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11/05/2021 Lúcio de Mendonça

Academia Brasileira de Letras

Lúcio de Mendonça
O REBELDE

É um lobo do mar: numa espelunca


Mora, à beira do Oceano, em rocha alpestre;
Ira-se a onda e, qual tigre silvestre,
De mortos vegetais a praia junca.

E ele, olhando como um velho mestre


O revoltoso que não dorme nunca,
Recurva o dedo como garra adunca,
Sobre o cachimbo, único amor terrestre,

E então assoma-lhe um sorriso amargo...


É um rebelde também, cérebro largo,
Que odeia os reis e os padres excomunga.

À noite, dorme sem rezar: que importa?


Enorme cão fiel, guarda-lhe a porta
O velho mar soturno que resmunga.

(Vergastas, 1889)

FLOR DE IPÊ

Na clara estação gorjeada,


Em flor o ipê se desata;
Ó bela árvore dourada!
Ó loura filha da mata!

O tronco, o pai, se revê


Todo ufano, todos zelos,
Nesses teus áureos cabelos
Que o sol beija, ó flor de ipê!

As abelhas, joias vivas,


Adereçam-te o toucado;
Diz-te frases expressivas
O sabiá namorado;

De ramo em ramo o tiê


Cai, como gota de sangue;

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11/05/2021 Lúcio de Mendonça

E a coral se enrosca langue


Nos teus braços, flor de ipê!

Mas, ai! tanta formosura,


Tão festejada e querida,
Pouco tempo vive e dura,
Logo cai a flor sem vida;

E sombrio e nu se vê,
Mudo, trágico, isolado,
Como um pai desamparado,
O velho tronco do ipê.

Na alegre quadra encantada


Dos sonhos e da esperança.
Vestiu-te a ilusão dourada
O coração de criança;

Surgiu-te - meu Deus! por quê? -


Ante os passos peregrinos
Criança de olhos divinos,
Loura como a flor do ipê.

Sonhos de que te cobriste,


Coração em primavera,
Caíram, todos, ai, triste!
Quanta dourada quimera!

Eis-te da sorte à mercê,


Já sem viço, já sem flores...
Aqueles pobres amores
Foram como a flor do ipê!
(Canções de outono, 1896.)

A TAPERA

Les temps sont accomplis : les choses se sont tues.

LECONTE DE LISLE

A meio vale escuro, à beira do caminho.


Está silenciosa a velha casa em ruína...
Desabitado lar, abandonado ninho,
O horror da solidão fantástica o domina.

O horror da solidão, por quê? também na mata,


Na virgem, secular, inóspita floresta,
Há uma calma grande, em que a alma se dilata;
E, ao invés do terror, que portentosa festa!

Mais funda é a solidão na agreste cumeada


Onde não pisou nunca o bípede tirano;
Mas lá quanta alegria aberta e iluminada!
- O cunho do terror vem do vestígio humano.

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11/05/2021 Lúcio de Mendonça

Vê-se um velho postigo escancarado ao poente...


O tosco parapeito apodreceu... e vê-se
Que ali chorou, talvez, de saudades do ausente
Uma noiva fiel, que de esperar morresse.

A bela porta, franca outrora, está fechada...


É ninho de reptis a trepadeira amiga.
Que convidava a entrar na plácida morada,
Que já ninguém procura e a ninguém mais abriga.

Pobre, inútil ruína! Olhemos de mais perto,


Pelo teto, que abriu dos temporais o açoite...
Brotam ervas do solo esquecido e deserto...
E este era o coração da casa, ao lar, à noite!

Aqui se reunia, em pacífico bando,


A família, a sonhar os dias do futuro,
Enquanto, fora, o vento andava praguejando
E a noite ia seguindo o seu caminho escuro.

Ali, para o nascente, havia um aposento


Pequeno e recatado... ai! ali, porventura,
Morava a sinhá-moça, o riso, o encantamento
Da rústica vivenda, a doce criatura!

No vão dessa janela aberta para a estrada


Quanta cena de afeto ainda se imagina!...
Um cavaleiro ao longe a sumir-se, e inclinada
Ao parapeito, a branca e chorosa menina...

Desconjuntado, já caindo-lhe os pedaços,


Vê-se um velho oratório... e, coberto de poeira,
Um Cristo mutilado abre os divinos braços...
Quanta fé o beijou na angústia derradeira!

Cá fora, indiferente, ingratamente alheio,


Passa o vento da mata, o alado vagabundo.
Sem um beijo, sequer, ao esqueleto feio
Da ruína sem dono, esquecida no mundo!

Somente à noite agora, ao ter da lua triste


A compassiva luz fantástica e serena,
Reanima-se a tapera e ressuscita e existe
De um sombrio existir que mete medo e pena.

Existe uma alma assim... Outrora foi ruidosa.


Clara, feliz, brilhante à luz da primavera...
Agora é nua e só, - sombra silenciosa,
Morta à beira da vida... a lúgubre tapera!

(Canções de outono, 1896.)

IDEAL

Desde bem cedo me sorriste,


Ó luz da alma contemplativa!

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Na minha noite escura e triste


Hás de brilhar, enquanto eu viva.

Astro do enlevo solitário,


Oculta flor do ermo saudoso,
Lâmpada do íntimo sacrário,
Etérea fonte de almo gozo.

Tu és, na altura inacessível,


O eterno prêmio que eu almejo
E sigo; brilhas impassível
E eu vivo, enquanto ainda te vejo!

Por mais que neste inferno pene


E arder-me a vida toda sinta,
Adoro-te, ó sonho perene!
Ó ambição da alma faminta!

Astro amigo, fulge e cintila.


E roto à vida o frágil nexo,
Venha-me à fronte, enfim tranquila,
A extrema-unção do teu reflexo!

(Canções de outono, 1896.)

AVE MARIA

... à l'heure où la joie nous quitte...


ASMIN
Ave, Maria... Era esta mesma a hora,
Este mesmo o lugar quando ela veio...
Quando perdi-me no amoroso enleio
Descia a noite como agora desce...
Ela os úmidos lábios entreabria
Para o céu, num sorriso, ou numa prece...
Ave, Maria!
Ave, Maria... Quanta vez às tardes
Viram-nos ambos num sonhar de doudos
Ao longe os montes se perdiam todos
Nos véus sombrios que além baixavam...
Minha alma à sua numa só se unia.
E os lábios dela e os lábios meus rezavam:
Ave, Maria!
Ave, Maria... Que formosa tarde
Era aquela da nossa despedida!
Era fatal partir, e foi cumprida
Minha sorte, que dela arrebatou-me!...
E a boca linda, que não mais sorria,
Na prece ardente murmurou meu nome...
Ave, Maria!
Ave, Maria... A hora ainda é a mesma.
Ainda o mesmo o lugar... mas já não vive
Aquele apaixonado amor que eu tive
E que tanto em saudade se revela...
Ela, a formosa desleal, mentia...
Vive, minh’alma, para orar por ela...
Ave, Maria!
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11/05/2021 Lúcio de Mendonça

(Canções de outono, 1896.)

O HÓSPEDE

Ele aí está, que o diga o Oliveira, aquele rapagão de bigode louro e olhar azul, que viajou como
caixeiro de cobranças, “cometa”, e hoje é repórter. Por sinal que foi a última viagem de
cobrança que fez, e de tão horrorizado mudou de vida e profissão. Foi ele mesmo quem me
referiu o caso. Aqui o dou pelo custo, sem nada meu.

***
Ao cair de uma tarde chuvosa de março, chegava o cobrador, extenuado e faminto, a uma
vendola à beira da estrada, da longa estrada fastidiosa, pelos campos, que vai de Alfenas ao
Machado, no sul de Minas.
Junto à venda havia a casa de morada, pequena, tosca e suja, dum velho casal português, que
ali se fixara e vendia os produtos da pequena lavoura, cultivada nas suas terrinhas, e os furtos
trazidos à noite pelos escravos da vizinhança.

Pousada, não era costume dar-se ali; Alfenas ficava a uma légua, e os donos da casa diziam
despachadamente que aquilo não era hospedaria. Mas, com o Oliveira, o caso era especial:
trazia já as suas oito léguas bem puxadas e uma fome de carrapato, e depois, com tanta carga
d’água, não havia meio de continuar viagem. Pediu pousada e ceia, pagando eu - acrescentou.

- Ceia, arranja-se-lhe - disse o Zé Manuel, o taverneiro velho; lá a cama é que está mais difícil,
que não recebemos hóspedes para dormir.

E com o olhar consultava a mulher, a mulheraça, anafada e pachorrenta, aboborada para dentro
do balcão.

- Não, por isso não seja - opinou ela; dá-se-lhe o quarto do Jequim...

- Bem lembrado - concordou o vendeiro; - temos ali assim um quarto agora desocupado, que é
o de nosso rapaz, que anda por fora; lá para o Carmo do Rio Claro; tem cama e colchão, que é
o preciso para dormir... Se lhe serve...

- Serve, serve - aceitou logo o Oliveira. - E deem-me alguma coisa que se coma; estou morto de
fome!

Enquanto se punha a janta, desarretou a besta, guardou os arreios no quarto que lhe
destinaram, contíguo à saleta da frente e com janela para a estrada; levou o animal ao pasto,
um pastinho fechado, muito perto; e voltou para cuidar de si.

Antes, porém, de sentar-se à mesa, onde já fumegava o feijão com couves e a canjiquinha,
pediu que lhe trouxessem uma peneira.

- Uma peneira! ora essa!

- É cá para uma precisão!

Trouxeram-lha, e ele então sacou do bolso das calças um maço de dinheiro em papel, uma
bolada de notas úmidas da chuva que apanhara, e estendeu pelo crivo da taquara as cédulas
grandes, de duzentos, de cem, de cinquenta mil réis, uma boa meia dúzia de contos. Passou a
peneira para a ponta da mesa a que não chegava a toalha, e entrou a servir-se da ceia no prato
de louça azul, com a colher de ferro.

Ao levar à boca uma colherada, surpreendeu à porta da saleta o olhar aceso com que lhe
comiam o estendal das notas, a velha portuguesa, que o servia, e o marido, que entrava com
uma garrafa de vinho.

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11/05/2021 Lúcio de Mendonça

Tão cobiçoso era o olhar de ambos, que coou na alma do rapaz um frio de medo e um clarão de
pressentimento. Logo, ali mesmo, resolveu acautelar-se, arrependido da imprudência de ter
mostrado tanto dinheiro.

Acabando de cear, declarou que muito cedo, ao romper do dia, seguia para Alfenas, e por isso
deixava paga a hospedagem; deram-lhe a boa-noite e recolheu, com uma vela de sebo, ao
quarto do Joaquim.

Mal se viu só, tratou de ajuntar as notas que espalhara na peneira, tornou a enfiá-las no bolso, e
apenas a casa sossegou em silêncio, ali por volta da meia-noite, saltou pela janela com os
arreios e a mala à cabeça, foi ao pastinho fechado, selou a besta e tocou para a cidade, ao belo
clarão da lua que despontava.

***

Nem bem se perdera ao longe o estrupido da besta que levava o cobrador, quando novo tropel
de animal soou no terreiro da venda; era outro cavaleiro, que saltou do lombilho abaixo e em
três tempos desarreou o cavalo em que veio e com um chupão nos beiços apinhados tocou-o
para o campo.

- Diacho! minha janela aberta! - murmurou consigo. - Melhor! entro sem precisar bater e acordar
os velhos a esta hora.

E, agarrando-se com o braço direito ao peitoril da janela, saltou para dentro, levando na outra o
lombilho, o baixeiro e o freio, e logo tornou a fechar a janela, que o frio não era graça.

***

À alta madrugada, quando começava a amiudar o canto dos galos, dois vultos, cautelosos,
sorrateiros, surdiram do interior da saleta da frente; um deles, o mais alto impeliu de manso a
porta, apenas cerrada, e penetrou no quarto.

Da cama, ao fundo, ouvia-se a respiração compassada e forte de um bom sono ferrado.


Aproximou-se o vulto, guiado pelo resfolegar do que dormia e pela tênue claridade que vinha da
saleta, onde o outro vulto, agachado e trêmulo, sustentava e velava com a mão encarquilhada
um candeeiro de azeite.

Súbito, no silêncio da habitação, soaram, soturnas, repetidas, machadadas rápidas, uma, duas,
três, muitas, regulares a princípio depois desatinadas.

- Anda! traze a luz! - estertorou uma voz estrangulada.

Entrou no quarto o outro vulto, a velha gorda, com a candeia acesa.

Apenas a luz bateu na cama, numa horrível massa de roupas e carnes ensanguentadas, dois
gritos sufocados misturaram o seu horror:

- O Jequim!!!

- O filho!! O meu rapaz!!

***

Fora, na estrada deserta, voejavam os bacuraus, como almas penadas.

(Horas do bom tempo, 1901.)

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