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RENÉ CHAMBE

NO T E M P O
CARABINAS
Coleção “Aventuras Vividas” Coleção “Aventuras Vividas”

P ie r r e C lo sterm a n n BERNARD GORSKY

O GRANDE CIRCO EXPEDIÇÃO "MOANA"


Em linguagem simples, num estilo vivo e in ­ Quatro homens, - que mal se conhecem,
cisivo, o autor relata suas proezas nas incursões iniciam em certo dia de junho de 1954
e combates aéreos em que tomou parte, servindo uma das mais belas aventuras do nosso
como pilôto de caça na R. A. F., durante a Se­ tempo.
gunda Guerra Mundial. Apesar de ter o seu avião É a volta ao mundo da exploração
atingido inúmeras vêzes em combate, apesar de se submarina, empreendida num veleiro de 12
ver obrigado a pousar várias vêzes com o trem de metros, no qual durante quatro anos êsses
aterrissagem recolhido, o autor conseguiu sobreviver homens ousados viajarão desde Saint-Malo,
aos ferimentos recebidos e às 420 missões de guerra na Mancha, até Saint-Tropez, no Mediter­
em que tomou parte. râneo.
A leitura dêsses episódios emocionantes da Sob a égide dêsses dois Santos a Ex­
guerra aérea .empolga e arrebata. Eis o realismo pedição "Moana” percorrerá os mares in ­
vibrante com que o autor descreve o pouso for­ certos, e não só a superfície dêles mas
çado de um avião Tempest, com as rodas reco­ também os seus fundos.
lhidas:
“O Tempest vai tocar a pista — a cobertura Através de todo o livro perpassa um
envidraçada do “cockpit” voa lo n g e ... sôpro de idealismo e desprendimento, e
Agora! — Um rangido terrível, a hélice que também se patenteia a infinita capacidade
se deforma, e as oito toneladas caem a trezentos de admirar que é um dos nobres atributos
quilômetros por hora. . . humanos. A simpatia de alma que se es­
tende aos homens e aos animais envolve
Com um estrondo infernal, diante de nossos
também largamente as coisas inanimadas,
olhos horrorizados, o avião salta, capotando a mais
permitindo ao leitor surpreendido deter-se
de trinta metros de altura, e espatifa-se sôbre o um momento a contemplar dentro de si as
dorso contra a pista, cauda para a frente, num paisagens submarinas de incomparável be­
mar de f o g o ... Uma explosão su rd a ... um leza, que o autor igualmente assombrado
clarão deslumbrante. . . e logo, chamas atrozes, de procura descrever, torturando as palavras
vinte metros de . altura, retorcem volutas espêssas antigas para nos transmitir sensações tôdas
de fumaça negra.. . novas.
Apavorados, ouvimos nitidamente, dominando o
estrépito, um urro espantoso — depois, um braço Com o “Moana” descemos o Atlântico
agita-se fracamente no centro da fogueira, em até Cabo Verde, e daí, fletindo para as
meio aos estalidos do metal que funde. Antilhas ganhamos o Panamá, após cujo
Alguma coisa leva-me para a fren te ... para canal desembocamos na entrada do lendário
bem p erto ... Paçífico. Surgem as Galápagòs, com as suas
Delicadamente retira-se dentre os destroços u ’a monstruosas tartarugas, e começam as soli-
massa informe, vermelha e negra, onde aderem dões do Grande Mar. A vida a bordo de­
corre entre recordações e espectativas, até
restos calcinados de fazen d a... As correias do
que se alcançam as Marquesas, e com elas
pára-queda e do arnês foram queimadas, mas adi­
as fascinantes ilhas do mares do Sul que
vinha-se, sob essa crôsta sangrenta, as fivelas me­
a arte cercou de misterioso encanto. Atra­
tálicas incandescentes que corroeram a carne até
vés do estreito de Torres, passagem tene­
os o s s o s ...”
brosa onde os ventos espreitam a fragili­
Ao mesmo tempo, a presente obra é uma nar­ dade do veleiro, vem a travessia do Índico,
rativa autêntica de uma fase capital da guerra arquejante e monótona, e ao fim dela
aérea, seguida durante três anos por Pierre Clos­ Djibuti, já à beira do Mar Vermelho.
termann, desde as ações localizadas do Grupo
“Alsácia”, até as grandes incursões sôbre a Ale­ A luz da esperança começa a espancar
manha e os duelos aéreos da campanha da França, as vicissitudes do cruzeiro interminável.
quando os Aliados procuravam destruir os restos Massauá, Pôrto Sudão, Suez, e enfim as
ainda poderosos da aviação alemã após a retirada luminosidades do caseiro Mediterrâneo.
do inimigo além do Reno. A expedição do “Moana” é uma expe­
As altas tradições francesas, mantidas em ele­ riência rica de sensações, pela extrema no­
vado nível pela grandeza do herói, sobressaem vidade dos panoramas e pelo amplo sentido
da leitura desta prodigiosa odisséia. Obra-prima moral que lhe empresta o seu autor.
da aviação de guerra, épica e humana, recorde de
livraria, na França, com 570.000 exemplares ed i­
tados, assim é
O GRANDE CIRCO.
"aventuras vividas"
R ené C hambe : No Tempo das Carabinas.

P ierre C lostermann : O Grande Circo.

P ierre C lostermann : Episódios da Guerra Aérea na Argélia.

B ernard G orsky : Expedição “Moana” (A Volta ao Mundo


da Exploração Submarina).

T.ors C risler : Caçadores de Imagens no Alasca.

T ony B urnand : 150 Aventuras de Caça e Pesca.


RENÉ CHAMBE

NO TEMPO
DAS

CARAB I N AS
Tradução de
AUGUSTO SOUSA

FLAMBOYANT
Título do original
Au Temps des Carabines

196 1
Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela
LIVRARIA EDITÔRA FLAMBOYANT
Rua Lavradio, 222 — Tel. 51-5837 — São Paulo

Impresso nos Estados Unidos do Brasil


Printed in the United States of Brazil
"aventuras vividas"
Quem não sonhou com altos feitos e grandes
exemplos ? Quem não sentiu entusiasmo e admiração
por uma vida humana, por uma proeza que vem
demonstrar, no homem, a coragem, o valor e a energia
elevados ao mais alto grau ?
A Coleção “Aventuras Vividas” oferece-nos a reali­
zação dêsse sonho, apresentando-nos essas vidas e
essas façanhas que nos arrebatam. Narrativas
empolgantes, cheias de vida e de emoção, documen­
tários prodigiosos, a história de grandes vultos que
iluminam nossas esperanças, janelas abertas para o
universo, tudo isso vem satisfazer-nos a sêde de
heroísmo de que somos possuídos, o gôsto pela ação
ou, simplesmente, o desejo de conhecer um mundo mais
amplo que outros homens exploraram. Os livros
dessa Coleção representam o testemunho da riqueza
dêste mundo e do valor dos homens que o ilustram.
A autenticidade dessas narrativas torna-as muito mais
interessantes e atraentes que quaisquer obras de
ficção, por mais extraordinárias que sejam.
Quer se trate de guerra, de grandes viagens ou
longínquas expedições, essas históricas reais provam
que o século presente, tanto ou ainda mais que os
passados, oferece, sob certos aspectos, abundante ma­
téria à nossa admiração.
PREÂMBULO

um a t a r d e do verão passado, quando sob uma velha tília con-

N versávamos com um antigo camarada de esquadrilha, e não


sem melancolia íamos desfiando longínquas recordações da guerra
de 1914-1918, um môço que até então nos estivera ouvindo em
silêncio não pôde conter uma explosão de surpresa:
— Como ! então os senhores dantes batiam-se de avião a tiros
de carabina, à queima-roupa ?
Sorrimos do seu espanto:
— Pois não sabia? Todo o mundo sabe disso !
— Não, não sabia. Nem sequer compreendo ! Sempre ouvi
dizer que nos combates aéreos se necessita grande potência de fôgo
para abater o adversário, diversos canhões ou metralhadoras dispa­
rando ao mesmo tempo. Mas a tiros de carabina dificilmente se
acredita ! ^
O môço caía literalmente das nuvens, arregalando uns olhos
incrédulos.
— Mas enfim — prosseguiu êle com a veemência da idade, —
hoje nós estamos bem ao par do que se passou ! Todos os grandes
ases, Guynemer, Fonk, Nungesser, Heurtaux e os demais, foi a tiros
de metralhadora que se bateram, e não de outro modo. Eu vi
fotografias do Spad da guerra de 14, ostentando duas metralhadoras
gêmeas atirando por entre as hélices. E mais tarde, com Marin-la-
Meslée, Mouchette e Clostermann, a coisa era ainda diferente: êles
tinham canhões, metralhadora e foguetes nas asas. Os senhores
não leram O Grande Circo ?
— Todo o mundo leu O Grande Circo, aliás um livro admirável,
e você tem razão, amigo. Mas nós falamos de tempos muito anteriores,
quando a aviação de caça não existia em estado puro, quando tudo
era improvisado, novo, e nem Guynemer ou qualquer dos outros a
N o tempo das carabinas

que se referiu tinham travado a sua primeira luta. Clostermann


nem sequer nascera ainda. Estamos falando da era diluviana.
— Talvez ! — replicou o nosso interlocutor com involuntária
impertinência. — Mas expliquem-me uma coisa que eu não com­
preendo: o piloto estava sozinho a bordo, não é verdade ? Como
podia êle então ao mesmo tempo pilotar e servir-se de uma cara-
bina ? Tenham paciência ! ninguém me fará acreditar que com uma
arma disparando de cinco em cinco minutos, êle conseguisse, a 200
quilômetros à hora, atingir um avião nas suas obras vivas e abatê-lo.
— Você está enganado. No comêço da Grande Guerra em
1914 ou 1915, os primeiros aviões de caça tinham dois lugares.
Levavam dois homens a bordo. Um pilotava, outro atirava. A
arma era uma simples carabina, pois os primeiros aparelhos usados
na caça eram tão leves e acanhados que não se poderia instalar nêles
a menor metralhadora. Ora, para derrubar um avião a tiro de
carabina, era indispensável, como você judiciosamente observou,
atingi-lo em suas partes essenciais, piloto, reservatório ou motor, isto
é, atirar com precisão. Isso obrigava o piloto a conduzir o seu
observador quase ao contacto do adversário.
— A que distância, mais ou menos ?
— Já lhe disse, quase ao contacto: a quinze metros, dez, às vêzes
até menos.
— Desculpe o meu ceticismo, mas como é que o atirador podia
levar a arma à cara e apontar ? Nessa época os aviões, por pouco
rápidos que fossem, já se cruzavam como bólidos.
— Também não é assim que as coisas se passavam. A tática não
consistia em cruzarem-se, mas em colocar-se ao lado do adversário,
voando no mesmo sentido dêle. Os passageiros fuzilavam-se então à
queima-roupa, tal como se fuzilariam de portinhola para portinhola
dois viajantes de trens correndo em linhas paralelas. E não pense
que era assim tão difícil, sem os famosos“correction-but” e corretores
de tiro, quase inteiramente ignorados nessa época. Tínhamos de
contar com êles, mesmo nas mais curtas distâncias.
— A tiros de carabina, à queima-roupa, ainda assim é inacre­
ditável ! E diga-me uma coisa: os tripulantes tinham de avistar-se
mütuamente ?
— Viam-se tão bem que até lhes sucedia encararem-se através
dos vidros dos respectivos óculos.
— Formidável ! Isso devia assemelhar-se a um autêntico duelo,
em que os adversários se fitam e se visam a alguns passos de distância.

8
Preâmbulo

— Você o disse: era um autêntico duelo, cujo vencedor era o


que atirava com maior rapidez e certeza.
— Houve aviões derrubados assim ?
— Naturalmente, foram derrubados diversos.
— Fala sério ? Sabendo como se travam os combates de hoje, isso
até parece lenda !
A fisionomia do nosso jovem interlocutor era curiosa de ver.
Exprimia uma complexa mistura de sentimentos, em que se surpre­
endiam a dúvida e o desejo de acreditar, vontade de contradizer e
de admirar, porém uma admiração temperada com boa dose de
piedade condescendente, assim como hoje admiramos a locomotiva
de Stephenson ou o primeiro automóvel de Renault. Tornava-se
evidente que fazíamos a seus olhos a figura de espécimes de uma
era desaparecida, de representantes de uma época passada e vaga­
mente enternecedora, em que existiam sêres de raça inferior conside-
ràvelmente desaparelhados, e que não haviam sido capazes de cons­
truir, sequer de imaginar as coisas de que a sua geração se achava
hoje tão generosamente apetrechada. Êle pertencia à idade do refri­
gerador e do radar, do reator e da energia atômica. Separava-nos uma
grande distância.
Como todos os seus jovens contemporâneos, mantinha-se perfeita-
mente informado dos progressos mais recentes. Sabia que no domí­
nio da guerra aérea se chegara à fórmula dos aviões-robots. Ainda
ontem havia um piloto a bordo do avião de caça lançado contra o
esquadrão de bombardeamento inimigo que se tentava destruir.
Seu papel resumia-se em apertar, num dado momento, certo botão
de ebonite. Êsse simples gesto tinha a faculdade de ser decisivo: lá
em baixo, a várias centenas de metros, o adversário invisível era ins­
tantâneamente desintegrado, reduzido a poeira. No entanto, voando
nas trevas, o piloto de caça nada vira com seus próprios olhos. Apenas
a mancha luminosa do seu radar de bordo o informara, ou mais
seguramente ainda as indicações radiofônicas vindas da base terrestre,
cujo radar era muito mais poderoso e infalível que o seu. Disparara
sob a injunção de alguém que via o objetivo tão pouco quanto êle,
e no entanto avaliava em cada centésimo de segundo a sua exata
posição no céu.
Todavia, essa maneira de lutar não suprimia a angústia do piloto
de caça, sabedor de que, diante dêle e nas trevas o adversário dispunha
das mesmas armas, conhecia a sua presença e posição no espaço.
Se fôsse o outro o primeiro a apertar o botão de ebonite, êle é que

9
N o tempo das carabinas

sultei os tais arquivos oficiais, condenados a mirrar-se inapelàvel-


mente no fundo das suas masmorras de cartão, e trouxe-os de novo
para a luz. Cadernetas de vôo individuais, cartas preciosas foram
postas à minha disposição. Sou grato aos que m’as deram a conhecer.
Êsses documentos permitiram-me reviver, com uma multidão de de­
talhes todos autênticos e com o seu valor histórico, aqueles recontros
épicos em pleno céu.
Peço desculpa por ter sido, bem contra a vontade, levado a sair
da minha habitual reserva. Nunca até aqui tinha escrito uma
única palavra a meu respeito, ou relatado um só acontecimento em
que houvesse tomado parte; sempre me retraí cautelosamente, por
um escrúpulo de consciência que aliás diversas vêzes me foi gentil­
mente censurado. Hoje, pela primeira vez, fui obrigado a afastar-
me dessa linha. Boa parte dêste livro teve de ser escrito na primeira
pessoa. Trata-se de um testemunho direto, que eu desejaria interes­
sante, e, peço que acreditem, escrupuloso. Tive com efeito a honra
de pertencer à querida e jovem esquadrilha M. S. 12, criada no
primeiro inverno da Grande Guerra pelo inesquecível comandante
de Rose, a fim de demonstrar que a aviação de caça não era uma
quimera. Seria impossível, sem abrir uma lacuna demasiado grande,
separar as minhas recordações das dos meus companheiros de armas.
De modo que record muitas vêzes às minhas próprias anotações de
rota ou de vôo. Espero que o leitor desculpe a veemência e talvez a
excessiva vivacidade de alguns dos meus relatos de vinte e cinco
anos passados.
A M. S. 12, de pavilhão triangular metade azul e metade branco
que ia tornar-se famoso, cobriu-se de glória. Durante algum tempo
deteve o recorde de aviões inimigos abatidos. Fêz tremer diante de
si a aviação alemã. Abriu o caminho para a aviação de caça, que
tão ràpidamente havería de evoluir e aperfeiçoar-se, tanto no arma­
mento como nos métodos, para chegar à sua fôrma atual em que o
homem, como vimos, não encontra mais lugar.
Êsse primeiro sulco, traçou-o a esquadrilha M. S. 12, no ano de
1915, a tiros de carabina.
Le Repaire, Março de 1955.

R. C.

12
N o tempo das carabinas

voaria em estilhas, seria desintegrado e reduzido a fagulhas. Cum-


pria-lhe disparar antes. A guerra tornara-se uma competição de
botões a comprimir.
Na verdade, o piloto de caça já não tinha razão de ser.
Não passava de uma simples engrenagem consciente, porém despro­
vida de iniciativa, de olhos, coração e nervos inúteis. Chegara-se a
prescindir dos seus serviços e tinham-no muito naturalmente substi­
tuído por um robot, um avião teleguiado do solo que evoluía e abria
fogo mediante comando, melhor ainda que um piloto vivo. Do lado
contrário sucedera evidentemente a mesma coisa com os aviões de
caça e de bombardeio. Também não conduziam tripulação, sendo
por sua vez teleguiados do território inimigo, e largavam as suas bom­
bas sôbre o objetivo com precisão muito maior do que o fariam
homens.
Desse modo os combates de avião não passariam em breve de
uma espécie de brinquedo, manejado a grande distância e através
do céu por dois adversários terrestres cada qual fechado na sua
tôrre de controle, uma espécie de singular desafio travado entre
dois concorrentes debruçados sôbre os seus radars, como sôbre
as caixas envidraçadas de um gigantesco aparêlho caça níqueis.
Período, aliás, ultrapassado também: os aviões de bombardeio
iam reduzir-se a simples projéteis munidos de aletas que lhes
permitiam realmente voar e ser teleguiados, mas que logo seriam
atacados por engenhos substituindo os aviões de caça tripulados ou
não por homens. Êsses engenhos, disparados do solo contra os pro­
jéteis de bombardeio volantes a destruir, seriam entregues aos seus
próprio reflexos e se conduziriam como verdadeiros sêres pensantes.
Livres de qualquer orientação humana, descobriríam por si mesmos
os seus objetivos, perseguindo-os, iludindo as suas manobras instin­
tivas para lhes escapar, escolheríam cada qual a sua vítima, girando
em tôrno dela e acabando inexoràvelmente por alcançá-la e se colar
a ela: então, a carga de explosivos que conduzem entraria em
ação, reduzindo o adversário a migalhas.
Tais monstros, saídos do cérebro do homem, teriam a terrificante
aparência de feras vivas, animadas por uma inteligência e guiadas
por olhos. Levariam na cabeça um mecanismo influenciável pela
presença do objetivo a alcançar. Êsses engenhos receberíam o nome
de projéteis de cabeça buscadora.

10
Preâmbulo

Tudo isto era perfeitamente conhecido do nosso jovem inter­


locutor do verão passado, que lera a respeito numerosos artigos em
revistas científicas. E tudo isso, também, passara do domínio expe­
rimental para o da aplicação. Hoje não há uma potência aeronáu­
tica digna dêsse título que não tenha dotado de tais engenhos o seu
exército do ar.
A aviação de caça, a bela aviação de caça de outrora está morta,
tão morta quanto a marinha de guerra à vela. Nunca mais veremos
uma ou outra. Um combate entre aviões de 1915 pertence tanto
ao passado quanto uma batalha naval de Jean Bart ou de Surcouf.
Ambos fazem parte de um mundo desaparecido, não são mais do
nosso planêta. Nesses tempos podia-se enfrentar o adversário e
dar provas de coragem individual. Um Jean Bart ou um Surcouf
abordavam os navios inimigos, lutavam de homem para homem,
à espada ou a pistola, entre vociferações e rugidos. Os seus descen­
dentes mandam-se hoje limpamente para o fundo do mar, sem uma
palavra e sem ao menos se verem, trocando a quarenta quilômetros
obuses de uma tonelada.
Um Gilbert, um Navarre ou um Pelletier-Doisy abateram os seus
primeiros aviões após verdadeiros corpo-a-corpo aéreos, em que os
tripulantes se fuzilam a poucos metros de distância. Teriam podido
trocar (não fôsse o ruído dos motores) históricas amabilidades como
em Fontenoy, ou rajadas de injúrias como nos tempos antigos.
Estas recordações vão-se perdendo pouco a pouco. Em breve
serão levadas pelo ,vento. Sucede com elas o mesmo que com as
poeiras rutilantes das asas das borboletas: basta tocar-lhes para se
desfazerem em nada. Todavia é necessário conservá-las. Por muito
frágeis que sejam, pertencem ao patrimônio de glória da nossa
aviação. Mais algum tempo e terão desaparecido. A conversa do
verão passado com o neto dos combatentes de 1914, veio dar-me
essa aflitiva certeza.
Porisso me decidi a escrever êste livro. Já era tempo. Os
últimos atores dêsses combates, as derradeiras testemunhas vão desa­
parecendo sucessivamente. Em breve não restarão outros vestígios
a não ser nos poeirentos arquivos dos ministérios e dos serviços his­
tóricos, que ninguém, jamais, irá consultar. E tudo estará acabado.
As cinzas do esquecimento cobrirão a nossas gloriosas rosetas.
Uma vez mais, portanto, utilizo a pena. Durante longos meses
me dediquei a procurar os sobreviventes, as derradeiras testemunhas
das grandes horas dêsses primeiros combates de 1914 e 1915. Con-

11
NO TEMPO
DAS
CARABINAS
PREPAREM AS CARABINAS !

Um ribombo surdo fazia tremer o chão. Sacudidelas distantes


abalavam as vidraças do lado da rua. Sem uma palavra, o tenente
Pléneau foi calçar com uma folha de jornal o caixilho especialmente
barulhento cujo betume caíra no chão.
— É o contra-ataque alemão à herdade Hurtebise, já esperado —
disse o comandante de Rose. — Nada demais senhores; continuemos.
Mantinha-se de pé atrás da sua escrivaninha. Com uma das
mãos enterrada no bôlso da blusa, fazia saltar com a outra, num
gesto maquinai, uma pequena régua de madeira que estivera em
cima dos seus papéis. Dispostos em semi-círculo à frente dêle, ouví­
amos sôfregamente a sua exposição:
— Senhores, no momento em que chegam à aviação do V Exér­
cito, fiz questão de os reunir, em primeiro lugar para lhes dar boas
vindas, mas também para lhes dizer o que espero de todos:
“Destinam-se a constituir a primeira esquadrilha de caça.
Repito: de caça. Como sabem, a aviação de caça não existe, ou
melhor, não existe ainda. Devo mesmo preveni-los de que nas altas
esferas não se acredita que seja possível a um avião procurar no
céu um adversário, persegui-lo, apanhá-lo e abatê-lo. Tanto no
Estado Maior do Exército como no Grande Quartel General, a opi­
nião é a mesma. Em tôda a parte responderam que a caça é
uma quimera. De resto, no que se refere às outras missões da aviação,
o ceticismo oficial afirma-se pouco menor. Ninguém nega que seja
fácil deixar cair uma bomba da carlinga de um avião, mas duvida-se
que isso venha a apresentar jamais o menor interêsse, a ter a menor
eficácia. Tal hipótese faz sorrir muitos artilheiros. Nunca um aero-
plano (como êles ainda dizem) poderá transportar bastantes projé­
teis, ou largá-los com suficiente precisão, de modo a substituir com
vantagem um tiro de canhão de longo alcance.

15
N o tempo das carabinas

“Mal se admite, e isso mesmo com uma reserva cheia de suben­


tendidos amáveis, que a aviação possui evidentemente olhos, dos
quais a rigôr poderá servir-se para observar o campo de batalha, ou
levar a cabo algum reconhecimento. Tem-se a bondade de nos con­
ceder que alguns dêsses reconhecimentos não foram completamente
inúteis. Os dos nossos camaradas Wateau e Bellenger, na batalha do
Marne, chegaram mesmo a dar que pensar. Mas a tanto se limita
o crédito de que presentemente goza a nossa aviação.
“Tratando-se de caça, então é um verdadeiro muro de resis­
tências, a incredulidade mais descortês, para não dizer a mais ofen­
siva e sarcástica. Digo-lhes isto, senhores, pois é necessário que conhe­
çam a atmosfera em que vão trabalhar. Tenho o dever de os escla­
recer. Sem dúvida a sagacidade, a faculdade de antecipação e de
imaginação dos nossos altos estados maiores, as suas vistas sôbre o
futuro são bastante conhecidas, e as regras da disciplina convidam-
nos a confiar nelas. Todavia, não é proibido ajudá-los nas suas
olímpicas meditações. Apresentar-lhes de vez em quando umas
boas provas não deixa de ser salutar.
“No que concerne à aviação de caça, tudo ou quase tudo está
por fazer. Decerto é preciso convir que a 5 de outubro Franz e
Quénault abateram um Aviatik, e que a 10 de janeiro último
Gilbert e seu observador, o tenente de Puechredon, repetiram essa
proeza à custa de um magnífico Rúmper, equipado com um não
menos excelente motor Mercedes de 120 cavalos.
“Estas duas vitórias foram incontestáveis. Os dois aviões ini­
migos, tendo tido a generosidade de cair nas nossas linhas, tornaram
difícil negar-lhes a realidade. Foram recolhidos. Mas isso não im­
pediu os áugures do estado maior de decretarem com plena segurança
que se tratava apenas de encontros fortuitos e inteiramente exce-
cionais, tão fortuitos e excecionais que não se podería razoàvelmente
esperar a repetição de fatos semelhantes no futuro.
“Escuso de acrescentar que nenhum dos combates até agora
travados por outros camaradas nossos acima das linhas alemãs foi
tomado em consideração. Poderia falar-lhes, por exemplo, do do te­
nente Perrin de Brichambaut, do do sargento Stribick e de seu
mecânico David, do do alferes Mahieu, e ainda do de Gilbert
(segundo combate) e de seu passageiro, o capitão de Vergenette.
Como nenhuma prova pôde ser fornecida, recusaram homologá-los.
Isto vem em abono do tema: nas altas esferas ninguém acredita
na caça. Mas eu acredito”.

16
Preparem as carabinas

Neste ponto o comandante de Rose faz uma pausa e observa-


nos com um lento olhar circular.
— Porisso os senhores estão aqui. (Nova pausa e novo olhar
em redor). Eu estou convencido de que também os senhores acre­
ditam na caça. Devo dizer que, embora nunca os tenha visto na
maior parte, julgo conhecê-los. Consultei as fichas de todos, e foi
depois dêsse exame que os escolhi. Devem ter notado que são todos,
como eu, cavaleiros. Isso não é um acaso. Aprecio o espírito do cava­
leiro. Confio nêle para realizar grandes feitos na aviação. E sei que
antes da guerra quase todos tomaram parte em corridas. É justa­
mente o que preciso. Não quero dizer que essa qualidade seja sufi­
ciente, mas digo que é necessária para o que queremos fazer. As
outras aparecerão com o tempo. Os senhores apreciam o perigo
e o jôgo: já é bastante. Espero que tenham também a vontade, a fé
e a convicção sem as quais nada de grande poderá ser realizado.
Quando digo espera, quero dizer tenho a certeza. Não são os senho­
res todos voluntários ?
Enquanto o comandante de Rose fala, examino-o atentamente.
É o homem que, com seus camaradas, os tenentes Malherbe e
Gaumont, como êle oficiais de dragões, povoou os nossos sonhos de
jovens aspirantes de cavalaria !
Antes da guerra encarnou para nós o tipo do herói lendário,
do cavaleiro do ar. Por ocasião das grandes competições dos co-
meços da aviação, em 1910, 1911 e 1912, durante o Circuito de Leste,
do Circuito da Europa, das manobras da Picardia e do Poitou, os joi-
nais andaram cheios do seu nome e das suas fotografias. Êle surgia
como o chefe incontestado daqueles três mosqueteiros do céu que,
descendo dos cavalos, haviam simplesmente retirado as esporas das
botas, virado para trás o quepe de galões de prata, com a pala
enterrada na nuca para melhor resistir à violência dos turbilhões.
Tinham-se instalado nos comandos dos primeiros aviões militares,
de pernas estendidas no váculo, sôbre êsse antepassado da boléia, que
então não passava de uma frágil barra de madeira oscilante, em tudo
parecido com um trapézio de acrobata suspenso sôbre o abismo.
Gaumont matou-se. Malherbe vi-o um dia em Saumur, em
1913; aterrissando com o seu Blériot no campo du Breil. Apalpei as
asas do seu avião. Honra insigne, Malherbe apertou-me a mão !
Evoco-o com a face magra e atormentada, olhos franzidos pela luz
do sol, alto colarinho branco, pernas delgadas, grandes botas moles,

17
N o tem po das carab in as

e, no lado esquerdo da túnica, o traço rubro da Legião de Honra.


Tenente e possuir a Legião de Honra ! Era um semi deus descido das
nuvens ! Cercamo-lo, fascinados.
Nunca, porém, vira Rose. Agora êle ali estava, diante de nós.
Contemplo-o ao mesmo passo que o escuto. De presença agradável,
sólido, um pouco menos magro que nas fotografias (os quarenta
estão próximos), a cabeça orgulhosamente erguida, cabelos loiros
apenas polvilhados de sal nas têmporas, o pé de galinha do aviador
já marcado no canto da pálpebra, os olhos garços muito abertos e
fitando-nos de frente, com esplêndida franqueza, os longos bigodes
(como se vê, falo de tempos idos) caindo à gaulesa de cada lado da
face, permanece fiel ao uniforme dos dragões, um tanto modificado
para se adaptar às obrigações da guerra. O pescoço apertado numa
gravata de fustão branco, vestindo uma blusa de grossa ratina
escura, com os quádruplos galões em V nos canhões das mangas
(única concessão feita à aviação), calças de montar vermelhas com
lista prêta mergulhando nas perneiras de campanha, a cruz de cava­
leiro da Legião de Honra usada sob a forma de fita estreita, mas,
como Malherbe dois antos antes, em tamanho natural, com a sua
estréia de esmalte branco laureada de verde meio encravada na fenda
do bôlso do peito, para não balançar a cada movimento, eis como
nos apareceu o comandante de Rose nesse quartel general do V Exér­
cito, às ordens do general Franchet d'Espérey, em Jonchery-sur-Vesle,
na tarde de l.° de março de 1915.
A partir dêsse dia, a esquadrilha de reconhecimento de exército
n.° 12, devidamente transformada em pessoal e material, tornou-se
a esquadrilha de caça M. S. 12, a nossa. Decerto continuará desem­
penhando missões de reconhecimento, mas sobretudo caçará.
Rose, com grande displicência, tratando-nos como camaradas
(e isso logo nos fêz adorá-lo,) expõe as dificuldades que encontrou
junto ao alto comando para alcançar os seus fins. Mas alcançou-os.
(Como havia de ser de outro modo, com o seu prestígio e o encanto
que irradiava a sua pessoa ?) Permitiram-lhe finalmente tomar uma
esquadrilha, equipá-la à sua maneira, para se dedicar a um treino
e fazer, se pudesse, a demonstração de que a caça não é uma quimera.
Comportaram-se lealmente com êle, pondo à sua disposição os
meios mais adequados, ou seja aviões do tipo mais rápido e mane-
jável então em uso na aviação francesa.

18
Preparem as carabinas

Êsse tipo de avião era o Morane-Saulnier, o aparelho mais veloz


do mundo. Monoplano de dois lugares, dotado de um motor Rhone
de 80 cavalos, era capaz, em pleno regime, de alcançar a velocidade
sensacional de 125 quilômetros horários, e até mesmo, com o motor
dando tudo, 127 quilômetros e meio. Ora, os aviões alemães mais
modernos (do tipo Albatroz) não iam além de 115, de modo que
havia uma margem favorável de velocidade entre dez e doze quilô­
metros. Isto parecia formidável, mas no fundo não passava de um
lôgro, considerando que se necessitaria de hora e meia para apanhar
um adversário avistado a quinze quilômetros, que tentasse salvar-se
pela fuga. Mais de cento e cinqüenta quilômetros teriam de ser
percorridos antes do combate se tornar possível. Tarefa pràticamente
insuperável, pois daria tempo a que o inimigo voltasse às suas linhas
e até mesmo aterrasse com tôda a segurança no seu campo.
O remédio, portanto, era atacar de surprêsa. Para isso era neces­
sário voar à espreita, de um lado para outro, a grande altitude, até
acabar a gasolina, utilizar as nuvens ou o contraluz para melhor
alcançar o adversário a curta distância, de improviso, e obrigá-lo a
aceitar a luta.
O comandante de Rose poisou a pequena régua de madeira que
fazia saltar na mão. Dedicou-se, tranqüilamente e sem afetação
nenhuma, a encher de loiro tabaco um curto cachimbo que tomou
de cima da mesa. Terminada a operação, meteu-o no canto da
bôca e ergueu os olhos meio fechados por um sorriso malicioso.
Tirou o cachimbo da bôca:
— Então, senhores, estão vendo bem o quadro ? É muito sim­
ples: são dois a bordo, o piloto e o observador. O primeiro leva
o avião ao contacto com o adversário, o mais perto possível, a alguns
metros, como se pretendesse uma abordagem a sabre.
“Nesse momento o observador abre fogo, empregando bem o seu
tempo e visando de preferência a cabeça do piloto. É o meio mais
seguro de abater o avião inimigo. (O sorriso do camandante de Rose
torna-se cada vez mais malicioso.) Mas afinal, abrir o fogo com quê ?
— hão-de perguntar-me. Ora essa ! com a carabina !... É uma arma
excelente e nunca encrava. Depois disto, está tudo explicado. . . não
temos outra coisa para lhes dar. As metralhadoras leves, do modêlo
usado por Frantz e Quénault, em 5 de outubro, no Voisin, aparelho
pesado e lento, não se adaptam ao vosso puro sangue, em que
tudo deve ser sacrificado à velocidade. As metralhadoras de aviação
ultra-leves, só virão mais tarde, quando fôrem inventadas. Esperamos

19
N o tempo das carabinas

que nessa altura lhes sejam distribuídas com prodigalidade, se Deus


quiser.. . e depois de Deus, o comandante Barès
“Considerando bem as coisas, uma boa carabina é o que ainda
se faz de melhor no gênero, e é preciso ser um desastrado incapaz para,
com um pente de três e a quarta no cano, não conseguir alguns lindos
tiros. Lembrem-se de que o tenente de Puechredon, quando Gilbert
o pôs em contacto com o seu Rumples, não precisou de mais de quatro
balas para o mandar ao relvado colhêr margaridas. Porque não hão-
de os senhores fazer o mesmo ?
Rose sacou o isqueiro e acendeu familiarmente o cachimbo. De
mãos nos bolsos, o queixo um tanto erguido, encarou-nos para ver
o efeito produzido. Pareceu satisfeito. Ninguém falou, mas os olhos
faiscavam de entusiasmo e orgulho. Com algumas palavras muito
simples, sem nenhuma ênfase, no tom de uma conversa banal, sem
excluir todavia o à vontade de um grande fidalgo que ao mesmo
tempo anula as distâncias e mantém o respeito, êle soube atingir
o seu auditório no ponto sensível. A partir de então, poderia pedir-
nos o que quisesse.
Ao longo da minha carreira tive oportunidade de encontrar
muitos chefes, alguns de grande valor. Poucos alcançariam a classe de
um Rose. A classe, é o têrmo que melhor lhe convém, pois êle a pos­
suía no mais alto grau. Não a tem quem quer.
Trata-se de uma qualidade inata, um dom, uma graça. Aquêles
a quem ela foi recusada, consideram prudente, para garantir a sua
autoridade, fecharem-se numa atitude fria, forjarem-se uma couraça
de metal rígido. É um êrro, e ao mesmo tempo uma confissão de
fraqueza que não escapa a ninguém. Falta-lhes a maneira, aquilo
que permite ser ao mesmo tempo admirado e temido, estimado e
obedecido. Êstes jamais conseguem dar-se ao luxo, reservado aos
autênticos fidalgos, de poder tratar por tu um subordinado sem o
melindrar, abraçá-lo cordialmente, fazê-lo rir com uma frase de
calão bem empregada, conservando-o na mais rígida posição de sen­
tido. Para êles é melhor não o tentar, pois perderíam a digni­
dade. Nunca passarão de pequenos chefes, não governando pelo
prestígio e administrando pelo temor.
(1) Nessa época remota, o chefe supremo da aviação militar francesa era apenas
um simples oficial superior de quatro galões, um comandante, o comandante Barès.
Contando-se entre os primeiros pilotos brevetados do Exército, o comandante Barès,
além disso brevetado pela Escola de Guerra, beneficiava, graças a êste título, da audi­
ência do estado maior. Isso lhe permitiu prestar inapreciáveis serviços à nossa quinta arma,
privada então de quase todo o necessário.

20
Preparem as carabinas

A essa arte de “saber comandar” o barão de Tricornot, marquês


de Rose, chefe de esquadrões de cavalaria, juntava ainda numerosas
outras qualidades. Evidentemente tinha em si as que fazem os
grandes capitães, inteligência, faculdade de julgar, a justa e rápida
avaliação das circunstâncias e dos meios, capacidade de trabalho,
espírito de decisão, golpe de vista e audácia, caráter e têmpera. Que
desgraça para a França se êsse meteoro, que atravessou o seu céu,
viesse um dia a ter a sua trajetória interrompida em pleno curso ! A
guerra ainda não acabara e iria devorar tantos futuros grandes
chefes, destruir tantos valores !
Mas quem está de pé a seu lado ? Quem é êsse capitão de
artilharia tão magro, de túnica prêta com gola vermelha e botões
de cobre onde se estampam dois canhões cruzados? Tem a face
pálida e um olhar de aço. Todavia, quando sorri, seus olhos de
um azul surpreendente irradiam a mais encantadora doçura. Tem
a magreza de um sportman ou de um asceta. Reconheço aquêle
rosto: já o vi, tenho a certeza ! Um momento procuro o seu nome,
que de repente se me apresenta:
— Le Révérend ! O capitão Le Révérend ! O artilheiro que
praticava o hipismo antes da guerra, o estudante da politécnica que
abandonou as equações e dava muita corda para fiar aos nossos
melhores cavaleiros ! Um famoso chicote, já célebre em todos os
hipódromos. Não satisfeito de ganhar nas primeiras séries, dispu­
tava até as séries extras em Auteuil. Tinha quebrado uma clavícula
numa queda no mês de junho de 1914. Que fazia êle ali ?
Que fazia ? Era muito simples: tinha passado, como era de
esperar, para a aviação. Hoje era, juntamente com o comandante
Rose, um dos mais fervorosos apóstolos da caça. Depois de ter
servido durante seis meses como oficial observador da M. S. 23,
presidira em Villacoublay ao treinamento dos pilotos da futura
M. S. 12 no temível Morane-Parasol, que êle próprio fizera questão
de aprender a pilotar. Pensara-se, um momento, em lhe confiar
o comando da esquadrilha. Mas o estado maior da aviação do V.°
Exército desejava precisamente um oficial brevetado pela Escola de
Guerra. Le Révérend era-o. Rose escolhera-o imediatamente e to­
mara-o para adjunto, certo de que lhe seria precioso. Por isso o
comando da M. S. 12 coube ao tenente Bernis.
Eu via Bernis pela primeira vez, como aliás Rose e todos os
demais que ali estavam e dos quais ia ser companheiro de armas.
Conforme tinha declarado o comandante de Rose, a maioria eram

21
N o tempo das carabines

cavaleiros. Ganha a batalha do Marne e vencidas as emoções da


corrida para o mar, uma vez cristalizada a frente êles não puderam
resignar-se à inatividade. Descendo da sela, com as botas ainda
cobertas de lama das Flandres, montaram logo o único corsel que
ainda lhes permitia penetrar mais fundo nas linhas do inimigo e
ter probabilidades de se chocar com êle: o avião.
Nessa primavera de 1915, o Exército do Ar não existia. A
aviação não dispunha ainda de uniforme próprio, tinha-lhe sim­
plesmente atribuído uma côr distintiva para as insígnias da gola e os
galões daqueles — muito raros, — que recrutou diretamente, a côr
de laranja (tango, como especificam os regulamentos). Os demais
continuavam a pertencer às suas armas de origem, infantaria, cava­
laria, artilharia e engenharia. As fardas eram também conser­
vadas. O azul-horizonte, com que alguns meses depois se iria vestir
todo o exército francês, ainda não fôra inventado, e os uniformes
permaneciam os de antes da guerra. Os calções vermelhos e as
golas multicores ainda não tinham desaparecido. Os cavaleiros
reconheciam-se pela plumagem, sendo por isso fácil de constatar
que os dragões dominavam na M. S. 12. As golas brancas prevaleciam.
Do mesmo modo que o comandante de Rose, o tenente Bernis,
chefe da esquadrilha, era dragão. Eram-no também o segundo te­
nente Robert, saído havia pouco do esquadrão de Saint-Cyr, o
segundo tenente Ferru e eu próprio. E também o jovem segundo
sargento de cavalaria, Clément, tão elegante quanto esperto piloto.
A cavalaria de linha está representada por um único couraceiro
(homem de valor), o aspirante Pelletier-Doisy com a sua gola ver­
melha. Quanto à cavalaria ligeira, a passarinhada (como era co­
nhecida em Saumur por causa da plumagem variegada e vistosa,
em que destacavam o ouro e a prata, o azul celeste, o vermelho-
íramboeza e o amarelo-limão, desde os caçadores montados até aos
spahis, passando pelos hussardos e os caçadores da África), tinha
igualmente os seus representantes nas fileiras da esquadrilha. Por
exemplo o tenente Gastin, o único além de Bernis a usar dois galões,
o segundo tenente Moinier, colega de promoção de Robert em Saint-
Cyr (dois estudantes de rostos de menino), o segundo tenente Ja-
cottet, túnicas azul-celeste, guarnições escarlates.
Apenas três, entre os pilotos, destoam neste canteiro de homens
da cavalaria. Sua farda escura apresenta distintivos de pano alaran-
jado: o ajudante-chefe Méseguich e os cabos Navarre e Bodin, vindos
diretamente para a aviação. Sua perícia no Morane-Parasol, aparelho

22
Preparem as carabinas

considerado difícil, designou-os à escolha do capitão Le Révérend,


aliás confirmada pelo comandante de Rose. Todos os homens que
aqui estão são muito jovens. Vão de dezenove a vinte anos, a idade
do entusiasmo. O mais velho dentre nós ainda não tem vinte e sete.
Peço desculpa, há uma exceção: Méseguich.
Méseguich conta quarenta e três anos. Livre de qualquer obri­
gação militar, assinou um compromisso por todo o tempo das hos­
tilidades. Arquiteto de profissão, provido de rendimentos subs­
tanciais, contava-se entre os raríssimos proprietários de um avião
pessoal antes de 2 de agosto de 1914. Êsse fato, naquela época (he­
róica), bastava já para o colocar fora do comum. Piloto habilíssimo,
viu-se atraído pelo brilho que começava a irradiar a jovem aviação
de guerra, pelo seu formidável impulso. Pediu para servir nas pri­
meiras filas, ou seja nesta esquadrilha de caça que ouvira dizer
estar sendo formada em Villacoublay. Pretensão absurda nessa
idade? T alvez... mas porque não, com aquêle olhar? O coman­
dante de Rose, consultado, observara aquêle olhar e compreendera-o.
Méseguich foi aceito e lutaria conosco. E não haveria motivos para
o lamentar.
Por agora, naquela sala de casa burguesa de cabeça de distrito,
transformada em sede de estado maior, iluminada por quatro lâm­
padas com quebra-luz de papelão verde, atulhada de mesas e
arquivos, os quinze homens que lá estão comungam no mesmo entu­
siasmo e na mesma determinação. Sim, a caça era possível ! Subir
num avião cujo motor suficientemente esforçado podería atingir 127
quilômetros à hora, era coisa para abrir possibilidades ilimitadas,
perspectivas fabulosas. Sim, apanharíamos todos os Rúmpler, todos
os Aviatik e todos os Albatrozes do mundo ! Abordaríamos cada um
dêles, e com três balas de carabina os mandaríamos todos para o
chão. Era uma brincadeira de crianças ! Como seria possível duvidar
quando um comandante de Rose nos dava essa certeza, e nós
mesmos nos sentíamos cheios de fé, de fôrça e de impaciência ?
l.° de março de 1915. . . entre esta data e aquela em que escrevo
estas linhas, decorreram quarenta anos. Quarenta anos !. .. De
quinze que éramos então, quantos somos hoje ? Mal me atrevo a
dizê-lo. . .
O Destino já fêz a sua escolha. Imprimiu a estréia invisível na
fronte daqueles que pretende levar, marcou o dia e a hora — sem
dúvida muito próximos. Ninguém o sabe. Todos os olhos estão
vendados, todos os lábios sorriem.

23
N o tempo das carabinas

O canhão prossegue o seu ronco para além das vidraças. A estufa


de lenha tem uma côr esbraseada, o frio lá fora é grande. Há luta
nas alturas do Chemin-des-Dames, no planalto de Craonne. O
comandante de Rose sacode a cinza do seu cachimbo e torna a pousá-
lo em cima da mesa.
— Tenho dito, senhores. Bernis, aqui tem esta pasta. São os
relatos detalhados das vitórias de Frantz e de Gilbert. Mande-os ler
pelos seus homens, pois estão cheios de informações preciosas. Que
todos se compenetrem delas.
Ao passar diante de nós, sempre dispostos em semi-círculo, aperta-
nos a mão pela ordem, fitando-nos bem nos olhos.
— Agora até à vista ! Os senhores vão para o seu acampa­
mento de Champigny-sur-Vesle. Em breve irei visitá-los. Até lá,
ao trabalho!
E termina com esta frase que não mais nos esquecerá, que se
instalará na nossa alma, na nossa carne, acompanhando-nos por tôda
a parte, tanto em terra como nas maiores alturas, a bordo dos nossos
aviões. Ela vai tornar-se o estribilho, a própria divisa da esquadrilha
M. S. 12:
— É ir até ao fim e até ao fundo ! E nunca se esqueçam dêste
grande princípio que jamais engana: Quem ousa, vence!
“Vamos, senhores, para a caça; e preparem as suas carabinas !

24
O PRIMEIRO DE TODOS OS
COMBATES AÉREOS

Ao quadragésimo sétimo cartucho a metralhadora encrava.


Então, sem perder a calma, o mecânico-metrálhador põe-se de pé, mal­
grado as tremendas oscilações, e tenta consertá-la. Tranquilamente,
começa a desmontar a culatra móvel. Justamente nesse instante. ..
Esta é a passagem que eu nunca esqueci do relatório oficial do
combate em que se empenharam o sargento-pilôto Frantz e o mecâ­
nico Quénault, a 5 de outubro de 1914.
Êste relato todos nós o lemos e relemos, depois que, no dia
seguinte ao da nossa chegada a Champigny-sur-Vesle, a 2 de março de
1915, o tenente de Bernis nos fêz dêle a primeira leitura.
Reunidos no salão de inverno dessa vila abandonada que ia
servir-nos de acantonamento, ouvimos, não sem freqüentes inter­
rupções entusiásticas ou interrogativas, os comentários de Bernis sôbre
o primeiro combate aéreo do mundo. Detalhe especialmente emo­
cionante para nós, as peripécias dessa luta tinham-se desenrolado
exatamente sôbre Champigny-sur-Vesle. nas proximidades de Reims,
para ir acabar da maneira dramática perto de Jonchery, quartel-
general do V Exército, ou seja o mesmo lugar onde na véspera o
comandante de Rose nos recebera. O V Exército podia gabar-se
de ter sido o teatro escolhido pelo acaso para êsse duelo aéreo que
se tornaria histórico pela circunstância de haver sido o primeiro.
Depois, bem mais tarde, tive oportunidade de encontrar o prin­
cipal protagonista da aventura, Frantz, e de o interrogar. Frantz
pertencia ao número dos que lograram atravessar quase milagrosa­
mente os quatro anos de guerra. Por isso me é possível reviver em
seus menores detalhes êsse memorável embate.

25
N o tempo das carabinas

Hoje é segunda-feira, dia 5 de outubro de 1914. São oito horas


da manhã.
Êsse biplano de asas brancas que passa a 2.000 metros sôbre
Reims ostenta as côres francesas. Regressa das linhas alemãs. O céu
está completamente limpo, com apenas uma ligeira névoa de outono,
muito rala, que não chega a perturbar a visibilidade quer em terra,
quer em vôo. Porisso todos os olhares acompanham com interêsse
o aparelho brilhante, tanto das trincheiras alemãs como das francesas.
Os aviões são ainda muito escassos neste tempo. O espetáculo das
suas evoluções é uma distração sempre apreciada, sobretudo em
setor de pequena atividade. Cada um distrai-se como pode. Das
aldeias e dos acantonamentos observa-se do mesmo modo o aparelho
todo branco. Mais alguns minutos e êle terá alcançado o campo
de aviação de Lhéry, onde é esperado.
Trata-se de um Voisin da esquadrilha V 24, sob o comando do
capitão André Faure. No seu leme de direção tricolor ostenta orgu­
lhosamente o número 89, orgulhosamente porque êsse avião conta
já em seu ativo alguns duros golpes e diversas missões difíceis. A
sua tripulação é uma das melhores da esquadrilha, considerada das
mais entusiásticas e audaciosas: piloto, sargento Frantz; passageiro,
mecânico Quénault. Hoje êles voltam de bastante longe. Foram
lançar alguns obuses de 90 sôbre as concentrações inimigas assinaladas
atrás do forte de Brimont. Estão satisfeitos com o bombardeamento.
Bombardeamento ? Os artilheiros, desdenhosos, encolhem os ombros.
Não têm visor (x). Não têm derivômetro. Não têm dispositivo lança-
bombas. Nada. Estamos no b-a-ba do ofício. Trabalha-se “a bel-
prazer”. Quando a tripulação entende, pouco mais ou menos, que
se encontra em cima do objetivo, o passageiro lança despreocupa-
damente as bombas pela borda do avião, uma após outras. Até aí
tinha-as debaixo dos pés, no soalho da carlinga. Vizinhança perigosa,
êsses engenhos têm quase sempre mau aspecto, cara patibular, com
o seu perfil arqueado, a côr esverdeada, entranhas ameaçadoras. Re­
tirados os pinos, são capazes de nos fazer uma sujeira. É bom a
gente livrar-se dêles, jogá-los fora. Estarão melhor lá em baixo do
que aqui em cima. São passageiros indesejáveis !
Lá vão êles ! Durante alguns décimos de segundo cambaleiam
no vácuo em redor do seu centro de gravidade, depois ajeitam-se em1
(1) Os tripulantes, no momento de lançar as bombas, utilizam, para apontar,
o sistema chamado dos três pregos, imaginado pelo capitão André Faure. Consistia em
três pregos fixados no rebordo da carlinga, a intervalos calculados para desempenharem
o papel excessivamente sumário de mira, à altitude de 2.000 metros.

26
O prim eiro de todos os combates aéreos

vertical, com o ruim focinho em ogiva apontado para o chão, as


longas orelhas de chapa de alumínio erguidas para o céu na parte
traseira (em 1914, os obuses lançados de avião já dispõem de
aletas) (x). Acabou-se. Não há mais nada a fazer. As leis bem
assentadas da balística e da dispersão, e as menos conhecidas da sorte,
tomam agora conta dos projéteis e encarregam-se de os conduzir ao
seu destino. Elas que se arranjem para dar a êsse tiro um aspecto con­
veniente. Frantz e Quénault têm apenas de regressar.
A D.C.A. alemã jogou corretamente. O serviço de recepção
funcionou. Algumas “marmitas”, de fumaça negra ou fumaça
branca, rebentaram em certos pontos do céu em redor do Voisin, a dis­
tância demasiada para ser perigosa, mas bastante perto para serem
lisonjeiras. Gentileza elementar. Saudação ao adversário. Afinal,
não é possível deixar que um estranho penetre em nossa casa, sem ao
menos dar a entender que o vimos.
Frantz e Quénault observam em redor a imensidade do espaço.
Talvez o acaso lhes proporcione, naquelas paragens, um aparelho
alemão. Sendo embora bombardeiros, Frantz e Quénault têm con­
tudo alma de caçadores furtivos do ar. Não concordam com a opi­
nião geralmente difundida de que é impossível a luta entre dois
aviões. Se houver vontade, pode-se chegar a isso !
Há dois meses já que a guerra começou (quanto tempo durará
ela ?) e ainda ninguém ouviu falar de um combate aéreo digno
dêsse nome. Também não é de admirar: os aviões são tão poucos,
tanto do lado francês como do lado alemão (12), que os embates só
podem ser extremamente raros. Naturalmente sucedeu que durante
a batalha da Lorena, no mês de agosto, mais ainda durante a batalha
do Marne, em setembro, e especialmente agora que a corrida para o
mar atingiu o auge, sucedeu que aviões de rosetas tricolores ou de
cruzes negras se encontraram nas mesmas altitudes e na mesma
ocasião sôbre os mesmos setores; e em certos casos passaram muito
perto uns dos outros.
Episódios fortuitos que em geral apanham de surprêsa as guar­
nições. Quer a lenda que nestas oportunidades pilotos e passageiros
se tenham observado não apenas sem procurar hostilizar-se, antes
(1) Graças a Gabriel Voisin, seu realizador.
(2) Exatamente 156 aviões franceses e 63 aviões inglêses (total 219 aparelhos aliados
na frente ocidental) opostos a 192 aviões alemães. Os alemães dispunham além disso de
66 aparelhos ocupados na frente russa. Convém não esquecer que a partir de agosto de
1914, a Alemanha teve de lutar simultâneamente em duas frentes.

27
N o tempo das carabinas

testemunhando uma esportiva cortesia, saudando-se com um aceno


de capacete, até mesmo com um gesto de mão, como é costume
de carro para carro entre pessoas de sociedade.
Que hão-de êles fazer ? Que podem uns contra os outros ?
A realidade é diferente. É provável que tais casos se hajam
produzido, mas raramente. Na maioria das vezes as tripulações obser­
vam-se com curiosidade, sem se comunicarem por gestos. Tomam
nota do tipo de avião do adversário e dos lugares do piloto e do
passageiro relativamente um ao outro, das disposições de bordo,
reparam se o motor estava na frente ou atrás, se munido de hélice
de tração ou propulsiva. Tentam calcular a velocidade provável do
aparelho inimigo, e mais nada. Cada qual regressa ao seu campo e
faz o seu relatório.
Foi assim que se deram quase todos os encontros aéreos. Não
todos, porém. Havia de longe em longe exceções. Se os aparelhos
não estavam armados para o combate, ao menos as tripulações
levavam a bordo armas portáteis, com o único fim de se defenderem
no chão, em caso de descida forçada nas linhas inimigas, carabinas
ou mosquetões, revólveres, etc.
Daí a que alguns passageiros de temperamento agressivo resol­
vessem utilizá-las no decurso de rápidas evoluções, distava apenas
um passo. E êsse passo foi transposto. Mas tais episódios não mere­
ciam o nome de combates. A troca de uma ou duas balas incertas a
distância exagerada, e à velocidade média de duzentos quilômetros
horários (somando-se as duas velocidades), só podia ser estéril.
Aconteceu todavia que nos primeiros dias da guerra um piloto, o
tenente Levassor, pertencendo justamente à esquadrilha V. 24, expe­
rimentou o fogo de um avião alemão encontrado ao norte de Mé-
zières. Chegou mesmo a receber a bala no aparelho, que se cravou
na madeira do seu assento, a poucos centímetros das suas costas. Mas
a verdadeira guerra aérea ainda não tinha começado.
Isso não impediu a imaginação popular, sempre disposta ao
maravilhoso e pronta a tomar os seus desejos por realidades, de
se expandir em nuvens de fabulosas proezas. Chegou a correr o
boato (e uma parte da imprensa acolheu-o benèvolamente, dando-lhe
foros de verdade ao publicar a notícia), de que a 3 de agosto de 1914,
com a guerra declarada poucas horas antes, o aviador Garros, o
grande, o famoso Roland Garros, ao deparar com um zepelim sôbre
Nancy, não pudera conter a sua bravura e espírito cavalheiresco.
Correra sôbre êle com o seu avião, esporeando-o e arrombando-o

28
O prim eiro de todos os combates aéreos

voluntàriamente. Garros e o zepelim, engalfinhados, tinham acabado


por se espatifar numa terrível queda perto de Lunéville. Assim teria
perecido, logo nos primeiros dias da guerra e de maneira heróica,
o mais prestigioso piloto da nossa aviação. Mas o seu sacrifício
não seria em vão, pois salvava milhares de existências francesas.
Ora, a notícia era inteiramente destituída de fundamento, inven­
tada em todos os seus pormenores. Onde nascera ela e quem seria
o seu autor ? Mistério insondável de todas as guerras e de tôdas as
grandes agitações psicológicas, em tôdas as partes do mundo. Sempre
aparecem assim, vindos da massa, os boatos mais sensacionais e inve­
rossímeis.
Frantz e Quénault, espíritos muito ponderados, faziam então
parte das poucas tripulações de temperamento combativo capazes de
utilizar as suas carabinas quando a ocasião se apresentasse. Sua
ausências de civilidade não fôra recompensada ainda, não tinham
nenhuma peça na sacola, porém meditavam e trabalhavam, decididos
a forçar o destino. Se um dia a sua constância fôsse coroada por uma
vitória, esta não deveria ser inteiramente creditada ao acaso.
O fato de haverem tido por duas vêzes ocasião de abrir fogo
com um mosquetão de cavalaria sôbre aviões alemães (aliás sem resul­
tado), convencera-os de que a oportunidade sem dúvida se tor­
naria a apresentar, ainda que a não buscassem. Mas qual era o avião
que êles tripulavam ? Que vantagens lhes oferecia ? Que valia um
Voisin para travar um combate aéreo ? A resposta a dar continha
alguns prós e alguns contras, muito mais contras do que prós. Apa­
relho pesadíssimo, o mais pesado dos que estavam em serviço, o
Voisin estava longe de ser um cavalo de raça. De modo algum
podia aspirar ao papel de corsário dos ares, ou a correr em perse­
guição dos adversários avistados em céu distante, para lhes dar
combate.
Concebido por um construtor de idéias práticas, Gabriel Voisin,
êle surgia em sua fórmula como uma notável antecipação, dando
provas de um avanço considerável sôbre a maioria dos aviões do
mundo inteiro. De armadura inteiramente metálica (o que era exce-
cional) feita de um conjunto de tubos de aço, sob telas bem refor­
çadas embebidas num verniz com base de ripolim que o protegia
contra as intempéries, oferecia a particularidade de possuir uma car-
linga montada sôbre quatro rodas, duas das quais munidas de freios,
como um verdadeiro automóvel. Tôda a parte dianteira, grande­
mente espaçosa se comparada à carlinga de qualquer outro avião,

29
N o tempo das carabinas

era destinada à tripulação. Piloto e passageiro ficavam instalados


como num autêntico balcão aéreo dando para o abismo, sem nenhum
obstáculo para lhes tolher as vistas. O piloto tinha lugar à frente,
protegido das correntes de ar por um “pára-vento”, enquanto o passa­
geiro se acomodava atrás, num tamborete. A comunicação entre pi­
loto e passageiro, tão importante em vôo, era assim facilitada ao
máximo. Podiam trocar impressões sob o barulho da hélice, falando
da bôca para o ouvido. Não se perdia uma única sílaba.
As quatro asas do grupo moto-propulsor eram inclinadas para
trás em relação ao habitáculo. A potência do Canto-Unné, motor
fixo de sete cilindros em estréia, subia a 110 c. v., fôrça já respeitável
em 1914, mas ainda insuficiente para arrastar a grande velocidade
uma célula tão pesada cuja superfície armada alcançava pelo menos
cinqüenta metros quadrados. O Voisin levava vinte e cinco minutos
para subir a 2.000 metros. Atingida essa altitude, deslocava-se hori­
zontalmente a 90 ou 100 quilômetros à hora.
Tal como era, sólido, tôsco, suscetível de se agüentar com qual-
que tempo, capaz de levar muito pêso e de ficar no ar cêrca de
cinco horas, bastante manejável e alcançando uma velocidade consi­
derável para a época, o Voisin classificava-se como um avião militar
de primeira ordem. A nação podia ser grata a Gabriel Voisin por
havê-la dotado de um tal engenho nas vésperas da guerra. Podia
ser utilizado tanto em reconhecimentos como para a observação
dos campos de batalha e para a fotografia aérea, quando esta, ainda
no limbo, viesse a nascer. Estava enfim acima de qualquer aparelho
predestinado ao bombardeio, que começava a interessar cada vez
mais, apesar do ceticismo dos começos. Em todo o caso, não se podia
pensar em utilizá-lo na caça. Se a sua velocidade fôsse de mais uns
25 quilômetros, e êle um pouco mais fácil de manejar, então o
Voisin tornar-se-ia o indiscutível rei dos ares. Mas não era.
Tudo isto o sabiam melhor que ninguém o sargento Frantz e o
mecânico Quénault. Haviam conversado muitas vêzes sôbre o
assunto, e um ponto especial fôra objeto das suas cogitações, que lhes
parecera de bastante importância. E era-o com efeito: visto o
Voisin oferecer a dupla vantagem de carregar mais pêso e dispor
de uma carlinga de vista ampla, porque não lhe adaptar uma
metralhadora ? A coisa afigurava-se muito simples. O que uma
carabina não lograra realizar com os seus dois ou três cartuchos, con­
segui-lo-ia fàcilmente uma metralhadora vomitando poderosas rajadas
de balas. Passasse um avião alemão ao seu alcance, e haviam de ver !

W
O prim eiro de todos os combates aéreos

Frantz e Quénault não poderíam pensar no domínio do adver­


sário em corrida: perfeitamente; mas que um deles se deixasse
surpreender a distância conveniente, ou cometesse a imprudência,
desdenhando o Voisin de marcha venerável, de vir contemplá-lo de
perto, ou simplesmente de rondar nas suas proximidades, nas suas
águas territoriais como dizia Frantz, e então ambos se explicariam. E
a explicação prometia ser breve e concludente.
Ousar, em setembro de 1914, sonhar com uma metralhadora a
bordo de um avião, isto nos primeiros dias da guerra, que absurdo !
Pois Frantz e Quénault não só se atreveram a sonhar, como che­
garam a falar nisso. Afirmaram que o Voisin se prestava admirà-
velmente para uma experiência. Se o Capitão Faure, chefe de
esquadrilha, aderisse à idéia, a causa estava ganha.
E estava-o tanto mais que Faure, artilheiro saído da Politécnica
e passado para a aviação, espírito curioso e inventivo, já havia
refletido nesses problemas muito antes da guerra. Considerara que
se as hostilidades viessem a romper um dia, como o faziam prever
claramente os acontecimentos, a aviação militar representaria nelas
um papel importante. Ora, possuindo a Alemanha por seu lado
esquadrilhas de valor e perfeitamente treinadas, era fatal que os
aviões seriam levados a combater-se. Armar os aparelhos franceses
afigurara-se-lhe uma providência elementar. A aviação que dispusesse
de uma potência de fogo superior à do adversário, em rapidez de tiro
e em alcance, teria grandes probabilidades de conseguir o domínio
do ar. Era indispensável, quanto antes, construir a arma necessária,
capaz de abater com um só tiro, à maior distância possível, o avião
inimigo. Portanto, um canhão.
O capitão André Faure, instrutor do Campo de Châlons, pusera-
se em contacto com Gabriel Voisin, êsse homem de gênio, êsse extra­
ordinário mecânico cujas luminosas exposições o tinham impressio­
nado. Depois de discutir com êle traçara o ante-projeto de um
canhão automático de 30 mm., lançando, com grande velocidade ini­
cial, um obus explosivo suficientemente poderoso para estilhaçar a
célula de um avião. O pêso, a estrutura e sobretudo o recuo da
peça não deveríam alterar o equilíbrio de um biplano Voisin.
O foguete percussor do obus foi deixado para mais tarde. A
sua realização foi confiada ao próprio irmão do capitão Faure, arti­
lheiro como êste, o capitão Jean Faure, adido ao Serviço Técnico da
Aviação.

n
N o tempo das carabinas

O capitão Faure enviara então ao Ministério da Guerra, pelas


vias hierárquicas, uma relação a respeito do estudo de um canhão
aéreo. Estava-se no mês de fevereiro de 1914. O relatório deve ter-se
arrastado lentamente pelas numerosas repartições, porque a resposta
só à 2 de julho chegou ao seu autor, então em serviço no Centro de
Ensaios da Aeronáutica, em Reims. A resposta era, e ficará para
sempre, sensacional. Conservará através dos tempos o seu viço, o seu
deleitável perfume, como prova da clarividência e da capacidade de
antecipação do Estado Maior daquela época. O capitão Faure,
com tanto espírito quão pouca indulgência, fêz questão de a con­
servar. Ei-la em seu texto integral:
Trabalho muito interessante, denotando da parte do oficial que
o concebeu uma disposição para a pesquisa que merece ser encora­
jada, mas que pertence muito mais a Júlio Verne do que à realidade.
A guerra aérea prevista, está ainda muito longe de produzir-se.
Trinta dias depois, os aviões franceses e alemães trocavam em
pleno céu os seus primeiros tiros de carabina.
De modo que o capitão André Faure estava muito particular­
mente preparado a interessar-se pelo pedido do sargento Frantz e do
mecânico Quénault, quando êstes vieram expor-lhe a idéia da me­
tralhadora. Além do mais, havia a história da bala recebida em seu
avião pelo tenente Levassor! A V 24 tinha a gentileza a retribuir.
Faure continuara em relações de amizade com Gabriel Voisin,
cujo temperamento generoso e entusiástico o levava a interessar-se
por tôdas as concepções audaciosas. Animado de um espírito volunta­
rioso que nenhum obstáculo enfraquecia, Gabriel aderiu imediata­
mente à idéia. Não havia dúvida, o Voisin seria equipado com
uma metralhadora ! O espaço da carlinga era suficiente. Devia
existir com certeza um tipo de metralhadora leve cujo cano, bastante
curto, permitisse utilizá-la a bordo. O Voisin agüentaria fàcilmente
êsse peso suplementar.
Gabriel Voisin era ao contrário de um veleidoso, um realizador.
A prática dos negócios com o Estado informara-o sôbre a sua lentidão.
O capitão Faure, por seu lado, acabava de ter a prova do acolhi­
mento reservado, nos gabinetes do Estado Maior, aos inventores e
aos seus projetos. Se quisessem recorrer aos meios normais, o estudo
talvez fôsse empreendido daí a quatro ou cinco meses, os relatórios
dos centros de experiência entregariam os seus resultados três meses
depois, e a solução viria Deus sabe quando ! Tinha-se de contar

32
O prim eiro de todos os combates aéreos

pelo menos com um ano para que as coisas andassem, e as tripulações


da frente tivessem a satisfação de ver chegar a primeira metralhadora
a bordo de um Voisin. Felizmente existiam outros recursos no ma­
tagal dos encaminhamentos.
Gabriel Voisin conhecia-os miudamente. As usinas Hotchkiss
fabricavam metralhadoras leves destinadas à infantaria. Após um
entendimento entre o capitão Jean Faure e o Serviço de Armamento
do Campo Entrincheirado de Paris, Gabriel Voisin dirigiu-se, num
automóvel, às usinas Hotchkiss e pediu a entrega de sete metra­
lhadoras de calibre 7, do tipo das de infantaria, com os pentes cor­
respondentes. Colocou o material a seu lado, no assento, e levou-o
consigo.
Três dias mais tarde tinha sido desenhado, e logo em seguida
construído um tripé de tubos de aço, montado e experimentado na
oficina, na carlinga de um avião. Era perfeito. Adaptando-se por
meio de três dobradiças de ferro à parte dianteira da fuselagem, en-
quadradava o busto do piloto sem o incomodar e suportava sôbre a
sua cabeça uma forca movediça girando em tôrno de um eixo vertical
onde encaixava o munhão da metralhadora. O passageiro podia
apontar e disparar num campo de tiro completamente livre pela
frente, cuja amplitude alcançava a meia esfera.
No quarto dia, 18 de agosto, Gabriel Voisin, incansável, apre­
sentou-se de repente guiando uma camioneta, no campo de Villers-
Semeuse, às portas de Mézières-Charleville, onde estava então a es­
quadrilha V. 24, em frente à Bélgica. Acompanhado de um contra-
mestre, percorrera 260 quilômetros para ganhar tempo e levar dire­
tamente ao capitão André Faure seis metralhadoras com seus tripés,
carregadores e as correspondentes munições, em quantidade abun­
dante.
Na mesma tarde, os seis Voisins da esquadrilha ficaram armados.
Os pilotos e mecânicos, com os aviões no solo, experimentaram ao
entardecer as Hotchkiss, disparando algumas rajadas contra o talude
da estrada de ferro que beirava o terreno. Uma vez mais, Gabriel
Voisin e o capitão André Faure se mostraram notáveis realizadores,
vencendo todos os obstáculos com que se teriam chocado tempera­
mentos menos entusiastas que os dêles.
Todos os obstáculos ? Não, nem todos. Restava um que André
Faure, cartesiano e politécnico hábil em deduções deveria esperar,
considerando a resposta dada quinze dias antes da guerra ao seu
projeto de canhão para avião: a incompreensão, o ceticismo.

33
N o tem po das carabinas

Êsse obstáculo ia surgir imediatamente e da maneira mais absur­


da. É lícito consigná-lo neste relato, pois êle tem o seu lugar na his­
tória da aviação militar, lançando uma luz pitoresca sôbre a incredu­
lidade dos áugures do estado-maior a respeito das possibilidades da
aviação e das circunstâncias em que as tripulações seriam enviadas
à luta.
A esquadrilha V. 24, como todas as suas irmãs, ia ter de conduzir
a reconhecimentos aéreos oficiais de tôdas as armas, brevetados pela
Escola de Guerra, com um estágio de treinamento em avião no
campo de Châlons, o que era uma medida muito acertada. Os ofi­
ciais observadores adidos ao V Exército tinham sido reunidos em
Mézières sob as ordens de um deles, oficial superior, o comandante
C. . . O capitão Faure dependia dêsse oficial para tudo o que con­
cernia ao emprêgo tático da sua esquadrilha no domínio dos reco­
nhecimentos.
Ao saber que os aviões da V. 24 acabavam de ser armados com
uma Hotchkiss, o comandante C . . . ficou furioso e intimou o ca­
pitão Faure a desmontar e retirar imediatamente das carlingas todos
os aparelhos.
— Não, meu comandante ! — replicou Faure.
— É uma ordem que lhe dou !
— Não a executarei. O senhor não pode dar-me ordens. . .
— Mandarei prendê-lo. . .
— Perfeitamente, meu comandante. Considero-me prêso.
— Faure, seja razoável! então não vê que com essas metralha­
doras os seus pilotos vão ter apenas uma idéia, de correr sôbre os
aviões inimigos ? Ninguém mais se preocupará com os itinerários
que eu der e os reconhecimentos não terão mais valor !
— Meu comandante, se os reconhecimentos não fôrem correta­
mente executados, dou-lhe o direito de me resposabilizar por isso e de
me prender. Mas o senhor não pode dar-me ordens no que respeita
ao arranjo do meu material !
Conflito ridículo, que seria resolvido com mais inteligência pelo
coronel Ganter, comandante da Aeronáutica do V Exército, cujo
Q. G. estava então instalado em Rethel. A esquadrilha V. 24 conser­
varia as metralhadoras. Seus aviões voariam como decidira o capitão
Faure, cada qual armado de uma Hotchkiss. O comandante C ...
perdeu o seu latim, e, como bom jogador, resignou-se. Mas êste
incidente reforçava o do relatório sôbre o canhão de 30 mm. nos
gabinetes do Ministério da Guerra.

34
O prim eiro de todos os combates aéreos

Dois dias depois travava-se a batalha de Charleroi. Em seguida


vieram os grandes acontecimentos do fim de agosto e do mês de
setembro, a retirada, o contra-ataque de Guise coroado de êxito,
a batalha do Marne, a aparição das primeiras trincheiras e a crista­
lização da frente.
Como seus camaradas de esquadrilha, o Voisin n.° 89 tinha
voado sem parar, planando, riscando o céu, totalizando numerosas
horas de vôo.
*
Hoje, 5 de outubro de 1914, êle passa a 2.000 metros sôbre Reims,
nas mãos de Frantz e Quénault.
Os olhos dos dois homens sondam com intensidade o espaço em
redor. Há quarenta e seis dias que passeiam pelo céu a famosa metra­
lhadora tão rudemente cobiçada, na esperança sempre desfeita mas
sempre renovada de travar enfim um combate decisivo. Debalde. O
inimigo parece agora fugir ao Voisin. Terão de regressar ainda
uma vez ao campo sem queimar um cartucho.
Frantz e Quénault não falam. Não necessitam falar. Sabem o
que pensam. Ambos representam já essa entidade maravilhosa que
vai pouco a pouco formando os alicerces sôbre que será edificada a
aviação, com os seus atributos de paciência, coragem, mútua dedi­
cação, solidez e fé no êxito: a tripulação. Êles representam a tri­
pulação no mais amplo sentido da palavra, e no mais alto ponto dêsse
título — porque é um título.
Frantz, com o seu rosto imberbe de vinte e dois anos, é já um
velho piloto, um dos do comêço. O seu brevet data de janeiro de
1911. Mas na realidade êle começou a voar em 1910, em Mourmelon,
no monoplano Hoecklin. Pertence à falange da idade heróica, a dos
meetings de Buc, de Lyon e de Reims, onde multidões enormes iam
aclamar os primeiros homens-voadores, delirar de entusiasmo quando
Latham bateu o recorde erguendo-se à espantosa altitude de 155
metros, Henri Farman o da distância em circuito fechado logrando
girar durante três horas a uma velocidade irrisória em redor dos pi­
lares da pista, voando a um metro do chão, tão baixo que os comis­
sários do Aéro Clube de França tiveram que ficar deitados de bruços
para se certificar de que as rodas do avião não tocavam em terra, o
que desqualificaria o concorrente.
Primeiros saltos emocionantes da aviação. Primeiros balbúcios
dos primeiros motores leves. Os pilotos faziam então o papel de

35
N o tem po das carabinas

pioneiros fabulosos, de homens destemidos, cavaleiros dos ares. Aven­


turavam-se no abismo em aparelhos vertiginosos cujo aspecto dava
arrepios. Frágeis como asas de libélulas, feitos de três sarrafos de
madeira e dois pedaços de tela, o menor sôpro de vento os punha
de pernas para o ar. O seu motor era demasiado fraco para resistir
aos mais modestos remoinhos. Freqüentemente o aparelho oscilava
e vinha espatifar-se no chão. A habilidade e o destemor ainda não
permitiam lutar com êxito contra as forças cegas do elemento mais
pérfido e mais misterioso: o ar. Quantos acidentes mortais se
verificaram.
Aos dezenove anos, Frantz tomara parte nessas competições, a título
de segundo piloto, pelo construtor de aviões Robert Savary instalado
em Chartres. O piloto chefe Maurice Level matara-se no concurso de
Reims, e êle substituira-o no perigoso posto. Depois fôra chamado
a prestar o serviço militar —na aviação, evidentemente. Foi aí que a
guerra o encontrou.
O caso de Quénault era mais simples, Mecânico da firma Labor-
Aviation, construtora dos motores com que se equipavam os biplanos
Savary, fôra enviado a esta última casa para trabalhar na montagem
dos grupos moto-propulsores nas células. Assim o encontrara Joseph
Frantz. Uma sólida amizade se firmou entre os dois jovens. Frantz
conseguiu trazer definitivamente Quénault para a usina Savary, e
quando da mobilização de 2 de agosto, acabou, não sem alguma
dificuldade, levando-o como mecânico-navegante para a mesma
esquadrilha que êle. Confiança e admiração recíproca pelas respec­
tivas qualidades profissionais não tardaram a ligá-los, e voaram
muitas vêzes juntos.
A 13 de setembro, Frantz recebeu a Medalha Militar com a
seguinte citação:
Por decisão ministerial datada de 13 de setembro de 1914, a
Medalha Militar foi conferida ao sargento Frantz, piloto aviador,
pelo conjunto de serviços prestados desde o comêço da campanha.
Os reflexos de Frantz e Quénault tornaram-se complementares.
Os poucos encontros que tiveram com aviões alemães despertaram
nêles a mesma reação, suscitaram o mesmo desejo: encontrar um
meio que lhes permitisse travar combate com o máximo de probabi­
lidades de sucesso, isto é, com uma potência de fogo superior à do
adversário.

36
O prim eiro de todos os combates aéreos

Agora êsse sistema foi encontrado, realizado. Está nas mãos dêles,
há quarenta e seis dias.. .

Pronto, o vôo está no fim, é preciso voltar! O céu está vazio.


Esta manhã não aparecerá mais n a d a ...
Não, o céu não está deserto ! Frantz acaba de estremecer. Sua
vista é excelente, seu olhar penetrante. Que mancha branca é aquela
que parece mover-se por baixo dêles, à direita, não muito longe ?
Havia instantes que, levado por uma feliz inspiração, Frantz deixara
de observar a abóbada ilimitada do céu. Quem está a 2.200 metros
precisa olhar também para baixo, onde igualmente é possível desco­
brir aviões voando a menor altura. Até mais numerosos, talvez. ..
É outono. A paisagem assumiu tonalidades neutras, côres mais
carregadas, o verde dos prados mudou-se em pardo-acinzentado, e os
bosques, as linhas de árvores, as sebes apresentam manchas amarelas,
pinceladas de cobre; os caminhos ainda úmidos de chuva da vés­
pera, brilham como a ardósia dos telhados. Os caniços das lagoas
e dos brejos da Vesle começam a mirrar. Por tôda a extensão dos
campos vão surgindo, dia após dia, retângulos de um pardo-violeta.
Cada vez se notam mais. É o tempo da lavra e das sementeiras.
Mesmo nas proximidades imediatas da frente de batalha os campo­
neses trabalham — êles ou suas mulheres. Vista de avião a paisagem
mostra-se complicada, variegada, de uma enorme confusão de tons,
retalhada como umá fantasia de arlequim. Tudo nela se baralha
e mistura caprichosamente.
Que mancha é essa avistada ainda há pouco ? Será um trecho de
estrada que deu a impressão de mover-se ? Uma dessas ilusões de ótica
tão freqüentes em avião, provocada pelas vibrações do motor ?. . .
Não, lá está ela outra vez ! Desloca-se, não há que ver. .. Vai pas­
sando, muito branca, reta como um curto traço de giz feito a régua,
por cima de um campo lavrado. Revela-se agora: é um avião, um
biplano!
Frantz exulta. Dá grande cotovelada no joelho de Quénault, e
voltado para êle a meio perfil, grita ao vento:
— Um alemão !
O braço estendido aponta a mancha clara. É um avião alemão !
Biplano de fuselagem de tela, não há um único aparelho francês
dêsse tipo. Não é um Voisin, nem um Maurice Farman, nem um
Henri Farman. Todos os demais aviões nossos são monoplanos, o

37
N o tem po das carabinas

Blériot, o Morane, o Deperdussin, o Esnault-Pelterie. Não pode


subsistir dúvida.
Frantz lançou o motor a pleno regimen. O Voisin não foi feito
para caçar, porém uma vez não é costume e as circunstâncias são
favoráveis. O alemão não está longe, talvez a uns oitocentos metros,
sua rota cruza a dos franceses e sobretudo voa mais baixo do que
êles. Esta última circunstância vai permitir a Frantz pôr o seu avião
em pique, e aumentar-lhe assim a velocidade de 100 para 120, ou
mesmo para 130 quilômetros por hora. Êle está certo de poder
alcançar o adversário.
Não completamente certo ! Há um detalhe inquietante: o avião
alemão navega em direção ao norte, regressa às suas linhas, que ficam
muito perto. Lá está o vale Aisne, as alturas do Chemin-des-Dames,
o esporão de Craonne. O emaranhado das trincheiras surge com as
suas listras gredosas que se multiplicam até ao infinito. Mais alguns
minutos e o pássaro estará fora de alcance, descendo a tôda a velo­
cidade para o seu ninho. É preciso correr e cortar-lhe a retirada
a todo o custo. O essencial é que êle se não tenha ainda apercebido
de nada, não desconfie do que se passa !
O Voisin n.° 89 lançou-se em piqué acentuado. Seu cordame de
aço silva em tonalidade aguda. Mão firme o projeta em longa
curva que não tardará a colocá-lo, elegantemente, entre o aparelho
inimigo e as linhas. Terminada a curva, a manobra consistirá em
plantar-se atrás do alemão, exatamente à mesma altura e a curta
distância.
Há muito que Frantz e Quénault decidiram a manobra a realizar.
Está tudo combinado, resta apenas executá-lo. Todos os pormenores
foram examinados, discutidos, avaliados e resolvidos. Saber clara­
mente o que se pretende já é meio caminho de êxito. Frantz e Qué­
nault observaram que a bordo de todos os aviões alemães encontrados,
o dispositivo é sempre o mesmo: motor e hélice estão na frente. Atrás
dêles acha-se o passageiro-observador. Um metro ou dois mais atrás
fica o cubículo do piloto, protegido por um pára-brisas. Por fim, na
extremidade da cauda (como em todos os aparelhos do mundo), as
aletas e os lemes. Êstes últimos são volumosos nos aparelhos inimigos.
Conclusão: se o passageiro-observador está armado e quer abrir
fogo, é-lhe impossível fazê-lo para a frente, através do motor e da hé­
lice. Por outro lado também não pode fazê-lo para trás, porque o
impedem o busto do piloto e as asas do leme. Os aparelhos alemães

38
O prim eiro de todos os combates aéreos

são mal concebidos para travar combates aéreos, e é dessa posição


desvantajosa que os franceses vão aproveitar-se.
Que farão Quénault e Frantz ? Atacar pela frente ou por trás ?
Pela frente, nem pensar nisso ! Somando-se as duas velocidades
a duração do tiro seria excessivamente breve (talvez um décimo de
segundo), e o motor comporia um escudo natural protegendo das
balas a tripulação inimiga, sem contar o risco certo de uma colisão.
Por trás, ao contrário, tudo será fácil. Como as duas velocidades se
anulam haverá tempo suficiente para apontar bem e disparar. A tri­
pulação alemã não terá nada para a proteger e o perigo de colisão está
eliminado. Fica portanto decidido que o ataque será pela retaguarda.
O único momento desagradável será o da manobra final. Quando o
atacante cuidar, a pequena distância, de se embutir por detrás no eixo
do aparelho alemão. Por muito pouco hábil que seja o piloto inimigo,
não perdendo a cabeça poderá, por sucessivas oposições de fuselagem,
deixar a descoberto o avião francês e facilitar dêsse modo o tiro do
seu passageiro. Então, caso êste disponha de uma arma de repetição,
fará o adversário “saborear” um mau bocado. Aí é que se reconhece
quanto seria bom ter nas mãos, não uma locomotiva como o Voisin,
mas um aparelho leve, flexível e manejável, permitindo anular, no
mesmo instante, os movimentos defensivos do adversário e continuar
aferrado à sua cauda.
Mas que diabo, não se deve ser muito exigente ! Quem não tem
cão caça com gato e o Voisin n.° 89 fará o que estiver ao seu alcance.
*

Derradeiros segundos.
Frantz concluiu a sua curva. O pique permitiu-lhe ganhar ter­
reno sôbre o Aviatik. Porque se trata de um Aviatik, perfeitamente
identificável pelo leme fixo, arredondado em fôlha de trevo, pelo
reservatório de gasolina brilhante e pelo tubo de escapamento em
forma de curta chaminé vertical dominando o leme superior. A
distância diminuiu como em sonhos: oitocentos, seiscentos, qui­
nhentos, trezentos, duzentos, e agora menos de cem metros.. .
Mas eis que o aparelho francês foi descoberto ! O reflexo do
piloto alemão atira-o para a esquerda, numa curva brusca, para
escapar o mais depressa à ameaça que de repente lhe surge pela
direita. Isso distancia-o das suas linhas. Exatamente o que Frantz
desejava — e tinha previsto. O combate será nas linhas francesas,
a uma altitude de 1.900 metros.

39
N o tem po das carabinas

O Aviatik lança-se num círculo muito largo à mão esquerda e


Frantz utiliza os seus derradeiros metros de superioridade de altura
para o alcançar e se aproximar dos seus lemes. O tubo de escapa-
mento do Aviatik vomita um jato de vapor azulado: o piloto
acaba de abrir o gás a fim de aumentar a velocidade. Procura fugir.
A distância agora é pequena. Menos de cinqüenta metros.
Frantz e Quénault avistam claramente os gestos da guarnição alemã.
Os dois homens usam capacetes de couro escuro. Quénault intro­
duziu um pente na culatra da Hotchkiss. De ôlho na mira e mão
direita na coronha raiada, espera. Estão ainda longe, êle só ati­
rará de mais perto.
Mas o passageiro inimigo toma subitamente a dianteira e abre
fogo em primeiro lugar. Estava armado. De metralhadora ? Não,
de espingarda de repetição. Frantz e Quénault viram-no inclinar-se
para se garantir um campo de tiro. Breves chamas intercaladas, em
baixo do leme superior. Atenção, perigo ! Nada de novo. Nenhuma
bala. Frantz e Quénault continuam vivos. Todavia foi perto !
Frantz logra, com um movimento brusco, colocar-se justamente
atrás da cauda do Aviatik. Diz-se que os Voisin são lentos em respon­
der aos comandos, padecem de certa inércia. Não é verdade. Os
irmãos Voisin estão muito avançados no domínio da construção de
células. Há muito compreenderam o partido que se pode tirar de
grandes ailerons compensados para a estabilidade lateral de uma
grande máquina. Seus aviões, dotados de poderosos ailerons na
ponta das asas. dão provas de perfeita docilidade quando se sabe
agir ao mesmo tempo, como convém, com a ajuda do leme de direção.
Mas é preciso saber, e Frantz sabe-o muito bem. O 89 obedeceu logo,
como um animal inteligente. Ei-lo vinte metros atrás dos planos do
Aviatik. Estão em ângulo morto, o observador alemão não mais
pode a tira r...
Com os olhos arregalados, Frantz vê diante de si o céu inteiro
ocupado pelos planos do avião inimigo, tornados gigantescos, fe
chando o horizonte. Estão pràticamente em cima dêle. Suas asas
são de um branco cintilante, ostentando enormes cruzes-de-ferro
negras. Seu leme esconde intermitentemente o piloto, e quando
as suas costas reaparecem, Frantz dedica-se a corrigir logo a posição,
a fim de se manter bem no eixo e impedir o adversário de reabrir
fogo. E Quénault ? Que faz Quénault que não atira ?
A resposta chega no mesmo instante. A Hotchkiss cospe as suas
primeiras balas. Tiro por tiro. Quénault ajoelhado no seu assento

40
O prim eiro de todos os combates aéreos

de oleado, evita atirar em rajadas Sabe o que faz. Numerosos


ensaios no stand de tiro, ou em vôo de altitude, ensinaram-lhe que a
Hotchkiss leve não é ainda perfeita A folga do gás ainda não é
bastante poderosa para permitir a ação do pistão em tiro precipitado.
Os encraves são freqüentes. Se, pelo contrário, se disparar bala após
bala, soltando e apertando o gatilho à medida que elas saem, a
metralhadora tem tempo de respirar e não encrava.
Há muito que Quénault resolveu agir assim. Sem nenhuma
pressa. Com uma serenidade de gêlo. Dominando-se plenamente.
Contudo o espetáculo que tem diante de si é impressionante.
Aquelas asas imensas, com as suas grandes cruzes negras, os montantes
pintados de verde-cinza que é a côr de guerra alemã, os grossos cabos
seguros no meio com reforços para impedir de vibrar, nenhum detalhe
lhe escapa. A ocasião é única. É preciso derrubar aquêle Aviatik.
Dispara. Talvez não tenha refletido nisso, mas as condições em
que atira são ideais. Estando exatamente no eixo do objetivo não
precisa fazer correção nenhuma, de tiro ou de alvo, essas famosas
correções que em breve irão tornar-se a grande preocupação, a obses­
são dos combatentes do ar. Aqui tudo se passa como se os dois aviões
estivessem imóveis em relação um ao outro. Alvejam-se como no
tiro ao alvo. Ah ! êste Voisin não deixa de ser um grande aparelho,
permitindo atirar exatamente pela frente ! Que pena êle não poder
aspirar a tornar-se um verdadeiro avião de caça !
Mas para onde vão as balas de Quénault ? Não se percebe
nenhum impacto, não há qualquer resultado aparente. Contudo elas
penetram, sem que nenhuma se perca, nos lemes, nas telas, na fuse­
lagem, em tôda aquela massa viva do Aviatik ! Há mais de um mi­
nuto que dura a luta e Quénault já consumiu uma carga inteira
de vinte e cinco cartuchos. Tem de introduzir agora um novo
pente na culatra.
Ah ! se ao menos entre aquelas balas perfurantes houvesse al­
gumas incendiárias, o avião inimigo já estaria em labaredas ! Mas
não há nenhuma. .. Frantz e Quénault suportam, nesse momento, as
conseqüências diretas da incredulidade, da indiferença do alto con-
mando a respeito da aviação. Não se fêz nada por ela, em matéria de
armamento ou munições. Se o capitão Faure e Gabriel Voisin não
tivessem agido por iniciativa própria, Frantz e Quénault nem sequer
teriam metralhadora.
. . .pertence muito mais a Júlio Verne do que à realidade. A
guerra aérea prevista está ainda muito longe de poder produzir-se.

41
N o tem po das carabinas

Por duas vêzes o Aviatik logrou furtar-se à pressão do Voisin


por meio de piqués em viragens secas, tentando ao mesmo tempo
aproximar-se das suas linhas. Do vale do Vesle, a luta remoinhante
veio dêsse modo ter ao vale do Aisne, a nordeste de Fisnes. Mas
sempre Frantz conseguia retomar o seu lugar atrás do adversário.
Rudes sacudidelas recebe o Voisin 89 ! Com uma asa sôbre a outra
êle obriga-o a descrever oitos tão apertados como os de um Morane.
E tão ràpidamente que o observador alemão não conseguiu recuperar
a cadência, para de novo abrir fogo. Braceja no seu habitáculo com
a carabina, porém os movimentos desordenados dos dois aviões não
lhe permitem visar o maldito francês colado à sua cauda.
Colado, realmente. Ei-lo ainda atrás da empenagem ! Quase
não se vê. É impossível atirar sem perigo de destruir os comandos ou
matar o próprio piloto.
Quénault, porém, está apto a atirar de novo. Alaga-se em suor,
apesar do frio; com inauditos esforços substituiu a fita-carregador
esgotada. Com aquêles piqués violentos, a coisa não foi fácil.
Perderam muita altura. Acham-se de novo sôbre o vale do Vesle.
Jonchery acaba de passar sob as asas, com a sua comprida rua
muito direita. Os pormenores do solo avultam diante dos olhos. Lá
em baixo, as peripécias do combate devem estar sendo acompanhadas.
Cuidado para apontar bem, atirar talvez um pouco mais acima do
que antes ! O piloto, o passageiro, o reservatório de gasolina, tudo
o que interessa atingir, enfim, deve achar-se com efeito um pouco
mais acima. Em sucessivos disparos lá se vão as vigésima sexta, vigé­
sima sétima e vigésima oitava balas. Depois as outras. .. Quénault
pode ver, a seu lado, amontoarem-se as cápsulas vazias na rêde que
a previsão de Gabriel Voisin fêz adaptar à culatra da metralhadora,
a fim de evitar que elas fôssem quebrar a hélice. Através da lã
do seu capuz de malha e apesar do ronco do motor, êle ouve-as entre-
chocar-se com um ruído argentino de guizos. Então, que é isso !
Nenhuma delas terá o bom senso de vibrar o golpe decisivo ?
Há vários minutos que dura êste recontro. Os nervos estão
a ponto de estalar. Em tôrno da garganta de Frantz como que se
aperta um torniquete. Acabarão perdendo aquêle Aviatik ? Frantz
nunca se refaria dêsse desgosto. Era preferível morrer a falhar
aquêle lance. Tudo, menos deixá-lo fugir !
Quarenta e quatro, quarenta e cinco, quarenta e seis balas. . .
Ao quadragésimo sétimo disparo a metralhadora encravou.
Então, sem perder a serenidade o mecânico-metralhador pôs-se de

42
O prim eiro de todos os combates aéreos

pé, malgrado os terríveis solavancos, e tentou consertá-la. Calmamente,


principia a desmontar a culatra móvel. Porém, nesse m om ento...
Nesse justo momento, Frantz e Quénault sentem o sangue
gelar-lhe nas veias. Suas bôcas abrem-se num grito mudo.
O Aviatik, até então aparentemente intacto, acaba de se erguer
de um salto, de se empinar em pleno céu. Fica assim pelo espaço
de um segundo, como imóvel, singularmente equilibrado no ar,
gigantesca cruz branca erguida em pleno abismo, de braços abertos.
Em seguida inclina-se lentamente para trás, como se procurasse
ainda, antes do meigulho final, atingir o seu assassino e levá-lo
consigo para a morte.
Frantz mal teve tempo, numa brusca manobra, de afastar o
Voisin. O aparelho alemão desce para a eternidade. Desce como
uma enorme fôlha morta, pois é essa a aparência que lhe emprestam
os seus movimentos descontrolados. O motor não foi varado, a hé­
lice continua girando a tôda fôrça, e ora o projeta para o alto,
ora o precipita para o chão. O piloto com certeza foi morto. Se
o desventurado passageiro continua vivo, vai ter o destino mais atroz.
Frantz e Quénault dirão mais tarde não terem conseguido arrancar
essa idéia da cabeça, desejando ardentemente que ambos tivessem
sucumbido às balas.
Não poderão esquecer a trágica visão daquele belo aparelho
todo branco entregue a si mesmo, mergulhando, tornando a subir e
descaindo de novo, passando de costas, de rodas para o ar, endirei­
tando-se como se procurasse desesperadamente ganhar altura, sufo­
cado, precipitando-se outra vez de frente, e de queda em queda apro­
ximando-se do solo. Horror das guerras, a aviação já era por si mesma
um esporte bastante perigoso, para que fôsse necessário ensanguentá-lo
ainda mais, procurando os aviadores atirar-se mütuamente no abismo.
Contudo, assim tinha de ser. Havia dez anos que a conquista do ar
estava apenas no começo, e já essa hora soou. ..
Após uma derradeira guinada vertical, o Aviatik foi espatifar-se
à orla dos brejos da Vesle, não longe de Jonchery, quartel general do
V Exército. Chocou-se com o solo produzindo um terrível estrondo,
perto da linha férrea entre Fismes e Reims. Frantz e Quénault, com
o motor ao ralenti, descendo em largas circunferências, viram-no
como que enterrar-se na espessura da terra, entre nuvens de poeira,
seguidas de uma explosão de pedaços de tela branca. Depois altas
chamas o envolveram, acompanhadas do sinistro penacho de fumaça
negra, característica do avião que se incendeia.

43
N o tem po das carabinas

Porém não ouviram nada. Devido ao seu motor não puderam


ouvir o imenso, extraordinário clamor que subia para o céu, pois
desde o começo a luta vinha sendo acompanhada por milhares de
olhos, por dezenas e dezenas de milhar de olhos, tanto do lado
francês como do lado alemão. Tendo-se o encontro verificado nas
proximidades das linhas de fogo, e como as manobras dos aviões os
tinham arrastado por um largo espaço, diversas vêzes sobrevoaram a
própria frente de batalha. Homens da infantaria francesa e alemã,
artilheiros, cavaleiros, sapadores, esquecendo por um momento de se
combater, haviam saído dos seus abrigos, e de pé, a descoberto, passa­
vam a observar com paixão as peripécias daquele duelo aéreo, o pri­
meiro a que se assistia no mundo. Espetáculo confrangedor que enchia
de angústia todos os corações. Ia-se testemunhar o acontecimento
inaudito de um avião conseguindo derrubar outro avião. Qual seria
a vítima ? O aparelho das cruzes negras ou o das rosetas tricolores ?
Uma espécie de competição excitante, em que o lado esportivo
cedia ao sentimento patriótico, agitava de esperança ou de temor
as testemunhas daquele embate fabuloso.
Como iria êle acabar ? Aquêle duelo aéreo travado nas linhas
de frente assumia as proporções de um símbolo, uma feição de ale­
goria. Era o próprio duelo entre a França e a Alemanha. Quem
vencesse êsse combate ganharia a guerra. A previsão era feita assim.
Havia tanto tempo que ambos se observavam com ódio através das
ameias das trincheiras, tanto tempo que nenhum dêles conseguia fazer
recuar o adversário, expulsá-lo das suas posições e derrotá-lo, havia
tanto tempo que a dúvida se instalara nas almas, que aquêle tor­
neio à luz do sol, de igual para igual, em pleno céu, entre homens
decididos a vencer ou morrer, adquiria enfim um sentido. Realizava-
se como que para trazer uma mensagem, para dar uma resposta à
ansiosa pergunta que cada qual se fazia em relação ao futuro:
Alemanha ou França ? França ou Alemanha ?
Havia um quarto de hora que todos os olhares, todos os anseios,
tôdas as preces subiam para aquêles dois aviões em luta. Contudo,
no campo de aviação de Lhéry, ninguém desconfia que Frantz e
Quénault estão empenhados num combate. Êle fica muito distante
para o sul. Por um lastimável paradoxo, a esquadrilha V. 24 vai
contar-se entre as raras unidades do V.° Exército que só se inteiraram
do recontro após o desenlace. Nesses tempos remotos, a radiofonia,
chamada a revolucionar a tática aérea, ainda não íôra inventada.
Não havia qualquer ligação entre a terra e o avião em vôo. Em 1914

44
O prim eiro de todos os combates aéreos

“os aeroplanos” (como ainda se diz) eram combatentes surdos-mudos.


Teriam de decorrer longos anos até que as suas línguas e ouvidos
verdadeiramente se desatassem, nada menos que um quarto de
século. Foi só nas vésperas da guerra de 1939 que se realizou o milagre
radiofônico. Então os mudos começaram a falar e os surdos a ouvir.
E foi uma tagarelice universal entre o céu e a terra, e também de
avião para avião, em pleno vôo.
Mas naquele tempo não era assim. Frantz e Quénault, meninos
perdidos no seio das nuvens, eram ignorados pela sua unidade espe­
cífica.
Todavia, desde Reims até Fismes não houve um lavrador que
não largasse a rabiça do arado para melhor acompanhar, de mãos em
pala sôbre os olhos, as excitantes peripécias do duelo sem tréguas.
A agitação é igualmente geral nas ruas das cidades, das aldeias,
nas estradas e por tôda a parte. Soldados, oficiais e civis, todos
abandonam as suas ocupações do momento, saem à pressa das casas,
se interpelam com paixão, exprimindo a angústia e a esperança:
— Escutem, escutem ! Foi o francês que atirou !
— Não. . .
— Foi, sim !
— O alemão apanhou o dêle. Está caindo ! está caindo !
— Qual o quê, deu uma virada !
— Garanto-lhe que está caindo !
E êsse clamor imenso, êsse bramido que do lado francês sobe
agora da terra, essa explosão de júbilo, de entusiasmo cheio de gra­
tidão que ao longo de vale de Vesle, desde as alturas do Chemin-des-
Dames até às de Savigny, corre, se prolonga, se desdobra, arfando com
o vento, tenta fazer-se ouvir lá e mcima pelos dois heróis desco­
nhecidos, cujo avião, faiscando ao sol desce lentamente do céu, trazido
pelas asas da vitória.
Automóveis rompem pelas estradas, homens arremessam-se a
cavalo, de bicicleta e a pé, gritando, convergindo todos para o
terreno onde caiu o Aviatik, guiados de longe pelo sinistro penacho
de fumo que ultrapassa a crista das colinas. Um formigueiro humano
se pôs em marcha, que em breve formará larga mancha em tôrno
do avião alemão incendiado e do Voisin 89, que Frantz conseguiu
pousar com perícia junto da sua vítima.
O general Franchet d’Espérey, comandante do V Exército, é
dos primeiros a chegar. Do seu quartel general de Jonchery-sur-
Vesle, pôde assistir à fase suprema do combate. Os seus oficiais foram

45
N o tem po das carabinas

arrancá-lo à mesa de trabalho, e do pequeno jardim burguês


onde fenecem as derradeiras chagas, as últimas rosas de setembro, êle
não perdeu um só pormenor do surpreendente desenlace. Os dois
aparelhos estavam nesse instante tão perto que quase sobrevoavam
os telhados de Jonchery.
Franchet d’Espérey saltou do automóvel. Diante dêle a multidão
afastou-se. Em passo rápido foi ao encontro de Frantz e Quénault que
tôdas as mãos lhe apontavam. Lá estão êles, de cabelos ao vento,
com as suas blusas de couro escuro. Acabam de aterrissar. Suas
testas e rostos avermelhados pelo frio estão ainda inchadas pela
marca dos óculos e o rebordo dos bonés.
— Foram os senhores os vencedores ? Como se chamam ?
— Sargento Frantz e mecânico Quénault, meu general.
O general Franchet d’Espérey abraça-os e sacode-lhes as mãos com
vigor.
— Bravo, meus rapazes ! Em nome da França eu os felicito ! Re­
ceberão ambos a Medalha M ilitar!
— Eu já a tenho, meu general — observou Frantz com simpli­
cidade.
— Nesse caso terá a Legião de Honra.
— Obrigado, meu general !
Em seguida Franchet d ’Espérey dirigiu-se a pé para os restos do
avião alemão que se ia consumindo. O quadro era pavoroso. Sol­
dados de infantaria, acampados nas proximidades, diligenciavam
arrancar às chamas tudo o que era possível subtrair-lhes.
Os corpos das duas vítimas foram com grande dificuldade tirados
da fogueira. Puseram-nos lado a lado, junto da sebe que ladeava a
via férrea. Estavam ainda fumegantes, quase carbonizados. Diante
daquela morte horrível só se pode manter um grande recolhimento.
O ódio desaparece. Os rostos dos homens que ali estavam eram
uma prova disso. Nenhuma exclamação de contentamento ou de
ironia, nenhum gesto descabido, nenhum dêsses gracejos vulgares
que costumavam trocar entre si os soldados. Nesse instante êles seriam
sacrílegos. Fala-se quase em voz baixa. Todos aquêles que acor­
reram, e alguns de muito longe, para gozar o feliz espetáculo,
sentem-se agora comovidos até à alma. As fisionomias mostram-se
sérias, como que fascinadas. Vêem-se civis, crianças e mulheres.
O general Franchet d’Espérey aproxima-se. Mostram-lhe os
cadáveres. Êle faz uma continência breve e guarda um momento

46
O prim eiro de todos os combates aéreos

de silêncio. Volta-se, e procurando com os olhos o oficial do estado


maior que o acompanha, diz:
— Êstes também eram valentes. Quero que os enterrem digna­
mente, prestando-lhes as honras militares. Sabem os seus nomes ?
Conseguiram identificá-los ?
Um oficial destaca-se de um grupo.
— Sim, meu general, conseguimos. Êles traziam placas de iden­
tidade e também papéis, cartas. Evitamos que fôssem destruídos.
Ei-los. Está tudo aqui.
— Muito bem. Recolha isso — tornou o general ao seu aju­
dante de campo, — para ser examinado no 2.° Bureau e no serviço
de estado civil com o capitão Faure, comandante da esquadrilha.
Mais tarde veremos se será possível enviar às famílias os seus objetos
pessoais. Até à vista, e uma vez mais: bravo !
Torna a subir para o carro e regressa a Jonchery.
O círculo de admiradores não pára de aumentar em tôrno dos
dois heróis. Uma jovem entrega a Frantz um ramo de flores de
outono, colhidas no jardinete próximo do guarda-barreira. Uma
mulher aproxima-se, emocionadíssima. Está muito bem vestida,
com seu pequeno gorro de caça, blusa e saia de esporte. Vem da
sua propriedade dos arredores e assistiu a tudo. Mal sabe como
manifestar a sua admiração, o seu júbilo. Então, detalhe ínfimo
e pitoresco, mas que tem o seu lugar neste relato em que são verda­
deiros os menores fatos referidos, estende a Frantz um soberbo faisão,
morto por seu filho.
E Frantz e Quénault, desejosos de voltar à sua esquadrilha da
qual se não encontra nenhum representante entre a multidão, tor­
nam ao Voisin e decolam levando na carlinga o faisão e as flores.

Na V. 24 ninguém sabe nada. Não houve nenhum telefonema


dando a boa notícia. Por isso grande é o espanto que se escan­
cara a porta da barraca onde os pilotos da esquadrilha se sentam
à mesa para almoçar. E a alegria também, pois todos começavam a
preocupar-se sèriamente com a sorte do 89. Há três quartos de hora,
pelos menos, que êle deveria estar de volta. Teme-se que Frantz
e Quénault se tenham perdido.

47
N o tem po das carabinas

É o perfil de Frantz que se enquadra no vão da porta batida de


sol, trazendo na mão um faisão, e atrás dêle Quénault, com uma
braçada de flores. Ora até que enfim, aí estão êles ! Mas que signi­
ficam a peça de caça e o ramo de flores ? Estarão vindo, por acaso,
de um passeio ao campo ou de uma partida de caça ? De qualquer
modo, seria pouco natural !
O capitão Faure atirou o guardanapo, mas não tem tempo de
falar. Frantz antecipa-se:
— Cá estamos, meu capitão; desta vez apanhamos o nosso boche !
— O vosso boche ?
— Sim senhor, e ainda por cima nas linhas francesas ! Caiu em
chamas no vale do Vesle. Demos cabo dêle. Estamos chegando de
lá, venha vê-lo !

Dois autos lançados a tôda a velocidade, nos quais se amontoavam


os oficiais e pilotos da V. 24, guiados por Frantz e Quénault, percor­
reram os dezessete quilômetros que separam o campo de Lhéry do
lugar onde se despedaçou o avião abatido pelos dois franceses.
A multidão continua grande. O capitão Faure manda afastar,
com certa rudeza justificada, as pessoas ávidas que pretendem
arrancar, a título de recordação, fragmentos de metal ou pedaços
de tela aos destroços do Aviatik. Agora todos falam alto, se com­
primem e acotovelam, ninguém mais se preocupa com a presença
dos dois alemães gloriosamente mortos em combate e que ainda não
foram enterrados.
Faure é oficial da ativa, conhece o preço da bravura e sabe
render homenagem à intrepidez mal sucedida. Não admite aqueles
processos ímpios ! Repreende o serviço de ordem pouco vigilante,
reclama os gendarmes do prebostado, dá-lhes as instruções mais se­
veras, e em seguida parte para Jonchery a examinar os documentos
subtraídos ao incêndio e a combinar os detalhes da cerimônia de
inumação dos aviadores inimigos.
Ambos foram identificados. O piloto era oficial inferior. Cha­
mava-se Wilhelm Schlichting, nascido a 8 de agosto de 1891, em Ilten-
dorf. O passageiro tinha o posto de primeiro tenente (oberleutnant),
e chamava-se Fritz von Zangen. Nascera a 24 de março de 1883,
em Darmstadt. Com êle, circunstância penosa, foi encontrada uma

48
O prim eiro de todos os combates aéreos

carta escrita a sua mãe. Datada da véspera, não tivera tempo de a


expedir. Decerto tencionava entregá-la, ao aterrissar, ao vagomestre
da sua unidade. Mas essa carta não seria perdida. De qualquer modo
chegaria à sua destinatária, por intermédio dos aviadores franceses
e dos serviços da Cruz Vermelha de Genebra. Êsses são os deveres
sagrados aos quais nenhum adversário se exime sem faltar a um
ponto de honra.
*

No domingo seguinte, no campo de Lhéry, diante da esqua­


drilha V. 24 tôda reunida em armas, com seus aviões alinhados
para a parada, o sargento Frantz e o mecânico Quénault recebem, em
presença do general Franchet d’Espérey, o primeiro a cruz de cavaleiro
da Legião de Flonra, e o segundo a Medalha Militar, das mãos do
coronel Gante, comandante da aeronáutica do V Exército, posto
no qual lhe vai suceder dentro de poucas semanas o comandante
de Rose.
A emoção é grande.
Essas condecorações de guerra possuíam então todo o seu frescor
e nobreza. Cuidou-se até aí de as não deslustrar, de lhes conservar a
pureza. Não as obtinha quem queria. As Legiões de Honra eram
raríssimas. Para receber a Cruz, era de fato indispensável ter reali­
zado um excecional feito de armas. Especialmente quando se tra­
tava de um oficial inferior ou soldado da tropa. Naquele mês de
outubro de 1914, não havia talvez em tôda a frente francesa dez
suboficiais, talvez nem cinco, talvez nem três que a tivessem recebido.
Com a Medalha Militar sucedia o mesmo, ela conservava todo o
seu valor. A Cruz de Guerra ainda não tinha sido criada, e só viria
à luz oito meses depois, em l.° de junho de 1915.
Pregando o laço vermelho no blusão do sargento Frantz, o co­
ronel Ganter procedia com lentidão, com solenidade, com uma espécie
de majestade. Tinha de fazer grandes esforços para que a mão não
lhe tremesse. E quando, segundo o antigo rito, êle o sagrou cava­
leiro tocando-lhe em cada ombro com a espada, sua perturbação
era tão grande que êle mal pôde balbuciar algumas palavras de
felicitações. Porisso se apressou a concluir:
— Fermez le ban !
Os clarins rompem a tocar, os tambores rufam. Diante de Frantz
e de Quénault desfilam em passo cadenciado os fuzileiros da V. 24,

49
N o tem po das carabinas

seus companheiros de armas em grande uniforme, homenagem da


aviação inteira aos primeiros vencedores de um combate aéreo.
Mais tarde, voltando ao silêncio do seu gabinete em Jonchery-
sur-Vesle, o coronel Ganter não consegue tirar da idéia o episódio
que acaba de viver e com êle viveu todo o V.° Exército. Não lhe sai
de diante dos olhos o espetáculo exaltante daquela vitória tão arden­
temente esperada, mas da qual duvidara até ao último instante,
por não haver nenhum precedente.
O coronel Ganter sente a necessidade de enviar uma carta a
Frantz, a fim de lhe renovar os seus sentimentos. Quando a relemos
hoje, à distância de quarenta anos, essa carta dá um tom longínquo
e enternecedor, difícil de compreender no nosso tempo tão dolorosa­
mente embotado. Atravessamos tantas coisas e tantos acontecimentos,
temos sofrido e vibrado tanto, a natureza viu-se submetida a tantos
golpes e tantos ferimentos que perdeu muito da sua sensibilidade. É
preciso que a chama a queime verdadeiramente para que ela lhe
perceba o calor. Têm-se visto tantos combates aéreos, nos céus de
todo o mundo, de há quarenta anos para cá ! Sim, a carta do
coronel Ganter parece remontar ao fundo das idades. Flor sêca entre
as fôlhas de um livro, exala um aroma de pétalas fanadas já extinto.
Sim, é o perfume da França de outrora. . .
Houve um tempo em que, ferida e coberta de sangue logo nos
primeiros dias da guerra, a França se reergueu unida e indomável,
de coração altivo, animada da vontade feroz de resistir e de vencer.
Foi isso em 1914.. .
Porque não conservou ela essa alma sempre ?
Frantz guardou piedosamente essa carta do coronel Ganter.
Ei-la.

13 de outubro de 1914.

“Meu caro Frantz:


“Quando a 5 de outubro pela manhã você atacou a 2.000 metros
de altura o seu adversário aéreo, a maior parte do nosso exército
acompanhou as suas evoluções com uma atenção concentrada, uma
ansiedade profunda, e quando êle viu o inimigo premido pela sua
manobra audaciosa, hábil e firme, atingido pela metralhadora, tur-
bilhonar e esmagar-se no chão, rompeu em gritos de admiração ao
herói e numa alegria delirante.

50
O prim eiro de todos os combates aéreos

O exército saudava então com suas aclamações não apenas o


resultado vitorioso de um combate fantástico, mas também o pres­
ságio, o sinal da vitória certa e definitiva da França. Àqueles que
duvidavam ainda dos destinos da Pátria, o seu êxito inspirou a fé
num porvir glorioso e a coragem de prosseguir na luta até à derra­
deira gôta de sangue.
É porisso, pelas suas conseqüências morais incalculáveis, que o
seu ato heróico permanece o seu mais belo título de glória, um
direito à gratidão do país, ■um motivo de orgulho para os seus chefes
e para os seus camaradas de armas.
Desejaria ter-lhe dito isto quando lhe entreguei a insígnia dos
valentes, porém uma emoção muito viva não m’o permitiu. Ponho
nesta carta tôda a minha alma.
Coronel Ganter

Com efeito, era uma façanha excecional e até então única, que
a França inteira e o mundo com ela saudavam com uma admiração a
que se misturava terror. Pois tratava-se também de uma revelação,
do anúncio de uma estranha era que se iniciava. Até onde levaria
ela a humanidade.
Agora os homens iam morrer no céu como desde séculos morriam
em terra e sôbre as águas, entredevorando-se.
A conquista do ar fôra realmente conseguida.

51
BALAS SEM RESULTADOS

A ressonância da vitória de Frantz foi tão grande que a maioria


das tripulações ardia por lhe seguir as pegadas.
Se o alto comando permanece ainda cético, atribuindo ao embate
de 5 de outubro um caráter de simples exceção pouco suscetível de
renovar-se, muitos aviadores, nas esquadrilhas da frente, sonham
ir colhêr no meio dos céus os seus louros de glória. Doravante tudo
lhes parece possível, a prova está feita.
Além disso, a poesia feroz dêsses duelos aéreos, em que dois
aviões se defrontam em combate singular na solidão do abismo, per­
turba todos os espíritos.
É como um regresso à canção de gesta. Como estamos longe
da lama das trincheiras, como nos evadimos dessa guerra traiçoeira
em que os adversários se matam sem ao menos se avistarem, num
fúnebre anonimato ! Onde estão as batalhas de antanho, mesmo
as do Primeiro Império ainda tão recentes, com os seus quadrados
de infantaria eriçados de baionetas cintilantes, as suas cargas de cava­
laria épicas, em pleno sol ? Pelo menos os homens viam-se, inju­
riavam-se a alguns passos de distância. O heroismo era visível aos
olhos de todos. Isso sim, chamava-se lutar ! Mas hoje ninguém
mais luta, apenas se destrói.
Felizmente apareceu a aviação. Os progressos da ciência iam
— singular paradoxo ! — reconduzir o homem aos primitivos tempos
da cavalaria.
Não se tornara a ver nada semelhante desde a era dos torneios.
O indivíduo ia enfim ser de novo alguém, podia emergir da massa.
O homem valente ia enfim ter a liberdade de correr para o adver­
sário, desafiá-lo, obrigá-lo a combater, e o covarde podia evitá-lo,
fugir para longe e perder-se no infinito do céu. Os caçadores, os

52
Balas sem resultado

verdadeiros, os puros, podiam agora ser identificados, vistos em ação !


Já o têrmo prestigioso se forja com o seu sentido aerodinâmico, voa
de bôca em bôca: caçadores, ser caçador! Quantos moços são devo­
rados por êste generoso desejo !
A perspectiva de encontrar a morte pavorosa de um Fritz von
Zangen, indo, vivo e em plena consciência, esmagar-se no solo dentro
do seu avião em chamas, tendo a bordo o piloto morto, não con­
segue detê-los. O pára-quedas, essa bóia de salvação do ar, não foi
ainda inventada para a aviação, e portanto nenhuma equipagem
a tem na idéia. Os quatro anos da guerra de 1914-1918 serão atraves­
sados assim. Ninguém se queixa. Se alguém é atingido em pleno
vôo pelas balas incendiárias, paciência ! É assunto liquidado e todos
sabem disso. São os riscos do ofício, o mais belo de todos nestes
melancólicos tempos de minas, sapas e tôda a sorte de armas ocultas,
que transformam o pobre soldado, coberto de lama, numa triste
toupeira, a maior parte das vêzes ocupado a cavar o próprio túmulo
com as próprias mãos. Por outro lado, são sempre os outros que
morrem na guerra; nós, nunca !
Em frente, do lado alemão, a revelação foi a mesma. Todos
estão ao corrente da vitória de Frantz. Mme. von Zangen recebeu
a carta póstuma do filho pelos piedosos cuidados da Cruz Vermelha.
De modo que se apetrecham e se armam. Em lugar das Mauser, das
espingardas de repetição, dos fuzis-metralhadoras do comêço, os
aviadores franceses vão agora encontrar verdadeiras metralhadoras,
algumas montadas erü torres blindadas. A caça tem a intenção de
vender cara a pele, e mesmo a de atacar. O exemplo é sempre con­
tagioso. Tanto melhor, a caçada será ainda mais emocionante.
Acabou o tempo das saudações esportivas e dos gestos corteses. O
céu vai por sua vez transformar-se em campo de batalha. Está
aberta a luta pela posse do ar.
Tripulações que apenas dispõem de aparelhos lentos, pesados
e pouco manejáveis, inteiramente inadequados para a perseguição e a
acrobacia da luta, nem porisso renunciam à esperança de se bater.
Com uma pouca de sorte, quem sabe ? A vontade substitui tantas
deficiências !
A 7 de outubro, dois dias após a vitória de Frantz e de Quénault,
uma equipe composta do sargento-pilôto Gaubert e do capitão-obser-
vador Blaise, usando um avião Maurice Farman, aparelho que um
vento de proa de 80 quilômetros basta para manter firme no ar,
volta à sua base e declara haver travado combate com um avião

53
N o tem po das carabinas

alemão. O capitão Blaise fêz, a vinte e cinco metros, uma dezena


de disparos de carabina sôbre a tripulação inimiga. Esta respondeu.
Finalmente, Blaise e Gaubert viram o adversário afocinhar de ma­
neira tão brutal que estão convencidos de o haverem abatido.
Como a luta se desenrolou por cima das linhas alemãs e sem
testemunhas, a vitória permanece hipotética e não é reconhecida
nem homologada.
O mesmo se dará quando uma tarde de outono o tenente Perrin
de Brichambaut voltar ao campo da sua esquadrilha, na Lorena. O
aparelho que êle pilotava era um Henri Farman, ainda mais lento
que o Maurice. Dir-se-ia um antepassado dos tempos heróicos
com o seu estabilizador fora de uso, colocado à frente, denominado
“prateleira de pão” ou, por escárnio, “corta-íawòe”. Com semelhante
engradado de galinhas (1), Perrin de Brichambaut não pode pre­
tender perseguir mesmo o avião inimigo mais lento, mais asmático
e mais fácil de abater, e portanto muito menos um Aviatik
ou Albatroz. Acaso um cavalo de lavoura pode ter a presunção de
se alinhar com um puro sangue numa pista de corrida ?
Mas Perrin de Brichambaut, apesar de tão mal apetrechado para
a caça, quer ter a sua vitória aérea. E há-de tê-la. Eis a sua idéia:
Voando sozinho a bordo do seu Henri Farman, o que se nos afi­
gura um método bastante surpreendente em tempo de guerra para
um avião de dois lugares, imaginou um dispositivo de sandow muito
engenhoso, que lhe permitia abandonar “o cabo de vassoura”, conti­
nuando o avião a manter-se sozinho em correta linha de vôo. O
tenente Perrin de Brichambaut, dispondo então de ambas as mãos,
ficava apto a empunhar a sua excelente carabina Winchester 351
de repetição, a apontar e disparar. Assim apetrechado só lhe restava
dar voltas no céu à espera de que um avião inimigo, suficientemente
benévolo, cometesse a leviandade de passar ao seu alcance.
Pois b em ! nessa tarde, por muito extraordinário que pareça,
o caso apresentou-se.
Um aparelho alemão do tipo Taube (segundo o identificou o
herói do episódio) regressando às suas linhas e evidentemente muito
míope, dirigira-se, à mesma altitude que êle, ao Henri Farman de
(1) Os Henri Farman e os Maurice Farman, que tantos serviços prestaram no
comêço da guerra, foram assim batizados com amistosa familiaridade pelos aviadores, por
causa dos seus dois planadores, dos numerosos mastros verticais e escoras, que lhes
davam, vistos de longe e com alguma imaginação, um certo aspecto de engradados para
transportar galinhas. A essa alcunha está ligada muita glória.

54
0 comandante De Rose, criador O tenente Chambe, na época dos
da aviação de caça. seus primeiros combates.

O sargento Frantz e
o mecânico Qué-
luilllt, da esquadri­
lha V. 24, que con­
seguiram a primeira
de (Adas as vitórias
aéreas em 5 de ou­
tubro de 1914.
O Morane-Saulnier Parasol, de dois lugares e de caça (março de 1915), armado
de uma carabina, que foi por muito tempo o rei dos ares. (O piloto ia à frente
e o passageiro atrás).

Um A lb a tr o z em pleno vôo, surpreendido pelo aparelho fotográfico de um avião


que o sobrevoou a cerca de cinqüenta metros.
Balas sem resultado

guarda na atmosfera. Isto significava, conforme a locução popular,


acertar em cheio no milhar, e naturalmente há pessoas que ganham
o grande prêmio na Loteria Nacional.
Que sucedeu então ?
O mais simples é ceder a palavra ao tenente Perrin de Bricham-
baut, que pessoalmente registrou o fato. Eis a sua explicação:
Engreno o meu sistema de sandow, que permite ao meu avião
voar sozinho; pego a minha carabina de cima dos joelhos e espero.
Êstes últimos segundos foram incrivelmente longos: ou o Taube
passaria a poucos metros, ou abalroaria, sem o ver, o meu aparelho,
o que significava para nós ambos a queda espantosa de 2.000 metros
de altura! Um calafrio percorreu-me a espinha e apertei bem a
minha carabina. .. Em seguida o enorme pássaro, com grande ruído
de motor e hélice, ultrapassou lentamente o meu plano superior,
alguns metros acima. Primeira bala no nariz do motor, seguida de
outras. Ao quarto disparo o Taube afocinha diante da minha
nacelle, endireita-se, torna a cair, chega ao solo quase desgovernado
e volta-se completamente na aterrissagem. Nenhum homem sai dos
destroços, mas logo uma multidão de pessoas, do tamanho de for­
migas, surge dos seus esconderijos e corre para o local do acidente.
Preparo uma bomba e, sobrevoando aquele objetivo, jogo-a por cima
da borda; ela não tarda a cair, e os pretensos salvadores, apavorados,
dispersam-se em tôdas as direções e desaparecem, deixando debaixo
do aparelho o piloto e o passageiro (x).
Infelizmente, como para Gaubert e Bayle, o episódio desenro­
lara-se sôbre as linhas alemãs. Nenhuma testemunha foi conseguida,
ninguém assistira ao combate. Camaradas de esquadrilha debalde
declararam, no dia seguinte, ter sobrevoado o local indicado, avis­
tando, com efeito, um avião imóvel no solo, mas a prova não foi
julgada suficiente, e, como escreve o tenente Perrin de Brichambaut,
a sua narrativa foi acolhida, no regresso, com algum ceticismo. Ne­
nhuma vitória aérea foi consignada a seu crédito.
A 25 de outubro, sempre no venerável “engradado de galinhas”
Henri Farman, que os seus tripulantes teimavam em fazer admitir
no quadro de honra, foi a vez do cabo-pilôto Strebick e de seu me­
cânico David, de voltar à carga declarando haverem encontrado um
avião inimigo (desta vez ainda, um Taube), porém achando-se desar-1
(1) Aviation de Guerre. Feuillets de bord d’un aviateur. Étiene Chiron, edit.

55
N o tem po das carabinas

macios voltaram à pressa à esquadrilha, aterrissaram, tornaram a


partir logo em seguida com as carabinas, tiveram sorte de encontrar
de novo o Taube mais ou menos no mesmo ponto do céu e atacaram-
no sem perda de tempo. Às primeiras balas, o aparelho alemão
explodiu no ar.
Pouca sorte ! o embate verificara-se, como nas vêzes anteriores,
sôbre as linhas alemãs. Nenhuma testemunha, nenhum observa­
tório de artilharia, nenhum balão cativo estava em condições de
confirmar a autenticidade da extraordinária proeza. Em conse-
qüência, do mesmo modo que Gaubert, Blaise e Perrin de Bricham-
baut, Strebick e Davi também não viram homologado o seu feito.
Nessa época o comando vigiava ciumentamente, e com tôda a razão,
a fim de não deixar campo livre aos abusos que sem dúvida se
multiplicariam, caso se mostrasse fàcilmente crédulo. Êle exigia
provas irrefutáveis. Tanto pior para as equipagem que, embora
certas de haver derrubado um adversário, não estivessem em con­
dições de as fornecer.
Isso era preferível do que abrir a porta às declarações fantasistas
das imaginações exaltadas. Só nestas condições a reputação da caça
francesa (muito mais do que o seria no futuro a da caça alemã) per­
manecería sem mácula; suas vitórias eram indiscutíveis.
*

Bem mais sèriamente constatados iriam ser os embates do aviador


Gilbert.
Tantos dias passaram, tantos acontecimentos se sucederam em
quarenta anos, tantos progressos foram realizados no domínio do
ar, tantas proezas levadas a cabo por campeões de tôdas as aviações do
mundo, em tempo de guerra como em tempo de paz, que a
lembrança de certos rostos famosos em 1910, ou 1913, se vai esfli­
mando hoje ou desapareceu por completo da memória dos homens.
É o que sucede com Gilbert.
Eugène Gilbert incluia-se entre os grandes pilotos cujos nomes,
como o de Blériot, dos irmãos Farman, dos irmãos Morane, de Bré-
guet, de Lathan, de Marc Pourpre, de Brinde-jonc-des-Moulinais, de
Pégoud, de Garros e tantos outros, provocavam o entusiasmo das
multidões.
Não era para os botequins moral e fisicamente insalubres de
Saint-Germain-des-Prés que corria então a mocidade francesa, mas

56
Balas sem resultado

para os aeródromos dos grandes começos da aviação, os de Villacou-


blay, de Buc ou d’Etampes. Respirava-se ali um ar muito mais puro.
Ela sabia vibrar. Rapazes e moças, levados pelo desejo de se apai­
xonar por uma grande causa, saíam de Paris em grupos compactos,
às vêzes muito cedo, de bicicleta ou mesmo a pé, dirigindo-se para
aqueles campos distantes, alentados pela esperança de ver voar, pela
vontade de dar largas à sua exaltação, à sua fé, de aclamar os heróis
das primeiras façanhas cujos nomes andavam em tôdas as bôcas, e as
fotografias em todos os jornais. A mocidade tinha um alimento
para o seu natural e generoso arrebatamento.
Nas vésperas da guerra, Gilbert era um dos aviadores mais po­
pulares. Sua viagem Paris-Madrid, seguida de uma volta pela Es­
panha, colocara-o na primeira fila dos grandes pilotos. Detentor do
recorde de velocidade em 1913, com 192 quilômetros à hora em mono-
coque Deperdussin, o maravilhoso monoplano desenhado por Bé-
crereau que, dotado de um motor de Gnôme de 160 cv, marcava um
avanço de vários anos sôbre a construção aeronáutica mundial, Gil­
bert era além disso detentor da Taça Michelin, ganha com extraordi­
nário brio em 39 h. e 45 m., a 8 de junho de 1914.
A guerra encontrara-o em plena glória. Agora ali estava sob o
quepe de sapador-aviador, mobilizado com seus outros camaradas de
nomes prestigiosos, Garros, Védrines, Pégoud, Brinde-jonc-des-Mou-
linais, Marc Pourpre, Lacrouze, que todos tinham vindo colocar-se
às ordens da França, com seu talento, sua mestria e sua bravura. A
aviação, de asas até então imaculadas, ia em breve ver suas plumas
de ferro salpicadas de sangue.
Gilbert fôra adjunto, com seu querido amigo Roland Garros, o
herói da primeira travessia do Mediterrâneo, à esquadrilha M. S. 23,
equipada desde o mês de agosto de 1914 com Morane-Parasols.
Porisso, a M. S. 23 conhecera muito antes da M. S. 12 o privilégio
de ser dotada dêsses aparelhos considerados muito delicados, mas
que se sabia serem os aviões militares mais velozes. Suas tarefas
não iam então além de reconhecimentos ao mais longe possível das
linhas inimigas, e por vêzes de bombardeios por meio de setas Bon (x),1
(1) Pequenas flechas de aço, do calibre de uma bala de fuzil, cujas caneluras
estudadas asseguravam a rotação, ao mesmo tempo que uma perfeita estabilidade na
trajetória. Elas comportavam-se como o projétil de uma arma raiada. Milhares dessas
flechas foram lançadas por ocasião das primeiras operações de 1914, ou seja durante tôda
a fase da guerra de movimento. As colunas de tôdas as armas surpreendidas em caminho
nos seus deslocamentos, eram muito vulneráveis à sua ação. Elas realizaram maravilhas
quando da Batalha do Mame.
57
N o tem po das carabinas

e, mais tarde, com obuses de 90 munidos de empenagem. Não se pen­


sava ainda em combates aéreos, que continuavam pertencendo ao
domínio do sonho.
A hora da M. S. 12, primeira esquadrilha consagrada exclusiva­
mente à caça, ainda não tinha chegado.
Sucedia a Garros subir como passageiro de Gilbert, para se
entregar a êsses bombardeios sem grande eficácia, mas que os entu­
siasmavam a ambos. Contudo êles não tardaram a reconhecer o par­
tido que se podería tirar de um avião rápido para dar caça aos do
inimigo. Esta idéia, e o desejo de procurar a luta, traziam-nos obce­
cados. Como haveria de ser de outro modo com dois especialistas
da velocidade ?
Estavam êles refletindo no melhor armamento a dar a um Pa­
rasol, quando explodiu a notícia da vitória de Frantz e Quénault.
Tinham-se antecipado a êles ! Vivamente irritados, decidiram passar
imediatamente à ação. Garros conseguiu ir durante algumas semanas
para a retaguarda, trabalhar num dispositivo de tiro em que pen­
sava havia muito tempo, mas que achava dever guardar em segrêdo.
Na sua opinião, o caçador devia dispor de três fatores determinantes:
velocidade, maneabilidade e potência de fogo. Ora, a velocidade
pertencería sempre ao aparelho de um lugar, e não ao de dois, mais
carregado. O mesmo se dava com a maneabilidade. O monocoque
Deperdussin da Taça Deutsch provara-o sobejamente. Solução: era
necessário adaptar para a caça um avião de um lugar, de tal modo
que o piloto pudesse ao mesmo tempo pilotar, apontar e disparar com
arma de tiro cerrado e rápido. Era êsse o segrêdo de Garros, que
iria tornar-se o incontestável precursor da verdadeira caça e apontar-
lhe os caminhos.
Béchereau desenhara o monocoque Deperdussin, Saulnier dese­
nhava, sabia-o êle, um monocoque Morane. Iria vê-los ambos, e
escolhería.
Gilbert era mais apressado. Queria caçar imediatamente com
aquilo de que dispunha. Para quê esperar ? Com os seus 125 quilô­
metros horários e a visão desimpedida, o Morane-Parasol devia pres­
tar-se à perseguição, a sua maneabilidade às acrobacias do ataque, e
a carabina do passageiro ao duelo decisivo. Os dois amigos despe­
diram-se, jurando fazer um vida dura, cada qual a seu modo, à
aviação alemã. Garros partiu ao encontro de Morane. Gilbert ficou
ali mesmo, na M. S. 23.

58
Balas sem resultado

A M. S. 23 era uma esquadrilha mestra. Às ordens do capitão


Vergnette incluía, entre pilotos e observadores, algumas figuras
de primeira plana: Garros e Gilbert já citados, Marc Pourpre, o
tenente Le Révérend (que como vimos no começo desta narrativa,
veio a ser seis meses depois adido ao comandante de Rose, em
Jonchery), os tenentes Grandry e de Puechredon e o ajudante
Pinsard.
Mas quem era Vergnette, chefe de esquadrilha ?
Tendo recebido algum tempo antes o seu terceiro galão, o capitão
de Vergnette de Lamotte tinha sobretudo a alma de um cavaleiro.
Montava desde a idade de cinco anos. Quem não o encontrara, antes
da guerra, em algum hipódromo ? Freqüentava-os todos, quer em
Paris quer na província.
De pequena estatura, o que o levara a ser classificado “cavaleiro
leve”, alternadamente hussardo ou caçador montado, conforme as
suas sucessivas atribuições, firmara-se ràpidamente como um temível
especialista de corridas militares. Sempre muito elegante, de calções
de cheviote branco, botas extra-moles à jockey, intencionalmente
privadas de esporas, era o terror dos segundos tenentes que a sua
concorrência desorientava. Montando excelentes cavalos, sempre per-
feitamente treinados e peritos em obstáculos, era quase habitual (êle
a quem considerávamos um velho graduado) vê-lo atravessar os postes
de chegada com um folgado número de corpos à frente do pelotão
dos jovens.
Mas então quanta amabilidade nêle ! Que fulgor malicioso nos
olhos franzidos ! Que gôsto de encantadora intimidade enfiando o
seu braço no nosso:
— Amigos, vamos regar isto !
As rolhas saltavam, a espuma fervilhava alegremente nas taças.
Os olhos riam. Belas recordações do tempo de paz antes de 1914.
Quando ainda existia uma verdadeira, magnífica cavalaria ! Tempos
como êsses não voltarão mais. Nem para nós, nem para ninguém.
Eu conhecia bem Vergnette, por haver um dia competido com
êle no campo de corridas de Teixonneras. Naturalmente êle ga­
nhara. E Le Révérend também o conhecia, até melhor do
que eu. Encontrara-se com êle em numerosas competições mili­
tares. Agora estava sob as suas ordens na M. S. 23, como a mim me
sucedeu diversas vêzes, durante a minha carreira. O comandante,
depois coronel de Vergnette iria ser meu chefe em várias oportuni-

59
N o tem po das carabinas

dades —sempre devido à minha boa estréia, —em circunstâncias bem


diferentes, algumas em dias crepitantes, lá longe, no outro extremo
da Europa, nessa România primeiro esmagada sob o pêso dos Im­
périos Centrais, depois traída pelos russos e finalmente vitoriosa ao
lado da França.
Por agora, Vergnette transferido naturalmente para a aviação,
comanda a esquadrilha do Exército M. S. 23, e tem Gilbert sob as
suas ordens.
Freqüentemente voa como passageiro de Gilbert. Como sucedeu
a 2 de novembro.
A 2 de novembro de 1914, nos arredores de Amiens, Gilbert
ainda sargento e o capitão de Vergnette voavam nas linhas alemãs a
2.000 metros de altitude, para um reconhecimento das organizações
inimigas. Acabara a Corrida para o Mar e começava a batalha de
Ypres, mas já ao longo da frente apenas esboçada os adversários se
enterram, escavam o solo, constroem a rêde inextrincável das suas
trincheiras. Dia após dia as aviações de exército, de corpos de
exército e até de divisões (*) observam aquêle lento e tenaz trabalho
de insetos, tomando notas, traçando croquis (não ainda fotografando).
Vergnette bateu no ombro de Gilbert. Meia volta ! Acabaram, re­
gressam trazendo ampla colheita de informações com que se enfeita
de linhas azuis e vermelhas o mapa do capitão Vergnette.
Mas que é aquilo ? Dois aviões ao longe, mais baixo do que
êles, parecendo empenhados em luta. E estão-no, com efeito. Um
Albatroz, identificável pela cauda triangular, surpreendera e ata­
cara por trás um desventurado Maurice Farman, tripulado pelo
piloto e o capitão observador Moriss, de uma esquadrilha de corpo
de exército. Imaginem, os alemães lançam-se por sua vez à caça !
O pobre Farman vai ser abatido, não consegue afrouxar o abraço
fa ta l! O Albatroz cola-se à sua cauda. Com o motor a pleno regime,
o Morane-Parasol mergulha literalmente para o lugar do combate.
A distância diminui a olhos vistos. Vergnette, com imensa calma,
como se estivesse empunhando a chibata com a mão direita, prepa­
rando-se para o final de uma corrida, soltou a correia da carabina
que a prende ao montante e ajeita a coronha na mão esquerda. Não
precisa de carregar porque a arma está preparada. Com um movi­
mento do polegar liberta o percutidor do seu entalhe de segurança.
Preparado. Pronto para atirar.1
(1) As raras divisões que já dispunham de alguns aparelhos.

60
Balas sem resultado

Com a sua mestria de grande piloto, Gilbert conduziu, e depois


instalou confortavelmente o Morane uns vinte metros atrás do
Albatroz, mantendo-se numa posição sensivelmente dominante. A
guarnição inimiga, tôda entregue ao cuidado de se colocar à reta­
guarda do Farman, nada suspeita. A primeira bala do capitão
de Vergnette constitui para ela uma pungente revelação, ao estalar
em suas telas como uma chicotada. Que foi que atingiu ? O piloto
não, com certeza, porque o Albatroz, num movimento desordenado,
vira brutalmente sôbre a asa, tentando libertar-se. Mas falta-lhe
sorte, é com Gilbert que tem agora de haver-se ! E Gilbert é nessa
ocasião, juntamente com Pégoud, o melhor acrobata do ar, ninguém
lhe escapa tão facilmente ! Apesar dos seus esforços, o Morane per­
manece aferrado à sua empenagem.
Segunda, e depois terceira bala dos mosquetão do capitão Ver­
gnette, ambas bem aplicadas por um atirador há muito acostumado a
dominar seus reflexos. Gilbert e Vergnette constituem uma
guarnição extraordinàriamente perigosa, e o diálogo arrisca tomar
feição desagradável. O piloto alemão pressente-o. É corajoso, mas
não temerário. Mais vale interromper a conversa sem vãs fórmulas
de delicadeza e até mesmo sem glória. E ainda bem que estão sôbre
as linhas alemãs ! Convém aproveitar essa circunstância !
O Albatroz “pica” violentamente e desce como um louco para
a terra salvadora. Ao mesmo tempo o Farman do capitão Moriss,
pombo feliz liberto das garras do gavião pelo chumbo do caçador,
quase estoura os cilindros do seu motor e regressa às linhas fran­
cesas à inconcebível velocidade de 85 quilômetros horários. Mais
tarde exprimirá, pelo telefone, a sua gratidão ao comandante
Vergnette.
Nesse meio tempo a equipagem do Morane, cedendo a uma
legítima curiosidade, deseja saber o que aconteceu à sua prêsa. É
infelizmente certo que ainda dessa vez a batalha se travou acima das
linhas inimigas. É impossível, sem grave e inútil imprudência, aven­
turarem-se a menor altura. Gilbert e Vergnette cometem no entanto
essa imprudência. Têm assim oportunidade de observar longamente o
Albatroz, que em vez de voltar à sua esquadrilha poisou em pleno
campo, onde fica imóvel e incapaz de retomar o vôo.
Que avárias terá recebido ? De ordem material ou de ordem
pessoal ? Nunca o saberão. O que sabem com tôda a certeza é
que o adversário foi claramente posto fora de combate. Jogaram-no
ao tapete.
61
N o tem po das carabinas

Satisfação platônica porque essa vitória, do mesmo modo que as


anteriores, não será homologada. O comando decidirá que, desde
que pousou em terreno seu, êsse avião não poderá ser considerado
abatido. A equipagem e o próprio aparelho não foram destruídos,
e portanto, uma vez curados ou consertados, ambos estarão aptos
a prosseguir na luta em proveito da Alemanha. Em todo o caso
o general Castelnau faz questão de render homenagem ao capitão
de Vergnette e ao sargento Gilbert pela sua façanha.
O Journal Officiel de 9 de dezembro de 1914 publicará o extrato
seguinte da ordem n.° 179 do II Exército, datada de 2 de novembro:
O general comandante do II Exército cita na ordem do Exército:
—- De Vergnette, capitão de cavalaria comandante da esquadrilha
M. S. 23.
— Gilbert, sargento reservista, piloto da mesma esquadrilha.
“Vendo um avião francês perseguido por um taube, deram caça
a êste último, aproximaram-se dêle a uma distância de vinte metros,
dispararam-lhe três balas de mosquetão, forçando-o a aterrisar em voo
excessivamente picado num campo de onde parece que ele não
pôde tornar a partir
Quartel-General, 2 de novembro de 1914.
O General Comandante do II Exército
Castelnau.

Admiramos o estilo desta citação. Vale a pena. Podemos cons­


tatar que o oficial de estado-maior que a redigiu já fala uma lin­
guagem suficientemente aeronáutica. O fato não é tão comum
para que o não saudemos de passagem. Já não se fala de aeroplano
e sim de avião, e êste têrmo era ainda, nêsse tempo, uma palavra
quase científica, reservada aos especialistas. Melhor ainda, as expres­
sões aterrissar e vôo picado estão corretamente empregadas. Na
verdade, o redator está adiantado alguns meses da sua geração, mas
apenas de alguns meses, pois a aviação não tardará a ganhar a sua
carta de nobreza. Com a amplitude da sua ação tal linguagem
tornar-se-á familiar a todos, penetrando desde as mais baixas até às
mais altas escalas do comando.
Todavia, o autor do texto sacrifica ainda à sua época qualificando
de taube o adversário do capitão de Vergnette. Nesse 2 de novembro
de 1914, os gabinetes de operações, do mesmo modo que os comba
tentes do Exército de Terra ou os habitantes das cidades e dos cam­

62
Balas sem resultado

pos, ainda não estabelecem diferença entre os tipos de aviões alemães.


Para êles são todos taubes, como para os soldados de infantaria
todos os cavaleiros inimigos são ulanos. Decorrerá ainda bastante
tempo antes que os Aviatik sejam tratados de Aviatik, os Albatrozes
de Albatroz, a cavalaria ligeira de cavalaria ligeira e os dragões
de dragões. E ainda é muita sorte que os próprios aviões franceses
não sejam todos englobados, sem distinção, na universal família dos
taubes, e como tais recebidos a tiro de metralhadora e de canhão.
Gilbert possui a êsse respeito uma opinião muito pessoal, baseada
na experiência. Certo dia, no comêço da guerra, a 16 de agosto,
quando em companhia de Garros se preparava para descer no campo
de Nancy, não foi êle, a menos de trezentos metros de altitude e a
despeito das suas rosetas tricolores, visado e copiosamente recebido
à bala, ainda que sem danos, por uma coluna de infantaria cir­
culante na estrada que beirava o aeródromo ? Nervosismo ? Incons­
ciência ? Explique-o quem p u d e r... O fato é que tais equívocos
se repetiram numerosas vêzes, desde a fronteira suiça até ao Mar do
Norte. Não tinham conta, e o mesmo sucedia do lado alemão. De
modo geral, para um combatente de terra, qualquer avião, fôsse
qual fôsse, era antes de mais nada um avião inimigo. Após alguns
meses de guerra, os aviadores achavam que êsse axioma já não preci­
sava de ser demonstrado.
*

Quinze dias depois, a 18 de novembro de 1914, um grupo de


três Albatrozes foi assinalado na direção de Amiens, sem dúvida
para bombardear a cidade. Imediatamente, três Morane-Parasols da
M. S. 23 decolaram para os interceptar. Dois não o conseguiram,
o do cabo-pilôto Métairie com o tenente observador Juvigny, e o do
cabo-pilôto Lacrouze (1) com o tenente observador Frandry. Ao
vê-los, os Albatrozes fugiram. Mas o terceiro, pilotado por Gilbert,
levando o mecânico Bayle como passageiro, logrou alcançá-los em
cima de Bapaume. Bayle estava armado, como o estivera o capitão
de Vergnette, com um simples mosquetão de cavalaria.
O combate travou-se a 2.500 metros de altitude com um dos aviões
cujo motor deve ter causado alguns aborrecimentos, pois êle voga
(1) Dêstes quatro aviadores, dois morrerão mais tarde em combate aéreo, o tenente
Juvigny e o cabo Lacrouze. O cabo Métairie será gravemente ferido em combate aéreo
c sofrerá a amputação de um braço.

63
N o tem po das carabinas

penosamente na esteira dos seus dois camaradas. Êstes, cuidando


de alcançar quanto antes as suas linhas, abandonaram-no vergo­
nhosamente à própria sorte. Como fizera com o capitão de Vergnette,
Gilbert conduziu o seu passageiro até uma distância de vinte metros
atrás da empenagem do Albatroz. Não sem alguma dificuldade, por­
que o piloto alemão, de boa classe, se debate com energia.
O mecânico Bayle abre fogo, queimando um primeiro carregador
de três cartuchos sem resultado aparente. Arranca então as luvas
(grave imprudência), para o substituir mais comodamente por outro
cheio. Mas o observador do Albatroz, colocado como no Aviatik
à frente do aparelho, ou seja em condições desvantajosas para sus­
tentar a luta, encontra no entanto, graças à habilidade do seu
piloto, um ângulo de tiro possível e replica com uma rajada de
metralhadora. Surprêsa desagradável. O Morane é atingido. Uma
bala atravessou o tanque de gasolina, felizmente pela parte superior
e sem o incendiar; outra perfura de lado a lado o cofre do aparelho,
varando à passagem um masso de cartões postais fotográficos repre­
sentando Gilbert na tarde da sua vitória da Taça Michelin, às vés­
peras da guerra. Mais tarde autografados por êle, êsses cartões são-
lhe arrebatados como preciosas lembranças. Uma terceira bala
faz estalar, rasgando-a como uma chicotada estridente, a tela da
asas direita, têsa como a pele de um tambor, a poucos centímetros da
cabeça de Bayle.
Gilbert mal tem tempo de se desviar com uma virada vertical.
Felizmente o Parasol é um avião sensível e ágil, respondendo pron­
tamente aos comandos. Uma segunda guinada não tarda a recon-
duzi-lo ao contacto, pois Gilbert não pensa em abandonar assim a
prêsa. Mas nesse movimento, com o piloto alemão tentando ma­
nobrar por sua vez, os dois aviões não colidem por um dedo, pas­
sando o Morane de raspão por cima do Albatroz. As equipagens fran­
cesa e alemã devem ter sentido o sangue gelar-lhes nas veias.
O alemão procura ganhar distância, mas o cachorro francês não
o largará. Os riscos do ofício já eram suficientemente grandes para
que êle viesse ainda complicar tudo com o seu estúpido ataque e
as manobras que poderíam levá-los ambos a espatifar-se !
O cachorro francês não o larga, é teimoso, logrou enterrar de
novo as prêsas na cauda do Albatroz. Está, como há pouco, bem
atrás dêle. Bayle dispara segundo carregador de três cartuchos, um
a um, a dez metros, sem se apressar. Nada ! não se constata nenhuma
desordem a bordo do avião inimigo. Mas desta vez o observador

64
Balas sem resultado

é incapaz de responder. Gilbert tem-o de ôlho. Com habilidade


diabólica e imperceptíveis movimentos da alavanca de comando
do leme e do pedal, visa-o por baixo do plano superior do Albatroz
quando pressente que o seu piloto procura distanciar-se.
Infelizmente não consegue colocar a bala decisiva. Também não
é fácil, com as famosas “correções”! As trincheiras aproximam-se !
Atravessam-nas. Ei-las ultrapassadas. Voam agora em plenas linhas
alemãs. Bayle trocou mais uma vez de carregador. O tiro vai ficando
cada vez mais difícil, porque o Albatroz, sentindo-se em casa, cessou
de fugir em linha reta. O piloto defende-se bem, vira, pica, torna
a virar, para a esquerda e para a direita, obrigando Gilbert a ma­
nobras ininterruptas. Apontar um mosquetão nessas condições, arris­
cando-se a ser a cada instante projetado no vácuo, é pura acrobacia.
E Bayle — pormenor inquietador, — já não sente nos dedos, que se
tornaram brancos e insensíveis como de madeira, o contacto da sua
arma. Faz um frio glacial de 16° abaixo de zero. Bayle tem as mãos
geladas, e, cúmulo da pouca sorte, as suas munições esgotaram-se.
Há trinta e cinco minutos que dura o combate. Os dois aviões
voam agora sôbre Montdidier. A guarnição francesa aventurou-se
terrivelmente longe nas linhas inimigas. Acabou-se ! é preciso
regressar. . .
Com a morte na alma, Gilbert decide-se a abandonar a luta e a
dar meia volta, enquanto o Albatroz, enfim livre, rompe em vôo
plano e pica a 45° para sueste. Terá sido atingido e leva avarias a
bordo ? Gilbert e Bayle estão convencidos disso, mas não certos.
Ainda desta vez não é possível falar de vitória. O combate acabou
sem decisão. O único resultado da refrega será inscrever no ativo de
Bayle: cinco semanas de hospital com as mãos geladas e sofrimentos
pavorosos.
Quando terão as carabinas a sua desforra ? Até agora nada, a
não ser decepções e derrotas. . . A única vitória aérea conseguida foi
a de Frantz, e essa com auxílio de uma metralhadora.

65
A SEGUNDA VITORIA

Essa vitória é Gilberto que a vai arrebatar. E será de justiça.


Chega-lhe para compensar a pouca sorte dos primeiros combates. É
até mais do que justa, pois êle continua, mais do que qualquer outro
piloto, a procurar encarniçadamente a luta. Não cessa de afirmar aos
seus companheiros de esquadrilha que quer e há-de ter a encrenca !
Abaterá um avião inimigo nas linhas francesas.
Será de justiça também para os atiradores de carabina. Os
gracejos e piadas não os têm poupado nestes últimos tempos. Depois
de tantos ataques malogrados, como podiam êles ter ainda alguma
confiança nessa arma fora de uso ? Que candura ! Era o mesmo
que pretender caçar abutre com funda.
Porém, não há nada pior que a Fé. Ela triunfa de tudo. Uma
coisa que verdadeiramente se deseja, com tôdas as forças da imagi­
nação e da alma, acaba sempre por se realizar. Cria-se um poder
misterioso. Quando queremos convictamente e com paixão alcançar
um fim, sempre o conseguimos. Se há malogro, é porque não
soubemos querer bastante. As Escrituras Sagradas aí estão para nos
instruir nesse ponto, oferecendo ao homem o mais sensacional dos
conselhos: “A Fé transporta montanhas”. Mas o homem não possui
a energia de o pôr em prática. É um ser todo fraqueza.
Sucede precisamente que os atiradores de carabina são homens
de fé — de uma fé cega, a fé do carvoeiro, porque se não baseia em
nenhuma demonstração valiosa. Nenhum avião fôra até essa altura
abatido a tiros de carabina.
Que importa, porém ? A fé não raciocina, é um estado de graça !
E os caçadores, como eram então chamados entre os homens sérios
com um sorriso de suficiência, acham-se em estado de graça.
Sem dúvida assim deve ser, porque vai fazer dois meses — após o
combate de Gilbert e de Bayle, —que nada se passou de notório, ulém

66
A segunda vitória

de algumas balas trocadas aqui e além, como sempre sem resultado.


A única coisa a assinalar é o embate de um aspirante chamado
Mahieu, da esquadrilha V. 24, com um Aviatik, também não coroado
de êxito. Contudo Mahieu e o Fritz lutaram bem. Pôde ver-se.
Agora as semanas sucedem-se umas às outras. Baldadamente.
As tripulações alemãs parecem determinadas a não se aproximar
muito das rosetas francesas, sobretudo das que florescem nos lemes
dêsse monoplano de asas facetadas, cauda fendida, e cujo perfil cru-
cífero evoca suspeitamente o do gavião: o Morane-Parasol.
Quase dois meses.
Hoje, 10 de janeiro de 1915, Gilbert levantou vôo em com­
panhia de um oficial observador, grande apaixonado da carabina,
o tenente de dragões de Puerchredon. Vão realizar nas linhas alemãs,
por cima de Saint-Quentin, um reconhecimento importante para o
II Exército. A M. S. 23, sempre sob o comando do capitão de Ver-
gnette, tem sobretudo a missão de realizar vôos regulares, observação
do campo de batalha, reconhecimentos distantes na retaguarda do
inimigo, ataques com bomba a objetivos determinados. Só eventual­
mente lhes é permitido entregarem-se aos prazeres da caça, e isso
quando a ocasião se apresenta sem a terem procurado. Isso é pouco
para a fome dos candidatos-caçadores, especialmente para a de
Gilbert.
São 9 horas da manhã. Meia volta e lá vão. Lá vão, com sol nas
costas, porque um pálido sol de inverno acaba de resolver-se a cortar
o lençol das brumas. A essa nova claridade surgem numerosos deta­
lhes até há pouco invisíveis. O chão anima-se. As estradas brilham.
Telhados reluzem. Vidraças despedem labaredas. O pára-brisas
de um auto reflete com intermitências uma centelha de luz, que se
apaga e reacende ao acaso das curvas, como o feixe de uma lanterna
portátil cujo interruptor se manobra.
E no céu ?
No céu, nada. Nuvens de leitosa intumescência, faixas de nevoeiro
que se deslocam e deformam, se desmembram e destorcem; mais
nada. A perder de vista, o vazio. Estão a 2.500 metros. Faz um
frio agudo que congela os bigodes do tenente de Puechredon e torna
cada vez menos suportável nas faces o contacto da borracha dos
óculos. Já têm quase duas horas de vôo. Daí a vinte minutos, quando
muito, terão aterrissado, e estarão empurrando a porta da barraca
onde, nesse momento, deve estar aquecida ao rubro a estufa a lenha,

67
N o tem po das carabinas

cercada de camaradas que se preparam para saborear uma cachim­


bada. Beberão um famoso grog para esquecer ! A vida é boa !
Vamos, mais uma pouca de coragem ! A visibilidade é excelente.
Em todo o caso não se pode passar tão perto de Chaulnes sem fazer
um rodeio para a ir sobrevoar. Boa ocasião para ver o que lá se passa.
Dizem que os alemães aí instalaram um importante centro cie reabas­
tecimento. Puechredon bateu no ombro esquerdo de Gilbert, cujas
costas, muito próximas, o protegem do vento. Gilbert, dócil, obe­
deceu à sugestão. Virou à esquerda. Entendido, irão sôbre Chaulnes.
Será apenas um pouco mais de frio, mas em compensação bebem-se
dois grogs em vez de um. Sim, a vida é bela !
Mas de repente Gilbert sente de novo no ombro, agora do lado
direito, batidas precipitadas, imperativas. Que há ?. . . Puechredon
desprendeu a fivela do seu cinto e levantou-se. Sua luva forrada
de peles, de indicador estendido, roça a face de Gilbert. Sua voz,
abafada pela espessura do passa-montanha, é quase inaudível. No
entanto êle grita com tôda a força:
— Ali ! ali ! à nossa frente, um avião !
Um avião ?. . . Com tôda a energia vibrando, Gilbert olha mas
a princípio não vê nada. Não é possível, Puechredon deve estar
sonhando ! Mas no exato momento em que as pancadinhas febris
recomeçam a martelar-lhe o ombro, vê !
No papel pardo do céu fulgurou um clarão, um traço claro logo
apagado, como o de uma truta no remoinhar da torrente. Foi
o bastante. O sol é um traidor, atraiçoa quando lhe parece e quando
quer, conforme a hora e a disposição. Hoje resolveu atraiçoar o
capitão von Falkenstein e o tenente Keller, do imperial exército
alemão. É a vez dêles, mas êles não o sabem. Ambos navegam tran-
qüilamente, na direção de Amiens. Para onde irão ?
O que Puechredon acaba de fazer sôbre Saint-Quentin, deve
fazê-lo Falkenstein sôbre Amiens. E deve fazê-lo tanto melhor quanto
leva na algibeira, dobrada em quatro, uma nota de serviço recebida
na véspera cuja leitura nem por isso lhe foi muito agradável. O
general comandante do III.° Exército de S. M. o Kaiser queixa-se,
com uma aspereza velada mas que não deixa lugar a equívocos, da
insuficiência de informações fornecidas pela esquadrilha de von Fal­
kenstein, e pede que no futuro os senhores aviadores cuidem de
executar com mais cuidado os reconhecimentos a que êle atribui o
maior valor.

68
A segunda vitória

O tenente Keller, piloto, e o capitão von Falkenstein, chefe de


esquadrilha, tratam nesse momento de levar a cabo do melhor
modo possível um reconhecimento ao qual se atribui enorme impor­
tância: Amiens. Com tanto cuidado que em seu zêlo negligenciam
as regras mais elementares da prudência. Inteiramente ocupados a
bem observar o objetivo, esquecem-se de vigiar com suficiente atenção
o céu. Ignoram que o sol acaba de denunciá-los, fazendo brilhar a
fuselagem do seu Rumpler, não suspeitam que a menos de qui­
nhentos metros olhos franceses acabam de descobri-los, e que,
tendo-os descoberto, os devoram já com gula. Não desconfiam que
um acaso maligno os colocou diante de dois dos mais temíveis
adversários: Gilbert, campeão de acrobacia aérea, e Puechredon, cam­
peão de tiro de carabina.
*

Sobrevoam Rosières-en-Santerre. Imperturbável, o avião alemão


avança a 285° em direção a Amiens. Por um momento Gilbert segue
o seu caminho. Mas depois, certo de que a sua manobra não será
descoberta, afasta-se um tanto para a direita e ganha altura, tendo
a precaução de ficar entre o inimigo e o sol. Dêsse modo a equipagem
francesa não será vista, e pelo menos até ao último instante êle
desfrutará a vantagem da surprêsa. O 80 c.c. Rhone, levado à
extrema potência,, produz no ar gelado um zumbido claro. A car-
buração é excelente. , Puechredon empunhou a sua carabina (como
sempre um mosquetão comum de cavalaria), e gira-lhe a culatra.
A arma está bem carregada, com uma bala já pronta no cano e
outras três sobrepostas no carregador. Resta-lhe apenas esperar.
O coração de Gilbert palpita de alegria. Cada minuto que
passa a situação melhora. As esperanças da guarnição do Morane
sobem de segundo para segundo. Êles penetram cada vez mais nas
linhas francesas. Até que enfim é sôbre terreno seu que vão lutar,
pois agora já é impossível não se baterem ! Gilbert está cem metros
acima do Rumpler e quinhentos metros atrás dêle, ligeiramente à
direita, com o motor ao ralenti. Quando fôr solicitado o Parasol
obedecerá ao comando e mergulhará como uma ave de rapina. A
distância se fundirá como neve em água a ferver. Os quinhentos
metros desaparecerão e dar-se-á o contacto.
Mas uma dúvida aperta de repente a garganta de Gilbert. E se
o aparelho a que êle está dando caça não fôr um avião inimigo ? Por­

69
N o tem po das carabinas

que, afinal, ainda não se sabe. Com aquelas manchas que toldam
o céu, o nevoeiro que se desfia e por vêzes se irisa ao lívido sol de
inverno, a visibilidade é má. Em certos momentos tudo se confunde
na claridade fôsca. O aparelho desconhecido desaparece então,
insuficientemente iluminado, depois reaparece de repente todo
negro, com uma nitidez de sombra chinesa, para logo se desvanecer
como desfeito em sonhos. Será de fato real aquele avião ? Existiría
verdadeiramente ? Gilbert e Puechredon não serão vítimas de uma
alucinação simultânea ? Isso acontece muitas vêzes nas alturas. Cor­
rentes frias e sopros tépidos vindos de baixo, chocam-se e confundem-
se, edificando efêmeras e surpreendentes arquiteturas de nuvens,
monstruosas fortalezas cujas abóbadas sobem até ao zênite, glaucos
penhascos de uma transparência de vidro mergulhando na água
fluorescente do vazio até vertiginosas profundidades. Num segundo
tudo se transforma e desaba, para logo de novo se erguer, transfigu­
rado. Que pode então significar um avião, ponto ínfimo, naquela
imensidade ? Pode alguém estar certo de não se ter enganado ?
Não, lá está êle ! Surgiu de um caos de gemas nebulosas com
reflexos de esmeralda, tombando verticalmente em densas pregas de
vapores como as de um pano de cena. Môsca negra debruada de sol,
destaca sôbre aquêle fundo grandioso côr de nada. Êsses cenários
fazem pensar no que teriam sido as primeiras paisagens do mundo,
ou serão as do Além.
Então Gilbert, com os nervos à flor da pele, não consegue do­
minar a impaciência. Tanto pior, é preciso saber: amigo ou inimigo ?
Com uma brusca guinada volve um pouco mais à direita; assim
poder-se-á ver de perfil o misterioso navegador. A identidade não
lhe pode faltar no leme. A dúvida torna-se por fim intolerável.
E se apesar da fuselagem de tela fôsse um aliado, por exemplo um
inglês perdido no setor francês, um Sopwith ou um Bristol ? Cuidado
com os enganos fatais !
A mesma onda de júbilo envolve no seu hálito tépido Gilbert e
Puechredon. Alemão ! O aparelho é alemão ! Suas cruzes-de-ferro
distinguem-se perfeitamente, recortam-se sôbre grandes quadrados
brancos, ao mesmo tempo nos flancos, nas asas, nas rodas e no leme.
A sorte está com o Morane. A tripulação não parece ainda ter-se
dado conta de que é seguida. Nenhuma manobra especial lhe altera
o rumo. Ainda que êle virasse de bordo para voltar às suas linhas,
não podería evitar o combate. As linhas francesas estão a mais de
trinta quilômetros.

70
O segundo tenente Chambe e o aspirante Após sua vitória sôbre um A l b a t r o z , o
Pelletier-Doisy diante dos restos do A l - de Pelletier-Doisy “fica
M ora n e-S a u ln ier
b a t r o z que acabam de abater (2 de em pinado”.
abril de 1915).

L—~JL

A Esquadrilha A í. S. 12 diante de um aparelho inimigo abatido por uma de suas


tripulações. D a e s q u e r d a p a r a a d i r e i t a : l . a f ila : s a r g e n t o B o d i n , s a r g e n t o
N avarre, se g u n d o -te n e n te R o b e r t, te n e n te de B e r n is , se g u n d o -te n e n te C ham be,
a s p ir a n te P e lle tie r -D o is y , a ju d a n te-ch efe M e s é g u ic h . 2 .a fila : te n e n te G a s tin ,
se g u n d o -te n e n te M o in ie r , s e g u n d o - te n e n t e F erru , se g u n d o -te n e n te J a co ttet.
Rende-se a tripulação de um aparelho alemão. F o t o g r a f ia to m a d a lo g o após o
c o m b a te com um a v iã o in im ig o L .V .G . O p a ssa g e ir o a le m ã o , de pé e a tr á s ,
a c a b a d e j o g a r fo r a a s u a a r m a , e m s in a l d e r e n d iç ã o ; o p ilo t o , fe r id o por um a
b a la d e c a r a b i n a , c o n s e g u i u p o u s a r n a s l i n h a s f r a n c e s a s o n d e f o i f e i t o p r i s i o n e i r o .

A “ te r r a d e n in g u é m ” d e R e im s s ô b r e a q u a l se tr a v a r a m n u m e r o s o s c o m b a te s .
Fotografia tomada de um avião M o r a n e - P a r a s o l, por cima das trincheiras dos
Cavaliers-de-Courcy, entre as trincheiras francesas e alemãs.
N o tem po das carabinas

Decorrem ainda dez segundos. Os dois aviões estão em con­


tacto, quase a tocar-se, a quinze metros no máximo, a capota do
Morane raspando as empenagens do Rumpler. Mais um nada e
seria a colisão. Gilbert liga outra vez o motor, afim de poder ma­
nobrar com mais segurança. Puechredon aponta a carabina, visando
a cabeça do piloto. A distância é tão pequena que nenhuma correção
parece necessária. Puxa o gatilho. Imediatamente vê o piloto
alemão voltar-se num estremeção, olhos escancarados de horror. Um
Morane-Pamsol, o terrível corsário dos ares, está sôbre êles, cobre-os,
de garras abertas ! Estão perdidos. O sangue inunda-lhe a blusa
de couro. Tem o braço esquerdo imobilizado. Já Puechredon
manobrou a culatra do seu mosquetão. O momento não é para
sentimentalismos. Aponta e dispara um segundo cartucho. A bala
atravessa o pescoço do piloto do Rumpler, passando-lhe sob a face
direita, não lhe atingindo, por milagre, a carótida. Nessa altura o
ferido não insiste. Reduz o motor e desce como um bólido para
terra, para a salvação.
Entretanto o passageiro, como o seu camarada, foi colhido de
espanto e de pavor. Virou-se ao mesmo tempo que o outro e ergueu-
se de um salto. Arrancou febrilmente uma das luvas, decerto com a
intenção de apanhar a sua arma e responder. Mas não tem tempo.
O tenente Puechredon, prevendo qualquer gesto de defesa, queima
ainda sucessivamente dois cartuchos. É realmente de um campeão
de tiro de carabina que se honra a M. S. 23. O observador alemão
desaba no assento, com uma bala no coração, fulminado.
É o fim.
Cinco minutos depois o Rumpler poisa, após uma aterrissagem
correta, num terreno ainda não lavrado, perto da aldeia de Villers-
Bocage, à beira mesmo da estrada nacional de Amiens a Doullens,
doze quilômetros ao norte de Amiens. O piloto, exaurido pelo feri­
mento, logrou contudo evitar que o seu aparelho se espedaçasse. Mal
acabou de rodar, com a hélice em cruz, arrancou-se penosamente da
carlinga, e, vencido pelo sofrimento, estendeu-se no chão.
Gilbert e Puechredon, que não tinham parado de gritar de alegria
enquanto desciam, acompanharam a vítima até ao solo. Deram
várias voltas por cima do Rumpler imóvel, e Gilbert, desligando o
motor, diligenciou aterrissar o melhor possível junto dêle, conse­
guindo-o. Mal os dois franceses saltaram em terra, o piloto alemão
ergueu-se com dificuldade, e com o braço válido esboçou uma conti­
nência militar.

72
N o tem po das carabinas

Decorrem ainda dez segundos. Os dois aviões estão em con­


tacto, quase a tocar-se, a quinze metros no máximo, a capota do
Morane raspando as empenagens do Rumpler. Mais um nada e
seria a colisão. Gilbert liga outra vez o motor, afim de poder ma­
nobrar com mais segurança. Puechredon aponta a carabina, visando
a cabeça do piloto. A distância é tão pequena que nenhuma correção
parece necessária. Puxa o gatilho. Imediatamente vê o piloto
alemão voltar-se num estremeção, olhos escancarados de horror. Um
Morane-Pamsol, o terrível corsário dos ares, está sôbre êles, cobre-os,
de garras abertas ! Estão perdidos. O sangue inunda-lhe a blusa
de couro. Tem o braço esquerdo imobilizado. Já Puechredon
manobrou a culatra do seu mosquetão. O momento não é para
sentimentalismos. Aponta e dispara um segundo cartucho. A bala
atravessa o pescoço do piloto do Rumpler, passando-lhe sob a face
direita, não lhe atingindo, por milagre, a carótida. Nessa altura o
ferido não insiste. Reduz o motor e desce como um bólido para
terra, para a salvação.
Entretanto o passageiro, como o seu camarada, foi colhido de
espanto e de pavor. Virou-se ao mesmo tempo que o outro e ergueu-
se de um salto. Arrancou febrilmente uma das luvas, decerto com a
intenção de apanhar a sua arma e responder. Mas não tem tempo.
O tenente Puechredon, prevendo qualquer gesto de defesa, queima
ainda sucessivamente dois cartuchos. É realmente de um campeão
de tiro de carabina que se honra a M. S. 23. O observador alemão
desaba no assento, com uma bala no coração, fulminado.
É o fim.
Cinco minutos depois o Rumpler poisa, após uma aterrissagem
correta, num terreno ainda não lavrado, perto da aldeia de Villers-
Bocage, à beira mesmo da estrada nacional de Amiens a Doullens,
doze quilômetros ao norte de Amiens. O piloto, exaurido pelo feri­
mento, logrou contudo evitar que o seu aparelho se espedaçasse. Mal
acabou de rodar, com a hélice em cruz, arrancou-se penosamente da
carlinga, e, vencido pelo sofrimento, estendeu-se no chão.
Gilbert e Puechredon, que não tinham parado de gritar de alegria
enquanto desciam, acompanharam a vítima até ao solo. Deram
várias voltas por cima do Rumpler imóvel, e Gilbert, desligando o
motor, diligenciou aterrissar o melhor possível junto dêle, conse­
guindo-o. Mal os dois franceses saltaram em terra, o piloto alemão
ergueu-se com dificuldade, e com o braço válido esboçou uma conti­
nência militar.

72
A segunda vitória

Os dois vencedores emocionam-se. O sangue que encharca aquela


blusa de couro, a atitude militar, a dignidade... Correm para
junto do ferido. Já não é um adversário mas um homem como
qualquer outro, vencido, talvez em perigo de morte. Aproximam-se
dêle sorrindo, para o tranquilizarem sôbre as suas intenções. Gilbert
aperta-lhe a mão com veemência, e depois, ajudado por Puechredon,
esforça-se por lhe tirar o abrigo de couro ensangüentado, e também
a túnica feld grau, tendo do lado esquerdo a insígnia de prata e
esmalte escarlate do piloto da aviação do Reich. O oficial alemão,
pois trata-se de um oficial, faz um trejeito de gratidão e inclina-se:
— Danke schõn !
Depois regressa à posição de sentido, com a rigidez dos sol­
dados de Além-Rheno:
— Mein Name ist Keller, leutnant! (Meu nome é Keller,
tenente !)
Apresenta dois ferimentos, um no pescoço e outro no ombro.
Duas balas em sedenho. Teve sorte. Puechredon abre o seu estojo
de pensos e faz-lhe o primeiro curativo. Então os olhos do tenente
Keller cobrem-se de uma fugidia ternura. Aí está como são na reali­
dade os franceses que a propaganda alemã se esfalfa a representar
como degenerados desde a Revolução de 1789, como tendo-se tor­
nado indignos dos seus antepassados do antigo regimen, atolados de
corpo e alma no materialismo e no mais baixo espírito de gôzo. Teria
mentido a propaganda no Grande Reich ?
Os franceses seriam ainda comparáveis aos de outrora, capazes de
elegância moral e de sentimentos generosos ? Keller é hanoveriano,
nunca viajou nem conhece a França. Não lhe viu as feições senão
através dos vidros deformantes da literatura e da imprensa de seu
país, e também, com certeza, das caricaturas do Kriegs-Albun dos
Lustige Blatter. E essas feições não as identificava nas de Puechredon
ou de Gilbert.
Como o tenente de Puechredon lhe perguntasse, em francês, se
antes da guerra ouvira falar do célebre aviador Gilbert, êle respondeu
igualmente em francês, língua que fala com dificuldade:
— Gilbert ? Ia, ia natürlich, ouvi ! Prima ! Prima !
Então Puechredon aponta-lho:
— Pois aqui o tem, é o seu vencedor !
O tenente Keller tem um sobressalto de surprêsa. Essa revelação
parece deixá-lo mais satisfeito. Dá dois passos ao encontro de Gilbert,
faz-lhe uma continência e estende-lhe a mão com arremêsso:

73
N o tem po das carabinas

— Ach ! Ich bin sehr zufrieden ! É uma grande honra para


mim ! Parabéns pela sua vitória !
Dir-se-ia de repente aliviado de um grande pêso. Ter sido aba­
tido por um piloto qualquer, um adversário de segunda categoria,
era humilhante; mas por Gilbert, a coisa mudava de figura. Medir-se
com êle, fôsse qual fôsse o resultado da luta, tornava-se uma façanha
honrosa, mais do que isso lisongeira.
Quanto ao desventurado capitão Falkenstein, não havia mais
nada a fazer. Lá estava encolhido, caído no seu habitáculo. Os
papéis achados em seu poder apresentaram grande interesse militar,
forneceram preciosas indicações sôbre a ordem de batalha no setor
de Saint-Quentin, sôbre o estado moral da tropa, mencionando as
queixas do general comandante do III.° Exército a respeito da
aviação, particularmente da esquadrilha de reconhecimento do
capitão von Falkenstein, a qual, singular coincidência, tem como
a de Gilbert o número 23.
Agora, de todos os lados surgem testemunhas do combate. Che­
gam por tôdas as estradas, por todos os caminhos e atalhos, e ainda
através dos campos. Como há três meses, por ocasião da vitória de
Frantz e Quénault, é uma corrida. Oficiais, soldados de tôdas as
armas, civis, mulheres, crianças, moradores das aldeias próximas e
até mesmo de Amiens, cercam ruidosamente os dois aviões e o
grupo formado por Gilbert, Puechredon e o tenente Keller.
Um oficial de braçadeira salta do seu automóvel e atravessa
a multidão. Pertence ao estado-maior do general Castelnau, coman­
dante do II.° Exército. Depois de ter felicitado os vencedores, manda
guardar o Rumpler por soldados de infantaria de baioneta calada
e encarrega-se do tenente Keller, doravante prisioneiro. Leva-o de
carro para o hospital de Amiens, a fim de o mandar examinar e
tratar antes de proceder ao interrogatório.
Seus ferimentos eram mais sérios do que se pensava; o oficial
alemão vai ficar vários dias em tratamento nesse hospital, e é lá que
Gilbert o irá visitar diversas vêzes. Sabemo-lo pela carta do próprio
Gilbert a um amigo, o sr. Bernardin, publicada a 22 de janeiro pelo
Moniteur du Puy-de-Dôme, de Clermont-Ferrand, carta que foi reco­
lhida por Henri Bibert em seu livro Eugène Gilbert, rei das asas.
Eis as suas principais passagens:
Quando o tenente de Puechredon disparou a sua primeira bala,
a dez ou doze metros, o piloto alemão voltou-se para nós, petrificado.

74
A segunda vitória

Tinha o pescoço varado e o braço imobilizado. Desligou imedia­


tamente para descer...
Meu observador tornou a atirar enquanto eu imobilizava o
aparelho alemão e perfurou o observador de lado a lado. Êste já
havia arrancado a luva para nos visar com mais facilidade. Estre­
meceu e desabou na fuselagem, com o coração varado.
Rompemos então num grito de vitória que só acabou no chão...
Rodei alguns instantes por cima do biplano alemão quando êle já
estava em terra, pois seguira-o como uma sombra. .. O piloto saltara
e estendera-se no chão, sèriamente atingido.
Pousei a alguns metros do avião inimigo. O piloto levantou-se
e apertamo-nos as mãos. .. Ajudei-o a despir-se para lhe fazer
um curativo.. . Chama-se Keller e è tenente. O passageiro fulminado
era o capitão von Falkenstein, filho, creio eu, do chefe do estado-
maior alemão. Era o chefe da esquadrilha que tem o mesmo número
da nossa: 23.
O aparelho é biplano Rumpler, motor Mercedes 120 cavalos.
Acabam de dar-mo, e pu-lo em segurança numa herdade... O
general de Castelnau enviou-me muitas felicitações.. .
Tornei a ver o prisioneiro quando o interrogavam, depois de
medicado. Escreveu uma carta que me ofereci para levar ao seu
campo de aviação no meu próximo reconhecimento — naturalmente
sem descer! Entregou-me um papel em alemão onde se exprime
dêste modo: “Agradeço cordialmente ao aviador francês Gilbert
pelo seu amistoso acolhimento, depois de me haver perseguido de
maneira admirável. Tenente Keller.”
Fui visitá-lo mais duas vezes no hospital de Amiens e levei-lhe
fotografias do seu aparelho. Ofereci-lhe também um dos cartões
furados pelas balas de um dos seus camaradas de esquadrilha, a quem
andei caçando com Bayle, a 18 de novembro. O piloto parece ter
guardado uma desagradável recordação do episódio, bem como da
figura de Bayle. Ao aterrissar, declarou: “Fui perseguido por um
monoplano cujo atirador tinha uma enorme cara, um grande bigode,
uma carabina e não usava óculos.” Seu tanque de óleo, disse-me
o tenente Keller, recebeu três balas nesse dia e o reservatório dista
alguns centímetros da cabeça do passageiro (1).
Lamento que o bravo Bayle, que voou comigo das outras vêzes,
não tenha tomado parte nesta festa.
(1) Ver o capítulo anterior.

75
N o tem po das carabinas

Recebi hoje, da parte do general J offre, a minha nomeação de


cavaleiro da Legião de Honra. Serei condecorado dentro de alguns
dias. . .
Eugene Gilbert.

Nestas escassas linhas redigidas pouco tempo após a sua vitória,


Gilbert não pode mencionar, evidentemente, que a 12 de janeiro
irá, de acordo com o estado-maior do II.° Exército, lançar sôbre
o campo da 23.a esquadrilha alemã do capitão von Falkenstein, duas
cartas escritas pelo tenente Keller à mãe e à irmã, para as tranqüi-
lizar quanto ao seu destino. Fechadas no tubo de metal de uma
mensagem-lastrada suspensa de flâmula com as cores da França, as
cartas cairão sem dificuldade do avião de Gilbert e chegarão ao
destino.
Dêsse modo tendem a firmar-se regras de cavalheirismo entre os
combatentes do ar, um código de civilidade que em nada diminui a
fúria em destruir-se e infligir-se a mais terrível das mortes. Matam-
se mas consideram-se. Em vôo trocam-se balas, em terra apertos de
mão. Essas regras não durarão muito. A guerra aérea vai tomar, no
decorrer dos anos futuros, uma feição tão áspera, uma fôrma tão
sangrenta, engendrará tantos ressentimentos que se tornará impos­
sível observá-las. Desaparecerão com a era das carabinas. Pelo
menos ficará uma tradição: a equipagem inimiga abatida em
combate aéreo será sempre inumada com as honras militares, o
mesmo acontecendo às guarnições francesas.
Na tarde do dia em que foi, com perigo de vida, lançar as cartas
nas linhas alemãs, por sôbre a sua esquadrilha, Gilbert visitou pela
última vez o tenente Keller, em vias de cura no hospital de Amiens.
Inteirado do êxito da expedição, Keller ergueu-se no leito, muito
comovido, e estendeu a mão a Gilbert:
— Orgulho-me, caro senhor, de ter tido por adversário um
homem da sua nobreza.
*

Esta vitória tão desejada, tão esperada, tão buscada e tão


merecida, valeu a Gilbert e Puechredon legítimas satisfações. Uma
das mais intensas, para Gilbert, terá sido saber, por uma testemunha
fidedigna, que a 18 de novembro estivera a dois passos, com Bayle,
de conseguir a primeira vitória decisiva. Escapou-lhe por bem pouco.

76
A segunda v itó ria

Se Bayle tivesse tido a sorte, ou a inspiração, de apontar vinte centí­


metros mais para baixo, seu adversário cairia nas linhas francesas.
Os motivos de contentamento para o tenente de Puechredon tam­
bém não eram menores. Teve a prova de que utilizando uma simples
carabina de cavalaria, disparando bala por bala se podia abater um
avião inimigo. Sua fé estava recompensada, e com ela a de todos
os que esperavam essa hora. Ninguém mais falaria da sua inge­
nuidade e candura. O próprio estado-maior se via obrigado a reco­
nhecer-lhe a evidência. Tanto mais que, tomando posição, o general
comandante em chefe, pessoalmente, o general Joffre, vencedor do
Marne, conferia a Legião de Honra a Gilbert e Puechredon e
assinava por seu punho a ordem n.° 4.909 cujos termos ditara:

14 de janeiro de 1915.
Grande Quartel General.
Ordem geral n.° 4.909
O General comandante em chefe aos Srs. generais comandantes
de exército:
O General Comandante em Chefe nomeia cavaleiros da Legião
de Honra o sargento-aviador Gilbert e o tenente-observador de
Puechredon, os quais, a 10 de janeiro_, abateram um avião inimigo
com uma carabina.
Premiando a sua audácia, o General em Chefe deseja encorajar
os pilotos e os observadores que diàriamente procuram o combate
aéreo.
Esta decisão será levada ao conhecimento de todo o pessoal
da aviação.
Joffre.

Assim, pelo momento a carabina recebia os seus títulos de no­


breza. Uma era nova se abria. A caça ia nascer.

77
O FACÃO DE NAVARRE

Tais são os relatos com que se nutriram durante três semanas


as tripulações da M. S. 12. O comandante de Rose calculou bem con­
vidando-nos a lê-los.
Os detalhes que os entremeiam alimentaram as mais apaixonadas
controvérsias, as mais vivas discussões. Embora nos falte experiência
a todos, cada qual apega-se às suas idéias, tanto mais firmemente
quanto elas são preconcebidas e não sofrem nenhum desmentido dos
fatos. Tudo não passa ainda de intuição pessoal. Os exemplos de
um Frantz ou de um Gilbert não são inteiramente convincentes, pelo
menos assim parece. A caça, nessa época, é ainda raríssima. O
céu permanece tão desesperadamente vazio de aviões quanto o seria
o Oceano Atlântico de navios no tempo de Cristóvão Colombo. Para
encontrar um esquife de cruzes negras nos arredores de Reims,
é necessária uma bela dose de perseverança, ou de sorte.
Perseverança temo-la nós (e quanta !), mas não sorte. Além
da tripulação cabo Bodin — segundo-tenente Ferru, nenhum de nós
se pode gabar de a ter levado como passageiro a bordo. E Deus sabe
como temos voado ! Os nossos cadernos de missões são testemunhas
disso. Sempre em vão. Só Bodin e Ferru, a 16 de março, se encon­
traram face a face com um Aviatik, acima de Chemin-des-Dames.
Procuraram travar combate, mas o adversário furtou-se imediata­
mente, picando para as suas linhas, que infelizmente estavam
próximas.
Ferru achou-se no dever de disparar assim mesmo três balas de
carabina em sua direção, mas a várias centenas de metros e portanto
sem a menor esperança de êxito. O único resultado para Ferru foi
regressar com ambas as mãos geladas. Está no hospital, sofrendo
horrorosamente. Pecou por insuficiência de conhecimento das
coisa do ar. Imprudência fatal a 2.000 metros de altitude e com um

78
O facão de Navarre

frio de 20° abaixo de zero, tirou as luvas para melhor segurar a


carabina. Ficou assim vários minutos sem se acautelar, debruçado
para fora da carlinga, no turbilhão da hélice. Em atmosfera calma
isso seria em rigor aceitável, mas com um vento cortante e ainda
por cima com os dedos grudados ao aço azulado de uma arma, é
imperdoável.
Porisso, as instruções que recebemos reduzem-se a bem pouco:
primeiro, os alemães mostram tendência para fugir à nossa aproxi­
mação; segundo, devem-se conservar as luvas para atirar. Não sa­
bemos mais nada. É pouco.
Mas. . . na verdade não é para admirar. Existem apenas duas
vitórias aéreas certas para inscrever no ativo da aviação francesa,
pode-se mesmo dizer no ativo de tôdas as aviações beligerantes reu­
nidas, pois do lado aliado não se conhece nenhuma, dos inglêses,
russos ou belgas. O mesmo sucede do lado inimigo. Seus comunicados
ainda não assinalaram nenhuma, entre os alemães ou autríacos. Duas
equipagens francesas desapareceram realmente no decurso de missões
nas linhas inimigas, mas provou-se que uma foi abatida por tiro
de artilharia, e a outra precisou aterrissar em conseqüência de pane
no motor.
Em resumo, a doutrina do combate aéreo está ainda no limbo.
Contam conosco, sem dúvida, para preencher essa lacuna. Mas a
contribuição do alto-comando mostra-se até agora inteiramente nula.
Continuará assim por muito tempo ? É humilhante para nós.
*
O primeiro cuidado do tenente de Bernis foi dividir-nos em
guarnições fixas, cada oficial observador devendo, em princípio, voar
sempre com o mesmo piloto. Parece-lhe, com razão, ser essa a
melhor maneira de ligar um ao outro dois homens destinados a
conhecer-se bem e a bem se compreenderem, em vista dos perigos
que serão chamados a enfrentar juntos. O mesmo cuidado o levou
a decidir que todos os membros do pessoal navegador da esquadrilha,
seja qual fôr o seu posto, devem fazer as refeições em comum.
É à mesa, na sua aconchegante ambiência, no descanso que ela
proporciona, que os temperamentos aprendem melhor a apreciar-se
e a penetrar-se. Sábia medida, pela qual a M. S. 12 sempre se feli­
citará no futuro. Ela vai contribuir para cimentar a confiança
mútua, a amizade sólida entre pilotos e observadores, sem que a
disciplina venha a ser prejudicada, pois cada um, apesar da grande

79
N o tem po das carabinas

familiaridade assim criada, saberá manter-se estritamente em seu


lugar.
A constituição das tripulações foi tirada à sorte. O tenente
Gastin voará com o segundo-sargento-pilôto Clément, o segundo-
tenente Moinier com o tenente de Bernis (chefe da esquadrilha),
o segundo-tenente Jacottet com o ajudante-chefe-pilôto Méseguich,
o segundo-tenente Ferru com o cabo-pilôto Bodin, o segundo-tenente
Robert com o aspirante-pilôto Pelletier-Doisy e eu com o cabo-pilôto
Navarre. Naturalmente estas designações nada têm de definitivo,
poderão ser alteradas conforme as circunstâncias. Navarre, Pelletier-
Doisy, dois nomes então completamente desconhecidos, mas desti­
nados a alcançar os mais altos cumes da fama e da glória. Quem o
imagina hoje? N inguém ... Aliás, qual de nós será morto ou
viverá ? Isso é o que menos cuidado nos dá ! Cada qual tem o
seu destino. Por fim, não se destrói assim um homem de vinte ou
vinte e cinco anos, de pernas sólidas e mão firme ! A bem dizer,
sentimo-nos imortais.
Quando a sorte me designou para ser o passageiro titular de
Navarre, os demais pilotos vieram logo ter comigo, com ares mis­
teriosos e sorrisos entendidos. Tinham-no visto atuar durante o curso
de treinamento no Morane-Parasol, em Villacoublay:
— Parabéns, meu tenente ! Prepare-se para ter sensações. Coube-
lhe um famoso piloto ! É sem contestação o melhor de nós todos.
Não tem igual para fazer saracotear um Morane, verá ! Se êle não
se espedaçar juntamente com o seu passageiro, é um homem que há-de
ir longe !
Enquanto êles assim me falavam, Navarre mantinha-se a alguns
passos de distância, com as mãos atrás das costas, de cabeça descoberta,
olhando a pista. Notei-lhe o perfil de ave de rapina, o nariz afilado,
o olhar de águia sob a barra das sobrancelhas, a comissura dos lábios
erguidos pela zombaria sempre pronta a jorrar, a testa alta, os
cabelos negros lançados violentamente para trás como revoltos pelo
turbilhão da hélice. Tinha o rosto que me agrada, fortemente
característico.
Qual seria a idade de Navarre ? Pouco mais de vinte anos, a
idade de tôdas as audácias e de tôdas as loucuras. E Navarre as
terá. Vai ser, e de longe, o homem mais destemido que ainda encon­
trei. Um temperamento de ferro. Vê sem pestanejar, com um
sorriso sardônico, faiscar a três metros de distância o clarão de
um tiro disparado contra o seu rosto. E nem porisso desviará o seu

80
O facão de N a v a r r e

avião de uma linha. Que chegaria êle a ser no tempo de Jean-Bart


e de Surcouf ? Sem dúvida o mais fabuloso dos corsários.
Não tem igual no saracoteio de um Morane. Caramba, logo
tive a prova disso ! Nessa mesma tarde andou saracoteando incrivel­
mente o nosso Morane — e o meu coração com êle. Loopings, para­
fusos, reviravoltas, descidas de hélice calada, posso apreciar num só
vôo tôda a gama de possibilidades do Parasol. Meu susto foi enorme.
Disfarçadamente agarrado aos montantes, mais de uma vez fechei os
olhos para não ver como nos íamos despedaçar. Mas não nos
despedaçamos. . .
Quando as rodas do Morane-Parasol n.° 27 retomaram enfim
contacto com o tenro pasto das vacas, tão agradável de acariciar, e
saltamos em terra, de óculos sôbre a testa, acerquei-me de Navarre
com o ar mais indiferente. Êle tinha querido experimentar-me,
mas como o passageiro fica atrás não pudera observar as minhas
impressões. Já os outros pilotos, e também os mecânicos, corriam
para nos cercar. A demonstração acrobática, vista de baixo, fôra
sensacional. No tom mais indolente e ingênuo que pude con­
seguir, disse tranqüilamente a Navarre (e vi-o logo apagar o clarão
malicioso dos seus olhos):
— Não é tão mau assim, êsse calhambeque ! É dócil, responde
bem. Deve ser fácil de p ilo tar.. .
Pagava-lhe diante de todos na mesma moeda, não lhe ficava
a dever um cêntimo. As boas contas fazem os bons amigos. E
amigos iríamos ficar para sempre, na mais ampla extensão da
palavra.
Méseguich pegou entre o polegar e o indicador a ponta da asa
do 27, e abanando-a com uma careta significativa, perguntou:
— Viste o teu zinco, Navarre ? Ficou mole como papel higiênico.
Depois de uma sessão como essa, farias bem mandando apertar os
haubans.
E um ano mais tarde (não antes), quando por minha vez me
tornei piloto o mesmo Méseguich me revelaria:
— Naquela tarde, meu tenente, todos nós acreditamos que tinha
chegado a sua última hora. Quando Navarre, há-de lembrar-se, fêz
aquela descida de hélice em cruz, e já muito perto do campo teve
de saltar os galpões, estavam no extremo limite da perda de veloci­
dade. Eu fechei os olhos, e todos os presentes, num só gesto, se
voltaram para os não ver esmagarem-se. Vinham assim de longe.
Só mesmo a destreza diabólica de Navarre para os salvar.

81
N o tem po das carabinas

Tal era o homem com quem havia três semanas eu vinha voando
todos os dias. Sem resultado. Nem o mais remoto encontro com
o inimigo. Quando, essa n o ite...
*
Nessa noite, pelas três horas da madrugada, a campainha do te­
lefone retiniu. Eu ouvi-a imediatamente, porque ao anoitecer ela
ficava pendurada no quarto de Bernis, do qual me separava um
delgado tabique.
Nessa encantadora vila de Champigny-sur-Vesle, eu ocupava
um claro quartinho de menina, todo forrado de tela de Jouy rosa
desmaiado. Levantando-me cedo e deitando-me tarde, mal tinha opor­
tunidade de contemplar as figuras Luís XV que ornavam as paredes.
Com os seus tricórnios agaloados, de abas ao vento, galopavam ale­
gremente tocando a trompa sem descontinuar, atrás das matilhas
de cães sedentos de carnificina, lançados ao hallali de cervos e javalis
que não alcançavam nunca.
Eu tinha a certeza de que a jovem criatura que habitara êsse
quarto era linda, magra, loira e romântica. No ar flutuava o seu
perfume embriagador ainda não desaparecido, mistura de Origan
de Coty e de Jicky. Tôdas as noites aspirava com delícia aquêle
aroma indefinível, após as tarefas desumanas que nos tinham
ocupado durante o dia. Êle era como uma presença e prestava-se
admiràvelmente ao sonho. Cheguei a ordenar que nunca abrissem a
janela, de mêdo que o perfume se evolasse.
Por cima das meias-cortinas chamadas “mistérios”, eu podia
avistar através da vidraça os meandros de um parque inglês, com
as suas alamedas ondeantes e os grandes castanheiros que não tarda­
riam a florescer, o brilho prateado dos seus lagos imóveis por trás
da ramaria baixa.
Nas prateleiras do recanto confortável reuniam-se, como pessoas
que partilhavam as mesmas idéias, cuidadosamente alinhados nas
suas belas capas amarelas ou côr de tijolo, livros de André Theuriet,
de Paul Bourget, de René Bazain e de Henry Bordeaux. Uma biblio­
teca de adolescente distinta. Certa noite de insônia reatei as minhas
relações com a seráfica Raimunda de La robe de laine, e durante
algumas horas deixei de ouvir o troar do canhão, todavia muito
próximo, nas alturas de Saint-Thierry.
Essa vila como um sem número de outras, desde o Mar do
Norte até à fronteira da Suiça, era a imagem do drama da invasão,

82
O facão de Navarre

das férias de 1914 brutalmente interrompidas em plena felicidade,


das casas abandonadas ao som do canhoneio e dos sinos tocando a
rebate, da desoladora partida entre confusão e lágrimas, com as
carroças sobrecarregadas de peças de mobiliário e os objetos mais
queridos, as carruagens em que se amontoavam pencas de mulheres,
crianças e meninas chorando. O inimigo varrera com seu ímpeto
tôdas essas belas terras, com os seus renques de árvores, os campos
bem tratados e as doces colinas. Nós não tínhamos sabido impedir
aquilo, nós cuja tarefa era essa, a nossa razão de ser, o nosso ofício.
Éramos os responsáveis !
Pedi intimamente perdão àquela que habitara essa risonha
casa, e prometi-lhe que um dia lhe devolveriamos o seu quartinho
e a sua tela de Jouy, os personagens de tricórnio, o parque e os
romances de Henry Bordeaux. E então seriam as mulheres e me­
ninas alemãs que por sua vez se apinhariam medrosamente nos
veículos em fuga.
Do outro lado do tabique ouvia quase tôdas as noites de Bernis
martelando o soalho, de um lado para outro, com uma regularidade
de pêndulo. Isto durante horas e horas. Não dormia nunca, impe­
dindo-me assim, também, de dormir. Por vêzes eu amodorrava,
perdia o sentido das coisas, e muito tempo depois despertava em
sobressalto. Os passos lá continuavam, do outro lado do tabique,
caminhando interminàvelmente. Dir-se-ia que êle estava de guarda.
Só mais tarde da noite, às vêzes ao alvorecer, cessava o barulho.
Que estaria Bernis fazendo ? Que significava aquilo ? Era um
enigma que se ia tornando lancinante e me perseguia até à obsessão.
Certa noite, não agüentando mais, tornei a vestir-me e fui bater à
sua porta, bastante inquieto com a minha indiscrição.
— Quem é ? Entre !
Abri a porta.
— Ah ! é o senhor, master Chambe ! Que quer ?
Sem que eu soubesse porque, Bernis acostumara-se a chamar-me
“master Chambe”. Fiquei à entrada da porta, interdito, pois viera
instintivamente sem haver preparado nenhum pretexto.
— Não se i... Ouvia-o andar a esta hora tardia. Ocorreu-me que
estivesse doente ou precisasse de alguma coisa.
— Não preciso de nada. Obrigado.
Um nevoeiro azulado enchia o aposento. A cama não fôra des­
feita. Bernis estava vestido, de uniforme como durante o dia, com
a túnica bem abotoada, as polainas de couro e as botas — de cigarro

83
N o tem po das carabinas

entre os dedos. Era um fumador inveterado, incorrigível, com o


indicador e o médio da mão direita perpètuamente amarelecidos como
por tintura de iôdo. Aquêle nevoeiro azul era a fumaça do cigarro.
Tinha-se dificuldade em distinguir a mobília do quarto. Quantos
cigarros fumaria Bernis, continuamente, depois do bridge da noite,
ao voltar ao seu quarto ? Na mezinha de cabeceira, ao lado do
telefone, as pontas transbordavam de um enorme cinzeiro. Fiquei
petrificado. O tom de Bernis tornou-se irônico, ao mesmo tempo
que o seu olhar me considerava com brandura:
— Então, master Chambe, acha que eu fumo demais e muito
tempo, não é ?
Ignorou o meu gesto de recusa delicada e pôs-se a sorrir.
— Pois bem, vou dizer-lhe uma coisa. O senhor é moço e solteiro,
mas assim mesmo sei que compreende. Na guerra e à noite, quando
as ocupações cessaram e todos os ruídos se calam, é que a gente tem
tempo para pensar na família e nos filhos. Volta-se um pouco para
casa. E eu, para pensar, tenho o hábito de fumar e de caminhar.
Seus olhos cinzentos poisavam em mim com aquêle misto de
ironia e afeição que lhe era tão peculiar. Estendeu-me a mão
com simpatia:
— É só isso. Não preciso de nada. Estou muito bem. Bom fim
de noite, master Chambe !
Retirei-me confuso, na ponta dos pés. Nunca esquecí essa como­
vedora explicação de Bernis. Êle também não, tenho a certeza.
A pequena confidência solitária aproximou-nos para sempre. Suas
rondas noturnas não cessaram mas êle teve o cuidado de as fazer
daí em diante ao longo do tabique da frente, o que dava para
a estrada.

De modo que naquela noite, pelas três horas da madrugada, o


telefone tocou no quarto de Bernis e eu ouvi-o imediatamente. Mas
não entendi as palavras que foram pronunciadas. Daí a alguns
minutos espalhava-se um sussurro na casa. Todo o mundo se estava
levantando. Devia ser coisa séria. Corri para a roupa e enfiava-a
à pressa, quando a minha porta estremeceu sob batidas frenéticas.
A cabeça de Bernis meteu-se na fenda entreaberta:
— Levante-se ! Os zepelins estão sôbre Paris !
Os zepelins sôbre Paris ! Que notícia ! Pela escada de madeira
de degraus bem encerados era um confuso atropêlo, uma desordem
jovial. Os zepelins sôbre Paris ! Que alegria ! Que sorte 1 Que exci­

84
O facão de Navarre

tação ! Acontecia enfim alguma coisa ! A noite estava escura, mas


que importava ? Ir-se-ia assim mesmo, não era possível deixar de ir.
Não tínhamos nada para os atacar, mas de qualquer modo havíamos
de atacá-los. Para o diabo as dúvidas !
Alguém, no tumulto, lembrou que estavamos na noite de 21
para 22 de março, a primeira noite de primavera da guerra. Sem
dúvida que os alemães a tinham escolhido expressamente para ir
bombardear Paris ! Isso era bem deles. Trazia a marca do seu
sadismo habitual, essa mistura de romantismo e barbarismo, de
erotismo e poesia. A intenção não podia ser outra. Era flagrante,
estava assinada. Então foi um belo concêrto de invetivas enérgicas,
de imprecações diante das quais as da jovem Camila, apesar de desbo­
cada, não passavam de um recital de melodias, de um doce trinado
de flautas.
Infelizmente, esses ultrajes à antiga eram a única arma de que dis­
punha a M. S. 12 para ir atacar os zepelins.
Por incrível que pareça, ela de pouco mais dispunha. Tal fato,
melhor que qualquer outro, permite avaliar o grau de impre-
paração em que se encontravam, nesses tempos recuados, o nosso
exército e sobre tudo a nossa aviação, para o papel que estavam
destinados a desempenhar num conflito moderno.
Como assim ! Tôda a gente sabia, muito antes da declaração
de guerra de 3 de agosto de 1914, que existiam balões dirigíveis mili­
tares, tanto do lado alemão como do lado francês, todo o mundo
sabia que essas aeronaves constituíam uma ameaça permanente de
bombardeios poderosos bem dentro dos territórios, todo o mundo
sabia que a sua velocidade era relativamente fraca, sobretudo com­
parada com a dos aviões, aos quais seria fácil apanhá-las (se todavia
as esquadrilhas fôssem a tempo instruídas), tôda a gente sabia que
êsses engenhos eram de extrema vulnerabilidade, com os milhares
de metros cúbicos de gás que lhes enchiam os invólucros — e no
entanto ninguém se dera ao trabalho de refletir na maneira como
deveríam ser atacados e destruídos.
Os que tinham o encargo de tudo prever nada haviam previsto
nesse domínio — como aliás em certo número de outros. Para o Es­
tado-Maior do Exército o perigo do ar não existia. Muitos dos seus
representantes continuavam na batalha de Saint-Privat. A manu­
tenção do culotte vermelho no uniforme de campanha era uma
prova disso. Como é que as suas imaginações, já superadas pelo
problema tático da batalha no chão, tal como êle se ia revelar,

85
N o tem po das carabinas

podería adaptar-se ao da batalha no ar ? Ninguém é obrigado a


fazer o que lhe é impossível. De certas cabeças, mesmo diplomadas,
não se podia exigir tal discernimento, tal grau de penetração.
O fato era que após sete meses de hostilidades a situação con­
tinuava a mesma. Tudo estava por fazer, nada fôra feito. Nem a
menor bala incendiária, nem o menor foguete, tão fácil de montar
num avião, tinham vindo dotar as esquadrilhas cujas funções — como
era o caso da M. S. 12, — deviam justamente consistir em interditar
o acesso aéreo do território. Os milhares de metros cúbicos de gás
dos zepelins, que qualquer fagulha faria estourar como bolas de
sabão, continuavam a passear impunemente no céu noturno. Eram
puníveis apenas por uma D. C. A. (x), por sua vez também no
comêço, porque ainda nesse particular nada fôra previsto. Não
tinha sido necessário improvisar tudo, montar peças de 75 de arti­
lharia de campanha sôbre plataformas de acaso, de goela dirigida para
o zênite, o ferrão da conteira enterrado numa garganta circular aberta
no pavimento ?
Mas nós outros, jovens, não nos demorávamos nessas vãs consi­
derações. Não que lhes permanecessemos estranhos (como podería
ser assim quando — para usar a expressão de Robert, — a nossa pele
estava em jôgo ?), mas porque, definitivamente, de copo na mão,
tínhamos vergastado com frases definitivas todos aqueles sêres desco­
nhecidos e distantes dos quais dependia a nossa sorte, e que lá
longe, na retaguarda, instalados em confortáveis gabinetes, de acesso
proibido por inumeráveis sentinelas, de correias no queixo, se ocupa­
vam frenèticamente a pulir as unhas e a descobrir com o maior
cuidado os pequenos anúncios libertinos do Sourire e da Vie Pari-
sienne. Isso bastava para a nossa vingança. A alegria da ação e o
orgulho dela constituíam a nossos olhos a melhor parte. Como era
provável que não nos fôsse disputada, não seríamos privados dela.
Estávamos, contudo, perfeitamente lúcidos.
íamos mesmo terrivelmente lúcidos nos automóveis barulhentos
que, com todos os faróis acesos, rumavam para o campo. Cada qual
tinha as suas idéias. No campo, os mecânicos avisados já deviam
ter aberto as grandes porteiras de tela dos hangares e puxado os
aviões para a pista.
Que íamos fazer ? Ninguém, jamais, voara de noite. Ignorava-se
tudo do vôo noturno, por essa época, na aviação. Nenhum equipa-1
(1) Defesa contra aeronaves. (N.T.)

86
O facão de Navarre

mento no solo, para decolar ou para aterrisar. Nem projetores, nem


balisas. Nenhuma indicação. A treva. Os instrumentos de bordo dos
aparelhos nem sequer eram luminosos. Ao acaso eu trouxera uma
lanterna de algibeira, que poderia servir a Navarre.
Navarre ia sentado à minha frente num banco de dobradiça.
Emudecera, êle que tanto falava e gritava pouco antes.
Com a pala do seu quepe repuxada para os olhos, parecia dormir,
encolhendo friorentamente os ombros, pois o ar era frio naqueles
torpedos abertos a todos os ventos.
— Então, trouxe-a ? — perguntei-lhe em voz baixa.
Na sombra vi brilhar o clarão do seu sorriso. Por única resposta
entreabriu a blusa de couro e apontou-me o objeto com o queixo:
— Está aqui, meu tenente.
Maldito Navarre, fará o que disse !
No pátio da vila, enquanto discutíamos animadamente esperando
a saída para o campo, cada qual dera a sua opinião sôbre a melhor
maneira de atacar um zepelim. Pelletier-Doisy e Robert inclinavam-
se para o obus de 90, com empenagem, que se leva nos joelhos e se
larga cem metros acima do longo charuto impossível de falhar.
— Nesse caso, meus caros — zombou Méseguich, — tratem de
numerar os seus membros para os juntarem no vestiário ! Dizes tu,
Pivolo, a cem metros de altura ? Se a coisa explode, podeis ter a
certeza de ir dar um pitoresco passeio gratis, de ida e volta, às
estréias, e tornar depois a descer ambos em pedacinhos não maiores
do que isto ! Será preciso recolhê-los um a um ao microscópio, para
vos recompor. Vocês às vêzes parecem loucos !
— Não tão loucos assim ! — replicou Gastin. — Isto é falar
para não dizer nada. Êles sabem muito bem que não há perigo
com as pelotas de 90. Para o haver seria preciso ir até à V. 24, mas
é tarde demais, não há tempo ! É puro bluf f!
— Eu, se vir um zepelim — murmurou docemente e com o ar
cândido de um menino de côro o segundo-tenente Moinier, — sei
bem o que hei-de fazer. Na minha opinião acho que se deve ir a
toda fôrça até ao contacto, e entrar dentro dêle. É o único jeito
de o mandar ao tapete.
— Com efeito ! você têm-nas bonitas. É muito gentil da sua
parte, meu caro — retrucou Bernis.— Lembre-se de que sou eu o
seu piloto. Se quiser entrego-lhe òs comandos, e fico nochão.
Minha pele vale bem doze tripulantes alemães!

87
N o tem po das carabinas

— Ah ! se eu soubesse p ilo tar! — continuou Moinier. — Já ima­


ginou, derrubar um zepelin sôbre Paris ? Vale a pena !
— Sim, terás no dia seguinte o retrato póstumo em todos os
jornais, a Legião de Honra sôbre o caixão. É isso que desejas ?
— Vale mais do que morrer na cama.
— Se é isso que te preocupa, tranqüiliza-te, meu velho ! poucos
dentre nós que empreguem êsse truque terão duas velas acesas e a
família choramingando em redor da cama. Quando chegar a idade
legal de termos direito a isso, há muito tempo que vicejará um jardin-
zinho sôbre o nosso ventre, o teu e o de muitos outros. Não te
apresses, tem paciência !
— Pois eu — declarei, — acho que não devemos ter ilusões. Não
é com uma carabina que se pode abater um zepelim. Não me parece.
Mas ao menos podemos toureá-lo bastante. Peço a Navarre, se tiver­
mos a sorte de encontrar um, que me leve quanto possível perto das
suas hélices, e será muito azar que eu lhe não faça saltar as pás,
ainda que elas sejam de metal. Nessa altura gostaria de ver a cara do
piloto, o conde Zeppelin por exemplo, se fôsse êle. Como se arranjará
para voltar a casa ?
— É uma idéia, mas tenham cuidado ! — tornou sentenciosa-
mente Bernis, agitando com ritmo o indicador erguido. — Êsses
moscardos dão as suas picadas ! Não tentem olhá-los muito de perto,
que poderão escaldar-se ! Parece que êle é recheado de metralha­
doras.
— Bem, passando por cima não há perigo. Êle deve ter um
ângulo morto enorme.
— Justamente; tive ocasião de ver fotografias. Os últimos mo­
delos comportam um pôsto de tiro na parte de cima, instalado em
verdadeira plataforma, com campo de visão total, acessível por uma
chaminé vertical interna, que o comunica com as barquinhas. Torno
a dizer-lhes: cuidado !
— Uma plataforma! Tem a certeza, meu tenente? — volveu
Bodin com fingida seriedade. — Então é muito simples: descerei
sôbre ela, cabrando o meu ferro-velho em perda de velocidade. Se me
espatifar, tanto pior, vale a pena. Depois, com meu mecânico,
visto que o tenente Ferru não está aqui, descemos à abordagem pela
chaminé interna a que o senhor se referiu. Surpreendemos a tri­
pulação espantada, prendemo-la, de pistola à cara, e obrigamo-la
a vir aterrissar aqui, no campo da esquadrilha. Já imaginou, trazer
um zepelim intacto para o campo da M. S. 12? É o que farei!

88
O facão de Navarre

Então Navarre, que nada dissera até êsse momento, explodiu:


— Isso mesmo, à abordagem ! T u brincas mas é isso mesmo.
É a única solução que nos deixam os cavalheiros da retaguarda.
Quando nos mandam lá para cima é isso que esperam. Apenas não
se atrevem a dizê-lo. Onde estão os nossos sabres de abordagem ?
Também não se atrevem a distribui-los, porque o gôsto da respon­
sabilidade não é o forte dêsses senhores !
“Não nos dão nada para atacar os zepelins, mas contam conosco
para redigir o comunicado. Dizem-nos: “Ide, meus valentes rapazes,
e agarrai-nos êsses pássaros ! Aqui tendes um pouco de sal para
lhes poisardes no rabo. Ide, vereis como é simples !
“Pois bem, nós vamos ! Vamos imediatamente, cavalheiros, por­
que não somos como vós, francalhões, dessorados... vamos com as
armas que vós nos désteis. Ides ver !
E Navarre afastou-se correndo para o lado da copa, de onde vol­
tou logo em seguida brandindo excitantemente um facão, enorme
facão de cozinha que descobrira numa gaveta.
— Ei-la aqui, a arma ideal, a única para atacar um zepelim !
Já que êles não têm outra coisa para nos dar, tanto pior, vamos
com isto mesmo!
E acrescentou com um sorriso enviesado:
— Isso os votará ao desprêzo quando se fizer mais tarde a
História de França !
Os carros chegaram. Houve um certo atropêlo para nos acomo­
darmos, e agora rodávamos a tôda a velocidade para o campo.

A noite estava menos escura do que a princípio receávamos. À


claridade das estréias percebia-se a parda extensão da pista, que
conhecíamos de cor. Por impressionante que fôsse decolar assim pela
primeira vez no escuro, seria uma experiência, e quanto a ter de
aterrissar antes do amanhecer, não havia a menor probabilidade.
Seria uma catástrofe. Combinou-se simplesmente que apenas os
aviões partissem, acender-se-ia uma grande fogueira no meio do
campo, até clarear o dia. Assim, uma guarnição em apuros e cons­
trangida a voltar à base, teria alguma possibilidade de se sair bem.
Do contrário, a necessidade de pousar em plena escuridão no campo,
era a morte sem palavras. Nossos relógios marcavam quatro horas
menos dez minutos, era necessário estar no ar até às cinco e meia,

89
N o tem po das carabinas

pelo menos, antes de se ver um pouco. Bernis deu as partidas de três


em três minutos, para evitar colisões e tudo se passou sem novidade.
No momento de decolar, vi Navarre tirar do seio a sua faca
de cozinha e colocá-la em evidência, com a maior seriedade dêste
mundo, ao alcance da mão, entre um montante e a chapa da
fuselagem.
Seus mecânicos arregalaram os olhos:
— É isso mesmo, amigos, devemos pôr tôdas as probabilidades do
nosso lado. É o que nos dão para caçar zepelins; e sabe-se lá ?
Talvez que, chegando bem perto e lançando-a com boa pontaria. . .
Encolheu um ombro sorrindo zombeteiramente, ajustou o ca­
pacete e iniciou o diálogo ritual das primeiras idades, êsse diálogo
que ainda hoje ressoa aos meus ouvidos nesta era de radar e de ferro,
de onde foi abolida tôda a poesia:
— Gasolina ?
— Gasolina.
— Contacto ?
— Contacto.
A hélice foi girada à mão, a explosão do motor quebrou o
silêncio. Os calços pularam. O avião rolou, e como sempre
Navarre fê-lo saltar os hangares. Foi assim que partimos, êle com o
seu facão e eu com a minha carabina.
A esquadrilha inteira não tardou a dispersar-se nos ares, invi­
sível nas trevas. Direção: Paris. Os corações exalavam esperança
e juventude. Tínhamos todos almas de mosqueteiros.
Pura insensatez, de resto, pois não havia a menor probabilidade
de encontrar qualquer zepelim. Um simples cálculo o demonstrava.
Havia quarenta e cinco minutos, bem contados, que o alarme nos
alcançara em Champigny-sur-Vesle. Quanto tempo fôra necessário
para que, de telefonema em telefonema, êle chegasse de Paris até à
nossa longínqua aldeia, passando por numerosos intermediários,
o último o estado-maior do Exército em Jonchery ?
De trinta a quarenta minutos, com certeza.
Devíamos ainda calcular uma boa hora para chegar à vertical
da Tôrre Eiffel. Total, duas horas e quinze entre o instante em
que os zepelins bombardearam Paris e aquêle em que nós surgiriamos
sôbre os primeiros bairros. Uma infantilidade ! Há muito que os
sinistros avejões deveriam ter regressado a casa. Tudo isso o sabíamos
muito bem, mas nenhum queria fazer êsse cálculo. Recusávamos
mesmo fazê-lo. O essencial para nós era, senão agir utilmente,

90
O facão de Navarre

pelo menos ter essa impressão, agitar-nos, movimentar-nos, correr,


voar, perseguir a ilusão, essa maravilhosa borboleta de asas de
ouro. Que importava o resto ? Quem nos garantiría, por outro
lado, que uma guarnição favorecida não tivesse a sorte excepcional
de encontrar um zepelim no lento caminho de regresso ? A arti­
lharia devia tê-los apanhado à partida sôbre Paris. Talvez um
dêles, mais ou menos atingido, avançasse penosamente àquela hora,
nalgum ponto do céu não longe de nós ! Convinha olhar para nor­
deste, que era a zona nevrálgica.
Debalde apurei os olhos. Terra e céu mostravam-se cada qual
mais escuro. Mergulhamos para oeste, deixando o campo longe atrás
de nós. O motor roncava com a regularidade que conforta a alma.
Nossas vidas estavam suspensas do seu canto monótono, cuja própria
monotonia era um penhor de segurança. Quando a sobrevoamos a
2.500 metros, com um frio polar, a capital era como um grande corpo
inerte. Surgiu sob a forma de uma extensão alvacenta, enorme,
perfeitamente visível, com os sulcos retilíneos das suas avenidas e
ruas. Aqui e acolá brilhavam algumas luzes, apesar dos regulamentos
da polícia. Que puerilidade pensar que tapando tôdas as luzes se
escondia uma cidade aos olhos dos aviadores.
Nem um feixe de projetores. Com tôda a evidência não havia,
ou pelo menos já não havia mais zepelins sôbre Paris.
Quando Navarre virou à direita, vi nascer no horizonte, de
noroeste para sueste, como uma fita cinzenta tendo no meio uma
claridade rósea. O alvorecer, o comêço da aurora. . . Um grande
alívio me invadiu. Dentro de meia hora se distinguiria o solo
e poderiamos aterrissar. A morte fugiría da nossa fuselagem com as
suas asas negras. Iria para o diabo. A tensão de espírito diminuía.
De repente recebo um grande baque no coração. Navarre, com
o braço imperiosamente estendido, mostrava um ponto no espaço.
Interrompeu o contacto do motor por um décimo de segundo (que
loucura !), e voltado de perfil gritou no intervalo de silêncio:
— Um zepelim, acolá !
O avião deu uma guinada para baixo, depois tornou a subir
entre o roncar do seu motor ressuscitado. Vamos a tôda a velocidade
na direção de um fuso escuro que parecia deslizar ao longe, nas
trevas agora menos densas.
Mas era engano. Não havia zepelim algum. Era apenas uma
nuvem em forma de charuto, por cima da floresta de Compiègne.

91
N o tem po das carabinas

Gastamos um quarto de hora a convencer-nos disso. Eu já erguera a


minha carabina de cima dos joelhos, como um caçador de feras
no seu mirante, quando o animal foi assinalado por perto. Pelo
menos tive a sensação da caça aos zepelins. Nem todos foram
tão bem aquinhoados.
Que teria acontecido se o encontro fôsse uma realidade ? Tal
como o conheci depois, não é absurdo pensar que Navarre tivesse
abordado o zepelim, e num gesto de desprezo pelos que o tinham
incumbido de uma missão impossível, lhe atirasse o seu facão ao
ventre. No regresso, incluiría o incidente para figurar no diário
da esquadrilha. E com o seu espírito crítico, dar-se-ia por satisfeito.
O sol aparecia no horizonte quando passamos de novo pelas
cercanias de Paris. Navarre não deixou de ir saudar a capital a seu
modo. Executou por cima do Sacré-Coeur de Montmartre uma das
mais impressionantes descidas en verre de lampe que jamais realizei
com êle. Depois voltamos o nariz para Reims. Mas não dispu-
nhamos de gasolina suficiente para voltar à esquadrilha e tivemos
de pousar num campo. Terminado o reabastecimento partimos de
novo e descemos em terra às 9 horas. Todos os demais aviões haviam
regressado há muito. A esquadrilha estava inteira. Nenhum acidente
a lamentar, mas também ninguém avistara um zepelim.
Sim, velhas recordações. .. Pode parecer insignificante, porque
enfim trata-se apenas de um esforço malogrado. Porém, na verdade
não o é. E não o é por duas razões que me parecem suficientes para
o não deixar perder-se no esquecimento. Dêle restarão ao menos
estas poucas linhas.
A primeira porque se prende à existência de um espécimen
para sempre desaparecido da fauna aérea: o zepelim, o balão dirigível.
Houve tempo em que êsse ser fabuloso que percorria o céu teve
uma vida real. Nossos filhos terão dificuldade em acreditar nêle,
mas nós vimo-lo e chegamos a persegui-lo. Foi o terror das noites
sem lua. Reinou nas trevas e semeou a morte e a devastação à sua
passagem. O homem tremeu diante dêle, correu para as profun­
dezas dos abrigos quando o seu mugido enchia a atmosfera e a sua
sombra gigantesca se recortava no chão. O zepelim hoje não existe
mais, nunca mais voltará. Nossos netos só o conhecerão pela imagem,
pela fotografia, pela lenda.
A civilização matou-o. Os progressos da ciência baniram-no
do planêta. O clima celeste não lhe permitiu manter-se. Se êle
tentasse reaparecer seria para se ver aniquilado no mesmo instante,

92
O facão de Navarre

tão poderosos se tomaram os meios de destruição. Só o encontraremos


no futuro em estado de fóssil, com as suas ossadas de alumínio, na
camada geológica correspondente à nossa era (em Révigny no Mosa,
por exemplo), ao lado dos seus grandes ancestrais da família dos
monstros antediluvianos, o ictiossauro, o plesiossauro, e sobretodos o
pterodáctilo que, como êle, foi um corsário dos ares.
Tanto no domínio militar como no comercial, o balão dirigível
está superado, distanciado, o mais pesado que o ar vibrou-lhe a
estocada mortal. Com um golpe de bisturi do seu reator fêz a
ablação dessa verruga, dessa pústula que o final do século XIX
vira surgir na face da Terra. Já não mais se passeia impunemente
pelo céu a sessenta quilômetros à hora, em tempo de paz ou em tempo
de guerra, tendo por cima um abcesso de vários milhares de metros
cúbicos prestes a rebentar. Não é prudente nem vantajoso.
Por isso aquela espécie de caçada aos zepelins na noite de 21 para
22 de março de 1915, assume hoje aspecto de documento.
Mas a segunda razão que me leva a evocar essa frágil recordação
oferece maior relevo: é a atitude de Navarre.
Ela tem o valor de um símbolo, é tipicamente representativa da
mentalidade do soldado francês daquela época, que foi aviador, sol­
dado de infantaria, cavaleiro ou artilheiro, podemos dizer da menta­
lidade do soldado francês de todos os tempos, no passado como no
futuro. Foi tanto a dos archeiros de Joana D’Arc como a dos volun­
tários de Valmy, dos resmungões do Império como dos de Verdun.
O capacete pode mudar, mas não a cabeça.
Mesmo quando nada temos para lhes dar, armas ou calçado, pão
ou balas, mas sabemos falar-lhes, dizer-lhes que a sua causa é nobre
e bela, que os mandamos à luta pela justiça, pela liberdade e o
prestígio da sua terra, então não há obstáculo para êles, barricadas
suficientemente altas, muralhas inacessíveis, fortalezas inexpugnáveis,
e êles se atirarão de mãos vazias contra as rajadas de metralhadoras.
Porisso, o dever é nunca deixar faltar armas ou minuções.
O gesto irônico de Navarre, saindo em perseguição dos zepelins
com um facão de cozinha porque não têm outra coisa para lhe dar,
exalando a sua cólera e o seu espírito crítico em têrmos sarcásticos
e vingadores, mas partindo apesar disso e sendo o último a voltar,
depois de vasculhar o céu em todos os sentidos, é a própria imagem da
juventude francesa, de outrora, de hoje e de sempre. Dêem-lhe
um alimento adequado à sua alma e ao seu ideal, dêem-lhe chefes, e
poderão levá-la até ao fim do mundo.

93
ENFIM, A OPORTUNIDADE

Hoje, l.o de abril, Pelletier-Doisy e eu damos um giro pelo


passeio, na rua ainda escura. Uma pouca de neve estala sob os nossos
pés. Nada se mexe ainda na vila adormecida. Fomos os primeiros a
levantar-nos.
Pelletier-Doisy espera o segundo-tenente Robert, seu passageiro,
e eu espero Navarre, meu piloto. Os automóveis ali estão,de faróis
amortecidos. Os chauffeurs batem as solas, de mãos nos bolsos. Dois
carros para quatro, chega a ser luxo. Como manifesto a intenção de
mandar um para a garage, Pelletier-Doisy intervém:
— Não, meu tenente, deixe ! O frio é tremendo, Robert e
Navarre estão atrasados. Decerto ainda estão debaixo das cobertas.
E se nós fôssemos à frente com a Hotchkiss, e lhes deixássemos a
Sans-soupapes ? Êles que vão ter conosco no campo. Esperamo-los no
escritório, e lá pelo menos haverá lume.
— Grande idéia, Pivolo ! Vamos à frente. A caminho !
Grande idéia, com efeito, a que acaba de ter Pelletier-Doisy.
Mais alguns instantes, e para não ficar atrás tenho eu também outra,
igualmente boa e feliz. Êste é o dia das idéias grandiosas. . . que
nunca nos arrependeremos de haver tido.
O carro põe-se em movimento. Quinze minutos de mau caminho
e desembarcamos no campo. Os galpões já estão abertos. Dois
Morane foram tirados para a pista, virados para o vento, cunhas na
rodas, prontos a partir —os nossos. Anuncia-se a aurora. As estrelas
desmaiam, uma franja avermelhada banha a contra-luz, com um
clarão de incêndio, as névoas das alturas de Brimont, de Berru, de
Nogent-l’Abbesse, todas posições nas mãos do inimigo. O tempo
anuncia-se bom. Perto de nós um vento frio faz tremer o capim
escuro.
Empurramos a porta da barraca dos mecânicos. Vários ali estão,
sentados ao redor da estufa e levantam-se quando entramos.

94
Enfim, a oportunidade

— À vontade, rapazes ! Dêem-nos apenas lugar, que temos as


mãos geladas.
Com os dedos soltos pelo bom calor do fogareiro, aceitamos uma
caneca de café escaldante. Boa e corajosa gente, êsses mecânicos de
aviação, os maravilhosos mecânicos da guerra de 1914 e das outras
que se vão seguir e ainda se não suspeitam. Êles encarnam a dedi­
cação, devotam-se ao seu piloto e ao seu aparelho. Trabalham tôdas
as horas da noite e do dia, com inexcedível competência. Prendem-se
com uma espécie de orgulho ciumento e exclusivo ao seu piloto e ao
seu avião. O seu piloto é para êles o melhor, o mais hábil, o mais
“importante”, aquêle que tem mais “garra”. Seu avião é o de melhor
qualidade, o mais rápido, o de motor melhor regulado, “de mais
precisão”.
Nesse ano de 1915 têm oportunidade de participar da glória
do seu piloto, de tomar parte nas suas missões e até nos seus combates,
como passageiros. Mas não será, infelizmente por muito tem po...
Nos vôos de reconhecimento, em breve não haverá mais lugar
para êles. As escolas de oficiais-observadores e os cursos de metra-
lhadores começam a impor-se sèriamente. Aparecem nas esquadrilhas
homens de rostos e insígnias novas, diplomados em tôdas as costuras.
Seu valor é indiscutível e anseia por ser pôsto à prova. Quando,
no futuro, levarmos de longe em longe algum mecânico em missão
por cima do inimigo, será para lhe prestar um favor, para lhe
conceder um último e raro privilégio. É uma maneira de os recom­
pensar pelos seus serviços, de lhes permitir, talvez, conseguirem a
cruz de guerra. Só muito mais tarde, quando chegar o tempo dos
grandes aviões de combate, tornará a aparecer a figura simpática do
mecânico-metralhador.
Mas na caça a situação vai piorar e não terá mais remédio. O
aparelho de caça, de dois lugares, está em vias de desaparecer. O
piloto não tardará a ser o único a bordo. Não precisará mais de par­
ceiro para derrubar o adversário. Poder pilotar e atirar ao mesmo
tempo. Com imperceptíveis movimentos da alavanca de comando,
dirigirá sôbre o alvo a atingir o seu avião, levando no eixo uma
metralhadora fixa que dispara através da hélice. Em suma, o seu
próprio avião se tornará metralhadora — uma metralhadora volante
correndo em pleno céu. Há técnicos procurando encontrar solução
para êsse problema. Mormura-se que Roland Garros (que continua
em estágio nas usinas Morane) já a teria encontrado. E aqui mesmo
em nosso campo, um genial sargento mecânico, engenheiro civil,

95
N o tem po das carabinas

chamado Alkan, pertencente ao pessoal da M. S. 12, se ocupa a aper­


feiçoar um mecanismo de sua invenção. Seu sistema permitida sin­
cronizar o movimento de rotação da árvore-motor como o do vai-e-
vem do pistão da metralhadora. Dêsse modo torna-se-á matemàti-
mente impossível às balas esbarrar com as pás da hélice. Melhor
ainda que a de Garros (prismas de aço revestindo as pás para as
proteger), esta concepção está destinada a revolucionar a tática
do combate aéreo. Alkan é por enquanto desconhecido, porém mais
tarde a 12 se honrará de o ter contado entre os seus membros.
O avião de caça, assim aliviado do pêso do passageiro, ganhará
uma preciosa margem não só em velocidade como também em ma-
neabilidade. Apanhar os aparelhos de dois lugares, forçosamente
mais lentos e mais pesados, tornar-se-á para êle extremamente fácil.
Na ocasião do encontro poderá brincar com êles, pelo à vontade das
evoluções. Irá tê-los à sua mercê.
Fórmula ideal para o caçador, mas deplorável para o mecânico.
Para êste será a condenação a permanecer no solo. Só o piloto conhe­
cerá o excitante orgulho do combate aéreo. Tôda a glória do outro
consistirá em mergulhar as mãos no óleo dos motores e em pôr
a hélice em movimento. Nunca mais voará. Em matéria de glória
terá de contentar-se com o reflexo da auréola do seu piloto, e também
do seu aparelho, no qual, chegada a ocasião, pintará com orgulho
um pequeno círculo vermelho nas telas feridas pelo impacto das
balas inimigas, tendo ao lado a menção da data e do lugar do
encontro.
Mas nem porisso diminuirá a consciência profissional do mecâ­
nico de caça, nem a sua dedicação. Embora não partilhe mais os
perigos do vôo, nem porisso deixará de continuar mantendo em
estado de subir a qualquer momento o avião no qual outro homem
que não êle terá o privilégio de arriscar a vida. Seus dedos hábeis,
seu ouvido atento, seu espírito inventivo, continuarão em perpétua
vigília, em perpétuo alerta. Não comerá, não se deitará nem dormirá,
enquanto a sua mecânica lhe não der inteira satisfação. Sua recom­
pensa será, quando o piloto se acercar negligentemente do avião para
subir aos comandos, poder à sua pergunta, sempre a mesma:
Então como vai isso ? O motor trabalha bem ?” responder com
convicção: “Òtimamente, meu tenente !”
As cartas de nobreza dos mecânicos, os autênticos, nem por
serem modestas constituem uma vaga expressão. Residem no seu tra­
balho obscuro, ingrato, obstinado e inteiramente desinteressado.

96
Enfim, a oportunidade

Mais tarde, quando eu próprio me tornar um piloto de caça, hei-


de dedicar-me a interpretar a psicologia dos meus mecânicos, a com­
preendê-los, a estimá-los, a dar àqueles que as merecem essas provas
de confiança de que êles são famintos. Quando lhes damos essa
prova, êles comovem-se até ao fundo da alma.
Com dois dêles, mas apenas com êsses, em épocas diferentes da
minha carreira, Maurice Masson e Georges Gouèffon, usarei um
método que sempre lhes umedecerá os olhos de reconhecido orgulho.
Por bastante arriscado e não habitual que isso seja, decolarei às
vêzes sem experimentar o motor, limitando-me a perguntar-lhes se o
fizeram antes da minha chegada.
— Está claro, meu tenente ! Mil duzentas e oitenta rotações no
ponto fixo, há um minuto. São mil trezentas e cinqüenta em vôo.
— Pode ir, meu comandante. Está que nem um relógio !
Não perguntarei mais nada; farei sinal para que retirem os
calços, abrirei completamente o gás e irei embora.
É assim que se agradece àqueles que nos são dedicados, é assim
que se selam com duro cimento as duas grandes forças sôbre que
repousa qualquer emprêsa nobre: a estima e a dedicação. Entre nós
será para a vida e para a morte.

Por enquanto ainda não disponho de um mecânico meu. Per­


tenço à classe híbrida dos observadores, dos passageiros, dos colis, para
não dizer dos fardos. Mas assim mesmo somos estimados. Especial­
mente se atiramos bem com carabina.
Aqui estão, à volta da estufa, o ajudante Bordas, chefe do serviço
das oficinas e dos hangares, Girard, mecânico de Navarre, Léonard
Mons, mecânico de Méseguich, Maurice Masson, meu futuro mecâ­
nico, os dois irmãos Servant e outros mais. Estão também, natural­
mente, os dois inevitáveis cachorros-mascotes da esquadrilha, Pépin
e Parasol, dois cachorros talvez não bonitos nem de raça; mas rece­
bería incontinenti os insultos de todo o pessoal da M. S. 12 quem
ousasse fazer alguma observação a êsse respeito, alguma reserva sôbre
a distinção, a inteligência ou a experiência dêles.
Vivos e encantadores, gordos como texugos, empanturrados até
mais não poder de açúcar e carne de conserva, latem só para os civis.
À nossa entrada vieram gentilmente fazer-se acariciar, e depois desa­
pareceram por baixo dos bancos para nos dar lugar.

97
N o tem po das carabinas

Segunda caneca de café escaldante. Bem, a coisa melhorou. Até


melhorou muito. O otimismo volta, e com êle as idéias claras. ..
as boas idéias.
É o momento que escolho para dizer a Pelletier-Doisy, em tom de
camaradagem, tomando a assistência por testemunha:
— Diga-me uma coisa, Pivolo: há dez minutos que aqui estamos
e Navarre e Robert ainda não chegaram. E se lhes pregássemos uma
boa peça ? Tanto mais que os boches, como é sabido, saem de prefe­
rência ao romper do dia — e o dia não está longe. Se fôssemos nós
dois juntos ? Se, por uma vez, constituíssemos nós ambos a tripu­
lação ? Quando êles chegarem, que façam a mesma coisa !
A face de Pelletier-Doisy abre-se no seu bom sorriso jovem. A
idéia agrada-lhe. Está sempre pronto para uma brincadeira, para
uma piada, para qualquer partida a pregar aos camaradas.
— Caramba, meu tenente, é uma famosa idéia ! De acordo !
Levo-o comigo. Será uma boa lição: para outra vez serão mais pon­
tuais ! Já estou vendo o longo nariz de Navarre, quando vir que lhe
roubei o observador !
— E eu, o piloto a R obert!
Na guerra pouco basta para fazer rir. Todo o mundo desata
às gargalhadas. Saímos logo para o campo. Naturalmente, é preciso
decolar sem tardança ! Se Navarre e Robert chegarem, a brincadeira
está perdida.
Pelletier-Doisy corre para o seu avião, estimulando os outros:
— Vamos, depressa ! depressa ! Gostaria de ver a cara dêle,
quando perguntar pelo seu piloto e nos mostrarem lá em cima, como
um ponto negro. — “O seu piloto ? Olhe, lá vai êle ! A esta hora
já está sôbre Reims”.
Chego esbaforido junto à fuselagem. O sargento Rochat, fiel do
armazém, chega ao mesmo tempo que eu sobraçando uma pesada ves­
timenta que desenrola:
— Meu tenente, meu tenente, olhe !
— Que é isso ?
— É o conjunto do Figaro, meu tenente !
— O conjunto do Figaro ? !
— Sim, é a sua vez de o usar. Está escrito no caderno de serviço
e assinado pelo tenente de Bernis. Hoje é o seu dia; o outro é para
o cabo Bodin.
— Tem certeza ?
Rochat espanta-se com a minha ignorância:

98
Enfim, a oportunidade

— É o que lhe estou dizendo, meu tenente ! Está escrito no


caderno. Eu é que tomo conta dêles. Estou encarregado do rodísio.
— Então que seja ! Ajude-me depressa a vesti-lo. Nunca enfiei
um negócio dêsses: não há-de ser fácil!
Rochat ajuda-me o melhor que pode. Primeiro as pernas, depois
os braços — Uf, acabou ! A cinta é afivelada. Fica-se um pouco
encolhido lá dentro, o oleado é duro e estala nas dobras, mas de
qualquer modo deve ser agradável de usar, quando sentado. Além
disso, com estas peles internas a gente sente-se logo enormemente
aquecido. Ainda bem ! Ao menos hoje não passarei frio.
— Obrigado !
Dou um pulo e enfio-me no meu lugar, atrás de Pelletier-Doisy.
Tenho justamente o tempo de arrumar a carabina na fuselagem e de
apertar a correia. Logo Bésin põe a hélice em movimento. Ribomba
o trovão do motor. Trinta segundos de ponto fixo. (Contanto que
Robert e Navarre não cheguem !) Está tudo bem. Um aceno
aprovador do capacete de Pivolo, um dedo do gigante que se ergue.
As cunhas resvalam sôbre a erva. Quase não há vento. Decolamos
e subimos ràpidamente.

Esta história do conjunto do Figaro é verdadeira (como aliás


todos os pormenores dêste livro). Merece uma pausa que a preserve
das cinzas do esquecimento. Caracteriza, só por si, tôda uma época
da nossa aviação. r
Não se pode dizer que a França foi surpreendida pela declaração
de guerra de 1914; ela esperava-a e vinha-se preparando para ela
desde anos. Era então considerada a primeira potência militar do
mundo. Só a Alemanha se encontraria em situação de lhe disputar
êsse título. Mas na preparação dos seus exércitos, tanto uma como
outra teriam lacunas a censurar-se, devidas a êrros de julgamento
ou a uma falta evidente de imaginação. Ninguém previu com clari­
vidência a forma que iam tomar as hostilidades, muito menos a sua
duração.
A guerra estouraria no verão (neste ponto todo o mundo estava
de acordo) e não iria além de algumas semanas. A tremenda fôrça
de destruição (já nessa altura) dos engenhos modernos, certamente
não permitiría ao homem sobreviver muito tempo no campo de ba­
talha. Um dos adversários — o mais castigado, — seria fatalmente
levado a depor as armas em prazo muito curto. Ninguém admitia

99
N o tem po das carabines

que as hostilidades pudessem prolongar-se para além do outono.


Neste segundo ponto a história iria encarregar-se de desmentir os
áugures.
O verão tinha passado, e por sua vez o outono; o inverno che­
gara. O exército francês (do mesmo modo que o exército alemão)
deixara-se surpreender pelos frios intensos, sem que nada estivesse
preparado para o preservar. Nenhum equipamento especial, nada
de roupas quentes, de blusas forradas, de agasalhos de lã, nem
sequer de luvas adequadas. Nada. Foi necessário improvisar tudo
para dotar os combatentes do estritamente indispensável. Empre­
endeu-se um esforço enorme em favor dos soldados de infantaria
transformados em míseras toupeiras, nas suas trincheiras cheias de
lama, neve e gêlo. Êles ficavam de guarda noite e dia, sem ter como
abrigar-se ou aquecer-se. Era legítimo que sôbre êles, antes dos de­
mais, se exercesse a vigilância dos comandos e se manifestasse a com­
paixão da opinião pública.
As peles de carneiro, os passa-montanhas, as botas acolchoadas e
as mitenes começaram a aparecer. Os combatentes de terra acabaram
por ficar mais ou menos corretamente providos.
Nos aviadores ninguém pensou. Nada mais natural. Apesar da
admiração que lhes concediam, poucos faziam uma idéia da sua
existência. Ignorava-se as condições em que as guarnições tinham
de desempenhar os seus encargos. Sabia-se que estavam bem insta­
lados perto dos seus campos, em vivendas de campo e às vêzes em
palácios, que eram bem alimentados, comiam em pratos, com guar­
danapos como em tempo de paz, dormiam em camas autênticas,
usavam belas botas de atacadores e belos quepes escuros ou azul
claro, muito popularizados nas gravuras da Vie Parisienne, mas
ninguém sabia que em vôo carecíamos de tudo, enfrentávamos todos
os dias a 2.000 e 3.000 metros de altitude frios mortais de 20° a 30°
abaixo de zero. A era dos aviões fechados, dos cockpits, ainda não
tinha nascido, nem se abriría senão daí a um quarto de século.
Por então os aviadores ficavam horas no ar, nas suas frágeis asas de
libélulas, imóveis em fuselagens inverossímeis, abertas a todos os
ventos, feitas de simples tela esticada sôbre alguns sarrafos de ma­
deira. Chegado o inverno, não lhes fôra distribuída coisa alguma.
Continuavam apenas com o seu blusão de couro, aliás muito cobiçado
nas outras armas, o mesmo que utilizavam no verão. Em matéria de
agasalho, nem sequer botas acolchoadas. Os mais desembaraçados
tinham conseguido, aqui e acolá, algumas peles de cabra e metiam-

100
Enfim, a oportunidade

nas dentro delas. A futura vestimenta do aviador, hermèticamente


fechada, estava ainda no limbo. Ninguém a desenhara, os aviadores
sofriam cruelmente.
Um dia o jornal Le Figaro, inteirado dessa situação, decidiu
remediar o caso por meio de uma campanha bem orientada. Alertou
a opinião pública. As melhores penas dos seus redatores descre­
veram com pormenores circunstanciados o que representavam os vôos
de guerra a temperaturas que ninguém suspeitava, no turbilhão
gélido das hélices. As mãos geladas, rostos gelados, pés gelados não
tinham conta nas esquadrilhas. Alguns pilotos haviam chegado a
voar com sapatos de lã e tamancos de madeira, como usavam os
camponeses nos estábulos.
O Figaro abriu as suas colunas para uma coleta, em dinheiro
e materiais, a fim de suprir as necessidades da Intendência militar
(que tinha tanto que fazer !) e dotar desde logo os aviadores de
roupas quentes. A população parisiense reagiu, conforme o costume,
com tôda a boa vontade. Numerosos donativos, em sua maioria anô­
nimos, chegaram aos guichês do grande cotidiano. Peliças de homens,
casacos de peles de mulheres, alguns valiosíssimos, estolas e regalos,
astrakãs, visons e até mesmo zibelinas foram assim entregues à
tesoura dos costureiros, para se tranformarem em forros de conjuntos
de aviadores. Dessa vez nasceu realmente o conjunto de vôo, criado
por um alfaiate militar da capital, Bidal, se não estou em êrro. As
tripulações ainda não podiam ser todas atendidas, mas em alguns
dias Le Figaro ficou habilitado a proceder à primeira distribuição
exclusivamente destinada às esquadrilhas em ação na frente de
batalha. O comando, informado, avisou por via oficial os chefes de
formações e autorizou-os a nomear em Paris um representante para
receber do Figaro um quinhão de dois capotes, ou dois conjuntos for­
rados, à escolha.
Êstes significavam um progresso notável, que deliciara os avia­
dores. De uma só peça, apertados no pescoço, nos punhos e nos
tornozelos, de pano forte, couro ou tecido oleado por fora, forrados
de peles (por vêzes muito raras e custosas) por dentro, não apre­
sentavam nenhuma abertura que não pudesse ser estreitamente unida.
Mais ainda que pela satisfação de poder lutar sem ter de agüentar
frios terríveis, a aviação mostrou-se grata ao constatar um tal movi­
mento de simpatia da população francesa a seu respeito.
O tenente de Bernis mandou ao Figaro, como sendo pelo seu
cabelo côr de sal e pimenta o mais sério, e pelo seu domicílio de

101
N o tem po das carabinas

antes da guerra o mais parisiense de todos nós, Méseguich, receber


o lote destinado à M. S. 12.
Quarenta e oito horas depois Méseguich voltava debaixo dos
gracejos de tôda a esquadrilha cobiçosa, trazendo dois dêsses maravi­
lhosos conjuntos ultra modernos.
Tinha os olhos ainda cheios de luz, deslumbrados pelo que
haviam visto.
— Meu velho, eram montanhas dêles, até às janelas, esperando !
Justamente eu conhecia um dos redatores encarregados da distri­
buição. Êles não sabiam mais o que fazer com aquilo. Nunca
imaginei ! Casacos de mulheres lindíssimos, de zibelina perfumada a
origam, tantos quantos quisesses !
— Então porque não os trouxeste ? — perguntou Navarre, de
lábio sôfrego.
— Ora essa, estás brincando ! Ficaríamos todos com ar de
mulher. Já te imaginastes abatido em luta aérea por um boche,
com um casaco de zibelina ?
Estalaram risos e Méseguich foi desculpado. A esquadrilha
enriqueceu-se com aquelas generosas dádivas, muito apreciadas por
todos. Foi organizada uma ordem, a fim de que cada membro do
pessoal navegante da M. S. 12 as gozasse por sua vez. Hoje era a
minha. Rochat acabava de lembrar-mo.

Sinto-me confortável como nunca. Tenho calor. Lutar sem


padecer frio é um sonho !
Acaricio êsse sonho com delícia. Sinto-me cheio de esperança.
Há dias e dias que a esquadrilha não tem sorte, dias e dias que sul­
camos o céu em todos os sentidos, na frente de batalha, de Reims
a Soissons e de Soissons a Reims, a tôdas as horas, sem ter a satisfação
do menor encontro (salvo o de Ferru e Bodin). Será que aquela
inversão da ordem dos fatores iria contra todos os postulados mate­
máticos, modificar o produto das nossas esperanças? Desejo-o tanto
que estou quase certo de que essa eventualidade vai realizar-se.
Através dos vidros dos meus óculos, que a cada passo se embaciam
e tenho de limpar, observo apaixonadamente o céu e o chão. Nada
em cima, nada em baixo. O tempo está de uma clareza admirável.
O sol já saiu do horizonte. A visibilidade é excelente. As sombras
alongam-se, delgadas e tênues pelos campos verdes e rosados. Ainda
é muito cedo. Não são 7 horas. A água das lagoas e dos pântanos

102
Enfim, a oportunidade

mostra-se franjada de uma orla branca. É geada. Voamos a 2.000


metros. À minha frente, no primeiro plano, vestido de couro claro,
plantam-se as costas robustas de Pelletier-Doisy, sôbre as quais assenta
o seu capacete. Êle muito maior e mais forte que Navarre, o que
altera a minha ótica habitual de vôo. Além disso, protege-me mais
do vento. Serenidade. ..
Guinada por cima da catedral de Reims. Meia volta. Avan­
çamos para oeste. Pela segunda vez descemos o vale do Vesle, em
direção a Soissons. Agora não temos sol nos olhos. Sempre o de­
serto. . . Obuses rebentam simultâneamente em Saint-Thierry e Bri-
mont. Troca franco-alemã de saudações matinais.
De repente um baque no coração ! Ao longe, no céu, um ponto
escuro à mesma altura que nós. E não é um drachen-ballon na ponta
do seu fio. (A grande distância, às vêzes enganamo-nos). Desloca-se.
Ei-lo que desce pela esquerda. Não há dúvida, é um avião ! E espero
que seja alemão ! Enfim, um embate !
Toco no ombro de Pelletier-Doisy. Êle também o viu. O motor,
subitamente lançado a pleno regimen, traz-me a sua resposta. Sem
pressa, desato a correia da carabina, verifico a munição e coloco a
arma de pé entre os joelhos. Só manobrarei a culatra no derradeiro
instante. Nada de precipitações !
O ponto negro cresce a olhos vistos. Caramba, aumenta até de­
pressa demais ! Êsse, pelo menos, não foge ! Vem ao nosso encontro,
por baixo. Será que nos avistou, com o contra-a-luz que o deslumbra ?
Cúmulo da sorte, não precisaremos persegui-lo e estamos uns bons
quinze quilômetros para dentro das nossas linhas. Talvez vinte. Con­
dições magníficas para travar combate. Pelletier-Doisy já enviesa
levemente para a direita, três a quatro graus, não mais, a fim de
eventualmente lhe cortar a retirada em direção à frente. De modo
que terei de atirar pela esquerda. Não é o lado melhor, mas prefiro
assim.
Santo Deus, é um monoplano ! Terei visto bem? Sim, é um
monoplano ! Sinto um calafrio gelado na nuca. É um francês ! Os
alemães não dispõem de monoplanos nessa ocasião. A não ser
que se trate de algum novo aparelho, de tipo ainda desconhecido.
(De fato, os temíveis Fokker de caça não tardarão a aparecer). É a
nossa última esperança. ..
Desvanece-se. Percebe-se uma solução de continuidade entre o
plano e a fuselagem. O céu aparece entre ambos. Inferno, é um
Morane Parasol! Como nós ! Só podem ser Navarre e R obert...

103
N o tem po das carabinas

Sim, são êles ! Já estão sôbre nós. Vamos cruzar-nos de muito


perto. O pavilhão triangular metade branco metade azul da M. S. 12
flutua na fuselagem. As rosetas das suas asas, abertas como grandes
olhos tricolores, desabam sôbre nós. (Isto deve ser impressionante
para o inimigo. Tão impressionante quanto as suas cruzes negras
o são para nós). Eis Navarre e Robert a não mais de dez metros.
Perpassam ao nosso lado esquerdo à velocidade de um raio (125 -f-
125 = 250). Mas tenho tempo de avistar a claridade dos seus sor­
risos nas aberturas dos passa-montanhas. Amáveis acenos de mão.
Não parecem zangados. Respondo do mesmo modo, agitando a luva
ao sol sob a tempestade da hélice.
Mas intimamente estou consternado. Assustaram-nos, os cre­
tinos ! Esperávamos tanto ter enfim pela frente um Aviatik ou um
Albatroz! Que idéia, virem assim sôbre nós ! Quem sabe? Talvez
também êles. . . Decerto também nos tomaram por um avião alemão.
É mais que claro. A sua decepção deve ter sido igual à nossa. Pois
tanto pior ! É bem feito !
Outra vêz o céu deserto. .. O ronco sereno do rotativo Rhone
volta ao seu regime de cruzeiro...
Decorre mais uma hora. Missão terminada. Agora precisamos
regressar. Dentro de vinte minutos estarei em terra, dirigindo-me ao
escritório da esquadrilha, onde escreverei, como de costume, no
caderno das saídas, as iniciais fatídicas: R.A.S. Ou não; desta vez
escreverei: às 7hl0 demos caça a um avião da M. S. 12, que fez
o mesmo conosco. Foi o dia dos logros e dos enganos. Ou alguma
coisa semelhante.. .
Inútil procurar mais. E também não terei oportunidade de
exercer o meu espírito no caderno de serviço da esquadrilha. Os
acontecimentos se encarregarão de me dispensar disso.
*

No momento de pousarmos, notamos uma atividade desacostu­


mada no campo. Homens correm fazendo grandes gestos. Dirigem-
nos sinais frenéticos que nos preocupam, e eu inclino-me para veri­
ficar se por acaso não nos faltará alguma roda. Não, está tudo em
ordem. Que será ?. ..
Diversos carros estacionam no caminho, perto dos hangares.
Outros chegam a tôda velocidade erguendo nuvens de poeira. Que
se estará passando? Todo o mundo está fora. Tem-se a impressão
de um formigueiro a que alguém tivesse dado um pontapé.

104
Enfim, a oportunidade

Aterramos. Acabamos de rodar para os galpões quando uma


penca de mecânicos e escriturários corre ao nosso encontro, e de
bôcas escancaradas se agarra à nossa fuselagem, gritando palavras
que não podemos ouvir com o barulho do motor. Pelletier-Doisy
pára-o imediatamente.
— Que há ? —perguntamos ao mesmo tempo.
— Navarre e Robert derrubaram um boche!
— O quê ? É brincadeira !
— Não ! Navarre e Robert derrubaram um boche !
, Pelletier-Doisy desaperta o cinto e volta-se para mim, rindo.
— Essa não pega ! Êles estão brincando conosco, meu tenente.
Querem desforrar-se da partida que lhes pregamos. Hoje é l.° de
a b ril!
É verdade, hoje é primeiro de abril. Está tudo explicado. Onde
estão êsses espertalhões Robert e Navarre, que lhes queremos
responder ?
Saltamos para a terra e arrancamos os capacetes, cercados pela
nuvem de mecânicos. Robert e Navarre não se escondem em parte
alguma. Não estão aqui. E a confirmação da notícia desaba sôbre
nós, como um penedo. O tenente Moinier sai do escritório, onde a
campainha do telefone toca sem parar. Vem ao nosso encontro, muito
excitado, de braços erguidos:
— Formidável ! Robert e Navarre derrubaram um boche!
— Onde ? Nas linhas alemãs ?
— Não, nas linhas francesas, perto do Serval, ao norte de Fismes.
O avião está intacto. É um Aviatik. Êles prenderam os aviadores.
Dois oficiais. O piloto está ferido, mas o observador não sofreu nada.
Robert abateu-os com três balas disparadas à queima-roupa. Parece
que Navarre o levou sem descontinuar até à cauda do Aviatik.
Moinier não brinca. Está falando a verdade. Aliás não páram
de chegar carros, despejando oficiais de tôdas as armas que se pre­
cipitam em busca de notícias.
— Onde está o avião ? Onde estão os heróis que o derrubaram ?
Queremos felicitá-los ! O combate foi maravilhoso ! Vimos tudo
cá de baixo !
— Estão em Jonchery, no Q. G. do Exército, onde o general
Franchet d’Espérey pediu que os levassem imediatamente.
Bem, não há a menor dúvida, tudo é incontestàvelmente verda­
deiro ! Forma-se uma nuvem diante de meus olhos. Tenho vontade
de chorar. Naturalmente que me sinto feliz com esta vitória, a pri-

105
N o tem po das carabinas

meira vitória da esquadrilha. Estou contente por Navarre, pelo meu


excelente camarada Robert, tão leal, tão simpático, tão corajoso,
mas como não ser invadido por um atroz desgosto ?. . . A única
vez que não vôo com Navarre ! Essa vitória empolgou-a Robert
com o meu piloto, com o meu avião. Se eu tivesse esperado Navarre,
eu é que teria experimentado a embriaguez dessa luta. Privei-me
dela com as minhas mãos. E, contudo, acho que não merecia essa
recompensa. É duro voar com Navarre, passar por perigos e emoções
com o seu modo de pilotar. Os passageiros receiam-no um pouco. Eu
já me havia acostumado. Compúnhamos uma sólida guarnição.
Tínhamos as mesmas convicções nas possibilidades da caça. Ambos
havíamos desejado com a mesma paixão ardente, procurado com
a mesma obstinação de que muitos por vêzes zombavam, a ocasião
de encontrar um avião inimigo para medir forças com êle. Éramos
nós que, de longe, totalizávamos o maior número de horas de vôo
em busca do adversário. Tínhamos a certeza de que a nossa hora
chegaria. . .
Ela chegou. E no momento em que ia soar, fui eu que, com um
dedo cego, retive o ponteiro. Afastei-me. E a hora soou para outro.
Por uma aberração de que nunca mais — bem o sinto ! — poderei
consolar-me, escolhi justamente o instante em que a nossa constância
ia ser recompensada, em que íamos enfim colher os louros. Navarre
colheu-os sozinho.
Perto de mim, Pelletier-Doisy é assaltado pelos mesmos pensa­
mentos. Pensa que, se em vez de me levar, tivesse como todos os
dias anteriores levado o seu observador habitual, o segundo-tenente
Robert, cabería a êle a sorte de derrubar o Aviatik. Eu é que
tive a idéia de me oferecer para ir com êle. Mas foi êle que teve pri­
meiro a de sairmos pela madrugada da vila de Champigny-sur-Vesle,
sem esperarmos Navarre e Robert. Nada temos que censurar-nos um
ao outro. Uma fatal sucessão de pequenos fatos nos levou ao pre­
sente infortúnio. Estava escrito, simplesmente. Ao menos, Pelletier-
Doisy e eu podemos gabar-nos de ter tido, nesse primeiro de abril
de 1915, duas famosas idéias. É uma data que nunca esqueceremos.
*
Voltamos ao nosso Morane, e Pelletier-Doisy levou-me ao pla­
nalto de Merval, onde descemos ao lado do avião abatido por Navarre
e Robert. O aparelho está intacto, guardado por dois soldados de
infantaria de baioneta calada. Envolve-o de perto uma multidão

106
Enfim, a oportunidade

entusiástica de soldados e civis. Ninguém pode mexer-lhe. Nós,


porém, temos todos os privilégios. Podemos até subir a bordo. A
cabine do piloto está manchada de sangue, e o volante despedaçado
por uma bala. Robert atirou bem. Três balas apenas, segundo
parece. O passageiro do Aviatik tinha um fuzil metralhadora, com
que regou copiosamente o Morane-Parasol, mas sem o atingir (1).
Só à tarde conseguiremos felicitar os nossos gloriosos camaradas
e abraçá-los com tôda a alma, pois o general Franchet d’Espérey
reteve-os para almoçar. Ambos se tornaram de repente pessoas im­
portantes, combatentes ilustres. Sua vitória é a terceira vitória aérea
da guerra, depois da de Frantz-Quénault e da de Gilber-Puechredon.
E, nessa época, uma vitória aérea era ainda um acontecimento notável,
uma proeza sensacional.
*

Desceu a noite. A vila de Champigny-sur-Vesle está de pernas


para o ar. O tenente de Bernis, com os aplausos da esquadrilha
inteira, resolveu celebrar com um jantar monstro o magnífico epi­
sódio cuja glória reflete sôbre tôda a M. S. 12.
O salão mal chega para conter a comprida mesa coberta por
uma toalha imaculada, ornada de candelabros de prata, de uma
baixela de luxo e inumeráveis copos. As garrafas de Pommery e
de Mumm estendem pelo aparador o seu batalhão cerrado. É a velha
guarda que daqui a pouco, no fim do combate, entrará em ação.
Os convidados são numerosos. Naturalmente acha-se presente
o comandante de Rose. Está contentíssimo, radiante.
— Ah ! meus filhos — disse êle ao entrar, — eu tinha a certeza
de que vocês alcançariam a vitória, mesmo com simples carabinas 1
Não há obstáculos para cavaleiros !
Veio acompanhado do seu estado-maior, o capitão Le Révérend,
o tenente Pléneau cuja alma, apesar dos seus quarenta e quatro anos,
é tão jovem quanto a nossa. É êle que grita e que ri mais alto.
Que transbordante mocidade em tôrno daquela mesa ! Dias
maravilhosos de incomparável pureza que não mais voltarão ! Quanta
alegria, quanta despreocupação ! Muitos dentre nós vão morrer
jovens, mas que importa isso? Todos o suspeitam mas ninguém
pensa nisso.
(1) Descreví pormenorizadamente êste combate em outro livro, No inferno do céu
(Ed. Baudinière), publicado em 1932. O leitor poderá, se quiser, recorrer a êle.

107
N o tem po das carabinas

O capitão Chabert, novo chefe da esquadrilha V. 24 (a de


Frantz e Quénault), instalada no mesmo campo que nós, inclui-se
entre os nossos hóspedes com vários dos seus oficiais, entre êles o
nosso camarada tenente de couraceiros Delgorgue, que alguns dias
depois morrerá carbonizado numa terrível capotagem. Ostenta
grandes bigodes loiros, como o comandante de Rose, e ergue nessa
noite bem alto a sua taça, onde a espuma fervilha tanto quanto
os seus olhos azuis. Estão também o sub-chefe de estado-maior do
V.° Exército, o coronel Daydrein, que à hora das saúdes agarra a
sua taça, levanta-se, e em nome do general Franchet d’Espérey anuncia
ter chegado do Grande Quartel General, há uma hora, a resposta
à sugestão por êle feita: o generalissimo Joffre concede a Legião
de Honra ao segundo-tenente Robert, e a Medalha Militar ao cabo
Navarre. O general Franchett d’Espérey os condecorará por suas
próprias mãos daí a três dias, diante das tropas, no campo da
esquadrilha.
No mesmo impulso todos os presentes se levantam, com grande
ruído de cadeiras repelidas. Todos os braços se estendem para
brindar alegremente com os ditosos vencedores. É a hora de intervir
a velha guarda Pommery. Ela chegará não como ao crepúsculo de
uma derrota em Waterloo, mas como na noite de uma vitória em
Austerlitz. A face imberbe de Robert fica branca de emoção, e o
duro Navarre não consegue esconder duas grossas lágrimas. Aban­
dono o meu lugar e sou o primeiro a ir abraçá-lo, mas com mão
de ferro em redor do pescoço. Que alegria e que tristeza ! Oh ! não
é despeito, pois sinto-me completamente feliz por êles, tão valentes,
tão leais, mas um desejo frenético, uma vontade absurda de derrubar
com uma pranchada o destino que me foi adverso ! Não posso
conformar-me com semelhante ironia da sorte. É impossível ! Há-de
haver outros aviões alemães no céu, bastará voar sem trégua e sem
descanso, forçosamente encontrarei um. E tem de ser depressa !
Estão ainda, à mesa, os irmãos Robert e Léon Morane, e também
o engenheiro Saulnier que desenhou o nosso famoso Morane-Parasol,
o incontestável rei dos ares. Todos três, avisados por telefone, vieram
de automóvel de Paris, com os carros cheios de ostras, de lagostas e
de pâtês de foie gras, garrafas de vinhos finos e até charutos. O
cardápio é suntuoso. Durante a tarde fui, com a cadela Nelly,
do solar de Sapicourt, abater alguns faisões nos brejos do Vesle. Êles
abundam nos grandes canaviais secos. Matei alguns machos, mas
juro que apenas machos. Estamos no mês de abril, e mesmo em

108
Enfim, a oportunidade

tempo de guerra é um crime que não me atrevería a cometer (x).


Comido na ponta do fuzil, o faisão em canapé pode constituir um
excelente assado. Em geral ignora-se isso, mas nós, os da 12 apren­
demos na guerra certas pequenas coisas, algumas preciosas. Esta é
uma delas.
Era já muito tarde quando nos separamos. Tinham soado havia
muito tempo as doze pancadas da meia noite. O canhoneio, exausto,
abrandara na cota 108 e nas cristas revoltas do Chemin-des-Dames.
As vidraças das janelas quase não tremiam mais. A alegria, os
vapores dos excelentes borgonhas descobertos por Méseguich e Pelle-
tier-Doisy em Reims (a cidade em ruinas, mas inexaurível), aliados
aos dos finos napoleões e dos havanas mais autênticos, tinham criado
uma ambiência de robusto otimismo, uma euforia fácil de que
nada parecia jamais poder quebrar o encanto. A terra era nossa,
o ar era nosso, todos os aviões de cruzes negras eram nossos ! A
prova estava feita bastavam três tiros de carabina para os mandar ao
tapete.
Os brindes sucederam-se aos brindes. Levantamo-nos um tanto
pesadamente, mas com a alma sempre em festa. Apertamos caloro­
samente as mãos uns aos outros e juramos que a cada próxima vitória
nos encontraríamos assim, nos reuniriamos num banquete igual,
sempre os mesmos convidados. Traidores à pátria os que faltassem
ao juramento !
Os chauffeurs, também bastante carregados, retomaram os vo­
lantes. Os motores estrondearam na noite fria, para depois voltar
ao seu ronco normal. Os faróis desapareceram pelas estradas desertas.
Tudo acabara. . .
— Vamos dorm ir! — gritou então Bernis. — E naturalmente,
descanso até amanhã ao meio dia para tôda a esquadrilha. Atende­
remos apenas às missões que o comando reclamar.
Dormir? Os outros sim, mas não êle, Bernis. Tenho a certeza
de que antes de se deitar vai queimar ainda alguns cigarros e andar
uma hora ou duas, de um lado para outro, no seu quarto.
No momento de subir a escada que leva aos nossos aposentos, se­
guro Pelletier-Doisy pelo braço:
— Espere um pouco, Pivolo !
Êle parou já com um pé no degrau e olhou-me surpreendido.1
(1) Alusão ao crime de caçar fora da época, que em geral vai de setembro a
fevereiro (N .T .)

109
N o tem po das carabinas

— Que há, meu tenente ?


Firmei a voz o melhor que pude, de modo a torná-la persuassiva,
mas não sem dificuldade, porque milhares de estrelas brilhavam ainda
diante dos meus olhos.
— Escute, meu caro Pivolo, nós não podemos ficar por baixo.
Nem você, nem eu ! Não é possível. A sorte zombou de nós, mas
eu tenho uma idéia excelente. (Mais outra. . . ) Vamos levantar-nos
ambos ao romper do dia. Daqui a pouco.
— Como ?
— Sim, e vamos ambos à caça dos boches. Nós dois, como
hoje de manhã. A sorte deve-nos uma desforra, a excomungada !
Precisamos obrigá-la a pagar a conta ! Vamos outra vêz os dois.
Acordamos às 4h30. Partimos às 5. Estamos no campo às 5hl5.
Decolagem às 5h30. Guiarei o carro de serviço. De acordo ?
Pelletier-Doisy olha-me com os olhos arregalados, como se eu
tivesse enlouquecido. Procura soltar-se. Tem alguma dificuldade
em subir. Torno a agarrá-lo e seguro-o pelo punho:
— Você não vai desanimar, heim, Pivolo ? Amanhã teremos
sorte, você vai ver !
— Sorte ?
Ri brandamente, com um ligeiro cacarejo de amargura.
— Não acredito mais na sorte. O que eu quero agora é uma
boa cama !
— O quê ! Por causa de um revés você desanima ?
— Desanimo ? Desanimo.. .
A palavra fatídica, a palavra temível detestada em tôda a aviação
opera instantaneamente. Eu já o esperava.
Pelletier-Doisy torna a descer três degraus, seu rosto brilha na
penumbra. Seu olhar no meu.
— Não desanimo, com mil diabos !
Sua voz está levemente empastada pela excelência da comida
e do champagne. Poisa-me familiarmente a mão no ombro. Seus
lábios abrem-se num sorriso franco, um sorriso em que há cumpli­
cidade. A idéia agrada-lhe de repente porque é extravagante. Ergue
um dedo sentencioso:
— A idéia é sua, heim, meu tenente ! Pois seja. Tornaremos
a voar amanhã pela manhã. Acordaremos os mecânicos ao chegar

110
Enfim, a oportunidade

ao campo, e será bastante. Não encontraremos nada, como de cos­


tume, mas pelo menos o ar frio nos fará bem. Champagne demais. . .
champagne demais. . .
Agarro a lebre no pulo. Dificultosamente, porque também eu
tenho a cabeça pesada, muito pesada, e não terei coragem para dor­
mir. . . Percebo a minha voz firmar-se, com uma bela segurança
que de nenhum modo corresponde ao meu pensamento íntimo:
— Combinado, Pivolo, encarrego-me de o acordar às 4h30.
Tenho um despertador. Se fôr preciso eu o puxarei pelos pés !
É uma hora da madrugada, regulei o despertador conforme pude
e joguei a minha túnica nas costas de uma cadeira. Em volta de
mim, na tela de Jouy do meu quarto, os caçadores Luís XV galopam
furiosamente tocando as trompas. Apago a luz.
Um louco, eu sou um louco.
Somos dois loucos. . .

111
DIE WAFFEN NIEDER !

— Vamos, levante-se ! Está na hora !


Responde-me um grunhido surdo. Pelletier-Doisy, num movi­
mento de defesa, puxa as cobertas para o queixo. Tenho de lhas
arrancar.
Quando o despertador tocou, eu próprio custei muito a resolver-
me. Estive quase para não me levantar. Por fim decidi-me. Cabe­
ceei um pouco de sono, porém o mais duro já tinha passado. Mais
cinco minutos e estava pronto para a aventura.
Espremi uma esponja molhada sôbre o rosto de Pelletier-Doisy,
que saltou, rindo, para fora da cama. Não conheço temperamento
mais encantador.
— Oh ! meu tenente, isso não vale ! é um golpe proibido !
— Está um tempo magnífico !
Pelletier-Doisy, com os pés descalços no soalho, esfrega lentamente
com ambas as mãos a cabeleira revolta. Imerge das profundezas do
sono e o tempo magnífico causa-lhe pouca impressão.
— Mas isso é a sério ? — balbucia êle. — O senhor quer mesmo
ir ? Vamos dar a impressão de querer bancar os espertos, enquanto
os outros ficam no quente até ao meio dia !. . . Pense bem, meu
tenente, vai ser uma risota à nossa custa !
— Vamos, meu velho, vista-se ! depressa ! São 4h40. Depressa !
Depressa !
Pivolo não deixou de apressar-se, mas ainda assim com sufi­
ciente vagar para exprimir a sua reprovação. Em menos de dez
minutos estava pronto. Não se barbeou. Eu tinha-me barbeado.
Não podia deixar de o fazer. Barbeei-me diàriamente durante tôda
a guerra, mesmo durante a retirada do Marne. Isto é um princípio,
e assim continuarei. Por nada dêste mundo quero arriscar-me a
ser morto com uma barba de dois dias.

112
Die W af f en n ieder!

Dirigimo-nos ao campo. Noite cerrada. Nossa partida assemelha-


se exatamente à da véspera. Com a diferença de que desta vez não
cogitamos de Navarre nem de Robert. Êles dormem o sono dos
anjos nos seus travesseiros cheios de louros.
O avião de Pelletier-Doisy foi tirado para fora. Seus mecânicos
esperam-nos. O ar frio refresca-me as idéias. Raciocino melhor
do que ontem à noite, na excitação das luzes e dos brindes. E
melhor também do que há pouco, no momento de acordar. Tenho
os pés bem assentes no chão.
No fundo isto é absurdo e infantil. Pura fanfarronada da
minha parte. Quando tiver de a admitir, todos os camaradas enco­
lherão os ombros. Minha bela convicção desaba, perco todo o entu­
siasmo pela idéia, mas escondo-o cuidadosamente de Pelletier-Doisy.
Não posso dar-lhe a impressão de estar arrependido, de enfraquecer.
“Estar desanimado”, “enfraquecer”, são duas palavras tremendas, duas
palavras horríveis que fazem erguer tôdas as frontes e brilhar de
desafio todos os olhos.
Exibo um belo sorriso tranqüilo:
— Tenho a certeza de que vamos encontrar um Fritz, Pivolo !
O canto de sua bôca franze-se num trejeito desabusado:
— Para isso é preciso que êle seja tão louco quanto nós !
São as nossas derradeiras palavras antes de decolar. Já a hélice
foi posta em movimento com um “han !” surdo do mecânico. Agar­
rado com as duas mãos, êle lançou todo o seu pêso sôbre a pá de
madeira envemizada. Estoura ao mesmo tempo o trovão familiar
do motor, seu estridente rugido de metal, a vibração de todo o apa­
relho e o vivo fremir das suas asas. Um bafo enjoado de óleo de
rícino queimado bate-me no rosto. Gesto ritual de Pelletier-Doisy,
um dedo no ar, como na véspera. Os ajudantes, atentos ao sinal,
puxam as cordas e os calços rolam. Não há vento. Rompemos para
a frente e logo tomamos altura. Começa o incerto episódio.
Pela segunda vez cometo uma infidelidade para com Navarre.
Sei muito bem o que vai acontecer. Regressaremos dentro de uma
hora sem ter encontrado nada. Como ontem, terei merecido que
os acontecimentos me dêem uma boa lição.
*

5,35 h. — Cinco minutos de atraso.


Faz muito frio. Aos primeiros alvores da madrugada, o campo
surge todo branco de geada. A orla de gêlo das lagoas é mais larga

113
N o tem po das carabinas

que na véspera. Nem uma nuvem e também não há neblina. O


céu mostra-se, na parte baixa, ide um róseo framboesa, e no alto de
um verde nunca visto, quase sobrenatural, ao mesmo tempo côr
de alga marinha e de esmeralda. A transparência da atmosfera
é indício de temperatura polar. A visibilidade é realmente formi­
dável. Os menores detalhes distinguem-se a enorme ídistância. Vamos
gelar. Mas ocorre-me com satisfação que, por um tempo destes, tão
favorável ao reconhecimento, é impossível que a aviação alemã fique
inativa nos seus refúgios. De um modo geral ela costuma sair ao
romper do dia.
E nós estamos no romper do d ia ...
Pelletier-Doisy trouxe uma pele de cabra cinzenta, cujos pêlos
lhe ondeiam sôbre os ombros, arrepiados pelo vento da hélice.
Quanto a mim, não beneficio hoje do conjunto do Figaro. O frio
cortante da minha veste de couro faz-me pensar nêle de um modo
obsidiante. Se eu nunca o tivesse experimentado, não pensaria nêle.
O sofrimento é uma parte do desejo. Por outro lado trouxe as
minhas grandes botas de joelheira, mandadas fazer de encomenda a
um sapateiro de Epernay. Agora todos as invejam e querem mandá-
las copiar. Cobrem-me completamente os joelhos, o que é de um
conforto inestimável.
Até que enfim, estamos no sol. Precisamos subir a 1.800 metros
para lhe encontrarmos os raios. Êles fazem cintilar como ídiamantes
tôdas as partes brunidas do nosso Morane, enquanto lá em baixo a
terra parece ainda coberta por um tapete de cinzas. Terá de esperar
quase uma hora antes que a alcance a luz da vida. A sombra é o pur­
gatório da terra, e o sol o seu paraíso.
Deixo Pelletier-Doisy livre ide ir onde bem quiser. Poderá seguir
a sua inspiração. Por agora dirige-se a Reims. De passagem, debruça-
se, com o queixo apoiado ao rebordo da fuselagem a fim de observar
o pequeno cubo emocionante da nossa vila de Champigny-sur-Vesle,
a curva harmoniosa das alamedas do seu parque, o brilho do seu
lago inglês. Sei muito bem no que êle pensa. . . E eu também. . .
Está-se bem, por l á . .. Pequeno almoço daqui a pouco na
grande sala de jantar, todos juntos. Café com leite, pão, manteiga...
Os cavaleiros de tricórnio continuam galopando ao som das trompas,
nas paredes do meu quarto. . .
Frio no rosto, frio nas mãos. Aí está Reims, lúgubre extensão
de casas mortas, ruas desertas, dominada pela massa imponente da
sua catedral mutilada, que a esta hora toma colorações de aquarela.

114
D ie W af f e n n ieder!

Penachos de fumo nascem e desabrocham em brancas couve-flores,


de longe em longe, nos bairros. São obuses alemães. À medida que
subimos, o forte ide Brimont, as alturas de Berru e de Nogent-PAb-
besse achatam-se como outras tantas galerias de toupeiras. Altímetro:
2.200 metros. Temperatura ignorada; não dispomos de termômetro.
Com certeza 20 graus abaixo de zero. Perde-se um grau cada cem
metros que nos elevamos. Ora, o isotérmico estava ainda há pouco
no chão.
Debalde espreito em todas as direções, nada avisto. O céu
está deserto. Apenas, aqui e além, minúsculos feijões escuros sus­
pensos no vácuo: são balões cativos, franceses e alemães, que se
defrontam na ponta de um fio. O relógio de bordo marca 5,50 h. A
agulha do altímetro sobe muito devagar, encaminhando-se preguiçosa­
mente para os 2.500 metros. No provete de vidro, à esquerda do
piloto, o óleo aquecido agita-se em longas pulsações regulares, como
as de um coração humano. Nenhum indício de febre. O ronco
do 80 cv. Rhone é perfeitamente normal. A bordo dêstes primeiros
aviões de caça de 1915, tudo é ainda sumário e primitivo. Pouquís­
simos instrumentos de controle. Além do conta-rotações, do altí­
metro, do termômetro, da bússola e do indicador de nível longitu­
dinal a álcool, pouco mais há. Não existem indicador de velocidade,
derivômetro, instrumentos de P. S. V. (a pilotagem sem visibilidade
exterior ainda não está inventada), cursor côncavo de bola metálica
para tripulação, dispositivo para recolher o trem, nenhuma ligação
com a terra, rádio, e naturalmente, muito menos ainda radar. Es­
tamos nas primeiras idades.
O piloto está em contacto direto com o ar exterior, tem de sentir
o seu aparelho como um cavaleiro tem de sentir o seu cavalo. Tudo
à volta dêle é frágil, leve, aéreo. O turbilhão da hélice queima-lhe
o rosto e invade-lhe o habitáculo de tela, tão acanhado que êle
mal encontra espaço para estender as pernas fora da alavanca, em
caso de entorpecimento. Mil sensações secretas advertem o bom
piloto de tudo o que se trama em redor dêle e o ameaça: o súbito
abalo na vizinhança de uma nuvem, a rajada brutal, o descaimento,
a perda de velocidade, tão iminente e para outros indescernível, e a
fatal partida em parafuso (1). Êle tem seu avião continuamente na
ponta dos dedos. Age sem cessar com as mãos e os pés, como a bôca
(1) Em 1915, o parafuso em Parasol era considerado mortal. Mais tarde alguns
pilotos corajosos executaram-no voluntàriamente e encontraram a solução para se endi­
reitar e retomar a linha de vôo.

115
N o tem po das carabinas

e os flancos de um animal invisível, pronto para tôdas as defesas que


lhe permitam libertar-se do dono. Seu assento é verdadeiramente
uma sela de equitação, e porisso os cavaleiros sobressaem na arte
da pilotagem.
Sim, nestes tempos remotos o avião é ainda um avião, um batei
em comunicação com o céu, e não, como hoje, um pesado navio her-
mèticamente fechado. É uma borboleta, uma libélula, um frágil
caniço que assobia no vento. Com êle poidemos embriagar-nos de
espaço, de ar puro e de liberdade. Ainda se voa. Agora acabou-se,
não se vôa mais, navega-se. Fica-se encerrado numa implacável
prisão de vidro plástico e de ferro. Não se cuida mais de destreza de
mãos ou de sagacidade, mas de fôrça muscular e resistência cardíaca,
pois carregam-se vinte toneladas nos braços. Não se olha mais para
o céu ou para o chão, mas para agulhas, quadrantes e mostradores
que se acendem, e em cujas indicações se tem de confiar. Aliás com
tôda a razão, pois que se faria sem elas ? Às vêzes, porém, sucede que
elas atraiçoam. .. Então o piloto fica desarmado, e, sem compre­
ender, esbarra na montanha.. .
*
5,55 h. — Gesto brusco de Pelletier-Doisy. Seu braço estendido
para fora da carlinga arranca-me do meu devaneio. Que terá êle
visto ?. ..
Sim, sim, também eu estou vendo! Além, pela frente um
pouco à esquerda, muito longe e muito alto, bem mais alto que
nós, um minúsculo ponto escuro está como suspenso no céu. Observo-
o com a máxima atenção. Não será um ínfimo retalho de nuvem,
um floco de nevoeiro que anda à deriva ? Não, ei-lo que se desloca
para a direita. Evidentemente uma fôrça o anima. É um avião !
Santo nome de Deus é um avião ! Oxalá que desta vez seja alemão,
e não se venha a repetir a nossa decepção de ontem !
Levantei-me, e curvado sobre as costas de Pelletier-Doisy. grito-
lhe com quanta fôrça tenho ao ouvido, através do passa-montanha:
— Vamos ver !
Êle percebeu. Seu capacete aprova repentinamente, com energia.
O ronco do motor sobe imediatamente de tom: 1.350 rotações, fôrça
máxima, no limite ide ruptura.
Que avião será aquêle ? Ainda há pouco eu nem sequer pensava
nêle, e agora tudo quanto desejo é alcançá-lo, identificá-lo, saber com
quem temos de entender-nos. Talvez leve tempo, muito tem po...
Se êle avança no mesmo sentido que nós, serão precisos intermináveis

116
D ie W af f en n ieder!

minutos, sem dúvida uma hora ou mais. . . Se vem ao nosso


encontro, como ontem Navarre e Robert, a coisa será rápida. . . Se se
afastar obliquamente em relação ao nosso eixo de marcha, será pos­
sível, cortando pela conda, ganhar bastante espaço sôbre êle. Tudo
depende da sua direção e da sua distância. É difícil calcular as dis­
tâncias em vôo. Faltam pontos de referência. Avalio-a numa dezena
de quilômetros, e, em altitude, suponho-o trezentos ou quatrocentos
metros acima de nós. É uma desagradável prova de paciência em
perspectiva, se não se lhe mistura alguma complacência.
Que será ?
Não tenho grande confiança. Como jogador que não se apressa
a tirar a sua carta, receoso de que ela lhe não convenha, tenho
mêdo de ver dissipar-se logo esta ilusão. Aquêle aparelho não pode
ser alemão. Seria bom demais ! Seria um tão grande milagre que me
esforço por acreditá-lo francês ! A superstição começa a intervir e
digo para mim: “Se finjo acreditar que êle é francês, se me resolvo
a considerar que êle é francês, então talvez êle seja alemão”. Trata-se
de um estado de alma complexo, porém comum. Tenho a certeza
de que muitos o experimentam.
Sim, é um avião francês, não há dúvida nenhuma, avança fran­
camente para o sul, para o vale do Marne. Estaremos em breve no
limite do IV Exército, o Exército Gouraud. É simplesmente um
bravo Me-Fe, um Maurice Ferman de reconhecimento, um engradado
de galinhas com o seu motor Renault em V, que volta às nossas
linhas e busca o seu campo. Estamos ainda longe demais para ver
bem, mas é estúpido correr assim atrás dêle.
No meu íntimo uma voz obscura, que eu desejaria silenciar
porque me vai trazer má sorte, insiste:
— Talvez seja alemão! talvez seja alemão!
Embora êle pouco me auxilie, com as vibrações dêstes aparelhos
leves que impossibilitam qualquer observação, pego afinal no bi­
nóculo. Aproximo-o dos olhos e assesto-o para o desconhecido
aparelho. Inutil. A trepidação do Parasol é tanta que se torna impos­
sível distinguir seja o que fôr. O avião misterioso não passa de um
mosquito escuro dançando uma sarabanda excitante no campo de
visão. Estamos ainda longe demais. É necessário ter paciência e
esperar. Para matar o tempo, obrigo-me a ocupar o meu espírito em
ínfimos pormenores. Observo, na face posterior do capacete de
Pelletier-Doisy, uma alça de couro que êle mandou colocar engenhosa­
mente, e pela qual faz passar o elástico cinzento dos óculos. Assim

117
N o tem po das carabinas

êles não podem subir nem descer. Precaução excelente que resolvo
imitar logo à tarde. Isso distrai-me talvez uns dois minutos. Dois
minutos ganhos sôbre a impaciência que me sobe à garganta e começa
a apertar, a apertar. . .
Depois procuro identificar a paisagem sôbre a qual voamos.
Estamos seguindo o vale do Vesle, para cima ide Reims, e a estrada
nacional 44 que leva a Châlons. À nossa direita, eis a saliência
abrupta da Montanha de Reims, em que desfilam como contas de
rosário, as ricas povoações de Verzenay, Verzy e Villers-Marmery,
onde vamos a miúdo reabastecer-nos de champagne. De Verzenay
provinha o que bebemos ontem, para festejar a vitória de Navarre
e de Robert. Ainda ficaram algumas garrafas. Mais três minutos
ganhos a pensar no jantar da véspera. . . O tempo passa. . .
Pelletier-Doisy corta em corda, para abordar mais depressa o
avião desconhecido. Isso nos leva para Châlons-sur-Marne, sempre
invisível, mas cuja presença em baixo, a 25 quilômetros, se advi­
nha pelo seu nevoeiro de fuligem.
6,10 h. — Estamos ganhando distância ! Penetramos cada vez
mais para o sul. Eis os telhados de Epernay que, à direita, emergem
do vale escarpado do Marne. Se, por uma sorte inaudita, fôsse um
alemão, iríamos lutar nas nossas linhas. E se o derrubássemos êle
seria nosso, poderiamos apreendê-lo. Paciência, paciência, não con­
vém vender a pele do urso antes do tempo !
Insensivelmente Pelletier-Doisy desfaz a nossa diferença de alti­
tude e ao mesmo tempo vamo-nos aproximando de verdade. Prova
de que somos muito mais velozes. Isto preocupa-me: sem dúvida é
um Me-Fe, tão lento, tão insuficiente.. .
Mais dez minutos de espectativa. ..
6,20. — É um alemão ! Não há mais dúvida ! acabo de firmar
fortemente o binóculo nas arcadas superciliares, para tentar ver. E
por sorte vi. É um biplano de fuselagem cheia. Alemão ! Bati
convulsivamente no ombro de Pelletier-Doisy e gritei-lhe ao ouvido:
“Aviatik !” Êle ergueu um braço entusiástico e vi-o sorrir-me Üe
lado com todos os seus dentes brancos. Seu capacete baixou por
três vêzes, numa afirmativa alegre. Sim, sim, êle compreendeu perfei-
tamente, é um Aviatik, um Aviatik !
Torno a sentar-me no meu banco, tomado de uma emoção
como nunca experimentei. O que nos acontece é deveras prodigioso,
excitante. Nunca ter encontrado até hoje rastro de avião inimigo,

118
D ie W af f e n n ieder!

tê-los infatigàvelmente procurado por todos os recantos do céu du­


rante dias e dias (trinta dias, nem mais nem menos !), ter deixado
escapar ontem a mais bela ocasião da nossa vida, uma ocasião como
eu tinha a certeza de que nunca mais se repetiria, ter saído esta
manhã por pura teimosia, por desafio, quase por escárnio, e vê-la
renovar-se em condições excecionais, vinte quilômetros para identro
das nossas linhas. . . não não é possível! Deve ser uma ilusão,
uma falsidade; seria bom demais ! Não passa de miragem que se
vai apagar, desvanecer-se, dissolver-se como um vapor.
Mas não se apaga. A realidade está aqui, nas nossas mãos !
Mais uma vez levo o binóculo aos olhos. Como a observação é
idifícil com estas vibrações ! Apesar disso distingo por um décimo de
segundo, a uma luz favorável, a grande cruz de ferro negra pintada
na fuselagem; se ainda alimentássemos a menor dúvida sôbre a
identidade do avião a que estamos dando caça, ela se teria agora
dissipado. E vamo-nos aproximando cada vez m ais.. . Já as suas
superestruturas se recortam em finos traços contra o céu, e depois
as rodas. Seus dois planos destacam-se um do outro. Estamos a
menos de um quilômetro. Talvez oitocentos m etros.. .
Parece que a tripulação não deu por nós. Não se nota qual­
quer manobra de alarme. Êle dirige-se tranqüilamente para Châ-
lons. Se se mantivesse assim até ao último instante, até ao momento
de eu abrir fogo, a surprêsa seria completa ! Mas não podemos
contar com isso, o sol não está a nosso favor. Devemos estar
brilhando como uma estréia.
Realmente não podemos contar com isso. O aparelho alemão
dá uma repentina virada sôbre a asa, e modificando de 90 graus
a direção rompe a tôda a velocidade para o norte. Um jato de
gás azulado indica ter êle pôsto o motor a pleno regimen. Fomos
vistos ! Pelletier-Doisy acompanha imadiatamente a manobra. Vira
para a esquerda, na vertical, e eu ouço o 80 cv. Rhone silvar furio­
samente. Cuidado, vamos ultrapassar o limite da ruptura, pode­
remos explodir de um instante para outro ! Paciência ! isto tem de
aguentar ou rebentar; o essencial é cortar a retirada ao inimigo,
pois êle foge para as suas linhas. Sua intenção é evidente. Já surge
à nossa frente — e perigosamente próxima, segundo me parece, —
a rêde complicaida das trincheiras avançadas, brancas como cal. Se
conseguir atravessá-la, a nossa prêsa estará perdida e não haverá mais
vitória. Tudo, menos isso !

119
N o tem po das carabinas

Que maravilhoso aparelho o nosso Morane e como eu o aprecio


neste momento ! Com um estalar de todos os seus haubans, fende
o ar como um animal inteligente, animado de uma vontade intensa
— a nossa, — de alcançar a todo o custo o atdversário. Pelletier-Doisy
manobra admirávelmente. Agora parece certo que o Aviatik não
poderá alcançar as suas linhas sem ter sido abordado. Excedendo-o
em rapidez, vamo-nos inserindo progressivamente entre o front e a
sua direção de marcha. Mas ainda vai decorrer algum tempo antes
de chegarmos ao contacto.
Já tomei todas as disposições. Desatei a correia da carabina
e coloquei a arma entre os joelhos. Abri a culatra. Os quatro car­
tuchos estão no seu lugar, três na reserva e o quarto no cano. O
dispositivo de segurança foi retirado. Pronto para o combate.
Na bôlsa de fuselagem, outros cinco carregadores cheios. Total,
dezenove cartuchos. É mais do que o necessário. Vitórias como a
que buscamos só podem ser obtidas de maneira fulminante, logo
aos primeiros tiros. Não há oportunidade de atirar por muito tempo.
Levar a arma ao ombro, apontar, disparar, e armar outra vez
manobrando a culatra, consome alguns segundos. Ah ! não ser uma
m etralhadora! mas eu confio em ti, minha velha carabina de
cavalaria, que foi do meu ordenança Durousseau ! Conheço-te de
cor, treinei tantas vezes contigo que estou quase certo de derrubar
a oitenta metros um corvo numa árvore. Não me atraiçoarás daqui
a pouco!
Tiro as minhas luvas forradas, a fim de ter os movimentos mais
livres, mas torno a calçá-las à pressa. Meus dedos começaram logo
a embranquecer, o frio é intenso e vêm-me à idéia as mãos geladas
de Ferru. Solto o dispositivo da abertura do cinto que me prende ao
assento, para ficar mais à vontade. É uma imprudência, sem dú­
vida, pois me arrisco a sair pela borida fora no caso de qualquer
manobra violenta. Mas como agir de outro modo ? Aliás, os pilotos
estão prevenidos, e ontem assim fizeram Robert e Navarre.
Está tudo pronto ? A h ! mais uma coisa: comunicar com o
meu piloto. Ponho-me de pé, inclino-me sôbre as costas de Pel­
letier-Doisy e grito-lhe ao ouvido no tom mais cordial:
— Não fraquejar! Até ao fim e a fundo !
Quero que êle saiba da minha determinação, tão granjde quanto
possa ser a dêle. A sorte apresenta-se-nos de modo único, tudo
faremos para a não deixar escapar. Voaremos, se fôr necessário,

120
D ie W af f e n n ieder!

até ao inferno ! Cnmpre saber que podemos contar cegamente um


com o outro. Pelletier-Doisy sorriu com uma afirmação enérgica do
capacete. Não há dúvida, estamos ambos altamente emocionados,
com os corações palpitando em grandes pancadas surdas. Aperto
ainda uma vez, com tôda a simpatia, o ombro de Pivolo, e torno a
sentar-me.
Agora não há mais nada a fazer senão esperar. Longos mi­
nutos vão decorrer ainda. Minutos mortais. . . São os mais difí­
ceis, porque mil idéias nos assaltam.
Que irá suceder ?
Nosso adversário está com certeza armado. De carabina como
nós, ou de metralhaídora ? A tripulação dispõe (como alguns
afirmam) de placas de blindagem para a proteger ? Nós nada
temos, além da chapa fragílima da fuselagem... Vamos bater-
nos à queima-roupa. É impossível que um dos dois aparelhos não
seja derrubado. Êle, ou nós ? Pela minha parte estou resolvido
a dominar os nervos, a concentrar-me, a não atirar senão no
último instante, a refletir nas correções necessárias, a apontar bem...
Não quero perder a cabeça. Preciso colocar duas ou três balas
num ponto bom. A vitória assim o exige, visarei o ponto mais
vulnerável: o piloto. E o piloto não se acha à frente, mas atrás,
convém não esquecer isso. Sangue frio e mais sangue frio ! Receio
ter mêdo, e não quero ter mêdo !
Mas eis as borboletas negras que começam a esvoaçar. Uma
idéia singular se aloja em meu espírito: se eu não morrer daqui
a pouco, completarei vinte e seis anos amanhã. Nasci a três de
abril e hoje são dois. Viverei até ao vinte e seis anos ?
Outras idéias deprimentes se sucedem, que eu desejaria
afastar:
Se fôr ferido, fazei, senhor, que não seja nos olhos nem no
ventre ! Parece que uma bala no ventre é coisa nojenta. E se
o ferido fôr Pelletier-Doisy, que acontecerá ? Se êle fôr morto, não
há para-quedas para me jogar no abismo. Nenhum meio de
salvação. Mas sei o que farei: procuro passar por cima do seu
corpo e apoderar-me dos comandos. À fôrça de tê-lo visto pilotar,
talvez consiga. .. Puro devaneio ! Se Pelletier-Doisy fôr morto,
ou perder os sentidos, estará tudo acabado, bem o sei. O Morane-
Parasol não tem plano fixo, é dos mais instáveis em profundidade,
afocinhará imediatamente e cairá em parafuso. . .

121
N o tem po das carabinas

Que vão para o diabo tôdas estas fúnebres imagens ! Lembrai-


vos, ó misericordiosíssima Virgem Maria, minha Mãe e Minha Pa­
droeira, que não há memória de ter sido jamais abandonado nenhum
daqueles que se colocou sob a vossa proteção !
As sílabas da mais pura e mais humana das orações, a dos
viajantes em perigo, sobem-me da alma aos lábios sem que eu o
evite. Um sinal da cruz em pleno céu e acabou-se. Experimento
agora uma perfeita serenidade, como se fôsse assistir a um espe­
táculo em que não desempenhasse papel algum.
Aproximamo-nos consideravelmente do avião inimigo. Aí está
êle à nossa direita, a menos de cento e cinqüenta metros, um pouco
mais baixo do que nós. Malgrado os seus esforços, não logrou
escapar. Avança obliquamente em relação ao nosso eixo de marcha,
e é visível que o seu piloto não perdeu a esperança de cortar a
nossa rota pela esquerda, com o intuito de fugir para as linhas
alemãs. Baldado intento, não o conseguirá; torna-se manifesto que
dentro de dois minutos estaremos sôbre êle.
Olho-o com a máxima ansiedade. É um avião soberbo, de um
branco leitoso, ostentando grandes cruzes-de-ferro pintadas na parte
de cima das rodas. Arvora-as por tôda a parte. Estas negras
manchas geométricas dão-lhe um aspecto ameaçador e fazem pensar
nos traços regulares de uma pele de cobra. É impressionante. Cui­
dado com as mordidas !
Mas não é um Aviatik ! Essa cauda triangular em espátula,
o longo vaso de escapamento para a esquerda, o reservatório de
gasolina que mal avulta na espessura do plano, o estabilizador em
fôrma de fôlha de trevo, sim, com efeito, é um Albatroz, o aparelho
do tipo mais recente da aviação alemã ! Uma peça escolhida ! Mas,
cautela ! Gente assim dispõe com certeza de uma metralhadora.
Pelletier-Doisy que procure bem os ângulos mortos !
Bato-lhe de novo no ombro e grito-lhe:
— Albatroz!
É também a sua opinião, e êle faz que sim com o queixo.
A distância diminui agora a olhos vistos. Por um èfeito de
ótica, explicável pelo fato de estarmos convergindo um para o outro
em duas oblíqüas, o avião alemão parece marchar curiosamente à
maneira de caranguejo. Está tão próximo que lhe distingo todos
os pormenores. O piloto está atrás, como imaginei, com um capa­
cete de couro negro, brilhando ao sol, e à frente dêle, entre os
planos, emerge o busto do passageiro com capacete igual. Adivinho-

122
D ie W af f en n ieder!

o preparando-se para nos enfrentar, tentando assestar uma metra­


lhadora ainda invisível, mas pronta a disparar. Não demorará
muito. Que atire ! Por mim, esperarei estar sôbre êles. Não abrirei
fogo antes. Meditei longamente na conduta a manter nestas cir­
cunstâncias, e a experiência de Robert, ontem, foi benéfica.
Um derradeiro olhar para terra, a fim de nos situar e saber
onde estamos. Eis justamente, atrás e à esquerda, a aldeia de Livry-
sur-Vesle, perfeitamente identificável pela sua larga estraída que
liga o canal do Aisne à calçada romana do campo de Châlons.
Nenhuma dúvida a esse respeito. Não é preciso mapa. A frente
está portanto doze quilômetros ao norte, não mais. É pouco.
Bastam dez minutos para a transpor. É necessário travar uma
luta encarniçada para dominar o adversário antes que seja tande
demais.
Chegou o momento ! O Albatroz cresceu enormemente. Avan­
çando sempre a modo de caranguejo, invadiu todo o céu e parece
atirar-se contra nós. Cautela com o esbarro ! De pé na carlinga,
apertando com fôrça o meu assento entre os joelhos, levo ao ombro
a carabina. Aí vem sôbre mim o piloto alemão, a cabeça emergindo
do seu habitáculo, e correnido ao meu encontro a uma velocidade
vertiginosa ! Aponto. . . É difícil com estas vibrações ! A linha
de mira dança diante dos meus olhos. Mas onde está a cabeça do
piloto, onde está ela que a não vejo mais ? Ah ! lá está, vejo-a,
seguro-a !
— Pum ! disparei. ..
A detonação explodiu através da espessura do meu passa-mon-
tanha, com um ruído surdo, acolchoado, como de entre estofos, mas
contudo perceptível sôbre o ronco do 80 Rhone.
O Albatroz passou por baixo de nós como uma tromba, a uns
três metros talvez. Tão perto que cheguei a ouvir o ribombo tom de
cobre percutido ido seu motor. Com a minha mão livre agarro-me
aos montantes de cabana (x) pois fiquei a ponto de cair. O Morane
volveu para a esquerda, com a ponta da asa virada para a terra
distante, a asa direita espetada contra o céu. Eu estava na sombra
e vi-me de repente inundado de sol. Sim, compreendendo: Pelletier-
Doisy executa uma virada em vertical excessivamente apertada.
Perdi o fôlego.1
(1) A bordo de um M o ra n e -P a ra so l, chama-se "montante de cabana" o arcabouço
de madeira e tubos de aço que liga o habitáculo da tripulação às asas.
123
N o tem po das carabinas

Onde está o Albatroz? onde está o Albatroz?


Lá está ê le ! à esquerda, a uns quarenta metros, quase à nossa
altura ! Torna a aproximar-se a velocidade espantosa, sempre mar­
chando a moido de caranguejo. Significa isto que somos nós que
nos aproximamos dêle, apanhando-o de viés. Guiado por mão
teimosa, é o Morane que procura cobri-lo outra vez, pois êle dili­
gencia, como tem feito desde o comêço, fugir-nos, furtar-se ao
combate, e vôa desesperadamente para as suas linhas. O piloto
alemão continua vivo, portanto falhei ! Eis a sua cabeça que se
volta para mim ! Nada mais vejo além dessa cabeça escura, bola de
couro luzindo ao sol. Ela tornou-se o centro do mundo, ocupa todo
o céu.
É preciso atingi-la, atingi-la, ela é o ponto vital dêsse avião, o
meio mais seguro de o abater ! Bem o sei; e com tôdas as ener­
gias da minha vontade, tôdas as forças andentes da minha alma,
quero derrubar êsse Albatroz, tenho a certeza de o derrubar ! Nunca
desejei tão intensamente uma coisa.
No tumulto de sensações que se precipitam e entrechocam, é
impossível refletir. Apenas os reflexos atuam, reflexos do pensa­
mento e reflexos dos nervos. Num relâmpago, êles procuram
corrigir o meu êrro. Os dois aviões acabam de cruzar-se em tesoura,
a cêrca de duzentos quilômetros à hora, de modo que não devo visar
em cheio o objetivo, como fiz. Apesar da curta distância e da
grande velocidade inicial da minha bala, devo atirar antes, isto é,
abaixo do alvo, que vinha para mim e mais abaixo do que eu.
Minha bala deve ter raspado o capacete do piloto, mas passado por
cima dêle, isto é, por trás. E perdeu-se, não há dúvida !
Êste raciocínio não é meu, não me pertence. Operou-se em meu
espírito à minha revelia. Os misteriosos mecanismos desencadearam-
se por si mesmos com rapidez fulminante. Falou apenas o instinto do
velho caçador de perdigões. Eis o capacete do piloto do Albatroz
à esquerda, a não mais de cinco metros e um pouco abaixo I Vamos
como ainda agora, roçá-lo com as nossas rodas. Desço o cano
da minha carabina. Estou calmo, atirarei vinte centimetros abaixo.
Aponto.. .
Irra ! Uma sacudidela no ombro. Pela segunda vez disparei
antes do tempo. . .
Meu adversário também tem reflexos. No justo momento em
que apertei o gatilho, advinhei que êle se abatia no seu assento,

124
D ie W af f e n n ieder!

procurando esconder-se no habitáculo. Tenho a certeza de que


falhei novamente.
Tremendo ribombo de motores. Navio enorme que por um
segundo oculta tôda a terra, com os seus planos cobertos de tela
de uma brancura ofuscante, os montantes de côr esverdeaida, as
imensas cruzes-de-ferro, de um negro fúnebre. Tudo passou. . .
Sim, o piloto alemão lá continua, de mãos nos comandos, ileso.
Os dois discos brilhantes dos seus óculos observam-me.
Cuidado com a virada ! A terra, o céu e sol confundem-se.
Eu estava atento, com um montante de cabana apertado fortemente
na dobra do cotovêlo. Pelletier-Doisy vira com violência, para
voltar ao Albatroz que por assim dizer se desprendeu de nós. Alcan­
çamo-lo por cima, mais uma vez de través. Mas, — santo Deus ! —
porque há-de Pelletier-Doisy manobrar sempre dêste moido ? Se
êle me levasse por trás e um pouco de lado, seria tão mais fácil!
Não havería correção de tiro a fazer ! Foi assim que Navarre fêz
com Robert.
— Pum, pum, pum, pum, pum !
O Albatroz abre fogo. Os malandros devem ter uma metra­
lhadora ! O observador inimigo, até agora implacàvelmente man­
tido debaixo ido plano superior, conseguiu enfim avistar-nos. E
aproveitou a ocasião. Sua rajada perdeu-se no ar. Nada de novo !
Estamos vivos ! Por pouco. Acima de Pelletier-Doisy, a quarenta
centímetros da sua cabeça, o revestimento da nossa asa direita
recebeu um vasto golpe de navalha. Percebo a fenda branca do
tecido rasgado. É preciso manobrar bem de perto !
A manobra do Morane-Parasol é correta. A nossa guinada
remeteu o passageiro alemão aos seus cálculos. Êle tornou a desa­
parecer entre os planos, como metido numa caixa. Está fora de
debate. Bravo, Pivolo !
Os dos aviões arremetem de novo um contra o outro.. .
Tornei a carregar, manobrando a culatra da carabina. Suceda
o que suceder, arranco a luva da mão direita ! Não quero arriscar-
me a disparar sem querer, como fiz há pouco. E ídesta vez ajoelho-
me no chão, para ficar mais firme e ter melhor apôio. Penetra-
me nas narinas um ar gelado, o ar das altitudes que tem um perfume
tão especial quando nêle atentamos, um perfume indefinível de
lírios e cereais. O coração pula-me no peito. Alguma coisa me
incomoda na bôca. Que será ? Nada. Prendo fortemente a língua
entre os dentes. Procuro serenar. Não tenho absolutamente mêdo,

125
N o tem po das carabinas

nem tempo para isso. Mas a atenção, a tensão de espírito inteiriça-


me. Preciso reagir, tornar-me flexível, ter os punhos livres, livres,
sentir a carabina leve, leve nas mãos ! Aqui, assim ! Chega de
pensar nisso !
Dois cartuchos antes de ter de carregar de novo.
Malgrado os seus esforços em contrário, o piloto do Albatroz
vem inexoràvelmente sôbre nós, avançando de lado, como levado
por um estranho impulso de balanço, como sorvido, atraído por
algum imã invisível. Mas não, nós é que vamos contra êle, como
sempre. Estamos a cinqüenta metros. Vejo as lentes dos seus
óculos cravadas em mim. Há pavor no seu olhar ? Daqui a
três segundos vejo-lhe os olhos e a tiro ...
Quem é êsse homem ? Porque é um homem como nós. Vivemos
até agora sem nos conhecermos, sem suspeitar da nossa mútua exis­
tência, e no entanto o destino nos manteve a ambos fechados, desde
a infância, em sua mão. Reservava-nos para êste encontro em pleno
céu, fora da humanidade. Não sentimos qualquer ódio um pelo
outro.
Talvez em outros tempos, se os nossos caminhos se houvessem
cruzado, viéssemos a experimentar uma simpatia recíproca. Talvez
conversássemos, trocássemos cartas, apreciássemos a mesma música,
Bach ou Chopin, jogássemos bridge à mesma mesa. Talvez seja uma
pessoa muito simpática.
E hoje vivemos êste conto de Edgard Poê, esta página de Wells.
Precisamos tentar, tanto um como outro, precipitar-nos na mais
terrível das mortes. A guerra. . .
Seu capacete aproxima-se a tôda velocidade.
Desta vez não falharei!
Ei-los, estamos em cima dêles ! Pum ! Estalido surdo da minha
carabina. Pisadura no ombro. Giro sôbre mim mesmo, movendo
a culatra. O Albatroz vai passar tão perto sob a nossa fuselagem que
o encontro me parece absolutamente inevitável. Em todo o caso,
passa. Espero-o. Lá vai êle ! destaca-se de nós, para a esquerda.
Último cartucho do carregador. Então o meu instinto afina-se,
sem apontar, como na caça. Um tôrno de ferro aperta-me a garganta
à idéia de ter falhado outra vez, que vou deixar escapar êsse esplên­
dido avião posto em nossas mãos pela Fortuna, em circunstâncias
inesperadas. Tudo menos isso ! Não è possível que assim seja !

126
Die W aff en nieder!

O crepitar da metralhadora alemã começou ao mesmo tempo


que eu disparei. Como foi que o observador’ pôde ver-nos ?. . .
Pouco importa, nem eu nem Pelletier-Doisy fomos atingidos. Ne­
nhuma bala no Morane.
Subitamente um rugido de triunfo de Pelletier-Doisy. Êle agita
frenèticamente uma luva para a direita e para a esquerda, por
cima do seu capacete. Alvo atingido !
Sim, atingitdo ! Vinte metros à nossa direita o piloto alemão
ergue um braço, com a face ostensivamente voltada para nós, e de
repente o Albatroz executa um piqué acentuado, uma descida brutal.
Atenção ! Não será uma manobra para nos escapar, para aumentar a
distância entre nós ? Desconfiança ! Pelletier-Doisy pica por sua vez
num mergulho furioso, capaz de rebentar as nossas duas asas. É pre­
ciso segui-lo, não o largar ! O Morane deve estar bem perto da
vertical, porque me sinto escorregar do meu assento e tenho de me
agarrar com as duas mãos aos rebordos da fuselagem.
Logo que posso, apanho um carregador de reserva e introduzo-o
na carabina, pronto a recomeçar o fogo. Não é necessário ! Estamos
bordo a bordo com o Albatroz, cujo piloto levanta de novo o braço.
O avião está visivelmente desamparado, sua hélice roda já com
dificuldade, depois detém-se, imóvel. É o sinal da vitória.
Ergo-me de um salto e grito ao ouvido de Pelletier-Doisy:
— Hélice calada ! Hurrah !
Pelletier-Doisy abandona um momento a alavanca de comando.
Agita os dois braços no ar, rugindo de alegria, depois retoma pru­
dentemente os comandos. Não se entrega assim um Parasol a si
mesmo. É então uma demonstração espetacular de tôdas as acro­
bacias que permite a maneabilidade do Morane. Lá em baixo
devem ser muitas as testemunhas do combate, a seguir-lhe ansio­
samente as peripécias. Estas evoluções delirantes em pleno céu,
constituem para elas a assinatura dos vencedores.
Pivolo ignora que eu estou sôlto e dá rédeas ao seu júbilo. Pre­
ciso segurar-me com ambas as mãos aos montantes de cabana, com a
carabina apertada entre os joelhos. Positivamente, não sei mais
onde estou. O céu, com seu sol, e a terra com seus campos
multicores, verdes, vermelhos, escuros, as lavouras, estradas, canais,
aldeias e tufos de árvores, passam e repassam continuamente diante
dos meus olhos. Pica-se, torna-se a subir, torna-se a descer, gui­

127
N o tem po das carabinas

nada para a direita, guinada para a esquerda. E o solo aproxima-se


vertiginosamente. Mas, afinal, êsse idiota vai esfacelar-se ! E agora
não é o momento ! Vêm-me as tripas à bôca.
Pelletier-Doisy entra enfim em linha de vôo normal. Êle sabe
perfeitamente onde está. Não tirou os olhos do Albatroz nem
deixou de o acompanhar na descida. Isto é de um grande piloto, de
um ás!
Lá está o Albatroz, duzentos metros à nossa esquerda e à nossa
altura. A essa distância, as cabeças dos dois homens da tripulação
aparecem grandes como bolas. Em que estarão pensando ? A hélice
continua em cruz, um longo penacho de vapores brancos arrasta-se
atrás das empenagens. Fogo ? Fogo não, porque a fumaça seria
escura. Sem dúvida gasolina pulverizada ao contacto do ar. Os
tanques teriam sido furados ?
A terra chega. Agora a nossa prêsa já não nos pode escapar.
O Albatroz vai aterrissar, e nós poisaremos ao lado dêle, naturalmente.
A aventura torna-se prodigiosa. Nunca me senti tão feliz. Êste é o
ponto culminante da minha vida. Estamos em pleno sonho. De
repente noto que há um momento Pelletier-Doisy e eu não paramos
de gritar a plenos pulmões, de clamar a nossa alegria, de cantar, de
berrar sempre a mesma coisa: Viva a França! viva a França! É
para nós, apenas para nós que gritamos, pois ninguém nos pode
ouvir. Felizmente, do contrário seria bem ridículo ! É a brusca
distensão dos nossos nervos, o transbordar da nossa embriaguez: estar
vivos e ser vencedores !
Altímetros 200. O piloto do Albatroz não tem mais mêdo, sabe
que não atiraremos mais. Procura visivelmente um campo para
pousar e descreve uma longa curva em vôo planado. Acompanhamo-lo
reduzindo a distância, e cortamos atrás dêle, já mais abaixo, uma
estrada importante que talvez seja a nacional 44. Quem pode dizê-lo ?
Nem Pelletier-Doisy nem eu o saberiamos. Perdemos todo o ponto
de referência. Onde estamos ? Sempre nas linhas francesas, espero. . .
Se tivéssemos atravessado a frente de batalha, com certeza não nos
teria escapado a dupla rêde de trincheiras, tão visível nesta região de
solo gredoso. E não vimos nada. Portanto desceremos em qual­
quer lugar ao lado do Albatroz, ao lado do nosso Albatroz. Porque
êle é nosso. Nós derrubámo-lo ! Queremos vê-lo, apalpá-lo, conhecer
a cara das nossas vítimas, dos nossos prisioneiros ! Nada nos impe­
dirá disso !
128
D ie W af f e n n ieder!

Quando formos ao encontro deles, que direi a êsses alemães ?


Naturalmente vamos falar-lhes. Pois bem, sei perfeitamente o que
vou dizer-lhes: sei-o há muito tempo !
Enquanto as negras figuras geométricas dos pinheirais da Cham­
pagne Pouilleuse sobem ao nosso encontro, e Pelletier-Doisy, agora
atento, se preocupa em descobrir uma faixa aceitável onde poisar
as nossas rodas, evoco num relâmpago uma antiga recordação, uma
recordação de há quinze anos:
Na pequena sala do sexto ano, na Escola Santo Tomás de
Aquino, em Oullins, o nosso professor de alemão, senhor Rieg, de­
leita-se em fazer-nos repetir incansàvelmente a mesma estranha frase,
cujas sílabas esconde com energia:
— Die Waffen nieder! Vamos meus meninos, todos comigo:
Die Waffen nieder! peng, peng, muide peng !
E quando retomamos fôlego, acrescenta:
— Não esqueçam nunca estas três palavras, meus meninos ! Vocês
as gritarão com tôda a fôrça aos soldados alemães, no dia em que
se encontrarem diante dêles. Êles compreenderão logo, não tenham
dúvida. Isto quer dizer: “Abaixo as armas !”, e êsse dia há-de chegar !
“Todos nós abandonamos a Alsácia, depois da guerra de 1870,
meu pai, minha mãe, meus irmãos e irmãs, porque não queríamos
tornar-nos alemães. Meu pai fechou atrás de si a porta da nossa
casa e viemos embora. Meu pai e minha mãe já morreram, mas eu
ainda conservo a chave dela. Vocês vão ajudar-nos, meus meninos,
a voltar a nossa casa !
“Por isso mais uma vez, peng forte e todos juntos: Die
Waffen nieder V’
Esta cena repetia-se freqüentemente. Nós berrávamos com tôda
a alma, como se na realidade os ulanos tivessem entrado na aula e
nós os houvéssemos feito prisioneiros.
Como os seus olhos fulguravam, senhor Rieg, e como o seu
punho martelava com marcial energia a madeira da cátedra ! Nesse
instante não fazíamos banzé, era mesmo o único instante em que
não o fazíamos.
Descanse, caro senhor Rieg, nós não esquecemos essas três
palavras. . .
*

129
N o tem po das carabinas

O Albatroz aflora com suas rodas uma sebe de vaiado, perto de


uma grande propriedade campestre. Percorre ainda em vôo uns cin-
qüenta metros, arrastando consigo o seu penacho de vapores, rola
mais um pouco e por fim detém-se, imobiliza-se. ..
— Pronto — não posso deixar de pensar, — derrubei-o ! com
quatro balas.
Uma bola de emoção sobe-me à garganta. Silêncio repentino.
Pelletier-Doisy acaba de parar o motor. Um pouco de lado per­
gunta-me:
— Onde estamos ?
— Não sei !
— Eu também não.
— Seja onde fôr, toca a descer !
— De acordo.
Pelletier-Doisy liga outra vez o contacto e o trovão dos nove
cilindros do 80 cv. Rhone estala de novo e nos separa. Uma larga
virada. Passamos dez metros acima do Albatroz. No justo momento
em que o sobrevoamos, um jato de chamas rompe da sua fuselagem.
Uma torrente de fumaça negra envolve-o, estorcendo-se no vento.
Dois homens saem ràpidamente do seu interior e afastam-se alguns
passos. Deslizamos na crista de um pinheiral. Pelletier-Doisy corta
pela segunda vez o contacto. Diante de nós um restolho pardo, aliás
não muito extenso. A terra vem-nos em cima. Aqui está ela, cuidado !
As rodas acabam de tocar o solo. Um salto, dois saltos, para uma
aterrissagem de capitão não é lá essas coisas ! E como tardamos,
santo Deus ! A orla do pinheiral precipita-se ao nosso encontro.
Movimento do pedal à esquerda para uma volta apertada. Como
os aviões do ano de 1915 não têm freios, cada qual arranja-se como
pode.
Nós saimo-nos mal. Eu já o esperava ! Pivolo, apressado de­
mais, tocou terra com vento pela retaguarda: é capotagem na certa,
no mínimo o pilão. Seguro-me com os dois braços para não ser atirado
fora. Um estralejar lancinante, um choque brutal.. . A asa esquerda
acaba de tocar o solo. O Morane gira violentamente sôbre si mesmo,
a hélice parte-se, o nariz do motor enterra-se no chão. Todo o apa­
relho oscila. Iremos capotar ? Não, não capotaremos ? Um forte
repuxão nos ante-braços, uma forte pancada nas costas, outra na
cabeça, a carabina escorrega-me entre as pernas, rebenta a te la ...
É tudo, nenhuma novidade. Não pegamos fogo. Nosso avião ficou
em pé, e, por um milagre de equilíbrio, em vez de terminar perigosa

130
D ie W af f en n ieder!

cambalhota que podería esmagar-nos, detem-se nessa posição, como


uma flexa vibrante, atirada do céu e cravada no solo.
Pelletier-Doisy aterrissou como um recruta ! É a alegria do
triunfo.
Felizmente os alemães nada viram. O pinhal protege-nos dessa
humilhação. Que vergonha seria para nós ! Mas precisamos apres­
sar-nos, estamos a uma centena de metros deles, e se a estrada que
sobrevoamos é realmente a nacional 44, a frente está apenas a doze
quilômetros, êles podem tentar fugir e alcançar as suas linhas.
Corramos !
Libertamo-nos com dificuldade. Pelletier-Doisy, prêso pelo cin­
turão, debate-se como um inseto. Tenho de o ajudar a sair. Pronto.
Caiu a meus pés.
— Estamos em França ou na Bochia ? (1)
— Não sei. Em França, suponho. Logo veremos ! Vamos,
vamos, depressa !
Sim, tenho quase a certeza de que estamos nas nossas linhas.
Apesar das desordenadas acrobacias de Pivolo, não perdi a orientação
a êsse ponto. Arranquei o capacete, dispo a blusa de couro, recolho
do capim a carabina que atravessou a tela da fuselagem. Por sorte
estamos ambos corretamente vestidos, envergamos esta manhã as
nossas melhores roupas, as que usamos para ir ao jantar de cerimô­
nia de ontem, e ao deitar-nos atiramos para as costas das nossas
cadeiras. Há pouco, ainda meio tontos ao acordar, vestimo-las maqui-
nalmente, sem forças nem ânimo para escolher outras. Aben­
çoada negligência. Nossos adversários vão ter diante de si brilhantes
espécimens dos uniformes da cavalaria francesa de 1914: túnicas
negras de nove botões-guizo e gola carmesim dos couraceiros, para
Pelletier-Doisy, gola branca dos dragões para mim, guarnição nos
punhos de pano côr da nossa arma, e enfim calções vermelhos de friso
preto. Pivolo tem a sua barretina, e eu o meu quepe, recuperado
à pressa no cofre do aparelho. Êle ostenta o simples galão de prata
dos segundos-tenentes. Tudo isto em três segundos, porque o tempo
urge. Onde está o Albatroz? Onde está o Albatroz?
Não é preciso procurá-lo. Uma coluna de fumaça côr de fuligem
sobe por trás dos pinheiros. Atravessamos o pinhal correndo e desem­
bocamos numa campina iluminada pelo sol levante. O Albatroz lá
está, a trinta metros de uma construção importante, coberta de
telhas chatas. O incêndio devora-o, mas não ainda a ponto de
(1) Bochia, terra dos boches, a A lem anha (N .T .)

131
N o tem po das carabines

êle ser inabordável. Suas enormes asas brancas timbradas com a


cruz-de-ferro estão intactas, bem como a fuselagem. O vento matinal,
já forte, empurra a cabeleira das chamas para fora, impedindo-as de
completar depressa a destruição.
Dois homens, dois oficiais alemães, acham-se imóveis a alguns
passos de distância, olhando-nos. São êles que estão em sua casa,
ou nós que estamos na nossa ? A resposta chega-me no mesmo ins­
tante. Avisto dois soldados franceses de infantaria, de farda azul-
horizonte, colados — medrosamente, ao que parece, — à esquina de
uma das construções da herdade; contemplam com espanto a cena
inesperada, caída do céu. Viva, estamos nas nossas linhas !
Antes de mais nada grito aos dois soldados:
— Olá ! vocês, corram depressa ao avião ! Entrem nêle, se
puderem. Salvem o que fôr possível e lancem tudo pela borda !
Êles obedecem imediatamente e largam a correr. A vista dos
nossos uniformes tranquilizou-os. Marcho então para os oficiais ale­
mães. Êles não tentaram fugir. Esperam. Atitudes normais. Um
conserva, todavia, as mãos atrás das costas. Esconderá alguma arma ?
Será que vão defender-se, atirar ? Convém estar de sobreaviso.
Poderia apontar-lhes a minha carabina, mas êsse gesto repugna-me
por trair apreensão e medo. Além disso carecería de elegância, e não
quero estragar a solenidade do momento.
Segurando despreocupadamente a minha carabina pelo meio,
com o braço caído ao longo do corpo, na posição de caçador em
descanso, aproximo-me até dez passos, sem me apressar. Pelletier-
Doisy está a meu lado, de revólver na mão, também em atitude negli­
gente, braço balançando, o cano da arma para o chão. Os dois ale­
mães não tiram os olhos de nós. Um dêles é um soberbo homem,
robusto e desempenado. Veste um longo capote verde-escuro, com
gola de peles e botões de couro. Traz o boné alemão de faixa escar­
late, copa muito erguida, ornado de duas rosetas, a das três cores do
Império, prêto, branco e vermelho, e a outra das duas cores da
Prússia, prêto e branco. Ostenta na botoeira o laço da Cruz-de-Ferro,
igualmente prêto e branco. Calçando botas e polainas amarelas,
com o rosto muito corado e a barba grosseiramente feita, o olhar
cinza-aço, poderia passar por um oficial britânico. É êle que tem
as mãos atrás das costas. Olha-nos bem de frente, sem arrogância
e sem mêdo.
O seu companheiro é igualmente alto, porém mais magro, de
faces cavadas, olhos inquietos por trás de grossas lentes redondas em
Die W af f e n nieder!

armação de tartaruga. Tem a cabeça descoberta, cabelos quase


raspados. Usando um amplo capote, e calçando polainas ruças per-
feitamente engraxadas, dá a impressão de pertencer a outra raça.
Mais moço, tem sem dúvida posto inferior ao outro. Conserva-se
dois passos atrás dêle. Uma ruga de ansiedade ergue-lhe o canto do
lábio, como um rictus.
A seus pés jazem as roupas de vôo de que êles se desembaraçaram
à pressa, vestes e calças de couro, capacete de proteção frontal.
Quiseram apresentar-se o melhor possível. O primeiro devia ter o
costume de levar o boné do uniforme no cofre do avião, como eu o
meu quepe, e agora utiliza-se dêle. O outro não pensou nisso, decerto
esqueceu-o no campo da sua esquadrilha. Como é difícil mandá-lo
vir, terá de contentar-se com um passa montanha no campo de
prisioneiros.
Tenho-os ambos sob os olhos. Não se mexem. Então, esforçando-
me por banir da voz qualquer ênfase, qualquer efeito teatral, pois sei
que aos olhos dêsses dois inimigos, decerto valorosos, represento a
França e devo mostrar-me digno dela, sem levantar o tom, porém
firmemente, acentuando apenas a ordem com um gesto sêco que
não admite réplica, lanço-lhes as três palavras que desde a minha
infância esperavam, no fundo da minha alma, o instante de servir:
— Die Waffen nieder !
No mesmo movimento êles erguem os braços ao ar, bem alto.
O de boné agita os dedos, para melhor me provar que não está
armado. Instante inesquecível. O coração salta-me no peito. Aceno-
lhes logo que está bem, que podem baixar os braços e voltar à
posição normal. Em seus olhos lêem-se ao mesmo tempo a tristeza
da sua condição, o contentamento de se verem bem tratados, a consi­
deração a respeito dos nossos uniformes, que sem dúvida os espanta e
desconcerta. Teriam os aviadores franceses o hábito de combater ves­
tidos com tanto apuro ?
O primeiro destaca-se, vem ao meu encontro, e, gesto inesperado,
saúda-me inteiriçado em posição de sentido, mão na viseira. Inclina-se
e torna a endireitar-se, e em seguida apresenta-se à maneira alemã:
— Mein Name ist Bobruggle, ober-leutnant! Meu nome é
Bobruggle, primeiro-tenente !
Devolvo-lhe o cumprimento e estendo-lhe a mão. É um adver­
sário infeliz, lastimo-o. Deus me livre de me encontrar um dia em
situação idêntica ! Êle toma a minha mão e aperta-a cortêsmente,
com a face lívida de emoção.

133
N o tem po das carabinas

Depois é a vez do outro, o de óculos:


— Main Name is von Keussler, fãhnrich ! Meu nome é von
Keussler, aspirante !
O mesmo cerimonial se repete gravemente diante de Pelletier-
Doisy, risonho e bonacheirão.
Poucos metros adiante o Albatroz tornou-se prêsa das chamas.
Os dois soldados de infantaria lograram trepar por alguns segundos
ao habitáculo do passageiro, de onde puderam tirar diversos objetos
preciosos: um porta-mapas, uma bússola montada à Cardan, um
altímetro de bordo... e uma metralhadora, a metralhadora que
atirou sôbre nós e que eu conservaria muito tempo como recordação,
bem como uma das rodas forradas de tela do Albatroz, com a grande
cruz-de-ferro poupada pelo incêndio. Pelletier-Doisy guardará para
si a hélice intacta.
Por fôrça do hábito, dou uma olhadela ao relógio. Não o
consultara desde o começo do encontro, quando êle marcava 6,20 h.
Agora são 6,45 h. Mal acredito no que vejo, é inverossímil. Tudo
se passou em vinte e cinco minutos, aproximação, ataque, luta, vi­
tória, descida, aterragem, captura dos dois oficiais. Vinte e cinco
minutos ! Eu teria calculado muito mais de uma hora.
Conversamos agora todos quatro, não mais como adversários
que procuraram matar-se, senão como pessoas que o mesmo obje­
tivo casualmente reuniu. O primeiro tenente Bobruggle fala sufi­
cientemente o francês, e o mesmo sucede com o aspirante von
Keussler. Por meu lado, arranho um pouco o alemão:
— Sind ihr verwundet ? Estão feridos ?
— Não, obrigado, wir sind nicht verwundet. Não estamos
feridos.
Foi Bobruggle quem respondeu.
— Warum sind ihr ausgeflogen ? Porque aterrissaram ?
— Vossas balas ter-nos obrigado pousar.
— Warum ? Por quê ?
— Cabos de direção Kaputt, hier, mein Fuss.
É von Keussler que fala, apontando a sua bota. É êle o piloto.
Um dos comandos da alavanca foi cortado junto ao seu pé. Êle
acrescenta ainda, fazendo o gesto de rasgar:
— Und Benzintank aus Kaputt, gelóchert. E o tanque de gaso­
lina também kaputt, rasgado, furado.
O primeiro tenente Bobruggle continua:

134
O monocoque Morane-Saulnier, com m e t r a lh a d o r a não s in c r o n iz a d a , a t ir a n d o
a tr a v é s d a h é l i c e m u n id a d e lâ m in a s d e a ç o à p r o v a d e b a la s .

Avião de caça F o k k e r derrubado em nossas linhas, munido do sistema de


metralhadora sincronizada disparando através da hélice.
O A v i a t i k abatido a l.° de abril de 1915 pelo cabo Navarre
e pelo segundo-tenente Robert

Aviador-construtor Léon Morane e engenheiro Saulnier, a bordo


de um avião M o r a n e - S a u l n i e r tipo E de 1912.
D ie W af f e n n ieder!

— Das Feuer war auf. Damn würden wir gezwungen zum Boden
Zurückzukommen. Haben Sie gesehen ? O fogo ameaçava a bordo.
Porisso tivemos de voltar ao solo. Não viram ?
De modo que as minhas balas acertaram. Experimento uma
grande alegria ao certificar-me disso. Reclamo pormenores a von
Keussler. Duas vararam sucessivamente o tanque, na frente dêle,
a gasolina inundou o chão e determinou, pela pulverização, o penacho
branco que se formou atrás da empenagem e que nós havíamos no­
tado. A terceira bala rebentou os instrumentos de bordo a poucos
centímetros do seu rosto. A quarta seccionou um dos dois tubos de
comando da direção, junto ao tacão da sua bota. O aparelho, desam­
parado, deu então uma guinada que lhe foi difícil dominar. Mas logo
à primeira bala o combate estava decidido. Von Keusseler, quando
viu o lençol da gasolina invadir o fundo da fuselagem, teve de des­
ligar o motor para evitar o incêndio. As linhas alemãs estavam
longe demais para poder ser alcançadas em vôo planado. Por ordem
de Bobruggle êle ainda o tentou, mas a terceira e a quarta balas pu­
seram fim ao desígnio, e foi quando êle levantou o braço para indi­
car que ia tentar pousar. Durante a descida, Bobruggle abandonou
a sua metralhadora para accionar um extintor. Os vapores da gaso­
lina acumulados no aparelho ameaçavam perigosamente inflamar-
se. Com grande dificuldade conseguiram aterrissar sem maiores
danos.
Porque foi que o Albatroz pegou fogo no chão ? Desconfio muito
que êles aproveitaram os poucos minutos em que ficaram sozinhos
para jogar um fósforo na fuselagem inundada de gasolina. As chamas
irromperam logo que o avião acabou de rolar, mas isso nada prova,
pois um gesto depressa se faz.
Metade em alemão e metade em francês, interrogo o primeiro
tenente Bobruggle a êsse respeito. Êle deve ter compreendido per-
feitamente, mas não responde. Então insisto, dizendo-lhe que
nada tem a recear dêsse ato, pois mesmo nós, tripulantes franceses,
não deixaríamos de o fazer em circunstâncias idênticas. Bobruggle
continua não respondendo, mas seu rosto avermelha-se de satisfação
e não lhe é possível reprimir uma ligeira inclinação do busto, apenas
esboçada, que o atraiçoou. Por fim diz muito depressa:
— Foi um belo combate. Sehr schõn ! Prima ! Treue ! Rit-
terlich ! (Lealdade. Cavalheiresca). Tapfere, franceses aviadores 1
(Os aviadores franceses são destemidos).

135
N o tem po das carabinas

E como eu não respondesse, acrescentou convictamente:


— Alemães aviadores, também.
Faço-lhe várias perguntas:
— Hattet ihr Bomben mit ihnen ? Os senhores traziam bombas ?
Sim, traziam bombas, duas bombas. Lançaram-nas sôbre a
estação de Reims, não sôbre a cidade, sôbre a estação. O primeiro
tenente Bobruggle insiste muito neste pormenor. Sôbre a estação,
não sôbre Reims. Von Keussler aprova com energia: sôbre a
estação !
Minha concordância, S o !, tranquiliza-os. Em seguida per­
gunto-lhes à queima-roupa:
— Conhecem o primeiro tenente Wittenburg e o tenente
Engelhorn ?
Ouvindo êsses nomes êles estremecem e olham-se. Lêem-se em
seus olhos a ansiedade e o interêsse.
— Ia, conhecemos. . .
Conhecem-nos até muito bem. Fazem parte da mesma esqua­
drilha. A notícia de que Wittenburg e Engelhorn foram derru­
bados ontem pela M. S. 12 começa por enchê-los de consternação,
mas depois regozijam-se ao saber que os outros estão também prisio­
neiros e ilesos, salvo o tenente-piloto Engelhorn ferido na perna,
mas não gravemente (1).
— De modo que os senhores pertencem à esquadrilha do Châ-
telet-sur-Retoume ?
Bobruggle hesita, depois decide-se:
— Ia, Châtelet-sur-Retourne.
Pelletier-Doisy conclui, chalaceando:
— A coisa vai bem ! Dentro em pouco estarão todos aqui. Con-
vidamo-los em massa para uma gigantesca partida de roleta ou de
poker !
Outros não não mostras de apreciar o gracejo, nem sequer de
o compreender, mas compreendem muito melhor quando lhes digo
que nessa mesma tarde serão lançadas notícias a respeito dos seus
camaradas, sôbre o campo da sua esquadrilha. Acrescentaremos os
seus nomes à lista, simplesmente.
Êle concordam e dobram-se pelo meio, para agradecer.
*

(1) Era a tripulação derrubada por Navarre e Robert.

136
D ie W af f e n n ieder!

— Alô, alô, é a central do Exército ? Ligue-me com a M. S.12. ..


Não com a base, mas com a residência dos oficiais, em Champigny-
sur-Vesle.
Uma série de estalidos, depois uma voz sonolenta, em tom irri­
tado. É Bernis, sei que o telefone está pendurado no seu quarto:
— Alô, sim, que quer ? Aqui fala o tenente de Bernis, chefe
da esquadrilha. Que há ?
Engulo saliva com deleite, na espectativa do efeito que vou causar.
Pelletier-Doisy pegou no auscultador, com a bôca fendida até às
orelhas.
— Alô ! é o tenente de Bernis ? Muito bem, aqui fala Chambe.
— Como ? quem é ?
— É o segundo-tenente Chambe que está falando, com Pivolo.
— Ah ! é o senhor, master Chambe ? Que foi que lhe deu
para me acordar a esta hora ? Ainda não são sete ! Não sabe que
há repouso para tôda a esquadrilha ! Já é atrevimento !
— Nós derrubamos um boche !
— Diga-me uma coisa: o senhor quer brincar comigo ? O l.° de
abril foi ontem !
Pelletier-Doisy arrebata-me o aparelho e troveja:
— É verdade, meu tenente, nós derrubamos um boche ! Derru­
bamos um boche!
O fone explode com cólera. Interrogo Pelletier-Doisy que se torce
de rir:
— Que foi que êle disse ?
— Disse que eu estava bêbado e desligou.
Vários minutos são necessários para reatar a comunicação. Por
fim consigo-a. Outra vez Bernis na ponta do fio.
— É o tenente de Bernis ? Então escute, estou falando sério !
(Separo bem as sílabas). Pelletier-Doisy e eu acabamos de derrubar
um aparelho alemão nas linhas francesas.
Silêncio cheio de espanto. Depois uma voz ainda prudente, mas
já abalada pela dúvida:
— Ora deixe-se disso ! De onde é que me está falando ? Do seu
quarto, do outro lado do tabique ? O senhor caiu da cama ? Onde
está ?
— Não, meu tenente (*), estou-lhe falando da granja d’Alger,
entre Vaudemanges e les Grandes-Loges, ao lado da estrada nacional1
(1) Embora todos tenentes ou segundos-tenentes, todos nós tratávamos o tenente
dc Bernis não apenas pelo nome mas também pelo posto, de maneira a significar-lhe o
nosso respeito. Êle era chefe de esquadrilha. É a regra.
137
N o tem po das carabinas

44, a 40 quilômetros de Champigny, 20 quilômetros a noroeste de


Châlons-sur-Marne.
Estas minúcias geográficas acabaram de acordar Bernis. Ima­
gino-o sentado na cama, de pijama, cabelos sôbre os olhos, auscul­
tador no ouvido, estupefato, ao lado do meu próprio quarto onde
os caçadores Luís XV galopam sem cessar, tocando a trompa.
Descarrego-lhe jovialmente os últimos detalhes:
— Derrubado com quatro balas. É um Albatroz. O aparelho
incendiou-se. Prendemos a tripulação. Dois oficiais. Estão aqui.
Venha depressa, ficamos à sua espera ! Venha de automóvel, porque
a aterragem é .. . difícil, há perigo de se espatifar. (Olho inten­
cionalmente para Pelletier-Doisy, que engole em sêco). Sim, na
herdade d’Alger, à direita da estrada vindo de Reims. É fácil de
encontrar. Tôda a gente o informará, já há aglomeração nos arre­
dores. Nós saimos às 5,45 h e derrubamo-lo às 6,35 h. Justamente
há meia hora.
Enfim, uma exclamação abafada, o choque do aparelho desli­
gado sôbre a mesa:
— Santo Deus, é verdade ! Não compreendo mais nada ! Está
bem, já vou !
Pelletier-Doisy e eu desligamos o telefone. Olhamo-nos um ins­
tante em silêncio, impressionados, só agora começando a compre­
ender verdadeiramente a extraordinária aventura. A agitação não o
permitira até êsse momento.
*

Voltando de Vaudemanges à herdade d’Alger, encontramo-la


invadida pela multidão.
Numa dependência, os oficiais a quem havíamos confiado os
prisioneiros, terminavam o interrogatório. Êles vão ser remetidos
ao Q. G. do Exército Gouraud. Estão agora no pátio, ladeados pelos
dois soldados de baioneta calada. O ober-leutnant Bobruggle mostra-
se muito pálido. Ao ver-me dá um passo na minha direção e mostra-
me a sua túnica e a de von Keussler. As cruzes-de-ferro e as insígnias
de piloto e observador desapareceram. Tiraram-lhas. Nós haviamos-
lhas deixado, todavia ! Fico indignado com isso.
Corro à sala do interrogatório. Lá está um capitão de estado-
maior de brigada, de braçal azul. É um artilheiro. De pé arruma já
os seus papéis, enfiando na pasta as condecorações e insígnias dos dois
alemães.

138
D ie W af f e n ni ed er!

— Perdão, meu capitão, com licença í


Êle olha-me de alto a baixo.
— Que deseja ?
Contendo a voz prestes a tremer de cólera, dou o meu nome, pro­
testo contra a atitude de privar combatentes valorosos dos seus objetos
pessoais. Se alguém tinha o direito de organizar coleções à custa dos
presos, êsse direito competia aos que os capturaram e não a outros.
Êsses objetos pertencem-nos, a Pelletier-Doisy e a mim. Os alemães
são nossos prisioneiros. Reclamamos as condecorações e as insígnias.
Estão presentes outros oficiais, um capitão e um tenente.
Ambos me olham com surpresa. Um dêles resolve-se, dá um passo à
frente e vem apertar-me a mão.
— Ah ! Foi o senhor que abateu êsse avião ? Não sabíamos, e
naturalmente nada lhe podemos recusar. Recolha as insígnias, que
de resto não serviriam para ninguém. Pertencem-lhe.
O capitão de braçal azul devolve-as de boa vontade, sorrindo.
— Aqui as tem, meu jovem camarada. Sem dúvida bem as
mereceu.
— Obrigado !
Saúdo e retiro-me imediatamente. O ober-leutnant Bobruggle
e o fáhnrich von Keussler estão ainda no pátio, cercados pela guarda.
Dirijo-me a êles e às escondidas dos oficiais que as devolveram, para
os não melindrar, entrego-lhes as cruzes e insígnias.
— Aqui as têm, pertencem-lhes. Ninguém mais lhas tirarará.
Ambos se inclinam. Bobruggle saúda-me mais uma vez, fitando-
me nos olhos. Atravessou a minha vida como um meteoro, nunca
mais nos tomamos a ver.
*

A multidão não cessa de aumentar em volta do Albatroz incen­


diado. De automóvel, de bicicleta, a cavalo, a pé, oficiais, soldados
e civis chegam de tôda a parte. Está ainda longe o tempo em que
um avião abatido já não interessa a ninguém. Nossa vitória aérea é à
quarta desde o comêço da guerra, de modo que o êxito de curiosi­
dade é enorme.
Um formigueiro humano se pôs em marcha e longas filas de pes­
soas convergem a tôda a pressa para a herdade d’Alger. Cada qual

139
N o tem po das carabinas

quer gozar a sua parte do espetáculo, contemplar os prisioneiros, pois


fala-se que os alemães foram apanhados vivos apesar do seu avião ter
sido derrubado em chamas. Cada recém-chegado espera poder falar
com os aviadores que os abateram, saber dêles como as coisas se
passaram. Comprimem-se, acotovelam-se e os gendarmes já chegados
têm dificuldade em fazer recuar a muralha de curiosos que se
aperta em redor da carcaça ainda quente do Albatroz. Retalhos de
tela, poupados pelo fogo, pendem ainda aqui e ali, dos rebordos
e das nervuras. Todos procuram arrancá-los, é o assalto às lem­
branças. Proibo formalmente que lhe toquem. Êste avião é do
último modelo, com a sua armadura inteiramente metálica e o motor
intacto; será extremamente interessante estudá-lo. Ordem categó­
rica para que se afastem. Além disso havia bombas a bordo, não se
sabe o que pode acontecer ainda com aquêle incêndio.. .
Mais do que qualquer outra proibição, esta hipótese produz
o seu efeito. O círculo dos basbaques alarga-se instantâneamente.
E como sempre em casos assim, o boato posto em circulação espalha-
se, amplifica-se, deforma-se. Há bombas a bordo, que podem rebentar
de um momento para outro. Os alemães traziam bombas, vão
fazê-las explodir. Cuidado, os especialistas de Châlons chegaram,
vão provocar o estouro das bombas! Recuo imediato. Enfim,
respiramos !
Pelletier-Doisy e eu conseguimos aproximar-nos. Quanta gente !
Quantos oficiais de todas as armas ! É incrível o número de olhos
que cá de baixo assistiram ao combate. Todos os que aqui estão
viram, ouviram dos seus acantonamentos, das suas aldeias, dos seus
campos. Tôda a região está emocionada. As testemunhas são unâ­
nimes: apesar do ruído dos motores, ouviam-se muito bem os tiros
e o crepitar das metralhadoras. Os dois aviões arremessaram-se
cinco ou seis vêzes um contra o outro, tão perto que pareciam querer
esporear-se. E de cada vez as balas assobiavam. Tremia-se com
receio de ver cair o avião francês. Mas foi o alemão que de repente
afocinhou e desceu para terra, ferido de morte. Então, parece que um
bramido de júbilo se ergueu em tôda a região e as pessoas largaram
a correr como loucas.
Somos cercados, interrogados sem parar, puxam-nos pelas mangas.
Temos de repetir dez vêzes a mesma coisa. Novos rostos surgem
continuamente diante de nós. Quepes vermelhos, pretos, azuis,
com galões de ouro, galões de prata, quepes de comandantes, de

140
D ie W aff e n n i e d e r !

capitães, de tenentes, de feições radiantes ou sérias, apertos de mão


em rosário, como numa sacristia em dia de casamento.
Camaradas de promoção identificam-se:
— Sou Lagache ! Sou de Lavour ! Ah ! meu velho, assistimos a
tudo. Estávamos em terra. Com tôda a alma os teus colegas
te aplaudem !
Reconheço-os com dificuldade. A cabeça começa a andar-me
um pouco à roda. Faz frio. Torno a vestir a minha blusa de
couro, que soldados me trouxeram.
Mas as filas abrem-se. Um coronel de quepe azul-celeste vem
ao nosso encontro, muito magro e muito alto, infinitamente dis­
tinto. É o coronel de Saizieu, comandante do 12.° de Hussardos.
Nossa luta desenrolou-se justamente por cima do seu regimento. Os
hussardos não perderam uma vírgula, declara-nos êle.
— Que arma tinha o senhor ?
— Esta, meu coronel, uma carabina de cavalaria.
— É maravilhosa !
Sacode-nos as duas mãos, radiante:
— Como sou aqui o de grau mais elevado, permita-me que o
felicite em nome de tôda a cavalaria francesa.
Um burburinho, uma algazarra de vozes alegres e familiares.
Aí estão de Bernis com a sua pele de cabra, Robert e Navarre, Moi-
nier, Gastin, Jacottet, Méseguich e Bodin. Vieram todos. Seus rostos
estão cobertos de poeira. Os automóveis devem ter vindo a tôda a
velocidade, mesmo pelos caminhos de terra. Conheço Bernis, com a
sua Panhard, a mão esquerda no volante, a direita segurando o cigarro,
o acelerador enterrado até ao fim.
Precipita-se, corre para nós, abre os braços:
— Ah ! master Chambe I Ah ! miserável Pivolo !
Faz-nos estalar os ossos. Seus olhos brilham. Robert e Navarre
estão como loucos de alegria. Que desforra acabamos de tirar da
má sorte ! Agora está tudo ótimo ! Valentes corações I
— Esta noite vamos comemorar, vai ser um bródio como nunca
se viu ! — grita Navarre. — Vamos encher-nos até a q u i!
Leva a mão ao ar, mais alta que o seu quepe.
— Não, Navarre, esta noite não — objeta sentenciosamente
Bernis.

141
N o tem po das carabinas

— Porque não esta noite ? É a regra, combinou-se ontem. . .


— Não. Hoje não. Hoje é Sexta-Feira-Santa.
— É verdade ! É Sexta-Feira-Santa. Não me lembrava disso.
Agora são os mecânicos da esquadrilha que chegam, os fotógrafos.
Abrem passagem através da multidão. Bordas, Alkan, Masson, Gi­
rard, Mons, os irmãos Servant, todos quiseram vir e amontoaram-se
num trator. Têm direito. É também uma vitória deles. Espalham-
se em redor do Albatroz, inspecionam-no detidamente, preparam-se
para retirar o motor, a roda intacta que eu reclamo e a hélice para
Pelletier-Doisy.
O ajudante Bordas foi examinar o nosso Morane acidentado. Não
demora a regressar. Não é nada, a hélice a trocar, e uma ponta de
asa, apenas. A árvore não está torcida. Amanhã de manhã o valente
Parasol poderá voltar ao ar. Ainda bem, nenhuma sombra no
quadro ! A vida é bela.
Aí vem Pléneau, o querido Pléneau ! Chega de Jonchery-sur-
Vesle, carregado de máquinas fotográficas, enviado pelo comandante
de Rose que nos espera o mais depressa possível. Mas não antes
de serem tomadas numerosas fotografias.
Pléneau prepara o maior dos seus aparelhos. Coloca-nos, des­
loca-nos, vira-nos à vontade, encosta-nos à carcaça do Albatroz. Não,
assim não, a luz é insuficiente. Ah ! agora sim, assim fica melhor !
Olhem para cá !
E dirigindo-se a mim:
— Vamos, meu caro, não faça êsse ar idiota ! Sorria !

No pequeno jardim cheio de sol de Jonchery-sur-Vesle, todo


estrelado de primaveras e violetas, o comandante de Rose saiu, de
guardanapo ainda na mão. Preparava-se para almoçar com os seus
oficiais. Apressou-se ao nosso encontro, alegre, de cabeça descoberta,
os grandes bigodes loiros ao vento.
— Ora, cá estão os senhores ! Fizeram-na bonita !
— Aqui lhos trago — disse Bernis.
— Mas então como foi isso ? Depois da orgia de ontem, par­
tiram assim mesmo de madrugada ?
— Sim, foi uma id éia.. .

142
D ie W af f e n n ieder!

— Eu supunha êstes cavalheiros ainda na cama —explicou Bernis


com aquele ar zombeteiro que toma quando está comovido. — Pois
sim ! Tinham saltado o muro, ao romper do dia. Às sete horas
um telefonemazinho bem sossegado: “Pusemos um boche em terra,
meu tenente !” A princípio ninguém queria acreditar. Todavia era
a verdade.
E Bernis concluiu:
— Ontem um, hoje o u tro .. . Agora acostumei-me, quero um
tôdas as manhãs, ao café.
O comandante de Rose observa-nos como um juiz deve observar
os criminosos. A intensa luz de abril, em pleno meio dia, bate-lhe
em cheio no rosto obrigando-o a piscar os olhos. De repente joga o
guardanapo sôbre uma roseira e abraça-nos como a dois garotos.
— Bem, desta vez não serão castigados !
E mudando de tom, aperta-nos gravemente a mão a ambos:
— Felicito-me, meus filhos, pelo que fizeram ! Ontem Navarre
e Robert, hoje vocês dois, é uma brilhante demonstração do que
se pode fazer com uma simples carabina. Eu bem sabia não estar
enganado, quando os chamei para constituirem a primeira esqua­
drilha de caça. Tinha confiança. E agora devo-lhes uma das grandes
alegrias da minha vida.
Baixou a voz, sorrindo:
— Vou fazer-lhes uma confidência: telefonaram há pouco do
G. Q. G. em Chantilly. Foi o próprio patrão (*) que telefonou a
vosso respeito. O tio Joffre a princípio resistiu um pouco, achando
que a aviação começava a custar-lhe um tanto cara. “Se isto con­
tinua !” — gritou êle, — mas por fim concordou. Vocês têm ambos
a Legião de Honra.
Pelletier-Doisy e eu ficamos frios, sem uma palavra. O coman­
dante de Rose continuou:
— O general Franchet d’Espérey faz questão de lhes entregar
pessoalmente as condecorações, ao mesmo tempo que a de Robert
e a medalha de Navarre. Vão recebê-las todos quatro. Hoje não,
o dia não é próprio, Sexta-Feira-Santa, nem amanhã. Domingo tam­
bém não, que é Páscoa. Mas na segunda-feira, na segunda-feira às
dez horas da manhã — está ouvindo, Bernis ? — revista geral no seu
campo, com as duas esquadrilhas, a M. S. 12 e a V. 24 ! Segunda-
feira às 10 horas !1
(1) O General Franchet d ’Esperey, comandante do V.° Exército.

143
N o tem po das carabinas

— Entendido, meu comandante, e nessa mesma noite se celebrará


o feito. Grande banquete à 12, como ontem, presidido pelo senhor,
com os mesmos convidados, os irmãos Morane, Saulnier, todo o
mundo.
— Perfeitamente. Lá estarei !

Tomamos a subir para o carro. A portinhola fechou-se e agora


a Panhard devora a estrada. Bemis conduz, de quepe sôbre os
olhos, mão esquerda no volante, a direita segurando o cigarro e o
pé esmagando o acelerador.
Sentados na banqueta de trás, Pelletier-Doisy e eu contemplamos
em silêncio a paisagem, que desfila a tôda velocidade. Mil idéias nos
assaltam. Quando atravessamos os bosques de Branscourt, digo ao
meu companheiro:
— Caramba, Pivolo, que aventura ! E dizer que esta manhã,
quando eu o puxei pelos pés, você não queria vir.
Êle não responde logo, mas a sua mão procura o meu braço
e aperta-o com fôrça:
— Ah ! se não fosse a esponja molhada. ..
Volta-se para mim e encara-me, tentando sorrir. Não há dúvida
que tem duas lágrimas nos olhos.

144
O MISTERIOSO M O R A N E
DE ROLAND GARROS

Nossa vitória, afinal, não teria sido a quarta, mas a quinta.


Viemos a saber que durante a tarde de ontem, l.° de abril, Roland
Garros, o famoso piloto, abateu um avião alemão nas linhas fran­
cesas. A notícia espalhou-se tardiamente, porque a cena se desen­
rolou muito longe do nosso sector, na extremidade da frente, nos
confins da Bélgica (x).
A aviação está em festa: dois aparelhos inimigos derrubados
a primeiro de abril, e no dia seguinte um terceiro ! Muitos se
mostram espantados. Há tanto tempo que vivíamos na espectativa !
Desde 10 de janeiro que não acontecia nada, e eis que de repente os
combates se multiplicam, os êxitos florescem ao mesmo tempo como
se abrem numa só manhã as brancas corolas nos ramos das amen­
doeiras. Que terá acontecido ? que foi que mudou ?
O que aconteceu é que a clarividência de um comandante de
Rose dá hoje os seus frutos. Seu entusiasmo em transmitir a sua fé
às tripulações que ansiavam por partilhá-la fazem cair as escamas dos
últimos olhos ainda fechados à luz. Agora todo o mundo está de
acordo: é possível interditar ao inimigo o acesso ao nosso céu e
opormo-nos ao cumprimento das suas missões aéreas. A demonstração
está feita e bem feita.
A caça nasceu. Agora basta querer, isto é, dotá-la de aparelhos
adequados ao seu papel e aumentar-lhe os efetivos. Convém não
deixar que o inimigo se distancie. Êle não pode deixar de tirar
proveito da cruel lição que acabamos de infligir-lhe.1

(1) De qualquer modo, a terceira vitória continua pertencendo a Navarre e


Robert, cujo combate se verificou várias horas antes do de Garros.

145
N o tem po das carabinas

O que mudou é que Garros acaba de regressar à arena com um


dispositivo novo, uma invenção que é preciso esconder do inimigo
o maior tempo possível. Foi a bordo de um aparelho munido dêsse
sistema que êle acaba de alcançar a sua vitória. Tão fàcilmente, acres­
centa-se, que o caminho a seguir na construção de aviões de caça está
doravante traçado.
Todos se recordam, com efeito, que Garros, no fim do outono,
deixou a M. S. 23 sob o comando do capitão Vergnette, para ir tra­
balhar na retaguarda. Espírito metódico, convencera-se de que para
travar luta com um avião inimigo em boas condições, era necessário
não só dispor de uma importante vantagem de velocidade, mas so­
bretudo poder atirar pela frente.
No estado atual da construção aeronáutica, só o avião de um
lugar, com a sua hélice trativa, era capaz de garantir essa superiori­
dade de rapidez. Porém, grande obstáculo, a hélice pelo fato de
estar colocada na frente, não permitia ao piloto atirar para diante de
si. As balas arriscavam a todo o instante atingir as pás e quebrá-las.
Pelo contrário, a hélice propulsiva (colocada na retaguarda, como nos
Farman e nos Voisins) facultava pela frente um campo de tiro com­
pletamente livre, mas, inconveniente mais sério ainda que o anterior,
o rendimento do motor era tão gravemente afetado que se lhe seguia
uma queda de velocidade anulando qualquer esperança de alcançar
os aviões inimigos.
A solução, segundo Garros, estava no avião de um lugar com
hélice trativa, munido de dispositivo que lhe permitisse atirar pela
frente, isto é no campo varrido pela hélice.
Autorizado por um comando compreensivo a retirar-se por
tempo indeterminado e acolhido nas suas usinas pelos irmãos Robert
e Léon Morane dos quais era amigo, Garros entregara-se ao trabalho
juntamente com êles.
Sabia muito bem o que queria. Lembrava-se dos tempos antigos:
no inverno de 1913, Saulnier, verdadeiro precursor na matéria (muito
antes de Alkan), tivera a idéia de procurar sincronizar o movimento
do pistão de uma metralhadora com a rotação da árvore de um
motor de avião.
Nessa época, Robert e Léon Morane tinham-se vivamente inte­
ressado pelo projeto, e conseguiram realizá-lo sumàriamente. Em
abril de 1914, um protótipo mais ou menos concluído por Saulnier,
com o auxílio de uma metralhadora emprestada pelo exército, foi

146
O misterioso “M orane” de Roland Garros

apresentado ao general Bernard, diretor da Aeronáutica no Minis­


tério da Guerra. Êste não deu a menor importância à invenção no
entanto genial, pelo motivo inesperado de achar que “os aviões
não precisavam de armas, desde que se destinavam simplesmente a
substituir os balões cativos, muito difíceis de movimentar no chão
por causa das linhas telegráficas e telefônicas”.
Desanimados, os irmãos Morane abandonaram momentânea­
mente os estudos e a metralhadora foi devolvida ao Exército. Três
meses depois estalava a guerra.
Nos começos de outubro, Garros convencido pela experiência
adquirida no curso da campanha de que os aviões teriam de lutar
entre si, foi para as usinas Morane com a intenção de reviver o pro­
jeto de Saulnier tão desastradamente abandonado.
Mas êle tinha pressa. Uma vez que o sistema de sincronização
demandava muito tempo para ser resolvido, precisava orientar-se para
uma solução mista, mais rápida. Assim nasceu a idéia da blindagem
da hélice. Bastaria fixar, nas pás, prismas de aço com a parte supe­
rior voltada para o orifício do cano da metralhadora. Assim, as
balas que esbarrassem nas pás seriam desviadas pelos prismas e orien­
tadas violentamente para fora, para a esquerda ou para a direita,
seguindo os sulcos abertos nas suas faces. Experimentado, o sistema
revelou-se eficaz, protegia a hélice, mas tinha o inconveniente de
incrustar na madeira das pás o pêso de mais de um quilo, longe do
cubo. A fôrça centrífuga intervindo, a hélice trabalhava mal. O
rendimento do motor diminuia e a velocidade caía de vários quilô­
metros. Contudo a excedente ainda permitia alcançar os aviões
inimigos avistados a distância média.
No comêço da primavera a invenção parecera concluída, e Ro­
land Garros experimentou-a em Villacoublay, no chão contra um
alvo, depois em vôo. Nem uma só vez as pás da hélice foram dani­
ficadas, e os alvos, como estava previsto, foram atingidos por uma
percentagem muito elevada de projéteis.
O dispositivo foi montado no Monocoque Morane. Monoplano
como o Parasol, suas asas em vez de soerguidas em relação à fuse­
lagem, eram presas a meia altura da carlinga, fazendo com que o
busto do piloto emergisse acima do seu plano. Embora mais po­
tente e mais fino, lembrava entretanto o Morane Saulnier 60 cv.
Gnôme, com o qual, trinta meses antes, em setembro de 1913, Garros
realizara a travessia histórica do Mediterrâneo. A confiança do
grande piloto fôra adquirida desde muito tempo na construção do

147
N o tem po das carabinas

Morane-Saulnier, cujas qualidades pusera à prova em muitas ocasiões.


O que o não impedia de discutir firmemente cos os Irmãos Morane
e ainda mais amiúde com o engenheiro Saulnier. Dessas discussões
penetradas de admiração recíproca, nascera a luz.
Uma curiosíssima carta da época que ficou inédita, dirigida
por Roland Garros ao seu amigo Jacques Quellennec, mostra quanto
eram grandes sua inteligência crítica e sua ciência de piloto. Ela nos
reintroduz, por outro lado, num remoto passado de quarenta anos.
É saboroso, num tempo em que os carros de turismo alcançam na
estrada 150 quilômetros à hora, constatar que o fato de ser atingida
por um avião a velocidade de 127 quilômetros por hora causava
um deslumbramento, a que se misturava temor respeitoso, mesmo
aos mais avisados espíritos esportivos. Quando lhe escreveu essa
carta, Garros conseguira que Jacques Quellennec fôsse admitido na
aviação, mobilizado como oficial de infantaria, e que acabava de
ser gloriosamente ferido. Quellennec está numa escola de pilotagem,
treinando num Morane-Parasol, no momento em que lhe chegam
estas linhas:
“Caro amigo:
“Recebi esta manhã a tua carta, com as soberbas fotografias, e
de cujos dizeres me inteirei. Gosto de saber que vais indo bem: eu
tinha a certeza de que “pontificarias” com autoridade. Em princípio
continuo adversário dos indicadores de velocidade. Mas não ponho
nisso qualquer obstinação e è possível que êles prestem serviços aos
principiantes e em aparelhos lentos e inertes. A tua concepção dos
ensinamentos a reter do vôo ralenti è bastante exata: nunca irás
longe demais nesse caminho, desde que não percas de vista os perigos
do solo. Mas a 400 metros não só é excelente aprender a voar e a
evoluir em ralenti, como até mesmo se torna indispensável saber
perder completamente e recuperar a velocidade, sem temor, sem
gestos bruscos e à vontade. Vai muito progressivamente: não te
deixes nunca dominar pela apreensão. Consegue cabrar até à parada
do aparelho e deixa andar: verás como êle se reergue, e é assim que
melhor poderás aprender a voar macio, para o que é preciso tender.
Não te esqueças nunca o meu primeiro conselho de ser sóbrio de
gestos: isso não significa de modo algum abandonar o aparelho a si
mesmo; há combinações de pequenos movimentos que resultam
melhor do que os grandes, desordenados; são necessários senso de
oportunidade, precisão e sobriedade.

148
O misterioso “M orane” de Roland Garros

“Tudo isto virá naturalmente, se continuares a interessar-te.


Por agora só uma coisa importa: ser prudente ao pé do chão. Nada
de viragens em vôo planado a menos de duzentos metros. A ater­
ragem a partir de cem metros cumpre ser feita com vento pela proa
e na frente do campo. À partida, não virar antes de estar a mais
de 100 metros de altura. Ainda que o motor afogue. Neste caso
é preferível rebentar o aparelho num mau campo, com vento pela
proa, do que tentar voltar ao aeródromo. Quanto mais o motor
se comporta mal, mais perigosa é a viragem junto ao solo. Não
acredites nos inconscientes ou nos espertalhões que te dirão ou
tentarão provar-te o contrário. Eis aqui, por hoje, uma dose sufi­
ciente de conselhos maçantes.
“Pedes-me argumentos para responder aos detratores do Parasol.
Pouco há que responder-lhes. O aparelho impõe-se, neste momento,
mais do que nunca pelos seus resultados. Não é possível substitui-lo.
O entusiasmo passageiro por certo novo avião, que voava há dois
anos sob o pseudônimo de Sopwith, não resistiu a algumas questões
bem propostas, como havíamos previsto. O aparelho, muito bri­
lhante no chão, declarou-se incapaz de fazer a guerra a 2.000 c
mesmo 2.500 metros como avião de dois lugares.
“Por agora, poder-se-ia fàcilmente aperfeiçoar o Parasol, mas
nunca pensar em substitui-lo. A verdade é que, tal como é, reclama
ser bem pilotado por duas razões muito simples: uma fatal; êle faz
127 quilômetros por hora e é impossível, mesmo sem utilizar essa
velocidade (de que também é necessário saber servir-se), é impos­
sível beneficiar dessa superioridade sem a pagar com riscos. Qualquer
meio de locomoção atingindo 125 quilômetros horários será sempre
perigoso em mãos inábeis. A outra razão está em que a empenagem
insuficiente; há seis meses que o clamo e que Saulnier, aferrado
às suas idéias, recusa admiti-lo. Em conseqüência, os ailerons do
estabilizador comandam bem e até com energia (pois não há plano
fixo) à velocidade normal, mas quando a velocidade se perde a sua
ação torna-se insuficiente para assegurar à empenagem a atuação dese­
jada. Apenas. É um nada, mas quando compreendido bastam pre­
cauções elementares para evitar os inconvenientes. Mas quem se
dá ao trabalho de compreender? Guarda para ti. As explicações
são inúteis.
A braços.
Roland Garros.”

149
N o tem po das carabinas

Como se vê por esta carta, Garros conhecia a fundo o Morane-


ParasoL Tinha contribuído muito, juntamente com Robert Morane
Tabuteau (monitor de M. S. no Bourget) para restabelecer nos
espíritos a fama do Parasol, tão lamentàvelmente prejudicada pelo
impressionante desastre de um piloto chamado Delaplane.
Delaplane, levando a bordo um oficial, espatifara-se no chão em
seguida a um terrível parafuso, por cima dos galpões de Villacoublay.
Ninguém sabia então o que era um parafuso, nem como um avião
entrava nêle ou dêle podia sair. A opinião geral garantia que era
mortal e sem remédio. Todos os pilotos viviam aterrados com êle.
Sabia-se apenas — perigosa reputação, — que o Parasol tinha
uma propensão indiscutível para entrar em parafuso. Suas asas,
não munidas de ailerons, “empenavam”, isto é, as pontas das asas
deformavam-se por torsão dos cabos dos comandos, sôbre os quais
agia o piloto quando queria que o avião se inclinasse de lado, para
facilitar as viragens.
Se a manobra era incorreta, sucedia que as duas pontas das asas
assumiam no mesmo instante incidências contrárias. O velame
ficava então deformado a modo de uma verdadeira hélice cuja torsão,
muito larga, não era perceptível a olhos pouco experientes. Ainda
que o piloto ensaiasse nesse instante a perda de velocidade, o apa­
relho afocinhava por si mesmo, sem avisar, tomava a posição vertical
e descia a tôda a velocidade para o chão, girando sôbre o seu eixo,
como uma hélice em tômo do cubo. Aparafusava-se literalmente
no ar. Era o fim sem comentários. O esfacelamento de Delaplane e
do seu passageiro fôra a convincente prova disso.
Cumpria encarar o problema de frente e encontrar-lhe uma
solução. Muito corajosamente, Robert Morane em pessoa, Tabuteau
e Garros subiram ao ar, cada qual no seu Parasol, e entraram volun­
tariamente em parafuso. Pilotos serenos e refletidos, haviam conside­
rado de antemão e discutido entre si as manobras a realizar. “No
papel” os dados do problema surgiam claramente, e também a so­
lução: contrariar os comandos e provocar a perda de velocidade para
entrar em parafuso; trazer de novo tudo ao meio e empurrar o man­
che até ao fundo para sair dêle. Era seguro, era fascinante ! Restava
fazer a demonstração na prática. Todos três a fizeram. O parafuso
deixou de ser um pavor e não demorou a tornar-se uma figura clás­
sica da acrobacia de caça.
Os laços que prendiam Garros à firma Morane estreitaram-se
ainda mais e era natural que Robert e Léon Morane e o engenheiro

150
wmwM

O comandante De Rose, nos comandos do seu N ieu p o rt 13 metros a cujo bordo


encontrará morte gloriosa algumas horas depois.

O capitão Chambe diante do seu avião de caça, atirando por cima da hélice
(inverno de 1916).
G uynem er (e n tã o sa r­
g en to ) no d ia s e g u in te
ao da su a p r im e ir a v i­
t ó r ia , c o m s e u m e c â n i c o
G u erder, em ju lh o de
1915.

O Morane-Parasol de
Guynemer, no qual êle
mandou instalar uma
metralhadora Lewis ati­
rando por cima da hé­
lice. A metralhadora
começa já a substituir a
carabina, que ainda se
vê de pé, no habitáculo
do passageiro.
O misterioso “M orane” de Roland Garros

Saulnier colocassem todos os meios de que dispunham às ordens dêle,


para o ajudar a realizar o seu sistema de tiro através da hélice. Êsses
esforços conjugados iam profuzir os seus frutos.
*

A 10 de março de 1915, Garros voltou ao campo da esquadrilha


M. S. 23, onde o capitão de Vergnette e o seu querido amigo Gilbert
o esperavam com tanta impaciência quanta curiosidade. Sempre ar­
mados dos seus mosquetões de cavalaria que tão bem lhes serviam,
mostraram-se senão céticos, pelo menos um pouco reservados diante
do engenho que acabava de aterrar e de rolar até aos hangars.
Os ociosos que sempre vagueiam à beira dos campos de aviação,
oficiais ou soldados procedentes dos acantonamentos de repouso pró­
ximos, bem como os civis, foram cautelosamente mantidos a distância,
mas com cuidado para não despertar curiosidade. O Monocoque-
Morane foi metido num galpão onde seria escrupulosamente vigiado.
Que maravilha era essa ? Vergnette, Gilbert e os demais pilotos,
bem como os observadores, examinaram-na circunstanciadamente,
subindo a bordo, e ouvindo as explicações sôbre o mecanismo exta­
siavam-se por amabilidade. Mas Garros percebia sob os cumpri­
mentos as dúvidas de que êles não conseguiam libertar-se. Então
êle vai combater sozinho, pilotar e atirar ao mesmo tempo ? Sem
levar passageiro ?. .. Como lhe será possível apontar a metralhadora
com suficiente precisão, uma vez que, sendo ela fixa e participando
do corpo do aparelho, é o próprio avião que terá de ser apontado a
golpes de pedal e de manche ? Pode-se razoàvelmente esperar, com
semelhante massa e sem contar os redemoinhos, alcançar minúcia
bastante para conseguir uma boa pontaria ? Como é que um
piloto, já de si tão absorvido pela manobra, pode ainda pretender
realizar corretamente aquilo que o passageiro tem tanta dificuldade
em desempenhar bem? Tratava-se de um método revolucionário
que só poderia conduzir a uma perigosa aproximação.
À mesa as explicações são mais amplas entre camaradas, diz-se
francamente o que se pensa, desabafa-se. Exprimem-se dúvidas,
formulam-se objeções. E estas surgiram numerosas no restaurante da
M. S. 23, quase unânimes. Garros sorria. Êle já esperava: se os
construtores se tinham deixado convencer e estavam prontos a enve­
redar pelo novo caminho, os aviadores ainda não estavam familiari­
zados com a idéia nova, sobretudo os temíveis observadores, todos

151
N o tem po das carabinas

oficiais aos quais se deve respeito na discussão, mas tão cabeçudos, tão
apegados às suas velhas carabinas, tão orgulhosos de poder, a trinta
passos, cortar uma moeda com uma bala. Ah ! nada é mais difícil
do que desalojar alguém dos seus hábitos, atacar uma fortaleza tão
solidamente construída. Garros não podia dizer-lhes isso, mas êles
já eram tão antiquados como os seus mosquetões, e não tardariam a
ser completamente inúteis ! O sistema de Saulnier é o dobre de
finados dos passageiros em vôo de caça, o dobre de finados das
carabinas. O caçador será único a bordo.
Mas para quê gastar palavras inúteis ? As palavras não con­
vencem ninguém. Como no caso do parafuso, só a demonstração seria
concludente. Precisa ser feita e Garros a fará. Sem demora !
Sem demora, não, propriamente. A sorte recusa intervir. Como
no caso da M. S. 12, a caça é rara no sector da M. S. 23, tão rara
que vão decorrer dias e dias antes que Garros encontre o menor
Aviatik. E contudo êle voa sem descanço, fica no ar durante horas,
tanto aquém como além das nossas linhas. Esperanças sempre
malogradas. Varia ao infinito as suas horas de saída, mas estas
nunca coincidem com as do inimigo. Garros irrita-se, e para iludir
a sua impaciência volta aos antigos amores. Sempre teve uma predi­
leção especial pelo bombardeio a baixa altitude. O reconhecimento
tem qualquer coisa de passivo, de platônico, que o não satisfaz por
completo. Êle possui um temperamento ofensivo. Gosta de dar
pancada no inimigo. Largar um obus em cima de determinado
objetivo e vê-lo rebentar no ponto desejado causa-lhe uma satisfação
de que êle nunca se farta. Conseguiu meter a bordo, embora o seu
avião seja apenas de um lugar, vários obuses de 90 com empenagem,
e embora continuando a vigiar o céu e mantendo-se pronto a encetar
instantâneamente a caça no caso de um encontro, diverte-se a bom­
bardear aqui e além. Penetra profundamente dentro do território
inimigo, vai largar os seus projéteis em pontos fáceis de atingir, em
geral estações como as de Thielt, de Thourout e mesmo a de Bruges,
apesar da distância. De regresso, com o aparelho aliviado, dá-se ao
gôsto de descer a baixa altitude e de verificar o funcionamento
da sua metralhadora “atirando ao alvo” sôbre os elementos das
tropas alemãs que avista nas estradas. Assim se torna um pre­
cursor não apenas da verdadeira caça, a que vai ser praticada em
avião de um lugar desde a primeira guerra mundial, mas também
do starfing, do ataque ao solo, que se praticará no decorrer da
segunda guerra mundial com os caças-bombardeiros.

152
O misterioso “M orane” de Roland Garros

Nenhum avião alemão lhe cai sob as garras ! Apenas uma opor­
tunidade perdida outro dia, na região de Furnes. Por um azar
inconcebível, quando conseguiu avistar e aproximar-se de um
Aviatik bem gordo e bem tranqüilo que perlongava as trincheiras,
a sua metralhadora encravou — coisa que nunca lhe sucedera. A tri­
pulação do outro aparelho, tendo-o notado, deu imediatamente
meia volta e picou para as suas linhas.
Hoje, l.° de abril, Garros saiu para bombardear a estação de
Bruges. Leva consigo 95 quilos de obuses com empenagem. Vai, como
sempre, sozinho a bordo do seu monocoque. O céu está perfeita-
mente claro e sereno, tão sereno como em Champagne onde Navarre
e Robert acabavam de abater, nesse mesmo instante, o seu Aviatik.
Garros ignora-o. Só irá sabê-lo no dia seguinte.
Quando tinha penetrado cêrca de dez quilômetros sôbre o terri­
tório ocupado, Garros descobre subitamente no céu, na retaguarda
e à esquerda, uma girândola de schrapnells que rebentam a 2.500
metros (500 metros acima dêle), na vertical da frente francesa.
Não pode haver dúvida, trata-se de um aparelho alemão sôbre o
qual atira a nossa artilharia. Meia volta ! O bombardeio da esta­
ção de Bruges fica para mais tarde. Em primeiro lugar, a caça !
Garros manobra para interceptar o adversário, ou seja para se
interpor entre êle e a frente. Não tarda a avistá-lo, mancha escura
deslizando no ar límpido. Está com efeito bem mais alto do que
êle. Os obuses que o acompanham na corrida não mentem. A alça
é boa, os artilheiros disparam à altitude exata: 1.800 metros. É
necessário subir.
Decorrem dez minutos. O Monocoque é mantido em boa posição
e aproximou-se sensivelmente. Trata-se de um Albatroz, ostentando
numerosas cruzes negras. Garros fêz a sua aprendizagem no escritório
da esquadrilha, estudou cuidadosamente as silhuetas de aviões ale­
mães. Identifica logo a prêsa: um Albatroz, sem a menor dúvida.
Portanto, passageiro à frente, piloto atrás. Metralhadora provável,
talvez mesmo em torrinha, mas campo de tiro limitado, observador
embaraçado na frente pela hélice, e atrás pelo piloto. Em conse-
qüência, tratar de colocar-se de modo a alvejá-lo exatamente na mesma
altura. Será o melhor.
Mas não é fácil. A tripulação inimiga está vigilante. Avista
Garros e manobra imediatamente para lhe escapar. Fiel à regra
geral, esforça-se por evitar o combate e procura alcançar as suas

155
N o tem po das carab in as

linhas. A batería francesa não parece compreender a situação, con­


tinua a gastar os seus projéteis com prodigalidade, arriscando atingir
tanto o Morane como o Albatroz. Sem dúvida os artilheiros rego­
zijam-se por aquela oportunidade de treinar o tiro aéreo sôbre um
alvo real. É uma ocasião rara que não deve ser desperdiçada. Êles
ainda não perceberam que outro avião acaba de surgir no céu.
Os flocos de algodão dos obuses estorcem-se alegremente nas pro­
ximidades dos dois aparelhos. Felizmente bastante longe para ser
perigosos. Enfim, aquela brincadeira irritante deixa de divertir
a bateria. Talvez o observatório tenha logrado distinguir as insíg­
nias. A altura não é tão grande, 1.800 metros; não deve ser difícil
ver, mesmo com binóculo comum.
A tripulação inimiga não tem sorte. Deparou com um temível
adversário. Suas manobras desordenadas não evitam que ela se veja
logo apanhada por trás. Vespa ameaçadora, o pequeno avião francês,
tremendamente maneável, aproxima-se a tôda a velocidade e instala-se
nas suas costas. Impossível livrar-se dêle ! O passageiro alemão, o
leutnant Grosskopf, destemido e calmo, voltou-se para a retaguarda,
com a mão na coronha da sua carabina — porque dispõe apenas de
uma carabina. Mas de repente atrapalha-se, não lhe é possível
atirar ! Nem sequer vê o maldito francês, todavia tão perto ! Êste
colocou-se à empenagem do Albatroz, e a cabeça do piloto, o gefreiter
Spachholz, impede-o de o avistar. A coisa vai mal ! Se Sjiachholz não
consegue libertar-se daquela ventosa, daquele visco, serão abatidos !
Ah ! pelo espaço de um relâmpago Grosskopf pôde entrever,
bem próxima, a uns trinta metros, a venenosa môsca com seus élitros
escuros, a grossa cabeça redonda onde espreita o dardo brilhante,
prestes a picar ! (1) Como é impressionante ! Tem lúnulas trico­
lores nas asas, semelhantes a dois olhos azuis injetados de sangue,
que nos fitam ! Grosskopf disparou dois tiros de carabina para o
ar, ao acaso. Sempre é melhor que nada ! A môsca desapareceu. Se
isso lograsse afugentá-la !
Mas não, que esperança, ei-la outra vez zumbindo ! Volta, tei­
mosa como uma vespa. E é com efeito uma vespa perigosa e mortal.
Obedece às ordens de Garros, o maior piloto francês, o mais teme-

(I) A capota do Monocoque Morane é circular e quase inteiramente fechada.


Termina à frente por um cône brilhante solidário com o cubo da hélice e girando com
ela, facilitando a penetração do ar. Êste cône metálico denomina-se familiarmente ‘a
caçarola’.

154
O misterioso “M orane” de Roland Garros

rário, vencedor do Mediterrâneo que os aviadores de todo o mundo


aplaudiram há dois anos — incluídos Grosskopf e Spachholz. E é
por êle que vão ser derrubados. Coisas do Destino.. .
Mas Grosskopf e Spachholz não saberão jamais a honra que
tiveram, como a soube o tenente Keller, abatido por Gilbert.
Garros acaba de abrir fogo, e desta vez a sua metralhadora não
encravou. À pressão da sua mão respondeu o tremor da curta faixa
metálica do carregador. Ela obedeceu imediatamente, despedindo,
cuspinhando os seus vinte e cinco cartuchos luzentes. Garros viu
passar à altura das suas fontes as cápsulas vazias repelidas pelo tur­
bilhão da hélice. Está exatamente atrás do Albatroz, não precisa fazer
nenhuma correção. São as condições ideais, que só um aparelho
de um lugar atirando para a frente se pode permitir. Foi êle, Garros,
o inventor dêsse armamento, seu peito incha-se de satisfação ao
constatar que tudo funciona do melhor modo possível.
Nenhuma bala se perde. Tôdas se colocam sucessivamente na
massa branca e prêta do avião inimigo, o qual, visto dêsse ângulo, dir-
se-ia uma espécie de grande veleiro imóvel, inerte, na água verde-azu-
lada do véu. É impossível que êle não mergulhe logo nas profun­
dezas do abismo. Deve estar crivado de burados. A morte destrói-o.
O piloto alemão decide-se. Uma profunda guinada em piqué.
Garros segue-o. Substituiu o carregador vazio por outro cheio. Com
o seu dispositivo não há nada mais simples. Basta-lhe uma das mãos.
Não lhe é exigido nenhum esforço. Em dez segundos está feita a
mudança. Se êle tivesse dado ouvidos a certas sugestões, estaria uti­
lizando fitas flexíveis de tela de cem ou cento e cinqüenta cartuchos.
Com as correntes de ar que lhe varrem a cabina, isso se tornaria
impossível. Acarretaria inúmeros inconvenientes !
Garros não tem mais tempo para continuar refletindo. Apenas
começou a queimar o terceiro carregador, vê o Albatroz inclinar-se
sôbre uma das asas ferido de morte, ao mesmo tempo que uma laba­
reda de vinte metros jorra dêle e o envolve qual cabeleira ofuscante.
No instante supremo em que ia incendiar-se, o observador, à ma­
neira de um derradeiro adeus, disparou ainda três tiros de carabina.
Os últimos.
Agora, acabou-se. O Albatroz desce para a eternidade. Garros
debruça-se, com a face encostada ao rebordo do habitáculo. Saúda
mentalmente os valorosos adversários. Êle, piloto do fundo do
coração, admirador de tudo o que voa, de tudo o que luta por fugir
à atração da terra, para enfrentar as íôrças cegas da Natureza, êle

155
N o tem po das carabinas

que no domínio do ar jamais conheceu inimigos, mas apenas con­


correntes, camaradas e amigos, tem hoje de derrubar aviadores, de
quebrar asas.. .
Horrorizado conta os segundos, os terríveis segundos que vão
decorrer até ao desenlace do medonho pesadelo. Tocha viva,
arrastando atrás de si uma faixa de fumaça negra, salpicada de fagu-
lhas vermelhas, o Albatroz não acaba mais de morrer. . .
Enfim ! Um clarão estonteante, um ressaltar de partículas de
ouro como as de um fogo de artifício, uma fogueira que se alastra
em torrentes de lume: o avião alemão, ao vigésimo quinto segundo
choca-se com a terra.
Garros, em circunferências lentas, desce para aterrissar.
*

O que sentiu o grande piloto, sabemo-lo pela sua correspon­


dência.
Dois dias depois, a 3 de abril, escreveu a Jean Ajalbert a carta
seguinte:
“Linhas de frente, 3 de abril de 1913.
“Velho amigo:
“Como você deve saber, tive finalmente um. Pressinto-o curioso
de receber alguns pormenores e vou oferecer-lhos em poucas palavras.
Saí sozinho, com 93 quilos de obuses para os lançar numa estação
teutônica. Ao chegar (à partida) a 10 quilômetros das nossas linhas,
avistei muito longe e muito por cima de mim (300 metros acima)
um aparelho sôbre o qual atiravam as nossas baterias. Manobrei
para lhe cortar a retirada, esforçando-me por ganhar a altura que
me faltava. Durou isto de 6 a 8 minutos. Alcançada a altura
suficiente, aproximei-me. As baterias davam em cima de nós, aos
montes. Abri fogo a 30 metros, o teuto respondeu a tiros de espin­
garda. Carreguei a minha metralhadora três vêzes. Depois de algumas
balas o inimigo fugiu em desordem, descendo a tôda velocidade. Não
lhe dei folga de um metro. O combate durou 10 minutos e acabou a
1.000 metros de altura: crivado com um passador o Albatroz pegou
fogo, bruscamente uma enorme labareda o envolveu e êle caiu em
turbilhão. É trágico, é medonho ! Ao fim de vinte e cinco segundos
de queda (que me pareceram intermináveis), o aparelho espatifou-
se no chão entre ondas de fumaça. Fui de automóvel ver os des­

136
O misterioso “M orane” de Roland Garros

troços: os primeiros a chegar tinham deitado a mão a todos os


objetos, armas, insignias, etc. . . Tive um trabalho enorme para as
recuperar. Os dois cadáveres ficaram em estado horrível: nus e
cobertos de sangue! O passageiro tinha uma bala na cabeça. Não
examinaram o piloto, que estava excessivamente mutilado. Os restos
do aparelho mostravam furos de balas por tôda a parte. O combate
desenrolou-se por cima das trincheiras, e as tropas puderam seguir-
lhe todas as fases numa distância de vários quilômetros. Parece até
que os alemães chegaram a sair dos seus buracos para ver melhor,
o que permitiu aos nossos derrubar alguns.
“Inútil dizer-lhe a minha satisfação por um êxito tão completo,
apesar de certo enjôo do espetáculo. Há exatamente cinco aviões,
oficialmente e reconhecidamente derrubados pelos nossos, desde o
comêço da guerra. Trata-se, portanto, de uma coisa bastante rara.
Eu fui o único a lutar sem passageiro. Mas o que especialmente me
enche de contentamento, é a sensação de haver criado sozinho e mal­
grado todos os motivos de desânimo que você conhece, e com os pe­
rigos do inédito em aviação, o instrumento que me levou ao sucesso.
Nisto reside sobretudo a minha alegria. Exceptuada a ocasião que me
escapou em Fumes, foi êste o único avião que encontrei sôbre as
nossas linhas. Êles são muito raros.
Garros”.

Dois dias depois tornou a escrever, desta vez não a Jacques


Quellennec mas a seu irmão Frédéric:
“Linhas de frente, 5 de abril de 1915.
“Meu caro Fred:
“Tenho-me esquecido um pouco de ti, mas andava pre­
ocupado e de mau humor. Depois de terminar com muita dificuldade
o aparelho que te descreví (x), contra a indiferença e a hostilidade
gerais, fiquei aqui para o experimentar. Primeiro deixei escapar uma
oportunidade esplêndida, e depois não havia meio de encontrar outra:
nada de taubes no céu. Neste meio tempo o nosso galpão desabou
e o meu aparelho ficou em pedaços. Tornei a fazer outro clandes­
tinamente e fiquei à espera: nada, nada ! Andava desanimado, e à
falta de coisa melhor fazia reconhecimentos tediosos, ou bombar-1
(1) Trata-se de um sistema de tiro de metralhadora através da hélice.

157
N o tem po das carabinas

deios, quando enfim há cinco dias, a l.° de abril, avistei um: larguei
a correr e alcancei-o a cerca de 15 quilômetros das nossas linhas e a
1.800 metros de altitude. Fui-lhe em cima, e a uns trinta metros
despejei-lhe na nuca uma série de ameixas tipo D. Sem hesitar
ele meteu a proa às ilhas, desfraldou tôdas as velas e rompeu em zigue-
zagues enquanto o seu passageiro me alvejava com um bacamarte.
Cuspi-lhe sucessivamente três carregadores de vinte e cinco balas. Êle
pegou fogo: não estava a mais de 1.000 metros mas achava-se ainda
bem alto. Vi-o revolutear durante vinte segundos, e depois espatifar-
se. Ã tarde fomos de altomóvel ao lugar do acidente: restavam apenas
migalhas do aparelho, e a tripulação morta mas não carbonizada.
Estava tudo crivado de balas. Tirei algumas fotografias que te
enviarei. A partir desse dia começou a chover, ninguém voa e eu
acho-me um pouco mais calmo. Gostaria de repetir a proeza, mas os
taubes são de uma raridade desanimadora. Manda-me notícias. Estou
chocando a idéia de um novo aparelho, de que te falarei quando ela
estiver um pouco mais amadurecida.
“Até quando, meu velho ?
Roland Garros”.

Alguns dias mais tarde, a 16 de abril, em nova carta dirigida


a Jacques Quellennec, Roland Garros volta ainda ao combate.
Sente-se obcecado pela visão terrível daquele adversário derru­
bado pelas suas balas, indo espedaçar-se no chão, em labaredas:
“Temos agora — escreve êle, — uma vida muito movimentada.
Levaria muito tempo a contar-te tudo, mas vou fazendo uma espécie
de registro que talvez depois venha a ser interessante.
“Contei-tebrincando, o êxito do meu primeiro combate: mas a
coisa era trágica demais e não se prestava a gracejos. Foi horrível
e fiquei embrutecido por algum tempo. Foi nesse período de estu­
pidez que te escrevi facécias de mau gosto, para reagir contra o meu
próprio estado de ânimo.
“Escreve de vez em quando e não te deixes abater.
“De todo o coração,
Garros”.
O misterioso “M orane” de Roland Garros

Roland Garros possuía, como se vê pela sua correspondência,


uma alma de cavaleiro. Como a maioria dos grandes pilotos da
época heróica, de 1908 a 1914, estava animado dos mais nobres
sentimentos.
Do mesmo modo que Gilbert, Pégoud, Brindejonc-des-Mouli-
nais, Védrines e muitos outros, era daqueles que detestam servir-se
da fama para se impor na retaguarda, coisa que lhes seria
muito fácil. Tinham melhor opinião de si mesmos.
Desde o momento em que a França estava em guerra e necessi­
tava de uma aviação na luta, êles estariam desde logo na primeira
fila.
Neste l.° de abril de 1915, Garros que conquista a sua primeira
vitória e se compadece do destino dos adversários, traz já na fronte
a mesma estréia que êles. Como Gilbert, Pégoud, Brindejonc-des-
Moulinais e Védrines. . . Nenhum dêles nasceu para morrer na
cama.
Garros travará ainda, sucessivamente, dois combates vitoriosos,
o primeiro a 13 de abril, atacando dois Aviatik de uma só vez por
cima das trincheiras inglêsas. Um descerá, desamparado, poucas cen­
tenas de metros para dentro das suas linhas. Numerosas testemunhas
o presenciaram e fizeram homologar.
O segundo combate terá lugar pouco depois, a 18 de abril. Um
Albatroz foi provàvelmente abatido na região de Langemark. Mas
no dia seguinte, 19, uma panne de motor obrigará Garros a pousar
nas linhas alemãs, muito próximo de tropas em armas. Não terá
tempo de fugir, nem sequer de incendiar o seu avião, portador do
dispositivo secreto de tiro através da hélice. São ambos capturados, o
que constitui uma prêsa de primeira ordem para o inimigo.
Mas não há prisão bastante fechada para impedir um Garros de
abrir de novo as asas. Três anos mais tarde (três anos...) , depois
de várias tentativas Garros consegue enfim evadir-se. Evasão estron­
dosa, que provocou furor em Berlim e entusiasmo em Paris.
Êle regressa à França e quer tomar imediatamente o seu lugar
na batalha. Em vão procuram dissuadi-lo, convencê-lo a aceitar um
posto na retaguarda. Receia-se que, se cair de novo prisioneiro, de
armas na mão, seja fusilado. Garros sorri com desdém. Que menta­
lidade é a dessa gente que o compreende tão mal ? Êle não voltou
para se pôr em segurança, mas para se vingar do cativeiro, para
enfrentar os seus carcereiros ! Que lhe importam os riscos ?

159
N o tem po das carabines

Mas o tempo caminhara, e a aviação mais depressa ainda que


êle. Tudo mudou. Roland Garros tem de se pôr ao corrente dêsse
avanço. Já não é a 127 quilômetros por hora que voam os aviões,
com o Spad ultrapassando os 230. Já não é com uma metralhadora
única, senão com duas geminadas, sincronizadas com a árvore-motor,
que atiram os aparelhos de caça. A invenção de Saulnier foi apro­
veitada, aperfeiçoada. De ambos os lados das linhas se defrontam
agora centenas de aviões combatendo em esquadrilhas inteiras.
Tudo isso êle precisa aprender.
Um mês de treino intensivo e Garros volta ao front num Spad.
Quis continuar caçador. De repente foi a grande sensação: em poucos
dias três combates, três vitórias. Quando vai arrebatar a quarta, a
5 de outubro de 1918, uma rajada recebida à queima-roupa imobi­
liza-lhe para sempre as asas.
E todavia, a guerra ia acabar daí a poucos dias. . .

160
OS DERRADEIROS COMBATES LEAIS

I - O tenente de Bernis, m osqueteiro do ar

Os montantes vibram com êsse queixume agudo que muito justa­


mente lhes valeu o nome poético de cordas de piano. O céu claro
oscila de repente e a terra surge, distante e vaporosa, na ponta da asa.
O Parasol rompe na vertical.
Firmemente seguro pelo cotovêlo a um montante de cabana,
o segundo tenente Jacottet, sem fôlego, espia com ansiedade o vácuo.
Estavam voando tranqüilamente, numa calma de azeite, quando
de repente o aparelho, cujos flancos ostentam ao mesmo tempo o
volante meio branco meio azul da M. S. 12 e os três galões trico­
lores do chefe de esquadrilha, teve essa queda inesperada, impre­
vista. Falsa manobra ? Partida em parafuso por perda de veloci­
dade involuntária?... Não. Eis aí o recurso clássico. Inclinação
para a direita apenas. Meia volta impecável, em equilíbrio.
O braço do tenente de Bernis aponta imperiosamente para o
chão:
— Ali, ali, debaixo de nós, o boche!
Jacottet debruça-se àvidamente. Debaixo dêles, o boche? Não
é possível, Bernis está delirando ! Contudo afirma-se bem. Há
minutos e minutos que ele vem procurando por tôda a parte, em
cima, em baixo, a estibordo, a bombordo. E nada, sempre nada !
Aliás a artilharia mantém-se silenciosa, indicio seguro de que o
pássaro de cruz-de-ferro voltou ao ninho. Seria uma saída a mais
a registrar na conta das buscas inúteis. Os vôos por ordem tele­
fônica em geral tinham êsse resultado: chegava-se sempre tarde
demais. As ligações eram demasiado lentas, as paradas muito nume­
rosas entre os observatórios da frente e o campo da esquadrilha. De-
balde a tripulação de serviço se mantinha pronta, preparada, o

161
N o tem po das carabinas

Morane em posição favorável: a informação chegava quando já não


servia mais:
— “Um avião alemão surgindo carregadíssimo por cima de
Reims, e dirigindo-se para Epernay. Altitude 2.600”.
Gargalhada geral na M. S. 12. Aparelho alemão surgindo carre­
gadíssimo. Eram engraçados, êsses homens dos observatórios ! Como
se lhes pedíssemos a receita para calcular o ôlho em quintais mé­
tricos a carga de um Aviatik ! Ouvia-se cada tolice, no ofício ! ...
Mas tinha-se de partir, decolar ràpidamente a cada aviso tele­
fônico, para não melindrar ninguém, para não desanimar nenhuma
boa vontade. Tínhamos de mostrar-nos, sobrevoar o local indicado,
dar a prova de que a mensagem recebida fôra levada em conta.
Talvez a aviação de caça viesse a conseguir um dia a rêde de sina­
lizações ultra-rápidas por meio de rádio, com que sonhava e não
cessava de reclamar. Então seria possível trabalhar proveitosamente,
mas por agora era pura ilusão. O acaso continuava sendo o grande
senhor dos recontros aéreos. E o único.
Bernis e Jacottet tinham pois decolado, a rir, atrás dêsse avião
carregadíssimo anunciado pelo observatório de Cavaliers-de-Courcy.
Mais um que não seria encontrado. Mas quem sabe encontraríamos
outro em seu lugar ?. . . Convinha não ser muito exigente; devia-se
tentar sempre. O céu povoara-se lentamente. Tinha-se a impressão
de que a aviação alemã reforçava de dia para dia os seus efetivos
(como de resto a aviação francesa), mas assim mesmo era necessária
uma bela dose de sorte para cair sôbre a plumagem de um Aviatik
ou de um Albatroz. Hoje tudo se passaria como de costume, encon­
trariam o céu deserto.
Com efeito, tão depressa Bernis e Jacottet voaram para os flocos
prêtos e brancos da D.C.A. francesa, que ao longe, suspensos no
eter, sôbre tôda a extensão de Reims, pareciam as notas de uma
música celestial, cessaram os disparos. O boche evidentemente vol­
tara aos seus penates. Episódio costumeiro.
Desde então o Morane-Parasol, chegado ao seu destino, reduziu
a velocidade e em seguida iniciou a ronda, cruzando e tornando
a cruzar os céus como um bom cachorro de caça, entre Reims, Jon-
chery-sur-Vesle e a orla da floresta da Montanha de Reims. Mais
uma vez, tudo in ú til.. . Todavia Jacottet, com perfeita consciência
profissional, empenhava-se em bem cumprir as suas funções de escru-
tador. Em pura perda.
*

162
Os derradeiros combates leais

Esta manhã, a visibilidade deixa a desejar. A primavera úmida


arrasta os seus nevoeiros preguiçosos. Continuamos em abril, no dia
23. O campo ainda não perdeu o seu aspecto triste da estação fria.
Tudo nêle é côr de terras inundadas, de lavouras abandonadas, de
ervas mortas. O tabuleiro polícromo dos campos, onde dominam o
violeta carregado das lavras e o cinzento escuro dos prados, perma­
nece sob a letargia do inverno. As condições não são boas para a
observação, tanto no ar como em terra. São tudo reverberações de
água, reflexos lustrosos de parcelas úmidas, cintilações de valas e de
carreiros, faixas de nuvens brilhantes que se deslocam ao sabor das
correntes de ar. Como discernir em meio a êstes tons alvadios a pele
de víbora de um Aviatik ?
Ah ! se houvesse rádio a bordo, com as incessantes indicações
da tôrre de controle para dar a posição do adversário ! mas nesse
23 de abril de 1915, não há serviço de rádio nem tôrre de controle.
Ainda um quarto de século a esperar. Por ora, a tripulação em vôo
está isolada do resto do mundo. É surda e muda. Tem apenas os
olhos para a servir. Os do tenente de Bernis, apesar de serem de
duas tonalidades diferentes de cinza (o que lhe confere uma raça
enorme, com o rosto magro e o bigodinho de mosqueteiro) propor­
cionam-lhe uma visão excelente.
— Ali, ali, por baixo de nós, o boche !
Êle descobriu-o. Casualmente o seu olhar pousou-lhe no dorso
pintado de negro. Rastejava como uma fera dissimulada pela
vertente norte da Montanha de Reims, seguindo com atenção os seus
meandros, desde o espigão de Verzenay, por Ludes, Chigny-les-Roses,
Rilly-la-Montagne, Villers-Allerand, Sermiers e Charmery, avançando
para Leste. Mais um indecente que vem fotografar a linha de bar­
ragem onde trabalham os sapadores do V.° Exército ! Continua
avançando, meu bobo, já te viram ! Penetra um pouco mais nas
linhas ! Quanto mais fôres para Leste, melhor será o banquete que
te espera !
Eis o A lb a tro zpois é um Albatroz, cortando a estrada nacional
51 que liga do norte para o sul Reims a Epernay. Está sobrevoando
Ecueil, nome predestinado, otimamente escolhido para um elegante
naufrágio.
— Visto !
Jacottet de pé, com o cinto desafivelado, acaba de avistá-lo por
sua vez. Sua luva bateu alegremente no ombro de Bernis. A sorte
dessa vez favorece-os ! Mas porque diabo a artilharia não atirou

163
N o tem po das carabinas

contra êle, quase o deixando passar despercebido? Talvez não


haja bateria nesse sector. É já longe de Reims. Mas isso é um por­
menor sem interêsse, mais tarde se saberá.
Bernis volta-se de lado para Jacottet, interroga-o, com um movi­
mento do queixo:
— Preparado ?
O queixo de Jacottet responde com o mesmo aceno:
— Preparado.
Então vamos lá !
Uma larga virada para a esquerda, muito calma, muito tran-
qüila, em ligeiro piquê. Bernis é um dos melhores pilotos que temos
em Parasol. Conhece-lhe a fundo as possibilidades. A precisão das
suas aterragens é proverbial. Pousa juntamente as rodas e a
bèquille (1), com um centímetro de diferença, e rola apenas qua­
renta metros. Navarre não o faz melhor. Pilota com reflexão e sente
maravilhosamente o seu aparelho. Para êle não há necessidade de
velocímetro, ou de qualquer outro instrumento. Passaria entre
dois postes com o justo espaço da envergadura das suas asas.
Com o motor reduzido, o Parasol dos três galões tricolores des­
creve uma curva de absoluta pureza, que deve colocá-lo bordo a bordo
com o Albatroz, deixando-lhe a direita. Não se pode ser mais gentil.
É êle o visitante, tôdas as atenções lhe são devidas, e serão prestadas
de acordo com a categoria dos seus passageiros. Esta é elevada, pois
dois oficiais compõem a tripulação: um ober-leutnant (como sempre,
positivamente) observador, e um leutnant, piloto. A carabina de
Jacottet saberá mostrar-se digna dêles.
Nenhuma emoção no Albatroz. Talvez êle ainda não tenha
descoberto o avião francês (realmente o sol está do seu lado), ou então
não pretende fugir. Estará tão seguro da sua fôrça ? Cautela com a
metralhadora montada ! Bernis pensa nos ensinamentos das duas
vitórias da sua esquadrilha, as de l.° e 2 de abril: evitar o mais pos­
sível ao observador as correções de tiro, mas apenas na medida
em que isso não se torne uma imprudência que arrisque ser
fatal. Importa não se colocar deliberadamente no campo das armas
do inimigo. Questão de destreza e de faro.
A sombra crucial do Morane-Parasol passa sôbre os telhados
cheios de sol da povoação de Ecueil. Altitude, 2.400 metros. O relógio
de bordo marca 8,30 h. O cenário dos combates anteriores vai repe­
(1) Roda de cauda (N . T.)

164
Os derradeiros combates leais

tir-se ainda desta vez. Começa a ser um hábito na 12. Os papéis e


as mutações de cena já as tripulações os sabem de cor. São tão
constantes que todos os atores estão aptos a desempenhá-los.
8,32 h. — O Parasol coloca-se, com uma correção cheia de defe­
rência, trás e à direita do visitante — à distância de cinco corpos.
Dentro em pouco julgará da conveniência de aproximar-se mais, o
que vai depender do comportamento dêsses senhores Fritz. Ambos
são perfeitamente visíveis, piloto e observador, vestidos do mesmo
couro, entretidos nas suas pequenas ocupações. Um movimento
imperceptível do estabilizador e o Parasol ergue-se alguns degraus. O
passageiro alemão deixou de ser visível, desapareceu sob o plano su­
perior. Sempre é melhor, nunca se sabe.. .
Bernis, com aquêle sorriso irônico e silencioso tão seu, não tira
os olhos das costas do piloto, pronto a orientar os seus movimentos
pelos dêle. Com os nervos bem calmos, o coração palpitando normal­
mente, tão à vontade como no volante do seu Panhard, e sem dúvida
com o cigarro seguro mentalmente na ponta dos dedos, observa com
interêsse a estrutura, agora tão próxima, do grande avião inimigo.
Evidentemente, a célula do Albatroz tem um diedro mais pronun­
ciado que o do Aviatik. Vistos pela frente ou por detrás, podem ser
fàcilmente reconhecidos de longe. Não esquecer isso.
Mas afinal que faz Jacottet, está dormindo?. ..
Jacottet não dorme, mas conhece a peça em todos os pormenores.
Recordou-a muitas vêzes no refeitório, beberricando, com os cotovelos
na mesa. A cena capital do duo comporta uma atitude imutável:
o galã não atirará a menos de vinte e cinco metros. Nunca antes.
Ora, a distância é ainda de mais de quarenta. Nada de pressa. Com
a coronha do mosquetão no ombro, Jacottet prepara-se. Além disso
a hélice do Parasol está um pouco na frente demais, e incomoda.
Bernis devia desviar para a esquerda. Sem dúvida o fará quando se
aproximarem.. .
De repente tudo se esclarece. Os dois alemães tinham visto muito
bem o avião francês. Também êles esperavam, e foram os primeiros
a decidir-se. O Albatroz parece saltar para o céu. O observador
surge, bruscamente descoberto. Voltado para trás, dispara por cima
da cabeça do piloto. Breves clarões precipitados rompem da sua
arma. Não é uma metralhadora, senão uma carabina de repetição.
Nada de metralhadora. Tiveram topete, êstes dois alemães, em
aceitar o recontro sem procurar fugir ! Estamos 15 quilômetros para
dentro das linhas francesas. O passageiro é bom observador, muito

165
N o tem po das carabinas

senhor de si, sem dúvida duro de roer. Suas balas acertam. Pro-
duzem-se choques metálicos na proa do Morane. Bernis e Jacottet
percebem-nos claramente no carter. O motor é atingido, mas feliz­
mente agiu como um escudo, sem o que ambos teriam sido varados.
É uma sorte Bernis não ter desviado antes para a esquerda, como
Jacottet desejara.
Bernis, num reflexo, abre completamente o gás e lança-se sôbre
o Albatroz. Quer esporeá-lo ? Não há perigo: êle não é louco,
conserva todo o seu sangue frio. Com um movimento da alavanca
recupera a altura perdida e procura manter-se pela direita, a curta
distância. Jacottet disparou por fim. Um carregador inteiro, outro
logo em seguida.
Nenhuma novidade a bordo do Albatroz. Nenhuma obra viva
deve ter sido atingida, pois êle continua a manter a sua linha de
vôo. O piloto é de classe excelente: por meio de incessantes oposi-
çÕes da fuselagem, diligencia alargar a distância e permitir ao
seu passageiro o reinicio do fogo. Por um instante consegue-o. Novas
balas alcançam o Parassol, agora na fuselagem. Uma delas rasga em
tôda a sua extensão a tampa do cofre do aparelho, atrás das costas
de Jacottet; outra vara o bordo de fuga da asa direita. Porém,
mais nada. Bernis compreendeu e não tornará a permitir seme­
lhantes familiaridades. Como antes Gilbert e há pouco Pelletier-
Doisy, encurrala implacàvelmente o observador inimigo entre os
seus dois planos e interdita-lhe todo o campo de visão. Compete a
Jacottet fazer o resto, mas êle que se despache, pois já cheira a
chamusco ! São dois diabos que estão naquela caixa !
Jacottet despacha-se o mais depressa que pode. Terceiro, quarto
e quinto carregadores. Uma saraivada de projéteis cai sôbre o Alba­
troz. Milagre ! o piloto continua vivo. Jacottet sente a dificuldade
das correções de tiro, mesmo a vinte metros. Mas a tripulação alemã
dá sinais de confusão. Não adianta ter sangue frio, uma coragem ma­
gnífica: isso não impede de refletir. Serão irremediavelmente derru­
bados por aquêles dois franceses, e sem nenhuma compensação ! O
aparelho dêstes é muito mais leve, mais maneável que o pesado
Albatroz. Diante dêle só resta inclinarem-se. E é preferível fazê-lo
antes que seja tarde dem ais...
O piloto alemão larga o volante e agita ostensivamente os dois
braços no ar. Em seguida põe o Albatroz em piquê. Bernis acom­
panha-o logo. É a cena já conhecida que prossegue. Jacottet pára de
atirar, mas continua visando o adversário. Os dois aviões estão

166
Os derradeiros combates leais

bordo com bordo. Se não fôsse o barulho do motor, as duas guarni­


ções poderíam falar-se. Jacottet aponta para a cabeça do piloto,
sem descontinuar. Que tentação ! Mas essa cabeça faz desesperados
sinais negativos: não, não, não atire, não atire !
Jacottet não atira. É impossível...
Eis um novo golpe teatral, um golpe teatral nunca visto, que
até agora não fazia parte da peça e que a tripulação dêste Albatroz
acaba de introduzir: o piloto para dar boa prova das suas intenções
pacíficas, recebe por cima do pára-brisas, das mãos do passageiro, a
carabina de repetição, agita-a um momento no ar, bem alto, e joga-a
no abismo. Está claro ?
*

O resto do melodrama desenrola-se com precisão, de acordo com


o libreto.
8,45 h. — O Albatroz pousa de maneira impecável num grande
espaço vazio, entre as aldeias de Gueux e de Thillois, 8 quilômetros
a oeste de Reims. O Morane-Parasol de Bernis e Jacottet pousa ime­
diatamente a seu lado. . . sem capotar.
Não são necessárias ordens imperativas. Os dois oficiais alemães
saltaram para terra e puseram-se ambos em sentido, ao lado da sua
fuselagem, de braços no ar.
Então Bernis, grande fidalgo, dirige-se a êles e estende-lhes espon­
tâneamente a mão. Êles bateram-se bem, só pararam de lutar depois
de perdida tôda a esperança. Foi o que Bernis lhes disse. Os outros
compreendem o francês e inclinam-se.
Ambos se apresentam, como é de justiça:
— Mein Name ist X . . ober-leutnant!
— Mein Name ist Y . . ., leutnant! (!)
E, como também de justiça, pertencem à esquadrilha com base
em Châtelet-sur-Retourne. É obrigatório, isso faz parte do entrecho.
Pelletier-Doisy tinha razão a 2 de abril. Em breve tôda essa
esquadrilha estará reunida aqui na M. S. 12. Pode-se abrir uma
pensão. Já são seis, e outros v irão .. .

*1

(1) Apesar de tôdas as buscas empreendidas nos arquivos oficiais ou privados,


não conseguimos saber os nomes dêstes dois oficiais. Se êles ainda estão neste mundo
c lerem estas linhas, talvez se dêem a conhecer.
167
N o tem po das carabinas

O combate terminou nas proximidade do campo da M. S'. 12,


situado no ângulo da estrada nacional de Reims a Fismes e do ca­
minho vicinal de Gueux a Muizon. A aldeia de Thillois não fica
a mais de um quilômetro da nossa vila de Champigny-sur-Vesle. Por
pouco o avião alemão teria pousado debaixo das nossas janelas. Não
se poderia ostentar maior elegância. É realmente uma vitória de
chefe de esquadrilha. Bravo, Bernis ! Enterrou-nos a todos 1
Muitos dentre nós acompanharam do próprio campo o desen­
rolar do combate. Não acreditávamos no que víamos. Por um
momento tivemos a impressão de que o Albatroz ia aterrar no meio
de nós. Automóveis partiram imediatamente a tôda velocidade
para o local onde se presumia que êle tivesse descido e que um
acidente do terreno os escondia. Pelletier-Doisy e eu saltamos para
um Parasol e fomos pousar ao lado de Bernis e Jacottet.
Fomos os primeiros a apertar-lhes as mãos. E com que alegria !
Fina aterragem, de todos os lados surgia já a multidão de curiosos,
como se rompessem da terra e correndo através dos campos, ávidos
de gozar o raro espetáculo.
Dez minutos depois aparece em turbilhão um aparelho curto e
atarracado que passa rugindo e raspando as cabeças. É Navarre,
num Monocoque-Morane, dotado do sistema Morane-Saulnier de
tiro através da hélice, recebido na segunda-feira anterior. Estava de
patrulha no setor da cota 108 e achava-se por sua vez engalfinhado
com um avião inimigo, por cima dos penhascos de Saint-Thierry.
Garante que o seu adversário, desamparado, foi esborrachar-se nas
linhas alemãs, para os lados do forte de Brimont, mas tão perto que
é impossível os observatórios de artilharia e as barquinhas das “sal­
sichas” não o terem visto cair. Navarre está certo de que haverá tes­
temunhas. No regresso ainda assistiu de longe ao fim do combate
de Bernis e Jacottet. Viu os aviões descerem e picou imediatamente
a pleno-motor. Duas vitórias num dia para a 12.
Navarre pousou em zigue-zagues, “em catástrofe”, no meio
de pessoas assustadas correndo em todos os sentidos. Evitou-as a
tôdas com uma habilidade diabólica. Parado o seu monocoque, desa-
fivelou o cinto, levantou-se no habitáculo, arrancou o capacete e
brandiu-o ao sol. Ria mostrando todos os seus dentes brancos.
Os dois alemães estão assombrados.
Mas vão ficá-lo ainda mais, como de resto tôdas as testemunhas
da cena. Navarre, depois de cumprimentar Bernis e Jacottet, enca­
minhou-se para o Albatroz. Escalando a fuselagem, instalou-se no

168
Os derradeiros combates leais

lugar do piloto, movimentou os comandos, examinou os instru­


mentos de bordo, depois declarou que estava tudo bem, que compre­
endera “como aquilo deve marchar”. Gritou aos mecânicos, que se
aproximavam de trator, para rodarem a hélice.
Vai decolar, voar com o avião até ao campo da 12!
O tenente de Bernis nem sequer tenta dissuadi-lo disso. Co­
nhece muito bem o seu homem, capaz de tudo.
Navarre faz o que disse. Afastados os curiosos, a hélice em
movimento, o Mercedes 120 cv. ronca, o Albatroz rola (devagar;
como são pesados estes calhambeques alemães !) e levanta vôo sob
os aplausos da multidão. Cinco minutos depois Navarre pousa de
maneira impecável, diante dos galpões da M. S. 12.
Mas o Panhard do chefe da esquadrilha avançou. Bernis faz
sinal aos dois oficiais alemães:
— Se quiserem ter a bondade. . .
Êles firmam os quepes de fita vermelha, encaram-se, saudam e
sobem. Bernis pega o volante. Direção: Jonchery, Q. G. do Exército.
Daí a dois dias saboreia-se o champagne, um Pommery bem
sêco e bem gelado.

II. Sangue nas rendas

Um mês depois, no dia 26 de maio às 6 horas da manhã, Jacottet


decola do campo de Rosnay. Desta vez com o “coronel”, o nosso
querido Méseguich de cabelos grisalhos, ajudante-chefe piloto. Sem­
pre num Morane-Parasol.
Levam a sorte consigo ? Léonard Mons e Michot, mecânicos de
Méseguich, que puseram a hélice em movimento, no instante em
que o avião começava a rolar fizeram o sinal ritual da vitória, o
indicador e o médio da mão direita erguidos, gesto que vinte e cinco
anos depois Winston Churchill ressuscitará em horas trágicas, com o
êxito que se sabe. Na 12, já o tínhamos inventado há muito tempo,
mas ninguém tentará jamais disputar-lhe os direitos de autor ao
grande homem de guerra do Império Britânico. É uma honrosa
coincidência, lisongeira para ambos.
Nesse dia, o V da sorte lograria conjurar os múltiplos perigos
que ameaçam qualquer tripulação em vôo ?
O vento sopra do norte, e isso obriga Méseguich a deixar o chão
em frente ao pinhal, e depois, tendo-o transposto, a imediatamente

169
N o tem po das carabinas

sobrevoar o pequeno barranco de Courcelles-Sapicourt. Conhecemos


muito bem êsse barranco, e em cada dia de vento norte (coisa fre-
qüente nessa estação), temos de passar na sua vertical apenas a
trinta metros. Então, pensativos, não deixamos de lhe contemplar
a vertente arrelvada. Ali, recortado no mesmo tapete de capim,
abre-se o pequeno recinto onde dormem os nossos camaradas. Suas
cruzes de madeira já são numerosas, e parecem fitar-nos com os olhos
das suas rosetas. Lá está a mais recente, ainda nova, pintada de
branco, a do tenente Delgorgue, da esquadrilha V. 24.
Nós tínhamos ainda assim conseguido arrancá-lo do braseiro,
após a sua terrível capotagem, à nossa frente, num Voisin. Seus
grandes bigodes loiros haviam ardido como estopa, ainda quei­
mavam, cheios de fagulhas, êle tinha o uniforme em labaredas. Pu­
xando-o pelos braços, conseguimos com grande dificuldade retirá-lo
da fornalha incandescente, extinguir as chamas. Ouvirei por muito
tempo o seu triste, pungente queixume, no automóvel em que o
levamos a tôda a pressa para o posto de cirurgia do castelo de Sa-
picourt. Infelizmente sem resultado. Nada podería arrancá-lo à
morte.
Ao lado da sua cruz está a do pobre Brunier, da M. S. 12, a
única perda registrada na nossa esquadrilha. Pierre Brunier, mecâ­
nico muito jovem, quis aprender a pilotar. Obteve autorização.
Entrou, volvidos dois meses, em perda de velocidade sôbre o Caudron
G. 3 — escola, no qual nós outros, observadores, começávamos a
realizar os primeiros vôos de pilotos, sob a direção vigilante de Mé-
seguich, nosso professor. Brunier morreu.
Muitas outras cruzes ali se vêem ainda, tôdas de aviadores. Mas
não dos nossos. Provém de esquadrilhas próximas, instaladas em
campos dos arredores. Uma surpreendente, misteriosa proteção,
parece velar sôbre a 12. Nem balas em combates, nem obuses da
D. C. A., nem acidentes querem nada conosco. Quanto tempo
durará isto ?
É sempre para o posto médico de Sapicourt que são transpor­
tados os nossos camaradas feridos. Vamos freqüentemente, a título de
vizinhos, visitá-los, animá-los, e infelizmente acompanhar às vêzes
os seus enterros. Sapicourt goza de muito boa fama na aviação.
Quando não temos ninguém em tratamento, nem porisso deixamos
de lá ir nas horas de folga, por simples prazer. Tem diversos médicos
de relações agradáveis e conversa atraente. Nunca nos fartamos
de vê-los e ouvi-los, o que nos distrai um pouco dos eternos assuntos

170
Os derradeiros combates leais

do restaurante da esquadrilha. Êles pagam-nos a visita, vindo à


tarde, acabado o dia, até ao nosso campo, muito perto do posto,
no planalto que o domina. Gostam de examinar os nossos aviões,
de nos ver voar, de voar êles mesmos como passageiros a bordo dos
nossos Morane. Os pilotos levam-nos de bom grado.
Entre êles, um jovem tenente-médico, de dois galões, que se faz
notar pela sua conversa alternadamente incisiva ou cheia de poesia,
de espírito crítico ou de humana benevolência. É êle que se de­
bruça com mais generosidade de alma, com mais terna compaixão,
sôbre os leitos dos nossos camaradas moribundos. Foi em seus braços
que Delgorgue, parando subitamente de falar, morreu sem dar por
isso. Chama-se Georges Duhamel. Já então reúne em silêncio as
impressões tomadas ao vivo, as surpreendentes recordações, as notas
perturbadoras com que fará mais tarde o seu imortal Vie des mar­
tyrs. Muito bem humorado, também, joga perfeitamente o tenis,
e nas horas de descanso vamos às vêzes treinar pacificamente no
pátio do castelo, abandonado sob as suas sombras. É então um
nostálgico recuo para o tempo, tão próximo ainda mas tão lamen­
tavelmente distante, que se chama o tempo de paz. Será que êle
existiu mesmo ?

Méseguich e Jacottet saltaram o pinhal, sobrevoaram o barranco,


olharam de passagem os túmulos floridos do pequeno recinto, o retân­
gulo fulvo de tenis, a grande cruz vermelha pintada dentro do seu
círculo branco sôbre o telhado de ardósias do castelo de Courcelle-
Sapicourt. Ei-los agora em pleno céu. Missão de vigilância e de
interdição das 6 às 8 horas. Duas compridas horas. . .
Onde irão ? Decidiram começar, desta vez, por Soissons. O setor
de Reims está muito marcado. As desventuras da esquadrilha de
reconhecimento de Chatâlet-sur-Retourne devem ter causado impres­
são na força aérea alemã. Suas guarnições parecem não gostar de
aventurar-se desde o Craonne até à Champagne-Pouilleuse. Êsse
percurso deve ter má fama, dá a impressão de ter-se esvaziado. Sois­
sons é um campo de caça relativamente novo. Fica longe, na extre­
midade da frente, em zona calma. Não se tem caçado por ali. Vamos
ver Soissons.
Méseguich fechou a torneira do gás. Regime de cruzeiro. Conta-
rotações: 1.200. Devem estar fazendo de 100 a 110 à hora, não mais.
Altímetro: 2.500. Vento de lado, não muito forte. Tempo magnífico.
O 80 cv. Rhone ronrona como um gato que adormece. O Morane

171
N o tem po das carabinas

está bem equilibrado, não força a mão, não tende a descer. Está
bem. . .
Méseguich e Jacottet dão rédeas aos seus pensamentos. De há
dois meses para cá têm acontecido muitas coisas na aviação francesa,
e mais particularmente na 12. Em primeiro lugar, Bernis foi pro­
movido a capitão, o que era natural depois da sua vitória de 28
de abril. Sua terceira divisa foi dignamente festejada. Navarre
viu homologar o seu avião abatido no mesmo dia diante de Saint-
Thierry. Não faltaram testemunhas. Todo o mundo viu o Avialik
procurar pousar e espedaçar-se perto de Brimont. Porém ainda na
mesma data o sargento Caron, de uma esquadrilha próxima, foi
derrubado em chamas por um avião de caça alemão. Isto foi novi­
dade. Era a primeira vitória alemã conhecida e constituiu um
aviso. Significa que o inimigo começa por sua vez a dedicar-se à
caça. Qual é o tipo de avião de que se utiliza ? Cumpre pensar
nisso.. .
Enfim Navarre conseguiu uma terceira vitória sôbre Argone
(tinha saído do setor da frente e passou apertado) que não foi homo­
logada. Recebeu duas balas na fuselagem, que lhe eram destinadas.
Escapou de boa.
Caça agora sozinho a bordo do seu Monocoque-Morane. Des­
preza o pobre Parasol de dois lugares. Novos tempos se preparam.
Navarre foi, com os melhores pilotos do momento, Gilbert, Pégoud,
Védrines, Brindejonc-des-Moulinais e Brocard, um dos raros benefi­
ciários do Monocoque armado em caça. Os exemplares só saem da
fábrica “a conta-gôtas”. Desde que há um mês Garros caiu prisio­
neiro e se soube pelos jornais alemães que êle não pudera destruir
o seu aparelho, todo o mundo está de sobreaviso. Deve-se esperar
ver o inimigo construir ràpidamente uma réplica do Monocoque,
cujas possibilidades aliás já se mostram insuficientes. O disposi­
tivo Alkan parece melhor que o da blindagem da hélice, sem o
inconveniente de reduzir a velocidade. Alkan foi destacado da
M. S. 12 para as oficinas do interior, onde trabalha sem descanso.
O perfeito ajuste da sua sincronização está para breve.
Também na firma Nieuport se trabalha com entusiasmo. Mur­
mura-se que ela teria desenhado não apenas um biplace de caça
robusto, embora um tanto pesado, mas também um monoplace muito
leve, mantido em rigoroso segrêdo(x).1
(1) Será o 13 metros, ou Bebê-nieuport.

172
Os derradeiros combates leais

Não há dúvida que tudo se orienta cada vez mais para o mono-
place de caça...
Meséguich considera com tristeza que o Morane-Saulnier Parosol,
tão apreciado na M. S. 12 pelas vitórias que lhe devem, está bastante
ameaçado. Envelheceu. É o motivo das conversas no refeitório. A
carabina também envelheceu. Tudo envelhece depressa na guerra.
Durante alguns meses o Parasol e o mosquetão de cavalaria foram os
reis dos ares, semearam o terror no céu. Mas todo o reinado co­
nhece o seu fim. É a regra, tanto para as coisas como para os
seres vivos. Nasce-se, vê-se a luz, somos mimados, é a mocidade, a
fôrça em sua plenitude. Depois tudo se gasta, a idade vai passando,
declina-se, vem o fim, é-se substituído. O ciclo continua imutável,
seu curso inexorável. Mais algum tempo e o Morane-Parasol terá
alcançado o seu termo.

Em avião é possível ao mesmo tempo devanear e observar. Os


dois capacetes de Méseguich e Jacottet, até então imóveis, volveram-
se juntos para o noroeste, no mesmo movimento brusco e atento. ..
Não há dúvida, ao longe, na junção do Chemin-des-Dames com
a estrada nacional de Reims a Laon, qualquer coisa se move, um
ponto escuro se desloca. Avião ? Sim, é um avião ! Vê-se brilhar
na leve bruma matinal. E desce para o sul, aproxima-se ! Vem em
linha reta do lado do inimigo e dirige-se para o vale do Aisne, dez
quilômetros a leste de Soissons. Não há necessidade de ir ao seu
encontro. Méseguich e Jacottet sobrevoam nesse instante o pla­
nalto de Merval, ao norte de Fismes. Cumpre-lhes prosseguir, manter-
se na mesma direção, com o sol à direita; têm por si a vantagem da
luz. Dentro de cinco minutos estarão um sôbre o outro.
Jacottet assestou o seu binóculo. Irra ! não se vê nada com estas
vibrações ! Êle grita a Méseguich que desligue por dois segundos o
motor. (Coisa que não me ocorreu a 2 de abril). Méseguich obedece.
Relativo silêncio. As cordas de piano sussurram ao vento.
— Alemão ! Cruzes pretas ! — uiva Jacottet.
Decididamente a sorte está com êle ! Persegue-o ! Oito dias após
a sua vitória com Bernis já se lhe apresentava um novo combate,
dessa vez como passageiro de Bodin, mas à vista do Morane-Parasol,
de sinistro perfil, o inimigo surpreendido em cima do espigão das
Marquises fugiu como um louco para as suas linhas. Desapareceu
quase ao nível do chão por trás do Mont Cornillet, como se tivesse
fogo na empenagem. Era decerto outro integrante da esquadrilha

173
N o tem po das carabinas

de Châtelet-sur-Retourne, ultimo que se avistou, o derradeiro sobrevi­


vente daquele malfadado bando de perdigões tão rudemente casti­
gado pela 12. Jacottet nem sequer teve tempo de atirar. Tudo
quanto conseguiu foram dois dedos gelados. Mas também, porque
arrancara a luva da mão direita ? Fôra bem advertido a êsse respeito !
Agora costuma trazer um curativo em tôrno do dedo anular. À par­
tida jurou a Méseguich que isso não o impedia absolutamente de
atirar. Será mesmo ?. . .
6,40 h. — Méseguich acaba de girar sobre a asa, e isto leva-o
a uns trinta metros do avião alemão, que pende deixando-o à direita.
É um Albatroz magnífico, de um branco de leite, com as cruzes-de-
ferro bem nítidas, sem uma arranhão na pintura. É novo em fôlha;
deve ter chegado diretamente do construtor. Será a sua primeira
saída ? A tripulação deve adorar aquêles instrumentos de bordo bem
brilhantes de metal cromado, a bússola rutilante oscilando branda­
mente no seu banho de glicerina, os menores adornos mostrando o
verniz ainda úmido.
Sim, mas que armamento traz êle ?
Pouco importa ! O certo é que, à semelhança dos seus irmãos,
padece do mesmo vício de origem que tão caro tem custado à aviação
alemã: o observador está na frente.
O observador está na frente, com efeito. Mas hoje é um homem
de sangue frio. É o príncipe de Bülow-Büssow, ober-leutnant, nas­
cido a 15 de março de 1886, em Stettin, sobrinho do general von
Bülow, comandante de exército na batalha do Marne, sobrinho
também do ministro von Bülow, nesse momento embaixador da
Alemanha em Roma. Êle viu, calmamente, aproximar-se o avião
francês; não tem mêdo. É um temível atirador de carabina. Vol­
tando-se para trás, de pé, mas bem seguro pelo cinturão de alças,
manobrou a culatra da sua Mãnnlicher de repetição. Conhece-a como
os seus dedos. A trinta passos, e a cada tiro, tem a certeza de apagar
o cigarro de quem se dispuser a segurá-lo na bôca. Sabe que o seu
piloto é excelente e que nada tem a temer. O leutnant Gerhard Nette
dará linhas para se coser a êsse Morane-Parasol cheio de presunção
que se atreve a atacá-los. Está preparado para isso.
Decorre algum tempo. De repente a luta inicia-se. Com uma
pancada sêca sôbre a asa direita, o leutnant Nette descobriu o seu
passageiro; e von Bülow, que esperava essa manobra muitas vêzes
estudada em vôo, é o primeiro a atirar. Jacottet responde.

174
Os derradeiros combates leais

Em cinco minutos tudo se esclarece. O Parasol está crivado de


balas. Todos os disparos de von Bülow acertaram. Mas o Albatroz
desce numa terrificante queda. Desgovernado, com o motor conti­
nuando a trabalhar a pleno regimen, parece titubear, endireita-se,
vira-se de costas, com as rodas para o ar, mergulha para o abismo
com rugidos de monstro apocalíptico que gelam de pavor as teste­
munhas lá de baixo, reergue-se em perpendicular, rompe em linha de
vôo normal, vira sôbre a asa, torna a subir e a mergulhar como se
uma hábil mão continuasse a dominar os comandos. Porém mão al­
guma o pilotará jamais. O leutnant Nett recebeu uma bala na têm­
pora. E quando o Albatroz executa um novo looping, êle é arrancado
do assento, suas correias rebentam e o corpo é projetado no vazio.
O ober-leutnant von Bülow-Büssow, se porventura ainda não
morreu vai conhecer a mais atroz das mortes, a que apavora todos
os passageiros comprometidos numa luta aérea. Méseguich e Jacottet,
com a face encostada ao rebordo da carlinga, não podem tirar os olhos
do pungente espetáculo, que para sempre se lhes grava na memória.
Têm o coração ao mesmo tempo arfando de júbilo e oprimido de
compaixão. Se pudessem, não há dúvida que fariam agora
tudo para socorrer as suas vítimas, evitar àquele que ainda estiver
vivo a mais abominável das angústias. Mas nada podem, acabam de
sair de um jôgo terrível, de uma decisiva partida de poker, cuja
aposta, sabiam-no todos quatro, era a vida para os ganhadores e a
morte para os perdedores — excetuado o milagre que, contra tôda
a verossimilhança, se repetira três vêzes na M. S. 12, nos dias l.°,
2 e 28 de abril. A grande ceifeira tinha hoje recusado abrir cré­
dito. Êles haviam ganho, os outros tinham perdido. Era imperioso
pagar. . . Paciência. Dois mil metros abaixo, Méseguich e Jacottet
viram o grande Albatroz de asas brancas abater-se num prado cheio
de sol, na aba de uma colina, rolar sôbre si mesmo à maneira de
bola por uma longa distância, espalhando destroços, e por fim estacar
numa explosão de telas rasgadas e poeira, contra um renque de
árvores. Impossível ir pousar junto dêle, o terreno não o permite,
todo em barrancos e ondulações. Além disso Méseguich precisa
alcançar logo a base da esquadrilha. . .
Jacottet examina cuidadosamente a posição no seu mapa, em
Braine, a meio caminho entre Fismes e Soissons, 1.500 metros ao
norte da localidade, perto dos bosques de Brenelle. Justamente a
15 quilômetros do ponto onde, a 5 de outubro, o ober-leutnant Fritz
von Zangen e o gefreiter Wilhelm Schlichting encontraram a morte

175
N o tem po das carabinas

em circunstâncias idênticas, num Aviatik, sob as balas de Frantz


e de Quénault. O vale do Vesle não se mostra propício à aviação
alemã.

Ao aterrarem, Méseguich e Jacottet viram-nos correr para êles. A


notícia da sua vitória chegara pelo telefone, o qual por sua vez se
mostrou eficiente:
“Um Morane acaba de derrubar um avião alemão por cima de
Braine”.
— Foram vocês ? Hein, foram vocês ? — gritamos-lhes.
— Sim, fomos nós. Há vinte minutos, pouco antes das 7 horas.
Sim, fomos nós, em Braine !
Navarre bate alegremente no ombro de Méseguich:
— Meu velho coronel, nem imaginas como estou contente.
Deixa-me abraçar-te !
Méseguich não pôde conter um grito:
— Cuidado, animal !
Navarre tem a mão cheia de sangue.
Méseguich está ferido ! Na fuselagem, o seu assento é uma poça
de sangue. Deve ser coisa séria ! Tiram-lhe com cautela o capacete
de couro e a túnica. A camisa apresenta-se côr de púrpura. .. De­
pressa, levam-no para o posto cirúrgico do castelo de Sapicourt. Léo-
nard Mons, seu mecânico, tem os olhos rasos de água. Logo somos
tranqüilizados, não é nada. Uma bala de von Bülow pegou-o de
baixo para cima, de viés, penetrou na base da omoplata direita e
percorreu-lhe as costas até à nuca, tornando a sair à esquerda. Passou
a um centímetro da espinha dorsal.
O Morane, aliás, está todo picado. O pára-brisas, em frente
ao rosto de Jacottet, foi estilhaçado. Mais de doze impactos se reve­
lam em tôrno dos lugares do piloto e do passageiro. Atirava real­
mente bem, êsse von Bülow cuja identidade Jacottet, que atirava
ainda melhor, só iria conhecer daí a uma hora, quando retirassem o
corpo mutilado, em sua presença, debaixo do motor do Albatroz.
No dia seguinte, já com Méseguich, que com o dorso ligado
e o braço em padiola fêz questão de vir inclinar-se diante dos des-
pojos dos seus adversários, na presença também de Jacottet, de vários
oficiais e de um destacamento da M. S. 12 em armas, para as devidas
honras, o ober-leutnant von Bülow-Büssow e o tenente-piloto Gerhard
Nette foram inumados no cemitério militar de Braine, dignamente.

176
Os derradeiros combates leais

O embaixador da Alemanha na Itália será avisado por inter­


médio da Cruz-Vermelha, em Berna.
Será que não pertenciam à esquadrilha de Châtelet-sur-Retourne ?
Isso nunca o saberemos. Apesar de não ter pegado fogo, o Albatroz
estava tão completamente destruído que foi impossível identificar
a sua unidade. Em compensação, no meio dos destroços descobriu-se
grande quantidade de números do infâme jornal La Gazette des
Ardennes, impresso em Mézières, sob direção alemã, destinado a
solapar o moral dos franceses da zona ocupada e a lançar a pertur­
bação nos espíritos. Os jornais estavam dobrados engenhosamente
para cair em vertical, girando sôbre si mesmos à maneira do fruto
alado do sicômoro. Sua leitura é edificante, mas sabemos pelos
nossos agentes que essas sementes malsãs não conseguem germinar em
terra francesa. Vários exemplares estavam encharcados de sangue.
Guardamo-los como lembrança.

A esquadrilha mudou de acantonamento para um terreno me­


lhor. Deixamos a pequena vila de Champigny-sur-Vesle. Foi com
pesar que abandonei o meu quarto forrado de tela de Jouy côr de
rosa, com as suas cortinas claras, os seus fidalgos de tricórnios ca­
çando o veado com grande reboada de trompas. Pela última vez
respirei a perturbadora mistura de Origan de Coty e de Jicky,
agora quase imperceptível de tão atenuada, mas que nunca poderei
esquecer. É curioso como se guarda por tanto tempo a memória dos
perfumes! Arrumei cuidadosamente na estante os romances de
capa amarela de René Bazain, de Henry Bordeaux e de Paul Bourget,
Le blé qui lève, La terre qui meurt, La croisée des chemins, La robe
de laine, André Cornells, Uêmigrè.
E fechei a porta. Partir é talvez morrer. ..
Agora estamos instalados no solar de Rosnay, de vastas pro­
porções. Estamos confortàvelmente alojados, incluídos os nossos
ordenanças em mansardas bem postas. As janelas da fachada prin­
cipal, de estilo nobre, embora um tanto pretensioso, abrem para a
linha verdejante das encostas do Vesle. Para além ficam o vale do
Aisne, e o Chemin-des-Dames cujo céu tôdas as noites se ilumina
com disparos dos canhões e o clarão espetral dos foguetes luminosos.
É para lá que dá o meu novo quarto, sempre ao lado do do capitão
de Bernis. Como em Champigny, ouço-o através da parede passear

177
N o tem po das carabinas

de um lado para outro, ao sabor das suas idéias noturnas. É um


ruído familiar que já me faria falta se deixasse de o ouvir.
Navarre, Pelletier-Doisy e Bodin, os mais folgazões da esqua­
drilha, resolveram decorar à sua maneira o vasto aposento que nos
vai servir de sala de reunião. E essa maneira revela-se pitoresca:
Antigos retratos de família compõem uma imponente galeria de
perucas do grande século, couraças de mestres de campo, feltros
empenachados e frescas facezinhas com moscas e cabelos polvilhados.
No centro destaca uma venerável fidalga toucada à Maria Stuart,
cuja fisionomia pouco acolhedora parece reinar sôbre o conjunto.
Navarre, com o seu sorriso enviesado, teve a idéia diabólica de
recortar da Vie Parisienne um enxame dessas formosas criaturinhas
bastante despidas de que o desenhista Fabiano tem o segrêdo, em
seguida de colá-las irreverentemente nos caixilhos dos retratos, exa­
tamente sob os seus raios visuais. Ninguém foi esquecido. Visconde
ou marquês, mestre de campo ou almirante da frota, recebedor geral
ou procurador régio, cada qual teve a sua, unicamente vestida com
o rouge dos lábios e as meias de sêda.
O efeito é dos mais divertidos. Todos êsses olhares até então
bastante neutros, risonhos ou severos, mas indiferentes, se tornaram
de repente — é inegável, — singularmente aguçados, uns carregados
de subentendidos brejeiros, outros de furibunda censura.
As damas também receberam parceiro. Navarre não as deixou
entregues à sua melancólica solidão. Descobriu e recortou para elas,
no Sourire, alguns dêsses lambidos perfis de aviadores, com caras de
galã, blusas empoladas, quepes de polo azul-celestes e botas de ata­
cadores, sob cujos traços ilustradores idiotas costumam representar-
nos aos seus leitores. Ninguém se aborrecerá mais na grande sala do
solar de Rosnay. A própria venerável fidalga recebeu o seu chevalier-
servant, um tenentezinho de hussardos muito envernizado, calçado,
enluvado e de monóculo a preceito, chibata debaixo do braço e
tendo na gola magníficas asas de piloto. Bem colado na sua moldura
ela não o larga com a pupila oblíqua, vigia-o ciosamente, só tem
olhos para êle. Tôda a sua juventude, que deve ter sido razoàvel-
mente libertina, lhe sobe ao rosto.
Na noite da “inauguração” (conforme diziam Navarre e Pelle­
tier-Doisy) foi uma gargalhada geral quando os dois cúmplices mos­
traram as suas obras-primas. Porém, ao lado da nota cômica acha-se
a nota épica. Alternando com os retratos de família assim paramen­
tados, foi pendurada nas paredes uma parte dos nossos troféus to­

178
Os derradeiros combates leais

mados em combate ao inimigo, grandes retalhos de tela branca reti­


rados das asas dos Aviatik e dos Albatrozes e ostentando a negra
cruz de ferro da altura de um homem, hélices e rodas de avião com
o mesmo emblema sinistro, metralhadoras enegrecidas pelo incên­
dio, carabinas Mauser ou Mãnnlicher amolgadas pelas quedas. Há
também, defrontando-se e conservados abertos por meio de perce­
vejos, dois números da Gazette des Ardennes de 27 de maio man­
chados de sangue, os que foram encontrados na carlinga do Albatroz
de von Bülow, e que provocam em cada novo leitor exclamações
indignadas.
Semelhante mistura causa entre os numerosos visitantes que
se sucedem no palácio de Rosnay, desejosos de entrar em contacto
com a famosa M. S. 12, impressões dispares em que se confundem
a hilaridade, a admiração e o horror. Ela representa bem o estado
de espírito da esquadrilha, a sua aversão pela valentia ostentatória,
o seu gôsto pela ironia à beira do perigo, o arranque devido à sua
excessiva juventude. Alguns dos nossos hóspedes, sobretudo os
homens de idade, ficam petrificados. Aquêle ambiente desconcerta-os,
às vêzes choca-os ou conquista-os. Um dêles, ao despedir-se, disse-nos:
— Aqui os senhores têm sorte, batem-se por gôsto !
Não teria razão ?
*

Porém o mais espantado de todos, o mais surpreendido, o mais


transtornado e por fim o mais seduzido por essa atmosfera tão dife­
rente do comum, foi sem dúvida o visconde du Doré, dono do
palácio de Rosnay.
Êle surgiu certa manhã e apresentou-se quando ninguém o
esperava. Era um homem de sessenta anos, cabelos grisalhos, robusto
e conservado. Surpreendido com sua família em pleno período de
férias pela invasão de 1914, emigrara para céus mais clementes e insta­
lara-se, entre os seus, no vale do Loire. Durante dez meses estivera
desaparecido. Bruscamente decidiu-se e quis tornar a ver Rosnay.
Ouvira dizer que a aviação seria instalada nêle, e isso deixou-o suma­
mente preocupado. Êsses aviadores do diabo não gozavam de boa
fama. Com certeza Le Sourire e La Vie Pariesienne chegavam até aos
confins da Vendéia.
O visconde du Doré, devidamente provido de um salvo-conduto
para a zona dos exércitos pusera-se portanto a caminho. Ao fim
N o tem po das carabinas

de dois dias de penosa viagem chegou ao seu destino. Recebido no


pátio de honra pelas nossas ordenanças que pretendiam barrar-lhe a
entrada, deu-se a conhecer e foi imediatamente introduzido com
grande amabilidade pelo próprio capitão de Bernis, no hall da sua
própria residência. Êsse acolhimento abrandou-o sensivelmente, mas
pouco lhe faltou para perder o fôlego ao penetrar no salão.
Os grandes retalhos de tela, as cruzes negras, as armas, as man­
chas de sangue, e sobretudo aquelas mulheres impuras e nuas coladas
nos retratos dos seus antepassados, pareceram-lhe uma profanação 1
Ah ! era bem o que lhe tinham deixado entrever! Aquilo excedia
todos os limites.
E a sua grande mesa, talhada num único tronco de carvalho,
orgulho do palácio de Rosnay, que fôra feito dela ? Haviam tido
o atrevimento de lhe abrir à serra uma profunda chanfradura, a
fim de permitir a um biltre qualquer transformado em croupier (no
caso o menino de côro Moinier) adaptar-lhe o seu epigastro, imi­
tando assim o pessoal dos casinos. A sua bela peça de carvalho tor­
nara-se uma banca de roleta ! Estava para sempre perdida, desonrada !
E o nobre piano de cauda Erard, cujos pedais comandavam agora
um carrilhão de campainhas e guisos perfeitamente adaptado (invento
de Navarre e Bodin que impusera a retirada de certo número de
cordas), como fôra possível levar a aberração a ponto de lhe infligir
tão irreparáveis danos ? Oh ? mas aquilo não ficaria assim, haviam
de pagá-lo !
O visconde du Doré sufocava de legítima indignação. Foi neces­
sária tôda a diplomacia geitosa de Bernis, a sua ironia cheia de
mansidão, para o reconduzir a sentimentos mais calmos e a uma apre­
ciação mais justa da situação: tinha-se guardado cuidadosamente o
meio disco retirado da mesa de carvalho. No dia em que deixássemos
Rosnay, êle seria infalivelmente recolocado com tôdas as regras da
arte de marcenaria, de modo a nada se perceber. Quanto ao piano
de cauda, logo que os rapazes se cansassem do inofensivo carrilhão
— o que decerto não demoraria, pois a mocidade depressa se cansa
das coisas, —mandariam vir de Epernay o melhor afinador da cidade.
Compromisso de honra. As mulherzinhas coladas nos retratos ? Não
se preocupasse o visconde du Doré com os seus antepassados. Eram
apenas aderências provisórias, e tôda a aderência — como é sabido,
— tem um fim. Não haveria escândalo nenhum, nem desonra. Uma
esponja molhada e tudo seria esquecido. O passado logo se
desvanece !

180
Os derradeiros combates leais

O que porém mais preocupava o visconde du Doré, era saber


onde iria almoçar nessa manhã, e fazer as refeições seguintes, pois êle
tencionava evidentemente demorar-se alguns dias em Rosnay. Onde
iria dormir ? Quem se ocuparia dos seus assuntos ? A M. S. 12 teria
imensa satisfação em recebê-lo. Portanto nada de cerimônias, que
se considerasse como em sua casa ! Ia-se-lhe mandar preparar um
quarto, uma ordenança se encarregaria de lhe engraxar o calçado,
teria o seu talher à mesa da esquadrilha com todos aqueles cavalheiros
(os cavalheiros em questão formavam, por enquanto, um grupo
compacto e pouco acolhedor num canto da sala) que ficariam imen­
samente orgulhosos de o ter como convidado. Em princípio almo­
çava-se às 12,30 h, e jantava-se às 20 horas, salvo impecilhos de ho­
rário devidos à guerra, pois — imaginasse o visconde! — a guerra
prosseguia e às vêzes sucedia terem de bater-se. Convinha pois que
êle desculpasse de antemão algum daqueles cavalheiros a quem essa
divertida obrigação forçasse a qualquer atraso.
O visconde du Doré era ao mesmo tempo homem de espírito
e de coragem, e teve o bom gôsto de o provar. Ficou dois dias co­
nosco, e aposto que guardou por muito tempo essa rara recordação.
Uma noitada bastou-lhe para se pôr em afinação com a 12. Ao
fim do primeiro jantar, foi ao salão apresentar-nos com muita
naturalidade, pelos seus nomes e títulos, os mais notáveis entre os
seus antepassados. Bernis, por sua vez, fêz-lhe o histórico de todos
os troféus que adornavam as paredes e constituíam, num país que
cometia a tolice de não mais reconhecer as antigas nem criar novas,
as verdadeiras cartas de nobreza de outra cavalaria nascente, a cava­
laria do Ar.
Depois disso o visconde du Doré declinou do convite para tomar
assento na mesma de roleta — êle não fumava nem jogava nunca, —
consentiu em sentar-se ao piano e experimentar a Sonata ao luar,
tendo a delicadeza de declarar que o tilintar das campainhas, sob o
comando do pedal, lhe emprestava uma nova beleza poética.
Conquistou de tal modo os corações que, no jantar anterior à
sua partida, quanto o melhor Verzenay espumava nas taças, Pelletier-
Doisy, a um sinal de Bernis, se ergueu, e com a sua trovejante voz
de couraceiro lançou o velho grito tradicional:
— Em honra do visconde du Doré, um brinde de cavalaria 1
Sob meu comando !
— A passo !

181
N o tem po das carabinas

O sussurro dos dedos e dos cabos de faca na madeira da mesa,


evocava o surdo rumor de um corpo de cavalaria avançando para
a luta.
— A trote !
O martelamento fêz-se mais forte, e teve-se a impressão de que
milhares de cascos feriam em cadência o chão invisível.
— A galope !
O retinir de ferros elevou-se num ribombo prenhe de ameaças,
pronto a irromper na planície e a tudo derrubar à sua frente.
— Carregar !. . . Carreguem !
Deu-se então a explosão, o desencadear de uma fôrça muito tempo
contida. Os fundos dos copos e garrafas, os pratos, os garfos e os
punhos martelaram a toalha com violência. O arremesso dos
esquadrões encheu a sala de um tumulto indiscritível, enquanto Ro­
bert de pé, com a mão em corneta diante da bôca, imitava à perfeição
o apêlo metálico dos clarins tocando à carga:
— Talalalalala — tatatitalala ! Talalalalala — tatatitalala !
Quando tudo ficou destruído, devastado, e o inimigo posto em
fuga ou feito em pedaços, Pelletier-Doisy abriu os braços num gesto
brusco:
— Alto !
— Tili —la ! Tili —la Tili — láa ! —disseram os cornetins.
Restabeleceu-se o silêncio. Então o visconde du Doré, que acom­
panhara a carga com tanta energia quanta os demais, servindo-se
do seu talher de prata, levantou-se emocionado:
— É maravilhoso — disse êle, — nunca mais o esquecerei ! Fico-
lhes muito grato, senhores !
No dia seguinte, quando partiu, havia uma grande tristeza em
seu olhar.
Depois de êle ter desaparecido, Pelletier-Doisy encontrou a
frase definitiva:
— Acho que o vencemos.. . ou então então foi êle que nos derru­
bou a todos em chamas !

182
0 REVOLVER DO CAPITÃO BROCARD

Desta vez não é um aparelho da M. S. 12 que acaba de decolar,


mas um avião da M. S. 3. Levanta do campo de Vauciennes, à orla
da floresta de Villers-Cotteret. Estamos a 3 de julho de 1915. Êsse
avião vai travar o mais emocionante combate de tôda a história da
aviação em guerra.
É pilotado pelo capitão Brocard, chefe de esquadrilha, futuro co­
mandante do Grupo das Cegonhas. Por enquanto Brocard é desco­
nhecido, tão desconhecido quanto os homens que o rodeiam, alguns
dos quais vão sem dúvida erguer-se aos mais puros cimos da glória.
Brocard não está satisfeito. Longe de obedecer à mão e “de a
reclamar” como o Morane-Parasol, seu “potro” é pesado, lento na
subida, é preciso sustentá-lo a cada passo, solicitá-lo. O piloto
conhece-o mal, recebeu-o apenas na ante-véspera. Embora o tenha
experimentado bem no campo, é a primeira vez que leva um passa­
geiro a bordo. Trata-se de um Nieuport 18 metros, novinho, dotado
do mesmo motor do Parasol, o digno 80 cv. Rhone rotativo, refrige­
rado a ar, com aletas. Espera-se muito dêle.
Foi apresentado como o novo biplace de caça ideal. Sempre sem
metralhadora, naturalmente (os aviadores que se arrangem como
puderem para a instalar !) tem em compensação um habitáculo
espaçoso, permitindo ao passageiro mover-se à vontade com a
sua carabina e dispor de um vasto campo de tiro — salvo na frente,
como de costume, por causa da hélice. Inconveniente menor,
porém há um mais sério: a principal qualidade de um avião de
caça continua sendo a velocidade, a aptidão para se elevar ràpida-
mente e alcançar o adversário. Ora, Brocard começa a interrogar-
se para saber se o seu Nieuport a possui. Garros, na carta de 5 de
abril a Jacques Quellennec, tinha razão ao formular dúvidas acerca

183
N o tem po das carabinas

das possibilidades “dêsse avião que voa há dois anos sob o pseudô­
nimo de Sopwith” ?
Brocard impacienta-se. Decolou há três minutos, diante do
telefonema anunciando a aparição de um avião germânico acima das
suas linhas. Informação exata, porque do próprio campo de Vauci-
ennes se via, ao longe, rebentarem no céu numerosos obuses da
nossa artilharia. Tem consigo, como metralhador, um mecânico
de tôda confiança, Alfred Delage. Metralhador é um modo de dizer,
porque Delage leva uma simples carabina Winchester, de repetição.
Há três minutos já que saiu, e não consegue subir, vai-se arras­
tando. . . Assim nunca alcançará o outro avião. Debalde cabra ao
máximo, sente que o Nieuport recusa estafar-se, galgar mais depressa
do que lhe permitem o coração e os pulmões. Seus comandos afrou­
xam, espreita-o o desmaio cardíaco, atenção à perda de velocidade !
Não, assim não chegará nunca ! Brocard lamenta não ter utilizado,
como de costume, o seu velho Parasol. Volta-se para Delage e faz-
lhe sinal de que a coisa assim não vai, que é preciso regressar, voltar
ao campo. Delage concorda, a subida é muito lenta.
Daí a instantes as rodas do Nieuport encontram a erva da base
de Vauciennes, cuja área se estende até aos edifícios de uma impor­
tante usina de açúcar.
Roehr, primeiro mecânico do capitão Brocard, observava o vôo.
Roehr é o homem de confiança. Sua competência em mecânica
não tem igual, sua dedicação não tem limites. Merece ficar na
história da guerra aérea, pois foi êle que teve a honra de desenhar
e pintar a primeira cegonha, que mais tarde alcançaria a celebridade,
a cegonha da M. S. 3, a de Guynemer, de pescoço estendido, ponta
da asa descaída, perna suspensa. Tivera o concurso de um pintor-
decorador da Ópera-Cômica, cujo nome infelizmente se perdeu. Pas­
sava-se isto bem no comêço da guerra, na fronteira da Alsácia, onde
se formara a M. S. 3. Roehr não recebera a paga da sua inspiração...
Diante daquela ave de estranho perfil, que enfeitava o chassis de
um caminhão (a título de ensaio), o capitão Bellemois, então coman­
dante da esquadrilha, mostrou-se muito descontente. Aquela ave
era antiestética, horrível, ridicularizaria a M. S. 3 ! Aplicou quatro
dias de guarda a Roehr. Dêsse modo Roehr entrou imprevistamente,
como a maioria dos grandes gênios, na falange dos artistas incom­
preendidos. Mais tarde teria a sua desforra. E assim como a cego­
nha da 3, seu vôo não se deteria mais. ..

184
O revólver do capitão Brocard

Por agora Roehr mostra-se preocupado com a volta insólita do


Nieuport. Corre, imaginando alguma complicação no motor. Weber,
segundo mecânico, acompanha-o. Brocard tranqüiliza-os logo sem
interromper o contacto:
— Não, não, tudo vai bem ! O moinho gira como um sonho, mas
o potro não sobe ! É um preguiçoso. Vamos, Delage, desce, mexe-te,
meu velho ! Passa-me a tua Winchester, eu vou sozinho. Dois cons­
tituiriamos um pêso excessivo, nunca chegaríamos !
Assim se faz. Delage salta para terra. Os três mecânicos encaram-
se, estupefatos. Como ? Que está dizendo o capitão ? Pretende ir
sozinho com a carabina ? Tem a pretensão de apanhar o boche
e de o atacar sozinho ? Ficam atônitos, de braços pendentes.
— Então ! — grita Brocard. — Vamos, rapazes, levantem-me a
fuselagem e virem-me depressa contra o vento ! Não há um minuto
a perder !
Manobra executada. Tudo pronto O Nieuport rola e decola
outra vez. A grande distância, para noroeste, a explosão dos obuses
continua a estrelar o céu, perseguindo um ponto escuro, invisível
dali. O avião alemão, a 2.500 metros, vai tirando sossegadamente as
sua fotografias.
*

O Nieuport sobe melhor, incontestàvelmente. Aliviado do pêso


de um homem, cede mesmo à mão. É tudo questão de carga ou
de potência de motor. Ah ! a implacável lei da atração universal,
como a sentimos melhor que em qualquer outro lugar em pleno
éter ! Quantos milhares, milhões de anos foram precisos para a
vencer !
O tempo está magnífico. Os trigais mostram-se quase maduros.
Seus retângulos de ouro pálido estendem-se a perder de vista, tanto na
zona ocupada como na zona livre. Mesmo quando desabam sôbre
a terra os maiores cataclismos, mantem-se o lento, paciente, obsti­
nado trabalho do lavrador francês. Milagre renovado a cada pro­
vação. Mesmo ausente, parece que o seu campo continua a cultivar-
se sozinho. Quando tudo estiver perdido, quando tudo desmoronar
no mundo, quando uma civilização estiver desaparecendo com as
manifestações do seu poderio, os seus grupos produtores de energia,
suas usinas, meios de transporte, estradas, leis sociais, e juntamente
sua literatura e suas artes, seu espírito e tôda a sua grandeza, o campo
de trigo será o último a desaparecer.

185
N o tempo das carabinas

Em que pensará Brocard ? Porque Brocard pertence justamente


ao número dos que pensam. Por haver trocado idéias com êle muitas
vêzes, quando estávamos juntos há quatro meses na esquadrilha De-
perdussin n.° 6, em Serval, e êle me levava como observador, conheço
bem o seu caráter, a sua profundeza. Embora participando do
ambiente geral de alegria dos seus camaradas, entremeando a con­
versa de gracejos, de frases incisivas, de intervenções brilhantes,
sempre marcadas do seu claro bom senso, provocando a hilaridade
ou ruidosas aprovações, êle apreciava a reflexão silenciosa, a medi­
tação solitária.
Ouvi-o diversas vêzes exprimir essas idéias sôbre os camponeses
de França. Sobretudo interessa-se pelos humildes, conhece-os e
aprecia-os por ter vivido com êles desde a primeira infância, nos
abençoados períodos de férias. Nascido no Delfinado, em Biol, Bro­
card é por temperamento um camponês, um homem das matas. Tem
a paciência, o gôsto pelo esforço, a perseverança na dificuldade, a fé
no êxito quando se trata de subir cada vez mais. Aprendeu, desde
menino, a ler no mais extraordinário livro que ainda se escreveu,
o livro da natureza. Seus mais misteriosos capítulos não têm segredos
para êle, de dia ou de noite. Percorreu tudo, viu tudo, observou
tudo, tudo compreendeu, e ouviu, e aprendeu e reteve nessa grande
escola da vida. Os homens nada têm para lhe esconder, nem para
lhe acrescentar: antes de entrar em contacto com êles viveu muito
entre os animais selvagens.
Brocard é um chefe de guerra notável, sabe ordenar no momento
oportuno e executar êle próprio o que ordena. É adorado pelos seus
subordinados: Roehr, Delage e Weber podem atestá-lo.
Sucede-lhe muitas vêzes, quando resolve sair em patrulha antes
do alvorecer, recusar-se a acordar mais alguém além do mecânico
indispensável para lhe pôr a hélice em movimento. Ajuda pessoal­
mente a retirar o seu aparelho do hangar, pois sua fôrça muscular
é proverbial. Com o olhar penetrante, muito jovem sob as sobran­
celhas em acento circunflexo, os olhos que nunca pestanejam nos
momentos graves, a face enérgica e o farto bigode usado na época,
sua fisionomia seria severa se a não iluminasse a todo o instante o
clarão da bondade. Há só duas coisas que êle não perdoa: a pre­
guiça e a falta de camaradagem.
Caçador de montanha, sua vista é penetrante, seu tiro infalível.
As balas da sua espingarda detiveram muitas vêzes a camurça lançada
em plena corrida, e o chumbo dos seus cartuchos o tetraz saltando para

186
O revólver do capitão Brocard

os abismos, para que êle não seja instintivamente levado a fazer as


correções de tiro mais rápidas e mais acrobáticas. Nós gabamo-nos
de acertar uma bala a quarenta passos numa moeda de dois soidos (x).
Êle assiste à proeza, depois pede que coloquemos a moeda ao com­
prido, com a sua espessura de dois milímetros. E não falha.
Porisso, quando levanta vôo sozinho, como agora, levando a sua
carabina Winchester, sabe o que faz. Poderá muito bem pilotar com
uma das mãos, apontar e atirar com a outra. Teve de vencer tantas
dificuldades nos Alpes ! Certa cez, agarrado à borda de um rochedo
a pique, segurando a carabina, abateu em pleno pulo, entre dois car­
reiros, um cabrito montês a cem metros. A confiança é um dos seus
predicados.
São 9 horas. Onde está êsse avião sôbre o qual se exercitava
há pouco a ira da artilharia ? Não se vêem mais explosões no céu.
Terá voltado às suas linhas? O capitão Brocard debalde sonda o
espaço infinito que o sol começa a aquecer. Muda a cada instante
de direção, para melhor observar, pois na frente a cobertura do
avião incomoda-o com os seus reflexos brilhantes. Além disso, o
campo varrido pela hélice perturba a visão.
Quem vai sozinho a bordo deve também vigiar a retaguarda.
Pode ser atacado de improviso. Começa-se a falar de um novo
aparelho de combate dos alemães. Será que o possuem realmente ?
Uns afirmam já o ter encontrado. Mas na aviação, como em tudo
o mais, contam-se tantas histórias maravilhosas.. .
Lá está a mancha escura da floresta de Compiègne, estendida
como um tapete felpudo sôbre os campos multicores, onde dominam
o verde e o amarelo.
Acaba para o norte numa espécie de península vegetal, perfei-
tamente indentificável, a floresta de Laigue. À esquerda do istmo
que as liga, outra mancha loira e rosada: Compiègne.
Nada no horizonte. No pastel cinzento-azulado da atmosfera
nem o menor ponto escuro. É o deserto. Brocard começa a aborre­
cer-se. A necessidade de voltar ao campo fêz-lhe perder um tempo
precioso. Agora é tarde demais, o alemão já deve estar longe. Talvez1

(1) Nota para os moços: houve um tempo em que a moeda francesa estava entre
as primeiras do mundo. O franco dividia-se em vinte moedas de um sôldo (5 cêntimos),
ou dez moedas de 2 soidos (10 cêntimos). Essas moedas eram de uma liga de bronze,
de cunho muito artístico. Representavam positivo valor de compra. Com um sôldo
g ra n d e , ou moeda de dois soidos, podiam-se comprar muitas coisas. Êsse tempo
voltará ao nosso país quando nêle se instalarem de novo a sabedoria e a moderação.
187
N o tempo das carabinas

já tenha descido e o observador esteja revelando tranqüilamente as


suas fotografias no carro-laboratório.
Apesar de tudo não se está mal nesse Nieuport 18 metros. O
assento é confortável, o pedal permite estender as pernas, os instru­
mentos de bordo estão racionalmente dispostos. Praticaram uma
abertura no plano superior, a fim de facilitar o tiro do metralhador
para o alto. É uma idéia, porém uma idéia insuficiente. Não há
perigo de atingir a hélice, mas a fórmula de Saulnier e dos irmãos
Morane, com o seu monocoque, é melhor. E a de Alkan, ainda irá
demorar ?
E dizer que o pobre Garros foi aprisionado com o seu avião
intacto: que azar ! Não se ouve mais falar dêle. Que estarão tra­
mando os alemães ?
De qualquer modo êstes biplanos são irritantes ! O plano infe­
rior oscila ao mesmo tempo que o tripulante, ocultando-lhe o ter­
reno por um enorme ângulo morto. É preciso marchar constante­
mente em ziguezague, ou retorcer-se para poder observar. O Parasol
não tinha êsse inconveniente. Com a diferença de que, em matéria
de pilotagem, o Nieuport dispõe de ailerons conjugados que supri­
mem tôda a inércia dos comandos. Isso é ótimo. Assim o avião res­
ponde imediatamente. As viradas são bruscas, nervosas.

Há um momento em que Brocard voa para oeste, de tal modo


o sol lhe queima as costas através da blusa de couro. Com o tempo
isso torna-se desagradável. Mudança de direção, meia volta. E de
repente é a revelação. Brocard emerge dos seus pensamentos.
Uma série de pontos cinzentos picota o céu. E não longe 1 Talvez
a uns três quilômetros. Será que o avião alemão voltou ? Sim,
voltou. Êle ou qualquer outro, não importa. Lá está. Com a luz
contrária, recorta-se como o nariz numa face. Move-se imperturbàvel-
mente de um lado para o outro, à maneira de um cão de caça bem
ensinado. E não há dúvida: a sua tripulação tem ousadia, pois
os tiros de terra envolvem-no de perto. É uma bateria eficiente. Êle
nem lhe dá confiança e repassa constantemente no mesmo lugar.
Missão fotográfica, com tôda a certeza. O observador faz questão
de ser felicitado pela excelência das suas fotografias. Almejará a
Cruz-de-Ferro ? Brocard vai auxiliá-lo.

188
O revólver do capitão Brocard

O uivo característico do 80 Rhone à velocidade máxima atinge


a fase aguda. As molas das válvulas trabalham a pleno rendimento.
Altímetro: 2.205 metros. Brocard lembra-se de que é essa a altitude
da Agulha de Pointe-Rousse, acima da aldeia de Peisey-Nancroix, onde
possui um pequeno chalé para a caça ao cabrito montês. Dias re­
motos. Voltarão ainda ?. ..
A distância diminui como em sonhos. O avião alemão decerto
não deu pelo Nieuport, pois executa uma linha reta que o traz
perigosamente para perto. É um aparelho de reconhecimento, um
Albatroz fácil de identificar. Salvo exceção, não deveria aceitar o
combate. Estará cego ? Sorte ainda maior, ei-lo que vira franca­
mente para o sul e penetra ainda mais nas linhas francesas.
9,20 h. — Brocard está ao contacto. O que êle deseja tentar é
um atrevimento, um lance excecional, mas está decidido a arriscá-lo
custe o que custar. Com fria resolução aproxima-se de modo a ficar
a uns trinta metros do Albatroz, pela retaguarda, à mesma altura
e um pouco à sua esquerda. Coloca-se assim no campo de tiro do pas­
sageiro. Sabe disso mas não se importa. O essencial é colocar-se
bem êle próprio. Paciência, corre-lhe os riscos !
E êsses riscos são grandes, maiores ainda do que êle supõe. Há
um instante que o observador inimigo o tem sob o ponto de mira
da sua metralhadora, coronha ao ombro. . .
Brocard está convencido de atirar mais depressa e mais certeira­
mente do que êle. Mais depressa? Não. Mais certeiramente?
T alvez... Quando êle apanha a sua Winchester já pronta, e vai
apontá-la com a mão que tem livre, bruscos relâmpagos iluminam o
habitáculo do Nieuport. Uma sêca rajada explode, por efeito da
qual Brocard ouve rasgarem-se as telas da fuselagem atrás das suas
costas, ao mesmo tempo que o zurzir estridente de mortais chicotadas
passa junto aos seus ouvidos. Errou ! Mas não por muito. Agora
é a sua vez. Êle vê os dois bustos do piloto e do observador sobre­
porem-se no mesmo alinhamento. O passageiro não pode mais atirar.
Cumpre aproveitar essa ocasião única e fugidia para vibrar de uma
só vez o golpe duplo.
Sustentando e guiando o Nieuport exclusivamente com o pedal,
lutando com a mão esquerda contra os violentos remoinhos da hélice
do Albatroz, cuidando de não apoiar a coronha da sua arma no re­
bordo por causa das vibrações, Brocard aponta o melhor que pode.
Ah, é difícil ! Procura conservar-se tanto quanto possível sereno. O

189
N o tempo das carabinas

pensamento mantém-se lúcido: “Vamos... ligeira, ligeiríssima cor­


reção para a frente, que o mesmo é dizer para a esquerda. Muito
pouco, estamos quase no eixo. . . Aqui, está bem. . . ” Três balas em
cadência rápida na direção dos alemães.
Brocard tem a impressão de que lá adiante os dois perfis tiveram
como que um sobressalto, gesticularam de maneira desacostumada.
Mas essa visão é imediatamente desfeita, varrida. O Albatroz des­
garra-se brutalmente para a direita e enceta uma virada em mon­
tante. Manobra inesperada que deixa Brocard no vazio, sem ter tido
tempo de a repetir. O piloto inimigo é um malandro bom conhe­
cedor do seu ofício ! Evidentemente não está morto, para manobrar
assim a sua traquitana. Dir-se-ia ter tido a intuição de que o vôo
perpendicular acentuado não é uma das evoluções favoritas no
Nieuport 18 metros. Contudo é necessário segui-lo, não se deixar
assim embair como uma criança, esforçar-se por subir em espiral !
Ah! de qualquer modo ninguém brincará impunemente com Brocard!
Também êle é um velho piloto, brevetado em 1912, uma futura
“Velha Haste” (x) se Deus lhe der vida.
Largando a Winchester, com as duas mãos na alavanca, êle em­
pinou o seu aparelho a mais de 45 graus. Uma loucura ! “Flerta com
a perda de velocidade”, seu avião alcança a “tangente”. Porém, de
um salto recuperou os cinqüenta metros que lhe faltavam. O Nieu­
port correspondeu maravilhosamente. Afinal de contas não é tão
preguiçoso assim ! Tinha-o injustamente caluniado pouco antes. Ei-
lo, quase automàticamente colado sob o ventre do Albatroz. É um
ventre enorme, de um branco-pardo viscoso, semelhante ao ventre
horrível de um esqualo. E as suas duas grandes rodas, guarnecidas
de pneus imaculados, que giram sob a ação do vento, parecem agitar-
se como barbatanas.
Brocard está suando. Pode ficar ali, a posição é excelente. Ficar
ali e atirar. Depressa ! O observador inimigo — se ainda está vivo,
— não pode ver o Nieuport. Só o piloto, colocado mais atrás, o con­
segue. E eis justamente a sua cabeça, metida num capacete amarelo
claro, inclinando-se para o descobrir. Vai decerto manobrar outra
vez para tentar a fuga ! É preciso não lhe dar tempo.
Com uma tração rápida do gatilho da Winchester, segura no
braço, Brocard acaba de esvaziar o seu carregador, para a frente, sem1
(1) Designação pela qual foram depois conhecidos os pilotos brevetados antes de
1914 ( Vieille Tige). Alusão à haste da alavanca de comando (N . T.)

190
O revólver do capitão Brocard

apontar. Está tão perto ! Oito balas correm a varar a pele lustrosa
do monstro. Brocard furta-se com uma virada sêca para a esquerda,
como, após a estocada, se furta o toureiro.
Mas não é ainda a morte. O piloto alemão, o leutnant Klaus
von Allwoerden (1), é um mestre. Desta vez pica para a direita e
procura alcançar as suas linhas. Começa então uma perseguição
furiosa. Brocard previu a intenção do adversário, mas visto que êle
se pôs em piquê, tanto pior para êle: fica à sua mercê ! O piquê é o
feudo, o reino do Nieuport. Ninguém o vence nesse domínio. Em
cinco segundos o Albatroz é apanhado, coberto, metido nas suas
garras implacáveis. Brocard não o largará mais, mas não pode pensar
em substituir o carregador vazio da Winchester por outro cheio, pois
os movimentos dos dois aviões são demasiado rápidos. Uma idéia
que já em outra ocasião lhe ocorrera, atravessou-lhe a mente: seu
Mauser, depressa o seu revolver Mauser, que nunca o abandona para
o caso de uma aterragem forçada em terreno inimigo. Tem-no ali
na carlinga, a seu lado. Está carregado, ajustado ao estojo de
madeira ôca que lhe serve de coronha. Já que assim é, visto não poder
dar cabo dêle com a Winchester, é a parabellum, o revolver que
Brocard derrubará aquêle Albatroz.
Acerca-se ainda mais, apesar das manobras desordenadas do pi­
loto. O observador, sem dúvida gravemente atingido logo no
início do combate, está impossibilitado de atirar. Ei-lo de pé na tor-
rinha, imóvel, como descaído sôbre si mesmo, o capacete puxado
para a frente, agarrado com as duas mãos aos montantes da carlinga.
O Albatroz, doravante sem defesa, corre mortalmente para as linhas
alemãs. Ah ! se êle se rendesse, se descesse para as linhas francesas,
Brocard deixaria de atirar, desistiría de dar-lhe o golpe de graça !
Mas não sucede assim. O leutnant Allwoerden sente o desejo
feroz de salvar o seu camarada, de salvar o seu avião, de não cair,
com ambos, prisioneiro nas mãos do inimigo. Quer, a todo custo,
voltar ao território alemão. Em cinco oportunidades diferentes Bro­
card tem de alvejá-lo a revólver.
O Albatroz descreve uma senóide desesperada, passando de uma
asa para outra a fim de virar mais sêco. Então, numa dessas viradas
Brocard assiste a um espetáculo medonho que nunca mais esquecerá.
O observador ferido é imediatamente arrancado da sua torrinha, cai
sôbre a asa inferior sem poder agarrar-se a ela, escorrega ao longo da1
(1) Segundo a lista das perdas da aviação alemã de 3 de julho de 1915.

191
N o tempo das carabinas

fuselagem e é projetado ao longe no abismo, com os braços em


cruz (1).
Brocard fecha os olhos e toma a abri-los em seguida. A ter­
rível visão desapareceu, apagou-se. . .
O Albatroz e o Nieuport, sempre colados um ao outro, sobre­
voam agora, a menos de quinhentos metros, a aldeia de Dreslincourt,
à beira do Oise, 10 quilômetros ao sul de Noyon. As linhas estão
pertíssimo. Brocard dispara ainda dois tiros à queima-roupa na
direção do piloto, depois abandona a perseguição quando atravessa
as trincheiras francesas.
O leutnant Klaus von Allwoerden, gravemente ferido, consegue
pousar o seu avião além da linha alemã, a poucas centenas de metros.
A artilharia envolve-o imediatamente com seu fogo e despedaça-o.
O capitão Brocard, comandante da esquadrilha M. S. 3, conseguiu
hoje, 3 de julho, uma proeza sensacional que não mais se repetirá:
durante um combate aéreo travado quase corpo a corpo, estando
sozinho a bordo, derrubou um avião inimigo a tiros de revólver (2).

Quando a notícia desta surpreendente vitória chegou à esqua­


drilha M. S. 12, espalhou o júbilo entre os partidários da carabina.
Que magnífica ilustração da sua doutrina ! Apenas uma sombra
no quadro: não fôra com o Morane-Parasol, tão querido, que a
conseguira, mas com o novo avião, êsse Nieuport do qual se diz que
será futuramente um monoplace.
Quinze dias depois, a 19 de julho, essa alegria apresenta-se enfim
sem máculas:
Uma tocha esbraseada desce do céu à altura de 3.700 metros, e
espedaça-se no chão entre labaredas e fagulhas. Vencido em combate
aéreo, um avião acaba de ser derrubado entre as trincheiras francesas
e as trincheiras alemãs. Pasmados de horror e esquecendo-se um
momento de se matar uns aos outros, os soldados de infantaria emer­
gem dos seus buracos. Quem será a vítima, qual a sua nacionalidade ?
(1) Como sempre nessa época, sem pára-quedas.
(2) Apesar das buscas imediatamente empreendidas de acôrdo com as indicações
do capitão Brocard, o corpo do inditoso observador ficou por muito tempo sem ser
encontrado. Só será descoberto seis meses mais tarde, por acaso, no interior da floresta
de Laigue, durante uma batida aos javalis. Identicaram-no como sendo o do oberleutnant
von Falkenhausen, filho do almirante muito conhecido na Alemanha.
192
O revólver do capitão Brocard

Uma rajada de vento oeste, varrendo os turbilhões da espessa


fumarada, possibilita a resposta: negra cruz de ferro domina o bra­
seiro, na ponta de uma asa branca. É um avião alemão. Vitória
francesa.
O aparelho vencedor desceu lentamente, em largas órbitas. Era
um Morane Saulnier Parasol da M. S. 13. Procura terreno para
pousar. Suas rodas tocam a erva de um campo improvisado, em
Carrière-l’Evêque, no Aisne. Enquanto a multidão surgida o cerca,
para apertar a mão dos triunfadores e saber os seus nomes, dois
homens descem dêle. São dois rapazes. O primeiro chama-se Guerder,
mecânico-metralhador. Foi êle que atirou.
O outro é frágil como uma môça, delgado e tímido, mas com um
fulgor negro no olhar. Tem vinte anos e é piloto. Um coronel,
abrindo caminho por entre a turba vem felicitá-lo:
— A França orgulha-se do senhor. Como se chama ?
— Cabo Guynemer, meu coronel (2).
Seu nome é agora totalmente desconhecido, mas dentro de alguns
dias vai fazer tremer tôda a aviação alemã. O Morane-Parasol teve a
honra de ser o instrumento da sua primeira vitória.
E os derradeiros caçadores em biplace marcam mais um entalhe
nas coronhas das suas carabinas.

0 capitão Brocard mandou-o inumar com as honras militares, conseguindo que sua
família fôsse avisada por intermédio da Cruz Vermelha.
(2) 0 relato pormenorizado dêste combate figura na obra G u y n e m e r , do mesmo
autor, ed. Marcus.

193
DAS CARABINAS
O F IM
O ESTRANHO NATAL DA M . S. 12

Esta manhã, pelas 10 horas, o telefone tocou. O ajudante Bordas,


sem interromper o seu relatório, despendura negligentemente o fone
(uma comunicação como tantas outras !), escuta e estende imediata­
mente o aparelho ao capitão de Bernis, que fuma a seu lado:
— Meu capitão, é justamente com o senhor. Chamam-no de
Jonchery.
Bernis não se apressa. Quem poderá chamá-lo nessa fria
manhã de dezembro, nessa véspera de Natal de céu baixo, de longes
velados por uma bruma cinzenta ? Decerto algum funcionário da
secretaria, desejoso de mostrar zêlo, reclamando a lista dos vôos da
semana que precisamente a M. S. 12 não forneceu. Diabos levem
tantos papéis ! Mal acaba de entrar já o reclamam, para o incomodar!
Mas não é nenhum funcionário : é o comandante de Rose em
pessoa:
— Aqui fala Rose. É o senhor, Bernis ?
— Sim, meu comandante, é Bernis.
— Muito bem. Tome imediatamente o seu carro e venha falar-
me em Jonchery.
— Imediatamente ? Pois não, meu comandante.
A voz de Bernis acusa uma sombra de surpresa. O tom do coman­
dante de Rose tinha qualquer coisa de sério, de quase frio, fora
do normal. Êle próprio deve ter-se apercebido disso, porque acres­
centou:
— Não se preocupe, Bernis. Não é nada grave, pelo contrário.
Mas venha sem demora. Trata-se de uma missão importante a
receber. Venha sozinho.

194
O fim das car a b i n as

— Perfeitamente, meu comandante, vou já.


Venha sozinho ! Que significa isso ? Bernis desligou. Com um
piparote joga o quepe para a nuca, indício certo de preocupação. Seu
olhar percorre o acanhado gabinete. Todos os olhos se fitam nêle. A
fumaça dos cachimbos e dos cigarros sobe em volutas lentas para o
teto de troncos. Está presente a maioria dos pilotos e observadores.
Cansaram-se de passear pelo campo. Tinham frio e aborreciam-se.
Nenhum avião inimigo assinalado. Nada a esperar. O 24 de de­
zembro só podia ser um mau dia de caça, um dia de árvores de Natal,
de ramos de pinheiro e de velas acesas. Sobretudo na Alemanha. De
modo que se encaminharam para a barraca do escritório. Pelo
menos ficariam no quente e poderíam sentar-se.
Um a um tinham empurrado a porta, enrolados nas suas peles
de cabra (continuamos a esperar conjuntos forrados) e distribuiram-
se em redor da estufa, ao acaso dos rudes bancos de pau e das cadeiras
transatlânticas.
De pernas cruzadas deixam errar os pensamentos, despreocupa­
dos. Aquêle telefonema despertou-os.
Está-se sempre à espera de uma saída, de uma corrida de auto­
móvel ou de qualquer outra coisa. Jonchery é um destino parti­
cularmente apreciado. Conversa-se, mata-se o tempo, sabem-se as
últimas notícias. Por outro lado há sempre a atração do amigo
Pléneau, com a sua Secção de Fotografia Aérea. Sempre se encontra
no seu laboratório alguma fotografia sensacional para roubar. E
justamente Bernis fala de se pôr a caminho.
— Vai a Jonchery, meu capitão ?
— Posso ir consigo, meu capitão ?
— E eu ? Tenho justamente de falar com Pléneau.
— Não, ninguém. Vou sòzinho.
Ora essa ! As volutas sobem para o teto mais rápidas, silen­
ciosas mas interrogativas. Bernis sente pesar sôbre si uma reprovação
muda, expectante. Ao sair murmura com indiferença:
— Fiquem sossegados, não é nada. Apenas uma missão a receber.
Volto logo.
— Missão importante ? — pergunta alguém.
Bernis, com a mão no trinco da porta, volta-se:
— Sei lá, com todos os diabos ! Talvez. . .
E saiu. De repente todos se puseram de pé. Uma missão impor­
tante do Exército ? Que diabo poderia ser ? Perdem-se em conje-
turas. Navarre acomoda o cache-nez e o quepe:

195
N o tempo das carabinas

— Eu, rapazes, vou dizer a Girard que prepare o meu calham­


beque. Êle tem ainda três válvulas de escape a consertar. Às vêzes. . .
— Eu também — aprovou Méseguich; — Mons queria ajustar os
comandos. Sempre leva algum tempo. . .
O escritório esvaziou-se. A notícia espalha-se com um rastilho
de pólvora. Ao chegar ao galpão mais afastado já se dizia que a
M. S. 12 seria designada para uma saída importante.
Num minuto tôda a esquadrilha estava em brasas.

Natal de 1915. . . Uma primavera, um verão e um outono decor­


reram após as nossas primeiras vitórias. Outras se seguiram. A
esquadrilha M. S. 12 detém presentemente o recorde de aviões ini­
migos derrubados. E isso lhe confere um grande renome. Sua
fama cresce com a escandalosa sorte que até aqui a tem favorecido.
Nenhuma perda. Nem um morto, nem um ferido entre nós, a não
ser Méseguich com a sua ridícula bala nas costas, que acabou por
ser uma fonte de pilhérias. Nenhum acidente sério que valha a
pena mencionar, a não ser o que tivemos eu e Navarre, por havermos
querido inventar um esporte inédito, a caça junto ao chão à abetarda-
canepeteira. A asa do Parasol revelou-se um tanto longa para
virar à vertical a poucos metros de altura. Sucedeu esbarrarmos com
um buraco de toupeira, estupidamente ali, e voltamo-nos em pleno
vôo. Apenas quinze dias de hospital, excelente repouso que nos per­
mitiu ler alguns novos romances. Começava-se outra vez a escrever,
nesse tempo. . .
Navarre que nessa ocasião (e várias outras depois) a viu de
perto, garante não ser verdade que a famosa Passageira, que tôdas
as tripulações levam a bordo cada vez que saem, seja uma horrível
megera, sem nariz, sem olhos e sem ouvidos. Afirma pelo contrário
que é uma jovem e radiante loura, de cabelos luminosos, voz fasci­
nante e grandes olhos azuis, e que, quanto a êle, anseia por entreter-
se de amor com ela. Os outros mostram-se menos apressados. . .
Seduzidas por tantos atrativos, diversas caras novas vieram au­
mentar as nossas fileiras. Tôdas muito simpáticas. Empurram-se
para ter a honra de servir na M. S. 12. Mas os lugares são difíceis.
Não é admitido quem quer. É necessário ter na fôlha alguns feitos
sólidos para lhe transpor a soleira. Ações de valor, se não realizadas

196
O fim das carabinas

na própria aviação, pelo menos antes de ter ingressado nela, nas


outras armas, infantaria, cavalaria, artilharia. Na falta disso, é
preciso dar provas de qualidades morais reconhecidas.
A 12 enriqueceu-se assim com elementos de valor, cuidadosa­
mente escolhidos. Entre eles pilotos de grande classe, Quellennec,
de Sevin, de Gavardie, Lebeau, e observadores da marca de des Val-
lières e Gasnier du Fresne. A aviação de caça reforça-se e guarnece-
se. Aumenta os seus efetivos. Todos os generais comandantes de
Exército a reclamam agora.
O material também se transformou. O progresso está em marcha.
Os nossos velhos Morane-Parasols estão superados e em breve ficarão
caducos. Sua velocidade já não é suficiente para lhes permitir entre­
garem-se ao exercício da caça. Serão relegados para o fundo dos
galpões. Só raramente os tiram para certas missões especiais (*), em
que se destacam pilotos de primeira ordem, tais como Védrines, Quel­
lennec, Bodin, de Gavardie, e às vezes para breves reconhecimentos
de Exército em percursos limitados e específicos.
Concorrentes mais velozes os substituiram. A família dos bi-
planos Nieuport fez a sua aparição: o Nieuport 18 metros que se
utiliza à vontade como biplace ou monoplace (12), o Nieuport 15
metros e logo depois o caçula da dinastia, o Nieuport 13 metros, o
temível Bebe-Nieuport, que por enquanto só se confia a mãos expe­
rimentadas. Êste é exclusivamente monoplace e comporta uma me­
tralhadora Lewis ajustada no plano superior, destinada a atirar em
frente, por cima da hélice. Com ele impõe-se o ataque por baixo, não
isento de perigos.
O Monocoque Morane assestara o primeiro golpe sério no Pa­
rasol, com as vitórias de Garros. Outras se lhe seguiram. Foi com
êle que Navarre, tornado primeiro ás de guerra, abateu as suas se­
gunda, terceira e quarta vítimas. Foi com êle que Pégoud, o heróico
Pégoud, famoso pelas suas acrobacias aéreas e recusando “embuscar-se”
como professor numa escola de pilotagem, conforme procuraram con­
vencê-lo, derrubou dois adversários antes de ser êle próprio gloriòsa-
(1) Chama-se missões especiais as que consistem essencialm ente em ir aterrar longe
na retaguarda das linhas inim igas, para desembarcar agentes secretos encarregados de
conseguir inform ações, ou operar destruições. O paraquedas de avião, ainda desconhecido,
não podia portanto ser u tilizado para êsses fins de aterragem em zona alem ã, com suas
eventualidades, suas em buscadas, e a condenaçção à m orte em caso de captura exigia um a
grande habilidade e uma audácia a tôda a prova da parte do p ilôto e do seu passageiro
(Ler N o inferno do céu.)
(2) Com o qual o capitão Brocard arrebatou, sòzinho a bordo, a sua vitória de
3 de julho.
197
N o tempo das carabinas

mente morto a 31 de agosto, no decorrer do seu terceiro combate,


quando atacava demasiado abertamente pela retaguarda um biplace
cujo passageiro o esperava a sangue frio, armado de uma metralha­
dora instalada em torrinha.
Tal como se apresenta, o Monocoque Morane está, por sua vêz, às
vésperas de ser superado. Quis a desgraça que após a captura de
Garros, com o seu avião intacto, o inimigo — como se receava, — se
apoderasse imediatamente da idéia tão laboriosamente posta em prá­
tica por Saulnier e os irmãos Morane. Êle mandara-a estudar pelos
seus engenheiros e êstes não demoraram em aproveitá-la, aperfeiço­
ando-a. Mais alguns meses e íamos ver surgir no céu o temível Fokker,
destinado a causar-nos tanto mal.
Enquanto Alkan, em França^), se esforçava por dar corpo ao
seu processo de sincronismo entre o movimento de rotação da árvore
do motor e o do vaivém do pistão da metralhadora por meio de trans­
missão em cadeia, os alemães realizavam-no ao mesmo tempo do que
êle, mas com o emprego de uma transmissão por pinhões. Fokker
e Spad não tardarão a enfrentar-se, cada qual com duas metralhadoras
gêmeas atirando por entre a hélice, sem necessidade de blindagem.
O biplace de caça está desde então condenado.
Há muito tempo que o prevíamos na esquadrilha. Porisso, os
observadores do comêço intensificam aplicadamente as suas instru­
ções para se tornarem quanto antes pilotos de monoplace de caça,
bem entendido. Mais alguns dias de treino e Robert, Moinier, ja-
cottet, Gastin, des Vallières e eu próprio seremos em breve pilotos,
sem precisar deixar a nossa querida M. S. 12. Por especial deferência
uma comissão de examinadores virá submeter-nos a provas aqui em
Rosnay, em nosso próprio campo. Meséguich não está descontente
com a sua falange, batizada por Bernis de M. S. Guich. Tal é a
situação nesta escura manhã de dezembro.
*

As horas passam. É quase uma da tarde.


Enfim, chega o capitão de Bernis. Levou um tempo enorme a
voltar de Jonchery. Sobe a escadaria do palácio de Rosnay, onde a
M. S. 12 continua a ter o seu P. C. Esperamo-lo para almoçar. Todos
estão ansiosos por saber o que há. Porém Bernis, ordinàriamente tão1
(1) Na esquadrilha M. S. 12, como vimos.

198
O fim das carabinas

expansivo, guarda segrêdo. Está fechado como um alçapão, enquanto


seus olhos manifestam um grande júbilo interior. Faz sinal para que
tomemos os nossos lugares, desdobra o guardanapo, senta-se:
— Senhores, não posso dizer-lhes nada: saberão tudo esta noite.
O próprio comandante de Rose os porá ao corrente da missão
reclamada pelo G. Q. G. à esquadrilha. Até lá, silêncio !
“Entretanto preciso imediatamente de três guarnições voluntárias
para essa missão, compostas de piloto e passageiro. Essas guarnições
utilizarão os biplaces que ainda temos, os Nieuport 18 metros e os
nossos velhos Morane-Parasols. Seus aparelhos deverão estar prontos
antes do anoitecer. Porém requer-se um preparo minucioso, capri­
chado, pois trata-se de uma missão danada, uma missão perigossíssima!
Como operação de guerra, não pode haver melhor ! Se der certo,
talvez dê até um fim imediato à guerra. De qualquer modo, os que
fôrem designados farão bem escrevendo esta noite às suas famílias
e pondo os seus assuntos em ordem !
Bernis é muito religioso. Faz uma ligeira pausa e em seguida
acrescenta em tom mais sério:
— Também será conveniente, e a data presta-se especialmente
a isso, pôrem-se em dia com o Padre Eterno. Assim, as suas almas
incrédulas terão alguma probabilidade de se apresentar corretamente
a São Pedro. Você, Navarre, por exemplo, quando se puser em
continência final diante dêle, não se esqueça de ter a blusa bem
abotoada, o queixo bem rapado e não muitos rasgões na consciência,
sem o que terá de dar meia volta ! E agora vamos a saber: quais
são os voluntários ?
— Eu ! Eu ! Eu ! Eu ! Eu ! Eu ! Eu ! Eu !. ..
No mesmo impulso tôdas as mãos voaram para cima das cabeças.
Nenhuma abstenção.
Bernis contou:
— Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez,
onze, doze, treze. . . Os senhores são treze, e naturalmente os licen­
ciados seriam também voluntários, bem o sabemos. Muito bem,
belo número ! Mas é impossível, amigos, lamento ! Preciso apenas
de seis, três guarnições, apenas três guarnições. Nem uma a mais.
Vai ser preciso escolher. ..
A escolha revelou-se impossível. Antigüidade, giro de serviço,
tiragem à sorte, tudo foi recusado com apupos. Ninguém concorda
em renunciar a tomar parte na expedição. Por fim, Pelletier-Doisy
tomou a palavra:

199
N o tempo das carabinas

— Escute, meu capitão, nunca sairemos disto ! Na 12 uns não


partem sem os outros. Porque deseja o G. Q. G. apenas três guarni­
ções ? O G. Q. G. não nos conhece: na 12 são todos ou nenhum, não
é verdade, camaradas ? Aqui é por atacado e não a varejo. Diga-lhes
que é pegar ou largar: ou somos voluntários em bloco e marchamos
todos juntos, ou então não haverá nenhum voluntário ! Na 12 é
assim.
— De acordo ! De acordo !
O capitão de Bernis pediu silêncio, e em tom professoral, que
aliás não lhe assenta muito bem, tenta conciliar os pontos de vista.
— O G. Q. G. — diz êle, — não quer arriscar mais de três guar­
nições nesta aventura. A missão é de alta importância, com efeito,
mas nem porisso se deseja destruir tôda uma esquadrilha de elite
como a 12.
— Mas se se trata de pôr fim à guerra, o resultado vale bem o
risco! — observou alguém.
Uma tempestade de aplausos frisou a oportunidade da obser­
vação. Bernis tornou a partir para Jonchery-sur-Vesle.
Ao entardecer está de regresso. Partida ganha. O comandante de
Rose, depois de uma troca de vistas com o G. Q. G., aceita. Tôdas as
guarnições disponíveis da 12 poderão participar da expedição, isto é
sete guarnições, com Bernis à frente. Um hurra ! vibrante, acolheu
a notícia.
Até à noite trabalha-se febrilmente nos aparelhos. Depois de
dez meses de combates aéreos, o armamento de bordo continua sendo
dos mais sumários. Pequenas metralhadoras Hotchkiss de carregador
linear, ou metralhadoras Lewis de tambor, que ambas cospem mais
ou menos conscienciosamente as suas trinta e duas balas, começaram a
aparecer para os aviões de caça mais favorecidos, porém a maioria dos
biplaces ficaram no duelo à carabina, o que é ainda mais seguro.
Os adversários fuzilam-se, como antes, a poucos metros, fitando-se
nos olhos. Sim, ditosa época de que os aviadores mais antigos sempre
terão saudades !
Durante a tarde todos os Parasols ainda em serviço foram subme­
tidos a exame, o armamento verificado. Os mecânicos, tão ansiosos
e devorados pela curiosidade quanto as guarnições, fizeram mara­
vilhas. Os sete aparelhos estão prontos, dois Nieuport e cinco
Parasols.

200
O fim das carabinas

À meia noite, a igreja da aldeia de Rosnay — perto de Reims,


— está a ponto de estourar de gente. Misturados à população, os
uniformes azul-horizonte das unidades de infantaria e artilharia acan-
tonados nos arredores e as fardas multi cores da M. S. 12 comprimem-
se nos bancos. Mesmo nesta noite de Natal, ouve-se para os lados
de Chemin-des-Dames e da frente de Reims o costumeiro ribombar
do canhão. Quando o padre sobe ao altar alumiado por mil círios
para a sua primeira missa, e se ouve a campainha do menino de
côro, o comandante de Rose entra acompanhado do capitão Le
Révérend. Também chega o tenente Pléneau, ao menos desta vez
sem o seu aparelho fotográfico, o que lhe dá assim como um aspecto
de nu.
Durante o ofício Rose conserva-se de pé, muito erecto na sua
lendária pele de cabra, com os bigodes loiros a cair-lhe aos dois lados
da gola. Sua alta estatura, e o porte da cabeça a um tempo simples
e importante atraem todos os olhares. Mais do que nunca êle é o
barão de Tricornot, o marquês de Rose, o Paladino, o Cavaleiro do
Ar. Por ora nós, os voluntários da 12, observamo-lo para descobrir
em seus olhos o tremendo segrêdo que êle nos vai revelar dentro
em pouco. Nossa impaciência torna-se dolorosa.
Na hora da comunhão dá o sinal e é o primeiro a acercar-se
da sagrada mesa. Em tôda a esquadrilha, como nas manhãs em que
se reclama um voluntário para o combate, não há uma única abs­
tenção. Cada qual trata, conforme recomendou Bernis, de pôr os
seus papéis em ordem.
Depois é a saída. A noite está fria. Não há neve nesse Natal
de 1915. Uma neblina úmida, como sucede freqüentemente em
Champagne, arrasta-se à flor do solo. Não é muito densa, apenas
um leve véu de gaze, mas talvez venha a mudar-se em nevoeiro pela
madrugada. A não ser que o vento se levante para a varrer. É
a observação que ouço o comandante de Rose fazer em voz alta, ao
dirigir-se a pé, conosco, para o solar de Rosny nosso acantonamento
próximo.
Quantas horas alegres ou dramáticas, e às vêzes épicas, vivemos
nesse solar de Rosny !
Esta véspera de Natal vai incluir-se entre as mais estranhas.
A mesa estava posta, hoje não na sala de jantar mas no grande
salão. Desde que há oito meses transportamos para aqui os nossos
penates, o cenário não mudou. Alternando com os troféus das vitó-

201
N o tempo das carabinas

rias pregados ao longo das paredes, os retratos de família do vis­


conde du Doré, com as suas majestosas perucas, continuam dando
a impressão de dardejar olhares severos, ou cheios de concupiscência,
às mulherinhas despidas de Fabiano. Navarre substitui-as tôdas as
semanas. Os pobres velhos hão-de querer variar; cumpre não
esquecer isso !” O efeito revela-se de um cômico irresistível e arranca
sempre gargalhadas aos visitantes.
Quellennec, dispenseiro já acostumado aos nossos ágapes de vi­
tória, prestou o grande serviço. Candelabros de sete braços iluminam
uma toalha imaculada. Contudo o menu é sóbrio, como compete
a uma consoada em tempo de guerra. Figuram nêle apenas as lebres
e perdizes em que o tenente de Sevin, notável atirador a Winchester,
se exercita com louvável escrúpulo inteiramente desinteressado, a
fim de manter a sua classe de combatente do ar.
Houve uma discussão apaixonada para decidir se o champagne
deveria ou não ser admitido à mesa. A maioria esmagadora declarou-
se a favor. Por mera dedicação, cumpre reconhecer.
Um relator improvisado apresentou o argumento decisivo: o
champagne, é inegável, constitui matéria prima necessária à manu­
tenção da guerra. O inimigo sabe isso tão bem que todos os dias
encarrega os seus obuses de espedaçar aos milhares as garrafas de sêco
e extra-sêco em Reims, Verzy, Verzenay e Rilly-la-Montagne, onde
quer que a sua artilharia pode causar essas devastações.
É impossível, sem mostrar cumplicidade, ficar inerte diante de
tal ato de vandalismo, tão prejudicial ao estímulo das forças morais
do exército francês. Resta apenas um modo de agir: a única reação
possível é privar os alemães da satisfação de destruir tantos tesouros.
Impõe-se portanto o consumo prévio, levado ao máximo.
Em conseqüência, a M. S. 12 beberá esta noite champagne.

Vai-se fazendo tarde. As velas dos candelabros choram de fa­


diga em longas estalactites de cêra. O Pommery espuma nas taças, o
banquete chega ao fim. O comandante de Rose, tendo esperado que
os nossos ordenanças, transformados em copeiros, se retirassem, bateu
discretamente na sua taça e levantou-se.
— Caros amigos —começou êle, com a sua voz firme e sem ênfase,
— decerto estão impacientes por conhecer a missão secreta que se

202
O fim das carabinas

comprometem a realizar até ao fim. Vão conhecê-la, mas deixem-me


primeiro felicitá-los pelo belo espírito de equipe de que deram prova.
Os senhores são todos voluntários da cavalaria, espírito que passou
para a aviação de caça.
“O capitão de Bernis vai portanto à frente de todos. Fica bem
claro (e aqui a voz do comandante de Rose alterou-se) que se eu
não tivesse recebido formal ordem em contrário, iria com os senhores.
Vai-me ser penoso ficar, mas é a ordem. Pléneau, queira abrir os
pacotes e proceder à distribuição !
“Senhores, a ceia foi excelente, mas está faltando alguma coisa.
Permitam-me que a complete.
Já Pléneau se apressa a rebentar os barbantes, a rasgar os invó­
lucros. Aos nossos olhos arregalados surgem pilhas de latas de
sardinha e conservas de carne, placas de chocolate, pacotes de açúcar,
dinheiro em notas, tôda uma munição heteróclita:
— Como os senhores —prosseguiu o comandante de Rose, — não
terão talvez amanhã perdizes ou lebres para saborear, convém ser
previdentes. Ouçam bem do que se trata: o S. R. francês enviou ao
2.e bureau do Grande Quartel General uma informação que pode
vir a ser capital. É um fato absolutamente seguro. O G. Q. G. decidiu
explorá-la, embora as dificuldades pareçam dar pouca esperança de
êxito. Mas a 12 è a 12. Pensou-se logo nos senhores, e confiar-lhes
a operação. Da atuação que tiverem podem depender resultados
importantíssimos, bem mais importantes do que poderíam imaginar.
Assestando no moral do inimigo um golpe mortal, poderão abreviar
a guerra, talvez mesmo num curto prazo. É uma possibilidade a
tentar.
A voz do comandante de Rose tornou-se surda. Contivemos a
respiração:
— O S. R. sabe de maneira indubitável que o imperador da Ale­
manha, Guilherme II, chegou hoje à sede do Comando Supremo,
instalada, como sabem, em Spa, na Bélgica, onde passará a noite.
Encontra-se lá neste momento. Amanhã de manhã sairá para a
França ocupada a fim de entregar, por ocasião do Natal, as conde­
corações a personagens importantes do exército alemão, dentre as
quais diversos generais de exército. A cerimônia terá lugar em Sedan,
às 10 horas da manhã em ponto, no picadeiro do antigo quartel dos
nossos dragões. Em nossa terra !

203
N o tempo das carabinas

“O interessante é que a viagem desta vez não será feita de auto­


móvel, mas por trem especial. O imperador está cansado. Ora,
por intermédio de um agente de confiança conhecemos o horário do
trem e o seu itinerário até chegar a França. Êle deve entrar na
estação de Sedan às 9,30 h. Guilherme II repousará alguns minutos
e em seguida se dirigirá ao local da cerimônia.
“Examinemos o mapa. Vindo da Bélgica, o trem depois de ter
passado por Dinant atravessará a fronteira em Givet. Daí subirá o
vale do Mosa por Fumay, Monthermé e Mézières-Charleville, sem
parar, até Sedan. Não haverá outro trem, antes ou depois. Todo
o tráfego será suspenso, de modo que não pode haver dúvida sôbre
a identidade do trem imperial. A linha férrea estará guardada em
tôda a sua extensão, como só os alemães sabem fazê-lo, com um sol­
dado de cinqüenta em cinqüenta metros. Portanto, impossibilidade
para os nossos agentes de colocarem uma bomba e fazerem saltar o
comboio. Mas resta a aviação. Com preenderam ?...”
Ora, se compreendemos ! Meio erguidos nas cadeiras, de olhos
em brasa, estamos prontos a rugir de entusiasmo. Santo Deus, era
então essa a missão ! Era essa ! Formidável! Atacar o trem de
Guilherme I I ! Que presente de Natal para a esquadrilha 12! Mas
o comandante de Rose continua:
— Compreenderam bem, não é verdade ? A 72 foi encarregada
de atacar o trem e de o destruir. Não será fácil ! Em primeiro lugar
pode-se ter a certeza de que a aviação de caça alemã fará patrulha
em todo o percurso. Mas isso, evidentemente não será um impe-
cilho. Onde aviões de bombardeio não poderiam passar, passarão os
senhores. Eis porque, repito, os senhores foram escolhidos. Enfim,
será preciso não dar na vista, voar o mais baixo possível até ao local
do ataque. A floresta das Ardenas, bem utilizada, poderá ajudá-los
a passar despercebidos.
“Quanto ao ataque propriamente dito, eis a maneira de o rea­
lizar: uma vez o trem localizado, picarão sôbre êle em fila, cem
metros uns atrás dos outros, marchando no mesmo sentido do trem,
com motor ao ralenti. Nada de bombas, ataques a metralhadora e
a carabina, voando à flor do chão. Antes de mais nada procurar
matar o mecânico e o condutor da locomotiva. Para os senhores, que
têm abatido aviões à queima-roupa, isso não passará de uma brinca­
deira. Bruscamente privado de direção, há probabilidades de que
o trem vá chocar-se com alguma das numerosas curvas do vale do
Mosa.

204
O fim das cara b i nas

“Mas isso não basta, é necessário resolver também a questão do


guarda-freios, na cauda do trem. Êle poderia evitar a catástrofe.
Isto não deve ser esquecido ! Bernis lhes distribuirá as missões.
“Ainda não é tudo. Passando ao comprido do trem, as guarnições
devem metralhar os vagões à altura das janelas com balas perfurantes,
e especialmente o carro principal, o do Kaiser, sem dúvida fácil de
identificar. Como tudo é possível, talvez uma bala bem despedida
consiga dar cabo do maior sacripanta dêste mundo. Morto êle,
é a aliança austro-alemã decapitada. O inimigo pode desanimar,
a população sublevar-se e exigir o fim da guerra. Tudo se pode
esperar. ;
“Mas nada de precipitação ! Trabalho muito difícil. Estudem
bem o mapa. É entre Fumay e Mézières que o trem deve ser atacado.
Plena floresta. Nessa zona há curvas continuas. O trem, privado de
condutor, pode desmantelar-se numa pavorosa catástrofe. Se isso
acontecer, atenção ! Não se afastarem, voltar e espreitar quem possa
sair vivo dos destroços, submeter tudo a metralha ! Não deixar a
Guilherme a menor possibilidade de escapar !
“Para ir de Rosnay a Fumay. são em linha reta cem quilômetros.
Com os desvios, contem mais ou menos uma hora para ir, outra
para voltar. E isso se não tiverem de se engalfinhar com os Fritz !
Restam-lhes quarenta minutos apenas para cumprir a missão, o que
é indispensável, pois cada um terá de passar várias vêzes ao longo
do trem.
“Êste será com certeza defendido por uma forte D.C.A. sôbre
os vagões. Na linha, a recepção que os espera será ainda mais
apurada. Os senhores precisam prever tudo, mesmo o pior.
A voz do comandante de Rose torna-se jovial:
— Eis porque trouxe êstes pequenos presentes de Natal, que o
amigo Pléneau lhes vai distribuir. Para cada guarnição alguns ví­
veres, uma bússola, um mapa das fronteiras da Bélgica e da Holanda,
dinheiro belga e dos Países-Baixos. Aquêles que fôrem obrigados a
pousar em território inimigo, sempre terão alguma probabilidade de
voltar para nos referir o sucedido.
“Um derradeiro pormenor: de Fumay a Sedan são sessenta e
cinco quilômetros. Dado o terreno acidentado, êsse número repre­
senta aproximadamente a velocidade horária do trem de Guilherme
II. Devendo chegar às 9,30 h a Sedan, êle passará às 8,30 h por
Fumay. Portanto, procurem estar às 8,30 h entre Mézières e Fumay,

205
N o tempo das carabinas

na certeza de que o encontrarão. Assim sendo, partida de Rosnay


às 7 horas. Está tudo claro e bem compreendido ? Muito bem !
“Os senhores receberam a mais bela e extraordinária missão ainda
confiada a aviadores. Tenho a certeza de que tudo farão para a
levar a cabo. Invejo-os !
“Bem, caros amigos, à vossa saúde e à vossa Vitória ! Até breve !
E agora descansar, que não têm muito tempo !
Num só movimento, com grande ruído de cadeiras repelidas,
todos os pilotos da 12 se ergueram empunhando as taças. Uma
aclamação vibrante subiu dos lambris do velho solar de Rosnay:
— Hip ! Hip ! Hurrah ! Viva a França !

Vamos talvez viver a suprema epopéia do tempo das carabinas.


Como os nossos queridos Morane-Parasols, elas estão maduras para
a retirada. Mas antes que sejam, para sempre, penduradas no
armeiro, esperamos utilizá-las pela última vez, dentro em pouco,
e permitir-lhes acabar em apoteose, pois elas bem o merecem.
Por mim, levo a que nunca me abandonou desde a nossa vitória
de 2 de abril. Ela vale tôdas as metralhadoras do mundo. E vou
também desta vez com Pelletier-Doisy, como freqüentemente acon­
tece desde que Navarre passou para o Monocoque-Morane. Estamos
entre os que foram designados para dar cabo dos mecânicos da loco­
motiva. Nada mais simples tratando-se de um trem. Basta que
Pivolo me mantenha ao lado dêle, devagar, por alguns metros !
Amanhã pela manhã será a mais bela abertura de caça !

Quando a alvorada soou às 5 horas, eu naturalmente não tinha


dormido, bem como os outros. Um grande rumor encheu o palácio.
Encontro na escada os camaradas já de pé. Mostram-se conster­
nados, com os rostos velados de tristeza.
— Viste o tempo ?
— Não. Que há ?
— Vai ver !
Corro para o patamar. Maldição ! Um nevoeiro de cortar à faca
impede tôda a visão. As luzes das janelas não alcançam a mais de
dez passos 1

206
O fim das carabinas

Nos autos que nos levarão ao campo, os faróis recortam halos


sinistros, brancos e cintilantes como a neve. Avança-se às apalpadelas.
É como marchar contra um muro.
Ninguém fala, as gargantas cerradas. Nenhum de nós ousa dizer
o que está pensando. Navarre, com o nariz em quilha fora da
vidraça, rosna enfim entre-dentes uma injúria que nos alivia a
todos:
— Imundo Guilherme !
No campo, é o desastre. Recobre-o um opaco sudário. Andamos
como cegos. É preciso gritar a dez metros para nos encontrarmos. Já
são 6 horas. Torna-se evidente que o nevoeiro não se dissipará.
Nunca, desde há meses houve outro assim, tão denso, tão cerrado,
tão definitivo. A missão será materialmente impossível. Ninguém
tem a coragem de dizer isto, como se o simples fato de o exprimir
provocasse o dobre da expedição.
Atmosfera pesada. A névoa gelada cobre as pestanas e as
sobrancelhas. Os ombros encolhem-se e os corações ainda mais.
Apesar do desânimo, os pilotos e os mecânicos puxaram os aparelhos
para diante dos galpões, e puseram os motores a trabalhar, primeiro
ao ralenti, depois a pleno regimen. O ronco dos 80 e dos 100 cv.
Rhone, verteu uma ilusão benéfica, durante alguns minutos, no mais
recôndito das almas doloridas. Se os motores estão trabalhando,
é porque decerto iremos partir. ..
Às 7 horas, uma lívida meia luz acentua a extensão da catás­
trofe. De pardo acinzentado o nevoeiro torna-se branco, grosso
como leite. Nem um sopro de vento. Nenhuma esperança de um
raio solar naquela massa inerte. Um lençol. ..
O comandante de Rose veio juntar-se a nós. Envolto na sua
pele de cabra, com os bigodes salpicados de pequenas gôtas brilhantes,
a chibata de azevinho na mão, permanece imóvel e mudo. Bernis,
a seu lado, também se cala. Quase todos estamos a ponto de chorar.
Às 7h30 um piloto, Quellennec, não se contendo mais, corre
para o seu assento de pilotagem, põe o motor a trabalhar e decola
furioso. É uma heróica doidice.
— Vou fazer uma experiência ! — gritou êle.
E parte sem receber ordens.
Ignora-se então o P.S.V. Durante um quarto de hora de angústia
não se ouve mais nada. Depois o zumbido do seu avião invisível

207
N o tempo das carabines

torna a rondar nas proximidades do campo, afasta-se, de novo se


acerca. Os mecânicos acendem à pressa uma fogueira de gasolina.
Instantes depois, um barulho de rodas raspando o chão indica-nos
que Quellennec acaba de aterrar. É êle. Arranca o capacete.
— Pensei que não encontrava mais o campo ! —gritou. — Não se
vê nada, nada. Imaginei vinte vêzes que me ia despedaçar. Se não
fôsse a vossa fogueira, da qual passei por milagre a cinqüenta metros
e que me deu a impressão da ponta rubra de um fósforo, eu não
teria mais voltado. Achatava-me ! Não há nada a fazer. Algodão até
ao solo. É impossível!
São 8 horas passadas.
O comandante de Rose faz o gesto que todos temíamos. Levanta
a sua chibata. É o fim.
— Meus pobres amigos, terão de resignar-se. Agora é tarde
demais, o trem de Guilherme II já se aproxima de Sedan.
Ainda que fôsse possível partir imediatamente, não chegariam
a tempo. Recolham os aviões e não desesperem. Contra o impos­
sível nada prevalece.
Como prosseguíssemos em círculo à volta dêle, com as mãos
fechadas nos bolsos, mudos e de olhos no chão, êle acrescentou:
— Cruel decepção, os senhores esperavam um belo Natal. Mas c
o outro que o terá. Sejam bons jogadores, nem sempre o inferno
há-de ganhar. Hoje êle, amanhã nós. Cada qual por sua vez. A
nossa há-de chegar em breve, tenho a certeza. Paciência !

Assim decorreu para a esquadrilha M. S. 12 essa véspera de


Natal, da qual cada pormenor é autêntico. Seria inútil dizer que
nessa noite o curso dos acontecimentos podia ter sido mudado, e, com
alguma sorte, a fisionomia da guerra de 1914 alterar-se de maneira
talvez decisiva. Estava escrito que nessa manhã de 25 de dezembro
de 1915, um nevoeiro mais intransponível que uma parede cobriría
todo o norte da França, e que no vale do Mosa, ao abriga dessa cor­
tina protetora, um trem seguiría tranqüilamente para Sedan.

Mas para a aviação era realmente o fim de uma época, o fim das
carabinas. Elas iam empreender, uma a uma, o caminho do museu

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O fim das carabinas

do Exército, do mostruário das recordações. Falhara a derradeira


oportunidade. ..
Quantos sobreviventes somos hoje dessa M. S. 12 dos primeiros
dias ? Quem estava presente no solar de Rosnay, quando o coman­
dante de Rose se levantou para tocar a sua taça ? Onde estão aquelas
faces jovens que eram as nossas ? Que resta de tudo isso ? Que
resta dessa alegria esfusiante, dêsse ímpeto para o combate e para
o amor, daquele entusiasmo por tudo o que era brilhante e audacioso?
Evoco-os a todos, em volta daquela mesa.
De Rose está de pé, com os seus longos bigodes loiros, à gaulesa.
Seus olhos claros pousam sucessivamente em cada um de nós. Quer-
nos abraçar a todos, com o olhar, pela última vez ? Só lhe restam
quatro meses de vida. Êle vai mostrar o caminho, ser o primeiro
a partir como lhe compete. É o chefe. Morto pela França a 12
de maio de 1916, com a mão nos comandos do seu avião de caça,
o temível Bebê-Nieuport.
Outros irão segui-lo. . . A 12, até então incólume, vai salpicar o
céu com os seus fachos deslumbrantes. Robert, tenente de dragões,
tombado no campo da honra em combate aéreo. Moinier, tenente
de hussardos, tombado no campo da honra em combate aéreo.
Jacottet, tenente de caçadores montados, tombado no campo da
honra em combate aéreo. Segundo tenente Méseguich desaparecido
no mar, nos comandos do seu Morane, perseguindo um submarino
inimigo. Vallières/ tenente de caçadores montados, prisioneiro
nas linhas alemãs durante uma missão distante especialmente auda­
ciosa. De Bernis, chefe de esquadrilha, oficial de dragões, morto pela
França em conseqüência de ferimentos recebidos e de fadiga devida
à aviação de caça. Tenente Pléneau, morto depois de ter igualmente
servido a França com tôda a sua alma.
Navarre enfim, Navarre, o mosqueteiro do ar, duas vêzes ferido
e doze vêzes vitorioso, a Passageira loira de olhos azuis não o esqueceu.
Êle flertou com ela durante tôda a guerra, marcou-lhe muitos encon­
tros aos quais ela nunca compareceu. Aquela altiva face de perfil de
águia, a cabeleira revolta seduziam-na. Sua lembrança nunca a
abandonou. Contente de o ver desafiar tantos perigos, procurava
sempre, ávida, subir para o seu avião. Quantas vêzes o admirou,
quantas vêzes o viu rir-se das rajadas de balas e das salvas de obuses
que lhe golpeavam as duas asas ! Era tão belo e corajoso ! Êsse per­
tencia-lhe, ela desejava-o ! Tinha-o de reserva.

209
N o tempo das carabinas

Certa manhã de julho, quando êle se preparava para passar


voando sob o Arco do Triunfo, no grande desfile da Vitória, ela
prendeu-o nos braços. A França não precisava mais dêle, a guerra
tinha acabado.
Mortos também no campo de honra, a vila de Champigny-sur-
Vesle, com os seus cavaleiros Luís XV tocando a trompa, e o solar
de Rosny, com os seus lambris e os retratos de antepassados, incen­
diados ambos até aos alicerces durante a segunda batalha do Marne,
em 1918.
Sim, quantos somos agora ?
Há pouco ainda, talvez cinco. Mas Pelletier-Doisy, o coura-
ceiro da M. S. 12, chegado ao posto de general, acaba por sua vez,
e o último em data do nosso grupo, de largar os estribos, longe, no
seu remoto retiro de Marrakech. Poucos dias antes da sua morte
ainda o pude ver numa rápida viagem, trocar com êle as recordações
supremas:
— Lembras-te do 2 de abril ?
— Lembro, com a carabina.. .
Agora apenas quatro. ..
A grande esquadrilha reúne-se por cima do campo, a maior parte
dos seus aviões já está no céu. Os que estamos vivos ainda não deco­
lamos. Os outros chamam-nos e fazem-nos sinais.
Mais algum tempo e retomaremos os nossos lugares, bordo a
bordo com êles. A M. S. 12 novamente reunida mergulhará nas
nuvens, a caminho do firmamento.

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ÍNDICE

Preâmbulo ................................................................................. 7
Preparem as carabinas ! ........................................................... 15
O primeiro de todos os combates aéreos .............................. 25
Balas sem resultados ............................................................... 52
A segunda v itó ria...................................................................... 66
O facão de Navarre ............................................................... 78
Enfim, a oportunidade ........................................................... 94
Die Waffen nieder! ................................................................. 112
O misterioso Morane de Roland Garros ................................ 145
Os derradeiros combates leais ................................................ 161
O revólver do capitão Brocard ............................................... 183
O fim das carabinas. O estranho Natal da Aí. S. 12 ......... 194
O b r a e x e c u ta d a n a s o f ic in a s d a
São Paulo Editora S. A. — São Paulo, Brasil
É inesgotável a capacidade do homem para povoar de beleza as
coisas aparentemente mais desprovidas de encanto.
A narrativa de René Chambe, que é um depoimento dos remotos
começos da aviação, e sem dúvida a pré-história da caça aérea, cons­
titui um exemplo de quanto pode a imaginação no sentido de trans­
formar um ato cruel e de seca brutalidade num objetivo de alta vir­
tude patriótica, premiado com medalhas e festejado com banquetes.
Abstraindo, porém, essa terrível contingência a que a fatalidade
obriga os povos, “No Tempo das Carabinas” é a deliciosa evocação
dos tempos recuados da primeira guerra mundial, quando a aviação de
caça ainda não existia, ou pelo menos não existia como recurso de
guerra conhecido, e os aviadores, pilotando aparelhos descarnados,
feitos quase de papel e de madeira, se fuzilavam à queima-roupa uti­
lizando velhas carabinas e revólveres.
É difícil conceber algo mais frágil que um Morane-Parasol sul-
cando os ares desertos em busca de um taube inimigo, e a luta que
então se travava, tôda de astúcia e destreza (ambos correndo à louca
velocidade de 120 quilômetros horários!) enche de enternecimento os
contemporâneos das poderosas máquinas modernas, que relampejandó
a mais de 1.000 quilômetros vomitam a destruição e a morte com
exatidão implacável, ao simples toque de botões de galalite.
Homens lendários como Frantz e Quénault, Gilbert e Puechredon,
Navarre e Pelletier-Doisy, Roland Garros e Guynemer encheram a
crônica desses tempos com a refulgência das suas vitórias, e todo o
livro ressoa do entusiasmo das multidões que acorriam, e mesmo das
tropas que se imobilizavam nas trincheiras, contemplando a estranha
luta e torcendo alanceadamente pelos seus compatriotas, até verem
despencar das alturas, como uma flor de lume com seu caule de negra
fumaça, o aparelho vencido.
São esses dias heróicos que Chambe ressuscita com amor em No
Tempo das Carabinas, dias de ontem que a técnica já tão fundamente
revolucionou, mas que guardam todo o seu frescor e quase ingenuidade
em páginas repassadas de emoção.

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