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Arlindo Gomes, bom sujeito. Classe média alta, morador de Copacabana. Acordou
tranqüilo naquele sábado. Tudo o que tinha a fazer era tomar um banho, saborear o café,
ler o jornal e depois curtir uma volta pelo calçadão, como costumava fazer sempre que a
E era exatamente o que pretendia fazer naquele dia. Primeiro o banho, morno
como gostava, para refrescar a cabeça e relaxar os músculos. Estava tão descansado
que demorou quase meia hora debaixo do chuveiro. Depois, um delicioso café,
acompanhado, como não poderia deixar de ser, da leitura do jornal. Nada mais relaxante.
Arlindo abriu a janela do apartamento, na rua Barata Ribeiro, próximo à Santa Clara e
admirou a paisagem, as ruas do bairro, as pessoas que caminhavam, enfim tudo que a
comprado com sacrifício, pois não viera de um berço de ouro, não tivera família rica.
Foram anos de luta para se estabelecer como profissional e deixar o subúrbio. Nascera e
fora criado em Madureira, apesar de procurar ocultar o fato dos amigos feitos depois que
Sim, ele Arlindo conseguira. Aos 56 anos era um advogado bem sucedido, possuía
um escritório no Centro da Cidade, duas salas que dividia com o sócio, Paulo Nonato,
amigo dos tempos de faculdade, também feita com sacrifício, lá na longínqua Piedade.
Agora era hora de pensar em sua caminhada pela praia. O sol estava brilhando, o
verão, recém chegado, prometia. Aquele sábado seria daqueles, na base do Rio 40 graus.
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Arlindo acabou de ler o jornal, arrumou a mesa do café, pois morar sozinho tinha essas
desvantagens e Dona Neuza, a Sra. que limpava a casa e cuidava de sua roupa, só viria
Tirou a mesa, trocou de roupa, colocando bermuda, tênis e camiseta. Estava pronto, ou
tocou o telefone. Quem pode ser no sábado, às 9 da manhã. Só um chato para atrapalhar
sua caminhada. Pensou duas, três vezes se deveria atender ou não. Como o aparelho
- Arlindo falando.
Foi tudo o que conseguiu dizer. Depois limitou-se a ouvir, quieto, entre um
resmungo e outro, a voz que, do outro lado da linha, trazia, em prantos, a notícia:
- Arlindo. É Maria das Dores, sua prima, estou ligando para te avisar que o papai
faleceu esta madrugada. O enterro vai ser logo mais, deve ser por volta das quatro da
tarde, lá no Caju. Você vai? É engraçado como as coisas acontecem. Ele falou muito em
você nos últimos dias, estava com saudades, pensou até em te ligar. Acho que estava
Antes que Arlindo pudesse falar qualquer coisa que o livrasse da situação, Das
- Primo, você não imagina a nossa tristeza, fomos todos pegos de surpresa. Tão
forte o papai, e de repente, vai-se embora desta maneira. Ainda não consigo acreditar.
- Como aconteceu? Ele estava doente? – perguntou Arlindo, muito mais por
- Não, Arlindo. Ele até estava com problemas de saúde. Tinha que fazer dieta,
cortar a bebida, essas coisas. Então ele dava umas fugidinhas de vez em quando, para
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Fugidinhas. Essa era boa, e ele não conhecia o velho Tio. Devia era sair sempre
para encher a cara, ainda mais com a proibição médica, afinal de contas contrariar os
- Ontem ele saiu sem que ninguém visse – falou a prima, voltando a prender a
atenção de Arlindo. – Até as duas da manhã não havia aparecido, quando bateram lá em
casa para dar a notícia, ele exagerara na bebida e, ao atravessar a rua para pegar a
condução para voltar para casa, foi atropelado pelo ônibus que iria tomar. Morreu na hora.
Você não faz idéia de como mamãe está arrasada. Afinal de contas foram 50 anos juntos.
E para tudo terminar assim, com ele estirado no meio da rua, embaixo de um ônibus. – a
essa altura Maria das Dores lutava com todas as forças para conter a emoção. – Minha
mãe gostaria muito de vê-lo lá no enterro, acho que isso ajudaria a consolá-la um pouco,
Arlindo foi rápido. Aproveitou a pausa da prima para pegar fôlego e encerrar a
conversa. Não tinha jeito. Se esperasse, das Dores ficaria pelo menos mais uma hora
choramingando ao telefone. Por hora era melhor dizer que estaria no velório para terminar
Arlindo trancou a porta, que havia deixado entreaberta para atender ao telefone e
sentou-se no sofá. Não podia acreditar. Um dia lindo como aquele e teria que ir para o
cemitério. E o pior de tudo, para enterrar seu velho Tio Ariovaldo. Mais uma do Ariovaldo,
morrer bêbado, atropelado por uma condução. Ficou imaginando o que teria passado a
pobre Tia, com o marido morto na rua, tendo que aguardar a remoção do corpo para o
Instituto Médico Legal. Nem na hora de morrer ele dera uma trégua para a mulher. Ele já
estava morto, e nem deve ter sentido nada, estava alcoolizado, anestesiado, deitado na
rua, já sem poder participar da movimentação que ocorria em torno dele. Já a Tia
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Ernestina deve ter passado uma noite de horror. Para ele, Arlindo, chegava a ser um
insulto. Até na hora de morrer o velho tio resolvera atrapalhar sua vida.
CAPÍTULO II – Recordações
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Ainda sentado no sofá, Arlindo lembrava, agora, o dia em que chegou com uma
namorada em casa, para apresentar à família. Menina que ele paquerara por um bom
tempo, estudavam juntos, sua primeira grande paixão. Já fazia muito tempo. Quantos
Na época, ficou por perto da menina até conseguir uma chance para conhecê-la.
Primeiro um cineminha, depois uma praia, programa difícil para quem morava no
subúrbio, com muito poucos ônibus para a zona Sul, mas valia a pena. Enfim, começaram
a namorar e Arlindo, empolgado, resolveu levá-la a Madureira. Mas, para seu azar,
escolheu o dia errado. Um almoço de domingo, família reunida, em pleno verão carioca,
para comer uma rabada. Como não poderia deixar de ser, regada a muita cerveja e
cachaça.
O pior é que nem era chegado à rabada, muito gordurosa e pesada para o seu
paladar. Tudo bem, pela Alice, esse era o seu nome, valia a pena qualquer sacrifício. Só
esqueceu que a família estaria reunida e a combinação bebida e família era quase
O sol brilhava, e como brilhava, com toda a força quando chegou à Vila em que
morava, na Avenida Edgar Romero, uma das principais ruas do bairro acompanhado de
Alice. Já passava do meio dia e o calor se fazia insuportável. Saíra cedo para buscá-la,
afinal eram dois ônibus até a Tijuca, onde ela morava, e mais dois no retorno.
No caminho para Madureira, meio sem jeito, tentou prevenir Alice sobre as festas
de sua família. Era sempre a mesma coisa. Muita bebida, muita alegria, até que o álcool
começasse a fazer efeito e, quando o mesmo já exercera sua influência sobre a maioria,
era um Deus nos acuda, e rolava a baixaria. Era tia criticando comportamento de
sobrinha, irmão falando de irmão, avó aos prantos, prima se oferecendo para primo, o
“couro comia”, para Arlindo o fim do mundo. Alice, solícita, dizia entender essas coisas, na
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Bem, ele tinha feito sua parte, ao menos tentara, agora era entregar na mão de
Deus e contar com a sorte, torcer para que todos estivessem num dia calmo, ou seja,
Ariovaldo. Preveniu Alice de tudo e de todos, mas faltou falar do Tio Ariovaldo. Esse
Dito e feito. Quando chegaram, por volta das doze e trinta, Ariovaldo já tinha
“tomado todas”. Como prevenira a mãe logo que chegaram. Estava desde às 10 horas
perambulando pela Vila, bebendo sem parar. Isso na Vila, que ficasse bem explicado,
pois segundo a tia, estava no botequim desde às 8 horas. Quando chegaram, Ariovaldo
estava sentado, os olhos vermelhos, injetados, falava alto, já enrolando a língua, como
sempre acontecia quando se excedia no álcool, o que era freqüente. Vendo Arlindo, quis
Ariovaldo não se deu por vencido. Aos berros, como era normal falar quando estava
bêbado, exigiu ser apresentado à moça que acompanhava o sobrinho. Sem ter como fugir
- Há, ha! Ainda bem que você apareceu minha filha. Nós já estávamos
preocupados com esse menino... – falava enquanto puxava a moça, já que não largara-
lhe a mão, que a esta altura estava toda molhada pelas cuspidas de Ariovaldo que
enrolava cada vez mais a língua para falar – ...sabe como é... garoto estudioso, quieto,
que sai pouco de casa, não gosta de ficar andando aqui pela Vila com os outros rapazes,
tem vergonha de morar em Madureira... - falou baixando o tom de voz, como se contasse
um segredo. - ... todo mundo já estava achando que ele era viado.
Foi um corre, corre. Percebendo o constrangimento dos jovens, todo mundo veio
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domingo e não parou durante todo o almoço. Parecia empenhado em embaraçar Arlindo.
Foram piadas baixas, arrotos durante a refeição, cuspidas a cada palavra mal
pronunciada, tudo a que tinha direito numa tarde quente e interminável, como muitas
outras que já haviam ocorrido e como outras tantas que ainda estariam por vir.
O efeito imediato desse almoço dominical foi que, já no dia seguinte, Alice o
evitara. Podia ler nos seus olhos a vergonha e o desprezo que sentia por sua família. E
Alice não foi o único caso, o mais grave, com certeza, pois apaixonara-se pela moça e
curtiria uma bela dor de cotovelo ao vê-la ao lado de outro colega de escola. O sortudo
deveria ter, com toda a certeza, uma família mais equilibrada do que a sua. Pelo menos
contra a mulher. No dia seguinte, todos com a cabeça fria, e sóbrios, a acusação foi
retirada. O pior era que o pedido para que tudo fosse encerrado imediatamente foi da
própria Tia Ernestina, o que era mais revoltante. A mulher apanhava e ainda retirava a
Num outro episódio, Arlindo é que quase foi fichado na Delegacia por tentativa de
roubo. Ao buscar o Tio no botequim, num final de tarde, qual não foi a sua surpresa
quando Ariovaldo desandou a berrar que o jovem estava tentando roubar seu carro.
Como era um botequim um pouco mais afastado de casa, em que a maioria não conhecia
Ariovaldo, Arlindo foi seguro pelos freqüentadores do bar, chegando a levar uns cascudos
Avenida Edgar Romero fica bem próxima à Vila em que eles moravam e os policiais já
ver alguém gritando, chamando-o de ladrão, não sairia mais da cabeça do pobre Arlindo.
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Ainda sentado no sofá Arlindo visitava, mentalmente, seu álbum de família.
Ela trazia à tona um passado que ele sempre procurou esquecer, que não queria que, de
forma alguma fizesse parte de seu presente. Apesar de ser seu tio, Ariovaldo era tudo o
e muitos outros adjetivos que poderia ficar imaginando, mas que no momento não valeria
a pena. Recostou-se no sofá e fechou os olhos. Quem sabe se, junto com o tio,
conseguiria enterrar de vez esse passado. Talvez fosse esse justamente o seu problema.
A aversão que tinha de que as pessoas soubessem que viera dos confins de Madureira
talvez estivesse diretamente ligada à figura de Ariovaldo. Ele representava tudo de ruim
Em alguns momentos chegou a sentir vergonha desse sentimento, mas não podia
evitá-lo, era mais forte do que ele. Mesmo sabendo que sua mãe, onde quer que ela
estivesse, e ela estava em outro plano a observá-lo, era o que acredita, estaria magoada,
pois, apesar de tudo, adorava o irmão que ajudara a criar e sempre acabava por perdoá-
lo.
realidade, e resolver de uma vez por todas a questão com a própria família e o passado.
Pensando no velho Ariovaldo duro, sem vida, deitado no caixão, depois de ter sido
atropelado por um ônibus, e na pobre Tia Ernestina, que a essa altura deveria estar aos
prantos com mais essa que lhe aprontara o marido, desistiu da caminhada, ia fazer hora e
cemitério logo após a hora do almoço, por volta das 13 horas, para ver se sua tia
precisava de alguma coisa. Apesar da distância que manteve da família todos esses
anos, principalmente após a morte de sua mãe, não podia deixar de reconhecer que
sentia um carinho especial por sua tia. Iria mais por ela do que por ele.
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Pelo menos, pensou, essa seria a última do Ariovaldo, não havia mais
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O calor estava insuportável, com certeza os termômetros deveriam estar
marcando mais de 40 graus, intuía Arlindo, apesar de não ter reparado em nenhum pelo
movimentação no cemitério parecia fazer aumentar o calor. “Parece que todo mundo
resolveu morrer hoje, que desgraça”, pensou ele enquanto estacionava o carro.
mundo estava ali reunido, no cemitério. Procurou a capela que sua prima indicara. Não
precisou de muito esforço para encontrá-la. Era logo a primeira à direita de quem entrava
porta da capela. Ao vê-lo, a velha Tia Ernestina se arrastou em sua direção buscando seu
apoio, estava desconsolada, deu-lhe um longo e carinhoso abraço. Para Arlindo ela
parecia bem mais velha do que era, devia estar com um pouco mais de setenta, mas
parecia já ter passado dos noventa. Depois de gastar quase dez minutos cumprimentando
parentes e velhos conhecidos que não via há muitos e muitos anos, respirou fundo, tomou
coragem para entrar na capela e enfrentar pela última vez o velho Ariovaldo. Foi quando
recebeu a notícia, já estavam todos ali, para o enterro, menos o próprio, pois o corpo
ainda não havia chegado. “Já está o Ariovaldo aprontando mais uma das suas”, pensou
ele.
Segundo lhe informou Maria das Dores, parece que o IML estava cheio, final de
Juramento, próximo a Tomás Coelho. Foram três bandidos e dois policiais mortos. Os
corpos estavam no Instituto para autópsia e a movimentação por lá era intensa, isso
atrasou os trabalhos, mas estavam para chegar a qualquer momento dois corpos, o de
No momento, o que havia a fazer era sentar e esperar, e foi o que fez Arlindo.
Comprou um café e foi dar uma volta pelo cemitério. Naquela situação o melhor a fazer
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era dar uma volta ao redor, olhar as inscrições nos túmulos. Não era, com certeza, seu
passatempo predileto, mas era o mais adequado para a ocasião, melhor do que enfrentar
a choradeira dos parentes. E lá se foi Arlindo, a ler nomes e verificar a idade com que
CAPÍTULO IV – O Corpo
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Por volta das 13:30 horas chegou o carro do serviço funerário, com o corpo de
Ariovaldo. O caixão, fechado, foi levado direto para a capela. Até aí, nada demais. Era o
procedimento normal. Uma vez na capela, o caixão é aberto para que seja feita a
colocação das flores que cobrem o corpo do defunto. Procedimento padrão, não seria
bancada da capela, que Arlindo teve a convicção de que Ariovaldo ainda estava por
aprontar a última, apesar de já estar em pleno caminho para a vida eterna. Qual não foi a
surpresa de Arlindo, e de todos que estavam na capela, uma vez aberto o ataúde. O
corpo que ali se encontrava simplesmente não era de Ariovaldo. Na verdade, era de um
jovem, aparentando uns vinte e poucos anos, que tinha o rosto bastante deformado, difícil
foram acuados dentro da capela, estavam vendo a hora de serem linchados pelos
parentes de Ariovaldo, e eles bem sabiam que não tinham culpa de nada. Receberam o
caixão já fechado e saíram rápido do IML para fugir da confusão que lá se formara desde
a madrugada com a chegada dos corpos dos bandidos e dos policiais mortos no confronto
aprontara mais uma com ele, não pôde deixar de se indignar. “Que falta de respeito para
com os mortos. Aonde já se viu trocar um corpo. Nem mesmo ele merecia tal castigo no
exigindo que os rapazes entrassem em contato com a funerária para saber o que havia
acontecido. Durante cerca de vinte minutos todos na capela não tiraram os olhos do
telefone celular que permanecia grudado ao ouvido de um dos jovens. Após muita
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- Bem. Parece que houve um equívoco na retirada do corpo do IML. – Isso era
Novo início de tumulto. Contornada novamente a situação, o rapaz prosseguiu com sua
Ótimo, pensou Arlindo. Tomara que esses dois façam logo a destroca dos corpos.
O jovem, que falara ao telefone com a funerária, dirigiu-se a Arlindo, que segundo lhe
pareceu era quem comandava a turma ali, pelo menos parecia ser o mais calmo e
sensato do grupo, além, é claro, de ter uma aparência de pessoa inteligente, daria para
conversar com ele. Explicou que eles iriam voltar à funerária para destrocar os papéis e
pegar o outro corpo e voltariam. Mas, segundo ele, seria necessário que alguém da
para Arlindo. Este sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Percebeu que todos
esperavam que ele assumisse para si tal encargo. Fez-se um silêncio constrangedor.
não o suficiente para escapar de sua audição. Arlindo sentiu como se o mundo o
observasse. O suor insistia em descer-lhe pela testa, a boca secou, sentiu uma angústia
profunda se apossar de todo o seu ser, sua mente fervilhava buscando uma saída para
aquela situação. Mas já não havia o que fazer. Resignou-se e seguiu os jovens que
“Ariovaldo, seu desgraçado. Nem nessa hora você consegue livrar a minha cara.
Mas que implicância maldita. Gostaria que você ainda estivesse vivo para poder eu
mesmo matá-lo. Seria um enorme prazer. Depois parou um segundo e pensou que
deveria estar enlouquecendo, querer matar quem já estava morto, devia ser o calor a lhe
fazer mal”. Pensava ele enquanto entrava no carro da funerária e se sentava ao lado de
um defunto que ele sequer sabia quem era. E com certeza teria ficado muito feliz em
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ignorar a origem daquele sujeito, que forçosamente viajava ao seu lado. A princípio,
Arlindo sentiu-se angustiado com o corpo ali, bem a sua esquerda, dentro do carro. Aos
poucos, enquanto ouvia as bobagens que os dois jovens falavam à sua frente,
convenceu-se que, tirando ele, o defunto era a criatura mais sensata dentro daquele
carro, pelo menos permanecia de boca fechada. Chegou a achar que seu companheiro de
viagem mantinha-se calado em solidariedade a ele, diante daqueles dois imbecis que
afeiçoar ao jovem, crendo que este merecia sorte melhor, ou será que na verdade era ele
quem merecia a falada sorte, pois, afinal, seu amigo não podia escutar as besteiras dos
Havia uma quantidade enorme de pessoas à porta. Não foi difícil imaginar que se tratava
jovem que dirigia o veículo levou um tapa no pé do ouvido de um mulato que deveria ter
Foi aquele alvoroço. Arlindo, a essa altura, sentia o suor espalhar-se por todo o
corpo, a camisa ensopada grudava nas costas. No meio do desespero, enquanto saltava
do carro, chegou a sentir inveja de seu amigo defunto. “Pelo menos ele está alheio a tudo
isso, se pudesse trocava de lugar com ele. Acho que o lugar mais tranqüilo aqui deve ser
Quando criou coragem e levantou a cabeça pela primeira vez desde que havia
saído do carro, Arlindo deu de cara com um sujeito bem magro e baixo, mas que ele
rapidamente pôde perceber que era o manda chuva do pedaço. Ele passava pelos outros
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dando ordens. Bigode ralo, rosto fundo e com uma interminável coleção de cordões e
- Não, não trabalho, não – respondeu Arlindo, sentindo-se um idiota por repetir
tantas vezes o não. – Eu sou sobrinho da pessoa falecida por quem este jovem foi
trocado. – continuou falando enquanto apontava para seu amigo defunto dentro do carro.
sujeito, mais alto e forte, que estava sempre ao lado dele, parecia seu segurança. Tão
logo ouviu o magro falar, o outro homem se virou e tratou de acalmar o pessoal. Enquanto
isso, Bigode, sim, era assim que Arlindo tinha vontade de chamá-lo, pelo menos
mentalmente, pegou-o pelo braço e o retirou da multidão. Deram alguns passos antes de
Bigode parar. Acendeu um cigarro, oferecendo antes a Arlindo, que recusou. Depois de
- O que aconteceu foi o seguinte, tio. – “Tio, não!”, pensou Arlindo. Não queria
mais ouvir essa palavra, mas, prudentemente, manteve-se quieto, ouvindo o que tinha o
jovem a dizer. – Parece que tivemos um pequeno problema. Uma troca de defuntos. Nós
ficamos com o seu e você ficou com o nosso. Depois nós cuidamos do desastrado que
provocou esta merda toda. Agora tá na hora de desfazer o “trampo”. A família do meu
amigo está nervosa. Sabe “comé”, o pessoal fica agitado, já tá todo mundo puto da vida
com a parada. Nosso “cumpadre” foi queimado pelos “home”, a polícia, sacou. –
completou, percebendo que Arlindo estava tendo uma certa dificuldade com o vocabulário
empregado. – Então, é melhor resolver tudo logo de uma vez, antes que o pessoal perca
- Por mim está ótimo assim. – emendou rápido Arlindo. – Seu amigo já está
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- É isso aí. Gostei do teu papo, mandou bem tio. Só tem um porém. – Arlindo
esperou pelo que poderia vir. – Quando nós vimos lá o corpo do coroa, desculpe, do seu
tio, achamos que era onda dos “home”, que tinham segurado o corpo do Tião e tinham
mandado um qualquer pra gente de sacanagem. Então viemos procurar por ele, mas
cuidado para que seu interlocutor não percebesse seu estado de espírito. O que fazer?
Cemitério de Inhaúma. Essa história não estava cheirando bem. Pelo jeito seu amigo
defunto tinha tido problemas com a polícia e por isso morreu do jeito que morreu.
Mantiveram Ariovaldo como refém, até que o corpo do Tião fosse devolvido. A barra
deveria estar mais do que pesada lá pelos lados de Inhaúma. Mas já não tinha escolha.
- Vai na fé, tio. Estamos esperando aqui fora. Enquanto isso vou conversar com
os bacanas que trocaram nossos “cumpadres”, chegou a hora deles explicarem direitinho
essa história. – sentenciou Bigode que se dirigiu aos quatro funcionários da funerária, que
a essa altura, já eram reféns, tanto os dois que vieram com Arlindo, como os dois que
pareciam saltar das órbitas, tão dilatados que se encontravam. O local estava recheado
de gente, as mulheres que haviam vindo com o grupo para procurar Tião tinham entrado
atendente.
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Arlindo dirigiu-se ao banheiro o mais rápido que suas pernas permitiam. Foi, sem
dúvida, a mijada mais tensa de toda sua vida. Mesmo com toda vontade que sentia,
custou para conseguir urinar. O medo e o desespero bloqueavam sua vontade. Foi uma
verdadeira agonia. Finalmente, conseguiu. Uma fantástica sensação de alívio invadiu seu
corpo. Por um segundo chegou a esquecer a louca situação que vivenciava. Depois,
enquanto lavava as mãos, ouviu um soluço, bem baixinho. Fechou a torneira e manteve o
rosto apontado para o espelho, aproveitando para vasculhar o banheiro com os olhos,
Percebeu que a porta de um dos mijadores estava fechada. Aproximou-se bem devagar,
pé ante pé. Empurrou a porta, estava fechada. Entrou no espaço ao lado, subiu no vaso
para olhar por sobre a divisória. Viu um jovem, sentado no vaso. Quando este,
percebendo que era observado, olhou para cima, Arlindo pôde vislumbrar o medo em
seus olhos.
arregalados.
- Então deixa eu ficar por aqui, quietinho. – falou o jovem enquanto voltava a
fechar a porta.
- Calma – disse Arlindo enquanto segurava a porta com a mão, evitando que o
garoto voltasse a fechá-la. – Não há mais ninguém aqui dentro, só nós dois.
- Mesmo assim – emendou rapidamente o jovem – prefiro ficar aqui até que eles
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- O que tem eles? – repetiu o garoto aumentando o tom de voz, como se não
acreditasse no que acabara de ouvir. – De que mundo você veio coroa. Esses caras
cara que mataram era um dos gerentes, aquilo lá tá um inferno e neguinho ainda troca o
emputecem, já viu, o bicho pega geral. Hoje foi um inferno para conseguir sair de casa e
vir trabalhar, quem saiu de casa logo cedo, saiu. Depois que os caras desceram o Morro,
ninguém mais pôde ir trabalhar, a ordem foi fechar tudo e ninguém sair de casa, eu vou é
dormir na casa de um amigo, não volto pra lá hoje nem que me pague. – falava o jovem,
pianinho, estou muito novo pra morrer, tio. – finalizou a conversa fechando novamente a
porta.
Lá vem mais um desses caras com essa história de tio. Tio é a puta que os pariu.
Deixa pra lá, pensou Arlindo, a questão agora é voltar lá para fora e resolver essa
- Marcos. Marquinho.
- Não se preocupe Marquinho, logo, logo eles estarão indo embora. – disse
Arlindo enquanto batia na porta. Virou as costas, respirou fundo e saiu para enfrentar os
simpatia pelo espiritismo. Naquele momento, prestes a sair daquele banheiro, jurou para
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CAPÍTULO V – Rumo a Inhaúma
ânimos estavam mais serenados. A cor havia, inclusive, voltado à face da atendente. Do
fumava mais um cigarro. “Não admira que seja tão magro, o desgraçado não para de
- Vamos nessa, tio. – falou Bigode assim que Arlindo se aproximou. – Você vem
- Eles vão com o meu pessoal na Kombi. Eles e os outros dois do outro carro.
Não quero vacilão levando meu “cumprade” não. Vai que esses manés aprontam mais
uma e somem com ele de novo. Ai vou ficar mesmo brabo com eles e sei não, arranco os
mais um carro. Parecia mesmo um cortejo fúnebre, só que sem um dos defuntos.
polícia, ou pior, se caíssem em uma blitz. Melhor nem pensar, pois a essa altura não
- Olha Tio, lamento pela confusão, mas não tivemos culpa nenhuma. Foram
esses bostas da funerária que enrolaram tudo. A gente só queria poder enterrar o Tião em
paz. Chorar nosso morto, mas até isso é complicado pra pobre. É por isso que a gente
joga pesado com os “home”. São todos uns filhos da puta. Aterrorizam mais a favela do
que nós, pode crer. – Bigode disparou a falar e Arlindo achou melhor não interrompê-lo.
trajeto, em observar se havia algum movimento estranho a cada esquina que o carro
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dobrava seguido pela procissão. Esperava encontrar um carro da polícia após cada curva
dando cascudo em moleque e porrada em homem, isso quando não metem logo um teco
na cabeça do infeliz. Depois colocam a culpa na gente. Gritam pra imprensa que foi coisa
dos traficantes. E vou lhe dizer uma: traficante é o caralho, eu sou é comerciante. Me
sinto, na verdade, um agente de turismo, faço a galera viajar. Bandido é quem invade a
favela pra tirar nosso dinheiro, ganho com tanto suor. Sabia que é foda vender droga, tio.
os pontos de venda, fiscalizar a molecada pra não tomar volta na parada, comprar mais
droga, e lá vai tudo de novo. E os sacanas dizendo que somos ladrões, vagabundos.
Vagabundos são eles, eu trabalho pra cacete. E ainda tenho que enterrar meu
“cumpadre” que eles mataram. Foram cinco tiros tio, três na cara. Sabe o que é isso?
Chega o neguinho e mete cinco balas na tua carcaça, sem piscar. E os putos são sádicos,
matam rindo. Mas deixa estar que o que é deles está guardado, os que fizeram isso com
o Tião vão ter o mesmo destino, vão comer capim pela raiz. Vai dar o rabo, mas é pra
estivesse esperando por eles no cemitério. Quando algum traficante é enterrado a polícia
casos parecidos na televisão. Mas agora a coisa era bem diferente. Se houvesse
confronto o que ele faria. E se os policiais fossem logo prendendo Bigode. Como
explicaria sua presença ali. Com toda a certeza iria apanhar um bocado antes de
conseguir esclarecer a situação. A essa altura já não tinha muitas opções, ou melhor, não
tinha nenhuma. A não ser colocar toda essa situação nas mãos de Deus e aguardar. A
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confusão estava armada e só cabia a ele, Arlindo, rezar, e muito. Mais uma vez sentiu
inveja de seu amigo defunto. Tião é que era um cara de sorte, pois não corria o risco de
morrer uma segunda vez, bastava-lhe a primeira, que por sinal fora muito bem
pernas não atendiam a uma ordem do cérebro. Arlindo teve vontade de pular do carro,
mesmo que estivesse em movimento, pelo menos abreviaria o sofrimento. Mas nada fez,
além de suar e suar e suar. Sentia-se uma torneira com defeito, que não parava de
pingar.
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Capítulo VI - O Bicho tá pegando
relógio, a hora não passava. Para seu alívio não notou a presença da polícia. Com sorte,
pensou, poderia pegar o corpo de Ariovaldo e sair dali antes que eles chegassem e a
confusão se iniciasse.
efetuar a troca, Arlindo seguia Bigode. Podia ser bem medroso, e na verdade o era, mas
burro, não. Diante daquela situação percebera que o melhor a fazer era ficar o mais
próximo possível de Bigode, afinal de contas, com toda certeza ele era o líder do grupo, o
manda-chuva, pelo menos ali todos o respeitavam e seguiam suas ordens. Ficando ao
seu lado, raciocinou Arlindo, estaria relativamente seguro, pelo menos bem mais do que
se ficasse andando por ali, sozinho. Notou que os motoristas haviam saído da Kombi e
reparar que um deles, o motorista que tinha ido com ele para a funerária, o mais falante,
tinha um grande hematoma bem próximo ao olho esquerdo. “Aquele ali arcou com as
conseqüências por esta troca de defuntos, alguém tinha que ser punido. Espero que fique
por ai, não quero ser cruel, mas ainda preciso deles para voltar para o cemitério”. Pensou
Arlindo, enquanto tratava de seguir Bigode até a capela onde se encontrava o corpo.
tranqüilo, alheio a toda aquela confusão. Uma expressão tranqüila cobria o rosto de seu
velho Tio. Parecia saber o que estava acontecendo e se divertir com isso, o que era bem
seu estilo. Sentiu vontade de chutar o traseiro daquele defunto até que ele levantasse.
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O cemitério estava cheio, “Tião deveria ser muito respeitado na comunidade local”,
pensou ele. Bigode deu ordem para que o caixão fosse fechado e colocado no carro para
- Ai está o seu defunto. – disse ele para Arlindo. – Você leva o seu, nós ficamos
O caixão de Ariovaldo foi retirado da capela para que Tião a ocupasse. Quatro
Bigode.
traficante.
- Esquenta não tio, essas coisas acontecem. Esses viados não sabem trabalhar
direito e arrumam essas merdas, mas tudo terminou bem. Vai com Deus.
Os dois acabavam de se despedir quando chegou perto deles um garoto, que não
deveria ter mais do que uns treze anos. Estava esbaforido pois viera correndo.
- Chefe, chefe, os “home” tão ai fora, tem pelo menos umas seis viaturas, o
bicho tá pegando. Vamos abrir fogo nos filhos da puta? – perguntou o garoto enquanto
- Calma. Ninguém faz nada sem a minha ordem. – gritou ele enquanto se virava
para Arlindo. – Você espera aqui tio, é melhor não se meter nessa história, volte lá pra
capela e me espere.
Não precisava falar, Arlindo nem cogitou a possibilidade de sair naquele momento.
Enquanto a polícia estivesse ali não pretendia deixar aquele cemitério de forma alguma.
Voltou para a capela, era melhor ficar velando Tião do que se envolver naquele confronto.
Apesar de manter a cabeça baixa, pôde perceber que as poucas pessoas que tinham
ficado na capela o observavam, o que era bem normal, já que não passava de um
estranho. A grande maioria tinha ido lá para fora, no fundo queriam era enfrentar a polícia,
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queriam vingar Tião. Olhou o relógio, dezessete horas. Agora é que seriam elas, primeiro
teria que esperar o confronto terminar para sair, e isso poderia levar horas se a polícia
não invadisse o cemitério. Se isso acontecesse nem iria ter tempo de explicar a sua
presença – pensava ele - iria apanhar direto, se não acontecesse algo pior. Mesmo que
conseguisse sair logo, seria impossível enterrar Ariovaldo naquele dia. Ainda seria preciso
velá-lo por toda a madrugada. Percebeu que, a essa altura, já nutria um pouco de ódio
pelo velho Ariovaldo. Mais uma que o velho lhe ficava devendo e, agora, não poderia mais
se vingar do velho tio. Como poderia ser possível que, mesmo depois de morto, uma
pessoa incomodasse tanto outra. Pois era exatamente dessa maneira que se sentia em
Levantando um pouco a vista, Arlindo olhou para Tião. Por incrível que pudesse
parecer, continuava a sentir inveja do defunto. Era impressionante. O sujeito a sua frente,
traficantezinho de merda, mas ele invejava o sujeito. Ele, um advogado bem sucedido,
que havia vencido na vida e se livrado do próprio passado, estava ali, agora, em um
cemitério do subúrbio, olhando para um traficante deitado em seu caixão e com inveja
dele. Mas, continuou Arlindo com sua vã filosofia, será que ele realmente havia se livrado
próprio passado e, agora tinha certeza, jamais se livraria. Afinal de contas, era seu
passado, sua história, e isso ele nunca poderia mudar, por mais que tentasse. A história
de vida de um homem só pode ser escrita uma única vez, não há como apagá-la,
ninguém consegue voltar no tempo, andar para trás. É possível até modificá-la de um
conviver com ela, saber lidar com as próprias angústias, frustrações e entender que nada
pode ser tão ruim quando conseguimos tirar uma lição dos acontecimentos de nossa vida.
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Pensando desta forma, Arlindo chegou a sentir orgulho de seu passado. Bem,
orgulho, orgulho, não, ai também já era exagero. Na verdade estava vivenciando uma
sensação de alívio por se reencontrar com sua infância na calorenta Madureira, e sua
trajetória até chegar onde estava hoje. Chegou mesmo a sentir um pouco, não muito, mas
um pouco de carinho pelo velho Ariovaldo. Um sentimento que estava mais para
Bem, o que podia fazer agora por ele era esperar a confusão terminar e dar-lhe um
bom velório e um enterro digno, pois mesmo ele merecia isso no momento derradeiro. E
era isso que Arlindo estava disposto a fazer assim que voltasse ao Caju.
O calor continuava infernal, apesar da hora. Arlindo suava cada vez mais. Não se
lembrava de ter suado tanto na vida como naquele dia. Nem nas tardes calorentas de
Madureira, quando criança, suara tanto. Mas, ao mesmo tempo pôde perceber que o suor
era em conseqüência do calor e não de nervosismo. Por mais estranho que pudesse
parecer, estava tranqüilo naquele momento. Sentia-se alheio a toda confusão em sua
volta.
Apesar de estar alheio, teve que voltar a realidade quando sentiu uma leve
pancada no ombro. Voltou a abrir os olhos e deu de cara com Bigode. O traficante o olhou
- O negócio é o seguinte, tio. Nossa parada com eles já está resolvida, eles vão
ficar lá fora e nós aqui dentro enterrando o Tião. Tudo mundo quieto na sua. Por hora vai
ficar por isso mesmo. Acerto as contas com eles depois, não quero banho de sangue
aqui. O problema é que eles ficaram desconfiados dessa história de troca de defuntos,
não estão acreditando na gente, abriram o caixão do seu tio e tudo, para confirmar se
havia um defunto lá dentro. Você vai ter que falar com eles para poder se liberar.
Agora Arlindo estava suando mais ainda e por conta do nervosismo. Tudo que não
queria era ficar frente a frente com os policiais. Isso, com certeza ele não merecia. Já
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tinha enfrentado os bandidos, agora teria que encarar a polícia? Mas percebeu que não
havia outra solução, era isso ou nada. E, afinal de contas, já tinha chegado até ali, não ia
desistir agora. E, por outro lado, se simplesmente se recusasse a sair, poderia trazer
problemas para Bigode e seu pessoal, e com certeza o traficante não iria ficar nem um
resolvidas.
informou o traficante.
aumentarem vertiginosamente. Sentiu que tudo rodopiava a sua volta. Colocou as mãos
nos bolsos pois percebeu que elas tremiam, mesmo contra a sua vontade. A situação era
bem mais séria do que o garoto descrevera pouco tempo atrás. Quanto tempo? Olhou o
relógio: dezessete e quarenta. Não havia meia dúzia de carros da polícia. Se não contara
errado, em função do nervosismo pouco conseguia tirar os olhos do chão, deveria haver
ali pelo menos umas doze viaturas e mais um micro ônibus. Nesse momento foi forçado a
interromper seus pensamentos pois se aproximava deles um oficial da Polícia Militar, que,
julgava ele, deveria ser o comandante da operação. O sujeito tinha cara de poucos
Dono do defunto? Perguntou para si mesmo Arlindo. Será que o policial escolhera
uma hora como aquela para fazer piada ou simplesmente queria provocá-lo? O melhor a
fazer era ficar com a dúvida e procurar agir com a maior naturalidade possível.
- Ele é meu tio. – explicou Arlindo enquanto puxava o atestado de óbito que sua
prima havia lhe entregue antes que ele deixasse o Caju para resolver a confusão.
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O Major, havia identificado pelas divisas na roupa do policial, olhou a certidão e
Arlindo teve alguma dificuldade para tirar a carteira do bolso de trás da calça.
Parecia ela também com medo da situação e por isso se recusava a sair da segurança do
bolso para encarar o PM. Finalmente conseguiu. Novamente enfrentou uma dificuldade,
encarar Arlindo.
casa, descansando, depois de ter enterrado meu tio e, no momento, estou em outro
cemitério, com outro defunto e no meio desta situação. Eu acredito que isso já configura
- Não há nenhuma situação por aqui, a Polícia do Rio de Janeiro não atua no
documentos para ele. – Parece tudo em ordem com a documentação do seu tio, acho que
tudo não passou de uma grande confusão. O Senhor pode se retirar com o defunto. Mas
Ele nem precisava se preocupar. Tudo que Arlindo não pretendia era se demorar
- Com licença, boa noite para o Senhor. – disse o advogado que logo em
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Os jovens empregados da funerária já aguardavam dentro dos dois carros, assim
como Ariovaldo, que já havia se acomodado para a viagem. Arlindo parou na porta do
- Muito obrigado pela sua atenção e, mais uma vez, desculpe o transtorno
causado.
- Deixa isso pra lá, tio. Vai na fé que dessa você escapou. – devolveu Bigode
Assim que Arlindo entrou no carro os jovens saíram bem devagar, cortando
caminho por entre as fardas azuis e os fuzis. Passaram bem devagar, pois havia o medo
de que um movimento mais brusco gerasse uma reação de um dos PM’s. Venceram
aquela barreira, que parecia intransponível. Arlindo mal podia acreditar que estava
Reparou que o suor havia desaparecido de sua testa. Agora sim, poderiam velar o pobre
Ariovaldo em paz.
Quando em sua vida poderia imaginar que fosse viver um dia como aquele. Tudo
de ruim tinha lhe acontecido nas últimas vinte e quatro horas. Agora, quando o pior já
havia passado, sentia o cansaço se abater sobre seu corpo, tudo que queria e precisava
era relaxar. E era exatamente isso que fazia agora. Recostou-se no caixão e pôs-se a
cochilar. Não podia deixar passar a oportunidade de tirar uma casquinha de seu Tio. Era
sua vez de se apoiar em Ariovaldo, sua pequena vingança. Iria fazer o velho segurar seu
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Pelo menos esses foram os planos traçados por Arlindo quando entrou no carro.
Mas, pelo visto Ariovaldo ainda não havia tirado todos os coelhos de sua “cartola de
madeira”. Quando saíram da Linha Amarela e pegaram a Avenida Brasil, o trânsito estava
barulho parecia muito próximo. E, na verdade, era. Policiais Militares, postados do outro
lado da Avenida Brasil estavam trocando tiros com traficantes da Vila do João, que
margeia a Avenida naquela área. Arlindo nem teve tempo de raciocinar direito, quando
abandonado o veículo e se atirado ao chão, buscando fugir das balas perdidas, pois elas
Com a dificuldade que a idade lhe impunha, Arlindo também saltou do carro e
barulho dos tiros crescia, parecendo cada vez mais próximo. Uma bala passou zunindo
por cima dele, estourando o vidro traseiro do carro. Arlindo sentiu os estilhaços caírem
sobre seu corpo. Não tinha coragem nem de sacudir a cabeça para se livrar dos cacos.
Inhaúma. Podia ter ficado por lá, assistido ao enterro de Tião e batido um bom papo com
Bigode. Aliás, o que se passara durante o dia era nada perto do que estava vivendo
embaixo dos mesmos. Um pouco mais atrás de onde estava, Arlindo pôde ver um ônibus
Era o caos urbano. Policiais passavam correndo gritando para que todos
permanecessem no chão enquanto buscavam, eles próprios, refúgio nas muradas que
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dividem as pistas. Com muito esforço Arlindo conseguiu rastejar alguns centímetros para
o lado, colocando-se também embaixo do carro, junto com os jovens que ali já se
encontravam, mas que não conseguiam sequer pronunciar palavra, tamanho o pânico que
havia tomado conta dos dois. Não que ele Arlindo conseguisse falar alguma coisa, a boca
estava completamente ressecada, muito pior do que havia ficado à tarde. Para piorar a
situação um dos jovens tinha os pés praticamente colados em seu rosto. Sabia que não
adiantaria falar nada naquele momento e, com algum esforço, conseguiu girar o corpo e
Seria difícil precisar quanto tempo permaneceram sob o carro, ouvindo a troca de
tiros e os gritos dos policiais. Num determinado momento Arlindo percebeu que os tiros
haviam cessado. Não sabia há quanto tempo havia parado o tiroteio, pois só agora
percebera. Concentrou toda a sua atenção nos sons que conseguia captar próximos ao
veículo. Realmente não havia mais tiros. De onde estava deitado pode divisar alguns
coturnos, que já não corriam, apenas andavam. Ouviu rumores de vozes. Pelo jeito o
tiroteio tivera realmente fim. Mas cadê coragem para sair de onde estava? Essa era a pior
parte da história, mexer o corpo quando este desejava ardentemente permanecer onde
estava, imóvel. Com muito sacrifício conseguiu sair debaixo do carro. Levantou e olhou
para sua roupa, que estava imunda e amarrotada. Arlindo olhou para o céu e sentiu
hoje?”. Na mesma hora desencostou, “melhor não pensar isso, pois hoje tudo pode
acontecer, nada é impossível. Até um meteoro pode cair na minha cabeça hoje”. Olhou o
relógio, já passava das dezenove, ou seja, ficaram parados no tiroteio por mais de uma
hora.
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Permaneceram calados, mesmo depois que o carro voltou a rodar, e assim ficaram até
falavam ao mesmo tempo, estavam preocupados pois eles haviam saído há muitas horas.
Os jovens da funerária estavam, agora, excitados, loucos para contar todas as aventuras
do dia. Falavam de forma atabalhoada e não conseguiam se fazer entender. Arlindo deu
ordem para que os dois parassem de tagarelar e levassem Ariovaldo para a capela de
uma vez por todas. Os jovens obedeceram, mas não deixaram de falar. Tentavam, de
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todas as formas, se fazer entender, pois agora, passado o susto, sentiam-se
Depois de falar com a Tia, Arlindo procurou a cantina, que ficava próxima das
primeiras gotas de café atingiram sua garganta. Parecia mentira que aquele dia estivesse
próximo do fim. Após saborear o seu café, começou a andar em direção aos túmulos,
como fizera à tarde. Caminhou pelas ruas internas do cemitério e, quanto mais andava,
mais precária era a iluminação. Foi enfiando-se pelo labirinto de túmulos até que
estancou. Rodopiou lentamente sobre o próprio eixo, observando a sua volta. Silêncio e
escuridão, era tudo que conseguia divisar naquele momento, mas, mesmo diante das
Sim, era verdade. Sentia-se agora em paz ao lado dos mortos. Com certeza não
haveria uma única alma penada que pudesse incomodá-lo e apavorá-lo mais do que os
esperando que a noite lhe fosse breve e reconfortante, para que, na manhã seguinte,
pudesse enterrar o velho Ariovaldo, para que descansassem em paz de uma vez por
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REENCONTRO – Conto 2
CAPÍTULO I - Lembranças
José Luiz estava inquieto. Está de saída para um encontro com uma mulher. Seria
tantos anos estaria, daqui a algumas horas, frente a frente com Maria Augusta. Quanto
Vinte e nove anos. Sim, já haviam se passado vinte e nove anos desde que
abandonou Guta, como a chamava, sua família, a escola, os amigos e tudo o mais que o
cercava para mergulhar numa aventura que quase se mostrou sem volta, que por pouco
não lhe custou a vida. Zé, como não podia deixar de ser, olha o relógio, com surpresa
repara que ainda são 5:45 da tarde. Haviam marcado o encontro para às 20 horas e ele já
túnel do tempo. Voltava agora para 1970, época do Brasil grande, do ame-o ou deixe-o.
Do nosso futebol que caminhava a passo largos para o tricampeonato mundial. Mas quem
preocupados com o destino brasileiro na Copa do México, mas Zé Luiz não enxergava
assim na época. A única coisa que importava, na verdade era fazer a revolução, tirar o
Brasil das mãos da ditadura militar e transformá-la no paraíso comunista do Atlântico. Era
nisso que pensava naquela tarde de inverno enquanto ia para a casa de sua namorada.
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Naquele momento estava com dezoito anos, mas já há muito vinha participando do
movimento estudantil. Depois de 1968 a coisa toda pegara fogo. O AI-5, Marighella morto,
Luiz sabia que sua hora estava chegando, teria que tomar uma decisão, na verdade já
tomara. Era por isso que estava indo se encontrar com Guta, precisava lhe dizer que
mergulhar na clandestinidade, de onde só iria emergir para marchar em triunfo, tal qual
Che Guevara o fizera onze anos antes, ao lado de Fidel Castro. Se isso não fosse
possível, gostaria de morrer como seu herói, no campo de batalha, servir de exemplo aos
demais companheiros, para que a chama revolucionária não se apagasse jamais. Assim
como ocorria hoje com ele, quando fraquejava, lembrava-se do corpo de Ernesto Che
Guevara estendido sobre um balcão, aquele Dom Quixote que vinha, há vários anos,
determinação do novo homem que estava surgindo. Ele mesmo já deixara o cabelo
crescer, assim como a barba, essa mais teimosa que o cabelo lutava, parecia ter medo de
emergir em sua face para ser testemunha ocular do que ainda estava por vir.
Com tanta coisa passando por sua cabeça, já havia esquecido o discurso que
ensaiara para Guta. Como explicar para a namorada, uma menina simples, de boa
família, que não estava envolvida com política e com toda aquela confusão, que iria deixá-
la, que iria deixar a própria vida para assumir outra. Um novo mundo, novo nome.
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Chegando a rua de Guta precisou parar na esquina. Tentava colocar os
companheiro não perdia a oportunidade para um bom discurso. Carregava em seu peito a
certeza que Guta entenderia tudo rapidamente. No momento, precisava se afastar, para
sua própria segurança e também daqueles que amava. Era figura permanente nas
estar sendo seguido algumas vezes. Por isso precisava sumir, desaparecer. Não podia
colocar em risco a vida das pessoas e nem a segurança da organização. Não podia
decepcionar os companheiros.
Mas não havia com que se preocupar, afinal Guta entenderia. E, por outro lado,
não seria por tanto tempo assim. Breve a revolução triunfaria e ele estaria de volta,
isso. Adquirira o hábito de não tocar a campainha. Guta abriu a porta deixando Zé Luiz
entrar. Sua cara demonstrava muita tristeza, logo explicada. A mãe saíra para ir ao
enterro de um conhecido. Na verdade era um sobrinho da esposa de seu tio. Parece que
confronto com a polícia, ele não conseguiu escapar. Morreu metralhado. A notícia que
chegara informava que havia levado mais de vinte tiros, estava irreconhecível. Foi uma
confusão para a família conseguir recuperar o corpo para proporcionar um enterro digno
atividades do rapaz, se sabiam nome de amigos, etc., etc., etc. Mas afinal, perguntava em
voz alta, para si mesma, “por que se envolver nesse tipo de aventura? Assaltar bancos,
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Zé Luiz sentiu o ódio explodir em seu corpo. Não contra Guta, mas contra o que
acabara de ouvir. A confusão tomava conta de sua cabeça. Teve vontade de gritar,
explicar para Guta que geralmente a coisa não acontecia da maneira como a polícia
Teve vontade de gritar, mas conteve o impulso. Percebeu que naquele momento
seria inútil discutir o assunto, ou melhor, percebeu que não deveria discuti-lo com Guta.
Na verdade, percebeu algo mais. Não tinha vontade de discutir o assunto. Estava
fragilizado, tanto quanto ela. Queria mais do que tudo fazer a revolução, mas ao mesmo
Olhou nos olhos úmidos da namorada. Lentamente dirigiu seus lábios de encontro
aos dela. Na verdade, essa era a única vontade que imperava naquela casa. Não
disseram palavra, não fizeram discurso. Menos de um minuto depois, os corpos nus se
abraçam. Foi um momento mágico. Pela primeira vez sentia o corpo de uma mulher nu
junto ao seu. Sabia que a sensação era idêntica para Guta. Não havia mais nada em que
momento, afinal não havia palavras que pudessem descrever o que acabavam de sentir.
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Zé Luiz voltou para casa ainda mais confuso do que saíra pretendendo colocar
todos os seus assuntos em dia. Não falara com Guta sobre a decisão que havia tomado.
E mais do que isso descobrira com ela o amor, justo quando estava prestes a sumir, a
cair na clandestinidade para fazer a revolução. Pensou consigo mesmo. Agora, mais do
que nunca, ela irá compreender. Sabe que é, por assim dizer, uma mulher amada. Mas o
dever o chama. Não, não há com que se preocupar. Ela vai compreender.
estudantil. Mas ninguém imaginava que estivesse tão ligado ao ponto de abandonar tudo
e seguir na luta. Para a moça a confusão era ainda maior. Não desconfiava das atividades
do namorado, aliás, atividades essas com as quais não concordava e, por outro lado,
carregava com ela o segredo da descoberta que agora, mais do que nunca, unia os dois.
Depois que abandonou tudo, a vida ganhou outro significado para o rapaz. Viajou,
ou melhor, combateu por várias partes do país. Participou de assaltos, duelou com a
polícia. Viu companheiros morrendo, dentro e fora da prisão. Ele mesmo, como poderia
apagar aquela imagem de sua memória, matara um policial. Não teve escolha pois era o
policial ou uma companheira de luta, era nessa desculpa que buscaria refúgio para o
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O estampido seco do revólver encontrou seu destino nas costas do policial que
encurralara sua companheira, quando este preparava-se para matá-la, visto que já havia
espancado a pobre por um bom tempo. Conseguiram escapar, deixando para trás o corpo
inerte. Aquele ano de 1971 foi se mostrando, aos poucos, trágico. A revolução perdia
que iam, pouco a pouco, caindo. Depois de matar um homem, coisa que até aquele
derradeira. Carlos Lamarca, o Capitão Lamarca, o homem que tivera coragem de desafiar
o Exército abandonando suas fileiras para lutar pela liberdade e a justiça ao lado dos
instruções, seguir para a rodoviária, pegar um ônibus para São Paulo. Lá foi localizado
por outros membros da organização. Juntos seguiram, por caminhos tortuosos, para a
fronteira com o Paraguai. Dali para o Chile. Depois da queda do regime socialista de
Foram anos difíceis. Chegando ao Chile, o grupo, que não somava dez pessoas,
na luta. Mas as notícias que chegavam eram terríveis. Cada vez mais a ditadura
avançava. A guerrilha perdia terreno e seus membros caiam nos porões da ditadura.
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Pouco mais de um ano depois, nova fuga. A ditadura militar chegava também ao
Chile e com toda a força. No Brasil derrubaram e expulsaram João Goulart, no Chile
alternativa a não ser nova fuga. Alguns dias depois estavam em Cuba. Ao chegar a ilha
em que Che Guevara ensinara uma lição ao mundo, Zé Luiz percebeu que o tempo
passara. O ano de 1971 já havia ficado para trás, estava completando dois anos que
deixara seu país sem poder se despedir de ninguém, seus pais, irmãos, de Guta.
Engraçado que neste espaço de tempo não teve tempo para pensar neles, mas agora,
tinha tempo para pensar em assuntos pessoais. E, foi com surpresa que reparou que, ao
pensar em Guta voltara a sentir, em sua boca, o gosto dos lábios daquela que fora, e
seria para sempre, sua grande paixão. Nem a dor da ausência, da luta, da morte e do
exílio, puderam tirar dele o gosto de sua namorada. Isso não havia ditadura que pudesse
Ficou três anos em Cuba. Recebeu treinamento militar, se preparou para voltar ao
ditadura controlara a revolução e não havia condições para que retornassem ao Brasil
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Diante da falta de perspectivas da retomada da carreira revolucionária, Zé Luiz,
assim como outros, seguiu para a Europa, que seria sua casa nos próximos quatro anos.
No Velho Mundo fez muita coisa, trabalhou, estudou, aprendeu a falar, pelo menos
ganharam, na marra, a Copa do Mundo de 1978, realizada na terra do tango. Mas quem
se importava. Zé Luiz acabara de descobrir que se importava com o futebol também, que
A Anistia já estava valendo e muitos exilados voltavam para casa. Não voltou de primeira.
Demorou vários anos para tomar a decisão. Na verdade, preferia não mais voltar. Tinha
alguns fantasmas escondidos no armário que precisaria enfrentar, bem sabia disso.
regularmente com a família. Por isso sabia que teria que explicar sua história
revolucionária, assunto que era cobrado em cada carta dos pais. Mas explicar o que? Fez
o que tinha que fazer e ponto final. Mas sabia que na verdade não seria bem assim. E se
tivessem descoberto que matou um homem? Como reagiriam seus pais? Passaria a ser a
E, pior do que tudo isso. Teria que enfrentar Guta. Hoje, olhando para trás, sabia
que ela não entendera sua decisão. Na verdade deve ter demorado um bocado para
entender o que se passou. Tudo bem, a revolução. Mas desaparecer sem deixar notícia,
justo depois daquela tarde. Ha!, isso precisaria de muita explicação. Era tudo isso que
queria evitar.
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Só tomou a decisão de voltar ao Brasil em 1985, quando o país já respirava os
ares da Nova República. Não que para ele isso fizesse diferença, pois os homens que
estavam no poder já haviam estado antes, na época dos militares, logo não deveria haver
muita diferença. E, com toda a franqueza, já não se importava. Voltara apenas porque
uma força maior do que a sua vontade o empurrara de volta, já não tinha ambição de
mudar o mundo. Queria apenas voltar, precisava vivenciar essa experiência. Mas queria
fazê-lo sozinho, como vivera os últimos quinze anos, desde que partira, naquela tarde,
Chegou sem avisar não queria um comitê de recepção a esperá-lo. Sabia que isso
fatalmente aconteceria. A mãe lhe escrevia freqüentemente, não entendia porque o filho
não voltava para o Brasil. Tudo aquilo acabara há anos. Todos retornaram, muitos até
participavam normalmente da vida política do país, menos seu filho. Na última carta que
enviou a Paris a mãe foi taxativa, se não voltasse logo, talvez não tivesse outra
oportunidade de rever o pai, que estava muito doente. O velho já estava próximo dos 70 e
o coração cada vez mais fraco. Nos últimos tempos passou insistentemente a reclamar a
A mãe nunca disse nas cartas, na verdade ele só descobriu depois que voltou,
mas o pai foi morrendo aos poucos. Cada ano que passava sem a presença do filho era
mais um pedaço seu que morria. Foi um processo lento e doloroso. Se soubesse disso,
talvez nem tivesse voltado. Era mais um fardo a carregar. Agora, se sentia culpado por
todo o sofrimento do pai. Os outros três irmãos casaram e tiveram filhos. Apesar de tudo,
nem mesmos os netos conseguiam arrancar muitos sorrisos do velho, pelo menos não
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Sua chegada foi um misto de alegria e transtorno. Alegria do pai, que finalmente,
depois de 15 anos podia abraçar novamente o filho querido. Transtorno para os irmãos,
que nunca esqueceram a loucura feita e muito menos deixaram de culpá-lo pelo estado
do pai. Foram momentos confusos. Quando voltou ao Brasil foi trabalhar em São Paulo.
Os nove anos de Europa serviram para algo. Vinha trabalhar numa multinacional, que
possuía uma representação no país. Procurava sempre estar no Rio para ver os pais,
mas evitava o encontro com os irmãos. Não durou muito, nem o problema nem o pai, que
morreu um ano depois de sua volta, confirmando a previsão dos desconsolados irmãos, o
pai só esperara sua volta para morrer. Não teria feito isso por mais ninguém.
Não era só com os irmãos que evitava encontrar. Quando voltou descobriu que
Guta havia se casado há três anos. Já estava beirando os trinta quando decidiu. Houve
quem jurasse que esperou, em vão, por quatro anos, desde a abertura política, pela sua
A mãe também não durou muito. Menos de dois anos depois, foi atrás do pai, que
para ela não deveria estar se virando bem no céu sozinho. Depois do enterro da mãe
manteve distância do Rio. Não tinha mais nada que o prendesse à cidade, pelo menos
assim pensava na época. E, de mais a mais, não suportava o olhar acusatório dos irmãos.
Não esperou nem a partilha dos bens. Deixou com o primo Pedro Paulo uma procuração,
na qual abria mão de todos os seus direitos em nome dos sobrinhos e voltou para São
Paulo. Depois do de 1988, só voltaria à Cidade Maravilhosa em 1997, mesmo assim por
ninguém melhor do que ele para gerenciá-lo. De nada adiantaram os pedidos para ficar
em São Paulo. Foi obrigado a deixar a garoa paulistana e voltar ao Rio, desta vez para
ficar. Não avisou aos irmãos que voltara. Só Pedro Paulo ficou sabendo de seu retorno,
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Em 1998, com a ajuda do primo, conseguiu rever alguns amigos da época de
sem se despedir de ninguém. Mais uma vez foi obrigado a fazer o que tanto detestava, se
explicar. Não queria fugir de seu passado, não era isso. Fez o que deveria ter feito na
época. Se voltasse no tempo, faria tudo de novo. Existem certas experiências na vida que
só vivemos uma vez, e por mais desagradável que sejam, precisamos vivê-las, não há
Agora, contudo, tinha uma vantagem. Só faltava se explicar para Guta e não
precisaria mais dar explicações para ninguém. Basta. E, com um pouco de sorte, talvez
nem precisasse se explicar com ela. Afinal de contas, agora já era uma mulher casada,
com seus 44 anos. Deveria ser mãe, família bem estruturada. Com toda a certeza não
Pedro Paulo cumpriu a promessa e nunca revelou sua volta aos outros primos.
Àquela altura, Zé Luiz tinha ciência que seus irmãos sabiam que ele voltara ao Rio.
Encenação uma bela peça. Ele fingia que não voltara e os irmãos fingiam que não sabiam
O reveillon de 1999 trouxe uma surpresa. Pedro Paulo veio lhe contar a novidade.
Guta estava separada há três meses, o marido fora viver com uma jovem. Custou a
acreditar na história. O estado etílico do primo contribuiu muito para isso. Naquela virada
de ano, tudo o que podia fazer era dormir, esperar que o novo dia trouxesse de volta a
sobriedade de Pedro Paulo, para que esse confirmasse ou não a história contada no calor
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Mesmo com uma baita ressaca, Pedro Paulo confirmou a versão da noite passada.
Mas do que isso, conseguiu com uma amiga em comum, a que o colocou a par do
acontecimento, o telefone de Guta. Uma história comprida. Era amigo da família desde a
infância. Moravam na mesma rua, brincavam juntos, gostaria de revê-la. Não foi difícil
para Pedro Paulo conseguir o pequeno pedaço de papel que agora passava, com o senso
do dever cumprido, a Zé Luiz. O olhar dizia ao primo “Hay que endurecer, pero sin jamais
perder la ternura”. Zé Luiz entendeu o olhar do primo. No fundo concordava com ele, mas
não sabia se a hora seria a mais apropriada. Levou cinco meses para se decidir a discar
anos, é difícil saber o que está se passando na cabeça das pessoas. A conversa foi
rápida e formal. Ficou o convite para que ele fosse visitá-la no próximo sábado a noite.
Era exatamente para isso que ele se preparava nesse momento. Quando olhou o
relógio, já passava das sete horas. Por uma hora e meia ficara sentado no sofá pensando,
revendo sua trajetória. Agora, provavelmente iria encerrar o único capítulo que ficara em
CAPÍTULO II – O telefonema
O telefonema pegou-a de surpresa. Havia algum tempo que o telefone não mais
tocava em casa. Logo após a separação, os amigos ligavam insistentemente, mais para
saber como estava passando. Agora, as ligações rareavam. Morava perto dos pais, logo
esperar que várias pessoas estivessem do outro lado da linha, menos Zé Luiz.
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Para ser sincera, não sabia se queria falar com ele, ou mesmo voltar a vê-lo. Eram
muitas mágoas a serem apagadas. Como perdoar o namorado que fugira naquela tarde,
29 anos atrás, justo após aquele momento tão mágico. E como perdoar o homem que,
sabia exatamente o que ocorrera com ele e o que provocara o seu sumiço, mas esperava
Realmente, era muito difícil esquecer. Ninguém nunca soube o que sofreu quando
Zé Luiz desapareceu naquele distante 1970. Namoravam há algum tempo e Guta, mesmo
contrariando o padrão da época, tomou uma decisão corajosa. Amava Zé Luiz e queria
ficar ele para sempre. Carregava consigo a sensação de que a recíproca era verdadeira.
Sem dúvida, uma decisão muito difícil naquela época, principalmente, para uma
jovem de 16 anos. Mas nada importava, estava decidida e ponto final. Tinha certeza que
Zé Luiz estaria com ela. Quando chegou a notícia do primo morto e os pais saíram em
pânico, Guta ficou em casa. Um vazio invadiu-a. Não podia compreender e aceitar as
atitudes de pessoas que se matavam em nome de uma tal revolução que, na verdade, ela
não compreendia bem. A única coisa que entendia era que o primo havia sido trucidado e
preocupar com o que ocorrera, pior do que isso, pelos fragmentos de conversa que
capturou do pai e da mãe, a polícia escondia algo. Como compreender uma situação
Luiz chegou, só queria ficar em seus braços e chorar, e foi o que fez. Chorou o quanto
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Os corpos abraçados e as lágrimas descendo foram invadindo sua alma. Uma
primo, sentia, com intensidade, a presença de Zé Luiz. Não seria uma situação sórdida?
Aqueles sentimentos que brotavam enquanto o corpo do primo, frio, aguardava a hora de
partir definitivamente.
Não, não podia se sentir culpada por isso. Nada tinha a ver com a morte do primo,
pelo contrário, gostava dele e preferia que estivesse vivo, mas não concordava com a
Por mais que lamentasse, deixou a morte do primo de lado. Agora seriam apenas
ela e Zé Luiz. Naquela fração de segundos do abraço decidiu que era chegada a hora.
a até seus seios. O toque foi mágico, sentiu uma onda de calor percorrendo todo o seu
corpo. Veio da ponta do pé subindo, cada vez com maior intensidade, até passar pela
nuca, atingindo o cérebro, fazendo-a perder o sentido do mundo. Tinha fornecido a senha
para Zé Luiz. Daquele momento em diante não foi preciso dizer mais nenhuma palavra.
Com cuidado e carinho os dois se despiram. Guta procurava aproveitar cada instante, que
para ela era único. Prestava atenção nos detalhes do corpo do namorado e no seu
Quando sentiu Zé Luiz dentro de seu corpo, então, um horizonte abriu-se a sua
frente, os olhos umedeceram. O ritmo frenético do vai e vem do amor foi aumentando,
assim como crescia sua sensação de liberdade. Zé Luiz, com todo o carinho, procurava
descobrir, cada vez mais, seu corpo. Sentia o namorado cada vez mais próximo, mais
dentro. Ela pôde perceber, apesar da loucura do momento, que era chegada a hora. De
repente, aconteceu. Guta sentiu que as portas do amor se abriam para ela, na medida
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Naquele momento, o mundo parara de girar. Não havia mais morte, mais violência,
mais ditadura, mais revolução. Só havia amor. Na seqüência, ficaram imóveis por alguns
ritmo, o vai e vem do amor. Novamente pôde sentir o amor explodindo e inundando todo o
seu corpo. Permaneceram abraçados e imóveis, felizmente, pois suas pernas tremiam,
não sabia se teria condições de levantar. Era uma tremedeira deliciosa, mas era uma
distante. Mas, tudo não passava de impressão. Ela mesma se sentia confusa. Tudo o que
acabara de acontecer era uma grande mistura de sentimentos. Diante de tudo, só tinha
certeza de uma coisa: amava Zé Luiz, era o homem de sua vida e queria ficar com ele
para sempre.
O que veio depois, até hoje é difícil explicar. Pelo menos no que diz respeito aos
sentimentos, a confusão foi geral. No dia seguinte, Zé Luiz não apareceu, nem deu sinal
de vida. Guta não entendeu o sumiço do namorado, mas preferiu atribuí-lo ao nervosismo
pelo que haviam feito, percebera isso quando terminaram de se amar. Quando, no
mesmo dia, à noite, foi procurada pela mãe de Zé Luiz, desconfiou que algo mais sério
estava acontecendo. Zé Luiz saíra de casa muito cedo, levando consigo algumas peças
de roupa, o que já era um fato estranho. Não voltou mais para casa nem deu notícias.
Isso nunca ocorrera antes. Meio dia havia se passado sem que ninguém visse Zé Luiz.
Em casa, na escola, a namorada, ninguém sabia de nada. Foi uma noite de terror.
como aquele, a situação era preocupante. Poderia ter sido confundido com algum
terrorista e ter acabado como seu primo. Mas, afinal, ainda não havia motivo para pensar
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Dois dias se passaram, e nada. Os pais de Zé Luiz entraram em desespero. Já
haviam feito de tudo para tentar localizar o filho, sem nenhum resultado. Mal dormiam.
namorado. Rezava dia e noite para que ele voltasse são e salvo. Não queria saber o que
tinha acontecido, só queria poder abraçá-lo e beijá-lo novamente, sentir seu corpo
colocado ao seu. Não, ele logo voltaria e a situação toda seria esclarecida. Passara-se
uma semana e Guta não perdia as esperanças. Tudo tinha que ter uma explicação. Fazia
anotações incessantes no diário que, àquela altura, era seu grande confidente. Eram
páginas e mais páginas falando de Zé Luiz, de seu amor e de toda aquela confusão. Tudo
anotado naquele diário que, mal sabia naquele momento, a acompanharia por muitos e
muitos anos.
dia de sumiço. Um colega da escola, que também andava meio sumido, fez chegar às
mãos dos pais de Zé Luiz um bilhete. Nele tudo passava a fazer sentido. Pedia desculpas
pela maneira como fizera aquilo, mas era a forma mais segura de deixar a vida normal e
revolucionário. Foi uma verdadeira bomba. Todos ficaram atordoados. E ficaram muito
mais quando surgiu um policial para fazer perguntas a todos, queria saber tudo da vida de
Zé Luiz. Como não poderia deixar de ser, Guta também foi procurada. O policial alto,
magro, com olhos escuros e frios fez-lhe um monte do perguntas. Nada sabia que
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Foi um golpe duro de agüentar. Ainda pensava naquela tarde, os dois juntos, o
Óbvio que, àquela altura já sabia o que iria fazer. Então, por que não lhe contou? Buscou
quando voltasse a encontrá-lo poderia exigir a resposta. Sim, isso teria todo o direito de
denunciam o tempo de vida do mesmo. Começa a folheá-lo. Sem dúvida, aquele diário é
informações que podia sobre as atividades clandestinas durante a ditadura. Mas não era
tarefa muito fácil. Naquela época não bastava acordar, abrir o jornal e buscar as notícias
encobertos. Quando havia notícia a ser divulgada, era que mais um terrorista tinha sido
morto em confronto com a polícia. Era sempre a mesma história. Um sanguinário bandido
atacava os policiais que, em legítima defesa, e sem alternativa, eram obrigados a matá-lo,
Temia, a cada minuto, que a notícia fatal chegasse. Felizmente isso nunca aconteceu. Os
anos foram passando. Ficou sabendo que Zé Luiz fugira do país. Chile, Cuba e depois
Europa. Ainda estava magoada pela forma como fora abandonada, mas preferia saber
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Aos poucos, Guta foi retomando sua vida. A escola, os amigos. Não tinha outra
alternativa. E, no fundo, era o que desejava. A ferida aberta foi muito profunda, ainda
demoraria muito tempo para cicatrizar, se isso algum dia viesse a ocorrer. Guta procurava
se mostrar forte, não falava mais no namorado, nem da revolução. Se dedicava muito aos
estudos. Mas, nas horas vagas, sem que ninguém soubesse, buscava informações de Zé
Luiz.
Terminou o segundo grau e foi para a faculdade. Na época, o comum ainda era
que uma moça na sua idade, 19 anos, esperasse por um bom casamento. Mas Guta nem
Tornou-se uma boa advogada, com um bom emprego. Isso quando surgiu a
Abertura, que veio abrir também velhas feridas. Com a distensão política, os exilados
começaram a voltar ao país. Voltou a pensar em Zé Luiz. Será que ele também voltará?
Sabia que estava bem na Europa, pois nunca deixou de falar com os pais dele. Sempre
final de década trouxe de volta todo o sofrimento que marcou o início dos anos 70.
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Mas, sua expectativa foi frustrada. Zé Luiz não voltou e, segundo lhe informou a
mãe dele, não sabia quando retornaria ao Brasil. Àquela época, Guta iniciara um namoro
com um advogado que trabalhava com ela no escritório. Foram colegas de faculdade e
ele se interessara por ela desde a época de universitário. Desiludida com o fato de que Zé
Luiz não voltaria, mesmo com a Abertura, ela decidiu investir em seu romance. Quatro
anos depois estava casada. A união durou treze anos. Durante todo esse período, não
conseguiu muitas notícias de Zé Luiz. Os contatos com a família dele foram rareando.
Mesmo assim, ficou sabendo que ele retornara ao Brasil, em 1985. Novamente uma
decepção. Ele foi direto morar em São Paulo, pouco vinha ao Rio, somente para ver os
pais. Àquela altura, não queria nada especial afinal de contas, era uma mulher casada.
Queria apenas ouvir de sua boca o relato completo do que lhe acontecera desde aquela
tarde.
Sabia que isso seria muito difícil. Com a morte do pai, Zé Luiz passou a vir menos
ao Rio, quando a mãe também se foi, desapareceu. Não falava com os irmãos, ela sabia
da história e então, sumiu de vez. Agora, nem notícias tinha mais. E não tinha tempo para
se ocupar com isso. Precisava cuidar da carreira, que ia bem, e do casamento, que ia
mal. Não adiantou tentar levar adiante aquela situação. Os dois, ela e o marido,
Sua vida profissional tinha ido muito mais longe do que poderia ter imaginado. Era
pessoal fora uma grande confusão, iniciada aos 16 anos, naquela tarde e com o que se
mais uma vingança, quando soube que Zé Luiz não voltaria ao Brasil. Agora, o divórcio,
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Depois de tudo isso, quando achou que já tinha vivido todos os dramas amorosos
que merecia, veio o telefonema. Era Zé Luiz, queria revê-la. Não conseguiu ser nada além
de cordial. Por que somente depois de 29 anos a procurava? Não, isso não era justo.
Primeiro não quis voltar quando pode, dez anos atrás. Quando voltou, procurou todo
mundo, os pais, parentes, até alguns amigos, menos ela. Definitivamente não queria ser
nada além de cordial. Na verdade, só aceitou o encontro porque precisava ouvir, da boca
daquele que havia sido seu único e grande amor o relato dos momentos que sucederam
aquela tarde já longínqua de 1970. Queria ouvir, provavelmente lhe dizer uns bons
Precisava exorcizar de uma vez por todas esse fantasma de seu passado. Fechou
o caderno amarelado, colocando-o sobre a mesa. Foi ao espelho que ficava próximo à
mesa de jantar e encarou-o, sem piscar. Pensava no que faria e diria quando a
frente a frente, como da última vez. Foi um momento que valeu por uma eternidade.
Nenhum dos dois sabia exatamente o que dizer. Ficaram em pé, um encarando o outro.
De um lado Zé Luiz sentiu que não havia muito o que explicar. Por sua vez, Guta
haviam perdido todo esse tempo, um tempo que não voltaria mais. Então, para que gastar
mais do precioso tempo em explicações. Não, definitivamente nenhum dos dois queria
explicações.
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Sem dizer palavra se abraçaram e, lentamente, foram se despindo. Já não havia a
pressa da primeira vez. Depois de alguns minutos estavam na cama, repetindo um ritual
interrompido há quase três décadas. Só que, desta vez haveria um amanhã, ambos
sabiam. Tudo havia ficado para trás, menos os dois, que viviam aquele presente, de olho
no futuro.
O toque dos corpos fez com que sentissem que na vida ainda existem algumas
PEEEEEEEEEEEEEEEEEEM!
O barulho era infernal, aliás, diariamente ele era obrigado a enfrentar esse
aquela gigantesca massa que, ao toque de sua alvorada vai despertando e rapidamente
economia de mercado. Afinal, para que serve esse imenso contingente de mão-de-obra
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Voltando ao despertador, dia após dia, o barulhento e irritante oponente se
colocava entre ele e o sono, um tremendo estraga prazer. Mas, não há outro jeito. São
quatro horas da manhã, alta madrugada para os que podem permanecer na cama
manter funcionando o sistema, quatro horas já é dia, pelo menos é hora de se colocar de
pé e iniciar a jornada.
Talvez seja o dia mais detestado da semana. É o dia em que todos são obrigados a voltar
ao trabalho, depois de curtir o final de semana, nada pior do que essa rotina, ainda mais
para quem é obrigado a acordar tão cedo. Se fosse filho de pais ricos, poderia estar
É preciso reunir forças para enfrentar mais uma dura semana de trabalho e
estudo. Aos 21 anos Marcinho, como Márcio Luiz é conhecido, tenta ter uma vida igual a
maioria dos jovens da sua idade. Filho de uma família pobre da Baixada Fluminense,
região que durante anos carregou a fama de um dos lugares mais violentos do Brasil,
Marcinho começou a trabalhar aos 12 anos, ajudando o pai, pedreiro, nas obras. Carregar
baldes de areia e sacos de cimento foram sua rotina durante alguns anos.
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Como toda criança de sua origem, teve muitas dificuldades para estudar. Na
localidade onde mora, lição fácil só a que é oferecida diariamente pelos traficantes e pela
única maneira de voar na Baixada. Depois o pessoal vai fazendo carreira vai virando
soldado, segurança, gerente e, quem sabe um dia, chefão. Isso, é claro, para os que não
ficam pelo meio do caminho, um encontro marcado com a morte. Já dos segundos, é
melhor manter distância. Afinal, para a polícia negro e pobre são sinônimos de bandido, e,
Marcinho nunca quis se encontrar com a morte, pelo menos não dessa maneira.
Sabe que todos morrem um dia, mas sonha com uma morte mais digna, assim como com
Por isso não se importa, levanta às quatro, mesmo no inverno. Em julho o inverno
costuma castigar a cidade. Aí, levantar é muito pior. Com toda a certeza não há nenhum
termômetro por perto, se houvesse, estaria marcando 17 graus, o que, para o carioca, é
“frio de rachar”. No banheiro humilde, cômodo que fica no quintal, as paredes lisas de
cimento aumentam ainda mais o frio, ele se prepara para mais um dia de luta. A água
gelada, o chuveiro elétrico está queimado, dói nos ossos, mas ajuda a despertar. Depois
do banho come um pedaço de pão do dia anterior enquanto se veste. Não pretende
acordar a mãe, que trabalha duro, ou melhor sempre trabalhou duro para sustentar os
cinco filhos, principalmente depois que o marido foi morto, já passados seis anos. Uma
briga num boteco foi defender um amigo, todos já haviam bebido o bastante ou mais do
que isso, encontrou no caminho uma faca afiada que lhe perfurou o intestino. Desde esse
dia Marcinho prometeu para si mesmo que jamais voltaria a pisar num boteco.
Já são 4h 35 min, o jovem já está pronto para sair. Tem que estar na cidade antes
das 7 horas para abrir o escritório, limpar tudo, preparar o café e esperar que os demais
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O ônibus que vai pegar passa às 5. Em lugares distantes do centro da cidade é
assim, o ônibus tem hora para passar, ou melhor, para começar a passar quando o dia se
inicia para os que moram longe. Se perder o das 5, terá que esperar mais meia hora, o
que pode lhe custar um atraso, falta gravíssima para o seu patrão. No local em que
Marcinho mora não há ônibus direto para o centro da cidade, por isso ele precisa pegar o
das 5 para o centro de Nova Iguaçu, de onde pegará outro para a cidade.
Marcinho sai para o ponto, o frio é intenso. Mas o que importa, ou melhor, quem se
importa, principalmente quando pode se permanecer na cama, debaixo das cobertas. Mas
não há tempo para isso, lá vem o ônibus e ele vai iniciar sua jornada. A condução não
está vazia. Assim como ele, muitos outros na região são obrigados a madrugar.
realidade dessas pessoas o ditado soa falso. Para muitos não há sequer fruto para ser
colhido. Talvez fosse melhor dizer que “o pássaro madrugador consegue manter o seu
emprego”.
viagem para observar aquelas pessoas que, como ele, já iniciaram seu dia de trabalho.
São, em sua maior parte, caras tristes, cansadas e sem esperança. Alguns já estão
vivendo essa rotina há muitos anos, 10, 15, 20, e vão se aposentar dentro dessa eterna
da magra aposentadoria concedida pelo Instituto. Sim, vai mudar a rotina, mas a sina vai
Alguns ainda sim persistem e encontram coragem para sorrir, talvez da própria
desgraça, talvez de algo mais forte e profundo, por saberem, bem no íntimo que, mesmo
com a vida que lhe oferecerem, não são capazes de tirar aquilo que têm de mais
precioso: a dignidade.
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No centro de Nova Iguaçu Marcinho toma o segundo ônibus, mais cheio do que o
primeiro, o que lhe obriga a viajar em pé. Sabe que dali por diante a condução só fará
encher, o que significa viajar apertado. Mudam algumas caras, mas as expressões são as
Não para Marcinho. Ele quer levar muito mais. Depois que terminar seu
expediente no trabalho vai direto para a escola. A vida dura atrasou os estudos, mas no
ano que vem estará terminando o segundo grau. Sonha com a faculdade, um bom
emprego, ajudar a mãe, seu grande objetivo e casar com Simone, sua namorada há três
anos.
Esteve com Simone até tarde da noite ontem, por isso levantar foi mais difícil, mas
ao mesmo tempo mais fácil. Quer que o dia passe logo, que a semana voe, para poder
vê-la novamente.
A difícil rotina de casa para o trabalho, do trabalho para a escola, da escola para
casa, não lhe deixa muito tempo para ver a namorada durante a semana. Ela é
companheira, compreende seu drama e procura sempre tornar as coisas mais fáceis para
ele. Não lhe exige presença física diária, mas aproveita todo o tempo disponível para
Juntos os dois vivem o sonho de ter uma família, uma vida decente, e por que
não? Afinal de contas também têm esse direito. Já traçaram o próprio destino, não é
assim que ensinam as novelas? Vamos tomar nosso destino nas próprias mãos. Simone
está terminando o normal, para o próximo ano começará a lecionar. Não será difícil
encontrar uma escola para trabalhar perto de casa, afinal só quem já mora na região é
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Quando concluir o segundo grau Marcinho espera conseguir algo melhor dentro da
firma ou em outra, quem sabe. Quando isso acontecer, poderão começar a construir a
própria casa. Vão levantar o próprio teto sobre a cabeça de Dona Maria da Conceição. Se
não há dinheiro para comprar uma casa, o jeito é crescer para cima, como todos fazem na
região. Tijolo por tijolo vão se erguendo os famosos “puxadinhos”. Os vizinhos se ajudam,
há muita solidariedade no local. Domingo invariavelmente é dia de virar uma lage, sinal
que a família vai crescer em breve. Se o dinheiro acabar, o que fazer, a obra terá que
esperar.
Pode até demorar, mas ela acaba. E aí, será a felicidade de ambos. Juntos para
O ônibus entra na Avenida Brasil, rio principal onde todos os demais desembocam
em direção ao centro. Tal qual um rio em época de chuva, a maior Avenida da cidade vai
vendo crescer o fluxo de veículos, até chegar o momento em que transborda numa
infinidade de carros, ônibus e caminhões. O dia timidamente vai surgindo. O frio é intenso.
A condução, lotada, agora se arrasta lentamente entre o mar de veículos, flutua. Mas isso
já não assusta ninguém. É uma rotina de anos e que vai piorando, conforme a cidade vai
Espremido contra o ferro do ônibus, não que precise estar bem seguro pois com o
arrastar do ônibus e a lotação esgotada do veículo será difícil cair, Marcinho continua
pensando na vida, na mãe que a esta hora já está levantando para ir buscar o pão que
será dividido entre os quatro irmãos, todos mais novos do que ele. Mulher que batalha e
sofre. Perdeu o marido para as estatísticas da violência, como muitas outras, mas não se
entrega, confia na vida, confia no filho que um dia lhe prometeu uma vida melhor e confia
em si mesma, pois, depois de tanto tempo nessa vida, já não há muito mais em que se
apegar, exceto naquele que é o único a ouvir todas as lamentações desse povo que
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Marcinho chega a cidade, olha o relógio que já marca 6 horas e 50 minutos. É
preciso correr para não se atrasar, pois o inimigo está lá, pendurado na parede,
esperando por ele. Implacável o relógio de ponto se ergue como um carrasco, ameaçador
emprego. E Marcinho não pode se dar ao luxo de correr esse risco, pois sabe o quanto
seu dinheiro é importante para Dona Conceição, para seus irmãos e para seus sonhos e
os de Simone.
o café e arrumou o escritório. Como todo dia de trabalho, espera os colegas com um
Às 9 já está na rua, fazendo entregas. Mais uma hora e irá para o banco, enfrentar
que resolveria todos os seus problemas, mas não dessa maneira. Para Marcinho o que
antiga da casa, que todo dia, sem falta, lhe traz um sanduíche. Sabe que Marcinho
almoça, mas depois disso, não tem mais dinheiro para comer. Se não colocar algo para
dentro antes de ir para o colégio, só poderá fazê-lo por volta da meia noite, quando
chegar em casa. Esse incentivo também é importante para ele, pois mostra-lhe que ainda
existem muitas pessoas boas no mundo, independente de raça, sexo, religião, idade ou
cor.
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O almoço é sempre corrido, há muito o que fazer e Marcinho procura economizar o
máximo que pode os tickets, pois sabe que cada um que sobrar ao final do mês será
recebido com festa em casa. Na parte da tarde, mais trabalho. Corre de um lado para o
outro, mais entregas, vai buscar um documento do outro lado da cidade, corre para
receber o pagamento em outra firma. Não anda, vai se desviando do povaréu pela cidade
lotada. A garoa complica tudo, faz com que a multidão abra os guarda chuvas. Então, é
preciso não só desviar da multidão, mas também de seus malditos protetores. Felizes os
Mais algumas horas e outra jornada de trabalho estará sendo vencida, assim tem
sido nos últimos quatro anos e assim será nos próximos sabe-se lá quantos. Mas, vale a
pena. Nesse ritmo a semana passa rápido e logo estará vivendo mais um fim de semana,
como tantos outros que vem e vão, nos braços de Simone, e é isso o que importa.
uma vez, carrasco derrotado em sua eterna vontade de nos flagrar, o tempo.
Agora, só falta a escola e depois, voltar para casa. Ao sair do escritório, bate
aquela vontade de ir para casa, tomar um banho e correr para ver Simone. Seria até
buscar o caminho do estudo, que, como diz a lenda, é o único que pode tirá-lo do mau
caminho.
A hora se arrasta, o cansaço bate forte. Marcinho luta com todas as forças,
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Sente-se em desvantagem em relação a muitos outros alunos. Alguns são como
ele, mas boa parte não. Estudam à noite, conforme eles mesmo dizem de “onda”. Querem
o dia para farrear e usam a noite, a escola, para paquerar. Os que como Marcinho estão
lutando contra o destino não têm tempo para esses luxos. Não têm tempo nem mesmo
para estudar a lição aprendida. Mas, mesmo assim, Marcinho e seus companheiros de
luta terminam o ano com notas melhores do que a dos “paqueradores”. A vida dura ajuda
Mas, não é hora de pensar mais nisso. A aula terminou, Marcinho venceu mais
uma etapa em sua vida. Agora, chegou a hora de ir para casa descansar, o repouso do
guerreiro. Não será um repouso longo. Até chegar em casa, tomar banho e comer alguma
coisa, afinal é preciso pois desde a hora do almoço, por volta das 12, está apenas com o
sanduíche de Dona Helena, que sempre é dado de coração, mas que tem efeito limitado,
pois depois de tantas horas é preciso colocar mais alguma coisa para dentro.
condução, que pegou no centro de Nova Iguaçu, no caminho inverso para voltar para
casa, é a lei da física, ou da vida. Marcinho sobe as ruas mal iluminadas, o vento frio corta
e machuca os ossos mal protegidos pelas poucas roupas que o dinheiro curto pode
comprar. Passa pela porta da casa de Simone. Casa humilde como a sua, em que já
futura vida em comum, assim como ele fará daqui a alguns minutos.
Mais duas esquinas e estará em casa. Poderá então matar a fome e se proteger
repente nada mais faz sentido, todo barulho cessa. O mundo começa a girar, cada vez
mais rápido, até que as imagens e luzes vão desaparecendo, como o vento que vem e
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Atingido por uma bala, perdida até aquele momento, e que acaba de encontrar o
seu destino, Marcinho se depara com a realidade tão comum em seu dia a dia. Não há
reação, não há o que fazer. O corpo de Marcinho tomba na rua sem asfalto, enquanto
que luta para sobreviver, afinal é mais um bandidinho, que diferença faz. Assim como não
fará diferença saber quem foi o responsável pela bala perdida. São tantas, todos os dias,
que acabam virando estatística. É melhor jogar a culpa na bala que sempre tem um
Num último esforço, Marcinho vira a cabeça para o lado, os coturnos se foram e
nenhum outro pé tem a coragem de aparecer na rua para ver o que aconteceu. A luz, que
já era fraca, agora vai e volta, a cada ida, demora mais e mais para voltar. Ao virar a
cabeça para o lado, tudo o que Marcinho consegue avistar é um letreiro, cuja luz se
apaga.
Triste lugar para marcar um encontro, principalmente com uma bala perdida.
É o fim. Pelo menos para Marcinho. Mas a vida continua, pois muitos outros
Marcinhos estão com seus encontros marcados e a história, na verdade, não tem fim.
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Ana Clara desceu correndo a escada que leva do seu quarto para o andar inferior
da casa. A vontade de chegar à porta da frente era tanta que nem se deu ao trabalho de
vestir a roupa primeiro. Veio colocando-a pelo caminho. Tropeçando na calça enquanto
Mas afinal, para que tanta correria? Podia jurar que ouvira barulho na porta. Só
poderia ser ele. Depois de tanto tempo voltara. Fazia uma semana que não o via, mas,
Nada, tudo fruto de sua imaginação, não havia ninguém à porta. Frustrada com a
preferido dele. Ao lado da garrafa, Ana Clara desprezou o recorte de jornal que repousava
Ainda era muito jovem, dezoito anos, e passeava no shopping com Denise, sua
irmã mais velha, aliás como sempre faziam. As duas adoravam aquele shopping, sempre
cheio de jovens. As lojas, sempre cheias de novidades, todas que o dinheiro pudesse
Mas, aquela tarde não seria igual às outras. Sábado de sol, o verão fervia lá fora.
manhã e parte da tarde na praia, Copacabana. Aquele era o lugar, o sol brilhava diferente
em Copacabana, praia mais do que democrática, que sempre abrigou todas as “tribos”,
Por volta das duas saíram da praia, como costumavam fazer todos os sábados.
Até ai nenhuma novidade. Casa, banho, almoço, shopping. Um ritual que marcava o dia
mais importante da semana, pois, depois ainda viria a boate, o restaurante ou outro lugar
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Ana Clara sabia que seria mais um sábado divertido, como era a maioria dos seus
sábados. Mas não podia imaginar que justamente aquele seria um sábado diferente, que
perseguia insistentemente Ana Clara e não as duas. Chamou a atenção da irmã, que até
aquele momento não tomara conhecimento da tal máquina. Avisada pela irmã, Ana Clara,
pela primeira vez, olhou para a lente. Aquela lente, escura à distância, foi pouco a pouco
se revelando para ela. Na verdade, não foi se revelando, mas sim se escondendo, para
dar lugar aos olhos por trás, já que na verdade eram eles que a perseguiam, escondidos
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Jamais esqueceria aqueles olhos. Não poderia imaginar, também, que voltaria a
impiedosa, contra Ana Clara. Uma, duas, três, quatro, dezenas de vezes. Depois de
alguns minutos, cansada do bombardeio, ela saiu de cena, foi descansar de seu trabalho,
enquanto os olhos voltavam, ou melhor, iam de encontro a Ana Clara e sua irmã. Alguns
acompanhantes esquecidas, a irmã e a máquina. A primeira ainda pode fugir, foi procurar
a turma, afinal não pretendia passar o resto do sábado “escoltando” os dois que,
entretidos com a conversa que ficava cada vez mais íntima, haviam esquecido
completamente de sua existência. Já a máquina, coitada, nada podia fazer. Foi obrigada a
ficar até ao final, relegada a um segundo plano. Logo ela que era a companheira
inseparável, sendo trocada sem a menor cerimônia por uma estranha e ainda sendo
obrigada a presenciar tudo, quieta, submissa, sem poder voltar a disparar contra a rival.
Naquele sábado Ana Clara mudou seu programa. Denise e a turma tiveram que
seguir para a noitada sem ela, que preferiu ficar com seu novo amigo. Ninguém entendeu
bem o que acontecia. Logo ela, que era sempre a mais animada de todos, que gostava de
se divertir e que ignorava todos os rapazes. Gostava de sair e se divertir junto com eles,
mas não namorá-los, ah! isso não. Para isso, confidenciava à irmã, os rapazes eram
dois deles. A história não passou de uma semana em ambos os casos. Os jovens a
perseguiam, sentiam ciúmes, afinal Ana Clara era, sem dúvida, uma bela garota. Na praia
então, fora obrigada a contornar algumas situações delicadas para evitar que a ciumeira
dos rapazes terminasse em pancadaria. Apesar disso, não deixava de se divertir com eles
e às custas deles.
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Mas, naquele dia, não quis seguir com a turma. Preferiu ficar e conhecer um pouco
mais aquele homem que era bem mais velho, já caminhava para a casa dos quarenta. Os
cabelos grisalhos já sobressaiam, assim como as marcas que o tempo vai deixando no
rosto daqueles que têm o prazer de deitar e acordar para um novo dia por muitos anos.
Apesar disso, queria conhecer mais aquele homem que, sentado a sua frente, dizia-se
fotógrafo. Deu-lhe um cartão. Como toda boa jovem, lia muitas revistas de moda e já
observara antes aquele nome em algumas delas. Era realmente fotógrafo, trabalhava com
moda e estava no shopping fazendo um ensaio que seria publicado em uma revista na
semana seguinte. Depois de encerrar seu expediente, decidiu ficar pelo shopping,
gostava de pegar alguns instantâneos das pessoas sem que elas percebessem. Foi num
desses momentos, quando a lente apontou na direção de Ana Clara que tudo aconteceu.
era seu nome, aparecia sempre. As vezes ficavam um período sem se ver. De vez em
quando Eduardo precisava viajar. América do Sul, Caribe, Europa, o trabalho assim
exigia.
melhor, entender, entenderam sim, mas se recusavam a aceitar, essa era a verdade. Mas
isso pouco importava para eles. Juntos eram invencíveis, tudo podiam. Por insistência de
Eduardo, Ana Clara fez um ensaio fotográfico, somente para ele. Tinha uma coleção de
verão que seria lançada no início do próximo ano, caminhavam para o segundo de união,
Decidiram viajar, Ana Clara já se dispusera a colaborar. Iria posar com as roupas.
Na verdade eram shorts, camisetas e biquínis. Escolheram uma praia no litoral do Rio de
Janeiro. Haviam acabado de sair do inverno, baixa estação, logo teriam tempo e
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Assim foi. Durante uma semana fizeram mais de 200 fotos. Além da praia, a
cidade também era bela, daria um bom cenário. Antes das seis já estavam na praia,
aproveitavam o nascer do sol. E lá permaneceram por boa parte do dia. Junto com eles, a
máquina e sua lente. Lente que se mantinha silenciosa e cúmplice, desde o primeiro dia.
Fora, sem dúvida, relegada a um segundo plano, mas tinha a sua vingança. Somente
através dela Eduardo conseguia reproduzir a imagem que considerava perfeita. Foram
centenas as vezes que ele, também submisso, pediu que ela reproduzisse aquele retrato
divino, a imagem de Ana Clara. A cúmplice, quieta, repetia os quadros, não dizia nada,
nem precisava pois já tinha a sua vingança. Ele podia ter a mulher para ele, mais somente
ela, lente, podia reproduzi-la. Por isso já não ligava mais quando era deixada
Primeiro Eduardo não precisou de muito esforço para montar seu trabalho. Bastou
juntar algumas fotos de Ana Clara e pronto, a campanha foi um tremendo sucesso, que
levou os dois ao segundo acontecimento. A partir daquela campanha, Ana Clara nunca
mais deixou de posar, também profissionalmente, para o companheiro. Nos oito anos que
se seguiram os três, os dois e a lente, fizeram muito sucesso. Vira e mexe e lá estavam
comprar uma casa, lá naquela praia de onde haviam zarpado para o sucesso. Se
registraram imagens que ficaram para a memória e que hoje habitam as paredes da casa.
Ana Clara se levanta do sofá, vai novamente ao bar e torna a encher o copo,
aquele mesmo copo que Eduardo tanto gostava e que mantinha sobre o bar, alerta,
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pronto a servi-lo sempre que fosse solicitado. Pega o copo cheio e se depara novamente
com o recorte de jornal, que estava ali há uma semana. Eduardo voara para a Europa, a
Ana Clara volta para o sofá e para suas lembranças. Nunca ficara tanto tempo
sem Eduardo desde aquele sábado em que se conheceram. Sempre viajava com ele. Na
maior parte do tempo trabalhavam juntos, uniam o útil ao agradável. Mas desta vez não
pode ir. Ficou por recomendação médica. Não havia nada grave com ela, mas passara
mal alguns dias antes. No sábado anterior a viagem, foi parar as pressas no hospital.
Aquela confusão revelou uma surpresa para os dois. O susto foi substituído pela alegria,
afinal aquele amor ficaria marcado para sempre, e não seria através da lente da máquina.
Mas de outra forma, depois de nove meses o registro definitivo. Já haviam se passado
dez anos desde aquele sábado no shopping até que a notícia chegou trazendo ainda mais
Passado o susto decidiram que Ana Clara não viajaria. Seria melhor ficar na casa
de praia repousando. Foi substituída na última hora por outra modelo, que seguiria com a
equipe para o Mediterrâneo, enquanto Ana Clara ia para o refúgio da praia, com sua irmã,
que sempre convivera com os quatro, Ana Clara, Eduardo, a lente e a casa. Lá
esperariam Eduardo voltar, o que deveria demorar pouco mais de dez dias, se o tempo
ajudasse e o trabalho corresse normalmente. Não era tão ruim assim, pois dez dias
passam rápido. Agora, então, teriam que passar. Não tiveram tempo de ficar a sós desde
que receberam a notícia de que a família estava crescendo. Agora seriam os cinco, Ana
A irmã havia saído cedo, fora à cidade resolver alguns assuntos para ela.
Enquanto isso, esperava. Mais uma dose de whisky? Melhor não, seu estado não
recomendava o álcool. Havia se levantado. Olha a garrafa. Ao lado o recorte de jornal que
ali repousava desde o sábado anterior. Vai até a varanda e senta na cadeira. Sempre
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deixavam duas na varanda pois gostavam de sentar ali para conversar. Senta, desta vez
sozinha, e observa o mar, que pertencia a eles dois, a praia pertencia a eles. Naquele
refúgio eram inatingíveis, ninguém poderia alcançá-los ali. Assim tinha sido, durante os
últimos seis anos. Todo verão a casa os recebia, os três, Ana Clara, Eduardo e a lente.
hoje flutuavam pelas paredes da casa, também cúmplice, como a lente, dos momentos
tórridos de paixão, em que se entregavam sem limite, sem pudor, sem preocupações.
Eram só eles no mundo e mais ninguém. Só eles, vigiados pelos dois cúmplices, a lente e
espetáculo, um avant premier para o espetáculo principal, que seria protagonizado pelos
dois, no quarto, no segundo andar, local preferido para os momentos íntimos que
desfrutavam.
Ana Clara não resiste às lembranças e volta para dentro de casa e sobe as
escadas correndo. No quarto observa tudo ao seu redor. A janela de onde também
observavam o mar. A cama, que centenas de vezes os recebeu de braços abertos, pronta
a acolher aqueles dois que vinham trocar amor com tanta intensidade. As paredes com as
marcas registradas pela lente. Imagens que tornam o ambiente ainda mais íntimo e
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Desta vez Ana Clara volta para a sala lentamente. Já não tem a pressa de antes.
Sabe que Eduardo não estará lá embaixo batendo à porta. Desce e volta para o sofá.
Torna a levantar e se dirige, uma vez mais, ao copo, que repousa sobre o bar, vazio. Ao
lado a garrafa, cheia. A combinação perfeita. Ana Clara enche o copo. Por que quer tanto
beber esse whisky? Na verdade, não consegue entender. Lá fora a tarde já se apresentou
a algum tempo. O sol, majestoso, brilha, trazendo os raios que tanto já marcaram seus
cabelos para que Eduardo e a lente os registrassem. Apesar, disso, não sente vontade de
sair, prefere ficar dentro de casa. Gostaria de entender porque. Olha o copo, que já está
pela metade. Dirige-se, mais uma vez, ao bar. Pega a garrafa e torna a encher o copo. Se
Eduardo a visse usando aquele copo. Nunca o fizera, pois o copo era somente dele, o
Depois de encher o copo, devolve a garrafa. Para diante do recorte de jornal, que
continua sobre o bar. Pega o recorte e volta ao sofá. Depois de mais um gole, cria
coragem e encara aquele jornal, que está ali aguardando-a desde o domingo anterior. A
matéria falava sobre um desastre aéreo ocorrido na costa italiana. Uma falha mecânica
provocara o pouso forçado, mas a manobra não fora bem sucedida e a aeronave foi de
Ana Clara levantou, voltando ao bar. Devolve a ele o recorte de jornal. Olha para o
objeto de vidro que segura com uma das mãos e entende porque não quer mais sair de
dentro daquela casa e porque desejava tanto beber o whisky naquele copo. Entendeu que
os dois, Eduardo e a lente, não mais voltariam. Agora, estavam separados pela primeira e
última vez.
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