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DE REBUS ANTIQUIS Núm. 9, Año IX/ 2019-2020, pp.

64-77
ISSN 2250-4923
POHLMANN, Janira Feliciano. O imperador Graciano nos campos de batalha (367-383
d.C.). In: De Rebus Antiquis, n. 9, ano IX/209-2020. Disponível em: file:///C:/Users/janir/
Downloads/3487-12788-1-PB.pdf. Acesso em: 14/06/2021.

O IMPERADOR GRACIANO NOS CAMPOS DE BATALHA


(367-383 D.C.)
The Emperor Gratian on the battlefields (A.D. 367-383)
(Artículo recepcionado el 21/10/2020, aceptado el 16/12/2020)

JANIRA FELICIANO POHLMANN ∗


Universidade Estadual Paulista/Franca
Bolsista FAPESP
janirapo@yahoo.com.br

Abstract: In this article, I analyze the image of the Western Roman Emperor
Gratian as a warrior ruler. I hypothesize that the imperial victories were an element
of legitimization of the power of this ruler who followed a long Greco-Roman
tradition linked to the war. To confirm this assumption, the speeches made by the
rhetorician Decimus Magnus Ausonius, Ambrose, the bishop of Milan, the pagan
senator Quintus Aurelius Symmachus and the strategist Amianus Marcelinus,
authors who were close to the emperor, were examined. To the analysis of these
written documents, I added the examination of images engraved on two coins
minted at the time of Gratian and that today are part of the collection of the Museu
Histórico Nacional do Rio de Janeiro.

Keywords: Emperor Gratian; War; Legitimation of power; Written documents;


Coins.

Resumo: Neste artigo, analiso a imagem do augusto romano ocidental Graciano


como um governante guerreiro. Tenho como hipótese que as vitórias imperiais
foram um elemento de legitimação do poder deste governante que seguia uma longa
tradição greco-romana vinculada à guerra. Para confirmar esta suposição, foram
examinados os discursos elaborados pelo retórico Décimo Magno Ausônio, pelo
bispo niceno Ambrósio de Milão, pelo senador pagão Quinto Aurélio Símaco e pelo
estrategista Amiano Marcelino, autores coetâneos ao governante. À análise destes
documentos escritos, agreguei o exame de imagens gravadas em duas moedas
cunhadas na época de Graciano e que hoje fazem parte do acervo do Museu
Histórico Nacional do Rio de Janeiro.


Pós-doutoranda em História na Universidade Estadual Paulista, campus de Franca. Bolsista
FAPESP no Brasil (processo 2016/20942-9) e no exterior (BEPE-Espanha processo 2017/26939-2
e BEPE-Itália processo 2018/03187-8).

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Palavras-Chave: Imperador Graciano; Guerra; Legitimação de poder;


Documentos escritos; Moedas.

1. Introdução

E
ntão, uma vez tudo organizado e preparados os soldados para que
aceitassem esta decisão com ânimo favorável, quando Graciano veio,
avançou pelo campo e subiu na tribuna onde, rodeado por todas as
ornamentações dos altos mandatários, [Valentiniano I] tomou a criança
(puerum) pela mão, levou-o à vista de todos e o apresentou ao exército como
futuro imperador (AMIANO MARCELINO, Res gestae, 27.6.5).

Foi desta forma que o antigo estrategista romano Amiano Marcelino registrou a
ascensão de Graciano (367-383 d.C.1) ao título imperial. Graciano, nomeado neste
excerto como uma criança, no latim puer, estava no campo de batalha, quando foi
feito augusto por seu pai, Valentiniano I (364-375), e pelos militares ali presentes.
Esta cerimônia ocorreu em 367, quando Graciano tinha sete ou oito anos de idade,
era, então, um menino, como apontou o autor. Porém, um menino que acompanhava
seu pai em batalhas. Estava ali, no campo, certamente protegido, mas longe dos
muros de sua residência, participando, mesmo que fosse como observador, dos
assuntos de guerra.
Desde os tempos monárquicos, os romanos mantinham uma estreita ligação
com a guerra. A própria lenda da fundação da cidade de Roma estava marcada pela
guerra, afinal Rômulo e Remo eram filhos da vestal Reia Silva com Marte, o deus
da guerra. Em sua obra Quomodo historia conscribenda sit, escrita no século II,
Luciano de Samosata afirmou que a guerra era uma temática digna de ser inscrita
na história e ofereceu conselhos para a execução desta narrativa. A guerra fazia
parte da vida e da literatura dos romanos; era uma prática e, simultaneamente, um

1
As datas deste texto estão inseridas na Era Comum, salvo exceções que serão apontadas.

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tema cotidiano e que merecia a atenção dos governantes, afinal, as vitórias militares
eram um significativo componente na legitimação do poder imperial.
Em seu Breviarium, ao citar resumidamente as vitórias do imperador
Trajano sobre tribos estrangeiras e a ampliação das fronteiras romanas por este
augusto, Eutrópio destacou a “glória militar” do governante e ressaltou que ele
“mereceu a veneração tanto em vida como depois de morto” (EUTROPIO,
Breviarium, 8.4). Vitórias, estas, que fizeram Plínio, o jovem, nomear este
imperador de optimus princeps (PLÍNIO, Panegyricvs, 2, 53, 88, 89). A vinculação
entre vencer na guerra e deter o poder de império era notória. E tal vinculação foi
perpetuada entre os imperadores e aqueles que elaboravam os discursos de
legitimação deste governante.
No século IV, tal tradição ainda se mantinha viva entre muitos augustos!
Observo, entretanto, que os trabalhos historiográficos que voltam seus olhares para
o final desta centúria, têm como foco de investigação as ações do imperador
Teodósio e os governantes da dinastia valentiniana são trazidos nestas abordagens
como personagens secundários, sempre ligados às questões teodosianas. Em minhas
pesquisas atuais, revisito esta época tendo como foco o contexto do imperador
Graciano. Desta forma, pretendo continuar a contribuir para a multiplicidade da
História, para a construção de histórias plurais.
O consulado foi a primeira magistratura desempenhada por Graciano, em
366 d.C. No ano seguinte, ele ascendeu a augusto por escolha de seu pai,
Valentiniano I, e por aclamação do exército. Graciano era um menino nesta ocasião.
Fato que fez a historiadora Meaghan A. McEvoy incluí-lo no rol dos “imperadores
crianças” do mundo romano. De acordo com McEvoy (2013:1), os numerosos
“imperadores crianças” da Antiguidade Tardia constituem um fenômeno diferente
e inesperado que tem sido negligenciado pelos estudiosos do período.
Graciano é um exemplo deste desprezo por parte dos pesquisadores. Em
pesquisa recente a sites de estudos acadêmicos como Library Genesis, Durham e-
Theses, Dialnet, Cefael, Tables of Contents of Journals of Interest to Classicists,
Ius Civile, Inter Classica e Persse, confirmei a escassez de trabalhos sobre

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Graciano. O livro de McEvoy, Child Emperor Rule in the Late Roman West, AD
367-455, publicado em 2013, é a única obra atual a dedicar um capítulo a Graciano
e Valentiniano II, seu irmão e outro dos “imperadores crianças”. Constatações estas
que me foram reforçadas durante meu estágio de pesquisa pós-doutoral na
Universidad de Zaragoza pela historiadora María Victoria Escribano Paño.
Portanto, tendo como base de pesquisa uma tradição que buscava a
validação do poder através de vitórias de guerra, pergunto-me como o imperador
Graciano foi retratado em documentos elaborados durante sua vida e logo após sua
morte. Em um momento em que o poder de império estava dividido entre os
governantes das terras romanas ocidentais e orientais 2 e que tribos estrangeiras
adentravam nestes territórios, sugiro que muitos discursos fizeram de Graciano um
governante apto a angariar vitórias para os romanos e protegê-los de inimigos
externos.
Doug Lee alega que a “ideologia da vitória” foi importante durante todo o
Principado e mantida ao longo da Antiguidade Tardia (LEE, 2007: 37). Vários
fatores se relacionaram para elaborar e propagar esta ideia. Por um lado, o
imperador deveria agir, ir para a guerra e vencer. Por outro lado, tais vitórias
deveriam ser anunciadas. Nesta circunstância, os autores que tinham interesse em
corroborar o poder imperial foram imprescindíveis. Munidos de seus dotes
retóricos, através de suas plumas, eles registraram as conquistas dos augustos e
difundiram-nas para fora dos campos de batalhas. Havia, portanto, uma intensa
ligação entre a prática imperial de guerrear e ser vitorioso e a teoria elaborada por
escritores vinculados ao poder do augusto.
Durante a Antiguidade Tardia, os imperadores romanos constantemente
lutaram contra tribos vizinhas do leste, do norte e de África, as quais promoviam
grandes ondas de migrações para as terras que pertenciam ao Império ou que eram

2
À guisa de esclarecimento, informo as épocas de governo dos augustos tratados neste artigo.
Imperadores romanos ocidentais: Valentiniano I (364-375); Graciano (367-375); Valentiniano II
(375-392); Magno Máximo (383-388). Imperadores romanos orientais: Valente (364-378);
Teodósio (379-395).

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de seu interesse. Foi neste contexto de enfrentamentos do poder imperial contra


grupos estrangeiros que autores como o retórico Décimo Magno Ausônio, o bispo
niceno Ambrósio de Milão, o senador pagão Quinto Aurélio Símaco e o estrategista
Amiano Marcelino registraram ações de Graciano relacionadas com a guerra. Os
três primeiros autores citados, mantiveram fortes vínculos com Graciano e
escreveram seus documentos quando o augusto era vivo. Em suas obras,
enfatizaram a presença deste imperador nos campos de batalhas e suas vitórias. Já
Amiano integrou o exército romano entre 354 e 363(?) 3 e compôs sua Res Gestae
entre 382 e 3974. Graciano morreu em 383, em batalha contra o exército de Magno
Máximo. É provável que quando Amiano escreveu sobre Graciano, o imperador já
estivesse morto, visto que as notícias sobre este governante se iniciaram apenas no
livro XXI da Res Gestae. Mesmo assim, o estrategista ressaltou a participação deste
imperador nos assuntos de guerra. Circunstância que reforça que a tradição do
augusto guerreiro também havia sido mantida com Graciano.
Para complementar a legitimação de seu papel como um imperador
guerreiro, Graciano mandou cunhar moedas que carregassem sua imagem cercada
por símbolos militares. Neste estudo, destaco dois numerários pertencentes ao
acervo do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro (MHN-RJ). Para tratar
destes documentos, utilizo os números de localizações empregados pelo museu:
163968 e 163991.

2. Graciano: um imperador guerreiro

Assim como Amiano Marcelino propagará a imagem do menino Graciano


nos campos de batalhas e aclamado pelos soldados anos após a morte deste augusto,
Símaco também o fez dois anos após esta cerimônia, em 369, ao proclamar sua
Laudação ao augusto Graciano (Laudatio in Gratianum Augustum):

3
Jones – Martindale – Morris (1971, Ammianus Marcellinus 15: p. 547).
4
Amiano Marcelino. (2002). Historia. Edición de Maria Luisa Harto Trujillo. Madrid: Ediciones
Akal, p. 19.

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De um lado o augusto, do outro as legiões e, entre estes, o jovem (inpuberem)


candidato ao reino; a contenda entre uns e outros indecisa por muito tempo e
o pai cedendo tardiamente a todos, que aplaudem com fervor (SÍMACO,
Laudatio in Grat. Aug., 5).

Neste trecho, Símaco ressaltou a aclamação de Graciano a augusto por parte


do exército que era fiel a seu pai, o imperador Valentiniano I. O jovem, como
descreveu o autor, estava em um acampamento de guerra, rodeado por soldados.
Observo que tanto este autor, como, posteriormente, Amiano Marcelino destacaram
esta imagem. Graciano aprendera sobre os assuntos de guerra estando no campo de
batalha desde muito cedo.
Embora esta não fosse uma prática comum, não era uma novidade entre os
guerreiros. Suetônio afirmou que Calígula, filho do general Germânico e sucessor
do imperador Tibério, havia sido educado entre os soldados, situação que fez com
que ele fosse estimado pelos militares (SUET. Cal. 9). Valentiniano I era filho do
general Graciano e membro do exército do imperador Joviano (332-364), seu
precedente. Conhecia bem o ambiente para o qual levara o filho. Um ambiente que
gerava e reforçava laços de fidelidade entre comandantes e comandados; vínculos,
estes, indispensáveis para a conservação do poder de império nas mãos daquele que
o usufruía. Tais laços foram reforçados por Amiano na reprodução de um discurso
de Valentiniano I no momento da aclamação de Graciano:
Me disponho a aceitar, para que divida comigo a posição de augusto, meu
filho Graciano, já adulto, a quem depois de vê-lo tanto tempo entre vossos
filhos quereis como se fosse de todos; por causa da tranquilidade pública, se a
divindade do céu e vós colaborais com meu amor paternal (AMIANO
MARCELINO, Res gestae, 27.6.8).

Neste excerto, não importa destacar a veracidade da fala de Valentiniano I,


mas sim a necessidade de Amiano Marcelino de enaltecer os laços entre o jovem
imperador e as forças militares. O apoio prestado ao augusto por parte de seu
exército era um dos elementos basilares para a manutenção do seu poder. Conforme
María José Hidalgo de la Vega, o poder imperial era validado de diversas maneiras,
sendo que “la más contundente era la del ejército” (HIDALGO DE LA VEGA, 1995:

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108). A concessão do poder de império, que durante a República havia sido


prerrogativa no senado de Roma, no Império passou a ser um benefício das legiões,
exercido por meio do ritual da aclamatio imperii.
No caso da aclamação de Graciano, tanto Símaco quanto Amiano usaram
suas habilidades retóricas para descrevê-la, apontando a tenra idade do governante
e, consequentemente, a aliança formada desde muito cedo entre este augusto e seus
soldados. Uma aliança que corroborava a liderança deste jovem governante e o
destacava dos demais cidadãos do Império. Uma aliança que promoveu muitas
vitórias a Graciano em seus embates contra tribos estrangeiras e o ajudou a
preservar sua utilidade pública como defensor dos romanos.
Em seu tratado Sobre a fé (De fide), Ambrósio, bispo de Milão, também
destacou as ações militares de Graciano: “Me pedes, nobre imperador, um livro
sobre a fé, quando estas prestes a sair para o combate” (I.3). O autor iniciou a escrita
desta obra entre 378 e 380, época em que Graciano comandava suas tropas contra
os godos que tinham entrado nos territórios romanos da Tracia. Além de informar
que o próprio augusto lhe havia solicitado a elaboração de um livro, fato que
realçava a ligação do autor com o governante, neste trecho o sacerdote ressaltou o
cuidado de Graciano com a guerra. E este não era um assunto para ser tratado de
dentro do palácio, mas sim no campo de batalha, por isso o augusto partia para o
combate. Ainda segundo o autor, Graciano ia para a guerra “protegido abertamente
com o escudo da fé e empunhando a espada do espírito” (II.16, 136).
Esta obra ambrosiana era um tratado em defesa da fé cristã baseada nos
dogmas da Divina Trindade, conforme estabelecido no Concílio de Niceia de 325.
Estava voltada, especialmente contra os cristãos arianos, que, naquele momento
formavam um grupo bastante forte no norte da Itália. Observo que, mesmo ao
escrever uma obra que propagava sua crença religiosa e protegia seu próprio espaço
como líder de uma comunidade, Ambrósio concedeu lugar em seu tratado para
registrar o papel de Graciano como líder militar. Sendo este, então, mais um
discurso que ajudou a legitimar o poder deste augusto e a propagar sua imagem
como um imperador guerreiro. E aqui, mais uma vez, destaco a guerra como parte

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inerente da história dos romanos. Ela fazia parte tanto da ação quanto da literatura
dos romanos. É certo que o papel de Graciano como defensor do cristianismo niceno
foi um ponto de destaque na obra ambrosiana. Entretanto, as práticas militares do
augusto não foram esquecidas no registro do sacerdote.
Também o retórico Décimo Magno Ausônio anunciou as ações de guerra de
Graciano, em sua Ação de Graças (Gratiarum actio). Esta obra foi proclamada em
379 em agradecimento a Graciano pela nomeação de Ausônio ao consulado. O autor
atestou que eram testemunhas do poder deste augusto “a fronteira do Danubio e a
do Reno, pacificadas em só um ano” (II.7). Aqui, Ausônio cantava as vitórias
militares lideradas por Graciano contra as tribos estrangeiras que ameaçavam as
terras romanas. Um perigo que, inclusive, ocasionou a morte de seu tio Valente,
imperador romano do Oriente. Enquanto Valente batalhava contra os godos na
Tracia, Graciano derrotou os alamanos que rondavam as fronteiras romanas
delineadas pelos rios Danúbio e Reno. Nestes enfretamentos, o rei alamano
pertencente à tribo dos lentienses morreu e, a partir deste fato, não se tem mais
notícias desta gente. Amiano (Res gestae, 31.10) registou estes embates e destacou
a confiança que tal feito gerou em Graciano.
Observo que logo após esta vitória sobre os alamanos, Ausônio recordou o
fato em sua Ação de Graças e exaltou que aquelas regiões estavam pacificadas
devido à liderança de Graciano. Conforme o autor, aqueles rios eram as testemunhas
das ações imperiais, no texto original: “testis est” (II.7). De acordo com esta
elaboração retórica, portanto, eram testemunhas das práticas militares de Graciano
aquelas terras fronteiriças e aquele público para o qual Ausônio rememorava os
feitos do augusto. O autor, então, seguia os modelos literários da época ao valorizar
as vitórias militares do imperador. Observo, entretanto, que este elemento literário,
trabalhado retoricamente para ganhar a memória dos ouvintes, tinha suas bases em
ações práticas, em estratégias, enfrentamentos armados e vitórias reais, mesmo que
momentâneas. Portanto, guerrear, escrever sobre guerras e falar sobre elas
continuava a ser um assunto significativo para os romanos, afinal, esta era uma das
formas tradicionais de se manter o poder dos romanos e proteger suas terras e sua

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gente. E aqui retomo a importância da “ideologia da vitória”, apontada por Doug


Lee e insisto em salientar que ela não era apenas uma ideia retórica, mas sim um
elemento literário baseado nas ações imperais.
Estas vitórias de Graciano também foram tema do Epigrama 26
(Epigrammata 26) dedicado ao governante por Ausônio: “[…] Alada Vitória, que
do céu cai, vem iluminar a fronte com dupla diadema, cheia de guirlandas! Uma é
o presente pela toga; a outra, o prêmio pela batalha” (2-5). A toga era a vestimenta
típica dos homens romanos. Segundo Luis Baena del Alcazar, a toga era um
símbolo romano, “pues definía el carácter jurídico del ciudadano en oposición a
aquellos que no disfrutaban de este privilegio […]. Con ella se asistía a las
asambleas, al foro y al circo” (BAENA DEL ALCAZAR, 1993: 165). Evidentemente, o
tecido com o qual era confeccionada, o design e os adornos que a toga levava
diferenciava aquele que a vestia. A toga cândida, por exemplo, era utilizada pelos
candidatos a cargos públicos. A toga branca com as bordas púrpuras era a
vestimenta dos magistrados que usufruíam de poderes curiales: ditador, magister
militum, cônsul, pretor e edil. Esta também era a toga do augusto, representante
máximo do poder de império.
No texto de Ausônio, o autor ressaltou a toga (toga) e a batalha (pugna) de
Graciano. Ou seja, tanto a vertente jurídica – e a responsabilidade político-
administrativa do cargo desempenhado – quanto a vertente militar exigidas dos
augustos foram relembradas pelo retórico e, de acordo com suas palavras, elas
estavam presentes em Graciano. Motivo, este, que havia feito a Vitória Alada descer
do céu para presentear o governante.
A deusa Vitória, rememorada por seu nome ou por suas imagens visuais,
auxiliava na validação das ações militares do imperador. No caso de Graciano, em
seu Epigrama 26, Ausônio redigiu e anunciou o nome da deusa, vinculando-o ao
nome do augusto. Também nas moedas cunhadas sob o governo deste imperador, a
deusa Vitória foi uma figura importante.

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Identificação da moeda:
Número de localização no acervo: 163968
Material e denominação: bronze, AE2
Ano: cunhada entre os anos de 367 e 383 d.C.
Observação: Diâmetro: 20mm
Anverso Reverso

Legendas e descrições:
Anverso
Legenda: D N GRATIA_NVS P F AVG
Descrição: Busto com capacete, drapeado e encouraçado de Graciano, à direita.
Reverso
Legenda: GLORIA RO_MANORUM
Descrição: Imperador de frente e de pé, cabeça virada para a direita. Está em um navio
com a mão direita levantada. A deusa Vitória está sentada no leme.

O reverso deste numerário apresentava a deusa Vitória conduzindo o navio


que carregava Graciano. Ao analisar esta imagem juntamente com a legenda,
GLORIA RO_MANORUM, observo uma leitura dupla: a glória de Graciano trazia
a Vitória para guiá-lo ou a deusa levava o imperador a ser glorioso. Em ambos os
casos, noto que a deusa e a virtude da glória foram vinculadas ao augusto. Esta
virtude ressaltava o reconhecimento público daquele que a portava (PEREIRA, s/d:
333). Uma vitória em batalhas certamente angariava tal reconhecimento. E, de
acordo com a representação da imagem da moeda, a própria deusa Vitória
acompanhava Graciano nesta ocasião. A imagem encarnava a ação imperial.
Como observado neste artigo, as obras de Amiano Marcelino, Símaco,
Ausônio e de Ambrósio alimentaram os discursos (proclamados e escritos) que
legitimavam as ações militares de Graciano. Trato, portanto, de autores que
ofereceram suas habilidades retóricas e oratórias para exaltar a utilidade do
governante. Quanto ao discurso numismático, sua elaboração era acompanhada de

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perto pelo próprio imperador. Desde Augusto, a responsabilidade de cunhar as


moedas passou a ser do Senado e do próprio imperador. E partir do final do século
III d.C., o aumento dos centros de cunhagem permanentes fez com que muitos
funcionários das cortes provinciais também assumissem esta prerrogativa (HEESCH,
1993: 65). Sendo assim, ou o próprio governante ou funcionários muito próximos
a ele eram os responsáveis por este processo, por isso noto a intervenção do
imperador na cunhagem dos numerários.
No caso da moeda aqui analisada (163968), Graciano escolheu como sua
companheira a deusa Vitória. Uma deusa vinculada às conquistas obtidas na guerra.
No anverso da moeda, o busto imperial porta o capacete, um aparato típico da
guerra.
A deusa Vitória também estava ao lado de Graciano em outra moeda:

Identificação da moeda:
Número de localização no acervo: 163991
Material e denominação: bronze, AE3
Ano: cunhada entre os anos de 367 e 383 d.C.
Observações: Diâmetro: 17mm
Anverso Reverso

Legendas e descrições:
Anverso
Legenda: D N GRATIANVS P F AVG
Descrição: Busto com diadema de pérolas, drapeado e encouraçado de Graciano, à
direita.
Reverso
Legenda: SECVRITAS_REIPVBLICAE
Descrição: A deusa Vitória avança para a esquerda, com a coroa de louros na mão
direita e palmas na mão esquerda.

Neste caso, a deusa Vitória coroou Graciano com louros. Herança dos
gregos, entre os romanos a coroa de louros era o símbolo da tradicional celebração

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da vitória. À imagem de Graciano coroado de louros pela deusa Vitória, uniu-se a


legenda SECVRITAS_REIPVBLICAE. A virtude da securitas, ou seja, da
segurança, referia-se a uma certa tranquilidade gerada no mundo romano devido às
ações imperiais (RODRÍGUEZ GERVÁS, 1991: 84). Neste caso, a elaboração
discursiva da moeda vinculava a deusa Vitória, o imperador Graciano e a segurança.
Um discurso que propagava a ideia de que Graciano era vitorioso, e, por isso,
mantinha a serenidade em suas terras.
Observo a importância oferecida à deusa Vitória nas duas moedas aqui
analisadas. Uma deusa que evocava uma ação imperial ligada à guerra e
imprescindível para a legitimidade do poder do augusto.
Ambas as moedas eram asses, identificadas na numismática pela sigla AE
(informação que consta nas tabelas em que os numerários foram apresentados).
Entre as moedas romanas de bronze, estas eram as menores e menos valiosas
(MIRONE, 1930: 177). A primeira moeda aqui analisada era um AE2, com 20mm
de diâmetro; a segunda, um AE3, com diâmetro de 17mm. Trato, portanto, de
moedas de pouco valor monetário, muito pequenas e leves. Um valor que circulava
inclusive pelas mãos das pessoas com poucos recursos econômicos. Portanto, a
mensagem que ali estava gravada se propagava de mão em mão rapidamente e entre
um público diversificado. Pouco a pouco, a imagem de Graciano vitorioso ganhava
as terras romanas e se inseria também na memória das pessoas. Logo, este era mais
um recurso que resguardava o poder de império daquele governante e garantia sua
utilidade pública como defensor dos romanos.

3. Considerações Finais

Percebo, então, que estes discursos, produzidos quando Graciano era vivo e
logo após sua morte, como no caso da Res Gestae de Amiano, enalteciam as ações
militares do imperador. Em um contexto de contestação do poder imperial por
aqueles com quem Graciano compartilhava tal poder (Teodósio I e Valentiniano II),
por usurpadores e por líderes de tribos estrangeiras, Graciano demonstrou ser um

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augusto apto a alcançar vitórias para os romanos, conforme os elogios de Ausônio


e os registros de Amiano comprovaram. Coube também ao senador Símaco, ao
bispo cristão niceno Ambrósio e a algumas moedas apoiar a propagação da imagem
deste imperador guerreiro e, por isso, ideal para a manutenção do Império romano.
Por vezes, uma idealização, é fato. Mas não apenas isso, visto que este discurso era
baseado nas ações de Graciano. Este imperador acompanhou seu pai desde muito
cedo nos campos de batalha, venceu godos, alamanos e outras tribos estrangeiras.
Foi mesmo um imperador guerreiro, como tantos outros e como seu contemporâneo
Teodósio I. Estas ações inspiraram tais discursos e mantiveram a guerra como uma
prática frequente e um tema significativo durante o governo de Graciano.

Agradecimentos:
Este artigo é fruto de uma conferência realizada no Ciclo de Conferencias 2020 “Nuevas
miradas sobre temas del mundo clássico” Un aporte desde la perspectiva de jóvenes
investigadores organizado pela Profa. Dra. Graciela Gómez Aso, pela Profa. Lorena Esteller e
pelo Prof. Juan Pablo Alfaro da Pontificia Universidad Católica Argentina. Meu agradecimento
pelo gentil convite!
Agradeço também à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo por financiar
meus estudos de pós-doutorado no Brasil (processo número 2016/20942-9) e no exterior
(processo BEPE-Espanha 2017/26939-2, processo BEPE-Itália 2018/03187-8).

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