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CHOPIN OU O TORMENTO DO IDEAL

Texto: Philippe Etesse


Tradução: Nathalia Timberg

Monólogo para um ator/atriz e um(a) pianista.


No cenário, uma poltrona sobre um tapete e, ao lado, um piano.

As luzes se acendem enquanto se toca a Balada op. 23, nº 1, em Sol menor (até final do
primeiro tema).

Naquela segunda-feira, às oito da noite, os salões do senhor Pleyel estavam extremamente


bem iluminados. Numerosas carruagens deixavam incessantemente, ao pé de uma escada
coberta por tapetes e perfumada de flores, as mulheres mais elegantes, os artistas mais
célebres, os financistas mais ricos, os grãos-senhores mais ilustres, toda uma elite da
sociedade, toda uma aristocracia de berço, de fortuna, de talento e beleza. Um grande
piano de cauda estava aberto em cima de um estrado. Ambicionavam-se os lugares mais
próximos. Por antecipação, tendia-se o ouvido. Buscava-se o entendimento ou achava-se
que nenhum acorde deveria ser perdido, uma nota, uma intenção, um pensamento daquele
que viria a sentar-se ali. E era justo estar-se assim: ávido, atento, religiosamente
comovido. Pois aquele que era esperado, aquele que se queria ver ou ouvir, admirar,
aplaudir, não era apenas um hábil virtuoso, um pianista exímio na arte de fazer notas. Não
era apenas um pianista de grande nomeada. Era tudo isso, mas era mais do que isso. Era
Chopin.

Prelúdio op. 28, nº 17, em Lá Bemol Maior.

“A quem tu amas mais, homem enigmático?”, diz.


“Teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?”.
Eu não tenho nem pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
“Teus amigos?”
Faz uso de uma palavra cujo sentido até hoje me é desconhecido.
“Tua pátria?”
Ignoro em que latitude se situa.
“A beleza?”
Eu a amaria de bom grado, deusa e imortal.
“O ouro?”
Eu odeio, como você odeia Deus.
“Ora, a quem amas então, extraordinário estrangeiro?”
Amo as nuvens. As nuvens que passam lá longe. Lá. As maravilhosas nuvens.

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Noturno op. 27, nº 2, em Ré Bemol Maior. Primeira metade.

Tendo chegado à França, há 10 anos mais ou menos, Chopin, em meio à quantidade de


pianistas que afluiu de toda a parte, não precisou lutar pela conquista de um primeiro ou
segundo lugar. Pouco se apresentou em público. A natureza eminentemente poética de
seu talento não o levava a isso. Como essas flores que só à noite abrem seus perfumados
cálices, ele precisava de uma atmosfera de paz e recolhimento para dar livre curso aos
tesouros de melodia que o habitavam. A música era sua língua, língua divina na qual
expressava toda uma ordem de sentimentos que somente uns poucos podiam entender.

Noturno op. 27 nº 2 em Ré Bemol Maior. Segunda metade até o final.

Ele é uma alma que volto a encontrar com a mesma paz de espírito de minhas conversas
com os mortos e de minha expectativa desse mundo melhor em que devemos nos
encontrar no esplendor de uma luz mais viva e mais divina do que esta da Terra. Estou
falando de Frédéric Chopin, que foi o hóspede dos últimos 8 anos de minha vida de retiro
em Noale, no tempo da monarquia. Eu tinha escolhido Mallorca, dando fé a pessoas que
acreditavam conhecer bem o clima e os recursos da região e que não os conheciam nem
um pouco. Logo que chegou, o inverno declarou-se de uma hora para outra, com chuvas
torrenciais. Chopin estava num momento de saúde que tranquilizava todo mundo. Mesmo
assim, roguei que consultasse suas reservas morais, uma vez que há anos sempre o
aterrorizava a ideia de deixar Paris, seu médico, suas relações, seu apartamento, até
mesmo seu piano. Ele era o homem dos hábitos imperiosos. Qualquer mudança era um
acontecimento terrível em sua vida. Chopin apresentou subitamente todos os sintomas da
afecção pulmonar. Nós tínhamos descoberto um monastério abandonado com uma parte
em ruínas, um lugar saudável e dos mais pitorescos. Pela manhã, eu dava aula pelas
crianças. Elas passavam o resto do dia correndo por aí enquanto eu trabalhava e, à noite,
corríamos juntos pelas galerias do claustro à luz da lua, ou ficávamos lendo dentro das
celas. O pobre grande artista era um doente difícil. Desestruturou-se por completo. Se,
por um lado, enfrentava com bastante coragem o sofrimento, não conseguia vencer o
desassossego da imaginação. Aquele claustro para ele estava repleto de terrores e
fantasmas. Ao voltar com meus filhos de minhas explorações noturnas pelas ruínas, eu o
encontrava às dez horas da noite pálido em frente ao piano. Os olhos esgazeados, o cabelo
em pé. Precisava de alguns instantes para nos reconhecer, então fazia um esforço para rir
e nos tocava coisas sublimes que tinha acabado de compor. Melhor dizendo: ideias
terríveis, dilacerantes, que tinham se apossado dele sem que o soubesse, nessa hora de
solidão, de tristeza e de terror. Foi lá que ele compôs as mais belas dessas páginas curtas
que, modestamente, intitulava prelúdios. São obras primas.

Prelúdio op. 28, nº 18, em Fá menor.

Alguns nos trazem à mente visões de frades já desencarnados e o ressoar dos cantos
fúnebres que o assediavam. Outros são melancólicos e suaves, vinham-lhe nas horas de
sol e de saúde, no riso das crianças embaixo das janelas, no som longínquo das guitarras,

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no canto dos pássaros sobre a rapagem úmida, na visão de pequeninas rosas pálidas
desabrochadas por sobre a neve. Outros ainda são de uma tristeza morna, que ao encantar
o ouvido, nos dilaceram o coração. Tem um que lhe veio na noite de uma chuva lúgubre,
que deixa na alma um terrível abatimento. Nesta noite, nós (meu filho e eu) o tínhamos
deixado passando bem. Fomos até Palma comprar coisas necessárias ao nosso
acampamento. Caiu a chuva. Os córregos transbordaram. Chegamos noite fechada,
descalços, atravessando perigos incríveis. Vimos rápido, em vista da inquietação do nosso
doente. Esta fora sem dúvida muito intensa. Mas tinha se fixado numa espécie de
desesperança tranquila. E ele tocava seu admirável prelúdio aos prantos.

Prelúdio op. 28, nº 15, em Ré Bemol Maior.

Tivera às vezes ideias alegres e redondinhas em sua juventude. Fez canções polonesas e
romanzas inéditas de encantadora simplicidade e adorável doçura. Algumas de suas
composições mais tardias nos parecem até hoje fonte de cristal onde se reflete o sol claro.
Mas como são raros e curtos esses caulos êxtases de sua contemplação. O canto da
galandra no céu, o deslizar macio do cisne sobre as águas imóveis são para ele como
lampejos de beleza em meio à serenidade. Agora, o grito queixoso e faminto da águia nos
penhascos de Mallorca, o silvar amargo do vento e a morna desolação dos teixos cobertos
de neve o entristeciam mais e por mais tempo do que o alegrava o perfume das laranjeiras,
a graça dos pâmpanos e a cantilena moura dos lavradores. Só existe uma voz em toda a
natureza que lembra esses sons divinos: era o silêncio das noites, essa nota triste do
rouxinol, essa queixa melodiosa repetida muitas vezes que precede a explosão na
ramagem... Não importa. De pouco adianta ouvir Chopin uma noite inteira. A existência
parece insossa no outro dia. O ideal desencoraja da vida real. É imprudente respirar os
perfumes celestiais quando nos esforçamos por viver razoável e resignadamente na Terra.

Música [não consegui identificar qual pela gravação].

(Texto durante a música)


Quando se perde em mau acaso todo o sorriso, toda a certeza,
Ao melancólico sol que fica
Está na música e na beleza
Mas favorece e faz contigo um rosto amigo
Que alguém armado
Nada melhor quando se ouve canto suave outrora amado.

Fim da música.

Eu sou tenebroso. Um viúvo. O inconsolado príncipe da Quitânia em triste rebeldia. É


morta minha estrela. E no meu constelado alaúde ao negror, sol da melancolia. Na noite
tumular em que me hás consolado, o Posillipo, a Itália, o mar, a onda bravia, dá-me outra
vez. E dá-me a flor do meu agrado e a ramada em que a rosa ao pâmpano se alia. Sou
Byron, Lusinian, Febo, Amor. Adivinha? As faces me esbraseia o beijo da rainha. Cismo

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e sonho na gruta em que a sereia nada. Duas vezes o Aqueronte – é o grande feito –
transpus, a modular nesta lira de Orfeu os suspiros da santa e os clamores da fada.

Mazurka op. 17, nº 4, em Lá menor.

Tenho acessos de raiva. Continuo sem me mexer. Não tenho força o bastante para marcar
a data da minha partida. Tenho o pressentimento de que, se deixar Varsóvia, nunca mais
verei minha casa. Imagino que estou indo embora para morrer. Ah... mas é triste dizer
isso. De não se morrer onde sempre se viveu. Não seria horrível para mim ver junto ao
meu leito de morte um médico, um criado, um diferente, ao invés dos meus entes
queridos? Limito-me a percorrer as ruas mergulhado em minha tristeza. Depois eu volto.
Mas para quê? Para perseguir minhas quimeras? O homem raramente é feliz. Se não lhe
são destinadas mais do que curtas horas de felicidade, por que renunciaria às suas ilusões,
que são, elas também, fugidias?

Prelúdio op. 28, nº 4, em Mi menor.

Já é Natal e eis-me aqui, em Viena. Tenho a impressão de estar sonhando, de ainda estar
aí com vocês... Essas vozes que escuto e que meu ouvido não está acostumado me fazem
o efeito de matracas. Hoje para mim tanto faz. Por que estou abandonado? Por que não
fiquei com vocês, assumindo a minha parte do perigo? A lembrança de um tempo feliz é
a pior das desgraças num dia de infortúnio. Como posso viver como gostaria? Sou o ser
mais indeciso da Terra. Todos esses jantares, noitadas, concertos, bailes, me enchem de
tédio. Estou farto de tudo isso! Não posso fazer o que eu quero, tenho que me vestir, me
embonecar, me calçar, me pentear, aparentar o homem tranquilo nos salões para depois
voltar para casa e descontar no piano. Eu tenho que me mostrar cortês com todo mundo,
não tenho confidente. Sinto mais do que nunca uma necessidade imperiosa de ir embora.
Meu pai me anima a fazê-lo. Mas para ir aonde? Seria a França, a Inglaterra, a Alemanha?
Não fossem as revoluções em Roma, Milão, Bolonha, bem que eu escolheria a Itália. Seja
como for, com toda a certeza o que eu tenho que fazer é sair de Viena, onde eu não
encontro nada que eu possa amar. Acho que finalmente eu vou me decidir por Londres.
Talvez faça uma parada em Paris.

Valsa op. 69, nº 2, em Si menor. Primeiro tema.

Depois de Viena, Salzburg, Munique, eis-me agora em Stuttgart. Tudo que eu pude ver
até aqui no estrangeiro me parece velho, insuportável. Só faz aumentar a falta que eu sinto
do meu país, da minha família, dessas horas abençoadas que então eu não sabia apreciar.
Essa cama em que eu vou me deitar talvez tenha servido de leito de morte para mais de
um. No entanto, não lhe parece repugnante.

Valsa op. 69, nº 2, em Si menor. Segundo tema.

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Hoje, 8 de setembro. Acabo de saber que Varsóvia capitou. Os burgos foram destruídos,
capitulados. Meus amigos estão na mão desses canalhas! Meu Deus... Vós existis? Vós
existis, mas não vingais? Não estás Farto dos crimes de Moscou, ou não sereis Vós
mesmos Moscovita? Meu pai, meu pobre pai... talvez esteja morrendo de fome, sem ter
como comprar pão para minha mãe. Minhas irmãs talvez tenham sucumbido a sangue à
desenfreada dos monstros moscovitas. General Pasquevitz, tomando lugar dos monarcas
mais importantes da Europa. Que as torturas mais cruéis possam atormentar os franceses,
que não vieram nos socorrer! A cidade toda ardeu! Quem dera poder matar ao menos um
moscovita!

Estudo op. 10, nº 12, em Dó menor.

Tenho trabalhado pouco. Apago o tempo todo. Eu tenho tossido muito. Acabei me
resfriando, apesar do calor de 18 graus, das rosas, das laranjeiras, das palmeiras, das
figueiras... Três médicos, os mais célebres da ilha, me examinaram. O primeiro disse que
eu ia morrer. O segundo, que eu estava morrendo. O último, que eu já estava morto. Você
pode imaginar entre os rochedos de um mar, na cela de um imenso monastério
abandonado... é onde eu fico, sem penteados nem luvas brancas, e pálido como de
costume. Minha cela, com a forma de um grande caixão, tem uma enorme abóboda
poeirenta e uma pequena janela dando para as laranjeiras, as palmeiras, os ciprestes do
jardim. Acima de nós, volteiam as águas. Silêncio... Você pode gritar. Ainda o silêncio.
Em poucas palavras, eu estou lhe escrevendo de um lugar bem estranho.

Balada op. 23, nº 1, em Sol menor. Primeiro tema.

Por que Deus não me mata de um só golpe, em vez de me deixar morrendo aos poucos,
de uma febre de irresolução? Eis que agora andam espalhando o boato do meu casamento.
Não estou pensando em esposa. Antes, na casa paterna... em minha mãe, minhas irmãs,
minha arte.... onde andará? Meu coração, onde o terei conspurcado? Mal consigo me
lembrar das canções lá de casa. O mundo esmaece à minha volta de maneira estranha.
Estou me perdendo. Eu não tenho mais força nenhuma. Eu não estou me queixando, mas
me vejo mais perto da sepultura do que do leito nupcial. Mas minha alma está em paz, eu
estou resignado. Em breve, voltarei a Paris. Acho que no princípio deste ano de 1849.
Então, que comprem as pias para minha lareira. Que tudo esteja em seu lugar: cortinas,
tapetes e principalmente o piano do Pleyel. E não se esqueçam de colocar violetas na sala
para que fique perfumada. Eu quero encontrar ainda um pouco de poesia na minha volta
quando eu deverei passar da sala para o quarto, onde com certeza irei me deitar por muito
tempo.

Prelúdio op. 28, nº 6, em Si menor.

(Texto durante a música) Ora viveu feliz como andorinha. Às vezes terno e tanto amor a
dar. Ora misantropia. Sonhos no ar. Um dia, ouviu soando a campainha. Era a morte.
Então, vê-la esperar do último soneto o ponto final. Sem queixas depois, fez descansar

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no seu ataúde o corpo glacial. Ele era preguiça, diziam brejeiros. Deixava a tinta secar
nos tinteiros. Quis tudo saber. Nada conheceu. E quando a hora viu, farto da vida, na noite
fria a alma ser colhida, ele disse ao partir: “para que fim eu?”.

Fim da música.

A refinada celebridade de Frédéric Chopin, nos círculos mais restritos, altamente


aristocráticos, manteve-se a salvo de qualquer ataque. Um silêncio completo da crítica já
se faz à sua volta, como se a posteridade a tivesse alcançado. E no brilhante auditório,
reunido junto ao poeta, emudecido por um tempo longo demais, não havia uma, uma,
reticência, uma única restrição. A ideias novas ele soube dar uma forma nova. Essa coisa
algo selvagem e abrupta que lhe vinha de sua pátria encontrou expressão em ousadias de
dissonância, em harmonias estranhas, enquanto que a delicadeza e a graça que vinham de
sua pessoa se revelavam em mil contornos, em mil ornatos de inimitável fantasia.

Prelúdio op. 28, nº 20, em Dó menor.

(Texto durante a música) Devagar, bem devagar, senhores coveiros. Bem devagar. Pois
esse caixão não é como os outros, que tem um bloco de argila envolto nos lençóis. Este
aqui esconde entre suas tábuas um tesouro recoberto por duas asas muito brancas, como
as que se abrem nos ombros frágeis dos anjos. Devagar, bem devagar, senhores coveiros.
Devagar, bem devagar. Que, por pouco que tem o tamanho de um homem, esse móvel de
silêncio contém um sem número de gente e reúne em seu núcleo mais personagens e
imagens que um circo, um templo, um palácio, um fórum. Melhor não sacudir esses
variados símbolos, para não perturbar a paz de um universo. Devagar. Bem devagar,
senhores coveiros. Bem devagar. Pois esse apóstolo de luz vem a ser o cavaleiro da
beleza, que, galantemente, serviu em meio ao sarcasmo de uns e a veneração de outros.
E, ao exercer seu ofício, faria soluçar a primeira das mulheres, se deitasses duramente o
seu amante na terra. Devagar. Bem devagar, senhores coveiros. Bem devagar. Pois se
teve todas as nossas virtudes, ele também teve todos os nossos pecados. Devagar. Bem
devagar. Pois transportais com ele toda a humanidade.

Fim da música.

A última coisa é a simplicidade. Depois de ter esgotado todas as dificuldades, depois de


ter tocado imensa quantidade de notas e mais notas, é a simplicidade que aflora com todo
seu encanto como último selo da arte. Qualquer um que tente alcançá-lo sem esforço não
chegará a lugar algum. Não se pode começar pelo fim.

Valsa op. 69, nº 2, em Si menor. Primeiro e segundo tema.

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