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quero dizer... você me compreende — (parecia envergonha d por se
ter animado) — gosto demais da vida para me satisfazer com a
natureza (25).
Bernard guardou o estetoscópio e fechou o estojo. Mersault lhe
disse:
— No fundo, você é um idealista.
Mersault tinha a impressão de que tudo se encerra no momento
que vai do nascimento à morte, que tudo se julgava e consagrava aí.
— Sabe (26) — disse Bernard, com uma espécie de tristeza — o
contrário de um idealista é, muitas vezes, um homem sem amor.
— Nem sempre — disse Mersault, estendendo-lhe a mão.
Bernard apertou-a demoradamente.
— Pelo fato de pensarem como você — disse, sorrindo — só há
homens que vivem num grande desespero (27) ou numa grande
esperança.
— Talvez as duas coisas.
— Quanto a mim, não coloco a questão!
— Eu sei — disse Mersault, num tom grave.
Mas quando Bernard ia sair, Mersault, movido por um impulso
irrefletido, chamou-o.
— Sim? — respondeu o médico, voltando-se.
— Você é capaz de sentir desprezo por um homem?
— Acho que sim.
— Em que condições?
O outro refletiu.
— Parece-me bem simples. Em todos os casos em que fosse
movido pelo interesse ou pelo dinheiro.
— E simples, na verdade — disse Mersault. — Boa noite,
Bernard.
— Boa noite.
Uma vez só, Mersault ficou pensando. No ponto que tinha
atingido, o desprezo de alguém deixava-o indiferente. Mas reconhecia
em Bernard afinidades profundas, que o aproximavam dele. Parecia-
lhe insuportável que uma parte dele julgasse a outra. Teria agido por
interesse? Tinha consciência daquela verdade essencial e imoral de
que o dinheiro é um dos meios mais seguros e mais rápidos de
conquistar a dignidade. Conseguira rechaçar a amargura que se
apodera de toda alma bem-nascida, por considerar o que têm de
digno e de vil o nascimento e as condições de crescimento de um
belo destino. Aquela maldição sórdida e revoltante, segundo a qual os
pobres acabam na miséria uma vida que começou na miséria, ele a
rejeitara, combatendo o dinheiro com o dinheiro, o ódio com o ódio. E
desse combate entre feras saía às vezes um anjo, todo entregue à
felicidade de suas asas e de sua glória, sob o sopro morno do mar.
Mas, afinal, ele não contara nada a Bernard, e toda a sua obra ficaria
secreta de agora em diante (28).
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ALBERT CAMUS [An
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CAPÍTULO V