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Matão, SP
7ª edição
2014
Copyright © 1993 by
CASA EDITORA O CLARIM
Propriedade do Centro Espírita O Clarim
7ª edição: agosto/2014, 6 mil exemplares
Impresso no formato 16x23 cm
1ª edição: 1993
ISBN 85-7357-004-0
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser fotocopiada, gravada,
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Capa e projeto gráfico: Equipe O Clarim
Revisão: Cássio Leonardo Carrara
Paz em Jesus!
Com as bênçãos do Mestre conseguimos terminar mais uma etapa da
tarefa que nos foi confiada, e é com infinito júbilo que entregamos este
trabalho, fruto do esforço e da dedicação de muitos, para a apreciação de
todos aqueles que se interessarem em folheá-lo. Os acontecimentos aqui
relatados são verídicos e representam a luta ingente de um grupo de
espíritos ligados por laços profundos do pretérito em busca do
autoaprimoramento.
As emoções que nos tocam a alma são imensas e inesgotáveis, buscando
reviver as imagens de uma existência há tanto tempo transcorrida e que
nos foi muito dolorosa.
O drama se desenrola na França, na época em que se iniciava o último
quartel do século XII, durante o reinado de Filipe Augusto.
A humanidade, de modo geral, atravessava período muito difícil,
mergulhada em trevas densas.
A religião cristã enveredara por caminhos ínvios, e a luminosa
mensagem do Cordeiro de Deus se escurecera, confinada nas sombrias
paredes dos claustros.
Os homens faziam as chamadas Guerras Santas, e nas Cruzadas
matavam seus irmãos em nome do Mestre Nazareno – que só pregara o
amor e a paz, a concórdia e o perdão –, sob o pretexto de defender-lhe o
Santo Sepulcro.
O sofrimento e a dor campeavam entre o povo sofrido e faminto.
Desesperançados, os homens se afastavam de Deus, não O
compreendiam, e a Inquisição, terrível flagelo para a humanidade, instala-
se, iniciando seus passos de destruição e morte.
A ambição e o luxo, a inveja e o poder andavam juntos, e as palavras
imorredouras do Evangelho foram abafadas pela imperfeição e pelo
arbítrio do homem, representados pela Igreja Romana.
No entanto, fiel ao trabalho de sustentação da humanidade, na sua luta
redentora em busca da evolução, o Criador mandou um de seus
mensageiros, preposto de Jesus e companheiro das primeiras horas do
Cristianismo nascente. Revolucionaria a Igreja, pregando a humildade e o
amor, tendo gravado em tintas indeléveis em suas lembranças mais caras
a figura amorável do Cristo, quando falava aos corações nas doces e
consoladoras prédicas da Galileia distante.
Nasce então, ao apagar das luzes do século XII, na Itália, na região da
Úmbria, aquele que viria a ser Giovanni Francesco di Bernardone, mais
conhecido como Francisco de Assis, cujo exemplo seria um farol
iluminando as trevas, através de uma vida extraordinária de amor ao
próximo.
O relato que aqui faço é, também, uma justa homenagem a dois grandes
amigos de outras eras e que deixaram uma lição inesquecível de trabalho e
abnegação em plena e sombria Idade Média. Aos espíritos Louise e Victor a
nossa gratidão e o nosso amor, pelo muito que fizeram em nosso benefício.
Que os fatos aqui narrados possam servir de exemplo a todos aqueles
que vierem a tomar conhecimento deles, incutindo em suas mentes a
necessidade de vencer as próprias imperfeições através da vivência dos
postulados do Cristo.
Que Jesus possa fortalecer-nos o ideal de servir e guiar-nos os espíritos
ainda frágeis para que sejamos realmente aqueles trabalhadores da última
hora dignos do seu salário.
Jésus Gonçalves
Rolândia, 12 de abril de 1991
Primeira Parte
Capítulo I - O retorno
Farei o que for possível para demovê-lo da decisão que tomou tão
precipitadamente.
Espero que sejas feliz. Deus sabe o que faz, meu filho, e saberá dar-te o
auxílio de que tanto necessitas.
Recebe a bênção daquela que te ama ainda e sempre como um filho muito
querido.
Louise
Enrolou o papel e guardou-o junto ao coração, seguindo rumo ao
desconhecido. Era a primeira vez na vida que se sentia realmente só e
abandonado.
Mas Pierre era dotado de um caráter combativo e forte. Considerou que
teria de enfrentar a situação. Agora a vida estava em suas mãos e faria dela
o que bem entendesse.
Não se pôde impedir de olhar para trás e dar um último adeus àquele
que fora seu lar durante tantos anos. Sentiu o coração comprimido de
angústia ao ver, ao longe, as torres do castelo de Montpellier recortando-
se no céu muito azul e os muros que rodeavam a propriedade, com seus
largos portões, que agora permaneceriam cerrados para ele.
Suspirou, procurando gravar na retina a imagem tão querida,
esfumaçada pela distância. Em seguida virou-se, montou o animal e deixou
o lugar.
Capítulo V - Os salteadores
Sem rumo e sem descanso, Pierre cavalgou até sair das terras do conde
de Montpellier. Só então parou para repousar um pouco. Anoitecera.
Estendeu a manta que trouxera e deitou-se no chão, tendo sobre a cabeça
o zimbório estrelado.
A beleza da noite tinha uma linguagem muda que falava da onipotência
de Deus.
Sentia fome. Não quisera, porém, sair levando coisa alguma. No corpo, a
roupa que vestia no momento da briga, ainda suja de poeira. Apenas o
cavalo trouxera, por ser realmente seu, presente daquele que considerava
como seu avô materno. Agora o animal pastava tranquilamente, livre dos
arreios que o constringiam, também num merecido repouso, depois da
longa caminhada e do dia cansativo que tivera.
Procurando esquecer as necessidades mais prementes, Pierre ficou a
meditar observando os pontos luminosos no céu. Por que sua vida era tão
difícil? Por que, para ele, as coisas tinham de acontecer daquela forma?
Lembrou-se dos primeiros anos de vida, fazendo um íntimo retrospecto.
Fora repudiado pela própria mãe, que não quisera amamentá-lo e não
assumira a maternidade, abandonando-o ao relento junto ao portão do
castelo de Montpellier.
Ali recebera afeto, carinho e atenção. Era com ternura que retinha na
memória a imagem daquela criatura que fora o anjo bom em sua vida:
Louise, sua mãe, seu tudo. Amava-a com profundo amor filial,
considerando-a verdadeiramente sua mãe, que o fora de fato. Lembrava-se
também com muito carinho de Margarida, sua ama-de-leite, que sempre
velara por ele e que lhe salvara a vida, nutrindo-o com o próprio leite,
quando aportara àquela casa, frágil e desvalido.
Lembrava-se dos folguedos ao lado de Lucas e da tranquilidade e
segurança que sentia.
Apenas a figura do conde Ricardo surgia envolta em tintas escuras.
Desde o princípio jamais gostara dele. Lembrava-se de pequenas coisas
que o magoaram muito e que nunca contara a ninguém, nem sequer à mãe
adotiva. Depois, com grande esforço, o conde conseguiu tolerar sua
presença. Esta é que era a verdade; ele era apenas suportado dentro do lar.
Nos melhores momentos de entendimento – e houve bons momentos –,
pensara ter finalmente conquistado o coração daquele homem rude e
sombrio, mas a verdade é que o conde apenas aprendera a tolerar sua
presença.
A amizade entre Pierre e Lucas era algo precioso. O companheirismo
entre ambos era comovente e a condessa gostava de vê-los juntos.
Tempos depois, porém, começaram as rusgas e os desentendimentos,
que coincidiram com o aparecimento da pequena jovem em suas vidas. Foi
como se uma lufada de ar frio varresse tudo o que existira até então de
bom entre eles.
Nunca mais viram a menina dos seus sonhos. Voltavam sempre à aldeia,
cavalgando nas imediações da choupana onde ela morava, mas em vão. A
mãe, com certeza, a mantinha entre as quatro paredes da casa para evitar
encontros indesejáveis. Mesmo assim, porém, ela continuou entre eles
como uma presença real.
Não conseguia entender como chegaram à briga. Estavam conversando
calmamente, indispuseram-se por uma bagatela, e dos insultos aos murros
foi um passo. Tudo tão rápido! Não tivera tempo de pensar e analisar o que
estava acontecendo. Lembrava-se apenas de que fora envolvido por uma
onda de ódio tão grande que nada mais vira à sua frente.
Depois, a entrada agressiva do pai. Se não tivesse tomado as dores do
filho, Lucas, eles provavelmente teriam se entendido, como já acontecera
tantas vezes antes. Brigavam, mas logo faziam as pazes, pois um não
conseguia viver sem o outro.
Mas, não. O conde Ricardo interferira, passando a espancá-lo
violentamente. Possuindo físico avantajado e fortes punhos, além de ser
soldado acostumado às pelejas, levara a melhor. Ficara somente um gosto
amargo de sangue na boca e revolta em seu íntimo.
Não conseguia perdoar-lhe o que fizera. Humilhara-o perante todos,
expulsara-o de casa como a um cachorro, sem o menor respeito, a menor
consideração, sem falar no afeto que, depois de tantos anos de vida em
comum, julgara existir, pelo menos um pouco. Jogara em seu rosto ferido a
condição de enjeitado que sempre lhe pesara na mente e no coração. Agira
com ele como se fosse seu inimigo. Por quê? Por quê?
Sempre procurara ser agradecido por tudo quanto recebera, ajudando
quando necessário, até a administrar as lavouras. Sempre que Miguel
precisava de algo, que não podia pedir a ninguém, era a ele, Pierre, que
recorria.
Não conseguia entender essa revolta e esse rancor gratuitos contra sua
pessoa. Jamais se lembrava de ter dado quaisquer motivos para isso.
Suspirou, enquanto duas lágrimas ardentes lhe queimaram a face... Por
quê? Por quê?!...
Agora, o que seria de sua vida? Não tinha para onde ir. Àqueles que
sempre considerara como seus parentes não queria recorrer. O melhor era
romper de vez com o passado. Estava realmente órfão. Ninguém o amava,
ninguém se preocupava com ele.
Lembrou-se novamente da mãe adotiva. Ela o amava, não poderia ser
ingrato, e com certeza estaria preocupada com ele, mas jamais teria
coragem de colocar-se contra o marido e senhor e a favor dele, Pierre.
Um profundo sentimento de solidão o acometeu e soluçou
doridamente. Todos tinham alguém, fosse quem fosse, e ele não tinha
ninguém.
Depois de muito chorar e meditar no silêncio da noite, ouvindo apenas
o fundo musical dos grilos e dos sapos, adormeceu.
Naquele estado que ocorre entre a vigília e o sono, tênues imagens
começaram a deslizar pela retina espiritual e, dos refolhos da alma,
antigas lembranças afloraram.
Via-se como um guerreiro poderoso e cheio de glórias, brandindo a
espada e dizimando criaturas inocentes, ateando fogo em seus lares,
mutilando homens indefesos, desonrando mulheres, destruindo crianças e
velhos e aprisionando jovens.
Percebia que muitas das criaturas que via tinham relação com as que
faziam parte de sua vida atual, como o conde Ricardo, a mãe adotiva e
Lucas. Viu depois uma jovem de peregrina beleza e de profundos olhos
azuis que o ameaçava, fitando-o com ódio. Sentiu-se mal. Lembrou-se
então de onde já vira aqueles olhos. Eram os mesmos da camponesa que
conhecera um dia e que era o motivo de suas divergências com Lucas. Mas,
nada poderiam ter em comum. A outra jovem estava muito bem vestida,
coberta de joias, e a camponesa era uma pobre menina de vida miserável.
Ainda assim, sentia que eram uma e só pessoa e que a amava
profundamente. Deveria ter prejudicado muito a “outra”, pois ela o
detestava, mas sabia que a amava acima de todas as coisas e que, por ela,
degradara-se.
Agitou-se. O sentimento e as emoções que o envolviam eram
antagônicos; um grande mal-estar íntimo o abalava, apesar do prazer
imenso, da felicidade indescritível de revê-la. Aos poucos tudo se apagou e
Pierre mergulhou em sono profundo.
No dia seguinte acordou com o barulho dos passarinhos e com o sol a
brincar em seu rosto. Não obstante tudo o que acontecera na véspera, a
situação estranha e difícil em que se encontrava, o abandono dos entes
queridos, acordara sentindo-se bem. Estranhamente confortado,
despertara tranquilo, como se nada tivesse a temer.
Lembrava-se vagamente do sonho que tivera. Ou não seria sonho?
Parecera-lhe estar acordado, embora sonolento, e as imagens deslizavam à
sua frente como se estivessem vivas, conquanto envoltas em leve neblina.
Estava consciente de si mesmo e lembrava-se das emoções desencontradas
que sentira.
Agora tudo se assemelhava a uma ilusão, uma alucinação dos sentidos
e, por mais que se esforçasse, não conseguia recordar tudo o que vira. Era
como se as imagens tivessem sido apagadas de sua mente.
Vinha-lhe à memória, porém, a figura de uma jovem muito bela, cuja
simples lembrança lhe acelerava as pulsações do coração.
Reconhecia-se calmo, compreendendo que acontecera exatamente o
que deveria ter acontecido. Era como se merecesse as provações pelas
quais estava passando. Percebia também que o seu estado de espírito atual
tinha estreita relação com o estranho “sonho” da noite anterior.
Levantou-se mais bem disposto e com coragem de enfrentar a nova
situação.
Procurou nas imediações algo com que pudesse saciar a fome.
Encontrou algumas frutas silvestres e as comeu com vontade. Depois
bebeu água de uma mina próxima dali. Assim, mais reconfortado,
satisfeitas as exigências mais prementes, ficou a meditar.
O que faria daí por diante? Não tinha mais ninguém, nada que o
tolhesse. Precisava encontrar um local para abrigar-se. Abriu o saco de
couro que a serva lhe trouxera a mando da mãe. Havia ouro em
quantidade e muitas joias também. Poderia até comprar uma pequena
propriedade. Recursos não lhe faltariam.
Olhou para os lados, indeciso. Para onde ir? Que direção tomar? Se
tomasse a direção sul facilmente poderia chegar ao Mediterrâneo, pois
Montpellier se situava próximo da orla marítima, e não teria maiores
dificuldades em conseguir uma embarcação que o levasse para longe.
Poderia ir para a Espanha, por exemplo, ou para a Itália, que sempre o
atraíra. Se tomasse a direção sudeste, contornando a costa, poderia ir para
a Provença, instalando-se numa de suas cidades, como Marselha ou
Toulon.
Estava dentro de uma pequena mata, cujas árvores frondosas tapavam a
claridade. Abrigara-se num local que, só agora, com a luminosidade do dia,
podia ver perfeitamente. O caminho bifurcava-se mais adiante. Não
poderia voltar. Logo, teria que escolher uma direção.
Sem pensar tomou o rumo norte. Não seria isso um aviso ou uma
inspiração de Deus? Com essas cogitações, cavalgando sem pressa, atingiu
Clermont com alguma dificuldade. Continuando, contornou Bourges,
seguindo sempre para o norte.
Não sabia há quantos dias estava viajando. Perdera a noção do tempo,
despreocupado de tarefas e obrigações. Sentia-se, porém, cansado.
Durante esse período alimentou-se de frutos silvestres. Às vezes penetrava
em alguma aldeia, ou em alguma pequena propriedade à beira do caminho
para comprar algum alimento, na maioria das vezes pão, queijo e vinho.
Lamentava a falta de um leito macio e do conforto de um lar. Resolveu
pernoitar na primeira estalagem que encontrasse no trajeto.
Anoitecia quando chegou a uma pequena aldeia. Dirigiu-se à estalagem
e pediu um quarto. Após o banho tomou a primeira refeição de verdade
desde que fora expulso de casa. Comeu com sofreguidão. Estava faminto.
Subiu depois para o quarto ignorando os olhares convidativos da moça
que lhe trouxera a comida. Jogou-se no leito e adormeceu quase que
instantaneamente, só acordando no dia seguinte com o sol a pino.
Após tantas horas de sono despertou bem disposto. Seu cavalo, refeito
da cansativa jornada e bem alimentado, pastava tranquilamente nos
fundos da estalagem, que funcionava como um posto de troca de mudas.
Retomou a caminhada, sob a curiosidade do estalajadeiro, que
estranhava o fato de um rapaz tão jovem, de boa aparência e maneiras
finas, viajar sem acompanhamento e portando vultosa quantia. Não que
tivesse visto o ouro, mas a generosidade do cavalheiro, que lhe pagara
mais do que pedira pelo quarto e pelas refeições, e a presença de uma
pequena mas pesada bolsa de couro que o rapaz guardava zelosamente,
nunca apartando-se dela, fizeram com que os olhos do taberneiro
brilhassem cobiçosamente.
Pierre partiu, não sem antes ouvir o aviso do estalajadeiro para que
tivesse cuidado. Aquelas estradas, segundo ele, estavam infestadas de
bandidos que não trepidariam em matá-lo para roubar-lhe os valores que,
porventura, levasse consigo e até mesmo seu cavalo. Que viajasse apenas
durante as horas do dia e não se aproximasse de nenhum estranho.
Pierre agradeceu sensibilizado as palavras de interesse do taberneiro e
partiu numa nuvem de poeira.
Não sabia por que, mas sentia que deveria seguir em frente. Aquela
aldeia, conquanto simpática e tranquila, ainda não era o seu lugar. Viajaria
até encontrar um local onde pudesse estabelecer-se. Afinal, tinha recursos
suficientes para viver com relativo conforto e sem preocupações futuras.
Pelo menos por enquanto. Tinha certeza de que perceberia quando
chegasse a hora.
Ao anoitecer ainda não encontrara viva alma. Nenhuma casa onde
pudesse pedir abrigo para passar a noite. Resolveu alojar-se em meio à
natureza, como tantas vezes fizera antes. Estava exausto e com fome.
Resignou-se ao que não poderia remediar e, após comer qualquer coisa,
adormeceu, embalado pelo sussurro do vento, sob a luz das estrelas e
ouvindo o coaxar dos sapos, o pio do mocho e o cricrilar dos grilos.
Despertou altas horas da noite assustado. Parecera-lhe ouvir o rumor
de passos sobre as folhas secas. Abriu os olhos e permaneceu imóvel, à
escuta. A fogueira, que fizera para afugentar os animais selvagens e as
cobras, estava quase apagada. A noite, sem lua, era muito escura.
Súbito, alguém pulou sobre ele. Lutou bravamente. Era encorpado,
apesar de muito jovem ainda, e seus fortes punhos atingiram o assaltante
em pleno rosto, jogando-o para trás. Em seguida, outro homem se
aproximou por detrás e o atingiu na cabeça, com violência.
Tudo se apagou. Quando abriu os olhos já era dia alto. Uma dor terrível
o fez levar a mão à cabeça, retirando-a cheia de sangue. Tentou levantar-
se e não conseguiu. Sentia-se fraco.
Lembrou-se do seu tesouro. Procurou a bolsa de couro e nada
encontrou. Olhou em volta, aparvalhado, e não viu o seu cavalo.
Fora roubado. Malditos! Estava agora sem recursos, sem a montaria e
só.
Encontrava-se no meio da mata, num lugar completamente
desconhecido e absolutamente baldo de recursos. Nesse momento
acreditou-se o mais miserável dos homens, a mais infeliz das criaturas.
Deitou-se no chão e chorou.
Algum tempo depois, tendo extravasado a sua dor e estando mais
calmo, refletiu que ali não poderia permanecer. Estaria sujeito a novas
atrocidades pelos salteadores de estradas e bandidos que infestavam a
região.
A cabeça doía horrivelmente. Rasgou uma tira da camisa e com ela
envolveu a cabeça, como um torniquete, para estancar o sangue.
Caminhou com muita dificuldade, mas confiante que, em algum lugar,
receberia assistência. Ali não poderia permanecer.
A cabeça latejava. Sentia tonturas e vez por outra era obrigado a parar
para descanso. Suas pernas dobravam-se ao peso do corpo, mas Pierre,
com a vontade férrea de que era dotado, redobrava as forças e prosseguia
com determinação.
Algumas horas depois encontrava-se exausto. Além disso estava
faminto, pois não se alimentara desde o dia anterior, e morto de sede. Sua
garganta estava ressequida e a cabeça escaldava. O sol ainda estava alto e o
calor insuportável. Apesar disso seu corpo era violentamente sacudido por
calafrios.
Com lágrimas nos olhos pelo ardor da luz solar, que se confundiam com
o suor que escorria, abundante, Pierre pareceu vislumbrar uma carroça
que se aproximava, vindo de uma trilha que cruzava a estrada um pouco
adiante.
Mais animado, procurou vencer, tão rápido quanto lhe permitiam as
parcas energias, a distância que o separava da pequena carroça.
Aproximando-se viu um senhor de idade avançada que, rédeas na mão,
tentava parar os animais. O velho o viu e percebeu que estava em
dificuldades.
Pierre tentou pedir ajuda mas estava no limite da sua resistência.
Depois disso mergulhou no vazio e tudo se apagou.
Capítulo VI - Joachim, o judeu
Aos poucos Pierre foi adaptando-se à vida solitária que passara a levar.
Após a morte de Pai Joachim foi que percebeu o quanto estavam unidos e a
falta que sentia do velho amigo e pai por adoção.
Tudo na pequena herdade trazia o selo do antigo dono. Em cada árvore
plantada, em cada utensílio de cozinha via seu benfeitor. Principalmente
quando tomava nas mãos o velho texto sagrado sentia mais próxima a
presença do companheiro que se fora. E nesses momentos os olhos se lhe
umedeciam de saudade e sentia como se ele estivesse ali, junto, repetindo-
lhe sorridente as lições inesquecíveis do Mestre Nazareno.
Com o passar dos dias a dor foi-se diluindo e mergulhado no trabalho
não via o tempo correr.
Acostumou-se à solidão e a fazer tudo sozinho. Tornou-se calado e
introspectivo, à força de não ter com quem conversar. Amadureceu física
e moralmente. Seus traços se acentuaram, a boca adquiriu um ricto de
determinação. O queixo, que a barba cobria, lhe deu ar de firmeza e os
olhos se tornaram mais aguçados e vivos em contato com animais, seus
únicos companheiros.
No mercado dirigia ligeiras palavras, não mais do que o necessário,
àqueles que o interpelavam. Trocava as mercadorias, comprava o que
estivesse faltando e retornava ao sítio para prosseguir na vida solitária e
melancólica.
Quando lhe perguntavam por que não se casava ele respondia
secamente:
– Sinto-me bem como estou.
E dava por encerrado o assunto. Aos poucos os habitantes do povoado
se acostumaram aos seus modos rudes e deixaram de preocupar-se com
ele.
Certa vez, quando fazia compras no mercado e entretinha-se a escolher
algumas mercadorias, foi tomado de vivo espanto. Ao levantar os olhos
percebeu, a algumas dezenas de passos, um casal que se ocupava em
separar algumas frutas.
O homem, denunciando certa idade, possuía cabelos e barbas grisalhos,
vestes pobres mas limpas, e conversava em altos brados com o dono da
barraca, reclamando da qualidade dos produtos postos à venda.
Mas o que lhe chamou a atenção foi a jovem que o acompanhava e que,
por certo, deveria ser sua filha. De talhe elegante, sem ser excessivamente
magra, possuía gestos delicados e andar ondulante. Seus cabelos deveriam
ser belos, a julgar das madeixas que teimavam em soltar-se do lenço que
trazia envolvendo-lhe a cabeça.
Parecia-lhe reconhecer alguém através dos traços delicados: o perfil
que vislumbrava de longe lembrava-lhe alguém que já vira.
Aproximou-se vivamente interessado e, quando a jovem levantou a
cabeça, pôde perceber os belos olhos azuis, o nariz pequeno e bem feito, a
boca de linhas perfeitas. A pele clara deveria ser macia e desejou tocá-la.
Lembrou-se incontinenti daquela outra jovem, quase uma menina, que
vira esquálida e ofegante fugir aos maus tratos de sua mãe. Seria ela
realmente? Os anos a haviam modificado fisicamente; tornara-se mais
bela, mais mulher, crescera e já não era mais aquela menina magra. Seus
contornos se arredondaram, a cintura afinara e os seios apareciam sob o
tecido leve da blusa decotada. Estava realmente muito diferente, mas era
ela mesma, tinha certeza.
Seu coração pulsava desordenadamente e as têmporas latejavam. Não
teve tempo, porém, de dirigir-lhe a palavra. Ela afastou-se, algo receosa,
ao perceber-lhe o olhar insistente e, tomando o braço do pai, sussurrou
algo em seu ouvido e foram embora.
Não desejando perdê-la de vista, Pierre os acompanhou a uma certa
distância. Viu-os caminharem pelas vielas até pararem defronte a uma
pequena casa, onde penetraram.
O desejo de Pierre era permanecer do lado de fora da humilde moradia
esperando que ela saísse, para abordá-la, mas a porta e as janelas
permaneceram cerradas.
Resignou-se a voltar para a chácara sem vê-la novamente, conquanto se
sentisse tomado de interesse incomum pela bela moça. Pensou que não lhe
faltariam oportunidades de revê-la. Sabia onde residia e não lhe seria
difícil aproximar-se sob um pretexto qualquer.
Naquela noite demorou a conciliar o sono, pensando na jovem que vira
no mercado, mas adormeceu cheio de esperanças e sentindo um novo
estímulo para viver.
Nos dias seguintes, porém, não pôde voltar à vila, apesar do ardente
desejo que possuía de rever a moça que tão profundamente o
impressionara.
A chuva caía, pesada. Grossos pingos encharcavam o solo e corriam em
fios d’água, formando pequenos regatos. O tempo permanecia fechado e
um ar cinzento cobria tudo.
Pierre fazia o estritamente necessário. Pela manhã envolvia-se numa
grossa capa de lã, calçava botas pesadas e ia tratar da criação. Voltava e
passava o resto do dia ocupado em fazer cestos de vime, que aprendera
com o velho Joachim, em remendar algumas roupas para que pudessem
durar um pouco mais, ou em ler junto ao fogo que crepitava, contente.
De quando em quando abria a janela, olhava a chuva que caía em
bátegas, suspirava e voltava para se aquecer junto ao fogo. A temperatura
caíra e fazia frio, não obstante o inverno não ter chegado ainda.
Isso durou uma semana. No sétimo dia o tempo amanheceu limpo.
Pierre acordou com a claridade do sol entrando pelo quarto. Abriu a janela
e um sol morno o envolveu num banho de luz. Feliz, contemplou as
plantas que se apresentavam lavadas e brilhantes. As copas das árvores
balouçavam mansamente sob a brisa matutina, ainda com gotículas de
chuva em suas folhas. As flores abriram suas corolas para receber o beijo
do sol e os passarinhos cantavam no arvoredo. Do chão vinha um cheiro
bom de terra molhada.
O jovem Pierre sorriu. Afinal, a vida era bela e digna de ser vivida. Em
seu peito, pleno de energia e vigor, a juventude estuava.
Arrumou-se com esmero. Vestiu a melhor roupa que possuía, calçou as
botas, penteou os cabelos e tomou o rumo da aldeia. Levava algumas
hortaliças para trocar por gêneros de que estava precisando. Como
aproximar-se da jovem? Conseguiria vê-la? Os pensamentos
turbilhonavam em sua cabeça em grande expectativa.
Atravessou as ruelas que o conduziriam até a feira. O movimento era
grande. Após a chuva que caíra por muitos dias consecutivos, todos
queriam aproveitar o sol.
O vozerio na praça era ensurdecedor e desagradava profundamente a
Pierre, desacostumado de barulho.
Fez o que tinha que fazer, olhando para todos os lados a ver se
encontrava a dama dos seus sonhos. Mas, nada. Parece que todos os
habitantes da aldeia haviam saído para as ruas, menos ela.
Já desistindo de encontrá-la, Pierre passou por uma taberna e ouviu
gargalhadas sonoras. Pareceu-lhe reconhecer a voz e voltou-se para ver
quem ria tão alto. Em torno de uma pequena mesa encontravam-se três
homens conversando animadamente. Com surpresa, reconheceu num
deles exatamente naquele que ria alto, o acompanhante da jovem que
tanto o impressionara e que ele julgava fosse seu pai.
Subitamente ocorreu-lhe que fazendo amizade com o pai chegaria até a
filha. Não pensou duas vezes. Entrou na taberna e pediu uma caneca de
vinho. Sentou-se observando a outra mesa e aguardando uma ocasião
favorável para aproximar-se.
Pouco tempo depois os dois amigos foram embora e o velho ficou
sozinho na mesa.
Pierre tomou da sua caneca e aproximou-se do estranho.
– Senhor, poderia sentar-me à tua mesa?
O estranho levantou a cabeça, surpreso, e Pierre continuou:
– Estou só e vendo que os amigos te deixaram pensei que poderíamos
beber juntos. Aceitas mais vinho?
O homem fez um gesto de assentimento, pedindo a Pierre que se
sentasse.
– Boa ideia! Não gosto de beber sozinho. Mas, não me lembro de tê-lo
visto antes, amigo. És forasteiro aqui?
– De certa forma. Não resido na aldeia, mas tenho uma propriedade
rural não muito longe daqui e venho sempre ao mercado.
– Ah! Mas não tens modos de camponês. Pareces mais um gentil-
homem. Como te chamas?
– Pierre, Senhor, para te servir. A mim, porém, pareces conhecido. Será
que nunca nos encontramos antes?
– Se já nos vimos, não me recordo.
– Sempre moraste aqui? – perguntou Pierre, desejando arrancar
informações do homem.
– Não. Vim do sul.
– Do sul? Mas não é muito longe?
– Sim, bastante. Já ouviste falar em Montpellier?
– Já ouvi falar – respondeu Pierre devagar.
– Pois bem. Residia ali perto, nas imediações. Minha mulher morreu e
logo depois ofereceram-me trabalho por estas bandas. Um parente de
minha falecida esposa e que depois me deixou na mão. Mudei-me para cá
com minha filha e desde então luto pela vida.
– Tens uma filha, então?
– Sim, uma bela rapariga. Sei que sou rude e grosseiro, mas minha filha
tem educação refinada. É muito prendada. Cozinha divinamente, embora
não tenha nascido para esse tipo de serviço. É uma dama! Mas sabes, sou
pobre e não posso pagar alguém para fazer os serviços mais pesados.
O velho, já sob o efeito da bebida, falava muito, desatando a língua, e
Pierre não deixava sua caneca vazia.
Durante horas conversaram bastante e Pierre ficou informado sobre
tudo da vida dele. Fingia uma alegria que não sentia, falava pouco e ouvia
muito, e quase não bebeu, para manter-se lúcido, conquanto fingisse
sempre encher a própria caneca tanto quanto a do acompanhante.
Quando percebeu que o velho não conseguiria andar sozinho, falou
evidenciando pesar:
– Lamento, meu amigo, mas agora preciso retirar-me. Folgo ter
encontrado companhia tão agradável, mas não faltarão oportunidades,
não é?
O outro, com a língua enrolada, concordou, tentando levantar-se.
Caiu pesadamente na cadeira. Pierre, solícito, ofereceu-se para levá-lo
até a casa.
– Não quero incomodar-te, amigo Pierre.
– Incômodo nenhum, Antoine. Terei muito prazer em acompanhar-te.
Tua filha já deve estar preocupada com a demora, pois não?
– É verdade!
Pierre pagou ao taberneiro e conduziu o velho até a pequena carroça.
Com o coração aos saltos o rapaz parou defronte à casa em que sabia
residir o amigo, que adormecera sob os efeitos da bebida.
Bateu na porta e logo ouviu leves passos que se aproximavam. A jovem
abriu-a e estacou, surpresa, ao ver o estranho.
Antes que tivesse tempo de dizer algo, Pierre falou-lhe a que vinha:
– Mademoiselle, teu pai bebeu um pouco mais do que devia e trouxe-o
para casa.
Os olhos da moça desviaram-se para a carroça e a expressão mudou:
– Papai!
– Não te preocupes, Mademoiselle, ele está bem. Onde posso colocá-lo?
Pegou-o pelas pernas, jogando-o nas costas, e o levou para o interior,
depositando-o no leito.
– Não sei como agradecer, Monsieur. Papai muitas vezes se excede, mas
nunca ficou assim, acredita.
– Oh! Acredito, Mademoiselle!
Ficou parado, com o chapéu na mão, sem saber o que dizer.
A moça fitava-o com estranheza.
– Já nos vimos antes, Senhor?
– É possível, Mademoiselle – respondeu de forma evasiva. – Bem, vou
retirar-me. Boa noite.
A jovem agradeceu novamente e Pierre se afastou com o coração
satisfeito. A partir daí um novo relacionamento se estabeleceu. No dia
seguinte, após a execução das suas tarefas, Pierre retornou desejoso de
saber notícias da saúde de Antoine.
Encontrando-o desperto e apenas sofrendo ligeira indisposição,
resquício da bebedeira da noite anterior, congratulou-se com o velho
Antoine por encontrar-se bem. O amigo agradeceu o auxílio e as atenções
dispensadas à sua pessoa e entabularam animada conversação.
A jovem, esquiva, permaneceu no interior da moradia enquanto os
homens palestravam na sala, só aparecendo quando ouviu que seu pai a
chamava:
– Marianne!
Surgiu, serena e digna, na soleira da porta.
– Sim, meu pai. Chamaste-me?
– Minha filha, Pierre ficará para cear conosco.
Como Pierre percebesse certo desagrado na reação da jovem,
delicadamente interveio:
– Mademoiselle, não desejo ser incômodo...
Marianne virou-se e respondeu, com voz firme, embora cortês:
– Incômodo nenhum, Monsieur. Meu pai te convidou, serás nosso
hóspede.
Pierre inclinou-se, agradecendo.
Os novos amigos continuaram conversando até que a jovem veio avisar
que a ceia estava servida.
Conduziram-no para o interior da casa onde, em outro aposento,
simples e despojado como o primeiro, encontrava-se posta uma mesa
recoberta por uma toalha tão limpa quanto surrada.
Marianne procurou justificar-se, tomando o prato nas mãos para servir:
– Se tivesse sido comunicada da tua visita, Senhor, poderia ter
preparado algo melhor. Infelizmente só temos um guisado de coelho, pão,
queijo e vinho.
– Para mim está ótimo, Mademoiselle. O aroma está tentador. Creio que
deprecias tua hospitalidade e, além disso, o vinho está excelente – falou,
provando um gole e evitando mostrar desagrado ao perceber a péssima
qualidade da bebida.
O velho estava eufórico. Gostava de conversar e raramente recebiam
visitas. Após o repasto, Pierre agradeceu:
– Mademoiselle cozinha muito bem e nada fica a dever às melhores
cozinheiras do Reino.
– Como sabes disso? – ela retrucou, surpresa.
Percebendo que falara demais, Pierre emendou:
– Não sei. Mas imagino, Mademoiselle, que não possa existir alguém que
cozinhe melhor. O guisado estava divino.
Ela ainda o fitou meio desconfiada, mas não querendo encompridar a
conversa, calou-se.
Pierre suspirou aliviado ao perceber que sua esfarrapada desculpa tinha
sido aceita. Não queria que soubessem quem ele era. Nada tinha demais
em ser filho do conde de Montpellier, mas queria romper de vez com essa
fase de sua vida e desejava que o julgassem apenas pelo que era agora: um
camponês.
Logo em seguida a jovem retirou a mesa e desapareceu por uma porta
que deveria conduzir à cozinha, e não mais a viu.
Já anoitecera quando se despediu, mais uma vez agradecendo a
acolhida, e partiu após ter prometido, a instâncias de Antoine, que voltaria
outras vezes.
Depois que Pierre saiu, Marianne recriminou o pai:
– Por que o convidaste para voltar outras vezes?
Ele respondeu com outra pergunta:
– Não deveria?
– Não gosto dele. Tem algo de estranho esse homem, pai. Não notaste
como se desconcertou quando disse que eu era a melhor cozinheira do
Reino?
– Ora, minha filha, quis agradar-te.
– Não, meu pai. Ele não falou como um camponês rústico e sem
instrução. Falou como se realmente tivesse convicção do que estava
dizendo. Era como se soubesse!
– Não fiques inventando coisas. Ele é um bom rapaz. Quero que o trates
bem.
– Por quê?
– Por quê? Porque é meu desejo que ele se sinta bem em nossa casa.
– Só isso? – perguntou novamente em tom de dúvida.
– Não. Creio que é um ótimo pretendente para ti. Não viste como te
olhava?
Ela balançou os ombros num gesto de pouco caso.
– Pois eu notei! Está muito interessado em ti, minha filha. É um bom
partido. Pelo que me contou, possui umas terras aqui nas redondezas. Não
deve ser rico, mas por certo tem o suficiente para dar-te o conforto que
mereces. Agora vai dormir. Pareces cansada.
– Tua bênção, meu pai.
– Deus te abençoe, minha filha.
Capítulo IX - Novos compromissos
2. Recordava-se naquele instante de uma existência anterior em que, como Tamara, tentara matar
seu inimigo, conde Godofredo de Ravena, conforme relato constante do livro Perdoa!... do mesmo
autor (nota do autor espiritual).
Capítulo XIV - Novo pedido de casamento
Ainda estava escuro quando irmão Felipe abriu os olhos. Fitou a alta
ogiva que deixava escoar ligeira claridade da madrugada. Tudo era
silêncio dentro do convento. Logo tocaria a sineta avisando a todos que
era hora de despertar.
Fazia frio. O inverno se aproximava e com ele a temperatura baixava,
tornando os dias mais tristes e monótonos.
Felipe suspirou. Ajeitou o cobertor aproveitando o resto dos minutos de
que dispunha.
Quanto tempo fazia que estava ali? Há quase três anos entrara nesse
mosteiro para não mais deixá-lo. Rebuscava na memória tudo o que se
passara desde então.
Ao perceber que foram logrados, seus perseguidores não contiveram a
cólera, mas nada mais puderam fazer. Pierre sumira sem deixar rastros.
Ao descobrir que a propriedade agora era do mosteiro, monsenhor de
B... buscou o diálogo com o prior, mas este apenas lhe exibiu o documento
assinado por Pierre doando tudo para a Igreja, e o religioso teve que dar-se
por satisfeito. Quanto ao destino de Pierre, o prior nada confidenciou, e
como monsenhor de B... nunca tivesse se encontrado com ele, nada ficou
sabendo sobre o seu paradeiro, conquanto desconfiasse que Pierre
estivesse dentro do próprio convento. A partir do momento em que lá
entrou, morreu sua personalidade antiga, sepultada para sempre. Agora,
apenas frei Felipe existia e ele estava perdido no anonimato entre a
multidão dos outros religiosos.
O conde de Montmorency e Drumond ficou realmente furioso porque
lhe escapou das mãos, definitivamente, a oportunidade de anexar a
herdade aos seus vastos domínios.
Charles, frustrado, desejava mover céus e terras para descobrir o
esconderijo de Pierre.
Quando alguém buscava o refúgio na Igreja e decidia abandonar o
mundo para se dedicar à vida religiosa era mantido rigoroso sigilo, se
assim o desejasse o futuro frade. Por isso, tanto quanto monsenhor de B...,
também Charles, embora tentasse descobrir onde se localizara ou se
escondera Pierre, esbarrava sempre com uma dificuldade enorme.
Ninguém sabia informar nada, nem seus amigos, vizinhos ou conhecidos.
Lucas não se preocupava com isso. Para ele era suficiente ter afastado
um rival. Agora, era preciso lutar para desfazer esse compromisso que
ameaçava destruir-lhe a felicidade.
Por outro lado, já se impacientava o duque de Bouillon com a demora
em marcar o casamento. A instâncias de seu pai, que estava com o
patrimônio ameaçado e contava com essa união para resolver seus
problemas financeiros mais prementes, Lucas não sabia o que fazer. Tinha
esperanças ainda de poder atrapalhar o romance de Charles com
Marianne e aí fugiriam juntos. Não lhe importava levar vida mais humilde,
desde que fosse ao lado dela.
Irmão Felipe ficava sabendo das ocorrências através das visitas de frei
Victor que, não obstante pertencesse ao mosteiro, passava grande parte
do tempo na igreja da aldeia, onde muitas vezes pernoitava, quando se
fazia tarde para retornar ao convento. No fundo da igreja ficavam suas
acomodações.
Por Victor, ficara sabendo que Charles e Marianne se casaram. Também
Lucas se casou com Régine após perder todas as esperanças, resolvendo de
uma vez por todas o problema da família.
Desiludido, já não tendo mais estímulo para lutar, Pierre tomou ordens,
definitivamente passando a ser frei Felipe.
Uma amargura muito grande se instalou em seu íntimo, a par de um
terrível desejo de vingança. Detestava a vida monástica, jamais sonhara
ser religioso e era com rancor feroz que executava suas tarefas e deveres
sacerdotais.
Ajoelhava-se com fingida humildade, e, enquanto seus lábios proferiam
automaticamente as orações, agarrado ao rosário, seus pensamentos eram
tumultuados e confusos. Repetia para si mesmo frases de vingança
alimentando o ódio em seu coração.
No início procurou manter a calma, ainda sentindo a influência
benéfica da primeira noite que passara sob o teto conventual, quando
recebera a visita de um “mensageiro celeste”, como pensava. As vibrações
amoráveis ficaram indelevelmente gravadas em suas lembranças mais
caras, como bênção de luz e paz no entrechoque das paixões. Mas, com o
passar do tempo, aos poucos essa influência benfazeja foi diluindo-se; o
dia a dia monótono do mosteiro, a vida sem atrativos e sem esperanças
fizeram com que ele se transformasse num ser amargo e revoltado.
Seus momentos mais tranquilos eram no campo, onde, ao trabalhar a
enxada, dava golpes na terra com furor, descarregando parte da energia
acumulada e do rancor concentrado, pois, caso contrário, poderiam até
comprometer-lhe a saúde física.
Voltava cansado dos labores no campo, mas sereno e menos amargo.
As horas que passava na biblioteca do mosteiro também eram
produtivas. Aprendera a ler e a escrever, fora educado por mestres
competentes, mas, após ser expulso do lar, nunca mais pudera dedicar-se
à leitura, salvo folhear o velho e surrado texto sagrado de Joachim.
Mas agora era diferente. Mesmo em seu castelo, ou melhor, no castelo
em que passara sua infância e parte da mocidade, não havia muitos livros.
O conde de Montpellier não era muito afeiçoado à educação e à cultura,
interessando-se preferencialmente por atividades mais violentas, como a
guerra.
Na biblioteca do mosteiro, porém, havia um tesouro em obras clássicas,
científicas, filosóficas e tudo o que era conhecido então. Grossos
compêndios sobre medicina, ocultismo, alquimia e muitos outros
assuntos.
Irmão Felipe passava horas esquecido de tudo, a compilar livros e mais
livros, debruçado sobre teorias e sistemas.
Um monge passou tocando a sineta. Eram quatro horas da manhã.
Levantou-se, vestiu-se e deixou a cela, caminhando pelos imensos
corredores onde outros monges, em silêncio, vinham unir-se a ele rumo à
capela.
Após os deveres religiosos dirigiram-se, sempre em silêncio, para o
refeitório e tomaram a primeira refeição do dia, muito simples, composta
de uma caneca de leite, pão e mel.
Depois foram para o campo, dedicando-se à lavoura até às nove horas.
Ao voltar, lavaram-se e foram para o refeitório almoçar. Após o almoço,
tiveram algumas horas de folga, quando Felipe aproveitou para ir à
biblioteca.
Victor chegou para visitá-lo. Felipe ficou contente em rever o amigo
depois de tantos dias sem se verem. Estimava de fato esse religioso, que
diferia em tudo dos demais.
Profundamente bom, frei Victor amava realmente o seu próximo,
procurando fazer o bem a todas as criaturas. Sabia compreender o
problema do seu semelhante e jamais se ouviu que se queixasse de coisa
alguma ou falasse mal de alguém.
Felipe sentia verdadeira veneração por ele e era sempre com agrado
que recebia sua visita. Só com Victor ele conversava, e nesses momentos,
raros por sinal, dedicavam-se a um diálogo franco e sincero, debatiam
problemas sociais e discutiam religião.
Com ninguém mais Felipe usava da franqueza que o caracterizava.
Ninguém gozava da sua confiança e ele sabia que, naquele ambiente, era
preciso sempre estar alerta.
Victor o conhecia profundamente, razão por que Felipe podia
perguntar por todos os que deixara para trás, especialmente Marianne.
– Como vai ela? – foi sua primeira pergunta.
– A Senhora Condessa vai muito bem, pelo que tenho ouvido dizer. Leva
vida tranquila ao lado do marido e nada lhe falta. É o que se comenta na
aldeia.
Felipe suspirou, baixando a cabeça. Sabia que o amigo e confidente não
aprovava seu interesse por Marianne, agora condessa de Montmorency.
– Felipe, meu amigo, procura olvidar o passado. Tens uma vida nova
pela frente e ela poderá ser muito rica em realizações.
Com azedume, Felipe retrucou:
– Onde? Aqui? Dentro destas paredes sombrias? Há momentos em que
sinto que vou enlouquecer, meu irmão.
E o infeliz rapaz, com os braços apoiados nos joelhos, apertava a cabeça
com as mãos como se quisesse esmagá-la. Fez uma pausa e continuou:
– Ah! meu amigo. Não sabes como é difícil desejar o céu e receber o
inferno; desejar a felicidade, o amor, a vida enfim, e obter a morte, o
sepulcro, o aniquilamento de todos os sonhos. Perco as noites pensando
nela. Como estará? Com certeza nos braços “dele” fruirá as venturas do
amor; ele verá seu sorriso, ouvirá sua voz, sentirá suas carícias... Ah! meu
amigo, tu que és uma alma pura, que desconheces os torvelinhos do amor
e do sofrimento, não poderás compreender-me. Não me peças para
esquecer. Por ironia do destino, que me reservou um futuro cruel e
solitário, aqui estou, mas não me peças para esquecer. Eu não conseguiria
jamais.
Victor colocou a destra sobre a perna de Felipe tentando de alguma
forma dar-lhe forças. Sua voz soou profundamente emotiva:
– Não fales de coisas que não sabes, meu amigo. Não me acredites puro
e bom porque não o sou. Sou um homem também em luta com suas
tendências inferiores. Confia em Deus, Felipe, que Ele te socorrerá nos
momentos mais difíceis. Não te revoltes, nem blasfemes contra a Divina
Providência, que deve ter tido Suas razões para assim modificar tua vida.
Aproveita o tempo que tens para aprimorar a alma, ser imortal e que
sobreviverá ao corpo putrescível. Se não consegues esquecer o ente
amado que te abandonou, procura ver nele a irmã necessitada de atenção
e carinho. Modifica e apura os sentimentos, transformando-os no amor
fraternal que devemos a todas as criaturas. Vê nela a irmã menor e,
mesmo de longe, procura ampará-la com tua assistência de servo de Deus.
Fez uma pausa e, analisando o efeito de suas palavras no amigo,
concluiu:
– A verdade, meu irmão, é que somos todos “aves sem ninho” em
busca do refúgio e aconchego que só o nosso Mestre Jesus pode nos
ofertar. Aproxima-te d’Ele, Felipe. Deixa que as mensagens de amor e paz
do Divino Pastor de nossas almas entrem em teu coração. Colocaste uma
couraça protegendo-te o íntimo e nada consegue penetrar. És um
religioso, sem seres religioso. Tens uma religião, mas não religiosidade.
Busca modificar-te, meu amigo, abrindo-te para a vida e para o
semelhante, pois só assim serás feliz.
Victor calou-se, mas o seu timbre de voz suave ecoava ainda entre as
quatro paredes nuas daquela pequena cela.
Após uma nova pausa, ele prosseguiu em outro tom:
– Na verdade, vim para comunicar-te que, a partir de agora, passo a ser
o responsável pela assistência espiritual do castelo de Montmorency e
confessor oficial da Senhora Condessa.
Felipe, que se mantinha cabisbaixo, remoendo intimamente as palavras
que ouvira, levantou a fronte fitando-o surpreso, com uma muda
indagação no olhar.
– É verdade! – confirmou Victor. – O velho frei Damião, que exercia
essas funções, faleceu e fui designado pelo prior para atendê-las.
Com voz sumida, Felipe murmurou:
– Poderás vê-la quando quiseres, falar com ela, saber seus mais íntimos
pensamentos, receber suas confidências. Ah! mas é a suprema ventura!
– Não para mim, meu amigo – respondeu com serena tranquilidade.
– Sim, eu sei. Oh! como gostaria de estar no teu lugar. Por que não
posso “eu” estar no teu lugar? Deixa-me falar com o prior e tentarei
modificar suas resoluções.
Com tristeza Victor retrucou:
– Sabia que reagirias dessa maneira – e, mais incisivo, falou enérgico: –
Não entendes que não podes aproximar-te daquela casa? Que não poderias
exercer a função de confessor, justamente pelo sentimento que te domina
o coração e a mente? Procura, antes, modificar tuas disposições íntimas a
esse respeito e, quem sabe, um dia estarás habilitado para enfrentar a
situação como o servo de Deus que agora és.
Felipe fitava-o atentamente enquanto falava e percebeu que não
deveria expor seus sentimentos, se quisesse obter algo. Imediatamente
mudou de expressão:
– Tens razão, meu amigo. Seria insensato se pensasse de outra forma.
Sim, eu sei que devo purificar meus sentimentos e transformá-los em algo
mais duradouro e mais profundo. Quem sabe ela, algum dia, venha a ser a
irmã que nunca tive? Não me culpes, nem te agastes comigo por isso. Vou
tentar seriamente me modificar. Para mim seria uma bênção poder estar
ao lado dela, nem que fosse por um momento e nem que fosse como uma
irmã.
Victor sorriu ao ver as boas disposições do amigo. Levantou-se em
seguida.
– Tenho que deixar-te agora. Minhas ocupações exigem que vá até a
aldeia. Fica com Deus, meu irmão.
– Vai em paz e que o Senhor te abençoe, irmão Victor!
Capítulo II - Frei Victor
4. Nota do Autor Espiritual – O que Marianne não sabia, e nem poderia imaginar, é que seu marido
Charles estava realmente sendo influenciado pelo pai já desencarnado, que, cheio de ódio e sedento
de vingança, transmitia-lhe suas sensações e desejos, mediante o fenômeno da sintonia, tão bem
explicado pela Doutrina Espírita. Na sua condição de Espírito desencarnado e inconsciente do seu
estado, só sabia aquilo que seus olhos viram, por isso odiava Marianne, a esposa que traíra seu filho,
e o duque, que o ferira de morte.
Capítulo XIV - Ricardo I, Coração de Leão
“Prezado Monsenhor...
“Existe um outro assunto que exige nossa atenção. Tenho notado atitudes
bastante estranhas no comportamento da antiga abadessa. Temo que
Carmela nos cause problemas. Melhor seria que nos livrássemos dela no
tempo preciso, antes que seja tarde.
5. Nota: Faz menção à passagem ocorrida no livro Perdoa!..., em que o personagem Ciro, encarcerado
por acusação de Tamara, reencarnada como Marianne, ou irmã Angélica, sofre penas atrozes.
Capítulo XXIV - Retorno ao lar