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COLCHA DE RETALHOS:
ESTUDOS SOBRE A
FAMÍLIA NO BRASIL
Série 40 e tantos
Coleção Avakuaaty – PPGAS UNICAMP

Coordenação
Omar Ribeiro Thomaz

Conselho Editorial
Adriana Piscitelli – Amneris Angela Maroni – Ana Maria de Niemeyer –
Antonio Augusto Arantes – Antonio Guerreiro Jr. – Artionka Capiberibe –
Bela Feldman Bianco – Carlos Rodrigues Brandão – Christiano Tambascia –
Emília Pietrafesa de Godoi – Guita Grin Debert – Heloísa André Pontes –
Isadora Lins – John Manuel Monteiro ( in memorian) – José Maurício Arruti
– Maria Filomena Gregori – Maria Suely Kofes – Mariza Corrêa – Mauro W.
Barbosa de Almeida – Nádia Farage – Nashieli Loera – Omar Ribeiro
Thomaz – Regina Fachini – Rita de Cássia Lahoz Morelli – Ronaldo Rômulo
Machado de Almeida – Susana Durão – Vanessa Rosemary Lea

huya editorial

Conselho Editorial
Miguel Vale de Almeida – Universidade de Lisboa
Benedict Anderson (in memoriam) – Cornell University
Jean-Philippe Belleau – University of Massachusetts, Boston
Maria Elvira Diaz Benítez – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Hauke Brunkhorst – Universität-Flensburg, New School for Social Research
Sérgio Costa – Freie Universität Berlin
Teresa Cruz e Silva – Universidade Eduardo Mondlane
Guy Dallemand (in memoriam) – Université d'Etat d'Haïti
Mamadu Jao – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa da Guiné-Bissau
Claudio Lomnitz – Columbia University
Sebastião Nascimento – Universität-Flensburg
João de Pina-Cabral – University of Kent
Elisa Reis – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Verena Stolcke – Universitat Autònoma de Barcelona
Abram de Swaan – Universiteit van Amsterdam
Omar Ribeiro Thomaz – Universidade Estadual de Campinas
COLCHA DE RETALHOS
ESTUDOS SOBRE A FAMÍLIA NO BRASIL

3a edição revista

Antonio Augusto Arantes


Carlos Rodrigues Brandão
Mariza Corrêa (organizadora)
Bela Feldman-Bianco
Suely Kofes
Robert Slenes
Verena Stolke
Alba Zaluar

Prefácio à nova edição:


Sabrina Finamori

Revisão da nova edição:


Omar Ribeiro Thomaz
Sebastião Nascimento
Edições anteriores:
© 1a edição: Editora Brasiliense, 1982
© 2a edição: Editora da Unicamp, 1993

Tradução do capítulo 3: Nádia Farage

Revisão da 3aedição: Omar Ribeiro Thomaz


Sebastião Nascimento

C823c Corrêa, Mariza (organizadora).


Colcha de retalhos: estudos sobre a família no Brasil / Mariza Corrêa
(org.) [et alii]. – 3a. ed. – Curitiba: huya, 2016. 271p.

1. Família – Constituição. 2. Vida familiar. Sistemas de organização familiar.


3. Relações de parentesco. 4. Hierarquia (etnologia) familiar. 5. Mulheres e
emprego. 6. Situação da mulher na família. I. Corrêa, Mariza. II. Título.

ISBN 978-85-67498-05-8 CDU 347.611


392.3
392.31
392.37
396.5
396.6

Esta obra se encontra em domínio público pela vontade de seus autores, que
expressamente renunciam, irrevogavelmente e em âmbito mundial, a todos os seus
direitos patrimoniais e antecipam os efeitos do domínio público sobre seus direitos
morais, na extensão permitida por lei. Em qualquer hipótese de utilização, a autoria
da obra original deverá ser devidamente informada.

huya editorial
rua alferes müller, 35
82600-500 curitiba – pr
t +55 41 96531900
huya, 2016 huyaeditorial@gmail.com
ÍNDICE
Prefácio à nova edição: A colcha de retalhos da família e do parentesco
Sabrina Finamori .............................................................................................. 7

Apresentação da edição original


Mariza Corrêa ................................................................................................. 16

Repensando a família patriarcal brasileira: notas para o estudo das formas de


organização familiar no Brasil
Mariza Corrêa ................................................................................................. 23

Lares negros, olhares brancos: histórias da família escrava no século XIX


Robert Slenes .................................................................................................. 54

A família que não é sagrada: sistemas de trabalho e estrutura familiar nas


fazendas de café em São Paulo
Verena Stolcke ................................................................................................ 75

Parentes e parceiros: relações de produção e relações de parentesco entre


camponeses de Goiás
Carlos Rodrigues Brandão ............................................................................ 138

Capitalismo e família: os pequeno-burgueses


Bela Feldman-Bianco ...................................................................................191

As mulheres e a direção do consumo doméstico: estudo de papéis familiares


nas classes populares urbanas
Alba Zaluar ................................................................................................... 219

“Entre nós, mulheres, elas, as patroas, e elas, as empregadas”


Suely Kofes ................................................................................................... 246

Pais, padrinhos e o Espírito Santo: um reestudo do compadrio


Antonio Augusto Arantes .............................................................................257

Sobre as autoras e os autores ........................................................................269


PREFÁCIO À NOVA EDIÇÃO:
A COLCHA DE RETALHOS
DA FAMÍLIA E DO
PARENTESCO

SABRINA FINAMORI1

Tema central à antropologia desde seus primórdios, o parentesco


passou por muitas reviravoltas teóricas e metodológicas ao longo da
história da disciplina. Nas últimas décadas, impulsionado por questões
abertas pelas novas tecnologias reprodutivas, pelos estudos de gênero e
pelos movimentos sociais, que derem crescente visibilidade a famílias
gay/lésbicas, vem reassumindo lugar de destaque no cenário
antropológico internacional.
O reavivamento do interesse no tema tem sido, ainda, marcado não
por uma divisão entre família versus parentesco, baseada na clássica
oposição “nós”/“outros” em que o “nós” caberia à antropologia urbana
enquanto os “outros” seriam incumbência dos etnólogos, mas, ao
contrário, a proposta tem sido borrar essa fronteira, em favor de uma

1
Agradeço a Omar Ribeiro Thomaz pelo convite, que muito me honrou, para
escrever este prefácio e também a Heloisa Pontes e Guita Grin Debert pelas
generosas leituras. As posições que esboço aqui são, é claro, de minha inteira
responsabilidade.

7
interlocução entre estudos focados em populações tradicionais,
contextos rurais e urbanos, em diferentes períodos históricos2.
Esta reedição do Colcha de retalhos vem, assim, em ótima hora.3
Longe de se constituírem apenas como referência histórica datada, os
artigos aqui reunidos primam pelo frescor e atualidade que carregam,
inclusive nos pontos reafirmados nos debates mais contemporâneos
sobre família e parentesco. Antecipando tendências da produção
bibliográfica internacional sobre o tema, os artigos buscam uma
desnaturalização de modelos hegemônicos de família por meio de
análises mais contextualizadas. Em vez de abordarem a “família” como
a priori da vida social ou como um modelo transculturalmente
hegemônico, tomam a própria noção como objeto de investigação.
É de se destacar que temas que têm sido recuperados pela produção
atual já estavam presentes nos artigos aqui reunidos. Entre eles, a
relevância das clivagens sociais para se pensar sobre a multiplicidade de
configurações e dinâmicas familiares, a importância das gerações e a
questão de gênero, que mesmo não nominada desse modo, já se
esboçava numa preocupação com o que, naquele momento, se
nomeava como a “situação da mulher”, ou melhor, das mulheres em
sua pluralidade. Os artigos, em seu conjunto, são também perpassados
por uma postura contrária à aplicação da noção de anomia a formas
particulares de família e pela reivindicação de uma leitura crítica das
fontes.
De diferentes modos e a partir de campos de pesquisa variados, os
autores aqui reunidos estavam preocupados com uma questão que tem
2
Nesta direção, ver por exemplo, Carsten (2000, 2004), Franklin & Mckinonn (2001),
Sahlins (2013), Strathern (2005), entre muitos outros. O recente volume da Revista
Vibrant (2011) também traz um dossiê sobre Antropologia do Parentesco que
apresenta uma coleção heterogênea de artigos que abarca distintos campos de
pesquisa e metodologias.
3
A primeira edição de Colcha de retalhos é de 1982, e contava com o capítulo de
autoria de Alba Zaluar, ausente na segunda edição, de 1993 que, por sua vez,
apresentava a contribuição de Robert Slenes. A presente edição reúne todos os textos.

8
sido central ao debate contemporâneo sobre família, qual seja: a
conjunção analítica entre as construções simbólicas das pessoas e
relações, os domínios da intimidade e da afetividade e os grandes
contextos políticos, econômicos e sociais nos quais essas relações se
desenvolvem4.
Acionando instrumentais teóricos e metodológicos variados, todos
os artigos apresentam, em suma, a preocupação em traçar as conexões
entre experiências íntimas familiares e questões políticas mais amplas,
mostrando a miríade de possíveis articulações entre as relações
cotidianamente estabelecidas no espaço doméstico ou baseadas em
relações de parentesco e os processos históricos maiores, como a
escravidão, as mudanças nas relações de produção, a urbanização ou as
divisões sexuais do trabalho.
Mariza Corrêa, por exemplo, realiza uma leitura interna do corpo
teórico que estabeleceu a noção de família patriarcal brasileira
(notadamente Gilberto Freyre e Antonio Candido), em conjunto à
releitura de textos de cronistas e viajantes e de pesquisas históricas
sobre o tema que a leva a questionar a família patriarcal como a única
forma de organização familiar no Brasil colonial. Robert Slenes, ao
trazer à discussão dados demográficos, relatos de observadores
estrangeiros em conjunto com a leitura de romances, mostra como o
apoio mútuo entre as noções de família patriarcal e propriedade
particular nublava a visão sobre a vida íntima dos escravos e suas
configurações familiares particulares. Já Suely Kofes, por meio de uma
pesquisa minuciosa sobre a relação entre patroas e empregadas, aponta
como a classe social era uma categoria insuficiente para explicar as
vivências particulares das mulheres no espaço doméstico, como patroas
ou empregadas, levantando a hipótese de que a própria existência da
instituição “empregada doméstica” deveria ser analiticamente levada em

4
Como apregoado, por exemplo, em coletâneas publicadas nos anos 2000, como
Franklin & Mckinnon (2001), Faubion (2001), Parkin & Stone (2004) e Carsten
(2007).

9
conta. O alentado artigo de Verena Stolcke mostra a complexa
correlação entre decisões reprodutivas, divisão sexual do trabalho e
sistemas econômicos, tendo em vista as consequências para a
organização familiar da transição do colonato para o assalariamento.
Carlos Rodrigues Brandão traça as conexões entre as relações
cotidianas de afeto, solidariedade e obrigação moral dentro da casa
como unidade de produção e o espaço mais amplo da propriedade,
mostrando como elas são também dependentes das regras de
parentesco. A partir de uma detalhada etnografia, Alba Zaluar
demonstra como algo, à primeira vista tão pessoal, como as escolhas
alimentares de uma família constituem-se também escolhas culturais
perpassadas por mediações ideológicas e psicológicas. Bela Feldman-
Bianco, por meio de análise genealógica e histórias de família, aponta
as diferentes estratégias de indivíduos e unidades domésticas ao reagir
ou promover mudanças sociais, buscando assim conciliar
analiticamente a economia política às ações individuais dentro de um
contexto histórico específico. Antonio Augusto Arantes, ao mostrar a
especificidade do compadrio, sua diferenciação em relação à família
como instituição e o modo como cria relações preferenciais, aponta
que as relações de compadrio podem redefinir aspectos econômicos e
políticos da vida familiar.
Ao fazer uso do instrumental clássico da antropologia do parentesco
em conjunto com a história e a demografia, os artigos recuperam,
assim, os significados dos termos família e parentesco para além de
definições normativas. Em resumo, longe de se prenderem a autores,
teorias ou áreas disciplinares, eles têm por característica a constante
interlocução entre diferentes áreas do conhecimento e refletem
também questões e preocupações caras a um debate acadêmico mais
amplo que abarcava inclusive o ativismo social do período. O contexto
da produção desta coletânea é também marcado pelo pioneirismo da
Unicamp e, em particular, do programa de pós-graduação em
Antropologia Social, que foi pródigo em mostrar como o instrumental

10
antropológico poderia iluminar experiências sociais que nem sempre
haviam sido contempladas pelo debate acadêmico5. Produzidos, desse
modo, num momento em que os movimentos sociais cresciam e a
reflexão feminista ganhava corpo e assumia forte presença nos
corredores das universidades – e da Unicamp em particular – todos os
artigos, em maior ou menor grau, estão atentos à particularidade, e ao
mesmo tempo à pluralidade, da experiência feminina em contextos
históricos e sociais variados. Fazendo uso, muitas vezes, da categoria
mulher que emerge, naquele período, a um só tempo como sujeito
político e como objeto de estudos, os artigos trazem reflexões seminais
que seriam fundamentais para o desenvolvimento dos estudos de
gênero e para os novos direcionamentos dos estudos de família, que
ganham envergadura nos anos seguintes justamente a partir da crítica
feminista6.

5
Sobre o trânsito entre o debate acadêmico e os movimentos sociais (o feminista em
particular) consultar o artigo de Mariza Corrêa (2001), no qual ela tece uma reflexão
instigante desde a perspectiva de sua própria participação. Este trânsito se reflete não
só na produção destes autores como também na de seus orientandos. Heloisa Pontes,
primeira orientanda de Mariza, em sua dissertação sobre o SOS Mulher, defendida
em 1986, elabora uma vívida reflexão sobre sua participação nestes dois universos
distintos, a academia e o movimento feminista, bem como seus reflexos na pesquisa
que desenvolveu. De modo ampliado, mostra também como esta circulação era
frequente, no período, entre os estudantes de ciências sociais, que passam a dar
destaque a temas até então relegados a segundo plano, como as minorias (Pontes,
1986). A dissertação de Nestor Perlongher (também defendida em 1986 e reeditada
em livro em 2006) sobre a prostituição viril e o negócio do michê é outro belo
exemplar das pesquisas desenvolvidas à época na Unicamp.
6
O debate sobre gênero, família, parentesco foi especialmente profícuo na produção
antropológica anglo-saxônica da década de 1980, momento em que são publicadas
coletâneas antropológicas importantes que buscam repensar a teoria clássica de
parentesco à luz das discussões de gênero, entre elas duas das mais importantes foram
organizadas por McCormak & Strathern (1980) e Collier & Yanagisako (1987). Para
uma ótima revisão sobre a produção feminista que repensa as teorias antropológicas
de parentesco entre as décadas de 1970 e 1990, ver Piscitelli (1998). Sobre a relação
entre a crítica feminista e a noção de família, em específico, consultar Thorne (1992).
A correlação entre os temas família e gênero foi tão importante que, por muito
tempo, nomeou uma das áreas do doutorado em Ciências Sociais da Unicamp.
Criada em 1993, a área “Família e Relações de Gênero”, passou, em 2004, a ter a
denominação Estudos de Gênero. Vinculada ao Doutorado em Ciências Sociais da

11
Alguns dos artigos são ainda reflexões iniciais ou parciais de
pesquisas maiores, que resultaram em publicações posteriores, como é,
por exemplo, o caso do artigo de Kofes, fruto da pesquisa de
doutorado defendida em 1991 e publicada em livro em 2001, que, a
partir do instrumental teórico da antropologia, traz uma reflexão
original sobre relações de gênero, num momento em que a questão não
era nomeada deste modo. Ou, ainda, o artigo de Zaluar, que traz
resultados da pesquisa de doutoramento publicada no livro “A máquina
e a revolta” em 1985, pioneiro da antropologia urbana, e que é até hoje
uma referência central para se compreender o crescimento da violência
urbana em correlação à exposição midiática.
A importância dos artigos reunidos na coletânea reside não só na
originalidade da abordagem e das questões propostas naquele
momento, mas também no fato de terem se tornado referenciais para
as pesquisas posteriores. Largamente citados até hoje, o artigo de
Mariza Corrêa e o de Slenes (que posteriormente iria compor a obra
“Na Senzala, uma flor”, de 1999, reeditado em 2011), são exemplares
nessa direção. Ao rever a noção de família patriarcal e sublinhar a
variabilidade de experiências familiares no período colonial, propõem
uma revisão historiográfica que foi, e ainda é, inspiradora para mais de
uma geração de cientistas sociais e historiadores, que deram
continuidade a pesquisas sobre o tema e que tem neles referências
centrais. Ao colocar em xeque a centralidade da “família patriarcal”,
como noção teórica e como realidade empírica predominante,
levantam a possibilidade não só de repensar esse modelo no contexto
colonial, como também de questionar como a própria noção de família
pode se tornar uma camisa de força e ter usos políticos específicos

Unicamp, apresenta rica interlocução com o Pagu (Núcleo de Estudos de Gênero) ao


qual suas professoras estão associadas. A reflexão sobre gênero e família continua,
ainda hoje, presente, não só no Pagu, mas em outros centros de estudos de gênero do
país, gerando vigorosas produções bibliográficas coletivas, ver, por exemplo,
Heilborn, Duarte, Peixoto & Barros (2005), Souza (2006), Grossi & Schwade (2006),
Debert, Gregori & Oliveira (2008) e Piscitelli, Assis & Olivar (2011).

12
quando encapsulada por um modelo – como patriarcal, conjugal,
nuclear – que põe de lado outras experiências sociais e mesmo a
criatividade e a possibilidade de burla das normas oficiais. Um ponto
importante é, então, o duplo efeito, teórico e político, deste
questionamento. “O desvio não estava”, como aponta Slenes, “no lar
negro, mas no olhar branco”.
Se a perenidade de uma obra pode ser medida pelas numerosas
citações que ela teve ao longo do tempo (e este é, certamente o caso
dos artigos aqui reunidos), uma medida mais precisa de sua influência é
a inspiração que ela promoveu para diferentes gerações de
pesquisadores, que tendo nela uma primeira referência desdobram o
tema e avançam em outras direções. Este é o caso desta pequena
coletânea, cujo impacto foi significativo na formação e nas escolhas
profissionais de muitos daqueles que foram alunos, orientandos,
interlocutores diretos ou simplesmente leitores dos autores aqui
reunidos. Este é também o meu caso. Tendo passado os últimos anos
de minha vida acadêmica como aluna da Unicamp, da graduação ao
doutorado, e sido também pesquisadora pós-doc no Pagu, o Núcleo de
Estudos de Gênero da Unicamp, peço a licença para finalizar este
prefácio com uma nota pessoal. Esta obra e seus autores, muitos dos
quais foram meus professores, tiveram papel decisivo em minha
formação como antropóloga e despertaram em particular meu interesse
para os estudos de família e de gênero. Algumas das perspectivas aqui
esboçadas, como a importância da análise de carreiras de vida em
correlação a contextos sociais precisos, conforme destacado por Bela
Feldman-Bianco, as múltiplas possibilidades do uso criativo do
instrumental antropológico, conforme sugerido por Suely Kofes, que,
naquele momento o acionava para “precisar as singularidades da
vivência feminina sem negar o seu universo comum” ou a
necessidade de questionar não só empírica e teoricamente como uma
história pode ser contada, mas também politicamente, conforme
apontado por Mariza Corrêa – foram, para mim, lições fundamentais

13
aprendidas em aulas e que já estavam presentes nesta obra seminal,
agora novamente disponível para mais uma geração de antropólogos.
Depois de mais de trinta anos de sua publicação original, a obra, que já
pode ser considerada clássica, em sentido forte do termo, não se
fechou nas particularidades do contexto em que foi produzida,
permanecendo, a um só tempo, aberta, referencial e inspiradora para
novos questionamentos.

Bibliografia
Carsten, J. (ed). Cultures of relatedness: new Approaches to the study of
kinship, Cambridge, Cambridge Univ. Press, 2000.
___. (ed.). Ghosts of memory: essays on remembrance and relatedness, Malden,
Blackwell Publishing, 2007.
Collier, A. & Yanagisako, S. Gender and kinship: essays toward a unified
analysis, Stanford, Stanford University Press, 1987.
Corrêa, M. “Do feminismo aos estudos de gênero no Brasil: um exemplo
pessoal”, Cadernos Pagu 16, Campinas, 2001: 13-30.
Corrêa, M. & Souza, E. R. (orgs.). Vida em família: uma perspectiva comparativa
sobre “crimes de honra”, Campinas, Pagu – Núcleo de Estudos de
Gênero/Universidade Estadual de Campinas, 2006.
Debert, G. G., Gregori, M. F. & Oliveira, M. Beraldo de. (orgs.). Gênero, família
e gerações: Juizado Especial Criminal e Tribunal do Júri, Campinas, Pagu –
Núcleo de Estudos de Gênero/Unicamp, 2008.
Faubion, J. (ed.). The ethics of kinship. Etnographic inquiries, Lanhan, Rowman
& Littlefield Publisher, 2001.
Franklin, S. & McKinnon, S. (eds.). Relative values: reconfiguring kinship
studies, London, Duke University Press, 2001.
Grossi, M. & Schwade, E. (orgs.). Política e cotidiano: estudos antropológicos
sobre gênero, família e sexualidade, Blumenau, Nova Letra, 2006.
Heilborn, M. L., Duarte, L. F. D., Peixoto, C., Barros, M. Lins de. Sexualidade,
família e ethos religioso, Rio de Janeiro, Garamond, 2005.
Kofes, S. Mulher, mulheres: identidade, diferença e desigualdade na relação
entre patroas e empregadas, Campinas, Editora da Unicamp, 2001.

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McCormack, C. & Strathern, M. (eds.). Nature, culture and gender, Cambridge:
Cambridge University Press, 1980.
Parkin, R. & Stone, L. (eds.). Kinship and family: an anthropological reader,
Oxford, Blackwell Publishing. 2004
Perlongher, N. O negócio do michê, 2ª ed., São Paulo, Editora Fundação Perseu
Abramo, 2008.
Piscitelli, A. “Nas fronteiras do natural: gênero e parentesco”, Estudos feministas
2, 1998: 305-321.
Piscitelli, A. G., Assis, G. O. & Olivar, J. M. (orgs.) . Gênero, sexo, amor e
dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil, Campinas: Pagu –
Núcleo de Estudos de Gênero/Unicamp, 2011.
Pontes, H. Do palco aos bastidores: o SOS-Mulher e as práticas feministas
contemporâneas [dissertação de mestrado], Campinas, Unicamp, 1986.
Sahlins, M. What kinship is... and is not, Chicago, The University of Chicago
Press, 2013.
Strathern, M. Kinship, law and the unexpected: relatives are always a surprise,
Cambridgem Cambridge University Press, 2005.
Silva, M. F. & Piscitelli, A. (eds.). Dossier “Anthropology of Kinship”, Vibrant –
Virtual Brazilian Anthropology 8 (2), July to December 2011.
Slenes, R. Na senzala, uma flor – esperanças e recordações na formação da
família escrava: Brasil Sudeste, século XIX, 2ª ed., Campinas, Editora da
Unicamp, 2011.
Thorne, B. “Feminism and the family: two decades of thought”, in B. Thorne &
M. Yalom (orgs.). Rethinking the family: some feminist questions, Boston,
Northeastern University Press, 1992.
Zaluar, A. A Máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da
pobreza, São Paulo, Brasiliense, 1985.

15
APRESENTAÇÃO DA
EDIÇÃO ORIGINAL
MARIZA CORRÊA

A família é um tema de pesquisa caro aos antropólogos há muito


tempo e muitas vezes tomado como o próprio eixo fundador da
nossa disciplina. Neste sentido, seria possível escrever uma
história da antropologia no Brasil seguindo a trajetória das
pesquisas sobre a família que, em boa parte, acompanharam a
sina de todas as outras pesquisas e assim poderiam ser descritas a
partir de sua abordagem “evolucionista” ou “funcionalista” ou
“estruturalista” ou “marxista”, entre outras. Mas este é também
um tema que, apesar de muito pesquisado, não o foi o suficiente:
as grandes áreas de sombra sobre este campo talvez pudessem
ser explicadas por duas posições comuns não só na antropologia,
mas também nas ciências sociais como um todo. A primeira é a
posição, nunca explicada, de que a família é um mal a ser
combatido, irmã gêmea ou reverso da posição apologética de que
a família é a célula mater da sociedade ou refúgio das atribuições
do mundo. Ambas as visões se expressam em análises genéricas,
seja a respeito das “grandes famílias” – a família patriarcal de
Gilberto Freyre ou os clãs de Oliveira Vianna, por exemplo –,
seja na abundante literatura religiosa dos mais diversos matizes
sobre a “crise da família” ou nas denúncias sócio-psico-políticas
de seu papel repressor ou de mera reprodutora das
desigualdades sociais.

16
A segunda, talvez consequência deste tomar partido a favor ou
contra a família, é a posição de ignorância em que nos
encontramos quase todos os que nos interessamos pelo tema,
seja pela escassa produção de pesquisas sobre ele, seja porque
frequentemente deixamos de incorporar à nossa reflexão uma
perspectiva crítica a respeito da forma como ele tem sido
historicamente analisado em nosso país. É mais comum que
saibamos de maneira detalhada a diferença entre a família
punaluana e a família sindiásmica do que conheçamos as análises
de Oliveira Vianna sobre o papel da família nos estudos de
comunidade.
Estas duas posições têm tido como resultado uma tênue
continuidade de certas linhas de pesquisas que, mesmo quando
iniciadas, são rapidamente esquecidas. A importância do
parentesco por afinidade, para citar apenas um exemplo, que Lévi-
Strauss colocou no centro do debate sobre a família a partir de um
certo momento, passou no entanto quase despercebida quando
apontada por Oliveira Vianna, Gilberto Freyre ou Antonio
Candido. Isto implica não apenas uma fragmentação deste campo
em pesquisas mais ou menos autônomas, que não apanham um
problema para levá-lo até o limite de suas possibilidades, como
também a frequente repetição de erros, ou acertos, já estabelecidos
em pesquisas anteriores. Este é o caso, por exemplo, da recorrente
afirmação da “anomia” ou desorganização da vida familiar
brasileira. Estes supostos, durante muito tempo presentes nos
estudos sobre a família, só recentemente têm sido retomados e
discutidos. Outras áreas de pesquisa, como a que começa a se
definir a respeito da situação da mulher na sociedade brasileira,
também se ressentem dessa descontinuidade nos estudos sobre a
família. Os espaços vazios, que por enquanto só podem ser
preenchidos por conjeturas, sobre questões como a da reprodução
humana e seu controle familiar, a atuação política das mulheres

17
donas de casa ou a violência intrafamiliar rebatem, assim, em
outros campos de pesquisa.
Se o tema “família” ocupou sempre um importante lugar nas
preocupações dos cientistas sociais e dos antropólogos,
recentemente essa preocupação se tem expressado de forma mais
explícita. Algumas iniciativas importantes têm sido tomadas, como
a constituição de um grupo de trabalho interdisciplinar, na
Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
coordenado por Lia Fukui, o qual, na reunião de 1981, apresentou
interessantes contribuições ao debate. Ou a publicação dos dois
volumes da Bibliografia Anotada sobre a Mulher, com seções
destinadas ao tema que nos interessa, além de um número especial
dos Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, em São
Paulo. Estes exemplos estão citados aqui não só porque parecem
indicar que este tema recomeça um novo ciclo dentro da produção
das ciências sociais no Brasil, mas também para apontar alguns dos
interlocutores dos trabalhos aqui publicados. Os textos aqui
reunidos podem ser vistos como partes de um diálogo mais amplo
entre todos os que nos interessamos pela questão da família no
Brasil há um certo tempo, e é neste sentido que, implícita ou
explicitamente, nele tomam parte também autores que não
integram esta coletânea.
Neste livro, estão publicados trabalhos que foram desenvolvidos
de modo relativamente independente, mas que tratam, todos eles,
de questões que a discussão sobre a famí1ia tem provocado no
âmbito das ciências sociais nos últimos anos. Neles, vão-se
desdobrando vários dos aspectos possíveis de serem analisados do
ponto de vista das relações internas à família na sociedade
brasileira. Começando por uma reflexão sobre as limitações
decorrentes de se pensar a família a partir de modelos ideais, passa-
se a um estudo sobre as alterações que a estrutura familiar do
colono nas plantações de café sofreu historicamente e daí a uma

18
análise da combinação das relações de parentesco com as regras de
parceria no trabalho agrícola, numa região de pequenos
proprietários em Goiás. Da trajetória que uma família proprietária
de terras descreve num cenário de profundas modificações
econômicas, numa região que se urbaniza rapidamente, passa-se à
atuação das mães sobre a organização do consumo e da dieta
alimentar entre famílias urbanas, num conjunto habitacional do Rio
de Janeiro. Reflete-se sobre a construção e definição da mulher
enquanto patroa e enquanto empregada no espaço doméstico e
sobre o significado simbólico das relações de parentesco ritual
pesquisado entre pequenos agricultores do sertão da Bahia.
As relações entre as forças econômicas e ideológicas – entre
“valores culturais” e “realidades materiais” – são, assim, abordadas
de vários ângulos, apontando para as diferenças estruturais que
estas relações apresentam de acordo com o contexto, mais
imediato ou mais amplo, em que essas famílias são localizadas. Mas
as análises desses agrupamentos familiares permitem também
compará-los, observando semelhanças entre as estratégias
econômicas ou entre a posição ocupada pelas mulheres nestes
grupos. Ou, no nível simbólico, entre as representações que eles
estabelecem a respeito de sua comida, do espaço doméstico, das
relações de trabalho ou das próprias relações de parentesco.
Através do estudo contextualizado de certos grupos familiares, do
levantamento das questões que sua análise coloca e da retomada
destas questões em outros contextos é possível, então, acompanhar
as várias formas que a definição de família tem assumido, seja em
termos históricos, seja em termos de sua distribuição no espaço
social brasileiro ou em termos de sua definição teórica, entre
outros contextos possíveis de serem pensados. Mas é só num
cruzamento dessas definições externas a elas, e a partir de sua
análise interna, que podemos refletir sobre o campo de estudos
da família como um todo.

19
Cada um desses artigos nos faz mergulhar num universo às
vezes radicalmente diferente daquele em que vivemos ou do que
é descrito nos textos que o acompanham. Talvez por isso a
primeira leitura dos textos antropológicos costuma despertar um
entusiasmo frequentemente expresso em frases do tipo “esta é a
vida real, o momento que passa; estas são pessoas de verdade”.
Quem sabe este seja o mesmo entusiasmo que leva um
antropólogo até o sertão da Bahia, ou ao interior denso de
conflitos de uma casa de família, para tentar compreender uma
realidade que parece tão diferente da sua. Os antropólogos, no
entanto, têm frequentemente ambições bastante diversas das do
cronista ou do autor literário. Não se trata simplesmente de
registrar algo que poderá não estar mais aí amanhã, nem de
transformar a realidade observada através da invenção, embora
muitas vezes também se trate disso. Mas o objetivo explícito é
antes empregar o método descrito por um antropólogo inglês
como reculer pour mieux sauter, que poderíamos traduzir
livremente como “armar o pulo do gato”. Isto é, voltar-se
primeiro para os detalhes, as relações sutis e difíceis de serem
apanhadas em palavras, os gestos quase nunca nomeados, para
restitui-los depois a um painel mais amplo das relações sociais e
complicar um pouco as visões comuns que temos delas. Se a
primeira tentação do antropólogo é semelhante à do leitor à vista
de sua produção etnográfica, só depois de vendê-la, e vencer-se,
ele estará pronto para o salto. No campo dos estudos sobre a
família no Brasil estamos começando a armar o pulo: tratamos,
no momento, de destrinchar as relações cotidianas que sabemos
serem importantes para a construção de visões mais globais, às
quais nos arriscamos pouco, já que nossas certezas sobre o mais
imediato ainda são frágeis.
A melhor contribuição dos estudos aqui publicados é
apresentar ao leitor estes diferentes universos familiares e algumas

20
propostas para encaminhar uma discussão mais ampla sobre o
tema. Cada um dos autores destaca um aspecto daquelas relações
cotidianas que lhe parece relevante para a discussão mais geral; a
partir de pesquisas particulares e extensas, cada um situa o grupo
familiar que analisa no contexto no qual, de seu ponto de vista, faz
mais sentido colocar certas questões. Se há um ponto em comum
entre estes ensaios, e, no diálogo sobre a questão da família como
um todo, este é a afirmação da necessidade de mais pesquisas
deste tipo sobre aspectos particulares deste grande tema. E se há
alguma unidade de visão dos interlocutores, esta se manifesta no
desejo de não circunscrever, ou atrelar de antemão, as pesquisas
possíveis e necessárias a nenhuma definição teórica particular ou
excludente. Acredito que estamos todos muito atentos tanto para
as consequências de tentarmos definir, a família brasileira como
para os riscos de definir qualquer agrupamento familiar isolado
de seu contexto ou através de classificações exteriores, antes de
tentarmos compreender suas relações internas. Este, afinal, talvez
tenha sido o resultado mais importante do longo trabalho docente
que está subjacente a todos estes estudos e que implica, sempre
que abordamos a questão em cursos, a leitura e discussão do
debate mais amplo das ciências sociais de nosso tempo sobre ela.
Os autores aqui reunidos são todos professores na
Universidade Estadual de Campinas, com exceção de Verena
Stolcke que, depois de uma longa temporada conosco, trabalha
agora na Universitat Autònoma de Barcelona. * A ideia de reunir
estes textos em livro surgiu logo após a realização do Simpósio “A
Antropologia e os Movimentos Sociais”, realizado em Campinas
*
Nota de revisão: No momento em que se publica esta nova edição, todos os autores,
com exceção de Suely Kofes, já se aposentaram. Mariza Corrêa, Carlos Rodrigues
Brandão, Bela Feldman-Bianco, Antonio Augusto Arantes são professores
colaboradores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e do
Doutorado em Ciências Sociais, e Robert Slenes do Programa de Pós-Graduação em
História, todos no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp).

21
em maio de 1981, e quando percebemos que uma publicação do
tipo Anais do Simpósio, apesar de interessante, seria
extremamente fragmentada. Decidimos então começar com um
dos pontos levantados nas discussões que lá se deram, e
pretendemos que esta seja apenas a primeira de uma série de
coletâneas de trabalhos a respeito de temas debatidos no
Simpósio, mas cujo interesse extrapola os limites de sua realização
e as discussões em sala de aula.

22
REPENSANDO A FAMÍLIA
PATRIARCAL BRASILEIRA:
NOTAS PARA O ESTUDO
DAS FORMAS DE
ORGANIZAÇÃO FAMILIAR
NO BRASIL
MARIZA CORRÊA1

I
A história das formas de organização familiar no Brasil tem-se
contentado em ser a história de um determinado tipo de
organização familiar e doméstica – a “família patriarcal” –, um tipo
fixo onde os personagens, uma vez definidos, apenas se substituem
no decorrer das gerações, nada ameaçando sua hegemonia, e um
tronco de onde brotam todas as outras relações sociais. Ela se
instala nas regiões onde foram implantadas as grandes unidades
agrárias de produção – engenhos de açúcar, fazendas de criação ou

1
Este trabalho foi publicado anteriormente nos Cadernos de Pesquisa da Fundação
Carlos Chagas, de maio de 1981. Gostaria de agradecer aqui a meus alunos de
graduação em Ciências Sociais da Unicamp, com quem esta discussão primeiro foi
travada em 1976, e também a leitura paciente e sugestiva de alguns amigos: Verena
Stolcke, Alba Zaluar, Peter Fry, Ruth Cardoso, Amaral Lapa, Luiz Orlandi, Plínio
Dentzien e Suely Kofes.

23
de plantação de café –, mantém-se através da incorporação de
novos membros, de preferência parentes, legítimos ou ilegítimos, a
extensos “clãs” que asseguram a indivisibilidade de seu poder, e sua
transformação dá-se por decadência, com o advento da
industrialização e a ruína das grandes propriedades rurais, sendo
então substituída pela “família conjugal moderna”. Esta é o ponto
de chegada onde aquela é o ponto de partida, e seu oposto: típico
produto da urbanização, reduzida ao casal e seus filhos, a
finalidade do casamento não é mais principalmente a manutenção
de uma propriedade comum ou dos interesses políticos de um
grupo, mas sim a satisfação de impulsos sexuais e afetivos que na
família patriarcal eram satisfeitos fora de seu círculo imediato.2
Com algumas variações na utilização dos termos e maior ou
menor ênfase num ou noutro aspecto – por exemplo, a questão da
originalidade: a família patriarcal brasileira é um produto típico da
colonização portuguesa nos trópicos, ou foi importada de
Portugal? –, em linhas gerais este é o retrato que temos da família
brasileira através do tempo. Este é o modelo tradicionalmente
utilizado como parâmetro, é a história da família brasileira, todos
os outros modos de organização familiar aparecendo como
subsidiários dela ou de tal forma inexpressivos que não merecem
atenção.
A trajetória da ocupação do território natural brasileiro e de seu
espaço social é assim apresentada como uma linha cheia, central,
homogênea, que percorre a nossa história acompanhada de perto, nas
2
A expressão “família patriarcal brasileira” foi principalmente difundida por Gilberto
Freyre, também seu mais extenso pesquisador no Brasil. “Família conjugal moderna”
é expressão utilizada por Antonio Candido de Mello e Souza em sua caracterização
do ponto terminal da trajetória histórica da família brasileira. Não cabe discutir aqui a
“estratégia endogâmica”, a viabilidade prática do casamento entre parentes como
mecanismo de manutenção de grandes propriedades rurais, embora este seja um
ponto importante da questão. Para exemplos deste mecanismo, veja-se, entre outros,
Pedro Calmon (1939), Wanderley Pinho (1946) e Levi (1977); para uma objeção
teórica, J. L. dos Santos (1976).

24
margens, por linhas pontilhadas: ramificações, veredas, afluentes
secundários de um caminho seguramente traçado do exterior para o
interior do nosso mapa, do fundo do nosso passado para o presente,
dos campos para as cidades.
Iluminados por este padrão dominante, lemos nossa história a partir
dele, como se nessa biografia de um personagem central se
incorporassem todos os personagens centrais dos vários séculos,
sempre os mesmos; como se todos os caminhos levassem natural e
inexoravelmente ao caminho principal, o percorrido, e ele fosse um
desdobramento também natural de uma circunstância dada, ou um
resumo, um apanhado, das alternativas concretamente vividas.
Esta maneira de olhar achata todas as possibilidades imaginadas
e tentadas, reduzindo-as a extensões de um núcleo homogêneo
que não teria feito mais do que se expandir e progredir através do
tempo e do espaço, vindo afinal a ocupar o lugar que desde
sempre lhe esteve reservado. Escamoteando as alternativas,
tornando-as invisíveis, este olhar se alinha ao lado do modelo
dominante, ignorando que foi através de uma luta suja, de infinitos
pequenos conflitos e manipulações, e da violência, que este
modelo, afinal, se impôs.
A presença do sangue é expulsa desse retrato em branco e
preto, um retrato que ignora a “multidão dos terceiros”, dos
anônimos tão ocupados em fazer a história que são por ela
escassamente registrados – e quase nunca individualmente.
Registra-se a casa grande, e a senzala como sua sombra apagada ou
luxuriante; registram-se os nomes dos sobreviventes: quem se
importa com o nome dos mortos na luta?3

3
Para um desenvolvimento teórico dessas questões, ver José Honório Rodrigues
(1966).

25
II
Estas reflexões me são sugeridas no momento em que penso sobre
as formas de organização familiar no Brasil colonial. É possível
reduzir a imensa gama de possibilidades inscritas num espaço
natural e social aberto, muito lentamente ocupado e organizado, a
uma história na qual, mudando os personagens, permanece uma
fala central idêntica a si mesma, preenchida a cada geração por
novas palavras, sempre com o mesmo sentido? É possível ignorar
a soma de personagens, funções e a mobilidade envolvidos na
mais simples operação social no Brasil em seus primeiros anos de
existência, e aprisionar todos estes elementos num lugar
privilegiado como modelo de interação social: o engenho? É
possível esquecer as redes de relações, as ramificações interiores e
exteriores ao país, necessárias à sobrevivência do mais simples
estabelecimento colonial e incorporá-las todas na figura de um
senhor, o dono do engenho – que muitas vezes não passava de um
agente dos donos reais –, moderno Abraão conduzindo um dócil
rebanho?
Podemos nos esquecer do emaranhado de tensões em que se
debatia a sociedade colonial, lembradas apenas quando irrompem
na forma de uma sedição, um levante, um motim, mas presentes
também na silenciosa resistência que os torna possíveis e que dota
os habitantes dessa sociedade de uma espantosa mobilidade ao
tratar de interpor distância entre si e os vigilantes olhos da Igreja, do
Fisco, do Recrutador? (A mesma mobilidade que, ironicamente, ao
levar os agentes destas instituições em sua perseguição, para fazê-los
retornar ao seu controle, acabará por ampliá-lo).
Uma primeira questão importante a resolver diz respeito então ao
corpo teórico já existente e pode se resumir na pergunta: como se dá a
produção teórica das formas de organização da estrutura familiar, nos
termos dos autores dedicados ao assunto? A resposta a esta pergunta

26
deverá provir de uma cuidadosa análise “interna” dos textos principais
da literatura sobre família no Brasil, aqui exemplificada pelo exame dos
pressupostos envolvidos na utilização do conceito de família patriarcal
feita por Gilberto Freyre e Antonio Candido de Mello e Souza.
A questão imediatamente derivada desta primeira pode ser assim
formulada: como se dá historicamente a produção concreta das
formas de organização familiar? A chamada “família patriarcal
brasileira” era o modo cotidiano de viver a organização familiar no
Brasil colonial, compartilhado pela maioria da população, ou é o
modelo ideal dominante, vencedor sobre várias formas alternativas
que se propuseram concretamente no decorrer de nossa história?
Sugiro que uma releitura cuidadosa de textos clássicos de nossa
historiografia (cronistas, viajantes, agentes coloniais etc.) pode
apontar alternativas até agora obscurecidas pela ênfase que se tem
dado a apenas uma forma de organização familiar. Essa análise,
“externa”, de um corpus bastante conhecido é exemplificada aqui
por algumas pistas que remetem à necessidade de maiores
pesquisas históricas sobre o assunto e pelo exemplo dos bons
resultados colhidos por autores que se dedicaram a seguir algumas
dessas pistas.
A obra de Gilberto Freyre, especialmente Casa Grande e
Senzala (1933), e o ensaio (ainda) clássico de Antonio Candido,
“The Brazilian Family” (1951), parecem ser os textos mais
importantes a rever para uma análise dos pontos teóricos
subjacentes à concepção de família que estou discutindo. 4 Gilberto
Freyre, leitura obrigatória de toda uma geração, amplamente
traduzido e divulgado, deixou sua marca em grande parte dos
estudos sobre família – e relações raciais – no Brasil. As pesquisas

4
Antonio Candido de Mello e Souza, “The Brazilian Family”, in T. Lynn Smith & A.
Marchant (eds.), 1972, pp. 291-312, originalmente publicado em inglês em 1951, sem
versão em português. Ver também Antonio Candido (1954), onde o autor, analisando
a “família caipira”, reafirma o continuum.

27
que se fizeram depois dele, e das quais foi um importante
precursor, acabam retomando suas preocupações, seja para
contestá-las, seja para ampliá-las. A importância do artigo de
Antonio Candido não se deve apenas ao fato de o autor resumir e
aprofundar as principais questões colocadas pela maioria dos
autores que se dedicaram ao estudo da chamada família patriarcal
(como Oliveira Vianna, Nestor Duarte, J. Camilo de Oliveira
Torres, L. A. Costa Pinto e Fernando de Azevedo), mas também à
sua presença constante como fonte de referência citada por
pesquisadores (ver, por exemplo, Levi, 1977), até hoje.
Ambos os autores parecem compartilhar com muitos outros
estudiosos a ilusão de que o estudo da forma de organização
familiar do grupo dominante, ou de um grupo dominante numa
determinada época e lugar, possa substituir-se à história das formas
de organização familiar da sociedade brasileira. Nos dois textos
ocorre assim uma homogeneização histórica: uma situação bem
localizada no tempo e no espaço – a economia açucareira
pernambucana dos séculos XVI e XVII ou a plantação de café dos
séculos XVIII e XIX – transforma-se em matriz, em denominador
comum, da sociedade colonial inteira, do século XVI ao século
XIX. Se Gilberto Freyre restringe-se à “formação” da família
brasileira,5 Antonio Candido leva seu modelo até as últimas
consequências. A ênfase que pode ser lida no título de seu artigo ( a
família brasileira) é explicitamente recolocada no corpo da
discussão, quando o autor afirma que este é o tipo de família que
existiu no Brasil do século XVI ao século XIX, tipo de onde, através
de gradual separação, deriva-se toda a formação social do país. A

5
Gilberto Freyre tem sido principalmente criticado pelos estudiosos das relações
raciais no Brasil, sua visão da formação da família brasileira ficando quase sempre em
segundo plano. Para uma crítica atualizada e constatação da contemporaneidade do
pensamento de G. Freyre em relação ao primeiro aspecto, ver Octavio Ianni (1975).
Uma crítica da visão de G. Freyre sobre a contribuição dos grupos indígenas à nossa
formação nacional aparece em Ribeiro (1979).

28
sociedade colonial nestes 300 anos esteve composta de duas partes:
uma familiar (a família patriarcal) e outra não familiar, que reunia a
maioria da população, a “massa anônima dos socialmente
degradados”.6 Os dois parecem repetir aqui um procedimento
teórico comum entre os “darwinistas sociais” do século XIX. Ao·
modelar a história da sociedade brasileira sobre a forma familiar
vigente nas camadas “senhoriais”, recuperando teoricamente as
práticas sociais que analisam (a dominação masculina e a
subordinação da mulher, o casamento entre parentes etc.), utilizam
essa análise para demonstrar a importância daquela família, seu
suposto, na sociedade assim constituída à sua imagem. Em ambos
os casos, se o tempo concedido à sua dominação é por demais
amplo, o espaço social onde se inscrevem essas unidades familiares
é demasiado estreito. Uma revisão rápida de nossa história bastaria
para lembrar que a ocupação do espaço social, a distribuição do
trabalho agrário nas terras brasileiras, por um lado, e o controle
dos lucros desse trabalho, por outro (produção e circulação de
mercadorias), são elementos muito complexos para serem
colocados inteiros dentro do engenho, ou nas mãos do
bandeirante.7

6
Antonio Candido (1972: 303-4): “The traits indicated correspond to the type of
family which existed in Brazil from the sixteenth to the nineteenth century (...) The
non-familial portian consisted of a nameless mass of the socially degraded, those cast
off by the family groups or brought up outside of them. They reproduced themselves
haphazardly and lived without regular norms of conduct”. Gilberto Freyre define
assim seu estudo: “Ensaio de Sociologia Genética e de História Social, pretendendo
fixar e às vezes interpretar alguns dos aspectos mais significativos da formação da
família brasileira” (1978: XLVIII) e indica várias vezes que se trata do “período
colonial”, tendo dito explicitamente: “desfeito em 88 o patriarcalismo que até então
amparou os escravos, alimentou-os com certa largueza, socorreu-os na velhice e na
doença, proporcionou-lhes aos filhos oportunidades de acesso social” (1978: L).
7
A breve digressão histórica a seguir se apoia especialmente nas análises de Caio
Prado Júnior (1973), Florestan Fernandes (1971) e M. Izaura Pereira de Queiroz
(1976).

29
Senão, vejamos: no litoral concentravam-se os agentes
encarregados do controle fiscal e da comercialização do açúcar,
primeiro produto colonial a dar lucro à Coroa portuguesa
(excluindo-se a extração de pau-brasil e das “drogas do sertão”, que
não supunham o estabelecimento de instituições produtivas). Se
algumas vezes o papel controlador superpôs-se ao papel produtor,
esta não foi a regra geral.8 Essa concentração dos agentes de
controle, além do mais periodicamente substituídos – o que
permite a crítica interna do funcionamento da economia colonial,
feita pelos diretamente envolvidos – no litoral, deu origem aos
primeiros aglomerados “urbanos” do país, com exigências bem
distintas, é bom lembrar, das da vida num engenho, num
acampamento bandeirante, numa fazenda de gado ou de café. O
litoral brasileiro abrigou, na Bahia e em Pernambuco, mas também
no Rio de Janeiro e em São Vicente, os engenhos de açúcar e de
aguardente. Mas não só: a Bahia foi um grande produtor de tabaco,
quase simultaneamente à sua produção de açúcar, produto que em
determinadas épocas rendeu mais que o ouro das Gerais aos cofres
portugueses, além de ter sido o lugar onde se estabeleceram os
primeiros pequenos cultivadores de algodão.9 Essas duas culturas –
o tabaco e o algodão – implicavam um investimento inicial de
capital muitíssimo menor do que o engenho de açúcar, não exigiam
a presença de um número elevado de escravos, em alguns casos até
os dispensando, se o cultivo se dava num terreno controlável pelo
produtor e sua família.
8
Ao mesmo tempo em que convém lembrar essa permanente vigilância da Coroa,
através de seus agentes nos postos mais importantes, não podemos esquecer que
mesmo internamente à organização burocrática nascente os conflitos deveriam estar
presentes. Ver a análise de J. N. Kennedy (1973) sobre as elites baianas, por exemplo,
onde ele aponta para a grande quantidade de títulos burocráticos de médio e baixo
escalão colocados à venda na Bahia, ou o estudo de S. Schwartz (1979) onde também
se acentua a importância dos laços de parentesco entre membros da elite local e
agentes da Coroa.
9
Sobre o lucro maior obtido pela Coroa com o tabaco, monopólio real desde 1699,
cf. João Lúcio de Azevedo (1959: 382 e segs).

30
Além dessas diferenças internas entre as culturas que se
estabeleceram perto do litoral, devem-se lembrar ainda os diferentes
tipos de mão de obra envolvidos: no engenho não apenas escravos, mas
também o trabalho livre foi bastante utilizado – donos de sesmarias que
não tinham condição de cultivá-las inteiramente entregavam parte delas
a lavradores, homens e mulheres que muitas vezes, depois de anos e
anos de posse, recusaram-se a continuar pagando a “meia” ou a “terça”,
fosse qual fosse o regime de prestação de contas utilizado.
Além desses lavradores, técnicos no trabalho do engenho (os
“mesteres” do açúcar, por exemplo) eram também assalariados e
livres. Se a esses acrescentarmos os artesãos que viviam nas vilas,
mesmo se em pequeno número, os pequenos proprietários que
cultivavam algodão, tabaco ou gêneros de subsistência, a
composição da sociedade colonial da costa Bahia – Pernambuco
teria uma tonalidade bem diferente da evocada por Gilberto
Freyre. A leitura de qualquer dos volumes das Denunciações ou
das Confissões do Santo Ofício, com o registro das pequenas
intrigas de calçada entre empregados “urbanos”, prostitutas,
aprendizes e suas discussões e blasfêmias anotadas como terríveis
heresias pelos zelosos agentes da Igreja, dão-nos outra amostra
dessa variedade, abrindo uma pequena fresta por onde escapam
sinais de relações insuspeitadas nessa sociedade.10

10
Nas Denunciações de Pernambuco, resultado da primeira visita do Santo Ofício em
1593-1595, já fica clara uma diversificação na composição populacional: só entre os
denunciantes havia três advogados, vários barbeiros, um demarcador de terras,
“oficiais de vários ofícios” etc. Além de servir como tableaux da sociedade colonial,
estes documentos oferecem também indícios interessantes sobre os tópicos de
discussão preferidos em matéria de sexo. Uma discussão recorrente dizia respeito ao
fato de ser ou não ser pecado a “fornicação simples” com mulher solteira, sendo pago
seu trabalho; outra era sobre o “pecado nefando” (o homossexualismo). A variação
das interpretações permite não só observar a forte influência dos dogmas da Igreja –
ao mesmo tempo em que a maneira enviesada como eles eram muitas vezes
entendidos pela população – como também uma prática que a eles se opunha, ou
porque os ambiguizava, ou os contrariando abertamente.

31
Dos engenhos pernambucanos e dos núcleos povoadores
paulistas, que viviam do trabalho escravo indígena – utilizado no
cultivo da terra, como mercadoria e mão de obra militar –,
partiram expedições que deram origem, em ambas as margens do
rio São Francisco, onde se encontraram, a outro tipo de ocupação
da terra: as fazendas de criação de gado. Exigindo grandes
extensões de terra, muitas vezes obtidas através de doações por
serviços prestados à Coroa, outras vezes pela ocupação pura e
simples, quando não pela usurpação, estas fazendas também não
exigiam grande investimento de capital: alguns poucos peões
davam conta do gado e eram em sua maioria homens “livres”,
recebendo em paga do seu trabalho um quarto dos novilhos
nascidos a seus cuidados. Com eles conviviam também moradores,
pequenos produtores de gêneros alimentícios e posseiros,
chamados em caso de necessidade militar.
Vemos então que à fixidez do engenho, produzindo para o
exterior, localizado perto dos centros de controle e decisão, isto é,
ao alcance da mão fiscal da Coroa, podemos opor a intensa
mobilidade dos paulistas, mobilidade quase de movimento
migratório em alguns casos, e de um punhado de aventureiros que
se deslocaram do litoral pernambucano e baiano.11 Outro ponto de
contraste entre eles é o tipo de trabalho e seu destino: num caso o
trabalho é coletivo, controlado coletivamente (a vida no engenho,
como nas fazendas de café mais tarde e como nas aldeias jesuítas,
regia-se pelo sino, que dividia o dia em frações de trabalho e de
descanso) e produzindo para o exterior. No outro, o trabalho é
principalmente individual ou organizado pelo grupo doméstico, e
produzido para o consumo colonial interno: o boi que move o

11
Seria interessante investigar um pouco mais outras consequências dessa oposição:
penso aqui nas famosas “lutas de famílias” que aparentemente se deram com maior
frequência nos núcleos mais afastados do poder de controle do Estado português e
estiveram quase ausentes das regiões mais próximas dele.

32
engenho, que proporciona a pouca carne consumida na colônia –
mais tarde a carne seca –, o algodão que veste o escravo.
Basta mencionar como exemplo um terceiro tipo de atividade
produtiva, importante pela larga escala em que empregou mão de
obra indígena – primeiro escrava, depois “livre” e “assalariada”: a
indústria extrativa do Norte, especialmente do Pará e do
Maranhão.12 Sobre as minas, é suficiente lembrar aqui que elas
deram origem a uma intensa migração interna de mão de obra
escrava, ocasionando uma das mudanças estruturais fundamentais
na economia agrária do Nordeste e do Sul do país: o começo da
“decadência” da instituição “engenho” e a constituição de uma mão
de obra disponível para as fazendas de café que se estabeleceram
no Rio e em São Paulo, após se esgotarem o ouro e os diamantes
do sertão mineiro e goiano. Além de terem deixado um rastro
populacional que iria criar uma importante rede de abastecimento
de gêneros de primeira necessidade, especialmente para São Paulo
e Rio, mas também para os tropeiros que percorriam o país. É
preciso lembrar que esta redistribuição de mão de obra negra deu-
se em várias direções: para o Norte, quando do boom do algodão e
do cacau, para o Sul no caso das minas e do mate no Paraná – que
também utilizou inicialmente em grande escala a mão de obra
indígena – e para o Rio Grande, para as charqueadas e o transporte
de mulas. Essa pequena digressão já basta para enriquecer com
novos elementos o quadro estático que tínhamos no início.
O problema principal de ambos os textos – Casa Grande e
Senzala e “The Brazilian Family” – é então o contraste entre essa
sociedade multifacetada, móvel, flexível e dispersa, e a tentativa de
acomodá-la dentro dos estreitos limites do engenho ou da fazenda:
lugares privilegiados do nascimento da sociedade brasileira.
Recuando para o interior da instituição dominante num certo
12
Sobre a importância da utilização da mão-de-obra indígena nesta área e o seu
desenvolvimento como trabalho assalariado, veja-se Maclaklan (1973).

33
momento no Brasil colonial, e fazendo dela seu ponto de
observação, os autores assumem o olhar de seus habitantes – os
senhores brancos e suas famílias. Sob uma aparente multiplicidade
na evocação dos fatos empíricos – aparente porque ele parece mais
preocupado com a miríade de detalhes folclóricos e superficiais do
que com a multiplicidade produtiva, que produz diferentes formas
de relações sociais Gilberto Freyre deixa entrever sua visão dualista
desta sociedade (“Somos duas metades confraternizantes e que se
vêm mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas;
quando nos completarmos num todo, não será com o sacrifício de
um elemento ao outro”. 1978: 335). Uma visão que explicitará
apenas as extensões dos dois polos a que reduz a sociedade colonial
brasileira – a casa grande e a senzala, o senhor e o escravo, epígonos
de um modelo contraditoriamente integrado, seu encontro dá-se na
cama e na cozinha, subdivisões da casa grande privilegiadas em sua
versão de uma análise sociológica.13
Essa evocação da multiplicidade também está presente, de
maneira mais cuidadosa e sutil, no texto de Antonio Candido, da
mesma forma servindo para obscurecer a clivagem aceita e
apresentada como a fundamental: entre o núcleo familiar onde
imperava o patriarca e uma massa anônima totalmente entregue ao
reino da natureza, sem qualquer norma cultural a regê-la. Em
ambos os casos, esta visão dualista parece ser resultante da aceitação

13
Estas notas não pretendem nem poderiam fazer justiça ao talento literário de ambos
os autores aqui focalizados, nem implicam o desconhecimento da distância que os
separa em termos de atuação política; eles foram escolhidos pelas razões apontadas
antes e as considerações feitas dizem respeito exclusivamente ao seu tratamento do
tema em questão: a família brasileira. Seria impossível, por exemplo, refazer aqui o
caminho percorrido pela prosa livre associativa de G. Freyre, tanto na dimensão
teórica como na empírica. Numa análise mais aprofundada dos fundamentos de sua
visão teórica, espero deixar claro que ela nasce junto, e é parte, de outras tentativas
ideológicas de compreensão da sociedade brasileira, delas se afastando e se
aproximando por turnos, o que torna ao mesmo tempo mais inteligível a sua visão e
as outras. Para um indicador dos parâmetros políticos que regem esta visão, ver, por
exemplo, B. Lamounier (1977).

34
de uma impossível autonomia dessa sociedade nascente, explícita
em Freyre, implícita em Antonio Candido 14. É como se a sociedade
colonial brasileira pudesse ser equiparada a uma “sociedade
primitiva”, sem Estado; mas a história não recomeça cada vez que
se instaura um novo desenvolvimento dela.
As sociedades de tecnologia “simples” foram durante muito
tempo vistas e estudadas pela antropologia como “sociedades sem
história” e a primeira tentação dos antropólogos primitivos foi a de
afirmar a inexistência de qualquer tipo de norma de
comportamento regendo a vida de seus habitantes, aparentemente
entregues a esse mesmo caos a que nossos autores destinam os
habitantes do Brasil colonial que não viviam dentro ou em volta da
casa grande. Sem querer entrar na polêmica entre os que aceitam e
os que contestam essa versão, podemos lembrar que para alguns
antropólogos modernos o parentesco seria o idioma básico das
sociedades sem Estado, a estrutura sobre a qual se organizariam
todas as outras atividades sociais, incluídas as econômicas. 15 Assim,
os grupos políticos de parentesco, ao mesmo tempo unidade
familiar e de produção, começariam a se desintegrar e a se
transformar em unidades individualizadas no momento em que o
Estado, colonizador ou emergente, faz seu aparecimento.
Comparemos a afirmação de uma antropóloga que subscreve este
ponto de vista com a de Antonio Candido sobre a família patriarcal
em seus trezentos anos de existência no Brasil:

14
Para uma discussão da “autonomia” da sociedade colonial, em relação à Metrópole,
ver Faoro (1975) e, mais recentemente, Novais (1980). A “iniciativa privada” da
colonização sendo postulada por estes dois autores, torna-se um imperativo em sua
análise deixar entre parênteses tanto a ação do Estado português (ação econômica,
política e ideológica) como a daqueles que não se submetem nem à Metrópole nem
ao senhor de engenho ou fazendeiro de café ao longo da história. Isto implica em
transformar os “senhores” em agentes únicos da construção da sociedade.
15
Sobre o papel das relações de parentesco como fator predominante na organização
das sociedades ditas primitivas, ver a crítica de Terray (1979).

35
Os deveres, responsabilidades e privilégios de cada um em relação aos
outros são definidos em termos do parentesco mútuo ou de sua
ausência. A troca de bens e serviços, a sua produção e distribuição, a
hostilidade e a solidariedade, os rituais e cerimônias, têm lugar dentro
da estrutura organizadora do parentesco (Rubin, 1975: 170).

Do ponto de vista funcional, como foi indicado, essa sólida estrutura se


constituía mais num sistema de ordenamento das relações econômicas
e políticas do que num sistema de procriação e de relações sexuais. Ela
era o fundamento de toda a organização econômica, política e social,
como Oliveira Vianna demonstrou em seu estudo das “funções
simplificadoras da grande propriedade rural”.

(…) De certa maneira, pode-se dizer que ela constituía a organização


fundamental do período colonial, sendo a produção, a administração,
a defesa e o status social dos seres individuais dela dependentes. É
como função desta organização que podemos entender a sociedade
da época, porque quem não pertencesse a ela não teria meios de
participar da vida coletiva (Candido, 1972: 304, 303).16

16
No original de Antonio Candido: “From the functional point of view, as has been
indicated, this solid structure constituted more of a system for bringing order into the
economic and political relationships than one for procreation and sexual relations. It
was the foundation of the entire economic, political and social organization, as
Oliveira Vianna has demonstrated in his study of the 'simplifying function of the great
rural property'”.
“To some extent, it may be said that it (the patriarchal family) constituted the
fundamental organization of the colonial period, production, administration, defense,
and the social status of the individual being dependent upon it. It is as a function of
this organization that we are able to understand the society of the time, because one
who did not belong to it lacked means of participation in the collective life.”
Estas afirmações encontram eco também em Gilberto Freyre: “A casa grande,
completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social, político: de
produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o
carro de boi, o banguê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com
capelão subordinado ao pater familias, culto dos mortos etc.); de vida sexual e de
família (patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa (o 'tigre', a touceira
de bananeira, o banho de rio, o banho de gamela, o banho de assento, o lava-pés); de
política (o compadrismo). Foi ainda fortaleza, banco, cemitério, hospedaria, escola,
santa casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos”
(1978: XXXIX).

36
Visto deste ângulo, o Brasil colonial, nascendo para se incorporar
a uma economia internacional de mercado, poderia então ser
comparado a uma sociedade sem Estado? É possível esquecer que
a produção e a circulação de mercadorias estavam orientadas e
controladas pelo Estado português, através de seus agentes aqui
instalados desde o início? Ou que os “rituais e cerimônias”,
evocados por Rubin, e o status dos membros da sociedade colonial
eram também orientados e controlados pela Igreja católica e seus
representantes, presentes desde a primeira hora da colonização?
Seria ingênuo forçar o argumento até que ele se transformasse no
seu reverso, quando a tentativa que se faz aqui é justamente a de
relativizar essa imagem dominante na literatura sobre a família no
Brasil. A “família patriarcal” pode ter existido, e seu papel ter sido
extremamente importante, apenas não existiu sozinha, nem
comandou do alto da varanda da casa grande o processo total de
formação da sociedade brasileira. Para ambos os autores parece não
ter havido, neste país onde a colonização se fez de maneira tão
dispare, um processo de constituição de unidades domésticas de
variedade equivalente nas muitas regiões onde se instalaram os
primeiros colonizadores A história da família brasileira torna-se, em
suas mãos, um objeto dado, individualizado, e é apenas no seu
interior que ocorrem as transformações: trata-se aqui de uma
instância do que Giannotti chama de “instauração de uma história
universal por meio da destruição das histórias particulares” (1976:
167). O conceito de “família patriarcal”, como tem sido utilizado até
agora achata as diferenças, comprimindo-as até caberem todas num
mesmo molde que é então utilizado como ponto central de
referência quando se fala de família no Brasil.
Ao se referir a este tipo de família como a organização fundamental
da sociedade colonial brasileira, Antonio Candido chama a atenção
para outro ponto importante: a utilização de uma ótica integracionista

37
na análise de uma situação onde a regra – como ele próprio afirma – o
era o oposto. Diz ele:

Por outro lado, e uma vez que os brancos eram minoria até o fim do
período colonial, talvez não seja exagero dizer que até o século XIX, e
para a população como um todo, a procriação em geral e a satisfação
do impulso sexual ocorriam mais frequentemente fora do que dentro
do âmbito da família. Esta parecia ser a superestrutura, o ápice desta
extensiva e persistente irregularidade.17

Por que se decidir então pela família patriarcal, pelo elemento da


“ordem” como foco de análise em meio a uma “desordem” tão
gritante, em que as “uniões irregulares” eram de fato a ordem
dominante? O que assegurava, naquele momento, a futura
prevalência (ao menos simbólica) daquela “ordem”; qual seria a
visão dos que viviam a “desordem”, se a maneira pela qual se
movia a sociedade colonial levou até alguns viajantes a prever,
atemorizados, um Brasil futuro onde predominaria a raça negra,
em face da frequência com que os escravos se revoltavam e
constituíam formas de organização alternativas às que lhes eram
impostas? Decidir-se por acompanhar a trajetória daquele
pequeno grupo que, retrospectivamente, se impôs aos outros,
aliado a outras parcelas da sociedade igualmente excluídas do
quadro, e apresentá-lo como um grupo não só coeso mas imune às
batalhas do momento, é outra vez assumir a sua visão da
sociedade colonial.
17
No original: “On the other hand, since the whites were a minority until the end of
the colonial period, perhaps it would be not exaggereting to say that until the
nineteenth century, and for the population as a whole, procreation in general and the
satisfaction of the sexual impulse occurred more frequently without than within the
legal realm of the family. The latter appeared to be a superrealm, the capstone of this
extensive and persistent irregularity” (1972: 300); ênfase adicional: note-se que, mais
uma vez, o papel social da organização familiar é reservado às classes dominantes, às
outras restando um papel meramente biológico. O conceito de família é não só
destinado a uma minoria branca como parece provir da descrição da sua forma de
organização familiar. Para alguns exemplos históricos e discussão dos usos do
biologismo em relação à mulher e a família, ver Stolcke (1980).

38
Gilberto Freyre, sob uma aparente defesa da “plebe” do país, o
que faz é transformá-la apresentando ao leitor um povo brasileiro
ou pernambucano – que descende diretamente do cruzamento
dos “nobres” da casa grande com os “nobres” da senzala, sem
esquecer o concurso dos famosos padres “garanhões” que tanto
teriam contribuído para o aprimoramento genético do brasileiro.
O elemento indígena, componente fundamental no povoamento
paulista, é caracteristicamente desprezado por ele como de menor
importância, representando o aspecto “infantil”, “feminino” e
“passivo” de nossa origem étnica. Antonio Candido, por seu lado,
aceita a explicação tradicional: a camada dominante da sociedade
brasileira dos primeiros séculos era provavelmente composta de
imigrantes provenientes da zona rural, dos estratos médios e
baixos da sociedade, o que explicaria um maior conservadorismo
e uma maior intimidade sua com a estrutura patriarcal da
sociedade portuguesa.18
Duas visões aparentemente opostas – cada uma absorvendo da
história portuguesa os elementos que mais bem se parecem
adequar ao modelo apresentado – mas que se conjugam no
resultado obtido: se há uma família definida como normal, ela é

18
Não interessa no momento discutir a origem da formação da camada dominante da
sociedade brasileira dos primeiros séculos de colonização, mas poderíamos lembrar
que a zona rural do Portugal do século XVI estava despovoada a ponto de causar
preocupação às autoridades; que os homens que receberam grandes porções de terra
no Brasil, seus primeiros empresários rurais, eram pelo menos merecedores da
confiança e da estima do rei, e que muitos dos que se aventuraram por sua própria
conta na nova terra eram ricos comerciantes urbanos, alguns deles cristãos-novos
perseguidos e que aqui se tornaram senhores de engenho, participando efetivamente
da administração colonial. Anita Novinsky (1972) desmente Freyre e outros que
afirmam a não integração do cristão-novo às atividades agrárias ou administrativas
apontando também para a benevolência com que muitos deles foram tratados pelo
Santo Oficio no Brasil, quando acusados de blasfêmias, ou pelo governo da época,
quando acusados de traição. Os que efetivamente foram punidos eram membros das
camadas mais pobres da população. Esta autora também oferece pistas para a
caracterização da organização familiar desta parcela de população. Uma maior
elaboração deste ponto, extremamente revelador sobre uma porção da classe
dominante no Brasil colonial, merece atenção, mas deve ser adiada aqui.

39
única por contraste com a grande massa não familiar que a cerca,
definida como anormal. Um levantamento rápido dos termos
empregados por Antonio Candido, da linguagem utilizada para
nomear os componentes do “núcleo estabilizador” (“eixo de
sustentação”, “âncora”, “força estabilizadora”, “poder regulador”
etc.), por oposição aos utilizados para nomear uma “periferia”
subsidiária e absolutamente destituída (“estrato social amorfo e
anônimo”, “elementos vagabundos e desordeiros”, “caos sexual”
etc.), sugere afinal a aceitação da frase tradicionalmente repetida e
aceita por tanto tempo: “o Brasil não tem povo.” Melhor seria
empregar para esta família patriarcal a definição sugerida por
Fernando de Azevedo, citada por este autor: ela é de fato um
“instrumento disciplinador”. Adotar sua visão do mundo em que
vive, adotando também sua linguagem, é assumir não só o seu,
mas também o ponto de vista dos agentes em última instância
controladores do comportamento social no Brasil Colônia, da
Igreja entre eles – esse “grande olho escancarado sobre nós”,
como a definiu Gilberto Freyre. É também utilizar os mesmos
argumentos de que a classe dominante da época lançava mão para
manter essa “massa amorfa” em seu lugar e manter-se no poder. 19
Se é fácil perceber que desde o começo da colonização há um
afrouxamento na aplicação das regras canônicas referentes ao
casamento, sempre que interesses maiores estão envolvidos, é
possível também observar que a implantação da disciplina cristã foi
uma forte estratégia de controle utilizada pelo Estado português na
ocupação do novo território, embora esse controle tenha sido
muitas vezes usado pela Igreja em proveito próprio e contra os
interesses do Estado colonizador. Desde os pequenos conflitos

19
Para a noção de disciplina, ver M. Foucault (1975) e para uma discussão
epistemológica do termo normal, G. Canguilhem (1978). O próprio Antonio Candido
cita em seu ensaio (p. 302) o exemplo de Bragança que, ao pretender o estatuto de
vila em 1797, encontrou a oposição da Câmara de Atibaia, da qual dependia, baseada
em termos de que a maioria dos habitantes daquela região eram “bastardos”.

40
narrados por Anchieta, com os primeiros colonizadores que
pretendiam autonomia do braço estatal português, aqui
representado pelos jesuítas e expedicionários que desejavam sua
ajuda na exploração da terra, até o suicídio de um ex-governador
de duas capitanias diante do impasse de voltar à metrópole com
uma companheira ilegal de vários anos, ou se casar com uma
mulher de classe “inferior”, é possível acompanhar a utilidade da
tentativa de implantar uma moral e uma ordem onde o casamento
tinha importante papel, ainda que simbólico.20
As denunciações e confissões registradas pelo Santo Ofício em suas
visitas às terras do Brasil, mesmo se as olharmos com cautela em face
da maneira como eram obtidas e dos interesses que as moviam, são um
bom exemplo da extensão, do alcance deste olho que pretendia fixar
tão estritamente os limites de cada um que tornaria mais fácil o acesso
dos vários mecanismos de controle a essa população espantosamente
móvel. Ironicamente, os denunciantes pagos pelo Santo Ofício eram
chamados de “familiares”, assim como eram “familiares” os diabinhos

20
O suicídio de Fernando Delgado de Castilho é relatado por Caio Prado Júnior (p.
353), que considera “excepcional” a situação de casados na época colonial, fora da
camada dominante. Segundo Thales de Azevedo (1966), esta excepcionalidade
perduraria até hoje. Tito Lívio de Castro (A Mulher e a Sociologia) afirmava em 1893
que “a família como privilégio burocrata, a família ao alcance de 27% da população,
não é uma instituição pública, é uma imoralidade” (citado em Saffioti, 1969: 192).
Um decreto de 1734 proibia os juízes de se casarem nas colônias sem a permissão
real (Kennedy, 1973: 426) e uma lei portuguesa estipulava o tempo durante o qual
poderiam ficar afastados do Reino os homens que ali tinham deixado família. Não
obstante, a bigamia e o amasiamento que estes regulamentos tentavam coibir eram
profusamente citados nos depoimentos registrados pelo Santo Ofício, por exemplo.
Sobre o número escasso de uniões legais, ver também Boxer (1975): apenas duas
foram celebradas na Bahia de 1738. Assim, não é de espantar que Antonio Candido
chame a atenção para a raridade de registros de casamentos inter-raciais: raros eram
os casamentos em geral, privilégio de uma classe que parecia prezar a endogamia.
Estes sinais parecem apoiar a hipótese de Foucault (1976: 159), no sentido de que as
técnicas mais rigorosas de vigilância, de controle, enfim, de repressão sexual,
começam por se implantar internamente à classe que trabalhará depois para a tornar
regra geral.

41
utilizados pelas feiticeiras que pareciam existir em cada esquina das
aglomerações “urbanas” do Brasil colonial.
Seria conveniente abrir aqui um parêntese para referir
brevemente a posição de ambos os autores sobre a situação da
mulher dentro desta família. Antonio Candido, ao descrever a sua
esfera de ação como complementar à do marido, confirma que esta
é a apresentação do retrato de uma classe inteira: a mulher desta
classe era a auxiliar direta do marido na manutenção de seu lugar
social e, se preciso fosse, poderia até assumir atitudes mais
“patriarcais” do que ele. Isto não nos deve fazer esquecer, no
entanto, o fato de que formalmente a posição da mulher, enquanto
tal, era inferior à do homem: não são de desprezar os relatos que
temos de fazendeiros que encerravam suas mulheres quando saíam
em viagem, ou a existência dos famosos recolhimentos, onde as
mulheres adúlteras ou as filhas sem dote passavam o resto de suas
vidas; sem falar nos impunes assassinos de mulheres de que nossa
crônica colonial está cheia.21 Mas sem dúvida a situação da mulher
estruturalmente igual ao senhor de engenho era privilegiada; basta
lembrar o escândalo no convento do Desterro na Bahia,
ocasionado pela visita de um bispo que se horrorizou com o
número de escravas e bens materiais pertencentes às mulheres ricas
ali internadas – além de exprobrar suas sedas e seus decotes.
Ironicamente, no caso do Desterro pelo menos, as mesmas normas
sociais que marginalizavam estas mulheres da vida familiar mais
restrita do grupo dominante na Bahia colonial, integravam-nas em
sua vida social mais ampla. Essas freiras eram relativamente mais
independentes do que suas companheiras de época casadas;
aprendiam a ler e a escrever e conduziam aparentemente com

21
Este parece ter sido o caso de Bento Teixeira, por exemplo. O poeta da
Prosopopeia esteve algum tempo recolhido ao mosteiro de S. Bento em Olinda, no
ano de 1594, depois de matar a esposa (Garcia, 1929). Ainda hoje a alegada
infidelidade da esposa, presumivelmente a razão do ato de B. Teixeira, pode resultar
na impunidade de seu assassino (Corrêa, 1975).

42
bastante sucesso os negócios financeiros do convento, emprestando
dinheiro a juros e cobrando na justiça tanto as dívidas como as
promessas de financiamento dos parentes de suas irmãs de hábito.22
Gilberto Freyre, se acentua a submissão da mulher, repetindo a
famosa frase de Capistrano para definir a família colonial (“pai
taciturno, mulher submissa, filhos aterrorizados”), não deixa de citar
abundantes exemplos de dominação das senhoras sobre suas
escravas, O eixo de seu argumento a respeito da fundamentação
harmoniosa de nossa sociedade repousa sobre as relações sexuais
entre brancos e negras, sobre a “miscigenação”. Esta tinha duas
causas: a escassez de mulheres brancas na colônia e a famosa
“inclinação natural” do português para o ideal feminino de mulher
de pele escura, adquirido entre os mouros, ou melhor, as mouras. 23
Para ele, colonizar o Brasil foi “um extraordinário esforço de
virilidade” (dos brancos). Em primeiro lugar, a “miscigenação” não
é uma questão resolvida de maneira homogênea em todo o
território e em todo o período colonial. Em São Paulo,
inicialmente, o cruzamento entre brancos e índios superou o que
ocorreu entre brancos e negros, o mesmo podendo ter ocorrido em
outras regiões do país. A “miscigenação”, inc1inações naturais à
parte, era uma imposição da vida dos primeiros anos na colônia, ou
pelo menos uma possibilidade. Aos funcionários da Coroa
portuguesa só excepcionalmente era permitido, por exemplo, fazer-
se acompanhar de suas famílias, ao contrário do que ocorria com os

22
Para uma descrição dos recolhimentos no Rio de Janeiro, ver Luccock (1942) e M.
B. Nizza da Silva (1977). Sobre o convento do Desterro na Bahia, ver M. A. Vieira
Nascimento (sdp) e Susan Soeiro (1974).
23
Conforme informações do historiador baiano, professor Cid Teixeira, não apenas
as “negas fulô”, mas também os “negos fulô” existiram no Brasil colonial; embora os
casos tenham ocorrido, ou sejam lembrados, de maneira mais rara, ele tem registrado
algumas histórias que se referem a ligações de senhoras brancas com escravos.
Também Charles Expilly (1935) menciona este tipo de amores e um padre, citado
nas Denunciações de Pernambuco, teria afirmado do púlpito: “vós outros homens
não quereis senão fazer adultério a vossas mulheres, pois desenganai-vos, que elas na
mesma moeda vô-lo pagam” (Garcia, 1929). Ver também S. Stein (1970: 157).

43
da Coroa espanhola. Além disso, se a escassez de mulheres no
início da colonização era mais geral do que Gilberto Freyre mostra,
as suas consequências em termos de possibilidades de relações
sexuais serão inteiramente outras, diferentes da miscigenação. Em
segundo lugar, o argumento de que havia menos mulheres brancas
do que homens brancos no país tampouco pode ser estendido a
todo o período colonial, nem a todas as regiões. Em São Paulo, em
certas épocas, as mulheres livres mantiveram uma constante
superioridade numérica sobre os homens livres, o que se poderia
talvez esperar encontrar também no sertão ou nas áreas de
fronteira.24 Nessas regiões talvez a vida dos homens fosse,
analogamente à do bandeirante, bastante mais árdua do que a
enfrentada pelos senhores de engenho e quem sabe, como a
daquele, mais curta. Não podemos também esquecer que a
“miscigenação” extrapolava o âmbito da casa grande, onde
seguramente a sexualidade era mais controlada, como bem acentua
Antonio Candido, escapando assim às determinações genéticas de
nobreza previstas por Gilberto Freyre para a constituição do povo
brasileiro. A própria existência de conventos e recolhimentos
demonstra que havia um controle social prevalecendo sobre
determinações biológicas, pelo menos no caso das mulheres: na
ausência de pretendentes adequados, as filhas dos senhores eram
antes enclausuradas do que dadas em casamento a membros de

24
Sobre a constante superioridade numérica das mulheres livres na cidade de São
Paulo, durante os séculos XVIII e XIX, ver M. L. Marcílio (1974). K. Mattoso afirma
sobre a Bahia de 1890: “O que há de significativo para observar neste censo é a
relação entre população feminina e masculina: esta relação estabelece uma vantagem
para as mulheres que é da ordem de 12%” (1978: 136/137). Para um exemplo
espelhado do patriarcalismo brasileiro, ver o caso das “Donas da Zambézia”,
portuguesas brancas, recebedoras e transmissoras de porções de terra da Coroa que,
imersas numa sociedade onde os negros predominavam, esqueciam da obrigação de
preservar suas terras através de uniões intrarraciais e casavam-se, quase sempre mais
de uma vez, com mulatos ou hindus, dando assim origem a uma africanização
crescente desta região (cf. Boxer, 1975: 82). Boxer contraria também outra suposição
corrente: a da vida mais curta das mulheres, opondo, à dureza de vida colonial
enfrentada pelos homens, a vida realmente mais resguardada de suas mulheres.

44
outras categorias sociais. Isso implica reconhecer que os membros
das classes dominantes, apesar de sua cordialidade em relação aos
dominados, eram muito ciosos de sua descendência legal, pelo
menos a partir de um determinado momento.
Em suma, o argumento da inferioridade da mulher, assim como
do negro, do cristão-novo ou dos filhos ilegítimos, na sociedade
colonial, deveria ser utilizado com certa parcimônia e sempre
contextualmente. Sua inferioridade foi sempre argumentada
politicamente e de maneira estratégica, em conformidade com os
interesses dos que detinham o poder de manipular esta
argumentação. O que quer dizer que também poderia deixar de ser
reforçado, ou até invertido, conforme as conveniências do
momento. Assim, é possível concordar com Antonio Candido
quando ele observa que muitas mulheres tiveram acesso a posições
de mando nas grandes propriedades, ou quando lembra que muitos
filhos bastardos foram incorporados às “famílias ilustres” através da
herança. A própria existência da possibilidade dessa manipulação
oferece-nos uma pista mais interessante para o estudo dessa
sociedade: o fato de não existir um reconhecimento formal, legal,
da igualdade da mulher, do negro, do bastardo, do cristão-novo e,
não obstante, haver em certos casos a admissão de pessoas
pertencentes a essas categorias como iguais. É justamente essa
possibilidade que deixa um espaço para a manipulação. O
testamento de Jerônimo de Albuquerque é citado pelo autor como
exemplo de acomodação dos filhos bastardos ao núcleo acolhedor
da família legitimamente constituída. No entanto, o “Adão
pernambucano”, como ele era chamado, deserdou duas filhas
ilegítimas e mamelucas (expressões que denotam pelo menos duas
infrações às regras formais da moral dos “homens bons”), “por suas

45
desordens notáveis” – a terceira infração tendo sido a prática da
prostituição.25
Em suma, se há um controle externo da sociedade colonial
brasileira, agenciado pelos representantes da Coroa e da Igreja, e ao
qual resistem constantemente os que decidem aqui se fixar, o
controle interno agenciado pelos senhores parece ter sido também
contestado em detalhe, especialmente porque seu ponto de apoio
formal era muito mais ambíguo do que o daqueles. As
desconfianças teóricas a respeito desses lares tão bem organizados
em torno de um pater familias, servindo como modelo da
sociedade, tendo em vista a extrema mobilidade, especialmente dos
homens, mas também das mulheres, nesse período inicial de
conquistas e de guerras, começam a ser recompensadas por
evidências concretas em algumas áreas. Novas pesquisas indicam
que a família patriarcal não pode mais ser vista como a única forma
de organização familiar do Brasil colonial e sugerem que a
colocação da figura do homem no centro de uma unidade
doméstica, como regra, parece ser também uma ilusão. 26 E da
mesma maneira que a dominação homogênea dessa família começa
a ser contestada, também as generalizações a respeito de sua
descendente direta, a família conjugal moderna, têm merecido
atenção. Ao derivar a moderna família conjugal da família patriarcal,
Antonio Cândido subscreve a suposição largamente aceita de que o

25
Cf. Rodolpho Garcia, 1929. O exemplo vem citado por Antonio Candido na p.
301.
26
Uma análise da estrutura demográfica do Piauí na época colonial, por exemplo,
aponta para o predomínio de domicílios com família conjugal naquele estado e
naquela época (Mott, 1978). Donald Ramos demonstra que na Vila Rica de 1804, em
203 unidades domésticas, apenas 93 eram encabeçadas por homens (Ramos, 1975).
Poderíamos lembrar ainda as famosas quatro mil mulheres notadas pelo viajante
inglês John Luccock como chefes de família, na sua avaliação sobre a população do
Rio de Janeiro de 1808, que até agora não mereceram maior investigação. Apenas
recentemente tem-se dado atenção à existência de unidades familiares chefiadas por
mulheres. Ver por exemplo Barroso (1978) e Figueiredo (1980).

46
processo de industrialização e urbanização é sempre acompanhado,
em todos os níveis, por um processo paralelo de redução, de
racionalização, de triunfo do individualismo. Como Laslett observa,
mesmo que isto fosse verdadeiro, daí não se segue que as famílias
patriarcais, extensas, fossem a regra do período pré-industrial e base
de onde se originou a família moderna. Pode-se acrescentar ainda
que, mesmo se admitindo uma maior racionalização e um maior
esfacelamento das relações de trabalho nas sociedades capitalistas,
este argumento apresenta duas faces. Em primeiro lugar, nada
indica que as formas de organização familiar sigam mecanicamente,
as linhas mestras do desenvolvimento econômico e social de uma
região: seria necessário examinar com cuidado as intrincadas
maneiras pelas quais as formas econômicas, sociais e políticas
articulam-se entre si – nas diferentes áreas de ocupação da
sociedade brasileira – antes de se decidir pela dominação de um
determinado modelo familiar abarcando como um polvo todas as
áreas de relacionamento social. Em segundo lugar, o que parece
ficar sempre entre parênteses neste tipo de argumento é o fato de
que um maior esfacelamento nas relações de trabalho poderia
redundar numa maior necessidade de apoio comunitário em outras
esferas, inclusive a familiar, e não no contrário. Isto é, a uma série
de processos econômicos de um determinado período histórico
pode corresponder uma série de processos sociais de natureza
diferente: sua identidade não é automática. Quem sabe redes mais
extensas de relações, familiares ou outras, não são respostas mais
adequadas às pressões do mundo capitalista? Além disso, se a
influência da industrialização na criação da moderna família
conjugal é via desagregação e dispersão, e estes dois fatores estavam
fortemente presentes no início da colonização brasileira, como o
próprio Antonio Candido acentua, não seria possível pensar que a
expectativa de encontrar esse tipo de organização familiar, apoiada

47
ou não em bases legais, já naquele momento e adotado pela maioria
da população, fosse mais coerente com toda a exposição do autor? 27
Antonio Candido tende a exagerar os traços que enfatizam a
distância entre uma e outra forma de organização familiar, embora
mantendo firme o laço que as liga por ascendência direta; na
realidade os traços parecem ser mais esfumados, não apontando
nem para a extinção completa do primeiro tipo, nem para a
institucionalização absoluta do segundo. Além do fato de que a
industrialização e a urbanização talvez tenham efeito contrário ao
pretendido, e incentivem uma maior solidariedade de grupos
familiares, entre outros, a ausência da influência de descendentes de
antigas famílias de mando, que ainda conservam seus laços
políticos, também não parece tão flagrante hoje quanto apontada
em 1951. E a abolição do sistema de compadrio como importante
forma de apoio familiar está longe de se ter realizado. 28 Em suma,
assim como o retrato da família patriarcal rural, o da moderna
família conjugal urbana, justamente por serem ambos apresentados
como os extremos de um continuum, pontos fixos de partida e de
chegada, necessita profundidade para adquirir maior semelhança
com a realidade que pretende expressar. A mesma homogeneização
que é problema para uma forma o é também para a outra.
27
Há evidências históricas de que períodos de crise econômica podem favorecer a
tendência da população a se organizar em pequenas comunidades (Laslett, 1972).
Young e Willmott, citados em Laslett, observaram o mesmo fenômeno nos bairros
suburbanos pobres de Londres, mas preferiram, como Antonio Candido falando
sobre as modernas cidades industriais, atribuir essa forma de organização a uma
“sobrevivência” de formas mais antigas de organização familiar. T. Hareven (1973)
aponta para o mesmo tipo de tendência entre as famílias negras estudadas pelos
cientistas sociais norte-americanos. Ver também Ramos (1976) sobre a migração em
cadeia, apoiada fortemente em redes familiares, para um bairro em Campinas, São
Paulo.
28
Sobre a permanência da influência política dos membros de famílias tradicionais,
ver J. Murilo de Carvalho (1968/69), onde ele não só analisa um aspecto dessa
permanência na política mineira, como apresenta uma lista minuciosa de estudos de
poder local em outras regiões do País. Sobre a importância atual dos laços de
compadrio no Nordeste, ver Arantes (1975).

48
O ponto crucial de todo o raciocínio é então o seguinte: se a
regra da sociedade colonial não parece ser nem a ordem nem a
integração, mas seus opostos, por que fazer incidir a análise nesse
punhado de seres que se comportava, quando lhes convinha, de
acordo com um código que tentava impor a ferro e fogo sobre a
maioria da população? Por que supor uma massa amorfa e
anônima calada durante três séculos à espera de que se
engendrasse, no seio de um pequeno núcleo organizado, o seu
futuro e se nomeasse o seu lugar: proletários industriais, agora sim
parte de um coletivo que se pode chamar sociedade? Não se está
sugerindo a inversão do processo e o estudo do “desorganizado” ou
do “inorgânico” – como alguns nomeiam aquele que R. Schwarz
prefere chamar de a imensa multidão dos terceiros – como
parâmetro da constituição da sociedade brasileira, mas parece
importante dar conta da existência de uma tensão permanente entre
os impositores de uma ordem pré-definida e aqueles que a resistem
cotidianamente. Nesse sentido, não podemos nem sequer imaginar
a possibilidade de escrever a história da família brasileira, mas
apenas sugerir a existência de um panorama mais rico, a
coexistência, dentro do mesmo espaço social, de várias formas de
organização familiar, a persistência desta tensão revelando-se, não
naquela “quase maravilha de acomodação” que é para Gilberto
Freyre o sistema da casa grande e da senzala, mas na constante
invenção de maneiras de escapar ou de melhor suportar aquela
dominação.
Tão importante quanto o questionamento empírico e teórico (de
que outras maneiras, sob que outros ângulos, esta história poderia
ser contada?) é o questionamento político (a que, ou quem, serve a
versão assim contada?). Estas notas não pretendem apenas apontar
para a possibilidade da existência de formas concretas alternativas
de organização familiar mas também sugerir que, assim como a
família patriarcal instituiu, na prática, a marginalização de outras

49
formas familiares, os autores da história da família brasileira vêm
sistematicamente instituindo teoricamente essas possibilidades
alternativas em formas marginais.29

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Costa Pinto, L. A. Lutas de famílias no Brasil, São Paulo, Cia. Editora Nacional,

29
É isso o que acaba fazendo Willems (1954): pretendendo apresentar uma
alternativa à família patriarcal, termina por aceitá-la como seu modelo ao definir a
“família rural de classe inferior” como seu anverso, pela ausência de todos os
elementos da primeira.

50
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53
LARES NEGROS,
OLHARES BRANCOS:
HISTÓRIAS DA
FAMÍLIA ESCRAVA
NO SÉCULO XIX
ROBERT SLENES1

Policarpo e Afra: a exceção…


Em 24 de agosto de 1899, Simão Alves compareceu à Igreja Matriz
de Nossa Senhora da Conceição de Campinas para “abrir novo
lançamento do acto de casamento celebrado entre Policarpo
Salvador e Afra”. As testemunhas deste novo registro – Egydio
Franco e José Antônio Aranha – declaram que Policarpo e Afra

(…) eram marido e mulher – por ser (sic) casados – sendo o acto
religioso realizado na Matriz Velha d'esta Cidade no tempo em que os
mesmos eram escravos do Sr. Thomaz Luiz Alvez Cruz – no anno mil
oito centos cincoenta e oito a cincoenta e nove mais ou menos.

1
Este ensaio é a primeira parte de um trabalho mais longo, com o mesmo título, que
foi apresentado no Simpósio “Histórias de Liberdade: Cidadãos e Escravos no
Mundo Moderno”, realizado na Unicamp entre 23 de maio e 8 de junho de 1988.
Uma versão um tanto abreviada, e sem as notas de rodapé, foi publicada no Folhetim
(caderno da Folha de S. Paulo) em 13/05/1988.

54
Egydio e José Antônio “acrescentaram que foram companheiros de
escravidão (de Policarpo e Afra) e que a 30 e 24 annos os
conhecem sempre como casados”. Suas palavras são fidedignas.
Embora não seja possível confirmar esta história com o assento
original de casamento (os registros de matrimônio de escravos para
a maior parte de 1858 e 1859 sumiram dos arquivos da Igreja em
Campinas – o que talvez tenha sido o motivo para o “novo
lançamento” de 1899), outro documento comprova sua veracidade.
Em 19 de outubro de 1862, foi batizada no município Benedicta,
de treze dias de idade, “filha de Policarpo e Afra, escravos de
Thomas Luis Alvares (sic)”.2
Casamentos longos e estáveis, como o de Policarpo e Afra,
teriam sido pouco comuns entre escravos, a julgar pela maioria dos
estudos históricos que tocam no assunto. De fato, para vários
autores importantes, as condições do cativeiro (o excesso de
homens sobre mulheres, a separação de famílias no tráfico interno
de escravos, os caprichos e violências dos senhores) teriam tornado
as uniões sexuais extremamente instáveis, a tal ponto que a vida
sexual careceria de regras e a “família” escrava teria sido
praticamente inexistente. Por exemplo, Gilberto Freyre fala d' “essa
animalidade dos negros (escravos), essa falta de freio aos instintos,
essa desbragada prostituição dentro de casa”; Emília Viotti da Costa
aponta “a promiscuidade sexual em que viviam os escravos”, e a
“licenciosidade das senzalas”; Oracy Nogueira diz que o escravo,
“dado o caráter ocasional e promíscuo das relações sexuais, mal
chegava a conhecer a própria mãe e os irmãos”; e Roger Bastide,
argumentando que “a mesma mulher (escrava) dormia ao acaso de
seus caprichos ora com um macho, ora com outro”, caracteriza a

2
Livros de registro da paróquia de N. S. da Conceição de Campinas,
“Casamentos, Escravos, 1841 – 1858”, (“Termo de Justificação”, 24/8/1899), e
“Batizados, Escravos, 1861 – 1867”, ambos no Arquivo de Cúria Metropolitana
de Campinas.

55
vida sexual dos cativos como uma “espécie de vasta prostituição
primitiva”.3
Os quatro autores citados, como praticamente todos os
estudiosos do assunto a partir da década de 1930, rejeitam
enfaticamente explicações racistas para o comportamento sexual do
escravo. Contudo, se eles tiram das costas do negro o fardo da raça,
substituem-no por um fardo sociológico também bastante pesado. A
afirmação de que os escravos viviam em geral na “licensiosidade”,
na “promiscuidade” ou na “prostituição” conduz facilmente ao
argumento de que eles foram profundamente marcados por essa
experiência. Primeiro, na sua cultura religiosa. Bastide, por
exemplo, afirma que, dada a impossibilidade de manter a existência
da família – isto é, da linhagem – no tempo, o “culto aos
antepassados” dos escravos bantus estava fadado a desaparecer, ou a
sobreviver apenas por “vias indiretas”. Segundo, nas suas normas
sexuais e familiares. Para Florestan Fernandes, as condições de
escravidão, sobretudo o empenho dos senhores em tolher “todas as
formas de união ou de solidariedade dos escravos”, não apenas
marcaram o comportamento sexual do cativo, mas também
minaram suas normas de vida em família; o resultado, segundo
Fernandes, foi que o negro emergiu do cativeiro num estado de
“anomia” ou de “patologia social”, sem os recursos psicológicos e os
laços de solidariedade entre parentes tão necessários para enfrentar
a concorrência do imigrante e alcançar a mobilidade social.
Terceiro, na sua psicologia mais profunda . Bastide aponta para “o
fenômeno mais curioso da escravidão, a dualidade racial dos pais”,
argumentando que se “o filho do senhor tinha pai branco e mãe
(ama de leite) negra”,

3
Freyre (1980: 319-320); Costa (1966: 296-270); Nogueira (1962: 262); Bastide
(1971: 89).

56
por seu lado, o filho do escravo, se conhecia sua mãe, não sabia
frequentemente quem era seu verdadeiro pai. Esse era, no fundo, mesmo
se não o fosse biologicamente; o patriarca branco, o senhor de engenho.

Bastide encontra nesse fato a chave para explicar os “mecanismos


psíquicos da aculturação” do negro; “interiorizando” o pai branco, o
negro teria interiorizado “sua cultura, sua concepção do mundo e
da vida, seus quadros de referência e suas normas”.4

…ou a regra?
Ouvimos aqui a voz da autoridade; as opiniões são enfáticas,
expressas com a segurança de quem tem domínio sobre a teoria e
convívio íntimo com as fontes. É curioso, portanto, que pesquisas
recentes sobre a família escrava venham mostrando que o
casamento de Policarpo e Afra não era exatamente atípico. Na
verdade, as uniões sexuais de “longa duração” – não,
evidentemente, as de 40 anos, que seriam relativamente raras em
qualquer sociedade com altos índices de mortalidade, mas,
digamos, as de 10 anos ou mais eram bastante comuns entre os
escravos; como também eram comuns os casos de filhos que não
apenas conheciam o pai, mas que passavam os anos formativos na
sua companhia. Em Campinas, por exemplo, segundo os
manuscritos existentes da “matrícula” (registro) de escravos de 1872
– 73, nos plantéis com dez ou mais cativos (contendo, talvez, quatro
em cada cinco escravos no município), 67% das mulheres acima de
15 anos eram casadas ou viúvas; 87% das mães (com crianças de
menos de 15 anos presentes na mesma lista de matrícula) eram
casadas ou viúvas; e 82% dos filhos menores de 10 anos viviam
junto com os dois pais, ou com mãe e pai viúvo. Pesquisas sobre

4
Fernandes (1965: vol. I, 34-38 e 110-118); Bastide (1971: vol. 1, 104-105).

57
outros municípios e períodos, utilizando fontes demográficas
diferentes, mostram resultados compatíveis ou semelhantes. 5
É verdade que a maioria dessas pesquisas focaliza localidades em
São Paulo, onde os índices de casamento pela Igreja entre escravos
eram bem mais altos que em outras províncias. Contudo, há
informações que sugerem fortemente que os dados de São Paulo
não indicariam a existência de estruturas familiares radicalmente
diferentes das que prevaleciam entre os cativos do resto do Brasil,
mas simplesmente um maior grau de acesso ao casamento religioso.
Enfim, em São Paulo as uniões consensuais entre os escravos
teriam sido sacramentadas pela Igreja, e portanto documentadas,
mais frequentemente do que em outras províncias. Poder-se-ia
objetar que os dados, sobretudo as informações de tipo censitário
como as da matrícula, talvez tenham sido inventados pelos senhores
para iludir as autoridades, ou para fingir urna preocupação com a
“moralidade” de seus trabalhadores. No entanto, em Campinas a
ligação nominativa dos registros de casamento e batismo de
escravos com as listas de matrícula – tal como essa que fizemos
acima entre o assento de batismo de Benedicta em 1862 e a
reafirmação do casamento de seus pais, Policarpo e Afra, em 1899
– confirma sem qualquer dúvida a autenticidade dos dados de 1872
– 73. E ao fazer isso, a ligação de fontes também documenta a
existência de um número significativo de casamentos formados 10,
15 ou até mais de 20 anos antes da matrícula e ainda existentes no
ano desse registro.6

5
Slenes (1987: 217-227) e (1976: cap. IX). Outros estudos sobre a família escrava são:
Graham (1979: 41-57); Costa & Luna (1981: 105-109); Costa & Gutiérrez (1984: 313-
321); Schwartz (1985: cap. XIII e XIV); Fragoso & Florentino (1987: 151-173);
Metcalf (1987: 229-243); e Costa, Slenes & Schwartz (1987: 245-295). Os novos
estudos apontam para conclusões semelhantes às de Gutman sobre a família escrava
nos EUA (Gutman, 1976).
6
Slenes (1976) e trabalho em andamento.

58
As novas pesquisas sobre a família escrava não visam romantizar
a vida no cativeiro. Os índices de casamento entre escravos, a
proporção de mães casadas, e a percentagem dos filhos que viviam
com os dois pais, eram bem mais baixos nos plantéis pequenos
(com menos de 10 pessoas) – plantéis que, por seu tamanho e
instabilidade, limitavam severamente as chances de o escravo
encontrar um cônjuge ou manter a família nuclear unida. E mesmo
nos plantéis maiores não há dúvida de que a separação de famílias
também acontecia, e existia sempre como ameaça. Os estudos
recentes também não negam o impacto do grande desequilíbrio
numérico entre homens e mulheres (decorrente do tráfico africano
e posteriormente, nas regiões cafeeiras, do comércio interno de
escravos) sobre as possibilidades dos cativos construírem famílias
estáveis. Eles apenas mostram que eram os homens que sentiam
esse impacto, não as mulheres; em Campinas em 1872-73, nos
plantéis com 10 ou mais escravos, somente 30% da população
masculina acima de 15 anos compunha-se de casados ou viúvos,
cifra bem abaixo da proporção na população feminina.7
Finalmente, as novas pesquisas não indicam que os escravos
internalizaram as normas sexuais e familiares de seus senhores, ou
que suas normas permitiam apenas o casamento monogâmico. Os
dados utilizados – que na maioria dos estudos claramente dizem
respeito a casamentos pela Igreja – quase por definição excluem o
registro de casos de poliginia (isto é, da união de um homem com
mais de uma mulher), prática aceita em muitas sociedades
africanas. E mesmo que isto não fosse o caso, uma alta frequência
de casamentos monogâmicos não refletiria necessariamente tudo
que era permitido pelas normas dos escravos. É importante
lembrar que na África a poliginia tende a ser sinal de uma relativa
riqueza; em geral, apenas os homens que têm posses suficientes
para sustentar uma economia doméstica maior casam-se com mais

7
Slenes (1987: 225).

59
de uma mulher. Enfim, a prática da poliginia só poderia ter sido
pouco comum (independentemente das normas dos escravos) nas
condições do cativeiro no Brasil, onde os homens, além de
enfrentar uma grande escassez de mulheres, tinham, quase todos,
pouquíssimos recursos.
O que os estudos recentes, sim, indicam é que o peso da
escravidão, o desequilíbrio numérico entre os sexos e a possível
“sobrevivência” de normas favoráveis à poliginia, não destruíram a
família negra como instituição. Além disso, e mais importante,
esses estudos sugerem fortemente que a união sexual estável
constituía a norma cultural no grupo cativo. Quando as condições
de vida dos escravos permitiam a formação de relações sociais
com certa continuidade no tempo (como era o caso nos plantéis
com 10 ou mais cativos em lugares como Campinas), eles optavam
por esse tipo de união. Em suma, no que diz respeito a sexo e
família, não há como caracterizar a prática do escravo, e muito
menos seu sistema de normas como “desregrados”. Portanto, as
conclusões de Bastide e Fernandes resumidas acima – a respeito
do desaparecimento entre os escravos do culto (bantu) aos
antepassados, a existência da anomia entre cativos e negros livres, e
a influência do senhor/“pai” branco na psicologia profunda de
escravo – simplesmente não procedem.
As dúvidas, no entanto, persistem. Como é possível que
pesquisadores do porte daqueles que vimos citando possam ter
chegado a conclusões tão taxativas – e tão erradas? Será que as fontes
que eles utilizavam – os depoimentos de observadores brancos da
época da escravidão, sobretudo de viajantes estrangeiros – são mais
fidedignas do que os dados demográficos que formam a base principal
dos estudos recentes? Ora, essas fontes certamente são coerentes entre
si. Elas coincidem no registro de um quadro pato1ógico entre os
escravos, e é compreensível que sua “unanimidade” nesse sentido tenha
seduzido muitos historiadores. No entanto, no restante deste ensaio

60
quero mostrar que o “desvio” não estava no lar negro, mas no olhar
branco.

Lenita e os semoventes devassos


Numa cena do romance A Carne, de Júlio Ribeiro, publicado em
1888 e situado numa fazenda do oeste paulista ainda na época da
escravidão, a protagonista branca, Lenita, presencia a cópula de
um touro e uma vaca. Logo em seguida, ela assiste, sem ser
percebida, ao encontro amoroso de um jovem casal de escravos.
Para Lenita, esse encontro “Era a reprodução do que se tinha
passado, havia momentos, mas em escala mais elevada; à cópula
instintiva, brutal, feroz, instantânea dos ruminantes, seguia-se o
coito humano meditado, lascivo, vagaroso”. A cena é um
prenúncio da sorte de Lenita. Mais tarde, ela se entrega como
amante a Barbosa, jovem filho de fazendeiro. Lenita se interessara
pela ciência, através da qual “quisera voar de surto, remontar-se às
nuvens”; mas “a CARNE a prendera à terra, e ela tombara,
sustentara-se; tombara como negra boçal do capitão, submetera-se
como a vaca mansa da campina”.8
Associar escravos e gado – não apenas semoventes, categoria
codificada em lei, mas como seres sexualmente desregrados – era
comum na época. Outros autores, que não se diziam romancistas,
expressaram-se da mesma maneira que Júlio Ribeiro. Ao visitar a
região de Cantagalo na província do Rio de Janeiro no início da
década de 1860, o viajante e diplomata suíço J. J. von Tschudi
comentou “a leviandade e inconstância do negro em tudo que se
refere às relações sexuais”. Segundo Tschudi,

8
Ribeiro (s/d: 101, 231).

61
É muito raro haver entre os negros casamentos celebrados na igreja,
mas o fazendeiro permite que os pares, que se unem segundo
oportunidade ou sorte, vivam juntos, sendo que o pronunciamento do
fazendeiro basta para que eles se considerem como esposo e esposa,
numa união que raras vezes há de perdurar a vida inteira. As pretas
possuem, em geral, filhos de 2 ou 3 homens diferentes. Mesmo esta
formalidade [do] pronunciamento do [fazendeiro] não se observa no
mais das vezes, e os negros vivem em promiscuidade sexual, como o
gado nos pampas.9

Poucos anos depois, o jurista (e senhor de escravos) Perdigão


Malheiro observou que “as escravas, em geral, viviam e vivem em
concubinato, ou (o que é pior) em devassidão; o casamento não
lhes garante senão por exceção a propagação regular da prole”. 10
Em 1881, Louis Couty, um francês que residiu vários anos no
Brasil e escreveu largamente sobre o café e a escravidão, afirmou
(em L'Esclavage au Brésil) que muitos senhores, perante a
dificuldade de impor uma ordem moral a seus cativos, decidiram
não mais interferir na vida sexual destes. Como resultado, nas
aglomerações de escravos nas fazendas, se permite que os dois
sexos se misturem durante duas ou três horas toda a noite; e não
se preocupa em exercer nenhuma vigilância sobre os escravos
isolados, nas áreas urbanas. Dessa maneira, a maioria dos filhos de
escravos conhecem apenas um de seus pais, a mãe, e esta
frequentemente ficaria constrangida se tivesse que preencher um
registro civil exato.
Além disso, segundo Couty, havia “muitas negras que não
sabiam o número de seus filhos”, como também as havia que
“nunca se inquietaram para saber aonde [seus filhos] andam”. Por
outro lado, quando os escravos se uniam em matrimônio, a
exploração da mulher pelo homem, que transformava a esposa em
“sua servidora e sua coisa”, levava esta geralmente a “devolver com
9
Tschudi (1980: 57-8).
10
Malheiro (1976: vol. II, 129).

62
usura a falta de afeto” – a tal ponto que os casos de morte de
escravos, envenenados por suas mulheres, “chegam a ser tão
frequentes que em quase todas as fazendas foi necessário proibir
às viúvas de se casarem de novo, e de impedir que continuassem
tendo relações sexuais”.11
Há declarações semelhantes para a primeira metade do século
XIX. Johann Mortiz Rugendas, viajante e artista bávaro, afirmou
em 1835 que os senhores “facilitam os casamentos entre
escravos”; mesmo assim “ocorre (…) que as relações entre escravos
do sexo feminino e do sexo masculino tornam impossível a severa
observância da moral ou a perseverança conscienciosa na
fidelidade conjugal”.12 Na mesma década, Jean Baptiste Debret,
artista e observador francês de longa residência no Brasil,
observou que,

Como um proprietário de escravos não pode ir de encontro à


natureza, impedir aos negros de frequentarem as negras, tem-se por
hábito, nas grandes propriedades, reservar uma negra para cada
quatro homens; cabe-lhes arranjar-se para compartilharem
sossegadamente o fruto dessa concessão, feita tanto para evitar os
pretextos de fuga como em vista de uma procriação destinada a
equilibrar os efeitos da mortalidade.13

O depoimento de Debret é um tanto ambíguo – pode ser uma


simples observação demográfica ou uma sugestão de
promiscuidade – como também o é outro trecho no livro desse
viajante, onde a negra é descrita como “extraordinariamente
sensual, embora fiel e casta no casamento”. 14 Os demais autores,
no entanto, não deixam lugar para dúvidas. Junto com alguns

11
Couty (1881: 74-5), minha tradução.
12
Rugendas (1949: 180).
13
Debret (1978: tomo I, vol. II, 268).
14
Debret (1978: tomo II, vol. III, 202).

63
outros observadores da época, criaram a imagem de devassidão
que ainda marca o comportamento sexual e a vida familiar dos
escravos na maioria dos livros de história.
Imagem, no mínimo, suspeita. Na verdade, os relatos que
tratam da vida íntima do escravo são escassos e curtos; pior ainda,
sofrem restrições que os tornam muito pouco confiáveis. Os livros
de viajantes, de onde vêm quase todas as citações acima, são
extremamente úteis quando descrevem aspectos da cultura material
que são facilmente visíveis e pouco ambíguos (por exemplo, a
estrutura, disposição e divisão interna das senzalas nas fazendas
visitadas). São muito menos confiáveis, no entanto, quando opinam
sobre a vida íntima de todo um grupo social, ainda mais de um
grupo “exótico” como os escravos. George Gardner, um inglês que
viajou pelo interior do Brasil em 1836, não poupava críticas aos

viajantes, en passant, que derivavam seus conhecimentos de outros, e


não da observação pessoal. As histórias mais ridículas são contadas
pelos residentes europeus a estrangeiros recém-chegados, como bem
posso atestar por experiência própria.15

Mesmo um viajante criterioso, como a maioria daqueles citados


acima, dificilmente conseguiria livrar suas observações sobre a
família escrava da influência de ideias preconcebidas, suas próprias
e as de seus informantes. Por outro lado, o autor brasileiro, de um
modo geral, não estaria em condições muito melhores. Embora não
estivesse no Brasil en passant, e pudesse, portanto, reconhecer e
descartar “as histórias mais ridículas” sobre o país, ainda assim era
quase tão distante dos escravos, em seu modo de ser e de perceber,
quanto o viajante.
Quais seriam algumas das imagens prévias, estampadas na retina,
que teriam atrapalhado a visão do observador estrangeiro e do

15
Gardner (1973: 14), minha tradução.

64
racional, quando confrontados com o escravo? Em primeiro lugar,
haveria uma imagem deformada do próprio negro, produzida por
racismo extremado do qual seria raro, nessa época, o viajante
europeu ou o brasileiro bem nascido que escapasse. Vejamos, por
exemplo, o caso de Luis Couty, citado acima, que deixou o que é
provavelmente o relato mais extenso que temos (menos de duas
páginas) sobre a família escrava. Na verdade, mesmo sem
considerar seu ideário racial, já existem razões para questionar a
idoneidade deste autor como observador. Um contemporâneo de
Couty, o holandês C. F. Van Laëne, cujo estudo da indústria
cafeeira no Brasil prima pela meticulosidade de sua exposição e
pelo cuidado com que foi pesquisado, queixou-se que “Me
estenderia muito demais, se fosse refutar uma por uma as
declarações nesse livro [Étude de Biologie Industrielle sur le Café ,
de Couty, de 1883], que me parecem incorretas, aliás até falsas”. 16
Deixemos essa crítica de lado, no entanto, já que haverá quem leia
nela a inveja de um pesquisador rival, e centremos nossa atenção no
trecho que Couty dedica à família escrava. Se as mães desalmadas
(“negras”, não “escravas”) e as esposas assassinas no texto citado
acima já não deixaram o leitor um tanto desconfiado, recuemos
algumas páginas no relato de Couty para examinar seu ponto de
partida:

Os cidadãos livres da África não têm, como seus irmãos cativos, um


desgosto pelo trabalho manual? Eles cultivam as terras tão férteis que
estão em sua posse? Não está provado que, quando empregados como
trabalhadores, eles fornecem muito menos mão-de-obra do que os
operários brancos? Eles têm idéias de liberdade individual, esses
homens acham natural serem espancados, serem vendidos, serem
mortos de acordo com caprichos de um chefe militar ou déspota? Eles
têm ideia de propriedade, esses infelizes que vendem suas crianças por
algumas tirinhas de pano espalhafatoso, que matam os viajantes para
espoliá-los, que consideram o roubo como um modo de luta pela
vida? E o estudo de suas sociedades embrionárias, passageiras, mal

16
Laërne (1885: 253-4), minha tradução.

65
aglutinadas, sem equipamentos e sem produção, como o estudo de seu
cérebro ou de seu crâneo, não é suficiente para responder àqueles que
fazem teorias sociais com palavras vagas ou com idéias apriorísticas? 17

Ora, o racismo explícito e virulento deste trecho torna o


testemunho de Couty extremamente duvidoso. Isto não tem
impedido, no entanto, que ele seja um dos autores mais citados
sobre a questão da família escrava.18
Em segundo lugar, a visão dos observadores do século XIX
provavelmente sofria a interferência de preconceitos culturais. Com
respeito aos viajantes, é importante lembrar que a grande maioria
dos estrangeiros que escreveram sobre o Brasil, especialmente no
século XIX, vinha não da Espanha ou de Portugal, mas de outras
nações; do norte e do oeste da Europa (principalmente da França,
Suíça, países germânicos e Inglaterra). Ora, nessas nações a
reprodução humana, do início do século XVI até meados do
XVIII, quase não acontecia fora de uniões sexuais sacramentadas
pela Igreja, e durante o século XIX a taxa de ilegitimidade nesses
países (nascimentos “ilegítimos”, ou seja, filhos havidos por pais que
não eram casados no religioso, como proporção do total de
nascimentos) geralmente não subia além de 10% – cifra essa muito
abaixo do índice nos países ibéricos e na América Latina. Mesmo
assim, o enorme aumento dessa taxa desde meados do século
XVIII, especialmente nas cidades, causava espanto, e era
comumente interpretado como indício de um enfraquecimento dos
padrões de moralidade.19 Não é de se surpreender, portanto, que o
17
Couty (1881: 68), minha tradução.
18
Stein (1985: 155); Bastide (1971: vol. I, 89); Fernandes (1965: vol. I, 36).
19
Veja, por exemplo: Shorter (1972: 231-269); Shorter, Knodel & van de Walle
(1971: 375-93); e Laslett (1972: 16-7). Sobre a península ibérica, veja: Candido (1951:
300-1); e Willems (1975: 52-53). Segundo este último (p. 53), em Portugal e na
Espanha “a união consensua1 (…) era um padrão cultural com raízes profundas, não
um desvio; certamente foi transplantada para a América (Latina), onde encontrou um
ambiente receptivo, especialmente entre o campesinato e os trabalhadores rurais”

66
viajante europeu do século XIX, frente aos baixos índices de
casamento religioso e às altas taxas de ilegitimidade que prevaleciam
entre os escravos brasileiros (fora de São Paulo), tenha registrado
uma impressão de patologia social. A lente distorciva de sua cultura
praticamente não lhe permitia outra visão.
Já no caso dos observadores brasileiros, teria havido um
preconceito cultural diferente, mas não menos importante.
Sugestivo nesse sentido é “Lucinda – a Mucama” um dos romances
que integram As Vítimas Algozes de Joaquim Manoel de Macedo.
Publicado em 1869, o romance veicula a mesma imagem negativa
da mulher cativa que encontramos em Couty, mas oferece uma
explicação sociológica, não racial, de seu modo de ser. O livro é um
tratado antiescravista, cujo tema é a influência maléfica da
escravidão no seio da família branca. Ao descrever como a moça,
Cândida (a pureza), é corrompida por sua mucama escrava,
Lucinda (o demônio), Macedo revela sua visão da formação moral
da escrava, e sua concepção de como uma menina honesta deve ser
educada. A mulher cativa,

(…) abandonada aos desprezos da escravidão, crescendo no meio da


pratica dos vícios mais escandalosos e repugnantes, desde a infancia, desde
a primeira infancia testemunhando torpezas de luxuria, e ouvindo a
eloquencia lodosa da palavra sem freio, fica pervertida muito antes de ter
consciência de sua perversão (…)

Já, ao contrário, “a donzella é flor que tem por matiz o recato e o pejo”.
Nas boas famílias,

(…) ha para as filhas certa especialidade de cuidados que nas mães é


religioso culto de amor que vela incessante, como o das sacerdotizas de
Vesta que vigiarão o fogo da pureza, nos paes é uma fonte sublime de
melindres e de escrupulos, uma santa exageração de estremecido zelo (…)

(minha tradução).

67
Como resultado de uma vigilância desse tipo por parte de seus pais,
“Cândida chagara aos onze annos de edade com a perfeita
innocencia de sua primeira infancia”. Infelizmente, recebeu em
seguida a Lucinda de presente, e “[foi] a escrava que a arrancou das
risonhas e serenas ignorancias da innocencia, ensinando-lhe
rudemente theorias sensuaes da missão da mulher”. Fica evidente,
em tudo isto, que Macedo condena a formação moral da escrava
porque ele não admite outro padrão normativo para a educação de
uma menina além daquele adotado pelos pais de Cândida. Na
valorização da “santa exageração de estremecido zelo” destes, está a
condenação dos pais escravos e de suas filhas. O leitor moderno
poderá perguntar-se se é lícito medir a moralidade dos cativos com
esta mesma régua.20
Em terceiro lugar, haveria a influência de uma ideologia a respeito
da escravidão e do trabalho livre que teria marcado a percepção da
maioria dos observadores, europeus e brasileiros, sobretudo na
segunda metade do século XIX. Vejamos o caso do viajante francês,
Charles Ribeyrolles, que visitou as regiões cafeeiras do Rio de Janeiro
em 1858. Ribeyrolles enfatiza que

a fome não penetra na senzala. Nela não se morre de inanição como em


White Chapel ou Westminster. Mas não existem famílias: há ninhadas.
Por que se entregaria o pai às santas alegrias do trabalho? Interesse
nenhum o liga à terra, nem proveitos lhe advêm da colheita. Para ele, o
labor representa a fadiga e o suor. É a escravidão. Por que se desvelaria a
mãe em manter limpos os filhos e a morada? Os filhos lhe podem ser
arrebatados de uma hora para a outra, como pintos ou os cabritos da
fazenda, e ela mesma não passa de um simples objeto. Contudo, existem
às vezes, nesses antros, distrações e prazeres bestiais, causados pela
embriaguez, onde nunca se fala do passado, que é a dor, nem do futuro
porque está remoto.
(…)

20
Macedo (1869: vol. II, 60, 91, 115, 21, 273).

68
Nas senzalas dos negros, nunca avistei uma flor. Não moram nela [sic]
as esperanças e as recordações.21

Temos aqui um exemplo primoroso da construção de uma “realidade”


única e exclusivamente a partir de noções prévias: noções que tornam
impensável qualquer pesquisa sobre as esperanças e as recordações dos
escravos por declará-las, de antemão, inexistentes.
Os elementos reunidos no ideário de Ribeyrolles – a função
“santa”, moralizadora do trabalho livre que, no feliz encontro da
necessidade com o interesse, torna possível a formação da “família”,
concebida como projeto de acumulação – também encontra-se
expresso, com certas modificações e acréscimos, em Theses sobre
Colonização do Brasil, um relatório apresentado ao Ministério da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas em 1875, por João
Cardoso de Menezes e Souza. Ao discutir a possibilidade de
aproveitar o trabalho do liberto na agricultura, Souza chama a
atenção para o exemplo de “uma colônia de negros fundada [na
Guiana Francesa]”, depois da emancipação dos escravos, onde se
tinha “demonstrado que a raça africana podia ser utilmente
empregada no trabalho agrícola, uma vez educada à sombra da
religião e constituída sobre a dupla base da família e da
propriedade”. Citando um autor francês, um certo Duval, sobre
essa experiência, Souza prossegue em sua análise:

(…) a família, de que os escravos faziam pouco enquanto o


casamento não lhes assegurava privilégios nem de esposo, nem
de pai, constitui-se rapidamente na população emancipada. Em
seguida á família vem a propriedade, ao princípio muito
diminuta, medida pelas necessidades e pela ambição. O negro
(…) trabalhará para aumentar sua cabana, onde é rei; seu campo,
onde ninguém lhe dá ordens. Sociedades de socorros mútuos,
prelúdios das caixas econômicas, vivamente reclamadas, virão em

21
Ribeyrolles (1941, vol. II: 33).

69
auxílio deste movimento, revelando hábitos de ordem e
previdência a raças, que eram reputadas incapazes delles22

Neste trecho Duval/Souza acrescenta ao ideário de Ribeyrolles a noção


de que a família só se constitui na sua plenitude quando são
assegurados ao homem seus “privilégios” de esposo e de pai – ou seja,
sua autoridade perante a mulher e os filhos –, o que (na suposição
desses autores) não acontece no regime escravista. O trecho também
tenta definir com mais precisão a inter-relação entre família e
propriedade, que é apenas sugerida por Ribeyrolles (e, aliás, por Couty,
no parágrafo em que esse autor nega ao africano qualquer “ideia de
família ou de propriedade”). Para Duval/Souza, “em seguida à família
vem a propriedade”, já que a luta para assegurar o bem-estar da família
torna-se também uma luta para aumentar o patrimônio; mas a partir
desse momento inicial, a propriedade e a família marcham juntas, de
mãos dadas, uma reforçando a outra. O que temos aqui, então é um
enunciado claro da ideia de que havia uma relação de apoio mútuo
entre “família” (definida como “família monogâmica e patriarcal”) e
propriedade particular. Este modelo de família não será novidade para
quem estuda o século XIX, ao mesmo tempo patriarcal e burguês.
Contudo, cabe salientar que quem pensava em seus termos – como
provavelmente era o caso da maioria dos brasileiros “bem-nascidos” no
século XIX – teria uma enorme dificuldade em perceber, e muito mais
em interpretar, as estratégias e projetos de vida íntima dos escravos.
Além disso, a dificuldade teria aumentado com o tempo. Nos
depoimentos de viajantes e brasileiros a respeito da família escrava,
provavelmente existe a influência de um projeto disciplinar que
associava cada vez mais a estabilidade da família nuclear e a
sobriedade na vida sexual com a constância e o empenho no
trabalho. Na Europa e nos Estados Unidos nesse período, os
grupos dominantes e os intelectuais e profissionais a eles ligados

22
Souza (1875: 166, 169-70).

70
elaboraram estratégias para levar a “disciplina ao domicílio”, como
parte de uma tentativa de instilar novos valores entre as classes
populares, permitindo dessa forma um controle mais eficaz sobre
seu trabalho.23 Nessa tentativa, havia o reconhecimento tácito de
que o “aburguesamento” do modo de ser do trabalhador livre não
aconteceria por um processo natural, mas dependia da “tutela” da
própria burguesia e do Estado. No Brasil, o problema da transição
do trabalho escravo ao trabalho livre, que levantava o espectro de
uma mudança profunda nas práticas disciplinares, provavelmente
fez com que parecesse especialmente necessária a adoção de tais
estratégias de tutela24. Certamente, no final do período escravista e
na década de 1890, a “vadiagem” do negro liberto tornou-se uma
preocupação constante nos debates políticos e nos jornais; e é
significativo que a suposta recusa desse personagem ao trabalho era
comumente atribuída a sua degeneração moral, revelada por todo
um complexo de características negativas, entre elas a lubricidade e
a falta de instituições familiares estáveis.25
Em resumo, o racismo, os preconceitos culturais e a ideologia do
trabalho da época predispunham os viajantes europeus e os brasileiros
“homens de bem” a verem os negros, que aparentemente não seguiam
suas regras na vida íntima, como desregrados. Na segunda metade do
século, quando o “não seguir as regras” parecia ameaçar cada vez mais
a disciplina no trabalho, essa predisposição provavelmente se tornou
mais forte. Dentro desse contexto, as histórias que nos contam Ribeiro,
Tschudi, Couty e os outros autores citados, tornam-se extremamente
precárias como fontes, a não ser para retratar o pensamento das Lenitas
da época. Para penetrar no mundo do escravo, outros tipos de
informação e métodos de análise são necessários.

23
Joseph, Fristch & Battegay (1977) e Donzelot (1980).
24
Veja o estudo sugestivo de Costa (1979).
25
Chalhoub (1986: 39-40); Azevedo (1987: especialmente capítulos II e IV); Moritz
(1987: 163 em diante, especialmente 224-6 e 232-40).

71
Ou, pelo menos, outras leituras. Na verdade, os observadores da
época da escravidão não eram tão cegos – não tinham um olhar tão
branco assim – quanto a análise acima possa sugerir. Embora eles
tenham representado a vida sexual e familiar do escravo como
patológica, eles também registraram detalhes ( en passant, e
frequentemente sem entender o sentido) que são passíveis de uma
interpretação diferente. Em suma, é possível recuperar no olhar
branco um lar negro que seja coerente com os novos dados
demográficos. Mas isso é outra história, para ser contada em outra
ocasião…

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74
A FAMÍLIA QUE
NÃO É SAGRADA:
SISTEMAS DE
TRABALHO E
ESTRUTURA
FAMILIAR NAS
FAZENDAS DE CAFÉ
EM SÃO PAULO

VERENA STOLCKE
TRADUÇÃO DO INGLÊS: NÁDIA FARAGE

Na segunda metade do século XIX – e em poucas décadas – São Paulo


tornou-se o principal estado produtor de café do Brasil. O sucesso
surpreendente dos agricultores de São Paulo em transformar o cultivo
do café nas colheitas mais lucrativas do período foi, em grande parte,
devido a sua habilidade para resolver o problema da mão de obra sem
grandes inconvenientes. Até a década de 50, os escravos constituíam a
maior parte da força de trabalho necessária à agricultura comercial em
larga escala voltada para a exportação. Em meados do século XIX, no
entanto, com a escravatura sob crescentes ataques, alguns fazendeiros
de São Paulo iniciaram experimentos com o trabalho livre. Na ausência

75
de uma reserva de mão de obra nacional prontamente disponível, típica
de um país com terras abundantes e uma população relativamente
escassa, a lavoura paulista recorreu ao trabalho imigrante. Inicialmente
o recrutamento da mão de obra imigrante foi financiado pelos
fazendeiros individualmente, mas, quando, por volta dos anos 80
tornou-se claro que a abolição era iminente, os fazendeiros de São
Paulo conseguiram persuadir o Governo Federal a subsidiar a
imigração em massa para cobrir sua crescente demanda de mão de
obra.
Enquanto a escravidão foi uma fonte viável de mão de obra para
os cafezais em expansão, apenas os fazendeiros mais progressistas
experimentaram o trabalho livre. Por volta de 1855, havia cerca de
3.500 trabalhadores livres imigrantes, predominantemente de
origem suíça e alemã, trabalhando em 30 fazendas na província de
São Paulo1. Ao final do século, a imigração subsidiada pelo
Governo resultou na chegada de quase um milhão de italianos, num
período de 15 anos, para trabalhar nos cafezais de São Paulo.
Diversamente dos demais países que recebiam imigrantes, como
a Argentina ou as ilhas do Caribe, os fazendeiros de São Paulo
insistiram, desde o início, em contratar os trabalhadores em
unidades familiares. Em outro trabalho, tentamos analisar as
circunstâncias e apontar os motivos que determinaram a escolha
dos fazendeiros pelos diversos sistemas de contrato do trabalho
livre, e suas consequências.2 Neste estudo, quero explorar as razões
da preferência dos fazendeiros pelo trabalho familiar, e os efeitos
que a organização do trabalho por eles adotada teve sobre a
estrutura familiar dos trabalhadores e sua divisão sexual do trabalho.
Através da análise das sucessivas transformações das relações de

1
Relação das colônias existentes na província de São Paulo no ano de 1855,
manuscrito anônimo datado de 8 de março de 1856, que se encontra no arquivo do
Instituto Geográfico Brasileiro, São Paulo, lata 71/7.
2
Stolcke & Hall (1983).

76
produção nas plantações de café quero também me referir, de
maneira mais geral, à questão da articulação, complexa e
frequentemente contraditória, entre valores culturais e realidade
material na medida em que ambos afetam a estrutura familiar
trabalhadora e a divisão sexual do trabalho sob diferentes formas de
acumulação do capital.
O crescente interesse da bibliografia na década passada sobre a
evolução da família trabalhadora e o papel da mulher dentro dela
na sociedade capitalista tem sido fundamental para tornar clara a
contribuição da família para a reprodução barata da força de
trabalho.3 No entanto, como já tem sido apontado, muitas destas
análises falham por uma abordagem demasiadamente funcional,
economicista e atomicista. Funcional no sentido de que estes
estudos muitas vezes não revelam as contradições geradas pelo
desenvolvimento capitalista dentro da própria família trabalhadora e
para o capital; economicista porque o papel das forças culturais em
modelar o processo de acumulação capitalista não é muitas vezes
considerado; e atomicista porque, frequentemente, apenas o efeito
do desenvolvimento capitalista no papel da mulher é analisado, em
vez de se enfocar a condição da mulher como sendo determinada
pela natureza de sua relação com o homem dentro da família.4
Em um sentido mais geral, estas análises frequentemente não
chegam a considerar a importante influência da ideologia
dominante como determinante da persistência da família
trabalhadora apesar do contrapeso de outras forças materiais. Como
levantei em outro trabalho, muitas vezes há confusão entre as

3
Por exemplo, Coulson, Magas & Wainwright (1975); Gardiner (1975); Seccombe
(1975); Himmelweit & Mohun (1977) e Hartmann (1976).
4
Sobre a recente mudança de natureza da família trabalhadora no capitalismo e o
papel da mulher dentro dela: Humphries (1977); Hartmann & Markusen (1980); e a
excelente abordagem de Sen (1980), como uma instituição essencialmente
contraditória.

77
estratégias de acumulação adotadas pelo capital, que tomam como
um todo a família e sua divisão sexual do trabalho em certos
momentos históricos, e a razão pela qual o capital adota estas
estratégias. Mostrar como o capital obtém um benefício adicional da
contribuição feita pela classe trabalhadora organizada em unidades
familiares para a reprodução da força de trabalho ainda não explica
por que isto assim se dá. Há dois lados para o problema da razão
de ser da famí1ia trabalhadora: os interesses de classe, tanto
econômicos quanto ideológicos, da burguesia na manutenção desta
instituição, e os motivos que a própria classe trabalhadora tem para
tolerá-la tão frequentemente. De um ponto de vista formal, a
burguesia define as instituições dominantes em uma sociedade de
classes. Não se pode entender a persistência da família trabalhadora
sem se entender as razões sociais para a manutenção da família
burguesa. Como levantei em outro trabalho, 5 como parte de sua
dominação e legitimação, a burguesia tende a “naturalizar” e assim
“universalizar” aquelas instituições que asseguram sua própria
perpetuação, entre elas o casamento, a família e a divisão sexual do
trabalho. Não que a burguesia invente novas instituições em seu
próprio proveito, mas planeja suas estratégias tomando como um
dado natural aquelas já existentes; e neste processo, no entanto,
transforma-as. Se em determinados momentos históricos as formas
de acumulação do capital ameaçam a continuidade da família
trabalhadora, é resultado das contradições inerentes ao capitalismo.
Enquanto, por um lado, a burguesia mantém a universalidade das
instituições sociais e valores morais na sociedade de classes, o fato de
que, por outro lado, as classes trabalhadoras visivelmente nem sempre
se amoldem às regras dominantes é antes atribuído a sua natural
incapacidade de se ajustar do que à natureza da ordem social.

5
Stolcke (1980), publicado também em inglês em Young, Wolkowitz & McCullagh
(1984).

78
Sabe-se que a família e as formas de divisão sexual do trabalho
entre as classes trabalhadoras antecedem o surgimento do
capitalismo.6 Entre as populações camponesas da Europa pré-
industrial, estas instituições estavam relacionadas à organização da
produção e herança da propriedade.7 Como tanto I. Pinchbeck
quanto Tilly e Scott demonstraram, na Europa pré-capitalista a
família constituía uma unidade tanto de produção como de
consumo. Com a emergência do capitalismo, entretanto, a família
perde sua função de produção e torna-se uma unidade assalariada.
No entanto, nenhum destes autores explica as razões de persistência
da instituição da família.

Sistemas de trabalho e trabalho familiar


O caso da introdução do trabalho livre na agricultura de São Paulo é
provavelmente uma exceção, onde desde o início ficou explícita a
preferência dos fazendeiros em contratar a mão de obra em unidades
familiares. Como apontou em 1874 José Vergueiro, filho do Senador
Vergueiro, o primeiro fazendeiro a introduzir trabalho livre em sua
propriedade em 1847:

Penso que a colonização pode progredir apenas se levada a cabo por


famílias. Estima-se que cada família é composta em média de 5
membros.8

E, como comentava ironicamente um contemporâneo suíço:

6
Pinchbeck (1930); Tilly & Scott (1978).
7
Medick (1976); Berkner (1972); Levine (1976); Goody, Thirsk & Thompson
(1976).
8
Vergueiro (1874).

79
Os humanitários fazendeiros do Brasil, além do mais, querem não
apenas indivíduos, mas famílias inteiras para lhes oferecer esta
felicidade (uma renda fácil e abundante) nunca antes imaginada, de
maneira que os membros da família ajudar-se-iam uns aos outros no
trabalho e aumentariam assim sua fortuna comum. Pessoas solteiras
teriam que se unir à família imigrante.9

Os trabalhadores imigrantes eram recrutados por agentes na Europa


sob um contrato de ameia. De acordo com este contrato, o
fazendeiro financiava o transporte dos imigrantes de seu país de
origem até o porto de Santos, adiantava o custo do transporte de
Santos até a fazenda, como também alimentos e ferramentas de que
precisariam até que pudessem obtê-los com seu próprio trabalho.
Ele determinava o número de pés de café que os trabalhadores
deveriam cuidar e colher, e concedia-lhes um pedaço de terra para
plantar seu próprio alimento. Eles eram obrigados a repor as
despesas do fazendeiro com pelo menos metade de seus lucros
anuais provenientes do cultivo do café. Não havia limite de tempo
fixado no contrato, mas este estabelecia o montante da dívida
contraída pela família imigrante no seu transporte e outros
adiantamentos. Finalmente não poderiam deixar a fazenda sem que
houvessem pago suas dívidas.10
Crianças até três anos eram transportadas gratuitamente e
menores de até oito ou dez anos pagavam metade do preço da
passagem de um adulto.11
Ao chegar às fazendas, as famílias imigrantes eram instaladas em
casas individuais, em condições mais ou menos precárias,
especialmente preparadas para elas, e construídas em separado das
senzalas.
9
Heusser (1857: 60).
10
Stolcke & Hall (1983), para as mudanças que foram introduzidas no contrato de
ameia.
11
Tschudi (1953 [1861]).

80
A eles cabiam as tarefas relacionadas ao cultivo e colheita do
café. Todas as outras tarefas, tais como preparar o solo para vários
outros cultivos, plantar novos pés de café, plantar culturas anuais
para consumo da fazenda e incrementar o processamento do café,
tarefas que se dizia requererem constante supervisão ou serem
inadequadas para o sistema de ameia, continuavam a ser executadas
pelos escravos.12
A travessia do oceano, a viagem de Santos às fazendas, as novas
condições climáticas e alimentares, e ainda a miséria sofrida pelos
imigrantes após sua chegada, cobraram sua dívida também em
mortes.13 As vítimas não eram apenas crianças ou pessoas idosas,
mas também homens e mulheres casados e aptos para o trabalho.
Para se proteger dos prejuízos causados pela morte de um
imigrante, os fazendeiros logo introduziram uma cláusula adicional
no contrato, pela qual todos os membros de uma família eram
solidariamente responsáveis pelo débito: uma espécie de herança às
avessas.14
Os imigrantes ressentiram-se especialmente com esta cláusula,
porque ela tornava ainda mais graves suas já crescentes dificuldades
em saldar as dívidas. Não só eles tinham frequentemente que
lamentar a morte de um parente, como também as comunidades
suíças na origem forçavam as famílias a levarem consigo pessoas não
aparentadas para se livrarem de indivíduos improdutivos. 15 Os
interesses das comunidades de origem e os dos fazendeiros de São
Paulo eram antagônicos. Os primeiros consideravam a emigração
para São Paulo como um meio eficiente de se livrarem de pessoas
idosas, condenados, cegos e mães solteiras, que eram um peso para

12
Moraes (1870: 10).
13
Heusser, (1857: 45).
14
Jaguaribe (1877: 34).
15
Natsch (1966: 176); Heusser (1857: 14); Karrer (1886: 64-65).

81
as finanças locais. Os fazendeiros de São Paulo desejavam não
apenas famílias, mas grandes famílias, com muitos membros
capazes.
O recrutamento do trabalho livre requereu um investimento
inicial por parte dos fazendeiros. Uma de suas preocupações, já
conhecida por experiência com o trabalho escravo, era recuperar
este capital.16 Os imigrantes eram, à diferença dos escravos,
trabalhadores livres, que vendiam seu trabalho por um pagamento,
através do qual os fazendeiros visavam recuperar seu investimento.
O contrato de ameia não era, assim, uma forma de servidão por
dívida, apesar de ter produzido efeitos similares, como reter os
trabalhadores até que tivessem saldado suas dívidas. Para os
imigrantes, no entanto, a dívida inicial pesava de maneira crescente
sobre sua renda. Na prática, o retorno que tiveram do cultivo do
café, era muito menor do que os estipulados 50% do lucro líquido.
Então, por que os fazendeiros optaram pelo sistema de ameia ao
invés do assalariamento individual? Como se pode explicar sua
explícita opção por famílias e não trabalhadores individuais? E,
finalmente, quais foram as consequências deste sistema de trabalho
para a família do imigrante? São questões correlatas.
Sistema de ameia em uma situação da mão de obra escassa é, de
fato, mais eficiente que assalariamento. É uma forma de trabalho
semelhante a um sistema de pagamento por volume de produção
cuidadosamente negociado. Ambas são formas de pagamento com
incentivos, meios de assegurar um esforço a mais no trabalho, de
fazer os trabalhadores produzirem mais e melhor com apenas um
pequeno aumento em sua remuneração total, à diferença do
assalariamento. Remuneração na forma de proporção sobre o
produto constitui um incentivo para o trabalhador intensificar seus

16
Tschudi (1953: 136).

82
esforços, desde que seu lucro depende da qualidade produzida. 17
Além disso, meeiros são tipicamente contratados em unidades
familiares. O sistema de ameia é um arranjo para todo o ciclo
agrícola e apenas em seu final o meeiro receberá sua parte. Durante
o ano agrícola espera-se que ele se mantenha e à sua família com o
produto da terra que sempre lhe é cedida e alguma renda
adiantada. É o esforço combinado de toda a família que provê sua
automanutenção, como também cumpre as tarefas exigidas pela
colheita realizada em ameia.
Os fazendeiros usualmente explicavam sua preferência por esse
tipo de trabalho argumentando que imigrantes acompanhados por
suas famílias eram menos propensos a abandonar as fazendas. Mas
esta é uma verdade parcial. E, mais, estava baseada em uma
premissa ideológica vinda da própria noção do fazendeiro, de
família como uma unidade solidária, que um membro de uma
família não fugiria ou abandonaria. Igualmente importante para a
opção dos fazendeiros era o fato de que as famílias de imigrantes
constituíam uma reserva de mão de obra barata. Um meeiro
geralmente aceitará uma divisão do produto que não cubra
completamente o preço de mercado potencial do trabalho familiar,
porque de outra maneira permaneceria em subemprego ou
desempregado. Os fazendeiros, de fato, proibiam os imigrantes e
suas famílias de trabalhar fora da fazenda.18 Eles obtinham este
trabalho adicional por um custo muito abaixo daquele que teriam
que pagar se contratassem trabalho assalariado. Além disso, o café é
produção que requer mão de obra muito intensiva. A mão de obra
necessária para a produção de café variava através do ano agrícola,
sendo a da colheita um quinto maior do que a do cultivo. 19 Os

17
Martinez-Alier (1974).
18
Davatz (1941).
19
Ramos (1923: 358); Jaguaribe (1877: 34).

83
filhos e esposas dos trabalhadores podiam cobrir satisfatoriamente
esta demanda adicional durante a época da colheita.
Por fim, a terra destinada às famílias imigrantes era outro meio de
reduzir os custos da unidade de trabalho. Esses terrenos eram
usualmente cedidos em terras marginais impróprias para o café, em
terras virgens mais tarde alcançadas pelo café ou era permitido aos
trabalhadores cultivar alimentos entre as filas de café. As plantações de
alimentos eram feitas durante o período de cultivo, quando a demanda
de trabalho era menor. A família meeira constituía uma unidade de
produção e consumo, que podia, em princípio, produzir sua própria
subsistência sem comprometer a produção voltada para o comércio.
Desta maneira, o custo de sua própria reprodução era ainda mais
reduzido, e o trabalho familiar totalmente aproveitado.
A opção dos fazendeiros pelo sistema de ameia em si mesma
implicava o recrutamento de unidades familiares em vez de
trabalhadores individuais para as plantações. Mas a vantagem da
ameia sobre o assalariamento derivou, em parte, de uma ideologia
de família preexistente, partilhada por ambos, fazendeiros e
trabalhadores, e que pressupunha a combinação de esforços e
auxílio mútuo entre os membros de uma família para benefício dela
como um todo.20
Indicador da interação entre a ideologia de família e interesses
materiais no caso dos trabalhadores é, por exemplo, sua reação à
cláusula contratual estabelecendo responsabilidade solidária para
com o débito. Isto foi sentido como uma dificuldade acrescentada
no caso do parentesco, mas particularmente lamentado quando
aplicada a não aparentados com relação a quem os imigrantes não
sentiam quaisquer obrigações.21 Este senso especial de solidariedade
e cooperação entre parentes, diferentemente dos não parentes, era

20
Cf. Humphries (1977) e Sen (1980), para uma discussão da família trabalhadora
como uma instituição para auxílio mútuo e cooperação entre seus membros.

84
de fato um elemento importante na superexploração das famílias
dos trabalhadores.
Como um observador, cunhado de um fazendeiro, lucidamente
comentou em 1877:

A colonização realmente útil para nós foi a dos alemães e portugueses;


o colono alemão é sempre diligente e honesto, e quando tem uma
famí1ia numerosa ele oferece vantagens incalculáveis. O chefe de
família procura demonstrar na prática o provérbio inglês – que tempo
é dinheiro – o, e com sua famí1ia transforma o tempo em sua
propriedade de um modo que, mesmo quando eles estão trabalhando
no cafezal para o fazendeiro, fazem uso das ervas daninhas para
alimentar seus porcos e galinhas, e quando retornam à casa os filhos
começam a trabalhar; todos eles vão à escola e quando estão de folga
debulham o milho, fazem cercas, cultivam a roça, criam galinhas,
porcos e vacas que são a fonte de sua subsistência. A mulher e as filhas
preparam o famoso pão de milho que é a base de sua alimentação. 22

No entanto, os fazendeiros não estavam tão satisfeitos com os


imigrantes como nova fonte de mão de obra nem o bem-estar dos
trabalhadores e sua assiduidade no trabalho era tão real como pinta
esta idílica descrição. Pelo contrário, como demonstramos em outro
trabalho,23 a dívida inicial, ao reduzir de maneira significativa a
renda dos trabalhadores, desencorajou qualquer esforço de sua
parte no cultivo do café além do estritamente necessário. Sendo que
os terrenos designados para as hortas não estavam claramente
delimitados, os trabalhadores sistematicamente desviavam o
trabalho para a produção de alimentos, que esta lhes pertencia
diretamente. Os proprietários sempre se queixavam acerca da baixa
produtividade no café, mas não tinham meios de impor a necessária

21
Como aponta Karrer (1886: 69): “A responsabilidade solidária, mesmo entre
membros de famílias constituídas artificialmente, implicava que pessoas solteiras
seriam responsáveis por pessoas com as quais não tinham nada a ver”.
22
Jaguaribe (1877: 19).
23
Stolcke & Hall (1983).

85
disciplina de trabalho que lhes permitiria alcançar seu duplo,
conquanto contraditório, objetivo: amortização das dívidas e uma
produtividade satisfatória no café.
No entanto, como uma solução para o problema de mão de obra
tornava-se cada vez mais urgente, os fazendeiros não abandonaram seus
esforços em transformar a mão de obra imigrante em um
empreendimento lucrativo. Inicialmente substituíram o sistema de
ameia por um novo contrato, uma espécie de arrendamento, de acordo
com o qual tanto o cultivo como a colheita do café eram pagos por
quantidade produzida. Ao mesmo tempo, prevenindo o desvio
excessivo do trabalho para o plantio de subsistência, os fazendeiros
começaram a designar os terrenos para as roças em proporção estrita
ao número de pés de café que cada família zelava, isto é, delimitando-as
ao que era estritamente necessário para a mera reprodução das
famílias. Mas isto não foi solução para o problema básico: a dívida
inicial como um fator negativo para maior intensidade no trabalho,
problema este que persistiu até os anos 80. Na década de 70 os
fazendeiros introduziram uma nova mudança contratual. Desde que o
cultivo do café pago por quantidade produzida afetava a qualidade do
trabalho, doravante seria pago em quantia fixa pelo cuidado de mil pés
de café ao ano. Apenas a colheita seria paga por produção. Este novo
sistema, o colonato, uma mistura de contrato por serviços e quantidade
produzida, persistiu nas plantações de café até 1950.
Ainda antes dos anos 80, quando o Governo Federal assumiu o
subsídio completo da imigração em massa, eliminando assim a dívida
inicial, criaram-se condições para a constituição de um mercado de
trabalho livre e a produtividade do trabalho no café finalmente obteve
um nível satisfatório. Enquanto até a década de 80 um trabalhador
cuidava, em média, de não mais que 700 pés de café, daí em diante o
número normal passou a ser entre 2.000 e 2.500 pés. Como um
membro da Câmara dos Deputados comentou brevemente após a
Abolição:

86
pois é evidente que precisamos de braços (…), no intuito de aumentar
a concorrência de trabalhadores e, mediante a lei da oferta e da
procura, de diminuir o salário.24

Tal como o sistema de ameia, o arrendamento e mais tarde o colonato


também pressupunham o recrutamento da mão de obra em unidades
familiares. Todos estes três sistemas reforçavam a solidariedade na
família e a interdependência entre seus membros. Estes sistemas de
trabalho também implicavam uma clara divisão de trabalho por sexo e
idade, como na hierarquia familiar. Como notou um observador:

no cafezal da fazenda forão designados os cafeeiros que tinhão de ser


tratados e colhidos por cada uma das famílias (…) na sua distribuição
tomou-se em consideração a vontade do chefe de família assim como
o número, sexo e idade de seus membros.25

O contrato era sempre assinado pelo chefe da família, que também


decidia sobre as tarefas a serem executadas na alocação do trabalho
familiar. Filhos de ambos os sexos desde cedo contribuíam com sua
parte, cuidando de pequenos animais e trabalhando na colheita. A
mulher era primeiramente responsável pelas tarefas domésticas 26 e
o cultivo da roça, auxiliada pelos homens adultos, quando lhes
sobrava tempo do trabalho no cafezal que requeria muitas limpezas
e era principal tarefa dos homens. Homens, mulheres e crianças
faziam a colheita.27 Significativamente, o número de pés de café

24
Anais da Câmara (1888: IV, 323), citado em Hall (1969).
25
Moraes (1870: 7).
26
Maistrello (1923: 558); peculiarmente, Maistrello atribuiu o fato de que as filhas de
imigrantes se casassem com nacionais ao “hábito do nacional de deixar sempre a
mulher em casa para tratar dos afazeres domésticos, quando pelo contrário o
estrangeiro a leva para o trabalho pesado da roça”. Cf. Denis (1911). Este é
certamente um dos efeitos dos diferentes arranjos de trabalho sob os quais imigrantes
e nacionais eram contratados.
27
Como notou Maistrello (1923: 557): “É um interessante espetáculo assistir e
acompanhar a uma colheita de café, ver as famílias inteiras sairem de suas casas

87
fixado para as mulheres era sempre cerca da metade daquele dos
homens.
É difícil, com as evidências disponíveis, determinar as consequências
concretas da estrutura de autoridade dentro da família para seus
membros individualmente, além de suas implicações no processo de
trabalho. É claro que os fazendeiros tinham expectativas de um esforço
solidário da parte da família como um todo; e de que os trabalhadores,
de maneira geral, cooperassem dentro do interesse de todos os
membros. Ainda, à exceção daqueles além da idade produtiva, que já
haviam feito sua parte, nenhum membro de uma família era
inteiramente dependente de qualquer outro para sua subsistência, mas
todos dependiam uns dos outros para sua sobrevivência. Havia uma
nítida separação de papéis por sexo e idade; mulheres e crianças
estavam subordinadas ao chefe da família com relação à organização do
trabalho. Mais do que na intensificação da divisão sexual do trabalho,
todos estes sistemas implicavam uma divisão do trabalho na família de
acordo com as capacidades efetivas de seus membros, determinadas
por sexo e idade. Acima de tudo, os fazendeiros esperavam fazer uso
do trabalho familiar. Consequentemente, todos os membros da família
estavam igualmente sujeitos à superexploração nas fazendas.
No entanto, há duas maneiras pelas quais estes sistemas de trabalho,
por sua vez, afetaram a organização da família. A dívida inicial e os
esforços dos fazendeiros em garantir seu investimento limitaram de
maneira significativa a escolha de casamentos para os imigrantes:

A dívida de um colono o impede totalmente de casar de acordo com


seu próprio desejo, se este for contrário ao do fazendeiro, em
particular quando ele escolhe uma moça de outra fazenda. Se ela está
igualmente em dívida e se o empregador do noivo não deseja pagar a

carregando os pannos nos hombros, as peneiras, os rôdos, os garrafões de água, seus


cães atraz, e as moças a cantar, os velhos a fumar seus cachimbos, e ao escurecer,
todos mascarados pelo pó, irreconhecíveis, voltarem para suas casas alegres e
satisfeitos”.

88
dívida da noiva a seu empregador à vista e transferi-la para a conta do
noivo, o casamento é impossível… Repetidamente a dívida tem levado
os colonos a tentar ganhar vantagens uns dos outros através de
casamentos arranjados: os pais tentam casar suas filhas para se livrarem
de suas dívidas. Pouco depois do casamento, entretanto, as jovens
esposas abandonam seus maridos mais velhos. 28

Este comentário também indica que as mulheres usualmente seguiam


seus maridos no casamento, que os pais tinham um certo poder na
determinação dos casamentos de suas filhas, e finalmente que os filhos
deixavam suas famílias depois do casamento para estabelecer uma nova
unidade doméstica.
Como foi indicado anteriormente, os fazendeiros não apenas
preferiram contratar a mão de obra em unidades familiares, mas
também insistiram sempre em que as famílias deveriam ter grande
número de trabalhadores aptos. De fato, apenas as famílias grandes
tiveram alguma chance de resgatar sua dívida dentro de um razoável
período de tempo, e talvez acumular o capital necessário para se
estabelecer por si mesmas, em um pedaço de terra ou na cidade:

Saldar a dívida não era impossível, mas, qualquer que fosse a quantia,
para a maioria das famílias não era fácil como dizia a propaganda da
imigração (…) a família Clauzel (conseguiu) porque tinha um bom
cafezal e terra suficiente para o cultivo de subsistência. A família foi
bem-sucedida apenas por si mesma, porque não tinha nem um
membro improdutivo. Os filhos têm entre 11 e 24 anos e todos
trabalham no cafezal e a mãe cuida da casa. 29

Quanto maior for o número de trabalhadores em uma família em


proporção aos consumidores, maior é sua capacidade produtiva.
Sob o sistema de ameia e arrendamento, a renda dos trabalhadores
dependia exclusivamente da intensidade de seu trabalho no café. Já

28
Heusser (1857: 48); Jaguaribe (1877: 32).
29
Heusser (1857: 43-4).

89
sob o sistema de colonato, o cultivo do café era pago em uma
quantia fixa por mil pés ao ano. A renda assim não dependia apenas
do número de pés pelos quais a família zelava, mas também do
número de tarefas determinadas pelo fazendeiro. Os fazendeiros
calculavam o número de tarefas tomando por base uma família de,
pelo menos, três adultos aptos. Deste modo, sob o colonato,
pequenas famílias viam-se em situação pior do que nos dois
sistemas precedentes.30 Como em 1877 se regozijava um experiente
fazendeiro sobre sua sorte excepcional com as famílias que havia
recrutado:

As famílias são verdadeiramente patriarcais, já pelo número, já pela


moralidade, união e amor ao trabalho (…) As famílias de tiroleses
ainda são das mais vantajosas ao lavrador pelos muitos membros de
que elas se compõem. Esta vantagem é de toda ponderação: o maior
número de trabalhadores, além de acelerar a emancipação do colono,
o que é um exemplo edificante, proporciona maior garantia ao
lavrador, porque a responsabilidade solidária de todos dá certeza do
pagamento integral do débito, ainda quando alguns membros sejam
remissos às suas obrigações.31

O interesse dos fazendeiros no tamanho e composição das famílias


recrutadas não era obviamente motivado por qualquer preocupação
humanitária pela rápida emancipação dos trabalhadores, nem visava
a reprodução da força de trabalho, mas suas preferências

30
Maistrello (1923) calculou a renda de três famílias imigrantes com diferentes
proporções consumidor/trabalhador e mostrou que, com os níveis de renda
predominantes, uma família de quatro pessoas com apenas um trabalhador era
inviável:

31
Visconde de Indaiatuba (1952 [1878]: 245).

90
certamente exerceram influência no comportamento demo gráfico
dos imigrantes, por premiarem a alta taxa de fertilidade. Isto, por
sua vez, afetou a divisão sexual do trabalho. Ter grande número de
filhos, apesar de inicialmente significar um peso para os pais,
significava que, passados os primeiros anos, a capacidade produtiva
da família aumentaria de ano para ano. Contrariamente, uma
família com poucos filhos estaria em desvantagem em todo o ciclo
da vida familiar.32
Com relação à divisão sexual do trabalho, uma mãe com muitos
filhos estaria totalmente ocupada com a gravidez e criação dos filhos
durante um período considerável de sua vida, e não teria tempo para
atividades extradomésticas, a não ser cuidar da roça: Mas estas
atividades eram consideradas essenciais e muito valorizadas. Como
notou um observador francês, em 1879:

A conclusão a ser tirada é que (…) quanto mais numerosa é uma


família, maior é o auxílio que pode oferecer a seu chefe para saldar o
débito inicial. A ajuda e os braços de seus filhos constituíam um apoio
natural, tanto mais precioso quanto mais numeroso é, e as mulheres
vaquer aux soins, sendo também produtivas em casa, sem que sua
presença seja indispensável o campo, o que se tornaria necessário se a
família fosse composta de poucos membros. 33

Por permitir que as famílias mais privilegiadas, em termos de


capacidade produtiva, saldassem suas dívidas e acumulassem, o
colonato teve consequências também para a estrutura social mais
ampla. O grau de exploração a que os imigrantes estavam sujeitos e
as oportunidades de ascensão que o colonato oferecia é assunto
muito debatido.34 Há grande evidência de que, em particular no

32
Heusser (1857: 78); cf. Almeida (1977), para uma interessante análise da conexão
entre sistemas de trabalho e tamanho da família em outra região e época no Brasil.
33
Turenne (1879: 451).
34
Holloway (1977); Duncan & Rutledge (1977) traz uma visão um tanto otimista das
oportunidades de ascensão que os imigrantes tiveram. Difere consideravelmente das

91
início da imigração em massa nos anos 80, as condições de vida e
trabalho dos imigrantes eram especialmente duras. Outros
indicadores são as primeiras greves ocorridas ainda na década de
70, e a crescente violência dos trabalhadores contra supervisores e
mesmo proprietários. À medida que aumentam a disciplina do
trabalho e a exploração, as relações entre trabalhadores e
fazendeiros tornam-se cada vez mais conflitivas. 35 Além disso, havia
um padrão de ascensão e diferenciação social entre os
trabalhadores. Este sistema de trabalho em especial, premiando as
famílias grandes, gerava assim um critério de diferenciação social.
Combinado com outros fatores tais como mobilidade geográfica
para áreas mais novas de café onde os direitos ao plantio de
subsistência eram mais favoráveis, o tamanho e composição da
família eram fator decisivo para que alguns imigrantes
eventualmente tenham conseguido sair das fazendas e se
estabelecido por si próprios.36 Mas o que deve ser enfatizado é que
a opção dos fazendeiros por estes sucessivos pagamentos por
incentivos, ao invés do assalariamento puro e simples, não pode ser
explicado pela ausência de um mercado de trabalho constituído
como tal na época37 Mesmo quando nos anos 80 o programa de
subsídio oficial à imigração em massa permitiu aos fazendeiros

descrições dos relatórios consulares contemporâneos e de Hall (1969), que usou


extensivamente este material qualitativo. Holloway calcula a evolução da participação
dos imigrantes na propriedade da terra de 1905 a 1920, mostrando que os italianos
possuíram terras. Em 1920, quase 12000 propriedades, de um total de 76000 no
Estado, pertenciam a italianos, 15% do total. Ele não calculou, no entanto, a relação
desta cifra com o número total de imigrantes que haviam chegado por aquele tempo.
35
Hall & Stolcke (1979).
36
Cf. Deere & Janvry (1981), para uma análise interessante da contraditória relação
entre comportamento demográfico e diferenciação social entre camponeses.
37
Alguns autores atribuem o colonato à falta de mão de obra, abundância de terras e
escassez de capital dos fazendeiros (Martins, 1979; Dias, 1981). Argumentamos que a
eventual emergência do colonato foi devida essencialmente a sua relativa
rentabilidade, em oposição ao assalariamento. Além disso, sua rentabilidade
aumentou na passagem do século, quando a mão de obra tornou-se abundante.

92
paulistas superar a Abolição sem muitos problemas, inundando a
agricultura com mão de obra imigrante barata e dócil, o colonato
persistiu.38 O contrato era agora anual e os adiantamentos mínimos.
Ainda com este abundante suprimento de mão de obra o sistema
de colonato continuava a ser mais lucrativo. Os fazendeiros
geralmente concordavam que o assalariamento individual era ao
mesmo tempo mais custoso e menos seguro.39
À medida que o processo de trabalho tornou-se mais racional e a
mão de obra mais disciplinada, a crescente divisão do trabalho nas
fazendas se fez sentir também no status das famílias das diferentes
categorias de trabalhadores. Os proprietários usualmente
empregavam homens solteiros como avulsos (trabalhadores
recrutados exclusivamente para a colheita quando não havia
colonos em número suficiente para ela ou para tarefas especiais), ou
como camaradas (para o processamento e transporte do café),
sendo em ambos os casos assalariados residentes pagos em base
mensal. Famílias jovens também poderiam ser recrutadas como
camaradas, mas somente as famílias grandes como colonos. 40 Os

38
Couty (1883: 166-7) notou que “muitos fazendeiros afirmam que a colonização sob
as presentes condições (o colonato) é o sistema de trabalho mais seguro e menos
dispendioso, o mais seguro porque determina os custos de produção em proporção a
esta, e o menos dispendioso porque os trabalhadores em uma fazenda custavam
menos por mês que um chinês ou qualquer outro tipo de assalariado, provendo-a em
acréscimo de urna variedade de produtos… muitos também se queixam de que os
mais laboriosos se ocupam muito mais de suas pequenas roças de milho, feijão e
batata, do que do café”.
39
A produtividade do trabalho no café, por trabalhador, aumentou de cerca de 700
pés nos anos 60 para 2000 a 2500 nos anos 90. Como apontou Maistrello (1923:
562): “O tratamento dos cafezais é preferível ser feito por famílias de colonos com
contratos annuaes, mas infelizmente nem sempre são sufficientes e quasi todos os
fazendeiros têm de recorrer ao pessoal avulso. É escusado dizer que empregando os
taes camaradas nas capinas ou colheitas o custeio da fazenda augmenta de modo
bastante sensível”.
40
Moraes (1870: 66, 73); Jaguaribe (1877: 19, 32).

93
grupos de homens contratados para tarefas especiais eram
chamados, de maneira significativa, “turma dos solteiros”.41
Por sua vez, o Governo do Estado foi até o ponto de estabelecer
a composição exata das famílias imigrantes que preferencialmente
teriam imigração subsidiada. Os critérios básicos utilizados foram
idade e sexo como determinantes de capacidade produtiva. As
famílias não deveriam ter nenhum membro com mais de 45 anos, e
cada uma deveria ter, pelo menos, um homem em idade
produtiva.42
O incrível boom cafeeiro na passagem do século é a melhor
prova de que a imigração subsidiada, combinada ao sistema de
colonato, foi bem-sucedida em resolver o problema da mão de
obra. Estima-se que no período entre 1884 e 1914 cerca de um
milhão de homens e mulheres, agora de origem
predominantemente italiana, entraram em São Paulo para trabalhar
principalmente nas plantações de café. Este novo suprimento de
mão de obra, mais as ainda abundantes terras virgens, fizeram com
que os fazendeiros pudessem triplicar os pés de café plantados
entre 1888 e 1902.43
Contra este pano de fundo, as persistentes queixas dos
fazendeiros, particularmente do começo do século em diante, sobre
a escassez de mão de obra devem ser tomadas com cuidado. Ramos
estima que o cultivo do café no sistema de colonato requeria um
indivíduo por mil pés de café, mulheres e crianças inclusive. 44 Se se
toma por referência cerca de 600 milhões de pés de café no Estado
por volta da passagem do século, é improvável que houvesse falta

41
Ramos (1923: 120).
42
Sociedade Promotora da Immigração de São Paulo (1896: 21).
43
Castro (1971: vol. II, 78); os pés de café plantados aumentaram de 221 para 685
milhões nesta época.
44
Ramos (1923).

94
de mão de obra. Em torno de 1901 os preços do café caíram
dramaticamente por efeito de uma superprodução resultante de
uma expansão nunca vista. Os proprietários reagiram, por um lado,
aumentando a exploração do trabalho através de vários meios
fraudulentos (multas, retenção de salários etc.), Achataram também
os salários, compensando os trabalhadores por esta perda com a
permissão de intercalar cultivo de alimentos nos velhos cafezais, e
reduziram o número absoluto de colonos recrutados. Como
apontou um fazendeiro no período:

a baixa do preço do café, que, diminuindo o braço e desorganizando o


trabalho, levou grande número de lavradores a consentir a plantação
de milho dentro das lavouras formadas, causando grandes estragos no
cafeeiro e produzindo a diminuição do fructo.45

O Governo, por outro lado, introduziu as primeiras medidas de


uma política de proteção ao café. Em 1902, uma pesada multa nas
novas plantações foi decretada, a fim de verificar a produção e
assegurar os preços. Esta medida, que demorou a fazer efeito
devido ao fato de que o café só atinge sua idade produtiva após
quatro anos, foi completada pela primeira compra, pelo Governo,
do excedente do café em 1906, medida esta repetida em 1917 e
1922, e transformada em política permanente em 1926.46
Esta política de proteção ao preço de fato conseguiu estabilizá-lo
em um nível moderadamente lucrativo, tendo refletido também na
evolução subsequente do cultivo e produção do café. Às vésperas da
Primeira Guerra Mundial os preços recuperaram-se novamente e
um novo ciclo de expansão estabeleceu-se:47

45
Secretaria da Agricultura, Commercio e Obras Publicas do Estado de São Paulo
(1904: 71).
46
Castro (1971: 76).
47
Castro (1971: 78).

95
Ano Número de pés de café existentes

1906 688 milhões

1913 722 milhões

1918 828 milhões (grande número de


pés queimados por geadas)

1921 843 milhões

1930 1.118 milhões

No início do século o trabalho era pouco nas fazendas, as tarefas


eram deixadas por fazer e/ou a qualidade do trabalho deteriorava
porque, com a queda dos preços, os fazendeiros empenhavam-se
em reduzir o custo dos salários através da redução da mão de obra
e aumento da produtividade.48 Indicadores de que as condições de
vida dos colonos atingiam um novo ápice de miséria foram a
interdição da Itália em 1902 à imigração subsidiada para o Brasil e a
crescente evasão de imigrantes, que nem mesmo deixavam as
fazendas rumo às cidades, mas retornavam a seu país de origem ou
iam para a Argentina. Um grupo de proprietários queixava-se com
notável cinismo em 1904:
Com a baixa do preço do café os salários disparatados não mais
puderam ser sustentados; em conseqüência da falta de terras para
uns, e, para a maioria, os benéficos efeitos (neste sentido) da lei
prohibitiva de plantações, deram causa ao descontentamento do
trabalhador agrícola que, sem interesse que o prenda ao país,
procura agora expatriar-se, por se ver privado dos excessivos lucros,
com que irreflectidamente o acostumou o lavrador paulista. Caso
não seja por completo transformado o nosso sistema de trabalho,
pode o governo introduzir a quantidade que for de imigrantes que
48
Cf. Lacerda (1905), propunha uma volta ao sistema de ameia.

96
continuarão a passar de passagem pela lavoura; o que propunha era
a volta a um bem equitativo systema de parceria agrícola, que incuta
ao imigrante o amor pela lavoura.49
Nos anos 90 os salários caíram um tanto. Entre 1902 e 1910 eles
aumentaram imperceptivelmente e por volta de 1914 haviam
retornado apenas ao nível do que eram em 1884 (em termos
monetários), sendo que a imigração aumentara novamente em 1912
e 1913 e os preços haviam-se recuperado notadamente. 50 Ao
mesmo tempo, os preços dos alimentos aumentaram
significativamente, de maneira que outra medida tomada pelos
fazendeiros para aumentar a produtividade do trabalho – reduzir os
direitos ao plantio de subsistência – fez-se sentir pelos colonos mais
do que nunca. Em 1914 os fazendeiros unanimemente pela
primeira vez decidiram abaixar os salários e conceder melhores
direitos ao plantio de subsistência em resposta às greves massivas
dos colonos na mais próspera região cafeeira, Ribeirão Preto.51
Já discutimos em outro trabalho as formas de resistência dos
trabalhadores, a incidência de greves no campo, suas causas, a
organização e tipos de reação dos proprietários. 52 É suficiente aqui
apontar que desde logo os trabalhadores reagiram às imposições
dos fazendeiros, restringindo seu rendimento no café e desviando o
trabalho para o cultivo de subsistência. Houve ações decididas no
âmbito da família isoladamente. Mas com os fazendeiros exercendo
controle crescente sobre o processo de trabalho, e tornando-se a
força de trabalho mais homogênea na década de 90, a ação grevista
coletiva passou a ser mais frequente. A maior greve ocorreu em
1913. Ela mobilizou de 10.000 a 15.000 trabalhadores, e resultou
49
Secretaria da Agricultura, Commercio e Obras Públicas do Estado de São Paulo
(1904: 43).
50
Hall (1969); Castro (1971).
51
Bianco (1915: 191).
52
Hall & Stolcke (1979).

97
em total derrota. Interessam-me aqui as implicações que a
organização da produção baseada no trabalho familiar teve na
organização das greves. No caso de uma greve bem-sucedida em
1912 em uma das maiores fazendas de Ribeirão Preto, a fazenda
Iracema, propriedade do famoso Francisco Schmidt, conhecido
como o Rei do Café,

(os trabalhadores) não assumiram cabeças ou líderes porque isto teria


significado reduzir à miséria e perseguição alguns dos membros de
maior valor desta união. Agiram em grupos de 4 ou 5 famílias de
acordo com as relações de amizade entre eles, não tendo um líder para
este grupo, mas apenas uma família encarregada de transmitir as idéias
da liderança secreta clandestina, que era quem resolvia todos os
problemas.53

A decisão de agir sem um líder não era só questão de prudência; a


solidariedade familiar, reforçada pela natureza do sistema de trabalho,
permitia a descentralização das responsabilidades.
Além do mais, desde que todos os membros da família contribuíam
para a produção de diversas formas, a greve, que geralmente ocorria no
início da colheita, quando o poder de barganha dos trabalhadores era
maior, significava participação ativa de toda a família na luta.
A imigração subsidiada de trabalhadores portugueses e espanhóis
continuou até 1927. Simultaneamente, os proprietários começaram
a recrutar cada vez mais mão de obra nacional de outros estados da
União, que migrava temporariamente para São Paulo em certos
períodos do ano.54 A princípio, a mão de obra nacional era
53
Pinheiro & Hall (1981: vol. I, 117, 19), isto é parte de um relatório sobre as
condições dos imigrantes italianos nas fazendas de café de São Paulo preparado por
Bonardelli, um dos mais severos críticos italianos da época.
54
Ramos (1923: 120); como a mão de obra imigrante tornava-se mais difícil de obter,
e a mão de obra nacional começava a inundar São Paulo, empurrada pela miséria no
Nordeste do país, os fazendeiros também começaram a revisar sua tradicionalmente
pejorativa visão dos caboclos como sendo preguiçosos e indisciplinados, e
descobriram mesmo que eles eram tão capazes quanto os italianos de levar uma vida

98
recrutada temporariamente para tarefas específicas, mas um pouco
mais tarde também o foi como colonos, em unidades familiares.
O colapso do mercado mundial em 1930 alcançou os
fazendeiros de São Paulo com a maior colheita que já haviam
feito.55 Eles reagiram à crise de vários modos. Não só o café não foi
plantado até os anos 50, como se estima que cerca de 230 milhões
de pés foram erradicados e outros 100 milhões simplesmente
abandonados.56 Um grande número de colonos foi despedido.57
Gado, cana-de-açúcar e algodão para a indústria têxtil em expansão
substituíram o café. O café remanescente continuou a ser cultivado
sob o sistema de colonato. A fim de reter o crescente êxodo rural, o
Governo tentou unificar o mercado de trabalho através da extensão
do salário-mínimo e feriados remunerados ao campo no início dos
anos 40. O debate que se seguiu sobre a viabilidade do salário
mínimo no campo revela uma vez mais a maior rentabilidade do
sistema de colonato em relação ao assalariamento no cultivo do
café. Argumentava-se retoricamente que o salário mínimo, longe de
beneficiar os colonos, seria muito mais baixo do que o que
recebiam até aquele momento, em termos monetários, desde que
todos os benefícios adicionais que os trabalhadores tinham, como
uma casa, horta, lenha etc., deveriam ser deduzidos do salário.

familiar honesta e estável. Como comentou um observador: “Falta referir o que ouvi
acerca da moralidade do trabalhador nacional. É boa, muito boa. Famílias bem
constituídas, respeito mútuo entre os cônjuges, deferência dos filhos para com os paes
(…) Pois não é admirável que em sertões brutos e terras distantes, aonde a civilização
chega por haustos espaçados, se conserve uma instituição como a do casamento
monogâmico? (…) Não é extraordinário que uma instituição, justamente considerada
a flôr da civilização christã, persista no seio de uma raça, a despeito da selvatiqueza do
meio em que vive?”, Limongi (1916: 365-66).
55
Castro (1971: 90).
56
Brasil (1941: 431); outra estimativa mais dramática é a de Medina (1963), que
sugere um declínio, de um total de cerca de 1.200 milhões, para 600 milhões de pés.
57
Brasil (1941: 431).

99
Obviamente, não se considerava neste cálculo o fato de que estes
“benefícios” não implicavam custos para a lavoura.58
Como me tenho empenhado em demonstrar, a rentabilidade
comparativa do colonato advinha dos efeitos combinados do
pagamento com incentivos e a exploração capitalista da instituição, a
grande família nuclear, possibilitada tanto pela própria ideologia de
família dos fazendeiros como pelas tradições dos trabalhadores. Por sua
vez, estes sistemas de trabalho em particular exerceram influência na
organização da família, reforçando sua coesão, incentivando a
fertilidade e promovendo uma divisão sexual do trabalho cuja natureza
era em grande parte determinada pela efetiva capacidade de produção
de seus membros, capacidade esta estabelecida por sexo e idade.

O fim do colonato
Em 1950, no entanto, os fazendeiros começaram a substituir de
maneira crescente os colonos residentes por trabalhadores assalariados
individualmente em contrato temporário. Quais as razões para esta
transformação das relações de produção nas plantações de café e em
que medida isto afeta a estrutura familiar e as relações de parentesco?
O café teve uma nova, ainda que breve, recuperação no início da
década de 50, com a abolição do preço máximo. Neste período já
não havia mais terras virgens disponíveis, e os fazendeiros
retornavam às regiões cafeeiras mais velhas introduzindo novas e
mais produtivas variedades de café, e também adotando um novo
sistema de plantio, seguindo o contorno das encostas, o que
significava, entre outras coisas, reduzir o espaço entre as filas de
café. Como o solo estava saturado, novas técnicas de cultivo
também foram empregadas. A fim de produzir adubo para o café,

58
Brasil (1941).

100
os fazendeiros mais modernos reservavam parte de sua terra para o
gado. O cultivo de alimentos intercalado ao cafezal tornava-se
menos frequente; esta prática passava mesmo a ser vista com maus
olhos, porque efetivamente reduzia a produtividade do café em
solos mais pobres, fato a que os fazendeiros estavam
particularmente atentos em uma época de subida de preços. 59 Além
do mais, devido à crescente valorização das terras, mesmo que
marginais, e também a fim de incrementar a produtividade do
trabalho, os fazendeiros relutavam cada vez mais em conceder
terrenos para roças.60
No entanto, a mecanização no cultivo do café continuava rara.
Os fazendeiros estavam bem cientes que substituir a enxada por
máquinas era incompatível com o sistema de colonato. 61 Mas,
mesmo sem mecanização, a transformação gradual das técnicas de
cultivo começou lentamente a alterar o equilíbrio tradicional da
demanda de mão de obra através do ciclo agrícola. A fertilização
aumentou a produtividade do café e consequentemente a demanda
de mão de obra para a colheita; a redução ou abolição dos direitos
ao plantio de subsistência diminuiu a necessidade de mão de obra
durante o período de cultivo. O principal efeito destas inovações foi
que os fazendeiros recrutariam cada vez mais colonos de acordo

59
Para uma descrição razoavelmente detalhada das novas técnicas de cultivo
introduzidas, ver os relatórios mensais contidos em A Agricultura em São Paulo, São
Paulo, primeira série, publicada de 1951 a 1956.
60
Brasil (1941) estimou que um trabalhador, zelando por 3.000 pés de café por ano,
precisaria de 150 dias para a capina e 90 dias para a colheita, tendo outros 60 dias
para cultivar ¼ de alqueire de roça. Isto quer dizer que o tamanho da lavoura de
subsistência, que era calculado em proporção ao número de pés zelados, requeria
dois meses de trabalho por ano.
61
Como era amplamente sustentado naquele tempo: “(com a mecanização do cultivo)
não havendo reorganização pode até dar-se um acréscimo de despesas (…) a despeito
da mecanização ter reduzido o custo do serviço. Isto porque a fazenda, além de pagar
os colonos como si eles tivessem realizado o serviço à enxada, teve uma despesa extra
com a esparramadeira, arreio e burro”, A Agricultura em São Paulo I-II (6-7),
setembro de 1951 e julho de 1952.

101
com a demanda do trabalho, complementando-a com assalariados
temporários para a colheita. Simultaneamente, quando os colonos
foram privados de plantar para sua subsistência, e ainda mais não
compensados por um aumento correspondente nos salários,
começaram a abandonar as fazendas em busca de melhores
oportunidades na indústria ou mesmo ainda no campo.
No início da década de 60, um novo declínio nos preços, longe de
produzir uma volta ao colonato, acelerou o processo de proletarização:

Quando o cafezal não é mais lucrativo o fazendeiro prefere erradicá-lo.


No caso de cultivar café novamente, ele fá-lo-á com técnicas mais
modernas que eliminam o intercalamento de cultivo de alimentos. Esta
é uma das razões fundamentais para o incremento do assalariamento. 62

Por fim, um fator que contribuiu para a aceitação generalizada do


assalariamento na produção do café, como também em outras culturas,
foi a decretação do Estatuto do Trabalhador Rural pelo presidente João
Goulart em 1963. Esta nova lei trabalhista repetia em parte a ineficaz
legislação de 1943 para trabalhadores do campo, mas em compensação
garantia aos mesmos, inclusive colonos, indenização por tempo de
serviço em caso de demissão, e estabilidade após 10 anos de trabalho
em uma fazenda. Esta nova lei era mero paliativo para conter as
crescentes tensões sociais no campo nos anos 50. Mas aos olhos dos
proprietários estes dois últimos direitos em particular devem ter-se
afigurado como um sério desafio a sua liberdade de contratar o
trabalho, e também como um primeiro passo para a perda de suas
terras, no contexto do debate cada vez mais acalorado sobre reforma
agrária.
O meio mais efetivo que os fazendeiros encontraram para fazer
fracassar a lei foi demitir os colonos remanescentes em suas
propriedades com ou sem indenização, e daí por diante contratar

62
Medina (1963: 30).

102
“pessoal de fora”, isto é, trabalhadores recrutados temporariamente e
em bases individuais por “turmeiros” – contratantes de mão de obra.
Este novo sistema de trabalho, ao mesmo tempo em que tornava o
recrutamento mais flexível, livrava os fazendeiros das obrigações
estabelecidas pelo Estatuto. Trabalhadores temporários não têm laços
contratuais com a fazenda; não tendo, portanto, seus direitos
assegurados pelo Estatuto.
Estima-se por volta de 1970 uma força de trabalho rural de 18
milhões no Brasil como um todo; cerca de 6 milhões eram
assalariados temporários: os volantes, boias-frias, ou clandestinos
(no Nordeste) como são popularmente conhecidos. Em São Paulo,
em 1971, de um total de 1.654.000 trabalhadores rurais, 349.000
eram volantes.63
A transformação dos trabalhadores em assalariados temporários teve
profundas consequências em suas condições de trabalho e qualidade de
vida. Quando se conversa com eles sobre todos os aspectos de suas
vidas, constantemente comparam o passado, o tempo do colonato, e
agora.
Com o fim do colonato os trabalhadores foram estabelecer-se na
periferia de pequenas cidades do interior do Estado. Aqueles que
receberam indenização pela demissão conseguiram adquirir um terreno
para construir uma casa, mas a maioria teve que pagar aluguel. Não
tinham mais terra nem tempo para produzir sua própria subsistência.
63
Trabalho agrícola assalariado temporário no Estado de São Paulo, 1971-75:

103
Os volantes recordam o colonato como o “tempo da abundância”.
Com o êxodo das fazendas o “tempo do dinheiro” foi estabelecido.
Agora eles podem ter acesso a valores de uso apenas através do
mercado, estando na inteira dependência de suas forças. O contrato
individual em base temporária aumentou sua instabilidade econômica.
Simultaneamente, o fim do colonato produziu a figura do “turmeiro”,
que recruta, transporta e fiscaliza os trabalhadores, servindo de
mediador entre estes e a propriedade. Os turmeiros em geral possuem
um caminhão no qual diariamente transportam as turmas de
trabalhadores para as fazendas. São geralmente contratados por
semana, mas podem trabalhar com a mesma turma e na mesma
fazenda por longos períodos de tempo. Mesmo assim lhes falta
qualquer segurança no emprego. Em toda cidade há mais de um
turmeiro. Cada cidade tem vários lugares de partida, onde
trabalhadores por volta das 6 horas da manhã agrupam-se para serem
apanhados pelo caminhão que os levará ao trabalho, retornando a casa
por volta das 18 horas.
Não apenas os homens, mas também mulheres e crianças a
partir de dois anos se tornaram trabalhadores de turma. 64 O ônus
64
Trabalho assalariado temporário na agricultura, por sexo, idade e renda. Estado de
São Paulo – Novembro de 1975.

Fonte: Instituto de Economia Agrícola, São Paulo. Estas cifras foram computadas das
amostragens periódicas realizadas pelo IEA nos meses de janeiro, março, junho e
novembro sobre a demanda de mão de obra, salários, colheitas etc., em fazendas
selecionadas. Estou agradecida a José Graziano da Silva pelos dados. A participação
de mulheres na força de trabalho agrícola varia por região de acordo com a
disponibilidade de oportunidades ocupacionais para os homens. Quanto maiores

104
adicional do aluguel e a total dependência do mercado para sua
subsistência, acoplados ao congelamento dos salários e à inflação
pós-1964, produziram um declínio quase contínuo do valor real dos
salários, mesmo em regiões como Campinas, onde há emprego na
maior parte do ano. Como antes, somente se todos os membros de
uma família forem produtivos é possível fazer face às despesas.
Uma mulher explicava por que trabalhava como assalariada
atualmente:

Nós temos que trabalhar; (o salário do marido) não é suficiente porque


temos de pagar aluguel (…) Antes quando vivíamos com os pais (na
fazenda) era melhor (…) todos plantavam alimentos; antes havia
abundância, nós criávamos pequenos animais; agora, nós temos que
comprar de tudo; em minha juventude as fazendas eram cheias de gente;
agora estão vazias.

A proletarização e migração para as cidades também alterou a


qualidade das relações sociais. A vida era difícil nas fazendas, mas o
cultivo de subsistência, apesar de implicar considerável nível de
exploração, protegia os colonos das forças de mercado. Além disso, o
colonato reforçava a solidariedade. A venda individual da força de
trabalho não gerou apenas um novo sentimento de incerteza entre os
trabalhadores; também forçou relações interpessoais dentro da

estas alternativas, mais alta é a porcentagem de mulheres trabalhando como mão de


obra temporária na agricultura. A análise apresentada está baseada em trabalho de
campo intensivo realizado em um período de cerca de cinco anos, com um grupo de
aproximadamente setenta destes trabalhadores. Inicialmente levei por volta de meio
ano acompanhando uma turma de cerca de cinquenta mulheres em seu trabalho em
uma fazenda. Nos fins de semana eu as visitava em casa e encontrava também seus
maridos e filhos. Mais tarde visitei outras fazendas e outras turmas. Também
entrevistei repetidamente os turmeiros. A amostra é aleatória. Há considerável
mobilidade entre as turmas de trabalho. Empenhei-me em conversar com todos os
recém-chegados nesta turma em particular, mas também me encontrei com pessoas
na cidade. Campinas é a região mais rica do Estado e, neste sentido, as condições de
vida e trabalho destes trabalhadores são melhores do que aquelas de outras regiões no
estado e no país como um todo. Os salários são geralmente mais baixos no resto do
estado.

105
comunidade e da família de vários modos. Um trabalhador mais velho,
de origem italiana, lembrava:

Como colonos, a família trabalhava junta; homens e mulheres faziam


todos o mesmo trabalho; onde um ia a família inteira ia, o chefe, o pai,
fazia o contrato com a fazenda; ele recebia o dinheiro, ele que
arranjava tudo; o colono do café é o mesmo que a empreitada do café
(mistura de contrato por serviço e quantidade produzida); a colheita
era feita por todos juntos; não é como hoje que somente as mulheres
colhem café; nós éramos pagos a cada 60 dias; cada pagamento cobria
uma capina: o pagamento era calculado por 1.000 pés de café; o
número de pés de café contratado dependia do tamanho da família e
tinha que ser cuidado durante todo o ano; a colheita era paga por saca
de café como agora, a família trabalhava junta, não em turma como
agora; a turma espalha todo mundo; um vai em uma direção, outro em
outra; nós (os homens) também trabalhávamos por dia (por uma
diária), quando não havia nada para fazer com o café, mas as mulheres
não trabalhariam por dia (…) elas iriam limpar o arroz, feijão na roça
da família; o patrão não queria contratar mulheres por dia, eles diziam
que as mulheres não deveriam trabalhar por dia para que cuidassem
da roça; só os homens iam e trabalhavam na fazenda diretamente; e
não era tampouco igual a hoje, todo mundo ganhando o mesmo; os
mais fracos (famílias) ganhavam menos, já era estabelecido no livro de
contratos; (…) naquele tempo as coisas eram ruins porque não havia
dinheiro; você trabalhava e trabalhava e não tinha nada; a família era
mais unida em qualquer lugar porque naquele tempo não era como
agora, as mulheres mandando em casa; naquele tempo era o chefe da
família que mandava; o que ele dizia era feito (…) também não tinha
briga porque havia pouco (12/74-14).

Analisei em outro trabalho a visão de mundo destes trabalhadores e


o modo pelo qual percebem sua identidade social e suas relações
com outros membros de sua própria classe. 65 Relevante aqui é que,
apesar da aguda consciência que estes trabalhadores têm de sua
exploração em um mundo visto como dividido entre “nós”, os
“pobres”, e “eles”, os “ricos”, são ao mesmo tempo muito céticos
acerca da possibilidade de ação coletiva, não só por causa de

65
Martinez-Alier & Boito (1977).

106
relações de poder muito adversas na sociedade como um todo, mas
também porque união (solidariedade), o pré-requisito de qualquer
ação coletiva, parece faltar-lhes totalmente. Um elemento misto é
certamente o fato de que, apesar de o parentesco e velhos laços de
amizade terem servido como articulações importantes no processo
de migração para as cidades, e persistirem no novo ambiente, as
relações de vizinhança são tênues agora e os desentendimentos
podem surgir pelo menor motivo. Como aponta uma velha mulher:

Antes não era assim (…) era todo mundo unido (…) as famílias todas
unidas, não como agora, um cá e outro lá; para mim era melhor antes;
todo mundo era unido, os vizinhos sempre se davam bem, vivíamos todos
juntos, combinávamos bem, agora é difícil achar pessoas que façam alguma
coisa juntas, há desconfiança; de primeiro não havia desconfiança; um dia
você dava farinha de milhos e ovos para mim, você confiava que eu
devolveria outro dia; agora ninguém faz nada junto mais; eu não sei por
que é assim, antes a gente era mais unida, hoje ninguém mais concorda
(15/74-75).

Em situações de mudanças radicais e razoavelmente rápidas, sem


qualquer melhora aparente, é usual idealizar-se o passado. A vida nas
fazendas estava longe de ser idílica. A família inteira trabalhava desde a
alvorada até o anoitecer. Particularmente durante a colheita, a
competição entre as famílias era considerável. Aquelas famílias que
conseguiam terminar a colheita de seu cafezal antes das outras
poderiam ganhar um extra ajudando as que estavam atrasadas.
Estas, por sua vez, ressentiam-se, pois isto significava que perderiam
parte de sua renda. Por outro lado, havia também cooperação, mutirão,
e permuta de dias de trabalho entre as famílias de colonos. E a
homogeneidade de suas condições de vida e trabalho, como também o
padrão de moradia, favorecia a sociabilidade; e o cultivo de subsistência
permitia a troca de alimentos sem despesas. Atualmente, é “cada um
por si e Deus por todos”. Proletarização significou não só
desenraizamento, mas também desarticulação social e atomização.

107
Apesar de lhes parecer importante ter vizinhos: “as pessoas devem
ajudar para serem ajudadas mais tarde”, e terem grande interesse uns
na vida dos outros; auxílio mútuo e cooperação entre vizinhos
praticamente inexistem. As relações sociais foram totalmente
monetarizadas e ninguém tem o suficiente para dar a outros. Uma
mulher exclamou: hoje em dia, “sem dinheiro ninguém mais vale nada”
(17/74 – 175). Além do mais, “na cidade todo mundo é igual, é
impossível ajudar alguém com este salário miserável”. E, por outro
lado, reluta-se em pedir favores por medo de não se poder retribuir e
assim perder a credibilidade.
A unidade doméstica deixa de ser uma unidade de produção e
consumo para tornar-se o que Tilly e Scott apropriadamente
chamaram de unidade assalariada.66 E ainda a separação entre casa
e local de trabalho, mais a perda da relativa autonomia que os
colonos tinham para organizar o processo de trabalho, dificultaram
sobremaneira a integração de relações sociais e trabalho:

Nós trabalhamos a semana inteira e não temos vontade de sair; os colonos


estariam sempre à porta, tagarelando com um, com outro; mas não há
onde ir; aqui é difícil conversar com os vizinhos; só às vezes, mas não
temos tempo; elas (as outras mulheres) têm bastante tempo porque quase
nenhuma trabalha, mas nós sempre temos alguma coisa para fazer (…)
como colonos nós tínhamos mais tempo, nós podíamos ir para o campo
quando quiséssemos, aqui se faltamos um dia perdemos o pagamento (eles
são pagos por dia de trabalho); como colonos, se estivéssemos adiantados
com a capina, nós teríamos algum tempo (uma velha mulher, 30/74-117).

Por último, a permanente insegurança econômica, junto com um


sentimento de vergonha de sua condição em uma sociedade
profundamente desigual, na qual o trabalho manual não tem nenhum
valor social, corroeram a autoestima destes trabalhadores, tornando-os
extremamente sensíveis à mínima ofensa. Acusações mútuas,
discussões e até lutas declaradas são frequentes.
66
Tilly & Scott (1978).

108
Em tal contexto social conflitivo, seria de se esperar que a família
funcionasse como uma rede de apoio. Mas, como indicam as citações
acima, a família não foi tampouco imune aos efeitos da transição para o
sistema de assalariamento. Em realidade, estes efeitos foram
extremamente complexos e contraditórios. Além disso, estas mudanças
na estrutura e relações familiares podem ser vistas muito como a
resultante de forças tanto econômicas como ideológicas.
É necessário fazer uma distinção entre os aspectos formais das
relações entre os membros de uma família e os parentes, e sua
qualidade. Como estas pessoas a entendem, a família não pode ser
pensada em separado do grupo doméstico – “família são as pessoas que
vivem juntas em uma casa”; e mais, como uma reminiscência do
passado, “família é muita gente em uma casa, um monte de gente”. Há
uma forte noção de espaço subjacente ao conceito de família: as
pessoas não pertencentes à família/unidade doméstica são consideradas
“gente de fora”, “homens de fora”, “os outros”, em oposição a “alguém
da casa”. Enquanto durante o colonato a família definia-se por aqueles
que trabalhavam juntos, agora “a família são aquelas pessoas que nos
ajudam a trabalhar, cujos salários nos pertencem”.
Unidades domésticas têm predominantemente duas gerações: os
pais e seus filhos solteiros ou uma mãe e seus filhos solteiros.
Idealmente espera-se que os filhos permaneçam em casa dos pais
até que se casem, e que contribuam integralmente com seus salários
para a renda familiar.67 Depois de casados devem procurar

67
No Brasil há duas formas de casamento, uma civil e outra religiosa, não tendo esta
última consequências legais. A maioria destas pessoas casa-se de ambas as formas. As
mulheres em especial sentiram que o casamento civil era importante por lhes oferecer
maior segurança vis-à-vis os homens. Também se há algum tipo de propriedade, o
único meio de garantir ao cônjuge o acesso a ela é através do casamento legal. Como
uma mulher explicou a vantagem deste: “se alguém possui alguma coisa, pertencerá a
ambos”. A cerimônia do casamento também tem sido afetada pela total
monetarização da vida. Antigamente, um casamento era festejado com uma grande
comilança. Agora, apenas as testemunhas são convidadas para uma refeição. Ao resto
dos convidados é oferecida alguma bebida. Antes não se davam presentes. Hoje a

109
estabelecer sua própria casa. É raro encontrar avós além da idade
produtiva na casa. Os adultos casados tentarão viver em suas
próprias casas tão logo sejam capazes de ganhar a vida, o que farão
até morrer: “assim que uma pessoa possa trabalhar, ela trabalhará”.
Quando o Governo estendeu a aposentadoria aos 65 anos aos
trabalhadores rurais, isto foi motivo de muita ironia. Poucos
chegariam vivos aos 65 anos para obtê-la. E as pessoas
consideraram viver com os filhos uma perspectiva muito pouco
atrativa. Uma velha mulher comentava:

Os filhos casam e saem; ir viver com os filhos para cuidar dos netos,
você está louca; eu já criei meus filhos, só paro de trabalhar quando
estiver debaixo da terra; os filhos deveriam cuidar de seus pais, eles
deveriam, mas eles não querem ter nada a ver com isso depois que
crescem; é sua obrigação, é obrigação dos filhos porque eles são
homens (…) porque são homens (…) porque eles ganham muito mais
do que as mulheres (6/73-3.4,5).

As filhas têm que cuidar de seus maridos, mas estes não querem cuidar
dos sogros: “os maridos não gostam de trabalhar para os outros”. (6/73-
91)
As pessoas distinguem entre parentes afins e consanguíneos:
consanguíneos lhes pertencem, afins são os outros.
Há certa quantidade de visitas entre parentes. Visitas a não
parentes não existem. Quando em visita, uma pessoa tende a visitar
seus consanguíneos, ao invés dos de seu cônjuge, a não ser que se
trate de uma visita de ambos. Como observou uma mulher: “Eu
não costumo sair, nem mesmo para ir à casa do vizinho, não gosto

popularidade dos noivos é medida pela quantidade de presentes que recebem. Os


pais do noivo são responsáveis pela festa do casamento. Não é raro que um jovem par
fuja antes do casamento para evitar esta despesa. Os pais fingem desapontamento e
raiva em tais ocasiões, mas frequentemente eles mesmos haviam instigado a fuga.
Com relação ao enxoval, espera-se que a noiva contribua com a roupa branca e o
noivo com os móveis.

110
de ir à casa dos outros”. Espera-se que os parentes, geralmente
tomados até 2° grau, ajudem em caso de necessidade, e lamenta-se
quando esta assistência não vem.68 Estas expectativas e obrigações
são extensivas também ao parentesco ritual – por batismo ou
casamento –, que continua a ser escolhido entre parentes e
conhecidos. Apesar de que neste último caso deveriam idealmente
pertencer a sua própria classe: “é tolice escolher alguém de melhor
situação, quando você escolhe alguém assim as pessoas logo
pensam que você faz isto por interesse; se você escolhe alguém que
tem um carro as pessoas pensarão que você não escolheria se ele
não o tivesse”; as pessoas nem sempre são fiéis a este princípio.
Mas a interação entre parentes não é determinada apenas
genealogicamente. Mobilidade social e geográfica produzem
distanciamento social entre eles. Mantém-se contato somente entre
aqueles parentes que vivem a distância razoável. Viagens são caras e
tomam tempo, impossibilitando, às vezes, visitas até aos próprios pais.
Ainda, a diferenciação social entre parentes é claro obstáculo ao
contato. Mesmo que justamente os parentes bem situados sejam os que
poderiam ser particularmente úteis, eles são vistos com um misto de
desconfiança e vergonha. Uma mulher, que era a única de sua família
que continuava como trabalhador rural, queixava-se:

Eles (seus irmãos que vivem e trabalham na cidade) não prestam


atenção a mim e eu não corro atrás deles; desde que meu pai morreu
(há 18 anos) eu não os vi mais; eles estão melhor de vida que eu; eles
têm carro; eu não ligo se eles não vêm; deixa eles pra lá, quando
minha mãe e meu pai eram vivos eu ia lá toda semana; quando alguém
tem pai e mãe tem esta obrigação (2/73.158).

68
Uma mulher foi muito crítica com relação a uma irmã sua, que vivia em um
pequeno sítio, onde cultivava hortaliças em abundância, mas não havia lhe dado nada
quando a visitou: “quando a sogra de minha irmã ainda era viva, eu a visitava; em uma
ocasião sua sogra lhe disse para me dar feijão, com o que minha irmã colocou um
pouco em minha bolsa; a sogra pegou minha bolsa e viu que era muito pouco feijão e
disse a minha irmã; minha irmã ficou muito brava”.

111
Além do mais, ninguém saberia como se comportar em casa de pessoas
de boa situação e sentir-se-iam muito embaraçadas. Outra mulher
confessou:

Eu tenho vergonha de ir almoçar na casa de minha filha em Campinas;


tenho vergonha de comer, abrir a boca, cortar a carne com o garfo (…)
minha filha é grã-fina; o marido trabalha em um banco; eles têm um carro;
eles não vêm me visitar, o marido não deixa (14/74-133).

Nestes casos a solidariedade do parentesco é substituída por outros


arranjos sociais. Como indicado acima, espera-se idealmente que os
filhos se encarreguem de pais idosos. Em consequência, há certa
preferência por filhos homens, algumas vezes reforçada pela vigilância
redobrada que se diz requerer a educação das mulheres, para que
cresçam mulheres respeitáveis. Isto não significa, no entanto, que as
relações dos pais com os filhos sejam mais íntimas do que com as
filhas. A ajuda prática da mãe tende a ser canalizada muito mais para as
filhas casadas do que para os filhos.
Na esfera especificamente feminina da gravidez e parto, a mãe
assistirá sua própria filha no nascimento da criança, mas não a sua nora,
a não ser que esta não tenha nenhuma parenta consanguínea morando
suficientemente perto. Entretanto, esta assistência dificilmente se
estende, depois, aos cuidados para com a criança, quando as filhas
trabalham fora de casa, pois as mães também o fazem. A unidade
socialmente significante de cooperação e corresidência é a família
nuclear. Mesmo nestes casos em que os filhos casados continuam a
morar com os pais, cada unidade nuclear tratará de ter uma economia
separada. Cada unidade tem seu próprio fogão e eles farão compras,
cozinharão e comerão isoladamente.
A proletarização também afetou o tamanho da família, e o quadro
torna-se novamente contraditório. Durante o colonato ter família
numerosa tinha um valor positivo, e os filhos pequenos eram levados

112
para o campo, ficavam dormindo à sombra dos pés de café enquanto a
mãe participava da colheita ou cuidava da roça.
No presente, ter muitos filhos em idade produtiva é ainda de grande
vantagem para a família, pois quanto mais favorável a proporção
trabalhador/consumidor dentro da família, melhor será sua situação
econômica, apesar de que durante a fase inicial do ciclo de vida
familiar, quando os filhos são pequenos, a sobrevivência seja quase
impossível. Uma mãe com filhos pequenos não pode trabalhar como
assalariada, e apenas um salário é absolutamente insuficiente para
alimentar uma mulher e filhos pequenos:

Para aquelas que tivessem muitos filhos era melhor antes; aquelas que
tinham 12, 13 filhos podiam criá-los facilmente (…) agora para o pai é
muito duro trabalhar sozinho em uma família com filhos pequenos (48/76-
20).

Assim, não é surpreendente que as expectativas em torno do


número de filhos tenham caído: “hoje em dia ninguém quer ter
filhos mais”, o que significa que idealmente se deva ter 2 ou 3, não
mais que isso: “o jeito é fechar o portão da fábrica, fechá-lo e perder
a chave”. Provavelmente o método mais frequente de prevenir a
concepção é o coitus interruptus – “atirar e errar o alvo” – mas,
apesar da precária assistência médica, algumas mulheres tomam
pílulas anticoncepcionais ou mesmo usam o DIU.
Por outro lado, no entanto, é ainda muito frequente criar filhos
alheios juntamente com os próprios. São geralmente filhos de algum
parente morto, cuja mãe tenha morrido. Esta é uma obrigação moral
que, não obstante, também tem implicações materiais. Em uma
situação de instabilidade econômica e precariedade ninguém pode
investir esforços sem a certeza da retribuição. Relações sociais com
iguais, sejam eles vizinhos ou parentes, são governadas pelo princípio
da reciprocidade. Os favores devem ser considerados, isto é,
reconhecidos, o que quer dizer, em última análise, pagos. Nenhum

113
favor deve ficar sem retribuição. A expressão social disto é o medo da
dívida, que significa inferioridade social. Logicamente, os favores feitos
por pessoas socialmente superiores não demandam retribuição
material. Neste caso, o pagamento é relegado a um agente místico:
“Deus lhe pague”. Já mencionei antes as implicações disto nas relações
de vizinhança. No caso do parentesco, enquanto há uma obrigação
moral de oferecer auxílio, isto não elimina o requisito da reciprocidade
em termos muito materiais. Desta maneira, espera-se que uma criança
adotada pague o investimento feito em sua educação tão logo seja capaz
de trabalhar e contribuir para a renda familiar. Esta expectativa
frequentemente cria conflitos, porque não é incomum o pai ou mãe
ainda vivos reaparecerem quando seu filho já tenha atingido uma idade
produtiva, para reclamá-lo e colocá-lo para trabalhar para si. Em um
caso como este uma mãe adotiva chegou a ir a juízo e o juiz declarou
que computaria os custos do trabalho que ela investira na educação do
filho.
O pai obviamente não estava em condições de pagar, e a criança
permaneceu com ela.69
Neste novo contexto socioeconômico, a família não apenas
persistiu, como também foi reforçada em seu papel de unidade
básica de reprodução social. Em conflito com isto, no entanto, está
o efeito negativo que a proletarização teve sobre a qualidade das
relações entre os membros de uma família. Sob as condições de
declínio dos salários reais e crescente instabilidade econômica, a
sobrevivência cotidiana depende absolutamente do total de esforços
de todos os membros e reciprocidade através do tempo. As redes
de parentesco permanecem em estado latente sob circunstâncias
normais, sendo mobilizadas apenas em casos de crise, e mesmo
então isto é algumas vezes problemático. É também justamente

69
Uma maneira de evitar que pais reclamem de volta um filho que se criou é adotá-lo
legalmente com papel passado (concessão da certidão de nascimento), mas os pais
geralmente não desejam dar seus filhos em adoção completa.

114
porque se espera que todos os membros produtivos de uma família
contribuam para a renda familiar, 70 que o capital pode achatar os
custos com os salários até mesmo abaixo do custo de reprodução
de um trabalhador de sexo feminino. Ainda, enquanto durou o
colonato, a natureza do sistema de trabalho reforçou a solidariedade
familiar, desde que se apoiava também na comunhão dos interesses
de toda a família, mas este comunalismo foi muito pressionado
pelos efeitos da transição para o assalariamento individual. A
independência mútua entre os membros da família foi perpetuada,
senão aumentada, mas, ao mesmo tempo, a individualização do
trabalho gerou permanentes conflitos entre as necessidades coletivas
e interesses e frustrações pessoais.
Sob o colonato, o marido/pai enquanto chefe da família fazia o
contrato com o fazendeiro, recebia a renda da família e organizava a
alocação do trabalho familiar. Agora cada membro de uma família é
recrutado individualmente pelo “turmeiro”. Há diferenças sutis nas
condições de trabalho, salários e tempo dispendido no transporte entre
as diferentes turmas.
Assim sendo, a mobilidade dos trabalhadores entre as turmas é
considerável. No caso de mulheres e crianças, que usualmente vão ao
trabalho com suas mães até que sejam capazes de trabalhar por conta
própria, os maridos/pais tentam decidir para elas as mudanças de
turma, mas na prática são as mulheres que geralmente tomam estas
decisões por si mesmas.
Os pagamentos no campo são feitos por semana aos trabalhadores
individualmente. Apesar de que idealmente os salários de todos os
membros deveriam ser juntados e administrados pelo chefe da família,

70
Um fator adicional que reduz o custo de reprodução do trabalhador é a organização
de escalas de moradia e alimentação conjuntas, contida na vida familiar. Mas deve-se
ter em mente que nível de renda é sempre determinado essencialmente pela relação
de poder existente entre trabalho e capital.

115
os filhos homens, particularmente, relutam em abrir mão de seu
pagamento integral:

Há filhos que trabalham (…) eles não ajudam seus pais mais que um
ano; quando um filho sai para trabalhar ele já quer pagar casa e
comida, quando um filho faz 16 anos ele já quer pagar casa e comida
(…) Eu acho que o chefe da família, o pai, tem o direito de distribuir
tudo aos filhos.71

Mulheres e filhas certamente abrem mão de seus salários também


porque não raro é o marido quem administra a renda comum. Como
apontou uma mulher:

É o chefe da família que deveria controlar o dinheiro; em muitos lugares o


chefe da casa é o homem, em outros é a mulher: se o marido é
irresponsável, gasta todo o dinheiro em bobagens, a mulher tem que
assumir o controle.

O marido, enquanto provedor da família, deve pagar pelas despesas


da casa, isto é, comida, aluguel e as contas de água e luz. Os salários
das mulheres e filhos são usados em despesas ocasionais tais como
roupas, uma peça de mobiliário, contas de médico etc. Tanto o
marido como os filhos podem gastar um pouco de dinheiro, as
moças para pouco a pouco formar seu enxoval, os rapazes e o
marido para cigarros e bar. A única que geralmente não tem direito

71
Como um pai exclamou: “Nós não o criamos? Claro, ele tem que ajudar; que ajuda
ele nos tem dado? Ele trabalha há dois anos (…) um filho hoje em dia não ajuda
muito seu pai; antes, os filhos não iam para a escola, um rapaz poderia começar a
trabalhar por volta de oito anos de idade e ajudaria até que tivesse cerca de 21; e
quando casava ainda tinha que trabalhar por um ano para o pai; só então poderia sair
de casa”. (28/74-8, 9) O casamento atualmente não deixou de ser uma regra geral
promovida ativamente pelos pais. Mas ao mesmo tempo estes se arrependem
frequentemente quando um filho casa, porque isto significa a perda de um salário.
Assim, uma mulher que havia sido abandonada por seu marido poucos anos atrás e
vivia com seus cinco filhos, dos quais as duas mais velhas trabalhavam o mesmo que
ela, sentiu profundamente que a filha mais velha desejasse começar a comprar um
enxoval para seu casamento, então iminente, cortando a comida que era permitida à
moça.

116
a nada é a mulher/mãe. Mas há um medo constante da parte das
mulheres de que os maridos possam desviar mais do que o seu
quinhão para bebidas e outras mulheres, ameaçando deste modo a
sobrevivência de toda a família: “roubando a comida de inocentes”,
como dizem.72
Há outra maneira em que a antiga autoridade do marido/pai se
desgasta, e produz conflitos adicionais entre os cônjuges. É geralmente
aceito como um indesejável dado da vida real que esposas e filhas
devam trabalhar como os homens. Mas, desde que as mulheres da
família já não trabalham sob a supervisão direta do marido/pai, isto é
motivo de novas suspeitas por parte dos homens. Como um se
queixava:

Os caminhões de turma trouxeram muitas novidades, separação e


brigas entre marido e mulher, eles trouxeram a falta de respeito; as
mulheres deixaram de temer seus maridos; eles trouxeram
desconfiança para os maridos (26/74-147,8).

As turmas de trabalhadores são geralmente vistas como lugares de


moral duvidosa, impróprias para mulheres respeitáveis. Os turmeiros
têm a fama, que não é infundada, de tirar partido de sua posição para
seduzir as trabalhadoras. E esta suspeita é ainda reforçada pela crença
generalizada de que as mulheres que não têm proteção/supervisão de
seus homens facilmente sucumbirão às investidas de outros homens.
Esta desconfiança é fruto da moralidade tradicional, que garante aos
homens direitos exclusivos à sexualidade de suas mulheres (o que
requer o controle destas), e do temor muito concreto das

72
Para as mulheres, a infidelidade de seus maridos não é apenas um problema
emocional, mas um problema que afeta diretamente a economia da família. Como
declarou uma mulher, cujo marido havia tido outra mulher durante anos: “o pior é
que ele dá seu dinheiro a ela; se ele fosse com ela sem dinheiro, ela poderia tê-lo por
bem (…) (é ruim que ele goste de outra mulher) porque ele dá dinheiro a ela; e
depois, nós não temos dinheiro; não é ruim que ele goste dela; é o dinheiro que ele
dá a ela que é ruim”.

117
consequências que poderia ter o contato das mulheres com homens
não pertencentes à família, “homens de fora”, para a sobrevivência
desta.
Apesar de ser impossível obter dados sobre isto, é provavelmente
razoável supor que durante o colonato o controle da sexualidade das
mulheres estava estreitamente ligado à importância e reconhecido valor
de seu papel procriativo. Agora, pelo contrário, já não é mais sua
capacidade reprodutiva que importa aos homens, mas sim seu
indispensável trabalho doméstico e extradoméstico. Havia mulheres
que sugeriam com grande cinismo que hoje em dia os homens não se
casavam com uma mulher por sua beleza, mas para que trabalhasse
para ele.
Motivo frequente de brigas entre casais é o ciúme do marido. Vez
por outra se contam estórias de mulheres que fugiram com outros
homens – estórias estas sem nenhum fundamento real. Com relação às
filhas, há permanentes queixas de que a vizinhança não é lugar para se
criar uma moça respeitável, que a moral não é mais o que era:

Quando eu (um pai que havia-se mudado para lá cerca de 10 anos atrás)
me mudei para cá as moças eram respeitáveis, hoje se há vinte é muito;
antes, quando uma moça aparecia em casa com uma criança, os pais
queriam matá-la, não é como hoje; o pai quer matá-la, a mãe a protege,
coisa triste, estas coisas acontecem, e assim a família cresce; as coisas
mudaram com este negócio de caminhão de turma, indo de um lado para
o outro (19/74-167).

Mas o medo dos homens de que as mulheres fujam com outros


homens ou de filhas solteiras que tragam para a família uma boca a
mais para alimentar é totalmente infundado.73

73
De todas as mulheres que conheci quatro eram mães solteiras; geralmente os
homens assumem sua responsabilidade quando têm a paternidade de uma criança;
também é raro, como indiquei, que as mulheres fujam com outro homem; eu soube
de dois casos.

118
De fato, se se comparam os motivos que homens e mulheres têm
para desconfiar uns dos outros, os das mulheres se afiguram muito mais
reais que os dos homens, que são subjetivos e relacionados à definição
antiga das esferas sexuais. O alcoolismo masculino vem sendo a maior
causa de instabilidade familiar, enquanto que é dado que as mulheres
não bebem. O bar é o ponto de encontro típico dos homens, no qual
não se permitem mulheres. Também, quando um homem envolve-se
com outra mulher (fica por analisar quem são estas mulheres), isto
efetivamente implica desvio na renda familiar, porque nenhuma
mulher relacionar-se-ia com um homem sem alguma compensação
material. Como declarou enfaticamente uma mulher, amante do
marido de uma das trabalhadoras: “não sou boba de dar o rabo de
graça”.
As suspeitas dos homens, entretanto, ficam muito mais no nível
ideológico. São consequências não de mudanças concretas no
comportamento das mulheres, mas sim do fato de os homens terem
perdido, na transição para o assalariamento, pelo menos duas das
fontes de sua antiga autoridade dentro da família.
As implicações materiais e subjetivas da mudança social para seus
protagonistas podem somente ser entendidas no contexto de suas
experiências prévias e a maneira que as vivenciaram. Os homens foram
reduzidos a simples assalariados sem qualquer autonomia para decidir
sobre a alocação de sua força de trabalho e a de sua família, e neste
processo também perderam em parte a prerrogativa de dispor sobre a
renda familiar. A perda destes significativos componentes da identidade
social dos homens produziu neles um sentimento profundo de
insegurança e perda de autoestima, que os tornaram extremamente
desconfiados de suas mulheres e filhos. Pelo contrário, a transição para
o assalariamento não afetou as mulheres do mesmo modo. Durante o
colonato as mulheres trabalhavam em casa e no campo, mas eram
excluídas do assalariamento na época do cultivo. Elas trabalhavam “por
conta”, por si próprias, “para a gente”. Sua incorporação ao trabalho

119
assalariado não significou uma redução, mas um aumento em suas
obrigações femininas. Não ocorreu uma transformação na divisão
sexual do trabalho doméstico nem na definição tradicional do trabalho
da mulher como subsidiário ao do homem: “quem tem que manter a
família é o marido, a mulher trabalha para ajudar o marido”.
Os homens trabalham para manter sua família, as mulheres
trabalham para ajudar seus maridos. Ao mesmo tempo a motivação
para o trabalho difere entre homens e mulheres: as mulheres trabalham
relutantemente, movidas pela necessidade em um contexto de pobreza
geral; os homens trabalham porque são homens.
Em consequência a esta combinação de forças materiais e
ideológicas, os homens têm um compromisso mais forte com o
trabalho e são mais afetados pelas condições do mercado de trabalho.
Eles desejarão obter um emprego estável no qual receberão benefícios
sociais. Empenhar-se-ão em sair do campo e trabalhar na construção
civil, onde os salários são mais altos e as condições de trabalho um
tanto melhores. E, mais, enquanto colonos toda a família trabalhava de
manhã à noite, agora os homens trabalham horas regulares, isto é, 48
horas por semana. Também, a existência de alternativas de emprego
fora do campo aumentou seu poder de barganha mesmo dentro dele.
Apesar de não haver escassez de trabalho para as mulheres atualmente,
as alternativas são mais limitadas. Poderiam trabalhar como
empregadas domésticas, mas isto é considerado indesejável pela longa
jornada e maior dependência. Além disso, sua definição cultural faz
com que sejam mais submissas e que pouco reivindiquem no trabalho,
duas atitudes que têm levado as mulheres a aceitar qualquer tarefa,
mesmo aquelas tradicionalmente feitas por homens: “quem trabalha
por dia tem que fazer o que for mandado; se eles nos mandam carregar
pedras, cavar um fosso, nós fazemos”. Ultimamente a intensidade de
trabalho da mulher é comparativamente maior que a do homem,
mesmo em tarefas feitas por homens, e também porque as mulheres

120
agora geralmente tomam para si as tarefas pagas por quantidade
produzida, tais como a colheita de café e algodão.
Não é surpreendente, pois, que os contratantes de trabalho
frequentemente prefiram trabalhar com mulheres, não apenas porque
são mais obedientes que os homens, mas também porque suas
obrigações domésticas, que as fazem ocasionalmente faltar ao trabalho,
não são conflitantes com a natureza sazonal dó trabalho agrícola. Um
“turmeiro” declarou:

As mulheres se sujeitam mais ao trabalho, sempre trabalham mais porque


são mais resolutas, têm um senso mais forte de decência; os homens não
têm isto; eles dizem, se ele (o turmeiro) me reprova, eu faço o mesmo; às
mulheres falta voz para responder.

Deve ser notado que, apesar de não ser sempre o caso, estas mulheres
ganhavam o mesmo salário que os homens.
Em comparação ao colonato, atualmente as mulheres trabalham
com maior intensidade e por mais horas que os homens. Estes, quando
chegam em casa, irão trocar-se e assistir à televisão ou ir ao bar, as
mulheres ainda têm que preparar a comida e fazer os outros serviços
domésticos.
A transformação de toda a família em assalariados afetou a divisão
sexual do trabalho de modo complexo. Para aquelas mulheres que não
saem para trabalhar, ou porque estão na fase inicial do ciclo da vida
familiar e não podem deixar seus filhos pequenos, ou porque o marido
tem uma renda melhor e a mulher não “precisa” trabalhar, ela
produziu uma intensificação da divisão do trabalho por sexo. O estágio
do ciclo da vida é agora mais relevante na determinação da capacidade
das mulheres de trabalhar fora. Para aquelas mulheres, no entanto, que
realmente trabalham por um salário, o efeito foi diferente. O processo
foi de redefinição das tarefas por sexo, juntamente com uma nova
divisão geral do trabalho entre os sexos. No campo, as tarefas

121
primeiramente realizadas por toda a família – especialmente a colheita
– ou exclusivamente por homens tornaram-se tarefas femininas, ao
mesmo tempo em que os homens tentam – nem sempre com sucesso –
sair para novas ocupações que são mais bem remuneradas e
exclusivamente masculinas. As mulheres, devido à percepção peculiar
que têm de seu trabalho, começaram a se ocupar das tarefas mais
desagradáveis, que são por sua vez pior remuneradas, por causa da
definição cultural de mulher que reduz seu poder de barganha.
Ao passo que a contradição entre o imperativo cultural de que
deveria ser o homem que mantém a família, e a frequente
impossibilidade de cumprir com esta norma ideal em um contexto de
instabilidade econômica tem desgastado a autoestima e sentido de
identidade dos homens, para as mulheres a mudança significou um
aumento em seus encargos, que não afetou, no entanto, sua identidade
cultural enquanto mulheres. Ainda, o que fez foi gerar um grande
ressentimento de sua parte e novos receios com relação aos homens.
As mulheres se queixavam: “é bom encontrar homens que não nos
deixam trabalhar, mas trabalhando não há razão para se ter um
marido”, ou: “nós casamos por esporte, o marido não cuida da mulher;
nós tomamos conta de nós mesmas”.
Dois pontos, no entanto, precisam ser elaborados aqui. As
mulheres ressentem-se do fato de que tenham que trabalhar. Isto é
percebido tanto como consequência da situação em geral quanto
como um fracasso de seus maridos. Não se, lamentam por
continuar responsáveis pelas tarefas domésticas. 74 E, mais
geralmente, o que tanto homens como mulheres lamentam, embora
de maneira diferente, é a transformação que a proletarização
produziu não em sua condição pessoal, mas em sua relação mútua.

74
Cf. Hartmann (1981), onde ela analisa o trabalho doméstico corno urna das fontes
de conflito dentro da família.

122
Se pudessem, as mulheres permaneceriam em casa, mas então o
trabalho doméstico não seria pago. De fato, o trabalho doméstico não é
invisível nem tampouco inferior aos olhos destes trabalhadores, apesar
de algumas mulheres pensarem ser mais divertido trabalhar em uma
turma, provavelmente uma manifestação a mais de seu crescente
isolamento social. O problema é que, com a transição para o
assalariamento, o trabalho doméstico perdeu seu valor em um sentido
relativo. Enquanto que, durante o colonato, o trabalho das mulheres
em casa e no campo, de acordo com suas possibilidades, era
considerado como sua suficiente e apropriada contribuição à renda
familiar, e elas não eram requisitadas para o trabalho assalariado, agora
elas têm que trabalhar mais do que os homens para suprir as
necessidades e expectativas da família. E é neste sentido que o trabalho
doméstico foi desvalorizado. Para a família sobreviver ela deve também
trabalhar para outros; paradoxalmente, enquanto “a mulher é sempre
útil no campo e em casa, ela sempre trabalha mais”, todavia “a mulher
hoje em dia não tem mais valor, antes ela era mais valorizada”.
Também neste sentido, a incorporação das mulheres ao trabalho
assalariado, como determinada e subordinada às necessidades da
família, pouco contribuiu e nem foi percebida como uma fonte de
autonomia pessoal, que era antigamente a sua exclusão.
As mulheres têm clara consciência de que têm para si a pior parte
agora. O impacto diferencial da transição para o assalariamento sobre
homens e mulheres tem consequências importantes na autopercepção
de ambos e também, decorrente disto, na qualidade das relações
conjugais. Os homens, quando estão sem trabalhar por quaisquer
razões, não têm nada em que se apoiar e perdem sua personalidade
social; as mulheres, no entanto, não tendo sido privadas de seus
atributos essenciais de definição, que continuam sendo ter e criar filhos
e tarefas correlatas, mesmo se não estão trabalhando fora, sentem-se de
qualquer maneira úteis.

123
O número ideal de filhos decresceu, mas homens e mulheres
partilham a convicção de que se deve tê-los. Se não os têm, deve-se
adotá-los. Uma mulher que adotara um menino sublinhou o ideal das
mulheres em ter filhos com o seguinte provérbio: “bananeira que não
dá cacho merece ser cortada”, que foi elaborado mais tarde por outra
mulher: “uma árvore que não dá fruto merece ser cortada (…) deve-se
ter filhos porque eles pertencem à mãe, quando você fosse velha, o que
faria sem eles”. (32/79-2) Para os homens as consequências são
diferentes. Como uma mulher comentava ironicamente sobre seu
marido que não pode trabalhar por algum tempo: “ele não foi feito
para ser homem, um homem não devia gostar de ficar em casa, as
mulheres sim, eu não gosto (…) Deus cometeu um erro”. O referido
marido revelou seu constrangimento por não ser capaz de trabalhar,
que era produto novamente de uma combinação de considerações
culturais e materiais: “se eu fosse uma mulher, ninguém acharia errado
eu ficar em casa, mas sendo homem eu penso que o povo já começa a
falar, será que ele nunca melhora?”. (26/74-142)
A maior versatilidade das mulheres em lidar com situações
particularmente difíceis ao mesmo tempo as provê com recursos
especiais para enfrentar a vida. Como já disse, alcoolismo é
frequente entre os homens, como uma reação compreensível a sua
desmoralização. Abandonar as famílias é outra resposta às
dificuldades socioeconômicas.75 De fato, cerca de 1/3 das mulheres
que conheci (17 de um total de 57) vivia com seus filhos sem um
homem em casa. Algumas delas eram viúvas, um número
significativo tinham sido abandonadas por seus maridos, e havia
uma mãe solteira. Embora dentre aquelas mulheres que viviam com
seus maridos houvesse um número adicional de casos nos quais
estes eram alcoólatras, ou por outro motivo incapazes de trabalhar,

75
Johnson (1978) e Kusnesof (1980) são dois estudos sobre a frequência e
determinantes de mulheres à testa de grupos domésticos em processos de mudança
social.

124
nenhuma destas mulheres pensava em abandonar seu homem.
Como já indiquei anteriormente, é muito raro que mulheres
abandonem suas famílias, essencialmente por razões de ordem
cultural. Uma é a forte pressão social a que estão sujeitas as
mulheres; uma mulher facilmente ganhará má reputação:

Uma mulher que abandone seu marido, sempre dirão que ela está errada;
não interessa se ela tem razão, sempre dirão que ela é a má; é por isso que
você tem que pensar antes de abandonar seu marido, embora às vezes
você tenha vontade de deixá-lo; você perde a coragem; muitas mulheres
que abandonaram seus maridos, como minha irmã, tinham razão, ela
passou fome, não tinha roupas para usar, e ainda as pessoas diziam que era
ela a errada, sempre falam mal das mulheres; eles veem uma mulher que
abandonou o marido e pensam que é ela a errada, que ela não é boa. Eles
veem uma mulher falando com alguém diferente, e já pensam que ela não
é boa.

De vez em quando as mulheres dirão que hoje em dia as mulheres têm


mais “coragem” que os homens. Este argumento tem, entretanto, duas
implicações. As mulheres são mais fortes para resistir às dificuldades,
mas, ao mesmo tempo, o são menos para mudar sua situação.
Ainda, a percepção das mulheres como as primeiras responsáveis
pelos filhos, que é expressa também em diferentes noções de
paternidade e maternidade, pressiona as mulheres a não abandonar
seus filhos, muito mais que aos homens. Como diz o ditado: “mãe só se
tem uma; pai, ninguém sabe quem é” (28/74-4). Este é mais um
obstáculo a que abandonem a casa. Se o fizerem levarão consigo os
filhos, e manter uma família sem um marido é particularmente difícil.
Espera-se que os filhos respeitem seus pais, obedeçam-nos e não
lhes respondam.76 Mas mesmo neste ponto as atitudes para com os

76
Como disse repetidamente, “uma pessoa que trata mal seus pais torna-se um corpo
seco (quando morre), uma pessoa: que bate em sua mãe; um corpo seco é quando as
entranhas secam como grãos de milho; elas chocalham e fazem barulho; elas ficam
como grãos de milho no estômago; a única coisa que fica são os ossos, a carne
desaparece; eu nunca vi, mas existe; (…) eu não quero ver, me assusta”; e outra

125
pais diferem: “eles devem respeitar seu pai e a mãe até mais,
porque a mãe sofre mais; e também a mãe tem um amor maior por
seus filhos; a mãe passará fome a fim de dar algo de comer aos
filhos”. A diferente intensidade dos laços maternos e paternos está
refletida mesmo no nível das representações do sobrenatural. Como
descreveu um velho homem pai de sete filhos:

O pai não ama muito, a mãe é única, deve-se tomar muito cuidado
quando se fala com a mãe de alguém; por mais errada que esteja
devemos obedecê-la muito mais que ao pai; respeita-se muito mais à
mãe que ao pai mesmo que seja ele quem tem autoridade; porque nós
sabemos que mãe só temos uma, e o pai não sabemos quem é o
verdadeiro; apenas a maldição de mãe ou avó faz efeito, a maldição de
pai não faz efeito, uma maldição é quando uma mãe amaldiçoa um
filho, quando o filho não obedece (…) quando a mãe morre o filho
deve pedir perdão, com o pai isto não acontece (21/74-69).

Em consequência deste papel fundamental atribuído à mãe como o


centro emocional e elemento aglutinador da família, a deserção do
marido/pai ameaça muito menos a persistência da família do que a
deserção da mãe/esposa: “quando o pai abandona a casa, a casa treme;
quando a mãe a abandona, ela cai”.
Mas apesar de ser particularmente difícil para uma mulher com
filhos e sem marido conciliar suas obrigações domésticas com a
necessidade de ganhar um salário, elas farão seu máximo para
conseguir. Como uma mulher de cerca de 35 anos – que havia tido 6
filhos, quatro dos quais vivos e morando com ela, um deles
trabalhando no mesmo lugar que ela, e que enviuvara com os filhos
ainda pequenos – comentava despreocupadamente: “no caminhão um
homem disse que se ele estivesse no meu lugar ele largaria as crianças;
o amor faz tudo; o que você pensa, quando morre o pai, ir embora, eu
não, eu mostrei uma cara alegre a eles” (15/74-119). Também,

mulher elaborou: “a terra não come o corpo (…) Eu tive uma prima que deu um tapa
no rosto de sua mãe, sua mão secou e ficou grudada no osso”.

126
precisamente porque se considera que o homem é quem sustenta a
casa, é mais provável que uma viúva receberá auxílio de parentes ou
vizinhos para se manter com os filhos. No caso de um viúvo, os
parentes receberiam os órfãos.
Os homens que abandonam sua família frequentemente o fazem
porque sentem que fracassaram em sua obrigação de sustentá-los. Mas
mesmo quando trabalham e têm renda, como no caso de viúvos, os
homens têm menos recursos para cuidar dos filhos: “(um homem) tem
que pagar tudo; uma mulher lida melhor com isso; ela faz tudo, ela
cozinha, lava as roupas, um homem não faz nada; ele tem que pagar
por estes serviços; agora, se ele tem muito dinheiro, paga uma
empregada”; e, como apontou outro homem,

é difícil para um homem cuidar de filhos, só a mulher mesmo pode criar


filhos (…) uma mulher deve ficar em casa, um homem não pode ficar em
casa; ele deve ir para o campo, serviço doméstico não é bom para os
homens porque as mulheres o fazem muito melhor, um homem não sabe
fazer serviço doméstico, apesar que ele pode aprender.

É muito difícil que uma viúva ou uma mulher separada aceite outro
homem: “pegar outro homem para ele fazer tudo até pior; eu prefiro
ficar sozinha”, disse uma mulher que havia sido abandonada há pouco
tempo (34/74-99).
Mudança social, em particular quando imposta por forças externas,
sempre produzem novas tensões, conflitos entre velhos ideais e novas
realidades materiais. Meu argumento é que não apenas as relações
dentro da família enquanto unidade de reprodução social foram
afetadas como um todo, mas que o impacto objetivo e subjetivo da
mudança social foi diferente para mulheres e homens. Isto assim se dá
porque a mudança socioeconômica não ocorre em um vácuo, mas é
afetada pela realidade material e os valores culturais anteriores. Deve
estar claro neste caso que as opções feitas por estes trabalhadores no
confronto com as novas condições econômicas e os conflitos por elas

127
gerados são condicionados de forma importante por seus antigos
valores. É neste sentido que, enquanto a situação das mulheres tem
claramente se deteriorado na medida em que sua atual carga de
trabalho cresce, enquanto os homens atualmente trabalham
comparativamente muito menos que as mulheres, para os homens a
contradição entre expectativas culturais e possibilidades materiais afetou
de maneira mais brutal sua identidade social.
A hierarquia e o sistema de dominação familiar durante o colonato,
que garantiu ao homem o papel incontestável de chefe da família, foi
reforçado pelo arranjo da própria mão de obra. Nenhum fazendeiro
contrataria uma família sem um homem chefe de família. O novo
sistema de trabalho corroeu muito a velha hierarquia sem, entretanto,
substituí-la por uma nova definição dos papéis e estrutura de
autoridade. Ao encontrar estas mulheres fiquei impressionada com a
força e disposição delas, o que contrastava justamente com o rosto
derrotado de muitos homens. As mulheres certamente lamentam seus
redobrados encargos e culpam os fazendeiros que não lhes darão mais
um pedaço de terra para plantar, e também seus maridos que não as
sustentam. Os maridos culpam o sistema como tal por suas
dificuldades, mas frequentemente desabafam sua frustração com as
mulheres e filhos. É apenas natural que, sob estas circunstâncias, a
violência doméstica aumentasse. É difícil reconstruir a qualidade de
relações pessoais no passado. Mas há indicações de que os conflitos
conjugais que terminavam em violência física, com certeza, ocorreram.
As novas tensões, no entanto, obviamente, os exacerbaram. Uma
mulher queixava-se:

Há pessoas que realmente batem; ele (o marido) quando ficava bravo, as


pancadas que ele me dava, e as crianças tinham pão só nos domingos; no
campo eu só comia arroz e feijão; tinha muita gente que sentia pena de
mim e me dava um pedaço de pão (…) esta cidade é lugar de muita
confusão; eu bati nela (a amante do marido) porque ela nos fez passar
fome, pense só nisto, trabalhar a semana inteira e morrer de fome no
domingo (…) agora a situação é muito pior; agora eles (os homens) são

128
todos uns patifes; quando nós vivíamos na fazenda, alguns homens eram
assim mas não todos (23/74-65).

E outra lembrava:

Iracema e seu marido brigavam, parece que ele batia nela, ela ficou com
um olho roxo (…) há muitos homens que batem; antes eu não me lembro
disto acontecer; meu pai é separado de minha mãe, mas eu nunca os vi
brigar; antes você podia ir a um baile, nunca havia briga; agora, que eu
mudei para cá, a qualquer baile que se vá sempre tem uma briga (…) antes
as pessoas tinham mais respeito (48/76-4, 5, 6).

Por razões óbvias, as vítimas da violência física intrafamiliar são


mulheres e crianças. É precisamente nos momentos em que os homens
sentem agudamente a precariedade de sua situação que eles parecem
tentar reafirmar sua dominação e autoridade através do uso da
violência.
Há certas circunstâncias que, acredita-se geralmente, justificam a
agressão, como quando um filho não obedece ou quando uma mulher
tem outro homem, mas mesmo então as mulheres têm a pior parte de
ambos os mundos: o marido haveria de a espancar tanto se apenas
suspeitasse de sua infidelidade, como também se tivesse outra mulher e
temesse suas reprimendas. O alcoolismo é temido pelas mulheres por
ser frequentemente motivo imediato para violência física. Os filhos,
particularmente os filhos homens, usualmente correrão em socorro da
mãe em caso de briga entre os pais. Em um exemplo, um pai chegou a
atirar em seu filho (a maioria dos homens têm pequenas armas de fogo
ou canivetes em casa) quando este tentou evitar que o pai voltasse mais
uma vez ao bar onde já se havia embebedado. Em outro caso um filho
apunhalou seu pai que estava bêbado e queria espancar sua mãe. E
uma mulher com vários filhos pequenos tentou o suicídio quando não
pôde mais resistir aos assaltos do marido.

129
São casos reconhecidamente extremos, mas igualmente extremas
são as tensões que a natureza contraditória da mudança
socioeconômica produziu para os trabalhadores.

Conclusões
De maneira alguma quero dar a impressão, nem isto seria
historicamente acurado, de que a transição do colonato para o
assalariamento para estes trabalhadores tenha significado a passagem de
uma vida de abundância, gratificação pessoal e felicidade para a miséria
e desmoralização. O colonato era um sistema de trabalho baseado na
exploração do trabalho familiar. Claro está que os colonos estavam
cientes de sua exploração e dela se ressentiam; isto é demonstrado por
suas persistentes (apesar de intermitentes) formas de resistência,
inicialmente restrição da produção de café e mais tarde greve geral. O
que emerge da comparação entre o colonato, tanto como sistema de
trabalho como forma de vida familiar, e o presente sistema de
assalariamento e suas consequências para a organização familiar, é a
desintegração em nível pessoal e coletivo que esta transformação
causou. A relativa autonomia que os colonos tinham para organizar o
processo de trabalho requeria deles um conhecimento acerca do cultivo
de café e de outras culturas, que deve ter sido uma fonte importante de
autoestima. Agora que os fazendeiros não concedem mais o direito de
fazer roça, os trabalhadores têm que vender seu trabalho para realizar
as tarefas que lhes são ordenadas. Os caminhões são comparáveis a
gaiolas e eles viajam como pássaros sentados em roda, como “paus-de-
arara”. A única coisa que se espera deles é que trabalhem o mais que
possam pelos salários mais baixos que o fazendeiro possa impor. Os
salários nunca são determinados apenas pelas forças de mercado; em
países como o Brasil o controle político é especialmente visível, e tem
importante papel em rebaixar os salários ao nível da mera

130
sobrevivência. Depois do golpe militar de 1964, os incipientes
sindicatos rurais que surgiram da crescente mobilização dos
trabalhadores nos anos 50 eram postos sob intervenção do Governo
Federal ou simplesmente fechados. Esta era apenas uma a mais na
experiência secular de relações de poder profundamente adversas para
estes trabalhadores. Eles são bem cientes das forças que estão na raiz
de sua miséria e exploração: “eles (os ricos) não têm que trabalhar, não
trabalham, não estão acostumados a isso, eis por que eles precisam dos
pobres, os pobres não têm terras, eles precisam dos ricos”. Mas as
possibilidades de alterar esta situação ou, pelo menos, melhorar suas
condições de vida são vistas com grande ceticismo. Um dos obstáculos
a que sempre se referem é a ausência de união, solidariedade. Por si
próprio é impossível conseguir alguma coisa, mas então as pessoas não
estão unidas. Há, pelo menos, duas causas para esta falta de unidade.
Ninguém poderia colocar as mangas de fora porque seria despedido da
primeira vez. Mas há também o efeito socialmente desintegrador que
teve a nova situação ao dissolver as relações sociais e desmoralizar os
trabalhadores. Como tenho tentado demonstrar, a introdução do
trabalho assalariado afetou mulheres e homens de maneira diferente,
desde que o impacto da transformação nas relações de produção foi
mediado pelos antigos valores, no que tange aos papéis sexuais e à
divisão sexual do trabalho. A frequente dificuldade do homem em
satisfazer às expectativas culturais com relação a seu papel de provedor
da família minou demais sua autoestima. Contudo, quando vão explicar
sua miséria atual, os homens sempre a atribuem de modo mais geral às
relações da exploração a que estão sujeitos. Assim, com o surgimento
dos caminhões de turma e desde que o proprietário não mais permitiu
que plantassem, mulheres e filhos perderam o respeito por seus
maridos e pais, e as famílias tornaram-se desunidas.
A percepção das mulheres quanto à mudança socioeconômica é
diferente. Mesmo partilhando as interpretações gerais dos homens
quanto à mudança, ao mesmo tempo, como mulheres, culpam seus

131
maridos pelo encargo aumentado que atualmente enfrentam. Elas têm
que trabalhar porque seus maridos fracassam em manter a família por
si. Esta interpretação tem duas implicações. Por um lado, revela uma
consciência clara de sua maior exploração em relação aos homens. Por
outro lado, no entanto, apesar de explosões ocasionais sobre o que
seria melhor fazer sem homem, porque hoje em dia os homens não
servem para mais nada, estas mulheres, ao cobrar dos homens o
cumprimento de seu papel tradicional de provedores, estão justamente
endossando as instituições do casamento, família e a divisão sexual do
trabalho dentro dela, que estão na raiz de sua exploração e
subordinação enquanto mulheres. Poder-se-ia argumentar que este
aparente conservadorismo das mulheres – sem falar no dos homens,
que se ressentem fundamentalmente de haver perdido parte de seu
poder sobre mulheres e filhos – é evidência da penetração dos valores
dominantes com relação à família dentro da classe trabalhadora. Ainda
é significativo que o sistema de valores descrito acima, a aspiração de
casar, de que as mulheres fiquem em casa, de que mantenham suas
famílias, de que as moças sejam respeitáveis etc., coexista largamente
com aqueles que não observam estes valores, exceto quando uma
contravenção afeta a alguém de maneira direta, emocional e
materialmente. Havia uma moça na turma que era amante do
“turmeiro”, engravidou dele, perdeu a criança, eventualmente teve um
caso com o marido da irmã de sua mãe, teve um filho dele e foi viver
com ele. Sua tia foi compreensivelmente afetada por isto, mas as
mulheres na turma e na vizinhança não a discriminavam de modo
algum. Sobre outra mulher, que tinha cinco filhos de pais diferentes e
agora vivia consideravelmente dentro dos padrões com seus pais
idosos, apenas se pensava que ela havia sido tola em se meter em tais
dificuldades. O que estou sugerindo é que em uma sociedade na qual a
economia e a vida cotidiana são estruturadas na premissa da
universalidade da família nuclear, formas alternativas de viver são
difíceis de imaginar, mas muito mais de colocar em prática; falta uma
mudança radical naquela sociedade. Além do mais, enquanto que o

132
antagonismo de classes e a exploração e suas raízes, como também as
relações de poder que os mantêm, são mais transparentes em países
como o Brasil, onde a desigualdade social é tão profunda, a complexa
articulação da família e as relações de dominação dentro dela, com a
ordem socioeconômica, são obscurecidas pelos valores culturais de
dependência emocional entre os membros da família, que escondem a
exploração subjacente, mas também tornam as relações pessoais acima
de tudo conflitivas. Como indiquei, há um número significativo de
mulheres à testa dos grupos domésticos, e elas frequentemente não
desejam ter um novo marido. Contudo, este papel não é o produto de
uma escolha sua, pois todas têm consciência de que é especialmente
difícil, pelo menos materialmente, não ter um provedor na família.
Assim, tanto mulheres como homens são forçados a viver dentro de
uma instituição guiada por profundas tensões e contradições, mas são
incapazes de escapar a ela. O resultado é a superexploração das
mulheres e posterior desmoralização dos homens.
Como eu sugeri também, o capital organiza suas estratégias de
acumulação com base em instituições sociais existentes, tais como a
família. Mas ao mesmo tempo as estratégias mudam e, em situações de
exploração extrema, as corroem. Neste caso particular (provavelmente
muito semelhante às primeiras décadas da revolução industrial inglesa e
também a períodos de crise do capitalismo), a natureza do novo
sistema de trabalho e suas implicações para os trabalhadores em geral,
ao desmoralizá-los e desenraizá-los, afetou também de modo
significativo a produção em si. Nos últimos anos, tanto fazendeiros
individualmente como o governo brasileiro empenharam-se em
reorganizar o sistema de contrato do trabalho temporário, a fim de
superar uma deterioração amplamente detectada na produtividade do
trabalho. Por outro lado, interrupções isoladas do trabalho ocorreram
quando os salários eram considerados excessivamente baixos. Mas, de
modo mais geral, principalmente com produção que requer mão de
obra intensiva, cujo cultivo e colheita demandam um trabalho estável,

133
confiável e de boa qualidade como a cana-de-açúcar, tem-se tentado
restabelecer os trabalhadores nas fazendas para reforçar seu
compromisso com o trabalho, que, significativamente, é minado pela
miséria generalizada e a desorganização de suas vidas.

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137
PARENTES E PARCEIROS:
RELAÇÕES DE PRODUÇÃO
E RELAÇÕES DE
PARENTESCO ENTRE
CAMPONESES DE GOIÁS

CARLOS RODRIGUES BRANDÃO

Para José Ricardo Garcia Pereira Ramalho,


companheiro de pesquisa em Diolândia.

Então eu vendi roça e umas cabeças de gado


lá em Minas e vim para cá. Eu e a família: a
mulher, cinco filhos, dois irmãos e mais a pouca
tralha que a gente pôde trazer.
Um camponês em Diolândia

138
O trabalho nas fazendas e a família
camponesa
Entre 1940 e 1970, a área do atual distrito de Diolândia, no
município de Itapuranga, em Goiás, foi sucessivamente: 1°)
ocupada por algumas grandes fazendas de pioneiros da penetração
pastoril na região;1 2°) ocupada de maneira intensiva por levas de
migrantes mineiros e goianos vindos, os primeiros, quase todos do
município de Patos de Minas ou de municípios ou circunvizinhos,
e os últimos do próprio município de Itapuranga ou de regiões
próximas; 3°) estabilizada quanto à ocupação de frentes agrícolas
vindas de fora, com as propriedades rurais de origem divididas e
redivididas entre os descendentes dos primeiros proprietários.
Assim, de uma região de poucas e grandes fazendas de criação de
gado, tornou-se uma área repartida entre fazendas de médio ou
pequeno porte, cada vez mais dedicadas à lavoura de cereais. Hoje,
Diolândia possui inúmeras pequenas e algumas médias propriedades
agrárias ocupadas por famílias camponesas que moram nelas e delas
obtêm uma produção de cereais de que, em vários casos, mais da
metade é reservada para o consumo “da casa”, indo o restante para as
mãos dos cerealistas locais.

1
As frentes agrícolas de intensidade significativa são relativamente recentes na região.
Durante muitos anos existiram por perto as velhas cidades de mineração (Vila Boa de
Goiás, Crixás, Pirenópolis, Pilar de Goiás e Natividade) entremeadas por um vasto
sertão de grandes fazendas isoladas de criação de gado, ou por “terras sem dono”.
Diolândia esteve incluída em uma área de fazendas e terras devolutas e, fora de ser
campo de pastagem de gado, não era mais do que um ponto de passagem entre Goiás
e as cidades ao norte das regiões do ouro. Alguns moradores de mais idade dão conta
da fundação de quase todas as cidades e municípios próximos ao Distrito: Itapuranga,
Rubiataba, Carmo do Rio Verde, Uruana e Ceres (criada por ato do governo Getúlio
Vargas como colônia agrícola e ligada a Anápolis por uma estrada aberta por
Bernardo Sayão). Muitos deles participaram da criação de Diolândia.

139
Por outro lado, quase todos os habitantes do concentrado
urbano e das fazendas, classificados como não proprietários rurais,
são produtores-parceiros de cereais sob sistemas de arrendo ou
em parceria “na meia”. As primeiras fazendas da região foram
extensas em tamanho e relativamente estáveis quanto à sua
população.2 As terras mais ao sul já estavam ocupadas e eram
poucos os deslocamentos “de retorno” aos municípios abaixo de
Itapuranga. As terras ao norte somente anos mais tarde
começariam a ser intensamente povoadas por novas fazendas e,
depois, pelas cidades que a sua riqueza iria semear pelo “Vale do
São Patrício” e, mais ao norte ainda, na direção dos campos de
gado entre os dois grandes rios: o Araguaia e o Tocantins.
Nas primeiras fazendas de gado viviam e trabalhavam a família do
proprietário e famílias de agregados. Mesmo depois da entrada das
famílias migrantes como grupos, de ocupação agrícola, as novas terras
divididas das fazendas anteriores recebiam de uma só vez várias famílias
de uma mesma parentela, reunidas em torno a uma delas, a do “dono”
da propriedade.
Ao tempo dessa ocupação agrícola, as fazendas eram
compradas e vendidas por um preço irrisório, se comparado aos
das propriedades mineiras de onde vieram muitos dos ocupantes
atuais. Algumas eram simplesmente distribuídas como doação
pelo Estado, mediante simples requisição. O valor da terra era
quase desprezível. Valia o gado mais do que a terra.3
2
O tamanho médio da propriedade estaria por volta dos 200 alqueires goianos (1 alq.
= 4,8 ha). Hoje são raríssimas as propriedades que se aproximam deste tamanho e
que pertencem a uma só família.
3
Segundo um dos informantes, com a venda de terras na região de Patos de Minas
era possível comprar fazendas até cinco vezes maiores na região de Diolândia, entre
os anos de 1940 e 1950. Mas, pelo menos nos primeiros cinco anos desta década, as
terras podiam ser doadas mediante requisição, pela qual o futuro proprietário pagava
ao Estado as “custas da mediação” do agrimensor e as da escritura. Hoje não há mais
terras devolutas e as compras são quase sempre de pequenas propriedades, partes de
uma fazenda desmembrada.

140
Também o valor dos produtos da terra não era grande, fora o
do gado, que se deslocava em grandes boiadas rumo ao Sul. Os
cereais produzidos quase não encontravam condições de
escoamento e a maior parte era consumida nos limites das
fazendas produtoras, ou dentro das fronteiras da região.4
Por causa da distância de cidades ou mesmo de povoados próximos,
cada fazenda era então o centro de um pequeno mundo que reunia
atividades de produção, beneficiamento e consumo dos produtos da
terra. Quando se tornava indispensável o recurso a uma cidade maior,
durante muito tempo a escolha caiu sobre a cidade de Goiás (antiga
capital). Ela podia ser alcançada em dois dias de viagem a cavalo.
Das 128 famílias que vivem no concentrado urbano de Diolândia,
12 vieram em grupo para lá. Elas estão incluídas entre as de chegada
mais antiga, na frente agrícola mineiro-goiana. Ao explicar o que
significa essa migração em grupo surgem os primeiros dados de análise
das relações entre os modos de ocupação da terra e os da organização
da família.
A possibilidade de acesso fácil a terras novas e de bom tamanho,
associada ao começo do plantio de cereais – depois da melhoria de
caminhos para a região –, condicionou a fixação de várias famílias em
uma fazenda como um grupo original de ocupação. Resta explicar por
que eram várias as famílias e por que elas não formavam, como um
todo, uma unidade corporada de produção agrária.
O modo comum de vinda para Diolândia foi feito de acordo com
uma das seguintes opções:

4
Em 1953, a fazenda do sogro de um dos informantes foi ocupada por ele e sua
família. O proprietário resolveu migrar trazendo o gado que possuía em Minas
Gerais, por não ter encontrado “bom preço de venda lá”. A viagem com a boiada
durou 56 dias. A mesma viagem faz-se hoje em grandes caminhões de gado, em
menos de dois dias. A mudança entre uma situação e a outra foi em menos de quinze
anos.

141
1ª) várias famílias de uma mesma parentela, acompanhadas às vezes
de famílias de “estranhos” vendiam as suas terras na região de
origem e compravam uma mesma fazenda, ou fazendas contíguas,
em Diolândia;
2ª) o chefe de uma família extensa (do ponto de vista
econômico, mesmo quando não doméstico) adquiria terras na
região e para lá se deslocava acompanhado de sua família
nuclear, de seus irmãos solteiros, de seus filhos solteiros e ainda
moradores na casa paterna, de seus filhos e filhas casados
acompanhados de sua própria família, de outras famílias de
parentes ou de “estranhos”;
3ª) uma família nuclear adquiria terras na região e ocupava a
fazenda, provocando a vinda de irmãos solteiros de um dos
cônjuges, ou mesmo a de irmãos casados com as famílias.
As propriedades costumavam ser ocupadas por mais de uma família
nuclear, constituindo-se via de regra como a propriedade de uma delas.
A fixação na fazenda era feita por um grupo de ocupação baseado no
parentesco. Ele se distribuía em residências e terras de cultivo próprias,
mas em conjunto como uma grande família extensa dentro dos limites
“das terras da fazenda”, cujo proprietário era reconhecido como “dono
e chefe”.
Se a produção pastoril e agrícola de Diolândia quase chegou a criar
uma “fartura de consumo” de bens produzidos na própria região, não
conseguiu gerar “fortunas” capazes de originar:
a) uma “nobreza” local com um poder de capitalização muito maior
do que o de outras famílias e com algum controle político regional.
A região sempre foi uma área repartida entre médicos e grandes
proprietários com poder familiar indiscutível dentro da fazenda e
com o poder regional diluído entre os fazendeiros;

142
b) uma família extensa doméstica5; quase todas as sedes (casas
dos proprietários) são casas de estilo rural goiano, pobres e
pequenas. Comportam apenas a família do dono das terras.6
É necessário um nível mais complexo e diferenciado de riqueza rural
para que uma propriedade agrícola possa reunir várias famílias em uma
mesma “casa grande”. Há, no entanto, outra explicação que se aplica ao
caso de Diolândia. O cultivo de cereais para mercados exige a
ocupação e o cuidado intensivo de áreas razoavelmente grandes de
terras. Onde ainda não há mecanização, o trabalho é lento e pouco
rentável. Os cereais são, portanto, cultivados em lavouras separadas e
divididas entre o fazendeiro, os filhos e filhas casados que vivem e
trabalham na fazenda e a quem o pai cede parte das terras cultiváveis
para plantações próprias, os arrendatários ou meeiros, em que se
incluem irmãos do fazendeiro, outros parentes e “estranhos”. Segundo
a opinião geral, a divisão de lavouras por grupos isolados de trabalho é
a forma mais rentável e segura de produção, sobretudo para o caso do
arroz.

5
Chamo aqui de família extensa doméstica aquela que inclui dentro de uma mesma
casa mais de uma família nuclear, em geral composta do proprietário e a sua família e
os filhos casados com as suas famílias. Por outro lado, sigo Roberto Cardoso de
Oliveira que emprega Grupo Doméstico como abrangendo as pessoas que residem
sob um mesmo teto, ainda quando não sejam de uma mesma família. Os grupos
domésticos “representam uma unidade concreta das mais significativas, pois
abrangem todo o grupo residencial incluindo a família (elementar ou extensa) e os
agregados” (Cardoso de Oliveira, 1968: 83).
6
Algumas fazendas visitadas não revelaram uma só em que o grupo doméstico do
proprietário incluísse mais do que uma ou duas pessoas de fora da família nuclear do
dono da casa e das terras. Em geral eles eram um afilhado, ou outra criança parente
de um dos cônjuges, “criado na família”. Em outras moram o pai ou a mãe,
geralmente viúvos, de um dos dois. Pais com os filhos casados morando sob um
mesmo teto constituem uma notável exceção. Pais com filhos casados morando em
outra casa, na mesma propriedade, são a regra geral e são ainda comuns. Por isso
mesmo, faço a distinção entre a família extensa doméstica e outra a que se aplicaria o
nome de extensa com menor rigor, mas que também não é, sem dúvida, a simples
família neolocal economicamente independente da família do filho casado que sai da
casa do pai e mora na propriedade com dependência econômica deste, uma vez que
planta em terras cedidas por ele.

143
Ora, a distância de uma área de lavoura para outra, dentro de uma
fazenda, acompanhada da necessidade de cuidado intensivo sobre cada
uma delas, obriga à construção de casas distantes umas das outras e
próximas das terras onde cada um tem sua roça. Assim, em uma
mesma fazenda os filhos casados do fazendeiro moram na sua casa
própria, quando não moram no povoado de Diolândia. O modo pelo
qual se distribui a terra e se organizam as unidades de lavouras dos
cereais explica em parte um primeiro momento na dispersão da
família, ainda dentro (da propriedade do pai, da casa paterna para a
casa própria, como alternativa para o filho casado.
Cada família de parentes ou de pessoas “estranhas”, ocupantes de
uma mesma propriedade de um só dono, recebia o direito de: a) uso
de uma parte das terras aproveitáveis para sua própria lavoura,
mediante o pagamento de “meia” ou de arrendo; b) construção de uma
residência ou a ocupação de alguma já construída; c) a criação de
algumas cabeças de gado em pastagens da fazenda.
Uma parte dos parentes-proprietários rurais cedia no passado a
terra para o uso de irmãos, desobrigados então do pagamento de
porcentagem da colheita (“meia” ou arrendo). Segundo a regra
comum hoje em dia, o irmão paga porcentagem, tanto quanto
outros parentes ou estranhos. Somente o uso de pequenas porções
de pasto não implica pagamento, assim como o plantio de roças
pequenas de milho ou feijão.7 A situação de contrato de produção
entre irmãos proprietários e não proprietários é, de qualquer
maneira, benéfica para os dois lados, segundo o consenso da

7
Não há praticamente diferença entre os sistemas de “meia” na área e outras regiões
do Estado. Na “meia de arroz” quem o cultiva recebe a terra preparada e mais a
semente. Na colheita entrega a metade da produção ao proprietário. O arrendo varia
geralmente entre 20% e 30% da produção entregue ao proprietário, dependendo das
condições em que o produtor encontra as terras sobre as quais trabalha. O arrendo
do milho é de 30% a 40% e o do feijão, plantado nas terras em que o milho cresceu, é
de 20% a 10% entregues ao dono. Alguns proprietários não cobram porcentagem
alguma sobre o feijão.

144
região. O proprietário nunca ocupa a totalidade das suas terras
aproveitáveis porque não pode cultivá-las sozinho com o trabalho
exclusivo da sua família nuclear. Também porque, em geral, não
tem dinheiro para pagar a vários e constantes trabalhadores
assalariados. O trabalho do empregado “diarista” é caro e não
compensador em pequena escala, a não ser para o caso de
lavouras de muito alta rentabilidade por hectare, inexistentes na
região, ou então quando ele é chamado apenas para
complementar, em momentos de aumento de “labuta no eito”, o
trabalho feito pela família. 8 A entrega de partes da propriedade a
meeiros e a arrendatários representa alguma porcentagem de
lucros por safra de cereais, onde o lucro seria nenhum, se a terra
cedida não fosse usada. Veremos que o uso da “meia” e do
arrendo é absolutamente comum na região. Entregar terras de
arrendo ou “meia” a irmãos é uma garantia suposta de atitudes
corretas do irmão parceiro para com o outro, em função dos laços
de solidariedade acentuados entre os colaterais diretos.
Para o irmão não proprietário, a vantagem não está nas
condições do arrendo ou da “meia” em si mesmas. As mesmas
bases vigoram para não familiares. Na terra do irmão-proprietário
o irmão é um agregado com alguns privilégios, em que se incluem
a ajuda eventual de outros parentes no trabalho e a possibilidade
de escolha de melhores terras. 9 Veremos mais adiante que, por
8
Informações de um fazendeiro antigo na região. Algumas lavouras de arroz que
estão exigindo muito trabalho na limpa deverão dar prejuízo aos seus produtores,
porque eles estão precisando recorrer a um número aumentado de assalariados
diaristas para o cuidado das suas plantações. Os seus números: as três limpas
necessárias para o bom desenvolvimento do arroz estão saindo em uma média de Cr$
36,00 por saca de 60 quilos (próximo a Itapuranga um diarista está ganhando uma
média de Cr$ 12,00, em Diolândia o preço ainda não chegou a mais de Cr$ 8,00).
Somados os Cr$ 36,00 que foram gastos com o pagamento de imposto e transporte,
deverá haver equivalência, quando não saldo negativo para o proprietário, frente ao
preço de venda na época da colheita.
9
São agregados todos os trabalhadores, meeiros ou arrendatários que moram,
solteiros ou com suas famílias nucleares, em alguma residência dentro da fazenda.

145
outro lado, a presença do irmão nas terras de outro é sempre
provisória. Este será um dos aspectos mais relevantes na conotação
das relações familiares camponesas.
As condições de acesso à posse futura e ao uso atual da terra
são também determinantes da localidade de residência e trabalho
de uma família recém-formada. A patri ou matri localidade
depende da existência de melhores condições de produção
oferecidas pela fazenda dos pais de um dos cônjuges, quando
ambos são proprietários. Quando só um deles possui terras a
família dirige-se para lá ou então é neolocal. Nesta última opção
normalmente os casais escolhem os concentrados urbanos ou as
cidades, mesmo quando o marido continua a trabalhar na lavoura,
como meeiro. Dois dentre os informantes vieram para Diolândia
com as famílias de seus sogros.10
A família camponesa da área de Diolândia é uma unidade
funcional variadamente corporada de produção de cereais. A
distância de centros distribuidores de bens beneficiados de

Podem ser parentes ou “estranhos”.


10
Um deles veio para Diolândia acompanhando uma das maiores levas de migrantes
mineiros. O sogro de MP vendeu suas terras em Minas Gerais e comprou 200
alqueires em Itaberaí. Vieram de uma só vez de Minas Gerais para morar na nova
fazenda cerca de 20 famílias nucleares, várias delas de parentes do sogro ou da sogra
de MP. O avô veio guiando um dos carros de boi, com sua família e mais três irmãos.
Durante cerca de oito anos viveram na fazenda de Itaberaí, O sogro de MP vendeu
então a propriedade e comprou outra em Diadema. Em uma parte dela MP vive até
hoje com sua família. Fora alguns irmãos do proprietário e algumas famílias de
aparentados e não parentes que foram mais para o norte inclusive para a Colônia de
Ceres, recém-fundada, todos os outros se deslocaram de novo com o sogro de MP e
passaram a residir e trabalhar na nova fazenda, pagando arrendo, menos para o milho
e o feijão. MP casou-se com uma das filhas do proprietário e recebeu deste uma
parcela de terras para cultivar (agora sem arrendo) e uma pequena casa, aquela em
que a família mora atualmente. Quando o sogro de MP morreu, ele ficou com as
partes devidas à sua esposa na partilha. Seus pais eram pobres e nunca possuíram
terras. Durante algum tempo moraram nas terras do sogro de MP e, depois, em sua
propriedade herdada. Hoje moram no concentrado urbano e MP destina ao pai um
alqueire de terras boas e próximas da cidade, para a sua lavoura, livre de arrendo.

146
consumo e o alto preço com que eles chegam até os povoados
próximos obrigam, logo de saída, a que as mulheres camponesas
tenham uma atividade de economia doméstica incomparavelmente
maior do que a das esposas e filhas moradoras nos centros
urbanos.11 Não se compreende, na região, a possibilidade de um
homem viver e progredir sem “ter mulher e filhos”. São raros os
casos de agricultores adultos solteiros.
Desde muito cedo os filhos ajudam os seus pais nos trabalhos
da casa e na lavoura de cereais. Há duas razões para esse uso
precoce do trabalho infantil: 1°) o custo do trabalho assalariado
tanto para atividades domésticas como, e principalmente, para o
trabalho agrícola; 2°) o fato de que boa parte do trabalho
necessário em casa (cuidado de filhos menores, cozinha, limpeza)
e na lavoura (plantio, limpa do arroz, colheita) pode ser feito ou
ajudado por crianças e, com melhor rendimento, por
adolescentes. Não é sequer imaginada a possibilidade de uma
criança após os seis anos (quando não antes) não ser pouco a
pouco incorporada às atividades de trabalho e produção da
família. Um filho normalmente produz mais para a família do que
consome. O conjunto de vários filhos adolescentes e jovens

11
Segundo informações de uma camponesa de Diolândia, a vida de uma mulher “no
tempo antigo” começava às 4 horas da madrugada com a pilagem do arroz e a
moagem do café, acompanhadas das primeiras providências para o almoço.
Terminava por volta de 11 horas da noite, quando, sob a luz precária da lamparina,
remendava as roupas rasgadas do marido e dos filhos. Durante o dia era seu o
cuidado dos filhos menores, o preparo das refeições, algum trabalho na lavoura do
marido e muito trabalho no “terreiro” (cuidando dos porcos e aves etc.). Algumas
atividades representavam um ciclo artesanal completo e eram admiravelmente feitas
por muitas mulheres em várias fazendas. Um exemplo: a roupa vestida saía do
algodão plantado e cuidado pela mulher. Ela também o colhia, descaroçava, tingia,
fiava e tecia no tear. Depois do pano pronto, costurava para toda a família. Alguns
mutirões de fiandeiras ainda existentes rememoram esse tempo. A informante
considera muito fácil a vida nas fazendas de hoje e simplesmente não sabe do que se
ocupam as “desocupadas” mulheres das cidades.

147
permite a uma família camponesa o abandono quase completo do
trabalho assalariado complementar feito por estranhos. 12
À medida que os filhos crescem modifica-se a sua relação com o
sistema local de produção familiar. É ainda a forma como se planta na
região que determina a mudança. Os filhos jovens e capazes de “tocar a
sua própria roça” passam de produtores diretos da família à condição
de produtores indiretos. A mudança é de certo modo radical, porque
se antes os pais eram os beneficiados com trabalhadores extras, “sem
salário”, agora são os filhos os que recebem o benefício de ter a sua
própria parte de terras a cultivar sem a obrigação de pagar porcentagem
sobre a produção de cereais. São muito raros os casos em que um pai
cobra porcentagem sobre a colheita de um filho. São mais raros ainda
os casos em que um filho, mesmo depois de estar cultivando a sua
roça, não disponha de tempo livre para “ajudar o pai” sempre que
necessário.
Quando um filho ou uma filha se casam, as relações alteram-se de
modo ainda mais radical. Há duas alternativas usuais para o novo casal
e elas sempre representam novas trocas com a família e a produção da
fazenda. O casal pode retirar-se da casa e da fazenda, seguindo então
duas direções predominantes: o povoado e, se possível, um trabalho
também urbano; outra fazenda em que se instalarão como agregados
parceiros. O casal pode permanecer dentro da fazenda dos pais, mas
agora fora da casa paterna. O filho e sua esposa (ou filha e seu marido)

12
Razão por que a escola é sempre uma situação de conflito para a família
camponesa. Cada vez é mais evidente a necessidade sentida de que os filhos façam
“pelo menos o primário”. A presença do filho na escola representa, entretanto, a sua
ausência na lavoura e, muitas vezes, a necessidade do recurso ao trabalho assalariado.
O uso de trabalho pago por dia é quase impraticável para alguns agricultores mais
pobres. Certos pais, tanto proprietários quanto não proprietários, alguns ricos e outros
pobres: a) permitiam ou obrigavam o estudo dos filhos, no primário e no ginásio,
subordinando as necessidades da lavoura às da “formação dos filhos”; b) permitiam o
estudo, mas obrigavam a faltarem às aulas em épocas de muito serviço na lavoura
(plantio e colheita, bem como algumas limpas); c) proibiam o estudo dos filhos no
primário e no ginásio ou, então, apenas neste último nível.

148
saem da casa dos pais e constroem ou ocupam outra. Recebem uma
lavoura maior para cultivo e podem cercar pastos para o seu próprio
gado, ainda que a regra geral seja coexistirem reses de proprietários de
várias famílias em pastos comuns na fazenda. A família de origem
reduz-se e uma nova família ocupa uma parte das terras aproveitáveis.
A fazenda ganha uma nova subunidade de produção agrícola. As terras
cedidas pelo pai ao filho casado não obrigam este último ao pagamento
de arrendo. Quando o pai morre ou divide “em vida” a propriedade
agrária, a regra é que o filho casado fique com a parte das terras e a casa
que já ocupava desde quando saiu da residência paterna.
A herança é uma situação-limite para a organização da família. Nela
ficam evidenciados os pontos de convergência entre as relações efetivas
dos integrantes da família, e as condições de posse e uso da terra em
Diolândia. A partilha da propriedade rural é feita pela morte do pai. A
fazenda divide-se entre uma meia parte atribuída à esposa e outra meia
parte dividida, em parcelas iguais, pelos filhos e filhas do casal. A morte
da mãe determina uma nova partilha, quando a sua metade é repartida
então entre os filhos. Com o direito de usufruto, o pai-proprietário
pode dividir as terras pelos filhos ainda “em vida”. Esta prática, rara nas
primeiras ocupações de migrantes, difunde-se de uma geração para
outra.
A partilha de terras provoca uma dispersão do grupo original de
ocupação, tanto em termos de antecipação quanto em termos atuais.
Ou seja, antes de ocorrer, indiretamente; no momento em que ocorre,
de forma direta. Os primeiros grupos de ocupação são compostos da
inclusão de famílias nucleares de descendência do proprietário,
juntamente com famílias de parentes (em geral as de seus irmãos)
colocados como agregados e/ou arrendatários. Os irmãos do
proprietário produzem em terra cedida em regime de “meia” ou
arrendo: sempre, quando são casados e decidem residir em terras do
irmão; muitas vezes, quando são solteiros e adultos; quase nunca

149
quando são menores e, então, trabalham nas terras do irmão, para a
sua família e em condições iguais às dos seus filhos.
As indicações dos entrevistados a respeito do que ocorreu em suas
terras e do que sabem haver ocorrido em terras vizinhas coincidem em
que a forma original de ocupação da fazenda começa a se modificar a
partir da dispersão dos irmãos do dono, quando eles:
a) conseguem comprar suas próprias terras, para o que alguns não
receiam ir “para o Norte”, onde ainda há acesso à posse por um
baixo preço de compra;
b) deslocam-se para trabalhar “no arrendo” ou “na meia” em outras
propriedades da vizinhança ou de outras regiões, quando quase
sempre a qualidade da terra influi mais sobre a escolha de um lugar
de trabalho rural, do que a qualidade das relações afetivas entre
irmãos;
c) conseguem trabalho urbano ou resolvem morar “no comércio”,
mesmo que continuem trabalhando também em “lavoura de arroz”.
Neste caso, o irmão abandona a propriedade anterior quando ela é
distante do centro urbano da nova moradia.
A frequência maior de saída é a de irmãos casados do
proprietário. Os irmãos solteiros permanecem por mais tempo e,
muitas vezes, somente se afastam da moradia e das terras do
irmão-proprietário quando se casam. 13 As possibilidades de

13
É cada vez maior o número de pais que reconhecem que “a coisa mais importante
que um pai pode deixar para um filho é a instrução”. Na prática, os filhos dos
fazendeiros ricos herdam suas terras, seus bens e uma instrução que pode chegar até
os bancos da universidade. Os filhos dos proprietários mais pobres herdam sua pouca
terra, que não se pode dividir mais e é vendida, e uma instrução que chega ao ginásio
(quando vai até lá). Os filhos dos comerciantes urbanos herdam seus negócios e
frequentam regularmente a escola até o ginásio (um deles deslocou a família para
Ceres e depois para Goiânia por causa dos estudos dos filhos). Os filhos de artesãos
rurais e assalariados e de operários e artesãos urbanos herdam um pouco de instrução
que quase sempre não passa do primário – às vezes nem sequer completo – e mais o
“ofício do pai”.

150
direções na saída de um irmão das terras do outro não explicam as
suas razões, mas os motivos de herança sim. Filhos herdam dos
pais, o irmão não tem participação alguma na partilha de terras de
um irmão. Se vendeu as recebidas de seus pais, ou se não as tinha
para receber por serem os pais não proprietários, deverá consegui-
las por esforço próprio, como terá feito o irmão-proprietário, neste
último caso.
É justamente nas terras de um irmão que o outro tem menos
esperanças de conseguir “a sua terra”. De acordo com os princípios
jurídicos e costumeiros da herança é estabelecido (ainda que não seja
comentado) que aquele é o lugar onde o filho herda do pai e o
sobrinho “expulsa” o tio: a) por antecipação, pela certeza de que à
medida que os sobrinhos crescem, ocupam primeiro e recebem depois
as melhores ou todas as parcelas aproveitáveis para o plantio de cereais;
b) no momento em que as terras são cedidas pelos pais aos filhos
casados, que se estabelecem nelas em caráter semidefinitivo; c) no
momento em que as terras são divididas por herança. Neste terceiro
momento é rara a saída dos tios, porque os que tinham de sair já o
fizeram.
Ao tempo em que as fazendas eram grandes, a antecipação de
distribuição das terras pelos filhos dos proprietários nem sempre tinha
efeito dispersador sobre colaterais diretos, ou mesmo parentes laterais
mais afastados. Sempre “havia terra para todos” e um tio podia seguir
plantando “na meia” ou “no arrendo” em propriedade de um sobrinho,
da mesma maneira como o irmão fazia nas terras de outro irmão. O
sentimento de que é melhor estar com os parentes, em família,
correspondia, em sua maior força, ao tempo em que as dimensões da
fazenda comportavam e exigiam a presença de muitas pessoas e de
muitas famílias em uma mesma propriedade. No entanto, na medida
em que as fazendas foram divididas e diminuídas, algumas já atingindo
partilhas de segunda geração, tornaram-se cada vez mais raras as
presenças de irmãos em terras de irmãos, e de tios em terras de

151
sobrinhos. São mais comuns os casos de sobrinhos, filhos de pais sem
terra, na propriedade dos seus tios.
A dispersão da família rural em Diolândia faz-se, portanto, através
de dois momentos de saída: a do filho casado da casa dos pais e,
eventualmente, da propriedade; a dos irmãos do proprietário, das suas
terras.
Se por antecipação a herança e sua partilha são dispersadoras do
irmão do dono (eventualmente o irmão da mulher do dono), o
momento em que ela é executada provoca uma segunda dispersão –
cada vez mais inevitável – sobre os filhos do pai-proprietário. Todas as
entrevistas feitas coincidem em que o momento da distribuição da
propriedade era também o momento da dispersão de alguns filhos para
fora dela. O processo é simples. Uma parte dos filhos-herdeiros vende
suas terras recém-herdadas para outro ou outros irmãos, geralmente os
que possuem terras confrontantes. Quando os irmãos mantidos na
propriedade não querem ou não podem comprar as parcelas de seus
irmãos retirados, elas são vendidas a outros parentes, ou então a
estranhos, com maior frequência hoje em dia.
Algumas saídas de irmãos através da venda adiada das suas
terras concluem o processo longo de dispersões provocadas pela
necessidade de uso da terra, contra os anseios de permanência de
relações de trabalho próximas entre irmãos. São comuns hoje os
casos em que todos os irmãos se retiram de uma mesma fazenda
original, ficando apenas um. Os que se dispersam normalmente
não permanecem muito tempo em outra fazenda. Aplicam o
dinheiro da venda de suas parcelas na compra de outras terras;
aplicam-no na compra de um imóvel de trabalho urbano, como
uma loja; ou preferem gastar o dinheiro aos poucos e, tal como

152
alguns faziam antes, voltam a trabalhar em terra alheia como
arrendatários ou como meeiros.14
O ciclo das relações familiares concretas começa pela reunião
de uma família com vários filhos e alguns irmãos de um dos
cônjuges, com ou sem suas famílias. Continua por um início de
dispersões “da casa para outra casa”, dentro da propriedade.
Prossegue com a dispersão de irmãos dos donos e conclui-se com
a saída de vários irmãos para fora da propriedade rural, depois da
sua partilha.15
Há situações intermediárias e explicações fora dos limites do
exclusivo âmbito das relações família-fazenda. Algumas são reunidas
aqui, antes do exame das tendências de suas modificações, precipitadas
pelas condições atuais de partilha-tamanho das propriedades.
À medida que a sociedade local incorpora novas formas de relações
de trabalho, por se integrar aos poucos no sistema externo de economia
de mercado: a) aumenta a possibilidade de saída de pessoas das
fazendas, em busca de trabalho urbano; b) aumenta a circulação de
dinheiro e de “bens de troca”; c) há uma progressiva facilidade de
mudança para os grandes centros que agem sobre a população rural
como polo de atração de deslocamentos. Quando estes fatores se

14
Chama a atenção a quantidade de irmãos que quase todos os camponeses possuem
“espalhados” pelo Estado. Alguns têm irmãos e irmãs distribuídos em mais de sete
cidades diferentes. Alguns exemplos de venda de terras partilhadas: 1°) o pai de DP
dividiu sua fazenda em vida, vendendo antes uma boa parte dela. Um primo de DP
comprou a parte de um irmão dele. DP conservou 8 alqueires e um genro tem 4
alqueires da parte de uma irmã de DP que, depois da partilha, vendeu 4 alqueires a
um estranho; 2°) quando o pai de AC morreu, a mãe dividiu também a sua metade e
foi para Itapuranga com os três filhos menores. AC vendeu sua parte e comprou
terras em outra fazenda do distrito. Um dos irmãos vendeu a sua parte para o outro,
no que foi imitado por duas irmãs que venderam para irmãos. Estes pouco depois as
venderam para estranhos. Há apenas um irmão ainda com terras na antiga fazenda e
outros 10 estão distribuídos por sete cidades. Alguns deles venderam suas terras
diretamente a estranhos.
15
O que não significa que ela se faça necessariamente pela dispersão de parentes,
nesta ordem. Trata-se de uma tendência e não de uma regra.

153
juntam aos efeitos da partilha, de geração a geração, reúnem-se então os
dois conjuntos de determinantes de mudanças locais, um de economia
interna (dentro do âmbito da propriedade camponesa) e o outro de
economia externa (fora de seu âmbito, mas incluindo-o e
determinando-o também).
Este estudo procura abordar os fatores internos à própria unidade
de produção camponesa e são apenas eles os que serão aprofundados.
Quando a partilha das terras diminui as propriedades das
famílias nucleares a dimensões subprodutivas, a venda de áreas de
lavoura e a dispersão de pessoas para fora dos limites familiares
começam a ser regra geral. Vimos que são poucos os casos em que
todas as terras da partilha são vendidas de irmãos para irmãos.
Assim, a herança é a maneira pela qual os irmãos separam-se de
relações familiares e produtivas mais estreitas, e pessoas
“estranhas” aproximam-se, como vizinhos e produtores, de ambas
as áreas de relações. É claro que o reduzido tamanho da
propriedade atual, acrescido do preço cada vez mais caro do
alqueire de terra de cultura de cereais, extinguiu na prática a
possibilidade de migrações de conjuntos de famílias nucleares
como grupo de ocupação camponesa. Reduziram-se a níveis
estatisticamente cada vez menos significativos as fazendas que
abrigam ainda várias famílias nucleares domésticas compondo, em
conjunto, um amplo grupo familiar de ocupação da propriedade.
Diolândia estabiliza-se quanto à relação entrada-saída de famílias
camponesas e, aos poucos, começa a ser um “ponto de
exportação” de algumas delas para o Norte, com propósitos ainda
rurais, e para o Sul, quando a família opta por “cidade e vida
urbana”.16

16
Alguns dados do cadastramento feito pelo INCRA em 1970, consideradas 82
propriedades da região, juntamente com mais 216 do município de Itapuranga: 18
fazendas têm entre 1 a 10 ha; 20 entre 10 a 20 ha; 45 entre 20 e 50 ha; 43 fazendas
estão entre 50 e 100 ha; 33 estão compreendidas entre 100 e 200 ha; 21 entre 200 e

154
Em maior proporção, as fazendas atuais são ocupadas por famílias
nucleares cujos filhos preenchem cada vez mais horas e dias com
atividades escolares e menos com as da lavoura. Isso é uma antecipação
do tempo, bastante próximo, em que as pequenas propriedades locais
não comportarão mais do que uma família de herdeiros que deverá
obter as terras de seus irmãos, com o mesmo dinheiro que os enviará
fatalmente para as cidades e o trabalho urbano.
A comparação estatística entre o número de filhos dos primeiros
migrantes agrícolas e o dos seus descendentes de agora é importante.
Mesmo antes de um processo local de urbanização acentuado, já existe
uma taxa menor de natalidade. Uma família camponesa com cinco
filhos é “uma família grande” hoje em dia. No entanto, os “antigos” que
dizem isto e contam desta maneira raramente possuem menos do que
sete ou oito irmãos.
A fazenda diminuída não exige a mesma quantidade de mão de obra
familiar. O filho agora “gasta mais do que põe”, porque estuda cada vez
mais tempo (o ginásio de Diolândia – simples extensão do ginásio de
Itapuranga – possui atualmente perto de 100 alunos, o que é uma cifra
fora do comum para uma população local que não vai a mais de 1.500
habitantes) e trabalha cada vez menos. O tamanho pequeno da
propriedade já não garante para os pais a mesma certeza de que todos
estarão “em segurança” no futuro, porque não haverá mais terras
suficientes para o trabalho de todos os filhos e, em certos casos, sequer
para uma venda futura compensadora.
São muito raros e são provisórios os casos de trabalho comum,
quando vários irmãos ocupam e plantam em uma mesma terra,
dividindo os investimentos, os trabalhos com a lavoura e os lucros na
colheita. As características do modo de produção agrícola local
encorajam cada vez menos o investimento familiar em atividades

500 e apenas 8 possuem mais de 500 ha, ou seja, aproximadamente 100 alqueires, o
tamanho de propriedades “menores” nos tempos pioneiros da ocupação agrícola.

155
essencialmente corporadas. Vimos que, mesmo no caso de relações de
produção entre pai e filho, as lavouras são individualizadas assim que
este se torna maior e reclama uma terra para “plantar a sua roça”. No
que foi explicado antes não ficou clara a razão da individualização do
trabalho de familiares, mesmo quando continuam a viver sob um
mesmo teto. Quais os motivos para essa não corporação intensa entre
irmãos herdeiros (no caso a mais importante) e que permitiria, ao
mesmo tempo, a não divisão da propriedade e o ganho garantido para
todos?
É necessário começar esclarecendo alguns pontos sobre o
trabalho agrário local: o preço da mão de obra de um assalariado
diarista ainda é baixo em Diolândia, desde que ele seja ocupado
extensivamente nas “limpas” em lavouras de tamanho reduzido,
mas com um bom índice de produtividade. 17 Por outro lado,
somente roças de tamanho menor podem ser distribuídas pelas
boas “manchas de terra”, e são raros os campos de arroz de vários
alqueires contíguos. Sobre estes dados deve ser acrescida a
possibilidade aumentada de riscos de perda para um tipo de cereal
cuja lavoura é difícil e depende de uma absoluta regularidade de
chuvas. O que não se explica com clareza através das razões
apresentadas é por que não se cultivam lavouras em comum,
mesmo quando separadas dentro de uma fazenda, uma vez que
para um grupo de camponeses e assalariados as distâncias não são
tão grandes a ponto de justificarem um isolamento quase total de
trabalho e de investimento.18

17
Atividade agrícola intermediária que deve ser feita duas ou três vezes entre os três
ou quatro meses que medeiam entre o plantio e a colheita do arroz.
18
Um exemplo concreto: a família de MP veio para Diolândia onde o pai requereu e
recebeu terras do governo. Vieram de Itaberaí os pais e mais três filhos. Depois de
ocupada a fazenda nasceram mais cinco filhos. O pai de MP dividiu as terras em vida
e logo os filhos assumiram a subsistência dele. MP foi com a mulher para Itapuranga
(é da Assembleia de Deus e se supõe que os motivos são ligados a exigências do
ministério religioso). Seus seis irmãos moram e trabalham ainda na fazenda, cada um
em sua lavoura. Quando algum irmão precisa de auxílio prefere pagar a estranhos. Os

156
As condições imediatas de acesso à posse e ao uso da terra
provocam respostas diferentes dentro da esfera das relações entre
parentes, sobretudo entre familiares, quanto ao modo de migração de
grupos domésticos de ocupação de fazendas e às formas de
modificação da composição de grupos anteriores de ocupação, pela
dispersão do grupo doméstico original.
Essas conclusões são resumidas aqui sob a forma de um quadro.
Elas são depois enumeradas em itens de síntese. Embora a análise das
relações entre as condições de produção e a organização e
modificações dos sistemas de relações familiares tenha sido feita junto
às famílias de pequenos proprietários, o capítulo completa-se com
breves referências também às fanu1ias não proprietárias de terra.
A família camponesa ocupada na lavoura de cereais em terras de sua
propriedade é uma unidade com graus bastante variáveis de
corporação. O trabalho feito em comum por integrantes de várias
famílias nucleares nas terras de uma família-proprietária é uma prática
hoje quase inexistente, dadas as condições de produção de cereais em
Diolândia. Não só as lavouras são divididas por grupos familiares de
produção, como, em muitos casos, integrantes de uma mesma família
possuem suas “roças” individuais. A corporação limita-se a relações
periódicas ou provisórias de trabalho comum e a formas de
dependência econômica de umas famí1ias sob as outras.
A facilidade de acesso ao controle e posse de fazendas de grande
tamanho viabilizou uma ocupação da área rural através de grupos que
compunham, no passado, uma reunião ampliada de parentes. Estas são
algumas modificações a partir dos grupos parentais de ocupação:
a) os antigos grupos das frentes agrícolas eram compostos da família
do proprietário (ocupante da sede da fazenda) e famílias de irmãos

três filhos de MP moram na fazenda e trabalham em partes de suas terras.

157
de um dos cônjuges. Há casos de inclusão de famílias de primos e
outros parentes colaterais mais afastados;
b) o grupo de ocupação formava uma grande “família extensa de
propriedade” (pai, mãe, filhos solteiros, filhos casados e irmãos
casados, com suas famílias) trabalhando e vivendo em uma mesma
fazenda. Em certos casos raros, podia ser constituída uma família
extensa doméstica (pai, mãe, filhos solteiros e filhos casados com
suas famílias, habitando uma mesma casa);
c) o grupo de ocupação organizava situações de trabalho com graus
variáveis de corporação:
c.1) em que os filhos e irmãos solteiros e menores do
proprietário, assim como outras famílias nucleares incluídas no
grupo de ocupação, trabalhavam na lavoura de seus pais ou
irmãos mais velhos, vivendo na residência dos pais e não
recebendo salário;
c.2) em que os filhos e irmãos solteiros trabalhavam em lavouras
próprias dentro da propriedade, com ou sem a obrigação de
pagamento de “meia” ou de arrendo, ajudando pais e irmãos nos
trabalhos de limpa, plantio e colheita e residindo com seus pais
ou irmãos;
c.3) em que os irmãos e filhos do proprietário, depois de casados,
podiam construir uma casa ou se estabelecer em outra, dentro
dos terrenos da propriedade. Os filhos recebiam geralmente
terras maiores e de melhor aproveitamento para a lavoura de
cereais. Os irmãos do proprietário continuavam residindo por
mais tempo em terras da propriedade. Hoje tendem a se retirar
mais cedo. Às vezes logo depois de casados;
d) o trabalho corporado que inclui duas ou mais famílias nucleares
de uma mesma parentela direta é raro e, quando existe, é provisório;

158
ocorrendo isto mesmo quando várias famílias de irmãos estão
morando e vivendo em uma mesma fazenda;
e) o momento da distribuição das terras entre os herdeiros
determina uma importante modificação na composição das relações
diretas da família do proprietário. Alguns irmãos vendem suas terras
a outros ou a estranhos. Irmãos herdeiros separam-se com suas
famílias nucleares. Alguns permanecem nas terras da antiga fazenda,
dentro de sua atual propriedade (uma fazenda reduzida). Outros
saem das terras. Os filhos solteiros e menores costumam
permanecer com a mãe, que nos tempos anteriores permanecia com
um dos filhos casados e que agora costuma migrar para cidades e
povoados.

159
Situação da posse e Modo de migração Modo de ocupação Modo de dispersão
do uso da terra e reorganização

Período de A) Várias famílias Família extensa 1º momento:


ocupação de de parentes e não doméstica: muito algumas famílias
Diolândia parentes, vindo rara ou inexistenterecém-chegadas
juntas para as terras encontram outras
Facilidade de de uma delas, onde Família extensa na terras melhores
acesso à posse de se agregavam propriedade: muito para arrendo ou
grandes e médias comum meia e se separam
fazendas, por B) Família nuclear da propriedade
doação de terras do proprietário original (aquela
Regimes de
devolutas ou por com filhos casados corporação para a qual tinham
compra a baixo e mais irmãos migrado de sua
intensos:
preço solteiros ou casados inexistentes ou região)
de um dos cônjuges muito raros
2º momento:
irmãos casados do
A propriedade é
proprietário
repartida em várias
retiram-se em
subunidades de
período
produção que
aproximado àquele
dividem a família
em que os filhos
nuclear do
deste tornam-se
proprietário com
maiores e se casam
alguns irmãos
solteiros menores
3º momento: após
partilha, alguns
Filhos casados ou
irmãos vendem
irmãos casados do
suas terras uns para
proprietário em
os outros, ou para
“sua lavoura”: os
parentes indiretos e
filhos são livres “de
estranhos à família,
arrendo ou meia”
e se retiram. Parte
dos irmãos
permanece na
propriedade
original e podem
inclusive aumentar
suas terras com a
compra de glebas
vizinhas

160
Período atual de A) Famílias Famílias nucleares, Os filhos casados
saturação-redução nucleares acrescidas em alguns casos retiram-se para
de propriedades de irmãos solteiros acrescidas de um outras terras com
anteriores de um dos ou dois irmãos possibilidade de
cônjuges. Em solteiros de um dos acesso a partes
Propriedades rurais alguns casos, filho cônjuges maiores de lavoura
reduzidas por ou filha casados
partilhas de uma ou com suas famílias O proprietário Na partilha, poucos
duas gerações de planta em suas herdeiros
herdeiros B) Famílias “roças” e arrenda permanecem
nucleares exclusivas outras apenas com a “sua
Alto preço de indiferentemente parte” adquirindo,
venda (Cr$ para parentes ou geralmente, terras
10.000,00 o estranhos contíguas de irmãos
alqueire de “boa “retirantes”. Há
terra”) Ausência crescente uma tendência
de filhos e acentuada ao
Acesso à posse raro principalmente de deslocamento
e difícil. Acesso ao irmãos casados do precoce da família
proprietário na camponesa
uso em “meia” ou
produção direta completa, ou de
arrendo ainda fácil
filhos e filhas para
cidades ou para o
concentrado
urbano de
Diolândia, para o
estudo e posterior
trabalho urbano
dos filhos.
Tendência à
presença apenas da
família proprietária
possuindo e usando
terras de fazendas
reduzidas
progressivamente a
pequenas chácaras

As propriedades atuais são o resultado da partilha de grandes e


médias fazendas de ocupação agrícola original. Vive e trabalha
nelas quase sempre apenas a família nuclear do dono. Em alguns
casos moram mais uma ou duas famílias de agregados, nem

161
sempre de parentes entre si. O trabalho da família proprietária é
suficiente para o cuidado da lavoura anual e os outros trabalhos da
fazenda. Outra parte das terras pode ser dividida em pequenos
lotes arrendados cada vez mais a “estranhos”, cada vez menos a
parentes. Quando a propriedade camponesa é grande (mais de
100 ha), há uma tendência a reduzir a ocupação, nas propriedades,
do trabalho de filhos menores. Estes se dedicam de preferência
aos estudos e muitos não deverão mais retornar ao trabalho
camponês exclusivo.19
A famí1ia extensa, mesmo no nível da propriedade, é hoje rara
e a figura do pequeno patriarca desaparece rapidamente das
fazendas e da memória dos filhos e netos. As famílias camponesas
reduzem o número de seus filhos. A forma atual de dispersão da
pequena família camponesa deverá organizar um sistema
semelhante ao da patrilocal stem family, A propriedade, já muito
reduzida, não poderá ser mais dividida. Os filhos serão colocados
em escolas para “aprender uma profissão”. Um dos filhos seguirá
trabalhando com o pai em regime de maior permanência e deverá
ser o herdeiro das terras, então não mais divididas. Para os outros
filhos caberão outros bens de seus pais, dos quais o de maior valor
econômico é sempre o gado.20
19
Um exemplo extremo é o de um rapaz estudante do ginásio local. Seu pai vendeu a
fazenda e veio para Diolândia onde instalou uma Casa de Carnes. VC é obrigado a
trabalhar na limpa de roças de arroz arrendadas pelo pai. Não o faz de boa vontade e
todas as suas aspirações estão concentradas em viver em uma grande cidade. Ao
tempo da pesquisa em Diolândia, VC foi inscrever-se para o Serviço Militar. Tinha
agora quase certeza de que iria “servir” em Ceres e não voltaria mais.
20
O gado bovino não é a parte principal da renda anual das famílias locais, mas é o
“objeto de venda” mais seguro. O arroz vende-se apenas por ocasião da safra. As
famílias mais pobres vendem-no antecipadamente e a baixo preço aos cerealistas da
região. É o dinheiro necessário para o próprio plantio e os gastos de manutenção da
lavoura. Qualquer modificação no regime de chuvas sazonais por um tempo longo
pode fazer com que se perca toda uma safra (a de 1970 foi perdida em mais de 70%
em algumas regiões do Estado). O gado bovino é vendido e comprado durante todo o
ano. Tem preço quase estável e por ele se paga “na hora”. O gado também é uma
espécie de herança antecipada sob a forma de um “seguro de vida camponês”,

162
Outra tendência é a venda das partes herdadas pelos irmãos a um
ou mesmo ou a dois proprietários confrontantes. Isso possibilita uma
reampliação de fazendas e um reequilíbrio entre as propriedades
agrárias e a população produtiva. Há ainda uma terceira tendência,
menos viável entretanto. Trata-se da venda de todas as terras a um só
irmão-herdeiro, com o que novamente a fazenda não se divide. A
possibilidade é reduzida, porque dificilmente um só irmão poderá
pagar por vários alqueires de terra uma dívida de compra geralmente
saldada a curto prazo.
O panorama atual da zona rural de Diolândia é o de várias
pequenas propriedades ocupadas com a lavoura de alguns
alqueires de arroz da família proprietária e outros entregues a
quem queira cultivar lavouras “na meia”. As famílias dispersam-se
entre o trabalho rural e o trabalho urbano e as relações estreitas
entre pais e filhos, ou entre irmãos, antes baseadas no trabalho,
começam a assumir algumas características iniciais da
especialização e da separação da família urbana. É desnecessário
dizer que as relações de parentes camponeses são até hoje
mescladas com laços de compadrio, cujas normas de
relacionamento são ainda intensamente observadas.21

entregue a esposa e a cada filho do proprietário. É costume o pai doar a um filho,


quando este nasce, uma novilha. As crias serão propriedade de seu dono (quem fica
com a cria de gado é o dono da vaca). Assim, e com outras doações do pai, aumenta
o rebanho de uma criança que na adolescência pode chegar a ter perto de 20 cabeças
(o boi adulto pode valer cerca de Cr$ 1.000,00 e a vaca um pouco menos). A filha de
um fazendeiro contou que tinha 30 cabeças de gado até há pouco tempo. Seu pai,
quando o resto da família estava em Anápolis, vendeu o seu gado para inteirar o
dinheiro que faltava para a compra de mais alguns alqueires de terra próximos h sua
fazenda. A venda “de gado alheio” revoltou profundamente a filha e sua mãe.
Quando o marido quis vender o mesmo pedaço de terra por haver achado “bom
preço nele”, a mulher impediu, não aceitando assinar a escritura de compra e venda.
Exigiu do pai que devolvesse, em dinheiro, ou com o mesmo número de cabeças de
gado, o que havia “tomado da filha”.
21
Tal como já foi tantas vezes descrito para outras zonas rurais brasileiras, o
compadrio é uma instituição vigente em Diolândia como muito respeitada. Alguns
exemplos: quando um pai entrega a um filho um seu irmão para ser batizado, o

163
As explicações desta seção completam-se com um rápido confronto
entre a família camponesa proprietária e as famílias camponesas não
proprietárias. A vinda de famílias de não proprietários rurais para
Diolândia foi feita tal como descrevi mais atrás. Em geral elas
acompanhavam – às vezes em grande número – a família de um
proprietário em cujas terras trabalhavam e viviam.
Hoje essas vindas são mais raras e se podem limitar ao
deslocamento de famílias nucleares que possuem parentes com terras
na região para onde vêm trabalhar; por pessoas desligadas de suas
famílias (duplas e trincas de irmãos maiores de idade, mãe viúva e seus
filhos, parentes isolados).
O que define a composição de relações da família não proprietária
são as alternativas concretas do uso da terra. Quando o pai é vivo e há
irmãos solteiros, ele, os irmãos e alguns filhos podem trabalhar por
algum tempo juntos ou em lavouras próximas. A segunda hipótese seria
a da possibilidade de uma produção individual, mas cultivada com
momentos de trabalho comum. No entanto, como cada vez mais as
terras são restritas e em cada fazenda não há o suficiente para ser
arrendado a várias pessoas de uma mesma família de não proprietários,
o que se torna comum é a dispersão dos parentes diretos: primeiro
entre as fazendas de Diolândia, depois em terras de outras regiões
próximas.
O fato de um irmão conseguir comprar alguma terra na região não
significa a concentração da família lá. Geralmente um não proprietário

tratamento pai-para-filho cessa e é substituído pelo do compadrio. Dizia uma mulher


na rua ao se despedir da outra: “preciso ir pra casa, hoje vou visitar um cumpadre
meu (…) um cumpadre que até é meu filho”. Em casa de MP chegou um seu irmão
pouco mais moço e afilhado. Antes de nos cumprimentar pediu a bênção ao seu
irmão-padrinho. O próprio MP trata como “cumpadre” outro irmão vereador em
Itapuranga, que é padrinho de sua filha mais moça. Há muitos padrinhos e afilhados
entre irmãos e entre pais e filhos das famílias proprietárias. Há menos entre os das
famílias não proprietárias que preferem entregar filhos para serem afilhados de
“estranhos”, em geral de classe social mais alta.

164
não consegue, mesmo depois de “muita economia”, mais do que a
posse de um mínimo de alqueires. Sua propriedade não representa um
local vantajoso de trabalho. Quanto menos terras, tanto menos
possibilidades de se conseguir “uma boa roça” em arrendo. Mas os
filhos de um novo proprietário, quando trabalham dispersos, tendem a
voltar a se concentrar na propriedade recente do pai. Não retornam
quando são maiores, quando estão em terras de melhor proveito ou
quando já se deslocaram para um trabalho urbano.
Depois da morte de um dos pais a dispersão é acentuada. Tal como
na família camponesa de propriedade rural, as famílias não
proprietárias observam também um deslocamento do centro de
referência, no trabalho e na composição, do eixo pai-irmãos-filhos; para
o eixo marido-esposa-filhos.

O sistema de relações intrafamiliares em


Diolândia
Procurei explicar como as famílias camponesas organizam-se em
termos de relações e mudanças de relações diretas entre os familiares:
como o pai usa o trabalho dos filhos; como os filhos passam de
trabalhadores “para o pai” a trabalhadores “por conta própria”; como
um irmão do proprietário usa e abandona uma relação de proximidade
com as terras e a família do fazendeiro; como o “trabalho para o pai”
faz dos irmãos menores um grupo de ação corporada; como a herança
dissolve o grupo e afasta os familiares de um espaço próximo de vida e
trabalho.
Um segundo momento de descrição do sistema de relações entre
parentes agropecuaristas deve ser feito agora, de dentro para fora.
Como se organiza e como se modifica o conjunto de possibilidades de

165
posições-relações entre pais e filhos, entre filhos e irmãos do pai, entre
esposos? Esta leitura da família camponesa difere da anterior.
Trabalho agora mais com o espaço definido pelas relações
cotidianas dos familiares (casa, quintal, lavoura, “fora”), do que com o
espaço de ocupação e uso da propriedade (fazenda, terra de arrendo
etc.). O objetivo aqui é “entrar dentro da família” e procurar
compreender como ela funciona internamente como uma unidade de
produção.
Comecemos, portanto, pelo reexame da afirmação de que o
grupo de ocupação da propriedade camponesa é uma unidade de
produção com relações alternativas de corporação.
Ora, o que significa dizer que a família camponesa de produção de
cereais em Diolândia é um grupo de relações alternativas de
corporação? Estarão os critérios determinantes da corporação entre
parentes não nas qualidades de atributos naturais ou “culturais” da
família (afeição, solidariedade, obrigação moral), mas nos modos como
os seus integrantes participam dos sistemas de produção e das relações
vigentes nas áreas de trabalho e de uso dos bens produzidos pelo
trabalho? Estariam eles intensamente mesclados com uma ordem de
relações que ainda é essencialmente familiar? Comecemos juntando
alguns dados de correspondência entre produção agrícola e posições
familiares camponesas:
1º) a família nuclear camponesa é um grupo corporado, na medida
em que, pelo menos durante um período de seu ciclo vital, todos os
seus integrantes ativos dividem entre si o conjunto de ações de
serviço que respondem pelas condições de produção de bens e
reprodução da família. Com menor rigor, a mesma afirmação pode
ser aplicada para o grupo mais amplo de ocupação da propriedade
camponesa;

166
2º) a corporação da família camponesa em Diolândia exige: a) a
participação dos membros ativos na prestação de serviço de
benefício coletivo em atividades comuns, contínuas (cuidado do
gado) ou sazonais (limpa do arroz); b) a especialização de ações de
serviço cuja realização exige treinamento mais intenso e pode ser
feita por uma pessoa, ou por um pequeno grupo (exemplos: a
costura de roupa, o plantio de algodão); c) uma utilização da força
de trabalho de crianças e velhos, de tal modo que um máximo de
trabalho produtivo – em variação e em intensidade – possa ser feito
exclusivamente pelos membros da família; d) uma flexibilidade e
readaptação das relações e posições dos integrantes da família e do
grupo de ocupação, quanto à oferta de alternativas de participação
no trabalho. Exemplo: a corporação existente quando todos os filhos
trabalham na lavoura do pai e para a família, a corporação existente
quando os filhos trabalham em lavouras próprias, nas terras do pai,
e para si próprios;
3º) a menos que se queira permanecer dentro de limites formalistas
e irreais, é preciso compreender que a família camponesa não
funciona com uma regularidade absoluta de observação de
princípios sociais do trabalho durante todo o seu tempo de vida. Ela
passa pelas gradações de corporatividade que resumo abaixo:
a) A relação estrita de residência e prestação mútua e exclusiva de
serviços entre pai-mãe-filhos quando solteiros e menores. Todos
trabalham para a mesma família e vivem na mesma casa.
b) A relação de residência e prestação mútua não exclusiva de
ações de serviço entre pai-mãe-filhos. Os filhos maiores e
solteiros moram na casa dos pais, mas plantam as suas roças de
arroz. As ações de serviço para a família, no nível da produção
agrícola, são reduzidas.
c) A relação de não residência e prestação mútua de ações de
serviço não exclusivas entre pai-mãe-filhos. Os filhos casados

167
transferem, para a esfera de sua família atual, as relações do
primeiro item. Não vivem mais na casa de seus pais e plantam
suas próprias lavouras.
d) A relação de não proximidade e não prestação de serviços
entre pai-mãe-filhos. Os filhos, solteiros ou casados, saem de casa
e vão viver fora da propriedade. As relações com seus familiares
aproximam-se do modelo das famílias urbanas.
Mesmo na situação do terceiro caso, ainda existe uma relação de
corporação reduzida, como um limite extremo de suas alternativas. Os
pais cedem terras aos filhos que respondem com a prestação de
serviços eventuais, sempre que reclamados pelo pai.
Consideremos agora as áreas e os modos pelos quais a família
camponesa vive e trabalha dentro da fazenda. Utilizo uma divisão de
categorias originada da observação do trabalho, a partir das alternativas
de corporação apresentadas acima. Procuro situar a descrição dentro
de dois princípios metodológicos: 1°) considerar a família (ou qualquer
outro grupo de parentesco) como um sistema dinâmico de relações
mutáveis entre os seus integrantes e não como um grupo de
composição definitiva, cuja organização deva ser procurada num
sistema formal de regras; 2º) corresponder o sistema familiar de
relações interpessoais com as relações mantidas internamente pelo
grupo familiar como uma unidade de trabalho e produção.
Uso as seguintes categorias de análise:
a) ações de serviço – práticas que conotam situações de dever-e-
direito e que envolvem tipos de serviço (ações de ajuda direta,
ações de reconhecimento e sustentação do status do “outro”,
ações de ajuda indireta); sistemas de relações de controle-
subordinação (ex.: a situação de relação do filho frente ao pai,
quando menor, quando maior e quando casado); sistemas de
determinação do modo de participação na ação e no grupo ou

168
grupos que a incluem. São estas últimas as relações de direito-e-
dever propriamente ditas (ex.: em que o trabalho do filho
menor “para o pai” é um direito ou um dever deste ou
daquele);
b) posições de inclusão/não inclusão – aquelas que distribuem para a
família camponesa as seguintes alternativas: “ser da família”, “ser da
casa”, “ser da fazenda”.
As alternativas de trabalho da família camponesa criam um sistema de
relações-posições que distribuem os integrantes do grupo ao longo de
três áreas socioespaciais internas de relações, e mais uma área externa.
As relações entre familiares, como parentes diretos e como
camponeses produtores, são atualizadas dentro de um sistema que elas
mesmas constituem através das trocas mútuas de ações de serviço e de
posições de inclusão e não inclusão que se mesclam, conflitam e
integram dentro de áreas de relações. Estas áreas organizam o espaço
situacional limitado não por acidentes de ordem geográfica ou política,
mas pelo modo como se combinam dentro de cada uma as relações
entre os integrantes da família: pessoas da família umas com as outras;
uma pessoa da família versus família como um todo; pessoas da família
versus instituições incluídas em cada área.
A análise que desdobra essas relações não se esgota em descrever
onde cada parente está, ou até onde vão os limites de “seu mundo
físico” (ex.: a mulher fica “em casa cozinhando” e o marido vai para a
“roça trabalhar”). O importante é compreender e limitar um campo de
relações inter e intrafamiliares distribuído concretamente pelas áreas
apresentadas a seguir. Esta distribuição talvez seja pouco necessária
para o estudo da família urbana, mas é essencial para o caso de famílias
agrárias em que se observa este conjunto de intercorrelações:
Relação direta de áreas em que se tipos de organização
produção operam as relações de relações de família
de produção

169
1 – Área de relações predominantes de economia de consumo:
a) âmbito acentuadamente doméstico e familiar = a casa;
b) tipos de ação de serviço que respondem pela organização e
reprodução da família (fazer comida X comer; fazer roupas X
vestir; arrumar a casa X habitar);
c) controle da mãe subordinando o do pai. Subordinação dos
filhos aos pais, acompanhada de relativa subordinação dos
irmãos mais moços aos mais velhos.
d) obrigação de participação dos filhos em quase todos os tipos
de trabalho da área: as filhas são intensamente incluídas nos
trabalhos domésticos; os filhos são menos incluídos. Obrigação
de coordenação dos serviços e participação decisiva por parte
da mãe. Obrigações de controle e de providências externas
(incluídas em outras áreas) por parte do pai;
e) todos os membros da família nuclear, composta de pai-mãe-
filhos solteiros, estão incluídos nos dois níveis que produzem a
área: a família e a casa. Alguns “agregados” da área podem estar
incluídos apenas na casa. 22

2 – Área de relações intermediárias consumo-produção:


a) âmbito intermediário entre as relações de puro consumo e
relações de produção = o quintal (“terreiro”);

22
Quando há alguma pessoa agregada à família e à casa, ela pode ocupar posições
diferentes em função dos tipos de relações de serviço que mantém com a família
nesta área. Um “filho de criação” iguala-se aos “do casal” em tudo. Um pai velho de
um dos cônjuges é considerado “da casa” (desde que more lá). O irmão de criação
trabalhará como todos os outros. Poderá também herdar, mas possivelmente em
condições diferentes, de acordo com sua posição legal na família. Um pai velho e um
irmão do dono não herdam, mesmo que vivam toda a sua vida “na casa”.

170
b) tipos de ação de serviço que respondem por condições estáveis de
manutenção da família. O quintal envolve as relações de trabalho
produtoras de bens em escala extracotidiana, mas dirigido ainda ao
consumo da família (eventualmente para pequena venda). Estão
incluídos aí a horta e o pomar, a criação de porcos e de aves, bem
como alguma pequena indústria caseira (farinha, queijo, rapadura).
O quintal envolve também as relações de serviço e decisão que
significam consumo em escala mais ampla e remota, mas que afetam
em termos presentes a ordem de relações familiares;
c) controle igual ao da casa, com predominância das ações da mãe e
dos filhos; com diminuição do trabalho das filhas e aumento do
trabalho dos filhos homens. Área de maior controle paterno maior
do que o seu controle nas tarefas da casa;
d) igual à casa com observações do item b;
e) igual à casa, agora dentro de uma esfera de relações: família,
casa-quintal.

3 – Área de relações do trabalho de produção camponesa:


a) âmbito da propriedade rural e da família ampliada (com
agregados e eventuais assalariados) em que se incluem as relações de
produção para consumo (casa) e para mercado = a lavoura;
b) tipos de serviço que respondem pela produção de bens (cereais e
gado) em escala ampliada. Envolve todas as atividades produtivas
que estão além da pequena “produção de quintal”;
c) controle exclusivo do pai sobre os filhos solteiros trabalhando em
suas lavouras “para a família”. Controle indireto e como proprietário
sobre os filhos solteiros ou casados trabalhando em suas lavouras;
d) obrigação distribuída de trabalho, de coordenação e
responsabilidade por parte do pai; obrigação de trabalho de parte da

171
esposa e dos filhos solteiros “sem lavoura própria”. Filhas menos
obrigadas ao trabalho nesta área. Obrigação de responsabilidade e
trabalho de parte dos filhos maiores em suas lavouras. Obrigação,
para o pai, de “empréstimo” de faixas de terras para cultivo de
cereais dos filhos. Obrigação, para os filhos, de ajuda ao pai quando
solicitada. Direitos igualmente distribuídos: o pai é patrão-produtor
frente aos filhos, quando em suas lavouras. É proprietário não
produtor de terras cedidas a seus filhos. Os filhos devem trabalhar
para os pais, mas têm o direito de receber terras para suas lavouras
próprias. Direitos iguais de consumo de parte da produção entre os
familiares;
e) todos os membros da família estão incluídos nos níveis da área:
família e fazenda.

4 – Área de relações econômicas e sociais extrapropriedade:


a) âmbito das relações entre a produção da propriedade e o
mercado versus as necessidades de consumo da família e as
possibilidades de compra = “fora da fazenda” (outras fazendas,
Diolândia, Itapuranga etc.);
b) tipos de ação de serviço entre a família e a sociedade, que
respondem pelas trocas de bens entre produtos e pessoas incluídos
nas três áreas internas e as pessoas e instituição reconhecidas como
sendo de “fora da fazenda”. Do ponto de vista dos que estão
incluídos nas áreas internas, são mantidas relações com o
“comércio”: o pai para compra e venda; os filhos e filhas para efeito
de estudos na escola. A presença da mãe e de filhas casadas é restrita
(festas, visitas);
c) controle ampliado do pai nesta área, progressivamente dividida
com o controle de filhos maiores, quando se tornam produtores
semi-independentes. Controle ampliado dos filhos casados que

172
ainda moram na fazenda. As mulheres exercem algum controle no
âmbito da vizinhança (as várias esposas-mães de várias fazendas
próximas), estando praticamente excluídas em termos de “cidade”;
d) obrigação de trabalho em relações de compra e venda quase que
exclusivamente paterna. Obrigação de frequência à escola por parte
dos filhos. Direitos de ingresso na área reservada aos “homens
maiores da família” (a não ser para a relação de vizinhança em que
se inclui a esposa). Direito de uso dos bens distribuídos entre os
familiares com nítida ascendência dos produtores-responsáveis (ex.:
o pai traz dinheiro de venda de produtos para casa; o controle é seu
e a esposa tem menor acesso a ele);
e) inclusão ampliada na área para os pais e filhos adultos ou casados.
Inclusão limitada à escola para os filhos menores. Inclusão restrita à
vizinhança para as mulheres (esposa e filhas mais velhas).

Para efeito de investigação das relações concretas entre familiares em


Diolândia, o que apresentei ao longo das quatro áreas traduz tão
somente um primeiro mapa do “mundo das relações sociais
camponesas”.
A família camponesa de Diolândia é nominalmente patrilinear,
territorialmente. Patri ou matrilocal no início e, na dependência do
acesso ao uso da terra, é neolocal com uma frequência crescente.
É estruturalmente nuclear, podendo ser ampliada em alguns casos
e é, finalmente, uma unidade alternativamente corporada de
trabalho agrário. Dentro da família o pai-esposo é ao mesmo
tempo proprietário e patrão.23 A mãe é coproprietária e faz parte,
23
Mesmo quando é a mulher quem herda as terras da fazenda de seu pai e a
residência do casal é matrilocal, o marido considera-se proprietário e é quem assume
as decisões básicas de ampliação (compra de mais terras), redução (venda de uma
parte atual), ou venda completa. A assinatura da mulher na escritura é indispensável,
seja ela ou não a herdeira. Este controle materno é às vezes pequeno, frente à
autoridade do marido, para decidir questões das áreas 3 e 4.

173
com os filhos, do grupo de herdeiros. Sob uma aparência
romantizada e bucólica, a fazenda camponesa é um campo ativo
de produção e consumo; de trabalho e troca; de compra e venda.
O camponês de Diolândia movimenta-se pelas “roças” com suas
ferramentas, e pelas cidades, entre bancos, empréstimos,
cerealistas, trabalhadores assalariados, compradores de gado e de
porcos etc. O trabalho rural de hoje exige um sem-número de
pequenas decisões e ordens dentro da fazenda e entre ela e o
“mundo”. A maioria delas compete ao pai-proprietário, mesmo
quando afetam diretamente outros membros do grupo de
ocupação, ou a família como um todo. 24 O comando direto da
família e o comando matizado da propriedade (em que se inclui o
grupo de ocupação) é a primeira e mais inquestionada ação de
serviço prestada pelo pai-proprietário.
A mãe-esposa tem uma atuação decisiva e, sob certos aspectos,
dominante, nas áreas de consumo (áreas 1 e 2), e uma ação
complementar nas áreas de produção (ativa na área 3 e acidental na
área 4). Procuremos relacioná-la ao marido e encontrar aqui as
primeiras explicações do funcionamento do sistema.
Os limites situacionais do cotidiano da esposa-mãe começam em
casa, estendem-se ao quintal, vão até a lavoura e normalmente
terminam na vizinhança. No entanto, como esta última é acidental,
podemos estabelecer o seu limite externo de cotidiano na lavoura do
marido. No interior e dentro dos limites da casa e do quintal a mulher
vive a porção mais intensa e determinante de suas relações de serviço.
Ali ela encontra os limites de sua situação de pessoa no contexto das
relações-posições familiares. Na casa e no quintal a esposa enfrenta um
cotidiano de dominância na regência dos cuidados domésticos e na
responsabilidade familiar “dos menores”. Mesmo quando é o marido

24
A autoridade paterna ainda se mantém vigente na região. Entretanto, a esposa-mãe
é um polo afetivo de redução dos efeitos do comando paterno, assim como, também,
uma cogerente dos negócios familiares de importância crescente em Diolândia.

174
quem define, em última instância, o que deve ser feito e como deve ser
feito, na casa e no quintal é ela quem operacionaliza o funcionamento
das duas áreas e, ao fazê-lo, é quem as controla concretamente. Mãe e
filhas solteiras dividem o trabalho e a responsabilidade das ações de
serviço pelas quais a reprodução cotidiana das condições de trabalho da
famí1ia é resolvida. O pai e os filhos “em trabalho na lavoura” são
consumidores onde as mulheres da casa são essencialmente
produtoras. Da mesma forma, elas serão consumidoras daquilo que se
produz, direta ou indiretamente, na lavoura e no mercado, onde os
“homens da casa” são produtores. As relações não são rígidas. O
marido ajuda “no quintal”, assim como os filhos maiores ajudam no
cuidado dos porcos, aves, pequena horta etc. Da mesma forma, pelo
menos entre as famílias mais pobres, a mulher trabalha na lavoura em
ocasiões de maior necessidade. São raros os casos em que as filhas,
mesmo maiores, trabalham na lavoura. Apenas os filhos “até os cinco
anos” ficam restritos exclusivamente aos limites da casa e do quintal.
Alguns proprietários mais ricos não permitem que sua mulher trabalhe
na lavoura.
As relações do marido distribuem-se produtivamente entre o quintal
e o povoado. Mesmo que ele e seus filhos maiores passem boa parte
do dia em casa, é na lavoura e no “comércio” (Diolândia) que eles
estão dentro de suas áreas de ações de serviço mais diretas.
Embora estejam continuamente juntos nos limites da casa e do
quintal, o campo de encontro do marido com a mulher como
produtores é a lavoura. Lá, eles trocam ações de serviço de uma mesma
dimensão e em uma mesma posição. Na lavoura, portanto, a esposa
chega ao seu limite externo de ações de serviço e o marido parte do seu
limite interno. Na casa e no quintal o marido é uma espécie de “patrão
sem função” (“cozinha não é lugar de homem”), da mesma forma
como, na cidade ou mesmo em Diolândia, a mulher por si mesma não
tem relações-posições significativas, sendo reconhecida ali através de

175
seus laços de dependência para com o marido. A mulher em Diolândia
é quase sempre “a Maria do seu João”.
Exceção feita à vizinhança, composta pelas “mulheres da fazenda”, o
mundo de “fora” aparece para a esposa mediatizado pelo marido. Ele
compra “lá” o que ela precisa e é quem lhe traz as notícias da cidade.
Assim também, o “mundo do lar” aparece para o homem (o pai, os
irmãos maiores) mediatizado pela esposa e pelas outras “mulheres da
casa”. Elas organizam um cotidiano de relações E serviços de modo a
que os homens o encontrem sempre disponível para o consumo, o
consumo que vai da comida ao descanso, da mesa à cama.
Quando visitas masculinas entram na casa do camponês, é como se
o “mundo de fora” modificasse as relações das áreas mais internas da
família (a casa e o quintal). As mulheres restringem então ao máximo a
sua área de atuação como pessoas. Geralmente ficam na cozinha e vêm
até a sala apenas para servir aos homens. A casa passa a representar
partes do mundo de fora e a mulher, mesmo trabalhando no
momento, fica com o seu lar temporariamente perdido ou reduzido.
Não é comum ter-se uma esposa de agricultor sentada à mesma mesa,
com um visitante, seu marido, seus filhos maiores e seus irmãos. Se há
mulheres na visita, elas também se deslocam para a cozinha.
Enquanto uma família camponesa de Diolândia possui filhos
menores, as ações de serviço do pai ficam intensamente concentradas
na lavoura e em outras atividades de produção da fazenda, que ele
reparte com irmãos menores, outros parentes e “estranhos”
assalariados. Enquanto os filhos são pequenos o bastante para não
serem ainda produtivos na lavoura, tanto o seu contato afetivo quanto o
de relação de trocas de ações de serviço são reduzidos e pouco
importantes. A sua autoridade sobre os filhos se faz sentir através da
mediação da mãe. Tão logo os filhos estejam prontos para manejar as
habilidades e as ferramentas necessárias ao trabalho na lavoura, eles são
pouco a pouco incluídos em suas ações de serviço. A mudança significa

176
uma ruptura de áreas de relações, para as crianças de sexo masculino.
O menino, muitas vezes com menos de oito anos, sai da órbita
exclusiva da casa e do quintal onde se divertia e consumia e torna-se,
progressivamente, um pequeno produtor. Seu mundo transporta-se dos
limites do quintal para os limites da lavoura. Se lhe é permitido ou
obrigado estudar, juntamente com as irmãs de mesma idade, ele
estende então os seus limites diários até a escola (uma escola rural das
vizinhanças ou o grupo primário de Diolândia). As filhas não passam
por um processo de mudança de relações tão amplo. Elas deixam de
ser essencialmente consumidoras e passam a ser, também, “produtoras
de consumo” nos limites da casa e do quintal. Esta é uma primeira
separação dentro do sistema de relações internas.
A proximidade e a identificação de sexos entre meninos e meninas
ou moças e rapazes, com referência ao que acontece com todos os
espaços sociais de relações (estudo, trabalho, esporte, jogos etc.), ainda
não chegou a Diolândia. Se a escola e o quintal reúnem irmãos e irmãs,
as opções de trabalho reclamadas pelos pais no início de suas vidas
produtivas separam-nos. A subordinação direta das irmãs é para com a
mãe e dos filhos homens para com o pai.
A situação das meninas não se altera até o casamento. Há, sim, uma
mudança de caráter progressivo. Muitas filhas de camponeses só são
autorizadas a “fazer primário”. Quando o completam as meninas
encerram também o seu ciclo de relações cotidianas com o mundo “de
fora” e retornam a limites iguais aos de suas mães que no “seu tempo”
não conheciam essa ida precoce ao mundo do povoado, pelo simples
fato de que ou não havia escolas no local, ou não se compreendia a
possibilidade de uma mulher estudar. Aquelas que querem e podem
fazer o ginásio em Diolândia conservam por um pouco mais de tempo
as suas relações cotidianas com “o mundo de fora”. O casamento
afasta-as da casa paterna e, de acordo com as decisões do marido, da
propriedade ou mesmo da região.

177
As modificações de vida e relações com familiares de parte dos
filhos homens são mais intensas e mais variadas. Eles acompanham
suas irmãs nas modificações “pela escola” e “pelo casamento”. No
entanto, vivem mais intensamente as modificações determinadas pelo
trabalho agrícola.
Vimos que, embora não seja regra geral, quando um filho está em
condições de “tocar uma roça” por conta própria, o pai destina-lhe um
pedaço de terra que ele passa a cultivar sob sua responsabilidade. O
pai-patrão-proprietário torna-se, então, o pai-proprietário. Há aqui uma
mudança essencial. Se antes o filho servia ao pai com o seu trabalho
“não remunerado”, agora é o pai quem serve ao filho com a doação de
uma faixa de terra sem porcentagem de pagamento dá colheita obtida.
Há casos intermediários em que os filhos cultivam lavouras tão
pequenas que lhes permitem reservar ainda tempo suficiente para
continuarem auxiliando os seus pais. Essa “meia ajuda” desaparece
quase por completo quando o filho se casa.
O casamento altera mais definidamente ainda as relações de
serviço de parte a parte. O filho ou filha casados deixam de estar
incluídos na casa dos pais, desde que vão para a sua casa; na
lavoura do pai, no caso do filho homem, desde que agora, dentro
ou fora da propriedade paterna, ele se dedicará às suas lavouras;
na família paterna, desde que agora ele tem a “sua família”.
Assim os direitos e deveres da filha casada em boa medida são
retirados da “casa” e da “família dos pais” e transferidos para “sua casa
e sua nova família”. Durante o tempo de solteira ela foi uma eficiente e
constante auxiliar doméstica não remunerada, a quem nem mesmo os
deveres escolares afastaram do cuidado da casa e dos irmãos menores,
em sucessivas e cotidianas ações de serviço repartidas com a mãe.
Agora é a mãe quem transfere uma parte de seu tempo e cuidados para
a “casa da filha”. Isso é mais intenso quando a filha tem o seu primeiro
filho depois de casada. Ela mantém inalteradas as suas relações de

178
respeito e deferência para com a mãe, sobretudo se esta for “cumadre”
também. Por outro lado, agora a mãe servirá mais a ela do que ela à
mãe. Em sua casa, a autoridade indiscutível da mãe da “filha solteira” é
dividida com a autoridade que a “filha casada” mantém por ser também
“uma esposa no seu lar”. Esta relação nova deverá ser mantida até
quando a mãe envelhece e principalmente quando enviúva. É então
comum a mãe ir morar com um dos filhos. Em outros casos, a mãe
mora só, sendo inteiramente sustentada pelos filhos, sobretudo se
também já dividiu em vida as suas poucas terras entre eles.
Quando a filha casada sai de casa e da propriedade dos pais as suas
relações de inclusão e de serviço podem ser reduzidas a uma
proporção muito baixa. Mas a organização local dos sistemas de
relações familiares estabelece pelo menos três situações em que as
relações entre os pais e a filha casada são redefinidas e novamente
ampliadas, em alguns casos, até perto dos limites anteriores aos do
casamento:
a) direito de retorno à casa paterna, com seus filhos, em caso de
morte ou abandono do marido;
b) obrigação de abrigar os pais, quando velhos, ou um dos dois,
viúvo, sustentando-os se já não têm mais posses pessoais;25
c) direito garantido de herança de propriedade e de bens móveis por
ocasião da morte de cada um dos pais, ou através de doação “em
vida”.
Os filhos solteiros, quando já trabalhavam em roças próprias antes do
casamento, detêm direitos mais bem assegurados ao se casarem.
Recebem de seus pais terras maiores e melhores. Ocupam uma nova
casa ou fazem uma para si. Podem cercar pastos e, se quiserem, isolam
o seu gado, o que, entretanto, não é comum.
25
Como geralmente a filha ou filho casados entregam pelo menos um filho para ser
batizado por seus pais, são acrescidas às relações pai-mãe-filhos as previstas pelos
códigos do compadrio.

179
A sogra ajuda a nora com frequência, de forma muito semelhante a
como procede para com uma filha casada. Se a nova família sai da
propriedade, as relações com a família paterna declinam
significativamente. Chegam quase a um ponto zero se a saída é também
da região. Os pontos de reampliação de relações de a, b e c valem, da
mesma forma, para o filho homem. Apenas no item a há modificações.
Dificilmente uma esposa abandona o seu marido. Geralmente quem
morre primeiro é o marido e muito dificilmente um marido sem a sua
esposa voltar para a casa paterna. O mais comum é ele arranjar outra
mulher, por casamento ou fora dele, em geral no menor tempo
possível.
As primeiras modificações no sistema de relações dentro da família
são provocadas por alterações na situação dos filhos. Vejamos como:
1°) filhos menores, na casa e no quintal, como consumidores;
2°) em “início de trabalho”, os filhos na lavoura com o pai, as filhas
em casa com as mães, como consumidores-produtores;
3°) filhos maiores, cultivando suas próprias lavouras como
produtores-consumidores;
4°) filhos casados, saindo da casa paterna para a “sua casa” (filhos e
filhas), como produtores-consumidores integrados em “nova família”
(não consomem nem produzem mais da/para a “casa” paterna);
5°) filhos casados e fora da propriedade, como nem consumidores,
nem produtores nos limites da propriedade paterna.
Outras alterações na estrutura do grupo familiar-produtor são
provocadas por mudanças na situação dos pais.
Quando um pai “se sente cansado” e pouco produtivo, ele costuma
distribuir “em vida” as suas terras entre os filhos. Algumas vezes cultiva
ainda, em menor escala, um pequeno pedaço de terra com ajuda de
trabalhadores assalariados, ou algum irmão remanescente. Outras

180
vezes, de comum acordo com a esposa, distribui também a sua parte e
isso equivale a uma espécie de aposentadoria do “patrão”, mas não a
do “proprietário”, (usuário com direitos de usufruto). Ele detém
direitos de uso e continua a receber “atenções de deferência” por parte
dos seus filhos.
A doação “em vida” abarca uma relação complexa dentro do
sistema em que se reúnem produção-e-parentesco. Representa, ou
parece representar, um direito dos filhos e uma obrigação do pai a
entrega de partes definidas da propriedade aos seus herdeiros. Poderia
parecer um último momento dentro de uma cadeia de progressivas
concessões de uso da terra aos filhos. Esgotadas as possibilidades do
uso, os filhos conquistam a posse pela partilha. Mas ela é também um
evidente direito do pai, porque equivale à sua aposentadoria, ao
privilégio de receber bens de consumo sem participar mais da
produção. Da mesma forma como antes aconteceu com os seus filhos,
até quando começaram a trabalhar. Esta “aposentadoria” é
responsabilidade indiscutível dos filhos. É direta, quando o pai ou os
pais passam a ser sustentados pelo dinheiro e pelos produtos dos filhos.
É indireta quando os filhos, ou um filho, supervisionam o trabalho que
meeiros ou arrendatários fazem nas lavouras conservadas ainda como
propriedade paterna.
A mudança mais significativa é, portanto, a seguinte: se houve
um tempo em que os filhos entraram no trabalho do pai e outro
em que, pelo menos alguns, saíram dele, agora é o pai quem sai
do trabalho dos filhos. O pai conserva-se pai-proprietário-e-
usuário. Porém, aos poucos deixa de ser produtor e,
consequentemente, patrão. Sua “vida de velho” iguala-o à mulher
e os dois ficam restritos, juntos e iguais, aos limites da casa e do
quintal. De uma casa ainda sua, ou da casa de algum filho. Por
outro lado, a relação-posição de pai-e-proprietário só se dissolve
através da morte. O proprietário desaparece no momento em que
suas terras são definitivamente partilhadas e o pai passa a ser uma

181
referência de memória. A mudança de relações combinadas entre
o pai e os filhos é uma sucessão de trocas de situações em que se
alternam os tipos e as direções das ações de serviços de uns para
com os outros. O filho camponês é sempre “filho” e o pai, sempre
“pai”. Mas as relações concretas, dentro de um só sistema que
envolve produção-e-parentesco, são sempre modificadas de modo
diferente das que ocorrem em meio urbano.
Estas variações de posições poderiam ser representadas assim:

6º pai (aposentado, na cidade ou em filho-proprietário-


casa de um filho) produtor
5º pai-usuário- filho-proprietário-
produtor (depois da produtor
partilha em vida)
4º filho (solteiro ou casado morando pai-proprietário-
fora da casa e propriedade) produtor
3º filho-produtor- pai-proprietário-
empregado do pai produtor-patrão
eventual (quando
usa o trabalho do
filho)
2º pai-proprietário-
produtor-patrão (de
filhos trabalhando
para ele)
1º filho (menor, antes do trabalho) pai-proprietário-
produtor

relação incluída apenas no relações familiares relações familiares


repertório das posições e relações + relações de + relações de
familiares: casa e quintal trabalho: uso da trabalho: (uso) +
terra na lavoura relações de posse

A relação é dinâmica e ultrapassa os limites dos integrantes de uma só


família. Um filho casado, após ter filhos, pode já haver iniciado um
ciclo semelhante enquanto ainda não concluem o ciclo de relações que
mantém com o seu pai. Em situações concretas e interfamiliares, as

182
relações complicam-se porque cada parente opera em várias áreas e
quando se juntam três gerações pelo menos, aumentam muito as
possibilidades de tipos de inclusões e relações de serviço combinadas
entre todos os integrantes.
A simples observação das mudanças de posições de inclusão/não
inclusão e das relações de serviço trocadas entre os membros da
família, de parte a parte, aponta diferenças essenciais entre a família
camponesa produtora de arroz em Diolândia e outras famílias
ocupadas em atividades rurais. Não foi feita sequer em termos
reduzidos a análise das relações internas das famílias de não
proprietários. Se tivesse sido feita, as diferenças indicadas apareceriam
dentro do contexto de relações de parentesco-e-produção em
Diolândia. Entre as famílias consideradas e as famílias urbanas, mesmo
as das cidades próximas, tais diferenças são ainda maiores. As
modificações no sistema de relações concretas entre familiares
camponeses de Diolândia são determinadas pelo modo como é
localmente produzido o arroz. Como foi descrito, não é possível
separar relações dentro da esfera do parentesco daquelas que se
passam na esfera das trocas de trabalho e produção. À medida que as
terras partilhadas se reduzem e à medida que as ofertas de estudo e
trabalho urbano são ampliadas, as atenções de relações de serviço e
posições de inclusão tendem a ser radicalmente modificadas. Disso já
há algumas indicações concretas, sobretudo com relação aos pequenos
proprietários cujos filhos não têm a completa possibilidade de manter
com os pais a cadeia de relações de: não-posse-nem-uso, uso-sem-posse
e posse-com-uso, juntamente com as relações consequentes entre os
dois e entre cada um e a família como um todo.

183
A ideologia do parentesco em Diolândia
A família é entendida em Diolândia corno a família nuclear: pai, mãe,
os filhos residentes na casa paterna e os filhos solteiros vivendo fora da
fazenda.
Somente em sentido mais amplo, na esfera do the family de
Schneider, o filho casado e residente fora da casa é incluído na família.
Neste sentido, foram encontradas em Diolândia explicações muito
semelhantes às do american kinship do antropólogo norte-americano.
Uma família nuclear corporada e reunida na casa e na fazenda através
de laços próximos de trabalho e de trocas afetivas opõe-se aos parentes:
os colaterais diretos (“um irmão meu mora aqui com a minha família”)
e os ascendentes diretos incluídos em uma “família”, nomeada como
“meus pais e meus irmãos”. Exemplo: “Eu vim para Diolândia com
meus pais e meus irmãos e criei minha família aqui”. Um filho casado
deixa a casa de “seus pais e irmãos” e vai morar com “a família”
(mulher e filhos).
Um filho de adoção, ou o irmão de um dos cônjuges que more
na casa, faz parte dela. Mas não faz parte da “família”. Portanto se
pai, mãe e filhos, um irmão-da-mãe e a mãe-do-pai habitam uma
mesma casa e formam um mesmo grupo doméstico-corporado de
produção e consumo camponês, os dois últimos são incluídos no
grupo e na casa, não sendo considerados pessoas “da família” no
seu sentido mais restrito.26

26
Há uma diferença de reconhecimento evidente. O irmão solteiro de uma forma ou
de outra, é tratado diferentemente dos filhos da casa – mesmo quando se aproxima
deles em idade – principalmente pelo cunhado ou cunhada. Se é um pouco mais
velho pode ter mais regalias dentro da casa. Inclusive os sobrinhos mais moços lhe
devem alguma obediência e respeito. Mas em hipótese alguma ele é reconhecido
como herdeiro e, tal como vimos antes, as regras de doação e herança determinam
em favor dos filhos, e contra ele (o irmão), as suas possibilidades de permanência e
trabalho na fazenda.

184
Depois do primeiro limite reconhecido na organização das
relações familiares, o segundo é o que inclui – a partir da família
camponesa nuclear – os pais e os irmãos dos cônjuges. Mesmo
que eles morem fora da propriedade e mantenham poucas
relações de serviço com filhos ou irmãos em uma família, são
localizados dentro do primeiro grau de proximidade, logo após o
que une marido e mulher e pais e filhos. 27 Depois deste limite o
seguinte inclui os outros parentes, de modo regular e não muito
diferenciado. Veremos mais à frente que urna das mudanças mais
importantes no reconhecimento dos graus de inclusão/não
inclusão de parentes próximos é o deslocamento do eixo principal
da relação pai-filhos-irmãos, para o eixo pai-mãe-filhos. Os afins
não são geralmente considerados como parentes, no mesmo
sentido com que a palavra se aplica aos consanguíneos. 28
Assim, há duas ordens de organização superpostas e
interdependentes: a ordem da família e a ordem do grupo corporado
de produção. Como para qualquer situação entram relações de
parentesco e de trabalho, a primeira pode ser considerada como a

27
MP herdou a parte das terras devidas pelo sogro à sua filha. O seu pai foi sempre
pobre e nunca teve terras. Dois irmãos de MP plantam em sua fazenda e pagam
arrendo, da mesma forma como qualquer estranho. Mas MP dá a seu pai o direito de
usar de um alqueire por safra para plantar o seu arroz, na melhor terra e na mais
perto de Diolândia, onde o pai mora. “Isso é uma ajuda que a gente faz pro pai, por
ser pai”.
28
Uma jovem, em conversa a respeito, dizia: “sogro, sogra, cunhado, tudo isso não
parente (…) não tem o sangue da gente”. Remeto o leitor ao estudo de Schneider,
quando ele demonstra como o sistema de parentesco de afins ( in-laws) está mais
próximo da ordem da lei que da ordem da natureza, dentro de um esquema que
poderia tentativamente ser representado da seguinte forma (Schneider, 1968: 108-
117):

185
esfera de trocas entre parentes-produtores e, a segunda, entre
produtores-parentes. Critérios ideológicos de inclusão e de significação
das trocas de ações de serviço (nas três áreas internas de consumo-
produção da fazenda e na área externa) separam as duas ordens, para
logo depois reunir os seus integrantes através de suas posições-relações
combinadas em ambas.
Em uma família camponesa que se inicia, o pai está totalmente
incluído na ordem da família e na ordem da produção, através de ações
de serviço operadas nas três áreas internas, nas quais é reconhecido
como um polo de controle e coordenação em última instância. Quando
aposentado e após a doação das suas terras, ele continua na ordem da
família, mas é aos poucos retirado da ordem da produção. Um
qualquer agregado a uma fazenda nunca se inclui na ordem da família,
embora esteja naturalmente incluído na sua ordem de produção de
bens. Num determinado momento as suas opiniões a respeito do
destino da colheita do arroz podem valer mais do que as de um velho
pai, antigo proprietário das terras e hoje retirado delas.
“Ser de” uma família camponesa é estar sendo reconhecido
como um integrante de duas ordens que só se separam em
situações-limite: para o filho ainda não produtivo; para um pai ou
uma mãe "que já não trabalham mais"; para um filho ou irmão que
se retiram e vivem, mesmo solteiros, uma vida distante e
independente. Em situações reconhecidas como regulares todos
os integrantes da família são, de uma forma ou de outra, ocupantes
de posições no sistema familiar de trabalho dentro de uma das três
áreas internas da propriedade. Ser parente-produtor é
necessariamente condicionado a ser produtor-parente. Esta é uma
das características mais essenciais da família camponesa produtora
de arroz e, nisso, ela difere em pontos essenciais da família nuclear
urbana. Notemos que mesmo quando cada filho está “no seu
negócio” na lavoura, do ponto de vista camponês “os negócios
isolados” (o fato de cada um plantar a sua roça) são sempre algo

186
que se integra em uma ordem mais ampla de reconhecimento e de
corporação. Quando um pai urbano se aposenta, os filhos em
geral já saíram de casa e ele permanece nela com a esposa e
recebe-os. Quando um pai camponês se aposenta, de algum modo
isso significa uma entrega ou uma transferência direta dos seus
bens de produção e dos seus direitos de produtor-proprietário
para os filhos. Por isso eu dizia antes que o pai se retira do negócio
dos filhos. Mas como as suas relações “como pai” permanecem
inalteradas, é possível dizer, em paralelo, que a ordem de relações
da família (o parente-produtor) é a esfera das relações conservadas
e das posições mantidas. A ordem da produção, e das relações de
trabalho é a ordem das relações e posições necessariamente
alteradas. Uma é a ordem em que não se produzem bens de
consumo e onde se consomem os bens da produção. A família
come, reunida, aquilo que o grupo de produção colheu, reunido
também, ou já disperso. A estrutura da família conserva-se em
alguns dos seus pontos essenciais. Conserva-se porque não precisa
ser alterada e porque a manutenção das suas relações afetivas e de
reconhecimento de status contribui para a organização de uma
sociedade agrária onde os relacionamentos de tipo secundário
ainda não estão claramente definidos. Porém a ordem da
produção só pode manter-se através de alterações pelas quais os
mais capazes para o trabalho e o controle sejam colocados nas
melhores condições de produzir. Um filho nunca deixará de
honrar o seu pai, mas o pai deve saber quando precisa “dar a vez”
ao filho. Todos os princípios de organização das relações entre
familiares, dentro de uma sociedade onde quase tudo sai de si
mesma, são construídos sobre as possibilidades de combinações e
equilíbrios, através da conservação de relações afetivas na ordem
do parentesco sobre as modificações de relações efetivas na ordem
da produção. Se quisermos reunir os grupos de parentes segundo
a aproximação de relações na ordem da produção, poderíamos
estabelecer a seguinte gradação simplificada:

187
Ordem do parentesco Ordem da produção
1. “minha família”: eu-minha mulher- a gente de casa: eu-minha mulher-meus
meus filhos filhos solteiros que trabalham comigo,
meus irmãos que moram comigo e
trabalham em minhas lavouras, a mãe de
minha esposa que mora em nossa casa
2. meus pais-meus irmãos meus filhos solteiros em minha casa e em
sua roça
3. “meus parentes”: meus primos, meus meus filhos casados, meus irmãos, ou
tios etc. agregados e parentes que trabalham em
minha propriedade
4. os pais e irmãos de minha mulher meus filhos solteiros ou casados que
moram fora de casa e trabalham em suas
lavouras fora da minha propriedade
(ajuda eventual)
5. os parentes de minha mulher meus pais “aposentados” morando em
minha propriedade

Ora, de acordo com Schneider uma das características do parentesco


norte-americano em geral é a separação radical entre a ordem da
família e a ordem da produção. A área reconhecida como inclusiva de
relações entre parentes deve ser um campo de proteção da pessoa das
relações de serviço de tipo empresarial. A uma predominância quase
exclusiva de trocas de tipo socioafetivo, em que as ações de serviço são
atos de apoio, identificação e manutenção de status dentro de um
reconhecimento exclusivo do “outro”, como parente, deve
corresponder a ausência de relações do tipo empresarial onde as
relações de serviço são trocas de bens, de trabalhos produtivos etc.,
dentro de um reconhecimento misto do “outro”, como parente e como
“empresário” ou “empresariado”.
Ora, em Diolândia a ordem da família (campo de relações
socioafetivas) e a ordem da produção (campo de relações empresariais)
completam-se necessariamente. Elas reúnem parentes e familiares em
um sistema único de relações, onde muitas vezes a identificação do
"outro" como parente é feita através do seu reconhecimento como

188
produtor na, da, para a família. São trocas de direitos-e-deveres
associados à produção que situam de fato uma pessoa na família. Mas
posições no sistema camponês de produção dependem em quase tudo
das regras de parentesco.
Exemplifiquemos isso reunindo coisas já sabidas:

FILHO IRMÃO PAI


trabalha com o pai trabalha para o irmão mais tem direito sobre o traba-
velho se os pais já morre- lho dos filhos e, em alguns
ram, e mora com o irmão casos, sobre o dos irmãos
planta nas terras do pai planta nas terras do irmão dá terras para o filho e as
sem pagamento de arren- com pagamento de arren- arrenda para o irmão
do ou de “meia” do ou de “meia”
cerca parte da propriedade mora provisoriamente na dá parte da propriedade
e faz sua casa nela propriedade do irmão para o filho casado morar e
trabalhar na fazenda
herda sua parte na proprie- não herda nada na propri- dá herança aos filhos
dade do pai edade do irmão
sustenta o pai não sustenta o irmão e não tem o direito de ser susten-
é sustentado por ele ou tado pelos filhos
seus filhos

A tarefa de controle da natureza é feita pela família camponesa


como um grupo que vive várias etapas e alternativas de
corporação. Assim, o mundo do trabalho é determinado pela
ordem da família que, por sua vez, organiza-se e modifica-se de
acordo com os princípios que regem a organização dos dois
sistemas: o da produção e o de parentesco; unidos e
complementares quase a ponto de se constituírem em um só. 29

29
Essa posição, que separa para unir, existe no meio rural quando a família é
reconhecida como uma unidade produtora e onde as próprias relações afetivas
traduzem-se, algumas vezes, pela preferência de inclusão de parentes em prestações
de serviços de tipo empresarial. Schneider propõe, por sua vez, relações que
poderiam ser esquematizadas da seguinte forma: (Schneider, 1968: 117) A ordem dos
relacionamentos entre parentes diretos transforma uma casa (ou um conjunto de casas

189
Bibliografia
Oliveira, R. Cardoso de. Urbanização e tribalismo, Rio de Janeiro, Zahar Ed.,
1968.
Schneider, D. American kinship: a cultural account, Nova Jersey, Prentice-Hall
1968.

em relação estreita de parentesco) em um lar (uma house torna-se uma home), O lar
opõe-se ao trabalho (work) como situação-de-trabalho e como lugar-onde-se-trabalha.
Essa oposição ocupa uma dimensão do tipo mundo-de-dentro (lar) versus mundo-de-
fora (trabalho). O lar ( home, campo de relações de parentesco) é o local do
relacionamento onde a pessoa vale por ser parente, ligada a outros pela família, pela
afeição e através de sua pessoa reconhecida. O trabalho ( work, campo de relações de
empresários-empresariados) é o local das relações formais onde a pessoa vale por ser
produtor, ligada aos outros por seu trabalho, pela eficiência, e através de um papel
adquirido. As duas ordens estão em oposição no modelo de Schneider.

190
CAPITALISMO E FAMÍLIA:
OS PEQUENO-BURGUESES

BELA FELDMAN-BIANCO1

Introdução
O tema Família e Desenvolvimento Capitalista tem sido objeto de
investigação dos cientistas sociais, economistas, historiadores e
psicólogos. Numa primeira fase, teóricos da modernização,
tomando como pressuposto uma concepção fictícia de estabilidade
e ordem da organização familiar do passado, insistiram em
caracterizar a família como uma instituição monolítica e passiva que
se desintegra sob o impacto da urbanização e industrialização.
Reagindo contra essa tese, especialistas em demografia histórica
preocuparam-se em classificar os diferentes tipos de unidades
domésticas de acordo com seu tamanho e composição a fim de

1
Esta é uma versão ligeiramente modificada da comunicação “Capitalist Development
and Petty Bourgeois Families in Matriz, Brazil”, apresentada no simpósio Household
Structure, Class Formation and the Capitalist World System no 79° Congresso Anual
da American Anthropological Association, Washington, DC, dezembro de 1980. Este
simpósio visava a criticar o enfoque de Immanuel Wallerstein.
Meus agradecimentos a Guillermo Raul Rubem, que leu e comentou diferentes
versões deste manuscrito, e Roberto Yutaka Sagawa, que transformou os meus
anglicismos de tradução em português e fez o copidesque do texto. Dedico este artigo
à memória de Lina Brock, amiga e interlocutora, com quem discuti extensivamente a
versão original deste manuscrito.

191
desmistificar a existência da família idílica do passado. 2 Nas duas
últimas décadas, historiadores e antropólogos sociais enfatizaram a
complexidade do tema família e passaram a analisar o seu papel
como agente ativo, capaz de promover mudança social e de facilitar
a adaptação de seus membros a novas condições econômicas e
sociais.3 A partir desse enfoque, começou-se a propor a necessidade
de se compreender não somente como indivíduos e famílias reagem
a mudanças sociais, mas também em que medida as suas ações e
estratégias afetam essas mudanças.4
Embora uma variedade de especialistas tenha apregoado a
relevância do estudo da dinâmica da família a partir de suas ações e
interações em contextos concretos, alguns teóricos da dependência
começaram a revivificar tanto o determinismo econômico quanto a
noção de família como agente passivo subjacente nas antigas análises
dos teóricos da modernização. Este é o caso de Immanuel Wallerstein
e outros estudiosos da dependência preocupados com o papel do
capital e do trabalho no processo de incorporação das áreas periféricas
pelo sistema econômico mundial. Apesar desta problemática ser
relevante, tais análises são feitas a partir do nível nacional, com base na
premissa de que a desigualdade é criada pelo mecanismo de troca
desigual e que modificações nas estruturas de unidades domésticas
foram forçadas pelas demandas do capital internacional.
Wallerstein,5 por exemplo, propôs-se a investigar a inter-relação
entre mudanças na estrutura de unidades domésticas e a formação
da força de trabalho a partir de processos globais constitutivos da
economia mundial capitalista. De acordo com sua perspectiva, isto
implica no mínimo localizar o estudo de unidades domésticas (a)

2
Ver, entre outros, Hajnal (1965) e Laslett & Wall (1972).
3
Ver a revisão da literatura em Elder (1981: 489-519).
4
Ver Hareven (1977: 57-70).
5
Wallerstein & Martin (1979: 193-207).

192
dentro de um tempo histórico mundial em termos de
desenvolvimento e ritmos de economia mundial, bem como (b)
dentro da divisão de trabalho existente no desenvolvimento
econômico mundial.
Com base em suas pesquisas na África, Wallerstein sugere que a
organização de unidades domésticas camponesas, contando com
trabalhadores assalariados, foi forçada pela necessidade do capital
internacional, em expansão, a explorar o trabalho que pudesse ser
comprado por um custo menor do que sua reprodução. A
dependência do setor de subsistência, em relação ao trabalho
assalariado, é mantida para que os produtores camponeses possam
arcar, pelo menos, com uma parte do custo de reprodução. Além
de não levar em conta as ações e estratégias dos membros que
compõem essas unidades domésticas e nem de como se
organizaram para responder às mudanças, Wallerstein esquece-se
que a natureza da sociedade não é simplesmente determinada por
sua posição dentro do sistema capitalista mundial, mas também por
sua organização social, inclusive estrutura de classes e relações de
classe.6
O presente ensaio examina mudanças em estruturas de unidades
domésticas7 através do tempo. Em contraste com os estudos que
focalizam o problema da incorporação em áreas periféricas no
sistema capitalista mundial no nível nacional, a questão é
reformulada para o nível local através da investigação de mudanças
nas estruturas de unidades domésticas em relação a processos de
formação de classes e de descontinuidades nas condições de
produção e reprodução social.

6
Entre outras críticas a Wallerstein, ver Gerstein (1977: 9-24) e Dupuy & Fitzgerald
(1977: 113-123).
7
Unidades domésticas são constituídas por pessoas que vivem em um mesmo
domicílio incluindo parentes e não parentes. Wallerstein emprega o conceito no
mesmo sentido.

193
Especificamente o objetivo deste ensaio é relacionar os processos
de desenvolvimento capitalista, de um município da Grande São
Paulo, às histórias de carreira, genealogias e mudanças nas
estruturas de unidades domésticas, ao longo de quatro gerações,
originárias da pequena burguesia local. Considerando que a
pequena burguesia “flutua entre o proletariado e a burguesia (…),
sempre se renovando como uma parte suplementar da sociedade
burguesa”,8 a intenção é o examinar padrões de mobilidade
ascendente e descendente em relação a mudanças nas condições de
produção e reprodução social.
Matriz,9 o locus de pesquisa, fundada no século XVI, foi
originalmente uma missão jesuíta. O município, criado em 1877,
era na época um núcleo de sitiantes dedicados à agricultura e, cem
anos mais tarde, tornou-se um subúrbio residencial de classe alta.
Sua população, que durante décadas apresentou baixos índices de
crescimento, aumentou de 8.254 para 25.382 habitantes entre 1950
e 1970. Estimativas sugerem que a população do município atingia
40.000 habitantes em fins de 1974.10 Embora Matriz nunca tenha se
tornado uma região produtora de café e nem um centro industrial,
seu desenvolvimento reflete claramente a transformação de São
8
Marx & Engels (1974: vol. I, 90). A pequena burguesia – uma das áreas cinzentas da
análise marxista – tem sido referida como parte de uma classe dicotômica ou como
um segmento de classe, separado da grande burguesia em virtude da escala de suas
empresas. Apesar deste ensaio não ter intenção de clarificar o conceito, a visão de
Marx da pequena burguesia como uma classe flutuando entre o proletariado e a
burguesia, sempre se renovando como uma parte suplementar da sociedade burguesa,
é confirmada pela história do desenvolvimento do capitalismo em Matriz.
9
Por razões de ética e confidencialidade, os nomes de pessoas e lugares mencionados
neste ensaio, incluindo o locus de pesquisa, foram modificados. Matriz é, portanto,
um pseudônimo. Os dados utilizados neste ensaio foram coletados por ocasião de
pesquisa de campo, realizada durante o ano de 1974, para a minha tese de
doutoramento The petty supporters of a stratified order: the economic entrepreneurs
of Matriz. São Paulo. Brazil (1877 – 1974), Columbia University 1980. A pesquisa foi
realizada com verba concedida pelo NIMH (National Institute of Mental Health).
10
Este dado é resultado de um survey que realizei em Matriz em novembro de 1974,
com uma amostra de 150 questionários.

194
Paulo. Na medida em que a cidade de São Paulo, junto com a
Grande São Paulo, está na vanguarda dos processos de acumulação
de capital no Brasil, as formas de organização da riqueza na região
representam, de certa maneira, o desenvolvimento desigual de uma
nação periférica e dependente do Terceiro Mundo.
O interesse pelo tema surgiu porque existe em Matriz uma
multiplicidade de unidades domésticas ligadas entre si por laços de
parentesco que, embora se diferenciassem em diversos níveis
socioeconômicos, possuíam sobrenomes que simbolizavam prestígio e
tradição. Os membros dessas unidades domésticas enfatizavam que
eram descendentes de pioneiros locais, sitiantes dedicados à produção
agrícola, negociantes e burocratas, que em períodos diferentes
ocuparam posições de liderança local. Enquanto algumas unidades
domésticas eram completamente interligadas aos estratos médios e altos
da cidade de São Paulo, outras conseguiam manter-se somente como
parte da pequena burguesia local. Outras, ainda, compostas por
sitiantes e trabalhadores assalariados, estavam às margens da pequena
burguesia ou beirando o proletariado. Em muitos casos, as situações
socioeconômicas de unidades domésticas poderiam variar de acordo
com a expansão ou recessão da economia. Mas, mesmo que alguns de
seus membros se tivessem tornado trabalhadores assalariados, muitas
dessas unidades domésticas persistiam em permanecer dentro da
pequena burguesia.
A fim de detectar processos de mobilidade social ascendente e
descendente bem como a reprodução da pequena burguesia, serão
examinados ramos das genealogias do sitiante Pedro Pereira, um dos
pioneiros locais, e de um de seus genros, o tabelião José Santos. Esta
análise preliminar e exploratória dedica atenção especial às formas em
que estruturas de unidades domésticas, casamento e parentesco
(incluindo herança) são usadas num contexto de mudanças nas
condições de produção e reprodução.

195
Vale frisar que, neste ensaio, herança não é entendida
simplesmente como transmissão post mortem, mas abrange o que
E. P. Thompson denominou “rede de herança” ( the “grid of
inheritance”), a matriz de relações sociais, políticas, costumeiras,
legais e econômicas que determinam a importância, em termos de
produção social, do que é transmitido de uma geração a outra. 11 Em
suma, a “articulação de regras e práticas através das quais grupos
sociais particulares projetam provisões para o futuro e (como elas
esperam) garantias de seguranças para seus filhos”.12
A partir desta perspectiva, o interesse, então, é de demonstrar como
indivíduos oriundos da pequena burguesia são afetados e, ao mesmo
tempo, afetam o desenvolvimento capitalista de Matriz; quais são as
provisões e garantias que lhes foram transmitidas pelos seus
antepassados, como estas são utilizadas e reproduzidas; e quais outros
recursos e estratégias utilizam para conseguir mobilidade social
ascendente e evitar a proletarização.

O contexto do desenvolvimento capitalista


em Matriz
O desenvolvimento capitalista, em Matriz, fornece os principais
parâmetros societais para a análise das genealogias e histórias de
carreira dos Pereira e dos Santos. Os principais ciclos desse
desenvolvimento capitalista, sucintamente indicados a seguir,
representam o contexto para se entender as ações, interações e opções
feitas por indivíduos e unidades domésticas.
Embora refletindo mudanças na economia mundial e sucessivas
políticas coloniais e nacionais, o desenvolvimento capitalista de Matriz e
11
Thompson (1975: 328-360).
12
Thompson (1975: 358).

196
os empreendimentos de seus habitantes sempre estiveram interligados à
cidade de São Paulo. Como tantos outros núcleos coloniais localizados
na periferia de São Paulo, Matriz foi progressivamente colonizada por
posseiros que praticavam agricultura. Nas últimas duas décadas do
século XX, o boom cafeeiro no estado de São Paulo, juntamente com a
transformação da cidade de São Paulo de um modesto entreposto
numa metrópole do café, acarretaram a expansão da agricultura local.
Esta agricultura local era cultivada por sitiantes, pequenos produtores
agrícolas, que forneciam diretamente o excesso de sua produção aos
mercados de São Paulo. Entretanto, a partir do início deste século, essa
produção passou a ser vendida através de intermediários comerciais,
em consequência da competição da agricultura comercial que
proliferava em áreas mais próximas da cidade.
Após a década de 1920, o desenvolvimento industrial da cidade
afetou novamente a agricultura local, que começou a ser
gradativamente substituída por uma agricultura comercial e indústrias
extrativas rudimentares. Concomitantemente, a terra local passou a ter
valor no mercado, começando a ser vendida para as camadas altas de
São Paulo, como também arrendada para imigrantes japoneses que se
dedicavam à agricultura comercial.
Na década de 1940, Matriz tornou-se o locus de um boom de
carvão, devido à expansão das indústrias em São Paulo e à necessidade
de combustível para substituir a gasolina que estava em falta durante a
Segunda Guerra Mundial. Mesmo retendo parte de sua propriedade
fundiária, os sitiantes locais abandonaram a agricultura e se tornaram
produtores de carvão. Neste período, a grande maioria perdeu
novamente o controle de sua produção para intermediários comerciais.
Estes vendiam carvão para as indústrias paulistanas e, paralelamente,
forneciam produtos agrícolas para a população local.
Com o término da Segunda Guerra e subsequente implantação de
leis florestais proibindo o desmatamento, a produção de carvão entrou

197
em declínio. Como resultado, parcelas da população emigraram em
busca de trabalho, enquanto os que permaneceram em Matriz tentavam
voltar à agricultura ou começaram a explorar olarias. Em meados da
década de 1950, entretanto, Matriz começou a submergir em São Paulo
e a absorver os segmentos mais pobres da população da capital, devido
à abertura de uma rodovia federal que corta a municipalidade e liga São
Paulo ao Sudeste do País.
O setor imobiliário prevalecente, durante as décadas de 1950 e 60,
esteve voltado à abertura de loteamentos populares, embora as
características recreativas do município tenham atraído, desde a década
de 1920, as camadas altas de São Paulo. Grande número de famílias
locais passou a vender pelo menos parte de sua propriedade fundiária e
simultaneamente a população de Matriz transferiu a sua dependência
dos intermediários comerciais locais para o sistema maior.
No final da década de 1960, em decorrência do seu crescimento
demográfico, Matriz recebeu o status de comarca, após quatro de seus
cinco distritos terem se emancipado. No final da década de 1960, as
distâncias sociais entre Matriz e São Paulo tornaram-se ainda menores,
com a construção de novas redes rodoviárias dentro e fora de São
Paulo. Finalmente, no início da década de 1970, um aumento na oferta
e demanda da terra para investimento de capital bem como para a
construção de chácaras e sítios de recreio estimularam e fortaleceram o
caráter de “classe alta” da suburbanização de Matriz.
É a partir deste contexto histórico de Matriz que ramos das
genealogias dos Pereira e dos Santos serão analisados. Esta análise visa
detectar como diferentes gerações se articulam para enfrentar as
mudanças nas condições de produção e reprodução, e como suas
ações, interações, opções e estratégias afetaram as descontinuidades em
curso.

198
Os Pereira e os Santos no contexto do
desenvolvimento capitalista de Matriz
Poucos dados existem sobre os ancestrais de Pedro Pereira. Sabe-se, no
entanto, que Pedro nasceu em Matriz em 1836. Várias histórias orais
indicam que Pedro se tornou um dos sitiantes mais afluentes da região
durante a segunda metade do século XIX, quando a agricultura local
estava em expansão. Censos eleitorais do Primeiro Império indicam
que, na época, Pedro era um dos “homens bons” de Matriz.
Durante a sua geração, a propriedade fundiária costumava ser
preservada, através do casamento entre primos, num sistema de
parentesco predominantemente bilateral. Não fugindo à regra, Pedro
casou-se em primeiras núpcias com uma prima, Maria da Dores,
descendente de uma família de pequenos produtores agrícolas. Maria
das Dores faleceu durante seu quinto parto. Logo após, Pedro casou-se
novamente, com outra prima, Eva de Jesus, também filha de sitiantes
locais abastados. Desses dois casamentos, Pedro procriou 20 filhos,
oito dos quais morreram ao nascer. Dois filhos de seu primeiro
casamento e dez do segundo chegaram à idade adulta, somando um
total de cinco homens e sete mulheres. A alta mortalidade era
prevalecente, no período. Embora não haja dados estatísticos, histórias
orais, e genealogias coletadas indicam que tanto a morte de crianças
como a de mulheres durante o parto eram frequentes.
Durante a vida de Pedro Pereira, a área de Matriz era formada
por bairros dispersos, composto por grupos de famílias ligados por
laços de parentesco. Estes bairros se assemelhavam a unidades
autossuficientes.13 Como a propriedade fundiária não tinha valor de
mercado, os sitiantes puderam desenvolver uma agricultura
rudimentar, baseada no uso rotativo de pequenas parcelas de terra e
localizada em partes diferentes de Matriz bem como em outras

13
Ver Candido (1964).

199
porções da periferia sudeste de São Paulo. Mais de 90% da
população ativa local cultivava batatinhas, mandioca, feijão, milho e,
em quantidades menores, arroz. Cultivavam-se também bananas,
uvas e laranjas, bem como se criavam gados e aves.
A força de trabalho dos sitiantes locais era composta
primordialmente por membros de suas unidades domésticas e por
mutirões organizados para trabalhos agrícolas específicos. Como as
famílias desses sitiantes constituíam as unidades básicas de produção,
seu tamanho tendia a ser grande, variando em média de 12 a 24
indivíduos. De acordo com as histórias orais coletadas, havia um
número não preciso de sitiantes que, além de suas esposas, mantinham
também concubinas, cujos filhos ajudavam nas atividades agrícolas.
Muito frequentemente, sitiantes mantinham agregados que moravam
em suas terras em troca de trabalho sem remuneração. Pouquíssimos
sitiantes usavam escravos e quando o faziam seu número era reduzido.
Em geral, os sitiantes afluentes contratavam um pequeno número de
camaradas, agricultores mais pobres ou trabalhadores agrícolas sem
terras, recrutados de acordo com a tarefa a ser executada, em números
que variavam de dois a dezesseis.
A terra usada para a agricultura juntamente com o comércio
constituíam as maiores fontes de riqueza da sociedade local, pelo
menos desde as últimas décadas do século XIX. Nessa condição,
forneciam as bases para o sistema de estratificação social de Matriz. Os
sitiantes mais ricos de cada bairro eram uma espécie de empresários
sociais informais, abrindo seus próprios caminhos, usando suas mulas
como meio de transporte, tendo sua própria reserva de medicina
homeopática e, eventualmente, contratando educadores para ensinar
seus filhos a ler e escrever.
Tanto os homens como as mulheres mais afluentes se envolviam
em relações patrono-cliente com seus vizinhos e parentes mais
pobres e patrocinavam as festas religiosas do bairro. Forneciam

200
também crédito mediante usura e providenciavam socorros
médicos – através da prescrição e fornecimento de medicina
homeopática – aos indivíduos e famílias mais pobres que
constituíam, ao mesmo tempo, sua reserva de força de trabalho e os
clientes de seus armazéns de secos e molhados. Relações de
dominação e subordinação econômica entre unidades mais ricas e
mais pobres eram usualmente reforça das por laços de compadrio.
Muito frequentemente, casais mais ricos batizavam todos os filhos
de um casal mais pobre e, dessa forma, reforçavam sua
superioridade política, econômica e social. Como a agricultura era a
ocupação principal, muitos sitiantes mais pobres e os chefes de
família sem propriedade frequentemente percorriam diversas
regiões, arrecadando esmolas como bandeireiros da Festa do
Divino.
Pedro, como outros sitiantes afluentes, dedicou-se tanto à
agricultura como ao comércio. Compartilhava, junto com sua
esposa e filhos, de uma divisão de trabalho em seus
empreendimentos familiares. Além de possuir terras em diferentes
partes de Matriz e em seus arredores, Pedro também criava gado e
aves, e possuía pelo menos 30 mulas e várias carroças. Além de
administrar as atividades agrícolas, Pedro viajava para a cidade de
São Paulo e regiões vizinhas a fim de comercializar sua produção
agrícola. Nestas viagens, Pedro comprava também produtos
manufaturados para vender em seu armazém de secos e molhados
no bairro do Riacho. Como tantos outros sitiantes locais, Pedro
também mantinha uma casa na sede de Matriz. Parte dessa casa era
aproveitada como ponto de venda de leite e carne para a população
da cidade.14 Como outras mulheres de sitiantes, tanto a sua primeira
como sua segunda esposa cuidavam do trabalho doméstico,

14
Esta casa foi herdada pela filha de Pedro Pereira que se casou com o imigrante
português. A filha continua a ocupar parte da casa. Na outra parte, um neto
estabeleceu seu escritório de despachante e corretor imobiliário.

201
ajudavam em atividades agrícolas e faziam queijo e petiscos para
aumentar a renda familiar. Pedro também mantinha agregados e
contratava camaradas para trabalhos agrícolas específicos.
Os empreendimentos do Pedro começaram a declinar após o
início do século XX. Nesse período, os sitiantes de Matriz
começaram a se confrontar com a competição da agricultura
comercial praticada por italianos, portugueses e espanhóis nos
arredores de São Paulo. A população local foi também atingida por
duas epidemias de grandes proporções: a primeira de sarampo em
1909 e a segunda, provavelmente influenza, em 1918. Esses
problemas locais foram agravados pela crise nacional, criada
inicialmente pela especulação governamental nos primeiros anos da
República e acelerada pela Primeira Guerra Mundial. Essa crise
levou a um aumento do custo de vida em várias partes do País e ao
desaparecimento do mercado de produtos alimentícios básicos. 15
Apesar de não existir documentação escrita, os habitantes idosos de
Matriz insistem que houve uma grande crise econômica local
durante a década de 1910.16 Todos enfatizam a morte e a loucura
de parentes próximos, a perda de gado e aves, o abandono de áreas
cultivadas e diminuição da produtividade do solo, bem como
emigração em larga escala de habitantes empobrecidos tanto da
cidade quanto do campo. Pedro não foi exceção à regra: incapaz de
enfrentar a queda de seus negócios e a perda de seu gado e aves, ele
falece em 1916 após um período de loucura.
A crise da década de 1910 afetou a população de Matriz e, nesse
contexto, também os descendentes de Pedro. Mas Pedro deixou
provisões e garantias para seus filhos, incluindo escolha de cônjuges
para a maioria de sua prole e uma “rede de herança”. Esta rede era
composta não somente por propriedades e seu usufruto, mas
15
Carone (1972).
16
A única documentação encontrada que pode confirmar os depoimentos orais
refere-se à queda da arrecadação municipal durante a segunda metade da década.

202
também por conexões e interesses e a posição da família em Matriz.
Quando faleceu, nove de seus doze filhos já estavam casados. Esses
cônjuges eram descendentes de sitiantes aparentados, bastante
afluentes ou, no caso dos genros, jovens ambiciosos, dedicados ao
comércio ou à burocracia, espiralistas ( spiralists) na acepção de
Watson, isto é, a combinação social e espacial de um ou mais
estágios de

ascensão progressiva de especialistas de diferentes tipos através


de uma série de posições em uma ou mais estruturas e a
concomitante mobilidade residencial através de um número de
comunidades.17

Casamentos entre sitiantes aparentados serviam para reforçar alianças


entre famílias e manter entre parentes a propriedade fundiária usada
principalmente para atividades agrícolas. Assim, não é por acaso que o
filho e a filha de João e sua primeira esposa casaram-se,
respectivamente, com uma irmã e um irmão. Por outro lado, o
casamento das filhas de Pedro com espiralistas foram realizados no
período em que a agricultura local entrava em recessão. Estes
casamentos serviram tanto para reforçar alianças políticas como para
canalizar capital do campo para a cidade de Matriz. Também, neste
caso, as duas filhas mais velhas de Pedro e sua segunda esposa casaram-
se com dois irmãos, filhos do tabelião público local.
Como era costume, embora filhos e filhas tivessem os mesmos
direitos à herança e as partilhas de herança fossem feitas legalmente
somente após a morte de um dos progenitores, Pedro, como outros
sitiantes locais, distribuiu, ainda em vida, parcelas de terra para o
cultivo aos seus descendentes masculinos. Esta partilha antecipada era
feita na ocasião do casamento dos filhos para que “começassem a vida”.
Recém-casados, os filhos de sitiantes frequentemente continuavam

17
Watson (1964: 56).

203
morando por algum tempo com seus pais antes de estabelecerem sua
própria unidade doméstica. Mulheres recebiam dotes (casa, terra,
gados, aves) e instalavam-se, pelo menos temporariamente, em casa dos
pais de seus maridos, antes de estabelecerem unidades domésticas
independentes. As filhas de Pedro que se casaram com espiralistas
estabeleceram residência na sede de Matriz. A única exceção foi a
caçula Manoela que se casou após a morte de seu pai com Henrique
padeiro. Empobrecido, pois a padaria que herdou não sobreviveu à
crise da década de 1910, Henrique optou por residir na unidade
doméstica da viúva Eva de Jesus. Empresarial como os outros genros
espiralistas de Pedro, Henrique logo se envolveu em várias atividades
comerciais, inclusive agricultura comercial, e adotando uma prática que
se tornou corrente, após a terra ter-se transformado em mercadoria,
passou a comprar partes da herança ou direitos de herança de
membros da prole de Pedro bem como de seus descendentes.
Através da análise de narrativas genealógicas, histórias de carreira e
estruturas de unidades domésticas dos descendentes de Pedro Pereira,
é possível delinear suas chances na vida e suas oportunidades em
relação às mudanças nas condições de produção e reprodução social.
Há indicações de que os padrões subsequentes de mobilidade
ascendente e descendente foram prefigurados nesta segunda geração.
Cinco filhos de Pedro e sua segunda esposa alcançaram mobilidade
social ascendente. Estas foram as quatro mulheres que casaram com
espiralistas e Zeca, o filho mais velho, que herdou seu armazém de
secos e molhados. Após a morte de Zeca, sua esposa Alice expandiu
seus negócios com a ajuda de seus filhos, tornando-se uma das pessoas
mais afluentes e influentes do bairro de Riacho.
Num período em que a terra se transformou em mercadoria e o
comércio passou a ser a maior fonte de riqueza local, estes
descendentes e seus cônjuges não só exploraram as provisões e
garantias herdadas como foram também capazes de rearticular suas
estratégias para tirar proveito das transformações de Matriz e aumentar

204
seu capital. Na maioria dos casos, estes descendentes formaram
unidades domésticas “comerciais”, caracterizadas por
empreendimentos múltiplos. Numa primeira fase de seu ciclo de
desenvolvimento, homens, mulheres e crianças mantiveram uma
divisão de trabalho relativa a essas atividades comerciais. Embora as
atividades variassem, comércio e investimento em terra eram uma
constante. Os espiralistas que permaneceram em Matriz fizeram
também uma carreira em política de partidos e governo local, que se
constituíam nas principais vias de acesso à elite de São Paulo e a
vantagens e benefícios governamentais.
As trajetórias das unidades domésticas das filhas de Pedro, que se
casaram com espiralistas da sede de Matriz, variam de acordo com o
tipo de ocupação, background da família de seus maridos e período em
que os mesmos iniciaram suas carreiras. Como ilustração, a carreira de
seu genro mais bem-sucedido será analisada. Este foi José dos Santos,
um dos dois filhos do tabelião local que se casaram com as duas filhas
mais velhas de Pedro. José, que se casou com a mais velha, foi por um
período de 40 anos, entre 1900 e 1940, um dos cidadãos mais
proeminentes de Matriz.
O pai de José, Augusto Santos, natural de Santos e aposentado da
Força Pública, tornou-se tabelião em Matriz devido à sua amizade com
Major Honofre, o “coronel” de Matriz. Como seu pai era forasteiro e
não tinha extensas propriedades, foi vantajoso para José casar-se com a
filha de Pedro, Zezé. Após seu casamento com Zezé, José, além de
trabalhar no cartório de seu pai, envolveu-se com atividades agrícolas
nos arredores da cidade, em terras que recebeu de dote.
Diferentemente de seu sogro, José contratava o trabalho de outros para
as atividades agrícolas. No início do século, com a morte de seu pai,
José herdou o cartório e uma empresa de transportes São Paulo –
Matriz, composta de apenas duas jardineiras. Em sociedade com um
comerciante local e aliado político, José expandiu a empresa de
transporte.

205
Após a morte de Zezé, durante o parto, José se casou com Inês,
uma das filhas de um influente negociante e político local. Este
casamento reforçou suas alianças políticas, econômicas e sociais na
cidade. Ao mesmo tempo e provavelmente em virtude da crise
econômica local, José começou a se afastar dos Pereira, mantendo
somente aliança política e relações de compadrio e amizade com um
de seus cunhados, um espiralista de origem portuguesa que se casou
com a terceira filha de Pedro e sua segunda esposa.
De seus dois casamentos, José procriou sete filhos. Sua unidade
doméstica incluía, além de sua esposa e filhas, alguns agregados que
ajudavam no serviço doméstico. Tanto a sua primeira esposa quanto a
segunda trabalharam no cartório e suas filhas ajudaram no trabalho
doméstico. No entanto, sua segunda esposa deixou de trabalhar quando
se mudou para São Paulo, onde José estabeleceu uma segunda casa,
para que suas quatro filhas mais jovens pudessem receber uma
educação secundária. José permanecia durante os dias úteis em Matriz
e nos fins de semana em São Paulo. Alguns anos mais tarde, em 1936,
aposentou-se e mudou definitivamente para a capital, embora
influenciasse ainda os eventos locais.
Apesar das crises econômicas e nacionais, José prosperou
progressivamente durante as primeiras décadas do século XX. Foi
capaz de se tornar um dos donos do poder local, devido ao seu
envolvimento com política partidária e sua participação na “panelinha”
do velho “coronel” de Matriz. Foi capaz também de exercer dominação
e exploração em Matriz através da peonagem e usura. Seu acesso a
posições governamentais, bem como sua ocupação como tabelião local,
deram-lhe a oportunidade para mediar partições de herança. Como
regra, recebia, ou apropriava-se, em troca dessas mediações, de porções
de terra de seus clientes. Na década de 1930, quando a terra já tinha se
transformado em mercadoria, José tinha também acumulado grandes
extensões de propriedade fundiária. José foi, de fato, o primeiro grande
capitalista de Matriz.

206
Os padrões de casamento das filhas de José indicam
descontinuidades em relação aos padrões de casamento da segunda
geração. Nenhuma de suas filhas casou com parentes. A única filha
de José com Zezé casou-se com o filho de uma família de
negociantes prósperos de um dos distritos de Matriz. A filha mais
velha de José e Inês casou-se com Bentevi Benetti, um espiralista
que herdou o cartório e que anos mais tarde repetiu uma carreira
similar à de seu sogro. A segunda filha casou-se, contra a vontade
paterna, com um intermediário de carvão, parente de um inimigo
político. As quatro filhas mais jovens de José tornaram-se
professoras em São Paulo e casaram-se com comerciantes e
profissionais liberais dos estratos médios paulistas, onde
continuaram a residir.
As unidades domésticas das filhas de José apresentam
descontinuidade em relação à segunda geração. Todas elas tiveram um
número menor de descendentes, em média três, e nenhuma contava
com agregados. Somente a filha única de José com Zezé e a filha de
José com Inês que se casou como intermediário de carvão,
continuaram juntamente com seus filhos a ajudar os maridos em
armazéns locais. Tanto a filha que casou com Bentevi, que não
trabalhava, como as quatro que se tornaram professoras, tiveram desde
cedo empregadas domésticas.
Apesar de seus altos e baixos na vida, o genro intermediário do
carvão conseguiu investir em terra e capitalizar na construção de
casas. Seu filho foi o primeiro cidadão local a cursar uma
universidade e tanto ele como sua irmã se casaram com
descendentes de prósperos negociantes locais. O genro Bentevi,
herdeiro do cartório, foi quem alcançou maior ascensão social,
graças ao seu envolvimento em política partidária, governo local,
Igreja, mediação em partições de herança e investimento em terras.
Seguindo o exemplo de seu sogro, Bentevi montou, em inícios da
década de 1950, uma segunda casa em São Paulo para que seus três

207
filhos pudessem cursar colégios e universidades. Embora mantendo
vínculos com Matriz, todos os três se casaram com mulheres das
camadas altas de São Paulo e continuaram a residir na capital. Em
inícios da década de 1970, aproveitando a alta especulação
imobiliária em Matriz, Bentevi e seu filho mais velho compraram
uma companhia imobiliária pertencente a um ex-governador de São
Paulo e começaram a abrir loteamentos para chácaras de classe alta.
Bentevi, que também esteve envolvido com loteamentos populares,
na década de 1960, tornou-se um dos primeiros capitalistas
financeiros de Matriz.18
A trajetória dos ramos dos Pereira e dos Santos que conseguiram
mobilidade social ascendente, na segunda geração, não foi similar.
Outros espiralistas casados com filhas de Pedro Pereira bem como seus
descendentes sofreram vários reveses econômicos e optaram por
mudar de atividades comerciais de acordo com os ciclos de economia
local. A posse e o usufruto do cartório, no caso de José Santos e seu
genro Bentevi, garantiram-lhes maior estabilidade e oportunidades.
Em comparação com as trajetórias descritas, os demais ramos dos
Pereira optaram, ainda na segunda geração, por permanecer vivendo da
terra herdada a continuar praticando agricultura e a não reestruturar
suas unidades domésticas para enfrentar as transformações de Matriz.
A análise dos dados indica que as unidades domésticas da filha e do
filho de Pedra Pereira e sua primeira esposa, bem como as de seus
descendentes, foram as mais atingidas pelo declínio da agricultura local.
Via de regra, a terceira geração continuou a se casar com parentes,
também membros de unidades domésticas de sitiantes empobrecidos, a
procriar grandes proles e a viver da terra herdada. Durante as quatro
primeiras décadas deste século, tanto a segunda como a terceira

18
Bentevi, filho de imigrantes italianos que vieram ao Brasil para trabalhar como
colonos, foi ambulante, palhaço de circo, fabricante de remédios homeopáticos e
ajudante de farmacêutico antes de se estabelecer em Matriz, onde começou sua
carreira como sacristão da Igreja local.

208
geração continuaram envolvidas com atividades agrícolas, vendendo sua
produção a intermediários comerciais da cidade. No decorrer do ciclo
do carvão, tornaram-se carvoeiros e intermediários comerciais. Após o
ciclo do carvão, alguns retornaram à agricultura, outros começaram a
arrendar terras para os agricultores japoneses e pequenas indústrias
extrativas, ou a explorar olarias, empregando famílias de trabalhadores
migrantes como suas unidades de produção. Aqueles que ainda tinham
grandes parcelas de propriedade fundiária, aproveitaram a especulação
imobiliária do início da década de 1970, para vender suas terras. Neste
período, a situação mais difícil era daqueles que já haviam vendido
grandes extensões de sua propriedade fundiária, quando a terra ainda
não tinha muito valor. Muitas dessas vendas incluíam direitos de
herança, haviam sido feitas para parentes.
Até a década de 1950, pelo menos, as unidades domésticas desse
ramo dos Pereira continuaram a se constituir como unidades de
produção e consumo. Em muitos casos, devido ao grande número de
descendentes e às constantes partilhas de terra, membros de gerações
mais jovens foram forçados a emigrar, ou a empregar-se como
trabalhadores assalariados em Matriz ou nas redondezas.
Concomitantemente, as gerações mais velhas perderam o controle
sobre a escolha dos cônjuges para os seus descendentes. Na década de
1950, as gerações mais jovens começaram a se casar com migrantes
assalariados que se estabeleceram em Matriz.
Existem indicações de que migração permanente das gerações mais
jovens de Matriz resultou em proletarização. Comparativamente,
mesmo que alguns de seus membros se tivessem tornado trabalhadores
assalariados, muitas das unidades domésticas que permaneceram em
Matriz conseguiram se reproduzir como pequeno-burgueses. Aqueles
que permaneceram em Matriz continuaram a viver em casas
construídas nas terras pertencentes a seus pais. Embora pais e filhos
casados usualmente vivessem em casas separadas e tivessem
orçamentos independentes, a ajuda mútua era constante. Como, em

209
geral, morassem próximos uns dos outros, a permuta de refeições era
frequente. Compartilhavam do trabalho doméstico e dos produtos que
continuavam a cultivar para consumo. Em 1974, quando a população
local estava vendendo parcelas de suas propriedades, as gerações mais
velhas constantemente canalizavam parte do capital ganho com
transações imobiliárias para seus filhos renovarem ou construírem
novas casas, bem como para a compra de bares ou caminhões que lhes
possibilitassem ocupações independentes. Para aqueles que
permaneceram em Matriz, a posse e o usufruto da terra
frequentemente evitava a sua completa incorporação no proletariado.
Além do mais, como muitas dessas unidades domésticas estavam
ligadas por parentesco aos donos do poder, alguns de seus membros
conseguiram empregos públicos.
De acordo com as fases de expansão ou retração da economia, estes
ramos dos Pereira tiveram, eventualmente, que mudar de atividades.
No processo, não puderam ou não foram capazes de aumentar seu
capital. Mesmo que tivessem, como parte de suas estratégias, praticado
usura e empregado o trabalho de outros, o capital que manipulavam
era pequeno e somente suficiente para permitir que aqueles que
permaneceram em Matriz continuassem a se reproduzir como
pequeno-burgueses.

Conclusões
Após ler a história dos Pereira e dos Santos, de Matriz, um leitor
acostumado à “grande teoria” e a análises macro-orientadas poderá
questionar a relevância de se estudar famílias comuns de um
município qualquer. Como os Pereira e os Santos são pessoas reais
e Matriz é um contexto real, essa história permite trazer à tona a
complexidade das mudanças sociais bem como reintroduzir a

210
intimidade humana na pesquisa19 Não é a história dos Pereira e dos
Santos ou de Matriz per se que interessa, mas o que através dela
podemos aprender sobre processos de desenvolvimento capitalista
e formação e diferenciação de classes. Como E. P. Thompson
salientou, de forma um tanto irônica,

(a história) não é uma fábrica para a manufatura da Grande Teoria


(…). Este não é, nem um pouco, o seu negócio. Seu negócio é
recuperar, para “explanar” e para “compreender” seu objeto: a história
real.20

A partir desta perspectiva, “cada momento histórico é, ao mesmo


tempo, resultado de um processo anterior e um expoente da
direção de seu fluxo futuro”.21 Estudos sincrônicos, abordagens que
“congelam” a história em um “antes” e um “depois”, análises que
enfatizam a “Sociedade” em detrimento dos indivíduos ou as que se
restringem às ações e interações de indivíduos, esquecem-se dos
parâmetros societais e pouco acrescentam à compreensão das
complexidades inerentes aos processos de desenvolvimento
capitalista e formação de classe.
A análise de genealogias, carreira de vida e unidades domésticas
concretas no contexto de parâmetros societais específicos possibilita a
captura da dinâmica da história real. A ênfase em biografia, história e
suas intersecções dentro da sociedade, há muito advogada por Wright
Mills, permite um exame detalhado das formas pelas quais pessoas
reais fazem uso das estruturas formais e intersticiais para se adaptarem
às necessidades situacionais e particulares no contexto de relações
sociais que se originam das interdependências econômicas, sociais e
políticas. A história dos Pereira e dos Santos de Matriz evita uma

19
Hareven (1977).
20
Thompson (1978: 46).
21
Thompson (1978: 47).

211
análise da família como instituição monolítica e passiva e tenta esboçar
pelo menos parte da complexidade existente nos processos de
continuidade e descontinuidade social.
Apesar de preliminar e exploratória, a história dos Pereira e dos
Santos, de Matriz, permite a correlação entre desenvolvimento
capitalista, ciclos de economia, formação de classe e as formas com que
indivíduos e unidades domésticas reagem e promovem mudanças
sociais. Como a narrativa etnográfica indicou, o desenvolvimento
capitalista de Matriz envolveu três ciclos fundamentais: o ciclo da terra,
o ciclo do capital comercial e o ciclo do capital financeiro. Embora
fosse anteriormente incipiente, a diferenciação de classe começa a
surgir com intensidade quando se dá a passagem do ciclo da terra para
o ciclo do capital comercial. Embora a estrutura de unidades
domésticas se altere, a rearticulação não é monolítica e nem
simplesmente uma criação direta das demandas do capital.
Como a análise das genealogias e histórias de carreira dos Pereira
e dos Santos indicou, indivíduos e unidades domésticas fizeram
opções diferentes diante de mudanças nas condições de produção
e, muitas vezes, anteciparam e promoveram a expansão do capital
para seu próprio proveito. Assim, durante a passagem do ciclo da
terra para o ciclo do capital comercial, a segunda geração dos
Pereira (incluindo o ramo da filha que se casou com José Santos)
fez opções diferentes e usou estratégias diversas diante da mudança.
A fim de expandir seu capital comercial e tirar proveito das
transformações ocorridas em Matriz, alguns ramos rearticularam
suas unidades domésticas e passaram a se dedicar ao comércio, aos
investimentos fundiários, à burocracia e à política partidária. Outros
ramos optaram por capitalizar as provisões e garantias que lhes
foram transmitidas por Pedro Pereira para permanecerem
dedicados ao ciclo da terra e reproduzir unidades domésticas
similares às de seus antepassados. As transformações ocorridas nas
condições de produção juntamente com essas diferentes opções

212
propiciaram as condições para que os Pereira passassem a flutuar
entre proletariado e a burguesia, “sempre se renovando como uma
parte suplementar da sociedade burguesa”.22
Tanto no caso dos Pereira como no dos Santos, os descendentes
daqueles que se transformaram em capitalistas comerciais continuaram
a reestruturar suas unidades domésticas diante das mudanças
socioeconômicas, a reproduzir a expansão do capital e, eventualmente,
ajudaram a promover a passagem do ciclo do capital comercial para o
ciclo do capital financeiro. Enquanto seus antepassados tornaram-se
capitalistas comerciais, ramos da terceira e quarta gerações
transformaram-se em capitalistas financeiros.
Paralelamente, apesar das flutuações e mesmo que tivessem
abandonado a agricultura, os descendentes daqueles que persistiram
em se dedicar ao ciclo da terra continuaram a usufruir da posse
fundiária. Muito embora alguns ramos tivessem potencialmente se
transformado em força de trabalho disponível na economia mundial,
não caíram imediatamente no proletariado. Mesmo que alguns
membros de suas unidades domésticas tivessem se tornado, na terceira
e principalmente na quarta geração, trabalhadores assalariados, esses
ramos dos Pereira continuaram a resistir à proletarização. “Redes de
herança”, relações de parentesco e compadrio, status social da família
no município e auxílios mútuos entre parentes, constituíram provisões
e garantias para a sua reprodução como pequeno-burgueses. A
resistência à proletarização foi confirmada pelo fato de que, desde o
final da década de 1960, em face da crescente especulação imobiliária
de Matriz, as gerações mais velhas começaram a investir parte do
capital recebido com a venda de parcelas de suas propriedades
fundiárias na criação de condições que possibilitassem seus
descendentes a permanecer ou retornar a ocupações independentes.
Resta saber como essas gerações mais jovens e seus descendentes

22
Marx & Engels (1974: 89).

213
enfrentarão a ausência da posse e do usufruto da terra, que lhes
permitiu reproduzirem-se, pelo menos por quatro gerações, como
pequeno-burgueses. Não foi por acaso que os descendentes
empobrecidos de Pedro Pereira que se transformaram em proletários
foram justamente aqueles que se casaram com trabalhadores
assalariados, que emigraram permanentemente, deixando para trás as
provisões e garantias que lhes foram transmitidas. E essas mesmas
provisões e garantias que deixaram para trás devem ter ajudado seus
parentes a permanecerem dentro da pequena burguesia.
Esta análise, exploratória e esquemática, baseia-se principalmente
nos dois ramos extremos das genealogias dos Pereira e dos Santos.
Os ciclos de desenvolvimento de unidades domésticas ainda não
foram analisados em relação aos processos de mobilidade social,
nem as trajetórias das mulheres.23 Exames mais detalhados e
elaborados destas e outras genealogias são necessários para
“explanar” e “compreender” processos de desenvolvimento
capitalista, formação de classe e mudanças nas estruturas de
unidades domésticas em face das descontinuidades nas condições
de produção e reprodução social. Entretanto, os dados analisados
podem ser contrapostos ao determinismo econômico de
Wallerstein para quem as transformações ocorridas em unidades
domésticas camponesas foram forçadas e criadas pelas demandas
do capital internacional.
Vale mencionar que, tanto o enfoque adotado como os dados
apresentados neste ensaio, não negam a relevância de se levar em conta
o papel do sistema econômico mundial na análise de mudanças sociais,
nem tentam superestimar a importância das ações, interações e
estratégias de indivíduos organizados em unidades domésticas em
detrimento de fatores econômicos locais, nacionais e internacionais.
Visam apenas restaurar a balança entre macroanálises e etnografias

23
Ver, por exemplo, Fortes (1958).

214
históricas detalhadas, através de uma abordagem que relaciona a
Economia Política às ações e interações de indivíduos em contextos
específicos e a partir de uma perspectiva histórica.
Matriz, como tantas outras localidades brasileiras, está há muito
incorporada no sistema econômico mundial. No processo dessa
incorporação crescente, seus habitantes transformaram-se tanto em
capitalistas como em força de trabalho potencial no mercado local,
nacional e internacional. Porém, estas transformações não foram
determinadas simples e diretamente pelas demandas do capital
internacional.
Como salientou Worsley, as pessoas não são somente membros
de organizações e estruturas, mas também de situações interpessoais
e como tal são “agentes empenhados em fazer suas coisas”. 24 Isto
equivale a dizer que

homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como


gostariam, não a fazem sob circunstâncias que escolhem, mas sob
circunstâncias dadas e transmitidas pelo passado. 25

A partir desta perspectiva, este ensaio procurou demonstrar como,


dentro de parâmetros societais, unidades domésticas de pequeno-
burgueses usam estratégias e provisões não somente para evitar a
proletarização, mas também para conseguir ascensão econômica,
política e social.

24
Worsley (1974: 11).
25
Marx (1972 [1872]: 15).

215
216
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218
AS MULHERES E A DIREÇÃO
DO CONSUMO DOMÉSTICO:
ESTUDO DE PAPÉIS
FAMILIARES NAS CLASSES
POPULARES URBANAS

ALBA ZALUAR1

O trabalho de campo
O trabalho de campo foi realizado durante os meses de janeiro,
fevereiro e março de 1980, na Cidade de Deus, conjunto habitacional
da CEHAB no Rio de Janeiro. Foram pesquisadas ao todo 31 famílias,
sendo que em várias delas se entrevistou mais de um membro,
usualmente a mãe de família ou “dona de casa”, os filhos ou filhas
adultos que já trabalhassem e as crianças. Raramente (em apenas seis
casos) conseguimos entrevistar a mulher e o marido. Em duas destas 31
famílias apenas o filho ou a filha adultos foram entrevistados com o
intuito de se perceber possíveis conflitos entre exigências de
solidariedade à família e os interesses individuais do jovem trabalhador.
A mãe ou a dona de casa permaneceu como foco das entrevistas pelo

1
Este texto fez parte originalmente do relatório final (vol. IV) do grupo de pesquisa
“Ciências Sociais e Nutrição” que funcionou na Finep durante os anos de 1978 e
1979, analisando os dados do ENDEF. Este relatório foi impresso em 1980 pela
Finep.

219
seu papel singular tanto no controle da renda familiar, pois parece ser
ela que decide em última instância a alocação dos recursos familiares,
quanto por ser ela quem produz e distribui os alimentos consumidos
pela família. Crianças e jovens adultos, alguns que não pertenciam às
famílias estudadas, foram também entrevistados para se conhecer suas
preferências alimentares e os efeitos sobre eles dos hábitos impostos
pela mãe.
A pesquisadora era ora recebida com desconfiança, como jornalista
interessada em difamar o local, ora com esperança, como uma enviada
do governo que antecederia os sacos de feijão e arroz que o governo
mandaria para as famílias pobres. A desconfiança explica-se pelo fato
de que o conjunto sofria um processo de estigmatização pela imprensa
que o apresentava como um antro de marginais e criminosos. Eles
temiam que eu fosse também da imprensa e que estivesse à busca de
estórias sensacionalistas para contar, impressão esta que se diluía à
proporção que ia falando da pesquisa, mas que, às vezes, dava apenas
lugar ao outro papel que me imputavam: a de enviada do governo.
Enquanto me viam assim, exageravam suas dificuldades para que
possivelmente eu as incluísse em alguma lista ou fizesse uma ficha que
as tornasse candidatas a receber a ajuda paternalista do Estado nos
moldes que a Igreja local lhes oferece.
Se, por um lado, isso era uma indicação segura da imagem
paternalista forte do Estado que ainda impera entre os pobres urbanos,
por outro lado, a bem da pesquisa, era uma impressão que devia ser
superada. E essa impressão eu só conseguia desmantelar quando os
desenganava nesta expectativa: eu não lhes traria nenhuma comida,
nem o governo para o qual eu trabalhava iria enviá-la posteriormente.
Com isso fui dispensada por vários candidatos à entrevista e agredida
por outros que se negaram a das informações que não resultassem em
benefício imediato para eles. Esta recusa também pode ser considerada
como um dado significativo: a de que a parcela dos pobres urbanos se
nega à relação com membros das classes ricas, das quais eu era uma

220
representante, que não esteja montada na reciprocidade entre ricos e
pobres tal como eles a definem, pelo menos neste espaço que eles
percebem como o espaço da sua liberdade e de seu poder de decisão: a
sua casa.
Entre os que aceitaram apesar de tudo a entrevista, a expectativa
paternalista tinha outros desdobramentos: a pesquisadora poderia
funcionar no esquema clientelista como arranjadora de empregos,
como árbitro de suas disputas e de suas “razões”, como comissão
julgadora de seu valor e prestígio. Assim, fui solicitada, de uma forma
em que se misturavam o respeito e a esperteza, a arranjar empregos
para os seus filhos, já que são os jovens os que encontram mais
dificuldade no mercado de trabalho, como se verá a seguir. Na minha
recusa de exercer tal função, eles passaram a ver uma incapacidade
minha de estabelecer com eles uma relação de poder baseada no favor.
Porém deixei-os entender que eu não vinha em busca de votos nem
tinha outro interesse que não fosse ouvi-los. Depois que se criou esta
minha imagem, mais condizente com meu papel de pesquisadora, as
entrevistas desenrolaram-se num outro sentido. Eu me fazia sempre
acompanhar por amigos do local que me apresentavam às pessoas e
segui, sempre que possível e de acordo com os tipos de famílias que
tinha em mente, suas redes de vizinhos e amigos.
O fato de estar acompanhada por alguém do local facilitava
também o aparecimento, no discurso dos entrevistados, da
identidade social do morador e da identidade mais ampla de pobre,
categoria sempre presente na sua fala, especialmente quando se
referia à comida que comiam. Tanto é que só nas poucas entrevistas
isoladas que fiz surgiu a atitude, no entrevistado, de procurar elevar
o seu status social junto a mim, falando de uma comida variada e
elaborada, que não faz parte da dieta alimentar usual dos
moradores, como um meio de se destacar deles. Isso facilitou o
entendimento, junto a outras oposições aparecidas na fala de todos

221
os entrevistados, do que eles concebiam como comida de pobre.
Essa atitude é mais nítida entre os que têm a pretensão à ascensão
social.2
Na escolha das famílias a serem pesquisadas, obedeci a dois critérios
básicos: queria entrevistar famílias em diferentes níveis de renda e em
diferentes fases do ciclo familiar, mas que pertencessem aos grupos
socioeconômicos mais carentes, isto é, os assalariados da indústria
diretamente ligados à produção, os assalariados do setor de serviços e
os trabalhadores por conta própria do terciário, não estabelecidos. Para
isso, escolhi famílias que moravam em casas e apartamentos
considerados como habitação dos mais bem favorecidos nestes grupos,
e famílias que moravam em casas de triagem, as casas grátis ocupadas
teoricamente de modo provisório e que abrigam famílias de renda mais
baixa. Procurei também as famílias chefiadas por mulheres e as que
tinham muitos filhos de várias idades, as que tinham filhos menores de
10 anos de idade, as que tinham filhos maiores do que 10 anos ou
poucos filhos, pois os dados estatísticos indicavam-nos que, em média,
os primeiros tipos de família estavam concentrados nas classes de renda
mais baixa, ao passo que os dois últimos tipos – as famílias com filhos
maiores do que 10 anos, ou poucos filhos – concentravam-se nas
classes de renda superiores a estas.
Estas indicações dos dados quantitativos de que dispúnhamos foram
confirmadas no trabalho de campo, embora variassem os arranjos
2
As dificuldades encontradas nas entrevistas e que têm efeito sobre a confiabilidade
delas, mostram-nos com clareza os cuidados que se deve ter na preparação de
pesquisadores neste gênero de pesquisa e no manuseio de dados que foram
recolhidos por pesquisadores não preparados. Mesmo a comida feita na presença do
pesquisador leva em conta essa presença, e pode também ser alterada nos dois
sentidos apontados: no sentido da falta, quando a imagem do pesquisador forma-se
baseada na ilusão de que à sua visita se seguirá a ajuda do governo; no sentido da
mesa mais farta, seja para esconder a pobreza da qual sentem vergonha, seja para
impressionar o pesquisador, visto como alguém de classe superior e, portanto, com o
poder de julgá-los socialmente. E essas alterações não se anulam mutuamente no caso
das séries estatísticas, pois que a primeira parece ser a mais comum entre os muito
pobres no Rio de Janeiro.

222
internos a cada família do mesmo tipo e, portanto, existissem poucas
regras gerais no que se refere à divisão do trabalho e, especialmente, à
alocação da mão de obra familiar no mercado de trabalho.

Família trabalho remunerado


Entre as 31 famílias estudadas, todas encontradas nas classes de
renda que variavam entre ¼ de salário até um salário-mínimo per
capita, apenas em cinco delas o chefe trabalhava para sustentar toda
a família sem receber ajuda de outros membros. Nestas, a mãe não
trabalhava por ter filhos pequenos, fator este que sozinho não pode
explicar a ausência da mulher no mercado de trabalho, já que, em
outras famílias, a existência de filhos pequenos não impede que a
mulher trabalhe fora de casa no caso do marido ausente ou
desempregado. Já quando o marido tem emprego regular e ganha
mais do que o salário-mínimo, nestes grupos socioeconômicos a
mulher, mesmo quando seus filhos já estão crescidos, permanece
em casa ainda que faça pequenos e esporádicos biscates para os
moradores do local, de modo a obter uma renda própria. Essa
complexa questão da alocação da mão de obra familiar, portanto,
não é entendida quando se considera apenas o ciclo familiar ou
classe social da qual faz parte a família. O trabalho remunerado da
mulher prende-se à concepção difundida nas classes populares
urbanas relativa ao destino, no consumo familiar, da renda auferida
por cada membro, daquilo que é considerado como obrigações do
homem e da mulher, no modo como eles constroem os papéis
conjugais. Na mesma perspectiva deve-se entender o trabalho dos
filhos. Isto ficará mais claro na seção seguinte deste relatório.
Essa concepção da divisão interna de responsabilidades, o fato
de que todo o equipamento doméstico é considerado como
propriedade da mulher, bem como a própria noção de

223
reciprocidade entre o marido e a mulher, na verdade, sempre
impulsiona esta última a procurar renda própria, que ela obtém
através dos muitos esquemas de trabalho remunerado que ela pode
conseguir saindo de casa ou não, embora só no primeiro caso eles
afirmem que a mulher trabalha. Essa ideologia que cerca e esconde
grande parte do trabalho remunerado da mulher, aquele que é
realizado dentro de casa, explica por que encontramos diferenças
tão marcantes entre as taxas de participação da mulher da força de
trabalho ao compararmos os dados do PNAD e do ENDEF. Mas a
intensidade deste trabalho e o percentual da contribuição da mulher
à renda familiar são de tal modo variáveis que dificilmente
poderíamos concluir que houve um aumento da contribuição da
mulher à renda familiar, se usarmos as categorias simples
trabalha/não trabalha, especialmente quando a invisibilidade acima
indicada parece ter sido superada, como se dá no caso dos dados
do ENDEF. Talvez ainda mais importante do que o número de
horas trabalhadas – que, no trabalho realizado dentro de casa, é
difícil de ser calculado pela mulher, já que ela o realiza segundo o
ritmo do outro trabalho que executa, o doméstico, não remunerado
– ou ainda mais importante do que a proporção da contribuição da
mulher à renda familiar seria o destino, dentro da pauta de
consumo da família, da renda por ela auferida. A mulher que
contribui para a compra de mantimentos encara a sua contribuição
de maneira muito distinta da daquela que contribui comprando
uma geladeira ou roupa para as crianças. Nos dois casos a
contribuição tem significados diferentes para ela e para a família, já
que na divisão de responsabilidades não lhe cabe a compra dos
mantimentos, mas é esperada sua contribuição nos outros itens da
pauta.
Portanto, o trabalho remunerado realizado pela mulher que tem
muitos filhos ou filhos pequenos dentro de casa pode ser destinado
à compra dos itens básicos da alimentação, o que ela encara como

224
uma ajuda ao marido e um sinal evidente de que a renda dele não é
suficiente para “sustentar” a família. É aqui que se introduz um
desequilíbrio no sistema de reciprocidade entre marido e mulher e
que se instaura, desse modo, uma experiência de privação.
Quando a renda da mulher apenas contribui para os outros itens de
consumo, ela não está “ajudando” ao marido, mas cumprindo parte de
sua obrigação com a família e exercendo seu controle efetivo na esfera
doméstica. Afora o caso do salário insuficiente do marido para “botar
comida dentro de casa”, a mulher, que é mãe de família, passa a
trabalhar fora de casa regularmente quando inexiste o marido, isto é,
quando é ela própria o chefe, ou quando o marido está desempregado
ou ainda quando sua estratégia de consumo os leva à compra de
eletrodomésticos ou de mobília. Em 10 das 31 famílias estudadas, a
mulher usava o seu salário na compra de fogão, geladeira, televisão ou
peças de mobília e, às vezes, deixava de trabalhar depois de pagas as
prestações, caso houvesse alguém que permanecesse na chefia da casa.
É isso que, aliado ao fato de que muitas deixam de trabalhar
alegando doença ou cansaço e recorrem ao biscate feito no próprio
local de moradia, atesta outra característica do trabalho feminino: a sua
intermitência, as passagens constantes do assalariamento ao biscate.
No local de moradia, as possibilidades de biscate são variadas, mas
todas elas possibilitam um retorno muito baixo, o que aponta para os
limites do trabalho realizado dentro de casa pela mulher. A maioria
delas exercia funções de pequeno comércio: vendiam cerveja e
refrigerantes comprados no revendedor, sorvete e doces por elas
mesmas confeccionados. Poucas (três entre as 31 famílias) costuravam e
poucas (duas) prestavam serviços pessoais de cabeleireiro às vizinhas.
Assim, a faxina feita esporadicamente permanecia sendo o meio mais
rápido e efetivo de complementar a renda familiar, mas exigia que a
mulher tivesse contatos, “soubesse andar”.

225
Essa expressão “saber andar” é constante na fala das mulheres.
Significa tanto conhecer pessoas que possam exercer a função de
patrão, quanto saber andar na rua procurando os órgãos estatais que
conferem documentos, auxílios, licenças ou até mesmo encontrar
assessoria jurídica nos raros casos em que a esta recorrem, já que
usualmente procuram um político populista para ajudá-las a resolver as
questões.
No caso dos documentos de trabalho, não tão importantes para a
mãe que permanece sendo trabalhador autônomo não estabelecido,
“não saber andar” torna-se um problema sério para a que trata de
arranjar emprego para filhos menores que 18 e maiores do que 13
anos, os quais, nestes grupos socioeconômicos, têm grande
preocupação de se empregar. Sem a carteira de trabalho, o
emprego é impossível e, portanto, o rapaz prolonga sua atividade
usual dos meninos acima de sete anos, qual seja, a de fazer biscate
em feira (carreto) e nas ruas da Zona Sul (vendendo doce),
participando na renda familiar o suficiente apenas para os seus
pequenos gastos com roupa, material escolar e guloseimas que as
crianças gostam de comer. A ajuda à família, que significa participar
na compra do que é consumido coletivamente pela família, é
teoricamente exclusiva dos filhos que, nesta faixa de idade,
conseguem emprego. Mas, na prática, a renda dos pequenos
biscates das crianças entra também para fechar buracos no
orçamento ou comprar um “extra” na alimentação.
A pressão exercida sobre os filhos menores para que se empreguem
não é a mesma em famílias chefiadas por homens e famílias chefiadas
por mulheres. Nestas, o investimento na busca de um emprego para o
jovem é bem maior e existe a clara tendência a torná-lo o chefe de casa,
isto é, aquele que faz as compras mensais ou semanais no
supermercado e “bota a comida dentro de casa”. Esta passagem garante
ao rapaz um novo status na família e possibilita à mãe retornar à
posição usual de trabalhadora intermitente e móvel. Nas famílias deste

226
tipo que encontrei (três) os filhos entregam quase todo o salário à mãe,
fazendo as compras. Nas famílias em que o marido está presente, os
filhos apenas ajudam a mãe sem que haja uma regra clara de a quanto
deve montar essa ajuda. Quando vários filhos trabalham, a proporção
de sua ajuda não é a mesma: vai depender da proximidade da relação
com a mãe, o que muitas vezes não é decorrência da ordem de
nascimento, e da preparação na época para um futuro casamento. Os
que pretendem casar-se passam a economizar para si próprios,
desmanchando os laços de solidariedade que os ligam à família de
origem. Em geral, nas famílias grandes, tem sempre um que ajuda mais
a sua mãe e que, por isso, retarda a decisão de casar.
Digna de nota é a ocorrência comum de famílias com agregados, em
geral sobrinhos ou sobrinhas cuja mãe morreu ou não os pôde criar.
Estas crianças são tratadas como os filhos – se meninos, encaminhados
cedo para o biscate na feira e, posteriormente, para o trabalho
assalariado; se meninas, ensinadas nas tarefas domésticas nas quais
ajudam a mãe e, segundo as necessidades da família, encaminhadas ou
não para emprego como empregada doméstica.
Em algumas destas famílias notei um investimento maior na
educação formal destas meninas, isto é, um prolongamento na
escolaridade até o ginásio, mas a preocupação com a sua formação
técnica limitava-se à datilografia. Já os meninos frequentam, na maioria,
as escolas técnicas do local: a FEBEM e as escolas do SENAC e
SENAI que funcionam no Centro Social Urbano, da Secretaria de
Desenvolvimento Social do Estado do Rio de Janeiro. No entanto, essa
formação técnica não garante emprego aos jovens, já que, segundo os
entrevistados, é preciso aprender a lidar com a máquina específica em
que se vai trabalhar na empresa, fábrica ou oficina e se acaba
recebendo muito pouco como aprendiz, quando se consegue o
emprego, já que os encargos trabalhistas e a vigilância exercida pelo
Estado sobre o trabalho do menor desencorajam os patrões a contratá-
los.

227
Ainda mais grave é o caso dos menores de 14 anos que fazem os
biscates indicados acima e que, não raramente, são presos pelo Juizado
de Menores e enviados para uma das colônias da FUNABEM. É grave
porque isso obriga os pais a verdadeiras peregrinações até conseguir
soltá-los e porque, embora pouco, o dinheiro por eles conseguido é
fundamental na manutenção do equilíbrio no orçamento doméstico, já
que esses meninos, como os moradores dizem, ajudam os pais “se
criando”, isto é, arcando com suas próprias despesas em vestuário e
material escolar e vez por outra possibilitando à mãe comprar um
“extra” para enriquecer a mesa familiar: um pedaço de carne, frutas etc.
Essa prematura independência dos filhos é um ponto sensível nas
relações entre pais e filhos e cria, por outro lado, fortes tensões. É
através dela que se rompe o esquema de vigilância materno através do
qual as crianças vão se socializando ou adquirindo os valores morais de
seu grupo e os expõe à influência das quadrilhas de traficantes de
tóxicos e assaltantes, para os quais começam a prestar pequenos
serviços (“mandados”) em troca de uns “trocados”. Todas as mães por
mim ouvidas expressaram receio quanto a essa influência nas
recomendações que fazem, demonstrando ao mesmo tempo certa
impotência quanto à capacidade que tinham de anulá-la. Impotência
essa tanto maior quanto mais trabalhassem fora de casa, deixando
sozinhos os filhos.

Consumo e renda: papéis familiares e


lógica de consumo
Em todas as famílias entrevistadas, ficou patente que era a mulher dona
de casa quem controlava o orçamento doméstico, ou seja, aquele que é
destinado ao consumo coletivo da família ou do grupo doméstico. Esse
controle expressa-se na sua fala através da oposição que elas próprias
fazem entre “estar controlada” e “se descontrolar”. Estar controlada

228
significa basicamente usar os mantimentos que foram comprados no
início do mês ou da quinzena no supermercado, ao longo do mês, de
modo que durem até o final, sem fazer “comida demais”, sem “botar
fora”, mantendo as outras contas (casa, luz, gás) em dia. A importância
fundamental da comida nesta hierarquia de consumo fica clara nas
afirmações ouvidas constantemente de que “o dinheiro tem que dar
para a comida”, ou que “a comida não pode faltar”, afirmações essas
que se referem tanto ao papel masculino de botar a comida para
dentro de casa quanto ao papel feminino de controlar o consumo,
economizando na compra e não desperdiçando na produção do
alimento dentro de casa. Descontrolar-se significa perder a capacidade
de efetuar todos os pagamentos dos itens básicos (nesta ordem: a
comida, o gás, a luz e a casa), deixando faltar algum deles e criando a
perspectiva de endividamento progressivo ou de privação e fome.
O espectro de fome é tanto mais compreensível quando se percebe
que a contribuição do marido no orçamento doméstico, nas classes de
renda mais baixa, limita-se à compra dos mantimentos no
supermercado e, caso seja desviada para outro item, resultará em final
de mês sem comida de dentro de casa. Esta possibilidade, sempre
presente e temida, efetiva-se quando um caso de doença na família ou a
necessidade de “andar”, gastando dinheiro em transporte, cria buracos
no orçamento. Os gastos com remédios e a própria doença da mãe ou
do pai têm efeitos catastróficos sobre o controle frágil que exercem
sobre o seu orçamento. Caso não tenham poupança, o que é usual, a
recuperação dá-se através de mais biscates para um dos membros da
família, que passa a trabalhar ainda mais, ou pela venda de algum
equipamento doméstico, o que não é fácil entre eles. Por isso mesmo
se explica por que tantas mulheres me revelaram que guardam
secretamente um pouco de seu dinheiro enquanto estão trabalhando
fora.
O que é a comida de dentro de casa, termômetro do papel
masculino bem desempenhado? Na verdade limita-se ao que eles

229
chamam as compras e que consiste nos vários quilos de feijão (de 4 até
20 quilos mensais por família), de arroz (de 2 até 15 quilos mensais por
família), dos pacotes de macarrão com que às vezes substituem o arroz
e que se tornou elemento básico de sua dieta, da farinha, do óleo e do
sal, afora o pouco material de limpeza que compram. Estas “compras”
são em geral feitas pelo chefe de família e cabe à mulher, então,
economizar para que durem até o próximo pagamento. Se o dinheiro
do chefe não dá para as compras, então a mulher ou algum filho
“ajuda” o chefe, sinal de que este não consegue sustentar a família, o
que o diminui ante os seus olhos. Bom marido é aquele, portanto, que
gosta de trabalhar, isto é, que prolonga suas horas de trabalho de modo
a poder arcar sozinho com essa despesa.
Nos demais itens não é desabonador para o homem destes grupos
socioeconômicos receber ajuda dos outros membros. Ao contrário, ela
é esperada: a mulher que vive pedindo dinheiro ao marido para
pequenas despesas com ela e as crianças não está desempenhando bem
o seu papel. E é neste item da pauta que entra a sua arte de orquestrar
o seu trabalho e dos outros membros da família para compor a cesta de
consumo básica do trabalhador urbano e que inclui tanto o vestuário
quanto eletrodomésticos que já ali conquistaram o seu lugar: a
geladeira, o fogão a gás, a televisão.3
Quando é o marido ou o filho quem compra para a dona de casa
esses eletrodomésticos, que na concepção deles fazem parte do
equipamento doméstico e são, portanto, propriedade da mulher, ela
diz que “meu marido me deu a geladeira ou me ajudou comprando a
geladeira”. Geralmente é ela própria quem planeja esta compra,
fazendo uso do mercado de segunda mão e das relações clientelísticas
com patroas que vendem barato ou dão os eletrodomésticos usados,
especialmente geladeira e televisão. A igreja local cumpre também essa
função de transmissor de riquezas através de uma mistura de prática
3
Em todas as 31 casas que visitei, encontrei fogão a gás, apenas em duas delas não
havia televisão e em três não havia geladeira.

230
assistencial com prática de mercado de segunda mão, vendendo muito
barato os eletrodomésticos e roupas que lhe são doados pelas famílias
mais ricas de outros bairros da cidade. Quando a mulher tem trabalho
regular ou assalariado, como já foi dito acima, caso exista outro
membro da família que ajude ou que se responsabilize na “comida”, ela
investe na compra a prazo destes bens novos, com o dinheiro que
recebe.
Do mesmo modo, anotei casos em que o atraso no pagamento da
casa era resolvido através do expediente de dobrar o turno de trabalho
e trabalhar durante as férias. Seguida a hierarquia assinalada – primeiro
a comida, depois o gás e a luz e por fim a casa 4 – a mulher vai jogando
com as várias fontes de renda da família, aí incluindo o salário-família
curiosamente reservado em mais de uma família para a compra do gás,
remanejando quando necessário para gastos extraordinários e que
exigem um investimento maior. Nos vários casos em que as mulheres
guardavam dinheiro, escondendo-o em casa ou colocando na caderneta
de poupança, elas o faziam com fins explícitos de melhorar a casa,
comprar eletrodomésticos ou mobília e ainda comprar roupas novas no
Natal, única época em que as famílias mais pobres parecem investir em
vestuário para os seus membros. Essa poupança em alguns casos era
feita com as pequenas quantias conseguidas pelas crianças nos seus
biscates e aí a finalidade explícita era comprar-lhes roupas.

4
Note-se que, neste conjunto, a casa pode ser colocada em quarto lugar porque já está
assegurada, seja nas casas de triagem que são grátis, seja nas casas compradas na
CEHAB, cujo atraso nas prestações não implica em despejo. Mas a ameaça de perder
o abrigo e sua importância na hierarquia de consumo dos pobres fazem-se sentir nas
afirmações dos moradores locais sobre a escala mais baixa da pobreza, isto é, a
miséria que é descrita com o trinômio do desemprego, da fome e da falta de casa para
morar. Do mesmo modo, os esforços empreendidos pelos que moram em casas de
triagem e que nunca se ausentam delas mais de um dia, para protegê-las de invasão
por terceiros, ameaça esta sempre presente, ou de perder o apoio dos funcionários
locais da CEHAB, indicam o lugar estratégico da moradia na sua sobrevivência. Estes
dados não negam, portanto, os de outros estudos sobre trabalhadores urbanos de
baixa renda e que colocam a comida e a moradia como os elementos essenciais da
sua sobrevivência e identidade social (Marin, 1977; Oliveira, 1977; Marcier, 1977).

231
Dependendo da estratégia de consumo da dona de casa em questão,
essas pequenas quantias podiam também ser usadas para melhorar a
dieta alimentar, comprando na feira ou no açougue os “extras” de sua
dieta básica, ou seja, comprando “pão, leite, carne, coisinhas…” ou
“uma verdurinha na feira”.
Não surpreende, portanto, que, dentre as reivindicações dos
moradores locais mais ouvidas por mim, figure em posição de
importância crucial a criação de empregos para os jovens e a permissão
de trabalho para o menor. Esta, junto com a reivindicação de que “o
governo” baixe os preços dos gêneros alimentícios, era considerada
como medida efetiva na solução de problemas dos pobres e oposta às
práticas assistenciais de distribuir comida, que serviam apenas para
tapar os buracos momentaneamente. Isso era ouvido das mães com
filhos em idade de trabalhar, mas não das mulheres chefes ou mulheres
com muitos filhos que contavam com essa ajuda externa à família para
não passar fome.
É no item vestuário que parecem surgir os conflitos mais claros entre
o consumo coletivo da família e o consumo individual dos filhos mais
velhos. As primeiras queixas das moças de que os pais “não dão
dinheiro pra roupa” podem servir de incentivo para a entrada no
mercado de trabalho, procurando o assalariamento. Mas, tanto no caso
delas quanto no dos rapazes que têm trabalho regular, o conflito pode
reaparecer devido às exigências de ajuda à família e o interesse, próprio
da idade, de ter roupas bonitas. A roupa, para os jovens, torna-se o
item principal na sua hierarquia de consumo, o que colide com a
definição da hierarquia de consumo da família, dando ensejo a
conflitos de lealdade e prenunciando a sua próxima saída do grupo
doméstico.

Comida e pobreza
232
A comida é um dos principais veículos através do qual os pobres
urbanos pensam a sua condição. A primeira, associação que fazem ao
falarem do que comem é com a pobreza. É ela que explica a dieta que
conseguem manter. É ela que explica a preocupação constante com a
possível falta, e a ginástica efetuada no orçamento doméstico para que
se chegue até o fim do mês “com comida dentro de casa”. É ela que
explica o constante cuidado com o “controle” e a “economia”. É ela
que explica o ciclo da relativa “fartura” no início do mês, quando até se
compra carne, e o “passar mal” do final do mês, sem carne, sem o
dinheiro da feira e às vezes até sem feijão.
Mas na fala dos entrevistados a categoria pobreza muda de posição
para marcar limites entre os que se incluem e se excluem no grupo dos
pobres de tal modo que parecem se contradizer. Na verdade, a mesma
categoria é pensada para opô-la aos ricos e para opô-la aos muito
pobres, aos que passam fome. Se o pobre é aquele que trabalha para
comer, mas tem saúde, tem força para trabalhar, então pobre mesmo é
o que “não tem saúde”, “não tem comida dentro de casa”, tem que
“pedir esmola”. Neste raciocínio eles apontam para a situação extrema
que sempre os ameaça: o sofrimento, o desemprego, a ausência de
dinheiro e de alimento. Do mesmo modo, na sua fala opõem a situação
por eles vivida enquanto pobres e que se caracteriza pela comida que
não varia e pela impossibilidade de comer carne todos os dias à
situação dos outros que variam a comida e comem carne. 5 Comer

5
Confirmamos, assim, as conclusões de outras pesquisas sobre a oposição entre
passar bem e passar mal na construção da identidade de pobre (Oliveira, 1977;
Velho, 1977; Marcier, 1977; T. L. Silva, 1977). Vista sob esse prisma a comida passa
a representar uma medida de privação, especialmente nos produtos alimentícios
valorizados por serem “fortes” e que atuam como fontes de prestígio e respeito social.
A literatura sobre trabalhadores rurais, por exemplo, sugere que o preço da farinha e
a quantidade dela que o trabalhador pode comprar em diferentes épocas funciona
como medida de sua privação atual (Sigaud, 1973). O mesmo se daria entre operários
industriais diaristas ou serventes no Grande Rio, para os quais o principal referente na
avaliação do salário é a capacidade de cobrir as despesas com os itens básicos da
alimentação (Pereira, 1979). Estes trabalhadores comparam seu salário com o preço
da carne, inacessível, e como preço do feijão e arroz na quantidade que ainda podem

233
carne todos os dias marca uma fronteira nítida que separa os pobres
dos não pobres e a carne passa a representar, na sua falta, a própria
carência em que vivem. Ela é um símbolo poderoso de prestígio social
e riqueza e era sempre acionada quando o entrevistado queria
impressionar o pesquisador com a sua prosperidade. Além de ser
considerada como um alimento forte e bom para a saúde, a carne
simboliza a queda do padrão de vida dos que vieram do campo, onde
havia fartura, ou, mais geralmente, a escassez do atual padrão, o limite
da renda, a eterna insatisfação alimentar.6
É dentro desses parâmetros estabelecidos pelas suas condições de
vida e pensados por eles dessa forma, e que inclui sempre a
virtualidade de passar fome, que devemos entender suas escolhas
alimentares. Dizer que essas escolhas foram guiadas por um instinto
que os leva a optar pelos alimentos mais nutritivos e mais acessíveis
seria simplificar a questão, já que as práticas alimentares são inculcadas
nas crianças, muitas vezes com resistência. São escolhas culturais,
portanto, que não se explicam pela referência a uma racional idade
nutricional “natural”,7 ou pela visão economicista que as relaciona

comprar. Em Cidade de Deus, esse tipo de medida de privação estava presente na


fala dos trabalhadores dos três mencionados grupos socioeconômicos e se expressava
por meio de afirmações do tipo “o salário não dá”, “para não passar fome o pobre
hoje tem que se virar”, “hoje o pai de família tem que trabalhar de segunda a segunda
para o dinheiro dar”.
6
E o que Antônio Candido (1971: 156-158) chamou de “fome psíquica”, que, ao lado
da subnutrição permanente que advém da dieta pobre do caipira paulista, exprime as
condições insatisfatórias de sua existência. Se as substituições alimentares, isto é, a
compensação pela falta de alimento caro e rico em nutrientes, como é a carne, por
outros menos caros e ricos como os glicídios que constituem a base da dieta alimentar
caipira, conseguem manter o rendimento muscular e o relativo equilíbrio orgânico, o
desejo permanente desse alimento querido não é por elas apagado. Diz ele: “O fato é
grave quando lembramos que a desejabilidade do alimento constitui fator ponderável
no seu aproveitamento orgânico; e que semelhante privação pode dar lugar a
insatisfações psíquicas mais ou menos ponderáveis. Daí um recalque permanente que,
juntando-se a outros, irrompe por vezes através da turbulência e da embriaguez”.
7
Essa ideia de uma racionalidade nutricional natural é questionada em estudos
interdisciplinares recentes reunidos na revista Communications (1979) e que

234
diretamente e exclusivamente à baixa renda. A relação entre a pobreza
e a alimentação escolhida não é apenas decorrente daquilo que o
dinheiro pode ou não comprar, mas passa por inúmeras mediações de
ordem ideológica e até mesmo psicológica.
Na ideologia dos pobres urbanos do Rio de Janeiro, corno de outras
áreas do Brasil, a categoria comida é fundamental na articulação do seu
pensamento sobre alimentação. Existem alimentos que são comida e
outros que não são. Comida é basicamente feijão, arroz e carne. As
verduras, os legumes, as frutas, no seu discurso, aparecem sempre
como alimento que serve para “tapear” e frequentemente vêm na
forma diminutiva “saladinhas”, “verdurinhas”, “coisinhas”, que “não
dá”, que “não satisfaz”. Do mesmo modo, o arroz sem o
acompanhamento do feijão vira “arrozinho” e comê-lo assim é
considerado passar fome. A pessoa que não ingere comida, seja porque
não pode comprar o que é comida, não come: “faz lanche”, “tapeia”, e
os resultados desse tipo de alimentação são vistos como catastróficos: “a
pessoa emagrece”, “fica só no osso”, “morre”. O que não é comida
pode incluir peixe, canja de galinha, frutas, verduras. E não são comida
porque não “sustentam”, não “enchem a barriga”, não “satisfazem”,
não são “fortes” enfim. Podem e são usados frequentemente como
complemento da comida, já que “ajudam”, “compõem o prato”, “têm
vitamina”. Em outras palavras: quem não come feijão com arroz está
passando fome, sendo que desta mistura o arroz é o único elemento
que pode ser substituído, ou por macarrão ou por farinha. E a
substituição da carne pelo ovo, peixe, mortadela ou linguiça, prática

comparam escolhas alimentares de várias partes do mundo. Garine (1979: 73) conclui
que “as sensações táteis, gustativas e olfativas procuradas no consumo alimentar são
forjadas na primeira infância e profundamente marcados pela cultura; elas alimentam
os estereótipos que opõem diferentes sociedades no plano gastronômico”. E mais, “o
mesmo se dá com as sensações que advém da cinestesia: a valorização do sentimento
de repleção. A passagem da barriga cheia ( ventrée securisante) a uma cozinha
refinada, caracterizada pela multiplicidade dos estímulos sensoriais e um menor
torpor digestivo, que permite a conversa, fez-se de modo relativamente recente na
civilização francesa”.

235
também usual entre eles, dá-lhes apenas uma medida de sua eterna
“falta”, de sua condição de pobres que não têm dinheiro para comprar
o alimento que mais valorizam: a carne, a comida mais “forte”, a que
tem mais vitamina.
Mas não se trata apenas de uma avaliação dos nutrientes que cada
alimento contém, pois eles sabem que frutas e verduras têm vitaminas e
que o peixe tem fosfato e “é bom para cabeça”. A ruptura com esse
padrão, a recusa de aceitar a sua lógica só se dá entre os que se
identificam menos com a categoria de pobres, seja porque em termos
de renda estão na fronteira entre os dois grupos e, portanto, não vivem
o risco cotidiano de passar fome, seja porque por aspirações próprias
investem na ascensão social e imitam o modo de vida dos ricos. Estes
comem “comida variada” com frequência e valorizam claramente o
peixe, importando-se menos com a sensação de repleção que a comida
do pobre proporciona.
É, portanto, ao analisarmos com mais cuidado a oposição que
fazem, na sua fala, entre pobres e ricos, que descobrimos, por fim, o
operador dessa lógica que preside seus hábitos alimentares. Do mesmo
modo que opõem comida às “coisinhas que não enchem barriga”, o
único momento em que valorizam positivamente o ser pobre é quando,
comparando com o que comem os ricos, afirmam que “o pobre come
mais”, “está sem dinheiro no bolso, mas de barriga cheia” ou “o rico
não come, vegeta” ou “pobre enche barriga, rico belisca”. Afirmações
deste tipo sempre surgiram na sua fala, especialmente nas entrevistas
em que mais de um deles estava presente, o que favorecia a identidade
social dos pobres. Se analisadas superficialmente parecem contradizer
as afirmações, também constantes, de que “pobre passa mal”, “tem que
trabalhar muito para não passar fome” ou que “tem sempre alguma
coisa faltando”, estas afirmações não são contraditórias se vistas dentro
do quadro lógico de suas ideias acerca de comida. É que comida
propriamente dita, “comida que enche barriga”, é a comida de pobre
que o rico, por definição, não come. E essa é a comida que o pobre

236
tem que comer para “se sustentar”, para “ter força para trabalhar”. Ou
seja, é o feijão que “sustenta” e, “se não tem comida”, se não tiver
feijão, é a fome.
Que essas escolhas alimentares são culturais comprova-se pelo fato
de que as crianças têm que ser socializadas nelas, isto é, têm que
aprender a gostar delas, o que não se faz sem resistência. Inúmeras
mães reclamam que seus filhos “não gostam de comida” ou “não ligam
para comida”, o que as deixa preocupadas pela saúde deles. A
afirmação de que “pobre come de um tudo”, “pobre come o que tiver”
é sempre contradita quando as mães referem-se às preferências
alimentares dos filhos que “só gostam de bobagens”. Frutas, canja de
galinha, biscoito foram incluídos, junto com balas e doces, na lista do
que as crianças gostam de comer. Embora tenham conhecimento do
valor nutritivo das frutas que têm vitamina, estas não fazem parte de
suas prioridades e só são compradas quando há “dinheiro sobrando”,
isto é, depois que se compraram os mantimentos. E é claro que só
compram a fruta de época, a mais barata. O dinheiro da feira nem
sempre é garantido, gasta-se apenas se algo entra e na proporção do
que entra. É evidente que aqui opera também um cálculo econômico
do quanto rende, em termos alimentares, o dinheiro empregado em
comida, sendo que essa medida do rendimento alimentar faz-se
levando em conta o tempo que a comida permanece no estômago e a
quantidade de energia que produz. Cálculo este tanto mais importante
quanto mais se leva em conta o dispêndio de energia que seu esforço
de trabalho induz.
O processo de inculcação desses hábitos alimentares faz-se,
portanto, de um modo violento, e que às vezes inclui a violência física
também. A mãe obriga os filhos a comerem “a comida que todo
mundo come”, já que só “se faz a mesma comida para todo mundo”. A
opção por leite nem sempre é possível monetariamente, de tal modo
que antes de completar um ano as crianças já estão comendo feijão
com arroz. Não é de surpreender, portanto, que os sinais de

237
desnutrição estejam mais visíveis nas crianças. Ao lado de adultos
gordos, viviam crianças muito magras, com o corpo coberto de feridas
infecciosas e baixas para a idade. 8 O princípio seguido na distribuição
dos alimentos, feita pela mãe, segundo o qual recebe mais comida
quem come mais, favorece os que já “aprenderam” a gostar dos
alimentos por eles valorizados, deixando de lado as dificuldades infantis
de aceitar um alimento de que não gostam. E é provavelmente isso
também que explica o hábito, por eles condenado, da criança pedir
para comer toda hora. A substituição mais corrente para “matar a
fome” é, nestes casos, o doce, a bala, o Ki-suco e, quando há dinheiro,
o refrigerante, ingeridos em grande quantidade por onde andei. É que a
prática da “barriga cheia” ainda não se implantou completamente entre
esses seres em socialização. E, não menos importante, todos os
alimentos mencionados, condenados do ponto de vista nutricional, mas
que enganam a fome, são mais baratos do que o “leite”.9

8
A explicação para a desnutrição infantil mais acentuada, segundo essas observações,
não está numa pretensa hierarquia na distribuição dos alimentos entre os membros da
família, segundo sua participação no mercado de trabalho. Não registrei nem um só
caso de preferência pelo homem que trabalha, exceção feita aos operários de
construção civil que levam marmita para seu trabalho. Apenas neste caso, a comida
melhor é reservada para ele, de modo a não envergonhá-lo na frente dos colegas. O
princípio que preside a distribuição feita pelas mães, segundo todas as entrevistadas, é
o de encher mais o prato de quem come mais e encher menos de quem come menos.
Nas refeições que pude observar se deu o mesmo. Estas informações negam os dados
de outras pesquisas, segundo as quais haveria nas famílias de trabalhadores urbanos
pobres a norma de privilegiar a alimentação dos seus membros que trabalham,
servindo-os primeiro e melhor. Nas minhas observações nem a ordem, nem a
quantidade ou qualidade da comida favoreciam os que estivessem trabalhando
naquele momento. A distribuição é feita pela mãe quando presente, pela ordem de
chegada das pessoas, seguindo o princípio mencionado de avaliar suas necessidades
pelo seu tamanho e pela sua “disposição” para comer. Membros adultos, estivessem
ou não trabalhando, poderiam comer igualmente, dependendo de sua idade e sexo. É
claro que o desgaste de energia maior dos que trabalham pode terminar criando
diferenças na ingestão, o que é difícil de avaliar, por exemplo, no caso de jovens
rapazes que, quando desempregados, desprendem muita energia andando a procura
de emprego e jogando futebol.
9
Essa situação na nutrição infantil é ainda mais grave no caso dos bebês que, não
podendo ser alimentados adequadamente com o leite em pó excessivamente caro
para ser preparado na proporção correta para a idade, terminam recebendo misturas

238
Esta prática alimentar da “barriga cheia”, que tem a ver com as
escolhas alimentares feitas, já que feijão e carne são alimentos que
levam bastante tempo para serem digeridos, bem como a importância
dada à quantidade de comida, não é, porém, fruto apenas de uma
opção arbitrária dentro de um elenco de possíveis escolhas culturais.
Em primeiro lugar porque advém de uma limitação de ordem
econômica – é por não poderem comer carne e leite como gostariam
que os pobres os substituem por feijão, alimento este que ainda lhes
oferece a ilusão do estômago cheio, especialmente quando cozinhado
com banha, toucinho ou linguiça. Por isso mesmo, a sua falta é
associada à fome, à miséria, à morte. É que, nesta substituição, os
pobres conseguem as calorias e proteínas que necessitam para
sobreviver minimamente, empobrecendo sua dieta ainda mais em
outros nutrientes também essenciais à saúde do homem, 10 mas que não
podem obter.
Em segundo lugar, porque sua luta cotidiana contra a fome cria
mecanismos de defesa ou de compensação que os leva a preferir
alimentos de difícil digestão, entre eles incluídos e muito desejados, os
gordurosos. A importância da quantidade de comida no prato, a
valorização da “barriga cheia” como sensação prazerosa de repleção e
negação da morte, aparece junto à valorização estética da corpulência e
gordura, especialmente entre as mulheres.

que ainda não podem digerir, com muita farinha e açúcar, quando não são
alimentados a feijão e arroz. As informações, recolhidas na unidade de atendimento
médico local, confirmam esta observação, pois os casos mais comuns de atendimento,
e os casos mais graves, são as diarreias infantis constantemente repetidas por essa
alimentação inadequada e que terminam frequentemente em desidratação e doenças
infecciosas graves. Como possibilidade, resta averiguar os efeitos, sobre a alimentação
infantil, causados pela ausência da mãe que trabalha fora e deixa a comida preparada
para os filhos. Nas 31 famílias, em 15 a mãe mencionou esta prática, no presente ou
no passado, em que a responsabilidade pela distribuição justa e pela socialização dos
hábitos alimentares infantis é deixada para crianças, em geral pata a filha mais velha.
10
O mesmo observa Antonio Candido (1971: 151-158) em relação ao caipira paulista.

239
Observei inúmeros casos de obesidade entre eles, especialmente nas
mulheres de famílias matrifocais.11 Símbolo talvez de seu poder na
família, a gordura não é vista negativamente. Ao contrário, parece
imperar entre eles um padrão estético próprio – oposto ao padrão das
classes privilegiadas que valorizam a esbeltez feminina – de apreciar a
corpulência feminina.12 É claro que apenas nas faixas de renda mais
acima das faixas de miséria absoluta este padrão estético pode
desenvolver-se, o que não nega a sua existência. E é claro que a
corpulência dificilmente é alcançada pelos que exaurem suas energias
no trabalho para sustentar a família e talvez, por isso, a ocorrência seja
mais comum entre as mulheres. Esse padrão nos sugere a necessidade
de relativizar os dados estatísticos, especialmente os que se referem à
ingestão de calorias na população de baixa renda, nas suas diversas
classes de renda. O aumento constante na ingestão, conforme o
crescimento da renda familiar e a queda na ingestão nos níveis de renda
mais altos, pode ser explicado por esse padrão estético que valoriza o
acúmulo de gorduras no corpo e a prática da barriga cheia como
formas de lutar contra a constante ameaça de fome.

11
Famílias matrifocais são aquelas em que a mãe é a figura que permanece sempre e
que constitui o foco dos laços intrafamiliares, sendo a figura do pai transitória e
substituível. Em famílias deste tipo, característico das populações urbanas de baixa
renda no Brasil, as mulheres são as figuras mais importantes no estabelecimento de
suas redes de relações e na transmissão de valores morais do grupo. São figuras
poderosas que representam a lei e a proteção materna ao mesmo tempo.
12
O mesmo observa Ladurie (1979) e Nahoum (1979) na França dos séculos XVIII e
XIX. A gordura passando por boa nutrição, a magreza passa a significar fome, doença
e, portanto, pobreza. “Esta sublimação da obesidade é característica de todas as
sociedades subalimentadas onde a nutrição é para todos a preocupação essencial.
Inversamente, na sociedade de abundância, a repulsa que provoca a obesidade é tão
mais violenta que má nutrição e pobreza significam gordura ruim. A título indicativo,
entre as mulheres nova-iorquinas contemporâneas 91% dos pobres são obesos e 95%
dos ricos são magros” (Appelbaum & Lepoutre, 1978). “O pobre, mesmo quando
liberto de qualquer restrição, não se libera do medo visceral de falta que os séculos de
fome inculcaram na humanidade. Conjuntamente com esse medo, parece que ele
permanece fiel a uma estética de penúria que faz parecer belas e desejáveis as
mulheres gordas, viris e majestosos os homens corpulentos” (Tornier, 1976, citado
por Garine, 1979).

240
Em terceiro lugar, essas escolhas alimentares têm a ver com as
formas de organização da vida familiar e do trabalho que são próprias
às sociedades industriais modernas. No caso do feijão com arroz, a
facilidade de estocá-los por longo período – “botar a comida para
dentro de casa” – seguindo o ritmo de recebimento dos salários é, sem
dúvida, uma razão importante na sua escolha como alimento básico.
Afora o fato de que, pelo menos teoricamente, são produtos agrícolas
disponíveis o ano todo, não rareando segundo a estação. Aceita-se,
portanto, a barriga cheia com este alimento, que está longe de ser
completo ou rico do ponto de vista nutricional, porque não é incerto e
porque se pode estocá-lo em casa como garantia contra a fome. Daí a
importância das “compras” do mês e a sua atribuição ao chefe de
família. O próprio regime salarial parece favorecer, assim, o
aparecimento de dietas estereotipadas e monótonas, dietas essas que
passam a simbolizar a identidade social dos pobres que “comem
sempre a mesma comida”, por oposição aos ricos, que “comem
comida variada”.
Esta tendência é ainda mais reforçada pelo tempo gasto na sua
preparação. Cozinhar feijão e arroz é relativamente fácil e exige menos
tempo e cuidado de quem os cozinha. Como as mulheres também
contribuem para a renda familiar monetária, essa economia de tempo
não é desprezível, já que libera a mulher para as atividades dentro ou
fora de casa que resultam em renda para a família, fundamental na sua
luta contra a miséria. O tempo necessário para se preparar legumes ou
fazer comidas muito elaboradas não está disponível a todas as
mulheres, com exceção dos domingos, único dia em que se permitem
comer “variado”.
A comida “variada” passa a marcar, assim, o tempo de lazer, o
tempo do “não trabalho” que é, para eles, o domingo. E esse também é
o dia de reunião da família, quando todos comem juntos e o pai está
presente. A comida variada marca, então, a reunião, os rituais
familiares, tão importantes na transmissão dos valores e no

241
estreitamento das relações do grupo, e cuja execução rareia cada vez
mais, como rareia o tempo de lazer.
É nesta perspectiva que podemos entender a substituição do milho,
elemento ainda importante na dieta alimentar dos migrantes que
vieram do campo, e que desaparece da mesa do trabalhador urbano,
pelo feijão. A opção não se deve, provavelmente, à adaptação a
exigências nutricionais, mas a adaptação às condições criadas pelo
trabalho assalariado e horário de trabalho, que deixam menos tempo
disponível para a produção doméstica dos alimentos a serem
consumidos pela família. É que o milho, ao contrário do feijão, exige
uma preparação demorada, nos pratos mais elaborados, e não pode ser
estocado por muito tempo, no caso do milho fresco que é mais fácil de
preparar. O feijão pode tornar-se, sem muito dispêndio de tempo, um
prato mais rico e saboroso pela mera inclusão, na mesma panela, de
outros ingredientes valorizados e considerados gostosos.13 O feijão
possibilita economia de tempo também porque não precisa ser
cozinhado todos os dias. Em geral ele é preparado de tempo em
tempo, de dois em dois dias, às vezes de três em três dias, ao passo que
o arroz tem que ser cozinhado diariamente e o fubá de milho também.
A pobreza, portanto, não se expressa apenas nas taxas baixas de
ingestão de nutrientes, mas também no arranjo de uma dieta
estereotipada e monótona, na preferência por certos alimentos, que
contêm alguns nutrientes apenas em detrimento de outros mais ricos e
inalcançáveis monetariamente, na ilusão da barriga cheia como meio
eficaz de conseguir saúde e na valorização da obesidade pouco

13
O mesmo processo é registrado na África pela substituição de cereais tradicionais e
mais ricos do ponto de vista nutricional por outros cuja produção é constante no ano
todo e cuja preparação permite a economia de tempo no trabalho doméstico. O
acesso ao salário regular, no Senegal, mostra, por exemplo, uma tendência à adoção
de regimes estereotipados, mas não necessariamente equilibrados no plano
nutricional, fortes em glicídios, lipídios e proteínas, mas que deixam a desejar no
plano vitamínico, o que contrasta com os regimes alimentares dos povos tribais da
mesma área (Garine, 1979).

242
saudável, que lhes parecem meios indispensáveis na sua batalha diária
contra a fome.
Tanto é assim que, quando indagados sobre o que consideram
comida boa para a saúde, os entrevistados revelam conhecimento do
valor nutricional de frutas e legumes que “têm proteína e vitamina”, da
carne, do leite e dos ovos que “são fortes”, têm proteína, do peixe que
“tem fosfato” e “proteína também”. Esses conhecimentos gerais sobre
nutrição já parecem estar socializados, sendo constantemente
realimentados nos contatos com os médicos da unidade de
atendimento construída pela Secretaria do Serviço Social do Estado no
local.
A possibilidade de se conseguir uma dieta mais adequada
nutricionalmente não parece estar na informação sobre as qualidades
nutricionais dos vários produtos, mas na melhoria de suas condições de
vida, o que inclui tanto a renda quanto o regime de trabalho,
especialmente o da mulher, e a segurança de emprego. E a melhoria da
renda e das condições de trabalho não tem importância apenas sobre a
quantidade e qualidade dos nutrientes ingeridos. A comida, por tudo
que simboliza e por seu papel estratégico na vida social da família,
relaciona-se com a sobrevivência do grupo doméstico enquanto tal, que
se manifesta na divisão de trabalho indispensável a essa sobrevivência,
na execução de rituais e nas reuniões periódicas que reforçam sua
solidariedade e ordem internas, na inculcação de valores e regras
sociais sem os quais o grupo, enquanto sistema de relações, não pode
existir.

Bibliografia
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América Latina: uma revisão da literatura” [mimeo.]. Trabalho apresentado
no Seminário A mulher na força de trabalho na América Latina, Rio de
Janeiro, 1978.

243
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Janeiro, 1978.
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Ladurie, E. Le Roy. “L'allaitement mercenaire en France au XVIIIème Siècle”,
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movimentos sociais no CEDEC, São Paulo. 1977.
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Brasil 1920-1970”, Cadernos CEBRAP 13, São Paulo, 1973.
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Simpósio mexicano centro-americano de investigação sobre a mulher
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Marcier, M. H. F Costa. Padrões alimentares de um grupo camponês numa
situação de expropriação no estado do Maranhão [mimeo.], Museu Nacional,
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Marin, Maria Cristina Mello. Emprego e serviço: estratégias de trabalho e de
consumo entre operários de Campina Grande [mimeo.], Museu Nacional,
Rio de Janeiro, 1977.
Nahoum, Véronique. “La belle femme”, Communications 31, Ed. Seuil, Paris,
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Pereira, Vera Maria C. O coração da fábrica, Editora Campus, Rio de Janeiro,
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[mimeo.], Rio de Janeiro, 1978.
Sigaud, Lígia. A percepção do salário entre os trabalhadores rurais [mimeo.],
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Silva, Luis Antonio Machado da. “A oposição entre trabalho doméstico e o
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Silva, T. Lins e. Os curupiras foram embora [mimeo.], Museu Nacional, Rio de
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Velho, Otávio Guilherme. Relatório do programa de pesquisas sobre hábitos e
ideologias alimentares em grupos de baixa renda [mimeo.], Museu Nacional,
Rio de Janeiro, 1977.

245
“ENTRE NÓS, MULHERES,
ELAS, AS PATROAS, E
ELAS, AS EMPREGADAS”

SUELY KOFES1

Por que tal título?


Escolhi-o motivada por uma insatisfação e por uma procura.
Insatisfação diante do impasse a que geralmente acabam chegando os
debates que atualmente se fazem sobre a mulher, seja em uma
perspectiva acadêmica, seja militante. Falar da construção social da
Mulher tem na maioria das vezes levado ou à afirmação de sua
condição comum, isto é, Mulher com M maiúsculo e no singular, ou à
ênfase em suas especificidades. Ou se absolutiza a classe ou se
absolutiza a minoria.
A procura de uma terceira alternativa, e é aí precisamente que
visualizo a contribuição da Antropologia Social, seria realizar a tarefa de
precisar as singularidades da vivência feminina sem negar o seu
universo comum.
E é isto que eu gostaria de ensaiar aqui. Para isto refletirei sobre
a relação empregada doméstica/patroa conforme esta me foi
1
Nenhuma modificação substancial foi feita ao texto originalmente publicado em
1980. A pesquisa na qual ele se baseou foi concluída e seus resultados estão na tese
de doutorado intitulada Mulher, mulheres: diferença e identidade nas armadilhas da
igualdade e desigualdade – Interação e relação entre patroas e empregadas
domésticas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 1990.

246
transmitida pelas entrevistas, observações, textos jornalísticos e
literários e, claro, pela minha própria experiência como patroa.2
Permiti-me aqui, dado o tema de nossa conversa, falar do que se
expressa nesta relação a partir de um modelo bem geral. As maneiras
concretas como patroas e empregadas vivenciam esta relação está sob a
influência de vários fatores. A condição social da família empregadora,
o ciclo de vida da unidade doméstica, a presença maior ou menor da
dona de casa nesta unidade etc.
Falei acima da importância de se especificarem as vivências
singulares das mulheres no interior do seu universo comum enquanto
Mulher. Quero precisar a que me estou referindo. Não falo de uma
biologia, nem de uma natureza. Mas de um lugar e de sua significação.
Recupero aqui a ideia de que a definição do feminino passaria pela
atribuição de um lugar ao qual estão colados atributos que compõem e
expressam esta definição. Lugar, ele próprio, incorporado nesta
definição.
Ser mulher seria, portanto, constituir-se a partir do mundo
doméstico e ser parte constitutiva dele. Espaço que não é apenas de
tarefas, de esferas desenhadas pela divisão social e sexual do trabalho.
Mas local definidor da feminilidade. Ser mulher seria ser dona do
espaço doméstico. É também ser doméstica. O doméstico seria ele
próprio feminino.
É neste universo doméstico, lugar de construção e definição da
mulher e desempenho de papéis femininos, que se desenrola a trama
patroa/empregada.

2
Todas as falas de patroas e empregadas que utilizei neste texto são de patroas e
empregadas que estão na faixa de 20/40 anos. Algumas empregadas casadas e que não
moram no emprego, e outras solteiras e que moram. Há patroas que trabalham fora e
patroas que não trabalham. O material utilizado aqui é parte de um projeto mais
amplo. Estou desde 1978 realizando uma pesquisa em Campinas sobre o tema
“Relações de trabalho, cultura e ideologia: o caso das empregadas domésticas”.

247
Dividi este texto em três partes. Na primeira, “O domínio comum”,
mostro como patroa e empregada são, em um nível, donas de um
mesmo lugar. Na segunda, “Saber fazer, poder mandar”, mostro a
segmentação específica deste universo comum e, finalmente, na
terceira, “Presente, mas invisível”, saliento o mecanismo pelo qual se
procura negar à empregada a sua condição de pessoa e certas
dimensões de sua condição de mulher.

O domínio comum
A rede que interconecta patroas e empregadas é basicamente composta
por mulheres. Mesmo quando se trata de agências de emprego o
circuito estabelece-se entre mulheres. Três núcleos de recrutamento de
domésticas em Campinas, por exemplo, indicam esta constituição. Um
deles, uma das mais antigas agências de empregadas, possui duas
organizações que se sobrepõem. A que fornece várias categorias de
empregados é dirigida por um homem. A que fornece empregadas
domésticas funciona em outro andar e é dirigida pela mãe do
proprietário. Outro núcleo importante é ligado à Promoção Social da
Prefeitura e é composto apenas por mulheres, assistentes sociais em sua
grande maioria. Outro consiste em uma doméstica aposentada que
mora na casa da patroa onde tem atualmente atribuições de governanta
e que, sob o nome de “babá” e através do telefone, sem remuneração,
estabelece o contato patroa/empregada. Assim, empresa, instituição
assistencial ou redes informais, o circuito que estabelecem é
fundamentalmente feminino.
Que compartilham um mesmo mundo é algo que se expressa tanto
na fala de patroas e empregadas como na expectativa que cada uma tem
com relação ao desempenho da outra. Quanto à fala, por exemplo,
ouvi o seguinte diálogo entre duas empregadas:

248
– Como foi o rebu ontem?
– A mesma coisa de sempre. Elas se pintaram, se vestiram chique pra ficar
falando de nós.

As empregadas expressam muitas vezes a expectativa de que a


patroa seja amiga. A categoria “amiga” querendo dizer que a patroa
deveria ouvir a empregada, entender suas ausências ocorridas
devido aos problemas de sua própria unidade doméstica orientá-la,
ensiná-la. Várias patroas esperam que as empregadas desenvolvam,
como se fossem elas próprias, as tarefas que elas lhe alienam. Mas
nenhuma patroa explicitou a categoria amiga para designar a
empregada.
Este domínio comum mostra-se também através da tensão que,
creio, é constitutiva desta relação. Em algumas exigências cotidianas das
patroas, no desrespeito às regras do lado da empregada, nas discussões
entre as duas e finalmente nos momentos da despedida ou saída da
empregada. Algumas narrativas de patroas explicitam o que quero
dizer:

– Ela sempre me invejou. Eu vivia bem, me dava bem com meu marido,
tinha dinheiro. Ela sempre disse que queria ser como eu.
– Um dia eu fui até um barzinho e encontrei minha empregada com
minha roupa. Fiquei louca da vida, só faltava esta. Minha empregada
frequentando os mesmos lugares que eu e com minha roupa, é lógico que
foi mandada embora. Essa gente é perigosa.

Os motivos da saída ou despedida da empregada falam também desta


tensão. E deste universo comum. Não é raro empregadas serem
despedidas por roubo de objetos pessoais da patroa, por terem sido
flagradas fumando deitadas na cama da patroa, por estarem sendo mãe
quando deveriam ser babás dos filhos, sendo esposas do marido.
Quais são os limites do desempenho do trabalho e dos papéis? A
leitura simbólica das tentativas desta delimitação indica que é como se
houvesse no ar uma pergunta que ambas, patroa e empregada, se

249
fizessem incessantemente: qual é o meu lugar e qual o seu lugar aqui
dentro?
Tudo isto, é claro, tem sua intensidade maior ou menor quanto mais
a mulher-patroa quer reivindicar como seu o espaço doméstico. Há
aquelas que o negam. Quando isto ocorre é comum que as empregadas
cobrem da patroa uma presença maior.
Para tornar mais clara a tensão que é parte deste universo comum
gostaria de contar uma briga que me foi narrada por uma empregada e
que antecedeu sua saída:

Ela acordou 8 horas e falou pra mim: “Ah, Isabel do céu. Você não
começou a passar nenhuma peça de roupa”. Eu tava com os nervos na flor
da pele, com tanto aperto que tinha. Eu fiquei com uma raiva danada. E
falei pra ela assim: “Olha, não liguei o ferro ainda não. Eu não sou elétrica.
A senhora levantou agora, não fez nada. Eu comecei meu serviço, tou
trabalhando desde as 6 horas da manhã. A senhora queria que eu tivesse
arrumado sozinha, tirado o pó de tudo. E posto o lixo na rua, e ter ligado
o ferro. A senhora não faz nada, tá descansada porque levantou agora,
nem café não tomou. Eu tou cansada já. Comecei 6 horas. São 8 horas e a
senhora não fez nada. A senhora quer saber de uma coisa? Eu não vou
ficar aqui mais não, porque não tá dando. O serviço é muito para mim.
Não dá pra ficar porque eu sei que se eu vou sair daqui eu vou arrumar
outro que dá certo pra mim”.

Saber fazer, poder mandar


Tentei até agora mostrar como a esfera em que a empregada atua como
trabalhadora assalariada é também a esfera do desempenho de seu
papel enquanto mulher. E, neste nível ideal de atribuição de papéis,
confunde-se com patroa. Eu gostaria agora de precisar o mecanismo
que, no interior do universo doméstico, particulariza a forma
diferenciada em que ele é vivido. Dizer que patroa e empregada
doméstica vivem condições de classe desiguais não é suficiente para dar
conta de uma atitude particular que marca a vivência da mulher-patroa
e da mulher-empregada. Atitude esta que se faz presente na

250
socialização mesma das mulheres e que é possibilitada pela presença
histórica da instituição empregada doméstica. De que atitude estou
falando?
Explicito-a a partir da afirmação de uma patroa: “mesmo que a
mulher não pretenda fazer as coisas de casa ela precisa aprender, pois
para poder mandar é preciso saber fazer”.
O “saber” expressa o universo comum ao qual me referi. Patroa e
empregada de fato compartilham o mesmo saber, sobre o mesmo
universo. Mas uma para fazer, outra para mandar.
Mandar/obedecer, são os termos que compõem a atitude à qual
me referi. Minha hipótese é de que a socialização da Mulher,
diferenciada enquanto classe, recebe um conteúdo particular que é
possibilitado pela existência da instituição empregada doméstica.
Todas as empregadas que entrevistei mostraram ser filhas de
empregadas e começaram elas próprias a sê-lo entre sete e 12 anos
de idade. Todas as patroas afirmaram que sempre tiveram
empregada em sua família de origem e elas próprias a tinham na
sua própria unidade conjugal. A frase “minha empregada”, o ato de
mandar incorporam-se cedo, e cotidianamente, na socialização da
mulher-patroa. Isto é, a mulher-patroa é socializada já para ser
Mulher-patroa. E aqui não é uma abstrata e distante diferença de
classe. O cotidiano familiar das classes superiores funciona
incorporando mulheres de classes inferiores, e o universo
doméstico é recriado nos termos de uma relação mando/obediência
que possibilita que mulheres vivenciem seu papel conotado por esta
incorporação. A socialização da mulher-empregada doméstica é o
exercício do seu papel sob mando. De outra mulher. A palavra
obediência é, aliás, recorrente na fala das empregadas. Mesmo
quando a doméstica já se refere à necessidade da regulação do
autoritarismo da patroa ela precede o “dentro das regras” com a
afirmação “é preciso obedecer a patroa”. Mesmo que nas relações

251
concretas esta obediência não se efetue sempre, ela é atitude
incorporada na postura destas mulheres. Ser patroa é
principalmente dirigir. Ser empregada é, sobretudo, fazer e
obedecer. Ambas dirigindo e fazendo dentro do espaço doméstico,
que é um espaço feminino. Tudo isto marca diferentemente o
tempo de vida pessoal da empregada doméstica e o da patroa.
Perguntei a uma empregada doméstica como era uma semana de
sua vida. E ela disse: “Da minha vida? (…) Na minha casa ou no
meu serviço? Que acho que é mais lá que eu tenho”. Esta mesma
pessoa explicou-me mais tarde o porquê da existência do serviço
doméstico. E o fez da seguinte maneira:

Para as empregadas porque precisa de ganhar, aquelas que não


aprenderam nenhuma profissão, como eu e muitas, né? E para as patroas,
já que elas têm dinheiro pra pagar. Quer dizer, a minha patroa estuda
piano, a minha patroa faz ginástica, minha patroa estuda violão, quer dizer,
tem vários compromissos com muitas amigas (…) se ela fosse uma pessoa
que não pudesse pagar, ela teria que fazer. Se ela fizesse o serviço da casa,
ela não ia poder sair. Ou ela saía e deixava o serviço por fazer ou ia não
fazer nada disso. Então como ela pode pagar ela frequenta a sociedade.

Assim, o deslocamento da empregada, saindo de sua própria casa para


exercer seu papel sob forma assalariada na casa da patroa, não só
aciona a formação da atitude a que me referi como possibilita
redimensionar o próprio tempo da vivência feminina. À redefinição do
tempo acrescenta-se a maneira diferenciada como é vivido o próprio
espaço da casa. E há assim um “outro” tempo, um “outro”
deslocamento de dois corpos femininos no mesmo espaço feminino.
Sendo a empregada doméstica “outra” em relação à patroa, uma nova
dimensão incorpora-se à domesticidade. Explico. A empregada é
equipada diferentemente para vários de seus papéis femininos. No
entanto, é esperado que ela os desempenhe dentro das regras culturais
que compõem o mundo das patroas. À domesticidade, ser definida
pelo doméstico, sobrepõe-se, para a empregada, ser domesticada no

252
sentido do treinamento dos hábitos culturais sob a atitude
mando/obediência. Domesticar é “querer que você faça da maneira
como queremos que você faça”. E isto é fundamentalmente o que é
esperado da empregada.
Esta domesticação está expressa no livro A Aventura de Ser
Dona de Casa, de Tânia Kaufman, que é um manual que se
pretende escrito de patroa às patroas e que ensina a estas a melhor
maneira de conseguir e manter empregadas. Em um momento a
autora refere-se assim às empregadas: “São um festival de
incompetência que as patroas com maior ou menor habilidade têm
que domesticar, às vezes domar como bicho bravo”.3
Aliás, na fala das patroas não é rara a alusão à empregada como
máquina ou animal. E na fala das empregadas frases como “eu
também sou gente”, “eu não sou máquina”. Este caráter de negação
da humanidade e da necessidade de sua reivindicação reportou-me,
e permiti-me o voo, a duas citações muito diferentes entre si. Uma
delas, nota de rodapé nos Argonautas, de Malinowski, onde este
cita uma frase de um missionário falando sobre os massins
meridionais: “Ensinamos homens insubordinados a se tornarem
obedientes, inumanos a amarem e selvagens a mudar”.4
A outra, um diálogo entre mestre Puntila e seu criado Matti, na
criação de Brecht:

Matti: E eu não tenho a intenção de vos esperar muito mais tempo lá fora.
Já estou cheio. O senhor não pode tratar um homem desta maneira.
Puntila: Que quer dizer isto: um homem? Você é um homem? Antes
você havia-me dito que é um chauffeur. Pego-lhe em plena
contradição, hein? Reconheça-o.5

3
Kaufman (1975: 22).
4
Malinowski (1922: nota 5).
5
Brecht (1964 [1940]: 47).

253
Mas seria só esta negação do caráter humano que comporia a exclusão
ideológica da empregada do universo das patroas? E por que esta
exclusão, se ela é parte integrante deste universo?

Presente, mas invisível


A Maria é que era empregada ótima. A gente nem percebia que tinha
alguém em casa.

Em sua tese sobre as empregadas domésticas em Lima, Peru,


Margot Smith chama atenção ao caráter de
visibilidade/invisibilidade que cerca a presença da doméstica
(servant) na casa da família empregadora. Haveria aí uma série de
mecanismos que simbolicamente caracterizariam quem é a
empregada na casa e que expressariam também sua ausência da
empregada nas relações familiares. Para Margot Smith, a empregada
seria, nestas, a “não pessoa”.6
Creio que também no Brasil esta é uma característica. Aqui, creio
poder afirmar, a instituição empregada doméstica é uma peça já
imbricada em todos os mecanismos da organização familiar das classes
superiores. As empregadas domésticas compõem o cotidiano destas
famílias. Ao mesmo tempo, a organização do espaço doméstico e os
mecanismos que regulam movimentação da empregada nele procuram
negar esta visibilidade da empregada no cotidiano familiar. É como se
ao afirmar sua presença na casa se colocasse imediatamente a
necessidade da negação de sua presença na família. O que se nega?
Creio que há dois níveis de negação. Receber amigos, namorados,
parentes, oferecer festas, sentar-se na sala, são, na maioria das vezes,
proibidos à empregada. Procura-se com isto evitar que se confunda o

6
Smith (1971: 151).

254
espaço social da família com o espaço social da empregada. Aqui, a
negação refere-se à condição de classe da empregada. Mas este é um
nível de negação. Há outro. Os objetos mais resguardados do contato
de uso da empregada são os objetos da patroa. Esta é a infração que
mais ocorre e é a causa mais frequente das despedidas. O quarto da
patroa é o local de menor mobilidade da empregada. O cheiro da
empregada não só incomoda a patroa como é comum que esta doe
sabonetes e desodorantes à empregada. Há um campo de afetividade
que para muitas patroas é considerado perigoso: empregada/filhos da
patroa; empregada/marido da patroa. Desta maneira é a condição de
mulher que é negada à empregada para afirmá-la apenas na sua
dimensão de trabalhadora. Mas por que esta negação? Para esclarecer
qual nebuloso? A empregada doméstica entra para substituir a patroa.
São peças de um mesmo lugar. É este o nebuloso. É como se a
organização familiar fosse ameaçada no monolitismo de seus papéis e
na sua função de reprodutora social, e ela assim impusesse como
condição à presença da empregada a sua assexualidade.
Gostaria, para finalizar, de retomar rapidamente alguns pontos que
me permitam colocar uma questão quanto à identidade ou consciência
feminista.
Afirmei no início que a construção da mulher passava pela sua
identificação a um lugar e não só a um corpo. E que neste lugar a
mulher era segmentada. A mulher seria aqui mulher-patroa, mulher-
empregada. Enfatizei o universo comum e sua segmentação. E tentei
finalmente mostrar, ainda que rapidamente, como o mesmo universo
que define a mulher, o universo familiar, doméstico, nega este caráter à
empregada. Mas não o nega justamente porque é uma mulher que está
lá? E que este lá é também seu lugar?
Há, portanto, Mulher, definida, redefinida, segmentada, parcelada
em várias mulheres. Isto em várias situações. Não se poderia pensar
que a consciência ou a identidade feminista poderia construir-se a partir

255
delas? E que, ao invés de uma unidade, Mulher, olhando outra, o
Homem, poder-se-ia ter uma pluralidade Mulher olhando-se, e
olhando outra pluralidade Homem.
Não seria isto que tentava expressar uma empregada quando
afirmou à sua patroa:

Se já é triste passar a vida no fundo da cozinha da gente, imagine como é


triste passar a vida no fundo da cozinha dos outros.

Bibliografia
Brecht, B. Maitre Puntila et son valet Matti (Herr Puntila und sein Knecht Matti),
Paris, Théatre Complet L' Arche, 1964 (1940).

Kaufman, T. A aventura de ser dona de casa, Rio de Janeiro, Artenova, 1975.

Kofes, Suely. “Mulher, mulheres: diferença e identidade nas armadilhas da igualdade


e desigualdade – Interação e relação entre patroas e empregadas domésticas”
[tese de doutorado], Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP,
1990.

Malinowski, B. “The subject, method and scope of this inquiry”, in Argonauts of the
Western Pacific, Routledge and Kegan Paul, Londres, G. P. Dutton & Co.,
Nova York, 1922.

Smith, M. L. Institutionalized servitude: the female domestic servant in Lima, Peru


[PhD dissertation], Indiana University, 1971.

256
PAIS, PADRINHOS E
O ESPÍRITO SANTO:
UM REESTUDO DO
COMPADRIO

ANTONIO AUGUSTO ARANTES1

O compadrio pode ser definido como uma instituição social


constituída principalmente a partir dos ritos católicos de batismo e
de crisma. No século IX, a Igreja Católica Romana definiu como
“pais espirituais” de uma criança aqueles que patrocinassem tais
cerimônias, ao mesmo tempo em que proibiu formalmente que
pais apadrinhassem seus próprios filhos. A forma atual do sistema
de relações rituais que constituem o ponto de partida do
compadrio, tal como definido pela Igreja, persiste desde o século
XVI2 e prevê, como tarefa dos assim chamados “pais espirituais”, a
formação moral e religiosa dos afilhados, ao mesmo tempo em que
proíbe o casamento e relações sexuais entre as pessoas ligadas
ritualmente. Com base nesses laços, várias sociedades criaram
sistemas de relações regulamentadas pelo costume, ampliando e
reinterpretando a concepção religiosa oficial.

1
Sugiro que o leitor interessado em recuperar os fundamentos empíricos desta
reflexão refira-se ao trabalho indicado na bibliografia como Arantes (1975).
2
A propósito dos antecedentes históricos do compadrio de batismo, ver Mintz &
Wolf (1950).

257
As principais preocupações dos pesquisadores que se dedicaram
ao estudo do compadrio têm sido registrar as múltiplas formas em
que ele ocorre e analisar as suas funções. Refiro-me aqui às análises
derivadas dos modelos elaborados por Redfield, por Mintz e Wolf
e por Foster.3 Esses estudos mostram que, tanto nos casos em que
os laços rituais estabelecem-se entre sujeitos que ocupam posições
estruturais equivalentes, quanto nos em que eles se encontram em
estratos sociais distintos, a função primordial do compadrio é criar
vínculos de solidariedade entre os seus participantes, os quais se
expressam, principalmente, através da cooperação econômica e da
lealdade política.
No contexto das relações assimétricas, M. S. Carvalho Franco
formula uma das hipóteses mais fortes a esse respeito, sugerindo
que essa instituição, por afirmar simbolicamente uma identidade de
essência entre os participantes, fundamenta uma ambivalente
relação de poder e sujeição que se estabelece entre indivíduos (em
sua análise, fazendeiros e sitiantes) que, tal como pais e filhos, não
se veem como essencialmente diferentes, mas como potencialmente
iguais.4
Não pretendo negar que os laços de compadrio constituam vínculos
através dos quais operam complexos sistemas de troca de bens e
serviços, assim como várias formas de relações políticas (seja de aliança,
seja de dominação). Contudo, os pesquisadores acabaram privilegiando
a tal ponto as subjacências e usos econômicos e políticos do compadrio
que este se tornou um objeto de estudo banal e desinteressante, apesar
de algumas perguntas ainda terem ficado sem resposta.
Uma delas, a meu ver bastante fundamental, é a seguinte: em que
reside a natureza específica das relações de compadrio? Em que ele se
diferencia de outras instituições sociais estruturalmente próximas, tal

3
Cf. Redfield (1941), Mintz & Wolf (1950) e Foster (1948, 1961, 1963 e 1969).
4
Cf. Carvalho Franco (1969: 82).

258
como, por exemplo, a família? Por que se religam pelo parentesco
ritual pessoal que, de outras formas, já se encontram entre si ligadas de
várias maneiras, inclusive por laços da consanguinidade ou afinidade
que também são formas de se criar redes de relações preferenciais?
Alguns autores5 inspirados nas teorias de C. Lévi-Strauss e E. R.
Leach, desenvolveram a preocupação de construir modelos que
captassem o núcleo em torno do qual se constituem essas várias
modalidades de compadrio, como variações em torno de um
mesmo tema. Esses autores, cada um a seu modo, procuraram
explorar sobretudo a dimensão simbólica da instituição 6 não a
dissociando de sua base societária, na tentativa de captar o sentido e
a especificidade do compadrio, assim como as suas múltiplas
conexões com outras instituições sociais relevantes.
A hipótese de trabalho que tem orientado a minha própria pesquisa
é a de que o compadrio se constitui a partir da reelaboração, em
termos da prática social efetiva de grupos católicos em situações
históricas e estruturais determinadas, de uma concepção religiosa
acerca de família e de nascimento expressa nas Sagradas Escrituras e no
rito do batismo. Essa reelaboração pode servir a fins práticos. Mas
nada, a meu ver, justifica supor que em sua “utilidade” resida a razão de
ser da instituição.
Retomo aqui essa reflexão, procurando focalizar mais detidamente a
inserção do compadrio no espaço social imediato em que ele se
constitui, que é o da família conjugal, tomada em conjunto com sua
expressão ritual que é a Família Sagrada. Focalizo especialmente neste
trabalho o núcleo simbólico dessa instituição, em parte como
contraponto ao trabalho desenvolvido anteriormente, em que explorei
mais as suas dimensões sociológicas.

5
Cf. Gudeman (1969), Hammel (1968) e Arantes (1975).
6
Esses autores trabalham numa perspectiva diversa da adotada por Ravicz (1967) e
Pitt-Rivers (1954 e 1968).

259
De qualquer modo, por falta de uma reflexão mais elaborada na
bibliografia, o ponto de partida mais sólido para a crítica talvez seja a
prática social efetiva dos possíveis leitores deste ensaio.
Retomemos assim, inicialmente, a teoria de família e parentesco
contida na Bíblia:7

1 No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era


Deus.
14 E o Verbo se fez carne e habitou entre nós e vimos a sua glória como a
glória do unigênito do Pai cheio de graça e de verdade. (João, 1)
18 Ora o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Estando Maria sua mãe
desposada com José antes de se ajuntarem achou-se grávida do Espírito
Santo.
19 Então José seu marido como era justo e não a queria infamar intentou
deixá-la secretamente.
20 E projetando ele isto eis que num sonho lhe aparece um anjo do
Senhor dizendo: José filho de Davi não temas receber a Maria tua
mulher porque o que nele está gerado é do Espírito Santo.
21 E dará à luz um filho e o chamarás Jesus porque ele salvará o seu povo
dos seus pecados.
24 E José despertando do sonho fez como o anjo do Senhor lhe ordenara
e recebeu a sua mulher.
25 E não a conheceu até que deu à luz o seu filho o primogênito; e pôs-lhe
por nome Jesus. (Mateus, l)
26 (…) foi o anjo Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galileia
chamada Nazaré.
27 A uma virgem desposada com um varão, cujo nome era José, da casa
de Davi, e o nome da virgem era Maria (…)
30 Disse-lhe, então, o anjo: Maria não tema, porque achaste graça diante
de Deus.
31 E eis que em teu ventre conceberás e darás à luz um filho e por-lhe-ás o
nome de Jesus.
32 Este será grande e será chamado filho do Altíssimo; e o Senhor Deus
lhe dará o trono de Davi, seu pai.
33 E reinará eternamente na casa de Jacó e o seu reino não terá fim.
34 E disse Maria ao anjo: Como se fará isto? Pois não conheço varão.

7
A Bíblia Sagrada, Sociedades Bíblicas Unidas, Rio de Janeiro.

260
35 E, respondendo, o anjo disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito Santo e a
virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; pelo que, também, o
Santo que de ti há de nascer será chamado Filho de Deus. (Lucas, 1)

No capítulo 1 do Evangelho segundo São João, anuncia-se o tema do


nascimento, de acordo com o dogma cristão: “No princípio era o
Verbo” (…) “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”. Esse tema é
retomado nos Evangelhos segundo São Lucas e São Mateus, que o
desenvolvem com ênfases distintas ainda que complementares.
Em Lucas (1: 31 a 35) trata-se da questão específica da “imaculada
concepção”. Diz o anjo a Maria, esposa de José: “em teu ventre
conceberás e darás luz um filho e por-lhe-ás o nome de Jesus”.
Pergunta Maria: “Como se fará isso, pois não conheço varão?” Ao que
o anjo responde: “Descerá sobre ti o Espírito Santo e a virtude do
Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; pelo que, também, o Santo que
de ti há de nascer será chamado Filho de Deus”.
Assim, por intermédio de Maria e do Espírito Santo, “o Verbo se
fez carne”. Nessa passagem, a relação entre Maria e o Espírito Santo é
contraposta à sua relação com José, seu legítimo esposo, já que ele é o
componente masculino da concepção daquele que, por intermédio de
José, será descendente de Davi. Focaliza-se, aqui, a relação de filiação,
ou seja, a transmissão de uma essência comum (mística) de Deus-Pai a
Deus-Filho, diferenciando-a da relação de descendência, a primeira
possuindo tanto dimensão metafísica quanto biológica.
O Verbo, também, “habitou entre nós”. Em termos sociológicos,
esta afirmação implica que o Filho de Deus foi incorporado a um
grupo de homens. É esse o tema central de Mateus (1: 24 e 25): (José)
“fez como o anjo do Senhor lhe ordenara e recebeu a sua mulher”
(grávida); “e não a conheceu, até que deu à luz o seu filho”, “e pôs-lhe
por nome Jesus”. Sendo concorde com a ênfase na descendência
patrilinear, então, no texto bíblico Deus-Filho é incorporado à

261
linhagem de Davi, a mesma a que pertence José, esposo de sua mãe, e
que lhe deu seu nome.
Nas Sagradas Escrituras, encontram-se então dissociados pater e
genitor. O filho da Virgem é, ao mesmo tempo, filho social de José
e biológica e espiritualmente filho de Deus. Dos dois pontos de
vista, o foco incide nas vertentes masculinas do parentesco, a
mulher aparecendo como “a serva do Senhor”, na qual se faz
“segundo a sua vontade”.
A meu ver, o compadrio constitui-se ritualmente num paralelo a
esse contexto (Fig. 1). Senão, vejamos.

No compadrio, tal como na Bíblia, dissociam-se pater e genitor.8


Em posição equivalente à do Espírito Santo no episódio do
nascimento de Jesus Cristo, no batismo o padrinho é responsável
pela transmissão (resgate) da essência mística (alma) da criança

8
Privilegiamos no raciocínio que segue a figura do padrinho mais do que a de
madrinha principalmente por limitação de tempo. A meu ver, mãe e madrinha
possivelmente atualizam no compadrio o tema mítico do nascimento virgem. A esse
respeito, remeto o leitor a Leach (1969), ensaio que claramente inspira este trabalho.

262
cristã, a qual, tal como o Filho de Deus, passa a ser filha de uma
mulher e, simultaneamente, de dois homens: mãe, pai e padrinho.
Diferentemente do que ocorre com José no relato bíblico,
entretanto, pressupõe-se no compadrio a participação do pai na
geração biológica da criança. No sistema de relações rituais, este é
substituído pelo padrinho, genitor espiritual da criança, para o qual,
muito significativamente, a Doutrina da Igreja prevê a proibição
explícita de relacionamento sexual com a comadre. (Aliás, a
evitação sexual entre compadres é um forte ingrediente da prática
do compadrio).
Assim, na Bíblia como no compadrio, não se elabora a questão do
substrato biológico do nascimento tanto quanto se “reflete” sobre o
tema das relações entre a incorporação social e a transmissão da
natureza essencial (mística) dos homens. Nas duas instâncias, reafirma-
se a superioridade da segunda sobre a primeira, o que implica, no caso
do compadrio, a admissão de uma relativa inferioridade do pai em
relação ao padrinho.
No episódio místico do nascimento de Cristo, Maria participa
simultaneamente, e de modo ambivalente, de um casamento com José
e de uma relação místico-fisiológica com o Espírito Santo.
Efetivamente, essa ambivalência será “resolvida” nos episódios da
Ressurreição do Senhor e da Ascensão de Maria quando a família, que
na terra era a de José, for reconstituída no céu, em torno de Deus-Pai
(a natureza essencial de Deus-Filho sobrepujando sua identidade social
enquanto Jesus Cristo, descendente de Davi).
Também no compadrio, construído socialmente a partir do rito de
batismo, que superpõe o “renascimento espiritual” ao fato social e
biológico do nascimento, contrapõe-se ao matrimônio a relação entre
compadres. Enquanto o primeiro fornece o substrato legal adequado
para a constituição da prole legítima e para a vida terrena que é
provisória, o segundo permite a construção de “famílias” onde crianças

263
são “concebidas sem pecado” e preparadas para a vida eterna. Afirma-
se, então, também na prática, a superioridade desta sobre aquela.
A tendência observada em trabalho de campo, de o compadrio e a
aliança matrimonial serem procedimentos através dos quais se
estabelecem conexões institucionalizadas principalmente entre parentes
próximos (pais, irmãos e cunhados) no primeiro caso e entre não
parentes, no segundo, não contradiz este modo de se encaminhar a
reflexão. Sendo procedimentos estruturalmente complementares e que,
portanto, logicamente se negam ou se excluem, os conteúdos das
relações de compadrio tal como observados concretamente não são
contraditórios com os de parentesco de sangue ou por afinidade.
Diversos autores, que trabalharam em perspectivas bastante diversas
da que apresento neste trabalho, dedicaram muitas páginas para
mostrar justamente que as relações rituais não são nada mais do que
imagens do parentesco no sentido de se constituírem segundo esse
modelo, o conteúdo das relações entre padrinho e afilhado duplicando
o da relação de filiação e o da relação entre compadres reproduzindo o
da relação entre irmãos.
Entretanto, aprofundando um pouco mais a observação, fica claro
que, quando um parente se torna parente ritual, em qualquer posição
em que ele se encontre no sistema de compadrio, o vínculo anterior
passa a ser definido em outros termos. Há vários indícios desse
processo. Por exemplo, nas formas de chamamento e referência, usa-se
preferencialmente a nova terminologia; do ponto de vista das
prestações materiais entre parentes, tornam-se preferenciais aqueles
com os quais se possui laço de compadrio, e assim por diante.
Mas é num outro nível que, a meu ver, a absorção da ideologia da
família sagrada e do nascimento virgem pela família nuclear e suas
ramificações imediatas constitui o compadrio.

264
Tomando como base a relação de filiação (social) ou do laço
fraterno entre irmãos entre os quais haja diferença significativa em
termos de inserção na vida da comunidade, que parecem ser,
ambas, as relações que predominantemente se transformam em
relação entre compadres, pode-se inferir o seguinte.9
A filiação é concebida como um vínculo que se baseia inicialmente
no princípio da autoridade e subordinação e na ideia de dependência
quase unilateral da criança em relação aos pais. Ao ser redefinida como
relação entre compadres, o princípio de autoridade nela presente é
transformado em respeito recíproco (ainda que com ênfase assimétrica
em favor do padrinho). Do ponto dê vista das prestações materiais
próprias do sistema de compadrio, essas relações tendem ao padrão
igualitário, observando-se, a rigor, um desequilíbrio favorecendo o
padrinho. Ou seja, redefinem-se os aspectos econômicos e políticos da
vida familiar de tal modo que o que de início se definia como

9
No batismo, o pai da criança tem preferência sobre a mãe na escolha dos padrinhos,
sobretudo quando se trata do primogênito. Em trabalho de campo realizado entre
pequenos agricultores no alto sertão da Bahia obtiveram-se os seguintes dados quanto
a escolhas de padrinhos efetivamente feitas pelos informantes:

265
dependência passa-se a definir como cooperação generalizada entre
iguais (o padrão de relacionamento ficando mais próximo do ideal de
cooperação dentro da comunidade por oposição a dentro da família).
A efetividade e a força coercitiva do laço são asseguradas pela natureza
da relação. Nesse sentido, entende-se a afirmação feita por alguns
autores de que a criação do primeiro vínculo de compadrio completa o
rito de passagem de jovens casais.
No plano das representações religiosas (Fig. 2), ao se superpor a
relação de “geração espiritual” do filho de ego à sua própria filiação
sociológica, através do convite a um dos avós para se tornar
padrinho de um neto, trazem-se os vínculos de transmissão de
essência mística para dentro da família, produzindo-se uma síntese
entre pater e genitor (espiritual) em que se integram incorporação
social e transmissão de essência mística, como constitutivos do
princípio mais geral da descendência.

Talvez sejam esses os mecanismos sugeridos por Lévi-Strauss no


Les Structures Élementaires de la Parentée quando afirma,
distinguindo entre irmãos, por um lado, e cunhados e compadres,
por outro, que a forma de solidariedade existente entre os

266
primeiros “não acrescenta nada, não une nada; ela se fundamenta
num limite cultural que se satisfaz pela reprodução de um tipo de
conexão cujo modelo é fornecido pela natureza; a outra realiza uma
integração do grupo sobre um novo plano”.
Tudo isso é muito conjectural e possivelmente será mais ou menos
visível, ou considerado provável, dependendo do contexto sócio-
histórico que se tome como ponto de referência, Entre os pequenos
lavradores baianos com os quais realizei uma primeira incursão no
tema, parece-me que esta reflexão faz sentido, ainda que esteja
incompleta e não suficientemente aprofundada. Acredito, entretanto,
que este sobrevoo terá sido justificado se ficar a sugestão de que há algo
mais a pesquisar além dos usos e abusos do compadrio. Talvez surja
algo de novo quando pudermos reintegrar as várias peças deste quebra-
cabeça, o que possivelmente só se efetivará quando nos dispusermos a
pesquisar sistematicamente o tema no concreto.

Bibliografia
Arantes, A. A. “A sagrada família: uma análise estrutural do compadrio”,
Cadernos IFCH 5, Unicamp/Brasiliense, 1975.
Carvalho Franco, M. S. Os homens livres na ordem escravocrata, São Paulo,
IEB/USP, 1969.
Foster, G. Empire' s Children, Smithisonian Institution, México, Imprensa
Nuevo Mundo, 1948.
___. “The dyadic contract. A model for the social structure of a Mexican peasant
village”, American Anthropologist 63, 1961.
___. “The dyadic contract in Tzintzuntzan, II: the patron/client relationship”,
American Anthropologist 65, 1963.
Gudeman, S. F. Household, family and compadrazgo in a Panamanian
community [PhD dissertation], Cambridge University, 1969.
Hammel, E. Alternative social structure and ritual relations in the Balkans , Nova
Jersey, Prentice-Hall Inc., 1968.
Leach, E. R. “The virgin birth”, in Edmund Leach, Genesis as myth and other

267
essays, Londres, Cape Editions, 1969.
Lévi-Strauss, C. Les structures élementaires de la parentée. Paris, Mouton, 1968.
Mintz, S. & Wolf, E. “An analysis of ritual co-parenthood”, Southwestem Journal
of Anthropology 6 (4), 1950.
Pitt-Rivers, J. The people of the Sierra. Londres, Phoenix Books, 1954.
___. “Pseudo-Kinship”, in David Sills (ed.). International encyclopaedia of the
social sciences, The Free Press, 1968.
Ravicz, R. “Compadrinazgo”, in R. Wanchope (ed.). Handbook of Middle
American Indians, vol. VI, Austin, University of Texas Press, 1967.
Redfield, R. The folk-culture of Yucatan. Chicago, The University of Chicago
Press, 1941.

268
SOBRE AS AUTORAS
E OS AUTORES
Antonio Augusto Arantes
Bacharel em Ciências Sociais (Universidade de São Paulo, 1965), Mestre em
Antropologia (Universidade de São Paulo, 1969) e PhD em Antropologia
Social (University of Cambridge/King's College, 1977). Foi um dos
fundadores do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Unicamp, universidade a qual está
vinculado desde 1968. Foi presidente da ABA (Associação Brasileira de
Antropologia) e Secretário-geral da ALA (Associação Latino-americana de
Antropologia). Presidiu o Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio
Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo) e o
IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). É consultor
de políticas culturais, em especial sobre temas relativos ao patrimônio cultural,
e professor colaborador junto ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia e ao Doutorado em Ciências Sociais, ambos da Unicamp. Entre
seus livros publicados, desatacamos Paisagens paulistanas: transformações do
espaço público (2000); O Trabalho e a Fala (1982; 2016); O Que é cultura
popular (1981; 2010).

Carlos Rodrigues Brandão


Possui graduação em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (1965), mestrado em antropologia pela Universidade de Brasília
(1974) e doutorado em ciências sociais pela Universidade de São Paulo
(1980). Para além de ser professor colaborador do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia e do Doutorado em Ciências Sociais, ambos da
Unicamp, é professor visitante sênior da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU). Tem experiência na área de antropologia, com ênfase em
antropologia rural, atuando principalmente nos seguintes temas: cultura,
educação popular, campo religioso, religião e educação. É Comendador do
Mérito Científico pelo MCT, Doutor Honoris Causa pela Universidade
Federal de Goiás, Professor Emérito da Universidade Federal de Uberlândia
e Professor Emérito da Universidade Estadual de Campinas. Entre seus livros
publicados, destacamos O festim dos bruxos (1987; 2016); Identidade e etnia:
a construção da pessoa e a resistência popular (1986); Os deuses do povo: um
estudo sobre a religião popular (1982).

269
Mariza Corrêa
Com graduação em Jornalismo pela UFRGS, mestrado em Antropologia pela
Unicamp e Doutorado em Ciência Política pela USP, Mariza Corrêa foi
professora do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Unicamp durante trinta anos. Atualmente é
pesquisadora do Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero da mesma universidade
e integra, como professora colaboradora, os corpos docentes da Área de
Gênero do Doutorado em Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da Unicamp. Foi presidente da Associação Brasileira
de Antropologia. Entre os seus livros publicados, destacamos Traficantes do
simbólico & outros ensaios sobre a história da antropologia (2013);
Antropólogas e antropologia (2003); As ilusões da liberdade: a Escola Nina
Rodrigues e a antropologia no Brasil (2000); Morte em família:
representações jurídicas de papéis sexuais (1983; 2016).

Bela Feldman-Bianco
É mestre e Ph.D em Antropologia pela Columbia University, com pós-
doutorado em História por Yale. É professora colaboradora do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social e diretora-adjunta do Centro de
Estudos de Migrações Internacionais (CEMI) na Universidade Estadual de
Campinas. Suas pesquisas e publicações focalizam questões relacionadas à
cultura e poder, com ênfase em identidades, migrações transnacionais,
colonialismo/ pós-colonialismo e globalização em perspectiva comparativa.
Foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia. Entre as coletâneas
organizadas por Bela Feldman-Bianco destacamos: Desafios da Antropologia
Brasileira (2013); Nações e diásporas: estudos comparativos entre Brasil e
Portugal (2010); Antropologia das Sociedades Contemporâneas: métodos
(2010); Trânsitos coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros (2007); Desafios
da imagem: iconografia, fotografia e vídeo nas ciências sociais (1998).

Sabrina Finamori
Professora adjunta do Departamento de Antropologia e Arqueologia da
UFMG. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de
Campinas (2012) e Mestre em Antropologia Social pela mesma universidade
(2006), foi ainda pesquisadora pós-doc no Núcleo de Estudos de Gênero
(Pagu) entre 2013 e 2015. Seus interesses de pesquisas perpassam os seguintes
temas: parentesco, família, paternidade, gênero, sexualidade, exame de DNA,
reciprocidades geracionais.

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Suely Kofes
Licenciada em História pela Universidade Federal de Goiás, com Mestrado
em Antropologia Social pela Unicamp, iniciou o doutorado na École des
Hautes Etudes, em Paris (onde obteve o D.E.A) e o finalizou na USP. É
professora titular do Departamento de Antropologia da Unicamp e professora
permanente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e do
Doutorado em Ciências Sociais na mesma universidade. Entre suas
publicações destacamos Mulher, Mulheres: Identidade, Diferença e
Desigualdade na relação entre patroas e empregadas (2001); Uma trajetória,
em narrativas (2000); Dilemas da maçonaria contemporânea: um
experimento antropológico (2015).

Robert Slenes
Graduou-se em Liberal Arts no Oberlin College (1965), com mestrado em
Literatura Espanhola e Hispanoamericana pela University of Wisconsin,
Madison (1966) e doutorado em História pela Stanford University (1976).
Atualmente é professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Estadual de Campinas, tendo-se aposentado como
professor titular nessa universidade em agosto de 2013. Tem experiência na
área de História, com ênfase em História Social do Brasil e da África,
abordando principalmente os seguintes temas como pesquisador: demografia
da escravidão, família escrava, cultura centro-africana e identidade escrava,
iconografia da escravidão, Brasil Império. Entre suas publicações destacamos
Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família
escrava (1999; 2011).

Verena Stolcke
Catedrática Emérita junto ao Departament d'Antropologia Social i Cultural da
Universitat Autònoma de Barcelona, concluiu seu doutorado no Institute of
Social Anthropology, Oxford University (1970). Realizou pesquisa histórica
de arquivo e pesquisa etnográfica em Cuba entre 1967 e 1968 e em São
Paulo, de 1973 a 1979. Foi uma das fundadoras do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Unicamp, em 1971, tendo lecionado
nesta universidade até 1979. Entre suas publicações destacamos Marriage,
Class, and Colour in Nineteenth Century Cuba (1974; 1989; 2003) cuja versão
castelhana tem o título Racismo y Sexualidad en la Cuba Colonial (1992);
Cafeicultura: Homens, Mulheres e Capital (1850-1980) (1986), cuja versão
inglesa tem o título de Coffee Planters, Workers, and Wives: Class Conflict
and Gender Relations on Sao Paulo Plantations, 1850-1980 (1988).

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Alba Zaluar
Concluiu o curso de graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal
do Rio de Janeiro (1965), o mestrado em Antropologia Social no Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (1974) e o doutorado em
Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (1984). Foi professora
junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp,
onde se aposentou como livre-docente, e Professora Titular em Antropologia
Social da UERJ. Foi professora titular de Antropologia do Instituto de
Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro onde fundou
em 1997 e coordenou o Núcleo de Pesquisa em Violências (NUPEVI).
Aposentou-se em junho de 2012 e passou a atuar como professora visitante
no IESP/ UERJ. Entre suas publicações, destacamos Integração perversa:
pobreza e tráfico de drogas (2004); A máquina e a revolta (1985; 1999; 2003);
Condomínio do diabo (1996); Cidadãos não vão ao paraíso (1994).

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fontes Baskerville Old Face

formato pdf

dimensões 16 x 23 cm

ferramenta de edição LibreOffice

imagem da capa On Wings: Rust Row, Beyond-Oddities

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