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Carlos Magno

O Reino Franco e a relação com a Antiguidade:


Por se tratar da ascensão de um povo nativo ao norte das Gálias,
indiscutivelmente “bárbaro”, se mostra, à primeira vista, um desafio
estabelecer laços óbvios que ligam o Reino Franco com a antiguidade
clássica, isto é, a civilização greco-latina. Ao analisar o verdadeiro esforço
catequético e civilizacional promovido pela Igreja, postumamente à queda do
Império Romano, se torna claro como a presença latina nas terras
setentrionais não foi forte o suficiente ao ponto de deixar profundas marcas
culturais, étnicas ou religiosas, como foi visto nas províncias mais ao sul.
Desta forma, verifica-se que uma plena romanização e cristianização - sendo
estes termos quase sinônimos durante a Antiguidade Tardia – do povo franco
só se tornou possível por meio de uma missão de restauração cultural
promovida por Carlos Magno e seu entourage. Antes do surgimento de uma
influente e nobre figura que buscasse ativamente a construção de uma ponte
com a cristandade greco latina, a luz do cristianismo romano emanava de
pequenos polos de difusão espiritual e intelectual; os mosteiros e abadias
construídos, em sua maioria, por missionários advindos de reinos italianos. A
presença de centros de evangelização nas terras bárbaras certamente
precede a existência de um reinado franco, traçando suas origens ao período
no qual o Império Ocidental ainda se encontrava unificado. Contudo, ao tratar
de difusão intelectual e cultural do que se denomina como clássico, só foi
possível ser observar um genuíno contato com os povos germânicos quando
os Lombardos já pisavam sobre Roma, no século VI. Em primeira instância,
pode-se afirmar que uma verdadeira relação entre os Francos e a
Antiguidade, foi, curiosamente, resultado da catequização de religiosos vindos
da Britânia e da Irlanda que, já estando plenamente cristianizados, puderam,
principalmente por meio da língua latina, levar importantes escritos dos
Padres da Igreja e autores da patrística para os Francos. É justamente a
partir deste fenômeno que se começa a ouvir nomes bastante familiares para
os estudiosos deste período, como; Alcuíno, Elberto e Beda, vindos da
Inglaterra convocados por Carlos Magno; Pedro de Pisa e Paulino de
Aquiléia, da Itália - todos detendo grande importância para a fundação de
escolas do Renascimento Carolíngio. Muito além de uma mera transmissão
religiosa ou teológica, a cultura monástica na Gália Franca propiciou a difusão
de um estudo extensivo da gramática e literatura latina, propiciando que, no
século VIII, mosteiros como o de Saint-Denis já fossem familiares às obras de
Virgílio, Boécio e Horácio. Já buscando suprir as necessidades para a
grandiosas aspirações de Carlos Magno, seu reinado foi marcado por um
resgate imparável de uma identidade clássica adquirida por meio da
intelectualidade, deixando claro como, em seu reinado, era indispensável a
educação da jovem nobreza que germinava. Carlos tinha o pleno
entendimento que o seu tão cobiçado Império demandava um povo culto e
familiarizado com as bases que fundaram a grandeza do Império de
Constantino. (Favier, Jean – pg 2 a 19)

Reino e Império:
Desde sua fundação, o reino herdado por Carlos Magno vivia constantemente
sob um peculiar dilema a respeito de sua identidade e missão enquanto
entidade política. Se por um lado, Carlos atribuía a si mesmo, por uma
perspectiva universalista, a responsabilidade de guiar e conduzir o povo
cristão, existia ainda um forte ímpeto de fortificação da identidade Franca. De
maneira quase simbiótica, a romanização e a cristianização da Europa caíam,
para Carlos Magno, como essência da vocação de ser um norte para o
cristãos, e, dessa maneira, traduzindo seu desejo de, desde o início de seu
reinado, se elevar à categoria de Imperador. Vindo na contramão de líderes
contemporâneos ao seu reinado, como os visigóticos ou britânicos, cujas
identidades jamais sugeriram a ideia de uma sucessão de Cesar, Carlos
Magno atribuiu a si mesmo o direito de reconstituir um Império Ocidental que
reclama o título de Augusto. Contudo, antes da emblemática coroação de
Carlos Magno por Leão III no Natal de 800, a ideia de que o Ocidente
clamava por um sucessor de Roma ainda não era plenamente consolidada,
tanto pela nobreza do Reino Carolíngio que orgulhosamente carregava a
identidade Franca, tanto pelo próprio entourage do Rei, que questionava a
necessidade da reivindicação de um título de Cesar para ser um legítimo
Imperador dos cristãos. Se verifica que, na prática, a discussão a respeito da
terminologia utilizada para designar o soberano Franco acaba por
transparecer uma realidade mais simbólica do que de fato política. Com
exceção do alto entourage Carolíngio, mesmo após a coroação de Carlos
como Imperador Romano, a maioria do povo franco fazia clara distinção entre
o Rei dos Francos e Lombardos e o Imperador no Oriente, e não era capaz de
perceber as nuances que este título reivindicado por seu Rei de fato
significava. Pois, tratando de intelectuais do entourage, Alcuíno era um
daqueles que, livre das aspirações e idealizações Imperiais típicas do Rei,
percebia como era mais realista e coerente tratar Carlos simplesmente como
um Rei franco que possuía grande responsabilidade sobre os cristãos, ao
invés de tentar legitimar essa missão por meio de um título de César. No final
das contas, o que havia começado como uma tentativa de restaurar o espírito
romano no Ocidente, se distanciando de Bizâncio, tornou-se uma obra quase
caricatural de um Imperador que buscava ampliar os limites de seu poder e
zona de influência ao seu redor. Carlos Magno, porém, ao final de sua vida,
apesar de todo o esforço de romanização, morre como um Rei Franco, muito
mais próximo de seu Pai, Pepino, do que Constantino. (Favier, Jean – pg 20 a
39)

O Império e os cristãos:
É correto afirmar que, antes da emblemática conversão de Clóvis I, nos
primórdios da Dinastia Merovíngia, pouquíssimas coisas tiveram a capacidade
de unificar povos germânicos da forma com que o cristianismo fez. Analisar
Carlos Magno em toda a sua grandiosidade política, mesmo com o imponente
título de Augusto e esbanjando um semblante de patrício, de nada serviria se
não fosse pela essencial missão que lhe foi atribuída de nortear os cristãos e
recuperar o prestígio do bispo de Roma, defasado pelo cristianismo bizantino.
Ser luz para os cristãos em um momento de crise não bastava para Carlos,
sua responsabilidade se estendeu ao encargo de civilizar povos como os
saxões, que ainda não haviam experimentado a plenitude do cristianismo.
Certamente essa ampliação dos deveres perante o povo cristão se consolidou
após a consagração de Carlos no Natal de 800, dando um novo significado à
noção de Imperador que anteriormente, só se tinha o Oriente como
referência. Apesar dos limites imposto pelo Papa Gelásio ao perceber que
poderia haver uma confusão entre a extensão dos poderes temporais e
espirituais, a ideia de um rei sacerdote, que gozava de pleno direito de
convocar concílios de modo a revisar escrituras e determinar dogmas mal
estabelecidos, havia sido recebida com relativa facilidade, evidenciando um
certo mimetismo ao olhar para o Basileu e seus poderes. De modo geral, a
sucessão da dinastia Carolíngia, com suas indispensáveis consagrações,
revela como, com o passar dos anos, a Ideologia Imperial, claramente
expressa nos documentos da Divisio Regnorum, havia se distanciado desse
ímpeto de romanização, e aceitado bem o reino de Carlos Magno cuja
identidade se baseava no catolicismo e no povo franco. (Favier, Jean – pg 40
a 42)

Os dois impérios:
À primeira vista, se mostra, de fato, difícil compreender como um Império
supostamente romano é tão estrangeiro à instituições e práticas que são
legitimamente herdadas por Roma. Certamente é um incomodo para Bizâncio
reconhecer que um bárbaro semiletrado, sem senado e falante de língua
estrangeira pudesse reclamar o epíteto de “Imperator Romanorum”. Há
tempos que a identidade romana não dependia da língua latina, tampouco da
cidade de Roma para reivindicar a legítima sucessão de Constantino. O que
restou para um inevitável atrito entre dois Impérios detentores do mesmo
título foi uma longa e instável negociação entre entidades que já enxergavam
a existência de uma ameaça a sua hegemonia. Rapidamente foi descartada a
possibilidade de um casamento entre Carlos e Irene, tendo em vista a idade
de ambos, contudo, mais rapidamente ainda foi a deposição da Basilissa
quando o tesoureiro Nicéforo, impulsionado por um asco antiocidental
usurpou o poder e restaurou a tensão entre os dois Impérios. Se instaura,
então um conflito que mistura querelas geopolíticas com religiosas. Longe de
ser uma sangrenta guerra entre os dois poderes, mas, aos poucos, são
tomadas atitudes que buscam reforçar a hegemonia de cada Império sobre
zonas disputadas. Um exemplo são as intermináveis disputas pelo controle de
Veneza, que estava longe de ser a grande cidade que havia de ser no futuro,
mas representava bem a rivalidade que crescia. Contudo, Bizâncio já não
havia mais tempo para desavenças improdutivas, tendo em vista como estava
cada vez mais cercada pelos árabes na Anatólia e pelos búlgaros na Trácia. E
foi justamente em meio à morte de Nicéforo decorrente desses conflitos, que
seu sucessor, Miguel I Rangabé, reconhece a autoridade Imperial de Carlos e
cede à disputa, apesar de ainda não o reconhecer como Imperador Romano.
Os próximos passos do Império Carolíngio deixam transparecer como, após a
morte de Carlos Magno, as pretensões de Restauratio Romana já não
representam com fidelidade as ideologia do Império. A identidade de um
reinado franco cristão prevalece, e os sonhos de uma nova Roma são
deixados de lado.

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