Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
64-77
ISSN 2250-4923
POHLMANN, Janira Feliciano. O imperador Graciano nos campos de batalha (367-383
d.C.). In: De Rebus Antiquis, n. 9, ano IX/209-2020. Disponível em: file:///C:/Users/janir/
Downloads/3487-12788-1-PB.pdf. Acesso em: 14/06/2021.
Abstract: In this article, I analyze the image of the Western Roman Emperor
Gratian as a warrior ruler. I hypothesize that the imperial victories were an element
of legitimization of the power of this ruler who followed a long Greco-Roman
tradition linked to the war. To confirm this assumption, the speeches made by the
rhetorician Decimus Magnus Ausonius, Ambrose, the bishop of Milan, the pagan
senator Quintus Aurelius Symmachus and the strategist Amianus Marcelinus,
authors who were close to the emperor, were examined. To the analysis of these
written documents, I added the examination of images engraved on two coins
minted at the time of Gratian and that today are part of the collection of the Museu
Histórico Nacional do Rio de Janeiro.
∗
Pós-doutoranda em História na Universidade Estadual Paulista, campus de Franca. Bolsista
FAPESP no Brasil (processo 2016/20942-9) e no exterior (BEPE-Espanha processo 2017/26939-2
e BEPE-Itália processo 2018/03187-8).
1. Introdução
E
ntão, uma vez tudo organizado e preparados os soldados para que
aceitassem esta decisão com ânimo favorável, quando Graciano veio,
avançou pelo campo e subiu na tribuna onde, rodeado por todas as
ornamentações dos altos mandatários, [Valentiniano I] tomou a criança
(puerum) pela mão, levou-o à vista de todos e o apresentou ao exército como
futuro imperador (AMIANO MARCELINO, Res gestae, 27.6.5).
Foi desta forma que o antigo estrategista romano Amiano Marcelino registrou a
ascensão de Graciano (367-383 d.C.1) ao título imperial. Graciano, nomeado neste
excerto como uma criança, no latim puer, estava no campo de batalha, quando foi
feito augusto por seu pai, Valentiniano I (364-375), e pelos militares ali presentes.
Esta cerimônia ocorreu em 367, quando Graciano tinha sete ou oito anos de idade,
era, então, um menino, como apontou o autor. Porém, um menino que acompanhava
seu pai em batalhas. Estava ali, no campo, certamente protegido, mas longe dos
muros de sua residência, participando, mesmo que fosse como observador, dos
assuntos de guerra.
Desde os tempos monárquicos, os romanos mantinham uma estreita ligação
com a guerra. A própria lenda da fundação da cidade de Roma estava marcada pela
guerra, afinal Rômulo e Remo eram filhos da vestal Reia Silva com Marte, o deus
da guerra. Em sua obra Quomodo historia conscribenda sit, escrita no século II,
Luciano de Samosata afirmou que a guerra era uma temática digna de ser inscrita
na história e ofereceu conselhos para a execução desta narrativa. A guerra fazia
parte da vida e da literatura dos romanos; era uma prática e, simultaneamente, um
1
As datas deste texto estão inseridas na Era Comum, salvo exceções que serão apontadas.
tema cotidiano e que merecia a atenção dos governantes, afinal, as vitórias militares
eram um significativo componente na legitimação do poder imperial.
Em seu Breviarium, ao citar resumidamente as vitórias do imperador
Trajano sobre tribos estrangeiras e a ampliação das fronteiras romanas por este
augusto, Eutrópio destacou a “glória militar” do governante e ressaltou que ele
“mereceu a veneração tanto em vida como depois de morto” (EUTROPIO,
Breviarium, 8.4). Vitórias, estas, que fizeram Plínio, o jovem, nomear este
imperador de optimus princeps (PLÍNIO, Panegyricvs, 2, 53, 88, 89). A vinculação
entre vencer na guerra e deter o poder de império era notória. E tal vinculação foi
perpetuada entre os imperadores e aqueles que elaboravam os discursos de
legitimação deste governante.
No século IV, tal tradição ainda se mantinha viva entre muitos augustos!
Observo, entretanto, que os trabalhos historiográficos que voltam seus olhares para
o final desta centúria, têm como foco de investigação as ações do imperador
Teodósio e os governantes da dinastia valentiniana são trazidos nestas abordagens
como personagens secundários, sempre ligados às questões teodosianas. Em minhas
pesquisas atuais, revisito esta época tendo como foco o contexto do imperador
Graciano. Desta forma, pretendo continuar a contribuir para a multiplicidade da
História, para a construção de histórias plurais.
O consulado foi a primeira magistratura desempenhada por Graciano, em
366 d.C. No ano seguinte, ele ascendeu a augusto por escolha de seu pai,
Valentiniano I, e por aclamação do exército. Graciano era um menino nesta ocasião.
Fato que fez a historiadora Meaghan A. McEvoy incluí-lo no rol dos “imperadores
crianças” do mundo romano. De acordo com McEvoy (2013:1), os numerosos
“imperadores crianças” da Antiguidade Tardia constituem um fenômeno diferente
e inesperado que tem sido negligenciado pelos estudiosos do período.
Graciano é um exemplo deste desprezo por parte dos pesquisadores. Em
pesquisa recente a sites de estudos acadêmicos como Library Genesis, Durham e-
Theses, Dialnet, Cefael, Tables of Contents of Journals of Interest to Classicists,
Ius Civile, Inter Classica e Persse, confirmei a escassez de trabalhos sobre
Graciano. O livro de McEvoy, Child Emperor Rule in the Late Roman West, AD
367-455, publicado em 2013, é a única obra atual a dedicar um capítulo a Graciano
e Valentiniano II, seu irmão e outro dos “imperadores crianças”. Constatações estas
que me foram reforçadas durante meu estágio de pesquisa pós-doutoral na
Universidad de Zaragoza pela historiadora María Victoria Escribano Paño.
Portanto, tendo como base de pesquisa uma tradição que buscava a
validação do poder através de vitórias de guerra, pergunto-me como o imperador
Graciano foi retratado em documentos elaborados durante sua vida e logo após sua
morte. Em um momento em que o poder de império estava dividido entre os
governantes das terras romanas ocidentais e orientais 2 e que tribos estrangeiras
adentravam nestes territórios, sugiro que muitos discursos fizeram de Graciano um
governante apto a angariar vitórias para os romanos e protegê-los de inimigos
externos.
Doug Lee alega que a “ideologia da vitória” foi importante durante todo o
Principado e mantida ao longo da Antiguidade Tardia (LEE, 2007: 37). Vários
fatores se relacionaram para elaborar e propagar esta ideia. Por um lado, o
imperador deveria agir, ir para a guerra e vencer. Por outro lado, tais vitórias
deveriam ser anunciadas. Nesta circunstância, os autores que tinham interesse em
corroborar o poder imperial foram imprescindíveis. Munidos de seus dotes
retóricos, através de suas plumas, eles registraram as conquistas dos augustos e
difundiram-nas para fora dos campos de batalhas. Havia, portanto, uma intensa
ligação entre a prática imperial de guerrear e ser vitorioso e a teoria elaborada por
escritores vinculados ao poder do augusto.
Durante a Antiguidade Tardia, os imperadores romanos constantemente
lutaram contra tribos vizinhas do leste, do norte e de África, as quais promoviam
grandes ondas de migrações para as terras que pertenciam ao Império ou que eram
2
À guisa de esclarecimento, informo as épocas de governo dos augustos tratados neste artigo.
Imperadores romanos ocidentais: Valentiniano I (364-375); Graciano (367-375); Valentiniano II
(375-392); Magno Máximo (383-388). Imperadores romanos orientais: Valente (364-378);
Teodósio (379-395).
3
Jones – Martindale – Morris (1971, Ammianus Marcellinus 15: p. 547).
4
Amiano Marcelino. (2002). Historia. Edición de Maria Luisa Harto Trujillo. Madrid: Ediciones
Akal, p. 19.
inerente da história dos romanos. Ela fazia parte tanto da ação quanto da literatura
dos romanos. É certo que o papel de Graciano como defensor do cristianismo niceno
foi um ponto de destaque na obra ambrosiana. Entretanto, as práticas militares do
augusto não foram esquecidas no registro do sacerdote.
Também o retórico Décimo Magno Ausônio anunciou as ações de guerra de
Graciano, em sua Ação de Graças (Gratiarum actio). Esta obra foi proclamada em
379 em agradecimento a Graciano pela nomeação de Ausônio ao consulado. O autor
atestou que eram testemunhas do poder deste augusto “a fronteira do Danubio e a
do Reno, pacificadas em só um ano” (II.7). Aqui, Ausônio cantava as vitórias
militares lideradas por Graciano contra as tribos estrangeiras que ameaçavam as
terras romanas. Um perigo que, inclusive, ocasionou a morte de seu tio Valente,
imperador romano do Oriente. Enquanto Valente batalhava contra os godos na
Tracia, Graciano derrotou os alamanos que rondavam as fronteiras romanas
delineadas pelos rios Danúbio e Reno. Nestes enfretamentos, o rei alamano
pertencente à tribo dos lentienses morreu e, a partir deste fato, não se tem mais
notícias desta gente. Amiano (Res gestae, 31.10) registou estes embates e destacou
a confiança que tal feito gerou em Graciano.
Observo que logo após esta vitória sobre os alamanos, Ausônio recordou o
fato em sua Ação de Graças e exaltou que aquelas regiões estavam pacificadas
devido à liderança de Graciano. Conforme o autor, aqueles rios eram as testemunhas
das ações imperiais, no texto original: “testis est” (II.7). De acordo com esta
elaboração retórica, portanto, eram testemunhas das práticas militares de Graciano
aquelas terras fronteiriças e aquele público para o qual Ausônio rememorava os
feitos do augusto. O autor, então, seguia os modelos literários da época ao valorizar
as vitórias militares do imperador. Observo, entretanto, que este elemento literário,
trabalhado retoricamente para ganhar a memória dos ouvintes, tinha suas bases em
ações práticas, em estratégias, enfrentamentos armados e vitórias reais, mesmo que
momentâneas. Portanto, guerrear, escrever sobre guerras e falar sobre elas
continuava a ser um assunto significativo para os romanos, afinal, esta era uma das
formas tradicionais de se manter o poder dos romanos e proteger suas terras e sua
Identificação da moeda:
Número de localização no acervo: 163968
Material e denominação: bronze, AE2
Ano: cunhada entre os anos de 367 e 383 d.C.
Observação: Diâmetro: 20mm
Anverso Reverso
Legendas e descrições:
Anverso
Legenda: D N GRATIA_NVS P F AVG
Descrição: Busto com capacete, drapeado e encouraçado de Graciano, à direita.
Reverso
Legenda: GLORIA RO_MANORUM
Descrição: Imperador de frente e de pé, cabeça virada para a direita. Está em um navio
com a mão direita levantada. A deusa Vitória está sentada no leme.
Identificação da moeda:
Número de localização no acervo: 163991
Material e denominação: bronze, AE3
Ano: cunhada entre os anos de 367 e 383 d.C.
Observações: Diâmetro: 17mm
Anverso Reverso
Legendas e descrições:
Anverso
Legenda: D N GRATIANVS P F AVG
Descrição: Busto com diadema de pérolas, drapeado e encouraçado de Graciano, à
direita.
Reverso
Legenda: SECVRITAS_REIPVBLICAE
Descrição: A deusa Vitória avança para a esquerda, com a coroa de louros na mão
direita e palmas na mão esquerda.
Neste caso, a deusa Vitória coroou Graciano com louros. Herança dos
gregos, entre os romanos a coroa de louros era o símbolo da tradicional celebração
3. Considerações Finais
Percebo, então, que estes discursos, produzidos quando Graciano era vivo e
logo após sua morte, como no caso da Res Gestae de Amiano, enalteciam as ações
militares do imperador. Em um contexto de contestação do poder imperial por
aqueles com quem Graciano compartilhava tal poder (Teodósio I e Valentiniano II),
por usurpadores e por líderes de tribos estrangeiras, Graciano demonstrou ser um
Agradecimentos:
Este artigo é fruto de uma conferência realizada no Ciclo de Conferencias 2020 “Nuevas
miradas sobre temas del mundo clássico” Un aporte desde la perspectiva de jóvenes
investigadores organizado pela Profa. Dra. Graciela Gómez Aso, pela Profa. Lorena Esteller e
pelo Prof. Juan Pablo Alfaro da Pontificia Universidad Católica Argentina. Meu agradecimento
pelo gentil convite!
Agradeço também à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo por financiar
meus estudos de pós-doutorado no Brasil (processo número 2016/20942-9) e no exterior
(processo BEPE-Espanha 2017/26939-2, processo BEPE-Itália 2018/03187-8).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DOCUMENTOS:
AMBRÓSIO. (2009). Sobre la fe. Introducción, traducción y notas de Secundino
García. Madrid: Editorial Ciudad Nueva.
AMBRÓSIO. De fide. Texto latino disponível em:
<http://www.documentacatholicaomnia.eu/02m/0339-0397,_Ambrosius,_De_Fide
_Ad_Gratianum_Augustum_Libri_Quinque,_MLT.pdf> Acesso em: 12/01/2019.
AMIANO MARCELINO. (2002). Historia. Edición de Maria Luisa Harto Trujillo.
Madrid: Ediciones Akal.
AMIANO MARCELINO. (1935). Res Gestae. Edited by T. E. Page. With an English
translation by John C. Rolfe. The Loeb Classical Library. London: William Heinemann
LTD.; Cambradge, Massachusetts: Harvard university Press.
BIBLOGRAFÍA:
BAENA DEL ALCAZAR, Luis. (1993). Togati Hispaniae: Aproximación al estudio
de las esculturas de togados en Hispania. Baética: Estudios de arte, geografía e
historia, 15, 165-174.
FRIGHETTO, Renan. (2012). A antiguidade tardia: Roma e as monarquias romano-
bárbaras numa época de transformações (Séculos II - VIII). Curitiba: Juruá.
HEESCH, Johan Van. (1993). The las civic coinages and the religious policy of
Maximinus Daza (AD 312). Numismatic Chronicle, n. 153.
HERRERO ALBIÑANA, Carmen. (1994). Introducción a la numismática antigua
(Grecia e Roma). Madrid: Editorial Complutense.
HIDALGO DE LA VEGA, María José. (1995). El intelectual, la realeza y el poder
político en el Imperio Romano. Salamanca: Universidad de Salamanca.
JONES, Arnold Hugh Martin; MARTINDALE, John Robert; MORRIS, John. (1971).
The prosopography of the later Roman Empire, vol I: ad 260-395 (PLRE I). Cambridge
- Reino Unido: Cambridge University Press.
LEE, A. Doug. (2007). War in Late Antiquity: a social History. Malden, USA; Oxford,
UK; Carlton, Victoria, Australia: Blackwell Publishing.
MCEVOY, Meaghan A. (2013). Child Emperor Rule in the Late Roman West, AD 367-
455. Oxford: Oxford University Press.
MIRONE, Salvatore. (1930). Numismática: nozioni di numismática greca, romana,
bizantina, barbárica ed araba, italiana (medioevale e moderna) - medaglie. Milano:
Ulrico Hoepli.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. (s/d). Estudos de História da cultura clássica. Vol
II: Cultura Romana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
RODRÍGUEZ GERVÁS, Manuel José. (1991). Propaganda política y opinión pública
en los panegíricos latinos del Bajo Imperio. Salamanca: Universidad de Salamanca.