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NOVO

COMENTÁRIO BÍBLICO
CONTEMPORÂNEO

F. F. BRUCE
Baseado na
Edição Contemporânea de Almeida
ÍNDICE 5

18. Antigo Código de Valores de Paulo


ÍNDICE (Filipenses 3:4-6) 116
19. Atual Código de Valores de Paulo
(Filipenses 3:7-11) 121
20. Ambição de Paulo (Filipenses 3:12-14) 130
Prefácio 6
21. Maturidade Espiritual (Filipenses 3:15-16) 134
Abreviaturas 8
22. Imitação de Paulo (Filipenses 3:17) 137
Introdução 12
23. Advertência Contra Inimigos (Filipenses 3:18-19) 139
Filipenses
24. Esperança e Cidadania Celestiais
1. Preâmbulo (Filipenses 1:1-2) 35
(Filipenses 3:20-21) 143
2. Ações de graças introdutórias
25. Exortação à Permanecer Firme (Filipenses 4:1) 147
(Filipenses 1:3-6) 40
26. Novo Apelo em Prol da Unidade (Filipenses 4:2-3) 148
3. Interlúdio (Filipenses 1:7-8) 44
27. Convite Reiterado a Regozijar-se (Filipenses 4:4) 151
4. Oração Intercessória 28. Estímulo à Fé (Filipenses 4:5-7) 152
(Filipenses 1:9-11) 46 29. Segunda Conclusão: Alimento para a Mente
5. Situação Atual de Paulo (Filipenses 4:8-9) 155
(Filipenses 1:12-14) 50 30. Suficiência de Paulo (Filipenses 4:10-13) 158
6. Várias Razões para o Testemunho do Evangelho 31. Apreciação de Dádivas Anteriores
(Filipenses 1:15-17) 53 (Filipenses 4:14-17) 162
7. Vida ou Morte? (Filipenses 1:18-26) 56 32. Reconhecimento de Dádivas Atuais
8. Perseverança no Sofrimento (Filipenses 4:18-20) 165
(Filipenses 1:27-30) 65 33. Saudações Finais (Filipenses 4:21-22) 167
9. Convite para Considerações Mútuas 34. Ação de Graças — Bênção (Filipenses 4:23) 170
(Filipenses 2:1-5) 70 Posfácio 171
10. Hino a Cristo (Filipenses 2:6-11) 77 Glossário 174
11. Exortação à Fidelidade
(Filipenses 2:12-13) 90
12. Esperança de Paulo Quanto aos Filipenses
(Filipenses 2:14-16) 94
13. Libação de Paulo Sobre o Sacrifício dos Filipenses
(Filipenses 2:17-18) 98
14. Visita de Timóteo Aguardada
(Filipenses 2:19-24) 100
15. Elogio a Epafrodito (Filipenses 2:25-30) 104
16. Primeira Conclusão: Chamada ao Regozijo
(Filipenses 3:1) 110
17. Advertência Contra os "Maus Obreiros"
(Filipenses 3:2-3) 112
Prefácio

Há muitas traduções e edições contemporâneas, em português, do


Prefácio
Livro santo. Na sua maioria essas edições são excelentes e devem ter a
preferência do leitor no que concerne à compreensão.
A Bíblia de Jerusalém, baseada na obra de eruditos católicos franceses,
vividamente traduzida para o português, talvez seja a mais literária das
Embora não apareça nas listas comuns de "best-sellers", a Bíblia
traduções recentes. A BLH (Bíblia na Linguagem de Hoje), da Sociedade
continua a ser mais vendida que qualquer outro livro. E, a despeito do
Bíblica do Brasil, é a tradução mais acessível às pessoas pouco familia-
crescente secularismo ocidental, não há sinais de que o interesse pela
rizadas com a tradição cristã. Há, ainda, em português, a Almeida Revista
mensagem da Bíblia esteja arrefecendo. Bem ao contrário, número cada
vez maior de homens e mulheres examina suas páginas em busca de luz e Atualizada, e a Edição Revisada de Almeida, além de outras traduções
e orientação, em meio à crescente complexidade da vida moderna. mais recentes.
Esse interesse sempre renovado pelas Escrituras, o qual se encontra Todas essas versões são, à sua própria maneira, muito boas, e devem ser
tanto dentro como fora da igreja, é fato notável entre os povos da Ásia e consultadas com proveito pelo estudante sério das Escrituras. É possível que
da África, bem como da Europa e das Américas. Na verdade, à medida a maioria dos estudantes deseje possuir diversas versões para consulta,
que saímos de países tradicionalmente cristãos parece aumentar o inte- objetivando especialmente a clareza de compreensão — embora se deva
resse pela Bíblia. Pessoas ligadas a igrejas tradicionais católicas e pro- salientar que de modo algum qualquer delas esteja isenta de falhas e deva
testantes manifestam, pela Palavra, o mesmo anseio presente em comu- ser considerada a última palavra quanto a qualquer ponto. De outra forma,
nidades evangélicas mais recentes. no haveria a menor necessidade de um comentário como este!
Por isso, ao oferecermos esta nova série de comentários, desejamos Esta série de comentários, por ser tradução do inglês, faz referências
estimular e fortalecer esse movimento mundial de estudo da Bíblia pelos à NEB, que constitui verdadeiro monumento à pesquisa moderna protes-
leigos. Conquanto esperemos que pastores e mestres considerem estes tante, e a outras versões em inglês, entre elas a RSV, a NAB, e a
volumes muito úteis à compreensão e comunicação da Palavra de Deus, conceituada NIV.
não os escrevemos primordialmente para esses profissionais. Nosso Como texto bíblico básico desta série decidimos usar a ECA, por ser
objetivo é fornecer, a todos os leitores das Escrituras, guias confiáveis esta edição a que está-se tornando padrão, de modo especial nos semi-
que os ajudem a melhor compreender os livros da Bíblia — guias que nários e institutos bíblicos. Por representar, no momento, o que há de
representem o que há de melhor em erudição contemporânea, e que sejam melhor na literatura evangélica em língua portuguesa, ela aos poucos se
apresentados de maneira a não exigir preparo teológico formal para ser torna a mais utilizada por pastores e outros estudiosos das Escrituras.
entendidos. Cada volume desta série contém um capítulo introdutório expondo em
É convicção do editor, bem como dos autores, que a Bíblia pertence minúcias o intuito geral do livro e seu autor, os temas mais importantes,
ao povo, e não meramente aos acadêmicos. A mensagem da Bíblia é tão e outras informações úteis. Depois, cada seção do livro é elucidada como
importante que de modo algum pode ficar acorrentada a artigos eruditos, um todo, e acompanhada de notas sobre aqueles pontos do texto que
presa a ensaios e monografias herméticos, redigidos apenas para os necessitam de maior esclarecimento ou de explanação mais minuciosa.
especialistas em teologia. Embora a erudição rigorosa, esmerada, tenha Esta nova série é oferecida com uma oração: que venha a ser instru-
seu lugar no serviço de Cristo, todos quantos participam do ministério mento de renovação autêntica, e de crescimento entre a comunidade
do ensino, na igreja, são responsáveis por tornar acessíveis à grande cristã no mundo inteiro, bem como meio de enaltecer a fé das pessoas
comunidade cristã os resultados de suas pesquisas. Por isso, os eruditos que viveram nos tempos bíblicos, e das que procuram viver, em nossos
que se unem para apresentar esta série de comentários o fazem tendo em dias, segundo a Bíblia.
mente estes objetivos superiores. Editora Vida
Abreviaturas
D* Primeira mão em D
Abreviaturas D1 Primeiro corretor de D
D2 Segundo corretor de D
d.C. Depois de Cristo
ECA Bíblia Sagrada, Edição Contemporânea, Almeida
A Codex Alexandrinus
EGT Expositor's Greek Testament
a.C. antes de Cristo
EPC Epworth Preacher's Commentaries
ad loc. no lugar
EQ Evangelical Quarterly
Aleph Codex Sinaiticus
ETL Ephemerides Theologicae Lovanienses Expository
ANF Pais Ante-Nicenos (série)
Times
Ant. Josephus, Antiquities
F Codex Augiensis
ASNU Acta Seminarii Neotestamentici Upsaliensis
Forschugen zur Religion und Literatur des Alten
ASV American Standard Version (1901) FRLANT
und Neuen Testaments
AT Antigo Testamento Codex Boernerianus
B Codex Vaticanus G
Good News Bible (versão em inglês contemporâneo)
BC Início do Cristianismo GNB Hastings' Dictionary ofthe Bible
BDF F. Blass, A. Debrunner, R. W. Funk, Greek HDB Handbuch zum Neuen Testament
Grammar ofthe New Testament and Other Early HNT Harpers's New Testament Commentaries
Christian Literature HNTC Harvard Theological Review
BFCT Beitrage zur Forschung Christlicher Theologie HTR Interpreteis Bible
Bib. Bíblica IB C. F. D. Moule, Idiom-Book ofNew Testament Greek
BJ Bíblia de Jerusalém IBNTG International Criticai Commentary
BZAW Beihefte zur Zeitschrift für die altestamentliche ICC Bíblia de Jerusalém
Wissenschaft JB Journal of Biblical Literature
BZNW Beihefte zur Zeitschrift für die neutestamentenliche JBL Journal ofthe Royal Statistical Society
Wissenschaft JRStatSoc Journal for Theology and the Church
C Codex Ephraemi JTC Journal of Theological Studies
CB Coniectanea Biblica JTS Kritisch-Exegetischer Kommentar
CBC Cambridge Bible Commentary KEK King James Version (Versão do Rei Tiago)
CBQ Catholic Biblical Commentary KJV Codex Angelicus
CBSC Cambridge Bible for Schools and Colleges L Septuaginta (tradução grega pré-cristã do AT)
cf. confronte, compare LXX Moffatt New Testament Commentary
cap. capítulo, capítulos MNTC New American Standard Bible
CIJ Corpus Inscriptionum Judaicarum NASB New Century Bible
CIL Corpus Inscriptionum Latinarum NCB New Claredon Bible
1 Ciem Carta de Clemente de Roma aos Coríntios NClarB New English Bible
Ciem Hom Clementine Homilies NEB New International Commentary on the New Testament
CNT Commentaire du Nouveau Testament NICNT New International Greek Testament Commentary
D Codex Claromontanus NIGTC New International Version
NIV
10 Filipenses Abreviaturas 11

NovT Novum Testamentum WPCS Westminster Pelican Commentary Series


NovTSup Novum Testamentum Supplement WUNT Wissenschaftliche Untersuchungen zum
NPNF Pais Nicenos e Pós-Nicenos (série) Neuen Testament
NT Novo Testamento ZK Zahn Kommentar
NTC Comentário do Novo Testamento ZNT Zeitschrift für das Neue Testament
NTD Das Neue Testament Deutsch (NT alemão)
NTF Neutestamentliche Forschungen (
NTL Biblioteca do Novo Testamento
NTS New Testament Studies
NTTS New Testament Tools and Studies
P Codex Porphyrianus
p 46 Papiro Chester Beatty das Cartas de Paulo
par. paralelo
PNTC Pelican New Testament Commentaries
Psi Codex Athous Laurae
RB Revue Biblique
RNT Regensburger Neues Testament
RSPT Revue des sciences philosophiques et théologiques
RSR Recherche de science religieuse
RSV Revised Standard Version
s.,ss. seguinte, seguintes (de versículos ou páginas)
SBLDS Society of Biblical Literature Dissertation Series
SBT Studies in Biblical Theology
SD Studies and Documents
SE Studia Evangélica
SNT Die Schriften des Neuen Testaments
SNTSMS Society for New Testament Studies Monograph
Series
TB Tyndale Bulletin
TDNT Theological Dictionary ofthe New Testament
Test Zeb Testament ofZebulun (in Testaments ofthe
Twelve Patriarchs)
HKNT Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament
TKNT Theologischer Kommentar zum Neuen Testament
TU Texte und Untersuchungen
TZ Theologische Zeitschrift
v.(w.) versículo (versículos)
WBC Word Biblical Commentary
WC Westminster Commentaries
Introdução 13

chamados de pretores." Parece que isso também era verdade quanto aos
Introdução magistrados-chefes de Filipos: Lucas se refere a eles usando um termo
grego strategoi, equivalente ao título de "pretores" (Atos 16:22, 35, 36,
38), que ECA traduz "magistrado".
Filipos À semelhança dos magistrados-chefes de Roma, os das colônias
A cidade de Filipos leva o nome de Filipe II, rei da Macedônia, romanas eram acompanhados pelos lictores, que possuíam fasces, ou
fundada por ele em 356 a.C. Antes, existia nesse lugar um vilarejo molhos de varas, símbolos do cargo. Os lictores que atendiam aos
traciano conhecido pelo nome grego Krenides ("fontes"), que em 361 pretores filipenses surgem na narrativa de Lucas sob a designação grega
a.C. foi tomado por colonos da ilha de Tasos, comandados por um exilado equivalente: rhabdouchoi, literalmente "seguradores de varas", que ECA
ateniense chamado Calistrato. O maior atrativo desse lugar era o fato de traduz "quadrilheiros" (Atos 16:35, 38).
localizar-se nas proximidades das minas de ouro do monte Pangéus, que Macedônia
Filipe fez questão de controlar ao fundar de novo a cidade. Filipos tinha Macedônia, território a que Filipos pertencia, era antigo reino da
também importância estratégica por constituir a rota terrestre para o península balcânica, que se limitava ao sul com a Thessália, e a este e
Helesponto (Dardanelos) e Bósforo, e portanto, para o interior da Ásia. nordeste com a Trácia. Quando os persas invadiram a Europa, nos inícios
Lucas descreve Filipos como "a primeira cidade dessa região da do século quinto a.C., os reis da Macedônia colaboraram com os invaso-
Macedônia" 1 — isto é, o primeiro entre quatro distritos em que a res e por isso conseguiram certa independência limitada para si próprios. 4
Macedônia fora dividida pelos romanos, em 167 a.C. — e acrescenta que Apesar disso, o rei macedônico Alexandre I ajudou secretamente as
se tratava de uma colônia romana (Atos 16:12). A cidade foi transforma- regiões gregas mais distantes, ao sul, que foram atacadas por Xerxes em
da em colônia em 42 a.C., pelos líderes romanos Antônio e Otaviano, 480 a.C.. 5 Tanto Alexandre I como seus sucessores patrocinaram a
após obterem vitória ali sobre Bruto e Cássio, os assassinos de Júlio cultura grega; o próprio Alexandre, como príncipe coroado da Macedô-
César. Os comandantes vitoriosos estabeleceram um batalhão de solda- nia, teve permissão para competir nos jogos olímpicos (abertos acenas
dos veteranos em Filipos. Doze anos mais tarde Otaviano, havendo por aos gregos), visto que sua família afirmava descender de Argive.
sua vez derrotado ali as tropas de Antônio na batalha de Actium, instalou Por volta do quarto século a.C., a Macedônia fazia parte do mundo
na área parte das tropas desbaratadas de Antônio, bem como algumas grego no que se referia à maior parte das questões práticas. Filipe II da
famílias, às quais despojou a fim de estabelecer também seus próprios Macedônia (359-336 a.C.), mediante diplomacia e conquistas militares,
soldados veteranos, dando à cidade seu próprio nome: Colônia Júlia tornou-se senhor das cidades-estados da Grécia. Após seu assassinato,
Filipense. Três anos depois, quando Otaviano assumiu o título de Augus- seu filho Alexandre III (Alexandre, o Grande) herdou o domínio greco-
A • • • 2
macedônico, fazendo dele a base para a conquista da parte ocidental da
to, o nome da cidade foi ampliado: Colônia Júlia Augusta Filipense.
Ásia (do extremo leste, até o vale do rio Indo) e Egito. Todavia, com a
Os cidadãos de qualquer colônia romana eram automaticamente cida-
divisão do império de Alexandre, logo após sua morte em 323 a.C., a
dãos romanos; a constituição de uma colônia romana seguia o modelo
Macedônia tornou-se outra vez um reino separado.
da cidade-mãe, Roma, havendo um colegiado de dois magistrados na
liderança. Na maior parte das colônias esses magistrados eram oficial- O reino da Macedônia entrou em conflito com os romanos quando
mente conhecidos como duo uiri (ou duumuiri iuri dicundo, "dois Filipe V (221-179 a.C.) celebrou um tratado com o inimigo deles, Aníbal,
H
homens que administram justiça"). Noutras colônias, todavia, preferiam durante a segunda guerra cartaginesa. Os romanos foram capazes de
ser chamados pelo título mais distinto de pretor; falando, por exemplo, suscitar muitas encrencas para Filipe, no lado ocidental do Adriático, de
dos magistrados-chefes de Cápua, na Itália, Cícero observou que "em- modo que Filipe permaneceu ocupado o tempo todo, enquanto seu tratado
bora sejam denominados duo uiri nas outras colônias, estes querem ser com Aníbal deixou de surtir efeito. Quando a segunda guerra cartaginesa
Filipenses Introdução 15
14
sido precedida por uma visita a Filipos, "havendo, primeiro padecido, e
aproximou-se do fim, estando Aníbal morto, os romanos encontraram
sido ultrajados em Filipos" (1 Tessalonicenses 2:2).
um pretexto para declarar guerra a Filipe. Essa guerra findou em 197 a.C.
Os m o v i m e n t o s de Paulo e seus companheiros, registrados em
com a derrota de Filipe em Cinocefália, na Thessália central. Daí em
1 Tessalonicenses, coincidem com os registros mais minuciosos de Atos
diante ele foi obrigado a limitar seu governo à Macedônia, sem poder
16:6-18:5, os quais foram escritos em data posterior, e podem ser aceitos
interferir nos assuntos das cidades-estados gregas mais distantes, ao sul.
com máxima confiança como formando uma estrutura histórica dentro
Perseu, filho de Filipe, por sua vez atraiu as suspeitas de Roma, as
da qual os dados mais incidentais da correspondência paulina se encai-
quais foram incrementadas pelo seu inimigo, o rei de Pérgamo, e aliado
xam, para maior compreensão.
de Roma. Seguiu-se a terceira guerra macedônica (como é chamada pelos
historiadores romanos), terminando em 168 a.C. com a vitória dos Quando Paulo e seu companheiro Silvano (chamado de Silas, em
romanos em Pidna, cidade litorânea ao sul da Macedônia. Foi quando Atos) lançaram-se, após o concilio de Jerusalém, à travessia da Ásia
os romanos aboliram a dinastia real da Macedônia e dividiram o reino Menor, a partir da Cilícia, indo para o oeste, a Macedônia não constava
em quatro repúblicas. 1 0 Entretanto, em 149 a.C., um aventureiro chama- de seus planos de viagem. Pelo que se pode determinar mediante a
do Andrisco, declarando ser filho de Perseu, reunificou a Macedônia sob narrativa de Atos, o objetivo deles era Éfeso. Entretanto, ambos foram
seu comando, por um curto período. 11 Quando os romanos abateram impedidos de proseguir em sua viagem naquela direção e se viram
Andrisco, em 148 a.C., decidiram que a única ação a ser tomada com obrigados (agora acompanhados de Timóteo, que se lhes juntara em
respeito à Macedônia seria anexá-la a uma província. As quatro repú- Listra) a ir para noroeste, saindo de Icônio ou Antioquia da Pisídia, até
blicas que vinte anos antes haviam sido estabelecidas, permaneceram chegar ao mar Egeu, ao porto de Trôade Alexandria).
como distritos geográficos retendo, porém, pouca importância política. É aqui que se inicia a passagem na primeira pessoa do plural, "nós",
A fim de consolidar o poderio sobre a nova província, os romanos de Atos: e a narrativa prossegue nessa pessoa, o que indica talvez que o
construíram uma enorme estrada militar, a via Inácia, partindo de Apo- próprio narrador estivesse presente aos acontecimentos:
lônia e Dirráquio, no Adriático, até Tessalônica; mais tarde estendeu-se "Paulo teve de noite uma visão em que se apresentou um homem da
para o leste, até Filipos, e a seu porto Neápolis (a moderna Cavala), e Macedônia, que lhe rogava: 'Passa à Macedônia, e ajuda-nos.' Logo
mais tarde até Bizâncio. 1 3 depois desta visão, procuramos partir para a Macedônia, concluindo que
A Macedônia tornou-se assim uma base para maior expansão do o Senhor nos chamava para lhes anunciarmos o evangelho" (Atos 16:9,
poderio romano. Em 27 a.C., ela se tornou província senatorial, pelo 10).
imperador Augusto. Seu sucessor, Tibério, colocou-a sob seu controle O grupo missionário, agora aumentado para quatro pessoas (segundo
direto, como província imperial, em 15 d.C., mas Cláudio a devolveu ao parece), pela adição do narrador (que presumimos ser Lucas), atravessou
senado em 44 d.C. 1 4 O procônsul (assim se chamava o governador de o mar, de Trôade a Neápolis, e dali viajou cerca de dezesseis quilômetros
uma província senatorial) tinha sua sede administrativa em Tessalônica. pela via Inácia, até Filipos.
A Chegada do Evangelho Era costume de Paulo, ao visitar uma cidade gentia, dirigir-se à
sinagoga local a fim de encontrar alguns ouvintes dentre os judeus e
O cristianismo chegou à Macedônia menos de vinte anos após a morte
gentios tementes a Deus que porventura a freqüentassem. Parece que em
de Cristo. Um dos documentos mais antigos do Novo Testamento — a
Filipos não havia uma comunidade judaica suficientemente grande para
primeira carta aos Tessalonicenses — foi enviada de Corinto, provavel-
estabelecer-se uma congregação regular na sinagoga (para isso o quorum
mente no outono de 50 d.C., dirigida à recém-fundada igreja de Tessa-
seria dez homens). 1 6 Todavia, havia um local informal de reuniões, fora
lônica. 15 Esta carta foi enviada por Paulo, Silvano e Timóteo, e indica
da cidade, às margens do rio Gangites, onde algumas mulheres se
que a igreja de Tessalônica teve seu início quando esses três homens
reuniam aos sábados para recitar determinadas orações. Esse grupo
visitaram a cidade, tinha pouco tempo. A visita deles a Tessalônica havia
14 16
Filipenses Introdução
prisioneiros exigiam que fossem reconduzidos à presença dos magistra-
feminino era formado provavelmente por mulheres judias e outras,
dos. Paulo e Silvano eram cidadãos romanos e não poderiam sujeitar-se
tementes a Deus (povo gentio que aderia à forma judaica de culto sem
ao tratamento que receberam. Os magistrados haviam ouvido a acusação
serem prosélitos convertidos); a líder era Lídia, natural de Tiatira, na Ásia
sem dar-se o trabalho de investigá-la e sem convidar os dois acusados a
Menor, que negociava com púrpura, tintura fabricada com o sumo da raiz
deporem, contando sua versão do acontecimento. 20
da ruiva-dos-tintureiros, pela qual a cidade já há muito tempo se tornara
Se Paulo e Silvano declararam sua cidadania romana perante o fórum,
famosa. (Homero descreveu o modo que "uma mulher macedônica ou
nenhuma atenção lhes foi dada em meio à grande confusão. Agora, todavia,
cariana tingia o marfim com tintura de púrpura.") Lídia e suas amigas
em circunstâncias mais tranqüilas, os homens injustiçados exigiam seus
formaram o núcleo da igreja em Filipos. As mulheres da Macedônia já
direitos. Agora os magistrados precisaram ouvi-los, e pedir desculpas por
há muito tempo tinham a fama de exercer iniciativa e influência, e estas
haverem açoitado cidadãos romanos sem julgamento e sentença normais.
nobres tradições foram bem conservadas pelas mulheres das igrejas
Os magistrados não podiam sumariamente expulsar cidadãos romanos de
macedônicas. 18
uma cidade romana, mas com grande instância suplicaram que ambos
Lídia colocou sua casa à disposição dos missionários, a qual se tornou
fossem embora: julgaram-se incapazes de protegê-los contra o ressentimen-
sem dúvida o lugar de reuniões da igreja que logo surgiu em Filipos.
to público. Acertando a situação legal, Paulo e Silvano certificavam-se de
Entretanto, os missionários envolveram-se em problemas graves
que os convertidos filipenses não se tornariam vítimas do ódio popular, por
quando Paulo exorcizou o "espírito de adivinhação" de uma jovem que,
estarem associados a criminosos comuns.
"adivinhando, dava grande lucro aos seus senhores" (Atos 16:16). Tec-
O episódio bem conhecido da narrativa de Lucas, sobre a evangeliza-
nicamente esse espírito é chamado de espírito de pitonisa, ou seja:
ção de Filipos, é o que diz respeito ao terremoto que ocorreu à meia-noite,
tratava-se do mesmo espírito, porém de menor poder, que subjugava a
enquanto Paulo e Silvano "oravam e cantavam hinos a Deus" na escuri-
profetiza pítica de Delfos de modo que esta falava como porta-voz de
dão daquela prisão, e ao terror do carcereiro, sua tentativa de suicídio, e
Apoio. Como resultado do exorcismo a jovem não mais conseguia
conversão (Atos 16:25-34).
predizer o futuro. (Existe um paralelo literário em Theophoroumene [A
Podemos destacar este episódio de seu contexto, pois possui afinida-
Mulher Divinamente Inspirada], de Menander, peça em que uma jovem
des próprias. Numa obra grega do primeiro século chamada Testamento
escrava perde seus címbalos e tamborins e, com eles, o dom da profecia
de José (um dos trabalhos da coletânea denominada Testamentos dos
deles proveniente.) 19
Doze Patriarcas), José nos conta como seu senhor egípcio "me açoitou
Os proprietários filipenses da escrava ficaram perturbados diante da
e me encerrou na prisão de faraó. Estando eu na casa da escuridão,
perda dos rendimentos regulares que a leitura da sorte lhes proporciona-
acorrentado, cantando hinos ao Senhor e glorificando ao meu Deus,
va. Paulo, assim julgavam eles, era culpado de interferir em seus direitos
regozijando-me com voz jubilosa, a mulher egípcia me ouviu." 2 1 Não
de propriedade. Portanto, Paulo e Silvano (os dois judeus genuínos do
existe nenhuma questão de dependência literária direta, desta ou daquela
quarteto missionário) foram arrastados ante o magistrado, no fórum, sob
forma; todavia, ambos os documentos prendem-se a uma convenção
a seguinte acusação: "Estes homens, sendo judeus, perturbaram a nossa estilística comum. A idéia geral reaparece um pouco mais tarde no
cidade. E nos pregam costumes que não nos é lícito receber nem praticar, escritor estóico Epiteto: "Seremos competidores com Sócrates, quando
visto que somos romanos" (Atos 16:20, 21). Os presentes uniram-se pudermos escrever cânticos de louvor na prisão." 22
nesse ataque e o magistrado, decidindo que aqueles dois estrangeiros
Quanto aos efeitos do terremoto à meia-noite, Orígenes, em meados
indesejáveis precisavam de uma boa lição, ordenou que fossem castiga-
do terceiro século (ou mesmo o pagão Celso, setenta anos antes), sugeriu
dos com as varas dos lictores e trancafiados até o dia seguinte.
um paralelo entre o registro de Lucas e a descrição em Bacchae, de
Quando os lictores chegaram à prisão na manhã seguinte, a fim de
Eurípedes, da fuga dos ébrios e de Dionísio da prisão de Penteu: "os
expulsar ambos de Filipos, foram surpreendidos com um protesto: os
14 Filipenses Introdução 19
grilhões dos pés se lhes soltaram, por si mesmos, e as chaves abriram as de Roma, sob guarda militar, a fim de ser atirado às bestas feras da arena.
portas sem que mãos mortais agissem." 2 3 Não é possível deixar de À semelhança de Paulo, antes, Inácio velejou de Trôade a Neápolis,
reconhecer as afinidades entre esses episódios, os quais todavia, não prosseguindo a viagem por terra, pela via Inácia. 24 Faltam-nos minúcias
depreciam a historicidade do evento bíblico. da pousada de Inácio em Filipos; contudo, os crentes filipenses tiveram
A Igreja de Filipos grande interesse por ele, ao ponto de escreverem a Policarpo, bispo de
Esmirna, sujjlicando-lhe que lhes enviasse cópias das cartas de Inácio
Paulo e Silvano deveriam abandonar Filipos; o delicado pedido dos
disponíveis. A resposta de Policarpo ao pedido dos filipenses sobrevi-
magistrados não poderia ser desprezado, como não poderiam desprezar
veu até nossos dias. No início da carta, o bispo expressa sua alegria
a eventual expulsão à força, da parte dos lictores. Todavia, deixaram atrás
quanto ao fato de os filipenses "terem seguido o exemplo do verdadeiro
uma jovem igreja constituída de ardentes convertidos, cujo afeto pelo
amor, e terem ajudado como puderam, sempre que houve oportunidade,
apóstolo foi demonstrado mediante dádivas que lhe enviaram em mais
os que estavam em cadeias". Tais cadeias, diz ele, são ornamento dos
de uma ocasião, iniciando-se algumas semanas depois de sua partida
santos; constituem "diademas de todos quantos verdadeiramente têm
(veja Filipenses 4:15, 16). Timóteo acompanhou seus dois colegas mais
sido escolhidos por Deus e nosso Senhor Jesus Cristo" (dentre os quais
velhos; é possível que Lucas tenha permanecido em Filipos.
ele pensava de modo especial em Inácio). A seguir acrescenta ele:
É digno de nota que a primeira passagem narrada na primeira pessoa "Alegro-me também em vossa fé firmemente enraizada, reconhecida
do plural (nós), em Atos, termina em Filipos (Atos 20:5). Se Lucas desde os primórdios, a qual prevalece até o presente e produz frutos para
permaneceu em Filipos, durante os sete ou oito anos seguintes, sem nosso Senhor Jesus Cristo." 2 6 A árvore que Paulo e seus colabodores
dúvida os crentes filipenses o consideraram como um deles: é até possível plantaram continuava a produzir frutos que atestavam a qualidade do
que o tenham nomeado representante da igreja entre os delegados de serviço daqueles servos.
outras igrejas que contribuíram para a oferta que Paulo levou aos pobres
da Judéia, em 57 d.C.
Caráter, Ocasião e Propósito da Carta
A lista dos companheiros de viagem de Paulo, de Atos 20:4, não
menciona nenhum membro da igreja de Filipos, embora talvez ela seja Tema
incompleta. Os que constavam da lista, informa-nos Lucas, "indo adian- A carta é enviada à comunidade cristã de Filipos por Paulo, que
te, esperaram-nos em Trôade" enquanto "nós" (isto é, Paulo, o narrador acrescenta o nome de Timóteo ao seu, logo na saudação inicial.
e talvez mais um ou dois) "depois dos dias dos pães asmos, navegamos Após haver saudado seus amigos filipenses e assegurado sua profunda
de Filipos" (Atos 20:5, 6). Na verdade, teriam embarcado em Neápolis, gratidão e suas orações por eles, Paulo lhes relata como sua situação atual,
porto de Filipos. Em 57 d.C. a festa dos pães asmos caiu na semana de 7 a despeito das restrições da prisão, promoveu a divulgação do evangelho
a 14 de abril. entre os oficiais, sob cuja guarda ele se encontra, tendo encorajado a
A igreja de Filipos foi, então, a última das igrejas de Paulo a oeste do muitos dos crentes locais a serem mais ousados no testemunho da fé.
mar Egeu, com a qual ele manteve contato pessoal antes de sua última e Ainda que alguns tenham sido impelidos por motivos inamistosos contra
infeliz visita à Jerusalém. Essa igreja continuou a comunicar-se com o Paulo, permanece o fato que Cristo está sendo proclamado, o que faz
apóstolo, como o fazia desde sua fundação, e a carta de Paulo aos Paulo regozijar-se. Ele não sabe em que resultará sua prisão; contudo,
filipenses dá ao leitor uma idéia do imenso prazer que essa igreja ele já entendeu e decidiu que, quer a prisão termine com a libertação,
proporcionava ao apóstolo, cada vez que pensava nela, e como era grande quer com a morte, tudo redundará para a glória de Cristo.
a apreciação da bondade e afeição dos crentes. Em seguida, faz um apelo para que haja harmonia entre os membros
Que a igreja de Filipos preservou o mesmo caráter meio século depois, da igreja filipense: lamenta a existência de ciúmes e antipatias desprezí-
transparece pelo seu cuidado por Inácio, bispo de Antioquia, a caminho veis e lhes traz à memória a auto-renúncia de Cristo, ao tornar-se servo
14 20
Filipenses Introdução
base estaria, segundo Baur pensava, em 2 Coríntios 11:9, onde Paulo
dos homens, ao ponto de sofrer a morte na cruz. Depois de mais algumas
menciona uma exceção ao seu costume regular — certa ocasião em
palavras de encorajamento, nas quais se torna bem evidente o envolvi-
Corinto quando suas necessidades foram atendidas por alguns amigos da
mento pessoal de Paulo no bem-estar espiritual de seus convertidos, o IO
Macedônia.
apóstolo lhes diz que logo enviará Timóteo, que os visitará e trará notícias
Finalmente, Baur, que presumiu ser Roma o lugar da prisão, de onde
deles. Agora, diz Paulo, ele lhes manda de volta Epafrodito, membro da
a carta aos Filipenses supostamente teria sido escrita, alega que a descri-
igreja deles, que viera para desincumbir-se de uma tarefa que lhe fora
ção do progresso do evangelho em Roma, na época indicada, fica sem
entregue pelos filipenses, e durante a qual ficara seriamente doente.
apoio. A pista que conduz a tal descrição, e à menção dos "santos... da
Então, com um "Quanto ao mais, irmãos meus..." (3:1), Paulo dá a
casa de César" (4:22) foi tirada (assim pensava Baur) da referência a
impressão de que vai finalizar a carta mas, de súbito, alerta seus leitores
certo Clemente, em Filipenses 4:3. Este Clemente, de acordo com Baur,
contra intrusos subversivos. E o apóstolo estabelece (em parte ao rebater
deve ser identificado como o Tito Flávio Clemente, aparentado por
a má influência de tais pessoas), referindo-se à sua própria experiência,
casamento com o imperador Domiciano, que o matou em 95 d.C. Este
a essência da fé e da vida cristãs.
homem, alega-se, foi introduzido na carta por um autor pós-apostólico
Palavras adicionais de admoestação (4:1-9) são seguidas de agradeci-
que conhecia bem a história legendária de Clemente. Segundo essa
mentos por uma oferta que Epafrodito lhe trouxe de Filipos (4:10-20). A
história, Clemente teria sido convertido por Pedro; ao trazê-lo em contato
carta se encerra com uma doxologia final, saudações e bênção.
com Paulo, o autor de Filipenses deu excelente contribuição à reconci-
Autoria liação póstuma entre os dois apóstolos que (assim acreditava Baur) foram
Aceita-se, de modo geral, que Filipenses seja uma carta genuína de adversários enquanto viveram. 3 4
Paulo. Alguns dos argumentos de Baur são apenas questão de opinião, ou
O primeiro desafio sério à autenticidade da carta foi feita em 1840, modo de ver as coisas; outros dependem da forma como se encara a
27
por F. C. Baur, de Tübingen.
9g Baur citou a opinião de um erudito mais evidência; todavia, o argumento a respeito de Clemente é simplesmente
velho, W. M. L. de Wette, para quem a genuinidade da carta estava errado. O Clemente de Filipenses 4:3 é um filipense cristão, sobre quem
"acima de qualquer questão." Baur, então, pediu licença para apresentar nada mais sabemos, mas de forma nenhuma esteve associado a Roma.
alguns pontos que poderiam enfraquecer a opinião de Wette. Nenhum dos argumentos de Baur referentes à carta aos Filipenses
Um desses pontos era o alegado emprego de expressões e idéias conseguiu convencer as futuras gerações de estudiosos sobre Paulo.
gnósticas que, com toda certeza, enchiam a mente do autor da carta, e Mais recentemente, colocou-se um ponto de interrogação sobre a
que aparecem de modo especial na passagem cristológica — Filipenses autoria paulina dessa carta, à base de uma análise estatística da linguagem. 35
2:6-11. 2 9 Outro ponto era a natureza repetitiva do documento. Dizia Baur Tampouco este argumento conseguiu aceitação geral; o documento é dema-
que a carta caracterizava-se "por uma falta de conexão profunda, sólida siado pequeno para prover evidências convincentes desse tipo.
de idéias, e por certa pobreza de pensamento". 3 0 Acrescentou a seguir Ocasião
que não se consegue encontrar "nem motivo nem oportunidade para a É evidente que Filipenses foi escrita enquanto Paulo estava na prisão
carta, nenhuma indicação distinta quanto a propósito e, tampouco, uma aguardando o julgamento que significaria liberdade, ou talvez a perda da
idéia principal". 31 O desabafo polêmico de Filipenses 3:2-19 foi consi- própria vida. 3 6 Três vezes no primeiro capítulo ele menciona a prisão,
derado "imitação fraca e sem vida" de 2 Coríntios 11:13-15. A refe- integrando-a no decurso de seu ministério apostólico: declara estar onde
rência em Filipenses 4:15,16 a reiteradas oferendas recebidas de Filipos foi "posto para defesa do evangelho" (Filipenses 1:16). Mediante a prisão
foi considerada contradição, pois Paulo afirma em 1 Coríntios 9:15-18, de Paulo, na verdade, o evangelho estava sendo promovido em áreas
e noutras passagens, que ele preferia não ser sustentado pelos seus onde, de outra forma, poderia não ter acesso.
convertidos, mas ganhar seu sustento mediante seu próprio trabalho. A
14 Filipenses Introdução 23
Mas, onde estava ele preso? Paulo não diz explicitamente. Nem era organizou uma coleta nas igrejas da missão gentílica, para socorro dos
preciso dizê-lo a seus amigos filipenses. Eles sabiam onde o apóstolo pobres da igreja em Jerusalém. Na festa de Pentecoste de 57 d.C., Paulo
estava pois enviaram Epafrodito, um deles mesmos, para visitá-lo (2:25). chegou a Jerusalém com alguns representantes dessas igrejas, os quais
A resposta tradicional a tal pergunta tem sido Roma; entretanto, em deveriam entregar as contribuições dos crentes aos líderes da igreja em
épocas mais recentes, Éfeso e Cesaréia têm sido mencionadas como Jerusalém. Não muitos dias após sua chegada, Paulo foi atacado por uma
possibilidades. multidão feroz, no recinto do templo, tendo sido resgatado por membros
A prisão em Éfeso tem sido defendida por A. Deissmann, G. S. da guarda romana e levado à fortaleza Antônia, que dava para o pátio
Duncan, e outros. 38 É bem possível que Paulo houvesse sido preso pelo externo do templo. O comandante da fortaleza tomou-o sob custódia e o
menos uma vez, enquanto residiu em Éfeso (52-55 d.C.), mas a prisão enviou ao procurador Félix, em Cesaréia.
que o apóstolo sofria ao enviar esta carta a Filipos dificilmente poderia Paulo permaneceu em Cesaréia dois anos (57-59 d.C.), aguardando
ter sido uma prisão efésia. Quando Paulo diz: "de maneira que as minhas que Félix promulgasse uma decisão judicial quanto ao seu caso (Atos
cadeias, em Cristo, se tornaram conhecidas de toda a guarda pretoriana 24:26, 27). Félix, na verdade, nunca chegou a pronunciar um veredicto
e de todos os demais" (1:13), a palavra grega traduzida por "guarda formal sobre Paulo: Lucas explica esse adiamento pela esperança de
pretoriana" é praitorion, emprestada do latim praetorium. Se Paulo usa Félix em receber um dinheiro de suborno, de Paulo ou de seus amigos.
uma palavra emprestada, a idéia é que ela detém seu sentido técnico. O Ele sabia que Paulo havia chegado à Judéia trazendo uma substancial
termo denota a sede do pretor, mais particularmente o quartel do oficial soma de dinheiro para ser distribuído entre os pobres da igreja de
comandante num acampamento militar. Na cidade de Roma, sob o Jerusalém (Atos 24:17), e presumiu que ele teria acesso a maiores fundos.
império, a "guarda pretoriana" significava a segurança pessoal do impe- Todavia, Paulo tinha muitas razões para supor que o veredicto de Félix,
rador. Longe de Roma, o termo designava a sede do governo provincial, quando saísse, lhe seria favorável e ele sairia livre. Isso proveria, poder-
mas governo de província imperial, que possuía unidades militares sob se-ia argumentar, bom motivo para o otimismo do apóstolo: "E, tendo
seu comando. Não existe exemplo, nos tempos imperiais, do emprego esta confiança, sei que ficarei, e permanecerei com todos vós para o vosso
dessa expressão para a sede de um procônsul, o governador de uma progressso e gozo na fé" (Filipenses 1:25).
província senatorial como era a Ásia, nessa época. Contudo, Cesaréia era um charco político. Se foi lá que Paulo ficou
Tem-se apelado para incrições, como evidências da presença de um preso ao escrever a carta aos Filipenses, é certo que todos do praetorium
praetorianus (membro de uma guarda pretoriana) nas vizinhanças de de Herodes ficariam sabendo por que Paulo estava lá, mas que importân-
Éfeso; todavia, tais evidências tornam-se irrelevantes para a questão que cia havia nisso? Havia cristãos em Cesaréia, mas seriam eles suficiente-
se discute. O praetorianus mencionado em três inscrições latinas era um mente numerosos ou diversificados de modo que pudessem tomar partido
ao lado de Paulo, ou contra Paulo, à maneira descrita em Filipenses
antigo membro da guarda pretoriana que mais tarde desempenharia
1:15-18? Ainda que fossem estimulados pela residência forçada do
funções policiais como um stationarius numa estrada romana, na pro-
apóstolo naquela cidade a pregar o evangelho com renovado entusiasmo,
víncia da Ásia. 39
Cesaréia oferecia um ambiente restrito demais que explicasse o alegre
Éfeso está excluída, como provável local de onde a carta foi enviada,
entusiasmo de Paulo ao narrar como sua prisão contribuiu para o avanço
de modo que Cesaréia se apresenta para nossas considerações. Cesaréia
do evangelho. Roma, porém, apresentaria um quadro bem diferente.
tem sido habilmente defendida por vários eruditos, de modo especial por
Ernst Lohmeyer. 40 Em apoio desta cidade há a declaração expressa de Félix foi removido da Judéia em 59 d.C. sem haver resolvido o caso
Atos 23:35 de que Paulo era de Paulo. Foi substituído como procurador por Festo. Quando Festo
41mantido sob a guarda ali, "no pretório de começou a reabrir o caso de Paulo, o apóstolo logo percebeu que poderia
Herodes" (lit., praetorium.)
Nos últimos anos de seu ministério ao longo do mar Egeu, Paulo expor-se a perigo mortal em face da atitude que o novo procurador, em
14 Filipenses Introdução 25

sua inexperiência, parecia tomar. Portanto, Paulo lançou mão do direito estiveram sujeitos à sua percepção da orientação divina. Na verdade, a
que tinha, como cidadão romano, e disse: "Apelo para César", isto é, prontidão com que Paulo estava disposto a mudá-los deixava seus amigos
desconsertados, e dava motivo a seus adversários para acusá-lo de
pediu que seu caso fosse transferido da corte provincial para a jurisdição
vacilação (cf. 2 Coríntios 1:15 — 2:1). Quando ele manifestou perante
direta do imperador, em Roma. A Roma, pois, Paulo foi enviado, onde
os crentes romanos seu plano de passar algum tempo com eles, quando
chegou em inícios de 60 d.C. Ficou durante os dois anos seguintes em
a caminho da Espanha, previu a possibilidade de surgirem problemas
prisão domiciliar, aguardando a audição de seu caso. Quando este viesse
durante sua iminente visita a Jerusalém, mas não previu sua prisão ali,
à tona, Paulo talvez tivesse de defender-se de mais de uma acusação. A
sua subseqüente detenção por dois anos em Cesaréia, seu envio sob
que pesava sobre sua cabeça ao ser preso em Jerusalém era a de violar a
guarda armada a Roma, e seu cativeiro domiciliar adicional, de outros
santidade do templo; tal acusação, todavia, poderia ser facilmente refu-
dois anos, enquanto aguardava a intimação para comparecer perante
tada. Havia menção, porém, da acusação de perturbar a paz romana por César. Esta seqüência imprevista e imprevisível de acontecimentos po-
todas as províncias do império (Atos 24:5). Esta era uma acusação séria, deria tê-lo levado a reconsiderar seus planos de viagens. Continuavam
e embora Paulo pudesse dar-lhe uma refutação poderosa, não havia meios chegando notícias da parte de seus amigos do mundo ao redor do Egeu
de saber como o caso seria conduzido no tribunal imperial. que o levaram a decidir que seria preciso visitá-los outra vez, tão logo
Enquanto Paulo aguardava que seu caso fosse levado perante Nero, ele pudesse, estando livre. Expectativa semelhante Paulo expressa em
ter-lhe-ia sido supremamente alegre ver como o evangelho estava-se sua carta a Filemom, de Colossos (a qual também deveria ser datada,
espalhando por toda Roma, mediante sua presença na cidade, embora provavelmente, de quando esteve preso em Roma): "Prepara-me também
sob custódia. Além do mais, favorecendo a idéia de que a carta vinha de pousada, porque espero que pelas vossas orações vos hei de ser conce-
Roma há a referência aos "santos da casa de César" que, juntamente com dido" (Filemom 22).
os demais cristãos, enviam suas saudações à igreja filipense (Filipenses Se fosse provável a datação de Filipenses como sendo de Roma, por
4:22). É verdade que o funcionalismo civil imperial se compunha de outros argumentos, a esperança expressa de Paulo de visitar Filipos outra
membros da casa de César — em grande parte constituída de ex-escravos, vez não constitui argumento decisivo contra essa datação.
— os quais se espalhavam por todas as províncias. Todavia, concentra- O número de viagens de ida e volta entre Filipos e o lugar do cativeiro
vam-se em Roma, e só em Roma seriam suficientemente numerosos de de Paulo, implícitas na carta, leva alguns a julgar que a carta originou-se
modo que tivessem um grupo de cristãos. em Éfeso, em vez de Roma. 4 3 A viagem entre Roma e Filipos, ou
Se concluirmos que esta carta foi enviada de Roma, torna-se necessá- vice-versa, exigia cerca de 40 dias; 44 a viagem entre Filipos e Éfeso
rio relacionar a expectativa e intenção declaradas de Paulo de visitar requeria apenas uma semana ou 10 dias. 45
Filipos em breve (Filipenses 1:25-27; 2:24) como planejara anteriormen- A época em que a carta foi escrita
te, conforme Romanos 15:24, 29, de ir de Roma à Espanha. Quando o a. chegaram a Filipos as notícias da prisão de Paulo;
apóstolo remeteu sua carta aos romanos, no início de 57 d.C., estava b. Epafrodito viajou de Filipos, a fim de entregar uma oferta a Paulo
prestes a despedir-se do mundo banhado pelo Egeu. Tem o mesmo (4:18);
sentido o registro que Lucas faz das palavras de Paulo aos anciãos da c. chegaram notícias a Filipos da doença de Epafrodito (2:26);
igreja efésia, quando se encontrou com eles brevemente em Mileto, em d. chegaram notícias a Epafrodito sobre a ansiedade dos filipenses, ao
sua última viagem a Jerusalém: "Agora, na verdade, sei que nenhum de saberem de sua doença (2:26);
vós ... jamais tornará a ver o meu rosto" (Atos 20:25). Se Filipenses deve e. Epafrodito estava prestes a partir para Filipos, levando a carta de Paulo
ser datada de quando Paulo foi preso em Roma, ou mesmo de quando esteve (2:25, 28);
preso em Cesaréia, seus planos devem ter mudado substancialmente. f. Timóteo deveria segui-lo em breve, tão logo os planos de Paulo se
Os planos de viagem de Paulo nunca foram inflexíveis: sempre tomassem mais viáveis (2:19-23);
14 Introdução 27
Filipenses

g. O próprio Paulo esperava poder visitar Filipos, se fosse libertado vos escreveu cartas" {Aos Filipenses 3:2). Há grave risco em inferir-se
daí que Policarpo entendia que a carta canônica se compunha de docu-
(2:24).
mentos separados: se ele não está usando um plural generalizante, pode
Quatro destas viagens se realizaram; as três últimas deveriam ocorrer
ter em mente outras cartas que não chegaram até nós, além dessa que
em futuro próximo. Porém, as quatro primeiras estão descritas de modo
sobreviveu.
que deixam implícito que Epafrodito caiu doente após ter chegado no
lugar onde estava Paulo: como fica sugerido abaixo, no comentário sobre Muitos comentaristas (talvez a maioria deles) ainda crêem na unidade
2:26, os fatos não aconteceram assim, necessariamente; Epafrodito po- do documento, mas há os que o consideram uma compilação de fragmen-
deria ter ficado doente a caminho do encontro com Paulo. Isto reduziria tos. Günther Bornkamm o descreveu como "uma coleção de cartas
o tempo necessário para as sucessivas viagens. Em qualquer caso, como paulinas." 5 0 Há duas seções, de modo especial, que alguns pensam
esclarece C. H. Dodd, "seja onde for que Paulo estivesse na época, as constituir inserções na carta principal:
circunstâncias exigiam intercomunicações freqüentes com Filipos; ape- (a) a nota de agradecimentos de 4:10-20 e
sar de Éfeso estar bem perto, o cativeiro romano também foi longo". (b) a seção que se inicia em 3:2 e prossegue até o capítulo 4.
Paulo morou dois anos em Roma e só então é que seu caso subiu aos Nota de agradecimentos (4:10-20). A nota de agradecimentos de
tribunais; quando Filipenses foi escrita, estava iminente uma decisão a 4:10-20 vincula-se ao corpo principal da carta mediante a referência a
respeito do apóstolo. Houve, então, muito tempo, suficiente para todas Epafrodito (4:18; cf. 2:25-30). Em ambas as passagens trata-se da mesma
as viagens efetuadas. e única missão de Epafrodito. Todavia, os que inferem de 2:25-30 que
Tem sido argumentado que a expressão de agradecimentos de Paulo aos Epafrodito gastou tempo considerável com Paulo, após lhe haver entre-
filipenses, iniciada com um "finalmente" — finalmente eles haviam de- gue a oferta filipense, tendo ficado doente logo depois, chegam à con-
monstrado cuidado pelo apóstolo outra vez (4:10) "não pode deixar de ser clusão de que Paulo enviou essa nota de agradecimento tão logo recebeu
considerada repreensão, uma repreensão sarcástica, na verdade," caso a a oferta, não tendo esperado, portanto, que Epafrodito se curasse e
carta não fosse enviada até o período do cativeiro romano. Esta interpretação pudesse voltar para casa. Deduzem, daí, que a nota de agradecimentos
também tem sido levantada como argumento favorável à origem efésia da deve ter sido remetida antes da carta principal. 5 1
carta. Como ficará demonstrado no comentário sobre essa passagem, entre- Contudo, se Epafrodito caiu doente a caminho da visita a Paulo (o que
tanto, tanto Paulo quanto os filipenses sabiam bem que o longo intervalo é mais provável), e o apóstolo o remeteu de volta a Filipos antes do tempo
que permeou o envio das ofertas era devido ao costume financeiro do próprio planejado, a fim de aliviar a ansiedade dos amigos filipenses concernente
Paulo, e não a alguma negligência da parte dos filipenses. Outros eruditos, a Epafrodito, teria sido muito conveniente que o viajante convalescido
na verdade, têm dito que a expressão de agradecimentos de 4:10-20 constitui levasse consigo a nota de agradecimentos — junto a uma carta mais
uma cartinha separada, que antecedeu a principal carta, dentro da qual esse longa, ou inserida nela (veja comentários sobre 2:26-28). (Se a nota foi
bilhete teria sido inserido editorialmente. enviada anexa à carta maior, posteriormente teria sido incluída nela.)
Isso levanta a questão sobre se essa carta, como se nos apresenta hoje, Advertência Contra os Maus Obreiros (3:2ss.). As três características
é compilação. principais desta seção são:
Documento Único ou Compilação de Fragmentos? (a) vem depois do "finalmente" (3:1)
(b) a diferença de tom, em relação ao restante da carta, e
Mais especificamente em tempos recentes é que se levantaram algu-
(c) semelhante aos últimos quatro capítulos de 2 Coríntios.
mas questões sérias quanto à unidade literária da carta. Na verdade,
A expressão "quanto ao mais" (gr. to loipon em 3:1 (usada outra vez
Policarpo escreveu aos crentes filipenses na primeira metade do segundo
em 4:8), poderia ser considerada preparação do autor para a conclusão
séculoTlêmbrando-lhes de como Paulo não só lhes ensinou "a palavra da
da carta; entretanto, não se pode afirmar muita coisa em cima dessa
verdade", quando presente entre eles, "como também, quando ausente,
14
Filipenses Introdução 29
expressão apenas, visto que em cartas informais (não se falando de tristeza. Entretanto, não há grande diferença entre a linguagem de Paulo
sermões), as palavras que sugerem a aproximação da conclusão podem nesta ou naquela carta. Se houver alguma base para a tese de Dodd quanto
vir muito antes da própria conclusão. a uma "segunda conversão" (e na verdade há alguma), deveríamos, então,
Entretanto, a repentina severidade da advertência, nesta seção, e sua dizer com T. W. Manson que Filipenses 3:2ss. "se entende melhor antes
semelhança em tom e assunto com 2 Coríntios 10-13 exige alguma da segunda conversão, do que depois." 53
explicação. Na verdade, há diferenças: enquanto em 2 Coríntios 10-13 E muito improvável que se possa tirar alguma inferência de uma
os "falsos apóstolos" já estão de fato operando em Corinto, tal não fica mudança de perspectiva que se tenha verificado entre a expectativa de
implícito de Filipenses 3:2ss.: não se sabe se os "maus obreiros" já Paulo em 3:20, 21, quanto a partilhar a "mudança" que os crentes
estavam trabalhando em Filipos — e tampouco se havia qualquer dispo- remanescentes experimentarão quando da volta de Cristo, e a expectativa
sição entre os crentes filipenses para dar-lhes ouvidos. do apóstolo em 1:23, de estar "com Cristo" ao morrer; a possibilidade de
Em Corinto, os intrusos proclamavam ter credenciais e realizações ser executado, como resultado do julgamento pendente, é suficiente para
explicar sua expectativa de 1:23, enquanto em 3:20, 21, Paulo declara
mais elevadas do que as de Paulo, de modo que o apóstolo se sentiu
(talvez em forma de credo) a esperança dos crentes em geral.
obrigado ("envergonhado o digo", 2 Coríntios 11:21) a argumentar que
se tais credenciais e realizações que eles aparentemente estavam apre- À parte isso, se fosse possível vencer tal quebra de "probabilidade
sentando fossem realmente necessárias, ele, Paulo, poderia apresentar bibliográfica" como a divisão de Filipenses em duas cartas originaria-
mente separadas, muito se poderia dizer a favor da datação de 3:2ss. no
um currículo muito mais impressionante que qualquer desses intrusos.
mesmo período genérico de 2 Coríntios 10—13, datando a carta como
Paulo trilha um caminho semelhante em Filipenses 3:4-16, observando
um todo no final do cativeiro romano de Paulo. Embora as pessoas
que se fosse adequado alimentar confiança nas dotações naturais e nas
antipáticas de 1:15-18 não sejam as mesmas das mencionadas com tanta
realizações, o apóstolo não se sentiria perdido, mas cheio de razões para
severidade em 3:2, 18, 19 (e, na verdade, aquelas não parecem haver
ter confiança. Entretanto, tudo quanto antes ele valorizava agora despre-
adulterado o evangelho), a suavidade de Paulo, no entanto, ao referir-se
za como inútil — e lança-se, em seguida, a uma eloqüente declaração
àquelas pessoas fica em notável contraste com a forte invectiva contra
das coisas que realmente têm valor: o conhecimento pessoal de Cristo, a
estas outras, havendo a sugestão de um período intermediário aplacador.
participação em seus sofrimentos, a esperança de ressurreição com ele e a
Paulo aprendeu a enxergar motivos para dar graças em situações que,
ambição de cumprir o alto propósito para o qual ele foi chamado por Cristo.
noutros tempos, tê-lo-iam levado a explodir de indignação.
C. H. Dodd, que aceita Filipenses como sendo um documento único,
datado do cativeiro de Paulo em Roma, cita Filipenses 3:13-16 como Se supuséssemos que outra carta, ou parte de outra carta, se inicia em
indicando "muito claramente o que a experiência havia feito desse 3:2, até onde ela iria? Com certeza até 4:1, com aquele apelo aos
homem por natureza orgulhoso, autoconfiante e impaciente". Também filipenses: "estai assim firmes no Senhor, amados" 55 mas talvez até 4:3 5 6
57
provendo evidências para sua tese segundo a qual na época da "tribulação e possivelmente até 4:9. Se a carta se encerrasse em 4:9, teríamos uma
que nos sobreveio na Ásia" (2 Coríntios 1:8), o apóstolo passou por uma conclusão satisfatória para uma carta, em que o último parágrafo se
"segunda conversão" que lhe resultou em marcante mudança de tempe- iniciaria com "Quanto ao mais, irmãos", encerrando-se com uma bênção:
ramento. 52 Entretanto, é difícil reconhecer tal "mudança de temperamen- "E o Deus de paz será convosco." A seguir, a carta principal anunciaria
to" na forma como Paulo trata os "maus obreiros" no próprio contexto sua conclusão: "Quanto ao mais, irmãos meus, regozijai-vos no Senhor"
de 3:13-16 — na fustigação dos "cães" de 3:2 ou na denúncia dos (3:1), seguida da nota de agradecimentos (4:10-20) e a saudação e bênção
libertinos de 3:18,19. É verdade que ele afirma estar escrevendo aquelas finais (4:21-23). Entretanto, todos os argumentos em prol de considerar-
palavras de denúncia "chorando", enquanto em 2 Coríntios 10—13 se Filipenses como sendo produto de compilação na melhor das hipóteses
talvez ele houvesse escrito aquelas palavras mais com ira do que com são apenas tentativas. O julgamento de W. G. Kümmel deve merecer
Introdução 31
14 Filipenses
4. Heródoto, History 5.17f.
respeito: "Não existe... razão suficiente para c^ue se duvide da unidade 5. Idem, 7.173; 9.45.
original de Filipenses, como foi transmitida." 5 6. Ibid.,5.22; 8.137.
7. Polybius, History 7.9.
Propósito 8. Idem, 18.22-28.
O propósito da carta só pode ser formulado após considerar-se todo 9. Ibid., 31.29.
10. Livy, History 45.29.5ss.; cf. J. A. O. Larsen, Greek Federal States.
seu conteúdo. 11. Diodorus, History 32.9b, 15; Florus, Epitomel.30.
Epafrodito estava de regresso a Filipos por causa da insistência de 12. Florus, Epitome 1.32.3; cf. M. G. Morgan, "Metellus Macedonicus e a
Paulo, que aproveitou a oportunidade e lhe entregou uma carta dirigida Província Macedônica," Historia 18 (1969), pp. 422-46.
aos crentes filipenses, agradecendo-lhes a oferta de que Epafrodito havia 13. Strabo, Geography 1.1.4. Consulte, para um bom relato popular, F.
sido portador, agradecendo-lhes também pela participação geral e cons- 0'Sullivan, The Egnatian Way.
tante deles, em seu ministério, e explicando-lhes incidentalmente por que 14. De 15 a 44 AD a Macedônia se uniu à Acaia, no sul, e à Moesia bem ao
norte para formar uma província imperial. (Tácito, Annals 1.76.4; 1.80.1.). Uma
estava enviando Epafrodito de volta tão depressa. província imperial, diferentemente de uma província senatorial, exigia a presen-
Ao mesmo tempo, Paulo aproveita a oportunidade para dar-lhes ça de unidades militares, e era governada por um legado nomeado diretamente
informações sobre sua situação atual, a fim de prepará-los para a iminente pelo imperador. Consulte também F. Papazoglu, "Quelques aspects de 1'histoire
visita de Timóteo, a qual seria seguida (assim esperava Paulo) de uma de la province Macédoine," in Aufstieg und Niedergang der romischen Welt,
visita dele mesmo. O apóstolo os adverte contra uma variedade de ed. H. Temporini e W. Haase, 2.7.1 (Berlim e Nova York: de Gruyter, 1979),
pp. 302-69.
elementos que rondavam as igrejas subvertendo a fé e a moral cristãs.
Contudo, o principal objetivo de Paulo era, evidentemente, estimular o 15. Cf. F. F. Bruce, 1 & 2 Tessalonicenses.
16. O termo técnico para este quorum de dez homens é minyan.
espírito de unidade entre os crentes. O que militava contra tal unidade
17. Homero, Iliada 4.141s.
era a tendência natural para a auto-afirmação, que Paulo combatia com 18. Cf. W. W. Tarn e G. T. Griffith, Hellenistic Civilisation, pp. 98s.; W. D.
toda a disposição de que era capaz. O exemplo de Cristo deveria inspirar Thomas ,"The Place of Women in the Church at Philippi," ExpT 83 (1971-72),
seus seguidores no sentido de colocar os interesses dos outros diante de pp. 117-20. Consulte o comentário sobre 4:3 abaixo.
seus próprios interesses, e serem marcados pelo espírito de autonegação 19. Cf. T. B. L. Webster, An Introduction to Menander (Manchester: Man-
e auto-sacrifício espontâneo. Se aprendessem essa lição, não apenas chester University Press, 1974), p. 191.
transbordariam o cálice de Paulo com alegria mas também seriam 20. Por trás da frase grega traduzida por "sem sermos condenados" (Atos
16:37), W. M. Ramsay discerniu o termo legal romano re incógnita, "sem
liberados de tensões internas e seriam capazes de, juntos com Paulo, investigar o caso" St. Paul the Traveller and the Roman Citizen pp. 224s.).
regozijar-se no Senhor. 21. Testament of Joseph 8:4s. Veja W. K. L. Clarke, "St. Luke and the
Nota: No início do livro há uma lista de abreviaturas usadas neste Pseudepigrapha," JTS 15 (1914), p. 599; "The Use of the Septuagint in Acts,"
comentário (veja pp. 9-12). BC 1.2 (Londres: Macmillan, 1922), pp. lis.
22. Epictetus, Dissertations 2.6.26.
Notas 23. Eurípedes, Bacchae 447s., cf, 586ss.; veja Orígenes, Against Celsus 2.34.
Quanto a um padrão corrente que seguidamente aparece nos relatos de fugas da
1. Este texto (GNB) provavelmente deve ser original, embora não se encontre prisão (cf. também Atos 5:19-23; 12:6-11) veja R. Reitzenstein, Die hellenis-
nos manuscritos gregos; foi preservado em alguns manuscritos da Vulgata tischen Wundererzahlungen (Leipzig: Teubner, 1906), pp. 120-122.
Latina, e em versões provençais e alemãs, baseadas no latim; consulte E. 24. Inácio, A Policarpo 8:1.
Haenchen, The Acts ofthe Apostles, p. 474. 25. Policarpo, Aos Filipenses 13:2
2. Quanto ao nome completo, consulte a inscrição latina de Filipos, reprodu- 26. Idem, 1:,2.
zida por M. N. Tod, em Annual ofthe British School atAthens 23 (1918-19), p. 27. F. C. Baur, Paulo: Sua Vida e Obras vol. 2, pp. 45-79.
95, no. 21. 28. W. M. L. de Wette, Lehrbuch der historisch-kritischen Einleitung in die
3. Cícero, On the Agrarian Law, 2.93.
14 Filipenses Introdução 32
40. E. Lohmeyer, Der Brief an die Philipper pp. 3s., 38-49; também L.
kanonischen Büucher des Neuen Testaments, p. 268. Johnson, "The Pauline Letters from Caesarea," ExpTôS (1956-57), pp. 24-26;
29. Baur, vol. 2, pp. 46-53. J. J. Gunther, Paul: Messenger and Exile pp. 98-107; J. A. T. Robinson,
30. Idem, p. 53. Redating the New Testament, pp. 60s., 77-79.
31. Ibid., p. 53. 41. A sede ocasional de Pilatos em Jerusalém é mencionada como praetorium
32. Ibid., p. 55. (pretório) em Marcos 15:16; João 18:28, 33; 19:8.
32. 33. Ibid., pp. 56-58. Veja comentário sobre 4:16.
34. Ibid., pp. 58-64.0 Flávio Clemente histórico é mencionado por Dio Cássio, 42. B. Reicke ("Caesarea, Rome and the Captivity Epistles," em W. W. Gasque
Hist. 67.14; Suetônio, Domício 15.1. A explicação integral da lenda sobre eR. P. Martin, eds., Aposto lie History and the Gospel, pp. 277-86), que defende
Clemente, que envolve uma confusão entre Flávio Clemente com o pai apostó- a teoria segundo a qual as demais cartas do cativeiro provieram de Cesaréia,
lico Clemente de Roma, aparece no quarto século, nas obras Clementine mas que a de Filipenses teria vindo de Roma, pensa que "era impossível que os
leitores não entendessem a referência à Roma e aos funcionários de Nero" nesta
Recognitions e Clementine Homilies. saudação; ele compara a menção em seis inscrições romanas (C/J 284,301,338,
35. Cf. A. Q. Morton, "The Authorship of Greek Prose," J R Stat Soe série A 368,416,496) da sinagoga dos Augustenses, "os ex-escravos libertos" (p. 285).
127 (1965), pp. 169-233; "The Authorship of the Pauline Corpus," em The New Compare o comentário e nota adicional ad loc.
Testamentin Historical and Contemporary Perspective: Essays in Memory of 43. Veja Duncan, St. Paul's Ephesian Ministry, pp. 80-81.
G. H. C. MacGregoreá. W. Barclay e H. Anderson, pp. 209-35; The Integrity 44. Veja W. M. Ramsay, "Roads and travei (in NT)," em HDB5, pp. 375-402
ofthe Pauline Epistles (Manchester: Manchester Statistical Society, 1965); M. (especialmente p. 385).
Levison, A. Q. Morton, and W. C. Wake, "On Certain Statistical Features of the 45. Veja o itinerário em Atos 20:6-16.
Pauline Epistles," Philosophical Journal 3 (1966), pp. 129-48.
46. C. H. Dodd, "The Mind of Paul: II," em New Testaments Studies, p. 97.
36. Isto foi contestado por T. W. Manson, que sugeriu que o encarceramento 47. Manson, Gospels and Epistles, p. 157.
mencionado em Filipenses 1:7, 13s., 17, foi o de Filipos (Atos 16:23-39) ou um 48. Compare Dodd, New Testaments Studies, pp. 97-98.
breve período de custódia em Corinto, aguardando seu comparecimento diante 49. Tais questões eram levantadas esporadicamente, em tempos mais remotos:
de Gálio (Atos 18:12-17); ele datou Filipenses como escrito durante o ministério um dos primeiros estudiosos a apontar os problemas relacionados com a unidade
efésio de Paulo, julgando que o encarceramento era o mais antigo, não aquele (que era aceita) das cartas, foi S. Le Moyne, Varia Sacra (Leiden: Daniel à
que o apóstolo estava sofrendo por ocasião da escrita (Studies in the Gospels Gaesbeeck, 1685), vol. 2, pp. 332-43.
and Epistles, pp. 149-67). 50. G. Bornkamm, "Der Philipperbrief ais paulinische Briefsammlung" em W.
37. Cf. o prólogo "marcionita": "Os filipenses são macedônicos. Estes, haven- (' van Unnik, ed., Neotestamentica et Patristica, pp. 192-202. Veja também F.
do recebido a palavra da verdade, permaneceram firmes na fé. O apóstolo os W. Beare, A Commentary on the Epistle to the Philippians, pp.4,149-57; B. D.
elogia, escrevendo-lhes da prisão em Roma."* Rahtjen, "The Three Letters of Paul to the Philippians", NTS6 (1959-60), pp.
38. Cf. A. Deissmann, "Zur ephesinischen Gefangenschaft des Aposteis
167-73; W. Schmithals, Paul atui the Gnostics, pp. 67-81.
Paulus," em Anatolian Studies Presentedto Sir W. M. Ramsayed. W. H. Buckler
51. Veja Beare, Philippians, p.150. Rahtjen, "The Three Letters," p. 170,
e W. M. Calder, pp. 121-27; P. Feine, Die Abfassung des Philipperbriefes in •li f-uinenta que Epafrodito já havia sido enviado de volta a Filipos quando Paulo
Ephesus-,VV. Michaellis, Die Gegangenschaft des Paulus in Ephesus; Der Brief escreveu 2:25-30 — que Paulo não diz : "Por isso, tanto mais me apresso em
des Paulus an die Philipper, J. H. Michael, The Epistle of Paul to the Philip- mandá-lo" (2:28, "Almeida Revista e Atualizada"), mas "Por isso vo-lo enviei
pians; G. S. Duncan, St. Paul's Ephesian Ministry; "A New Setting for Paul's nmis depressa" (ECA). O tempo do verbo epempsa (mandou) indica aconteci-
Epistle to the Philippians," ExpT43 (1931-32), pp. 7-11; "Were Paul's Impri- mento passado.
sonment Epistles Written from Ephesus?" ExpT 67 (1955-56), pp. 163-66; 52. Dodd, New Testament Studies, pp. 80-82.
"Paul's Ministry in Asia — The Last Phase," NTS 3 (1956-57), pp. 211-18. 53. Manson, Gospels and Epistles, pp. 163, 164.
39. C1LIII. 6085,7135,7136. 54. Com esta expressão de repreensão suave, mas erudita, F. G. Kenyon
eo«l limava derrubar algumas hipóteses literárias e críticas (como em The Bible

• 2íSE
segundo se pensava, por Marcion (ca. 144 d.C.) e seus segmdores.
mui Modern Scholarship, Londres: John Murray, 1948, p. 37). Rupturas assim
• k orriam, de vez em quando, e isto fica demonstrado pela (praticamente certa)
Itmcrção da posterior "Constituição de Draco" na Constituição de Atenas
in e.lotólica, de que Kenyon produziu a primeira edição impressa em 1891.
34 Filipenses

55. Também Beare, Philippians, pp.24,25. 1. Preâmbulo (Filipenses 1:1-2)


56. Também Bornkamm, "Der Philipperbrief ais paulinische Briefsammlung,"
p. 195; também, (mais recente) J. E. Symes, "Five Epistles to the Philippians,"
The InterpreterlO (1913-14), pp. 167-70.
57. Também Rahtjen, "The Three Letters", pp. 171,172. Entretanto, esse autor
considera 3:2-4:9 como carta posterior, a qual "segue o padrão clássico do O preâmbulo, ou saudação introdutória de uma carta antiga, normal-
testamento de um pai moribundo a seus filhos." mente continha três elementos:
58. W. G. Kümmel, Introduction to the New Testament, p. 237. A unidade da (a) nome do remetente, ou dos que assinavam a carta;
carta é defendida também por B. S. Mackay, "Further Thoughts on Philippians," (b) nome do destinatário, ou a quem deveria ser transmitida; e
NTS 7 (1960-61), pp. 161-70; V. P. Furnish, "The Plan and Purpose of Philip- (c) cumprimentos e felicitações.
pians iii", NTS 10 (1963-64), pp. 80-88; T. E. Pollard, "The Integrity of São abundantes os exemplos de cartas da época do Novo Testamento,
Philippians," NTS 13 (1966-67), pp. 57-66; R. Jewett, "The Epistolary Thanks-
giving and the Integrity of Philippians," NovT 12 (1970), pp. 40-53. em grego e em latim, tanto literárias quanto comuns. Exemplos mais
antigos são fragmentos de correspondência oficial da corte persa, men-
cionados no livro de Esdras; compare Esdras 7:12, "Artaxerxes, rei dos
reis, ao sacerdote Esdras, escriba da lei do Deus do céu: Saudações." Este
padrão é seguido aqui, como também em todas as cartas do Novo
Testamento.
Nesta carta que principiamos a estudar, Paulo e Timóteo são mencio-
nados como remetentes e "todos os santos em Cristo Jesus, que estão em
Filipos" são os destinatários, sendo "graça" e "paz" os votos de bem-estar
e felicidade.

1:1 / Paulo é o único autor da carta, ainda que o nome de Timóteo seja
acrescentado neste preâmbulo. Percebemos isto quando Paulo diz: "Dou
graças ao meu Deus" (Filipenses 1:3). Ao contrário do que acontece em
Colossenses 1:3, onde o nome de Timóteo aparece junto ao de Paulo no
preâmbulo, Paulo diz: "Graças damos a Deus". Posteriormente, na carta
aos filipenses, Paulo se refere a Timóteo pelo nome, com o verbo na
terceira pessoa (2:19).
Timóteo tem seu nome associado ao de Paulo no preâmbulo em sinal
de amizade. O moço estava com Paulo à época em que a carta estava
sendo escrita e até poderia ter agido como secretário de Paulo, tomando-
lhe o ditado. Ele era bem conhecido entre os crentes filipenses, tendo sido
membro da equipe missionária que levou o evangelho àquela cidade pela
primeira vez. A presença de Timóteo está implícita, e não expressamente
declarada, conforme Atos 16:11-40.
Timóteo era nativo de Listra, na Licaônia, nascido de um casamento
misto, pois sua mãe era judia e seu pai grego. Foi educado na fé judaica
mas não havia sido circuncidado na infância. Durante a primeira visita
54 55
(Filipenses 1:15-17) (Filipenses 1:15-17)
mesma razão suas palavras e ações tinham a autoridade de seu Senhor,
de Paulo e Barnabé à sua cidade natal (Atos 14:8-20) ele se converteu ao
e naquele trabalho de servo Paulo sentia liberdade perfeita.
cristianismo. Quando Paulo passou por ali outra vez, um ou dois anos
Os destinatários da carta são chamados de santos ou de "povo santo",
mais tarde, ficou impressionado com o desenvolvimento espiritual de
pessoas a quem Deus separou para si mesmo — designação muito
Timóteo, que era reconhecido por crentes íntegros de Listra e de Icônio.
comum de Paulo para os crentes em suas cartas (conforme Romanos 1:7;
Paulo decidiu nomear Timóteo seu cooperador pastoral para que este
1 Coríntios 1:2; 2 Coríntios 1:1; Efésios 1:1; Colossenses 1:2).
trabalhasse em seu ministério apostólico, mas circuncidou-o primeiro, a
A designação grega " hagios" tem raízes nos tempos do AT quando
fim de regularizar sua situação religiosa anômala: sendo filho de mãe judia,
Deus celebrou uma aliança com Israel, depois de havê-lo libertado do
não era um cristão gentio, mas um judeu em tudo, exceto quanto à circun- Egito. Deus o chamou de "nação santa" (Êxodo 19:6) e intimou o povo:
cisão. "Sede santos porque eu sou santo" (Levítico 11:45). Esta intimação é
Paulo e Timóteo bem sabiam que a circuncisão não faria a mínima trazida ao NT e imposta sobre o povo da nova aliança. O uso cristão
diferença quanto à sua situação perante Deus; todavia, a circuncisão tinha também pode ter sido influenciado, até certo ponto, pela descrição que
o objetivo de remover uma verdadeira barreira nas relações de Paulo com Daniel faz do remanescente eleito, no fim dos tempos: "os santos do
as autoridades da sinagoga (Atos 16:1-3). Altíssimo" (Daniel 7:18, 22, 27). E provável que Paulo tenha em mente
Com grande disposição Timóteo uniu-se a Paulo, a quem passou a servir Í» descrição de Daniel, quando afirma que "os santos hão de julgar o
com devoção como colaborador; o desprendimento desse moço pode ser mundo" (1 Coríntios 6:2).
avaliado pelas palavras elogiosas de Paulo em Filipenses 2:20-22. Paulo escreve, a seguir, a todos os santos em Cristo Jesus que estão
Paulo e Timóteo são descritos como servos (literalmente "escravos") «Mil Filipos — isto é, à igreja toda naquela cidade. Suas cartas anteriores
de Cristo Jesus. Em Romanos 1:1 Paulo se apresenta como "servo de •;ao endereçadas explicitamente às igrejas em várias cidades, conforme
Cristo Jesus, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de < «álatas 1:2; 1 Tessalonicenses 1:1; 2 Tessalonicenses 1:1; 1 Coríntios
Deus." 1:2; e 2 Coríntios 1:1.
Ao dirigir-se aos filipenses, Paulo não tinha necessidade de enfatizar Paulo introduz variações em suas últimas cartas às igrejas, quanto à
sua autoridade apostólica, como o fez ao dirigir-se às igrejas da Galácia rrdação (Romanos 1:7; Colossenses 1:2; Efésios 1:1). Ele descreve os
e de Corinto: não havia a tendência, em Filipos, para deixar de reconhecer i icntes como estando em Cristo Jesus. Isto indica que os que crêem em
sua autoridade, como acontecia naquelas outras igrejas. ( i isto estão unidos a ele, a nova vida da qual participam representa seu
Tem sido argumentado que o termo "servos", aqui, não tem o sentido quinhão na vida e ressurreição de Cristo. Esta idéia é idêntica àquela que
de "escravos", porque a palavra grega "doulos" é usada na LXX (versão I' tiilo expressa noutra passagem, quando fala dos crentes como sendo
grega do Velho Testamento) referindo-se a alguém a quem Deus usa num im-mbros do corpo de Cristo, 1 Coríntios 12:12,27, e Romanos 12:4.
ministério especial, ou através de quem Deus fala, como Moisés (Ne- I >entre as pessoas a quem a carta é endereçada, Paulo menciona de
emias 10:29), Josué (Josué 24:29), Davi (Salmo 89:20 [LXX: 88:21], modo especial os bispos e diáconos. As palavras gregas assim traduzidas
Jonas (2 Reis [LXX: 4 Reis] 14:25), todos os quais são chamados de MI iam a ser preservadas (em português estas palavras também são
"servo (Grego: doulos) do Senhor." iIrt i vadas do grego). Paulo e seus companheiros estimularam as qualida-
Entretanto, os leitores das cartas de Paulo entenderiam mais depressa des de liderança nas igrejas que plantaram. Quando os crentes comuns,
que o apóstolo queria dizer que era um "escravo" de Cristo no sentido u-4 ovelhas do Senhor, eram lentos em reconhecer os irmãos que demons-
de humildade, pois esse era o sentido que a palavra tinha para eles. Não iMvnm tais qualidades, eram admoestados a fazê-lo de imediato. Os
há dúvida de que Paulo considerava uma honra elevada ser escravo de 111 Ir res em potencial poderiam até ser mencionados por nome (como em
Cristo, mas também deixava implícito, pela palavra "escravo", que I Coríntios 16:15-18).
estava totalmente à disposição de seu Senhor. No entanto, por essa
54 55
(Filipenses 1:15-17) (Filipenses 1:15-17)

Não havia nenhuma designação oficial para os líderes eclesiásticos A íntima associação de Cristo com Deus, em expressões desse tipo,
nas igrejas paulinas. Em Tessalônica eram designados como: "os que testifica do lugar que Cristo ocupava no pensamento de Paulo. Sendo
trabalham entre vós, e os que presidem sobre vós no Senhor, e vos aquele que ressurgiu e foi exaltado, Cristo recebeu de Deus a designação
admoestam" (1 Tessalonicenses 5:12). Talvez os próprios crentes fili- de "Senhor" — o "nome que é sobre todo o nome" (Filipenses 2:9) —
penses é que se referiam a seus líderes na igreja como episkopoi, "os revestido de humanidade celestial (1 Coríntios 15:45-49).
bispos que governam" (o mesmo termo é aplicado aos anciãos da igreja Deus e Cristo são um na origem e na concessão da salvação. A boa
de Éfeso em Atos 20:28, a fim de expressar a responsabilidade deles vontade incondicional em prol dos seres humanos que foi manifestada
como pastores espirituais). na obra redentora da cruz é sempre chamada "graça de Deus" (Romanos
Os diáconos (gr. diakonoi) são aqueles que desempenham qualquer 5:15) e de "graça de nosso Senhor Jesus Cristo" (Filipenses 4:23). De
serviço na igreja. Nas cartas pastorais os deveres deles são mais forma- modo semelhante, o estado de vida a que essa obra redentora conduz os
lizados (cf. 1 Timóteo 3:8-13). crentes — paz com Deus e paz uns com os outros — é sempre chamada
Nesta carta aos filipenses é incerta a razão da menção especial a bispos "paz de Deus" (Filipenses 4:7) e "paz de Cristo" (Colossenses 3:15).
e diáconos. Muitos estudiosos, de Crisóstomo em diante, têm ensinado
que estes oficiais foram os responsáveis pelo envio de Epafrodito com Notas Adicionais 1.
uma oferta para Paulo. F. W. Beare acha possível que Paulo desejasse 1:1 / Quanto à circuncisão de Timóteo feita por Paulo, veja-se M. Hengel,
atrair a atenção dos líderes para a obra de Epafrodito. E. Best considera Acts and the History ofEarliest Christianity, p. 64.
a possibilidade de haver Paulo recebido uma carta formal, assinada pelos Quanto à frase servos de Cristo Jesus, consulte-se K. H. Rengstorf, TDNT,
"santos em Cristo Jesus que estão em Filipos, com os bispos e vol. 2, pp.261-80, s. v. [doulos, etc. (specially 276, 277). G. Sass,"Zur Bedeu-
tung von doulos bei Paulus," ZNW40 (1941), pp.24-32, conclui que para Paulo
diáconos," e usou este jogo de palavras, em sua resposta. E por isso, de
trata-se de um título honorífico.
forma proposital e perspicaz, evita atribuir-se qualquer título além do Quanto à expressão santos em Cristo Jesus (Filipenses 4:21), consulte-se
"escravo de Cristo Jesus." O. E. Evans, Saints in Christ Jesus: A Study of the Christian Life in the New
Cinqüenta anos mais tarde, quando Policarpo escreve à igreja filipen- Testament. Veja-se também o capítulo "The Corporate Christ" em C. F. D.
se, esta ainda é administrada por uma pluralidade de líderes, a quem ele Moule, The Origin ofChristology, pp. 47-96.
Nas Epístolas Pastorais os termos episkopos e presbyteros ainda são usados
chama de "anciãos" {To the Philipens 6:1; 11:1).
intercambiavelmente, havendo, pelo que se percebe, vários oficiais assim de-
signados em determinadas igrejas (cf. 1 Timóteo 3:2; 5:17; Tito 1:5-7); suas
1:2 I A esta altura do preâmbulo de uma carta grega, o remetente
qualificações são estabelecidas minuciosamente. A incidência de episkopoi e
normalmente desejaria "alegria" a seu correspondente; numa carta latina, diakonoi usados em conjunto na literatura cristã, ocorre no Didache 5:1.
ele desejaria "perfeita saúde." Paulo herdou o costume hebraico (e Em outras passagens das cartas paulinas, os crentes aqui denominados
semítico, generalizado) de desejar ao destinatário "paz" (Heb. shalôm), episkopoi são chamados de proistamenoi, os que "presidem" (Romanos 12:8;
mas freqüentemente ele amplia seus votos para "graça e paz." É possível cf. 1 Tessalonicenses 5:12) que não constitui, entretanto, termo técnico. Veja J.
que se tratasse de uma expressão usual em bênçãos nas sinagogas ou B. Lightfoot, "The Christian Ministry," em Philippians, pp. 181-269; F. J. A.
Hort, The Christian Ecclesia pp. 211-13; E. Best, "Bishops and Deacons:
igrejas. Numa obra judaica posterior, apocalíptica, do primeiro século, Philippians 1:1" TU 102 = SE 4 (1968), pp. 371-76; B. Holmberg, Paul and
uma carta provavelmente enviada por Baruque às tribos de Israel depor- Power: The Structure ofAuthority in the Primitive Church as Reflected in the
tadas pelos assírios, apresenta um cabeçalho: "Misericórdia e paz" (2 Pauline Epistles, pp. 100, 101,116 e 117.
Baruque 78:2). Paz é a soma total das bênçãos temporais e espirituais, e
a graça é a fonte de onde provêm.
A graça...e paz que Paulo invoca sobre seus destinatários quase
sempre derivam da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo.
99
(Filipenses 2:17-6a)
A repetição de todas, todos, todas as vezes (são da mesma e única
2. Ações de Graças Introdutórias (Filipenses 1:3-6) raiz, no grego) é digna de nota, pois trata-se de uma característica do
estilo de Paulo, em toda sua correspondência e de modo especial nesta
carta. Há três ocorrências nos versículos 3 e 4, que poderiam ser salien-
tadas na seguinte tradução: "Dou graças ao meu Deus todas as vezes que
O preâmbulo das cartas de Paulo freqüentemente é seguido por uma me lembro de vós, fazendo sempre, em todas as minhas orações, súplicas
expressão introdutória de agradecimento. Gálatas constitui exceção, pois por todos vós com alegria."
quase não havia motivos que suscitassem agradecimentos em relação à
A declaração de Paulo de que ele ora por todos eles com alegria
situação em que se encontravam as igrejas gálatas.
introduz uma nota repetitiva nesta carta conforme vemos em: 1:18; 2:2,
A prioridade que Paulo atribuía à ação de graças, em geral, está
17, 18, 28, 29; 3:1; 4:1, 4, 10. Em contraste com muitas outras de suas
explícita em Romanos 1:8: "Primeiramente dou graças ao meu Deus, por
igrejas, a igreja filipense dava a Paulo alegria pura quando pensava nela.
meio de Jesus Cristo, no tocante a todos vós." O agradecimento aqui em
É evidente que essa igreja não abrigava ensinos subversivos que haviam
Filipenses reflete "o senso de íntima comunhão de Paulo com seus
encontrado guarida noutras igrejas da Galácia, e tampouco a libertinagem
amigos filipenses"; a expressão dele é "incomumente fervorosa"
à margem da ética, que era defendido por alguns membros da igreja de
(0'Brien, p. 19). Como em outras passagens, a ação de graças de Paulo
Corinto.
está interligada a uma oração.
1:5 / O que desperta alegria da ação de graças em Paulo, de modo
1:3 / A forma verbal no indicativo dou graças também é usada no
particular aqui, é a enérgica disposição com que os crentes filipenses
agradecimento introdutório de Romanos 1:8; 1 Coríntios 1:4; 2 Timóteo
haviam cooperado com o apóstolo no evangelho, desde que ele visitara
1:3 e Filemom 4. No plural: "graças damos", em Colossenses 1:3 e 1
a cidade pela primeira vez. Enquanto Paulo estivera ali vários irmãos
Tessalonicenses 1:2. Temos :"sempre devemos, irmãos, dar graças" em
"trabalharam comigo no evangelho" (4:3) e, após sua partida, prossegui-
2 Tessalonicenses 1:3. Em 2 Coríntios 1:3, em Efésios 1:3, como também
ram no testemunho ativo. Oravam por ele com regularidade (v.19);
em 1 Pedro 1:3 encontramos a forma mais litúrgica "Bendito seja o Deus
mantinham contato com ele através de mensageiros como Epafrodito
e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo." Basta pensar em seus amigos
(2:25-30); enviavam-lhe ofertas, sempre que havia oportunidade — na
cristãos em Filipos e outras cidades, e Paulo já encontra motivo para dar
verdade, uma das razões para o envio dessa carta era agradecer-lhes a
graças a Deus.
ic-messa de uma oferta, pela mão de Epafrodito; aqui, Paulo antecipa de
1:4 O preâmbulo gratulatório de Paulo está repetidamente ligado à modo breve seu agradecimento mais elaborado de 4:10-20.
certeza de suas constantes orações pelos amigos a quem escreve (cf. Eles haviam participado com generosidade na arrecadação de fundos
Romanos 1:9; Efésios 1:16; 1 Tessalonicenses 1:2; 2 Timóteo 1:3; para socorro dos famintos de Jerusalém, campanha que o apóstolo
Filemom 4). Têm-se a impressão de que o apóstolo não conseguia pensar i >i ganizara em sua missão evangelística entre os gentios, nos anos finais
nos amigos sem orar por eles, contudo ele intercedia principalmente > Ir seu ministério na costa do Egeu. Em 2 Coríntios 8:1-5 faz um caloroso
como indivíduos e também como igreja, com regularidade e dentro de rlogio da liberal doação feita pelas igrejas macedônicas (dentre as quais
um programa estabelecido. figura a igreja filipense).
Não podemos ter certeza quanto às palavras em todas as minhas O fato de que a cooperação dessa igreja, no evangelho, havia prosse-
orações, súplicas por todos vós, se elas estão intimamente ligadas ao Hilido sem interrupção até agora, sugere que nada havia acontecido no
período seguinte (como acontece na NIV) ou se com o período prece- •irio da comunidade filipense que causasse preocupação séria a Paulo.
dente: Dou graças ao meu Deus, sendo que neste caso estariam em
conexão paralela com todas as vezes que me lembro de vós. 1:6 / A ardente participação deles no ministério evangélico de Paulo
55
54 (Filipenses 1:15-17) (Filipenses 1:15-17)

era um sinal seguro da obra da graça, que começava a operar em suas Introductory Thanksgivings in the Letters ofPaul. Tais ações de graças têm sido
identificadas em cartas escritas em papiro no mesmo período genérico: "Paulo
vidas quando, de início, creram na mensagem salvadora. Paulo externa estava, portanto, aderindo ao belo costume secular, quando com tanta freqüência
sua convicção de que aquele que em vós começou a boa obra a iniciava suas cartas dando graças a Deus" (A. Deissmann, Lightfrom the Ancient
aperfeiçoará (cf. 2:13) até chegar à consumação, na vinda de Cristo. De East, p.181, no. 5).
modo semelhante, em 1 Tessalonicenses 5:24, depois de orar para que O verbo aqui é eucharisteo (como em Romanos 1:8; 1 Coríntios 1:4; Filemom
seus leitores sejam "conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso 4); cf. eucharistoumen em Colossenses 1:3; 1 Tessalonicenses 1:2; eucharistein
opheilomen em 2 Tessalonicenses 1:3; charin echo em 2 Timóteo 1:3; eulogetos
Senhor Jesus Cristo", Paulo e seus companheiros afirmam: "Fiel é o que ho theos em 2 Coríntios 1:3; Efésios 1:3.
vos chama, o qual também o fará." A salvação é obra de Deus do princípio As palavras todas as vezes que me lembro de vós (gr. epi pase te mneia
ao fim; portanto, onde ela começou, certamente se completará. hymon) poderiam ser traduzidas assim: "todas as vezes que vós lembrais de
O dia de Cristo Jesus, chamado "o dia de Cristo" no v. 10, e em 2:16, mim" (se hymon para genitivo subjetivo, e não objetivo); cf. Moffatt: "por todas
é o dia da vinda de Cristo em glória, que aguardamos (cf. 3:20). A as lembranças que fazeis de mim." P. T. 0'Brien acha que "é melhor entender
a frase como referindo-se ao fato dos filipenses se lembrarem de Paulo ao
expressão foi tirada do AT: "dia do Senhor" — o dia em que Iavé, o Deus sustentá-lo financeiramente em várias ocasiões, antes" (Introductory Thanksgi-
de Israel, reivindicaria sua justiça, eliminando toda injustiça, onde quer vings, p. 23). Se isto for verdade, Paulo estaria mencionando três razões para
que fosse encontrada, em primeiro lugar e principalmente entre seu povo dar graças: o fato de eles se lembrarem do apóstolo, a participação contínua
(cf. Amós 5:18-20). Agora, todavia, por ordenação divina, "Jesus Cristo deles na obra do evangelho (v. 5), e a confiança de Paulo em que a boa obra será
integralmente realizada (v. 6).
é Senhor" no sentido mais augusto dessa palavra (2:11); o dia do Senhor
Por outro lado, em todas as demais passagens em que Paulo usa as
é, portanto, o dia de Cristo Jesus. Num contexto cristão é o dia em que
palavras "lembrar-se" (mneia), em seus agradecimentos iniciais, é ele
a vida e obra do povo de Cristo serão avaliadas. "A obra de cada um se
quem se lembra de seus leitores (Romanos 1:9; Efésios 1:16; 1 Tessalo-
manifestará, porque o dia a demonstrará" (1 Coríntios 3:13); portanto, o
nicenses 1:2; 2 Timóteo 1:3; Filemom 4). A palavra mneia aparece uma
julgamento final deverá esperar o Senhor, "até que venha", e não deve
única vez, noutra passagem, nas cartas de Paulo, significando na verdade
ser antecipado por aqueles cujo conhecimento dos motivos e circunstân-
que seus leitores se lembram dele; não se trata, todavia, de agradecimento
cias pessoais dos outros é, pelo menos, imperfeito (1 Coríntios 4:5). introdutório (1 Tessalonicenses 3:6).
Acima de tudo, o dia de Cristo Jesus é o dia em que a salvação dos 1:5 / A frase pela vossa cooperação (koinonia é tradução literal. Significa
crentes, já principiada, será consumada. De maneira semelhante a seus "participação" ativa da parte dos filipenses no ministério evangélico de Paulo,
irmãos e irmãs de Tessalônica, os crentes de Filipos haviam aprendido estando, portanto, correta. Entretanto, H. Seesemann, Der Begrijf Koinonia im
algo: "... e aguardardes dos céus a seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre Neuen Testament, pp. 73s., 79, defende um sentido mais passivo para a partici-
os mortos" (1 Tessalonicenses 1:10), e a regozijar-se na "esperança da pação dos crentes nas bênçãos salvíficas do evangelho: vossa cooperação no
evangelho seria, assim, um rodeio de palavras para o significado de "vossa fé."
salvação", porque haviam sido escolhidos não para receber a retribuição
divina, que recairá sobre os iníquos, no final dos tempos, mas para
"alcançar a salvação, por nosso Senhor Jesus Cristo" (1 Tessalonicenses
5:8,9). Portanto, para os crentes esse será um dia de luz e não de escuridão
(em contraste com a advertência de Amós 5:20, de que para alguns esse
dia trará "trevas, e não luz").

Notas Adicionais 2
1:3 / Quanto a agradecimentos iniciais nas cartas de Paulo, consultem-se P.
Schubert, Form and Function of the Pauline Thanksgivingse, P. T. 0'Brien,
99
(Filipenses 2:17-8a)
tanto, os termos que Paulo usa ao dirigir-se aos filipenses "demonstram
3. Interlúdio (Filipenses 1:7-8)
uma profundidade sem precedentes" (0'Brien, p. 29). Paulo anseia pelos
filipenses na terna misericórdia de Cristo Jesus — eis um amor
totalmente desinteressado. "Não é Paulo, mas Jesus Cristo, quem vive
Estas palavras pessoais com que Paulo se dirige aos filipenses de modo em Paulo, de modo que não é mediante o coração de Paulo, mas pelo de
direto afirmam sua profunda afeição por eles, e representam também uma Jesus Cristo, que Paulo age" (Bengel, ad loc.).
transição entre a ação de graças dos versículos 3-6 e a intercessão dos Fica enfatizada a união da igreja filipense em seu relacionamento com
versículos 9-11. Paulo; todos cooperavam no ministério paulino e todos participavam da
afeição cordial do apóstolo.
1:7 / Os filipenses demostraram tão grande comunhão com Paulo que
se tornou "muito natural" (Moffatt) que o apóstolo sentisse por eles o Notas Adicionais 3
que sentia. A graça do ministério apostólico havia sido concedida por
1:7 / Porque vos retenho em meu coração (gr. dia to echein me en te kardia
Deus a Paulo (cf. Romanos 1:5), mas ele se regozija quando seus
hymas poderia ser traduzido igualmente por "vós me tendes em vosso coração"
convertidos tornam-se participantes a seu lado. A "cooperação" deles (cf. NEB: "porque vós me retendes em grande afeição"). As duas traduções
no testemunho do evangelho significava muito para Paulo, quando o encaixam-se bem no contexto; é possível que a ordem das palavras favoreça a
apóstolo estava livre para ir aonde bem entendia; e significava muito mais primeira tradução.
para ele, agora nas minhas prisões. Não se deve inferir, da tradução da A graça (gr. charis) concedida a Paulo é mencionada outra vez em
ECA, que as oportunidades de Paulo na defesa e confirmação do 1 Coríntios 15:10; Gálatas 2:9; Efésios 3:7, 8, 9 ("esta graça me foi dada a fim
evangelho eram maiores quando ele estava em liberdade do que agora, de que eu pregasse aos gentios as riquezas insondáveis de Cristo, e tornasse clara
a todos a administração deste mistério").
em situação restritiva. Paulo havia entendido que os interesses do evan-
As palavras defesa e conformação do evangelho (gr. en te apologia kai
gelho exigiam que ele estivesse exatamente onde estava no momento: bebaiosei tou euangeliou) podem ter conotações jurídicas, tendo em vista o
em prisão domiciliar. Sabia que estava no posto de serviço determinado esperado comparecimento de Paulo perante os tribunais.
por Deus "para defesa do evangelho" (v. 16), e aguardava a rara oportu- 1:8/A frase saudades que tenho de todos vós é tradução do verbo epipotheo,
nidade de defesa e confirmação do evangelho diante das altas autori- que Paulo usa repetidamente quando sente saudades de seus amigos, a quem
dades e magistrados civis, quando seu caso viesse a julgamento, em quer ver: como em Romanos 1:11, 1 Tessalonicenses 3:6, 2 Timóteo 1:4; o
breve. Enquanto ele estivesse no lugar que Deus lhe determinara, o substantivo epipothia é usado de maneira semelhante em Romanos 15:23; cf.
ministério que recebera haveria de prosperar. Esta certeza foi fortalecida Filipenses 2:26 a respeito de Epafrodito ter anseios de rever seus amigos
filipenses; 2 Coríntios 5:2 sobre os crentes que "gememos, desejando ser
em Paulo pela firmeza com que seus amigos filipenses demonstraram ser revestidos da nossa habitação, que é do céu". Todavia aqui a palavra é usada
seus cooperadores em sua prisão e em seu contínuo testemunho evangé- sem um infinitivo dependente, referindo-se ao anseio afetuoso de Paulo por seus
lico. amigos: conforme ocorre em 2 Coríntios 9:14, a respeito do profundo amor que,
assim espera Paulo, a igreja de Jerusalém nutrirá pelos seus convertidos gentí-
1:8 / Em momentos de emoção intensa, Paulo tendia a invocar a Deus licos, ao receberem o dom de Deus; também 2 Coríntios 7:7, 11, em que o
como sua testemunha (Deus me é testemunha; cf. Romanos 1:9; 2 substantivo epipothesis é utilizado com respeito ao afeto dos crentes coríntios
Coríntios 11:11, 31; 1 Tessalonicenses 2:5). Aqui, a emoção é uma por Paulo). Consultem-se C. Spicq, "Epipothein. Désirer ou chérir ?"
profunda afeição. Chamar a Deus como testemunha não é indicação de RB 64 (1957), pp. 184-95; Notes de Lexicographie Néo-Testamentaire,
que alguns filipenses precisavam ter bastante certeza da afeição paulina; 1 (Fribourg: Editions Universitaires, 1978), pp. 277-79.
Na terna misericórdia de Cristo Jesus, lit., "nas entranhas de Cristo Jesus".
Paulo nunca se mostra reticente ao falar de seu amor pelos seus conver-
Entranhas (gr. splanchna é termo usado com freqüência significando centro das
tidos (cf. 2 Coríntios 12:15; Gálatas 4:19; 1 Tessalonicenses 2:8). Entre- emoções (como "coração" no v. 7); cf. Filipenses 2:1.
99
(Filipenses 2:17-9a)
prejudicial contra o qual os filipenses são alertados no capítulo 3.
4. Oração Intercessória (Filipenses 1:9-11)
1:10 / Quando tantas formas competitivas de doutrinas e de modos de
viver se apresentam à escolha dos crentes (como com certeza seria o caso
no mundo mediterrâneo oriental, no primeiro século), o pleno conhecimen-
A ação de graças introdutória, que inclui em si um elemento de to e toda percepção capacitarão os crentes a discernir as coisas excelentes
oração, é seguida agora por uma oração intercessória (falando-se de (quanto a esta expressão, cf. Romanos 2:18). Pode significar "saber o que é
modo exato, é uma oração com "jeito" de relatório). O assunto abran- bom ou excelente" contrastando com "sutilezas e especulações vazias"
gente desta oração é idêntico ao da carta, como um todo; na oração (Calvino, ad loc.) ou como sugere a tradução de ECA discernir as coisas
concentram-se os principais interesses que Paulo explica de forma mais excelentes, "as melhores dentre as boas" (Bengel, ad loc.). Ambos os tipos
minuciosa ao longo da carta. de discriminação são necessários. Esse discernimento advém mediante
experiência amadurecida. Um texto clássico sobre o assunto no NT é
1:9 / E esta é a minha oração: que se encaixa com "fazendo...
Hebreus 5:14, que faz referência às pessoas espiritualmente amadureci-
súplicas" no versículo 4 (embora aqui o apóstolo use uma palavra
das que "pela prática, têm as faculdades exercitadas para discernir tanto
diferente), pode significar "estou orando neste momento" (o que sem
o bem como o mal." Sem esta faculdade discriminatória a pessoa não
dúvida era expressão da verdade, em qualquer caso) ou opção mais
consegue desenvolver "o senso daquilo que é vital" (Moffatt). E o efeito,
provável "eu oro por vós com regularidade, e é por isto que estou
não de um processo lógico de filosofia moral, mas de percepção crescente
orando: que o vosso amor aumente mais e mais. Para Paulo, "o
do caráter e da vontade de Deus.
fruto do Espírito é o amor", acima de tudo, na vida das pessoas de quem
o Santo Espírito toma posse (Gálatas 5:22); "o amor de Deus está E importante, diante do dia de Cristo, o dia da avaliação e recompensa
derramado em nossos corações pelo Espírito Santo" (Romanos 5:5). Se de seu povo (cf. v. 6), que os crentes sejam sinceros e inculpáveis. Os
esse amor aumentar entre os filipenses, lhes removerá as ameaças contra cristãos não poderão ser sinceros e inculpáveis se não viverem aqui e
a unidade de coração e propósito, que surgem por ocasião de eventuais agora vidas sinceras e inculpáveis. Portanto, a escolha das coisas exce-
choques de personalidade e temperamento. Paulo retorna ao assunto em lentes, das melhores coisas, inclui a escolha importantíssima daquilo que
2:2, onde o apóstolo incita seus leitores: "completai o meu gozo... tendo é eticamente o melhor. De modo semelhante, a oração de 1 Tessaloni-
o mesmo amor". censes 5:23 para que Deus possa guardar seus filhos "plenamente con-
Este amor, assim espera Paulo, se fará acompanhar de pleno conhe- servados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo" exige
cimento e toda percepção. Paulo não estava cego aos perigos das que o Senhor os "santifique completamente" hoje.
emoções não controladas pela razão. Estava resolvido, por sua própria
1:11 / O fruto da justiça que Paulo deseja ver reproduzido na vida
conta, a orar e cantar "com o espírito, mas também... com o entendi-
dos filipenses é, essencialmente, idêntico àquelas graças que, de acordo
mento" (1 Coríntios 14:15); o apóstolo estava preocupado, desejando
com Gálatas 5:22, 23, compõem o "fruto (ou 'colheita') do Espírito."
que ele e seus convertidos pudessem amar tanto no espírito quanto no
Tais qualidades são o produto espontâneo da nova vida implantada dentro
entendimento.
dos crentes, vida baseada na "justiça que vem de Deus pela fé" (3:9). É
É o amor que proporciona o crescimento do verdadeiro conhecimento e
por causa da união dos crentes com Deus, pela fé, que eles mostrarão o
toda percepção, ou discernimento espiritual. O "conhecimento" divorciado
fruto da justiça, o qual vem por meio de Jesus Cristo; este fruto se
do amor "incha" (provoca orgulho), enquanto "o amor edifica" (1 Coríntios
manifestou com perfeição em seu próprio caráter e obra. Não existe lugar
8:1). Entretanto, se o amor é indispensável, o pleno conhecimento e toda
para autocongratulações, aqui.
percepção são necessários. A verdade do evangelho pode ser subvertida,
quando a ignorância e o julgamento deficiente provêm apoio para o ensino E em vidas assim que Deus é glorificado. As palavras para glória e louvor
54 (Filipenses 1:15-17) (Filipenses 1:15-17) 55

de Deus fazem parte da sentença, mas ao mesmo tempo servem ao propósito de lugar, aqui, embora J.-F. Collange (ad loc.) julgue tal idéia "de caráter
suficientemente surpreendente para ser original" (ele compara "louvor" num con-
de uma doxologia, concluindo o trecho de ações de graças e oração. texto escatológico semelhante, em 1 Coríntios 4:5).
Notas Adicionais 4
1:9 / Quanto às orações intercessórias nas cartas de Paulo, veja-se G. P. Wiles,
Paul's Intercessory Prayers.
Minha oração: gr. proseuchomai, enquanto no versículo 4 é usado o subs-
tantivo deesis. A palavra proseuchomai (que vem do substantivo proseuche)
expressa o sentido mais generalizado de oração; deesis (com o verbo deomai)
denota o elemento de petição da oração. Veja-se 4:6.
Conhecimento é a tradução do gr. epignosis (cognato de gnosis), usado no
NT apenas para conhecimento moral e religioso. A GNB adiciona o adjetivo
"verdadeiro" que, provavelmente, tem a intenção de comunicar a força do
prefixo epi-; "o cognato epignosis tornou-se um termo técnico para designar o
conhecimento decisivo de Deus, que fica implícito na conversão à fé cristã (R.
Bultman, TDNT1, p. 707, s.v. ginosko, etc.).
Toda percepção é a tradução do gr. aisthesis ("percepção"), que não se acha
em nenhuma outra passagem do NT. Denota aqui percepção moral; cf. aisthe-
teria ("órgãos dos sentidos") em Hebreus 5:14, para faculdades morais treinadas
"para discernir tanto o bem como o mal."
1:10. Sinceros é a tradução do gr. eilikrines ("não-misturado" e, portanto,
puro, sincero), aqui como em 2 Pedro 3:1 no sentido moral (cf. o substantivo
eilikrineia em 1 Coríntios 5:8; 2 Coríntios 1:12; 2:17). O adjetivo traduzido por
inculpáveis é aproskopos, e pode ter força intransitiva ("que não tropeça")
ou transitiva ("que não causa tropeços a outrem"), sendo a referência em
ambos os casos de ordem ética. É provável que a força seja intransitiva, aqui;
em 1 Coríntios 10:32 é transitiva (diz a NIV: "não sejais causa de alguém
tropeçar"). A outra (e única) ocorrência desse adjetivo no NT está em Atos
24:16, onde se aplica à "consciência sem ofensa" de Paulo.
1:11 / Quanto a fruto ou colheita, usado em sentido ético cf. Provérbios
11:30; Amós 6:12; Efésios 5:9; Hebreus 12:11; Tiago 3:18. Aqui, fruto ou
colheita de justiça (gr. karpos dikaiosynes poderia bem ser o fruto que consiste
em justiça (dikaiosynes sendo tomado como genitivo de definição), porém, é
mais do que isso, de acordo com a analogia de expressões similares, e com o
próprio pensamento paulino que o entende como o fruto que provém do dom da
justiça, ou da justificação que Deus, mediante sua graça, concede aos crentes.
Enquanto o adjetivo cheios (gr. pepleromenoi comumente é usado como passi-
vo, é muito possível tomá-lo como estando no tempo gerúndio, como na NEB:
"Colhendo a safra total da justiça" (cf. G. B. Caird, ad loc.).
Há uma variante curiosa, no final do versículo 11, onde em vez de para glória
e louvor de Deus os manuscritos FG ocidentais (com Ambrosiaster) trazem:
"para minha glória e meu louvor." O possessivo deve ser entendido no sentido
de 2:16 ("para que no dia de Cristo possa gloriar-me"); ainda assim, está fora
99
(Filipenses 2:17-25a)

5. Situação Atual de Paulo (Filipenses 1:12-14) de entender que Paulo estava na prisão pelo fato de ser um cristão.
A guarda pretoriana é, literalmente, o "praetorium", isto é, a guarda
pessoal do imperador. A palavra "praetorium" tem vários significados,
dependendo do contexto (cf. Marcos 15:16 par. Mateus 27:27 e João
Os crentes de Filipos estavam profundamente preocupados com Pau- 18:28ss., quanto ao pretório em Jerusalém; Atos 23:35, quanto ao pretó-
lo. Nutriam caloroso afeto por ele; sabiam que estava preso agora, rio em Cesaréia); contudo, como temos argumentado na introdução, o
aguardando o julgamento, e que seu caso deveria subir logo perante o sentido mais provável aqui é a guarda pretoriana de Roma. Havendo
supremo tribunal do império. Como estaria Paulo nesse momento? E qual apelado ao imperador, Paulo se tornara prisioneiro do imperador (embora
seria a decisão judicial, após o julgamento? E além de tudo, de que preferisse julgar-se "prisioneiro de Cristo Jesus"), e enquanto esperava
maneira essa decisão e os fatos precedentes contribuíram para maior
julgamento foi-lhe "permitido morar à parte, com o soldado que o
avanço do evangelho por todo o mundo romano?
guardava" (Atos 28:16). Era natural que o soldado (substituído por um
Paulo sabe o que há na mente dos filipenses, e por isso deseja
companheiro a cada quatro horas, mais ou menos) pertencesse à guarda
tranqüilizá-los, transmitir-lhes um pouco da confiança que lhe enche o
imperial. Seria de esperar-se, portanto, que as notícias concernentes a
coração enquanto contempla sua própria situação.
esse prisioneiro extraordinário se espalhassem por todo o quartel preto-
1:12. O fato do apóstolo aos gentios estar em cadeias poderia muito riano.
bem ser considerado um golpe contra o avanço do evangelho que Paulo Além dos soldados, havia outras pessoas (todos os demais) que
fora chamado para pregar. Todavia, não era assim: fosse qual fosse a estavam interessadas em Paulo — de modo especial os oficiais encarre-
situação de Paulo, a palavra de Deus não estava presa (cf. 2 Timóteo 2:9). gados de preparar o processo para exposição perante o imperador. Paulo
Na verdade, a presença de Paulo em Roma como prisioneiro, aguardando não afirma haver convertido este ou aquele grupo, mas sente-se animado,
julgamento, havia contribuído para maior avanço do evangelho. Tra- porque dessa maneira o evangelho tornou-se motivo de conversação na
tava-se de um prisioneiro famoso, um cidadão romano que exercia sua capital, no coração do império.
prerrogativa, a de ter seu caso exposto perante o imperador; e Paulo fez
questão de fazer que todos quantos entrassem em contato com ele 1:14 / Não foi só isso: esses fatos reanimaram os cristãos romanos.
ficassem sabendo que sua prisão domiciliar se devia à pregação do Quando Paulo chegou a Roma como prisioneiro, por causa do evangelho,
evangelho, e não a alguma atividade política subversiva, nem a conduta
alguns deles talvez houvessem perguntado se haveria segurança para os
criminosa.
(|ue professassem a mesma fé de Paulo. De acordo com Lucas, os líderes
(Ia comunidade judaica em Roma decidiram que seria melhor não se
1:13 / Toda a guarda pretoriana, diz Paulo, e todos os demais de
alguma forma relacionados com o meu caso conhecem as minhas lelacionar com Paulo, nem se intrometer em seu caso (Atos 28:21).
cadeias, em Cristo. Temos aqui mais um exemplo do uso "incorporati- I ntretanto, quando o evangelho tornou-se assunto de conversa por causa
vo" da frase "em Cristo" (veja acima no versículo 1). Não se trata apenas da presença de Paulo na cidade, os crentes aproveitaram a ocasião e
do fato de Paulo ser um "escravo de Cristo", e por isso estar preso, como começaram a dar seu testemunho público com maior confiança e vigor.
traz a GNB; isso é verdade mas, perante seus olhos, faz parte de sua vida Quando Paulo diz que isso é verdade a respeito de muitos dos irmãos
em Cristo, a quem está unido pela fé; é, de modo especial, parte de seu no Senhor, ele não está querendo dizer que uma minoria recusou-se a
compartilhamento nos sofrimentos de Cristo (cf. 3:10). É claro que os .iproveitar a oportunidade para evangelizar; diz ele que tantos crentes
membros da guarda pretoriana e todos os demais a quem Paulo se evangelizaram, que essa ação caracterizou a igreja de Roma como um
refere não viam as coisas de seu ponto de vista, porém não podiam deixar lodo. Nada poderia dar maior alegria ao apóstolo.
136
(Filipenses 3:15-12)

6. Várias Razões para o Testemunho do Evangelho


Notas Adicionais 5 (Filipenses 1:15-17)
1:12 / Quero, irmãos, que saibais é expressão chamada de "fórmula reve-
ladora", por J. L. White, The Form and Function ofthe Body ofthe Greek Letter,
pp. 2-5, etc.; traz o autor muitos exemplos do uso dessa fórmula, que marca a
transição de um agradecimento preambular para o corpo da carta. Cf. também Dibelius deu o título de "dissertação" (ad loc.) a este parágrafo; Paulo
J. T. Sanders, "The Transition from Opening Epistolary Thanksgiving to Body acrescenta ao que já disse, que nem todos os que aproveitaram a oportu-
in Letters of the Pauline Corpus," JBLSl (1962), pp.348-62. É comum Paulo nidade para testemunhar do evangelho foram motivados por sentimentos
redigir a fórmula de modo negativo: "Não quero, porém, irmãos, que ignoreis" igualmente dignos. Pelo menos a oportunidade foi aproveitada e isso é
(Romanos 1:13, etc.).
1:14 / A frase no Senhor, que alguns associam a mais confiadamente, sem causa de satisfação.
temor (é o caso de J. B. Lightfoot, ad loc.), deve associar-se a irmãos, "irmãos
no Senhor", que são os "irmãos cristãos" (cf. C. F. D. Moule, IBNTG, p. 108). 1:15 / Nem todos os crentes romanos que estavam pregando o evan-
Talvez haja alguma nuance de diferença no significado de no Senhor e "em gelho tão ativamente possuíam o mesmo espírito de comunhão com
Cristo"; "a pessoa se torna no Senhor quando já está em Cristo" (M. Bouttier, Paulo. As casas-igrejas da cidade representavam uma grande variedade
In Christ, pp. 54-61; cf. C. F. D. Moule, The Origin ofChristology, p. 59: "o de perspectivas cristãs. Havia tanto cristãos judeus como gentios. Alguns
que você é, já é 'em Cristo'e o que vai tomar-se é 'no Senhor'"). deles (em ambos os grupos) nutriam simpatias por Paulo e suas práticas;
Falar a palavra de Deus: embora o genitivo "de Deus" esteja ausente de
P 4 6 (a maioria dos testemunhos posteriores), é muito forte a certeza quanto ao havia os que partilhavam as mesmas suspeitas de outros adversários
sentido. judeus, noutras cidades; havia outros de tendência gnóstica que conside-
ravam a teologia paulina, o evangelho que ele pregava, como sendo algo
curiosamente imaturo no qual faltava luz. E havia outros ainda, sem dúvida,
que não tinham certeza quanto a que atitude tomar em relação a Paulo.
Entretanto, parece que aqui o apóstolo tem em mente pessoas que pregam
o evangelho genuíno, independentemente da motivação por que pregam.
Por que alguns haveriam de pregar o evangelho de Cristo por inveja
e porfía? Talvez sentissem inveja das realizações de Paulo, que levou o
evangelho a tantas províncias, em tão curto tempo, e julgassem que
poderiam ultrapassá-lo agora que o apóstolo estava encarcerado. Talvez
se considerassem seguidores de algum outro líder, perante quem (a seus
próprios olhos) Paulo era mero rival; agora que Paulo já não estava livre
para movimentar-se por onde bem entendesse, o líder deles conseguiria
maior progresso. Haveria já um partido pró "Cefas" em Roma, como
tinha havido alguns antigamente em Corinto (1 Coríntios 1:12)?
Todavia, os crentes que pregavam o evangelho de boa mente, alegra-
vam-se ao pensar, enquanto trabalhavam, que partilhavam do ministério
de Paulo; o apóstolo lhes elogiou o mesmo espírito de participação com
o qual elogiava também aos crentes filipenses.

1:16 / Paulo amplifica suas referências aos dois tipos de pregadores


54 (Filipenses 1:15-17) (Filipenses 1:15-17) 55
usando um tipo de quiasmo. Ele critica, primeiro (no versículo 16), os
que pregavam de boa mente (que foram mencionados por último no Notas Adicionais 6
versículo 15) e, em seguida (no versículo 17), critica os que pregavam
por inveja e porfia, (que foram mencionados primeiro no versículo 15). 1:15 / W. Schmithals nos apresenta o argumento bastante fora do comum de
que "as observações nos w. 15-17 só são significativas e pertinentes" se se
Os que pregavam de boa mente foram motivados por amor a Paulo.
referirem a grupos de pessoas de Filipos, "porque se se referissem ao local em
Reconheciam que Deus havia enviado o apóstolo a Roma exatamente que Paulo estava encarcerado teriam sido tão enigmáticas para os filipenses
com esse propósito — para defesa do evangelho. Como no versículo 7, como são para nós" (Paul and the Gnostics, p. 75). Paulo aqui está dando
provavelmente ele tem em mente a oportunidade que em breve se lhe informações aos filipenses sobre seus próprios atos, informações que eles não
apresentará de defender o evangelho perante o tribunal de César: é por possuíam; e o apóstolo deixa implícito por toda a carta que a igreja filipense,
isto, diz ele, que fui colocado aqui em Roma. Se Paulo, a despeito de suas como um todo, apoiava sua obra missionária.
restrições, estava promovendo os interesses do evangelho, aqueles cren- T. W. Manson afirma que a referência aqui se liga ao sectarismo existente na
igreja de Corinto; acredita Manson que Paulo havia deixado Corinto há pouco
tes de boa mente não poderiam fazer menos: deviam desempenhar seu
tempo, mas mantinha correspondência com esta igreja (Studies in the Gospels
papel ao lado do apóstolo. and Epistles, pp. 161s.). T. Hawthorn argumentou que a distinção se faz entre
1:17 / Mas, que se dirá daqueles cuja pregação não se originava de os que pregam num espírito de antagonismo apocalíptico contra o estado e
aqueles que, em sua pregação, manifestam a mesma atitude de boa mente como
motivos sinceros, mas de um espírito de contenda, não sinceramente?
é o caso de Paulo em Romanos 13:1-7; aqueles com toda certeza pregam,
É evidente que sentiam ciúmes do desempenho e prestígio de Paulo, julgando suscitar aflição às minhas cadeias ("Filipenses 1:12-19 com refe-
como pregador do evangelho. Fosse o que fosse que Paulo fizesse, eles rência especial aos vv. 15, 16 e 17." ExpT62 [1950-51], pp. 316s.).
conseguiriam fazer melhor; estavam dispostos a provar que não ficariam 1:16 / O quiasmo fica anulado na maioria dos manuscritos posteriores que,
atrás de Paulo em nenhuma realização, em nenhum aspecto. Eles julga- (acompanhando D1 Psi) invertem a ordem dos vv. 16 e 17 (cf. KJV).
vam (e esperavam) que as notícias a respeito do que estavam fazendo 1:17 / Não sinceramente (gr. ouch hagnos) é ligado por J.-F. Collange (ad
haveriam de encher Paulo de desgosto e frustração. Já era humilhante loc.) a julgando (oiomenoi: "o julgamento deles não é puro..., i.é., não está
isento de motivos ulteriores." A paráfrase de ouch hagnos é boa, porém iria
para Paulo estar privado de sua liberdade: seria mais humilhante ainda o
melhor com anunciam a Cristo (cf. NIV: "aqueles pregam a Cristo... por
apóstolo ficar sabendo que aquelas pessoas que não lhe queriam bem motivos falsos").
estavam progredindo na apresentação do evangelho. Por contenda, não sinceramente (Gr. ex eritheias, em antítese a ex agapes,
Se alguém julga difícil acreditar que alguns seguidores de Jesus Cristo por amor, no v. 16). Quanto a eritheia, cf. 2:3. Essa palavra originalmente
poderiam de fato encontrar satisfação em esfregar sal nas feridas de Paulo significava fazer alguma coisa por interesses materiais, ou por salário, e veio a
é porque tal pessoa não consegue entender como a personalidade do denotar a atitude mercenária; no NT sempre é usada no mau sentido, denotando
apóstolo era controvertida até mesmo nos meios cristãos, e como era espírito sectário e a contenda adveniente. R. Jewett liga as pessoas a que Paulo
se refere aqui com aquelas descritas em 2:21, como estando interessadas apenas
profunda e amarga a oposição atirada por alguns, devido a interpretação
em seus próprios interesses; julga ele que se trata de missionários que manti-
dada por Paulo ao evangelho, e em virtude de suas práticas missionárias. nham o "homem divino" (theios aner como um ideal, e achavam que o
Porém, se pensaram que Paulo ficaria perturbado, ou ressentido, é que espetáculo humilhante de Paulo na prisão jogou por terra esse ideal e compro-
não conheciam este homem. Se fossem muito bem sucedidos na propa- meteu a missão deles ("Conflicting Movements in the Early Church as Reflected
gação do evangelho, isso seria o maior bem aos olhos de Paulo. O maior in Philippians," NovT 12 [1970], pp. 362-90).
interesse de Paulo era que a mensagem salvadora, "que a palavra do Julgando suscitar aflição às minhas cadeias. Quanto à suscitar (gr. egei-
Senhor se propague e seja glorificada" (2 Tessalonicenses 3:1). O após- rein conforme as principais testemunhas alexandrinas e 'ocidentais') a maioria
dos manuscritos posteriores com D2 Psi trazem "adicionar" (epipherein; diz a
tolo sabia encarar atitudes inamistosas com indiferença tranqüila: que
KJV: "supondo que estariam acrescentando aflições às minhas cadeias." ECA
importava a inimizade, se Cristo estava sendo pregado? 6 preferível.
99
(Filipenses 2:17-28a)

• Ir que Cristo está continuamente sendo anunciado, mas também por


/. Vida ou Morte? (Filipenses 1:18-26) Iodas as circunstâncias e situações.

1:19 / Paulo vê a mão de Deus manifestando-se em tantas obras, na


riit uação que ele acaba de descrever, que não resta a menor dúvida quanto
Paulo contempla a morte ou a absolvição como decisão final de seu
ii ser aquele o lugar em que Deus quis que ele estivesse, para o cumpri-
processo pendente, com perfeita equanimidade. Sua preferência pessoal
mento de sua comissão apostólica. Tendo tal confiança, ele pode aplicar à
seria partir desta vida e estar com Cristo, mas ele sabe que é mais
sua própria situação atual as palavras de Jó 13:16: "também isso será a minha
importante, por amor a seus amigos, que seja poupado e permaneça com
salvação." Quando afirma que o presente estado de coisas lhe resultará em
eles mais um pouco.
salvação, Paulo não está pensando principalmente na libertação imediata,
1:18 / A reação de Paulo contra os que lhe suscitavam dificuldades é no livramento da guarda pretoriana (cf. GNB) mas, (à semelhança de Jó) na
muitíssimo diferente do anátema que ele invocou sobre aqueles agitado- sua reivindicação da corte celestial, em sua salvação eterna. Esta lhe é
res, vários anos antes, que haviam invadido as igrejas da Galácia e garantida, quer ele receba um veredicto favorável, quer desfavorável, do
ensinavam a seus neo-convertidos "outro evangelho", diferente daquele tribunal de César (cf. a confiança expressa em 2 Timóteo 4:8, segundo a
que haviam ouvido da parte dele mesmo. É verdade que seus inimigos, sentença judicial do "Senhor, reto Juiz").
que lhe desejavam o mal em Roma, não se intrometiam na esfera Torna-se claro, na verdade, pelas palavras que se seguem, que "o
missionária ministerial, que não lhes dizia respeito, não havendo a destino último [de Paulo] está intimamente ligado ao seu dilema atual"
mínima pista quanto a algum defeito ou elemento subversivo na pregação (R. W. Funk, em Farmer et al., eds., p.262). Ele está certo de que o bem
deles. Quaisquer que fossem os motivos deles — quer as atividades deles estar espiritual dos filipenses depende de que ele sobreviva em seu corpo
(por um lado) fossem uma capa acobertadora de suas ambições, quer mortal; ele sabe que permanecerá na terra a fim de prosseguir em sua
fossem uma forma de diminuir o prestígio de Paulo, ou ainda (por outro obra frutífera. A súplica de seus amigos filipenses contribuirá para isso,
lado), fossem o fruto de um desejo puro de divulgar o evangelho da juntamente com o socorro do Espírito de Jesus Cristo. Esta é, contudo,
salvação — o fato de primordial importância era que Cristo estava sendo uma expressão de confiança, não a afirmação de algo que ele recebeu
pregado (2 Coríntios 11:4). Ainda assim, Paulo tem uma expressão doce: mediante revelação, ou outro meio. Na verdade, Paulo não recebeu
demonstra mais da "mansidão e benignidade de Cristo" do que pudera nenhuma revelação quanto ao resultado desse processo judicial.
demonstrar, quando invocou essas graças ao exortar os membros insu-
bordinados da igreja coríntia (2 Coríntios 10:1). É possível que seus dois 1:20 / A ardente expectativa e esperança de Paulo não gira em torno
anos de encarceramento em Cesaréia, seguidos de mais um cativeiro de sua própria segurança, mas objetiva o progresso do evangelho, a
domiciliar em Roma, lhe houvessem ensinado novas lições sobre paciên- perseverança de seus convertidos e a concretização dos propósitos re-
cia. dentivos de Deus. Aqui está uma das duas ocorrências do substantivo (gr.
Há, aqui, uma extraordinária similaridade entre a atitude de Paulo e apokaradokia), traduzida como ardente expectativa; em Romanos 8:19
as palavras de Lutero, mencionadas com muita freqüência, extraídas do a tradução é a mesma: toda a "criação aguarda a revelação dos filhos de
prefácio à carta de Tiago, em seu Novo Testamento em alemão, em 1522: Deus". Naquele contexto, a expressão está ligada a repetidas menções
"A doutrina que não ensina a Cristo não é apostólica, ainda que Pedro sobre a concretização da esperança dos tempos, "esperança de que
ou Paulo a tenham ensinado. E mais, a pregação que ensina a Cristo é também a própria criação será libertada do cativeiro da corrupção, para
apostólica, ainda que Judas, Anás, Pilatos ou Herodes a tenham pregado." a liberdade da glória dos filhos de Deus" (Romanos 8:21). A ardente
O que importa é o conteúdo da pregação, não a identidade do pregador. expectativa e esperança de Paulo prendem-se a esta consumação; na
Paulo se regozija, pois, e prossegue regozijando-se, não só pelo fato verdade, Paulo sabe que seu ministério desempenha um papel especial
58 (Filipenses 1:18-26) 59
(Filipenses 1:18-26)
no apressamento do fim. É por isso que ele espera e ora no sentido de em menos de Cristo do que a pessoa tinha na vida física — acima de tudo,
nada ser confundido. A esperança cristã e ficar em confusão são coisas se a morte significasse (mesmo temporariamente) aniquilação — seria
que se excluem mutuamente (cf. Romanos 5:5). A única coisa que absurdo falar de morte como sendo lucro.
poderia confundir Paulo (deixá-lo envergonhado), seria deixar de receber Sem dúvida, Paulo queria dizer que para o crente em Cristo, morrer
aprovação de seu Senhor; essa é a razão por que ele mantinha "o dia do representaria lucro, não importando a forma pela qual a morte sobrevies-
Senhor" diante de seus olhos, em tudo quanto planejava e fazia. Declarar se. Contudo, a morte que o apóstolo tem em mente, para si mesmo na
o evangelho é o dever que lhe fora atribuído; Paulo está ansioso por ser atual situação, é a execução em conseqüência de julgamento adverso nos
fiel à sua vocação e não deseja fazer nada indigno dela, de modo especial tribunais imperiais. Se esse tipo de morte a serviço de Cristo coroasse
quando comparecer perante César. Não é a humilhação pessoal que Paulo uma vida investida no ministério cristão, haveria de ser lucro não apenas
teme; ele já havia suportado muitas humilhações no desempenho da obra para Paulo, mas para a causa de Cristo no mundo todo.
de Cristo e estava disposto a suportar mais ainda. Todavia, ele sabe que
não deve em nada ser confundido para que Cristo seja engrandecido 1:22 / A continuação da vida física significaria fruto para a minha
no meu corpo, de modo especial mediante seu comportamento e defesa obra, diz Paulo, uma oportunidade para colher mais frutos do trabalho
na corte suprema. que havia sido interrompido ao ser preso e encarcerado, como também
do trabalho que estivera executando durante sua prisão. Uma tradução
O que Paulo precisa é muita coragem a fim de tornar conhecido (o
literal de suas palavras seria: "Todavia, se [o resultado final para mim
evangelho) com muita coragem (como é traduzida a expressão aplicada
à mesma situação em Efésios 6:19, "intrepidez"). Proclamar o evangelho for] que eu viva na carne, este é o fruto de minha obra," e estas palavras
com coragem é a antítese de ficar confuso perante ele (cf. Romanos 1:16). poderiam ser entendidas de várias maneiras diferentes. Poderiam estar
A ambição permanente de Paulo é que em seu corpo — isto é, qualquer enfatizando o fruto para a minha obra no futuro (como NIV e ECA
coisa que lhe aconteça no plano físico, seja a vida, seja a morte — que seja parecem indicar) ou o fruto para a minha obra já efetuada (como NEB
promovida a glória de Cristo. Se o avanço da causa de Cristo exige que ele entende a expressão, seguindo J. B. Lightfoot: "pois viver eu no corpo
seja sentenciado à morte e executado, a morte é bem-vinda! Contudo, se significa que poderia colher o fruto de meu trabalho!"). Assim, a morte
esse avanço da causa de Cristo se fará caso Paulo seja libertado, recebendo prematura ou a continuação da vida tinham seus atrativos, e se a escolha
mais algum tempo de vida mortal, a vida é bem-vinda! entre ambas pudesse ser deixada a critério de Paulo, o apóstolo encon-
traria dificuldades para tomar uma decisão. A escolha, todavia, não
1:21 / Paulo contempla a morte e a vida com equanimidade. Na estava em suas mãos.
verdade, não tivesse ele outras considerações a fazer, senão suas próprias
escolhas pessoais, a expectativa da morte seria preferível: morrer nada 1:23 / Mas de ambos os lados estou em aperto, afirma Paulo; uma
significaria senão lucro, e viver é Cristo. A tradução de ECA: morrer tradução literal seria: "estou cercado dos dois lados." Se Paulo conside-
é lucro levanta a pergunta: "que lucro?" A resposta seria: "O lucro é rasse tão somente os seus interesses, ser-lhe-ia muito melhor partir e
Cristo." A existência de Paulo resumia-se na vida em Cristo, isto é, Cristo estar com Cristo, sendo esse seu desejo.
vivendo nele (cf. Gálatas 2:20); a morte não conseguiria trazer cessação Em várias de suas cartas, Paulo fala dos crentes que morreram e que
nem diminuição dessa existência, mas, ao contrário, a exaltaria mediante ressurgirão no dia em que Cristo voltar (cf. 3:20, 21). Ele tem menos
a experiência de estar com Cristo (v. 23), numa comunhão mais íntima coisas a dizer acerca da situação do crente imediatamente após a morte,
do que a que mantivera em vida física. Se viver significa Cristo, estar mas o que ele diz é bastante simples. Pelo que podemos inferir de sua
vivo deve ser algo maravilhoso, muito alegre; "entretanto, até mesmo correspondência, Paulo só cuidou desse assunto quando se lhe tornou
para tal vida, precisamente para uma vida assim, morrer é lucro" (F. W. provável, ao avaliar sua situação, que morreria antes do advento de
Beare, ad loc.). Se a morte significasse (ainda que temporariamente) ter Cristo, e que talvez não chegasse a testemunhar a volta do Senhor. Paulo
58 (Filipenses 1:18-26) 59
(Filipenses 1:18-26)
no apressamento do fim. É por isso que ele espera e ora no sentido de em menos de Cristo do que a pessoa tinha na vida física — acima de tudo,
nada ser confundido. A esperança cristã e ficar em confusão são coisas se a morte significasse (mesmo temporariamente) aniquilação — seria
que se excluem mutuamente (cf. Romanos 5:5). A única coisa que absurdo falar de morte como sendo lucro.
poderia confundir Paulo (deixá-lo envergonhado), seria deixar de receber Sem dúvida, Paulo queria dizer que para o crente em Cristo, morrer
aprovação de seu Senhor; essa é a razão por que ele mantinha "o dia do representaria lucro, não importando a forma pela qual a morte sobrevies-
Senhor" diante de seus olhos, em tudo quanto planejava e fazia. Declarar se. Contudo, a morte que o apóstolo tem em mente, para si mesmo na
o evangelho é o dever que lhe fora atribuído; Paulo está ansioso por ser atual situação, é a execução em conseqüência de julgamento adverso nos
fiel à sua vocação e não deseja fazer nada indigno dela, de modo especial tribunais imperiais. Se esse tipo de morte a serviço de Cristo coroasse
quando comparecer perante César. Não é a humilhação pessoal que Paulo uma vida investida no ministério cristão, haveria de ser lucro não apenas
teme; ele já havia suportado muitas humilhações no desempenho da obra para Paulo, mas para a causa de Cristo no mundo todo.
de Cristo e estava disposto a suportar mais ainda. Todavia, ele sabe que
1:22 / A continuação da vida física significaria fruto para a minha
não deve em nada ser confundido para que Cristo seja engrandecido
no meu corpo, de modo especial mediante seu comportamento e defesa obra, diz Paulo, uma oportunidade para colher mais frutos do trabalho
na corte suprema. que havia sido interrompido ao ser preso e encarcerado, como também
do trabalho que estivera executando durante sua prisão. Uma tradução
O que Paulo precisa é muita coragem a fim de tornar conhecido (o
literal de suas palavras seria: "Todavia, se [o resultado final para mim
evangelho) com muita coragem (como é traduzida a expressão aplicada
for] que eu viva na carne, este é o fruto de minha obra," e estas palavras
à mesma situação em Efésios 6:19, "intrepidez"). Proclamar o evangelho
poderiam ser entendidas de várias maneiras diferentes. Poderiam estar
com coragem é a antítese de ficar confuso perante ele (cf. Romanos 1:16).
enfatizando o fruto para a minha obra no futuro (como NIV e ECA
A ambição permanente de Paulo é que em seu corpo — isto é, qualquer
parecem indicar) ou o fruto para a minha obra já efetuada (como NEB
coisa que lhe aconteça no plano físico, seja a vida, seja a morte — que seja
entende a expressão, seguindo J. B. Lightfoot: "pois viver eu no corpo
promovida a glória de Cristo. Se o avanço da causa de Cristo exige que ele
significa que poderia colher o fruto de meu trabalho!"). Assim, a morte
seja sentenciado à morte e executado, a morte é bem-vinda! Contudo, se
prematura ou a continuação da vida tinham seus atrativos, e se a escolha
esse avanço da causa de Cristo se fará caso Paulo seja libertado, recebendo
entre ambas pudesse ser deixada a critério de Paulo, o apóstolo encon-
mais algum tempo de vida mortal, a vida é bem-vinda!
traria dificuldades para tomar uma decisão. A escolha, todavia, não
1:21 / Paulo contempla a morte e a vida com equanimidade. Na estava em suas mãos.
verdade, não tivesse ele outras considerações a fazer, senão suas próprias
escolhas pessoais, a expectativa da morte seria preferível: morrer nada 1:23 / Mas de ambos os lados estou em aperto, afirma Paulo; uma
significaria senão lucro, e viver é Cristo. A tradução de ECA: morrer tradução literal seria: "estou cercado dos dois lados." Se Paulo conside-
é lucro levanta a pergunta: "que lucro?" A resposta seria: "O lucro é rasse tão somente os seus interesses, ser-lhe-ia muito melhor partir e
Cristo." A existência de Paulo resumia-se na vida em Cristo, isto é, Cristo estar com Cristo, sendo esse seu desejo.
vivendo nele (cf. Gálatas 2:20); a morte não conseguiria trazer cessação Em várias de suas cartas, Paulo fala dos crentes que morreram e que
nem diminuição dessa existência, mas, ao contrário, a exaltaria mediante ressurgirão no dia em que Cristo voltar (cf. 3:20, 21). Ele tem menos
a experiência de estar com Cristo (v. 23), numa comunhão mais íntima coisas a dizer acerca da situação do crente imediatamente após a morte,
do que a que mantivera em vida física. Se viver significa Cristo, estar mas o que ele diz é bastante simples. Pelo que podemos inferir de sua
vivo deve ser algo maravilhoso, muito alegre; "entretanto, até mesmo correspondência, Paulo só cuidou desse assunto quando se lhe tornou
para tal vida, precisamente para uma vida assim, morrer é lucro" (F. W. provável, ao avaliar sua situação, que morreria antes do advento de
Beare, ad loc.). Se a morte significasse (ainda que temporariamente) ter Cristo, e que talvez não chegasse a testemunhar a volta do Senhor. Paulo
"" (Filipenses 1:18-26) 61
(Filipenses 1:18-26)
••«!« • niiIht quando o advento aconteceria; no entanto, à medida
• |ii> n Hpi mtolo vai envelhecendo, nota-se nele uma mudança de perspec- 1:24 / Entretanto, Paulo teria sido o último homem a colocar seus
11 v i i-iii|uanto nas cartas iniciais Paulo tende a identificar-se com aqueles próprios interesses e preferências antes do que seja vantajoso para os
qur sobreviverão até a volta do Senhor, em suas últimas cartas ele tende outros. Ele exorta seus leitores a levar em consideração o bem dos outros
a identificar-se com os que ressuscitarão dentre os mortos, naquele dia. em 2:4. Tal admoestação, contudo, não teria muito peso, caso eles não
Tal mudança de perspectiva pode ser percebida entre 1 e 2 Coríntios: soubessem que Paulo era um exemplo pessoal disso. Ele julgava ser mais
em 1 Coríntios 15:52 ele diz: "num momento, num abrir e fechar de olhos, necessário para seus convertidos, e entre eles os crentes de Filipos, que
ao soar a última trombeta. Pois a trombeta soará, e os mortos ressurgirão prosseguisse à disposição deles na terra — que ele permanecesse aqui
incorruptíveis, e nós seremos transformados". Mas, em 2 Coríntios 4:14 (permanecer na carne, gr. eti te sarki.)
ele diz: "sabendo que aquele que ressuscitou ao Senhor Jesus, nos
ressuscitará também por Jesus, e nos apresentará convosco (os vivos)." 1:25 / A idéia de que sua sobrevivência contribuiria para o benefício
Esta mudança de perspectiva pode ser devida à experiência crítica na de seus companheiros cristãos, e sua confiança em que Deus faria
província da Ásia, que Paulo descreve em 2 Coríntios 1:8-10. Nessa qualquer coisa que fosse necessária para o crescimento deles na graça,
combinaram-se de modo que deram ao apóstolo grande esperança de que
época a morte parecia tão certa que não havia escapatória à vista, mas
na verdade lhe seria concedido mais um período de vida e atividade
quando o livramento se lhe abriu as portas, contrariamente a todas as
apostólica, para que alcançassem progresso e gozo na fé. Este sei que
expectativas, o apóstolo o saudou como exemplo do poder de Deus para
ficarei, aqui, como no versículo 19, é uma expressão de fé (cf. 2 Coríntios
ressuscitar os mortos.
5:1). Esta é a dedução mais provável do que supor-se que Paulo tenha
Tendo esse fato como pano de fundo, Paulo declara sua convicção em tido uma revelação divina quanto à questão (E. Lohmeyer) ou houvesse
2 Coríntios 5:1-10: "sabemos que, se a nossa casa terrestre deste taber- recebido uma pista indicativa de veredicto favorável para o seu caso (W.
náculo se desfizer, temos da parte de Deus um edifício, uma casa não Michaelis).
feita por mãos, eterna, nos céus." Diz mais o apóstolo: "mas temos Os cristãos filipenses já exultavam pelo fato de terem um amigo na
confiança, preferindo deixar este corpo e habitar com o Senhor." Paulo pessoa de um servo de Cristo do gabarito de Paulo: a libertação do
não atribui essa confiança a uma revelação especial, como em 1 Tessa- apóstolo, e seu ministério adicional lhes daria maior motivo para júbilo.
lonicenses 4:15, com respeito à ressurreição, ou em 1 Coríntios 15:51, A questão bastante debatida sobre se Paulo foi libertado ou não
com relação ao revestimento de imortalidade aos crentes que ainda deveria, talvez, avaliando-se tudo, ser respondida afirmativamente, não
estiverem vivos; no entanto, o apóstolo afirma sua esperança de modo tendo, todavia, qualquer apoio na interpretação de Filipenses.
tão positivo ("sabemos... temos ...") que não há lugar para quaisquer
dúvidas. 1:26 / Fosse Paulo libertado, tendo a oportunidade de rever os filipen-
E a mesma esperança que encontra expressão aqui. O crente goza a ses, haveria motivo de vos gloriardes... em Cristo Jesus, pela minha
presença de Cristo nesta vida e não será privado dela ao término de seus presença de novo convosco. Paulo, que se regozijara quando capaz de
dias, pois Cristo está vivo do outro lado da morte e porque ele vive, seu vangloriar-se a respeito de seus convertidos (cf. 2:16; 1 Tessalonicenses
povo também vive. "'Morrer' e 'estar com Cristo' são, portanto, quase 2:19; 2 Coríntios 7:4; 9:2, 3), não objetava contra o fato de eles se
sinônimos perfeitos. A vida com Cristo após a morte não constitui vangloriarem a respeito dele mesmo (cf. 2 Coríntios 1:14). Esse orgulho
problema para o apóstolo; ela flui como uma fonte que parte da vitória não conflitava com a decisão do apóstolo de não se gloriar em nada senão
obtida na Páscoa" (J.-F. Collange, ad loc.). Não é de admirar, portanto, na cruz de Cristo (Gálatas 6:14), visto que todos os relacionamentos com
que Paulo enfatize (acumulando comparativos) que é muito melhor para seus convertidos fundamentavam-se no evangelho de Cristo crucificado, e
ele partir e estar com Cristo. tal vangloria era um genuíno gloriar-se em Cristo Jesus (cf. Filipenses 3:3).
O problema de relacionar a esperança de Paulo, expressa aqui, de
(Filipenses 1:18-26) 63
62 (.Filipenses 1:18-26)
mente consciente de que sua vida se resume em Cristo, porém usa linguagem
visitar seus amigos filipenses mais uma vez, com sua intenção, declarada semelhante a respeito de seus irmãos na fé: "Cristo, que é a nossa vida"
em Romanos 15:24,29, de esticar sua viagem, indo de Roma à Espanha, (Colossenses 3:4).
já foi discutido na Introdução. 1:22 / Mas, se (gr. ei de, pode introduzir a prótase de uma sentença condi-
cional, como se nota em NIV, RSV e ECA e provavelmente na maioria das
Notas Adicionais 7 versões. Nesse caso, a apódose pode ser "não sei então o que deva escolher"
(como também traz a GNB), ou "isto significará labor frutífero para mim" (como
1:8 / Mas que importa? é a tradução da pergunta ti gar? ("para quê"), que traz NIV, acrescentando: "então, que hei de escolher? eu não sei!" como período
pode significar "que importa? em qualquer caso, Cristo está sendo pregado," ou independente). Por outro lado, ei de pode ser traduzido não por "mas, se" porém
"que diremos? só isto: Cristo está sendo pregado." por "e se" (como o faz NEB: "e se minha vida no corpo puder servir a algum
1:19 / A citação de Jó 13:16 é exata: touto moi apobesetai eis soterian. propósito bom?"). J. B. Lightfoot (ad loc.) propõe esta última construção porque
Pelo socorro do Espirito de Jesus Cristo é literalmente: "o... suprimento "parece adequar-se ao contexto bem abrupto, apresentando menos dificuldades
(gr. epichoregia) do Espírito de Jesus Cristo." ECA presume que "do Espírito" do que as traduções aceitas em geral".
(pneumatos) é genitivo subjetivo, significando "aquilo que o Espírito de Jesus Fruto para a minha obra é a tradução do grego karpos ergou, "fruto
Cristo supre." Todavia, também poderia ser um genitivo objetivo, sendo o (colheita) do trabalho" (cf. "fruto de justiça" no v. 11). A referência aqui se faz
Espírito aquilo que é suprido, como em Gálatas 3:5, "Aquele que vos dá ao resultado (especialmente na vida dos convertidos de Paulo, e de outros
(epichoregon) o Espírito." Cf. NEB: "o Espírito de Jesus Cristo me é dado como crentes, seus companheiros) do ministério que o apóstolo já havia desenvolvido
apoio." Se Paulo, à semelhança de Jó, está aguardando reivindicação da corte ou iria desenvolver.
celestial, o Espírito "surge aqui no papel joanino de advogado" (G. B. Caird, ad Não sei é tradução do gr. ou gnorizo. Paulo (e outros escritores do
loc.) Cf. R. W. Funk, "The Apostolic 'Parousia': Form and Significance," em
W. R. Farmer, C. F. D. Moule, e R. R. Niebuhr, eds., Christian History and NT), usam este verbo transitivãmente ("fazer conhecido") e não intran-
Interpretation, p. 262, n. 1. sitivãmente ("saber"); é melhor tomar a ocorrência aqui como não sendo
1:20 / A muita coragem que Paulo deseja é o gr. parrhesia "liberdade de uma exceção à regra e traduzir, como a RSV e NEB, "não sei dizer" (no
expressão oral." W. C. van Unnik ("The Christian's Freedom of Speech in the sentido de "não posso tornar conhecido").
New Testament," BJRL 44 [1961-62], pp. 475s.) sugere a tradução "com 1:23 / A única outra passagem em que Paulo usa synecho ("constranger)",
máxima abertura", aqui, "porque não será a coragem do mártir, mas o próprio "reter") é 2 Coríntios 5:14, "o amor de Cristo nos constrange (synechei hemas)"
Cristo que se revelará em toda a plenitude." Fazendo Cristo o-sujeito da (NIV: "O amor de Cristo nos compele").
oração (Cristo seja engrandecido no meu corpo), Paulo "salienta o que é Tendo desejo: (epithymia). J.-F. Collange (ad loc.) argumenta que desde que
o poder real da 'liberdade de expressão oral', o fato de que não apenas o epithymia tem sentido pejorativo quase que em todas as passagens paulinas,
evangelho é simplesmente proclamado, mas que o Senhor do evangelho está assim deveria ser traduzido aqui, também, como "desejo egoísta," que Paulo
sendo revelado." menciona apenas para condená-lo. Entretanto, só o contexto pode determinar se
A frase no meu corpo (gr. en to somati mou) é apropriada, visto que esse desejo (epithimia) é mau ou bom, sendo muito provável que possamos tê-lo
Paulo está pensando na morte ou vida na esfera física. Soma, portanto, aqui no bom sentido, como em 1 Tessalonicenses 2:17, onde denota o grande
anseio de Paulo e seus companheiros de verem os crentes tessalonicenses outra
não significa o 'eu' integral de Paulo, mas apenas aquela parte dele mais
vez.
imediatamente influenciada pelo resultado do processo, e através do qual
Partir: gr. analysai, pode significar um navio recolhendo a âncora,
ele dá testemunho ao mundo visível ao seu redor" (R. H. Gundry,"Soma "
ou um exército levantando acampamento.
in Biblical Theology: With Emphasis on Pauline Anthropology, p. 37). Estar com Cristo, imediatamente após morrer, é a implicação de Paulo.
Cf. 1 Coríntios 6:20, "glorificai, pois, a Deus no vosso corpo"), onde Contra este pensamento O. Cullmann nega que o NT apóie a "idéia de que os
Paulo refuta a idéia de que as ações corporais são ética e religiosamente mortos estejam vivendo antes da época da volta e, assim, gozando já o fruto do
indiferentes. cumprimento final das coisas" (The Early Church p. 165). É possível que esses
1:21 / No caminho de Damasco, Deus substituiu a Tora, como centro da vida crentes que, quando morreram, estavam com Cristo, ainda estejam esperando a
e pensamento de Paulo, pondo em seu lugar a Cristo; até então ele poderia ter ressurreição, como Paulo enfatiza (cf. 3:21); entretanto, esse autor não faz
dito: "pois, para mim o viver é a Tora." Agora, o apóstolo está permanente- justiça suficiente a Paulo. O apóstolo encurta o hiato entre a morte e a ressurrei-
136 (Filipenses 3 : 1 5 - 1 )
ção em 2 Coríntios 5:1-10. Veja A. Schweitzer, The Mysticism of Paul the
Apostle, pp. 90-100,109-13; L. S. Thornton, Christ and the Church pp. 137-40; 8. Perseverança no Sofrimento (Filipenses 1:27-30)
F. F. Bruce, Paul: Apostle ofthe Free Spirit, pp. 309-13.
O que é muito melhor: É tremenda a diferença entre a atitude de Paulo e a
expressão de petulância de Jonas: "melhor me é morrer do que viver" (Jonas
4:3, 8). G. M. Lee ("Filipenses I 22-3," NovT 12 [1970], p. 361) critica a O sofrimento é tido como absolutamente inevitável, em todo o NT,
observação de Libãnio (OrationM.29) dizendo que, em certos casos de depres-
são de espírito "é melhor partir (desta vida) do que viver" (kreitton apelthein e especialmente nas cartas de Paulo, como algo que ocorre na existência
zeri), contudo, a não ser pelo comparativo kreitton (cf. a expressão de Paulo dos cristãos neste mundo. Não há nada de surpreendente, aqui: Cristo
pollo mallon kreisson) as duas passagens nada têm em comum. J. B. Lightfoot havia sofrido, e seus seguidores — os que estavam "em Cristo" — não
(ad loc.) refere-se à pergunta levantada por Eurípedes, e mencionada com muita deveriam esperar algo diferente. O próprio Paulo em toda sua carreira de
freqüência (fragmento 639), tis oiden ei to zen men esti katthanein/to katthanein apóstolo soube o que significava sofrer por amor de Cristo; e ele preparou
de zen ("Quem sabe se a vida é morte e a morte, vida?") e observa que a "sublime
conjectura [do poeta] ... que foi recebida com ridicularização ignóbil pelos seus convertidos para sofrimentos semelhantes. Na verdade, ele os
poetas cômicos, tornou-se verdade incontestável em Cristo" — entretanto, a estimulou mediante a convicção de que o sofrimento por amor de Cristo
conexão, se existente, é fraca. era prova da genuinidade da fé.
1:24 / Permanecer na carne: tradução literal de epimenein [en] te sarki, em
que o artigo pode voltar a en sarki no v. 22, "viver na carne". Para Paulo, 1:27 / Entretanto, o desejo ansioso de Paulo em relação aos filipenses
permanecer ou viver en te sarki, no corpo mortal, é coisa muito diferente de era que eles, bem como seus demais convertidos, se portassem digna-
viver kata sarka, "de acordo com a carne"; ele faz um contraste entre as duas mente conforme o evangelho de Cristo. Desde que a nova existência
expressões em 2 Coríntios 10:3. Viver ou agir kata sarka é viver de acordo com deles se baseava no evangelho de Cristo, a conduta deles deveria estar
os padrões da humanidade não regenerada. J. B. Lightfoot (ad loc.), aceitando
a omissão de en (com Aleph A C, etc.), sugere a tradução "habitar na carne", alinhada com a de Cristo (cf. 2:5). Paulo usa um verbo, aqui, que significa
isto é, "prender-se à presente vida, assumi-la com todas as suas inconveniên- estritamente "viver como cidadãos", estando relacionado com o que o
cias." É tradução um tanto torcida. apóstolo diz mais tarde acerca da posição dos crentes como "cidadãos
1:25 / Sei que ficarei, e permanecerei com todos vós: gr. meno kai dos céus" (3:20).
parameno em que meno é absoluto , enquanto parameno é relativo de todos Uma vida vivida dignamente conforme o evangelho de Cristo
vós, sendo o dativo pasin hymin governado pelo prefixo para. estaria em perfeita harmonia. Visto que os crentes partilham a vida
O vosso progresso e gozo na fé: a frase na fé (gr. genitivo tes pisteos
comum com Cristo, devem mover-se firmes em um mesmo espírito,
qualifica tanto progresso quanto gozo. Gozo (quer seja o substantivo chara
quer seja o verbo chairein é tema dominante nesta carta — o gozo dos filipenses combatendo juntamente com o mesmo ânimo. Só assim podem os
(como aqui; cf. 2:28, 29; 3:1; 4:4), o gozo de Paulo (cf. versículos 4, 18; 2:2; crentes recomendar o evangelho tanto por palavra como por ação. O
4:1, 10), o gozo deles e de Paulo, juntamente (cf. 2:17, 18). testemunho dos filipenses exigia esforço corajoso e unificado; precisa-
1:26/... pela minha presença de novo convosco: o substantivoparousia vam lutar lado a lado pela fé do evangelho. Haviam crido no evangelho
é usado aqui no sentido não técnico de "visita" (como em 2:12; cf. também e, agora, o objetivo de seus testemunhos era levar outros à mesma fé.
1 Coríntios 16:17; 2 Coríntios 7:6, 7; 10:10). Não é usado nesta carta com
Deveriam contar com oposição poderosa e incessante, na consecução de
referência ao advento de Cristo; de fato, as únicas cartas paulinas em que
a palavra é empregada com referência a Cristo são: 1 Coríntios (15:23), seus objetivos, razão por que deles se exigia ação perseverante.
1 Tessalonicenses (2:19; 3:13; 4:15; 5:23) e 2 Tessalonicenses (2:1, 8). Paulo gostaria muito de aproveitar uma oportunidade de fazer-lhes
uma visita e vê-los em ação — e de participar de tal ação também.
Contudo, se essa visita não fosse possível, Paulo ainda assim esperava
"ouvir" que os filipenses estavam firmes contra toda oposição, dando um
testemunho unificado. Não parece que o apóstolo aguardava execução
dentro de algumas semanas: ele estava preparado para a hipótese da
66 (Filipenses 1:27-30) (Filipenses 1:27-30) 67
execução, mas expressava-se como alguém que esperava continuar vivo agradecer a Deus? Era assim que Paulo via seu próprio sofrimento a
durante mais algum tempo. serviço de Cristo. O Senhor ressurreto havia dito o seguinte, a respeito
1:28 / A oposição que precisavam enfrentar provinha com toda pro- de Paulo, para Ananias de Damasco: "Eu lhe mostrarei o quanto deve
babilidade de fora da comunidade. De fato, alguns eruditos argumentam padecer pelo meu nome" (Atos 9:16), e Paulo sofreu o cumprimento desta
que Paulo se refere a "adversários que abriram caminho para dentro da predição. Todavia, ele aceitou seus sofrimentos como participação nos
igreja e nela passaram a exercer influência" (Marxsen, Introduction, p. sofrimentos de Cristo (Filipenses 3:10). Na verdade, o desejo de Paulo
62). J.-F. Collange (ad loc.) pensa "mais precisamente em pregadores era que sua participação fosse maior, a fim de que a de seus irmãos crentes
fosse menor (2 Coríntios 1:3-7; Colossenses 1:24). Tampouco foi Paulo
itinerantes judaico-cristãos a quem Paulo se refere com maior violência
o único, na era apostólica, a receber o privilégio concedido de padecer
em 3:2ss." Entretanto, o contexto (especialmente os versículos 29 e 30)
por ele (Cristo); está registrado que os apóstolos, depois de serem
indicaria que os crentes filipenses estavam enfrentando, agora, oposição
açoitados mediante sentença do Sinédrio, "retiraram-se... regozijando-se,
que o próprio Paulo enfrentara quando estava entre eles — oposição da
porque tinham sido julgados dignos de padecer afronta pelo nome de Jesus"
parte de seus vizinhos pagãos, tão grande como por parte das autoridades.
(Atos 5:41). Se os filipenses pudessem enxergar seus próprios sofrimentos
A presença da oposição, assegura-lhes Paulo, demonstra que eles
à luz desta realidade, a alegria deles seria bem maior.
estão no caminho certo, no testemunho ativo do evangelho. É sinal de
salvação para eles, e sinal de perdição para seus adversários: Isso para 1:30 / O encorajamento que Paulo dava a seus amigos era mais
eles, na verdade, é sinal de destruição, mas para vós de salvação. Deus aceitável porque não provinha de alguém destituído de experiência
é o autor do evangelho: os que o defendem podem esperar, portanto, pessoal em sofrer por amor de Cristo. No catálogo de provações apostó-
livramento e vitória da parte do Senhor, tão seguramente como os que o licas que ele delineia em 2 Coríntios 11:23-27, o apóstolo menciona que
combatem podem esperar seu julgamento. O mesmo pensamento encon- três vezes foi "açoitado com varas" (2 Coríntios 11:25), uma vez em
tra expressão bem desenvolvida em 2 Tessalonicenses 1:5-10. Filipos (Atos 16:22,23); de que seus amigos filipenses podiam lembrar-
Lutai pelo evangelho sem serdes intimidados pelos adversários, exorta se bem. É assim que ele consegue fazê-los apreciar o mesmo combate
Paulo (usando um verbo que se aplica de modo específico a cavalos que já em mim vistes. A vida cristã para Paulo era um conflito, um
assustados); enfrentai-os com persistência, unidos, pois isso para eles, na combate travado contra inimigos espirituais (Efésios 6:12), mediante
verdade, é sinal de destruição, sinal de que estão errados e não poderão assistência divina. É a mesma palavra que ele utilizou (gr. agorí) no fim
subsistir contra vós. O próprio Paulo havia sido perseguidor, no passado, e de sua carreira , quando disse que havia combatido "o bom combate" (2
podia lembrar-se da persistência daqueles a quem atacava. Se naquela época Timóteo 4:7). Vós vos lembrais, diz Paulo, na verdade, de que eu sofri
aquela persistência lhe parecera mera obstinação, após sua conversão, encarceramento em vossa própria cidade; agora, sofro prisão nesta
porém, ele podia olhar para trás e apreciá-la pelo que era na verdade — uma cidade; aqui em Roma, como em Filipos, sou prisioneiro por amor de
evidência do poder de Cristo capacitando os cristãos a fim de manterem a Cristo. Estou tendo o mesmo combate que já em mim vistes e agora
fé imaculada, e a evidência de que ele próprio estava, a despeito de sua boa ouvis que é meu. Ouço agora que vós também lutais da mesma forma;
consciência, travando uma batalha já perdida contra Deus. é o mesmo combate para vós e para mim. Partilhais meu ministério não
apenas mediante vosso testemunho no evangelho, mas também mediante
1:29/ Os filipenses haviam crido em Cristo depois de ouvir a pregação vossa perseverança na aflição, na causa do evangelho.
do evangelho, pelo que poderiam manifestar gratidão a Deus. Estariam Não sabemos qual teria sido a forma exata da perseguição sofrida
eles todavia entendendo que poderiam manifestar gratidão a Deus tam- pelos cristãos filipenses. Paulo não precisava entrar em minúcias que os
bém pela oportunidade de padecer por Cristo? Estariam eles conside- filipenses conheciam muito bem. O importante era o espírito com que
rando o sofrimento como privilégio, um favor especial que deviam eles aceitavam a perseguição.
68 (Filipenses 1:27-30) (Filipenses 1:27-30) 69
genitivo subjetivo) — não há praticamente nenhuma diferença entre ambas as
Notas Adicionais 8 interpretações.
1:28 / sem serdes intimidados: gr. me ptyromenoi. O verbo ocorre somente
1:27 / Deveis portar-vos: gr. politeuesthe (imperativo), "vivei como cida- aqui na Bíblia grega. Encontra-se quase sempre na forma passiva e, à parte seu
dãos", daí (de modo mais genérico) "vivei como membros da comunidade." Tal uso para cavalos assustados, significa "deixar-se intimidar."
verbo seria prontamente compreendido pelos residentes de uma colônia romana. Isso...é sinal: lit., "o que é prova" (gr. hetis estin...endeixis.) Quanto a
Policarpo o usa ao escrever à igreja filipense de seus dias (5:2): "se vivermos endeixis cf. Romanos 3:25, 26; 2 Coríntios 8:24; entretanto, o paralelo mais
como cidadãos [politeusometha] de maneira digna dele" (K. Lake traduz assim: aproximado quanto ao sentido, nesta ocorrência, é endeigma em 2 Tessaloni-
"se formos cidadãos dignos da comunidade dele"). Ocorre em apenas mais uma censes 1:5 (em que a referência também é a perseverança do cristão em face da
passagem no NT — Atos 23:1 (ao relatar ao Sinédrio: "Irmãos, até o dia de hoje perseguição, como prova do socorro vindouro para este, e julgamento vindouro
tenho andado diante de Deus com toda a boa consciência", Paulo pode talvez para seus perseguidores). Não fica imediatamente claro qual é o antecedente do
estar pensando em sua vida como participante do povo de Israel). Cf. o pronome relativo hetis (que concorda em gênero e número com endeixis.) ECA
substantivo politeuma em Filipenses 3:20, com exposição e nota ad loc. Veja considera que os filipenses é que não devem intimidar-se; G. B. Caird (ad loc.)
R. R. Brewer, "The Meaning of politeuesthe in Filipenses 1:27," JBL 73 (1954), acha que se refere à "unidade inabalável da igreja em face da perseguição". Estas
pp. 76-83. duas sugestões não são mutuamente exclusivas; a recusa corajosa e unificada
Dignamente [a«'os] conforme o evangelho de Cristo: quanto ao advérbio dos filipenses de não serem intimidados deveria constituir uma mensagem aos
adversários.
axios com politeuesthai, cf. Policarpo (To the Philippians 5:2) citado na nota
E isso da parte de Deus: gr. kai touto apo theou, "e isso vem de Deus." A
anterior. É usado com peripatein ("rogo-vos que andeis") em Efésios 4:1
que se refere "isso"? À prova (endeixis), assim diz J. B. Lightfoot: "é indicação
("como é digno da vocação com que fostes chamados"); Colossenses 1:10
direta da parte de Deus." Talvez haja razão (como também quanto a G. B. Caird).
("andar dignamente diante do Senhor"); 1 Tessalonicenses 2:12 ("andásseis de
1:29 / Pois vos foi concedido: gr. hymin echaristhe — como ato de graça
um modo digno de Deus").
(charis). Quanto a outro exemplo do verbo charizesthai veja 2:9, quanto a Deus
Ouça acerca de vós: gr. akouo, "ouvir." W. Schmithals (Paul and the
haver concedido a Cristo o nome que é sobre todos os nomes.
Gnostics, p. 69) tira a inferència disto que Paulo deve ter ouvido que nem tudo Por amor de Cristo: tradução literal de to hyper Christou, em que o artigo
estava bem na igreja de Filipos, com respeito à harmonia e comportamento to antecipa suas duas ocorrências seguintes, antes dos infinitivos pisteuein,
digno, e faz comparação com o "ouço" de 1 Coríntios 11:18 (cf. 1 Coríntios "crer" e paschein, "sofrer."
1:11). Todavia, não há comparação entre akouo aqui (presente do subjuntivo 1:30 / o mesmo combate, gr. ton auton agona. Em 1 Tessalonicenses 2:2
num período de propósito) e akouo aqui (presente do indicativo). Paulo havia Paulo e seus companheiros falam de sua pregação do evangelho em Tessalônica
ouvido recentemente (de Epafrodito) a respeito da igreja filipense; todavia, ele enpollo agoni, "no meio de grande combate." Consultem-se V. C. Pfitzner, Paul
tinha boas razões para esperar que o que ele viesse a ver com seus próprios olhos and the Agon Motif: Traditional Athletic Imagery in the Pauline Literature,
(se lhes pudesse fazer uma visita) ou ouvir com seus próprios ouvidos (embora NovTSupló; também E. Güttgemanns, Der leidende Apostei undsein Herr.
de longe) enchê-lo-ia de satisfação.
Em um mesmo espírito: (gr. en heni pneumati.) Não é admissível que a
referência aqui seja ao Espírito de Deus (cf. 1 Coríntios 12:13; Efésios 4:4), em
vista da frase paralela com o mesmo ânimo (gr. mia psyché). O verbo estais
firmes se repete (no imperativo) em 4:1, e combatendo em 4:3. Paulo gosta de
descrever o testemunho evangélico usando termos militares e atléticos.
Pela fé do evangelho: gr. te pistei tou euangeliou, que J. B. Lightfoot traduz
"em harmonia com a fé do evangelho," tomando o dativo como sendo regido
pelo prefixo syn em syimthlountes (combatendo) e entendendo pela fé como
objeto direto, equivalente a "o ensino do evangelho", mas esta é uma interpre-
tação improvável. M. Dibelius toma a sentença como significando "a fé que é
o evangelho." Com toda probabilidade, significa que é a resposta de fé ao
evangelho (tou euangeliou seria, então, genitivo objetivo) ou a resposta de fé
que o evangelho exorta os ouvintes a dar (tou euangeliou) sendo, neste caso,
99
(Filipenses 2:17-36a)

9. Convite para Considerações Mútuas 2:2 / Já havia evidência suficiente de unidade de propósito e afeto
(Filipenses 2:1-5) mútuo, na igreja filipense, que causavam alegria em Paulo. Ele já disse
que suas orações em prol dos cristãos filipenses eram orações alegres
(1:4). Agora, diz ele, para que meu cálice transborde dessa alegria:
completai o meu gozo. Permitam-me ouvir que vós tendes o mesmo
A preocupação de Paulo quanto à unidade de espírito e consideração
modo de pensar, tendo o mesmo amor, que sois unidos no mesmo
mútua entre os membros da igreja filipense não implica necessariamente
que aqueles crentes estivessem numa atmosfera de dissensão. Dois ânimo, pensando a mesma coisa. Paulo exorta, na verdade, para que
membros são especificados pelos nomes e recebem a exortação de tenham unanimidade de coração. Não se trata da unanimidade formal que
entrarem em acordo, em 4:2, o que poderia sugerir (a menos que 4:2 se consegue manter mediante o exercício do poder de veto; trata-se
pertença a uma carta originalmente separada) que era caso excepcional daquela unanimidade sincera de propósitos, pela qual ninguém deseja
de conflito. Não sabemos o que Epafrodito disse a Paulo concernente ao impor um veto sobre as pessoas.
estado da igreja, mas por essa época o apóstolo havia detetado evidências Não é questão de levar todas as pessoas a verem um caso pelo mesmo
suficientes de mau relacionamento e ambição egoística em alguns setores ângulo, isto é, terem a mesma opinião sobre um assunto. A vida ficaria
da igreja em Roma, capazes de induzi-lo a ficar ansioso: que nada disso insossa e monótona sem a prática da discussão honesta, em que a
se manifestasse na igreja de Filipos. variedade de opiniões provê amplo campo para debates e avaliações
amistosos.
2:1 / Não se cultiva com facilidade a união de pensamento quando
seres humanos de culturas e temperamentos diferentes partilham de uma 2:3 / Contudo, avaliações e debates deixam de ser amistosos quando
mesma companhia; entretanto, os recursos que possibilitam tal união cada pessoa objetiva superar os companheiros em pontos, impingindo
estão à disposição das pessoas que têm Cristo, que mantêm comunhão seu modo de pensar. Não deve haver estímulo ao espírito de "Diótrefes,
com o Senhor. No amor de Cristo há conforto tão profundo que que gosta de exercer a primazia" (3 João 9). Nada façais por contenda
compensa os problemas indefectíveis da existência cristã neste mundo. ou por vangloria, exorta Paulo; esquecei todos os pensamentos de
Os crentes obtêm novo ânimo e força do Cristo ressurreto, pois dele prestígio pessoal. A preocupação com prestígio pessoal e vangloria
participam. Receberam o Espírito de Cristo, que os une numa comunhão surgem da raiz pecaminosa do orgulho. O orgulho não deveria ter lugar
de amor; o Senhor habita nos crentes como indivíduos, e como um grupo de na vida cristã; o que caracteriza o cristão é a qualidade oposta, a
discípulos e, através de Cristo, "porque o amor de Deus está derramado em humildade. A humildade não era uma virtude estimada de modo geral,
nossos corações" (Romanos 5:5). É o Espírito que lhes mantém a vida em na antigüidade pagã, na qual a palavra grega aqui traduzida por humil-
comum, no corpo de Cristo. O efeito desta vida em comum deveria ser dade tem o sentido de servilismo. A atitude do AT é diferente: Deus
corações mais afetuosos e cheios de compaixão, porém, estes afetos e "escarnece dos escarnecedores, mas dá graça aos humildes" (Provérbios
compaixões em primeiro lugar provêm de Cristo. Os crentes experimentaram 3:34, citado em Tiago 4:6; 1 Pedro 5:5). A humildade é especialmente
os entranháveis afetos e compaixões de Cristo, de modo que agora podem apropriada aos crentes cujo Mestre era, não por constrangimento, mas
demonstrar mais facilmente tais virtudes uns para com os outros. com toda espontaneidade, "manso e humilde de coração" (Mateus
Todas as condições, em suma, existem dentro da comunidade cristã 11:29). Seus primeiros discípulos acharam a lição sobre humildade difícil
com o objetivo de alimentar um sentimento de unidade, um propósito de ser aprendida: de modo reiterado, quando eles se punham a discutir
comum, não apenas entre os crentes entre si, mas entre os crentes e Paulo. quem dentre eles seria o maior no reino de Deus, Jesus insistia em que
O apóstolo e os crentes estão interligados na amorosa comunhão do
entre seus seguidores a verdadeira grandeza consistia em ser o menor de
Espírito.
todos, o servo de todos — "pois, o Filho do homem não veio para ser
92 (Filipenses 2:12-13) (Filipenses 2:12-13) 93

«trrvldo, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (Marcos fraquezas dos fracos, e não agradar a nós mesmos. Portanto, cada um de
10:45). nós agrade ao seu próximo no que é bom para edificação. Pois, também
Portanto, diz Paulo, cada um considere os outros superiores a si Cristo não agradou a si mesmo." O exemplo de Cristo é sempre o
mcflmo. Regozijai-vos na honraria prestada a outros, em vez de na que argumento supremo de Paulo na exortação ética, principalmente quando
vos é dedicada. A simplicidade da linguagem de Paulo não deveria trata do interesse altruísta pelo bem-estar do próximo. Se o exemplo de
cegar-nos quanto à sua dificuldade. A pessoa que realmente tenta consi- Cristo deve ser seguido, é melhor, então, manter maior interesse pelos
derar os outros melhores do que a si própria logo descobre que isso não direitos dos outros e pelos nossos deveres, do que cuidar principalmente
advém com naturalidade. É fácil demais incluir exceções permissíveis à de nossos direitos e dos deveres dos outros. Quando alguns membros da
regra de Paulo, se não com respeito a indivíduos, com certeza no que igreja coríntia firmaram o propósito de defender seus interesses pessoais
concerne a comunidades. Há a tendência, por exemplo, de considerar com tanta avidez que recorreram a juizes pagãos para receberem indeni-
nossa denominação melhor do que as outras, ao ponto de julgarmos que zações da parte de seus irmãos cristãos, Paulo lhes disse que preferir
o próprio Deus está mais agradado com a nossa do que com as demais sofrer injustiças sem ficar preocupado com reparações legais, e sem
(portanto, com toda certeza, ele se agrada mais comigo por pertencer a envolver o nome de Cristo num litígio público, é trilhar o caminho do
determinada denominação, do que se agrada dos demais crentes, das Senhor (1 Coríntios 6:7).
outras denominações). Onde a verdadeira humildade reina não se permi-
tem tais exceções. Como o profeta Miquéias viu, séculos antes de Paulo, 2:5 / Em seguida, Paulo exorta os filipenses a exibirem o mesmo
a humildade floresce melhor na comunhão com Deus (Miquéias 6:8). sentimento que houve em Cristo Jesus. É provável que esta tradução
Ou, como diz James Montgomery: seja exata, mas qualquer tradução destas palavras exige boa medida de
interpretação adequada. Uma tradução um tanto literal da sentença seria:
O pássaro que alça as asas nos céus, "Pensai nisto entre vós mesmos (Ponde vossa mente nisto), que... tam-
Constrói seu ninho lá em baixo, na terra. bém em Cristo Jesus." Na sentença "que... também Cristo Jesus" falta
E o que trina maviosamente, um verbo que precisa ser acrescentado. Além disso, a frase "em Cristo
Canta de noite quando tudo repousa. Jesus" pode assumir o sentido especial atribuído por Paulo ("em união
Na cotovia e no rouxinol vemos com Cristo Jesus" ou "como membros de Cristo Jesus"), ou pode ter o
Quanta honra cabe à humildade. sentido genérico, referindo-se a uma característica que se manifestara na
pessoa de Cristo.
O santo que usa a coroa mais brilhante do céu,
A ECA analisa "em Cristo Jesus" desta última maneira; e assim
Curva-se em humilde adoração.
também o faz a versão KJV ("Que este desígnio esteja em vós, como
O peso da glória faz que se prostre,
estava também em Cristo Jesus"). O sentido especial paulino de "em
Quanto mais se prostra mais sua alma ascende;
Cristo Jesus" foi preferido pelos tradutores de NEB: "Que vosso proce-
O escabelo da humildade deve estar
Bem perto do trono de Deus. dimento uns para com os outros derive de vossa vida em Cristo Jesus."
As palavras que se seguem, que celebram o auto-esvaziamento e
2:4 / atente... para o que é dos outros, isto é, ter interesse em proteger auto-humilhação de Cristo, ao tornar-se homem e consentir em suportar
os interesses alheios faz parte dos alicerces da ética cristã. "Levai as a morte por crucificação, sugere com muita força que seu exemplo neste
cargas uns dos outros," exorta Paulo em outra carta, "e assim cumprireis sentido deve ser seguido pelos seus discípulos. A vida comunitária dos
a lei de Cristo" (Gálatas 6:2) — lei que Cristo não apenas estabeleceu, seguidores de Cristo — "vida em Cristo Jesus" — deveria ser marcada
mas exemplificou em si mesmo. O assunto é explorado mais amplamente pelas qualidades que foram vistas na pessoa de Cristo; entretanto, a frase
em Romanos 15:1-3: "Mas, nós que somos fortes, devemos suportar as "em Cristo Jesus" neste contexto refere-se ao que foi detectado no
92 93
(Filipenses 2:12-13) (Filipenses 2:12-13)

Senhor, de modo pessoal, em vez de na vida comunitária dos discípulos em 1:8. A palavra compaixões é oiktirmoi, plural de oiktirmos ("piedade"). Em
Romanos 12:1 Paulo apela a seus leitores pela oiktirmoi de Deus ("pela com-
(que aqui se exprime na frase "em vós"). Portanto, o verbo faltante, na paixão de Deus"); em 2 Coríntios 1:3, chama ele a Deus de "o Pai das oiktirmoi
tradução de "que... também em Cristo Jesus" é "houve", isto é, que "foi ", o Pai das misericórdias". Os dois substantivos splanchna e oiktirmos vêm
visto." juntos outra vez em Colossenses 3:12, "revesti-vos de compaixão" (lit., "colo-
cai-vos entranhas de compaixão").
Notas Adicionais 9 2:2 / para que tenhais o mesmo modo de pensar... pensando a mesma
coisa: gr. hina to autophonete,... to henphronountes, com repetição do verbo
2:1 / As quatro orações deste versículo são condicionais, sendo cada uma phronein, verbo bastante freqüente nesta carta, de modo especial (Paulo o usa
delas iniciada com a conjunção ei("se"); a oração principal de todas as quatro vinte e três vezes, e só nesta carta ele aparece dez vezes). Significa "pensar" no
é o período imperativo completai o meu gozo do v. 2. sentido de ter uma opinião definida, uma atitude deliberada, a pessoa ter fixado
Portanto, se há algum conforto em Cristo: lit., "se há algum consolo (gr. a mente numa determinada direção.
paraklesis) em Cristo." NIV toma a frase em Cristo em seu sentido incorpora- 2:3 / por humildade: gr. en tapeinophrosyne, ou "espírito mesquinho, de
tivo, a vida comum dos cristãos. A frase cobre os quatro períodos deste servo." Um bom exemplo do uso desta palavra, vindo do primeiro século,
versículo. Por estarem em Cristo (unidos a ele) recebem conforto, consolação, denotando um vício, e não uma virtude, encontramos em Josefo, em War 4.494,
comunhão no Espírito e entranháveis afetos e compaixões. A conjunção ei onde há menção do "espírito mesquinho" tapeinophrosyne do Imperador Galba,
("se") implica a inexistência de qualquer dúvida quanto à realidade destas ao negar aos guardas pretorianos uma dádiva que lhes fora prometida no nome
bênçãos, quer na mente de Paulo, quer na experiência dos filipenses: poderia dele.
ser traduzido assim: "Tão certo quanto..." 2:4 / atente cada um ... também para o que é dos outros: E possível que
J. B. Lightfoot (ad loc.) acha que paraklesis aqui significa "exortação" e Paulo esteja enfatizando um ponto específico, "exortando seus leitores a fixarem
paramythion (ECA: consolação), "incentivo." Esta distinção é tênue demais. os olhos nos pontos positivos, nas qualidades de outros crentes; quando tais
As duas palavras são quase sinônimas; quando Paulo usa a segunda (ou seu virtudes forem reconhecidas, deveriam constituir, então, um incentivo à nossa
verbo cognato paramytheisthai) ela vem sempre associada com a primeira (ou forma de viver" (R. P. Martin, ad loc.). A preocupação egoística com "nossas
com seu cognato, o verbo parakaleirí), talvez com o objetivo de enfatizar a idéia próprias coisas" (ta heauton) pode ser a marca da tendência de um "perfeccio-
de conforto. Cf. a associação de ambas em 1 Coríntios 14:3; 1 Tessalonicenses nista." Se, na verdade, Paulo está estimulando seus companheiros a prestarem
2:11. atenção nas boas qualidades alheias, isto seria um preparativo bem apropriado
Quanto à comunhão no Espírito, a alternativa marginal de GNB é melhor: para colocar-lhes diante dos olhos o exemplo supremo de Cristo. De modo
"O Espírito vos trouxe à comunhão uns com os outros." A comunhão mútua dos semelhante Cristo poderia ser colocado diante deles como exemplo de alguém
discípulos é, na verdade, a decorrência de sua comunhão com Cristo. Todos os que pôs os interesses alheios antes de seus próprios interesses. No texto grego
crentes em Cristo foram batizados em um Espírito, num corpo (1 Coríntios original não existe um substantivo para completar o sentido de "o que é seu" ta
12:13). Aquele que os une, portanto, em Cristo, também os une uns aos outros. heautone "o que é dos outros" ta heteron; daí decorre a tradução de KJV: "suas
Cabe-lhes, pois, doravante, mediante o cultivo da paz dentro dessa comunhão, próprias coisas" e "as coisas dos outros." Que "coisas" Paulo tinha em mente é
"guardar a unidade do Espírito" (Efésios 4:3). Deus chamou seu povo "para a questão de interpretação. E de relevância para a interpretação o fato de haver
comunhão de seu Filho Jesus Cristo" (1 Coríntios 1:9), para que participe de algumas evidências (no ocidente) para a omissão de "também" (kai da segunda
sua ressurreição. E o Espírito que nos capacita a reagir positivamente a esse parte do versículo (traduzido de modo literal na KJV: "mas cada pessoa também
chamado divino e gozar da comunhão; esta pode, portanto, ser chamada de para as coisas dos outros"). Se esse "também" for mantido, o sentido será:
"atente cada um tanto para os interesses (pontos positivos) dos outros, quanto
"comunhão do Espírito Santo" (2 Coríntios 13:13) ou nossa participação em
para os seus próprios"; se esse "também" for omitido, o sentido seria: "atente
comunhão no Espírito.
cada um para os interesses (pontos positivos) dos outros, e não para seus
Alguns entranháveis afetos e compaixões que os crentes têm em Cristo são próprios."
partilhados mutuamente. J.-F. Collange (ad loc.) acha que estas palavras se
referem aos laços de afeto e simpatia que unem Paulo aos filipenses. Paulo 2:5 / De sorte que haja em vós o mesmo sentimento: gr. touto phroneite en
estava bem ciente de tais laços, mas sua preocupação na época voltava-se mais hymin, "tende em vós (no meio de vós) esta mentalidade." O problema interpre-
para a manutenção da comunhão de amor dentro da igreja filipense. A palavra tativo neste versículo encontra-se, em parte, na adição de um verbo à oração
grega para afetos é splanchna ("entranhas"), traduzida por "tema misericórdia" adjetiva ho Christo lesou e em parte, na compreensão correta da frase en Christo
136 (Filipenses 3:15-39)
lesou. As duas questões encontram-se relacionadas entre si, pois se adicionar-
mos, como J. B. Lightfoot (ad loc.) o verbo ephroneito "que houve", en Christo 10. Hino a Cristo (Filipenses 2:6-11)
lesou significaria então, naturalmente, "na pessoa de Jesus Cristo"; se, por outro
lado, conforme J. Gnilka (ad loc.) sugere, adicionarmos prepei ("é adequado"),
en Christo lesou significaria, então, "em sua vida de comunhão em Cristo
Jesus." Esta última alternativa não depende de acrescentarmos prepei à sentença Ao mostrar estes versículos impressos em forma de poesia, NIV reflete
adjetiva (quanto a isto, consulte-se também F. W. Beare, ad loc.); a posição é
defendida também por R. P. Martin (Carmen Christi, p. 71), para quem o verbo 0 reconhecimento amplamente divulgado de que aqui temos um hino
faltante é phroneite ("vós pensais," "vós tendes este desígnio") e aprova a cristão primitivo, em louvor a Cristo. À semelhança de muitos outros
tradução de K. Grayston (EPC, ad loc.): "Pensai entre vós desta maneira, que é hinos cristãos primitivos, este aparece em prosa rítmica, não, porém, em
como pensais em Cristo Jesus, i.e., como membros de sua igreja." métrica poética (nem grega, nem semítica). Consiste numa declaração
E. Kasemann ("A Criticai Analysis of Philippians 2:5-11") aceita esta inter- da obra salvífica de Deus, em Cristo, em sua auto-humilhação seguida
pretação e vai mais longe ainda: entendendo que os vv. 6-11 expressam o drama
de exaltação. Ele se humilhou; ele foi exaltado por Deus. De acordo com
da salvação, ele toma "em Cristo Jesus" do v. 5 como denotando a nova situação
do crente sob o domínio daquele que foi exaltado como Senhor acima de todas 1 Pedro 1:11, o espírito de profecia nos tempos do AT estava voltado,
as coisas; em outras palavras, o termo denota a abrangência da salvação de modo especial, para a predição dos "sofrimentos de Cristo e das
estabelecida pela vitória de Cristo na cruz, à qual foram trazidos mediante glórias que haveriam de seguir-se"; este é o tema de dois tópicos que temos
conversão e batismo. Pensar com humildade é a maneira como o crente deve agora diante de nós. Quer tenha sido composto pelo próprio Paulo, quer seja
pensar (dei phronein) na esfera da salvação. composição de outrem, o apóstolo o incorpora em sua atual argumentação,
C. F. D. Moule, em "Further Reflections on Philippians 2:5-11, em W. W.
a fim de reforçar seu apelo ao cultivo de um espírito humilde.
Gasque e R. P. Martin, eds., Apostolic History and the Gospel, pp. 264-76,
apresenta uma defesa persuasiva do ponto de vista de que Paulo está exortando
seus leitores a manifestarem o mesmo espírito de autonegação demonstrado por 2:6 / Se os filipenses são exortados a apresentar o mesmo "sentimento
Cristo. Ele sugere uma amplificação de touto to phronema phroneite en hymiti que houve em Cristo Jesus", de que maneira Jesus demonstrou esse
ho kai en Christo lesou, que traduz "Adotai uns para com os outros, em vossas sentimento?
relações mútuas, a mesma atitude que se encontrou em Cristo Jesus" (p. 265). Ele o demonstrou ao humilhar-se e tornar-se homem, ao humilhar-se
Isto, mais a exegese dele dos versículos seguintes, se nos apresenta como e assumir a forma de servo, ao humilhar-se e submeter-se obediente-
interpretação aceitável (que concorda, incidentalmente, com a tradução de
mente à morte — e morte por cruz.
NIV). Consulte-se, para praticamente o mesmo efeito, E. Larsson, Christus ais
Vorbild, p. 233. Que, sendo em forma de Deus: literalmente, "sendo já em forma de
Deus." A posse da forma implica em participação na essência. Parece-nos
inútil discutir a evidência de que estas palavras presumem a pré-existên-
cia de Cristo. Noutra passagem em que Paulo aponta para a autonegação
de Cristo, como exemplo diante de seu povo — "... Jesus Cristo, que,
sendo rico, por amor de vós se fez pobre, para que por sua pobreza vos
tornásseis ricos" (2 Coríntios 8:9) — a pré-existência do Senhor fica
presumida, de modo semelhante (embora Paulo, em 2 Coríntios, faça sua
própria escolha de palavras, usando, em Filipenses, uma composição
disponível, à mão). Noutras passagens paulinas, Cristo é apresentado
como agente na criação: "nele foram criadas todas as coisas que há
nos céus e na terra" (Colossenses 1:16, 17; cf. 1 Coríntios 8:6). Outros
escritores do NT concordam com Paulo nesta declaração doutrinária
(cf. João 1:1-3; Hebreus 1:2; Apocalipse 3:14); tal idéia evidentemente
92 (Filipenses 2:12-13) 93
(Filipenses 2:12-13)
está amarrada à primitiva identificação cristã de Cristo com a divina para a igreja filipense é clara: assim como Cristo deixou de lado seus
sabedoria do AT (cf. Provérbios 3:19; 8:22-31; também, com "palavra", próprios interesses, por amor às pessoas, o mesmo deveriam fazer os
em vez de "sabedoria", Salmo 33:6). Os cristãos do primeiro século não filipenses.
partilharam este problema intelectual que perturba a tantos hoje, que Cristo "esvaziou-se" ou "despojou-se" mais especificamente, e assu-
consiste em "combinar a pré-existência celestial com a herança genética miu a forma de servo (lit., "a forma de escravo"). Isto não significa que
humana" (Montefiore, Paul the Apostle, p. 106). ele trocou sua natureza (ou forma) divina pela natureza (ou forma) de
Várias traduções estão disponíveis, da declaração seguinte, além da um escravo: significa que ele demonstrou a natureza (ou forma) de Deus
que ECA nos oferece: sendo em forma de Deus, não teve por usurpa- na natureza (ou forma) de um escravo. O incidente narrado em João
ção ser igual a Deus. Diz a NIV: "ele não considerou que a igualdade 13:3-5 prove uma excelente ilustração disto: o fato que aconteceu durante
com Deus fosse algo a ser arrebatada". A tradução marginal de GNB: a última ceia. Jesus tomou os pés de seus discípulos, lavou-os e enxu-
"ele não pensou que à força deveria tentar permanecer igual a Deus." gou-os com a toalha que se havia cingido, e ele o fez plenamente
Todavia, estas traduções não esgotam as possibilidades. "Existindo sob consciente de sua origem e destino, totalmente cônscio da autoridade que
a forma de Deus, como acontecia, Cristo não considerava essa igualdade lhe fora conferida pelo Pai. Sua natureza divina foi demonstrada, e de
com Deus como um harpagmos" — eis a força literal das palavras. Este modo mui digno, naquele ato de serviço humilde.
substantivo é derivado de um verbo que significa "agarrar subitamente" Fazendo-se semelhante aos homens: tais palavras seriam mal inter-
ou "apoderar-se". Não existe a questão de Cristo tentar arrebatar, ou pretadas, se tomadas com o sentido de que a humanidade de Cristo teria
apoderar-se da igualdade com Deus: ele é igual a Deus, porque o fato de sido apenas uma semelhança de humanidade, e não humanidade real.
ele ser igual a Deus não é usurpação; Cristo é Deus em sua natureza. Antes do final do primeiro século d.C. surgiu dentro da igreja esta
Tampouco existe a questão de Cristo tentar reter essa igualdade pela doutrina herética — doutrina que veio a ser denominada docetismo (gr.
força. A questão fundamental é, antes, que Cristo não usou sua igualdade dokesis, "semelhança"). Tal doutrina herética enquadrava-se em certas
com Deus como desculpa para auto-afirmação, ou autopromoção; ao correntes de pensamento, mas foi rejeitada, com acerto, como idéia
contrário, ele a usou como ocasião para renunciar a todas as vantagens subversiva, destruidora dos alicerces do evangelho. Um escritor do NT,
ou privilégios que a divindade lhe proporcionava, como oportunidade posteriormente, adverte seus leitores contra esta forma de ensino falso
para auto-empobrecimento e auto-sacrifício sem reservas. que nega que "Jesus Cristo veio na carne" e estigmatiza-o como ensino
Vários comentaristas têm visto um contraste, aqui, com a história de do anticristo (1 João 4:2,3; 2 João 7). Paulo não tinha dúvida de que Jesus
Adão: Cristo gozava de verdadeira igualdade com Deus, mas recusou-se era verdadeiramente homem, "nascido de mulher" (Gálatas 4:4), e que
a auferir quaisquer vantagens dessa igualdade, ao tornar-se homem, morreu de forma terrível, por crucificação.
enquanto Adão, criado homem, à imagem de Deus, tentou arrebatar para Fazendo-se provavelmente significa "nasceu" como os demais ho-
si uma falsa e ilusória igualdade com Deus. Cristo alcançou senhorio mens ("nascido de mulher," para citarmos Gálatas 4:4 outra vez). Quanto
universal mediante sua renúncia, enquanto Adão perdeu seu senhorio a ele ser semelhante aos homens, uma possibilidade seria que temos
mediante o roubo do fruto proibido. Todavia, não há certeza se este aqui uma alusão àquele que era "um como o filho do homem," na visão
contraste estava na mente do autor ou não. de Daniel do dia do julgamento, alguém que recebera de Deus poder e
honra tais que "seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o
2:7 / mas a si mesmo se esvaziou — em vez de explorar sua igualdade
seu reino o único que não será destruído" (Daniel 7:13, 14). Estas
com Deus, e dela auferir vantagens. A tradução encontrada em ECA é
palavras de Daniel podem ter sido consideradas uma antecipação da
literal. J. B. Lightfoot prefere traduzir esta oração assim: '"ele se despo-
exaltação de Jesus, que aqui em Filipenses é apresentada como fato
jou a si próprio', não de sua natureza divina, visto que isso seria
consumado (vv. 9-11).
impossível, mas 'das glórias, das prerrogativas da divindade.'" A lição
92 93
(Filipenses 2:12-13) (Filipenses 2:12-13)
outras pessoas apresentavam para gloriar-se) — transtornando de modo
2:8 / E, achado na forma de homem: este período repete com irracional todos os valores aceitos na época. Paulo herdara as atitudes
palavras diferentes o que já foi dito no anterior. judaicas e romanas com respeito à crucificação.
Humilhou-se: está indicada uma auto-humilhação deliberada; pou-
2:9 / Prossegue o hino, celebrando agora o reverso da humilhação de
quíssima diferença existe entre ele se humilhou, aqui, e "a si mesmo se
Cristo, a suprema ilustração de suas próprias palavras: "quem a si mesmo
esvaziou" no v. 7, a menos que signifique: ele "a si mesmo se esvaziou"
se humilhar será exaltado" (Mateus 23:12, etc.). Visto que Cristo desceu
ao tornar-se homem e, a seguir, como homem, humilhou-se mais ainda.
às maiores profundidades, Deus o exaltou soberanamente.
A vida inteira do Senhor, da manjedoura ao túmulo, foi marcada por
Os cristãos filipenses confessavam a Jesus como o Senhor exaltado.
genuína humildade.
Todavia, como foi que ele atingiu tal exaltação? Mediante o auto-esva-
Sendo obediente até à morte, e morte de cruz: a NIV infelizmente
ziamento, ao entregar tudo quanto possuía. Não fica implícito que a
dá a mesma impressão que várias outras versões poderiam dar, de que
exaltação final serviu de incentivo para que ele se humilhasse, nem que
foi a morte que comandou e recebeu a obediência de Cristo. Ele obede-
fosse incentivo para os crentes que lhe seguem o exemplo de humildade.
ceu exclusivamente à vontade de Deus e, ainda quando essa vontade
Mas, como Cristo era aquele a quem confessavam como Senhor de tudo,
apontava para o sofrimento e morte, Cristo a acatou: "Não se faça a minha
seu exemplo lhes seria decisivo.
vontade mas a tua" (Lucas 22:42) disse ele a seu Pai celestial.
A redação destes versículos não teve a finalidade primordial de prover
Contudo, foi pela maneira como experimentou a morte, morte de
uma interpretação para determinada passagem do AT, mas ecoa alguns
cruz, que Cristo atingiu o ponto mais baixo de sua humilhação. As
precedentes do AT. Havia a descrição do desfigurado, maltratado servo
palavras morte de cruz não foram acrescentadas depois a uma compo-
do Senhor que, não obstante, "procederá com prudência"; e haveria de
sição já pronta, a fim de adaptá-la com maior precisão aos fatos históri-
ser "engrandecido, e elevado, e muito sublime" (Isaías 52:13, 14). E
cos. São palavras essenciais ao sentido, e talvez ao ritmo também. O texto
assim foi que Jesus, embora como homem caísse em desgraça e descré-
todo celebra a humilhação de Jesus, humilhação coroada pela morte de
dito, finalmente foi vindicado divinamente, como homem.
cruz. Segundo os padrões do primeiro século, nenhuma outra experiên-
Vários escritores do NT expressam a realidade da reivindicação e
cia poderia ser mais repugnante e degradante do que essa.
exaltação de Jesus dizendo que ele se sentou à destra de Deus (Atos 2:33;
Torna-se muito difícil para nós, depois de tantos séculos de cristianis-
Hebreus 1:3, etc.). Paulo conhece esta expressão, mas parece que a usa
mo, durante os quais a cruz tem sido venerada como símbolo sagrado,
apenas quando citando um credo doutrinário, como em Romanos 8:34 e
perceber todo o horror inefável, todo o pavor provocado pela simples
Colossenses 3:1. A expressão deriva de Salmo 110:1, em que o rei Davi
menção da cruz, na verdade, pelo mero pensamento na cruz. Pela lei
recebe convite em oráculo para partilhar o trono de Iavé, sentando-se à
judaica, qualquer pessoa que fosse crucificada morria sob maldição de
sua direita. De acordo com Marcos 14:62 e textos paralelos, Jesus em seu
Deus (Gálatas 3:13, mencionando Deuteronômio 21:23). Na educada
julgamento diante do sumo sacerdote e seus companheiros disse-lhes que
sociedade romana a palavra "cruz" era obcenidade, termo que não
ainda haveriam de ver "o Filho do homem assentado à direita do Todo-
deveria ser mencionado numa conversa. Até mesmo quando um homem
poderoso," assim ocupando, como se diria, a posição de maior honra no
estava sendo sentenciado à morte por crucificação, havia uma fórmula
universo, e sobre o universo.
arcaica que se usava a fim de evitar-se a simples pronúncia desse palavrão
(em latim, cria). Esta vil forma de punição foi a que Jesus suportou e, Ao ressuscitar a Jesus, Deus lhe deu um nome que é sobre todo o
ao suportá-la, transformou aquele vergonhoso instrumento de tortura em nome. Provavelmente se trata da designação "Senhor", em seu sentido
objeto do mais orgulhoso gloriar-se, entre seus seguidores. "Mas longe mais sublime. No AT grego esta palavra (kyrios) é usada de modo
esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo" especial, além dos usos e significados normais, para representar o nome
(Gálatas 6:14) disse Paulo, (colocando em contraste as razões que as pessoal do Deus de Israel. Este nome pessoal, em geral representado por
92 (Filipenses 2:12-13) (Filipenses 2:12-13) 93
Iavé, chegou a ser considerado sumamente sagrado, de modo que não prestar-lhe esse reconhecimento. Não existe qualquer dúvida no NT entre
poderia ser pronunciado em voz alta; por isso, quando as Escrituras eram o senhorio de Cristo, na igreja, e seu senhorio sobre o universo.
lidas em público, Iavé era substituído por outra palavra, com muita Na frase "para que ao nome de Jesus" (traduzida literalmente na AS V
freqüência por uma palavra que significa "Senhor". (Em ECA e na e outras versões) evidencia-se a força exata da preposição (gr. eri).
maioria das versões em português, "SENHOR" é grafado com seis letras Adoração é oração são apresentadas a Deus, o Pai, no nome de Jesus (ou
maiúsculas, quando se aplica ao inefável nome de Iavé.) Este é, pois, o mediante Jesus) porque ele é o caminho para o Pai, o único "Mediador
nome que Deus atribuiu a Jesus — raríssima honra, a mais rara, à vista entre Deus e os homens" (1 Timóteo 2:5). Mas não é isso que o apóstolo
de sua própria afirmação em Isaías 42:8, "Eu sou o Senhor, este é o meu quer dizer aqui. O sentido é transmitido mais adequadamente na tradu-
nome!" (querendo dizer: meu, e de mais ninguém). ção: "para que ao nome de Jesus" (como aparece em ECA, NIV, KJV,
Outra perspectiva é que "Jesus" tornou-se o nome que é sobre todo RS V, JB, NEB, NASB) ou "em honra ao nome de Jesus" (GNB). O poder
o nome, como se o nome que uma vez foi inscrito numa cruz se do nome de Jesus, diante do qual moléstias e demônios fugiam, durante
transformasse em nome sublime, excelso, no céu. Mas, o nome aqui seu ministério terreno, aumentou muito com a exaltação dada por Deus:
comentado é o que ele recebeu em conseqüência de sua humilhação e "Anjos e homens diante dele sucumbem / Demônios fogem e somem."
morte; o nome "Jesus" lhe pertenceu desde o nascimento. Porém, o nome É assim que Carlos Wesley identifica (em ordem contrária) os habitantes
de Jesus agora tem o valor de "Senhor"; por decreto de Deus, tornou-se do "inferno, terra e céus." Não apenas seres humanos, é o que o texto diz,
"o nome elevado, acima de tudo / no inferno, na terra e céus" — com mas anjos e demônios, em alegre espontaneidade ou temor relutante,
estas palavras, Carlos Wesley reproduz em ordem contrária a divisão reconhecem a soberania do crucificado — nos céus, na terra e debaixo
tríplice do universo, do versículo 10: nos céus, na terra e debaixo da da terra. Mas que se entende, precisamente, por debaixo da terra? Esta
terra. frase pode denotar o reino onde "se pensava que os mortos continuavam
2:10 / Em Isaías 45:23 o Deus de Israel, que já havia declarado que a existir" (GNB, nota marginal); pode significar também a habitação dos
não partilharia seu nome nem sua glória com outrem, jura solenemente maus espíritos, ou dos anjos desobedientes: "aos anjos que não guarda-
por sua própria vida, "diante de mim se dobrará todo joelho, e por mim ram o seu principado" (posição de autoridade) "ele os tem reservado em
jurará toda língua." Aqui, em Filipenses, o texto se repete mas, agora prisões eternas, na escuridão, para o juízo do grande dia" (Judas 6). Pode
para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho. Há paralelos desta ser relevante relembrar como a legião de demônios expulsos do jovem
passagem em outras porções do NT: em João 5:22, 23 o Pai faz do Filho gadareno "rogavam-lhe que não os mandasse para o abismo" (Lucas
juiz universal "para que todos honrem o Filho, como honram o Pai," e 8:31).
na visão do céu no Apocalipse 5:6-14, os seres celestiais ao redor do Talvez não seja tão importante pesquisar com muita minúcia se essa
trono de Deus prostram-se perante o Cordeiro vitorioso, quando este referência diz respeito a seres humanos mortos, a demônios, ou a ambos
surge, e entoam o cântico de celebração da dignidade do Cordeiro, que os grupos. É possível que a linguagem usada tenha a intenção de
também passa a ser entoado por toda a criação. Pode ser também que, no expressar a universalidade da homenagem prestada a Jesus. Noutra
encontro com a igreja, a primeira menção ao nome de Jesus será feita passagem Paulo exprime a idéia dessa universalidade em termos de céus
com palavras de homenagem — joelhos dobrando-se em honra ao e terra (sem mencionar debaixo da terra), quando diz (Colossenses
Cordeiro, e a confissão de seu senhorio. Assim, a congregação refletirá 1:16-20) que em Cristo "foram criadas todas as coisas que há nos céus e
na terra a adoração contínua apresentada nos céus. Todavia, fica expressa na terra, visíveis e invisíveis" (incluindo expressamente "tronos... domi-
a confiança em que esta adoração está destinada a espalhar-se ainda mais nações... principados... potestades" espirituais) e também que através de
— que até mesmo aqueles que na época presente se recusam a reconhe- Cristo, Deus reconciliou "consigo mesmo todas as coisas, tanto as que
cer, por ação ou palavra, o senhorio de Cristo, um dia haverão de estão na terra como as que estão nos céus" (talvez com a inclusão
92 93
(Filipenses 2:12-13) (Filipenses 2:12-13)
implícita dos poderes espirituais). Podemos comparar este texto com o
Salmo 48, onde a universalidade do louvor a Deus se expressa em Notas Adicionais 10
minúcias. O pioneiro na apresentação da tese de que os vv. 6-11 formam uma compo-
Sem sombra de dúvidas é isto que Paulo afirma: nada existe em toda sição independente, que Paulo incorporou em sua argumentação, foi E. Lohme-
a criação, agora, que não esteja "sujeito ao poder e soberania de Cristo, yer, na primeira edição de seu comentário sobre Filipenses (KEK, 1928) e em
sua monografia Kyrios Jesus: Eine Untersuchung zu Phil 2,5-11. O julgamento
nosso Redentor" (é com base nestas palavras que o simbolismo do globo
predominante quanto à autoria é que esse texto foi composto por outra pessoa,
terrestre dominado pela cruz é explicado no culto de coroação inglês). e não por Paulo (veja R. P. Martin, Carmen Christi pp. 42-62). Todavia, a autoria
Quanto aos mortos, o rei Ezequias poderia achar que estariam excluídos paulina tem sido defendida por M. Dibelius (ad loc.), W. Michaelis (ad loc.), E.
do privilégio de louvar a Deus (Isaías 38:18); todavia, a obra de Cristo F. Scott (ad loc.), L. Cerfaux, "L'hymne au Christ — Serviteur de Dieu (Phil.
transformou tudo isso: nas próprias palavras de Paulo, "Cristo morreu e 2, 6-11; Isa. 52, 13-53, 12)," pp. 425-37; J. M. Furness, "The Authorship of
Philippians ii. 6-11," ExpT 70 (1958-59), pp. 240-43. F. W. Beare (ad loc.) vê
tornou a viver, para ser Senhor tanto dos mortos como dos vivos"
aqui, "não um louvor 'pré-paulino', mas um louvor composto em círculos
(Romanos 14:9). paulinos, sob influência de Paulo, mas introduzindo certos temas na proclama-
ção da vitória de Cristo que são elementos elaborados independentemente de
2:11 / Todos quantos se ajoelham a fim de honrar o nome de Jesus Paulo."
confessam assim que Cristo Jesus é o Senhor. Aquele que assumiu "a Lohmeyer (Kyrios Jesus, p. 9) argumenta que houve um original aramaico
forma de servo" foi exaltado por Deus a fim de ser Senhor de todos, de desta invocação; quanto às tentativas de retroversões aramaicas veja P. P.
mod • v ue toda língua confesse que Cristo Jesus é o Senhor. A Levertoff (reproduzidas em W. K. L. Clarke, New Testament Problems p. 148);
salvação, diz Paulo, é assegurada a todos que o confessarem: "Se com a R. P. Martin, Carmen Christi pp. 40, 41; P. Grelot, "Deux notes critiques sur
tua boca confessares a Jesus como Senhor, e em teu coração creres que Philippiens 2, 6-11," pp. 185, 186. Não há necessidade de defender-se um
original aramaico; o texto grego não é tradução. Por outro lado, as retroversões
Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo" (Romanos 10:9); aramaicas exibem, sem torcer o texto, estrutura e ritmo apropriados.
"ninguém", afirma Paulo noutra passagem, "pode dizer: Jesus é o Se- O. Hofius (Der Christushymnus Philipper 2, 6-11, p. 8) argumenta com
nhor! senão pelo Espírito Santo" (1 Coríntios 12:3). bastante persuasão que a composição segue o padrão dos salmos do AT que
"Jesus (Cristo) é o Senhor" é a quintessência do credo cristão, no qual reiteram os atos salvíficos de Iavé, mediante confissão e agradecimentos.
a palavra "Senhor" recebe o mais augusto sentido. Quando os cristãos de 2:6 / que, sendo em forma de Deus: gr. hos en morphe theou hyparchon
("que, sendo já em forma de Deus"). Quanto ao pronome relativo hos assim
gerações posteriores se recusaram a dizer "César é o Senhor," recusa- usado aqui, para introduzir uma invocação ou confissão cristológica, cf. Colos-
ram-se porque sabiam que tais palavras não constituíam mera cortesia senses 1:15, hos estin eikon tou theou tou aoratou ("Ele é a imagem do Deus
requerida pelo título: era um título que dava o direito a César de receber invisível"); 1 Timóteo 3:16, hos ephanerothe en sarki ("aquele que se manifes-
honras divinas e, neste sentido, não podiam atribuí-las a mais ninguém tou em carne"). O substantivo morphe "implica não nos acidentes externos mas
nos atributos essenciais" (J. B. Lightfoot, ad loc.); possui um conteúdo mais
senão a Jesus. Para eles havia "um só Deus, o Pai... e um só Senhor, Jesus
substancial do que homoioma, na última frase do v. 7 ou schema na primeira
Cristo" (1 Coríntios 8:6). No AT grego, lido pelos cristãos gentios, Iavé frase do v. 8. O verbo hyparchein "denota 'existência anterior'" (Lightfoot, ad
era designado por theos ("Deus") ou (na maior parte das vezes) por kyrios loc.).
("Senhor"); reservava-se theos normalmente para Deus, o Pai, e kyrios Há disputa em torno do significado de harpagmos. De acordo com a analogia
para Jesus. de formações com -mos, deveria significar o ato de agarrar ou arrebatar harpa-
zein. Esta é a interpretação da KJV: "não considerou um roubo o ser igual a
Quando se prestam honras assim ao Jesus humilhado e exaltado, a
Deus" — tradução que apoia a versão de Tyndale, de 1526, indo além da Vulgata
glória de Deus Pai não é diminuída mas aumentada. Quando o Filho é non rapinam arbitratus est. Todavia, há uma tradição forte favorecendo o
honrado, o Pai é glorificado; porque ninguém consegue lançar sobre o tratamento de harpagmos como se fora sinônimo de harpagma — isto é, (de
Filho maiores honrarias do que as que o próprio Pai lhe concedeu. acordo com a analogia de tais formações em -ma, algo agarrado, ou a ser
92 93
(Filipenses 2:12-13) (Filipenses 2:12-13)
agarrado. Assim é que J. B. Lightfoot oferece a seguinte paráfrase: "Cristo, poderiam ser equivalentes ao hebraico heerah ... nafsho (Isaías 53:12), "ele
embora existindo desde antes do universo sob a forma de Deus, não considerou expôs sua vida" (KJV: "ele derramou sua alma"). Esta sugestão foi elaborada
sua igualdade com Deus como se fora um prêmio, um tesouro que deveria ser na suposição de que a frase interveniente lammaweth ("até à morte") do texto
avidamente agarrado e ostensivamente exibido; ao contrário, Cristo abriu mão hebraico faz eco no gr. mechri thanatou ("tão longe quanto a morte") no v. 8
das glórias dos céus" — acrescentando: "esta é a interpretação comum, na abaixo, de modo que a si mesmo se esvaziou... até à morte poderia ser
verdade, a mais universal entre os pais gregos, que teriam a mais viva sensibi- considerado praticamente como tradução variante de "derramou sua vida na
lidade quanto aos circunlóquios da língua" (Philippians. pp. 134,135). morte" (Isaías 53:12). Consultem-se H. W. Robinson, "The Cross ofthe Ser-
Que o neutro harpagma poderia ter este sentido é certo: Plutarco (On vant" (1926), em The Cross in the Old Testament (Londres: SCM Press, 1955),
Alexanders Fortune or Virtue 1.8.330d) afirma que Alexandre, o Grande, não pp. 104,105; C. H. Dodd, According to the Scriptures, p. 93; J. Jeremias, "Zur
tratou de sua conquista da Ásia hosper harpagma, "como um prêmio" a ser Gedankenführung in den paulinischen Briefen," em Studia Paulina in honorem
explorado para seu gozo ou vantagem pessoais, mas como um meio de estabe- J. de Zwaan ed. J. N. Sevenster e W. C. van Unnik, p. 154 com n2 3; A. M.
lecer a civilização universal sob uma lei (cf. A. A. T. Ehrhardt, "Jesus Christ Hunter, Paul and his Predecessors, pp. 43,44. Esta suposição contribui para o
and Alexander the Great," em The Framework of the New Testament Stories, argumento de que a invocação cristã é uma interpretação do quarto cântico do
pp. 37-43). Todavia, se este fosse o sentido objetivado nesta passagem de Servo (Isaías 52:13 — 53:12); permanece esta suposição, talvez atraente, mas
Filipenses, poderia ter sido expresso facilmente mediante harpagma, palavra destituída de prova.
muitíssimo familiar — que ocorre dezessete vezes na LXX, enquanto harpag- Tomando a forma de servo: gr. morphen doulou labon, em que labon é o
mos ocorre apenas uma única vez, aqui, na Bíblia grega, e mui raramente na particípio aoristo simultâneo ("ele se esvaziou a si mesmo ao tomar..."). Como
literatura grega. ocorre no v. 6, morphe significa "não apenas a semelhança externa ... mas os
C. F. D. Moule ("Further Reflexions on Philippians 2:5-11," em W. W. atributos que o caracterizam" (J. B. Lightfoot, ad loc.). C. F. D. Moule salienta
Gasque e R. P. Martin, eds.,Apostolic History and the Gospel p. 272), apresenta a importância da palavra doulos ("escravo") neste contexto: "escravidão, na
um poderoso argumento no sentido de manter-se a força ativa própria de sociedade da época, singificava o ponto extremo no que concerne à privação de
harpagmos-, "O ponto central da passagem é que, ao invés de imaginar que a direitos ... Pressionada pela conclusão lógica, a escravidão negaria à pessoa
igualdade com Deus significaria obter algo, Jesus, ao contrário, — deu-a— todos os seus direitos — até mesmo o direito à vida, o direito de ser pessoa"
deu-se, até 'esvaziar-se'... ele considerou a igualdade com Deus não como ("Further Reflections," p. 268).
plerosis mas como kenosis, não como harpagmos mas, como desgaste total — Fazendo-se semelhante aos homens: gr. en homoiomati anthropon geno-
até à morte." menos, onde genomenos provavelmente significa "nascido" (como em Gálatas
Quanto à opinião de que Paulo objetiva, aqui, um contraste entre Cristo e 4:4 genomenon ekgynaikos "nascido de mulher"); cf. Romanos 1:3, "que nasceu
Adão, consultem-se O. Cullmann, The Christology ofthe New Testament, pp. (genomenon) da descendência de Davi"; João 8:58, "antes que Abraão nascesse
174-81; R. P. Martin, Carmen Christi, pp. 161 -64 (Martin faz recuar esta opinião genesthai, 'eu sou"'; e quanto ao sentido geral, Sabedoria 7:1-6, onde Salomão
até G. Estius em 1631). D. H. Wallace ("A Note on morphe") argumenta contra insiste em que ele veio ao mundo como qualquer outro ser humano: "quando eu
essa opinião, dizendo que o morphe theou do v. 6 (como se torna evidente de nasci (genomenos,) comecei a respirar o ar comum."
morphe doulou do v. 7 é diferente da igualdade com Deus concedida a Adão e E, achado na forma de homem: gr. schemati heuretheis hos anthropos, onde
Eva em Gênesis 3:5. (O AT grego não usa morphe mas eikon ao referir-se à schema, sem sugerir que a humanidade de Cristo era apenas aparente, pode
"imagem" de Deus com que Adão foi criado.) Outra opinião sustenta que o indicar que havia nele mais do que mera humanidade (Cristo continuou a possuir
contraste objetivado é entre Cristo e Lúcifer, pois este tentou ser "semelhante a "natureza de Deus"). Não existe qualquer ênfase na idéia de encontrar-se em
ao Altíssimo" (Isaías 14:14); à bibliografia referente a esta opinião, indicada em heuretheis (particípio passivo aoristo de heuriskein)-, o passivo de heuriskeiné
R. P. Martin, Carmen Christi, pp. 157-61, acrescente-se E. K. Simpson, Words usado aqui mais como se trouver em francês (cf. 3:9; Hebreus 11:5). Com hos
Worth in the Greek New Testament (Londres: Tyndale Press, 1946), pp. 20-23. anthropos compare Daniel 7:13 (Theodósio), hos hyios anthropou ("o que
2:7 / mas a si mesmo se esvaziou: gr. heauton ekenosen (tradução literal). parecia um ser humano"). Lightfoot (ad loc.) compara-o com Testament of
O uso do verbo grego aqui atribuiu o nome de kenosis a uma teoria cristológica Zebulun 9:8, "você verá Deus à semelhança do homem" (en schemati anthro-
que já foi popular (a teoria "cinótica") que, na verdade, nada tem que ver com pou) — mas isto surge de uma revisão cristã da obra, e poderia depender da
o significado da presente passagem. Consulte-se E. R. Fairweather, "The redação deste louvor a Cristo.
'Kenotic' Christology," nota anexa a F. W. Beare, Philippians, pp. 159-74. 2:8 / humilhou-se a si mesmo, sendo obediente: gr. etapeinosen heauton
W. Warren em "On heauton ekenosen," sugere que estas duas palavras gregas genomenos hypekoos, "ele se humilhou ao tornar-se obediente" (como labon no
92
(Filipenses 2:12-13) (Filipenses 2:12-13) 93
v. 1, genomenos é simultaneamente particípio aoristo). Enquanto W. F. Beare (C. F. D. Moule, IBNTG p. 78; cf. "Further Reflexions," p. 270, onde o autor
(ad loc.) vê aqui uma provável referência à "submissão ao poder dos Espíritos liga a tradução à identificação de "Jesus" como o nome que é sobre todo o
Elementares" (os stoicheia, inexiste quaisquer paralelos de tal pensamento nos nome).
escritos do NT). Cristo penetrou na esfera da vida humana que era dominada Nos céus, na terra e debaixo da terra: gr. epouranion kai epigeion kai
por aquelas forças, mas em vez de ele se lhes submeter, elas é que se lhe katachthonion, três substantivos no genitivo plural, provavelmente para serem
submeteram (Colossenses 2:15). Se A. J. Bandstra estiver certo em tomar a lei entendidos como sendo do gênero masculino (ou neutro), visto que são seres
como sendo uma dessas forças (The Law and the Elements of the World pp. inteligentes que prestam homenagem laudatória e fazem confissão. Todavia, W.
60ss.), poder-se-ia concluir, então, que Cristo, por ter nascido sob a lei (Gálatas Carr (Angels and Principalities, pp. 86-89) diz o seguinte: "é razoavelmente
4:4), de alguma forma se lhe submeteu; mas, em Gálatas 4:3, 9, é o legalismo, certo que os três substantivos sejam do gênero neutro, em vez de masculino,"
e não a lei como revelação da vontade de Deus (à qual [vontade] Cristo prestou visto que a referência aplica-se "não tanto aos seres que habitam as três regiões,
obediência com total alegria e liberdade), que se encontra entre stoicheia. mas à noção abrangente da universalidade do louvor a Deus."
Tampouco foi à morte que Cristo prestou obediência (como se poderia deduzir, Há uma passagem paralela notável (que na verdade poderia depender desta
pela redação de KJV); foi à vontade do Pai que ele prestou obediência até chegar passagem de Filipenses) em Inácio, To the Trallians 9:1, onde se afirma, em
à morte. seqüência de credo, que Jesus Cristo "verdadeiramente foi crucificado, e mor-
A frase até à morte, e morte de cruz constitui o climax da primeira parte reu, à vista dos que habitam os céus, a terra e debaixo da terra" (bleponton ton
do louvor. Não se trata de adendo posterior, que objetivasse cristianizar a epouranion kai epigeion kai hypochthonion). Também aqui os substantivos
composição; ela integra o sentido e ritmicamente forma uma coda para a parecem ser do gênero masculino, visto que as pessoas viram a paixão de Cristo.
primeira parte, assim como a frase para glória de Deus Pai forma uma coda E possível que Carr tenha razão em pensar que Inácio, ao usar esses três
para a segunda parte (cf. O. Hofius, Der Christushymnus, pp. 3-17). substantivos, referia-se de modo abrangente a "todo o universo habitado";
Morte de cruz, nas palavras de Cícero, "a mais cruel e abominável forma de todavia, esse universo é de seres inteligentes.
punição" (Verrine Orations 5.64); "a própria palavra 'cruz', disse ele, "deveria ser F. W. Beare (ad loc.) argumenta que a referência a todos os três substantivos
estranha não somente ao corpo de um cidadão romano, mas a seus pensamentos, "se faz com certeza a espíritos— astrais, terrestres e demoníacos." Não há razões
seus olhos, seus ouvidos" (Oration in Defense ofC. Rabirius, 16). Veja M. Hengel, plausíveis para limitarmos assim a referência aos seres inteligentes, e mais
Crucifixion. enfaticamente nenhuma razão para a declaração adicional de que a proclamação
do v. 11 não é "uma confissão de fé em Jesus por parte da igreja, mas a
2:9 I Deus o exaltou soberanamente: gr. ho theos auton hyperypsosen,
aclamação dos espíritos que rodeiam o trono de Cristo." Trata-se de ambas as
"Deus altamente o exaltou." O verbo simples é usado no começo do quarto
coisas.
cântico de Isaías (Isaías 52:13): "será engrandecido, e elevado" (hypsothesetai).
2:11 / Cristo Jesus é o Senhor: gr. kyrios Iesous Christos. Cf. Atos 10:36,
Todas as fontes de testemunho do NT concorrem para celebrar a exaltação de
"Jesus Cristo (este é o Senhor de todos)."
Jesus: "É-me dado todo o poder no céu e na terra" (Mateus 28:18); "Jesus,
Para glória de Deus Pai: é a coda para a segunda parte do louvor e também
sabendo que o Pai tinha depositado nas suas mãos todas as coisas" (João 13:3);
para o louvor todo ("até à morte, e morte de cruz", é a coda da primeira parte).
Cristo é retratado como "feito mais sublime do que os céus" (Hebreus 7:26);
Deus foi glorificado na humilhação de Cristo, tanto quanto é glorificado em sua
"havendo-se-lhe sujeitado os anjos, e as autoridades, e as potestades" (1 Pedro
exaltação.
3:22); "Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber poder, e riqueza, e
sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor" (Apocalipse 5:12).
C. F. D. Moule ("Further Reflexions," p. 270) propõe o seguinte: "a despeito
de todo o peso das opiniões contrárias," entender o nome que é sobre todo o
nome como sendo "o nome de 'Jesus', não o título 'Senhor'... Deus, na
encarnação, atribuiu a Quem está em igualdade um nome terreal que, em vista
de acompanhar o auto-esvaziamento mais parecido com o do próprio Deus, veio
a tomar-se, na verdade, o mais exaltado de todos os nomes, porque o trabalho
e a auto-entrega são em si mesmos os mais elevados atributos divinos." Veja-se
também J. Barr, "The Word Became Flesh: The Incarnation in the New
Testament," Interp 10 (1956), pp. 16-23, especialmente p. 22.
2:10 / para que ao nome de Jesus: "quando o nome de Jesus é pronunciado"
(Filipenses 2:17-46a) 99
apóstolo tranqüiliza os crentes de Roma, dizendo: "não recebestes o
11. Exortação à Fidelidade (Filipenses 2:12-13) espírito de escravidão para outra vez estardes em temor" (Romanos
8:15). Trata-se, antes, de uma atitude de reverência e profundo respeito,
na presença de Deus, de extrema sensibilidade à sua vontade, de
consciência de nossa responsabilidade à vista de havermos de prestar
Após a invocação a Cristo, Paulo retoma a exortação apostólica, que
contas perante o tribunal de Cristo. Os crentes devem reconhecer que
é reforçada pelo conteúdo daquele louvor.
em sua vida comunitária Deus está presente. Os pagãos que entravam
2:12 / Paulo enfatiza a obediência que caracterizou Cristo. A obediên- nas reuniões dos crentes imediatamente se conscientizavam disso.
cia dele deve servir de exemplo para seus discípulos. Paulo não tem "Deus está verdadeiramente entre vós" (1 Coríntios 14:25). É certo,
dúvidas quanto à obediência dos crentes filipenses: nada há neles pare- pois, que os crentes deveriam ter muito maior consciência da presença
cido com os coríntios, na situação refletida em 2 Coríntios 10:6, mas os divina.
filipenses sempre demonstraram obediência, não tanto a Paulo mas ao
2:13 / Estando Paulo vivo e, de modo especial, quando ele estava em
Senhor de quem ele era apóstolo. Se alguém julgar estranho que se
liberdade, podendo visitar os filipenses, seu interesse era a "salvação"
mencione obediência numa carta de um amigo dirigida a amigos amados
deles. Entretanto, nem sempre Paulo estava por ali, disponível. Isto não
(NIV traz "meus amigos amados"), é preciso lembrar-se de que Paulo
significava, porém, que quando o apóstolo estivesse permanentemente
não era apenas o amigo dos filipenses; ele era o apóstolo de Jesus Cristo
ausente, os filipenses seriam abandonados a seus próprios recursos. Deus
para eles. Nesta carta, Paulo não afirma sua autoridade apostólica, como
é o que opera em vós, diz Paulo — não em vós apenas individualmente,
o faz em outras (cf. 1 Coríntios 9:1, 2; 2 Coríntios 3:1-3); a autoridade
mas como coletividade. Pelo seu Espírito que em vós habita ele opera
dele nunca foi desafiada em Filipos. Entretanto, por toda a carta fica
em vós tanto o querer como o efetuar — tanto o desejo de efetuar,
evidente a marca da autoridade apostólica.
segundo a sua boa vontade, como também o poder para efetuar. Trata-se
O apelo de Paulo aos filipenses é, então, este: de sorte que, meus
de parte do ensino de Paulo a respeito do Espírito Santo, ainda que o
amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha presença,
Espírito não seja explicitamente mencionado aqui. Como Paulo enfatiza
mas muito mais agora na minha ausência, assim também efetuai a
noutras passagens, o Espírito realiza o que a lei não consegue realizar: a
vossa salvação com temor e tremor. A obediência dos filipenses
envolvia a tradução dos princípios do evangelho, em que haviam crido, lei podia dizer às pessoas o que deveriam fazer, mas não podia suprir-lhes
em ação constante. O evangelho lhes trouxera salvação — sua própria o poder, nem mesmo a vontade de fazê-lo; o Espírito supre ambas as
salvação, como Paulo diz com muita ênfase, porque é dádiva gratuita de coisas (Romanos 8:3, 4; 2 Coríntios 3:4-6). Quando o Espírito toma a
Deus para eles. Entretanto, ela precisa ser "efetuada" na vida prática, à iniciativa de partilhar com os crentes o desejo e o poder para realizar a
vista da aproximação do "dia de Cristo," que lhes completará a salvação vontade de Deus, esse desejo e poder se lhes torna possessão pessoal,
(neste sentido Paulo diz em Romanos 13:11 que a salvação dos crentes como dádiva de Deus, e os crentes obedecem à vontade de Deus "de
"está agora mais perto de nós do que quando aceitamos a fé.") Neste coração" (Efésios 6:6).
contexto, Paulo não está exortando cada membro da igreja a empenhar-se
na obra de sua salvação pessoal; Paulo está pensando na saúde e bem- Notas Adicionais 11
estar geral da igreja como um todo. Cada crente, e todos os crentes, num 2:12 O apóstolo, à semelhança do shaliah entre os judeus, era um mensageiro
corpo só, precisam prestar atenção a este fato. devidamente credenciado; enquanto permanecesse obediente às condições de
A seriedade com que os crentes devem tratar deste assunto fica sua comissão, o apóstolo exercia a autoridade da pessoa que o havia enviado:
indicada na frase com temor e tremor. É evidente que a atitude reco- "o shaliah de um homem é como esse homem em pessoa" (Talmude Babilônico,
mendada pelo apóstolo aqui nada tem que ver com o terror servil; o tractate Berakot34b). Consulte-se C. K. Barrett, "Shaliah and Apostle, " em E.
92 (Filipenses 2:12-13) (Filipenses 2:12-13) 93
Bammel, C. K. Barrett, e W. D. Davies, eds., Donum Gentilicium, pp. 88-102. ocorre na literatura Qumran (1QH 4.32, 33; 11.9), referindo-se "mais natural-
Na minha presença ... na minha ausência. No texto grego estas frases mente à vontade de Deus em conferir graça àqueles a quem ele escolheu, mais
vêm ligadas a assim também efetuai, como demonstra o me negativo, do que o fato de deleitar-se e aprovar a bondade nas vidas dos homens" (E. Vogt,
precedente, que é negativo adequado ao imperativo katergazesthe, e não ao '"Peace among Men of God's Good Pleasure' Lk. 2:14," em The ScrolLs and
indicativo hypekousate (obedecestes): efetuai não apenas na minha pre- the New Testament, ed. K. Stendahl, p. 117).
sença (parousia, como em 1:26), mas muito mais agora na minha ausência
(iapousia, somente aqui, em todo o NT). A partícula traduzida por "assim
como" hos que precede na minha presença é omitida em B e em outros
fragmentos; essa partícula "coloca ênfase no sentimento, ou no motivo do
agente" (J. B. Lightfoot, ad loc.) — "como se minha presença vos motivas-
se." F. W. Beare (ad loc.) pensa que, no contexto geral, o contraste entre
"presença" e "ausência" significa "durante minha vida" e "depois de minha
morte"; tal implicação está embutida nas palavras de Paulo, mas o sentido
do texto não precisa restringir-se a isso apenas.
A vossa salvação: gr. ten heauton soterian ("vossa própria salvação"), estando
o pronome reflexivo da terceira pessoa estendido de modo a abranger a segunda
pessoa. Quanto ao sentido corporativo de salvação aqui, veja J. H. Michael, "Work
out your own Salvation," Expositor, série 9, 12 (1924), pp. 439-50.
Com temor e tremor: gr. meta phobou kai tromou, parelha favorita do
vocabulário de Paulo, segundo parece, referindo-se a diversos tipos de temor.
Em 1 Coríntios 2:3 é empregada quanto às dúvidas com que Paulo aproximou-se
pela primeira vez de Corinto, tendo sido expulso de uma cidade macedônica
após outra; em 2 Coríntios 7:15 é usada com referência ao tremor com que os
crentes coríntios saudaram a Tito, o enviado de Paulo, tão logo foram repreen-
didos pela severa carta do apóstolo; em Efésios 6:5 é usada quanto ao sentido
de reverência e dever a respeito de Cristo, que deveria motivar os escravos
cristãos a obedecerem a seus senhores pagãos.
Não há apoio no texto, nem no contexto, para a opinião de W. Schmithals
(Paul and the Gnostics, p. 98) que Paulo aqui está advertindo seus leitores contra
a falsa segurança daqueles que crêem que já alcançaram a perfeição (veja-se
mais na discussão de 3:12-14).
2:13 / que opera em vós: gr. energein (duas vezes neste versículo), é um
verbo usado com freqüência por Paulo, referindo-se à eficácia do poder de Deus
(cf. o substantivo cognato energeia, "poder", em 3:21).
querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade: gr. hyper tes eudokias,
"para o bom prazer." Não está escrito expressamente "bom prazer" de quem,
mas certamente é de Deus (visto que Deus é o sujeito da oração). O substantivo
eudokia foi usado em 1:15 para referir-se à "boa mente" ("genuína boa vonta-
de") com que algumas pessoas pregam o evangelho em Roma, porém o sentido
aqui é um tanto diferente (a despeito dos que acham que hyper tes eudokiassig-
nifica "promover boa vontade"). Cf. Lucas 2:14, em que en anthropois eudokias
não significa "entre homens de boa vontade" mas "entre seres humanos que são
objetos da boa vontade de Deus" (propósito salvífico; cf. NIV). (Uma frase
hebraica semelhante, "filhos de sua/tua boa vontade" (bene resono/resoneka,
(Filipenses 2:17-16a) 99
do-os a que, mediante generoso altruísmo, se tornassem verdadeiros
12. Esperança de Paulo Quanto aos Filipenses filhos do Pai celeste — que fossem perfeitos como Deus é perfeito
(Filipenses 2:14-16) (Mateus 5:13, 45, 48). Em contraste, as pessoas daquela geração do
deserto foram repudiadas: "já não são seus filhos" (Deuteronômio 32:5).
Jesus comparou seus seguidores não apenas ao sal mas também à "luz
do mundo" (Mateus 5:14-16). Paulo apanha esta figura de linguagem e
A obediência filipense, ou resultado do "efetuai a vossa salvação", com ela encoraja os cristãos filipenses: resplandeceis como astros no
dependia em grande parte da persistência do amor e da harmonia na mundo. A palavra que o apóstolo usa é "luminárias" (gr. phosteres)-, é
comunidade dos crentes. Se o amor e a harmonia se mantivessem, o usada na versão grega de Gênesis 1:14-19 quanto ao sol, à lua e às estrelas
testemunho dos filipenses perante o ambiente pagão seria eficaz. Paulo que o Criador espalhou pela abóbada celeste no quarto dia. Tais luminá-
podia aguardar confiante a época em que ele seria convocado a fim de rias não brilham para si mesmas; brilham a fim de prover luz para o
prestar contas de sua mordomia com respeito àquela igreja. mundo todo. O mesmo deveria ser verdade a respeito do crente: ele vive
para os outros. A igreja tem sido chamada de clube que existe para o
2:14 / O propósito de Deus para seu povo só pode ser cumprido se este benefício dos que não são sócios.
viver em unidade harmoniosa, fazendo todas as coisas sem murmura-
No mundo: tradução literal do grego kosmos. Esta palavra foi usada
ções nem contendas. Esta linguagem foi tomada de empréstimo das
em João 3:19 e 12:46, onde Jesus fala sobre ter vindo "ao mundo como
descrições feitas no AT das gerações de israelitas que atravessaram o
luz" (cf. também 1:9; 8:12; 9:5).
deserto, sob a liderança de Moisés, após a libertação do Egito. Eles
reclamavam reiteradamente das privações, dizendo que jamais deveriam 2:16 / Paulo muda, agora, deixando a linguagem figurada para usar a
ter deixado o Egito (Números 11:1-6; 14:1-4: 20:2; 21:4, 5). Moisés os literal, e diz que a tarefa deles é reter a palavra da vida. Devem
descreveu como "geração perversa e depravada" (Deuteronômio 32:5, apresentar o evangelho pelo modo de vida, como também pelas palavras
mencionado no v. 15 abaixo), "geração perversa, filhos sem lealdade" que pronunciam. Ninguém lhes aceitaria a mensagem com seriedade, se
(Deuteronômio 32:20). vivessem de forma contraditória à palavra. Entretanto, se vivessem de tal
modo que seus vizinhos lhes perguntassem o que é que os capacitava a
2:15 / Os seguidores de Cristo não deveriam proceder como aquelas serem irrepreensíveis e sinceros no viver, os crentes filipenses pode-
gerações israelitas, no deserto. Escrevendo a seus convertidos coríntios,
riam então falar-lhes da palavra da vida que lhes havia revolucionado
Paulo precisou adverti-los com seriedade contra a imitação de um
as atitudes e condutas.
exemplo tão desastroso, de modo que viessem a incorrer no mesmo
A palavra da vida é chamada assim porque proclama a verdadeira
julgamento: não deveriam murmurar "como alguns deles murmuraram,
vida que se encontra em Cristo; ela nos fala de como "o justo viverá da
e pereceram pelo anjo destruidor" (1 Coríntios 10:10). Todavia, ainda
fé" (Romanos 1:17; Gálatas 3:11, citando Hebreus 2:4). O evangelho que
que uma admoestação para que se procure um modo de vida harmonioso,
os apóstolos foram convocados para pregar compreende "a mensagem
cheio de alegria, nunca é imprópria, Paulo sabia que seus amigos filipen-
completa desta nova vida" (Atos 5:20) — expressão sinônima de "a
ses tinham um caráter melhor. Não eles, mas seus vizinhos pagãos é que
palavra desta salvação" (Atos 13:26). Noutra passagem Paulo se refere
podem ser descritos como geração corrompida e perversa. Os crentes
a essa vida como "o dom gratuito de Deus" que "é a vida eterna, em Cristo
filipenses devem estabelecer um exemplo melhor perante o mundo que
Jesus nosso Senhor" (Romanos 6:23); "vida eterna" significa a vida na
os circunda, mostrando-se irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus
era vindoura (a da ressurreição), recebida e gozada pelos crentes, aqui e
inculpáveis, refletindo o caráter de seu Pai, povo contra cuja maneira de
viver ninguém pode apontar um dedo acusador. Era isso que Jesus tinha agora, mediante a participação deles na vida ressurreta de Cristo.
em mente para seus discípulos, ao chamá-los de "sal da terra", exortan- Paulo punha ordem em sua vida à luz do dia de Cristo que está
92 (Filipenses 2:12-13) (Filipenses 2:12-13) 93

próximo; ele sabia que nesse dia sua obra apostólica seria investigada. genesthe) filhos do vosso Pai que está nos céus" (Mateus 5:45). A palavra
traduzida por irrepreensíveis aqui, em ECA é o gr. amorna, "sem mancha" (cf.
Assim disse ele: "A mim pouco se me dá de ser julgado por vós, ou por
Efésios 1:4; 5:27; Colossenses 1:22, etc.), usada na LXX em especial para
algum tribunal humano" visto que, prossegue o apóstolo, "quem me julga referir-se aos animais sacrificiais. Veja abaixo.
é o Senhor" (1 Coríntios 4:3,4). Reiteradamente Paulo deixa bem claro Uma geração corrompida e perversa: Gr. geneas skolias kai diestramme-
que ele enfrentará o dia de Cristo com muita confiança, desde que seus nes, de Deuteronômio 32:5, que assim descreve a geração do deserto. Os
convertidos permaneçam firmes e vivam de modo que tragam crédito ao israelitas daquela geração são ainda descritos, no mesmo versículo, como tekna
mometa, "filhos... mancha", ou "filhos manchados"; há um contraste deliberado
evangelho que lhes pregou. Quando ele tiver de encontrar-se face a face
aqui entre tekna... amorna, "filhos não manchados (inculpáveis). " Veja acima.
com o Senhor, de quem recebeu um ministério no caminho de Damasco, Entre a qual resplandeceis como astros no mundo: visto que o verbo está
sua esperança é que lhe será suficiente apontar para seus convertidos e na voz mediana, ou passiva, (phainesthe, não na ativa phainete, que pode muito
convidar o Senhor para avaliar a qualidade de sua obra segundo a bem significar "vós resplandeceis," "vós distribuis a luz," alguns têm argumen-
qualidade da vida daqueles a quem levou a Cristo. E assim é que Paulo tado (entre eles por exemplo E. Lohmeyer, ad loc.), que o texto significa "vós
e seus companheiros podem descrever os cristãos da Tessalônica desta apareceis como luzeiros no mundo." Contudo, a voz passiva também fica
atestada com o sentido de "resplandecer" em associação com phosteres ("lumi-
maneira: "qual é a nossa esperança, ou gozo, ou coroa de glória na nárias"); "resplandeceis" é uma tradução apropriada aqui. Em Daniel 12:3 está
presença de nosso Senhor Jesus na sua vida? Não sois vós?" (1 Tessalo- escrito que, no dia da ressurreição, "os que forem sábios (os quais suportaram
nicenses 2:19). De modo semelhante, Paulo assegura a seus irmãos o peso da perseguição) resplandecerão como o fulgor do firmamento (LXX:
filipenses que, se eles mantiverem seu bom testemunho de Cristo, terão phanousin hos phosteres tou ouranou, 'resplandecerão como luminárias nos
retido a palavra da vida, para que no dia de Cristo possa gloriar-me céus'); e os que a muitos ensinam a justiça refulgirão como as estrelas sempre
e eternamente." Todavia, aqueles que, agora, partilham a ressurreição de Cristo
de não ter corrido nem trabalhado em vão. antecipam o ministério do dia da ressurreição e já dão testemunho resplande-
A palavra corrido é um exemplo da preferência de Paulo pela lingua- cente. É que a designação "filhos da luz" aplicava-se aos seguidores de Cristo
gem de atletismo a fim de descrever seu ministério. De modo semelhante, cf. Lucas 16:8; João 12:36; Efésios 5:8; 1 Tessalonicenses 5:5.
em Gálatas 2:2, ele declara: "para que de maneira alguma não corresse, 2:16 / possa gloriar-me: gr. eis kauchema emoi, "tenha (motivo) para
ou não tivesse corrido em vão." (Veja-se também 1 Coríntios 9:24-27.) gloriar-me"; cf. uso similar do substantivo kauchema em 1:26, to kauchema
hymon, "vosso (motivo) para gloriar-vos."
A palavra para corrido é a mesma para trabalho árduo, ou esforço de não ter corrido nem trabalhado em vão: O. Bauernfeind sugere, à luz
extenuante; Paulo a usa outra vez em Gálatas 4:11a fim de expressar a de Gálatas 2:2, que a expressão "corrido em vão" (eis kenon trechein "era de
idéia de trabalhar em vão: "Receio por vós, que de algum modo eu tenha uso comum para o apóstolo Paulo" (TDNT, vol. 8, p. 231, s. v. "trecho"). A
trabalhado em vão para convosco." palavra traduzida por trabalhado (kopian) é uma das favoritas dele para
descrever o trabalho cristão, seu mesmo ou de outrem (cf. Romanos 16:6,12; 1
Quanto ao dia de Cristo vejam-se os comentários de 1:6, 10; quanto
Coríntios 4:12; 15:10; 16:16; Gálatas 4:11; Colossenses 1:29; 1 Tessalonicenses
à associação de orgulho ou gloriar-me naquele dia, veja-se 1:26 com os 5:12); a implicação de que o trabalho resulta em cansaço está em João 4:6, em
comentários. que Jesus ao meio-dia senta-se ao lado do poço de Jacó porque está "cansado"
kekopiakos da viagem.
Notas Adicionais 12
2:14 / W. Schmithals acha que a advertência contra murmurações e conten-
das só é inteligível com referência à "dissensão trazida à comunidade pelos
falsos mestres" (Paul and the Gnostics, p. 74). Todavia, é fácil pensar numa
grande variedade de outras causas que poderiam levar a murmurações, queixu-
mes e discussões. Comparem-se também as exortações de 4:1-3, 8-9.
2:15 / Há uma espantosa similaridade entre para que sejais (hina genesthe)...
filhos de Deus e as palavras do sermão do monte: "para que sejais (hopos
(Filipenses 2:17-18a) 99
Até que a morte venha selar tuas misericórdias sem fim,
13. Libação de Paulo Sobre o Sacrifício dos E completar meu sacrifício.
Filipenses (Filipenses 2:17-18a) As figuras de linguagem de Paulo são semelhantes, com uma diferen-
ça material: a morte dele completaria o sacrifício dos filipenses . O
martírio coroaria sua vida e seu apostolado, mas Paulo deseja que esse
sacrifício seja colocado como crédito aos filipenses e não a seu próprio.
A vida da igreja filipense é vista como uma oferenda a Deus: se Se assim for, "nada há aqui para lágrimas "; esta perspectiva leva o
falta alguma coisa para tornar essa oferenda perfeitamente aceitável, apóstolo a dizer: eu folgo e me regozijo com todos vós, e a mesma
Paulo está disposto a dar a própria vida em sacrifício como a coisa perspectiva deveria levá-los a dizer o mesmo.
faltante — para crédito dos filipenses, não seu.
2:18 / Paulo havia dito antes que esperava ser libertado e, assim,
2:17 / Paulo retorna à sua atual situação. Aguarda um veredicto aumentar-lhes o "progresso e gozo na fé" (1:25). Contudo, os filipenses
favorável, da parte do tribunal imperial, mas não pode ter certeza: o caso devem regozijar-se da mesma forma, se as coisas saírem de modo
pode pender para o outro lado, e o apóstolo pode ser sentenciado à morte. diferente. Seja qual for o resultado do julgamento, trará honra ao nome
Se assim for, a sentença poderia ser morte por decapitação. Como é que de Cristo (1:20), o que constituiria motivo para que os filipenses se
Paulo via essa perspectiva? regozijassem, ainda que tal honra sobreviesse mediante a morte de Paulo,
A vida e o trabalho dos cristãos poderiam ser descritos como um e não pela sua libertação e sobrevivência. E por isso, diz Paulo,
sacrifício. Paulo exorta os crentes romanos a apresentarem seus "corpos vós também regozijai-vos e alegrai-vos comigo.
como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus" (Romanos 12:1). A oferta
monetária dos filipenses a Paulo é comparada a "cheiro suave, como Notas Adicionais 13
sacrifício agradável e aprazível a Deus" (Filipenses 4:18). Então, se a
vida de fé for oferecida em sacrifício a Deus, poderia algo ser acrescen- 2:17 / Quanto a libações de vinho (NIV: "ofertas de bebidas") para Iavé cf.
Oséias 9:4 e especialmente Siraque 50:15, na descrição do ministério do templo
tado a fim de garantir sua aceitação? Quando se oferecia um sacrifício
de Simão, o sumo-sacerdote (ca. 200 a.C.):
no templo de Jerusalém, como, por exemplo, uma oferta queimada, com "Não derramarão vinho perante o Senhor, nem as suas ofertas serão para ele
a acompanhante oferenda de cereais, podia-se fazer uma oferta de bebida, suaves. Tais sacrifícios para eles serão como o pão de pranteadores."
ou libação, isto é, vinho ou azeite derramado sobre o sacrifício queimado, Outras referências às libações expressam desaprovação porque estão asso-
ou ao seu lado. Este derramamento era feito no final do sacrifício, e o ciadas ao paganismo (cf. Jeremias 7:18; 2 Reis 16:13). Quanto ao uso de
completava. E, ainda que seja oferecido por libação, diz Paulo, permi- spendomai cf. 2 Timóteo 4:6 (provavelmente se trata de um eco desta passa-
gem), em que a libação em que Paulo se tomará deixa de ser mera possibilidade
tam-me ser derramado como oferta de bebida sobre o sacrifício e serviço
para concretizar-se, em breve; também o verbo derivado spondizomai em
da vossa fé. Quando Paulo afirma: ainda que seja oferecido por libação Inácio, To the Romans 2:2, em que Inácio roga aos cristãos de Roma que não
(gr. ei kai spendomai), ele não está pensando numa libação literal de tentem impedir o martírio dele nessa cidade: "concedei-me nada mais senão ser
sangue, como a que se fazia em alguns cultos pagãos (cf. Salmos 16:4: derramado (spondisthenai) para Deus"; eles seriam comparáveis ao coro do
"suas libações de sangue"); ele está pensando na entrega fervorosa de templo, que canta enquanto o sacrifício está sendo oferecido no altar.
sua vida a Deus. A palavra serviço é tradução do gr. leitourgia, culto religioso (usada outra
vez no v. 30, abaixo).
Carlos Wesley, em versos memoráveis, ora para que sua vida venha
J.-F. Collange (ad loc.) acha que essa referência não é ao martírio de Paulo, mas
a ser um sacrifício perpétuo, aceso no "altar indigno de meu coração", à sua vida, gasta na obra de Deus; ele compara W. Michaelis (ad loc.); A. M. Denis,
pela chama do Espírito Santo: "Versé en libation (Phil. 11,17). Versé en son sang?" RSR 45 (1957), pp. 567-70 e
Pronto estou para fazer toda a tua perfeita vontade, "La fonction apostolique et la liturgie nouvelle en esprit," RSPT 42 (1958), pp.
Repete meus atos de fé e de amor 617-50; T. W. Manson, Studies in the Gospels arui Epistles, pp. 151, 152.
99
(Filipenses 2:17-19a)

14. Visita de Timóteo Aguardada É mais seguro inferir que Timóteo havia-se unido a Paulo em Roma,
e que ficara disponível outra vez, para ser enviado a uma ou outra cidade,
(Filipenses 2:19-24) como mensageiro do apóstolo.

2:20 / Quando Paulo diz a respeito de Timóteo: a ninguém tenho de


igual sentimento, ele usa uma palavra semelhante àquela usada no v. 2,
Em 2:19-30 temos uma seção que tem sido chamada de "parousia apostó-
em que exorta seus leitores a ter "o mesmo ânimo". Aqui está um homem
lica" ou "plano de viagem." Paulo anuncia sua intenção de fazer uma visita a
que tem "o mesmo modo de pensar" e "o mesmo amor" e pensa "a mesma
seus leitores dentro em breve (v. 24), mas planeja enviar Timóteo antes disso.
coisa" em relação a Paulo. Paulo descobriu que Timóteo é um compa-
2:19 / Espero no Senhor Jesus, em que "no Senhor Jesus" pode ter nheiro do mesmo temperamento e mesmo sentimento, mas aqui ele está
a mesma força "incorporativa" de frases semelhantes com a preposição pensando, num aspecto particular, no caráter de Timóteo, que soa como
"em", noutras passagens de Paulo (cf. 1:14,26). Paulo e Timóteo, como um eco em seu próprio coração: Timóteo partilha os sentimentos de
companheiros cristãos, partilham a ressurreição de Cristo. Seus planos e Paulo: a ninguém tenho de igual sentimento, que sinceramente cuide
esperanças formam-se à luz de sua união com Cristo; quase se poderia do vosso bem-estar. Paulo os estimulou a buscar os interesses alheios:
dizer que "o Senhor Jesus" constitui a esfera dentro da qual Paulo e seus "cada qual (atente) também para o (interesse) que é dos outros." Estas
companheiros agem e pensam (cf. v. 24, "confio no Senhor"). palavras serão enfatizadas outra vez pelo exemplo de Timóteo quando
Paulo espera, então, enviar-lhes Timóteo em breve — não imediata- de sua visita. E provável que os filipenses mantivessem Timóteo num
mente, parece, mas quando o provável resultado de seu processo ficasse lugar especial, em seu afeto, visto que esse moço estivera em Filipos
mais claro (cf. v. 23). Se é certo que seus amigos filipenses ficariam quando o evangelho ali foi pregado pela primeira vez, com a implantação
contentes em receber notícias suas, Paulo estava ansioso por receber da igreja.
notícias deles, e ficaria mais animado ao recebê-las. As notícias que
2:21 / Até mesmo entre os crentes com quem Paulo mantinha contato,
Paulo aguardava o deixariam cheio de confiança em que continuavam
na época em que escreveu estas linhas, havia muitos que colocavam seus
unidos de coração e de propósito, capazes de repelir as ameaças contra
interesses acima e antes dos interesses alheios, ou estavam muito preo-
a fé e contra a vida em Cristo, não importando quais fossem elas. Embora
cupados, buscando mais o que é seu, e não o que é de Cristo Jesus.
o futuro fosse incerto, Paulo esperava não só ser poupado, mas viver uma
Alguns de fato estavam em Roma, na época, pregando o evangelho "por
vida suficientemente longa para que Timóteo realizasse a viagem até
amor" (1:16); entretanto, de todos quantos estavam disponíveis perante
Filipos e voltasse até ele com notícias.
Paulo, nenhum era tão destituído de egoísmo como Timóteo. Para
Com freqüência Timóteo era enviado por Paulo como mensageiro;
Timóteo, como para Paulo, a causa de Cristo Jesus envolvia o bem-estar
esta missão não deve, necessariamente, ser identificada com aquela
de seu povo.
mencionada noutra passagem. Ele enviou Timóteo a Tessalônica, partin-
do de Atenas (1 Tessalonicenses 3:1-5) e a Corinto, partindo de Éfeso (1 2:22 / Mas bem sabeis: Timóteo havia feito parte do grupo que
Coríntios 4:17; 16:10, 11). Esta última missão poderia coincidir com chegara de início a Filipos, com o evangelho. Nessa cidade, bem como
aquela mencionada em Atos 19:22, em que Paulo enviou Timóteo e em outras, o jovem demonstrou seu valor como auxiliar do apóstolo.
Erasto à Macedônia, partindo de Éfeso. Os que afirmam que Filipenses O próprio Paulo tinha razões especiais para apreciar a natureza altruís-
foi enviada de Éfeso precisam identificar a presente missão com a que ta de Timóteo. As qualidades que recomendavam Timóteo perante Paulo,
está mencionada em Atos 19:22; todavia, não há o menor indício em Atos como sendo companheiro adequado e representante confiável de seu
de que Paulo nessa época estivesse sob custódia, ou aguardando a decisão ministério apostólico, eram qualidades que poderiam muito bem ter
final de um julgamento. elevado esse jovem a posições pessoais vantajosas, houvesse ele decidido
102 (Filipenses 2:19-24) (Filipenses 2:19-24) 103
pô-las no interesse de sua própria carreira. Nós só podemos tentar to John Knox , pp. 249-68. Nos vv. 19-24 aparecem três características da
imaginar quais seriam as ambições que Timóteo poderia ter começado a "parousia apostólica": (a) envio de um emissário com nome, credenciais e
alimentar, em sua própria mente, quando Paulo o visitou em seu lar, em propósitos; (b) benefícios usufruídos por Paulo pelo envio do emissário; (c)
anúncio de uma visita pessoal.
Listra, e o persuadiu a tornar-se seu auxiliar e cooperador. Um ou dois
Espero no Senhor Jesus (gr. en kyrio lesou): veja-se a nota adicional
anos antes, Paulo ficara desapontado com outro jovem, João Marcos, de
sobre 1:14.
Jerusalém, que se despedira do apóstolo e de Barnabé, no meio de uma
2:20 / Timóteo é descrito aqui como isopsychos "igual na alma" (cf. a
viagem missionária, e voltara para casa (Atos 13:13; 15:38). Timóteo exortação no v. 2 aos filipenses, para que sejam sympsychoi, "juntos na alma").
era, de igual modo, um jovem talentoso, mas Paulo discerniu nele a No Salmo 55 (LXX 54): 13 o "meu igual" e "meu íntimo amigo" corresponde
promessa de estabilidade maior, e o apóstolo não ficou desapontado. E a isopsychos , como tradução do hebraico keerki "meu igual" (lit., "de acordo
possível que Timóteo tenha sido cativado em parte pelo magnetismo do com minha apreciação"). Erasmo parafraseia esta passagem assim: "Eu o
poderoso espírito de amizade de Paulo: ainda assim, o fato de Timóteo enviarei como o meu alter ego ." G. B. Caird (ad loc.) afirma que há muito que
dizer a respeito de tomar-se isopsychos como significando "bem de acordo com
deixar seu lar e abandonar outras perspectivas a fim de partilhar as
vossa (dos filipenses) expectativa."
incertezas e os perigos do modo de vida de Paulo não foi um mero ato que sinceramente cuide do vosso bem-estar: sem dúvida esta afirmativa é
insignificante de autonegação. Paulo deu grande valor à devoção de verdadeira, mas o verbo está no futuro (gr. merimnesei, "cuidará"), referindo-se
alguém a quem ele descreveu como "meu filho amado e fiel no Senhor" à ajuda prática que Timóteo lhes porporcionará quando os visitar. O advérbio
(1 Coríntios 4:17). Todo e qualquer serviço que um filho poderia prestar sinceramente gnesios nos faz lembrar de como Paulo usa o adjetivo corres-
a seu pai, Timóteo prestou a Paulo; todo o afeto que um pai poderia pondente em 1 Timóteo 1:2, onde Timóteo é chamado de "meu verdadeiro filho
(gnesios, 'nascido de verdade') na fé." "Timóteo é um filho legítimo, o único
dedicar a um filho, Paulo dedicou a Timóteo, o jovem que serviu comigo representante autorizado do apóstolo" (J.-F. Collange, ad loc.)
no evangelho. "Ele me serve como se fora um escravo," diz Paulo (esta 2:21 / todos buscam o que é seu: (gr. hoi pautes .. . ta heauton zetousin).
é a tradução literal do grego, aqui) — não um escravo de Paulo, natural- Não ficou bem claro a quem se refere esse "todos." Veja-se a opinião de R.
mente, mas de Cristo (cf. 1:1). Jewett mencionada na nota adicional sobre 1:17. Entretanto, seria necessário
uma porção excepcionalmente grande da devoção de Timóteo (tanto a Paulo
2:23 / Tão logo Paulo fique a par de sua sentença (logo que tenha quanto aos filipenses) se alguém quisesse empreender, por amor a Paulo, uma
visto a minha situação), enviará Timóteo em visita aos filipenses. O viagem de quarenta dias a pé, até Filipos, e mais quarenta dias para regressar.
resultado do processo provavelmente seria conhecido um pouco antes de Veja-se G. B. Caird (ad loc.).
2:24 / Mas confio no Senhor: gr. pepoitha.. . en kyrio . Cf. o particípio
a sentença ser pronunciada. perfeito pepoithos em 1:6,14,25. Quanto a no Senhor cf. 1:14 e a nota adicional
sobre esse versículo.
2:24 / Paulo tem bastante confiança quanto ao resultado, pois diz:
também eu mesmo em breve irei ter convosco: de acordo com G. B. Caird,
confio no Senhor. Acha que em breve estará em liberdade, podendo ir "ele não teria tido muita confiança em sua libertação, pois do contrário não teria
visitá-los. A frase no Senhor tem a mesma força de "no Senhor Jesus", necessidade de enviar Timóteo" (ad loc.). Entretanto, Paulo enviou a Timóteo
do v. 19. Não temos meios de saber se a esperança confiante de Paulo, de Éfeso a Corinto, antes de sua própria ida (1 Coríntios 4:17, 19), quando não
quanto a rever os filipenses em breve, se realizou ou não. havia iminência de motivo de força maior que poderia impedi-lo de ir pessoal-
mente, na devida ocasião.
Notas Adicionais 14
2:19 / As designações "plano de viagem" e "parousia apostólica" foram
sugeridas para a seção de Filipenses 2:19-30 por R. W. Funk — a primeira em
Latiguage, Hermeneutic and Word of God , pp. 264-74, e a última em "The
Apostolic Parousia: Form and Significance," em W. R. Farmer, C. F. D. Moule,
e R. R. Niebuhr, eds., Christian History atui Interpretation: Studies Presented
99
(Filipenses 2:17-25a)

15. Elogio a Epafrodito (Filipenses 2:25-30) 2:26 / Pouco depois de sair de Filipos, Epafrodito caíra doente. A
doença dele suscita algumas perguntas, para as quais não podemos dar
respostas certas. Teria ele ficado doente a caminho de ver Paulo, ou após
haver chegado ao lugar onde estava o apóstolo? A opinião comum é que
Antes ainda de Timóteo partir, Paulo tem outro emissário pronto para ele adoeceu após haver chegado; todavia, é preciso considerar a possibi-
ir a Filipos. Epafrodito, emissário da igreja filipense em visita a Paulo, lidade — na verdade, a probabilidade — de a doença tê-lo acometido a
deveria voltar imediatamente, sem esperar para saber como seria decidi- caminho. G. B. Caird, por exemplo, conclui assim: "Ele caiu doente na
do o processo de Paulo. estrada de Filipos a Roma, e sua determinação era completar a viagem e
desincumbir-se da missão que quase lhe custou a vida" (ad loc.).
2:25 / Epafrodito havia vindo de Filipos, a fim de visitar Paulo,
Se Paulo estivesse em Roma (como acreditamos), Epafrodito teria
trazendo-lhe uma oferta daquela igreja (cf. 4:18). Quando Paulo decreve
viajado partindo pelo oeste de Filipos, percorrendo a via Inácia. Nalgum
Epafrodito como seu colega de trabalho e irmão de armas (cooperador
ponto no trajeto da estrada ele ficou doente, e seus amigos de Filipos
e companheiro nos combates), poderá estar indicando que Epafrodito
ficaram sabendo. Não sabemos como foi que souberam. Talvez (e o
em alguma época anterior havia estado ao seu lado, partilhando seu
máximo que podemos afirmar é "talvez") Epafrodito tenha conseguido
trabalho apostólico e que, após haver-lhe entregue a oferta da igreja
enviar uma mensagem aos filipenses, mediante alguém que viajasse na
filipense, permanecera por ali, executando algum trabalho ministerial. O
direção oposta, avisando-os de que estava impedido de prosseguir a
caráter extenuante da obra evangelística fica evidenciado pelo gosto de viagem (pelo menos não o conseguiria dentro de um tempo razoável) e
Paulo em descrevê-la em termos de atletismo ou militares. É possível pedindo-lhes que mandassem outra pessoa até onde ele se encontrava, a
mesmo que os crentes filipenses tenham instruído Epafrodito a perma- fim de apanhar a oferta e levá-la a Paulo, em Roma. É natural que a igreja
necer ali, após haver entregue a oferta a Paulo, a fim de ajudá-lo naquilo de Filipos tenha ficado preocupada com Epafrodito, mas tenha tido
que porventura o apóstolo estivesse necessitando. Esta idéia pode ter dificuldade em encontrar alguém que o substituísse; os crentes só podiam
surgido por tê-lo Paulo chamado de vosso enviado ou "mensageiro" (gr. esperar que Epafrodito se restabelecesse a tempo, de modo que pudesse
apostolos). Os "mensageiros apostoloi das igrejas" gozavam de status terminar a viagem.
especial, como representantes credenciados de suas igrejas, para propó-
Epafrodito restabeleceu-se e conseguiu terminar sua viagem a Roma;
sitos específicos (cf. 2 Coríntios 8:23, "são embaixadores das igrejas").
mas sabia que seus irmãos em Filipos estariam ansiosos a seu respeito.
Talvez Epafrodito não tenha recebido formalmente esse status da igreja
Talvez chegasse a culpar-se por causar-lhes tanta ansiedade. Embora
filipense, mas Paulo se refere a ele com o respeito devido a tal repre-
estivesse muito angustiado por causa disso, desejava muito ficar com
sentante: ele é vosso apostoloi e meu leitourgos (um ministro que atende
Paulo e prestar-lhe algum serviço, conforme as instruções que recebera.
às minhas necessidades), diz Paulo, escolhendo esta última palavra Entretanto, Paulo sabia que quanto antes Epafrodito voltasse a Filipos,
também como denotando pessoa que merece respeito (refere-se a uma melhor seria para ele e para seus irmãos filipenses, pelo que o mandou
pessoa que presta serviço religioso). de volta, isentando-o perante aquela igreja de toda responsabilidade pelo
É provável que a igreja filipense tivesse tido a intenção de deixar regresso tão rápido.
Epafrodito mais tempo ao lado de Paulo, para prover às suas necessi-
dades, representando a igreja. Paulo deixa bem claro que ele é o respon- 2:27 / É certo que Epafrodito esteve doente. Na verdade, esteve tão
sável por enviar Epafrodito de volta antes do tempo esperado. Julguei, mal que quase morreu. Enquanto não recebessem a carta, os filipenses
contudo, necessário mandar-vos Epafrodito, diz o apóstolo, e prosse- não ficariam sabendo quão grave fora a doença do moço. Não fazia mal
gue, dando as razões disso. que ficassem sabendo agora, já que era o próprio Epafrodito quem lhes
106 (Filipenses 2:25-30) (Filipenses 2:25-30) 107

levava a carta; podiam ver por si mesmos que agora ele estava são e salvo. mencionar alguns outros de mesmo caráter, o apóstolo acrescenta: "Re-
Paulo se sentira consternado, na verdade, pelo fato de Epafrodito ter conhecei aos tais" (1 Coríntios 16:15-18). Os filipenses já tinham seus
corrido risco de morte, por causa de seu anseio de servi-lo em nome da "bispos e diáconos" (1:1); pelo seu trabalho sacrificial, altruísta, Epafro-
igreja de Filipos. Paulo teria tido tristeza sobre tristeza, houvesse o dito se mostrara muito bem qualificado para pertencer a esse grupo.
moço falecido. Seu restabelecimento foi prova da misericórdia de Deus Estas instruções de Paulo estão em perfeita harmonia com os ensinos
para com Epafrodito, mas foi também prova de misericórdia divina para de Jesus, de acordo com quem as maiores honrarias, entre seus seguido-
com o próprio Paulo, na ótica do apóstolo. res, pertencem aos que prestam os serviços mais humildes (Marcos
10:42-45; Lucas 22:24-27; cf. João 13:13-15).
2:28 / Agora que Epafrodito estava restabelecido, de bom grado teria
2:30 / Epafrodito (ao lado de outros que se parecem com ele) precisa
permanecido em Roma a fim de atender a Paulo ainda mais. Entretanto,
receber honra, repete Paulo, porque pela obra de Cristo chegou até
o apóstolo lhe disse: "Não. Nossos amigos lá em Filipos estão ansiosos
bem próximo da morte, não fazendo caso da vida. O moço deixou-se
por causa de você, e ficarão aliviados ao verem com seus próprios olhos
gastar no serviço como emissário de seus irmãos da igreja filipense, ao
que você se recuperou. Além disso, vou dar-lhe uma carta que você lhes
fazer por eles o que a igreja como um corpo não conseguiria fazer (nem
entregará, em que digo como as coisas a meu respeito estão caminhando
todos poderiam empreender aquela viagem a Roma, para visitar Paulo).
e na qual lhes agradeço a oferta da parte deles, de que você foi portador."
Epafrodito deixou-se gastar também ao prestar serviço a Paulo, minis-
O próprio Paulo ficaria muito mais aliviado ao pensar na alegria mútua
trando ao apóstolo não apenas por sua própria conta, mas também como
que Epafrodito e seus irmãos filipenses experimentariam quando se
representante da igreja filipense. Tanto Paulo quanto a igreja de Filipos
vissem unidos outra vez, em segurança. Em última análise, foi por causa
estavam engajados na mesma obra evangelística (1:5), pelo que, ao servir
do amor deles por Paulo que tanto Epafrodito quanto os demais crentes
a Paulo e sua igreja, o moço servia à causa de Cristo.
de Filipos se sentiam angustiados, ansiosos, e o amor de Paulo por eles
fê-lo aliviar essa aflição o quanto antes. Assim, Paulo haveria de sentir Não foi com premeditação deliberada que Paulo apresentou três
menos tristeza por ter sido a causa involuntária da angústia deles. exemplos da mesma atitude de auto-renúncia, "o mesmo sentimento que
houve em Cristo Jesus" (v. 5). Contudo, foi isso mesmo que o apóstolo
2:29 / Então, prossegue Paulo, recebei-o no Senhor com todo o gozo. fez. Sua própria prontidão para sofrer o martírio, que fosse creditado na
Esta não é a única ocasião em que Paulo solicita boas-vindas para um conta espiritual de seus irmãos filipenses, o trabalho altruísta de Timóteo
emissário seu: de modo semelhante ele pede aos crentes romanos que em favor de Paulo, mais seu interesse genuíno pelos demais crentes, a
recebam Febe "no Senhor, como convém aos santos" (Romanos 16:2). devoção de Epafrodito à missão que lhe fora confiada, com grande risco
Entretanto, não é preciso apresentar Epafrodito aos crentes filipenses. à saúde e (como deveria ter sido) à própria vida — tudo isso demonstra
Ele é um deles e, com toda certeza, será recebido com todo o gozo ao o cuidado pelo próximo, cuidado isento de egoísmo, pregado por Paulo
voltar — será recebido "no Senhor," como irmão, membro da comuni- no início deste capítulo, e enfatizado pelo poderoso exemplo do auto-es-
dade de crentes. Ainda que parte de sua missão por força maior houvesse vaziamento do próprio Cristo.
ficado por cumprir, assim lhes pede Paulo: "apesar de tudo, recebei-o
bem: sou eu quem o manda de volta para casa." Notas Adicionais 15
Pessoas como Epafrodito são as que são dignas de honra na igreja. 2:25 / R. W. Funk ("The Apostolic Parousia : Form and Significance," em
Paulo emprega o mesmo tipo de palavreado ao elogiar Estéfanas e sua Farmer, Moule and Niebuhr, Christian History, p. 250) considera os vv. 25-30
família, perante os crentes coríntios. Visto que eles se têm "dedicado ao como estando ligados à "parousia apostólica" propriamente dita (vv. 19-24),
ministério dos santos," ele suplica à igreja de Corinto: "que também vos sendo uma passagem secundária porém relacionada. Os elementos que caracte-
sujeiteis a estes, e a todo aquele que auxilia na obra e trabalha"; ao rizam uma "parousia apostólica" encontram-se nos vv. 25-30, que são: (a) envio
(Filipenses 2:25-30) 109
108 (Filipenses 2:25-30)
enviar Epafrodito de volta, o apóstolo talvez desejasse colocar na igreja filipense
de emissário com nome, credenciais e propósitos; (b) anseio do emissário em
um homem em quem podia confiar, alguém que providenciaria tudo para que
ver aqueles a quem busca; (c) benefícios resultantes sobre a pessoa procurada,
Paulo recebesse relatórios exatos a respeito da situação ali (Paul and the
mediante o envio do emissário; (d) benefícios resultantes a Paulo por haver
Gnostics , pp. 70, 71). Esta sugestão liga-se à opinião de Schmithals de que
enviado um emissário.
Paulo estava perturbado pelas tendências gnostizantes da igreja filipense.
Julguei, contudo, necessário: gr. anankaion de hegesamen, onde hegesa-
2:30 / chegou até bem próximo da morte: gr. paraboleusamenos te psyche,
men com toda probabilidade deve ser tomado como aoristo epistolar (i. é, a
lit. "tendo jogado sua vida" (esta é a única ocorrência da palavra paraboleues-
perspectiva de tempo é a de seus leitores, não a do redator). Cf. epempsa (v.
thai no NT).
28).
pela obra de Cristo: a redação variante "pela obra do Senhor"
Epafrodito, que significa "amoroso" (derivado de Afrodite), era nome
pessoal bastante comum; cf. o patrono de Josefo, Epafrodito, a quem seus encontra-se em vários fragmentos textuais, inclusive Aleph A P P s i
últimos trabalhos foram dedicados (Ant. 1.8; Vida 430; AgainstApion 1.1; 2.1, (talvez pela influência de 1 Coríntios 15:58; 16:10). De acordo com J. B.
296). Epafras de Colossos (Colossenses 1.7; 4:12; Filemom 23) tem um nome Lightfoot, "obra" sem genitivo (como em C) é o texto original.
que é abreviatura de Epafrodito, não havendo, todavia, necessidade de identifi- para suprir para comigo o serviço que vós próprios não podieis
car a ambos. prestar literalmente, "a fim de suprir a vossa deficiência para comigo"
Cooperador e companheiro nos combates: gr. synergos e synstratiotes ,
(gr. hina anaplerose to hymon hysterema tes pros me leitourgias). A
duas palavras compostas preferidas por Paulo, com syn (cf. 4:3, sy(n)zygos
"colega de jugo"). Paulo também usa synergos a respeito de Priscila e Áquila leitourgia incluiria a oferta mencionada em 4:10-20, trazida a Paulo p o r
(Romanos 16:3), Urbano (Romanos 16:9), Timóteo (Romanos 16:21; 1 Tessa- Epafrodito (cf. o verbo leitourgesai usado para ofertas monetárias em
lonicenses 3:2), Tito (2 Coríntios 8:23), Filemom (Filemom 1), bem como outras Romanos 15:27); mas seu sentido não fica limitado a este. Ali estava um
pessoas, de forma mais abrangente (Filipenses 4:3). Quanto ao termo synstra- ministério que a igreja filipense podia prestar, e o fez, mas a ministração
tiotes, Paulo o aplica também a Árquipo, de Colossos (Filemom 2). Noutras pessoal que Paulo recebeu de Epafrodito, em Roma (como leitourgos
passagens o apóstolo se refere ao ministério evangélico em termos de campanha
dos filipenses às necessidades do apóstolo, v. 15), essa igreja não poderia
militar (strateia, como em 2 Coríntios 10:4) e refere-se a si próprio e a seus
colaboradores como estando empenhados numa guerra (strateuesthai) espiri- prestar-lhe, em caráter pessoal, e esse serviço está incluído na leitourgia.
tual, como em 1 Coríntios 9:7; 2 Coríntios 10:3).
vosso enviado para prover às minhas necessidades: eis uma tradução feliz
do hendíadis "vosso mensageiro (apostolos e ministro leitourgos para minha
necessidade." Quanto ao termo um tanto sacro leitourgos cf. leitourgia em
2:17, 30. Em Romanos 15:16 Paulo é o leitourgos de Cristo Jesus aos gentios
desempenhando uma "função sacerdotal" (hierourgein); em Romanos 13:6 até
mesmo governadores seculares são "ministros (leitourgoi) de Deus."
2:26 / Quanto ao momento em que Epafrodito ficou doente, veja-se W. J.
Conybeare e J. S. Howson, The Life and Epistles of St. Paul, p. 722; B. S.
Mackay, "Further Thoughts on Philippians," NTS (1960-61), p. 169; C. O.
Buchanan, "Epaphroditus' Sickness and the Letter to the Philippians," EQ 36
(1964), pp. 157-66.
angustiado: gr. ademonon, termo empregado a respeito de Jesus no Getsê-
mani, em Marcos 14:33 par. Mateus 26:37 ("angustiar-se muito"), repre-
sentando a tristeza que se segue a um grande choque" (H.B. Swete, The Gospel
According to St. Mark, p. 342).
2:28 / Por isso vo-lo enviei mais depressa: gr. spoudaioteros oun epempsa
auton, em que epempsa é aoristo epistolar (cf. hegesamen no v. 25) e spoudaio-
teros enfatiza a iniciativa de Paulo de enviá-lo de volta.
W. Schmithals sugere que, além de todas as razões plausíveis de Paulo para
(Filipenses 3:1) 111
foi expresso em termos gerais em 2:1-4, estando agora prestes a ser
16. Primeira Conclusão: Chamada ao Regozijo repetido com respeito a duas pessoas cujos nomes são mencionados em
(Filipenses 3:1) 4:2. Outra possibilidade é que a segunda metade de 3:1 liga-se intima-
mente à advertência de 3:2, referindo-se a exortação semelhante dada em
carta anterior, que se perdeu (cf. J. H. Michael, ad loc.). No todo, a
despeito de algumas dificuldades, parece que é melhor entender que as
"Com esta comunicação a respeito de Epafrodito, agora, parece que a mesmas coisas é expressão ligada ao apelo de regozijo em 2:18 e outras
carta chega ao final" (Ewald, ad loc.). Se assim é, nada mais restaria passagens.
senão uma palavra final de despedida. O leitor está preparado, portanto,
para a expressão Quanto ao mais, irmãos meus. Notas Adicionais 16
3:1 / Quanto ao mais, irmãos meus: a inferência natural desta frase 3:1 / Na obra The New Testament: an American Translation, a primeira
(conclusão tirada pela maioria dos comentaristas) é que Paulo está prestes oração é traduzida assim: "Agora, meus irmãos, até logo, e o Senhor esteja
a encerrar sua carta. Se esta for considerada uma unidade, deve-se convosco"; cf. E. J. Goodspeed, Problems ofNew Testament Translation, pp.
presumir que ocorreu algo que motivou a advertência do versículo 2 e 174, 175. "O Senhor esteja convosco" é tradução excessivamente livre de en
kyrio, "no Senhor."
seguintes. Quanto ao significado de quanto ao mais e a importância de as mesmas
A exortação regozijai-vos é expressa numa palavra (gr. chairete), que coisas, veja-se (além dos comentários e introduções ao NT) W. Schmithals, Paul
também é uma forma comum de saudação em despedida: "até logo." and the Gnostics, pp. 71-74; ele trata de 3:2—4:3 e 4:8, 9 como sendo parte de
A redação aqui, Quanto ao mais, irmãos meus, regozijai-vos. . . (gr. outra carta de Paulo, e argumenta contra a divisão do v. 1, de modo que relaciona
to loipon, adelphoi mou, chairete . . . ) é muito semelhante à de 2 sua segunda oração ao que se segue imediatamente, como também sugerem R.
A. Lipsius, F. Haupt e P. Ewald (ad loc.).
Coríntios 13:11 (gr. loipon, adelphoi, chairete ), onde o sentido certa-
e é segurança para vós: é tradução literal (gr. asphales). V. P. Fumish ("The
mente é: "finalmente, irmãos, até logo." A principal razão para não Place and Purpose of Philippians iii," NTS 10 (1963-64), pp. 80-88) argumenta
tomarmos as palavras de Filipenses 3:1 no mesmo sentido é que há uma que o adjetivo asphales (não encontrado em nenhum outro texto de Paulo)
sentença adicional: no Senhor (gr. en kyrio ; cf. 4:4). Regozijai-vos no significa aqui "específico" ou "confiável" (como em Atos 25:26) e (de modo
Senhor ecoa como uma exortação repetida nos Salmos (cf. 32:11; 33:1). bem convincente) diz que "escrever as mesmas coisas" (ta auta graphein )
O povo de Deus regozija-se nele porque ele é "a minha alegria e o meu significa "dar as mesmas admoestações por escrito que Timóteo e Epafrodito
foram instruídos a dar-lhes oralmente" (e não, como aparece em ECA: escre-
prazer" (Salmos 43:4); cf. Romanos 5:11, "também nos gloriamos em ver-vos as mesmas coisas outra vez).
Deus." Não é necessário atribuir a no Senhor, aqui, seu sentido incor- As palavras emoi men ouk okneron, hymin de asphales ("não aborrecido para
porativo. mim, e seguro para vós") podem bem formar um trímetro jâmbico (que Paulo
Surge, agora, a pergunta: quais são as mesmas coisas que Paulo já menciona, copiando de alguma fonte qualquer), ainda que um purista objetaria
havia escrito antes, e que ele não se incomoda em escrever outra vez? contra o corte no penúltimo pé espondaico, por violar "a lei do crítico final."
Esta referência pode ligar-se à exortação para que o povo se regozijasse,
em 2:18 (cf. também 1:25; 2:28, 29), mas é difícil ver como uma
exortação reiterada para regozijar-se representaria segurança para vós.
G. B. Caird explica que a alegria "é segurança contra a atitude utilitária
que julga pessoas e coisas só pelo uso que se lhes pode dar" (ad loc.).
Por outro lado, F. W. Beare (ad loc.), considerando 3:2-4 como fragmen-
to de outra carta de Paulo, que foi editorialmente interpolado entre 3:1 e
4:2, toma essa referência como exortação de Paulo à unidade, o que já
99
(Filipenses 2:17-57a)

17. Advertência Contra os "Maus Obreiros" proibidos pela lei de Israel (Levíticos 19:28; 21:5; Deuteronômio 14:1;
cf. 1 Reis 18:28).
(Filipenses 3:2-3) Entretanto, não é aos judeus em geral que Paulo se refere aqui de forma
tão fulminante, e tampouco àqueles judeus cristãos que teriam continua-
do a praticar a circuncisão em seus filhos, de acordo com a tradição
Depois de "quanto ao mais, irmãos meus," do v. 1, esta advertência ancestral. As pessoas contra quem os gentios cristãos deveriam perma-
vem como surpresa, juntamente com as exortações dos vv. 18 e 19, necer em guarda, e a quem Paulo denuncia noutras passagens, usando o
formando parte substancial da carta em sua apresentação atual. É por mesmo tipo de palavreado contundente empregado aqui, são as que
meio de contraste com aqueles contra quem Paulo lança tais advertências, visitavam as igrejas gentias e insistiam em que a circuncisão era condição
que o apóstolo estabelece seus próprios propósitos e modo de viver (vv. essencial, indispensável para serem justificados perante Deus. Tal insis-
7-14). tência havia sido concebida como parte da campanha que visava levar os
convertidos gentios de Paulo sob o controle da igreja-mãe em Jerusalém.
3:2 / Então, quem são esses maus obreiros, os cães contra quem Paulo E certo que Paulo fazia o máximo para enfatizar a independência de seus
adverte seus leitores, para que estejam alertas? É certo que se identificam
convertidos: não estavam sob o jugo de Jerusalém. Todavia, a objeção
com os que praticam a falsa circuncisão (as três expressões denotam as
básica de Paulo era que a insistência na circuncisão destruía o evangelho
mesmas pessoas), sendo que estas últimas palavras nos dão a pista para
que proclamava que a graça de Deus é que justifica judeus e gentios, de
descobri-los. No original há um único substantivo, usado por Paulo num
modo igual, mediante a fé em Cristo, sem necessidade alguma da
trocadilho depreciativo em torno de "circuncisão" (gr. peritome), tradu-
circuncisão nem de qualquer outra exigência legal. Os judaizantes são,
zida em textos antigos por "concisão " (gr. katatome ). Às vezes Paulo
então, os que "mutilam a carne", a falsa circuncisão — ou, "mutilado-
usa a palavra "circuncisão" como substantivo coletivo, como quando
res", como H. W. Montefiore adequadamente traduz este termo.
Pedro é chamado de apóstolo "da circuncisão" com o significado, como
NIV a traduz: "para os judeus" (Gálatas 2:7-9). Aqui, a palavra "conci- Ao chamá-los de maus obreiros, é possível que Paulo tenha em mente
são" é usada de modo semelhante, para indicar "os que mutilam a carne", os que praticam a iniqüidade" (NIV: "todos quantos praticam o mal,"
ou o "partido da mutilação", como diríamos. "vós todos que praticais o mal") que alguns dos salmistas usaram para
Para Paulo, circuncisão era um termo sacro, aplicado não apenas no descrever seus inimigos (cf. Salmos 5:5; 6:8; etc.); ele se refere à mesma
seu sentido literal, mas também para a purificação e dedicação do classe de intrusos de 2 Coríntios 11:13, os "obreiros fraudulentos". Na
coração. Há um precedente disto no AT, em Deuteronômio 10:16 ("cir- mente do apóstolo, esses homens estavam executando a obra do diabo,
cuncidai, portanto, o vosso coração") e em Jeremias 4:4 ("circuncidai- ao subverter a fé dos crentes gentios. Ao chamá-los de cães, é possível
vos para o Senhor, e tirai os prepúcios do vosso coração"), em que a que Paulo lhes estivesse devolvendo um termo injurioso com o qual
ênfase é colocada na circuncisão do coração, que é o que Deus aqueles homens chamavam os gentios incircuncisos; seria termo bem
realmente deseja. O conteporâneo mais velho de Paulo, Filo de Ale- apropriado, ademais, se Paulo os estivesse retratando como perambulan-
xandria, concorda em que circuncisão significa "a remoção do prazer do ao redor das igrejas gentias, tentando "abocanhar" prosélitos, ganhar
e de todas as paixões e a destruição da glória ímpia," mas discorda novos adeptos para seu modo de pensar e de viver.
daqueles que acreditam que o rito externo pode ser descontinuado Não fica implícito que esses homens já haviam-se infiltrado até o
desde que a lição espiritual seja praticada (Migration ofAbraham, 92.) âmago da comunidade cristã filipense. Todavia, com toda a probabilida-
Aqui, portanto, Paulo aplica àqueles que insistem no rito externo uma de tentariam usar a mesma tática em Filipos que já haviam usado em
paródia depreciativa da palavra sacra — paródia que liga a circuncisão Corinto (cf. 2 Coríntios 11:4-6,12-15,20), pelo que os cristãos filipenses
literal àqueles cortes que os pagãos praticavam no corpo, e que eram são advertidos de antemão contra os tais.
132 (Filipenses 3:12-58) (Filipenses 3:12-14) 133
Cães eram considerados animais imundos (cf. Apocalipse 22:15) porque não
3:3 / Pois a circuncisão somos nós, diz Paulo. (Eis outro exemplo de
eram meticulosos quanto às coisas que comiam. J. B. Lightfoot (ad loc.) cita
"circuncisão" como substantivo coletivo). A verdadeira circuncisão, "a Ciem. Hom. 2.19, onde (com referência a Mateus 15:26), se diz que os gentios
circuncisão não feita por mãos . . . a circuncisão de Cristo" (Colossenses são chamados de cães porque seus hábitos concernentes a alimentos e conduta
2:11), é questão de purificação e consagração interior. Os que podem são muito diferentes dos hábitos israelitas.
dizer: a circuncisão somos nós prestam a Deus devoção verdadeira, do A idéia de que a falsa circuncisão se refere a judeus que não receberam a fé
coração: nós, que servimos a Deus em Espírito. Este foi o ensino de cristã (cf. E. Lohmeyer, ad loc.) pode ser excluída, porque Paulo não usa
linguagem tão carregada de opróbrio ao falar de sua própria gente, seus patrícios
Jesus à mulher samaritana, à beira do poço: "Deus é Espírito, e importa naturais; além disso, não parece que haveria uma comunidade judaica tão grande
que os que o adoram, o adorem em espírito e verdade" (João 4:24). Tais em Filipos (vejam-se pp. 4-5). Quanto à opinião de W. Schmithals (Paul and
pessoas dizem: nós nos gloriamos em Cristo Jesus — mais literalmente: the Gnostics, pp. 65-91) segundo a qual se tratava de gnósticos judaico-cristãos,
nós "nos vangloriamos em Cristo Jesus"; o Senhor é o objeto da exultação he katatome teria sido uma forma muito imprecisa e desorientadora de se
dos crentes (não há necessidade de dar à frase "em Cristo Jesus" seu designar tais pessoas. Como ocorre com muitas das características das interpre-
tações de Schmithals, o gnosticismo precisa passar por Filipenses 3:2 a fim de
sentido incorporativo.) Muitas vezes Paulo menciona as palavras de ser devidamente interpretado.
Jeremias 9:24 : "Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor" (1 Coríntios 3:3 / nós, que servimos a Deus em Espírito: gr. hoi pneumati theou
1:31; 2 Coríntios 10:17). E possível que o apóstolo esteja aludindo a esse latreuontes, para esta redação existe uma variante menos prestigiada: hoi
mesmo texto aqui; para Paulo "o Senhor" é Cristo Jesus. pneumati theo latreuontes (que assim aparece em KJV: "que adoram a Deus
em espírito").
A carne daqui em diante deixa de ser importante. A circuncisão física
foi substituída pela circuncisão do coração, que se efetua "no espírito,
não na letra" (Romanos 2:29). A palavra traduzida por carne (gr. sarx)
é usada por Paulo não apenas em seu sentido comum mas também para
denotar a natureza humana não-regenerada e, às vezes, para incluir
praticamente tudo (menos Deus), todas as coisas nas quais as pessoas
confiam, e por isso erram.

Notas Adicionais 17
3:2 / "Sempre parecerá extraordinário," escreveu H. J. Holtzmann, "que a
carta na verdade tenha seu centro bem no ponto onde parece encaminhar-se para
o final" (Einleitung in das Neue Testament p. 301). A transição abrupta,
passando para uma nota de advertência, tem sido explicada de várias maneiras:
por causa de situações que mudaram e que afetaram a atitude de Paulo, enquanto
ditava a carta (R. A. Lipsius, ad loc.); por causa de um estímulo atrasado da
parte de Timóteo (P. Ewald, ad loc.); ou por causa de um relatório recentíssimo
que chegara a Paulo no momento (J. B. Lightfoot, Philippians, p. 69).
Acautelai-vos é a tradução do gr. blepete, que se emprega de modo seme-
lhante em várias passagens de advertência, no NT; cf. Marcos 4:24; 8:15; 12:38;
13:5, 9; 1 Coríntios 8:9; Gálatas 5:15; Colossenses 2:8; etc. A palavra pode
significar, é claro, apenas "vede", "prestai atenção" (cf. G. D. Kilpatrick,
"Blepete Philippians 3:2," em M. Black e G. Fohrer, eds., In Memoriam Paul
Kahle pp. 146-48), mas, no presente contexto, há indicação de um sentido mais
premente.
(Filipenses 2:17-6a) 99
Da tribo de Benjamim. É evidente que Paulo atribuía alguma impor-
18. Antigo Código de Valores de Paulo tância ao fato de ser membro desta tribo; ele o menciona também em
(Filipenses 3:4-6) Romanos 11:1. Benjamim foi o único filho de Jacó nascido na terra santa
(Gênesis 35:16-18). Quando a monarquia davídica se rompeu, após a
morte de Salomão, a tribo de Benjamim, situada na fronteira norte de
Judá, passou a fazer parte do reino do sul. Após o retorno do exílio
Quando Paulo se gloria de que poderia mostrar um relatório mais
babilônico, houve assentamentos em Jerusalém e nos territórios adjacen-
expressivo "na carne", do que a maioria das pessoas, se atribuísse alguma
tes, por membros da tribo de Benjamim (Neemias 11:7-9, 31-36). Foi
importância à carne (que não atribui), ele se refere não apenas às
através de tais ancestrais que a família de Paulo teria traçado sua
cerimônias externas mas a uma vasta gama de heranças, dotações e
ascendência. Seus pais ter-lhe-iam dado o nome de Saulo (cf. Atos 7:58;
realizações. Contemplar tão variado campo humanístico noutros tempos
13:9; etc.) em homenagem ao primeiro rei de Israel, o mais ilustre
o encheria de satisfação, coisa que agora não acontece mais.
membro da tribo de Benjamim, na história hebraica.
3:4 / Se uma linhagem e uma educação ortodoxas, seguidas de grandes Hebreu de hebreus (hebreu, filho de pais hebreus). Isto implica em
realizações pessoais na esfera moral e religiosa, assegurassem posição algo mais do que ser "israelita de nascimento," como em 2 Coríntios
privilegiada na presença de Deus (como se deduz a respeito das pessoas 11:22, onde ele afirma, de seus adversários: "São hebreus? também eu.
contra quem Paulo direciona suas advertências), Paulo não precisaria temer São israelitas? também eu." "Hebreus" no sentido especial (como pro-
concorrência. Há íntima afinidade entre suas palavras aqui e 2 Coríntios vavelmente em Atos 6:1) eram os judeus que normalmente falavam
ll:21ss., onde ("com insensatez falo") relaciona coisas de que poderia aramaico entre si, e freqüentavam sinagogas em que se celebrava o culto
gabar-se, se a vangloria fosse apropriada e, a seguir, exclui a idéia de em hebraico (bem diferentes dos helenistas, que só falavam o grego). De
vangloriar-se naquelas coisas, considerando-as loucura total. Isto nos indica acordo com Lucas, Paulo ouviu a voz celestial na estrada de Damasco
que os adversários que ele tem em mira agora são da mesma espécie falando-lhe em hebraico (Atos 26:14), e o apóstolo pôde dirigir-se a uma
daqueles a quem castiga em 2 Coríntios 11:12-15; seria até fácil crer que multidão hostil, num discurso de improviso, em hebraico (Atos 21:40;
esta advertência tenha sido redigida mais ou menos à mesma época de 2 22:2); em ambas as ocasiões, a palavra "hebraico" poderia ter sido usada
Coríntios 10-13. Ainda que tais pessoas ainda não se houvessem infiltrado na no sentido de incluir o aramaico. Diferentemente de muitos judeus da
igreja de Filipos, poderiam muito bem estar tentando. Não é tão certo, como dispersão, parece-nos que a família de Paulo evitou tanto quanto lhe foi
julga W. Schmithals (Paul and the Gnostics), que a linguagem de Paulo reflete possível a assimilação da cultura do ambiente de Tarso.
alguém tentando minar-lhe a autoridade, aos olhos dos filipenses.
Segundo a lei, fariseu. A seita dos fariseus mantinha na consciência
3:5 / Paulo relaciona agora sete itens que, outrora, lhe teriam dado a obrigatoriedade de cumprir a lei judaica em suas minúcias, embora
confiança diante de Deus. todos os membros da comunidade da aliança também estivessem obri-
gados a guardar a lei desse modo. Os fariseus, que aparecem pela
Circuncidado ao oitavo dia, como todo menino israelita deveria ser,
primeira vez na história no segundo século a.C., parecem ter sido os
de acordo com os termos da aliança de Deus, celebrada com Abraão
herdeiros espirituais dos hassideus, um grupo piedoso que desempenhou
(Gênesis 17:12). Paulo era judeu de nascimento, e não prosélito vindo
importante papel na defesa de sua religião ancestral, quando Antíoco
do paganismo, que era circuncidado à época da conversão.
Epifanes (175-164 a.C.) se propôs aboli-la (cf. 1 Macabeus 2:42; 7:14;
Da linhagem de Israel. Havendo nascido no seio do povo escolhido
2 Macabeus 14:6). Em épocas anteriores, esses grupos piedosos recebe-
e admitido à comunidade da aliança mediante a circuncisão, Paulo
ram menção honrosa em Malaquias 3:16-4:3; a devoção deles à lei divina
herdou todos os privilégios que pertenciam a essa comunidade — privi-
é ilustrada no Salmo 119.
légios que enumera em Romanos 9:4, 5.
132 (Filipenses 3:12-60) (Filipenses 3:12-14) 133

O termo fariseu significa "separado"; várias explicações têm sido Saulo estava empenhado ativamente na obra de perseguir a igreja, ele
oferecidas mas, referindo-se às pessoas assim designadas, talvez se achava que isso era um serviço muitíssimo aceitável perante Deus.
enfatizasse a separação que buscavam, fugindo de tudo que pudesse Quando em Romanos 10:2 ele descreve seus companheiros israelitas
transmitir impureza ética ou cerimonial. Os fariseus coligiram um corpo como tendo "zelo de Deus," acrescentando que o zelo é "de Deus, mas
de tradições orais cujo objetivo era adaptar os antigos preceitos da lei não com entendimento," Paulo está traçando um retrato do homem que
escrita às situações alteradas dos últimos dias, de modo que ficassem ele mesmo havia sido, esforçando-se mediante seu zelo perseguidor para
salvaguardados os princípios, impedindo-os de se perderem como obso- firmar seu próprio modo de tornar-se justo perante Deus.
letos ou impraticáveis. Nisto os fariseus se distinguiam de seus principais De fato, segundo a justiça que há na lei, irrepreensível. Eis a
rivais, os saduceus, que advogavam tão somente a autoridade da lei avaliação cristã que Paulo faz de suas atividades pré-cristãs. Ele a faz
escrita, e que rejeitavam também a crença dos fariseus na ressurreição partindo de uma perspectiva de quase trinta anos de ministério apostólico.
dos mortos, e na existência de ordens de anjos e de demônios (cf. Atos Nenhum judeu poderia ter conseguido mais, no que concerne a devoção
23:8). Os fariseus se agrupavam em comunidades locais. Josefo, que à sua herança ancestral. Os pais de João Batista são elogiados por serem
afirma haver orientado sua própria vida segundo os princípios dos "ambos justos perante Deus, andando sem repreensão em todos os
fariseus, desde a idade de dezenove anos, calcula que havia cerca de seis mandamentos e preceitos do Senhor" (Lucas 1:6). Aí está um grande
mil fariseus em sua época (Ant. ). elogio, na verdade, e Paulo também o merecera. Houve época em que
receber tal elogio era a maior ambição de Paulo, mas agora a grande
O fato de Paulo ser membro da seita dos fariseus é atestado por Lucas,
reviravolta nos valores havia alterado tudo.
que nos relata as palavras do apóstolo: "criado aos pés de Gamaliel
(principal líder fariseu de seus dias [cf. Atos 5:34]), instruído conforme As realizações de Paulo podem ser comparadas às do homem rico que
a verdade da lei de nossos pais, zeloso de Deus" (Atos 22:3); Paulo assegurou a Jesus que havia guardado todos os mandamentos de Deus
dissera a Agripa: "conforme a mais severa seita da nossa religião, vivi desde sua juventude (Marcos 10:20) ou, mais importante ainda, às
próprias declarações de Paulo, diante do Sinédrio, de haver mantido boa
fariseu" (Atos 26:5); afirmara perante o Sinédrio: "eu sou fariseu, filho
consciência diante de Deus durante toda a sua vida (Atos 23:1; cf. 24:16).
de fariseu" (Atos 23:6), dando a entender que não era o primeiro membro
O conformar-se à justiça exigida pela lei exigia infinita diligência, mas
da família associado àquela seita, nem que (menos provável) era o
(como Paulo comprovara) não era coisa impossível. Ele atingiu a meta,
primeiro discípulo de fariseus de sua família.
só para descobrir que de nada lhe adiantara.
Segundo o zelo...: zelo por Deus era uma tradição cheia de honra em
Israel e, nesta época, não se confinava àquele partido de nacionalistas
Notas Adicionais 18
militantes que vieram a ser conhecidos como zelotes. O precedente de
zelo piedoso havia sido lançado por Finéias (Números 25:7-13; Salmos 3:4 / O pronome que aparece duas vezes: Ainda que eu também poderia
106:30, 31), Elias (1 Reis 19:10, 14) e Matatias, pai de Judas Macabeu confiar na carne. Se algum outro pensa que pode confiar na carne, eu ainda
mais é enfático (gr. ego). Cf. a repetição "ainda que", "ainda mais" (gr.
(1 Macabeus 2:24-28). Paulo se autodescreve em Gálatas 1:13,14, como
kago=kai ego) de 2 Coríntios 11:22. W. Schmithals acha que Paulo está
tendo sido "extremamente zeloso das tradições de meus pais," muito defendendo-se contra agnósticos que o julgam mero homem carnal, a quem falta
mais do que seus jovens companheiros contemporâneos, fornecendo o espírito cristão, não sendo, portanto, um apóstolo de Cristo, mas, quando
suprema evidência daquela devoção ou zelo com que impiedosamente muito, um apóstolo de homens (Paul and the Gnostics, pp. 90,91). Nada existe
ele "perseguia a igreja de Deus, e a assolava." Em 1 Coríntios 15:9 (cf. no texto que dê apoio a tal idéia. Paulo está, isto sim, defendendo-se contra os
judaizantes que tentam diminuir-lhe o status, objetivando exaltar a própria
1 Timóteo 1:13, 14) a perseguição à igreja, vista de uma perspectiva
autoridade pretensamente superior.
posterior, constituiu o pecado dos pecados, tornando-o indigno da graça
3:5 / da tribo de Benjamim. Eis uma das "coincidências não planejadas"
que, apesar de tudo, chamou-o para ser apóstolo; entretanto, quando entre Atos e as cartas paulinas; só nestas é que lemos que Paulo pertencia à tribo
136 (Filipenses 3:15-61)
de Benjamim e só em Atos é que lemos que o nome deste judeu é Saulo. Os
primitivos autores cristãos traçaram a conexão entre o zelo perseguidor de Paulo 19. Atual Código de Valores de Paulo
e as palavras acerca de Benjamim, na bênção de Jacó a seus filhos (Gênesis (Filipenses 3:7-11)
49:27): "Benjamim é lobo que despedaça; pela manhã devorará a presa, e à tarde
repartirá o despojo" (cf. Hipólito, On the Blessing ofJacob, ad loc.; cf. ANF5,
p. 168).
Hebreu de hebreus: quanto a hebreus e helenistas, veja-se C. F. D. Moule,
"Once More, Who Were the Hellenists?" ExpT70 (1958-59), pp. 100-102; F. Paulo considera agora fracasso o que antes considerava grande reali-
F. Bruce, Paul: Apostle ofthe Free Spirit pp. 42,43. zação. O que antes ele considerava sem valor e, na verdade, pernicioso,
Segundo a lei: (lit., "de acordo com a lei", gr. kata nomori). A omissão do agora reconhece que é o único valor a ser procurado — o conhecimento
artigo definido antes de "lei" é comum em Paulo; pode refletir a tendência pessoal de Jesus como Senhor, partilhando a experiência de sua morte e
judaica de tratar a palavra hebraica correspondente torah quase como um nome ressurreição.
próprio, não exigindo, portanto, o artigo, quando se trata da lei de Moisés.
Fariseu: quanto aos fariseus, contulte-se Josefo, War 2.162-66; Ant. 18.12- 3:7 / No mínimo era razoável sentir orgulho, como Paulo chegou a
15. "Fariseu" com toda probabilidade é a tradução do aramaico perishayya, e
sentir, por causa de sua folha de serviços meritórios. Se algum leitor
do hebraico perushim, "separados" (especialmente no sentido moral). Quanto
à palavra hebraica, cf. um comentário rabínico posterior, Leviticus Rabba, onde suspeitar de que Paulo ainda sentisse algum orgulho em ser capaz de
a injunção: "Sede santos porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo" (Levítico apresentar um currículo de realizações tão grandes, todas as suas suspei-
19:2) aparece amplificado: "Assim como eu sou santo, vós também deveis ser tas cairiam por terra em função do que Paulo diz a seguir: mas o que
santos; assim como eu sou separado, vós também deveis ser separados (perus- para mim era lucro, considerei-o perda por causa de Cristo — isto
him)." Os fariseus eram escrupulosos de modo especial na observância às leis é, por amor de Cristo, a quem ele desejou receber. Aquelas realizações
judaicas sobre alimentação e as concernentes ao dízimo. Davam o dízimo de
se transferiram do lado do crédito, no livro da contabilidade, para o lado
ervas do quintal e dizimavam os cereais, o vinho e as azeitonas (cf. Mateus
23:23; Lucas 11:42), e evitavam comer o alimento que ainda estivesse sujeito a do débito; não só são vistas como sem valor, irrelevantes, mas o apóstolo
ser dizimado, a menos que tivessem certeza de que esse dízimo havia sido pago. se considera mais rico estando despojado delas. Talvez a própria lem-
Consulte-se W. D. Davies, Paul andRabbinic Judaism; E. P. Sanders, Pauland brança de tais realizações pudesse ser danosa, se carregasse consigo a
Palestinian Judaism-, e E. Rivkin, A Hidden Revolution. tentação de nelas colocar a confiança, outra vez. Só Cristo deve ser digno
3:6 / Em Gálatas 1:14 Paulo chama a si mesmo de zelote (gr. zelotes quanto da confiança de Paulo, de modo que por causa de Cristo (por amor a
às tradições ancestrais; em Atos 22:3 ele afirma perante um auditório judaico
Cristo) todas aquelas coisas em que ele confiava perderam seu valor.
em Jerusalém que, antes de sua conversão, ele "era zeloso de Deus, como todos
vós hoje sois"; em Atos 21:20 os anciãos da igreja de Jerusalém dizem a Paulo Paulo havia aprendido que, apesar de todas as suas realizações, o único
que todos os seus membros são zelotes, quanto à lei. Em nenhuma dessas meio pelo qual teria aceitação diante de Deus era o meio que o apóstolo
passagens o substantivo é usado no sentido de designar um partido (como, por partilhava com o mais atrasado pagão convertido: a fé em Cristo. Ele não
exemplo, em Lucas 6:15; Atos 1:13, onde a palavra talvez tenha sentido nega que foi grande privilégio ter nascido judeu, e ter acesso aos oráculos
sectário). O partido dos zelotes partilhava os princípios dos fariseus mas insistia divinos (Romanos 3:1, 2); o que ele nega é que a pessoa possa confiar
na adição de um preceito: seria impermissível que judeus que morassem na terra
santa pagassem impostos a um governo pagão (semelhante ao governo romano). em tal privilégio, como base para a aprovação divina.

3:8 / Na verdade, não apenas a herança e as realizações pessoais de


Paulo, mas todas as coisas deste mundo foram reavaliadas em Cristo.
Tão grande é a excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu
Senhor, que mediante comparação, todas estas coisas se tornaram não
meramente sem valor, mas prejudiciais, com valor negativo. Tudo quanto
exista fora de Cristo, e do evangelho que Paulo, sob ordem, deveria
132 (Filipenses 3:12-62) (Filipenses 3:12-14) 133
pregar por todo o mundo, representa peso morto, algo a ser considerado natureza da morte que lhe coube, permanecia a maldição de Deus:
como perda, e ser jogado fora, como se fora refugo ou lixo, dejetos de "Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro" (Gálatas 3:13).
rua. Quando o apóstolo iniciou seu trabalho para Cristo, no caminho de Todos quantos proclamavam que tal pessoa era o ungido do Senhor,
Damasco, isso representou a renúncia de tudo quanto tinha valorizado como o faziam os discípulos de Jesus, eram blasfemos; o bem-estar de
até aquele momento; mas valeu a pena fazer tal renúncia. Israel exigia a extinção de tais pessoas. E mais ainda: à parte o ódio de
O conhecimento de Deus assumia imenso valor perante os olhos dos Paulo por tudo quanto Jesus representava, de que maneira poderia ele
grandes profetas de Israel (cf. Oséias 6:6); para Paulo, o conhecimento usufruir um relacionamento pessoal com alguém que já havia morrido,
de Deus tinha a suprema mediação de Cristo, e tal conhecimento se a quem jamais conhecera?
tornava imensamente enriquecido por essa mediação. "Conhecimento" Quando Deus decidiu, na estrada de Damasco, revelar seu Filho a
(gr. gnosis) era termo corrente no vocabulário religioso e filosófico dos Paulo, ao mesmo tempo o Filho de Deus se apresentou a Paulo: "Eu sou
dias de Paulo; o "conhecimento" bastante procurado e apreciado em parte Jesus," disse ele. Imediatamente Paulo se tornou cativo de Jesus, e seu
era intelectual e em parte místico. Certas formas de cultivo de "conheci- escravo pelo resto da vida. "Senhor, que farei?" perguntou-lhe Paulo. E
mento" dessa época evoluíram num sistema de pensamento que aparece, sua carreira subseqüente foi de obediência à resposta suscitada por tal
no segundo século, sob a designação genérica de "gnosticismo." A igreja pergunta (Atos 22:7-10). Naquele momento, Paulo sentiu que era amado
de Corinto procurava esse tipo de "conhecimento", que não chegou a pelo Filho de Deus que, segundo suas palavras, "me amou e a si mesmo
impressionar Paulo: 'íA ciência (o conhecimento) incha, mas o amor se entregou por mim" (Gálatas 2:20). Daí em diante, "o primeiro e grande
edifica", diz o apóstolo (1 Coríntios 8:1). Uma comunidade era ajudada mandamento", amar ao Senhor seu Deus, Paulo o honrou em seu amor
a crescer em maturidade muito mais mediante o amor a Deus e o amor a Cristo, a imagem de Deus: "mas, se alguém ama a Deus, esse é
fraternal, mútuo, do que pela busca frenética do conhecimento. O conhe- conhecido dele" (1 Coríntios 8:3). Estabeleceu-se ali, naquele momento,
cimento de Cristo Jesus, meu Senhor é o conhecimento pessoal: inclui um relacionamento de conhecimento e amor mútuos, entre o apóstolo na
a experiência de ser amado por Cristo, e de amá-lo, em troca — e em terra e seu Senhor exaltado nos céus; dali em diante a alegria inextinguí-
amar, por amor de Cristo, todos aqueles por quem ele morreu. Não se vel de Paulo seria explorar a totalidade desse relacionamento. Para o
tem certeza se aqui, como na correspondência aos Coríntios, Paulo está apóstolo a vida seria, em suma, o próprio Cristo — amar a Cristo,
conhecer a Cristo, ganhar a Cristo. "Cristo é o caminho, e Cristo a
contrastando seu conhecimento pessoal de Cristo com as formas infe-
recompensa."
riores de conhecimento: é certo que o apóstolo está enfatizando que
conhecer a Cristo é o único conhecimento que vale a pena possuir, pois 3:9 / Ganhar a Cristo significa ser achado nele, usufruir fé e união
é um conhecimento tão transcendental em seu valor que compensa toda com ele (e, portanto, com todos os seus discípulos); compare com NEB:
e qualquer perda, seja do que for. "por (causa de) quem sofri... encontrando-me incorporado nele". Paulo
Conhecer a Cristo e ganhar a Cristo são duas formas de exprimir a estava intensamente cônscio de seu relacionamento íntimo, pessoal, com
mesma ambição. Se Cristo é a Pessoa "em quem estão ocultos todos os Cristo, relacionamento que ele prezava acima de tudo, e que não era
tesouros da sabedoria e da ciência" (Colossenses 2:3), conhecê-lo é ter exclusivo: "Eu sabia que Cristo me havia dado novo nascimento, a fim
acesso a esses tesouros; todavia, conhecer a Cristo por amor a Cristo é a de que eu me irmanasse com todas as almas da terra" (John Masefield,
coisa mais importante, para Paulo. "The Everlasting Mercy"). Paulo já estava em Cristo, mas aqui ele fala
Paulo não chegou a conhecer o Jesus terreno. Se, durante o ministério a respeito de ser achado nele. O aoristo dos verbos "ganhar" e "ser
de Jesus, Paulo viesse a saber alguma coisa a respeito dos ensinos dele, achado" sugere que o apóstolo está outra vez aguardando o dia de Cristo.
o apóstolo teria reprovado tudo. Jesus fora preso e executado, e Paulo Todavia, a ambição de Paulo de ser achado nele naquele grande dia só
pensaria nele com repulsa, como alguém sobre quem, em virtude da poderia concretizar-se se o apóstolo contínua e progressivamente vivesse
132 (Filipenses 3:12-63) (Filipenses 3:12-14) 133

em união com Cristo, nesta existência mortal. Para atingir isso, Paulo de a desprezar os incentivos, as tentações próprias do pecado, e levar vida
bom grado joga fora todas as coisas, inclusive a justiça própria, que de santidade agradável perante Deus.
vem da lei, outrora tão valorizada. Se, num certo plano, Paulo partilhou o poder do Cristo ressurreto,
O homem que havia conseguido grandes resultados na luta em prol da noutro plano o apóstolo partilhou seus sofrimentos. Sofrer por Cristo,
justiça legal, agora joga fora essa justiça, por haver encontrado outra, como Paulo já dissera antes (1:29), é um privilégio; além do mais, sofrer
de melhor espécie. O que de bom a justiça própria, legal, lhe havia por Cristo é sofrer com ele. "As aflições de Cristo transbordam para
produzido, afinal? Ela não o havia livrado do pecado de perseguir os conosco" (2 Coríntios 1:5), diz Paulo numa carta que, talvez mais do que
discípulos de Cristo. Qualquer pessoa que buscasse a justiça legal, sem qualquer outra, revela-nos este aspecto do seu apostolado. Aos olhos de
dúvida poderia reclamá-la como lhe pertencendo; todavia, seria fatal Paulo, os sofrimentos que ele suportou por amor de Cristo, no decurso
imaginar que tal justiça, que inevitavelmente é auto-retidão, pudesse de seu ministério apostólico, representavam sua parcela e participação
afirmar que Deus lhe pertencesse. nos sofrimentos de Cristo, de modo que aceitá-los desta forma só fazia
Entretanto, em se tratando da justiça de melhor estirpe — a que vem transfigurá-los e glorificá-los. Era também esperança de Paulo que, ao
pela fé em Cristo — não existe a menor sombra de dúvida quanto a absorver tanto do sofrimento de Cristo quanto lhe fosse possível, em sua
afirmar a posse de Deus; é o próprio Deus quem nos concede sua justiça. própria pessoa, pudesse "na minha carne" cumprir "o resto das aflições
É a justiça que vem de Deus pela fé. A fé em Cristo é o meio pelo qual de Cristo, pelo seu corpo, que é a igreja" (Colossenses 1:24) e deixar
os pecadores se apropriam dessa justiça; são "justificados pela fé em menos aflições a serem cumpridas pelos seus irmãos crentes. Assim, ele
Cristo, e não pelas obras da lei" (Gálatas 2:16). É bom fazer o que a lei esperava poder fazer alguma compensação pessoal pelo zelo com que
exige, mas esse não é o modo de receber a justiça concedida por Deus. havia feito o povo de Cristo sofrer, em certa época, tendo assim perse-
O alicerce da justiça legal, própria, em que Paulo confiava, entrou em guido ao próprio Cristo (cf. Atos 9:4, 5). O apóstolo não está revelando
colapso sob seus pés, na estrada de Damasco, quando ele de súbito se viu espírito de autopiedade ao falar assim: para ele era uma honra participar
como o principal dos pecadores; todavia, naquele mesmo instante ele da comunhão dos seus sofrimentos, e assim estreitar ainda mais os laços
recebeu pela fé no Filho de Deus o novo e perene alicerce da justiça que o prendem ao Senhor.
livremente concedida pela graça de Deus. Agora, e para sempre, Paulo
Conformando-me com ele (Cristo) na sua morte era, para Paulo, em
sabe que é aceito por Deus, por causa de Cristo.
parte, auto-identificação com o Cristo crucificado e, em parte, uma
3:10 / Desejo conhecê-lo: mais uma vez Paulo declara qual é sua questão de experiência diária, uma antecipação da morte física que, com
ambição. Ele havia vivido com o conhecimento de Cristo por muitos toda probabilidade, lhe tomaria a forma de martírio por amor a Cristo
anos, mas veio a encontrar em Cristo uma plenitude inexaurível; sempre (como de fato ocorreu).
havia mais de Cristo para conhecer. Tal conhecimento era de tal forma No que concerne à auto-identificação com Cristo, a morte com o
uma questão de união interpessoal, que "conhecer a Cristo" significava Senhor ilustrada no batismo, logo no início da carreira cristã de Paulo
experimentar o poder de sua ressurreição. Se o amor de Deus fica (Romanos 6:2-11), não foi brincadeira tipo "faz-de-conta"; ela exerceu
demonstrado de modo supremo na morte de Cristo (Romanos 5:8), o influência decisiva sobre o apóstolo a partir de então: "Estou crucificado
poder de Deus fica demonstrado de modo supremo na ressurreição de com Cristo, e já não vivo, mas Cristo vive em mim" (Gálatas 2:19, 20).
Cristo; e todos quantos estão unidos, pela fé, ao Cristo ressurreto, No que diz respeito à experiência diária, Paulo podia dizer: "Cada dia
possuem este poder, pois lhes foi conferido. "A suprema grandeza do morro... por Cristo Jesus nosso Senhor" (1 Coríntios 15:31). Ele podia
seu poder para conosco, os que cremos, segundo a operação da força do falar a respeito de "o morrer do Senhor Jesus no nosso corpo, para que a
seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos" vida de Jesus se manifeste também em nossos corpos" (2 Coríntios 4:10).
(Efésios 1:19,20); é o poder que, dentre outras coisas, capacita o crente Se Paulo tivesse, um dia, de enfrentar o carrasco por causa de Jesus, tal
132 (Filipenses 3:12-11) (Filipenses 3:12-14) 133

fato coroaria sua semelhança a Cristo na sua morte. A morte, de modo ressurreição dentre os mortos, ressalta a clara implicação do texto
especial a morte de mártir, haveria de ser (como o apóstolo disse em paulino: que a ressurreição dos crentes é uma ressurreição que os traz
1:21), grande lucro, para alguém cujo viver era Cristo. para fora do domínio do restante dos mortos.
Não havia a menor dúvida de que existiam crentes nas igrejas gentí-
licas (não necessariamente na de Filipos), que viam aquelas aflições de Notas Adicionais 19
Paulo, inclusive seu encarceramento atual, como sinal de que o apóstolo 3:7 / considerei-o: gr. hegemai-, a referência não é particular, específica à
ainda não chegara ao estágio de perfeição espiritual que eles próprios experiência da conversão do apóstolo, como de fato seria, fosse usado o tempo
alegavam haver chegado (cf. 1 Coríntios 4:8). Paulo as vê de modo bem aoristo hegesamen. (No v. 8 tenho também por perda é tradução do presente
diferente: aquelas tribulações por que passava constituíam as condições hegoumai.)
A linguagem de Paulo aqui é diferente da adaptação da terminologia de
indispensáveis de identificação com Cristo na glória: "Com ele padece-
contabilidade, lucros e perdas, que de vez em quando se encontra noutras
mos, para que também com ele sejamos glorificados" (Romanos 8:17). passagens. Cf. Aristóteles, Nicomachean Ethics 5.4.13, onde se afirma que a
justiça é a média entre lucros e perdas (ninguém ganha mais nem menos do que
3:10,11 / Experimentar aqui o poder da sua ressurreição (de Cristo) merece); também Pirqe Abot 2.1, onde o rabino Judah, o Príncipe (cerca de 200
não constituía um substituto imediato da esperança da ressurreição do d.C.) teria afirmado este preceito: "Calcule-se a perda sofrida no cumprimento
corpo, como parecia que alguns convertidos de Paulo pensavam (1 de um mandamento, descontando-se o galardão auferido nesse ato de obediên-
Coríntios 15:22). A ressurreição de Cristo, cujo poder havia sido conce- cia, e o lucro obtido na transgressão, descontando-se a perda envolvida nessa
dido a seu povo na presente vida mortal, envolvia a expectativa para os desobediência."
3:8 / E, na verdade: gr. alia menounge kai ("sim, na verdade"). Gr. alia kai
que já haviam morrido, crendo no Senhor, "que aquele que ressuscitou
é reforçado pela partícula composta (men, oune ge), que enfatiza o sentido
ao Senhor Jesus, nos ressuscitará também por Jesus" (2 Coríntios 4:14). progressivo (cf. M. E. Thrall, GreekParticles in the New Testament, pp. 15,16).
Paulo voltará a este tema mais tarde (vv. 20, 21). Aqui ele fala de modo F. W. Beare (ad loc.) apresenta uma discussão interessante sobre conheci-
pessoal: se alguém que enfrentava a morte todos os dias por causa de mento de Cristo Jesus, meu Senhor. A linguagem de Paulo aqui não pode ser
Cristo, estava sujeito a encerrar sua vida física como mártir, por amor do explicada em termos de seu pano-de-fundo hebraico, nem de sua cultura
helenista, quanto a gnosis: antes, o apóstolo produz "uma fusão nova, criativa,
Senhor, tal pessoa poderia experimentar o poder da sua ressurreição
de helenismo com hebraísmo, que redunda em síntese distintivamente cristã,
dia a dia, e aguardar com certeza o partilhamento da ressurreição de muito mais rica do que aqueles elementos culturais isolados, sendo, entretanto,
Cristo, após a morte. A esperança que Paulo deixa implícita (ver se de herdeira de ambos." Nesta síntese, é preciso acrescentar, o elemento mais
alguma maneira posso chegar) não é esperança incerta, mas certeza importante é o conhecimento pessoal de Cristo que Paulo já havia obtido; o
bem fundamentada. Se esta linguagem implicar em incerteza — "se eu apóstolo expande seu significado no v. 10. Consultem-se R. Bultmann, TDNT
vol. 1, pp. 689-714, s.v. "ginosko," "gnosis," etc.; J. Dupont, Gnosis: La
puder finalmente chegar à ressurreição dentre os mortos" (NEB) —
connaissance religieuse dans les épitres de saint Paul-, B. E. Gartner, "The
poderá ser incerteza da parte de Paulo quanto crer que, mesmo neste Pauline and Johannine Idea of 'to know God' against the Hellenistic Back-
estágio de sua carreira, talvez ele não passe pela morte, mas esteja vivo ground," NTS 14 (1967-68), pp. 209-31.
quando o Senhor voltar. Todavia, todos os sinais indicavam que o Tenho também por perda todas as coisas: gr. ta panta ezemiothen (passi-
apóstolo deveria sofrer a morte e, com toda probabilidade, morte violen- va), literalmente, "sofri multa de tudo", "fui despojado de tudo que tenho," que
ta. A certeza dele, entretanto, era que "de fato Cristo ressurgiu dentre os pode deixar implícita uma pena pesada, ou que Paulo tenha sido deserdado por
mortos", e tornou-se "as primícias dos que dormem" (1 Coríntios 15:20). causa de sua fidelidade a Cristo; pode implicar também que ele tenha renunciado
a tudo, de boa vontade, por amor a Cristo.
"Sabemos," diz Paulo em 2 Coríntios 5:1, "que, se a nossa casa terrestre 3:9 / e seja achado nele: gr. hina... heuretho. Quanto ao uso da voz passiva
deste tabemáculo se desfizer, temos da parte de Deus um edifício, uma de heuriskein como forma suplente do verbo "ser" ou "tornar-se," cf. 2:7.
casa não feita por mãos, eterna, nos céus." Consulte-se também E. D. Burton, The Epistle to the Galatians, p.125 (numa
A redação de ECA: para ver se de alguma maneira posso chegar à nota sobre Gálatas 2:17). Se perguntassem a Paulo em que época ele esperava
132 (Filipenses 3:12-14) 133
(Filipenses 3:12-65)
da ressurreição dos que morreram fisicamente, mas só faz sentido se se distinguir
ser achado em Cristo, a resposta poderia ser "no dia de Cristo"; mas, ele sabe
de outra interpretação" (J. Gnilka, ad loc.) — sendo esta outra, presumivelmen-
que só será achado em Cristo naquele dia se viver em Cristo hoje.
te, aquela contra a qual Paulo lança uma declaração integral sobre a doutrina da
A justiça que vem de Deus é "o modo de Deus tornar as pessoas retas diante
ressurreição, em 1 Coríntios 15. Diga-se, todavia, que esta é uma possibilidade;
dele mesmo" (Romanos 3:21) — um relacionamento justo com Deus, recebido
não existe certeza absoluta.
por graça divina e não atingido pela lei. Recebemos a justiça que vem pela fé
em Cristo: gr. dia pisteos Christou, que ECA com certeza traduziu bem, ao
tratar Christou como genitivo objetivo, embora alguns desejem tratá-lo como
genitivo do sujeito, traduzindo-o assim: "mediante a fidelidade de Cristo" (cf.
Romanos 3:22, 26; Gálatas 2:16). Veja-se J. A. Ziesler, The Meaning of
Righteousness in Paul, F. F. Bruce, The Epistle to the Galatians, pp. 138-40 (em
nota sobre Gálatas 2:16).
3:10 / Desejo conhecê-lo: gr. tou gnonai auton, "a fim de conhecê-lo," em
que o aoristo do infinitivo segue o precedente dos aoristos kerdeso (para que
possa ganhar) e heuretho ("para que possa ser achado") nos w. 8, 9. Paulo
está interessado aqui com o conhecimento de Cristo que se pode experimentar
nesta vida (como no v. 8, conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor). É inútil
dizer que "Paulo sem dúvida tomou algo emprestado dos gnósticos, ao descrever
gnosis Christou lesou como sendo marca distintiva do cristão", quando se
concorda, de imediato, que o conteúdo dos vv. 8-11 "é muito diferente do
gnosticismo" desde que "Paulo não está descrevendo experiências individuais,
mas o caráter da existência cristã em geral" (R. Bultmann, TDNT, vol. 1, pp.
710,711, s. v. ginosko, gnosis). É possível, como diz W. Schmithals, que Paulo
aqui "lança o verdadeiro conhecimento de Jesus Cristo, lutando contra 'as
oposições da falsamente chamada ciência'" (Paul and the Gnostics", p. 92), se
ficasse claro que Paulo tem em mente os proponentes deste gnosis rival
(consultem-se as notas sobre os vv. 18, 19, abaixo).
Quanto ao desejo de Paulo sobre usufruir a comunhão dos seus sofrimentos
(de Cristo), consultem-se B. M. Ahern, "The Fellowship of His Sufferings (Phil
3:10)," CBQ 22 (1960), pp. 1-32; também H. Seesemann, Der Begriff KOINO-
NIA im Neuen Testament.
3:11 / para ver se de alguma maneira: gr. eipos, "se talvez," "se de algum
modo," introduzindo uma oração de propósito, em que a execução desse
propósito de modo algum está no poder da pessoa; cf. Atos 27:12, quanto à
esperança do marinheiro de atingir Fênix e ali passar o inverno; Romanos 1:10,
quanto à oração de Paulo para que no final lhe seja possível visitar Roma; 11:14,
quanto à esperança do apóstolo de promover a salvação de seus compatriotas
judeus, levando-os a desejar partilhar as bênçãos do evangelho que os crentes
gentios tanto usufruem. Veja-se BDF, 0375.
O substantivo exanastasis, "ressurreição," não tem paralelo no NT; a adição
do prefixo ex antes da forma regular anastasis (usado, e.g., no v. 10), reforça o
sentido da preposição ek na seguinte frase: ek nekron, "fora (tendo saído) dentre
os mortos," e enfatiza que o que se tem em mira é a ressurreição do corpo
temporal dos justos, no último dia, e não simplesmente uma ressurreição
espiritual no presente. A "intenção, sem sombra de erro, é transmitir a realidade
99
(Filipenses 2:17-66a)
convocara — alcançar aquilo para o que fui alcançado por Cristo
20. Ambição de Paulo (Filipenses 3:12-14)
Jesus, como ele afirma. Cada fase da vida subseqüente de Paulo, cada
ato seu, todos os elementos de sua compreensão e pregação do evangelho
podem ser relacionados à revelação de Jesus Cristo que lhe foi concedida
Não importando o que outros digam sobre si mesmos, Paulo sabe que naquele lugar, naquele dia.
ainda não atingiu a perfeição. Enquanto existir vida física, há campo para
contínua perfeição. O prêmio só será conferido no final da corrida. 3:13 / "Não, de modo nenhum, diz Paulo, eu não consigo imaginar que
já tenha atingido a perfeição, nem que tenha cumprido o propósito para
3:12 / Agora, Paulo deixa o jargão do contabilista, e atém-se ao do o qual fui chamado ao serviço de Cristo; eis porque continuo minha luta."
atleta (cf. 2:16). Ei-lo que participa de uma corrida; ainda não enverga a Ele se refere a si mesmo como sendo um atleta numa corrida, que tem um
faixa de campeão e tampouco empunhou a taça, mas deve continuar único objetivo em vista: terminar a corrida e ganhar o prêmio. Quem corre
correndo, até que esses prêmios lhe sejam atribuídos. Alguns de seus numa competição não fica olhando para trás, por cima do ombro, a fim de
convertidos, noutros lugares, imaginavam que já haviam atingido a calcular que distância já percorreu, nem como vão os concorrentes: quem
perfeição e que já haviam adentrado a glória real: Paulo lhes diz com corre fixa os olhos na meta de chegada. As coisas que para trás ficam
ironia que gostaria que as declarações deles fossem verdadeiras, porque descreve a parte da corrida já feita; todavia, de nada adianta ao participante
nesse caso ele próprio estaria incluído na perfeição; todavia, ele sabe que da corrida sobressair-se à frente dos demais durante nove décimos do
ainda está lutando muito, em meio ao calor e poeira (1 Coríntios 4:8-13). caminho, e ser alcançado e vencido na fase final.
Se porventura alguns de seus amigos filipenses têm a tentação de fazer Quando Paulo contemplou tudo quanto havia realizado na obra apos-
declarações semelhantes, prematuras, quanto às suas realizações espiri- tólica, isso serviu para reforçar sua resolução de prosseguir, da forma
tuais, o que Paulo tem a dizer agora poderá ser-lhes útil. O apóstolo ilustra como havia iniciado. Quando ele registrou o término de seu ministério
a verdadeira natureza da existência cristã na terra fazendo uma referência "desde Jerusalém e arredores, até o Ilírico," foi para anunciar seus planos
a si próprio. O sempre crescente conhecimento de Paulo a respeito de de viajar para a Espanha e repetir no lado oeste do Mediterrâneo o
Cristo, o fato de o apóstolo partilhar, aqui e agora, tanto os sofrimentos programa que havia concluído no lado leste. Enquanto se lhe oferecesse
quanto o poder da ressurreição de Cristo, tudo isso o leva cada vez mais uma oportunidade para "anunciar o evangelho, não onde Cristo já fora
perto do alvo; entretanto, enquanto ele estiver no corpo, esse alvo nomeado," a tarefa de Paulo permaneceria incompleta, por terminar
permanecerá à sua frente, distante. Jamais, nesta vida, Paulo atingirá a (Romanos 15:19-24).
perfeição, no sentido que não lhe será possível afirmar: não posso obter
maior progresso espiritual, e nada mais existe para ser almejado, além 3:14 / prossigo para o alvo, diz o apóstolo, usando um substantivo
do ponto que já atingi. Ao apóstolo resta, ainda, agarrar e cumprir o (gr. skopos) não encontrado noutra parte do NT. Há um prêmio a ser
propósito para o que fui alcançado por Cristo Jesus na estrada de concedido, e Paulo quer ganhá-lo. Ele espera ouvir o presidente daqueles
Damasco. jogos chamá-lo ao pódio a fim de conferir-lhe a medalha. Em certas
Paulo relembra sua conversão como sendo um momento em que a mão ocasiões especiais, em Roma, este chamado poderia provir do próprio
poderosa do Senhor lhe foi colocada sobre o ombro, virando-o totalmente imperador; com que orgulho o atleta vencedor atenderia ao chamado,
em seus caminhos, quando uma voz que não admitia refutação lhe falou caminhando até a tribuna imperial a fim de receber o prêmio! Para Paulo,
ao ouvido: "Tu deves seguir-me." Paulo havia sido convocado para o o presidente dos jogos não era outro senão Jesus, seu Senhor; o prêmio
serviço de Cristo; todavia, jamais houve um recruta convocado mais seria fruto da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus, ou, de modo
ardoroso do que ele. A paixão de sua vida, a partir daquele momento, era mais simples, "o chamado para cima, vindo de Deus, em Cristo Jesus"
servir a seu novo Senhor e cumprir o propósito para o qual ele o (RSV). Usando linguagem semelhante, Paulo fala, mais tarde: "a coroa
132 (Filipenses 3:12-14) (Filipenses 3:12-14) 133
da justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me dará naquele Para alcançar aquilo para o que ... gr. ei kai katalabo, "se na verdade eu
dia" (2 Timóteo 4:8). puder alcançar aquilo..."; o uso de ei ("se") a fim de introduzir uma oração de
A palavra traduzida por prêmio (gr. brabeiorí) é usada em 1 Coríntios propósito é semelhante à do v. 11, "para ver se..."(gr. ei pos). O antecedente de
9:24: "os que correm no estádio, todos, na verdade, correm, mas um só aquilo para o que não vem expresso no original, sendo provavelmente seme-
lhante a algo como "propósito", em linha com eph' ho, "com vistas a."
leva o prêmio." Todavia, não existe tal exclusivismo acerca deste prêmio;
Fui alcançado por Cristo Jesus: gr. katelemphthen hypo Christou lesou,
ele será dado, como diz Paulo, em continuação, acerca da coroa da "fui agarrado por Cristo Jesus." O tradutor precisou encontrar um verbo apro-
vitória, em 2 Timóteo 4:8, "não somente a mim, mas também a todos os priado a fim de expressar ambos os sentidos de katalambanein (katalabo...
que amarem a sua vinda." Paulo tenciona ganhar o prêmio; todavia, existe katelemphthen). Toma-se difícil melhorar a escolha feita por KJV, que traduziu
um prêmio para todos que terminarem a corrida; Paulo recomenda seu assim: "apreendido por Cristo Jesus". Quanto à importância da experiência de
próprio exemplo a seus leitores (1 Coríntios 9:24), de tal maneira que Paulo de ter sido "apreendido por Cristo Jesus", em relação ao seu ministério
subseqüente, consultem-se J. Dupont, "The Conversion of Paul, and Its Influen-
tomem a ambição dele para si mesmos.
ce on his Understanding of Salvation by Faith," em W. W. Gasque e R. P. Martin,
E que poderá ser esse prêmio senão receber de modo definitivo o Cristo, eds., Apostolic History and the Gospel, pp. 176-94; G. Bornkamm, "The
por amor de quem, como diz Paulo, vale a pena perder tudo o mais? Revelation of Christ to Paul on the Damascus Road and Paul's Doctrine of
Justification and Reconciliation," em R. Banks, ed., Reconciliation and Hope,
Notas Adicionais 20 pp. 90-103; S. Kim, The Origin of Paufs Gospel.
3:13 / Há um texto variante: "não" (ou), para não (julgo que o tenha
3:12 / Não que já a tenha alcançado (elabon); o verbo é transitivo, mas o alcançado) [ainda] (oupo). Apesar de a idéia contida em "ainda não" contar
objeto direto não vem expresso. Esse objeto direto é a ambição, que Paulo com aprovação antiga, geral, é mais provável que o texto original tenha sido um
declarou por extenso nos vv. 8-11, o ganhar a Cristo final e completo, que não "não" simples.
se deve distinguir do prêmio de que ele falará a seguir. 3:14 / O alvo ou skopos tinha essa designação porque o competidor mantinha
Ou que seja perfeito: "tenha sido aperfeiçãoado" (teteleiomai). É possível os olhos fixos nele (skopein, "olhar"). O "chamado do alto" dirigido ao vencedor
que Paulo esteja tomando emprestado algum termo das religiões místicas (cf. vinha, nos jogos gregos, do agonothetes, e nos jogos pan-helenísticos (como os
4:12), nas quais a pessoa admitida às mais elevadas esferas era considerada de Olimpo), do hellenodikai.
"perfeita"; entretanto, da forma como Paulo usa essa palavra, aqui, não existe
qualquer conotação de mistério. Tampouco está ele referindo-se ao seu martírio,
que se aproxima, embora Inácio (To the Ephesians 3:1) use um termo sinônimo,
enquanto contempla sua provável exposição perante as bestas feras da arena:
"Ainda não fui aperfeiçoado apertismai em Jesus Cristo," diz ele; mas, confor-
ma-se à perspectiva do martírio, seja qual for a forma que vier a tomar, "desde
que eu possa ganhar epitycho a Jesus Cristo (To the Romans 5:3). A perspectiva
de Paulo é mais sadia: a perfeição que o apóstolo ainda não atingiu lhe pertencerá
quando chegar o momento de "partir e estar com Cristo" (1:23).
Antes de ou que seja perfeito os manuscritos P , com Irineu (tradução
latina) e Ambrosiaster, inserem uma sentença: "ou tenha já sido justificado"
(dedikaiomai). Teria sido um uso não-paulino do verbo "justificar": Paulo sabia
que ele, e todos os crentes em Cristo, já haviam sido "justificados pela fé"
(Romanos 5:1, etc; cf. v. 9 acima). Parece-se mais com o uso que Inácio faz
desse verbo. Falando das tribulações que sofrerá a caminho de Roma, Inácio
declara: "Não sou justificado por estas coisas" (dedikaiomai), implicando que
no fim é que será justificado, quando houver sofrido a morte de mártir (To the
Romans 5:1).
Mas prossigo: gr. dioko\ "eu persevero," "eu continuo."
99
(Filipenses 2:17-15a)
Se alguns dos leitores de Paulo se sentissem obrigados a admitir que
21. Maturidade Espiritual (Filipenses 3:15-16) não conseguiam exprimir suas ambições, ou atitudes, nos termos de
Paulo, eles que não se desesperassem, nem se resignassem a trilhar uma
existência cristã de segunda categoria. Que o problema seja entregue a
Paulo sabe que nem todos os seus amigos valorizam as questões do Deus: se pensais de outra maneira, também Deus vo-lo revelará.
cristianismo como ele as valoriza. Não impinge sobre eles seus padrões Paulo não os repreenderá, nem expressará desapontamento por terem
de valores, mas dá-lhes alguns conselhos úteis. feito um progresso tão insignificante. Em vez disso, o objetivo de Paulo
será encorajá-los.
3:15 / A NIV está certa ao traduzir teleioi ("perfeitos") como "madu- Se pensais de outra maneira, também (kai touto) Deus vo-lo reve-
ros", nesta passagem. A grande maioria dos estudiosos crê que a referên- lará. Supondo-se que Paulo esteja discutindo com aqueles que afirma-
cia atinge as pessoas que afirmam haver alcançado a perfeição, num vam possuir uma perfeição prematura, a palavra também pode significar
sentido que Paulo rejeitou para si mesmo (v. 13). Entretanto, agora Paulo que, além e acima das "visões e revelações" que eles se vangloriavam de
se inclui entre os que são "perfeitos", da mesma forma como em Roma- ter recebido (cf. 2 Coríntios 12:1), havia questões de vivência cristã que
nos 15:1 ele se inclui entre os "fortes" ("mas nós, que somos fortes"). A lhes deveriam ter sido reveladas também. De outra forma, o ponto central
repetição de certa palavra ou de seu derivado num sentido diferente, num pode ser que, por haverem aceitado a revelação divina que conduz a uma
intervalo curto, constitui fenômeno literário comum. Não há necessidade atitude característica da maturidade espiritual, eles poderiam confiar em
de inscrever a palavra, como aparece agora, dentro de aspas, como se Deus. Aí, o Senhor lhes concederia qualquer revelação espiritual que lhe
Paulo não lhe estivesse atribuindo seu verdadeiro significado. Pode-se fosse necessária a fim de remover-lhes quaisquer inadequações ou incoe-
ter certeza de que se algum leitor de Paulo afirmasse ser perfeito, num rências no modo cristão de ver as coisas.
sentido que não poderia ser real, atingível, senão no dia de Cristo, haveria
uma palavra de admoestação para esse crente: reconhecer que tal perfei- 3:16/ andemos segundo o que já alcançamos constitui a linha mestra
ção é inatingível durante nossa vida mortal aqui, é marca dos crentes do viver cristão que Paulo de modo habitual recomendava a seus conver-
"maduros" — perfeitos. tidos — se esse é o princípio, como ele afirma noutra passagem, ou "os
meus caminhos em Cristo, como por toda a parte ensino em cada igreja"
Que nenhum mortal pense que num segundo (1 Coríntios 4:17) — eles que prossigam, continuando a seguir "os
Tudo se fez, toda a obra esteja terminada; caminhos" de Paulo, como regras do viver cristão, pois o crescimento
Embora tu a inicies em tua aurora, espiritual desejado haverá de manifestar-se. Àqueles que já caminham
Dificilmente a acabarás ao pôr-do-sol.
segundo a luz de que dispõem agora, mais luz se lhes dará.
(F. W. H. Myers, "Saint Paul")
Não há uma palavra no texto grego, aqui, correspondente a "regra";
De modo mais positivo, a ambição centralizada em Cristo, expressa as versões que a acrescentam podem ter sido influenciadas (de modo
por Paulo, é o que deveria caracterizar todos os crentes "maduros", isto adequado) pela redação semelhante de Gálatas 6:16, em que o substan-
é, perfeitos. Sem dúvida nenhuma, a ambição de Paulo, a partir do tivo "regra" (gr. kanorí) aparece: "A todos os que andarem conforme esta
momento de sua conversão, foi servir a Cristo e ser "achado nele"; regra, paz e misericórdia."
entretanto, a averiguação mediante experiência pessoal de tudo quanto Respondendo-se à pergunta sobre como esta referência a "regra" se
estava envolvido na busca desta ambição exigiu-lhe tempo. Então, ha- harmoniza com a recusa de Paulo em atribuir um lugar à lei, na vida cristã,
vendo atingido a maturidade espiritual, Paulo "deixa de preocupar-se é preciso que se diga o seguinte: (1) esta "regra" não consiste de
demais com fraquezas, fracassos e frustrações," quer tenham aparecido regulamentos legais; antes, tem a natureza de linhas gerais ou princípios
nele mesmo, quer nos outros (Montefiore, Paul the Apostle, p. 30). de orientação, e (2) para contrapor-se à "lei", no sentido judicial, Paulo
136 (Filipenses 3:15-16)
opresenta "a lei de Cristo" — isto é, o modo de vida exemplificado por
Cristo, e registrado nos evangelhos para imitação de seus seguidores. A 22. Imitação de Paulo (Filipenses 3:17)
regra implícita aqui abarca, portanto, os princípios de vida envolvidos na
"lei de Cristo", dentre os quais assume papel saliente o levar as cargas
uns dos outros (Gálatas 6:2). Paulo estimula os crentes filipenses a
Há muitos mestres itinerantes cujo exemplo seria desastroso seguir.
prosseguirem na marcha avante, como comunidade coesa, ombro a
Paulo recomenda seu próprio exemplo e o de outros que, como ele,
ombro, de acordo com o ensino que haviam recebido do apóstolo, desde
seguem o caminho de Cristo.
o princípio, quando dele receberam o evangelho.
3:17 / Se os preceitos de Paulo não são suficientemente claros, que se
Notas Adicionais 21 siga seu exemplo. "Imitação de Paulo" é tema notável e freqüente nas
epístolas paulinas. Ele ensinava a seus convertidos mediante preceitos
3:15/Perfeitos: gr. teleioi. W. Lütgert (Die Vollkommenen im Philipperbrief
und die Enthusiasten in Thessalonich p. 19), W. Schmithals (Paul and the orais e escritos, sobre como deveriam viver; entretanto, um exemplo vivo
Gnostics, pp. 99-104), e outros, entendem que as pessoas assim designadas são poderia ser mais eficaz do que muitas palavras. Se desejassem ver a vida
as de tendências gnósticas, semelhantes às que a si mesmas se designavam cristã em ação, Paulo lhes dirigiria a atenção para sua própria conduta,
"pessoas espirituais" (pneumatikoi) em Corinto (cf. 1 Coríntios 2:13, 15; 3:1, como o faz aqui: "unam-se aos que me imitam."
etc.). De acordo com esses comentadores, a ostensiva associação de Paulo com
Um homem como Paulo assumir esta atitude significava que ele
tais pessoas na primeira pessoa do plural é, quando muito, captatio benevolen-
tiae. Esta constitui uma interpretação torcida das palavras do apóstolo. precisava ser excepcionalmente cuidadoso na conduta, de modo que seu
Tenhamos este sentimento: gr. touto phronomen, "tenhamos esta mentali- exemplo não fosse uma pedra de tropeço espiritual para os outros, ou até
dade." No documento Aleph, L, e em alguns outros manuscritos, o verbo mesmo induzi-los ao pecado, ainda que sem essa intenção. E o apóstolo
phronoumen, no indicativo, é traduzido assim: "nós temos esta mentalidade" exortava seus convertidos a serem igualmente cuidadosos: "Não vos
(todavia, esta variante não tem base para consideração séria). A atitude em pauta torneis causa de tropeço nem para judeus, nem para gentios, nem para a
é explicada por Crisóstomo como prontidão para "esquecer o que ficou para
igreja de Deus. Como também eu em tudo agrado a todos, não buscando
trás"; e acrescenta, fazendo um trocadilho com o sentido duplo de "perfeitos"
(teleios: "a marca distintiva de quem é perfeito é não considerar-se perfeito" o meu próprio proveito, mas o de muitos, para que assim se possam
(Homilies on Philippians, 12). salvar. Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo" (1
Se pensais de outra maneira pode significar que as pessoas têm uma atitude Coríntios 10:32-11:1).
errada; o advérbio heteros "parece ter o sentido de 'errado'" (J. B. Lightfoot, ad loc.). Estas últimas palavras são cruciais: não é que Paulo desejasse estabe-
Também Deus vo-Io revelará: gr. apokalypsei literalmente. Gr. kai touto lecer sua própria vida como um padrão ético; ele apresentava a Cristo
poderia significar "na verdade, isto," como se o sentido do versículo fosse: "esta
como o padrão absoluto, tanto no ensino quanto na ação. Ele próprio só
é a revelação de que vocês precisam; não as revelações como são entendidas
nas escolas gnósticas" (cf. Schmithals, Paul and the Gnostics, p. 104). deveria ser imitado desde que e até onde imitasse a Cristo; a imitação de
3:16/ andemos segundo o que: literalmente, "marchemos segundo a mesma Cristo era um exercício que Paulo praticava todos os dias. Sabia que
(regra que vimos seguindo) até ao ponto que já atingimos" (eis ho ephthasamerí). muitos de seus convertidos o imitariam, de qualquer maneira, e sabia
Com to auto ("o mesmo"), vários documentos trazem kanoni ("regra"), mas o também que se seu exemplo os induzisse ao erro, não teria uma resposta
peso de evidências favorece a omissão desta palavra (ainda que esteja presente satisfatória para isso no dia de Cristo. Daí o cuidado com que ele praticava
esse significado implícito). Cf. Gálatas 6:16, "e a todos os que andarem incessante autodisciplina, de modo que, "pregando aos outros, eu mesmo
conforme esta regra" (gr. hosoi to kanoni touto stoichesousin), cuja influência
provavelmente deverá ser vista naquelas autoridades que acrescentam "regra" não venha de alguma maneira a ficar reprovado" (1 Coríntios 9:27).
(kanoni) aqui. O verbo stoichein (traduzido por andemos segundo) significa Veja-se também 4:9,
"permanecer na linha" ou "marchar em linha"; a implicação é que não se trata Tampouco recomendava o apóstolo apenas o seu próprio exemplo.
de realização individual, mas algo que movimentaria toda a comunidade, coesa. Outros havia que seguiam a mesma trilha de vida e partilhavam as
142 (Filipenses 3:18-17)

mesmas atitudes e princípios: Timóteo e Epafrodito foram mencionados


em 2:19-30, quanto a isto. Homens e mulheres da qualidade deles também 23. Advertência Contra Inimigos (Filipenses 3:18-19)
apresentaram exemplos que podiam ser seguidos com confiança.

Notas Adicionais 22
Paulo adverte os filipenses contra os indivíduos cujo exemplo é
3:17/ observai: gr. skopeite, "olhai," "ficai alertas." Em Romanos 16:17 este danoso ou inútil moralmente.
verbo é empregado no sentido de "observar e evitar"; aqui, no sentido de
"observar e seguir." 3:18 / Foi o comportamento dos indivíduos a que Paulo se refere agora
Segundo o exemplo que tendes em nós: lit., "como tendes a nós como que os tornou inimigos da cruz de Cristo. Os homens que tentaram
exemplo." No grego, em nós (hemas) ocupa posição enfática, como última
palavra na sentença; provavelmente deixa implícito que os outros proporcionam impor a lei judaica sobre os convertidos gentios de Paulo, nas igrejas
um exemplo diferente — a saber, aqueles contra quem os vv. 18, 19 constituem gálatas, deixavam implícito em seus ensinos (de acordo com Paulo), que
advertência. Consulte-se W. P. DeBoer, The Imitation ofPaul. a morte de Cristo não tinha significado e era ineficaz (Gálatas 2:21); nesse
sentido, poderiam ser chamados de inimigos da cruz, embora Paulo nada
diga contra seus padrões morais. Os inimigos da cruz aqui denunciados
são descritos em termos diferentes daquelas pessoas contra as quais os
filipenses devem resguardar-se, no v. 2, e que não precisam ser identifi-
cadas como inimigos da cruz. É inútil insistir nesta conexão, segundo a
qual "as entidades não precisam ser multiplicadas mais do que o estrita-
mente necessário" (princípio conhecido como "navalha de Ocam"),
como se isto determinasse a identificação dos dois grupos: a vida real é
mais complicada do que o argumento lógico.
Fica evidente, mediante sua correspondência, que Paulo às vezes era
obrigado a travar guerra em pelo menos duas frentes — em Corinto, por
exemplo, lutou contra os ascetas, de um lado, que gostariam de proibir o
casamento (1 Coríntios 7:1), e contra os libertinos, por outro lado, cujo
grito de guerra era: "tudo é permissível" (1 Coríntios 6:12). De modo
idêntico, a graça de Deus é recebida em vão por aqueles que continuam
a viver sob a lei, e por aqueles que pensam que devem permanecer "no
pecado, para que a graça aumente" (Romanos 6:1). Nos vv. 18 e 19 Paulo
está preocupado com as pessoas que aderiram a este último preceito, tanto
no ensino quanto na prática. Cristo suportou a cruz a fim de libertar os
crentes dos pecados, e reconciliá-los com Deus (Romanos 6:7; 2 Corín-
tios 5:18-21); os que de modo deliberado permanecem no pecado e
repudiam a vontade de Deus, renegam tudo quanto a cruz de Cristo
representa.
Paulo já havia exortado os crentes filipenses, antes, contra tais pessoas
— se mediante palavra oral ou se por escrito, nós não o sabemos. Se ele
agora repete sua advertência, é porque sabe ser ela necessária. Aquelas
132 (Filipenses 3:12-18) (Filipenses 3:12-14) 133

pessoas estavam exercendo má influência em muitas igrejas e talvez um padrão de comportamento mais elevado do que aquele demonstrado
dessem uma chegada até à igreja de Filipos, se já não o haviam feito. Não pelos seus vizinhos. Contentavam-se com o fato de sua mente estar em
existe a mínima sugestão de que a igreja filipense estivesse inclinada a coisas terrenas: só pensam nas coisas terrenas. Na verdade, não havia
ouvi-los de bom grado, mas Paulo sabia como eram insidiosos os razões para pensar que haviam sido tocados pela graça de Deus, procla-
argumentos que usavam, como poderia ser prejudicial o exemplo que mada no evangelho; suas vidas estavam longe de produzir o fruto do
davam. Espírito.
3:19 / Falando dessas pessoas, diz Paulo: O seu fim é a perdição; os
Notas Adicionais 23
que lhes seguem o mau exemplo são passíveis de partilhar o mesmo
destino. 3:18 / Antes da expressão inimigos da cruz de Cristo, P 46 insere "cuidado",
O seu deus é o ventre; compare Romanos 16:18, onde os cristãos "vigiai" (gr. blepete, tomado de empréstimo do v. 2). Policarpo cita a frase
romanos são advertidos contra pessoas indesejáveis que "não servem a "inimigos da cruz" (To the Philippians, 12:3); anteriormente, na mesma carta,
ele declara que "quem não confessa o testemunho da cruz é do diabo" (7:1).
Cristo nosso Senhor, mas ao seu ventre" ("ventre" é tradução do subs- Há disputa em torno de quem são esses inimigos. W. Schmithals vê neles os
tantivo grego koilia). NIV traz "estômago", talvez menos adequado que mesmos gnósticos judaico-cristãos, quando os discerne em "aquelas pessoas que
"apetites", de outras versões, que dá idéia de glutonaria como não sendo praticam o mal", do v. 2; à semelhança de seus companheiros de Corinto,
o único vício das pessoas sobre quem pesa a acusação. De modo seme- "colocaram o 'conhecimento' no lugar da 'loucura da cruz'" (Paul and the
lhante em 1 Coríntios 6:13, em que Paulo cita o epigrama libertino: "os Gnostics, p. 107). W. Lueken (ad loc.) pensa em cristãos que não conseguem
alimentos são para o estômago (koilia) e o estômago (koilia) para os quebrar os laços familiares da velha imoralidade pagã (de modo semelhante E.
Haupt [ad loc.], e T. Zahn, Introduction to the AT vol. 1, p. 539). E. Lohmeyer (ad
alimentos," o contexto torna claro que a libertinagem é de ordem sexual,
loc.) acha que se trata de cristãos apóstatas, ou que caíram em engano; H. Appel,
e não a isenção de restrições alimentares é que constitui a questão sob com mais precisão (e correção) identifica-os como sendo crentes que se confessa-
discussão. Se o seu deus é o ventre, isto é, seus "apetites", isto significa vam como tal mas que abusavam da doutrina da graça, transformando-a em
que seus "apetites" são o interesse máximo dessas pessoas; não o libertinagem (Einleitung in das NT, p. 57).
declaram taxativamente, mas seu modo de viver deixa clara a implicação. 3:19 / Tais inimigos estão destinados à perdição (gr. apoleia), palavra usada
A sua glória é a vergonha (eis um bom exemplo de paradoxo): isto em 1:28 para designar o destino dos perseguidores da igreja. Cf. a frase
participial hoi apollymenoi, "os que estão perecendo," usada em 1 Coríntios
confirma nosso modo de interpretar a oração precedente. Não existe
1:18; 2 Coríntios 2:15; 4:3 para qualificar os que rejeitam o evangelho. Em 1
alusão à circuncisão aqui, como se a vergonha deles denotasse aquela Coríntios 1:18 ela aparece num contexto que trata da cruz como esvaziada de
parte do corpo que portava o selo da circuncisão. 1 Coríntios 5:2 traz um seu poder: "para que a cruz de Cristo não se faça vã" (1 Coríntios 1:17).
exemplo específico da situação que Paulo lamenta, em que uma união Um paralelo verbal da oração "o seu deus é o ventre" está em Eurípides,
sexual ilícita dentro da igreja, que não só quebrava a lei judaica como Cyclops 334,335, em que Ciclope diz: "Não ofereço sacrifícios a nenhum deus
também chocava o senso pagão daquilo que é apropriado (até mesmo na senão a mim mesmo, e a este meu ventre, a maior das divindades" (kai te megiste
atmosfera permissiva de Corinto), era considerada por alguns membros gastri tede daimonon). Schmithals acredita que as palavras de Paulo se referem
a "uma desconsideração para com as leis concernentes a alimentos" (Paul and
da igreja como um belo exemplo de liberdade cristã. "Não é boa a vossa the Gnostics, p. 109); mas o próprio Paulo nutria essa desconsideração. J.-F.
jactância," diz Paulo, nessa situação (1 Coríntios 5:6), porque se orgu- Collange (ad loc.) sugere que essa é a descrição dos adoradores de si próprios,
lhavam de coisas de que deveriam envergonhar-se. Um século e meio que ficam contemplando seu próprio umbigo (não sendo, porém, um sentido
depois, Hipólito de Roma falaria de um grupo chamado simônio que se natural para koilia).
congratulava por sua própria promiscuidade porque (assim dizia o grupo) Em contraste com os que têm uma glória que é a sua própria vergonha, Paulo
"é isso o que significa o perfeito amor" (Refutation ofHeresies 6.19.5). fala de si mesmo e de seus companheiros como tendo rejeitado "as coisas que
por vergonha se ocultam" (2 Coríntios 4:2). (Em Judas 13 os mestres libertinos
Tais pessoas não estavam alertas para o necessidade cristã de exibirem são comparados a "ondas furiosas do mar, espumando as suas próprias sujida-
142 (Filipenses 3:18-19)
des.") J. A. Bengel (Gnomonad loc.) e alguns autores posteriores entenderam
que a referência aqui se faz à circuncisão, como se o gr. aischyne ("vergonha") 24. Esperança e Cidadania Celestiais
fosse sinônimo de aidoia-, entretanto, tal sentido dificilmente se atribui a (Filipenses 3:20-21)
aischyne. As coisas terrenas podem contrastar com "as coisas que são de cima,
onde Cristo está assentado ã destra de Deus," onde os cristãos são admoestados
a pôr seus corações (Colossenses 3:1,2). Na verdade, é isto que Paulo vai dizer,
a seguir. Os verdadeiros crentes são cidadãos dos céus, onde o Senhor deles
está agora. Quando ele voltar, vindo dos céus, equipará seu povo com
corpos semelhantes ao seu, adequados para a recepção da herança
celestial total.

3:20 / Ao dizer que a nossa pátria está nos céus, Paulo utiliza o
substantivo politeuma, não encontrado em parte alguma do NT; relacio-
na-se com o verbo polieuesthai, que Paulo usou em 1:27 para descrever
a "conduta" dos crentes filipenses, dando ênfase especial à responsabi-
lidade deles como membros de uma comunidade. Portanto, aqui, se a pátria
deles está nos céus, a conduta deles também deveria ser compatível com
essa cidadania.
É possível que haja, aqui, uma alusão à constituição de Filipos. Visto
ser Filipos uma colônia romana, sua politeuma, o registro de seus
cidadãos era mantido em Roma, a cidade-mãe (gr. metropolis). Sem
dúvida alguma apenas uma minoria dos membros da igreja possuía status
de cidadania, mas a constituição da cidade seria muito bem conhecida
por todos. A tradução de Moffatt: "Mas, somos uma colônia dos céus,"
talvez expresse bem o sentimento generalizado. Assim como os cidadãos
de uma colônia romana deveriam promover os interesses de sua cidade-
mãe, e manter-lhe a dignidade, os cidadãos dos céus de igual modo,
estando num ambiente terreno, deveriam representar os interesses de sua
verdadeira pátria celestial, e viver uma vida digna de sua cidadania. A
pátria celestial já lhes pertencia; não precisavam aguardá-la. Entretanto,
com grande anseio esperavam o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que
dela viria. Esta expectativa constituía elemento constante na pregação
primitiva apostólica: os convertidos tessalonicenses, por exemplo, foram
ensinados a aguardar "dos céus a seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre
os mortos, a saber, Jesus, que nos livra da ira vindoura" (1 Tessalonicen-
ses 1:10).
Inferir, daqui, que o apóstolo esperava, ele próprio, estar vivo ainda,
a fim de aplaudir a vinda do Salvador, seria torcer demais as palavras de
Paulo. Em 1:20-24 ele espera a morte, que sobreviria antes do advento
144 (Filipenses 3:20-21) (Filipenses 3:20-21) 145

de Cristo, e no versículo 11, acima, ele espera "chegar à ressurreição Paulo não sabia, nem pretendia saber, quando o segundo advento
dentre os mortos." Portanto, ao dizer agora: de onde esperamos o ocorreria. Já se disse algo acerca de sua própria perspectiva de mudança,
Salvador, Paulo expressa a atitude dos crentes em geral, sem qualquer no comentário de 1:23. A assim chamada demora da parousia não
referência especial às suas expectativas pessoais. envolveu uma torturante reavaliação dele mesmo e de sua teologia, como
às vezes se tem afirmado. A certeza do segundo advento provém da fé;
3:21 / Quando o Salvador vier, transformará o nosso corpo de a data de ocorrência fica inacessível ao cálculo curioso. Cada geração
humilhação. Em 1 Coríntios 15:42-53 há uma declaração mais comple- sucessiva da igreja goza do privilégio de viver como se fosse a geração
ta. Quer os crentes tenham morrido, quer ainda estejam vivos por ocasião que haverá de saudar o retorno de Cristo.
do segundo advento, deverão passar por uma transformação, a fim de
herdar o reino eterno de Deus. Os mortos receberão um "corpo espiritual" Notas Adicionais 24
que substituirá o "corpo natural" que se desintegrou; a mortalidade dos
que ainda estiverem vivos será "revestida de imortalidade." Tanto os 3:20 / Quanto à cidadania romana, consulte-se A. N. Sherwin-White, Roman
Society and Roman Law in the New Testament pp. 78-80 e The Roman Citizens-
mortos que ressuscitarão quanto os vivos que se transformarão, tendo hip\ quanto à relevância para Filipenses 3:20, veja-se E. Stauffer, New Testa-
tido até então "a imagem do [homem] terreno" (o primeiro Adão, de ment Theology pp. 296,297. Quanto à metrópolis celestial cf. Gálatas 4:26 ("a
acordo com a narrativa de Gênesis 2:7), dali em diante assumem a Jerusalém que é de cima é livre, a qual é mãe de todos nós"). Quanto a algumas
"imagem do [homem] celestial". analogias gentílicas, consultem-se Platão, Republic 9.592B (sobre o padrão da
Esta última declaração é expressa aqui de modo ligeiramente diferen- cidade ideal edificada no céu); e Marco Aurélio, Meditations 3:11 ("querida
cidade de Deus").
te, quando Paulo afirma que Cristo transformará o nosso corpo de
E. Lohmeyer (ad loc.) chama a atenção para a estrutura rítmica do texto
humilhação, para ser conforme o seu corpo glorioso (lit., "o seu corpo iniciado com as palavras: de onde esperamos o Salvador, como se Paulo
de glória") — isto é, o corpo glorificado de Cristo, Os corpos que os estivesse citando um hino cristão, ou uma confissão de fé cristã, sem necessa-
crentes em Cristo terão na era vindoura serão da mesma ordem celestial riamente concordar com todas as suas minúcias (assim também crêem E.
que seu corpo ressurreto. "A ardente expectativa da criação aguarda a Giittgemanns, Der leidende Apostei und sein Herr pp.246, 247; J. Becker,
revelação dos filhos de Deus" (Romanos 8:19) porque sua revelação "Erwagungen zu Phil 3, 20-21," TZ 27 (1971), pp. 16-29). Além do mais, a
palavra Salvador (gr. soter) não aparece noutras passagens paulinas, exceto em
como filhos e filhas de Deus será sua participação na glória, na qual Efésios 5:23 e nas cartas pastorais. Contudo, a redação de Filipenses 3:20, 21
aquele que é o Filho de Deus por excelência há de revelar-se. "Quando (especialmente no que concerne a corpo no v. 21) tem total coerência com o
Cristo, que é a nossa vida, se manifestar," diz Paulo aos crentes colos- ensino geral de Paulo; veja-se R. H. Gundry, "Soma " in Biblical Theology, pp.
senses, "então também vós vos manifestareis com ele em glória" (Colos- 177-83.
senses 3:4). J.-F. Collange (ad loc.), R. P. Martin (ad loc.), e outros apontam para uma
Segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as coisas; série extraordinária de paralelos entre esta passagem e 2:6-11. Dentre estas
outras, M. D. Hooker vê 3:20,21 como transportando a linha de pensamento de
é o poder que Cristo partilha com o Pai, que o demonstrou ao ressuscitar 2:6-11: em 2:6-8 temos uma descrição de como Cristo se tomou como um de nós;
a seu Filho dentre os mortos (veja-se comentário abaixo, sobre o v. 10, em 2:9-11 temos um relato do que ele é agora, e em 3:20,21 ficamos sabendo como,
"o poder de sua ressurreição"). É o mesmo poder infinito exercido pelo mediante o poder que lhe foi concedido, ele nos fará semelhantes a ele mesmo
Filho, em virtude da autoridade que recebeu para conceder vida a quem ("Interchange in Christ," JTS n.s. 22 (1971), pp. 356, 357; e "Philippians 2:6-11,"
ele chamar (cf. João 5:21, 25-29). A ressurreição dos crentes, a quem ele em Jesus undPaulus, ed. E. E. Ellis e E. Grasser, p. 155).
Quando Paulo afirma que "a nossa pátria está nos céus," usando o gr.
concede nova vida, é uma fase do exercício, por parte do Filho, da autoridade
hyparchei ("já") mas, aponta para o futuro, quando se dará a sua consumação,
que o Pai lhe deu: "Pois convém que ele reine," diz Paulo aos coríntios, "até no advento de Cristo, o apóstolo ilustra o intercâmbio da escatologia ocorrida
que haja posto a todos os inimigos debaixo dos seus pés" (1 Coríntios 15:25, com a futura, no NT; quanto a esta e a outras características da presente
ecoando Salmos 8:6; 110:1). passagem, veja-se A. T. Lincoln, Paradise Now andNot Yet, pp. 87-109.
136 (Filipenses 3:15-21)
3:21 / O ' 'corpo de humilhaçao" (soma tes tapeinoseos hemon) é o mesmo
"corpo natural" (lit. "da alma"), ou somapsychikon de 1 Coríntios 15:44, assim 25. Exortação para Permanecer Firme
chamado porque é herança do primeiro Adão, que se tornou "alma vivente"
(psyche zosa, Gen 2:7, LXX). O "corpo espiritual" (soma pneumatikon) de 1
(Filipenses 4:1)
Coríntios 15:44 tem esse nome porque Cristo, o "último Adão," tornou-se pela
ressurreição "um espírito doador de vida" (pneuma zoopoioun, 1 Coríntios
15:45). Em 1 Coríntios 15:42-50, como na passagem atual, o corpo do crente
deverá parecer-se ao corpo ressurreto de Cristo. 4:1 / Mais uma vez Paulo exprime sua alegria e orgulho por causa de
Com a expressão para ser conforme o seu corpo glorioso (gr. symmorphon, seus amigos filipenses, encorajando-os de novo a que permaneçam
"conformável") podemos comparar "conformando-me (symmorphizomenos) firmes na vida cristã (cf. 1:27). De modo mais particular, no contexto
com ele na sua morte," no v. 10, acima. "Se fomos plantados juntamente com atual, Paulo os estimula a perseverar, resistindo contra aquelas influên-
ele na semelhança da sua morte, também o seremos na da sua ressurreição"
cias sobre as quais acabou de adverti-los — influências que poderiam
(Romanos 6:5).
Segundo o seu eficaz poder (gr. energeia) de sujeitar também a si todas minar-lhes a estabilidade cristã. Entretanto, a satisfação que Paulo en-
as coisas — ele cumpre o que se diz a respeito do homem no Salmo 8:6 ("Fazes contra entre esses amigos, ao escrever-lhes e ao lembrar-se deles, sugere
[Deus] com que ele [o homem] tenha domínio sobre as obras das tuas mãos; que tais influências danosas ainda não haviam penetrado naquela igreja,
tudo puseste debaixo de seus pés") e do rei Davi no Salmo 110:1 ("Assenta-te como de fato já havia acontecido em outras igrejas.
à minha mão direita, até que ponha os teus inimigos por estrado dos teus pés").
Veja-se 1 Coríntios 15:24-28; Hebreus 2:5-9.
Notas Adicionais 25
Quanto à iminência e "demora" do segundo advento, veja-se A. L. Moore,
The Parousia in the New Testament, pp. 108-74; também S. S. Smalley, "The 4:1 / saudosos irmãos: é a tradução do adjetivo verbal epipothetos, "de quem
Delay of the Parousia," JBL 83 (1964), pp. 41-54. tenho saudades." Esta forma não aparece noutras partes do NT, mas o verbo
epipothein é freqüente: ocorre duas vezes nesta carta — em 1:8, onde Paulo fala
de "sentir saudades" de todos (veja-se a nota adicional sobre 1:8), e em 2:26,
onde ele se refere à ansiedade de Epafrodito em vê-los.
Minha alegria e coroa; cf. 1 Tessalonicenses 2:19, em que Paulo e seus
companheiros, de olhos postos no segundo advento de Cristo, chamam os
crentes tessalonicenses de "gozo, ou coroa de glória" (NIV: "nosso gozo, ou
coroa em que nos gloriamos"). Em ambas as passagens a "coroa" é stephanos,
o laurel concedido ao vencedor nos jogos (não diadema, símbolo de soberania).
136 (Filipenses 3:15-4)

26. Novo Apelo em Prol da Unidade verbo synathlein aparece em 1:27, "combatendo juntamente com o
mesmo ânimo pela fé do evangelho"). Isto não indica que as colabora-
(Filipenses 4:2-3) doras de Paulo do sexo feminino desempenharam funções de menor
importância, em comparação com os colaboradores do sexo masculino.
Paulo se recorda delas, e pensa noutros colaboradores que contribuí-
A dois membros da igreja Paulo roga, mencionando seus nomes, que ram nobremente no esforço comum. De Clemente, mencionado pelo
alcancem unanimidade de espírito, como irmãs em Cristo; a um de seus nome, nada mais sabemos: visto que seu nome é latino, é concebível
colaboradores Paulo roga que as ajude nesse esforço. pensar que ele seria cidadão de Filipos. Quanto a todos os outros
cooperadores, Paulo observa que seus nomes estão no livro da vida —
4:2 / Evódia e Síntique evidentemente eram dois membros ativos da a lista oficial dos habitantes do reino celestial. Livro da vida é expressão
igreja filipense, talvez membros fundadores. Considerando o fato de que encontrada no AT para exprimir as pessoas que sobreviveram a um
(numa carta destinada a ser lida na igreja) Paulo roga a cada uma, pelo desastre, passando a gozar um período extra de vida na terra, como em
nome, que sintam o mesmo no Senhor, podemos deduzir que o desa- Isaías 4:3: "todo aquele que estiver inscrito entre os vivos em Jerusalém."
cordo entre elas, não importando sua natureza, representava uma ameaça (Cf. também Êxodo 32:32; Salmos 69:28; Ezequiel 13:9). Em Daniel
à unidade da igreja, como um todo (de modo especial em vista da 12:1 e no NT essa figura de linguagem é usada mais para as pessoas que
preeminência e influência de que gozavam). Entretanto, desse fato, que foram admitidas à vida eterna, cujos "nomes estão escritos no céu"
apenas duas irmãs são mencionadas nominalmente — pode-se inferir que (Lucas 10:20; cf. Hebreus 12:23). A maldição do Salmo 69:28 ("Sejam
essa dissensão pessoal seria excepcional naquela comunidade particular. riscados do livro da vida, e não sejam inscritos com os justos") passa por
reversão em Apocalipse 3:5, admitindo crentes destemidos que ganham
4:3 / Quem é colocado em evidência como leal companheiro de jugo
vitória espiritual: "De maneira nenhuma riscarei o seu nome do livro da
de Paulo? Era simplesmente alguém que não precisava ser identificado:
vida." No dia do juízo final, em Apocalipse 20:11-15, o "livro da vida"
todos, inclusive a pessoa assim qualificada, sabiam de quem se tratava.
(cf. Apocalipse 13:8; 17:8) é aberto e "todo aquele que não foi achado
A sugestão bastante atraente que apresentamos é que se tratava de
inscrito no livro da vida, foi lançado no lago de fogo."
Lucas. Se Lucas foi o autor de Atos, ou pelo menos da narrativa na
primeira pessoa do plural ("nós"), podemos inferir que ele estava em Entretanto, Paulo pode estar denotando aqui algo mais do que a posse
Filipos durante parte do tempo, ou na maior parte do tempo, entre a da vida eterna (que é a herança de todos os crentes); a implicação pode
primeira evangelização do povo e a breve visita de Paulo à cidade, antes ser que a obra evangelística realizada pelos seus cooperadores está
de lançar-se em sua última viagem a Jerusalém (cf. Atos 16:17 com 20:5). registrada, ao lado de seus nomes, no livro da vida.
Portanto, se esta parte da carta coincide com esse período (como as
afinidades com 2 Coríntios parecem sugerir), é bem possível que Lucas Notas Adicionais 26
seja o leal companheiro de jugo. De outra forma, a identidade desse
4:2 / Diz Paulo: Rogo a Evódia, e rogo a Síntique, que sintam o mesmo;
colaborador torna-se assunto de especulações mais amplas. a repetição do verbo rogo a (gr. parakaleo) antes de cada nome, como se ele
O leal companheiro de jugo é exortado a cooperar no caso de Evódia estivesse se dirigindo pessoalmente, primeiro a uma e em seguida à outra ("Por
e Síntique, a fim de que a valiosa contribuição delas à vida e ao favor, Evódia; por favor, Síntique..."), é digna de nota.
testemunho da comunidade não seja prejudicada pela dificuldade em Que sintam o mesmo: gr. to auto phronein, traduzido por "tenhais o mesmo
entrarem num acordo. Paulo concede às duas mulheres um tributo modo de pensar" em 2:2a. Nada existe que sugira um desacordo em torno de
alguma agitação gnóstica, como se as duas mulheres pusessem em perigo a
notável, ao afirmar que essas mulheres... trabalharam comigo no
unidade da igreja "ao abrir as portas — talvez como líderes de igrejas domésticas
evangelho. Eis um termo vigoroso, emprestado do atletismo (o mesmo — para os gnósticos" (W. Schmithals, Paul and the Gnostics, pp. 112-14).
142 (Filipenses 3:18-76)
É infrutífero tentar identificar uma delas com a Lídia de Atos 16:14,40, como
se Lídia não fosse nome próprio, mas significasse "a mulher lídia" (da região 27. Convite Reiterado a Regozijar-se (Filipenses 4:4)
de Lídia, cf. a menção de Tiatira em Atos 16:14).
4:3 / O leal companheiro de jugo foi identificado como sendo Lucas por M.
Hájek ("Comments on Philippians 4:3 — who was 'Gnesios Syzygos'?" Com-
munio Viatorum 1 [1964], p. 261-62) e T. W. Manson. O adjetivo leal (gr. Paulo repete e enfatiza a exortação de 3:1.
gnesios leva alguns a optar por Timóteo, como por ex. J.-F. Collange e G.
Friedrich (cf. o advérbio gnesios em 2:20, com nota adicional ad loc.). É possível 4:4 / O advérbio sempre deixa bem claro que isto não é mera fórmula
que Timóteo houvesse recebido instruções verbais, antes de partir para Filipos; de despedida; o verbo regozijai-vos é empregado em seu sentido total.
todavia, a inclusão dessas instruções na carta asseguraria que quando a mesma Compare-se com 1 Tessalonicenses 5:16, "Regozijai-vos sempre." Aqui,
fosse lida em público, na igreja, sua autoridade para tomar providências nesta está bem claro que o Senhor deve ser o motivo dessa alegria.
questão ficaria assegurada. Esta última consideração também se aplicaria a Outra vez digo: o verbo está no futuro, sem qualquer ambigüidade
Epafrodito, o leal companheiro na opinião de Marius Victorinus e J. B.
Lightfoot. Muitos comentadores julgam que Syzygos é nome próprio, e não o (ero). "Eu já disse uma vez," é o que Paulo pretende dizer, "e eu o direi
substantivo comum que significa companheiro de jugo: assim opinam K. pela segunda vez" (para maior ênfase).
Barth, P. Benoit, P. Ewald, J. Gnilka, E. Haupt, J. J. Müller, K. Staab. Mas, G.
Delling salienta (TDNTvol. 7, pp. 748-50) que não existem provas de Syzygos Notas Adicionais 27
ser nome próprio; ele próprio prefere achar que se trata de Silas (Silvanus),
companheiro de Paulo na evangelização de Filipos. 4:4 / Em The NT: An American Translation este versículo é traduzido assim:
O fato de a palavra grega syzygos (à semelhança da palavra portuguesa "Adeus, e que o Senhor esteja para sempre convosco. Digo-o outra vez: Adeus."
"companheiro, companheira") às vezes ter o sentido de "cônjuge", levou alguns Cf. a tradução, nesta obra, de 3:1, com E. J. Goodspeed, Problems of NT
a ver esse sentido aqui — como se Paulo tivesse uma esposa residente em Filipos Translation, pp. 174, 175.
(quem senão Lídia?) e estivesse pedindo a ela que ajudasse a resolver a questão
entre Evódia e Síntique. Tal interpretação aparentemente teria sido aprovada
por Clemente de Alexandria (Sfrom.3.6.53.1) e defendida por Erasmo; cf.
também E. Renan, St. Paul, p. 76; S. Baring Gould,/! Study ofSt. Paul (London:
Isbister, 1987), pp. 213-16. Todavia, o adjetivo leal ou "genuíno" (gnesie,
vocativo) que qualifica syzygos, aqui, certamente é masculino. A idéia pertence
à ficção romântica, e não à exegese histórica.
W. Schmithals sugere que o endereçamento (agora perdido) da carta, à qual
esta seção pertencia originalmente, teria sido feito a uma pessoa pelo nome (e.g.,
um líder da comunidade, ou talvez um dos primeiros convertidos dentre os
filipenses); esta pessoa seria, então, o leal companheiro (Paul and the Gnostics,
pp. 76,77). E melhor reconhecer que a identidade do leal companheiro era do
conhecimento perfeito da igreja filipense, e que nós só podemos fazer conjec-
turas, nesse caso.
99
(Filipenses 2:17-77a)

porta; tão perto estava há dois mil anos como está agora, e não mais perto
28. Estímulo à Fé (Filipenses 4:5-7) hoje do que ontem, e não mais perto no advento do que agora" (Newman,
p. 241).

4:6 / Visto que "perto está o Senhor," a exortação a seu povo é: não
A certeza da presença do Senhor, a confiança em poder aproximar-se
andeis ansiosos por coisa alguma. Isto se enquadra no ensino do próprio
de Deus mediante oração e ações de graças e a conseqüente paz no
Jesus a seus discípulos: "Não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao
coração se manifestarão numa atitude de cortesia para com todos.
que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo, quanto ao que
4:5 / A moderação inculcada aqui é traço do caráter cristão. Em 2 haveis de vestir... não andeis ansiosos pelo dia de amanhã, pois o amanhã
Coríntios 10:1, Paulo fala de "mansidão" ou "benignidade" de Cristo, se preocupará consigo mesmo" (Mateus 6:25-34). A existência cristã
mediante a qual o crente consegue suportar com paciência até mesmo o num mundo pagão era cheia de incertezas: perseguições de um tipo ou
abuso da parte de outrem (cf. Sabedoria 2:19). Mediante a moderação o outro sempre constituía uma possibilidade, e tornar-se membro de qual-
crente sabe como parar pela graça, não insistindo em seus direitos. Matthew quer associação patrocinada por divindades pagãs era algo impossível, o
Arnold traduziu o termo grego por "doce razoabilidade", que se tomou que resultava em desvantagem econômica. Entretanto, se o Senhor
termo de uso comum. Quando Pórcia, de Shakespeare, diz a Shylock, em estivesse perto, não havia razão para ansiedade. Jesus havia estimulado
"Mercador de Veneza" 4:1: seus discípulos a eliminarem a ansiedade porque o Pai celeste, que
alimenta os pássaros e veste a erva do campo com flores, sabia de suas
Ainda que justiça seja o teu pleito, lembre-se:
necessidades e podia muito bem supri-las (Mateus 6:26-32 par. Lucas
No curso da justiça ninguém dentre nós
12:24-30). De modo semelhante Paulo ensina: mas em tudo, pela
Deveria ver salvação... falei tudo isto
oração e pela súplica, com ações de graças, sejam as vossas petições
A fim de abrandar a justiça de teu pleito,
conhecidas diante de Deus. O apóstolo usa três palavras gregas para
ela está-lhe recomendando o cultivo da moderação, que seria atributo "oração", aqui. Há pequenas diferenças de sentido entre essas palavras
proveniente do próprio Deus. mas o principal efeito no uso de todas as três é a ênfase na importância,
Os crentes devem manifestar esta virtude em seu relacionamento com na vida cristã, da constância na oração de fé, plena de expectativa. À
as demais pessoas, e perante o Senhor. semelhança de seu Mestre, Paulo age com máxima certeza de que um
Perto está o Senhor. Pode significar que "a volta do Senhor está elemento essencial da oração é que se peçam coisas a Deus com o mesmo
próxima," "o Senhor vai regressar em breve"; é algo que Paulo poderia espírito de confiança que as crianças demonstram quando pedem coisas
ter dito (cf. 3:20), no espírito das instruções de Jesus a seus discípulos, a seus pais. Na oração que Jesus ensinou a seus discípulos, para que a
que deveriam proceder como servos que aguardam a seu senhor (Lucas usassem ao dirigir-se ao Pai celeste, o Senhor incluiu o pão de cada dia
12:42-48). Entretanto, as palavras do apóstolo podem implicar perto ao lado da vinda do reino à terra.
quanto a lugar ou perto no tempo. "Perto está o Senhor" é certeza
Acima de tudo, a lembrança de bênçãos passadas constitui salvaguar-
reiterada perante seu povo no AT (cf. Salmos 34:18; também Salmos
da contra a ansiedade quanto ao futuro: essa memória acrescenta con-
119:151; 145:18). Se o único elemento em vista fosse o tempo, alguém
fiança à oração que roga mais bênçãos. Eis aqui a importância das ações
poderia julgar que essa certeza seria mais válida para os que estarão vivos
de graças na verdadeira oração.
um pouco antes da data desconhecida do advento do Senhor, e menos
válida para os que viveram muito antes; contudo, segundo o sentido 4:7 / Se os filipenses acatassem esse estímulo, em lugar da ansiedade
provável das palavras de Paulo, aqui, o Senhor está sempre igualmente eles gozariam de paz no coração. Jesus, em João 14:27, concedeu a seus
perto de seu povo, sempre "perto". "Cristo está, portanto, sempre à nossa discípulos "a minha paz," que ele deu não "como o mundo a dá."
136 (Filipenses 3:15-7)
Portanto, aqui, a paz que os filhos de Deus recebem é a paz de Deus,
que excede todo o entendimento. Paz que "ultrapassa toda imaginação" 29. Segunda Conclusão: Alimento para a Mente
(F. W. Beare); vai além de tudo quanto a sabedoria humana consegue (Filipenses 4:8-9)
planejar. Esta paz será "fortaleza", guardará os vossos corações e as
vossas mentes, mantendo do lado de fora a ansiedade e outros intrusos:
guardará os crentes em Cristo Jesus.
Os leitores são exortados a que, no pensamento e também na ação, se
A paz de Deus pode significar não apenas a paz que ele mesmo
concentrem naquelas coisas que são boas em si mesmas e benéficas a
concede (cf. Romanos 5:1) mas a serenidade em que o próprio Deus vive:
todos.
Deus não está sujeito à ansiedade.
4:8 / Quanto ao mais, irmãos: praticamente a mesma redação de 3:1.
Notas Adicionais 28 Se "a mente é colorida segundo a cor dos pensamentos em vigília,"
4:5 / moderação: gr epieikes, adjetivo neutro; cf. o substantivo abstrato aquilo em que a pessoa pensa dá personalidade à vida. É necessária boa
epieikeia, "benignidade," em 2 Coríntios 10:1. Aristóteles descreve epieikeia alimentação para a saúde física, tanto quanto é necessário que haja bons
como aquilo que não apenas é justo porém melhor ainda do que a justiça pensamentos para que haja saúde mental e espiritual. Paulo faz uma lista
(Nicomachean Ethics 5.10.6). Há ocasiões em que a insistência estrita na letra de seis desses bons pensamentos e, em seguida, exorta os filipenses: nisso
da lei (como no caso da libra de carne de Shylock) induz à injustiça; epieikeia-
pensai; isto é, "levai estas coisas em consideração" ou "em vossas
reconhece essas ocasiões e sabe como agir quando elas surgem. "Para o emprego
correto dos métodos e dos segredos de Jesus, precisamos da epieikeia, a doce decisões considerai estas coisas" (F. W. Beare). Colocai as vossas mentes
razoabilidade (benignidade) de Jesus" (M. Amold, Literature and Dogma, nelas, diz o apóstolo, e tendo fixado nelas o vosso pensamento, planejai
London: Smith, Elder, 1900, p. 225.) Veja-se também R. Leivestad, "The e trabalhai de acordo com tudo o que é:
Meekness and Gentleness of Christ," NTS (1965-66), pp. 156-64. (1) verdadeiro. Poderia tratar-se de advertência contra indulgência
Perto está o Senhor. (Gr. ho kyrios engys.) O advérbio engys pode significar mental em fantasias ou difamações infundadas. Todavia, há coisas ver-
"perto" quanto a lugar ou quanto a tempo; quem decide o significado normal-
dadeiras factualmente em que não devemos fixar o pensamento: tudo o
mente é o contexto.
4:6/ em tudo, pela oração...: das três palavras utilizadas neste versículo para que é verdadeiro possui as qualidades morais de retidão e confiança, de
"oração," a primeira (proseuche) é termo genérico para oração a Deus; a realidade em contraposição à mera aparência.
segunda (deesis) enfatiza o elemento de petição, a súplica em oração; e a terceira (2) honesto. Esta palavra (gr. semnos) é particularmente comum nas
(aitema) significa aquilo que se está pedindo. cartas pastorais; esta é a única vez que ocorre no NT, fora daqueles três
4:7 / guardará (ou "será como fortaleza"), gr. phrouresei. Em Colossenses documentos. A mente que se concentra em assuntos desonestos corre o
3:15 Paulo usa uma figura de linguagem diferente: a paz de Cristo "domine em
vossos corações" (gr. brabeuein "seja árbitro", lit.,). NIV traz: "que a paz de perigo de tornar-se desonesta. Honestidade é o contrário da duplicidade
Cristo reine em vossos corações." de caráter que avilta a moral, sendo incompatível com a mente de Cristo.
(3) justo. (Gr. dikaios.) Não é necessário enfatizar a importância dos
pensamentos e planos justos: o próprio Deus é justo e ama a justiça em
seu povo (Salmos 11:7). O reverso disso nós o encontramos no homem
iníquo que "maquina o mal na sua cama," a fim de executá-lo depois, à
luz do dia (Salmos 36:4; cf. Amós 8:4-6).
(4) puro. Esta palavra (gr. hagnos) tem o sentido genérico de inocên-
cia (como em 2 Coríntios 7:11) ou o sentido especial de castidade (como
em 2 Coríntios 11:2). Pureza de pensamento e de propósito é condição
preliminar indispensável para a pureza na palavra e na ação, em oposição
160 (Filipenses 4:10-13) (Filipenses 4:8-13) 161

à "prostituição, e toda sorte de impureza ou cobiça" que nem sequer


devem ser mencionadas entre o povo de Deus (Efésios 5:3).
Notas Adicionais 29
(5) amável. (Gr. prosphiles.) Tudo que é amável se auto-recomenda 4:8 / Quanto ao mais, irmãos (gr. to loipon, adelphoi): o pronome posses-
pela atração e encanto intrínsecos. São aquelas coisas que proporcionam sivo "meus" (gr. mou) está ausente, estando expresso em 3:1. Quanto à repetição
prazer a todos, não causando dissabor a ninguém, à semelhança de uma de to loipon, consultem-se pp. 27,29 e 110, acima.
fragrância preciosa. Honesto: gr. semnos, "muito digno." A qualidade de semnotes, de acordo
com Aristóteles, é "uma gravidade amena e decente" (Rhetoric 2.174); é o meio
(6) de boa fama. (Gr. euphemos.) Uma coisa tem boa fama neste termo entre areskeia, " o b s e q u i o s i d a d e , " "subserviência," e authadeia, teimosia
sentido quando merece e usufrui "reputação admirável." A mente que se grosseira (Eudemian Ethics, 2.3.4).
fixa nestas coisas, em vez de naquelas que são desonrosas, tem muitas De boa fama: J. B. Lightfoot (ad loc.) sugere um sentido ativo para este
coisas em comum com o amor, que se alegra quando traz a verdade adjetivo euphemos-, "falar bem de" em vez de "ter boa reputação." NIV traz
às outras pessoas, e jamais nas coisas que lhes trazem descrédito "admirável."
Se há alguma virtude: lit., "se há alguma bondade" (gr. arete), "virtude,"
(1 Coríntios 13:6).
"excelência," palavra que Paulo não usaria outra vez, em seus escritos.
Há uma qualidade rítmica no texto grego do verso 8 (como também Nisso pensai: gr. logizesthe, "considerai," "levai em consideração."
na familiar tradução KJV: "Todas as coisas que são verdadeiras..."). Isto 4:9 / recebestes: Gr. parelabete. Deveríamos talvez reconhecer aqui o verbo
sugere que Paulo poderia estar citando certas palavras bem conhecidas paralambanein no sentido de "receber por tradição" (sendo o correlativo para-
de admoestação ética. As virtudes que ele relaciona não são especifica- didonai, "entregar como tradição"), como em 1 Coríntios 15:1; Gálatas 1:9;
Colossenses 2:6; 1 Tessalonicenses 4:1 • A tradição (paradosis) de Cristo no NT
mente cristãs; todavia, são excelentes e elogiáveis sempre que encontra-
possui três componentes principais: (1) um resumo da história do evangelho,
das. Entretanto, num contexto cristão como este em que se apresentam, quer sob a forma de pregação (kerigma), quer de confissão de fé (homologia);
tais palavras adquirem nuances distintas, associadas à mente de Cristo. (2) uma narrativa das palavras e obras de Cristo; (3) princípios gerais éticos e
Então, estas coisas — em si mesmas revestidas de virtude, plenas de comportamentais que possam reger a vida cristã. O que se tem em mira aqui é
louvor — devem ocupar nosso pensamento, participar de nossos planos; a terceira destas categorias de tradição. Veja-se R. P. C. Hanson, Tradition in
the Early Church; F. F. Bruce, Tradition Old and New.
os resultados serão benéficos para a vida e para a ação.
Na apresentação do exemplo de Paulo, aqui, como em 3:17, W. Schmithals
4:9 / Mais uma vez a tecla da imitação de Paulo é acionada. Mediante faz distinção, discernindo uma nota polêmica, como se Paulo estivesse adver-
tindo os filipenses contra o que eles poderiam ter "aprendido, recebido e visto"
ensino e exemplo Paulo tem demonstrado a seus convertidos como viver em contato com terceiros (Paul and the Gnostics, pp. 112, 113).
e como agir, inculcando neles, assim, a tradição ética derivada dos
ensinos e exemplo de Jesus. Se eles puserem em prática estas lições (o
que aprendestes, e recebestes, e ouvistes de mim, e em mim vistes,
isso fazei) a conduta deles será a exteriorização dos hábitos mentais
inculcados no versículo 8.
E o Deus de paz será convosco. Deus é um Deus de paz. Não se trata
apenas dele nos conceder paz; a paz pertence ao seu caráter divino. Deus
é o "autor da paz e da concórdia": a inimizade e a dissensão provêm de
nossa "natureza pecaminosa" (Gálatas 5:19-21). Possuir o próprio Deus
da paz é ainda melhor do que ter apenas a paz de Deus (v. 7). "O Deus
de paz" é designação recorrente de Deus no NT — de modo especial nos
finais das cartas de Paulo (Romanos 15:33; 16:20; 2 Coríntios 13:11;
1 Tessalonicenses 5:23) e também em Hebreus (13:20).
(Filipenses 2:17-80a) 99
com malícia, dizendo que Paulo queria viver às custas da igreja. (Tais
30. Suficiência de Paulo (Filipenses 4:10-13) detratores de Tessalônica aparentemente não faziam parte da igreja; os
de Corinto, sim). Daí, talvez, o pedido de Paulo a seus convertidos, para
que não lhe enviassem dinheiro para seu uso pessoal. Acima de tudo,
quando o apóstolo começou a organizar um fundo de socorro à igreja de
Paulo chega agora a uma das principais razões por que está escreven-
Jerusalém, seu grande anseio era que todas as dádivas entregues pelas
do. Se esta nota (4:10-20) era parte integrante da carta principal, o
apóstolo a reservou para o fim com o objetivo de dar-lhe ênfase — sua igrejas fossem canalizadas para tal fundo; ele sabia, no entanto, que ainda
expressão de gratidão pela oferta que Epafrodito lhe trouxera da igreja assim haveria pessoas que aproveitariam a ocasião como pretexto para
de Filipos. dizerem que o dinheiro arrecadado como ajuda aos pobres estava sendo
desviado para o bolso do próprio Paulo. Sabemos que as igrejas mace-
4:10 / Muito me regozijo no Senhor, significando "apresentei alegres dônicas haviam feito o máximo no partilhamento de seus recursos, a fim
agradecimentos ao Senhor" (quando recebi vossa oferta). Paulo agradece de contribuir para aquele fundo de socorro (2 Coríntios 8:1-5).
aos crentes filipenses a oferta que lhe enviaram, mas seu "regozijo" Todavia, a esta altura o dinheiro dos pobres já havia sido coletado e
deriva principalmente da evidência que esse fato representa de os fili- enviado a Jerusalém. Durante visita a Jerusalém, ao lado de repre-
penses terem contínuo desejo ardente de cooperar com Paulo no evan- sentantes das igrejas doadoras, Paulo foi preso. Depois de ter passado
gelho. dois anos sob custódia, em Cesaréia, passou a morar numa casa em Roma,
Alguns comentadores acham a redação de Paulo aqui bastante estra- como prisioneiro domiciliar. Mudara a situação do apóstolo: seus amigos
nha, em se tratando de uma expressão de gratidão: Dibelius se refere ao de Filipos entenderam que agora, finalmente, era oportuno enviar-lhe
"agradecimento sem graças" de Paulo. Todavia, as palavras dele devem uma oferta, o que fizeram pela mão de Epafrodito.
ser lidas à luz do mútuo e profundo afeto existente entre ele e a igreja
filipense, e à luz do bem-documentado hábito financeiro de Paulo. 4:11 / Paulo demonstra grande apreciação pelo interesse dos bondosos
O advérbio finalmente pode implicar, se tomado só em si mesmo, que filipenses, mas assegura-lhes que não estava em necessidade daquele
os filipenses permitiram que um longo período de tempo decorresse tipo. A redação paulina parece sugerir que havia constrangimento, por
desde que haviam enviado a última oferta a Paulo; todavia, o contexto causa do espírito independente e sensível do apóstolo, ao dizer "muito
nos revela que não há base para tal ponderação. É concebível, isto sim, obrigado", agradecendo uma oferta espontânea da parte de amigos tão
que no endereçamento, ou cabeçalho da nota que lhe enviaram junto à amorosos e amados, os irmãos da igreja em Filipos.
dádiva, houvessem escrito algo assim: "Finalmente temos a satisfação A política financeira de Paulo era não viver às custas de seus conver-
de enviar-lhe uma oferta, mais uma vez," e que Paulo, aproveitando a
tidos. Ele achava que, à semelhança dos outros apóstolos e líderes
frase, lhes diga: "Finalmente, como vocês dizem..." Entretanto, o longo
cristãos, tinha o direito de receber sustento da parte dos convertidos, mas
intervalo se deve, com toda probabilidade, ao costume de Paulo no que
Paulo decidiu não usufruir desse direito (1 Coríntios 9:12; 2 Tessaloni-
concerne à aceitação de presentes e ofertas por parte das igrejas. Ele deixa
censes 3:9). A bagagem de Paulo era bem leve; suas posses se limitavam
bem claro que, se só agora renovastes o vosso cuidado a meu favor,
às roupas do corpo e talvez algumas ferramentas de seu ofício, mais
isso não se deveu a alguma interrupção no interesse da parte deles, mas
alguns papiros e pergaminhos mencionados em 2 Timóteo 4:13. Sabia
antes, ao fato de faltar-lhes oportunidade para mostrá-lo. E por que
como sobreviver com o mínimo; na verdade, forçara-se a aprender em
não tiveram tal oportunidade? Porque o próprio apóstolo os privara dela.
como se contentar com pouco. Já aprendi a contentar-me em toda e
Na Macedônia — especialmente em Tessalônica — e também em
qualquer situação, diz Paulo, palavras que John Bunyan expandiria no
Corinto, Paulo verificara que se aceitasse ajuda financeira para si mesmo,
cântico do menino pastor:
da parte de seus convertidos, seus adversários deturpariam esta idéia,
160 (Filipenses 4:10-13) (Filipenses 4:10-13) 161

Estou contente com o que tenho, 4:13 / Paulo não coloca a seu crédito o aprendizado da lição sobre estar
Seja pouco ou seja muito, sempre contente; é graças àquele que o capacita que o apóstolo diz: Posso
E é alegria o que mais almejo, Senhor, todas as coisas naquele que me fortalece. Na verdade, quando se
Porque ela indica os que salvaste. tornava mais consciente de sua fraqueza pessoal é que ele mais se
Nesta peregrinação concede-me certificava do poder de Cristo que nele residia. "Portanto, de boa vontade
Medida total de alegria: me gloriarei," diz ele, "nas minhas fraquezas, para que em mim habite o
Provação agora, bênção depois, poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas
Eis a bem-aventurança das gerações. necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Pois
quando estou fraco, então é que sou forte" (2 Coríntios 12:9, 10).
"Contentando-vos com o que tendes" (Hebreus 13:5) — eis, pelo que
parece, o preceito geral da igreja primitiva. Esta atitude opõe-se de frente Notas Adicionais 30
à ambição, contra a qual Jesus (cf. Lucas 12:15) e seus discípulos
pronunciaram solenes advertências, descrevendo a "pessoa avarenta" 4:10/ Muito me regozijo: o aoristo echaren ("eu me regozijo") se refere ao
momento em que Paulo recebera a oferta, mas a alegria persistia até aquele
como "idolatra" (Efésios 5:5). momento.
A palavra traduzida por contentar-me (gr. autarkes) era comum no Finalmente: gr. ede pote. Veja-se J. H. Michael, "The First and Second
estoicismo denotando o ideal da pessoa totalmente auto-suficiente. Paulo Epistles to the Philippians," ExpT 34 (1922-23), pp. 106-9, quanto à opinião de
a emprega a fim de expressar sua independência das circunstâncias que Paulo estaria citando as próprias palavras dos filipenses. Consultem-se
externas. Estava sempre consciente de sua total dependência de Deus. O também pp. 15-16 acima.
apóstolo era mais "suficiente em Deus" que auto-suficiente: "a nossa Renovastes o vosso cuidado a meu favor: gr. anethalete to hyper emou
phronein, lit., "florecestes outra vez (intransitivo) com respeito ao vosso cuida-
capacidade vem de Deus" (2 Coríntios 5:5).
do para comigo" ou "fizestes com que vosso cuidado por mim florescesse outra
4:12 / Paulo acumulava vasta experiência em passar com menos do vez" (transitivo). Este é o único exemplo no NT de anathallein (ou na verdade
que o suficiente, em algumas ocasiões, e ter mais do que o suficiente, de thallein ou qualquer derivado).
Mas vos faltava oportunidade: gr. ekaireisthe, imperfeito de akaireisthai
noutras ocasiões. Isso pouca diferença lhe fazia. Já aprendi a conten-
"não ter kairos (oportunidade); esta é a única ocorrência deste raro verbo, na
tar-me, diz ele, tomando emprestado um termo do vocabulário das Bíblia em grego.
religiões místicas ("Eu me tornei adepto" é como F. W. Beare o traduz). 4:11 / a contentar-me em toda e qualquer situação: gr. en hois eimi
Aprendi tanto a ter fartura, como a ter fome, tanto a ter abundância, autarkes einai. A ênfase estóica sobre autarkeia, no sentido de auto-suficiência,
como a padecer necessidade. Só podemos imaginar o que é que Paulo tem raízes em Sócrates; quando alguém lhe perguntou quem era a pessoa mais
considerava abundância — tudo que estivesse acima do mínimo neces- rica, Sócrates replicou: "Aquele que está contente com o pouco, visto que a
sário quanto à alimentação e vestuário, sem dúvida alguma. Sendo um alegria (autarkeia) é a riqueza da natureza" (Stobaeus, Florilegium 5.43).
Quanto à independência natural de espírito e de perspectivas de Paulo, consul-
homem educado em ambiente elevado, sua conversão significou a te-se C. H. Dodd, "The Mind of Paul, I" em New Testament Studies, pp. 71-73.
entrada num novo modo de vida. Ser cidadão de Tarso significava ser 4:12 / Descobriu-se um certo padrão rítmico nos vv. 12 e 13, o qual, aqui
pessoa de grandes posses materiais. Entretanto, por amor de Cristo, Paulo pelo menos, não é explicado em termos de citação de outra fonte qualquer.
havia dado "também por perda todas as coisas" (3:8), inclusive (podemos Em todas as maneiras aprendi: gr. memyemai, "eu me iniciei em" (da raiz
ter certeza) sua herança material; o apóstolo aprendeu, dali em diante, a my, deste verbo myein deriva-se mysterion, "mistério").
sobreviver com o que pudesse ganhar mediante seu ofício de meio-ex- 4:13 / que me fortalece: lit., "que é meu fortalecedor" (gr. en to endynamounti
pediente, de "fazer tendas" (cf. 1 Tessalonicenses 2:9; 2 Tessalonicenses me), i. é, Cristo. Com este emprego do particípio presente de endynamoun cf. o
aoristo participial em 1 Timóteo 1:12, "dou graças àquele que me fortaleceu (to
3:8; Atos 18:3; 20:34). endynamosanti me, 'aquele que me deu poder'), Cristo Jesus nosso Senhor."
136 (Filipenses 3:15-14)

não apenas porque eles lhe enviaram uma oferta mas também porque
esse envio serviu de sinal da graça celestial na vida deles. Usando uma 32. Reconhecimento de Dádivas Atuais
figura de linguagem, seria um depósito que efetuaram no banco celeste, (Filipenses 4:18-20)
que se multiplicaria a juros compostos, para benefício deles mesmos. O
objetivo dos filipenses fora que sua generosidade tivesse Paulo como
alvo, e isso, de fato, aconteceu; todavia, no âmbito espiritual, o lucro
permanente pertence aos filipenses. Paulo lhes entrega o recibo da oferta e roga a Deus que os abençoe.

Notas Adicionais 31 4:18 / Prosseguindo em seu "jargão contabilístico", diz Paulo: mas
bastante tenho recebido. Se ele sabe "tanto a ter fartura, como a ter
4:14 / fizestes bem: gr. kalos epoiesate, "vós agistes bem." Cf. Atos 10:33, fome, tanto a ter abundância, como a padecer necessidade" (v. 12), os
kalos epoiesas paragenomenos, "bem fizeste em vir" ou "agradeço-te o teres filipenses lhe proporcionaram mais uma vez a oportunidade de ter mais
vindo." Assim como no pretérito kalospoiein transmite a idéia de "agradeço-te,"
ainda. Depois que recebi de Epafrodito o que da vossa parte me foi
no futuro expressa um pedido: "por favor" (como em 3 João 6, "bem farás, kalos
poieseis. "Se os encaminhares em sua jornada por modo digno de Deus, bem enviado; aqui Paulo sente que está transbordando. Já havia mencionado
farás"). Epafrodito com muita apreciação (2:25-30) como sendo (diz o apóstolo)
4:15 / ó filipenses: o vocativo Philippesioi possui uma forma baseada no "vosso enviado para prover às minhas necessidades"; entregar-lhe a
latim Philippenses, como era bem apropriado a cidadãos de uma colônia oferta dos filipenses foi uma das maneiras pelas quais Epafrodito o havia
romana. Compare esse vocativo com "ó insensatos gálatas," de Gálatas 3:1 e "ó ajudado.
coríntios," de 2 Coríntios 6:11, onde a intenção paulina é demonstrar perplexi-
dade e exortação, respectivamente. Aqui em Filipenses, todavia, Paulo deseja A oferta fora bem recebida por Paulo. Entretanto, o apóstolo estava
exibir gratidão afetuosa. engajado na obra de Deus; portanto, a oferta fora dedicada ao próprio
No princípio do evangelho: M. J. Suggs, "Concerning the Date of Paul's Deus, tanto quanto a Paulo, pois foi pelo menos tão bem-vinda para Deus
Macedonian Ministry," NovTA (1960), pp. 60-70, seguindo o sentido literal do como para Paulo. Agora o apóstolo deixa de lado a linguagem da
grego, estabelece a data da evangelização da Macedônia em inícios dos anos contabilidade e apela para as expressões do culto. A oferta filipense fora
40. Nesse caso, seria bem no começo do ministério apostólico de Paulo;
cheiro suave, como sacrifício agradável e aprazível a Deus. A frase
entretanto, sérios obstáculos impedem que se aceite essa datação.
4:16 / não apenas uma vez, mas duas: gr. kai hapax kai dis lit., "ambas uma cheiro suave é encontrada repetidamente no AT, a partir da descrição
e duas vezes" é uma expressão idiomática que significa "mais de uma vez"; cf. do sacrifício feito por Noé, de Gênesis 8:21 em diante; é freqüente de
L. Morris, "Kai hapax kai dis", NovT( 1956), pp. 203-8. Ela ocorre também em modo especial nas instruções sobre os sacrifícios levíticos (cf. Êxodo
1 Tessalonicenses 2:18. Quanto à opinião de que essa frase não faz referência 29:18, etc.) No NT é empregada de modo figurado referindo-se ao
exclusiva à visita de Paulo a Tessalônica, consulte-se o mesmo artigo de L. auto-sacrifício de Cristo (Efésios 5:2), e expressão semelhante se empre-
Morris (p. 208) e R. P. Martin, ad loc.
ga a respeito da auto-entrega que o povo de Deus faz a seu Senhor
4:17 / fruto que aumente o vosso crédito: gr. karpos, "fruto", talvez com o
sentido de "juros" (se assim for, Paulo prossegue no emprego de jargão conta- (Romanos 12:1; 2 Coríntios 2:14-16; Hebreus 13:16).
bilístico; o particípio acompanhante, pleonazonta, "multiplicando", em vez de
crédito, pode sugerir que se trata de juros compostos). 4:19 / Os filipenses podem ter certeza, diz Paulo, que o que apresen-
taram a Deus será amplamente recompensado pelo Senhor, graças aos
ilimitados recursos de sua gloriosa riqueza. O apóstolo nem sequer
consegue pensar na riqueza de Deus sem relacioná-las a Cristo Jesus:
ele é o Mediador, através de quem todas as bênçãos de Deus passam aos
homens. Paulo fala de meu Deus (cf. 1:3), porque havia muito tempo
vinha experimentando o poder divino para suprir todas as suas necessi-
136 (Filipenses 3:15-18)

dades pessoais, mediante Cristo. Numa ocasião em que estava dolorosa-


mente cônscio de sua própria incapacidade, recebeu certeza do Senhor 33. Saudações Finais (Filipenses 4:21-22)
ressurreto: "a minha graça te basta" (2 Coríntios 12:9), e na verdade, é
essa a certeza que o apóstolo agora infunde em seus amigos.
4:20 / A expressão de agradecimento de Paulo conclui, de modo A conclusão da carta com toda probabilidade foi redigida pelo próprio
apropriado, com uma doxologia, a qual também conclui a carta. J. B. Paulo.
Lightfoot, comentando a doxologia de Gálatas 1:5, salienta que (à Era comum, na antigüidade, a pessoa que enviava uma carta ditá-la,
semelhança da doxologia sob análise) não contém verbos, argu- em sua maior parte e, depois de havê-lo feito, redigir de próprio punho
mentando que o verbo acrescentável deveria ser o indicativo presente uma ou duas sentenças, as últimas. Não era comum a pessoa imprimir
"é", e não o imperativo seja. "Trata-se de uma afirmação, e não de um sua assinatura pessoal, embora Paulo o faça — talvez por razões especiais
desejo. Glória é o atributo essencial de Deus." (Ele se refere à doxologia — em 1 Coríntios 16:21; Colossenses 4:18; 2 Tessalonicenses 3:17
de 1 Pedro 4:11, em que o verbo "pertence" aparece no texto grego, como (veja-se também como o apóstolo "assinou um vale" em Filemom 19a). Era
aparece o verbo "é" na doxologia que posteriormente seria acrescentada seu autógrafo, não sua assinatura, que constituía sua marca autenticadora
à oração dominical, em Mateus 6:13, ECA.) em "todas as minhas cartas" (2 Tessalonicenses 3:17); assim, ele inicia
a última parte de sua carta aos gálatas com estas palavras: "Vede com
Notas Adicionais 32 que grandes letras vos escrevi de meu próprio punho" (Gálatas 6:11).
4:18 / mas bastante tenho recebido: este é o sentido do gr. apecho de panta
4:21 / Paulo saúda a todos os santos em Cristo Jesus (quanto à
(lit., "e tenho tudo"); há muitas evidências de que apecho tinha o emprego
contemporâneo com significado de "pago totalmente". De modo semelhante, designação, cf. 1:1). Na verdade, em Cristo Jesus se poderia tomar como
NIV traduz apechousin ton misthon auton em Mateus 6:2, 5, 16 assim: "já "saudações" ("saudai-os em Cristo Jesus" — como irmãos e companhei-
receberam sua recompensa total"; cf. A. Deissmann, Bible Studies, p. 227: "eles ros de Cristo), não fosse a analogia de 1:1, onde "em Cristo Jesus" sem
já podem assinar o recibo de sua recompensa: o direito deles de receber uma dúvida liga-se a "todos os santos." Saudai a todos os santos, diz Paulo;
recompensa é reconhecido, precisamente como se já houvessem passado o visto que as saudações são extensivas a todos os crentes de Filipos, a
competente recibo."
quem se dirige Paulo com o verbo saudai (imperativo plural)? Talvez
4:19 / a sua gloriosa riqueza: gr. en doxe, "em glória". É provável que a
frase não se refira à vida futura; poderia ser traduzida (com palavras amplifi- aos "presbíteros e diáconos", mencionados de forma especial em 1:1;
cantes) "sua abundância gloriosa." F. W. Beare presume tratar-se de expressão cabia a eles cuidar que a carta fosse lida, que as saudações fossem
adverbial com o verbo "suprir" (ECA: suprirá): "meu Deus suprirá totalmente transmitidas a toda a igreja.
cada uma de vossas necessidades, de modo glorioso." Não é Paulo apenas quem envia saudações; os irmãos que estão comigo
Em Cristo Jesus: gr. en Christo lesou, que J. B. Lightfoot toma como sendo vos saúdam. Visto que os irmãos que estão comigo são mencionados em
incorporativo: "mediante vossa união com Cristo, vossa incorporação em Je-
separado, não em conjunto com todos os santos, que também "vos saúdam"
sus."
(v. 22), provavelmente sejam os cooperadores de Paulo.

4:22 / Dentre os "santos" daquele lugar onde está Paulo, todos os quais
vos saúdam, o apóstolo faz menção especial aos da casa de César. A
casa de César incluía não só membros da família imperial, no sentido
mais restrito, mas também grande número de escravos e ex-escravos. O
funcionalismo público que atendia aos negócios do império compunha-
se principalmente de ex-escravos. Esses eram encontrados nos confins
168 (Filipenses 4:21-22) (Filipenses 4:21-22) 169
das províncias, por todo o império, mas em lugar nenhum havia uma 4:22 / casa de César (Kaisaros oikia é chamada de domus Caesaris por
concentração deles tão forte como em Roma — eram em número elevado Tácito (Histories 2.92); uma inscrição de 55 d.C. refere-se a populus et família
Caesaris em Quilia, na Península Quersonesa da Trácia. Associações (collegia
ao ponto de incluir uma proporção significativa de convertidos à fé cristã.
de "ex-escravos e escravos de nosso Senhor Augusto" foram mencionadas numa
Se a presente carta foi enviada de Roma, e as saudações em Romanos inscrição do segundo século, de Éfeso (J. T. Wood, Discoveries at Ephesus
16:3-16 foram enviadas para Roma (três ou quatro anos antes), poder- [Londres: Longmans, 1877], Inscriptions fromTombs, Sarcophagi, etc., NB. 20).
se-ia perguntar se alguns dos santos da casa de César foram incluídos Quanto a algumas possíveis referências em Romanos 16:3-16 a alguns dos
entre os recebedores das saudações da carta anterior. Menciona Paulo "santos da casa de César" consulte-se J. B. Lightfoot, Philippians, pp. 171-78.
dois grupos em particular que poderiam muito bem ter pertencido ao Quanto a Narciso, veja-se Tácito, Annals 13.1.4; Dio Cassius, History 60. 34;
também Juvenal, Sáfí'ral4.329 (Narcissiani), são mencionados em CIL 3.3973;
funcionalismo público na casa de César: "a casa de Aristóbulo" e "a casa 6.15640). Quanto a Aristóbulo, veja-se Josefo, War\.552\ 2.221; Ant. 18.133,
de Narciso" (Romanos 16:10,11). Muitos comentadores bíblicos, a partir 135, etc.
de João Calvino, têm pensado que a família de Narciso incluiria os
escravos de Tibério Cláudio Narciso, um rico ex-escravo do imperador
Tibério, que exercia grande influência sob Cláudio, mas foi executado
logo após a ascensão de Nero ao poder, em 54 d.C., por instigação da
mãe de Nero, Agripina. Os bens de Narciso teriam sido confiscados, seus
escravos transformados em propriedade imperial, distinguindo-se dos
demais na casa do imperador pela designação Narcissiani. A posição da
família de Aristóbulo presta-se a maiores especulações. J. B. Lightfoot
e outros sugeriram que esse Aristóbulo seria o neto de Herodes, o Grande
(também chamado Aristóbulo), de quem se sabe ter morado em Roma
como cidadão comum, e à semelhança de seu irmão mais velho Herodes
Agripa I ("rei Herodes" de Atos 12:1"), gozava da amizade de Cláudio.
Se, ao morrer, legou sua propriedade ao imperador (não temos evidências
expressas de que ele assim fez, embora isso fosse procedimento comum),
seus escravos teriam sido denominados Aristobuliani. Herodião, a quem
Paulo menciona em Romanos 16:11 entre os Aristobuliani e os Narcis-
siani, poderia ter tido também algum relacionamento com a família de
Herodes. Em época anterior, o próprio Herodes Agripa é descrito por
Filo pela mesma frase que Paulo usa aqui, isto é, como membro da casa
de César (Flaccus, 35).

Notas Adicionais 33
4:21 / Quanto às conclusões das cartas de Paulo, veja-se H. Gamble, The
Textual History ofthe Letter to the Romans, pp. 56-95, 143, 144, e também
quanto às observações sobre Filipenses, pp. 88, 94, 145, 146.
Os irmãos que estão comigo: identificam-se com os companheiros de Paulo,
ou cooperadores do apóstolo, por J. B. Lightfoot (ad loc.) e E. E. Ellis, "Paul
and his Co-Workers," ATS 17 (1970-71), p. 446.
34. Ação de Graças - Bênção (Filipenses 4:23) Posfácio

Ações de graças sob o feitio de bênção é a característica mais usual Não é nada fácil para nós, no mundo ocidental de hoje, imaginar o que
das conclusões das cartas de Paulo. Há variações de texto mas, no sentido, deveria significar a pessoa pertencer a uma pequena comunidade de
elas dizem o mesmo, de modo uniforme. Fora dos escritos de Paulo, o "cidadãos do céu" numa das províncias orientais do império romano, no
NT apresenta bênçãos e graças em Hebreus 13:25 e Apocalipse 22:21; a primeiro século d.C. Os cristãos gentílicos viam-se transplantados como
carta de Clemente de Roma também termina com bênção (1 Clemente membros de uma nova sociedade que não desfrutava de estima nas
65.2). Essa forma redacional poderia ter sido implantada no uso epistolar, vizinhanças; chegaram a descobrir que tornar-se membros dessa nova
proveniente da bênção pronunciada no final do culto cristão. comunidade envolvia, em certos aspectos importantes, rompimento com
4:23 / seja com o vosso espírito: aqui vosso espírito é apenas um a sociedade à qual originalmente pertenceram. As muitas atividades
meio mais enfático de dizer-se "convosco" (equivalente a "com vocês"). sociais e comerciais relacionadas a este ou aquele culto lhes estavam,
Veja-se também 2 Timóteo 4:22. doravante, proibidas.
O texto é idêntico ao de Filemom 25, e semelhante ao de Gálatas 6:18, A nova sociedade dos crentes se organizava em dois ou mais níveis.
em que o adjetivo "nosso" qualifica "Jesus Cristo", havendo um vocati- Num primeiro estágio, eles se viam como membros de uma igreja
vo, "irmãos" e um "Amém" conclusivo. doméstica (funcionava numa casa de família), a qual se reunia com
regularidade no lar de um de seus membros; entretanto, em muitas
cidades havia um número tal de igrejas domésticas que viabilizava sua
incorporação numa igreja maior, a igreja da cidade. A percepção cons-
ciente de a pessoa ser membro de uma igreja da cidade poderia ser maior
em certas igrejas domésticas, do que em outras, assim como a consciência
de pertencer a uma comunidade de âmbito mundial seria mais forte em
algumas igrejas de cidade, do que em outras.
É provável que em Filipos a consciência de pertencer a uma igreja da
cidade fosse muito forte. Esta sugestão nos advém pelo fato de que essa
carta é dirigida "a todos os santos em Cristo Jesus, que estão em Filipos,
com os bispos e diáconos" (1:1). Em nenhuma das demais cartas paulinas
(exceto as pastorais) encontramos referências especiais desse tipo, a um
corpo definido de pessoas da igreja, que exercem funções de supervisão
e administração. Os crentes coríntios com toda probabilidade teriam
ficado impacientes com tanta autoridade sobre eles; a igreja de Roma,
por essa época, talvez estivesse muito descentralizada, não tendo um
colegiado de presbíteros operando por toda a cidade. Pode-se imaginar
que o próprio Paulo tenha nomeado os presbíteros de Filipos, mas a igreja
filipense sem dúvida estava bem qualificada para elegê-los por si mesma.
Uma característica da igreja filipense que nos espanta, tanto em Atos
172 Posfácio Posfácio 173
a história da expansão do cristianismo primitivo demonstra que muitas
quanto na carta de Paulo, é o papel ativo desempenhado nela pelas
igrejas entenderam e cumpriram essa missão. Dentre as que assim
mulheres. Na narrativa de Lucas, Lídia, a vendedora de púrpura de
procederam, a igreja de Filipos, à semelhança de outras igrejas macedô-
Tiatira, e suas companheiras, com os membros de suas famílias, tornam-
nicas, detém um lugar de grande honra.
se os membros-fundadores da igreja filipense. Na carta, Paulo faz men-
ção especial de Evódia e Síntique, mulheres, diz ele, que labutaram ao
seu lado no ministério evangélico (4:3); Paulo lhes descreve a atuação
em linguagem de atletismo que dá a entender que não desempenharam
mero papel auxiliar. Esse fato não só tem coerência com o que sabemos
sobre a independência e iniciativa das mulheres macedônicas (veja-se p.
28, e a nota n 5 18), como também se alinha com a afirmação de Paulo
em Gálatas 3:28, de que "não há macho nem fêmea, pois todos vós sois
um em Cristo Jesus." Esta afirmação não elimina as distinções entre os
dois sexos, mas destrói qualquer desigualdade entre ambos com respeito
a cargos eclesiásticos.
Conhecemos os principais traços que distinguiam uma comunidade
judaica, num meio gentílico, separando-a de seus vizinhos, mas a maioria
dessas características (circuncisão, guarda do sábado, restrições alimen-
tícias) não conseguiam prosseguir numa igreja do campo missionário de
Paulo. Se perguntássemos a Paulo o que é que marcava qualquer uma de
suas igrejas, separando-a de seu ambiente, talvez ele respondesse que a
cruz de Cristo constituía "uma cerca" entre os crentes e o mundo (pode
haver um indício disto em Gálatas 6:14, onde o apóstolo afirma: "na cruz
de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para
mim, e eu para o mundo"). Todavia, a cruz de Cristo exercia uma
influência positiva, em vez de negativa, na vida dos crentes. A sociedade
no meio da qual os crentes filipenses viviam poderia ser descrita como
"corrupta e depravada," mas os crentes foram elogiados por estarem
brilhando ali "como astros no mundo," oferecendo-lhe a "palavra da
vida" (2:15, 16).
Cada igreja local pode ser comparada a um jardim plantado num
deserto; mas o interesse da igreja não é tanto impedir que o deserto tome
conta mais e mais do jardim, mas, principalmente, cuidar que o jardim
avance e transforme o deserto. Não se deve edificar uma muralha ao redor
do jardim; as fronteiras desse jardim devem ser flexíveis, capazes de
expandir-se. Mudando-se a figura de linguagem, cada colônia celestial
deve expandir-se, estender seus territórios e incorporar cada vez mais os
territórios circunvizinhos. Cada igreja deveria ter espírito missionário, e
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modo especial em relação à Bíblia, à gramática e às leis.]
Glossário G E N I T I V O — Caso de declinação de certas línguas, que representa,
por via de regra, complemento possessivo, limitativo, e algumas vezes
circunstancial.
G N O S T I C I S M O — Ecletismo filosófico-religioso surgido nos pri-
ANÁTEMA — Como substantivo masculino: maldição, opróbrio,
meiros séculos da nossa era e diversificado em numerosas seitas, e que
excomunhão. Como adjetivo: amaldiçoado, maldito, excomungado.
visava a conciliar todas as religiões e a explicar-lhes o sentido mais
ANTÍTESE — Figura de linguagem pela qual se salienta a oposição
profundo por meio da gnose (sabedoria). [São dogmas do gnosticismo:
entre duas palavras ou idéias. Ex.: "Era o porvir — em frente do passado,
a emanação, a queda, a redenção e a mediação, exercida por inúmeras
/ A liberdade — em face à escravidão" (Castro Alves).
potências celestes, entre a divindade e os homens. Relaciona-se o gnos-
A O R I S T O — Tempo da conjugação grega que indica haver a ação
ticismo com a cabala, o neoplatonismo e as religiões orientais.]
ocorrido em época passada, sem determinar, porém, se está inteiramente
HENDIADIS — Figura de linguagem na qual uma idéia única se
realizada no instante em que se fala. expressa mediante dois termos unidos por um "e". Ex.: com poder e
APÓDOSE — A segunda parte de um período gramatical, em relação vigor.
à primeira, chamada prótase, de cujo sentido é complemento. I N T E R P O L A Ç Ã O — Alterar, completar ou esclarecer (um texto),
C I R C U N L Ó Q U I O — Rodeio de palavras, perífrase. nele intercalando palavras ou frases que não lhe pertencem.
CODA — Seção conclusiva de uma composição (sonata, sinfonia, J A M B I C O — Variação de iâmbico ou iambo. Na poesia grega e na
etc.) em que há repetições. latina, pé de verso constituído de uma sílaba breve e outra longa.
C O G N A T O — Diz-se do vocábulo que tem raiz com outro(s). Ex.: PARÁFRASE — Desenvolvimento do texto de um livro ou de um
as palavras belo, beleza e embelezar são cognatas. documento conservando-se as idéias originais; tradução livre ou desen-
DATIVO — Caso gramatical das línguas com declinações (como o volvida.
grego, o latim, o alemão), que exprime a relação do objeto indireto. PARODIA — Imitação cômica ou burlesca de uma composição
EQUANIMIDADE — Igualdade de ânimo tanto na desgraça quanto literária; imitar, remedar.
na prosperidade; moderação; imparcialidade. PE DE VERSO — Parte em que se divide o verso metrificado.
ESCABELO — Banco pequeno para descanso dos pés. P R O S E L I T O — Pagão que abraçou o judaísmo.
E S C A T O L O G I A — Doutrina sobre a consumação do tempo e da P R Ó T A S E — No antigo teatro grego, a primeira parte da ação
história; tratado sobre os fins últimos do homem. dramática, na qual o argumento é anunciado e se inicia o seu desenvol-
ESPONDAICO — Adjetivo: que tem espondeus. vimento; no sentido gramatical é a primeira parte de uma sentença.
ESPONDEUS — Diz-se de um pé de verso, grego ou latino, consti- Q U I A S M O — Figura de linguagem na qual os termos paralelos, em
tuído por duas sílabas longas. sentenças ou orações adjacentes, são colocados em ordem invertida. Ex.:
E S T O I C I S M O — Designação comum às doutrinas dos filósofos Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou.
gregos Zenão de Cício e seus seguidores, caracterizadas sobretudo pela QUINTESSÊNCIA — Variação de quinta-essência. O que há de
consideração do problema moral, constituindo a imperturbabilidade o principal, de melhor ou de mais puro; o essencial.
ideal do sábio. SIMONIA — Venda ilícita de coisas sagradas.
E S T Ó I C O — Partidário do estoicismo; austero, rígido; impassível T R I M E T R O — Na métrica greco-romana, verso de três pés.
ante a dor e a adversidade.
E X E G E S E — Comentário ou dissertação para esclarecimento ou
minuciosa interpretação de um texto ou de uma palavra. [Aplica-se de
O Novo Comentário Bíblico Contemporâneo oferece o
que há de melhor em erudição contemporânea,
num estilo que beneficia tanto aos leitores em geral
quanto aos estudiosos que almejam aprofundar-se
no conhecimento da Palavra de Deus.
Baseado na ECA, o NCBC apresenta exposições
esmeradas de cada seção e capítulo, dando especial
destaque esclarecedor aos termos e frases mais
importantes, que também aparecem em transliterações
do grego. Cada capítulo encerra-se com uma seção
de notas, onde o leitor encontra mais alguns
comentários textuais e técnicos.
O comentário de Bruce surgiu, de início, na série
Good News Commentary; posteriormente sofreu algumas
revisões de modo que se adaptasse à NIV. Agora, surge
em português, adaptado à ECA.
F. F. Bruce, especialista de prestígio internacional,
compartilha, neste comentário da carta de Paulo à
amada igreja de Filipos, as riquezas de uma vida toda
devotada ao estudo. Sua exposição teológica e prática
conduz-nos a uma apreciação maior da importância da
sabedoria e confiança de Paulo quanto à auto-suficiência
do evangelho, e ajuda-nos a participar da alegria do
apóstolo em "conhecer a Cristo".

F. F. Bruce é professor emérito da Universidade de


Manchester, e autor bem conhecido de numerosos
artigos, livros e comentários bíblicos profundos.

1742-6 ISBN 0-8297-1742-0


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