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ALBERT CAMUS [An

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quero dizer... você me compreende — (parecia envergonha d por se
ter animado) — gosto demais da vida para me satisfazer com a
natureza (25).
Bernard guardou o estetoscópio e fechou o estojo. Mersault lhe
disse:
— No fundo, você é um idealista.
Mersault tinha a impressão de que tudo se encerra no momento
que vai do nascimento à morte, que tudo se julgava e consagrava aí.
— Sabe (26) — disse Bernard, com uma espécie de tristeza — o
contrário de um idealista é, muitas vezes, um homem sem amor.
— Nem sempre — disse Mersault, estendendo-lhe a mão.
Bernard apertou-a demoradamente.
— Pelo fato de pensarem como você — disse, sorrindo — só há
homens que vivem num grande desespero (27) ou numa grande
esperança.
— Talvez as duas coisas.
— Quanto a mim, não coloco a questão!
— Eu sei — disse Mersault, num tom grave.
Mas quando Bernard ia sair, Mersault, movido por um impulso
irrefletido, chamou-o.
— Sim? — respondeu o médico, voltando-se.
— Você é capaz de sentir desprezo por um homem?
— Acho que sim.
— Em que condições?
O outro refletiu.
— Parece-me bem simples. Em todos os casos em que fosse
movido pelo interesse ou pelo dinheiro.
— E simples, na verdade — disse Mersault. — Boa noite,
Bernard.
— Boa noite.
Uma vez só, Mersault ficou pensando. No ponto que tinha
atingido, o desprezo de alguém deixava-o indiferente. Mas reconhecia
em Bernard afinidades profundas, que o aproximavam dele. Parecia-
lhe insuportável que uma parte dele julgasse a outra. Teria agido por
interesse? Tinha consciência daquela verdade essencial e imoral de
que o dinheiro é um dos meios mais seguros e mais rápidos de
conquistar a dignidade. Conseguira rechaçar a amargura que se
apodera de toda alma bem-nascida, por considerar o que têm de
digno e de vil o nascimento e as condições de crescimento de um
belo destino. Aquela maldição sórdida e revoltante, segundo a qual os
pobres acabam na miséria uma vida que começou na miséria, ele a
rejeitara, combatendo o dinheiro com o dinheiro, o ódio com o ódio. E
desse combate entre feras saía às vezes um anjo, todo entregue à
felicidade de suas asas e de sua glória, sob o sopro morno do mar.
Mas, afinal, ele não contara nada a Bernard, e toda a sua obra ficaria
secreta de agora em diante (28).

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ALBERT CAMUS [An
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Na tarde do dia seguinte, por volta de cinco horas, as moças


foram embora. Ao entrarem no ônibus, Catherine voltou-se para o
mar:
— Até logo, praia — disse (29).
Momentos depois, três rostos (30) sorridentes olhavam para
Mersault através dos vidros traseiros, e, como um grande inseto
dourado, o ônibus amarelo desaparecia na luz. O céu, embora puro,
estava um pouco opressivo. Mersault, só naquela estrada, sentia no
fundo do coração um sentimento mesclado de libertação e tristeza.
Só agora, a sua solidão tornava-se real, porque só agora ele se sentia
ligado a ela. E, o fato de tê-la aceitado, de saber que de agora em
diante seria dono de seus dias, enchia-o de uma melancolia que
acompanha toda grandeza.
Em vez de pegar a estrada, voltou por entre as oliveiras e
alfarrobeiras, pelo atalho que passava no sopé da montanha e
desembocava atrás da casa. Esmagou com o pé algumas azeitonas e
deu-se conta de que todo o caminho estava coberto de manchas
negras. No fim do verão, as alfarrobeiras davam um cheiro de amor a
toda a Argélia, e à noite, ou depois da chuva, é como se a terra
inteira repousasse, depois de se ter entregue ao sol, com o ventre
molhado de uma seiva perfumada de amêndoas amargas. Durante o
dia todo, aquele cheiro descia das grandes árvores, pesado e
opressivo. Naquele atalho, com o crepúsculo e o suspiro descontraído
da terra, o cheiro tornava-se leve, quase imperceptível às narinas de
Patrice — como uma amante com quem se sai para a rua depois de
uma tarde sufocante, e que nos olha, colada ao ombro no ombro, por
entre as luzes e a multidão.
Diante daquele cheiro de amor e dos frutos esmagados e
perfumados, Mersault compreendeu, então, que se aproximava o fim
da estação. Ia começar um longo inverno. Mas ele estava preparado
para esperá-lo. Daquele caminho, não se via o mar, mas no topo da
montanha, conseguia-se vislumbrar as brumas leves e avermelhadas,
que anunciavam a noite. No chão, manchas de luz empalideciam por
entre as sobras da folhagem. Mersault respirou fundo o cheiro
amargo e perfumado, que consagrava nessa noite as suas núpcias
com a terra. A noite que descia sobre o mundo, no pequeno atalho
entre as oliveiras e os lentiscos, sobre os vinhedos e a terra
vermelha, perto do mar que assobiava suavemente, penetrava-o
como uma maré. Tantas noites idênticas tinham constituído para ele
uma promessa de felicidade que, ao sentir aquilo como felicidade, fez
com que avaliasse o caminho percorrido entre a esperança e a
conquista. Na inocência do seu coração, aceitava
aquele céu verde e aquela terra molhada de amor, com o mesmo
estremecimento de paixão e de desejo com que matara Zagreus na
inocência de seu coração.

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CAPÍTULO V

Em janeiro, floresceram as amendoeiras. Em março, macieiras,


pereiras e pessegueiros cobriram-se de flores. No mês seguinte, os
riachos incharam imperceptivelmente e voltaram a um nível normal.
No início de maio, cortou-se o feno, e, nos últimos dias, fez-se a
colheita da aveia e cevada. Os damascos já inflavam com o verão. Em
junho, as peras precoces surgiram com as grandes colheitas. As
fontes já secavam e o calor aumentava. Mas o sangue da terra,
esgotado desse lado, fazia brotar, então, os algodoeiros e adoçava as
primeiras uvas. Fez-se um forte vento ardente, que secou as terras e
acendeu incêndios por toda a parte. E depois, subitamente, o ano
declinou. Apressadamente, as vindimas terminaram. A chuva, em
grandes temporais, varreu a terra de setembro a novembro. Com ela,
mal terminaram os trabalhos de verão, começaram as primeiras
semeaduras, enquanto os riachos bruscamente se engrossavam e
jorravam em torrentes de água. No fim do ano, o trigo já germinava
em certas terras, enquanto outras mal acabavam de ser trabalhadas.
Pouco depois, as amendoeiras novamente mostravam-se brancas no
céu gelado e azul. Um novo ano começava na terra e no céu. Plantou-
se tabaco, as vinhas foram podadas e impregnadas de enxofre,
enxertaram-se árvores. No mesmo mês, as nêsperas amadureceram.
Novamente o feno, as colheitas e as lavras de verão. No meio do ano,
gordos frutos suculentos, que se colavam aos dedos, guarneciam as
mesas: figos, pêssegos e peras, que eram comidos gulosamente
entre duas debulhas. Nas vindimas seguintes, o céu se cobriu. Vindos
no norte, passaram bandos negros e silenciosos de estorninhos e de
tordos. Para eles, as azeitonas já estavam maduras, colhiam-se logo
depois da sua passagem. Na terra pegajosa, o trigo germinou pela
segunda vez. Grandes nuvens, também vindas do norte, passaram
sobre o mar e a terra, escovaram a espuma do mar, deixando-o limpo
e gélido sob um céu de cristal (1). Durante vários dias, houve
relâmpagos longínquos e silenciosos na noite. Começou o primeiro
frio.
Mais ou menos nessa época; Mersault caiu de cama pela
primeira vez. Os ataques de pleurisia prenderam-no um mês em seu
quarto. Quando se levantou, as últimas encostas do Chénoua
estavam cobertas de árvores floridas, que desciam em direção ao
mar. A primavera nunca (2) o encontrara tão sensível. E, na primeira
noite de convalescença, caminhou durante muito tempo pelas terras
até a colina cheia de ruínas onde dormia Tipasa. Num silêncio
povoado de ruídos sedosos do céu, a noite era como um leite sobre o
mundo. Mersault caminhava sobre a falésia, impregnado da grave
meditação daquela noite. Um pouco abaixo, o mar assobiava
suavemente; cheio de lua e veludo, macio e liso como um animal.
Naquele momento, em que sua vida parecia tão distante, só,

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