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trocar os programas e, algum tempo depois, acabavam projetando sempre o

mesmo filme. Suas receitas contudo não diminuíam.


Finalmente os cafés, graças ao considerável estoque a :umulado numa
cidade onde o comércio de vinhos e álcool ocupa o primeiro lugar, puderam
igualmente servir os clientes. A bem da verdade, bebia-se muito. Como um café
tivesse anunciado que ”quem vinho bebe, mata a febre”, a ideia, já natural no
público, de que o álcool evitava doenças infecciosas reforçou-se na opinião geral.
Todas as noites, por volta de dez horas, um número considerável de bêbados
expulsos dos cafés enchia as ruas, espalhando afirmações otimistas.
Todas essas modificações porém, em certo sentido, eram tão
extraordinárias e tinham-se realizado tão rapidamente, que não era fácil
considerá-las normais e duradouras. O resultado era que continuávamos a
colocar em primeiro lugar nossos sentimentos pessoais.
Ao sair do hospital, dois dias depois de fechadas as portas, o Dr. Rieux
encontrou Cottard, que levantou para ele um rosto que era a própria imagem da
satisfação. Rieux felicitou-o pela aparência.
- Sim, as coisas vão muito bem - respondeu o homenzinho. - Diga-me,
doutor, e essa maldita peste, hem? A coisa está começando a ficar séria.
O médico concordou. E o outro acrescentou, com uma espécie de prazer:
- Agora não há razão para que ela pare. Vai ficar tudo de pernas para o
ar.
Caminharam um momento juntos. Cottard contou que um grande
merceeiro do seu bairro armazenara géneros alimentícios para vendê-los mais
caro, e que tinham encontrado latas de conservas debaixo da cama quando foram
buscá-lo para levá-lo ao hospital. ”Morreu lá. A peste não compensa.” Cottard
estava assim, cheio de histórias, falsas ou verdadeiras, sobre a epidemia. Por
exemplo, dizia-se que, no centro, certa manhã, um homem que apresentava os
sinais da peste, no delírio da doença, tinha-se precipitado para a rua, atirando-se
sobre a primeira mulher que encontrara, abraçando-a, enquanto gritava que
contraíra a peste.
- Bem - observava Cottard, num tom amável que não combinava com sua
afirmação -, vamos todos ficar loucos, com toda a certeza.
Da mesma forma, na tarde do mesmo dia, Joseph Grand acabara fazendo
confidências pessoais ao Dr. Rieux. Vira a fotografia da Sra. Rieux em cima da
mesa e olhara para o médico. Rieux respondeu que sua mulher estava se
tratando fora da cidade. ”Em certo sentido”, dissera Grand, ”é uma sorte.” O
médico respondeu que sem dúvida era uma sorte e que era apenas necessário ter
esperança de que sua mulher se curasse.
- Ah! - exclamou Grand. - Compreendo.
E, pela primeira vez desde que Rieux o conhecia, pôs-se a falar com
exuberância. Embora procurasse ainda as palavras, conseguia quase sempre
encontrá-las, como se tivesse pensado há muito no que estava dizendo.
Tinha-se casado muito jovem com uma moça pobre da vizinhança. Fora
justamente para se casar que interrompera os estudos e arranjara um emprego.
Jeanne e ele nunca saíam do bairro. Ia vê-la em casa, e os pais de Jeanne riam-
se um pouco desse pretendente silencioso e desajeitado. O pai era ferroviário.
Quando estava de folga, viam-no sempre sentado a um canto, perto da janela,
pensativo, olhando o movimento da rua, com as mãos enormes pousadas nas
coxas. A mãe cuidava sempre da casa e Jeanne ajudava. Era tão pequena, que
Grand não podia vê-la atravessar uma rua sem sentir angústia. Os veículos
pareciam-lhe, então, desproporcionados. Um dia, diante de uma loja enfeitada
para o Natal, Jeanne, que olhava a vitrine, maravilhada, voltara-se para ele,
dizendo: ”Como é bonito”. Ele apertara-lhe o pulso. Foi assim que o casamento foi
decidido.
O resto da história, segundo Grand, era muito simples. É o mesmo para
todos: a gente se casa, ama ainda um pouco, trabalha. Trabalha tanto que se
esquece de amar. Jeanne trabalhava também, já que as promessas do chefe da
repartição não tinham sido cumpridas. Aqui, era preciso um pouco de imaginação
para compreender o que Grand queria dizer. com a ajuda do cansaço, ele deixara
correr as coisas, tinha-se calado cada vez mais e não cultivava na jovem mulher a
ideia de que era amada. Um homem que trabalha, a pobreza, o futuro lentamente
fechado, o silêncio das tardes em redor da mesa - não há lugar para a paixão
num tal universo. Provavelmente, Jeanne tinha sofrido. Contudo, ficara: acontece
que se sofre muito tempo sem saber. Os anos tinham passado. Mais tarde, ela
partira. Na verdade, não partira só. ”Gostei muito de você, mas agora estou
cansada. . . Não me sinto feliz por partir, mas não é necessário ser feliz para
recomeçar.” Eis, em resumo, o que ela lhe escrevera.
Joseph Grand, por sua vez, tinha sofrido. Teria podido recomeçar, como
observou Rieux. Mas faltava-lhe fé.
Simplesmente, continuava a pensar nela. O que teria desejado seria
escrever-lhe uma carta para se justificar. ”Mas é difícil”, dizia. ”Há muito tempo
que penso nisso. Enquanto somos amados, somos compreendidos sem palavras. -
Mas uma pessoa não ama sempre. Em dado momento, eu devia ter encontrado
palavras para retê-la, mas não consegui.” Grand assoava-se numa espécie de
guardanapo xadrez. Depois, limpou o bigode. Rieux o observava.
- Desculpe, doutor - disse o velho -, mas como dizer? Tenho confiança no
senhor. Sinto que posso falar. De modo que isso me comove.
Visivelmente, Grand estava a mil léguas da peste.
À noite, Rieux telegrafou para a mulher a fim de dizerlhe que a cidade
estava fechada, que ele estava bem, que ela devia continuar a tratar-se e que
pensava nela.
Três semanas depois de a cidade ser fechada, Rieux encontrou, ao sair do
hospital, um jovem que o esperava.
- Suponho - disse-lhe este último - que se lembra de mim. - Rieux julgava
conhecê-lo, mas hesitava. - Antes desses acontecimentos - esclareceu o outro -
vim pedir-lhe informações sobre as condições de vida dos árabes. Chamo-me
Raymond Rambert.
- Ah, sim - respondeu Rieux. - Bem, agora tem um belo assunto de
reportagem.
O outro parecia nervoso. Informou que não se tratava disso e que vinha
pedir auxílio ao Dr. Rieux.
- Desculpe - acrescentou -, mas não conheço ninguém nesta cidade e o
correspondente do meu jornal tem a infelicidade de ser imbecil.
Rieux propôs-lhe caminharem até o dispensário do centro, pois tinha
algumas ordens a dar. Desceram as ruelas do bairro negro. A noite se
aproximava, mas a cidade, antes tão barulhenta a essa hora, parecia
curiosamente solitária. Alguns toques de clarim no céu ainda dourado
testemunhavam apenas que os militares se davam ares de cumprir o dever.
Durante esse tempo, ao longo das ruas íngremes, entre os muros axuis, cor de
ocre ou roxos das casas mouriscas, Rambert falava, muito agitado. Deixara a

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