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DANIEL DA ROCHA LEITE

Girândolas

Prêmio Samuel Wallace Mac-Dowell

ROMANCE

Academia Paraense de Letras


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Para alguma pessoa, algum mundo:

amar, ainda, é um verbo possível.

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Gira, Girândola

Um barquinho de miriti amarelo, apostando corrida com outro vermelho, se


perde na correnteza. Enquanto o vermelho, insurgente e veloz, embora
cego, vence a porfia. O barco amarelo se chama Tobias; um sol perdido, há
39 anos, para as bandas da ilha da Pacoca, e nunca mais reencontrado. O
barco vermelho se chama Maria; um crepúsculo de todos os dias, presente,
na ilha indestrutível do coração.

A infância e o amor das crianças recontados. As asas das formigas de


chuva espalhadas pelo vento do abandono. A girândola vazia no pesadelo
do artista. O Escalpelamento da gêmea. A mulher homem menina
estuprada. O velho contador de histórias. A professora, o puxirum, a escola.
Libido e ascese, desejo e paz, ao tato de Maria. Um móbile de miriti para
preencher as noites de solidão. A girândola da alegria que não gira.

Em Girândolas, Daniel da Rocha Leite enfrenta as águas imaginárias uma


vez mais. E procura trazer todas as invisibilidades da infância dos meninos
de Abaetetuba em sua montaria.

O peixe da memória com o qual Tobias insiste em lutar o bom combate. Os


passos de um passado cada vez mais apressado em chegar ao ponto de
partida. O próprio texto, frequentemente em busca do metatexto, que desce
por corredeiras estreitas para dar mais ritmo, e velocidade, ao barco que
avança exasperado rumo a um destino, ainda que o saiba desolador. São
todas imagens e vertigens de um rio cujas margens vêm dar em nós. Uma
Abaetetuba sem mesuras, com suas ruas líquidas e suas pessoas muito mais
do que simples.

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Neste livro onde a água é condição sine qua non ao desenlace de cada
capítulo, o amor é um solitário barco de miriti, encalhado em uma
girândola fantasma, que pesa feito cruz, nas costas do narrador. Tobias, o
artesão cego sem sua Maria.

Nosso escritor, estreante na difícil arte do romance, não inventou um


mundo e seus hóspedes, ele escreveu sobre esse amor e tomou parte numa
paixão cega e duradoura. Escreveu com o arrependimento de Tobias que se
reflete em todas as páginas destas águas de Maria.

Atento, Daniel viu, ouviu, anotou, engendrou e dedicou-se com afinco à


pescaria, depois se banhou no trapiche da infância, rodeado por
Miritizeiros, e pisou em argilas rosadas (gengivas do tempo), mas tudo com
muito cuidado para não espantar os peixes. Assim, o autor escreveu outra
história dentro de sua história. Uma história de vida - pesada como os
tijolos das olarias daquela cidade oprimida pela pobreza humana, e leve
como os brinquedos de miriti nas mãos de crianças corajosas, valentes.

O leitor que ainda não visitou a mauritiosa cidade, ao virar das páginas
deste Girândolas, vai sentir vontade de banhar-se naqueles rios. Já o leitor
que alguma vez deitou-se nas águas do Maratauíra sentirá úmidas saudades.
Agora, aquele que nasceu e cresceu em uma das pequenas ilhas sem nome
de Abaetetuba, ao ler este livro, vai embarcar solidário na canoa das dores
de Tobias. Vai pedir aos deuses que olhem por Maria.

Paulo Vieira,
Belém, Abaetetuba, Rio Itacuruçá, Águas de abril, 2009.

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(...)

E é assim com um fazedor de brinquedos de miriti.

Ele é a história das suas mãos.

A palavra que se escreve no imaginário de uma palmeira.

Várias gentes, uma árvore.

Ele escreve a si mesmo nas braças de um miriti.

Escreve as suas lutas.

Escreve o seu mundo.

Escreve a sua vida.

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Em algum instante, em Belém do Pará.

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I

Mais uma chance para redescobrir o teu lugar, a tua casa


de bênçãos: o trabalho das tuas palavras no teu gesto, escrito e destinado, de
pôr luz, com as tuas mãos, nas dores das pessoas. A tua reza necessária que
semeia alguma paz. O rosário entrelaçado nos teus dedos magros e na tua
voz. O perfume da tua pele, o crucifixo guardado no calor da tua mão. A tua fé.
O suave da tua voz. A vida morena no teu corpo. Tudo da tua verdade. A tua
escolha, o lado do teu mundo à parte de mim. Um outro início da tua outra
margem. Agora, aqui, na tua casa, a minha segunda vez.

Eu sou o sétimo da fila. Estou no pátio aguardando a hora


do meu chamado. Lá fora, cai uma chuva fina no rastro dessa manhã cinzenta.
Manhãs chuvosamente intrigantes que excitam algum pedaço humano de
nossas lágrimas. Alguma ternura, algum desejo. Algum caminho que se esvaiu
dos olhos. Alguma possibilidade nos sentimentos úmidos de todas as histórias
entre janeiro e abril do chão reavivado na rua das mangueiras. Aqui, nesse teu

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pátio, os véus das samambaias se misturavam ao canto dos curiós no raiar
desse sol tímido. Estou de volta à tua casa. Um instante de toda uma vida.

Ao meu lado, um senhor me mostra um bilhete da médica


do posto de saúde, no qual ela recomenda o teu trabalho de rezar. A tua casa.
Ouvir e benzer. O teu endereço. Nele está escrito um outro nome, mas eu sei
que és tu, a tua fé. O teu lugar. O destino que tu escreveste.

Ele me fala de esperança. E seus olhos ficam marejados.

Eu sorri. Disse a ele que tu tinhas olhos que abençoavam.

E uma paz infinita no som da tua voz. Uma luz.

Não tive a coragem suficiente de também dizer a ele, que


da última vez que eu estive aqui, uma senhora saiu, inconformada e aos
prantos, da tua sala. Ela disse que tu nada podias fazer. E tu, tu deste a ela o
mesmo nome dessa médica que agora recomendava o teu abençoar, a tua fé.
Compreendi, no semblante desse senhor, que cada um escreve a sua
esperança, e que nos vários mundos que uma vida comporta há um ponto de
contato, um dar-se as mãos, um caminho invisível entre o azeite e a água.

Quis dissimular para ele, ainda mais, algo da minha tristeza


e o bastante do meu remorso da minha última vez em que estive aqui.

Eu menti da última vez. Não falei dos meus sonhos tristes.

Eu queria apenas te ver. E comprovar uma história.

Saber se na escuridão dos teus olhos ainda me guardavas.

Esperar aquele instante teu em mim no desejo da tua voz:

“ - Eu sei que és tu. ”

Era o que eu gostaria, muito, de ter ouvido em teus lábios.

Mas esse sentimento foi de todo impossível.

Assim que eu entrei na tua sala, tu suspiraste fundo, como


alguém que acabou de morrer. Ficamos alguns minutos em silêncio e eu quase

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tive a certeza de que tu tinhas me reconhecido, e ias dizer o meu nome. Nesse
instante, eu ia te dar um longo abraço. Um abraço de trinta e nove anos.

Mas esse momento não aconteceu.

- Deus te abençoe!...

Foi o que anunciaste na tua voz.

E eu comecei a mentir. Falei de uma dor de cabeça que


não me largava no início de todas as noites. Algo que me fazia gritar de
desespero como se minhas têmporas fossem se dissolver. E que eu estava
precisando de ajuda. Eu estava precisando da tua ajuda.

- É isso mesmo, meu senhor?

Senti uma leve nuance de desconfiança na tua voz.

- É, senhora. E eu não suporto mais essa minha dor.

Reafirmei, com invencível desfaçatez, a minha mentira.

Pela primeira vez, senti um tom ríspido em tua voz:

- Descruze as pernas, mãos abertas em cima dos joelhos!

Uma quase ordem, um som árido:

- Peça perdão pelos seus pecados.

Eu me benzi.

Tu te levantaste no movimento aéreo do teu vestido


branco. Ficaste em minha frente, passaste as tuas mãos em meu rosto, depois
pelos meus cabelos e fizeste o sinal da cruz em cima dos meus ombros.
Durante todos esses poucos minutos, rezaste na tua língua algo que eu não
pude compreender. Apenas, no fim, pude ouvir, como um segredo da tua boca:

- Deus te livre das tuas traições. Glória ao Pai. Amém.

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Nada disseste das tuas mãos nas feições do meu rosto. A
tua leitura dos meus olhos. Muito menos deixaste transparecer alguma suspeita
de quem eu era. E, sobretudo, alguma lembrança de quem éramos nós.

No teu olhar inquieto e distante, sempre a tua voz:

- Deus te abençoe. Vá embora, agora, meu irmão.

Percebi uma tristeza que reverberava em todo o teu corpo.


Viraste de costas para mim. Voltaste ao teu mundo, ao lado de dentro dos teus
olhos sem vida, à tua própria luz: o universo das tuas palavras invisíveis.

Eu me levantei e comecei a sair da tua casa.

De lá de fora, aquelas formigas de asas que voam nos


intervalos das manhãs de chuva entraram suavemente na tua sala e invadiram
o ambiente. Imaginei que as luzes das velas sete-dias as tinham atraído.

Ainda de costas para mim, tu me disseste:

“- Cuidado com as formigas de chuva...

- Elas são como certos homens. ”

Sorri em silêncio. Baixei o rosto. Ajeitei a minha camisa.

Pressentiste a vinda das formigas de asas. Conheces muito


desse tempo. Sabes dos segredos das chuvas. Sabes desse tempo do antes
das águas, do enquanto chove e do depois das chuvas. Sabes das pessoas
que vivem neles. Sabes de mim. De alguma forma, guardaste na pouca luz que
tiveste em teus olhos esse pressentir da vida. És tu, sempre tu. Foste capaz,
nessas palavras, de não trair a ti mesmo. E disseste o que eu precisava ouvir.

“- Cuidado com as formigas de chuva...

- Elas são como certos homens. ”

Uma história. Uma infância ainda possível.

O alto de um rio. Uma cidade.

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Há lembranças que não envelhecem nunca.

Formigas de asas.

Formigas de chuva.

Um mundo.

Um sentimento.

Uma menina, um menino.

O passado é quem carrega o presente.

Certos homens têm a marca das minhas feições.

Verdades têm muitos rostos.

Formigas de chuva são formigas de asas.

E nesse olhar nunca haverá traição.

Mas certos homens se traem.

Um desencontro marcado.

Agora, aqui, a tua voz que me acende um tempo.

Um acerto de palavras para eu vir me buscar:

“- Cuidado com as formigas de chuva...

- Elas são como certos homens. ”

Embora o peso da minha vergonhosa mentira já


estivesse subjugando qualquer momento de felicidade possível, fiquei, por um
instante, muito feliz. Continuavas a mesma. Séria, simples e bela. E com uma
capacidade insondável de pressentir a vida, o tempo e as pessoas. Desejei, de
verdade, ter aquelas dores lancinantes nas minhas têmporas. Quis ter, para
sempre, como penitência íntima, aquelas dores de cabeça com hora marcada,
e que tanto me enlouqueciam a ponto de eu vir te procurar e aguardar para que
rezasses em mim. Mas não posso. Não consigo. E sempre vai haver uma outra

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forma de mentira naquele que intenta castigar a si próprio. O remorso, para
quem ainda o sente, é que é inesquecível. Um castigo que não se apaga. É de
uma angústia imensa a sensação de saber que mentimos para as pessoas que
mais amamos. Mas há algo que nos faz capaz disso, uma ternura que é
aliciada por um egoísmo que nos faz maior que o outro. E aí ficamos assim:
perdendo uma valiosa chance de viver, ensimesmados em nossas próprias
mentiras, incapazes de reconhecer a nós próprios como pessoas. Passamos,
então, a viver em uma cegueira branca, que nos impede de reconhecer o outro
como gente. Viramos coisas. E aí mentimos para sempre, mentimos tanto que
a verdade fica sendo uma indelével marca de fraqueza.

Eu sei que existem instantes na vida nos quais a solidão é


um sentimento feliz e necessário. Mas, nessas tuas palavras sobre as formigas
de chuva, enquanto eu te via de costas, em mais uma despedida, tive a certeza
de que durante toda a minha vida, em meus diálogos com os meus sonhos e
com as minhas tristezas, houve sempre essa necessidade de entender os
possíveis significados das marcas de uma solidão.

Agora, aqui, nas tuas palavras, eu não tinha dúvida.

“ Formigas de chuva que são certos homens. ”

Era o vazio a maior marca desse instante.

Um mundo para se negar. Uma vida que não se viveu.

Uma solidão negativa, um vazio íntimo de pessoas.

Tudo o que eu queria era que tu tivesses me reconhecido.


Me reconhecido pelo ar. Me reconhecido distante. Me reconhecido pela leitura
das tuas mãos nas feições do meu rosto: o tato das tuas palavras, teus saberes
de mim. Na ponta dos teus dedos e dentro da escuridão dos teus olhos eu me
imaginava guardado. “Nós somos inesquecíveis”, uma vez tu me disseste isso.
Por esses trinta e nove anos eu guardei essa frase como quem guarda uma
oração para as horas mais difíceis. Agora, eu preciso do mundo que um dia
vivemos. Eu preciso da vida que, sem percebermos, já aconteceu entre nós.

Eu sei que tu me conheces muito. Sabes de mim.

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Me conheces nas minhas mentiras.

Me reconheceste na primeira delas. Mas era tarde.

E eu já tinha me reconhecido nas tuas palavras:

“- Cuidado com as formigas de chuva.

- Elas e certos homens...

- Em algum instante vão perder as asas. ”

As tuas palavras, o teu mundo aceso em mim.

A vida que é um segredo.

“ Em algum instante vão perder as asas. ”

Foi esse o sinal. Felicidade e constrangimento. O São


Jorge enorme, que parecia flutuar em um dos cantos da sala, percebeu a
minha culpa. Mas o meu remorso não tinha a coragem para se revelar.
Apressei os meus passos de despedida, fugindo como um ladrão, fugindo
desse meu joguinho sujo no qual eu mesmo era incapaz de me perdoar. Não
havia mais nada ali que pudesse me servir de salvação. Nenhum verbo,
nenhuma palavra. Apenas a minha vergonha. A ilusão em que eu quis te testar.
Alguma prova imbecil das nossas vidas. Alguma falácia. Provar para mim
mesmo que tu já tinhas me esquecido. E que o passado estava justificado.

Na tentativa de me salvar de mim mesmo, lembro de ter


argumentado algo antes de sair. Algo de uma esperança para um perdão:

- As formigas de chuva serão sempre as formigas de asas.


E nisso não há traição, minha senhora. Depende do olhar de cada um.

O suave movimento das tuas sobrancelhas, quando te


esforçavas para reconhecer alguma voz, se traduziu ali, naquele momento,
como uma sentença, uma condenação. E te fizeste, mais uma vez, palavras:

“- Vá embora, agora, meu irmão. ”

Comprovar uma história de pessoas. O meu erro.

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Uma vergonha ácida me devorava lenta e internamente.
Eu precisava deixar a tua casa o mais rápido possível e nunca mais voltar. Eu
era um ladrão. Um ladrão de palavras, o ladrão das histórias que vivemos. O
falso da boa-fé que te pedia uma reza, uma bênção, o trabalho das tuas mãos
no fazer de um bem. Eu que estava ali para que tu rezasses na minha falsa
dor. Eu que te pedi para benzeres as minhas mentiras. Eu que queria tanto que
tu tivesses me reconhecido no segredo das palavras na ponta dos teus dedos,
quando tu fizeste a leitura das feições do meu rosto. Eu que não fui capaz de
falar de esperança e perdão. Eu, que me imaginava guardado para sempre na
escuridão dos teus olhos, era, ali, uma fraude queimando. Naquele flagrante
íntimo, eu era o reincidente traidor das histórias de duas pessoas e um mundo.

Lembro das tuas mãos em meu rosto, dos teus olhos como
um granito acinzentado sobre mim, do lento desespero deles como se
estivessem perdidos na leitura das minhas feições. Mas lembro, sobretudo, do
que eu ouvi quando te levantaste no movimento aéreo do teu vestido branco,
depois que tu fizeste o sinal da cruz em meus ombros.

- “ Deus te livre das tuas traições. ”

Algumas palavras ferem para apascentar.

As formigas de chuva e os homens. Alguma lição.

O instante do despedaçar das asas pela vida. Um destino.

Eu reconheceria, em qualquer lugar do mundo, essas


formigas de asas, as nossas formigas de chuva. Aparecem, desaparecem e
reaparecem nos primeiros instantes depois das tempestades, ou enquanto as
águas serenam. Algumas já tinham pousado nos poucos móveis da sala, no
chão de tacos amarelos e marrons, nas cabeças dos Santos no oratório
iluminado pela luz do Sagrado Coração de Jesus. Eu reconheceria essas
formigas de asas em qualquer lugar do mundo nessa minha vida. Muitas já
estavam andando em uma espécie de felicidade esfíngica, agonia e alegria,
despedaçando as suas asas pelos caminhos abertos das tuas palavras. Em
qualquer lugar do mundo, eu reconheceria a tua voz.

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“- Formigas de chuva são como certos homens...

-Em algum instante vão perder as suas asas. ”

Tuas palavras reacendem todas as nossas lembranças.

O mundo das nossas histórias.

A vida, que sem percebermos, já aconteceu.

De volta ao pátio, olhei nos olhos de todas aquelas


pessoas. E me vi um mentiroso: alguém que perdeu a oportunidade primeira
de acreditar nas histórias sem antes ter que testá-las. Um idiota exato.
Daqueles que possuem alguma iniciativa. Ao lado da entrada, pelas grades do
pátio, que estavam abertas desde o fim da madrugada, perto da porta, perto do
fim dessa manhã, pude reconhecer a majestade de um Comigo-ninguém-pode.
Lembrei, mais uma vez, de ti. Lembrei que não era sexta-feira, portanto não era
o dia em que lá, no nosso mundo distante, tu curavas o teu Tajá com águas
lavadas de carne vermelha. Um teu Comigo-ninguém-pode sempre guardando
a tua vida, as tuas portas. Lembrei que, um dia, eu te disse, que o teu Tajá,
majestoso e altivo, poderia ser uma mulher. Uma mulher das águas do nosso
rio. Um corpo enorme, úmido das folhas verdes, marcado de águas de carne.
Um vermelho encarnado. Uma ternura, um desejo nos olhos de um menino.

- Cada um tem o Tajá das suas vidas, do seu mundo.

E me sorriste aquele sorriso de dezessete anos.

O teu olhar sobre a vida me fascinava.

- Para cada pessoa um Tajá. Uma história, uma casa.

- Uma porta, duas línguas. Um sentimento. Um ser.

Sorrimos juntos. E os teus olhos eram palavras para mim.

Uma casa. Um Tajá. Um signo.

A mesma porta: a vida e a morte.

Uma história. Um Tajá. Um mundo.

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Essas lembranças caíam em mim, naquele instante em que
eu deixava a tua casa, como um relâmpago. Pensei em Santa Bárbara, a
senhora dos trovões. Eu, um mentiroso. Alguém que empresta uma fraude para
cobrar uma verdade. O falso da boa intenção. Eu que poderia ser uma pessoa
traiçoeira. Eu que nessa hora não fui o menino que tu conheceste. Ecoava em
mim um relâmpago de vergonhas naquela saída às pressas. A luz antes do
som. Eu não era aquele que te traía nesse instante.

Eu precisava deixar a tua casa, o teu mundo.

Eu tinha vindo para te falar dos meus sonhos tristes.

A dor de alguém que passa a ser a dor de um mundo.

E te ouvir. E meu ouvir.

Saber da nossa história, os nossos desvãos.

Alguma margem ínvia, um caminho para um olhar.

Mas eu não fui capaz.

A mentira foi mais forte do que eu.

Eu que preciso me livrar das minhas traições.

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II

O pátio parecia um corredor enorme da vida.

Tentei pagar para a senhora com um lenço azul na cabeça.


Reconheci as cicatrizes em suas orelhas e a pele fina ao lado do rosto. Os
lenços azuis sempre: o único pedido. Era a tua irmã. Me veio à mente o teu
desespero com o acidente da tua irmã gêmea. A tua dor, o teu grito de silêncio
de não poder ter doído por ela. Era a tua vez de estar naquele barco e ir à
cidade atrás dos remédios para a pressão alta do teu pai. Uma história que
tristemente se repete. Um barco, o eixo exposto de um motor. O início da tua
culpa. Pediste a tua irmã que somente dessa vez ela fosse no teu lugar.
Lourdes, imediatamente, aceitou. E assim fomos juntos buscar as braças de
miriti que já estavam secas há quase um ano na casa da minha avó, prontas

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para o trabalho das mãos da nossa gente. Minha avó não trabalhava mais nos
brinquedos. A vista cansada, as pernas doídas, os dedos das mãos exaustos.
Ela que nos ensinou a criar uma vida nos brinquedos de miriti. Fomos juntos
apanhar as braças que estavam lá, se esquecendo em um abandono. Minha
avó se ressentia de que ninguém iria lhes dar o destino que mereciam. Durante
a viagem, sentiste um aperto no peito na primeira hora da subida do rio. Uma
vontade imensa de chorar. Uma tristeza profunda. Algo estava acontecendo de
ruim na tua vida. Na chegada à comunidade da minha avó, carreguei o barco o
mais rápido que eu pude. Ultimei tudo para que voltássemos logo. Às pressas,
tomei a bênção e prometi a minha vó que na outra lua eu voltaria com mais
calma. Ficaste o tempo todo sentada na proa do barco, com o teu olhar para as
águas do rio, chorando. Na volta, o mundo confirmava o primeiro dos teus
pressentimentos. Lourdes tinha sofrido um dos mais terríveis acidentes para as
mulheres que andam pelos rios. A mesma história. A infinita dor. A tristeza que
se repete. Um barco, o eixo aparente do motor. Uma distração, um cansaço. E
a dor sem-fim. A dor das meninas, a dor das mulheres, a dor das mães, a dor
dos pais, o grito da dor das águas: a dor do rio. Uma aflição do nosso mundo.
O escalpelamento das mulheres da nossa terra. Uma história que não se sabe
até quando ainda vai se repetir. Nunca esquecerei aquela tua agonia. Ali, eu
pedi a Deus que tu não te maltratasses tanto, e que Ele passasse para mim um
pouco da culpa que afirmavas como tua. Não era certo. Eu que insisti para que
naquela tarde tu fosses comigo buscar as braças de miriti. Durante o caminho,
eu precisava te falar sobre a afronta de uns homens na nossa casa. Te ouvir.
Não foi possível, a tua dor era muito mais forte e o teu silêncio, absoluto.
Agora, aqui, nessa minha fuga pelo pátio da tua casa,
reconheço a Lourdes, o seu lenço azul. Ela, por primeiro, me reconhece.

- És tu? – ela me pergunta parecendo não acreditar que eu


estivesse ali, sem me anunciar. És tu? – ela repete a pergunta com a voz
embargada. Em pé, à minha frente, sinto como a vida é pequena.

- Não, não sou eu. –respondo sem atinar para o que disse.

Em vários instantes um homem se trai.

Ali, fugindo de uma mentira, não era eu. Não devia ser eu.

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- Eu quero pagar. – insisti.

- Não há um preço...

- Tu dás o que tu podes. O que tu tens de vontade.

Abri, rápido, a minha carteira e dei o pouco do dinheiro que


eu tinha. De cabeça baixa, em nenhum instante tive a coragem de levantar os
meus olhos e olhar mais uma vez para a Lourdes.

Em vários instantes um homem se trai.

Eu precisava sair dali, deixar a tua casa para sempre.

Lá, dentro de mim, eu sabia que tu estavas com os teus


olhos esbranquiçados no despedaçar do vôo das asas das formigas de chuva,
lembrando da nossa vida, de tudo o que aconteceu e do que não aconteceu
entre nós. Ali, na sala ao lado, guardado pelo teu Tajá, mais uma vez, o nosso
mundo inatingível. As palavras que eu não fui capaz. As asas que caíram do
meu corpo, das minhas verdades. Um homem que se trai em um instante.

Eu tinha vindo para te ver.

Te dar um abraço de trinta e nove anos.

E te falar dos meus sonhos tristes. A dor que se dói por


alguém. O mundo da tua linguagem, o verbo que eu aprendi da tua vida, das
verdades nos saberes da tua mãe, a nossa história.

Mas a mentira foi mais forte do que eu. A vaidade, o meu


ego que se revelou sedento naquela hora em que eu imaginei que as tuas
mãos não eram mais capazes de ler as feições do meu rosto. O vazio que
tomou conta de mim. “Nós somos inesquecíveis” ecoava dentro da minha
cabeça, na ponta dos teus dedos em meus olhos, na minha testa, nos meus
lábios, na tua leitura das feições do meu rosto. As tuas mãos em meus cabelos,
o teu silêncio no movimento das tuas sobrancelhas nos vestígios da minha voz,
a tua não-palavra sobre quem nós éramos, o teu mundo meu. Um silêncio.

O meu mundo teu. Um silêncio. O teu silêncio.

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A vaidade é um chão de açúcar.

Invisível aos nossos olhos. Salivando na nossa língua.

Uma janela para um universo.

Uma noite com um céu imóvel.

O engano que vicia um olhar.

As tuas mãos que não liam mais as feições do meu rosto,


não sabiam mais dos meus lábios, calaram-se em mim. O meu erro.

A vaidade é um chão de açúcar.

E eu comecei a mentir.

A vaidade foi mais forte do que os meus sonhos tristes.

O instante em que um homem se trai.

Respiraste fundo.

Se eu não fui capaz de uma única verdade. Tu logo me


reconheceste na primeira mentira. E me deste o sinal.

“ - As formigas de chuva são como certos homens...

- Em algum instante vão perder as suas asas. ”

Ficou a escuridão dos teus olhos brancos em mim.

Ficou o vazio das palavras que eu não fui capaz.

A marca de uma solidão.

Deslembranças. O teu silêncio. O teu silêncio...

Pelas palavras que não foram ditas, eu estou aqui.

Uma segunda chance.

A nossa história.

As palavras que me reacendem esse mundo agora.


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Uma outra possibilidade. Um outro reinício.

Uma outra vida.

Um outro olhar.

Um sentimento.

Terminar é iniciar.

As pessoas no pátio não eram mais rostos anônimos.

A tua casa ia ficando para trás.

Mas era um lugar para eu não mais fugir.

Reconheci os meus passos pela rua. Em todo mês de abril,


o cheiro das mangueiras renasce mais forte, como se as árvores estivessem
grávidas, florindo uma esperança.

Aqui fora, a chuva fina, que ainda resiste no final dessa


manhã, parece uma pessoa só.

A chuva fina do início da tarde na rua das mangueiras.

Uma chuva fina, um mundo.

Alguém que espera alguém.

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III

É madrugada. Quatro e quinze no meu relógio.

Mais uma vez, os meus sonhos tristes.

A dor de alguém que passa a ser a nossa dor.

A dor de uma pessoa, a dor de todos nós. Acordo com a


angústia das imagens vivas desse sonho. Lembro da tua mãe. Lembro de ti.

Levanto para te escrever.

Levanto para tentar alguma vida nessas palavras que te


trago. Sei que vários mundos uma palavra pode acender.

Eu que preciso te alcançar em mim.

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As palavras sonham com as pessoas.

Um outro verbo possível. Um outro mundo.

Uma vida para todas as gentes.

As palavras me levam para a tua casa.

As samambaias estão maiores. Segredam, em seus véus,


todas as histórias de um verde musgo. O pátio está cheio de gente. Pessoas
de olhos fechados rezando baixinho. Ouço as muitas dores. Penso em meus
sonhos tristes, nas minhas angústias. E nas mentiras que eu fui capaz. Cada
uma dessas pessoas tem a sua história, o seu mundo. A vida entrelaça em
todos a sua linguagem, a sua fé, as suas várias lutas de esperança. Um
sempre sonhar, um sempre ter esperança para se viver. É, mais uma vez, abril.
Lourdes anda entre as pessoas lançando a queima faiscante de um defumador.
Nos cortes da lata reconheço o brilhar das pedras de carvão. Dos seus braços
ela entrega a lançada desse braseiro ao vento. Ao lado do seu corpo corre a fé
desse defumador. Retesados os arames, um som se escreve. Lourdes canta
uma reza enquanto caminha entre as pessoas pelo pátio. Entre nós renasce a
queima do mucuracaá, o alho amassado, o jasmim que se prensa no suor das
mãos, o suave aroma das lascas finíssimas de um pau de canela. Algumas
fagulhas levam para um horizonte imperceptível a certeza de uma fé. Em uma
vaga luz essas faíscas se apagam. Fica o som do defumador em meus olhos.
Uma história. Lembrei da tua mãe, das lições de fé e das palavras que brilham
no girar do carvão iluminado de um defumador. Uma fé, um lançar de palavras.
A vida que se escreve pelas próprias mãos. O teu mundo. A tua linguagem. O
teu destino que escreveste. A tua casa. Sei que tu estás perto de mim, mais
uma vez, na tua sala. Ouço um pouco da tua voz. Um pouco das tuas palavras.
Um pouco da tua luz. Passa, novamente, por entre todas as pessoas, aqui,
nesse pátio, a fumaça branca do defumador. Um perfume de histórias, a vida.
Sei de ti um pouco. Sabes muito de mim. O azul claro do lenço na cabeça
protegida da Lourdes abre o dia e reacende essa manhã.

Eu estou aqui, na tua casa.

A minha segunda e última chance.

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Aguardo o meu chamado.

Por cima das nossas cabeças, entre os espaços dos


enormes xaxins das samambaias, flutuam as gaiolas dos curiós. Elas estão
vazias. Em suas portas abertas habita um vazio. Um gesto. Um abandono.
Uma lembrança de liberdade. Algo que se conquista. Redivivas entre silêncios
e cantos, as várias histórias de uma luta. Algo que se liberta. Talvez o
abandono daquelas gaiolas abertas fosse algo para todo o sempre se lembrar.
Uma mensagem. O canto dos curiós que parece ainda estar ali. Preso nos
véus das samambaias. Ocultos nos olhares das pessoas. Como um passarinho
das asas quebradas na impossível vontade de reaprender a voar. Uma lição
para nunca se esquecer: a vontade de ser livre. Uma sentença.

Por essa busca da verdade, por alguma história do mundo,


todos nós estamos aqui. Uma saúde. Um amor. Um trabalho. Uma casa. Uma
cura de uma solidão. Um reencontro de pessoas. Um quebrar de quebrantos.
Uma fé. Tu, as tuas palavras. A tua luz. A vida que escreveste no teu destino.

Eu estou aqui. Sou o sétimo da fila.

Mais uma vez, na tua casa. Alguma redenção íntima.

“- Deus te livre de todas as tuas traições.”

A tua voz em mim. Uma lembrança para eu me perdoar.

Nós somos aquele que se escreve.

O murmúrio das vozes, a vida, a sua urgência nas pessoas.

Eu escrevo para sentir as tuas mãos no meu rosto.

Eu escrevo para te alcançar em mim.

Escrevo para saber da nossa história.

Saber da nossa gente. Saber da nossa voz.

Eu escrevo por uma vida.

Eu escrevo para me salvar desses meus sonhos tristes.

28
E que em algum verbo novo, eu possa me escrever como
pessoa, distante dos meus silêncios que tanto mal me fazem.

Eu escrevo porque eu vivi ao teu lado.

Eu conheci a tua mãe, todas as suas lições de vida.

Sei do teu pai, as suas várias lutas.

Eu escrevo porque nessas palavras, nesse mundo


inesperado, meus pais também ainda estão vivos, e toda a minha gente me
conta uma história. Eu sou filho dessas palavras, filho dessas várias ilhas que
fazem uma cidade e que me dão um nome.

Por esse mundo eu estou aqui. Na tua casa.

O lugar em que vives a tua fé.

Tu que sabes rezar. Pôr luz. Benzer alguma dor.

O cicio das vozes no pátio me diz que estamos vivos.

Eu estou aqui, nessa cadeira de vime.

Sou o sétimo da fila.

O verde das samambaias sempre me fascina.

O abandono das gaiolas abertas dos curiós. Um segredo.

À tua porta, o Tajá que sabe de mim e sabe dos teus olhos.

Entre nós, a fumaça branca do defumador reaviva uma fé.

Lourdes passa ao meu lado rezando baixinho.

A queima do carvão brilha as suas orações.

Dentro da lata do defumador, o vermelho incandescente,


que gira nas lançadas ao vento do braço da Lourdes, me traz a sensação de
que ali, naquelas pedras de carvão, está o Sagrado Coração de Jesus a me
dizer algo, alguma linguagem, alguma compreensão de que eu não sou capaz.

29
Estou aqui, na tua casa.

Eu que tenho uma dor.

As noites dos meus sonhos tristes que se repetem.

Eu estou aqui, nessas palavras que te escrevo.

Aguardo o meu chamado.

30
IV

Eu sei precisar quando começaram esses sonhos tristes.


Talvez haja essa hora imperceptível na qual os sonhos se apossam da vida do
sonhador. E aí tudo fica mais possível. Ou muito, muito mais desesperador.
Uma esfinge. Comigo foi assim: uma dor que não conseguiu se tornar banal. A
notícia veio simples, televisiva. Um mundo, mais uma vez, denunciado.
Misérias e ausências da nossa vida. Algo a que a visão se acostuma, algo que
esfria surdo dentro de nós. Tudo que os nossos olhos tendem a adormecer.
Todo o sofrimento alheio que é muito doído, mas esquecível. Na segunda noite
em que a tristeza viva desse sonho me fez acordar chorando, eu lembrei de ti.
Lembrei da tua mãe. Quis que as tuas mãos pousassem sobre os meus olhos,
e os teus dedos magros e morenos lessem as minhas feições. Um teu gesto
que tu sabias em mim. Um instante de paz, a tua fé. As tuas palavras.

31
Lembro que tu pedias que eu fechasse os olhos.

No calor da tua voz, a tua ternura:

“- Tobias, tu estás triste? ”

E eu me silenciava tentando dissimular a minha dor.

Esse foi o começo das tuas palavras, o teu olhar.

As tuas mãos em meu rosto. A certeza da tua fé.

A tua escolha, a tua margem exata desse mundo.

E rezavas em mim.

Assim eu tinha alguma paz.

E o mundo parecia feito de gentes.

E toda história poderia ser reescrita.

Porque o bem também é uma condição humana.

Uma necessidade das pessoas.

Mas, eu te traí, em um final de tarde, em um trapiche. Eu


não fiquei ao teu lado. Eu não segui contigo, não fui o homem que tu confiavas.
E a distância foi se escrevendo imensa nas nossas vidas. Até virem essas
noites, esses sonhos tristes das minhas madrugadas.

Há histórias que transcendem o mundo de quem as viveu.


Somos todos irmãos da mesma dor. Somos todos uma só humanidade.

Há histórias que se escrevem nos olhos de todas as


pessoas. Há histórias para se acordar um mundo. E sermos gente.

Lembro da tua mãe.

Do girar iluminado de um defumador. Das suas palavras de


fé. De um destino que se abraça. De um compromisso com as pessoas.

Lembro de ti. Da história que escreveste em teus dias.

32
Todo o meu mundo se escreve com fascínio por ti. Algo
muito maior que qualquer sentimento possa explicar. A tua leitura das feições
do meu rosto, algum pedaço da minha pele que tu traduzias, e o meu silêncio
que tu lias antes de tudo. As tuas mãos que pousavam em meus olhos para
fazer da tua ternura um instante teu em mim. Nós. Há trinta e nove anos. O
nosso mundo. A nossa terra. O nosso rio. As nossas vidas. As palavras que eu
não fui capaz. O início da nossa distância. As nossas impossibilidades. Os
nossos mundos à parte, a nossa história. O meu mundo teu, o teu mundo meu.

Eu que te trago essas palavras.

E a agonia de um sonho triste todas as noites.

Eu que não sabia de mim. Não sabia do instante em que


um homem se trai. Nas linhas desse texto, por mais uma única vez, busco as
tuas mãos em meus olhos. A ponta dos teus dedos, a tua leitura minha.

Um mundo, um texto, uma palavra tua em meus olhos.

Assim, quem sabe, esses sonhos vindouros de todas as


noites se iluminariam e eu poderia entender um pouco, agora, dos meus dias.
O futuro não existe amanhã, Maria. O futuro já está acontecendo agora, escrito,
em teus olhos invisíveis e distantes, nas possibilidades da minha vida, em tua
história, nos meus olhos que tu lês. Nada se escreve destino a não ser pela
força da vontade dos nossos braços. Ou por tudo aquilo que deixamos de
fazer, o nosso todo silêncio das nossas culpas. Íntimo e gritado dentro dos
nossos sentimentos. Saudades, Maria. Saudades é um verbo mutilado.
Saudades tuas. Posso, agora, sentir as tuas mãos. Os teus dedos, engelhados
pelas águas barrentas do nosso rio, suavemente lerem a minha vista. Sempre
as tuas mãos, algo que se aproxima das minhas verdades. A tua leitura do meu
rosto, todos os segredos das minhas feições.

Não existe o tempo, Maria.

Não há um tempo. Só existem pessoas.

Tu estás aqui, no mundo dessas palavras, nessas páginas


em que te busco, nesse instante em que a ponta dos teus dedos encontra os

33
meu olhos. Não, não estás mais de costas para mim. Sinto as tuas mãos nas
feições do meu rosto. Posso te sentir, sinto a tua leitura dos meus olhos. És tu.
Ainda sabes da cor viva dos teus cabelos castanhos? Dos segredos que eles
lançavam sobre as tuas costas? Da tua pele morena que crescia bela sobre o
teu corpo, tu esqueceste? Qual foi a hora em que te disseram que tu foste a
escolhida? A gêmea das filhas, a última, aquela que iria botar luz na vida dos
outros. Benzer, rezar sobre as dores, abençoar os emaranhados de todos os
caminhos. Tu sonhavas com esse mundo, Maria? Era esse o maior dos teus
sonhos? Era essa a tua luz escura que nascia quando teus cílios se
silenciavam, e tu te quedavas cansada dos vários afazeres das tarefas da
mandioca? Era essa, então, a tua lavra? O teu saber? A tua maior lavoura? Até
hoje me angustia a dor da tua falta, o diário da tua ausência em mim, as
minhas próprias culpas. Eu que imaginava o amor como o mais simples e o
mais seguro dos verbos, uma condição do olhar, dos braços, dos silêncios e
das palavras. Mas existem instantes em que um homem pode se trair. O meu
desencontro marcado. A hora em que eu me afastei de mim. Esse imenso
pedaço das nossas vidas no qual eu fui covarde e não enfrentei a tua distância.
Eu não fui atrás de ti. Eu não te busquei. Havia, em meu mundo, também,
outras urgências. Talvez hoje esse seja o verbo mais difícil. Amar. Um verbo
escrito em nossa própria letra, uma necessidade na língua de todos os corpos.
Entre todos os destinos ele, o amor. Uma possibilidade de pessoas, o encontro
das águas, o negro e o barrento, a diáfana cor. Uma preamar. Uma estrada de
rio. Um braço de mar. Amar, sobretudo, amar. Um verbo que sonha com as
pessoas e com um outro mundo possível. Um espírito das gentes. Um deus
sem tradução, um horizonte escrito nas linhas do rosto ensolarado de muitos
eus. Um deus impossível nesses dias. Um deus mundo afora de nós dois. Não
importa, Maria. Tu tens o teu Deus. O Deus da tua beleza. Das tuas palavras.
Da luz que tu pões sobre a vida das pessoas. O Deus da tua verdade. E eu,
agora, te trago esses meus sonhos tristes. Uma notícia que eu ouvi, uma dor
de um mundo, a dor que se dói por alguém, uma dor de todos. O iniciar desses
meus sonhos tristes, a tua falta, a minha falta, o desespero de uma vida.
Quando fecho os meus olhos, parece que eu vou me convencer de que tu
nunca exististe, que tudo foi a imensa luz de um sonho. Um verbo sonhado,
imaginário e sangrado de todas as nossas gentes, de toda a nossa terra. Aí,

34
então, eu tento me vencer na força de todas as ilusões. O nosso chão não
existe. A floresta não existe. Todas as luzes de todos os ouros são as ficções
de todos os tolos. Um engano. Vários assaltos. Um blefe. Um eldorado. Um
embuste. Um sonho mal sonhado de um deus, pois a Amazônia não existiria, a
não ser dentro da agonia de todos os sonhos das pessoas, de todos os
deuses. É impossível, Maria. Eu preciso acender a vontade do teu nome. O teu
mundo meu. Preciso, agora, do iluminado das tuas mãos sobre os meus olhos.
As pessoas são mais verdades que todos os rios. Que todas as matas. Que
todos os deuses. Que todos os sonhos. As pessoas, um mundo, todas as
amazônias. Uma só natureza, um verbo para se viver. Tu que estás aqui:
nessas palavras, como se fosses feita de texto. Escrita em mim. Eu que te
trago esse meu sonho triste, que repete a sua agonia todas as noites. Eu que
te escrevo agora para te ouvir, saber de mim, saber de ti, recontar a nossa
história, reescrever um mundo. Sentir as tuas mãos nas feições do meu rosto,
na ponta dos teus dedos as palavras dos meus olhos, as tuas leituras. O teu
mundo meu. A nossa história. O meu mundo teu. As nossas vidas, aqui, vivas.

O meu sonho, essa agonia que insiste.

O meu sonho. Eu vou te contar.

As girândolas, Maria. Elas estão vazias. Esse é o meu


desespero. A maldade de todos os meus sonhos. A minha solidão repetida.
Nasce essa angústia, todas as madrugadas, em meus sonhos. Eu me vejo
atravessando o rio, vencendo as chuvas da tarde no encerado da baía, e
desembarcando em Belém, na véspera do Círio de Nossa Senhora de Nazaré.
Aqui inicia a minha dor, um inexplicável vazio em minhas mãos. As girândolas
estão vazias, Maria. O trabalho de todas as nossas gentes, os nossos saberes,
tudo perdido. Desprezado. Sem sentido. Uma aflição sem fim. Vejo em todos
os outros fazedores de brinquedo de miriti o mesmo sofrimento. A mesma dor.
Nós todos estamos carregando pelas ruas as girândolas vazias. As pessoas
não nos vêem, Maria. Apenas tu me vês e olhas por todos os brinqueteiros.
Sinto a dor do mundo em teu olhar. Em meus sonhos, te vejo no meio do mar
de fé da procissão, e quando firmo o meu olhar para os braços duplos da cruz
da minha girândola me abate esse desespero. As girândolas estão desertas,

35
Maria. Há um vazio aéreo queimando sobre elas. Não há um brinquedo, Maria.
Não há uma casa. Não há um menino. Não há uma menina. Nenhum cata-
vento em suas várias cores de uma esperança de miriti. Nenhuma onça.
Nenhum soca-soca. Nenhum dos nossos barcos popopô. Nenhum casal de
bailarinos. Não há um caboco beijando uma moça. Não há pássaros. Nenhum
curió. Só há um vazio gritando em mim. E os teus olhos tristes que me
acompanham no meio da procissão. Olhos que olham por todos os artesãos.
Ternura e dor. Esses são os teus olhos. Olhos de Maria. Olhos de um mundo.
Esse é o sonho que me alucina todas as madrugadas. O abandono das
minhas girândolas. Um deserto. Não há noite, não há dia, apenas um deserto.
Não há girândolas com os seus brinquedos. Há vazio. Vazio, Maria. As nossas
girândolas vazias, as pessoas que não nos vêem. A minha dor que se repete.
Um vazio que só me desespera e envergonha. E os teus olhos, Maria. Os teus
olhos em todas as angústias desses meus sonhos. Vejo a mesma agonia no
olhar de todos os outros brinqueteiros, a solidão das nossas girândolas. Como
se todos os braços de todas as nossas gentes não estivessem ali, escritos na
levíssima beleza dos brinquedos de miriti. Um não-falar da gente para o mundo
da Trasladação. Não ver os fogos por entre as possibilidades da luz em um
brinquedo de miriti. Não ver a noite. Um Círio silenciado. Eu andando por entre
as gentes com a minha girândola vazia. Reconheço todas as pessoas da minha
terra. Nós que juntos sabemos desse fazer. O caminho do Miritizal na várzea.
O chegar das braças de miriti. A força caseira de um sol. O corte das braças
mais novas. O ângulo dos arames nos pneus das bicicletas. A vontade benzida
das mãos no saber das cores. O som dos facões. Um fruto das águas. A vida
de todas nossas gentes. O passar das palavras. Repartir. Um novo trabalho.
Uma história. O viver das pessoas. Um mutirão. O caminho das marés para
Belém. Um outubro, sempre outubro. A vida que se renova. O instante das
nossas gentes. Uma humanidade possível feita de irmãos. Aquilo que se
aprende. Um fazer de miriti e fé. Um norte, uma mãe. Um filho e todos irmãos.
Nesse desesperar dos meus sonhos um trabalho perdido. Uma razão perdida.
Um entremundos perdido. Uma solidão. As girândolas vazias.

Eu preciso do teu olhar, Maria.

Eu preciso das tuas palavras em meu rosto.

36
O teu trabalho de benzer. Pôr luz. Iluminar.

Uma fé. O destino que tu escreveste.

As tuas mãos em meus olhos.

Eu ouvi uma notícia, Maria. O mundo ouviu.

A dor que se dói por alguém.

O mesmo sonho triste de todas as noites.

As nossas girândolas vazias. Um luto. Uma luta.

Um fazer da luz. Um brinquedo de miriti.

Todas as girândolas das nossas gentes.

Um vazio que se escreve e me alucina.

Aqui, no breu branco dessas páginas, eu busco as tuas


mãos para a leitura dos meus olhos. Uma vida para compreender os segredos
das palavras que já aconteceram. O nosso mundo. A nossa história.

A marca de um sonho, a dor de uma humanidade.

O verbo que a tua mãe nos deixou.

A história que continuas escrevendo.

Vem, pousa as tuas mãos no meu rosto.

Ainda sabes dos meus olhos tristes?

37
V

Um dia nós fomos crianças. E entre nossas vidas corria o


rio. Tu moravas do outro lado da minha margem, em um braço de igarapé
guardado pelos açaizeiros. Na passagem das águas grandes, eu aprendi que
não se avistava a tua casa, mas tu estavas ali, nos campos inundados da tua
várzea, quando todos os mundos se entrelaçavam e desaguavam histórias. Na
curva das águas, caligrafia do rio no vento da preamar, ficava o teu endereço.
Duas horas de canoa remada por qualquer criança, o teu lugar, o teu saber.
Nas enfiadas do remo nas águas, o som do silêncio-solidão da maré no
atravessar do redemoinho no perau. Nos vários passos aqüíferos de uma
correnteza, a tua estrada. Lá, no alto das águas, no norte do meu mundo, a
tua margem dos açaizeiros. As tuas marcas. Entre nós o rio, um infinito de
águas para se viver uma vida. Na minha margem, no lado de dentro da mata,

38
no entremeio do caminho do junco, a maré-baixa revelava as gengivas
barrentas das entranhas do nosso rio. Entre nossas histórias um trapiche: uma
vontade, um caminho para se voltar. Sei que nos teus olhos tu guardas a
lembrança viva das árvores de miriti que sustentavam os dias das nossas
gentes. O meu lugar. Durante o tempo das águas mortas, algo me fazia
acreditar que o rio estava na tua casa, aguardando a volta das águas do
oceano. E a minha vista se fascinava com o brilhar do limo nas pernas-mancas
de pau-d’arco do trapiche, na certeza de se estar perto do rio. Perto das águas.
Perto de alguma felicidade. Nessas épocas do estio nas vazantes, o trapiche
escrito fortaleza. Esteio. Uma palavra que precisa de braços, como todas as
palavras desse mundo. Como um rio que precisa de braços, braços de mar.
Nós que morávamos tão-perto-e-tão-longe um do outro. O metro invisível das
águas. Nós que somos filhos da mesma maré, na rua do rio das nossas vidas.
Esse foi o início do nosso verbo amar. O princípio das nossas várias lutas.

Há sentimentos teus que eu precisei de uma vida para


compreender. Pequenas suavidades difíceis para um adolescente. Um dia, há
trinta anos, quando tu começaste a perder, lenta e resignadamente, a tua
visão, me disseste que uma das poucas certezas que tu ias guardar da luz do
sol era a sensação de que os rios não envelhecem nunca.

“- Essa é uma verdade minha, Tobias.

- Esse rio que corre na minha vista nunca vai envelhecer.”

Eu, em silêncio, te ouvia, e se afirmava em mim a angústia


de que o meu rosto estava se apagando da luz dos teus olhos, quando tu já
começavas a guardar o mundo na ponta dos dedos da tua mão. Veio, assim,
intraduzível, esse tempo em que tu estavas tão próxima, mas o teu rosto ficava
sempre virado para o teu norte, naqueles momentos em que educavas os teus
outros sentidos para me dizer das tuas palavras. Nunca tive a coragem para te
perguntar, depois que tu perdeste definitivamente a visão, se no escuro dos
teus olhos, ainda possuías a exata lembrança da minha imagem. Se ainda
lembravas de mim: da felicidade posta em meu rosto quando estavas ao meu
lado. Para mim, todo o tempo ao teu lado era pouco depois que tu perdeste por
completo a visão. Mas há sentimentos e ângulos que só quem ama reconhece.

39
Teus olhos ficaram acinzentados, marcados pelo silêncio de um granito branco,
mas eu reconhecia a tua luz dentro do mundo deles, e essa luz brilhava o teu
rio, as tuas palavras, o gesto das tuas mãos, e acendia, para mim, todos os
teus dizeres. A tua vida escrita em tuas palavras. Em teu corpo, em teus
cabelos castanhos, em tua fé e ternura. E eu te ouvia com todo o meu mundo
porque ouvir a suavidade firme das tuas palavras me fazia um bem enorme.
Assim me marcaste com o cinzel das águas dos teus olhos. Todas as histórias
que vivemos juntos. Aquelas que eu ouvi do céu da tua boca. As que eu contei
para ti no tempo do além de um menino. Tuas mãos sempre lendo os meus
olhos. Teus dedos magros e morenos escritos em minhas feições. A tua leitura
das linhas do meu rosto. A vida, que por um instante, parava naquele
sentimento. E nós ficávamos, ali, virando enormes cristais do tempo.

- As águas de um rio não envelhecem nunca, Tobias.

- O rio, o seu corpo em segredo, corre vivo em meus olhos.

Há palavras que precisamos viver para entendê-las.


Amam-se as palavras que são preenchidas de sentido por nós e que nos
guardam uma verdade, um fascínio, uma admiração. Tu eras somente três
anos mais velha do que eu, mas parecia que dos teus lábios saía um mundo,
que ao mesmo tempo que era o nosso cotidiano, para mim, era um mundo que
tu iluminavas. Da tua língua tornavas maravilhosamente desconhecido o
mundo que era o meu dia-a-dia. Revelado invisível pelos caminhos das tuas
histórias. E eu tinha o amor que admirava as tuas palavras: o mundo que vinha
do céu da tua boca. Esse sentimento fazia tu possuíres uma vida a mais na
minha frente. Como se tu tivesses vivido antes de mim não três anos, mas um
sem-tempo de vida no qual aprendeste uma lição invisível do mundo dos rios,
das águas, da floresta e das pessoas. Os teus saberes e a esfinge da hora em
que tu começaste a ficar cega lançavam para mim o enigma de que uma nova
vida ia se iniciar para dentro da luz escura dos teus olhos. E talvez o meu olhar
por ti e a minha ternura fossem muito pequenos para esse teu novo mundo.

“- É preciso amar as histórias, Tobias.

- É preciso amar o mundo das palavras. ”

40
Sim, Maria, os rios não envelhecem nunca. Essa tua
verdade também rege a ternura e a força das palavras de quem ama. Há um
instante na vida da gente no qual precisamos entender o desafio que as
saudades propõem. Se os nossos corações não forem capazes dessa tarefa,
uma solidão nos invadirá, e passaremos a viver como se um grande pedaço
das nossas vidas estivesse guardado, dentro de um vidro, como um veneno
frio, à nossa disposição. Não existe o tempo, Maria. Não há um tempo. Só
existem pessoas. Agora, aqui, no caminho dessas palavras, eu preciso da tua
ajuda para desvendar esses sonhos tristes das minhas noites. Há verdades
que precisamos reescrevê-las para sentirmos o que elas guardam em segredo.
Recontar uma história, a nossa história, os instantes possíveis das nossas
vidas. Assim, quem sabe, poderemos, com a força de nossos braços, escrever
um outro texto para as nossas vidas. Um outro mundo. Um lugar possível.
Outras palavras. Uma outra nossa história.

As girândolas estão vazias, Maria.

Esse é o meu desespero sonhado.

Por isso eu te escrevo, para ouvir os teus silêncios:

“- Os rios não envelhecem nunca.”

A tua voz acesa nesse texto que te escrevo agora.

“- É preciso viver as palavras. Ser as histórias.”

O teu rio maria. Uma romaria nessas linhas. Um mundo.

“- É preciso amar as pessoas, Tobias.”

Do teu silêncio renascem essas tuas primeiras histórias.


“As águas de um rio não envelhecem nunca”. Sim, eu sei, essa é uma verdade
tua em mim. Sei que o rio corre o seu corpo em segredo, iluminado, dentro do
granito branco dos teus olhos. Por esse sentimento, para ti, essas são as
minhas palavras. O meu início de ir te buscar. Eu que preciso da tua ajuda.
Preciso viver as palavras para entendê-las. Por isso esse texto. Para que, aqui,
dessa minha margem, ao lado do pouco que resta desse Miritizal de todas as

41
nossas gentes, eu possa chegar ao alto das tuas águas, à tua pré-amar. Ao
teu mundo invisível. Essa é a vida agora. Reescrever as palavras que vivi e
não vivi ao teu lado. Escrever para me ouvir melhor. Saber de ti. Ouvir, mais
uma vez, a tua voz. Sentir a ponta dos teus dedos reconhecerem as marcas do
meu rosto. Ouvir a leitura das tuas histórias em meus olhos. Por essa vida esse
texto. Esse rio-estrada para ir te buscar. Sei que tu merecias algo melhor. Mas
aqui, nesse instante, luto para te oferecer um pouco das tuas palavras em mim.
O teu mundo meu. E nisso há uma incapacidade invencível, pois nunca terei o
teu olhar, a tua luz secreta da vida. Porém, nesse texto, há um caminho, uma
possibilidade do mundo nessas minhas palavras que te escrevem um abraço.
Aceita, eu te peço. O meu abraço escrito para ti. Um pouco das palavras que
semeaste. Um plantar de ternura. Um olho d’água. Um rio que voa. Um verbo.
Minhas palavras que te escrevem um abraço. O lado bom das saudades. O
verbo íntimo de cada pessoa. O algo invisível e preciso de quem ama.

Aqui, então, a minha tua história.

Esse rio aéreo das nossas vidas.

Uma palavra que busca o teu nome.

Maria. Um verbo. Um tudo.

Um norte dessas águas.

O teu mundo meu.

Uma verdade viva.

Ser o rio é ir ao encontro.

42
VI

Eu tinha onze anos. Tu, catorze. Moravas no igarapé que


dava na boca do rio, na margem dos açaizeiros. Eu estava aqui, na outra
margem, ao lado do caminho difuso dos Miritizais. Duas horas da mais simples
montaria nos separavam, e não sabíamos, até esse instante, que éramos
vizinhos da mesma maré. Veio, então, o Velho Tibúrcio com a boa-nova que
iria entrelaçar os nossos mundos. De casa em casa, no mais escondido dos
caminhos da várzea, esse velho contador de histórias passou semeando a
notícia sobre uma professora e um trabalho. Dona Constança, era esse o nome
dela. Uma jovem senhora, dessas que se tem a impressão de que a vontade
de viver é o inesquecível das suas palavras. Ela se tornara amiga do Velho
Tibúrcio por uma razão que, para nós, parecia muito natural: as histórias que
as pessoas da nossa terra contavam. Histórias orais, como ela dizia. E a sua

43
vontade era colocar esse mundo todo em um livro. Esse, até então, era o
trabalho de Dona Constança. Fazer um texto das vozes da nossa gente. Um
livro, o lugar onde as histórias se escrevem de gente. Um livro, várias vidas.
Por isso o Seu Tibúrcio. Um dos mais velhos contadores da nossa terra, aquele
que quando contava uma história, nós podíamos ver em seus olhos a luz do
impossível, o mundo e as pessoas que povoavam o imaginário das nossas
vivências: nossos eus de todas as vontades das horas. O Velho Tibúrcio
contava as histórias com o seu corpo, com o fogo miúdo dos seus olhos, e com
a sua voz rouca que encantava a todos na sua lida de contar e recontar.
Nascer e morrer. Chorar e viver. Remorrer e renascer a vida. Resistir. Iluminar
os nossos mundos com a sua voz de muitas pessoas. Viver um fascínio, uma
história, as palavras acesas nos olhos do Velho Tibúrcio. Nunca se soube ao
certo onde ele morava. Tinha sido mateiro a vida inteira. Vivia do rio e do livre
arbítrio das marés. Sempre tinha uma tarefa de mandioca e um rancho de
moquear, que ele mudava conforme a querença das águas. Sabe-se de mais
de vinte tapiris de pesca que ele abandonou na várzea dos rios. “ Fica para os
meus filhos a verdade de que ali, durante um tempo do ano, no juízo das
águas, o mapará é certo, pronto para o saber de um taleiro, para uns dias de
sal e a língua do sol no guardar de um amanhã.” Muitos pescadores até hoje
apontam. “Olha ali! É mais uma marca do Velho Tibúrcio.” E quando se passa
pelos caminhos mais improváveis do rio se pode apoitar na ilharga de um dos
ranchos de pesca trabalhados por suas mãos. E matar as muitas fomes.
Diziam que ele nunca iria morrer. Comentavam que naqueles longos cabelos
brancos e no rosto marcado por todas as águas ele tinha mais de cem anos.
Outros asseveravam que ele morria, sempre, nas primeiras chuvas de
setembro. No início da maré de quebra, no tempo das águas mortas do mundo
enorme das chuvas rápidas de verão, a lua carregava o Velho Tibúrcio. E era
sabido por todos que ele voltaria no primeiro dia de outubro para acompanhar o
carregamento dos Brinquedos de Miriti para Belém. Em seus ombros, muitas
girândolas embarcaram para irem desaguar no Círio de Nossa Senhora de
Nazaré. Para mim, não importava saber qual era a verdade mais verdadeira,
pois as crianças têm a melhor forma de se acreditar no mundo: a vontade dos
olhos na simplicidade de um sentimento. Uma verdade possível para se ver as
coisas. Até vir o tempo de se abrir as barrigas de um brinquedo. Outras

44
verdades. Outros sentimentos, pequenos outros instantes de felicidade.
Precisamos aprender a não maltratar as verdades de uma criança, pois elas
fazem parte de um mundo que para nós é um rosto estranho. Feliz da pessoa
que ainda pode ser algo de uma criança. Quando se cresce, as mentiras
repetidas se tornam mais verdadeiras do que as próprias verdades. Esse é o
maior perigo de todas as vidas. Os olhos das grandes mentiras que querem
nos chamar de filhos. Uma felicidade muito difícil de se resistir. Parece que nós
não percebemos a hora em que já estamos no mesmo forno de barro e vamos
aceitar, e até nos comprazer, sairmos marcados com o mesmo signo de todas
as felicidades. As doces mentiras de todas as nossas vidas. Algo que nos
abone, nos fabrique uma paz. E nos perdoe. Eu sei, eu sei, Maria. Em vários
instantes um homem se trai, e o despedaçar das asas das formigas de chuva
ainda dói muito em mim. Mas, ali, naquele mundo das vontades dos olhos de
uma criança ficaram, para sempre, as palavras do Velho Tibúrcio. Em nossas
gentes e em muitas pessoas do mundo, o livro das suas histórias já estava
escrito. No avançar daquelas horas esquecidas, cresceu, por dentro de nossos
olhos, o sentido da sua humanidade. Os ecos das palavras desse velho
contador de histórias. Um senhor de mais de cem anos que parecia ter uma
força descomunal na mansuetude que letrava as suas palavras. Essa era a
nossa verdade. Eu tinha onze anos. Tu, catorze. Descobrimos, juntos, novas
histórias sobre ele. Falavam que a Morte se fazia de cansada na sempre-hora
de vir buscar o Velho Tibúrcio. Quando menos se esperava, no esquecimento
de uma boca-da-noite, ele surgia em um arraial, e aí juntava um monte de
crianças e um punhado de pais e mães para ouvi-lo contar uma história, na luz
pequena de uma lamparina a óleo. Diziam que a Morte sentava ao lado das
criancinhas para ouvir os mundos falados do Velho Tibúrcio. Afirmavam, com a
mais simples das franquezas, que a Morte gostava de ouvir histórias e, no meio
do calor das pessoas, alguém sempre sentia aquele ombro frio se aprumando
para ouvir melhor o semeador de mundos. Por isso ele tinha mais de cem
anos. Todos sabiam. A Morte devia, verdadeiramente, gostar de ouvir histórias.
Ela, a que fazia a colheita de todos os términos, essa catadora de gentes, se
afeiçoou pela nossa terra e pelo Velho Tibúrcio durante um bom tempo das
nossas vidas. As pessoas não morriam como se morre hoje: de morte fácil e vil.
Morre-se hoje como as moscas morriam ingênuas pela chama de um

45
candeeiro. Entravam pela boca do vidro e não sabiam mais sair. Caiam mortas,
esturricadas, na camisa incandescente do fogo. Mata-se hoje pelo vazio de um
copo d’água. Morre-se por tudo. Em algum lugar dos nossos olhos, em algum
instante do mundo, perdemos a capacidade de nos reconhecer como pessoas.
O Velho Tibúrcio sabia disso. Talvez por esse sentimento ele não morresse
nunca. Nessa estrada de rios e histórias, ele sempre aparecia entre nós. E na
luz do cristalino dos seus olhos, onde o cansaço lutava para escrever uma
catarata, o brilho de uma história acesa sempre renascia o homem, vencedor
da hora na palavra lançada. Um pouco da vida escrita por todos nós na voz de
um homem. Passos marcados por todos. Uma epifania do verbo. Um contador
de histórias. O Velho verbo Tibúrcio. Ele que trouxe a Dona Constança, que
nos ajudou a ver essa verdade um nos olhos do outro. E por esses tempos de
então, Maria, nós nem nos conhecíamos. E se morria apenas de velhice nas
histórias. Ou se morria nos braços falantes do Velho Tibúrcio, em um dos
deslindes da vida contada. Mas a morte matada por um, o corpo caído do outro
em queda sangrada de bicho, era um mundo muito distante dos nossos olhos.
Um quase impossível. Tenho saudades dessa época, Maria. Sinto falta da
morte calma, sentada ao nosso lado, na boca-da-noite, aguardando o Seu
Tibúrcio se aprumar na iluminação de um instante imaginário. A Morte gostava
desse ajuntado de pessoas ao redor de uma boa história. Aí ela se fazia de
esquecida e apenas tocava o lado frio dos seus ombros nos braços da gente.

Ela sentava ao nosso lado. Descansava um pouco.

Imaginava dentro dos seus olhos uma outra vida.

A Morte em seu silêncio visível.

Desenhando imagens de um outro mundo em sua íris.

A morte sorrindo, voando.

Sempre perto da gente.

Cansada do seu trabalho. Parava um instante.

Ela serenava o seu cansaço para ouvir histórias.

46
A Morte e os seus ombros frios.

Uns ossos de palavras, ali, ao nosso lado.

A Morte queria ser gente.

Uma pessoa com as suas histórias, um mundo.

Essa Morte era uma morte que eu não tinha medo.

Não era a morte dos homens que chegou mais tarde.

Essa Morte não era agoniada. Era silente.

Ela gostava daquele ajuntado de gentes.

Se fazia de esquecida para ouvir o nosso contador.

O Velho Tibúrcio marcou as nossas vidas com a sua voz.

Ele que sabia da iluminação do mundo das palavras.

As histórias são um mundo que se acende.

Foi, assim, naquele fim de tarde. Ele chegou, sem avisar,


no barco do prestamista lá, no nosso pequeno trapiche. Desceu perfumado.
Garboso como nunca para dar a notícia ao meu pai. Apresentou Dona
Constança a todas as pessoas da comunidade, disse que ela tinha uma
proposta que iria mudar as nossas vidas. Além do trabalho de recolher as
histórias dos outros contadores da nossa terra, Dona Constança iria viver ao
nosso lado por uns tempos. Um inesquecível tempo. Naquele cair da tarde, vi
minha mãe feliz. Vi nos olhos do meu pai uma das cores da esperança.

O dia já se ia mofino nessa hora. O sol já escondia seus


cílios dourados nas frondes das árvores do rio, por trás dos Miritizais.

A boca-da-noite mostrava o início do seu rosto.

Esse foi um daqueles dias em que a lua esteve presente no


céu todas as horas. Ela não se escondeu com a chegada do sol. Esteve, ali,
sempre, iluminada o dia todo. Perto do sol. Velando a lida de trabalho de todas

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as pessoas do nosso mundo, curando alguma dor, escrevendo alguma
fraternidade na solidão do sol. Aprendi sobre as manhãs com lua. Durante o
caminho para o roçado de mandioca com a minha mãe, quando margeávamos
os caminhos úmidos das águas negras e frias do igarapé, e o perfume dos
jenipapos parecia fermentar todo o chão, a minha mãe me disse desse tempo.
Quando acontecem esses dias, as estrelas já começam a mostrar o seu brilho
ainda no meio da tarde, quando o mormaço já cai enfraquecido. E a lua se
revela em um além de um vermelho no tempo das águas grandes. É só olhar
para um Jenipapeiro, e ele vai estar florido. Vermelho da lua. Sentimentos.
Noites de Lua Vermelha, instantes que a vida escreve um mosaico de ternura e
desejos nesse pedaço de chão. E no céu, a lua é uma casa enorme. Lugar
onde todas as pessoas de um mundo se reconhecem.

Tempo dessa Lua. Dona Constança.

Uma chegada. Uma boa-nova no trapiche.

No final da tarde, o brilho das estrelas sobre o rio.

Alguma, incandescente, mergulha no distante das águas.

Escreve o seu corpo, a sua vontade.

Um risco iluminado de palavras.

Alguém fez um pedido.

Estrela cadente.

Dentro dos olhos, as águas do mundo.

Lua toda. Lua cheia. Lua inteira. Lua toda a vida.

Lua nossa. Lua das ruas do rio. Lua vermelha.

Véspera da esperança.

Lua de todas as gentes.

Uma casa, um trapiche, águas grandes.

48
Noites de lua vermelha.

Um saber de pessoas.

A minha vida ainda iria me ensinar muito sobre as estrelas.


Nos noturnos do silêncio da proa, nas luzes das águas de um rio, a caminho de
Belém, eu iria aprender algo sobre o brilho das estrelas no mundo das marés.
Nas luzes intensas da cidade, muitas vezes, eu não conseguia mais me
lembrar do brilho dessas estrelas e do tempo da lua o dia inteiro no céu. Perto
do sol. A vontade de ter esperança. Um mundo para se erguer e fazer dele
verdade. Quantas vontades de esquecimento há em uma saudade, Maria? Em
meus sonhos tristes há essa marca. O sonho das nossas histórias quer se
escrever vazio. Deslembrar. É esse, então, um outro verbo que se escreverá
em minha vida? Um tempo de esquecimento de verdades, imagens e
sentimentos? Um instante de esquecimento das pessoas e das suas histórias?
É esse o vazio, renovado, que quer se escrever nos sonhos tristes das minhas
girândolas sem sentido? É esse o vazio que quer se escrever no abandono das
minhas girândolas, Maria? Não sei. As águas desse rio que te escrevo, como
uma rua que vai de mundo a mundo, a minha tua história, tentará alguma
resposta. Uma possibilidade do teu mundo meu. Alguma verdade para esses
meus sonhos. Um quebrar de quebranto. Um pouco dos teus olhos, Maria. Um
pouco das tuas mãos lendo o meu rosto. Um pouco da tua ternura essencial
agora. Escrever para eu me ouvir melhor. Te sentir nesse caminhar. Naquele
final de tarde, quando eu nem te conhecia ainda, à beira do trapiche da nossa
gente, ficou, para sempre, escrito em meus olhos, o primeiro instante em que vi
a Dona Constança. E um não-saber que por meio das suas palavras ela iria
nos dar as mãos. Um destino que ela iria escrever com o seu trabalho.

Assim que o barco do prestamista atracou no trapiche,


minha mãe logo se apressou em acender a lamparina a óleo, e o pequeno
chumaço da ponta começou a arder o seu cheiro, iluminando o lodo das
madeiras para que Dona Constança caminhasse, entre os esteios, com alguma
firmeza. Sou capaz aqui, no meio dessas palavras, de ouvir os seus passos.

O Velho Tibúrcio nos disse que passou a tarde inteira


percorrendo as comunidades do nosso rio, informando sobre a boa-nova. E

49
que a nossa casa estava sendo a última a ser visitada pelo barco do
prestamista. Desde lá, da boca do rio, da tua casa até à nossa localidade, ele
tinha passado apresentando a Dona Constança e dizendo do seu propósito: o
lanço das palavras de uma vontade de estar entre nós, uma semeadura.

Meu pai apertou a mão dela.

Minha mãe lhe ofereceu um sorriso.

Dona Constança, em seu olhar, era só ternura.

O Velho Tibúrcio falou de um novo tempo.

Uma nova história.

Em suas palavras, Dona Constança, disse do seu trabalho.

A sua vontade. O seu verbo: uma escola.

Uma escola no meio das terras do rio.

Essa era a proposta. A notícia.

O semeado lançado. A semente que floresce destino.

Alguém que se oferece para escrever uma nova história.

Um novo mundo. Dona Constança.

Essa era a boa-nova que o Velho Tibúrcio trazia no barco a


motor do prestamista. Um popopô que lançava essa novidade para todos nós,
vizinhos da mesma maré. Uma escola. Um mundo novo que se desenhava
sobre as nossas águas. Por último, subiu no trapiche, o Seu Teotônio, o
prestamista que tinha empenhado o fazer do seu barco para compartilhar essa
alvissareira notícia com toda a nossa gente.

Eu, criança, meio espantado com toda essa movimentação,


fiquei com os meus olhos para cima, observando o conversar das pessoas
sobre o meu mundo, o iniciar do meu destino que se escrevia pelos braços
sagrados dos esforços de todas as gentes. Dona Constança me olhou e sorriu

50
aquele sorriso em silêncio. Aquele. Aquele sorriso de humanidade que iria me
acompanhar a vida inteira. Um sentimento, um cuidar de pessoas.

Dona Constança, alguém muito especial nas nossas vidas.

Alguém que atendeu ao seu próprio chamado.

Uma pessoa para um mundo melhor.

Um mundo de pessoas vivas. Gentes.

Eu sorri de volta.

Sorri sem medo.

O comunicar das histórias. Um destino que se partilha.

Seu Teotônio percebeu essa mútua felicidade.

E sorriu também. O prestamista da boa hora.

Sorriu, em seu trabalho, um regatão de palavras.

Imaginou um outro mundo. Uma outra vida.

Meus olhos viram, lá em cima, por entre o brilhar dos


semblantes que tremeluziam no fogo da lamparina, a lua vermelha. Entre o céu
e o resto da Terra, por cima da floresta, ali, do nosso lado, estavam prateados
os enormes infinitos dos fios de alta tensão da luz elétrica, que passavam por
cima das nossas vidas e correndo, em sua distância de todas as vergonhas,
iam levar a luz para outros mundos.

Mais alguns instantes e um café todos tinham ido embora.


Hoje, eu tenho a certeza de que o Velho Tibúrcio já tinha
passado na tua casa, lá, na boca do rio. E tu, também, já tinhas visto, pela
primeira vez, a Dona Constança e o seu propósito de pessoas. Uma verdade
que se fez história, o seu trabalho de vida por nós, a nossa gente. Uma fé.

E o nosso destino estava sendo escrito.

Um verbo escrito de pessoas. Vários braços.

51
O mundo das nossas vidas.

Os braços da nossa gente. E a nossa própria letra que


iríamos aprender a fazer. A nossa sempre lida. Escrever os nossos destinos.

Nessa noite, a minha mãe carregou e acendeu uma outra


lamparina para durar a madrugada inteira o seu fogo. Da minha rede, eu
percebi aquele líquido iluminante queimar a sua esperança a noite toda, ao
lado do pequeno oratório da minha mãe para a Nossa Senhora de Nazaré. Um
agradecimento. A criança que eu era, ali, naquele instante, ficou marcada com
aquele agradecimento da minha mãe. Vários significados. Dona Constança,
uma escola no meio das águas do nosso rio. O Velho Tibúrcio, Seu Teotônio.
Uma lua vermelha. Um novo mundo, novas palavras.

“- Quem sabe, João, vai chegar um tempo em que o dia vai


ser grande. Um dia grande cheio de luz!”. Essas foram as palavras que eu ouvi
da minha mãe para o meu pai, antes de ela vir à minha rede para me abençoar.

“- Um dia grande cheio de luz.”

Até hoje essas palavras ecoam na minha mente.

Até hoje, por muitos lugares dessa minha terra, os fios


prateados da luz elétrica não envelhecem as suas vergonhas quando passam
correndo por cima das vidas de todas as nossas gentes e vão levar a luz para
outros mundos. Mais tarde, nessa minha história, eu compreendi que as
palavras vestem todos os seres, e que alguns homens sabem dissimular as
suas vontades na traição das vozes, e aí escravizam as palavras, mentem
sobre as suas cores, perdem as suas línguas e se adoecem em uma vida de
enganar os outros. Quando é verdade, quando nasce da vontade sincera de
dizer, as palavras não perdem a sua vida morrendo na boca de um homem. Eu
sei, Maria. Eu sei. É o despedaçar das asas das formigas de chuva. O instante
em que certos homens se traem. Aqueles que se julgam senhores das palavras
na força das mentiras não sabem que já perderam a vida aos olhos de todas as
palavras, e passarão o resto dos seus dias arrastando esse vazio em busca de
uma só palavra, à procura de um só verbo gente.

52
Por isso eu te escrevo, Maria. Para te alcançar em mim.

Saber de ti. Saber de mim. Te ouvir.

Escrevo para não me trair mais.

As minhas girândolas vazias.

Um mundo, a minha solidão que se repete.

A notícia que todas as pessoas souberam.

Eu que te trago esses meus sonhos tristes.

Agora entendo que se deve lutar contra uma modernidade


que parece ter um rosto alheio às nossas vidas. Uma modernidade que não
nos considera nos longos caminhos distantes dos seus infinitos enormes de
fios prateados. Na sua vida ao nosso lado, Dona Constança iria nos ajudar a
compreender as muitas línguas, e a escrever outras verdades no mesmo texto
das águas da nossa terra. Uma vida a duas mãos, a quatro mãos, todas as
vidas nos braços de todas as palavras, um texto de todos os braços do rio, de
todas as pessoas que se escrevem destino. Uma nova história.

Depois desse acerto do Velho Tibúrcio com os meus pais,


e das palavras que o prestamista entrelaçava por todos os igarapés em que ele
fazia o seu comércio, todas as gentes que moravam ao longo das sete
comunidades do nosso rio ajudaram no trabalho de levantar a escola no meio
das nossas águas, em uma das mais altas ilhas, uma que enfrentava o ano
inteiro as águas grandes e era firme. Firme para ser uma escola para todos.

“- Um dia grande cheio de luz.”

A esperança em seus vários dizeres.

As palavras da minha mãe.

O tempo da Dona Constança.

Uma escola no meio do rio.

Sob o olhar de todos os Miritizais.

53
Guardada pelos teus Açaizeiros.

Uma nova história, Maria.

Uma história da gente.

Uma história de gentes.

Escrita por nossos próprios braços.

E pelos braços sagrados de todas as pessoas que ajudam.

Eu que estava prestes a te encontrar.

54
VII

Um sonho: uma escola. Um lugar que ensinasse a vida e


todas as ciências do viver. Um todo alfabeto, um início, o soletrado das águas
de um rio. Vieram, então, os braços de muitas pessoas para afirmar esse
sonho verdade. De todos os cantos das águas surgiram pessoas dispostas a
ajudar a construir esse tempo. O Velho Tibúrcio organizava todas as gentes em
um grande mutirão antes de o sol nascer. Puxirum, uma palavra índia escrita
por nós pela força das nossas mãos, e com a perseverança de todos os
destinos que se escrevem. Um tupi. Uma palavra. O tupi. Puxirum. Festa e
muito trabalho. Um ajuntado de pessoas com um só propósito: mudar um
destino. Não aceitar aquilo que alguns, veladamente, sonham em escrever por
nós. Nada se escreve destino se não for pela força de nossos braços e pelas
palavras que comungam todos os nossos esforços. Escrever um destino é a

55
certeza de um instante feito eterno agora. Nossos braços, nossas vontades,
nossos olhos, todas as nossas palavras e, a cada silêncio, a nossa resistente
perseverança. O sonho de uma escola. Eu com onze anos. Tu, catorze. Uma
nova estrada. Não havia, aqui, aqueles homens importantes com as suas
palavras que adormecem um olhar e domesticam todas as nossas vontades.
Não. Havia gentes de todos os lugares da minha comunidade. Todas as
pessoas que eram vizinhas daquele mundo, moradores da mesma maré,
estavam, naquela hora, oferecendo algum trabalho. Nós éramos, naquele
instante, as pessoas importantes da nossa história, os protagonistas do nosso
destino. E, assim como a luz elétrica que passava voando seus destinos sobre
as nossas vidas, a falta de uma escola queria insinuar que não éramos gente.
Não éramos dignos de ser pessoas. Para alguns até hoje essa falsa verdade
ainda vale. Como se dependêssemos da boa-vontade de um salvador nosso.
Um homem que vá nos trazer a luz e as salas de aula. Não. Viver é
desacreditar as grandes mentiras. Viver é querer ter a vontade de estar vivo.
Viver se escreve na força de uma verdade: nos braços de todas as gentes. E o
Velho Tibúrcio sabia disso. Dona Constança e a nossa gente também.
Estávamos, ali, naquela hora de todos, descobrindo a luz dos nossos braços.
Uma palavra mutirão de todos os destinos das nossas vidas. Um puxirum.

Uma simples verdade: nós.

Uma palavra que amarra os nossos destinos: nós.

Amarra para afirmar. Amarra para ser firme.

Amarras de liberdade.

Nós.

Amar para ser livre.

Nada se escreve destino sem a nossa letra.

Nós. Um deus maior que todos os eus.

A nossa vontade. A nossa força.

A nossa gente.

56
E assim foi. Muito trabalho. A força de todas as pessoas
valeu o esforço de se acreditar em um sonho. Quando os nossos olhos deram
fé estava ali, levantada. Um lugar da gente, um espaço da nossa voz. Como se
fosse uma casa. Uma vontade dos nossos braços. A nossa escola. Erguida em
nossos olhos. Que era nossa por ser de todos. Um telhado a duas águas
construído pela vontade de todas as pessoas do nosso rio. Todos trabalharam.
Afirmaram a parede com o barro da várzea. Preencheram os espaços da taipa.
Da tabatinga trouxeram o rio para secar o piso. Feito telhas as folhas altas de
um Miritizeiro. O suor de todos. O sal dos corpos. Uma humanidade. O mutirão.
Das árvores, do rio e de muitas pessoas, nasceu uma escola.

Como era uma ilha e essa, graças aos nossos esforços,


nunca poderá ser chamada de utopia, tivemos que dar a ela um nome e um
trapiche. A simplicidade sempre é o melhor caminho e o nome de batismo se
consagrou no falar de todas as gentes: a Escola do Meio do Rio. No trapiche, o
Velho Tibúrcio, naquele fim de tarde, sem nós sabermos, contou a sua última
história, e pediu que nós chamássemos aquele trapiche, a partir daquela data,
de o Trapiche de Todas as Palavras. Um encontro das nossas vidas.

Naquele dia, eu percebi que nos longos braços do rio


moravam muitas crianças, pois nessa festa do inaugurar da escola, assim
como eu, muitos olhares se encontraram e se reconheceram como moradores
da mesma maré. Eu devia ser o mais novo da primeira turma da escola. Aos
onze anos, eu iria aprender a ler e, com muita luta, escrever as minhas
primeiras palavras, lançar ao rio um trapiche das minhas primeiras histórias.

Desse dia em diante nunca mais se soube do Velho


Tibúrcio. Contam que ele se embrenhou mata adentro, no seu destino
verdadeiro de semear mundos. Nas beiradas do rio, ficaram os seus ranchos
de pesca e alguma lembrança dos seus roçados de mandioca. Nos caminhos
da minha vida, escrito em meus olhos e muito no meu peito, ficaram as suas
histórias. Aquele Tibúrcio, do olhar castanho e miúdo, que deixou para nós um
trapiche de muitas palavras: o seu fascínio pela vida.

Fala-se, hoje, que lá para as bandas do Rio Negro há um


senhor, de endereço incerto, morador de algum pedaço das águas, que conta

57
histórias. Dizem que ele sempre aparece nos finais de tarde, na boca da noite,
à procura da luz pequena de uma lamparina a óleo, no mais qualquer dos
trapiches, para ser ouvido. É contador de histórias, o homem. Dizem também
que ele tem mais de cem anos. Não deve ser o nosso Velho Tibúrcio, pois ele
ainda vive, invisível e vivo, por aqui, entre nós. Na língua de todas as histórias,
muito vivo e forte. E a Morte, na sempre mecânica do seu trabalho, jamais o
carregaria no musgo dos seus braços, no sangue das suas veias cansadas. A
Morte se afeiçoou pela vida do nosso Velho Tibúrcio. Ela gosta dele. Ela pára e
descansa para ouvir as suas histórias. Sorri e voa sobre nós. A Morte está
aqui. Sentada ao nosso lado, nesse sentimento de um leve ombro frio. Ela que
se faz de esquecida de todos nós, nessa hora imperceptível, quando o Velho
Tibúrcio, em muitas vozes, conta as suas histórias.

Viver é inesquecível, Maria.

Há trinta e nove anos esse instante ainda é agora.

Um agora de instantes eternos.

A inauguração da nossa escola.

Muitas crianças que antes eu nunca tinha visto.

O rio é que devia ser enorme. Infinito mar. Sem margens


no fim dos seus braços abertos. O rio de todas as pessoas. O rio de todas as
histórias. Vários destinos que se escrevem. O rio de todas as nossas vidas.

Seu Teotônio, o peregrino das águas. Aquele que, um dia,


plantou um sorriso em meus olhos. Saudades dele. O prestamista da boa hora.
Aquele que se fez braços de uma palavra. Seus filhos continuaram o seu
trabalho no rio. E foram além. Outros mares. Filhos da mesma saudade.
Moram na capital e são donos de duas redes de lojas. Uma rede. Duas redes
de lojas. Várias verdades. Uma rede. Rede é uma palavra de vários fios, Maria.
Um mundo. Fios de várias histórias. Vários punhos e muito trabalho. Rede é
uma palavra de palavras, Maria. Um texto. Um tecido. Uma fé.

Dona Constança viveu nove anos ao nosso lado.

58
Viveu uma vida por nós. Abraçou as nossas águas.

E com ela nós nos desafiamos ao mundo.

Dona Constança, uma vida toda de palavras. Seus olhos


estão aqui, nesse texto que te escrevo, Maria. Eu que escrevo para ir te
buscar. Escrevo por mim para ti. O teu mundo meu. A certeza de que o mundo
das palavras da Dona Constança até hoje me ensina. Eu, que agora, aí, do teu
silêncio, aguardo algum sinal, Maria.

Nossa gente. Nossos irmãos.

Teus pais. Meus pais.

Todas as pessoas do nosso mundo.

As nossas histórias.

O nosso rio. Um verbo. O trapiche de todas as palavras.

Um trapiche existe para que a gente queira voltar, Maria.

Um sentimento. A verdade que escreve os destinos.

Nossos braços, nossas palavras.

O trapiche de todas as histórias.

Um semeador de mundos.

Uma pessoa que não envelhece. Um rio.

Um homem de cem anos.

Um contador de histórias. A sua voz viva aqui.

Para mim, para a minha verdade, sei que o Velho Tibúrcio


é um de nós que carrega as girândolas, em todos os inícios dos dias de
outubro. Ele está entre a gente, embarcando as girândolas para Belém.

Mas ele não sabe desses meus sonhos tristes.

Tu sabes, Maria.

59
Tu sabes desse vazio na fé das minhas girândolas.

A notícia que o mundo soube.

Uma ausência de tudo. A minha agonia.

Por isso eu te trouxe essas palavras.

Eu escrevo para que eu possa me ouvir melhor.

Escrevo para te alcançar em mim.

Eu escrevo para me perdoar. Para me fazer um bem.

O meu início das tuas mãos em meu rosto. Uma vontade.

A tua leitura dos meus silêncios nas minhas feições.

As tuas palavras em mim. O teu mundo meu.

É preciso viver as palavras para entendê-las.

A nossa história. O escrito e o vazio das nossas vidas.

Naquele dia, há trinta e nove anos, no inaugurar da nossa


escola no meio do rio, tu estavas lá. E eu te vi pela primeira vez.

Vi os teus longos cabelos castanhos.

Vi as tuas costas.

Não vi o teu rosto.

Eu tinha onze anos. Tu, catorze.

E os teus cabelos eram mais belos do que as águas do rio.

60
VIII

Uma vez eu ganhei um livro usado de presente.

A pessoa que me deu disse que a história que estava, ali,


guardada naquelas palavras, iria iluminar, para sempre, os meus olhos.

Durante a minha vida, eu descobri que naquele livro havia


algo mais que uma belíssima história. Havia um sentimento que ia me
acompanhar por todas as estradas dos nossos rios. Uma marca, um signo. A
incrível história de um menino, um mundo de águas, lutas e fascínio.

Foi essa, a primeira vez, que meus olhos se encheram de


emoção durante uma leitura. Eu fechava as páginas do livro e imaginava a vida
daquele menino. As imagens que se levantavam daquelas palavras iam me

61
revelando que a distância entre os mundos não é assim tão grande, e que a
vida de um menino que estava escrita nos braços de muita gente, nos olhos de
quem ama e de quem resiste, é também a vida com todos os seus perigos e
ausências, a vida viva, cotidiano de alguma pessoa no mundo da várzea, à
margem de um tudo e à beira de um nada.

Eu pensava no homem que escreveu aquela história.


Alguém que sabe muito dos segredos das emoções humanas. Alguém que
sabe da vida que corre, entre descaminhos e esperanças, ao lado dos rios.

Uma história para todo o sempre dos nossos dias.

O livro do escritor das águas. Uma vida escrita de rios.

E ternura, muita ternura.

Dentro desse livro havia mais que palavras iluminadas.

Um livro usado, um livro lido, é algo mágico. Ele guarda


vestígios, marcas de outras pessoas, junta gentes, suas histórias e segredos.
Mãos, olhos, impressões e sensibilidades de quem já esteve ali, folheou as
suas páginas e deixou seus rastros na colheita das palavras, no texto que, um
dia, veio à luz. Entre o que narra e entre o que lê uma vida nasce, um
entremundos de palavras. Uma história que foi acesa. Um mundo vida.

O livro do escritor das águas. O infinito iluminado.

Um livro para o viver de uma vida inteira.

Um verbo amar.

Um livro usado.

Havia traços sublinhando várias passagens da história.


Neles eu me detinha tentando desvendar o que eles queriam dizer. As marcas
das outras pessoas, a vida nos olhos de outras gentes derramada, ali, sobre
aquelas palavras. Eu, assim como o menino do livro, me ensimesmava. As
marcas das pessoas nas marcas iluminadas da história desse livro. Um
entrelaçado de vidas. E desses sentimentos renasciam fascínios como os

62
passos repisados das várias pessoas que descem na margem dos rios, na hora
do encontro das palavras em um trapiche. O início da beira de um livro.

Uma margem para vários caminhos.

Uma luz para um olhar.

Uma história para sempre.

Dentro desse livro havia algo mais que um esquecimento.

Havia uma vida. Havia uma intenção.

Havia uma carta.

Ou uma outra história.

Aquilo que vence a hora em que tudo se apaga.

Um instante em que a Morte se enternece para ouvir.

E se acalma. E serena.

Porque certas palavras nunca se desenganam.

Um livro. Um lugar onde não se morre.

Nesse havia uma carta. Ou uma outra história.

Um quase diário das palavras de um encontro.

Algo destinado para mim. Uma verdade que se escreve.

Um mundo possível para todos nós. Uma carta.

(...)

Lá, no alto do rio, em um fim de tarde no qual eu


acompanhava o Velho Tibúrcio no seu trabalho de contar histórias, certa vez,
uma menina me fez uma pergunta. Esse querer-saber transformou a minha
vida e eu precisei fazer algo. Mudar a minha história. Escrever uma resposta.

63
- A senhora é, também, professora? A menina perguntou.

- Sim, sou. - respondi em um sorriso.

- Lá, na minha cidade, eu sou professora. - afirmei.

Parecia uma pergunta simples. E foi.

Acontece que essa história não terminou aí.

Ela fez uma outra pergunta como resposta ao meu sim.


Uma ingenuidade tão intrigante que me lançou a um novo mundo de palavras.
Um eco de uma verdade que buscava alguma resposta. Algo que eu precisei
de várias noites para entender. Uma segunda pergunta à guisa de uma réplica.
Algo de um verbo que eu precisava desvendar. Responder à voz de um
chamado. Algo que, naquele momento, eu não fui capaz.

A menina de longos cabelos castanhos perguntou:

- E quando é que a senhora vai dar aula pra gente?

Minhas mãos, naquele instante, perderam o prumo de


registrar as histórias contadas do Velho Tibúrcio. Desliguei, imediatamente, o
gravador. O “click” da tecla abriu um deserto em minha mente. As pessoas
perceberam. Eu percebi. O Velho Tibúrcio lançou-me, do canto dos seus
lábios, um sorriso feito de uma ternura desafiadora. Olhei para as pessoas ao
meu redor. Deu-se um silêncio imenso. Eu podia ouvir a respiração do rio, ali,
ao nosso lado. O rio aguardava uma resposta. Todos aguardavam. O meu
mundo, a minha vida, aguardava. Em pé, à minha frente, sorrindo, e com uns
olhos negros brilhando a vontade de um mundo, a menina de longos cabelos
castanhos aguardava algo. Algo que, naquele lento segundo, eu não fui capaz.

- Eu não sei, minha filha.

Foi o que eu pude responder sem olhar nos seus olhos.

Eu abaixei a minha vista e com a ponta dos meus dedos


comecei a riscar o chão. O Velho Tibúrcio percebeu o meu mal-estar e

64
aumentou um pouco mais o timbre da sua rouca voz para seguir na sua lida de
contar histórias. As pessoas, então, fixaram seus olhos nele.

Eu me levantei suavemente.

Pedi licença, com um gesto do rosto, a todos.

E fui embora, em silêncio, mais cedo, naquele dia.

Naquelas palavras veio à luz um eco que iria me perseguir


até que eu fosse capaz de guardá-lo em algum lugar das minhas verdades.

“- E quando é que a senhora vai dar aula pra gente?”

Um chamado íntimo.

Um eco que me pedia uma resposta.

Um verbo para eu me escrever destino.

Algo que, naquele instante, eu não sabia responder.

Durante um mês, por mais que eu quisesse me enganar,


essa simples pergunta me acompanhou todo o tempo. Era a minha voz, dentro
dos meus pensamentos, reverberando a ingenuidade daquela menina. Uma
pergunta. Um mundo. A resposta que eu não fui capaz. A minha vida. Aqueles
olhos negros me aguardando. O silêncio das pessoas. O meu silêncio. O rio ali.
Às vezes é mais fácil fugir de tudo e de todos do que de nós mesmos. À noite,
eu fechava os meus olhos e dentro deles nasciam os olhos negros da menina.

“- E quando é que a senhora vai dar aula pra gente?”

Todas as noites, até eu conseguir me dar uma resposta,


essa pergunta me intrigava, assim como o vôo da ternura afiada nos lábios do
Velho Tibúrcio, naquele fim de tarde. Podemos passar toda uma vida sem
saber, essencialmente, quem somos. Isso é uma verdade que nos possibilita
vivermos realizados em nossas doces e pequenas mentiras. Um conforto.
Alguma forma de proteção que nos garante alguns instantes de fáceis
felicidades. Uma escolha. Uma razão. Um modo de se (sobre)viver. Uma
justificativa, um dos lados humanos da vida. Mas, em algum momento da

65
nossa caminhada, virão aqueles olhos negros, com as suas palavras ingênuas,
lançando pedaços de espelhos invisíveis em nossas vistas: quem nós somos?
Qual a minha relação com os outros eus? Qual o meu trabalho de vida? Qual o
verdadeiro significado da minha felicidade? Quantas solidões há em mim?
Quem eu sou nesse instante? Toda essa existência de dúvidas foi possível
graças àquela menina e à sua instigante ingenuidade. Uma pergunta que ela
fez ao mundo, mas que veio cair em minha íris, em meus ouvidos, em meus
silêncios insones e noturnos. Estava em meus braços alguma resposta, algum
verbo, a minha vez de despertar em mim uma outra pessoa que me sondava,
mas para a qual eu nunca tinha tempo.

A minha vida era, agora, um levante dos meus eus.

Viver, naquele instante, era a resposta de uma pergunta.

Eu tentava dormir sem pensar nisso.

Outra incapacidade minha.

É impossível fugir de nós mesmos.

De um outro lado humano nosso. O difícil bom da culpa.

Para onde nós formos nós é que estaremos lá.

Os nossos olhos. As nossas vidas. As nossas escolhas.

A nossa culpa. O nosso verbo. Os nossos eus. A nossa luz.

O nosso mundo. A vida de todos. A vida viva. Um norte.

Nos meus sonhos estavam sempre aqueles olhos negros.

Em seus silêncios, o vento acendia os seus longos cabelos


castanhos. Uma menina. Uma pergunta de olhos negros.

E eu compreendi que a minha paz era frágil.

“ Quando é que a senhora vai dar aula pra gente? ”

66
Um dia, no mundo desse país, há que se valorizar o
trabalho de um professor. Não há milagres. Não há mágicas. Não há
salvadores da pátria. Há, somente, a força dos nossos filhos em uma sala de
aula de verdade. A responsabilidade pelo futuro. O respeito pela dignidade do
trabalho de dar aulas. O respeito por toda criança. Ou, se continuarmos cegos,
o fantasma da violência que bate às nossas portas. O gesto banal que nos
aterroriza. O dia-a-dia de todos os nossos medos.

Uma simples pergunta. Uma instigante ingenuidade.

Eu que precisava fazer algo. Responder.

Um alumiar de mim mesmo para um novo caminho.

Abraçar uma nova história. Um outro eu em minha vida.

Viver uma nova verdade.

Abraçar os olhos negros de uma menina.

Um destino que se escreve. Uma menina. Uma pessoa de


vários eus nas estradas de um rio. Uma escolha difícil. O caminho difícil de
uma felicidade verdadeira. Fazer algo. Responder. Suscitar um verbo.

“- E quando é que a senhora vai dar aula pra gente?”

Essa pergunta transformou a minha vida.

Em uma das minhas vindas, aqui, para o lado de dentro


dos rios, durante o contar das histórias do Velho Tibúrcio, falei a ele da minha
vontade de dar aulas naquelas comunidades. Confessei algo das palavras que
eu li naqueles olhos negros. E da urgência na ingenuidade de uma pergunta.

O Velho Tibúrcio me abraçou.

Vi em seu rosto nascer, lentamente, uma lágrima.

- Nós vamos construir uma escola, professora.

Eu o abracei com todas as minhas forças.

67
Em silêncio, choramos juntos com esse nosso abraço.

Enfim, eu tinha uma possibilidade de responder àquela


pergunta. De responder a mim mesmo, de responder à vida.

E escrever com muita luta uma nova história.

Em algum lugar da Baía do Guajará,

chuvas de abril, 1979.

Constança.

(...)

Essas palavras vieram parar em minhas mãos dentro do


Chove nos Campos de Cachoeira. Um livro-rio de um texto que brilha no fundo
das nossas águas. Uma iluminação, sempre, dos meus olhos. Um livro que a
Dona Constança me presenteou em meu aniversário, no último dos nove anos
que ela passou ao nosso lado. Uma carta, um texto. Uma palavra intenção.
Um querer de verdades. Uma história de todas as nossas gentes. Um mundo.

Um livro usado. Uma carta entre as suas folhas. Um quase


diário de um verbo nos chama pelo nome. Uma outra história. Um caminho. Um
destino que os nossos braços escrevem. As nossas palavras.

Uma pergunta de olhos negros. Uma menina.

Silêncios acesos em longos cabelos castanhos. Uma vida.

Não sei se a Dona Constança deixou essas palavras para


mim de maneira intencional, ou, simplesmente, as esqueceu dentro do Chove
nos Campos de Cachoeira. Não sei. Duas grandes marcas em minha fé: a
necessidade de ouvir e ler boas histórias, e o sonho de me tornar professor.
Eu já estava com vinte anos, tu, com vinte e três. Fazia quatro anos que tu
tinhas ido embora. A vida, nesses últimos nove anos, tinha mudado muito.
Desde a chegada daqueles homens e a afronta dos documentos da nossa
terra, muita coisa aconteceu. Nós mudamos como muda o rio a todo instante.

68
Não aceitamos nos transformarem em pessoas à margem de uma história.
Havia uma guerra em nosso peito. Nunca iríamos aceitar viver longe dos
Miritizais. Somos, sim, um povo das águas, de guelras e guerras a se cumprir.
Um norte nos guiava. A luta de guardar o nosso lugar nesse chão. Ficaram
aqueles anos em que vivemos juntos perto do quadro-negro da Professora
Constança. Perto de nós, perto das nossas vidas. Esse texto acima, a palavra
intenção da Dona Constança, uma carta escrita de um só verbo, eu trouxe,
aqui, para tu saberes dos primeiros anos da tua ausência e da luta que a nossa
gente teve que envidar para não perder a sua própria vida, a sua história.
Esses poucos anos ao teu lado iriam me marcar muito nessa vontade de te
escrever. Nessas palavras em que tento te alcançar.

O meu mundo teu. A nossa história.

Eras tu, Maria. A menina de olhos negros desse texto.

A mulher que põe luz nas dores dos outros.

Benze e ilumina. Luta. Abençoa.

Lança palavras para mim. Eu que te escrevo agora.

Eras tu. Maria, um norte. Uma verdade.

Maria das águas de todos os rios. Uma fé.

A que fez a pergunta à Dona Constança, lá, na boca do rio,


certa vez, em um final de tarde das histórias contadas do Velho Tibúrcio.

A menina que eu iria conhecer em uma escola no meio do


rio. A vida que se entrelaça de gentes e alguma possibilidade de amar.

Eras tu. A de longos cabelos castanhos.

A que semeava, sem saber, uma palavra. Um destino.

Quando a Professora Constança, no fim daqueles nove


anos, me presenteou com o Chove nos Campos de Cachoeira, tu já tinhas ido
escrever o teu destino e não estavas mais ao meu lado. Naquela noite, eu

69
chorei sozinho em minha rede. O sentimento profundo das tuas saudades me
fez, mais uma vez, aquele menino de onze anos que tu conheceste na escola.

Eu tinha esse livro ao meu lado. Uma companhia.

E naquela hora eu quis falar dele para ti.

De alguma forma, naquela história, ir te buscar.

Cuidar da tua ausência. Cuidar da tua falta em mim.

Saber das nossas vidas.

Chove nos Campos de Cachoeira.

Um sentimento que ilumina um olhar.

Um menino na vida de muitos rios.

Um rio na vida de muitos meninos.

A força das histórias. O envolver das emoções humanas.

Uma voz acesa em um silêncio iluminado. Um livro.

Agora, aqui, nessas minhas pequenas palavras, um pouco


das nossas vidas. A possibilidade de um reencontro. Uma segunda chance.

Uma menina de longos cabelos castanhos.

Uma pergunta de olhos negros.

Uma ingenuidade instigante. Um chamado.

Uma casa. Uma mulher que benze.

Uma pessoa que escreveu o seu destino.

Palavras que curam. A esperança que trabalha.

A tua fé. O suave da tua voz. A tua reza que semeia paz.

O crucifixo guardado no calor da tua mão.

A vida morena no teu corpo.


70
O rosário entrelaçado entre os teus dedos e na tua voz.
Tudo da tua verdade. A tua escolha. O lado do teu mundo à parte de mim.

Um outro início da tua outra margem.

Eu: um menino e o seu olhar.

O homem da primeira mentira.

O despedaçar das asas das formigas de chuva.

O instante em que alguém se trai.

Um mundo sem respostas.

E as minhas saudades de ti.

As histórias que eu ainda preciso te contar.

O desespero sonhado das minhas girândolas vazias.

A dor de alguém que é a dor de um mundo.

A beira de um livro que eu te trago agora.

71
IX

Um telhado à duas águas. Um espaço para a nossa voz. O


taipamento feito por todas as mãos. Um além de uma casa, a nossa escola.
Um puxirum dos nossos braços e as paredes levantadas como se fossem
esqueletos do sol em uma manhã. O inaugurar de uma nova história.

Tu estavas lá, naquele dia.

Inesquecível a primeira visão dos teus cabelos castanhos.

A beleza da tua pele morena. O início de um olhar.

Dona Constança nos alfabetizou em dois anos. Com o seu


trabalho e as luzes que semeou em nossos olhos alinhavou as nossas vidas.
Alguém improvisou um quadro negro, à guisa de lousa, com uma tinta escura

72
na massa polida do barro na parede. Quando os olhos se iluminaram estava
pronto o destino: uma sala de aula. Um lugar para se conquistar uma liberdade.

“- A palavra escrita acende imagens dentro das pessoas.”

Essa foi a sua primeira oração para os alunos.

Uma promessa para um menino de onze anos.

O bem das palavras. Um futuro para hoje. Uma vida.

No teu rosto, vi, de longe, uma ternura nascer.

Teus olhos brilhavam com essas primeiras palavras.

Dona Constança fez uma pausa.

Olhou um a um de nós. Sorriu.

Apresentou-se aos quarenta e dois alunos.

Uma professora da Escola no Meio do Rio.

Uma vontade. Um verbo.

Um querer fazer.

A hora das mãos.

Nesses nove anos ao lado da Professora Constança, nos


quatro dias ao mês em que ela vinha da sua cidade para compartilhar conosco
um pouco do que ela sabia, aprendi a reconhecer o brilho do seu olhar quando
ela falava das possibilidades das palavras. Tudo se ensina quando se quer
dividir. Tudo se aprende quando se quer viver. Aprendi que as palavras têm
gosto, sabem a sentimentos, sabem a pessoas e seus rostos de vida. Eu pude,
enfim, entender as tristezas das palavras adoecidas pelas vozes de alguns.
Maldade e desenganos quando se traem as palavras. Tudo aquilo que as
nossas comunidades tinham precisão. Uma escola. Um hospital. A luz elétrica.
Um trabalho. Um outro mundo, uma vida. O instante em que mais se precisa de
tudo na hora em que alguns negam a verdade de todas as palavras porque têm
a pretensão de achar que as escravizaram em suas línguas doentes.

73
Morrem os homens não morrem as palavras.

Um homem pode não saber escolher uma palavra.

Mas uma palavra sempre sabe escolher um homem.

Uma pessoa pode não ter palavra.

Mas uma palavra sempre tem uma pessoa.

Há, entre as verdades das palavras, o mundo das pessoas.

Sim, a beleza das palavras não mente.

O valor de uma pessoa se traduz na verdade das palavras.


As pessoas são as palavras, irmãs siamesas. As palavras se olham pelos olhos
das pessoas e vivem no céu de suas bocas.

A língua é um pássaro de palavras.

O contador de histórias tem os olhos acesos. O Velho


Tibúrcio, a sua vida de palavras. As histórias que acendem um mundo. A
morte e a vida, a mesma porta, ir-e-vir na fragilidade de um sonho.

A Morte que descansava para ouvir o contador de histórias.

Ela que tinha afeição por ele.

A Morte que ouve a Vida nas histórias das pessoas.

Pessoas: o maior destino de todas as palavras.

Toda morte que morrer aquele que conta uma história, uma
vida se abrirá na mão que abre um livro e no silêncio dos olhos daquele que lê.
Vida, a todo instante, toda uma ficção.

Releva, Maria, esses pedaços incoesos da minha fala.


Umas palavras soltas que escrevem um vazio nesse mar da página, uns gritos
de frases aos pedaços. Releva, Maria, eu te peço. São indícios nostálgicos das
lembranças de um nosso mundo. As primeiras saudades de um tempo meu ao
teu lado. Um tempo Constança.

74
A leitura é o saber de um rio que se escreve.

“Um dia nós seremos capazes de desvendar as possíveis


palavras de um texto. E de ter a fascinante vista de ler e sentir um poema.”
Essas palavras não são minhas. Foi a mensagem escrita, no quadro negro, em
uma das nossas últimas aulas, nesses nove anos com a professora Constança.
O instante da vida nas possibilidades de um poema. Um sentimento. As
palavras que erguem as imagens. As mãos dos olhos em um mundo. A leitura
é o encontro do fascinante com o fascinado. Um mundo Constança:

- A leitura nunca é um adeus. – ela nos afirmava sorrindo.

Nunca esquecer da vida nos poemas. Uma lição.

A vida nos poemas. Alguma poesia para se viver. Uma fé.

Toda pessoa pode ser capaz de um poema, Maria.

Dona Constança, a Professora Constança, a mulher que


nos possibilitou os braços das palavras. A pessoa que nos ensinou que
solidariedade é verbo. Ação feita de ternura pelo outro.

Tu, as tuas lutas, as palavras que tu benzes, a luz que


derramas nas dores dos outros é muito capaz desse verbo solidariedade.

A tua ternura, Maria. Esse teu cuidar das pessoas.

O meu desespero sonhado nas minhas girândolas vazias.

A dor de alguém que é a dor de todos.

As palavras que eu te escrevo agora. A tua falta.

Eu que preciso da tua ajuda.

Um caminho para eu me desvendar.

Quando a Dona Constança nos deixou, no fim desses nove


anos, tu não estavas mais, aqui, entre nós. Já tinhas ido escrever o teu destino.
E os meus já olhos sabiam imensamente das tuas saudades. Por isso essas
palavras. Eu que preciso te contar a nossa história. Eu que preciso me ouvir.

75
Foi assim, em um final de tarde. A dor veio lancinante no
peito da Professora Constança. O braço esquerdo ficou com um peso absurdo.
Um golpe invisível exasperou a sua respiração. Todos acudiram, e ela, ao fim
de uma hora, serenou. Depois de um copo de água com açúcar, pediu para ir
embora mais cedo nesse dia. Chamaram o barco às pressas, a tempo de ainda
aproveitar a alta da maré. Dona Constança embarcou, com passos lentos e
difíceis. Estava pálida, mas havia em seus olhos uma calma intraduzível.
Dentro do barco, quando o homem do trapiche já ultimava em devolver a corda
para que assim o barco desatracasse e seguisse viagem, Dona Constança
pediu um favor. Um segundo a mais. Pediu para desembarcar por um instante.

Subiu, com os seus passos cansados, o trapiche.

Caminhou em direção aos sete miritizeiros da beira.


Abraçou, em silêncio e suavemente, um a um deles.

Um abraço para sempre.

Um abraço de filhos. Um abraço demorado.

Um abraço de velhos conhecidos.

Como se fossem umas pessoas da gente.

Um abraço de ternura. Um instante infinito.

Rezou, por alguns segundos, abraçada às árvores.

Deixou as suas marcas.

Desabraçou-se dos miritizeiros. Se benzeu e sorriu.

Caminhou em nossa direção.

Desceu o trapiche mais uma vez.

Embarcou no Bom Jesus. O mais seguro dos barcos.

O rio estava agitado. Eram as águas grandes.

Jogaram a corda em um vôo triste.

76
O Bom Jesus desatracou. Seguiu viagem.

E a Professora Constança nunca mais eu vi.

Ficaram as suas palavras como um rio que quer ganhar o


mundo. Um braço de mar. Um oceano escrito em nossas vidas pelo seu verbo
solidariedade e pelo amor às histórias contadas do Velho Tibúrcio.

Por um bom pedaço da sua vida que ela dedicou a nós,


escrevo, aqui, um pouco do nosso imenso agradecimento.

“- A leitura nunca é um adeus”.

Eu sei, professora. Obrigado por tudo.

Obrigado pela possibilidade da vida.

Obrigado pelas palavras que acendem imagens dentro das


pessoas, as nossas vistas que podem ser capazes de um poema. As suas
palavras são inesquecíveis, professora. O soletrado das águas dos nossos rios.
A sua vida. As suas lutas, as nossas lutas. A ternura de todos os verbos.

Nesse pouco início das nossas histórias, Maria, ficou o


sentimento de que das nossas palavras podem nascer outras. Outras pessoas.
Outras vidas. Outros caminhos. Outras lutas. Outro mundo. Outras palavras.

E a nossa estrada estava aberta, Maria.

E um olhar estava sendo escrito.

Nas tuas mãos iluminadas que iam benzer.

Nas minhas mãos dos brinquedos de miriti.

Nos braços que se escrevem destino.

77
X

Estavas ali. Pela primeira vez, em frente aos meus olhos.

Na nossa escola no meio do rio. Eras tu, a tua luz.

Bastou um sorriso para que ficássemos amigos.

E o rio passou a ser a nossa rua de volta pra casa.

Por muito tempo andamos juntos sobre as águas.

Ouvi de ti as tuas primeiras histórias.

Me falaste da Lourdes. Ela que era a tua irmã gêmea. Tu


que eras a última, a segunda filha. A do cordão umbilical preso no pescoço. A
que a natureza quase não permite. A da graça alcançada. A escolhida para

78
benzer. Salva pelos caniços de bambu da beira da várzea, e por Dona Filó,
parteira a vida toda, que te salvou. Pediu à tua mãe que benzesse as mãos
dela naquele instante. Um saber, uma precisão. Uma palavra:

- Comadre, a menina vai morrer. A moleira dela está roxa.


Não tem como ela passar. O cordão está preso na garganta da pequena. O
corpo está esfriando em suas entranhas. Essa menina não vai vingar, comadre.
Valha-me Deus. Se pegue, comadre, se pegue com a Nossa Senhora.

- Não, Filó, essa menina tem que vir, ela vem, eu sei.

Dona Filomena trabalhava na força do ar nos bambus.


Sugava o líquido e o sangue farto que te afogava no ventre da tua mãe.
Inspirava e expirava como se estivesse parindo também. Marcava o tempo da
respiração desesperada e ofegante da tua mãe. Segurava o braço. Rezava,
pedia. Empurrava ar pelo oco dos caniços pra ti. Debulhava as águas da tua
mãe com o pano umedecido pela água fervente na lata dos partos. Lutava.
Purgava. Se compadecia. Se entregava. Empreitava a sua fé imorredoura.

Lourdes já estava nascida. Descansava ao teu lado. Pedia


por ti no seu silêncio de criança, no mundo da sua fé de irmã.

Dona Filomena sabe da vinda da vida. Do tempo da luta


para se nascer. Das promessas, dos apelos e das danações. Da fé e dos
milagres, o aliviar de um desespero. Daquilo que se escreve nessas horas.

- Comadre, essa menina não vem.

- Valha-me, minha Nossa Senhora, nessa agonia.

- Separe ela, comadre. Peça. Entregue ela para a bênção.

Dona Filomena se afirmava nesse saber de um instante.

Uma hora em que se reza. Se pede por uma eternidade.

- Está feito, comadre. Eu abraço o fardo. Eu aceito. Eu


entrego ela para a palavra. Se essa menina vier ela vai benzer.

79
Dona Filomena sugou fundo; sugou o mais fundo possível,
pelas paredes finas do bambu submersas no ventre da tua mãe.

Um desespero. Uma esperança.

Uma promessa: te dar para a palavra.

Uma vida para benzer.

Ali, na hora da tua luz, o teu cordão umbilical te pendia


para a morte. Te sufocava. Te escurecia o sol. Ali, a fé era o mundo.

Dona Filomena, assim como a tua mãe, sabe dessas


horas. Andar sobre os rios. Dar à luz, parir. Parteira a vida toda. Um destino.

Uma luta que se escreve pelas próprias mãos. Deus ali.

Um parto. Um instante em que todas as fés ajudam.

Dona Filomena perseverou. Rezou com a tua mãe.

E te prometeram juntas.

Se tu viesses tu vinhas para a palavra.

Te destinaram naquela hora. Um porto.

Se tu viesses tu vinhas para benzer.

Um instante de vida para tu nasceres. Um parto.

Uma bênção. A toda fé das mulheres de um rio.

Uma graça alcançada. Uma história que se escreve.

Dona Filomena ajoelhada, com os caniços de bambu


imersos no ventre da tua mãe, prensava a barriga exausta para baixo, com a
força dos panos úmidos de água fervente. As mãos na tua moleira sem vida.
Os antebraços marcados com o sangue ressecado da tua irmã. A tua pálida
vida que parecia não vingar. Nos olhos da tua mãe a lembrança dos caixões
dos recém-nascidos. A dor de um vazio nessa hora de muito desespero.

80
Solidão. Um filho que não chega.

Um filho que não vem mais. Um mundo de ausências.

Uma hora para se continuar um caminho.

Reaprender a amar. Acreditar na vida. Pequenos passos.

Dona Filomena crescia pela fé nesses instantes.

Não se quedava vencida. Perseverava até o último silêncio.

Sugava. Inspirava e expirava nos caniços de bambu.

Rezava. Cuspia.

Pedia. Te entregava.

Dona Filomena sabe desse mundo nessas horas.

Uma fé para a ausência de um tudo. Uma precisão.

Dona Filomena prensava o baixo ventre da tua mãe.

Pedia pra tu nasceres.

Pedia a tua luz.

Pedia para tu vires para a bênção das palavras.

Tu eras a que ia benzer. Derramar a paz nos outros.

Dona Filomena rezava e lutava alto.

Pedia.

Implorava.

Prometia.

Sugava a tua panema pelas paredes do bambu.

Rezava.

Inspirava e expirava na fragilidade dos caniços.

81
Pedia.

Te entregava. Te prometia.

Perseverava.

Perseverava.

Perseverava.

A golfada veio forte.

O sangue da tua luz jorrou pelas narinas da mulher.

Dona Filomena derramou as tuas águas ensangüentadas.


Cuspiu as tuas dores. Acreditou. Apartou-se dos caniços de bambu, chorou.
Dona Filomena se benzeu. A tua luz estava pronta.

E tu já estavas prometida para a palavra.

Nascer é uma felicidade sensível.

E assim tu vieste: quando as lágrimas de todos secaram.

Não há agonia sem-fim. Nem felicidade sempre.

Só há pessoas e a força da fé pela vida.

Quando quase não se acreditava mais, tu vieste.

Fé, a margem mais segura dos rios. A palavra.

Nos olhos vidrados da tua mãe renasceu uma luz.

Apalavrado foi aquele vazio. Encheram ele de vida.

Nasceste renascida. Despalavraste um triste fim.

Um término sem início, recusaste.

Viver é desacreditar a infelicidade.

Dona Filomena te revirava o corpo e te amornava o peito


com os panos úmidos de água fervida. Rezava em ti a reza de todas as mães.

82
Estavas roxa, exangue e sem vida. Pálido o caminho.

Dona Filomena sugou as tuas narinas.

De mais sangue e águas, renasceste outra vez.

Renasceste, pela fé, para a palavra.

Para o mundo, para a vida, para as pessoas.

Para o bem. Para as dores.

Para as consolações. Para a luz.

Uma Maria da fé. Uma Maria da palavra.

Uma Maria das águas de um rio.

A que renasce para uma promessa.

Uma Maria que estava pronta. Prometida.

Aqui, no meio dessa terra de águas, quando se batiza uma


criança com o teu nome, escreve-se um destino, uma esperança, um rio.

Maria, um norte. Uma história de todos. Uma fé.

Teu pai, lá fora, soube da tua vinda. E disse que já estava


escrito, pois em toda a noite de lua, do quarto mês para a frente, tu choravas,
sempre, na barriga da tua mãe. Um choro mofino, que só ele ouvia.

- Essa menina vai benzer. – ele afirmou emocionado.

Em uma das nossas primeiras andanças por esse mundo


de águas, tu me contaste essa história do teu nascimento.

Lourdes olhava sem entender por que tu estavas me


contando todas essas histórias, esses instantes tão particulares da tua vida.

E sorria a Lourdes. Desconfiava de algo.

- Ah... então vocês são gêmeas? – perguntei.

83
- Não, ela é a gêmea, a Lourdes. Eu sou a última.

O teu mundo particular, as tuas palavras. A tua resposta.

Eu sorri. Uma de cabelos castanhos, andar miúdo do pai,


face índia e olhos negros. Outra, a pele trigueira da mãe, cabelos negros,
marcas de um avô, soldado da borracha, que semeou o seu sangue por aqui.

Duas pessoas, cabelos castanhos e negros. Uma vida.

Sim, eu sei. Ela é a gêmea. Tu és a última.

Sorri, mais uma vez, enquanto me concentrava no som


dessas tuas palavras, que ficaram marcadas pelo barulho líquido e cadenciado
das minhas enfiadas do remo nas águas do rio.

Umas palavras, um som a traduzir. Um eco de pessoas.

Uma imagem. A última e a gêmea. Um fio de vida.

Tu, a tua história. O teu mundo meu que se iniciava.

E assim foste crescendo em tuas histórias que eu ouvia.

Perto de mim, perto das águas.

Perto de um rio. Perto de alguma felicidade.

Perto de algum mundo em que a nossa vida foi possível.

A tua história.

A minha história.

As nossas marcas.

Não existe o tempo, Maria. Não há um tempo.

Só existem pessoas.

E eu levei uma vida inteira para compreender isso.

84
XI

E assim foste crescendo em tuas palavras.

As histórias que eu ouvia do céu da tua boca.

A que horas uma pessoa escreve um destino?

Onde inicia esse instante em que nos damos por gente?


Tu, que choraste na barriga da tua mãe, que foste salva por ser prometida para
benzer, em qual momento soubeste que eras tu que escrevias a tua história?

O teu pai disse que já estava escrito. Me falou das


vésperas das águas grandes, me disse do teu choro mofino que ele ouvia nas
luas do quarto mês para a frente, na barriga da tua mãe.

85
“- Ela chorou na barriga da mãe...

- Chorou que eu ouvi. E isso é o destino para a palavra.”

Um mundo para benzer.

Uma luz para rezar, um cuidar de pessoas.

Um encargo, uma promessa. Um compromisso.

O teu pai me disse um pouco das tuas palavras.

Me disse que tu sabias do rio.

Me disse que tu sabias dos braços abertos sobre as águas.

Me disse que tu sabias do lançar da tarrafa em um mundo.

Me disse que tu sabias de um saber.

O teu pai, um olhar:

(...)

Maria é filha das águas, menina da várzea, sabe de todos


os segredos do rio: o tempo da preamar, o instante em que as águas do
oceano invadem, em silêncio, os igarapés da nossa casa. A hora do sal, uma
nova cor, o cheiro da maré de lanço, o desaparecer das raízes-escoras quando
o mangue está submerso. Nas mãos dessa pequena, a vida que as águas
grandes trazem, os campos inundados onde antes eram as tarefas da
mandioca, o lugar do nosso trabalho. Ela sabe, sabe da gravidez das águas na
terra, sabe da promessa que o rio lhe faz todos os anos.

Ela sabe o saber do rio, uns segredos.

O saber do rio amanhecendo.

Uma história.

86
Maria cresceu, correndo suada, ao lado do rio.

Um dia, durante a caminhada para a apanha do açaí, ela


me disse uma palavra. E eu, por primeiro, duvidei, não dei a valência.

- Pai, esse ano as águas vão mudar antes da hora.

Eu sorri. Desconfiei.

Mas eu tinha que dar fé.

Ela era a minha filha.

A que chorou na barriga da mãe.

E a fé é a verdade que não acontece nos nossos olhos.

Nesse ano, o mar, nesse abril, entrou mais cedo. O rio


começou a mudar de cor e o seu gosto se fez novo. Eu punha as minhas mãos
na pele das águas e provava delas.

- A menina já lê o rio.

(...)

O rio, o mar, as pessoas, um trapiche.

O oceano veio antes. Já havia algo de sal nas entranhas do


rio. O rio no abandono das suas próprias águas. O rio em si mesmo mar.

Um entrelaçar de histórias. Uma palavra.

87
Nos olhos da menina o som das águas. O desaguar de um
corpo, o rio grávido, esfíngico, gemendo a sua terra fecunda. O rio que
acordava mar. O rio que cala o seu caminho. O seu murmúrio líquido.

Um destino nunca é único. Ele é a história de um rio, de um


mar e de todas as pessoas do nosso mundo. Essa é a nossa terra de águas.

Um porto. Um parto. Um trapiche.

Muitas guerras e guelras no peito.

Maria, a menina que lê o rio.

Agora, aqui, na tua casa, nesse pátio onde aguardo o meu


chamado, o rio está em teus braços, nas tuas mãos que lêem as feições do
meu rosto. O rio que sempre volta para renovar as suas marcas esquecidas.

Lá fora, na tua rua, na chuva fina dessa manhã, no perfume


das mangueiras grávidas desse outro abril intenso, a cidade é o nosso mundo
possível. A cidade que saiu das águas, nascida na pele a perna, girino
tremendo na água deixada, o corpo que cresce. Lembro da nossa terra. Das
nossas histórias em um lugar, de um mundo de raízes expostas, de um barro
arrancado, árvores navegando em pequenas cidades indo pro mar. O rio em
transe. O rio que narra todas as histórias. Dias de água, um mundo nosso.

No terreno da tua mãe, quando as águas paravam de


correr e a lua era um segredo, vinham os peixes na fartura das águas mortas.
Sempre achei estranho esse nome. Águas mortas. Um nome para o instante
em que as palavras se preenchiam de sentido, um muito da vida. Um saber.
Quando as águas serenavam depois da força de uma preamar, a lua se
quebrava e as águas se aquietavam, aí vinha o tempo da recolha dos
espinhéis. Outros vários trabalhos nas mãos que sabiam da força do peso das
arraias em algum corredor de areia, no chão de um curral, no meio das pedras.
O vôo de uma zagaia. Um norte, várias lutas. O matar das fomes no puxar das
malhadeiras. Uma palavra, um mundo, um nome. Muitas pessoas. Uma vida,
águas mortas. O tempo em que a maré se quebra e renasce um viver. Uma
gente, uma vida. Uma lição de pessoas em suas várias lutas.

88
O tempo da fartura dos peixes. Águas mortas.

A vida que se aprende.

O tempo da fartura de trabalho.

A maré que se quebra.

A lua que se quebra.

Um tempo: as nossas pessoas. A nossa gente. Nós.

As nossas histórias. Um lugar.

O prata-luz que brilha no dorso de uma pescada branca.

Uma vida, um mundo.

Tu que moravas lá, na boca do rio.

Eras quase vizinha do mar. E eu sempre te visitava.

Águas mortas. Uma tradução para a vida.

O inverso das palavras. Bem-aventurança.

As minhas primeiras impressões. Dias de muita fartura.

No quintal da casa todos no trabalho. O som era dos peixes


sendo descamados na escova de pregos com a madeira gasta. O fio da faca.
Abertas as barrigas, separadas as ovas, o pescado ia descansar no sol o
tempo da salga, em uma esteira de palhas secas, próxima do jirau. A vida que
se fazia nessas marcas, na fartura desse trabalho, em uma luta áspera e doce.
Em uma luta possível. Nas palavras da tua mãe a vida, o espalhar das
escamas pelos braços morenos, a maneira certa, o saber exato de ela abrir o
peixe e deitar as ovas entre os seus dedos magros e longos. A certeza de
chamar pelo teu nome. A colheita da vida nas palavras da tua mãe:

- Maria, cuida das ovas.

E na luz dessa fala o teu mundo. A tua promessa.

89
O teu início de cuidar da vida.

Ouço de ti nas palavras dos outros. Sei de ti criança. Sei de


ti Maria. Sei de uma Maria de um rio. Sei de uma Maria que se aguarda.

Lembro de ti, Maria.

Viver é inesquecível.

Lembro de uma Maria.

Eu, um menino.

Entre nós um rio. O seu desaguar de vida.

Uma rua de pessoas e as plantas que andam.

Um chão líquido de mururés, uma vitória-régia.

Várias histórias.

Lembro de uma Maria, agora, em meus olhos acesos.

Uma menina em pé, na proa. A tarrafa sobre os ombros, as


cordas presas entre o pulso, o lado do corpo e o antebraço, a chumbada pronta
nas mãos. Tu, Maria, no instante em que o teu corpo se verga, se encolhe e
dele se abre o vôo da rede. O teu pai descai a canoa. O mundo parece parar
nesse instante. Voa a sombra de Maria sobre o rio laçado. A sombra, a
solidária sombra, a lida das águas no sol feito vidraça da preamar. Maria lança.
O vento se escreve no voar da tarrafa. Maria se verga mais uma vez. Parece
que um pedaço teu voa, também, no destino daquela tarrafa. Um pedaço
revelado de Maria. Um algo que se foi. E se fez comunhão. Águas de um rio.
Águas de Maria. Maria que lança e que serena o corpo na queda da tarrafa
sobre o rio laçado. Vida. Um pedaço de Maria. Um pedaço meu. Um pedaço do
rio. Um pedaço de todas as nossas histórias, de todas as nossas gentes.

Maria, uma pessoa. Um mundo. Uma vida. Um rio.

Um menino que observava.

E escrevia um olhar.

90
XII

Eu sou aquele menino.

O do mundo de um olhar.

Aquele criado pelos braços de um miriti.

O que te escreve agora para se acertar como homem.

Peço a essas palavras que eu te trago nesse instante que


me iluminem nessa estrada. Eu que preciso te contar um pouco da minha vida
antes da tua chegada, antes do nosso encontro na escola do meio do rio.

91
Nasci em uma das muitas ilhas sem nome que fazem uma
cidade. Abaetetuba, o meu norte. Um lugar onde se nasce vida para se
renascer luta, muito trabalho e toda uma esperança.

Sou o único filho de cinco gestações que não vingaram.


Nasci em casa, sou filho de uma mulher que andava no meio do mato, nas
horas mais difíceis. Minha mãe foi lavradora a vida toda. Nos calos das mãos
sempre soube da solidão todos os caminhos. No começo das suas primeiras
dores foram chamar a Dona Filó para acudi-la. Nesse dia ela não pôde ajudar,
estava com a febre, a malária. Foram saber da tua mãe. Ela tinha ido fazer um
parto difícil, lá pros lados da Praia de Beja.

Meu pai veio com as notícias e com um desespero escrito


em seus olhos. Minha mãe disse a ele que sossegasse, pois o menino já era
feito e já sabia nascer nessas horas de tantas andanças pelo meio do mato.

“- Serena, homem. Esse menino vai nascer.”

E assim eu vim. Juntos. Eu, o meu pai e a minha mãe.

Ouvir essa fala da minha mãe, aqui, nesse texto que


intento para ti, acalma um pouco a agonia desse meu nascimento. E me
reescreve a lembrança inesquecível da ternura dos meus pais.

Um filho de Abaeté. Uma família. Nascer e renascer. Lutar


sempre. Sonhar. Acreditar. Fazer um futuro. Seguir. Perseverar. Ter
esperança: um mundo onde as mãos vivem além de qualquer verbo.

Esse foi o meu início, Maria.

O início da coragem das mães.

Do acreditar dos pais. E da luta pela vida.

A minha infância foi ali, nos caminhos difusos dos Miritizais,


nos lados distantes da nossa ilha. Certas infâncias duram para sempre, Maria.
E elas mantêm vivo o nosso olhar pela vida. E nos dão alguma esperança
quando a morte dos homens nos cerca e quer nos impor um silêncio estéril.

92
Meu pai, além de lavrador, era feirante no mercado da
beira. Lutava contra a escravidão que os atravessadores impunham na paga.

Minha mãe cuidava da gente. E lutava junto com o meu pai


a luta da vida no sol-a-sol de cada dia. Assim era a nossa casa, o nosso mundo
ali, perto da beleza sem-fim dos bosques de miriti. Muito trabalho, sonhos e
uma necessária esperança para se acordar todos os dias.

O que eu vou te contar agora aconteceu no início de um


mês de junho. Meu pai e uns companheiros foram até uma localidade chamada
Sirituba. De lá, do meio de um tremedal, eles trouxeram umas braças de miriti
para dentro das nossas casas. E iniciaram um trabalho, um fazer.

As braças vêm verdes, Maria. Primeiro se retira a casca,


que são umas talas duras. Delas se fazem paneiros, cestarias e outros mundos
mágicos do artesanato da nossa gente. Mas isso é uma outra história, Maria.
Deixa eu voltar para as braças do nosso miriti. Olha: depois de retirada a
casca, as braças de miriti precisam descansar, secando ao sol. Mas não é
qualquer sol, ou um sol aberto e inclemente. Não. É o sol de dentro das
nossas casas. Suspensas perto de um telhado ou próximas de um forro, ali, na
tolerância de um sol caseiro, as braças de miriti descansam. Se ficarem
abandonadas na língua áspera de um mormaço, as braças só secam por fora,
ficando úmidas por dentro, prejudicando o trabalho do melhor dos entalhes.

Há um cuidado nesse mundo, Maria.

Dentro de casa, no nosso calor, o fazer de uma ternura. Ali,


o lugar para o miriti descansar à espera dos sonhos das nossas mãos. Um
mundo para os nossos olhos e para a vida da nossa gente.

Um cuidado, um saber. Um sentir. Todo um olhar.

Proteger da chuva e da umidade. Um olhar pro céu.

Ter cuidado com a fome das formigas e dos cupins.

Um olhar pra terra. O cuidar de um brinqueteiro.

O meu pai, o início de um mês de junho.

93
Naquelas braças muitos braços iriam trabalhar.

Um olhar pela gente. Um olhar por nós, as nossas vidas.

Uma vez artesãos. Uma fé para sempre.

Um trabalho, uma arte, uma cultura. Uma verdade nossa.

Um signo: ser fazedor de brinquedos de miriti.

Um dia na minha casa. Em um instante, o olhar aceso.

Vi o ajuntado de pessoas da minha comunidade.

Reconheci o alvoroço das facas e dos facões de mato.

VI uma alegria intensa no rosto de todos.

Uma emoção compartilhada.

Ouvi falar de cores. Uma outra vida que se ia dar.

Pela primeira vez na minha história, eu, muito menino


ainda, ouvi falar do tempo de uma Santa. E a emoção nos olhos das pessoas
se escreveu para sempre em minha vida. Para sempre, Maria.

Eu ouvi falar de fé.

Eu ouvi falar das muitas lutas e de muito trabalho.

Eu era criança ainda. Um pequeno.

E eu soube das luzes da Trasladação.

E da vida em um Círio de Nossa Senhora de Nazaré.

O meu pai me prometeu um brinquedo.

Penso que nesse instante eu comecei a me dar por gente.

Ali começava a história de um fazedor de brinquedos.

Ali, Maria, um começo que tu não sabes. Eu vou te contar.

Miriti ou Buriti. A palmeira da bênção.


94
Buriti ou Miriti. A árvore da providência em nossas vidas.

Um mundo da gente: miriti.

Uma palavra mágica. É a palmeira benta do nosso povo.


Uma árvore que é telhado - a uma água ou a duas águas - cobertura das
nossas casas. Uma árvore que é doce. Vinho, brinquedo e trabalho. É vida,
sobretudo, por ser uma nossa identidade, uns olhos de um nosso olhar.

Até hoje não se sabe ao certo como começou essa tradição


dos brinquedos de miriti. Conta-se que os índios já faziam brinquedos
imaginários para os seus filhos. Aí nasceram as cobras de miriti, as onças, os
pássaros e as canoas. Uns brinquedos de miriti para umas mesmas crianças,
os curumins. E que esse fazer, o caboco aprendeu dos índios e passou para os
seus descendentes. Sempre as crianças, um dos destinos das muitas histórias.
Eu não sei, Maria. Ninguém sabe precisar a origem dos brinquedos de miriti.
Talvez por isso sejam brinquedos, sejam mágicos. Há pessoas que defendem
que a gênese dos brinquedos de Miriti foram as crianças, aqui, de Abaeté, em
uma história de mais de cem anos. E que tudo começou com o paneiro, o pai
do miriti. Isso mesmo, Maria. Para essas pessoas, o paneiro é o pai do miriti.
Há mais de dois séculos a palmeira de miriti vinha sendo usada na fabricação
de paneiros. As braças de miriti, que são os talos da palmeira, os braços onde
estão as folhagens verdes, são descascadas. Essas cascas, que são bem
flexíveis, depois de secas se transformavam em paneiros, cestas, chapéus de
palha, tipitis, gaiolas ou peneiras. O miolo, a bucha, ou, como se chamava
antigamente, o bagaço, era jogado fora. Foram os meninos de Abaetetuba que
descobriram que desse bagaço eles podiam fazer brinquedos. E fizeram.
Foram as crianças de Abaeté que começaram, por primeiro, a fazer brinquedos
de miriti para neles ganharem uma vida. Uma possibilidade.

Há, também, a história de um caboco que perdeu a sua


canoa e fez uma promessa para a Nossa Senhora de Nazaré de que se ele
achasse o casco antes de outubro, ele construiria várias canoinhas de miriti
para entregar no Carro dos Milagres, por ocasião da passagem da Santa. Esse
Mestre Caboco foi o criador das girândolas, que vemos suspensas e andantes,
no meio da multidão de fé, a revelar a beleza infinita dos brinquedos

95
pendurados em seus braços duplos, refazendo a invenção das luzes e das
cores da nossa gente. O Círio reacende o brilho das girândolas, Maria.
Reacende a fé de todas as gentes. Uma fé de que agora, nessas minhas
poucas palavras, eu possa desvendar os meus sonhos tristes e preencher o
vazio escrito nas noites das minhas girândolas. Um homem se trai em algum
instante, Maria, eu sei. Por isso, fui buscar esse menino que ainda vive em mim
para repisarmos juntos todos os passos dessas palavras. E que nessa história,
eu possa compreender o despedaçar das asas das formigas de chuva durante
a minha vida ao teu lado: o teu mundo meu, o meu mundo teu.

As nossas histórias, agora, possíveis.

O miriti, a palmeira da bênção.

Uma palavra que é casa, que é trabalho.

Que é uma safra, uma safra de fé. Um renascer.

Uma safra do rio. Uma safra das nossas gentes.

Uma colheita das nossas próprias vidas.

O miriti, uma palavra benta.

Palavra que é doce, que é vinho, que é brinquedo.

Palavra-vida. Um telhado, uma casa. Um mundo Abaeté.

Uma cultura, uma tradição, um significado de nós mesmos.

Uma palavra. Um brinquedo que se faz pelas nossas mãos.

Um miriti, Maria. O olhar de um pequeno. Uma história.

O mundo de um menino.

Um menino que descobriu que outubro é o mês da vida.

O mês das girândolas que atravessam todos os rios.

O mês das casas e dos reencontros das pessoas.

96
O mês da fé. Olhares de um menino.

Eu que já fui anjo nos ombros morenos do meu pai.

Eu que vi as mãos de uma gente em uma corda que liberta.

Um caminho. De joelhos, em pé, velas acesas.

A Mãe que pede ao Filho por todos nós.

O destino que se escreve pela palavra.

Fé, uma identidade.

Um mundo, uma vida.

Assim começou a minha devoção pelos brinquedos de


miriti. Um fazer de um instante ao ano uma vida. Um ir ver à Santa por entre as
luzes noturnas dos brinquedos fincados na minha girândola iluminada.

Um rezar com lágrimas nos olhos.

Um estender a mão.

Um pedir uma paz.

Os meus dias de promesseiro.

A minha fé na Virgem.

A hora do meio-dia no branco ensolarado dos brinquedos.

Eu, um devoto. O norte de uma bênção.

“ - Viva. Viva. Viva Nossa Senhora de Nazaré. ”

E todas as vozes entoam um hino.

Uma vida, a vida toda: ser devoto de Nossa Senhora.

O meu signo, a minha marca, a minha verdade.

Toda uma vida: ser um romeiro.

Ir ver a Santa. Agradecer. Renovar. Viver.


97
Consegues ver, Maria, dentro da luz dos teus olhos, a
Berlinda passar? Sentes o amor das pessoas, a ternura? Nessas palavras que
te escrevo agora, Maria, nessa procissão de histórias, parece que somos dois
estranhos íntimos, assemelhados e distantes, mas unidos pela fé.

Reza por mim, Maria. Eu te peço.

Pois, aqui, nesse mar da página, temo não te alcançar.

Os brinquedos de miriti e a Santa. A minha gênese.

Um ponto híbrido nessa minha história.

O quando eu me dei por gente.

Um início de uma fé.

Ali, na distante infância daquele menino, a minha vida se


iniciava. E, naquele instante, em todas as pessoas, na luta de todos os muitos
trabalhos nas braças de um miriti, eu comecei a me dar por gente.

Nessas palavras que te escrevo, ouço vários movimentos.

O meu mundo-miriti, a sua voz em mim:

O corte longitudinal das braças, o melhor ângulo nas mãos


que desenham a arte. O fio de um pneu de bicicleta, os arames retirados para
cortar. As latinhas das cores. Um azul, um vermelho, um amarelo, um preto,
um verde, outra cor. A pessoa que pinta, uma mulher, uma criança, um
homem, um todos. A escolha do nascimento de um brinquedo ainda no mundo
das braças. Um casal de dançarinos, em uma só ternura, dançando. Um soca-
soca: trabalho de dois homens na peleja de um pilão. Um tatu no segredo do
seu movimento. Uma cobra que se mexe na suavidade de um instante. Um
pássaro, uma canoa. Uma Berlinda. Uma Santa. Uma casa. Um quadro com
um rio estrelado e noturno, com um boto cor de rosa em suas águas. Um avião.
Uma onça. Uma televisão. Um jacaré. Um pato no paneiro. Um rádio de miriti.
Um brinquedo para o quarto de uma criança. Um cata-vento de muitas cores.
Duas pombinhas que ciscam. Um olhar, uma ternura. Um menino. Uma gente.
Uma girândola. Um girandeiro. Uma procissão. Um Círio. Pessoas de miriti.

98
Mas um brinquedo de miriti, em suas muitas vidas, se
transforma em algo além de um brinquedo. Ele acende outros olhares. Ele se
revela ternura. Quem coleciona brinquedos de miriti, das várias safras de um
mês de outubro, sabe disso. Onde houver, em qualquer lugar desse mundo,
um brinquedo de miriti eternizado na fragilidade de um instante, suspenso
como a luz das estrelas, ou móvel como a lembrança do estourar dos fogos na
Noite da Trasladação, vive esse sentimento. É algo de vida que vai além de um
brinquedo. Vai além da finalidade exterior que todo brinquedo de miriti possui.
É uma vontade de amar, Maria. São os segredos de uma ternura para aqueles
que sabem do encanto desse brinquedo. É um amor intenso, Maria. Algo
indizível. Amor por nossa terra. Amor por nossa gente. Amor por sermos quem
somos. É a nossa luta, a nossa fé, Maria. Cada brinquedo guarda uma ternura.
Basta olharmos para eles. Sentirmos a sua leveza em tudo. Ali há uma árvore.
Uma gente. Um mundo. Uma vida. O segredo de uma vontade de amar. Nos
olhos, nas mãos dos fazedores de brinquedos de miriti - mulheres, crianças,
meninas e meninos, homens, senhoras e senhores - está escrito esse destino.
Um amor que se guarda em silêncio. Não se revela, apenas vive. Nas mãos
que buscam um brinquedo, nos olhos, na poesia de um fazer, na ternura de um
mundo, ali, ele está: o verbo amar de um amor de miriti. Amar das pessoas.
Amor de um mundo. Nas girândolas vive esse segredo. O que há, em silêncio,
guardado nos brinquedos de miriti são os sonhos, as esperanças, as lutas, as
vidas dos artesãos. Um mundo no qual se reconhece uma gente, uma fé. Uma
reflexão. Um amor no segredo de uma vida. Um sentimento de miriti. Amar
para se fazer reconhecer. Amar para se afirmar vida. Um mundo para se viver.

O roque-roque, Maria. O nosso corró-corró. Um mundo que


é mais que um brinquedo. Mais que uma onomatopéia. É um som que acende
uma imagem. Um mundo, Maria. Um mundo infância.

Aqui, nessas palavras, sou capaz de ouvir.

Roque-roque. Corró-corró. Corró-corró. Roque-roque.

Corró-corró. Sou capaz de ver um menino. E muito mais.

99
Em uma sala, em uma cozinha, em um quarto de criança,
em uma sacada, em uma janela de madeira nas casas mais simples, no meio
das folhagens de uma planta, em um escritório, perto de uma máquina
batedora de açaí, no retrovisor de um carro, em um brinco, em um colar, em
uma chave, em um quadro na parede, nesse teu pátio das samambaias, Maria,
em qualquer janela desse mundo pode estar um brinquedo de miriti. Nesse
instante, já não é mais somente brinquedo, é ternura, o mar invisível do verbo,
um amar de amor de miriti. É lembrança, são as saudades: os desafios que
elas propõem. Um dia foi brinquedo. Agora, são novos significados que cada
pessoa sabe. Em cada coração. Em um simples olhar. Em cada sorriso. Em
uma fé. Em cada uma das mãos. Um segredo.

Um outro mundo.

Outras vidas para um brinquedo de miriti. Um sentimento.

Posso sentir agora, aqui, nesse texto, as mãos de todas as


pessoas trabalhando na mágica que confecciona um brinquedo. O barulho das
facas e dos facões de mato, o guisa que os arames dos pneus das bicicletas
dão nas fibras do miriti, na abertura do melhor ângulo para um traçado. Posso
sentir o cheiro forte do café preto para sustentar uma madrugada de esforços.
Ouço um assobiar baixinho de alguém concentrado no deitar de uma tinta no
acabamento de uma pessoa de miriti. Um ribeirinho em sua solitária montaria.
Um casal de dançarinos. O soca-soca dos trabalhadores na peleja de um pilão.
Um cata-vento com as suas várias cores que me acenam uma esperança.
Sabe, Maria, girândola é uma palavra bela, todos os brinquedos são belos, mas
aqueles que são pessoas, que são os retratos da nossa gente, são os que mais
me emocionam. São fios de história, Maria. São vida. Fios de luta no fazer de
uma pessoa de miriti. Um mundo nosso.

As cores, Maria. As mãos que as lançam no miriti. O


trabalho. A fé. O atravessar do rio para as girândolas desaguarem em Belém.
Tudo me fascina. Que cores se escolhem? Quais brinquedos serão feitos?
Qual criatividade será o destino? Não há resposta, Maria. Não há uma
indústria, uma linha de produção, um mais do mesmo. Todos têm uma forma,
mas nunca uma fôrma. Todos têm uma cor, uma luz, e a escolha do brinquedo

100
que será feito nasce da crônica individual de cada artesão, nasce do seu olhar
sobre o mundo, nasce do olhar da sua família sobre o universo que a encanta.
São eles os autores das suas próprias linhas e nisso há vida. Há orgulho. Há
encanto. Há sentimento. Há necessidade. Há precisão de várias fomes. Há
precisão de várias vontades. Há vidas renascidas em um único instante ao ano.
É muito difícil ser fazedor de brinquedos todos os dias, Maria. É muito difícil
viver dessa arte, viver das luzes dos brinquedos de miriti. Meu pai já me dizia
essa verdade. A maioria das pessoas que fazem os brinquedos luta, também,
pela vida em outros mundos. São feirantes. São costureiras. São professoras.
São lavradores. São eletricistas. São marceneiros. São vendedoras de mingau.
São donos de pequenos barcos. São lutadores da vida. São pessoas, as
gentes da nossa terra, as pessoas do miriti de uma Abaeté. Por isso outubro é
tão intenso. Tão iluminado de pessoas. Um instante de uma vida. Um fazer.
Um acreditar. Um instante para uma vida. Uma fé. Um mundo.

“ - Filho, viver do miriti é uma mágica, uma luta. ”

Ouço a voz do meu pai.

Sei que ele sonhava todas as noites com outubro.

O mês da vida, o instante-luz de um fazedor de brinquedos.

Uma fé que vai atravessar o rio.

O mundo que se finca nas andanças de uma girândola.

Belém de todos os olhares. Belém de toda a vida.

Uma praça, as cores dos brinquedos que iluminam a noite.

A Trasladação.

Alguém caminha. Uma girândola suspensa nos ombros.

A Santa pára bem à sua frente. Ali, como se Ela tivesse


uma palavra para ele. Um momento para uma pequena conversa. Um segredo.

Os fogos estouram. Riscam as estrelas. Vivem.

101
A Santa está parada.

Ali, ao alcance de todos os olhos.

Perto de todos os corações.

Ao alcance de todas as vidas.

Ele vê a luz das flores. Sente o perfume da noite.

Sabe do manto uma outra luz.

Sente uma humanidade toda ali.

Uma força de todos os braços, uma corda. Uma


fraternidade. Os pés descalços, um Natal mais cedo.

Nós que podemos ser pessoas melhores.

A fé em uma Mãe: nós que podemos ser irmãos.

A Santa está ali, parada à sua frente. Um reencontro.

Os olhos da Santa falam para ele. Ele pede uma bênção.

Uma palavra, uma ternura.

Outros ombros. Uma fé.

Por um instante, ele abaixa a sua girândola.

E se benze.

E reza.

E chora.

O fazedor de brinquedos agradece por tudo.

Agradece pela vida e renova a sua fé.

A Santa passa. Segue.

Vai passar por outros rios.

102
Infinitos filhos, uma mãe.

A noite dos fogos escrita nas memórias de um caminho.


Uma girândola, Maria, uma cruz para muitos braços. Um lugar onde as minhas
esperanças são guardadas durante a passagem da Santa, no instante em que
eu olho para o céu através do mundo iluminado dos brinquedos de miriti.

Renovo a minha vida. A minha fé.

Sinto as pessoas, todas as gentes.

Somos todos feitos de miriti.

Lembro da minha mãe.

Das cores que só ela sabia pintar em um brinquedo.

Da luz que ela dava às cores de um barco.

Do quanto ela foi mãe ao lado de muitas outras mães.

Há grãos de palavra em um rosto solitário e outro solidário.

Lembro desses dias. Da festa dos mingaus. O preto feito


de açaí. O branco, de bacaba. E o amarelo, de miriti. Em tudo, uma
humanidade. Olhos de um menino. Olhos de uma infância.

Olhos de uma gente.

Lembro do meu pai. Do dia em que ele trouxe as braças.

Do fim de tarde em que ele me prometeu um brinquedo.

As pessoas aprendem com as outras o mundo do miriti.

Mãos de miriti. Força de miriti.

Fé de miriti. As girândolas que atravessam os rios.

Vários saberes de uma gente. Pessoas do miriti.

“ - Os rios não envelhecem nunca, Tobias. ”

103
Eu sei, Maria, eu sei dessa lição da luz dos teus olhos.

De tudo que eu iria aprender vivendo ao teu lado.

Trago essas palavras para que tu saibas do meu mundo


antes da tua chegada na nossa escola no meio do rio. Assim, quem sabe, tu
podes imaginar um pouco do início da minha vida, nesses instantes em que eu
começava a me dar por gente nas promessas de um brinquedo.

Tu que moravas lá, na boca do rio.

Perto dos teus açaizeiros. Perto da tua fé. No teu mundo.

Perto das nossas vidas.

Eu estava aqui, nos lados distantes de um Miritizal,


escrevendo uma história. Peço a Deus que nessa lida, nessas palavras que se
movem como uma ilha que anda em frente a Abaeté, eu possa te sonhar, te
escrever, te sentir em mim, te ouvir. Falar para ti do meu mundo teu.

Do mundo possível das histórias que aconteceram.

E de um vazio que eu preciso me curar.

104
XIII

Tu já estavas com dezessete anos. Eu, catorze. Os nossos


olhos já sabiam muito um do outro. Sabiam da nascente de uma ternura.

Um dia, no início de uma tarde, quando nós estávamos


indo para a escola, pela rua do nosso rio, tu me contaste um sonho.

Eras tu nele. E ele em ti. Um rio crucificado. O teu sonho.

O sonhar dos teus dias de fora. As águas de toda mulher


que descem em sangue. Um tempo no qual se deve evitar as águas grandes
da preamar. A vida que se renova em um vermelho silêncio. Uma verdade.

As águas grandes. Os dias de fora.

105
O vermelho e uma mulher.

Alguma palavra tua. O teu sonho.

Tu andaste sobre o rio. E ele estava adormecido, era a


noite no silêncio das águas. Estavas no meio da maré, teus passos sobre a flor
da enchente, e conseguias ouvir algum som de flauta que vinha das margens.

Assim, na luz de quem anda caminhando sobre os próprios


sonhos, seguiste os teus passos sobre as águas do rio. Um teu destino.

De pessoas e palavras se sonha uma história. Uma vida.

No escuro do rio era como se voasses sobre ele. Em algum


instante, só os teus olhos perceberam uma agonia intensa nas águas.

Alguém sangrava o rio, como quem sangra um camaleão


para a seguir pendurá-lo em uma árvore para secarem as suas veias.

As horas se arrastavam em agonia.

Andavas sobre as águas e sentias essa angústia.

A maré se quebrava e começava a vazar.

Havia uma nova cor nas águas da vazante.

Uma cor que te fazia um mal.

Alguém insistia em apunhalar, mais uma vez, o rio.

O rio sangrava as suas muitas dores.

Nas margens, um som de flauta pedia um outro mundo.

E a música não parava. E alguém repetia o golpe.

Desferia, várias vezes, o mesmo mal. A mesma sanha.

Descarnar o rio. Um talho. Uma agonia. A mesma senha.

Desossar o rio. A mesma cegueira, o mesmo abandono.

106
Alguém renovava a fome dos punhais.

E tua ouvias o rio sofrer em silêncio. A mesma face.

O rio crucificado.

O sangue do rio era branco como se todos os rios fossem


de um branco que enlouquecesse as pessoas. Das suas veias abertas caíam
espasmos de toras de madeira de uma agonia que o rio parecia estar entupido.
O rio engarrafado de toras. O rio de um branco nauseante. Sobre as águas, tu
conseguias ver os braços das castanheiras, como se fossem as mãos
ressecadas de alguém que pedia alguma ajuda, algum olhar, algum verbo.

“ - Quem morre a morte de um rio, Tobias? ”

Eu era muito menino para te dar uma resposta.

Eu apenas era capaz de sentir algo.

O pressentimento da tua dor que também me fazia mal.

Um rio morre em quantas vidas? - pensei.

O rio está morto. Essa hora é possível?

O rio crucificado na agonia desse teu sonho.

A história de uma morte. Alguém sangrando.

A natureza de muitas dores. Alguém que sangra.

O branco das águas de um rio. Algo que alucina.

As várias cobranças de um verbo sonhar.

Um rio crucificado. A minha leitura desse teu sonho.

Eu era um menino. Capaz, apenas, de sentir as palavras.

Hoje, essa tua história volta aos meus olhos.

Quem fere o rio?

107
Quem intimida? Quem repete as ameaças? Quem se cala?

Quem desfere a fome velocidade dos punhais?

Haverá alguém para recolher o seu sangue em um cálice?

Perguntas que eu não te fiz.

Respostas que eu ainda não sei.

Tudo aquilo que eu não fui capaz em teu sonho.

“ - Quem morre a morte de um rio, Tobias? ”

Lembrei de um tio meu, que me contou, uma certa vez,


sobre a morte dos camaleões lá, no alto enorme, de um tucumãzeiro.

- É de tiro de cartucheira, Tobias. E o camaleão não cai,


fica agarrado na ponta dos espinhos negros e longos. Fica lá em cima, preso e
morto. Saraivado de chumbo na carne da cor da morte.

Eu me assombrava com esses relatos.

E ele continuava.

- Temos que mandar uns meninos subirem, na peconha,


em uma árvore ao lado, para derrubar o camaleão à vara. Aí ele cai, Tobias. E
a morte do camaleão é branca, é de um branco que entristece a fome. Depois
da queda se tira o couro verde claro, e se pendura o corpo em uma árvore.

Eu não gostava dessas histórias, mas meu tio insistia.

- E ele, o camaleão, sangra, Tobias. E se tem a impressão


de que ele não morre, ele se dissolve. E a morte é branca, Tobias. A carne
sangrada do camaleão fica de um branco que quase cega a gente.

Eu ouvia essas palavras e pensava na morte do camaleão.


Um lagarto no alto das palmeiras que sabia fazer a sua cor da morte. E a morte
era branca de um branco que cegava a gente. O mimetismo de uma tristeza.
Uma agonia como essa agora desse rio sangrado que eu ouvia de ti, Maria.

108
Um branco que me alucinava.

O branco da cor da águas do rio. Uma alva morte que


cegava as palavras desse teu sonho e, angustiadamente, entristecia as
melhores lembranças de um rio da minha vida. Esse rio que sempre tinha as
cores de todas as nossas vidas, agora, na agonia desse teu sonho, era como o
camaleão, e fazia do seu fim um branco que cegava todas as gentes.

A morte do rio.

Em suas margens o som de flauta, enfim, se fez silêncio.

Veio um vazio maior que a morte de todas as gentes.

O rio era branco. E cegava todo o mundo em seu fim.

O rio estava branco nas palavras desse teu sonho.

O rio, Maria. Esse camaleão de todas as nossas vidas.

Lembro da tua repetida pergunta que ecoava em mim.

“ - Quem morre a morte de um rio, Tobias? ”

O menino que eu era abaixou a cabeça.

Viu as águas correrem, silenciosas, ao lado da canoa.

Suavemente, colocou as suas mãos dentro do rio.

Reconheceu o fundo raso da chegada.

Mais uma vez, o trapiche.

As águas barrentas na palma da mão. Uma maré cinza.


Um olhar. Pedaços líquidos dos rios no ajuntar das palmas das mãos.

Nós que estávamos chegando à nossa escola.

Uma história que as pessoas levantaram em muitos


ombros. Um juntar de gentes. Um puxirum. Uma vida pra se viver.

Um instante em que se soma. Uma vida que se escreve.

109
Dona Constança e o Velho Tibúrcio vivem aqui, no meio
dessas palavras, no silêncio dessas letras em que se ancora um destino.

Senti a terra do rio travar a proa da canoa.

Tínhamos chegado e o teu sonho ecoava em minha mente.

Meus olhos estavam parados na beira do trapiche.

As águas rasas revelavam alguns peixes.

Jacundás beliscavam o limo incrustado da canoa.

Carás corriam um atrás do outro.

Um mundo, um olhar, um fascínio.

Alguém disse um “vamos, menino!”

“ - Sai, Tobias. Desembarca logo. ”

Pensei no som da flauta doce que vinha das margens do


teu rio sonhado. Imaginei que eram crianças e que tocavam para o rio não
morrer. Tocavam para o rio não ser sangrado. E que tudo fosse apenas o mal
de um teu sonho ruim. E que um rio crucificado nunca fosse verdade.

Me levantei. Reconheci no meio da canoa o fogareiro


desusado. Não queimava mais naquele casco, que agora levava as crianças
das comunidades das nossas ilhas para a escola. Vi as cinzas frias, gastas.
Esquecidas. Vi a tarde imensa arder em meus olhos uma tristeza.

Sei que tu te viste na minha vista.

“ - Olha, Tobias, isso foi apenas um sonho ruim. São as


noites sonhadas de agonia quando as mulheres andam sobre as águas em
seus dias de fora. Uma perturbação de destinos. ”

Eu sorri.

Senti, mais uma vez, como são belos os teus olhos negros.

E como os teus cabelos castanhos fascinam o vento.

110
Sei que tu quiseste enganar a minha tristeza.

“- Os rios não envelhecem, Tobias.

- Os rios não morrem nunca. ”

Dentro da minha cabeça, o som da flauta doce nas


margens do teu rio sonhado me fez pensar naquelas crianças, que eu imaginei
tocando para o rio não morrer.

Fiquei assustado.

Pensei nas pessoas do nosso mundo.

Pensei que no mundo há muitas pessoas.

E entendi que se pode crucificar um rio.

111
XIV

Eu sonhei esse teu sonho. Há sonhos que aguardam para


serem sonhados por todas as pessoas do mundo. Sonhei contigo. Sonhei com
as tuas palavras. E sonhei, sobretudo, com as dores do teu verbo sonhar.

O rio ali, imenso invisível dentro das imagens do meu


sonho. O rio de todas as histórias da nossa gente. O rio: camaleão das nossas
vidas. O rio que padece para viver eternamente, padece das agonias de todos.
O rio crucificado, a minha leitura do teu sonho. O rio que sangra branco.

E tu seguias os teus passos, escrevias o teu destino


caminhando por entre as angústias de um sonho que agora era meu.

O rio crucificado nas possíveis palavras de um menino.

112
O rio sonhado.

O rio ferido.

No meu sonho, tu aparecias e tiravas o rio da cruz.

O rio estirado e morto nos teus braços.

Uma agonia sem-fim.

Lembrei das lições de catecismo, das palavras de uma


missionária, no final da tarde de um sábado.

Lembrei dessas palavras, do seu rosto humano:

“ - Pai, por que Tu me abandonaste? ”

Lembrei do rio. De um rio sonhado. De um rio sofrido.

Lembrei do rio das nossas vidas.

No meu sonho tu continuavas e nele eu ouvia a tua voz.

“ - É preciso ter esperança, Tobias. É preciso acreditar.

- É preciso crer. É preciso não se arredar da fé.

- É preciso sonhar. ”

Mais uma vez, as tuas palavras, um teu sentimento. A


esperança que me ensinaste. Esperança, Maria, é uma dor de pessoas, uma
dor necessária que nos mantém vivos. Esperança é a dor de uma humanidade.
Por isso eu te escrevo. Para acender essa esperança. E, assim, eu te ouvir.
Por isso esse texto para me ajudar a entender a agonia desse vazio sonhado,
que se repete nas noites das minhas girândolas, nos meus sonhos de agora.
Por isso essa tentativa de reescrever a nossa história. Um destino para que eu
não me traia no despedaçar do vôo das asas das formigas de chuva.

Por isso eu te trago essas palavras, Maria.

O teu mundo meu. Uma tentativa para eu te alcançar em


mim. Apenas um instante no qual eu possa te buscar e teu ouvir mais uma vez.

113
Sei que tu sabes de todas as minhas vozes.

Sabes das minhas mentiras.

Sabes do risco de uma distância que eu escrevi entre nós.

Eu sei, Maria. Sei do despedaçar da nossa história.

Sei de uma culpa que me persegue.

E do mundo que ela carrega. Mas sei, também, que, aqui,


por entre essas palavras, tu passas as tuas mãos em meu rosto e lês as
minhas feições. Nelas, com a tua leitura, tu sabes do meu mundo, da minha
vida ao teu lado e do diário das tuas ausências em mim.

Naquele sonho de um menino que viu um rio crucificado,


nas palavras que tu sonhaste, eu acordei. Naquele tempo, naquele mundo, tu
estavas lá, perto da minha vida, ao alcance dos olhos e de todas as palavras.

Acordei, naquela manhã, com as tuas lembranças do dia


anterior, e com a força da tua fé para vencer a minha tristeza.

“ - Os rios não envelhecem, Tobias.

- Os rios não morrem nunca. ”

Quis acreditar em ti. Quis serenar a minha agonia.

E entender que um rio crucificado é apenas a maldade de


um sonho ruim, o instante em que começamos a perder a capacidade de nos
reconhecer como pessoas. Para curar esse mal é necessário ter a dor de uma
esperança. Doê-la. Acreditá-la em nós. Sentir a esperança em nossos olhos.

Talvez, por isso, também, eu esteja aqui, Maria.

Entre essas palavras, no teu pátio das samambaias.

A minha segunda vez. Aguardando o meu chamado.

Mais uma chance para acender uma esperança.

Aqui, na tua casa, nessas palavras que eu trouxe para ti.

114
Uma esperança para sentir as tuas mãos em meu rosto.

A tua leitura das minhas feições. A tua fé.

A tua vida no teu trabalho de benzer as dores. Pôr luz.

Eu que preciso ouvir a tua leitura dessas minhas palavras.

O texto possível e as linhas impossíveis da nossa história.

Um mundo que estando à beira da morte, desmorreu.

E que eu trago vivo, aqui, no silêncio dessas letras.

Lá, naquele menino que eu era, no sonho de um rio


crucificado, me deste a tua primeira lição de fé, e eu me firmei, sem saber de
todas as lutas que me aguardavam, me firmei nas dores de uma esperança,
pois, naquela manhã, depois do despertar desse sonho ruim, percebi que o rio
continuava lá fora, ecoando o seu murmúrio líquido de todas as nossas vidas.

O rio não envelhece, Maria. Esse rio que está aqui, na


beira dessas palavras em que fomos luz e mundo, não morre nunca. O rio que
está nos meus olhos me faz sentir vivo, me faz doer a dor de uma esperança.

Éramos nós, Maria. E uma preamar entre nossas vidas.

Nesses tempos eu já me dava por gente. Estava há três


anos trabalhando nos entalhes das braças de miriti. Trabalhando com o meu
pai. Aprendendo com a minha mãe o segredo das cores. Ouvindo as pessoas.
Sendo gente na vida da nossa comunidade à espera do instante de se apegar
nas lutas de fé, que fazem nascer o mundo dos brinquedos de miriti.

Eu também já sonhava com outubro.

A procura de umas braças de miriti. Uma fé, um mundo.

A escolha das primeiras folhagens em um bosque de miriti.


Não tocar no tronco da árvore, apenas nos braços da palmeira, para assim se
garantir a volta da nossa gente nos anos que ainda vão existir.

Sirituba. O campo difuso dos Miritizais.

115
Um lugar para se andar. Um lugar que se aprende.

Outubro começa sempre em junho em Abaeté.

Naquela manhã, eu tinha acordado da agonia de um sonho


de um rio crucificado. As tuas palavras de esperança ainda ecoavam em mim.

Tive uma vontade de te agradecer.

Pensei em te dar um presente.

Imaginei que eu era capaz de fazê-lo.

Assim comecei a fazer alguns entalhes, a desenhar as tuas


feições em um brinquedo de miriti. A tua silhueta, o teu corpo. O teu olhar.

O mundo teu de uma mulher. Uma ternura.

Um fazer de miriti. Os segredos de um verbo amar.

Das fibras de uma braça, nasceu o teu nome. Em minhas


mãos inseguras, desenhei os teus cabelos castanhos, a tua pele morena, os
teus olhos negros, as tuas mãos magras, os teus lábios índios, as tuas marcas.
Te dei um vestido azul. Mas ainda assim não estavas pronta.

Foi só quando te entreguei esse brinquedo de miriti que as


cores firmaram as suas verdades. Ao encontro dos teus olhos uma tradução.
Eras tu ali. Uma pessoa de miriti. Uma mulher feita pelos restos de um menino.
Eu que me já me dava por gente nos entalhes da vida em um miriti.

Eras tu ali. Uma pessoa de miriti. Em um vestido azul.

Uma morena. Uns cabelos castanhos que fascinam o


vento. Uns olhos negros mais profundos que as águas negras de um rio.

Eras tu. Maria. Uma pessoa na ternura do que eu era


capaz de escrever nas braças de um miriti. Eras tu, um mundo. O meu mundo.

Maria, o teu nome. Escrito nas fibras de uma palmeira.


Sonhado em um rio crucificado. Renascido nas dores de toda esperança.

116
Eras tu. Uma pessoa de miriti. Maria do rio crucificado na
agonia de um sonho. Uma dor de doer toda a dor de um mundo: esperança.
Uma pessoa de miriti feita por um menino. Escrita em um vestido azul.

Eras tu.

O que a minha ternura foi capaz de desenhar.

Maria. Um nome, um destino que se escreve.

Um norte dessas minhas palavras, um brinquedo de miriti.

Antes de eu te dar esse presente, imaginei o que mais eu


poderia ser capaz de fazer no sem-fim das possibilidades de um miriti. As
pessoas e as coisas que ainda não foram descobertas. As cores ainda não
sabidas. Os desenhos que ainda não se pôde imaginar. Os brinquedos de miriti
que ainda não foram sonhados. Outros olhos, outras esperanças.

Outros sonhos.

Tive medo. Pela primeira vez tive a certeza de que eu


estava virando um homem de verdade. Ou um entalhe dele. Um desenho de
uma pessoa. Uma luz. Um traçado, uma possibilidade.

Imaginei se um dia eu teria a coragem de tentar fazer um


rio de miriti, uma cidade, uma Abaeté, um mundo, as pessoas de um miriti. Um
tudo. Uma vontade, um destino. Se essa cidade, um dia, fosse feita, nós, mais
uma vez, iríamos nascer entre os seus rios, em uma das muitas ilhas sem
nome. E iríamos, mais uma vez, sonhar juntos.

Sonhar é um verbo-desafio.

Abaeté, uma cidade além da ficção.

O lugar das pessoas e das suas várias lutas.

Sonhos pedem um verbo. Uma atitude.

Um olhar e a vontade verdadeira das palavras. Um fazer.

Um trapiche que nos espera nos silêncios do rio.

117
Um mundo necessário. Uma esperança.

A de que nessas palavras, eu possa te sentir ao meu lado.

Apenas por um instante.

Uma vida, mais uma vez.

118
XV

- Nossa, Tobias, essa menina de miriti é linda.

Sempre as tuas palavras, um lado teu.

- Estás linda nesse vestido azul! – eu afirmei.

E não dissemos mais nada um para o outro. Quis te dar um


abraço. Me aproximei, hesitante, do teu corpo. Senti o brilho úmido dos teus
olhos negros. Percebi a minha respiração disparar. Suavemente, passaste a
ponta morena dos teus dedos em meus lábios. Senti o teu cheiro, o perfume da
tua pele. Senti a vida que pulsava, intensa, no teu corpo.

Há instantes em que todas as palavras do mundo só


precisam de um silêncio. Um lento e suave silêncio.

119
Sentimos que éramos nós. A nossa hora.

Um mundo. Uma história. As nossas vidas.

Vi o vento desenhar uma vontade nos teus cabelos


castanhos. E um desejo se acender em nossos corpos.

Senti as tuas mãos.

Senti a tua pele morna e úmida.

Senti os teus braços.

Te dei os meus.

Senti a tua língua passar em meus olhos.

Senti os teus lábios nos meus.

Senti a vida, ali, acontecendo.

Há instantes em que as palavras precisam de um silêncio.

Um lento e suave e esfomeado silêncio.

Pois nele nasce um outro mundo. Uma outra história.

Um entremundos. Duas pessoas, uma nascente.

Um sentimento.

Uma vida.

O teu corpo escrito no meu.

Os pequenos segredos que as palavras guardam.

O silêncio úmido de todas as vontades.

A ponta dos teus dedos morenos lendo os meus lábios.

120
XVI

E assim começamos a andar mais juntos. Antes de essa


distância, que agora tento percorrer como quem anda sobre um rio de palavras,
se abrir entre nós. Há trinta e nove anos, eu te amava muito. Sem saber das
várias nuances e das muitas lutas de um verbo amar, eu te amava muito.

Hoje, eu me refaço a mesma pergunta: amamos alguém


com a mesma intensidade com que amamos a nós próprios? De quantos
verbos amar uma pessoa é capaz? O amor se distancia muito do verbo? Há
uma estrada que nos possibilite um rosto? Ou amamos somente a
possibilidade de amar, sem saber desse verbo as várias pedras no caminho.

Não sei, Maria. Eu era, e talvez sempre seja, um menino.

121
Aquele menino que se dava por gente naqueles instantes
de um mundo, nas braças de um brinquedo de miriti. Ali, na descoberta dos
meus eus, e das lutas que se iniciavam em minha vida, eu sentia que eu te
amava muito, assim como amava muito a mim mesmo.

Nessas perguntas sem respostas, eu me perdi. E te perdi


para sempre. Te perdi para mim. Te perdi por mim, pelas outras muitas
necessidades que a vida ia me revelar. Amar, também, é amar o nosso próprio
mundo, como se nele houvesse um sol necessário que nos mantivesse vivos.
Solaridades individuais: um espaço íntimo que o amor precisa compreender.
Algo que eu não sei te precisar, Maria. Apenas sei da distância que se
inaugurou entre nós, o infinitivo do meu verbo saudades, algo dessa culpa
nessas palavras que eu te escrevo para te alcançar.

Amar, Maria, foi uma chance. Aqui, o mundo da tua falta.

Eu que tenho uma dor. Por isso essa história.

O vazio sonhado nas noites repetidas das minhas


girândolas. A esfinge que eu preciso decifrar nessas palavras que te escrevo.

Talvez amar seja uma ilusão necessária. Uma dor de


esperança que tem os seus limites. Uma dor pelo outro. Uma necessidade. Um
ópio. Uma fé. Um deus. Uma religião. Um verbo amar de cada pessoa. Um
tudo. Um todo. Um mundo capaz de uma felicidade. Talvez amar não seja para
sempre, mas a esperança no amor seja eterna. Um amor de cada gente. As
várias criatividades que cada pessoa sabe para manter viva a fé no amor.

Não sei, Maria. Não há resposta pronta.

Aqui, apenas sondo as possibilidades da nossa história. O


início do nosso desencontro marcado na tarde de um trapiche.

Talvez as mulheres amem de uma forma diferente. Há uma


biologia nisso, a dimensão de um cuidado que me escapa a um imediato
entendimento. Uma serenidade que só agora, na travessia frágil e incompleta
dessas palavras, eu imagino começar a perceber.

122
Entre a paixão e o amor vive uma serenidade que eu
desconhecia. Talvez haja na paixão uma preamar intensa. Sedenta e febril.
Umas águas grandes. Um mundo que transborda, se acalma e, enfim, se cala.
Restam ternura e companheirismo: no fundo é isso que somos enquanto
homens e mulheres, as diversas criatividades do amor em um norte maior que
todos os eus. Uma necessidade de amar, uma crença no outro como pessoa,
uma crença em mim como gente. Amar, talvez, seja essa possibilidade das
nossas vidas, um lugar para se viver uma dor de esperança. Um olhar pelo
outro que nos mantém vivos. Uma companhia, um semear de vínculos, uma
identidade viva, um todo cotidiano, um dar-se as mãos, um verbo.

Uma convivência. Uma querer que se renova sempre.

Tu lembras quando eu te fiz um barco?

Lembras?

No penúltimo dos anos que passamos juntos, eu fiz um


barco para ti e outro para mim. Um barquinho de miriti para ganhar um mundo.
E neles tentamos fazer o que algumas crianças ainda fazem. Porfiar. Descer o
caminho ligeiro de um igarapé que vai dar em um rio.

O teu barco era um vermelho. E o meu, um amarelo.

Agora, quando te escrevo, me vem à mente a lembrança


de algo que eu já ouvi nessa minha vida: as cores não existem. Talvez isso
seja verdade, talvez não haja cores, mas, sim, coisas coloridas, sentimentos
coloridos, lembranças coloridas. Lembra, quando depois da chuva, tu gostavas
de procurar o arco-íris no lado ensolarado do rio? Tu me dizias que um arco-íris
não era uma invenção do sol nas linhas da água, como aprendemos na escola.
Um arco-íris era Deus com a sua aquarela de histórias sobre a vida, sobre o
mundo e sobre as pessoas. Uma aliança de Deus com os homens, com as
mulheres e seus filhos. E aí me dizias com quantas cores se escreve uma
história, um mundo, um sentimento. Eu te ouvia e admirava a tua fé. Eu que
tinha acabado de fazer dois barquinhos de miriti para porfiarmos em um braço
de rio. Um para ti e outro mim. Um vermelho e outro amarelo. E neles descobri
mais uma incapacidade minha, uma comunicação que eu não fui capaz.

123
Eu não soube dar a eles um nome de batismo para se
guardar na maré. Mas pintei na proa de cada um o nosso nome. Maria. Tobias.
Dois barcos. Dois caminhos. Duas vidas, dois rios. Uma história.

Até hoje me pergunto sobre essa incapacidade: não ter


imaginado um nome de maré para os nossos barcos. Uma proteção. Uma luz.
Um desejo. Uma salvação. Um destino que se escreve nas proas. Um norte.
Não, não fui capaz, ali, naquela hora, de dar um nome aos nossos barcos. E
eles foram, simplesmente, Maria e Tobias. Dois destinos, duas esperanças.

O mundo que as minhas palavras não souberam dizer.

Apenas a vontade de um fazedor de brinquedos. Uma fé.

Na minha vida de agora, quando vejo no porto um barco


atracado, meus olhos logo buscam o seu nome. A semântica dos homens e
das mulheres do rio, a sintaxe das águas. Uma bênção, um fascínio, uma graça
alcançada, uma proteção, o nome de uma mulher, um nome de família, tudo
está ali, vivo, na escolha de um nome de maré, o nome de batismo pelo qual
um barco é chamado: SALMO XXIII, NOSSA SENHORA, DEUS É BOM PAI,
BOM JESUS, AVE MARIA, TODOS OS SANTOS, SÃO RAIMUNDO, PEDRO
PESCADOR, VALHA-ME-DEUS, FÉ NA VIRGEM, MARIA DAS ÁGUAS,
NAZARÉ, LETÍCIA, MARIA ISABEL, MARIA I, MARIA II, MARIA III, MARIA IV,
FÉ EM DEUS, COMANDANTE AGUIAR, VALENTE CAIAPÓ, SETE VENTOS,
BOM TEMPO, ESTRELA DA TARDE, LUZ DO RIO, NOVE IRMÃOS, BOA FÉ,
QUATRO ÁGUAS, SERENO, NÃO AFOBA, VENTO NORTE e muitos outros.
Nomes de barco são vidas, são fé, são lutas. E que nunca se ouse trocar o
nome de um barco, pois é panema certa, naufrágio ou malhadeira pobre, porão
vazio na volta. O nome de um barco tem que ser pensado conforme a alma do
dono, sua fé ou o seu amor pelos seus entes queridos, uma sua tradução da
vida - um seu destino - algo que se queira guardar. Depois de pintado na proa
está escrito no Livro das Profundezas, e abençoado esse destino pelos deuses
dos ventos. Um nome de um barco, um olhar de pessoas. Uma fé. Uma palavra
para se partir de um porto, um norte para se chegar.

124
Agora, aqui, em cada instante dessas palavras, imagino
que fiz o certo ao nomear com os nossos nomes aqueles dois barcos de miriti,
que foram feitos para descer o caminho ligeiro do igarapé que dava no rio.

Maria. Um barquinho de miriti.

Tobias. Outro barquinho de miriti.

Dois mundos, o entrelaçar de uma história.

Eu fiz as minhas escolhas. O meu acerto comigo naquela


hora. Os nomes que eu fui capaz de pintar naquelas duas proas. Um sonho,
uma marca. O mundo que eu quis escrever nas braças do miriti, uma vontade
em dois barcos, uma verdade que eu fui capaz. Dois barcos, dois rios, a vida
que se escreve nas proas de um destino. O que eu pude imaginar naqueles
dias, no mundo sem-fim das braças de um miriti. O que eu pude sonhar, o que
eu pude sentir, a verdade que eu pude escrever. E é assim com um fazedor de
brinquedos de miriti. Ele não se disfarça. Ele é o brinquedo, a palavra que se
escreve no imaginário de uma palmeira. Ele é a história das suas mãos. Ele é a
pessoa, uma pessoa de miriti na leveza de um instante. Ele é o mundo. Ele
escreve a si mesmo nas braças de um miriti. O fazedor de brinquedos de miriti,
antes de tudo, faz a si mesmo.

Escreve a sua história.

Escreve as suas lutas. Escreve o seu mundo.

Escreve a sua vida.

Por isso essas palavras. Um fazedor de brinquedos que


escreve o seu mundo nas braças de um miriti. Uma história para o vazio das
noites das minhas girândolas. Por ela não aceitar o abandono de uma pessoa.
Por ela lutar para se escrever um novo destino. Sei, também, que essa minha
história guarda a vontade de um abraço, Por isso, eu estou aqui, Maria.
Tentando ser inteiro em cada palavra que te escrevo. Por isso, eu estou, aqui,
mais uma vez, em tua casa, nessas palavras, aguardando o meu chamado.

Eu escrevo, Maria, para que eu possa me ouvir melhor.

125
Eu escrevo para que eu possa saber de ti. Do teu mundo
meu, das nossas vidas. Eu escrevo para que eu possa conversar contigo.

Eu escrevo para que eu possa te ouvir.

Tu te lembras do final daquela tarde, do destino que os


nossos dois barcos porfiaram nas brincadeiras de criança em Abaeté?

Lembras?

Algumas crianças ainda fazem esse tempo, essa porfia.

Eu vou escrever para ti essa lembrança.

Eu vou te contar.

Recontar para nós dois. Ouvir do nosso mundo.

Nascer, renascer, desmorrer, viver mais uma vez.

Existir nesse rio de palavras.

Um trapiche, um instante para se voltar.

A vontade de um abraço.

Um caminho, uma estrada de rios.

Compartilhar um mundo.

Escrever é revelar as histórias que estão dentro da gente.

Garimpá-las. Descobri-las.

Acendê-las.

Por elas lutar, por elas viver.

Por elas, uma vida.

126
XVII

Quem foi criança em Abaeté sabe dessa história. Nós


pegávamos os barquinhos de miriti e íamos porfiar na descida do igarapé até o
braço do rio, que dava na cabeceira dos moinhos de cana-de-açúcar. Era um
caminho que alguns meninos e meninas guardavam na memória dos pés
descalços. Subia-se uma capoeira alta, mato rude, cipoal intenso, tiririca e
capim corta-braço judiando a pele da gente. Passava-se por umas enormes
pedras cinzas, e no ar do musgo das árvores via-se o igarapé correndo as suas
águas negras e frias para os braços do rio. Lá, em mundo que se podia ver,
mas nunca alcançar, seria o tempo da porfia.

Porfiar era o verbo. Era o tempo. Era o mundo.

Um lugar, uma sensação de pertencimento. Uma vida.

127
Várias histórias.

Vários barcos. Várias ilhas sem nome.

Uma Abaeté. Vários sentimentos.

A verdade de se pertencer a uma casa, a uma gente.

O meu mundo de pessoas, muitas lutas e dores. Uma vida.

Nós, que reinventávamos a nós mesmos.

Crianças de uma Abaeté. Meninos e meninas. Um miriti.

Um brinquedo, uma luz, uma criatividade.

Uma resistência.

Uma porfia.

O mundo que as crianças inventaram.

Sábado, no início da tarde, era o melhor dia.

Conferida a maré do rio, estava acertada a contenda.

O lugar do encontro era lá em cima, no alto de um terreno.


Por trás das pedras, no veio do chão, onde nascia o olho d’água. Tempo de
fazer das mãos colher, matar a sede da subida, mastigar café verde tirado da
árvore para se preparar para o tempo da porfia.

Cada um arrumava o seu barquinho de miriti. Devíamos ser


uns nove moleques e umas quatro meninas. Alguns faziam o seu próprio barco.
Uns entalhes de última hora, entalhes de um sonho, um menino, uma menina.
Uma tinta feita de açaí com limão para nascer um vermelho. Ou se houvesse
disponível, e toda criança sempre acha, uma raspa de cor em uma lata de tinta
já usada. Pronto, estava pronta. Uma canoa de rasgo fino das braças. Um
casco, uma montaria, algo que corresse sobre as águas do igarapé e soubesse
chegar por primeiro nos braços do rio desaguando gritos de vitória. Vozes e
felicidade. Histórias de um mateiro das águas. O fazedor de brinquedos nas
lições da várzea e de uma infância. A porfia dos brinquedos de miriti.

128
Por uma vida, uma história. Um pertencimento. Uma porfia.

Largávamos os barcos lá, no alto da nascente.

No lugar em que a veia do olho d’água já corria forte.

“ - Um...dois...três... Larga-te já! ”

E os barquinhos ganhavam a correnteza do igarapé


correndo para o rio. E era tudo uma descida só. Como o mato encipoado que
ladeava o leito do igarapé era intenso, a ninguém era permitido chegar à beira
do igarapé e ajudar o seu barco a correr, salvá-lo de um encalhe ou aprumá-lo
nos trilhos ágeis e aqüíferos da correnteza. Ninguém. Havia esse acerto
silencioso entre nós, além desses embargos naturais da margem do igarapé.
Nessa brincadeira das porfias, eu entendi um dos porquês das cores, e como
elas se vestem dos barcos para terem algum significado.

Os barquinhos de miriti iam correndo pelas águas, troncos


e pedras do igarapé, iam se superando em suas muitas lutas para chegarem
aos seus destinos. E nós, os meninos e meninas fascinados por esse mundo,
íamos, também, correndo pelo meio da mata, à procura de alguma janela de
árvore, algum recorte na beira, alguma vista, alguma olhada, algum cuidado,
nos quais pudéssemos avistar o lançado dos nossos barquinhos na porfia das
águas de um igarapé, em suas várias estradas para o rio. Daí vinham as cores
que pareciam correr nas velocidades mágicas de um barquinho de miriti. Nós
corríamos e conosco corria um mundo em nossos olhos, em nossas vidas, em
nossos corações. O mundo das nossas palavras na valentia de um barquinho
de miriti sobre as águas de um igarapé.

Ahhh...esse mundo, Maria.

O tempo da porfia.

O tempo das histórias. As vozes dos meus amigos:

- Olha, Tobias, esse teu barco é agoniado no rebojo.

- Segura, Jurandir, esse teu verde é forçudo nas pedras.

129
- Vai, meu barco. Vamos, meu barquinho. Porfia. Porfia.

- Joana, esse teu barco de menina é corredor.

- Batalha, meu branco. Batalha. Batalha nesse igarapé.

- Vladimir, esse teu preto corre que nem relâmpago.

- Círia, esse teu outro azul é arisco, menina.

- Porfia. Porfia. Vamos menino...

- Porfia. Porfia.

- Persevera, azul. Persevera.

E antes dos barquinhos chegarem ao seu destino nos


braços do rio, nós já estávamos lá, pois a nossa correria era maior que a
velocidade das cores e dos barcos. E ficava aquele ajuntado de crianças
aguardando qual barquinho de miriti ia, por primeiro, desaguar a sua vitória no
rio que passava à frente do moinho de cana que ficava perto das nossas casas.

E vinha o vencedor.

Um vermelho. Feito de açaí amassado, água e limão.

Um preto.

Um branco.

Um verde.

Um alaranjado.

Um azul.

Um outro azul.

Já não importava mais. Tudo era gritaria e pilhéria.

E a porfia terminava com todos nós em nossos incontáveis


mergulhos no rio, saltos e pulos, na festa da chegada dos nossos valentes
barquinhos de miriti de volta às nossas mãos, ao nosso mundo de águas.

130
Sou capaz, agora, Maria, de ouvir todas as vozes dos meus
amigos. Os gritos esperançosos da Joana, os sorrisos do Jurandir, a felicidade
da Círia, a fraternidade do Vladimir e a minha própria voz feita de azul.

O azul dessas palavras.

O azul dessa porfia.

A verdade azul de um dia.

Um tempo escrito de pessoas. Um céu agora.

As cores que se vestem de gente e de barcos.

As cores de uma saudade. Um outro azul de um outro céu.

Talvez o teu arco-íris, Maria. A tua aquarela de histórias.

Algo que benza o vazio sonhado das minhas girândolas.

Tu moravas lá, na boca do rio, eras filha de um igarapé.

E não conhecias esse mundo. O mundo de uma porfia.

O mundo de umas crianças de uma Abaeté.

O lançado de uns barcos de miriti sobre umas águas.

Uma corrida de cores, palavras, barcos e vida.

As invenções de uns brinquedos. Umas histórias.

Uma humanidade.

Meninos e meninas que se reinventavam em uma Abaeté.

Uma porfia.

Um mundo.

E eu, mesmo sabendo que já era tarde, te apresentei a ele.

Aos barcos de miriti que correm em suas cores na água.

Nós fizemos o mesmo percurso. Uma porfia. Tu lembras?


131
O meu barco que era um amarelo.

Amarelo que significava companhia, estar ao lado.

E o teu que era um vermelho com vontade voadeira.

Subimos a terra encharcada do moinho, passamos pelo


tempo dos alambiques, demos nas pedras cinzas, margeamos o capoeiral,
lanhamos os nossos braços e,enfim, chegamos à veia forte do olho d’água.

Na beira do igarapé, lá, onde ficam os maruins voando em


suas nuvens imóveis, largamos os nossos barquinhos. Ainda vejo o teu sorriso
quando aprumaste o teu barco para ele correr a porfia. Das tuas mãos nasceu
o vermelho nas águas, uma vontade voadeira de um barco de miriti. Eu, por
mim, de minha parte, estava ali mais para te ver em meu mundo, feliz por tu
voares nele, correres, porfiares, e, em tuas mãos, reinventares uma cor.
Larguei, também, o meu amarelo. Nele parecia que a tarde se desatracava de
um porto onde a felicidade era possível e dela eu era o seu prático, que a
guiaria até um mar seguro, a um infinito oceano.

Largaste o teu Maria. Um nome de barco para ser o rio.

Larguei o meu Tobias. Um nome que se escreve proa.

E começamos a descer o igarapé.

Correndo pelos caminhos da mata, tentávamos avistar, por


alguma fresta de árvores, os nossos barquinhos enfrentando as águas do
igarapé em suas paixões de rio.

Senti, ali, uma porfia diferente em meu peito.

Vi, em teus olhos, o brilhar intenso da tua ternura.

Estavas feliz.

Feliz no meu mundo que se iniciava homem.

Feliz na velocidade da cor dos teus olhos negros.

132
Acreditei que, um dia, eu seria capaz de ser feliz no teu
mundo. E que para toda felicidade bastava se imaginar um destino.

Eu que sonhava com o teu mundo.

Tu que te escrevias no meu mundo.

Sabemos sempre muito pouco da vida, dos nossos


sentimentos, das pessoas e do mundo. Tateamos uns verbos, rabiscamos
algumas palavras e nos achamos capazes de imaginar um destino.

Uma história se escreve, Maria. Um destino se escreve


todas as manhãs, nos instantes do sol ou na luz das chuvas. As suas linhas
são escritas por nossas próprias mãos, nas várias lutas do caminho, com fé na
superação das nossas misérias e esperança sempre, a nossa dor de gente.

Quando vi, na tua casa, no início dessa nossa história, as


formigas de chuva largarem as suas asas, a vida, mais uma vez, quis me dizer:

- Eu sou a vida. Eu existo para ser sofrida.

É verdade: a vida existe para ser sofrida. Mas essa não é


toda a verdade do mundo. Existem várias verdades e vários caminhos na porfia
de um destino. Podemos ser pessoas melhores se vencermos a nós próprios.
Por isso eu te trago essas palavras para que eu possa vencer a mim mesmo e
te reencontrar em algum novo destino que, agora, tento escrever.

Um acerto de palavras para que eu me marque como


pessoa. Mais um instante, uma outra chance, para que eu te sinta ao meu lado.
E que eu possa me perdoar ou te esquecer, te desamar em mim, e parar de
imaginar como seria a vida, o nosso mundo, se eu não tivesse te traído.

Não, não ouso pedir o teu perdão.

Tens a tua leitura dos meus olhos, as palavras que


traduzes das feições do meu rosto e, em tua vida, sabes do que eu fui capaz.

Certos homens se traem em um instante.

133
Lembra? Essa é a tua leitura quando as asas das formigas
de chuva se despedaçam. Uma vida, um vôo, uma metamorfose.

Todas as vezes, aqui, nesse nosso mundo de águas, em


todas as chuvas que partilhamos juntos, os teus olhos já sabiam da esperada
aparição do vôo das formigas. Parecia haver uma cumplicidade entre as
formigas de asas e o mundo que tu davas às tuas palavras.

“ - Cuidado com as formigas de chuva, Tobias.

- Elas são como certos homens.

- Em algum instante vão perder as suas asas. “

Naquele final de tarde, lá, no alto do olho d’água, na


descida do igarapé para o rio, no destino que os nossos dois barquinhos de
miriti porfiaram, essas tuas palavras vieram, mais uma vez, à minha mente,
quando o meu barco, o Tobias, se perdeu e não chegou às margens do rio.

Durante um bom percurso da porfia, nós vínhamos


acompanhando a valentia dos nossos barcos enfrentando as curvas, as
pedras, os troncos e os redemoinhos das águas do igarapé na sua vontade
incansável do rio. Em alguns instantes, podíamos ver a passagem deles na
rapidez das cores que cruzavam as águas desse caminho.

- Olha, Maria, esse teu vermelho é faisqueiro nas pedras.

- É, né, Tobias?! Tu sabes fazer um barco veloz.

A minha vontade foi de te dizer que era o teu nome que


empurrava aquele barquinho de miriti e que foram as tuas mãos que deram a
ele um vermelho de águas, uma velocidade de cores para correr nas águas da
porfia. Mas não. Me calei e fiquei saboreando o teu elogio.

- É verdade, Maria, esse teu vermelho é corredor.

Em nossa descida, pelo meio da mata, a caminho do rio,


lembro de, na última passagem, já perto do alambique, ter visto o meu amarelo
seguir a sua luta de águas, um pouco atrás do teu vermelho.

134
A porfia estava em seus últimos instantes.

Não dava para precisar qual barco ia ser o vencedor.

Mais alguns minutos, e nós dois já estávamos na beira do


rio, em frente ao moinho de cana, aguardando qual barco ia desaguar, por
primeiro, a sua vitória nas águas do nosso rio.

Foram alguns minutos de silêncio entre nós.

De repente, teus olhos negros brilharam aquele brilho.

Aquele.

E teus lábios fizeram uma festa.

- É o vermelho!

- É o vermelho!

- É o vermelho!

E no meio da juncada na margem, o teu barquinho


apareceu vencedor. O vermelho da porfia era o teu. A felicidade era tua.

A felicidade era minha por estares feliz no meu mundo.

Aguardei o meu barco chegar. Mas ele não veio.

Isso raramente acontecia, pois a leveza dos barquinhos de


miriti tudo vencia, tudo passava. O vento e as águas do igarapé eram amigos.
Quase sempre todos chegavam. Alguns de lado, outros de cabeça para baixo,
outros fazendo muita água, mas os barquinhos de miriti sempre vinham dar em
nossas mãos, na chegada às águas do rio.

Uma resistência, uma teimosia. Uma ternura.

Um destino que se escreve.

E sempre os barquinhos de miriti chegavam ao rio.

135
Quando um barquinho de miriti faltava era sinal de tristeza.
E era impossível se tentar subir pelo igarapé à procura do barco sumido.
Nascia na gente um desalento íntimo, e todos os meninos e meninas sabiam
disso. Como se o dono do barco traísse o antigo, pois era obrigado a fazer um
novo barquinho, a imaginar um novo nome para se escolher uma nova cor.

Senti as tuas mãos em meus lábios.

“ - Tobias, tu estás triste? ”

Lembrei de uma senhora conhecida do meu pai, que


contava as histórias dos naufrágios que, tristemente, ainda se repetem nos rios
da nossa terra. A morte dos homens que quer se fazer número, algo banal.
Nesse meu barco sumido, lembrei das dores da nossa gente, das pessoas que
também somem, submersas, nas águas de um rio.

Lembrei de uma tristeza: os corpos que não se acham.

As pessoas que nunca vão enterrar seus mortos.

E vão viver, para sempre, doendo uma esperança.

Essa senhora contou para o meu pai sobre a fé de uma


cuia com uma vela acesa dentro. E a busca que essa fé faz no rio. Todas as
vezes, no lugar onde essa senhora morava, quando uma pessoa era dada por
desaparecida na agonia de um naufrágio, esperava-se o cair da noite, e na
área onde se imaginava que o barco tinha afundado, largavam-se cuias com
velas acesas dentro, para que elas corressem nesse pedaço do rio. Onde a
cuia parasse, no silêncio da vela, ali se devia procurar o corpo, pois a cuia e a
vela não mentem na fé da hora para serenar a dor das pessoas, que perdem
seus entes queridos nas romarias dos naufragados que se sucedem.

Foi a primeira vez que perdi um barco na porfia.

E não consegui dissimular para ti a minha tristeza.

Pensei muito na dor das pessoas em um naufrágio.

136
Tive vontade de chorar, pois, pela primeira vez, eu perdia
um barco. Não sabia onde ele estava. Um pedaço de mim tinha ido com ele.

Tive vontade de ir buscar o meu pai e pedir para que ele


acendesse uma vela dentro de uma cuia: e que ela largasse a sua fé pelo rio.
Pensei naquela senhora, que sabia de um mundo de fé nas horas tristes dos
náufragos. Ela devia saber como se cura a dor da falta de alguém que se ama.

A falta de alguém. Um tudo para quem espera.

Senti a dor anônima de todos.

A falta de um mundo povoado de gentes e barcos.

Pensei na dor das pessoas que ficam, e têm que seguir a


vida, convivendo com um vazio e curando as esperanças.

Curar a esperança. Era o que eu precisava fazer.

O meu barco que não chegou ao rio.

O meu barco que não voltou para as minhas mãos.

Eu era um resto de menino e um pouco de um homem que


se iniciava. As histórias também curam as dores, curam as esperanças.
Lembrei que, em frente a Abaeté, vive uma ilha encantada. Uma ilha que dizem
que anda, e que guarda o encanto de uma cidade possível.

Um mundo melhor. Uma outra cidade. Uma outra vida.

O nome de uma ilha que anda. A Ilha da Pacoca.

Para lá devia ter ido o meu barco amarelo. Para escrever


uma história. Para cumprir um destino na encantaria de uma cidade que
emerge do fundo do rio para aquele que vencer a boiúna que dorme no perau.
As pessoas sabem dessa luta e encanto, Maria. Sabem que aquele que cortar,
com um só golpe de terçado, o rabo estendido da boiúna, que às seis horas da
tarde, se estende nas areias brancas da Ilha da Pacoca, esse será um bem-
aventurado. Será a pessoa que fará surgir, do fundo do rio, a verdadeira cidade
de Abaetetuba: a cidade encantada de Abaeté. Um lugar onde todos viverão

137
felizes, com fraternidade, justiça e igualdade, cultivando as suas terras em um
mundo possível de paz e harmonia. Um outro mundo, Maria. Um mundo bom
para todas as pessoas da nossa terra. Para todas as pessoas desse mundo.
Para lá devia ter ido o meu barquinho de miriti. Para o lugar de uma felicidade,
na promessa de uma Abaetetuba encantada.

Ali, naquele instante, essa foi a história que eu pude me


lembrar para curar a dor da perda do meu barco amarelo, na porfia daquele
final de tarde, ao teu lado, na chegada vitoriosa do teu vermelho.

Uma história. Um curar de dores.

O resguardo das esperanças.

Pacoca. A ilha que anda.

O olhar de um menino.

A vida acesa das histórias.

Pacoca, um mundo.

O segredo do sumiço do meu barquinho de miriti.

A primeira vez de um final triste na minha porfia.

Uma esperança que se cura. Uma história.

“ - Tobias, tu estás triste? ”

Até hoje guardo a ponta dos teus dedos em meus lábios.

- Sim, um pouco.

“- Olha, viver é inesquecível. Nós somos inesquecíveis.”

- Sim, eu sei Maria. E essa tristeza vai passar.

Com as tuas mãos em meu rosto, colheste um cílio meu


que estava caído perto dos meus lábios. Seguraste ele na ponta de um dedo
teu. E com a tua voz morena me falaste:

138
- Vamos pensar?

Eu sabia desse teu gesto: um desejo irrevelável que se faz


no instante quando as pontas dos dedos indicadores de duas pessoas se
encontram. Fechamos os olhos e fazemos um pedido.

Assim, aceitei o teu convite para pensar.

Juntamos, então, as pontas dos dedos indicadores.

Aguardamos alguns segundos.

Senti tu prensares levemente a ponta do meu dedo.

Na ponta do teu imprimi, também, alguma força.

Fiz um pedido. Fizeste o teu.

Um mundo imaginário em silêncio por mais um instante.

Palavras que não se revelam.

Soltamos os dedos, e o meu cílio ficou contigo.

Preso e úmido na ponta do teu dedo.

- Eu fiz um pedido para ti. – tu me disseste feliz.

Eu me aproximei e te dei um beijo.

Sempre os teus lábios, a memória de um vermelho.

Todas as saudades que não têm fim.

Naquele dia, o porfiar dos nossos barcos foi maior que o


tempo, e a tarde já tinha ido embora. Era hora de voltar para as nossas casas.

Alguns vaga-lumes, à beira do rio, já acendiam estrelas.

Nossos olhos sabem muito pouco da vida.

A porfia que fizemos nunca terminou.

Tentei imaginar o teu pedido que fizeste com o meu cílio.

139
Nunca me esqueci dos nossos barcos.

O meu amarelo que não chegou.

O teu vermelho nas águas do rio.

Viver é inesquecível, Maria. Tu tinhas razão.

Nós somos inesquecíveis.

Nessa noite, antes de dormir, pensei na Ilha da Pacoca.

140
XVIII

Assim comecei a andar, cada vez mais, no teu mundo, nos


esforços dos teus dias e nos saberes da tua história. Em alguns chamados, no
trabalho da tua mãe, eu te acompanhei. Dona Zefa, a parteira de uma vida
toda. O olhar que aparecia, visitava, cuidava e tentava entender as vozes de
um amadurecer da natureza. A solidariedade na hora dos filhos que vêm à luz,
o instante de uma humanidade. Os meses que se contavam nas marcas de
uma lua cheia. O calendário das águas, o mundo de uma preamar, as águas
grandes, um mês. As mãos, que tocavam em um baixo ventre, sentiam
palavras, olhavam nos olhos, irmanavam-se. Eu que andava em teu mundo.

Tu que te escrevias no meu.

Eu que sonhava em estar perto de ti.

141
Em uma dessas andanças, eu soube das tuas palavras.

Aquilo que foi prometido na tua promessa.

Na luz do teu nascimento. E nas várias lutas da tua vida.

Tu que foste prometida para a palavra. Para a bênção.

Para rezar. Para pôr luz.

Para curar a dor de uma esperança.

Tu que choraste na barriga da tua mãe.

O mundo da fé do teu pai. Um futuro que se escreve.

A história desse teu choro. Uma promessa para ti.

O destino que conjugaste verbo.

A hora em que abraçaste a tua luta. Ouvir as pessoas.

Ouvir as suas dores, os segredos das suas vozes.

Os vários mundos de cada gente.

Dona Filomena que soube de ti.

E a tua mãe que te separou para a bênção.

Um parto. Um porto.

O teu cordão umbilical entrelaçado no teu pescoço.

Tu que vieste para a fé das palavras.

Uma promessa. O destino que escreveste.

Agora, aqui, eu estou na tua casa. Ouço, como se


estivesses muito distante, a tua voz. Sei dos teus olhos o movimento das tuas
sobrancelhas quando te esforças para reconhecer o mundo ao teu redor. Sei
das tuas mãos, sei do calor do rosário entrelaçado em teus punhos.

Sei da vida das tuas palavras.

142
Eu que estou, aqui, na tua casa.

Aguardando o meu chamado.

A minha segunda vez. Um instante para não mentir.

Tu que poderias ser qualquer outra pessoa.

Mas és tu.

A que abraçou um destino. E fez da vida um texto vivo.

Uma pessoa que reza. E benze. E põe luz.

A cura de todas as esperanças.

O mundo que os meus olhos, naqueles dias, descobriram.

Estávamos na tua casa quando veio um homem agoniado:

- Dona Zefa, pelo amor de Deus, venha acudir a minha


mulher nessa hora. Desceram as águas dela. Eu sei que a lua ainda está
longe, mas ela está passando desespero lá em casa. Venha comigo, por favor.

Nesse mesmo instante, o fiar da malhadeira nas mãos da


tua mãe cessou. Ágil, um olhar subiu pelas armações dos óculos da Dona Zefa,
e eu tive a certeza de que nos minutos seguintes às palavras daquele homem,
a tua mãe estava atuada por um espírito do bem.

- Cuide da minha mulher, Dona Zefa, por favor.

A tua mãe respondeu apanhando a lata para a fervura da


água, uns panos brancos de algodão que estavam guardados em uma
pequena caixa, duas tesouras enroladas em umas ataduras de gaze, um vidro
grande e marrom de álcool com iodo, e quatro hastes ocas de bambu.

Em segundos, a tua mãe estava pronta. Antes de sair, ela


reacendeu a vela sete-dias do Divino Espírito Santo. Ajoelhou-se à frente do
pequeno altar para a Nossa Senhora da Conceição e se benzeu duas vezes.

Pegou o rosário de dentro da latinha do pão e te deu.

143
Antes de irmos embora, lá, na porta da tua casa, a tua mãe
ainda olhou para trás, para a escuridão do pequeno corredor, a fim de certificar
que na palmatória de pedra, a metade da vela reacendida ia garantir a sua
queima para o Divino Espírito Santo na lida de mais um parto.

- A vela está acesa. Glória ao pai. – tua mãe murmurou.

- Pronto, minha filha, podemos ir. Vamos com fé.

Lá fora, o homem já aguardava com a canoa no ponto de


se livrar da poita para a viagem. Os braços dele tremiam de medo e esperança.

Esse homem, de vinte e poucos anos, tinha uma angústia


gritando em seu rosto. Era o seu quarto filho que estava pra nascer. A tua mãe
tratou de acalmá-lo, pois ele falava tão rápido que as palavras saíam
quebradas e incompreensíveis.

- Olha, meu filho, tu crês em Deus?

- Sim ,Dona Zefa, claro.

- Então, seja feita a Sua vontade. Vamos lá, chamar esse


teu menino pro mundo na luz da vida do Nosso Senhor. Te acalma, confia em
Deus e te pega com a Nossa Senhora da Conceição que vai dar tudo certo.

Embarcamos.

- Maria, o Tobias vai nesse barco?

- Sim, mãe, eu quero que ele vá.

A tua mãe não disse mais nada. Olhou para o homem e fez
um menear com a cabeça, aquiescendo, com um gesto, à minha presença ali.

- Então vamos, moço, vamos conhecer o seu filho.

O homem agasalhou, entre os seus pés, à guisa de poita,


uma enorme pedra incrustada de barro. Logo a seguir, começou a remar.

Durante toda a viagem, a tua mãe rezava baixinho.

144
Por cima dos seus óculos, de vez em quando, o seu olhar
se detinha em mim. Acho que ela imaginava que futuro nós dois podíamos ter
juntos. Eu e tu, Maria. Uma vida pensada juntos. Um destino. Um mundo
nosso. Tudo que um dia eu imaginei pra gente.

Mas certos homens não sabem se livrar das suas traições.

Eu e as minhas asas das formigas de chuva.

Tudo o que eu não fui capaz.

Agora, aqui, nesse texto, uma última chance. Essas


palavras que eu te trago agora. Um instante para eu me acertar como homem.
Por isso eu te escrevo. Para eu me ouvir melhor e te escutar em mim. Te
alcançar e compreender o vazio sonhado nas noites das minhas girândolas.

A vida já aconteceu, Maria.

Um homem que fazia brinquedos de miriti e sonhava te


amar para sempre. Quando realizamos os nossos sonhos, Maria, um mundo
também se realiza. Mas, naqueles dias da nossa vida, eu pouco sabia dos
meus sonhos, pouco sabia quantos mundos existiam em mim, e não imaginava
que amar era um verbo silencioso, feito de vários segredos.

Naquela viagem, no mundo da travessia do rio para a tua


mãe fazer aquele parto, pela primeira vez, eu te vi com um rosário nas mãos.

Ali eu soube da tua fé. Da tua espontaneidade e entrega.


De uma vida que se pode viver pelo outro, ajudar. Se reconhecer no outro.
“Entre solitário e solidário há um grão de palavras”. Uma vez, em um final de
tarde, tu me disseste isso, quando eu te perguntei sobre a tua própria vida;
quando eu quis saber sobre as escolhas que eu já imaginava que tu tinhas
feito. E da dificuldade que eu teria para viver nelas.

Naquela viagem pouco olhaste para mim.

Parecias viver uma outra vida com o teu rosário nas mãos.

Tu já estavas com vinte anos. Eu, com dezessete.

145
Muito pouco sabíamos do mundo que nos esperava.

E das diferentes palavras que iríamos escrever em nossos


destinos. Um desencontro marcado e uma culpa imensa para eu me curar.

Durante aquela viagem, a tua mãe, em alguns instantes,


repetiu o seu olhar em mim. Logo em seguida, ela te olhava com ternura.
Naquela estrada de rio, pude ver nos olhos da tua mãe uma impossibilidade em
nossas vidas. Senti, de alguma forma, que ela iria sofrer por nós dois.

Olhos de mãe, Maria.

Olhos de filho, Maria.

Olhos de quem ama.

Vários mundos que silenciam as suas dores.

146
XIX

A mulher daquele homem tinha padecido a noite toda. A


bolsa d’água havia começado a vazar no final da tarde passada. Quando
chegamos à casa deles, no rosto daquela jovem senhora um desespero
parecia estar lhe consumindo as últimas esperanças. Ela já vinha perdendo
água e sangue há horas, mas como não era ainda a lua marcada, apenas oito
luas tinham sido contadas, não chamaram logo a tua mãe.

Nunca esquecerei de como aquela senhora conseguiu um


sorriso no meio das suas muitas dores, no instante em que ela viu a tua mãe.

Dona Zefa começou a trabalhar naquele parto a sua fé e


ciência. A lata de água fervida, os panos de algodão, os bambus e a sua lida.

147
Antes que eu fosse avisado que eu teria que sair daquele
quarto, ainda pude ver, Maria, na cabeceira da cama, tu arrumares o rosto
daquela senhora e tentares dar a ela algum alento quando começaste a rezar,
perto do seu ouvido, em um suave cicio, a oração do Anjo-da-Guarda.

Uma oração de todas as mães.

Uma oração de todos os filhos.

Não se sabe o autor. Alguém desconhecido que cuidava de


um outro alguém. Ternura, um verbo feito de cuidado. Uma oração para o Anjo-
da-Guarda. Uma oração para curar as dores, curar uma esperança.

As palavras que eu ainda pude ouvir do céu da tua boca.

As palavras que apascentam as pessoas.

Uma oração para o Anjo da Guarda.

Uma oração para uma mãe.

Uma oração para um filho.

Tu e as tuas palavras. Um cicio de fé:

“Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, se a Ti me


confiou a Piedade Divina, sempre me rege, me guarda, me protege e ilumina.”

Eu e o homem, então, fomos instados a sair daquele


pequeno quarto. Ele pegou as suas três crianças e foi lá pra beira do rio
aguardar o deslinde daquela hora. Eu fui para trás da casa e fiquei por perto do
jirau, embaixo da imensa sombra verde-musgo de uma jaqueira. Ali, no meio
do ar doce das flores abertas daquela jaqueira, eu pude ouvir o menino chorar.

Um caboco-menino havia acabado de nascer.

E chorava alto a criança para que todo o rio pudesse ouvir.

O homem veio lá da beira correndo.

148
Entre sorrisos, lágrimas e vários padecimentos, o seu filho
veio à luz. A vida possível pelos braços da tua mãe, e pelas palavras que
estavas começando a aprender.

Saíste daquele quarto e irradiavas felicidade.

Havia vida e muita verdade nos teus olhos.

Eras Maria. Uma mulher que iria benzer. Botar luz.

Ajudar. Se compadecer. Iluminar.

Era o teu mundo. E nele eu senti que estavas muito feliz.

Inteira, viva e toda. Escrevendo as palavras do teu destino.

Apareceste à porta da casa. Teu olhar, as tuas palavras:

“ - Olha, Tobias, nasceu, nasceu. Nasceu...

- É um belo de um moreno. E vai se chamar João. ”

Eu sorri. E te abracei.

Entramos todos juntos para conhecer o menino.

Olhos miúdos e negros, e fartos cabelos castanhos.

Por um instante, imaginei que poderia ser um filho teu, um


nosso filho. Guardei para mim esse pensamento. E aprumei os meus olhos na
luz do nascimento daquela vida que tinha acabado de chegar. O menino era de
uma beleza muito nossa: magro, mas de ossos fortes, não muito comprido,
com umas costelas firmes e de uma morenice que fascinava qualquer um.

- É um moreno trigueiro. – disse a tua mãe.

E o moleque gritava alto, tu lembras?

Eu nunca me esqueci: ele serenou nos teus braços.

E tu o devolveste, quase dormindo, ao seio da mãe.

Começamos a nos arrumar para voltar para a tua casa.

149
“ Entre solitário e solidário há um grão de vida. ”

Um grão de palavras. As tuas palavras renascentes.

Dona Zefa fez umas últimas recomendações ao pai e à


mãe. Deixou, em um vidrinho, um pouco de álcool iodado para passarem no
umbigo da criança para o olho fechar mais rápido. Deixou gaze e algodão.
Recomendou o peito assim que o menino pedisse no decifrar das horas de um
choro de fome. Fez algumas restrições quanto a alguns peixes de pele.
Recomendou que esses fossem bem grelhados para pingarem toda a gordura.
“ - Nunca esqueça o peito, minha filha. Nada de chazinhos nem água. O peito é
tudo, o peito basta, o teu leite vai crescer esse menino forte. ”

Recomendou, mais uma vez, o olho do umbigo:

- Ele vai secar, minha filha. Tenha fé e paciência. Nada de


paninhos, nem fitas, nem moedas, borra de café, também, não. Deixe o olho do
umbigo respirar e limpe com cuidado de manhã e à tardinha, com um
pouquinho desse álcool que eu vou lhe deixar. Deixe o olho cumprir o fim do
resto do seu fardo e secar ao vento. Quando cair o coto, enterre, atrás da casa,
próximo do jirau, essa lembrança. Lembre ao seu filho, em todas as datas dos
aniversários dele, que ele deixou o umbigo aqui, nessas terras de águas, em
algum lugar perto do jirau, embaixo desse ar perfumado, no segredo doce
daquela jaqueira. Diga a ele sempre: “deixaste o umbigo aqui, ao lado desse rio
que corre mundo afora. Cuida de ti, menino.”

A jovem senhora sorriu. Sorriu uma ternura de palavras.

E agradeceu muito.

A tua mãe disse ao pai do menino para ele ter todo o


cuidado com a moleira do seu filho porque esse menino não era filho do boto
para ter furo na cabeça. E que ele ajudasse a mulher dele na cria.

- A moleira fecha, meu filho. Demora mais de ano, mas


fecha. Cada criança tem o seu tempo. Tenha fé e paciência. Reze nela, no
estreito da moleira aberta, todas as vezes, durante os banhos da criança. Não
aperte com força, acaricie com cuidado, rezando um Pai-Nosso.

150
- Ela fecha, meu filho. A moleira fecha no tempo e na fé.

O homem sorriu um sorriso largo e concordou.

- Pode deixar, Dona Zefa. Eu tenho fé e vou perseverar.

E também agradeceu muito. Muito mesmo, do seu jeito,


com as suas palavras. Pediu a Deus que olhasse toda-a-vida por tua mãe.

Ao fim, a Dona Zefa voltou à jovem senhora que já dava de


mamar ao menino. Pediu que ela tomasse o chá do ouriço da castanha,
durante uma semana, para curar a anemia do parto.

- Deixa o ouriço, depois de limpo, descansar na água umas


duas ou três horas. Quando a água ficar cor de sangue, tu podes tomar.

Sempre a tua mãe, mais um conselho, mais uma ternura.

Mais um cuidado feito de palavras:

- Se tu puderes, minha filha, nesses primeiros dias, almoça


sopa de galinha pra mulher parida, com limão, alho e folhas de hortelã.

Em vários abraços felizes, nos despedimos de todos.

E a tua mãe prometeu voltar em quatro dias.

Começamos, então, a descer o pequeno trapiche.

Um dos filhos, o menino mais velho, ia nos levar de volta


para a tua casa. Lembrei do fogo da metade da vela sete-dias que foi, mais
uma vez, aceso, na palmatória de pedra, para o Divino Espírito Santo. Lá, na
tua casa, no fim de um corredor pequeno e escuro, ele devia estar queimando
a sua fé. Lembrei do altar iluminado para a Nossa Senhora da Conceição.
Lembrei da tua mãe, do instante em que ela foi atuada por um espírito do bem,
quando vieram chamá-la para cumprir a sua lida.

Dona Zefa, uma palavra, um verbo.

Solidariedade, verbo de cuidado que se escreve pelo outro.

151
Solidariedade. Uma palavra-mundo da tua mãe:

“ - A minha vida, o meu sentido, meu filho, é aparar uma


criança. Essa é a minha luz, o meu fazer da vida, o meu chamado. ”

Dona Zefa, a parteira de uma vida toda.

Mãe ao lado de muitas mães.

Madrinha de muitas crianças nas muitas ilhas sem nome de


Abaeté. “ - Entre solitário e solidário há um grão de vida. ”

Eu nunca esqueci, Maria. A tua linguagem, o teu viver.

Tu que já escrevias o mundo das tuas palavras.

Eras o outro, alguém que precisava de uma fé.

De uma palavra. De um olhar. De uma oração.

De um cuidado.

Tu que já começavas a benzer. A pôr luz.

A seguir com os teus próprios passos as palavras para as


quais estavas destinada. A escrever com o trabalho da tua fé o teu mundo.

Jamais me esqueci daquele rosário entrelaçado no calor


das tuas mãos e das palavras rezadas no ouvido daquela senhora.

Não existe o tempo, Maria. Não há um tempo.

Só existem pessoas.

Essa é a verdade do meu coração agora. Ali, naquele


mundo, no dia do nascimento daquela criança, eu jamais poderia compreender
isso. Eu ainda iria ter que viver o despedaçar das asas das formigas de chuva
para saber, um pouco, dessa verdade. Mas, quando já vínhamos embora, nos
olhos daquele menino que nasceu, a vida parecia querer me dizer:

“ - Eu sou a vida. E estou acontecendo agora. ”

152
Há instantes em que não conseguimos ouvir nada.

E o tempo parece uma esfinge que nos aterroriza.

“ - Eu sou a vida. E estou acontecendo agora. ”

As palavras do começo de um sonho no olhar daquela


criança que tinha acabado de nascer. Uma vida, um mundo, uma criança. A tua
Oração do Anjo-da-Guarda que todas as manhãs eu rezo. Sempre os filhos,
uns olhos de mãe, uns olhos de pai, um cuidar, uma bênção. Um olhar por nós.

“ - Eu sou a vida. E estou acontecendo agora. ”

Nos olhos daquela criança que tinha acabado de nascer


havia um norte, havia uma marca de nascença: lutar para viver.

Depois daquela despedida, todas as vezes que vejo os


olhos de uma criança, sempre essa voz me chama:

“ - Eu sou a vida. E estou acontecendo agora. ”

Um mundo. A voz da vida. Um chamado para se ouvir.

Lentamente, o menino mais velho desancorou a canoa.

E começamos, assim, a voltar para a tua casa.

Mais um parto e um outro porto iam ficando para trás.

Mais uma vida, uma dor de esperança.

A dor de uma humanidade.

João, que já estava nascido.

E logo iria saber das muitas guerras e guelras no peito.

153
XX

O rio.

Em seus olhos de água.

Às vezes sinto que ele é um imenso Narciso.

Uma pessoa de águas, um ser, um Narciso invertido.

O rio se olha em nossos olhos. Ele se vê na retina do


mundo das cidades que ficam às suas margens. O rio olha pra gente. O teu rio,
Maria. Um rio amado, um rio ferido, um rio que se sonha, um rio crucificado.
Um rio nosso. O rio que é essa pessoa das nossas vidas. Ele olha para nós, e
o correr das nossas lutas fascina a sua história. O rio se vê em nossos olhos.

154
O rio se vê na gente.

Naquele final de tarde, quando voltávamos do trabalho da


tua mãe no fazer da luz dos partos, eu vivi esse sentimento. Parecia que todo o
universo conspirava para o bem daquele menino que tinha acabado de nascer.
Em cima daquelas águas, de volta para a tua casa, eu senti uma paz imensa.
O rio, em seus murmúrios líquidos, celebrava o nascimento daquele menino.
Mais uma vida para doer uma esperança. Na proa do barco, a tua mãe dormia.
Nós, ali, juntos, na popa, próximos do menino-piloteiro que remava,
conversávamos, baixinho, sobre a lida da tua mãe, nesses mais de vinte anos,
como parteira de todos nós no alumiar das nossas histórias. Me falaste da tua
avó, que também tinha sido parteira a vida toda e rezava e benzia quando era
demandada nas dores dos outros, curando tudo o que era mal. Deixaste claro
para mim que um destino se passa de pessoa para pessoa. E se escreve.

“ - Nós somos de uma gente que sempre andou em cima


das águas desse rio, Tobias. Nascemos nele, vivemos dele, somos ele. “

Lembrei do teu pai contando a luta do teu nascimento e de


quando ele escutou tu chorares na barriga da tua mãe. A certeza que ele teve,
de que naquela hora, tu começaste a escrever o teu destino

“- Um destino se escreve de pessoa para pessoa, Tobias.”

Eu gostava de te ouvir.

Parecia que em ti a verdade era uma coisa fácil.

Mas o meu destino se assemelhava a um barco amarelo


que se perde em uma porfia. Uma esperança para se curar e uma vida para se
viver nas águas de um norte imaginário de onde vinham as tuas palavras.

Tuas palavras que me desenhavam um destino possível.

Bastava eu querer o meu mundo teu. A nossa história.

Abraçar um destino.

E nas linhas dele eu imaginava que tu estavas escrita.

155
Pois tu eras o meu mundo.

A verdade e o bem que eu queria para mim.

Eu, que me sentia destinado a ti, ainda não sabia que era
muito cedo para rabiscar um destino. E desconhecia que para toda felicidade
não se basta, apenas, imaginar um mundo, sonhar um futuro.

Um destino nunca se escreve todo, Maria.

Ele é escrito a cada instante, em cada pedaço da vida.

É preciso escrever uma história, Maria. Essa verdade eu


não sabia. As minhas próprias palavras iriam me ensinar esse mundo: a vida
de quem se escreve, e a esperança dolorida e humana de que haverá, sempre,
mais uma única chance para nos reescrevermos melhor.

Por isso eu te escrevo. Pelas minhas faltas, pelos sonhos


que eu não fui capaz, pela minha culpa, por um destino em que eu te enganei.
Por esse barco amarelo que se perdeu de mim nos caminhos de uma porfia.

Eu escrevo para saber da gente.

Saber da distância que foi aberta entre nós.

Eu escrevo para te alcançar em mim.

Nas entrelinhas desse texto, eu busco desvendar o vazio


sonhado nas noites que se repetem nas minhas girândolas.

Lá, no tempo daquele mundo, naquele final de tarde,


quando voltávamos para a tua casa, depois da fé no trabalho da tua mãe pela
luz daquele menino que nasceu, eu pude compreender que eras uma pessoa
que tinha as mãos sobre o próprio destino, pois escrevias a tua vida com toda a
tua verdade, com todo o teu corpo, com toda a tua ternura e luta.

O tempo, Maria, somos nós.

As palavras que escrevemos dele.

O mundo que construímos. As nossas verdades.

156
O tempo tem o teu rosto, Maria.

Um saber do mundo nessas palavras que agora sondo.

Um quase tato. Escrever é tocar. Um sonho de pessoas.

As lutas da tua mãe. O teu início.

As lutas da nossa gente. Um mundo de águas.

Uma Ilha da Pacoca. Um barco amarelo, uma porfia.

O destino que se escreve. Uma palavra.

Um tu. Um eu. Um nós. Todas as pessoas.

O menino mais velho que remava assobiando baixinho.

A tua mãe que dormia na proa um sonho feliz.

E eu que ouvia, por um instante, a tua felicidade:

“ - Gosto de ver a minha mãe dormir assim, Tobias. ”

Um pouco mais do teu mundo eu conhecia.

As tuas palavras: um mundo que se acende.

Tu, a tua mãe. As histórias dessa luta.

Era sempre a mesma dor e lida. Quando o parto dava


certo, a tua mãe voltava dormindo. Quando o parto não vingava, e a tua mãe,
mesmo com todas as lutas possíveis, perdia a criança, ela voltava acordada,
com o olhar parado sobre as águas do rio, e a mão aberta, ao lado da canoa,
deslizando sobre a correnteza. “Solidão”. “Solidão de todas as pessoas do
mundo”, tu me disseste. A primeira vez que a tua mãe perdeu uma criança, em
uma dessas voltas pra casa sangrando esse vazio, tu falaste para a Dona Zefa
que ela tinha feito de um tudo para salvar a criança, mas Deus não quis.

E que ela tinha que se conformar. E entender.

Enfim, aceitar os desígnios de Deus.

157
“ - Não é assim tão fácil, minha filha...

- E eu não consigo não doer a dor dos outros.”

Na dor da tua mãe, aprendeste a respeitar o silêncio dos


outros e a entender que todas as pessoas têm os seus mais humanos limites.
Nos dias difíceis da perda de uma criança, depois da volta pra casa nos
silêncios da proa, a tua mãe passava, rezando e chorando, a fumaça branca do
defumador por todos os cantos da casa. No final desse dia, ela enterrava a lata
do defumador, ainda com os pedaços de carvão em brasa, na beira do rio.
Voltava pra casa e dormia sem jantar. Noutro dia, já acordava trabalhando.

Quem é humano, Maria?

O que é humano?

Não sei, Maria. Talvez ninguém saiba.

Talvez seja o mundo em uma possibilidade de ternura.

Ou o sangue branco do teu rio crucificado.

O sonho que eu sonhei de ti. Uma dor repetida.

Ou uma esperança. Uma dor de gente. Um barco amarelo.

Ou uma dicção de pessoas, uma nova e outra chance.

Um término para um novo início. Uma reescritura.

Uns olhos para nos vermos nos outros. Uma íris.

Uma nova humanidade que imagina um novo mundo.

A Ilha da Pacoca. Um encanto. Uma cidade possível. Uma


nova Abaeté. O fundo de um rio. Águas imaginárias. Uma nova humanidade.

Não sei, Maria. E essas palavras que te escrevo agora não


são capazes de um caminho no qual eu possa me decifrar.

Apenas sobrevôo o teu mundo meu.

158
O algo possível da nossa história. Alguns indícios.

Algumas palavras que dizem do nosso mundo.

Nós que somos o tempo, Maria. As nossas vidas.

A nossa gente: os nossos eus. Um pertencimento.

A Dona Zefa, a tua mãe. Os braços da nossa vida.

Uma luz. Um verbo. Uma solidariedade.

Um grão de palavras. O teu rezar.

A tua primeira lição do silêncio. As derrotas da tua mãe.

A mão que desliza sobre as águas do rio.

Ou alguém que dorme na proa. O feito da vida.

Alguém que veio à luz. Uma dor de esperança.

Uma dor de uma humanidade.

Eu que me via no teu mundo um aprendiz.

Nunca me esquecerei do rosto daquela jovem senhora, no


instante em que ela conseguiu aquele sorriso, na chegada da tua mãe para
ajudar no parto daquele menino.

Imaginei o teu mundo no meu mundo. As nossas vidas.

Imaginei se um dia eu seria capaz de fazer uma jovem


senhora grávida, o seu mundo de dores e esperanças, nas braças do miriti.
Escrever esse mundo, esse olhar, nas possibilidades do miriti. Imaginei se um
dia eu seria capaz de escrever nas braças de um miriti uma jovem senhora
com um menino moreno em seu colo. Imaginei se eu seria capaz de fazer as
dores de um parto, o trabalho das luzes mais difíceis, e os silêncios da tua
mãe, a sua luta, em uma vida toda parteira das gentes dos nossos rios.

Não. Eu era só um pequeno em alguns traços de homem.


Algo mais que um menino. E a natureza sempre escreve melhor as suas dores.

159
Desisti, no mesmo instante, desse pensamento.

Ficou a vida da tua mãe: o seu verbo solidariedade.

Dona Zefa. Dona Filomena. Dona Zita e muitas outras.

Nomes para nunca se esquecer.

Nomes que cuidam de pessoas.

Parteiras das horas em um instante difícil.

Travessia da solidão de um nascimento.

Nascer é uma felicidade sensível, Maria.

Dona Zefa. Dona Filomena. Dona Zita. Mulheres de fé.

Nomes de muitas vidas.

Nomes que sabem das luzes de toda mãe.

Nomes madrinhas.

Nomes das dores de uma esperança. Nomes de gente.

Nomes de uma ciência e de um fazer.

Nomes da vida. Nomes de um nosso mundo.

Nomes de uma Abaeté das nossas muitas histórias.

Eu que não fui capaz de fazer uma senhora gestante.

Há mundos ágrafos, Maria.

Há mundos que nem o miriti é capaz de desvendar.

160
XXI

Eu seguia no teu mundo. E tu estavas sempre ali. Ao meu


lado, como, aqui, eu tento estar, ao teu lado, nessas palavras que te escrevo.

Lembra quando nós estávamos juntos em tudo?

Nas histórias de vida, que escutávamos nas tuas andanças


pelo rio quando eu te acompanhava. Na minha vida crescente no miriti, quando
olhavas eu fazer um brinquedo. E, sobretudo, no teu princípio das palavras que
curam: a tua fé para rezar nas primeiras agonias das pessoas que te
procuravam. E, assim, benzer. Tirar um quebranto. Abrir uma paz. Serenar.

161
Tu que estavas sempre pronta para servir, pronta para
ajudar, um dia, precisaste muito de alguém. Precisaste de alguém que pudesse
te oferecer uma resposta para um sofrimento teu.

Alguém que te prestasse um socorro para uma agonia.

Precisaste de um médico.

Nunca me esqueci do dia em que tu me falaste sobre uma


dor intensa que vinhas sentindo, há algum tempo, dentro dos teus olhos. Me
falaste sobre alguns pontos de luz e de círculos escuros que sentias no teu
olhar. E de uma dor de cabeça que havia se tornado absurdamente
insuportável. Sem sabermos do que se tratava essa tua agonia, decidimos
enfrentar, juntos, as lutas para se conseguir um tratamento médico.
Resolvemos, então, ir a Belém para colocar um fim nessa tua dor.
Imaginávamos que tu estavas precisando, apenas, do auxílio necessário de
bons óculos. E que logo tudo estaria resolvido. E tu estarias curada.

Mas nós estávamos enganados. Muito enganados.

O campo da tua visão tinha pontos cegos.

Glaucoma. Um mal que ninguém desconfia. Uma escuridão


que se aproxima lenta e fatalmente. Um diagnóstico tardio: uma sentença.

Os teus olhos. O rio negro que tu guardavas neles.

Os teus olhos. Uma vida ali.

Os teus olhos. A tua luz, Maria.

Os teus olhos.

A angústia dos meus silêncios.

Glaucoma. A palavra triste de uma hora.

A tarde de uma tarde. Tu que estavas ficando cega.

A minha dor. A tua resignação que me desesperava.

162
“ - Talvez eu não precise mais enxergar, Tobias. ”

Um algo incompreensível de ti, das tuas palavras.

O teu mundo, a tua fé. A tua esperança mansa. Eu que


sempre acreditei que a esperança fosse uma palavra-mundo que ardesse.

Algo que nos escrevesse uma vida toda esperança.

Algo humano. A dor de uma esperança. Uma luta.

Mas um mundo se descobre a toda hora.

Quem é humano?... O possível de um olhar?

O que é humano?... O mundo de uma palavra?

Não sei, Maria.

Não sei.

Eu que não sou capaz de resolver o vazio sonhado das


noites das minhas girândolas, muito mais incapaz sou de responder às minhas
inquietações. Quisera eu poder repetir os teus sonhos, sonhar o que tu
sonhavas de dor nas horas indefiníveis do teu rio crucificado.

O mundo, Maria, está muito estranho.

Perdemos a capacidade de nos reconhecer como pessoas.

Lembro da tua mãe:

“ - Eu não consigo não doer a dor dos outros. ”

Lembro das palavras incompreensíveis na mão que


deslizava, silente, sobre as águas de um rio.

O olhar parado, as lições de uma dor.

Entre solitário e solidário há um grão de vida.

Algo que se aprende. Uma verdade.

163
Para mim, aquele mundo que se apagava dos teus olhos
era de um todo incompreensível. Eu não conseguia entender a tua resignação.
Por mais que eu me esforçasse era algo muito difícil. Quase desumano para
mim. Tu, que sempre ajudaste tanta gente, agora, não havia nada nem
ninguém que pudesse salvar os teus olhos.

Tu estavas ficando cega. E isso, para mim, doía muito.

Muito mesmo.

Uma dor de doer por ti.

Um mundo que me assustava.

A incapacidade dessas palavras que agora te escrevo.

A margem incompreensível desse texto:

“ - Talvez eu não precise mais enxergar, Tobias. ”

A minha esperança, nessas tuas palavras, morrendo.

A agonia dos meus silêncios.

E alguma força que eu desconhecia. Alguma resistência:

- Não diz isso, Maria. Pelo amor de Deus.

As tuas sobrancelhas que se moviam com a minha voz.

O meu mundo teu.

A nossa história.

O teu mundo meu.

“ - Tobias, tu estás triste? ”

E as tuas mãos vinham, levemente, sobre os meus olhos


para desvendar as palavras secretas das feições do meu rosto.

A tua leitura dos meus silêncios.

164
O teu universo das minhas palavras.

Com a ponta dos teus dedos, lias o meu rosto.

Nós que fomos o tempo, Maria, somos, mais uma vez, ele,
agora. Nesse instante, nessas palavras em que te escrevo, nesse mundo em
que tento te alcançar em mim, tu estás. Na vontade desse abraço, em teu olhar
marcado para o norte, nas tuas histórias em que te afirmaste vida, no meu
mundo miriti, nós estamos. O tempo, Maria, o teu destino em que te escreveste
verdade. A vida que eu fiz de mim. O nosso mundo nas luzes das palavras que
aprendeste a benzer, e nessa distância que foi aberta entre nós.

O tempo, Maria.

Nós somos o tempo. O rosto das verdades.

As lembranças do nosso mundo nos teus olhos.

Nas tuas lutas, no que eu era incapaz de compreender.

Uma dor muito minha. Uma impossibilidade.

A luz de dentro das tuas palavras que eu não alcançava.

Eras Maria. Eras um rio. Eras um mundo.

Eras o destino que escrevias na fé do que acreditavas.

Um mundo teu que eu precisava compreender.

Não eras uma predestinada. Não. Eras uma destinada.

Escrevias a ti mesmo.

Eras o outro. A outra. A outra gente que precisa da luz de


uma palavra, de uma atenção, de um cuidado em um verbo de ternura.

E o meu mundo, para ti, ia ficando muito pequeno.

Eu que não sabia que o mundo das palavras pode iluminar


um rosto. Eu que preciso te ver aqui. Sentir as tuas mãos. Tocá-las.

165
“ - Tobias, tu estás triste? ”

Uma possibilidade de um olhar. Um entremundos.

Eu que preciso de uma palavra que se escreva vida.

Aqui, nessas palavras em que te busco, sinto a leve ponta


morena dos teus dedos em meu rosto. Quem sabe não achas um outro cílio
meu, caído perto dos meus lábios, para que assim possamos pensar um novo
mundo, imaginar uma nova história e escrevermos, juntos, um novo destino.

“ - Alguém que escreve sempre cura uma esperança. ”

Ouço a tua voz no meio-mundo dessas minhas palavras.

Renovo um sonho escrito nas promessas do verbo sonhar.

Sei da tua voz algo que me faz um bem.

Eu que vou te ouvir sempre nessas minhas palavras.

“ - Tobias, tu estás triste? ”

As tuas mãos lêem as feições do meu rosto. As linhas do


meu mundo teu. As nossas vidas. O nosso tempo de viver. A nossa história.
As nossas impressões. As nossas palavras, as palavras que fomos.

E eu te conto do nosso mundo uma possibilidade.

Contar é viver um abraço, Maria. Contar é um tocar.

Um instante para nos reconhecermos como pessoas.

Um sentir, tocar com as palavras. A nossa história.

A ponta dos teus dedos nas feições do meu rosto.

Uns olhos teus, uma leitura tua.

A ponta dos teus dedos nessas palavras.

Um norte.

166
Existir. Abraçar.

Um mundo. O nosso mundo.

“ - Tobias, tu estás triste? ”

Nessas palavras, Maria, eu posso te tocar.

Eu posso sentir os teus lábios.

Eu posso te dar um abraço sem-fim.

E as tuas mãos no meu rosto fazem a minha leitura.

E me dás muito da vida, sempre, com esse teu gesto.

- Não, eu não estou triste, Maria.

Sinto as tuas mãos, suavemente, nos meus olhos.

Sinto o teu perfume, o cheiro da tua pele.

Um desejo. Uma ternura.

Um saber.

Algumas palavras podem curar uma esperança.

167
XXII

E ficaste, assim, cada vez mais conhecida no mundo das


nossas ilhas como Maria, aquela moça cega que benze. E vinham chamados
de muitos lugares para que tu fosses rezar, pôr luz, abençoar, proteger ou
semear alguma palavra. E eu estava, ainda, ao teu lado.

Aprendi contigo que os mundos se comunicam. E quando a


tua fé não era capaz de resolver todas as dores, tu eras a primeira a indicar
outros caminhos, outras lutas, outras saídas para uma precisão.

Precisão, aqui, para nós, nas nossas vidas, é uma palavra


difícil, é um mundo que se estranha. É um vazio que não nos escreve gente. É
a falta de um tudo: de um médico, de um diagnóstico, de uma escola de
qualidade, de um remédio, de uma segurança. É a nossa dor das horas, Maria.

168
Ter precisão é o roubo da nossa dignidade como pessoa.

E isso eu aprendi nessas andanças contigo pelo nosso rio.

Tu que me ensinavas do teu mundo.

E eu crescia como homem perto de ti.

Até o mundo vir a ficar completamente incompreensível.

Foi no começo de uma noite, na nossa casa.

Era, mais uma vez, o tempo de se preparar um outubro.

O mês que nasce antes, feito de sonhos e de muita luta.

Estávamos em agosto, o mês em que se apressa o


entalhar das últimas braças para o destino no trabalho de toda a nossa gente.
Fazer os brinquedos, a vida. Meu pai tinha acabado de chegar dos Miritizais da
nossa comunidade. Estava exausto, mas aceso na esperança de um ano bom.

Vieram, do nada, uns homens.

E na sua fala rude trouxeram uma afronta.

O menor deles, que tinha dois dentes de ouro na boca,


tinha nas mãos um documento escrito. E esse cabra vinha atrás dos outros.
Bateram na nossa porta com violência. Chamaram pelo nome do meu pai.
Minha mãe se desesperou, agarrada nos braços do meu pai, não deixou o seu
homem ir lá pra fora sozinho. Recebi ordem pra me esconder no alto da
mangueira, no fim do nosso quintal. Senti algo de muito ruim nessa hora.
Impotência, vergonha e medo. Não obedeci. Fomos os três lá pra fora.

Por detrás dos primeiros cabras, o menor homem surgiu.

Ele tinha um documento nas mãos.

Era o documento da nossa terra.

Um título, uma escritura, umas palavras da lei, o jeito certo.

- Eu sou o dono. – o homem disse.

169
- Dono do quê? – meu pai gritou, avançando sobre ele.

Os outros sicários seguraram o meu pai.

Empurraram a minha mãe.

- Sou o dono dessa ilha e de mais quatro das tantas outras.


Eu sou o dono desse lugar, dono dessas terras de vocês, da ponta desses
miritizais até o início dos açaizeiros.

Meu pai se acalmou. Segurou a sua indignação. E disse:

- Olhe aqui, meu senhor, nessas ilhas sem nome há muitos


miritizais e açaizeiros. Um mundo, vários mundos, muitas histórias. Tudo o que
muita gente não sabe. Vivemos dessa terra e desse rio. O senhor não sabe,
moço, a nossa vida está aí, em pé, nesses bosques de miriti e nesses açaizais.
Não nos arrede daqui, moço. Não nos arranque dessa terra. O senhor não
sabe, moço, o senhor vai começar uma sanha para nos arrancar daqui, desse
pedaço de chão. Será uma guerra, uma guerra dos tempos, de uma lei em
silêncio que todos nós obedecemos, e nela vivemos. Então, moço, meu senhor,
tome o seu caminho, porque essa terra é nossa, nascemos dela, vivemos em
suas águas. Somos um pedaço desse chão como qualquer planta ou bicho, e
daqui eu só saio morto, muito morto, enterrado na beira desses trapiches.

- O senhor é que não sabe. Eu tenho a lei, o documento, a


escritura. E essas terras sempre foram minhas. – o cabra afirmou.

- Tente me tirar, homem. Tente, e o senhor vai ver.

- Ver o quê? Se eu tenho a lei, o braço forte.

- Tente! E o senhor vai ver como se morre nessa terra.

- Calma, homem, o senhor está muito nervoso.

- Calma, o quê?! Atire logo na minha cara, se o senhor tem


coragem. Não precisa mandar fazer o serviço, pagar a paga da morte dos
homens. Enterre o senhor mesmo a minha voz. Agonie o meu silêncio.

170
Aqueles homens, que antes seguravam o meu pai,
prensaram-no contra uma sapotilheira, que havia em frente à nossa casa. Ali,
ele ficou de braços abertos, acuado, impotente. Ali, eu pensei que o meu pai
fosse ser assassinado. Entretanto, o homem dos dois dentes de ouro, como se
fosse alguém conhecido, pôs uma das mãos nos ombros presos do meu pai. E
com alguma traiçoeira calma nos seus olhos, disse:

- Eu sei que o senhor tem uma entrega para outubro. Eu


espero, eu venho cobrar depois o feito, a desocupação. Eu sei esperar.

Meu pai, com muito medo, ainda teve coragem pra gritar:

- Venha, homem. Eu estarei lhe esperando.

Os bandidos que seguravam o meu pai começaram, então,


a espancá-lo. Eu fui pra cima deles e senti o gosto amargo de sangue no céu
da minha boca. Chutes na cara, socos no estômago, cuspes no rosto. Minha
mãe também apanhou muito. E, ao final, às gargalhadas e deboches, eles
foram embora, prometendo vir cobrar o derrame do prazo.

- Depois de outubro eu volto. – o menor dos homens gritou.

Eu fiquei, ali, no chão, ensanguentado, vendo as costas


deles sumirem no meio da noite. E o mundo ficar, definitivamente, estranho.

Duas semanas no óleo de andiroba e copaíba para serenar


o sangue pisado. Arnica todas as noites, e trabalhando, fomos ficando bem.

Os homens haviam, enfim, sumido dos nossos olhos.

E outubro tinha para nós outras traduções.

Meu pai me disse que essa não tinha sido a primeira vez. A
falta do título definitivo da terra é azo para muitos forasteiros que vêm de longe
se anunciarem donos da nossa casa, do nosso mundo, donos da gente.

- Esses cabras querem ser donos da nossa vida, filho.

Eu ouvia o meu pai falar e parecia que a carne crescida


dos seus olhos irradiava o sangue das lutas das histórias que se repetem.

171
- É preciso não esmorecer, filho. Aprende essa verdade.

- Eu sei, pai. Eu sei.

- É preciso não se quedar vencido, Tobias.

Até outubro não se falou mais dessa ameaça. Meu pai,


todas as noites, dormia mal. Cansei de me acordar com o barulho dos seus
passos lá fora, como se fosse o vigia de um mau presságio, andando como um
bicho preso em uma jaula, agarrado à sua cartucheira, com o olhar fixo na
direção do caminho das costas daquele homem. Como se na espreita das
palavras que aquele assassino deixou houvesse uma desgraça que podia
antecipar o seu retorno e enganar os olhos de quem espera.

O cabra deu prazo. Depois de outubro. Uma hora certa.

Mas era preciso viver, fazer a nossa história.

Um final de agosto. E toda a véspera é setembro.

Uma esperança para se doer.

Uma esperança para se curar.

Um outubro.

Uma esperança para se viver.

Dias e noites nas braças do miriti. O nosso mundo.

Nunca esquecerei o silêncio lento e pontiagudo que marcou


todas aquelas horas. As pessoas da nossa ilha trabalhavam, com afinco e
ternura, na luz do mundo mágico dos brinquedos de miriti, mas todos sabiam
das palavras daquele homem. Em todos os olhos havia um mar de angústia.

Em meio a essa agonia, veio o Círio daquele ano.

A fé sempre. As girândolas que precisavam sair.

Em todos os pedidos de uma graça, um mundo: a paz.

As girândolas que precisavam atravessar o rio.

172
Eu, em todo esse passado que se infiltra no meu presente,
nunca esqueci o gosto amargo de sangue na minha boca. E quando eu fecho
os meus olhos, até hoje consigo avistar as costas daqueles homens indo
embora no meio daquela noite.

“ - Depois de outubro eu volto. ”

Nessas palavras do menor dos cabras havia dois dentes de


ouro e a morte cínica dos homens, a paga do silêncio de muitas pessoas.

Meu pai não se quedava vencido.

Minha mãe se pegava na gente e por nós virava bicho.

- A vida, meu filho, é luta e fé para se viver uma esperança.

Essa foi uma das muitas palavras que eles me ensinaram.

Um verbo para toda uma vida.

173
XXIII

Em um instante, o mundo fica muito estranho.

Nesses dias da afronta desses homens em nossa terra,


estivemos longe um do outro, cada um purgando a agonia de se sentir um
estrangeiro em sua própria casa. Um depois-de-outubro para nós sairmos, uma
diáspora de nós mesmos e um prazo para se escrever a história das mortes
que se repetem. Os homens, também, apareceram na ilha da tua comunidade.
E semearam as mesmas palavras de terror e ameaças no gosto amargo de
sangue no céu das nossas bocas.

Teu pai já estava doente, a pressão alta vinha lhe


consumindo, de forma irreversível, os rins. Mesmo assim, fragilizado, encontrou
forças para enfrentar aqueles homens. E não abriu a porta para eles.

174
A tua mãe, na fúria que atacou aqueles covardes, só não
foi morta naquele instante, pois teve que acudir o teu pai, que foi brutalmente
espancado e muito humilhado dentro da sua própria casa.

- Eu ouvi o meu pai apanhar, Tobias. Ouvi todos os seus


gritos de desespero. Ouvi ele apanhar até ficar sem voz. Ouvi ele apanhar até
se calar no mais vazio dos silêncios, sem nenhum gemido sequer. Depois só
ouvi o som de escárnios, chutes, e as mais várias ofensas. Humilhação,
Tobias. Muita humilhação. E o corpo do meu pai ali, caído, ensanguentado e
mudo. Tive medo, Tobias. Tive vergonha. Tive muito medo. Tive ódio. Todo o
ódio dessa vida quando senti o desespero das minhas irmãs pequenas na hora
em que elas correram para o meu colo, e as vísceras das suas barrigas
tremeram de tanto pavor. Na hora de ir embora, os homens ainda ameaçaram,
se na volta deles, nós ainda não tivéssemos saído da nossa terra, eles iam
bulir comigo e com a Lourdes. Uma terra que sempre foi nossa, Tobias. Um
nosso mundo, Tobias. Da nossa terra sair, da nossa terra não ser mais. Essa
maldade, esse abandono, Tobias. Todo o meu ódio, naquele instante. Os gritos
da minha mãe estão dentro dos meus olhos, Tobias. Todos os gritos dela, esse
mundo de agonia em mim. Aqueles homens, Tobias. Um mundo de dor.

Um deles disse, apertando o bico dos meus seios, que


nunca tinha estuprado uma cega, e que ele possuía tara pra isso.

- Meu Deus, por que tanta violência, Tobias. Para quê?

Nessas horas, Maria, por um momento, era eu que


passava, em vão, a ponta dos meus dedos em teu rosto, na tentativa de
serenar os teus olhos que corriam desesperados em tuas feições. Eu tinha a
esperança de que algo da minha ternura por ti pudesse te ajudar, pudesse me
ajudar. Uma esperança de que a nossa ternura pudesse nos salvar.

- Por que tanta violência, meu Deus? – tu perguntavas.

- Por que, Tobias. Por quê?

- É a história das pessoas marcadas pra morrer, Maria.

- Eu tive ódio, Tobias. Tive medo, tive vergonha.

175
- Eu tive muito ódio, Tobias. Muito. Deus me perdoe.

- Eu sei, Maria, nessas dores todas eu também aprendi a


chorar longe dos meus pais. A chorar de ódio, de medo e de sede de vingança.

- Eu me sinto só, Tobias. Sinto na minha família um


abandono imenso, como se uma desgraça viesse para nos marcar um fim.

- Eu sei, Maria. Para não se morrer por dentro é preciso


lutar. É preciso viver, Maria. É preciso estar vivo.

- É preciso vencer a solidão do medo, a solidão do ódio.

Naqueles dias até o depois-de-outubro chegar nós


tínhamos que nos manter vivos. Tínhamos que não morrer.

Vivíamos, então, sustentados pelo suor do nosso trabalho


nas braças do miriti, pela luz dos brinquedos que iam atravessar a baía para
desaguarem no Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Vivíamos, também, da
esperança de que aqueles homens tivessem desistido de nos tirar das nossas
terras, pois no sangue derramado no céu das nossas bocas, pedimos a Deus
que tivesse ficado claro para eles de que nunca deixaríamos as nossas casas.
Vivíamos, sobretudo, sustentados pela tua fé, Maria. Doendo uma esperança.

Em uma das outras ilhas, das muitas que andamos, nas


quais aqueles assassinos passaram semeando intimidação, agonia e terror,
uma criança, em um final de tarde, me disse:

- É tudo grilagem, Tobias. É maior que um país.

Eu olhei nos seus olhos. E essa criança parecia não ter


medo. Eu olhei nos teus olhos, Maria. E eles me diziam:

“É preciso lutar para não se morrer por dentro, Tobias.”

Nesses dias de muita angústia ficamos distantes. Até vir o


mandado para eu ir buscar na casa da minha avó, numa comunidade um
pouco mais no alto do rio, umas braças de miriti que já estavam secas há
quase um ano, prontas para o trabalho nas mãos da nossa gente. Minha avó

176
se ressentia de que essas braças estavam lá, se esquecendo em um abandono
imenso, sem o destino que elas mereciam, pois aos noventa anos e com a
vista cansada e os ossos muito fracos, minha avó não trabalhava mais nos
brinquedos de miriti. Assim, eu fui até a tua casa e te convidei para ir comigo,
pois queria que tu conhecesses a Dona Benedita, a minha avó, e queria,
sobretudo, conversar contigo sobre a estranheza e angústia desses dias que
estávamos vivendo em nosso mundo.

- Eu não posso ir, Tobias. É a minha vez de ir para Belém


buscar os remédios da pressão alta para o meu pai.

Eu insisti. Insisti muito. Insisti para que tu pedisses para a


tua irmã, a Lourdes, que, somente dessa vez, ela fosse no teu lugar.

Então, devido à minha insistência, tu pediste a ela.

Lourdes, na primeira palavra, logo aceitou. Ela gostava de


nos ver juntos. Havia, sempre, em seu olhar, uma felicidade por nós dois.
Alguém que, verdadeiramente, fica feliz pela felicidade dos outros.

“- O meu coração de gêmea diz pra tu ires com o Tobias.

- Vai, Maria, vai ser feliz um pouco.

- Eu cuido dos remédios do nosso pai, eu vou pra Belém.”

E assim fomos juntos apanhar as braças de miriti.

A distância no rio para a casa da minha avó era de um


pouco mais de duas horas, ida e volta de canoa. Imaginei que durante a
viagem, a tua tristeza poderia esmorecer um pouco e com as nossas conversas
sobre esse mundo estranho que ameaçava as nossas vidas, algo do meu
desalento também se curasse e que, assim, pudéssemos ficar bem, juntos.

Eu estava enganado. Lourdes também.

Logo na primeira hora da subida no rio, sentiste um aperto


no peito e uma vontade imensa de chorar. Uma tristeza profunda.

“ - Desculpa, Tobias. Desculpa...

177
- Mas algo de ruim vai acontecer ou está acontecendo. ”

Subimos o rio até a casa da minha avó com o teu choro


baixo e sofrido escrevendo uma dor nas águas. E eu tive a certeza, no branco
acinzentado dos teus olhos, na tua agonia de antever um sentimento, que algo
de muito ruim estava acontecendo na tua vida.

Ao chegarmos ao trapiche da casa da minha avó não


quiseste desembarcar. Ficaste o tempo sentada na proa, com o teu olhar para
as águas do rio, chorando.

Tentei demorar o mínimo na casa da Vó Benedita.


Carreguei a canoa, o mais rápido possível, com as braças de miriti. Ultimei tudo
para voltarmos logo. Às pressas, tomei a bênção e prometi a minha avó que na
outra lua eu voltaria com mais calma. De longe, a minha avó te viu na canoa.

“ - Vá, meu filho. A moça está triste.

- Ninguém sabe, só ela, desse mundo de tristeza. ”

Minha avó me deu um abraço angustiado.

“ - Deus te abençoe, meu filho, a ti e a moça.

- Vão com Deus. ”

Rapidamente, desapoitei a canoa e começamos a voltar.

Nos primeiros metros da água, tu me falaste da tua dor.

- É com a Lourdes, Tobias. É com ela a desgraça.

-Calma, Maria, são esses dias tristes que nos


impressionam o olhar, e aí só conseguimos ver tristeza. Calma. Pode ser só
um rebojo das nossas dores, uma espuma desse mal que estamos passando.

- Não é, Tobias. Não é. Eu sinto o mal. Eu sei dele. É com


a Lourdes, eu sei. Eu sinto a desgraça abraçar a minha irmã.

- Calma, Maria. Tenta ficar calma. Nós já estamos voltando.

178
Nessa volta, o mundo confirmava a triste verdade desse
teu pressentimento. Lourdes tinha sofrido um dos mais terríveis acidentes para
as mulheres que precisam andar sobre as águas do rio. A mesma história. A
infinita dor. A tristeza que se repete para muitas mulheres que andam pelos
rios, que nos rios precisam viver, trabalhar e existir, escrever um destino, uma
vida. Ali, naquele final de tarde, eu soube de algo que se passa dentro dos teus
olhos, das luzes do teu pressentimento, das dores das pessoas que tu amas.
Uma história triste que não se sabe até quando ainda vai se repetir. Uma
história do pressentimento da tua dor, Maria. Uma tua verdade sofrida. A
tristeza que se repete. Um barco, o eixo aparente do motor. Uma distração, um
cansaço. E a dor sem-fim. A dor das crianças, a dor das meninas, a dor das
mulheres, a dor das senhoras, a dor dos pais, a dor das mães, a dor dos
homens, a dor das águas, a dor de um rio. Uma dor do nosso mundo. O
escalpelamento das mulheres da nossa terra.

Lourdes, a nossa Lourdes. O escalpelamento das


mulheres da nossa terra. Algo tão inaceitável que nenhuma palavra desse
mundo é capaz de explicar. Algo muito desumano de uma desumana história
que ainda se repete sobre as águas dos nossos rios. Algo que estilhaça
qualquer silêncio. Lourdes, a nossa Lourdes, sofrendo esse destino.

Eu que nunca esqueci essa tua dor.

Naquele instante, pedi a Deus que tu não te maltratasses


tanto e que Ele passasse para mim um pouco da culpa, que nos teus gritos de
agonia e tristeza, afirmavas como tua. Não era certo. Eu que havia insistido
para que naquela tarde fosses comigo buscar as braças de miriti e conhecer a
minha avó. Eu que queria conversar contigo sobre esse mundo estranho que
ameaçava as nossas vidas. Eu que imaginava, que nas possibilidades das
nossas palavras, pudéssemos curar um pouco do desalento daqueles dias, e
esquecermos, por alguns segundos, a afronta daqueles homens.

Ali, naquela tua dor, muito daquele teu mundo era meu.

A agonia da Lourdes. O nosso desespero.

Uma pessoa nossa. Uma gente, um mundo nosso.

179
Agora, aqui, ouço o teu choro no meio dessas palavras.

E ele me dói, Maria. Dói muito.

Na beira do trapiche, naquela tarde, na casa da tua mãe, lá


longe, no alto de umas mangueiras enormes, algumas cigarras cantavam
anunciando o final de mais um dia.

Uma vez tu me disseste que era triste o canto das cigarras.

Naquele dia, naquele fim de tarde, pela primeira vez na


minha vida, eu tive a sensação de que as cigarras cantam enquanto morrem.

180
XXIV

Entendi algo dessa vida nas palavras da tua mãe:

“ - Eu não consigo não doer a dor dos outros. ”

Solidão. Solidão de todas as pessoas do mundo.

Solidão de todas as palavras que existem.

Ali, naquela tua dor, reconheci os olhos da tua mãe.

Doer a dor de alguém nos traz um desespero imenso.


Revela algo das nossas incapacidades humanas, ao mesmo tempo em que
ilumina um horizonte de uma possível esperança dentro da gente.

Ainda podemos amar, Maria.

181
Ainda podemos nos reconhecer nos olhos do outro como
uma pessoa. Mesmo que para isso sofrer seja o verbo dessa esperança.

Eu queria fazer algo. Arrancar essa culpa de ti.

Sofrer, doer a tua dor. Abraçar o teu mundo.

Mas tudo era impossível. Tudo.

E, naqueles dias, eu ainda estava ao teu lado.

Quem é humano, Maria?

O que é humano?

Não sei.

Lembro da tua mãe, da lição que ela nos deixou quando


voltava acordada, imóvel, na proa de um barco. O olhar parado sobre as águas
do rio, e a mão aberta, ao lado da canoa, deslizando sobre a correnteza.

É preciso doer a dor dos outros, Maria.

Lembro do canto daquelas cigarras naquele final de tarde.


E uma dor imensa quer se marcar nessas palavras que te escrevo, como se de
uma tristeza eu adormecesse, agora, na proa de um barco.

Não, Maria, eu não posso adormecer nesse instante.

Não foi esse o mundo que a tua mãe nos ensinou.

A dor de uma pessoa nos mantém acordados na proa.

E os nossos olhos precisam saber dos silêncios do rio.

Aqui, nessas palavras em que eu me busco, eu preciso te


alcançar em mim, me acertar como homem. Ouvir a tua voz, me escutar, saber
do vazio sonhado nas noites repetidas das minhas girândolas.

Reescrever a nossa história.

O teu mundo teu. O meu mundo teu. As nossas vidas.

182
Lourdes ia ter que ficar um tempo em Belém.

A médica do Hospital da Santa Casa disse das lutas que


iam se iniciar em um futuro incerto de muitas operações plásticas. Se possível
era melhor que a Lourdes passasse a morar em Belém, pois todo auxílio ia ser
pouco para garantir um tratamento digno. E ela ia precisar de muita ajuda.

- Vocês têm condições de vir morar, aqui, em Belém?

- Vocês têm condições?

- Vocês têm alguém que vocês possam contar?

- Vocês, também, vão precisar de muita ajuda. Muita.

Sempre a precisão de um tudo.

A luta para se escrever dignidade.

Ali, no Hospital da Santa Casa de Misericórdia, as histórias


tristemente ainda se repetem. Acidentes, principalmente, com crianças de
cabelos compridos que têm o couro cabeludo e parte da pele do rosto
arrancada no instante em que vão tirar o excesso de água no fundo das
pequenas embarcações. No mesmo fazer ou em um cansaço, na hora de um
cochilo quando o corpo se verga para deitar, as mesmas dores com mulheres
adultas, que em um descuido, têm os seus cabelos presos e arrancados pelo
eixo aparente de um motor. A tristeza das dores que se repetem, Maria.

As crianças que pedem de presente uma peruca.

Dói, Maria. Dói muito essa fala.

Quando não há um atendimento imediato, as crianças


morrem devido à perda intensa de sangue. Aquelas que conseguem sobreviver
precisam lutar, para o resto da vida, contra as sequelas do escalpelamento e
contra a maldade da discriminação e de todo o preconceito. Precisam lutar
muito pra viver. Lutar muito para não se morrer mais de uma vez nessa vida.

O primeiro presente, depois do absurdo de todas as dores


de um sofrido tratamento inicial, muitas das vezes, é um lenço.

183
Um lenço azul.

O lenço azul da Lourdes.

“- O escalpelamento tem dores invisíveis para sempre...

- Deixa marcas dentro das pessoas. – afirmou a médica.”

Mas, graças a Deus, Maria, muita gente ajuda.

Muita gente tenta reescrever um sorriso nos rios.

Uma esperança.

Sempre a tua mãe, um legado na proa de um barco.

“ - Eu não consigo não doer a dor dos outros. ”

Muita gente faz isso.

Muita gente se escreve pessoa nas histórias dos outros.

Nada se escreve destino se não for pela luz dos nossos


braços. Se não pela força do verbo solidariedade em nossas mãos.

E um destino é escrito a cada instante.

E a luz de um olhar é reconhecida em outros olhos.

Assim se reconhece a dor de uma humanidade.

Assim se reconhece uma esperança.

Eu, aqui, no meu mundo antes de outubro, trabalhava nas


braças do miriti, sentindo as dores de toda a tua família, sabendo das dores de
todo o nosso mundo, sabendo das pessoas que vivem nele, das suas várias
lutas e possibilidades. Fiz para Lourdes algo que eu não tinha tentado antes.
Algo que eu já tinha ouvido falar o nome: um móbile. Um brinquedo de miriti
que é mais que uma escultura. É um além de um desenho, são traços de vários
destinos. Uma imagem que se escreve pelos ventos. Um móbile. Uma palavra
que sonha com o verbo voar. Um móbile de passarinhos de miriti.

184
Fui atrás dos artesãos especialistas nesses brinquedos.

Fazedores de brinquedos de miriti. Fazedores de sonhos.

Procurei ouvir, entender as palavras, todos os seus traços.

Pássaros que iam voar para a Lourdes uma esperança.

Tentei oito vezes. Não gostei. Não eram pássaros.

Eu precisava sentir o prumo das minhas mãos se acertar.

O meu coração doer uma esperança.

Doer pela Lourdes uma verdade de uns pássaros de miriti.

Na nona vez, consegui. Falar. Dizer. Me traduzir.

O móbile de passarinhos de miriti estava pronto.

Uma verdade para fazer uma visita. Um presente.

Pássaros de miriti para a Lourdes.

Um móbile, a palavra-nome que eu não conhecia.

Um mundo que sonha com as asas do verbo voar.

Um espaço de passarinhos de miriti suspenso no ar por


fios, e que se move em um vôo de ternura impelido pela vontade de uns ventos
que visitam uma janela aberta. Um segredo de ar e cores. Uns pássaros.

Os meus passarinhos de miriti. Um móbile para curar uma


dor de uma solidão. Para voar em uma fé, para voar em uma ternura. Para voar
em algum destino, de alguma esperança, no mundo dos olhos da Lourdes.

O meu presente naquela visita que fiz para vocês em


Belém. Algo em que eu pude curar a dor de uma esperança. Antes dessa
distância se abrir entre nós, Maria. Antes daquele homem que se trai em um
instante. Antes do mundo da tua falta me marcar para sempre.

Com medo, eu entrei naquela enfermaria.

185
Um lenço azul. O lenço azul da Lourdes.

A vida da tua irmã na resistência daquele lenço azul.

As cores não existem, Maria.

Os sentimentos é que fazem o inesquecível de uma cor.

Com alguma dificuldade pela altura do forro de lambri, e


depois da autorização da médica responsável pelo tratamento da tua irmã,
consegui fincar o móbile de passarinhos de miriti no teto da enfermaria, bem
próximo da cama da Lourdes, bem próximo das mais duas crianças e uma
senhora, que estavam, ali, se tratando, há quase um ano, do mesmo mal.

Escalpelamento. Uma palavra indignação.

Uma palavra triste para todo um mundo.

Imaginar uma criança. Pensar em uma mulher.

Desespero. Muito desespero. A agonia de todos os gritos.

De todas as gentes, de todas as pessoas. De uma família.

A agonia eterna no eu de uma mulher.

A dor impensável e desumana para uma criança.

As várias dores de um rio.

Nós, que aparentemente, estávamos à margem de tudo,


somos capazes de ouvir um grito, vários gritos, na angústia desse instante.
Nessa hora, somos capazes, também, de ouvir uma voz dentro da gente.

A voz dos olhos de uma criança escalpelada.

“ - Eu sou a vida. E estou sofrendo agora. ”

Uma voz para um mundo. Uma voz para uma só pessoa.

Algum verbo solidariedade.

Um verbo para se andar sobre as águas de um rio.

186
Uma palavra para nos reescrevermos esperança.

Um outro mundo urgente e possível.

Um instante, um verbo para uma pessoa.

Uma outra história.

Finquei o móbile de pássaros de miriti lá, no alto do teto.

As janelas da Santa Casa estavam abertas. Nos corredores


muitas vidas. Uma esperança para se viver. Saúde. A luta de todos os sonhos.

Um vento suave entrou na enfermaria.

A tua mãe sorriu.

Tu sorriste e eu te dei um abraço imenso.

Os passarinhos de miriti cumpriram o seu destino.

Escreveram a sua história nos segredos de um vento.

Voaram.

Na mágica de um olhar, fizeram uma história. Um mundo.

Voaram dentro da luz dos teus olhos, Maria.

Voaram na íris dos olhos de todos.

Voaram.

Pássaros se escrevem no vento.

Curiós pardos, sabiás, canários, tem-tem vermelhos.

Um beija-flor violeta de peito verde-prateado voou. Se


mexeu nos segredos aéreos de um móbile de passarinhos de miriti.

As duas crianças com ataduras nas cabeças sorriram.

A senhora que estava ali permaneceu em silêncio.

Lourdes sorriu.
187
Um vento se escrevia nos pássaros.

E o vôo de um instante fez as suas cores da esperança.

Vi uma lágrima correr para os teus lábios, Maria.

A tua mãe se levantou e me abraçou também.

E eu chorei com aquele abraço.

A Lourdes, mais uma vez, sorriu para mim:

“- Muito obrigado, Tobias.” – eu pude ler em seus lábios.

Ela estava deitada na cama. Com cuidado eu quis abraçá-


la. Ela fez um sinal, eu entendi. E lhe dei um abraço com toda a minha ternura.

Assim como um sentimento que não se pode explicar,


aqueles passarinhos de miriti criaram vida em um vento que veio pela janela.

Escreveram um destino.

E alguma felicidade foi possível naquele mundo.

188
XXV

“- Depois de outubro eu volto.”

Graças a Deus, a afronta daqueles homens não se


cumpriu. Mas a memória da dor ficou, eternamente, na ameaça daqueles dois
dentes de ouro: a promessa de se morrer a morte cínica dos homens e sermos
expulsos da nossa própria casa. Abaeté, terra de homens fortes. Terra de
mulheres fortes. O sangue derramado no céu das nossas bocas se fez palavra.
Nós nunca iríamos aceitar sermos despejados do nosso próprio chão.
Nascemos dele, vivemos a sua vida e, assim, morreríamos por ele.

O nosso mundo: Abaetetuba.

Um dos lugares da luz para os brinquedos de miriti.

189
O caminho das girândolas que atravessam os rios.

Aqui, nessas muitas ilhas sem nome, se faz uma gente. Se


escreve uma cidade, um chão, uma vida. A lembrança daquela ameaça de nos
impor uma diáspora de nós mesmos está dentro dos nossos olhos, na certeza
da guarda de um sentimento. Nós que não aceitamos um destino que quer nos
tornar estrangeiros em nossa própria terra.

Nada se escreve destino, Maria. A não ser pela força dos


nossos braços ou por um segundo em que um homem trai a si mesmo.

Há mais de um ano, Lourdes já estava em Belém, nas


várias lutas de um tratamento no Hospital da Santa Casa de Misericórdia. As
pessoas e os seus sofrimentos. As pessoas e a precisão de um tudo nas horas
mais difíceis. As pessoas, seus instantes mais doídos, e as outras pessoas que
ajudam. Uma fé. Um sentimento. Nós que podemos nos reconhecer nos olhos
dos outros. Doer uma dor. Sermos pessoa. Sermos gente. Sermos um mundo.
Entre tantos frágeis vazios um verbo. Uma palavra de gente. Um verbo de
pessoas: amar. Nós que precisamos uns dos outros. Sempre.

Vinham os finais de semana e eu fazia de tudo, para todos


os sábados, ir a Belém, visitar a Lourdes, e te ver, ficar um pouco ao teu lado.

Durante quase todo esse ano ficaste longe de Abaeté,


sempre ali, em Belém, perto da Lourdes, estendendo o teu braço, ajudando,
oferecendo uma palavra, um carinho, velando as várias dores.

Depois desse período longo da tua ausência, tu voltaste.


Foi em um domingo, à tardinha. E eu fui te buscar no trapiche. Vieste só. Teu
pai precisava cada vez mais de cuidados médicos, pois os rins doentes já
exigiam o caminho muito difícil das hemodiálises. Tua mãe também não veio.
Havia a Lourdes, havia o teu pai. Havia as outras meninas, aqui, em Abaeté.
Havia um cuidado para ser feito. Havia sofrimento, mas havia muita ternura e
uma vontade indestrutível de se estar por perto.

Eu te vi ainda de longe, dentro do barco.

Eras a mulher que eu amava.

190
A dos olhos negros mais belos que a cor de um rio.

A dos cabelos castanhos que fascinavam o vento.

Eras tu, ali.

Uma pessoa que se escreve em um nome, em um destino.

Maria, o meu norte.

Eu que não sabia que naquele final de tarde, tu vinhas me


trazendo um novo mundo, uma nova vida que eu imaginava conhecer.

Eu que não sabia de mim.

Certos homens que se traem em um instante.

191
XXVI

O barco, enfim, atracou no porto.

Desembarcaste.

Nas tuas feições logo percebi uma angústia.

Fui ao teu encontro. Com calma, te ofereci o meu braço.

- Maria, sou eu, o Tobias.

Suavemente, passaste as tuas mãos em meu rosto, a


ponta dos teus dedos leves em meus olhos. Sempre tu, a tua leitura minha:

- Tobias, o meu Tobias... Quanta saudade.

E nos abraçamos em um longo abraço silencioso.

192
Assim que começamos a andar, e o trapiche ia ficando
para trás, eu confirmava que em ti havia o silêncio de uma agonia.

Percebi que tu querias parar de caminhar.

Senti que tu querias me dizer algo.

No final do trapiche, paramos.

Mais uma vez, tu me deste um longo abraço. Ao fim dele,


passaste as tuas mãos em minha boca, beijaste os meus lábios, e me disseste:

- Tobias, nós vamos morar em Belém. Eu vim aqui para


apanhar as duas meninas pequenas e vender tudo do pouco que possuímos.
Nós vamos deixar Abaeté. Nós vamos deixar esse nosso lugar.

- Não dá mais, Tobias. Os meus pais sentem muito a falta


das duas pequenas, e a Dona Filó não pode criá-las para sempre.

- Não dá, Tobias. A Lourdes vai precisar ficar em Belém.

- Mas eu vim, Tobias, vim, principalmente, para te dizer


essas palavras sentindo o teu rosto, passando as minhas mãos em teus olhos.

- Nós vamos embora, Tobias.

Assim que eu te vi, ainda no barco, no teu olhar angustiado


para as águas do rio e na tristeza das tuas feições, eu pressenti essa decisão.

Depois de te ouvir, nós ficamos ali, parados, em silêncio,


por alguns instantes. Eu sentindo a ponta dos teus dedos, suavemente, nas
feições do meu rosto. Nesses pesados segundos, eu não conseguia imaginar
como ia ser o meu mundo, a minha história, sem ti.

- Eu vou embora contigo, Maria.

Foi tudo o que eu fui capaz de dizer.

Eu só podia imaginar a minha vida vivendo ao teu lado.

- Eu vou morar contigo em Belém.

193
Foram vinte e sete dias de muito trabalho.

Arrumar tudo, não vender a terra da tua família por um


preço vil. Juntar os teus pertences, preparar as duas meninas para a viagem,
agradecer por tudo à Dona Filó, se despedir das pessoas amadas. Tudo.

Tudo nesses vinte e sete dias se afirmava despedida.

Uma tristeza imensa na minha casa.

Falei com o meu pai. Convenci a minha mãe que todo mês
eu viria a Abaeté. E que um filho jamais abandona os seus pais e a sua terra.
Nunca. Principalmente eu, que era filho único. Eu que viria visitá-los todo mês.
Ele que era o meu pai, o chão das minhas palavras. Ela que era a minha mãe,
todas as lutas, fé e ternura para se viver uma esperança.

Eu, vários caminhos de uma solidão.

Eu que viria visitá-los todos os meses.

Eu, filho de uma terra.

Eu que era filho de Abaeté.

Ao final desse quase um mês, meus pais aquiesceram e


me deram as suas bênçãos. Eu vinha, de vez, morar contigo em Belém.

Uma promessa. Um mundo nosso, a nossa história.

O teu mundo meu. O meu mundo teu.

Um destino que se escreve a cada instante.

Nesses vinte e sete dias, eu me lembrava de uma pessoa.

O Taleiro da Pesca do Mapará. O Seu Jorge.

Uma fé, uma ciência da nossa gente. Um saber.

Tu lembras de um taleiro, Maria?

Naqueles vinte e sete dias eu quis ter tido aquele olhar.

194
Um taleiro, uma sensibilidade de um nosso mundo.

Seu Jorge, um dos maiores taleiros na pesca do mapará.

Um homem que sabe ler a vida no fundo dos rios. O taleiro.

Lembro dele em pé, se equilibrando na proa do barco.

Lembro dele acocorado, ouvindo a tala de paxiúba.

Lembro dele interpretando as águas dos rios.

Nesse saber das marés, nas entradas dos grandes furos,


no cerco de uma vazante, o taleiro resolve a sua vida.

Primeiro, nas sombras do sol na água, ele localiza o


cardume dos maparás, em seguida ele mergulha os quase três metros da vara
da palmeira da paxiúba, a tala do seu ofício, para que, assim, ele possa sentir
os peixes que a tocam. Nessa fé e ciência desse mundo, ele sabe o tamanho
dos peixes e a quantidade aproximada do cardume. Somente após essa leitura
é que o taleiro autoriza o cerco e o entrelaçar das duas redes para a pega dos
maparás. O taleiro não erra, Maria. Ele sabe do seu mundo.

O taleiro sabe escrever o seu destino.

Tudo o que naqueles vinte e sete dias eu não soube fazer.


Sondar o meu destino, escrevê-lo. Acertá-lo em um sentimento.

Eu não era um Taleiro, Maria.

Nem o sou, agora, nessas palavras que te escrevo.

Mas, naqueles vinte e sete dias, eu queira muito ter


acertado, ter compreendido a minha vida e escrito as linhas do meu destino.

“Eu vou embora contigo, Maria.”

Depois de muito trabalho, nós marcamos uma data.

195
No dia 21 de dezembro, no barco das dezessete horas,
partiríamos para Belém. Marcamos de nos encontrar uma hora antes, no
trapiche, para organizarmos o embarque das nossas coisas.

Às dezesseis horas, conforme o combinado, eu estava lá.


Tu já tinhas chegado e já estavas tratando de acomodar as meninas no
corredor de embarque do trapiche. Eu fiquei de arrumar as nossas bagagens
perto dos bancos, na fileira onde iríamos sentar. Embarcamos juntos: eu e tu e
as duas meninas. Eu tive que desembarcar, por um instante, para apanhar o
resto de uns sacos de sarrapilheira, com uns meus últimos pertences.

“ - Eu vou morar contigo em Belém, Maria. ”

Para se escrever um destino é preciso verdade.

E certos homens se traem em um instante.

Eu não voltei para aquele barco, Maria.

Eu não consegui honrar o que tu nunca me pediste.

Eu não consegui ser homem com as minhas palavras.

Eu saí daquele barco. E traí toda a minha vida.

Eu desembarquei sem olhar para trás. Eu te traí.

O comandante do barco apitou uma... duas e três vezes.

Jogaram a corda de volta para o porto.

O barco desatracou e começou a seguir viagem.

Eu não tive coragem de te olhar, pois para qualquer lugar


do mundo que os teus olhos estivessem olhando, eles estariam olhando para
mim, e dentro deles tu me perguntarias:

“ - Por que, Tobias? ”

196
XXVII

Agora, aqui, nesse momento em que te escrevo, sinto que


de alguma forma, algum imenso pedaço meu ficou ali, parado naquele trapiche,
sentindo essa enorme distância se abrir entre nós.

Eu te perdi, Maria. Eu te perdi para mim, pelos meus


segredos e necessidades que a vida, naquele instante, me exigiu. Tu não me
pediste para eu ir morar contigo em Belém. Foi idéia minha. Foi um erro meu.
Eu que sequer fui capaz do teu silêncio. Eu que não fui capaz das minhas
palavras. O homem que se trai em um instante. Tu que me reconheceste na
minha primeira mentira. Eu que nunca te falei dos meus outros sonhos.

Não, Maria. Sonhos não existem para justificar os erros.

197
Eu sei, e amar pode e deve conviver com vários sonhos.

Naqueles dias, eu te amava muito. Sem saber dos muitos


segredos e das várias nuances desse sentimento, eu te amava muito.

Mas eu não fui capaz desse amor.

Eu não fui o Tobias que tu imaginavas que eu era.

Certos homens se traem em um instante.

E eu te perdi para sempre, Maria.

Quando alguém tem um mundo, quando alguém tem um


significado e um lugar para amar, amar a si próprio é mais intenso que amar a
pessoa amada? Amar a sua própria vida, amar os seus sonhos, pode ser a
única virtude de um egoísmo? Alguma felicidade íntima, uma realização,
alguma segurança para alguém que se baste?

Uma paz?

Egoísmo, em algum caso, pode ser uma virtude?

Uma salvação para os nossos próprios olhos?

Em quantos verbos uma pessoa é capaz de um amor?

Amamos alguém com a mesma verdade com que amamos


a nós mesmos? Ou amamos apenas o amor sem sabermos amar o verbo.
Amar é verbo intransitivo, enfim, dentro dos olhos de cada pessoa? Não sei.
Nessas perguntas sem respostas, eu me perdi. E te perdi para sempre.

Amar um mundo.

Amar uma pessoa.

Os entrelaces de um verbo que eu não fui capaz.

Um segredo para uma vida que já aconteceu.

E eu te perdi, Maria. Eu te perdi, sobretudo, para mim.

198
Eu que não consegui deixar Abaeté. Não consegui me
afastar da minha gente, da vida nas possibilidades das braças de um miriti. Um
rio, as pessoas, Abaeté, a minha casa de águas. Um mundo que eu reconhecia
e que me dava significado e pertencimento: eu e a minha terra, eu que sou
uma pessoa no meio da minha gente. Amar um mundo, amar uma pessoa. Os
segredos desse verbo. Os nossos olhos que sabem muito pouco da vida.
Talvez fosse medo, aflição de uma vida nova, medo do novo. Certos homens
que se traem em um segundo. Talvez fosse um sonho, uma vida imaginária
para se viver aqui. Amar, Maria, foi uma chance de um mundo que eu perdi.
Um instante para se sonhar. E sonhar não era a angústia desse vazio nas
noites repetidas das minhas girândolas.

Eu não devia te procurar, eu sei. Eu te traí quando eu mais


devia estar ao teu lado. Eu não fui capaz do teu amor, Maria. Mas não posso.
Eu estou, aqui, na tua casa. Eu vim te procurar. Eu preciso das tuas palavras.
Eu preciso do teu olhar sobre a vida. Eu preciso das tuas mãos sobre as
feições do meu rosto. Eu preciso de ti.

Eu que te trago esse meu sonho triste.

O vazio das minhas girândolas.

Uma notícia que o mundo ouviu.

Eu sei que tu sabes das notícias dos nossos rios, Maria.

Uma história muito triste que tu deves ter ouvido.

Eu sei que tu sabes dessa dor.

Abaeté sabe. O mundo também.

Uma história que revela o vazio repetido das noites das


minhas girândolas. Uma história para as quais os brinquedos de miriti precisam
resistir. Ser uma luz, uma verdade, o instante de um olhar para nos
reconhecermos nos olhos do outro como pessoa, como gente.

Há histórias que transcendem o mundo de quem as sofreu.

199
Há histórias nas quais todos nós estamos em suas
palavras, em seu texto, nas suas linhas, em suas várias vozes. Há histórias em
que a dor de uma pessoa é a dor de um mundo, é a dor de todas as gentes.

Há histórias que somos nós.

Uma humanidade.

O vazio de uma girândola.

Como imaginar um brinquedo de miriti se a lembrança da


menina de quinze anos, drogada e prostituída, que foi presa em uma cela com
vinte homens, parece ser mais forte que qualquer possibilidade de ternura.

Ela, a menina de Abaeté.

A sua invisibilidade pública que ainda arde em nossos


silêncios. O vazio das minhas girândolas. Abaetetuba e uma menina.

A menina que teve os cabelos castanhos cortados a


terçado para que parecesse um homem, para que parecesse uma mulher.
Menos menina. Menos criança. Invisível e louca aos olhos de muitos.

Como acreditar que as minhas mãos são capazes de fazer


um brinquedo nas braças de uma palmeira, se a voz de um bispo ressoa dentro
dos meus olhos, denunciando a velha prostituição de crianças nas águas dos
nossos rios? E se uma dessas crianças fosse um filho nosso? Uma filha, Maria.
Um filho: uma pessoa de ti e de mim. Um teu mundo meu. Uma criança.

Como, Maria? Como resistir?

Como ainda acreditar na vida?

Nós que estamos vivos e precisamos seguir na estrada.

Como não ler a lista das pessoas juradas de morte?

Não. Nova Medelin não é aqui.

Como me indignar?

200
Como fazer de uma palavra um verbo?

Como reagir?

Como vencer o medo?

As pessoas, que passavam pela rua, sabiam que nos ecos


das grades daquela prisão havia uma menina sendo estuprada.

As grades, os cadeados, tudo transbordava sofrimento.

Medo.

Medo.

Impotência.

Vergonha.

A menina, uma humanidade sendo agredida.

Como denunciar? Se a maldade adora o silêncio. Ele é a


sua noite, o seu melhor amante. Como se fazer ouvir uma voz?

Uma criança, Maria. A agonia de um mundo agora.

A dor de todas as gentes que é a dor de uma pessoa.

A menina de Abaeté. Uma dor amazônica. Alguém que


atira uma pedra que sangra o rio. As marcas d’água, seus círculos que ferem,
atingem a todos, inclusive a nós, nossos silêncios, nossas casas, nossos filhos
e filhas, nossos mundos. Essas marcas d’água nos alcançam. Elas deixam em
nossas vidas as suas cicatrizes. E o rio se vê em nossos olhos. O teu rio,
Maria. O rio que se olha na gente. Um rio crucificado. O rio que sangra branco
nas dores de uma criança. Nós, que apenas ouvimos pelo rádio, ou vimos na
televisão, sentimos todas as suas dores. Uma criança. Um rio crucificado. Nós
sentimos toda a sua agonia. Um mundo triste que não parece mais tão longe
da gente, Maria. As suas tristezas que não parecem mais tão distantes.

Um mundo mundo.

201
A menina de Abaeté. O vazio das minhas girândolas.

Eu que te trago esses meus sonhos tristes.

Eu que te escrevo agora. Para eu me ouvir melhor. Para eu


te alcançar em mim. Tu que pões luz, sabes rezar. E benzer uma pessoa. Tu
que passas a ponta leve dos teus dedos em meu rosto. A tua leitura dos meus
olhos. As tuas mãos morenas. Uma segunda e última chance para mim. Para
eu me perdoar. Para eu seguir na vida. Fazer algo. Escrever uma esperança.

E acreditar em um outro mundo.

202
XXVIII

Eu estou aqui, na tua casa, nessas palavras que eu te


trouxe. A minha segunda e última chance.

Eu que tenho esse sonho triste para tu benzeres.

Nessa cadeira de vime, sou o sétimo da fila. Estou no pátio


aguardando a hora do meu chamado. Lourdes passa por mim e a fumaça
branca do defumador lança ao seu lado o seu perfume de promessas.
Mucuracaá, alho amassado, jasmim no suor das mãos e levíssimas lascas de
um pau-de-canela. Uma vida. Uma fé. Dentro da lata do defumador, reconheço
o brilhar da queima do carvão. Lembro do Sagrado Coração de Jesus. Lembro
que é preciso ter fé. Lembro da tua vida. Lembro do teu rio crucificado.

203
Lourdes olha para mim.

Eu reconheço o seu lenço azul.

Ela me sorri. Eu a cumprimento.

Ela sorri mais uma vez.

Vem a lembrança do móbile de passarinhos de miriti.

Um dia feito de cores, pássaros e alguma felicidade.

Lourdes passa ao meu lado com o defumador. Uma casa,


um cheiro de defumação. Um perfume, uma fé. Lourdes, a nossa Lourdes.

Ela canta uma reza baixinho.

Eu sorrio para ela na vontade de um abraço.

Lourdes é mais feliz que o seu lenço azul.

Ela me abraça e faz um afago nos meus cabelos.

“ - Tobias, que bom que tu voltaste. ”

Na parede, em um preto e branco quase sem forças,


reconheço o retrato oval da tua família. A tua mãe, o teu pai, tu, Lourdes e as
duas meninas. Uma história de vida. As histórias das pessoas. Um legado
para se trabalhar as mãos e as palavras.

A tua vida, o todo da tua fé. O teu destino que escreveste.

A lua em que tu choraste na barriga da tua mãe.

A tua verdade. O teu mundo à parte de mim.

As tuas escolhas. As minhas mentiras.

Amar um mundo. Amar uma pessoa.

Os entrelaces de um verbo que eu não fui capaz.

204
Agora, aqui, na tua casa, os teus olhos estão em tudo. Em
alguns momentos, sou capaz de ouvir a tua voz. Com cada pessoa demoras
um longo instante. Conversas por mais de uma hora. Ouves as muitas
histórias. Sabes das várias lutas em muitos mundos. Sabes de uma esperança.
És tu, Maria. És o teu olhar, a vida que não adormece na proa de um barco.
Lembro de um semeado grão de palavras entre um solitário e solidário mundo.
Lembro de um verbo, de uns braços que se ajudam, o teu verbo gente:

“É impossível não doer a dor dos outros.”

Ouço, mais uma vez, a tua voz em mim.

Eu que estou na tua casa.

E aguardo o meu chamado nessa cadeira de vime.

Lá fora, no final dessa manhã, aqui, em Belém, cai uma


chuva fina. O som da chuva nesse fim da manhã revela algum pedaço humano
das nossas lágrimas. Alguma ternura. Algum desejo. Uma história.

O cheiro da chuva entra pelo portão.

A memória da chuva: o seu mundo de gentes.

Eu olho para rua.

Respiro fundo.

Vejo as águas dos nossos rios.

Vejo os teus olhos negros.

Sinto os teus cabelos castanhos.

Sinto os teus lábios. Sinto as tuas mãos no meu rosto.

Sinto a vida. A sua urgência.

Aqui, nesse teu pátio, os véus das samambaias se


misturavam ao canto dos curiós na luz desse sol tímido.

Eu estou de volta à tua casa.

205
Um instante de toda uma vida.

Ao meu lado, um senhor me mostra um bilhete da médica


do posto de saúde, no qual ela recomenda o teu trabalho de rezar. A tua casa.
Ouvir e benzer. O teu endereço. Nele está escrito um outro nome, mas eu sei
que és tu, a tua fé. O teu lugar. O destino que tu escreveste.

Ele me fala de esperança. E seus olhos ficam marejados.

Eu sorri. Disse a ele que tu tinhas olhos que abençoavam.

E uma paz infinita no som da tua voz.

Não tive a coragem suficiente de também dizer a ele, que


da última vez que eu estive aqui, uma senhora saiu, inconformada e aos
prantos da tua sala. Ela disse que tu nada podias fazer. E tu, tu deste a ela o
mesmo nome dessa médica que agora recomendava o teu abençoar, a tua fé.
Compreendi, no semblante desse senhor, que cada um escreve a sua
esperança e que nos vários mundos que uma vida comporta há um ponto de
contato, um dar-se as mãos, um caminho invisível entre o azeite e a água.

Olho nos olhos de todas essas pessoas que estão aqui e


me lembro da primeira vez que te procurei. Eu tinha vindo para te ver. Te falar
da agonia desses meus sonhos tristes. Ouvir uma palavra tua. Saber da tua fé.
Sentir as tuas mãos. Viver um pouco da tua paz. E te dar um abraço sem-fim.
Mas, quando passaste as tuas mãos em meus olhos e não disseste nada, eu
imaginei que as tuas mãos não eram mais capazes de ler as feições do meu
rosto. E que tu já tinhas me esquecido e que o passado estava justificado. No
final daquela manhã, o despedaçar das asas das formigas de chuva revelou
quem eu era. Alguém que perdeu a oportunidade primeira de acreditar nas
histórias sem antes ter que testá-las. Alguém que se trai.

Nós somos inesquecíveis, Maria.

Me perdoa por duvidar desse nosso mundo.

Eu apenas queria a tua leitura das feições do meu rosto.

A leve ponta morena dos teus dedos em meus olhos.

206
E o meu nome nos teus lábios:

“ - És tu, Tobias. O meu Tobias. ”

Tudo o que eu queria era que tu tivesses me reconhecido.


Me reconhecido pelo ar. Me reconhecido distante. Me reconhecido na leitura
das tuas mãos nas feições do meu rosto. Me reconhecido dentro do branco dos
teus olhos nessa vida nossa que, em uma vez, foi, para sempre, inesquecível.

O meu mundo teu.

O teu mundo meu.

A nossa história, Maria.

O destino que pudemos escrever.

Eu que tenho uma dor.

Eu que precisava te falar dos meus sonhos tristes.

O vazio repetido nas noites das minhas girândolas.

A menina de Abaeté, Maria. A verdade de um sonho triste


para não se esquecer que uma criança foi esquecida pelo mundo.

Do rosto da menina de Abaeté nós não sabemos uma


lágrima. Nunca a vimos chorar, não sabemos dos seus cabelos castanhos, dos
seus olhos negros. Talvez ela não tenha um nome. Apenas umas letras. Nos
olhos uma tarja escura, uma marca, um símbolo de todas as ausências do
mundo. Mas nós a conhecemos. Nós a vemos todos os dias. No abandono dos
semáforos, nos novos quilombos das ruas, nas impossibilidades dos nossos
silêncios, em todas as nossas pressas da vida e nos vazios dos nossos braços,
nós a reconhecemos. A menina de Abaeté.

O vazio das minhas girândolas. Um mundo de agonia.

Como se o trabalho da nossa gente não estivesse ali.

Um Círio silenciado para os fazedores de brinquedos.

207
Um vazio, Maria. Nenhum brinquedo de miriti.

“É preciso doer a dor dos outros, Tobias.”

A tua voz está aqui, dentro dos meus silêncios.

A tua voz possível.

“É preciso não adormecer na proa de um barco, Tobias.”

Sim, eu sei, Maria. Nós estamos todos juntos nessa vida.

E os mundos, queiramos ou não, se comunicam.

Ardem seus silêncios, suas dores.

Mas ardem, também, a sua fé.

Nada se escreve destino.

Um destino é escrito por pessoas.

Pelos nossos braços que se entrelaçam na vida.

Pelos nossos vazios que nos escrevem ausência.

Se somos capazes de um brinquedo de miriti, somos,


também, capazes de não aceitar um destino que se escreve à revelia dos
nossos braços, das nossas verdades e de um outro mundo possível.

Muita gente sabe desse sentimento.

E nesse esforço a luta passa a ser de todos. A nossa luta


cotidiana por um destino melhor. Mas precisamos ser mais. Muito mais.

Muito mais gente. Muito mais pessoas. Um mundo.

Um nosso mundo. O nosso outro mundo possível.

Feito de pessoas que se escrevem gente.

Uns braços de vontade. Umas braças de uma palmeira.

O brinquedo de miriti resistirá sempre, Maria.

208
Ele precisa resistir. Ele é feito de gente.

Feito de ternura e de todas as lutas desse mundo.

Ele se escreve destino. Ele sabe da sua história.

As minhas girândolas vazias, Maria.

Um mundo para se preencher de sentido.

Por isso eu te escrevo.

Para eu te alcançar em mim.

Para eu me ouvir melhor.

E me acertar como homem.

Como pessoa. Como gente.

Eu não me basto, Maria.

Amar uma pessoa. Amar um mundo. Nos entrelaces desse


verbo está o segredo de todas as nossas felicidades possíveis.

E eu levei uma vida para entender essa verdade.

Agora, aqui, na tua casa, eu posso curar a dor de uma


esperança. Amar foi uma chance de uma vida que já aconteceu. Mas estamos
vivos, Maria. E sempre haverá uma segunda e última chance para escrevermos
uma outra história. Para nos reescrevermos melhor.

Eu que te trouxe essas palavras.

Um pouco do teu mundo.

Tudo o que tu sabes de mim.

Não sei se eu terei a coragem de me sentar, mais uma vez,


à tua frente. E sentir as tuas mãos realizarem a leitura dos meus olhos.

“ - Tobias, tu estás triste? ”

209
“ - Não, Maria, eu não estou. ”

Seria uma resposta. Um mundo. Uma Ilha da Pacoca.

Uma Abaeté de saudades. O fundo de um rio.

Uma outra história possível. Uma cidade encantada.

Para o bem de uma menina e de toda a sua gente.

E para um destino que se escreve a cada instante.

Lá fora, a tarde começa a desenhar um mormaço.

Eu fui capaz de um amor, Maria.

Mas não fui capaz de amar. De viver esse amor.

Volta a chuva nesse sempre abril de todas as vidas.

Não fosse um início de tarde. Não fosse Belém.

Seria um outro mundo: seria solidão.

As pessoas passam por mim. Estão indo embora.

Eu serei o próximo a ser chamado.

Não sei se terei a coragem de entrar.

E sentir as tuas mãos em meu rosto.

Eu estou aqui, Maria. Nessas palavras que eu te trouxe. O


meu mundo teu na ponta dos teus dedos. A tua leitura.

Um rio para eu ir te buscar.

Um trapiche para a nossa história.

O teu mundo meu.

Essas palavras que te escrevem um abraço.

Aceita, eu te peço.

210
Vou deixá-las, aqui, nessa cadeira de vime.

Como se fosse o mundo esquecido de duas pessoas.

Uma vida viva. O mundo que foi possível de nós dois.

A nossa história. O meu mundo teu. O teu mundo meu.

Aceita, eu te peço. O meu abraço escrito para ti. Um pouco


das palavras que semeaste. O rio que não envelhece nunca. Um olho d’água.
Um verbo. Essas minhas palavras que te escrevem um instante de um abraço.
O lado bom das saudades. O algo invisível e preciso de quem ama.

Aceita, eu te peço.

Eu te escrevo para te alcançar em mim.

Eu escrevo para eu me ouvir melhor.

Saber de ti. Saber de mim.

Conversar contigo.

Assim, quem sabe, tu me dirias onde foi parar aquele


barquinho de miriti. Aquele barco amarelo de uma porfia em um nosso mundo.

Olha, Maria, a chuva está passando. Está mais fina.

Reconheço os meus passos pela rua.

A chuva não é mais uma pessoa tão só.

As formigas de asas já estão aqui.

Reconheço o despedaçar dos seus vôos.

As formigas de chuva. As asas que se despedaçam.

Não há perda, Maria. Há movimento.

Há esperança. Esse verbo de uma humanidade.

As girândolas virão em mais um outubro.

211
E os olhos de uma criança guardarão uma história.

Sempre, Maria. Sempre.

As girândolas precisam sair.

Na cruz dos seus braços haverá muitos brinquedos.

Não haverá vazios. Haverá a luta de uma gente.

E ternura. Muita ternura.

Porque nós precisamos escrever uma nova história.

Precisamos escrever um novo destino.

Porque amar, ainda, é um verbo possível.

212
*********

213
AGRADECIMENTOS

A Deus: quando desistir parecia ser o caminho mais exato e humano, eu pedi
a Ele forças, fé, alguma palavra, alguma resistência, uma esperança.
Muito...muito obrigado, Deus.

Ao povo de Abaetetuba, que com muita criatividade, muito trabalho, fé, e toda
uma invencível esperança, se reinventa nas lutas diárias por um mundo melhor
para se viver. Agradeço, carinhosamente, a Dona Nina Abreu por ter me
iluminado com a sua vida, em uma manhã de sábado, no seu ateliê.

Ao Wanderley Sena pelas muitas histórias que me contou sobre uma gente e
uma terra. À Maria pela bondade sempre. Ao Matheus pelo brilho nos olhos.

À Orquidéa por ter me recebido em sua casa e me apresentado a um mundo.

Ao Garibaldi Parente, que com palavras mágicas, me apresentou a um taleiro.

Ao Paulo Vieira, poeta dos bons e bom amigo, que “se decidiu por nascer em
uma das pequenas ilhas sem nome de Abaetetuba – cidade dos brinquedos de
Mauritia – afinal a gente nasce onde bem entende.”

Ao João de Jesus Paes Loureiro, que eu não conhecia pessoalmente.


Obrigado por sua “Cultura Amazônica – Uma poética do imaginário”. Um livro
para se ler a vida inteira. Água da Fonte para essas Girândolas.

À Ingrid, que me afastou de mais uma última revisão. Obrigado, minha Vida.

À minha mãe que sempre me contou histórias de Portugal e de um padrinho.

Aos rios que ainda são capazes de tantos sonhos na gente.

A um trapiche que sempre existe para que a gente queira voltar.

À Cidade Velha, seu ar mais que úmido de histórias, ruas de tudo e de um


início, tempo dos Santos escritos em azulejos, o lugar de uma infância.

214
A um cearense anônimo, que em uma das viagens de barco para Abaeté, me
disse: “a honestidade é o cadeado de toda uma vida para o bem.”

Ao Mariuadir Santos e família. Amigos de toda uma história.

À Regina Fonseca e à Regina Maneschy pela luz de um primeiro livro.

Ao Nassif Jordy e ao Nilson Oliveira. Pela fraternidade dos nossos poucos


encontros. Pela mesa que precisamos nos reunir mais.

À Maria e ao Tobias, que em vários e outros mesmos nomes, existem de


verdade. À vida que é uma imensa ficção. Ao tempo que é feito de pessoas.

Com todo o verbo amar desse mundo, agradeço aos Miritizais de Abaetetuba.

“O miriti, a nossa palmeira benta. Árvore que é casa, que é doce, que é vinho,
que é ternura e brinquedo”. Obrigado pela vida que foi acesa em meus olhos.
Obrigado por toda a sua gente que se reinventa em seus braços.

Essa história, um instante de um imenso abraço nesse amar de amor de miriti.

Enfim, para que não se adormeça na proa de um barco, e que se viva uma
esperança no desafio que as saudades propõem, no meu coração está escrito:

- Sou um pouco, agora, com muito orgulho, filho de Abaeté.

215
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Outros livros do Autor

ÁGUAS IMAGINÁRIAS – Contos. Prêmio IAP de Literatura 2004

CASA DE FARINHA E OUTROS MUNDOS – Literatura Infanto-


Juvenil. Edital IMAGINA SÓ ! – Secult-PA / 2007

INVISIBILIDADES – Contos. Prêmio IAP de Literatura 2007

Escreva para o autor. Comente. Critique. Semeie a sua palavra.

e-mail: poema07@hotmail.com

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