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A Navalha
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Nessa barbearia, onde muitos se conhecem, são comuns as
conversas animadas sobre os mais variados assuntos: discute-se
política, futebol, fala-se sobre mulheres... Alguns leem revistas e os
mais velhos geralmente passam o tempo a falar sobre saudosos
amigos, relembram aventuras passadas ou contam casos e “cau-
sos”. E foi justamente um desses “casos”, que Seu Rubiano, um dos
barbeiros do salão (homem de mais de setenta anos, mas que, ape-
sar da idade ainda exerce com galhardia o ofício que aprendeu com
o pai, numa cidadezinha do interior, quando ainda era garoto), con-
tou em uma dessas tardes para uma pequena plateia de atentos ou-
vintes.
Enquanto continuava o seu trabalho, Seu Rubiano começou a
relatar o caso que, segundo ele, aconteceu em outra cidade tam-
bém do interior, há muitas décadas, com um velho amigo de nome
Juvenal, seu colega de profissão.
- Juvenal - informou Seu Rubiano aos presentes - trabalhava
sozinho na pequena barbearia de sua propriedade, uma das poucas
existentes na tal cidadezinha onde morava. Nasceu e cresceu no
lugar, lá aprendeu a profissão, casou-se... Enfim, conhecia e era
conhecido por todos. Homem pacato, mas muito sistemático e me-
tódico, de hábitos arraigados, tinha um ciúme quase doentio das
suas ferramentas de trabalho, principalmente de uma navalha que
era de estimação e ele vivia a afiá-la na grossa tira de couro fixada
ao lado da cadeira. Ele afirmava que os concorrentes não conse-
guiam competir com ele: costumava gabar-se de fazer com a tal
navalha o barbear mais suave da cidade!
Após esses esclarecimentos, Seu Rubiano passou, enfim, a
relatar o caso.
- Pois bem, meus amigos! Certo dia, quase no horário do al-
moço, quando Juvenal já se preparava para fechar o salão, entrou
um antigo freguês, seu conhecido de muitos anos. O homem estava
agitado, tenso! Parecia ter muita pressa e pediu-lhe emprestada a
navalha. Juvenal então, sisudo, rudemente respondeu que não a
emprestaria, entretanto, se quisesse fazer a barba, o freguês pode-
ria voltar após o almoço (pois o almoço, para ele, era inadiável).
Porém, o homem insistiu em dizer que era urgente: precisava ape-
nas aparar o bigode, coisa muito fácil de fazer, segundo o mesmo, e
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não havia razão para o barbeiro se preocupar, pois o trabalho seria
rápido e ele próprio o faria.
Diante de tanta insistência, Juvenal terminou por ceder. -
“Afinal, trata-se de um bom freguês, e é velho conhecido. Que mal
haverá em lhe fazer um pequeno favor?” - ponderou e, mesmo a
contragosto e relutante, apreensivo pela navalha, entregou-a ao
freguês, não sem antes fazer-lhe várias recomendações. Em segui-
da dirigiu-se às pressas para sua casa (morava ao lado da barbea-
ria), pois a “patroa” certamente já o esperava. Entretanto, inquieto
e preocupado, Juvenal nem sequer terminou o almoço, voltou rapi-
damente para a barbearia.
Ao chegar à porta do estabelecimento, porém, parou estar-
recido. Não podia acreditar! A tão querida navalha, objeto de esti-
mação, companheira inseparável de tantos anos estava no chão,
abandonada! Ao seu lado, junto à cadeira, também no chão, uma
poça de sangue escorria. Caído sobre ela, um corpo inerte jazia
sem vida, com a garganta cortada. O homem suicidara-se!
Ao terminar a narrativa, Seu Rubiano interrompeu o corte de
cabelos que estava fazendo, parou segurando a tesoura e o pente
no ar por alguns instantes, pensativo, dirigiu um rápido olhar para
os ouvintes e completou:
- Pois bem, meus amigos: só não consegui compreender nes-
tes anos todos, o que mais entristecia o Juvenal. Se a morte trágica
do freguês em sua barbearia, ou a perda da navalha confiscada pela
polícia.
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Antônio Carlos de Andrade Bueno
Jornal e Telejornal
Hoje pela manhã, como faço diariamente após o café, abri o
jornal.
Interesso-me particularmente por economia e política, mas
primeiramente folheio o caderno cultural: literatura, música, teatro,
cinema... Porém, antes de ler de fato os assuntos citados, detenho-
me invariavelmente nos quadrinhos e os leio com entusiasmo (é um
hábito antigo). Divirto-me como criança com as tirinhas de alguns
cartunistas. Nem sempre leio o noticiário policial, mas desta vez a
manchete despertou minha atenção. Era estarrecedora! “GAROTA
DE 19 ANOS É ACUSADA DE MATAR O FILHO RECÉM-NASCIDO”
“Ora, que novidade há nisso?” - Dirão alguns com desdém,
lembrando-me de que casos como esse são comuns. Sim, infeliz-
mente há tempos, fatos abomináveis como esse passaram a ser cor-
riqueiros, ocorrem e são noticiados frequentemente, mas nem por
isso devem ser banalizados. Não podemos deixar de considerá-los
(repito) estarrecedores!
O que me leva a discorrer sobre o assunto, entretanto, é ou-
tro fato ocorrido neste mesmo dia, e sobre o qual falarei mais adian-
te após relatar os detalhes da manchete acima destacada.
O acontecimento, segundo o jornal, ocorreu há dois dias no
Bairro do Ipiranga, em São Paulo e, em resumo é o seguinte: A jo-
vem, que morava com a mãe e uma irmã, e conseguiu (não se sabe
como) esconder sua gravidez durante a gestação, deu à luz sozinha
em casa. Desesperada, ela recorreu a um garoto de quatorze anos,
seu namorado, o qual julgava ser o pai do bebê. Auxiliada pelo ra-
paz, a garota banhou o recém-nascido em água sanitária, envolveu
o seu corpinho em sacos plásticos e o escondeu num armário na
área de serviço, onde ele morreu asfixiado.
Acometida em seguida por uma hemorragia, a jovem telefo-
nou para a irmã que, sem saber de nada a levou para o hospital,
onde, após os exames, embora ela se negasse a admitir, os médicos
constataram que ela havia sofrido um procedimento de parto e, por
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isso, comunicaram o fato à polícia que descobriu o assassinato após
o rapaz, namorado da moça, confessar o ocorrido.
Ainda segundo a notícia, os dois foram autuados em flagran-
te: o garoto foi recolhido à FUNDAÇÃO CASA (antiga FEBEM), e a
jovem será presa tão logo receba alta do hospital.
Senti-me profundamente deprimido. Sou daqueles que se
sentem chocados com fatos como esse, ainda que nos últimos tem-
pos, crueldades como essa tenham se vulgarizado. Custo a acredi-
tar que um ser humano seja capaz de cometer um ato tão ignóbil, e
me pergunto: Merecemos mesmo ser chamados de seres humanos?
Procuro em vão imaginar o que levaria uma pessoa a come-
ter tal atrocidade: ignorância, medo, desespero, insanidade, incon-
sequência? Ou pura insensibilidade, maldade e frieza?
Talvez um dia alguém consiga explicar-me. Será? Confesso-
me indignado!
Agora à noite assisto pela TV a um dos telejornais diários
(que por sinal não é o de maior audiência e nem o mais sensaciona-
lista) e então me deparo com outra reportagem, essa sim, digna de
louvores!
Resumindo-a, é esta a notícia:
Em um bairro da periferia de Campinas-SP, uma jovem do-
na-de-casa se atira em um poço e consegue salvar os dois filhos, um
de três, e outro de dois anos de idade, que ali haviam caído quando
brincavam no quintal da casa da avó. Graças à rápida ação daquela
mãe que não hesitou ao colocar em risco a própria vida, os dois ga-
rotinhos felizmente saíram ilesos da iminente tragédia.
Confesso que ao assistir à entrevista daquela mãe, abraçada
junto às duas criaturinhas tão frágeis e já fora de perigo, fiquei ex-
tremamente emocionado, como também ficara pela manhã ao ler o
jornal, porém, as duas emoções são completamente diferentes uma
da outra: a primeira exprime o meu sentimento de extrema indig-
nação, tristeza e revolta! Mas, a segunda... Ah! A segunda, esta sim!
Esta exprime júbilo, alegria, contentamento, e me faz refletir que
sim: felizmente ainda podemos ser considerados seres humanos!
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Antônio Carlos de Andrade Bueno
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Sinto-me nostálgico. Minh’ alma chora. Desta minha janela
não posso mais contemplar a área verde do velho parque com as
copas das árvores a farfalhar, balançando-se suavemente sob a aca-
riciante brisa da manhã, nem tampouco vislumbro o nascer do sol
que se levanta esplendoroso todos os dias por detrás dos longín-
quos montes que circundam a cidade
bueno46@gmail.com