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Sísifo

“[…] Abriu-se em calma pura, e convidando


quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,


se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,


a se aplicarem sobre o pasto inédito

da natureza mítica das coisas […]”

- A Máquina do Mundo, Carlos Drummond de Andrade

Prólogo
1897, Marselha
“Às 6 horas o Diabo aparecerá.”

Dupont segurava o bilhete com firmeza, não podia acreditar no que estava escrito. Olhou
seus arredores e o garoto que havia lhe entregado a nota já sumira nas ruas tumultuosas da
cidade em pleno verão.

Tentou raciocinar o motivo de não crer que aquilo era uma simples brincadeira infantil ou
alguma medida tomada por um adulto de mau gosto. “E ainda usou uma criança para
isso…”, pensou. Mas sentia que todos aqueles pensamentos eram inúteis.
Fitou a multidão que passeava em frente a sua loja por um momento, em seguida acariciou
o próprio bigode e coçou a cabeça, passando os dedos entre os cabelos ralos. “O dia
certamente será estranho.”. De toda maneira, afirmou para si mesmo que não podia perder
tempo e retornou para sua loja de venda e conserto de relógios. Passados alguns minutos,
um cliente entrou na loja, perguntando se havia alguma esperança para seu relógio de
bolso, e Dupont prosseguiu com suas atividades normalmente.

Sua rotina era um tanto quanto inflexível e trabalhava o dia inteiro, com uma pequena
pausa no almoço quando ia para um café rua abaixo, onde fazia uma refeição farta e
conversava com alguns boêmios. Suas pausas mais frequentes consistiam apenas em ficar
na frente da sua loja, fumando um cachimbo. Mas naquele dia fez questão de abandonar
esse hábito, ficando enclausurado entre quatro paredes e ignorando completamente o
horário do almoço.

Se sentia um idiota por ter escolhido fazer isso, e dizia para si mesmo que se tivesse pago
um assistente para trabalhar consigo, ou pelo menos arranjado um aprendiz, já poderia
estar vendo algum idiota recitando um poema no café, enquanto ele mesmo estaria
reclinado em alguma cadeira ou poltrona.

As horas iam se passando cada vez mais lentamente e poucas pessoas tinham decidido
entrar na sua loja naquele dia. O ócio estava matando o relojoeiro e por todo canto que
olhasse havia diversos lembretes do seu futuro encontro: lembretes com madeira siciliana,
alguns banhados a ouro, outros com cordões de prata, alguns de pulso e alguns antigos
companheiros de famílias destruídas, comprados em leilão. Por fim, lembrou que tinha um
compromisso familiar ao anoitecer e que tinha uma desculpa perfeita para fechar a loja
mais cedo, sem se culpar de ser um covarde no dia seguinte.

Após alguns momentos contemplando a ideia, tomou a iniciativa e pôs seu paletó e chapéu
de vime, enquanto guardava o dinheiro do dia e fechava a loja. Trancou tudo e começou a
andar em direção ao porto que ficava na rua de sua casa. Entretanto, parou depois de
alguns passos e sentiu o súbito desejo de encarar a situação como alguém realista, com os
pés no chão. Voltou para a frente de sua loja e ficou encostado na parede, só faltava alguns
minutos para as 6 horas da tarde e ele decidiu esperar até a hora encarando seu relógio de
bolso. A rua estava quase vazia, salvo a presença de alguns comerciantes que estavam
fechando sua barraca e Dupont sentia sua respiração ficando cada vez mais fechada, como
se alguém estivesse pressionando seus pulmões.

Seus arredores ficavam cada vez menores e o mundo parecia cada vez mais hostil conforme
os segundos passavam. Sentia que o mundo ia lhe espremer como uma azeitona e puxá-lo
para dentro dele, onde não haveria escapatória e nem retorno. Sua mão suada começou a
tremer e o relógio que repousava sobre ela deu seu veredito: eram 6 horas. O relojoeiro
jurou escutar o badalar dos sinos da Igreja, mas sabia que eles estavam longe demais para
serem ouvidos.
Olhou em sua volta, e conforme suspirava, percebeu que não havia ninguém por perto que
não conhecesse. Eram os mesmos comerciantes, que ele sabia os nomes há tempos,
cumprindo a mesma rotina de sempre. Se sentiu aliviado e começou a caminhar para casa.
Não demorou muito para que chegasse ao seu lar - que era uma causa com um andar - em
frente ao mar. Entrou sem anúncio e sua filha pequena Aurore correu para abraçá-lo. Ela
estava com seu vestido branco e seus cabelos louros - herdados da mãe - serviam de grande
contraste aos cabelos ralos e grisalhos de Gérard Dupont. Em seguida, sua esposa, Isabel,
apareceu e lhe deu um beijo na bochecha, aproveitando para “roubar” Aurore e segurá-la
em seus braços.

Dupont olhou para sua família e depois fitou o relógio de pêndulo de sua sala de estar - por
um momento, considerou que talvez seu pai estivesse certo, e que ele deveria ter formado
uma família mais cedo. Lembrou do estranho bilhete que recebera e decidiu que, pelo resto
da noite, iria abolir todo tipo de pensamento que o afastasse da realidade.

— Você chegou em casa mais cedo… Algum motivo em específico? — A voz de Isabel soava
mais doce que o normal para Dupont.
— Não, não… Acho que eu só estou ansioso para o circo mesmo.
— Eu tenho quase certeza que isso conta como um motivo específico. — E finalizou sua fala
com um sorriso meigo. — Aliás, antes que eu me esqueça.
— O quê?
— Coloquei o revólver do seu pai na escrivaninha daqui de baixo. Me cansei do fato de ter
uma arma do lado do quarto da Aurore.
— Certo… Se alguém invadir nossa casa eu só me jogo das escadas em cima do invasor
mesmo.

Isabel riu, e logo em seguida Aurore começou a brincar com os cabelos de sua mãe, e esta
por sua vez a colocou no chão para brincar com uma boneca. E então avisou ao seu marido
que iria se arrumar para o passeio deles. Dupont ao ouvir essas palavras se acomodou em
seu sofá e pegou o livro “O Conde de Monte Cristo” que se encontrava em uma mesinha na
sua frente.

Passado algum tempo, sua mulher desceu das escadas que levavam a seus quartos,
exuberante como sempre. E a família Dupont se dirigiu ao circo. Os espetáculos eram
incríveis, os acrobatas criavam e aliviavam o suspense a todo instante, os domadores de
animais enfrentavam bestas africanas e asiáticas, mas sempre saiam com a vantagem, e
claro, o anunciador trabalhava com uma voz estrondosa e com os pulmões plenos de poder.

Mas todos os presentes - dos mais pobres aos mais afortunados - não estavam presentes
para verem as criaturas e muito menos pessoas elásticas. Queriam ver a apresentação
principal - o Mestre dos Espelhos. O ilusionista. Normalmente, os mágicos, até mesmo os
menos populares, se apresentavam em salões ou em grandes teatros, mas o Mestre dos
Espelhos, que era uma lenda em sua área, sempre escolhera se apresentar junto com
companhias de circo, ninguém sabia ao certo o motivo.

— E agora, com vocês, o Mestre dos Espelhos!


Todos começaram a aplaudir euforicamente, alguns assobiavam e a maioria gritava. Mas
depois de alguns segundos todos chegaram a uma mesma conclusão - ninguém estava
vendo o Mestre. Onde ele estava? Os olhares confusos encaravam ora a torre dos
malabaristas, ora as saídas do circo e por último a própria plateia, que eles faziam parte.
Dupont acompanhou o movimento coletivo, Aurore não estava entendendo nada e Isabel,
por sua vez, estava com a mão na barriga, contraindo o rosto em uma careta. Quando
Dupont percebeu o enjoo de sua esposa e se preparou para lhe perguntar se ela gostaria de
sair, sentiu uma mão pegar em seu pulso esquerdo, quando virou para ver quem era o
imbecil, viu um velho de aspecto repugnante.

— Me deseje sorte! — Gritou o velho, com os olhos verdes brilhando.

Dupont franziu o cenho e de repente o velho tirou o próprio rosto, que na verdade era uma
máscara de borracha, em um movimento grotesco. Era o Mestre dos Espelhos! Ele pediu
licença para aqueles que estavam sentados na arquibancada como ele e logo desceu para o
círculo onde iria se apresentar, correndo, ao som de aplausos.

— Gérard, eu acho que vou vomitar…

O relojoeiro pegou sua filha em um braço, se levantou e ajudou a sua esposa a sair do circo.
Quando chegou do lado de fora, Dupont encarou o céu noturno enquanto escutava sua
jovem esposa vomitando.

— Chega de circo por hoje. — Disse ele, rispidamente.


— Amor, tenho certeza que isso só foi algo passageiro, deve ter sido aquela sopa. — Ela
parou por um momento. — Vem, vamos ver o Mestre, sei que você estava animado para–
— Não. Vamos para casa.
— Gérard, você não pode ser assim!

Os olhos de Aurore começaram a lacrimejar e Isabel pediu para pegá-la. Dupont sabia que a
discussão era estúpida mas não pôde se segurar. Mas tinha certeza que caso sua esposa
voltasse para dentro do espetáculo ela vomitaria de novo, então decidiram sentar em
alguns bancos por perto. Passaram a maior parte do tempo conversando e acalmando
Aurore, que às vezes se assustava com algum barulho provindo do show do Mestre,
enquanto eram encarados pelos artistas que tentavam descansar em tendas por perto. E
então, finalmente, Isabel concordou em sair dali, mas Dupont, por sua vez, recusou a
sugestão. Não sabia explicar ao certo o motivo, mas sentia que deveria ficar até o fim do
espetáculo.

Não demorou muito para que as pessoas começassem a sair do circo, e que após alguns
instantes silenciosos, o Mestre saísse por outra parte do circo, indo para sua tenda. Assim
que Dupont percebeu sua presença ao longe, se levantou subitamente, e foi a seu encontro.
Isabel pensou em fazer o mesmo, mas Aurore havia adormecido em seus braços, a despeito
de todo o barulho ao redor, e ela deveria ser cautelosa ao se levantar. Então acabou apenas
observando os passos de seu marido.
Quando Dupont estava a alguns metros do ilusionista, este por sua vez se virou para trás e o
encarou. Dupont tomou um susto mas prosseguiu para cumprimentá-lo mesmo assim. O
mágico tinha um aperto de mão firme e seu olhar era penetrante. Seu rosto verdadeiro não
parecia nada com aquela máscara repugnante de antes, e seu cabelo era negro e repartido
ao meio. Além disso, ostentava um bigode fino e bem tratado na face.

— Meu nome é Gérard, sou um grande fã do seu trabalho, Mestre!


— Estranho, me pareceu que você saiu assim que o meu ato começou.
Dupont enrubeceu.
— Me chamo Gideon, prazer — Disse ele, com um sorriso no rosto. — Ah, e fique tranquilo.
Vi que sua esposa estava enjoada… Venha comigo, preciso de uma opinião.

Dupont olhou para trás e deu um joia para sua esposa. Acompanhou Gideon e não pôde
deixar de perceber que sua tenda era enorme comparada às tendas dos outros artistas. Seu
interior, entretanto, era decepcionante. Só tinha alguns desenhos de figuras estranhas,
coisas que aparentavam serem máquinas, sem dúvida obras do engenheiro desconhecido
do Mestre. Uma mesa com uma única cadeira e uma cama por perto. Mas havia uma coisa
que impedia aquela tenda enorme de ser completamente decepcionante: um caixão
próximo da cama.

— Diga-me uma coisa, Gideon, antes de qualquer coisa, como você percebeu que minha
esposa estava enjoada?
— Comecei a ficar de olho em vocês assim que eu desci para o círculo e fiquei saudando a
plateia. Bela filha, bela esposa.
— Você presta muita atenção na esposa dos outros? — Disse Dupont, com um tom de voz
mais grave.
— Ha! Que tipo de pergunta é essa?! — Disse o Mestre, acendendo um cigarro.
— Não sei… Para quê você me trouxe até aqui?
— Preciso da opinião de alguém sobre aquilo. — E apontou para o caixão.
— Eu vi várias pessoas nas tendas aqui do lado, por quê você quer saber a minha opinião?
— Quero a opinião de alguém que não seja um vendido pago para me bajular, ou que não
tenha o dia arruinado só porque minha tenda tem alguns metros a mais. — Parou por um
momento. — Mas qualquer pessoa fora desse circo serve.

Dupont encarou o sujeito por alguns segundos e foi checar a frente do caixão. Sua mão
voltou a tremer, os músculos das suas costas se contraíram e ele saltou para trás, quase
tropeçando. Havia um vidro no caixão, como uma janela, que permitia observar o que tinha
dentro daquele lugar de repouso. E através desse vidro, tinha a face mal formada de um
homem. Seu rosto era pálido, suas pálpebras estavam escuras como se tivessem sido
manchadas por carvão, o lábio superior estava ausente e revelava dentes podres. E no topo
da cabeça havia cabelos ainda mais ralos e brancos do que o do relojoeiro. A única
expressão daquele corpo que denotava alguma ideia de estabilidade eram os braços rígidos
e cruzados em X no peito.

— O que é isso?!
Os olhos de Dupont estavam arregalados enquanto ele apontava com um dedo trêmulo e
acusador para o mágico.

— É uma múmia. — Respondeu o anfitrião, sereno. — Não me diga que nunca ouviu falar
desses horrores do Egito.

O convidado suspirou e pôs as mãos perto dos joelhos, abaixou a cabeça e recuperou o
fôlego.

— Ela é real?
— Sou um mágico, caro Gérard, o que você acha? Vamos, sabe que eu consigo enganar
muito mais do que isso, afinal você já viu meu truque principal.
— Nunca assisti nenhum espetáculo seu, esse era para ser meu primeiro.
— Jesus! Era pior do que eu esperava. Você ao menos sabe do que o meu ato final se trata?
— Claro, um grande amigo meu, que é médico, me contou tudo. Você chama alguns
voluntários da plateia e — Enquanto Dupont contava o relato do espetáculo, o Mestre se
inclinou sobre a mesa. — coloca alguns espelhos perto deles. Pede que os voluntários façam
algumas coisas, é… como danças, não sei, algo para testar a flexibilidade ou força deles.
Enquanto isso todo mundo consegue ver o reflexo deles, sendo que aí que chega a parte
interessante.
— A parte interessante…
— É que os reflexos das pessoas… começam a fazer coisas diferentes. — Dupont coçou a
sobrancelha. — E algumas pessoas morrem de medo e saem correndo, outras apenas
interagem com os reflexos. E tudo ou é muito divertido ou muito assustador.
— Exato.
— Mas, e a múmia? Para quê ela serviria? Outro ato? Ou seria uma adição a esse ato dos
espelhos?
— A múmia é uma velha companheira. Cedo ou tarde será usada para alguma coisa, mas
gostaria que você pensasse no quê.
— Tudo bem, mas já aviso que sou ruim para enigmas.

O Mestre sorriu.

— Se resolvê-lo, você não terá dúvidas. E se realmente resolvê-lo, volte para me encontrar.

O ilusionista apertou a mão de Dupont como despedida, e o relojoeiro voltou para sua
família. O dia havia sido terrivelmente longo, mas certamente um dos dias mais
interessantes de sua vida. Depois de observar Isabel colocar Aurore para dormir em sua
caminha, Dupont deitou-se com sua esposa e se preparou para dormir. Não demorou muito
para que ficasse encarando o teto, lembrando do bilhete do garoto e do enigma do mágico.
Concluiu que não iria conseguir dormir naquela noite e se levantou em busca de seu
cachimbo. Acendeu-o e ficou na varanda anexada ao seu quarto, ora encarando as rosas em
sua parede, ora encarando o mar e o porto, sentindo o vento noturno e gélido em seu rosto.
E então, sentiu mãos suaves tocarem-lhe o braço, era Isabel.
— Ei… — Disse ela.
— Oi, amor. A noite tá difícil para você também?
— Não é isso… Sabe, quando eu vomitei do lado do circo?
Dupont fez que sim com a cabeça.
— Eu não estava me sentindo tonta nem nada, que nem naquelas outras vezes. E parei para
pensar, talvez não seja a sopa… você e a Aurore estão bem. Eu acho que… é… esse enjoo
surgindo do nada me lembrou quando eu estava grávida com nossa fadinha…
— Você acha que…?
— Sim! — Ela sorriu e encostou a cabeça no ombro de Dupont.

O relojoeiro suspirou aliviado e lembrou de um trecho de uma oração que costumava


recitar em sua infância: “A santa Igreja anuncia por toda a terra a glória do vosso nome…”.

Na manhã seguinte, após ter adormecido inesperadamente com sua esposa, Dupont
acordou bem cedinho, se vestiu e caminhou até seu trabalho. Estava com a mente fresca, e
embora houvesse uma pulga atrás de sua orelha, lhe lembrando do bilhete do menino, isso
não importava mais, pois provavelmente iria ser pai de novo e isso era o motivo de toda sua
felicidade.

Quando terminou de abrir sua loja e de espanar algumas prateleiras, a aurora estava
rompendo no céu e os relógios marcavam 6 horas pontualmente. Ele percebeu isso, e com
um sorriso triunfante, sabendo que nada lhe iria ocorrer, encarou a entrada da loja.

A porta foi aberta e um homem esguio entrou. Dupont arregalou os olhos enquanto a figura
ia diretamente nele. Era um homem com um rosto perturbador, seu rosto era jovem mas
seus olhos azuis não tinham vida alguma, nenhum sinal da menor e mais singela expressão.
A barba estava feita perfeitamente e seus cabelos eram lisos e castanhos. O coração de
Dupont começou a bater violentamente em seu peito e novamente ele sentiu como se o
mundo fosse lhe espremer e lhe absorver como se ele não fosse nada. A figura se aproximou
e pôs as mãos magras sobre o balcão e encarou o relojoeiro.

— Você é Gérard Pierre Dupont.

Dupont permaneceu calado, sabia que aquilo não fora uma pergunta e tinha horror do que
isso implicava. A figura se aproximou dele, tirou-lhe o relógio de bolso e o esmagou na
mesa.

— Você não tem mais tempo. Nada disso importa mais. A imagem de uma ampulheta lhe
serve melhor, ela é finita.
— Quem–
— Escute-me! Não me interessa qual esperança ou desgraça você acha que está passando
na sua vida agora, nada disso importa mais! Tudo acabou! Tudo.
O relojoeiro engoliu seco e ficou encarando a figura imóvel.

— O que existe para você, artesão, é a oportunidade de girar a ampulheta e colocá-la em


movimento novamente. Sei que criou belas memórias com Isabel, que contou histórias de
dormir para Aurore e que escolheu esse nome depois do amanhecer mais bonito que já viu,
quando ela estava prestes a nascer. Mas, me escute! Em um teatro, alguns atores se retiram
do palco antes do que outros. Seu tempo pode recomeçar, mas o delas chegou ao fim. Sei
que você tem um revólver em casa, e sei que cometeu um erro em vir aqui com esse orgulho
de merda, com um sorriso na cara, sem a arma. Você tem até as 11 horas da noite para
matá-las. Se não fizer isso, não haverá um amanhã para toda essa gente. Todos queimarão
no inferno, e você verá tudo, saberão que foi você que–

O sangue de Dupont ferveu e ele agarrou o pescoço do estranho com tanta força que sentiu
que iria destruir sua traqueia, sentiu que podia arrancar sua cabeça e– dor. Dupont sentiu
que seu cérebro começou a queimar, que os ossos de sua cabeça estavam sendo
pressionados, comprimidos, atravessando cada tecido, cada músculo, lhe jogando aos gritos
no chão. Ele gritava com tanta força, que sentia os pulmões doerem, as pernas chutavam
inutilmente o balcão de madeira e vidro, com as mãos sangrando batendo ora na madeira
ora na parede.

O relojoeiro acordou em um beco, com pessoas assustadas lhe encarando. Seu corpo todo
fervia, e um mendigo lhe ajudou a levantar. As roupas de Dupont estavam rasgadas, alguns
dos dedos de suas mãos estavam quebrados e uma pálpebra inchada lhe impedia de
enxergar como queria. Logo, olhou para o céu noturno, lembrou das palavras do estranho e
começou a correr. Sentia que algum de seus joelhos não estava no lugar, que os pulmões
estavam querendo parar mais do que tudo, mas ele não podia. Não queria. Ele tinha que
conseguir chegar em casa a tempo, impedir o que aquele estranho estava querendo lhe
insinuar. Um assassinato? Nas mãos de quem? Ele sabia que nunca iria matar a própria
esposa e a própria filha, então será que outra pessoa iria tentar fazer isso? Outras…
pessoas? Não havia tempo e tudo estava se desvanecendo em sua cabeça.
Quando chegou na frente de sua casa percebeu que sua rua estava vazia e se jogou na porta
de entrada.

— Isabel! Aurore!

A porta estremeceu mas não se abriu, então ele se jogou de novo arfando de dor com toda
força que lhe restava, finalmente abrindo ela. Ele caiu no chão e viu que nenhuma delas
estava na sala de estar da casa, então andou se agarrando na mobília até chegar no
corrimão da escada. Conseguiu subir quase se arrastando ao primeiro andar quando Isabel
apareceu.

Ela teve um sobressalto e bateu as costas na parede.

— Meu Deus! — Gritou, começando a chorar e abraçando Dupont.


— Que horas… que horas são?
— O quê…?
Aurore começou a chorar em seu quarto e Dupont pôs uma mão no ombro de Isabel e a
afastou, caminhando até o quarto de sua filha se encostando nas paredes. Com as paredes
ensanguentadas atrás de si, Dupont abriu a porta do quarto e, com o quarto iluminado pela
luz da lua, viu sua filha chorando em sua caminha e o estranho em pé em um canto. Isabel
apareceu atrás do marido e quando viu o estranho ficou paralisada.

O estranho pegou uma lamparina que estava numa cômoda ao seu lado e acendeu ela com
um fósforo retirado do paletó. Lentamente, ele levantou ela ao seu rosto e começou a falar.
— São 11 horas, Dupont.

O casal permaneceu imóvel enquanto o choro de Aurore ficava cada vez mais alto.

— Isabel, pegue o revólver da escrivaninha.

Isabel, trêmula, obedeceu o estranho prontamente, descendo as escadas e pegando o


revólver, enquanto o estranho fitava o rosto de Dupont.

— Relojoeiro, ponha sua filha em seus braços.

Dupont também obedeceu e ficou esperando pelo retorno de sua esposa. Tentava, se
esforçava ao máximo, mesmo, para pensar em qualquer ataque que poderia fazer ao
estranho, mas seu cérebro e braços doíam. E então, Isabel apareceu com o revólver
envelhecido.

— Eu… — Ela começou, com a voz tímida, oscilando — verifiquei, ele está com algumas
balas.
— Tudo bem, . Só precisamos de duas balas. Venha, me entregue o revólver.

Isabel, como num transe, se aproximou gentilmente do estranho e lhe entregou o revólver,
sem questionar. Ele tocou levemente sua cabeça duas vezes, como se ela fosse um mero
cachorro, e a mandou retornar para o local onde estava. Sinalizou para que Dupont
entregasse Aurore, que agora estava se acalmando, para sua mãe. E por último, pediu que
Dupont se aproximasse dele.

Dupont se aproximou, cambaleando e recebeu o revólver diretamente de suas mãos,


enquanto se sentia um pouco cego pela lamparina.

— Agora, artesão, cumpra seu destino.

O relojoeiro apontou o revólver para sua família, que se encontrava perto da porta do
quarto. Destravou a arma e pôs o dedo no gatilho. E então os olhos de sua esposa
começaram a crescer novamente, suas pupilas começaram a dilatar como se ela tivesse
saído de um transe, e sua filha começou a chorar e gritar mais alto do que nunca.

— Gérard! Gérard! — Gritou Isabel, virando-se de costas para proteger a filha.


Em um curto momento, Dupont, recobrou a consciência, tornou-se a sua esquerda e atirou
no meio da testa do estranho. O impulso jogou o estranho para trás, mas foi menor que o
relojoeiro previu. O estranho calmamente colocou a lamparina na cômoda. E olhou para
Dupont, que suspirava e gemia de dor e raiva. Não havia nenhum rastro da bala na testa do
estranho.

Antes que Dupont piscasse, o estranho saltou sobre ele, pegando seu maxilar na mão e
batendo o rosto de Dupont na cômoda. E novamente, o nada. Dupont acordou em seu
quarto, ouvindo gritos do lado de fora e barulhos que não sabia descrever, barulhos
cortantes. Também havia o familiar som de madeira queimando, ele se esforçou para abrir o
único olho que funcionava e viu a fumaça que o cercava. Se agarrou na cama de casal para
se levantar, e ignorando o que poderia existir do lado de fora, foi em direção ao quarto de
sua filha. Novamente, se encostando nas paredes ensanguentadas, mas dessa vez não teve
que abrir a porta, pois o fogo já havia consumido ela. Tudo o que pôde ver no quarto além
das chamas foram duas silhuetas carbonizadas no chão, uma quase dentro da outra,
formando como que um único ser. Dupont sabia que não precisava ver mais nada e voltou
para o quarto de casal enquanto as chamas se espalhavam pelo corredor do andar de cima
da sua casa.

Ele atravessou o anexo e chegou na varanda, colocando as mãos cobertas por cinzas para
descansar por um momento. Olhou para o céu e viu máquinas voando, soltando luzes
vermelhas e finas, quase imperceptíveis, com um barulho agudo e extremamente cortante.
Olhou para baixo e viu os corpos de algumas pessoas, no horizonte havia diversos prédios
pegando fogo e no mar haviam algumas pessoas que nadavam, e outras que se afogavam. Os
gritos eram indistinguíveis. Eram como uma massa que antes era individualizada e possuía
inúmeros diferenciais, mas que agora compartilhava o mesmo destino, a mesma desgraça, a
mesma carne.

Dupont se agarrou na parede com as rosas, colocou seus pés sobre a varanda e saltou.
No outro andar da casa, descansava um retrato de um homem de meia-idade com um
relógio de bolso, sua jovem esposa de cabelos loiros e uma garotinha sorrindo.

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