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novos produtos infalíveis para evitar a peste.

Por volta das seis horas da manhã,


todos esses jornais começam a ser vendidos nas filas que se instalam às portas
das lojas mais de uma hora antes da sua abertura, depois nos bondes que
chegam, apinhados, dos subúrbios. Os bondes tornaram-se o único meio de
transporte e avançam com grande dificuldade, os estribos sobrecarregados. Coisa
curiosa, no entanto: todos os ocupantes, na medida do possível, voltam as costas
aos outros para evitar um contágio mútuo. Nas paradas, o bonde despeja uma
carga de homens e de mulheres cheios de pressa de se afastarem e de se
isolarem. Frequentemente, ocorrem cenas devidas apenas ao mau humor, que se
torna crônico.
Depois da passagem dos primeiros bondes, a cidade desperta pouco a
pouco, as primeiras cervejarias abrem as portas, com os balcões carregados de
avisos: ’Não há mais café’, ’Traga o seu açúcar’, etc. . . Depois, abrem-se as lojas,
as ruas animam-se. Ao mesmo tempo, a luz sobe e o calor aumenta pouco a
pouco no céu de julho. É a hora em que aqueles que não fazem nada se arriscam
pelas avenidas. A maior parte parece ter-se encarregado de conjurar a peste pela
ostentação do seu luxo. Todos os dias, por volta de onze horas, nas artérias
principais, há um desfile de homens e de mulheres jovens, em que se pode sentir
essa paixão de viver que cresce no seio das grandes desgraças. Quanto mais a
epidemia se estender, mais o moral se tomará elástico. Voltaremos a ver as
saturnais milanesas à beira das sepulturas.
Ao meio-dia, os restaurantes enchem-se num abrir e fechar de olhos.
Muito depressa, formam-se à porta pequenos grupos que não conseguiram
encontrar lugar. O céu começa a perder a luz por excesso de calor. À sombra dos
grandes toldos, os candidatos à comida esperam a vez, à beira da rua estalam ao
sol. Se os restaurantes são invadidos, é porque simplificam muito o problema do
abastecimento. Mas deixam intacta a angústia do contágio. Os convivas perdem
longos minutos limpando pacientemente os talheres. Não há muito tempo, certos
restaurantes anunciavam: ’Aqui escaldam-se os talheres’. Pouco a pouco, porém,
renunciaram a qualquer publicidade, já que os clientes eram forçados a vir. Aliás,
o cliente gasta de bom grado. Os vinhos finos ou assim considerados, os
suplementos mais caros, são o começo de uma corrida desenfreada. Parece
também que houve cenas de pânico num restaurante, porque um cliente,
indisposto, empalidecera, levantara-se cambaleando e dirigira-se rapidamente
para a saída.
Por volta de duas horas, a cidade esvazia-se pouco a pouco e é então o
momento em que o silêncio, a poeira, o sol e a peste se encontram na rua. Ao
longo das grandes casas cinzentas, o calor desliza sem cessar. São longas horas
prisioneiras que acabam nas tardes inflamadas que se abatem sobre a cidade
populosa e tagarela. Durante os primeiros dias de calor, uma vez ou outra, e sem
que se saiba por quê, as tardes eram desertas. Mas agora a primJira friagem traz
uma trégua, se não uma esperança. Todos descem então para as ruas, falam para
se atordoar, discutem ou desejam-se e, sob o céu vermelho de julho, a cidade,
carregada de casais e de clamores, deriva em direção à noite ofegante. Em vão,
todas as tardes nas avenidas, um velho inspirado, com um chapéu de feltro e
gravata esvoaçante, atravessa a multidão, repetindo sem cessar: ’Deus é grande,
vinde a Ele’. Todos se precipitam, pelo contrário, para qualquer coisa que mal
conhecem ou que lhes parece mais urgente que Deus. A princípio, quando
achavam que era uma doença como as outras, a religião tinha prestígio. Mas
quando viram que o caso era sério, lembraram-se do prazer. Toda a angústia que
se pinta durante o dia nos rostos se dissolve então, no crepúsculo ardente e
poeirento, numa espécie de excitação desvairada, numa liberdade desajeitada que
inflama todo um povo.
E também eu sou como eles. Puro engano! A morte nada é para os
homens como eu. É um acontecimento que lhes dá razão.”
Foi Tarrou que pediu a Rieux a entrevista de que fala nos seus cadernos.
Na noite em que Rieux o esperava, o médico contemplava a mãe, placidamente
sentada a um canto da sala de jantar. Era aí que ela passava seus dias quando a
arrumação da casa a deixava livre. com as mãos juntas sobre os joelhos,
esperava. Rieux não tinha sequer a certeza de que fosse ele quem ela esperava.
No entanto, qualquer coisa se alterava no seu rosto quando ele aparecia. Tudo
que uma vida laboriosa nele colocara de mutismo parecia então animar-se.
Depois, recaía no silêncio. Nessa noite, olhava através da janela para a rua
deserta. A iluminação tinha sido diminuída de dois terços. E, aqui e ali, uma
lâmpada muito fraca punha alguns reflexos nas sombras da cidade.
- Vão manter a iluminação reduzida durante toda a peste? - perguntou a
Sra. Rieux.
- Provavelmente.
- Contanto que isso não dure até o inverno. . . Seria muito triste.
- É verdade - disse Rieux.
Viu o olhar da mãe pousar-lhe na fronte. Sabia que a inquietação e o
excesso de trabalho dos últimos dias lhe haviam vincado o rosto.
- O dia não correu bem? - perguntou a Sra. Rieux.
- Oh, como de costume.
Como de costume! Quer dizer que o novo soro enviado de Paris parecia
ser menos eficaz que o primeiro, e as estatísticas subiam. Continuava a não
haver a possibilidade de inocular o soro preventivo a não ser nas famílias já
atingidas. Teriam sido necessárias quantidades industriais para generalizar sua
utilização. A maior parte dos abscessos recusavam-se a abrir-se, como se tivesse
chegado a época do seu endurecimento, e torturavam os doentes. Desde a
véspera, havia na cidade dois casos de uma nova forma da epidemia. A peste
tornava-se então pulmonar. Nesse mesmo dia, no decurso de uma reunião, os
médicos, exaustos diante de um prefeito desorientado, tinham pedido e obtido
novas medidas para evitar o contágio que na peste pulmonar se fazia de boca a
boca. Como sempre, não se sabia nada.
Olhou para a mãe. O belo olhar castanho revolveu nele anos de ternura.
- Está com medo, mamãe?
- Na minha idade, já não se teme muita coisa.
- Os dias são muito compridos e eu agora nunca estou em casa.
- Para mim é indiferente esperar, desde que saiba que vai chegar. E
quando você não está, penso no seu trabalho. Tem notícias?
- Sim, vai tudo bem, se posso acreditar no último telegrama. Mas sei que
ela diz isso para me tranqüilizar.
A campainha da porta tocou. O médico sorriu para a mãe e foi abrir. Na
penumbra do patamar, Tarrou, vestido de cinzento, parecia um grande urso.
Rieux fez o visitante sentar-se diante da secretária. Ele próprio ficou em pé, atrás
da poltrona. Estavam separados pela única lâmpada acesa em cima da secretária.
- Sei - disse Tarrou, sem preâmbulos - que posso lhe falar com franqueza.
- Rieux aprovou em silêncio. Dentro de quinze dias ou um mês, o senhor já não
terá aqui qualquer utilidade; estará superado pelos acontecimentos.

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