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Disponível em : https://www.academia.edu/4776552/CARRIE_Jean-
Michel._Introduction_Bas_Empire_ou_Antiquite_Tardive._trad._de_Regina_Busta
mante
Acesso em : 22/02/2016
CARRIÉ, J.-M. “Introduction ‘Bas Empire’ ou ‘Antiquité Tardive’? In: CARRIÉ, J.-M.,
ROUSSELLE, A. L’Empire Romain en mutation; des Sévères à Constatin 192-337.
Paris: Éditions du Seuil, 1999. p. 9-25. (Coll. Points H 221: Nouvelle Histoire de
l’Antiquité 10)
questão: “Um Gibbon moderno não escreveria mais uma obra intitulada ‘Declínio e
Queda do Império Romano’ . Mas que outro título poderia escolher?”
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Por que – comecemos por isso – este título não seria mais possível nos nossos dias? As
razões são múltiplas. Inicialmente, porque não se admite mais que este tipo de curva, quase
biológica, permita descrever a evolução das sociedades humanas, especialmente no caso do
mundo antigo. A idéia de “crise” do Império Romano é admitida apenas para certos períodos
(séculos III, V e VII), em alternância com as “restaurações”, os “redirecionamentos”, os
“renascimentos”: nos séculos IV e VI, essencialmente. No plural, a palavra “crise” perde sua
dramaticidade, não ressoa mais como a ruptura de uma civilização. Depois, porque a queda do
Império Romano não pode mais constituir o termo cronológico da Antigüidade, caso se
considere o prolongamento desta em Bizâncio e sua influência nos reinos bárbaros que, no
Ocidente, acamparam sobre estas ruínas.
confirmada depois por diversos trabalhos, dentre os quais a tese (inédita) de Michel Christol
sobre o reinado de Galieno. Crise e redirecionamento foram objeto deste primeiro volume.
Quanto à Antigüidade Tardia, a tendência atual é prolongar até a conquista muçulmana no
Oriente e na África do Norte, que fracionou a unidade do mundo mediterrâneo, redobrou os
interesses vitais de Bizâncio sobre o Oriente e o obrigou a rever sua organização
distanciando-se do passado romano. Este corte permitiu melhor delimitar as continuidades e
as rupturas entre a Antigüidade e a Alta Idade Média no Ocidente, a Alta Época Bizantina no
Oriente. Não se pode, entretanto, simplesmente inverter o título de Gibbon falando de
“renascimento e sobrevivência do Império Romano”.
A terminologia do grande historiador inglês era ela própria anterior àquela que foi
adotada na França para designar o período: “Baixo Império”, expressão lançada em 1759 por
Lebeau e que conheceu o sucesso que se sabe. Na França, somente há 25 anos foi que Marrou
defendeu a adoção em francês da expressão “Antigüidade Tardia”. Não era uma simples
querela de palavras: devia liberar o período de suas conotações pejorativas que perpetuavam o
descrédito que pesava sobre ele. Marrou defendia que o uso francês se modelou sobre o
conceito de Spätantike adiantado desde 1901 pelo arqueólogo vienense Alois Riegl na sua
Spätrömische Kunstidustrie. Por sua vez, os ingleses falavam desde muito tempo de Later
Roman Empire. Atualmente, pode-se dizer que Antigüidade Tardia adquiriu definitivamente o
direito de cidadania: não somente a expressão, mas também o corte cronológico que designa e
que ajuda a reabilitar. Não que esta reabilitação passasse sem restrição: certamente que ela
não atingiu o grande público.
“Lembra-te que és mortal.” Era o costume, no banquete romano, de fazer circular, sob
uma forma ou outra (sobre a baixela da mesa, por exemplo), a evocação da morte no mais
forte dos regozijos terrestres. Tal era também a função durante muito tempo assinalada para a
queda de Roma, na reflexão sobre o destino das civilizações humanas. Além dos obstáculos
criados pelas enormes dificuldades de interpretação histórica do período e o reino de
preconceitos classicistas, o tema do “fim do Império Romano” sofreu até data bem recente da
incapacidade em se destacar do tema obsedante da civilização ameaçada pela barbárie
(empenhada nas rivalidades nacionais e lutas sociais do século XIX), que exprimia em
realidade a própria inquietude das nações ou de classes dominantes pouco seguras delas
próprias.
Este movimento foi acentuado pelo pessimismo consecutivo à 1a. Guerra Mundial. Era
o momento quando as idéias de Oswald Spengler (O Declínio do Ocidente, 1918-1922)
dominavam a cena historiográfica – e naturalmente a “queda de Roma” forneceu ao filósofo
um material de análise. O tema da decadência, alimentado por uma leitura em alto grau de
testemunhos antigos e embates dos conflitos ideológicos modernos, fez do “Baixo Império” o
arquétipo de todo o “fim de um mundo”. Um belo exemplo da projeção de uma atualidade
incandescente sobre a análise da queda de Roma foi fornecido por Rostovtseff. Pode-se ler na
sua História Econômica e Social do Império Romano: “A revolução social do século III, que
destruiu os fundamentos da vida econômica, social e intelectual do mundo antigo, não podia
engendrar nenhuma realização positiva. Sobre as ruínas de um Estado próspero e bem
organizado, que tinha por bases a civilização clássica secular e a autonomia política das
cidades, ela edificou um Estado fundamentado na ignorância geral, no constrangimento e na
violência, na escravidão e na servidão, na corrupção e na desonestidade.” Nesta ciência
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Todas as condições então se reuniram para que a Antigüidade Tardia suscitasse, mais
do que nenhuma época da História Antiga, um vasto canteiro de estudos historiográficos no
sentido francês do termo: a história da produção histórica e das maneiras próprias de escrever
a História. Esta pesquisa foi magistralmente levada, entre outros, por Santo Mazzarino no Fim
do Mundo Antigo (1959) , ou ainda por Luciano Canfora, Ideologia do Classicismo (1980) ,
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Deve-se, entretanto, resumir o que fez principalmente, até uma data muito
recente, a fraqueza dos estudos consagrados ao período, poderia situá-la no hábito
de pesquisar as causas antes mesmo de ter estabelecidos os fatos, tanto que a pista
“declínio e queda” se impunha a todos previamente na menor pesquisa. A “queda do
Império Romano” teve um papel catártico para a consciência moderna nas diversas
épocas de sua história. Chamou sobre ela uma fixação das inquietudes que cada
geração lança sobre os destinos do mundo no qual vive. Tirar lições da queda de
Roma para o tempo presente conduzia inevitavelmente a individualizar a causa
principal do declínio de Roma na obsessão do momento, neste que os modernos
consideravam como o principal perigo pesando sobre sua própria civilização. Assim,
em inúmeros historiadores, esta tendência também reduziu a queda de Roma a um
único tipo de causalidade.
do qual era dependente, seja uma obra latina pagã de concepção tucididiana da
segunda metade do século IV, já colocada em forma, unitária e coerente, pronta a
toda forma de reemprego – empréstimo ou resumo, plágio ou citação. Este rápido
retrato esboça, para um número cada vez maior de especialistas, os Annales de
Nicômaco Flaviano, uma obra da época teodosiana não conservada, mas célebre em
seu tempo e além dele; se pensara inicialmente que cobria somente a Roma
Republicana. Não se duvida mais que nesta fonte tenha também sido extraída tanto
da História Augusta como do Epitome de Caesaribus, de Zósimo e mesmo de Amiano
Marcelino . Seria também o elo faltando entre os historiadores do século III e a
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fonte principal de Leão o Gramático (século X), identificada pouco depois por Bruno
Bleckmann com Pedro o Patrício (século VI), conhecido por alguns fragmentos, nos
quais reconhece também o “Continuador anônimo de Dion”. Compreender-se-á
assim que a pesquisa sobre as fontes atualmente desaparecidas, longe de ser uma
deformação de erudição masoquista, é importantíssima para o conhecimento
histórico.
Atualmente, este interesse deve muito ao fato de que o período foi durante
muito tempo maltratado. Ele deu ao historiador matéria para vastas revisões e
reconstruções do saber, com a satisfação de ver as coisas moverem-se muito rápido.
Além da renovação das fontes, que estimulou o estudo do mundo antigo em seu
conjunto, e, em particular, favoreceu as épocas tardias, nas quais seu impacto foi
ainda acrescido pelos erros da historiografia passada. Damos alguns exemplos. Do
ponto de vista dos textos, houve, no espaço de alguns anos, um florescimento de
inéditos de Santo Agostinho: 29 cartas de um interesse excepcional para a história
social e jurídica, logo seguidas de novos sermões ; mais modestamente, os
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Que o “Baixo Império” não seja mais completamente o que era, é uma
informação que é obscuramente advinda até nos formadores de opinião através dos
escritos da mídia não especializada moderadamente informada dos avanços da
pesquisa atual. Um recente número especial de uma revista histórica para o grande
público parecia anunciar uma retomada dos clichês historiográficos (“Verdade ou
falsa decadência do Império Romano?”). Mas, era, neste artigo mesmo que trazia
este título, para perenizar um pouco melhor alguns dentre eles: as dificuldades
econômicas, a desmotivação do exército, a ação demolidora do cosmopolitismo e do
cristianismo. “As catacumbas do tempo de Domiciano – ali se lia – foram galerias de
topeiras cavadas com pouco barulho sob o Império Romano e que acabaram por
causar seu afundamento” : versão subterrânea da fórmula de Gibbon. Mais que
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4 p. 392 na edição francesa de Jean Andreau, Paris: Laffont, Coll. “Bouquins”, da qual se deve necessariamente
ler a introdução (ali se encontrarão especialmente as bases historiográficas do modernismo e do primitivismo,
noções que retornarão em várias partes na presente obra). A primeira edição é de 1926.
6 Turin: Einaudi.
7 MOMIGLIANO, A. “After Gibbon’s Decline and Fall”, retomado no Sesto contributo alla storia degli sudi
classici e del mondo antico. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 1980. p. 274.
8 VALLA, L. La donation de Constatin (sur la donation de Constatin à lui faussement attribuée et mensongère).
trad. et commentaires par J.-B. Giard. Paris: Les Belles Lettres, 1993.
9 Autor de uma História, cuja datação, dependendo do especialista, varia entre 378 e 395-396.
11 Sobre a renovação do domínio e sobre uma de suas figuras maiores: ROUSSELLE. A. Jeunesse de
l’Antiquité Tardia. Les leçons de Peter Brown. ANNALES ESC 40: 521-528, 1985.
12 AUGUSTIN. Oeuvre. Paris: Bibliothèque Augustinienne, 1987, t. 46B (ver Les Lettres de saint Augustin
découvertes par Johannes Dijvak. Paris: Études Augustiniennes, 1983); Dolbeau, F.(éd). Saint Augustin,
Vingt-six Sermons au peuple d’Afrique. Paris: Études Augustiniennes, 1996.
13 Dionisotti, A. C. From Ausonius’schooldays? A schoolbook and its relatives. JRS 72: 83-125, 1982.
14 Hurst, A. et al. (ed.). La Vision de Dorotheos (anônimo). P. Bodmer XXIX. Cologny-Genève: Biblioteca
Bodmeriana, 1984.
15 Exumados por Sirks, S. J. B. Bollettino Intern. di Diritto Romano 85: 143-170, 1982; explorados por
Lepelley, C. Antiquités Africaines, 25: 239-251, 1990.
18 MacMULLEN, R. Le déclin de Rome et la corruption du pouvoir. Paris: Les Belles Lettres, 1991 (trad.
francesa), introdução e p. 265.