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Girândolas
ROMANCE
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Para alguma pessoa, algum mundo:
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Gira, Girândola
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Neste livro onde a água é condição sine qua non ao desenlace de cada
capítulo, o amor é um solitário barco de miriti, encalhado em uma
girândola fantasma, que pesa feito cruz, nas costas do narrador. Tobias, o
artesão cego sem sua Maria.
O leitor que ainda não visitou a mauritiosa cidade, ao virar das páginas
deste Girândolas, vai sentir vontade de banhar-se naqueles rios. Já o leitor
que alguma vez deitou-se nas águas do Maratauíra sentirá úmidas saudades.
Agora, aquele que nasceu e cresceu em uma das pequenas ilhas sem nome
de Abaetetuba, ao ler este livro, vai embarcar solidário na canoa das dores
de Tobias. Vai pedir aos deuses que olhem por Maria.
Paulo Vieira,
Belém, Abaetetuba, Rio Itacuruçá, Águas de abril, 2009.
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(...)
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Em algum instante, em Belém do Pará.
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I
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pátio, os véus das samambaias se misturavam ao canto dos curiós no raiar
desse sol tímido. Estou de volta à tua casa. Um instante de toda uma vida.
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tive a certeza de que tu tinhas me reconhecido, e ias dizer o meu nome. Nesse
instante, eu ia te dar um longo abraço. Um abraço de trinta e nove anos.
- Deus te abençoe!...
Eu me benzi.
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Nada disseste das tuas mãos nas feições do meu rosto. A
tua leitura dos meus olhos. Muito menos deixaste transparecer alguma suspeita
de quem eu era. E, sobretudo, alguma lembrança de quem éramos nós.
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Há lembranças que não envelhecem nunca.
Formigas de asas.
Formigas de chuva.
Um mundo.
Um sentimento.
Um desencontro marcado.
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forma de mentira naquele que intenta castigar a si próprio. O remorso, para
quem ainda o sente, é que é inesquecível. Um castigo que não se apaga. É de
uma angústia imensa a sensação de saber que mentimos para as pessoas que
mais amamos. Mas há algo que nos faz capaz disso, uma ternura que é
aliciada por um egoísmo que nos faz maior que o outro. E aí ficamos assim:
perdendo uma valiosa chance de viver, ensimesmados em nossas próprias
mentiras, incapazes de reconhecer a nós próprios como pessoas. Passamos,
então, a viver em uma cegueira branca, que nos impede de reconhecer o outro
como gente. Viramos coisas. E aí mentimos para sempre, mentimos tanto que
a verdade fica sendo uma indelével marca de fraqueza.
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Me conheces nas minhas mentiras.
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Uma vergonha ácida me devorava lenta e internamente.
Eu precisava deixar a tua casa o mais rápido possível e nunca mais voltar. Eu
era um ladrão. Um ladrão de palavras, o ladrão das histórias que vivemos. O
falso da boa-fé que te pedia uma reza, uma bênção, o trabalho das tuas mãos
no fazer de um bem. Eu que estava ali para que tu rezasses na minha falsa
dor. Eu que te pedi para benzeres as minhas mentiras. Eu que queria tanto que
tu tivesses me reconhecido no segredo das palavras na ponta dos teus dedos,
quando tu fizeste a leitura das feições do meu rosto. Eu que não fui capaz de
falar de esperança e perdão. Eu, que me imaginava guardado para sempre na
escuridão dos teus olhos, era, ali, uma fraude queimando. Naquele flagrante
íntimo, eu era o reincidente traidor das histórias de duas pessoas e um mundo.
Lembro das tuas mãos em meu rosto, dos teus olhos como
um granito acinzentado sobre mim, do lento desespero deles como se
estivessem perdidos na leitura das minhas feições. Mas lembro, sobretudo, do
que eu ouvi quando te levantaste no movimento aéreo do teu vestido branco,
depois que tu fizeste o sinal da cruz em meus ombros.
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“- Formigas de chuva são como certos homens...
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Essas lembranças caíam em mim, naquele instante em que
eu deixava a tua casa, como um relâmpago. Pensei em Santa Bárbara, a
senhora dos trovões. Eu, um mentiroso. Alguém que empresta uma fraude para
cobrar uma verdade. O falso da boa intenção. Eu que poderia ser uma pessoa
traiçoeira. Eu que nessa hora não fui o menino que tu conheceste. Ecoava em
mim um relâmpago de vergonhas naquela saída às pressas. A luz antes do
som. Eu não era aquele que te traía nesse instante.
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II
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para o trabalho das mãos da nossa gente. Minha avó não trabalhava mais nos
brinquedos. A vista cansada, as pernas doídas, os dedos das mãos exaustos.
Ela que nos ensinou a criar uma vida nos brinquedos de miriti. Fomos juntos
apanhar as braças que estavam lá, se esquecendo em um abandono. Minha
avó se ressentia de que ninguém iria lhes dar o destino que mereciam. Durante
a viagem, sentiste um aperto no peito na primeira hora da subida do rio. Uma
vontade imensa de chorar. Uma tristeza profunda. Algo estava acontecendo de
ruim na tua vida. Na chegada à comunidade da minha avó, carreguei o barco o
mais rápido que eu pude. Ultimei tudo para que voltássemos logo. Às pressas,
tomei a bênção e prometi a minha vó que na outra lua eu voltaria com mais
calma. Ficaste o tempo todo sentada na proa do barco, com o teu olhar para as
águas do rio, chorando. Na volta, o mundo confirmava o primeiro dos teus
pressentimentos. Lourdes tinha sofrido um dos mais terríveis acidentes para as
mulheres que andam pelos rios. A mesma história. A infinita dor. A tristeza que
se repete. Um barco, o eixo aparente do motor. Uma distração, um cansaço. E
a dor sem-fim. A dor das meninas, a dor das mulheres, a dor das mães, a dor
dos pais, o grito da dor das águas: a dor do rio. Uma aflição do nosso mundo.
O escalpelamento das mulheres da nossa terra. Uma história que não se sabe
até quando ainda vai se repetir. Nunca esquecerei aquela tua agonia. Ali, eu
pedi a Deus que tu não te maltratasses tanto, e que Ele passasse para mim um
pouco da culpa que afirmavas como tua. Não era certo. Eu que insisti para que
naquela tarde tu fosses comigo buscar as braças de miriti. Durante o caminho,
eu precisava te falar sobre a afronta de uns homens na nossa casa. Te ouvir.
Não foi possível, a tua dor era muito mais forte e o teu silêncio, absoluto.
Agora, aqui, nessa minha fuga pelo pátio da tua casa,
reconheço a Lourdes, o seu lenço azul. Ela, por primeiro, me reconhece.
- Não, não sou eu. –respondo sem atinar para o que disse.
Ali, fugindo de uma mentira, não era eu. Não devia ser eu.
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- Eu quero pagar. – insisti.
- Não há um preço...
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A vaidade é um chão de açúcar.
E eu comecei a mentir.
Respiraste fundo.
A nossa história.
Um outro olhar.
Um sentimento.
Terminar é iniciar.
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III
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As palavras sonham com as pessoas.
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Aguardo o meu chamado.
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E que em algum verbo novo, eu possa me escrever como
pessoa, distante dos meus silêncios que tanto mal me fazem.
À tua porta, o Tajá que sabe de mim e sabe dos teus olhos.
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Estou aqui, na tua casa.
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IV
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Lembro que tu pedias que eu fechasse os olhos.
E rezavas em mim.
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Todo o meu mundo se escreve com fascínio por ti. Algo
muito maior que qualquer sentimento possa explicar. A tua leitura das feições
do meu rosto, algum pedaço da minha pele que tu traduzias, e o meu silêncio
que tu lias antes de tudo. As tuas mãos que pousavam em meus olhos para
fazer da tua ternura um instante teu em mim. Nós. Há trinta e nove anos. O
nosso mundo. A nossa terra. O nosso rio. As nossas vidas. As palavras que eu
não fui capaz. O início da nossa distância. As nossas impossibilidades. Os
nossos mundos à parte, a nossa história. O meu mundo teu, o teu mundo meu.
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meu olhos. Não, não estás mais de costas para mim. Sinto as tuas mãos nas
feições do meu rosto. Posso te sentir, sinto a tua leitura dos meus olhos. És tu.
Ainda sabes da cor viva dos teus cabelos castanhos? Dos segredos que eles
lançavam sobre as tuas costas? Da tua pele morena que crescia bela sobre o
teu corpo, tu esqueceste? Qual foi a hora em que te disseram que tu foste a
escolhida? A gêmea das filhas, a última, aquela que iria botar luz na vida dos
outros. Benzer, rezar sobre as dores, abençoar os emaranhados de todos os
caminhos. Tu sonhavas com esse mundo, Maria? Era esse o maior dos teus
sonhos? Era essa a tua luz escura que nascia quando teus cílios se
silenciavam, e tu te quedavas cansada dos vários afazeres das tarefas da
mandioca? Era essa, então, a tua lavra? O teu saber? A tua maior lavoura? Até
hoje me angustia a dor da tua falta, o diário da tua ausência em mim, as
minhas próprias culpas. Eu que imaginava o amor como o mais simples e o
mais seguro dos verbos, uma condição do olhar, dos braços, dos silêncios e
das palavras. Mas existem instantes em que um homem pode se trair. O meu
desencontro marcado. A hora em que eu me afastei de mim. Esse imenso
pedaço das nossas vidas no qual eu fui covarde e não enfrentei a tua distância.
Eu não fui atrás de ti. Eu não te busquei. Havia, em meu mundo, também,
outras urgências. Talvez hoje esse seja o verbo mais difícil. Amar. Um verbo
escrito em nossa própria letra, uma necessidade na língua de todos os corpos.
Entre todos os destinos ele, o amor. Uma possibilidade de pessoas, o encontro
das águas, o negro e o barrento, a diáfana cor. Uma preamar. Uma estrada de
rio. Um braço de mar. Amar, sobretudo, amar. Um verbo que sonha com as
pessoas e com um outro mundo possível. Um espírito das gentes. Um deus
sem tradução, um horizonte escrito nas linhas do rosto ensolarado de muitos
eus. Um deus impossível nesses dias. Um deus mundo afora de nós dois. Não
importa, Maria. Tu tens o teu Deus. O Deus da tua beleza. Das tuas palavras.
Da luz que tu pões sobre a vida das pessoas. O Deus da tua verdade. E eu,
agora, te trago esses meus sonhos tristes. Uma notícia que eu ouvi, uma dor
de um mundo, a dor que se dói por alguém, uma dor de todos. O iniciar desses
meus sonhos tristes, a tua falta, a minha falta, o desespero de uma vida.
Quando fecho os meus olhos, parece que eu vou me convencer de que tu
nunca exististe, que tudo foi a imensa luz de um sonho. Um verbo sonhado,
imaginário e sangrado de todas as nossas gentes, de toda a nossa terra. Aí,
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então, eu tento me vencer na força de todas as ilusões. O nosso chão não
existe. A floresta não existe. Todas as luzes de todos os ouros são as ficções
de todos os tolos. Um engano. Vários assaltos. Um blefe. Um eldorado. Um
embuste. Um sonho mal sonhado de um deus, pois a Amazônia não existiria, a
não ser dentro da agonia de todos os sonhos das pessoas, de todos os
deuses. É impossível, Maria. Eu preciso acender a vontade do teu nome. O teu
mundo meu. Preciso, agora, do iluminado das tuas mãos sobre os meus olhos.
As pessoas são mais verdades que todos os rios. Que todas as matas. Que
todos os deuses. Que todos os sonhos. As pessoas, um mundo, todas as
amazônias. Uma só natureza, um verbo para se viver. Tu que estás aqui:
nessas palavras, como se fosses feita de texto. Escrita em mim. Eu que te
trago esse meu sonho triste, que repete a sua agonia todas as noites. Eu que
te escrevo agora para te ouvir, saber de mim, saber de ti, recontar a nossa
história, reescrever um mundo. Sentir as tuas mãos nas feições do meu rosto,
na ponta dos teus dedos as palavras dos meus olhos, as tuas leituras. O teu
mundo meu. A nossa história. O meu mundo teu. As nossas vidas, aqui, vivas.
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Maria. Há um vazio aéreo queimando sobre elas. Não há um brinquedo, Maria.
Não há uma casa. Não há um menino. Não há uma menina. Nenhum cata-
vento em suas várias cores de uma esperança de miriti. Nenhuma onça.
Nenhum soca-soca. Nenhum dos nossos barcos popopô. Nenhum casal de
bailarinos. Não há um caboco beijando uma moça. Não há pássaros. Nenhum
curió. Só há um vazio gritando em mim. E os teus olhos tristes que me
acompanham no meio da procissão. Olhos que olham por todos os artesãos.
Ternura e dor. Esses são os teus olhos. Olhos de Maria. Olhos de um mundo.
Esse é o sonho que me alucina todas as madrugadas. O abandono das
minhas girândolas. Um deserto. Não há noite, não há dia, apenas um deserto.
Não há girândolas com os seus brinquedos. Há vazio. Vazio, Maria. As nossas
girândolas vazias, as pessoas que não nos vêem. A minha dor que se repete.
Um vazio que só me desespera e envergonha. E os teus olhos, Maria. Os teus
olhos em todas as angústias desses meus sonhos. Vejo a mesma agonia no
olhar de todos os outros brinqueteiros, a solidão das nossas girândolas. Como
se todos os braços de todas as nossas gentes não estivessem ali, escritos na
levíssima beleza dos brinquedos de miriti. Um não-falar da gente para o mundo
da Trasladação. Não ver os fogos por entre as possibilidades da luz em um
brinquedo de miriti. Não ver a noite. Um Círio silenciado. Eu andando por entre
as gentes com a minha girândola vazia. Reconheço todas as pessoas da minha
terra. Nós que juntos sabemos desse fazer. O caminho do Miritizal na várzea.
O chegar das braças de miriti. A força caseira de um sol. O corte das braças
mais novas. O ângulo dos arames nos pneus das bicicletas. A vontade benzida
das mãos no saber das cores. O som dos facões. Um fruto das águas. A vida
de todas nossas gentes. O passar das palavras. Repartir. Um novo trabalho.
Uma história. O viver das pessoas. Um mutirão. O caminho das marés para
Belém. Um outubro, sempre outubro. A vida que se renova. O instante das
nossas gentes. Uma humanidade possível feita de irmãos. Aquilo que se
aprende. Um fazer de miriti e fé. Um norte, uma mãe. Um filho e todos irmãos.
Nesse desesperar dos meus sonhos um trabalho perdido. Uma razão perdida.
Um entremundos perdido. Uma solidão. As girândolas vazias.
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O teu trabalho de benzer. Pôr luz. Iluminar.
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V
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no entremeio do caminho do junco, a maré-baixa revelava as gengivas
barrentas das entranhas do nosso rio. Entre nossas histórias um trapiche: uma
vontade, um caminho para se voltar. Sei que nos teus olhos tu guardas a
lembrança viva das árvores de miriti que sustentavam os dias das nossas
gentes. O meu lugar. Durante o tempo das águas mortas, algo me fazia
acreditar que o rio estava na tua casa, aguardando a volta das águas do
oceano. E a minha vista se fascinava com o brilhar do limo nas pernas-mancas
de pau-d’arco do trapiche, na certeza de se estar perto do rio. Perto das águas.
Perto de alguma felicidade. Nessas épocas do estio nas vazantes, o trapiche
escrito fortaleza. Esteio. Uma palavra que precisa de braços, como todas as
palavras desse mundo. Como um rio que precisa de braços, braços de mar.
Nós que morávamos tão-perto-e-tão-longe um do outro. O metro invisível das
águas. Nós que somos filhos da mesma maré, na rua do rio das nossas vidas.
Esse foi o início do nosso verbo amar. O princípio das nossas várias lutas.
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Teus olhos ficaram acinzentados, marcados pelo silêncio de um granito branco,
mas eu reconhecia a tua luz dentro do mundo deles, e essa luz brilhava o teu
rio, as tuas palavras, o gesto das tuas mãos, e acendia, para mim, todos os
teus dizeres. A tua vida escrita em tuas palavras. Em teu corpo, em teus
cabelos castanhos, em tua fé e ternura. E eu te ouvia com todo o meu mundo
porque ouvir a suavidade firme das tuas palavras me fazia um bem enorme.
Assim me marcaste com o cinzel das águas dos teus olhos. Todas as histórias
que vivemos juntos. Aquelas que eu ouvi do céu da tua boca. As que eu contei
para ti no tempo do além de um menino. Tuas mãos sempre lendo os meus
olhos. Teus dedos magros e morenos escritos em minhas feições. A tua leitura
das linhas do meu rosto. A vida, que por um instante, parava naquele
sentimento. E nós ficávamos, ali, virando enormes cristais do tempo.
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Sim, Maria, os rios não envelhecem nunca. Essa tua
verdade também rege a ternura e a força das palavras de quem ama. Há um
instante na vida da gente no qual precisamos entender o desafio que as
saudades propõem. Se os nossos corações não forem capazes dessa tarefa,
uma solidão nos invadirá, e passaremos a viver como se um grande pedaço
das nossas vidas estivesse guardado, dentro de um vidro, como um veneno
frio, à nossa disposição. Não existe o tempo, Maria. Não há um tempo. Só
existem pessoas. Agora, aqui, no caminho dessas palavras, eu preciso da tua
ajuda para desvendar esses sonhos tristes das minhas noites. Há verdades
que precisamos reescrevê-las para sentirmos o que elas guardam em segredo.
Recontar uma história, a nossa história, os instantes possíveis das nossas
vidas. Assim, quem sabe, poderemos, com a força de nossos braços, escrever
um outro texto para as nossas vidas. Um outro mundo. Um lugar possível.
Outras palavras. Uma outra nossa história.
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nossas gentes, eu possa chegar ao alto das tuas águas, à tua pré-amar. Ao
teu mundo invisível. Essa é a vida agora. Reescrever as palavras que vivi e
não vivi ao teu lado. Escrever para me ouvir melhor. Saber de ti. Ouvir, mais
uma vez, a tua voz. Sentir a ponta dos teus dedos reconhecerem as marcas do
meu rosto. Ouvir a leitura das tuas histórias em meus olhos. Por essa vida esse
texto. Esse rio-estrada para ir te buscar. Sei que tu merecias algo melhor. Mas
aqui, nesse instante, luto para te oferecer um pouco das tuas palavras em mim.
O teu mundo meu. E nisso há uma incapacidade invencível, pois nunca terei o
teu olhar, a tua luz secreta da vida. Porém, nesse texto, há um caminho, uma
possibilidade do mundo nessas minhas palavras que te escrevem um abraço.
Aceita, eu te peço. O meu abraço escrito para ti. Um pouco das palavras que
semeaste. Um plantar de ternura. Um olho d’água. Um rio que voa. Um verbo.
Minhas palavras que te escrevem um abraço. O lado bom das saudades. O
verbo íntimo de cada pessoa. O algo invisível e preciso de quem ama.
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VI
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vontade era colocar esse mundo todo em um livro. Esse, até então, era o
trabalho de Dona Constança. Fazer um texto das vozes da nossa gente. Um
livro, o lugar onde as histórias se escrevem de gente. Um livro, várias vidas.
Por isso o Seu Tibúrcio. Um dos mais velhos contadores da nossa terra, aquele
que quando contava uma história, nós podíamos ver em seus olhos a luz do
impossível, o mundo e as pessoas que povoavam o imaginário das nossas
vivências: nossos eus de todas as vontades das horas. O Velho Tibúrcio
contava as histórias com o seu corpo, com o fogo miúdo dos seus olhos, e com
a sua voz rouca que encantava a todos na sua lida de contar e recontar.
Nascer e morrer. Chorar e viver. Remorrer e renascer a vida. Resistir. Iluminar
os nossos mundos com a sua voz de muitas pessoas. Viver um fascínio, uma
história, as palavras acesas nos olhos do Velho Tibúrcio. Nunca se soube ao
certo onde ele morava. Tinha sido mateiro a vida inteira. Vivia do rio e do livre
arbítrio das marés. Sempre tinha uma tarefa de mandioca e um rancho de
moquear, que ele mudava conforme a querença das águas. Sabe-se de mais
de vinte tapiris de pesca que ele abandonou na várzea dos rios. “ Fica para os
meus filhos a verdade de que ali, durante um tempo do ano, no juízo das
águas, o mapará é certo, pronto para o saber de um taleiro, para uns dias de
sal e a língua do sol no guardar de um amanhã.” Muitos pescadores até hoje
apontam. “Olha ali! É mais uma marca do Velho Tibúrcio.” E quando se passa
pelos caminhos mais improváveis do rio se pode apoitar na ilharga de um dos
ranchos de pesca trabalhados por suas mãos. E matar as muitas fomes.
Diziam que ele nunca iria morrer. Comentavam que naqueles longos cabelos
brancos e no rosto marcado por todas as águas ele tinha mais de cem anos.
Outros asseveravam que ele morria, sempre, nas primeiras chuvas de
setembro. No início da maré de quebra, no tempo das águas mortas do mundo
enorme das chuvas rápidas de verão, a lua carregava o Velho Tibúrcio. E era
sabido por todos que ele voltaria no primeiro dia de outubro para acompanhar o
carregamento dos Brinquedos de Miriti para Belém. Em seus ombros, muitas
girândolas embarcaram para irem desaguar no Círio de Nossa Senhora de
Nazaré. Para mim, não importava saber qual era a verdade mais verdadeira,
pois as crianças têm a melhor forma de se acreditar no mundo: a vontade dos
olhos na simplicidade de um sentimento. Uma verdade possível para se ver as
coisas. Até vir o tempo de se abrir as barrigas de um brinquedo. Outras
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verdades. Outros sentimentos, pequenos outros instantes de felicidade.
Precisamos aprender a não maltratar as verdades de uma criança, pois elas
fazem parte de um mundo que para nós é um rosto estranho. Feliz da pessoa
que ainda pode ser algo de uma criança. Quando se cresce, as mentiras
repetidas se tornam mais verdadeiras do que as próprias verdades. Esse é o
maior perigo de todas as vidas. Os olhos das grandes mentiras que querem
nos chamar de filhos. Uma felicidade muito difícil de se resistir. Parece que nós
não percebemos a hora em que já estamos no mesmo forno de barro e vamos
aceitar, e até nos comprazer, sairmos marcados com o mesmo signo de todas
as felicidades. As doces mentiras de todas as nossas vidas. Algo que nos
abone, nos fabrique uma paz. E nos perdoe. Eu sei, eu sei, Maria. Em vários
instantes um homem se trai, e o despedaçar das asas das formigas de chuva
ainda dói muito em mim. Mas, ali, naquele mundo das vontades dos olhos de
uma criança ficaram, para sempre, as palavras do Velho Tibúrcio. Em nossas
gentes e em muitas pessoas do mundo, o livro das suas histórias já estava
escrito. No avançar daquelas horas esquecidas, cresceu, por dentro de nossos
olhos, o sentido da sua humanidade. Os ecos das palavras desse velho
contador de histórias. Um senhor de mais de cem anos que parecia ter uma
força descomunal na mansuetude que letrava as suas palavras. Essa era a
nossa verdade. Eu tinha onze anos. Tu, catorze. Descobrimos, juntos, novas
histórias sobre ele. Falavam que a Morte se fazia de cansada na sempre-hora
de vir buscar o Velho Tibúrcio. Quando menos se esperava, no esquecimento
de uma boca-da-noite, ele surgia em um arraial, e aí juntava um monte de
crianças e um punhado de pais e mães para ouvi-lo contar uma história, na luz
pequena de uma lamparina a óleo. Diziam que a Morte sentava ao lado das
criancinhas para ouvir os mundos falados do Velho Tibúrcio. Afirmavam, com a
mais simples das franquezas, que a Morte gostava de ouvir histórias e, no meio
do calor das pessoas, alguém sempre sentia aquele ombro frio se aprumando
para ouvir melhor o semeador de mundos. Por isso ele tinha mais de cem
anos. Todos sabiam. A Morte devia, verdadeiramente, gostar de ouvir histórias.
Ela, a que fazia a colheita de todos os términos, essa catadora de gentes, se
afeiçoou pela nossa terra e pelo Velho Tibúrcio durante um bom tempo das
nossas vidas. As pessoas não morriam como se morre hoje: de morte fácil e vil.
Morre-se hoje como as moscas morriam ingênuas pela chama de um
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candeeiro. Entravam pela boca do vidro e não sabiam mais sair. Caiam mortas,
esturricadas, na camisa incandescente do fogo. Mata-se hoje pelo vazio de um
copo d’água. Morre-se por tudo. Em algum lugar dos nossos olhos, em algum
instante do mundo, perdemos a capacidade de nos reconhecer como pessoas.
O Velho Tibúrcio sabia disso. Talvez por esse sentimento ele não morresse
nunca. Nessa estrada de rios e histórias, ele sempre aparecia entre nós. E na
luz do cristalino dos seus olhos, onde o cansaço lutava para escrever uma
catarata, o brilho de uma história acesa sempre renascia o homem, vencedor
da hora na palavra lançada. Um pouco da vida escrita por todos nós na voz de
um homem. Passos marcados por todos. Uma epifania do verbo. Um contador
de histórias. O Velho verbo Tibúrcio. Ele que trouxe a Dona Constança, que
nos ajudou a ver essa verdade um nos olhos do outro. E por esses tempos de
então, Maria, nós nem nos conhecíamos. E se morria apenas de velhice nas
histórias. Ou se morria nos braços falantes do Velho Tibúrcio, em um dos
deslindes da vida contada. Mas a morte matada por um, o corpo caído do outro
em queda sangrada de bicho, era um mundo muito distante dos nossos olhos.
Um quase impossível. Tenho saudades dessa época, Maria. Sinto falta da
morte calma, sentada ao nosso lado, na boca-da-noite, aguardando o Seu
Tibúrcio se aprumar na iluminação de um instante imaginário. A Morte gostava
desse ajuntado de pessoas ao redor de uma boa história. Aí ela se fazia de
esquecida e apenas tocava o lado frio dos seus ombros nos braços da gente.
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A Morte e os seus ombros frios.
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as pessoas do nosso mundo, curando alguma dor, escrevendo alguma
fraternidade na solidão do sol. Aprendi sobre as manhãs com lua. Durante o
caminho para o roçado de mandioca com a minha mãe, quando margeávamos
os caminhos úmidos das águas negras e frias do igarapé, e o perfume dos
jenipapos parecia fermentar todo o chão, a minha mãe me disse desse tempo.
Quando acontecem esses dias, as estrelas já começam a mostrar o seu brilho
ainda no meio da tarde, quando o mormaço já cai enfraquecido. E a lua se
revela em um além de um vermelho no tempo das águas grandes. É só olhar
para um Jenipapeiro, e ele vai estar florido. Vermelho da lua. Sentimentos.
Noites de Lua Vermelha, instantes que a vida escreve um mosaico de ternura e
desejos nesse pedaço de chão. E no céu, a lua é uma casa enorme. Lugar
onde todas as pessoas de um mundo se reconhecem.
Estrela cadente.
Véspera da esperança.
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Noites de lua vermelha.
Um saber de pessoas.
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que a nossa casa estava sendo a última a ser visitada pelo barco do
prestamista. Desde lá, da boca do rio, da tua casa até à nossa localidade, ele
tinha passado apresentando a Dona Constança e dizendo do seu propósito: o
lanço das palavras de uma vontade de estar entre nós, uma semeadura.
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aquele sorriso em silêncio. Aquele. Aquele sorriso de humanidade que iria me
acompanhar a vida inteira. Um sentimento, um cuidar de pessoas.
Eu sorri de volta.
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O mundo das nossas vidas.
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Por isso eu te escrevo, Maria. Para te alcançar em mim.
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Guardada pelos teus Açaizeiros.
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VII
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certeza de um instante feito eterno agora. Nossos braços, nossas vontades,
nossos olhos, todas as nossas palavras e, a cada silêncio, a nossa resistente
perseverança. O sonho de uma escola. Eu com onze anos. Tu, catorze. Uma
nova estrada. Não havia, aqui, aqueles homens importantes com as suas
palavras que adormecem um olhar e domesticam todas as nossas vontades.
Não. Havia gentes de todos os lugares da minha comunidade. Todas as
pessoas que eram vizinhas daquele mundo, moradores da mesma maré,
estavam, naquela hora, oferecendo algum trabalho. Nós éramos, naquele
instante, as pessoas importantes da nossa história, os protagonistas do nosso
destino. E, assim como a luz elétrica que passava voando seus destinos sobre
as nossas vidas, a falta de uma escola queria insinuar que não éramos gente.
Não éramos dignos de ser pessoas. Para alguns até hoje essa falsa verdade
ainda vale. Como se dependêssemos da boa-vontade de um salvador nosso.
Um homem que vá nos trazer a luz e as salas de aula. Não. Viver é
desacreditar as grandes mentiras. Viver é querer ter a vontade de estar vivo.
Viver se escreve na força de uma verdade: nos braços de todas as gentes. E o
Velho Tibúrcio sabia disso. Dona Constança e a nossa gente também.
Estávamos, ali, naquela hora de todos, descobrindo a luz dos nossos braços.
Uma palavra mutirão de todos os destinos das nossas vidas. Um puxirum.
Amarras de liberdade.
Nós.
A nossa gente.
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E assim foi. Muito trabalho. A força de todas as pessoas
valeu o esforço de se acreditar em um sonho. Quando os nossos olhos deram
fé estava ali, levantada. Um lugar da gente, um espaço da nossa voz. Como se
fosse uma casa. Uma vontade dos nossos braços. A nossa escola. Erguida em
nossos olhos. Que era nossa por ser de todos. Um telhado a duas águas
construído pela vontade de todas as pessoas do nosso rio. Todos trabalharam.
Afirmaram a parede com o barro da várzea. Preencheram os espaços da taipa.
Da tabatinga trouxeram o rio para secar o piso. Feito telhas as folhas altas de
um Miritizeiro. O suor de todos. O sal dos corpos. Uma humanidade. O mutirão.
Das árvores, do rio e de muitas pessoas, nasceu uma escola.
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histórias. Dizem que ele sempre aparece nos finais de tarde, na boca da noite,
à procura da luz pequena de uma lamparina a óleo, no mais qualquer dos
trapiches, para ser ouvido. É contador de histórias, o homem. Dizem também
que ele tem mais de cem anos. Não deve ser o nosso Velho Tibúrcio, pois ele
ainda vive, invisível e vivo, por aqui, entre nós. Na língua de todas as histórias,
muito vivo e forte. E a Morte, na sempre mecânica do seu trabalho, jamais o
carregaria no musgo dos seus braços, no sangue das suas veias cansadas. A
Morte se afeiçoou pela vida do nosso Velho Tibúrcio. Ela gosta dele. Ela pára e
descansa para ouvir as suas histórias. Sorri e voa sobre nós. A Morte está
aqui. Sentada ao nosso lado, nesse sentimento de um leve ombro frio. Ela que
se faz de esquecida de todos nós, nessa hora imperceptível, quando o Velho
Tibúrcio, em muitas vozes, conta as suas histórias.
58
Viveu uma vida por nós. Abraçou as nossas águas.
As nossas histórias.
Um semeador de mundos.
Tu sabes, Maria.
59
Tu sabes desse vazio na fé das minhas girândolas.
Vi as tuas costas.
60
VIII
61
revelando que a distância entre os mundos não é assim tão grande, e que a
vida de um menino que estava escrita nos braços de muita gente, nos olhos de
quem ama e de quem resiste, é também a vida com todos os seus perigos e
ausências, a vida viva, cotidiano de alguma pessoa no mundo da várzea, à
margem de um tudo e à beira de um nada.
Um verbo amar.
Um livro usado.
62
passos repisados das várias pessoas que descem na margem dos rios, na hora
do encontro das palavras em um trapiche. O início da beira de um livro.
E se acalma. E serena.
(...)
63
- A senhora é, também, professora? A menina perguntou.
64
aumentou um pouco mais o timbre da sua rouca voz para seguir na sua lida de
contar histórias. As pessoas, então, fixaram seus olhos nele.
Eu me levantei suavemente.
Um chamado íntimo.
65
nossa caminhada, virão aqueles olhos negros, com as suas palavras ingênuas,
lançando pedaços de espelhos invisíveis em nossas vistas: quem nós somos?
Qual a minha relação com os outros eus? Qual o meu trabalho de vida? Qual o
verdadeiro significado da minha felicidade? Quantas solidões há em mim?
Quem eu sou nesse instante? Toda essa existência de dúvidas foi possível
graças àquela menina e à sua instigante ingenuidade. Uma pergunta que ela
fez ao mundo, mas que veio cair em minha íris, em meus ouvidos, em meus
silêncios insones e noturnos. Estava em meus braços alguma resposta, algum
verbo, a minha vez de despertar em mim uma outra pessoa que me sondava,
mas para a qual eu nunca tinha tempo.
66
Um dia, no mundo desse país, há que se valorizar o
trabalho de um professor. Não há milagres. Não há mágicas. Não há
salvadores da pátria. Há, somente, a força dos nossos filhos em uma sala de
aula de verdade. A responsabilidade pelo futuro. O respeito pela dignidade do
trabalho de dar aulas. O respeito por toda criança. Ou, se continuarmos cegos,
o fantasma da violência que bate às nossas portas. O gesto banal que nos
aterroriza. O dia-a-dia de todos os nossos medos.
67
Em silêncio, choramos juntos com esse nosso abraço.
Constança.
(...)
68
Não aceitamos nos transformarem em pessoas à margem de uma história.
Havia uma guerra em nosso peito. Nunca iríamos aceitar viver longe dos
Miritizais. Somos, sim, um povo das águas, de guelras e guerras a se cumprir.
Um norte nos guiava. A luta de guardar o nosso lugar nesse chão. Ficaram
aqueles anos em que vivemos juntos perto do quadro-negro da Professora
Constança. Perto de nós, perto das nossas vidas. Esse texto acima, a palavra
intenção da Dona Constança, uma carta escrita de um só verbo, eu trouxe,
aqui, para tu saberes dos primeiros anos da tua ausência e da luta que a nossa
gente teve que envidar para não perder a sua própria vida, a sua história.
Esses poucos anos ao teu lado iriam me marcar muito nessa vontade de te
escrever. Nessas palavras em que tento te alcançar.
69
chorei sozinho em minha rede. O sentimento profundo das tuas saudades me
fez, mais uma vez, aquele menino de onze anos que tu conheceste na escola.
A tua fé. O suave da tua voz. A tua reza que semeia paz.
71
IX
72
na massa polida do barro na parede. Quando os olhos se iluminaram estava
pronto o destino: uma sala de aula. Um lugar para se conquistar uma liberdade.
Um querer fazer.
73
Morrem os homens não morrem as palavras.
Toda morte que morrer aquele que conta uma história, uma
vida se abrirá na mão que abre um livro e no silêncio dos olhos daquele que lê.
Vida, a todo instante, toda uma ficção.
74
A leitura é o saber de um rio que se escreve.
75
Foi assim, em um final de tarde. A dor veio lancinante no
peito da Professora Constança. O braço esquerdo ficou com um peso absurdo.
Um golpe invisível exasperou a sua respiração. Todos acudiram, e ela, ao fim
de uma hora, serenou. Depois de um copo de água com açúcar, pediu para ir
embora mais cedo nesse dia. Chamaram o barco às pressas, a tempo de ainda
aproveitar a alta da maré. Dona Constança embarcou, com passos lentos e
difíceis. Estava pálida, mas havia em seus olhos uma calma intraduzível.
Dentro do barco, quando o homem do trapiche já ultimava em devolver a corda
para que assim o barco desatracasse e seguisse viagem, Dona Constança
pediu um favor. Um segundo a mais. Pediu para desembarcar por um instante.
76
O Bom Jesus desatracou. Seguiu viagem.
77
X
78
benzer. Salva pelos caniços de bambu da beira da várzea, e por Dona Filó,
parteira a vida toda, que te salvou. Pediu à tua mãe que benzesse as mãos
dela naquele instante. Um saber, uma precisão. Uma palavra:
- Não, Filó, essa menina tem que vir, ela vem, eu sei.
79
Dona Filomena sugou fundo; sugou o mais fundo possível,
pelas paredes finas do bambu submersas no ventre da tua mãe.
E te prometeram juntas.
80
Solidão. Um filho que não chega.
Rezava. Cuspia.
Pedia. Te entregava.
Pedia.
Implorava.
Prometia.
Rezava.
81
Pedia.
Te entregava. Te prometia.
Perseverava.
Perseverava.
Perseverava.
82
Estavas roxa, exangue e sem vida. Pálido o caminho.
83
- Não, ela é a gêmea, a Lourdes. Eu sou a última.
A tua história.
A minha história.
As nossas marcas.
Só existem pessoas.
84
XI
85
“- Ela chorou na barriga da mãe...
(...)
Uma história.
86
Maria cresceu, correndo suada, ao lado do rio.
Eu sorri. Desconfiei.
- A menina já lê o rio.
(...)
87
Nos olhos da menina o som das águas. O desaguar de um
corpo, o rio grávido, esfíngico, gemendo a sua terra fecunda. O rio que
acordava mar. O rio que cala o seu caminho. O seu murmúrio líquido.
88
O tempo da fartura dos peixes. Águas mortas.
89
O teu início de cuidar da vida.
Viver é inesquecível.
Eu, um menino.
Várias histórias.
E escrevia um olhar.
90
XII
O do mundo de um olhar.
91
Nasci em uma das muitas ilhas sem nome que fazem uma
cidade. Abaetetuba, o meu norte. Um lugar onde se nasce vida para se
renascer luta, muito trabalho e toda uma esperança.
92
Meu pai, além de lavrador, era feirante no mercado da
beira. Lutava contra a escravidão que os atravessadores impunham na paga.
93
Naquelas braças muitos braços iriam trabalhar.
95
pendurados em seus braços duplos, refazendo a invenção das luzes e das
cores da nossa gente. O Círio reacende o brilho das girândolas, Maria.
Reacende a fé de todas as gentes. Uma fé de que agora, nessas minhas
poucas palavras, eu possa desvendar os meus sonhos tristes e preencher o
vazio escrito nas noites das minhas girândolas. Um homem se trai em algum
instante, Maria, eu sei. Por isso, fui buscar esse menino que ainda vive em mim
para repisarmos juntos todos os passos dessas palavras. E que nessa história,
eu possa compreender o despedaçar das asas das formigas de chuva durante
a minha vida ao teu lado: o teu mundo meu, o meu mundo teu.
O mundo de um menino.
96
O mês da fé. Olhares de um menino.
Um estender a mão.
A minha fé na Virgem.
98
Mas um brinquedo de miriti, em suas muitas vidas, se
transforma em algo além de um brinquedo. Ele acende outros olhares. Ele se
revela ternura. Quem coleciona brinquedos de miriti, das várias safras de um
mês de outubro, sabe disso. Onde houver, em qualquer lugar desse mundo,
um brinquedo de miriti eternizado na fragilidade de um instante, suspenso
como a luz das estrelas, ou móvel como a lembrança do estourar dos fogos na
Noite da Trasladação, vive esse sentimento. É algo de vida que vai além de um
brinquedo. Vai além da finalidade exterior que todo brinquedo de miriti possui.
É uma vontade de amar, Maria. São os segredos de uma ternura para aqueles
que sabem do encanto desse brinquedo. É um amor intenso, Maria. Algo
indizível. Amor por nossa terra. Amor por nossa gente. Amor por sermos quem
somos. É a nossa luta, a nossa fé, Maria. Cada brinquedo guarda uma ternura.
Basta olharmos para eles. Sentirmos a sua leveza em tudo. Ali há uma árvore.
Uma gente. Um mundo. Uma vida. O segredo de uma vontade de amar. Nos
olhos, nas mãos dos fazedores de brinquedos de miriti - mulheres, crianças,
meninas e meninos, homens, senhoras e senhores - está escrito esse destino.
Um amor que se guarda em silêncio. Não se revela, apenas vive. Nas mãos
que buscam um brinquedo, nos olhos, na poesia de um fazer, na ternura de um
mundo, ali, ele está: o verbo amar de um amor de miriti. Amar das pessoas.
Amor de um mundo. Nas girândolas vive esse segredo. O que há, em silêncio,
guardado nos brinquedos de miriti são os sonhos, as esperanças, as lutas, as
vidas dos artesãos. Um mundo no qual se reconhece uma gente, uma fé. Uma
reflexão. Um amor no segredo de uma vida. Um sentimento de miriti. Amar
para se fazer reconhecer. Amar para se afirmar vida. Um mundo para se viver.
99
Em uma sala, em uma cozinha, em um quarto de criança,
em uma sacada, em uma janela de madeira nas casas mais simples, no meio
das folhagens de uma planta, em um escritório, perto de uma máquina
batedora de açaí, no retrovisor de um carro, em um brinco, em um colar, em
uma chave, em um quadro na parede, nesse teu pátio das samambaias, Maria,
em qualquer janela desse mundo pode estar um brinquedo de miriti. Nesse
instante, já não é mais somente brinquedo, é ternura, o mar invisível do verbo,
um amar de amor de miriti. É lembrança, são as saudades: os desafios que
elas propõem. Um dia foi brinquedo. Agora, são novos significados que cada
pessoa sabe. Em cada coração. Em um simples olhar. Em cada sorriso. Em
uma fé. Em cada uma das mãos. Um segredo.
Um outro mundo.
100
que será feito nasce da crônica individual de cada artesão, nasce do seu olhar
sobre o mundo, nasce do olhar da sua família sobre o universo que a encanta.
São eles os autores das suas próprias linhas e nisso há vida. Há orgulho. Há
encanto. Há sentimento. Há necessidade. Há precisão de várias fomes. Há
precisão de várias vontades. Há vidas renascidas em um único instante ao ano.
É muito difícil ser fazedor de brinquedos todos os dias, Maria. É muito difícil
viver dessa arte, viver das luzes dos brinquedos de miriti. Meu pai já me dizia
essa verdade. A maioria das pessoas que fazem os brinquedos luta, também,
pela vida em outros mundos. São feirantes. São costureiras. São professoras.
São lavradores. São eletricistas. São marceneiros. São vendedoras de mingau.
São donos de pequenos barcos. São lutadores da vida. São pessoas, as
gentes da nossa terra, as pessoas do miriti de uma Abaeté. Por isso outubro é
tão intenso. Tão iluminado de pessoas. Um instante de uma vida. Um fazer.
Um acreditar. Um instante para uma vida. Uma fé. Um mundo.
A Trasladação.
101
A Santa está parada.
E se benze.
E reza.
E chora.
102
Infinitos filhos, uma mãe.
103
Eu sei, Maria, eu sei dessa lição da luz dos teus olhos.
104
XIII
105
O vermelho e uma mulher.
106
Alguém renovava a fome dos punhais.
O rio crucificado.
107
Quem intimida? Quem repete as ameaças? Quem se cala?
E ele continuava.
108
Um branco que me alucinava.
A morte do rio.
109
Dona Constança e o Velho Tibúrcio vivem aqui, no meio
dessas palavras, no silêncio dessas letras em que se ancora um destino.
Eu sorri.
Senti, mais uma vez, como são belos os teus olhos negros.
110
Sei que tu quiseste enganar a minha tristeza.
Fiquei assustado.
111
XIV
112
O rio sonhado.
O rio ferido.
- É preciso sonhar. ”
113
Sei que tu sabes de todas as minhas vozes.
114
Uma esperança para sentir as tuas mãos em meu rosto.
115
Um lugar para se andar. Um lugar que se aprende.
116
Eras tu. Uma pessoa de miriti. Maria do rio crucificado na
agonia de um sonho. Uma dor de doer toda a dor de um mundo: esperança.
Uma pessoa de miriti feita por um menino. Escrita em um vestido azul.
Eras tu.
Outros sonhos.
Sonhar é um verbo-desafio.
117
Um mundo necessário. Uma esperança.
118
XV
119
Sentimos que éramos nós. A nossa hora.
Te dei os meus.
Um sentimento.
Uma vida.
120
XVI
121
Aquele menino que se dava por gente naqueles instantes
de um mundo, nas braças de um brinquedo de miriti. Ali, na descoberta dos
meus eus, e das lutas que se iniciavam em minha vida, eu sentia que eu te
amava muito, assim como amava muito a mim mesmo.
122
Entre a paixão e o amor vive uma serenidade que eu
desconhecia. Talvez haja na paixão uma preamar intensa. Sedenta e febril.
Umas águas grandes. Um mundo que transborda, se acalma e, enfim, se cala.
Restam ternura e companheirismo: no fundo é isso que somos enquanto
homens e mulheres, as diversas criatividades do amor em um norte maior que
todos os eus. Uma necessidade de amar, uma crença no outro como pessoa,
uma crença em mim como gente. Amar, talvez, seja essa possibilidade das
nossas vidas, um lugar para se viver uma dor de esperança. Um olhar pelo
outro que nos mantém vivos. Uma companhia, um semear de vínculos, uma
identidade viva, um todo cotidiano, um dar-se as mãos, um verbo.
Lembras?
123
Eu não soube dar a eles um nome de batismo para se
guardar na maré. Mas pintei na proa de cada um o nosso nome. Maria. Tobias.
Dois barcos. Dois caminhos. Duas vidas, dois rios. Uma história.
124
Agora, aqui, em cada instante dessas palavras, imagino
que fiz o certo ao nomear com os nossos nomes aqueles dois barcos de miriti,
que foram feitos para descer o caminho ligeiro do igarapé que dava no rio.
125
Eu escrevo para que eu possa saber de ti. Do teu mundo
meu, das nossas vidas. Eu escrevo para que eu possa conversar contigo.
Lembras?
Eu vou te contar.
A vontade de um abraço.
Compartilhar um mundo.
Garimpá-las. Descobri-las.
Acendê-las.
126
XVII
127
Várias histórias.
Uma resistência.
Uma porfia.
128
Por uma vida, uma história. Um pertencimento. Uma porfia.
O tempo da porfia.
129
- Vai, meu barco. Vamos, meu barquinho. Porfia. Porfia.
- Porfia. Porfia.
E vinha o vencedor.
Um preto.
Um branco.
Um verde.
Um alaranjado.
Um azul.
Um outro azul.
130
Sou capaz, agora, Maria, de ouvir todas as vozes dos meus
amigos. Os gritos esperançosos da Joana, os sorrisos do Jurandir, a felicidade
da Círia, a fraternidade do Vladimir e a minha própria voz feita de azul.
Uma humanidade.
Uma porfia.
Um mundo.
Estavas feliz.
132
Acreditei que, um dia, eu seria capaz de ser feliz no teu
mundo. E que para toda felicidade bastava se imaginar um destino.
133
Lembra? Essa é a tua leitura quando as asas das formigas
de chuva se despedaçam. Uma vida, um vôo, uma metamorfose.
134
A porfia estava em seus últimos instantes.
Aquele.
- É o vermelho!
- É o vermelho!
- É o vermelho!
135
Quando um barquinho de miriti faltava era sinal de tristeza.
E era impossível se tentar subir pelo igarapé à procura do barco sumido.
Nascia na gente um desalento íntimo, e todos os meninos e meninas sabiam
disso. Como se o dono do barco traísse o antigo, pois era obrigado a fazer um
novo barquinho, a imaginar um novo nome para se escolher uma nova cor.
136
Tive vontade de chorar, pois, pela primeira vez, eu perdia
um barco. Não sabia onde ele estava. Um pedaço de mim tinha ido com ele.
137
felizes, com fraternidade, justiça e igualdade, cultivando as suas terras em um
mundo possível de paz e harmonia. Um outro mundo, Maria. Um mundo bom
para todas as pessoas da nossa terra. Para todas as pessoas desse mundo.
Para lá devia ter ido o meu barquinho de miriti. Para o lugar de uma felicidade,
na promessa de uma Abaetetuba encantada.
O olhar de um menino.
Pacoca, um mundo.
- Sim, um pouco.
138
- Vamos pensar?
139
Nunca me esqueci dos nossos barcos.
140
XVIII
141
Em uma dessas andanças, eu soube das tuas palavras.
Um parto. Um porto.
142
Eu que estou, aqui, na tua casa.
Mas és tu.
143
Antes de irmos embora, lá, na porta da tua casa, a tua mãe
ainda olhou para trás, para a escuridão do pequeno corredor, a fim de certificar
que na palmatória de pedra, a metade da vela reacendida ia garantir a sua
queima para o Divino Espírito Santo na lida de mais um parto.
Embarcamos.
A tua mãe não disse mais nada. Olhou para o homem e fez
um menear com a cabeça, aquiescendo, com um gesto, à minha presença ali.
144
Por cima dos seus óculos, de vez em quando, o seu olhar
se detinha em mim. Acho que ela imaginava que futuro nós dois podíamos ter
juntos. Eu e tu, Maria. Uma vida pensada juntos. Um destino. Um mundo
nosso. Tudo que um dia eu imaginei pra gente.
Parecias viver uma outra vida com o teu rosário nas mãos.
145
Muito pouco sabíamos do mundo que nos esperava.
146
XIX
147
Antes que eu fosse avisado que eu teria que sair daquele
quarto, ainda pude ver, Maria, na cabeceira da cama, tu arrumares o rosto
daquela senhora e tentares dar a ela algum alento quando começaste a rezar,
perto do seu ouvido, em um suave cicio, a oração do Anjo-da-Guarda.
148
Entre sorrisos, lágrimas e vários padecimentos, o seu filho
veio à luz. A vida possível pelos braços da tua mãe, e pelas palavras que
estavas começando a aprender.
Eu sorri. E te abracei.
149
“ Entre solitário e solidário há um grão de vida. ”
E agradeceu muito.
150
- Ela fecha, meu filho. A moleira fecha no tempo e na fé.
151
Solidariedade. Uma palavra-mundo da tua mãe:
De um cuidado.
Só existem pessoas.
152
Há instantes em que não conseguimos ouvir nada.
153
XX
O rio.
154
O rio se vê na gente.
Eu gostava de te ouvir.
Abraçar um destino.
155
Pois tu eras o meu mundo.
Eu, que me sentia destinado a ti, ainda não sabia que era
muito cedo para rabiscar um destino. E desconhecia que para toda felicidade
não se basta, apenas, imaginar um mundo, sonhar um futuro.
156
O tempo tem o teu rosto, Maria.
157
“ - Não é assim tão fácil, minha filha...
O que é humano?
158
O algo possível da nossa história. Alguns indícios.
159
Desisti, no mesmo instante, desse pensamento.
Nomes madrinhas.
160
XXI
161
Tu que estavas sempre pronta para servir, pronta para
ajudar, um dia, precisaste muito de alguém. Precisaste de alguém que pudesse
te oferecer uma resposta para um sofrimento teu.
Precisaste de um médico.
Os teus olhos.
162
“ - Talvez eu não precise mais enxergar, Tobias. ”
Não sei.
163
Para mim, aquele mundo que se apagava dos teus olhos
era de um todo incompreensível. Eu não conseguia entender a tua resignação.
Por mais que eu me esforçasse era algo muito difícil. Quase desumano para
mim. Tu, que sempre ajudaste tanta gente, agora, não havia nada nem
ninguém que pudesse salvar os teus olhos.
Muito mesmo.
A nossa história.
164
O teu universo das minhas palavras.
Nós que fomos o tempo, Maria, somos, mais uma vez, ele,
agora. Nesse instante, nessas palavras em que te escrevo, nesse mundo em
que tento te alcançar em mim, tu estás. Na vontade desse abraço, em teu olhar
marcado para o norte, nas tuas histórias em que te afirmaste vida, no meu
mundo miriti, nós estamos. O tempo, Maria, o teu destino em que te escreveste
verdade. A vida que eu fiz de mim. O nosso mundo nas luzes das palavras que
aprendeste a benzer, e nessa distância que foi aberta entre nós.
O tempo, Maria.
Escrevias a ti mesmo.
165
“ - Tobias, tu estás triste? ”
Um norte.
166
Existir. Abraçar.
Um saber.
167
XXII
168
Ter precisão é o roubo da nossa dignidade como pessoa.
169
- Dono do quê? – meu pai gritou, avançando sobre ele.
170
Aqueles homens, que antes seguravam o meu pai,
prensaram-no contra uma sapotilheira, que havia em frente à nossa casa. Ali,
ele ficou de braços abertos, acuado, impotente. Ali, eu pensei que o meu pai
fosse ser assassinado. Entretanto, o homem dos dois dentes de ouro, como se
fosse alguém conhecido, pôs uma das mãos nos ombros presos do meu pai. E
com alguma traiçoeira calma nos seus olhos, disse:
Meu pai, com muito medo, ainda teve coragem pra gritar:
Meu pai me disse que essa não tinha sido a primeira vez. A
falta do título definitivo da terra é azo para muitos forasteiros que vêm de longe
se anunciarem donos da nossa casa, do nosso mundo, donos da gente.
171
- É preciso não esmorecer, filho. Aprende essa verdade.
Um outubro.
172
Eu, em todo esse passado que se infiltra no meu presente,
nunca esqueci o gosto amargo de sangue na minha boca. E quando eu fecho
os meus olhos, até hoje consigo avistar as costas daqueles homens indo
embora no meio daquela noite.
173
XXIII
174
A tua mãe, na fúria que atacou aqueles covardes, só não
foi morta naquele instante, pois teve que acudir o teu pai, que foi brutalmente
espancado e muito humilhado dentro da sua própria casa.
175
- Eu tive muito ódio, Tobias. Muito. Deus me perdoe.
176
se ressentia de que essas braças estavam lá, se esquecendo em um abandono
imenso, sem o destino que elas mereciam, pois aos noventa anos e com a
vista cansada e os ossos muito fracos, minha avó não trabalhava mais nos
brinquedos de miriti. Assim, eu fui até a tua casa e te convidei para ir comigo,
pois queria que tu conhecesses a Dona Benedita, a minha avó, e queria,
sobretudo, conversar contigo sobre a estranheza e angústia desses dias que
estávamos vivendo em nosso mundo.
177
- Mas algo de ruim vai acontecer ou está acontecendo. ”
178
Nessa volta, o mundo confirmava a triste verdade desse
teu pressentimento. Lourdes tinha sofrido um dos mais terríveis acidentes para
as mulheres que precisam andar sobre as águas do rio. A mesma história. A
infinita dor. A tristeza que se repete para muitas mulheres que andam pelos
rios, que nos rios precisam viver, trabalhar e existir, escrever um destino, uma
vida. Ali, naquele final de tarde, eu soube de algo que se passa dentro dos teus
olhos, das luzes do teu pressentimento, das dores das pessoas que tu amas.
Uma história triste que não se sabe até quando ainda vai se repetir. Uma
história do pressentimento da tua dor, Maria. Uma tua verdade sofrida. A
tristeza que se repete. Um barco, o eixo aparente do motor. Uma distração, um
cansaço. E a dor sem-fim. A dor das crianças, a dor das meninas, a dor das
mulheres, a dor das senhoras, a dor dos pais, a dor das mães, a dor dos
homens, a dor das águas, a dor de um rio. Uma dor do nosso mundo. O
escalpelamento das mulheres da nossa terra.
Ali, naquela tua dor, muito daquele teu mundo era meu.
179
Agora, aqui, ouço o teu choro no meio dessas palavras.
180
XXIV
181
Ainda podemos nos reconhecer nos olhos do outro como
uma pessoa. Mesmo que para isso sofrer seja o verbo dessa esperança.
O que é humano?
Não sei.
182
Lourdes ia ter que ficar um tempo em Belém.
183
Um lenço azul.
Uma esperança.
184
Fui atrás dos artesãos especialistas nesses brinquedos.
185
Um lenço azul. O lenço azul da Lourdes.
186
Uma palavra para nos reescrevermos esperança.
Voaram.
Voaram.
Lourdes sorriu.
187
Um vento se escrevia nos pássaros.
Escreveram um destino.
188
XXV
189
O caminho das girândolas que atravessam os rios.
190
A dos olhos negros mais belos que a cor de um rio.
191
XXVI
Desembarcaste.
192
Assim que começamos a andar, e o trapiche ia ficando
para trás, eu confirmava que em ti havia o silêncio de uma agonia.
193
Foram vinte e sete dias de muito trabalho.
Falei com o meu pai. Convenci a minha mãe que todo mês
eu viria a Abaeté. E que um filho jamais abandona os seus pais e a sua terra.
Nunca. Principalmente eu, que era filho único. Eu que viria visitá-los todo mês.
Ele que era o meu pai, o chão das minhas palavras. Ela que era a minha mãe,
todas as lutas, fé e ternura para se viver uma esperança.
194
Um taleiro, uma sensibilidade de um nosso mundo.
195
No dia 21 de dezembro, no barco das dezessete horas,
partiríamos para Belém. Marcamos de nos encontrar uma hora antes, no
trapiche, para organizarmos o embarque das nossas coisas.
196
XXVII
197
Eu sei, e amar pode e deve conviver com vários sonhos.
Uma paz?
Amar um mundo.
198
Eu que não consegui deixar Abaeté. Não consegui me
afastar da minha gente, da vida nas possibilidades das braças de um miriti. Um
rio, as pessoas, Abaeté, a minha casa de águas. Um mundo que eu reconhecia
e que me dava significado e pertencimento: eu e a minha terra, eu que sou
uma pessoa no meio da minha gente. Amar um mundo, amar uma pessoa. Os
segredos desse verbo. Os nossos olhos que sabem muito pouco da vida.
Talvez fosse medo, aflição de uma vida nova, medo do novo. Certos homens
que se traem em um segundo. Talvez fosse um sonho, uma vida imaginária
para se viver aqui. Amar, Maria, foi uma chance de um mundo que eu perdi.
Um instante para se sonhar. E sonhar não era a angústia desse vazio nas
noites repetidas das minhas girândolas.
199
Há histórias nas quais todos nós estamos em suas
palavras, em seu texto, nas suas linhas, em suas várias vozes. Há histórias em
que a dor de uma pessoa é a dor de um mundo, é a dor de todas as gentes.
Uma humanidade.
Como me indignar?
200
Como fazer de uma palavra um verbo?
Como reagir?
Medo.
Medo.
Impotência.
Vergonha.
Um mundo mundo.
201
A menina de Abaeté. O vazio das minhas girândolas.
202
XXVIII
203
Lourdes olha para mim.
204
Agora, aqui, na tua casa, os teus olhos estão em tudo. Em
alguns momentos, sou capaz de ouvir a tua voz. Com cada pessoa demoras
um longo instante. Conversas por mais de uma hora. Ouves as muitas
histórias. Sabes das várias lutas em muitos mundos. Sabes de uma esperança.
És tu, Maria. És o teu olhar, a vida que não adormece na proa de um barco.
Lembro de um semeado grão de palavras entre um solitário e solidário mundo.
Lembro de um verbo, de uns braços que se ajudam, o teu verbo gente:
Respiro fundo.
205
Um instante de toda uma vida.
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E o meu nome nos teus lábios:
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Um vazio, Maria. Nenhum brinquedo de miriti.
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Ele precisa resistir. Ele é feito de gente.
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“ - Não, Maria, eu não estou. ”
Aceita, eu te peço.
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Vou deixá-las, aqui, nessa cadeira de vime.
Aceita, eu te peço.
Conversar contigo.
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E os olhos de uma criança guardarão uma história.
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AGRADECIMENTOS
A Deus: quando desistir parecia ser o caminho mais exato e humano, eu pedi
a Ele forças, fé, alguma palavra, alguma resistência, uma esperança.
Muito...muito obrigado, Deus.
Ao povo de Abaetetuba, que com muita criatividade, muito trabalho, fé, e toda
uma invencível esperança, se reinventa nas lutas diárias por um mundo melhor
para se viver. Agradeço, carinhosamente, a Dona Nina Abreu por ter me
iluminado com a sua vida, em uma manhã de sábado, no seu ateliê.
Ao Wanderley Sena pelas muitas histórias que me contou sobre uma gente e
uma terra. À Maria pela bondade sempre. Ao Matheus pelo brilho nos olhos.
Ao Paulo Vieira, poeta dos bons e bom amigo, que “se decidiu por nascer em
uma das pequenas ilhas sem nome de Abaetetuba – cidade dos brinquedos de
Mauritia – afinal a gente nasce onde bem entende.”
À Ingrid, que me afastou de mais uma última revisão. Obrigado, minha Vida.
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A um cearense anônimo, que em uma das viagens de barco para Abaeté, me
disse: “a honestidade é o cadeado de toda uma vida para o bem.”
Com todo o verbo amar desse mundo, agradeço aos Miritizais de Abaetetuba.
“O miriti, a nossa palmeira benta. Árvore que é casa, que é doce, que é vinho,
que é ternura e brinquedo”. Obrigado pela vida que foi acesa em meus olhos.
Obrigado por toda a sua gente que se reinventa em seus braços.
Enfim, para que não se adormeça na proa de um barco, e que se viva uma
esperança no desafio que as saudades propõem, no meu coração está escrito:
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Outros livros do Autor
e-mail: poema07@hotmail.com
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