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A queda de Roma e o fim da civilização

A vida material romana e pós romana:


Ao verificar as análises quantitativas dos vestígios arqueológicos em territórios
romanos feitas por Ward-Perkins, é possível levantar uma série de
questionamentos a respeito dos fenômenos socioeconômicos que ocorreram
ao longo do império. A notória diferença entre a quantidade de objetos
pertencentes a períodos próximos - especialmente restos de cerâmica e de
materiais utilizados em construções -, é o principal ponto de partida para
compreender a natureza da vida material no mundo pós romano. Certamente,
tratando de números, a coleção que se tem de artefatos pertencentes ao
período clássico ultrapassa de maneira excepcional o conjunto de objetos
datados dos séculos V e VI, já na antiguidade tardia. E, de fato, se não fossem
levados outros fatores em consideração, a obtusa diferença entre a
disponibilidade de objetos corriqueiros de uma sociedade funcional seria um
claro indicador de uma massiva queda populacional dentro de um período de
pouco mais de dois séculos. No entanto, observa-se que, ao analisar
fragmentos de afrescos e ruínas de construções pós romanas, as matérias
primas utilizadas no cotidiano desses povos se mostraram bem menos
duráveis quando comparados aos ricos materiais do período romano clássico.
As comuns construções de mármore e afrescos de cerâmica polida da época
de Marco Aurélio, agora seriam, em sua maioria, substituídos por telhas de
colmo e construções feitas em madeira. Isso não significa que não tenha
ocorrido, de fato, uma substancial redução populacional devido à forte crise
que o império enfrentara, contudo, é necessário que se estabeleça como a
mudança na vida material tardo-antiga impactou fortemente no conhecimento
do período. (Ward-Perkins, pg 187 a 192)
Os vestígios arqueológicos como indicador de sofisticação e complexidade:
Tendo em vista a direta correlação entre a diminuição da cultura material
pertencente ao período de declínio do império romano e a grave crise
econômica que Roma enfrentara, torna-se inevitável propor que haja, de fato,
uma ligação entre o grau de complexidade da economia de um povo e a
disponibilidade de recursos do cotidiano e até da escrita. Como é visto na
análise de Ward-Perkins, existem algumas razões pelo qual uma economia
mais simples – tomando como referência a sociedade pós romana -, será
refém de um modelo de produção alimentícia bastante limitado e instável. Em
primeiro plano, economias complexas e mercados transnacionais florescentes
são o cenário propício para a possibilidade de especialização na produção
das colheitas, permitindo, assim, que, ao adequar as plantações às condições
geomorfológicas locais, o solo se tornasse mais produtivo. Além disso, outro
ponto importante a ser destacado é a possibilidade de maior investimento em
aprimoramentos de materiais e técnicas de plantio, aumentando ainda mais a
produtividade e consequentemente fomentando os mercados locais. Em vista
disso, torna-se claro como é, de fato, coerente que a sociedade pós romana -
conhecida por suas condições primitivas de funcionamento devido à crise
generalizada do império -, forneça uma quantidade limitadíssima de vestígios
que indiquem uma dinâmica populacional comparável à do período clássico.
Outros pontos que, apesar de fugir da esfera de produção e manufatura, são
grandes indicadores da correlação entre a sofisticação de uma sociedade e a
disponibilidade de vestígios arqueológicos: o grau de literacia e a
complexidade das construções. Em relação às construções, é visivelmente
óbvio como os remanescentes arquitetônicos do império romano são quase
que em sua totalidade pertencentes ao período clássico. Assim como os
utensílios e peças de decoração previamente comentadas, os monumentos
feitos em mármore, passaram a ser feitos com materiais mais baratos e
frágeis, sem contar, é claro, com a significante diminuição no tamanho dessas
construções. Por outro lado, a evidente disparidade entre registros escritos do
período romano e pós romano tornam claro como a queda do império afetou
também um elemento tão simbólico para a nobreza romana. As abundantes
amostras de grafites e mensagens públicas preservadas na cidade de
Pompéia, ainda no primeiro século, indicam como a comunicação escrita,
ainda que reservada para as altas classes, tomava um importante papel na
vida cotidiana da Roma clássica. Ao tratar de literacia em uma Europa já
cristianizada após a queda do império, o grupo que mais se destaca é o clero,
sendo, indiscutivelmente, responsável pela maior parte dos registros escritos
formais da época. Certamente existe um acervo de registros vulgares e do
cotidiano da Antiguidade Tardia, assim como foi no período romano, como é
apresentado por Perkins na Hispânia visigoda e na Britânia, mas de forma
alguma se compara com o grau de atuação que essa forma de comunicação
tomava alguns séculos antes. (Ward-Perkins, pg 192 a 222)
As invasões bárbaras:
Ward-Perkins, em primeiro lugar, relembra que as longas e cansativas
discussões acerca da transformação do mundo romano após as invasões
bárbaras são sustentadas por uma clara diferença de percepção desses
povos de acordo com o tempo e local da discussão. Inevitavelmente, o mundo
neolatino, especialmente na Itália - sendo o principal palco do fenômeno em
questão -, olha para as ondas de invasões bárbaras por meio de uma lente
trágica e de verdadeira barbárie, enfatizando os aspectos mais animalescos
dos francos, lombardos e visigodos em suas ondas de invasão. Se por um
lado a historiografia italiana tende a analisar a queda de Roma como um
conflito sangrento e covarde entre mundo civilizado versus barbárie, as obras
produzidas a respeito da Antiguidade Tardia no mundo Anglo-Germânico
tendem a olhar para o outro lado. Essa recente releitura do mundo pós
romano, feita principalmente em universidade britânicas e alemãs, como fruto
de um assentamento pacífico e brando dos povos germânicos nos territórios
do império é, certamente, um equívoco, tendo em vista a inegável violência
com qual foi encontrada nos últimos anos do império do ocidente. Entretanto,
o autor denota um importante aspecto desse debate, que reside justamente
no entendimento deste período da história de Roma como um mundo
claramente multifacetado e quase sempre influenciado por vieses particulares
de espaço e tempo. A já conhecida visão negativa que a classistas tinha
sobre os povos germânicos durante a década de 40, quando o nazismo se
encontrava em seu auge, é o perfeito exemplo de como as condições sociais
específicas de cada tempo moldam a percepção de um certo recorte temporal
do passado. Outro curioso fenômeno apresentado na obra, foram as
tentativas de localização de eventos históricos do primeiro milênio onde o
mundo latino e germânico coexistiu pacificamente, de modo a criar um senso
de união entre os países da recém formada União Europeia. (Ward-Perkins,
pg 225 a 234)

A crítica ao conceito de Antiguidade Tardia :


De acordo com o autor, o conceito de Antiguidade Tardia tem claramente
tomado um diferente tom nos últimos anos, denotando, talvez, uma mudança
de localização do termo. Em suma, a ideia de uma Antiguidade estendida até
os séculos VI e VII partem do pressuposto moderno de que a realidade social,
e principalmente cultural do mundo pós romano, era de alguma forma
equivalente à realidade do mundo romano. O olhar “new age”, termo bem
empregado por Ward-Perkins, que a academia possui ao tratar de um mundo
pós romano com enfoque especial no universo mental e espiritual, acaba por
amenizar a verdadeira seriedade que o mundo material e econômico
enfrentou nesses séculos. Além do fato que, a ideia de uma antiguidade
alongada pressupõe que todo o mundo romanizado, do Oriente médio à
Britânia, foi continuado por um lento e progressivo ritmo. Fato é que, as
mudanças políticas e econômicas do Ocidente Romanizado, frequentemente
ignoradas pela ótica “new age” da Antiguidade Tardia, estavam longe de
serem parte de um processo suave e com visíveis efeitos positivos, pelo
contrário, os termos realmente apropriados (e evidentemente evitados) para
designar o que a Europa Ocidental enfrentou na Antiguidade Tardia são
decadência e declínio. (Ward-Perkins, pg 234 a 244)
A defesa ao conceito de civilização:
Em paralelo à crítica do novo conceito de Antiguidade Tardia feita pelo autor,
ocorre a defesa de um termo que é, aparentemente, incompatível com a
conciliação de uma pós romanidade pintada como positiva: a civilização.
Perkins aponta como o emprego do termo “civilização” no século XXI é evitado
pela academia, de modo a impedir que sejam feitas comparações depreciativas
entre povos desenvolvidos e povos supostamente “atrasados”. É de fato, em
um mundo que tão recentemente saiu de um período pós-colonial, importante
se atentar para comparações que abram brecha para um discurso imperialista
ou até mesmo eugenista, ao estabelecer um conceito entre povos “inferiores” e
“superiores”. No entanto, o que é preciso ser entendido é que, para uma
compreensão integral e honesta do mundo pós romano, é impossível que não
se estabeleça uma digna distinção entre o mundo romano e a sociedade fruto
do declínio deste império. Toda a análise feita na obra de Ward-Perkins em
termos de cultura material: desenvolvimento arquitetônico, vestígios de
atividade agrícola e taxas de literacia em sociedade, são pontos basilares para
uma clara distinção civilizacional entre dois mundos que recentemente tentam
ser comparados de forma igual. A defesa do termo “civilização”, portanto, se
mostra como algo realmente necessário para a verdadeira compreensão de
uma Antiguidade Tardia realista e coerente com os seus resquícios. (Ward-
Perkins, pg 223 a 230)

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