Você está na página 1de 2

optarem, em seguida, por perder nas cartas, no café e em tagarelices o tempo que

lhes resta para viver. Mas há cidades e países em que as pessoas, de vez em
quando, suspeitam que exista mais alguma coisa. Isso, em geral, não lhes
modifica a vida. Simplesmente, houve a suspeita, o que já significa algo. Oran,
pelo contrário, é uma cidade aparentemente sem suspeitas, quer dizer, uma
cidade inteiramente moderna. Não é necessário, portanto, definir a maneira como
se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que
se convencionou chamar ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois.
Isso tampouco é original. Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo
e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.
O que é mais original na nossa cidade é a dificuldade que se pode ter
para morrer. Dificuldade, aliás, não é o termo exato: seria mais certo falar em
desconforto. Nunca é agradável ficar doente, mas há cidades e países que nos
amparam na doença e onde podemos, de certo modo, nos entregar. O doente
precisa de carinho, gosta de se apoiar em alguma coisa. É bastante natural. Em
Oran, porém, os excessos do clima, a importância dos negócios que se tratam, a
insignificância do cenário, a rapidez do crepúsculo e a qualidade dos prazeres,
tudo exige boa saúde. Lá o doente fica muito só. O que dizer então daquele que
vai morrer, apanhado na armadilha por detrás das paredes crepitantes de calor,
enquanto, no mesmo minuto, toda uma população, ao telefone ou nos cafés, fala
de letras de câmbio, de conhecimentos ou de descontos? Compreenderão o que
há de desconfortável na morte, mesmo moderna, quando ela chega assim, num
lugar seco.
I
Essas poucas indicações dão talvez uma ideia suficiente da nossa cidade.
Aliás, é necessário não exagerar. O importante era ressaltar o aspecto banal da
cidade e da vida. Mas os dias transcorrem sem dificuldades, desde que se tenham
criado hábitos. A partir do momento em que nossa cidade favorece justamente os
hábitos, pode-se dizer que tudo vai bem. Sob este aspecto, sem dúvida, a vida
não é muito emocionante. Pelo menos, desconhece-se a desordem. E a nossa
população franca, simpática e ativa sempre despertou no viajante uma estima
considerável. Esta cidade sem pitoresco, sem vegetação e sem alma acaba
parecendo repousante, e afinal adormece-se nela. Mas é justo acrescentar que
está enxertada numa paisagem sem igual, no meio de um planalto nu, rodeada
de colinas luminosas, diante de uma baía de desenho perfeito. Pode-se apenas
lamentar que tenha sido construída de costas para essa baía e que, portanto, seja
impossível ver o mar. É sempre preciso ir procurá-lo.
Agora, podemos admitir sem dificuldade que nada podia fazer prever aos
nossos cidadãos os incidentes que se produziram na primavera desse ano e que
foram, como compreendemos depois, os primeiros sinais dos acontecimentos
graves cuja crónica nos propusemos fazer aqui. Esses fatos parecerão a alguns
perfeitamente naturais e a outros, pelo contrário, inverossímeis. Mas, afinal, um
cronista não pode levar em conta essas contradições. Sua tarefa é apenas dizer:
”Isso aconteceu”, quando sabe que isso, na verdade, aconteceu; que isso
interessou à vida de todo um povo, e que, portanto, há milhares de testemunhas
que irão avaliar nos seus corações a verdade do que ele conta.
Aliás, o narrador, que se revelará no momento oportuno, não disporia de
meios para lançar-se num empreendimento desse género se o acaso não o tivesse
posto em condições de recolher um certo número de depoimentos e se a força das
circunstâncias não o tivesse envolvido em tudo o que pretende relatar. É isso que
o autoriza a agir como historiador. É claro que um historiador, mesmo que não
passe de um amador, tem sempre documentos. O narrador desta história tem,
portanto, os seus: em primeiro lugar, o seu testemunho; em seguida, o dos
outros, já que, pelo seu papel, foi levado a recolher as confidências de todas as
personagens desta crónica; e, finalmente, os textos que acabaram caindo em suas
mãos. Pretende servir-se deles quando lhe parecer útil e utilizá-los como lhe
aprouver. Propõe-se ainda. .. Mas é talvez tempo de abandonar os comentários e
as precauções de linguagem para passar ao assunto em si. O relato dos primeiros
dias exige certa minúcia.
Na manhã do dia 16 de abril, o Dr. Bernard Rieux saiu do consultório e
tropeçou num rato morto, no meio do patamar. No momento, afastou o bicho sem
prestar atenção e desceu a escada. Ao chegar à rua, porém, veio-lhe a ideia de
que esse rato não estava no lugar devido e voltou para avisar o porteiro. Diante
da reação do velho Michel sentiu melhor o que sua descoberta tinha de insólito. A
presença desse rato morto parecera-lhe apenas estranha, enquanto para o
porteiro constituía um escândalo. A posição deste último era aliás categórica: não
havia ratos na casa. Por mais que o médico lhe garantisse que havia um no
patamar do primeiro andar, provavelmente morto, a convicção de Michel
permanecia firme. Não havia ratos na casa, e era necessário que tivessem trazido
este de fora. Em resumo, tratava-se de uma brincadeira.
Nessa mesma noite, Bernard Rieux, de pé no corredor do prédio,
procurava as chaves antes de subir para sua casa, quando viu surgir, do fundo

Você também pode gostar