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Contradições da República romana:

o surgimento do poder pessoal


ALEX APARECIDO DA COSTA*

Resumo: No último século da República romana uma série de eventos


precedeu o surgimento do Principado. Este artigo procura analisar uma
importante questão que envolveu aquela época: o surgimento do poder pessoal.
Com base na bibliografia especializada sobre esse período estabelecemos um
diálogo entre as diversas informações. Dessa forma, percebemos que a
transferência de poder dos oligarcas para líderes políticos e militares, ocorrida
principalmente entre os séculos II e I a. C., teve como pano de fundo motivos e
objetivos pautados em ideias morais e políticas tradicionais que, todavia, foram
degradadas no processo. Concluímos, portanto, que o surgimento do poder
pessoal, ocorrido durante a República tardia foi marcado por um processo
permeado de contradições no qual os valores ancestrais eram manipulados
segundo as necessidades prementes, sendo negados ou afirmados em cada
circunstancia política que se sucedia, permanecendo, inclusive, após o
estabelecimento do Principado.
Palavras-chave: Contradições; instituições; poder pessoal; República.
Abstract: In the last century of the Roman Republic a series of events
preceded the emergence of the Principate. This article seeks to examine an
important question involving that time: the emergence of personal power.
Based on specialized literature on this period established a dialogue between
different information. Thus , we see that the transfer of power from oligarchs to
political and military leaders , occurred mainly between the centuries II and I
B. C., had the background motives and objectives guided by traditional
political and moral ideas which, however, were degraded in the process. We
therefore conclude that the emergence of personal power, occurred during the
late Republic was marked by a process full of contradictions in which the
ancestral values were handled according to pressing needs , being denied or
affirmed in every political circumstance that happened, remaining even after
the establishment of the Principate .
Key words: Contradictions; institutions; personal power; Republic.

*
ALEX APARECIDO DA COSTA é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História
pela Universidade Estadual de Maringá, pesquisador do LEAM – Laboratório de Estudos Antigos e
Medievais.

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Introdução militares, preocupados com o futuro de
Roma ou simplesmente ambiciosos,
A experiência romana foi um dos mais
experimentaram, de forma provisória e
importantes legados da antiguidade ao
precária, as prerrogativas que somente
Ocidente. A longevidade de sua
os césares possuiriam oficialmente. A
civilização, tendo como marco inicial a
forma improvisada com a qual
lendária fundação da cidade em 753 a.
alcançaram e exerceram tais poderes
C e termo na queda do último
trouxe consequências funestas e
imperador em 476 d. C., assinala uma
precipitaram a queda da República.
trajetória de mais de um milênio1 se nos
ativermos somente a esses dados A preservação da cidade e construção
cronológicos. No intervalo desses de um império
séculos, acontecimentos políticos e Observando primeiramente as
militares foram induzidos pelas forças transformações a partir de Grimal
sociais e precipitaram grandes (1981), veremos que, partindo de uma
transformações. Entre as disputas que reação defensiva de uma cidade-estado
opuseram patrícios e plebeus e o que vira sua existência ameaçada,
estabelecimento do sistema de governo especialmente, pela campanha que
imperial situa-se um movimento de Aníbal empreendeu na Itália no século
escalada do poder pessoal cujos III a. C., Roma caminharia, ainda que
desdobramentos revelaram-se nos fatos inconscientemente, devido a esse
mais marcantes ocorridos entre os momento crítico, rumo a uma
séculos III e I a. C. flexibilização forçada das instituições
Desse processo interessa-nos, republicanas.
sobretudo, suas contradições internas, A guerra de Aníbal (era assim que
que se evidenciam no fato de o os romanos chamavam a segunda
crescimento do poder pessoal ter sido guerra púnica) não foi grave
respaldado por algumas noções sacadas somente porque a própria existência
de um conjunto de valores que tinham do Estado romano se encontrou
como missão principal manter em Roma ameaçada, mas porque todo o
o sistema de governo republicano. A pensamento, toda a civilização de
vitória sobre Cartago, a potência Roma sofreu uma crise da qual
antagônica de Roma no Mediterrâneo saíram profundamente modificadas
Ocidental até fins do século III a. C., (GRIMAL, 1981, p. 38)2.
assinala o início da experiência imperial No campo político essas transformações
que os romanos exerceram sobre o corroeram principalmente os
mundo antigo. A expansão da Urbs e de instrumentos instituídos desde o início
seus domínios impuseram da República para prevenir a ascensão
transformações que afetaram seu do poder pessoal, do qual,
sistema político, social, econômico e tradicionalmente, temia-se que
cultural. Essas mudanças pavimentaram declinasse para a tirania em prejuízo dos
o caminho para a instituição de um
sistema de governo centralizado, o
2
Império. Mas, antes dos imperadores La guerre d’Hannibal (c’est ainsi que les
deterem o poder absoluto sobre o Romains appelèrent la seconde la seconde
guerre punique) ne fut pas grave seulement
mundo outros homens, políticos, parce que l’existence même de l’État romain se
trouva menacée, mas parc que toute la pensée,
1
Referimo-nos apenas ao Império romano do toute la civilisation de Rome subirent une crise
Ocidente. d’où elles sortirent profondément modifiées.

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membros das famílias aristocráticas da crescimento do poder pessoal. Isso
Urbs. O principal objetivo dessas ocorreu pela característica própria da
instituições, percebidas concretamente guerra na antiguidade quando, após as
pela divisão dos cargos políticos, era a campanhas vitoriosas, os chefes
manutenção dos privilégios militares e seus soldados dividiam entre
proporcionados aos oligarcas de Roma. si o butim dos povos derrotados. Nessa
Desempenhando o poder por meio das época em que as legiões romanas eram
magistraturas, colegiadas e exercidas formadas pelos cidadãos-soldados
por um mandato com tempo definido3, apenas os membros da aristocracia,
os cidadãos romanos eminentes interessados principalmente em
procuravam manter a estabilidade defender ou conquistar patrimônios
garantindo a libertas, que não era outra agrários, e aqueles capazes de equipar-
coisa senão o livre exercício dos seus se para a guerra estavam aptos a
direitos políticos (MENDES, 1988). A fornecer o tributo de sangue, pois “os
obediência a esse sistema enobrecia a recursos do indivíduo determinavam as
virtus do homem político e demonstrava suas responsabilidades políticas e a sua
seu apego às tradições condensadas na participação militar que, mais do que
ideia de mos maiorum, ambas tidas, um dever, era um direito, e mesmo um
então, como a base da grandeza do privilégio” (CARRIÉ, 1992, p. 90).
Estado. Embora esse discurso Esse serviço feito para Estado era
enaltecedor traga em seu bojo a defesa recompensado com os produtos das
da continuidade de uma organização pilhagens, tesouros, terras e escravos.
social estratificada e beneficiadora de Essa possibilidade de enriquecimento
uma elite, devemos levar em conta a impulsionou o interesse por novas
concepção dominante de que sob os conquistas (GRIMAL, 1981, p. 41) que
desígnios da ordem senatorial, enquanto estimulavam os generais ambiciosos e
corpo político portador da auctoritas e os soldados que viam em seus
imbuído de uma forma mentis própria, comandantes os guias capazes de levá-
estavam as formas mais sensatas e los às fortunas da guerra, fornecendo-
justas para a condução dos assuntos da lhes um prestígio pessoal canalizado em
Urbs. Grosso modo, era essa a situação favor de sua posição política no interior
que as transformações advindas da da Urbs.
expansão iria abalar, situação que,
compreendida como uma espécie de Para entendermos melhor esse
“Idade de Ouro”, desde então seria rendimento político dos sucessos
objeto constante de resgate por parte militares precisamos conhecer a
dos grupos senatoriais. concepção romana acerca daqueles que
comandavam as legiões, do contrário
Apesar do risco que Roma correu, em não poderemos imaginar como os
202 a. C. as legiões da Urbs chefes de um “exército de saqueadores”
conseguiram derrotar os exércitos da (CARRIÉ, 1992, p. 104) poderiam
Aníbal, a essa primeira grande vitória afirmar-se politicamente na cidade. A
sobre Cartago sobreveio uma tendência chave para entendermos essa questão
expansionista que alimentou o encontra-se na noção de imperium que
3
“designa uma força transcendente,
Em CORASSIN, Maria Luiza. Sociedade e simultaneamente criativa e reguladora,
política na Roma antiga. São Paulo: Atual,
2001, encontra-se um quadro com informações
capaz de agir sobre o real, de submetê-
detalhadas das principais magistraturas lo a uma vontade” (GRIMAL, 1993, p.
romanas. 9). Os comandantes militares,

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majoritariamente os cônsules eram, em rompeu-se um equilíbrio que a
uma cerimônia religiosa, investidos do oligarquia romana gostaria, mas não foi
imperium, sobre o qual estava capaz de sustentar. O projeto de
depositada sua autoridade sobre os expansão teve então, como efeito
soldados. Grimal (1993) reforça que o colateral, consequências que levaram ao
imperium era uma característica do deus aumento do poder pessoal. As guerras
Júpiter, simbolizando o Estado romano, distantes e demoradas decretavam a
sua unidade e prosperidade. Enquanto prorrogação das magistraturas além dos
as leis, fontes de poder instituídas limites estabelecidos, fornecendo assim
controlavam as questões cotidianas da poderes inéditos que por sua vez eram
Urbs o imperium lidava com problemas convertidos em proveito pessoal. O
não contemplados pelas obras dos império que surgia impunha novas
legisladores e até as ultrapassava, pois necessidades e exigências, e, como
na guerra o cidadão, quirites, tornava-se tanto aqueles que as assumiam quanto
soldado, milites, e submetido ao aqueles que delas desconfiavam
imperium perdia todas as prerrogativas estavam imbuídos de ideias
que lhe davam a cidadania romana. circunscritas ao regime municipal. As
Após uma grande vitória o general consequências da ruptura foram graves
revestido do imperium era aclamado para a República.
imperator, após aprovação do Senado
este título era confirmado e o general Exemplos do poder pessoal durante a
desfilava em triunfo pelas ruas de Roma República
seguido por seus soldados, vestido e Para ilustrar a emergência do poder
identificado, por um curto período de pessoal no seio das transformações
glória, com o próprio deus Júpiter, advindas da expansão romana podemos
protetor do Estado romano. assinalar, de forma mais verticalizada,
um período de cerca de uma centúria,
O prestígio assim alcançado não que se inicia por volta de meados do
desaparecia simplesmente após a século II a. C., quando puderam ser
cerimônia, assim como os espólios da sentidos os primeiros sintomas mais
guerra que o enriquecera agudos, e se finda por volta da metade
significativamente avivam seu prestígio do século I a. C., quando a presença de
pessoal. O general acumulava sobre si, diversos homens poderosos e
especialmente, gloria virtus, honor,
transgressores animavam a defesa da
dignitas e auctoritas. Essas virtudes
República, porém deixava poucas
pessoais eram extremamente
esperanças em relação a sua
consideradas pelo povo de Roma, pois
sobrevivência.
estavam entranhadas nas tradições
ancestrais, e permitiam-lhe prevalecer Os Cipiões, família importante do
sobre seus concorrentes políticos. A período republicano, podem figurar
partir de então o surgimento do poder como primeiro exemplo do poder
pessoal encaminhou-se rumo a um pessoal em detrimento das instituições
paradoxo, pois tanto o papel militar municipais, pois já antes de 180 a. C.
quanto o político dos que Cipião Africano, o vencedor de Aníbal,
ambicionavam o poder respaldava-se no exercera magistraturas em idades
mos maiorum. Todavia, no momento precoces e proibidas pelas leis que
em que as ideias e os valores ancestrais regulavam o cursus honorum, infrações
passaram a servir de esteio para exceder semelhantes cometeu também Cipião
os limites das instituições tradicionais Emiliano em 147 a. C. e 134 a. C.

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(ALFÖLDY, 1987, p. 74). As reações poderiam servir de opção aos
dos demais grupos senatoriais contrários camponeses proletarizados pela
ao crescimento do poder do Cipiões concentração de terras. Assim, a ordem
podem ser percebidas na Lex Villia tradicional romana estava em risco, era
annalis, criada justamente para frear a preciso reformá-la.
ascensão dos mais ambiciosos
(ALFÖLDY, 1987, p. 74) e para Nesse contexto quem se destacou foi o
resguardar as tradições, pois o respeito tribuno Tibério Graco. Certamente ele
às leis da res publica atestava a virtus reconhecia que “instrumento de um
do homem político enquanto que a destino histórico excepcional, o exército
transgressão feria a reverência ao mos romano foi durante muito tempo buscar
maiorum e por isso punha em risco a a sua força à identidade total que existia
libertas dos demais cidadãos. Assim entre a estrutura política e a estrutura
iniciava-se o desgaste dos valores militar da cidade-estado” (CARRIÉ,
ancestrais, desgaste que, apesar das 1992, p. 90), e esta identidade
transformações inexoráveis, incitava sua repousava sobre a noção de cidadão-
preservação e seu retorno durante os soldado, pois “em Roma, foi o soldado
últimos tempos da República. de profissão quem inventou a
personagem do ‘civil’, completamente
O problema agrário, também fruto da desconhecida até então, visto que cada
expansão, colaborou, em sinergia com a cidadão era também um soldado em
dilatação da atuação militar de Roma, potencial” (CARRIÉ, 1992, p. 91).
para a ascensão do poder pessoal em Como o recrutamento para a guerra
detrimento das leis republicanas. dependia das posses do cidadão-
Corassin (1988) apresenta com detalhes soldado, pois seu armamento individual
as questões que envolveram os era de sua responsabilidade, a ruína dos
tribunados de Tibério e Caio Graco e pequenos proprietários apresentava-se
suas propostas de reforma agrária. De como a futura derrocada do próprio
nossa parte apresentaremos uma síntese sistema militar de conquista. Por meio
para dela pinçarmos um episódio claro de uma reforma agrária Tibério
da degradação das instituições pretendia redistribuir aos camponeses as
municipais. Grosso modo, a expansão terras dominadas pelos aristocratas. Em
imperialista romana acarretou decorrência disso, no ano de 133 a. C.,
consequências que criaram quando ele exerceu seu tribunado,
antagonismos internos na Itália e na explicitou-se em Roma dois grupos
própria Urbs. De um lado as campanhas políticos, o chamado partido popular,
militares vitoriosas proporcionaram favorável às reformas, e os
novas terras a Roma, que, no entanto, autodenominados optimates, que via no
foram apropriadas majoritariamente projeto agrário gracano um atentado a
pelos membros da aristocracia, de outro seus privilégios tradicionais.
lado os soldados-camponeses que eram
recrutados para as guerras além de não A preocupação social de Tibério Graco
terem acesso aos territórios e sua adesão ao partido popular
conquistados viam-se arruinados, pois punham-no, aos olhos dos optimates,
as longas campanhas os afastavam de em uma posição análoga à dos reis
suas propriedades impedindo seu etruscos que haviam governando Roma,
cultivo. Agravando a situação o fluxo quando estes usavam o apoio do povo
de escravos oriundos das conquista para fortalecer-se diante dos
reduzia os postos de trabalhos que aristocratas. Assim quando ele usou o

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poder das deveriam continuar a
assembleias ser recrutados mesmo
populares, primeiro que não tivessem
para depor Otávio, posses para se
seu companheiro de equiparem. Um novo
tribunado que, recurso precisava ser
orientado pelos encontrado. Mas
oligarcas, opunha-se dessa vez a solução
à reforma, e depois, encontrada se impôs
no intento de pelas próprias forças
resguardar sua nova que convergiram para
legislação agrária, ela. A recusa da
para reeleger-se aristocracia em
tribuno mesmo contra admitir reformas
as tradições punha em curso um
republicanas, sofreu processo que ao
uma violenta mesmo tempo
retaliação dos desmantelaria o
optimates que tirou sistema de governo
sua vida republicano, que ela
(CORASSIN, 1988). acreditava preservar,
Isso ocorreu não só Caio Mario e pavimentaria ainda
pela carga mais o caminho para
revolucionária da proposta gracana, a ascensão do execrado e temido poder
mas, sobretudo porque os meios que pessoal.
empregava para colocá-la em prática
iam de encontro às instituições que Em 107 a. C. Caio Mario reformou o
regulavam as questões políticas da exército romano, acelerando uma
República. Tibério Graco ousou tendência nascida com o início da
desobedecer ao mos maiorum ele expansão. Segundo Mendes (1988), o
utilizou sua dignitas pessoal, adquirida vencedor de Jugurta permitiu o
com o apoio popular, para obstruir a alistamento dos proletários que, sem
libertas dos aristocratas que usavam os posses
mecanismos políticos habituais para a Viam no alistamento no alistamento
manutenção de seu privilégios. militar uma boa chance de
O próximo degrau na escalada do poder enriquecimento, não com o soldo,
pessoal também teve como causa a mas graças às pilhagens, aos
presentes dos generais e às
proletarização dos camponeses. Os
distribuições de terras após a
optimates frustraram as propostas liberação do serviço (MENDES,
gracanas de reforma que visavam 1988, p. 65).
recompor o exército a partir de sua
estrutura agrária e social primitiva O prestígio alcançado pelos generais
representada pelo camponês cidadão- por meio desses benefícios concedidos
soldado. Todavia, a expansão militar às legiões, recrutadas cada vez mais
romana exigia cada vez mais entre as camadas populares, era então
contingente para a continuidade das somado às dignidades tradicionais
guerras e manutenção das conquistas. concedidas ao imperator, o chefe
Isso significava que os legionários vitorioso e benfeitor identificado com o

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deus Júpiter. Dessa nova realidade homens políticos não se impunham
Corassin (2001) ressalta o consequente apenas por sua virtus pessoal, mas sim
distanciamento do agora soldado pela ameaça e violência de suas fiéis
profissional de sua obediência às legiões. Enfim, a obra de Sila resume-se
instituições civis da República. em uma tentativa frustrada de
Concomitantemente, esses novos restauração que teve como efeito
legionários reforçavam suas ligações colateral dar o exemplo a respeito das
com os seus comandantes. Obedientes, possibilidades que o poder pessoal
eles seguiam suas ordens e poderia oferecer, pois ele
compartilhavam seus interesses, mesmo
quando estes entravam em choque com Não conseguiu restituir à oligarquia
senatorial a força, o prestígio e a
a noção de virtus do cidadão e feriam os
capacidade para governar o Estado.
valores ancestrais da Urbs. Assim, em A constituição de Sila demonstrou a
Roma “o exército tornou-se uma arma incoerência, com a nova situação de
temível contra a República. Os generais Roma, de uma forma de governo
aristocráticos passaram a usá-lo como baseada no Senado. O resultado
instrumento para obter o poder pessoal” mais significativo do seu governo
(CORASSIN, 2001, p. 57). foi abrir caminho ao despotismo
militar (MENDES, 1988, p. 66).
A partir do início do século I a. C.
acirrou-se o conflito entre os populares Conforme a expansão progredia os
e optimates, e o embate entre Mário, em fatores acima elencados se
favor dos primeiros, e Sila, intensificavam, e as tensões entre a
representando os segundos, mostrou que nova realidade e os entraves da
o poder pessoal que se estabelecia, constituição republicana provocavam
mesmo quando atuando em favor dos uma danosa sucessão de conturbações.
conservadores, tornava-se Por ter se tornado um império, a
irreversivelmente danoso às instituições grandeza das províncias garantia a seus
republicanas que se queria preservar. conquistadores ou governadores um
Vitorioso, Sila adotou amplas medidas acréscimo de poder extraordinário
para reduzir os direitos conquistados mesmo para aqueles que já detinham as
pelos populares e para restabelecer os magistraturas superiores como o
poderes da aristocracia à frente do consulado. Vencedores de povos
Estado. Entretanto, para proceder a essa inteiros, tendo agregado imensos
restauração, Sila investiu contra as territórios a Roma, os imperatores não
tradições e chegou a ferir valores se contentavam mais com o triunfo e
sagrados, pois em 88 a. C. ultrapassou não acreditavam na gerência
os limites do pomerium sem republicana sobre o império que faziam
desmobilizar seu exército, com o qual crescer. As instituições da Urbs se
ameaçou o Senado e obteve uma esgotavam diante do crescimento do
ditadura com autoridade e duração poder pessoal, devido a isso
ilimitada. Assim, com poderes inéditos,
executou adversários e a outros atingiu O conteúdo social do conflito entre
optimates e populares foi sendo
com proscrições e confiscos relegado cada vez mais ao segundo
(CORASSIN, 2001, p. 59). Portanto, plano, enquanto que a luta pelo
com Sila o desrespeito ao mos maiorum poder político ganhava importância
e a ameaça à libertas já não era mais paulatinamente, até finalmente se
desafiada somente pelo prestígio reduzir a uma disputa para definir
pessoal de um líder, doravante os que facção política e, sobretudo,

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qual líder ficaria com o poder Diante das novas demandas que se
(ALFÖLDY, 1987, p. 96). estabeleciam a obra de César era um
ensaio para atendê-las, mas seu
A guerra entre Pompeu e César após a assassinato em 44 a. C. não deve ser
morte de Crasso e a luta entre Otaviano atribuído simplesmente a uma cegueira
e Marco Antonio depois do afastamento política e social dos conjurados dos idos
de Lépido ilustram esses estertores de março. O olhar mais atento
finais. Todavia, no contraste entre a verificará que as mudanças que se
postura dos dois primeiros vemos ainda operavam faziam degenerar vários
antagonizarem-se as últimas preceitos e formas de comportamento
demonstrações de força do que refletiam a virtus do homem
conservadorismo republicano e a político romano, e que as orientações
conscientização rumo a uma nova morais contidas na noção de mos
fórmula de governo. Sintetizando os maiorum eram paulatinamente
fatos finais da República agonizante ignoradas diante das exigências da nova
Grimal (1993) informa que em 67 a. C., realidade. A redução da libertas,
temendo as revoltas servis e as ameaças patrimônio ancestral e exclusivo da
externas, sintomas da nova realidade aristocracia agrária da Urbs, era
imperial, o Senado concedeu um consequência direta da extensão de
comando único a Pompeu, contrariando direitos e da participação política às
a tradição das magistraturas colegiadas. novas camadas da sociedade romana,
Posteriormente, coberto de êxitos italiana e provincial. A aristocracia
retumbantes, que fizeram a aristocracia perdia seu espaço, seus privilégios e,
temer sua ascensão, Pompeu foi barrado sobretudo, viam sua concepção de
pelo Senado quando quis dar organização do Estado perecer diante do
seguimento a sua obra conquistadora. poder pessoal e do risco da tirania.
Obediente à decisão da cúria, guardiã
das tradições, ele seria a partir de então A luta final testemunhada por Roma no
o defensor dos senadores e da República âmbito do sistema republicano opôs
contra a indisciplina de César. De Otaviano, o herdeiro político, e Marco
acordo com Grimal (1993) César, tão Antonio, o lugar-tenente de César. Os
poderoso quanto Pompeu, não foi tão fatores que marcaram o antagonismo
dócil quanto este, ele ignorou os apelos dos dois demonstram que até o fim, e
à desgastada legalidade republicana, e, mesmo mascarando sua queda, foram as
após derrotar seus defensores, forjou virtudes e os valores ancestrais que
para si uma legitimidade própria, com a protagonizaram os eventos finais da
qual se autorizou a adotar medidas República.
consoantes com a nova realidade, que a Aliados para punir os assassinos de
muito reclamava “imperiosamente o Júlio César, Otaviano e Marco Antonio
poder monárquico” (VENTURINI, tomaram rumos diferentes após a vitória
2011, p. 177). Entre outras medidas de Filipos em 42 a. C. O primeiro
contrárias às tradições, César permitiu a permaneceu em Roma e ficou
entrada no Senado de filhos de libertos, responsável pela porção ocidental do
de legionários e provinciais, expandiu o império, o segundo partiu para o
direito de cidadania e racionalizou a Oriente, onde pretendia alargar ainda
aplicação das leis, uniformizando a mais as conquista romanas. As opções
Itália sob os preceitos jurídicos da Urbs de cada um serviram de mote para
(GRIMAL, 1993, p. 30). propaganda de Otaviano quando a

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antiga aliança declinou em rivalidade. menos de vinte anos tornara-se consul
As imagens cristalizadas dos dois a ameaçando o Senado com seu exército
partir desse momento denunciam mais pessoal, tanto a idade quanto o método
uma vez o apego e as contradições do eram francamente arbitrários aos
discurso conservador diante da costumes. Cícero relevou tal violação e,
conturbada realidade política. O fato de apoiando-o, acreditou ser capaz de
Marco Antonio figurar como ameaça às manipulá-lo contra Marco Antonio,
tradições romanas enquanto Otaviano quando este ainda estava no norte da
seria o guardião delas não passa de uma Itália. Acreditava-se, portanto que o
ficção por trás da qual a realidade antigo lugar-tenente de César era a
utilizou-se da tradição para abrir maior ameaça a Roma, e mesmo
caminho ao novo sistema que precipitou Otaviano agindo contra o mos maiorum
a queda da República. via-se nele, talvez, um mal menor.

Estando Marco Antonio no Oriente a A propaganda pessoal de Otaviano


forma mais proveitosa de detratá-lo era ilustrava-o como defensor e restaurador
caracterizá-lo como a antítese do vir das tradições romanas. Todavia, mesmo
romanus. Por isso, o antigo braço após a derrota da alegada ameaça de
direito de César era “acusado de Marco Antonio na batalha de Ácio, em
tendências monárquicas orientalizantes 31 a. C., a República não foi
e de trair Roma, ao esquecer-se dos restabelecida. Todas as transgressões de
deveres de general romano para unir-se Otaviano foram admitidas pelo Senado,
com a rainha do Egito, Cleópatra” contraditoriamente elas feriam as
(CORASSIN, 2001, p. 62). Mas, aos instituições que ele fingia preservar, e a
olhos dos romanos, sob a influência da sobrevivência parcial do antigo sistema
propaganda de Otaviano feita por só foi possível sob um novo regime de
Horácio e Virgílio, ele não desobedecia governo. Assim, sob a direção de
somente ao ideal de virtus, mas ofendia Otaviano, o Principado herdou as
também o mos maiorum, pois enquanto contradições republicanas e nasceu
Otaviano, em obras como Viagem a ambíguo, exaltando e transgredindo os
Brindes escrita por Horácio, era valores ancestrais de Roma.
apresentado vivendo com simplicidade Considerações finais
o mundo romano escandalizava-se com
o fausto e o luxo régio em que vivia A degradação das instituições
Marco Antonio na Ásia (GRIMAL, municipais nesse intervalo que
2008). observamos abriu caminho para o
estabelecimento de um sistema mais
Tendo ficado na Itália, foi mais fácil amplo, que correspondeu à abrangência
para Otaviano apresentar-se como do império. Todavia, mesmo após a
protetor das tradições, pois estando conscientização do colapso da
próximo ao centro do poder, ou seja, República e do advento do novo regime
Roma, o poder que ele possuía foram aqueles valores tradicionais que
apresentava mais legitimidade e serviram de baliza para o
respaldo, especialmente pelo apoio dos comportamento dos homens políticos a
antigos aliados de César assentados na frente do Principado. Por isso o Senado,
Itália (ROUGÉ, 1969). Mas Otaviano que jamais foi totalmente deslocado de
também desobedecera às tradições sua posição retora, clamaria, ainda,
desde seus primeiros atos políticos no durante o Alto Império o respeito a
cenário romano. Em 43 a. C., com essas antigas, mas perenes, ideias

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morais e políticas, que em sua Referências
concepção eram a base da grandeza do ALFÖLDY, Géza, Historia social de Roma.
Estado romano. Madrid: Alianza, 1987.

Portanto, o processo de surgimento do CARRIÉ, Jean-Michel. O soldado. In:


GIARDINA, Andrea. O homem romano.
poder pessoal, e seu posterior
Lisboa: Presença, 1992.
estabelecimento, foi amplamente
marcado por incoerências entre o CORASSIN, Maria Luiza. Sociedade e política
na Roma antiga. São Paulo: Atual, 2001.
discurso e a prática. As ideias
legitimadoras das atitudes políticas __________. Comentário sobre as Res Gestae
eram utilizadas ao sabor das Divi Augusti. In: JOLY, Fábio Duarte. História
e Retórica: ensaios sobre historiografia
necessidades prementes, e não eram antiga. São Paulo: Alameda, 2007.
respeitados de forma integral os valores
__________. A reforma agrária na Roma
que elas expressavam tradicionalmente.
antiga. São Paulo: Brasiliense, 1988.
O fato mais desconcertante de tudo isso
é que, a despeito das contradições que GRIMAL, Pierre. O império romano. Lisboa:
Edições 70, 1993.
se debateram durante o período
observado, com o novo regime não __________. La civilisation romaine. Paris:
surgiu um discurso renovado e coeso Flammarion, 1981.
com o sistema do Principado para __________. O século de Augusto. Lisboa:
legitimá-lo completamente. A Edições 70, 2008.
explicação para isso é que o MENDES, Norma Musco. Roma republican.
estabelecimento desse governo não São Paulo: Ática, 1988.
representou uma verdadeira ruptura, ROUGÉ, Jean. Les instituitions romaines.
pois as antigas instituições, culturais, Paris: Armand Colin, 1969.
políticas, sociais e econômicas, VENTURINI, Renata Lopes Biazotto.
permaneceram inalteradas em seus Estoicismo e imperium: a virtus do homem
aspectos essenciais, e os detentores do político romano. Acta Scientiarum. Education,
poder pessoal governavam o mundo v. 33, n. 2, p. 175-181, 2011.
romano apoiados ainda na virtus e no
mos maiorum que, embora deformados, Recebido em 2013-09-30
forneciam-lhes o necessário respaldo. Publicado em 2014-02-10

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