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Manoel Victor

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Manoel Victor

A
meus pais
Árvore dadivosa de meu ser

A
Minha esposa
Linha paralela de minha vida

A
Luís Carlos
Meu mestre

Coleção Biblioteca da rainha Mab 08

Monteiro Lobato & ciª


Editores
São Paulo
1923

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Digitalizado em junho de 2022

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Índice
Assombração
A vingança da árvore
A sentinela (adaptação)
Amor… amor…
Sebastião da Moita
O quinto sentido
Trapos da vida (conto fantástico)
O coração de macaco

História de minha mão

Sem nome
Este porquê (de meu diário)
Esse porquê (resposta a teu diário)

Um destino no tempo (psicologia dum vencedor)

Quem é rainha Mab

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Assombração
T riste, pálido, esquelético, enjeitado da sorte e da alegria-da-vida, o único consolo
de Antônio Melodia era o violino, companheiro inseparável na amargura e
solidão.
Já não tinha família. O pai, último parente restante, morrera, dias antes, de apoplexia.
Agora solitário, cada vez mais procurava se afastar do convívio humano. Tornara horror
a tudo que era humano, soçobrando insensível na morte prematura e lenta de profunda
solidão. Só sentia a vida no acorde de ternura que aprendera a ferir no corpo do violino.
Então, a alma borbulhava em alento, acordando do torpor costumeiro, em alegria efêmera,
como se nova seiva o agitasse inteiro. Era tamanha a sonoridade da música, tão suave a
gama combinada das notas, que nela se confundia de alma em êxtase, volatizando o ser,
numa languidez onírica. Dali o nome que lhe deram.
Não muito tempo após o falecimento do pai, desapareceu da vila.
Se comentou, indagou, mas como tudo passa, e passa em tudo a monótona seqüência
das coisas, o fato também foi esquecido.
Nunca mais a atmosfera matinal despertara a limpidez cristalina de éter aos
compassados queixumes do violino solitário, já tão conhecido, na aldeola inteira. Nunca
mais a espécie alada teve no coro das gorjeadas aquele flébil murmúrio que o arco
provocava no dorso mágico das cordas, que não mais vibraram acompanhando o pranto
da noite chuvosa ou o riso do dia ensolarado. E dali choravam as aves em lesta revoada,
pintalgado o azul de reticência. E chorava o hialino impalpável do ar na lágrima de
sombra do orvalho matinal.
O Sol chorava via tremor de seus luze-luze. Só a noite, acostumada a verter o pranto
de chuva, por contraposição geral, cessou o choro ao qual se habituara. A noite já não
chorava. E, surpresa das surpresas, ficou linda, tépida, enluarada contra o hábito do clima.
É que tinha em sua trova um segredo que a consolava. E explicava sua alegria pela
forma eloqüente do sorriso do luar. A noite é uma interrogação, imenso crisol de
misticismo e de poesia, furna indecifrável, eterno segredo. Dali o secundário aspecto de
segredos outros dentro do imenso arcano que encerra. Eis porque só a noite conhecia a
sorte do violino-melodia que calara o lamento.
Se passaram dias, e dias mais passaram. Na vila a vida pouca ou nenhuma
transformação tivera. Só tomara feição outra, no espírito bordalengo1 dos habitantes, uma
velha casa abandonada, a qual, havia tempo esquecida, atraía a atenção mútua das coisas
sobre sua ruinaria. Ganhara fama de mistério. Ao lado das paredes gastas, um velho poço
dormia sua velhice na amarelenta tristeza de seu bojo. Era o motivo da superstição, o
inovador da anomalia no tradicional costume de tranqüilidade da populaça. E o zunzum
das considerações espalhafatosas entrou a pairar no ambiente aldeão, ora declinando ao
medo do vulgar cochicho, ora recrudescendo no comentário ousado. Se dizia que o poço
vetusto e venerando, como se encarnando uma alma jovem, falava e chorava lamento dum
ente ignorado.
Na noite, quando as coisas começavam o sono quotidiano, quase na mesma hora, um
esquisito arrastar de rumorejos prolongados penetrava o âmbito diáfano da treva
esclarecida de luar. E soava um lamento desusado, como um espinotear de notas
convulsas, feridas por desespero louco num violino tocando. Aquela sutileza parecia
partir do poço atravessando a ramaria ungida de brancura pelo astro noturno.

1
Bordalengo: Ignorante, grosseiro, estúpido. https://dicionario.priberam.org/bordalengo Nota do digitalizador

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Tantas noites a eito a serenata quebrou a quietude do espaço e baralhou o ambiente,
que se tornou a maior preocupação do ignaro poviléu da vila. A maior parte da gente
nunca mais passara, na noite, no sítio da casa abandonada. Já chegava ao pavor aquele
preconceito tolo.
Numa noite, o manda-chuva do lugarejo, velho experimentado mas de prudência tal
que tocava à inércia e ao temor, teve um surto de coragem e um relâmpago de ousada
maquinação. Sem dormir até alta hora com a plangência do violino mágico que o
atormentava e criava na imaginação senilizada pela idade as mais estapafúrdias
controvérsias, enfim se decidiu. Enterrou num castiçal antigo um pedaço de vela grossa
e desceu, espantado do próprio arrojo, os poucos degraus de seu solar. Fora a noite era
então toda luar e melodia.
Na imediação da casa abandonada, quedo em imobilidade de alvenaria, o poço expelia
da bocarra negra, sonorizando o ar, acordes contínuos.
Passo-a-passo o ancião galgou o terreno e ficou a meio metro do desvirginador do
silêncio noturno. E mais intenso e forte ouvia junto a si o violino. A impressão de sua
coragem, que até então não conhecia, o fez tremelear. Um tropeção roubou a firmeza do
pulso, e a vela se partiu em duas no chão pedregoso. Ficou solitário com o violino.
Sozinho com o violino! Nunca tivera tanto horror a tal instrumento, que então parecia
a mais fantasmagórica idéia. Seu todo era a personificação do estupor.
Alçou a borda do poço com a mão descarnada, a mão do próprio medo, e se curvou a
dentro procurando, ávido, o segredo do fundo. E, surpresa! Outro se melaria ante o
imprevisto da cena. Mas a coragem momentânea, força que em boa ocasião nascera, o
sustinha.
Com os olhos de espanto observava. No fundo do poço, raso como não imaginara, à
luz falseada dum tronco de madeira ardente se estrebuchando, um homem encolhido sobre
si como inseto no casulo, a cabeça arrumada na umidade das lajes interiores, rascava com
vigor um frangalho de arco sobre um violino semidespedaçado.
Ao ver a cabeça intrusa do ancião, imagem mista do susto e da ousadia, levantou, num
arrepelo, o molambo da carcaça.
E, quando apareceu fora, puxado ardorosamente pelo estranho visitante noturno,
batido de luar no contraste da noite, estava decifrado, num relance, o mistério do poço
abandonado.
Morava ali, incógnito como selvagem, irmanado às pedras e vivendo da natureza bruta
e da música de sua alma que tão bem sabia reproduzir na sinceridade dum violino velho,
Antônio Melodia.

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A vingança, da árvore
E ra uma dessas consciências escabrosas, digressas2 do caminho do perfeito
raciocínio. Seu físico mesquinho como verme e desajeitado como corvo, trazia
todos os estigmas de completa degenerescência, e o olhar extático e estúpido,
vaga ilusão do olhar-de-infância, era quase nada do que fora, quando o berço, nimbado
dos maternais carinhos, o acolhera na velha herdade onde a tradição mandara nascer os
antepassados.
Aquele vetusto solar, tapizado de alto a baixo por trepadeiras esverdinhadas de brotos
novos surdindo das raízes centenárias num apego de sinceridade à cal sagrada das paredes
venerandas, com sua colossal mangueira vivendo paralelamente na fachada bizarra,
quanta saudade evocava em seu conjunto! Talhado em declive ameno, o coroava a
confusão da rama espessa da mangueira, e, rugoso de velhice, desfrutava à sombra um
sono de paz catedralesca na arcaica estrutura dos pesados oitões.
A velha mangueira, um monumento de recordação, era o receptáculo histórico da
família, como um livro amarelado pelo tempo, onde cada folha ressumasse todo um
episódio de antiquado arrojo.
Como era querida aquela árvore!
As crianças de outrora com ela envelheceram e, velhas, tentavam rejuvenescer a morta
idade contemplando o vulto forte e rijo.
A veneranda anciã de sangue verde e coma farfalhante, almecegada pelo pó barrento
dos radiosos domingos de janeiro e gasta pelo hálito do tempo que bafeja e não perdoa,
tem como senhor de seu segral viver aquele último rebento estroso3 duma família de
heróis, que, por uma aberração da natureza, era o espectro asqueroso e deturpado da antiga
estirpe.
Com ele rebentara de repente todo um cabedal de sentimentos torpes. Era ruim dentro
e fora, asqueroso como um abutre, um trapo-de-vida acolhendo todo o mal de que,
porventura, os ascendentes se desinçaram.
Produto híbrido duma fonte pura, chafurdou a própria adolescência, pelo instinto que
não herdara, na baixeza que deprava e na maldade que corrompe. Feito homem, era a
máquina da inconsciência desastrosa, e mais enludrou o improstituível passado dos que o
geraram num momento infeliz.
A velha árvore já o olhava com pavor e tristeza, traindo o desgosto nas rugas do
tronco. Tinha a intuição de que algo grande pendia dos últimos sucessos que assistia na
velha herdade, desde que aquele espírito alarve4 e bordalengo ingressara em sua sorte, a
estarrecendo na incerteza de seu fim.
Em sua sensibilidade de vegetal acostumado a acarinhar uma inteira geração, tinha
mais amor aos corvos que lhe vinham enegrecer a basta cabeleira outrora redolente e
moça-de-cuidado, mais afeto aos pardais daninhos que lhe espicaçavam os frutos ainda
prenhes de sápido verdor, que àquele ente mesquinho, de olhar insidioso de víbora que
rondava seu destino na lúgubre expectativa do carrasco que aguarda a queda da vítima.
Um dia seus pressentimentos se fundamentaram na realidade.
Numa manhã o sol parecia mais baço e a campina menos verde. Pesavam os ramos de
tristeza viva e em torno a atmosfera tinha a frieza tumular e as coisas a gelada placidez
de cemitério. Era o prelúdio da grande dor.

2
Digresso: Desviado do rumo. https://dicionario.priberam.org/digresso Nota do digitalizador
3
Segral: Secular. https://pt.thefreedictionary.com/Segral Estroso: Caprichoso, idiota, lunático. https://www.dicio.com.br/estroso/
Nota do digitalizador
4
Alarve: Bruto, grosseiro, rústico, selvagem. https://www.dicio.com.br/alarve/ Nota do digitalizador

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Sob o olhar faiscante daquele que agora se descontentava com sua legendária sombra,
a velha mangueira tremeu.
Um ruído lúgubre de quem parte a corda-da-vida, um rangido de edifício desabando
despertou um rugido de revolta, incontido na dignidade dum sentimento inacessível.
Uma sombra agitou a imobilidade do ar, e aquela espessa galharia, aquela coesão
maciça de folhas que gemiam uma saudade, brutalmente derreada a vertical do tronco ao
qual se atinha, rastejou no lutulento solo, aos golpes do machado.

Não existisse o machado, o homem converteria o próprio braço em alabarda e os dedos
em lâminas cortantes. A mão seria um pente de punhais e a palavra abater sua divisa.

Uma gargalhada alvar, estridente e histérica, rasgando a face estuporada do homem
numa dilatação espasmódica de gozo, foi o único acompanhamento ao funeral da árvore.
A natureza, num repente de insólita revolta, descompassou durante um segundo o
ritmo de sua evolução. Se diria que a gênese inteira era então toda uma idéia de ódio.
Mas não contente com seu instinto eversor,5 o brutal carrasco que exultava dentro da
mesquinhez de sua perfídia, penetrou com passadas bestiais a consagrada copa do
monumento verde e lhe desbaratou, num estourar de raiva, os sazonados frutos. As botas
sacrílegas, empastadas de lodo, manchavam de vermelho a pureza glauca6 da folharia.
Era como se cada folha pisada corasse de indignação.
Enfim, numa mutação de ódio, começou a devorar o mais belo fruto. Os dentes tinham
a função de triturador daninho.
E o fruto se contorcia num estertor, resvalando, como se chorasse a dor do vegetal
vencido.
De repente, num ímpeto infantil, estado de inconsciência deslocada que só cabe num
espírito de tamanha exigüidade como o seu, começou a correr, o braço no ar, curvejando
num propalar de vitória, a mão fechando o fruto. Chegava as zinas da excitação violenta
que precede à loucura. Suava.
O caminho alcantilado despeava os tacões ao golpe mazorral de sua passada. De
repente, parou, como tomado por deslumbre imprevisto. São os raros momentos de plena
lucidez. Ante a elevada concepção e angélica feitura do cenário, a alma impulsiva se
reteve ao sentimento dimorfo7 do arrefecer e pasmar.
Chegara a uma pequena elevação de terreno. A dez metros, expunha a poesia icástica8
das paredes exalviçadas9 de luz, uma pequenina igreja, singela pela compleição colonial.
Coroava o topo da fachada um cruzeiro de ferro.
Durante um instante contemplou o horizonte azul e a sagrada limpidez do ambiente.
Aves voavam em magotes rilhando os bicos cor-de-rosa. Sussurrava uma melodia distante
o vento que se aproximava impregnado dum bafejo de pântano. De espaço a espaço, um
pardal descrevia curvas graciosas sobre o vulto esguio do símbolo da cristandade. A cruz
conservava abertos, em atitude carinhosa de quem acolhe, os braços de ferro cheios da
plumagem colorida da álacre passarada. Em sua rigidez se sentia sonora. Se diria que,
pelo vulto, naquelas dezenas de gargantas, a alma da religião cantava.
Essa quietude paradisíaca, contrastando com sua falácia impertinente, provocou um
estorcimento. Um ricto de desprezo quebrou o canto labial direito. Torceu nos dedos o
malogrado fruto. Arremeteu contra o encantado conjunto um olhar de fúria. Blasfemou
impropérios nojentos à gracilidade edênica da paisagem, que não compreendia. E não

5
Eversão: Destruição, ruína, desmoronamento. https://www.dicio.com.br/eversao/ Nota do digitalizador
6
Glauco: Cor indefinida entre azul e verde. Nota do digitalizador
7
Dimorfismo: Característica de apresentar duas formas com marcantes diferenças. Nota do digitalizador
8
Icástico: Sem artifício nem adorno, básico, natural, simples, sóbrio. https://www.sinonimos.com.br/icastico/ Nota do digitalizador
9
Exalviçado: Alvacento, esbranquiçado. https://www.dicio.com.br/exalvicado/ Nota do digitalizador

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podendo fazer mais pelo ódio que escaldava, ergueu o braço descarnado em ridícula
imponência de assalto. Era o revoltado desafogo dos seres reptantes, tendo diante de si a
inocência do belo. Com a violência dum petardo, lançou contra a serena placidez da
morada divina, o fruto que semidevorara.
Uma curva trajetória o esborrachou numa nódoa amarela sobre a imaculada alvura da
parede. Depois tombou, combinando com o chão a felpa do caroço.
Nova gargalhada rechinou de notas estridentes a amplidão azul. Nesse momento as
veigas em flor da campina soluçavam, num murmúrio de pedúnculos chocados, um
protesto doloroso contra a injúria. E os cimos das hastes se desluziam, pouco-a-pouco, do
revérbero de ouro que ostentavam, à proporção que o sol tinha intermitente agonia no
poente ignizado.

Se passaram anos. Ao pé da igrejinha, o fruto da mangueira morta revivera o passado
de vigor da velha árvore, na germinação dum descendente seu, mais forte e mais possante.

Mês-de-maria. Não importa o mês em que sucedesse. Talvez qualquer um se
aquilatasse da mesma forma à incongruência da cena. Melhor, porém, o casto mês
mariano faz ressaltar os contornos do imprevisto e a impressão do contraste. Mês quando
todas as coisas tem esse vislumbre do que é bom, angélico, quando tudo trescala ao que
é doce, divino, o quadro, por descombinada feitura, mais se destacaria da pureza
impecável da moldura.
Não se pode afirmar que as árvores raciocinam. Pode ser. Tais coisas serão
eternamente mistério porque nosso parco cabedal humano não alcança ao muito que só
compete à sensatez divina. E até ali não chegamos, mesmo que o mundo evoluindo nos
aproxime muito à completa compreensão.
Suponhamos que dentre as muitas potenciais fantasmagorias houvesse nesse momento
também um vegetal que suando gotas de resina tramasse na esquisita bizarria do cerne
revoltado idéias estapafúrdias dum cérebro de seiva. Tudo aconteceria. Como um ser
humano, teria o direito de raciocinar e de expor, criando e executando. Mesmo como um
ser humano encontraria pra explicar a vida o ponto-de-interrogação do ontem e do
amanhã. E entenderia os homens como entendemos as plantas, como entendemos o vulto
duma árvore, o vigor dum tronco ou a flexibilidade dum caniço só o valorizando por ser
natural.

Nesse mês-de-maria a gente do lugar, acostumada à reza, ansiava a chegada do novo
pregador. Era costumeiro o sermão domingueiro, as longas horas passadas na penumbra
do templo quando o ouvido era todo um sentido, afeito à beatitude, suspenso da concisão
dos conceitos veementemente reafirmados pela austeridade do púlpito.
Havia três semanas, porém, que se interrompera o hábito com a viagem do pároco.
Fora ao litoral buscando uma praia pra catar alívio à tísica que o não perdoava.
E a antiga igrejinha que o abrigara nessas tradicionais cerimônias religiosas se
recolheu a provisório silêncio. Tinha, como outrora, no topo da colina o mesmo aspecto
do passado. Apenas nascera, como companheira de solidão, a meio metro da parede quase
secular, uma robusta árvore de fronde virgem. No alto da cumeeira, sob o telhado de pau-
a-pique forrado por telhas toscas em graciosa platibanda, uma pequena mancha, mais
amarela pelo hálito do tempo que pela cor original, destoando da brancura exterior.
Na mesma harmonia do cenário de outrora, venerada pela tradição, a vetusta herdade,
carcaça de glória extinta e desprezada, despida do ornato da mangueira que fora toda sua
vida e agora sua queda, na exposição dum tronco decepado, janelas fechadas à luz,

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engasgada entre ervas daninhas que disputavam o terreno numa baralhada confusa,
exsudava a ruína.

Numa tarde as portas do pequeno templo rangeram nos gonzos prà primeira prédica
do mês de maio.
O dia era esplêndido. Os fiéis, em lenta aglomeração, chegavam em magotes
sussurrantes. A novidade era o novo pregador. E delineavam nas cambiantes dos broncos
entendimentos a impressionante figura do homem de batina preta. Pouco-a-pouco na
pequenina nave se ampliou o leve burburinho dos cochichos sibilados.
Subitamente uma sineta destoou da fluência cadenciada das vozes. Como
alcatruzado10 pela amargura duma interrogação, o rosto retalhado pelas rugas da idade,
florido de neve no inverno da cabeleira e o peso da existência na curvatura dorsal, entrou
de sob as modestas abóbadas a trêmula figura do orador ancião.
Se diria a própria morte, viva por milagre. Na macia penumbra dos lampiões violetas
lembrava uma múmia se movendo no silêncio sagrado dum sarcófago. A única fogueira
de vida na silhueta escura de tristeza eram os olhos de inefável expressão. As pupilas
ainda tinham um ímpeto de mocidade contido a cada minuto pelo peso das pálpebras
rugosas. Pareciam brasa esquecida na cinza do próprio corpo. Os gestos vagarosos de
vez-em-quando assumiam atitudes simbólicas de estátua. Todo envolto no negror da
severa veste a voz, dando impressão de contínua súplica de além-túmulo, pois sem
diapasão, era um indefinível gemido prolongado.
A impressão que deixou na massa ouvinte não foi propriamente algo que o definisse.
Aquele aglomerado de seres, afeito à vulgaridade duma vida chã, não era de impressão.
A praxe beata o acolheu simplesmente em coletiva simpatia supersticiosa, pois uma
sotaina sempre infundia respeito. Era ministro-de-Deus e, sobretudo, sacerdote ancião. A
personalidade interior pouco importava. O exterior é o que valia ali. Pro vulgo tudo
aparece no verniz que encobre a superfície. E o velho padre conseguiu, como um
relâmpago, o mais alto grau de todos os conceitos.
O sermão foi fastidioso depois de leituras prolongadas a trechos do evangelho,
orações, salmos, uma estirada de conselho, de descrição da história bíblica. Mas a beata
resignação daquela gente se habituara ao respeito às preleções sacras. E cada peito era um
pequenino templo onde rezava um coração.
Só a jovem mangueira estremeceu quando o viu. Algo inédito lhe falou do imo do
cerne, remontando a sua origem e descobrindo sua história. Pouco-a-pouco a seiva da
velha mangueira começou a latejar nas fibras da mangueira nova, tronco de seu tronco,
casca de sua casca. Seus galhos se convolutaram11 estrincando os ramos em espirais,
possuídos por uma raiva vegetal, tal qual sói ter um exemplar de sua espécie, e seu fuste,12
sacolejado em violenta contorção, alevantou da terra um imoscapo13 tumultuante de raízes
soltas, pois reconhecera naquela batina preta, apesar da máscara de amargura que o
vendaval da vida pintara em algaravia de traços encruzados o jovem tresloucado doutrora,
o cruel demolidor do augusto monumento do qual fora fruto. Na imediata fluência das
decisões que aproveitam, começou desde então a acalentar idéia de vingança. A surpresa
pela descoberta a fazia antegozar com fúria o prazer duma desforra. Sendo árvore, não
podia transformar em braços o ódio lenhoso dos galhos, pra o estrangular num repente
rápido. Mas o que mais a continha era a estupefacção. O verde raciocínio não
10
Alcatruzado: Em forma de alcatruz (Vaso, geralmente cilíndrico, preso por uma corda ou corrente, pra tirar água de poço ou
cisterna), deselegante, mal-ajeitado, abichornado, tristonho. https://www.dicio.com.br/alcatruzado/ Nota do digitalizador
11
Convolutar: Enrolar em forma de cilindro. https://www.dicio.com.br/convoluto/ Nota do digitalizador
12
Fuste: Parte da coluna entre o capitel e a base. Pode ser monolítico ou constituído por diversas pedras chamadas tambor.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Fuste Parte principal do tronco duma árvore, situada entre o solo e as primeiras ramificações.
https://www.dicionarioinformal.com.br/diferenca-entre/fuste/%C3%A1rvore/ Nota do digitalizador
13
Imoscapo: Diâmetro inferior da coluna. https://www.dicionarioinformal.com.br/imoscapo/ Nota do digitalizador

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compreendia a diferença que se operara naquela consciência estercorosa, de como se
tornara prosélito da própria religião que renegara e contra cujos símbolos atirara o
blasfemar da própria ignorância.
A vida é um remoinho. Depois de voluteios meio longos se volta ao lugar da partida.
O princípio de cada coisa é seu fim. Se o mundo não fosse esférico não andaríamos num
eterno ciclo vindos do nada ao nada.
Durante a adolescência da árvore o homem se regenerara na desilusão da velhice. A
experiência da vida e as vicissitudes da sorte são os maiores fatores na formação do
caráter via raciocínio introspectivo da consciência. Foi o que se deu. Nada tendo de seu
além da preocupação e do remorso do desbragamento que o arruinara, o antigo
proprietário, herdeiro dum nome ilustre que enxovalhara, volvera sobre a lastimável
desolação da vida os olhos desatinados, e, tomado por esse arrependimento tardio que
raramente recompensa, buscou a lição de seu futuro léguas além, noutra terra.
Acolhido ao sacerdócio por esquisito capricho, tendo a sotaina por bandeira e o peso
da carcaça por expiação, voltara ao torrão genetlíaco encobrindo na santidade da posição
veneranda à qual se acoitara o doloroso passado. Mas ainda dançava na superfície das
pupilas gastas o estranho lucilar da mocidade que o fazia sofrer internamente. A visão
àquela pequena faixa-de-terra da qual fora senhor absoluto o consumia num martírio
atroz. Mas se deixava torturar, esquisito ainda, ficando horas perdidas em êxtase
algófilo,14 saboreando a própria dor.
E achara, queria crer, o repouso da finalização de seus dias torvos no aconchego da
antiga igreja que certamente esquecera a afronta.
Mas a árvore, a ressurreição da vítima doutrora, não o perdoara. Vivia um ódio surdo
e irrevogável. Se propusera o encargo do aniquilar pra satisfazer sua vingança tantas vezes
abafada. E, a traição, como víbora rastejando insidiosa, começou a alongar em incontido
anseio na profundeza da terra as pujantes raízes.
Construção de antanho, atreita a ruína próxima pela velhice dos arcaicos alicerces, o
pequenino delubro15 de religião sofria potencial queda prematura. Talvez não nem lhe
fosse dado gozar a ruína parcelada de seu venerando todo, que ainda seria consolo, no
desfrutar da tradição. Seria absorvida na surpresa do que se extingue sem vestígio.

Dias cobriram dias, e muitas luas rastrearam o azul impalpável após a árvore conceber
na verde imaginação o plano de revolta.
Gradativamente encouchava os tentáculos invisíveis contra a base das paredes, na
vertigem irrefletida que preludia a derrocada.
Numa noite, quando a calmaria ampliava a carga do sono das coisas e o céu,
obumbrado16 de nuvem, secundava o negror da treva espessa, um estalido seco penetrou
de leve o peso do silêncio e ao farfalhar de folhas que riem com alegria intencional, uma
racha escancarou um espaço de centímetro na fachada do templo da colina. A cada
segundo que passava se alongava, abarcando de alto a baixo o edifício.
Virou uma brecha larga se dilatando, tatalando, num sussurro surdo.
De repente uma viravolta baqueou o cruzeiro de ferro que, em brusco arranco, se
despenhou, resvalando. Ao impulso de ricochetes semicirculares encalhou terreno abaixo
no encontro que choca o oblíquo sobre o plano. Depois desse despenho macabro nova
pausa serenou as coisas no intervalo do tropeço que precede à queda total.
No repouso temporário da consciência atordoada o velho pároco, ignorante e
desavisado, gozava um sono de paz. O prenúncio da derrocada não foi suficiente pra

14
Algofilia: Gosto por sofrimento e dor, como mártir, penitente e masoquista https://www.lexico.pt/algofilo/ Nota do digitalizador
15
Delubro: Altar sagrado ou mesa onde são colocado ornamentos pra festa pagã. https://www.dicionarioinformal.com.br/delubro/ Nota do digitalizador
16
Obumbrar: Se cobrir de sombra. https://www.dicionarioinformal.com.br/obumbrar/ Nota do digitalizador

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atabafar17 o enfesto do vegetal, o acordando do letargo em que o destino o colocara pra o
acolher em sepultura.
A árvore, na fúria da tarefa, ressaltava toda a louca androfobia que mantinha a
movimentação acelerada de suas forças. Sob o impulso da musculatura lenhosa que
estalava, elevada às zinas18 de estenia19 fatigante, galhos e raízes se estorcegavam em
esgares contrafeitos, no derradeiro solavanco que alcança o limite da vitória.
O tempo se enturviscava à medida em que as coisas decorriam na transição da
madrugada. Um corvo espiralou na cena, de mui perto, e um estrugir de rumor abafado
imitou o estertor de agonia. De repente, numa evulsão20 violenta, rebentaram do solo,
derruindo tudo em aluvião, as raízes da mangueira vingativa. Um estrondo ecoou, longe.

Na manhã seguinte a igrejinha era uma aglomeração atafulhada do escombro de sua
contextura, excrescendo do plano da base num amontoado disforme. A pouca altura o
mesmo fuscipeneio rapaz farejava, volitando. Uma bizarra comunhão de cor e som
preludiava no espaço a orquestração do dia. Ainda pairava no ar o eco de soluço
interrompido pela aparição fantástica do Sol. Sobre o destroço, incongruente com a
energia do fundo forte e firme da paisagem, bela demais pra se rimar à eversão da base,
ereta como sentinela e altiva como dama insultada, irrompia o vigoroso vulto da
mangueira, as folhas gargalhando de alegria ao gozo do delito na verde ironia do riso
vegetal.

17
Atabafar: Impedir a propagação, abafar, conter, sufocar, interromper. https://www.dicionarioinformal.com.br/atabafar/ Nota do digitalizador
18
Zina: Máximo grau de intensidade, auge, apogeu. https://www.dicionarioinformal.com.br/zina/ Nota do digitalizador
19
Estenia: Estado normal de força e atividade orgânicas (Antônimo: Astenia) https://www.dicio.com.br/estenia/ Nota do digitalizador
20
Evulsão: Extirpação, arranque, extração. https://www.dicionarioinformal.com.br/evuls%C3%A3o/ Nota do digitalizador

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A sentinela
adaptação

D esde que ficara prisioneiro das forças paraguaias, capitão Silveira morrera pro
mundo. Pesava na alma um triste desconforto quando se abismava na muda
introspecção sobre a desgraça, recordando.
As tropas que comandara, gloriosas sob o auriverde pendão, talvez desbaratadas,
desapareceram pra ele. Nunca mais ouvira o conhecido e amigo rufar do tambor. E havia
muito que não demorava os olhos na costumeira carícia dos de sua raça no pavilhão
estrelado desfraldado tantas vezes, como a personificação do valor, sobre o exército
ardoroso da pátria que era a sua. Nunca mais.
O único consolo de sua vida de exilado era o panorama de tristeza que o quadrado
duma seteira oferecia através das grades. Se irmanara à solicitude da noite e ao desalento
do dia e ali ficava, de alma angustiada, evocando dentro da natureza, a terra que perdera,
o exército, a família. A única personagem viva que passava à vista, imperturbável na noite
espessa, além das aves que de vez-em-quando crocitavam, era a sentinela. Longe, numa
ladeira, rondava. A força de a contemplar, única companheira do abandono no qual vivia,
ironia das coisas, acabara se afeiçoando à silhueta inimiga.
Mas muito além, em seu quinto ano de luta, inabalável, sabia que a guerra continuava,
pois lhe afirmava o vozerio rouco dos canhões distantes. Mas qual a situação? A qual lado
se inclinaria a palma da vitória? Dela, da oscilação que tomasse, dependia seu destino.
Mas ignorava tudo. Apenas imaginava. Às vezes chorava, sem ter lágrima, em vão
desespero, ansiando liberdade. E aparecia, diáfana, num sonho vago, lhe aclarando a
consciência atribulada, sua casa, o solar, a santa imagem da velha mãe que deixara em
terra brasileira. Por absurda aberração de raciocínio e de angústia, imaginava que ela, com
a desaparição do filho, enlouquecera. E a via, atravessando léguas de caminho, na
tresloucada idéia de o procurar na treva, uma lanterna na mão iluminando o decrépito
arrastar dos passos anciãos. Pensamento de mau-agouro dum cérebro afogueado. E assim
mais se engolfava na ânsia de abafar a própria dor.
Se diria abandonado. Além da chegada matemática da sórdida ração empurrada
misteriosamente num orifício do cárcere, não tinha diversão. Também não conhecia o
algoz.

Mas numa noite, quando, olhos fitos no horizonte escuro, orava por seu exército,
reparou com espanto que a sentinela desaparecera. O costumeiro posto estava deserto. O
enorme disco do luar iluminava indiferente a campina vazia.
Ficou surpreso. Além do fundo morto da paisagem que mal se definia, ouvia mais
fortes o ribombar do bronze e o estralejar da metralha. Algo novo acontecia.
Confirmando, ouvia um prolongado som que lembrava o clamor conjunto da vitória.
Pensou:
— Se decide a luta. Quem será o vencedor?
Só vinha como resposta o tatalar convulso do coração arrebentando o peito em oca
angústia.
De repente um ruído inédito pra seu ouvido acostumado ao ambiente. A porta da
prisão rangeu nos gonzos. Em primeira vez, após tantos dias e noites, se abriu
completamente. Uma figura de veterano envergando uniforme inimigo assomou no
limiar. Era a sentinela.
Recuando um passo, capitão Silveira não acreditava no que via.
O recém-chegado tinha nos olhos um clarão inexplicável.

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Com a mão calosa e rude apontou a liberdade, com gesto de desdém, fazendo ver o
caminho aberto atrás da porta.
No princípio, apalermado, o capitão silenciou na surpresa do momento. Então
arriscou, com os olhos lampejando:
— E o Brasil?
— Vencido.
Sufocou na garganta ressequida um gemido triste. Cambaleando, disse, com voz
agonizante:
— Fechai de novo as portas da prisão. Não precisa liberdade quem tem morto seu
país.
Mas nesse momento feriram o espaço em todo o derredor as notas eloqüentes dum
hino marcial. Através das grades, impado pelo vento, na altivez de quem porta o valor
duma raça inteira, passou, levado em vitória, o pavilhão da cruz de cristo.
Impassível, tirando o oficial do assombro repentino, a sentinela chegou o rosto ao
ouvido e sussurrou:
— Voltes, meu bravo. Como tu há lá centenas. Foi por isso que o Brasil é o vencedor.

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Amor… amor…
E ra alva e loura como os trigais que a brisa dobra na beira dágua dourados pelo sol.
Os olhos, duas lantejoulas azuis, irrequietos e sonhadores. Quando os viu
pareciam dois lagos parados no êxtase do azul. Na penumbra solitária duma
arcada, través a luz violácea dum vitral, se diria uma parcela divina deslocada do céu na
congérie21 incongruente da Terra. Era linda e alegre como a andorinha que o azul concerta
e rasga com seu canto e vulto. E nessa aparência de graça hirundina22 vivia só pra alardear
a jovial candura aos felizardos pais que se orgulhavam de a ver, botão humano divinizado,
e à avó, uma velhinha que a adorava.
Quando completara seis anos e andava nos cantos com a cartilha nos joelhos, a avó,
na complacência de anciã à neta que era todo seu sol, alegria, razão-de-ser no crepúsculo-
de-vida, ensinava a soletrar, indicando com os dedos murchos os caracteres negros do
primeiro livro.
A neta era dócil e boa como mandava a pequenina inteligência angelical. Em efusiva
revoada de beijos soltos como sonhos do coral cor-de-rosa dos lábios na descolorida
epiderme da velhinha, era a mais grata retribuição da atenção recebida.
Era bela de se ver a cena dessas ocasiões. Se diria uma flor despetalada num muro
velho, um raio-de-sol saltitando numa ruína.

Numa tarde o Sol descambara mais rubro que nunca na curvatura indefinida do
horizonte. A boa avó assistia da janela do solar senilizado pelas gerações severas dos
ascendentes seus, a agonia das coisas reverberarem o despear de sua decrepitude, quando
um fio-de-voz cristalino a distraiu do cismar, indagando do jardim:
— Vovó, expliques uma coisa.
Pouco depois a netinha, com a cartilha turbilhonando nas mãos, num estardalhaço de
passarão decolando, entrou à sala, trapezapeando23 o chilrear da andorinha com gritinhos
infantis de contentamento.
— Vejas!
Com o indicador minúsculo como um bibelô de cera ou de biscuí, mostrava uma
palavra: Amor, soletrou.
— O quê é amor?, vovó.
Ante o imprevisto da pergunta a velha sorriu iluminando a face encarquilhada.
— Não sabes? É nada e tudo. O impalpável e a verdadeira concretização das coisas.
A alavanca que rege o mundo e o mantém no alto. A base da ventura, do ideal, da
família…
— Não entendi, vovó.
Com os olhos arregalados ao sabor da ingenuidade, a criança esperava ainda a resposta
dos lábios trêmulos da avó.
— É verdade, meu anjo. És ainda um botão, uma flor apenas entreabrindo, pra
perceber completamente a carícia da brisa que te afaga. Esperes…
— O quê?, vovó.
— Esperes. Virão dias sobre dias. Luas diversas e diversos sóis passearão. O
firmamento enfunado. Eu talvez já me fora me asilar até sempre na morada eterna. E tu,
rosa aberta, alegria e juventude numa alma, candidez e meiguice num coração, saberás
penetrar o mistério da felicidade e conhecer o amor.

21
Congérie: Reunião informe de várias coisas, montão. https://www.dicio.com.br/congerie/ Nota do digitalizador
22
Hirundino: Relativo, semelhante ou próprio de andorinha https://dicionario.priberam.org/hirundino Nota do digitalizador
23
Trape-zape: O tinir de espadas se chocando. [Desuso] Rumor de carruagem andando. Nota do digitalizador

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A boa velhinha parou. Deu, pra ponto dessa preleção, um suspiro vindo do fundo da
extinta mocidade, e passou os olhos velados ao bojo pardacento da tarde morta.
A criança a fitava sem entender. Era a primeira vez que vovó, sempre tão boa, não
explicara o que pedira. Por quê?
Quando anoiteceu, apagando a mistura violácea do crepúsculo, ainda murmurava,
entredentes, reclinada no colo da avó:
— Amor… amor… O quê é?

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Sebastião da Moita
N oite negra e nebulosa. De vez-em-quando enche a doença mórbida da paisagem
descampada, um bando agourento de rapaces sacolejando o corpo fuscipêneo24
em rápidos volteios. Um crescente amarelo chora a tonalidade baça de seu clarão
mortiço na amplitude ortiva do horizonte onde apontou.
Na falda da colina esverdinhada, se afundando na massa impalpável da treva espessa,
erguera com madeira e taipa um rancho sertanejo o mais tímido dos caboclos que a terra
adusta consentia vegetar em seu dorso.
Sebastião da Moita era medroso como criança e estúpido como peru. Tudo lhe era
razão pra tremer, pra se benzer, pra implorar. E aquela noite pesada e morna, misteriosa
e negra, o fazia sofrer.
Em seu retiro, donde não se resolvera arredar pé desde a manhã, encolhido sob o
torpor do claro-escuro, tinha esgar de estupefacção mesmo ao menor ruído, e escorria,
como lenitivo, entre os dedos crispados, as pedras dum terço bento. Rezando teria o
consolo da proteção dos santos.
A ventania, derreando fora os galhos dos arbustos, acendia ímpetos em açoitada
contínua. Zumbia rouquejando.
Logo que entardeceu acedera ao pé de si num amontoado toda a lenha que tinha em
casa. A fogueira era sua lanterna, como o era em geral prà gente do lugar. Se metera em
cobertores, e, cuma varinha na destra, atiçava o crepitar do fogo, com medo de que se
apagasse, ampliando mais o peso da escuridão.
Os ruídos na noite continuavam. Pareciam vir de propósito, compassados,
impressionantes.
De vez-em-quando se arrepelava, medroso, empalidecendo em contorção.
Era obsedado por mandinga, supersticioso como todo caboclo de sua raça. Na manhã
ouvira contar, na praça do mercado, onde se reunia quase todo o povinho, aonde ia
também lambiscar a sorte, mil-e-uma histórias terrificantes. Eram visitas de seres
macabros, almas-doutro-mundo, sacis e lobisomens. Todo um cortejo de espectro, que
apavorava a alma sertaneja e alvoroçava o cérebro pequenino daquela gente ignara.
Então, recordando, solitário, que era nada, e de sua coragem de resistir, que não tinha,
se transia todo de medo, mais se encolhendo no aconchego miserável do catre.
No telhado o vento zunia levantando as telhas mal pregadas do teto tosco de casca
dárvore e sapé amarrado com cipó. Corujas entoavam um lúgubre choro. Esfriava. De
vez-em-quando a sarabanda das folhas secas, soltas numa tontura, se arrastando no chão
em rodopio.
Sebastião tremia como caniço na beira dágua em dia de rajada, e mais se enovelava
nos trapos das cobertas que mantinha na altura do pescoço com heroicidade que mesmo
a si pasmava.
Maurício, um preto-velho alto e forte, de barba acastanhada e longa, que fazia de
curandeiro em hora vaga, quem tinha sobre aquela gentalha alguma influência. O puxando
ao canto, entre os tabuleiros do mercado, contara naquela manhã, com voz austera e
roufenha de sabichão, todos os pormenores duma lengalenga que aprendera a bater na
língua desde a infância:
— Numa feita eu tinha ido drumi antes da lua parecê nu céu. Tava sozinho. U pessoá
de casa discambô tudo nesse dia pru sítio du Mané Pinhão, na ôtra banda da mata. Tinha
um circo de paiaçada, coisa bão da cidade. Eu fiquei tomando conta dos miará e da choça
do meu véio. Di repente, bateram na porta com argum cabo de enxada. Assustei, mas fui
24
Fuscipene, fuscipêneo: Ave com plumagem parda. https://dicionario.priberam.org/fuscipene Nota do digitalizador

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abrir. Tarvez fosse argum camarada atrasado. Quá cabo de enxada, quá nada! Se vancê
visse, se eu te contasse, que coisa ruim pareceu na minha frente, Bastião, vancê murria!
Vancê morria!, nhô Bastião. Era um esqueleto desses bem magrinho, desses de osso
estralante e cos óio da cara alumiado. Quando andava os ôsso fazia tudo tléque, tléque.
Eu quis fechá a porta em cima mas o bruto arrombou a tranca cuma cabeçada. Ú! Cabeça
dura! A tranca virô du avesso e foi parar do ôtro lado. Quando eu quis me virá, u bicho
caiu pra riba de mim. Senti na garganta os dedo fino do desgraçado. Gritei té dismaiá.
Depois não vi mais nada. Quando acordei, era dia. Tava deitado na cama e o pessoá em
roda de mim, a me indagá o quê é que eu tinha. Eu nem arrespondia. Tava meio morto
meio vivo.
E Sebastião, relembrando, não conseguia pregar olho.
Horas e horas, ficava se benzendo, ouvido alerta ao mais imperceptível rumor,
esperando naturalmente, num medo indescritível, que também na sua porta viesse cair a
mão pesada e esquelética do desconhecido noturno. E se tal acontecesse, imaginava
tiritando, morreria por certo. E só de perscrutar o côncavo da noite, a intermitência das
suas onomatopéias, o zunzum dos cochichos de todas as alturas e espécies, intervalado a
espaços dos silêncios misteriosos, Sebastião perdia as horas do sono. Nem cochilar
conseguia, porque a cada momento o arrepelavam bruscos sobressaltos e dolorosos
arrepios. A tortura daquele pesadelo tomava conta de seu corpo todo, como a ninguém,
e, naquele descampado, a sós com o próprio medo, passava das conjecturas mais
fantásticas á hipótese duma realidade estonteante que o viesse aniquilar. Já se via morto,
de facto. Tudo lhe aparecia possível e os maiores contra-sensos se tornavam naturais.
Qualquer ruído vulgar, qualquer voz da natureza em torno da habitação a que se
aninhara, valia por um mão pressentimento.
O tatalar das folhas, na passagem dum lagarto fugitivo, o baloiçar dos ramos na
redolência25 da aragem leve, o sussurrar dos rios saltitando em seixos, o volitar das aves
assustadas, o ressequir da terra estalando na novidade do frio que começava, rápido, na
monotonia plangente dum suspiro incompreensível, rumores tão harmoniosos pra outro,
pareciam estardalhaços e gemidos apavorantes.

Nessa noite, a desora, Maurício sentira em casa falta de lenha pro fogo. Tinha drogas
importantes pra preparar antes do amanhecer e não queria as retardar. O vizinho mais
próximo era Sebastião da Moita. Iria até lá, embora adiantada a hora.
Arrumou na cabeça um chapelão desabado e abalou, com seu passo cadenciado de
retardatário crônico, à residência do amigo da colina.
No caminho, na subida do terreno íngreme, despeava sob os achatados dedos do pé
trombudo todos os gravetos e pedregulhos que pisava e que rolando faziam bulhenta
correria no declive.
Quebrou um galho pra encurtar o trajeto, passando sobre um arbusto. Seriam cerca de
3h da madrugada.
Sebastião, portas fechadas e trancas corridas, tentara cochilar no leito mas não
conseguira, sofrendo ainda a angustiada tortura de indesejável insônia.
Ouvira as passadas no exterior, subindo ao rancho. Amarelara. As veias começaram a
latejar de maneira visível e ridícula, arroxeando as fontes. Transpirava medo. Pouco-a-
pouco a boca, crispada em inexplicável expressão, se petrificou em derradeira contorção,
como sufocando um grito que pressentia, em suspense, o que aconteceria.
Agora eram pedras que se despenhavam com rumores surdos. Parecia que todo o
mundo desabava sobre si. Os olhos se arregalaram. As mãos estrincavam as cobertas nos
dedos tortos pelo nervosismo que os açambarcava.
25
Redolência: Perfume, aroma, essência. https://dicionarium.com/redol%C3%AAncia/ Nota do digitalizador

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No chão a fogueira se apagava lentamente, afundando o derredor em agonizante
penumbra.
Sem coragem de se mexer pra reavivar a chama, ficara estático e estuporado, com as
pupilas retintas de veios sanguíneos, fixando a porta. O maior cuidado era aquela porta.
A poltronice sustara em seu imo o raciocínio do parco entendimento, e, como quem
esperando uma tragédia, tinha a atitude parada dum anseio.
De repente os passos soaram a palmos da porta. Um arrastão no lajedo do limiar
traduzia o ruído dum visitante. 1 minuto mais, e Sebastião se estatelaria de horror a todo
o sempre.
Na cama, ao luze-luze da brasa da fogueira, que era então a memória duma chama e
a saudade duma labareda, seu físico aberrado reverberava o estado da alma. Os olhos,
parados na fixidez do apavorante, e o corpo na rijeza duma pedra, era a carcaça de seu
medo.
Maurício chegou e parou no beiral da entrada. Vendo nas frinchas a luz mortiça da
fogueira no interior, supôs Sebastião acordado. Murmurou:
— Ainda bem!
E levantando a mão calosa e rude, assestou um murro à porta desconjuntada, o
acompanhando por rouquenha exclamação:
— Olá!, Sebastião.
A porta fragilíssima cambaleou e rodou sobre os gonzos, desprezando o auxílio da
tranca.
Um grito medonho, inexprimível e tétrico ecoou na noite em prolongado eco.
No dia seguinte encontraram na cabana da colina Maurício lidando cum cadáver.

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O quinto sentido
V
ovô. Sonhei hoje. Quê lindo é sonhar. Já sonhaste?
— Sonhar?
— — Sim. Quando se dorme não se sonha?
— Quando se dorme?
— Então, vovô, quem é tão velhinho e sabe tanto, não sabe o que é sonhar?! Bá! Vovô,
estás brincando.
E o avô, curvado sob a barba de prata e luzindo a calva ante a lareira acesa ao pé de
ambos, arregalou os olhos, mostrando olhos brancos como os fios da longa barba.
O avô era cego, da completa cegueira-de-nascença, que acompanha a vida desde os
primeiros estertores. Os olhos brancos eram dos olhos que nunca tiveram movimento,
nunca vibraram a uma sensação.
O avô não sabia. Nunca soubera o quê era olhar. Olhar o quê? Pra si, quem nascera
criança linda, mas sem vista, as coisas todas, todo esse mundo exterior que o rodeara até
hoje, até a velhice, acompanhando sua decrepitude, só existia via contato, som, sensação.
Nunca conhecera a forma duma árvore nem a cor duma estrela.
— Vovô, estás brincando?
Como resposta o velho fechou nas vidraças sem luz do olhar sob as pálpebras rugosas.
A criança, não obtendo resposta, esqueceu a pergunta e não mais falou sobre sonho.
Mas o ancião ficou com a lembrança. Agora queria a todo custo se lembrar, forçar a
velha memória entorpecida, que não o ajudava. Não se lembrava de sonho.
Por quê? Todo mundo devia ter sofrido esse fenômeno psíquico. Todo mundo era
igual a sua netinha, quem dissera que sonhara. Queria sonhar também.
Mas era cego. Nunca viu o mundo como é e como fora. Como sonharia?
Quando se sonha, o cenário do sonho fica povoado de imagem, tais quais vemos na
realidade, ou, quando não são as mesmas são semelhantes.
Mas o avô nunca vira. Na hipótese dum sonho satisfazer a ansiedade, o quê sonharia?
Cómo, de qual espécie seriam as personagens de seu sonho? Só via tato soubera como era
talhado o corpo humano. Não sabia quê cor tinham os olhos da netinha, pois não sabia o
quê era cor. Constatava que um copo era redondo porque o tomava entre os dedos e sabia
a dimensão de sua bengala, porque a apertava, a perquiria.
Então como sonharia? Naturalmente com o contato espiritualizado. Seria um sonho
fantasmagórico, horrível, cansativo, onde todos os sentidos vibrariam de ânsia, menos o
da vista, que se apagaria sobre os demais como uma cortina corrida.
Seu sonho seria de contato, perfume, sabor, ruído. Toda a sarabanda da conjunção dos
quatro outros sentidos.26
O quê ficaria de tudo isso? Talvez uma aglomeração macabra que certamente nenhum
cérebro suportaria.
Por isso, talvez, o avô nunca sonhara. Não podia baralhar o impossível.
Mas quer sonhar. Chegou a dedicar as orações daquele dia a suplicar 1 hora de sonho.
Que fosse apenas 1 hora. A netinha dissera ser tão lindo!

Numa noite, enfim, seu desejo foi satisfeito. Na casa se soube que o ancião talvez
enlouquecera por causa de inexplicável doença.
Na manhã seguinte à noite quando sonhara, parecia dez anos mais velho, com rugas
mais fundas e tropeços mais graves.

26
A tradicional idéia de que temos só cinco sentidos (Visão, audição, olfato, paladar e tato) é incompleta. Temos muitos: Memória,
equilíbrio, dor… Nota do digitalizador

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Manoel Victor
No outro dia o ancião também sonhara. O sonho fora cheio de grito, estertor,
convulsão, gesto desordenado como os faz quem tem em primeira vez a sensação do
horrível e inexplicável.
No terceiro dia, na expectativa de novo sonho horroroso, a gente da casa prenunciava
um desenlace. O avô fizera durante quase toda a madrugada enorme esforço pra não
dormir.
Mas a desora, quando o coração da terra parece descansar e o silêncio pesa como
ordem, surgiu atrás da pálpebra envelhecida o terrível cansaço que amolenta. E o ancião
entrou a novo delírio.
O sono era entrecortado por sobressaltos vazios. Queria acordar mas não tinha olhos
pra isso. Só podia compreender o som de seu estertor e o contato da cama e dos lençóis.
Premia tudo o que se aproximava, em ânsia de ferir.
Às vezes se acalmava, e começava a delinear com os dedos tortos no travesseiro os
contornos que sonhava, escondendo o ouvido a cada instante, pra não perceber os mil-e-
um ruídos que o matavam. Não acordava.
A auto-sugestão à qual se impusera pelo desejo de entrar ao sonho não o deixava sair.
O corpo, pela idade, era pouco forte pra sustentar a batalha. O suor corria em grossas
bagas, denotando o esforço sobre-humano que o cérebro esperdiçava.
Se operava uma derrocada lenta dos últimos vigores.
Pouco-a-pouco o cansaço completo ocupou até os menores gestos, que de violentos
se tornaram gastos.
E se foi amolentando o organismo com a canseira.
De repente já não era mais o mesmo. Uma palidez mortífera exibia, claramente
explícita nas pálpebras pegadas e na boca desbotada, a verdadeira realidade.
E passou à outra vida sem sair do sonho. Fora sonho mas eterno.
O matara a conjunção diabólica de todos os sentidos operando num cérebro sem o
concurso da vista.
Como se formara o cenário de seu sonho?

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Manoel Victor

Trapos da vida
conto fantástico

E ra alta e esgrouviada como um caniço que, desajeitado e reincidente, lutasse


contra o vendaval do brejo, mantendo a linha. Tinha nos olhos duas fogueiras,
duas lantejoulas rebrilhantes que eram o único adorno do corpo miserável. No
crâneo uma confusão imunda de cabelo branco. No ventre, dorso, umas falripas de trapo.
Nos pés a carne nua.
A casa, onde se acoitara como bruxa repelente pelo aspecto e maneiras asquerosas,
firmava no contorno exótico uma ruína de paredes sustentando heroicamente o teto que
era a vida, os poucos madeirames que eram o bálsamo da sombra contra a comburência
escaldante dum sol-a-pino.
Pleno Ceará. Modorra e mormaço. Tudo deserto na aparência visível de calamidade.
Os últimos habitantes da vila desertaram havia horas.
Ninguém. Nem mais um sussurro de voz humana. Se fora com a última madrugada o
último gemido de faminto.
Mornidão apática engolindo atividade na ânsia de crestar e sorver.
Naquele abrigo, exposta à surpresa e à tortura de avara solidão, a deixaram, por velha
e gasta, com três crianças às quais a mãe, na loucura da retirada, esquecera ou abandonara.
Saiu um instante à soleira, trôpega, sedenta, estirando o olhar ao léu, na ânsia de
implorar a gota dágua que a mantivesse viva.
No casebre os três pequenos infelizes, no desespero que precede o supremo estertor,
uníssonos, em berreiro, choravam em confusão.
Fora o Sol se divertia. Árvores espaçavam, os galhos nus, os troncos hirtos. De vez-
em-quando um grito de abutre seguia o espiralar dum vulto no espaço amplo. A carniça
humana se alava em parcelas nos bicos recurvos dos rapaces. No solo, como reticências
irônicas sobre a vida exuberante da terra que rachava de calor, se desdobravam nas
posições derradeiras da tortura que os aniquilara, espectros da morte, esqueletos. Aqui,
crâneos recortados ainda das pelancas da carne espicaçada. Acolá, em atitudes macabras,
recurvos e entrelaçados, verticalmente afundados na areia movediça, uma infinidade de
ossos que foram braços resolutos, carcaças expostas à brasa solar, estruturas que tiveram
vida na engrenagem gasta dos tendões doutrora.
A velha, na angústia de solidão que a colocava, única, com três crianças, numa
natureza ingrata, agonizava no sofrimento atroz da indecisão. Não concebia o quê fazer.
A sede corroía a garganta. Pra enganar a fome chupava a imundície do cabelo que o
desalinho atufava na boca. Faminta, mais que os infelizes entes que eram o contrapeso de
sua dor, saía pra catar um naco, um feliz encontro que suavizasse a angústia. Vagou,
triturando ao acaso nos cacos da dentadura pedrouços de terra que apanhava de vez-em-
quando. A fome dava implacável ânsia de mastigar. Batia os maxilares, lugubremente.
O Sol finalizava a curvatura no espaço azul-arroxeado do entardecer, quando chegou
ao casebre. Nada encontrara. Ante a contínua visão das ossadas no caminho tinha a
impressão de sentir a morte, batendo a surdina da plangência fúnebre no peito. Tropeçava.
A custo se arrastou aos pequenos. Ouvia o choro abafado.
Quando entrou, sob a carícia do teto de sombra, acocorada como hiena, procurou
tatear, as mãos descarnadas encontraram um corpo morto. Um estava frio e hirto. Os
outros dois, na ânsia de continuar o choro, estertoravam.
A conjunção da desgraça não lhe arrancou soluço. Quis clamar, enlouquecer em
gargalhada, mas, pra maior castigo, a razão permanecera lúcida, clara, pra perceber
integralmente o sofrimento.

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Manoel Victor
A noite chegara. Um sono passageiro envolveu tudo e os quatro corpos.
Na manhã seguinte, ao despontar de novo a flamígera fulgência do sol de brasa, sob a
alegria horrível da luz, havia mais um corpo frio. Era a fome que trabalhava em gradiente.
Pouco-a-pouco, a morte estendia mais, abarcava mais seu domínio.
Semilouca, como quem decide uma resolução que não retroceda, quis fugir, se furtar
àquele horror, mas faltou força. Havia cinco dias que comera o último resto na vizinhança,
e havia dez que os habitantes se alimentavam dos cães e gatos do povoado. Agora, sem
gesto de vigor, que ajudasse a vencer a letargia do corpo mórbido. Definhava.
Ao lado o último vivente gania um fio de soluço. Morria também. Algo gritava na
alma, que o não deixasse morrer. Não era possível. Não desapareceria na garra da fome,
como os outros. Urgia uma vitória ao menos sobre a morte assoladora. Um pedaço de
carne qualquer, algo insólito que iludisse o estômago minúsculo.
De repente resolveu, pois os dois outros corpinhos eram carne morta. Era horrível,
mas devia aproveitar. Se atirou, decepou com os dentes nacos brancos que a condição
cadavérica enrijecera. Os triturando o quanto podia, os deu ao pequenino mastigar. Era a
morte dando vida à vida. E a criança ainda resistia, se saciando, inocente antropófago,
desse modo incrível.
A infeliz provocadora dessa cena extinguiu com seu apetite o último resto.
Se passaram mais dois dias. No terceiro, aquela iguaria também faltou. Então,
medrosa de finar ali antes de salvação possível, a anciã acertou solucionar a desgraça.
Ergueu o corpo magro, tomou o pequeno, o pôs entre o elo ósseo dos horríveis braços
despidos, onde a pele se engelhava, e fugiu dali sem destino, andando o quanto podia, o
quanto ainda dava a vida, desafiando o fôlego que faltava espaçadamente. Então parava.
E passou mais dum dia nessa jornada.
Como a criança se habituara a comer, chorando por novos bocados, ficou, na coragem
estonteante do desespero, constrangida a usar, na falta doutra, a própria carne. E deu
dentadas a si.
Mas pouco-a-pouco o corpo virou uma chaga enorme. Doravante não haveria espaço-
em-branco onde não se apresentasse em todo o horror as manchas sangrentas das feridas
abertas. E aquela carne, aqueles farrapos secos de pele, também faltariam.
De repente não pôde mais. O sangue que perdia arrastava o último alento. Tombou
desfalecida. A criança rolou ventre acima.
Nesse momento caía suavemente a noite morna.

Quando o novo sol iniciou a faina de causticar e comburir, a criança ainda vivia,
debruçada nos bracinhos recurvos, mamando sangue nos peitos pelancudos da velha
morta.

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O coração de macaco
N um dia vi um homem devorando um coração. Pasmei, e minha impressão sobre
o horrível foi tamanha que fiquei até sempre com essa história martelando minha
cabeça. O enredo parece um peso no cérebro. Cada vez que o divulgo sinto um
alívio. Eis porque preciso contar.

Carlos João tinha um filho, flor que educara na altura de sua loucura idealista. Tudo
que a natureza humana pode dar de mais perfeito, sabedoria, probidade, ternura, caráter,
concentrava no extraordinário modo de viver e interpretar a vida. Era sábio, justo, santo.
Se diria que o pecado não achara sinônimo alma a dentro. Nunca soube o que era
desvio da diretriz racional do entendimento sobre as coisas. Recebia tudo assim, quase
divino, como dom. Via força do ensino severo, percepção eloqüente da evidência paterna,
amor, respeito e admiração filial, Carlos João filho era, em brochura, o segundo tomo da
vida do pai. Portanto faltava a encadernação física e a solidez da maturidade, que não
tardou. Nada mais rápido que o tempo quando quer correr, pois evolui arrepelando as
datas.
Logo Carlos João filho virou rapaz. Tinha já quase perfeitas a feição e a envergadura
paternas. Sábios, se afizeram a construir o caminho que não erra. Viviam sem procurar a
felicidade, como toda gente, sem andar atrás dessa fugitiva, pois já a tinham inteiramente
palpável. Sentiam o mundo seu e, ante a potência majestosa da natureza que traduzia
Deus, sorriam. Representavam o traço-de-união entre o alcance humano e o poder divino.
Mas num dia, eis a surpresa que não perdoa, a morte ceifou a vida laboriosa de Carlos
João pai, quem, tão humano quanto qualquer mortal, deixou o outro no abismo da mágoa,
na brutalidade da solidão prematura.
O golpe foi rude. Mas sua enorme ciência o levou à resignação. E com heroísmo
aceitou a tortura.

Mas como singular lembrança, como constante evocação, como saudade viva do
monumento paterno, guardou o coração com fanático carinho, com fetichismo original, o
embalsamando sob uma redoma. Aquele coração fora sua escola e idolatria. Dali partira
a luz de sua vida. Conservaria essa luz como a eterna inspiradora, mesmo já sem brilho.
E as lágrimas de filho amantíssimo purificaram muito tempo a lúgubre esquisitice
daquela relíquia
O coração em si, fisicamente murcho, era medonho. Mas parecia a reprodução exata
da figura, vontade e vida paternas. Guiava a idolatria só pela simples visão da redoma que
o cobria. O mantinha com cuidado como um deus num altar.
Passou a dirigir sua existência, proceder, decisões via influência daquele coração
Morava só, como um pária, isolado das aglomerações como um foragido, tendo um
único criado que lhe era tudo numa solicitude servil e irritante
Tinha louco ciúme do precioso tesouro. Vigiava até a direção do olhar do servo
executando a limpeza diária.
Com a presença daquele coração sempre ao lado, como se fosse a figura viva do pai,
o secundando nas perfeições do caminho, a vida de Carlos João filho ficara sempre a
mesma, impoluta, severa, monástica, quase santificada. Se diria que lhe o guia não
morreu.
O desejo de sempre possuir sob os olhos, embalsamado, o coração paterno, era
capricho, modalidade de extravagância. Reconhecia a esquisitice e bizarria desse culto
mas se orgulhava da originalidade.

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Manoel Victor
Às vezes, com ênfase e doçura, com saudade e tristeza, sentenciava ao criado,
mostrando o coração:
— Repares. Dali parte todo o alento que sustém a estrutura de meu ser. Cuidado com
essa preciosa figuração da árvore augusta da qual sou o fruto aperfeiçoado. Tenhas
carinho tão sincero e apego tão extremado como se fosse a mim.
Nesse momento desaparecia o orgulho e o ciúme. Familiarmente entrava a recordar
ao servo a fulgência esplendorosa da vida do progenitor.
Mas o destino, no prazer de sua excentricidade, mudará a face de todas as coisas.
Como? A morte não conseguira modificar a serenidade beatífica daquela vida arcaica e
austera. Quais causas mais fortes que a morte incidiriam diretamente na decorrência dos
fatos? O acaso e o ineditismo de emoção violenta. Essas forças são capazes de revirar
dois mundos. O acaso, algo invisível, impalpável, esse tudo que às vezes é o fator das
maiores concepções, que sentimos sem sentir, que vemos sem fitar, que tateamos sem
tocar, quando chega imprevisto, violento, novo, real.
Mas o acaso quis que Carlos João se ausentasse do templo sagrado onde retinha a
relíquia e suspendesse a vigilante adoração.
Já se acostumara a ter confiança sincera no criado, tanto se afizera a única companhia.
Mas o acaso, monstro de olhos reluzentes e estapafúrdios, inventivo e impressionista,
não parou ali. Enveredaram via porta da morada de Carlos João outras novidades. E o
acaso tomou nova forma.
Quando o criado se postara guarda único da redoma sagrada, senhor interino daquele
cenário ascético e patriarcal, apareceu na vizinhança, corrido dalguma furna ignota,
despejado a paulada por um tabaréu qualquer, um gato.
Era um animal enorme, lesto, nojento, sujo. A sordidez do pêlo hirsuto dava o aspecto
dum mamífero pré-histórico. As passadas lentas traduziam toda a raiva ferina contra o
fracasso. Era um faminto, andando ao-deus-dará, mendigo indesejável. A cor bronze-
velho do pêlo dava mais ainda a marca de antiguidade peçonhenta. Tinha os olhos
enormes como duas achas de fogueira acesa, e as unhas recurvas como crescentes aziagos.
Não miava. O mole-a-mole do corpo rastejando valia por um miado. Era a insídia viva
andando rebolando. Quando esbarrava nalgum objeto a imundície do dorso, expelia do
pêlo a poeira que carregava das sarjetas e dos socavões. Independendo a visita ser
indiferente ou consentida a presença, se insinuou com denguice manhosa na casa de
Carlos João, onde a leviandade do criado autorizou desde logo, como diversão, a estadia.
O animal, afeiçoado a todos os recantos, já era conhecido de quantos meandros tinha
a habitação. A certo tempo, o servo de Carlos João não mais lhe dava apreço e consentia
de qualquer forma, a qualquer momento, em qualquer parte.
O ausente, por capricho de combinação, retardava a volta. Já seria possível viver tanto
tempo longe do coração?
Mas a fatalidade caiu vertical a toda a estranha bizarria de tais cenas. Em certa manhã,
quando acordara mais tarde à lucubração costumeira, o servo de Carlos João, ao entrar à
sala onde o amo conservava a relíquia, carinhosa e preciosamente sobre a redoma de
cristal, deparou com algo que se o não deixou imediatamente aparvalhado ao menos o
deixou três a quatro minutos pregado ao chão, sem perceber a grande surpresa que teria.
A três passos de sua mão, acocorado como um satã nas patas traseiras, ao lado da
redoma de cristal partida em caco, os olhos mais reluzentes que farol de locomotiva, os
bigodes mefistofélicos, hirtos de satisfação, os dentes em macabro rilhar27, o gato bandido
devorava gostosamente o coração de Carlos João pai, lambendo as fauces em vadia
inocência, sem noção do sacrilégio.

27
Rilhar: Comer roendo, trincar. https://www.dicio.com.br/rilhar/ Nota do digitalizador

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Ao deparar o intruso que assim invadia o recinto da pilhagem, o animal ficou também
um instante como hipnotizado. Fitou o servo importuno num minuto de suspensão, sem
movimento, os dentes retendo os últimos bocados do original petisco. Então, em
demoníaca carreira, saltando desapareceu, dando o último repelão nos cacos da redoma
espalhados no chão.
A extraordinária comoção do infeliz criado doravante o tornou vencido
Como reparar a terrível conseqüência de sua tola leviandade?
Dois dias depois, duas noites insone, sem instante de sossego íntimo, sentiu o
desânimo da derrocada, ferrenho, penoso, difícil de suportar. Não podia pensar em
remédio porque a persistente sensação de imprevisto não deixava resolver.
Mas cinco dias depois, a força de sofrer, teve uma idéia repentina que se não era
perfeita ao menos era realizável: Substituiria o coração. Seria fácil, embora pagasse o ato
clandestino com o peso insuportável do remorso.
E assim praticou. A exposição de história natural dum museu, onde se fez ladrão,
rendeu com facilidade um coração de macaco. A sorte o favoreceu. Se não era igual
parecia muito ao objeto perdido. O trabalho de embalsamamento era idêntico.
Guardou com usura o tesouro que seria a salvação, vigiando a nova redoma feita à
semelhança da primeira com todo o desmedido cuidado que não tivera antes. Passava a
eito os dias e noites ao pé do coração, cochilando ao cansaço de estafante vigília e
acordando ao sobressalto mesmo do mais fraco rumor vindo de dentro da casa
adormecida.
O gato nunca mais apareceu

Dez dias depois do desastre Carlos João filho chegava de volta da pequena viagem.
Não morrera totalmente o sol daquele dia, quando o fiel servo foi sobressaltado por
um ruído violento que repercutiu dentro daquele crepúsculo morno, como uma blasfêmia.
O patrão chegava arremessando as portas contra os feixes, em inédita brutalidade pra
seu costume.
O criado, surpreso, o encontrou entre indeciso e tonto.
Carlos João tinha a fisionomia contrafeita. Um ricto novo, traço revelador da
depravação consumada, riscava o canto labial em perfeita ostentação de antipatia. Era
outro.
Ao se deparar com a figura pálida do moço se aproximando, fez um sorriso, ou antes,
uma careta incompreensível que caiu no raciocínio do criado como mau prognóstico.
Sem gesto de acolhimento, de saudação, tão comum na peculiar bondade de pouco
tempo antes, entrou a grandes passadas, e, atirando uma capa que trouxera pra o envolver,
se voltou subitamente na única pergunta:
— O coração?
O servo colhido assim de chofre concertou o espanto com dificuldade. Passou da
palidez à expressão cadavérica do susto máximo mas respondeu com voz que julgou
muito firme:
— Sempre no lugar. Intato e perfeito.
Carlos João suspirou, como pausa de alívio transitório, e caiu numa poltrona.
Naquela noite nada mais disse. Ali ficou, em esquisita concentração, imerso em
profundo recolhimento, sem se mexer nem pestanejar, olhando fixamente o chão.
O criado não ousou o interpelar. Era tão grande a apreensão ao imaginar que seria
descoberta a troca, que temia abrir os lábios. Esperava o amo se acalmar daquela
incompreensível exaltação.

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Ordinariamente tão brando, afável, assim repentinamente transformado na expressão
total da brutalidade? Mesmo a fisionomia, costumeiramente suave, como a face dos
justos, surgia tão diferente, tão adulterada. Por quê?
Não achava resposta. Não a tinha mesmo ante o absurdo daquela surpresa.
Passou a noite acordado, pensando, após apagar as luzes, exceto a do candeeiro que
iluminava lugubremente, na sala grande, a luta cerebral de Carlos João.
O patrão ali se deixara ficar, sem gesto, consentindo sobre si o peso ansioso do silêncio
enorme da sala e o tremor esbatido da única luz que punha claros-escuros de mistério no
recinto.
Fora a noite transcorria com vulgar indiferença, passando sobre aquilo tudo como
autoridade.
Oito, dez, doze horas soaram, lentas, no grande relógio que era uma das relíquias da
mocidade de Carlos João pai. Mesmo depois, duas, quatro, seis, oito, dentro da madrugada
escura, novamente, na mesma banal monotonia.
Carlos João não se moveu. Todo esse tempo, só a respiração trabalhava na sombra,
visivelmente, arfando o peito largo, e, invisivelmente, o cérebro, que era uma batalha.
Aquela quietude tão longa talvez fosse o início de desespero próximo.
Algo o fazia pressentir, do meio da viagem de volta, que algo anormal acontecera.
Considerara com tortura sobre o que fosse. Chegara sobressaltado, violento, indagando
sobre o coração, que era seu único tesouro: Estava intato e perfeito. O quê mais o
atribularia? Sabia que nada mais. Todo o resto, mesmo importante, era secundário. Mas
uma idéia fixa invadira o cérebro congestionando todo o cabedal de pensamento são que
fora sua glória. Se deixara ficar naquela imobilidade passageira, elaborando um resultado
pra seu aspecto de semiloucura que já descobria em si. Esse resultado não o conseguiu
durante todas as horas que escoaram sobre a torturante angústia. Não chegou a detalhar o
estado-de-espírito. A idéia fixa persistia, martelando a cabeça já estalando.
Ainda não era nato o sol, quando levantou os olhos. Sentiu os ossos como estalando
quando se movimentou após tão longo estarrecimento. Estirou as pernas longas e
estendeu os braços em consolação. Durante um instante o pensamento suspendeu a
dominação e deixou o cérebro vazio, até que, voltando a si daquele espreguiçamento,
entrou de novo a sofrer aquela angústia.
Vagou os olhos na sala. Os circulando os deixou cair ao mostrador do relógio. Os dois
ponteiros marcavam 10h da manhã. Os olhos doloridos, no princípio tristes, logo depois
estáticos e, enfim, perversos, ficaram pregados na posição que os dois ponteiros
assumiam. De repente soaram dez vezes a batida rouca da marcação das horas. Se
sobressaltou. Os olhos se dilataram mais e não se desviaram do quadrante. A posição tão
inocente dos dois ponteiros, marcando 10h naquela manhã que fora era de bruma e tédio,
assumia atitude algo extravagante que no princípio não se percebe mas fica mais visível,
mais real.
Subitamente deu um grito e se levantou arrepelado, se lançando em direção ao relógio.
Os braços se ergueram em violenta impulsão. As longas unhas das mãos mais longas,
batendo de encontro ao vidro do mostrador, rangeram lugubremente.
O quê vira? Nada ou quase tudo. A visão contínua daqueles dois ponteiros postos na
posição de 10h turvara a vista gradativamente até que, como pesadelo acordado, foram
os únicos vultos curiosamente desenvolvidos no meio da sala. Os via se movendo. À
proporção que o pequeno crescia, o grande diminuía de largueza e se alongava. Assim se
modificaram até o grande tomar pouco-a-pouco atitude de cauda se apegando na
extremidade dum corpo. E então esse corpo se completava e mostrava já visivelmente
nítida a cabeça, bigode hirsuto e longo, as patas dianteiras levantadas. Era assim a cópia
dum gato sentado nas pernas traseiras e com a cauda tesa.

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Então esse gato, como se movendo imperceptivelmente, mostrava sob as garras um
objeto estranho.
Carlos João gritou.
Ao sentir sob as unhas a lisura do cristal do mostrador, cobrindo a ingenuidade
inconsciente e pacata dos ponteiros, teve novo repente de violência. Revoltado, estilhaçou
cum soco a transparência do vidro. A mão ficou sangrenta e gotejante, sinistra como o
traço dum crime.
Nesse estado, ainda mais terrível que antes, enveredou portas adentro à redoma onde
o coração de macaco figurava sacrilegamente como relíquia.
Ao deparar o tesouro teve um momento de nova quietude. Imóvel, o contemplou em
adoração.
Mas subitamente a figura do gato apareceu novamente tétrica, real, ao lado da redoma.
O mesmo gato que se revelara nos ponteiros do relógio, de bigode longo e cauda tesa.
Não pôde mais. Sentiu um turbilhão engolfar a vista, e a exaltação rebentou completa.
Como furor vivo, atravessou as salas todas. Encontrando no caminho o criado, quem quis
fugir, tão horrível era a mão ensangüentada, o agarrou brutalmente. O tendo sob as unhas
farpantes, então garras, o levou à redoma.
O infeliz já não sentia vida, pois o medo tomara o alento.
— Fales!, imbecil! Digas que este coração nada sofreu em minha ausência. Repitas
que é o mesmo órgão sagrado, intato e perfeito. Repitas pra acalmar a tortura de minha
dor, apagar a extravagância de meu pesadelo e eu expelir esta idéia que congestiona minha
razão. Fales!
E com rudeza o sustinha na gola, colérico, medonho.
O servo, como em heroísmo:
— Não repito. Não falo. Não digo que este coração nada sofreu em tua ausência. Não
digo que é o mesmo órgão sagrado, intato e perfeito. Não posso acalmar a tortura de tua
dor. Não posso apagar a extravagância de teu pesadelo. Não posso expelir de ti a idéia
que congestiona tua razão. Não posso porque…
— Por quê?
Carlos João berrou, em acesso, cravando as unhas com fúria na face da vítima como
ainda tentando tapar a boca que proferiria a sentença de sua desgraça.
— Porque…
E o criado se esvaía ante a obrigação de terminar.
— Porque este coração é outro. O verdadeiro foi devorado por um gato.
O momento seguinte foi mais importante tanto prà razão de Carlos João quanto prà
rotação dos mundos nos cataclismos havidos. Era o desmoronar duma consciência que
ruía, abrindo as portas à loucura.
Largou o criado, quem tombou no chão inanimado. O esforço pra revelar a verdade
causou vertigem ao infeliz.
Carlos João exclamava gesticulando:
— Um gato, um gato…
Cum murro partiu a redoma. Em gesto vertical enterrou os dedos sangrentos no
coração de macaco.
Soltou uma gargalhada medonha que estrondeou no deserto da casa. Enlouquecera.
Um minuto depois, exatamente como o gato fizera, aquele homem arruinado
totalmente na delicadeza de sentir via artimanhas do acaso, sentado no chão ao lado da
redoma partida, acocorado em posição espasmódica de animal se saciando, lambeu os
beiços e revirou a língua, devorando com macabra avidez o coração.

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História de minha mão


Minha mão é longa e aberta como um pente
O braço é esguio como um corpo de serpente…

M inha mão tem cinco dedos que são cinco estranhos tentáculos, cinco unhas que
são cinco recurvados terrores. É arma mais certeira que punhal, mais violenta
e mais audaz que laço. Carícia quando quer. Pluma quando acena.
O corpo de minha mão é masculino e feminino, forte e fraco, doce e rude. Varia
conforme o efeito da causa que o atinge. As veias azuis são estilicídio estilicídios28 de
alma ansiosa. Regulam a ação dos dedos que são escravos do sangue quente ou frio que
contêm. Frio, empalidece a epiderme em languidez artística. Quente, entontece a atitude
do gesto. Frio, enrija como gelo os tentáculos dos dedos. Quente, amacia como labareda
o contato do impulso. Frio, é calmo como delíquio e mau como a ironia duma farsa.
Quente, é inquieto como pressentimento e bom como afago.
Foram quatro as grandes sensações que a minha mão passou.
Na primeira vez era pequenina e mimosa. Ainda como um botão de flor, tremeu, foi
lágrima, lírio de súplica. Foi quando veio a meu coração o primeiro medo, a primeira
treva, esse terror da infância ante o grande incognoscível. Eu tinha cinco anos. E já era
uma alma querendo vibrar, desejando ser um mundo. Foi quando senti o peso do primeiro
castigo. Eu era uma ansiedade, desejava. Desejo pequenino mas desejo. Na infância
nossos desejos precoces são faltas graves pra nossos pais. Não sei o quê desejei, não me
lembro bem porquê desejei. Sei apenas que minha mão conseguiu, pois foi o veículo de
minha primeira exigência, a ambição infantil de conseguir o primeiro brinquedo. E foi
quando minha mão, ante a hipótese do primeiro castigo, sentiu a primeira tortura, o
primeiro desgosto interior, teve a primeira sensação, uma súplica.
Na segunda vez, quando adolescente, mão de menino que se torna homem, foi pétala,
bondade. Eu tinha doze anos e tinha no coração, em vez dum turbilhão, o turbilhão que
envolve a primeira-idade, a fazendo chama, eu tinha quietude, paradisíaca alma estável,
demasiada sensatez de espírito, sobrenatural, talvez muito maior que a que tenho. Eu era
bom como pôde ser um menino que viveu ao lado do catecismo e do olhar egoísta da mãe
que põe num altar todos os gestos do filho. Eu tinha no coração um sentimento de piedade
e de doçura por todas as dores e torpezas do mundo, que já interpretava, compreendia,
pressentia. Foi quando entendi a extensão das agruras humanas, a diferença dos destinos,
quando encontrei o primeiro mendigo. Foi quando minha mão sentiu a primeira vaidade,
a primeira alegria, e teve a segunda sensação, uma esmola.

Na terceira vez, já era forte, nervosa, com intermitência de impulso, foi guante que
oprime, que faz curvar, martelo, chicote. Eu tinha dezoito anos. Foi quando senti no
coração a primeira revolta, o primeiro desabafo. Meu taciturno estilo-de-vida, em contato
com a brusca mocidade de meu tempo, não fora compreendida. E conheci, então, a
primeira brutalidade. Eu, quem era todo sonho e afeto, passei a ter dentro da alma o
dualismo que as ocasiões exigem. Fui realidade e teve em mim a primeira violência. Em
represália a um apodo, minha mão foi martelo, chicoteou, foi nervo exasperante, látego
vingador. E foi quando sentiu a primeira tragédia, o primeiro rancor, e teve a terceira
sensação, um insulto.

28
Estilicídio: Filete dágua pluvial caindo dos beirados, gotejar de líquido, coriza, defluxo.
https://dicionarium.com/estilic%C3%ADdio/ Nota do digitalizador

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Na quarta vez, não faz muito tempo, pois era como ainda é, foi mais que pétala, mais
que lágrima, amor. Eu tinha 22 anos. Sentia em minha vida, completamente aberta, a
realidade do sonho. Eu era um coração, mas noutro aspecto. Não era o mesmo coração da
súplica, da esmola mas do amor. Fui inteiramente, extraordinariamente, o amor. Subi até
ele na enervante tortura dum sofrimento suave porque foi de amor. Compreendi a beleza
da alma feminina quando é de fato alma feita à luz duma sinceridade, duma dor. Foi
quando sofri a dor de amar. E a minha mão se tornou divina porque viveu como expressão
humana, traduzindo minha alma. E conheci o amor, mas amor que vem atrás duma
batalha, em que o coração é quase tempestade de mágoa. Amor duas vezes enorme porque
sente e sofre. Então minha mão sentiu a primeira recompensa, a primeira delícia de viver,
o primeiro encanto, quando pousou carinhosamente no cabelo de ébano de minha noiva,
avara desse cabelo, feliz por os possuir sob os dedos longos. A quarta sensação foi um
afago.

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Sem nome
Minha amiga

E sta carta porta uma surpresa. Não que eu a faça por prazer ou a procure. É o acaso
que também a isso me obriga. Suponhas que eu, há tanto sobrecarregada de
cuidados e atrapalhada com a distribuição igual de meus afetos aos pequeninos
seres rosas da vida desabrochando ao mundo ingrato, esses pequeninos seres por quem
vivo, sofro e gozo e nutro todo o carinho maternal que só soem ter as criaturas que nelas
descobrem a reprodução da própria vida e de seu sangue, suponhas que hoje recebi um
enjeitado.
Pobrezinho. É um fruto do acaso, encantado produto duma loucura, talvez, cuja
existência os pais covardemente não souberam suportar.
Peço me auxiliar neste momento. Já nada posso fazer por ele, por esse enjeitadinho
infeliz, o que outrora fora capaz de fazer. Essa afeição que devo acalentar é toda pros
meus, pra minhas criaturas.
O achei. Um desses achados exquisitos e bizarros. É a mesma história sempre: A porta
da igreja a mesma confidente muda do desconsolo dessas cenas e guardiã fiel desses
abandonados.
Está aqui. Escrevas a mim. Digas que o queres, que o tomas sob tua proteção. Te
lembres que é filho do nada e ao nada voltará.
Se recusarmos o guiar, amanhã será um indesejável. Talvez pior. É tempo ainda. O
faças um homem. O leves contigo. O cries, eduques, sejas mãe ao menos na ilusão do ser
via afeto que nunca erra e nunca retrocede na razão-de-ser. Respondas que sim.
Não concebes minha ânsia. Vês que está em tuas mãos a construção duma vida que te
recompensará, com certeza, o sacrifício. O aceites. Amanhã será uma consciência que
viverá tua gratidão pro conforto de tua velhice. O aceites.
Lúcia

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Este porquê
de meu diário
Minha doce amiga

H oje, no fuscalvo da tarde que consola, estive pensando que uma mulher como tu,
na beirada da adolescência, não pode conceber o quanto de preocupação vai no
cérebro dum homem de minha idade, afeito à intensa atividade dum presente
que desvenda e amoldado à evocativa saudade a um proveitoso passado.
Um homem que lê Ingenieros,29 o superapurado moralista, tão profundo quanto o
mistério da alma humana.
Não imaginas quais lutas formidáveis de ambição, anseio, ideal inconformado, se
chocam, tempestuando, no restrito âmbito dum cérebro viril. Talvez, mais que as outras,
por tua especial finura de talento feminino, alcances uma distância mui apreciável no
entendimento da forma e da matéria. Mas mesmo assim estou certo de que no fundo não
posso ser compreendido. Se às vezes interrogo meus impulsos, o mistério da argila impura
que me originou como homem exemplar duma comunidade. Sem os compreender?! Este
porquê…
Como é possível a vida assim? Mesmo que o amor mais perfeito, na feição completa
de toda sinceridade preencha muitas lacunas, abale muitos impulsos, console muitos
anseios, fica sempre um vazio cujo recheio faz falta.
Sem essa solução, que daria a prova final do problema mas que sempre se prorroga,
na ilusão de felicidade alternada, ao ponto terminal da maior realidade, que é a morte, nos
vemos constrangidos a executar, penosamente, a dificílima tarefa de viver.
Aqui, peco, relativamente, um pouco. Não que seja dificílima a vida. Ela é difícil, na
superfície. O que nos é obscuro é o modo da entender a essência. O quê fazer? Abafar a
tortura da completa compreensão na ilusória ingenuidade das inconsciências. Eis o fato.
Quanto mais se souber sobre a vida, menos nos dará. A certeza da realidade é brutal
demais. Se necessita tanto ilusão e mentira quanto sobremesa pós-refeição. É questão de
requinte. Depende de como se quer viver.
Se eu pudesse conceber ao menos o que há além da morte, o que somos em nossa
contextura, qual a razão que nos integra o plasma, qual a causa dos porquês que nos
rodeiam e da inatingível compreensão do sofrer. Se eu pudesse conceber donde viemos,
qual o motivo elator30 dessa atividade que me anima e que mantemos desde a primeira
célula, sem saber como, suportarias com calma o imprevisto das surpresas das vinte e
quatro horas do dia. Mas…
Não podemos explicar, nem o que nos sugere este, mas…
Felizmente o maior consolo de toda mediocridade humana diante do absurdo de si é
ignorar o conjunto. Ainda acreditamos ter uma inteligência capaz de entender. Nessa
ilusão, nem a mais clara composição dum átomo entendemos. Pra tanto falta o senso
divino, que é um monopólio do Céu, sendo esse Céu o reino do criador invisível. Mesmo
porque esse senso não nos compete como criaturas servis da suprema onipotência.
O raciocínio religioso nos manda acreditar na existência dum Deus em toda parte, e,
mesmo que nos obstinemos ao contrário, nos manda uma consciência dentro de nós, mais
perto de nós que qualquer outra sugestão, e que nos segreda de modo mais misterioso que

29
Ingeniero (Engenheiro) Uma revista como esta. Nota do digitalizador
30
Elator: Elevador, eretor, que eleva. https://www.dicio.com.br/elator/ Nota do digitalizador

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todos os modos de fazer mistério, a verdade coesa tal como é, a única que sempre subsiste
inatingível: Deus existe.
Se não existisse, onde nosso prazer e desconsolo? Onde nosso mundo de preocupação,
futilidade, maravilha e impureza? Onde a razão colocaria a origem disso tudo?
E vemos que a mais perfeita reflexão nos leva infalivelmente em qualquer caminho,
à conclusão indiscutível de que algo de superior sustém as rédeas de nossa vida. Esse
superior que não vemos mas sentimos nos induz a compreender vagamente,
superficialmente, o pequenino detalhe de reticência que somos no fraseado do mundo.
É pra isso que temos uma razão acima dos irracionais e usufruímos o gozo de entender,
mesmo que só a quarta parte da metade, nosso porquê e o porquê das coisas.
Portanto não te molestes com os desagravos humanos, ingratidões. Na balança da vida
nem são taras secundárias. Bem analisados, nossos dissabores, ambições, conquistas,
ansiedades, não atingem a altura dum grão-de-areia no concerto dos monstruosos planetas
que são a poeira solta do espaço incognoscível, ignorando o infinito, suspensos por um
problema na impalpável vastidão do vácuo.
Eis. Às vezes dizemos, quando temos um sobressalto, que um vácuo nos abarca o
coração, que temos chumbo na cabeça. Mas o quê é esse vácuo que sentimos? Impossível
comparar sua mesquinha amplitude com o vácuo real das coisas todas!
Talvez eu te canse com estas considerações, talvez não. De qualquer maneira, deves
martelar bem que no mundo, diante de seus arcanos, de nossa força-de-vontade,
inteligência e ação, limitados sempre, a felicidade está onde a queremos criar, onde a
desejamos com nossa razão e onde a edificarmos com nossa tenacidade. Fica o conselho.
Adeus. Beijo as pontas fidalgas de teus dedinhos de maravilha.
Pra mim, por exemplo, eis a felicidade
Ivã

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Esse porquê
resposta a teu diário
Meu bom amigo

T ambém no fuscalvo31 duma tarde que envolve a penumbra de meu ser de saudade
e de delíquio na doçura de seu bojo, estive pensando em ti. Tua carta me acordou
de muitas indecisões. Meu sonho, que conheces e que é nosso sonho, arrebentou
o escudilho32 de suas asas com a surpresa do conceito que fizeste sobre o entendimento
feminino. Não e assim. Teu coração é de homem. Não sei se mentes. O das mulheres
nunca mente, ao menos pra nós. É mais difícil guardar uma paixão humana no cadinho
do coração, que a exterioriza pro vulgo, a ostentando. Os homens preferem isso. Nada
sentem. São broncas arestas ao léu-da-vida e simulam extrema, excepcional e elevada
sensibilidade. Por quê? Se soubessem que somos, mesmo dentro de toda altivez e
arrogância que nosso sexo acoberta, simplesmente o que querem que sejamos, então,
conseguiriam, do alto de seu raciocínio apurado, a maior conquista em nossa completa
submissão. Tudo depende de dirigir com inteligência o mecanismo delicado da máquina
fragilíssima que alenta nossa vaidade.
Ensinaste a mim a procurar a felicidade. Resta a achar. Onde? Estás longe de minha
alcova que amamos com nossos ímpetos. Está longe, contigo, essa felicidade que eu
acharia. Supõem os homens que nosso cérebro seja tão amplo quanto o deles e que sua
feitura poliforme abarca todos os ideais possíveis. Não. Só concentramos nossa
verdadeira ventura no restrito motivo da presença masculina. Fora disso sempre falta algo
que não existe. Há esta voz que nos segreda assombro e que anseia conosco na revolta
duma natureza que pede e suplica.
Achas consolo, até em minha ausência e gozas a ilusão de que sou presente pela
realidade de meus objetos contigo. Mas não posso. As mulheres exigem mais.
Querem tatear, sentir via gozo autêntico de sentir e não via gozo ilusório de evocar.
Achaste felicidade em beijar as pontas fidalgas de meus dedinhos de maravilha, por
tua carta, sem as ter de fato prà ânsia de teus lábios. Por mim, eu não teria completa essa
felicidade. Te quero palpável, tal qual és em corpo, mais em corpo que em alma, com a
viril bondade de teu gesto másculo, olhar dulçurino, boca sequiosa. Porque amo como
não chegas a conceber parque és homem. Quando amamos, amamos mais que os homens,
mais, muito mais… Somos labareda que se não extingue, desejo que se não abranda, ânsia
que se não sacia só com a certeza de poder possuir, e sim com a verdadeira posse, patente
na realidade vigorosa de existir. Ei! Se crês que eu não compreenda tua alma, mesmo na
barafunda dos ideais que suportas, que acalentas, que executas, te enganas. Alcanço mais
longe do que percebes. A medíocre equidade feminil tem exceção.
Não entendo como não entendes, o porquê do mundo exterior, mas… este porquê…
o porquê de nós, do meu, do teu, e deste amor que urdimos, não me é estranho. Me cala
fundo na alma o instinto de mulher que se desafoga duma opressão. Quero a vida te
querendo. Te quero como me quero e te desejo como me desejo.
Procuras a felicidade? Ensinas como a encontrar? Creio que não a achaste tão longe
de mim só na evocação de minha presença, como não a suporto assim irreal. É necessário
certeza de te sentir comigo, na autenticidade de meu corpo, que é a natureza, e de teu
vigor, que é vida. Venhas. Te aguardo em toda expressão de mim, no quanto pôde dar a
natureza humana.
Tua, com a ânsia imensa duma sinceridade que suplica.

31
Fuscalvo: contraste claro-escuro. https://www.dicio.com.br/fuscalvo/ Nota do digitalizador
32
Escudilho: (botânica) Receptáculo nos liquens. https://www.dicio.com.br/escudilho/ Nota do digitalizador

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Alma

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Um destino no tempo
psicologia dum vencedor
a Agenor Barbosa

F ora um indeciso. Toda sua vida passara titubeando. Sim? Não? Hoje? Amanhã? A
seqüência das coisas passou sobre a experiência da própria vida. E o tempo lhe
valeu. Acordes, nesta hora, um vigor de gigante que o agita e o mantém no
equilíbrio estável das certezas. Tem como broquel de sua estrutura de atleta da arte uma
vontade… sobre vontade, uma firmeza real de estar puro.
A parte inicial de seu destino fora uma incoerência, desequilíbrio de caráter que
desaproveita a moral da vida. E vivera. Passara pruns como cinza inútil, proutros como
fagulha que espera. E a evolução gradativa do tempo, martelador pertinaz, nababo da
longevidade, decidiu, como mestre que e, dirigente do fim de todos os princípios. A
incoerência desse destino, firmado e feito na base movediça duma ambigüidade, revelou
a coerência de si. É a forma mais perfeita de surpresa, figura mais exata de transformismo
possível e molde mais bem contorneado de purificação.
Amou. Sentiu o amor sob todas as formas, via os prismas do impossível e as
figurações do possível. O sorveu como quem sorve e suga toda a realidade do sentir. O
plasmou, insaciável, em toda a possibilidade humana de conseguir. Vivera. Na aparência
foi vencedor, glória do coração, apologista do sentido. Na realidade era um vencido,
disseminador de todas as paixões que nasciam e que desfrutava sem saber as conter.
E se mais continuasse, a vida o arrebataria. Tudo lhe era vitória nesse terreno, tudo
era sorriso. Mas dentro desse imenso cabedal de inconsciência não notava que esse tudo
era apenas a facilidade do acaso, criando a derrocada de seu pensar e da força-de-ação. O
que pensava vitória era apenas mascarada derrota. O amor, pelo misto de modos como o
sentia e desfrutava, era um sonho malsão que congestiona, turbilhona a estabilidade e
arrefece a calmaria sem atingir na aparência mas calando fundo na realidade.
De repente sentiu no âmago, no recesso íntimo do que é mais humano num homem, a
razão uma revolta súbita, um estalo imprevisto dalgo se espedaçando, um arrebentar
silencioso de fibra em letargia, um abafado acordar de vigor novo. Todo o cérebro passou
a tatalar a transição que medeia ato e pensamento, pensamento e ação.
Pouco-a-pouco era todo fagulha, repente de ímpeto. O cérebro, antes escravo do
coração, passou a ser o magno fator de todas suas concepções. Antes, qualquer decisão o
amesquinharia se o coração não o consentisse. Era um sugestionado. Agora o coração
valia menos que uma hipótese. A razão-de-viver via raciocínio de absoluta retidão
sufocava, hoje um pouco mais, amanhã um pouco menos, o impulso de seu antigo
sentimentalismo.
E compreendia o quilate da desproporção na qual vivera, a altura onde fora vencido.
E bastaria isso. A só compreensão de o quanto se é vencido é suficiente pra mostrar aonde
pôde chegar o vencedor. E isso o estimulava. O amor, como o sentira, passou a ser coisa
secundária. O coração, antes o nervo propulsor de sua inteira vida, se tornou, mais rápido
do que suporia, o vassalo direto das células máximas de sua intelectualidade. E vencia.
Pouco-a-pouco menosprezava todos os arroubos, todos os surtos imprudentes e falhos
de premeditação observada, que seriam consolos momentos antes, que pareciam vitória
época atrás. E todo esse idealismo que gozara com alma de poeta neutralizava implacável
em sua moderna forma de agir, na realidade do sim e do não, do ser e do não-ser, pondo
o fiel-da-balança ao meio desses dois níveis. Nada lhe era tomado a extremo:
Decisivamente não sim nem não, não fim nem princípio. O meio-termo era a vitória,
equilíbrio, perfeição. O meio-termo era não bondade nem maldade, não certeza nem

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indecisão, não pureza nem mácula. Era um pouco disto e um pouco daquilo, combinação
parcelada e congruente do baixo e do alto, do possível e do impossível, do racional e do
selvagem.
Anteriormente essa concepção seria tortura sobre tortura, imensa dificuldade, porque
era um sugestionado do coração. Agora não. Agora o induzia a viver facilmente na razão
direta de seu pensar. O vigor vinha de cima. As decisões passaram a ser premeditadas,
medidas, pensadas. Nada de ímpeto inútil, nada de fogo-de-palha, nada de entusiasmo-
de-ocasião. Não praticava convenção, preconceito, etiqueta. Era a calma dentro da calma.
O que fazia, partia somente de si, mas via cerebral, via razão humana de se ter homem na
suprema apuração da inteligência, nunca via vítor33 do coração. Esse relógio, pêndulo de
sangue que guiara sua vida, que o açambarcara quase completamente, quase o tornando
um homem-coração, passou a marcar seu compasso pra outrem. Agora repete as horas
que o cérebro ditava.
E tudo decidia, assim, com o quase conhecimento do resultado. Nunca firmava uma
base sem conhecer a cumeeira do edifício. Nunca levantava uma coluna de sonho sem já
saber o valor do capital. Não tinha rompante vulgar. Não admitia bravata momentânea,
não encenava.
Não que se deva ter amor louco. Não que se deva ter nenhum. Nada disso. Sempre um
meio-termo que equilibre. Um pouco de loucura, um pouco de razão dentro dum cérebro
de inteligência e de molde capaz de conter o antagonismo dessas duas formas de força.
Cada vez mais vencia. Conseguindo essa perfeição, ria do vulgo que o rodeava e que
pensava como a equidade: Sim ou não. Esse vulgo, que não atingia com seu parco
cabedal-de-razão esse fiel-da-balança que aprendera a conhecer na integridade, a vida.
No geral, o que se conhece é este ou aquele prato, se está aqui ou ali, este ou aquele
terreno. Nunca os dois ao mesmo tempo. Nunca a combinação das duas matérias, das
duas forças, o que seria, a meta atingida, o magno apuro duma concepção. Isso sentia,
tinha essa satisfação.
Quando a hipótese chegasse à realidade, alcançaria o fim. Dali mais nada. Teria
concluído. Dali só ao que é divino. Então sobreviria a derrocada, porque até lá, na
condição de homem, nunca dominaria. Mas o que tinha de humano já bastava. Era a
suprema perfeição. E prà Terra, seu planeta, era o bastante.
Aquele amor que sentira como louco, passou ao sentir como sábio. E um sábio amando
era a realização do mais interessante paradoxo. Que de coisas esse sentimento conseguia
sendo utilizado pôr um sábio!
Não só o sentimento do amor. Imaginemos todos nossos sentimentos, todas nossas
paixões, todos nossos egoísmos hauridos e exauridos assim. O sentimento do amor-
próprio, por exemplo, da revolta íntima que nos cala um insulto. O pagamento habitual é
outro insulto, é a ridícula palhaçada duma cena à buridã.34 E isso, qualquer que seja o
lugar, a pessoa e o insulto. Qual é o resultado? Desaproveitamentos que sempre
congestionam mais, que baralham mais a confusão. O quê havia? Na aparência tudo. Na
verdade nada. Nossas dignidades são convenções. O quê fica? Na verdade nada. Na
aparência uma bravata efêmera que tem o valor real dum zero num segundo.

33
Vítor: Voz de animação ou de felicitação ao vencedor, interjeição designativa de satisfação comum do século 16 a diante na
literatura castelhana e portuguesa. https://dicionarium.com/v%C3%ADtor/ Nota do digitalizador
34
O asno de buridã é um paradoxo filosófico sobre o conceito de livre-arbítrio. Se refere a uma situação hipotética em que um asno
é colocado à mesma distância dum fardo de palha e um recipiente com água. Como o paradoxo assume que o asno irá sempre ao mais
perto, morrerá de sede e de fome, pois não pode tomar decisão racional sobre escolher uma hipótese. O paradoxo tem esse nome
devido ao filósofo francês do século 14, Jean Buridan, quem satirizou o determinismo moral. Filósofo ocamista, ensinava o
determinismo psicológico de que o homem quer necessariamente o bem que parece o melhor. Fernando van Steenberghen e Artur
Schopenhauer afirmaram que tal exemplo inexiste nas obras de Buridã mas que pode provir do ensino oral ou então foi inventado por
adversários pra ridicularizar a doutrina. Em sua obra Sobre o Céu, Aristóteles se referiu ao paradoxo.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Asno_de_Buridan Nota do digitalizador

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Então quem é o vencedor? Quem se revolta na desolada impotência de não se conter,
ou o quem recalca dum vigor imenso o impulso dessa explosão? Quem domina a outrem,
mais fraco ou mais forte, ou quem, atingindo e descobrindo prematuramente o falso
resultado possível, domina a si, que é o maior passo prà razão humana? O que rebenta a
eclosão de todo seu sentir, num desafogo incontido, ou o que evita com assombrosa
perspicácia uma derrocada ocasional que atrasaria? A razão responde. Sua capacidade
basta. Quem conseguiu a aquilatar inteira compreenderá também qual a maior vitória:
Esta ou aquela. A que se cala heróica, entendendo a fraqueza da humanidade dentro de
sua natural psicologia, ou a que esbraveja desabridamente, impulsionada pela fraqueza
duma força, que só é força na casca, na exterioridade.

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Quem é rainha Mab


Rainha Mab, ou rainha Má?, é a rainha das fadas. Segundo a lenda foi quem ensinou
magia ao mago Merlim. Rainha das fadas da antiga religião celta, quem junto a sua irmã,
a dama do lago, faz parte da velha tradição céltica. Se comenta que é quem induz sonho
pra dar esperança e felicidade. Seu véu azul tem efeito balsâmico cobrindo o rosto do
homem que sofre, segundo um trecho do poema de Rubén Darío, aliviando a dor e dando
alegria e esperança. Capaz de revelar o passado, presente e futuro, trança as crinas dos
cavalos e dos elfos, e furta bebê em lar humano deixando duende antropomorfo no lugar.
Mab foi magistralmente descrita no discurso que Mercúcio proferiu na peça de
Xeiquespir Romeu e Julieta. É bom saber que o discurso sobre Mab é motivo de amplo
estudo dos especialistas em Xeiquespir e um rito-de-passagem pros estudantes da matéria,
pois o discurso é cheio de simbolismo e imagem alegórica, apesar de que em entretida
leitura possa parecer que pouco contribui ao desenvolvimento da peça. Não sei se é
conveniente dizer que Mab, também é gíria pra prostituta, que não é boa quando está de
mau-humor, pois atazana a cabeça das mulheres que sonham com beijo, e sua imagem
tem apelo sexual, embora seja pequenininha, como é mostrada nos desenhos-animados e
na possível interpretação sobre a fala de Romeu quando confidenciou ao amigo: Ontem
tive um sonho febril.
Tem interpretação que diz que o sonho é induzido por droga quando Romeu disse:
Paz!, Mercúcio. Romeu: Tive um sonho nesta noite. Mercúcio: Eu também.
Romeu: Sobre o quê? Mercúcio: Sonho alguma verdade tem. Romeu: Quando
dormimos tudo cabe neles. Mercúcio: Rainha Mab te visitou. Benvólio: Quem é
rainha Mab? Mercúcio:
— É a parteira das fadas, de menor estatura que a duma pedra-preciosa no dedo
indicador de dignitário. Viaja sempre puxada por parelha de anões, que pousa de través
no nariz dos adormecidos. As longas pernas das aranhas servem de raios pràs rodas. A
capota é de asa de gafanhoto. As rédeas, das mais sutis teias-de-aranha. O arreio de
úmidos raios-de-luar. O cabo do chicote é um pé de grilo. O açoite simples filamento de
grilo. De cocheiro lhe serve um mosquitinho cinzento que não chega à metade do
carrapato chupando o dedão duma criada. O carrinho de casca de avelã vazia feito por
esquilo ou coró, que desde tempo imemorial mantêm o posto de fabricante de carruagem
pra todas as fadas. Assim posta, noite após noite galopa no cérebro dos amantes, quem
então sonham com coisas amorosas; nos joelhos dos cortesãos, quem com salamaleque
sonhando passam logo; nos dedos dos advogados, quem começam sonhando com
honorário; nos belos lábios das jovens, quem logo sonham com beijo. Lábios que Mab,
irritada, às vezes deixa cheios de pústula por ter o hálito estragado por doce. Às vezes
corre encima do nariz dum palaciano, quem em sonho logo fareja um gordo processo.
Com o rabinho enrolado dum pequeno leitão natalino faz cócega no nariz do vigário
adormecido, quem logo sonha com mais um presente. Galopa na nuca dum soldado, quem
sonha com corte de pescoço, cilada, trincheira, lâmina-da-espanha e copázios de 11m de
altura bebidos à saúde. Mas de repente estoura no ouvido dele, quem estremece e desperta.
Então, apavorado, reza uma ou duas vezes e recomeça a dormir. É quem deixa a crina dos
cavalos enredada na noite, e a cabeleira grácil dos elfos em sórdida melena que,
destrançada, augura mau evento. É a bruxa, quem, estando as moças de costas, pressiona
o peito delas, as ensinando a agüentar o peso dos maridos. É ainda...
Romeu: Paz!, Mercúcio.
Extraído de Xeiquespir, Romeu & Julieta
Mercúcio, em Romeu e Julieta, ato 1, cena 4
https://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/romeuejulieta.pdf

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Errata do livro Romeu & Julieta em pdf
Dicionário inglês-português Barsa 1974
Viaja sempre puxada por parelha de átomos  Viaja sempre puxada por
parelha de anões. Atomy: física Átomo; partícula; pigmeu
Os colares, das mais sutis teias-de-aranha.  As rédeas, das mais sutis
teias-de-aranha. Collar: Colarinho; gola; colar (também mecânica); coleira; coalheira
(arreio). -to slip the collar, escapar, se desenredar. II verbo transitivo pôr gola, colarinho
ou coleira em; pegar a gola ou coleira; capturar; coloquial amarrar (com conversa)

Notas e referências
Rainha Mab, um poema filosófico, com nota (La reine Mab, un poème philosophique,
avec des notes), publicada em 1813 em 9 cantos com 17 notas. Foi a primeira grande obra
poética publicada por Percy Bysshe Shelley (1792–1822), poeta romântico inglês,
apresentando uma fada das lendas medievais britânicas, rainha Mab.
Mark Sandy, universidade de Durão, Queen Mab. The literary encyclopedia, The
literary dictionary company, 20.09.2002
Acessado em 30.11.2007

Rainha Mab é uma fada referida na peça Romeu e Julieta, de Xeiquespir, onde é a
parteira das fadas. Mais tarde apareceu noutras poesias e literatura e em várias formas de
teatro e cinema. Na peça sua atividade é descrita num famoso discurso de Mercúcio,
publicado originalmente em prosa e muitas vezes adaptado em pentâmetro iâmbico, no
qual é descrita como uma criatura pequenina que faz travessuras na meia-noite contra
dorminhoco. Sendo conduzida por uma grupo de anões, monta sua carruagem sobre o
nariz e entrega as fantasias de homens adormecidos. Também é descrita como parteira
que ajuda os adormecidos a parir seu sonho. Pode ser uma figura tirada do folclore.35 O
historiador Thomas Keightley sugeriu uma conexão com Habúndia,36 uma origem mais
provável pra seu nome seria de Mabel, o derivado do inglês médio mabily, como usado
por Chaucer, tudo do latim amabilis, adorável.
Outras referências literárias
Depois de sua primeira referência literária, até onde podemos dizer examinando a
literatura sobrevivente, em Romeu e Julieta, apareceu em obras de poesia do século 17,
notadamente em O entretenimento em Altorpe (The entertainment at Althorp), de Ben
Jonson, e Ninfídia, de Michael Drayton. Na obra de Poole, Parnassus, é descrita como a
rainha das fadas e consorte de Oberão, imperador das fadas.
Rainha Mab (Queen Mab), pantomima do ator Henry Woodward, 1750
Apareceu no romance Razão e sensibilidade (Sense and sensibility), de Jane Austen.
O cavalo que Willoughboy deu a Mariana se chama Rainha Mab. Quando Mariana
recusou o presente Mab disse: Quando deixares Barton pra formar o próprio
estabelecimento num lar mais duradouro rainha Mab te receberá. (Volume 1,
capítulo 12).
Rainha Mab: Um poema filosófico (Queen Mab: A philosophical poem), 1813, é o
título da primeira grande obra poética escrita pelo famoso poeta romântico inglês Percy
Bysshe Shelley (1792–1822).

35
Mab pode ser uma figura tirada do folclore mas pode não ser. Como Lorelai (Lorelei), a sereia do Reno, que muitos pensam ser
uma lenda antiga, na verdade é criação do poeta alemão Clemente von Brentano. Nota do digitalizador
36
Habúndia ou Habôndia (Habundia ou Habondia em inglês): A rainha das bruxas, presidindo o sabá. Também foi identificada a
Diana ou a Herodias. Referida como Habonde no poema do século 13 Le roman de la rose (O romance da rosa). Em Tableau de
l’inconstance des mauvais anges (Descrição da inconstância dos anjos maus), 1612, o demonologista Pierre de Lancre se referiu a
Habúndia de forma mui abrangente como rainha das fadas, bruxas, harpias, fúrias e espectros maléficos.
https://www.encyclopedia.com/science/encyclopedias-almanacs-transcripts-and-maps/habondia-or-habundia Nota do digitalizador

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O épico romance ianque Moby Dick, 1851, de Herman Melville, inclui um capítulo
intitulado Rainha Mab, e descreve um sonho de Stubb, o segundo-imediato de capitão
Ahab.
Em O passarinho branco (The little white bird), 1902, de JM Barrie, rainha Mab vive
em Kensington Gardens e concede a Pedro Pã, quem descobriu que é um menino, portanto
não podendo mais voar, o desejo de voar novamente.
O filósofo ianque George Santayana escreveu uma pecinha intitulada Rainha Mab
(Queen Mab), que apareceu em seu livro de 1922 Solilóquios na Inglaterra e outros
solilóquios (Soliloquies in England and later soliloquies). Esse solilóquio em particular
considera a literatura inglesa forma indireta de autoexpressão na qual o escritor inglês
sonhará com o que rainha Mab faz outras pessoas sonhar, em vez de revelar a si.
É invocada nos romances de Elizabeth Goudge, onde descreveu pequenas coisas,
baseadas numa coleção de pequenos objetos reunidos por um parente e legados a Goudge,
como pequenos jogos-de-chá e gnomos em miniatura e uma pequena escultura rainha
Mab na carruagem, Uma cidade de sinos (A city of bells) e O cheiro dágua (The scent of
water).
Na série Os arquivos de Dresde (The Dresden files), de Jim Butcher, rainha Mab da
corte invernal, também conhecida como a rainha do ar e da escuridão, é personagem
recorrente importante com motivos misteriosos. Governante dos unseelie sidhe,37 Mab
vive num escuro castelo de gelo localizado nos mundos feéricos de Nunca-Jamais e
geralmente é considerada incrivelmente cruel, fria e feitora de pactos inquebráveis.
É a rainha da corte Unseelie na série A fada de ferro (The iron fey),38 de Julie Kagawa
É uma das três antigas rainhas fae, irmã de Maeve e Mora, na série O trono de vidro
(Throne of glass), de Sarah J Maas
É uma personagem coadjuvante recorrente na série de estória-em-quadrinho Garoto-
do-Inferno (Hellboy). É retratada como a rainha das fadas irlandesas conhecidas como
Tuatha dé Danann, casada com Dagda. Apesar de assistir Hellboy durante grande parte
da vida dele, se encontram apenas uma vez, em Garoto-do-Inferno: A caçada selvagem
(Hellboy: The wild hunt).
Apareceu como dona Mabb na história Dona Mabb (Mrs. Mabb) de Susanna Clarke,
em As damas de Grace Adieu e outras histórias (The ladies of Grace Adieu and other
stories) roubando o afeto de Reinaldo, parecido a capitão Raposo, da heroína Veneza
Moore, que deveu então o resgatar do cativeiro.
Apareceu brevemente na série de estória-em-quadrinho de Neil Gaiman, O homem da
areia (The sandman’s). Instrui sua cortesã, a fada Cluracã, a interferir nalguns assuntos
políticos mortais que não seriam apropriados pruma fada.
No livro de Stephen & Owen King, Belas adormecidas (Sleeping beauties), sob o
pseudônimo Evie Black, a principal antagonista do livro afirmou ser quem foi citada no
discurso sobre rainha Mab por Mercúcio em Romeu e Julieta.

37
Quando Condla, conhecido como Ruadh (Ruivo), estava com seu pai n cimo do monte Usnech, no Meath, se aproximou uma mulher
em traje estranho, a quem interrogou: Venho do país dos vivos, onde não se conhece morte nem pecado, estamos
permanentemente em festa e praticamos todas as virtudes sem desacordo. Moramos num grande outeiro (sid). Dali
nosso nome aes sid (povo dos outeiros). ● Na nota 30, ao vocábulo sid: O país dos outeiros seria o México, onde os morros, ou
túmulos, são a dezenas de milhares. O nome aes sid recorda o povo asa dos outeiros, do país da grande Irlanda (ou país dos homens
brancos), colônia gaélica que as sagas islandesas situavam no norte da Vinlândia, pátria setentrional de Estados-Unidos: A península
a sul do estuário do rio São Lourenço (Nova Brunsuíque e baixo Canadá). Robert Charroux, O livro do misterioso desconhecido (Le
livre du mystérieux inconnu), capítulo 6, A civilização dos celtas é a mãe de todas as civilizações, página 88. Nota do digitalizador
38
[…] Conforme dizia, onde ficou invisível foi achado e atacado pelos subterrâneos. Se conta que os não vistos ou não
purificados, chamados fey ou condenados, foram transpassados ou feridos pelas armas daquela aldeia, o que os faz se
comportar de modo mui diferente do usual, provocando ação repentina, apesar da causa ser perceptível então. Robert
Kirk, La comunidad secreta de los elfos, faunos y hadas (The secret commonwealth of elves, fauns and fairies), ediciones Obelisco,
1ª edição, 10.2017, capítulo De los habitantes subterráneos, página 82. Nota do digitalizador

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No conto de Andrzej Sapkowski, (A tarde dourada) Złote popołudnie, que é uma
recontagem pós-moderna de Aventuras de Alice no país das maravilhas, se revela que a
rainha de Copa é rainha Mab.
No romance de Kate Quinn, O código rosa (The rose code), 2021, que gira em torno
de Bletchley Park durante a segunda guerra mundial, uma das três personagens principais,
Mabel Churt, se apelidou Mab depois de ler o discurso de Mercúcio em Romeu e Julieta.
https://en.wikipedia.org/wiki/Queen_Mab

Traquinagens, como trançar crina de cavalo, jogar terra à panela cozinhando, trocar
coisas de lugar, etc, são típicas do Saci-Pererê, assombração brasileira. No clássico
vampiro da Europa oriental há casos de vampiro que faz essas traquinagens.
Em Operação Cavalo-de-tróia, de John Alva Keel, capítulo 3, O mundo da ilusão,
página 47 no original em inglês:
O fenômeno [ufo] é sobretudo invisível porque consiste em energia em vez
de matéria sólida terráquea. É guiado por uma grande inteligência e se concentra
nas áreas de falha magnética ao longo da história. Se torna visível pra nós de
vez-em-quando, manipulando padrões de freqüência. Pode tomar qualquer
forma que desejar, de avião a gigantesca nave espacial cilíndrica. Pode se
manifestar como entidades aparentemente vivas que vão desde anões verdes
até espetaculares ciclopes. Mas nenhuma destas configurações é a verdadeira
forma.
Os dados de avistagem de ufos confirmam essa teoria mas falta a necessária
tecnologia pra o provar de forma conclusiva
Entidades que se manifestam via desdobramento, com a propriedade de ideoplastia
(assumir a forma desejada) é a dos assombros em geral: Lobisomem, visitante-a-
dormitório, etc. Todos são vampiros.
O desdobramento é uma estruturação magnética complexa de exteriorização da
consciência. Parece que os ufos o usam implementado por tecnologia.
Em Jacques Marcireau, em Ritos estranhos no mundo, a conclusão:
Os seres psíquicos, que aparecem em todas as tradições religiosas e em
todos os folclores, temíveis ou benéficos, anjos ou demônios, deuses ou diabos,
espíritos ou larvas, são os vampiros

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Manoel Victor

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