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Salomão Rovedo

Diários do facebook
(III)

Conversas com Quincas Oliveira


(II)

Rio de Janeiro
2019
Nota

Quando pela primeira vez juntei as notas que escrevia no exíguo


espaço que o facebook oferece – espaço que a plataforma expandiu
para aceitar textos mais extensos – não pensei senão em estimular
outras pessoas que fizessem o mesmo. Acontece que os e-books são
lidos e baixados razoavelmente nos sites em que estão disponíveis
para baixa gratuita. Isso é para minha modéstia um sucesso
inesperado. Além disso, muita gente está publicando as ideias em
milhares de redes sociais espalhadas na internet, com isso
tentando melhorar e influenciar grupos e comunidades sociais,
espero que para boas ações. Que não se limitem aos textos e
pensamentos cuja pretensão é salvar vidas e almas, mas que também
(e principalmente) sirvam à Humanidade, no comum desejo de
melhorar a vida cotidiana. Assim vai este Diário III, pensando
encerrar com esta última coleção a minha modesta colaboração no
campo da discussão das diversas ideias que tornam a vida melhor,
mais útil e mais democrática. Ao fim juntei a segunda coleção das
conversas com o sábio da Ilha Upaon-açu Quincas Oliveira, cujo
pensamento de equilíbrio sensato muito contribuiu para limitar os
excessos e me levar a são e salvo à outra margem de tão difícil
travessia.

Rio de Janeiro
Cachambi
2019
Diários do facebook

(III)

Voltei a este espaço só pra falar do rolezim e do rolezão, tá na moda,


né? A rapaziada quer se ver, quer se tocar, mostrar o corte de cabelo,
conhecer ao vivo e a cores a garota que ama na internet, trocar
figurinhas, enfim, como se dizia. Você não marcava encontro? Não ia
ao cinema? Não namorava no Posto 4½? Não ia ao barzinho? Não
dava uma fugidinha? Não fazia pit stop no motel? Tudo numa boa,
sem polícia, sem bomba de efeito moral – a única vigilância era da
mãezona ou da sogra. E os conceitos éticos da época, suas próprias
regras. Fora essas restrições a mão boba tinha livre acesso a todas as
reentrâncias. Pois hoje tem o rolezim ou o rolezam. Também regras
que ainda vigem, advindas de vinte anos de ditadura. Por isso:
aumenta a segurança, fecha a loja, chama a polícia, entra com
liminar – idiotices que ditaduras e leis de exceção deixaram de
herança. Tenho esperança que algum diretor de shopping mais
inteligente e visionário apareça pra anunciar: VENHA AO NOSSO
SHOPPING! AQUI O ROLEZIM É LIVRE!

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Tenho mania de abrir velhos livros numa página qualquer e ler para
ver o que vai me surpreender. Então, no romance “A Carne”, de Júlio
Ribeiro, encontrei o seguinte texto:
“Quebrara em Santos uma casa comissária importantíssima. O
coronel perdia na quebra cerca de trinta contos”.
– Que aquela praça era uma cova de Caco, uma Calábria, disse ele ao
saber da notícia, um dia de manhã: que comiam o fazendeiro por
uma perna; que misturavam o café bom, mandado por ele, com o
café de refugo, com o café escolha comprado ao desbarato; que a
essa honestíssima manipulação chamavam bater, fazer pilha, no que
tinham carradas de razão porque era mesmo uma batida de
dinheiro, uma verdadeira pilhagem de cobres, que davam contas de
venda ao fazendeiro como e quando muito bem lhes parecia, e que o
diabo havia de se ver grego para verificar a exatidão de tais contas;
que à custa do fazendeiro comia o intermediário, comia a estrada de
ferro com as suas tarifas de chegar, comia o governo com os velhos e
novos impostos, comia a corporação dos carroceiros, comia a três
carrilhos o comissário, comia o zangão ou o corretor, comia o
exportador, comiam todos. Que afinal, para coroar a obra, para
evaporar o restinho de cobre que ficava, lá vinha a santa da quebra, a
bela da falência casual, já se deixava ver, porque onde há guarda-
livros peritos ninguém quebra fraudulentamente.”
Não é um parágrafo maravilhoso? Começa em “Que aquela praça” e
vai acabar lá embaixo, “já se deixava ver”... E no entremeio, quanta
riqueza de expressões de época:
“aquela praça era uma cova de Caco”
“uma Calábria” (por que será?)
“comia o fazendeiro por uma perna, comia a estrada de ferro com as
suas tarifas de chegar, comia o governo com os velhos e novos
impostos, comia a corporação dos carroceiros, comia a três carrilhos
o comissário, comia o zangão ou o corretor, comia o exportador,
comiam todos.”
“misturar o café bom com o café de refugo”
“o café escolha, comprado ao desbarato”
“a essa manipulação chamam bater, fazer pilha”
“uma batida de dinheiro”
“uma pilhagem de cobres”
“o diabo havia de se ver grego”
“à custa do fazendeiro comia o intermediário” (etc.)
“evaporar o restinho de cobre”
“a santa da quebra”
“a bela da falência casual”
Está em Julio Ribeiro – A carne – Livraria Francisco Alves – 1944. O
homem é bom mesmo e que pena que só ficou ‘famoso’ com esse
livro, que na minha adolescência servia pra fantasiar ‘el hacer
puñetas’, como dizem os espanhóis, pois era livro ‘proibido’...
Resulta que voltei a ler o dito cujo desde o começo. A história de
Lenita realmente marcou época. Ademais a escrita de 1944 dá
excelente aula, pode crer. É também boa prova de que TODOS os
textos, a partir de certa data (novas regras ortográficas, por
exemplo), devem ser atualizados ou se transformam em Camões.
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A menina de São Luís - A menina de São Luís não nasceu em São


Luís. Foi o contrário: São Luís é que nasceu nela. A menina de São
Luís tinha os olhos pretos, pretinhos. O nariz era uma flecha
apontando para o fim do mundo. Os cabelos da menina de São Luís
eram pretos: era uma família de caracóis que morava na cabeça dela.
E a boca? A boca, o sorriso, era uma coisa só. O rosto dela era o
sorriso mais enorme do mundo. E quando ria o sorriso escorregava
da boca dela como sorvete de juçara: saía pelos cantos dos lábios e
passava para todas as bocas que estavam por perto. Sorria, a menina
de São Luís sorria. Como a menina de São Luís sorria! De quê tanto
sorria a menina de São Luís? Sorria porque a vida é bela? A menina
de São Luís não nasceu em São Luís. Foi o contrário: a cidade é que
cresceu nela. A menina de São Luís não brincava de boneca: escrevia
cartas para namorados imprevistos. A menina de São Luís jogava
bola com os meninos, soltava papagaio, descia a Montanha Russa de
patins. A menina de São Luís chegava em casa suada, suja de areia,
com os joelhos ralados em sangue e contava para os irmãos
espantados que a ferida não doía. A menina de São Luís se banhava
pulando, cantando e sorrindo. Se enxugava diante do espelho
abismada com os seios e os pêlos. Depois do jantar a menina de São
Luís escovava os dentes, alvos igual pérolas e dava mais sorrisos
para o espelho. Sorria, a menina de São Luís sorria. Como a menina
de São Luís sorria! De quê tanto sorria a menina de São Luís? A
menina de São Luís cresceu, foi para a cidade grande e parou de
sorrir. Quer dizer, ainda sorria um pouco, mas aquele riso enorme
ficou em São Luís. Depois de um tempo não sorria mais. O sorriso
feneceu, a menina de São Luís morreu. Tenho saudades da menina
de São Luís.

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De que reclamas, minha úlcera? Sempre te dei do bom e do melhor.


A melhor linguiça, torresmo crocante, bacon gordo, a pimenta mais
picante. Te servi acepipes finos do mar: bacalhau, camarão, ouriço,
ostra, sururu, caranguejo e siri. Aos sábados te servi a premiada
Feijoada Carioca, com orelha, paio, chispe, carne seca, lombo,
costelinha, goela, linguiça calabresa, rabinho, etc. Sempre te servi a
melhor cachaça mineira, Tiquira de Santa Quitéria, Bourbon do
Tennessee, Irish Whiskey, Malt Whisky até o nobre Rye. Vinhos
chilenos, argentinos, portugueses e gaúchos. Os melhores chopes e
cervejas. De que reclamas, minha úlcera? É bem verdade que
algumas vezes errei: bebi cachaça ruim, bebi cerveja de milho, bebi
Ambev. E com razão reclamaste. Fora isso, jamais te decepcionei,
minha úlcera. Jamais conspurquei tuas entranhas com um copo de
leite! E nas noitadas de solteiro, muitas vezes premiei tuas mucosas
com porções divinas do esperma de lindas mulheres. De que
reclamas, minha úlcera?

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Volto ao passado. Um amigo me telefona. Precisa falar comigo


urgente, sem falta. Nunca falto aos amigos e às mulheres. Pede pra
encontrá-lo no Bar Estrela. Vou lá, procuro por ele, me informam
que está na área, por ali, nalgum lugar. Lá está ele, sentado na
calçada, no meio-fio. Chego e vejo que tem uma arma na mão entre
as pernas, cabeça arriada, ombros curvados, um retrato
nelsonrodriguiano... Uso a terapia do esporro: - Que foi? Que não
foi? - Vou me matar, diz ele. - E por quê? - Descobri que sou corno! -
Ora, merda, é isso? Ele me olha espantado com o desdém que dou ao
tema. - Eu já sou corno faz muito tempo e nunca me matei! Não sei
por que disse essa merda, mas funcionou. Peguei a arma, tirei as
balas (precaução nunca é pouco) e decretei: - Vamos ao Estrela
beber uma gelada, brindar à vida! (29/10/2013)

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Quem avisa amigo é. O réveillon 2013/2014 no Rio de Janeiro está


prometendo ser o mais caótico possível. Obras, obras, obras.
Atalhos, vias expressas, novas linhas de metrô, melhoramento em
aeroportos e rodoviárias, prometidos para a Copa do Mundo e Jogos
Olímpicos, estão longe da realidade. Se o turista conseguir superar o
estresse causado pelas obras não realizadas no Aeroporto Tom
Jobim (Galeão) e quiser ir, por exemplo, para a Barra da Tijuca, terá
de enfrentar engarrafamentos nas Linhas Vermelha e Amarela. Para
ir para a Zona Sul (Copacabana, Ipanema, Leblon, Gávea e São
Conrado), terá que comer muita poeira e trânsito caótico. Causa? As
obras do Porto Maravilha, desmonte do Elevado da Perimetral,
construção do túnel da Via Binária. Isto é apenas um trailer, que
promete virar um thriller de horror. Quer saber? Melhor não vir.
Lembre-se: Quem avisa amigo é! (01/11/2013)

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Tenho pavor de frio. Meu pior pesadelo é aquele em que estou em


terras nevadas – geralmente morro antes de acordar. Talvez seja por
isso que o esperma que fez este bonitão que aqui escreve deixou para
se materializar nos trópicos de Rio Tinto, beira rio, beira mar. Senão,
havéra de nascer parnanguara ou coritibano, donde tenho lindos
parentes que, ao contrário d’eu, cagam e andam pro frio. Quando fui
a Curitiba na primeira vez só consegui andar na Rua XV de
Novembro pulando de loja em loja, de bar em bar, me aquecendo a
custa de café preto, acrescido do bom conhaque George Aubert. Ali
tem uma corrente de vento que parece vir por uma BRT que liga a
Antártida a Curitiba! Essa natureza crespa, porém, cria suas próprias
compensações: por causa desse frio congelador as mulheres
curitibanas apresentam tal volume calórico, que não fica nada a
dever à mais legítima caribenha! (02/11/2013)

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Agora nesta primavera carioca de 2013, alguém, alhures, do mar, da


serra, assopra um ventinho lascado, impertinente, frio. Ah, quer
saber, dane-se! Finjo que é primavera em país onde tem primavera.
Vejo flores de jasmim, café, maracujá, macieira, cerejeira, lilás – quê
mais? Mas nem tudo é frio no Paraná: em Paranaguá dá 40° no
verão. O primo Nenéca que, menino ainda, conhecia toda a rota
marítima de lá – as ilhas, as rias, a baía – me acordava cedinho para,
na lancha do tio Nélis (emprestada sem este saber), fugir para as
águas mais límpidas e transparentes que já vi! Mergulhar, nadar o
dia inteiro, voltar de noite, famintos, pra comer uma pizza de
sardinha que me dava engulhos, mas que ele adorava. Nenéca trazia
a lancha com o cuidado que teria com uma Ferrari, rezando pro
velho não descobrir. Só que tio Nélis media o nível de óleo, aí a vaca
ia pro brejo com corda e tudo. Mas o sobrinho mais velho – eu –
assumia que tinha pedido e tudo ficava em paz... (02/11/2013)

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O brasileiro tem mania de desmerecer o Paraguai de país atrasado,


humilhando os hermanos guaranis. Mas como se pode chamar um
país atrasado, se ele fabrica e manufatura todos os produtos, de
todos os países do mundo, do modo mais moderno possível – em
lançamento simultâneo com a produção original? Todo artigo de
marcas, grifes, cigarros, eletrônicos, a gente acha no Paraguai. Isso é
país atrasado? Vou contar uma história. Um amigo meu, já falecido,
fabricava ótimo uísque Cavalo Branco. O conjunto incluía: garrafa
de Cavalo Branco, legítima, com datação e tudo; lacre de segurança;
o cavalinho branco no gargalo; fundo convexo, litro com numeração
interna! Mas o conteúdo não álcool misturado com iodo e outras
porcarias, não: era uísque nacional. As caixas de cartão (numeradas
na Escócia), com 12 litros, eram despachadas aos fieis clientes.
Jamais ele recebeu uma reclamação, uma devolução. E era tudo
original – made in Paraguay! (05/11/2013)

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Ontem, Dia de Finados, almocei com o primo Joaquim Itapary e


Edna. Comemorávamos o nascimento, não a morte – porque
também nasce gente no dia dos mortos. Na verdade Joaquim queria
ir à Feira (dos paraíbas) de São Cristóvão, mas quando contei no
caos que aquele lugar pretensamente cultural se transformou, ele
desistiu. Ficamos lá mesmo onde ele se hospeda, no Leblon, que
também está caótico devido às obras do metrô. Cemitérios caóticos,
praias cheias, botecos idem, ora bolas, é realmente a invasão
alienígena que Orson Welles imaginou, putzgrila! Vou-me embora
pra Catende, pra Pasárgada, pra Cochinchina, pra Benares –
qualquer lugar longínquo que chegue de trem, seja amigo do Rei,
tenha mulher na rede, perdoado de todos os pecados. É pedir muito?
Que seja! Primo Quincas, você que é cronista dos bons, prometa que
vai fazer uma crônica pra mim, assim que esta alma pecaminosa
aportar num desses lugares. (03/11/2013)

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Tô com saudade, aliás, morro de saudade. Não é de mulher, se fosse


teria morrido tantas vezes! Minhas saudades são dos dias tranquilos,
em Barreirinhas, nos Lençóis Maranhenses. Queria passar apenas
uma semana, grana curta, fiquei um mês! Ao amigo Buna disse que
eu tinha apenas R$ 100, ele foi direto: – Dá! – Fui! Mal chegamos,
fomos pro calçadão na Rua Beira Rio, olhos brilhantes,
contaminados pela cor do buritizal refletida no manso Rio das
Preguiças. Cansados, empoeirados – resistir quem há de? –
mergulhamos ali juntos com os meninos. Refeitos e alegres,
atacamos umas tiquiras pra matar o bicho no bar do Minervino: tira-
gosto de camarão frito, rodelas de caju, pimenta-do-reino e sal. Lá
adiante, na curva do rio, lavadeiras cantam o bate-rede, clareando
roupas com sabão de andiroba sobre as pedras lisas. Não dá pra
perder a ocasião: gozar o milagre, as águas mansas, aquele rio
enorme, prazer exclusivo, tudo dividido com crianças, aves, peixes.
Nós e o rio, o rio e nós – nada mais. Isto é, tinha sim: aquele céu
desnublado, profundo, azul sem mácula, como deve ser os olhos de
Deus. (07/11/2013)

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Dez anos sem ler O Globo, ganhei exemplares de sábado e domingo.


Vejo que não perdi nada. E ainda condeno a política de terra
arrasada que os donos do Globo praticaram contra a imprensa
carioca e paulista. Por isso, não compro, não leio, não indico...
Agora, faço a mesma triagem de dez anos: folheio-o de trás pra
frente as cento e tantas páginas! Fica dez pra ler – sem garantia de
boa leitura: os cadernos, Prosa, Segundo Caderno e Ela. Este Prosa
celebra 100 anos de nascimento de Albert Camus. A capa inteira,
além do cabeçalho, é ocupada por um Camus de Cássio Loredano e
propaganda da Editora PUC. Na pg. 2 a foto de uma moça lendo
Camus ocupa 1/3 do espaço, a metade da última página é gasta com
outra foto gigante de Camus – assim vai. Muito esperdício de
espaço, por que não cobri-los de texto? Fiquei puto quando vi que
Joaquim Ferreira dos Santos não assina mais Gente Boa, no
Segundo Caderno. O caderno Ela, por ser “literatura feminina”,
continua legível com alegria, apesar da fama de sério. (04/11/2013)

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Vê-la todo dia sorrindo aqui se pensa conhecer Lella (Antonella,


para os menos íntimos). Essa alegria ela dá a todos, claro, semente
original, estranha mistura de genes índio com alvura ítala, que num
dia esquisito se amaram pra valer. Mas Lella tem num cantinho uma
cadeira de espinhos – todos nós temos – onde, vez em quando, é
obrigada a sentar. Dói um bocado. Presente, passado e futuro são
elementos alquímicos unidos, parte da fórmula inusitada desse
estranho xarope chamado vida. O riso espraiado de hoje, repeteco de
ontem, será o de amanhã. Conhecer Lella, amar Lella – coisa
indivisível – mas quando a gente pensa que conhece, é mentira: falta
o detalhe maior, está inédito. Um dia Lella teve que vir ao Rio, mas o
babaca aqui só foi vê-la quando já estava de volta pra Curitiba. Levei
Patrícia e Priscila, ficamos todos enfeitiçados por vocês sabem o quê
e por quem. Querem saber mais? Convidem-na, aposto que Lella,
dadinha como é, não recusará amizade a ninguém. (08/11/2013)

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Taí, vou citar: “Tudo na mulher é poesia e samba-canção. Os olhos


são o espelho da alma, as mãos herdamos das fadas, o sorriso
transporta ao paraíso, a voz é de anjo, a pele de rosas, o corpo de
sereia, tudo com infinito poder de beleza e sedução. Mas na hora de
falar em público sobre aquelas pequenas partes tão sensíveis e tão
femininas da mulher, não há uma linguagem poética, gentil e
sedutora que traduza o apreço que se tem por elas. A escolha é entre
termos clássicos, tipo vulva e vagina, que soam feios e irreais, os
nomes vulgares, aprendidos com pudor e excitação nos grafitos de
banheiro, e os inocentes apelidos maternais como xota, xoxota,
bimbinha, bobó, pixu, pipi, xibiu, pixirica, xereca, prexeca, perereca,
crica, periquita, pombinha, passarinha, bacurinha, partes, países
baixos, zona sul...” (Partes mimosas da natureza, do livro: Só para
mulheres, de Sonia Hirsch) (07/11/2013)

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“Aproveito-me destes dias brumosos em que o Rio vê a sua paisagem


aureolada de nuvens, descolorida, fracamente iluminada pela luz fria
de um sol entretido em lugar incerto e não sabido, para ler, ler, e ler.
Entretanto, detenho-me com prazer na leitura de um livro
excepcional. Trata-se de “Uma consciência contra a violência
(Castellio contra Calvino)”. Nessa obra magistral, Zweig trata da
questão da liberdade de consciência e expressão, eternamente
presente na história da humanidade. Para tanto, utiliza-se do
momento histórico da eclosão da Reforma que abalou as convicções
religiosas da Europa em meados do Século 16. Toma ele a luta de
Sebastian Castellio contra Jean Calvino como pano de fundo para
analisar e demonstrar, à luz de documentos autênticos, por ele
compulsados e utilizados como fontes primárias de informação, até
que ponto “o poder leva à onipotência e a vitória ao abuso de si
própria.” Até que, enfim, surge, de dentro da própria igreja
reformada, um opositor à tirania de Calvino: Sebastian Castellio. O
desenrolar desse embate entre dois homens eruditos é descrito por
Zweig com a candidez do escritor que acima de tudo cultua a
verdade, a justiça e a liberdade como valores humanos
absolutamente irrenunciáveis. Vale a pena a leitura dessa obra
portentosa que tem muito a ver com os momentos ainda hoje vividos
em nações onde religiões e ideologias restritivas desses valores
empolgam e utilizam a estrutura do Estado como aparelho da
intolerância, da tirania e da opressão”. In A face do tirano – Crônica
de Joaquim Itapary (07/11/2013)

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Via Xenia Antunes, via Danilo Gomes da Silva, via Rolando na Rede:
"Regina Casé é umas das maiores filhas da puta a que tive o
desprazer de estar perto. Assisti ela botar na rua vários profissionais
com muitos anos de casa na TV Globo ou por não frequentarem a
patota que dá suporte ao seu pretenso viés popular ou terem
alcançado a idade provecta da qual ela não poderia tirar dividendos
"artísticos" para suas presepadas. Suas patranhas não demorarão
muito vir à luz e seu mau caratismo não vai enganar o povo
eternamente. Quando descobrirem a forma perversa de que se serve
da cultura popular para esvaziá-la e amealhar seus dividendos,
quando a forma antipática e discriminatória com que trata a equipe
vier a público, aquela bunda caída de mulher esticada, gorda, com
cara de bruxa que ela não conseguiu arrancar da lata apesar de
tantas plásticas - virá baixo. É natural que esnobe ou massacre um
autêntico grupo cultural que fez das tripas coração para atender a
um convite da sua produção escrota. O mesmo não aconteceu em
"Hoje é dia de Maria", onde os foliões tiveram o respeito merecido".
Será? Quem diria... (11/11/2013)

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Linha Norte-Sul. As linhas de ônibus que interligavam as Zonas


Norte e Sul no Rio de Janeiro eram assim nomeadas. Os praieiros da
Zona Norte bem conheciam essas linhas, tanto partindo da Tijuca
para o Leblon, quanto saindo do Jardim do Méier para Copacabana.
Outras menos conhecidas iam de Cascadura à Barra da Tijuca e
Recreio, trafegando pela sinuosa Estrada da Barra (hoje Estrada
Velha). Nem precisa dizer que os motoristas eram mais que peritos e
nos fins de semana partiam lotados num ir e vir que só acabava
quando o sol arriava por detrás da Pedra da Gávea. A linha 455 –
Méier-Forte – era das mais concorridas, porque fazia ponto final no
Posto 6, em Copacabana, na Rua Francisco Otaviano com Forte
Copacabana. Reminiscente daquela época a 455 ainda existe, hoje é
Méier-Copacabana, que eu peguei hoje para descer na Av. Presidente
Vargas, antes do ônibus seguir pela Candelária, Praça XV,
Aeroporto, Aterro e entrar em Copacabana pelo Túnel Novo. De
repente nosso ônibus foi invadido por passageiros descidos de um
coirmão, expulsos por uma miríade de baratas, eclodidas ao calor de
40ºC que os termômetros marcavam. É o verão que se aproxima –
elas estavam apenas querendo curtir uma praia... (12/11/2013)

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O Rio de Janeiro e a praia de Copacabana, por Stefan Zweig, em
1936 - “Agora percebe-se a cidade após a passagem por um
complicado labirinto de ilhas. Não se avista, porém, toda de uma
vez. Não é como em Nápoles, na Algéria ou em Marselha, cujas
cidades aparecem num panorama de casas, como uma arena
aberta com degraus de pedras, logo à primeira vista. Quadro por
quadro, parte por parte, plano por plano, desdobra-se a cidade do
Rio de Janeiro como um leque, e é por isso que a sua entrada é tão
dramática, tão inexpressivamente admirável e surpreendente.
Cada uma dessas baías povoadas, de cuja reunião resulta a sua
costa, é separada uma da outra por meio de cadeias de montanhas
– são como as varetas do leque, que isolam cada quadro, reunindo-
as ao mesmo tempo. Finalmente avistamos a praia arqueada.
Aspecto encantador! Um passeio vasto ao longo da praia,
continuamente espumada pelas ondas, com casas, praças e jardins;
distingue-se claramente o hotel de luxo e, elevando o olhar, os
outeiros com as vilas cercadas de árvores – porém, novo engano! É
somente a praia de Copacabana, uma das mais belas do mundo,
um bairro novo e chique, não a própria cidade. Ainda é preciso
passar o Pão de Açúcar, que impede a vista: somente então é que se
vê a cidade maciça e branca, olhando para o mar e deslizando nas
alturas verdes. E só agora podemos saudar as casas altas: estamos
na cidade mais maravilhosa do mundo – o Rio de Janeiro”.
Pequena viagem ao Brasil (Encontros com homens, livros e países –
Ed. Guanabara Koogan, 1939) (15/11/2013)

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A suprema humilhação não se esquece: verão carioca, Gen. Osório,


Bar Jangadeiros lotado, gente entrando e saindo, de sunga, de
biquíni, vindo da praia, garotas bonitas, mulheres bonitas, chope
gelado, garçons requisitados pra lá e pra cá, chopes roubados,
amigos, uísque derramado sobre cubos de gelos, lá do alto do balcão
a gerente, Marilza, baiana, morena, bonita, controla toda a situação,
sabe quem tem de pagar, quem pendura, quem paga no cartão, no
cheque, quem é quem, conhece também os pilantras que descem o
morro pra fazer algum ganho na Teixeira de Melo, tudo é com
Marilza, até quando o garçom grita – de quem é esse chope? e ela
responde – é daquele careca ali, o Poeta – êpa, Marilza, calma aí,
careca, vírgula, eu? o espelho lá de casa não mostra isso, já sei, é
uma questão de ângulo: Marilza vê lá de cima do mezanino,
enquanto que o sacana do meu espelho mostra uma linha defensiva
de cabelos que, traiçoeira, protege a calvície em plena expansão; isto
é, como eu disse: a suprema humilhação ninguém esquece.
(14/11/2013)

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Baixou o espírito do Pereira Passos – o famoso “bota abaixo” – no


atual prefeito do Rio de Janeiro. Perfurando rochas graníticas à
dinamite, derribando prédios e armazéns velhos, tem como obra
prima a demolição do Elevado da Perimetral. Obra construída em
concreto e aço (da CSN) foi executada com previsão de tempo útil
para 400 anos! Gastou-se milhões para construir – custará milhões
para demolir. Qual 400 anos, que nada, vai abaixo doa a quem doer,
como irá abaixo o Estádio de Atletismo e o Parque Aquático do
Maracanã! Os cariocas estão fazendo uma vaquinha para mandar
Eduardo Paes para o Egito e patrocinar a eleição dele para prefeito
de Gizé. Dentro de poucos anos de administração não sobrará uma
só pirâmide para contar a história! (14/11/2013)

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O diabo passou por aqui. Volta e meia ele aparece no Rio de Janeiro,
sei, mas desta vez trouxe com ele o próprio inferno que – como
todos sabem – é quente que nem o inferno! Meus amigos, aguentar
um calor de 50°C em pleno outono é fogo. Imagine então quando o
verão chegar cheio de serpentinas – de chope – muita folia e tudo
aquilo que simboliza o império do Rei Momo. Foi tanto calor, tanto
calor, que os passarinhos – sanhaços, pipiras, cagassebos – que vêm
comer frutas na minha varanda pousavam de bico aberto. Botei
fatias de mamão e banana geladinhas, ao lado de uma terrina de
água filtrada e fresca. Foi uma festa só, um vai e vem que parecia
trânsito na Avenida Paulista com engarrafamento e tudo, porque
alguns levam comida para os filhotes no ninho e voltam correndo -
quer dizer, voando! Depois da farra agradeceram com voos,
cambalhotas e sonoros piripipi piripipi trilalá trilalá pipi pipi tiriii
tiriii piriri piriri, que em passarinhês quer dizer: – Obrigado
Salomão, obrigado por fazer nosso dia piriripapá pararapipi feliz!
(16/11/2013)

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Eu e milhões de brasileiros sabemos que só ladrão de galinha é preso


neste país. Bom, na verdade (segundo o IBGE), o ladrão de galinha e
o amigo do alheio continuam sendo maioria, mas de vez em quando
o dono do galinheiro é preso, mas com regalias. No caso do
mensalão, o Ministro Barbosa fez hora extra e mandou a turma pro
xilindró. “Maldita hora que botei aquele ƒ#&π‡∞† no supremo.” –
pensou alguém vomitando na sentina. Detalhes: a) nenhum réu foi
algemado. Por quê? Algemas neles! b) Marcus Valério pegou 40 anos
de cana; os demais nem chegaram perto! Valério foi pau mandado,
office boy da gang, fazia a distribuição do dimdim, trabalho
executado com honestidade, não tirava o dele, não surrupiava, foi
ladrão digno: não dedurou ninguém, não se arrependeu como
Dimas. A Cesar o que é de Cesar – 40 anos pra todos! O Lula,
solidário, foi se despedir dos companheiros: – Tamo junto! Gritou
ele bebendo uma caipirinha. – Verdade? Quando ele vai se entregar?
(17/11/2013)

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Leio horóscopo, acredito em Papai Noel, em amor eterno, nas


estatísticas do IBGE, em palavra de político, em resultado de eleição.
Sou um homem de fé. Meu horoscopista favorito é Paulo Coelho, que
hoje assina a coluna de horóscopo do Globo, com o pseudônimo de
Claudia Lisboa. Está lá. Áries: (meu signo). Mesmo que você esteja
acostumado a fazer as coisas sozinho, agora as atividades em grupo
acolhem melhor os seus projetos. É tempo de se unir com quem se
sente estimulado a realizar seus sonhos. Êpa! Agora vejo que todos
os horóscopos fecham com o mesmo bordão. Olha só! Touro: É
tempo de ter coragem para fazer uma grande reforma na vida e se
surpreender com os resultados. Gêmeos: É tempo de ficar atento à
ansiedade gerada pela agitação mental. Câncer: É tempo de
estimular o outro a partilhar as coisas que contribuem para a
construção dos relacionamentos. Leão: É tempo de entender que as
manifestações de desagrado também podem transmitir algo
importante. Virgem: É tempo de poder cometer erros e aceitá-los
com flexibilidade. Libra: É tempo de incentivar projetos que
acolham a participação de pessoas com diferentes pontos de vista.
Escorpião: É tempo de confiar que a capacidade de transformar
fortalece e o protege. Sagitário: É tempo de ouvir as inquietações e
fazer as mudanças que buscam o bem-estar. Capricórnio: É tempo
de entender que para os sentimentos serem partilhados é preciso
dissolver as resistências e as defesas. Aquário: É tempo de desfrutar
a potência máxima de sua criatividade e a capacidade de expressá-la.
Peixes: É tempo de fazer uma análise profunda para conseguir
detectar os pontos que estão frágeis. – Então? Não é puro Paulo
Coelho? (21/11/2013)

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Armas de guerra, barcos de guerra, veículos de guerra, indústria de


guerra. Faz pouco tempo que assistimos o desastre de bancos e
financeiras que levaram o governo Obama à falência. Pouco tempo
depois, foram infectados países europeus, latino-americanos, o
mundo todo sofrendo, direto ou indireto, do mesmo mal. A débâcle
da economia mundial deixou o mundo num miserê danado. Acho
engraçado que os parâmetros de análise econômica não levem em
conta um detalhe: o militarismo. Ninguém jamais ouviu falar que o
preço do ovo aumentou porque manobras militares foram feitas em
área de criação de aves. Ninguém nunca ouviu falar que o
desemprego aumentou em tal lugar por causa dos gastos militares
excessivos. Ninguém ouve falar do arsenal atômico de Israel e
quanto isso custa aos EUA, ninguém ousa falar das despesas com
exércitos e armas, nem do custo elevado de ataques e invasões. A
França ao tempo que declarava bancarrota oferecia-se como parceira
pra atacar o Irã. Quer dizer: não tem dinheiro pra salário, mas tem
dinheiro pra guerra. A União Europeia tem Parlamento, Banco
Central, moeda, Constituição – mas todos os países mantêm
exércitos e serviços secretos particulares, um vigiando o cu do outro.
É ou não é muita safadeza? Fim do militarismo já! (21/11/2013)
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Olha pro céu, meu amor/Vê como ele está lindo/Olha praquele balão
multicor/Como no céu vai sumindo/Foi numa noite, igual a
esta/Que tu me deste o teu coração/O céu estava, assim em
festa/Pois era noite de São João/Havia balões no ar. Todo mundo
conhece a música de Luiz Gonzaga. Aquele balão multicor, o céu
estava em festa, havia balões no ar... Sim, balões no ar, é uma
tradição que corre a maior parte do território brasileiro desde que o
tem é tempo. Agora toda uma geração é avisada, com veemência
hitlerista, que fabricar, soltar, transportar e pegar balão É CRIME!
Após a informação vem a pena, 4 ou 5 anos, sei lá. Parece futilidade,
mas não é: precisamos atentar ao motivo dessa transformação –
crítica, se vê – a ponto de tornar folclore em crime. Estamos num
tsunami de leis. Quanto mais leis mais crimes, disse um jurista
famoso. Ontem o senado ocupou o ócio pra fazer uma lei sobre o
peso da mochila dos estudantes! A fórmula, peso corporal x
capacidade física, discrimina os gordinhos. Seria mais fácil adotar a
mochila de rodinhas, não é? Agora o Tiririca já sabe o que os colegas
dele fazem. (22/11/2013)

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Franco Rovedo anuncia: está de novo enredado nas teias da ficção.


Preenchendo páginas brancas com a tintura das palavras, se entope
de angústia. É o crochê das emoções, do amor, que traz a reboque a
inveja, o ódio, a dor, a morte. É a vida, a cidade, as calçadas, o
cinema, o bar, a casa – um punhado de tudo: argila com que o
escritor esculpe o romance, juntando pedaços de comoções. Ao
ultrapassar os anseios, dores e lástimas, tudo se mistura ao dia a dia,
ao viver cotidiano. Franco Rovedo se obriga ao risco de expor as
próprias vísceras ao leitor, mas é apenas uma partícula da arte de
sobreviver na selva humana que está ali. A caminhada é longa, o
universo é complexo – é o espaço subterrâneo, a cidade que habitam
moradores de rua, a residência de seres minúsculos. Construção
finda, o romance é impresso e lançado à leitura. Nesse momento o
escritor perde o poder, nada mais é dele, o texto passa a pertencer ao
leitor que, de per si e com assombro, assume seu próprio papel,
embrenhando-se no universo transfigurado da imaginação.
(23/11/2013)

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Conheço a covardia, conheço um covarde: eu sou um deles. Fugi de


muitas batalhas, não assumi posições, não falei tanta coisa que
devia, deixei de tomar atitudes e de comer muita mina gostosa –
tudo por covardia! Também a covardia me fez um sobrevivente,
muitas vezes ela me salvou da morte: por puro cagaço só saía dos
ensaios da Mangueira sete ou oito horas da manhã – ou emendava
com a feijoada dos sábados. Nunca fui assaltado nas madrugadas da
vida – por covardia não estava lá, minhas noitadas acabavam ao
meio-dia. Vi na TV José Genoíno saindo pra se entregar e cumprir a
pena a que foi condenado. Pulou, levantou os braços, saudou os
correligionários com urras e vivas! Estava tão vibrante e saudável
como um corredor de maratona. Depois que entrou em cana ficou
dodói do coração, pediu pra cumprir a pena em casa, traiu os
companheiros da Papuda. Pura covardia, fraqueza, medo, cagaço!
Genoíno, filho de Quixeramobim não costuma ser frouxo, não! Ao
menos siga o exemplo de meu companheiro Maxadão que, com três
pontes de safena, gasta nove camisinhas por semana na Vila Mimosa
e ainda cumpre pena em casa com a patroa! (24/11/2013)

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Somos boi? Surgiu na política carioca um rapaz chamado Rodrigo


Bethlem. É filho da atriz da TV Globo Maria Bethlem. Rodrigo foi
alçado como Secretário de Ordem Pública, cargo criado pra ele
aparecer. Todo noticiário da Globo lá estava o Rodrigo botando
ordem. Sabe o que é ordem pública? Não pode fazer xixi na rua, não
pode botar banca de camelô, não pode transar na praça, não pode
jogar camisinha no chão – uma porrada de não pode. E o que pode
tinha que ter ordem: fila pra entrar no ônibus, fila pra raspar a
cabeça, fila pra xixi, fala pra câmara de gás, fila pra virar sabão, fila
pra atravessar a rua e outras filas. O rol do “não pode” foi pra praia,
pra tomar banho: não pode frescobol, não pode porrinha, não pode
cachorro, não pode bagulho, não pode futevôlei, nem barraca,
cadeira, frango com farofa. Na Central fixou curral pra pedestre –
fila indiana, faixa pra assalto, calçada pra perder, pivete na Pç. da
República. Rodrigo foi eleito pra deputado federal – o carioca o
mandou pra botar ordem em Brasília. Ele foi? Foi nada! Inda
ganhou cargo novo! Outro rapaz que foi pra ordem pública levou
uma traulitada no pé da orelha ao vivo e a cores em pleno noticiário
da TV Globo. Isso é um aviso: o que estão pensando? Somos boi?
(25/11/2013)

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Fui visitar o cunhado, que anda mocorongo prumode uma ziquizira


que acometeu os pulmões. Fico chateado: por que as doenças não
deixam os velhos em paz? Para não chegar de mãos vazias fui à Casa
do Vacalhau, peguei binte bolinhos e um rango à moda da Galícia.
Bebendo vinho sem álcool, lembramos os velhos tempos, quando ele
– un chico, nomás – fainava novilhadas em Soutelo: deu azar e teve
que abandonar a tourada. Por causa de uma corneada na virilha,
parou de lidiar, finou-se a carreira. Virou sonho ser Manolete,
Dominguín, Ordoñez, Girón, Diego Puerta. Quando o generalíssimo
Franco o convocou para defender a pátria na África, ele se enganou
de navio: em vez de desembarcar em Ceuta, se viu recepcionado
pelas mulatas de Salvador. Pouco tempo depois estava toureando no
Largo do Machado, Rio, quando conheceu Eveline Miúra Boabaid. Aí
não teve jeito: encafifado pelos olhos verdes da maranhense, ele
pendurou de vez a capa e a espada – senão era capaz de levar outra
chifrada, desta vez fatal!

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Zé Andrade participa da 1ᵃ Bienal Internacional da Caricatura,


realizada no Centro Cultural da Justiça - Av. Rio Branco, 241 -
Cinelândia, Rio de Janeiro, de ontem a 12/01/2014. Tempo bastante
pra todo mundo ver. A bienal, porém, espalha-se por todo o país, da
Amazônia ao Pampa gaúcho. Zé Andrade é ceramista, então a sua
arte é icônica, escultural, multidimensional. Há mais de 40 anos Zé
Andrade expõe sua arte ao Rio de Janeiro e daqui ao Brasil e ao
mundo. É um veterano, mas a cada exposição treme na base como
um adolescente indo ao primeiro encontro da amada. Fica nervoso,
perde o sono, vara a noite, trabalha duro em busca da perfeição –
sempre quer oferecer o melhor. Nesse afã não hesita em arrastar os
amigos aos trambolhões, pra que também eles sintam a emoção e a
angústia de dar vida à sua arte. Também eu pego com alegria carona
a reboque da ansiedade, fazendo o possível e o impossível pra dividir
com Zé Andrade essa agonia, até que a exposição se inaugure e por
fim transforme toda a aflição em íntegra alegria. Vale a pena, podes
crer! Pra saber mais: www.bienaldacaricatura.com.br. (28/11/2013)

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Horário de verão: antes das seis horas o sol se salienta por trás do
morro da Mangueira e desaba direto na cama. Hora de levantar,
todo cuidado pra não despertar Anelka. A claridade ataca o corpo
dela em cheio, destacando as partes íntimas. Se alguém duvida que
Deus exista é ver cena igual. O clit um pouco proeminente, que
ressalta o seu lado andrógino (parece o pinto de recém-nascido)
brilha sob a luz. Os pêlos ralos, fios de ouro adolescentes, as penas
esguias, os braços soltos, o corpo todo relaxa em sono. Anelka se
mexe com o rumor enquanto me arrumo. Ao calor do sol abrem-se
as pernas, expondo mais ainda ao olhar a beleza das partes íntimas
(estranho modo de chamar a vagina). Tirei uma foto com o celular,
mas não vou postar: como as biografias, tais fotos precisam de ok
prévio! O Facebook censurou um poema de Hilda Hilst! – imagina
as partes outrora intimas de Anelka – não obstante ambos serem
belos! Enquanto me arrumo, a beleza de Anelka levita, se move no
ar, pênsil. Os lábios triscam – vagina sorri? – acho que sim, tanto
que me aproximo e enjaulo o riso brejeiro com um roço apenas. À
saída, na porta, dou a última olhada – preciso mesmo ir trabalhar!
(28/11/2013)

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Recebi o folheto na rua, o anúncio: Espírita-vidente Dona Cilda,


recém-chegada do Maranhão, aos sete anos de idade desvendou o
passado, presente e futuro de toda a sua família, agora é minha
vizinha, mudou-se pro Cachambi. Ainda não fui consultá-la porque
– a essa altura – não quero ser orientado sobre problemas
comerciais, particulares ou amorosos; não quero ninguém querido
de volta; não quero recuperar um grande amor; não quero ganhar
fortuna. Nunca fiz mal a uma mosca! – vou lá querer destruir
malefícios, ciúmes, invejas que alguém cometeu? E setentão na
idade terei tesão para alcançar êxitos, ter bom emprego, curar meus
vícios – que custei a adquirir e tanto prezo? Não me cabe recuperar
comércios falidos ou coisas tais. Se minha conterrânea, Dona Cilda,
chegasse aqui há tempos, estaria na fila de consulentes. Mas agora
fica como Deus quis – é bem melhor, né? Amores que não tive, livros
que não li, mulheres que não amei – pra que mudar? Poderia ser um
viver mais melhor? Nada! Este que carrego – jenipapo com açúcar –
rúim mesmo não é, nem jamais foi nem jamais será. (29/11/2013)

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No metrô sentei perto de um rapaz cuja opção sexual está protegida


por lei. Isso mesmo, um viado. Bonito, educado, voz delicada, do
mesmo timbre da vizinha de assento: eram duas moças
conversando. Eis um tema para o qual me preparei. Sexualidade?
Nunca vou discutir, tomar partido, criticar: mistério da vida, do
tempo do tataravô de Adão! Então pra que gastar tempo e
neurônios? Homens que são mulheres, mulheres que imitam
homens, com ∞ enigmas. Também não sou “politicamente correto” –
não vou desmontar a fama de rebelde que a custo construí. Mas
enquanto durou a viagem me coloquei numa posição de cobiça, sem
humilhar as mulheres com a tese freudiana da “inveja do pênis”.
Fico no popular: teria eu desejo de ser uma mulher bonita? Dona de
peitos enormes e sensuais? E que tal eu ficaria com uma bunda igual
à que ornamenta com louvor o corpo das negras e mulatas? E a
bocona da Angelina Jolie, não é de dar tesão em qualquer um? Essas
ambições até que dão certa compreensão ao desejo de ser outro(a).
Mas, chegando em casa, o espelho mostra a realidade: que tesão
dará uns pobres mamilos cercados de pêlos grisalhos, ou uma bunda
murcha que já perdeu a elasticidade e nem pra assento serve mais?
(02/12/2013)
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Uma amiga, que só leu meus textículos depois que implorei


genuflexo a seus pés (ela nua, claro), concluiu que escrevo “só coisa
rúim” porque tive uma infância difícil, infeliz. Minha infância foi
normal, até onde me lembra. Fui à escola pública, mergulhei nos
rios, joguei bola na rua, namorei, tomei banho de chuva, fui demais à
praia, espiei meninas nuas, caminhei horas pra encontrar o paraíso,
debaixo dos juçarais, me masturbei, afundei de olhos abertos em
nascentes límpidas e aos doze anos aprendi com a empregada de
dezoito como se faz neném. Isso é infância difícil, infeliz? Se existe
algo pra reclamar é que o velho João Rovedo educava à moda antiga
– na chibata! Mas tive uma mãe capaz de botar o indicador no nariz
dele e desafiar: – Bate! O velho recuava. Dona Mizika sabia a hora de
abrir as pernas. Mais tarde, sendo pai, me vi no papel do vilão, a
tempo de refletir: – Péraí, estou usando em meu filho o que meu pai
fazia comigo? Preferi ganhar as causas pela ameaça, mais tarde na
conversa e, por fim, com o silêncio, o abraço, o sorriso, a
cumplicidade. Ainda bem, senão em vez de filhos teria inimigos.
(03/12/2013)

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Quero ser Xenia Antunes, que largou Copacabana no auge do verão,


as águas mais verdes da face da terra, largou o hotel Copacabana
Palace recebendo os mais famosos astros internacionais, sem se
despedir das ondas que encaixotavam na areia, nem da
arrebentação, nem dos pegadores de jacaré que ficavam
encarcerados na maré até que o salva-vidas fosse dar uma mãozinha.
Eu quero ser Xenia Antunes, que trocou o barzinho dos becos, o
Alcazar, o Pérgula, trocou os assovios dos garotões pelo pipilar dos
sanhaços, canários e pardais, que perdeu o prazer de descascar a
pele queimada no último verão, de cobrir as sardas e o nariz com
hipoglós pra se proteger do calor de 40°C. Eu quero ser a Xenia
Antunes que trocou as ondas turbulentas do oceano pela marola
mansa do Lago Niemeyer, eu quero ser Xenia Antunes que ao pisar o
solo de Brasília declarou: - ¿Hay gobierno? ¡Soy contra! Eu quero ser
a Xenia Antunes que plantou um mamoeiro, escreveu um livro de
poesia, pariu uma banda de rock, desconstruiu um mito chamado
Lula e ainda encontra tempo para pintar, fotografar, desentranhar
um estranho fruto chamado blues e amar Billie Holiday. Etc.
(04/12/2013)

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Tomo às manhãs o cafezinho diário no bar e restaurante Aveiro, dos


irmãos Manoel e Pereira. O Pereira há tempos não trabalha –
contou-me o Manoel – recolheu-se, as pernas destroçadas pelas
varizes, que o trabalho duro dos emigrantes patrícios ocasionam.
Anos e anos gastando energia e saúde em pé, pra lá e pra cá a
atender fregueses, minam a resistência das pernas, corroem as
articulações, dinamitam os joelhos. Tudo isso com a obrigação de
atender sorrindo e com amabilidade. Ao passar, aceno à distância,
“bom dia”, a mão espalmada; ele responde com o polegar e o
indicador próximos: “um cafezinho”; aponto o polegar para
baixo:“não, não dá” e com a mão no ritmo da vassoura do baterista,
“tenho pressa”; duas voltas com o indicador , “depois, mais tarde”;
ele levanta o polegar, “ok, entendido”, de novo acenamos os dois,
“xau! bom dia!” Essa linguagem de gestos corre o mundo, com
mínimas variantes, mas no amor não funciona – o amor exige gestos
econômicos, proximidade, odores, líquidos, cheiros, agarramento,
saliva. Nem mesmo para o ciao as mãos se movem, basta um breve
cruzar de olhares. (06/12/2013)

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Todo mundo já escreveu sobre Nelson Mandela. Não sobrou uma


mísera vírgula para que eu possa enaltecer esse amigo da
humanidade. Guardei dele um fato simples: Mandela foi convidado a
gravar o na TV o convite para a Copa do Mundo de Críquete de 2011,
a ser realizada na África do Sul. No estúdio, recebido com mesuras,
deram-lhe um chapéu alegórico, de palha, abas estreitas, fita preta,
desses que caracterizam o típico malandro. “Por favor, ponha este
chapéu na cabeça”. Mandela, com rapidez e puro instinto, botou o
chapéu da maneira mais carioca possível: de viés, caindo sobre os
olhos, o nariz, tapando todo o rosto. Foi uma gargalhada geral! Com
o gesto Mandela quebrou o protocolo. Se a gravação saísse assim,
ninguém veria ali o Nelson Mandela, patrono do evento. De repente
os técnicos, diretores, o estúdio todo – inclusive eu, anos depois,
vendo o documentário –, tivemos que render a ele lágrimas de
emoção. Nelson Mandela assumiu uma missão e depois de cumpri-la
recolheu-se, não quis ser político, não quis apodrecer – senão como
a árvore que o tempo encarquilha e derriba. Eis um homem que eu
gostaria de abraçar. (07/12/2013)

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Hoje é aniversário de Yasmin, minha neta de oito anos! Outro dia,


em julho, data nacional da França (tomada da Bastilha), Calian, o
outro neto, fez sete anos. Parabéns, beijos e cheirinhos aos dois deste
avô relapso. Mas o fato misterioso dessa convivência com eles,
confesso: tá tomando jeito. Os netos, os netos fazem avôs agirem
como gostariam ter feito com os filhos, mas a vertigem do tempo não
deixou. Ao mesmo tempo, avô não deve tomar espaço dos pais que,
por dever e amor, têm de estar grudados aos filhos queném
carrapatos. Quanto carão levei por não ir à festa deles. Ora, a festa é
deles, dos amigos deles, dos primos deles, a festa é das crianças,
nada mais justo deixá-los livres para desfrutar o momento e
consolidar a amizade com amigos e parentes. Sabemos, por conta
própria, que no tempo certo a vida exigirá que estejam juntos e
amigos. Sabemos também que a adversidade – até mesmo a
felicidade – cuidará de contaminar amizades não solidificadas na
infância, na juventude. Papai, mamãe, titio, titia, primos, parentes e
aderentes: com seu próprio exemplo provem aos netos que a
amizade, a família, a tribo, tem importância e valor. Amanhã poderá
ser tarde demais. Beijos. (08/12/2013)

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Martiniano nunca mais irá a Cururupu. Martiniano vai morrer na


Praça Mauá. Depois que o conheci, ele soube que estive em
Cururupu, ficamos amigos. Martiniano me contou que tem um
irmão branco: – Eu sou preto, mas meu irmão é branco, dizia.
Martiniano não é preto, é cabôco rijo, forte, que rilha os dentes pra
provar: – É tudo natural, meu ainda! Não sei como Martiniano veio
dar com os costados no Rio, mas está aqui desde rapaz. Trabalhou
anos a fio numa fábrica de roupas, homem de confiança do patrão. A
fábrica fechou, Martiniano tinha tempo pra aposentar, mas o patrão
não depositou INSS e FGTS. Martiniano sofreu cinco anos até
receber: – Agora vou ver meu irmão branco, volto pra Cururupu. O
tempo passou e Martiniano toda vez que me vê repete que está
arrumando a mala. Mas o cabôco rijo e forte foi derribado pelo
álcool, travestis, prostitutas e amizades afins. Morou num sobrado
da Prainha, hoje não sei onde dorme, dizem que é chegado a
cheirinho da loló e chupa carreira, mas não acredito: Martiniano não
tem grana pra comprar papelote – ele sabe – se não pagar, morre.
Martiniano não vai nunca mais a Cururupu. Martiniano vai morrer
na Praça Mauá, no Beco do Escorrega, na Pedra do Sal, na Rua Jogo
da Bola – adeus Cururupu! Martiniano vai cair na Praça Mauá. Vai
pra vala com a boca cheia de formiga. Ê Martiniano, meu amigo,
nunca mais Cururupu. Ê Martiniano, meu chapa, nunca mais
caranguejada – vais morrer na Praça Mauá. Martiniano não vai ver
nunca mais Cururupu. (09/12/2013)

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Crianças, outro dia eu comprei uma juçara pensando que iria matar
as saudades de minha terra, mas a disgrama veio junto. Primeiro –
não reparei que a dita era misturada com... tcham... tcham... tcham...
morango! Quando provei o desastre confirmou-se: ô diacho danado
de rúim! Combinação errada... Aí, só então, como bom brasileiro, fui
ler a fórmula, ou seja, os famosos “ingredientes”, sempre detalhados
com aquelas letras miudinhas pra cacete. Então, vamos lá:
Ingredientes. Polpa de açaí médio (que merda é açaí médio?), min.
50%; água, suco de morango concentrado, açúcar, corante carmim
de cochonilha, acidulante ácido cítrico (INS 330), estabilizante goma
xantena (INS 415), antioxidante ácido ascórbico (INS 300), extrato
de guaraná, aroma idêntico ao natural do açaí, aroma idêntico ao
natural do guaraná e aroma idêntico ao natural do morango. O nome
desse líquido estranho é Amazoo (os habitantes desse ‘zoo’ somos
nós, os consumidores), o fabricante é uma tal Globalbev Bebidas e
Refrigerantes Ltda. Mas, peeraaíí, esse final ‘bev’ não lembra alguma
coisa, tipo assim, Ambev? Empresas desse porte têm de cuidar mais
de seus produtos, não é? Ademais, alguém pode me explicar porque
nós, moradores de um país tropical, abençoado por Deus e bonito
por natureza, somos obrigados a beber tanta porcaria? Arre! Mil
vezes arre! (10/12/2013)

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Estou há tempos sem beber – culpa dos achaques da idade. Outro


dia, porém, não resisti à irlandesa Murphy's Stout que me espiou do
bar “Angu do Gomes”, ali na Prainha, colado à escadaria da Igreja de
São Francisco. Latona de meio litro, geladinha, amarga, ô bicha
gostosa! Ingredientes: água, levedo, malte, cevada. Nada de corante
caramelo nem conservante. A preta amarga tem uma bolinha dentro
que, ao ser aberta, provoca uma voragem de espuma fervilhando
copo acima. Encostei ao balcão, conversa vai conversa vem, fiz
amizade com os donos – tudo rapaziada – dizque neto do velho
Gomes, portuga que enricou vendendo angu à baiana na madruga do
Rio, na Praça XV, Cinelândia, Praça Mauá e adjacências. Fogareiro
no fundo do panelão incrustado em carrinhos, o angu, com pimenta
de fazer suar frio o couro cabeludo, saía em pratos de ágata, comido
a colheradas. Na moita, pros íntimos, servia-se um grogue da
branquinha – ninguém é de ferro! Nesse mesmo bar tem um estoque
de caninha da melhor procedência e qualidade. Só tem um defeito: a
turma tomou gosto pelo lugar – só vive cheio! (14/12/2013)

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Márcia. Se eu estivesse ao teu lado, sabe bem o que iria acontecer,


né? Te daria um abraço arrochado e demorado (de dar inveja a teus
melhores amigos), olharia bem fundo esses olhos de mil tons de
verde... E ficaria em silêncio. Não daria uma só palavra, apenas o
olhar romancearia o momento. Meu coração, a essa altura,
repinicaria como um reco-reco, revirado pelas ondas da emoção. É
certo que meus olhos se encheriam daquele líquido cuja fórmula
ninguém descobriu – como agora mesmo ocorre quando escrevo.
Isso tudo porque tu és a pessoa autorretratada neste Facebook,
confissão de coragem, vibração, fé e amor. Viva 17 de dezembro! Um
beijo na bochecha, desde o Rio de Janeiro, deste teu primo “não sei o
quê”. (17/12/2013)

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Zébarela tá com o ânus em festa, embora dolorido. Ele veio pro


Brasil, como milhares de rapazos, contra a convocação de Franco pra
guerras coloniais. Pepe é pacífico: quando fica puto com a gente, dá
beijos – moda espanhola (beijar homem) que nunca pegou aqui. A
gente somos macho! Um dia viu Eveline Boabaid Rovedo num
ônibus (mãe a tiracolo) e caiu na armadilha. Nem se deu conta que a
velha estava caçando marido pra desencalhar a caçula! Se amarrou
aos olhos verdes de Bella e teve três filhas. Duas espanholas: Simone
e Samira – uma brasileira: Sabrina (quem conhece sabe do que falo).
Educou-as como bom pai – nem uma palmada sequer, mesmo nas
que herdaram o musculoso e amplo nadegueiro da vovó Mizika.
Natural de Pontevedra, Galícia (a terra mais brasileira de Espanha),
Pepe sempre visita a família, depois presta conta dos pecados em
Fátima e traz algo pra eu beber. Aguardiente de hierbas, brandy de
Jerez, Lacrima Christi de Málaga e uísque hecho en el Paraguay do
freeshop do Galeão, pecado que N. S. de Fátima perdoa. Parabéns
Barela, já já vou aí te dar um abraço! (18/12/2013)

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Ferreira Gullar é um chato: tudo que ele diz tem estrume, polpa e
sabor – a gente gosta. No programa Impressões do Brasil, Gullar
conta algumas fábulas, entre elas porque foi comunista e como a
poesia é necessária. A primeira foi devido à leitura do livro de um
padre sobre Marx, dividido em duas partes, que revelava, com
aptidão, o que é o marxismo e provava porque padres não podem ser
comunistas. Gullar leu a 1ª parte e absteu-se da 2ª porque não ia ser
padre – logo virou comunista de carteirinha e retrato 3x4. A segunda
fábula versa sobre vizinho de mesa chato – um economista porteño
casado com uma bonita brasileira, em Buenos Aires dividia a mesa
com o poeta. Gullar só ouvia um tema: economia, economia,
economia, coisa chatíssima para poetas. Certo dia a morena largou o
porteño e quando Gullar o viu após o fim do namoro imaginou o
quão trágica seria a conversa: economia, dor-de-cotovelo, paixão.
Mas não foi o que ocorreu: o economista mostrou seu profundo
conhecimento de poesia – e eis a razão da fábula: a poesia é
necessária porque a morena bonita existe. Façamos um esforço de
imaginação: o que teria ocorrido se Gullar lesse apenas a 2ª parte do
livro do padre e a morena bonita vivesse com o porteño, felizes e
apaixonados para sempre? (19/12/2013)

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sou porque tu és; tu és a criatura mais linda; tu és eu sou e somos; tu


és uma pequena folha; tu fazes tremer meu peito; te amo; tu és a
alegria; te procuro todo tempo; te olho no infinito; tu não te
mostras; será que tu existes? não te encontro no Google; não te
encontro nas religiões; tu estavas – bem te vi; te busquei não
encontrei; te descri na crença; tu tens todas as faces; tu és a
nacionalidade; te ofendi e caí; quem tu és? te encontrei nos amigos;
te vi fazer nascer o amor; tu és velho no mundo; nunca te vi com
fartura; dentro de tudo estás; tu és livre; tu és o problema; tu és a
dificuldade; tu és a solução; tu és o amado; tu és o furto da terra; tu
és a resiliência; tu és o obstáculo; tu és a saída; tu és a cor da pele; tu
ofuscas até o sol; tu és a lei do ouro; tu és o primeiro passo; tu és a
vida; tu és diamante e pedra; tu és a decepção; tu és a felicidade; tu
vales mesmo sozinho; tu és irresponsável; tu mudas as pessoas; tu és
o silêncio; tu és cego; tu és a mentira e a verdade; tu silencias – mas
o mundo não vive sem ti... teu nome é dinheiro. (21/12/2013)

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Antes de eu morrer terás raiva de mim, odiarás trocar fraldas,


temerás as caminhadas noturnas, não suportarás o peso morto deste
corpo cansado. Antes de eu morrer o ruído de copos e pratos
quebrados ferirá teus ouvidos, abominarás os farelos de pão, o arroz
no sofá. Antes de eu morrer te envergonharás dos olhos remelentos,
das ereções involuntárias, da saliva fluindo dos lábios, criticará o
leite derramado, a panela com água esquecida no fogão. Antes de eu
morrer me detestarás, porque levanto cedo e esfolo o ar com o som
de Beethoven, levantarão tua ira o mau hálito e o mijo fora do
sanitário, te zangarás porque não faço a barba, uso roupas
amarrotadas e sujas, não corto as unhas. Antes de eu morrer te
ofenderá a aparência, os cabelos desgrenhados, os óculos
remendados com fita durex, terás ataque de fúria se eu ficar olhando
a bunda, os peitos das visitas, te irritarás com a piada de mau gosto.
Antes de eu morrer tua cólera se acentuará se no banho molho o
chão todo e com furor me odiarás quando, antes de eu morrer, eu
ficar bêbado. Depois que eu morrer ficarás aliviada, mas ainda assim
te queixarás do peso do caixão, porque morrerei velho, gordo e
caduco. (22/12/2013)

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Facebook adeus! Foi ótimo participar da rede – mina de ouro e lixão


– mas o bicho cresceu e quer tomar conta de mim, quer me dominar,
coisa que meu anjo rebelde não permite. Cresceu tanto que não dá
pra tomar conta sem ter uma secretária. Aí entra a questão da
bufunfa: sempre fui durango, sempre vivi como as cigarras, sempre
sambei a vida na flauta. Não podendo ser formiga (vôte Kafka!),
deixo o Face, mas não fecho a página. E mais: autorizo o uso, a
cópia, escrevam o que quiserem. A gente se vê por aí: o mundo tem
ruas, calçadas, becos e praças pra encontros; tem bares,
restaurantes, cafés e sorveterias pro papo; tem bairros, igrejas,
clubes, associações pra ver gente; tudo serve pra encontros, bate-
papos, convescotes e uniões safadas. Esqueci os motéis? Também
serve. Enfim, quem quer acha, como diz o ditado. Eu acharei, tu
acharás, eles acharão e todos ficarão felizes. E ainda tem a passeata,
o protesto, o chute na lixeira, o grafite, as exposições, os museus,
alguns poetas poetando aos berros! Coisas que reúnem gente, já que
as revoluções armadas estão em desuso. Facebook adeus!
(25/12/2013)

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Era Curitiba no outono

Era Curitiba no outono:


Um gato de rua sem dono
Alguém desperto, sem sono
Um corpo nu em abandono
A língua lambendo o cono
Som que toca Yoko Ono
A quem hoje decepciono?

Em Curitiba no outono:
Solidão que coleciono
Provar que não me apaixono
Posição que não questiono
Fico só, mas não telefono
Ouço Mahler e desmorono
(Nem assim me emociono).

Era Curitiba no outono:


A polaca tira o quimono
Atrás do biombo espiono
Olhar a que condiciono
E nessa ação estaciono
Inútil e não soluciono
A fraqueza que aprisiono.

Em Curitiba no outono:
O corpo branco monótono
Nenhum tesão ocasiono
Se o esfíncter pressiono
O ponto erógeno seleciono
E o prazer proporciono
Mas logo depois atraiciono.

Era Curitiba no outono:


Café com conhaque detono
No Bacacheri me apaixono
Na Da Mamma me acantono
Do Forrer Garcia sou colono
E antes que venha o sono
O velho sátiro aciono.
Em Curitiba no outono:
Um corpo morto sem dono
Um homem só sem sono
Na Rua XV em abandono
O gozo correndo do cono
Preto e crespo de Yoko Ono
A quem mais decepciono?

(28/04/2018)

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Comecei o tratamento contra a gastrite bacteriana. É um


bombardeio diário de dois antibióticos mais omeprazol. Nunca fui
de tomar antibiótico por qualquer dor de garganta. Assim, acho que
a absorção será boa, com ataque virulento ao figueiredo (modo
íntimo de chamar o fígado). Omeprazol é uma usina de gases. Às
vezes tenho que sair de perto de mim mesmo para suportar. Até o
gato que gosta de assistir futebol comigo deitado entre minhas
pernas, outro dia recebeu um míssil direto. Ele me fitou com aquele
olhar de censura, tentei me desculpar, juro, mas nada: sacudiu o cu
na minha cara, levantou-se e saiu para a varanda em busca de ar
fresco... (30/04/2018)

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De que reclamas, minha úlcera? Sempre te dei do bom e do melhor.


A melhor linguiça, torresmo crocante, bacon gordo, a pimenta mais
picante. Te servi acepipes finos do mar: bacalhau, camarão, ouriço,
ostra, sururu, caranguejo e siri. Aos sábados te servi a premiada
Feijoada Carioca, com orelha, paio, chispe, carne seca, lombo,
costelinha, goela, linguiça calabresa, rabinho, etc. Sempre te servi a
melhor cachaça mineira, tiquira de Santa Quitéria, Bourbon do
Tennessee, Irish Whiskey, Malt Whisky até o nobre Rye. Vinhos
chilenos, argentinos, portugueses e gaúchos. Os melhores chopes e
cervejas. De que te queixas, minha úlcera? É bem verdade que
algumas vezes errei: bebi cachaça ruim, bebi cerveja de milho, bebi
Ambev. E com razão reclamas. Afora isso nunca te decepcionei,
minha úlcera. Jamais conspurquei tuas entranhas com um copo de
leite! E nas noitadas de solteiro, muitas vezes premiei tuas mucosas
com porções divinas do esperma de lindas mulheres. De que
lamentas, minha úlcera? (02/05/2018)

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Recebo um estranho telefonema:


- Alô. Estou falando com (pausa) Salomão? (pausa) Sim ou não?
- É ele mesmo. Pode falar.
- Não entendi. Repita. Estou falando com (pausa) Salomão? (pausa)
Sim ou não?
- É sim! Pode falar!
- Favor desconsiderar esta ligação.
Que porra é essa?
(04/05/2018)

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Meu neto faz prova de História. Qual é o tema? Diásporas Gregas.


Ele explica: a primeira se deu quando povos atacados pelos dóricos
ocuparam a Ásia e ilhas do Mar Egeu; na segunda, os camponeses
expulsos fugiram para o Mar Negro e Península Itálica buscando
lugar para viver. Também estudei isso, mas de quê serviu? Para
nada! Porra nenhuma! Tanto que esqueci. Ele também sabe disso,
porque falou que o aluno deveria escolher o quê estudar, sem ter
currículo obrigatório. Ele ainda não entende o que é dominação
social. PS: A Diáspora Nordestina se deu quando roceiros foram
expulsos por latifundiários e partiram para São Paulo. A migração só
diminuiu quando os atacou estranho surto de perda do dedo
mindinho – mas isso é outra história... (07/05/2018)

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Um dos maiores absurdos que vieram à luz, trazidos pela


roubalheira que assola o país, é a “renúncia fiscal” dada a fabricantes
de refrigerantes. Dentro da generosidade tem outra Lava-Jato
esperando ser desvelada. Ora, todos sabem que as maiores
indústrias de bebidas são multinacionais, leia-se Coca Cola e Ambev
(Pepsi), que também fabricam cervejas e bebidas alcoólicas. São
empresas bilionárias que não precisam de um centavo de incentivo
fiscal, quanto mais de renúncia. Imposto tem esse nome porque é
imposto. Não é facultativo, tem de pagar. Nós, os fudidos, pagamos,
então por que a Coca Cola & Ambev não pagam? Quero ver se o
próximo filho-da-puta que assumir vai ter coragem de mexer nesse
vespeiro. (10/05/2018)

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Há cinco anos a Band botou no ar o canal Arte-1 que - entre altos e


baixos - se transformou em boa opção de TV. Com bom trabalho e
talento, Gisele Kato & Equipe optaram por valorizar a produção
brasileira e abrasileirar as estrangeiras. Peca aqui e ali, mas é um
bom canal. Invejando o filão, chegou o Film&Arts, reproduzindo
Hollywood e BBC. Parece que a AMC Networks dirige o canal à
distância: vinhetas trocadas; tradução de merda; legendagem fodida;
sinopse nenhuma! Programação ao gosto de gringo de hotel. Musical
à moda Broadway como “Jekill&Hyde”. Danças inverossímeis:
“Calígula” ou “Sidarta”; óperas desfiguradas por catalães malucos do
Fura dels Bals... Isso e outras porralouquices o canal enfia miolo
adentro pensando que o Brasil ainda é colônia de Portugal.
Film&Arts, assim não dá! Que tal copiar logo o Art-1? (14/05/2018)

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Sobre O Pianista da Rua da Carioca - Agradável mergulho no Rio


Antigo. Ótima "narrativa em abismo", uma história dentro da outra.
A história "moldura", Rio dos anos sessenta, tempo do Zicartola, de
A Guitarra de Prata na Rua da Carioca, do narrador da história. A
história dentro da história, o Rio Antigo, de Machado de Assis,
Arthur Napoleão, Arthur Azevedo. O fio condutor, um velho afinador
de pianos dublê de pianista. Trama muito bem urdida, agradável
leitura para os apaixonados pelo Rio de Janeiro. Ivo Korytowski
(14/05/2018)

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Fiquei impressionado! Conhecia-o como "bom" jogador de xadrez e
já havia lido alguns de seus trabalhos. Mas, este mais recente (que
espero seja o precursor de muitos outros), me deixou
impressionado. Baixei-o e ao ler o comentário de Ivo Korytowski
iniciei a leitura Li de uma tacada só. Uma reencarnação de Machado
de Assis contemporâneo, no estilo que flui suavemente, entretendo o
leitor desde a primeira frase, na verdadeira crônica dos tempos
imorredouros deste Rio de Janeiro. . Uma máquina do tempo
preciosa. Uma obra de Mestre. Parabéns. Guilherme Ulrich von
Calmbach (16/5/2018)

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O Canal +Globosat realizou uma série temática de produções


brasileiras que abrangem várias facetas culturais. O tema bebidas
inclui o Vinho, a Cachaça, a Cerveja e o Café. Tem séries sobre
hotéis, restaurantes, lugares especiais e por aí vai. A primeira série
foi sobre fotografar o nu feminino, tema sempre controverso, pois
transita entre pornografia e arte. O trailer vem em takes da
produção. Na primeira cena a modelo que está sendo maquiada para
fotografar diz à câmera: – Aqui não se trata de sexo. A gente quer
beleza. A gente quer arte. Ilustra a divulgação uma foto da Revista
Sexy: é o close de uma boceta depilada com aquele corte que os
americanos apelidaram Brazil. Consiste em deixar apenas um fio
vertical de pentelho que desce em linha reta até – digamos – a gruta
do amor. – Porra, minha querida, assim não dá para falar em
arte... (18/06/2018)

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Está confirmado: não há planos dos produtores para continuar a


série do Comissário Maigret, baseada na obra de Georges Simenon.
O drama, apresentado como substituto da série Poirot (estrelada por
David Suchet), depois que perderam os direitos sobre a obra de
Agatha Christie, tem Rowan Atkinson como detetive Jules Maigret.
Quatro episódios foram adaptados da infinidade de personagem
criados por Georges Simenon: Maigret sets a trap, Maigret's
dead man, Maigret at the crossroads e Maigret in
Montmartre – divididos em dois blocos no canal Film&Arts. A
série sobre o ambíguo detetive belga Hercule Poirot (estrelada por
David Suchet), está impecável, à beira da perfeição. É carto que vi
um carro inglês (com volante ao lado direito), em episódio filmado
na Riviera francesa. Mas isso é de menos. Como sobremesa tem um
documentário das filmagens completas do Detetive Poirot por David
Suchet, até Curtain: Hercule Poirot's Last Case, no qual o bigodinho
morre. (22/06/2018)

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Estou cheio de fofocas. Em tempo de eleição, então nem se fala. Mas


o que sei é que esse tipo de notícia se é fake não é news. Se for news
não é fake. Fake é fofoca antiga, do tempo da bisavó. News é a fofoca
de hoje, pois ainda nem aconteceu. É isso, de fato: entrou pelo cu do
pinto, saiu pelo cu do pato. Quem quiser que conte outra - eu já
contei mais de quatro! (23/07/2018)

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Hoje o PT está na linha de frente dos partidos acusados de


corrupção. Mas historicamente sempre foi o MDB-PMDB-MDB que
vem assaltando os cofres do país há mais de 30 (trinta) anos, desde
que se formou sob as asas da ditadura. Aliás, uma pergunta se faz
necessária: os Partidos não serão acusados de nada? Os partidos não
serão julgados e condenados a devolver o dinheiro de corrupção,
propina. caixa 2 - ou seja lá o que for? Dizer que quem cometeu os
crimes foram pessoas, e não os Partidos, é conversa mole pra boi
dormir. Os partidos - riquíssimas empresas com CNPJ - sim, são
corruptos e corruptores. Pau neles! (15/09/2018)

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Reunião dos Boabaid no Rio de Janeiro, com o acréscimo do Jorge e


Samira, catarinenses que hoje juram que são curitibanos. Curitiba é
assim: enfeitiça os que chegam de passagem e acabam ficando... Foi
uma maravilha de noite junto com a “primalhada!” Rolou tudo de
bom e - pasmem! - ninguém falou de política! Adorei o encontro com
os primos. Eu, Jorge e José – com a ajuda do anfitrião – demos um
baque no estoque de uísque 18 anos da casa. Foi muito bom. Vi,
abracei e conversei com as pessoas que amo, o primo e as crianças
Adriana e Mariana (esta super-independente!). Amelinha tocou
piano divinamente bem. Todos os momentos foram ótimos - o que
me deixou feliz, pois sempre estarão em minhas lembranças.
Verdade!!! (20/10/2018)

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Acabo de picotar, rasgar e jogar fora 1.953 páginas de papel com


escritos e manuscritos antigos, achadas ao ser obrigado a me
desfazer de meus livros e estantes – porque “acumula muita poeira”.
Deixei o calhamaço de lado por ano e meio, com pena de jogar fora:
afinal eram escritos que registravam grande parte de meus
pensamentos de amor, de ódio, de vida, de morte. Tudo passou por
eles: paisagens, praias, mares, rios, flores, pássaros, aviões, gente,
bichos. E também posições políticas e temas pseudo-filosóficos,
permearam fantasias e mistérios nos contos, artigos, sonetos,
sextilhas e uma versalhada livre sem fim. Até que de supetão resolvi
detonar tudo. Estou livre. Mesmo porque entre as notas achadas
estava esta citação de não sei quem: “tudo é viver... e sair do mundo
o mais tarde que puder”. Amém. (27/10/2018).

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Em 1988 Rubem Fonseca publicou o romance “Vastas Emoções e


Pensamentos Imperfeitos”, texto caótico, estilo thriller, muitos
personagens. Entre eles tem um profético: José, irmão do narrador,
pastor evangélico, bem sucedido na carreira empresarial-religiosa,
contraponto ao cineasta fodido na vida. Certo momento eles
discutem:
“Não somos mais aqueles ‘crentes’ ridicularizados pelos católicos,
segregados em guetos na periferia das grandes cidades.”
“Vocês pretendem chegar à Presidência da República?”
“Nosso objetivo não é a Presidência da República. E se fosse?
Pergunto: por que um membro da Igreja evangélica não pode ser
presidente deste país? Tivemos presidentes fazendeiros, advogados,
militares, médicos — por que não um pastor evangélico? O que um
pastor evangélico poderia fazer que fosse pior do que fizeram todos
esses que já ocuparam o cargo?” (02/11/2018)

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Também morador do Méier desde que cheguei ao Rio de Janeiro nos


anos 1960, conheci Agripino Grieco já octogenário. Conheci sua
fantástica biblioteca e me disse que sabia onde estava localizado
cada um dos mais de 30 mil livros. Visitei-o algumas vezes e ficou
contente quando soube que eu era colaborador do jornal do bairro.
Volta e meia recebia estudantes que iam à sua casa pesquisar para
fazer trabalhos escolares. Quando sugeri levar um gravador para
registrar nossas conversas ele me disse: -“Não precisa gravar,
escreva de memória. Do que não se lembrar, invente”. O material
que escrevi sobre ele saiu às pressas - sem revisão - no Suplemento
Cultural da Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), com o título:
Agripino Grieco, o esgrimista da palavra. Era uma homenagem na
semana do seu falecimento, causado por uma operação cirúrgica
malsucedida. Ele era "rendido", como se diz popularmente de quem
tem hidroceles testicular. O velhinho simpático deixou saudades.
Hoje a sua casa é uma padaria bem típica do subúrbio e o seu busto
se mudou para a Rua Dias da Cruz, no lado nobre do bairro.
(22/11/2018)

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Bichos no cio
Penumbra. (murmúrios) Janela. Quarto. Cama. Corpos. (risos)
Lençol. Calor. Travesseiros. Carne. (mordidas) Pés. Dedos. Pernas.
Coxas. (cicios) Púbis. Pentelho. Boceta. Ventre. (zunidos) Umbigo.
Seios. Mamilos. Dentes. (gemidos) Lábios. Língua. Cabelos. Pêlos.
(suspiros) Colo. Pescoço. Nuca. Espádua. (sussurros) Costas.
Covinhas. Nádegas. Cu. (silêncio).
Rio de Janeiro, Cachambi, (24/11/2018)

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Pelo roteiro, pelos atores, pelas falas, o próximo governo está se
transformando numa novela imperdível. Sendo ateu e agnóstico, o
único que peço a Deus é que me deixe viver para ir até o fim desse
governo que se anuncia. Aí sim, ao final poderei morrer... de rir, de
chorar - de qualquer merda enfim! Mas não posso perder os
próximos episódios dessa emocionante série. Por favor, Deus, atenda
o pedido deste pecador irremediável. (25/11/2018)

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No tempo em que assédio não era crime, eu pegava o ônibus às 6h


da matina, lotadão. Uma vizinha subia no ponto seguinte e se
protegia do sufôco das feras na minha frente. Assim, num roçadinho
consentido, fazíamos a viagem tranquila, sem estresse. Mas chegou a
Lei do Assédio e eu me contive. Ela entra, se coloca na minha frente
e eu... nada. Ela me olhou: – Qualira! Eu: – Mas eu não sou
maranhense. Olhos nos olhos: – Baitôla! – Peraí, nunca fui ao Ceará!
Moro no Rio... De novo, cara a cara: – Viado! Ah, não. Aí feriu meu
orgulho, atacou minha honra. Quer saber? Foda-se a Lei de Assédio.
Logo ela se acalmou e a viagem voltou à tranquilidade de sempre.
(01/12/2018)

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O presidente Bolsonaro falou que vai mexer nos contratos de


patrocínio da Caixa. Se não for fakenews, parabéns! Não faz sentido
a Caixa patrocinar entidades e clubes que têm dívidas com o Estado.
E todos têm! A CEF é uma Caixa de Pandora pior do que a
Petrobrás: daria uma Lava-Shit inteira. Basta dizer que o banco tem
12 vice-presidências! Todas ocupadas por políticos, indicações de
partidos, etc. Cada qual com assessores, adjuntos, chefes de
gabinete, secretárias, motoristas – que devolvem parte do salário ao
patrão. Geddel Vieira Lima foi nomeado Vice-Presidente de Pessoa
Jurídica da CEF, como prêmio de consolação por ter perdido as
eleições para Jaques Wagner ao governo da Bahia em 2010. Toda a
parafernália que sustenta a pilantragem oficial que assola o país está
na CEF. (14/12/2018)
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Confesso! Também fui consultar o Médium João de Deus. Estava


com medo do câncer de próstata. Depois de um exame no Rio de
Janeiro, o urologista fuçou meu cu todinho e falou que eu estava
condenado. Só o Dr. João de Deus pode te salvar – ele disse. #Partiu
Abadiânia! Fui no rastro de Lula, Dilma, Bill Clinton, Hugo
Chávez, Chico Anysio, Xuxa, Marcos Frota, Marina
Abramović e Shirley MacLaine. Dr. João pediu-me para tirar as
calças e depois de minucioso exame mandou vir uma pomada feita
na farmácia Inácio de Loyola. “Olha meu filho – disse mostrando as
duas mãos – eu não faço nada. Quem irá te curar é Deus”. A
massagem deliciosa continuou por 10 minutos, num vai-e-vem
ritmado – como vocês estão cansados de saber. Peraí, João! Não sou
qualira! Ele nem ligou e logo depois me senti bem melhor. Só hoje vi
que tinha sido vítima de abuso: vaselina não cura próstata inflamada
porra nenhuma! (16/12/2018)

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Hoje de manhã vi na TV um anúncio de comprimido vaginal. A


propaganda não dizia nada sobre como usar. Apenas que se tratava
de medicamento contra aquela coceirinha gostosa que as meninas
têm, mas que ocorre nos momentos mais inoportunos. Quando dá
na cama ou no banheiro, tudo bem: para coçar é só começar – aí vai
até o fim. Mas fora de casa, numa festa, num jantar... Aí não tem
jeito: tem que ser muito discreta. É aí que entra o comprimido. Mas
ficou a curiosidade, a ignorância – como usar? Não tenho a mínima
ideia. Homem não sabe nada mesmo, por isso Deus não os dotou de
vagina. Pode ser algo assim tipo: – Neném abre a boquinha... Assim!
– Olha o torpedinho... Isso! – Engole tudo... Muito bem! – Agora
bebe um golinho de água. Parabéns! Merece um beijinho.
(18/12/2018)

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Manhã erótica. Acordo antes do sol e aproveito a cadeira de balanço
na varanda para espantar a canícula. À janela do prédio vizinho uma
moça se arruma para sair. Levanta os braços para ajeitar os cabelos e
os seios jovens explodem em beleza. Fogos de artificio na minha
cabeça. Ela continua a representar todos os atos que as mulheres
executam ante ao espelho. Às vezes se vira para meu lado. O corpo
reluz juventude. Me vê? Pois sim. Antes dos últimos retoques na
maquiagem ganho um sorriso. Respondo com uma vênia. O corpo
jovem desaparece sob a roupagem, a janela se fecha após o aceno
que respondo. Mas, como tapa na cara, todo o erotismo da cena se
esvanece, porque lembro que já fui essa pessoa que se arrumava
todas as manhãs para ir ao trabalho, durante dezenas de anos. Por
toda a vida cumpri esse ritual com orgulho e prazer – mas agora sou
inútil. (21/12/2018)

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Ao encerrar as atividades de xadrez em 2018 o CXG e o TTC


realizaram o IRT de Natal, dirigido por Reynaldo Veloso e arbitrado
pelo AF Rafael Jerdy. Além de fazer bem para os neurônios, foi
ótimo rever mais uma vez muitos amigos de longa data,
frequentadores assíduos do glorioso Cube de Xadrez Guanabara e
outras agremiações. Estavam presentes NM Marcio Baeta, Wallace
Machado, João Batista, FM Hilton Rios, NM Ângelo Bil, Paulo Fucs,
Renato Carvalho, Alexandre Pacheco, aos quais se juntaram o MI
uruguaio Luis Rodi – que já incorporou o espírito carioca e faturou o
1º lugar – Antônio Manzi (Presidente da FEXERJ), o FM Rangel
Daniel (que em pouco tempo será MI), Claudio Oliveira, Carlos
Henrique e Vinicius Motta, entre outros. Desejo a todos vocês Boas
Festas e que no ano 2019 continuemos a nos enfrentar, peça a peça,
lance a lance, casa a casa. (26/12/2018)

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Sai da cama, lava a cara, escova os dentes, padaria, leite, pão, queijo,
mortadela, café com pão e manteiga. Vai ao PC, escreve, lê notícia,
Revista Bohemia, NY Times, Poetry, volta ao sofá. Sai do sofá, vai à
varanda, molha as plantas, limpa o chão, troca a areia do gato, volta
ao sofá. Sai do sofá, geladeira, cerveja, azeitona, cerveja, amendoim,
cerveja, almoço, volta ao sofá para a sesta. Liga a TV, muda de canal,
olha Arte1, Curta, Brasil, Cultura, Mazzaropi, desliga a TV. Sai do
sofá, banheiro, lê, obra, limpa a bunda, volta ao sofá. Sai do sofá,
notebook, Yandex, G-mail, Outlook, lê, responde, deleta, antivírus,
desliga, volta ao sofá. Sai do sofá, ração, cozinha, banana, goiaba,
juçara com farinha d’água, volta ao sofá. Liga a TV, controle remoto,
troca canal, aumenta o som, Wood Allen: Manhattan, desliga a TV.
Sai do sofá, banheiro, mija, banho, punheta, escova os dentes,
melatonina, cai na cama. Após tal maratona diária, ainda dizem que
sou sedentário.
(01/01/2019)

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#PartiuCachambi

Basta Cachambi. Chega!


Arre, calor infernal!
Vou-me para Curupu
Encontrar o Zé Sarney
Último reino que reina
E lá talvez inda encontre
A mulher que não amei.

Pára o vapor Cachambi


Com tanta bala perdida
Que acha destino aqui
Vou já-já pra Pazárgada
E lá ver Manu Bandeira
O olhar verde de Márcia
A taipuirana de São Bento.

Chega Cachambi #partiu!


Toni não virá ao Réveillon
A virada do ano de festa
Será por conta do Ronald
Com seu uísque perfeito
Mais a cachaça Magnífica
Do João de Faria Pereyra.

Basta Cachambi, foi mal


Aqui não terá Carnaval
Rei Crivella decretou
Que esta é festa infernal
Mas terá muito arrastão
Não só em Copa e Ipanema
Mas também no piscinão.

Tá, Cachambi. #partiu!


Tô já-já em Caldas Novas
Lá Fernando Braga é Rei
Rei daquelas três moças
Do sabonete de Araxá
São amigas do Vanjico
Mulatas, loiras, morenas.

Cachambi, assim não dá,


Que calor filho-da-puta!
Vou já-já pra bem longe
Vou já-já pra Barreirinhas
Nadar no Rio Preguiça
Com a mulher que amo
Nas areias que escolherei.

Cachambi - fazer o quê?


Vou ou não? O que terá
Em praias de São Luís?
Jesus não, Quincas jururu
Vagam pela Beira Mar
As almas de Nauro e João...
Só tem o abraço de Ceres.
(03/01/2019)

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Hoje, 6 de janeiro de 2019. Acordo com um foguetório danado. Tá-
tá-tá. Pôu! Tá-tá-tá. Pôu! Dia de Reis? Não. Era a polícia do Gov. Cel.
Witzel trabalhando.//Voltar a viver coisas que fizeram parte da
minha infância faz parte do ritual de veneração à Ilha. // Natal. Não
podendo comprar árvore, fabricava com galhos retorcidos. Ornada
com algodão (neve), ramo de murta e bolas cintilantes que
quebravam à toa. // Dia de Reis lembra a vila que foi São Luís: folia
ao som do tambor, rezas, cantos, oferendas. É dia de desmanchar
Presépio. // Eu montava e desmontava - a estrebaria era feita com
ramos de murta. As folhas secas caíam e o incenso perfumava tudo.
// Vou à padaria tomar café com leite, pão massa grossa, com
manteiga. Bate papo com o padeiro (negro), cuja filha mora em São
Luís. Fico feliz: apresenta-me aos amigos como “meu irmão”. //
Voltar a viver coisas que fizeram parte da minha infância? Não
mais. (06/01/2019)

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As coisas que escrevo aqui provocam reações estranhas. Por


exemplo, me perguntaram se eu tinha ido mesmo ao Dr. João de
Deus – aquele que inventou a cura pela piroca. Ora, meu caro amigo,
eu sou nordestino. Quando era criança sempre tomava supositório
pela boca. Nunca me aplicaram injeção no bumbum. Então, com
esse currículo, você ainda acha que fui ao Dr. Safado levar dedada?
Nunca! Jamás! Never! A única pessoa que pode enfiar o dedo no
meu cu é o proctologista – uma vez ao ano. E com tempo
previamente marcado: se passar de 30 minutos tá ferrado. Vai tratar
da próstata do Diabo no inferno. Portanto, nem tudo que escrevo
aqui é verdade. Para usar a palavra da moda: tem muita metáfora.
Até declaração de amor, só 10% é invenção, o resto é mentira
mesmo. (Obrigado, Manoel de Barros)... (07/01/2019)

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Señor Juan Antonio Frago - Catedrático de Historia de Lengua


Española: – Sobre el lenguaje cervantino, es mi opinión que
Cervantes escribió El Quijote en un lenguaje popular que entonces se
hablaba en toda Península Ibérica, incluyendo Portugal. Es decir,
una mezcla de catalán, asturiano, gallego, portugués, aragonés,
gitano, andaluz y por supuesto, el castellano, el caló, argot. Esa
lengua del pueblo, entendida por eruditos y no eruditos, hizo con
que el Quijote se convirtiera en la novela más leída de su tiempo.
Una cuestión relevante de la que nadie trata es: ¿cuándo El QuiXote
pasó a ser El QuiJote, o sea, cuando el romance cervantino pasó a
ser impreso y adoptado por el castellano puro? ¿Y por qué?
(08/01/2019)

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Conheci a internet no berço. No começo, o computador trouxe um


sistema interno de mensagem. Só depois veio a internet pública.
Outra coisa que logo aprendi: esquece a privacidade. Agora sinto o
facebook muito lento ao passar as páginas. Estarei grampeado? Ou
meu PC é uma bosta? Não é a primeira vez nem será a última. E eu
com isso? Foda-se. Ao aposentar retomei a profissão de escritor,
iniciada aos 15 anos quando o Jornal do Povo publicou artigo meu
sobre o Filipinho. O objeto da denúncia botou o dedo na minha cara:
Só não te processo porque és menor! A grande sacada sobre a
liberdade de escrever deu-me o amigo breve, Robert Celerier,
franco-carioca que escrevia no Correio da Manhã (RJ), onde fui
freelancer. Ele me disse: “Se queres ser escritor, escreve tudo que
vier à cabeça”. Ou seja, fala tudo, com liberdade, sem censura, sem
preconceito, sem medo. Assim tenho mantido. Assim será. Obrigado,
Robert Celerier. (09/01/2019)

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O que o New York Times tem contra o Brasil? - “Mobilizar a raiva, o


ódio e o medo tornou-se a estratégia familiar aos pretensos
autoritários. Jair Bolsonaro segue a cartilha de políticos como
Rodrigo Duterte (Filipinas), Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdogan
(Turquia), entre outros. Ele foi apelidado de “Trump dos Trópicos”
por seus comentários ultrajantes e por construir sua base política
entre cristãos evangélicos, elites endinheiradas, políticos covardes e
falcões militares. Mas atacar minorias e fazer promessas grandiosas
até agora só tem servido para maquiar a falta de competência
governamental e a total ausência de um programa político”. NYT-
Editorial (10/01/2019)

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Por escore mínimo a OEA votou contra Nicolás Maduro: eram


necessários 19 votos, que foram conseguidos. 11 países se abstiveram
e 4 votaram contra. A resolução foi apresentada por USA e apoiada
por Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Guatemala,
Paraguai, Peru e as republiquetas do Caribe. E Porto Rico?... O
Governo do México e do Uruguai não assinaram a resolução da OEA.
Ao se negar a firmar o acordo do Grupo de Lima contra o Governo
de Venezuela, de idêntico teor que o da OEA, o México ratificou a
sua política exterior de não ingerência, não intervencionismo, nem
prejuízos a terceiros. Rodolfo Nin Novoa, Chanceler do Uruguai –
que também se absteve – declarou que não cabe a um governo
reconhecer a legitimidade de outro e considera que a oposição
venezuelana também é responsável pela situação em que o país se
encontra. (12/01/2019)

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Postei o vídeo sobre a história da Panair pra ver se rapaziada


entende mais ou menos porque Hitler foi seguido por milhões de
alemães. A Panair foi roubada em favor da Varig, que herdou os
equipamentos, as rotas e a Celma. Mas não herdou a honestidade.
Depois foi a vez da Varig ser torpedeada porque os gestores da
Fundação Ruben Berta meteram a mão no $$, enterrando os ideais
do alemão Otto Meyer, fundador da Varig. É uma longa história que
não cabe aqui e muitos sabem mais que este escriba mal afamado.
Esse preâmbulo é para fazer uma profecia. O Grupo Globo que se
prepare: está sendo armada uma arapuca igual à que fechou a
Panair, a Varig, o JB e outras empresas justiçadas por governos
autoritários ou não. Para os evangélicos, a única regra pétrea é:
“Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”. (Êxodo
21:24) Ou seja: “Quem com ferro fere, com ferro será fodido”.
Duvidam? Quem viver verá. (19/01/2019)
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Agora ela se levanta com cara de sono e vai ao banho. Ouço a água
escorrer pelo corpo. Ela cantarola pedaços de canções populares.
Agora ela joga xampu nos cabelos revolvidos por uma camada de
espuma. A água jorra caindo no piso com ruído de cachoeira. Agora
ela enche as mãos com Creme Rinse e massageia os cabelos com
vigor. Ouço a porta de vidro correr nos trilhos e o ruído de chinelos.
Agora ela enxuga os cabelos com a toalha menor, esfregando bem
para tirar o excesso de condicionador. Depois como que por magia a
toalha vira um turbante. Agora ela enrola a toalha maior no corpo e
um nó a fixa para sempre sobre os seios, sem chance de cair. Os
chinelos molhados se arrastam pelo corredor até a porta do quarto.
Agora ela passa a escova vigorosamente nos cabelos escorridos.
Sinto o cheiro de mato molhado de chuva. É o perfume do creme
hidratante que exala ao ser esfregado na pele. Agora ela se deita
relaxando o corpo reluzente. Pernas e braços se espraiam sem
sentido tomando todo o espaço da cama. Agora eu vou. (17/01/2019)

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“Gente, eu já estou uma fúria e para ficar mais calma proponho


algumas coisas mais sutis, por exemplo: o Esquadrão Geriátrico de
Extermínio, a sigla óbvia seria EGE. Arregimentaríamos várias
senhoras da terceira idade, eu inclusive, lógico, e com nossas
bengalinhas em ponta, uma ponta-estilete besuntada de curare
(alguns jovens recrutas amigos viajariam até os Txucarramãe ou os
Kranhacarore para consegui-lo) nos comícios, nos palanques, nas
Câmaras, no Senado, espetaríamos as perniciosas nádegas ou o
distinto buraco malcheiroso desses vilões, nós, velhinhas misturadas
às massas, e assim ninguém nos notaria, como ninguém nunca nota
a velhice. Nossas vidas ficariam dilatadas de significado, ó que
beleza espetar bundões assassinos, nós faceiras matadoras de
monstros!” Hilda Hilst, crônicas. (20/01/2019)

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Coisa boa aqui é a gente poder dividir dramas e alegrias pessoais.
Contei que fui atingido pela H. pylori e como essa bactéria filha-da-
puta ferrou meu estômago. Ora, estragou o estômago, danificou
também a periferia: esôfago, intestinos, cu. Tinha dia que minha
bunda parecia a ilha de Sunda, onde está o vulcão Krakatoa, isto é,
um fogaréu danado. E a cratera vocês bem sabem onde é... Pois hoje
foi um dia feliz para a região: pela primeira vez em semanas, meses,
acordei sem sentir qualquer revolta, estrondo ou ameaça de erupção.
Como sempre faço, levantei cedo, preparei e tomei o café junto com
minha filha que vai ao trabalho. Depois nos despedimos e então é
hora das abluções matinais. Entrei na sentina com o livro Armário
de palavras debaixo do braço. Reli a crônica O crepúsculo de São
Luís e – espanto! – tudo normal. Que beleza! É essa felicidade que
quero compartir. As coisas estão voltando ao normal, mas ainda não
arrisco beber: cumpro resignado o sacrifício da abstinência. Fora
isso, desfruto a felicidade absoluta. O vizinho deve ter notado ao me
ouvir cantarolando. Sim meus amigos, hoje eu caguei como um anjo.
(23/01/2019)

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Graças ao Fernando Braga, jurisconsulto e poeta, fui incluído no rol


de amigos de afamado facebookiano, pessoa querida e estimada na
rede social, a quem não nominarei em respeito à idade. Em que pese
ser avançado nos oitent’anos, o citado colunista, também poeta e
pregador, toma audaciosa intimidade em assuntos a mim
relacionados, sem advertir a consequência de modelar retaliação. O
audacioso matusalém não se dá conta que posso a qualquer hora
enfiar-lhe um processo para conter seu ímpeto juvenil ao se referir à
minha região glútea. Também não sei de onde tirou liberdade para
aludir ao meu ânus em público: “Acho que Salomão Rovedo, tá
lascado com a bunda afolosada e o fiofó daquele jeito”. Quer dizer: o
homem tem mais intimidade com a minha bunda que eu mesmo!
Olha aqui, caro energúmeno, antes que me esqueça: quem tá lascado
com a bunda afolosada é a puta-que-o-pariu! (01/02/2019)

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Comecei o ano recebendo o blog de Ronaldo Costa Fernandes e
tomei um susto. Era o artigo: “Flores do mal, Charles Baudelaire”
(do livro A cidade na literatura e outros ensaios, 2016). “Como bem
observou Theophile Guatier, o poeta de As flores do mal realmente
admirava seus antecessores. Hugo e Gauthier, principalmente este
último, a quem Baudelaire amava como literato e ser humano,
entenderam em parte a nova proposta estética daquele poeta. Mas
Guatiher entreviu muito lucidamente dois movimentos muito
comuns na história da literatura. Gauthier percebeu que a nova
estética de Baudelaire diminuía seu poder romântico e que
apontava para um novo rumo estético”. Só neste parágrafo,
Théophile Gautier recebeu três sobrenomes: Guatier, Gauthier,
Guatiher. O meu medo é saber se saiu assim no livro... Mas acho que
não. Deve ter sido ressaca de festa de fim de ano. (02/02/2019)

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Então você não sabia que o facebook é assim? Facista, hitlerista,


racista e outras coisitas mais? Para ficar no facebook tem que dobrar
os joelhos, se submeter à censura e às regras do big stick. É esse o
nosso Grande Irmão do Norte e não tem como mudar. Eu e muitos
amigos já recebemos mensagens de disseminação de ódio e outras
esculhambações QUE NÃO FIZEMOS. Isso porque essa primeira
análise do facebook sobre o que postamos é feita por máquina, isto é,
um software. Quanto ao facebook nos encher de propaganda que não
solicitamos e não queremos ver - algumas também ofensivas - isso
não é censurado, porque rende dividendos - US$$$. God is Money,
meus amigos. (03/02/2019)

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Salomão, teu texto de ontem ainda está bombando... Só comentários


porretas à altura da brilhante e passiva tese alevantada, quando a
gente se predispõe à despedida abrupta dos nossos livros... Vê as
páginas do facebook: 'souespoeta portugal'; 'souspoetabrasil';
'souespoetaangola'; souespoetasaotomeeprincipe';
souespoetacaboverde'; café literário [Buenos Aires]; Esquina
Cultural [Montevidéu] e Escala Uraguaya [Montevidéu]... e muitas
outras brasileiras e maranhenses, já se vê... Porra, meu! Abraço,
Fernando Braga. (04/02/2019)

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“O país está mesmo na casa do sem jeito. A pantomima exibida no


picadeiro dos plenários de um poder legislativo corrompido e
deturpado de sua função republicana, encenada por reles bufões de
quinta categoria, mostra, de modo claro, a cabal validade e
procedência da tese que defende a drástica redução do número de
Senadores, Deputados e de Vereadores, na esperança de que o
eleitorado concentre o foco da análise e da comparação sobre
número mais seleto de candidatos. Verdade. Talvez a maior parte
dos que receberam mandado parlamentar em Brasília como nos
Estados e nos Município bem que poderia ir para as profundas do
inferno plantar batatas ou catar piolhos que ninguém sentiria falta
alguma”. (Uma crônica de Joaquim Itapary) (05/02/2019)

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Caro Vangico. Sei que você estava preocupado com minha saúde, por
isso achou que minha bunda estava “afolosada”. Eu nunca tive
hemorroidas, isso eu descobri ao pesquisar a etimologia dessa
expressão do vocabulário maranhense, que encontrei no seguinte
fato: O Fulano sofria de hemorroidas e assim se viu na circunstância
extrema de arriar hospital pra entrar na faca. O médico que iria
operá-lo, também nosso amigo, me confidenciou: “O cu do Fulano
parece uma couve-flor”. Isto é, a hemorroida já tinha se expandido
para fora, em formato parecido com aquela hortaliça. Aí fiz a ligação:
flor – afolosado ou afulosado – pro mode de “fulô”, como diz nosso
interiorano. Faz sentido, né? Então, a expressão veio por causa da
deformação provocada pela “flor” dolorosa resultante de
hemorroidas. Assim vemos explicada mais uma etimologia. Próxima
aula: etimologia da palavra qualira. (06/02/2019)

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A DEMOCRACIA CHEGA A CUBA – “Diariamente as mais diversas
manifestações de desordem continuam denegrindo a sociedade
cubana. Lamentavelmente, não é exclusividade de um contexto
específico, nem de setores sociais carentes ou alienados das normas
essenciais da conduta moral. O dilema vai muito mais além. Talvez o
mais inquietante seja que, quase sem percebê-lo, estamos
adaptando-nos a conviver com as piores expressões individuas e os
maus exemplos de comportamento cívico, que se reproduzem
diariamente sem que recebam a adequada repulsa. Os maus
exemplos estão à vista de todos: ruídos de diversas origens que
perturbam a paz, rixas e alterações da ordem, atos de exibicionismo,
vandalismo contra a propriedade social, infrações de trânsito,
consumo de bebidas alcoólicas, violações da higiene comunitária e
condutas de mendicidade”. (Revista Bohemia - Havana, 5/2/2019 -
EDITORIAL - Para asegurar presente y futuro). (07/02/2019)

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Depois de muito ralar descolei a origem da expressão “Qualira” com


a qual, segundo notória cronista, o maranhense (exceto este que vos
fala), gosta de ser identificado algures e alhures. Encontrei em “O
banquete”, de Platão, no famoso diálogo que se discute o amor
(Eros). Em volta dos cortesãos circulavam Efebos e Mancebos
filosofando ao som de coloridas Liras. Em certo momento o cortesão
pedia: “– Nemo venit ad efebo. – Quod Lyra? – Et Lyra flavo-
viridis”. E o viadinho com a Lira da tal cor se apresentava. Aí, Átila o
huno invadiu Roma: foi um saracoteio danado. Mancebos e Efebos
fugiram pelo porto, pensando chegar às Índias, onde a qualiragem
era liberada. Vagaram dias e noites a favor das correntes marítimas,
entrementes violenta calmaria desviou as naus e encalharam em São
Luís. Efebos e Mancebos adoraram a terra habitada por Tupinambás
nus com suas clavas e tacapes enormes expostos. Desse jeito a
expressão Quod Lyra foi assumida pelo vocabulário maranhense e
assim se popularizou. (08/02/2019)

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Meu entusiasmo pelo xadrez está além da preparação técnica e
física: após jogar o Torneio de Xadrez de Poços de Caldas 2019
estava tão cansado como um maratonista. O escore de 1,5 pts. (=3 -
3) em 6 diz tudo. Ademais a garotada – de ambos os sexos – está
chegando com força e entusiasmo característicos da juventude. Mas
gostei da cidade: Poços de Caldas tem o sabor das cidades simples.
Saí do Rio em pleno verão de 40 graus, para dormir de cobertor na
serra mineira. Fui pela Viação Cometa e depois descobri que minha
bagagem foi violada por um filho-da-puta, ladrão descarado, que
roubou algumas coisas. O safado levou o sabonete Lifebuoy; o creme
dental Kolynos; a brilhantina Glostora; camisinhas Vista-se; a fralda
geriátrica Kialívio (ainda não uso, mas tenho por perto); a caneta Bic
Cristal; balas Pipper hortelã; aparelho e lâminas de barbear Gilette;
a calça Lee; o Leite de Rosas; “Tina, a maranhense”, folheto-
romance de Carlos Zéfiro – e outras bobagens. (09/02/2019)

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Na volta de Poços de Caldas para o Rio tive a sorte de pegar carona


com os mestres Milton Okamura e Márcio Baeta. Viajar com pessoas
inteligentes e unidas pelo xadrez é mais que viagem: é uma “trip”. Só
não deu para comprar o famoso doce de leite que prometi a meu
neto nem o queijo da Serra da Canastra, muito anunciados na
cidade. Nem mesmo nas paradas obrigatórias, agendadas pelas
bexigas dos caronas, nenhuma loja com doce e queijo apareceu. A
mais importante discussão foi sobre o sistema de cálculo de Rating
usado pela FIDE, totalmente maluco: um certo valor K, fixado em K
= 16 para GM e K = 32 para os demais jogadores. Por que não um
valor K igual para todos? Ora, a política de Federações e
Confederações é “olhar para o futuro”, pois é dali que virá o $$$$$$
que perpetua o sistema. Muitas regras do jogo de xadrez mudaram,
mas é senso comum que a maioria mudou para pior, que é o
alimento dos néscios. Mudança para melhor? Fica para a próxima
vez. (12/02/2019)

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Preciso parar com esse negócio de ser guru da expressão idiomática
no facebook. Fernando Moura Peixoto desafia a aclarar a expressão
“fazer sabão”, de cunho maranhense – diz ele. O vocábulo remete ao
xampu que resulta da união carnal no Safismo, isto é, a fricção
boceta-a-boceta. Não creio que seja linguajar maranhense: é de uso
comum no país. Também nunca dei com exemplos nem assisti a
sessões com esse resultado. Vi muita “briga de aranha”, que deixa os
pentelhos salpicados desse creme, mas com o advento da depilação
total a prática se tornou raridade. E nada mais. Então, chega de
etimologia e didatismo. O buraco é mais embaixo: minha
especialidade é safadeza e libertinagem. Quaisquer dúvidas
etimológicas ou idiomáticas futuras, por favor consulte Manoel
Evangelista, Ceres Fernandes ou Fernando Braga, que são
especialistas. Eu tô fora. (13/02/2019)

Safo - A Ártemis (fragmento)

Lembra o quanto te desejo. Ou já esqueceu?


Recordo momentos de amor
em que, tua pele em minha pele,
fabricamos juntas perfumes e óleos raros,
clareando os cabelos que eram pretos.
Meia-noite, o tempo passa e eu só, deitada, excitada.
— Adolescência, adolescência, tu te vais, aonde vais?
— Não volto mais para ti, para ti não volto mais.

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Certa vez li “Uma manhã em Tidewater” (Editora Rocco, 1997),


reunião de três novelas de William Styron, escritor norte-americano
mais famoso pelos romances “As confissões de Nat Turner” e “A
escolha de Sofia”. No livro da Rocco me impressionou a novela
“Shadrach”, de intenso conteúdo emocional. Essa breve comoção
transmiti em crônica, que depois foi juntada à coletânea “Leituras e
Escrituras”, que anda por aí na internet. Somente agora tomei
conhecimento que a filha de Styron, Susanna, é cineasta
independente e que em 1998 transportou a história de Shadrach
para a telona. Já assisti e vale a pena conhecer a trajetória do velho
de 99 anos que percorreu mil quilômetros a pé para ser enterrado na
terra onde nasceu.
https://pt.scribd.com/document/216125346/Salomao-Rovedo-
Leituras-e-escrituras (24/02/2019)

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A menina de São Luís não nasceu em São Luís. Foi o contrário: São
Luís é que nasceu nela. A menina de São Luís tinha os olhos pretos,
pretinhos. O nariz era uma flecha apontando para o fim do mundo.
Os cabelos da menina de São Luís eram pretos: era uma família de
caracóis que morava na cabeça dela. E a boca? A boca, o sorriso, era
uma coisa só. O rosto dela era o sorriso mais enorme do mundo. E
quando ria o sorriso escorregava da boca dela como sorvete de
juçara: saía pelos cantos dos lábios e passava para todas as bocas que
estavam por perto. Sorria, a menina de São Luís sorria. Como a
menina de São Luís sorria! De quê tanto sorria a menina de São
Luís? Sorria porque a vida é bela? A menina de São Luís não nasceu
em São Luís. Foi o contrário: a cidade é que cresceu nela. A menina
de São Luís não brincava de boneca: escrevia cartas para namorados
imprevistos. A menina de São Luís jogava bola com os meninos,
soltava papagaio, descia a Montanha Russa de patins. A menina de
São Luís chegava em casa suada, suja de areia, com os joelhos
ralados em sangue e contava para os irmãos espantados que a ferida
não doía. A menina de São Luís se banhava pulando, cantando e
sorrindo. Se enxugava diante do espelho abismada com os mamilos e
os pentelhos. Depois do jantar a menina de São Luís escovava os
dentes, alvos igual pérolas e mandava sorrisos pela a janela. Sorria, a
menina de São Luís sorria. Como a menina de São Luís sorria! De
quê tanto sorria a menina de São Luís? A menina de São Luís
cresceu, foi para a cidade grande e parou de sorrir. Quer dizer, ainda
sorria um pouco, mas aquele riso enorme ficou em São Luís. Depois
de um tempo não sorria mais. O sorriso feneceu, a menina de São
Luís morreu. Tenho saudades da menina de São Luís. (28/02/2019)

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Entre três e quatro horas da manhã da terça-feira de carnaval ouviu-
se um disparo na madrugada silenciosa e calma do Cachambi.
Depois mais um, mais outros, o ruído descendente do motor levado
pelo vento e o silêncio vazio da manhã desceu de novo. A padaria
abriu as portas, o jornaleiro deixou o jornal nas grades do prédio, o
leiteiro colocou garrafas de leite nos degraus, o cheiro de café e pão
tostado tomou conta do mundo. Chegou a polícia, a ambulância
inútil, o cadáver foi coberto com manta térmica, o busto de Orlando
Silva derramou lágrimas pelo morto na terça-feira de carnaval. A
Mocidade Independente de Padre Miguel cerrava as cortinas do
desfile do Grupo Especial na Rua Marquês de Sapucaí. Enquanto
cutucava a memória dos fregueses – o que não foi?, quem foi?, o que
foi? – o jornalista tirava fotos e bebia o café da manhã: média com
pão e manteiga. Depois chegou a TV para anunciar no Bom Dia RJ o
vencedor do primeiro defunto da terça-feira de carnaval.
(05/03/2019)

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Hoje passei pelo Canal Brasil e estava sendo exibido o filme Ana e
Vitória (Matheus Souza, 2018). Fiquei vendo, mais um bocadinho e
fui até o final. É um filme que fala de amor de modo simples e
musical. Transita por fronteiras em que a turma costuma escorregar
aqui e ali. Esse é o valor da juventude, a resistência, o poder de
tropeçar e levantar. Também no amor. É um filme que todo político
deve assistir, até mesmo a família do digníssimo Presidente. Lindo!
E feito por brasileiros de sotaque. Parabéns meninas. Parabéns
Matheus Souza. (07/03/2019)
AnaVitória

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O coração é um músculo ôco situado no meio do peito, entre os


pulmões. Assegura a circulação do sangue ao corpo, permitindo às
células receber oxigênio e nutrientes. O coração é a bomba que
aspira/expira; a rede de vasos é a canalização que irriga e oxigena.
Sob esse ângulo, o coração é apenas um elemento mecânico que
equilibra o corpo. No entanto, as reações a certos indivíduos e
acontecimentos, dá ao coração consciência, sensibilidade e
particularidades únicas. Por que o coração nesse ponto é diferente?
Porque tem alma, pensamento, memória, é a fonte da vontade, das
emoções, das paixões, da ira, do ódio, da fome. “Porque é do coração
dos homens que sai o mau pensamento, o adultério, a fornicação, o
homicídio, o furto, a avareza, a maldade, o engano, a dissolução, a
inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Todos esses males vêm de
dentro do coração e contaminam o homem”. Marcos 7:21-23
(09/03/2019)

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O inexpressivo Eurico Miranda foi o retrato fiel dos que estiveram à


frente por anos e continuam dirigindo o futebol brasileiro - e todos
os demais esportes. Representou em menor nível (mas legítimo), os
Poderes Municipal, Estadual, Federal, Judicial. Foi o Poderoso
Chefão, o "Coronel", o Mandachuva, o General, o Sabe-com-quem-
está-falando?... E outras figuraças que comandam a nossa vida.
Ganhou diploma de Deputado Federal. Elo da corrente que alimenta
a voragem financeira, empresarial e moral com a qual nos submete e
obriga a viver. Corrupção que assola o Brasil resistente e vacinada
contra todo tipo de revolta ética. O purgatório, a meia-condenação, a
vingança vem da não-natureza: os corruptos morrem de câncer. Que
merda vou deixar a meus netos! Desculpe crianças... (11/03/2019)

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Não comi a Ritinha, não. É mentira. Ela passou pelo corredor, me


agarrou pelo braço e fomos ao seu quarto. Era para provar a nova
lingerie que tinha comprado, disse. Diante do espelho tirou a roupa,
vestiu o sutiã, a calcinha. A lingerie era mais transparente do que
uma alma. Virou-se de frente para mim. Aí! O que acha? Linda né?
Claro. Concordei rindo nervoso. Tira aqui esta etiqueta. Fui por trás
dela e cortei a etiqueta próxima ao pescoço. Senti o cheiro de
Ritinha. Ela se virou de repente ficamos boca a boca. Espanto. Caí
sentado na cama. Ritinha se riu! Me diz: gostou? O sutiã ficou bem,
os seios pequenos, o mamilo querendo voar. Já o biquíni mal
comportava a selva de pentelho que varria as coxas e terminava sabe
Deus aonde. Ritinha deu voltas ante o espelho, pelo quarto, imitando
desfile de moda. Por fim tirou tudo, guardou na caixinha dourada da
loja. Cantava nua de lá pra cá como se fosse a coisa mais natural do
mundo. E era. Deitou na cama onde eu estava sentado, botou as
pernas sobre as minhas, acendeu o cigarro e ficamos trocando ideias.
Correu boato que comi a Ritinha. Comi não. É mentira.
(14/03/2019)

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Falta de correção da Tabela do IRPF é aumento de imposto, que só


pode ser feito através de Lei (Artigo 150 da Constituição Federal). A
última correção foi feita em 2015. Se a tabela tivesse sido corrigida
integralmente quem ganha salário mensal abaixo de R$ 3.700,00
ficaria isento. Nos últimos cinco anos, só quem recebe menos de R$
1.900,00 está isento. O Imposto Sobre Grandes Fortunas não sai. Tá
foda! Podemos recorrer à Suprema Corte! Peraí. Eu disse
Constituição? kkkkkkkkkk. Peraí. Eu disse Congresso? kkkkkkkkkk.
Peraí. Eu disse Suprema Corte? kkkkkkkkkk. Isso também está
configurado no Código Penal: é formação de quadrilha. Peraí. Eu
disse Código Penal? kkkkkkkkkk. Parodiando Ruy Barbosa: ou nos
tornamos todos corruptos ou moralize-se a nação. Meu país, meu
Brasil querido, minha amada terra – tu és uma putaria só. Que
esculhambação... (19/03/2019)

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A portaria sobre o Enem-2019, cujo “objetivo é verificar a


pertinência com a realidade social, de modo a assegurar um perfil
consensual do exame”, é instrutiva. “As questões dissonantes serão
separadas para posterior adequação, testagem e utilização, se for o
caso” – disse Marcus Rodrigues, presidente do Inep. “Os
especialistas da comissão são nomes reconhecidos e que podem
contribuir para a elaboração de uma prova com itens que
contemplem, não apenas todos os aspectos técnicos formais, mas
também ecoem as expectativas da sociedade em torno de uma
educação para o desenvolvimento de um novo projeto de país”.
Vulgar e vazio o texto formulado pelo ex-aluno do filósofo
colombiano Vélez: “contemplem, não apenas todos” (?); “perfil
consensual” (?); “questões dissonantes” (?); “novo projeto de país”
(?). Ou seja: Censura, Patrulhamento, Escola com Partido, Educação
Doutrinária. Tudo condenado pela História, que disse que não seria
– mas foi, que é promessa de campanha, mas não foi. (20/03/2019)

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Dias depois encontrei Ritinha no elevador cheia de bolsas. Ajudei.


Mais lingerie? Não. Roupa de praia, biquíni e canga. Lindos!
Comprei no site www.brazilbeachwearco.com. Vou provar agora.
Vem. Tenho uma novidade pra ti. Fiquei curioso. Que coisa seria?
Ritinha foi lá pra dentro a cantarolar. Voltou de repente, nua, braços
pra cima. Surpresa! Espanto! Ritinha, que é isso? Ela se depilou
todinha. Como tu achas que se usa biquíni? Gostou? Ritinha era a
índia que deixou Pero Vaz de Caminha de pau duro. A vergonha
lisinha. O colorido do biquíni caiu bem no corpo dela. Mas a parte de
baixo era tão diminuta que deixava dúvida se Ritinha tinha boceta
ou não. Botou a canga. Tira umas fotos, vou mandar pro site.
Guardou tudo e se deitou a meu lado. Cismou de esfregar o pé na
minha cara. Certo aroma mexeu com meu passado. Ostras e a
primeira vez. Botava a ostra na ponta da língua e slup! Ostras, sal,
limão e amar nas dunas de Araçagi. Segurei a perna de Ritinha. Que
foi? Ostras, Ritinha, ostras. Os olhos de Ritinha marejaram quando
chupei a ostra. (21/03/2019)

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Ritinha disse de olhos grandes: estou grávida. Depois riu feliz, nos
abraçamos. Aqui é lei: engravidou, casou. Casei. Foi bom. Os amigos
vieram: Ceres, Vangico, Lima, Ivanira, Fernando, Márcia, Zé,
Gilberto, Ana, Frank, Arruda, Hilda, Francemir, Comaru, Teresa,
Arruda, Melo, Amelinha, Otto, Milton, Beatriz, Duayer, Machado –
nem cabem todos aqui. E agora? Adeus sinuca no João Paulo. Adeus
Nhozinho Santos. Adeus farra no Filipinho. Adeus putaria na 28.
Adeus jogo de bola. Adeus ostras em Araçagi. Muitos adeuses.
Assumi. Gostava ser eu e Ritinha. Andava atrás dela pra gozar o
andar de pata. Patinha! Não enche, palhaço. Gostei ser marido.
Descobri que mesmo prenha dava pra colher ostras. Fui ficando. O
tempo passou. A turma cresceu, foi embora. Agora, sós, criamos
rugas, varizes, mangas e um gato. Não dei vacilo. Nem quando
esbarrei com Manuela. A nova vizinha chegava das compras. Caiu
uma bolsa. Ajudei. Vi peças de lingerie. Gostou? Lindas, né? Gostei.
Claro. Vou experimentar agora. Quer ver? Vem. Balancei. Ela sentiu.
Vou ou não? Manuela insistiu: tem ostras. Com a pílula azul até que
dá. Mas não fui. Não comi a Manuela.

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Amigos. Amizade. Em João Pessoa jogadores de xadrez dizem “não
entender como um esquerdista possa homenagear Bobby Fischer,
sabendo-se que ele era anticomunista ferrenho”. A diatribe era
contra meu amigo Fernando Melo. Não me omiti, comentei no ato:
“Bobby Fischer não era nada disso. Ele era contra o modo como os
enxadristas eram maltratados pelo Regime Soviético. Por isso
Fischer criou tanta quizília no match com Boris Spassky. Jogadores
soviéticos respeitavam e adoravam Fischer. Foram unânimes em
reconhecer que a atuação de Fischer deu mais dignidade ao jogador
de xadrez”. Depois disso veio o silêncio convincente. Outro me
interpelou para saber qual minha “política” com o GM Darcy Lima,
Presidente da CBX, Vice-Presidente da Confederação de Xadrez para
as Américas (CCA), Árbitro/Trainer da FIDE, posições conquistadas
com capacidade, trabalho e honestidade. Conheci Darcy adolescente
no CXG. Joguei ping com o pai de Darcy, pessoa alegre no jogar, mas
duro (até demais) na educação do filho. A minha “politica” com
Darcy Lima é, pois, a amizade familiar. Amigo não tem política,
amigo é amigo. Ninguém fala mal de amigo meu. E ponto final.
(07/04/2019)

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O que está bebendo? Água de coco. Com gelo? Nunca vi. Me dá aqui.
Ah, botou vodca. Pede cerveja pra mim. Não. Você é de menor. Sou
não. É sim. Garçom? Sou de menor? É não. Traz uma Gold. A mais
cara? Só bebo cerveja boa. Aaaaaiii. Uuuuiii. Que foi? Uma dor aqui.
O que você fez? Caminhada. Acontece nos sedentários. Tu és um
deles. Tá naquele hotel ali? Sim. É turista? Não. Evento. Tu és
simpático. Sou velho. É não. Sou sim. Quem foi rei não perde a
majestade. Perde sim. Perde não. Aaaaaiii. Uuuuiii. Vou te dar
massagem. Só uma e adeus dor. Não pode. O hotel não deixa. Deixa
sim. Uuuuiii. Você é de menor. Sou não. É sim. Ademais deve ser
caro. Não vim a turismo sexual. Tenho cara de puta? Sou
fisioterapeuta. Tira a roupa. Deita. Aaaaaiii. É bem aqui? É. Relaxa...
Fecha os olhos. Vai doer mais. Aaaaaiii. Uuuuiii. Pronto. Puxa,
cansei. Estou suada. Vou banhar. E aí? Já dormindo? Chega pra lá.
Estou com frio. O ar condicionado pode gripar. Hum. Bem melhor.
Ei. Onde vai? Tomar café. São sete horas da manhã. E a dor? Sumiu.
(09/04/2019)

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Não, Evangelista, comigo não. Sei que os pais tinham tradição de


levar os filhos machos à zona para serem iniciados no sexo. Comigo
foi diferente. Certo dia Amélia chegou em casa. A moça, filha da
amiga de mamãe, se entregou em São Bento mediante promessa de
casar. Os dois amavam o amor juvenil. Mas o Barão deu para trás:
primeiro o filho tinha de formar advogado. Foi entregue aos
cuidados de mamãe para criar e estudar. Fazia pequenos mandados,
cuidava dos irmãos menores e do jardim de rosas. Metia a saia entre
as pernas – sabe como é? – dobrada em nó, parecia que usava calças
e tratava de escoimar o canteiro das ervas daninhas. Certo dia: – Ui!
Ui! – Que foi? – Um espinho furou meu dedo. Na ponta do dedo
aflorou a gota de sangue. Chupei o dedinho, o sangue sumiu, a dor
passou. Ela olhou para mim como quem olha o herói. Salvei a vida
dela e agora ela me pertencia. Parou de dobrar a saia. Eu olhava,
incendiado; ela devolvia o olhar, corada em fogo. Cochichou: –
Espera lá no banheiro. Desde então a vergonha passou, virou coisa
natural. Foi assim, Evangelista, comigo a primeira vez foi assim.
(23/04/2019)

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Por que o milho verde é amarelo? Por que o Mar Vermelho é Azul?
Onde é o fim-do-mundo? Se gato gosta de rato por que não existe
sachê sabor rato? Quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha? Por que
os kamikazes usavam capacete? Onde é o fim-do-mundo? Pra que
seringa esterilizada em injeção letal do condenado à morte? Se toda
regra tem exceção, qual a exceção dessa regra? Por que acordar os
outros para perguntar se estavam dormindo? Onde o vento faz a
curva? Qual a cor do buraco negro? Se um terreno é meu vai até o
centro da Terra? Por que se responde pergunta sem resposta com Só
Deus sabe? A perna do Saci Pererê é a esquerda ou a direita? Onde é
a casa do caralho? Se tudo tem fim, o que virá depois? Como é o
nada? Onde o Diabo perdeu as botas? Há vida após a morte? Como o
vento aprendeu a assoviar? Onde é a puta-que-pariu? O amor existe?
Algo desmedido tem tamanho? Há vida fora da Terra? Como se
enche o cu de rola? A consciência da morte é o fim? Ainda é possível
olhar a noite? Como é zero em algarismo romano? Quem botou luz
no cu do vagalume? (26/04/2019)

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Ceres, nem te conto: no Cachambi ventou pra carilho. Foi furacão,


sim, desses parecidos com Toni Tornado. Igual a programa do
Discovery Chanel. A minha varanda tremeu nas bases. E como
passou coisa esquisita aqui na frente do terraço! Nem te conto
minha amiga: teto do posto Ypiranga, placar do Maracanã, prédio
construído na Muzema (ainda bem que estava vazio), fusquinha
1964, cartaz do Cine Odeon, estátua de Noel Rosa (sem o garçom),
rede de São Bento, canjerê deixado na esquina – entre outras coisas.
Depois veio a chuvarada tradicional, mas não teve granizo, não.
Ainda bem que moro em prédio do Belarmino. Cada edifício que
levanta ele gasta todo o cimento usado na Ponte Rio-Niterói.
Quando a Light cortou a luz, tomei duas melatoninas e fui dormir.
Ceres, você não vai acreditar: minha cama sacudia que nem berço de
neném. Sonhei que voava e pousava no colo de mamãe. Quando
acordei estava tudo calmo. Escancarei a janela e vi diante de mim
toda a praia de Copacabana. Caraca! Que ventania deu aqui no
Cachambi, minha amiga. (28/04/2019)

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Corre Brasil o concurso de Comida de Buteco, coisa usurpada da


cozinha afro-lusitana encontradiça em pés-sujos e botequins. Fui
frequentador dos pés-sujos, misto de bar e restaurante, espalhados
pelos bairros do Rio de Janeiro. São casas sem frescura, sem
cardápio “A La Carte”, sem garçom com toalha dobrada no braço,
como aquele que serve Noel Rosa na entrada de Vila Isabel. Comida
de pé-sujo é feijão preto com porcaria: orelha, chispe, lombinho,
costelinha, torresmo, rabinho, carne seca, goela e – supremo deleite
– paio português. Tira-gosto é torresmo, linguiça, jiló, tremoço.
Quando encontrar um botequim no Encantado, Piedade ou Quintino
Bocaiúva, cheio de travessas com esse conteúdo pode pedir a cerveja
gelada e traçar os acepipes, encontráveis também escondidos nas
transversais de Copacabana, Ipanema e Leblon. Antes, porém, é de
bom alvitre proteger o estômago com uma dose da Magnífica. Pé-
sujo vira nobre: o supremo exemplo foi o Petisco da Vila. E comida
de pé-sujo também enobreceu: é Comida de Buteco. E mais não
digo. (01/05/2019)

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Foi-se a minha juventude, bons tempos que não voltam mais. Eu era
rapaz belo, magro e bonito, as mulheres não me deixavam em paz.
Estudava, bebia, trabalhava, fodia e fumava, jogava futebol no
Aterro, assistia a filmes na Rua Paissandu, ainda sobrava tempo para
o violão e cantoria. Praia para pegar jacaré, bar para o chopinho,
areia para as tangas invisíveis. Tempo para os furores de
Copacabana e Ipanema (menos no Posto 8 onde a qualiragem
reinava). Foice na minha juventude, PCB e PCdoB que não voltam
mais, eu era caboclo forte, destemido político, pronto para salvar o
Brasil – companheiros queriam me botar no partido. Pior: comecei a
dar uns tapas na diamba, enfrentar e correr todo fim de semana.
Milicos não me deixavam em paz: era cassetete, espada enferrujada
no lombo, todo dia levar tiro, todo dia cheirar gás. Troquei as ligas
camponesas pela guerrilha urbana, o violão pela guitarra elétrica, as
serestas silentes pelo Circo Voador. Mudei de Copacabana para
Santa Teresa, troquei Belchior por Bob Dylan, larguei Baden Powell
por Jimmy Hendrix, deixei Elza Soares por Janis Joplin, preferi
Noam Chomsky a Karl Marx. De tudo isso um pouquinho, de tudo
isso até demais. Hoje os que não foram estão velhos, são outros
tempos, são outros jovens. Não é coisa para se arrepender nem para
se vangloriar – é a vida minha gente, é a vida e nada mais... (Rio de
Janeiro, Cachambi, manhã nublada de 2 de maio de 2019).

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Só agora assisti ao documentário “Gabo”, de Justin Webster (2015).


Ficou uma bosta. Gabriel Garcia Márquez merece muito mais. O
filme é 10% Gabo e 90% rios, florestas, macondos, sucres, erendias e
cenários. Como está contada a vida de Gabo parece pobre, medíocre.
Não foi. Mr. Webster precisa de estágio na Escola de Cinema Darcy
Ribeiro, filmar a vida de Paulo Coelho e aí terá diploma de diretor.
Para compensar o desastre assisti ao filme “Sociedade Literária
Torta de Casca de Batata de Guernsey”, de Mike Newell (2018). O
inglês faz muita coisa errada: é da Coalizão que bombardeia e mata,
faz carro com volante no lado direito, dirige na contramão, bebe
cerveja quente sem colarinho, mas na hora de produzir filme, gim e
teatro é shakespearamente bom. Surpreende ainda se fazer filme da
II Guerra Mundial. Neste caso outro pano de fundo falsearia a
história da ocupação alemã na Ilha de Guernsey, as consequências,
os dramas – que no fim vira dramalhão e quase afunda o filme:
Juliet Ashton (Lily James) abandona o noivo oficial militar para ficar
com o ilhéu, criador de porcos. Puro D. H. Lawrence e Lady
Chatterley. (06/05/2019)

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Entra governo e sai governo e parece que a venda de ingresso do


Theatro Municipal do Rio de Janeiro continua controlada por uma
máfia. As meninas foram ao teatro, mas não conseguiram lugar na
plateia. Ingressos esgotados. A opção foi aquele lugar horrível e
proibitivo: Balcão Superior. Gostaria de saber como o Corpo de
Bombeiros e a Defesa Civil liberam alvará para aquele lugar: o
parapeito bate no joelho e o resto do corpo fica mercê de um vão de
50 metros! É perigoso e dá medo. A visão do espetáculo é uma
merda. Enfim, considero um crime liberar e vender ingresso para
Galeria Superior. As meninas viram que tinha mais de 300 lugares
vazios na plateia! Desceram e foram para lá. Há tempos o mesmo
ocorreu comigo. Dirigia o Theatro Municipal do Rio de Janeiro a
atriz Carla Camurati. Fui comprar ingresso para assistir Stabat
Mater, de Verdi. Não tinha. Mal botei os pés na calçada dois ou três
cambistas me cercaram oferecendo ingressos. Recusei e ouvi, dito
com deboche: – É velho. Vá assistir da galeria. Você merece.
Começou o espetáculo, muitos lugares continuavam vazios. Desci e
sentei-me numa poltrona com boa visão do palco, esperando alguém
vir reclamar. Não veio. Se alguém aparecesse eu iria fazer um
escândalo danado, acabar o espetáculo. (10/05/2019)

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Ela só vem me visitar quando está sofrendo de amor. Chega, triste,


as faces pálidas, os olhos úmidos, semblante de gata de rua,
abandonada. Em todo corpo ecoa o mesmo sentimento. Nem mesmo
o sorriso com que a recebo dá ânimo para mudar a situação. Senta
no sofá em frente à TV, ofereço alguma coisa, não, não quero nada.
Nem um licorzinho? Trago o copinho e ofereço, toma, é licor de
jenipapo. Não tem Amarula? Sirvo Amarula para ela e bebo o de
jenipapo. Depois de um golezinho de licor e mais reforço de
Amarula, o rosto dela começa e pegar cor rosada. Sorri até. Mas me
conta, tá triste por quê? Não fala nada, apenas encosta a cabeça em
meu ombro e suspira. É própria Julieta sem Romeu. Tá assistindo o
quê? Um filme velho de Mazzaropi. Não tem A Noviça Rebelde?
Não. Também gosto de Ana e Vitória. Boto Ana e Vitória.
Acompanha a letra das músicas com frases dispersas. O telefone dela
toca algumas notas da mesma canção. Atende, murmura algumas
respostas, desliga. Rodopia. Abre os braços. Canta. O rosto se
ilumina. Como a Julie Andrews dançando nos Alpes suíços e
cantando Ana e Vitória. Corre. Os olhos brilhantes se despedem de
mim. Ouço a porta bater. (25/05/2019)

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Estou saindo do Rio para participar do torneio de xadrez Copa


Contaud 2019 em Cuiabá e também para visitar o mano Dr. Roberto
Eloy e família. Já vi que a viagem será uma puta aventura. Saio do
Rio-GIG dia 30/05 às 07h40m para conexão em Viracopos-VCP. Lá
terei que esperar até 14h35m – ou seja, delay de 05h40m! – para
seguir a Cuiabá-CGB. E a volta? Para completar a aventura, sairei de
Cuiabá-CGB para Brasília-BSB, de Brasília para Viracopos, aonde
espero chegar às 23h45m. Só então finalmente retornarei ao Rio,
chegando às 00h50m, ou seja, já de madrugada. A companhia
aérea? Azul. Porra, alguém pode me explicar por que tenho de sair às
07h40m para pegar conexão às 14h35m? Alguém pode me explicar
por que tenho de ir de Brasília a Viracopos para chegar ao Rio? Não
tem nenhum voo de Brasília pro Rio? E por que vão largar um velho
de 77 anos às 00h50m no Galeão, cercado de favelas por todo lado?
Será que a Azul é uma empresa de retardados? Ou será porque
paulista gosta de perseguir carioca? Sou velho, mas não sou otário:
Azul nunca mais! (28/05/2019)

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Meu querido amado. Por causa de seu perfil de bom eu gostaria de


pedir a sua ajuda para cumprir o meu desejo, eu sou a senhora Edith
Walter do Canadá, mas viver em Cote D'Ivoire. Escrevo esta
mensagem através de um computador portátil na minha cama
doente no hospital, onde me submeter a tratamento médico. Eu foi
diagnosticado com câncer endometrial. Infelizmente, o meu médico
disse que eu não tenho nenhuma chance de sobreviver, a não ser por
um milagre. Eu quero doar dinheiro para apoiar as comunidades e
mesquitas para o evangelismo. Eu quero ajudar as crianças e
orfanatos em seu país. Eu doar 3,2 milhões de dólares americanos
como caridade é o único legado que eu posso sair após meu objetivo
antes de morrer e por favor, lembre-se sempre para orar por mim
quando eu morrer, minha alma vai descansar em paz. Se você estiver
disposto a me ajudar a conseguir esse dinheiro, por favor, eu gosto
de você entrar em contato comigo hoje. Ore para a urgência desta
transação, eu gostaria que você entrar em contato comigo para obter
mais informações. (30/05/2019)

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Acompanhada de um trainer com 1,90m de altura, ela corre 9km


toda manhã, depois circula pelo salão com desenvoltura. Simpática,
cabelos loiros, sorriso largo, ela ouve elogios e cumprimentos. Certa
rodada – surpresa! – estamos emparceirados. A partida inicia suave
e terna como as tardes quentes de Cuiabá. Na Abertura ganho um
peão. Poucos lances depois o espanto toma conta de mim: Sem
nenhuma emoção ela vai entregando todas as peças uma a uma.
Entramos num final inusitado: eu tenho muitas peças, ela apenas o
Rei defendido por meia dúzia de fieis escudeiros. O mate é iminente.
Ouço a voz angelical: – Vou repetir os lances três vezes, chamo o
árbitro e peço empate. Mais uma vez controlo o espanto. – Para isso
acontecer, esclareço, também tenho que repetir os lances. Ela ouve,
demonstra que entendeu, desiste de chamar o árbitro. Em seguida
oferece empate. – Agora não dá mais, justifico a recusa (tenho mate
em dois). No café do dia seguinte, ela se aproxima: – Você não
aceitou empate – e confessa – faz só quatro meses que jogo xadrez.
Respondo com o melhor sorriso. Coisas dos torneios... (05/06/2019)

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No salão de jogos falo com a senhora que tira muitas fotos. Pergunto
onde serão postadas, mas ela é a mãe que está com dois filhos
jogando. Comenta que acha bom eles participarem de torneios “para
ganhar experiência”. É um ponto a ponderar. Muitas crianças jogam
torneios de xadrez misturados a adultos. Não ganharão nada se o
professor não ensinar, além de tática e rasteiras, ética e
comportamento. São matérias que não constam dos cursos de xadrez
espalhados por aí. Deveria. Seria bom criar torneios com crianças do
mesmo grupo etário. Na última rodada sou emparceirado com um
garoto. Antes de iniciar a partida ele comenta com o colega: “Se eu
ganhar meu rating irá a 1600”. A partida começa. Joga rápido e na
abertura fico inferior. Ataca feroz a minha ala do Rei. Falho na
defesa, deixo Cavalo no ar, ele não vê. Recupero a posição, ganho
Peão, cravo a Dama com a Torre, dou xeque para ganhar um Bispo.
Ele abandona e me cumprimenta. Antes de sair digo que deixei o
Cavalo no ar, ele se interessa, reproduzimos a partida, mostro como
foi. Ele levará a partida para estudo e assim nós aprendemos alguma
coisa. (07/06/2019)

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Estou jogando com um rapaz forte, alto, simpático, cabelos
amarrados em rabo-de-cavalo. Jogamos de igual para igual até
entrarmos em final de Cavalo contra Bispo. Peões iguais, Reis
bloqueados. Ofereço empate, recusado e explicado. – Posso mostrar?
– ele pergunta. – Claro – respondo democraticamente. Ele faz breve
análise e aponta para um Peão meu e diz: – Você tem esse ponto
débil, que vou atacar com meu Cavalo. – Mas o ponto não é tão débil
assim, posso defender com o Bispo – replico. E mostro a ele como
pode ser defendido. – Bom, ele insiste, se eu não ganhar o peão, vou
ganhar aqui – aponta para o relógio – no tempo. Que fazer? Dá
vontade de rir, mas o cara é forte. Resisto bravamente, mas no
zeitnot falho e sou derrotado. Perco a partida sem perder o Peão que
meu adversário ameaçou ganhar. Depois descubro que um professor
de xadrez da equipe que organiza o torneio. Não sei como ele
entende e conversa com os alunos sobre esse diálogo com a partida
em pleno andamento, absolutamente proibido. Essa é a matéria que
os professores não ensinam aos alunos. E pelo visto não conhecem.
Coisas do xadrez... (10/06/2019)

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Aeroportos, rodoviárias e outros centros de circulação intensa


continuam sendo o paraíso dos pilantras. É cada vez maior a
proliferação e a ação de punguistas, ladrões, descuidistas, piratas e
outras classes de criminosos que se aproveitam da situação
vulnerável dos usuários. Mas para as autoridades a culpa sempre é
da vítima: deu mole? Dançou! Nos últimos dias circulei por três
aeroportos: em Viracopos (SP), recém-privatizado, em minutos
identifiquei vagabundos atuando livres e desimpedidos. Não
encontrei segurança ou policial a quem pudesse denunciar os
pilantras. Um deles me seguiu querendo passar a perna no velhinho.
O cara de pau entrou comigo numa cervejaria e foi perguntar ao
atendente se ali se vendia cerveja. Qualé? Em Várzea Grande
(Cuiabá-MT) minha mochila suspeita foi revistada pela gloriosa
Polícia Federal. Cutucaram tudo à procura de “um vidro”. – Não
tenho nenhum vidro (abdiquei da cachaça que Chicão me deu). Será
o desodorante? Mas é de metal. Por fim o agente concluiu que
poderia ser o frasco de Leite de Magnésia – de plástico. Na saída no
Aeroporto Santos Dumont (RJ), sou encaminhado a um táxi pirata.
Tiro de letra: chegando ao Cachambi convoco a turma do Bar do
Migué que cercou o taxista. Ele saiu de fininho antes de perder a
féria do dia. Resumo: ou se é roubado pela companhia aérea, pelo
comércio interno ou pela pilantragem que mora e trabalha no local.
Escolha. (14/06/2019)

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O meu primeiro sonho americano de jogar o 12th NY International


no Marshall Chess Club (23 West Tenth Street, Greenwich Village)
foi por água abaixo. Acabo de voltar do Consulado dos USA com um
peremptório NÃO. Meus amigos do Brazilian Day vão sentir minha
falta! Vou entrar no PROCON contra os USA pedindo restituição das
Taxas Consulares (aliás, altíssimas), merreca que economizei ao
passar a metade do ano sem beber. Tem o dano moral também:
quando terei outra chance de estar no mesmo clube que Capablanca
e Alekhine jogaram? E pelo visto jamais realizarei meu segundo
sonho americano: mijar naquele lindo gramado que cerca a Casa
Branca e mostrar o dedão para o Trump. Que bosta! (19/06/2019)

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Em vez de assistir jogos da Copa América de peladas previsíveis, dei
preferência ao Campeonato Mundial Feminino. As meninas estão
jogando um bolão. Temos árbitra brasileira nas semifinais. Em
campo, algumas poucas gatinhas, muitas potrancas, muitos olhos
azuis, louraças e alguns armários também. As africanas e latino-
americanas caíram nas preliminares. Ficou só o primeiro mundo. E
o futebol é muito diferente do que os machos jogam: pouca porrada,
sem malandragem, pouca desonestidade, sem violência. Ao fim do
jogo são constantes as reclamações pela igualdade de tratamento ao
futebol de macho. Elas ganham menos, viajam em classe econômica
e são assediadas. Essa perspectiva não passa despercebida na
história das inquietações femininas. Elas dizem não à limitação da
igualdade, a arremedos, caricaturas e macaquices, que jogaram no
lixo a luta das pioneiras do movimento feminista. As mulheres
querem, desejam e lutam por igualdade sem cair nas posições
tomadas por homens. Elas não querem ser como homens, mas com a
origem do universo entre as pernas. O futebol feminino brasileiro?
Uma merda. Tem que botar mulher na direção e na parte técnica.
Senão não sai do zero. Afinal, as conquistas feministas são realidade
ou ficção? (21/06/2019)

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A DIFÍCIL ARTE DE SER MULHER – I-Navalhadas - Em um


commodo da casa n. 10 da rua Visconde de Duprat, mora a rapariga
de vida facil Elsa dos Anjos, de 25 annos de idade. Hontem, Elsa teve
uma discussão com o amante, e, este, typo acabado de perverso, com
uma navalha golpeou-a na face, no thorax e nos braços. Elsa foi
conduzida em auto ambulancia ao posto central da Assistencia, onde
recebeu os curativos necessarios, retirando-se em seguida para a sua
residência. O criminoso evadiu-se. A policia declara ignorar o facto.
II-Tisana para matar - Num assomo de desespero, resolvida a dar
cabo da vida, Belmira Santos, que conta 21 annos apenas e reside á
rua Pereira Franco n. 52, preparou uma tisana para matar, composta
de petroleo, alcool, vinagre e tinta de escrever e ingeriu-a de um
trago. Depressa socorrida pela Assistencia, que acudiu aos reclamos
das companheiras de casa da desesperada, foi a rapariga posta fora
de perigo. A policia absteve-se de registrar o caso e, se o fez, sonegou
informes a respeito. III-Aggrediu a mulher - O individuo Eliodoro
Freitas, de 25 annos, que se diz engenheiro, accusado pela amante
Zelia Menezes, de 25 annos, residente á rua Jardim Botanico n. 868,
de se ter apossado da quantia de 100$, que lhe pertencia, foi por elle
agaredida, ficando bastante contundida. Zelia teve os socorros da
Assistencia, recolhendo-se á sua residencia depois de submettida a
corpo de delicto e o seu aggressor foi auctuado, não sendo recolhido
ao xadrez por ter prestado fiança. (Jornal O PAIZ, 1925).
(15/07/2019)
Conversas com Quincas Oliveira

(II)

O futuro é ontem. No dia 10/05/2014 recebi do primo Quincas


Oliveira o texto “Direito mastigado e literatura facilitada: agora vai!”,
de Lenio Streck. É um texto que se propõe doutrinário, mas,
pensando bem, vejo que apenas reflete o pensamento que herdamos
da Idade Média: não conseguimos entender nem ouvir as novas
gerações, não conseguimos compreender nem avaliar o novo
mundo; e nessa frase se substituirmos o não
conseguimos por nos recusamos, verá que também é justo o
que ocorre.

Por uma ventura da humanidade, ninguém se coloca diante da


situação atual, na qual vive a própria existência. A celeridade do
tempo e da vida muda à velocidade tal que não conseguimos
perceber o que está um milímetro adiante. A vida nos impõe tantos
transtornos – uns felizes, outros indigentes – com a exata rapidez de
não permitir que os contemporâneos tenham como absorvê-la,
entendê-la. Mudar isso é impossível.

A teia do tempo (posso dizer: da tecnologia) pegou o Lenio Streck,


autor do artigo, pelo gasganete, não foi o primeiro nem será o
último. O seu ponto de vista exposto sob a ótica do jargão
“jurisprudês”, sendo Procurador por profissão, contraria a própria
estética que critica, macula o texto. A sociedade – simbolismo de
raça humana – tenta assimilar de imediato, mais do que nunca, que
o tempo voa, nos arremessa junto, que, portanto, a juventude está
tão distante de nós que não chegamos a seus calcanhares.

Porém, esse big-bang da informática que ora ocorre, que não tem
como ser evitado (efeito e causa do artigo citado), veio bem a tempo
de impedir que toda a humanidade fique impassível nas mãos desses
loucos que dirigem os países, Putins, Obamas, todos pequenos e
grandes ditadores de nós, humanos e malditos.

Isso porque o movimento gerado pela comunicação digital é a reação


inevitável e simples, é também – graças a Deus! – incontrolável: a
Internet, o monstro que ‘eles’ criaram, torna-se O Robô, que pensa,
tem vida própria e liberdade suprema. É o Frankenstein moderno. É
a lenda contemporânea do Superman: cultura, folclore, mitologia,
fábula, história.

Tudo que o tempo coloca à frente, hoje e sempre, estará acima da


nossa compreensão, do entendimento dos que estão a bordo da
nave, mas nem por isso devemos ignorar ou nos mostrar refratários,
como fez o douto Lenio Steck, sem pioneirismo, porque tem
milhares de artigos circulando por aí com o mesmo espírito e
teor. Embora nem todos carreguem na alma a paz, o desejo de
liberdade no coração, nem qualquer respeito, antes, tratam no
íntimo como se fosse simples anedota, facécia ou gracejo. Isso sim
seria piada de mau gosto.

Para que nosso olhar não se perca, desejaria que pudessem todos
assistir, juntos e maravilhados, ao milagre prodigioso que ora se
materializa debaixo de nossos narizes. É o futuro que jamais
imaginaríamos, o repeteco do milagre de Cristo, Sócrates,
Copérnico, Galileu, Magalhães, Gagárin – número infindável de
feiticeiros que produziram o mesmo efeito com o passar do tempo
não cronológico – algo a ser vivido em carne e alma.

Um parêntese quanto à correção do texto de Machado de Assis


(também aventada no mesmo artigo): o tema foi objeto de blog que
escrevi alhures, não só sobre o tamanhão de importância que dão a
Machado de Assis, quanto a deterioração e o bolor que cai sobre suas
obras. É tamanha a relevância e reverência à obra de Machado de
Assis, que fica difícil encontrar outro exemplo universal de escritor
ao qual ele se possa igualar!

Pelo menos nesse ponto Lenio Steck pensa igual sobre a velhice
previsível de seus contos, romances e crônicas. Ou seja, não há como
evitar a atualização ortográfica dos escritos: por causa dessa visão
obstrutiva de falso purismo que está inteira no artigo que me
enviaste, crucificaram Camões, Monteiro Lobato, etc. lembra? Assim
entendi...

Se “la donna è mobili”, podemos dizer que “la scrittura è anche


mobili” e o que assemelha à situação apresentada é que a escrita não
precisa de ‘acordos ortográficos’: ela tem vida própria e, mutante, se
recria a cada instante.

No entanto, no artigo, isso é o de menos: o mais importante é a


cegueira que acomete pessoas possuídas de alto nível cultural sobre
o que agora ocorre no universo que nos cerca, globalizado, sim, mas
tão fragmentado quanto fractal, isto é, a supremacia da desordem
organizada. Precisamos nos vacinar urgente contra o vírus da
alienação ou nos tornamos aliens em nossa própria terra.

Será que teremos de nos obrigar a implantar aquele terceiro


olho hindu, o sexto chakra, para que nos expanda o grau de
percepção a nível imperativo, para abarcarmos e gozarmos de toda a
maravilha em que o mundo se transforma diante de nosso espanto?
É burrice perder tempo oferecendo resistência, não aceitação,
intransigência e qualquer obstáculo ao que está ocorrendo – ou não
aprendemos nada?

***********

Caro Quincas Oliveira, lembra-me surpreender o teu semblante


melancólico ao desfrutarmos, sós, a sala maravilhosa que cuidaste
de arquitetar em teu apartamento para recepcionar amigos, quando
te veio a imagem daquele mesmo ambiente, um dia repleto de
convivas, cheio de luz, sussurro de falas, tintilar de taças. As visitas
eram tantas que tiveste necessidade de improvisar assentos. E o jeito
amoroso com que descrevias as reuniões prenhes de amigos e de
assuntos, pejadas de sorrisos felizes porque, sendo o homem – como
os cães – espécie de convivência em matilha, só vive bem em grupo.

É triste: não existe mais a sala de recepção, as reuniões se tornaram


virtuais, ninguém visita ninguém, somos párias dos monitores,
portanto, entes menores. Ah, com tal analogia, de repente me
encheu o saco essa digressão! Poderia juntar aqui um monte de
lugares-comuns: o tempo voa, a vida passa, mas de que adianta se
não percebemos que a celeridade é que atropelou nosso olhar, nosso
pensamento, de tal modo imperceptível, igual ao átomo que
ninguém pode controlar?

“Não falo a néscios” (repito o sábio), por isso o que posso desejar –
palavra de primo-ermão – é que a percepção desse novo olhar se
reflita em teus escritos, nas leituras e atitudes, de tal modo
prismatizado, que tenha a envergadura de interferir na vida de teus
leitores. Não há tempo a perder. Pois hás de te lembrar do artigo em
que comentei o quebra-quebra nacional de outro dia – que irá se
repetir, como repercutem os cometas – pois somos passageiros do
mesmo trem.

***********

Quincas, tenha um bom dia! Desculpe o mau jeito com que respondi
ao texto que me mandaste sobre o artigo de Dr. Lenio não sei quê (e-
mail de ontem). Foi truncado, saído ao calor da refrega... Culpa tua,
que me manda essa bobalhada só pra me provocar taquicardia.
Antes de tudo, desculpa o “Não falo a néscios”, que não é frase
minha, acho que me lembrei da Bíblia – será de São Paulo, Cartas? –
mas saiu sem aspas.

Segundo, oras, o quê tenho haver se quem quer que seja não larga pé
do passado, essa natureza que nos trai a todo instante? Se for por
opção própria, então que se alimente lá de ontem, não sabe? Tu
mesmo, ora estás com o calcanhar no Líbano e o dedão em São
Bento – e eu com isso? Me tiraste uma noite de sono, tu e o tal Dr.
Lenio.

Mas te lembra do artigo em que comentei o quebra-quebra nacional


de outro dia – que irá se repetir, como repercutem os cometas – pois
são passageiros do mesmo trem. Bom, enfim, desculpa o
atrevimento, as frases de efeito imitadas de alguém e toquemos o
bonde pra frente, que atrás vem gente! (15/05/2014)

***********

Quincas, bom dia! Recebi a foto do amanhecer que me mandaste.


Foi gatilho para me lembrar das alvoradas que via da janela do
quarto que fiquei aí na primeira vez e que será teu futuro esconderijo
(se levares a ideia adiante).

***********

Só agora falo sobre o poeta José Chagas, que conheci bem pouco. Eu
era ainda um moleque de 14 ou 15 anos quando o conheci via
Coaracy Jorge Fontes e Ubiratan Teixeira. Claro que fiquei mudo
apenas ouvindo e fala dos dois, as discussões e comentários sobre
poesia e até mesmo ouvi-los recitar vários poemas de autoria dos
dois. Tudo isso depois de beber umas cervas, sentados no meio-fio
em frente à Igreja do Carmo, na Praça João Lisboa. Lá pras três da
madrugada, começou uma chuvarada, cada um correu pro seu lado e
eu fiquei sozinho na Praça João Lisboa, debaixo d’água e - sem grana
pro táxi - fui a pé até o Filipinho, acreditas? É fato.

A obra de José Chagas que me marcou foi “O caso da ponte”, que


acendeu nele o exacerbado espírito crítico de poeta paraibano. É
quase um poema de cordel. Falo isso pensando no também
paraibano Leandro Gomes de Barros, cuja poesia crítica,
humorística e satírica é das maiores. Em “O caso da ponte” Chagas
deixou de ser maranhense por aquele momento, rendeu-se à verve
paraibana. E guardei esse poema por quê? Até hoje me vem a
imagem da ponte construída pelo poeta numa paisagem aonde não
havia ponte.
A ladeira do colégio, a paisagem ao redor, o cenário: tudo o poeta
erigiu do nada, por isso quem lesse o poema “veria” a ponte se
materializar diante de si. Quer dizer, a arte foi o poeta construir a
ponte dentro de um poema que foi feito para desconstruí-la. A isso
se chama obra de arte. Outro livro que comprei aqui mesmo no Rio
foi “Lavoura Azul”, com belos sonetos. Além disso, não tive nada
mais do Chagas para ler, mas sei que ele também escreveu crônica e
alguma prosa. Olha aí uma homenagem ao Carlos Chagas.

Pranto de Poeta
Guilherme de Brito - Nélson Cavaquinho

Em Mangueira
Quando morre
Um poeta
Todos choram

Vivo tranquilo em Mangueira porque


Sei que alguém há de chorar quando eu morrer

Mas o pranto em Mangueira


É tão diferente
É um pranto sem lenço
Que alegra a gente

Hei de ter um alguém para chorar por mim


Através de um pandeiro ou de um tamborim

Abrs, bjs, etc. Saloca. (17/05/2014).

***********

Quincas, adivinhação: o que é o que é?

“Chocolate, café, berimbau,


E a correia na ponta do pau!”
“– Vai chuchar cinquenta para largar da moda de tirar cipó por
sua conta. Não sabe que negro que foge dá prejuízo ao senhor?
Olha só este pincel, está tinindo, está beliscando! – E sacudia
ferozmente o bacalhau”.

Surpresa? Esse “bacalhau” não o mesmo que degustamos com


alegria no Restaurante Mosteiro – Rua de São Bento, Rio de Janeiro,
não. Muito pelo contrário, tinha má fama entre os abolicionistas. “É
um instrumento sinistro, vil, repugnante, mas simples”.

“Toma-se uma tira de couro cru, de três palmos ou pouco mais de


comprimento e de dois dedos de largura. Fende-se ao meio
longitudinalmente, mas sem separar as duas talas nem em uma
nem em outra extremidade. Amolenta-se bem em água, depois se
torce e se estira em uma tábua, por meio de pregos, e põe-se a
secar. Quando bem endurecido o couro, adapta-se um cabo a uma
das extremidades, corta-se a outra, expontam-se as duas pernas a
canivete, e está pronto”.

Imaginou? As pontas do couro seco picavam a pele do atingido como


estiletes. Com essa obra de artesão aplica-se o castigo.

“... desnudou as suas nádegas chupadas de negro magro, já cheias


de costuras, cortadas de cicatrizes. Curvou as pernas, pôs as mãos
no chão, estendeu-se, deitou-se de bruços”.

“O caboclo tomou posição à esquerda, mediu a distância, pendeu o


corpo, recuou o pé esquerdo, ergueu e fez cair o bacalhau da direita
para a esquerda. Vigorosamente, rapidamente, mas sem esforço,
com ciência, com arte, com elegância de profissional apaixonado
pela profissão”.

“As duas correias tesas, duras, sonoras, metálica quase, silvavam,


esfolando a epiderme com as pontas aguçadas. Duas riscas
branquicentas, esfareladas, desenharam-se na pele roxa da nádega
direita. O negro soltou um urro medonho”.
“Compassado, medido, erguia-se o bacalhau, descia rechinante [?],
lambia, cortava. O sangue ressumou a princípio em gotas, como
rubis líquidos, depois estilou contínuo, abundante, correndo em fios
para o solo. O negro retorcia-se como uma serpente ferida,
afundava as unhas na terra solta do chão, batia com a cabeça,
bramia, ululava”.

O castigo, aplicado pelo feitor “com ciência, com arte, com elegância
de profissional apaixonado pela profissão”, não se assemelha, em
muito, com o lado profissional com que os torturadores de
trazontonte e contemporâneos executam os suplícios? Cuja técnica
atemporal é aplicada aqui, na América Latina, em Guantánamo, nos
USA, no Afeganistão, na Rússia, etc. – ou seja – no mundo inteiro?

Esse texto e o outro do “pedilúvio sinapizado” (cujo texto está de


acordo com a explicação que me mandaste), são de “A Carne”, do
Julio Ribeiro (18ª edição, 1944) e não de Rachel de Queiroz. Dela é a
crônica sobre a morte de Gastão Cruls, que te mandei em separado,
apenas para fins comparativos, de cronista para cronista (i.e. de
Rachel para Quincas)...

Abrs, bjs, Saloca

PS: Os escritores da coluna “Hoje é dia” já escreveram crônicas com


o necrológio do José Chagas? (23/05/2014).

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Quincas,
Bom dia! Acabei de reler o romance “A carne” de Júlio Ribeiro e vejo
que se pode tirá-lo da lista dos fesceninos. Não levanta mais o pau de
ninguém... Imagina que o romance tem 278 pgs e o Barbosa
(Manduca, para os íntimos) só foi comer a Lenita na pg 226! Mas
estamos em 1888, né mesmo? Naqueles tempos, e por muito tempo,
foi um rebu danado (falei rebu, agora vejo que é redução de rebuliço,
como forró de forrobodó, apê de apartamento, etc.).
No livro, reparei algumas curiosidades: descrições imensas
cientificistas, naturalistas, confrontos sociais e psicológicos (sexo,
divórcio, Freud); ambientações naturais, bichos e aves, plantas,
frutas, flores, detalhadíssimos (que lembram as de Hitler, teu
romance); o próprio Júlio Ribeiro, Ramalho Ortigão e outros menos
votados aparecem como personagens; por fim, naturalmente, olha
que o Manduca comeu a Lenita no mato (não fosse assim, não seria
um romance ‘naturalista’, né?).

O romance é dedicado

AO PRÍNCIPE DO NATURALISMO
EMILIO ZOLA
Aos meus amigos
Luís de Mattos, H.H.de Bittencourt, J.V.de Almeida e Joaquim
Eiras;
Ao distincto physiologo
Dr. Miranda Azevedo.
O. D. C.
JULIO RIBEIRO

Depois da dedicatória vem uma humilíssima ‘carta’, à moda


franciscana:

“A.M. Émile Zola.

“Je ne suis pas temeraire, je n’ai pas la prétention de suivre vos


traces; ce n’est pas prétendre suivre vos traces que d’écrire une
pauvre étude tant soit peu naturaliste. On ne vous imite pas, on vous
admire.

“Nous nous echauffons, dit Ovide, quand le dieu que vit en nous
s’agite (1)»: eh bien! le tout petit dieu qui vit en moi s’est agité, et j’ai
écrit La Chair.

“Ce n’est pas l’Assommoir, ce n’est pas la Curée, ce n’est pas la Terre;
mais, diantre! une chandelle n’est pas le soleil, et pourtant une
chandelle éclaire.
“Quoi qu’il em soit, voici mon oeuvre.

“Agréerez-vous la dédicace que je vous em fais? Pourquoi pas? Les


rois, quoique gorgés de richesses, ne dédaignent pas toujours les
chétifs cadeaux des pauvres paysans.

“Permettez que je vous fasse mon hommage complet, lige, de


serviteur féal en empruntant les paroles du poét florentin: Tu duca,
tu signore, tu maestro”.

St. Paul, le 25 janvier 1888.

Jules Ribeiro

(1) Est Deus in nobis, agitante calescimus illo.»

Rapaz, a gente lendo isso hoje acha um monte de críticas a fazer.


Mas, em respeito ao velho Júlio Ribeiro, cala. En passant, porém,
fala língua ferina!

Por exemplo: imagine-se você Zola, recebendo carta na França vinda


de... St. Paul! Pensaria que viria de Brasil? Jamais.

E que tal citar o poeta italiano Dante, poét florentin, para que je
vous fasse mon hommage complet, a um escritor francês?

E dizer, como quem quer elogiar: Ce n’est pas l’Assommoir, ce n’est


pas la Curée, ce n’est pas la Terre.

Hoje, sabe-se, essas obras são vistas como terrível equívoco de Zola:

Martine Cremers – Un cycle infernal: la violence contre la femme


dans La curée, L'assommoir, La terre, de Zola.

PS. Soube que seu Ramos – da padaria – faleceu. A bolachinha, o


bolo de tapioca (em rodela) e outras delícias feitas em forno à lenha
estão órfãos, pois. Tomara que as filhas continuem com o negócio
(uma delas me confessou que continuará à frente da padaria). Mas é
quase certo que fechará... ou não? Abrs bjs etc Saloca. (27/05/2014)

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Quincas, bom dia! Sabe que acabo de ler um livrinho, curto como o
quê: é Gênese do Dr. Fausto, de Thomas Mann. Como o título diz,
ele aproveita as anotações feitas enquanto escrevia o romance Dr.
Fausto, para rememorar os acontecimentos da época, porque ele não
se fixa somente na nas notas sobre a feitura do texto, mas acrescenta
acontecimentos familiares, pessoais e tudo o mais que o cercava na
ocasião.

Comecei a te escrever com um motivo principal – mostrar que a


gente da arte é toda igual, seja em qual arte seja, for de que arte for –
pintura música, escrita, poesia, cinema. Arte é arte, enfim, e os
mecanismos que os artistas trabalham têm os mesmos escopos, mas
cada qual com seu cada qual. Acho que já me referi a isso em outra
ocasião, mas fica bem claro agora, lendo as notas de Thomas Mann.

Pois Thomas Mann foi beber em muitas fontes pra construir o seu
Fausto: Freud, Bíblia, contemporâneos e amigos. Volta e meia ele
reconhece na obra alheia similaridade com o que está escrevendo.
Mário de Andrade chama isso de ‘sequestro’, isto é, um tema lido e
guardado no subconsciente reaparece transfigurado, imitação ou
semelhança, em obra nossa. Na prática o que Thomas Mann fazia
era usar argumentos, temas, buscar conhecimento pras coisas que
não sabia a fundo. Mas o livrote chama mesmo a atenção para a
grande e decisiva mãozinha dada por Theodor Adorno, confessada
como imprescindível. E agora? Como o Fausto é tema recorrente nas
artes (tu não tens o teu?), fica difícil aceitar a teoria dele, Adorno, de
que a arte representa um protesto social.

Uma coisa que me deixou encasquetado e não consegui resolver foi a


transformação da música em texto de prosa, como diz-que Thomas
Mann conseguiu – o personagem que faz o temático ‘pacto com o
Diabo’ no romance é compositor e musicólogo (aliás, como não li o
Dr. Fausto, não estou seguro disso). Com a poesia se sabe do vínculo
estreito: não só a música, mas todos os elementos musicais estão
presentes e são importantes. Mas como fazer para que o texto de
prosa represente a obra musical? Isso é possível ou interpreto mal a
proposição? Para conseguir o seu intento Thomas Mann consulta
não só Adorno – também musicólogo – como vários compositores
de sua relação (Arnold Schomberg, principalmente) e diz que
conseguiu o que pretendia, ora, pois o romance saiu, não foi?

Música = Prosa... Você sabe de alguma coisa parecida? Pode me dar


alguma luz, ainda que teórica? Ou será que vou ter que ler o Dr.
Fausto para entender isso? Acho que sim. Me recordo que certa
ocasião Thomas Mann – também com dificuldade – de repente
anota no diário: – “Agora sim, vejo bem claro, a música está todinha
lá!” (Acho que se referia ao Trio em Si Bemol, de Franz Schubert).

Rapaz, o que me pareceu é que ele conseguiu ‘ouvir’ a representação


da música dentro do texto! Tudo infere que o capítulo final do Dr.
Fausto seria a encenação de um Oratório – era esse o projeto
artístico de Thomas Mann. Para mostrar a composição, não só em
teoria, mas também na técnica, ele recorreu a tudo, desde Bach à
escola de Schomberg (música serial).

É isso aí, primo, esses são alguns dos mistérios da Arte... “Eis o
mistério da Arte” – se poderia dizer como no ritual da missa: “Eis o
mistério da Fé”. Arte e Fé são misteriosas, por isso disse lá atrás que
o artista tanto pode nascer em Alagoinha quanto em Viena, tanto
faz... Mas não sou ingênuo a ponto de duvidar se esse meu
desconhecimento, a minha dificuldade em perceber certas nuances
da Arte (como esta, talvez inútil, digressão sobre música/prosa)
ocorre devido à informalidade com que aprendi minha pequena arte.
Não disse autodidatismo porque, para mim, isso é coisa que não
existe. Se pensarmos bem a história do conhecimento, vamos ver
que tudo que se apreende, tudo que é transmitido, é de alguém para
alguém. Portanto, o autodidatismo não existe – essa é uma palavra
inútil.

Quanto à novela Chiara, tomei decisão (para acabar com a ‘novela’


termina não termina): vou completar o capítulo que falta, vou botar
o que tenho aqui tirado de um conto, e assim dou por finalizado.
Tem outro texto que queria incluir, te conto. Foi uma crônica que
escrevi quando mãe Mizica morreu. Chamei ‘Tudo que mamãe me
ensinou’ e saiu numa revista eletrônica chamada Confraria. Pois
bem, a tal revista acabou e – como um dia profetizei – o texto foi pro
espaço sidéreo do mundo digital (o espaço cibernético está mais
cheio de almas penadas do que o purgatório de Dante). E nos meus
arquivos não encontro mais nada. É uma pena, porque o texto se
encaixaria perfeitamente.

Um último trabalho que essa novela me dará é encontrar um nome.


Chiara não dá, já te expliquei porquê. Não quero botar Clara, nem
Klara, nem algo similar porque quero tirar da cabeça que não se
trata de coisa biográfica – e não é mesmo! Fui fazendo ficção das
lembranças que me vinham, misturando tudo e vendo o resultado da
composição. Aliás, veja só como são as coisas, acabei de discutir isso
quando falei de Thomas Mann. Puxa!

PS: A sinopse do livro, publicado aqui pela editora Saraiva, diz:

“Doutor Fausto” é uma obra grandiosa com a qual Thomas Mann


constrói um universo social de artistas e intelectuais. Narrada pelo
amigo e professor Zeitblom, é a história do músico Adrian
Leverkühn, que, como o Fausto da lenda, vende a alma ao Diabo a
fim de viver o suficiente para realizar sua grande obra. No último
dos seus grandes romances, Thomas Mann trabalha com extrema
coerência os personagens, fazendo sentir seu amadurecimento, os
caminhos traçados por cada um, combinando música, política e
realidade num grande panorama em que a figura do artista
encarna a própria ruína de seu país, a Alemanha, em guerra.
(Trad. Herbert Caro). (07/04/2013)

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Quincas, mandei cópia dos contos pro Fernando. Vê o que ele


escreveu: “Já li os dois. Belíssimos, ambos! Não encontrei nada E
como seria de encontrar num texto escrito por um
purista?” Mentiroso, né? Não leu porra nenhuma. Não gosta de ler –
como nós gostamos. Ou então a idade chegou e os achaques
desanimam até a leitura. Eu jamais escrevi nada sobre coisa que não
li. Pode ser a maior merda: leio. Depois digo: é uma merda (se for o
caso). Por exemplo: li cerca de 90% das tuas crônicas (não é o caso);
li aqueles sermões do Vieira que pesquisamos (e já tinha lido Vieira
em outras ocasiões); etc. Assim, quando dou palpite sobre obra de
quem for – tem muito disso em meus blogs – é porque li, às vezes
me obrigo ler. Nunca escrevi sobre Paulo Coelho. Depois o homi
ainda me xingou de ‘purista’ – ora que até tu já pôs reparo que faço
tudo para estragar a língua e o que escrevo, não foi? Acho que essa
mania que tenho foi ‘sequestro’ (influência) de Furnandes
Albaralhão e Juó Bananére, que é certo atiçaram Mário e Oswald de
Andrade. O engraçado é que li tanto Albaralhão quanto Bananére
ainda em São Luís, antes de ler os Andrades (Mário e Oswald).

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Isso me trouxe reflexão sobre as coisas que li: rapaz, pro tamanho
deste pobre cidadão foi um Himalaia de leitura. Desde moço já
estava cercado do melhor da poesia: Gonçalves Dias e Fagundes
Varela – que para mim é o maior. Claro que havia muitos outros. Era
um tempo que eu queria ser poeta, escrever só poesia. Então tinha
de estar ‘calçado’ com o melhor, né? A nossa diversão no Filipinho
era ficar até as tantas da madrugada discutindo literatura e
declamando versos na praça em frente à igreja. Li dez volumes das
memórias de Casanova; li os três Quixotes mais de uma vez; li a
Bíblia; li Balzac – quase toda a Comédia Humana; li Joyce [mas
detesto: li pedaços do Ulisses, gostei de Dublinenses e poesias]; li
Guerra e Paz, Tolstói; li O morro dos ventos uivantes; li Dostoievski;
li Gorki; li Brecht; li Proust; li Simone de Beauvoir; li Virginia Woolf;
li Sacher-Masoch; li Érico Veríssimo; li Jorge Amado e o irmão
James; li Josué Montello; li Viana Moog; li Clarice Lispector; li João
Lisboa; li os filósofos; e vou parar por aqui. Poesia li quase tudo,
daqui e de fora, pois, como disse, queria ser poeta. O chato é que
ainda preciso ler muito [estou lendo Agualusa]. E para falar a
verdade, gosto mais de ler do que escrever. E isso nem era a primeira
opção – que era a sobrevivência. Bom, chega. Para encerrar vou
rogar duas pragas pro Fernando: 1) jamais entrar na AML; 2)
escrever poesia igual Ledo Ivo. PS. Não entrou no Armário de
Palavras. Cáspite! Sei de outras crônicas tuas que também não estão
lá. Daqui a pouco vai sobrar material para mais um volume:
“Crônicas esquecidas”. Pode procurar que irás achar.

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Quincas, uma coisa puxa outra, então me lembrei de outras leituras


gostosas. Edgar Rice Burroughs – li todo o Tarzan, cerca de oito
volumes e mais outros escritos dele ‘sem Tarzan’. Sir Arthur Conan
Doyle, todo Sherlock e mais Contos de Guerra, Contos de Box e
outros jogos, escritos de aventuras e históricos. Excelente contista.
Certo tempo cismei de escrever um romance, então me obriguei a ler
tudo sobre romances: li de montão Sidney Sheldon; Harold Robbins
(que o velho Machadão [fundador da ed. Record] botava na capa
‘tradução Nélson Rodrigues’, mas era peta); li os álter ego do próprio
Rodrigues, Suzana Flag e por aí afora. Depois disso escrevi
‘Gardênia’ pensando que seria fácil

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Quincas, Espero que todos estejam bem, etc. etc. Enquanto escolhes
aí o vinho chileno para acompanhar o rango das reuniões de
domingo, eu me esbagaço aqui tentando salvar e passar da cabeça
pro papel esses contos antigos que achei entre papeis velhos e estão
grudados em mim quinem ostra na pedra. Aqueles mais antigos,
resolvi que não mexo nada – foram escritos num tempo que eu
queria escrever como escritor. Os de agora são do tempo que quero
escrever como contador de lorota. Se não boto as lorotas para fora
ficam me aporrinhando a vida toda, tipo 10 anos. Já estou
finalizando “O pianista da Rua da Carioca” e então faltará mais um:
“As velhinhas do Posto 6”. Aí vou juntar com aqueles outros, “O
catador de cocô”, etc. e faço um pacote. Quem sabe me animo a
mandar para alguma editora. De qualquer modo a internet é o
cemitério de todos os meus escritos. Dá notícia, sacana, não me
deixa aqui pensando besteira da saúde e da vida de vocês – que me
importa, sim.
***********

Quincas, bom dia. Ânimo cabra! Ainda temos um ano pela


frente. Não te contei que tenho na padaria daqui uma conterrânea de
São Vicente Ferrer? Ainda olhando aqui e ali vi que o “Distrito
criado com a denominação de São Vicente Ferrer, pela Provisão
Régia de 07-11-1805, era subordinado ao município de São Bento
dos Perizes”, bem aí pelo lado de tua terra. E que São Bento manteve
demorada disputa pela manutenção do distrito sob a sua dele
jurisdição. Estava me perguntando como e porque o nome
desse fraile valenciano veio parar na baixada maranhense. Nada vi
na biografia do dito cujo algo que o justificasse. E também por que o
antigo São Vicente, em Pernambuco, se transformou em São Vicente
Férrer? (sic). Na pesquisa, outra descoberta: por que imigrantes
árabes em geral eram conhecidos de modo genérico como “turcos”?
Li que nos tempos coloniais tanto Síria como Líbano (e outras
regiões colonizadas), não tinham passaporte próprio. Por ordem das
autoridades coloniais, a turma que queria migrar teria de obter o
referido documento junto à Turquia. E foi assim que os primeiros
imigrantes árabes chegaram aqui e alhures como “turcos” e turcos
ficaram por muito tempo no populário. Hoje, claro, não é mais
daquele jeito.

***********

Quincas, li mais uma vez e acho que não mexo mais nesse conteco
(Farelos), a não ser que você me alerte sobre alguma coisa. Está
coerente, tem cronologia, boa sequência, deixa muitas dúvidas e
interrogações para o leitor resolver. Ah, vou tirar os números e o
título de Epílogo, que detalhei apenas para não me perder. Dou
quebra de página e pronto. Quero acabar “O Pianista”, que já tem
dois capítulos para ver se junto tudo numa antologia. PS: Aceitei
oferta do Banco para vender meu 13º salário. Pago tudo no fim do
ano com um ágio. Dureza é dureza. Além do mais o gerente disse que
se eu morrer não precisa pagar. Do jeito que as coisas andam
qualquer bife é filé. Se você se aperrear nos bolsos, vá lá – os juros
são mais baixos. E se morrer, não paga...
***********

Quincas, vida que segue. Espero que a turma toda aí – em especial


minha prima tua esposa – estejam nos conformes. Cada qual no seu
cada qual. Inclusive a netinha recém-chegada a este mundo
atribulado. Estou tentando escrever, mas quem pode fazer algo neste
calor de 45°C que já faz 30 e tantos dias? Estou à procura de âncora
para iniciar “O Pianista”. Achei o Arthur Napoleão. Vou mexer no
“Manual” mais tarde – quero dar distanciamento para ter firmeza de
alterar isso e aquilo de modo mais claro. E segue a procissão. Tu não
me contas nada. PS. Ando procurando o telefone do invisível João
Bala, pois ele ficou de vir aqui por esses dias. Ele é o tipo de cara que
só se tem notícia quando nos perguntam: – Sabe quem morreu?

***********

(Resposta) Primo. Estás em forma. Pelo menos passas o dia sentado


diante do computador. Já não tenho mais saúde para isso. Nem
vontade. Acho perda de tempo. O que eu tenho para dizer não vale
nada. Nem para mim mesmo. Imagina para outros! Tem um montão
de livro nas prateleiras a ler ou reler. E isso a gente pode fazer até
comendo, andando e cagando. Não precisa de computador, nem de
porra alguma. Faz século que não vejo o João Bala. Abalou das
redondezas. Ah, é bom desaparecer, virar nada, sem deixar nem
vazio onde a gente da preencheu de vida. Este ano de 2017 vai ser de
lascar, não teremos nem vacas magras. Até para peidar teremos de
pagar mais impostos. Pior é que muita gente passará a pão e água e
ainda assim pagará mais impostos por um peido de menor
sustância. Cura ut valeas, recomendava Cícero à sua Terência. E é o
que devemos fazer: cuidar da saúde. Inté.

***********

Quincas, oscilas entre o pessimismo e a alegria de poder brincar com


o bisneto. Tudo bem. Mas já te disse que sentar aqui e escrever é o
que me mantém a salvo. Ontem mesmo botei “O catador de cocô” no
blog. Assim irrito muita gente e comprovo a precisão de ter o
circunflexo no cocô, ao contrário do que diz a reforma ortográfica
feita pelo Lula. Se não tivesse o acento os catadores de coco sairiam
prejudicados, pois a estória não tem nada a ver. Lá no fim botei um
tiquinho de veracidade e fiz do Moro personagem de breve aparição.
E assim vou me divertindo. Aconselho que tomes umas doses de
Norman Vincent Peale e voltes ao sacrifício gostoso que é escrever.
Não tem nada melhor. Te abraça saudoso teu primo chato.

***********

(Resposta) Primo. Besteira, bosta! O acento de cocÔ não foi


suprimido. Tampouco o foi o ASSENTO por onde o cocô sai. No dia
em que suprimirem este, a bosta sairá pela boca. E, como dizia
Fernando Braga, de boca fechada não sai merda! He,he,he,he!

***********

Quincas. Data vênia ilustre causídico. Parabéns! Com efeito, para


quem não entendia nada de merda até que v. excia. está bem
informadA. Falar nisso, por onde andará o poeta goiano Fernando
Braga? Estará em Portugal? Encontrei uma cigana lendo o futuro na
pracinha Orlando Silva e ela previu: Fernando Braga só entrará para
a Academia Maranhense de Letras quando o Sargento Garcia
prender o Zorro; ou quando USA levantar o bloqueio a Cuba. E por
falar em poeta: Zé Andrade me “presenteou” um tijolaço de mil
(1.000) páginas com as Poesias Completas de Ledo Ivo. Caramba!
Veio confirmar: sempre achei Ledo Ivo um gozador, bon vivant, que
escrevia só para se divertir e irritar os outros seu pares. E entrou na
ABL! Enfim, é duro ler Ledo Ivo sem entender este ponto de vista –
mesmo assim continua duro de ler. Te anima, vai beber umas no
Buteko com os amigos, depois passa no mercado para comprar o
rango de domingo. PS. Não te mando nada, mas já estou passeando
pela Rua da Carioca em busca de estórias para O Pianista.

***********

(Resposta) Primo. Bem informadA é a p.q.p. Fernando Braga me


envia cousas de terras do Planalto Central. Aguas Quentes, Aguas
Claras, Goiânia e cercanias. É um peripatético. Mais fácil ele entrar
na Academia Maranhense de Letras do que se mudar para a velha
Lusitânia. hehehehehe. Lelé leu o Ledo e Vivi viu o Ivo. Lê o Ledo ou
dá por lido. Enquanto isso, preparo a cumbuca estomacal para
receber o produto de um tatu ao leite de coco babaçu com vinho
branco verde. Tanto tempo aí e não aprendes que a Rua da Carioca
não é para passear, é para fuder! Tixau!

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Quincas, postei um vídeo de Manuel Bandeira declamando


Pasárgada. Ele fala claramente PaZárgada. Sabe como é a história:
“s” entre duas vogais. Mas eu sempre li, ouvi e falei “Paçárgada”.
Acho que a fama e o populacho atropelaram o poeta e Pazárgada
virou Paçárgada – que é muito mais sonoro e assim dá para comer a
mulher escolhida na cama ou em pé mesmo!

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Quincas, foice 2016! A turma já arrumou a mochila para ir às praias.


Daqui a pouco vou beber umas com o Pinto Calçudo, o Serafim
Ponte Grande e a Mariquinhas Navega, pois a Dona Lalá e a
Guiomar dizque não virão... bs abs na turma do Buteko. Botei no
facebook aquele texto sobre Aleppo que me mandaste. Teve
repercussão enorme, muita gente lendo e reproduzindo.

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(Resposta) Primo. Para veres como vale a pena construirmos textos


que mobilizem consciências em favor da paz. E olha que podemos de
fato fazer muito mais, embora nem suspeitemos dessa nossa
capacidade. Paz e alegrias! Quincas.

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Quincas, estava aqui reunindo uns contos e descobri que perdi um


deles. Deve ter ido junto com o PC que vendi. Eu te mandei “O
coletor de cocô”, porque o final é de natureza jurídica – mas vc. me
disse que não é tua especialidade. Vê por favor se tu achas ele por aí
anexado a algum e-mail e me manda. Não é brincadeira. Pára tudo!
Achei o conto! Olha aí a tua resposta: “Rapaz, agora tu me meteste
numa sinuca de bico: não entendo nada de merda canina ou
humana; muito menos de direito aplicado à coleta de merda, ainda
que a justiça brasileira se haja convertido em uma grande bosta,
dispendiosíssima para o Erário. Vou repassar a tarefa para um
amigo que é desembargador aposentado”.

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Quincas, quando eu tiver o texto todo finalizado te mando. Joga fora


os textos te mandei a modo de rascunho. É que vou mexendo,
pegando as mancadas, os erros, corrigindo, tirando, botando – não
acaba nunca. Ademais, páro de escrever uma coisa, começo outra
que veio e anoto para não esquecer. Estou caprichando mais no
“Manual” e já tenho a sinopse dos três capítulos finais. Dá uma
novelinha. Já te disse que a minha dificuldade é que não fiz
faculdade de letras. Falta-me técnica para escrever. Então fica tudo
caótico não por culpa dos clássicos. Tem paciência com teu primo Te
mandei a troca de e-mail que tive com o Tio Murillo sobre os Sauaia-
Kubrusly. Não entendo como você não conhece esse caso. Ele faz um
repto a nós dois: escrever a tragédia.

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(Resposta) Primo. Besteira essa historinha de faculdade de letras.


Em qual delas estudaram Graciliano, Proust, Shakespeare, Eça,
Dalcídio, Cervantes – o Manco? Manda quando queiras.

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Murillo, Recebi um comunicamos de falecimento do Mestre


Nacional de Xadrez Jose Cristovam Sauaia Kubrusly aos 61 anos de
idade no dia 02/12. Cristovam fazia parte da Diretoria do Clube de
Xadrez Guanabara, onde por várias vezes exerceu mandato de
Presidente. Eu e ele fomos muito amigos. Muito querido no Clube e
no ambiente enxadrístico, além de altamente culto, Cristovam deixa
uma lacuna irreparável, não somente para o CXG, mas para o xadrez
carioca em geral. Lembra dele? O Joaquim Itapary me contou que
foi aluno do pai dele, “professor Edson Kubrusly, casado com uma
linda filha dos Sauaia, de Rosário. Ele foi dentista, oficial do
Exército e professor de Química e de Ciências Naturais. Gente
finíssima” – disse-me Quicas. Você me contou que as famílias
Sauaia e Kubrusly entraram em desavença tendo morte como
desfecho. Mesmo assim não teve jeito de evitar o casamento dos
enamorados. Parece conto de fadas, mas não é. É tragédia pura.
Agora, décadas depois, o filho se suicida atirando-se do 6º andar do
prédio onde morava em Botafogo. Dizem que a causa foi depressão.
Que história, né?

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(Resposta) Saloca, as histórias são longas e longínquas (estou em


dúvidas a respeito desta última). Os Sawaias e Kubruslys do meu
tempo são oriundos lá de Rosário. Quando vim para o Rio conheci
outros Kubruslys, eram primos e éramos amigos. Fiz projetos com
um engenheiro que tinha casa em Teresópolis, chamava-se Newton
Kubrusly, grande figura. Ele tinha filhos. Entretanto, o tempo não
perdoa e está aí para confirmar que é o único lenimento para a cura
de todos os males que nos afligem. Nós, testemunhas em tempo real
da história-tragédia que desgraçou a vida dessas duas
famílias, jamais poderíamos esperar qualquer sombra de simples
aproximação entre seus descendentes. E eram compadres, e
eram sócios, e moravam frente a frente. Fosse eu dotado das
qualidades de escritor, teria em mão uma história que certamente
resultaria em um grande romance. Creio que Tu e Quincas poderiam
se encarregar dessa tarefa. Daria também um grande filme. Zilda
guardou por longos anos o vestido com o sangue da cabeça
do Nicolau Kubrusly que morreu em seu colo. Terrível! Abraços para
todos os sobrinhos. Murillo Boabaid.

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“Clube de Xadrez Guanabara – Nota de Falecimento –


Comunicamos o falecimento do Mestre Nacional de Xadrez Jose
Cristovam Sauaia Kubrusly, aos 61 anos de idade, ocorrido no último
dia 02/12. Cristovam fazia parte da Diretoria do Clube de Xadrez
Guanabara, onde por várias vezes exerceu mandato de Presidente.
Muito querido no clube e no ambiente enxadrístico, além de
altamente culto, Cristovam deixa uma lacuna irreparável, não
somente para o CXG, mas para o xadrez carioca em geral. Nossas
condolências aos familiares e amigos”. Quincas, lembra dele? Filho
de um professor teu, nos encontramos aqui no Rio num café da Rua
Acre. Ele me chamou e te apresentei a ele para breve papo. Fomos
grandes amigos no CXG. Faleceu novo ainda, né? (Resposta): Primo.
Filho de Edson Kubrusly, casado com uma linda filha dos Sauaia, de
Rosário. Ele foi dentista, oficial do Exército e professor de Química e
de Ciências Naturais. Gente finíssima. Sorry

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Quincas, essa história é interessante. Tô de olho nela. Você me


contou que as famílias Sauaia e Kubrusly entraram em desavença
tendo a morte como desfecho. Mesmo assim não teve jeito de evitar
o casamento. Parece conto de fadas, mas não é – é tragédia pura.
Agora anos depois o filho se suicida (soube ontem) atirando-se do 6º
andar do prédio onde morava em Botafogo. Dizem que a causa foi
depressão. Não é história para se contar? (Resposta): Primo. Não sei
que desavença seja essa. Ouviste tal história de outra pessoa ou
criaste em tua cabeça. Conheci Edson pessoalmente, porque fui seu
aluno. Mas a sua esposa e outros membros da família Sauaia conheci
apenas de vista.

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Quincas, já tô melhor do espinhaço. Até me sentei aqui para


continuar aquela novela. Aí de repente deu aquela ventania que
precede a chuva com trovão e raios, veio uma barata com ela, deu
um voo rasante sobre minha cabeça e um susto. Tive de interromper
tudo e escrevi o anexo. Quando terminei senti uns repuxos no
lombo e pedi arrego. Voltei ao sofá. Depois pego o conto de novo
(Resposta): Primo. Abri e li. Não consigo editar. Não manda mais
nada assim, porque é tempo perdido. A não ser que seja somente
para eu ler. Não vou aprender nada de computação depois de velho.
Não sei, mas acho que o melhor modo é remeteres como anexo a um
e-mail, composto em Word. Esse texto de metamorfose está uma
cagada só. Vê que no lusco-fusco do quarto sub-humano o tronco
apartado da cabeça, o tempo enfarruscado, o cérebro embotado o
narrador percebia detalhes mínimos da fotografia da Marilyn
Monroe, como os pés levemente sujos, a axila depilada, a cor e a
textura do cetim do lençol. Putz, a isso é que se chama uma
contradição em termos. Depois falar em mulher de harém. Afinal,
quem é ou foi esse tal de harém? Toma tento e reescreve tudo com o
cuidado com o idioma, exigido dos que fazem arte literária, ou rasga
tudo e joga no lixo, porra, já leste os clássicos. Então?

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Quincas, vai te distraindo aí. Por isso não queria pegar esse trabalho:
é pesquisa que não acaba mais. Passei um tempão tentando
descobrir quem era o Delegado de Polícia de Petrópolis em 1942 até
me dar conta que é informação inútil e que posso botar qualquer
nome. Merde! PS. Torrei meu tabuleiro e jogo de peças de xadrez.
Guerra é guerra!

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Quincas, este vai com objetivo certo. Ando faz tempo garroteado
com um débito de desculpas que te devo pedir. A conta pode ser
grande, mas esta é a que mais me tira o sono. Foi devido há certo dia
que trabalhávamos aí e fizeste menção a dinheiro e eu – mal
educadamente – atirei algo assim como: “Você só pensa em
dinheiro?” Foi grosseria grossa bem vi pela tua reação. Mas só
depois atentei nisso Na verdade só querias me ajudar e eu nem pus
reparo. Não é razão, mas a grosseria veio assim de modo natural
como a dizer que nada que faço para você merece retribuição em
dinheiro. É feito de vontade, por gosto, de coração. Tanto que fiquei
chateado você ter pedido àqueles meninos o trabalho dos sermões
maranhenses sem me falar nada. Fomos criados em ambientes
sociais distintos, daí eu ser uma besta quadrada como sou. Bom, o
que me tranquiliza é que amigo foi feito para perdoar amigo e como
somos amigos, me considero perdoado e dormirei mais leve, sem
esse peso na consciência. Bs abs em todos, saudades. PS. Peguei de
novo na escrita, enfim vou botar para fora: 1) Manual de instruções
para eliminar judeus; 2) O pianista da Rua da Carioca. Deste último
queria transferir a cena para a Rua Grande, mas demanda muita
pesquisa e não quero trabalhar nisso. Mas é interessante, tenho
pensado nisso. Você sabe se tinha alguma loja de instrumentos
musicais aí na Rua Grande (ou outra do centro velho)?

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Quincas primo querido. Sei que estás no Rio de Janeiro, mas desta
vez não te vejo. Muitos problemas. Estou quebrado no físico, na
alma e no bolso. Beijos em todos.

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Quincas, ando jururu demais com a vida. Nem a medalha de ouro do


futebol olímpico foi remédio para ânimo. Que droga! Outro dia deu
um pesadelo que conversava com as três Parcas e não é que Nona e
Décima se foram e fiquei de par com a terceira? Acertamos que era
hora de comprar passagem na gôndola do Caronte, o barqueiro do
Hades, e transportar minha velha alma pelas águas crespas do rio
Estige. Enfim, tinha decidido me suicidar em agosto, mês de
desgosto. Eis que de repente ouvi das Fuxiqueiras o falatório que
virás em setembro. Verdade ou zunzum a notícia me deu alívio, pois
resolvi adiar a consumação do tresloucado gesto. Talvez em outubro,
quem sabe. Se sobreviver, também quero ver se largo esse negócio
de internet.

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(Resposta): Primo. Pretendo ir dia 23 de setembro e regressar a 24


de outubro. Ando meio enfastiado desse trololó literário. Esse é
campo minado. Os caras que vieram antes fizeram tudo de bom que
o gênio humano é capaz. Fizeram e deitam minados todos os
caminhos que alguém idiota é vaidoso pensa que pode trilhar sem
que a cabeça e os colhões explodam. Tá nas Escrituras: Não há nada
de novo sobre a terra. Estou mandando formatar o Trovão do Céu
em 2 volumes e a Carta Aberta, da Pacotilha, a Affonso Pena, a ver se
encontro editor ou patrocinador. Meu salário não dá mais para o
gasto de três famílias e ainda bancar livros que ninguém compra. No
mais, estou com baita ressaca de olimpíadas, tomando água com
limão. Tchau!

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Quincas. Escreves: “Os caras que vieram antes fizeram tudo de bom
que o gênio humano é capaz. Fizeram e deitam minados todos os
caminhos que alguém idiota é vaidoso pensa que pode trilhar sem
que a cabeça e os colhões explodam. Tá nas Escrituras: Não há nada
de novo sobre a terra”. Errou feio primo É preciso reescrever porque
os novos não terão condições nem capacidade de ler “os caras que
vieram antes”.
PS. Não esquece as castanhas de caju do Murillo. Xau!

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Quincas, ando num marasmo danado. Meu PC pifou, dei uma geral,
formatei e agora tá bom. Daqueles 40 contos achados no baú
consegui salvar uns 20, mas nem todos serão aproveitados. Deixo-os
na gaveta dormindo um pouco para depois reler, já sabendo que vai
ser uma trabalheira danada. É magnífico que algo escrito há 50 anos
tenha que ser refeito para ser melhor entendido – não é maravilhosa
nossa língua brasileira? O Vieira que o diga! Aliás, como estás
tratando os sermões? Depois daquele trabalhão movido a uísque
bem que tenho o direito de saber como anda. Fora isso, fico num
silêncio danado de suspeitoso porque sei o momento que tu vives,
muito preocupado com a saúde da tua querida esposa. Fiquei feliz de
saber que a doutora foi pros USA se aperfeiçoar – é uma menina
ligada no futuro. E sabe que em terra de cego Enfim, manda notícia
qualquer que seja. Bj. na careca do teu mano, o saudoso

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Quincas, bom dia (apesar de tudo). Julho chegou aqui com ares de
agosto, mês do desgosto.
1) O pai do Chico – avô do Calian – faleceu demente após 20 anos de
Alzheimer;
2) Missa de 30 dias do falecimento da irmã do Chico, tia do
Calian, em operação bariátrica mal sucedida;
3) As minhas gêmeas Pat e Pris finalmente estão desempregadas
juntas!
4) O condomínio assolou minhas contas com cota extra de 100
pratas até dezembro!
5) Estou sem gás por causa de um vazamento e enrolado nos custos
dos reparos e terceirização dos serviços;
6) O supermercado recusou uma nota de 2 reais porque estava
rasgada, emendada com durex;
7) Meu pau não levanta mais! Isso tudo às vésperas do aniversário
do neto. Arre! Vôte, Capiroto! Sai fora, urucubaca!

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Quincas: serei o primeiro a poetar sobre essa aberração óssea!


“Joanetes – Ela olhou meus pés engelhados e fez uma expressão
franzida: – Hum Joanetes! Como o sol na manhã luminosa, o sinal
verde acendeu na minha frente. Hora de partir – ruminei pros meus
botões espalhados pela cama. Hora de sumir, antes que ela descubra
as varizes das minhas pernas e virilhas. Antes que ela demore o olhar
nas minhas verrugas e sinais de sangue espalhados pelo corpo. Hora
de sumir – disse para minha alma. Antes que ela leia meus
pensamentos obscuros e nojentos. Hora de ir – disse para meus
calos, antes que ela saiba que tenho o vício da masturbação. Hora de
sair – disse pras minhas cuecas. E se ela souber do desejo
inexplicável de beijar bundas femininas e de fantasiar com teens e
pseudo-adolescentes? Hora de fingir – disse ao espelho, antes que
perceba. O tempo que ficamos juntos não foi por amor, mas pelo
desejo que eu tinha de comer a irmã dela. Hora de fugir – disse para
meus joanetes”.

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Primo. E a senhora Maigret?


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Quincas. A Sra. Maigret Realmente, Quincas, onde andará a Sra.


Maigret-Simenon? Houve um tempo em que o cônjuge dos
escritores e personagens eram discretos, quase invisíveis. Quem era
a mulher de Sherlock Holmes e do Detetive Poirot? Quem era o
marido de Agatha Christie? Depois chegaram os pedófilos: Borges
pegou a Maria Kodama, Saramago adotou a Pilar del Río, Gullar
amasiou a Claudia Ahimsa. E la nave va. PS. Mas tem, sim,
brevíssima referência a Sra. Maigret.

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Quincas. Como vai? Na arrumação que as meninas fizeram encontrei


uma pasta com 40 contos inéditos – alguns interessantes, outros
nem tanto. Estou atrapalhado tentando salvar alguns. Junto com
isso tem uma cambada de manuscritos (escritos à mão mesmo!) que
terão como destino o lixo. No demais, a mesma lisura de sempre.
Consegui salvar 16 contos: A Esquina da Sorte; A marciana; Au
Revoir Commissaire Maigret; Como não escrever contos eróticos;
Galdino; Incidente carioca; Maria, Maria; O dia em que Jardel Filho
quase morreu; O homem que protegia os animais; O homem só; O
lobisomem do Cachambi; Os sobreviventes do caos; Oseias; Roteiro
de um curta: Severino; Um ex-objeto inanimado; Zé do Bife. Tudo
carece revisar

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Pelos títulos dos contos que te mandei dá para ver quais eram os
temas. Tem um grandão (Galdino) que era para ser romance. Tem
sinais autobiográficos. Tá todo cheio de notas, enredo, roteiro, etc. e
mais de 20 páginas. Pois vou deixar assim mesmo; roteirizado, com
mistura de texto corrido e tentar arrumar a cronologia. Não sei o que
fazer com os outros. Tanta coisa escrita à mão – não tenho saco de
digitar. Tem outro mais enorme que o grandão – feito tipo
reportagem. 40 pgs! Que vou fazer com isso? Trata do sarro que os
casais tiram em transporte coletivo (trem, ônibus, lotação), que
ocorria demais aqui. Fui achar referência em Casanova! Hoje tem
‘vagão de mulheres’ em horas de pico e a coisa arrefeceu. Ainda
acontece em viagem interestadual. Senti é que isso é meio de tornar
a viagem menos chata. Para mim era assim. Te abraço. PS: E o
Napo? Estará preso em Paris? Vê se socorre o teu amigo.

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Primo. Tens que publicar. Esse sobre a hora do pico, sugiro mudar o
titulo para A Hora da Pica, que tem mais apelo de marketing.

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Quincas. Tô sozinho em casa bebendo tiquira com camarão seco e


ouvindo Chopin. O resto que se foda! PS. Alfred Denis Cortot (1877-
1962), Piano; Sir John Barbirolli (1899-1970), Maestro; London
Philharmonic Orchestra. Queres mais?

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Quincas. Sermão das coisas gostosas:

* Cheguei bem. Fiz ótima viagem. Passei o dia sem fazer nada para
descompensar a cabeça de tudo que aconteceu de bom para mim.
Em casa reencontro o aperto $$ de sempre. Vou ao mercado e gasto
tudo o que me sobrou com um lanche cheio de coisas boas: pão,
queijo, presunto, salame, requeijão, iogurte, sucos. Fico duro, mas
feliz. Volto ao boteco para rever os bebedores de cerveja e tomar
uma geladinha. Todos sabem que estive 40 dias em São Luís
visitando parentes. Faço bazófia pelo fato de ter ficado otimamente
hospedado e de que ninguém me deixa pagar nada.

* Daqui a pouco chega Calian e logo me cobra a castanha de caju que


ele tinha me pedido e eu esqueci da encomenda. Minto a ele que não
tinha castanha, aproveitando a tua deixa sobre o pedido do Tio
Murilo. Prometi a Calian que, quando você mandar a castanha do
Tio Murilo, irá separar um bocadinho para ele. Brincamos com a
velha máquina de escrever, mostro a ele os mecanismos e prometo
comprar “cartucho” (a fita) para ele usar. Ficamos grudados no sofá
em silêncio por algum tempo – Patrícia se espanta com o chamego e
tira uma foto.

* Não nego que gosto disso: eu e Calian somos amigos desde o berço
e a primeira sílaba que ele gaguejou foi “vô” Defendo-o das agressões
da mãe, da tia, do pai e da avó. Ele também me defende: um dia
exigiu explicações da razão de eu dormir “na cozinha” (quarto de
empregada)! Gosto disso, mas não de modo egoísta a ponto de não
pensar que, por conta desse gostar, ele sofrerá muito quando eu
morrer. E fico pensando se vale a pena ser assim ou fingir ser durão,
caturro, e afastá-lo agora. Droga! Escolho ser assim: ele irá chorar
um bocado, mas ficará com boas lembranças.

* Alegria! Na arrumação de minhas tralhas as meninas encontraram


um maço de contos inéditos, entre os quais a novelinha “O
lobisomem do Cachambi”, que tanto queria mostrar e ler pro Calian.
O demais é uma maçaroca que terei de reler, revisar e digitar as
aproveitáveis.

* Na desarrumação da bagagem, acho o teu livro com a dedicatória


sincera e emotiva, que quase me derriba. Mas o coração aguentou e
guardarei esse teu carinho – que é recíproco – para todos os brindes
até o fim dos tempos. Obrigado primo.

***********

Quincas. Sermão das coisas tristes:

* A chateação de ver que Deus te guardou uma briga feia com a


doença que aflige a querida esposa me acompanhou. E estar aí,
impotente, sem poder fazer nada, me deixou mais chato ainda. Uma
coisa consigo identificar: em nós, que ocupamos a cabeça desde
meninos, seja lendo ou escrevendo, esse mal não pegará – tenho
exemplo aqui. Penso que deves te resignar em enfrentar essa
batalha, sozinho, sem ajuda de ninguém. Até mesmo porque os
filhos terão os próprios problemas para resolver. Além disso, sou
inútil: não sei o que dizer sobre essa armadilha inexplicável da vida.
* Aqui, mal tiro as sacolas de dentro da caixa que arrumaste, sofro
com o confisco do camarão seco que. Que fazer? Haverá mais
camarões, deixa para lá.

* Devo-te desculpas pelas bebedeiras: duas com Marko – que droga!


– mas pelo menos quando ele esteve comigo eu o controlei bem, não
deixando exagerar nunca – me atestaram isso os ‘amigos’ que ficam
em volta dele. O que ele gosta e se diverte é farofar colegas e
namorar as putas do Olho d’Água.

* Aquele porre do teu aniversário, acredita ou não, ele me confessou


que estava comemorando os teus 80 anos! Essa é a maneira dele se
expressar – entendo assim.

* O outro – lá no Bar Pioneiro – foi meu só: derramei na cerveja a


tristeza ao saber a situação do João Alfredo. Só aquele dia ele me
contou, desabafando, o que se passa com ele. Dorme em casa de
amigos ou na carroceria da picape. Isso ocorre muito por culpa dele:
imagina que assinou documento em cartório desistindo dos direitos
que tem por ser casado com Danielle! Assim rompeu aquilo que
garantia pelo menos o teto a ele. Pois, aproveitando disso, tome pé
na bunda! Hoje somente o filho o quer ali. E pensar que João foi o
esteio que suportou os primeiros tempos após a perda do Dr. Afonso,
verdadeiro amigo que ele tinha. Finis.

* Pois é primo querido, não chegamos nem ao pé dessa magia que é


existir; por isso, bem ou mal, em nossa biografia tudo será ventura e
aventura (temos que pensar assim para sobreviver). Somos
escritores, inventamos histórias, mas nenhuma se compara àquela
que a vida escreve no livro da nossa existência.
PS. Já falei com o Napo: vou ao encontro dele daqui a pouco. Tá de
viagem marcada para França (não fala para o Joaquim – ele
recomendou), pro mode resolver alguma burocracia familiar que
deixou por lá. Rabo.

***********
Quincas, estou me preparando para ir ao Galeão ao som da Heróica
de Beethoven. Ir em paz. Amanhã estarei aí contigo para passar
momentos prazerosos. E nada mais porque a vida só vale assim. Te
abraça o primo-ermão.

***********

Quincas, bom domingo! Sabe aquele conto “Farelos”? Não pode


acabar daquele jeito. Tenho que dar desfecho, responder: o que
aconteceu? Ela morreu? Passou mal? Vingou-se? Se fosse romance
deixava, mas é conto. Bolei duas versões:

“Coitada – disse o médico da família ao assinar o atestado de óbito –


morreu sufocada com farelo de pão e leite. Ela tinha mania de comer
isso deitada?” Lusitano tinha pensado apenas em dar susto na velha,
mas ante a tragédia confirmou tudo consternado. Alzyra, sem saber
de nada, o consolava massageando o pescoço, depois se ofereceu
para ficar. No dia seguinte bem cedo Lusitano foi à SUIPA e voltou
com o pequeno Tito nos braços.

I) Quando chegou encontrou Alzyra no quarto da finada. Tinha


arrumado tudo, esvaziado o guarda-roupa, as cômodas. Agora
descansava o corpo negro sobre o lençol de seda branca. As pernas
de Lusitano tremeram, a emoção o deixou de olhos marejados. Ele
viu os bicos dos peitos, as pernas fartas da mulata e voltou a pensar
que de fato tinha o dom de fazer o pensamento se tornar realidade. .

II) Quando chegou não pôde evitar a rotina e passou pelo quarto
abandonado da finada. A cama larga, vazia vastidão de deserto, o
lençol de seda faiscando à meia luz, esfregando os olhos teve certeza
de ver Alzyra na cama desmaiada pelo cansaço. O corpo negro, os
braços entreabertos, os seios escapulindo da camisola acetinada
aberta na frente. De través dava para perceber a calcinha fio-dental
de tule, delicada rendinha adornando a parte frontal. Lusitano
delirava! E voltou a pensar que de fato tinha o dom de fazer o
pensamento se tornar realidade.

***********
Quincas, estou acabando de ler um velho Gorki antes de mandá-lo
ao lixo quando dou de cara com “O amor nos tempos do cólera” de
Gabriel Garcia Márquez. Para dar inveja às tapuiranas
sambentuenses, leio:

“Nos quartos de dormir havia, além das camas, esplêndidas redes


de São Jacinto com o nome do dono bordado em letras góticas com
fios de seda e franjas coloridas nas varandas”. Também a casa tem
uma biblioteca: “No entanto, nenhum outro lugar revelava a
solenidade meticulosa da biblioteca, que foi o santuário do doutor
Urbino antes que a velhice o derrubasse. Ali, em redor da
escrivaninha de nogueira do pai e das poltronas de couro
almofadado, fez forrar as paredes e até as janelas com estantes
envidraçadas e colocou numa ordem quase demente três mil livros
idênticos encadernados em pele de bezerro e com suas iniciais
douradas na lombada. Ao contrário dos outros aposentos, que
estavam à mercê das comoções e dos maus cheiros provenientes do
porto, a biblioteca teve sempre o recolhimento e o odor de uma
abadia”. Êita!

***********

Quincas, 1) Acordei o “Malhado” porque estava com a sensação de


inacabado. Arrumei aqui e ali, botei outro desfecho e gostei. Nada de
violência, um conto de 'coronel' que termina em paz – onde já se viu
isso? Gostei também porque realizei uma ficção pura, de cabo a
rabo. 2) Andei pensando no negócio de São Bento – quantos dias
passarás lá? Não dá para eu chegar aí e ir lá te encontrar? Ou é
difícil?

***********

Alô Quincas. Que me contas de novo? E comequié, estás escrevendo


os contos? Eu tou encabeçado naquela historinha "Dez contos de
reis”. Escrevi o primeiro, dei um tempo, reli e não gostei. Vai pro
lixo. Mas a ideia está plantada, toda escrita na cabeça e daqui a
pouco chego lá. Recebi mensagem de Fernando Braga: “Saloca, me
dá uma luz: Estamos pensando seriamente numa mudança para
Portugal. Tenho meus livros para despachar. Como faria?
Despacharia para o Rio e aí se despacharia num navio para Lisboa
ou Porto Não é assim que funciona? [somente os livros
encaixotados].” Assim, de repente? Vou dar um jeito de ajudar ele
por aqui. Abs, bs, dá notícia.

***********

Quincas, bom dia!


Minha filha Patrícia é que está cuidando de dar fim à minha pobre
biblioteca. Na desarrumação ela separou um monte de coisas 'para
eu olhar' – eu vou é fechar os olhos e jogar tudo no lixo. Diz que viu
possibilidade de vender alguma coisa. Concordei, dei a ela livre
arbítrio. Mas quem quer comprar livro velho a esta altura da nossa
recessão? Alguns livros doarei para biblioteca do colégio onde Calian
estuda – vai como doação dele, que, natural, está orgulhoso de tudo
correr em nome dele. Entre a papelada sem fim e desorganizada,
tem um livro em que eu colei recortes de jornais com alguma coisa
minha.

Surpresa! Dois contos de 1968/9 que mandei para o concurso da


AML e receberam 'menção honrosa'. Um bem fraquinho (A noite do
não-Natal) em que eu já misturava ficção e realidade e desobedecia a
regras literárias – é um conto com dois focos de ação (reprovável
pelos doutos). O outro (O breve reinado das donzelas), curioso e
aproveitável – está num livrinho de contos na internet. O nome
original era 'O breve reinado das donzelas no Brazil colonial' (com zê
mesmo). Mas como eu teria de mexer com ambiente de época, deu
preguiça, tirei o 'Brazil colonial'. Foram publicados no suplemento
dominical d'O Imparcial. Essas menções com certeza devo a meu
'padrinho' – que me pedia para participar – Fernando Moreira,
sujeito de grande talento e coração maior. Em algum lugar tenho
guardado originais de um romance inédito dele. Tenho também
recortes de poesias, coisas aqui do Rio, etc.

***********
Quincas. Sabe aquele poema Sabolin, do Fernando Braga? Ele me
mandou uma cópia “revisada pelo editor”. Lá pras tantas tinha o
verso “onde floresce” e mais depois tinha um “rescende” – aí me
acendeu a luz e disse comigo mesmo: flore[s]ce, mas não
re[s]cende. Ou seja: floresce e recende Não disse isso assim
detalhado a ele, mas alertei para consertar. No todo é um poema
bom, dos tipos que já não se escreve mais, regionalista com certa
universalidade. E passei a ele minha concordância com tua
justificativa de recusar texto para orelha, que iria disputar espaço
com o texto introdutório do Prof. José Fernandes, que está muito
bom e definitivo!

***********

Quincas, como vai? Como estão todos? Eu me livrei daquela dor de


coluna e estou bem. Mas não tô escrevendo nada, apenas reciclando
coisas velhas principalmente os escritos de cordel que estavam
abandonados. Estou acabando de fechar esse ciclo e largo para lá. O
livro 10 Contos de Reis tá latente. Assim que o esprito baixar pego
ele. Já o tenho mais ou menos montado. Vou fazer bem leve para
Calian e Yasmim (netos) poderem ler. Também bem fantasia, assim
me distrai e pode distrair outros. PS – Ainda me corrói a gastrite a
história de destruir minha paupérrima biblioteca (que já foi rica, te
garanto). Tu sabes, é perseguição de gente que NUNCA LEU UM
LIVRO! Agora me faz sofrer a pena a que fui condenado pelas
merdas que fiz na vida – das quais não me defendo nem me
arrependo. As merdas perpetradas não têm conserto: o que foi feito
tá feito, não tem remédio. Pois, foda-se, nem ligo. Me conta as
novidades. O Fernando Braga deu notícia de que estará em São Luís
em março ou abril para lançar um livro dele. Não sei qual nem como
nem onde. Meus beijos e abraços para toda tribo.

***********

Quincas, obrigado pelo carão. Vou tentar me controlar mais. PS.


Outro dia te falei que eu estava entrevado. Pat e Calian vieram em
meu socorro. Pat trouxe um remédio chamado Diclofenato Sódico ou
Potássico – que usou para consertar a coluna. Rapaz, sabe que nem
acabou a caixa e fiquei inteirinho? Quem sabe não funcionará em ti?
Procura saber.

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Quincas, quer dizer que às vésperas dos 74 anos estou começando a


aprender a escrever. Não é uma maravilha?

1) “Meu, Estou adorando seu livro! Comecei a ler agora e estou me


deleitando! Nem precisava gostar de xadrez! Você escreve muito
bem! Parabéns! Vou recomendar seu livro nos grupos de xadrez do
facebook, tenho certeza que vai aumentar o número de visitas ao
seu livro!” (Palmerim Soares de Sá)

2) “Bela homenagem ao Jota. Faz jus ao trabalho deste mestre.


Tenho certeza de que o texto vai emocioná-lo. Que grande escritor
você é, Sá! Impossível acreditar que eu tenho alguma participação
nesse trabalho. Mas se é verdade, minha passagem por esse mundo
já se pagou. Vamos conversando amigo. Tão bacanas suas
memórias afetivas da organização espacial dos poetas na antiga
Feira. Quem sabe podíamos fazer um desenho disso??” (Ana
Carolina Nascimento)

Depois de tanto baba-ovo irei a Adega do Egídio beber uma


geladinha

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Primo. Pinga no chão para as anjAs e toma um gole por mim!


Quincas.

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Quincas, Bom domingo! Arruma as tralhas, toma um analgésico e te


prepara para passar o dia com as crianças e netos, boa prosa, bom
vinho, boas comidinhas, um charutinho. Nada disso não conflita
com o analgésico. Esse ritual deve ser mantido tal qual às reuniões
que as cortes timbiras e tabajaras faziam em torno do pajé de
cachimbo fumegante Aqui estou com as traças. Já dei volta na feira
semanal, na padaria bebi café com pão e manteiga, para não ter
trabalho em casa, a dor lombar vai sumindo aos poucos, enraivecida
porque estou cagando para ela. Quando ando quase nada sinto, ao
sentar, deitar e levantar dá aquela pontada. Depois que estou
sentado e apulumado fico bem. E toca a vida Mais tarde antes do
almoço darei uma bicada na meladinha que preparei com o mel de
Cuiabá que o meu mano Roberto me trouxe. O safado veio aqui
viajando de carro e mal passou dois ou três dias voltou correndo
porque quer morrer lá perto dos filhos.

***********

Quincas. Depois que ouvi a sentença da inquisição para liquidar


minha biblioteca, estou meio estacado. Não escrevo nada e só agora
me animo para te mandar estas linhas. Penso que a próxima vítima
será o computador, então no futuro terei que recorrer à minha
Olivetti Lettera, guardada e empoeirada, com teias de aranha,
escondida no meu armário. Merde! Já li e reli o embrião de conto
que mandaste. Como esboço tá ótimo, mas tem que engordar. Por
enquanto é apenas uma anedota. Lembra-te que queres escrever um
conto, ficção. Larga de lado a concisão, esquece o limite de espaço
que exige a crônica. Escreve e junta mais outros nove ou dez e dará
um bom livro de ficção: as estórias estão por aí, no ar, esperando ser
contadas Estou relendo “A morte da porta-estandarte”, contos de
Aníbal Machado. Muito bom! Ainda acho que o conto é a forma de
ficção perfeita e que nós brasileiros somos bons contistas. Quando vi
o corpo de Teogônio estirado no chão pensei que a fatalidade
ocorrera pela queda da tabuleta em sua cabeça. Fala às crianças e
noras que mandei um abração.

***********

(Resposta): Primo. Gostei da ideia. Tentarei contar histórias dessas


que não estão nem aí para Freud ou freudianos, chatos para cacete,
que em todo o mais simples gesto encontram a expressão de traumas
psicológicos. Os escritores estão acabando, extinguindo,
rapidamente, o homem como ser natural. Por isso é já tem
desocupados às voltas com emoções, traumas e ansiedades de
cachorros e periquitos. Até fuder deixou de ser ato elementar e
obrigação sagrada da espécie, como se de nada valesse a ordem do
Criador, dada no Éden, ao par andrógeno: Uni-vos e multiplicai-vos!
Isto é: Vão se fuder! Beijos. Quincas,

***********

1 - Mais um pouco animado, pego carona na tua onda: vou acordar


um projeto antigo de livro de contos que se chamaria “10 contos de
Reis”. Penso escrever algumas historinhas bem leves e curiosas
sobre Reis pro Calian e Yasmim lerem (tá certo 'lerem'? – como soa
mal!).

2 - Te mando uma recolha que fiz em 2014 (ano da Copa do Mundo)


temática sobre futebol. Quanto ao texto não tem nada demais (já
peguei até alguns erros), mas repara no “modelo” da capa que bolei.
Ele mesmo, o Calian, bem no jeito moleque de quando se jogava
bola. Ficou bom, né?

3 - Patrícia e Calian vieram saber dos meus achaques ontem. Chegou


remédio e espaguete com almôndegas para o ermitão do Cachambi
comer com uma Heineken pequena, para não afetar o anti-
inflamatório.

Pega este abração que te manda o próprio. Abs bs Saloca

***********

A TABULETA

Joaquim Itapary

De repente, lembrei-me do seguinte fato: Na ladeira do Cine Éden, o


senhor Pataquinhas, galego de Pontevedra, Espanha, mantinha
pensão e casa de pasto. Para aumentar os ganhos, passou a oferecer
serviços de lavanderia. E anunciou, em tabuleta sobre a porta:
AQUI LAVA E ENGOMA.

Com dois dias, velho cliente da pensão deu com a novidade


anunciada. Leu, tirou o chapéu, subiu os degraus do corredor
sobraçando farto maço de papéis e, como de costume, pôs chapéu na
chapeleira à porta-do-meio, deitou os papéis sobre o aparador e
entrou para a varanda. Sentado em uma espreguiçadeira de lona,
muniu o fornilho do cachimbo, fez o fogo, tomou o jornal e pôs-se a
ler as notícias do dia, enquanto aguardava servirem o almoço na
comprida mesa, com doze pratos e talheres, na qual pastavam todos
os comensais.

Estava assim, com seu pito a fumegar, absorto na leitura do diário,


quando Pataquinhas, o obeso e sempre atarefado pensioneiro,
irrompendo na varanda, vara o silêncio com sua voz
atenorada, sibilante, e cumprimenta o cliente num português com
perceptível sotaque castelhano:

– Bons dias, senhor professor Teogônio, como está a vossa


excelência? Alguma novidade no diário?

– Bom dia, senhor! Retribuiu o Dr. Teogônio. E acrescentou: – No


diário, quase nada de novo. A não ser a estadia do Poconé e do
Itapagé em nosso porto. Disse e baixou o jornal ao colo para
continuar em tom inalterado, à mesma meia voz: – Novidade mesmo
nesta cidade pasmada é a sua tabuleta ofertando serviços novos. Mal
fechou o parágrafo verbal, o professor, cachimbo entre os dedos,
ouviu a explicação dada por seu untuoso caseiro:

– Sabe a vossa excelência, senhor mestre, Dr. Teogônio, como os


tempos estão difíceis; a frequência de hóspedes e comensais é a cada
dia mais espaçada, e os preços dos gêneros estão pela hora da morte.
Um caso sério! O professor e as duas velhas irmãs Valente são os
hóspedes permanentes que me restam. Entonces, para remediar a
situação pecuniária, depois de ouvir a minha senhora, resolvi-me a
oferecer ao público serviços de lavagem e engoma de roupas. Disse e
arriscou-se a pedir a opinião do doutor sobre a sua iniciativa
empresarial: – O que acha vossa excelência sobre esta minha nova
ideia?

– Meu caro amigo senhor Francisco – era esse o nome de batismo


do Pataquinha, também chamado de Paco por sua esposa, a d.
Ceres, que superintendia os servos da casa – respondeu o mestre
Teogônio Tavares de Alencar, ao tempo em que se levantava da
preguiceira de lona: – A sua ideia pode até ser boa, mas o anúncio na
tabuleta é péssimo! Um horror, em verdade!

– Como assim, senhor professor? Indagou Paco, com visível espanto,


a esticar com as mãos os suspensórios das calças em caxemira
fuveira.

– Trata-se do seguinte, meu caro amigo, aquele escrito lá na placa


sobre o portal está inteiramente errado. Preste bem atenção ao que
lhe vou dizer. O senhor escreveu na tabuleta: “Aqui lava e engoma”!

– Pois, então senhor doutor? Aqui lava e engoma, está errado, Dr.
Téo? atalhou o espanhol.

– Está, amigo Francisco! Esclareceu a seguir o Dr. Teogônio, com a


habitual paciência do já provecto professor de meninos no Atheneu
de Teixeira Mendes:

– Ficou faltando o pronome SE, senhor Francisco, para que a frase


obedeça às regras do vernáculo. Retire a plaqueta e mande consertar
o erro. Ponha o SE. Nesta terra de letrados a gente não pode facilitar.
Escreveu errado, uma vez que seja, adeus reputação, senhor
Francisco! Adeus freguesia! É a desmoralização eterna, a
irremediável bancarrota moral e comercial.

Pataquinhas, comovido, tomou em suas mãos gordas e suadas a


descarnada mão do Dr. Teogônio, de nodosos dedos artríticos, e
agradeceu ao mestre. Foi à cozinha onde contou à d. Ceres o
ocorrido na varanda. De regresso, pegou a pequena escada de
madeira no saguão e, sem mais tardança, retirou da face da pensão
aquela nódoa vernacular, temeroso da cabal ruína empresarial e
pessoal.

Logo após o almoço, o Pataquinhas tratou de mandar que o mesmo


oficial lhe fizesse nova tabuleta, agora sim, em língua culta,
conforme ensinado, a bom tempo, pelo sapiente senhor doutor
Teogônio Tavares, seu mais antigo cliente, homem educado em O
Porto, Portugal, segundo rígidos padrões de ensino dos colégios de
jesuítas. Sobretudo, cliente pontualíssimo no resgate dos valores
mensais de alimentação e pousada, sem jamais haver entrado em
mora por um dia sequer.

O certo é que três dias passados, entre papéis espalhados pelo vento,
chapéu e cachimbo ao lado, o corpo inerte e lívido do velho Mestre
Teogônio foi recolhido à porta da pensão na qual residira por mais
de vinte anos. Sobre o portal da entrada onde jazia o octogenário
mestre de tantas gerações, que ainda novo deixara os longínquos
sertões de Pastos Bons, onde nascera, nova tabuleta, bem maior que
a anterior, em grandes letras escarlates anunciava:

AQUI SE LAVA-SE E SE ENGOMA-SE!

(Composto na manhã de 23/01/2016, no iPhone, enquanto chovia


sobre o Olho d'Água, São Luís, MA. Relevem-se os erros em texto
assim composto em teclado de telefone. É obra de ficção. Não guarda
memória alguma do prestativo cidadão e bom senhor Pataquinhas).

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Quincas, e assim inicias a construção de um livro de contos. Manda


bala! abs bs Saloca

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Quincas, em apoio ao teu espinhaço, comunico que estou entrevado,


mercê de uma torção provocada por movimento erótico em decúbito
dorsal. Tá difícil mijar, cagar e peidar. Respirar e espirrar também.
Assim, mantenho-me solidário a ti e sempre a todos os entrevados
do mundo. Caraca!

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Quincas, bom dia. Sei que não irei ficar naquela situação de ‘não ter
o que ler’, mas a antevéspera de limpar a minha estante trouxe a
lembrança de como é prazeroso ler. Sempre trago comigo agendado
escrever algo sobre isso: a alegria de ler. Agora que tenho lido e
relido tanto as tuas crônicas (mais que o ‘Hitler’) – imagina o tempo
que tive lendo e copiando também: dará uma soma danada de horas
– posso confirmar que atingiste aquele ponto final do escrever
correto. É claro, sabemos, que aqui e ali tem uma briga com essa e
aquela palavra, troca e inversão disso e daquilo, mas sempre
encontras a solução próxima do exato. Tenho vontade de dizer: não
há como ir além – mas não é de todo verdade. Essa admiração por
teus escritos é involuntária – já te falei – e deixa reflexos: acabo de
juntar alguns textos saídos em blog em 2014/2015 e reparo que estás
espalhado como autor e tema aqui e ali em oito (8) crônicas! 1) Onde
andará Willy Ronis?; 2) Comensais apressados; 3) Luar sobre
Panacoatyra; 4) Murillo Boabaid: 90 anos; 5) Nauro Machado; 6)
Joaquim Itapary, cronista por inteiro; 7) Valsa
para Joaquim Itapary e 8) Relato da viagem que fez o cronista
Quincas Oliveira à fermosa cidade carioca no ano de 2015.

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Pô! Quer largar do meu pé? Voltando à leitura, exijo como teu fã: vê
se acha ‘inspiração’ para escrever sobre essa ‘alegria de ler’ que falei
arriba. Sobre esse prazer, me vem à memória o Stefan Zweig (outro
‘calo’ que não sai do meu pé!). Quando rapaz, na primeira viagem
que fez fora da Áustria ele foi correndo procurar o seu ídolo, o poeta
belga Emile Verhaeren. O mais perto que conseguiu chegar foi de um
escultor que estava fazendo um busto de Verhaeren. Frustrado,
Zweig se despediu, quando a esposa do escultor o convidou para
ficar e almoçar. Era uma armadilha para saciar a sede do jovem,
porque logo depois chegaria Verhaeren que tinha hora marcada para
posar para o escultor. Zweig, que tinha devorado toda a obra de
Verhaeren, depois dedicou mais de dois anos para traduzi-la
totalmente ao alemão. Quando Verhaeren morreu, Zweig fez-lhe o
elogio fúnebre à beira do túmulo, prática usada até hoje. Amizade,
admiração, amor.

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Quincas. Acaba de me ligar Eveline, que o Roberto chegou de Mato


Grosso e vem nos ver. O sacana veio de carro porque tem medo e
avião! Estive em Cuiabá visitando ele e vi como o bicho comia
picanha! Resulta que teve um piripaque e botou o tal ‘stent’ para
alargar a veia entupida. Então, ciao, um beijo na careca e te cuida.
PS: Agora mesmo para saber a grafia correta de Verhaeren tive que
ir aos velhos livros de Zweig para consulta. Já que estamos na
mesma canoa (expurgando nossos livros), quero e exijo ler a crônica
'o prazer de ler' te vira!

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Quincas, outro dia se reuniu a inquisição do Cachambi e resolveu


exterminar a minha mísera livraria. É a 3a. ou 4a. condenação.
Desfazem, refaço, desfazem, refaço. Agora acho que não dá mais.
Livro acumula poeira (de fato – ainda mais com essa obra aqui ao
lado), não serve para nada, etc. etc. Que uma faxineira está cobrando
R$ 1 mil para fazer o serviço e outras coisas mais. Sou voz e voto
vencidos. Que fazer? Nada. Ainda bem que tem a biblioteca internet
para apelar. Quando me tirar a internet não terei mais. E la nave va.
Te abraço. PS. Mana emplacou 88! Parabéns a ela! Cada vez mais as
Boabaid me deixam espantado com a longevidade. Se sobrar um
bocadinho desse gene para nós, maravilha, né? Agradeço.

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(Resposta) Primo. Pelo menos manda venderem a um sebo. Sobra


uma graninha para um pinga. Aqui estou para fazer o mesmo. Velho
de oitenta anos para que precisa de Barsa, Clássicos Jackson, Eça,
Joaquim Nabuco, História do Século 20, Autos da Inconfidência, etc.
e tal? Aproveito o espaço e abro uma farmácia em casa e uma
despensa para comida, que a inflação tá brava. Te consola pensando
nos que jamais tiveram o felicidade de perder livros, porque também
jamais tiveram nenhum.

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Quincas, bom dia! Não tenho escrito para não te perturbar. Cá tive
maus achaques também. Faz dois dias acordei com uma dor danada
no ombro, vazando pelo peito (direito) e costas. Esperei arrefecer,
mas qual! Aí o pânico foi tomando conta: deve ser o tal infarto!
Deixei todo mundo dormindo, peguei o ônibus e fui ao hospital aqui
perto – que não me atendeu. Me mandou para outro lugar, também
perto e lá fui. Primeiros exames, segundos exames, a pressão tava lá
na estratosfera: 190 por alguma coisa. Nunca me deu pressão alta
assim. A dra. receitou e encaminhou para medicação. Me aplicaram
um coquetel contra dor e pressão com ordem de esperar de 30m a
1h. Fiquei na espera, deu tempo da turma toda almoçar, de uma
velhinha desmaiar e quase morrer, de minha vizinha expert em
clínica pública me contar uma porção de causos. Quando a Dra.
retornou a pressão tinha baixado para 14 x 8 e ela simplesmente me
mandou embora. Ufa! Que merda! E pensar que daqui para frente
será um bis disso tudo, igualzinho e eterno Te cuida, porque além
do mais tens de tomar conta da esposa.

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Quincas, bom 2016 – Coragem primo! Os tornados e furacões estão


no Texas. Te mando o texto em anexo para que saibas mais um
pouco sobre literatura e política. Quem diria, hem, nossos “rapazes”
futuristas estavam também encalacrados com o Estado Novo.

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Quincas. Sabe que no Porto do Rio estão a modernizar tudo, à moda


dos velhos cais que são remodelados e postos a cumprir funções
novas. Aqui tá assim. E para arrematar os trabalhos, estão também
arborizando a orla das calçadas. Pensei que iriam dar força ao Bois
de Brèsil, pois já vi muitos espalhados em calçadas, mas nada. Sabe
quem tá com a maior força? O velho e sombroso oitizeiro. Pois não
é? Novas mudas estão sendo plantadas. A pus de esticar o assunto,
andei a olhar as árvores que estão por aqui. Jaqueiras às margens do
Rio Maracanã; mangueiras espalhadas pela Vila Militar; o tal de
Abricó-de-macaco, na Pç. da Bandeira, não comestível; oitizeiros em
toda Copacabana (tu bem conheces); amendoeiras e torto e a direito;
alguns cajueiros em Deodoro, mas não sei se dá frutos; ah, lembra?
velhos tamarindeiros na orla da Lagoa Rodrigo de Freitas; na
estrada Grajaú-Jacarepaguá, mais jaqueiras que, dizem, veio da
África e é espécie dominadora; e muitas, muitas amendoeiras, de
frutos amarelos e tintos quase roxos. Tudo sempre mesclado com o
flamboyant que até no Cachambi tem muitos!

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Quincas. Do oiti me lembro bem, é da minha infância, pois comi


muitos frutos daqueles pés magníficos que tinha na Pç. Deodoro,
principalmente em frente ao colégio Rosa Castro. As árvores
pareciam catedrais de tão altas. Ou era eu um pirralho que via tudo
agigantado? Aqui no Rio comi muitas amêndoas, isto é, chupava,
porque o bom mesmo era o sumo. De cajueiros, confesso que nunca
vi tantos em Mato Grosso! Fui levado erradamente (não sei por que),
à impressão de que o cajueiro era planta de litoral. Pois em MT é
planta nativa, como o pequizeiro. Lembro que no velho colégio dos
Irmãos Maristas tinha um pé de tamarindo que era uma belezura, e
levei muitas admoestações por comer os frutos. Oras. E relembro
que lá no fim da casa de Antônio Nicolau, na Jordoa, tinha uma
nascente de água cristalina, vastamente sombreada por um ingazeiro
secular, cujas bagas enormes, de polpa branca aveludada, arriavam
rumo ao chão. Quantas vezes saí dali com uma sacola cheia para
levar para casa e então ver com que delícia e gana dona Mizica e o
velho João Rovedo se atiravam ao fruto de polpa dulcíssima. Bem, é
isso. Bjs abrs Saloca. PS: Gostou dos lusitanismos?

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(Resposta): Maravilha, primo! Sabe que me deste material de prima
para o meu artigo da próxima quinta. Manda mais, que meu
trabalho se reduz. Beijos, alegrias. Quincas

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Quincas, Passando vista numa enciclopédia (que sempre consulto


antes de te escrever, que não sou bobo), achei este verbete:
“Meneses, Celso Antônio de escultor brasileiro, Caxias (MA) 1896-
Rio de Janeiro 1984). Estudou em Paris com Bourdelle; trabalhou
em São Paulo e no Rio. Entre suas obras destaca-se “Moça
reclinada”, feita para o jardim suspenso do Palácio da Cultura.”
Surpresa! Conheço a 'moça' porque era caminho para o Clube de
Xadrez Guanabara, que frequentei quase todos os dias por muito
tempo. Indo de ônibus, eu descia na Av. Rio Branco, seguia pela Rua
Pedro Lessa, atravessava a Rua México e Av. Graça Aranha,
desembocando bem no pátio do Palácio da Cultura, em cuja
travessia era obrigatória a vista do jardim suspenso. Nesse itinerário
um dia esbarrei com Carlos Drummond – ia falar com ele, mas
desisti, porque o vi muito absorto – quem sabe estava matutando
nos muitos anos que transitou por ali, a trabalho do Ministro
Gustavo Capanema? Antes e depois revi Drummond em eventos,
principalmente na Casa de Rui Barbosa. Sabe que tinha alguns
cartões dele – daqueles que por gentileza mandava a tantos quantos
o procurassem? Hoje não sei onde estão Mas, que importa? Faz
tempo que a obra de CDA ganhou naturalidade argentina, né? A
escultura da ‘moça deitada’ fica ao lado de outra obra, um casal de
estudantes, as duas peças em granito branco. Eu dava crédito a
Brecheret, Bruno Giorgi, por aí Tem outra moça deitada – uma mãe
amamentando – nos jardins da Praia de Botafogo, perto da
Fundação Getúlio Vargas, não se te lembras, também em granito
branco, muito bonita. Será igualmente obra do Meneses? Então, isso
sim, falar do maranhense Celso Antônio de Meneses é motivo para
crônica.

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Quincas, Saiu a programação dos blocos de Carnaval do Rio de
Janeiro. Avisa a rapaziada! Programação:
Sábado: Espanta neném – Corte Cantagalo; Imprensa que eu gamo
– Mercadinho São José de Laranjeiras; Domingo: Calma, calma sua
piranha – Botafogo; Sábado: Xupa mas não baba – Laranjeiras;
Pinto sarado – Morro do Pinto, Santo Cristo; Simpatia é quase amor
– Pç. Gen. Osório; Deixa a língua no varal – Barão de Mesquita,
Tijuca; Domingo: Suvaco de Cristo – Jardim Botânico; Escravos da
Mauá – Largo da Prainha, Pç. Mauá; Quem num guenta bebe água –
Laranjeiras; Se não quiser dar, empresta – Vinícius de Morais com
Vieira Souto; Larga a onça, Alfredo – Laranjeiras; Quarta:
Discípulos do Oswaldo – Fiocruz, Manguinhos; Samba brilha – Bar
escadinha, Cinelândia; Quinta: Bonde do Samba – Estação do bonde
no Largo da Carioca; Loucura suburbana – Engenho de Dentro;
Sexta: Bloco das Carmelitas – Pensão das Carmelitas, Santa Teresa;
Boca que fala – Palácio da Cultura, Centro; Vem ni mim que sou
facinha – Pç. Gen. Osório, Ipanema; Eu sou eu, jacaré é bicho dágua
– Quadrilátero do álcool, Vila Isabel; Rola preguiçosa – Maria
Quitéria, Ipanema; Boêmios da Lapa – Largo da Lapa;
Embaixadores da folia – Rua São Bento com Rio Branco; Sábado:
Embaixadores da folia (Alvorada) – Rua São Bento com Rio Branco;
Céu na terra – Largo do Curvelo, Sta. Teresa; Cordão do Bola Preta –
Cinelândia; Dois prá lá dois prá cá – Botafogo; Bloco do camelo –
Paquetá; Sassaricando – Praia do Russel, Glória; Empurra que pega
– Delfim Moreira, Leblon; Barbas – Arnaldo Quintela, Botafogo;
Carioca da gema – Lapa; Cordão do Bola Preta – Coreto da Pç.
Harmonia; Azeitona sem caroço – Dias Ferreira, Leblon; Domingo:
Cordão do boitatá – Pç. XV, Centro; Laranjada samba club – Gen.
Glicério, Laranjeiras; Que merda é essa? – Garcia d’Ávila +
Nascimento Silva; Comuna que pariu – Cinelândia; É de pirarucu –
Mal. Hermes; Gargalhada – 28 de setembro, Vila Isabel; Cachorro
cansado – Pç. José de Alencar, Catete; Simpatia é quase amor –
Gosório, Ipanema
Maracangalha – Cobal do Humaitá; Segunda: Corre atrás – Dias
Ferreira, Leblon; Volta, Alice – Rua Alice, Laranjeiras; Bloco de
segunda – Cobal do Humaitá; Os infiéis – Pç. Tiradentes, Centro;
Flor do sereno – Posto 6, Copacabana; Terça: É tudo ou nada! –
Humaitá; Se me der eu como – Dr. Satamini, Tijuca; Empurra que
pega – Delfim Moreira, Leblon; Largo do machado, mas não largo
do copo – Largo do Machado; Meu bem, volto já – Barata Ribeiro,
Copacabana; Só para ver o que vai dar – Arnaldo Quintela; Cachorro
cansado – Pç. José de Alencar, Catete; Quarta: Me beija que sou
cineasta – Gávea; Planta na mente – Lapa; Quinta: Voltar para quê?
– Cinelândia; Sábado: OBA = Os Bons Amigos – Pedra do sal, Pç.
Mauá; Bafafá – Areia do posto 9, Ipanema; Berço do samba – Trav.
Mosqueira, Lapa; Domingo: Condomínio Barangal – Posto 9,
Ipanema; Concentra mas não sai – Vila Isabel; Piranhas do
Cachambi – Cachambi; Monobloco – Pç. XV, Centro.
E mais: Bis de vários blocos até o carnaval acabar. abrs bjs Saloca

***********

Quincas. Demorei a te responder o e-mail que trouxe junto a poesia


de Manoel da Cruz Evangelista, porque tem estória para contar. Já
faz tempo, bem uns sete ou oito anos (Clara ainda era viva), me veio
à cabeça um tema e lá fui eu trabalhar nele. Começo a escrever
poesia! Fiz uma pausa e disse para comigo: péra aí! Quer dizer que
tudo que tenho de expressar agora é em forma de poesia? Necas de
pitibiriba! Pronto! Me aporrinhei com essa “ditadura” e falei: não
escrevo mais poesia. Poizé, agora já vai para dez anos sem a dita
cuja. Para não dizer que não fiz nada, poetei alguns folhetos de
cordel em homenagem a Augusto dos Anjos a pedido do Zé
Andrade. Por isso, antes um poucadinho de chegar teu e-mail já eu
estava pensando que era tempo de escrever um livro de poesia – e
até botei título: Dez Baladas sem Música. Isso de botar logo o título é
mode comprometer o princípio, meio e fim. Mas só tem o título
mesmo e algumas ideias fervendo na mufa. Nem sei se o título é
bom: não tenho o talento para nome de livro, que nem o Mário de
Andrade tinha. Ele sim, passando pela vila amazônica de Remate de
Males, escreveu pro Manuel Bandeira. “Não é um baita título para
um livro?” – E foi mesmo. Isso foi o que os versos de Manoel
Evangelista me trouxeram à lembrança:

“Agora estou bem melhor,


mas sinto dor,
tento fazer poesia mas só sai porcaria
vou parar de escrever.
Vou colher flores,
vou cantar louvores,
porque tenho amigos,
amigos como você!”

Depois me veio a ideia de também parar de escrever, mas trocar a


escritura por pinceis e telas. Não sei E andei pensando que você
também está devendo um livro de poesia, porque não tenho notícia
se saiu alguma coisa tua depois de “Do incerto ócio”. PS: O
Evangelista é da turma do Buteko?

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Quincas. Poizé, primo. Coisa chata esse negócio de morrer, mas


como será sempre esse o gran finale, que sejamos capazes de torná-
lo menos aborrecido Também ontem eu voltava para casa,
aporrinhado com a notícia, e passei num pé-sujo que tem perto. Um
bar que fica a meio caminho, por isso nunca tinha parado ali, mas
desta vez fui. É um misto de boteco e restaurante, dono português,
teu xará, aliás. Agora vê só o que o pé-sujo oferece, de entremeio às
porcarias comuns nos estabelecimentos desse tipo: Bagaceira das
marcas Neto Costa, Primavera, São Domingos e Aldeia Velha;
Macieira em garrafa (não litro), Five Star, Royal Brandy (como é
agora os conhaques feitos fora da França). Aqui temos o tal de
‘conhaque de gengibre’, uma bosta. Continuando: Vinho do Porto
Réccua-Ruby, Licor Beirão, vários litros de Aniz ‘escorchado’ (foi
assim que entendi – está certo?); Azeite em lata: Bom Dia e
Mondegão; Tremoço, Grão de bico e Favas em vidros de conserva, da
marca Du Olival. Para fechar a lista, tem também Sardinha,
Bacalhau e Polvo, enlatados em azeite, da marca Ramirez. Já que
estava aporrinhado, como te disse, para não perder a viagem bebi
algumas cervejas Itaipava Premium – que também lá tinha (não
resisto ao cacófato) –, acompanhadas de tremoço, sardinha e papo
furado com Joaquim, que tem uns 60 anos de Rio de Janeiro e
outras tantas idas e vindas à terrinha. Fi-lo porque quis e bem feito,
não foi? (Esse ‘fi-lo’ ouvi de Jânio Quadros numa entrevista,
correção feita ao famoso ‘fi-lo porque qui-lo’ – folclore que corria
como sendo frase dele. “Jamais pronunciei tal coisa – disse – se o
fizesse teria dito: Fi-lo porque quis”. Aqui não sei se teria dito ‘o
quis’ ou ‘quis’). E posto que morrer é também puro folclore, não
percamos a pose – e abrace cá este seu primo.

***********

Quincas, Estou aqui curtindo uma conjuntivite, advinda da porcaria


de meter o dedo sujo nos olhos. Trato com água boricada e mais ou
menos daqui a três dias estarei são. Por falar em 'porcaria', quando
falei do pé-sujo, não quis dizer sinônimo de sujeira, não. Porcaria de
pé-sujo é a feitura de partes do porco – principalmente orelha e
chispe – cosidas em feijão preto. A iguaria é apresentada junto com
farinha seca, entremeada com grandes toras de charque. É tira-gosto
imprescindível dos grogues também pesados. E já que falaste e falei
em grogue, como será que esse anglicismo foi parar no Maranhão?
Porque não o conheço de outro Estado, além aí da nossa terra.

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Quincas. Recebi as crônicas e lá vai bala: A do queijo de São Bento –


faltou explicar as delícias, sabores e manjares que o dito carrega com
ele e nos dá. As outras duas – muito limão e pouco mel. Mais doçura,
mais doçura, meu primo. Essa tua relação com a Ilha me lembra
meu livrote de poesia “Amor a São Luís e ódio”. Além da
proximidade dos sentimentos, fica a sensação de amar a cidade e ao
mesmo tempo odiá-la porque, devido às mazelas, ela não é mais a
que amamos. Algo assim, né? PS: Estiveste no Chile bebendo
Casillero del Diablo?

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Primo. Recebeste as crônicas que mandei?

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Quincas, Lembrei-me do nome do documentário sobre o “bois du
brèsil”: Chama-se “A árvore da música”. Já fotografei a pitombeira.
Falta tirar foto do telefone – depois te mando.

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Quincas. Se ainda não sabes, a Tia Neta sofreu um acidente e


quebrou o fêmur. Está hospitalizada aguardando cura em hospital
no Maracanã. Liga para lá para saber como andam as coisas. Mais
uma historinha sobre os mistérios da morte. Em novembro meu
mano mandou um e-mail: “Quando tu vens visitar o teu irmão mais
velho?” Respondi de chalaça: “Tá com saudade do mano, né? Vou
combinar com o Beto, que mora em Cuiabá, e vamos te fazer uma
visita aí." Combinei com Beto. Ele coordenou: “Devo ir ao Rio em
novembro, visito todo mundo, te pego, voltamos juntos. Te deixo lá
em Dourados (MS) e volto para Cuiabá.” Pois ficou assim. Por essas
‘deixa para depois’, Beto não pôde vir. Foi adiando, adiando e resulta
que o mano cansou de nos esperar. Então, fico matutando que não
estou mais na idade de ‘deixar para amanhã’. Fico com o aqui agora,
do budismo.

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(Resposta) Primo. Da tia fiquei a par no mesmo dia da queda. Não te


contei porque pensei que, estando aí perto, já soubesses do acidente.
Quanto ao deixar passar o certo mesmo é fazer hoje o que não
fizemos ontem, mas, porém, a gente vai ficando velho e perde a
memória do que não teria feito ontem! Pois, pois! Abraços Quincas.

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(Resposta) Primo. Decorridos 15 dias, finalmente a CASSI autorizou


a cirurgia do Marko, no Hospital do Coração-SP. Na próxima 6ª
feira ele receberá o implante de um desfibrilador cardíaco. A
operação terá hora e meia de duração. Assim, às 10 da manhã ele já
deverá estar livre de maiores riscos. Provavelmente no domingo ou
na segunda-feira poderá regressa a São Luís. Ufa, que alívio! Viva a
CASSI com a sua prontidão! (*) Por essas e outras, Esposa e eu
deixamos a CASSI: Pagávamos, o casal, 2.300,00 por mês. Sem
carência, passamos para Seguro Saúde – Bradesco, pagamos por
nós dois 1.600,00. E não há nem comparação em termos de
aceitação e atendimento, no país inteiro.

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Quincas. Bravos! Que tudo corra bem ao Marko!

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(Resposta) Primo, obrigado pela homenagem que o teu talento me


presta com esse belo poema (Valsa para Joaquim Itapary). Está nos
arquivos e no coração. Beijos saudosos, Quincas.

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Quincas, Desisti por completo do projeto 10 Baladas. Não veio nada


na cabeça, enfim, tô fora. Para não dizer que não faço mais poesia,
mando em anexo. Uma brincadeira para distrair a cabeça do primo.
Xau! Abrace-me Saloca

Anexo:

Valsa para Joaquim Itapary

Lá vai Joaquim Itapary, pela beira da calçada,


com seu passo de quelônio.
Diz-que vai caminhar, diz-que é bom para saúde,
mas aquecido sob o sovaco leva o livro das aventuras
do cavaleiro catalão Tirant Le Blanch.
O padre Antônio Vieira assim que se viu destituído
pelo tal Johanot Martorell remexeu a ossada no túmulo.

– Estará ele pensando nos desígnios da humanidade?

Lá vai Joaquim Itapary, o cronista mal amado, com seu passo de


Juriti.
Diz-que vai por aí, levando Antônio Vieira debaixo do braço.
Cada passo que ele dá é uma nota que solfeja e se a pipira
apurar bem os ouvidos irá logo descobrir que se trata de arte de
Bach ou Mendelssohn decantada pelo arco de pau Brasil
que decola do cello majestoso de Antônio Meneses.

– Rejubila-se pela fumaça branca que elegeu o Papa Francisco?

Lá vai Joaquim Itapary, arqueado mas solene, como o Jaburu


pantaneiro.
Apertado junto ao peito carrega um livro de crônicas de Lago
Burnett.
Entre o nadir e o zênite vagueia o pensamento fluido do cronista e
vai.
Entre netos, avós, tios, irmãos e primos tudo se materializa nas
aventuras do cavaleiro da triste figura,
que risca a vida entre porcos, donzelas, bandidos e moinhos.

– As passadas militares se queixarão das mazelas de São Luís?

Lá vai Joaquim Itapary – o ex-sermonário dos peixes –


ora nomeado seresteiro de incelenças e réquiens:
– ao Rio Pimenta, Olho d’Água e Rio Anil.
– às ladeiras lodosas de mijo e cocô
– às praias ferventes de coliformes fecais
– à natureza morta daquilo que foi um dia a Cidade-Porto que o
lançou cronista.

– Vai dar volta ao mundo, tal Marco Polo tardio?

Lá vai Joaquim Itapary a passo e canto de siricora


com seu olhar sagaz, aquilino, com seu destino de Sísifo,
montado no rocim tordilho Mercedes-Benz,
levado de roldão por toda São Luís farejando amores e ódios,
ração para uma crônica de flor e sangue.

– Esse íntimo sorriso é pelo florescer dos descendentes queridos?


Lá vai Joaquim Itapary, o cronista felino, sagaz como a suçuarana.
Tento dissuadir o cronista enfezado a trocar o instilado fel das
agruras inusitadas pelo destilado malte produto das highlands
escocesas ou pela tiquira de Santa Quitéria,
por uma cachacinha vinda lá de São Bento ou por um Casillero del
Diablo – todas essas maravilhas inventadas pelo bicho homem, que
entre rosas e açucenas nos guardam e nos protegem de todos os
males, amém.

– Pensará no muçum, regado com pimenta e azeite da querida São


Bento?

Lá vai Joaquim Itapary no compasso, com seu andar mocorongo.


Vai tourear a vida, como o toureiro toureia o touro na Arena de
Sevilha,
vai botar cabresto na palavra, como a muleta perversa que espicaça o
lombo do miúra.
Com pensamentos mais profundos, ele pensa consertar o mundo,
com ares de salvador da pátria, guerreia o vento, as ondas, as pedras,
a caatinga,
mas o que deseja mesmo é o porto, a rede, enseada entre coxas, a
restinga.

– Ainda não imagina o Paraíso – mas pensará com saudade do


abraço caloroso?

Lá vai Joaquim Itapary, santarrão disfarçado, com seu passo de


calango.
Os joanetes assimétricos, aquela curvatura que leve assoma às
costas,
não é o peso das asas, é também o peso da vida
– que não lhe mete medo mais do que dor de dente,
vai o cronista, matutando um sermão às saúvas,
pelejando pela remissão irrestrita dos pecados da humana carne, na
perpétua ressurreição da alma, na vida eterna, amém.

– Pensará na falta que faz as tapuiranas e o queijo de São Bento?


Lá vai Joaquim Itapary com seu passo de jaboti.
Anda triste, parece desinfeliz, por sua amada São Luís, mas a sua
carapaça
é tão mais leve como o algodão-doce, doçura de dar inveja e deixar
saudades.
Portanto, deste Rio de Janeiro em pleno mês de março,
debaixo de um aguaceiro guaçu e 40 graus de calor, mando um
guaçu abraço.
E ponto final. Ciao!

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Quincas, Taí uma belíssima crônica! Parabéns, primo! Estás em teu


elemento, teu éden - artista pleno! Para mim soa como um presente,
pois amanhã, dia 22/3, salto a barreira dos setenta e um anos, alegre
e feliz. Feliz e alegre porque me sinto em absoluta derrota de
realizações, não sei quais. Justo por não saber o que vem por aí vida
afora, fico em arrepios Fazes-me falta Enquanto isso dá-me cá um
abraço gostoso. Amanhã beberei un tinto añejo, acompanhado de
queijos, pastas e pães, preto, cevado, etc. E pensarei que temos uma
tardia, mas bela amizade.

***********

Quincas, Acho que acabei o conteco. Me ajuda aí com uma revisão e


censura. Acho que mando ele pro concurso da 3a. idade. Aquele que
eu nuncaganho...

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Bom dia preguiçoso! 1-Me lembrei: escrevi no Cobras, mandíbula,


mas cobra tem mandíbula? 2-Posso usar Quincas Itapary? Tens
alternativa? Vê aí.

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(Resposta) Primo, lidar com cobras requer redobradas cautelas.


Surucucu raramente sobrepassa os dois metros. Essa tua, de 3m, é
bicho fantástico. Surucucu não é sucuriju, pá? Nem no Butantã se
encontram surucucus-de-fogo ou surucucus-pico-de-jaca com três
metros. Enfeita mas não exagera. Ou faz logo o conto no gênero
fantástico. Acho Quincas Oliveira (ou “dos Olivares”) mais próprio
dos portugueses da Baixada. O que é, de fato, o nome da
família. Itapary é sobreposto, nome concedido por graça de
monarca. Tou com a caixa em baixa, por conta de doenças e
faculdades particulares, etc. e tal. Mas, manda o numero de conta
que ainda te posso facilitar a compra de uma garrafa de Vale Verde,
cana que a gente pode ate pingar como colírio que não causa dano,
mas alimpa a vista de quem anda desolhado pela idade ou castigo
divino. Abç. Quincas

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Quincas, Dei uma arrumada no conto Cobras, mas não vou me


chatear com a sabedoria do Zifirino, nem com a falta de ‘grossura’ do
Moutão – tá tudo mais ou menos equilibrado, o tempo urge. Dr.
Quincas Oliveira foi batizado. Tinha intenção de esticar a história
acrescentando algumas lendas de cobras, mas acho que está bem
assim. Queria ler algumas histórias tuas, inventadas, teu repertório é
bom, mas você não larga essas croniquetas fáceis de jeito nenhum!
Coragem homem!

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Quincas, 1-Olha aí, tirado da mamãe internet: “Cobras Surucucus –


A surucucu é a maior cobra venenosa encontrada no Brasil, podendo
chegar a 4,0 metros de comprimento e algumas subespécies podem
ser ainda maiores”.
2-Primo, não te aborreças com minhas histórias. Cest la vie. Mas
queres me dar um Vale Verde de presente de 71 anos? Aceito, claro.
Sei que vem de coração. E ficas com o crédito para o próximo
trabalho editorial, tá?
3-Tava querendo ir aí, mas como sempre o Rio de Janeiro às vezes é
de lascar! A mulher do João me ofereceu estadia, mas não sei como
as coisas andam por lá. Também não sei quando posso ir – e
também, claro – só vai prestar se estiveres aí. Ciao. Me recomenda –
sempre – às crianças e à esposa, claro.

***********

Quincas, Dias de sol aberto e céu despejado – como dizem os


espanhóis. Manhãs frias, gostosas para dar aquela caminhada na
praia do Leblon, como você gosta. Mas, afinal, o que qui há com
você? Xinguei suas crônicas de croniquinhas e você nem reagiu?
Pensei: o Quincas vai me esculhambar. Mas, nada. Não consigo
estimular você de nenhum jeito. Antão, vai outra sugestão: você
adquiriu experiência com o romance “Hitler no Maranhão”. Pois
pode perfeitamente iniciar outra novela e publicar em forma de
folhetim! Como os antigos 'artistas' faziam nos jornais cariocas.
Xente! E me diga que está escrevendo e guardando poesias para
novo livro. PS: Para alegrar, veja essa foto das flores da vinagreira
roxa. Nem eu pensei que fossem tão bonitas. Tenho uns pezinhos na
minha varanda. e mais alvoradas. (19/06/2017).

Rio de Janeiro, Cachambi, 11 de agosto de 2019.


O autor

Salomão Rovedo (1942) teve formação cultural em São Luís (MA), desde a década de 1960
reside no Rio de Janeiro, onde participou dos movimentos culturais e artísticos dos anos
1960/1970/1980.
Textos publicados: Abertura Poética, 1975; Tributo, 1980; 12 Poetas Alternativos, 1981; Chuva
Fina, 1982; Folguedos, c/Xilogravuras de Marcelo Soares, 1983; Erótica, c/Xilogravuras de
Marcelo Soares, 1984; 7 Canções, 1987.
e-books:
Romances: A Ilha; Gardênia; Klara, Chiara, Clarinha; Geleia de rosas para Hitler (inédito).
Contos: A apaixonada de Beethoven; A estrela ambulante; Arte de criar periquitos; O breve
reinado das donzelas; O sonhador; Sonja Sonrisal; Contos remidos;
Ensaios: 3xGullar; Leituras & escrituras; O cometa e os cantadores; Orígenes Lessa,
personagem de cordel; Poesia de cordel: o poeta é sua essência; Quilombo, um auto de
sangue; Viagem em torno de Cervantes; Stefan Zweig - A vida em xeque.
Poesia: 20 Poemas pornôs; 4 Quartetos para a amada cidade de São Luís; 6 Rocks matutos e 1
romance rasgado; 7 Canções; Amaricanto; Amor a São Luís e Ódio; Anjo pornô; Bluesia;
Caderno elementar; Espelho de Vênus; Glosas Escabrosas (c/xilogravuras de Marcelo Soares);
Mel; Pobres cantares; Porca elegia; Sentimental demais; Suíte Picasso.
Crônicas: Cervantes, Quixote e outras e-crônicas do nosso tempo; Diários do facebook e
conversas com Quincas Oliveira (I) e (II); Escritos mofados; Diários do facebook (II); Diários do
facebook (III).
Antologias: Cancioneiro de Upsala (Trad. e notas); Meu caderno de Sylvia Plath (Cortes e
recortes); Os sonetos de Abgar Renault (Antologia); Stefan Zweig-Pensamentos (Seleção e
ensaios).
e-books de Sá de João Pessoa: Antologia de Cordel #1; Antologia de Cordel #2; Antologia de
Cordel #3; Antologia de Cordel #4; Antologia de Cordel #5; Macunaíma em cordel; Por onde
andou o cordel?; O Cometa de Halley e os cantadores.
Diversos: Folhetos de cordel assinados Sá de João Pessoa; Editor do Jornal de poesia Poe/r/ta;
Colaboração: Poema Convidado (USA), La Bicicleta (Chile), Poética (Uruguai), O Imparcial (MA),
Jornal do Dia (MA), Jornal do Povo (MA), Jornal Pequeno (MA), A Toca do (Meu) Poeta (PB),
Jornal de Debates (RJ), Opinião (RJ), O Galo (RN), Jornal do País (RJ), DO Leitura (SP), Diário de
Corumbá (MS) – e outras ovelhas desgarradas.
Os e-books estão disponíveis em: www.dominiopublico.gov.br, em: www.academia.edu e
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Foto: Priscila Rovedo

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