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HISTÓRIAS INÉDITAS DA LITERATURA BRASILEIRA

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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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Conto fantástico inédito: A Felicidade no Céu (1853)
Apresentação
A exemplo de A Valsa e a Mortalha, conto fantástico de Domingos Manuel de
Oliveira Quintana publicado em 1854 (disponível no OneDrive, subpasta Histórias
Inéditas), A Felicidade no Céu, conto fantástico de José Fernandes da Costa Pereira,
publicado em 1853 jamais foi transcrito ou atualizado em livro ou na internet ― neste
caso, nem mesmo em forma condensada e modernizada, como a história de Oliveira
Quintana.
Ambos os contos saíram em periódicos antes da publicação de A Noite na Taverna
(1855), livro de contos de Álvares de Azevedo tido como o marco inicial da literatura
fantástica no Brasil.
José Fernandes da Costa Pereira (1833, RJ – 1899, RJ), advogado de formação
profissional, veio a presidir as províncias do Ceará, Espírito Santo, São Paulo e Rio
Grande do Sul, entre outras funções políticas.
O conto A Felicidade no Céu foi publicado em 1853 no jornal paulistano Acaiaba, no
qual Costa Pereira atuava como um dos redatores. O político e escritor viria a fundar
outro jornal, A Regeneração, no Rio de Janeiro, em 1860.
Em 1854, A Felicidade no Céu seria republicado no Jornal das Senhoras, periódico
do Rio de Janeiro.

Informações básicas
. Título original: A Felicidade no Céo.
. Publicação: O Acayaba, Jornal scientifico e litterario, Segunda série, número 5
(São Paulo).
. Nome do autor na obra: Costa Pereira.
. Mês: Agosto de 1853.
. Páginas: 171, 172 e 173 (11, 12 e 13 da edição).
Texto completo
171. http://memoria.bn.br/DocReader/778656/161
172. http://memoria.bn.br/DocReader/778656/162
173. http://memoria.bn.br/DocReader/778656/163

Republicação
. Título original: A Felicidade no Céo.
. Publicação: O Jornal das Senhoras. Jornal da boa companhia. 3.º ano, tomo V,
número 10 (Rio de Janeiro).
. Nome do autor na obra: Costa Pereira.
. Data: 5 de março de 1854.
. Páginas: 77, 78 e 79 (6, 7 e 8 da edição).
Texto completo
77. http://memoria.bn.br/docreader/700096/1058
78. http://memoria.bn.br/docreader/700096/1059
79. http://memoria.bn.br/docreader/700096/1060

Resumo
Um casal de jovens apaixonados tem seu encontro derradeiro junto a um lago, em
noite enluarada. A jovem, linda virgem, tomada de estranha e obsessiva atração pelo
céu, não responde ao ímpeto amoroso do rapaz como ele desejaria. Essa obsessão levará
o casal a um fim trágico.
A FELICIDADE NO CÉU

Era noite. A Lua caminhava no céu, misteriosa e triste como as saudades de uma
mulher a quem se ama em segredo, e mil cintilantes estrelas enviavam à Terra sua luz
frouxa e encantadora. Dir-se-ia que eram os olhos dos serafins, luzindo na abóbada
celeste.
Era uma noite dessas que convidam o homem a meditar, que inspiram ao poeta um
canto, que arrancam à virgem um suspiro, ao infeliz uma lágrima sentida; era uma noite
de luar, mas de um luar embaciado e melancólico.
Harpas sonorosas pareciam ressoar no espaço em branda melodia, tão branda como o
olhar amortecido de uma donzela que sonha acordada nas delícias de seu primeiro amor;
eram talvez os suspiros dos amantes infelizes que, soando em harmonia, semelhavam
[assemelhavam-se a] os acordes de uma música divina. E essa música embriagava, e
essa melodia encantava, mas entristecia; ouvindo-a, o poeta ancião curvara a fronte
veneranda, pensando perceber os derradeiros acentos do gênio que na passagem do
mundo para sua pátria cantava hino de despedida e de saudades.
As águas do lago, serenas e perfumadas pelas flores das verdes margens, suavemente
repetiam as notas encantadoras que soavam nos ares, e as florestas de além, cidades
gigantescas do selvagem, de leve moviam os cumes, sussurrando com brandura como se
também soubessem sentir a plácida dor do coração.
Tudo era poesia, tudo amor, tudo saudade; ali o ente sensível deixara de ver a Terra
para enxergar o céu; contemplara o lago e crera divisar almas bem-aventuradas correndo
em suas águas de prata com um doce sorriso nos lábios; fitara a Lua e se lhe afigurara
avistar um arcanjo que velasse solícito e terno pela ventura dos infelizes que lá embaixo
— na Terra— sofriam; ouvira a música maviosa da noite, o sussurro brando das
árvores, o murmúrio cadenciado das águas e parecera-lhe adormecer embalado pelo
concerto das criaturas de Deus. — E ele seria feliz, seria venturoso, porque teria um
coração que amasse, porque nessa Lua adoraria sua virgem, a inspiradora de seus hinos;
nessas estrelas, os satélites de sua adorada; no lago, nas flores, nos hinos, encantos que
deviam abrilhantar-lhe o sólio [trono], homenagens que a ela prestavam como a rainha
do amor.
O homem positivo, a alma de gelo, o coração de bronze não passara impassível por
aí; não vira isto tudo e dera um sorriso de desdém. Não! Alguma lembrança lhe
esvoaçara pela mente e ele sentira, porque as cordas do sentimento não estalam de todo
no peito humano, e nem a luz do Senhor deixa em perfeitas trevas a alma de seus filhos.
Quando aquelas se afrouxam muito, o homem cessa de viver para espojar-se como a
fera no lodo da terra, para bramir tripudiando sobre as folhas podres da floresta, e ainda
assim — tem ele o arrependimento, que é o segundo batismo para o criminoso.

..........
Era uma noite de luar, e de um luar embaciado e triste.
À beira do lago estava um vulto vestido de branco: era uma mulher que meditava
sentada na relva macia da campina. De longe a tomariam por uma fada ou por uma
dessas virgens dos últimos amores que vêm adoçar com seus sorrisos os poucos
instantes de vida concedidos ao índio prisioneiro.
Era uma mulher, e muito bela, tão bela como uma grinalda de noiva, como o sol a
romper na alva, como nosso primeiro sonho de amor, como as esperanças de uma alma
de poeta no expirar da adolescência; e ela meditava olhando para a Lua, se é que um
coração de virgem aos dezesseis anos pensa e não sente só, medita e não ama apenas.
O que sentia... era segredo que só ela e Deus sabiam! O que pensava... também era
um segredo... e os segredos de virgem não se profanam divulgando-os ao mundo,
confiando-os aos homens; quando muito um só os ouve ou os percebe num olhar, num
sorriso ou numa lágrima furtiva.
Ela se acolhera ao seio da solidão, e esta a envolvia com seu manto protetor porque é
a maior amiga de quem sente, de quem ama e quer pensar livremente em seu amor, de
quem sofre e deseja soluçar desimpedido para aliviar as amarguras; porque é, enfim, a
sacerdotisa do templo do sentimento..
Mas por pouco tempo esteve a sós e pensativa. Um canto longínquo se fez ouvir,
quase confundindo-se com a música aérea e com o coro do lago, e alteando pouco a
pouco ao [se] aproximar da flórida margem.
Leve canoa cortava de manso as águas, que gemiam em seus flancos como que
queixosas por virem assim interromper a placidez em que jaziam; nela alteava-se outro
vulto: era o de um homem, e esse homem cantava, porém seu canto comovia como a
endeixa [composição poética fúnebre] dos tristes a que se mesclassem raras notas de
alegria.
Ao ouvir os primeiros e abafados sons desse cântico, a virgem estremeceu; sorriso
angélico passou-lhe pelos lábios, seus olhos desprendendo-se da Lua fitaram-se no
extremo do lago, lá de onde vinham os sons misteriosos, e foram acompanhando a
canoa até que ela chegasse à margem demandada.
O noturno navegante deixou o frágil lenho e com passos ligeiros veio lançar-se aos
pés da criatura angélica que ali o esperava.
Ela sorriu-se ainda, mas com um sorriso que magoava, que fazia pensar num paraíso
onde houvesse a felicidade na tristeza, a ventura na melancolia.
E ele? Com os olhos fitos nos dela, apertando entre as suas aquelas mãos divinas,
extático, transportado ao mundo do amor e da poesia, parecia viver com a contemplação
de seu rosto, alentar-se com o seu sorriso, respirar o seu bafo embalsamado, alumiar-se
com a luz de seus olhos.
Porém, não bastava o olhar, não bastava o gesto nem o sorriso; ele carecia falar-lhe
porque a fala é a mensageira do coração, assim como os anjos o são de Deus, e falar a
quem se adora não é só um bem, é uma necessidade tão grande como o orvalho para as
plantas, a luz para o homem, o ideal para o poeta. E ele falava-lhe:
― Ainda tenho mais esta noite de ventura, ainda te vejo por alguns momentos, ainda
posso suspirar a teu lado e gozar de infindas delícias, protegido por esse astro que nos
esclarece [ilumina], acalentado pela música da natureza que te saúda num coro
harmonioso e triste.
"E tu, oh! Tu és sempre a mesma, sempre melancólica e bela como o raio amortecido
do crepúsculo, como a face dessa Lua que caminha vagarosa no céu ! Quando te olho,
suspiras; quando te falo, gemes; quando aperto tuas mãos entre as minhas, sinto que
nelas cabe uma lágrima [e]manada de teus olhos! Se te pergunto por que suspiras, por
que gemes, por que choras, tu nada me respondes e apontas para o Céu; se te falo do
nosso amor, de minhas esperanças, da felicidade que nos aguarda, ainda olhas para a
abóbada azul e murmuras com um sorrir que dói — o Céu!"
E a virgem que o ouvia murmurava de novo ― o Céu! ―, e seu sorrir era mais doce
e mais repassado de tristura [tristeza], como o sorrir da santa nas horas do passamento.
― Amas–me, eu bem o sei ― tornava o mancebo [jovem]. ― Deixaste o sólio
[trono] de anjo para vir perfumar o peito de um homem, alumiar–me o espírito e abrir-
me as portas do paraíso... mas por que estás triste quando a teu lado vivo num êxtase de
amor? Tens talvez saudades do Céu, e é por isso que apontas para ele? Que outro céu
desejas além deste em que agora estamos? Que outras alegrias que não a de dois peitos
que batem juntos? Queres cantos? Eu os darei, apaixonados: cantos de fogo, hinos de
entusiasmo! Queres servos que te obedeçam? Eis-me a teus pés! Queres amor? Oh!
Como o meu não há nem houve nunca, e os afetos todos dos anjos não igualariam os
sentimentos de minha alma! Seriam como o lago para o oceano, como a noite para o dia,
como a morte para a vida. Dize–me: por que gemes?
E outra vez, a palavra — Céu — soou misteriosa. Era ela que outra vez falava, triste
como o eco mavioso da noite, como a música que soava no espaço. E ele reclinou a
cabeça, beijou com veneração essa relva em que pisava a virgem, e duas lágrimas
sentidas lhe correram pelas faces.
Uma nuvem negra ia acobertando o astro noturno: era o véu de luto, os vestidos de
dó que ia trajar a senhora da noite...
Então levantou-se a virgem:
― Não vês? Não vês? ― disse com voz abafada. ― Lá some-se ela, lá a cobre
manto escuro e impenetrável... Que é de sua luz, que é da formosura da Terra, que é da
prata do lago, do brilho das flores? Morreu tudo!... Fica apenas o céu, e é o céu que nos
espera... Vem, que lá está a felicidade verdadeira, lá está a luz que nunca se apaga, o sol
que nunca morre, a eternidade que nunca é manchada pela dor!
E, tomando o amante pela mão, corria para a beira do lago como se fora para uma
sala de festim ou para um leito de açucenas. Após, ouviu-se o ressoar mais triste da
harmonia da natureza, o sussurro das águas mais gemebundo, como se entoassem a
música do passamento, e o ruído longínquo da floresta.
E ao reaparecer da Lua, uma canoa vagava às tontas pelo lago. Flutuava ao longe
como que o véu branco de uma donzela, e no céu brilhavam mais duas estrelas...

..........
Eram dois peregrinos que perdia a Terra, dois anjos que partiam para junto do
Senhor.
Costa Pereira.

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