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para pagar vosso desleixo criminoso. Mas Deus não é fraco.

Essas atenções
espaçadas não bastavam à sua ternura devoradora. Ele queria ver-vos mais
tempo, é a sua maneira de vos amar que é, a bem dizer, a única maneira de
amar. Eis por que, cansado de esperar vossa vinda, deixou que o flagelo vos
visitasse, corn~. visitou todas as cidades do pecado desde que os horúèns têm
história. Sabeis agora o que é o pecado, como o souberam Caim e seus filhos, os
de antes do Dilúvio, os de Sodoma e Gomorra, o faraó e Jó e também todos os
malditos. E, como esses o fizeram, é um olhar novo que lançais sobre os seres e
as coisas, desde o dia em que esta cidade fechou seus muros em torno de vós e
do flagelo. Sabeis agora, finalmente, que é preciso chegar ao essencial”.
Um vento úmido infiltrava-se agora na nave e as chamas dos círios
curvavam-se, crepitando. Um cheiro espesso de cera, tosses, um espirro
chegaram até o Padre Paneloux, que, voltando à sua exposição com uma sutileza
que foi muito apreciada, prosseguiu com voz calma: ”Muitos dentre vós, bem o
sei, perguntaram a si próprios aonde quero chegar. Quero fazer-vos chegar à
verdade e ensinar-vos a vos regozijar, apesar de tudo o que vos disse. Passou o
tempo em que os conselhos, uma mão fraterna eram os meios de vos guiar para o
bem. Hoje, a verdade é uma ordem. E o caminho da salvação é uma lança
vermelha que vos aponta e vos conduz. É aqui, meus irmãos, que se manifesta,
enfim, a misericórdia divina que colocou em todas as coisas o bem e o mal, a
cólera e a piedade, a peste e a salvação. Este mesmo flagelo, que vos aflige, vos
eleva e vos mostra o caminho. Há muito tempo, os cristãos da Abissínia viam na
peste um meio eficaz, de origem divina, para alcançar a eternidade. Os que não
eram atingidos enrolavam-se nas roupas contaminadas para terem a certeza de
morrer. Sem dúvida, essa fúria de salvação não é recomendável. Ela revela uma
precipitação lamentável, bem próxima do orgulho. Não se deve ser mais
apressado que Deus, e tudo o que pretende acelerar a ordem imutável que Ele
estabeleceu de uma vez para sempre conduz à heresia. Mas, ao menos, esse
exemplo comporta uma lição. Para nossos espíritos mais clarividentes, ele faz
apenas valer esse clarão sublime de eternidade que j az no fundo de todo
sofrimento. Ele ilumina esse clarão, os caminhos crepusculares que conduzem à
libertação. Ele manifesta a vontade divina que, sem fraquejar, transforma o mal
em bem. Hoje ainda, através dessa caminhada de morte, de angústias e de
clamores, Ele nos guia para o silêncio essencial e para o princípio de toda a vida.
Eis, meus irmãos, o imenso consolo que queria vos trazer para que não leveis
daqui apenas palavras que castigam, mas também um verbo de paz”.
Sentia-se que o Padre Paneloux terminara. Lá fora a chuva havia cessado.
Um céu mesclado de água e de sol derramava sobre a praça uma luz mais
brilhante. Da rua, chegavam ruídos de vozes, o deslizar de veículos, toda a
linguagem de uma cidade que desperta. Os ouvintes juntavam discretamente
seus pertences, com um sussurro surdo. Entretanto, o padre retomou a palavra e
disse que, depois de ter mostrado a origem divina da peste e o caráter punitivo
desse flagelo, tinha terminado e não faria apelo, para concluir, a uma eloquência
que seria inoportuna em matéria tão trágica. Parecia-lhe que tudo devia ser claro
para todos. Lembrou apenas que, por ocasião da grande peste de Marselha, o
cronista Mathieu Marais se queixara de estar mergulhado no inferno, vivendo
assim sem socorro e sem esperança. Pois bem! Mathieu Marais era cego! Nunca,
mais que hoje, pelo contrário, o Padre Paneloux tinha sentido o socorro divino e a
esperança cristã que eram oferecidos a todos. Ele esperava, contra toda a
esperança, que, a despeito do horror desses dias e dos gritos dos agonizantes,
nossos concidadãos dirigissem ao céu a única palavra que era cristã e que era de
amor. Deus faria o resto.
É difícil dizer se esse sermão produziu efeito sobre nossos concidadãos. O
Sr. Othon, o juiz de instrução, disse ao Dr. Rieux que tinha achado a exposição
do Padre Paneloux ”absolutamente irrefutável”. Nem todos, porém, tinham uma
opinião tão categórica. Simplesmente, o sermão tornou mais evidente para alguns
a ideia, vaga até então, de que estavam condenados, por um crime desconhecido,
a uma prisão inimaginável. E enquanto uns continuavam a sua vidinha e se
adaptavam à clausura, para outros, pelo contrário, a única ideia foi, a partir
desse momento, evadirem-se dessa prisão.
A princípio, as pessoas tinham aceito estar isoladas do exterior como
teriam aceito qualquer outro inconveniente temporário que apenas perturbasse
alguns de seus hábitos. Mas, subitamente conscientes de uma espécie de
sequestro, sob a tampa do céu em que o verão começava a crepitar, sentiam
confusamente que essa reclusão lhes ameaçava toda a vida e, chegada a noite, a
energia que recuperavam com o frescor os lançava por vezes a atos de desespero.
Em primeiro lugar, quer seja ou não por efeito de uma coincidência, foi a
partir desse domingo que houve em nossa .idade uma espécie de medo
generalizado e bastante profundo para que se pudesse suspeitar que nossos
concidadãos começavam verdadeiramente a tomar consciência da sua situação.
Sob esse ponto de vista, a atmosfera de nossa cidade modificou-se um pouco. A
questão, porém, é saber se na verdade a modificação estava na atmosfera ou nos
corações.
Poucos dias depois do sermão, Rieux, que comentava o acontecimento
com Grand, ao dirigir-se para os subúrbios, chocou-se na escuridão contra um
homem que cambaleava diante deles, sem procurar avançar. Nesse mesmo
momento as luzes de nossa cidade, que se acendiam cada vez mais tarde,
resplandeceram bruscamente. O alto lampião por trás deles iluminou
subitamente o homem, que ria sem ruído, de olhos fechados. Em seu rosto
esbranquiçado, distendido por uma hilaridade muda, o suor corria em grossas
gotas.
- É um louco - disse Grand.
Rieux, que acabava de pegá-lo pelo braço para arrastá-lo, sentiu que o
empregado municipal tremia de nervoso.
- Dentro em pouco, não haverá senão loucos dentro de nossos muros -
concordou Rieux. com o cansaço, sentia a garganta seca. Vamos tomar qualquer
coisa.
No pequeno café em que entraram, iluminado por um único lampião em
cima do balcão, as pessoas falavam em voz baixa, sem razão aparente, no ar
espesso e avermelhado.
No balcão, Grand, para grande surpresa do médico, pediu aguardente,
que bebeu de um trago, e declarou ser muito forte. Depois quis sair. Lá fora,
parecia a Rieux que a noite estava cheia de gemidos. Em qualquer parte, no céu
negro, um sibilar surdo lembrou-lhe o invisível flagelo que agitava
incansavelmente o ar quente.
- Ainda bem, ainda bem - murmurava Grand. Rieux perguntava a si
próprio o que ele queria dizer. - Ainda bem - continuava o outro - que tenho meu
trabalho.
- Sim - disse Rieux -, isso é uma vantagem.
E, decidido a não escutar o sibilar, perguntou a Grand se estava contente

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