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O C RIME DE O TÁVIO 1 2

Olavo Bilac

t
CARTA ENCONTRADA ENTRE PAPÉIS VELHOS

[343]3 Saberás tudo, já que tudo queres saber. Três anos passaram
sobre essa negra tragédia. E ainda hoje tenho tudo presente à memória, e
ainda te faço esta pergunta, que há três anos dirijo a mim mesmo, todos os
dias sem achar resposta:
— Foi um crime o que eu fiz?
Quando Otávio me bateu à porta, às dez horas da noite, eu tinha um
livro aberto diante de mim. Não lia. À cólera, que me agitara durante toda a
tarde, sucedera uma grande prostração. Parecia-me sem remédio a minha
desgraça, depois daquela certeza, daquela terrível certeza...
Amá-la como eu a amava, com o desejo nunca saciado de a possuir,
afrontar tudo, cometer o crime de lhe dar cerco durante dois longos anos,
persegui-la por toda a parte, ter de viver numa constante dissimulação com

_________________________
1
BILAC, Olavo. O Crime de Otávio. In: FRANÇA, Júlio; NESTAREZ, Oscar (org.). Tênebra: narrativas
brasileiras de horror [1839-1899]. São Paulo: Fósforo, 2022. p. 343-351. [1890].
2
Nota da Tênebra. A primeira publicação do texto ocorreu em 1890, no periódico Gazeta de
Notícias (RJ), número 40.
3
Os números entre colchetes correspondem aos números das páginas da referência.
o marido, ouvir-me a toda hora elogiado por ele, comer-lhe os jantares
todos os dias, só para estar junto dela — desanimar afinal, considerá-la
honesta, reputá-la o modelo das esposas, passar do amor à veneração,
consolar-me com a minha derrota — e, de repente, aquela certeza de que a
minha santa só para mim era santa, e humanizava-se com o “outro”, na
suprema delícia que eu tanto ambicionara!
[344] Eu e Otávio éramos dois inseparáveis. Ligados por um parentesco
longínquo, quase com a mesma idade, separamo-nos quando tive de ir ao
Norte buscar a minha carta de doutor, deixando-o a estudar o seu terceiro
ano de medicina.
Nos cinco anos que durou o nosso apartamento correspondemo-nos
sempre — cartas de amigos, cheias de confidências e de saudades. Uma
dessas cartas trouxe-me poucos meses antes da minha formatura a notícia
de seu casamento. Casamento pobre: uma menina órfã, que ele encontrara
em casa de uma tia, no Engenho Velho. A carta, longa e apaixonada, fechava
com este trecho: “Ema, que está ao meu lado, vendo-me escrever, manda-te
um grande abraço. Já te estima extraordinariamente, mesmo sem
conhecer”.
E meses depois, numa radiante manhã de domingo, vendo
aproximarem-se do navio que me trouxera escaleres e lanchas, cortando a
água verde batida pelo sol — a primeira fisionomia conhecida que lobriguei
foi a de Otávio. Dizia-me adeus, muito alegre, mais gordo, num fato de
casimira clara. Ao seu lado, toda de branco, acenava-me com o lenço a
mulher. Alta, esbelta, de um moreno dourado, grandes olhos profundos,
boca pequena e vermelha; sob o chapéu de palha desabado viam-se os
cabelos, fartos e negros. Foi ela quem subiu primeiro a escada. Veio a mim,

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O Crime de Otávio z Olavo Bilac

naturalmente, sem embaraço, sem me chamar “doutor”, com uma confiança


que me cativou desde logo:
— Bom dia, Jaques!
— Minha senhora...
E caí nos braços de Otávio. Ao almoço, em casa deles, ficamos mais de
quatro horas à mesa, matando saudades. Ela tomou parte na conversa, com
uma adorável tagarelice de dezoito anos. Examinei-a. Deliciosa de graça e
de beleza. Tinha a pele finíssima, a orelha pequenina e delicada, como uma
concha preciosa.
Quando olhava para o marido, velavam-se-lhe os olhos de carinho,
meigos, deliciando-se na contemplação dele.
Desse dia — foi talvez o dia mais feliz da minha vida — nasceu esta
irremediável desgraça. Não fosse ele, e eu não teria cometido aquilo que
ainda agora mesmo te pergunto se foi um crime...
[345] Amei-a pelo hábito de vê-la todos os dias, de sentar-me todos os
dias ao seu lado, de ouvi-la, embriagado pelo seu aroma, deliciosamente
abrasado pelos seus grandes olhos profundos. Tratava-me sem cerimônia
como a um irmão. Contava-me, confiadamente, com os olhos muito perto
dos meus — quando Otávio saía a ver algum doente e ficávamos sós —, a sua
vida antiga de menina pobre, sem distrações; junto de uma tia rabugenta, na
enorme casa triste do Engenho Velho; o seu namoro com Otávio, as
dificuldades que apareceram para o casamento — ela, órfã e pobre, ele,
médico novo e sem clínica; e ia por diante, falando muito do marido,
elogiando-lhe o talento e a bondade — torturando-me.
Com o “outro” era muito mais fria do que comigo.
Chamava-se Barbosa. Ia lá às vezes jantar, mas comumente só aparecia
à noite. Era um moço rico, baixinho, janota, olhos piscos por trás dos vidros
grossos de um pincenê de ouro, roupas espalhafatosas, muito conversador.
Quando fomos apresentados — ainda crês em pressentimentos? — não
antipatizei com ele. Achei-o vulgar, nem bonito nem feio, nem tolo nem
inteligente — suportável. E nunca me passou pela ideia que amasse Ema:
tratava-a com respeito e era tratado com frieza.
Continuei a amá-la. Depois da época do amor contemplativo, veio a
outra, a da febre. Achei-me idiota — amando uma mulher, sem lhe dizer.
Possuí-me de ambição insaciável de gozá-la. Fui perseguido pela sua
lembrança, pelo seu olhar, pelo seu cheiro, sem tréguas, de dia e de noite.
Quis deixar de vê-la. Otávio arrastava-me para lá, chamando-me ingrato.
Uma noite conversávamos os três.
O “outro” não viera. A campainha retiniu: era um chamado — vinham
pedir a Otávio que fosse imediatamente socorrer um doente.
Ficamos sós. Ema principiou a folhear uma revista ilustrada.
Na sala de jantar, silenciosa, ouvia-se apenas o tique-taque do relógio.
Não sei o que me deu coragem. Tomei-lhe a mão, beijei-a, ajoelhei-me,
disse-lhe tudo, que a amava, que não podia mais com aquela tortura.
Ema, pálida de surpresa, levantou-se.
[346] — Oh! Mas enlouqueceu, Jaques? Levante-se!
— Ema!
— Basta! Não me insulte.
E repeliu-me com violência.
Saí, corrido de vergonha. Deixei de lá ir oito dias. Quando Otávio me
procurava em casa, o criado tinha ordem expressa de lhe dizer que eu saíra.

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Mas encontrou-me na rua. Que me havia ele feito? Que queria dizer aquilo?
Nada! Havia de ir jantar com ele, iria, ainda que à força. Fui. Ela recebeu-me
com mais carinho do que nunca. Na meiguice com que me tratou
pareceu-me ver uma certa piedade comovida, pela minha paixão impossível.
Não se referiu à cena que eu fizera. E senti desde então o meu amor
transformar-se em veneração; desanimei.
Mas, naquela tarde...
Descia a rua do Ouvidor, quando me senti agarrado pelo braço. Era o
Barbosa, o “outro”. Tremia, muito pálido.
— Venha cá.
Levou-me para o fundo de uma confeitaria. Deixou-se cair na cadeira,
extenuado:
— Que desgraça, doutor! Que desgraça!
Eu olhava-o, espantado. Mas o caixeiro aproximava-se. Barbosa pediu
conhaque, bebeu três cálices, de pancada, e, com a cabeça entre as mãos,
começou a falar rapidamente, confundindo palavras, precipitando frases, de
um jato. Fiquei sem movimento e sem voz, fulminado. Ele falava, contava
tudo. Havia ano e meio que era amante de Ema. Eu com certeza nada tinha
suspeitado! Pudera! Tomavam tantas precauções... Nunca se encontravam
em casa do marido. Davam-se entrevistas durante o dia, duas vezes por
semana, em casa de uma tia dela, no Cosme Velho. Ano e meio... De repente,
que desgraça! Que desgraça!... Fora Ema quem lhe mandara dizer, em carta.
— Veja.
Estendia-me um bilhete amarrotado. Era uma letra miúda, trêmula,
lançada à pressa no papel: “Estamos perdidos. Ele sabe tudo. Mandaram-lhe
uma carta anônima. Mata-me, com certeza...”.
[347] Não sei como não estrangulei aquele miserável! Continuava a
falar, perguntava-me o que devia fazer. Mas não o ouvi. Saí, cambaleando
com uma nuvem de sangue diante dos olhos, andei ruas e ruas, cerrando o
punho, cravando as unhas na carne, cego. Vaguei toda a tarde sem destino.
Que torpeza! Com aquele insignificante, com aquele idiota!
Quando entrei em casa, já noite, andava-me a cabeça à roda. Mas seria
possível? Como não tinha eu surpreendido nunca um sinal entre os dois, um
olhar, um tremor de voz? Como não tinha eu visto nada, absolutamente nada?
Não pensei em Otávio.
Naquela grande desgraça, não me lembrei dele, tão meu amigo, tão
nobre rapaz, tão digno, traído daquele modo, fulminado por aquela
vergonha. Quis ainda esquecer-me de mim, procurá-lo, lastimá-lo,
consolá-lo. Mas, a meu pesar, lembrava-me apenas de mim, que durante
dois anos seguidos a tinha amado em silêncio, respeitando-o.
Que papel, que papel tinha representado! Fingido tudo aquilo, fingido o
seu modo recatado de esposa digna, fingido o seu carinho pelo marido,
fingido a indignação daquela noite, na sala de jantar... Por que não a agarrei
violentamente, por que não a amei ali mesmo, quando ela por certo não
esperava senão pela primeira violência para ceder, como uma adúltera que
era? Como pude ser tão inepto, que tomara por surpresa de honestidade o
que era apenas requinte de faceirice? E compreendi até que ponto a minha
amizade fora sufocada pelo meu amor: o que eu sentia agora por Otávio não
era já comiseração — era desprezo.
O traído era eu, era eu, que a amava: e parecia-me que ele era o único
responsável por aquilo, como se tivesse o dever de vigiar a mulher, só para
que eu não fosse traído.

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Enfim, estava feito. Ele que se arranjasse... Eu que podia fazer?


E, num grande desconsolo, alquebrado pela cólera que me sacudira
todo, olhava, às dez da noite, para um livro que não lia, tristemente. Foi
quando ouvi bater à porta. Quem poderia ser? Barbosa, talvez... Era melhor
não abrir. Mas reconheci a voz de Otávio.
— Abre, Jaques!
[348] Apressei-me. Entrou, muito calmo, apertou-me a mão, estirou-se
na cadeira de balanço, dizendo-se cansado. Fiquei sem saber o que havia de
lhe dizer. Espantava-me aquela tranquilidade: estaria o Barbosa louco? Seria
tudo aquilo uma invenção?
Otávio pegou no livro:
— Que estavas lendo?
E, sem esperar resposta e sem olhar para mim:
— Por que não apareceste ontem e hoje?
— Muito trabalho...
Ele levantou-se de um salto, atirou o livro ao chão e, segurando-me
pelos ombros, com os seus olhos nos meus, disse, entre dentes, num tom
surdo:
— Minha mulher engana-me. Tu sabes disso...
Tive o poder de dissimular.
— Como? Estás doido, Otávio?
— Sabes!
— Não sei nada, filho. É impossível! Quem te meteu isso na cabeça?
Ele sentou-se, calmo outra vez.
— Ouve. Não estou doido. Preveniu-me uma carta, com a indicação do
lugar, da hora, todos os detalhes. Fui e vi-a entrar. Engana-me. Engana-me
com o Barbosa, com aquele miserável. Tu sabias?
— Não sabia, acredita!
— Que infâmia!
Deu alguns passos pelo quarto, agitado, tomou o chapéu.
— Vem daí. Vamos andar. Isto aqui sufoca.
Saímos. Àquela hora, quase deserta a praia do Botafogo. Fomos
seguindo calados o paredão do cais, pela noite serena, cheia das vozes do
mar, cheia de palpitação das estrelas. A praia estendia-se, recurvando a
longa reticência luminosa dos lampiões. De quando em quando, um carro
passava, descoberto, a toda disparada, transbordante de risadas e de
cantigas. Otávio, de cabeça baixa, vergastava o ar com a bengala.
Então tive uma ideia covarde. Por que não aproveitar aquele ensejo de
vingança? Por que negar que sabia? Por que não aproveitar o marido
ciumento contra o rival odiado?
[349] Ele parou:
— Tu sabias, Jaques...
Reagi contra a tentação.
— Não sabia. E mesmo não creio. Que provas há?
— Digo-te que a vi entrar.
— Mas sabes lá se é a casa de alguma amiga?
— Jaques, fala com franqueza! Estás mentindo. Sabias.
Não! Eu não podia cometer aquele crime, seria uma abjeção...
Mas ele insistia:
— Sabias, Jaques?

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Não pude mais resistir:


— Pois bem! Sabia.
E disse o que sabia e o que não sabia, inventei episódios, criei minúcias,
reduzi Ema às proporções de uma “coquete” vulgar, pu-la nua, mostrei-a
entregando-se ao amante, numa casa alugada, alarguei cruelmente a ferida
que o desgraçado tinha no coração, envenenei-a, açulei todo o seu ódio de
marido enganado contra o Barbosa, aumentando-lhe e agravando-lhe a
culpa, com uma perversidade sem nome.
— Que infâmia! Que infâmia!
Esteve um momento calado, olhando o mar que estourava contra as
pedras, espumante. E, de repente:
— Basta! Não falemos mais nisto. Vamos para casa. Moras perto de mim,
deixar-me-ás à porta. Falemos de outra coisa.
Mas não falamos de coisa nenhuma. Fomos andando em silêncio, de
braço dado, até que, à porta da casa dele, voltei ao assunto, já arrependido
do que fizera.
— E, agora, que tencionas fazer?
— A ele? Nada. Ela ofereceu-lhe, ele aceitou-a. Demais, não era meu
amigo. Sim! Eu nunca o chamei amigo...
— E a ela?
— Nada, também. Corro-a de casa, a pontapés, como uma ladra. Olha!
Vou ver se durmo, tenho a cabeça a arder. Vem cá, de manhã. Levá-la-ás
para a casa da tia. Livro-me dela, vendo tudo, vou para longe daqui, para
onde ninguém saiba desta vergonha. Boa noite...
E abriu a porta. Quis ainda detê-lo. Ele impacientou-se.
[350] — É isto, filho! Vem amanhã, cedo. Não posso mais falar nesta
imundícia. Boa noite.
Entrou. Ouvi o rumor da chave, fechando a porta, ouvi passos pela
escada acima.
E a casa, na rua deserta, ficou silenciosa, escura, indiferente, como nas
outras noites, quando eu saía dali, tarde, despedindo-me no topo da escada
de Ema e Otávio, muito chegados um ao outro, muito felizes.
Tive remorsos. Que iria ele fazer? Se matasse o Barbosa, não seria eu o
verdadeiro autor desse crime?
Mas aquele dia de comoções violentas acabara por aniquilar-me. O que
eu agora queria era esquecer-me de tudo, fugir de tudo, dormir ou morrer,
contanto que não pensasse mais naquilo.
Atirei-me à cama, sem consciência.
Dia alto, acordei, sobressaltado. Alguém me abalava a porta,
violentamente, gritando.
Fui abrir. E Barbosa precipitou-se no quarto com a fisionomia torcida de
terror, alucinado. Abraçou-se a mim, chorando. Tonto ainda de sono fiquei
sem compreender coisa alguma. Ele chorava, sem poder falar, sufocado pelo
choro. Afinal, sempre pude entender: Otávio assassinara a mulher.
Contou-me os pormenores. De manhã, não se podendo conter, fora
rondar-lhe a casa. Havia muita gente à porta. Disseram-lhe que o dr. Otávio
matara a mulher a tiros de revólver, que já fora preso; que a polícia tomara
conta da casa.
Vesti-me não sei como, corri para lá. Dois soldados à porta não me
queriam deixar entrar: empurrei-os, subi a escada a quatro e quatro. Na sala,
guardado pela polícia, o corpo estava no chão, estendido sobre o tapete.

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Nenhuma pessoa da família: Otávio preso e a tia, naturalmente, ainda


ignorando tudo.
Ema estava vestida de branco, como naquela radiante manhã de
domingo, quando a vi pela primeira vez, a bordo. Colavam-se à testa os
cabelos, empastados. Aberto no peito, o vestido deixava sair um seio
moreno, rijo e curvo como um bloco de ouro, todo listrado de sangue.
Sob as pálpebras arregaçadas, os olhos negros, os seus grandes olhos
profundos fixavam-se em mim.
[351] O “outro” vivia. Ela estava morta. Fora eu quem a matara?
Que importava?... Ninguém mais beijaria aquele seio, beijado por dois
homens, nunca beijado por mim...
Foi um crime o que eu fiz?

s
FICHA TÉCNICA

Coordenação: Júlio França e


Oscar Nestarez
Pesquisa: Ana Giulia Mussury,
Ana Resende e Magda Oliveira
Preparação e revisão de texto:
Daniel Augusto P. Silva, Lais Alves
e Laura Cardoso
Design gráfico: Renata Luz

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