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Sumário

Apresentação 3

Mulheres Estoicas na Antiguidade:


Pórcia, Ânia e Fânia 7
Pórcia Catonis (70 a.C a 43 ou 42 a.C) 7
Ânia Cornifícia Faustina (160 – 212) 10
Fânia 11

A visão de Caio Musônio Rufo 13


Musônio Rufo e a filosofia para mulheres 15
Mulheres também devem estudar filosofia (Diatribe III) 15
As filhas devem receber a mesma educação que os filhos? (Diatribe IV) 16
A visão de hoje 18

Mulheres Estoicas hoje: J.K. Rowling 19


Harry Potter 19
Vidas muito boas 23
Sobre fracasso 23
Sobre a imaginação 24

Cinco mulheres e suas lições estoicas 26


Maya Angelou 26
Toni Morrison 31
Ruth Bader Ginsburg 33
Brené Brown 35
Elizabeth Gilbert 36

Referências 40

Sobre a Autora 44

Sobre a Nova Stoa 44


2

Apresentação

O Estoicismo foi fundado em Atenas por Zenão de Cítio por volta de 300 a.C. A escola
foi incorporada, vivida e disseminada por pessoas diferentes e relevantes em seu tempo.
Os ensinamentos do Estoicismo chegaram a nós principalmente pelos escritos de
Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio - os filósofos romanos do último período do
Estoicismo Antigo.

A filosofia estoica é considerada uma das mais voltadas para ações práticas, não é à toa
que há um retorno de seus conceitos, suas ideias e suas práticas por técnicos de esporte,
escritores, artistas, pessoas de negócios, enfim, homens e mulheres da atualidade.

O mundo antigo não era um lugar propício para a compreensão de equidade de gênero
como entendida atualmente, mas mesmo assim, dentro da filosofia estoica, Zenão
imaginou uma comunidade ideal de sábios que incluía mulheres, Musônio Rufo
defendeu o estudo da filosofia para as mulheres e Sêneca escreveu obras voltadas
especificamente para mulheres (consolações/Helvécia e Márcia).

"Embora tenha se desenvolvido em sociedades altamente patriarcais, os escritos


estoicos afirmam claramente que as mulheres são moralmente iguais e que merecem
ser treinadas em filosofia" - Matthew Van Natta 1

As fontes antigas das quais temos acesso hoje foram todas escritas por homens. Assim,
a linguagem é direcionada no masculino; o que não impede pensar e direcionar o
estudo do Estoicismo às mulheres, inclusive buscando exemplos e modelos no mundo
antigo e contemporâneo. Além dessa questão de gênero, hoje em dia, é importante
também escolher uma visão antirracista da filosofia. Se o Estoicismo sempre foi uma
filosofia cosmopolita (todos somos iguais e estamos conectados), mais do que nunca,
atualmente não há espaço para preconceitos e desigualdades.

Zenão, o fundador do Estoicismo, começou sua formação em filosofia estudando por


muitos anos com o famoso filósofo cínico Crates de Tebas (360-5 a.C - 280-5 a.C), cuja

1
The Beginner's Guide to Stoicism: Tools for Emotional Resilience and Positivity
3

esposa Hipárquia de Maroneia (350-30 a.C - 280 a.C) foi uma das mais notáveis
​filósofas da antiguidade.

Pintura romana retratando Hipárquia e Crates da Villa Farnesina, Roma

Hipárquia foi uma filósofa cínica que rejeitou sua alta classe, riqueza e nobreza para
viver suas crenças e compartilhar seus valores nas ruas da antiga Atenas juntamente
com Crates. Embora tivesse muitos pretendentes, ela disse aos pais que se mataria se
não se casasse com ele.

Hipárquia vivia nas ruas de Atenas com seu marido – e mais tarde com seus dois filhos.
Eles não possuíam nada além de suas roupas. Eles viviam de fato o que pregavam, uma
vida ascética como caminho para a liberdade e a verdadeira interação com a realidade.
O exemplo de Hipárquia e Crates, juntamente com o de Sócrates, influenciaram Zenão
na criação do Estoicismo2.

2
Hipparchia of Maroneia
4

"Zenão e seus seguidores aparentemente consideravam homens e mulheres iguais e


as escolas estoicas eram conhecidas por aceitar estudantes do sexo feminino, em
uma época em que isso era incomum" - Donald Robertson 3

Assim, podemos perceber que há exemplos de mulheres que viveram a filosofia com a
mesma força e comprometimento que os homens, infelizmente não sabemos sobre elas
da mesma forma que temos conhecimentos sobre seus pais, maridos e filhos.

É sabido, porém, que o Estoicismo, desde seus primórdios, atraiu muitas mulheres. As
mulheres (matronas) organizavam a “convivia” para debater o Estoicismo4. Muitas
delas de fato vivenciaram a filosofia, como Pórcia Catonis, que era filha de Cato, o
Jovem, e esposa de Brutos.

“Roma trouxe outra novidade para a filosofia estoica: o Pórtico agora conclamava as
mulheres a estudar filosofia” - Aldo Dinucci 5

O lema do Estoicismo é “viver de acordo com a natureza”. A natureza humana parte


de duas premissas: uma que somos seres sociáveis e a outra que nós somos capazes de
pensar racionalmente.

Para Emily Mcgill-Rutherford e Scott Aikin6, os antigos estoicos pensavam que as


mulheres eram iguais aos homens em sua capacidade de raciocinar (e assim também
deveriam estudar filosofia) e que mulheres e homens eram cidadãos iguais da
cosmópole. Para os autores, o progresso dos antigos estoicos para as mulheres segue,
porém, somente até esse ponto. Não havia a possibilidade de escolha de papéis sociais
para as mulheres; faltava, assim, a autonomia.

“Os estoicos, apesar de suas inclinações feministas (ou poderíamos dizer,


protofeminismo), não respeitaram a autonomia das mulheres individualmente. Isso,
argumentamos, não é inconsistente com estoicismo, mas é moralmente inaceitável” -
Mcgill-Rutherford e Aikin.

A tese desses autores é de que mesmo não atuando na prática para de fato eliminar os
problemas das ações sexistas, a filosofia em si dava possibilidades de pensar o

3
Stoicism and the Art of Happiness
4
ted: o estoicismo como filosofia para uma vida comum | massimo pigliucci
5
O Carácter Cosmopolita do Estoicismo
6
"Stoicism, feminism and autonomy”, de Scott Aikin and Emily McGill-Rutherford
5

Estoicismo para combater as injustiças. Assim, hoje, mais do que nunca, é possível
pensar a filosofia estoica em termos de igualdade de gênero. Pois não queremos uma
filosofia estanque, mas uma que avance e se desenvolva.

“O estoicismo liberal que propomos respeita a autonomia, mas reconhece o fato de


que o mundo não é ideal, e assim deve haver as conhecidas virtudes estoicas da
resistência7” - Mcgill-Rutherford e Aikin.

Assim, perseverar não é igual a endossar certos comportamentos – os antigos e os


presentes.

Esta publicação nasce para ressaltar as relações entre as mulheres e o Estoicismo.


Vamos apontar perfis de filósofas estoicas da antiguidade e da contemporaneidade, e
outras mulheres que podem nos ensinar muito sobre as virtudes estoicas mesmo não
seguindo estritamente a filosofia. Passaremos também pela visão estoica de Caio
Musônio Rufo, que defendeu o estudo da filosofia para as mulheres.

7
Do inglês: endurance
6

1. Mulheres Estoicas na Antiguidade:


Pórcia, Ânia e Fânia

Pórcia Catonis (70 a.C a 43 ou 42 a.C)

Pórcia (ou Portia) Catonis8 é filha de Cato, o jovem, e de Atília. Ela casou-se
primeiramente com Marco Bíbulo e, após ficar viúva, com Marco Júnio Bruto, ou Brutos,
um dos assassinos de Júlio César. Cato, o jovem, o pai de Pórcia, lutou pela República e
tornou-se um emblema estoico de resistência à tirania e um símbolo de liberdade.
Seguindo os passos do pai, Pórcia também é considerada uma filósofa estoica, apesar de
pouco citada na história da filosofia.

No livro Lives of the Stoics, de Ryan Holiday e Stephen Hanselman, um dos filósofos
destacados é Pórcia. A sua mini biografia traz a importância de se contar as histórias
das mulheres, que sempre estiveram presentes, mas são constantemente apagadas.
Apesar desse destaque, Pórcia é a única mulher descrita entre as biografias de filósofos
estoicos - o que, apesar de ser um avanço ter a sua presença, pode ser considerado um
paradoxo. No livro, Holiday e Hanselman escrevem:

“Quase dois séculos antes de Musônio Rufo defender que as mulheres fossem
ensinadas filosofia, Pórcia foi apresentada ao Estoicismo ainda criança pelo pai e
rapidamente se dedicou a ele.” - Ryan Holiday.

O pai de Pórcia, Cato (ou Catão) (95 a.C a 46 a.C), é considerado um dos maiores
exemplos do Estoicismo prático. Não são poucas as vezes que os estoicos citam Cato
como esse modelo a ser seguido. Essa é inclusive uma das lições estoicas, a de ter
modelos virtuosos em mente para nos ajudar a seguir o caminho da sabedoria.

Marco Aurélio, no Livro 1 de Meditações, reflete o que aprendeu de várias pessoas de


sua vida. Lembramos que o livro é parte de um processo de vivenciar o Estoicismo, em
escritas de si – e que se tornou um dos importantes pilares da filosofia estoica. Assim,

8
Donald Robertson (Lady Stoics 1: Porcia Catonis) e Sabrina Andrade (Mulheres e o Estoicismo: Fânia e Pórcia).
7

crie o hábito de escolher seus modelos, sejam seus amigos, pessoas com quem você
convive ou mestres presentes em livros ou momentos históricos. E se você tiver tido a
sorte de ter exemplos assim entre familiares ou pessoas próximas, agradeça – e se
utilize disso! Sêneca, em uma de suas cartas para Lucílio, afirma:

“Escolha, portanto, um Catão; ou, se Catão lhe parece um modelo muito severo,
escolha um Lélio, um espírito mais suave. Escolha um mestre cuja vida, discurso e
expressão o tenha satisfeito; imagine-o sempre para si mesmo como seu protetor ou
seu exemplo. Pois precisamos ter alguém segundo o qual podemos ajustar nossas
características; você nunca pode endireitar o que é torto a menos que você use uma
régua”. - Sêneca 9

Assim, há inclusive um questionamento levado pelos estoicos: "quem é o seu Cato?" Ou


"Nem todos podem ser Cato". Por que não perguntar também: "quem é a sua Pórcia?".

Bíbulo, o primeiro marido de Pórcia, era um aliado do seu pai, Cato, e foi ele quem
arranjou o casamento quando Pórcia ainda era uma adolescente, como era costume na
época. Assim como os arranjos eram comuns, divórcios e novos casamentos também
eram corriqueiros. Cato fazia oposição a Júlio César no Senado. Cato, em 49, a.C
declarou guerra - que se tornou a Guerra Civil Romana. Cato e Bíbulo juntaram-se a
Pompeu para se opor a César. Em 48 a.C, após a derrota de Pompeu, Bíbulo morreu e
Pórcia ficou viúva. Cato cometeu suicídio depois de ser derrotado em batalha em 46 a.C
10
. Após a morte do primeiro marido, Pórcia casou-se com Brutos, que também tinha
lutado contra César. Pórcia e Brutos tiveram um filho, que infelizmente faleceu em 43
a.C.

Quando Pórcia desconfiou dos planos de seu marido, Brutos, que não a havia contado,
fez um corte profundo em sua coxa para provar a ele e a si mesma que conseguiria
aguentar a dor e os problemas que viriam em seguida. A força interior para fazer o
corte, a tolerância à dor, a ataraxia em relação à situação fizeram com que Brutos
compreendesse as virtudes estoicas presentes em sua mulher e relatou os planos de
assassinar o tirano Júlio César.

Pórcia, neste episódio, foi ao extremo de um treino praticado pelos estoicos antigos e
contemporâneos: o desconforto voluntário.

9
Carta XI, Sobre o rubor da modéstia
10
Who Is Porcia Cato? An Introduction To The Stoic Superwoman
8

A ideia da prática do desconforto voluntário é de que esses exercícios (banhos gelados,


restrições de alimentação, dormir em locais desconfortáveis ou usar a mesma roupa por
dias) possa nos testar para os reais problemas da vida. Se você é capaz de suportar e de
controlar a sua mente nesses exercícios, saberá também acessar esse aprendizado nos
momentos de dificuldade, em termos físicos ou emocionais. Cato também era
conhecido por essas práticas.

A pintura Portia Wounding Her Thigh (1664), de Elisabetta Sirani, faz referência ao
episódio histórico. A imagem afirma a força de vontade da filósofa. A pintura é sombria,
com cores fortes e traz um certo apelo sexual, com a representação da coxa de Pórcia à
mostra. Até hoje, a imagem representa essa força estoica da mulher, mas vale destacar
que não é para ser tomada como uma apologia ao autoflagelo, mas ser entendida como
metáfora da resistência daquela mulher com um ato que fazia sentido em sua época.

Portia Wounding Her Thigh (1664), de Elisabetta Sirani

Plutarco, ensaísta e biógrafo grego que mais tarde se tornou cidadão romano, escreveu
sobre Pórcia. Além disso, a filósofa inspirou a construção de personagens na literatura.
Shakespeare a coloca na peça histórica Júlio César e cria, em O mercador de Veneza,
9

uma personagem inspirada nela. Nesta última, ele escreveu sobre personagem
inspirada na filósofa:

“Em Belmonte, há uma certa dama que herdou uma fortuna, e ela é formosa, e (o que
é mais importante) suas virtudes são notáveis. Uma vez, dos olhos dela recebi
mensagens lindas e sem palavras. O nome dela é Pórcia, e em nada fica a dever para
aquela outra Pórcia, filha de Catão e esposa de Brútus.”.

Não se sabe ao certo a forma que Pórcia morreu, alguns afirmam que ela se suicidou,
engolindo brasas ou queimando-as em um quarto fechado, quando soube da morte de
Brutos, segundo outras fontes, morreu de alguma doença.

Pórcia e Brutos ficaram casados até a morte. Brutos falou sobre Pórcia:

“Embora a fraqueza natural de seu corpo a impeça de fazer o que só a força dos
homens poderia realizar, ela tem uma mente tão valente e ativa para o bem de seu
país quanto o melhor de nós”11.

Tomamos conhecimento sobre Pórcia por ser filha de Cato e esposa de Brutos. Quantas
outras mulheres ficaram fora dos livros de história e de filosofia por não terem tido um
homem para trazer à tona a sua memória?

Ânia Cornifícia Faustina (160 – 212)

Ânia Cornifícia Faustina12, a Jovem, é filha do imperador romano


Marco Aurélio – um dos grandes nomes do Estoicismo – e da
imperatriz Faustina, a Jovem; é irmã de Lucila e do futuro
imperador Cômodo.

Quando Cômodo sucedeu seu pai como imperador e, em algum


momento entre 190 e 192, ele ordenou a morte do marido de
Cornifícia, seu filho, seu cunhado e a família de sua cunhada.

11
Who Is Porcia Cato? An Introduction To The Stoic Superwoman
12
Lady stoics #3: annia cornificia faustina minor e Women in stoicism: past & present
10

Cornifícia sobreviveu às execuções políticas de Cômodo, mas quando ela estava por
volta de 50 anos, o imperador tirano Caracala a executou, por suicídio forçado.

Segundo o historiador Dião Cássio, as últimas palavras de Cornifícia revelam a sua ética
estoica:

“Minha pobre, infeliz alma, presa num corpo vil, siga adiante, seja livre, mostre-lhes
que você é a filha de Marco Aurélio, mesmo que eles compreendam ou não!

Fânia

Fânia é filha de Árria, a Jovem, e do senador Públio Clódio Trásea Peto. Ela casou com
Helvídio Prisco. Trásea liderou a oposição estoica, da qual a filha e o genro também
fizeram parte. A oposição estoica foi um movimento político-filosófico de oposição ao
governo autocrático de alguns imperadores no Século I, principalmente Nero e
Domiciano.

Em 66 d.C., Trásea, pai de Fânia, é condenado à morte por Nero. Após acompanhar a
morte de seu sogro por suicídio, Helvídio foi exilado, partindo com a sua mulher em
luto pelo pai. Fânia por mais uma vez seguiu o marido para o exílio e uma vez foi
exilada por instigar a produção de um livro biográfico em homenagem ao seu falecido
marido, que havia sido condenado à morte por Vespasiano.

Fânia foi exilada por Domiciano em 93 d.C. por pedir ao estoico Herênio Senecio que
escrevesse uma biografia sobre Helvídio. Herênio foi executado. Durante seu
julgamento, Fânia foi questionada se ela havia instruído o filósofo a escrever o livro e
ela corajosamente confirmou que havia dado os diários de seu marido para ele.

Plínio, o Jovem, em uma de suas cartas escreve que “ela não pronunciou uma única
palavra que diminuísse o perigo para si mesma”. Seus pertences foram apreendidos,
mas Fânia conseguiu salvar os diários do marido e a biografia dele. Quando ela estava
doente e aparentemente morrendo, seu amigo Plínio escreveu sobre ela:
11

“Quão agradável ela é, quão gentil, quão respeitável e amável ao mesmo tempo –
duas qualidades raramente encontradas na mesma pessoa. De fato, ela será uma
mulher que mais tarde poderemos mostrar às nossas esposas, de cuja coragem
também os homens poderão tirar um exemplo, que agora, enquanto ainda podemos
vê-la e ouvi-la, admiramos tanto quanto aquelas mulheres sobre as quais lemos.
Para mim, sua própria casa parece cambalear à beira do colapso, abalada em seus
alicerces, embora ela deixe descendentes. Quão grandes devem ser suas virtudes e
suas realizações para que ela não morra a última de sua linhagem” - Plínio, o Jovem,
Cartas 7.19.L13

13
Lady Stoics #2: Fannia
12

2. A visão de Caio Musônio Rufo

Caio Musônio Rufo nasceu por volta de 20-30 d.C. na Etrúria, região atual da Itália
Central. Era da Ordem Equestre, estando abaixo da Ordem Senatorial. Rufo morreu por
volta do ano 100. Ele nada escreveu, mas dois alunos seus incumbiram-se disso: Lúcio
(do qual nos chegam às 21 diatribes, preservadas por Estobeu) e Pólio14. Musônio foi
exilado por Nero, retornando sob Galba; foi exilado novamente por Vespasiano,
voltando novamente sob Tito. O filósofo foi o mestre estoico de Epicteto.

As palestras de Musônio são voltadas à prática do Estoicismo, não se atendo tanto à


teoria, por isso comunicam-se bem até hoje em dia.

"Elas também nos dão uma visão do que significava, na Roma antiga, ser um
praticante estoico" - William Irvine 15.

14
Estoicismo, de Roberto Radice
15
No prefácio de Musonius Rufus: Lectures and Sayings, tradução de Cynthia King e prefácio de William B. Irvine
13

Rufo foi um dos quatro grandes filósofos estoicos romanos, sendo os outros três Sêneca,
Epicteto e Marco Aurélio. O conhecimento atual que temos dele, porém, é muito
inferior em relação aos outros três, apesar de Musônio Rufo ter sido considerado o
"Sócrates Romano". Sua formação se enriquece pela convivência com Trásea Peto,
senador de formação estoica condenado por Nero, e pai de Fânia.

Para Musônio Rufo:

"O sinal de um filósofo bem-sucedido não era o aplauso alto dos seus apoiadores.
Era o silêncio. Porque significava que o público estava realmente pensando -
significava que eles estavam lutando com as ideias difíceis que o orador estava
transmitindo" - Ryan Holiday e Stephen Hanselman16

Musônio Rufo é uma referência por defender a igualdade na educação filosófica de


homens e mulheres e por rejeitar esse padrão diferenciado de entendimento. O fato,
que parece óbvio hoje, foi um avanço para a época, e é exatamente por isso que o seu
legado vem sendo retomado.

O filósofo também falava de casamento como algo igualitário no qual os dois deveriam
ser devotos um ao outro. Ele falava do casamento de Pórcia e Brutos como uma linda
união que inspirava virtude um no outro, além de se apoiarem para enfrentar as
adversidades17.

“Para ele, o casamento deve ser acompanhado de um companheirismo e amor mútuo


que devem sobrepassar inclusive o amor entre pais e filhos e a amizade entre homens
(que era uma das relações mais valorizadas na antiguidade). Os casados devem
compartilhar os corpos, as almas e as posses. Musônio chega a ilustrar a vida
matrimonial através da figura de dois bois puxando a mesma carroça, bem como na
expressão sumpnein ('um mesmo sopro'). Para ele, os amantes devem competir no
cuidado mútuo” - Carlos Enéas Moraes Lins da Silva 18.

Três séculos antes, Cleantes escreveu um livro intitulado: Sobre a tese de que a
virtude é a mesma no homem e na mulher19. Uma das primeiras e talvez mais
conhecidas obras de Zenão, República foi uma oposição direta à obra de mesmo nome
16
Lives of the Stoics, de Ryan Holiday e Stephen Hanselman
17
Lives of the Stoics, de Ryan Holiday e Stephen Hanselman
18
O pensamento social do estoico Musônio Rufo: do bom governo, dissertação de mestrado de Carlos Enéas
Moraes Lins da Silva
19
On the thesis that virtue is the same in a man and a woman
14

de Platão. Ele afirmou que homens e mulheres eram completamente iguais aos olhos da
sociedade e não havia injustiça porque todas as ações procediam da razão. Acreditando
que todo o universo é uma única grande cidade de deuses e homens sem distinção de
raça ou nacionalidade20.

Esses exemplos demonstram que os estoicos tinham uma visão avançada sobre a
igualdade de gênero. O Estoicismo é uma filosofia Cosmopolita, ou seja, entendia as
pessoas como cidadãos do mundo, irmãos dentro da mesma comunidade humana.

“Nenhuma filosofia da Antiguidade atraiu para os seus quadros pessoas de tão


diferentes etnias, gêneros, classes sociais e orientações sexuais” - Aldo Dinucci 21.

Cynthia King, tradutora de Musônio Rufo, aponta outras questões de destaque do


filósofo como a sua resistência à autocracia, tendo a coragem de falar a verdade mesmo
frente aos poderosos, as suas ideias sobre ética e o fato de ser um romano que
expressou suas ideias em grego.

Musônio Rufo e a filosofia para mulheres

As duas palestras do grande estoico romano Musônio Rufo nas quais ele argumenta que
as mulheres têm o direito de se beneficiar do mesmo treinamento filosófico que os
homens são:

- Mulheres também devem estudar filosofia (Diatribe III) e


- As filhas devem receber a mesma educação que os filhos? (Diatribe IV).

Mulheres também devem estudar filosofia (Diatribe III)

Em Mulheres também devem estudar filosofia, Musônio afirma que as mulheres


receberam dos deuses o mesmo poder de raciocínio que os homens - o poder que
empregamos uns com os outros e segundo o qual consideramos se cada ação é boa ou
má, honrosa ou vergonhosa. O lema do Estoicismo é Viver de acordo com a Natureza,

20
Zeno of Citium
21
O Carácter Cosmopolita do Estoicismo
15

que significa sermos seres racionais e sociáveis. Assim, o que Rufo está ratificando a
igual capacidade das mulheres de viverem a partir dos preceitos estoicos.

“Viver de acordo com a natureza significa usar a razão para melhorar a vida social”
– Massimo Pigliucci e Gregory Lopez 22.

Além disso, nos aponta Rufo, o desejo da virtude e a afinidade com ela pertencem por
natureza não apenas aos homens, mas também às mulheres: não menos do que os
homens estão dispostos por natureza a agradar-se por atos nobres e justos e a censurar
coisas opostas.

"Sendo assim, por que seria apropriado que os homens, mas não as mulheres,
procurassem viver honrosamente e considerassem como fazê-lo, que é o que é
estudar filosofia? É apropriado que os homens sejam bons, mas não as mulheres?
Consideremos também, um por um, cada um dos atributos que são apropriados para
uma mulher que seria boa, pois será evidente que cada um deles viria a ela mais
facilmente da filosofia" - Musônio Rufo 23

Rufo fala ainda que a filósofa mulher seria justa, autocontrolada, livre da ganância e do
apego, que seria uma boa parceira, colega de trabalho e mãe.

"Uma mulher que estuda filosofia não seria justa? (...) Que mulher seria mais justa
do que uma mulher como esta?" - Musônio Rufo

As filhas devem receber a mesma educação que os filhos?


(Diatribe IV)

Em As filhas devem receber a mesma educação que os filhos?, Musônio defende que
não há dois tipos de virtude, um para o homem e outro para a mulher. Assim, homens e
mulheres devem ter bom senso, viver de acordo com a justiça, possuir autocontrole.
Segundo Musônio, e é claro que concordamos, é inteiramente apropriado que homens e
mulheres tenham a mesma educação e possam desfrutar dos benefícios da filosofia. Se a
filosofia pode nos transformar em seres melhores, que praticam o bem, por que privar
as mulheres dessa educação?

22
A Handbook for New Stoics
23
Musonius Rufus: Lectures and Sayings, tradução de Cynthia King
16

É interessante que Musônio Rufo argumenta sobre a virtude da Coragem, que poderia
ser entendida como uma característica apropriada apenas para os homens. Ele, porém,
argumenta que também é necessária para uma mulher:

"Na verdade, as mulheres também devem estar prontas para lutar. Como, então, as
mulheres podem não precisar de coragem? A tribo das Amazonas, ao derrubar
muitos povos com armas, mostrou que as mulheres podem participar de conflitos
armados. Então, se algumas mulheres não têm coragem, é por falta de prática e não
por coragem não ser uma qualidade inata".

Vale ressaltar que a Coragem é uma das quatro virtudes estoicas cardeais, juntamente
com a Sabedoria, a Justiça e a Temperança. A Coragem ou Fortitude – como virtude
estoica primária – abarca um conjunto de forças de caráter em que confiamos para nos
elevarmos acima de coisas que, de outra forma, poderiam nos arrastar para baixo.

“Coragem não é temeridade inconsiderada; nem amor pelo perigo, nem apetite pelo
espantoso; é a ciência de distinguir o que é o mal do que não o é” – Sêneca, Carta 85

Assim, com a educação apropriada, mulheres também seriam treinadas para serem
corajosas e virtuosas, praticando a resistência às dificuldades, aprendendo a não temer
a morte, a não se abater pelos obstáculos no caminho, a evitar o excesso, honrar a
igualdade, e a fazer o bem.

"Por que aprender essas coisas convém mais a um homem do que a uma mulher? Por
Zeus, se convém que as mulheres sejam justas, é necessário que homens e mulheres
tenham aprendido essas mesmas supremas e importantes coisas. Se alguém me
perguntar que conhecimento orienta essa educação, eu lhe direi que, assim como
nenhum homem seria educado adequadamente sem filosofia, nenhuma mulher
também o seria" - Musônio Rufo.

Os argumentos de Rufo chegam a ser óbvios, embora ainda sejam necessários de serem
expostos até hoje para que as mulheres filósofas sejam conhecidas, reconhecidas e
estimuladas a seguir o caminho da virtude.
17

A visão de hoje

No artigo O “feminismo” de Musônio Rufo, Juliana Aggio, professora de filosofia da


Universidade Federal da Bahia (UFBA), afirma:

“Musônio compreendia que todos, homens e mulheres, têm as mesmas capacidades


morais e que, portanto, devem receber a mesma instrução, independentemente das
diferenças de classe ou gênero” – Juliana Aggio 24.

Aggio continua falando sobre a visão de Musônio Rufo sobre as mulheres:

“A mulher pode filosofar, pois é tanto quanto o homem naturalmente capaz de


filosofar e se tornar um bom ser humano, como também deve filosofar, pois é um
dever moral se tornar boa e assim poder ser feliz”.

Para a professora de filosofia, porém, “essa defesa é feita com vistas a reforçar a
submissão da mulher ao homem e consequente manutenção do poderio masculino”. Na
Diatribe IV, quando Musônio Rufo fala sobre as virtudes iguais para homens e
mulheres, ele porém faz distinções sobre os efeitos de não possuir essas virtudes de
formas bem diferentes:

"Um homem não seria um bom cidadão se fosse injusto, e uma mulher não
administraria bem sua casa se não o fizer com justiça" - Musônio Rufo.

Hoje, essa distinção e visão são inaceitáveis, porém, há que se entender que mesmo
assim o contexto para a época colocou Caio Musônio Rufo em posição de destaque para
o entendimento das mulheres na filosofia, em especial, das mulheres estoicas.

24
O “feminismo” de Musônio Rufo, artigo de Juliana Aggio, professora de filosofia da Universidade Federal da Bahia
(UFBA)
18

3. Mulheres Estoicas hoje: J.K. Rowling

Você pode até não ter lido ou assistido aos filmes da saga Harry Potter, mas, sem
dúvida, já ouviu falar sobre o universo bruxo desse garoto. A responsável pela criação
desse ícone cultural, que continua a conquistar novas gerações, é a escritora britânica
J.K. Rowling.

Joanne Rowling (o K em sua assinatura é na verdade emprestado de sua avó e não faz
parte do seu nome) estudou Francês e Clássicos na Universidade de Exeter, o que seria
útil para criar os feitiços da série Harry Potter, alguns dos quais são baseados em latim.
Além disso, o estudo da filosofia sem dúvida entra para a saga em suas narrativas sobre
justiça, honra, morte, amigos, propósito e muito mais.

Harry Potter

Alvo Dumbledore, o professor e mentor de Harry Potter, traz falas que parecem citações
retiradas de filósofos antigos. Logo no primeiro livro, Harry Potter e a Pedra Filosofal,
Harry hesita em falar o nome do maior bruxo das trevas e seu grande inimigo. Então,
Dumbledore afirma:

“– Chame-o de Voldemort. Sempre chame as coisas pelo nome que têm. O medo de
um nome aumenta o medo da coisa em si”.

Chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome, ou seja, retirar as percepções ou


julgamentos sobre elas é um grande ensinamento da filosofia estoica. Os estoicos, em
especial Epicteto, falam bastante sobre as nossas impressões ou representações
(phantasiai) e como devemos colocá-las em perspectiva. Devemos questionar o que
sentimos em relação a um fato externo.

“Quando damos nome às coisas, nós as compreendemos corretamente sem


acrescentar informações ou julgamentos que não são inerentes a elas” - Epicteto.
19

Em Harry Potter e a Câmara Secreta, Dumbledore nos ensina sobre a dicotomia do


controle:

“São as nossas escolhas, Harry, que revelam o que realmente somos, muito mais do
que as nossas qualidades” – Alvo Dumbledore

A dicotomia do controle é essa relação entre o que está e o que não está no nosso poder,
nas nossas mãos; e na capacidade de identificar a diferença, agir diante do primeiro e
aceitar o que se encontra no segundo grupo.

"1. Das coisas existentes, algumas são encargos nossos; outras não. São encargos
nossos o juízo, o impulso, o desejo, a repulsa ― em suma: tudo quanto seja ação
nossa. Não são encargos nossos o corpo, as posses, a reputação, os cargos públicos
― em suma: tudo quanto não seja ação nossa. 2. Por natureza, as coisas que são
encargos nossos são livres, desobstruídas, sem entraves. As que não são encargos
nossos são débeis, escravas, obstruídas, de outrem" – Epicteto

Quando o filósofo estoico Epicteto fala que o nosso corpo não está sob nosso controle
mas o nosso juízo sim, podemos relacionar com as ideias postas por Dumbledore de
qualidades versus escolhas. Podemos entender qualidade como uma característica inata,
que não está sob o nosso controle, porém, as nossas escolhas, caminhos, afirmações são
encargos nossos! Essa seria a lição a ser ensinada a Harry e a todos nós.
20

Outro ponto que podemos relacionar com a frase de Alvo é o chamado para a ação. O
Estoicismo é uma filosofia prática, que nos convida a agir.

“Portanto, faça sua escolha de maneira direta de uma vez por todas, e cumpra-a.
Escolha o que é melhor” – Marco Aurélio 25.

Em Harry Potter e as relíquias da morte, o protagonista precisa encarar e aceitar a


morte como parte de seu destino. E esse não é o de todos nós? Em trecho um do livro,
afirma-se essa ideia:

“Sua tarefa era seguir calmamente para os braços abertos da Morte”.

Depois de tudo que o garoto passou, é no ato de aceitar a sua mortalidade que sua
história será desvendada. É a simbologia do Memento Mori – saiba que você morrerá.
Embora a expressão possa parecer sombria, o objetivo de meditar sobre a morte é
manter a lembrança acesa de nossa mortalidade, a fim de aproveitar melhor o tempo
que temos. É a confirmação do paradoxo: reflita sobre a morte para não desperdiçar a
sua vida – com pensamentos ruins, vícios, rancor, raiva etc.

Para os estoicos, a meditação sobre a morte é um chamado para a vida com propósito e
com virtude, seguindo a Sabedoria, a Justiça, a Temperança e a Coragem.

25
Meditações, III. 6
21

“Você pode deixar a vida agora. Deixe isso determinar o que você faz, diz e pensa” -
Marco Aurélio26

Harry abraçou essa ideia. Sucumbiu à sua mortalidade. Sem jogos, sem receio, sem mais
nenhum rancor.

“Você é o verdadeiro senhor da Morte, porque o verdadeiro senhor não busca fugir
da morte. Ele aceita que deve morrer, e compreende que há coisas piores, muito
piores do que a morte no mundo dos viventes” – Alvo Dumbledore.

Refletir sobre a mortalidade é um exercício muito difícil, e você não deve forçar se isso
traz angústias a você. Siga com doses pequenas, mas não negue o inevitável. Afinal,
nosso tempo está chegando ao fim, desde o dia que nascemos.

“Não tenha piedade dos mortos, Harry. Tenha piedade dos vivos e, acima de tudo,
dos que vivem sem amor” – Alvo Dumbledore.

“Ensaie esse pensamento todos os dias para que você possa deixar a vida satisfeito” -
Sêneca

Fora da saga original de Harry Potter, mas dentro de seu universo, em Animais
Fantásticos, Rowling nomeou um dos personagens de Aurélio (Aurelius Dumbledore),
assim como o imperador Marco Aurélio. Inclusive, em seu site, há um banner com uma
imagem do livro Meditações em destaque.
26
Meditações, II.11
22

Vidas muito boas

Saindo do universo de bruxos, poções e feitiços, Rowling traz outras referências


filosóficas. Em discurso aos graduandos de Harvard de 2008, ela falou sobre os
benefícios do fracasso e sobre a importância da imaginação. O discurso foi publicado
posteriormente em formato de livro: Very Good Lives.

As palavras de Rowling motivam a termos o nosso ponto de virada na vida, abraçando o


fracasso e utilizando a imaginação para melhorarmos a nós mesmos e aos outros. O
discurso tem como base as histórias anos após a formatura da escritora, trazendo
questões importantes da vida com sensibilidade e força emocional.

Sobre fracasso

“No final, vocês terão que decidir o que significa fracasso para vocês, mas o mundo
estará ansioso para determinar esses critérios, se vocês permitirem” - Rowling

Após alguns anos de formada, ela mesma poderia ter sido considerada um completo
fracasso. Divorciada, sem trabalho, sem grana. Mas o “fracasso significa se livrar do que
não é essencial”. Então, Joanne passou a direcionar toda a sua energia ao trabalho que
tinha significado para ela.

“Se eu tivesse sido bem sucedida em qualquer outra coisa, eu não teria encontrado a
determinação para alcançar o sucesso na única arena que acredito que eu pertença”.

Ela disse que se sentiu livre, porque seus piores medos tinham acontecido, mas ela
continuava viva, com uma filha que ela adorava, uma máquina de escrever velha e uma
grande ideia.

“O fundo do poço tornou-se a fundação na qual eu reconstruí minha vida”. Fracassos


grandes ou pequenos, vamos todos enfrentá-los – “a não ser que você viva de forma tão
cautelosa, que seria como se você nem tivesse vivido”.
23

Muitas vezes, as situações mais difíceis são as que mais nos ensinam – sobre a vida e
sobre nós mesmos. Pode ser uma promoção de trabalho que não foi alcançada, uma
nota baixa em uma prova, a reprovação no vestibular ou mesmo um coração partido.
Tudo é material para a própria vida! Aprendemos humildade, descobrimos nossa falta
de habilidade em alguma área ou simplesmente temos que descobrir de uma forma dura
a ter empatia com quem não nos ama mais.

Fracassos, derrotas… São desses momentos que podemos tirar os nossos mais
profundos ensinamentos. Não há então porque ficar remoendo o sentimento do
fracasso, é preciso virar a chave o mais rápido possível, é preciso transformar o
obstáculo no caminho.

“Não percam tempo amaldiçoando alguma derrota. O fracasso é um mestre mais


eficaz do que o sucesso. Ouçam, aprendam, insistam” - Clarissa Pinkola Estés 27

Pensamos no ego, muitas vezes, apenas como algo que nos coloca em uma falsa posição
de superioridade. É, porém, uma obra do ego também a autodepreciação. É apegar-se a
uma história que já é passado, é achar que a nossa dor tem mais valor do que a dor do
outro.

Façamos, então, como Sêneca e tornemo-nos amigos de nós mesmo nesse processo todo
de desenvolvimento pessoal que é a vida. Devemos aceitar as adversidades
intransponíveis e aprender com nossas derrotas. Para alcançar esse passo, temos que
virar a chave com empatia com nós mesmos e com os outros.

“Que progresso, você pergunta, eu fiz? Eu comecei a ser um amigo de mim mesmo” -
Sêneca

Sobre a imaginação

A escritora fala sobre a imaginação de uma perspectiva inesperada – relacionando com


a capacidade dos seres humanos de serem empáticos, de se colocarem no lugar do
outro, de entenderem diferentes contextos e da importância de checar os lugares de

27
Mulheres que correm com os lobos
24

privilégio. J.K. remeteu esse aprendizado à época em que trabalhou na Anistia


Internacional.

“O poder da imaginação pode funcionar para o controle e manipulação, como


também para a compreensão e empatia”.

Porém, para a autora, muitos preferem não exercitar a imaginação, escolhendo ficar
confortáveis nos limites de sua própria experiência.

J.K. Rowling termina o discurso com a citação de Sêneca:

“Assim como uma história, é a vida: o que importa não é o tempo que dura, mas o
quão boa ela é”.
25

4.Cinco mulheres e suas lições estoicas

Há ainda um grande espaço a ser pensado, pesquisado e averiguado sobre a relação


entre mulheres e Estoicismo. Há mulheres que podem nos inspirar a seguir o caminho
da excelência, da virtude, da sabedoria, sendo ou não próximas à filosofia estoica. Que
tal olhar com lentes estoicas a vida, as palavras e os atos de algumas mulheres
contemporâneas? Que tal colocar em foco essa relação das mulheres e do Estoicismo?

Estudar o Estoicismo hoje em dia não é apenas sobre ler os filósofos antigos e os seus
textos clássicos, mas também sobre encarar o nosso dia a dia, nossas práticas e nossos
modelos e exemplos sob a perspectiva de uma filosofia que acompanha o seu tempo.

A filosofia não é algo distante, deve estar presente no nosso dia a dia, em cada escolha
que pareça boba, no que compartilhamos nas nossas redes sociais ou como falamos com
as pessoas. A partir dessas ideias, trazemos aqui algumas mulheres contemporâneas de
diferentes áreas e algumas práticas estoicas que podemos tecer a partir de suas vidas.

1. Maya Angelou
26

Maya Angelou (1928-2014) foi uma ativista negra, escritora, poeta e professora, além de
ter trabalhado como atriz e cantora. Uma caminhada extraordinária, no meio de uma
vida marcada por violências e preconceitos. A força de suas palavras é transformadora,
sua escrita é clara e poética. Maya Angelou, que teve um filho, oferece no livro Carta a
minha filha um percurso de lições aprendidas e relatos sobre “amadurecimento,
emergências, uns poucos poemas, algumas histórias leves para fazê-la rir e algumas
para fazê-la meditar”.

Ao falar a essa filha, que pode ser qualquer um de nós, escreve de forma epistolar as
lições de vida que quer passar, assim como fez Sêneca em suas cartas ao amigo Lucílio:

“Sempre que suas cartas chegam, imagino que estou com você, e tenho a sensação de
que estou prestes a falar a minha resposta, em vez de escrevê-la” 28.

Com essa escrita por missivas nos sentimos próximos de Maya. A escritora destaca a
importância da Coragem, que para ela é a mais importante das virtudes. Marco Aurélio
diria que é a justiça, mas o que seria de uma sem a outra? Maya Angelou traz uma
tradução poética sobre a dicotomia do controle e sobre o poder de transformar os
obstáculos a nosso favor, ideias tão bem defendidas e disseminadas pelos estoicos.

“Você não pode controlar todos os fatos que acontecem em sua vida, mas pode
decidir não ser diminuída por eles. Tente ser um arco-íris na nuvem de alguém. Não
se queixe. Faça todo o esforço possível para modificar aquilo de que não gosta. Se
não puder mudar algo, mude a maneira como pensa. Talvez você encontre uma nova
solução” – Maya Angelou

Maya fala sobre aceitar o que não podemos controlar, amar o destino, não reclamar, ser
luz na vidas das pessoas – e mesmo assim lutar por transformações, se não for possível
as externas, que sejam as internas. Essas ideias podem ser relacionadas ao Amor Fati.

“Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: não querer ter nada de
diferente, nem para a frente, nem para trás, por toda a eternidade... Não apenas
suportar aquilo que é necessário, muito menos dissimulá-lo – todo o idealismo é
falsidade diante daquilo que é necessário –, mas sim amá-lo...” – Friedrich
Nietzsche, em Ecce Homo,

28
Carta LXVII, Sobre a doença e a resistência ao sofrimento
27

A escritora soube transformar as dificuldades de sua vida em um importante legado. Ela


teve muita coragem, agiu com justiça e valorizou e semeou a sabedoria. Quando
começou a dar aula percebeu que “não era uma escritora que ensina, e sim uma
professora que escreve”.

No mesmo livro, Angelou conta sobre um encontro que teve com uma produtora de
televisão que queria adaptar um de seus contos. A partir do primeiro momento,
percebeu que a interlocutora a estava “atacando sutilmente” – o que ela confrontou
com franqueza e simplicidade. Com uma resposta ainda mais deselegante de quem a
tinha lhe convidado para a reunião, Angelou descreve a sua reação:

“Mantive as mãos no colo e trouxe o queixo para perto do peito. Ordenei a mim
mesma que fosse gentil”.

Responder com gentileza não é tarefa fácil quando nos sentimos atacados, é ato de
percepção dos sentimentos e de controle. É não agir a partir do impulso inicial. É
controlar a raiva.

“A ira é um impulso da alma que visa a ser nocivo para com aquele que foi ou quis
ser nocivo” – Lactâncio, em Sêneca, Sobre a ira.

Assim, agir com gentileza é voltar-se à razão, e não se deixar sucumbir à raiva ou à ira,
que podem ser tão prejudiciais. Esses sentimentos podem ser venenosos para você e
para os outros, e devemos agir tendo em mente que estamos todos conectados
(Sympatheia). Descartar a raiva e optar pela gentileza é pensar, mais uma vez, na
dicotomia do controle: você não pode dominar como as pessoas o tratam, mas pode
controlar a sua resposta. Desfaça a cara feia, coloque suavidade no seu rosto, coloque as
mãos no colo, como fez Angelou.

“Desviemos para o sentido contrário todos os seus indícios: que o rosto se


descontraia, a voz fique mais suave, o passo mais lento; aos poucos, às disposições
exteriores se conformam as interiores” – Sêneca 29

Se o que falamos até aqui o fez pensar em passividade em face de injustiças (pessoais ou
coletivas), alertamos que não é por aí. Há que se posicionar, mas até para isso, agir com
racionalidade é o melhor caminho, e quando irado, seus julgamentos e ações estarão

29
Sobre a ira
28

comprometidos. Lembre-se que as virtudes cardeais do Estoicismo devem ser seguidas


de forma interconectadas: Sabedoria, Justiça, Coragem e Temperança. Uma
influenciando a outra.

A escritora conta também que uma vez a sua mãe disse para ela:

“você é muito gentil e muito inteligente, e esses dois elementos nem sempre andam
juntos. A sra. Eleanor Roosevelt, a dra. Mary McLeod Bethune e minha mãe… É, você
pertence a essa categoria”.

Também, como Angelou, seja gentil e ame a sabedoria. Siga as duas frentes juntas. Há
ainda mais uma ideia estoica que destacamos no livro de Maya Angelou. Maya começa o
livro com a seguinte frase:

​“Acredito que nos sentimos mais seguros quando dentro de nós mesmos encontramos
nossa casa, um lugar ao qual pertencemos e talvez o único que realmente criamos” –
Maya Angelou

O trecho nos fez pensar sobre a ideia da palavra grega Euthymia, a tranquilidade da
alma. Para alcançar esse estado inabalável da mente, Sêneca nos aconselha a ter
confiança em nós mesmos e seguir pelo “caminho reto”.

Seguir um caminho reto é um tema recorrente para o estoico. Entendo esse “caminho
reto” como algo mais profundo, de definição de um propósito ou de um rol de valores,
do que simplesmente seguir uma vida sem alterações. Assim, a ideia surge de uma
elucidação de nossos grandes princípios e, a partir deles, de não ceder a constantes
extravios, desvios e desistências

As ações em si, os nossos cursos e percursos, trabalhos e até relações podem ser
alterados, afinal, a mudança é parte intrínseca da vida. Mas ter esse sentido maior é,
voltando ao início, encontrar nossa casa em nós mesmos. Torna, assim, nossa tomada
de decisão mais serena, pois sabemos que estamos debaixo de um guarda-chuva de
valores que nos protege das tempestades.

“Confia em ti. Alegra-te contigo. Afasta-te o quanto podes das coisas alheias.
Dedica-te a ti mesmo. Não te sensibilizes com prejuízos materiais. Enfim, procura
interpretar com benevolência os fatos adversos” – Sêneca 30
30
Da tranquilidade da alma
29

É com confiança, alegria, autoconhecimento e com a certeza de que o caminho para a


quietude é interno que podemos seguir, nem sempre com 100% de certeza, nem sempre
com toda a energia, mas dando um passo na frente do outro, sem pressa, suave.

É assumir a responsabilidade sobre nós, é aprender a não se comparar com as outras


pessoas, afinal, não sabemos qual o guarda-chuva delas. Temos que saber sim qual o
nosso!

“Ter uma vida em expansão depende da nossa resposta àquilo que cabe
exclusivamente a nós” – Epicteto 31

A escrita e a história de Maya Angelou são lições poéticas de como encarar a vida, são
ensinamentos sobre a arte de viver. E isso é filosofia. Filosofia não é apenas o amor à
sabedoria, mas a busca pelo bem viver, de forma equânime. Se há um aprendizado que
pode nos ajudar nessa busca do bem viver é assumir uma atitude de gratidão.

Agradecer o que acontece e ter uma postura de encantamento com a vida ajuda a
acertar nossa rota. Não é reclamando que conseguiremos ter forças para mudar algo.
Não é se odiando que vamos nos desenvolver. Não é nos envenenando com mágoa e
rancor que vamos conseguir produzir algo de bom nessa vida.

Essa atitude de gratidão pela vida, tem que servir nos dias ensolarados, mas também
nos dias de tempestade. É isso que Angelou traz de forma tão bela:

“O navio da minha vida pode ou não estar navegando por mares calmos e tranquilos.
Os dias desafiadores da minha existência podem ou não ser brilhantes e
promissores. Em dias tempestuosos ou ensolarados, em noites gloriosas ou
solitárias, mantenho uma atitude de gratidão”.

Sêneca apresenta o sentido de gratidão com as outras pessoas. Mas nos alerta que
mesmo nesse sentido a gratidão é um benefício para nós mesmos. Uma atitude que
carrega a sua recompensa em si, na própria realização.

“Devemos tentar por todos os meios ser o mais grato possível. Pois a gratidão é uma
coisa boa para nós mesmos, num sentido em que a justiça, que comumente se supõe

31
A arte de viver
30

diz respeito a outras pessoas, não o é; a gratidão retorna em grande medida a si


mesma. Não há um homem que, quando tenha beneficiado o seu próximo, não se
tenha beneficiado (…) a recompensa por todas as virtudes está nas próprias virtudes.
Pois elas não são praticadas com vista a recompensa; o salário de uma boa ação é
tê-la executado” - Sêneca 32

Maya Angelou aprendeu a utilizar essa atitude de gratidão em um momento muito


difícil de sua vida, trabalhando muito e com medo da dificuldade de “criar um menino
negro para ser feliz, responsável e liberal em uma sociedade racista”. Ela, após
pensamentos suicidas, resolve procurar seu mentor, seu professor de voz. Ele a entrega
um bloco de papel e uma caneta e pede que ela escreva todas as suas bênçãos.

“Obedeci às ordens de Wilkie e, quando cheguei à última linha da primeira página


do bloco, o agente da loucura estava completamente derrotado”.

Se os dias são de tempestade, pegue a caneta e o papel e faça como Maya. Sinta-se,
assim, abençoada.

2. Toni Morrison

32
Carta LXXXI, Sobre Favores e sua Retribuição
31

A escritora Toni Morrison Nasceu em 18 de fevereiro de 1931 e morreu em 5 de agosto


de 2019, aos 88 anos. Ela recebeu o Prêmio Nobel de Literatura (1993), tendo sido a
primeira escritora negra a ganhar o prêmio, e o Pulitzer (1988). Em seu belo e poderoso
discurso de aceitação do Nobel depois de se tornar a primeira mulher negra a receber o
prêmio Toni Morrison fala sobre o poder da linguagem e toca em um ponto
disseminado pelos estoicos - Memento Mori.

“Nós morremos. Esse pode ser o sentido da vida. Mas nós fazemos a linguagem. Essa
pode ser a medida das nossas vidas” – Toni Morrison 33.

Os estoicos falam bastante sobre a morte e defendem que devemos pensar sobre ela de
forma cotidiana (Memento Mori). E para que pensar sobre a morte? Porque, antes de
tudo, essa é uma certeza que todos temos. Se esse veredito é para todos, por que
esperamos um diagnóstico ou idade avançada ou qualquer outra questão para ajustar as
nossas relações, agradecer pequenos e grandes feitos que pessoas próximas fizeram por
nós ou mesmo viver de forma mais leve conosco?

Peça perdão, agradeça, viva. Amanhã, não é certo para ninguém. Mude sua relação com
a morte para que a sua relação com a vida mude também.

“É a nossa noção da morte, a ideia que fazemos dela que é terrível, que nos
aterroriza. Existem muitas maneiras de pensar na morte. Examine suas noções a
respeito da morte – e também sobre tudo o mais. Essas noções são de fato
verdadeiras? Fazem algum bem a você? Não tema a morte ou a dor, tema o medo da
morte ou da dor” - Epicteto

É nesta linha que Toni Morrison traz o alerta sobre a nossa mortalidade: para debater o
poder da linguagem, da escrita, da criação, de vivermos a vida e a versão que queremos
de nós. A escritora fala sobre a linguagem que oprime e que, assim, é a própria
violência; e sobre a linguagem que possibilita a libertação.

“(...) o ofício da palavra é sublime, pois criador; inventa o sentido que assegura
nossa diferença, nossa especificidade humana o modo como não somos iguais a
nenhuma outra forma de vida” – Toni Morrison.

33
A fonte da autoestima
32

3. Ruth Bader Ginsburg

Ruth Bader Ginsburg (1933-2020) foi a segunda mulher a ser indicada para a Suprema
Corte dos Estados Unidos. Professora, advogada dos direitos das mulheres, juíza federal
e, então, membro da Suprema Corte: uma vida e uma carreira nada ordinária da Notória
RBG. Ela faleceu aos 87 anos, em decorrência de um câncer.

O seu projeto foi tão grande quanto o seu legado. Sua luta apontava o sexismo em leis e
em seus julgamentos pela sociedade, e o seu empenho direcionava-se para as suas
desconstruções.

Ginsburg soube trilhar o seu caminho com senso de estratégia e uma seleção cuidadosa
de casos, um por vez, começando a descortinar a barreira constitucional contra a
discriminação sexista.

Para RBG, qualquer tratamento diferenciado entre homens e mulheres não deve: “criar
ou perpetuar a inferioridade jurídica, social e econômica das mulheres”. A Notória RBG
deixou o seu legado. Sua ação no mundo impactou o seu tempo e mudou o que viria
33

pela frente. Ela questionou convicções estabelecidas, com muito trabalho e


compromisso.

Justa, corajosa e sábia, com sua expressão sempre calma, RBG tornou-se ícone inclusive
para as novas gerações. Um exemplo que descarta a ideia de que devemos desistir de
nossa mente, de nosso trabalho ou de nossos projetos em idade avançada. Muito pelo
contrário. Ela trabalhou incansavelmente, mesmo passando por problemas graves de
saúde e pela morte de seu parceiro (no dia seguinte já estava trabalhando).

Sobre o seu próprio legado, RBG afirmou:

“Tornar a vida um pouco melhor para as pessoas menos afortunadas do que você,
isso é o que eu acho que é uma vida significativa. A pessoa vive não apenas para si
mesma, mas para a sua comunidade” - Ruth Bader Ginsburg.

O trecho pode ser pensado como uma lição sobre a ação em prol da comunidade
humana, o que nos remete ao conceito de Sympatheia. O conceito fala que somos
feitos uns para os outros, para nos ajudar, para trabalharmos juntos, como pés e mãos.
Se uns sofrem, todos sofremos. Se algo não é bom para uns, não será bom para
ninguém. Estamos todos interconectados. Essas lições são ensinadas – e repetidas de
diversas formas – por Marco Aurélio, em Meditações. O conceito de Sympatheia é algo
que precisa ser praticado, precisa transformar-se em ação – em prol desse bem
comum.

A manutenção do caráter em âmbito pessoal e o direcionamento ao bem comum são


frentes complementares. Para Marco Aurélio, “Os frutos dessa vida são um bom caráter
e atos para o bem comum” (Meditações, 6. 30). Não tem como ser mais direto do que
isso. Marco Aurélio descreve essas duas vias que devemos buscar sempre. Somos
responsáveis pelo aprimoramento e pela manutenção do nosso caráter, somos
responsáveis por nossos semelhantes. Pense no que você pode fazer pelo outro. Mostre
humanidade, com coragem, justiça, sabedoria e temperança. Façamos a nossa parte.
34

4. Brené Brown

A hoje reconhecida escritora Brené Brown (1965) escolheu ficar longe dos holofotes por
muito tempo, até se deparar com a famosa citação de Theodore Roosevelt:

“O crédito pertence ao homem que está realmente na arena, cujo rosto está
manchado de poeira, de suor e de sangue; que se esforça bravamente; que erra, que
falha repetidamente, porque não há esforço sem erro e falha…”.

Assim, ela decidiu que queria viver com bravura, com Coragem. Queria ser uma mulher
na arena! Ela sabia o que significava estar na arena: cair muitas vezes e levar uns golpes
fortes da vida.

“Ousar com grandeza é ser vulnerável. Então, quando você se pergunta: ‘Eu ousei
muito hoje? A grande pergunta que faço é, ‘Quando tive oportunidade, escolhi a
coragem ao invés do conforto?'” - Brené Brown, em Tools of titans
35

A citação de Roosevelt nos remete a um trecho de uma das cartas de Sêneca a Lucílio:

“Nenhum lutador pode ir com alta expectativa para a luta se ele nunca foi
espancado; o único concorrente que pode entrar com confiança na luta é o homem
que viu seu próprio sangue, que sentiu seus dentes chocalhar sob o punho do seu
adversário, que foi derrubado e sentiu toda a força da carga do seu adversário, que
foi abatido não só no corpo, mas também em espírito, aquele que, quantas vezes cai,
levanta-se novamente com maior teimosia do que nunca” - Sêneca 34

Não se vive a vida na teoria: é preciso ir para a arena. Seja no âmbito profissional, seja
na criação de laços afetivos, seja na busca interna para descobrir e atenuar os seus
vícios.

5. Elizabeth Gilbert

A escritora Elizabeth Gilbert (1969) do livro que virou filme Comer, rezar, amar conta
em Grande Magia, que aos 16 anos fez votos de “ser fiel à escrita pelo resto da vida”.

34
Carta XIII, Sobre Medos infundados
36

“Não prometi que seria uma escritora bem-sucedida, pois sentia que o sucesso não
estava sob meu controle. Também não prometi que seria uma grande escritora,
porque não sabia se poderia ser grande. Além disso, não estabeleci nenhum limite de
tempo para o trabalho”.

Liz Gilbert apostou no processo, no que ela podia controlar. Aplicou a dicotomia do
controle, e entendeu que sob o seu poder estava a prática e a dedicação à escrita e à
criatividade. Escrevia sem parar, todos os dias, nem que fosse por 30 minutos. Escrevia
sem esperar que os resultados a levassem à fama, ao sucesso ou mesmo que a
sustentasse financeiramente. Era ela quem sustentava o seu ofício de escrever com
outros trabalhos – e só foi viver apenas da escrita após o sucesso de seu livro Comer,
rezar, amar.

A dicotomia do controle é essa relação entre o que está e o que não está no nosso poder,
nas nossas mãos; e na capacidade de identificar a diferença, agir diante do primeiro e
aceitar o que se encontra no segundo grupo.

“1. Das coisas existentes, algumas são encargos nossos; outras não. São encargos
nossos o juízo, o impulso, o desejo, a repulsa ― em suma: tudo quanto seja ação
nossa. Não são encargos nossos o corpo, as posses, a reputação, os cargos públicos
― em suma: tudo quanto não seja ação nossa.
2. Por natureza, as coisas que são encargos nossos são livres, desobstruídas, sem
entraves. As que não são encargos nossos são débeis, escravas, obstruídas, de
outrem” – Epicteto 35

Como bem coloca a oração da serenidade, utilizada pelo grupo de apoio dos alcoólicos
anônimos:

“Concedei-nos ‘Senhor’, a Serenidade necessária


Para aceitar as coisas que não podemos modificar
Coragem para modificar aquelas que podemos
E a Sabedoria para reconhecer as diferenças”.

Assim, a dicotomia do controle nos ensina que o importante internalizar os objetivos e


não se preocupar com os resultados em si, porque esses estão fora da nossa gerência. O
que está sob o nosso controle? A nossa intenção e os nossos esforços.
35
O Manual para a vida
37

Assim, você não deve associar a sua autoestima ao que você alcança, mas a sua
capacidade de se entregar ao processo. O conceito de felicidade estaria, então,
associado ao entendimento e à vivência da dicotomia do controle, pois apenas assim
encontramos a serenidade.

Liz Gilbert conseguiu dissecar o seu processo de escrita: a interação com a criatividade,
as ansiedades e dúvidas pelas quais ela passava a cada obra nova. Encarou com
coragem e gratidão todas as etapas do seu trabalho. Compreendeu e aceitou o
processo como um todo.

“Prometi que tentaria encarar a escrita com coragem, gratidão e o mínimo de


reclamação possível.”

A filosofia estoica não é contra sucesso ou dedicação. Muito pelo contrário. Seus três
maiores filósofos tiveram grandes e diferentes profissões. Sêneca foi senador,
dramaturgo e assessor. Epicteto, após liberto, foi professor e fundou sua própria escola.
Marco Aurélio, imperador.

O que o Estoicismo defende, porém, é que o objetivo sempre deve ser a virtude, a
excelência; e não ter o “sucesso” como o fim em si. Na verdade, o “fim” está fora do
nosso controle, e assim não vale a pena que gastemos nossa energia pensando
exclusivamente nele. O processo é o que importa. É aí que devemos dispor de nossas
fichas de energia e de dedicação. O processo é a prática. E a prática leva ao
desenvolvimento de seu trabalho, seja ele qual for. Escolha o que você quer praticar,
dedique-se e acredite no processo.

“A vida tem uma regra simples e generosa: você melhorará em tudo aquilo que
praticar” – Elizabeth Gilbert

Gilbert fala também sobre exercitar a Coragem. Sentir medo pode ser um impulso
natural e, vale dizer, pode até nos ajudar a nos proteger de alguns perigos. Medo sem
coragem ou sem enfrentamento, porém, é paralisante. O medo que nos trava pode
transformar, inclusive, virtudes em vícios. Sem coragem, não há progresso, pois nunca
teremos a determinação de ir ao encontro do desconhecido. Coragem como virtude
estoica está relacionada a ter confiança, fazer o que é certo, falar a verdade, ter
resistência e perseverança ao enfrentarmos desejos, dores e paixões.
38

“O medo sempre será despertado pela criatividade, pois ela lhe pede que entre em
áreas de resultados incertos, e o medo odeia resultados incertos” – Elizabeth Gilbert

A escritora teve que aprender a conviver com o medo, sentimento que sempre a
acompanhou, para seguir o seu processo de vida e escrita criativa. Decidiu aprender a
colocar o medo não como uma barreira, mas como uma parte do seu processo. Ela
transformou o obstáculo no caminho. Ela olhou para dentro e desvendou o processo de
sua escrita, identificou os seus estágios e as formas de superação de cada etapa.

“Após anos de trabalho e dedicação, contudo, descobri que, se continuasse com o


processo e não entrasse em pânico, podia superar com segurança cada estágio de
ansiedade e passar para o nível seguinte. Tentava me encorajar com lembretes de
que esses medos eram reações humanas completamente naturais à interação com o
desconhecido” – Elizabeth Gilbert

Para ser a escritora que queria ser, Liz Gilbert teve que entender o momento da chegada
do medo – e mais ainda – descobrir que isso não deveria estancar o seu processo, mas
que um passo após esse estágio estaria o resultado do seu trabalho.

“Tudo que você precisa fazer é avançar; compreenderá que algumas coisas são
menos temíveis, precisamente porque elas nos estimulam com grande medo” -
Sêneca36

Não devemos simplesmente “fingir até conseguir”, devemos sim realizar (seja a escrita
ou qualquer outro ofício) e a partir desse processo ganhar confiança no nosso trabalho.
A ação acalma. Não podemos travar ou paralisar. Devemos dar um passo em frente, por
mais que pareça pequeno no momento. Devemos saber a direção, identificar o medo e
seguir adiante mesmo assim.

“Qualquer que seja o problema, meça-o em sua própria mente, e estime a


quantidade de seu medo. Você compreenderá assim que o que você teme é
insignificante ou de curta duração” - Sêneca 37

* Dedico esse texto a todas as mulheres que têm a coragem de ir para a arena, que
lutam por justiça e que agem com bravura – apesar de tudo!

36
Carta IV, Sobre os Terrores da Morte
37
Carta XXIV, Sobre o desprezo pela morte
39

Referências

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Sobre a Autora
Lina Távora é uma cearense que mora em Brasília, jornalista fora da redação e mestre
em comunicação/cinema. Escrever é a sua meditação, principalmente se for sobre
filosofia e audiovisual. Seu lugar no mundo é um amanhecer do sol com café, caderno e
lápis.

É formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mestre em cinema pela


Universidade de Brasília (UnB), fundadora e editora do Coletivo Arte Aberta, que estuda
e dissemina conteúdos sobre gênero e audiovisual, e é criadora e editora dos Irmãos
Estoicos. Desde agosto de 2021, é membro na Nova Stoa.

Sobre a Nova Stoa

A Nova Stoa é uma fundação sem fins lucrativos, na qual as pessoas se conectam,
praticam e compartilham conhecimento sobre o Estoicismo. O tema da Nova Stoa de
2022 é Como construir uma vida virtuosa. Para fazer parte, inscreva-se no link:
https://estoicismopratico.com/nova-stoa-comunidade-de-estoicismo

A Nova Stoa tem em suas estrutura os Núcleos de Práticas Estoicas (NPEs), as Ágoras
e a Rede Social; além da produção de conteúdos de vários formatos para a difusão do
Estoicismo com o intuito de impactar 1 milhão de pessoas para viverem uma vida mais
plena e feliz.

Os Núcleos de Práticas Estoicas (NPEs) são o coração da Nova Stoa. Nos NPEs não
têm aulas, palestras ou outras modalidades de compartilhamento puramente teórico ou
unidirecional, mas sim uma relação de troca na qual todos ensinam e aprendem ao
mesmo tempo. Os núcleos proporcionam um ambiente seguro, dinâmico e próspero
para aprendizado e conexão entre as pessoas, respeitando a fala dos parceiros,
considerando o momento e a caminhada de cada um. Os encontros dos núcleos
acontecem uma vez por semana, com duração de 1h3o.
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A Ágora é um evento periódico voltado aos membros da Nova Stoa. Na Ágora todos os
Núcleos de Práticas Estoicas se encontram para compartilhar os aprendizados do
Estoicismo.

A Rede Social da Nova Stoa é exclusiva sobre filosofia estoica. Faça sua inscrição e
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entrada é gratuita! Acesse pelo link: https://novastoa.tribe.so/

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