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tinham enchido todos os quartos do hotel mantinham-nos vazios desde então, já

que não chegavam novos viajantes a nossa cidade. Tarrou era um dos raros
hóspedes, e o gerente não perdia oportunidade para lhe fazer notar que, se não
fosse seu desejo de ser agradável aos seus últimos clientes, teria há muito
fechado o estabelecimento. Pedia muitas vezes a Tarrou que calculasse a duração
provável da epidemia. ”Dizem”, observava Tarrou, ”que o frio é inimigo dessa
espécie de doença.” O gerente exasperava-se: ”Mas aqui nunca faz realmente frio,
meu caro senhor. De qualquer modo, ainda faltam alguns meses”. Tinha certeza
aliás de que os visitantes continuariam durante muito tempo a evitar a cidade.
Essa peste era a ruína do turismo. No restaurante, d pois de uma curta ausência,
viuse reaparecer o Sr. Othon, o homem-coruja, mas seguido apenas pelos dois
cachorrinhos comportados. Colhidas as informações, soube-se que a mulher
tinha tratado e enterrado a própria mãe e que estava, nesse momento, de
quarentena.
- Não gosto disso - disse o gerente a Tarrou. com quarentena ou sem
quarentena, ela é suspeita, e, conseqúentemente, eles também.
Tarrou fez-lhe notar que, sob esse ponto de vista, todos eram suspeitos.
Mas o outro era categórico e tinha sobre a questão opiniões bem definidas:
- Não, senhor, nem o senhor nem eu somos suspeitos. Eles são.
Mas o Sr. Othon não se alterava por tão pouco e, dessa vez, a peste não ia
levar vantagem alguma. Entrava da mesma maneira na sala do restaurante,
sentava-se antes dos filhos e continuava a dirigir-lhes frases distintas e hostis.
Apenas o garoto mudara de aspecto. Vestido de preto como a irmã, um pouco
mais curvado sobre si próprio, parecia uma pequena sombra do pai. O vigia, que
não gostava do Sr. Othon, dissera a Tarrou:
- Ah! Aquele vai morrer todo vestido, nem será preciso arrumá-lo. Vai
direitinho.
O sermão de Paneloux era também relatado, mas com o seguinte
comentário: ”Compreendo esse simpático ardor. No começo dos flagelos e quando
eles terminam, sempre se faz um pouco de retórica. No primeiro caso, não se
perdeu ainda o hábito, e no segundo, ele já retornou. É no momento da desgraça
que a gente se habitua à verdade, quer dizer, ao silêncio. Esperemos”.
Tarrou anotava, enfim, que tivera uma longa conversa com o Dr. Rieux,
da qual recordava apenas que dera bons resultados e esclarecia, a propósito
disso, a cor castanho-clara dos olhos da mãe do médico, afirmava estranhamente
que um olhar onde se lia tanta bondade seria sempre mais forte que a peste e
consagrava, por fim, longas páginas ao velho asmático tratado por Rieux.
Tinha ido vê-lo, com o médico, depois da entrevista. O velho acolhera
Tarrou com risinhos, esfregando as mãos. Estava na cama, encostado ao
travesseiro, por cima das suas duas panelas de grãos-de-bico. ”Ah, mais um”,
dissera ele ao ver Tarrou. ”É o mundo às avessas, mais médicos que doentes. É
que a coisa anda depressa, hem? O padre tem razão, é bem merecido.” No dia
seguinte, Tarrou voltara sem avisar. Se se der crédito às suas anotações, o velho
asmático, lojista de profissão, tinha decidido aos cinquenta anos que já
trabalhara bastante. Metera-se na cama e não voltara a levantar-se desde então.
No entanto, a sua asma conciliavase com o tempo em que estivera em pé. Uma
pequena renda o mantivera até os setenta e cinco anos, cujo peso ele carregava
alegremente. Não conseguia tolerar relógios e, na verdade, não havia um único
em toda a casa. ”Um relógio é um objeto caro e bobo”, dizia ele. Calculava o
tempo, e sobretudo a hora das refeições, a única que lhe importava, com suas
duas panelas, uma das quais estava cheia de grãosde-bico quando acordava.
Enchia a outra, uma a uma, com o mesmo movimento aplicado e regular.
Encontrava assim seus pontos de referência, num dia medido por panelas. ”De
quinze em quinze panelas”, dizia ele, ”é hora de comer. É muito simples.”
Aliás, a se acreditar na mulher, desde muito novo dera sinais dessa
vocação. Na verdade, nada lhe interessara jamais: nem o trabalho, nem os
amigos, nem os cafés, nem a música, nem as mulheres, nem os passeios. Nunca
saía da cidade, exceto num dia em que, obrigado a ir a Argel para cuidar de
negócios da família, tinha descido na estação mais próxima de Oran, incapaz de
levar mais adiante a aventura, e voltara no primeiro trem.
A Tarrou, que parecera admirar-se da vida enclausurada que ele levava,
tinha mais ou menos explicado que, segundo a religião, a primeira metade da
vida de um homem era uma ascensão e a outra, um declínio; que no declínio, os
dias do homem já não lhe pertenciam, que lhe podiam ser arrebatados a qualquer
momento, que ele nada podia fazer deles, e que o melhor, justamente, era não
fazer nada. A contradição, aliás, não o assustava, pois tinha pouco depois dito a
Tarrou que certamente Deus não existia, já que, de outro modo, os padres seriam
inúteis. No entanto, por certas reflexões que se seguiram, Tarrou compreendeu
que essa filosofia estava estreitamente ligada ao estado de espírito que lhe davam
os peditórios frequentes da sua paróquia. Mas o que completava o retraio do
velho era um desejo que parecia profundo, e que ele exprimiu várias vezes
perante seu interlocutor: esperava morrer muito velho.
”Será um santo?”, perguntava Tarrou a si próprio. E respondia: ”Sem
dúvida, se a santidade é um conjunto de hábitos”.
Mas, ao mesmo tempo, Tarrou dedicava-se à descrição bastante
minuciosa de um dia na cidade tomada pela peste, dando assim uma justa ideia
das ocupações e da vida de nossos concidadãos durante esse verão. ”Ninguém ri,
a não ser os bêbados”, dizia Tarrou, ”e esses riem demais.” Depois, retomava sua
descrição:
”De madrugada, brisas leves percorrem a cidade ainda deserta. A essa
hora que fica entre as mortes da noite e as agonias do dia, parece que a peste
suspende por um instante seu esforço e toma fôlego. Todas as lojas estão
fechadas. Mas, em algumas, o aviso ’Fechada por causa da peste’ atesta que não
abrirão dentro em pouco como as outras. Vendedores de jornais meio
adormecidos não gritam mais as notícias, mas, encostados às esquinas das ruas,
oferecem sua mercadoria aos lampiões com gestos de sonâmbulos. Daqui a
pouco, despertados pelos primeiros bondes, vão espalhar-se por toda a cidade,
oferecendo de braço estendido as folhas onde se destaca a palavra ’peste’. ’Haverá
um outono de peste?’ O Professor B. . . responde: ’Não’. Cento e vinte e quatro
mortos, e eis o balanço depois de noventa e quatro dias de peste’.
Apesar da crise de papel, que se torna cada vez mais acentuada, e já
forçou alguns periódicos a diminuírem o número de páginas, criou-se mais um
jornal, O Correio da Epidemia, que se impõe como tarefa ’informar nossos
concidadãos, com a preocupação de uma escrupulosa objetividade, dos
progressos ou retrocessos da doença; fornecer as opiniões mais categorizadas
sobre o futuro da epidemia; prestar o apoio de suas colunas a todos os que,
conhecidos ou desconhecidos, estejam dispostos a lutar contra o flagelo; levantar
o moral da população, transmitir as diretrizes das autoridades e, numa palavra,
reunir todos os esforços para lutar de modo eficaz contra o mal que nos assola’.
Na realidade, esse jornal limitou-se muito rapidamente a publicar anúncios de

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