Os reis romanos: A história de Roma se divide em três principais períodos: a
Monarquia, a República e o Império. No entanto, ao analisar e estudar sobre o mais arcaico desses períodos, se verifica uma linha extremamente tênue entre mitologia e a realidade. A maior parte do que se sabe a respeito dos soberanos do período monárquico, é fruto de análise e comparação entre a cultura material obtida em sítios arqueológicos, e da literatura romana proveniente dos períodos republicano e imperiais (altamente enviesados) que falam de seu passado. Portanto, quando se trata de reis romanos, se torna improvável trabalhar com afirmações exatas. Primeiro é necessário compreender a magnitude e extensão do que Roma costumava ser no século VI a.C. Ao contrário do que os tardios historiadores do período imperial diziam, Roma não era uma superpotência da península itálica, tampouco se configurava como um estado centralizado e se organizava nos tradicionais moldes políticos romanos desde seu primórdio. Acredita-se que na realidade, o cenário geopolítico de Roma e seus vizinhos, era muito mais próximo de um sistema hierárquico de clãs e chefes de terras influentes, do que exatamente de líderes de estado soberanos. Dessa forma, os registros historiográficos da Roma arcaica, contam com seis supostos reis, que, ainda tendo claros registros de seus nomes e seus feitos, é difícil distinguir a realidade da visão idealizada que seus sucessores futuramente lançariam sobre eles. Rômulo, carrega a lendária figura fundadora de Roma, sendo considerado o primeiro líder romano, e, ainda assim, são perpetuados debates a respeito de seus feitos e até mesmo de sua existência. Sendo assim, uma série de seis também lendários reis deram continuidade a Rômulo: Numa Pompílio, Túlio Hostílio, Anco Márcio, Tarquínio Prisco, Sérvio Túlio, e por fim Tarquínio Soberbo, dando fim ao período dos reis, e precedendo a nova República. No entanto, apesar de todo o aspecto mitológico atribuído aos reis referente à fundação e constituição de Roma, o período monárquico foi olhado com um grande tom de desprezo pelos romanos dos próximos séculos, tendo como referência um modelo político que jamais deveria ser seguido ou tomado como norte. Isto se dá, pelo simples fato de que a maioria dos reis, e, em especial o segundo Tarquínio, representaram a verdadeira figura da tirania e do despotismo, sendo assim, um modelo especialmente demonizado durante a nova era de “liberdade” da República que viria a seguir. (BEARD M. Cap.3 pg 5 a 13) Religião e política na fundação: Assim como a grande maioria das civilizações antigas e modernas, Roma também possuía suas lendas e mitos relativos à sua fundação e estruturação. Certamente não existem registros documentais que comprovem a veracidade das afirmações que os romanos dos tempos áureos faziam a respeito de seus antepassados, mas, por outro lado, tais afirmações são de grande valor para a compreensão de como os romanos se enxergavam e a forma com que eles idealizavam a sua história. Dessa forma, apesar de toda a aversão para com o período monárquico, ironicamente se atribui a criação dos mais importantes pilares da sociedade cívica romana aos seis lendários reis associados a esse período. Dessa forma, o próprio sistema religioso romano era atribuído a um dos reis, Numa Pompílio, que, sucedendo Rômulo, supostamente foi responsável pela sistematização, organização e nomeação das instituições religiosas que foram tão importantes para a história de Roma. Diferente da concepção moderna de religião, o paganismo foi crucial para a história militar e imperial de Roma, pois eram atribuídos aos rituais de consagração e honra aos deuses a glória militar das conquistas romanas. Da mesma forma, Sérvio Túlio carrega o título de criador do tão conhecido censo romano, que visava categorizar os cidadãos conforme seu patrimônio. O censo estava diretamente ligado ao exército romano, pois sua configuração era baseada no poderio monetário individual de cada soldado, e ao suposto sistema de sufrágio do período monárquico, no qual os votos possuíam diferentes pesos de acordo com classe social do indivíduo. (BEARD M. Cap.3 pg 20 a 37) Os reis etruscos: Pouco tempo foi necessário para a quebra da sucessão de reis “verdadeiramente” romanos, visto que, a monarquia não era hereditária, e que os futuros detentores do trono não estavam diretamente à Rômulo. Com efeito, um padrão se repete ao longo da história dos reis romanos: a existência de monarcas não de origem romana, mas etrusca. No entanto, realmente se torna inevitável se questionar como uma sucessão tão curta e recente de reis romanos, pôde ser interrompida por uma dinastia estrangeira. Certamente não seria natural dos romanos, com seu conhecido espírito ufanista, admitirem que a gloriosa Roma teria sido dominada por bárbaros etruscos em algum momento da história. Essa hipótese poderia explicar a desconhecida razão de Sérvio Túlio, Tarquínio Prisco e Tarquínio Soberbo serem de origem etrusca. No entanto, seria um tanto anacrônico aplicar os posteriores conceitos de estados unificados, exércitos nacionais e suas políticas expansionistas a um período em que as cidades eram majoritariamente constituídas por chefes locais e líderes independentes. Dessa forma, talvez se torne um pouco mais claro o entendimento da origem de Sérvio Túlio, por exemplo, que possivelmente era um influente chefe guerreiro, detentor de milícias urbanas e que possuía uma relação sociopolítica com Roma muito mais complexa e multifacetada do que posteriormente se acreditava ser. (BEARD M. Cap.3 pg 38 a 50) Roma e a Etrúria: Muito antes de Cartago e da Dácia, os romanos já possuíam uma relação forte de rivalidade com povos limítrofes, e, desde o seu primórdio, mantinham um relacionamento ambíguo com os também lendários Etruscos. A Etrúria era uma região vizinha de Roma, ao norte da península itálica, e expressivamente mais desenvolvida economicamente e culturalmente, tendo em vista o amplo acúmulo de cultura material e ruínas associadas aos etruscos. Se credita esse notável feito dos povos etruscos por sua longa tradição de comércio ao longo do mediterrâneo, e, em especial, mantendo contato direto com gregos no mar Egeu. Como dito antes, a provável relação entre Roma e a Etrúria se dava principalmente ao nível comercial, e, especialmente, possuía uma constante conexão ao nível político-militar, tendo em vista os já conhecidos reis romanos de origem Etrusca. Fora isso, não é possível afirmar com certeza que de fato, nesse período, houve uma rivalidade militar a nível “nacional”, tendo em vista que o poderio bélico era centralizado na mão de homens influentes locais e não do chamado Estado romano. (BEARD M. Cap.3 pg 38 a 50) Arqueologia, mitologia e história: Como dito antes, o que hoje conhecemos a respeito do período monárquico romano é fruto de um longo processo de operação historiográfica, no qual, a análise puramente documental dos registros históricos do século VI a.C e de autores do período imperial como Lívio e Plínio, se mostram insuficientes para afirmações seguras. No entanto a recente aproximação da história com a arqueologia possibilitou uma nova quebra de paradigmas, ao poder, finalmente, colocar os objetos de estudo já conhecidos em contraste com uma análise de novos artefatos referentes ao período da Roma arcaica. Dessa forma, a história da Roma pré-republicana se mostra como um campo de estudos que está em constante e rápida transformação, tendo em vista a falta de consenso científico com relação às datações dos objetos e novas interpretações que são feitas a respeito de eventos e dados previamente estudados. Recentes estudos arqueológicos representam a quebra de uma série de noções enviesadas a respeito da vida cívica da época, como, por exemplo, o desmantelamento da visão de uma Roma arcaica já como um grande e desenvolvido centro urbano, expressivamente superior aos povos vizinhos e contemporâneos. O que, no final das contas, tornou-se por ser um dramático exagero a respeito do desenvolvimento econômico e até mesmo arquitetônico da cidade, levando em conta as emocionadas descrições da complexa obra da Cloaca Máxima (sistema de esgoto romano), e os relatos de Plínio, que diziam que tão grandiosa era a construção da Cloaca que os construtores cometeram suicídio devido à exaustão. (BEARD M. Cap.3 pg 51 a 64) Liberdade e república: Tão traumática foi a experiência dos sete reis romanos, que a instauração de uma nova configuração social e política germinou uma nova simbologia de liberdade que ressoaria milênios após o evento ocorrido. Guardada as devidas proporções e correções do que de fato se deu em Roma, é inegável que a queda dos Tarquínios, mesmo que historicamente imprecisa, representou um marco e um novo nascimento para a história romana. Primeiramente é necessário falar das mudanças na configuração política. Mesmo que na prática alguns cônsules fossem tão tirânicos e despóticos quanto os antigos Reis, os novos líderes agora simbolizavam uma autoridade justa, elevada ao poder por voto popular, com apenas um ano de mandato e que partilhava do poder com um segundo cônsul. As transformações também se deram na própria aparência e paisagem da cidade. A história romana conta que o templo de Júpiter no Capitólio foi feito em consagração desse novo período de liberdade do povo de Roma, atribuindo a prosperidade da República ao feito. Até mesmo mudanças na paisagem natural da cidade foram observadas, como a “criação” da ilha Tiberina, que supostamente data exatamente do início da República. Dessa forma, a República representava muito mais do que uma mera mudança no sistema de governo, e sim, uma verdadeira comunhão com valores considerados importantes para a nova sociedade que nascia do sangue de Tarquínio Soberbo, e que precedia toda a glória de Roma. (BEARD M. Cap.3 pg 65 a 73)