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ALBERT CAMUS [An

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indiferente a tudo e a si próprio, pareceu a Mersault que atingira,
afinal, o que buscava, e que essa paz que o envolvia nascera do
paciente abandono de si mesmo, que perseguira e alcançara com a
ajuda daquele mundo cheio de calor, que o repudiava sem cólera.
Caminhava ligeiro, e o ruído de seus passos parecia-lhe alheio,
embora familiar, mas na mesma medida em que as lutas dos animais
nos bosques de aroeiras, as pancadas do mar ou as pulsações da
noite nas profundezas do céu. Da mesma forma, sentia o corpo (3),
mas com a mesma consciência exterior que o sopro quente daquela
noite de primavera e o cheiro de sal e maresia que vinha do mar.
Suas corridas pelo mundo, sua exigência de felicidade, a terrível
ferida de Zagreus, cheia de cérebro e de osso, as horas suaves e
contidas da Casa Diante do Mundo, sua mulher, suas esperanças e
seus deuses, tudo aquilo estava diante dele, mas como uma história
que se prefere às outras, sem uma razão válida, ao mesmo tempo
estranha e familiar, livro favorito que agrada e confirma o que há de
mais profundo em nós, mas escrito por outra pessoa. Pela primeira
vez, ele não sentia outra realidade que não a de uma paixão pela
aventura, um desejo de seiva, de um relacionamento inteligente e
cordial com o mundo. Sem rancor nem ódio, não conhecia o remorso.
E, sentado num rochedo, cuja superfície rugosa sentia sob os dedos,
olhava o mar que inchava silenciosamente sob a luz do luar. Pensava
no rosto de Lucienne, que acariciara, e na tepidez de seus lábios.
Sobre a superfície lisa da água, a lua, como um óleo, traçava longos
sorrisos errantes. A água devia estar morna como uma boca, mole e
pronta a abrir-se sob um homem. Mersault, sempre sentado, sentia,
então, como a felicidade está perto das lágrimas, por inteiro absorto
nessa silenciosa exaltação em que se tecem e entrelaçam a
esperança e o desespero de uma vida de homem. Consciente, e, no
entanto, alheio, devorado pela paixão e desinteressado, Mersault
compreendia que a sua própria vida e o seu destino encerravam-se
ali, e que todo o esforço de agora em diante seria no sentido de
contentar-se com essa felicidade e enfrentar sua terrível verdade.
Agora, era preciso que se atirasse no mar quente, que se perdesse
para reencontrar-se, nadar ao luar e na tepidez, para que se calasse
dentro dele aquilo que restava do passado, e para que nascesse o
cântico profundo de sua felicidade. Despiu-se, desceu por entre os
rochedos e entrou no mar. Estava quente como um corpo, deslizava
ao longo do braço, colando-se às suas pernas, num abraço constante
que não podia definir. Nadava compassadamente e sentia os
músculos das costas ritmarem-lhe o movimento. A cada vez que
erguia um braço, lançava sobre o mar imenso gotas de prata, que
representavam, diante do céu mudo e vivo, a esplêndida semeadura
de uma colheita de felicidade. Depois o braço tornava a mergulhar, e,
como um arado vigoroso, sulcava, partindo as águas em dois para
nelas buscar um novo apoio e uma esperança mais jovem. Atrás dele,
da batida de seus pés, nascia um fervilhar de espuma, ao mesmo

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tempo que um marulhar de água, estranhamente claro na solidão e
no silêncio da noite. Ao sentir a sua cadência e o seu vigor, era
tomado de uma exaltação — avançava cada vez mais rápido, e logo
viu-se longe da costa, só no âmago da noite e do mundo. Pensou, de
repente, na profundidade que se estendia a seus pés e parou o
movimento. Tudo o que havia embaixo dele atraía-o como a face de
um mundo desconhecido, o prolongamento dessa noite que o
devolvia a si próprio, o coração de água e de sal de uma vida ainda
inexplorada. Veio-lhe uma tentação, que logo repeliu, uma grande
alegria do corpo. Nadou com mais força. Maravilhosamente cansado,
voltou em direção à margem. Nesse momento, entrou subitamente
numa corrente gelada e foi obrigado a parar, batendo os dentes e
com os gestos descoordenados. Essa surpresa do mar deixava-o
extasiado: o gelo penetrava-lhe os membros e ardia como o amor de
um deus, com uma exaltação lúcida e apaixonada que o deixava sem
forças. Voltou com mais dificuldade, e, já na margem, diante do céu e
do mar, vestiu-se, batendo os dentes e rindo de felicidade.
Quando voltou, foi invadido por um mal-estar. Do caminho que
subia do mar até a sua villa, conseguia ver o promontório rochoso, os
corpos lisos das colunas e das ruínas. E, de repente, a paisagem
inverteu-se, e ele se viu apoiado num rochedo, caído sobre um
arbusto de aroeiras, cujas folhas esmagadas exalavam o seu cheiro
forte. Com dificuldade, chegou à villa. O corpo, que o levara há pouco
aos extremos da alegria, mergulhava-o agora numa desgraça que o
prendia pelo ventre e lhe fechava os olhos. Fez um pouco de chá. Mas
havia apanhado uma panela suja para esquentar a água, e o chá,
gorduroso, causava-lhe nojo. Tomou-o, no entanto, antes de deitar-se.
Ao tirar os sapatos, nas mãos exangues, observou as unhas muito
rosadas, aumentadas, recurvadas até cobrir a extremidade dos
dedos. Jamais tivera essas unhas, que lhe davam à mão algo de
torturoso e doentio. Sentia o peito como que preso num torno. Tossiu
e escarrou normalmente várias vezes, embora a boca conservasse
um gosto de sangue. Na cama, longos tremores apoderaram-se dele.
Sentia-os subirem desde as extremidades do corpo e reunirem-se nos
ombros como dois filetes de água gelada, enquanto os dentes batiam,
por sobre os lençóis, que lhe pareciam molhados. A casa parecia-lhe
vasta, e os ruídos familiares que ouvia ampliavam-se até o infinito,
como se não encontrassem uma parede que pusesse freio à sua
ressonância. Ouvia o mar como um movimento de água e de pedras,
a pulsação da noite por trás das grandes vidraças e o uivar dos cães
nas fazendas afastadas. Sentiu calor, tirou as cobertas, depois sentiu
frio, e puxou-as. Nesse balanço entre dois sofrimentos, essa
sonolência e essa inquietação que lhe tiravam o sono, subitamente
tomou consciência de que estava doente. Veio-lhe uma angústia ao
pensar que talvez pudesse morrer, nessa espécie de inconsciência e
sem poder olhar à frente. Na aldeia, o relógio da igreja soou, sem que
ele conseguisse reconhecer o número de batidas. Não queria morrer

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como um doente. Para ele, pelo menos, não queria que a doença
fosse o que tantas vezes é — uma atenuação e como que uma
transição para a morte. O que desejava, ainda inconscientemente,
era o encontro de sua vida plena de sangue e de saúde com a morte.
E não a presença da morte e do que já era quase a morte. Levantou-
se, e com dificuldade, arrastou uma poltrona até a janela, sentou-se,
cobrindo- se. Por trás das cortinas leves, nos lugares em que as
dobras não engrossavam o tecido, ele via estrelas. Respirou
longamente e apertou os braços da poltrona para acalmar as mãos
que tremiam. Queria reconquistar a sua lucidez. “E possível”,
pensava. Ao mesmo tempo, pensava no gás, que ficara aceso na
cozinha. “E possível”, repetia. Também a lucidez era uma longa
paciência. Tudo podia ser ganho e alcançado. Batia com os punhos
nos braços da poltrona. Não se nasce forte, fraco ou com força de
vontade. As pessoas tornam-se fortes, tornam-se lúcidas. O destino
não está no homem, e sim à sua volta. Deu-se conta, então, de que
chorava. Uma estranha franqueza, uma espécie de covardia nascida
da doença devolvia-o à infância e às suas lágrimas. Sentia frio nas
mãos e um imenso desgosto no coração. Pensava nas unhas; sob a
clavícula, sentiu alguns gânglios, que lhe pareceram enormes. Lá
fora, toda aquela beleza espalhada sobre o mundo. Não queria deixar
o seu gosto e o seu ciúme de viver. Pensava nas tardes de Argel,
onde sobe ao céu verde o ruído dos homens que saem das fábricas
quando soa o apito. Entre o gosto do absinto, as flores selvagens em
meio às ruínas e à solidão das casinhas cercadas de ciprestes no
deserto de Sahel, tecia-se a imagem de uma vida, em que a beleza e
a felicidade assumiam um ar de desespero e em que Patrice
encontrava uma espécie de eternidade fugidia (4). Isso tudo ele não
queria deixar, e que essa imagem perdurasse sem ele. Cheio de
revolta e de compaixão, viu, então, o rosto de Zagreus voltado para a
janela. Tossiu longamente. Respirava com dificuldade. Sufocava nas
roupas de dormir. Estava com frio. Ardia em uma imensa cólera turva,
e, com os punhos cerrados, com todo o sangue latejando com força
no crânio, e com o olhar vazio, esperava o novo calafrio que o faria
mergulhar ainda uma vez na febre cega. O tremor veio, devolvendo-o
a um mundo úmido e fechado, em que seus olhos se fecharam e
fizeram calar a revolta do animal, ciumento de sua sede e de sua
fome. Mas, antes de adormecer, teve tempo de ver a noite clarear um
pouco, por trás das cortinas, e de ouvir, com o amanhecer e o
despertar do mundo, como que um imenso chamado de tristeza e de
esperança, que, sem dúvida, dispersava o seu terror da morte, mas,
ao mesmo tempo, lhe assegurava que acharia uma razão de morrer
naquilo que fora toda a sua razão de viver.
Quando acordou, o dia já estava avançado e toda uma multidão
de pássaros e insetos cantava no calor. Pensou que Lucienne devia
chegar naquele mesmo dia. Estava prostrado, e voltou para a cama
com dificuldade. Sentia na boca o gosto da febre e a fraqueza que,

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