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Salomão Rovedo

Cartas de amor

a Jerusa
(com textos de Joaquim Itapary)

Rio de Janeiro
2019
Para Joaquim Itapary, de cujas crônicas este texto foi inspirado e
pirateado.

Capa: xilogravura de Marcelo Soares

Rio de Janeiro, Cachambi, agosto de 2019.


Preâmbulo da absolvição

Porque este livro é invenção e remontagem de textos meus e de crônicas


de Joaquim Itapary, Cartas de amor a Jerusa foi feito para ser homenagem,
preito de admiração ao cronista que sempre li com entusiasmo, apreciando a
transa e a tessitura admiráveis que de modo exemplar compõe os temas de suas
histórias.

Homenagem, sim, porque foi da leitura da crônica Vênus e Jerusa (a


lume na coluna Hoje é dia, no jornal Estado do Maranhão, de 21/05/2015), que
veio a ideia, ardeu a primeira claridade – antes mero pavio, depois sol pleno – e
acendeu a percepção de que havia algo sutil nas entrelinhas.

Trata a crônica inspiradora da primeira incursão adolescente aos


mistérios do sexo e da paixão. Não digo do amor, porque essa comoção que faz
trepidar veias e músculos não deixa espaço para qualquer digressão sentimental
e mantém com sabedoria o cérebro e a razão afastados – assim é a natureza das
coisas.

O tema trouxe desconfiança de ser coisa íntima, clara traição à estética da


crônica, cujo labor proíbe discussão de natureza confessional e particular. É
cláusula pétrea da constituição literária, que reserva tais temas ao teatro, conto,
poesia, romance e demais ficções – jamais à crônica. Freud explica. Estaria
Jerusa presente nos escritos do cronista?

Isso levou a outras leituras onde achei alusões ocultas à mesma Jerusa,
primeva e eterna, paixão intensa, as rudes sensações corpóreas convertidas na
idealização ao futuro caráter do jovem. Jerusa foi acolhida tal anjo protetor, que
inibe apreensões, previne mágoas e protege do mau sentimento. Asa protetora
que elege emoções, anseios, sentimentos confinados à alma simplória, bucólica,
incorrupta, despida de vaidades.

A descoberta acabou convertida, mutatis mutandi, em cartas imaginadas


que perenizam o fulgor eterno, particular ao ser humano – que é a descoberta
do amor através do sexo. Mas, homenagem é arma perigosa: o mau uso da frase,
a palavra mal expressa, a vírgula volúvel – e tudo vira insulto, xingação, agravo,
ofensa. Injúria desse tamanho só pode ser reparada na base do duelo. O que é
temerário, pois o cronista, apesar de octogenário, tem nas letras a peixeira mais
mordaz de toda São Luís.
A crônica
Dia de Itapary 21-maio-2015

Vênus e Jerusa

Só lá pelos anos do ginasial aprendi, na prática, a diferença entre


astrologia e astronomia. Mas, essa ignorância jamais me causou mal algum.
Antes, pelo contrário, até que me trouxe prazer. Porque se já soubesse, então,
ser a astrologia uma falsa ciência, eu não teria lido com tanto interesse os
complexos mapas astrológicos e os horóscopos publicados em Almanaques,
gratuitamente distribuídos pelas farmácias e casas comerciais, muito comuns
naqueles dias.

Não somente eu, pois, em verdade, a grande maioria das pessoas,


letradas das cidades, ou incultas do interior, acreditava que a vida humana, da
concepção à morte, estaria inexoravelmente submetida aos desígnios dos
inacessíveis signos zodiacais. Em toda parte praticava-se uma verdadeira
astrolatria. Vivia-se segundo os ditames de reduzido grupo de pessoas íntimas
de planetas, estrelas, cometas perdidos na imensidão do cosmos.

Ainda hoje, apesar do desenvolvimento das ciências e da acelerada


marcha da civilização, há quem não saia de casa ou quem não tome um simples
copo d’água sem consulta prévia às previsões para o seu signo zodiacal; ao seu
horóscopo, enfim.

Nascido a 23 de abril, exatamente à hora em que Vênus estaria em


trânsito pela casa de Touro, vi-me compulsoriamente submetido ao poder
absoluto de Vênus, a Afrodite dos gregos, célebre Deusa mitológica do amor,
símbolo da Mãe Terra, da natureza e dos campos.

Durante horas das minhas noites de menino e de rapazote busquei


identificar Vênus no firmamento, olhos fixos nos céus de São Luís, pontilhados
de estrelas de toda cor e tamanho. Em vão! Qual daqueles incontáveis pontos
luminosos seria o meu planeta? Frustrado na procura da minha Deusa,
permaneci assim, até aquela noite em que, da muralha do Forte da Ponta
d’Areia, maré grande de lua nova, lançávamos a linha para a pescaria. Mais uma
vez eu estava acompanhado de Jerusa, em seu florido vestidinho de algodão
quase a desguardar os sinais da puberdade, filha última de Ceará, experiente
canoeiro e pescador de águas longínquas.

Com seus olhos amarelados, braços roliços de sutil penugem, e um


impressivo cheiro de sol a exalar dos seios imaculados, Jerusa me iniciava nas
artes da pesca de linha. E sorria da minha imperícia, com aquele sorriso que era
um cantar de brisa nos ouvidos do aprendiz de pescador. Na escuridão daquela
noite fresca, sob a precária e intermitente lanterna do farolete do Forte, ondas a
esbater o flanco da fortaleza, os céus parecendo o couro do boi de Apolônio a
luzir de vidrilhos e lantejoulas, perguntei a Jerusa:

– Tu sabes qual dessas estrelas é Vênus?

E ela, sempre a sorrir o seu sorriso alísio, faceira e decidida, passou os


braços sobre meus ombros, deixando que seus seios aquecessem minhas costas,
e apontou-me um ponto de intensa luz azul para os lados do poente:

– O pai diz que Vênus é aquela ali, olhe! Ele falou que de madrugada ela é
Estrela d’Alva e de noite é Estrela Vespertina. Mas não são duas não; elas são
uma estrela só; só que tem dois nomes.

Naquela noite inesquecível, desfez-se de modo absolutamente prazeroso


a minha ignorância sobre Vênus. Em termos definitivos, fiquei certo de que, em
verdade, a Deusa do Amor tem dois nomes: Vênus e Jerusa.

(Publicada no jornal O Estado do Maranhão, de 21/05/2015).

jitapary@uol.com.br
As cartas
Jerusa,

Instado pelo ânimo inflado de Quincas Oliveira –


que nos apresentou quando do lançamento do seu livro
Armário de Palavras – resolvi aceitar a praia de
Panacoatyra como o lugar em que nos encontraríamos
pela primeira vez. Parece que tudo estava escrito, e é
verdade. O cronista colocou à disposição casa com
piscina, garagem, privacidade e silêncio. Assim, não
tive como recusar. O fim de semana teria sol e calor,
clima ideal para conhecer o local, ermo e de natureza
selvagem, onde as primeiras moradias começam a ser
erguidas. O nome do lugar era estranho: Panacoatyra.

A promessa de casa ampla e confortável em frente


à praia faz imaginar descanso, pernas esticadas, copo
à mão, ouvindo o som do mar, assustado com o
respingo das ondas quebrando. Então, foi surpresa
chegar e não ver o mar. A casa era ampla e
confortável, de acomodações aconchegantes, mas a
ausência do mar foi frustrante. Lembras? Quilômetros
de areia dura como asfalto se estendiam praia afora a
perder de vista – mas nada de mar, nada de ondas, nada
da vasa salobra, insinuante, almiscarada, saborosa
até, que vara as narinas como perfume.

A tua pergunta veio direta e seca: – Cadê o mar? –


Então, não está vendo? – respondi rindo. – Lá! Apontei
mostrando a fímbria de água, longínqua, brumosa,
igual miragem de deserto. O mar estava distante da
varanda, das pernas esticadas na cadeira, do copo de
uísque com água de coco. Enfim, abancados à frente da
casa, esquecemos o mar: abastecidos de bebidas e
acepipes, pudemos assistir ao pôr-do-sol, antes do
véu da noite cobrir Panacoatyra.

O ocaso imperecível caiu enquanto a sombra do


álcool espertava os sentidos. Teu corpo esplendia
refletindo as cores do entardecer. Mas de repente um
tremor saído do nada, abalou os alicerces da casa, a
varanda começou a se mover. O ruído misto de motor,
de trem, de marulho, encheu o ambiente.

A única coisa sincera que havia era a lua cheia


que varava nuvens cinzentas, espelhando sobre as
águas uma estrada de prata e contas, colar de pedras
preciosas para enfeitar o colo de Panacoatyra.
Agarrado a ti esperei o mar que vinha – ou era a casa
que se atirava à frente?

Em alguns segundos, para espantar o susto, o


mundo estagnou: enfim estava o mar à nossa frente.

Em seguida a praia começou a vibrar de novo, as


águas fervilharam em refluxo, ambos se afastaram um
do outro. Em minutos estava tudo tal e qual começou:
o mar virou miragem, a casa aquietou-se no chão.

A paisagem viralizou teu corpo estirado na rede.


Que noite nos esperava!
Jerusa,

É possível que tenhamos cruzado caminhos, mas


só depois de encontros fortuitos em exposições e
vernissages passei a te notar com particularidade e
interesse. E o que marcou a circunstância não foi um
esbarrão descuidado nem apresentação de amigos. Foi
um odor...

Estava diante da gravura Le déjeuner sur l’herbe,


de Picasso. Qualquer coisa de Picasso deixa espanto, a
série dos Faunos, por exemplo. Mas estas gravuras em
particular deixaram uma sensação que procurei
registrar no momento. Nem liguei aos resmungos dos
visitantes reclamando a demora diante de cada
quadro. Tenho aqui algumas notas.

Le déjeuner sur l’herbe: São amantes mitigados.


Amantes que matam a fome de desejos não saciada à
noite. São amantes que inauguram o sol do dia com
confeitos de amor. Amantes que turvam o clarão da
alvorada com as manchas disformes dos lençóis
herdados das noites claras. Sobre o carpete, colchão
de grama, amantes alimentam outras fomes, outras
sedes, que só o prazer pode causar: a brisa ainda
retém leve aroma de amor.

De repente tive a concentração violentada por


esquisita fragrância, cheiro que remete a uma fruta,
coisa da natureza, erva-mate, algo assim. Não tinha
ninguém a meu lado. As pessoas se moviam e o aroma
também se perdeu. Circulei o olhar e te vi. E a coisa
mágica que segreda de imediato a fonte do cheiro.
Você por acaso virou os olhos em minha direção e esse
relâmpago ficou gravado.

Outro encontro ficou na imagem publicada no


facebook. Estávamos na exposição do Zé Andrade, no
Centro Cultural da Justiça, misturados a pessoas que
se aglomeravam em torno do artista. Peguei um copo
de vinho branco que estava sendo servido na ocasião e
sentei-me na velha escadaria de mármore – atitude
quase simultânea à que você tomou. Chegamos juntos
ao local e ficamos ali de copo na mão assistindo ao
espetáculo do vai e vem.

Em poucos instantes aquela mesma fragrância me


invadiu: senti que saía de ti. Não, não era perfume,
talvez algum creme corporal de aroma esquisito. Mas
de novo fui remetido a uma fruta silvestre – qual
seria? A lembrança do cheiro levou à infância. Deduzi
que era o cheiro de sapoti. Conhece? O sapoti é
inodoro, mas quando se parte a fruta o aroma se
desprende e gruda nas narinas, exato como faz o
cheiro que exalou de ti e deixou marcado o registro de
tua presença.

Já neste caso nem sei como começar. Mas quando


estive ali genuflexo entre tuas pernas, não tenho a
visão de teu rosto. Reparo apenas que tuas mãos vão e
vêm deslizando tontas sobre o lençol, depois se
agarram às dobras, firmes e convulsas, então se
soltam em ânsia de liberdade. Nesse momento sinto de
novo o cheiro de sapoti: espremo a fruta em metades,
esfrego a polpa na boca, um frêmito traz juntos sumo e
odor impregnando tudo.

Somente nessa hora descobri a fonte de onde


jorra o aroma que sempre me aguçou os sentidos
quando me aproximava de ti – e fazia com que não
quisesse te deixar jamais. Estava ali bem à minha
frente, colada ao meu rosto, invadindo-me as papilas,
repositório de glândulas odoríferas, origem da
fragrância balsâmica que sempre me deixa inanimado,
passivo, inerte, como Sansão aos pés de Dalila.
Jerusa,

No dia 7 de novembro os sambentuenses


comemorarão o bicentenário da criação da Freguesia
de São Bento, ocupação e colonização de terras firmes
da Baixada Maranhense. Quem imaginaria que esse fato
histórico fosse responder, em futuro longínquo, nas
constantes viagens que comecei a fazer e me levaria a
te conhecer?

Quando lembro o dia sobram de saudades de ti... E


em lá chegando, antes de ir ao mercado municipal,
olhar a variedade dos alimentos, os peixes recém-
pescados, os mariscos frescos, passo por tua janela e
te vejo debruçada vigilando meus passos. Com muitos
desejos salivares, das frutas que só encontro aqui,
relembra o sabor da tua boca. Apalpo-os com as mãos,
como o faço a teus seios, depois bebo sucos feitos na
hora e, mais tarde, a levíssima cerveja clara. Clara
como teus olhos...

Então, é certo que também estarei lá nas


comemorações! Como bom são-bentuense, mantenho,
por indecifráveis sortilégios, permanente ligação
com a pureza dos campos primitivos e selvagens. Sou
íntimo do lugar, das aves, das florestas, dos rios, dos
igarapés, das enseadas e das lagoas que se interligam
como contas líquidas de um rosário. Pois, para
pontuar os pastos de criação de São Bento dos Peris,
sempre cheios de vida, verdes de esperanças – estarei
lá!

Se estivesses aqui irias comigo, relembrando os


velhos tempos. Lembras que, aos sábados, passávamos
o dia no mercado, encontrando amigos alegres, que me
saúdam com os seus abraços, frases cheias de bromas e
aquela linguagem temperada com o jargão
característico dos interioranos?
Como tu bem sabes, antes do almoço bebo uma
dose de tiquira – a original, não as azuladas com
anilina, vendidas aos que ignoram o segredo dessa
aguardente. Exijo as de Santa Quitéria, límpidas,
puras, absolutamente imaculadas. Virgens, como a
primeira visão do gaviãozinho. Prefiro a marca PRR,
de garrafa agasalhada na palha de carnaúba, rótulo
colorido e laço de fita encarnada no gargalo: quando
era servida envolvia o copo em faíscas azuladas.

Enquanto eu, logo ao primeiro gole, antes que o


agridoce sabor da tiquira fugisse do céu da boca,
trincava um camarão seco, cheiroso, ainda regado
pelos naturais humores, tu ficavas melando os dedos
nas línguas de bacuri – lembras? Já meio zonzo e
aturdido pelo prazer, nem espero o segundo gole para
– junto com amigos – estalar a língua e dar viva ao
pajé que inventou a tiquira, batizada pelo índio
“vinho de Tupã”.
Jerusa,

São muitas as maneiras de ser exilado. Sempre


que o teu mundo de dentro não coincide com o
universo de fora, eis a condição de estar exilado.
Tenho sempre saudade de ti, mas é saudade gostosa de
sentir, saudade doce e terna, que será saciada num
segundo apenas em tua presença.

Desde que te conheci tive a certeza de que


surgiste para ser a mulher da minha vida, para a minha
vida toda, não apenas um pedaço dela. A única, eterna,
a mais amada entre todas as outras, aquela a quem eu
deveria dedicar todo carinho e devoção. Passaram os
dias, as semanas, os meses, e o tempo reforçou a
mesma sensação. Foste demonstrando ser a criatura
mais doce e bela da face da terra. E eras minha...

Não só conseguiste fazer com que eu me


apaixonasse, mas foste além: fazer com que eu
reparasse na beleza da vida e pudesse me libertar dos
sentimentos negativos, do pessimismo – conseguiste
encher meu coração de paz e alegria.

Eu te escolhi, sempre vou te preferir, elejo a ti


dez mil vezes.

É contigo que me sinto bem, a teu lado alcanço o


que falta, vou de encontro ao infinito. Amo-te muito
mais do que possas conceber – não dá para explicar,
posso apenas demonstrar em ações todo o bem que isso
me faz.

Se fosse possível imaginar-te uma pousada,


serias o grande palácio, o único porto. Entre teus
braços o meu corpo se aquece, o meu amor se
completa. Quer saber? Tu és tudo que preciso. Tremo
cada vez que penso em ti, ao ouvir a tua voz ao
telefone.

Logo imagino tuas mãos me acariciando, as unhas


perfurando minha pele, tentando encontrar algo que
não está à vista. Penso a hora em que tua boca acolhe
minha língua, meus olhos nos seus, e de repente,
quando tudo se encaixa e estamos no auge de nossas
emoções e sensações, esquecemo-nos do mundo.
Jerusa,

Estou aqui com um retrato antigo meu, na cadeira


forrada de sola tingida de castanho, daquelas que abre
e fecha para facilitar o transporte. É uma cadeira
baixa, de quase dois palmos, rente ao chão do quintal
cheio de fruteiras viçosas da nossa casa em São Bento.

Visto calção e sandálias, cabelos partidos ao


meio e uso óculos de aros redondos, para corrigir
minha incipiente miopia. Com os braços mal apoiados
sobre as coxas, tenho nas mãos um livro aberto, que
leio com ar compenetrado e imperturbável.

Aqueles óculos não são meus: naquele tempo tinha


a vista pura e limpa como o ar diáfano dos campos de
flores douradas da minha terra natal. Tanto que,
mesmo vistos à distância, sempre distingui a alvura
imaculada das garças e a negrura solene das graúnas.
Alguém quis dar à minha infante figura o ar grave de
gente grande, e os óculos de aros grossos se prestam
bem a isso.

De mim eu sei bem o que o tempo fez. Sei também,


de modo inequívoco, o que, deliberadamente ou não,
não permiti que fosse feito. Mas aquele instante com o
livro aberto ao colo parece que, por força da memória,
todo dia se repete em minha vida: como bem sabes,
durmo e acordo sempre com os olhos ocupados na
leitura.

Sinto que transmiti o vício a ti, embora tua


escolha tenha sido para ler as histórias do lado doce
da vida. Agora, vendo esse antigo retrato, noto que
não há nada de errado com isso: são os lados doces da
vida que mais enfeitam nossa existência...
Jerusa,

Passei apenas quatro dias em São Bento. Mas


foram quatro dias com o coração acarinhado pela
gentileza de velhos amigos nascidos na região – que
ainda retêm e representa de modo mais fidedigno – o
autêntico espírito interiorano.

É tempo suficiente para recompor o ânimo de


quem já anda desiludido diante de tantas malas e baús
de corrupção e desonra que assola o país.

A episódica visita a Zé Caburé – te contei? – já


com oitenta anos de vida pobre e honrada, morando
numa casinha branca, à sombra de espesso arvoredo,
escondida detrás da ermida de São Roque, depois da
barragem do Alegre, é como puxar a ponta do novelo da
vida.

Dez, quinze minutos de prosa e lá se vai um


poderoso trado perfurando fundamente a memória,
abrindo clarabóias e deixando entrar luz no mais
íntimo repositório de lembranças. Num repente, ali
estão os meninos da minha infância, todos sem falta,
com chapéus de carnaúba enfeitados de fitas
coloridas, peitorais e aventais de veludo brilhantes
de canutilhos e miçangas na brincadeira do Boi-de-
São João.

Tempos depois seria tua a imagem a vestir tais


lembranças, pois gostavas de te fantasiar com vestido
de chita, fita vermelha na cintura e chapéu de palha
coberto de miçangas e vidrilhos. Para completar tua
beleza – lembro bem – dois algodões de ruge na face e
um pingo de batom carmim nos lábios...

São minutos de prosa, à porta da pequena e


histórica ermida de São Roque, à sombra de idosa
figueira, recebendo no rosto o vento selvagem dos
dilatados campos de perís, refrescado nas altas
lanças do guarimã, com cheiro de jaçanãs, capim
mascado e bosta de gado. Ventos que trazem mugidos e
aboios, odor de lenhas e barros das olarias, de carões,
cascudos, bagrinhos e jejus.

Caburé era o organizador do folguedo. Ele se


encarregava de tudo: do boizinho, das toadas, dos
maracás, das fogueiras e do cumprimento do roteiro
do auto. Tudo era com ele. Até os fogos, carretilhas
com chispas prateadas varando a noite, foguetes de
taboca, subindo até espocar no meio das estrelas
penduradas sobre a cidade, besouros de fogo, salientes
e desavergonhados, atraídos pelo mistério,
imiscuídos na saias de algodão florido das meninas
cheirosas. Quando o boi morre no meio das
festividades singelas, Zé Caburé ia logo tratando do
brinquedo para o ano seguinte.

Não penso noutra coisa a não ser voltar logo para


São Bento. Vou de novo sentar num tamborete, na
calçada da igreja, proseando entre o sabor do café
torrado, da fatia de queijo, da colherada de arroz-de-
toucinho. Ouvir histórias da vida, sorver em pequenos
goles o espesso e generoso vinho da memória, repor
ordem no pensamento.

Tu te lembras do Caburé: velho, enrugado, com um


olho só (perdeu o outro cortando taboca), cigarro
esquecido no canto da boca. O que me gosta nele é a
sua visão da vida, é uma aula de sabedoria, pois vê
com nitidez o passado e olha com clarividência o
futuro.

Desta vez quatro dias foi pouco tempo para tanta


lembrança, tanta sentença, conceitos e princípios,
nascidos da experiência de um homem simples, puro,
bom, um sábio eremita de nosso tempo.

Voltarei – se Deus quiser – à Pasárgada


maranhense, para deixar de ser, ainda que por quatro
dias, apenas um solitário e dolorido habitante da
cidade grande.

E, mesmo em sonho, guardo sempre um lugar para


ti...
Jerusa,

Fico te admirando de longe, o teu corpo


prodigioso, imaginando o que poderei fazer, mesmo te
contrariando. Tocar cada parte ora carinhoso, ora
violento, como se o tempo comandasse nosso destino.
Não só te beijar, não só sentir teu abraço – ir além
das batidas sincopadas do teu coração.

Estou só, me embriagam os pensamentos. A única


coisa que vem é ti Jerusa. Posso sentir o gosto dos
teus beijos, sentir teu perfume, teu calor, tudo que
exala do teu corpo. Sentir-te colada a mim clamando
pela agressão de minhas mãos. Despir-te-ei com a
boca e pensamentos.

Serei cruel: tomarei teu corpo inteiro, tornando-


o submisso aos caprichos. Invadirei tua alma,
dominarei teus medos. Quero-te perto de mim, para
acariciar tua pele... Quero sentir o perfume que vem
de ti quando fazemos amor, quero ouvir teus gemidos,
gritos e sussurros ao ser enlaçado por teu abraço.
Minha querida fiel boa Jerusa, não me escreva de novo
duvidando de mim. Tu és o meu único amor. Tu me
dominas completamente.

Eu sei e sinto que se eu vier a escrever algo de


belo e nobre será somente escutando as portas do teu
coração. Como eu gostaria de te surpreender dormindo
agora! Tem um lugar em ti que eu gostaria de beijar
agora, um lugar estranho. Não nos lábios, Jerusa.
Sabes aonde?

Esta noite a febre de amor voltou a arder em mim.


Sou uma casca de homem: minha alma está triste. Só tu
me conheces e me ama. Pergunto se não estou um pouco
louco. Ou o amor é loucura? Em certos momentos te
vejo como virgem ou madona, em outros te vejo
desavergonhada, insolente, obscena!

Parece que estou sempre na tua companhia, sob


todas as condições possíveis falando contigo,
caminhando contigo, te encontrando de repente em
diferentes lugares, até me pergunto se o meu espírito
não deixou o corpo no sono e saiu te buscando.
Jerusa,

A teu pedido mando um pouco do que sei sobre a


história de São Bento, que fica bem ali do outro lado
da baía de São Marcos, tranquila e pacífica, secular,
situada sobre uma feliz ponta de terra.

Antigamente a vila era coberta de altos matos,


elevada apenas um pouco acima do nível da lâmina
d’água que periodicamente nutre os campos gerais da
Baixada, hoje é uma cidade de singularíssimas
histórias.

Entre os costumes distintivos dos seus filhos há


um excepcional e curioso: o de apelidar pessoas, de
maneira tão contumaz, que estas praticamente perdem
o nome de batismo. Incorporam o apelido aos nomes de
família e o transmitem de geração em geração.

Depois tudo é sacramentado nos cartórios. Lá, por


exemplo, há famílias Pisa Ouro, Bate Banha, Peixe
Frito, Afoga Gato e outras de nomes até mais exóticos.

Na década de 1940, a segurança pública da cidade


estava confiada ao honrado delegado de polícia Luís
Reis, com casa de moradia ao lado da nossa na
principal praça da cidade e que, por ser tatibitate,
ficou mais conhecido pelo apelido de Luís Gago.

Seus auxiliares eram os policiais Balbino,


apelidado de Balbino Perna-dura e outro, conhecido
por Taririnha, de quem o nome próprio até hoje
ignoro.

Balbino ganhou o apelido de “Perna-dura”, em


razão de que uma de suas pernas não se dobrava
durante o caminhar.
Jerusa,

Não é sopa, a vida moderna. Por isso, sempre que


posso, corro para São Bento, terra dos peixes e das
aves do campo, quintuplicados pelo milagroso
padroeiro da cidade. Não adianta ficar fazendo de
conta que está vivo, neste céu de lama, pútrido e
abjeto.

É vida o olhar melancólico para o oceano cheio de


metal embarcado que nos foge e vai enriquecer outros
povos mais felizes? É vida o eterno esperar o
improvável dia que abrirá as latas do comboio dos
desvalidos, as portas para o trabalho digno, as janelas
de folhas despregadas, os telhados sem goteiras, a
libertação do espírito para a velhice?

Pelo menos, por enquanto, felizmente tem um


barco que sai todo dia para São Bento. Resolver, não
resolve porque não é possível fugir nele para sempre,
nas as velas coloridas asseguram que do outro lado da
baía há vida.

Decerto, não tão venturosa quanto merecem os


filhos de Deus. Mas tem homens sobre cavalos,
varejando canoas, no meio de um verde vivo, sem a
solidão opressiva da multidão enlatada nos trens que
descem dos subúrbios da cidade grande. Gente livre
que comunga tempo, água, vida, ar, verde e azul com
animais que apascentam na paisagem sem fumos
tóxicos.

Tem o voo das aves no ilimitado campo que nos


liberta das algemas invisíveis e rompe liames
imemoriais que aprisionam os homens. E há aquele
cheiro de café torrado subindo por entre as telhas,
filhas morenas da doce argila dos barrancos. Há a
maciez da talhada de queijo, o sabor gordo do leite
das novilhas, o perfume dos peixes roliços cevados
nas enseadas, a farinheira e o caldo de pimenta na
mesa dos amigos, gente que – ali sim – está cheia de
vida.

Junto a eles, vou fazer pedidos e orações para


mim, para ti e bendizer a santa proteção que
recebemos dia e noite. Desde o alvorecer peço bênção
à Vila de Nosso Senhor São Bento, com o seu cajado, o
Livro das Regras às mãos, na constante vigilância do
sono, do trabalho e da formação espiritual de seus
afilhados.

Nesta sexta-feira, de manhã bem cedinho, vou


tomar o barco, entre os saudares das gaivotas alegres
e o canto dos marinheiros, em busca da vida. Por uns
dias? Que seja!

Quem sabe não te encontro a meio caminho?


Jerusa,

Você se lembra de ter ouvido um dia os dobres de


um sino? Em toda orada ou igreja havia sempre um sino
a tocar pelos finados, pelas festas dos santos e pelas
alegrias da vila ou da cidade.

Foram os sinos de São Bento, o glorioso Santo das


Regras, padroeiro do meu berço, que abriram nossos
ouvidos infantis para o som do bronze. Pois eu te
conto que desde menino eu era acordado, de
manhãzinha, pelos dobres da Matriz de São Bento
chamando pelos fiéis para a Missa.

O sol mal nascia e lá iam todos, em grupos de


conversas animadas, para o dever cristão, sentindo o
cheiro das lenhas a arderem nos fornos das olarias.
Você também ia, mirradinha, agarrada na minha mão,
como se tivesse medo de se perder entre o mundo de
gente.

Parece que os sinos de São Bento também


despertavam as aves dos campos. Logo aos primeiros
dobres garças, guarás, gaviões, socós, misturavam as
cores na aquarela do arrebol. Depois, mais tarde,
vindo para o colégio na capital, foram, os sinos da
Igreja de Nossa Senhora dos Remédios que
impregnaram a minha memória auditiva. Aqui eram
mais potentes que os de São Bento e todavia mais
melodiosos.

Estava lá em São Bento, um dia desses, e pedi ao


pároco que mandasse tocar os sinos da Matriz
anunciando as comemorações do aniversário de
criação da Freguesia. Mas foi inútil: o padre me disse
que para fazer dobrarem os sinos teria de ir a
Pinheiro e ter autorização do Bispo! Acreditas?
Pois é verdade: fiquei sem a música do bronze
para acompanhar o espocar dos foguetes de taboca lá
no alto dos céus e relembrar nossa infância! Nem para
as festas do padroeiro ou dos Remedinhos, que tu
tanto gostavas e atraem conterrâneos vindos de todo
o Brasil, os sinos tocam mais.

Não sei quem é o Bispo investido de tanta


autoridade eclesiástica para calar os sinos que o povo
comprou com o dinheirinho suado nas canoas, nos
barcos, nas olarias, nos roçados, na pescaria, na
criação de bichos.

Porque é sabido que nenhum sacerdote botou um


sino sequer em orada, capela ou igreja de São Bento.
Tudo ali foi dado e feito pelos fiéis. Portanto, não há
mandato outorgado a qualquer religioso, seja qual for
seu grau hierárquico. Enfim, por essas e por outras,
que de vez em quando a tevê e os jornais exibem, é que
a religião definha e a Igreja se desagrega. Para
tristeza minha e tua...
Jerusa,

Te lembras da cantiga que diz:

Ah! Como é bom


uma redinha de algodão,
toda branquinha
feita lá no Maranhão.

Pois foi em São Bento, terra do queijo-manteiga e


do arroz de jaçanã, que organizaram uma exposição
para mostrar a ciência de fazer boas redes. Ah, como
me lembrei de ti, que adoras uma boa rede! Não só
irias gostar de passear entre as redes dependuradas
nos salões, de vários tipos e formatos, cada qual mais
bonita que a outra – mas também comprarias uma ou
mais – com certeza! Várias redeiras mostravam a arte
tecer, as técnicas para bem armar e bem deitar.

O ofício de redeira faz parte da antiga tradição


de São Bento, terra onde está enterrado o meu cordão
umbilical. Famílias inteiras, desde remota
ancestralidade, se dedicam ao mister da tecelagem, da
ornamentação de redes, necessárias ao repouso do
corpo e espairecer o espírito. O padre da Ermida de
São Roque bem que sabe disso: em sermão afirmou que
Deus não dorme, mas descansa numa tapuiranas.

Em São Bento – lembras? – a gente usava apenas as


redes feitas por duas vizinhas da rua que descia para a
casa do sapateiro Afoga-Gato. Ali moravam as irmãs,
famosas tecedeiras de redes, conhecidas como Bembem
e Mana. Elas ficavam sentadas o dia inteiro, diante do
enorme tear inclinado na parede da sala, a mascar
fumo, a prosear entre um café e outro, sem jamais
perder de vista o nó do ponto do tecido.
Aquele rústico tear de pau d'arco fabricava
delicadas obras de arte, verdadeiras prendas de
querubins, redes de todo ponto e as vistosas
tapuiranas, pesadas e difíceis de lavar, que os filhos
de São Bento se orgulham exibir. As tapuiranas são
vistosas, têm desenhos no pano inteiro, flores, gregas,
estrelas que se entrelaçam. As varandas não são
apenas enfeites, pois o bom sambentuense se vale
também delas para agasalhar o corpo do frio das
madrugadas e para evitar olhares indiscretos quando
quer intimidades...

Aqui no meu quarto tem sempre uma bela


tapuiranas armada no canto onde há uma janela com
vista para o mar. A que mais gosto é feita de linha
esterlina branca, com estrelas amarelas, varandas
amarelas com o meu nome bordado e quatro borlas nas
extremidades. É muito parecida com aquela que te
levei, no teu último aniversário.

Quando vou dormir é para sonhar com o tempo de


menino. Depois da oração, deito na tapuiranas debaixo
do mosquiteiro, imaginando se terei ainda força para
repetir no galho da mangueira, os saltos do ginasta do
circo que acabara de chegar.

Minha querida Jerusa, até os sonhos são melhores


sonhados numa rede de São Bento, não é?
Jerusa,

Como te contei em carta anterior, aquele convite


para viagem a São Bento foi suficiente para relembrar
as redes incomparáveis feitas ali. E na lembrança elas
não vieram sozinhas, mas acolitadas de cheiros,
sabores e visões que sempre percorrem juntos os
tempos de nossa vida, mãos ocupadas com maços de
vassourinha, alimpando os empoeirados caminhos da
memória.

E trouxeram consigo estórias, causos e lendas


havidos e ouvidos. Muitos até recordam corpos
envolvidos em finíssimas e sensuais camisolas de
madapolão. Evidente que tu apareces em cada linha
dessas histórias. A rede é parte integrante do homem,
como se fosse integrante do corpo: cabeça, tronco,
membros e rede. Talvez seja por causa disso que o
sambentuense faz, usa e conserva a sua rede com tanto
cuidado.

Assim protegida com tanto carinho, a rede pode


ser armada, que para isso ela foi feita. Mas não se
arma rede assim sem mais nem menos. É necessário
observar as regras mínimas para que se possa
desfrutar bem delas. Primeiro: os armadores devem
estar a cerca de um metro e oitenta do piso e a uns
três e cinquenta de distância um do outro.

Rede para criança fica na altura dos cotovelos da


mãe, para facilitar a lida de troca de cueiro. Já a rede
de velho não deve ser armada a mais de dois palmos e
meio do chão, que é para o velho não se machucar
muito, se cair. Em seguida, nada de se sentar em
apenas uma beira da rede, Pelo menos na primeira vez.
É prumode a rede não ficar pensa. Porque rede
pensativa não dá descanso nem para defunto.
Em São Bento, bem te lembras, o dia começa cedo.
Antes das cinco horas, vultos de corpos dissimulados
pela bruma da madrugada já estão na lida do curral, na
tiragem do leite para o café com farinha, a coalhada, o
queijo. O resto do dia flui lento no trabalho duro.
Descansar mesmo só de noite, depois do banho tomado
à beira do poço, um bom prato de bagrinhos e jejus
cozidos, caldo apimentado e farinha biriba, às vezes
com um pouco de arroz pilado pelas mulheres.

Aí vem o café grosso, torrado com açúcar para


puxar o sabor do fumo-de-molho picado e enrolado na
abade. Pronto! Afastadas as pragas e muriçocas com
fumaça de bosta de boi seca queimada, é deixar o corpo
cair na tapuiranas que o sono chegava de mansinho.

De noite, as almas penadas, as visagens, os maus


espíritos continuam a assediar a pequena aldeia e
obsidiar o seu povo cheio de crendices. Nisso São
Bento não mudou nada... tem tempo que as crianças
choram dia e noite de medo. Não vão à escola, não
passarinham, nem armam arapucas nos matos.

Tu mesma – lembro bem – eras uma medrosa de


diploma, só largavas a minha mão quando o sono te
derrubava por completo. Essas crises temporárias
deixam os párocos loucos. O medo vira pavor. Então,
os moradores de São Bento pegam a rezar ladainhas e
novenas, a fazer benzedura, a acender vela.

Chegaram mesmo a construir uma capela com


enorme cruzeiro de pau d’arco roxo à frente e foram
chamar o padre de Pinheiro, para enviar aos céus
missas concelebradas durante três domingos seguidos,
mode debelar aquelas forças demoníacas.

Como vês, Jerusa, não muda quase nada em nossa


terra querida.
Jerusa,

Então, consegui despertar tua memória sobre


aquela primeira noite? Sim, o Quincas Oliveira,
sempre solícito, também se mostrou curioso: – E aí?
Foi tudo bem? – Perguntou sobre nosso primeiro
encontro. Não te preocupes. Ocultei os detalhes que
só interessam a nós. Mas não pude evitar a referência
ao abajur lilás.

Levantando da rede me deixaste saboreando o


resto do uísque Dewars 18 anos, encorpado, de cor
âmbar, que o Quincas tinha deixado fora do bar com um
bilhete:

– Experimenta este, antes.

Ao lado havia uma caixa de Dona Flor Robusto,


feitos com folhas de tabaco tostadas. Sem saber se os
charutos faziam parte da oferta, me apropriei de um
deles. Fumei intercalando longas tragadas com
grogues do uísque, preâmbulo bem adequado para a
noite tensa.

Bem longe da minha adolescência, confesso que


estava nervoso. Nosso encontro me deixou inquieto,
ansioso – coisas do amor...

Para evitar que o sono me abatesse de vez


estragando o encontro promissor, tomei uma ducha ali
mesmo à beira da piscina. Quando entrei no quarto
tive a surpresa: o que era aquilo? Um abajur lilás!

Um abajur que deixava o ambiente surreal:


partículas de luz imitavam poeira espacial,
provocando nuances de tons, réstias de luzes
vermelhas, azuis, amarelas, verdes, laranjas,
multicoloridas. Como se fosse moléculas interagindo –
elétrons, faíscas de cores verdes, vermelhas, azuis,
púrpuras, violetas – tudo lembrava o fenômeno da
aurora boreal.

Em íntimo conluio com o ambiente teu corpo nu


faiscava colorações, nuanças e entretons, interagindo
com os diversos matizes, teu corpo nu embaralhado
aos lençóis e travesseiros, teu corpo nu provocava
gradações eróticas inimagináveis.

Mergulhei nesse sonho que se tornou bem real


quando um aroma balsâmico recendeu no ambiente. A
fragrância característica que fugiu das tuas
entranhas me encharcou as narinas do perfume que
atrai o macho para o cadafalso. É um cheiro típico,
odor que permanece fixo, que insiste em perseverar,
demora a nos deixar, tatuagem que permanece
persistente e duradoura.

Abajur lilás. Sabe que tem uma música com esse


título? Marcou época na briga de amor entre o famoso
casal de cantores e compositores Dalva de Oliveira e
Herivelto Martins. Era um tempo que conflito
sentimental se resolvia com poesia ou música e não à
bala como hoje em dia, em que a desavença entre
casais leva ao ódio, à morte, duelo de bandoleiros do
velho oeste.

Pelo menos parte da letra da canção pode se


adaptar a nós: “Que será/Da luz difusa do abajur
lilás/Se nunca mais vier a iluminar/Outras noites
iguais?”

Rio de Janeiro, Cachambi, 7 de agosto de 2019.

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