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UFJF/FACULDADE DE LETRAS

OFICINA V – CRIAÇÃO LITERÁRIA


Prof. Fernando Fiorese

Contém:

O frívolo cronista, de Carlos Drummond de Andrade


[Dois excertos], de Rubem Braga
Meu ideal seria escrever..., de Rubem Braga
A última crônica, de Fernando Sabino
O nascimento da crônica, Machado de Assis
Crônica, um gênero brasileiro, de José Castello
A crônica, de Ivan Lessa
Indicações de leitura
O FRÍVOLO CRONISTA1 um verso, que não seja épico; uma citação literária,
isenta de pedantismo ou fingindo de pedante, mas
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) brincando com a erudição; uma receita de doce
incomível, em que figurem cantabiles de Haydn
Um leitor de Mato Grosso do Norte (sic) misturados com aletria e orvalho da floresta da
escreve deplorando a frivolidade que é marca Tijuca. Pode ser tanta coisa! Sem dosagem certa.
registrada desta coluna. Hoje não estou para Nunca porém em doses cavalares. Respeitemos e
brincadeira, e retruco-lhe nada menos que com a amemos esse nobre animal, evitando o excesso de
palavra de um sábio antigo, reproduzida por graça. Até a frivolidade carece ter medida, linha
Goethe em Italianische Reisen. Vai o título em sutil que medeia entre o sorriso e o tédio pelo
alemão, para maior força do enunciado. Os que não excesso de tintas ou pela repetição do efeito.
sabemos alemão temos o maior respeito por essa Não pretendo fazer aqui a apologia do cronista,
língua. A frase é esta, em português trivial: ”Quem em proveito próprio. Reivindico apenas o seu
não se sentir com tutano suficiente para o direito ao espaço descompromissado, onde o jogo
necessário e útil, que se reserve em boa hora para o não visa ao triunfo, à reputação, à medalha; o jogo
desnecessário e inútil”. É o que faço, respaldado esgota-se em si, para recomeçar no dia seguinte,
pela sentença de um mestre, endossada por outro. sem obrigação de seqüência. A informação
E vou mais longe. O inútil tem sua forma apurada, correta, a análise de fenômenos sociais, a
particular de utilidade. É a pausa, o descanso, o avaliação crítica, tarefas essenciais do jornal digno
refrigério, no desmedido afã de racionalizar todos deste nome, não invalidam a presença de um canto
os atos de nossa vida (e a do próximo) sob o de página que tem alguma coisa de ilha visitável,
critério exclusivo de eficiência, produtividade, sem acomodações de residência. Como você tem
rentabilidade e tal e coisa. Tão compensatória é em sua casa um cômodo ou parte de cômodo, ou
essa pausa que o inútil acaba por se tornar da maior simplesmente gaveta, ou menos ainda, caixa de
utilidade, exagero que não hesito em combater, plástico ou papelão, onde guarda pequeninas coisas
como nocivo ao equilíbrio moral. Não devemos sem utilidade aparente, mas em que os dedos e os
cultivar o ócio ou a frivolidade como valores olhos gostam de reparar de vez em quando: os
utilitários de contrapeso, mas pelo simples e puro nadas de uma existência atulhada de objetos
deleite de fruí-los também como expressões de imprescindíveis e, ao cabo, indiferentes, quando
vida. não fatigantes.
No caso mínimo da crônica, o auto- Meu leitor (ou ex-leitor) mato-grossense-do-
reconhecimento da minha ineficácia social de norte (sic), não me queira mal porque não alimento
cronista deixa-me perfeitamente tranqüilo. O jornal a sua fome de conceitos graves, eu que me cansei
não me chamou para esclarecer problemas, orientar de gravidade, espontânea ou imposta, e pratico o
leitores, advertir governantes, pressionar o Poder meu número sem pretensão de contribuir para o
Legislativo, ditar normas aos senhores do mundo. restauro do mundo. O sábio citado por Goethe me
O jornal sabia-me incompetente para o justifica, absolve e até premia. Eu disse no começo
desempenho destas altas missões. Contratou-me, e que não estou para brincadeira? Mentira; foi outra
não vejo erro nisto, por minha incompetência e frivolidade.
desembaraço em exercê-la. Ciao.
De fato, tenho certa prática em frivoleiras
matutinas, a serem consumidas com o primeiro [DOIS EXCERTOS]
café. Este café costuma ser amargo, pois sobre ele
desabam todas as aflições do mundo, em 54 Rubem Braga (1913-1990)
páginas ou mais. É preciso que no meio dessa
catadupa de desastres venha de roldão alguma A crônica não é literatura, e sim subproduto da
coisa insignificante em si, mas que adquira literatura, e está fora do propósito do jornal. A
significado pelo contraste com a monstruosidade crônica é subliteratura que o cronista usa para
dos desastres. Pode ser um pé de chinelo, uma desabafar perante os leitores. O cronista é um
pétala de flor, duas conchinhas da praia, o salto de desajustado emocional que desabafa com os
um gafanhoto, uma caricatura, o rebolado da leitores, sem dar a eles oportunidade para que
corista, o assobio do rapaz da lavanderia. Pode ser rebatam qualquer afirmativa publicada. A única
informação que a crônica transmite é a de que o
1
In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Boca de luar. Rio respectivo autor sofre de neurose profunda e
de Janeiro: Record, 1984, p. 199. 
precisa desoprimir-se. Tal informação, de cunho favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de
puramente pessoal, não interessa ao público, e prender ninguém!". E que assim todos tratassem
portanto deve ser suprimida. melhor seus empregados, seus dependentes e seus
semelhantes em alegre e espontânea homenagem à
● minha história.
E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo
Sempre escrevi para ser publicado no dia e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a
seguinte. Como o marido que tem que dormir com um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin,
a esposa: pode estar achando gostoso, mas é uma a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as
obrigação. Sou uma máquina de escrever com línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza,
algum uso, mas em bom estado de funcionamento. o seu encanto surpreendente; e que no fundo de
uma aldeia da China, um chinês muito pobre,
MEU IDEAL SERIA ESCREVER... 2 muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi
uma história assim tão engraçada e tão boa em toda
Rubem Braga (1913-1990) a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para
ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada
Meu ideal seria escrever uma história tão por nenhum homem, foi com certeza algum anjo
engraçada que aquela moça que está doente tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que
naquela casa cinzenta quando lesse minha história dormia, e que ele pensou que já estivesse morto;
no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por
dissesse – "ai meu Deus, que história mais acaso até nosso conhecimento; é divina".
engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e E quando todos me perguntassem – "mas de
telefonasse para duas ou três amigas para contar a onde é que você tirou essa história?" – eu
história; e todos a quem ela contasse rissem muito responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por
e ficassem alegremente espantados de vê-la tão acaso na rua, de um desconhecido que a contava a
alegre. Ah, que minha história fosse como um raio outro desconhecido, e que por sinal começara a
de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma
vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela história...".
mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e E eu esconderia completamente a humilde
depois repetisse para si própria – "mas essa história verdade: que eu inventei toda a minha história em
é mesmo muito engraçada!". um só segundo, quando pensei na tristeza daquela
Que um casal que estivesse em casa mal- moça que está doente, que sempre está doente e
humorado, o marido bastante aborrecido com a sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa
mulher, a mulher bastante irritada com o marido, cinzenta de meu bairro.
que esse casal também fosse atingido pela minha
história. O marido a leria e começaria a rir, o que A ÚLTIMA CRÔNICA3
aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que
esta, apesar de sua má vontade, tomasse Fernando Sabino (1923-2004)
conhecimento da história, ela também risse muito,
e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o A caminho de casa, entro num botequim da
outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na
do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, realidade estou adiando o momento de escrever.
e reencontrassem os dois a alegria perdida de A perspectiva me assusta. Gostaria de estar
estarem juntos. inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta
Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de
salas de espera a minha história chegasse – e tão cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida
fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto
tão pura que todos limpassem seu coração com da convivência, que a faz mais digna de ser
lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, vivida. Visava ao circunstancial, ao
depois de ler minha história, mandasse soltar episódico. Nesta perseguição do acidental, quer
aqueles bêbados e também aqueles pobres num flagrante de esquina, quer nas palavras de
mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse – "por uma criança ou num acidente doméstico, torno-me

2
In: BRAGA, Rubem. A traição das elegantes. Rio de 3
In: SABINO, Fernando. A companheira de viagem. Rio de
Janeiro: Editora Sabiá, 1967, p. 91. Janeiro: Editora do Autor, 1965, p. 174.
simples espectador e perco a noção do parabéns pra você..."Depois a mãe recolhe as velas,
essencial. Sem mais nada para contar, curvo a torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra
cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e
se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela
último poema". Não sou poeta e estou sem com ternura – ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo,
assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai
onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se
Ao fundo do botequim um casal de pretos convencer intimamente do sucesso da
acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo,
mármore ao longo da parede de espelhos. A nossos olhos se encontram, ele se perturba,
compostura da humildade, na contenção de gestos constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça,
e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num
uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, sorriso.
toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou Assim eu quereria minha última crônica: que
também à mesa: mal ousa balançar as perninhas fosse pura como esse sorriso.
curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao
redor. Três seres esquivos que compõem em torno O NASCIMENTO DA CRÔNICA4
à mesa a instituição tradicional da família, célula
da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para Machado de Assis (1839-1908)
algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o Há um meio certo de começar a crônica por
dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que
o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas
aponta no balcão um pedaço de bolo sob a do lenço, bufando como um touro, ou
redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se
vagamente ansiosa, como se aguardasse a do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se
aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras
pedido do homem e depois se afasta para atendê- sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a
lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a
reassegurar-se da naturalidade de sua presença crônica.
ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho
freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção ainda do que as crônicas, que apenas datam de
do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de
simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve
triangular. calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a o calor era mediano, e não é prova do contrário o
garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas
deixou à sua frente. Por que não começa a razões, uma capital e outra provincial. A primeira é
comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras;
obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava
mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial,
retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa porque as nossas províncias estão nas
de fósforos, e espera. A filha aguarda também, circunstâncias do primeiro homem.
atenta como um animalzinho. Ninguém mais os Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes
observa além de mim. perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a
São três velinhas brancas, minúsculas, que a vantagem de uma temperatura igual e agradável.
mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os
enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o tufões, as secas, todo o cortejo de males,
fósforo e acende as velas. Como a um gesto distribuídos pelos doze meses do ano.
ensaiado, a menininha repousa o queixo no Não posso dizer positivamente em que ano
mármore e sopra com força, apagando as nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de
chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas.
muito compenetrada, cantando num balbucio, a que
os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, 4
In: ASSIS, Machado de. Crônicas escolhidas. São Paulo:
Ática, 1994, p. 13.
Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, os escritores se arriscam a experimentá-la, e os que
sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do o fazem se expõem, muitas vezes, a uma difusa
dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do desconfiança. Para os puristas, a crônica é um
calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, "gênero menor". Para outros, ainda mais
outra que tinha a camisa mais ensopando que as desconfiados, não é literatura, é jornalismo - o que
ervas que comera. Passar das ervas às plantações significa dizer, simples registro documental.
do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias Alguns acreditam que ela seja um gênero de
do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, circunstância, datado - oportunista. Não é fácil
natural e possível do mundo. Eis a origem da praticar a crônica.
crônica. Definida pelo dicionário como "narração
Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta histórica, ou registro de fatos comuns", a crônica
prosápia, queira repetir o meio de que lançaram ocupa um espaço fronteiriço, entre a grandeza da
mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer história e a leveza atribuída à vida cotidiana.
uma trivialidade; e contudo, leitor, seria difícil Posição instável, e nem um pouco cômoda, em que
falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de a segurança oferecida pelos gêneros literários já
honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei não funciona. Lugar para quem prefere se arriscar,
esse meio quase tão velho como o mundo, para em vez de repetir. A crônica confunde porque está
somente dizer que a verdade mais incontestável onde não devia estar: nos jornais, nas revistas e até
que achei debaixo do sol é que ninguém se deve na televisão - e nem sempre nos livros. Literatura
queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do ou jornalismo? Invenção, ou uma simples (e literal)
que outra. fotografia da existência? Coisa séria, ou puro
Não afirmo sem prova. entretenimento?
Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo Supõe-se, em geral, que os cronistas digam a
de manhã, num dia ardente como todos os diabos e verdade - seja o que se entenda por verdade. Não
suas respectivas habitações. Em volta de mim só porque crônicas são publicadas na imprensa,
ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de lugar dos fatos, das notícias e da matéria bruta, mas
rachar passarinho! É de fazer um homem doido! também porque elas costumam ser narradas na
Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do primeira pessoa, e o Eu sempre evoca a idéia de
cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol confissão. E ainda porque vêm adornadas, com
das onze horas batia de chapa em todos nós; mas freqüência, pela fotografia (verdadeira!) de seu
sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e autor.
seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar- Então, se o cronista diz que foi à padaria, ou
se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com que esteve em uma festa, aquilo deve, de fato, ter
seis ou oito homens ocupados em abrir covas: acontecido, o leitor se apressa a concluir. É uma
estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair suposição antiga, que vem dos tempos do
a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos Descobrimento, quando os cronistas foram aqueles
carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? que primeiro transformaram em palavras a visão do
Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça Novo Mundo. Cronistas eram, então, missivistas
descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos empenhados em dizer a verdade, retratistas do real.
fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, Contudo, e esse é seu grande problema, mas
durante todas as horas quentes do dia? também sua grande riqueza, a crônica é um gênero
literário. Não é ficção, não é poesia, não é crítica, e
CRÔNICA, UM GÊNERO BRASILEIRO 5 nem ensaio, ou teoria - é crônica. As crônicas
Com a cara do Brasil, a crônica é históricas do passado, relatos de viajantes e de
um gênero fluido, traiçoeiro e mestiço aventureiros, pretendiam ser apenas um "relato de
viagem". Aproximavam-se, assim, do inventário,
JOSÉ CASTELLO do registro histórico e do retrato pessoal, e ainda da
correspondência. Essas narrativas estavam mais
Nas fronteiras longínquas da literatura, ali onde ligadas à história que à literatura. Tinham, antes de
os gêneros se esfumam, as certezas vacilam e os tudo, um caráter utilitário, pragmático: serviam
cânones se esfarelam, resiste a crônica. Nem todos para transmitir aquilo que se viu.
5
Extraído do portal do jornal literário Rascunho No século 19, com a sofisticação dos estudos
(Curitiba/PR), http://rascunho.rpc.com.br/index.php? históricos, e também com a expansão da imprensa,
ras=secao.php&modelo=2&secao=3&lista=1&subsecao=11 a crônica se afastou do registro factual e se
&ordem=1545.
aproximou da literatura e da invenção. Nossos verdade, nem na escolha da imaginação: mas no
primeiros grandes cronistas - Alencar, Machado, fato de que o cronista manipula as duas coisas ao
Bilac, João do Rio - foram, antes de tudo, grandes mesmo tempo - e sem explicar ao leitor, jamais, em
escritores. Eles descobriram na crônica o frescor do qual das duas posições se encontra. O cronista é
impreciso e o valor do transitório. E a praticaram um agente duplo: trabalha, ao mesmo tempo, para
com regularidade e empenho. os dois lados e nunca se pode dizer, com
  segurança, de que lado ele está.
Na verdade, ele não está em nenhuma das duas
Gênero brasileiro posições, nem na da verdade, nem na da
imaginação - mas está "entre" elas. Ocupa uma
Mas foi ao longo do século 20 que a crônica se posição limítrofe - e é por isso que o cronista
firmou entre nós, assumindo posturas e feições inspira, em geral, muitas suspeitas. Os jornalistas o
realmente próprias. É no século 20 que ela se torna vêem como leviano, mentiroso, apressado,
- nas mãos de cronistas geniais como Rubem irresponsável. Os escritores acreditam que é
Braga, Paulo Mendes Campos, Carlos Oliveira, preguiçoso, interesseiro, precipitado, imprudente,
Sérgio Porto, Rachel de Queiroz, Fernando Sabino, venal até. E o cronista tem que se ver, sempre, com
Henrique Pongetti - um gênero brasileiro. Ou, essas duas restrições. Uns o tomam como uma
dizendo melhor: que ela se adapta e se expande no ameaça à limpidez dos fatos e ao apego à verdade
cenário da literatura brasileira. que norteiam, por princípio, o trabalho jornalístico.
Isso não fala, contudo, nem de uma identidade, Outros, por seus compromissos com os fatos e com
nem de um modelo. Ao contrário: o que marca a as miudezas do cotidiano, como um perigo para a
crônica brasileira é que, em nossa literatura, ela se liberdade e o assombro que definem a literatura.
torna um espaço de liberdade. Qual escritor E assim fica o cronista, um cigano, um nômade
brasileiro, no século 20, teve o espírito mais livre a transitar, com dificuldades, entre dois mundos,
que Rubem Braga? Quem mais, desprezando as sem pertencer, de fato, a nenhum dos dois. Um
normas e pompas literárias, e com forte desapego errante, com um pé aqui, outro ali, um sujeito
aos cânones e aos gêneros, apostou tudo na crônica dividido. E o leitor, se tomar o que ele escreve ao
- vista como um gênero capaz de jogar de volta a pé da letra, também pode se encher de fúria. Como
literatura no mundo? esse sujeito diz hoje uma coisa, se ontem disse
A grande novidade da crônica que se firmou ao outra? Como se descreve de um jeito, se ontem se
longo do século 20 no Brasil é exatamente esta: sua descreveu de outro? Onde pensa que está? Quem
radical liberdade. Embora abrigada nos grandes pensa que é? Mas é justamente essa a vantagem do
jornais e depois reunida em livros, ela já não tem cronista: ele não se detém para pensar onde está, ou
compromisso com mais nada: nem com a verdade no que é; ele se limita a sentir e a escrever.
dos fatos, que baliza o jornalismo, nem com O cronista conserva, desse modo, os estigmas
império da imaginação, que define a literatura. A negativos que cercam a figura do forasteiro -
crônica traz de volta à cena literária o gratuito e o aquele que sempre desperta desconfiança e em
impulsivo. O cronista não precisa brilhar, não quem não se deve, nunca, acreditar inteiramente.
precisa se ultrapassar, não precisa surpreender, ou Vindo sabe-se lá de onde, inspira uma admiração
chocar; ele deseja, apenas, a leveza da escrita. nervosa - como admiramos os mascarados e os
Gênero anfíbio, a crônica concede ao escritor a clowns, sempre com uma ponta de insegurança, e
mais atordoante das liberdades: a de recomeçar do um sorriso mal resolvido no rosto. Errante, ele nos
zero. Quando escreve uma crônica, o escritor pode leva a errar - em nossas avaliações, em nossas
ser ligeiro, pode ser informal, pode dispensar a suposições. Uns o vêem, por isso, como um
originalidade, desprezar a busca de uma marca trapaceiro; outros, mais espertos, aceitam aquilo
pessoal - pode tudo. Na crônica, ainda mais que na que ele tem de melhor a oferecer: a imprecisão.
ficção, o escritor não tem compromissos com Censuramos aos cronistas de hoje sua falta de
ninguém. Isso parece fácil, mas é freqüentemente rigor, seu sentimentalismo, seu apego excessivo ao
assustador. Eu, seu lirismo, sua falta de propósitos. O que faz
Pode falar de si, relatar fatos que realmente um sujeito assim em nossos jornais? - pensam os
viveu, fazer exercícios de memória, confessar-se, jornalistas. O que ele faz em nossa literatura? -
desabafar. Mas pode (e deve) também mentir, pensam os escritores. Rubem Braga relatou, certa
falsificar, imaginar, acrescentar, censurar, vez, que seus amigos escritores lhe cobravam,
distorcer. A novidade não está nem no apego à sempre, um grande romance - grande romance que,
enfim, nunca chegou a escrever. Braga tentava lhes lançado, de volta, às perguntas básicas. Por que
dizer que o romance não lhe interessava, mas só a escrevo? O que é escrever? De que serve a
crônica. E os amigos tomavam essa resposta como literatura? Posição que, com as devidas ressalvas,
uma manifestação de falsa modéstia, ou então de podemos chamar de filosófica: pois parte das
preguiça. Nunca puderam, de fato, entender a perguntas fundamentais, aquelas que, desde os
grandeza de que Braga falava. gregos, definem a filosofia.
Numa conversa com Rubem Braga, republicada Eis a potência da crônica: sustentar-se como o
agora em Entrevistas (coletânea recém-lançada lugar, por excelência, do absolutamente pessoal.
pela Rocco), Clarice Lispector lhe diz: "Você, para Os líricos, como Vinicius, se misturam aos
mim, é um poeta que teve pudor de escrever meditativos, como Carlinhos Oliveira, ou aos
versos". E diz mais: "A crônica em você é poesia filosóficos, como Paulo Mendes Campos. Clarice
em prosa". Sempre a suspeita: de que, no fundo, o praticava a crônica como um exercício de
cronista é um tímido, alguém que se desviou do assombro; Rachel, como um instrumento para
caminho verdadeiro, alguém que não foi capaz de desvendar o mundo; Sabino, como um gênero de
chegar a ser quem é. Depois de lembrar a Clarice sensibilidade. Cada um fez, e faz, da crônica o que
que já publicara alguns poemas, Braga, ele bem entende. Nenhum cronista pode ser julgado:
também, talvez por delicadeza, ou quem sabe cada cronista está absolutamente sozinho.
seduzido pelos encantos da escritora, termina por Terreno da liberdade, a crônica é também o
ceder: "É muito mais fácil ir na cadência da prosa, gênero da mestiçagem. Haverá algo mais
e quando acontece de ela dizer alguma coisa indicativo do que é o Brasil? País de amplas e
poética, tanto melhor". desordenadas fronteiras, grande complexo de raças,
crenças e culturas, nós também, brasileiros,
Figura exemplar vacilamos todo o tempo entre o ser e o não-ser.
Somos um país que se desmente, que se contradiz e
Depois da explosão de gêneros promovida pelo que se ultrapassa. Um país no qual é cada vez mais
modernismo do século 20, o cronista se torna - à difícil responder à mais elementar das perguntas: -
sua revelia, a contragosto - uma figura exemplar. Quem sou eu?
Transforma-se em um pioneiro que, entre Gênero fluido, traiçoeiro, mestiço, a crônica
escombros e imprecisões, e sempre pressionado torna-se, assim, o mais brasileiros dos gêneros. Um
pelo real, se põe a desbravar novas conexões entre gênero sem gênero, para uma identidade que, a
a literatura e a vida - sem que nem a literatura, nem cada pedido de identificação, fornece uma resposta
a vida venham a ser traídos. Figura solitária, o diferente. Grandeza da diversidade e da diferença
cronista se torna, também, uma presença que são, no fim das contas, a matéria-prima da
emblemática, a promover simultaneamente dois literatura.
caminhos: o que leva da literatura ao real, e o que,
em direção contrária, conduz do real à literatura. A CRÔNICA6
Há na literatura contemporânea um sentimento
que, se não chega a ser de impotência, até porque Ivan Lessa
grandes livros continuam a ser escritos, é, pelo
menos de vazio. O modernismo esgarçou Crônica, do grego chrónos, tempo, cronicar,
parâmetros, derrubou clichês, tirou do caminho um feito Tácito, relatar o tempo ou tempos.
grande entulho de clichês, de formas gastas, de Por que nós, brasileiros, fizemos do gênero
vícios de estilo. Depois de Kafka, Joyce, Proust, especialidade da casa – feito muqueca de peixe ou
depois de Clarice e de Rosa, como continuar a ser tutu à mineira?
um escritor? Como prosseguir em um caminho Eu, pela parte que me cabe – e é pouquíssima a
que, depois deles, se define pela fragmentação, parte que me cabe –, eu tenho minhas teoriazinhas.
pela dispersão, pelo vazio - exatamente como Primeiro lugar, porque nós trabalhamos bem
nosso conturbado mundo de hoje? O escritor já não com poucas armas, isto é, Euclides da Cunha à
pode mais conservar a antiga postura de Grande parte, nosso fôlego literário é curto.
Senhor da escrita. Ele deixou de ser o Mestre da Não há nenhum demérito nisso.
Palavra, para se converter, mais, em um aprendiz. Se a América Latina fornece caudalosos
O escritor foi empurrado de volta a um ponto escritores, como Vargas Llosa, Roa Bastos e Alejo
morto - ponto de recomeço, lugar fronteiriço que se
assemelha, muito, ao ocupado pelos cronistas. Foi 6
In: LESSA, Ivan. Ivan vê o mundo. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 1999.
Carpentier, nós, por outro lado, somos excelentes Um romance vende cinco mil exemplares e o
no pinga-pinga do conto: o próprio Machado de autor, com alguma sorte, pega o equivalente a uns
Assis, Lima Barreto, Alcântara Machado, Dalton tantos salários mínimos.
Trevisan, Clarice Lispector, Rubem Fonseca. Se dividirmos tempo gasto no trabalho e na
Segundo lugar, porque nós temos consciência vida de estante do livro, vai dar nisso mesmo:
da extraordinária violência com que o tempo vai salário mínimo.
levando as coisas e as gentes, daí a necessidade de O cronista, por outro lado, mesmo mal pago – e
registrar, de alguma forma, o que se passou e passa quando é bom não é esse o caso –, tem uns cobres
no âmbito pessoal e intransferível. garantidos no fim do mês, se o empregador for
Terceiro lugar, em conseqüência disso que bom pagador.
acabei de falar: somos muito pessoais, vemos e Conseqüentemente: aí está, viva e atuante, a
vivemos muito a nossa vida e a celebramos quase crônica do cronista brasileiro.
que no próprio instante em que ela se passa. Pouco importa que o cronista ou a cronista
A crônica é a nossa autobustificação, por assim limite-se a relatar seu encontro no bar ou sua ida ao
dizer. cabeleireiro.
Ou, em termos da realidade atual: é a nossa Tanto faz que seja elitista ou literariamente
autonomeação para assessor disso ou secretário limitador.
daquilo outro. E daí que tenha menos profundidade que
E em quarto e último lugar: dinheiro. mergulhadores mais audazes como Milan Kundera
Não há motivo nenhum para se ficar e Marion Zimmer Bradley?
encabulado. A crônica vai registrando, o cronista vai
Quem não escreve por dinheiro não é digno da falando sozinho diante de todo mundo.
profissão.

Indicações de leitura:

ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. Fragmentos sobre a crônica. In: –––––––. Enigma e comentário: ensaios
sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 51-66.
CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: ––––––– et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas
transformações no Brasil. Campinas/Rio de Janeiro: Editora da UNICAMP/Fundação Casa de Rui
Barbosa, 1992, p. 13-22.

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