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ALBERT CAMUS [An

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folhas ainda cheias de chuva, nos tufos úmidos das alamedas,
voavam em direção às casas de telhas cor de sangue fresco e
tomavam a subir voando, em direção aos lagos de ar e de sol de onde
logo transbordavam. Um suave ronronar descia de um minúsculo
avião, que navegava lá no alto. Nessa expansão do ar e nessa
fertilidade do céu, parecia que a única tarefa dos homens era viver e
ser feliz. Mas tudo se calava em Mersault. Um terceiro espirro o
sacudiu, e ele sentiu uma espécie de calafrio de febre. Então, fugiu,
sem olhar à sua volta, ao ranger da mala e ao som de seus passos.
Chegando à sua casa, colocou a mala num canto, deitou-se e dormiu
até o meio da tarde (18).

CAPÍTULO II

O verão (1) enchia o porto de clamores e de sol (2). Eram


11h30min. O dia abria-se ao meio para esmagar os cais com todo o
peso de seu calor. Diante dos armazéns da Câmara de Comércio de
Argel, os “Schiaffino” de casco negro e chaminé vermelha
embarcavam sacas de trigo. O cheiro de poeira fina misturava-se aos
pesados odores de alcatrão que o sol quente fazia eclodir. Diante de
uma pequena barraca com cheiro de verniz e de anisete, alguns
homens bebiam, e acrobatas árabes, de malha vermelha, giravam e
tomavam a girar o corpo sobre as pedras ardentes, diante do mar,
onde a luz se refletia. Sem olhar para eles, os estivadores, com as
sacas, ocupavam-se sobre as duas pranchas que subiam do cais para
o convés dos cargueiros. Ao chegarem no topo, subitamente
recortados no céu e sobre a baía, entre os guindastes e mastros,
detinham-se, por um segundo, deslumbrados diante do céu, com os
olhos brilhantes no rosto coberto por uma massa esbranquiçada de
suor e poeira, antes de mergulhar às cegas no porão, que cheirava a
sangue quente. No ar escaldante, uma sirene tocava sem cessar.
De repente, na passarela, os homens pararam
desordenadamente. Um deles havia caído entre as tábuas, próximas
o suficiente para retê-lo. Mas, com o braço preso às suas costas,
esmagado sob o enorme peso da saca, gritava de dor. Nesse
momento, Patrice Mersault saiu de seu escritório. Na soleira da porta,
o verão cortou-lhe a respiração. Aspirou com a boca toda aberta o
vapor de alcatrão que lhe arranhava a garganta e deteve-se diante
dos estivadores. Haviam libertado o ferido, que, com os lábios
esbranquiçados pelo sofrimento, tinha pendente o braço quebrado
acima do cotovelo. Uma lasca de osso atravessara a carne, numa
ferida horrenda, da qual escorria o sangue. Deslizando ao longo do
braço, as gotas de sangue caíam, uma por uma, sobre as pedras
ardentes, com um pequeno chiado, do qual subia um vapor. Imóvel,
Mersault olhava o sangue, quando o agarraram pelo braço. Era

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Emmanuel, o rapaz das entregas. Mostrara-lhe um caminhão que
vinha na sua direção, com um clamor de correntes e explosões.
— Vamos? — Patrice correu. O caminhão ultrapassou-os. Em
seguida, lançaram-se atrás do veículo, mergulhados no barulho e na
poeira, ofegantes e cegos, lúcidos apenas o suficiente para se
sentirem enlevados pelo impulso desenfreado da corrida, num ritmo
desvairado de guindastes e de máquinas, acompanhados pela dança
dos mastros no horizonte, e o balanço dos cascos podres. Mersault foi
o primeiro a apoiar-se, seguro de seu vigor e de sua leveza, e saltou.
Ajudou Emmanuel a sentar-se, com as pernas penduradas, e, em
meio à poeira branca de giz, ao vapor luminoso que descia do céu, ao
sol, ao imenso e fantástico cenário do porto inchado de mastros e
guindastes negros, o caminhão afastou-se a toda velocidade, fazendo
saltar, sobre os paralelepípedos desnivelados do cais, Emmanuel e
Mersault, que riam até perder o fôlego, numa vertigem de sangue.
Ao chegarem a Belcourt, Mersault desceu com Emmanuel, que
cantava, alto e desafinado.
— Sabe — dizia a Mersault — é uma coisa que vem do peito,
quando fico contente. Ou quando tomo banho de mar.
Era verdade. Emmanuel cantava ao nadar, e sua voz, que a
opressão, imperceptível sob o mar, tornava rouca, ritmava os gestos
de seus braços curtos e musculosos.
Subiram a rua de Lyon. Mersault caminhava com largas
passadas, muito alto, balançando os ombros largos e musculosos.
Pela maneira como colocava o pé na calçada em que ia subir, pela
forma de evitar, com um golpe esquivo dos quadris, a multidão que,
em determinados momentos, o cercava, sentia-se (3) um corpo
estranhamente jovem e vigoroso, capaz de levar seu donos aos
extremos da alegria (4) física Em repouso, descansava o corpo sobre
um quadril só, com uma ligeira demonstração de leveza, como um
homem que aprendera no esporte o estilo do corpo (5).
Seus olhos brilhavam sob as sobrancelhas um pouco espessas
e, enquanto falava com Emmanuel, com um gesto automático, com
um movimento crispado dos lábios curvados e ágeis, puxava o
colarinho para liberar o pescoço. Entraram no seu restaurante.
Instalaram-se e comeram em silêncio. Estava fresco na sombra. Havia
moscas, tilintar de pratos e conversas. O proprietário, Céleste, dirigiu-
se a eles. Grande e bigodudo, coçava a barriga por cima do avental,
que, em seguida, deixava cair novamente (6).
— Tudo bem — falou Emmanuel. — Como os velhos. — Céleste
e Emmanuel trocavam saudações “O, colega!” e tapas no ombro.
— Sabe, os velhos — dizia Céleste — são um pouco idiotas.
Dizem que um verdadeiro homem é o homem de 50 anos. Mas isso é
porque têm 50 anos. Eu tinha um colega que só se sentia bem com o
filho. Saíam juntos. Farreavam. Iam ao cassino, e meu colega dizia:
“Por que querem que eu saia com todos esses velhos? Todos os dias,
me dizem que tomaram um purgante, que estão com dor no fígado. E

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