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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
CURSO DE LICENCIATURA EM PEDAGOGIA

MARIANA VALDELICE DE JESUS SOUZA

A FINALIDADE DA EDUCAÇÃO
CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE HANNAH ARENDT

Salvador
2013
MARIANA VALDELICE DE JESUS SOUZA

A FINALIDADE DA EDUCAÇÃO
CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE HANNAH ARENDT

Monografia apresentada ao Colegiado do curso de


Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade
Federal da Bahia como requisito para obtenção do grau de
Licenciada em Pedagogia.

Orientadora: Profª Drª Vanessa Sievers de Almeida.

Salvador
2013
MARIANA VALDELICE DE JESUS SOUZA

A FINALIDADE DA EDUCAÇÃO
CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE HANNAH ARENDT

Monografia apresentada ao Colegiado do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da


Universidade Federal da Bahia como requisito para obtenção do grau de Licenciada em
Pedagogia.

Aprovada em_____ de setembro de 2013.

Banca Examinadora

____________________________________________
Prof. Dr. Kleverton Bacelar Santana – UFBA (Universidade Federal da Bahia)

___________________________________________

Profa. Dra. Vanessa Sievers de Almeida - UFBA (Universidade Federal da Bahia)

____________________________________________
Prof. Dr. Wilson Nascimento Santos – UFBA (Universidade Federal da Bahia)
Dedico o presente trabalho...

À minha mãe, meu “biju”, a Senhora Valdelice Maria de Jesus Souza. O melhor ser humano
que tenho o privilégio de conviver e que me proporciona, todos os dias, com o seu jeito de ser,
a oportunidade de me tornar um ser humano melhor.
AGRADECIMENTOS

Sempre, em primeiro lugar, ao meu Soberano Deus que está acima de todas as coisas e a
quem devo a honra e a glória de todas as minhas conquistas...

Em especial, à minha família: minha mãe, a Senhora Valdelice Souza, meu pai o Senhor
Mario Souza e o meu irmão, Mario Junior. Por tudo, muito obrigada!

Ao amigo que amo, Gabriel Medrado e, ao amor amigo, Renato Lima, por suportarem minhas
angústias e me proporcionarem tantas alegrias...

À Morgana Fontes, uma amiga de pouco tempo, porém, de intensa existência em minha vida.
Obrigada “Morgarete” por repetir, incansavelmente: “você vai conseguir”.

Às amigas, Marta Santos e Dalila Santos, por compartilharem suas vivências e assim,
inspirarem a minha escrita e enriquecerem a minha vida.

Às Professoras e Professores que tive ao longo do curso de Pedagogia. Obrigada por


contribuírem com a minha formação.

À minha orientadora, Professora Vanessa Almeida, de quem não sou somente uma aluna
orientanda, mas, principalmente, uma admiradora da sua postura como educadora. Obrigada
Pró, pela singular orientação, pelo apoio e paciência e pelas valiosas contribuições na
composição deste trabalho.

Aos Professores Kleverton Bacelar e Wilson Santos, por aceitarem o convite de compor a
Banca avaliativa.
UMUNTU NGUMUNTU NGABANTU
Um ser humano é humano por causa de outros seres humanos
(Provérbio Zulu)
RESUMO

No presente trabalho, a questão da finalidade da educação é analisada a partir da perspectiva


de Hannah Arendt. Para a autora, a educação é o processo responsável por intermediar a
relação entre o ser humano ainda em formação e o mundo já existente. Segundo ela, a
educação tem sua crise desencadeada pelos impactos do aparecimento e crescimento da esfera
social, sendo que a mesma faz parte de uma crise geral do mundo moderno. Na modernidade,
a distinção entre espaço privado e público se perde. Esses espaços são absorvidos pelo social.
Isso atinge diretamente a finalidade do ato de educar que, dentro da lógica da sociedade,
torna-se, predominantemente, um instrumento e não mais um processo. Arendt critica essa
instrumentalização a serviço da lógica econômica e relaciona à mesma a crise da tradição e da
autoridade na educação. Mesmo assim, a autora afirma que o ser humano ainda possui
capacidades que não foram eliminadas pela crise e, apesar de não apontar uma solução, nos
conduz na direção de que não podemos abrir mão da relação entre o ser humano e o mundo.
Sendo assim, não podemos abrir mão da educação.

Palavras-chave: Educação. Finalidade da Educação. Hannah Arendt. Liberdade.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

1 O CONCEITO DE EDUCAÇÃO EM HANNAH ARENDT 10

1.1 VIDA E MUNDO 10

1.2 EDUCAÇÃO COMO TRANSIÇÃO DA ESFERA PRIVADA PARA A ESFERA


PÚBLICA 13

1.3 A DESRENSPONSABILIZAÇÃO PELO MUNDO E A CRISE NA


EDUCAÇÃO 15

2 O CRESCIMENTO DA ESFERA SOCIAL E SEUS REFLEXOS NA

EDUCAÇÃO 18

2.1 O SURGIMENTO DA ESFERA SOCIAL 18

2.2 A SUBSTITUIÇÃO DA AÇÃO PELO COMPORTAMENTO 20

2.3 A ESFERA SOCIAL E OS FINS DA EDUCAÇÃO 22

2.4 A SOCIEDADE DE CONSUMO E A EDUCAÇÃO 24

3 AÇÃO, RESISTÊNCIA E LIBERDADE: CAPACIDADES

POTENCIALIZADAS PELA EDUCAÇÃO 28

3.1 EDUCAÇÃO E AÇÃO 28

3.2 EDUCAÇÃO COMO RESISTÊNCIA À SOCIEDADE DE CONSUMO 31

3.3 EDUCAÇÃO E LIBERDADE 36

CONSIDERAÇÕES FINAIS 39

REFERÊNCIAS 43
8

INTRODUÇÃO

Ao longo da graduação em Pedagogia, diferentes concepções a respeito da educação


são nos apresentadas. É certo que nos apropriamos, de modo mais profundo, daquelas com as
quais mais nos identificamos. Diante dessa certeza, a concepção de Hannah Arendt sobre a
educação, foi a base conceitual escolhida para fundamentar o presente trabalho, já que o
conceito da autora estreita-se, em nosso caso, com o que construímos de significativo a
respeito da concepção de educação ao longo da nossa formação de educadores.

Arendt defende a educação como sendo o processo intermediário na relação entre o ser
humano em formação e o mundo já existente. Entretanto, as concepções de educação que
discursos e práticas educacionais de muitas das nossas escolas refletem, estão distantes desse
conceito. A escola é um dos espaços em que o pedagogo exerce sua profissão, sendo que,
atualmente, muitas delas priorizam a preparação da criança e do jovem para serem adultos
funcionais às demandas do mercado, que produzam e consumam e assim, mantenham a
estrutura do mesmo.

Dessa forma, predomina uma educação instrumentalizada para garantir a estrutura do


sistema vigente e não para contribuir na relação do ser humano com o mundo. Isso se
distancia da finalidade arendtiana de educar a criança e o jovem para, futuramente, se
responsabilizarem por esse mundo. A educação concebida como instrumento, contrapõe o
papel do educador de apresentar o mundo ao recém-chegado. O papel de estimular o
educando a ter apreço por esse espaço e dessa forma, contribuir no desenvolvimento das
capacidades do mesmo para que quando adulto, possa responsabilizar-se por esse mundo.

A partir desse confronto entre as concepções apreendidas no curso de graduação de


Pedagogia e a prática no espaço destinado para exercermos nosso papel de educadores,
surgem várias inquietações. Afinal, qual a finalidade da educação? A que está destinado o
processo educativo na atualidade? O modelo que temos hoje como predominante é de fato a
forma mais condizente com o que consideramos ser o ato de educar? Será que ainda temos
capacidades que nos conduzam a uma finalidade diferente da que está predominantemente
imposta? Essas questões provocadas pelo confronto entre algumas teorias e a prática, como a
percebemos, serão analisadas no decorrer deste trabalho com o objetivo de refletirmos sobre o
que temos e o que podemos ter como finalidade da educação. Reflexão que consideramos
apropriada caso não estejamos satisfeitos com os fins predominantes do processo educativo na
atualidade, caso concordemos com Arendt quando ela afirma que a educação está em crise.
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A metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica que se detém, principalmente, em


analisar alguns textos fundamentais de Hannah Arendt, ou seja, escritos da própria autora.
Estudamos particularmente a obra A condição humana e os ensaios A crise na educação e
Que é liberdade?. Buscamos as referências de Almeida (2011) e Carvalho (2008; 2010)
concernente à concepção de educação da autora. Consultamos a Lei 9.394/96 que regulamenta
o sistema de educação nacional e nos valemos de algumas outras referências bibliográficas.

No primeiro capítulo, apresentaremos o conceito de educação em Hannah Arendt.


Iremos expor como o conceito é constituído e para isso elucidaremos o conceito de
natalidade; a distinção entre privado e público; a transição da família para a escola; a
responsabilidade do ato de educar e a crise na educação. No segundo capítulo, discorreremos
sobre o surgimento e crescimento da esfera social e os impactos dessa esfera na finalidade do
educar, além de abordar a educação dentro do contexto da sociedade de massas. Por fim, no
terceiro capítulo, sugerimos outra perspectiva sobre a finalidade da educação, nos baseando
nas capacidades humanas que podem ser estimuladas pelo processo educativo.
10

1 O CONCEITO DE EDUCAÇÃO EM HANNAH ARENDT

Conceituar não é uma tarefa fácil, principalmente, tratando-se da área das Ciências
Humanas. Sabemos que os conceitos moldam-se de acordo com o momento histórico vivido.
Logo, são ideologicamente “adaptáveis”. Ainda assim, reconhecendo a importância de definir
algo quando temos a intenção de debatê-lo - reafirmando a dificuldade de realizar esse feito -
recorremos à etimologia da palavra educação para iniciar o presente trabalho.

Resultado da palavra em latim, Educere – junção das palavras ex, “fora”, e ducere,
“trazer,” a etimologia nos propõe uma ideia de educação como um ato de “conduzir para
fora”; “guiar para o externo” (PERISSÉ, 2010). A partir da etimologia, teríamos vários
conceitos para apresentar sobre educação, entretanto, pretendemos nos deter à discussão
daquele que consideramos muito próximo da origem da palavra, o conceito de educação em
Hannah Arendt, encontrado no ensaio intitulado A crise na educação.

1.1 VIDA E MUNDO

O conceito de educação em Arendt é complexo por ser constituído de fatores distintos.


Ela traz como ideia central na composição do seu conceito que “a essência da educação é a
natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo” (ARENDT, 1997, p.223).
Intrinsecamente, essa natalidade refere-se a um começo, a um início no mundo. Não somente
o nascer no, mas, o nascer para o mundo. Assim, no mundo, nascemos biologicamente como
animais humanos, mas, por meio da nossa natalidade - que nos torna seres singulares e nos
possibilita realizar feitos únicos – também nascemos para o mundo, a natalidade nos permite
acontecer nele, permite-nos renová-lo. A respeito da natalidade, no livro Educação em
Hannah Arendt: entre o mundo deserto e o amor ao mundo, Almeida (2011, p.28) afirma que:
“Ao sustentar que a ‘essência da educação’ é a natalidade, Arendt enfatiza tanto a preservação
do mundo que é legado aos jovens como a sempre urgente renovação desse espaço comum”.

Para Arendt, portanto, ao nascermos, somos seres novos em um mundo já existente e,


simultaneamente, somos seres em desenvolvimento, seres em formação. Trata-se, então, da
contínua e ininterrupta chegada de novos seres que, precisam ser introduzidos, familiarizados,
em um mundo já constituído. Esta continuidade do nascer faz do mundo um espaço em
constante regeneração, no mais fiel sentido da palavra. A natalidade concede ao mundo a sua
renovação, possibilita produzir-se novamente, melhorar-se.
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Arendt afirma que esse novo ser nasce em um espaço que já existe. É novo tanto no
mundo quanto em ser (propriamente dito), pois está em formação, em construção do
amadurecimento como um ser. Deparamo-nos então com um duplo aspecto que: “corresponde
a um duplo relacionamento, o relacionamento com o mundo, de um lado, e com a vida, de
outro.” (ARENDT, 1997, p.235). É esse ser que precisa ser protegido do que houver de
nocivo nesse mundo já existente e, é esse mundo que também necessita de proteção para sua
conservação diante do novo. Para Arendt, a princípio, essa tarefa é dos pais humanos. Ela
ressalta que:

Eles assumem na educação, a responsabilidade, ao mesmo tempo, pela vida e


desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo. Essas duas
responsabilidades de modo algum coincidem; com efeito podem entrar em mútuo
conflito (ARENDT, 1997, p.235).

Refere-se, portanto, a uma complicada dualidade: acolher e proteger um ser novo e em


formação, de um mundo que já existe antes dele e, cuidar da preservação desse mundo que é
vulnerável à imprevisibilidade dos recém-chegados. À dualidade da responsabilidade dos
pais, para Arendt, corresponde em princípio a separação entre o espaço privado e o espaço
público. No primeiro, cuidamos da vida e do bem estar e no último cuidamos do mundo que
compartilhamos com os outros.

O primeiro ambiente do qual a criança faz parte é o ambiente familiar, o lar. Este é
indispensável para sua proteção e crescimento. Para a autora:

Por precisar ser protegida do mundo, o lugar tradicional da criança é a família,


cujos membros adultos diariamente retornam do mundo exterior e se recolhem à
segurança da vida privada entre quatro paredes. Essas quatro paredes, entre as quais
a vida familiar privada das pessoas é vivida, constitui um escudo contra o mundo e,
sobretudo, contra o aspecto público do mundo (ARENDT, 1997, p.235-6).

Esse “escudo” é necessário para segurança do crescimento desse ser recém-chegado ao


mundo. Arendt ressalta que, no espaço público, a prioridade é o mundo comum, a vida
particular não é levada em conta. Por esse motivo, a criança, que é um ser em formação e
necessita de atenção em particular, precisa ser preservada da exposição da vida pública para
poder desenvolver-se. Existe para Arendt, a importância do ocultamento, a “segurança da
escuridão” para poder crescer. Sobre isso, Almeida (2011, p. 29) afirma que: “O novo ainda é
vulnerável e não está pronto para fazer parte do âmbito público, em que tudo está sujeito à
visibilidade e no qual os atores interagem com seus iguais”.
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Faz-se necessário explicitar que a inspiração de Arendt para definir espaço privado e
espaço público decorre do modelo da pólis, ou seja, da antiga cidade-Estado. Nesse modelo, a
distinção entre o espaço privado e o espaço público era assegurada. O espaço privado era o
local destinado ao que correspondia à vida particular do homem, já o espaço público,
correspondia ao que era do interesse comum a todos, local em que os homens só adentravam
após satisfazerem suas necessidades e vontades pessoais. Como afirma a autora, em seu livro
A condição humana: “A distinção entre as esferas privada e pública da vida corresponde aos
domínios da família e da política, que existiram como entidades diferentes e separadas, pelo
menos desde o surgimento da antiga cidade-Estado.” (ARENDT, 2010, p.33).

Nessa perspectiva, a distinção entre o aspecto privado e o público, torna-se


indispensável. A importância dessa distinção é que o privado caracteriza-se por ser o local de
realização das atividades que garantem o ciclo vital, a manutenção biológica da vida. Já o
público é o local genuinamente humano, pois é nele que o homem “age”, ou seja, realiza a
atividade que o diferencia das outras espécies animais, a ação. Por isso, o espaço público não
diz respeito a uma extensão do espaço privado, trata-se de espaços distintos, onde se realizam
atividades também distintas.

Não garantir a manutenção de um espaço comum, quer dizer, um local público que
seja além da vida privada do lar e, portanto, que diga respeito àquilo que cabe a todos, resulta
na redução desse mundo ao imediatismo, ao presente, sem a preocupação de deixá-lo
“habitável” para as futuras gerações. Priorizam-se assim, as necessidades e interesses
individuais, invertendo a ordem das coisas: trazendo para o espaço público o que deveria fazer
parte somente da esfera privada. (CARVALHO, 2008).

Assim, a partir do que a autora expõe, podemos compreender que, o espaço privado
diz respeito à vida do indivíduo. Corresponde ao local do que é particular, ou seja, trata-se do
espaço reservado as coisas que precisam ser ocultadas, preservadas no âmbito particular de
cada um. Já o espaço público, diz respeito ao mundo. É o local adequado ao que é do interesse
comum de todos e, sendo assim, é o espaço em que as coisas precisam aparecer serem
expostas para se tornarem relevantes a todos.
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1.2 EDUCAÇÃO COMO TRANSIÇÃO DA ESFERA PRIVADA PARA A ESFERA


PÚBLICA

Em A condição humana também está presente o conceito de natalidade. Nessa obra, a


autora apresenta as três atividades humanas fundamentais: o trabalho – atividade que sacia as
necessidades vitais; a obra – atividade referente aos artefatos produzidos pelo homem, com
utilidade e durabilidade para permanecerem no mundo após a morte do mesmo; e a ação –
atividade especificamente humana que depende da relação entre os homens para poder
acontecer. Arendt afirma que as três atividades estão relacionadas à natalidade, porém, ela
ressalta que é a ação, a atividade que se vincula mais diretamente com o conceito de
natalidade:

Entretanto, das três atividades, a ação tem a relação mais estreita com a condição
humana da natalidade; o novo começo inerente ao nascimento pode fazer-se sentir
no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo
novo, isto é, de agir (ARENDT, 2010, p.10).

Percebemos aí, outro fator: para Arendt, a ação é a atividade mais próxima da
natalidade que, por sua vez, é a essência da educação. Encontramos aqui uma complexa teia
conceitual que, a nosso ver, traz a educação como o processo que prepara o novo para,
futuramente, agir em um mundo já existente.

Para isso, a criança que, a princípio, foi protegida e acolhida pelos pais contra os
perigos desse mundo, precisa agora de um espaço que apresente a ela o que já existe, como já
está constituído o mundo do qual agora ela passa a fazer parte e lhe dê a base para que,
através do conhecimento sobre o existente, ela possa ser formada para agir ao se tornar adulta,
ou seja, quando estará apta para a atividade da ação, em seu sentido político pleno.

É esse espaço que denominamos como escola. Ele não é o único responsável pela
apresentação do mundo, tanto que, antes mesmo de frequentá-lo os pais já precisam ter
assumido essa responsabilidade também. Entretanto, o lar, como já citado anteriormente, é um
lugar privado, uma vida familiar particular. Estar na escola é estar em um espaço que ainda
não é o mundo propriamente dito, mas, realiza o papel de intermediário entre a casa e o
mundo real. A escola é a representante desse mundo.

Normalmente a criança é introduzida ao mundo pela primeira vez através da


escola. No entanto, a escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo;
ela é, em vez disso, a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o
mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da
família para o mundo (ARENDT, 1997, p. 238).
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É na escola que o educador (que já faz parte do mundo há mais tempo) apresenta à
criança o mundo de que ela passa a fazer parte. Ele é o responsável por mediar a relação entre
ambos. Apresentar o que aconteceu nesse mundo anterior à sua chegada e que influenciou
para resultar na realidade na qual esse novo ser viverá a partir de agora. Portanto, é com esse
espaço que o recém-chegado precisa ser familiarizado, adquirir esse conhecimento para
desenvolver o sentido de pertencimento, de fazer parte de algo incomparavelmente maior que
o lar em que nasceu, despertar o senso de pertencer a um mundo comum. Nesse sentido
Arendt (1997, p. 239) afirma que “na medida em que a criança não tem familiaridade com o
mundo, deve-se introduzi-la aos poucos a ele; na medida em que ela é nova, deve-se cuidar
para que essa coisa nova chegue à fruição em relação ao mundo como ele é”.

Essa mediação do educador dentro da relação sujeito e mundo é indispensável para


que o sujeito familiarize-se e se encontre nesse espaço. “Face à criança, é como se ele fosse
um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: -
Isso é o nosso mundo” (ARENDT, 1997, p. 239). É através do senso de pertencimento que se
constrói a noção de “sentir-se em casa”. Utilizando da metáfora do mundo como um “lar
comum a todos”, considera-se a partir dessa mediação não só o ambiente familiar, mas
também o mundo, como sua verdadeira “casa”.

É esse reconhecimento que permite a conservação do que é válido no espaço comum


já existente e, ao mesmo tempo, é o que possibilita a provocação para mudança, para agir
contra aquilo que é prejudicial à conservação desse mundo, ou seja, a ação pelo zelo do “lar”.
Esse “lar” é comum a todos que estão nele, é a “casa” de todos que o habitam e é exatamente
por isso que a vida particular não importa no mundo comum. Nele o aspecto público é o que
interessa.

A responsabilidade do educador em mediar essa relação (sujeito/mundo) é necessária


para a construção de uma consciência comum a todos que preze pela convivência justa entre
os iguais e não pelo privilégio de uma minoria. No mundo assumimos responsabilidade pelos
assuntos comuns. Introduzir a criança no mundo público é apostar que ela se aproprie desse
espaço e, futuramente, venha assumir responsabilidade pelo mundo comum.
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1.3 A DESRESPONSABILIZAÇÃO PELO MUNDO E A CRISE NA EDUCAÇÃO

O conceito de educação para Arendt está vinculado à exigência da responsabilidade


pelo mundo e pela educação dos que chegam nele. Recorrendo à etimologia da palavra
educação, apresentada no início desse capítulo, o ato de “conduzir para fora”, para Arendt,
exige responsabilidade de quem se propõe a fazê-lo. Não é só o fazer, o realizar essa
condução, é comprometer-se com isso, é responsabilizar-se pelo verdadeiro sentido dessa
ação. A responsabilidade pela educação das crianças está, por sua vez, intrinsecamente
vinculada ao compromisso com o mundo público. Sobre isso, de forma impactante, Arendt
declara: “Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo
não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação.” (ARENDT,
1997, p.239).

A partir dessa afirmação, percebemos que há uma relação de dependência entre a


responsabilidade com o mundo e a responsabilidade no ato de educar, pois uma pressupõe a
outra. Como Arendt afirma, para ser educador, ou seja, para responsabilizar-se em introduzir
um recém-chegado num mundo já existente, exige-se que o mesmo, primeiramente,
responsabilize-se por esse mundo. Para autora, a responsabilidade com o mundo comum, o
compromisso com esse espaço é o que pressupõe a autoridade que o educador necessita ter
para apresentar esse mundo ao recém-chegado. Sendo assim, eis o elemento comum para
ambos (pais e educadores) e, não só comum, mas essencial para garantia de educar um ser
novo e em desenvolvimento: responsabilizar-se.

A tarefa da educação então não é somente apresentar, mas também representar, ser
representante desse mundo. Para isso, os pais e educadores precisam conhecer esse espaço e
reconhecer-se nele. Não é somente fazer parte é, principalmente, ser consciente desse fazer,
da responsabilidade cabível a todos de que cada um compõe um todo, cada um forma,
juntamente e necessariamente com todos os outros um mundo comum.

Para Arendt, é a educação que permite a relação entre o ser humano e o mundo. Esta
relação é que deve contribuir para a conservação do mundo e oferecer subsídio para agirmos
nele, porém, se a educação deixar de assumir a responsabilidade de conduzir, intermediar essa
relação, ela entra em crise. Portanto, está na negação da responsabilidade o desencadeamento
da crise da educação. A ausência do senso comum de pertencimento a um espaço público que
é de todos, de que o mesmo existe antes de chegarmos a ele e de que ele perdurará após a
nossa morte, é o que agrava a crise.
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Para Arendt, se eximir dessa responsabilidade vai além da negligência no papel dos
pais e educadores, para ela: “O homem moderno [...] não poderia encontrar nenhuma
expressão mais clara para sua insatisfação com o mundo, para seu desgosto com o estado de
coisas, que sua recusa a assumir, em relação às crianças, a responsabilidade por tudo isso”
(ARENDT, 1997, p. 241). Sendo assim, essa negação retrata a falta de identificação do
mundo como um espaço que é seu, o não reconhecimento desse espaço comum como
“residência” de todos, o que reflete diretamente no processo educativo.

Intermediar a relação entre um ser novo e em formação e um mundo já velho, significa


ter conhecimento sobre como esse mundo é constituído e assumir a responsabilidade de
apresentá-lo para quem ainda nada conhece sobre ele. Há também, por já ter conhecimento e
fazer parte desse mundo há mais tempo, a responsabilidade de conservá-lo, levando em conta
a futura intervenção desse novo ser (que por hora está sendo formado para isso) nesse mundo
já existente.

“Na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade”


(ARENDT, 1997, p.239). A autoridade entre educador e aluno se estabelece na relação em
que o educador transmite e o aluno precisa confiar no educador para poder compreender o que
lhe é transmitido e assim, reconhecer-se dentro desse espaço. Portanto, a autoridade não é
algo imposto, mas sim, interposto nessa relação. É possível o educador deter o conhecimento,
ou seja, ser qualificado para instruir, porém, se não responsabilizar-se por isso, não terá
autoridade para fazê-lo. A esse respeito a autora afirma:

A autoridade do educador e as qualificações do professor não são a mesma coisa.


Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por
maior que seja, nunca engendra por si só autoridade. A qualificação do professor
consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém
sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo
(ARENDT, 1997, p. 239).

A perda da autoridade, para Arendt, é resultado da recusa da responsabilidade nessa


intermediação. Ela afirma que: “A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode
significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao
qual trouxeram as crianças” (ARENDT, 1997, p.240). A autoridade é necessária para
transmitir o que já aconteceu, pois a escola é o espaço em que, tradicionalmente, recorremos
ao passado para apresentar o presente e proporcionar conhecimento que, poderá ou não,
resultar numa futura transformação do mundo.
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Para Arendt, a autoridade é uma das características fundamentais do conceito de


educação. Considera que a mesma decorre do fato de o educador responsabilizar-se pelo
mundo e assim, ser capaz de apresentá-lo ao educando e familiarizá-lo a esse espaço. Porém,
para a autora, a perda da autoridade desencadeia a crise da educação, já que se esvai o sentido
de educar definido em seu conceito como um processo de intermediação do educando entre os
espaços privado e público.

Sendo assim, com a crise, a educação concebida como introdução no espaço público
perde seu sentido, já que não existe mais a distinção entre o espaço privado e o espaço
público, pois os dois foram absorvidos pela predominância do social. Essa situação implicou
em profundas mudanças também na forma de se pensar a educação. O crescimento da esfera
social e como a mesma atingiu e modificou a finalidade do educar serão os assuntos
discutidos no capítulo seguinte.
18

2 O CRESCIMENTO DA ESFERA SOCIAL E SEUS REFLEXOS NA EDUCAÇÃO

No capítulo anterior, a distinção entre espaço privado e público foi abordada porque,
para Arendt, ela é fundamental para compreensão da educação. Neste capítulo, em que
pretendemos discorrer sobre a esfera social e como a mesma atinge a educação, faz-se
necessário aprofundar alguns aspectos dos conceitos de privado e público e como os mesmos
relacionam-se ao conceito do social. Em nossa abordagem recorremos à obra A condição
humana de Hannah Arendt.

2.1 O SURGIMENTO DA ESFERA SOCIAL

É importante ressaltarmos que os conceitos de social, sociedade e esfera social, em


Hannah Arendt, não correspondem ao mesmo sentido ao que estamos habituados na
linguagem corrente. Para Arendt, na sociedade, aquilo que era próprio do espaço privado
passa a ocupar o espaço público, mesmo permanecendo com o caráter de algo particular e não
de comum a todos. Sendo assim, para discorrer sobre o tema, a autora considera que os
sentidos de privado e público foram modificados quanto a sua origem. Ela afirma que:

O aparecimento da sociedade – a ascensão da administração do lar, de suas


atividades, seus problemas e dispositivos organizacionais – do sombrio interior do
lar para a luz da esfera pública não apenas turvou a antiga fronteira entre o privado e
o político, mas também alterou o significado dos dois termos e a sua importância
para a vida do indivíduo e do cidadão, ao ponto de torná-los quase irreconhecíveis
(ARENDT, 2010, p.46).

A partir dessa afirmação, Arendt inicia sua abordagem sobre a esfera social. É notório
que, para ela, essa expansão da esfera social é prejudicial para a distinção entre o que é
privado do que é público e da garantia da barreira que limita um espaço do outro. Como
elucidado no capítulo anterior, para a autora, as necessidades vitais que dizem respeito à
manutenção do que é biológico na vida, localizam-se no âmbito privado de cada indivíduo.
Referem-se a uma luta pela sobrevivência da espécie, luta essa que, também é comum a outras
espécies de animais. Entretanto, o espaço público/comum comporta o que for do interesse de
todos, o que tiver uma importância comum a todos.

Arendt explica o mundo comum como o lugar que abriga as obras, ou seja, os
artifícios que o homem produz e que perdurarão após sua morte, conservando dessa forma
esse espaço. Abrigar as obras feitas pelos homens e que permanecerão após a ida dos mesmos,
já que continuarão sendo usadas pelos que chegarem, caracteriza o mundo comum como um
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lugar duradouro que continua a existir mesmo com a morte dos homens. Por essa razão, é
importante conservá-lo, pois ele permanece para ser ocupado por outras gerações. Para isso, é
necessário que os bens e valores que importam a todos apareçam para se tornarem comuns e
permanentes após a ida e vinda dos seres humanos.

[...] o mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás
quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no
futuro, preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência nele. É
isso o que temos em comum não só com aqueles que aqui estiveram antes e com
aqueles que virão depois de nós. (ARENDT, 2010, p. 67).

Além disso, Arendt afirma que, esse mundo comum também é um espaço para os
homens agirem, praticarem o que os faz humanos: a ação. Portanto, além de ser o espaço em
que se localizam os resultados obtidos pela atividade da obra, o mundo comum também
corresponde ao espaço em que se pratica a atividade da ação. Essa atividade distingue-se das
outras – trabalho e obra – porque corresponde, exclusivamente, ao que o ser tem de humano,
ou seja, a ação relaciona-se à singularidade do ser que o possibilita inovar, realizar um feito
único.

Para chegar até o espaço comum, é preciso ter vencido as necessidades vitais, ter se
desvinculado do que lhe é privado para adentrar no mundo público. A liberação das
necessidades vitais, restritas ao âmbito privado, é a condição essencial para o acesso ao
espaço público, é a “permissão” para participar do mundo comum, pois somente dessa forma
pode-se impedir que o mundo comum sirva apenas de instrumento para a satisfação de
necessidades individuais e interesses privados. Mundo este em que se prioriza o que for do
interesse de todos, mas que também, salienta-se o que cada um tem de singular, o que torna
cada indivíduo um ser único já que, devido a sua natalidade, o ser humano é potencialmente
capaz de agir e, sendo assim, capaz de transformar. E este indivíduo, precisa se sobressair dos
demais para ser visto e ouvido, ou seja, no mundo comum cada indivíduo expõe a sua
opinião, mas em prol do que for do interesse de todos. Essa ação origina-se da capacidade de
apresentar algo completamente novo e único, já que somos todos seres singulares. Portanto,
nesse espaço onde se preza o que é comum a todos, preserva-se também o que Arendt
denomina como excelência:

Toda atividade realizada em público pode atingir uma excelência jamais igualada
na privatividade; para excelência, por definição, é sempre requerida a presença de
outros, e essa presença exige a formalização do público, constituído pelos pares do
indivíduo; não pode ser a presença fortuita e familiar de seus iguais ou inferiores
(ARENDT, 2010, p. 59).
20

Entretanto, segundo Arendt, a deturpação nos sentidos referentes a cada espaço - que
ela justifica como decorrente da mudança histórica que ocorre na Era Moderna - faz com que
a esfera privada sobreponha-se a esfera pública e que surja assim, o que a autora denomina de
esfera social ou sociedade. Na modernidade, perde-se a significação primordial dos espaços
privado e público, a ponto de descaracterizá-los e misturá-los por completo. A partir do
crescimento da esfera social, o ser humano que, não somente nasce, mas traz consigo a
natalidade (capacidade de inovação devido à sua singularidade) e que possuía dois espaços em
que transitava - o privado e o público -, passa a fazer parte não de um mundo comum, mas
sim, de uma sociedade em que se prioriza o que diz respeito ao seu âmbito privado. Para
Arendt (2010, p.56), “A sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da
vida, e de nada mais, adquire importância pública, e na qual se permite que as atividades
relacionadas com a mera sobrevivência apareçam em público”.

2.2 A SUBSTITUIÇÃO DA AÇÃO PELO COMPORTAMENTO

Dessa forma é constituída a realidade em que, o que dizia respeito à esfera privada de
cada um, quer dizer, a privatividade do lar, passa a ser exposto no espaço que é público.
Confunde-se inteiramente o que corresponde a cada espaço e essa extrapolação do que é
social modifica a essência do mundo comum. Encontra-se aí, outra alteração de sentidos:
esvai-se o local em que os interesses comuns são prioridades e que os homens reúnem-se para
agirem e surge um espaço em que todos se aglomeram, ou seja, um espaço em que as pessoas
moldam-se a um padrão, quer dizer, comportam-se de acordo com o que é estabelecido como
norma:

Ao invés de ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros certo tipo de
comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a
“normalizar” os seus membros, a fazê-los comportarem-se, a excluir a ação
espontânea ou a façanha extraordinária (ARENDT, 2010, p.49).

Forma-se assim, na modernidade, a sociedade de massas, onde o homem deixa de agir


e passa a se comportar; perde sua dimensão política e torna-se um ser social. Sobre a
formação dessa sociedade, a autora afirma:

[...] com o surgimento da sociedade de massas o domínio do social atingiu


finalmente, após séculos de desenvolvimento, o ponto em que abrange e controla,
igualmente e com igual força, todos os membros de uma determinada comunidade.
Mas a sociedade iguala em quaisquer circunstâncias, e a vitória da igualdade no
mundo moderno é apenas o reconhecimento político e jurídico do fato de que a
sociedade conquistou o domínio público, e que a distinção e a diferença tornaram-se
assuntos privados do indivíduo (ARENDT, 2010, p. 50).
21

Arendt critica o comportamento – característico da sociedade de massas - em


detrimento da ação que é a consequência do alcance da esfera social superando a esfera
pública. Relacionando isso a nossa atualidade, comportar-se, moldar-se, significa uma
adaptação àquilo que é determinado como ideal para todos, para manter o que está
estabelecido. Para isso, negligenciamos o que nos difere das outras espécies de animais: nossa
capacidade de agir. Invalidamos assim, a atividade que nos torna seres humanos e que advém
da singularidade de cada um. Singularidade esta que, para Arendt, só é vivenciada quando
estamos reunidos em um espaço público; por si só ela não aparece, só faz sentido quando se
age no mundo comum.

Deixando de agir e passando a comportar-se, tornamo-nos individualistas, priorizando


nossos interesses pessoais e disputando o alcance dos mesmos, extrapolando o espaço
destinado a isso – o privado – e trazendo assim, para o espaço público o que é de interesse
particular e não comum. Assim, comportamo-nos como nos é imposto para manter uma
“ordem social”, porém, lutando somente para o que vale a si próprio, desconhecendo
completamente a necessidade de se ter “valores comuns” para poder preservar um espaço que
precisa perdurar para as próximas gerações. Por isso, para Arendt:

[...] esse mundo comum só pode sobreviver ao vir e ir das gerações na medida em
que aparece em público. É a publicidade do domínio público que pode absorver e
fazer brilhar por séculos tudo o que os homens venham a querer preservar da ruína
natural do tempo (ARENDT, 2010, p.67).

Constata-se que ocorreu uma modificação nos sentidos dos termos privado e público,
já que os mesmos diluíram-se dentro do sentido de social. Porém, essa alteração vai além da
modificação dos termos. Existe um impacto direto na relação do homem com o mundo. Antes
o homem possuía dois espaços – o privado e o público – para realizar as atividades
respectivas a cada um deles. No espaço privado, realizava-se a atividade do trabalho referente
a saciação das necessidades vitais, já em relação ao espaço público, realizava-se duas
atividades: a obra, referente a fabricação de artifícios para perpetuação deste espaço e a
atividade da ação, atividade genuinamente humana de relacionar-se com seus iguais para
transformação deste espaço comum em um espaço melhor.

Com o advento e a expansão da esfera social, o homem passa a supervalorizar a


atividade do trabalho, ou seja, passa a se dedicar demasiadamente à atividade correspondente
às suas necessidades, aos seus interesses pessoais e assim, esvai-se a importância da
22

existência de um espaço comum a todos. Logo, a perda dos espaços privado e público e o
surgimento da esfera social, atinge diretamente, a condição da vida humana. E seriam várias
as vertentes que poderiam encaminhar essa discussão, porém, é o impacto causado por esse
crescimento da esfera social na educação que é pertinente discutir na continuação deste
capítulo.

2.3 A ESFERA SOCIAL E OS FINS DA EDUCAÇÃO

Retornando ao conceito arendtiano de educação que foi apresentado no capítulo


anterior como o processo de intermediação entre o novo ser e o mundo comum e,
relacionando-o com a discussão que iniciou este capítulo, do surgimento da esfera social em
detrimento deste mundo comum - esfera esta que conseguiu diluir os sentidos de privado e
público - temos como uma das consequências dessa equação, o impacto direto dessa
“sociedade de massas” na finalidade do educar, ou seja, no atual sentido da educação.

Se antes a educação era o elo entre o novo ser e o mundo comum, tendo este sido
anulado, já que o espaço comum desapareceu juntamente com o espaço privado – os dois
sendo absorvidos pela esfera social - entretanto, a educação continua a existir, então qual a
função da educação na sociedade? Qual a sua finalidade dentro da esfera social?

Quando se estabelece que o alcance dos interesses pessoais deva ser a prioridade, ou
seja, que a conquista do bem-estar individual é o que realmente importa, relacionamos isso
diretamente a tudo que for necessário ser feito para atingir essa meta. Tornamo-nos
“investidores de nós mesmos”. Buscamos tudo que possa nos auxiliar a conquistar o que
queremos e, se possível, tudo que faça com que isso aconteça mais rápido. Dentro dessa
lógica - meta/alcance - é inegável a instrumentalização da educação. Para compreender essa
instrumentalização, primeiramente, faz-se pertinente explicitar a relação entre a ciência da
economia e a sociedade. Sobre essa relação, Arendt (2010, p. 51) afirma:

A economia – que até a era moderna constituía uma parte não muito importante
da ética e da política, e que se baseia na premissa de que os homens agem em
relação às suas atividades econômicas como agem em relação a tudo mais – só veio
adquirir caráter científico quando os homens tornaram-se seres sociais e passaram a
seguir unanimemente certos padrões de comportamento, de sorte que aqueles que
não seguissem as regras podiam ser considerados associais ou anormais.

Portanto, a economia doméstica, ou seja, a parte financeira da vida de cada indivíduo,


responsável por saciar suas necessidades e vontades pessoais, passa a reger a lógica da
23

sociedade. Assim, a ciência da economia “... se tornou a ciência social por excelência”.
(ARENDT, 2010, p.51). Aqui, a supremacia da satisfação da vida privada compõe a lógica
comum a todos, torna-se o objetivo único de todos. Essa supremacia resulta no
desaparecimento de um espaço público, como afirma Arendt (2010, p.71) a esse respeito: “O
mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite apresentar-
se em uma única perspectiva”. Vencida a fronteira entre o privado e o público, anula-se o
público, extrapola-se o privado e transforma-o em esfera social. Logo, passamos a fazer parte
de uma sociedade que, persegue o interesse econômico que é único e não mais de um mundo
comum que depende de uma multiplicidade de perspectivas.

Com a alteração dos sentidos e da prática do que é privado e do que é público, a


educação deixou de representar o processo responsável pela transição da família para o
mundo comum. Assim, com o advento e expansão da esfera social, a finalidade da educação
também é alterada. Atualmente, temos uma educação não mais como um processo de
formação, mas sim, como um meio para se alcançar algo. Hoje encontramos uma educação
que serve como auxiliar no alcance da satisfação das necessidades vitais, dos interesses
individuais, ou seja, uma educação subordinada à lógica vigente, aos ditames dessa
“sociedade de massas”.

A afirmativa sobre a alteração da finalidade do educar, de processo para instrumento, é


mais complexa do que uma simples dedução. Consideramos pertinente discutir o papel da
educação na nossa sociedade, debater essa alteração sobre a finalidade da educação, dentro da
esfera social brasileira. Para isso, é válido recorrermos a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional 9 . 394/96, a LDB, já que a mesma destina-se a regularização do sistema
de educação brasileiro.

Consultando o que diz a lei, no Artigo 2º do Título II, que se refere aos princípios e
fins da educação nacional, encontramos que:

A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e


nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho (BRASIL, 2010, p.8).

Analisando o que a lei determina como a finalidade do educar, encontramos três


pilares: educar para desenvolver o educando como ser humano, como cidadão e como
trabalhador. Entretanto, baseando-nos no que já foi discutido até aqui, temos razões para
constatar que na sociedade existe uma supervalorização de somente uma dessas funções:
24

preparar o educando para o mercado de trabalho, submetendo assim, a finalidade da educação


às exigências desse mercado.

Crescemos ouvindo que precisamos estudar para “sermos alguém na vida”, como se a
finalidade da educação fosse, prioritariamente, nos preparar para uma profissão que nos
“torne alguém”. Dessa forma, os fins da educação de contribuir para o desenvolvimento do
ser como humano e de educar para a cidadania, passam a ser secundários. Assume-se, com
primazia, a responsabilidade de preparar trabalhadores/consumidores, competentes e atuantes
às demandas do mercado.

Essa dualidade do sujeito de trabalhar e também consumir caracteriza uma sociedade


não somente de massas – onde o sujeito conforma-se em realizar, prioritariamente, a atividade
do trabalho – porém, caracteriza-se também, como uma sociedade de consumidores que,
precisam gastar o que produzem. E, como nessa sociedade a atividade do trabalho é praticada
em abundância, consome-se também, demasiadamente. Logo, uma sociedade de massas
refere-se a uma sociedade de consumo.

Dentro dessa sociedade, podemos relacionar a diferença crucial no que Arendt define
como homo faber e animal laborans. O homo faber é o ser humano que fabrica artifícios a
serem usados por ele e com durabilidade para permanecerem no mundo mesmo com a ida e
vinda dos seres, enquanto que, o animal laborans, é um animal da espécie humana que labora
para produzir o que sacia suas necessidades vitais, sua condição biológica da vida. Entretanto,
na sociedade de consumo, o homo faber perde espaço para a supremacia do animal laborans
que, não mais produz somente o que é necessário, mas sim, realiza uma produção exacerbada
do que não terá permanência no mundo porque será consumido com a mesma demasia em que
é produzido. Como afirma Arendt (2010, p. 156): “Os ideais do homo faber, fabricante do
mundo, que são a permanência, a estabilidade e a durabilidade, foram sacrificados em
benefício da abundância, que é o ideal do animal laborans”.

2.4 A SOCIEDADE DE CONSUMO E A EDUCAÇÃO

Dentro do contexto da sociedade de massas/consumo, a supremacia do ideal do animal


laborans sobre os ideais do homo faber, reflete na educação, transformando sua finalidade em
promessa para uma vida melhor. Investir nos estudos passa a ser a possibilidade – mas nunca
a certeza – de obter sucesso profissionalmente e, em consequência, financeiramente.
25

Sustentando assim, a lógica econômica de que, a satisfação das necessidades e dos interesses
pessoais, é realmente o que tem relevância para a sociedade. (CARVALHO, 2008).

Dessa forma, mesmo não sendo garantia, a educação é desejada para que, caso não
garanta, pelo menos certifique que houve a tentativa de investir nela para melhorar de vida.
Encontra-se aí, a contradição entre o que a educação deveria ser e o que de fato ela é dentro
da sociedade de massas: deve-se educar para contribuir na formação ético-política do ser
humano ou deve-se preparar um ser funcional à “ordem social”?

A educação torna-se um instrumento para manutenção dessa sociedade, a serviço do


sistema em que ela se encontra. Perde seu caráter formativo, distancia-se da sua finalidade
estabelecida por lei, reduz-se apenas a ser um treinamento para sobrevivência, mais um meio
para garantir a saciedade das necessidades vitais do ser.

A educação que, para Arendt, tinha como tarefa introduzir um novo ser em um mundo
já existente e, simultaneamente, preservar e desenvolver a singularidade desse ser – sua
capacidade de inovação – perde esse sentido, desvia-se dessa finalidade. Desloca-se da sua
posição entre o passado – sendo tradicional e conservadora, apresentando um mundo já velho
– e, o futuro - sendo uma aposta no desenvolvimento da capacidade de agir do ser que é
único, potencialmente capaz de, futuramente, transformar o já existente.

Ela desfaz o elo entre o passado e o futuro e passa a dedicar-se demasiadamente a


satisfazer o presente. Renegando a importância dos fatos ocorridos, ou seja, renegando a
importância da tradição “... nossa atitude face ao âmbito do passado.” (ARENDT, 1997, p.
243) e, desconsiderando a relevância de se preocupar em deixar um espaço público para a
chegada de novos seres, a educação alia-se ao conformismo característico da sociedade na
qual se encontra e que nos faz reproduzir a sua lógica de consumo desenfreada e
desnecessária, sem ao menos refletirmos sobre essa reprodução. Constata-se assim que,
preparar o ser para se tornar funcional à manutenção da “ordem social” estabelecida, para
conformar-se ao que é imposto e não para agir sobre o já existente é a finalidade da educação
dentro da esfera social.

Entretanto, o ato de educar é realizado pelos pais e educadores, adultos que já


deveriam ser conscientes da sua capacidade de ação. Sujeitos que, em princípio, podem
decidir em juntar-se à massa, ser mais um na sociedade de consumo, repetindo a sua lógica e
conformando-se com ela ou, sujeitos que podem escolher resistir, reagir, transformar.
Relacionando a discussão deste capítulo com a dupla responsabilidade de educar, discutida no
26

capítulo anterior, constata-se que, a “dupla missão” do educador, só existe se o mesmo quiser
como diz o dito popular: “cumprir com o que manda a lei”.

Vimos que por lei a finalidade do educar visa o desenvolvimento do ser como
humano, como cidadão e como trabalhador. Também vimos que, para Arendt, o educador
precisa assumir a responsabilidade de apresentar o mundo e para isso é necessário amá-lo e
ele, por já ser adulto, encontra-se apto para agir pela transformação do mundo num lugar
melhor. Logo, podemos entender que, o educador que assumir a responsabilidade pelo
mundo, precisa ir contra a lógica vigente de conformar-se com o que é imposto.

Compreendemos então que, é necessário resgatar a genuína capacidade humana de


agir e resistir, mesmo fazendo parte dessa sociedade de consumo. Resgatar o ato de educar
por completo, prezando pelos seus três pilares e não acatando a sua redução a apenas preparar
para servir ao trabalho, a apenas preparar um trabalhador a serviço de uma sociedade e de um
consumo alienado imposto pela mesma.

Como afirma Arendt (1997, p. 221): “A crise geral que acometeu o mundo moderno
em toda parte e em quase toda esfera da vida se manifesta diversamente em cada país,
envolvendo áreas e assumindo formas diversas”. Como estamos analisando neste trabalho,
uma dessas formas é a crise na educação que faz parte de uma crise ainda maior. A esse
respeito, ressalta Almeida (2011, p. 48): “Não se trata de comportamentos individuais ou de
uma categoria profissional; a crise na educação se insere num mal-estar mais abrangente e,
por isso, dificilmente haverá soluções imediatas ou apenas pragmáticas”. Entretanto, Arendt
(1997, p. 223) também afirma que essa situação problemática

é a oportunidade, proporcionada pelo próprio fato da crise – que dilacera fachadas


e oblitera preconceitos -, de explorar e investigar a essência da questão em tudo
aquilo que foi posto a nu (...). Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e
exige respostas novas ou velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos.

Assim, como bem analisou a própria Arendt, podemos também compreender a crise
como uma chance para refletirmos. Temos através dela a oportunidade de modificar o que
está estabelecido, caso a experiência da nossa realidade não esteja de acordo com o que
idealizamos. É a situação problema que exige de nós usufruir da capacidade já tão ressaltada
até aqui, nossa capacidade de agir para transformar o que temos como realidade em algo
melhor.
27

Portanto, propomos refletir, no próximo capítulo, sobre outra possível finalidade para
educação. Uma finalidade contrária à conformidade com o sistema, avessa ao contentamento
de se reduzir a ser, somente, um instrumento de manutenção para uma “ordem social” que nos
conduz a inativar nossa condição de ser político, para sermos somente um ser social.
28

3 AÇÃO, RESISTÊNCIA E LIBERDADE: CAPACIDADES POTENCIALIZADAS


PELA EDUCAÇÃO

Como já foi discutido o que deveria ser a finalidade da educação na perspectiva de


Arendt e o que de fato tem sido predominante como finalidade da educação dentro da esfera
social, torna-se válido, talvez necessário, pensarmos sobre outra possibilidade para o ato de
educar. Assim como foi o desenrolar deste trabalho até estas linhas, a abordagem arendtiana
prossegue sendo a base para incitar uma reflexão. Sem nenhuma pretensão de tentar sugerir
uma solução para crise da educação, surge como propósito deste capítulo, uma proposta de
reflexão sobre outra possibilidade, sobre uma diferente perspectiva a respeito da finalidade da
educação. Diante de tudo que já foi exposto, podemos considerar pouco provável, ao analisar
o pensamento arendtiano sobre educação, não perceber as capacidades que, para autora,
mesmo com a crise, o ser humano não perdeu. Arendt defende que o homem continua
potencialmente capaz de: agir, resistir e libertar-se. Por meio deste capítulo, tentaremos
relacionar essas três capacidades com o processo educativo.

3.1 EDUCAÇÃO E AÇÃO

Apresentar o conceito de Arendt sobre a capacidade da ação é tão complexo quanto foi
expor seu conceito de educação (primeiro capítulo deste trabalho), pois o conceito de
educação para autora é formado por fatores distintos e o conceito de ação pode ser analisado
tanto em um contexto amplo - em que a mesma possui várias características -, quanto no
contexto político, distinguindo-se como ação política. Sendo assim, torna-se necessário
expormos como a capacidade da ação pode se apresentar, seja num contexto mais amplo, seja
restrita ao contexto político.

Para Arendt, a ação corresponde a uma das condições da nossa existência que é a
natalidade. A capacidade de agir está relacionada à nossa singularidade, (já tão ressaltada no
presente trabalho) e se refere ao fato de sermos seres únicos e por tal razão sermos
potencialmente capazes de inovar, de fazer para o mundo algo antes nunca realizado. Assim,
uma característica da ação é revelar a nossa singularidade. Como também já elucidado neste
trabalho, a autora ressalta que o feito único realizado pelo homem – ação resultante da
natalidade – torna-se relevante quando realizado no espaço público, diante dos seus iguais,
pois precisa ser visto e ouvido por todos para se tornar real.

Podemos descrever o que nos caracteriza e nossas características são comuns a vários
seres humanos. Elas definem o que somos. Porém, quem somos, na perspectiva de Arendt, só
29

é revelado pela ação, ou seja, revelar quem somos é apresentar diante de todos o que nos torna
seres únicos e isso só acontece quando agimos. Assim, agir é revelar entre os iguais nossa
singularidade, exatamente o que torna cada um, um ser diferente. Para isso, a autora afirma
que o homem precisa do discurso, precisa das palavras para, além de ser visto (ação), ser
também ouvido (discurso), já que “ao agir e ao falar, os homens mostram quem são, revelam
ativamente suas identidades pessoais únicas, e assim fazem seu aparecimento no mundo
humano...” (ARENDT, 2010, p. 224).

Afirmar que a ação precisa ser vista e ouvida para ganhar um lugar no mundo implica
em outra característica: a ação acontece por meio dos atos e das palavras, ou seja, ação e
discurso são estreitamente ligados. A ação pode ser vista somente pelo fato de aparecermos
fisicamente, porém, para ter relevância ela precisa ser anunciada pela palavra, pois “uma vida
sem discurso e sem ação (...) deixa de ser uma vida humana, uma vez que já não é vivida entre
os homens”. (ARENDT, 2010, p.221).

Nesse sentido, de agir entre os homens, a ação também se caracteriza por estabelecer a
relação entre eles, a ação então proporciona a “interação” entre os homens. Assim, a ação não
produz artefatos, como a atividade da obra, porém, ela possui um sentido em si mesma; a
ação, num contexto amplo, resulta na composição das histórias humanas. Por ocorrer
exclusivamente entre os homens, dentro de um espaço comum a todos, a ação acaba por
caracterizar esse espaço como sendo um meio propício para “produção” das histórias
humanas, “ela “produz” estórias, intencionalmente ou não, com a mesma naturalidade com
que a fabricação produz coisas tangíveis”. (ARENDT, 2010, p. 230).

Além das características elucidadas acima, a ação, quando caracterizada pela


responsabilidade e pela preocupação com o mundo comum, configura-se em ação política. Os
homens possuem a capacidade de inovar, podendo assim, renovar o mundo comum. Esse feito
da renovação só pode acontecer quando o homem considera-se pertencente à história desse
espaço. (CARVALHO, 2008). O senso de pertencimento faz com que ele se responsabilize
tanto pela conservação do mundo comum – para que o mesmo continue a existir sendo
cenário para ação, também das próximas gerações – quanto pela sua renovação, pois, sem a
atitude inovadora dos homens, o mundo comum teria sua ruína provocada pelo desgaste da
ida e vinda dos mesmos. (ARENDT, 1997).

Retomemos o que foi elucidado no primeiro capítulo deste trabalho: entre as


atividades humanas a ação é para Arendt a atividade que está mais relacionada à natalidade.
30

A autora afirma sobre essa relação que: “a ação é a atividade política por excelência” e a
natalidade, “a categoria central do pensamento político” (ARENDT, 2010, p.10). A
natalidade, por sua vez, é a “essência da educação” para ela. Portanto, retomando a afirmação
sobre ação e natalidade e relacionando-a com o que apresentamos sobre ação e ação política,
temos uma relação direta entre a ação e a educação. Porém, essa relação não quer dizer que a
ação política aconteça no processo educativo. Para Arendt, o processo educativo não é o
momento que a criança e o jovem fazem política.

Como exposto, para autora, a ação política é realizada entre iguais, no espaço público,
ou seja, ela acontece entre adultos que, ao se responsabilizarem pelo mundo comum,
encontram-se aptos para agir nele e por ele. Sendo assim, a ação política não pode ser
realizada por crianças e jovens que estão sendo introduzidos no mundo e é por essa razão que
Arendt defende que o espaço educativo não é o lugar apropriado para ação política
propriamente dita, isto é, uma ação que delibera sobre o mundo e transforma este lugar. As
crianças sequer conhecem o mundo ao qual estão chegando.

Diante do que foi apresentado, podemos compreender que as crianças e os jovens não
realizam a ação política porque ainda não possuem responsabilidade pelo mundo comum -
característica dessa ação. Entretanto, dentro do processo educativo, o educador pode incitar
algumas características da ação em si que, futuramente, poderão resultar em uma ação
política. Sendo assim, podemos entender que, para Arendt, a educação é o processo em que o
educador, por meio da tradição e da atitude conservadora, apresenta sob seu ponto de vista os
fatos relevantes da história, mostra ao educando o mundo já existente, do qual o educador já
faz parte há mais tempo.

Simultaneamente, refere-se ao processo de preservação da singularidade do educando


e sua preparação para que, futuramente, esteja apto para agir nesse mundo. Sendo assim,
temos como processo educativo o caminho propício para incitar a natalidade do ser, estimular
seu potencial de ação, desenvolvendo essa capacidade para, futuramente, se tornar um ser
político e adentrar no espaço público. Esse processo acontece dentro do âmbito escolar,
primeiro espaço que a criança frequenta fora do seu espaço privado, familiar. A respeito dessa
etapa que se realiza na escola, a autora expõe:

Nessa etapa da educação, sem dúvida, os adultos assumem mais uma vez uma
responsabilidade pela criança, só que, agora, essa não é tanto a responsabilidade pelo
bem-estar vital de uma coisa em crescimento como por aquilo que geralmente
denominamos de livre desenvolvimento de qualidades e talentos pessoais. Isto, do
ponto de vista geral e essencial, é a singularidade que distingue cada ser humano de
31

todos os demais, a qualidade em virtude da qual ele não é apenas um forasteiro no


mundo, mas alguma coisa que jamais esteve aí antes. (ARENDT, 1997, p.239).

À vista disso, contribuir como estímulo a capacidade do educando de fazer algo


inédito, algo único - capacidade de ação resultante da sua singularidade -, pode-se entender
como uma das finalidades para o ato de educar. A educação proporciona ao educando
conhecer a história do mundo no qual passa a fazer parte; permite compreender essa história
para que possa se reconhecer dentro desse mundo – deixando assim de ser um “forasteiro”
nele – e esse reconhecimento possibilita o sentimento de pertencer a esse espaço.

O processo educativo então poderá estimular o educando para que, futuramente, ele
possa realizar a ação política, pois reconhecer-se dentro desse espaço, considerar-se
pertencente à história dele, significa tanto responsabilizar-se pela preservação quanto pela
renovação desse mundo comum. A ação assim responsabiliza-se tanto pela preservação - no
sentido de garantir a permanência desse espaço como cenário para as próximas gerações -
como também pela renovação do mesmo, necessária para que o mundo não seja destruído
“visto que o mundo, tanto no todo como em parte, é irrevogavelmente fadado à ruína pelo
tempo, a menos que existam seres humanos determinados a intervir, a alterar, a criar aquilo
que é novo.” (ARENDT, 1997, p. 242).

3.2 EDUCAÇÃO COMO RESISTÊNCIA À SOCIEDADE DE CONSUMO

Pensar na ideia de educação como uma forma de resistência aos ditames da sociedade
de massas, não seria concebível, dentro da perspectiva arendtiana, se os espaços privado e
público continuassem a existir, sendo distintos um do outro e preservando a realização de suas
respectivas atividades. Porém, como já foi discutido no capítulo anterior, o crescimento da
esfera social teve como uma das consequências do seu alcance, a alteração na finalidade da
educação, fazendo com que, predominantemente, a mesma deixasse de ser um processo de
contribuição para o desenvolvimento do ser, passando a ser um instrumento para manutenção
da lógica dessa sociedade.

Com a expansão da esfera social, as questões econômicas tornaram-se prioritárias. A


satisfação das necessidades vitais e das vontades individuais transformou-se no objetivo único
de todos e alcança-lo é a lógica do social. Com isso, houve o declínio do espaço público e
sendo assim, a ação não tem mais lugar para acontecer. A lógica da sociedade dita a
32

conformação com o que está imposto. Dentro desse contexto, a educação também teve sua
finalidade alterada em prol da manutenção da “ordem social”.

O compromisso de termos um processo que estimule o educando a agir politicamente


no futuro se esvaiu, dando o lugar a predominância da instrumentalização da educação como
um meio para alcançarmos nossos interesses individuais, satisfazendo assim, as exigências de
um mercado que precisa de trabalhadores que produzam exacerbadamente para que também
consumam em demasia. Diante desse cenário, propor uma educação que recuse essas
exigências e que não se conforme em reduzir-se a ser um instrumento de viabilização do
processo econômico, mas que defenda um compromisso com o mundo, constitui-se como
uma forma de resistência a sociedade de massas.

No ensaio A crise na educação, encontramos a crítica de Arendt referente às suas


observações sobre as escolas estadunidenses de sua época. Iremos nos basear nessa crítica
para discutirmos sobre as alterações de algumas práticas pedagógicas na nossa atual
sociedade. Como analisado no capítulo anterior, o modelo de processo educativo
predominante em algumas das nossas escolas, encontra-se imbuído no contexto de educação
submetida à manutenção da “ordem social”, com isso, consideramos pertinente expormos
algumas modificações ocorridas, para melhor compreendermos a ideia de educar relacionada
à resistência.

Como já destacado, o papel do educador para Arendt possuía uma dupla função:
preservar a singularidade do novo ser e responsabilizar-se pelo mundo, contribuindo assim,
para renovação desse espaço. No entanto, na sua crítica a respeito das alterações ocorridas nas
escolas dos Estados Unidos, na primeira metade do século XX, Arendt observa que o
educador que antes estava na escola para, por meio de sua autoridade e da tradição, apresentar
o mundo ao recém-chegado, agora tem como papel auxiliar o novo ser a se autogovernar.
Trazendo para atualidade de algumas das nossas escolas, podemos relacionar a crítica da
autora ao processo educativo que prioriza a autonomia da criança. Estamos diante de uma
afirmação complexa: considerar a criança como um ser autônomo, ou seja, capaz de se
autogovernar, contrapõe-se ao conceito arenditiano de criança sendo um ser em formação.
Diante disso, faz-se necessário analisarmos, brevemente, o que se entende como autonomia.

Sabemos que o termo autonomia refere-se a um ser que é independente, ele próprio
decide o que tem que fazer, pois possui a capacidade de se autogovernar. (HOUAISS, 2009).
Assim, a criança sendo um ser autônomo, toma suas próprias decisões, levando em conta que
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o poder de decidir requer responsabilidade. Dessa forma, podemos entender que um ser
autônomo refere-se a um ser independente, responsável por si mesmo, pois não depende dos
outros para tomar decisões. Entretanto, no decorrer do presente trabalho, apresentamos que,
para Arendt, a criança é um ser em desenvolvimento, uma recém-chegada no mundo, já que
ainda está sendo apresentada a ele. Expomos também que, na perspectiva arendtiana, a
responsabilidade é uma característica da ação de seres humanos - em princípio - já
conscientes do seu lugar no mundo, já capazes de agir por conta própria, ou seja, seres
humanos já adultos. Vale a ressalva de que, responsabilizar-se pelos seus atos em relação ao
mundo, no conceito arendtiano, significa agir politicamente.

Acreditar que a criança possui autonomia e é capaz de se “autogovernar” tem


consequências decisivas no que tange à compreensão do papel do educador na relação
pedagógica. A responsabilidade na educação é transferida, em grande parte, para a própria
criança e o professor ocupa apenas o lugar de auxiliar. A respeito dessa alteração no papel do
educador em relação a criança, Arendt (1997, p. 230) afirma que: “Ele apenas pode dizer-lhe
que faça aquilo que lhe agrada e depois evitar que o pior aconteça”. Em decorrência disso,
ocorre uma dupla falácia: a negligência de permitir que um ser em formação – que ainda
desconhece o espaço do qual agora faz parte – se autogoverne e permitir a ideia de que esse
novo ser possui um mundo que é só seu, onde pode fazer o que quer e ditar suas próprias
regras.

Para Arendt, o fato de a criança poder tomar decisões, dentro do ambiente escolar,
retrata a falsa ideia de que existe um mundo em que ela já pode decidir por conta própria, ou
seja, a escola dentro desse contexto deixa de ser um espaço representante do mundo e passa a
ser o próprio mundo só que em um tamanho reduzido, tornando-se assim, um “falso cenário”
para ação política. Dessa maneira, para Arendt, a escola sustenta a falsa ideia de que existe
um mundo somente das crianças, independente dos adultos, onde suas vontades imperam e as
mesmas estabelecem suas regras e isso significaria que se faz política na educação.

Já expomos no presente texto que na concepção arendtiana os conceitos de educação e


política são distintos. No conceito de Arendt, as relações pedagógicas distinguem-se das
relações na política, pois suas características são opostas. Na educação, a relação entre
educador e educando é de hierarquia, onde o professor - por já fazer parte do mundo há mais
tempo -, detém um conhecimento maior sobre o mundo e, portanto, é quem se responsabiliza
por apresentá-lo. Porém, o educando por ser um recém-chegado ao mundo, ainda não tem
conhecimento sobre a história do mesmo e por isso precisa ser introduzido para se reconhecer
34

dentro desse espaço. Já as relações na política, acontecem entre adultos, ou seja, entre iguais.
Nas relações políticas todos estão aptos para agirem.

Isso não significa que Arendt despreze a ideia de respeito a individualidade do ser, até
porque como já explicado, a autora defende a singularidade, o fato de cada ser humano ser
único e por isso ser potencialmente capaz de realizar algo completamente novo. No entanto,
para ela, o processo educativo tem a finalidade de preservar essa singularidade, estimulando-a
para que a mesma possa aparecer quando o novo ser se tornar um ser adulto, apto para a ação
política.

Em contradição a essa concepção arendtiana de educação - onde é imprescindível um


compromisso com um mundo comum – surge o contexto de educação que serve como
manutenção da sociedade de massas. Nele, deturpa-se a finalidade do educar da autora,
caracterizando uma educação não voltada para individualidade do ser, mas sim, para o
individualismo, ou seja, uma individualidade exacerbada, guiada somente pelas vontades do
indivíduo, pelas suas escolhas pessoais, sem a preocupação de incitar um compromisso com o
mundo comum, onde se compartilha de objetivos comuns a todos os iguais. Isso,
consequentemente, irá acarretar numa preparação das competências do indivíduo para
corresponderem a seus objetivos pessoais, o alcance dos seus desejos. Sobre isso, Carvalho
(2010, p. 847) afirma que:

Daí a compatibilidade e a coincidência entre os discursos que pregam a


autonomia pessoal, a responsabilização individual e o compromisso da educação
com o desenvolvimento, no indivíduo, de “competências” supostamente
“necessárias” para um “futuro mercado de trabalho”. Imprime-se assim, ao que
sempre foi considerado como o centro de disputas e deliberações de políticas
educacionais – currículo, objetivos, avaliação -, o caráter de um curso necessário,
imposto ao presente por supostas demandas do desenvolvimento tecnológico e do
progresso econômico.

A partir dessa afirmação podemos perceber que a lógica da sociedade de massas


transfere para o indivíduo a responsabilidade do mesmo conseguir ou não ser bem sucedido.
Sustenta-se a ideia de que o alcance dos objetivos pessoais é o que tem importância de fato,
porém, essa lógica camufla a real intenção de convencer o indivíduo a consumir o que é
produzido sem reflexão, pois acreditando que está suprindo suas necessidades e “vontades
individuais” (muitas delas implicitamente impostas), ele está na verdade, mantendo essa
sociedade.
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Uma educação assim concebida distancia-se da sua preocupação com um mundo


comum, onde os iguais reúnem-se, cada qual com suas opiniões e formas diversas de agir,
porém, juntos em prol de objetivos comuns. No atual predominante modelo de educação,
educa-se para satisfazer o individualismo que sustenta a lógica da “ordem social” estabelecida
(onde a predominância da esfera social absorveu e deturpou o privado e o público) e não para
estimular a convivência entre os seres.

Essa educação individualista, programa seus conteúdos para melhor atendê-la, ou seja,
leva-se em conta o que é relevante para auxiliar na satisfação somente da soma dos interesses
individuais e não o que também é importante para manutenção de um espaço comum a todos,
um espaço onde todos sejam vistos e ouvidos. O indivíduo condiciona-se ao dito de “cada um
por si”, na supervalorização da sua vida privada, restrita à saciedade das suas necessidades
vitais e das vontades pessoais. Este se sobrepõe ao ser singular que se reúne com os seus
iguais para juntos compartilharem, debaterem, transformarem.

À vista disso existe a alternativa de uma educação resistente a essa sociedade de


massas/consumidores, resistente a sociedade que precisa de indivíduos para reproduzir a sua
lógica, anulando a capacidade de ação dos mesmos. Uma educação contrária a inativação do
pensamento aliado a ação e avessa ao condicionamento de cumprir com o que está
estabelecido sem sequer refletir sobre. Um processo educativo em que o educador, mesmo
não concordando com o atual estado em que o mundo se encontra, ainda assim, se
responsabilize em apresentá-lo e em estimular o novo ser, potencialmente capaz de,
futuramente, agir contra ao que está fadado a ruir; agir a favor da inovação necessária para
transformar, renovar esse espaço. Sobre isso, Arendt (1997, p. 239) afirma:

Em todo o caso, todavia, o educador está aqui em relação ao jovem como


representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade, embora não
o tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele fosse diferente
do que é. Essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores; ela
está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo
em contínua mudança.

Portanto, se ter uma educação submetida a uma lógica econômica não for condizente
com o que se considera ideal como sentido de educar; se considerarmos que a educação deve
ser um processo que contribua para o desenvolvimento do ser humano por completo e não
somente para servir como instrumento à manutenção da “ordem social”, podemos sim, pensar
num processo educativo como resistência ao que é imposto.
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3.3 EDUCAÇÃO E LIBERDADE

“... Ação e política, entre todas as capacidades e potencialidades da vida humana, são
as únicas coisas que não poderíamos sequer conceber sem ao menos admitir a existência da
liberdade.” (ARENDT, 1197, p.191). A partir dessa afirmação, podemos constatar que, na
abordagem arenditiana, os elementos expostos anteriormente: natalidade (essência da
educação) e ação (resultante da natalidade) estão inter-relacionados ao elemento liberdade.
Um deriva-se do outro; um só acontece a partir do outro. Sendo assim, a liberdade é o último
elemento que analisaremos neste capítulo, pois complementa a composição de uma diferente
perspectiva para a finalidade do educar.

Liberdade é um conceito polissêmico, ideologicamente “adaptável” (fazendo menção


ao início do primeiro capítulo deste trabalho) e por essa razão é possível encontrar diversas
concepções desse termo. Como a abordagem de Hannah Arendt é a base conceitual deste
trabalho, iremos nos deter a expor o conceito de liberdade da autora. Para ela, a liberdade
encontra-se no âmbito político e é experienciada por meio da ação.

Em seu ensaio Que é liberdade?, Arendt (1997), afirma que liberdade não diz respeito
a um estado de espírito, como a sensação de nos sentirmos livres, pois não se trata de algo
interior. Tampouco se refere à liberdade do indivíduo em relação ao controle da sua vida
privada com o mínimo de intervenção do Estado (conceito de liberdade do pensamento
liberal). Para ela a liberdade está relacionada à ação. Considerar a liberdade como sendo
vivenciada no interior do indivíduo ou como a não interferência do Estado, é apartá-la do
âmbito político, é torná-la apolítica. É válido analisarmos o que estamos habituados a
entender como liberdade para entender porque o que achamos é o contrário do conceito de
Arendt.

Ao entendermos a liberdade como algo sentido pelo ser humano internamente,


estamos afirmando que ela é vivenciada de forma isolada, cada um a sente a sua maneira,
dentro de si mesmo e assim não é possível vivenciar com os outros. Quando consideramos
liberdade como o maior afastamento possível do Estado, menor interferência dele na nossa
vida pessoal, aí também entendemos a liberdade como algo individual, distinta ao âmbito
particular de cada indivíduo, portanto, mais uma vez sentida isoladamente. A questão de
vivenciar a liberdade sozinho, interiormente e não junto aos seus iguais, é justamente o que
contradiz o conceito de Arendt de liberdade.
37

No conceito arendtiano, a liberdade relaciona-se à nossa natalidade, pré-condição de


nossa capacidade inovadora. Todos, por sermos seres únicos, podemos fazer algo
completamente novo, podemos romper com o já existente, podemos agir. Não precisamos nos
submeter ao que está dado, somos aptos para iniciar, para mudar o mundo e nisso reside a
nossa liberdade. E para Arendt, é a experiência da ação – que precisa acontecer diante de
todos, em um espaço comum, para poder se tornar real - que nos possibilita vivenciar a
liberdade. Sendo assim, entender o conceito de liberdade arendtiano, é compreender que se
trata de algo que só existe por meio da experiência da ação política que, por sua vez, depende
da presença de todos para ser considerada válida e dessa forma, só nos sentimos livres ao
agirmos diante dos nossos iguais. A liberdade para Arendt refere-se a uma capacidade que só
é vivida quando compartilhada dentro de um espaço comum. Sobre a relação do homem e a
liberdade, a autora afirma:

(...) o homem é livre porque ele é um começo (...). No nascimento de cada


homem esse começo inicial é reafirmado, pois em cada caso vem a um mundo já
existente algum coisa nova que continuará a existir depois da morte de cada
indivíduo. Porque é um começo, o homem pode começar; ser humano e ser livre são
uma única e mesma coisa. (ARENDT, 1997, p. 216).

Por meio dessa afirmação podemos compreender qual a relação entre educação e
liberdade ao nos basearmos no pensamento arenditiano. Faz-se a ressalva de que Arendt não
afirma, explicitamente, que esses dois conceitos estão relacionados. Porém, diante do que já
foi exposto, podemos constatar que essa relação existe. A partir dessa afirmação, constatamos
que o homem é um começo e é justamente por poder começar que ele é livre. Podemos
relacionar isso à educação já que cabe a mesma preservar essa capacidade de começar,
preservar a sua essência que é a natalidade. Assim, podemos entender a relação entre
educação e liberdade, sendo a educação um processo que preserva a singularidade do ser para
garantir que, futuramente, ele possa experienciar o que, de fato, já nasce potencialmente capaz
de ser: livre.

Sobre isso Carvalho (2010, p. 849) afirma que “Assim, se há, na visão de Arendt, um
vínculo entre educação e liberdade, este não se traduz na proposição de práticas pedagógicas
que fomentem a decisão e a escolha pessoal, mas numa perspectiva de formação ético-
política”. Dessa forma, o processo educativo dentro da perspectiva arendtiana não prioriza o
individualismo do ser, mas sim, preserva sua singularidade, estimulando-a para que a mesma,
quando adulto, apareça perante todos, pois por meio da educação o ser é preparado para o
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convívio e ação entre os iguais. A educação, portanto, contribui para a futura ação política,
que é “política” na medida em que responsabiliza pelo mundo comum.

Sendo assim, diante de tudo que analisamos a respeito da educação, percebemos que,
se a mesma tiver como finalidade estimular a singularidade do novo ser, de contribuir no
desenvolvimento dessa capacidade que, futuramente, o tornará apto para agir, podemos
relacionar que o processo educativo incita o potencial do educando de se tornar um ser livre.
39

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente trabalho, analisamos o conceito de educação em Hannah Arendt. A autora


afirma que educar é estabelecer o elo entre um novo ser e um mundo já velho, conservando
esse mundo e preservando a imprevisibilidade desse novo ser. Para a autora, os pais - no
espaço privado do lar - são os primeiros responsáveis pelo novo ser, acolhendo-o e
protegendo-o dos perigos desse mundo. Posteriormente, no espaço escolar, temos o educador
intermediando a relação desse novo ser com o mundo já existente.

O papel da educação é caracterizado por um duplo aspecto: o de conservar o mundo e


protegê-lo diante da novidade do ser e o de preservar a singularidade desse novo ser. O
educador precisa assumir seu papel nessa relação, ele precisa responsabilizar-se por essa
intermediação, mesmo que não esteja satisfeito com o atual estado do mundo, mesmo que não
tenha participado para que as coisas estejam como estão. Dessa forma, o educador precisa ter
apreço pelo mundo, precisa reconhecer-se como sendo parte da história desse espaço. Seu
reconhecimento alia-se ao seu conhecimento sobre o que já aconteceu neste mundo,
conhecimento este construído por sua interpretação dos fatos ocorridos, ou seja, por meio da
tradição e, dessa maneira, o educador possui autoridade para apresentar o mundo ao recém-
chegado a ele. Sendo assim, compreendemos que, na perspectiva arendtiana, as palavras
responsabilidade, tradição e autoridade, são componentes essenciais para o conceito de
educação.

Apresentamos os conceitos de privado (âmbito particular do indivíduo) e público


(espaço comum a todos) que Arendt desenvolve inspirada na experiência da pólis. Vimos que
para a autora esses âmbitos foram invadidos pela esfera social. Perdemos os respectivos
espaços e, portanto, não temos mais locais distintos para realizarmos as atividades que
correspondem à vida particular e as que correspondem ao aspecto público. Tudo se fundiu, os
aspectos distintos misturaram-se por completo e diluíram-se na esfera do social. Para Arendt,
o ser político que detinha uma vida privada, mas também possuía um espaço para agir, passou
a se conformar, limitado à ordem determinada pela sociedade, ou seja, deixando de ser um
ator político, passando a ser somente um ser social.

Vimos também que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, determina que
a educação tenha como finalidade contribuir para o desenvolvimento do ser por completo:
como humano, como cidadão e como trabalhador. Contudo, após analisarmos o que Arendt
conceitua e o que a lei determina, constatamos que, na atualidade, a finalidade predominante
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da educação não corresponde nem ao conceito arendtiano e nem à lei. A finalidade do ato de
educar corresponde, dentro do contexto da sociedade de massas/consumidores, ao que a
“ordem social” determina. Abordamos que, no mundo em que nos encontramos, a sociedade
de massas/consumidores conseguiu se tornar predominante, absorvendo os espaços privado e
público. A educação, nesse contexto, submete-se a lógica econômica que prioriza a
preparação de trabalhadores que são, simultaneamente, consumidores do mercado.

Entretanto, mesmo diante de tudo que foi exposto, vimos que podemos usufruir das
capacidades humanas que ainda temos. Podemos agir, resistir, libertar-nos. Acreditando
nessas capacidades, existe a possibilidade de educarmos conservando o que for necessário
para garantir o mundo como um espaço também para gerações futuras e não fadado ao
“presentismo”. Podemos também preservar a singularidade do ser para que a mesma se
sobressaia quando o indivíduo estiver apto para agir no espaço público.

Como educadores podemos considerar que temos, no processo educativo, uma


possibilidade de resistir à lógica que rege essa “ordem social”. Lógica essa que não condiz
com o que nos torna humanos, já que, obedecendo a ela, nos comportamos ao invés de
agirmos. Sendo assim, vimos que a educação pode ser um processo de resistência ao que está
estabelecido. Mas, não se trata de resistir somente. No decorrer deste trabalho, à vista de tudo
que foi discutido, podemos considerar como uma possível finalidade para o ato de educar, o
desenvolvimento do potencial de ação que, no poder de resistir e transformar resulta na
realização da liberdade política.

Escolher a perspectiva de Arendt a respeito da educação como base conceitual deste


trabalho, é assumir a identificação com o pensamento da autora. É constatar que, apesar de ter
sido escrito em outra época e em outro país, trata-se de uma análise densa sobre a crise da
educação que está contida em uma crise ainda maior, “uma crise geral do mundo moderno” -
segundo a própria autora - e que permanece nos dias atuais. Aliás, a atualidade das
observações de Arendt e a compatibilidade das mesmas com a presente finalidade da nossa
educação, dentro do contexto da sociedade de massas/consumidores, são inegáveis.

No presente trabalho, em nenhum momento negamos a importância da atividade


trabalho em nossas vidas, pois isso não seria possível já que “A condição humana do trabalho
é a própria vida”. (ARENDT, 2010, p. 8). O homem é um ser biológico e, portanto, inerente
às necessidades vitais da sua condição biológica, ou seja, ele precisa saciá-las. Entretanto, o
que criticamos é a redução da finalidade da educação, a supervalorização da função de
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preparar o indivíduo para o trabalho. Apresentamos a crítica à tendência de tornar secundário


o desenvolvimento das capacidades humanas que contribuem para uma formação ético-
política. Consideramos que, preparar o ser prioritariamente para o trabalho, é julgar como
relevante somente a sua condição biológica. É inativar o desenvolvimento das capacidades
que o tornam um ser humano e não somente um ser reduzido à procura da satisfação de suas
necessidades por meio do trabalho. Acreditamos ser possível prezar pela formação de um ser
que é, ao mesmo tempo, biológico, pensante e potencialmente capaz de ser agente
transformador.

Apresentamos o conceito arendtiano de educação; expomos a crítica da autora sobre a


sociedade de massas e relacionamos essa crítica com a nossa sociedade; por fim, sugerimos
uma perspectiva diferente como finalidade para o ato de educar. Sugerimos essa perspectiva,
também inspirados em Arendt, porque assim como ela, acreditamos que ainda somos capazes
de transformar e temos no processo educativo um dos caminhos para construção dessa
transformação.

Refletir sobre outra finalidade para a educação é crer que a possibilidade de mudança
existe se considerarmos a nossa capacidade de ação, se considerarmos a nossa inerente
natalidade. É também concordar com Arendt (1997, p.223) quando ela afirma que “uma crise
só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com
preconceitos”.

Porém, quando a encaramos e nos destituímos de concepções ideologicamente


adaptadas - muitas vezes enraizadas sem ao menos refletirmos - e, principalmente, quando
assumimos a responsabilidade de sermos nós mesmos potencialmente capazes de transformar,
temos na crise a oportunidade do que Arendt afirma também ser uma capacidade humana. Nas
palavras da autora: “Se é verdade que ação e começo são essencialmente idênticos, segue-se
que uma capacidade de realizar milagres deve ser incluída também na gama das faculdades
humanas”. (ARENDT, 1997, p. 218).

Sendo assim, romper com o que é imposto, irromper no que está dado é agir de
maneira única, é realizar um verdadeiro milagre. Dessa forma consideramos que, refletir sobre
uma nova finalidade para educação não somente é possível como também se faz necessário,
pois, como afirma Arendt (1997, p. 247):

A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para


assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que
seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A
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educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante


para não expulsá-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas
mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para
nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar
um mundo comum.
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REFERÊNCIAS

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Adriano Correia. 11. ed revisada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

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ed. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 188-220.

ALMEIDA, Vanessa S. Educação em Hannah Arendt: entre o mundo deserto e o amor ao


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dezembro de 1996, estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. – 5. ed. – Brasília:
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CARVALHO, José S. A liberdade educa ou a educação liberta? Uma crítica das pedagogias
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CORREIA, Adriano. Natalidade e amor mundi: sobre a relação entre educação e política em
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_________. O desafio moderno: Hannah Arendt e a sociedade de consumo. In MORAES,


Eduardo J.; BIGNOTTO, Newton (Orgs.). Hannah Arendt: Diálogos, reflexões, memórias.
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HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro Sales. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.


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PERISSÉ, Gabriel. Palavras e origens. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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