Você está na página 1de 18

Guerra e sociedade política e o papel da civilização greco-romana

na concepção de grande estratégia para as grandes potências ocidentais


– traços de continuidade em diferentes civilizações e modos de produção
no tempo

A doutrina militar depende da doutrina política. Eis tudo desde Napoleão


até os dias atuais!
Essa sentença resume em essência os fundamentos da compreensão
que se deve ter sobre todas as implicações sobre a relação entre os níveis
político e militar de um Estado. A célebre sentença de Clawsevitz resume tudo:
a guerra é a continuação da política por outros meios.
Sempre foi assim na história? Não havia, sob o ponto de vista da ciência
militar moderna e da concepção que o direito escrito dá para o que vem a ser
uma doutrina estratégica de um Estado complexo como vemos nos dias atuais,
algo como um corpo doutrinário antigo, pelo menos no Ocidente 1.
No entanto, a política e a guerra, assim como os interesses estratégicos
estavam tão fortemente entrelaçados com as motivações e as capacidades de
alguns indivíduos e das aristocracias a que pertenciam de controlarem seu
emprego que praticamente eram indissociáveis. No passado, a guerra não era
apenas um meio da política, era a própria política. E isto nada tinha que ver
com representação eleitoral e democrática.
A guerra surge com as primeiras espécies de formação estatal e com a
entronização de interesses permanentes a partir de prioridades definidas pelas
elites dirigentes que criaram as primeiras civilizações.
Assim, a busca por recursos necessários a sua existência motivavam
conflitos bélicos na medida em que o ethos daquelas sociedades se baseava
no valor guerreiro já que a base de suas sociedades foram estabelecidas
pelas elites guerreiras oriúnidas do processo conflitivo e belicoso de transição
do nomadismo para o sedentarismo, no qual o saque e o controle de recursos
traziam consigo a necessidade de desenvolver habilidades de combate.
Tais habilidades emergem da idade do neolítico para a história
registrada a partir do culto do valor guerreiro nas sociedades nomades e
1
Pode-se aceitar que a magnífica coleção de princípios de arte de combate denominada de Arte da
Guerra do general chinês Sun Tzu é sim um corpo doutrinário para o caso imperial chinês no mundo
antigo, uma exceção que confirmaria a regra.
seminômades (celtas, germanos, eslavos, sármatas, árabes, arameus, huno-
mongóis e turcos antigos e lusitanos) por toda a extensão da Eurásia na
antiguidade e idade medieval. Nestas organizações sociais ancestrais em que
ainda não existe o Estado antigo propriamente dito se formam as classes de
sacerdotes e guerreiros2.
Nelas há a sacralização do valor do indivíduo dedicado a lutar pela
sobrevivência de sua comunidade, por meio da legitimação do ataque às
comunidades circumvizinhas em busca de recursos naturais e humanos para a
sobrevivência. Saques de recursos alheios – alimento, terras e mão-de –obra
escrava são o resultado trágico do nascimento da civilização, ainda hoje
severamente assolada pelo custo de vítimas inocentes dos mais variados tipos
de conflitos bélicos.
A civilização é - por mais doloroso que seja esta assertiva - o produto da
guerra e de suas tragédias para em que o ser humano é o algoz e vítima desse
processo, conferindo lucidez à célebre declaração do filósofo inglês do século
dezessete, Thomas Hobbes3.
Nesta etapa que emerge o culto ao valor guerreiro que irá informar os
estamentos militares das sociedadades civilizadas antiga e medieval por
séculos.
Estas habilidades de combate foram responsáveis pelo surgimento de
uma elite de guerreiros num processo de divisão do trabalho com o processo
de sedentarização inicial em sociedades aristocráticas.
As sociedades dividiam-se em sociedades tribais e sociedades
civilizadas. Naquelas a guerra era um meio de vida, pois garantia a
sobrevivência. O embrião das noções de guerra, poder, política e a
centralidade do Estado a partir de grupos dirigentes (elites) já se encontravam
na gênese da civilização.

2
Embora nossa análise centre-se no Ocidente e em áreas geográficas adjacentes importantes para o
nascedouro da civilização (Oriente Médio), os samurais japoneses são talvez o arquétipo mais perfeito
de uma sociedade guerreira e aristocrática. Este padrão guerreiro é praticamente universal em todas as
culturas humanas, tanto em sociedades nômades mais remotas como sedentárias com alto grau de
civilização são um padrão observável por toda o Sudeste Asiático (lembremos os guerreiros khmer),
continente africano (guerreiros zulus, iorubás, entre tantos outros dignos de nota) e enfima nas
Américas (comanches e apaches nos EUA, ianomãmis, tupi, guaranis e caigangues e charruas no Brasil) e
as grandes civilizações americanas pré-colombianas dos maias, astecas e incas na América Central e no
Peru.
3
“O homem é o lobo do homem”.
Assim, há um padrão único desde então e que permanece até hoje: a
necessidade de contar com alguma forma de poder militar para a garantia da
sobrevivência de uma comunidade política, seja ela mais ou menos “civilizada”.
Algumas dessas sociedades – tomemos o exemplo greco-romano –
logram uma expansão política e comercial que aprofundou a divisão social
interna em termos de divisão do trabalho entre guerreiros, com acesso aos
cargos miltiares e políticos alternados e a massa dedicada à agricultura, à
pecuária e ao comércio urbano, de outro. E foram elas que lançariam os
fundamentos políticos e militares do mundo ocidental.
Em ambas, o medo do inimigo fez com que desenvolvessem estratégias
de sobrevivência e de arte militar em razão das peculiaridades de seu território
geográfico e dos recursos humanos, naturais e econômicos disponíveis.
Atenas foi a primeira democracia, um estado mercantil, urbanizado e
grande potência naval de seu tempo. Não sendo um Estado de grande base
territorial, criou, ao contrário dos romanos, um império informal martítimo com
base em seu poder marítimo e em um complexto sistema de alianças
diplomáticas no esforço de consolidar uma hegemonia entre os diversos povos
helênicos em face de um inimigo comum – a potência territorial persa, a grande
potência da época das Guerras Médicas.
A autoridade civil do conselho de legisladores do Aerópago submetia a
sua autoridade os estrategos militares sobre as guerras e suas operações.
Desenvolveram grande reflexão teórica acerca das experiências militares e
diplomáticas que estão nos fundamentos teóricos das doutrinas realistas de
balanço de poder europeu, durante as guerras grego-persas e ao longo da
guerra do Peloponeso. Seu ápice foi durante o brilhante governo de Péricles,
no século V antes de Cristo. Não criaram, contudo, um exército profissional 4.
Em Roma, por sua vez, a partir do século III em diante, com o avanço
das conquistas militares e das necessidades de expansão do direito de
cidadania associado ao direito à terra – condição de sustento econômico da
época para a maioria da população pobre urbana e rural – haverá dois
4
O exército profissional totalizado foi uma obra espartana, um dos poucos Estados militares da
antiguidade juntamente com os assírios no norte da Mesopotâmia. O que tebanos, atenienses e mais
tarde macedônios desenvolveram foi algumas forças de elite profissionalizadas em um contexto de
sociedades guerreiras indo-europeias. Somente os romanos criaram um exército profissoinal de massas
em um Estado inicialmente republicano mas que rumava para uma transição para um Estado militar
ditatorial revestido de formas republicanas a partir do Império com César e Augusto.
processos históricos em curso que em geral podem servir de lição histórica em
termos de recrutamento e natureza do serviço militar em um sistem político
representativo e dos interesses estratégicos de uma expansão militar: 1- um
exército de falanges e depois de legião manipular composto de uma massa de
cidadãos recrutados na Itália e nucleado por oficiais aristocráticos romanos e 2-
a partir do último século da República, com a consolidação como grande
potência da sua região mediterrânea na antiguidade, a necessidade da
expansão da cidadania como forma de garantir a estabilidade social por meio
da formação de um exército profissional altamente qualificado e o mais
poderoso de seu tempo e que gradualmente suprimiria no curso do Império a
distinção de classe para a promoção de soldado ao grau máximo do
generalato5.
Importa, contudo, para nossa análise pensar os objetivos estratégicos do
Império Romano. Roma foi, do ponto de vista cultural, filha e herdeira de toda
uma tradição ateniense, espartana e helenística. O espartano Leônicas, os
atenienses Péricles, Temístocles e o macedônio Alexandre Magno foram
modelos de líderes como Cipião, o africano, vencedor do célebre cartaginês
Aníbal6 e seu neto Cipião Emiliano, o algoz de Cartago.
Nesse sentido, os manuais que generais gregos, helenísticos e romanos
desenvolveram podem ser apontados como os primeiros manuscritos escritos
do que se pode compreender como estratégia ou um conjunto de
procedimentos baseados na leitura literária das experiências antigas em campo

5
A partir do século III em diante, o o exército legionário que já era estava em vias de profissionalização
desde as guerras púnicas do Século III a C em diante e que se profissionalizara totalmente a partir do
acesso do soldado comum especializado ao posto de oricial graduado – caso do centurionato – no
Século I antes de Cristo, com Mário e César, passa a ter, na dinastia dos Severos, a possibilidade de
ascender ao generalato, ao comando máximo de uma legião de 4.500 homens nos postos do Reno ou do
Danúbio, em um contexto de distinção entre as esferas civil e militar em Roma, com a exclusão do
comando amador de civis da classe senatorial (aristrocatas) do comando das legiões. Em que pese este
histórico, na medida em que o controle do Estado romano sempre repousou nas mãos de militares,
fossem eles senadores amadores, ou profissionais já sob o Baixo Império, não oferece maiores
implicações para a tradição ocidental moderna de distinção entre civis e militares e muito menos da
subordinação dos últimos pelos primeiros, o que é exclusivo da tradição moderna.
6
Pelo menos contam-se dez nomes que podem ser considerados como os icônicos e maiores generais
da história antiga – ao menos na tradição clássica greco-romana: seis deles eram romanos: Os dois
Cipiões, Caio Mario , seu sobrinho Caio Júlio César (o famoso ditador), Cneu Pompeu Magno, durante a
República e o imperador Trajano, no império. Os atenienses Temístocles e Alcebíades, o espartano
Leónidas e os macedônios Filipe e seu lendário filho Alexandre e porfim, o cartaginês Aníbal Barca. As
estratégias e táticas de batalha desses generais são leitura obrigatória em Academias como West Point,
nos Estados Unidos até os dias de hoje.
de batalha, por um lado, e na experiência prática institucional de seus exércitos
no seu tempo e da própria experiência profissional de cada comandante.
Conquanto não fossem conhecidos pelo domínio teórico (característica
mais grega do que romana) os romanos conseguiram realizar os objetivos
estratégicos que muitos generais anteriores do mundo grego e do helenismo
não realizaram, pela escassez de recursos humanos e materiais.
Alexandre, considerado não o maior general antigo, mas o melhor da
história por nove em cada dez oficiais graduados militares hoje no Ocidente,
chegou perto de realizar um projeto imperial, mas não viveu suficiente para
consolidar suas conquistas colossais (Pérsia, Afeganistão e Paquistão atuais).
A República e o Império romanos foram os verdadeiros sucessores de
Alexandre, ao menos no Ocidente, conquistando partes significativas do que
viria a ser a Europa, trazendo profundo impacto para o surgimento da
civilização ocidental, unindo uma parte considerável de massa continental
ocidental à civilização mediterrânea e helenística.
Quais eram seus objetivos estratégicos? A conquista foi se processando
como uma reação em cadeia. Movidos por interesses de uma aristrocacia
fundiária que queria mais terras, de uma aristrocracia em ascensão de
comerciantes e banqueiros que queriam lucrar com a exploração de novas
províncias em termos de adensamento de comércio e empréstimos a juros para
reinos clientes e novas províncias e por fim, a ambição pessoal de grandes
generais e, ao mesmo tempo, líderes políticos que ambicionavam glórias
militares para garantir apoio político em sua ascensão ao posto máximo
consular do Estado romano, o que as necessidades de sobrevivência de um
campesinato que necessitava de terras e salários para sobreviver e que
elegiam os magistrados e eram a base do recrutamento dos exércitos vinha ao
encontro de suas ambições.
Assim, um embrião de um entrelaçamento de interesses pessoais e
institucionais ao longo dos séculos em que necessidades econômicas e
políticas se juntavam ao efeito da guerra enquanto causa. Explicando melhor:
em parte a cobiça por terras e recursos naturais era a razão de uma
competição que a aristocracia dos magistrados romanos buscava para que o
prestígio em combate lhes trouxesse apoio político dos soldados-cidadãos
rumo à escalada política.
Assim, a partir da era púnica, a conquista do mediterrâneo oriental
formado por estados helenísticos decadentes militar e econômicamente,
incapazes de fazer alianças, em disputas militares entre si, fizeram com que a
cada agressão militar romana, a proximidade das novas regiões conquistadas
fosse uma ameaça a estes reinos.
Todavia, estes estados reagiam isoladamente contra a bem treinada
força militar romana que pela cultura militar, não tolerava a derrota e que ao
vislumbrar a mais leve ameaça no horizonte, via apenas uma opção viável: o
uso da guerra de conquista. Os recursos em termos de mão de obra e minérios
eram resultados lucrativos mas marginais neste processo.
A expansão miltiar romana se deu por motivos de prestígio associados
ao do medo. O medo foi em grande medida o fator primordial de uma
sociedade que se via cercada por adversários poderoros e capazes de
aniquilar sua sociedade vista como singular, excepcional e superior às demais
no campo civilizacional. A resposta ao medo só podia ser uma: o uso da força 7.
Os motivos econômicos eram subornidados aos motivos políticos na era
romana e de resto na era pré-mercantilista europeia. Somados ao ethos dos
estamentos que dominaram a República e depois o Império, tanto na era
amadora quanto na era profissional dos exéricitos, que viam na virtude
guerreira o ideal de cidadão (aqui a tradição ateniense, espartana e macedônia
encontram a síntese perfeita em Roma), davam a justificativa que carecia da
necessidade de uma estratégia escrita.
Assim, Roma foi a primeira experiência em território europeu
considerável de um poder organizado em termos de poder que contava com
um conjunto de instituições formadas por um exército profissional de 300 mil
homens em 30 legiões, que dos dois últimos séculos da república aos dois
primeiros séculos do império foi simplesmente a melhor e mais perfeita
máquina militar da antiguidade sem que com isso fosse um Estado militarizado.
Esse exército consistia na metade composto por cidadãos romanos e
metade por corpos auxiliares altamente especializados recrutados nas

7
Os paralelos com a doutrina do Destino Manifesto, o corolário Roossevelt à Doutrina Monroe, à
doutrina Kennan de contenção ao perigo comunista da URSS e, por fim, à estratégia de Guerra ao Terror
da Era Bush são inegáveis. O medo é o valor permanente que, associado aos interesses do capital
privado e das necessidades do complexo militar dos EUA explica os traços de continuidade e de
mudança para com a histórica experiência romana e seu legado para a América imperial.
províncias entre não cidadãos, mas com uma estrutura de combate similar ao
modo de combater das legiões e comandados por um oficial (tribuno) romano e
subordinado a cada legião. Isso foi revolucionário em relação à Europa, cuja
noção de identidade política, cultural, militar e econômica só foi possível graças
à experiência da civilização romana.
Se Atenas foi a mãe e inspiradora da civilização ocidental por seus
valores democráticos, Roma foi seu pai. Foi graças aos romanos por meio do
quem as instituições e ideias políticas e filosóficas mas também a estratégia
militar helênicas chegaram ao Ocidente.
Roma estabeleceu, assim, a verdadeira realização do que viria a ser o
Ocidente e toda sua futura concepção acerca do papel do Estado e do cidadão
e do papel do poder militar para garantia da soberania 8 de ambos. Roma,
enfim, na sua concepção política e no seu papel de destino de comandar e
guiar as sociedades de seu tempo em termos de expansão hegemônica e da
noção de império, foi a matriz das duas sociedades que pela primeira vez iriam
criar um sistema hegemônico de alcance mundial na história: o Reino Unido, no
século dezenove, e os Estados Unidos, no século vinte, uma nação que se ve
como líder e guia do mundo livre, do Ocidente.
Roma inspirou a América desde seu nascedouro e continuaria
inspirando o nascimento da hegemonia norte-americana assim como o fez em
relação à hegemonia britânica e ao desafio napoleônico, malgrado a dimensão
regional daquele império antigo e sua natureza econômico-produtiva diversa.
Além disso, corpor administrativos administravam a justiça civil, criminal
e fiscal, apoiados em conselhos executivos e legislativos em cada
municipalidade que formavam as províncias, controladas por um governador
militar apontado pelo Imperador romano.

8
Serão os escritos do italiano Cola di Rienzi, no final da Idade Média, que irá buscar na estrutura política
da Roma republicana, os fundamentos para a relação representativa republicana como ideal político a
ser perseguido no Ocidente desde então. Seu conterrãneo, o florentino Nicolau Maquiavel, no século
XV, a partir de obras seminais como O Príincipe, a Arte da Guerra e as Primeiras Décadas de Tito Lívio
que irá falar sobre a relação entre a maiestas (majestade) do Senado e do populus romano, como a raiz
da soberania que iria legitimar o nascente Estado territorial europeu centralizado e que mais tarde seria
teorizada no século XVI pelo francês Jean Bodin. Os ideólogos do sistema parlamentarista britânico, os
fouing fathers da nascente república americana em 1776 e os franceses da Revolução, a partir das teses
montesqueianas, irão buscar na República de Cícero, os fundamentos para a construção de seus
nascentes estados liberais contemporâneos.
Dotada de extensa rede de estradas e aquedutos e sob o império do
direito romano, as províncias romanas em toda a Europa Ocidental, da
Bretanha além do canal e dentro dos limites dos grandes rios Reno e Danúbio,
conheceram a urbanização e a segurança da civilização romana. Com o
desmembramento do Império no século V, suas províncias conquistadas pelos
bárbaros germanos que já dominavam em boa parte a estrutura militar dos
exércitos, associados aos povos que migravam e aos romanos que
permaneciam na administração civil, foram os europeus que das cinzas
daquela civilização mantiveram intactas as estruturas jurídica, religiosa
(cristianismo) e a base e os fundamentos da estrutura militar antiga.
Com o tempo, aquelas elites germano-romanas, em cada antiga
província iriam moldar, no curso dos primeiros mil anos da Idade Média novas
civilizações herdeiras e sucessoras da civilização romana, mediante os Reinos
medievais nacionais, sob a transição para um novo modo de produção em
cujas raízes emergiria a burguesia mercantil. Em suma, das antigas províncias
romanas emergiriam as bases para o Estado feudal, raiz do moderno Estado
territorial nação europeu, modelo hoje universalizado no sistema de estados.
Os interesses estratégicos de sociedades antigas e medievais, nesse
contexto, eram ao menos em parte, como hoje, a luta pela independência e
pela sobrevivência que se associavam à vontade individual de poucos homens
ambiciosos e seu círculo não institucionalizado ou pelo menos fracamente
institucionalizado de decidir como e quando empregar o poder militar e, o que é
mais importante para se pensar uma doutrina estratégica - o porquê de seu
emprego.
Os antigos conheceram grandes manuais de estratégia como os greco-
romanos em relação ao Stratagemata e Stratagerikon (ver a época e autores),
para não mencionar o mais célebre e hoje altamente valorizado nas academias
militares, o manual da Arte da Guerra do lendário general chinês Sun Tzu.
Eram um conjunto de princípios que já existiam de forma não escrita
mas que foram consolidados com o tempo e a erudição em documentos
escritos de relevância de como proceder para vencer batalhas. Assim também
podem ser compreendidas obras literárias como a História da Guerra do
Peloponeso, de Tucídides, e a História da Guerra das Gálias, de Caio Júlio
César, nas quais a arte da guerra está contextualizada como instrumento da
política e da diplomacia.
No campo político, a RES GESTAE, ou a avaliação do legado do
Imperador Augusto para seus sucessores era seu inventário e análise do
conjunto de realizações administrativas, jurídicas, diplomáticas e militares. Seu
conselho ao sucessor Tibério César, de não avançar para além do rio Reno
pela decisão política pela manutenção da insuficiência de tropas 9 que causou o
desastre de Varo na Germânia, pode ser considerado como a raiz de uma
estratégia defensiva que iria caracterizar o Império, ao passo que a
predecessora República – malgrado não tivesse um documento de nível
político que guiasse seus cônsules e generais - desenvolveu, pelo direito
costumeiro e pela sua visão como sociedade excepcional 10, uma estratégia
ofensiva no campo militar até o consulado do imperador Augusto no ano 9.
Os principais povos antigos que desenvolveram ou Estados militares ou
Estados imperiais que contaram com forças militares profissionalizadas ou uma
combinação das duas características (assírios, persas, atenienses, espartanos,
macedônios e romanos) desenvolveram, sob o ponto de vista da história militar,
os principais eixos que conduzem à efetividade do emprego do poder militar: 1-
profissionalização de parcela de seu contingente populacional; 2-
desenvolvimento ou aperfeiçoamentos de um sistema de armas e 3- liderança.
Na medida em que os grandes impérios do passado antes das grandes
navegações dos séculos XV-XVI, viviam isolados em grandes regiões
territoriais contíguas, onde os mares eram internos e que podiam ser
contornadas por terra pelos exércitos, apesar do emprego estratégico e tático
de embarcações como tirremes e quadrirremes no imenso mar interno da
9
A razão para isso não era a incapacidade millitar das legiões, mas, no campo tático, a incompetência de
um comandante (Varo), somadas à habilidade de um comandante romano-germânico (Armínio) e à
decisão estratégica no campo político de ter um número reduzido de tropas ao longo do Império para
evitar a tentação de usurpação do poder. Considerações de ordem política interna e não externa e
militar estavam por trás dessas decisões, com o fito de prover estabilidade política para o novo regime,
após as cruentas guerras civis republicanas.
10
Existem muitas similaridades com a doutrina do Destino Manifesto norte-americano. E o simbolismo
dos fouding fathers pela criação de um modelo político inspirado na República de Roma e na adoção da
águia como símbolo e nas construções da capital com nomes que remontam à Roma antiga
(Capitólio,etc.) não são gratuitos.Roma foi o modelo inspirador dos Estados Unidos, do Império
Britânico, da França napoleônica, da Alemanhã dos kaisers e dos nazistas e do Império russo dos czares,
todas potências com ambições imperialistas no mundo moderno. A época histórica distanciada e a
diferença de tecnologia, estrutura social e modo de produção que caracterizaram a civilização romana
antiga em face da sua sucessora civilização ocidental por vezes lança um véu sobre estes fatos que são
indiscutíveis.
época (Mediterrâneo), o foco dos antigos era na efetividade dos exércitos
(tropas terrestres)11.
No que se refere ao sistema de armas propriamente dito, havia armas
que tinham um emprego auxiliar de assalto e fustigamento do adversário. Era o
caso da artilharia (catapultas, balistras e mesmo o uso de arqueiros e lanceiros
altamente especializados tanto a pé como a cavalo) e uso de tropas ligeiras
(arqueiros, lanceiros) para o mesmo fim.
O objetivo final – a eliminação da ameaça pela imposição ao inimigo da
perda de vontade de continuar a luta ou pela sua destruição enquanto exército
(fuga) ou no limite sua destruição (muito comum nas guerras antigas) 12 era a
tarefa a cargo da infantaria pesada de hóplitas (atenienses, tebanos e
espartanos), falange (macedônica) e mais tarde das legiões romanas
manipulares e depois das reformas do cônsul e dux imperator (general) Caio
Mário.
No leste, a arma principal e que veria a ser usada a partir do final do
Império Romano nos exércitos legionários e impactaria a Idade Média séculos
mais tarde, era a cavalaria pesada de arqueiros e de catrafactas persas e
partas da Pérsia antiga.
Em relação ao treinamento para o uso de equipamento militar de acordo
com a tática empregada em cada tipo de guerra travada, chega a ser óbvio
afirmar que o emprego de tecnologias da primeira idade do ferro em termos de
armas bem trabalhadas por ferreiros para diversos fins e empregos no campo
da defesa e do ataque (caso de uma multitude de espadas e o emprego de
técnicas variadas de combate de elite em diversos exércitos) ilustra que o
emprego de tecnologia avançada em cada época, o que requeria a combinação
11
As principais forças navais do mundo antigo, a de Atenas, de Cartago e dos seus ancestrais fenícios
eram na realidade muitas vezes um exércitos de falange ou hoplitas (infantaria pesada), de arqueiros e
lanceiros embarcados. No entanto, no plano do emprego tático na guerra naval, os atenienses,
cartagineses e fenícios podem ser considerados no plano estratégico e tático de combate os pais
fundadores das doutrinas basilares da guerra naval cujos fundamentos seriam a base do que muito mais
tarde portugueses, espanhóis, holandesdes e principalmente inglêses iriam revolucionar em termos
militares e navais.
12
Episódios como a destruição dos 300 soldados de elites comandados pelo rei –general espartano
Leônicas, no desfiladeiro das Termópilas, durante as guerras greco-persas, assim como a destruição de
Cartago pelas legiões de Cipião, o Africano, em 146 a C ou o extermínio de três legiões romanas
altamente treinadas pelo líder germando Herman (Ariminius) em Teutoburg forest em uma hábil
estratégia de esgotamento e emboscada, em 9 depois de Cristo, demonstram a assertiva de que a
destruição do inimigo era um objetivo mais comum do que se supõe na guerra antiga. As academias de
elite militar das grandes potências ocidentais até hoje incentiva a importância deste estudo militar
antigo.
de habilidade no manejo em termos de treinamento associada a capacidade do
soldado de suportar a rude vida de perigos e sacrifícios da vida militar, o que se
associava a quatro características tidas como basilares: 1-saúde e resistência
física; 2- capacidade psíquica de suportar o medo e o sofrimento decorrente
dos perigos da vida militar (o que se conhece por bravura e temperança
guerreira na acepção mais prosaica) ; 3- natureza da sociedade em termos de
valorizar o papel do guerreiro13 e, enfim, 4- a liderança e a doutrina e sua
relação com a política.
Na medida em que as sociedades antiga e medieval, que podemos
qualificar como pré-capitalistas (por que são também pré-industriais e pré-
institucionalizadas), não conheceram a plena separação de interesses interno à
classe dirigente/dominante em termos de interesses políticos, militares e
econômicos, sem uma base institucional sólida que a separasse firmemente
entre civis e militares e sem o controle dos primeiros sobre os últimos, temos
que as guerras feitas em nome dos interesses vitais de expansão para a
conquista de terras para garantir direitos econômicos de subsistência para a
massa populacional de cidadãos e para proporcionar a concentração fundiária
de uma aristrocracia (ambos principalmente são melhor exemplificados nos
casos romano).
Em síntese, estes aspectos foram criados e desenvolvidos pelos antigos
e medievais a partir da combinação de intuição com a experiência concreta
baseada em acertos e erros nas grandes campanhas do passado, numa
combinação entre intuição e eperiência calcada na dureza da vida castrense
que o notável desenvolvimento da tecnologia de guerra moderna parece ter
esquecido, em parte por que, ao contrário da guerra antiga, o papel da
tecnologia é muito mais decisivo nos dias atuais. Embora necessário, bravura e
treinamento, muito mais hoje do que no passado, não bastam. A tecnologia é
muito mais decisiva nos dias atuais para se ganhar uma guerra 14.

13
Casos espartano e japonês da era dos lendários samurais são os mais emblemáticos nesse sentido.
14
Na guerra há um padrão constante. O valor combativo do soldado por si só não é suficiente para
ganhar batalhas nem guerras. Tanto no mundo antigo quanto no mundo moderno, o esforço de guerra
sempre dependeu de condições econômicas que o sustentassem em termos de necessidades de
almentação e treinamento de tropas, o que envolve a lógica do custo do desenvolvimento de armas
eficazes para um determinado tipo de guerra. Assim, sempre a tecnologia importou para o sucesso no
campo de batalha. Os exemplos de soldados bravos que pereceram e perderam conflitos são inúmeros
ao longo da história. Ocorre que, os soldados que venciam também tinham o mesmo ardor combativo e
estavam do lado vitorioso por dois fatores: a tecnologia melhor e liderança capaz de seus generais. Tais
Estes aspectos estão, em essência, presentes na estrutura militar e no
emprego de um sistema de armas nos dias de hoje.
Muito da estratégia de emprego de forças aéreas e forças navais no
campo ofensivo, além do emprego de carros de combate blindado dentro dos
princípios de uso de vários pelotões de infantaria em um ataque frontal ao
adversário (concepção de infantaria blindada) até o emprego em termos
auxiliar como cavalaria (cavalaria blindada ou motorizada), percebe-se a
adaptação do emprego de estratégias e táticas antigas ao complexo fenômeno
da guerra moderna.
Estes aspectos permanecem até hoje e começaram a ser
cientificamente revisados e aprimorados a partir dos séculos dezoito e
dezenove, mas jamais descartados, eis que alguns dos principais povos
antigos como assírios15, persas, cartagineses, espartanos, atenienses,
fatores podem ser relativizados se examinados o papel da produção em escala nas economias modernas
e da tecnologia das armas em escala jamais vista ou concebida antes. Assim, pelo papel das forças
militares na Primeira e principalmente na Segunda Guerra Mundial, quando exércitos e marinhas
garantiram sua vitória apoiados num grau de assimetria tecnológica e na capacidade de sustentação
econômica da produção em escala de blindados, munições, artilharia, aviação de caça e vasos de
superfície que fizeram toda a diferença para o lado aliado, no Pacíficco, no front ocidental da Europa e
também na épica contfrontação entre os exércitos alemão e soviético, percebe-se que o equilíbrio entre
homem e tecnologia, que havia no mundo antigo e medieval, se rompe decisivamente em prol da
tecnologia sustentada por uma economia cujo fim é sua própria reprodução, raiz do capitalismo
moderno. Assim, desde a pólvora e seu emprego em armas de fogo manuseadas em rifles de assalto e
calnhões pelos portugueses e espanhóis contra povos e tirpos aguerridas ameríndias, verifica-se a brutal
assimetria que a tecnologia pode criar, o que não havia de modo algum, entre um exército romano e
tribos germânicas ou gaulesas. Aqui o treinamento fazia toda a diferença entre um exército contra
guerreiros formidáveis mas que combatiam com bravura mas desordenadamente. Desde o tempo da
conquista das Américas, o mesmo ardor combativo e atos de bravura dos povos indígenas não foram
capazes de resistir à ofensiva militar calcada na alta tecnologia empregada ( e não o treimamento militar
isolado, embora importante continuasse sendo) por europeus e norte-americanos contra os povos
nativos.
15
Os assírios, entre 1800 a 613 a C desenvolveram o verdadeiro primeiro exército profissinoal do
mundo. Sua história é fundamental para compreender como uma potência militar agressiva como a
Assíria e também Roma necessitaram das melhores forças armadas de seu tempo para garantir sua
sobrevivência. Dotados de alto treinamento com infantaria pesada com uso de espadas e corpos de
lanceiros, além de especializada e leve de arqueiros, somados arqueiros montados leves e cavalaria
pesada de apoio, desenvolveram as primeiras torres de assalto e catapultas de guerra (que mais tarde
foram mellhoradas e adaptadas pelos helenos das guerras do Pelopondeso e, adiante no tempo, pelos
macedônios de Alexandre o Grande e, por fim, pelas legiões de Roma). A despeito de ter um exército
caracterizado pelo recrutamento de povos conquistados e de ter sido o melhor de sua época, a Assíria,
ao contrário da Pérsia, da Macedônia ao tempo de Alexandre e dos Impérios que sucederam ao grande
conquistador: os reinos helenísticos e de Roma, a Assíria apenas inflingia pavor e destruição sobre os
povos conquistados, negando-lhes direitos que não fossem a submissão completa e não contou com
uma hábil assimilação dos povos conquistados à sua estrutura de poder – o que foi o traço genial e
distintivo dos persas e principalmente do Estado romano. Assim, a falta de assimilação dos povos
conquistados, a extrema crueldade no campo de batalha e o brutal tratamento dispensado aos
vencidos, fossem eles militares e civis, foi sem paralelo nos anais da história militar antiga e razão de sua
final destruição como civilização pelos medas e babilônios, associados às tribos cimérias mercenárias
macedônios, romanos e chineses contaram com exércitos profissionais e
altamente eficazes para guerrear contando com o mais avançado sistema de
armas de seu tempo.
Não obstante, na medida em que os antigos e medievais tiveram suas
sociedades caracterizadas por modos de produção diversos do modo de
produção capitalista, suas sociedades tinha outros objetivos que não o da
acumulação de capital como fundamento do poder do Estado a partir de
aliança com entes subnacionais detentores de capital (banqueiros,
comerciantes e industriais).
Em razão disso, os interesses econômicos eram importantes enquanto
recursos e instrumentos de poder político ao contrário do que irá surgir a partir
do mercantilismo até os dias atuais, onde o poder militar também pode ser
instumento de realização de interesses econômicos, mas mesmo assim isso
tem uma natureza tríplice desde então: 1- interesse econômico para os fins
estratégicos do próprio Estado; 2- interesse econômico de reprodução de
capital das empresas e 3- interesse político da própria burocracia estatal
profissional encarregada da defesa, em razão do insulamento institucional
burocrático.
Excetuados pela grande inovação tecnológica nos sistemas de armas e
pela introdução de métodos de gestão administrativa moderna nas burocracias
militares, tudo o mais que os antigos desenvolveram ainda é válido e estão
incorporados nas doutrinas que tratam desde as estratégicas como no
emprego tático de forças e seus sistemas de armas, um indissociável do outro.
Contudo, após a experiência do mundo antigo de surgimento de
exércitos profissionais em sociedades políticas singulares que de alguma
forma, relacionavam o uso da força ao emprego político pautado por certa
representatividade do cidadão (Repúblicas ateniense e romana), é com a
formação do Estado territorial e do sistema interestatal moderno que se dá a
necessidade de criar (ou melhor, de recriar, dentro de nova realidade histórica)
os exércitos de massa profissionalizados a partir da experiência prussiana com
Frederico o Grande, e da Revolução Francesa com Napoleão (somado ao
contexto do Estado liberal constitucional e do soldado cidadão/exércitos de
então estabelecidadas entre o Caúcaso e a Península da Criméia e ao Reino tributário de Van, na atual
Armênia. A lição de crueldade assíria como raiz de sua destruição final permanece como talvez a maior
lição dos erros políticos a serem evitados em qualquer tempo para quem almeja a liderança.
massa), os quais deixariam um legado enquanto grandes generais e
inovadores na tática militar para até nossos dias.
Para a definição de uma grande estratégia no sentido moderno, a partir
da junção entre interesses financeiros e comerciais do capital privado que
necessitavam de um Estado territorial dotado de soberania e firme poder militar
para garantir a legitimidade e a segurança de seus interesses além mar,
importa o poder naval como fator de projeção de poder.
O Estado Moderno a fim de garantir um ciclo de acumulação ao capital
privado, nos marcos do nascente capitalismo, e da necessidade de contar com
os investimentos financeiros desse capital para legitimar as ambições de
grupos políticos dirigentes que controlavam diretamente esse Estado,
necessitavam de criar exércitos profissionais e marinhas de guerra, como
forma de projetar poder além de sua região geográfica, onde se encontram os
mercados fornecedores de matérias primas estratégicas e mercado consumidor
para os bens de alto valor agregado que seriam produzidos pelas manufaturas
europeias (ancestrais das indústrias).
Qual a razão disso? A alteração da lógica que prevalecia no mundo
antigo e medieval, caracterizados por sociedades estamentais baseadas no
privilégio e no prestígio pela sociedade burguesa, que faz com que, a partir do
advento do mercantilismo europeu, faça com que os interesses econômicos de
acesso ao mercado consumidor tenham a capacidade de se manter em relativo
equilíbrio com o poder político e às vezes mesmo, sobrepor-se aquele em
razão da dependência dos Estados do financiamento das casas bancárias
europeias caso a opção das lideranças políticas seja pela redução do custo do
financiamento do aparato militar de defesa a fim de lograr êxito em termos de
competitividade comercial com outras grandes potências 16.
Nesse sentido, decisivo foi a redescoberta das táticas e da organização
militar do exército romano profissional que foram aperfeiçoadas dentro da
lógica do Estado capitalista feita pelos holandesdes no século XVII graças à

16
Mesmo assim, por força da capacidade de coerção fiscal e miltiar, o Estado tem a capacidade de sair
dessa dependência, bastando tomar medidas de natureza financeira e jurídica e no limite, dissuasória
militar de retirar dos agentes financeiros o controle central de emprestadores de papel-dinheiro ou
moeda, dado a centralidade do Estado de monopólio como emissor de moeda, desde que detenha
riqueza mineral correspondente sob sua jurisdião e controle, a fim de evitar a fácil e perigosa opção pela
emissão desconectada da economia real (causadora da inflação e recessão, caso a opção seja essa para
aumento com gastos de defesa).
ação de seu principal líder político e militar, o Príncipe Maurício de Nassau, o
que fez com que a Holanda contasse com o primeiro exército profissional
moderno, com estrutura de comando, disciplina e táticas que estão nos
fundamentos dos exércitos enquanto instituições especializadas da burocracia
de Estado, o que seria refinado posteriormente por Frederico II, da Prússia, e
por Napoleão I, da França.
Isto, somado ao emprego em série a partir da revolução nos sistemas de
armas que a Revolução Industrial irá conduzir, com a criação de empresas de
capital privado encarregadas de fornecer ao Estado os meios de ataque e
defesa a serem usados pelos militares, irão definir as bases de nosso tempo
em termos de guerra e exércitos modernos em sua relação com a defesa da
democracia e dos valores liberais já no contexto das sociedades urbanizadas
de massa e capitalistas.
Nesse aspecto, se consolida uma tendência já criada pelos primeiros
Estados modernos que se associaram à então nascente burguesia comercial a
partir do fim da era medieval: os interesses econômicos e sua relação cada vez
maior com os interesses estratégicos de natureza política tradicional
(sobrevivência e prestígio militar).
E mais duas coisas...talvez a mais significativa de todas...a separação
entre liderança militar e civil e a subornidação hierárquica institucionalizada da
primeira à segunda, em razão do Estado de Direito e da democracia como
regime político, por um lado, e a separação do alto comando estratégico das
operações de campo de batalha, dado o elevado grau de perigo proporcionado
pelo desenvolvimento da artilharia de fogo de grande alcance nos últimos
séculos, em especial no final do século dezenove.
Assim, a progressiva complexificação do poder de definir politicamente a
grande estratégia militar, impactados pelo fenômeno dos novos sistemas de
armas representados pelo uso da metralhadora e do emprego da rapidez de
movimento representado pelos trens no campo da logística, associados à
profissionalização militar com ênfase no combatente e na estratégia de
planejamento detalhado de campanha 17, no contexto das duas primeiras

17
Inovações no emprego de novas armas e seu impacto na tática de combate de forças terrestres
(exércitos) e navais (vistos como exércitos embarcados antes do surgimento da marinha britânica)
sempre fizeram parte dos povos ao longo da história desde as idades do bronze e do ferro até a
revolução da pólvora.
Revoluções Industriais e as novas necessidades, no século XIX, de
profissionalização da estrutura administrativa e consolidação da tendência da
separação entre níveis político e militar (que já se iniciara no século XVII, com
o nascimento dos exércitos profissionais modernos) 18, chega-se, enfiim, às
bases da guerra moderna e seu papel na grande estratégia.
Nesse contexto que se compreende quatro grandes lições desde o
surgimento do Estado nação e o sistema internacional enquanto um sistema de
estados que são grandes potências que definem o sistema a partir de suas
prioridades estratégicas em disputa pela liderança enquanto objetivo máximo
ou pela participação num sistema de equilíbrio de poder enquanto um objetivo
mais realista e razoável.
A primeira é que o poder naval se afirma como condição necessária para
a projeção de poder das grandes potências no sistema internacional.
A segunda, que o poder econômico é condição suficiente para dotar o
Estado de recursos para prover suas forças militares da necessária capacidade
ofensiva de projeção de poder a fim de resguardar seus interesses
estratégicos.
A terceira é que não existe uma primazia dos interesses econômicos
privados sobre os interesses políticos públicos nem o contrário, mas um
equilíbrio e uma interdependência entre ambos e que o poder militar se
qualifica em termos de capacidade de prover segurança a ambos. Este foi o
grande papel estratégico desempenhado pela Brithish Navy no século
dezenove.
A quarta lição histórica é que entre o periodo que medeia grosso modo
entre 1890 e 1945, processou-se uma grande transição de hegemonia global
pela primeira vez na história, no quadro maior do controle dos ciclos
econômicos de acumulação de capital, conduz ao controle financeiro (dólar e
predomínio das bolsas de ações em Nova Iorque) e à liderança produtiva,
tecnológica, militar e geopolítica dos Estados Unidos como a segunda grande
potência a liderar um sistema internacional.

18
A China, desenvolveu, no Oriente, uma tradição burocrática civil e militar altamente profissionalizada
e muito mais requintada do que suas contrapartes ocidentais desde fins da Antiguidade, de modo que
no plano civilizacional humano é a verdadeira pioneira neste processo.
A Primeira e a Segunda Guerras Mundiais foram, nesse sentido,
relevantes para afirmar a condição dos Estados Unidos como grande potência
líder do sistema internacional em substituição à liderança britânica.
Assim, a guerra desempenha desde os primórdios da civilização até os
dias atuais, um papel de relêvo na condição de assegurar a liderança de uma
nação ou um conjunto de nações sobre as demais. No entanto, o que
diferencia o mundo antigo do mundo atual é a efetiva expansão política e militar
em escala mundial (não regional e isolada como no passado), associadas à
globalização econômica, a lógica capitalista, ao papel decisivo da tecnologia
em que rompe o equilíbrio entre capacidade combativa humana e tecnologia de
armas dada a assimetria atual da tecnologia em si mesma em razão da
aplicação da ciência avançada empregada na produção em escala industrial e
aos interesses privados associados aos interesses políticos, mas arbitrados e
controlados pelo ator estatal, ainda sob o formato vestfáliano
Malgrado o papel decisivo da economia no cálculo de poder moderno,
que faz com que muitas intervenções militares estejam direta ou indiretamente
relacionadas com interesses comerciais, financeiros e industriais – coisa que
não predominava nas estratégias de guerra de forma predominante no mundo
antigo19, ainda assim, os interesses do capital não agem sozinhos nem detém o
controle de ação política, que cabe aos Estados, que detém o monopólio e a
capacidade de emissão e controle da moeda, de tributar recursos da sociedade
e de coerção dos agentes subnacionais à vontade política do Estado.
Se o Estado depende dos agentes econômicos, isso ocorre por votade
do primeiro na redução do custo de desenvolver por si só a capacidade de
investimento nos recursos de poder. Essa dependência, contudo, é muito maior
dos agentes subnacionais privados econômicos que dependem daquelas
capacidades estatais de lhe prover financiamento, mercados e segurança para
suas ações. Isso a sociedade capitalista não mudou.

19
Potências da antiguidade guerreavam movidas pelo medo, da necessidade de sobrevivência e pelo
prestigio guerreiro em suas sociedades. O papel dos recursos como acesso ao ferro, maderia, prata,
ouro, estanho e mão-de –obra escrava eram vistos como recurso de poder instrumentais ao
crescimento do bem-estar sim do conjunto das elites, mas principalmente do poder militar de suas
aristrocracias profissionalizadas e institucionalizadas, uma vez que estas dominavam ou exerciam
considerável influência política sobre o processo decisório mais simples e fracamente institucionalizado
das sociedades antiga e medieval. Se contava os intesses econômicos eram como recursos
indispensáveis e não como um fim em si mesmo, eis que não havia a noção nem o interesse do lucro
nem a a capadidade produtiva de reprodução do capital.
Mas a guerra não age sozinha, eis que condições materiais como
recursos estratégicos, capacidade financeira, capacidade industrial, inovação
tecnológica e condições subjetivas, como a vontade de uma elite política
dirigente de buscar essa liderança são os fatores decisivos para que o uso da
guerra ou o potencial dissuasório de suas forças militares seja condição
suficiente para assegurar a liderança.
E neste ponto, os contemporâneos se aproximam dos antigos.

Você também pode gostar