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DEIXA QUE EU CONTO:

HISTÓRIAS DA VIDA REAL

Carlos Alberto Carvalho


O ENTERRO DO TITIO - Conto 1
CAPÍTULO I – A Notícia

Arlindo Gomes, bom sujeito. Classe média alta, morador de Copacabana. Acordou

tranqüilo naquele sábado. Tudo o que tinha a fazer era tomar um banho, saborear o café,

ler o jornal e depois curtir uma volta pelo calçadão, como costumava fazer sempre que a

rotina e os clientes permitiam.

E era exatamente o que pretendia fazer naquele dia. Primeiro o banho, morno

como gostava, para refrescar a cabeça e relaxar os músculos. Estava tão descansado

que demorou quase meia hora debaixo do chuveiro. Depois, um delicioso café,

acompanhado, como não poderia deixar de ser, da leitura do jornal. Nada mais relaxante.

Arlindo abriu a janela do apartamento, na rua Barata Ribeiro, próximo à Santa Clara e

admirou a paisagem, as ruas do bairro, as pessoas que caminhavam, enfim tudo que a

vista pudesse alcançar, afinal de contas merecia aproveitar. O apartamento fora

comprado com sacrifício, pois não viera de um berço de ouro, não tivera família rica.

Foram anos de luta para se estabelecer como profissional e deixar o subúrbio. Nascera e

fora criado em Madureira, apesar de procurar ocultar o fato dos amigos feitos depois que

se mudou para Copacabana. O passado era passado e lá deveria permanecer.

Sim, ele Arlindo conseguira. Aos 56 anos era um advogado bem sucedido, possuía

um escritório no Centro da Cidade, duas salas que dividia com o sócio, Paulo Nonato,

amigo dos tempos de faculdade, também feita com sacrifício, lá na longínqua Piedade.

Tempos duros. Morar em Madureira, trabalhar no Centro e estudar na Piedade, à noite.

Mas, todo o seu sacrifício fora recompensado.

Agora era hora de pensar em sua caminhada pela praia. O sol estava brilhando, o

verão, recém chegado, prometia. Aquele sábado seria daqueles, na base do Rio 40 graus.

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Arlindo acabou de ler o jornal, arrumou a mesa do café, pois morar sozinho tinha essas

desvantagens e Dona Neuza, a Sra. que limpava a casa e cuidava de sua roupa, só viria

na terça-feira. Arlindo era um solteirão convicto, nunca pensara seriamente em se casar.

Tirou a mesa, trocou de roupa, colocando bermuda, tênis e camiseta. Estava pronto, ou

melhor, quase, faltava o boné e os óculos escuros. Agora sim, lá ia ele.

Trimmmmmmm. Barulho infernal. Quando Arlindo estava girando a chave da porta,

tocou o telefone. Quem pode ser no sábado, às 9 da manhã. Só um chato para atrapalhar

sua caminhada. Pensou duas, três vezes se deveria atender ou não. Como o aparelho

tocasse com irritante insistência, finalmente cedeu:

- Arlindo falando.

Foi tudo o que conseguiu dizer. Depois limitou-se a ouvir, quieto, entre um

resmungo e outro, a voz que, do outro lado da linha, trazia, em prantos, a notícia:

- Arlindo. É Maria das Dores, sua prima, estou ligando para te avisar que o papai

faleceu esta madrugada. O enterro vai ser logo mais, deve ser por volta das quatro da

tarde, lá no Caju. Você vai? É engraçado como as coisas acontecem. Ele falou muito em

você nos últimos dias, estava com saudades, pensou até em te ligar. Acho que estava

adivinhando o que estava para acontecer. Pobrezinho...

Antes que Arlindo pudesse falar qualquer coisa que o livrasse da situação, Das

Dores prosseguiu, entre soluços, em seu discurso mórbido.

- Primo, você não imagina a nossa tristeza, fomos todos pegos de surpresa. Tão

forte o papai, e de repente, vai-se embora desta maneira. Ainda não consigo acreditar.

- Como aconteceu? Ele estava doente? – perguntou Arlindo, muito mais por

educação do que por qualquer outra coisa.

- Não, Arlindo. Ele até estava com problemas de saúde. Tinha que fazer dieta,

cortar a bebida, essas coisas. Então ele dava umas fugidinhas de vez em quando, para

beber escondido da gente.

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Fugidinhas. Essa era boa, e ele não conhecia o velho Tio. Devia era sair sempre

para encher a cara, ainda mais com a proibição médica, afinal de contas contrariar os

outros sempre fora seu esporte preferido.

- Ontem ele saiu sem que ninguém visse – falou a prima, voltando a prender a

atenção de Arlindo. – Até as duas da manhã não havia aparecido, quando bateram lá em

casa para dar a notícia, ele exagerara na bebida e, ao atravessar a rua para pegar a

condução para voltar para casa, foi atropelado pelo ônibus que iria tomar. Morreu na hora.

Você não faz idéia de como mamãe está arrasada. Afinal de contas foram 50 anos juntos.

E para tudo terminar assim, com ele estirado no meio da rua, embaixo de um ônibus. – a

essa altura Maria das Dores lutava com todas as forças para conter a emoção. – Minha

mãe gostaria muito de vê-lo lá no enterro, acho que isso ajudaria a consolá-la um pouco,

afinal de contas, já faz muitos anos que não o vemos.

- Tá bom, eu estarei lá mais tarde. Ok, tchau.

Arlindo foi rápido. Aproveitou a pausa da prima para pegar fôlego e encerrar a

conversa. Não tinha jeito. Se esperasse, das Dores ficaria pelo menos mais uma hora

choramingando ao telefone. Por hora era melhor dizer que estaria no velório para terminar

o assunto. Agora teria tempo para decidir o que fazer.

Arlindo trancou a porta, que havia deixado entreaberta para atender ao telefone e

sentou-se no sofá. Não podia acreditar. Um dia lindo como aquele e teria que ir para o

cemitério. E o pior de tudo, para enterrar seu velho Tio Ariovaldo. Mais uma do Ariovaldo,

morrer bêbado, atropelado por uma condução. Ficou imaginando o que teria passado a

pobre Tia, com o marido morto na rua, tendo que aguardar a remoção do corpo para o

Instituto Médico Legal. Nem na hora de morrer ele dera uma trégua para a mulher. Ele já

estava morto, e nem deve ter sentido nada, estava alcoolizado, anestesiado, deitado na

rua, já sem poder participar da movimentação que ocorria em torno dele. Já a Tia

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Ernestina deve ter passado uma noite de horror. Para ele, Arlindo, chegava a ser um

insulto. Até na hora de morrer o velho tio resolvera atrapalhar sua vida.

CAPÍTULO II – Recordações

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Ainda sentado no sofá, Arlindo lembrava, agora, o dia em que chegou com uma

namorada em casa, para apresentar à família. Menina que ele paquerara por um bom

tempo, estudavam juntos, sua primeira grande paixão. Já fazia muito tempo. Quantos

anos? Quarenta aproximadamente.

Na época, ficou por perto da menina até conseguir uma chance para conhecê-la.

Primeiro um cineminha, depois uma praia, programa difícil para quem morava no

subúrbio, com muito poucos ônibus para a zona Sul, mas valia a pena. Enfim, começaram

a namorar e Arlindo, empolgado, resolveu levá-la a Madureira. Mas, para seu azar,

escolheu o dia errado. Um almoço de domingo, família reunida, em pleno verão carioca,

para comer uma rabada. Como não poderia deixar de ser, regada a muita cerveja e

cachaça.

O pior é que nem era chegado à rabada, muito gordurosa e pesada para o seu

paladar. Tudo bem, pela Alice, esse era o seu nome, valia a pena qualquer sacrifício. Só

esqueceu que a família estaria reunida e a combinação bebida e família era quase

sempre explosiva, pelo menos no caso da sua, era dinamite pura.

O sol brilhava, e como brilhava, com toda a força quando chegou à Vila em que

morava, na Avenida Edgar Romero, uma das principais ruas do bairro acompanhado de

Alice. Já passava do meio dia e o calor se fazia insuportável. Saíra cedo para buscá-la,

afinal eram dois ônibus até a Tijuca, onde ela morava, e mais dois no retorno.

No caminho para Madureira, meio sem jeito, tentou prevenir Alice sobre as festas

de sua família. Era sempre a mesma coisa. Muita bebida, muita alegria, até que o álcool

começasse a fazer efeito e, quando o mesmo já exercera sua influência sobre a maioria,

era um Deus nos acuda, e rolava a baixaria. Era tia criticando comportamento de

sobrinha, irmão falando de irmão, avó aos prantos, prima se oferecendo para primo, o

“couro comia”, para Arlindo o fim do mundo. Alice, solícita, dizia entender essas coisas, na

sua família também rolavam umas baixarias.

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Bem, ele tinha feito sua parte, ao menos tentara, agora era entregar na mão de

Deus e contar com a sorte, torcer para que todos estivessem num dia calmo, ou seja,

ficaria a espera de um milagre. Só esquecera de um pequeno detalhe, de seu Tio

Ariovaldo. Preveniu Alice de tudo e de todos, mas faltou falar do Tio Ariovaldo. Esse

talvez tenha sido seu grande erro em relação à jovem.

Dito e feito. Quando chegaram, por volta das doze e trinta, Ariovaldo já tinha

“tomado todas”. Como prevenira a mãe logo que chegaram. Estava desde às 10 horas

perambulando pela Vila, bebendo sem parar. Isso na Vila, que ficasse bem explicado,

pois segundo a tia, estava no botequim desde às 8 horas. Quando chegaram, Ariovaldo

estava sentado, os olhos vermelhos, injetados, falava alto, já enrolando a língua, como

sempre acontecia quando se excedia no álcool, o que era freqüente. Vendo Arlindo, quis

levantar da cadeira, desistiu depois da terceira tentativa frustrada. Mesmo assim,

Ariovaldo não se deu por vencido. Aos berros, como era normal falar quando estava

bêbado, exigiu ser apresentado à moça que acompanhava o sobrinho. Sem ter como fugir

da situação, Arlindo se aproximou com Alice. Ariovaldo agarrou a mão da menina

enquanto soltava uma gargalhada:

- Há, ha! Ainda bem que você apareceu minha filha. Nós já estávamos

preocupados com esse menino... – falava enquanto puxava a moça, já que não largara-

lhe a mão, que a esta altura estava toda molhada pelas cuspidas de Ariovaldo que

enrolava cada vez mais a língua para falar – ...sabe como é... garoto estudioso, quieto,

que sai pouco de casa, não gosta de ficar andando aqui pela Vila com os outros rapazes,

tem vergonha de morar em Madureira... - falou baixando o tom de voz, como se contasse

um segredo. - ... todo mundo já estava achando que ele era viado.

Foi um corre, corre. Percebendo o constrangimento dos jovens, todo mundo veio

em socorro de Arlindo. Mas de pouco adiantou a ajuda, o estrago já estava

irremediavelmente feito. Ariovaldo estava particularmente inspirado naquele fatídico

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domingo e não parou durante todo o almoço. Parecia empenhado em embaraçar Arlindo.

Foram piadas baixas, arrotos durante a refeição, cuspidas a cada palavra mal

pronunciada, tudo a que tinha direito numa tarde quente e interminável, como muitas

outras que já haviam ocorrido e como outras tantas que ainda estariam por vir.

O efeito imediato desse almoço dominical foi que, já no dia seguinte, Alice o

evitara. Podia ler nos seus olhos a vergonha e o desprezo que sentia por sua família. E

Alice não foi o único caso, o mais grave, com certeza, pois apaixonara-se pela moça e

curtiria uma bela dor de cotovelo ao vê-la ao lado de outro colega de escola. O sortudo

deveria ter, com toda a certeza, uma família mais equilibrada do que a sua. Pelo menos

não deveria ter um tio como o seu.

Muitas outras vezes as reuniões de família terminaram em confusão, uma delas

terminou na polícia, com o registro de queixa por tentativa de agressão de Ariovaldo

contra a mulher. No dia seguinte, todos com a cabeça fria, e sóbrios, a acusação foi

retirada. O pior era que o pedido para que tudo fosse encerrado imediatamente foi da

própria Tia Ernestina, o que era mais revoltante. A mulher apanhava e ainda retirava a

queixa contra o marido, vai entender esse pessoal.

Num outro episódio, Arlindo é que quase foi fichado na Delegacia por tentativa de

roubo. Ao buscar o Tio no botequim, num final de tarde, qual não foi a sua surpresa

quando Ariovaldo desandou a berrar que o jovem estava tentando roubar seu carro.

Como era um botequim um pouco mais afastado de casa, em que a maioria não conhecia

Ariovaldo, Arlindo foi seguro pelos freqüentadores do bar, chegando a levar uns cascudos

até a chegada da polícia, quando a confusão foi desfeita. A Delegacia localizada na

Avenida Edgar Romero fica bem próxima à Vila em que eles moravam e os policiais já

conheciam de longe os desatinos de Ariovaldo. Situação resolvida, mas a vergonha de

ver alguém gritando, chamando-o de ladrão, não sairia mais da cabeça do pobre Arlindo.

E como não poderia deixar de ser, a culpa sempre era do Ariovaldo.

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Ainda sentado no sofá Arlindo visitava, mentalmente, seu álbum de família.

Compreendia perfeitamente porque a lembrança do tio lhe era tão desagradável.

Ela trazia à tona um passado que ele sempre procurou esquecer, que não queria que, de

forma alguma fizesse parte de seu presente. Apesar de ser seu tio, Ariovaldo era tudo o

que Arlindo sempre abominara em um homem, mal-educado, beberrão, abusado, irritante,

e muitos outros adjetivos que poderia ficar imaginando, mas que no momento não valeria

a pena. Recostou-se no sofá e fechou os olhos. Quem sabe se, junto com o tio,

conseguiria enterrar de vez esse passado. Talvez fosse esse justamente o seu problema.

A aversão que tinha de que as pessoas soubessem que viera dos confins de Madureira

talvez estivesse diretamente ligada à figura de Ariovaldo. Ele representava tudo de ruim

que lhe acontecera na vida, não participara da parte boa.

Em alguns momentos chegou a sentir vergonha desse sentimento, mas não podia

evitá-lo, era mais forte do que ele. Mesmo sabendo que sua mãe, onde quer que ela

estivesse, e ela estava em outro plano a observá-lo, era o que acredita, estaria magoada,

pois, apesar de tudo, adorava o irmão que ajudara a criar e sempre acabava por perdoá-

lo.

No momento, pouco podia fazer. A solução era encarar a realidade, a sua

realidade, e resolver de uma vez por todas a questão com a própria família e o passado.

Pensando no velho Ariovaldo duro, sem vida, deitado no caixão, depois de ter sido

atropelado por um ônibus, e na pobre Tia Ernestina, que a essa altura deveria estar aos

prantos com mais essa que lhe aprontara o marido, desistiu da caminhada, ia fazer hora e

esperar para ir ao Cemitério do Caju “conferir” o enterro do tio. Decidiu chegar ao

cemitério logo após a hora do almoço, por volta das 13 horas, para ver se sua tia

precisava de alguma coisa. Apesar da distância que manteve da família todos esses

anos, principalmente após a morte de sua mãe, não podia deixar de reconhecer que

sentia um carinho especial por sua tia. Iria mais por ela do que por ele.

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Pelo menos, pensou, essa seria a última do Ariovaldo, não havia mais

possibilidade do cidadão aprontar outra.

CAPÍTULO III – No Cemitério

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O calor estava insuportável, com certeza os termômetros deveriam estar

marcando mais de 40 graus, intuía Arlindo, apesar de não ter reparado em nenhum pelo

caminho. Passava um pouco das 13 horas quando chegou ao Caju. A grande

movimentação no cemitério parecia fazer aumentar o calor. “Parece que todo mundo

resolveu morrer hoje, que desgraça”, pensou ele enquanto estacionava o carro.

Todas as capelas estavam ocupadas, realmente, a impressão inicial era de que o

mundo estava ali reunido, no cemitério. Procurou a capela que sua prima indicara. Não

precisou de muito esforço para encontrá-la. Era logo a primeira à direita de quem entrava

no cemitério. E também não demorou a localizar os parentes. Já estavam todos lá, na

porta da capela. Ao vê-lo, a velha Tia Ernestina se arrastou em sua direção buscando seu

apoio, estava desconsolada, deu-lhe um longo e carinhoso abraço. Para Arlindo ela

parecia bem mais velha do que era, devia estar com um pouco mais de setenta, mas

parecia já ter passado dos noventa. Depois de gastar quase dez minutos cumprimentando

parentes e velhos conhecidos que não via há muitos e muitos anos, respirou fundo, tomou

coragem para entrar na capela e enfrentar pela última vez o velho Ariovaldo. Foi quando

recebeu a notícia, já estavam todos ali, para o enterro, menos o próprio, pois o corpo

ainda não havia chegado. “Já está o Ariovaldo aprontando mais uma das suas”, pensou

ele.

Segundo lhe informou Maria das Dores, parece que o IML estava cheio, final de

semana complicado. Durante a madrugada houvera um intenso tiroteio no Morro do

Juramento, próximo a Tomás Coelho. Foram três bandidos e dois policiais mortos. Os

corpos estavam no Instituto para autópsia e a movimentação por lá era intensa, isso

atrasou os trabalhos, mas estavam para chegar a qualquer momento dois corpos, o de

Ariovaldo e o de uma senhora, que seria velada na capela ao lado.

No momento, o que havia a fazer era sentar e esperar, e foi o que fez Arlindo.

Comprou um café e foi dar uma volta pelo cemitério. Naquela situação o melhor a fazer

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era dar uma volta ao redor, olhar as inscrições nos túmulos. Não era, com certeza, seu

passatempo predileto, mas era o mais adequado para a ocasião, melhor do que enfrentar

a choradeira dos parentes. E lá se foi Arlindo, a ler nomes e verificar a idade com que

cada infeliz havia passado desta para melhor.

CAPÍTULO IV – O Corpo

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Por volta das 13:30 horas chegou o carro do serviço funerário, com o corpo de

Ariovaldo. O caixão, fechado, foi levado direto para a capela. Até aí, nada demais. Era o

procedimento normal. Uma vez na capela, o caixão é aberto para que seja feita a

colocação das flores que cobrem o corpo do defunto. Procedimento padrão, não seria

diferente com um membro de sua família.

Foi nessa hora, em que os rapazes da funerária colocavam o féretro sobre a

bancada da capela, que Arlindo teve a convicção de que Ariovaldo ainda estava por

aprontar a última, apesar de já estar em pleno caminho para a vida eterna. Qual não foi a

surpresa de Arlindo, e de todos que estavam na capela, uma vez aberto o ataúde. O

corpo que ali se encontrava simplesmente não era de Ariovaldo. Na verdade, era de um

jovem, aparentando uns vinte e poucos anos, que tinha o rosto bastante deformado, difícil

saber o que havia acontecido com ele.

Foi um tremendo alvoroço. Um corre-corre. Os dois empregados da funerária

foram acuados dentro da capela, estavam vendo a hora de serem linchados pelos

parentes de Ariovaldo, e eles bem sabiam que não tinham culpa de nada. Receberam o

caixão já fechado e saíram rápido do IML para fugir da confusão que lá se formara desde

a madrugada com a chegada dos corpos dos bandidos e dos policiais mortos no confronto

no Morro do Juramento. O próprio Arlindo, apesar de carregar o sentimento de que o tio

aprontara mais uma com ele, não pôde deixar de se indignar. “Que falta de respeito para

com os mortos. Aonde já se viu trocar um corpo. Nem mesmo ele merecia tal castigo no

momento derradeiro da partida”.

Depois de alguns minutos de confusão, Arlindo tomou a frente da situação,

exigindo que os rapazes entrassem em contato com a funerária para saber o que havia

acontecido. Durante cerca de vinte minutos todos na capela não tiraram os olhos do

telefone celular que permanecia grudado ao ouvido de um dos jovens. Após muita

conversa, o rapaz desligou o telefone e pôs-se a esclarecer os fatos.

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- Bem. Parece que houve um equívoco na retirada do corpo do IML. – Isso era

óbvio, gritou um primo de Arlindo, avançando em direção ao empregado da funerária.

Novo início de tumulto. Contornada novamente a situação, o rapaz prosseguiu com sua

explicação. – Como eu estava dizendo os corpos foram trocados, eles já identificaram o

outro defunto, agora só é preciso fazer a troca.

Ótimo, pensou Arlindo. Tomara que esses dois façam logo a destroca dos corpos.

O jovem, que falara ao telefone com a funerária, dirigiu-se a Arlindo, que segundo lhe

pareceu era quem comandava a turma ali, pelo menos parecia ser o mais calmo e

sensato do grupo, além, é claro, de ter uma aparência de pessoa inteligente, daria para

conversar com ele. Explicou que eles iriam voltar à funerária para destrocar os papéis e

pegar o outro corpo e voltariam. Mas, segundo ele, seria necessário que alguém da

família os acompanhasse. Automaticamente, após o anúncio do jovem todos se voltaram

para Arlindo. Este sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Percebeu que todos

esperavam que ele assumisse para si tal encargo. Fez-se um silêncio constrangedor.

- Arlindo.............. – a voz da tia foi sumindo, fraca, desesperada e distante, mas

não o suficiente para escapar de sua audição. Arlindo sentiu como se o mundo o

observasse. O suor insistia em descer-lhe pela testa, a boca secou, sentiu uma angústia

profunda se apossar de todo o seu ser, sua mente fervilhava buscando uma saída para

aquela situação. Mas já não havia o que fazer. Resignou-se e seguiu os jovens que

carregavam o caixão de volta ao carro.

“Ariovaldo, seu desgraçado. Nem nessa hora você consegue livrar a minha cara.

Mas que implicância maldita. Gostaria que você ainda estivesse vivo para poder eu

mesmo matá-lo. Seria um enorme prazer. Depois parou um segundo e pensou que

deveria estar enlouquecendo, querer matar quem já estava morto, devia ser o calor a lhe

fazer mal”. Pensava ele enquanto entrava no carro da funerária e se sentava ao lado de

um defunto que ele sequer sabia quem era. E com certeza teria ficado muito feliz em

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ignorar a origem daquele sujeito, que forçosamente viajava ao seu lado. A princípio,

Arlindo sentiu-se angustiado com o corpo ali, bem a sua esquerda, dentro do carro. Aos

poucos, enquanto ouvia as bobagens que os dois jovens falavam à sua frente,

convenceu-se que, tirando ele, o defunto era a criatura mais sensata dentro daquele

carro, pelo menos permanecia de boca fechada. Chegou a achar que seu companheiro de

viagem mantinha-se calado em solidariedade a ele, diante daqueles dois imbecis que

conduziam o veículo, um tipo de solidariedade transcendental. Chegou mesmo a se

afeiçoar ao jovem, crendo que este merecia sorte melhor, ou será que na verdade era ele

quem merecia a falada sorte, pois, afinal, seu amigo não podia escutar as besteiras dos

dois, e ele não tinha como deixar de ouvi-las.

Ao chegarem à funerária, Arlindo pôde perceber que a confusão estava formada.

Havia uma quantidade enorme de pessoas à porta. Não foi difícil imaginar que se tratava

dos parentes de seu companheiro de viagem, o defunto. Mal estacionaram o carro, e o

jovem que dirigia o veículo levou um tapa no pé do ouvido de um mulato que deveria ter

uns dois metros de altura e era extremamente forte.

- Seu arrombado. Devolve o corpo do meu primo. – gritava enquanto arrancava

o sujeito pela janela do carro utilizando apenas uma das mãos.

Foi aquele alvoroço. Arlindo, a essa altura, sentia o suor espalhar-se por todo o

corpo, a camisa ensopada grudava nas costas. No meio do desespero, enquanto saltava

do carro, chegou a sentir inveja de seu amigo defunto. “Pelo menos ele está alheio a tudo

isso, se pudesse trocava de lugar com ele. Acho que o lugar mais tranqüilo aqui deve ser

trancado dentro do caixão”.

Quando criou coragem e levantou a cabeça pela primeira vez desde que havia

saído do carro, Arlindo deu de cara com um sujeito bem magro e baixo, mas que ele

rapidamente pôde perceber que era o manda chuva do pedaço. Ele passava pelos outros

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dando ordens. Bigode ralo, rosto fundo e com uma interminável coleção de cordões e

pulseiras, o rapaz se aproximou para perguntar:

- Quem é você? Não tem jeito de quem trabalha na funerária.

- Não, não trabalho, não – respondeu Arlindo, sentindo-se um idiota por repetir

tantas vezes o não. – Eu sou sobrinho da pessoa falecida por quem este jovem foi

trocado. – continuou falando enquanto apontava para seu amigo defunto dentro do carro.

Após ouvir a explicação vinda de Arlindo, o magro cochichou ao ouvido de outro

sujeito, mais alto e forte, que estava sempre ao lado dele, parecia seu segurança. Tão

logo ouviu o magro falar, o outro homem se virou e tratou de acalmar o pessoal. Enquanto

isso, Bigode, sim, era assim que Arlindo tinha vontade de chamá-lo, pelo menos

mentalmente, pegou-o pelo braço e o retirou da multidão. Deram alguns passos antes de

Bigode parar. Acendeu um cigarro, oferecendo antes a Arlindo, que recusou. Depois de

examiná-lo atentamente por alguns instantes, finalmente Bigode começou a falar:

- O que aconteceu foi o seguinte, tio. – “Tio, não!”, pensou Arlindo. Não queria

mais ouvir essa palavra, mas, prudentemente, manteve-se quieto, ouvindo o que tinha o

jovem a dizer. – Parece que tivemos um pequeno problema. Uma troca de defuntos. Nós

ficamos com o seu e você ficou com o nosso. Depois nós cuidamos do desastrado que

provocou esta merda toda. Agora tá na hora de desfazer o “trampo”. A família do meu

amigo está nervosa. Sabe “comé”, o pessoal fica agitado, já tá todo mundo puto da vida

com a parada. Nosso “cumpadre” foi queimado pelos “home”, a polícia, sacou. –

completou, percebendo que Arlindo estava tendo uma certa dificuldade com o vocabulário

empregado. – Então, é melhor resolver tudo logo de uma vez, antes que o pessoal perca

a calma, porque aí vai ficar difícil de controlar a galera.

- Por mim está ótimo assim. – emendou rápido Arlindo. – Seu amigo já está

aqui, é só você me devolver meu tio e está tudo resolvido.

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- É isso aí. Gostei do teu papo, mandou bem tio. Só tem um porém. – Arlindo

esperou pelo que poderia vir. – Quando nós vimos lá o corpo do coroa, desculpe, do seu

tio, achamos que era onda dos “home”, que tinham segurado o corpo do Tião e tinham

mandado um qualquer pra gente de sacanagem. Então viemos procurar por ele, mas

deixamos o cidadão, lá no cemitério, como garantia, até recuperarmos nosso “cumpadre”.

Então, só precisamos ir até lá em Inhaúma para destrocar os dois e tá feito o negócio.

Caralho. Gritou para si mesmo Arlindo, perdendo totalmente a fleuma, tomando

cuidado para que seu interlocutor não percebesse seu estado de espírito. O que fazer?

Cemitério de Inhaúma. Essa história não estava cheirando bem. Pelo jeito seu amigo

defunto tinha tido problemas com a polícia e por isso morreu do jeito que morreu.

Mantiveram Ariovaldo como refém, até que o corpo do Tião fosse devolvido. A barra

deveria estar mais do que pesada lá pelos lados de Inhaúma. Mas já não tinha escolha.

- Tá bom! Só preciso ir ao banheiro e podemos ir até lá, destrocar os dois. – falou

Arlindo para Bigode.

- Vai na fé, tio. Estamos esperando aqui fora. Enquanto isso vou conversar com

os bacanas que trocaram nossos “cumpadres”, chegou a hora deles explicarem direitinho

essa história. – sentenciou Bigode que se dirigiu aos quatro funcionários da funerária, que

a essa altura, já eram reféns, tanto os dois que vieram com Arlindo, como os dois que

haviam se dirigido para Inhaúma com Ariovaldo.

Ao entrar na funerária, Arlindo deparou-se com a jovem atendente, cujos olhos

pareciam saltar das órbitas, tão dilatados que se encontravam. O local estava recheado

de gente, as mulheres que haviam vindo com o grupo para procurar Tião tinham entrado

para fugir do calor. Arlindo, já desesperado, perguntou pelo banheiro.

- A, a, a..... última porta ao final do corredor, a sua esquerda. – gaguejou a

atendente.

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Arlindo dirigiu-se ao banheiro o mais rápido que suas pernas permitiam. Foi, sem

dúvida, a mijada mais tensa de toda sua vida. Mesmo com toda vontade que sentia,

custou para conseguir urinar. O medo e o desespero bloqueavam sua vontade. Foi uma

verdadeira agonia. Finalmente, conseguiu. Uma fantástica sensação de alívio invadiu seu

corpo. Por um segundo chegou a esquecer a louca situação que vivenciava. Depois,

enquanto lavava as mãos, ouviu um soluço, bem baixinho. Fechou a torneira e manteve o

rosto apontado para o espelho, aproveitando para vasculhar o banheiro com os olhos,

enquanto se concentrava, tentando localizar de onde vinha o barulho. Novo soluço.

Percebeu que a porta de um dos mijadores estava fechada. Aproximou-se bem devagar,

pé ante pé. Empurrou a porta, estava fechada. Entrou no espaço ao lado, subiu no vaso

para olhar por sobre a divisória. Viu um jovem, sentado no vaso. Quando este,

percebendo que era observado, olhou para cima, Arlindo pôde vislumbrar o medo em

seus olhos.

- Calma garoto. Está tudo bem. Pode abrir a porta.

Atendendo a sua sugestão o jovem abriu, bem lentamente, a porta, pondo a

cabeça para fora.

- Já acabou a confusão? Eles já foram embora? – perguntou com os olhos

arregalados.

- Não. Eles ainda estão lá fora. – apressou-se em responder Arlindo.

- Então deixa eu ficar por aqui, quietinho. – falou o jovem enquanto voltava a

fechar a porta.

- Calma – disse Arlindo enquanto segurava a porta com a mão, evitando que o

garoto voltasse a fechá-la. – Não há mais ninguém aqui dentro, só nós dois.

- Mesmo assim – emendou rapidamente o jovem – prefiro ficar aqui até que eles

desapareçam. Pelo visto você não conhece esses caras.

- O que tem eles? – perguntou Arlindo.

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- O que tem eles? – repetiu o garoto aumentando o tom de voz, como se não

acreditasse no que acabara de ouvir. – De que mundo você veio coroa. Esses caras

mandam no tráfico lá no Morro do Juramento, moro lá perto, conheço os malandros. O

cara que mataram era um dos gerentes, aquilo lá tá um inferno e neguinho ainda troca o

corpo do cara. Tá de sacanagem comigo? Fazem uma merda dessas, os caras se

emputecem, já viu, o bicho pega geral. Hoje foi um inferno para conseguir sair de casa e

vir trabalhar, quem saiu de casa logo cedo, saiu. Depois que os caras desceram o Morro,

ninguém mais pôde ir trabalhar, a ordem foi fechar tudo e ninguém sair de casa, eu vou é

dormir na casa de um amigo, não volto pra lá hoje nem que me pague. – falava o jovem,

atropelando as palavras, tentando conter o nervosismo. – Deixa eu ficar aqui na minha,

pianinho, estou muito novo pra morrer, tio. – finalizou a conversa fechando novamente a

porta.

Lá vem mais um desses caras com essa história de tio. Tio é a puta que os pariu.

Deixa pra lá, pensou Arlindo, a questão agora é voltar lá para fora e resolver essa

confusão de uma vez por todas.

- Como é seu nome? – perguntou ele ao garoto.

- Marcos. Marquinho.

- Não se preocupe Marquinho, logo, logo eles estarão indo embora. – disse

Arlindo enquanto batia na porta. Virou as costas, respirou fundo e saiu para enfrentar os

bandidos e também Ariovaldo.

Arlindo acreditava na reencarnação, em vida após a morte, tinha uma forte

simpatia pelo espiritismo. Naquele momento, prestes a sair daquele banheiro, jurou para

si mesmo. Se voltasse a encontrar com Ariovaldo em outra encarnação, esqueceria que

ele um dia ele havia sido seu tio e o encheria de porrada.

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CAPÍTULO V – Rumo a Inhaúma

Arlindo saiu do banheiro. Passando pela recepção da funerária, notou que os

ânimos estavam mais serenados. A cor havia, inclusive, voltado à face da atendente. Do

lado de fora, Bigode, encostado no carro da funerária, aguardava Arlindo, enquanto

fumava mais um cigarro. “Não admira que seja tão magro, o desgraçado não para de

fumar”, pensou ele enquanto se encaminhava em direção ao carro.

- Vamos nessa, tio. – falou Bigode assim que Arlindo se aproximou. – Você vem

comigo no carro da funerária, nós levamos o Tião, o resto acompanha.

- E os rapazes da funerária? – perguntou Arlindo curioso.

- Eles vão com o meu pessoal na Kombi. Eles e os outros dois do outro carro.

Não quero vacilão levando meu “cumprade” não. Vai que esses manés aprontam mais

uma e somem com ele de novo. Ai vou ficar mesmo brabo com eles e sei não, arranco os

culhões de um. – respondeu Bigode, entre uma baforada e outra.

E lá foram eles em direção a Inhaúma. Dois carros de funerária, duas kombis e

mais um carro. Parecia mesmo um cortejo fúnebre, só que sem um dos defuntos.

Arlindo ficou pensando na possibilidade de serem parados durante o trajeto pela

polícia, ou pior, se caíssem em uma blitz. Melhor nem pensar, pois a essa altura não

havia nada tão ruim que não pudesse ser piorado.

- Olha Tio, lamento pela confusão, mas não tivemos culpa nenhuma. Foram

esses bostas da funerária que enrolaram tudo. A gente só queria poder enterrar o Tião em

paz. Chorar nosso morto, mas até isso é complicado pra pobre. É por isso que a gente

joga pesado com os “home”. São todos uns filhos da puta. Aterrorizam mais a favela do

que nós, pode crer. – Bigode disparou a falar e Arlindo achou melhor não interrompê-lo.

Só balançava a cabeça afirmativamente. Na verdade estava mais preocupado com o

trajeto, em observar se havia algum movimento estranho a cada esquina que o carro

21
dobrava seguido pela procissão. Esperava encontrar um carro da polícia após cada curva

feita. E viagenzinha longa, que nunca acabava.

- Chegam atirando – continuou Bigode - metendo o pé nas portas dos barracos,

dando cascudo em moleque e porrada em homem, isso quando não metem logo um teco

na cabeça do infeliz. Depois colocam a culpa na gente. Gritam pra imprensa que foi coisa

dos traficantes. E vou lhe dizer uma: traficante é o caralho, eu sou é comerciante. Me

sinto, na verdade, um agente de turismo, faço a galera viajar. Bandido é quem invade a

favela pra tirar nosso dinheiro, ganho com tanto suor. Sabia que é foda vender droga, tio.

Dá um puta trabalho. Receber o material, empacotar, separar, definir preço, estabelecer

os pontos de venda, fiscalizar a molecada pra não tomar volta na parada, comprar mais

droga, e lá vai tudo de novo. E os sacanas dizendo que somos ladrões, vagabundos.

Vagabundos são eles, eu trabalho pra cacete. E ainda tenho que enterrar meu

“cumpadre” que eles mataram. Foram cinco tiros tio, três na cara. Sabe o que é isso?

Chega o neguinho e mete cinco balas na tua carcaça, sem piscar. E os putos são sádicos,

matam rindo. Mas deixa estar que o que é deles está guardado, os que fizeram isso com

o Tião vão ter o mesmo destino, vão comer capim pela raiz. Vai dar o rabo, mas é pra

minhoca. O primeiro que a aparecer na minha frente tá fudido.

A eloqüência de Bigode só fez aumentar o desespero de Arlindo. O suor voltava a

descer pela testa, a encharcar-lhe a camisa, a boca voltou a secar. E se a polícia

estivesse esperando por eles no cemitério. Quando algum traficante é enterrado a polícia

costuma monitorar o enterro para evitar manifestação da comunidade. Já vira muitos

casos parecidos na televisão. Mas agora a coisa era bem diferente. Se houvesse

confronto o que ele faria. E se os policiais fossem logo prendendo Bigode. Como

explicaria sua presença ali. Com toda a certeza iria apanhar um bocado antes de

conseguir esclarecer a situação. A essa altura já não tinha muitas opções, ou melhor, não

tinha nenhuma. A não ser colocar toda essa situação nas mãos de Deus e aguardar. A

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confusão estava armada e só cabia a ele, Arlindo, rezar, e muito. Mais uma vez sentiu

inveja de seu amigo defunto. Tião é que era um cara de sorte, pois não corria o risco de

morrer uma segunda vez, bastava-lhe a primeira, que por sinal fora muito bem

encomendada. Quando prestou a atenção novamente, o carro já estava saindo da Linha

Amarela. Agora estavam bem próximos. O suor aumentava, sentia-se ensopado, as

pernas não atendiam a uma ordem do cérebro. Arlindo teve vontade de pular do carro,

mesmo que estivesse em movimento, pelo menos abreviaria o sofrimento. Mas nada fez,

além de suar e suar e suar. Sentia-se uma torneira com defeito, que não parava de

pingar.

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Capítulo VI - O Bicho tá pegando

Chegaram finalmente ao cemitério de Inhaúma. Cada minuto agora valia uma

eternidade, para Arlindo era como se alguém estivesse prendendo os ponteiros do

relógio, a hora não passava. Para seu alívio não notou a presença da polícia. Com sorte,

pensou, poderia pegar o corpo de Ariovaldo e sair dali antes que eles chegassem e a

confusão se iniciasse.

Entraram no cemitério. Enquanto os ”subordinados” pegavam o corpo de Tião para

efetuar a troca, Arlindo seguia Bigode. Podia ser bem medroso, e na verdade o era, mas

burro, não. Diante daquela situação percebera que o melhor a fazer era ficar o mais

próximo possível de Bigode, afinal de contas, com toda certeza ele era o líder do grupo, o

manda-chuva, pelo menos ali todos o respeitavam e seguiam suas ordens. Ficando ao

seu lado, raciocinou Arlindo, estaria relativamente seguro, pelo menos bem mais do que

se ficasse andando por ali, sozinho. Notou que os motoristas haviam saído da Kombi e

aguardavam, “escoltados” pelos “subordinados” de Bigode. Mesmo à distância, pôde

reparar que um deles, o motorista que tinha ido com ele para a funerária, o mais falante,

tinha um grande hematoma bem próximo ao olho esquerdo. “Aquele ali arcou com as

conseqüências por esta troca de defuntos, alguém tinha que ser punido. Espero que fique

por ai, não quero ser cruel, mas ainda preciso deles para voltar para o cemitério”. Pensou

Arlindo, enquanto tratava de seguir Bigode até a capela onde se encontrava o corpo.

- É o seu tio? – perguntou ele, apontando para o corpo dentro do caixão.

Arlindo aproximou-se e pode reconhecer imediatamente Ariovaldo. Estava

tranqüilo, alheio a toda aquela confusão. Uma expressão tranqüila cobria o rosto de seu

velho Tio. Parecia saber o que estava acontecendo e se divertir com isso, o que era bem

seu estilo. Sentiu vontade de chutar o traseiro daquele defunto até que ele levantasse.

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O cemitério estava cheio, “Tião deveria ser muito respeitado na comunidade local”,

pensou ele. Bigode deu ordem para que o caixão fosse fechado e colocado no carro para

que Arlindo pudesse levá-lo de volta.

- Ai está o seu defunto. – disse ele para Arlindo. – Você leva o seu, nós ficamos

com o nosso e está tudo resolvido.

O caixão de Ariovaldo foi retirado da capela para que Tião a ocupasse. Quatro

jovens carregaram Ariovaldo para o carro da funerária enquanto Arlindo se despedia de

Bigode.

- Lamento toda essa confusão. – disse o advogado enquanto apertava a mão do

traficante.

- Esquenta não tio, essas coisas acontecem. Esses viados não sabem trabalhar

direito e arrumam essas merdas, mas tudo terminou bem. Vai com Deus.

Os dois acabavam de se despedir quando chegou perto deles um garoto, que não

deveria ter mais do que uns treze anos. Estava esbaforido pois viera correndo.

- Chefe, chefe, os “home” tão ai fora, tem pelo menos umas seis viaturas, o

bicho tá pegando. Vamos abrir fogo nos filhos da puta? – perguntou o garoto enquanto

enfiava a mão na cintura, por baixo da camisa, segurando a pistola.

- Calma. Ninguém faz nada sem a minha ordem. – gritou ele enquanto se virava

para Arlindo. – Você espera aqui tio, é melhor não se meter nessa história, volte lá pra

capela e me espere.

Não precisava falar, Arlindo nem cogitou a possibilidade de sair naquele momento.

Enquanto a polícia estivesse ali não pretendia deixar aquele cemitério de forma alguma.

Voltou para a capela, era melhor ficar velando Tião do que se envolver naquele confronto.

Apesar de manter a cabeça baixa, pôde perceber que as poucas pessoas que tinham

ficado na capela o observavam, o que era bem normal, já que não passava de um

estranho. A grande maioria tinha ido lá para fora, no fundo queriam era enfrentar a polícia,

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queriam vingar Tião. Olhou o relógio, dezessete horas. Agora é que seriam elas, primeiro

teria que esperar o confronto terminar para sair, e isso poderia levar horas se a polícia

não invadisse o cemitério. Se isso acontecesse nem iria ter tempo de explicar a sua

presença – pensava ele - iria apanhar direto, se não acontecesse algo pior. Mesmo que

conseguisse sair logo, seria impossível enterrar Ariovaldo naquele dia. Ainda seria preciso

velá-lo por toda a madrugada. Percebeu que, a essa altura, já nutria um pouco de ódio

pelo velho Ariovaldo. Mais uma que o velho lhe ficava devendo e, agora, não poderia mais

se vingar do velho tio. Como poderia ser possível que, mesmo depois de morto, uma

pessoa incomodasse tanto outra. Pois era exatamente dessa maneira que se sentia em

relação ao tio, extremamente incomodado.

Levantando um pouco a vista, Arlindo olhou para Tião. Por incrível que pudesse

parecer, continuava a sentir inveja do defunto. Era impressionante. O sujeito a sua frente,

deitado no caixão, era um “João-ninguém”. Um cara provavelmente sem instrução, um

traficantezinho de merda, mas ele invejava o sujeito. Ele, um advogado bem sucedido,

que havia vencido na vida e se livrado do próprio passado, estava ali, agora, em um

cemitério do subúrbio, olhando para um traficante deitado em seu caixão e com inveja

dele. Mas, continuou Arlindo com sua vã filosofia, será que ele realmente havia se livrado

de seu passado como pensava?

Fechou os olhos e pensou em Ariovaldo. Não, com certeza não se livrara do

próprio passado e, agora tinha certeza, jamais se livraria. Afinal de contas, era seu

passado, sua história, e isso ele nunca poderia mudar, por mais que tentasse. A história

de vida de um homem só pode ser escrita uma única vez, não há como apagá-la,

ninguém consegue voltar no tempo, andar para trás. É possível até modificá-la de um

determinado ponto em diante, mas apagá-la é impossível. O que é preciso é aprender a

conviver com ela, saber lidar com as próprias angústias, frustrações e entender que nada

pode ser tão ruim quando conseguimos tirar uma lição dos acontecimentos de nossa vida.

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Pensando desta forma, Arlindo chegou a sentir orgulho de seu passado. Bem,

orgulho, orgulho, não, ai também já era exagero. Na verdade estava vivenciando uma

sensação de alívio por se reencontrar com sua infância na calorenta Madureira, e sua

trajetória até chegar onde estava hoje. Chegou mesmo a sentir um pouco, não muito, mas

um pouco de carinho pelo velho Ariovaldo. Um sentimento que estava mais para

compaixão do que para carinho, avaliou melhor.

Bem, o que podia fazer agora por ele era esperar a confusão terminar e dar-lhe um

bom velório e um enterro digno, pois mesmo ele merecia isso no momento derradeiro. E

era isso que Arlindo estava disposto a fazer assim que voltasse ao Caju.

O calor continuava infernal, apesar da hora. Arlindo suava cada vez mais. Não se

lembrava de ter suado tanto na vida como naquele dia. Nem nas tardes calorentas de

Madureira, quando criança, suara tanto. Mas, ao mesmo tempo pôde perceber que o suor

era em conseqüência do calor e não de nervosismo. Por mais estranho que pudesse

parecer, estava tranqüilo naquele momento. Sentia-se alheio a toda confusão em sua

volta.

Apesar de estar alheio, teve que voltar a realidade quando sentiu uma leve

pancada no ombro. Voltou a abrir os olhos e deu de cara com Bigode. O traficante o olhou

e foi logo dizendo:

- O negócio é o seguinte, tio. Nossa parada com eles já está resolvida, eles vão

ficar lá fora e nós aqui dentro enterrando o Tião. Tudo mundo quieto na sua. Por hora vai

ficar por isso mesmo. Acerto as contas com eles depois, não quero banho de sangue

aqui. O problema é que eles ficaram desconfiados dessa história de troca de defuntos,

não estão acreditando na gente, abriram o caixão do seu tio e tudo, para confirmar se

havia um defunto lá dentro. Você vai ter que falar com eles para poder se liberar.

Agora Arlindo estava suando mais ainda e por conta do nervosismo. Tudo que não

queria era ficar frente a frente com os policiais. Isso, com certeza ele não merecia. Já

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tinha enfrentado os bandidos, agora teria que encarar a polícia? Mas percebeu que não

havia outra solução, era isso ou nada. E, afinal de contas, já tinha chegado até ali, não ia

desistir agora. E, por outro lado, se simplesmente se recusasse a sair, poderia trazer

problemas para Bigode e seu pessoal, e com certeza o traficante não iria ficar nem um

pouco satisfeito, pois as diferenças dele com a polícia estavam momentaneamente

resolvidas.

- Tudo bem, vamos lá. – Disse ele enquanto seguia o traficante.

- Eles só vão querer ver os seus documentos e fazer algumas perguntas. –

informou o traficante.

Saindo do cemitério Arlindo sentiu seu medo se multiplicar e as gotas de suor

aumentarem vertiginosamente. Sentiu que tudo rodopiava a sua volta. Colocou as mãos

nos bolsos pois percebeu que elas tremiam, mesmo contra a sua vontade. A situação era

bem mais séria do que o garoto descrevera pouco tempo atrás. Quanto tempo? Olhou o

relógio: dezessete e quarenta. Não havia meia dúzia de carros da polícia. Se não contara

errado, em função do nervosismo pouco conseguia tirar os olhos do chão, deveria haver

ali pelo menos umas doze viaturas e mais um micro ônibus. Nesse momento foi forçado a

interromper seus pensamentos pois se aproximava deles um oficial da Polícia Militar, que,

julgava ele, deveria ser o comandante da operação. O sujeito tinha cara de poucos

amigos e foi falando sem a menor cerimônia quando se aproximou deles:

- O Sr. é o dono do defunto?

Dono do defunto? Perguntou para si mesmo Arlindo. Será que o policial escolhera

uma hora como aquela para fazer piada ou simplesmente queria provocá-lo? O melhor a

fazer era ficar com a dúvida e procurar agir com a maior naturalidade possível.

- Ele é meu tio. – explicou Arlindo enquanto puxava o atestado de óbito que sua

prima havia lhe entregue antes que ele deixasse o Caju para resolver a confusão.

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O Major, havia identificado pelas divisas na roupa do policial, olhou a certidão e

sem tirar o rosto dela dirigiu-se mais uma vez a Arlindo:

- Posso ver seus documentos.

Arlindo teve alguma dificuldade para tirar a carteira do bolso de trás da calça.

Parecia ela também com medo da situação e por isso se recusava a sair da segurança do

bolso para encarar o PM. Finalmente conseguiu. Novamente enfrentou uma dificuldade,

retirar a identidade de dentro da divisória plástica da carteira. O policial percebeu seu

nervosismo, pois ainda não conseguira controlar o tremor das mãos.

- Algum problema? Parece nervoso. – falou o policial levantando os olhos para

encarar Arlindo.

- Todos os problemas Major. – colocou Arlindo, que pôde perceber a surpresa

do policial com a identificação exata da patente. – A esta hora eu já deveria estar em

casa, descansando, depois de ter enterrado meu tio e, no momento, estou em outro

cemitério, com outro defunto e no meio desta situação. Eu acredito que isso já configura

problema demais para um único dia.

- Não há nenhuma situação por aqui, a Polícia do Rio de Janeiro não atua no

sentido de criar situações, Doutor Arlindo. – falou o policial enquanto devolvia os

documentos para ele. – Parece tudo em ordem com a documentação do seu tio, acho que

tudo não passou de uma grande confusão. O Senhor pode se retirar com o defunto. Mas

por favor, não demore.

Ele nem precisava se preocupar. Tudo que Arlindo não pretendia era se demorar

muito mais tempo ali.

- Com licença, boa noite para o Senhor. – disse o advogado que logo em

seguida virou as costas e caminhou em direção ao carro da funerária.

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Os jovens empregados da funerária já aguardavam dentro dos dois carros, assim

como Ariovaldo, que já havia se acomodado para a viagem. Arlindo parou na porta do

carro para cumprimentar Bigode:

- Muito obrigado pela sua atenção e, mais uma vez, desculpe o transtorno

causado.

- Deixa isso pra lá, tio. Vai na fé que dessa você escapou. – devolveu Bigode

enquanto lhe estendia a mão e sorria.

Assim que Arlindo entrou no carro os jovens saíram bem devagar, cortando

caminho por entre as fardas azuis e os fuzis. Passaram bem devagar, pois havia o medo

de que um movimento mais brusco gerasse uma reação de um dos PM’s. Venceram

aquela barreira, que parecia intransponível. Arlindo mal podia acreditar que estava

deixando toda aquela confusão para trás.

Após alguns minutos estavam na Linha Amarela, retornando ao Centro da Cidade.

Reparou que o suor havia desaparecido de sua testa. Agora sim, poderiam velar o pobre

Ariovaldo em paz.

Capítulo VII - O que mais falta acontecer?

Quando em sua vida poderia imaginar que fosse viver um dia como aquele. Tudo

de ruim tinha lhe acontecido nas últimas vinte e quatro horas. Agora, quando o pior já

havia passado, sentia o cansaço se abater sobre seu corpo, tudo que queria e precisava

era relaxar. E era exatamente isso que fazia agora. Recostou-se no caixão e pôs-se a

cochilar. Não podia deixar passar a oportunidade de tirar uma casquinha de seu Tio. Era

sua vez de se apoiar em Ariovaldo, sua pequena vingança. Iria fazer o velho segurar seu

peso até chegarem ao cemitério.

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Pelo menos esses foram os planos traçados por Arlindo quando entrou no carro.

Mas, pelo visto Ariovaldo ainda não havia tirado todos os coelhos de sua “cartola de

madeira”. Quando saíram da Linha Amarela e pegaram a Avenida Brasil, o trânsito estava

parado. Sequer tiveram tempo de se espantar com um engarrafamento sábado à noite, ou

início dela, na Avenida Brasil. A seqüência de estampidos prendeu-lhes a atenção, o

barulho parecia muito próximo. E, na verdade, era. Policiais Militares, postados do outro

lado da Avenida Brasil estavam trocando tiros com traficantes da Vila do João, que

margeia a Avenida naquela área. Arlindo nem teve tempo de raciocinar direito, quando

percebeu o que estava acontecendo, seus dois jovens acompanhantes já haviam

abandonado o veículo e se atirado ao chão, buscando fugir das balas perdidas, pois elas

é que ficassem perdidas, ali ninguém estava pretendendo achá-las.

Com a dificuldade que a idade lhe impunha, Arlindo também saltou do carro e

acompanhou o gesto de seus companheiros de tormenta, indo beijar o chão enquanto o

barulho dos tiros crescia, parecendo cada vez mais próximo. Uma bala passou zunindo

por cima dele, estourando o vidro traseiro do carro. Arlindo sentiu os estilhaços caírem

sobre seu corpo. Não tinha coragem nem de sacudir a cabeça para se livrar dos cacos.

Nunca experimentara sensação semelhante. Agora já estava arrependido de ter saído de

Inhaúma. Podia ter ficado por lá, assistido ao enterro de Tião e batido um bom papo com

Bigode. Aliás, o que se passara durante o dia era nada perto do que estava vivendo

agora. Há, Ariovaldo, só você mesmo.

A confusão era generalizada. As pessoas saíam dos veículos e buscavam refúgio

embaixo dos mesmos. Um pouco mais atrás de onde estava, Arlindo pôde ver um ônibus

que parava enquanto os passageiros se atropelavam em uma tentativa desesperada de

sair. Alguns pulavam as janelas e rolavam para baixo do veículo.

Era o caos urbano. Policiais passavam correndo gritando para que todos

permanecessem no chão enquanto buscavam, eles próprios, refúgio nas muradas que

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dividem as pistas. Com muito esforço Arlindo conseguiu rastejar alguns centímetros para

o lado, colocando-se também embaixo do carro, junto com os jovens que ali já se

encontravam, mas que não conseguiam sequer pronunciar palavra, tamanho o pânico que

havia tomado conta dos dois. Não que ele Arlindo conseguisse falar alguma coisa, a boca

estava completamente ressecada, muito pior do que havia ficado à tarde. Para piorar a

situação um dos jovens tinha os pés praticamente colados em seu rosto. Sabia que não

adiantaria falar nada naquele momento e, com algum esforço, conseguiu girar o corpo e

afastar a cabeça dos pés do rapaz.

Seria difícil precisar quanto tempo permaneceram sob o carro, ouvindo a troca de

tiros e os gritos dos policiais. Num determinado momento Arlindo percebeu que os tiros

haviam cessado. Não sabia há quanto tempo havia parado o tiroteio, pois só agora

percebera. Concentrou toda a sua atenção nos sons que conseguia captar próximos ao

veículo. Realmente não havia mais tiros. De onde estava deitado pode divisar alguns

coturnos, que já não corriam, apenas andavam. Ouviu rumores de vozes. Pelo jeito o

tiroteio tivera realmente fim. Mas cadê coragem para sair de onde estava? Essa era a pior

parte da história, mexer o corpo quando este desejava ardentemente permanecer onde

estava, imóvel. Com muito sacrifício conseguiu sair debaixo do carro. Levantou e olhou

para sua roupa, que estava imunda e amarrotada. Arlindo olhou para o céu e sentiu

vontade de chorar. Encostou-se no carro e pensou “O que ainda falta me acontecer

hoje?”. Na mesma hora desencostou, “melhor não pensar isso, pois hoje tudo pode

acontecer, nada é impossível. Até um meteoro pode cair na minha cabeça hoje”. Olhou o

relógio, já passava das dezenove, ou seja, ficaram parados no tiroteio por mais de uma

hora.

Os policiais começaram a liberar o trânsito. Os três entraram no carro em silêncio,

ninguém conseguia abrir a boca, estavam em um estado de absoluto desespero.

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Permaneceram calados, mesmo depois que o carro voltou a rodar, e assim ficaram até

que o veículo estacionasse em frente ao cemitério do Caju.

Capítulo VIII – Descanse em paz

Ao chegarem ao cemitério do Caju, foi aquele alvoroço em torno do carro. Todos

falavam ao mesmo tempo, estavam preocupados pois eles haviam saído há muitas horas.

Os jovens da funerária estavam, agora, excitados, loucos para contar todas as aventuras

do dia. Falavam de forma atabalhoada e não conseguiam se fazer entender. Arlindo deu

ordem para que os dois parassem de tagarelar e levassem Ariovaldo para a capela de

uma vez por todas. Os jovens obedeceram, mas não deixaram de falar. Tentavam, de

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todas as formas, se fazer entender, pois agora, passado o susto, sentiam-se

extremamente importantes, pois agora tinham muitas histórias para contar.

Depois de falar com a Tia, Arlindo procurou a cantina, que ficava próxima das

capelas. Precisava urgentemente de um café. Sentiu um prazer divinal quando as

primeiras gotas de café atingiram sua garganta. Parecia mentira que aquele dia estivesse

próximo do fim. Após saborear o seu café, começou a andar em direção aos túmulos,

como fizera à tarde. Caminhou pelas ruas internas do cemitério e, quanto mais andava,

mais precária era a iluminação. Foi enfiando-se pelo labirinto de túmulos até que

estancou. Rodopiou lentamente sobre o próprio eixo, observando a sua volta. Silêncio e

escuridão, era tudo que conseguia divisar naquele momento, mas, mesmo diante das

circunstâncias, sentiu uma imensa sensação de paz.

Sim, era verdade. Sentia-se agora em paz ao lado dos mortos. Com certeza não

haveria uma única alma penada que pudesse incomodá-lo e apavorá-lo mais do que os

vivos haviam feito durante todo o dia.

Pensando nisso sentou, recostando-se em um túmulo qualquer e logo adormeceu,

esperando que a noite lhe fosse breve e reconfortante, para que, na manhã seguinte,

pudesse enterrar o velho Ariovaldo, para que descansassem em paz de uma vez por

todas tanto ele como seu tio.

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REENCONTRO – Conto 2
CAPÍTULO I - Lembranças

José Luiz estava inquieto. Está de saída para um encontro com uma mulher. Seria

uma cena corriqueira na vida de homem, principalmente de um homem que já completou

47 anos. Mas, esse não é um encontro qualquer, na verdade é um reencontro. Depois de

tantos anos estaria, daqui a algumas horas, frente a frente com Maria Augusta. Quanto

tempo fazia mesmo que não se viam?

Vinte e nove anos. Sim, já haviam se passado vinte e nove anos desde que

abandonou Guta, como a chamava, sua família, a escola, os amigos e tudo o mais que o

cercava para mergulhar numa aventura que quase se mostrou sem volta, que por pouco

não lhe custou a vida. Zé, como não podia deixar de ser, olha o relógio, com surpresa

repara que ainda são 5:45 da tarde. Haviam marcado o encontro para às 20 horas e ele já

estava ali, diante do espelho, pronto, ansioso.

Caminhou até a sala, sentou-se na poltrona e pôs-se a relembrar, entrando no

túnel do tempo. Voltava agora para 1970, época do Brasil grande, do ame-o ou deixe-o.

Do nosso futebol que caminhava a passo largos para o tricampeonato mundial. Mas quem

se importava naquele momento com a Copa do Mundo, na verdade todos estavam

preocupados com o destino brasileiro na Copa do México, mas Zé Luiz não enxergava

assim na época. A única coisa que importava, na verdade era fazer a revolução, tirar o

Brasil das mãos da ditadura militar e transformá-la no paraíso comunista do Atlântico. Era

nisso que pensava naquela tarde de inverno enquanto ia para a casa de sua namorada.

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Naquele momento estava com dezoito anos, mas já há muito vinha participando do

movimento estudantil. Depois de 1968 a coisa toda pegara fogo. O AI-5, Marighella morto,

Lamarca sumido na clandestinidade. A perseguição política aumentava a cada dia. Zé

Luiz sabia que sua hora estava chegando, teria que tomar uma decisão, na verdade já

tomara. Era por isso que estava indo se encontrar com Guta, precisava lhe dizer que

decidira aderir, de uma vez, ao sonho revolucionário. Estava se preparando para

mergulhar na clandestinidade, de onde só iria emergir para marchar em triunfo, tal qual

Che Guevara o fizera onze anos antes, ao lado de Fidel Castro. Se isso não fosse

possível, gostaria de morrer como seu herói, no campo de batalha, servir de exemplo aos

demais companheiros, para que a chama revolucionária não se apagasse jamais. Assim

como ocorria hoje com ele, quando fraquejava, lembrava-se do corpo de Ernesto Che

Guevara estendido sobre um balcão, aquele Dom Quixote que vinha, há vários anos,

embalando os sonhos de toda uma geração, pois encarnava a vontade, a luta, a

determinação do novo homem que estava surgindo. Ele mesmo já deixara o cabelo

crescer, assim como a barba, essa mais teimosa que o cabelo lutava, parecia ter medo de

emergir em sua face para ser testemunha ocular do que ainda estava por vir.

Com tanta coisa passando por sua cabeça, já havia esquecido o discurso que

ensaiara para Guta. Como explicar para a namorada, uma menina simples, de boa

família, que não estava envolvida com política e com toda aquela confusão, que iria deixá-

la, que iria deixar a própria vida para assumir outra. Um novo mundo, novo nome.

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Chegando a rua de Guta precisou parar na esquina. Tentava colocar os

pensamentos em ordem e recapitular o discurso ensaiado, afinal de contas, um bom

companheiro não perdia a oportunidade para um bom discurso. Carregava em seu peito a

certeza que Guta entenderia tudo rapidamente. No momento, precisava se afastar, para

sua própria segurança e também daqueles que amava. Era figura permanente nas

assembléias, passeatas e panfletagens. O clima era pesado, alguns desconfiavam que

havia agentes do regime infiltrados no movimento. Ele mesmo já sentira a sensação de

estar sendo seguido algumas vezes. Por isso precisava sumir, desaparecer. Não podia

colocar em risco a vida das pessoas e nem a segurança da organização. Não podia

decepcionar os companheiros.

Mas não havia com que se preocupar, afinal Guta entenderia. E, por outro lado,

não seria por tanto tempo assim. Breve a revolução triunfaria e ele estaria de volta,

heróico, aos braços de seu amor.

Vencendo as escadas, chegou ao segundo andar. Bateu à porta. Sempre fazia

isso. Adquirira o hábito de não tocar a campainha. Guta abriu a porta deixando Zé Luiz

entrar. Sua cara demonstrava muita tristeza, logo explicada. A mãe saíra para ir ao

enterro de um conhecido. Na verdade era um sobrinho da esposa de seu tio. Parece que

se envolvera com um grupo terrorista. Assaltaram um banco, ou coisa parecida, houve

confronto com a polícia, ele não conseguiu escapar. Morreu metralhado. A notícia que

chegara informava que havia levado mais de vinte tiros, estava irreconhecível. Foi uma

confusão para a família conseguir recuperar o corpo para proporcionar um enterro digno

ao jovem. Foram obrigados a responder um batalhão de perguntas. Se conheciam as

atividades do rapaz, se sabiam nome de amigos, etc., etc., etc. Mas afinal, perguntava em

voz alta, para si mesma, “por que se envolver nesse tipo de aventura? Assaltar bancos,

enfrentar a polícia e morrer metralhado”.

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Zé Luiz sentiu o ódio explodir em seu corpo. Não contra Guta, mas contra o que

acabara de ouvir. A confusão tomava conta de sua cabeça. Teve vontade de gritar,

explicar para Guta que geralmente a coisa não acontecia da maneira como a polícia

contava. A polícia, na verdade, assassinava friamente as pessoas, não importando se

estivessem envolvidas com a revolução ou não, e depois inventava uma história

mirabolante de um tiroteio, em que os “terroristas” eram sempre fuzilados e os policiais

“mocinhos” nada sofriam.

Teve vontade de gritar, mas conteve o impulso. Percebeu que naquele momento

seria inútil discutir o assunto, ou melhor, percebeu que não deveria discuti-lo com Guta.

Na verdade, percebeu algo mais. Não tinha vontade de discutir o assunto. Estava

fragilizado, tanto quanto ela. Queria mais do que tudo fazer a revolução, mas ao mesmo

tempo a proximidade da morte o assustava.

Olhou nos olhos úmidos da namorada. Lentamente dirigiu seus lábios de encontro

aos dela. Na verdade, essa era a única vontade que imperava naquela casa. Não

disseram palavra, não fizeram discurso. Menos de um minuto depois, os corpos nus se

abraçam. Foi um momento mágico. Pela primeira vez sentia o corpo de uma mulher nu

junto ao seu. Sabia que a sensação era idêntica para Guta. Não havia mais nada em que

pensar, a revolução poderia esperar mais uma hora.

Naquele intervalo de tempo, os dois se amaram, com paixão e loucura. Juntos

descobriam os caminhos do amor e juntos sentiram a chegada do prazer. Os corpos

suados, mas satisfeitos, agora se abraçavam. O silêncio respeitava a mágica do

momento, afinal não havia palavras que pudessem descrever o que acabavam de sentir.

Depois de um breve descanso, voltaram ao amor. Novamente com paixão e entrega

ultrapassaram os limites do prazer e da felicidade. Depois da segunda vez, os corpos

permaneceram colados, pareciam não querer mais a separação.

38
Zé Luiz voltou para casa ainda mais confuso do que saíra pretendendo colocar

todos os seus assuntos em dia. Não falara com Guta sobre a decisão que havia tomado.

E mais do que isso descobrira com ela o amor, justo quando estava prestes a sumir, a

cair na clandestinidade para fazer a revolução. Pensou consigo mesmo. Agora, mais do

que nunca, ela irá compreender. Sabe que é, por assim dizer, uma mulher amada. Mas o

dever o chama. Não, não há com que se preocupar. Ela vai compreender.

Dois dias depois Zé Luiz desapareceu. Deixou a família, os amigos e

principalmente Guta desesperados. Sabiam que ele andava ligado ao movimento

estudantil. Mas ninguém imaginava que estivesse tão ligado ao ponto de abandonar tudo

e seguir na luta. Para a moça a confusão era ainda maior. Não desconfiava das atividades

do namorado, aliás, atividades essas com as quais não concordava e, por outro lado,

carregava com ela o segredo da descoberta que agora, mais do que nunca, unia os dois.

Depois que abandonou tudo, a vida ganhou outro significado para o rapaz. Viajou,

ou melhor, combateu por várias partes do país. Participou de assaltos, duelou com a

polícia. Viu companheiros morrendo, dentro e fora da prisão. Ele mesmo, como poderia

apagar aquela imagem de sua memória, matara um policial. Não teve escolha pois era o

policial ou uma companheira de luta, era nessa desculpa que buscaria refúgio para o

resto de sua vida.

39
O estampido seco do revólver encontrou seu destino nas costas do policial que

encurralara sua companheira, quando este preparava-se para matá-la, visto que já havia

espancado a pobre por um bom tempo. Conseguiram escapar, deixando para trás o corpo

inerte. Aquele ano de 1971 foi se mostrando, aos poucos, trágico. A revolução perdia

terreno, a ditadura avançava, vencendo a batalha contra as organizações revolucionárias

que iam, pouco a pouco, caindo. Depois de matar um homem, coisa que até aquele

momento conseguira evitar, recebeu, no “aparelho” em se encontrava escondido a notícia

derradeira. Carlos Lamarca, o Capitão Lamarca, o homem que tivera coragem de desafiar

o Exército abandonando suas fileiras para lutar pela liberdade e a justiça ao lado dos

revolucionários, um símbolo para todo guerrilheiro, acabara de “cair”, ou seja de morrer,

no interior da Bahia. Fora perseguido e morto.

A situação apertava. Sua própria organização estava sendo esfacelada. A prisão

de um importante contato colocava em risco a segurança de muitos elementos do grupo,

a sua inclusive. A ordem chegou seca, era abandonar o “aparelho” e, conforme as

instruções, seguir para a rodoviária, pegar um ônibus para São Paulo. Lá foi localizado

por outros membros da organização. Juntos seguiram, por caminhos tortuosos, para a

fronteira com o Paraguai. Dali para o Chile. Depois da queda do regime socialista de

Allende foi parar em Cuba.

Foram anos difíceis. Chegando ao Chile, o grupo, que não somava dez pessoas,

ainda sonhava com a reestruturação da organização e a volta ao Brasil para prosseguir

na luta. Mas as notícias que chegavam eram terríveis. Cada vez mais a ditadura

avançava. A guerrilha perdia terreno e seus membros caiam nos porões da ditadura.

40
Pouco mais de um ano depois, nova fuga. A ditadura militar chegava também ao

Chile e com toda a força. No Brasil derrubaram e expulsaram João Goulart, no Chile

derrubaram e mataram Salvador Allende. A Zé Luiz e seus companheiros não sobrou

alternativa a não ser nova fuga. Alguns dias depois estavam em Cuba. Ao chegar a ilha

em que Che Guevara ensinara uma lição ao mundo, Zé Luiz percebeu que o tempo

passara. O ano de 1971 já havia ficado para trás, estava completando dois anos que

deixara seu país sem poder se despedir de ninguém, seus pais, irmãos, de Guta.

Engraçado que neste espaço de tempo não teve tempo para pensar neles, mas agora,

que era um revolucionário de “férias”, aguardando um chamado para se reintegrar à luta,

tinha tempo para pensar em assuntos pessoais. E, foi com surpresa que reparou que, ao

pensar em Guta voltara a sentir, em sua boca, o gosto dos lábios daquela que fora, e

seria para sempre, sua grande paixão. Nem a dor da ausência, da luta, da morte e do

exílio, puderam tirar dele o gosto de sua namorada. Isso não havia ditadura que pudesse

tirar, nem debaixo de porrada.

Ficou três anos em Cuba. Recebeu treinamento militar, se preparou para voltar ao

Brasil. Mas, passados cinco anos, continuava sendo um revolucionário de “férias”. A

ditadura controlara a revolução e não havia condições para que retornassem ao Brasil

para prosseguir a luta.

41
Diante da falta de perspectivas da retomada da carreira revolucionária, Zé Luiz,

assim como outros, seguiu para a Europa, que seria sua casa nos próximos quatro anos.

No Velho Mundo fez muita coisa, trabalhou, estudou, aprendeu a falar, pelo menos

razoavelmente, o inglês e o francês. Lá de cima viu a ditadura prosperar pela América

Latina, Paraguai, Argentina. Malditos militares argentinos. Não satisfeitos em usurpar o

poder democrático e matar muitos companheiros defensores da liberdade, ainda

ganharam, na marra, a Copa do Mundo de 1978, realizada na terra do tango. Mas quem

se importava. Zé Luiz acabara de descobrir que se importava com o futebol também, que

sempre se importara, mas só agora se dava conta disso.

A notícia da Abertura Política promovida no Brasil pegou-o de surpresa em Paris.

A Anistia já estava valendo e muitos exilados voltavam para casa. Não voltou de primeira.

Demorou vários anos para tomar a decisão. Na verdade, preferia não mais voltar. Tinha

alguns fantasmas escondidos no armário que precisaria enfrentar, bem sabia disso.

Desde que fora para a Europa, no distante 1976, que se correspondia

regularmente com a família. Por isso sabia que teria que explicar sua história

revolucionária, assunto que era cobrado em cada carta dos pais. Mas explicar o que? Fez

o que tinha que fazer e ponto final. Mas sabia que na verdade não seria bem assim. E se

tivessem descoberto que matou um homem? Como reagiriam seus pais? Passaria a ser a

vergonha da família? Um assassino? Quem iria entender?

E, pior do que tudo isso. Teria que enfrentar Guta. Hoje, olhando para trás, sabia

que ela não entendera sua decisão. Na verdade deve ter demorado um bocado para

entender o que se passou. Tudo bem, a revolução. Mas desaparecer sem deixar notícia,

justo depois daquela tarde. Ha!, isso precisaria de muita explicação. Era tudo isso que

queria evitar.

42
Só tomou a decisão de voltar ao Brasil em 1985, quando o país já respirava os

ares da Nova República. Não que para ele isso fizesse diferença, pois os homens que

estavam no poder já haviam estado antes, na época dos militares, logo não deveria haver

muita diferença. E, com toda a franqueza, já não se importava. Voltara apenas porque

uma força maior do que a sua vontade o empurrara de volta, já não tinha ambição de

mudar o mundo. Queria apenas voltar, precisava vivenciar essa experiência. Mas queria

fazê-lo sozinho, como vivera os últimos quinze anos, desde que partira, naquela tarde,

deixando para trás todos os laços afetivos.

Chegou sem avisar não queria um comitê de recepção a esperá-lo. Sabia que isso

fatalmente aconteceria. A mãe lhe escrevia freqüentemente, não entendia porque o filho

não voltava para o Brasil. Tudo aquilo acabara há anos. Todos retornaram, muitos até

participavam normalmente da vida política do país, menos seu filho. Na última carta que

enviou a Paris a mãe foi taxativa, se não voltasse logo, talvez não tivesse outra

oportunidade de rever o pai, que estava muito doente. O velho já estava próximo dos 70 e

o coração cada vez mais fraco. Nos últimos tempos passou insistentemente a reclamar a

presença do filho mais velho e também o preferido.

A mãe nunca disse nas cartas, na verdade ele só descobriu depois que voltou,

mas o pai foi morrendo aos poucos. Cada ano que passava sem a presença do filho era

mais um pedaço seu que morria. Foi um processo lento e doloroso. Se soubesse disso,

talvez nem tivesse voltado. Era mais um fardo a carregar. Agora, se sentia culpado por

todo o sofrimento do pai. Os outros três irmãos casaram e tiveram filhos. Apesar de tudo,

nem mesmos os netos conseguiam arrancar muitos sorrisos do velho, pelo menos não

aqueles que ele oferecia ao pequeno Zé Luiz quando pegava-o no colo.

43
Sua chegada foi um misto de alegria e transtorno. Alegria do pai, que finalmente,

depois de 15 anos podia abraçar novamente o filho querido. Transtorno para os irmãos,

que nunca esqueceram a loucura feita e muito menos deixaram de culpá-lo pelo estado

do pai. Foram momentos confusos. Quando voltou ao Brasil foi trabalhar em São Paulo.

Os nove anos de Europa serviram para algo. Vinha trabalhar numa multinacional, que

possuía uma representação no país. Procurava sempre estar no Rio para ver os pais,

mas evitava o encontro com os irmãos. Não durou muito, nem o problema nem o pai, que

morreu um ano depois de sua volta, confirmando a previsão dos desconsolados irmãos, o

pai só esperara sua volta para morrer. Não teria feito isso por mais ninguém.

Não era só com os irmãos que evitava encontrar. Quando voltou descobriu que

Guta havia se casado há três anos. Já estava beirando os trinta quando decidiu. Houve

quem jurasse que esperou, em vão, por quatro anos, desde a abertura política, pela sua

volta. Como não aparecesse, tomou sua decisão e casou.

A mãe também não durou muito. Menos de dois anos depois, foi atrás do pai, que

para ela não deveria estar se virando bem no céu sozinho. Depois do enterro da mãe

manteve distância do Rio. Não tinha mais nada que o prendesse à cidade, pelo menos

assim pensava na época. E, de mais a mais, não suportava o olhar acusatório dos irmãos.

Não esperou nem a partilha dos bens. Deixou com o primo Pedro Paulo uma procuração,

na qual abria mão de todos os seus direitos em nome dos sobrinhos e voltou para São

Paulo. Depois do de 1988, só voltaria à Cidade Maravilhosa em 1997, mesmo assim por

motivo de força maior. A empresa estava abrindo um escritório no Rio de Janeiro e

ninguém melhor do que ele para gerenciá-lo. De nada adiantaram os pedidos para ficar

em São Paulo. Foi obrigado a deixar a garoa paulistana e voltar ao Rio, desta vez para

ficar. Não avisou aos irmãos que voltara. Só Pedro Paulo ficou sabendo de seu retorno,

mesmo assim, com uma condição. Sua volta era segredo.

44
Em 1998, com a ajuda do primo, conseguiu rever alguns amigos da época de

adolescente. O reencontro o emocionou, afinal, já passavam 28 anos, desde que sumira

sem se despedir de ninguém. Mais uma vez foi obrigado a fazer o que tanto detestava, se

explicar. Não queria fugir de seu passado, não era isso. Fez o que deveria ter feito na

época. Se voltasse no tempo, faria tudo de novo. Existem certas experiências na vida que

só vivemos uma vez, e por mais desagradável que sejam, precisamos vivê-las, não há

como fugir do destino. Então, como explicar o inexplicável.

Agora, contudo, tinha uma vantagem. Só faltava se explicar para Guta e não

precisaria mais dar explicações para ninguém. Basta. E, com um pouco de sorte, talvez

nem precisasse se explicar com ela. Afinal de contas, agora já era uma mulher casada,

com seus 44 anos. Deveria ser mãe, família bem estruturada. Com toda a certeza não

precisaria dar a última e derradeira explicação.

Pedro Paulo cumpriu a promessa e nunca revelou sua volta aos outros primos.

Àquela altura, Zé Luiz tinha ciência que seus irmãos sabiam que ele voltara ao Rio.

Encenação uma bela peça. Ele fingia que não voltara e os irmãos fingiam que não sabiam

de sua volta. Com isso, todos continuavam vivendo felizes.

O reveillon de 1999 trouxe uma surpresa. Pedro Paulo veio lhe contar a novidade.

Guta estava separada há três meses, o marido fora viver com uma jovem. Custou a

acreditar na história. O estado etílico do primo contribuiu muito para isso. Naquela virada

de ano, tudo o que podia fazer era dormir, esperar que o novo dia trouxesse de volta a

sobriedade de Pedro Paulo, para que esse confirmasse ou não a história contada no calor

do “happy new year”.

45
Mesmo com uma baita ressaca, Pedro Paulo confirmou a versão da noite passada.

Mas do que isso, conseguiu com uma amiga em comum, a que o colocou a par do

acontecimento, o telefone de Guta. Uma história comprida. Era amigo da família desde a

infância. Moravam na mesma rua, brincavam juntos, gostaria de revê-la. Não foi difícil

para Pedro Paulo conseguir o pequeno pedaço de papel que agora passava, com o senso

do dever cumprido, a Zé Luiz. O olhar dizia ao primo “Hay que endurecer, pero sin jamais

perder la ternura”. Zé Luiz entendeu o olhar do primo. No fundo concordava com ele, mas

não sabia se a hora seria a mais apropriada. Levou cinco meses para se decidir a discar

os sete números. Quando o fez, percebeu o distanciamento na voz de Guta. Depois de 29

anos, é difícil saber o que está se passando na cabeça das pessoas. A conversa foi

rápida e formal. Ficou o convite para que ele fosse visitá-la no próximo sábado a noite.

Era exatamente para isso que ele se preparava nesse momento. Quando olhou o

relógio, já passava das sete horas. Por uma hora e meia ficara sentado no sofá pensando,

revendo sua trajetória. Agora, provavelmente iria encerrar o único capítulo que ficara em

aberto de sua história. Pensando saiu, fechando a porta atrás de si.

CAPÍTULO II – O telefonema

O telefonema pegou-a de surpresa. Havia algum tempo que o telefone não mais

tocava em casa. Logo após a separação, os amigos ligavam insistentemente, mais para

saber como estava passando. Agora, as ligações rareavam. Morava perto dos pais, logo

os via sempre pessoalmente, não precisava do telefone. De qualquer forma, podia

esperar que várias pessoas estivessem do outro lado da linha, menos Zé Luiz.

46
Para ser sincera, não sabia se queria falar com ele, ou mesmo voltar a vê-lo. Eram

muitas mágoas a serem apagadas. Como perdoar o namorado que fugira naquela tarde,

29 anos atrás, justo após aquele momento tão mágico. E como perdoar o homem que,

estando de volta ao país há 14 anos, nunca teve coragem de procurá-la. Há muito já

sabia exatamente o que ocorrera com ele e o que provocara o seu sumiço, mas esperava

ouvir, de sua própria boca, a justificativa pela atitude tomada.

Realmente, era muito difícil esquecer. Ninguém nunca soube o que sofreu quando

Zé Luiz desapareceu naquele distante 1970. Namoravam há algum tempo e Guta, mesmo

contrariando o padrão da época, tomou uma decisão corajosa. Amava Zé Luiz e queria

ficar ele para sempre. Carregava consigo a sensação de que a recíproca era verdadeira.

Logo, decidiu que deveriam pertencer um ao outro definitivamente.

Sem dúvida, uma decisão muito difícil naquela época, principalmente, para uma

jovem de 16 anos. Mas nada importava, estava decidida e ponto final. Tinha certeza que

Zé Luiz estaria com ela. Quando chegou a notícia do primo morto e os pais saíram em

pânico, Guta ficou em casa. Um vazio invadiu-a. Não podia compreender e aceitar as

atitudes de pessoas que se matavam em nome de uma tal revolução que, na verdade, ela

não compreendia bem. A única coisa que entendia era que o primo havia sido trucidado e

que ninguém, fora a família e os amigos, se importava. As autoridades pareciam não se

preocupar com o que ocorrera, pior do que isso, pelos fragmentos de conversa que

capturou do pai e da mãe, a polícia escondia algo. Como compreender uma situação

dessa. Ao longo do dia a tristeza foi se transformando em carência afetiva. Quando Zé

Luiz chegou, só queria ficar em seus braços e chorar, e foi o que fez. Chorou o quanto

quis, sem que o namorado se importasse.

47
Os corpos abraçados e as lágrimas descendo foram invadindo sua alma. Uma

confusão de sentimentos: perda e descoberta. Na medida em que sentia a morte do

primo, sentia, com intensidade, a presença de Zé Luiz. Não seria uma situação sórdida?

Aqueles sentimentos que brotavam enquanto o corpo do primo, frio, aguardava a hora de

partir definitivamente.

Não, não podia se sentir culpada por isso. Nada tinha a ver com a morte do primo,

pelo contrário, gostava dele e preferia que estivesse vivo, mas não concordava com a

loucura em que havia se enfiado.

Por mais que lamentasse, deixou a morte do primo de lado. Agora seriam apenas

ela e Zé Luiz. Naquela fração de segundos do abraço decidiu que era chegada a hora.

Enquanto se beijavam, sua mão procurou a mão do namorado e delicadamente conduziu-

a até seus seios. O toque foi mágico, sentiu uma onda de calor percorrendo todo o seu

corpo. Veio da ponta do pé subindo, cada vez com maior intensidade, até passar pela

nuca, atingindo o cérebro, fazendo-a perder o sentido do mundo. Tinha fornecido a senha

para Zé Luiz. Daquele momento em diante não foi preciso dizer mais nenhuma palavra.

Com cuidado e carinho os dois se despiram. Guta procurava aproveitar cada instante, que

para ela era único. Prestava atenção nos detalhes do corpo do namorado e no seu

próprio. Os toques, os beijos, as carícias, tudo fazia parte de um ritual, já há muito

desejado e que enfim se concretizava.

Quando sentiu Zé Luiz dentro de seu corpo, então, um horizonte abriu-se a sua

frente, os olhos umedeceram. O ritmo frenético do vai e vem do amor foi aumentando,

assim como crescia sua sensação de liberdade. Zé Luiz, com todo o carinho, procurava

descobrir, cada vez mais, seu corpo. Sentia o namorado cada vez mais próximo, mais

dentro. Ela pôde perceber, apesar da loucura do momento, que era chegada a hora. De

repente, aconteceu. Guta sentiu que as portas do amor se abriam para ela, na medida

que o amor de Zé Luiz escoria por todo seu corpo.

48
Naquele momento, o mundo parara de girar. Não havia mais morte, mais violência,

mais ditadura, mais revolução. Só havia amor. Na seqüência, ficaram imóveis por alguns

instantes. Tentavam recuperar o fôlego e entender racionalmente, como se isso fosse

possível, o que acabara de acontecer.

Não demorou muito e os corpos estavam novamente unidos, dançavam no mesmo

ritmo, o vai e vem do amor. Novamente pôde sentir o amor explodindo e inundando todo o

seu corpo. Permaneceram abraçados e imóveis, felizmente, pois suas pernas tremiam,

não sabia se teria condições de levantar. Era uma tremedeira deliciosa, mas era uma

tremedeira. Demoraram ainda um bom tempo juntos. Achou o namorado um pouco

distante. Mas, tudo não passava de impressão. Ela mesma se sentia confusa. Tudo o que

acabara de acontecer era uma grande mistura de sentimentos. Diante de tudo, só tinha

certeza de uma coisa: amava Zé Luiz, era o homem de sua vida e queria ficar com ele

para sempre.

O que veio depois, até hoje é difícil explicar. Pelo menos no que diz respeito aos

sentimentos, a confusão foi geral. No dia seguinte, Zé Luiz não apareceu, nem deu sinal

de vida. Guta não entendeu o sumiço do namorado, mas preferiu atribuí-lo ao nervosismo

pelo que haviam feito, percebera isso quando terminaram de se amar. Quando, no

mesmo dia, à noite, foi procurada pela mãe de Zé Luiz, desconfiou que algo mais sério

estava acontecendo. Zé Luiz saíra de casa muito cedo, levando consigo algumas peças

de roupa, o que já era um fato estranho. Não voltou mais para casa nem deu notícias.

Isso nunca ocorrera antes. Meio dia havia se passado sem que ninguém visse Zé Luiz.

Em casa, na escola, a namorada, ninguém sabia de nada. Foi uma noite de terror.

Procuraram em hospitais, no necrotério, na delegacia do bairro, e nada. Num momento

como aquele, a situação era preocupante. Poderia ter sido confundido com algum

terrorista e ter acabado como seu primo. Mas, afinal, ainda não havia motivo para pensar

nisso, pois a busca no necrotério fora em vão.

49
Dois dias se passaram, e nada. Os pais de Zé Luiz entraram em desespero. Já

haviam feito de tudo para tentar localizar o filho, sem nenhum resultado. Mal dormiam.

Guta os acompanhava naquele martírio. Passava a maior parte do tempo na casa do

namorado. Rezava dia e noite para que ele voltasse são e salvo. Não queria saber o que

tinha acontecido, só queria poder abraçá-lo e beijá-lo novamente, sentir seu corpo

colocado ao seu. Não, ele logo voltaria e a situação toda seria esclarecida. Passara-se

uma semana e Guta não perdia as esperanças. Tudo tinha que ter uma explicação. Fazia

anotações incessantes no diário que, àquela altura, era seu grande confidente. Eram

páginas e mais páginas falando de Zé Luiz, de seu amor e de toda aquela confusão. Tudo

anotado naquele diário que, mal sabia naquele momento, a acompanharia por muitos e

muitos anos.

Não, de nada adiantou a reza. A confirmação de seu sofrimento veio ao décimo

dia de sumiço. Um colega da escola, que também andava meio sumido, fez chegar às

mãos dos pais de Zé Luiz um bilhete. Nele tudo passava a fazer sentido. Pedia desculpas

pela maneira como fizera aquilo, mas era a forma mais segura de deixar a vida normal e

cair na clandestinidade sem comprometer ninguém. Agora, transformara-se em um

revolucionário. Foi uma verdadeira bomba. Todos ficaram atordoados. E ficaram muito

mais quando surgiu um policial para fazer perguntas a todos, queria saber tudo da vida de

Zé Luiz. Como não poderia deixar de ser, Guta também foi procurada. O policial alto,

magro, com olhos escuros e frios fez-lhe um monte do perguntas. Nada sabia que

pudesse interessar ao oficial e mesmo que soubesse, nada lhe diria.

50
Foi um golpe duro de agüentar. Ainda pensava naquela tarde, os dois juntos, o

amor inundando o ambiente e, no dia seguinte, Zé Luiz desaparecendo daquela maneira.

Óbvio que, àquela altura já sabia o que iria fazer. Então, por que não lhe contou? Buscou

apenas se aproveitar do momento? Essas perguntas agora ficariam no ar. Somente

quando voltasse a encontrá-lo poderia exigir a resposta. Sim, isso teria todo o direito de

fazer, exigir uma explicação.

Guta para de pensar e olha o caderno em sua mão. As páginas amareladas

denunciam o tempo de vida do mesmo. Começa a folheá-lo. Sem dúvida, aquele diário é

a grande testemunha de seu sofrimento, de sua agonia e de sua espera.

Quando soube o que acontecera com Zé Luiz, passou a buscar todas as

informações que podia sobre as atividades clandestinas durante a ditadura. Mas não era

tarefa muito fácil. Naquela época não bastava acordar, abrir o jornal e buscar as notícias

do dia. Havia a censura e os confrontos entre a polícia e os “guerrilheiros” eram sempre

encobertos. Quando havia notícia a ser divulgada, era que mais um terrorista tinha sido

morto em confronto com a polícia. Era sempre a mesma história. Um sanguinário bandido

atacava os policiais que, em legítima defesa, e sem alternativa, eram obrigados a matá-lo,

sempre com um gasto excessivo de balas.

Cada notícia que recebia da morte de um “guerrilheiro”, seu coração gelava.

Temia, a cada minuto, que a notícia fatal chegasse. Felizmente isso nunca aconteceu. Os

anos foram passando. Ficou sabendo que Zé Luiz fugira do país. Chile, Cuba e depois

Europa. Ainda estava magoada pela forma como fora abandonada, mas preferia saber

que ele estava longe, mas vivo.

51
Aos poucos, Guta foi retomando sua vida. A escola, os amigos. Não tinha outra

alternativa. E, no fundo, era o que desejava. A ferida aberta foi muito profunda, ainda

demoraria muito tempo para cicatrizar, se isso algum dia viesse a ocorrer. Guta procurava

se mostrar forte, não falava mais no namorado, nem da revolução. Se dedicava muito aos

estudos. Mas, nas horas vagas, sem que ninguém soubesse, buscava informações de Zé

Luiz.

Terminou o segundo grau e foi para a faculdade. Na época, o comum ainda era

que uma moça na sua idade, 19 anos, esperasse por um bom casamento. Mas Guta nem

pensava no assunto. Queria realmente era estudar se formar e conseguir um bom

emprego. O coração andava, há muito, vazio.

Tornou-se uma boa advogada, com um bom emprego. Isso quando surgiu a

Abertura, que veio abrir também velhas feridas. Com a distensão política, os exilados

começaram a voltar ao país. Voltou a pensar em Zé Luiz. Será que ele também voltará?

Sabia que estava bem na Europa, pois nunca deixou de falar com os pais dele. Sempre

buscava notícias, mesmo que discretamente e aparentando apenas curiosidade. Aquele

final de década trouxe de volta todo o sofrimento que marcou o início dos anos 70.

52
Mas, sua expectativa foi frustrada. Zé Luiz não voltou e, segundo lhe informou a

mãe dele, não sabia quando retornaria ao Brasil. Àquela época, Guta iniciara um namoro

com um advogado que trabalhava com ela no escritório. Foram colegas de faculdade e

ele se interessara por ela desde a época de universitário. Desiludida com o fato de que Zé

Luiz não voltaria, mesmo com a Abertura, ela decidiu investir em seu romance. Quatro

anos depois estava casada. A união durou treze anos. Durante todo esse período, não

conseguiu muitas notícias de Zé Luiz. Os contatos com a família dele foram rareando.

Mesmo assim, ficou sabendo que ele retornara ao Brasil, em 1985. Novamente uma

decepção. Ele foi direto morar em São Paulo, pouco vinha ao Rio, somente para ver os

pais. Àquela altura, não queria nada especial afinal de contas, era uma mulher casada.

Queria apenas ouvir de sua boca o relato completo do que lhe acontecera desde aquela

tarde.

Sabia que isso seria muito difícil. Com a morte do pai, Zé Luiz passou a vir menos

ao Rio, quando a mãe também se foi, desapareceu. Não falava com os irmãos, ela sabia

da história e então, sumiu de vez. Agora, nem notícias tinha mais. E não tinha tempo para

se ocupar com isso. Precisava cuidar da carreira, que ia bem, e do casamento, que ia

mal. Não adiantou tentar levar adiante aquela situação. Os dois, ela e o marido,

perceberam que nada mais havia a fazer. Era o fim.

Sua vida profissional tinha ido muito mais longe do que poderia ter imaginado. Era

uma advogada de sucesso, bem estabelecida e conceituada. Em compensação, sua vida

pessoal fora uma grande confusão, iniciada aos 16 anos, naquela tarde e com o que se

sucedeu. Depois foram anos de espera, de um sofrimento silencioso. Veio o casamento,

mais uma vingança, quando soube que Zé Luiz não voltaria ao Brasil. Agora, o divórcio,

depois de tantos anos de uma novela, em que representara o papel de esposa.

53
Depois de tudo isso, quando achou que já tinha vivido todos os dramas amorosos

que merecia, veio o telefonema. Era Zé Luiz, queria revê-la. Não conseguiu ser nada além

de cordial. Por que somente depois de 29 anos a procurava? Não, isso não era justo.

Primeiro não quis voltar quando pode, dez anos atrás. Quando voltou, procurou todo

mundo, os pais, parentes, até alguns amigos, menos ela. Definitivamente não queria ser

nada além de cordial. Na verdade, só aceitou o encontro porque precisava ouvir, da boca

daquele que havia sido seu único e grande amor o relato dos momentos que sucederam

aquela tarde já longínqua de 1970. Queria ouvir, provavelmente lhe dizer uns bons

desaforos e terminar de vez com aquela história.

Precisava exorcizar de uma vez por todas esse fantasma de seu passado. Fechou

o caderno amarelado, colocando-o sobre a mesa. Foi ao espelho que ficava próximo à

mesa de jantar e encarou-o, sem piscar. Pensava no que faria e diria quando a

campainha soou forte e longa. Um barulho que demorou 29 anos.

CAPÍTULO III - Frente a Frente

Guta abriu lentamente a porta. Depois de 29 anos lá estavam eles novamente

frente a frente, como da última vez. Foi um momento que valeu por uma eternidade.

Nenhum dos dois sabia exatamente o que dizer. Ficaram em pé, um encarando o outro.

De um lado Zé Luiz sentiu que não havia muito o que explicar. Por sua vez, Guta

percebeu que de nada adiantariam justificativas depois de tanto tempo.

Olharam-se nos olhos e perceberam que já haviam se passado 29 anos e que

haviam perdido todo esse tempo, um tempo que não voltaria mais. Então, para que gastar

mais do precioso tempo em explicações. Não, definitivamente nenhum dos dois queria

isso. Naquele momento só pensaram em aproveitar a oportunidade que o destino lhes

reservara, estavam juntos novamente. Talvez um dia tivessem tempo para as

explicações.

54
Sem dizer palavra se abraçaram e, lentamente, foram se despindo. Já não havia a

pressa da primeira vez. Depois de alguns minutos estavam na cama, repetindo um ritual

interrompido há quase três décadas. Só que, desta vez haveria um amanhã, ambos

sabiam. Tudo havia ficado para trás, menos os dois, que viviam aquele presente, de olho

no futuro.

O toque dos corpos fez com que sentissem que na vida ainda existem algumas

coisas pelas quais vale a pena lutar, e também esperar.

ENCONTRO MARCADO - Conto 3

PEEEEEEEEEEEEEEEEEEM!

O barulho era infernal, aliás, diariamente ele era obrigado a enfrentar esse

invencível adversário, o despertador. Aliás, o grande adversário de todo trabalhador,

aquela gigantesca massa que, ao toque de sua alvorada vai despertando e rapidamente

se movimentando em direção ao seu destino eterno, manter em funcionamento a

economia de mercado. Afinal, para que serve esse imenso contingente de mão-de-obra

senão para bem servir à classe patronal.

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Voltando ao despertador, dia após dia, o barulhento e irritante oponente se

colocava entre ele e o sono, um tremendo estraga prazer. Mas, não há outro jeito. São

quatro horas da manhã, alta madrugada para os que podem permanecer na cama

dormindo. Para os que moram bem longe e precisam desesperadamente trabalhar,

manter funcionando o sistema, quatro horas já é dia, pelo menos é hora de se colocar de

pé e iniciar a jornada.

Vencido pelo cansaço e principalmente pelo barulho, Marcinho levanta, pelo

menos tenta. Lentamente o cérebro vai começando a encaixar os pensamentos.

Finalmente percebe que já estamos na segunda-feira. Mais uma. A terrível segunda-feira.

Talvez seja o dia mais detestado da semana. É o dia em que todos são obrigados a voltar

ao trabalho, depois de curtir o final de semana, nada pior do que essa rotina, ainda mais

para quem é obrigado a acordar tão cedo. Se fosse filho de pais ricos, poderia estar

chegando da farra agora, mas de que adianta reclamar.

É preciso reunir forças para enfrentar mais uma dura semana de trabalho e

estudo. Aos 21 anos Marcinho, como Márcio Luiz é conhecido, tenta ter uma vida igual a

maioria dos jovens da sua idade. Filho de uma família pobre da Baixada Fluminense,

região que durante anos carregou a fama de um dos lugares mais violentos do Brasil,

Marcinho começou a trabalhar aos 12 anos, ajudando o pai, pedreiro, nas obras. Carregar

baldes de areia e sacos de cimento foram sua rotina durante alguns anos.

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Como toda criança de sua origem, teve muitas dificuldades para estudar. Na

localidade onde mora, lição fácil só a que é oferecida diariamente pelos traficantes e pela

polícia. Com os primeiros a garotada aprende a entregar a droga, vira aviãozinho. É a

única maneira de voar na Baixada. Depois o pessoal vai fazendo carreira vai virando

soldado, segurança, gerente e, quem sabe um dia, chefão. Isso, é claro, para os que não

ficam pelo meio do caminho, um encontro marcado com a morte. Já dos segundos, é

melhor manter distância. Afinal, para a polícia negro e pobre são sinônimos de bandido, e,

como tal, são tratados pelas “autoridades competentes”.

Marcinho nunca quis se encontrar com a morte, pelo menos não dessa maneira.

Sabe que todos morrem um dia, mas sonha com uma morte mais digna, assim como com

uma vida também.

Por isso não se importa, levanta às quatro, mesmo no inverno. Em julho o inverno

costuma castigar a cidade. Aí, levantar é muito pior. Com toda a certeza não há nenhum

termômetro por perto, se houvesse, estaria marcando 17 graus, o que, para o carioca, é

“frio de rachar”. No banheiro humilde, cômodo que fica no quintal, as paredes lisas de

cimento aumentam ainda mais o frio, ele se prepara para mais um dia de luta. A água

gelada, o chuveiro elétrico está queimado, dói nos ossos, mas ajuda a despertar. Depois

do banho come um pedaço de pão do dia anterior enquanto se veste. Não pretende

acordar a mãe, que trabalha duro, ou melhor sempre trabalhou duro para sustentar os

cinco filhos, principalmente depois que o marido foi morto, já passados seis anos. Uma

briga num boteco foi defender um amigo, todos já haviam bebido o bastante ou mais do

que isso, encontrou no caminho uma faca afiada que lhe perfurou o intestino. Desde esse

dia Marcinho prometeu para si mesmo que jamais voltaria a pisar num boteco.

Já são 4h 35 min, o jovem já está pronto para sair. Tem que estar na cidade antes

das 7 horas para abrir o escritório, limpar tudo, preparar o café e esperar que os demais

empregados comecem a chegar, o que acontece por volta das 8.

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O ônibus que vai pegar passa às 5. Em lugares distantes do centro da cidade é

assim, o ônibus tem hora para passar, ou melhor, para começar a passar quando o dia se

inicia para os que moram longe. Se perder o das 5, terá que esperar mais meia hora, o

que pode lhe custar um atraso, falta gravíssima para o seu patrão. No local em que

Marcinho mora não há ônibus direto para o centro da cidade, por isso ele precisa pegar o

das 5 para o centro de Nova Iguaçu, de onde pegará outro para a cidade.

Marcinho sai para o ponto, o frio é intenso. Mas o que importa, ou melhor, quem se

importa, principalmente quando pode se permanecer na cama, debaixo das cobertas. Mas

não há tempo para isso, lá vem o ônibus e ele vai iniciar sua jornada. A condução não

está vazia. Assim como ele, muitos outros na região são obrigados a madrugar.

“O pássaro madrugador colhe os melhores frutos”, diz o ditado. Doce ilusão! Na

realidade dessas pessoas o ditado soa falso. Para muitos não há sequer fruto para ser

colhido. Talvez fosse melhor dizer que “o pássaro madrugador consegue manter o seu

emprego”.

Depois de meia hora Marcinho chega ao centro de Nova Iguaçu. Aproveita a

viagem para observar aquelas pessoas que, como ele, já iniciaram seu dia de trabalho.

São, em sua maior parte, caras tristes, cansadas e sem esperança. Alguns já estão

vivendo essa rotina há muitos anos, 10, 15, 20, e vão se aposentar dentro dessa eterna

repetição de sofrimento. E o pior, quando o comunicado do INSS chegar, passarão a viver

da magra aposentadoria concedida pelo Instituto. Sim, vai mudar a rotina, mas a sina vai

continuar a mesma: miséria, cansaço e desesperança.

Alguns ainda sim persistem e encontram coragem para sorrir, talvez da própria

desgraça, talvez de algo mais forte e profundo, por saberem, bem no íntimo que, mesmo

com a vida que lhe oferecerem, não são capazes de tirar aquilo que têm de mais

precioso: a dignidade.

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No centro de Nova Iguaçu Marcinho toma o segundo ônibus, mais cheio do que o

primeiro, o que lhe obriga a viajar em pé. Sabe que dali por diante a condução só fará

encher, o que significa viajar apertado. Mudam algumas caras, mas as expressões são as

mesmas, miséria, cansaço e desesperança.

Frio, sono, desconforto. Será que é tudo que se leva da vida?

Não para Marcinho. Ele quer levar muito mais. Depois que terminar seu

expediente no trabalho vai direto para a escola. A vida dura atrasou os estudos, mas no

ano que vem estará terminando o segundo grau. Sonha com a faculdade, um bom

emprego, ajudar a mãe, seu grande objetivo e casar com Simone, sua namorada há três

anos.

Esteve com Simone até tarde da noite ontem, por isso levantar foi mais difícil, mas

ao mesmo tempo mais fácil. Quer que o dia passe logo, que a semana voe, para poder

vê-la novamente.

A difícil rotina de casa para o trabalho, do trabalho para a escola, da escola para

casa, não lhe deixa muito tempo para ver a namorada durante a semana. Ela é

companheira, compreende seu drama e procura sempre tornar as coisas mais fáceis para

ele. Não lhe exige presença física diária, mas aproveita todo o tempo disponível para

estar ao seu lado, o que é, sem dúvida, um grande consolo.

Juntos os dois vivem o sonho de ter uma família, uma vida decente, e por que

não? Afinal de contas também têm esse direito. Já traçaram o próprio destino, não é

assim que ensinam as novelas? Vamos tomar nosso destino nas próprias mãos. Simone

está terminando o normal, para o próximo ano começará a lecionar. Não será difícil

encontrar uma escola para trabalhar perto de casa, afinal só quem já mora na região é

que acaba trabalhando ali, os de fora têm medo de se aventurar.

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Quando concluir o segundo grau Marcinho espera conseguir algo melhor dentro da

firma ou em outra, quem sabe. Quando isso acontecer, poderão começar a construir a

própria casa. Vão levantar o próprio teto sobre a cabeça de Dona Maria da Conceição. Se

não há dinheiro para comprar uma casa, o jeito é crescer para cima, como todos fazem na

região. Tijolo por tijolo vão se erguendo os famosos “puxadinhos”. Os vizinhos se ajudam,

há muita solidariedade no local. Domingo invariavelmente é dia de virar uma lage, sinal

que a família vai crescer em breve. Se o dinheiro acabar, o que fazer, a obra terá que

esperar.

Pode até demorar, mas ela acaba. E aí, será a felicidade de ambos. Juntos para

sempre, os dois poderão iniciar a vida. Planejar, construir, crescer, sonhar.

O ônibus entra na Avenida Brasil, rio principal onde todos os demais desembocam

em direção ao centro. Tal qual um rio em época de chuva, a maior Avenida da cidade vai

vendo crescer o fluxo de veículos, até chegar o momento em que transborda numa

infinidade de carros, ônibus e caminhões. O dia timidamente vai surgindo. O frio é intenso.

A condução, lotada, agora se arrasta lentamente entre o mar de veículos, flutua. Mas isso

já não assusta ninguém. É uma rotina de anos e que vai piorando, conforme a cidade vai

crescendo, ou melhor, inchando e ficando mais velha.

Espremido contra o ferro do ônibus, não que precise estar bem seguro pois com o

arrastar do ônibus e a lotação esgotada do veículo será difícil cair, Marcinho continua

pensando na vida, na mãe que a esta hora já está levantando para ir buscar o pão que

será dividido entre os quatro irmãos, todos mais novos do que ele. Mulher que batalha e

sofre. Perdeu o marido para as estatísticas da violência, como muitas outras, mas não se

entrega, confia na vida, confia no filho que um dia lhe prometeu uma vida melhor e confia

em si mesma, pois, depois de tanto tempo nessa vida, já não há muito mais em que se

apegar, exceto naquele que é o único a ouvir todas as lamentações desse povo que

parece só fazer sofrer, Deus.

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Marcinho chega a cidade, olha o relógio que já marca 6 horas e 50 minutos. É

preciso correr para não se atrasar, pois o inimigo está lá, pendurado na parede,

esperando por ele. Implacável o relógio de ponto se ergue como um carrasco, ameaçador

ante todos os funcionários, esperando o vacilo para cortar-lhes a cabeça ou melhor, o

emprego. E Marcinho não pode se dar ao luxo de correr esse risco, pois sabe o quanto

seu dinheiro é importante para Dona Conceição, para seus irmãos e para seus sonhos e

os de Simone.

Oito horas, os funcionários começam a chegar. Marcinho já trocou de roupa, já fez

o café e arrumou o escritório. Como todo dia de trabalho, espera os colegas com um

sorriso nos lábios, sempre disposto a ajudar os que dele precisam.

Às 9 já está na rua, fazendo entregas. Mais uma hora e irá para o banco, enfrentar

as intermináveis filas. Depósitos, pagamentos, contas intermináveis, dinheiro interminável,

que resolveria todos os seus problemas, mas não dessa maneira. Para Marcinho o que

vale a pena é a honestidade, o respeito que conquistou de todos os colegas, que

diariamente o incentivavam, como Dona Helena, secretária do chefe e funcionária mais

antiga da casa, que todo dia, sem falta, lhe traz um sanduíche. Sabe que Marcinho

almoça, mas depois disso, não tem mais dinheiro para comer. Se não colocar algo para

dentro antes de ir para o colégio, só poderá fazê-lo por volta da meia noite, quando

chegar em casa. Esse incentivo também é importante para ele, pois mostra-lhe que ainda

existem muitas pessoas boas no mundo, independente de raça, sexo, religião, idade ou

cor.

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O almoço é sempre corrido, há muito o que fazer e Marcinho procura economizar o

máximo que pode os tickets, pois sabe que cada um que sobrar ao final do mês será

recebido com festa em casa. Na parte da tarde, mais trabalho. Corre de um lado para o

outro, mais entregas, vai buscar um documento do outro lado da cidade, corre para

receber o pagamento em outra firma. Não anda, vai se desviando do povaréu pela cidade

lotada. A garoa complica tudo, faz com que a multidão abra os guarda chuvas. Então, é

preciso não só desviar da multidão, mas também de seus malditos protetores. Felizes os

que podem se proteger.

Mais algumas horas e outra jornada de trabalho estará sendo vencida, assim tem

sido nos últimos quatro anos e assim será nos próximos sabe-se lá quantos. Mas, vale a

pena. Nesse ritmo a semana passa rápido e logo estará vivendo mais um fim de semana,

como tantos outros que vem e vão, nos braços de Simone, e é isso o que importa.

Lá está ele, pendurado na parede, imponente, assustador. Mas, felizmente, mais

uma vez, carrasco derrotado em sua eterna vontade de nos flagrar, o tempo.

Agora, só falta a escola e depois, voltar para casa. Ao sair do escritório, bate

aquela vontade de ir para casa, tomar um banho e correr para ver Simone. Seria até

compreensível e justificável. Mas o senso de responsabilidade é maior e lá vai Marcinho

buscar o caminho do estudo, que, como diz a lenda, é o único que pode tirá-lo do mau

caminho.

A hora se arrasta, o cansaço bate forte. Marcinho luta com todas as forças,

buscando concentração. Tenta de todas as forças acompanhar o ritmo da aula

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Sente-se em desvantagem em relação a muitos outros alunos. Alguns são como

ele, mas boa parte não. Estudam à noite, conforme eles mesmo dizem de “onda”. Querem

o dia para farrear e usam a noite, a escola, para paquerar. Os que como Marcinho estão

lutando contra o destino não têm tempo para esses luxos. Não têm tempo nem mesmo

para estudar a lição aprendida. Mas, mesmo assim, Marcinho e seus companheiros de

luta terminam o ano com notas melhores do que a dos “paqueradores”. A vida dura ajuda

a concentrar as forças na luta pela sobrevivência.

Mas, não é hora de pensar mais nisso. A aula terminou, Marcinho venceu mais

uma etapa em sua vida. Agora, chegou a hora de ir para casa descansar, o repouso do

guerreiro. Não será um repouso longo. Até chegar em casa, tomar banho e comer alguma

coisa, afinal é preciso pois desde a hora do almoço, por volta das 12, está apenas com o

sanduíche de Dona Helena, que sempre é dado de coração, mas que tem efeito limitado,

pois depois de tantas horas é preciso colocar mais alguma coisa para dentro.

São 11 horas e 45 minutos quando Marcinho desce do ônibus, da segunda

condução, que pegou no centro de Nova Iguaçu, no caminho inverso para voltar para

casa, é a lei da física, ou da vida. Marcinho sobe as ruas mal iluminadas, o vento frio corta

e machuca os ossos mal protegidos pelas poucas roupas que o dinheiro curto pode

comprar. Passa pela porta da casa de Simone. Casa humilde como a sua, em que já

impera o silêncio e a escuridão. A namorada já deve estar dormindo, sonhando com a

futura vida em comum, assim como ele fará daqui a alguns minutos.

Mais duas esquinas e estará em casa. Poderá então matar a fome e se proteger

do frio, que castiga e maltrata. Ao virar a penúltima esquina, Marcinho é surpreendido. De

repente nada mais faz sentido, todo barulho cessa. O mundo começa a girar, cada vez

mais rápido, até que as imagens e luzes vão desaparecendo, como o vento que vem e

passa. Marcinho sente o sopro de sua vida esmorecer.

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Atingido por uma bala, perdida até aquele momento, e que acaba de encontrar o

seu destino, Marcinho se depara com a realidade tão comum em seu dia a dia. Não há

reação, não há o que fazer. O corpo de Marcinho tomba na rua sem asfalto, enquanto

dois homens batem em retirada, no encalço surgem da escuridão os coturnos, que se

aproximam e observam, mas preferem continuar a perseguição a socorrer aquele corpo

que luta para sobreviver, afinal é mais um bandidinho, que diferença faz. Assim como não

fará diferença saber quem foi o responsável pela bala perdida. São tantas, todos os dias,

que acabam virando estatística. É melhor jogar a culpa na bala que sempre tem um

encontro marcado com alguém.

Num último esforço, Marcinho vira a cabeça para o lado, os coturnos se foram e

nenhum outro pé tem a coragem de aparecer na rua para ver o que aconteceu. A luz, que

já era fraca, agora vai e volta, a cada ida, demora mais e mais para voltar. Ao virar a

cabeça para o lado, tudo o que Marcinho consegue avistar é um letreiro, cuja luz se

apaga.

Triste lugar para marcar um encontro, principalmente com uma bala perdida.

É o fim. Pelo menos para Marcinho. Mas a vida continua, pois muitos outros

Marcinhos estão com seus encontros marcados e a história, na verdade, não tem fim.

TESTEMUNHA OCULAR – Conto 4

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Ana Clara desceu correndo a escada que leva do seu quarto para o andar inferior

da casa. A vontade de chegar à porta da frente era tanta que nem se deu ao trabalho de

vestir a roupa primeiro. Veio colocando-a pelo caminho. Tropeçando na calça enquanto

segurava a camisa com os dentes. Finalmente conseguiu se compor.

Mas afinal, para que tanta correria? Podia jurar que ouvira barulho na porta. Só

poderia ser ele. Depois de tanto tempo voltara. Fazia uma semana que não o via, mas,

para ela, parecia uma eternidade.

Nada, tudo fruto de sua imaginação, não havia ninguém à porta. Frustrada com a

ausência, encheu o copo de whisky, o que ficava permanentemente sobre o bar, o

preferido dele. Ao lado da garrafa, Ana Clara desprezou o recorte de jornal que repousava

tranqüilo. Sentou-se no sofá e começou a pensar em quando conhecera o homem que

acompanharia sua vida nos últimos dez anos.

Ainda era muito jovem, dezoito anos, e passeava no shopping com Denise, sua

irmã mais velha, aliás como sempre faziam. As duas adoravam aquele shopping, sempre

cheio de jovens. As lojas, sempre cheias de novidades, todas que o dinheiro pudesse

comprar. Enfim, a vida que Ana Clara tanto amava.

Mas, aquela tarde não seria igual às outras. Sábado de sol, o verão fervia lá fora.

Dentro, o ar condicionado, a muito custo, segurava a temperatura. As duas passaram a

manhã e parte da tarde na praia, Copacabana. Aquele era o lugar, o sol brilhava diferente

em Copacabana, praia mais do que democrática, que sempre abrigou todas as “tribos”,

sem se importar com a origem de cada um.

Por volta das duas saíram da praia, como costumavam fazer todos os sábados.

Até ai nenhuma novidade. Casa, banho, almoço, shopping. Um ritual que marcava o dia

mais importante da semana, pois, depois ainda viria a boate, o restaurante ou outro lugar

qualquer, ia depender da vontade do pessoal. Até ai nenhuma novidade.

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Ana Clara sabia que seria mais um sábado divertido, como era a maioria dos seus

sábados. Mas não podia imaginar que justamente aquele seria um sábado diferente, que

marcaria o resto de sua vida. Como de costume, às quatro já estavam no shopping. E,

como de costume, andaram um bocado antes de encontrar a turma, gostavam de fazer

isso. Primeiro curtiam a intimidade de irmãs, andavam, reparavam nas pessoas,

comentavam, enfim, se divertiam somente as duas. Depois iam se divertir em grupo.

Foi Denise, inclusive, quem primeiro reparou na máquina fotográfica que as

perseguia. Alguns momentos de observação e constatou que, na verdade, a máquina

perseguia insistentemente Ana Clara e não as duas. Chamou a atenção da irmã, que até

aquele momento não tomara conhecimento da tal máquina. Avisada pela irmã, Ana Clara,

pela primeira vez, olhou para a lente. Aquela lente, escura à distância, foi pouco a pouco

se revelando para ela. Na verdade, não foi se revelando, mas sim se escondendo, para

dar lugar aos olhos por trás, já que na verdade eram eles que a perseguiam, escondidos

que estavam atrás da lente.

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Jamais esqueceria aqueles olhos. Não poderia imaginar, também, que voltaria a

encará-lo milhares de vezes depois. A lente voltou a esconder os olhos e disparou,

impiedosa, contra Ana Clara. Uma, duas, três, quatro, dezenas de vezes. Depois de

alguns minutos, cansada do bombardeio, ela saiu de cena, foi descansar de seu trabalho,

enquanto os olhos voltavam, ou melhor, iam de encontro a Ana Clara e sua irmã. Alguns

minutos depois estavam sentados, conversando como se há muito se conhecessem.

Tamanha foi a aproximação, a atmosfera criada, que ambos deixaram suas

acompanhantes esquecidas, a irmã e a máquina. A primeira ainda pode fugir, foi procurar

a turma, afinal não pretendia passar o resto do sábado “escoltando” os dois que,

entretidos com a conversa que ficava cada vez mais íntima, haviam esquecido

completamente de sua existência. Já a máquina, coitada, nada podia fazer. Foi obrigada a

ficar até ao final, relegada a um segundo plano. Logo ela que era a companheira

inseparável, sendo trocada sem a menor cerimônia por uma estranha e ainda sendo

obrigada a presenciar tudo, quieta, submissa, sem poder voltar a disparar contra a rival.

Naquele sábado Ana Clara mudou seu programa. Denise e a turma tiveram que

seguir para a noitada sem ela, que preferiu ficar com seu novo amigo. Ninguém entendeu

bem o que acontecia. Logo ela, que era sempre a mais animada de todos, que gostava de

se divertir e que ignorava todos os rapazes. Gostava de sair e se divertir junto com eles,

mas não namorá-los, ah! isso não. Para isso, confidenciava à irmã, os rapazes eram

muito chatos, além de inexperientes. Já havia tentado manter um relacionamento com

dois deles. A história não passou de uma semana em ambos os casos. Os jovens a

perseguiam, sentiam ciúmes, afinal Ana Clara era, sem dúvida, uma bela garota. Na praia

então, fora obrigada a contornar algumas situações delicadas para evitar que a ciumeira

dos rapazes terminasse em pancadaria. Apesar disso, não deixava de se divertir com eles

e às custas deles.

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Mas, naquele dia, não quis seguir com a turma. Preferiu ficar e conhecer um pouco

mais aquele homem que era bem mais velho, já caminhava para a casa dos quarenta. Os

cabelos grisalhos já sobressaiam, assim como as marcas que o tempo vai deixando no

rosto daqueles que têm o prazer de deitar e acordar para um novo dia por muitos anos.

Apesar disso, queria conhecer mais aquele homem que, sentado a sua frente, dizia-se

fotógrafo. Deu-lhe um cartão. Como toda boa jovem, lia muitas revistas de moda e já

observara antes aquele nome em algumas delas. Era realmente fotógrafo, trabalhava com

moda e estava no shopping fazendo um ensaio que seria publicado em uma revista na

semana seguinte. Depois de encerrar seu expediente, decidiu ficar pelo shopping,

gostava de pegar alguns instantâneos das pessoas sem que elas percebessem. Foi num

desses momentos, quando a lente apontou na direção de Ana Clara que tudo aconteceu.

Depois daquele sábado passaram a se ver constantemente. Eduardo, sim Eduardo

era seu nome, aparecia sempre. As vezes ficavam um período sem se ver. De vez em

quando Eduardo precisava viajar. América do Sul, Caribe, Europa, o trabalho assim

exigia.

Em menos de um ano estavam morando juntos. Ninguém entendeu a situação. Ou

melhor, entender, entenderam sim, mas se recusavam a aceitar, essa era a verdade. Mas

isso pouco importava para eles. Juntos eram invencíveis, tudo podiam. Por insistência de

Eduardo, Ana Clara fez um ensaio fotográfico, somente para ele. Tinha uma coleção de

verão que seria lançada no início do próximo ano, caminhavam para o segundo de união,

e ele precisava fazer um trabalho de primeira, queria algo diferente.

Decidiram viajar, Ana Clara já se dispusera a colaborar. Iria posar com as roupas.

Na verdade eram shorts, camisetas e biquínis. Escolheram uma praia no litoral do Rio de

Janeiro. Haviam acabado de sair do inverno, baixa estação, logo teriam tempo e

tranqüilidade para trabalhar.

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Assim foi. Durante uma semana fizeram mais de 200 fotos. Além da praia, a

cidade também era bela, daria um bom cenário. Antes das seis já estavam na praia,

aproveitavam o nascer do sol. E lá permaneceram por boa parte do dia. Junto com eles, a

máquina e sua lente. Lente que se mantinha silenciosa e cúmplice, desde o primeiro dia.

Fora, sem dúvida, relegada a um segundo plano, mas tinha a sua vingança. Somente

através dela Eduardo conseguia reproduzir a imagem que considerava perfeita. Foram

centenas as vezes que ele, também submisso, pediu que ela reproduzisse aquele retrato

divino, a imagem de Ana Clara. A cúmplice, quieta, repetia os quadros, não dizia nada,

nem precisava pois já tinha a sua vingança. Ele podia ter a mulher para ele, mais somente

ela, lente, podia reproduzi-la. Por isso já não ligava mais quando era deixada

definitivamente de lado enquanto os outros dois se entregam loucamente ao amor que os

unia. E isso acontecia cada vez com maior freqüência e intensidade.

Daquela semana na praia resultaram três acontecimentos.

Primeiro Eduardo não precisou de muito esforço para montar seu trabalho. Bastou

juntar algumas fotos de Ana Clara e pronto, a campanha foi um tremendo sucesso, que

levou os dois ao segundo acontecimento. A partir daquela campanha, Ana Clara nunca

mais deixou de posar, também profissionalmente, para o companheiro. Nos oito anos que

se seguiram os três, os dois e a lente, fizeram muito sucesso. Vira e mexe e lá estavam

eles, os três, nas primeiras páginas das revistas.

Um magnífico sucesso que levou os três ao terceiro acontecimento. Diante de

tanto crescimento profissional, os rendimentos também cresceram. Decidiram, então,

comprar uma casa, lá naquela praia de onde haviam zarpado para o sucesso. Se

tornaram inseparáveis, os quatro, Ana Clara, Eduardo, a lente e a casa. Juntos

registraram imagens que ficaram para a memória e que hoje habitam as paredes da casa.

Ana Clara se levanta do sofá, vai novamente ao bar e torna a encher o copo,

aquele mesmo copo que Eduardo tanto gostava e que mantinha sobre o bar, alerta,

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pronto a servi-lo sempre que fosse solicitado. Pega o copo cheio e se depara novamente

com o recorte de jornal, que estava ali há uma semana. Eduardo voara para a Europa, a

trabalho, na sexta-feira da semana anterior, no domingo chegara o recorte de jornal.

Ana Clara volta para o sofá e para suas lembranças. Nunca ficara tanto tempo

sem Eduardo desde aquele sábado em que se conheceram. Sempre viajava com ele. Na

maior parte do tempo trabalhavam juntos, uniam o útil ao agradável. Mas desta vez não

pode ir. Ficou por recomendação médica. Não havia nada grave com ela, mas passara

mal alguns dias antes. No sábado anterior a viagem, foi parar as pressas no hospital.

Aquela confusão revelou uma surpresa para os dois. O susto foi substituído pela alegria,

afinal aquele amor ficaria marcado para sempre, e não seria através da lente da máquina.

Mas de outra forma, depois de nove meses o registro definitivo. Já haviam se passado

dez anos desde aquele sábado no shopping até que a notícia chegou trazendo ainda mais

felicidade. O herdeiro ou herdeira daquele amor estava a caminho.

Passado o susto decidiram que Ana Clara não viajaria. Seria melhor ficar na casa

de praia repousando. Foi substituída na última hora por outra modelo, que seguiria com a

equipe para o Mediterrâneo, enquanto Ana Clara ia para o refúgio da praia, com sua irmã,

que sempre convivera com os quatro, Ana Clara, Eduardo, a lente e a casa. Lá

esperariam Eduardo voltar, o que deveria demorar pouco mais de dez dias, se o tempo

ajudasse e o trabalho corresse normalmente. Não era tão ruim assim, pois dez dias

passam rápido. Agora, então, teriam que passar. Não tiveram tempo de ficar a sós desde

que receberam a notícia de que a família estava crescendo. Agora seriam os cinco, Ana

Clara, Eduardo, a lente, a casa e a criança.

A irmã havia saído cedo, fora à cidade resolver alguns assuntos para ela.

Enquanto isso, esperava. Mais uma dose de whisky? Melhor não, seu estado não

recomendava o álcool. Havia se levantado. Olha a garrafa. Ao lado o recorte de jornal que

ali repousava desde o sábado anterior. Vai até a varanda e senta na cadeira. Sempre

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deixavam duas na varanda pois gostavam de sentar ali para conversar. Senta, desta vez

sozinha, e observa o mar, que pertencia a eles dois, a praia pertencia a eles. Naquele

refúgio eram inatingíveis, ninguém poderia alcançá-los ali. Assim tinha sido, durante os

últimos seis anos. Todo verão a casa os recebia, os três, Ana Clara, Eduardo e a lente.

Juntos, os quatro, se divertiam e registravam para a posteridade aqueles momentos, que

hoje flutuavam pelas paredes da casa, também cúmplice, como a lente, dos momentos

tórridos de paixão, em que se entregavam sem limite, sem pudor, sem preocupações.

Eram só eles no mundo e mais ninguém. Só eles, vigiados pelos dois cúmplices, a lente e

a casa. Mas estes se recusavam a falar. Só observavam, provavelmente extasiados,

aqueles momentos de paixão, que não foram poucos.

A imensidão daquele mar também extasiava. E quantas vezes ela e Eduardo

ficaram naquela varanda, observando o mar, o cair da tarde e se extasiaram com o

espetáculo, um avant premier para o espetáculo principal, que seria protagonizado pelos

dois, no quarto, no segundo andar, local preferido para os momentos íntimos que

desfrutavam.

Ana Clara não resiste às lembranças e volta para dentro de casa e sobe as

escadas correndo. No quarto observa tudo ao seu redor. A janela de onde também

observavam o mar. A cama, que centenas de vezes os recebeu de braços abertos, pronta

a acolher aqueles dois que vinham trocar amor com tanta intensidade. As paredes com as

marcas registradas pela lente. Imagens que tornam o ambiente ainda mais íntimo e

provocante, pelo menos para os dois.

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Desta vez Ana Clara volta para a sala lentamente. Já não tem a pressa de antes.

Sabe que Eduardo não estará lá embaixo batendo à porta. Desce e volta para o sofá.

Torna a levantar e se dirige, uma vez mais, ao copo, que repousa sobre o bar, vazio. Ao

lado a garrafa, cheia. A combinação perfeita. Ana Clara enche o copo. Por que quer tanto

beber esse whisky? Na verdade, não consegue entender. Lá fora a tarde já se apresentou

a algum tempo. O sol, majestoso, brilha, trazendo os raios que tanto já marcaram seus

cabelos para que Eduardo e a lente os registrassem. Apesar, disso, não sente vontade de

sair, prefere ficar dentro de casa. Gostaria de entender porque. Olha o copo, que já está

pela metade. Dirige-se, mais uma vez, ao bar. Pega a garrafa e torna a encher o copo. Se

Eduardo a visse usando aquele copo. Nunca o fizera, pois o copo era somente dele, o

esperava todo final de semana.

Depois de encher o copo, devolve a garrafa. Para diante do recorte de jornal, que

continua sobre o bar. Pega o recorte e volta ao sofá. Depois de mais um gole, cria

coragem e encara aquele jornal, que está ali aguardando-a desde o domingo anterior. A

matéria falava sobre um desastre aéreo ocorrido na costa italiana. Uma falha mecânica

provocara o pouso forçado, mas a manobra não fora bem sucedida e a aeronave foi de

encontro ao solo, provocando a explosão.

Ana Clara levantou, voltando ao bar. Devolve a ele o recorte de jornal. Olha para o

objeto de vidro que segura com uma das mãos e entende porque não quer mais sair de

dentro daquela casa e porque desejava tanto beber o whisky naquele copo. Entendeu que

os dois, Eduardo e a lente, não mais voltariam. Agora, estavam separados pela primeira e

última vez.

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