
as pastas de papéis. A peça não era suja, nem sórdida, mas
lembrava, a qualquer hora do dia, um pombal onde as horas mortas

Você também pode gostar