Quanto a nossos concidadãos que então arriscavam l a
vida, tinham de decidir se estavam ou não na peste e se era ou não necessário lutar contra ela. Muitos moralistas novos da nossa cidade diziam então que nada servia para nada e que era preciso cair de joelhos. E Tarrou, Rieux e os amigos podiam responder isto ou aquilo, mas a conclusão era sempre o que eles sabiam: era - preciso lutar, desta ou daquela maneira, e não cair de joelhos. Toda a questão residia em impedir o maior número possível de homens de morrer e de conhecer a sepam ração definitiva. Para isso, havia um único meio: combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas conseqüente. Por isso, era natural que o velho Gastei pusesse toda a sua confiança e toda a sua energia em fabricar soros ali mesmo com material precário. Rieux e ele esperavam que um soro fabricado com as culturas do próprio micróbio que infestava a cidade teria uma eficácia mais direta que os soros vindos do exterior, já que o micróbio diferia ligeiramente do bacilo da peste tal como era classicamente definido. Grand esperava ter em breve seu primeiro soro. Por isso era natural que Grand, que nada tinha de herói, assumisse agora uma espécie de secretaria das equipes sanitárias. com efeito, parte dos grupos formados por Tarrou dedicava-se a um trabalho de assistência preventiva nos bairros muito populosos. Tentava-se introduzir aí a higiene necessária, contando- se as águas-furtadas e os porões que a desinfecção não tinha visitado. Uma outra parte dos grupos ajudava os médicos nas visitas domiciliares, garantindo o transporte dos doentes e até, mais tarde, na ausência de pessoal especializado, dirigia os carros dos doentes e dos mortos. Tudo isso exigia um trabalho de registro de estatística que Grand aceitara fazer. Desse ponto de vista e mais que Rieux ou Tarrou, o narrador considera que Grand era o verdadeiro representante dessa virtude tranqüila que animava as equipes sanitárias. Aceitara sem hesitação, com a boa vontade que o caracterizava. Manifestara apenas o desejo de se tornar útil em pequenos trabalhos. Estava velho demais para o resto. Das dezoito às vinte horas podia dar seu tempo. E, como Rieux lhe agradecesse calorosamente, ele se admirava: ”Não é o mais difícil. Há peste, é preciso nos defendermos, evidente. Ah, se tudo fosse tão simples!” E repetia sua frase. Por vezes, à noite, quando o trabalho das fichas terminava, Rieux conversava com Grand. Tinham acabado por juntar Tarrou às suas conversas, e Grand se abria com um prazer cada vez mais evidente aos dois companheiros. Estes acompanhavam com interesse o trabalho paciente que Grand continuava, em meio à peste. Também eles, por fim, encontravam nisso uma espécie de repouso. ”Como vai a amazona?”, perguntava muitas vezes Tarrou. E Grand respondia invariavelmente, com um sorriso: ”Vai trotando, vai trotando”. Uma noite, Grand disse que tinha posto definitivamente de lado o adjetivo elegante para a sua amazona e que a classificava agora de esbelta. ”É mais concreto”, acrescentara. Outra vez, leu para os dois ouvintes a primeira frase, assim modificada: ”Numa bela manhã de maio, uma esbelta amazona, montada numa soberba égua alazã, percorria as aléias floridas do Bois de Boulougne”. - Não é verdade - disse Grand - que a vemos melhor assim? E eu preferi: ”numa manhã de maio, ” porque ”mês de maio” alongava um pouco o trote. Mostrou-se em seguida muito preocupado com o adjetivo ”soberba”. Era pouco sugestivo, em sua opinião, e ele procurava o termo que fotografasse imediatamente a égua faustosa que ele imaginava. ”Gorda” não podia ser. Era concreto, mas um pouco pejorativo. ”Reluzente” o havia tentado por um instante, mas o ritmo não se prestava. Certa noite, anunciou triunfalmente que tinha encontrado: ”Uma negra égua alazã”. O negro indicava discretamente a elegância, em sua opinião. - Não é possível - disse Rieux. - E por quê? - Alazã não indica raça, mas a cor. - Que cor? - Bem, uma cor que, em todo caso, não é preto. Grand pareceu muito impressionado. - Muito obrigado - disse ele. - Ainda bem que o senhor está aqui. Mas veja como é difícil. - Que acha de ”suntuosa”? - perguntou Tarrou. Grand olhou para ele, e refletiu. - Sim - disse. - Sim! E, pouco a pouco, esboçava um sorriso. Algum tempo depois, confessou que a palavra ”floridas” o constrangia. Como só conhecera Oran e Montélimar, às vezes pedia aos amigos indicações sobre a forma como as aléias do Bois eram floridas. A bem dizer, elas nunca tinham dado a impressão, a Rieux ou a Tarrou, de serem floridas, mas a convicção do funcionário os abalava. Ele estranhava aquela incerteza. Só os artistas sabem olhar. Mas certa vez, o médico encontrou-o numa grande excitação. Tinha substituído ”floridas” por ”cheias de flores”. Esfregava as mãos. ”Afinal, podemos vê-las e cheirá-las. Tirem o chapéu, meus senhores!” Leu triunfalmente a frase: ”Numa bela manhã de maio, uma esbelta amazona, montada numa suntuosa égua alazã, percorria as aléias cheias de flores do Bois de Boulogne”. No entanto, 1:dos em voz alta, os três genitivos que terminavam a frase soaram mal e Grand gaguejou um pouco. Acabrunhado, sentou-se. Depois, pediu ao médico licença para ir embora. Tinha necessidade de refletir um pouco. Foi nessa época, como se soube depois, que ele deu na repartição certos sinais de distração considerados lamentáveis num momento em que a prefeitura enfrentava, com um pessoal reduzido, obrigações avassaladoras. O serviço ressentiu-se disso, e o chefe da repartição repreendeu-o severamente, lembrando- lhe que era pago para executar um trabalho que precisamente não cumpria. ”Parece”, disse o chefe da repartição, ”que o senhor faz serviço voluntário nas equipes sanitárias, fora do seu trabalho. Nada tenho com isso. O que me diz respeito é o seu trabalho aqui. E a primeira maneira de se tornar útil nessas terríveis circunstâncias é fazer bem seu trabalho. Ou senão o resto não serve para nada.” - Ele tem razão - disse Grand a Rieux. - Sim, tem razão - concordou o médico. - Mas eu ando distraído e não sei como sair do fim da minha frase. Tinha pensado em suprimir ”de Boulogne”, calculando que todos compreenderiam. Mas então a frase parecia relacionar-se com ”flores”, o que, na realidade, se relacionava com ”aléias”. Examinara também a possibilidade de escrever: ”As aléias do Bois cheias de flores”. Mas a situação de ”Bois” entre um substantivo e um adjetivo que ele separava arbitrariamente era como um espinho na carne. Certas noites, é bem verdade que ele parecia mais cansado que Rieux. Sim, estava fatigado por essa busca que o absorvia por completo, mas