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Aves sem ninho

Célia Xavier Camargo, pelo Espírito Jésus Gonçalves

Aves sem ninho

Matão, SP
7ª edição
2014
Copyright © 1993 by
CASA EDITORA O CLARIM
Propriedade do Centro Espírita O Clarim
7ª edição: agosto/2014, 6 mil exemplares
Impresso no formato 16x23 cm
1ª edição: 1993
ISBN 85-7357-004-0
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Revisão: Cássio Leonardo Carrara

Catalogação na Publicação (CIP)


C172a Camargo, Célia Xavier
Aves sem ninho / Jésus Gonçalves, [psicografado por] Célia Xavier Camargo. – 7. ed. –
Matão: Casa Editora O Clarim, 2014.
480p.; 23 cm
ISBN 85-7357-004-0
1. Espiritismo. 2. Romance mediúnico. I. Casa Editora O Clarim. II. Título.
CDD. 133.9
Palavras do autor

Paz em Jesus!
Com as bênçãos do Mestre conseguimos terminar mais uma etapa da
tarefa que nos foi confiada, e é com infinito júbilo que entregamos este
trabalho, fruto do esforço e da dedicação de muitos, para a apreciação de
todos aqueles que se interessarem em folheá-lo. Os acontecimentos aqui
relatados são verídicos e representam a luta ingente de um grupo de
espíritos ligados por laços profundos do pretérito em busca do
autoaprimoramento.
As emoções que nos tocam a alma são imensas e inesgotáveis, buscando
reviver as imagens de uma existência há tanto tempo transcorrida e que
nos foi muito dolorosa.
O drama se desenrola na França, na época em que se iniciava o último
quartel do século XII, durante o reinado de Filipe Augusto.
A humanidade, de modo geral, atravessava período muito difícil,
mergulhada em trevas densas.
A religião cristã enveredara por caminhos ínvios, e a luminosa
mensagem do Cordeiro de Deus se escurecera, confinada nas sombrias
paredes dos claustros.
Os homens faziam as chamadas Guerras Santas, e nas Cruzadas
matavam seus irmãos em nome do Mestre Nazareno – que só pregara o
amor e a paz, a concórdia e o perdão –, sob o pretexto de defender-lhe o
Santo Sepulcro.
O sofrimento e a dor campeavam entre o povo sofrido e faminto.
Desesperançados, os homens se afastavam de Deus, não O
compreendiam, e a Inquisição, terrível flagelo para a humanidade, instala-
se, iniciando seus passos de destruição e morte.
A ambição e o luxo, a inveja e o poder andavam juntos, e as palavras
imorredouras do Evangelho foram abafadas pela imperfeição e pelo
arbítrio do homem, representados pela Igreja Romana.
No entanto, fiel ao trabalho de sustentação da humanidade, na sua luta
redentora em busca da evolução, o Criador mandou um de seus
mensageiros, preposto de Jesus e companheiro das primeiras horas do
Cristianismo nascente. Revolucionaria a Igreja, pregando a humildade e o
amor, tendo gravado em tintas indeléveis em suas lembranças mais caras
a figura amorável do Cristo, quando falava aos corações nas doces e
consoladoras prédicas da Galileia distante.
Nasce então, ao apagar das luzes do século XII, na Itália, na região da
Úmbria, aquele que viria a ser Giovanni Francesco di Bernardone, mais
conhecido como Francisco de Assis, cujo exemplo seria um farol
iluminando as trevas, através de uma vida extraordinária de amor ao
próximo.
O relato que aqui faço é, também, uma justa homenagem a dois grandes
amigos de outras eras e que deixaram uma lição inesquecível de trabalho e
abnegação em plena e sombria Idade Média. Aos espíritos Louise e Victor a
nossa gratidão e o nosso amor, pelo muito que fizeram em nosso benefício.
Que os fatos aqui narrados possam servir de exemplo a todos aqueles
que vierem a tomar conhecimento deles, incutindo em suas mentes a
necessidade de vencer as próprias imperfeições através da vivência dos
postulados do Cristo.
Que Jesus possa fortalecer-nos o ideal de servir e guiar-nos os espíritos
ainda frágeis para que sejamos realmente aqueles trabalhadores da última
hora dignos do seu salário.
Jésus Gonçalves
Rolândia, 12 de abril de 1991
Primeira Parte
Capítulo I - O retorno

O dia amanhecera limpo e calmo. A atmosfera, livre de impurezas


devido à chuva que caíra no dia anterior, apresentava-se leve, e um
colorido mais vivo envolvia todas as coisas. As plantas reluziam aos
primeiros raios do sol nascente, ainda úmidas e com gotículas de água em
suas folhas, assemelhando-se a belos diamantes refletindo a luz solar.
Em volta da pequena casa, as calçadas de pedras aparentavam limpeza e
a gramínea dos canteiros exalava odor característico de verdura e terra
molhada.
Algumas galinhas ciscavam no terreiro, enquanto uma vaca aguardava
pacientemente as atenções do dono, para que viesse aliviar-lhe os úberes
regurgitantes.
A moradia denotava simplicidade e pobreza digna e honrada, não
obstante os cuidados do morador atenuassem o ar de miséria, tornando o
ambiente até agradável.
Canteiros de pequenas flores surgiam aqui e ali, circundando o humilde
casebre, e vasos de plantas odoríferas tornavam a vista agradável,
indicando o apreço do morador e seu carinho para com elas.
Entrando pela porta principal, que insuficiente segurança oferecia, com
pequena corrente a vedar a entrada de estranhos, vê-se uma pequena
mesa de madeira tosca no centro do aposento; no canto direito de quem
entra, um armário, em sofríveis condições de uso, guardava-lhe os
pertences: algumas canecas, pratos, um ou dois copos e alguns enfeites.
Na cozinha, pequeno fogão de barro com o lume apagado, algumas
panelas e objetos sujos, jogados, que se diria abandonados
apressadamente pelo proprietário, mostravam uma certa desordem. Um
odre de vinho, vazio, caído no piso de terra batida, não deixava dúvidas
quanto ao que estivera fazendo o dono da casa na noite anterior. Pequeno
compartimento ao lado da cozinha, atulhado de objetos, ferramentas,
bugigangas e sacos com gêneros alimentícios, servia de despensa.
Da sala passava-se para os cômodos que faziam as vezes de quartos de
dormir. Num deles um homem, ainda no verdor da idade, dorme a sono
solto. Um cheiro acre de bebida tresandava no ambiente.
A cama macia e limpa, um baú grande e uma cadeira eram os únicos
móveis do local. Sobre o baú, pequena candeia de azeite, apagada,
contemplava a cena muda.
O homem dormia, vestido ainda com as roupas que portara na noite
anterior, e as botas, cheias de barro, enlameavam o pequeno pano que, à
guisa de tapete, encontrava-se ao lado da cama.
Afinal, o homem dá os primeiros sinais de que está acordando. Mexe-se
no leito, que range dolorosamente. Abre os olhos com lentidão. A
claridade que entra pelas frestas da janela o incomoda. Leva a mão à
cabeça, que parece querer explodir. Dor violenta o prostra no travesseiro
de penas. Sente tudo girar à sua volta e tem dificuldades para situar-se no
presente.
O que acontecera na noite anterior? Fez um esforço insano para
concatenar as ideias.
Ah! sim! Bebera muito e, por isso, agora se encontrava neste estado
lastimável.
Levantou-se com a boca amarga. Foi até a cozinha, acendeu o fogo e fez
um pouco de chá, que bebeu de má vontade, fazendo careta. Mas a bebida
amarga lhe fez bem, desembaralhando-lhe um pouco as ideias.
Por que acontecera tudo aquilo, afinal? O que fizera para que o seu
pequeno, mas tranquilo mundo, desabasse sobre sua cabeça? Com mil
demônios! Como não pudera evitar a tragédia que modificaria
radicalmente sua vida e que lhe desfazia os sonhos mais caros?
Sabia que “ele” ambicionava sua pequena propriedade, mas confiava
que amigos influentes pudessem ajudá-lo. A pequena herdade era sua por
direito. Adquirira de um velho judeu que, cansado de lutar na lavoura, sem
ter herdeiros na região a quem pudesse legar seus bens, morrera em seus
braços, após vender-lhe o pedaço de terra por preço razoável. Como
possuía algumas economias que juntara com dificuldade, pagara o preço
justo e combinado. Nada tinha a temer.
Mas, como não notara o interesse “dele” por sua noiva? Como pudera
ser tão cego que não percebera que sua prometida estava a mudar de
interesses? É verdade que ela nunca lhe manifestara um amor muito
grande. Resignara-se à escolha feita por seu pai que, muito pobre e
empregado do rico proprietário da maior parte das terras da região, o
julgara um bom partido por possuir uma pequena propriedade.
Com certeza influenciara na decisão da filha ao perceber as atenções do
senhor para com ela. Entre um e outro, não havia dúvidas. O outro era
imensamente rico, nobre e senhor de muitos escravos e muitas terras. E
ele, um pobre diabo.
A ingrata nem sequer se dignara recebê-lo. Mandara o pai romper o
compromisso de noivado, coisa muito séria na época, o qual alegou
simplesmente que a filha era muito jovem e ainda não se sentia capaz de
enfrentar os problemas de um casamento. Lamentava muito, dizia ele,
porque o estimava como a um filho, mas que desejava respeitar a vontade
da filha, única alegria da sua velhice solitária.
Saindo do casebre, sem ter podido ao menos rever a mulher amada,
dirigiu-se à taberna mais próxima, onde costumava entreter-se com os
amigos nos momentos de folga.
Lá ficou sabendo, algumas canecas de vinho depois e estando todos já
influenciados pela bebida e com a língua destravada, que sua noiva fora
vista a lançar olhares lânguidos para o dito senhor, que não se cansava de
passear num belo cavalo de arreios de prata em frente à rua humilde em
que residiam a noiva e seu pai. Que a jovem, ao ouvir o trotar do cavalo
aproximando-se, abria a janela e ficava a fingir estar interessada no
movimento da rua.
O cavaleiro tirava o chapéu, curvava-se num cumprimento e passava,
enquanto a jovem noiva fechava o postigo da janela, como se nada mais a
interessasse.
Ao ouvir essas notícias, o rapaz ficou vermelho de raiva. Seus olhos se
injetaram de sangue, a fronte começou a latejar violentamente e ele
parecia prestes a sofrer uma síncope.
Deu um murro na mesa, que estrondou perigosamente, dizendo entre
dentes:
– Canalhas! Eles me pagarão o insulto. Traidores merecem a morte. Não
viverão para afrontar-me com sua felicidade. Tomo a Deus e a vós como
testemunhas do juramento que acabo de fazer para desagravar a injúria e
as nódoas que foram lançadas sobre meu nome, obscuro mas honrado.
Os amigos se entreolharam assustados com o juramento que o
companheiro acabara de fazer e perceberam, tarde demais, que deveriam
ter mantido a boca fechada.
Na verdade, ele não era mau rapaz. Pelo menos até aquela data nada
fizera que denotasse mau caráter. Ao contrário. Sempre muito só,
aprendera a lutar sozinho pela vida.
Era órfão de nascença. Fora enjeitado pela mãe logo ao nascer e
encontrado, junto ao portão da propriedade do Senhor Conde de
Montpellier, por uma criada da casa, que o levou à Senhora Condessa.
Tomada de compaixão pela infeliz criança que tiritava de frio sob os
humildes trapos que a cobriam, procurou algo que a identificasse e que
pudesse indicar sua origem. Mas tudo em vão.
Aconchegando-a ao peito, a Senhora sentiu um calor brando dominar-
lhe o coração. Enternecida, aproximou-a do fogo que crepitava na lareira,
enquanto a criada saiu em busca de uma manta para aquecer o recém-
nascido e de leite, pois deveria estar faminto.
Berrava desde que fora encontrado, porém se aquietou com o calor do
fogo, envolto na manta que o agasalhava.
Uma das criadas da casa dera à luz recentemente e prontificou-se a
amamentá-lo. Alimentado e aquecido, o pobrezinho adormeceu, enfim,
para despertar para uma vida nova.
A Senhora Condessa de Montpellier, que não tinha filhos mas possuía
coração bom e generoso, afeiçoou-se à criança como se fora seu próprio
filho. Entregou-a aos cuidados da nutriz, embora procurasse estar sempre
por perto, acompanhando seu desenvolvimento.
O conde se encontrava ausente, guerreando, e ela decidiu por conta
própria que o bebê seria seu filho, enquanto aguardava a volta do esposo,
um tanto preocupada com sua reação.
A criança crescia forte e robusta e era o encanto da casa. Seu riso
enchia o ar e fazia a felicidade da Senhora, que o abraçava chamando-o de
“meu filho”.
Certo dia, quando já completara um ano de existência, ouviu-se um
alarido diferente e tropel de cavalos, seguido do tinir de metais. Era o
dono do castelo que retornava com seus soldados, cansados, empoeirados,
mortos de fome e de frio, pois era novamente inverno.
A dama veio recebê-los, feliz e aliviada por ver seu querido esposo são e
salvo.
– Bem-vindo sejas, meu Senhor!
Rapidamente se providenciou refeição para os recém-chegados e
acomodação para os que fossem ficar nas dependências do castelo. Grande
parte do contingente foi para os seus lares rever a família. Houve muito
regozijo e festas.
O clima era de euforia, apesar dos reveses sofridos na guerra. Haviam
perdido algumas batalhas importantes e, sem recursos, sem víveres e sem
armas, não tiveram outra opção senão voltar para tentar obter reforços.
Na verdade, a campanha toda fora um desastre. Os sarracenos, em
maior número, promoveram um verdadeiro massacre dos cruzados. Fora
sorte terem retornado com vida. Perdera muitos homens. Além dos
feridos em combate, muitos retornaram enfermos devido às más
condições do acampamento, chuvas, má nutrição e doenças. Não obstante
a Segunda Cruzada ter terminado em 1149, ocorriam lutas intestinas.
Os dias seguintes seriam usados para descansar, recompor as energias
gastas, fazer um balanço da situação. Depois, quando estivesse
recuperado, o Senhor Conde chamaria seu fiel administrador para saber
como ia a propriedade. Mas, agora não. Havia tempo para tudo. Era
necessário esquecer os horrores da guerra e para isso havia vinho à
vontade na adega do castelo.
Alguns dias depois, quando os ânimos já estavam mais serenos e o
Senhor se encontrava particularmente acessível, a condessa mandou que
lhe trouxessem o menino.
Estavam ambos palestrando numa pequena e acolhedora sala, que fazia
divisa com os aposentos de cada um deles e que era o local de encontro do
casal. Região neutra, usada para discutir assuntos mais sérios, acertar
detalhes da administração da casa e até para resolver divergências ou
pequenas rusgas que surgiam vez por outra no céu conjugal.
Do lado esquerdo ficavam os aposentos da Senhora, constantes de uma
pequena sala íntima, logo seguida do quarto de dormir, toucador e quarto
de vestir. Tudo decorado luxuosamente ao gosto da época, com cortinas
em veludo carmesim, cama com dossel e lindos tapetes no chão.
Do lado direito, obedecendo à mesma disposição arquitetônica,
situavam-se os aposentos do conde, um tanto mais sóbrios: escritório, uma
pequena biblioteca, o quarto de dormir e o de vestir.
Ao centro, a sala onde se entretinham a conversar, assentados em
macios coxins de seda.
A criada entrou com o garoto que, vendo a condessa, abriu os bracinhos
e jogou-se para ela, balbuciando alegremente:
– Mamãe!... Mamãe!... Mamãe!...
O conde, espantado a princípio, tornou-se rubro de cólera, erguendo-se
altaneiro:
– Senhora! Creio que me deves uma explicação.
Percebendo o que se passava na cabeça do marido, ela respondeu-lhe
digna e nobre:
– Sim, meu Senhor. Acalma-te, porém. Deus é testemunha de que nada
existe de censurável e de vergonhoso pela presença desta criança. Senta-
te e escuta.
E contou-lhe tudo o que acontecera desde que o recém-nascido fora
encontrado pela criada.
– Isto é tudo, meu Senhor. Aguardava teu retorno para decidir o futuro
desta criança. Confesso, porém, que me afeiçoei a ela como se fora meu
próprio filho e ficaria feliz se a aceitasses como tal.
Já mais tranquilo, respirando agora com mais facilidade, o homem fitou
a criança, que se entretinha a brincar no chão, sem saber que decidiam sua
vida e seu futuro.
Notando-lhe disposição diferente, ela se jogou aos pés do esposo,
enlaçando-lhe os joelhos e, deixando de lado as formalidades, disse-lhe,
comovida:
– Oh! Ricardo! Sabes como sempre desejei ter um filho nosso. Deus,
porém, não me julgou digna de ser mãe, pois me negou até agora esta
oportunidade. Mas, por outro lado, encaminhou até nosso lar esta criança
que não tem pais. Não te parece que isso é um sinal dos céus? Que ela veio
para meu regaço, embora por vias indiretas, para ocupar o lugar do filho
que eu não te soube dar?
Enternecido com a atitude da esposa, acariciou-lhe os cabelos sedosos,
concordando por fim.
– Está bem, minha querida. Seja feita a tua vontade. Se é o que
realmente desejas, Louise, nada tenho a opor. Creio mesmo que ficas
demasiado tempo sozinha enquanto estou ausente. Assim, terás com o que
ocupares o tempo e uma companhia para distrair-te.
Ela ria, satisfeita, enxugando as lágrimas:
– Obrigada, meu querido Ricardo. Obrigada. Verás como não vais te
arrepender.
O conde olhou para a criança e esta, talvez sentindo o olhar pousado
nela, ergueu os olhos grandes e belos e sorriu. Algo dentro do conde se
agitou a esse olhar e uma ponta de apreensão dominou-lhe o íntimo.
Capítulo II - Dúvidas

Na ampulheta do tempo um ano se escoou, rápido.


A vida no castelo de Montpellier prosseguia e, daquele momento em
que o conde concordara em proteger a criança enjeitada, muitas coisas se
passaram.
A princípio, sinceramente resolvido a aceitá-la como parte do seu
convívio mais íntimo, Ricardo aos poucos deixou-se envolver por ideias
malsãs, que o transformaram num homem irascível, mal-humorado e
rude.
Na solidão dos seus aposentos, vinham-lhe à mente ideias que não
conseguia dominar. Tanto tempo passara distante do lar, envolvido em
guerras e disputas, pensava ele, deixando a esposa sempre sozinha e
desamparada. Teria ela conseguido manter-se fiel e devotada às tradições
familiares, como sempre fora? Esta criança surgida assim, não se sabia de
onde, não seria talvez o resultado de uma ligação espúria? Lembrava-se
sempre com rancor do amigo que, tomado de amores pela jovem, bela e
cortejada, quisera dele roubá-la, confessando-lhe seu amor. Louise, porém,
amava ele, Ricardo, e foi com infinito júbilo que a recebeu por esposa.
Mas esse amigo, embora se mantivesse discretamente afastado de seu
lar, continuava cobiçando-lhe a esposa, tinha certeza. Enquanto ele,
Ricardo, estivera distante, não teria se aproximado da esposa
desamparada e conseguido seus objetivos?
Louise confessara-lhe, em momento de conversa informal, que o
Senhor Duque de Bouillon viera ao castelo fazer-lhe uma visita de cortesia
e trazer-lhe notícias e recados de seus pais, com quem estivera há pouco
na Corte. Espicaçado pelo ciúme, passou a ver nessa visita uma
reconciliação e a retomada de uma ligação anteriormente existente.
O duque possuía uma propriedade na região, não muito distante de
Montpellier, o que facilitaria os encontros entre ambos. Sim! Agora estava
tudo claro para ele! Ficara ausente tempo suficiente para que ela, tendo
concebido o fruto desse amor indigno, pudesse, acobertada pelos criados,
livrar-se do fardo perigoso e inútil, vindo a colocá-lo nos portões do
castelo como se fosse uma pobre criança enjeitada. Assim ficaria tudo
resolvido. Receberia nos braços o fruto do seu pecado, que cresceria sem
privar-se dos afagos e carinhos da mãe, e seria o herdeiro do seu nome e
da sua fortuna.
Tremia de ódio ao imaginar como deveriam ter rido dele às suas costas.
Não se atrevia, porém, a acusá-la abertamente sem provas do seu crime.
Observava-a constantemente e vigiava todos os seus passos e atitudes.
Quando pegava o pequeno Pierre nos braços e o aconchegava ao peito; nos
seus momentos de maior intimidade; ao dar ordens aos criados; ao passear
solitária pelos extensos jardins perdida em cismares.
Chamara os criados mais fiéis e antigos e, separadamente, interrogara
cada um deles. Fizera-lhes perguntas sobre o andamento das coisas em sua
ausência, as visitas recebidas, os trabalhos executados, sem que pudessem
desconfiar das suas reais intenções. Porém, nada conseguira apurar. Todos
repetiram mais ou menos as mesmas coisas.
Chamou seu administrador, homem competente e trabalhador, e que
lhe era absolutamente afeiçoado, dizendo-lhe:
– Miguel, mandei chamar-te para que possas prestar-me algumas
informações.
O servo, chapéu na mão, que rodava entre os dedos calejados, curvou-se
respeitosamente.
– Estou às vossas ordens, Senhor. Perguntai.
– Senta-te, Miguel – ordenou, apontando uma poltrona.
O servo, que não tinha costume de sentar-se na frente do patrão, pois
isso não era absolutamente permitido, estranhou o convite, mas
respondeu com um gesto:
– Obrigado, Senhor Conde. Estou bem assim.
Ricardo mexeu-se na poltrona em que se assentava, atrás de uma mesa,
colocou em ordem alguns papéis, pigarreou e falou-lhe:
– Sabes, Miguel, que deposito absoluta confiança em ti...
– O que muito me honra, Senhor.
– Estás conosco há muitos anos e sempre nos habituamos a depender de
ti para tudo o que diz respeito a esta propriedade. Sabes tudo o que se
passa e nada escapa ao teu olhar arguto.
Miguel sorriu, tímido, intimamente envaidecido. O conde fez uma
pausa, fitou seu interlocutor e continuou:
– Gostaria que me respondesses com a mais absoluta franqueza. Viste
ou foste informado de algo estranho que tenha acontecido no castelo
durante minha ausência?
Surpreso, o servo respondeu:
– Não, Senhor! Nada aconteceu de estranho durante vossa ausência.
Mas, se o Senhor Conde pudesse dizer-me do que suspeita...
– Nada de extraordinário, Miguel. Apenas ouvi uns rumores...
– Rumores, Senhor?!...
– Sim! Rumores de que andavam rondando o castelo.
– Como?! Rondando o castelo, Senhor?!...
– Sabes de algo?
– Não, Senhor! Salvo o pobre do Jean que, como o Senhor Conde não
ignora, é doente da cabeça e anda pelos matos a caçar passarinhos e a
colocar arapucas, mas que não faz mal a ninguém, nada vi, Senhor.
– Ora, muito bem. E dentro do castelo?
– O que tem, Senhor?
– Ninguém penetrou no castelo, escondido?
O servo pareceu ofender-se com essa pergunta.
– Ousaria alguém penetrar no castelo sem autorização, Senhor? Não, de
modo algum!
– Bem, Miguel, não quero que comentes nada com ninguém. Soube,
porém, que uma das nossas criadas andou recebendo “visitas” na calada
da noite e gostaria de confirmar a veracidade ou não do fato.
– Quem, Senhor? – perguntou estupefato o pobre homem.
– Não sei. Gostaria de saber.
Miguel meneou a cabeça, incrédulo:
– Não creio que seja possível, Senhor. Mas, se isso aconteceu, não
tenhais dúvida de que encontrarei e punirei o responsável.
Vendo que nada conseguiria saber daquele homem, Ricardo o
dispensou:
– Está bem, Miguel. O que descobrires informa-me depois. Podes ir
agora.
O administrador saiu estranhando muito a atitude do Senhor.
E o conde, por mais que fizesse, nada conseguiu apurar contra o
comportamento de sua esposa. Mas continuava com a certeza de que o
filho era dela e que ela o traíra.
Passou a tratar a criança com frieza e nunca se aproximava dela.
A condessa, de temperamento meigo e sensível, observava as atitudes
do esposo e não conseguia entender porque ele rejeitava tanto o pequeno
Pierre. Não admitia que a criança ficasse na mesma sala que ele, alegando
que o menino o incomodava; se Ricardo entrava num recinto em que o
garoto estivesse brincando, logo a ama o levava embora com uma
desculpa qualquer.
A condessa Louise sofria, mas nada podia fazer. O garoto só tinha
inteira liberdade quando o conde partia para as suas frequentes viagens.
Aí, então, perambulava pela casa, brincava nos jardins, e seu riso cristalino
ecoava nas paredes vetustas do castelo.
Todos o amavam. Era querido pelos servos, que lhe faziam todas as
vontades. Conhecendo sua origem e desejando, talvez, supri-lo da falta do
calor de uma família, cumulavam-no de carinhos e gentilezas.
Quando o conde retornava, porém, ele ficava restrito à casa da ama,
pois o Senhor não queria vê-lo andando solto pela propriedade.
E o menino crescia forte e sadio.
Capítulo III - Nascimento de Lucas

Algum tempo depois, após tantos e tantos anos de tentativas


infrutíferas, a condessa de Montpellier sentiu que dentro de si pulsava
uma nova vida.
Estava grávida! Em transportes de júbilo inexcedível, deu a notícia
auspiciosa ao marido, esperando encontrar nele o reflexo da sua satisfação
íntima.
Ricardo ficou feliz, mas austero e carrancudo, evitou demonstrar
largamente sua satisfação.
Após a vinda do enjeitado para o castelo, suas atitudes mudaram
sensivelmente. Embora nunca tivesse conseguido provar nada contra a
conduta moral da esposa, a desconfiança e a dúvida se instalaram em seu
íntimo, tornando-o irritadiço e amargo. Era sempre com rudeza que
respondia às interpelações da doce criatura que o Senhor da Vida colocara
em seu lar como companheira.
Sem entender a mudança ocorrida com Ricardo, ela procurava
desculpar-lhe as agressões verbais e indelicadezas, levando à conta de
preocupação com a política e a guerra.
Sofria calada. Muitas vezes chorava no recesso de seus aposentos no
silêncio da noite. Por isso, foi com renovadas esperanças que contou ao
marido que estava grávida. Por certo, a vinda do herdeiro tão esperado
faria com que ele voltasse a ser o que era.
Realmente, mais feliz com a notícia alvissareira do que gostaria de
admitir, Ricardo tornou-se mais amável e voltou a dialogar com a esposa.
Seus momentos de íntimo desgosto ainda ocorriam, embora mais
espaçados, principalmente quando via o pequeno enjeitado de relance,
pois era evitado a todo custo que o conde cruzasse com o menino. Nesse
momento, voltavam suas dúvidas e tornava-se taciturno e rancoroso.
As crises de depressão, porém, foram reduzindo e, quando o filho
nasceu, em meados de 1177, entregou-se completamente à alegria de ser
pai.
Era com carinho inexcedível que ele se inclinava sobre o berço, onde,
envolto em finas cambraias e rendas preciosas, dormia placidamente o
recém-nascido, despreocupado do que acontecia ao seu redor.
A condessa suspirava satisfeita, agradecendo a Deus a mudança que se
operara no marido, prenunciando um futuro de paz e harmonia.
Foi com tristeza infinita que Ricardo se afastou do filho pela primeira
vez. Encontrava-se em casa havia um tempo bastante longo, mais longo do
que o habitual, gozando do convívio familiar, e era preciso retornar às
lutas. Estavam em guerra e seu soberano lhe ordenara que fosse para as
linhas de frente, levando reforços.
A viagem era longa e cansativa, o país estranho e diferente, e ele
lamentava profundamente deixar o doce aconchego do lar, agora
iluminado pela presença de um pequeno anjo.
Antes de partir, abraçou a esposa, comovido. Depois, envolveu o
pequenino nos braços fortes e lágrimas umedeceram-lhe a face.
– Cuida bem do nosso filho!
Louise concordou com um aceno de cabeça:
– Não te preocupes por ele. Crescerá forte e sadio. Volta logo para o
nosso convívio, são e salvo, é o que te peço, Ricardo.
O conde de Montpellier montou seu cavalo e partiu com os soldados,
após a bênção sacerdotal. Em pouco tempo já não se ouviam mais os
ruídos dos metais e os cascos dos animais. O silêncio se fez nas
dependências do castelo.
A vida na propriedade retornou ao ritmo normal. Os campos, bem
plantados, prenunciavam colheita farta. Os vinhedos cobriam-se de cachos
grandes e suculentos e os camponeses labutavam de sol a sol, executando
as tarefas que lhes foram confiadas. As mulheres cuidavam dos afazeres
domésticos e dos filhos e, vez por outra, espichavam os olhos na estrada
com a esperança de ver seus maridos, filhos ou irmãos retornando para
casa.
Residiam todos numa pequena aldeia, fora dos muros do castelo, que
fazia parte dos domínios do conde de Montpellier.
Dentro da sua simplicidade eram felizes, pois nada mais pediam à vida.
Aqueles cujos filhos partiram para a guerra procuravam no trabalho
esquecer as preocupações, mergulhando ainda mais no serviço, enquanto
aguardavam a volta dos familiares.
À noite, um coro de bênçãos se dirigia aos céus, suplicando pelas vidas
de todos aqueles que se encontravam em terras longínquas guerreando.
O pequeno enjeitado Pierre crescia a olhos vistos, denotando uma
vivacidade e inteligência precoces. Agora, secundado pelo pequeno Lucas,
que o acompanhava sempre nos folguedos.
Era com suave ternura que a condessa os vigiava. Enquanto brincavam,
ela se entretinha a bordar.
Suas graças ingênuas, as risadas cristalinas por qualquer motivo, a
alegria despreocupada que demonstravam, enchiam seu coração de
conforto e paz.
E não se cansava de admirá-los, enquanto os observava à distância,
distraídos a brincar. Suspirava satisfeita, agradecendo a Deus pelas
bênçãos recebidas e exclamando intimamente:
“Senhor, eu vos pedi um filho com todas as veras da alma e mandastes-
me dois. Minha gratidão não tem limites pela felicidade que me
proporcionastes. Obrigado, Senhor!”
Para ficar mais perto de Lucas, que não dispensava a presença de
Pierre, colocaram os aposentos deste ao lado dos aposentos de Lucas.
Faziam todas as refeições juntos, brincavam juntos e era também juntos
que a condessa Louise os ensinava a orar e a amar a Deus.
Falava-lhes sobre Jesus, o doce Mestre que viera para ensinar os
homens a serem bons e a se amarem uns aos outros. Contava-lhes lindas
parábolas que Ele ensinara, adaptando-as à capacidade infantil dos seus
gentis ouvintes.
Pierre, principalmente, se emocionava com a parábola da ovelhinha
perdida e, na ingenuidade dos seus cinco anos, era com apreensão que
acompanhava a procura da ovelhinha pelo bom pastor, e sempre com
renovado alívio e alegria quando o animalzinho era encontrado. Seu rosto
se iluminava com um sorriso e os olhos brilhavam com as lágrimas que
não chegavam a cair. Batia palmas alegremente, acompanhado por Lucas
que, nos seus dois anos de existência, não sabia bem o que estava
acontecendo.
O inverno fora particularmente inclemente nesse ano. Agora, os
campos férteis se enchiam de verdor após os meses gelados. As flores
brotavam enchendo os campos de alegre colorido.
Com satisfação os camponeses saíam às primeiras horas da manhã
rumo ao campo. Tanta coisa havia por fazer. Era preciso lavrar a terra
para aproveitar a umidade do solo e lançar as sementes.
A atmosfera apresentava-se límpida e um sol morno aquecia tudo. As
camponesas tiravam de seus armários as roupas coloridas e deixavam de
lado as cores escuras da estação invernal.
Pierre e Lucas gostavam de passear pelos campos colhendo flores e
correndo atrás das borboletas, acompanhados da ama, que nunca se
descuidava deles. Cansados, mas felizes, retornavam ao castelo, após
muito correr e brincar, para o merecido repasto e consequente repouso de
todas as tardes.
Era nesse ambiente de paz e harmonia que a vida no castelo seguia seu
curso.
Certo dia, porém, ouviu-se o ladrido dos cães, seguido do tropel dos
cavalos e do ruído dos metais que denunciavam o retorno do proprietário
e do seu contingente de soldados.
Em pouco tempo o pátio estava tomado pelo alarido ensurdecedor que
faziam os recém-chegados, felizes por estarem de volta; as lágrimas de
alegria dos pais por reencontrarem seus filhos sãos e salvos; os gritos de
cólera e dor daqueles que eram notificados da perda de alguém muito
amado; o alegre reencontro dos amigos.
Eram as emoções mais diversificadas que ali se chocavam. Ainda assim,
era a alegria que reinava. Os que perderam entes queridos, um pai, um
filho, um namorado ou esposo, escondiam sua dor indo derramá-la em
algum canto obscuro, para não estragar a alegria geral.
Ricardo abraçou a esposa, saudoso, apesar do cansaço que suas feições
não conseguiam esconder. O primeiro pensamento foi para o filho, que
deixara pequenino, ainda um bebê. A condessa Louise, tomando-lhe a
mão, levou-o até os aposentos onde Lucas dormia tranquilamente.
O conde abraçou o herdeiro em transportes de alegria.
– Como está crescido o nosso filho! Forte e saudável como convém a um
descendente da nossa família.
A condessa sorriu, concordando.
– Vamos, querido. Deixa-o repousar. Terás muito tempo para estar
junto dele agora que retornaste ao lar. Deves estar faminto e exausto, bem
como teus soldados. Os servos já devem estar preparando o repasto. Vem!
Realmente, os soldados, sem aguardar a presença do chefe e senhor,
atacaram os pratos que iam sendo servidos. Carnes preparadas
rapidamente, queijos, pães, frutas e muito vinho eram por eles devorados.
Algumas horas depois, o silêncio voltara a reinar no castelo. Todos
dormiam, exaustos da longa e cansativa viagem.
No dia seguinte já estava o conde Ricardo, logo às primeiras horas da
manhã, percorrendo os campos acompanhado do seu fiel administrador
Miguel. Quando voltou, o sol já ia alto e as crianças brincavam no jardim.
Aproximou-se para abraçar o filho, mas vendo a outra criança, estacou.
Era Pierre, que o fitava com os grandes olhos muito abertos e
interrogativos.
– Que faz este pirralho aqui? – inquiriu à ama, temerosa.
– Brinca, Senhor. São amigos e Pierre faz companhia ao pequeno Lucas.
– Não desejo ver este enjeitado perto do meu filho. Leva-o daqui.
A ama ainda quis retrucar, mas o conde insistiu, colérico:
– Não ouviste minhas ordens? Avia-te!
– Sim, meu Senhor.
Pegou Pierre pela mão e saiu do jardim, enquanto Lucas, não
entendendo o que estava acontecendo, pôs-se a gritar, chamando o
companheirinho:
– Pierre! Pierre!
Foi preciso que a condessa Louise o acalmasse, tomando-o nos braços e
ninando-o até que adormecesse, depois de muito soluçar.
Irritado e prepotente, o conde falou-lhe, ríspido:
– Gostaria de ter uma conversa contigo. Mas não aqui onde os servos
podem nos ouvir.
Ela inclinou a cabeça em sinal de assentimento e, entregando o
pequeno adormecido para a ama, respondeu séria e digna:
– Espero-te em nossa sala particular.
Na saleta, entre os aposentos de um e de outro, reuniu-se o casal.
A condessa Louise, apesar de tensa e preocupada, revelava extrema
dignidade. Além de possuir um coração bondoso e naturalmente propenso
ao bem, denotando a elevação espiritual de que era portadora, amava
também a justiça e o direito. Era de família nobre e trazia em seu caráter
os usos e costumes das mais caras tradições familiares, bem como o
orgulho da estirpe, por isso aguardava com certa apreensão o diálogo com
o marido, sabendo de antemão o assunto que versaria e temendo pela
sorte do infeliz Pierre.
O conde Ricardo entrou no aposento raivoso e carrancudo. Suas feições
mostravam a tempestade que lhe amarfanhava o íntimo.
De compleição robusta, modos rudes destoando da nobreza do sangue
de que se dizia descendente, era bem o soldado que passava o tempo
envolvido em combates. O semblante sempre fechado, que largas
sobrancelhas tornavam ainda mais severo, olhos escuros e perscrutadores,
barba bem feita que lhe cobria parte do rosto, Ricardo infundia respeito e
temor em todos aqueles que com ele conviviam.
Louise, naturalmente cordata, evitava discordar dele, por temer suas
reações intempestivas.
Com as grossas mãos apoiadas no largo cinturão que lhe envolvia a
cintura, Ricardo andava de um lado para o outro, impaciente. Afinal,
dirigiu-se à esposa, com a voz algo alterada pelas emoções tumultuadas
que lhe agitavam o íntimo:
– Muito bem, minha Senhora! Basta que eu vire as costas para alterares
tudo dentro desta casa a teu bel-prazer.
– Ricardo, não sei a que te referes.
– Sabes perfeitamente! – respondeu com voz sibilina.
– Sempre procurei agradar-te e fazer tudo como desejavas. Não
compreendo tua raiva.
– Odeio esta criança que me impingiste ao lar. Não quero vê-la ao lado
de nosso pequeno Lucas.
– Mas Ricardo, é uma criança de apenas seis anos de idade. Por que essa
animosidade gratuita contra o garoto?
Algo abalado pelas palavras da esposa e pelo tom suave e carinhoso
com que ela se dirigia a ele, Ricardo, um tanto confuso e sem entender
bem seus sentimentos, sentou-se também, apoiou os braços nos joelhos e,
segurando a cabeça com as mãos, balbuciou:
– Não sei... não sei... Não me perguntes, porque não saberia responder.
É como se o odiasse com todas as forças da alma. Não vejo nele a criança
inocente que dizes. Vejo um adulto, um inimigo que tenho desejos de
destruir.
Horrorizada, Louise sentiu que lágrimas lhe aljofravam o rosto sereno.
Notou também que o marido, não obstante a imagem de fortaleza que
transmitia, necessitava muito da sua ajuda.
– Pobre querido! – confortou-o, passando a destra sobre os cabelos
revoltos do esposo. – Procura vencer esses pensamentos sombrios, que só
podem prejudicar-te. Creio que é porque estás exausto e não repousaste o
suficiente. Mal chegaste, já foste percorrer os campos. Acho também que é
porque não o conheces direito. Se o conhecesses verias quão meigo e
agradável ele é, além de inteligente.
– Não, Louise. Sinto que não posso aproximar-me dele. Para o próprio
bem-estar dessa criança, mantém-na afastada da minha presença!
A condessa sorriu, tentando dissipar o aperto que sentia no coração:
– Creio que exageras, meu querido! Dar-se-á que estejas com medo
dele?
– Medo, eu?!
– Sim! É o que me parece. Não vês como é ridículo estarmos aqui a falar
de um petiz de seis anos como se fosse um homem adulto?
– Tens razão, Louise. Mas, é o que eu sinto. Não sei explicar. É como se,
sem saber como, ele pudesse me ferir.
– Procura vencer tua repulsa e faze amizade com Pierre. Verás como
tuas impressões se desvanecerão com o tempo.
– Não sei. Achas mesmo?
– Claro! Não pode um guerreiro, um soldado de Sua Majestade, desistir
sem lutar, não achas?
Assim desafiado no que tinha de mais importante, a honra de fidalgo
valente, Ricardo cedeu.
– Está bem! Seja como queres. Vou tentar.
E vendo o sorriso de satisfação e vitória da esposa, concluiu:
– Mas, se dentro de dois meses não mudar minha disposição, farás o que
desejo e acatarás minhas ordens. De acordo?
A condessa concordou, certa de que, dentro de pouco tempo, ele teria
sido conquistado pela criança.
E começou uma nova etapa para Pierre. Sempre que a família se reunia,
ele estava junto participando.
Aquele homem carrancudo e de barbas escuras metia-lhe medo, mas
não podia evitar sua presença. Tanto para um quanto para outro, esses
encontros eram difíceis. Para Ricardo, porque sentia seu rancor acender-
se em cada novo encontro, e para Pierre, porque tinha pavor daquele
homem bravo.
Ah! Era tão bom quando estavam somente a mãe e Lucas por perto.
Suspirava saudoso por aquele tempo em que o Senhor Conde não estava
em casa e desejava ardentemente que ele fosse embora com seus soldados.
Não obstante, sentia grande atração pelas armaduras, as armas, os
cavalos e tudo o que dissesse respeito à atividade militar. Ficava horas
entre os soldados vendo-os se adestrarem e polirem as armas, os metais.
Qualquer mancha na espada, por menor que fosse, ele lhes mostrava
exigindo que a limpassem. Isso divertia os homens, que o estimavam
realmente. Ficava horas entretido ouvindo as histórias que contavam das
Cruzadas e como tinham enfrentado os perigos numa terra distante e
estranha.
Vendo o interesse do garoto pelas armas, Ricardo ficava mais dócil. Era
como se, pelo menos num ponto, eles se entendessem e se encontrassem,
diminuindo as diferenças.
Logo cedo Pierre aprendeu a cavalgar, o que era imprescindível naquela
época, em que o cavalo era largamente utilizado como meio de transporte.
Gostava de lustrar o escudo de Ricardo, quando este permitia, e era de ver-
se o empenho que colocava nessa operação.
A condessa Louise não interferia, preferindo observar de longe, só o
fazendo quando os desentendimentos pareciam mais sérios. Ficava
emocionada vendo-os juntos. Como Lucas ainda fosse muito pequeno, o
interesse de Pierre pelos cavalos e armas aproximou-os, e foi com
satisfação que Ricardo o ensinou a cavalgar e acompanhava seu
desenvolvimento.
Aos poucos a animosidade foi diminuindo e as brigas rareando.
Tornaram-se até bons amigos e companheiros.
O tempo foi passando em morna tranquilidade no castelo de
Montpellier.
Capítulo IV - Expulsão do castelo

Dez anos se passaram, rápidos, na ampulheta do tempo.


Pierre e Lucas cresceram em contato com a natureza. Cavalgavam pelas
pradarias, percorriam os vinhedos e muitas vezes se detinham nas aldeias
do feudo para se divertirem com os outros rapazes.
Passavam o dia caçando nas florestas e voltavam à tardezinha,
satisfeitos e risonhos.
Apesar das dificuldades da época, o conde contratara um professor para
ministrar aulas aos dois garotos. Foi assim que estudaram história,
literatura, gramática e aritmética, conquanto sem grande aproveitamento,
porque não viam a hora de deixar os livros e correr pelos campos cobertos
de sol.
Detinham-se especialmente em uma das aldeias, onde passavam a
maior parte do tempo.
Vivia ali uma garota, bela como um anjo caído do céu. Tinha a pele
clara e macia, as faces rosadas e os cabelos, em tom castanho-claro, caíam
em cascatas pelos ombros. Os olhos azuis eram sombreados por longas
pestanas. Vestia-se muito pobremente.
Mal entrada na adolescência, contando doze anos, presumíveis, seu
corpo franzino já exibia as modificações próprias da idade. Um
permanente ar de tristeza a envolvia, como se fosse uma auréola. Os olhos
melancólicos eram testemunhas da vida difícil que levara até então, e as
marcas arroxeadas no corpo atestavam as agressões a que era submetida.
Habitava uma pequena casa com a mãe, mulher violenta e agressiva
que se dava ao vício da bebida, e com o pai, homem trabalhador, mas rude
e grosseiro por natureza.
Passando a maior parte do tempo em casa, a infeliz menina era
submetida aos piores maus-tratos e obrigada a fazer o serviço pesado da
casa, enquanto a mãe, sentada junto a um odre de vinho, bebia até cair
sobre a mesa.
Certo dia os dois rapazes, atravessando essa aldeia, ouviram gritos
perto de uma choupana. Estacaram surpresos. O som de vozes alteradas,
novos gritos, choro e alguém saiu correndo porta afora.
Uma mulher, desgrenhada e bêbada, com um chicote na mão,
aproximou-se para agredir a jovenzinha que passara correndo por eles,
sem perceber suas presenças. Quando levantou o chicote para bater na
pobre menina, que acocorada no chão escondia a cabeça sob os braços,
apavorada, Pierre a impediu, sustando-lhe o braço erguido e ameaçador.
Os olhos da desnaturada mãe fuzilaram e violenta carga de ódio foi
arremessada sobre aquele que ousara interceptar-lhe o gesto agressivo.
Ao se fitarem, repulsa instintiva os acometeu. Como dois inimigos a
defrontar-se, pareciam prestes a agarrar-se quando Lucas intercedeu:
– Deixa-a, Pierre. Vamos acudir a garota.
Pierre soltou o braço da mulher e se afastou, virando-se para a jovem
que, encolhida no chão, num canto da parede, soluçava.
Lucas debruçou sobre ela, colocando a mão em sua cabeça e lhe falou
com cortesia, própria de um fidalgo:
– Não chores, menina. Ninguém te fará mal, prometo.
Ela enxugou as lágrimas e levantou a fronte, aliviada pela inesperada
ajuda que os céus lhe enviavam na figura de dois gentis cavalheiros.
– Não sei como agradecer-vos – disse, trêmula.
Os dois rapazes sentiram ao mesmo tempo um impacto. Aquela jovem
franzina, de cabelos encaracolados e profundos e tristes olhos azuis, os
impressionara. Onde já a teriam encontrado antes?
A menina olhou para a porta onde entrara a mulher e seu corpo foi
sacudido por um frêmito:
– Agora minha mãe ficará com mais raiva ainda e, quando vos
afastardes, por certo descarregará sobre mim o seu ódio. Ide e não vos
preocupeis. Esta é a minha sina.
Vendo tanta resignação, revoltados por tanto sofrimento numa criatura
que ainda não passava de uma criança, eles foram atrás da mãe e a
ameaçaram:
– Se souber que espancaste novamente tua filha terás que te haver
comigo – disse-lhe Pierre. – Meu pai será informado e receberás o castigo
que mereces. Irás para a prisão e serás chicoteada todos os dias, para
aprenderes, de uma vez por todas, que não se espancam crianças –
completou Lucas.
Afastaram-se lançando um último olhar à jovem, que agradeceu com
um tímido sorriso iluminando o rosto triste.
De retorno ao castelo Lucas não se cansava de falar sobre a beleza da
jovem. Pierre, picado de inusitado ciúme ao perceber o interesse do irmão
nada dizia, entregue aos próprios pensamentos.
Novamente as malhas do destino teciam sua rede envolvendo e
aproximando espíritos necessitados de reajuste, em busca do progresso.
Novamente defrontavam-se afetos e desafetos do passado para os
entendimentos necessários, com as bênçãos do Alto e sob a assistência dos
seus anjos tutelares.
A partir desse dia algo se rompeu nas relações entre ambos, que até
então pareciam perfeitas. A amizade, o companheirismo existente entre os
dois rapazes foi sendo, lentamente, substituído pelo ciúme e a
desconfiança, e um mal-estar passou a envolvê-los. Já não se divertiam
como antes e os desentendimentos tornaram-se frequentes, causados pelo
interesse comum.
Iniciara-se a Terceira Cruzada e o conde Ricardo de Montpellier partira
com seus soldados no ano de 1189 para juntar-se ao rei, Filipe Augusto, e
demandarem a Terra Santa. E agora, dois anos depois, em 1191, voltava
acompanhando o mesmo soberano, que se encontrava adoentado.
Como consequência da nova situação e a despeito da ponderação e dos
conselhos sensatos da condessa, o conde Ricardo passou a hostilizar o
jovem Pierre, tomando o partido do filho Lucas, que crescia voluntarioso e
prepotente sob a tutela do pai.
Jogava sempre no rosto de Pierre sua origem humilde e a posição
ambígua que ocupava dentro do castelo, deixando-o cada vez mais
humilhado e descontente.
O ambiente doméstico se tornou difícil, a atmosfera pesada. As
desavenças se intensificaram, deixando sempre um saldo amargo.
Até o dia em que, por motivo banal, mas como resultado de um acervo
de diferenças e mágoas recíprocas que se iam acumulando, explodiu a
violência entre os dois rapazes e passaram a agredir-se verbalmente com
insultos e palavrões. Das palavras passaram aos atos, revirando-se no
chão, cegos de ódio, aos socos e pontapés.
Chegando neste instante do campo e vendo-os em séria peleja,
esmurrando-se violentamente, Ricardo, enceguecido pela cólera, avançou
em direção aos dois rapazes que se revolviam na poeira do chão. Pierre,
mais robusto e três anos mais velho que Lucas, levava vantagem na luta, o
que aumentou a ira do conde. Agarrou Pierre pelo pescoço e passou a
esbofeteá-lo violentamente, deixando-o todo machucado.
O sangue escorrendo pelo nariz, a boca inchada e ensanguentada, os
olhos roxos, Pierre fitava o conde com rancor. Ambos estavam ofegantes
pelo esforço. O suor vertia de suas testas empapando a camisa e a poeira
grudava nas vestes e rostos, tornando-os grotescos.
Lucas, ainda no chão, surpreso, acompanhava o desenrolar dos
acontecimentos.
Ricardo, com os olhos em fogo e a voz rouca e colérica, apontou com o
dedo em riste:
– Fora! Não quero ver teu rosto nunca mais! Em meu seio agasalhei uma
víbora que agora morde a mão que a ajudou.
Passando a mão pelo rosto, Pierre, ainda aturdido e sem saber direito
como tudo começara, tentava balbuciar uma desculpa, percebendo tarde
demais que se excedera. Lucas era mais novo, mais frágil, e não se
perdoava intimamente por ter-se deixado levar pela violência.
Mas Ricardo continuava:
– Sairás daqui como chegaste: sem nada. Veremos como te conseguirás
arranjar sem minha ajuda e sem meu dinheiro, que não receberás. Avia-te!
Põe-te daqui para fora e considera-te feliz por não acabar com tua vida.
Quando Louise, avisada pelos servos do que estava ocorrendo, surgiu
apavorada, nada mais pôde fazer. Desesperada, viu Lucas no chão e os
dois, Ricardo e Pierre, a se duelarem com os olhos. Tentou falar com o
marido, chamá-lo à razão, dizer que é comum dois irmãos brigarem, mas
tudo foi inútil. Ricardo não permitiu sequer que ela se aproximasse de
Pierre para confortá-lo nesse transe difícil.
A condessa escreveu rapidamente algumas linhas num pedaço de papel
e, retirando um pequeno saco de couro contendo moedas e joias, mandou
uma serva entregá-lo ao rapaz, tão cruelmente expulso da propriedade e
da família, que afinal era a sua, já que nunca tivera outra.
Já fora dos muros do castelo, tristemente Pierre recebeu o saco e a
missiva que sua mãe lhe enviara, com sorriso melancólico a bailar no
rosto.
Lutando contra as lágrimas que teimavam em cair, Pierre desenrolou a
carta e leu, comovido:

Meu querido filho:

Beijo-te através desta, não podendo fazê-lo pessoalmente. Tem coragem e


ânimo firme. Não te deixes vencer pela adversidade. Teu pai não estava
raciocinando em seu juízo perfeito.

Farei o que for possível para demovê-lo da decisão que tomou tão
precipitadamente.

Recebe esta oferenda e utiliza-a da melhor forma possível.

Espero que sejas feliz. Deus sabe o que faz, meu filho, e saberá dar-te o
auxílio de que tanto necessitas.

Não te rebeles contra “Ele”.

Recebe a bênção daquela que te ama ainda e sempre como um filho muito
querido.

Louise
Enrolou o papel e guardou-o junto ao coração, seguindo rumo ao
desconhecido. Era a primeira vez na vida que se sentia realmente só e
abandonado.
Mas Pierre era dotado de um caráter combativo e forte. Considerou que
teria de enfrentar a situação. Agora a vida estava em suas mãos e faria dela
o que bem entendesse.
Não se pôde impedir de olhar para trás e dar um último adeus àquele
que fora seu lar durante tantos anos. Sentiu o coração comprimido de
angústia ao ver, ao longe, as torres do castelo de Montpellier recortando-
se no céu muito azul e os muros que rodeavam a propriedade, com seus
largos portões, que agora permaneceriam cerrados para ele.
Suspirou, procurando gravar na retina a imagem tão querida,
esfumaçada pela distância. Em seguida virou-se, montou o animal e deixou
o lugar.
Capítulo V - Os salteadores

Sem rumo e sem descanso, Pierre cavalgou até sair das terras do conde
de Montpellier. Só então parou para repousar um pouco. Anoitecera.
Estendeu a manta que trouxera e deitou-se no chão, tendo sobre a cabeça
o zimbório estrelado.
A beleza da noite tinha uma linguagem muda que falava da onipotência
de Deus.
Sentia fome. Não quisera, porém, sair levando coisa alguma. No corpo, a
roupa que vestia no momento da briga, ainda suja de poeira. Apenas o
cavalo trouxera, por ser realmente seu, presente daquele que considerava
como seu avô materno. Agora o animal pastava tranquilamente, livre dos
arreios que o constringiam, também num merecido repouso, depois da
longa caminhada e do dia cansativo que tivera.
Procurando esquecer as necessidades mais prementes, Pierre ficou a
meditar observando os pontos luminosos no céu. Por que sua vida era tão
difícil? Por que, para ele, as coisas tinham de acontecer daquela forma?
Lembrou-se dos primeiros anos de vida, fazendo um íntimo retrospecto.
Fora repudiado pela própria mãe, que não quisera amamentá-lo e não
assumira a maternidade, abandonando-o ao relento junto ao portão do
castelo de Montpellier.
Ali recebera afeto, carinho e atenção. Era com ternura que retinha na
memória a imagem daquela criatura que fora o anjo bom em sua vida:
Louise, sua mãe, seu tudo. Amava-a com profundo amor filial,
considerando-a verdadeiramente sua mãe, que o fora de fato. Lembrava-se
também com muito carinho de Margarida, sua ama-de-leite, que sempre
velara por ele e que lhe salvara a vida, nutrindo-o com o próprio leite,
quando aportara àquela casa, frágil e desvalido.
Lembrava-se dos folguedos ao lado de Lucas e da tranquilidade e
segurança que sentia.
Apenas a figura do conde Ricardo surgia envolta em tintas escuras.
Desde o princípio jamais gostara dele. Lembrava-se de pequenas coisas
que o magoaram muito e que nunca contara a ninguém, nem sequer à mãe
adotiva. Depois, com grande esforço, o conde conseguiu tolerar sua
presença. Esta é que era a verdade; ele era apenas suportado dentro do lar.
Nos melhores momentos de entendimento – e houve bons momentos –,
pensara ter finalmente conquistado o coração daquele homem rude e
sombrio, mas a verdade é que o conde apenas aprendera a tolerar sua
presença.
A amizade entre Pierre e Lucas era algo precioso. O companheirismo
entre ambos era comovente e a condessa gostava de vê-los juntos.
Tempos depois, porém, começaram as rusgas e os desentendimentos,
que coincidiram com o aparecimento da pequena jovem em suas vidas. Foi
como se uma lufada de ar frio varresse tudo o que existira até então de
bom entre eles.
Nunca mais viram a menina dos seus sonhos. Voltavam sempre à aldeia,
cavalgando nas imediações da choupana onde ela morava, mas em vão. A
mãe, com certeza, a mantinha entre as quatro paredes da casa para evitar
encontros indesejáveis. Mesmo assim, porém, ela continuou entre eles
como uma presença real.
Não conseguia entender como chegaram à briga. Estavam conversando
calmamente, indispuseram-se por uma bagatela, e dos insultos aos murros
foi um passo. Tudo tão rápido! Não tivera tempo de pensar e analisar o que
estava acontecendo. Lembrava-se apenas de que fora envolvido por uma
onda de ódio tão grande que nada mais vira à sua frente.
Depois, a entrada agressiva do pai. Se não tivesse tomado as dores do
filho, Lucas, eles provavelmente teriam se entendido, como já acontecera
tantas vezes antes. Brigavam, mas logo faziam as pazes, pois um não
conseguia viver sem o outro.
Mas, não. O conde Ricardo interferira, passando a espancá-lo
violentamente. Possuindo físico avantajado e fortes punhos, além de ser
soldado acostumado às pelejas, levara a melhor. Ficara somente um gosto
amargo de sangue na boca e revolta em seu íntimo.
Não conseguia perdoar-lhe o que fizera. Humilhara-o perante todos,
expulsara-o de casa como a um cachorro, sem o menor respeito, a menor
consideração, sem falar no afeto que, depois de tantos anos de vida em
comum, julgara existir, pelo menos um pouco. Jogara em seu rosto ferido a
condição de enjeitado que sempre lhe pesara na mente e no coração. Agira
com ele como se fosse seu inimigo. Por quê? Por quê?
Sempre procurara ser agradecido por tudo quanto recebera, ajudando
quando necessário, até a administrar as lavouras. Sempre que Miguel
precisava de algo, que não podia pedir a ninguém, era a ele, Pierre, que
recorria.
Não conseguia entender essa revolta e esse rancor gratuitos contra sua
pessoa. Jamais se lembrava de ter dado quaisquer motivos para isso.
Suspirou, enquanto duas lágrimas ardentes lhe queimaram a face... Por
quê? Por quê?!...
Agora, o que seria de sua vida? Não tinha para onde ir. Àqueles que
sempre considerara como seus parentes não queria recorrer. O melhor era
romper de vez com o passado. Estava realmente órfão. Ninguém o amava,
ninguém se preocupava com ele.
Lembrou-se novamente da mãe adotiva. Ela o amava, não poderia ser
ingrato, e com certeza estaria preocupada com ele, mas jamais teria
coragem de colocar-se contra o marido e senhor e a favor dele, Pierre.
Um profundo sentimento de solidão o acometeu e soluçou
doridamente. Todos tinham alguém, fosse quem fosse, e ele não tinha
ninguém.
Depois de muito chorar e meditar no silêncio da noite, ouvindo apenas
o fundo musical dos grilos e dos sapos, adormeceu.
Naquele estado que ocorre entre a vigília e o sono, tênues imagens
começaram a deslizar pela retina espiritual e, dos refolhos da alma,
antigas lembranças afloraram.
Via-se como um guerreiro poderoso e cheio de glórias, brandindo a
espada e dizimando criaturas inocentes, ateando fogo em seus lares,
mutilando homens indefesos, desonrando mulheres, destruindo crianças e
velhos e aprisionando jovens.
Percebia que muitas das criaturas que via tinham relação com as que
faziam parte de sua vida atual, como o conde Ricardo, a mãe adotiva e
Lucas. Viu depois uma jovem de peregrina beleza e de profundos olhos
azuis que o ameaçava, fitando-o com ódio. Sentiu-se mal. Lembrou-se
então de onde já vira aqueles olhos. Eram os mesmos da camponesa que
conhecera um dia e que era o motivo de suas divergências com Lucas. Mas,
nada poderiam ter em comum. A outra jovem estava muito bem vestida,
coberta de joias, e a camponesa era uma pobre menina de vida miserável.
Ainda assim, sentia que eram uma e só pessoa e que a amava
profundamente. Deveria ter prejudicado muito a “outra”, pois ela o
detestava, mas sabia que a amava acima de todas as coisas e que, por ela,
degradara-se.
Agitou-se. O sentimento e as emoções que o envolviam eram
antagônicos; um grande mal-estar íntimo o abalava, apesar do prazer
imenso, da felicidade indescritível de revê-la. Aos poucos tudo se apagou e
Pierre mergulhou em sono profundo.
No dia seguinte acordou com o barulho dos passarinhos e com o sol a
brincar em seu rosto. Não obstante tudo o que acontecera na véspera, a
situação estranha e difícil em que se encontrava, o abandono dos entes
queridos, acordara sentindo-se bem. Estranhamente confortado,
despertara tranquilo, como se nada tivesse a temer.
Lembrava-se vagamente do sonho que tivera. Ou não seria sonho?
Parecera-lhe estar acordado, embora sonolento, e as imagens deslizavam à
sua frente como se estivessem vivas, conquanto envoltas em leve neblina.
Estava consciente de si mesmo e lembrava-se das emoções desencontradas
que sentira.
Agora tudo se assemelhava a uma ilusão, uma alucinação dos sentidos
e, por mais que se esforçasse, não conseguia recordar tudo o que vira. Era
como se as imagens tivessem sido apagadas de sua mente.
Vinha-lhe à memória, porém, a figura de uma jovem muito bela, cuja
simples lembrança lhe acelerava as pulsações do coração.
Reconhecia-se calmo, compreendendo que acontecera exatamente o
que deveria ter acontecido. Era como se merecesse as provações pelas
quais estava passando. Percebia também que o seu estado de espírito atual
tinha estreita relação com o estranho “sonho” da noite anterior.
Levantou-se mais bem disposto e com coragem de enfrentar a nova
situação.
Procurou nas imediações algo com que pudesse saciar a fome.
Encontrou algumas frutas silvestres e as comeu com vontade. Depois
bebeu água de uma mina próxima dali. Assim, mais reconfortado,
satisfeitas as exigências mais prementes, ficou a meditar.
O que faria daí por diante? Não tinha mais ninguém, nada que o
tolhesse. Precisava encontrar um local para abrigar-se. Abriu o saco de
couro que a serva lhe trouxera a mando da mãe. Havia ouro em
quantidade e muitas joias também. Poderia até comprar uma pequena
propriedade. Recursos não lhe faltariam.
Olhou para os lados, indeciso. Para onde ir? Que direção tomar? Se
tomasse a direção sul facilmente poderia chegar ao Mediterrâneo, pois
Montpellier se situava próximo da orla marítima, e não teria maiores
dificuldades em conseguir uma embarcação que o levasse para longe.
Poderia ir para a Espanha, por exemplo, ou para a Itália, que sempre o
atraíra. Se tomasse a direção sudeste, contornando a costa, poderia ir para
a Provença, instalando-se numa de suas cidades, como Marselha ou
Toulon.
Estava dentro de uma pequena mata, cujas árvores frondosas tapavam a
claridade. Abrigara-se num local que, só agora, com a luminosidade do dia,
podia ver perfeitamente. O caminho bifurcava-se mais adiante. Não
poderia voltar. Logo, teria que escolher uma direção.
Sem pensar tomou o rumo norte. Não seria isso um aviso ou uma
inspiração de Deus? Com essas cogitações, cavalgando sem pressa, atingiu
Clermont com alguma dificuldade. Continuando, contornou Bourges,
seguindo sempre para o norte.
Não sabia há quantos dias estava viajando. Perdera a noção do tempo,
despreocupado de tarefas e obrigações. Sentia-se, porém, cansado.
Durante esse período alimentou-se de frutos silvestres. Às vezes penetrava
em alguma aldeia, ou em alguma pequena propriedade à beira do caminho
para comprar algum alimento, na maioria das vezes pão, queijo e vinho.
Lamentava a falta de um leito macio e do conforto de um lar. Resolveu
pernoitar na primeira estalagem que encontrasse no trajeto.
Anoitecia quando chegou a uma pequena aldeia. Dirigiu-se à estalagem
e pediu um quarto. Após o banho tomou a primeira refeição de verdade
desde que fora expulso de casa. Comeu com sofreguidão. Estava faminto.
Subiu depois para o quarto ignorando os olhares convidativos da moça
que lhe trouxera a comida. Jogou-se no leito e adormeceu quase que
instantaneamente, só acordando no dia seguinte com o sol a pino.
Após tantas horas de sono despertou bem disposto. Seu cavalo, refeito
da cansativa jornada e bem alimentado, pastava tranquilamente nos
fundos da estalagem, que funcionava como um posto de troca de mudas.
Retomou a caminhada, sob a curiosidade do estalajadeiro, que
estranhava o fato de um rapaz tão jovem, de boa aparência e maneiras
finas, viajar sem acompanhamento e portando vultosa quantia. Não que
tivesse visto o ouro, mas a generosidade do cavalheiro, que lhe pagara
mais do que pedira pelo quarto e pelas refeições, e a presença de uma
pequena mas pesada bolsa de couro que o rapaz guardava zelosamente,
nunca apartando-se dela, fizeram com que os olhos do taberneiro
brilhassem cobiçosamente.
Pierre partiu, não sem antes ouvir o aviso do estalajadeiro para que
tivesse cuidado. Aquelas estradas, segundo ele, estavam infestadas de
bandidos que não trepidariam em matá-lo para roubar-lhe os valores que,
porventura, levasse consigo e até mesmo seu cavalo. Que viajasse apenas
durante as horas do dia e não se aproximasse de nenhum estranho.
Pierre agradeceu sensibilizado as palavras de interesse do taberneiro e
partiu numa nuvem de poeira.
Não sabia por que, mas sentia que deveria seguir em frente. Aquela
aldeia, conquanto simpática e tranquila, ainda não era o seu lugar. Viajaria
até encontrar um local onde pudesse estabelecer-se. Afinal, tinha recursos
suficientes para viver com relativo conforto e sem preocupações futuras.
Pelo menos por enquanto. Tinha certeza de que perceberia quando
chegasse a hora.
Ao anoitecer ainda não encontrara viva alma. Nenhuma casa onde
pudesse pedir abrigo para passar a noite. Resolveu alojar-se em meio à
natureza, como tantas vezes fizera antes. Estava exausto e com fome.
Resignou-se ao que não poderia remediar e, após comer qualquer coisa,
adormeceu, embalado pelo sussurro do vento, sob a luz das estrelas e
ouvindo o coaxar dos sapos, o pio do mocho e o cricrilar dos grilos.
Despertou altas horas da noite assustado. Parecera-lhe ouvir o rumor
de passos sobre as folhas secas. Abriu os olhos e permaneceu imóvel, à
escuta. A fogueira, que fizera para afugentar os animais selvagens e as
cobras, estava quase apagada. A noite, sem lua, era muito escura.
Súbito, alguém pulou sobre ele. Lutou bravamente. Era encorpado,
apesar de muito jovem ainda, e seus fortes punhos atingiram o assaltante
em pleno rosto, jogando-o para trás. Em seguida, outro homem se
aproximou por detrás e o atingiu na cabeça, com violência.
Tudo se apagou. Quando abriu os olhos já era dia alto. Uma dor terrível
o fez levar a mão à cabeça, retirando-a cheia de sangue. Tentou levantar-
se e não conseguiu. Sentia-se fraco.
Lembrou-se do seu tesouro. Procurou a bolsa de couro e nada
encontrou. Olhou em volta, aparvalhado, e não viu o seu cavalo.
Fora roubado. Malditos! Estava agora sem recursos, sem a montaria e
só.
Encontrava-se no meio da mata, num lugar completamente
desconhecido e absolutamente baldo de recursos. Nesse momento
acreditou-se o mais miserável dos homens, a mais infeliz das criaturas.
Deitou-se no chão e chorou.
Algum tempo depois, tendo extravasado a sua dor e estando mais
calmo, refletiu que ali não poderia permanecer. Estaria sujeito a novas
atrocidades pelos salteadores de estradas e bandidos que infestavam a
região.
A cabeça doía horrivelmente. Rasgou uma tira da camisa e com ela
envolveu a cabeça, como um torniquete, para estancar o sangue.
Caminhou com muita dificuldade, mas confiante que, em algum lugar,
receberia assistência. Ali não poderia permanecer.
A cabeça latejava. Sentia tonturas e vez por outra era obrigado a parar
para descanso. Suas pernas dobravam-se ao peso do corpo, mas Pierre,
com a vontade férrea de que era dotado, redobrava as forças e prosseguia
com determinação.
Algumas horas depois encontrava-se exausto. Além disso estava
faminto, pois não se alimentara desde o dia anterior, e morto de sede. Sua
garganta estava ressequida e a cabeça escaldava. O sol ainda estava alto e o
calor insuportável. Apesar disso seu corpo era violentamente sacudido por
calafrios.
Com lágrimas nos olhos pelo ardor da luz solar, que se confundiam com
o suor que escorria, abundante, Pierre pareceu vislumbrar uma carroça
que se aproximava, vindo de uma trilha que cruzava a estrada um pouco
adiante.
Mais animado, procurou vencer, tão rápido quanto lhe permitiam as
parcas energias, a distância que o separava da pequena carroça.
Aproximando-se viu um senhor de idade avançada que, rédeas na mão,
tentava parar os animais. O velho o viu e percebeu que estava em
dificuldades.
Pierre tentou pedir ajuda mas estava no limite da sua resistência.
Depois disso mergulhou no vazio e tudo se apagou.
Capítulo VI - Joachim, o judeu

Aos poucos foi recobrando a consciência. Olhou em torno procurando


reconhecer o local onde se encontrava. Viu um pequeno aposento onde
existia apenas um baú, a cama que estava ocupando e uma cadeira. Tudo
muito simples, cheirando a limpeza. Nada de móveis supérfluos ou
enfeites desnecessários. Apenas o essencial.
O ambiente calmo e acolhedor causou-lhe infinito bem-estar.
Pela janela entreaberta podia vislumbrar as plantas bem cuidadas, as
árvores frondosas e até uma nesga de céu muito azul, além de ouvir o
gorjeio dos pássaros que lá vinham cantar.
Quis levantar-se, mas forte dor na cabeça o impediu. Soltou um gemido
e recaiu sobre os travesseiros. Imediatamente ouviu passos que se
aproximavam e, logo em seguida, uma simpática criatura deu entrada no
aposento. Vendo-o desperto, sorriu satisfeito.
Tratava-se de um homem de cerca de sessenta anos, fisionomia serena
e sorriso terno. Um ar de bondade evolava-se dele e Pierre sentiu-se
confortado com sua simples presença.
Dois olhos límpidos e indagadores o fitaram e o estranho dirigiu-lhe a
palavra:
– Afinal acordaste! Como te sentes hoje?
Como Pierre fizesse esforço para responder e ameaçasse levantar-se, o
velho o impediu com um gesto amistoso.
– Não, meu filho. Não te esforces inutilmente. Sei que tens muitas
indagações e não deves fazer movimentos desnecessários. Aquieta-te e
deixa que eu fale.
Pigarreou e sentou-se na cadeira, colocando-a de modo que pudesse
conversar mais facilmente com o enfermo.
– Quando aqui chegaste estavas passando muito mal. É um milagre de
Deus que estejas ainda vivo. A febre te consumia e permaneceste entre a
vida e a morte por muitos dias. Há duas semanas que cuido de ti sem
descuidar por um só momento.
Fez uma pausa e continuou, percebendo que Pierre o ouvia, atento:
– O ferimento na cabeça custou a melhorar, mas agora parece em
franca recuperação. Deus ouviu minhas preces! És tão jovem ainda, e eu,
sentado ao teu lado na cama, ouvindo-te delirar, ficava pensando nas
forças do destino que nos levam por caminhos estranhos e ignorados.
Como Pierre fizesse menção de dizer algo, o ancião retrucou com
presteza:
– Não. Não precisas contar-me nada, se não for da tua vontade. Um dia,
quando estiveres melhor e com disposição para conversar e quiseres abrir
teu coração com um pobre velho, estarei a teu dispor. Agora creio que
deves alimentar-te. Acabo de fazer um caldo de legumes que, acredito, te
fará muito bem. Precisas recuperar as energias perdidas.
Saiu do aposento deixando Pierre mergulhado nos próprios
pensamentos. Ouvindo o velho falar, aos poucos a memória foi voltando e
lembrou-se do assalto.
Trazendo uma pequena bandeja que continha um prato de sopa, um
naco de pão e uma fruta, o ancião retornou ao quarto.
– Meu nome é Joachim. Come à vontade, meu filho – disse, colocando a
bandeja sobre o colo do rapaz, que se sentara no leito com alguma
dificuldade.
Pierre, após alimentar-se sob o olhar solícito do velho Joachim, falou:
– Agradeço-te, Joachim, pelos cuidados que me dispensaste durante
todo esse tempo em que estive enfermo. Agradeço-te também a discrição
com que te conduziste, não querendo saber das razões ou dos insucessos
que me trouxeram por estas bandas, mas nada tenho a esconder.
Fez uma pausa e continuou:
– Chamo-me Pierre. Fui vítima de salteadores de estradas que me
roubaram tudo o que possuía, inclusive a montaria.
– É o suficiente, Pierre. Não continues. Precisas repousar, pois estás
ainda muito fraco. Vou deixar-te agora. Teremos muito tempo para
conversar.
O bom velhinho ajeitou as cobertas, afofou o travesseiro com imenso
carinho e desejou-lhe uma boa noite.
Aconchegado às cobertas, Pierre mergulhou novamente num sono
reparador, sentindo-se estranhamente confortado.
***
Uma nova etapa de vida se iniciou para o jovem Pierre. Recuperava-se
com rapidez do ferimento que o prostrara ao leito.
Naquele ambiente de paz e harmonia, de uma simplicidade tocante,
existia algo diferente. Talvez fosse o carinho com que era tratado pelo
dono da casa e os cuidados que ele lhe prodigalizava que o faziam sentir-
se em casa e confortavelmente instalado.
Quando o velho Joachim se levantava, com a alva, Pierre ainda dormia,
e, não querendo acordá-lo, saía de mansinho para os labores do campo.
Retornava algumas horas depois, por volta das oito horas, e o despertava
para a refeição matinal, que constava geralmente de uma caneca de leite
de cabra, tirado na hora, um pedaço de queijo, um naco de pão e uma ou
outra fruta da estação.
Nessa altura do dia, Joachim já havia tratado dos animais, jogado
comida para as galinhas e patos, tirado leite da vaca e das cabras, trocado
a água do bebedouro e limpado o terreiro.
Agora, enquanto Pierre repousava após o desjejum, Joachim ia para a
cidade entregar o leite, que vendia para um grande senhor. Entregava
também frutas e hortaliças. Desse pequeno comércio e da produção do
vinhedo é que ele sobrevivia. Não sobrava muito para guardar pensando
no futuro, mas também nunca faltava nada. Contentava-se com pouco e
sentia-se feliz.
Na volta, Joachim fazia o almoço, sempre bastante frugal. Sua
alimentação consistia, basicamente, de legumes e hortaliças da sua
produção. Cozinhava algumas batatas, couves, nabos e cenouras.
Amassava o pão, de trigo ou de centeio, e o colocava para assar. Para beber
tinham leite à vontade, adoçado com mel puro e vinho, que ele mesmo
fabricava.
Pierre, no início, estranhava esse tipo de alimentação, lembrando-se,
com saudade, dos quitutes variados que havia sempre no castelo de
Montpellier. Assados da mais variada procedência, acepipes raros, vinhos
de excelente qualidade, sem falar nos bolos, biscoitos de aveia e doces que
tinha sempre à disposição.
Mas, assim como esses pensamentos vinham, Pierre os expulsava da
mente, lembrando-se que fora enxotado daquele castelo e que ali, na
humilde e pobre casa de Joachim, encontrara refúgio e segurança.
A alimentação simples e natural lhe caía na boca com agradável sabor,
sem o gosto amargo da má vontade e da repulsa. Com o decorrer dos dias
passou a amar aquela casa e o seu velho dono.
À tarde, quando o sol já se escondia por detrás dos montes, sentavam-se
à porta da choupana para gozarem a fresca da tarde. Invariavelmente,
Joachim pegava um exemplar bastante surrado do Texto Sagrado e lia um
trecho aberto ao acaso, que servia para a meditação daquele momento.
Nunca mais haviam falado sobre problemas particulares. Seus assuntos
versavam sempre sobre o tempo, a melhor época para o plantio desta ou
daquela qualidade de legume, a melhor maneira de tratar os animais, os
problemas da pequena herdade, mas nunca sobre problemas particulares.
Naquela tarde apreciavam a natureza. No céu, que permanecera todo o
dia muito azul, tonalidades mil tingiam o espaço infinito com o ocaso.
Uma atmosfera de paz envolvia todas as coisas. Os animais recolhiam-se
para o repouso noturno e as aves chilreavam nas copas das grandes
árvores.
Abrindo ao acaso, Joachim leu com profundo respeito as anotações de
Mateus:
“Reconciliai-vos o mais depressa possível com o vosso adversário,
enquanto todos estais a caminho, para que ele não vos entregue ao juiz; o
juiz não vos entregue ao ministro da justiça e não sejais metido em prisão.
Digo-vos, em verdade, que daí não saireis enquanto não houverdes pago o
último ceitil.”1
Ao terminar a leitura profundo silêncio se estabeleceu. Pierre, calado,
entregava-se aos próprios pensamentos.
O velho Joachim respeitou o silêncio do companheiro, permanecendo
calado. Após algum tempo, como o outro continuasse imerso em si
mesmo, falou:
– Meu filho, sei que sofres muito. Sinto que carregas o fardo de dores
muito profundas, mas não deves revolver o passado, qualquer que ele seja.
Deves procurar viver o presente, preparando o porvir que Deus há de
conceder-te e, com o tempo, o passado virá ao teu encontro, quando
tiveres condição de solucioná-lo.
Lágrimas aljofraram o semblante do jovem, caindo quais gotas de luz.
– Chora, meu filho. Chorar faz bem. Alivia a alma e lava nossos
ressentimentos.
A custo, Pierre retrucou:
– Nada sabes a meu respeito.
O velho suspirou profundamente, sussurrando depois:
– Certo. Mas minha experiência de vida me diz que foste muito
magoado. És um jovem de boa educação, de maneiras refinadas, sendo de
notar-se que tuas roupas, embora estivessem em triste estado quando te
encontrei, eram de excelente qualidade. Um jovem na tua idade – calculo
que deves ter 15 ou 16 anos –, rico (disseste que te roubaram tudo o que
possuías), só estaria viajando desacompanhado por lugares tão distantes,
sem família ou pelo menos um pajem, por motivos muito graves...
– Tens razão. Creio que é chegado o momento de contar-te a minha
história...
Parou um pouco, olhando seu interlocutor, e continuou, depois de uma
pausa:
– Sabes apenas que fui vítima de salteadores de estradas. Pois bem. Fui
enjeitado pela minha mãe logo ao nascer. Encontraram-me junto ao
portão do castelo de Montpellier, exposto às intempéries, quase morto de
fome e de frio...
E contou tudo quanto havia se passado com ele, desde que fora
recolhido ainda recém-nascido até o momento de sua expulsão do castelo
pelo conde de Montpellier.
– O resto – disse, finalizando – já sabes. Entregue à própria sorte,
caminhei sem destino e fui assaltado na estrada. Voltando a mim do golpe
recebido caminhei com extrema dificuldade até que me encontraste.
Recolheste-me com generosidade, tratando do meu ferimento e me dando
a vida novamente. Sem o teu concurso amigo e desinteressado por certo
estaria morto.
Sinceramente emocionado com as desventuras do seu protegido,
Joachim, de olhos umedecidos, folheava pensativo o texto que tinha entre
as mãos.
Suspirou profundamente e disse, emocionado:
– Quem sabe o que a vida nos reserva? Há bem pouco tempo não nos
conhecíamos e nunca poderia supor que hoje estaríamos aqui, sentados a
falar de nossos problemas mais íntimos. Os desígnios de Deus são
estranhos! Se não fora a necessidade de rever meu irmão que, segundo me
informaram, estava bastante adoentado, jamais teria passado por aquela
estrada e nunca nos teríamos encontrado. Voltava para casa, após tê-lo
enterrado, quando, naquela encruzilhada, te encontrei. Foi-me difícil
colocar-te na carroça, pois és bastante pesado para minhas parcas forças,
mas não poderia deixar-te sem assistência. Viajamos durante muitos dias,
em que temi por tua vida, porquanto a febre te fazia delirar. Mas,
confiante em Deus, continuei até que chegamos aqui em casa e aí pude
tratar-te com mais conforto.
Fez uma pausa, deu um sorriso melancólico e continuou:
– Não és o único a ter desventuras. Também eu tenho sofrido muito na
vida. Ao inverso de ti, fui abandonado pelos meus filhos. Julgava que
formávamos uma família feliz até que perdi minha esposa. Meus filhos, já
moços e cheios de ilusões, queriam partir em busca de aventuras e de uma
vida mais alegre do que aquela que meu lar honesto lhes proporcionava.
Tanto insistiram que acabei dividindo os bens que me pertenciam em vida,
e que tanto me custara amealhar, dando a cada um o que lhes competia
como herança. Só conservei em meu nome esta pequena propriedade, que
minha esposa amava e que assistiu ao início da nossa vida em comum.
Após receberem a herança, que queriam para movimentar e gerar
negócios mais lucrativos, passaram a gastar desregradamente. O jogo e as
mulheres consumiram com rapidez todo o esforço de uma vida inteira. E a
bebida terminou por lançá-los ao fundo do lodo moral.
Limpou uma lágrima e prosseguiu, após uma pausa:
– Em pouco tempo nada mais lhes restava. Abandonaram-me alegando
que eu era velho demais e um peso morto em suas vidas.
Fitou o jovem, que o olhava contrito, e concluiu:
– Desde então moro sozinho. Nunca mais soube deles. Vivo do meu
trabalho, sustento-me com o produto destas terras e aprendi a ser
resignado e paciente.
– Não sabes para onde foram? – perguntou Pierre, penalizado.
– Não. Já se vão dez anos e não sei sequer se estão vivos ou mortos.
– Quanto deves ter sofrido! Tivesse eu uma família realmente minha e
teria um tesouro de incalculável valor nas mãos. Por mais pobre e humilde
que fosse a vida teria o carinho e o amor de meus familiares e isso me
bastaria. Por que tudo isso, Joachim? – indagou sob surda revolta. – Eu que
sinto falta de uma família, não a tenho. Tu que a tiveste foste abandonado
por ela. Não te parece estranho?
Pensativo, Joachim balançou a cabeça concordando:
– Tenho vezes sem conta meditado sobre estas questões, sobre o
sofrimento e a dor, sobre a vida e a morte, sobre as diferenças existentes
entre as pessoas. Em contato com a terra e a natureza tenho acompanhado
o ciclo da vida e cheguei a algumas conclusões interessantes, conquanto
pessoais. Tudo é perfeito na criação. Os próprios insetos executam uma
tarefa imprescindível no ciclo da vida, alimentando-se de vermes que
prejudicam a plantação. O nascimento de uma planta, cujo processo
desconhecemos, é uma bênção que não sabemos agradecer devidamente.
Como a semente minúscula deitada ao solo gera a árvore de porte
gigantesco? Como sabe a videira que é tempo de florescer e frutificar?
Fez uma pausa, olhou o céu onde miríades de estrelas se assemelhavam
a um manto luminoso e prosseguiu:
– Existe algo mais belo do que o céu cheio de estrelas? E como elas se
mantêm no espaço, sem cair nem colidir umas com as outras? Como pode
o Sol saber que deve nascer e morrer todos os dias, e o faz com precisão
matemática?
Virando-se para Pierre, que o ouvia atentamente, surpreso com a
sabedoria daquele homem humilde que aparentava não possuir cultura
alguma, mas que externava suas ideias de forma tão singela e ao mesmo
tempo tão lógica, Joachim continuou:
– Somos regidos por leis sábias e justas, imutáveis em seus princípios
porque vêm de Deus. Ora, se um inseto tem uma tarefa a executar e está
presente na obra da Criação, por que só o homem estaria fora desse
contexto? Então cheguei à conclusão, após muito meditar, que nada
acontece por acaso sob as vistas do Eterno. O Nosso Mestre Jesus não nos
ensinou que não cai um fio de cabelo de nossas cabeças que não seja do
conhecimento do Pai?
Fez uma pausa e, fitando com carinho o jovem que o ouvia entre
surpreso e admirado, prosseguiu:
– Tudo o que nos acontece está previsto na lei de Deus. Se sofremos é
porque infringimos de alguma forma essa lei.
– Mas nada fiz de mal! – retrucou Pierre, contestando.
– Disse-te que chegara a importantes conclusões, analisando a
natureza. Essa é uma delas. Outra conclusão a que cheguei é que não
vivemos uma vida só. Não vês as plantas que renascem após cada estação?
– Como assim?
– Acredito, conforme Jesus de Nazaré nos ensinou, que somos espíritos
imortais criados para o progresso, em busca da perfeição. Se assim não
fosse, tudo o que o Mestre nos deixou como lições imorredouras de
convite à melhoria do próprio espírito seria vão e sem sentido. Além do
mais, sou de origem judaica, como sabes, e nossos profetas, os profetas de
minha raça, sempre falaram numa vida posterior. Acredita, meu jovem
amigo, somente a teoria das vidas sucessivas explica a diferença de
caracteres, de educação, de cultura, de níveis sociais e de temperamentos
que as criaturas humanas apresentam, além das diferenças puramente
físicas, naturalmente.
Pierre, algo confuso pelas lições que recebia nesse instante e que
entravam, qual cavalo de Troia, revolucionando seu mundo íntimo, ficou a
meditar profundamente.
– Tens ideias bastante estranhas para um simples camponês e
demonstras um conhecimento e acuidade mental que não seriam próprios
de alguém da tua classe social. Onde adquiriste tais conceitos?
O velho judeu sorriu e seus olhos se iluminaram ao responder à
pergunta:
– Já te afirmei. A vida ensinou-me muitas coisas.
– A nossa Igreja não aceita as tuas ideias, que podem se tornar
perigosas para ti.
– Como poderá ser perigoso acreditar na Justiça Divina? Dizes bem. A
Igreja não adota meus pontos de vista, mas, analisando os textos sagrados,
não posso chegar a diferentes conclusões.
Olhando em torno, Joachim colocou as mãos nos joelhos com gesto
decidido, considerando encerrado o assunto:
– Creio que exageramos hoje, meu jovem amigo. Vê, já anoiteceu por
completo e nem percebemos. Vamos nos recolher. Amanhã teremos um
dia de muito trabalho e é preciso aproveitar o tempo.
Levantaram-se e dirigiram-se aos próprios aposentos, após ingerirem
uma caneca de leite de cabra aquecido e adoçado com mel.
Pierre deu um “boa-noite” distraído ao seu hospedeiro e deitou-se no
leito humilde.
Mil ideias vagavam por sua cabeça. O diálogo com Joachim o
impressionara muito mais do que gostaria de admitir. Lembrava-se das
visões que tivera, não sabia ao certo se dormindo ou acordado, mas que o
afetaram sobremaneira. O guerreiro bárbaro, montado em seu corcel,
arrasando aldeias, cidades, campos e eliminando vidas humanas. Percebia
até o calor do fogo e o cheiro de carne humana queimando nas fogueiras.
Invencível pavor o dominou ao assistir àquelas cenas, ao mesmo tempo
que era atraído por tudo aquilo.
O mais estranho, porém, é que vendo o chefe guerreiro a distribuir
golpes de espada tinha a nítida impressão de que fosse ele próprio aquele
bárbaro. Era como se encarnasse uma outra personagem. Sentia tudo o
que o outro estava sentindo, a volúpia de matar, o prazer de ver o sangue
jorrar ainda quente das feridas abertas.
“Meu Deus!” – pensou. “Estarei ficando louco? Terá razão o velho
Joachim quando diz que já vivemos outras vidas? Terei sido em tempos
recuados e, sabe Deus quando, aquele chefe guerreiro poderoso e
invencível? Só assim se explica o que experimentei ao vê-lo. Compreendo
que, de alguma forma, eu sou ou já fui aquele homem. Conheço sua
personalidade, sua maneira de pensar, seus desejos mais secretos. Ou terei
tido uma alucinação? Uma perturbação dos sentidos após ingerir alimento
pesado?
“Ora, creio que o melhor que tenho a fazer é dormir e deixar estas
indagações para outra hora. Quem sabe conversar com Joachim e expor-
lhe meus problemas poderia ajudar-me a compreender o que acontecera?”
Era isso mesmo! Na manhã seguinte exporia meu problema ao amigo e,
quem sabe, ele poderia dar uma explicação plausível. Ajeitou-se melhor
entre as cobertas, virou-se para o outro lado e adormeceu como só o
fazem as criaturas jovens e despreocupadas.
No dia seguinte, antes do alvorecer, já se achavam no trabalho.
Agora, mais forte, Pierre procurava de alguma forma compensar todos
os cuidados que recebera do velho judeu. Auxiliava no trato dos animais,
no cuidado da vinha, na horta, e era ele que levava as frutas, legumes e
verduras à aldeia, na pequena carroça.
Joachim, a princípio, não quis aceitar o oferecimento da ajuda de
Pierre, mas este lhe disse com decisão:
– Joachim, preciso fazer algo para compensar-te dos cuidados que
tiveste comigo.
O velho balançou a cabeça, sorrindo ternamente:
– Nada me deves, meu filho. Apenas fiz contigo o que gostaria que
fizesses comigo se fosse eu o necessitado.
– Sei disso e fico ainda mais agradecido. Mas não posso continuar a
depender de ti, um ancião, sendo eu jovem e forte. Deixa-me auxiliar-te no
campo. Preciso aprender a trabalhar. Não me negues essa oportunidade. O
trabalho não me é totalmente estranho; antigamente, porém, eu não
executava, apenas dava ordens. Agora quero aprender a trabalhar.
O velho fitou-o com serenidade e, colocando a destra sobre o seu
ombro, falou-lhe comovido:
– Se assim o desejas, assim será feito! Confesso-te que tua ajuda me vem
a calhar. Encontro-me presentemente algo cansado das lides diárias e um
braço forte será de inestimável valia no trato da propriedade. Que Deus te
abençoe, meu filho.
Desde esse dia Pierre passou a trabalhar ativamente. No início, fazendo
as tarefas mais leves, pois ainda se sentia fraco e leve tontura o acometia
ao fazer um exercício mais violento. Mas com o passar dos dias o mal-estar
foi cedendo e era com grande alegria que agora pegava na enxada para
preparar o solo, cortava lenha para o uso doméstico, ordenhava a vaca, as
cabras, tratava dos cavalos, colhia as frutas, legumes e verduras e ainda as
levava à aldeia para vender.
Joachim, com satisfação intraduzível, acompanhava-o com os olhos
enquanto se afastava com a pequena carroça rumo ao mercado.
Suspirava, intimamente satisfeito, com o amparo que o Senhor lhe
enviara em plena velhice. Pierre era o filho que gostaria de ter tido e a
alegria dos seus dias. Samuel e Ezequiel nunca mais deram notícias e seu
velho coração de pai amoroso se ressentia amargamente com o
esquecimento dos seres amados, vergônteas do seu ser, frutos do seu
amor.
Nessa manhã Pierre não teve tempo de conversar com Joachim. O
trabalho os envolveu e o dia todo estiveram ocupados.
A caminho da aldeia Pierre pensava em falar à noitinha, quando
estivessem reunidos para as orações, como era de hábito. E assim foi
cantarolando para a aldeia. Sentia-se feliz. Gostava do bulício da cidade, de
ver as tendas dos mercadores, do cheiro característico de doces, perfumes,
incenso, frituras e carne assada. Apreciava as novidades e os espetáculos
que muitas vezes eram oferecidos pelos saltimbancos.
Entregava as mercadorias, trocando-as por sal ou qualquer outro
produto de que estivessem precisando, como farinha, centeio ou azeite, e
depois punha-se a passear, divertindo-se com tudo o que via.
Não demorava muito porque não gostava de deixar Pai Joachim
sozinho. Comprava um doce ou outra guloseima qualquer e retornava
para a herdade.
E assim passavam os dias, tranquilos e harmoniosos, como bênçãos de
paz no torvelinho das paixões. Como doce refrigério e pausa confortadora
antes do retorno aos embates da vida.
Fontes de luz, as lições ali aprendidas viriam a servir como bússola por
toda a vida, indicando o rumo certo a ser seguido. Pierre, no contato com
o velho Joachim, recebera uma dádiva divina que serviria para nortear-lhe
a existência dali para frente, quaisquer que fossem os problemas e
vicissitudes a serem enfrentados.
Ali, no aconchego do humilde lar do judeu, aprendia Pierre a amar a
Deus, aos semelhantes e a conviver com a natureza. As lições de vida
ficariam indelevelmente gravadas na alma e muitas vezes, no futuro,
lembrar-se-ia com dolorosa saudade do Pai Joachim e dos diálogos ao
entardecer.

1. Constantes do capítulo V, versículos 25 e 26.


Capítulo VII - Morte de Joachim

Naquela tarde, ao retornar da aldeia, Pierre não conseguiu manter um


diálogo mais íntimo com Pai Joachim. Um ligeiro desassossego o acometeu
de súbito. Era como se pressentisse que algo não estava bem. Lembrou-se
do velho amigo que permanecera sozinho na herdade e voltou mais rápido
do que de costume.
Ao chegar notou um ar de abandono na propriedade. Procurou por
Joachim mas não o encontrou. Preocupado, pôs-se a correr por todos os
cantos à procura do velho.
Foi encontrá-lo caído no campo, longe de casa, ainda a empunhar a
enxada.
Levou-o com todo o cuidado possível para casa, carregando-o nos
braços fortes. Somente então percebeu como o velho estava magro e
acabado. Seu corpo era leve e com facilidade transportou-o, depositando-o
no leito.
Em seguida, o velho judeu acordou e vendo o semblante preocupado de
Pierre debruçado sobre ele, apressou-se em tranquilizá-lo:
– Não te preocupes, meu filho. Fui acometido de ligeiro mal-estar,
seguido de leve vertigem, mas já estou melhor.
– Creio que seria bom buscar o médico da aldeia.
– Não há necessidade, Pierre. Irias aborrecê-lo sem motivo. Além do
mais creio que é o único médico existente dentro de muitas léguas e vive
percorrendo as propriedades da região, atendendo os enfermos mais
graves.
Ainda não convencido totalmente, Pierre retrucou:
– Continuo achando que deveríamos chamá-lo para que te examinasse.
– Não, Pierre. Estou completamente bom. Uma coisa só desejo: gostaria
de tomar um pouco de chá.
Pierre sorriu, já mais descontraído:
– Velho teimoso! Está bem. Descansa que logo trarei o chá que tanto
desejas.
Com um gesto amistoso saiu do aposento, deixando o judeu entregue a
seus próprios pensamentos.
Estava apreensivo. Embora tivesse ocultado sua preocupação aos olhos
de Pierre, sabia que algo não ia bem. Na verdade, esta não fora a primeira
vez que sofrera vertigens. De outras vezes, porém, foi mais rápida a crise e
Pierre não chegou a perceber o mal-estar que o acometera.
O jovem retornou pouco tempo depois trazendo uma fumegante caneca
de chá que Joachim sorveu em pequenos goles.
Depois, como estivesse fraco, recostou-se e logo adormeceu.
Na manhã seguinte, quando Pierre despertou, o velho já se achava na
cozinha preparando o desjejum. Ralhou com ele:
– Não deverias estar de pé, Pai Joachim.
– Tolice! Temos muito trabalho hoje e não pretendo ficar na cama como
uma velha doente.
Havia uma tal autoridade e decisão em sua voz que o rapaz não se
atreveu a contestá-lo. Tomou a refeição em silêncio e saiu para executar as
tarefas do dia.
Com o passar das horas, observando sempre o velho e nada notando de
diferente, Pierre ficou mais tranquilo e pensou consigo mesmo:
“Deve ter sido o calor. Ontem o sol estava excessivamente forte e Pai
Joachim está velho e fraco. Deve ter sido isto.”
O resto do dia passou sem maiores novidades e os dias seguintes
também.
Dez dias depois estavam dialogando ao entardecer, sentados em torno
da mesa da cozinha. Haviam terminado a refeição, que constara de um
caldo de legumes, pão, queijo e leite de cabra adoçado com mel.
Pai Joachim permanecia em silêncio; Pierre respeitava a vontade do
companheiro, que parecia preocupado com algo. Afinal, o judeu falou:
– Pierre, meu filho, preocupa-me o teu futuro.
O rapaz abriu a boca para retrucar, mas Joachim com um gesto o
impediu:
– Não digas nada. Deixa-me falar tudo o que desejo. Depois, então,
poderás dar tua opinião.
Fez uma pausa e continuou:
– Teria imenso prazer em legar-te esta propriedade, mas conheço os
filhos que tenho. Já estou com idade avançada e não permanecerei por
muito tempo aqui na Terra. Meus filhos, que não me procuraram em vida,
forçosamente o farão após minha morte. Conheço sua ambição e apetite
desmedido pelos bens materiais. Se te doar esta herdade não te darão
tréguas até devolveres o que consideram como direito deles.
Novamente Pierre fez menção de falar e Joachim o impediu:
– Não me interrompas. Sei o que queres me dizer. Não desejas nada e
nada pedes. Sei disso. Mas, meu filho, considero que tu és a única criatura
com direito a esta propriedade. Tens sido a alegria dos meus dias vazios e
o braço forte a compensar minha fraqueza. É graças aos teus esforços que
esta propriedade floresceu e tornou-se mais produtiva. Teu suor e teu
sangue se misturaram a esta terra fértil e as colheitas fartas que temos
obtido, com a graça de Deus, levam o selo da tua dedicação.
Fez nova pausa para analisar o efeito de suas palavras no jovem
ouvinte:
– É por estas razões que desejo que este sítio não tenha outro dono a
não ser tu mesmo, Pierre. Tenho pensado muito numa maneira de
solucionar a situação e creio que encontrei a reposta.
Seus olhos claros e vivos brilharam maliciosamente.
– Ora, se não posso deixar-te por herança, posso vender-te a herdade.
– Como assim?
– Trabalhas para mim e nada tens recebido em troca do teu labor. A
partir de hoje estipularemos uma quantia razoável como remuneração
pelo teu serviço diário, que será pago por mim. Irás economizando e
quando tiveres o suficiente passar-te-ei um recibo de venda da
propriedade.
– Parece interessante teu plano, embora saibas que nada disso é
necessário, Joachim. Mas, existe uma falha.
– Qual?
– Como provar a teus filhos que vendeste realmente o sítio? Afinal, são
teus legítimos herdeiros e a lei os protege.
– Sei disso. O dinheiro que me pagares pela compra do terreno
depositarei com o notário da aldeia. Caso meus filhos apareçam
reivindicando a herança, ele lhes entregará a importância depositada e,
creio, nada terão a opor desde que recebam o dinheiro que julguem
merecer. Que te parece?
Joachim parecia uma criança que houvesse cometido uma travessura.
Estava feliz com a perspectiva de resolver legalmente a situação de Pierre
e deixá-lo amparado.
O rapaz fitava o generoso velho e lágrimas de incontida emoção
afloraram. Tomou as mãos do judeu e envolveu-as nas suas.
– Meu bom Pai Joachim. Somente agora percebo como te preocupas
comigo. És realmente o pai que eu não tive a ventura de conhecer. Nada
queria receber de ti além do afeto e do carinho que sempre me
prodigalizaste, mas até aí foste delicado e gentil. Para não magoares meu
amor-próprio e o orgulho de que sabes sou detentor pensaste numa
maneira de favorecer-me sem que te ficasse devendo nada. És meu
benfeitor, mas desejas que eu nada fique te devendo. Só esta atitude já
serviria para mostrar como és grande e bom.
Os olhos do velho se orvalharam de lágrimas, sentindo-se
compreendido.
– Aceitas? – disse, num murmúrio.
Pierre inclinou-se, osculou as mãos magras e encarquilhadas pelo
amanho do solo e respondeu com muita emoção na voz:
– Aceito, meu bom amigo. Aceito porque percebo o prazer que isto te
proporciona e de nada quero privar-te.
Fitaram-se e sorriram. Um elo indissolúvel de amor consolidava-se
naquele instante.
Pierre pensou ao olhar a fisionomia abatida, de traços angulosos, os
cabelos brancos e ralos na cabeça: “Onde já o teria visto antes?”.
***
A partir daquele dia Pierre passou a executar as tarefas com mais vigor.
Após cada semana, ao término do dia, Joachim lhe pagava pelo trabalho
executado. O primeiro salário ganho teve um sabor todo especial. Eram as
primeiras moedas que Pierre recebia como recompensa do seu justo
esforço e sentiu-se intimamente muito satisfeito e até um pouco
orgulhoso. Recebia o pagamento e o colocava num pequeno baú que o
velho amigo lhe dera de presente.
Suas economias iam aumentando. Nada gastava de supérfluo, a não ser
uma ou outra guloseima quando ia à feira uma vez por semana. O resto
guardava zelosamente junto com outras moedas, aumentando cada vez
mais seu pequeno tesouro.
Assim, um ano se passou. Nesse meio tempo a saúde de Joachim vinha
sempre se ressentindo. Cada dia Pierre notava o velho mais fraco e
abatido. Era como se suas forças o estivessem abandonando.
Um dia Joachim pediu a Pierre que tomasse suas economias e o
acompanhasse até o povoado. Lá chegando procuraram o notário e
Joachim assinou um documento passando a posse da herdade para Pierre,
sobre a qual ficava este com todos os direitos, mediante uma determinada
quantia que Joachim sabia Pierre possuir. O valor recebido pela venda da
propriedade foi confiado ao tabelião, que o dividiu em partes iguais a
serem entregues a Samuel e Ezequiel, quando da morte do judeu.
Tudo resolvido, retornaram à pequena herdade. Joachim vinha
bastante aliviado e muito satisfeito por ter legalizado a situação de Pierre
e, no caso de sua morte, deixá-lo amparado financeiramente.
Mas, como se apenas esperasse a legalização do ato para deixar esta
vida, a saúde de Joachim entrou em declínio. Já não se levantava mais e
Pierre fazia agora todo o serviço, além de cuidar da casa e preparar as
refeições.
Ao vê-lo exausto de tanto trabalhar, Joachim dizia, tristonho:
– Sinto dar-te tanto trabalho, meu filho. Já não tenho forças para nada e
ficaste com todos os encargos. Não é justo!
Ao que Pierre respondia, bem-humorado:
– Não é justo que, após teres me ajudado tanto, eu te abandonasse à
própria sorte. Tudo o que faço é com prazer. É uma maneira de ressarcir o
muito que te devo. Além do mais sou jovem e forte e o serviço não me pesa
tanto assim. Quero que descanses para não gastares inutilmente as forças.
Mas, conquanto a atenção e os cuidados de Pierre, certa tarde Joachim
piorou. A crise surgiu inopinadamente, deixando-o exausto. A respiração
difícil, o pulso fraco e o coração descompassado falavam da gravidade do
problema.
Pierre ajoelhou-se ao lado do leito e tomou as mãos do velho entre as
suas. Joachim abriu os olhos fitando-o com carinho extremado:
– Filho, é chegada a hora. Meu... tempo... acabou e preciso... partir –
falou com imensa dificuldade.
Lágrimas rolaram pelo rosto do jovem, que falou comovido:
– Que farei sem ti? Como passar sem teus conselhos e sem tua
presença?
– É preciso, meu... filho. Não... ficarás... sozinho...
Uma dispneia mais forte o prostrou por momentos. Ao se recuperar um
pouco, continuou:
– De onde eu... estiver, estarei contigo... És o filho... que sempre...
desejei ter...
Fez uma pausa e olhou o teto, sorrindo levemente, enquanto Pierre lhe
enxugava a fronte porejada de suor:
– Ela... vem vindo... minha... doce... esposa. Onde estarão meus... filhos
neste momento?... Samuel... Eze... Ezequiel... eu vos perdoo do fundo do
coração... porque vos amo. Meu Deus! É chegado o momento... Vê, Pierre,
que luz maravilhosa...
O rapaz soluçava convulsivamente, ouvindo-o falar com voz
entrecortada pela aflição e pela dor.
Os olhos do moribundo fixaram-se num ponto qualquer no alto e
tornaram-se vítreos. Deu um longo suspiro e parou de respirar.
Havia partido. Aquela alma simples e pura deixara enfim o casulo do
corpo, voando para o Infinito. Docemente amparado por amigos
espirituais desligou-se dos velhos despojos que durante tantos anos o
serviram fielmente, partindo para uma vida melhor onde se refaria do
abalo momentaneamente sofrido com o desligamento dos laços físicos,
para prosseguir na luta pela evolução.
Voltaria mais tarde, já recuperado, para auxiliar os entes queridos que
permaneceram na retaguarda, ainda presos à matéria.
Capítulo VIII - Reencontro

Aos poucos Pierre foi adaptando-se à vida solitária que passara a levar.
Após a morte de Pai Joachim foi que percebeu o quanto estavam unidos e a
falta que sentia do velho amigo e pai por adoção.
Tudo na pequena herdade trazia o selo do antigo dono. Em cada árvore
plantada, em cada utensílio de cozinha via seu benfeitor. Principalmente
quando tomava nas mãos o velho texto sagrado sentia mais próxima a
presença do companheiro que se fora. E nesses momentos os olhos se lhe
umedeciam de saudade e sentia como se ele estivesse ali, junto, repetindo-
lhe sorridente as lições inesquecíveis do Mestre Nazareno.
Com o passar dos dias a dor foi-se diluindo e mergulhado no trabalho
não via o tempo correr.
Acostumou-se à solidão e a fazer tudo sozinho. Tornou-se calado e
introspectivo, à força de não ter com quem conversar. Amadureceu física
e moralmente. Seus traços se acentuaram, a boca adquiriu um ricto de
determinação. O queixo, que a barba cobria, lhe deu ar de firmeza e os
olhos se tornaram mais aguçados e vivos em contato com animais, seus
únicos companheiros.
No mercado dirigia ligeiras palavras, não mais do que o necessário,
àqueles que o interpelavam. Trocava as mercadorias, comprava o que
estivesse faltando e retornava ao sítio para prosseguir na vida solitária e
melancólica.
Quando lhe perguntavam por que não se casava ele respondia
secamente:
– Sinto-me bem como estou.
E dava por encerrado o assunto. Aos poucos os habitantes do povoado
se acostumaram aos seus modos rudes e deixaram de preocupar-se com
ele.
Certa vez, quando fazia compras no mercado e entretinha-se a escolher
algumas mercadorias, foi tomado de vivo espanto. Ao levantar os olhos
percebeu, a algumas dezenas de passos, um casal que se ocupava em
separar algumas frutas.
O homem, denunciando certa idade, possuía cabelos e barbas grisalhos,
vestes pobres mas limpas, e conversava em altos brados com o dono da
barraca, reclamando da qualidade dos produtos postos à venda.
Mas o que lhe chamou a atenção foi a jovem que o acompanhava e que,
por certo, deveria ser sua filha. De talhe elegante, sem ser excessivamente
magra, possuía gestos delicados e andar ondulante. Seus cabelos deveriam
ser belos, a julgar das madeixas que teimavam em soltar-se do lenço que
trazia envolvendo-lhe a cabeça.
Parecia-lhe reconhecer alguém através dos traços delicados: o perfil
que vislumbrava de longe lembrava-lhe alguém que já vira.
Aproximou-se vivamente interessado e, quando a jovem levantou a
cabeça, pôde perceber os belos olhos azuis, o nariz pequeno e bem feito, a
boca de linhas perfeitas. A pele clara deveria ser macia e desejou tocá-la.
Lembrou-se incontinenti daquela outra jovem, quase uma menina, que
vira esquálida e ofegante fugir aos maus tratos de sua mãe. Seria ela
realmente? Os anos a haviam modificado fisicamente; tornara-se mais
bela, mais mulher, crescera e já não era mais aquela menina magra. Seus
contornos se arredondaram, a cintura afinara e os seios apareciam sob o
tecido leve da blusa decotada. Estava realmente muito diferente, mas era
ela mesma, tinha certeza.
Seu coração pulsava desordenadamente e as têmporas latejavam. Não
teve tempo, porém, de dirigir-lhe a palavra. Ela afastou-se, algo receosa,
ao perceber-lhe o olhar insistente e, tomando o braço do pai, sussurrou
algo em seu ouvido e foram embora.
Não desejando perdê-la de vista, Pierre os acompanhou a uma certa
distância. Viu-os caminharem pelas vielas até pararem defronte a uma
pequena casa, onde penetraram.
O desejo de Pierre era permanecer do lado de fora da humilde moradia
esperando que ela saísse, para abordá-la, mas a porta e as janelas
permaneceram cerradas.
Resignou-se a voltar para a chácara sem vê-la novamente, conquanto se
sentisse tomado de interesse incomum pela bela moça. Pensou que não lhe
faltariam oportunidades de revê-la. Sabia onde residia e não lhe seria
difícil aproximar-se sob um pretexto qualquer.
Naquela noite demorou a conciliar o sono, pensando na jovem que vira
no mercado, mas adormeceu cheio de esperanças e sentindo um novo
estímulo para viver.
Nos dias seguintes, porém, não pôde voltar à vila, apesar do ardente
desejo que possuía de rever a moça que tão profundamente o
impressionara.
A chuva caía, pesada. Grossos pingos encharcavam o solo e corriam em
fios d’água, formando pequenos regatos. O tempo permanecia fechado e
um ar cinzento cobria tudo.
Pierre fazia o estritamente necessário. Pela manhã envolvia-se numa
grossa capa de lã, calçava botas pesadas e ia tratar da criação. Voltava e
passava o resto do dia ocupado em fazer cestos de vime, que aprendera
com o velho Joachim, em remendar algumas roupas para que pudessem
durar um pouco mais, ou em ler junto ao fogo que crepitava, contente.
De quando em quando abria a janela, olhava a chuva que caía em
bátegas, suspirava e voltava para se aquecer junto ao fogo. A temperatura
caíra e fazia frio, não obstante o inverno não ter chegado ainda.
Isso durou uma semana. No sétimo dia o tempo amanheceu limpo.
Pierre acordou com a claridade do sol entrando pelo quarto. Abriu a janela
e um sol morno o envolveu num banho de luz. Feliz, contemplou as
plantas que se apresentavam lavadas e brilhantes. As copas das árvores
balouçavam mansamente sob a brisa matutina, ainda com gotículas de
chuva em suas folhas. As flores abriram suas corolas para receber o beijo
do sol e os passarinhos cantavam no arvoredo. Do chão vinha um cheiro
bom de terra molhada.
O jovem Pierre sorriu. Afinal, a vida era bela e digna de ser vivida. Em
seu peito, pleno de energia e vigor, a juventude estuava.
Arrumou-se com esmero. Vestiu a melhor roupa que possuía, calçou as
botas, penteou os cabelos e tomou o rumo da aldeia. Levava algumas
hortaliças para trocar por gêneros de que estava precisando. Como
aproximar-se da jovem? Conseguiria vê-la? Os pensamentos
turbilhonavam em sua cabeça em grande expectativa.
Atravessou as ruelas que o conduziriam até a feira. O movimento era
grande. Após a chuva que caíra por muitos dias consecutivos, todos
queriam aproveitar o sol.
O vozerio na praça era ensurdecedor e desagradava profundamente a
Pierre, desacostumado de barulho.
Fez o que tinha que fazer, olhando para todos os lados a ver se
encontrava a dama dos seus sonhos. Mas, nada. Parece que todos os
habitantes da aldeia haviam saído para as ruas, menos ela.
Já desistindo de encontrá-la, Pierre passou por uma taberna e ouviu
gargalhadas sonoras. Pareceu-lhe reconhecer a voz e voltou-se para ver
quem ria tão alto. Em torno de uma pequena mesa encontravam-se três
homens conversando animadamente. Com surpresa, reconheceu num
deles exatamente naquele que ria alto, o acompanhante da jovem que
tanto o impressionara e que ele julgava fosse seu pai.
Subitamente ocorreu-lhe que fazendo amizade com o pai chegaria até a
filha. Não pensou duas vezes. Entrou na taberna e pediu uma caneca de
vinho. Sentou-se observando a outra mesa e aguardando uma ocasião
favorável para aproximar-se.
Pouco tempo depois os dois amigos foram embora e o velho ficou
sozinho na mesa.
Pierre tomou da sua caneca e aproximou-se do estranho.
– Senhor, poderia sentar-me à tua mesa?
O estranho levantou a cabeça, surpreso, e Pierre continuou:
– Estou só e vendo que os amigos te deixaram pensei que poderíamos
beber juntos. Aceitas mais vinho?
O homem fez um gesto de assentimento, pedindo a Pierre que se
sentasse.
– Boa ideia! Não gosto de beber sozinho. Mas, não me lembro de tê-lo
visto antes, amigo. És forasteiro aqui?
– De certa forma. Não resido na aldeia, mas tenho uma propriedade
rural não muito longe daqui e venho sempre ao mercado.
– Ah! Mas não tens modos de camponês. Pareces mais um gentil-
homem. Como te chamas?
– Pierre, Senhor, para te servir. A mim, porém, pareces conhecido. Será
que nunca nos encontramos antes?
– Se já nos vimos, não me recordo.
– Sempre moraste aqui? – perguntou Pierre, desejando arrancar
informações do homem.
– Não. Vim do sul.
– Do sul? Mas não é muito longe?
– Sim, bastante. Já ouviste falar em Montpellier?
– Já ouvi falar – respondeu Pierre devagar.
– Pois bem. Residia ali perto, nas imediações. Minha mulher morreu e
logo depois ofereceram-me trabalho por estas bandas. Um parente de
minha falecida esposa e que depois me deixou na mão. Mudei-me para cá
com minha filha e desde então luto pela vida.
– Tens uma filha, então?
– Sim, uma bela rapariga. Sei que sou rude e grosseiro, mas minha filha
tem educação refinada. É muito prendada. Cozinha divinamente, embora
não tenha nascido para esse tipo de serviço. É uma dama! Mas sabes, sou
pobre e não posso pagar alguém para fazer os serviços mais pesados.
O velho, já sob o efeito da bebida, falava muito, desatando a língua, e
Pierre não deixava sua caneca vazia.
Durante horas conversaram bastante e Pierre ficou informado sobre
tudo da vida dele. Fingia uma alegria que não sentia, falava pouco e ouvia
muito, e quase não bebeu, para manter-se lúcido, conquanto fingisse
sempre encher a própria caneca tanto quanto a do acompanhante.
Quando percebeu que o velho não conseguiria andar sozinho, falou
evidenciando pesar:
– Lamento, meu amigo, mas agora preciso retirar-me. Folgo ter
encontrado companhia tão agradável, mas não faltarão oportunidades,
não é?
O outro, com a língua enrolada, concordou, tentando levantar-se.
Caiu pesadamente na cadeira. Pierre, solícito, ofereceu-se para levá-lo
até a casa.
– Não quero incomodar-te, amigo Pierre.
– Incômodo nenhum, Antoine. Terei muito prazer em acompanhar-te.
Tua filha já deve estar preocupada com a demora, pois não?
– É verdade!
Pierre pagou ao taberneiro e conduziu o velho até a pequena carroça.
Com o coração aos saltos o rapaz parou defronte à casa em que sabia
residir o amigo, que adormecera sob os efeitos da bebida.
Bateu na porta e logo ouviu leves passos que se aproximavam. A jovem
abriu-a e estacou, surpresa, ao ver o estranho.
Antes que tivesse tempo de dizer algo, Pierre falou-lhe a que vinha:
– Mademoiselle, teu pai bebeu um pouco mais do que devia e trouxe-o
para casa.
Os olhos da moça desviaram-se para a carroça e a expressão mudou:
– Papai!
– Não te preocupes, Mademoiselle, ele está bem. Onde posso colocá-lo?
Pegou-o pelas pernas, jogando-o nas costas, e o levou para o interior,
depositando-o no leito.
– Não sei como agradecer, Monsieur. Papai muitas vezes se excede, mas
nunca ficou assim, acredita.
– Oh! Acredito, Mademoiselle!
Ficou parado, com o chapéu na mão, sem saber o que dizer.
A moça fitava-o com estranheza.
– Já nos vimos antes, Senhor?
– É possível, Mademoiselle – respondeu de forma evasiva. – Bem, vou
retirar-me. Boa noite.
A jovem agradeceu novamente e Pierre se afastou com o coração
satisfeito. A partir daí um novo relacionamento se estabeleceu. No dia
seguinte, após a execução das suas tarefas, Pierre retornou desejoso de
saber notícias da saúde de Antoine.
Encontrando-o desperto e apenas sofrendo ligeira indisposição,
resquício da bebedeira da noite anterior, congratulou-se com o velho
Antoine por encontrar-se bem. O amigo agradeceu o auxílio e as atenções
dispensadas à sua pessoa e entabularam animada conversação.
A jovem, esquiva, permaneceu no interior da moradia enquanto os
homens palestravam na sala, só aparecendo quando ouviu que seu pai a
chamava:
– Marianne!
Surgiu, serena e digna, na soleira da porta.
– Sim, meu pai. Chamaste-me?
– Minha filha, Pierre ficará para cear conosco.
Como Pierre percebesse certo desagrado na reação da jovem,
delicadamente interveio:
– Mademoiselle, não desejo ser incômodo...
Marianne virou-se e respondeu, com voz firme, embora cortês:
– Incômodo nenhum, Monsieur. Meu pai te convidou, serás nosso
hóspede.
Pierre inclinou-se, agradecendo.
Os novos amigos continuaram conversando até que a jovem veio avisar
que a ceia estava servida.
Conduziram-no para o interior da casa onde, em outro aposento,
simples e despojado como o primeiro, encontrava-se posta uma mesa
recoberta por uma toalha tão limpa quanto surrada.
Marianne procurou justificar-se, tomando o prato nas mãos para servir:
– Se tivesse sido comunicada da tua visita, Senhor, poderia ter
preparado algo melhor. Infelizmente só temos um guisado de coelho, pão,
queijo e vinho.
– Para mim está ótimo, Mademoiselle. O aroma está tentador. Creio que
deprecias tua hospitalidade e, além disso, o vinho está excelente – falou,
provando um gole e evitando mostrar desagrado ao perceber a péssima
qualidade da bebida.
O velho estava eufórico. Gostava de conversar e raramente recebiam
visitas. Após o repasto, Pierre agradeceu:
– Mademoiselle cozinha muito bem e nada fica a dever às melhores
cozinheiras do Reino.
– Como sabes disso? – ela retrucou, surpresa.
Percebendo que falara demais, Pierre emendou:
– Não sei. Mas imagino, Mademoiselle, que não possa existir alguém que
cozinhe melhor. O guisado estava divino.
Ela ainda o fitou meio desconfiada, mas não querendo encompridar a
conversa, calou-se.
Pierre suspirou aliviado ao perceber que sua esfarrapada desculpa tinha
sido aceita. Não queria que soubessem quem ele era. Nada tinha demais
em ser filho do conde de Montpellier, mas queria romper de vez com essa
fase de sua vida e desejava que o julgassem apenas pelo que era agora: um
camponês.
Logo em seguida a jovem retirou a mesa e desapareceu por uma porta
que deveria conduzir à cozinha, e não mais a viu.
Já anoitecera quando se despediu, mais uma vez agradecendo a
acolhida, e partiu após ter prometido, a instâncias de Antoine, que voltaria
outras vezes.
Depois que Pierre saiu, Marianne recriminou o pai:
– Por que o convidaste para voltar outras vezes?
Ele respondeu com outra pergunta:
– Não deveria?
– Não gosto dele. Tem algo de estranho esse homem, pai. Não notaste
como se desconcertou quando disse que eu era a melhor cozinheira do
Reino?
– Ora, minha filha, quis agradar-te.
– Não, meu pai. Ele não falou como um camponês rústico e sem
instrução. Falou como se realmente tivesse convicção do que estava
dizendo. Era como se soubesse!
– Não fiques inventando coisas. Ele é um bom rapaz. Quero que o trates
bem.
– Por quê?
– Por quê? Porque é meu desejo que ele se sinta bem em nossa casa.
– Só isso? – perguntou novamente em tom de dúvida.
– Não. Creio que é um ótimo pretendente para ti. Não viste como te
olhava?
Ela balançou os ombros num gesto de pouco caso.
– Pois eu notei! Está muito interessado em ti, minha filha. É um bom
partido. Pelo que me contou, possui umas terras aqui nas redondezas. Não
deve ser rico, mas por certo tem o suficiente para dar-te o conforto que
mereces. Agora vai dormir. Pareces cansada.
– Tua bênção, meu pai.
– Deus te abençoe, minha filha.
Capítulo IX - Novos compromissos

À luz bruxuleante da vela que permanecia sobre a mesinha de


cabeceira, Marianne deitou-se, sentindo com agrado a tépida maciez das
cobertas.
Estranho esse homem, o novo amigo de seu pai. Não que fosse feio, ao
contrário. Sua fisionomia apresentava traços interessantes, a barba até
que lhe conferia um certo encanto; seus olhos eram profundos e lhe
causavam algum desassossego. Até um certo medo. Ele a atraía e repelia ao
mesmo tempo.
Suspirou. Bem que notara o interesse dele por ela. Seus olhos
acompanhavam seus menores movimentos, com admiração indisfarçável.
É. Seu pai tinha razão! Precisava mesmo casar-se. Estava para completar
dezessete anos e nessa idade as moças já estavam todas comprometidas.
Ela, não. Na verdade, jamais se interessara por homem nenhum. Muitos
pretendentes já haviam surgido, mas nenhum a interessou. Despedia-os
sumariamente.
Os olhos fitavam a vela, cuja claridade avermelhada refletia em torno,
iluminando parcamente o ambiente.
Por que sempre essa melancolia? Por que, conquanto rodeada de gente,
sentia tanta solidão?
Cerrou as pálpebras e duas lágrimas umedeceram seu rosto, rolando
pelo travesseiro.
Que sentimento era esse que aflorava em seu íntimo desde a infância e
não conseguia definir? Uma tristeza, misto de saudade e amor, de
contornos imprecisos e vagos. Sem saber como, nem por que, às vezes
internava-se nos bosques e, sentada sob uma árvore, debruçava a cabeça e
chorava durante horas.
Sua vida nunca fora feliz. Era como se pesasse sobre a existência uma
nuvem de infortúnio que a asfixiava e não permitia que sentisse prazer em
nada.
Quando pequena sofria constantemente. Era obrigada a fazer trabalhos
pesados e apanhava amiúde. Quando a mãe voltava bêbada para casa, ou
trazia um odre de vinho, já sabia que a noite seria longa.
Quanto a detestara! A morte de uma mãe traz sempre muito sofrimento
para um filho, mas para ela fora uma libertação. Não derramara uma
lágrima e foi com suspiro aliviado que a viu descer à sepultura.
Sentiu-se livre, afinal, para viver a sua vida.
O pai resolveu transferir-se para outra localidade, enterrando o
passado, ele que também tanto sofrera, e iniciaram vida nova num
pequeno vilarejo.
Sua vida corria monótona, sem divertimentos e amizades, mas era
calma e ela vivia em paz, não sofrendo mais como antigamente. Não tinha
grandes alegrias, nem também grandes sofrimentos. Vivia, apenas.
Até aqueles momentos de íntimo desgosto, de profunda e dolorida
saudade, conhecidos apenas por ela mesma, tornaram-se mais raros.
Agora, surgira esse homem em sua vida. Talvez seu pai tivesse razão.
Quem sabe poderia vir a interessar-se por ele?
Pensar em Pierre produziu-lhe um calafrio. Não sabia como classificar
seus sentimentos. Talvez conhecendo-o melhor, quem sabe?
Adormeceu placidamente, fazendo planos para o futuro.
Desse dia em diante, com os pretextos mais diversos, Pierre aparecia
sempre para rever a sua amada. Às vezes trazia frutas, guloseimas,
pequenos mimos que tanto agradam às mulheres, perfumes, e até um
toucado para enfeitar ainda mais sua cabecinha, como disse ele.
Marianne era mulher e, acima de tudo, mulher vaidosa e consciente da
sua beleza. Recebia os agrados a princípio com ar sério e reservado, depois
com um sorriso e, finalmente, com ternas palavras de agradecimento.
Em pouco tempo punha-se a aguardar ansiosamente a chegada do
rapaz, buscando espiar a rua com insistência.
Antoine via com agrado o desenrolar dos acontecimentos e
acompanhava as mudanças que se operavam na filha, extremamente
satisfeito.
E era natural que assim acontecesse. Marianne nunca tivera contatos
maiores com outras pessoas, sobretudo jovens. Vivera sempre entregue a
seus afazeres, reclusa dentro de quatro paredes. Pierre era o primeiro
homem que conseguia aproximar-se o suficiente para travar
relacionamento mais íntimo.
Embora ainda voltassem, vez por outra, a desconfiança e o medo, já
suportava sua presença com mais naturalidade e, conversando sob as tílias
no jardim, aprendera a conhecê-lo melhor. Ouvia-o, quando discorria
sobre algum assunto, com agrado. Percebia agora que aquele ar
carrancudo era apenas fachada. No fundo, ele era sensível, inteligente e,
por que não dizer, atraente.
Quando Pierre pediu sua mão em casamento não ficou surpresa, e foi
sem muito pensar que aceitou.
Não era o grande amor que aguardara – ela pensava –, mas teriam vida
tranquila e sem sobressaltos. Seu pai não precisaria mais trabalhar e
passaria a residir com eles no sítio.
Naquela noite Marianne sentiu uma certa angústia, mescla de medo e
insegurança. Algo dentro dela se agitava. Uma sensação que não sabia
definir a deixava triste e inquieta. Adormeceu com lágrimas quentes de
desencanto banhando-lhe o rosto.
Em pouco tempo, não saberia dizer quanto, viu-se num lugar estranho,
luxuosamente ornamentado. Era um palácio muito antigo, decorado ao
gosto oriental. Via-se a si mesma vestida com roupas belíssimas e
adornada de joias
Ao seu lado, divisou a figura de um belo homem, elegantemente trajado
com um uniforme de exército, que a fitava com doçura e a quem ela tinha
certeza de amar com todas as forças da alma. Era aquele homem, agora o
sabia, que ela amava e pelo qual esperara sempre.
Experimentava uma felicidade tão grande que o coração parecia prestes
a estourar. Naquele momento a saudade torturante que a martirizava
desapareceu como que por encanto e ela chorou recostada no ombro dele.
Com gestos delicados ele lhe acariciava os longos cabelos e sua voz,
aquela voz de tonalidade inconfundível, terna e suave, soou-lhe aos
ouvidos:
“Perdoa, minha querida. Perdoa para seres feliz. Perdoa!...”
Acordou alta madrugada ainda tendo em seus tímpanos gravadas as
palavras que “ele” pronunciara. Com profundo desagrado notou que se
encontrava em seu humilde quarto e que estava só.
Registrava, na acústica da alma, que tudo aquilo ocorrera há muito
tempo. Fora rica e cortejada, amara e fora amada. Aquele homem era o
ideal de seus sonhos mais secretos, era por ele que ela esperara sua vida
toda. Mas, de alguma forma, entendeu que “ele” queria que ela perdoasse
a Pierre, que “ele” se referia a seu noivo. Por que será?
Naquele instante reconheceu que laços profundos a uniam a Pierre, que
de alguma forma estiveram juntos no passado. Que precisava perdoar-lhe
e a si própria por fatos anteriormente ocorridos.
Que coisa estranha! Então, será que existem realmente outras vidas? Há
muito tempo ouvira alguém falar com seu pai sobre isso, mas ele rira dessa
teoria e ela, ainda criança, rira também. Agora essa lembrança acudia-lhe
novamente à memória e já não achava motivos para riso.
Na verdade, era como se fosse uma outra pessoa, totalmente diversa,
vivendo em outra época. Sentia que aquele palácio era seu, tudo aquilo lhe
pertencia, que amava e era amada profundamente por aquele jovem
oficial de rosto belo e sereno.
Embalada por esses pensamentos, adormeceu novamente quando
iniciava o alvorecer.
***
Os dias transcorriam cheios de enlevo para Pierre, que não via a hora
de terminar o serviço diário. Então, banhava-se, vestia a melhor roupa que
possuía e cavalgava ao encontro da sua jovem prometida.
Jamais fora tão feliz em sua vida e aquelas horas de terno convívio
ficariam indelevelmente gravadas na memória pelos tempos futuros.
Notava que Marianne não correspondia ao seu amor como seria de
desejar, mas, pacientemente, esperava conquistá-la com muito carinho e
atenções.
Às vezes dizia-lhe, sob o arvoredo do jardim:
– Minha querida Anne, não te parece que já vivemos momentos como
estes?
– Como assim? Explica-te melhor, Pierre.
E ele, tomando docemente das mãos dela, um tanto ásperas pelo
trabalho rude que executava:
– Não sei explicar, Anne. Mas sinto no mais profundo do meu ser que
não é a primeira vez que beijo tuas mãos, como neste momento.
– Mas realmente não é a primeira vez que beijas minhas mãos! –
respondeu ela com graça, inclinando levemente a cabeça num gesto
característico seu.
– Não me entendeste, querida. Não falo de hoje ou de ontem, do tempo
de agora. Falo de fatos que podem ter ocorrido muito tempo atrás, num
passado distante, entendes? É como se já nos conhecêssemos de priscas
eras.
Marianne lembrou-se do sonho que tivera dias antes e algo dentro dela
se confrangeu.
– Pensas realmente assim? – perguntou.
E Pierre, apertando mais fortemente as mãos dela entre as suas, fitou-a
com amor:
– Sim! Algo me assegura que sim, que já vivemos antes e que não é a
primeira vez que nossos destinos se cruzam. E quando esses pensamentos
me ocorrem sinto uma angústia muito grande aqui dentro – e apontava o
coração. – Vês como ele bate precípite? É por ti que meu coração bate
assim loucamente.
Os olhos de Pierre fitavam Marianne com um brilho desesperado:
– Temo perder-te, Anne. Amo-te tanto que se algum dia eu te perder
não sei o que pode acontecer. Serei capaz de qualquer coisa para ter-te de
volta.
E assim dizendo agarrou-a, enlaçando-a com seus fortes braços.
Marianne se assustou. Teve medo daquele homem e do seu amor
desesperado, das emoções que ele extravasava pela primeira vez. Deu um
grito de susto:
– Larga-me. Estás a machucar-me!
Pierre, voltando a si e percebendo que se excedera, beijou-a com
delicadeza:
– Perdoa-me, querida. Às vezes penso que este amor me enlouquece.
Viste? Amo-te acima de tudo e não quero perder-te. Não posso perder-te!
Não sei o que se passa comigo quando penso que possas abandonar-me!
– Tranquiliza-te, querido Pierre. Logo estaremos casados e teus receios
se extinguirão.
Marianne procurava serenar o ânimo de seu noivo, enquanto
intimamente pensava: “Será?”. Algo lhe dizia que esse casamento não se
realizaria.
Mais calmo, Pierre beijou-a com ternura, enquanto sussurrava em seus
ouvidos:
– Tu és o meu refúgio, a minha razão de viver. Deposito minha vida a
teus pés. Frágil criatura que és, poderás elevar-me aos céus ou atirar-me
às chamas do inferno.
Ela procurou tapar a boca de Pierre com a mão:
– Não fales assim! Sinto-me mal!
E realmente, dos arcanos da alma, dos refolhos da memória, vagas
lembranças afloravam, e considerava-se culpada em relação a ele. Como se
de fato fosse responsável pela felicidade dele. Ao mesmo tempo, um
horror instintivo, uma repulsa muito grande fez com que se afastasse de
Pierre. Tinha medo dele, um medo inexplicável.
Sorriu e, disfarçando seus sentimentos, convidou-o para darem uma
volta.
Saíram pelas ruas da aldeia, tomando um pequeno caminho que os
levava para o campo, conversando animadamente, já esquecidos do
diálogo difícil e das emoções experimentadas.
Cada um procurava vencer os sentimentos contraditórios que lhes
tumultuavam o íntimo, sob uma capa de alegria e tranquilidade. Mas, bem
lá no fundo, uma certa tristeza se instalara, a par de inquietante sensação
de insegurança no futuro.
Nos dias seguintes, amainada a tormenta, tudo voltou a ser como antes.
Passavam as horas em suave idílio, esperando os esponsais, que deveriam
realizar-se após trinta dias.
Capítulo X - Os convidados

Dentro do castelo reinava a maior agitação. Preparava-se uma festa e


esperavam-se visitas importantes. Membros da própria família real
estariam presentes à recepção e os servos envidavam todos os esforços
para preparar condignamente o castelo de Montpellier.
Enquanto uma parte dos servidores cuidava da limpeza dos pisos,
janelas e escadarias, outros poliam os metais e retiravam as porcelanas
mais finas dos armários, herança dos ancestrais e que passavam de
geração em geração.
Na cozinha esmeravam-se as cozinheiras em iguarias as mais diversas:
os faisões eram decorados regiamente, peixes assados no vinho e regados
com molho picante, manjares de fino paladar e doces confeccionados por
doceiras famosas da região fariam a alegria dos convivas. Tudo regado
com o excelente vinho da adega, famosa em todo o país. O conde de
Montpellier possuía um interesse especial por vinhos. Profundo
conhecedor dos mais diversos tipos era capaz de distinguir um do outro
pelo bouquet e dizia com segurança a procedência e o ano de fabricação.
A condessa Louise percorria as dependências do castelo verificando se
estava tudo em ordem e preparado para receber os ilustres convidados.
Lucas, em seus aposentos, dava os últimos retoques à toalete. Mirava-se
num grande espelho de cristal com olhos críticos, enquanto o criado
terminava de arrumar as dobras da casaca.
Gostou do que viu refletido no espelho. A imagem de um jovem em
pleno vigor da existência física. Rosto delicado, nariz afilado, herança de
família; os olhos, vivos e penetrantes, eram encimados por sobrancelhas
arqueadas aristocraticamente. A boca, de tamanho regular, tinha o lábio
inferior mais grosso que o superior, denotando o caráter voluntarioso de
que era dotado.
Os cabelos compridos, que ele gostava de usar puxados e amarrados na
nuca, deixavam à mostra a testa larga, evidenciando inteligência e
sensibilidade; e as mãos brancas e finas, cujos dedos nervosos e
impacientes tamborilavam no encosto de uma poltrona, indicavam a
ansiedade que lhe ia no íntimo.
Suspirou.
Era natural que esperasse com impaciência pela festividade que seus
pais preparavam com tanto esmero. A finalidade da recepção era
justamente firmar o contrato nupcial que uniria a sua a uma das famílias
mais notáveis do país. Ficaria conhecendo aquela que seria sua noiva e que
lhe fora imposta pelos pais, como questão de honra, pois desde a infância
já estava acertado o compromisso.
Bateram de leve na porta e, logo em seguida, sua mãe entrou com um
sorriso nos lábios. Galante, Lucas não deixou de notar como a condessa sua
mãe estava bela nos trajes festivos.
– Estás encantadora, mamãe! – falou, beijando-lhe a destra estendida. –
Farás a inveja de muitas mocinhas.
– Ora, meu filho. Já estou velha e a única coisa que desejo é ver-te
casado e feliz.
O rosto de Lucas sombreou-se por momentos e respondeu, irritado:
– Poderei ser feliz casando-me contra a vontade, minha mãe?
A condessa o fez sentar-se e, fitando-o com extremado carinho, passou
a mão delicada em seus cabelos.
– Meu filho, teu pai assim o quer e deves dobrar-te à sua vontade.
Mesmo porque, depois das loucuras que vens cometendo, é a única
maneira honrosa de sairmos da situação em que nos colocaste.
– Acusas-me?
– Não, meu filho. Estou apenas sendo sincera. Tens jogado fora o nosso
dinheiro com bebidas e mulheres, e nosso patrimônio já não é o que era
antes. Esse casamento virá restaurar nossa riqueza um tanto abalada. Teu
pai também anda descontente contigo, e será uma maneira de reparares
um pouco os desgostos que tens causado a ele.
Fez uma pausa para analisar o efeito de suas palavras e concluiu com
um sorriso:
– Além do mais, ainda não conheces tua prometida. Deve ser bela, pois
teu pai não escolheria para tua esposa um monstro, não achas? Vamos,
anima-te!
Lucas suspirou:
– Espero que tenhas razão, minha mãe, senão estou perdido!
Louise levantou-se tomando-lhe ambas as mãos:
– Vamos, não sejas pessimista. Creio que ficarás agradavelmente
surpreendido. Quero que sejas muito feliz, meu filho. Só assim serei feliz
também.
Nesse instante seu semblante delicado toldou-se como se algo lhe
passasse pela cabeça. Lucas percebeu a mudança e a inquiriu, preocupado:
– O que houve, mamãe? Alguma coisa te aflige?
Com os olhos nublados de pranto, ela respondeu, tentando acalmar-lhe
os receios:
– Nada, meu filho. Estou bem. São as lembranças... que às vezes não
posso evitar...
– Já sei. É Pierre, não é?
Louise concordou com a cabeça. As lágrimas tanto tempo represadas
romperam-se afinal, lavando-lhe a alma:
– É essa incerteza, meu filho, que me acaba. Nunca mais tivemos
notícias dele. Não sabemos se está vivo ou morto, se passa fome ou se é
feliz. E nesses momentos sinto o coração apertado de angústia. Um lustro
já se passou e não consigo esquecer aquele dia.
– Também lamento, mamãe, o que aconteceu. Tardiamente me
arrependi do desentendimento que tive com Pierre, mas já era tarde.
Papai já o expulsara de casa e nada o faria voltar atrás na sua decisão.
– Aquele dia trágico não me sai da memória, meu filho. Até hoje não
entendo o que fez teu pai ficar tão colérico.
– Agora não adianta lamentar, mamãe. Nada podemos fazer por ele.
Talvez nem esteja vivo...
Louise, surpresa, fitou-o com os olhos arregalados indagando ansiosa:
– Por que dizes isso? Sabes de alguma notícia que não sei e não desejas
me contar?
– Não, mamãe, não é nada.
– Por favor, meu filho. Nada me escondas. A incerteza é pior do que
uma notícia má. Sinto que estás a esconder-me algo...
Lucas suspirou e, com um gesto de desalento, respondeu:
– Está bem, mamãe. Vou contar-te tudo. Há alguns anos foi preso um
malfeitor que portava uma joia, um medalhão com nosso brasão e as tuas
iniciais gravadas no verso...
Com o coração aos saltos ela confirmou:
– Sim, lembro-me dele. Dei-o a Pierre juntamente com outras joias da
família no dia em que foi expulso desta casa. Mas, continua, meu filho,
suplico-te.
– Pois bem. O soldado que efetuou a prisão, não obstante ter acontecido
num local muito distante daqui, ao norte, fez averiguações e descobriu
que o brasão era da nossa família. Também o reconheceu um amigo de
papai, chefe de polícia em Paris, que enviou o gendarme para que papai
identificasse o adereço. Assim, ficamos sabendo que aquele criminoso,
juntamente com um cúmplice, assaltara um rapaz na estrada e roubara
tudo o que possuía.
– E Pierre? O que aconteceu com Pierre? – indagou Louise sob violenta
emoção.
– Ele não sabe, mamãe. Diz que o atingiu muito duramente na cabeça e
que o deixou esvaindo-se em sangue. Na verdade, acredita que morreu,
porque, sem recursos e sem socorro, não poderia durar muito tempo. A
estrada é deserta e quase ninguém passa por ali.
Louise caiu numa cadeira, trespassada de dor.
– Meu Deus! Será que ele está morto?
Mas, no mesmo instante, seu íntimo se rebelou contra esse pensamento
e virou-se para Lucas com esperança na voz:
– Ele pode estar vivo, meu filho! Pierre pode estar vivo em algum lugar!
Onde está esse homem?
– Ninguém sabe, minha mãe. Alguns dias depois de papai ter-me
contado o fato fui até a prisão saber se obtinha novas informações e o local
exato do acidente, mas o criminoso fugira do cárcere e nunca mais se
ouviu falar dele.
Amassando um lencinho entre as mãos trêmulas, ela perguntou com
voz dolorida:
– Por quê? Por que nunca me contaste nada, meu filho?
Procurando justificar-se, ele redarguiu:
– Papai não permitiu. Proibiu-me que tocasse no assunto com a
Senhora. Além do mais, o que iria adiantar? Apenas serviria para
atormentar-te, como agora.
Nesse instante um criado assomou à porta.
– Perdão, Senhora Condessa. O Senhor Conde manda chamar-vos. Os
convidados estão chegando. Um batedor veio avisar que estão a três
milhas daqui, aproximadamente.
– Obrigada. Dize ao Senhor Conde que estamos descendo.
Virou-se para Lucas, limpando os vestígios de lágrimas no rosto, e já
dona de si mesma:
– Como estou?
– Linda como sempre!
Ela sorriu enquanto ajeitava os cabelos.
– Galanteador! Vamos, meu filho. Nossos amigos não devem esperar.
Ah! Ainda quero pedir-te um favor.
– Sim?!
– Suplico-te que nada digas a teu pai sobre o que conversamos hoje.
Ele concordou com um gesto de cabeça e, galantemente, ofereceu o
braço à sua mãe para irem ao encontro dos visitantes.
***
O regozijo era geral. Durante todo o dia jogos e brincadeiras fizeram o
entretenimento dos convidados. Grupos viam-se aqui e ali, em animadas
palestras, uns discorrendo sobre suas experiências no campo de batalha,
outros rindo de anedotas picantes; alguns passeavam em grupo pelos
jardins neste final de tarde e outros voltavam de uma cavalgada pelos
arredores do castelo.
Todos se divertiam a valer. No almoço os quitutes foram variados e de
sabor delicioso. Caças, peixes e aves acompanharam as tortas, massas e
guisados variados. Os vinhos, excelentes e fartos, foram degustados pelos
mais exigentes, com aprovação. Os doces de delicado paladar e os ricos
manjares, além de saborosos licores digestivos, completaram o banquete.
Após o almoço muitos se recolheram para repousar, especialmente os
que vieram de longe e que tiveram de enfrentar exaustiva viagem e
também aqueles cuja idade já não comportava mais os arroubos da
juventude.
Os mais jovens e afoitos, cheios de vida e de energia, não obstante
cansados, passaram o dia entre divertimentos e passeios, aproveitando o
tempo e o prazer das companhias.
No dia seguinte tiveram início os jogos, em que os jovens galantes
sobressaíram pela coragem e adestramento.
Lucas, cheio de vida e entusiasmo, venceu diversas pelejas, para alegria
e orgulho de seus pais. Voluntarioso e prepotente, não admitia fracassos e
tudo fazia para vencer, conquanto tivesse ótimos concorrentes.
Ao final da tarde estavam exaustos, mas satisfeitos. À noite
continuariam os festejos, culminando com a assinatura do contrato
matrimonial entre as famílias de Montpellier e de Bouillon.
Sentada a um canto do salão e observando o movimento, Louise
meditava.
– A Senhora Condessa me permite?!...
Assustando-se ligeiramente com a voz que a interpelava, virou-se e
deparou com o duque de Bouillon à sua frente.
Em pé, sua figura impressionava. Avantajado de corpo e possuindo
elevada estatura, o duque assustava as pessoas. As amplas roupas, o gibão,
os calções franzidos, aumentavam ainda mais seu tamanho. Sua voz
possante era complemento ideal para o rosto gordo e carrancudo, onde
dois olhinhos vivos e maliciosos mexiam-se sem parar.
A condessa levantou-se, presto.
– Oh! Senhor Duque, perdoai-me. Não notei vossa presença.
– Minha Senhora, sou eu que vos devo mil desculpas! Não pretendia
assustar-vos. Sentai-vos, por obséquio. Permiti que me sente também?
A um gesto elegante de assentimento da condessa, o duque se
acomodou a seu lado.
– Pensava eu, vendo-vos à distância: por que tão ilustre quão bela dama
encontra-se entristecida e isolada, enquanto todos se divertem?
Com certa apreensão Louise retrucou:
– Enganai-vos, Monsieur. Estava apenas repousando um pouco das
fadigas do dia.
Com os olhinhos apertados examinando-a insolentemente, ele insistiu:
– Não, Madame. Gabo-me de ser conhecedor profundo das mulheres, e
em vossos belos olhos existe algo que empana o seu brilho, o que lamento
profundamente. Se algum problema vos estiver preocupando, Senhora
Condessa, acreditai que terá em mim alguém disposto a auxiliar-vos seja
no que for. Sou um amigo às vossas ordens.
Assustada e um tanto apreensiva com a atitude insólita do convidado
de seu marido, pai da noiva, retrucou com dignidade:
– Lamento, Monsieur, que vos tenhais equivocado. Agradeço-vos a
atenção, mas prescindo dela, por desnecessária.
Percebendo que fora rechaçado em seus intentos, retrucou com certo
atrevimento:
– Perdoai-me, Senhora. Não quis ofender-vos. Acreditai que sou um
admirador, impressionado com vossa beleza, e, percebendo-vos
melancólica, não me contive, oferecendo-vos meus préstimos.
Levantando-se, Louise respondeu com a fronte erguida e altaneira:
– O que agradeço, Senhor Duque. Se de alguma coisa necessitar, porém,
saberei recorrer à ajuda do Senhor Conde, meu marido, que não se negará
em atender-me. Com vossa permissão, devo ausentar-me agora. Meus
deveres de anfitriã exigem minha presença junto aos outros convidados.
O duque levantou-se também, fazendo uma mesura de estilo, e, vendo-a
afastar-se, observando o vulto elegante e esguio daquela mulher
extraordinária, mordeu os lábios despeitado, enquanto monologava
intimamente:
“A minha linda corça assustada. Não estou acostumado a perder e a
levar um não como resposta. Veremos!”
Afastando-se do local, com a destra a conter o coração opresso, Louise
se refugiou numa pequena sala, ao abrigo de olhares indiscretos.
Percebera as intenções malévolas daquele homem terrível. Sabia, por ter
ouvido comentários a respeito, que era dado a conquistas amorosas, e teve
medo. Seu olhar cúpido, cínico e arrogante a envolveram em emanações
nocivas. Sentira-se mal ao fitá-lo.
Se o Senhor de Montpellier soubesse que fora insultada dentro de seu
próprio lar, defenderia sua honra a qualquer preço. Não, seu marido não
poderia ficar sabendo do que ocorrera entre ela e o duque.
Além do mais, o Senhor de Bouillon era muito poderoso, ligado
intimamente a Sua Majestade, para que se arriscasse a criar um atrito
entre esse homem e seu marido. Não... ninguém deveria ficar sabendo. A
vida de Ricardo estaria em perigo se soubesse, além da de seu querido
Lucas. Não. Procuraria evitar novos encontros e, quando não pudesse
evitar a presença do duque, tratá-lo-ia como se nada tivesse ocorrido.
Sua obrigação como castelã e anfitriã era providenciar para que nada
faltasse aos hóspedes, tratando-os com delicadeza e cortesia, de modo que
a permanência deles no castelo fosse a mais agradável possível.
Ouviu passos leves que se aproximavam, abafados pelo tapete. Limpou
rapidamente as lágrimas tentando fazer desaparecer os vestígios da crise
que a afligira.
– Incomodo-te?
Ao ouvir a voz macia e agradável, virou-se com um sorriso.
– Não, querida Clarissa. Vem sentar-te aqui comigo.
A gentil figura que se aproximara era uma senhora de semblante
simpático e ar sereno. Apreensiva, interrogou a dona da casa:
– Algum problema, minha cara Louise?
– Não, Clarissa. Sentindo-me algo fatigada refugiei-me neste canto para
repousar um pouco.
A outra sorriu com bonomia:
– Pareces abatida. E, se bem te conheço, esses olhos ainda úmidos
denotam que choraste... ou estou enganada?
Louise suspirou e respondeu num sopro de voz:
– É tão evidente assim, minha amiga?
– Nem tanto, mas não engana a uma velha bisbilhoteira como eu.
– Tens razão. Tive uma contrariedade há poucos instantes. Rusgas de
família. Uma pequena discussão com meu marido, mas nada que não possa
ser sanado.
A interlocutora silenciou, concordando com pequeno gesto de cabeça,
e, tomando a mão de Louise, falou:
– Não te preocupes. Logo passa. Briga de casal, diz a sabedoria popular,
é como chuva de verão, que vem e vai rapidamente. Mas, não falemos de
coisas tristes. Como tens passado todos esses anos em que estivemos
separadas?
Enquanto Louise, mais animada, passou a falar sobre sua vida, seus
anseios, Clarissa meditava fitando sua amiga de infância: “Louise mentiu,
tinha certeza. Escondia-lhe alguma coisa”. No salão, esteve observando-a
de longe, desejando aproximar-se para conversar, mas, sempre
requisitada por outros amigos presentes, não encontrara ocasião. Olhava-a
a distância procurando uma brecha para aproximar-se. Não a vira durante
todo o tempo a conversar com Ricardo, que se entretinha a falar sobre
política num grupo masculino. “Não, algo aconteceu e não foi o Senhor de
Montpellier o causador”. Lembrou-se de que a tinha visto palestrando
com várias pessoas, inclusive com aquele asqueroso duque de Bouillon.
Numa ocasião mais propícia, voltaria ao assunto tentando descobrir o que
a atormentava.
Nesse preciso instante Louise lhe dizia:
– Nem sei dizer quanto senti tua falta, Clarissa. Eras sempre o anjo bom
na minha vida, confidente e amiga de todos os instantes. A vida, porém,
nos separou e cada uma seguiu seu destino.
– É verdade, minha amiga. Quantas vezes, no estrangeiro, desejei voltar
à nossa amada terra. Mas, Henri invariavelmente protelava, até que surgiu
a oportunidade de regressarmos. O meu Charles, desejoso de novas
emoções, aceitou eufórico rever a França, que ele deixara ainda criança.
– Quantos anos são passados! Quanto temos para conversar! Clarissa,
dar-me-ias muito prazer se ficassem conosco uma temporada para
matarmos as saudades.
– Teria muito gosto nisso, minha pequena Louise. Dependerá de meu
filho Charles. Tenho certeza de que o Senhor meu marido concordará com
o alvitre.
– Ótimo! Voltemos ao salão, Clarissa. Devem estar à nossa procura.
Risonhas, retornaram ao salão, onde o conde de Montpellier as
aguardava, apreensivo, para dar início às formalidades legais com as
assinaturas do contrato de casamento.
Reuniram-se todos e o silêncio se estabeleceu. O conde de Montpellier,
anfitrião da festa, dirigiu algumas palavras aos presentes, chamando o
duque e a duquesa de Bouillon, pais da noiva, bem como o filho Lucas e sua
prometida.
Durante o dia os jovens já tinham tido tempo para se conhecerem e
entretecer um relacionamento mais amistoso. Portanto, foi sem surpresas
que se aproximaram dos respectivos genitores.
Ela, tímida, encabulada, olhos baixos, conquanto um ligeiro sorriso a
bailar nos lábios carnudos. De beleza clássica, a jovem noiva trazia no
rosto os traços de nobreza da descendência familiar.
Felizmente, conservava os traços maternos, o que lhe conferia um
encanto todo particular. Nos cabelos trazia uma coroa de mimosas rosas
trançada com seus longos cabelos castanhos.
Lucas, galante como deve ser um gentil-homem, tomou de sua pequena
mão e curvou-se numa elegante mesura, postando-se ambos lado a lado,
aguardando o prosseguimento da cerimônia.
– Senhoras e Senhores aqui presentes. É com imenso orgulho que peço
oficialmente em casamento a mão de Mademoiselle Régine, filha de meu
querido amigo, Senhor Duque de Bouillon, para meu muito amado filho e
herdeiro, Senhor Lucas de Montpellier. O compromisso foi acertado há um
decênio por vontade das famílias e agora o celebramos formalmente.
O duque de Bouillon curvou-se solenemente, pigarreou e, espraiando o
olhar por toda a assistência, respondeu:
– É com muito prazer e sumamente honrado que unimos, através de um
acordo matrimonial, as nossas famílias, consolidando a amizade que nos
une. Façamos um brinde ao acontecimento!
Tomaram das taças ofertadas pelos servos e brindaram ao evento tão
almejado e à felicidade dos noivos.
Capítulo XI - Montmorency

A primavera estendia seu manto colorido sobre os campos e o ar limpo


deixava que a luz do sol resplandecesse sobre todas as coisas, encimado
por um céu muito azul.
A temperatura era agradável e um convite aos passeios, caçadas e jogos
em geral.
Foi com imenso alívio que a condessa Louise viu os convidados
deixarem o castelo, livrando-se da presença detestável do temível duque
de Bouillon.
Despediu-se cortês, mas friamente, conquanto não deixasse
transparecer os sentimentos que a agitavam intimamente, mesmo porque
em futuro próximo fariam parte da mesma família, pois era o pai da noiva
de seu filho e desejava evitar aborrecimentos.
Uns poucos hóspedes permaneceram na propriedade, na maioria jovens
desejosos de divertimentos.
Clarissa ficou juntamente com seu filho Charles, embora o marido
Henri tivesse retornado, alegando negócios urgentes e a impossibilidade
de afastar-se muito tempo da Corte.
A noiva de Lucas ficaria também mais alguns dias em companhia da tia
Clarissa, de quem era parenta por parte da mãe, e do primo Charles, com
quem partiria quando retornassem para Montmorency, de onde o duque
de Bouillon mandaria buscá-la.
Mais alguns jovens das redondezas ficaram também para participar dos
divertimentos, além de um jovem artista, tocador de alaúde, compositor e
poeta, que cuidaria de entretê-los com sua arte.
Era muito comum nessa época que as famílias mais abastadas
mantivessem como agregados, ou mesmo como empregados, músicos e
artistas para a distração da família e dos convidados.
Louise, tranquila, passava os dias a palestrar com sua amiga de tantos
anos, condessa Clarissa, enquanto os jovens se divertiam em outra parte
do castelo.
Foram dias inesquecíveis. A condessa Louise era muito só. Sem possuir
amigas com quem pudesse conversar, trocar ideias, restringia-se de
ordinário aos afazeres da casa e aos cuidados com o marido e o filho. O
conde Ricardo, muito fechado, não era dado a conversas e Lucas tinha
outros interesses, razão por que estava sempre sozinha.
Agora, porém, podia dar livre curso aos seus pensamentos, externar
suas ideias. Ela e Clarissa faziam-se confidências e recordavam a infância e
a primeira juventude. Era uma amizade verdadeira que readquiria toda a
sua força, aumentando os laços que uniam aquelas duas mulheres
extraordinárias.
Foram dias de encantamento e prazer, em que se divertiam como
crianças, muitas vezes acompanhando os jovens em seus passeios.
O tempo passou rápido e logo deveriam deixar o castelo de Montpellier
rumo à propriedade dos Montmorency. A amiga insistiu muito para que
Louise os acompanhasse na viagem. Jamais saía de casa e era necessário
passear um pouco.
Iriam Lucas e a noiva, Charles e Clarissa e Túlio, o músico. Afinal, Louise
decidiu acompanhá-los, juntamente com o marido e alguns criados.
Ricardo, porém, atento aos seus compromissos, voltaria o mais
rapidamente possível.
Os preparativos para a viagem foram feitos em clima de euforia. No dia
seguinte, logo às primeiras horas da manhã, partiram rumo ao castelo de
Montmorency.
No início a viagem transcorreu agradavelmente. A temperatura era
amena e o sol ainda morno. Com o passar do dia o calor aumentou e a
poeira se tornou desagradável.
Na carruagem, juntamente com Clarissa e a noiva de seu filho, Louise,
de olhos cerrados, parecia meditar. Clarissa a fitava um tanto preocupada.
Desde a noite anterior notara que a amiga mudara de comportamento.
Parecia estranha e calada. Tocou-lhe de leve o braço. A outra abriu os
olhos.
– Perdoa-me, querida Louise. Creio ter-te acordado.
– Não, Clarissa. Não estava adormecida. Meditava apenas.
Clarissa olhou a jovem acompanhante, Régine, para ver se prestava
atenção na conversa, mas a noiva dormia placidamente, com a cabeça
apoiada em pequena almofada de cetim, apesar dos solavancos.
Suspirou mais tranquila e prosseguiu em voz baixa:
– Noto-te um pouco abatida e algo apreensiva desde ontem à noite.
Alguma coisa te preocupa, minha amiga.
Com delicado sorriso, Louise acalmou os receios da outra:
– Não, Clarissa. Estou apenas um tanto cansada da viagem. Sabes que
raramente me ausento de casa e a mudança de ares e de hábitos me
perturbou.
– Entendo o que queres dizer. A ansiedade da viagem, do desconhecido,
terras diferentes, tudo o que saia do usual te amofina.
– Não seria exatamente isso. Mas, digamos que o desconhecido me
assusta um pouco. É só.
– Tudo isso passa. Quando chegarmos e estiveres acomodada em teus
aposentos te sentirás melhor. Agora, repousa um pouco. O trajeto é longo
e ainda temos muitos dias pela frente. Pernoitaremos em uma estalagem
no caminho para repousar e amanhã cedinho reiniciaremos a viagem.
Portanto, procura repousar.
Louise agradeceu os cuidados e acomodou-se o melhor que pôde para
dormir. Fechou os olhos e fingiu estar adormecida. Na verdade, queria
meditar sobre tudo o que vinha acontecendo. Não quisera preocupar a
amiga, mas seu coração estava oprimido por dolorosas impressões. Sentia
que algo de terrível estava para acontecer, sem saber como explicar essa
sensação.
Já tendo concordado com a viagem, não desejava decepcionar a amiga,
conquanto seu desejo fosse desistir de tudo. No fundo do seu coração
amargas impressões a constringiam. Percebia que estavam para atravessar
situações decisivas em suas vidas e sentia uma vontade imensa de chorar.
Era como se o que tinha de passar já estivesse programado com
antecedência. Existiria mesmo o destino?
Louise elevou-se nas asas da prece, suplicando o amparo da Providência
Divina, e adormeceu afinal, com lágrimas sob as pálpebras, que não
chegaram a cair.
Entregava-se a Deus.
***
A viagem transcorreu toda ela em clima de euforia, não obstante
exaustiva.
Pernoitavam em pequenas estalagens à beira do caminho, que eram
também postos de mudas de cavalos, alimentavam-se conforme as
circunstâncias e, à noite, entretinham-se em alegres tertúlias, aguardando
a chegada do sono. No dia seguinte bem cedo reiniciavam a jornada já
refeitos e descansados.
Alguns dias depois, já no final da tarde, quando principiava a escurecer,
vislumbraram as torres do castelo de Montmorency recortando-se no
azul-opala do céu.
Os criados, que já os aguardavam, prepararam boa refeição e, após se
alimentarem convenientemente, retiraram-se para os aposentos que lhes
tinham sido destinados. Estavam realmente exaustos e necessitados de
repouso.
Logo estavam todos profundamente adormecidos e o castelo
mergulhado no silêncio.
Tão somente ouviam-se os ruídos da noite, o cricrilar dos grilos, o canto
das cigarras e o latido dos cães, vez por outra. O pio de um mocho
repercutiu dolorosamente no ânimo de Louise, já profundamente abalado.
Não conseguia conciliar o sono, não obstante a fadiga. O corpo todo doía,
não afeita que estava aos longos percursos em incômodas carruagens.
Aos poucos ligeira modorra lhe apossou. Não sabia se estava dormindo
ou acordada, quando percebeu tênue vapor condensando-se à sua frente,
ao lado do leito. Deliciosa sensação de paz e reconforto a envolveu. Logo
pôde perceber um ancião de barbas e cabelos brancos, de fisionomia
serena e olhos meigos que a fitavam com carinho. O aposento todo
encheu-se de luminosidade intensa e desejou cair de joelhos ante a visão
celeste.
O ancião então levantou a destra radiante, colocando-a sobre sua
cabeça e falou-lhe com acento inesquecível:
“Querida filha, longo é o caminho que tens a percorrer e difíceis
obstáculos encontrarás para transpor. Tens, porém, condição de vencer e
auxiliar aqueles que são teus filhos do coração. Não temas.
Espontaneamente te dispuseste a amparar criaturas mais necessitadas do
que tu mesma e Nosso Mestre Nazareno dar-te-á os meios e as condições
de executares tua tarefa. Estamos contigo. Somos todos espíritos ligados
por laços afetivos através do tempo e não te deixaremos desamparada.
Confia em Deus, ora bastante e vencerás. Adeus.”
Com lágrimas de infinito júbilo a escorrer pelas faces, Louise desejava
que a entidade permanecesse ali, junto dela. Bem-estar intraduzível
tomou conta do seu íntimo e nova disposição de ânimo a envolveu,
passando a sentir-se disposta e confiante.
Sim, nada aconteceria de mal. Sua fé em Deus era muito grande e agora
tinha certeza de que venceria, fossem quais fossem os obstáculos.
Adormeceu placidamente, acordando apenas no dia seguinte com o sol
já alto. Todos já haviam levantado e saído a passear pelos jardins do
castelo, fazendo planos sobre o que fariam na parte da tarde.
A alegria dos jovens era contagiante e Clarissa se sentia muito feliz. Os
dias passavam em alegres passeios pelos arredores, jogos e caçadas. Vez
por outra iam até a aldeia em busca de entretenimentos, ou simplesmente
se sentavam em aprazível terraço para conversar.
À noite muitas vezes promoviam tertúlias, em que o jovem Túlio
cantava suas canções ao som do alaúde, ou declamava versos de sua
autoria. Nessas ocasiões eram convidados jovens das redondezas e
dançavam até tarde.
Certa manhã em que palestravam animadamente, sentados nos bancos
do jardim, Lucas viu um vulto que passou, esgueirando-se por detrás das
árvores rumo às dependências do castelo, onde se localizava a cozinha.
O talhe esbelto da jovem chamou sua atenção. Os cabelos longos e
esvoaçantes, mas principalmente o primoroso perfil, o interessaram
vivamente.
Sua noiva, Régine, conversava com outra jovem mais afastada, e Lucas
perguntou a Charles:
– Quem é a beldade que escondes entre esses muros e que acaba de
deslizar entre as árvores do parque?
Surpreso, Charles retrucou:
– Beldade? Creio que te enganas, caro amigo Lucas. Não existe ninguém
além dos criados e, confesso-te que, conquanto tenha procurado, não
encontrei nenhuma serviçal que fosse digna de galanteios.
Riu e levantou-se, incontinenti, afirmando:
– Mas te prometo que vou descobrir quem é.
Correu pelas alamedas e alcançou a jovem já próximo às instalações da
criadagem, caminhando para a cozinha. Postou-se à frente da moça,
interceptando-lhe o passo ligeiro. Ela levantou a fronte e fitou o rapaz
ofegante que lhe barrava a passagem.
O semblante possuía traços regulares, nariz delicado e boca bem feita. A
pele fresca, de tonalidade rósea, enrubescera proporcionando-lhe maior
encanto. Os olhos, encimados por longos cílios, eram azuis e vasta
cabeleira castanha emoldurava-lhe o rosto. O pescoço era delicado e o
talhe perfeito.
Charles percebeu que precisava dizer alguma coisa, caso contrário ela o
tomaria por um imbecil. Fez uma mesura:
– Senhorita! Permite-me auxiliar-te. Esta cesta está pesada e tuas mãos
são demasiadamente delicadas para tal fardo.
A jovem respondeu, esquiva, baixando a cabeça:
– Não há necessidade, Monsieur. Estou acostumada a tais tarefas.
Mas, tomando-lhe das mãos a cesta, Charles insistiu:
– Sou um cavalheiro, Senhorita, e agrada-me auxiliar-te a carregar a
cesta. Mas, dize-me, nunca te vi antes por estas bandas. Onde moras?
– Resido na aldeia com meu pai, que trabalha para o Senhor Conde de
Montmorency. Meu pai todas as semanas fornece peixes para o castelo,
mas hoje está acamado e é por isso que me encontro aqui executando essa
tarefa.
– Ah! entendo! Como te chamas?
– Marianne, Monsieur.
– Está bem, Marianne. Vamos fazer tua entrega. Mas, primeiro, deixe-
me apresentar-me: sou o filho do Conde de Drumond, Charles de
Montmorency e Drumond.
A jovem correspondeu à reverência que o rapaz fazia e sorriu.
– Devo ir agora, Monsieur. Não posso atrasar mais. Permite que me
retire.
Charles levou-a até a cozinha, entregando a cesta à cozinheira, e
acompanhou a jovem até o portão, onde se despediram.
Lucas, que acompanhara a cena um pouco afastado, continha a emoção
com dificuldade. Jamais alguém o impressionara tanto. Conhecera durante
toda a sua vida muitas mulheres, mas nunca conseguira interessar-se
realmente por ninguém.
Ficara noivo contra sua vontade para atender às determinações
paternas. Mas agora essa jovem do povo, de condição humilde, a julgar
pelas roupas simples que usava, remexera-lhe as fibras mais íntimas. Uma
atração muito grande dominou-lhe as emoções e foi com dificuldade que
procurou esconder do amigo seu estado emocional.
Charles, todo risonho, aproximou-se.
– Tinhas razão, Lucas. É realmente uma donzela de beleza estonteante.
Creio mesmo que ainda não vi outra igual.
Num sopro de voz Lucas perguntou:
– Quem é ela?
– Uma pobre rapariga do povo. Veio trazer peixes no lugar do pai, que
está acamado.
– Então não a conhecias?
– Por Deus, não! Não a conhecia. Jamais a vi antes e alegro-me com a
doença do pai... – completou, dando uma gargalhada sonora.
Capítulo XII - Marianne

Leves batidas à porta tiraram Clarissa de sua meditação. Em seguida, o


reposteiro de veludo carmesim foi erguido, dando passagem a um rapaz
sorridente.
Recebeu-o a matrona com um sorriso condescendente, enquanto seus
olhos se amenizavam ao ver-lhe o porte elegante.
– Ah! meu filho, és tu. Senta-te aqui junto de tua velha mãe e faze-lhe
um pouco de companhia.
O rapaz se sentou sobre o tapete, colocando a cabeça no regaço de sua
mãe. A mulher passou carinhosamente as mãos sobre os cabelos castanhos
do filho:
– Pareces cansado, Charles. Vejo que estás satisfeito com a presença de
nossos hóspedes e que estás a divertir-te muito.
– Sim, mamãe. Temos nos divertido bastante. Creio que nunca apreciei
tanto uma temporada.
O semblante da nobre senhora anuviou-se por instantes, ao dizer-lhe
calmamente:
– Apreciando demasiadamente, diria eu.
Rapidamente, o rapaz levantou a cabeça:
– O que queres dizer? Explica-te, minha mãe.
– Quero dizer, meu filho, que não tem passado despercebido à tua mãe
o interesse que demonstras por certa jovem comprometida...
O rapaz se assustou e inquiriu:
– É tão evidente assim, minha mãe?
A dama sorriu levemente, enquanto respondia:
– Talvez não para os outros, ainda. Mas tua mãe te conhece
profundamente e não pôde deixar de notar olhares, apertos de mão e
tantos outros detalhes...
– Ela me fascina, mamãe. Sinto-me poderosamente atraído por ela.
– Mas não será apenas porque é prometida de outro, meu filho? Afinal,
sempre tiveste interesse pelas coisas mais difíceis de conseguir!
– Talvez, Senhora Condessa. Não posso dizer com certeza o que sinto
por ela. Só sei que me atrai poderosamente.
– E ela? Tem interesse por ti?
– Não sei. Às vezes parece-me que sim. De outras vezes parece
loucamente apaixonada pelo noivo.
– Antes assim, meu filho. Procura afastar-te dela, evitar situações
constrangedoras. Lucas poderá algo notar e não desejo criar problemas
com a família de Montpellier. A condessa Louise é muito minha amiga,
como não ignoras, e prezo muito os laços que nos unem.
O rapaz tomou a destra que o afagava e depositou nela um ósculo, como
se fora um pedido de perdão...
– Não temas, mamãe. Nada farei que possa constranger-te perante
nossos amigos. A propósito, gostaria de fazer-te um pedido.
– Dize, meu filho. O que tua mãe não faria por ti?
– Antes quero fazer-te uma pergunta: conheces o homem que todas as
semanas supre o castelo de peixes?
– Sim, como não! É um lenhador chamado Antoine. Mas, por que
perguntas?
Sem responder ao questionamento da mãe, Charles prosseguiu:
– Conheces sua filha?
Intrigada, a dama respondeu, surpresa:
– Não sabia que tinha uma filha. Nunca nos falou de sua vida particular.
Não é nosso costume intrometer-nos na vida dos serviçais, sabes disso.
Mas, o que tem a filha dele?
– Fiquei conhecendo-a hoje, aqui em casa.
– Ela esteve aqui? Interessante! A propósito de quê?
– Veio trazer os peixes. Seu pai está acamado e ela veio em seu lugar.
– Oh! Pobre homem. O que terá acontecido?
– Não sei, Senhora minha mãe. Ela não disse. É muito discreta e tímida.
A condessa fitou o filho:
– O que queres que eu faça, meu filho?
O rapaz se ajoelhou novamente aos pés da dama, colocando as mãos em
seus joelhos:
– Não te parece, mamãe, que deveríamos fazer alguma coisa? Afinal,
devem ser muito pobres. Podem estar passando necessidades, sofrendo
privações. Até fome, quem sabe?
– Achas mesmo?
– Sim! Se quiseres, posso acompanhar-te até a casa deles.
– Mas, nem sei onde moram!
– Isso é fácil. Na aldeia todos devem conhecê-los e não será difícil
descobrir-lhes a moradia.
A condessa Clarissa fitou o filho, intrigada:
– Não sabia que tinhas interesses por outras pessoas, além de ti mesmo.
Por que tanto empenho, meu filho? – e, como se só naquele momento lhe
tivesse ocorrido a ideia, perguntou-lhe:
– Que idade tem a rapariga?
– Não sei. Uns 16 ou 17 anos, talvez.
– Ah! E é bonita?
– É.
– Muito bonita?
– Muito bonita.
– Entendo...
A mãe sorriu, já mais tranquila:
– Creio ter-me preocupado excessivamente com o teu interesse pela
jovem noiva.
Olharam-se e caíram na risada.
Enquanto o filho deixava o aposento, a condessa suspirava, aliviada,
murmurando para si mesma:
– Ah! Charles, meu filho. Sempre tão volúvel!...
***
No dia seguinte, enquanto os hóspedes repousavam após o almoço,
Charles e sua mãe deixaram as dependências do castelo rumo à aldeia,
distante algumas centenas de jardas.
Durante toda a manhã Charles indagou sobre a localização da moradia
de Antoine e, de posse do endereço, ei-los que se dirigem ao local de
destino. Charles não esconde a satisfação, enquanto a condessa pondera
sobre a conveniência ou não dessa visita.
Ao perceber a carruagem que para defronte à sua choupana, Marianne
tem um sobressalto. Apressa-se a abrir a porta, surpresa e amedrontada.
Inclina-se perante aquela dama de cabelos louros e fisionomia
simpática que ela nunca vira antes, mas cuja identidade adivinhava.
O rapaz que a conduzia era o mesmo que vira no castelo e a fitava
sorridente. Ela enrubesceu.
– Senhora! A que devo a honra desta visita? – inquiriu após tê-los
convidado para entrar.
– Minha jovem, não te espantes. Ficamos sabendo que teu pai encontra-
se adoentado e aqui vimos para saber se precisam de alguma coisa.
– Minha Senhora, somos muito pobres, como podeis ver, e meu pai se
encontra impossibilitado de trabalhar por algum tempo.
– O que houve com ele?
– Sofreu um pequeno acidente enquanto derrubava uma árvore para
fazer lenha, machucando a perna.
– Podemos vê-lo? – inquiriu Charles com cortesia.
– Naturalmente. Ficará honrado em receber-vos em nossa casa. Por
favor, vinde por aqui.
Conduziu os visitantes até um pequeno mas arejado quarto.
Surpreso, o aldeão quis levantar-se, mas a dor o prostrou novamente no
leito.
– Senhora Condessa! Desculpai-me não poder receber-vos
condignamente.
De imediato a nobre mulher acalmou seus receios:
– Não te preocupes, bom homem. Vimos ver um doente e não fazer
visita de cortesia. Compreendemos perfeitamente tua situação, acalma-te.
E, vendo as ataduras que cobriam o ferimento, retirou-as com rapidez:
– Deixa-me ver como está o machucado. Oh! mas está com mau aspecto.
E, virando-se para a filha, perguntou, solícita:
– Quem está cuidando deste ferimento?
– Eu, Senhora. Não temos mais ninguém. Coloco um unguento que me
ensinaram a fazer com ervas e dou-lhe a beber algumas tisanas calmantes,
quando a dor o impede de dormir. Mas é só. E ele sente muita dor!
– Realmente, minha filha, a dor é insuportável – concordou o homem.
– Acredito! – respondeu a condessa. – Façamos o seguinte: A partir de
hoje mandar-vos-ei o médico do castelo, que passará a cuidar do caso.
A jovem agradeceu efusivamente o alvitre:
– Senhora, já não sabia mais o que fazer. Agradecemos vosso auxílio,
que vem em tão boa hora.
Charles que, enquanto se desenrolava esta cena, analisava as condições
da moradia, em determinado momento chamou a mãe de lado, sugerindo-
lhe algo.
– Bem, deixemos agora o enfermo repousar – falou sorridente a
condessa, enquanto se despedia do dono da casa, passando para a sala de
visitas.
Sentou-se numa cadeira que lhe foi oferecida, fitando a moça com
atenção.
– Minha filha, quero que respondas com franqueza. Necessitas de algo?
Tens alimentos suficientes?
Envergonhada, a rapariga respondeu:
– Senhora, nada nos tem faltado. Temos alguns recursos de reserva, que
se esgotam rapidamente. Temo, porém, que a miséria ronde nossa porta.
Sem meu pai poder trabalhar para prover o nosso sustento...
As lágrimas rolaram de seus olhos azuis, inundando-lhe o rosto.
– Não temas, Marianne – falou o rapaz, sensibilizado. – Estamos aqui
para evitar que algo vos falte.
A moça ergueu os olhos nublados de lágrimas e agradeceu com um
sorriso.
– Dize-me, minha filha. Gostarias de trabalhar no castelo?
Ao ver o olhar espantado da jovem, continuou:
– Sim, no castelo. Serias minha dama de companhia. Estou precisando
de alguém assim como tu. Aceitas?
– Oh! Senhora! Gostaria muito, mas... e meu pai? Quem cuidaria dele?
– Quanto a isso não tenhas preocupação. Mandarei uma serva para
fazer todo o serviço e, antes do anoitecer, estarás de volta para fazer-lhe
companhia.
– Seria uma felicidade para mim. Aceito com muito prazer vosso gentil
oferecimento.
Marianne desejou falar que tinha já outros compromissos, mas achou
melhor calar por enquanto, nada dizendo a respeito do noivo e do
próximo casamento.
Perdida em cogitações íntimas, ainda ouviu a condessa Clarissa que
perguntava:
– Teu pai não fará objeção?
– Não, Senhora. Falarei com ele ainda hoje e acredito que ficará muito
satisfeito.
– Então, espero-te amanhã para tratarmos dos detalhes e para que
comeces as tuas funções. Combinado?
Marianne tomou a destra estendida e osculou-a com gratidão.
Pouco depois, a carruagem rodava pela estrada levando a condessa e
seu filho de volta ao lar.
– Ela é muito bela, meu filho. Mais do que eu poderia imaginar.
O jovem conde tinha o olhar envolto em pensamentos agradáveis. A
imagem da moça não o deixava um instante.
– Sim, minha mãe. Muito bela. Viste o porte e a elegância dos gestos? A
nobreza das suas feições? Passaria em qualquer salão por aristocrata de
nascimento. De modo algum assemelha-se às mulheres plebeias,
parecendo mais uma princesa disfarçada em mulher do povo. Apenas suas
vestes destoam do conjunto. Verás, minha mãe, ela fará sucesso em nossos
salões.
– Vejo, meu filho, que estás deveras entusiasmado com a rapariga.
Concordo contigo. Que caprichos do destino fizeram nascesse uma pérola
rara num charco?
Logo às primeiras horas da manhã Marianne deu entrada na
propriedade dos Montmorency. Era a primeira vez que adentrava o
interior de um castelo. Observava tudo, curiosa e surpresa. Tudo para a
pobre menina humilde era novo e excitante.
Ao correr os olhos pelos reposteiros de veludo carmesim, fitava os
quadros e tapeçarias que ornavam as paredes vetustas, os lustres que
pendiam dos altos tetos, os tapetes que forravam o piso de mármore, as
altas janelas com gelosias, recobertas com cortinas de tecido precioso, as
amplas escadarias que conduziam aos pavimentos superiores...
Seu coração começou a bater forte e descompassado. Emoção insólita a
acometeu, a par de uma satisfação muito grande por estar ali. Era como se
aquele fosse o seu ambiente. Detestava a pobreza; ter que contar
miseráveis moedas para comprar uma fita que desejasse; não poder ter as
roupas finas e bonitas que vislumbrara muitas vezes ao longe; não ter joias
ou ornatos a deixava profundamente infeliz. E, mais infeliz ainda, por ter
que executar tarefas que considerava indignas da sua pessoa, tarefas
humildes que seriam mais próprias dos servos.
Por isso aceitara o convite da condessa, que caíra como bênção dos
céus. Poder conviver com pessoas da nobreza, em meio à riqueza e ao
luxo, ao conforto e à ociosidade, e, principalmente, não precisar executar
as tarefas tão desprezadas, fizeram-na muito feliz.
Suspirou profundamente e sorriu para si mesma. Deveria aproveitar a
oportunidade única que lhe estava sendo oferecida. Não poderia rejeitar a
ajuda do destino.
A serva que a introduzira a deixara a sós. Sem saber que atitude tomar,
aguardava em pé. Não demorou muito, ouviu passos leves que se
aproximavam. Em breve penetraram na ampla sala duas senhoras.
Reconheceu em uma delas a dama que a visitara na véspera, a condessa
de Montmorency. Curvou-se numa reverência respeitosa e aguardou que
lhe dirigissem a palavra.
Com gestos elegantes e semblante amistoso, a dona da casa
cumprimentou-a e explicou à sua companheira:
– Esta é a jovem sobre quem te falei, Louise. Será minha dama de
companhia a partir de hoje.
A amiga sorriu, fitando a rapariga à sua frente, e só então se olharam
mais detidamente.
Naquele instante um elo de ligação se estabeleceu entre as duas
mulheres, até então desconhecidas, sem que pudessem precisar por que.
Uma simpatia mútua as envolveu como se já se conhecessem de longo
tempo.
Na verdade, eram dois espíritos amigos que se defrontavam novamente
depois de longo tempo. A antiga Lúcia, filha de Godofredo, conde de
Ravena, reencontrara em situação e lugar diferentes a amiga Tamara e,
como não poderia deixar de ser, restabeleceram-se os laços afetivos
existentes entre ambas.
A condessa Clarissa ordenou que se sentasse e conversaram por alguns
minutos.
A condessa Louise a observava discretamente, enquanto a jovem, um
tanto desconcertada e intimidada pelo ambiente, respondia às indagações
daquela que seria sua patroa daquele dia em diante. Ao final do diálogo,
não se contendo, inquiriu a jovem:
– Já não nos vimos antes?
– Creio que não, Senhora.
– Parece-me familiar a tua fisionomia, o teu sorriso, os olhos...
Surpresa, a moça respondeu:
– A mesma impressão me assaltou, Senhora, ao ver-vos pela primeira
vez. Também julguei que já vos vira anteriormente. Talvez de passagem,
quem sabe?
– É possível! – concordou Louise, com sorriso gentil. – Não deixa,
porém, de ser curioso.
A condessa Clarissa chamou uma serva e ordenou-lhe que
encaminhasse Marianne até os aposentos que lhe foram determinados e
explicou, solícita:
– É para que possas ficar à vontade e repousar quando estiveres
desocupada. Tua função será a de fazer-me companhia, apenas, e haverá
momentos em que não precisarei de ti. Agora, vai. Acompanha Matilde,
que te mostrará os aposentos e tudo o mais que precisares saber. Procura
arrumar-te convenientemente e, quando estiveres pronta, vem ter
comigo.
Marianne fez uma mesura e retirou-se, acompanhando a serva.
Ao ficarem a sós, Clarissa indagou da amiga quais foram suas
impressões sobre a nova ajudante, ao que Louise respondeu sem rebuço:
– Gostei dela. Parece-me uma boa moça e até muito bela para uma
jovem do povo. Seus gestos são elegantes, é discreta e fala com clareza e
sem erros, o que não é próprio da plebe.
– Ah! Também notaste? Desde o primeiro momento em que a vi notei
que não se assemelha às pessoas do povo. Há qualquer coisa nela de
diferente, que inspira respeito e consideração, conquanto não possua
linhagem.
– Minha querida Clarissa – retrucou a outra –, sabes que a nobreza do
sangue nem sempre traduz a nobreza de alma e que muitos descendentes
da mais alta aristocracia têm-se mostrado péssimos de caráter e sem
nenhuma moral.
– Tens razão, como sempre, minha Louise. E esta – falou, referindo-se à
jovem Marianne –, depois de bem vestida e penteada, passará
tranquilamente por ser de família nobre.
Ambas sorriram e encaminharam-se em direção aos jardins, onde os
demais hóspedes se encontravam a palestrar animadamente entre
projetos de passeios pelos arredores e caçadas.
Enquanto isso, a escrava Matilde conduziu Marianne para seus
aposentos. Lá chegando, Matilde virou-se e fitou-a com olhar crítico,
dizendo com aspereza:
– Tira as roupas. No estado em que estão, o lugar delas é o lixo. Tenho
ordens para vestir-te adequadamente para que possas misturar-te aos
convidados sem humilhar a Senhora Condessa.
Marianne nada disse, um pouco melindrada com o comportamento da
escrava. Despiu-se em silêncio.
Matilde abriu um armário, analisando com ar de entendida os
vestuários ali existentes. Retirou um traje e auxiliou Marianne a vestir-se.
Várias saias foram colocadas superpostas para dar volume, terminando
com o vestido de brocado cor bege, enfeitado com laçarotes em tom mais
escuro. Calçou-lhe sapatos de cetim da mesma cor e finalizou colocando
um laço de fita prendendo-lhe os cabelos.
Afinal, deu-se por satisfeita e falou, contente pelo resultado do seu
trabalho, apontando um grande espelho:
– Agora vem até aqui e vê se reconheces nesta a mesma pessoa que aqui
entrou.
Marianne postou-se defronte do espelho e mirou-se. O belo vestido lhe
caía perfeitamente bem, ajustando-se à cintura qual uma luva. O decote
deixava entrever a pele veludosa e o contorno dos seios. Os olhos
brilhantes de emoção realçavam ainda mais o rosto delicado, de pele
transparente. A boca bem feita, de lábios naturalmente rosados, sorria
levemente e as sobrancelhas arqueadas encimavam a ampla testa onde os
cabelos, habilmente penteados, eram moldura encantadora para tão belo
rosto.
Concordou com a escrava:
– Tens razão, Matilde. Não estou me reconhecendo nestas belas roupas.
Fizeste um bom trabalho e te sou grata por isso.
Com azedume e um movimento de ombros a outra respondeu, ríspida:
– Apenas obedeci a ordens da Senhora Condessa. Agora, avia-te. Não
deves deixá-la esperando mais tempo – disse, enquanto deixava o
aposento.
– Espera! – falou Marianne com firmeza.
A outra parou e virou-se:
– Desejas mais alguma coisa? – sua voz soou irônica.
– Não. Ou melhor, sim. Não gostas de mim, não é verdade? Por quê? O
que foi que te fiz?
Matilde pareceu constrangida com as indagações de Marianne e
respondeu asperamente, dando por concluído o assunto:
– Aqui dentro deste castelo apenas me compete obedecer, cumprir
ordens, e não gostar das pessoas. Agora, não temos tempo a perder. Vem.
A escrava conduziu Marianne até a sala onde Clarissa e seus hóspedes
se entretinham aguardando a refeição do meio-dia. Afastou-se, deixando-a
sozinha e algo amedrontada defronte da grande porta fechada.
Entrou. Ao ver tantas pessoas elegantemente trajadas, estacou,
aguardando. Uma onda de perfume a envolveu e teve a impressão de que
iria ter uma vertigem.
O barulho de vozes e de risadas foi substituído por silêncio
constrangedor. Todos a fitavam entre curiosos e intrigados. Fez um
esforço muito grande para não sair correndo de volta para seu lar; apertou
as mãos, que estavam geladas e úmidas. Um suor frio a envolveu e teve
medo de cair em prantos diante de toda aquela gente desconhecida.
Com gratidão, viu Charles saindo do meio deles e, aproximando-se dela,
ofereceu-lhe o braço, fazendo as devidas apresentações.
– Mademoiselle Marianne doravante fará parte do nosso grupo, na
condição de dama de companhia da Senhora Condessa, minha mãe.
Marianne fez uma reverência fitando cada um dos presentes, até que
seus olhos encontraram os da condessa Clarissa, que palestrava a um
canto mais afastado com a condessa de Montpellier.
– Aproxima-te, minha querida, senta-te aqui conosco.
Com um suspiro de agradecimento e alívio, Marianne sentou-se. Estava
trêmula e assustada. Tudo era diferente daquilo a que estava habituada...
tudo era insólito e perturbador.
Sua entrada causara diferentes reações. Os homens não deixaram de
admirar-lhe a presença encantadora, o porte elegante e a beleza suave.
Lucas sofreu um impacto com a aparição de Marianne no salão. O
coração bateu desgovernadamente, as têmporas latejavam e começou a
exsudar abundantemente. “Como é bela!” – pensava ele. Era muito mais
adorável do que poderia imaginar. Tinha que aproximar-se dela, mas
como? Era noivo e esse compromisso lhe pesava agora mais do que nunca.
– O que se passa contigo, Lucas? Não te sentes bem?
Foi interrompido em seu monólogo pela voz algo irritada de sua noiva.
– O que? Ah! sim, estou bem. Um pouco indisposto. Creio que é o calor.
– A propósito, o que achas da jovem estranha?
– Interessante.
– É só isso que sabes dizer?
– O que mais desejarias que te dissesse?
– Pois eu a achei excessivamente orgulhosa e arrogante para uma
simples criada. Não te parece?
– Não notei.
– Arre! Creio que não estás para conversa hoje, Lucas.
– É possível.
– Deixo-te com teus pensamentos e vou em busca de alguém mais
atencioso – falou com ar de desafio.
O mancebo se curvou e pareceu não dar atenção à provocação da noiva
Régine.
– Charles, o que faremos hoje à tarde? Sinto-me enfadada.
Ao ouvir a voz de Régine, Charles se curvou, atencioso:
– O que sugeres, minha amiga?
– Não sei. És mais rico de imaginação e mais criativo do que eu. Deixo a
teu critério.
– Não concordo. Tens sempre ótimas ideias.
Conquanto dialogasse com a noiva de Lucas, seus olhos não perdiam de
vista a jovem Marianne. Enciumada, Régine mordeu os lábios pensando:
“Parece que a desatenção é uma doença contagiosa”.
– Não prestas atenção ao que digo! – resmungou, algo amuada.
– Como não, minha cara? Estava a meditar, imaginando o que fazer na
tarde de hoje. Não é o que desejas? Ah! Não te parece que devemos
convidar Marianne para nossos passeios? É jovem, e mamãe, por certo,
não fará objeção, já que a condessa Louise lhe faz companhia.
– Charles! – retrucou orgulhosamente, colocando em sua voz toda a
altivez e desprezo pelos que não eram da sua mesma classe social:
– É apenas uma criada!...
Com o cenho carregado, Charles respondeu severamente:
– Régine, és nossa hóspede, mas não admito que te refiras à
Mademoiselle Marianne neste tom. Ela não é uma criada, ouviste? É dama
de companhia de minha mãe, o que é diferente.
– Não pensei que fosses ficar tão agastado. Ela é uma estranha para ti,
Charles!
– Isso não impede o respeito que devemos a todos dentro desta casa.
Despeitada, ela assentiu:
– Se assim o desejas...
– Sim. É assim que desejo. Agora, vamos nos juntar aos outros; teu
noivo deve estar sentindo tua ausência – disse, oferecendo-lhe o braço
elegantemente.
Régine não tocou mais no assunto. Mordeu os lábios e ficou remoendo
seu descontentamento. Sentia-se profundamente irritada com a atitude de
Charles e de Lucas. De Charles, especialmente.
Na verdade, embora fosse comprometida com Lucas, não podia evitar o
sentimento que se assenhoreara do seu íntimo. Desde que vira Charles
pela primeira vez sentira-se atraída por ele. Talvez até pelo ar
descontraído, pela inconsequência de suas atitudes. Era um rapaz alegre e
folgazão, que costumava atrair as atenções gerais; era espirituoso e
simpático, galante e atencioso. Suas maneiras conquistaram a jovem e bela
Régine, que percebeu também que ele não lhe era indiferente. Trocaram
olhares discretos, sorrisos e apertos de mão sem que os outros notassem o
que estava acontecendo. Salvo Clarissa, a quem não passara despercebida
a atitude de ambos e que encarava com preocupação o problema.
Mas agora surgira Marianne no cenário do castelo e Charles mudara
por completo, não lhe dispensando mais atenção e tornando-se em tão
pouco tempo frio e indiferente.
Enciumada, Régine remoía seu desagrado e o orgulho ferido. Não
pensasse ele que poderia tratá-la como a uma qualquer. Pertencia à mais
alta nobreza e não seria passada para trás por uma rapariga sem berço e
sem tradição.
Procurou sutilmente disfarçar seus sentimentos. Com sorriso cativante
e entre brincadeiras dissipou as sombras que se acumulavam sobre suas
cabeças. Charles, vendo-a readquirir o humor, que era um tanto ferino,
suspirou aliviado.
Encaminharam-se para o salão de refeições e o repasto transcorreu sem
maiores novidades.
Ao final do dia, antes do anoitecer, Marianne despediu-se para retornar
no dia seguinte, logo pela manhã. Charles adiantou-se, solícito:
– Acompanhar-te-ei até tua casa.
A jovem retrucou, incontinenti:
– Não. Agradeço, Senhor, a gentileza, mas não há necessidade. Não
pretendo causar qualquer incômodo e, além do mais, estou acostumada...
Cortando-lhe a palavra ele insistiu, com firmeza:
– É um prazer, não um incômodo. Logo descerá a noite e é perigoso
andar sozinha por essas estradas. Vamos.
Vendo que não havia modo de o dissuadir, Marianne aceitou o
oferecimento.
Saíram juntos. O sol já desaparecera no horizonte e no firmamento,
apesar de ainda claro, surgiam as primeiras estrelas.
Quase não falaram. Marianne respondia por monossílabos às perguntas
de seu jovem cavalheiro. Na verdade, tinha receio. Temia que Pierre a
visse acompanhada de tão galante e gentil mancebo. Ainda nada dissera ao
noivo sobre o emprego que arrumara no castelo, pois tinha medo de que
ele não concordasse. Pierre era seu noivo, mas ela o temia.
Por outro lado, a condessa Clarissa e seu filho Charles desconheciam
esse seu compromisso. Não sabia porque, mas achara melhor calar sobre o
casamento próximo.
Ao chegarem à entrada da aldeia, ela estacou.
– Daqui para frente, Senhor, prefiro ir só.
– Ora! Mas, por quê? Minha companhia é assim tão desagradável?
– Oh! Não. Em absoluto, Senhor – respondeu corando. – É que desejo
evitar que alguém nos veja juntos. Quero evitar falatórios.
Charles deu uma risada bem-humorada:
– Temes ser vista em minha companhia? Está bem, seja como quiseres.
Com uma condição.
– Qual?
– Que pares de chamar-me Senhor. Charles é meu nome.
– Está bem, Charles.
Com um sorriso encantador ele se inclinou e tomando-lhe a destra
depositou um beijo delicado, enquanto sussurrava:
– Até amanhã.
Marianne, ao ver-se sozinha, estugou o passo e pouco tempo depois
entrava em casa.
Encontrou o pai bem disposto, a casa limpa e bastante comida sobre o
fogão.
– Como passou o dia, papai?
– Muito bem, minha filha. A criada não cozinha como tu, mas não é de
todo má. E tu, como foste no primeiro dia de serviço?
– Muito bem. Todos são muito gentis.
Ficou um pouco pensativa, com o olhar perdido no vazio.
– O que tens, minha filha? Algo te preocupa? – perguntou o velho, que
percebera o alheamento da jovem.
Ela lhe respondeu com outra pergunta:
– Papai, posso pedir-te um favor? Não gostaria que Pierre soubesse do
meu emprego. Não por enquanto.
– Por que, filha?
– Temo que ele não goste da ideia de ver-me todos os dias ir ao castelo
de Montmorency.
– Tens um noivo ciumento, não sabes?
– Sei disso. Por isso mesmo não quero que ele saiba. Contar-lhe-ei no
momento oportuno.
– Está bem! Mas como esperas esconder dele esse fato?
– Não se trata de esconder, papai. Além disso, ele só vem à noite e já
estarei em casa. Por falar nisso, ele está chegando.
Entrando na casa, Pierre cumprimentou o velho e fitou com admiração
a noiva.
– Como estás bela! Onde arranjaste tão belo traje?
Marianne deu uma volta, satisfeita com a admiração que vira nos olhos
dele.
– Gostas? Foi presente da condessa de Montmorency.
– E como ela teve ideia de presentear-te?
– Bem, ficaram sabendo que papai está acamado e vieram fazer-lhe uma
visita.
– Vieram?!...
– Sim. A condessa Clarissa e seu filho.
– Ah! E depois?
– Depois ela me mandou por uma criada este mimo. Não é realmente
lindo?
– Sim, muito lindo. Estás parecendo uma dama. Mas, não é só o vestido.
Estás diferente! Talvez seja o cabelo.
– Mudei o penteado – respondeu evasiva e, em seguida, mudou de
assunto para desviar-lhe a atenção: – Mas, agora, deixemos de falar de
mim, vamos falar de coisas mais interessantes, como o nosso casamento
que não tarda, por exemplo.
Conversaram mais algum tempo. Logo Marianne alegou cansaço e
Pierre se despediu prometendo voltar no dia seguinte.
Marianne se despiu e logo estava aconchegada às cobertas em seu leito.
Não via a hora de estar a sós. Queria pensar com calma naquele dia que
fora o mais bonito e interessante de toda a sua vida. Na retina, via o luxo, o
brilho dos enfeites, as roupas elegantes, as iguarias delicadas e,
principalmente, Charles.
Sorriu no escuro ao lembrar-se do olhar do rapaz, olhar insistente,
envolvente e ao mesmo tempo carinhoso. Com impaciência aguardava o
amanhecer para voltar ao castelo. Suspirou satisfeita e adormeceu
tranquilamente.
Capítulo XIII - Novas perspectivas

Iniciou-se uma nova etapa de vida para Marianne. A partir de então,


mergulhou no torvelinho dos prazeres mais simples e que lhe tinham
sempre sido negados.
Em poucos dias dir-se-ia outra pessoa, tão diferente estava. Participava
das brincadeiras e folguedos, passeava com os jovens, conversava com
tranquilidade e segurança. A timidez com que se apresentara no castelo
desaparecera por completo, surgindo uma moça desenvolta, alegre e
resoluta.
Aborrecia-se apenas com a animosidade que lhe demonstrava Régine
em todas as ocasiões. Sempre que possível e, naturalmente, longe da
presença de Charles de Montmorency, a noiva de Lucas procurava
diminuir e humilhar Marianne, chamando a atenção para sua condição
servil, exigindo-lhe pequenos serviços, ordenando-lhe apanhar
determinado objeto jogado ao chão de propósito, ou mesmo dando-lhe
“alfinetadas” sutis, com seu peculiar humor mordaz.
Marianne nada respondia, conquanto no íntimo sofresse com essa
perseguição. Esquecia-se disso facilmente, porém, ao contato com os
outros hóspedes, todos agradáveis e gentis.
Sabia Marianne o porquê dessa aversão, mas nada podia fazer. Na
verdade, Lucas, o noivo de Régine, não a perdia de vista um momento que
fosse, perseguindo-a com seu olhar. Onde quer que estivesse sentia
pousados sobre si, muitas vezes disfarçadamente, os olhos de fogo do
jovem conde de Montpellier.
Não perdia oportunidade de ficarem a sós, buscava sua presença com
insistência, cobria-a de gentilezas e favores e só faltava rojar-se-lhe aos
pés.
Sabia que a noiva dele, não sendo cega, já deveria ter percebido o
interesse do noivo por ela, Marianne, e irritava-se profundamente com
isso.
Não obstante Lucas fosse um belo e elegante rapaz, agradável e distinto,
suas atenções a aborreciam. Procurava fugir-lhe à presença; nos jogos
evitava que ficassem juntos e fizessem par e nos passeios procurava a
companhia dos outros membros do grupo, distanciando-se dele.
Certo dia divertiam-se brincando de caça ao tesouro. Um criado
escondera determinado mimo entre as árvores do parque e deveriam
encontrá-lo, saindo aos pares. Feito o sorteio, coube a Marianne a
companhia de Lucas. Quis evitar aborrecimentos e alegou leve
indisposição para não participar na brincadeira, mas não obteve êxito. Por
unanimidade, não permitiram que saísse e resignou-se ao inevitável.
Dado o sinal de largada, alegremente partiram ao som das risadas e
ditos chistosos.
Lucas tomou-lhe o braço, embrenhando-se com ela pelo parque. Ao
perceber que já haviam se distanciado o bastante e que ninguém poderia
vê-los, com sorriso apontou um banco, meio escondido entre as folhagens:
– Queres descansar um pouco? Sentemo-nos neste convidativo banco à
sombra destas árvores onde, com certeza, estará mais fresco.
Marianne, resoluta, respondeu:
– Não estou cansada, Senhor. Além disso, devemos juntar-nos aos
outros.
– Ora, não tenhas pressa. Acreditas mesmo que estão preocupados
conosco? Senta-te por um instante, vamos conversar.
Marianne se sentou a contragosto, mantendo-se calada. Lucas a
observava discretamente, com leve sorriso nos lábios.
– Lindo lugar este. Perfeito para encontros amorosos e...
Sentindo um medo terrível se assenhoreando de todo o seu ser,
Marianne sussurrou:
– O que pretendes de mim, Senhor? Sou apenas uma criada que em
nada pode interessá-lo.
Fitando-a tranquilo, Lucas respondeu sereno:
– Nada pretendo de ti, acalma-te. Apenas achei a ocasião propícia para
dialogarmos, já que no castelo isso se torna impossível – e, fazendo uma
pausa, continuou: – Por que foges de mim, Marianne? Evitas minha
presença como se eu fosse portador de peste.
– Não é verdade! – ela retrucou, ruborizada.
– Sabes que é verdade, não obstante não queiras admiti-lo.
Levantando-se, Marianne respondeu com altivez, mostrando o seu
orgulho e tremendo de indignação:
– Pois bem, já que o desejas. Sim, é verdade. És um homem
comprometido, Conde. Não fica bem estares a perseguir uma simples e
humilde moça do povo.
Lucas a ouviu sob mudo assombro e, depois, jogou a cabeça para trás
explodindo numa gargalhada sonora.
– De que te ris?
– Então é isso o que te preocupa? Não temas, minha pombinha, Régine
de Bouillon e eu nada temos em comum.
Com os olhos arregalados ela retrucou:
– E o compromisso de noivado?
– Ora, razões de família, interesses políticos e financeiros
determinaram nossa união, que não agrada a nenhum de nós.
– Mas, pensei... – gaguejou.
– Pensou que nos amássemos. Não, nada disso – fez uma pausa e
continuou: – Onde pensas que ela está agora? Junto daquele a quem ama:
Charles de Montmorency.
– Charles?!
– Sim! Isto te surpreende? Surpreende mais ainda o fato de que eu, seu
noivo, saiba disso e não faça nada?
Marianne se sentiu atordoada.
– Então ela ama Charles?
– Isso mesmo. Nunca notaste nada?
– Não, certamente que não.
– Pois é verdade. Por isso te digo que não te incomodes. Ninguém está
preocupado conosco.
Assim dizendo, Lucas aproximou-se e tentou segurá-la nos braços,
enquanto lhe repetia palavras de amor:
– É a ti que eu amo, Marianne. Não posso viver sem ti. Aproveitemos
estes instantes para ficarmos juntos. Quanto ansiei por este momento e
quanto desejei estar assim contigo, juntinho.
Lutando para livrar-se dele, Marianne gritou:
– Larga-me, miserável. Tenho nojo de ti, afasta-te de mim ou grito por
socorro.
– Ninguém te ouviria, minha bela.
Naquele momento uma explosão de sentimentos de ódio a envolveu e,
com força de que não se julgaria capaz, empurrou-o dizendo entre dentes:
– Não te aproximes ou te mato como a um cão! – enquanto em sua mão
surgiu um pau que alcançara rapidamente no chão.
A expressão de surpresa no rosto de Lucas, o desejo que via refletido
em seus olhos, o ódio que sentia por ele naquele momento fez com que
dentro dela algo se rompesse. Já não via o rosto jovem de Lucas, mas o de
um outro homem, forte, de rosto barbado, que a fitava da mesma maneira.
Via-se como uma outra jovem em lugar diferente, mas os sentimentos
eram os mesmos, um ódio terrível por aquele homem. De repente, nas
mãos da jovem surgiu um punhal cravejado de pedras preciosas, que ela
enterrou no peito do homem. Viu o horror e o assombro estampados no
rosto dele, enquanto o sangue jorrava...
– Não!! – de seu peito partiu um grito aterrador e tudo o mais se
apagou.
Ao mesmo tempo em que esta cena ocorria, surgia entre as árvores o
vulto de Charles, preocupado com a demora de ambos. Aproximando-se,
percebeu que algo estranho estava acontecendo:
– O que se passa?
Lucas o viu, mas não teve tempo de responder. Marianne caiu
desmaiada em seus braços.
Aflito, Charles correu para auxiliar o amigo. Estenderam-na no banco e
Lucas respondeu, só agora, à indagação de Charles:
– Não sei o que aconteceu. Conversávamos. Repentinamente, ela me
olhou de maneira estranha, como se estivesse vendo outra pessoa. Deu um
grito, que ouviste, e perdeu os sentidos.
– Vamos levá-la para o castelo. Lá chamaremos o médico.
Em pouco tempo Marianne estava estendida no leito em seus
aposentos. O médico, chamado às pressas na aldeia, examinou-a e acalmou
a todos:
– Não foi nada. Talvez excessivas emoções a tenham abalado. Deu-lhe
sais para cheirar e, em pouco tempo, Marianne despertou. Ainda confusa,
estranhou estar deitada e, mais ainda, ver a condessa Clarissa e a condessa
de Montpellier a seu lado, bem como Charles e Lucas.
– O que aconteceu? – murmurou.
– Nada de importante – apressou-se o médico a tranquilizá-la. – Apenas
tiveste um delíquio, talvez proveniente do excesso de atividades.
E, virando-se para a dona da casa, afirmou:
– Está tudo bem. Ela deverá, entretanto, ficar repousando durante
alguns dias. Uma semana será o suficiente. Boa alimentação, repouso e
muita tranquilidade e logo estará recuperada. Agora devo retirar-me,
Senhora, com sua licença. A nossa doentinha deverá tomar algumas gotas
por dia deste frasco. É só.
Retirou-se e com ele todos os demais, deixando Marianne repousar.
Uma fraqueza extrema a dominava, deixando-a abatida. Logo estava
dormindo novamente.
Mais tarde, sob as atenções de Charles, aflitíssimo, e da condessa sua
mãe, Marianne retornou ao lar na carruagem dos Montmorency, com a
recomendação expressa de permanecer o tempo que desejasse em
repouso, nunca menos de uma semana, como afirmara o facultativo.
Ao despedir-se, osculou a destra da condessa, dizendo-lhe, comovida:
– Não sei como agradecer tanta generosidade, Senhora. Todos têm sido
bons demais para comigo – e com os olhos envolvia Charles que se postara
ao lado da mãe.
– Ora, ora, minha menina. Só o que desejamos é que fiques recuperada e
possas em breve retornar ao nosso convívio.
Partiram deixando-a entregue às suas meditações. Os próximos dias
seriam difíceis de passar. Já não se acostumava a permanecer em casa;
sentia falta do ambiente requintado do castelo, da largueza, da amplidão
das inúmeras salas, dos aposentos mobiliados com luxo e bom gosto, dos
jardins imensos...
E Charles? Sentiria falta de Charles? Sorriu a esta lembrança. Quais
seriam seus sentimentos pelo jovem herdeiro do conde de Montmorency e
Drumond?
Ele era agradável, alegre, gentil e delicado. Sua presença galante tinha o
condão de envolvê-la e atraí-la. Suspirou. Não deveria erguer os olhos tão
alto. Nunca poderia existir nada entre eles. Além do mais, era
comprometida com Pierre e deveria dar-se por feliz.
Antoine se alarmou quando viu a filha chegar tão cedo; ela, porém,
acalmou-o dizendo que se tratava de ligeira indisposição, e ele não tocou
mais no assunto.
No dia seguinte Marianne se ocupou em fazer alguns pequenos
serviços, mexeu em algumas plantas e depois sentou-se, passando o resto
do dia a bordar.
O tempo não passava e as horas se arrastavam. Bastas vezes abandonou
o trabalho de agulha, perdida em pensamentos nostálgicos. Procurava
imaginar o que estariam fazendo naquele momento lá no castelo.
Aborrecia-se supondo Régine ao lado de Charles, fazendo-lhe carícias.
Revia Lucas a tentar abraçá-la e afastava o pensamento, com asco.
Ao lembrar-se de Lucas, o jovem conde de Montpellier, reviu a cena que
tanto a incomodara. Não tanto os avanços do impetuoso rapaz, mas o que
sentiu então. Por que vira uma outra pessoa no lugar de Lucas? Ele teria
dezoito anos, dezenove no máximo. O homem que vira era mais velho,
teria já uns trinta e cinco anos, era forte, de olhos profundos e
inquiridores que a fitavam com desejo. Revia em sua memória os cabelos
pretos, a barba escura e as maneiras arrogantes. Sentia que odiava aquele
homem, sem saber por que, e que Lucas era “aquele” homem.
E a jovem? Bela, de longos cabelos escuros e ondulantes, porte elegante
e corpo bem feito. Surpresa, reviu o instante em que, das dobras da rica
veste, sob a larga faixa que lhe contornava a cintura, surgiu um delicado
punhal, primorosa peça cravejada de pedras preciosas. O braço ergueu-se
e a mão, de dedos longos e afilados, abateu-se instantaneamente sobre o
homem, ferindo-o no peito. Ainda viu o sangue que escorria da ferida
recém-aberta e os gritos dos escravos que ali permaneciam.
Com o coração aos saltos, Marianne parecia participar da cena. Mais do
que isso, sentia que fora ela a vibrar o golpe e que isso lhe dera imenso
prazer.2
– Meu Deus! Estarei ficando louca? Como interpretar tal alucinação?
Perdida em cismares, passou todo o primeiro dia. Recolheu-se cedo,
após receber a visita do noivo. Não quis ficar a sós com Pierre e, alegando
indisposição, o que não era de todo destituído de verdade, recolheu-se ao
leito.
O dia seguinte transcorreu também monótono e triste. Marianne se
sentia irritada e descontente. Às primeiras horas da tarde chegou um
portador do castelo. Vinha saber notícias da sua saúde. Disse-lhe que
estava bem e enviou recomendações à Senhora Condessa.
Naquela noite não conseguiu dormir direito. Tinha desejos de chorar.
Estava deprimida e uma ânsia incontida agitava suas fibras mais íntimas.
O terceiro dia transcorria como os outros dois. As horas se arrastavam e
uma impaciência febril dominava Marianne.
Ao cair da tarde, sentindo calor, abriu a janela que dava para a rua,
bastante tranquila, onde raramente transitava algum passante. Aspirava o
ar fresco com prazer. A tarde estava amena; o sol já sumira quase que por
completo e uma brisa suave soprava agitando levemente as folhas das
árvores. Suspirou. Sentia-se só. Ansiava por algo que não sabia o que era.
Nesse momento ouviu o ruído de um cavalo que se aproximava; as
patas batiam no chão com ritmo cadenciado, produzindo um som abafado,
mas audível.
Logo vislumbrou o cavaleiro que se aproximava. Seu coração pulsou
mais forte: era Charles!
Com leve sorriso nos lábios ele a fitava. Tirou o chapéu da cabeça,
inclinando-se num cumprimento galante. Não parou. Continuou a marcha
e em pouco tempo sumiu.
Satisfeita, Marianne ainda aguardou algum tempo debruçada na janela.
Talvez ele voltasse!
O que estaria fazendo na aldeia? Não importa! Ele desejara vê-la e a
procurara. Não descera, provavelmente para não chamar a atenção.
Esse dia passou tranquilo e cheio de expectativa. No dia seguinte, à
mesma hora, Marianne estava postada na janela. Arrumou-se
cuidadosamente, vestiu o traje mais do seu agrado, penteou os cabelos
prendendo-os com uma fita nova e aguardou.
Não demorou muito e ouviu o ruído dos cascos do cavalo. Logo surgiu a
figura de Charles, montado no animal, a passar lentamente em frente à
sua janela. Mais ousado, curvou-se numa reverência encantadora e, com
gesto elegante, atirou uma rosa que mantinha entre os dedos, após levá-la
delicadamente aos lábios.
Com a respiração suspensa, Marianne apanhou a flor aspirando-lhe o
perfume suave e agradecendo o gentil oferecimento com um sorriso e leve
gesto de cabeça.
Fechou a janela e entrou, apertando a flor entre os dedos. Ele a amava!
Agora não tinha mais dúvidas. Mas, e Régine? Deixaria ele a nobre, bela e
rica jovem duquesa para casar-se com ela? Ou desejaria apenas brincar
com seus sentimentos, como era hábito entre os ricos jovens aristocratas?
Não, se a intenção dele era aproveitar-se dela, ludibriando-a em sua
humildade e boa-fé, estava muito enganado. Saberia como lidar com ele.
No dia seguinte enfeitou-se cuidadosamente e, deixando tudo
arrumado para o pai, falou-lhe:
– Papai, sinto desejo de andar um pouco. Vou dar um passeio pelos
arredores.
O velho alegrou-se ao ver a filha mais animada e aprovou:
– Fazes bem, filha. Estás precisando de ar fresco e de algum exercício.
Não te preocupes comigo, ficarei bem.
Marianne saiu, andando lentamente e aproveitando a fresca da tarde.
O sol já descera, não obstante ainda brilhasse. Seus raios agora eram
mornos e delicados. A temperatura era agradável, balsamizada pela leve
brisa que soprava embalando as copas das árvores.
Era primavera e a natureza explodia em cores e perfumes. As
borboletas de colorido vibrante e variado, aumentavam o fascínio,
enquanto o trinado dos pássaros se fazia ouvir, já preparando-se para o
recolhimento noturno.
Andou sem rumo, meditando sobre os acontecimentos. E assim, dirigiu-
se sem perceber, ou inconscientemente, para a saída da aldeia. A estrada
não tinha movimento e a solidão lhe parecia agradável.
De repente surgiu numa curva do caminho o cavalo de Charles.
Procurou denotar despreocupação e serenidade.
Ao vê-la, o cavaleiro sorriu. Aproximou-se lentamente e apeou do
animal. O coração de Marianne batia acelerado. Desejara este encontro e
agora o temia.
Charles, elegante como sempre, fez uma reverência enquanto sutil
sorriso aflorava em sua boca. Um certo ar de triunfo surgiu em seus olhos
ao fitar Marianne, trêmula, à sua frente.
A jovem fez menção de afastar-se, algo assustada com a própria
temeridade, mas ele obstou-lhe o passo, segurando-lhe de leve o braço.
– Não! Não fujas, Marianne, peço-te! Ansiei tanto por este momento,
para poder falar-te a sós...
– O que queres de mim? – inquiriu com ar de desafio.
– Asseguro-te que desejo apenas conversar contigo – e, fazendo uma
pausa, perguntou: – O que fazias por lugares tão ermos?
– Passeava.
– Pois então, passeemos. Ofereço-te o meu braço de cavalheiro.
Marianne ainda titubeou um pouco, mas o ar sereno do rapaz, sua
fisionomia tranquila e o sorriso gentil a venceram, e aceitou o braço que
ele lhe oferecia tão galantemente.
Caminharam alguns passos em silêncio. Saíram da estrada e
penetraram no bosque aprazível que margeava o caminho.
Marianne desejou descansar, desacostumada que estava a longas
caminhadas. Sentaram-se na relva macia, entre folhas e flores silvestres.
Leves raios de sol ainda se infiltravam entre os galhos das árvores.
Charles lhe falou de como estavam sentindo a falta dela no castelo, o
que fizeram nesses dias de ausência e o que programavam fazer. Falou-lhe
da mãe, a quem se ligava por profundo sentimento de afeto, e de como não
se entendia com o pai. Falou-lhe dos seus gostos e tendências e de
futilidades da Corte.
Ela o ouvia embevecida, sem interferir, deixando que ele falasse o que
desejava. Charles fez uma pausa:
– Nada dizes? Creio estar a aborrecer-te com assuntos que não te
interessam.
– Não, em absoluto. Sinto muito prazer em ouvir-te, Charles. Só não sei
que interesse possas ter em conversar com uma pobre rapariga do povo,
como eu.
Ele a fitou com intensidade; seus olhos se cruzaram e pareciam presos
no espaço.
– Ainda não percebeste, Marianne? – falou num sussurro.
Com ar que pretendia parecesse desinteressado, ela respondeu:
– Não, não percebi. E me pergunto o que pensaria a bela Régine se nos
visse agora, aqui, juntos.
Com um gesto, misto de enfado e irritação, ele retrucou:
– Não me interessa o que Régine pensaria. Nada tenho com ela e, além
do mais, sabes que é comprometida com Lucas.
Com sorriso algo irônico, ela completou:
– Noiva de Lucas, mas apaixonada por ti. Negas?
– Bem, admito que ela tem demonstrado um certo interesse
inconfessável por mim, mas, acredita, não a incentivei de forma alguma.
Ao contrário, tenho sempre procurado empurrá-la para o noivo,
delicadamente, torcendo para que esqueça essa loucura. Temo até que
Lucas perceba e se sinta injuriado dentro de minha casa. Sabes como essas
questões de honra são importantes.
Marianne ouvia calada. Charles tomou-lhe as mãos.
– A verdade é que só existe uma mulher que me interessa, Marianne, e
és tu. Não notaste ainda que só penso em ti, que só vivo por ti, desde o
nosso primeiro encontro? Amo-te como um louco, não percebeste ainda?
– Tu divagas!
– Não. Afirmo-te que tudo o que disse é a mais pura verdade.
Com ar de incredulidade, ela retrucou:
– Está bem. Suponhamos que tudo seja verdade e que me ames. O que
esperas fazer?
– Como assim? – indagou surpreso.
– Acreditas que os orgulhosos condes de Montmorency e Drumond me
aceitariam?
– Minha mãe deseja minha felicidade e meu pai espero convencer. Ele
gosta de ti, Marianne.
– Enganas-te. Não aceitaria um enlace tão desigual. Não como tua
esposa; talvez me tolerasse como tua amante...
Charles colocou a mão sobre seus lábios.
– Não repitas isso. Verás como saberei convencê-los. Minha querida,
amo-te mais que a tudo no mundo.
Num sopro de voz ela confirmou:
– Também te amo, Charles, embora não tenha qualquer esperança.
– Não, meu amor. Seremos muito felizes, verás.
Ele tentou envolvê-la em seus braços, mas Marianne conseguiu soltar-
se e falou, sorridente:
– É tarde. Preciso voltar. Vê, o sol já se pôs e a noite não tarda.
Charles sorriu e acompanhou-a. Na entrada da aldeia pararam e o rapaz
tomou-lhe as mãos depositando nelas um beijo ardente.
– Confia em mim, Marianne.
Com essas palavras, montou o cavalo e partiu. Com o coração em festa,
Marianne voltou para casa estugando o passo. Seu pai a aguardava aflito.
– Ora, papai, estava tão agradável o passeio que não percebi o tempo
passar.
Serviu a refeição ao seu genitor e, tão logo pôde, isolou-se em seu
quarto; queria pensar, meditar sobre tudo o que ocorrera naquele final de
tarde.
Vencera! Seria rica e admirada por todos. Ele a preferira, mesmo sendo
pobre, à rica, cortejada e bela Régine. Um sentimento de triunfo a
dominava. Jamais tivera essa sensação de segurança e prazer em toda a
sua vida.
Bateram de leve na porta, tirando-a do devaneio. Era o pai e vinha
avisar da chegada do noivo.
Como se tivesse sido arremessada das alturas, Marianne sussurrou:
– Pierre??!!...
Levou a mão à cabeça, confusa e atordoada:
– Meu Deus!
Esquecera-se completamente da existência de Pierre, seu noivo.

2. Recordava-se naquele instante de uma existência anterior em que, como Tamara, tentara matar
seu inimigo, conde Godofredo de Ravena, conforme relato constante do livro Perdoa!... do mesmo
autor (nota do autor espiritual).
Capítulo XIV - Novo pedido de casamento

No pequeno e humilde quarto, a presença do conde de Montmorency


parecia encher o ambiente, ocupando todo o espaço com a sua
personalidade vibrante.
O pobre homem, deitado no leito simples, não pôde esconder o espanto
que a presença do Senhor daquelas terras lhe causava. O conde ali, em sua
humilde moradia?
Marianne, também estupefata, trouxe a melhor cadeira que possuíam
para que se sentasse. Trêmula, não sabia a que atribuir aquela visita
inusitada. Teria ele descoberto tudo o que existia entre ela e seu filho
Charles? A esse pensamento sentiu-se tomada pelo pânico.
A um pedido do conde, que soou como uma ordem, deixou-os a sós. O
silêncio era palpável dentro do aposento. O conde se dirigiu ao dono da
casa com ar severo:
– Por certo, Antoine, estás curioso para saber a razão da minha
presença em tua casa.
O velho sorriu, humilde, e respondeu:
– É sempre uma honra a vossa visita, Senhor, em nosso lar. Mas
realmente estou curioso para saber o motivo de tão ilustre deferência,
Senhor.
O conde pigarreou, ajeitou-se na cadeira e falou, como se estivesse a
cumprir penoso dever:
– Tenho a honra de pedir a mão de tua filha Marianne para meu filho e
herdeiro Charles de Montmorency e Drumond.
– Como, Senhor? – gaguejou Antoine.
– Sim. Ouviste bem! É um pedido de casamento o que acabas de ouvir.
– Mas, Senhor... é impossível!... – gaguejou novamente Antoine, sob
mudo assombro.
O conde se mostrou mais satisfeito:
– Fico contente que concordes comigo. Também acho um absurdo tal
enlace. Meu filho pertence à mais nobre aristocracia do país e tua família é
obscura e sem tradições; tua filha não tem um dote e nunca poderia
pertencer ao nosso mundo. Mas, o que queres? Charles insiste nesse
casamento, diz que ama Marianne até a loucura e que não pode viver sem
ela. Após muitas discussões, muitas brigas, em que não valeram nossos
conselhos e ponderações, eis-me aqui a pedir a mão de tua filha. Afinal, o
que não faço eu por este filho, único rebento que possuo?
De olhos arregalados e lábios trêmulos, Antoine repetiu ainda:
– É impossível, Senhor! Absolutamente impossível!
Sem ouvir o que o outro dizia, o conde prosseguiu:
– Precisamos agora pensar em como será feita a apresentação da noiva
à sociedade. Naturalmente, não haverá necessidade de que saibam a real
situação de Marianne. Ela poderá ir residir em nosso castelo e diremos que
é uma parenta afastada. Assim, seu nascimento pobre e obscuro deixará de
existir. Sim! É isso mesmo! Inventaremos uma genealogia nobre, com
ancestrais ilustres que darão mais brilho a sua estirpe. Quanto a ela, é bela
o bastante para conquistar a todos com sua simples presença e o encanto
que irradia.
E continuou falando, monologando sem parar, até que fez uma pausa
mais longa. Fitou Antoine e, vendo a expressão desconsolada no rosto do
velho servidor, inquiriu:
– O que há? Nada dizes! Não pareces contente e, no entanto, deverias
estar te regozijando com o pedido que te faço.
Antoine suspirou fundo e, fitando o seu interlocutor, falou
pausadamente, medindo a extensão da sua desgraça:
– Senhor Conde, sinto-me deveras jubiloso com a honra que me
concedestes ao pedir minha filha em casamento para vosso herdeiro e,
crede-me, nunca um coração de pai poderia aspirar a melhor futuro para
sua filha, mas...
– Mas??!!...
– Esse enlace é impossível, Senhor, e é com desgosto que vos confesso:
minha filha Marianne já é comprometida.
– Não pode ser!
– É verdade, Senhor! Há alguns meses minha filha está noiva e deve
casar-se em breve.
– Quem é ele?
– Trata-se de Pierre, Senhor. Reside numa pequena propriedade a
algumas léguas daqui, rumo ao norte. Adquiriu a propriedade do velho
Joachim, que faleceu algum tempo atrás.
– Ah! bem, se é assim, por que tua filha nunca nos informou acerca
desse compromisso? Ela ama o noivo?
– Talvez não tivesse achado necessário, Senhor. Quanto ao noivo, acho
que o estima.
– Bem, creio que isso coloca um ponto final nas pretensões de meu
filho.
O conde suspirou aliviado e, após agradecer a atenção, retirou-se.
O desfecho saíra melhor do que imaginara. Não poderia desejar solução
mais conveniente. Afinal, não era por culpa sua, e seu filho não poderia
acusá-lo de má vontade. A jovem já era comprometida! Que fazer?
Na carruagem que o levou de volta ao castelo, o conde esfregava as
mãos, satisfeito.
Era uma pena! Afinal, a jovem era muito bela. Até ele, Henri, já andara
de olho na menina, enfeitiçado. Mas, se pelo menos Charles a desejasse
como amante não haveria problema algum; ele, seu pai, montaria um
ninho acolhedor em qualquer lugar mais discreto e o filho poderia ser feliz
com ela. Teimoso, porém, o rapaz a queria como esposa e isso agora estava
fora de cogitação. Tanto melhor. Lamentava ter que dar a notícia a
Charles, mas seu filho sofreria alguns dias e depois esqueceria.
Não era sempre assim que acontecia?
***
A reação de Charles foi terrível. Ao saber que Marianne já era
comprometida, ficou como louco e, desesperado, saiu a galope pela
estrada levantando nuvens de poeira. Não podia acreditar que fosse
verdade; com certeza seu pai mentira. Afinal, não desejava esse enlace e
concordara muito a contragosto com o fato, ao perceber a inabalável
decisão do filho.
Não, deveria haver uma explicação. Um mal-entendido, talvez.
Chegando à moradia humilde de Marianne, entrou intempestivamente.
A jovem, percebendo o estado de espírito de Charles, tapou o rosto com
as mãos enquanto as lágrimas caíam, já arrependida da sua
inconsequência.
– Marianne, exijo uma explicação de tua parte. Dize que é mentira o
que meu pai asseverou.
Antoine, percebendo o que ocorria na sala, levantou-se com dificuldade
para defender a filha. Apoiado na porta, com o semblante endurecido pelo
esforço e pela dor, interpelou o recém-chegado:
– Senhor, com que direito invadis nossa casa e exigis uma explicação
que não temos o dever de dar?
Charles, de cabeça erguida, respondeu com altivez em que se notava a
têmpera de sua raça:
– Com o direito que vossa filha me outorgou, Senhor, quando aceitou
meu amor, não obstante sem o vosso consentimento, mas tendo Deus
como testemunha.
Antoine fitou a filha entre surpreso e aborrecido:
– É verdade, minha filha, o que acaba de afirmar o Senhor Conde?
Marianne baixou a cabeça sem responder. O velho, confuso e
envergonhado, virou-se para Charles:
– Queira aceitar minhas desculpas, Senhor. Desconhecia esse pormenor
e tendes o direito de exigir uma explicação que minha filha não se negará
a conceder, certamente.
– Papai, por favor, deixa-nos a sós. Não deverias ter-te levantado do
leito. Fica sossegado.
Assim que o genitor saiu, Marianne caiu sentada numa cadeira.
Amarrotava nervosamente um pequeno lenço de cambraia nas mãos, já
umedecido pelas lágrimas.
Mantendo-se de pé, erecto, fisionomia severa, Charles a observava
discretamente. Esperava uma satisfação que a jovem tardava em fornecer,
talvez com receio das consequências.
– Não me julgues muito severamente, Charles – falou, com a voz
embargada pela emoção. – Não tive intenção de causar-te aborrecimentos.
– Percebes a gravidade do que fizeste? – falou lentamente.
– Foi tudo tão de repente, Charles. Nunca amara ninguém antes e já
perdera as esperanças de que isso pudesse acontecer um dia, quando
surgiu Pierre. Meu pai achou que era um bom partido e concedeu-lhe
minha mão em casamento. Não o amo, mas o estimo como a um irmão,
por isso aceitei o compromisso.
Fez uma pausa para analisar o efeito de suas palavras e, erguendo os
olhos nevoados de pranto, continuou:
– Quando te conheci algo diferente passou a agitar-se dentro de mim.
Amei-te assim que te vi, mas não tinha esperança alguma, entendes?
– Por que nunca nos contaste que eras noiva?
– Porque nunca me perguntaram. Minha vida particular não poderia
interessar aos Senhores de Montmorency e Drumond. Afinal, eu era
apenas uma serviçal dentro do castelo. Um pouco mais graduada talvez,
mas não deixava de ser uma serviçal.
Fez uma nova pausa e completou com amargura:
– Encontramo-nos tarde demais, Charles. Melhor é que nunca mais nos
vejamos...
Parecendo acordar com essas palavras, Charles retrucou:
– Não, isso nunca! Não deixarei que sejas de outro!
Agarrou-a, segurando-a pelos braços e obrigando-a a fitá-lo de frente.
– É verdade que me amas?
– Te amo.
– Juras?
– Juro.
– Nada te prende a esse homem a não ser o compromisso?
– Sim.
– Então, o que nos importa? Rompe o compromisso e casa-te comigo.
– Mas, Pierre...
– Iremos morar longe daqui e ele não nos incomodará. Tenho uma
propriedade, herança de minha avó paterna, que fica distante daqui. E,
depois, com o tempo esquecerá...
– Tenho medo dele. Muito medo...
Charles abraçou a jovem perjura:
– Não tenhas medo, minha querida. Estarei ao teu lado para defender-te
contra tudo e contra todos. Além do mais, quem é ele? Um pobre diabo
sem eira nem beira. Daremos a ele algum dinheiro e ele esquecerá que um
dia teve uma noiva.
Marianne sentiu um aperto no coração. Intimamente sabia que as
coisas não seriam bem assim. Pierre era orgulhoso, de caráter rígido e não
aceitaria ouro para esquecer um compromisso de honra. Não teve, porém,
coragem de dizer nada. Fraca e ambiciosa, escondeu o rosto no peito do
rapaz e calou-se.
De mãos dadas entraram no quarto e contaram a Antoine a resolução
que tomaram. Marianne iria residir no castelo, fugindo à influência do ex-
noivo e, também, para preparar-se convenientemente para o enlace.
Antoine exultou intimamente com a notícia. Na verdade, foi com
profundo desgosto que rejeitara o pedido de casamento do conde. Era a
oportunidade que sua filha nunca mais teria na vida e não havia
comparação possível entre o rude, embora honesto, camponês Pierre e o
elegante, rico e aristocrata conde de Montmorency.
“Pierre esqueceria. Existiam belas raparigas na aldeia e ele não era de
se desprezar; logo arranjaria outra noiva.”
Procurando calar os escrúpulos, Antoine desejava justificar-se da
traição que ambos, pai e filha, cometiam com o homem que sempre fora
bom e generoso para com eles.
Por orgulho e ambição, semeavam ambos para o futuro e nova colheita
de dores e sofrimentos adviria dessa decisão. A oportunidade de reajuste
entre desafetos do passado e os compromissos assumidos no plano
espiritual eram relegados ao esquecimento, com graves consequências
para os implicados no caso.
***
Alguém acompanhava o desenrolar dos acontecimentos sofrendo qual
se fossem penas do inferno. Sem ser informado particularmente sobre o
que estava ocorrendo, a tudo acompanhava com desassossego crescente.
Esse alguém era Lucas de Montpellier. Desde que vira Marianne pela
primeira vez deixara-se invadir por um sentimento forte que o dominava
por inteiro. Tentara lutar contra essa atração e o fascínio que a jovem
camponesa exercia sobre ele, mas fora inútil.
Sentia-se abrasar de amor por ela e essa emoção lhe tomara de assalto o
íntimo, excluindo qualquer outro interesse que pudesse ter. Não
conseguia pensar em mais nada a não ser no objeto de seus sonhos.
A presença de Régine, sua noiva, se antes não o interessava mas
suportava com tranquilidade, agora lhe era extremamente penosa. Com
dificuldade ouvia sua tagarelice de jovem rica e despreocupada, desejando
estar a léguas de distância. O som da voz de Régine o irritava
profundamente e, como não poderia deixar de ser, os arrufos e
desentendimentos se tornaram constantes, sob a apreensão da condessa
Louise, que a tudo acompanhava em silêncio.
Lucas não perdia de vista o amigo Charles, sabendo do interesse que o
ligava a Marianne. Quando a jovem dama de companhia sofreu o desmaio
em sua presença, sentiu-se enlouquecer de dor e raiva pela intromissão
intempestiva de Charles.
Passou a vigiá-lo melhor desde então. Sem a presença de Marianne no
castelo, notou que Charles ausentava-se com frequência e passou a segui-
lo. Foi assim que descobriu seus passeios sob a janela da bela camponesa,
seus olhares, o interesse crescente entre ambos. Nervosamente mordeu os
lábios quando viu Charles jogar a flor e, com desespero, viu Marianne
pegar o mimo e guardá-lo aconchegado ao peito.
Alucinado de dor, com o ciúme a explodir dentro de si, acompanhou o
encontro de ambos no bosque, o colóquio amoroso, as gentilezas de
Charles e o sorriso fácil de Marianne.
Dentro das dependências do castelo, percebeu as conversas entre pai e
filho; acompanhou o desfecho até a visita do conde ao lar de Antoine. Sua
cabeça parecia atordoada e doía terrivelmente. Não suportava a ideia de
Marianne nos braços de Charles.
Desejando beber algo, dirigiu-se a uma taberna nas imediações que
costumava frequentar de vez em quando. Lá, entre um gole e outro,
travou conhecimento com dois rapazes por nome Ezequiel e Samuel.
Notou Lucas, logo à primeira vista, que ambos eram inveterados
beberrões, sempre dispostos a destravar a língua se não lhes faltasse
bebida.
Falavam de um sujeito que lhes tomara tudo o que possuíam. Ezequiel,
o mais velho, falava pelos dois:
– Um cara aí enganou nosso velho pai e apossou-se de toda a nossa
herança. Maldito!
E Samuel completou, limpando o vinho que escorria pelo canto da boca
com a mão encardida:
– É isso mesmo, Senhor. Se não acreditas, podes perguntar a quem
quiser. E ainda conseguiu ficar noivo da rapariga mais bonita da aldeia.
Lucas, que ouvia a conversa sem prestar muita atenção, passou desde
esse instante a interessar-se pelo que diziam.
– Como assim? Contai-me lá como foi isso. Adoro histórias
interessantes.
E Ezequiel, novamente tomando a palavra:
– Pois é, Senhor. Não bastasse ficar com tudo o que era nosso, que não
era muito, reconheço, mas que seria suficiente para dar-nos uma vida
tranquila, ainda está de casamento marcado com a moça mais bela do
lugar, aquela que qualquer homem gostaria de ter por esposa.
– Mas é tão bela assim? Por certo exageras!
– Não há exagero, Senhor. Se visses seu talhe esbelto, o porte elegante
de rainha, o rosto mimoso e os cabelos longos e sedosos, não deixarias
também de admirar a bela donzela.
– Quem é essa deusa? – perguntou Lucas com uma ponta de
desconfiança.
– Chama-se Marianne, Senhor. É filha do velho Antoine, o lenhador.
Ao ouvir o nome da mulher sobre quem falavam, Lucas levou um
choque. Suas mãos gelaram; o sangue afluiu ao rosto e as têmporas
latejaram. Lutou para não deixar transparecer a tempestade que o
assolava por dentro.
– Sentes algo, Senhor? – inquiriu Samuel.
– Não, estou bem. Um mal-estar passageiro, proveniente do vinho, com
certeza. Mas, as canecas estão vazias. Ó taberneiro! – gritou – serve mais
vinho aos meus amigos aqui. Mas, como íeis dizendo... a jovem chama-se
Marianne... e o noivo, quem é?
– É um homem por nome Pierre.
Outra vez Lucas sentiu-se abalar intimamente. Pierre! Este é o nome de
seu irmão desaparecido e, provavelmente, morto. Uma onda de saudade o
envolveu.
– O que disseste, Senhor?
– Nada... nada. Pensava alto. Continua, Ezequiel.
– Pois bem, Senhor. Foi esse homem sem escrúpulos que enganou nosso
velho pai e ficou com nossa propriedade.
– Ah! E onde fica a propriedade?
– Algumas léguas daqui, Senhor. Seguindo a estrada rumo ao norte; as
terras fazem divisa com uma propriedade do conde de Drumond.
– Ah!...
Enquanto os dois rapazes tagarelavam, Lucas maquinava. Quem sabe
esses homens não poderiam auxiliá-lo? Precisava tirar Charles da jogada.
O tal Pierre, que ele detestava sem conhecer, não era tão perigoso. Era um
pobre homem sem riqueza e com qualquer quantia seria facilmente
colocado de lado. Mas Charles...
Os dois bêbados olhavam Lucas, que parecia alheio à conversa.
– Estamos te aborrecendo, Senhor? – timidamente perguntou Ezequiel.
– Como? – respondeu Lucas, voltando a si. – Oh! Não. Em absoluto!
Estou achando a conversa muito interessante. Por sinal me lembrei de um
fato que talvez tenha relação com tudo o que me contastes.
– Sim? – ambos se mostraram interessados.
– Tendes certeza de que essa jovem está comprometida?
– Claro, Senhor! Todos aqui na aldeia sabem disso.
Demonstrando incredulidade, Lucas meneou a cabeça:
– Então não deve ser a mesma. Com certeza se trata de outra pessoa!...
– Quem, Senhor? Não estamos entendendo o que dizes. Gostaríamos
que nos explicasses melhor.
– Bem, já que insistis. Tenho um amigo que anda rondando a casa de
uma certa jovem aqui da aldeia. Está perdidamente apaixonado por ela e
ela também parece interessada, pois, quando ele passa a cavalo, ela abre a
janela e... sabeis como são essas coisas – disse com sorriso malicioso.
Caíram os três na risada.
– Mas o Senhor sabe quem é a tal donzela?
– Não, infelizmente não. Meu amigo é muito discreto e não comenta
nada comigo sobre seus encontros amorosos. Sei que deseja casar-se com a
jovem em questão e até vai falar com o pai dela.
– Sabes como ele se chama, Senhor? – inquiriu Samuel.
– Não! Esperai... falou algo como Anton... não me recordo.
Os dois malandros trocaram um olhar de entendimento, indagando ao
mesmo tempo:
– Seria Antoine, Senhor?
– É. Isso mesmo. Antoine – falou com olhar cândido.
– Meu Deus! Mas é o pai da menina Marianne.
– Não. Não pode ser! Ela está comprometida! – Lucas considerou,
denotando surpresa.
Ezequiel e Samuel pareciam ter encontrado um tesouro. Riam às
gargalhadas. Lucas fingia-se agastado:
– Meus amigos, tendes certeza de que se trata da mesma pessoa?
– Sim, certeza absoluta! – responderam em uníssono.
– Aquele maldito já vai começar a receber o troco por tudo o que nos
fez – resmungou Ezequiel.
– Senhores... Senhores! – Lucas parecia preocupado. – Confio-me à
reserva dos amigos. Não quis cometer uma indiscrição e, se o tal Pierre
ficar sabendo, meu pobre amigo terá aborrecimentos, o que de forma
alguma desejo. Tenho a palavra dos senhores de que nada comentarão?
– Podes confiar em nós, Senhor!
Um sorriso de cumplicidade reuniu os três homens num último brinde:
– À nossa amizade!
***
Lucas deixou a taberna com outra disposição. Cantarolando, dirigiu-se
ao castelo, mentalmente arquitetando seus planos.
Após a ceia, enquanto os demais hóspedes se entretinham em jogar
gamão, procurou travar diálogo com Charles, que não participava das
mesas de jogo.
Um pouco distantes, o bastante para acompanharem as conversas nas
mesas, mas longe o suficiente para que ninguém pudesse ouvir o que
diziam, Lucas falou com ar estudadamente negligente:
– Estive hoje na taberna da aldeia e me diverti bastante.
Distraído, Charles indagou:
– O que encontraste de tão divertido na companhia de pobres
desgraçados?
– Ah! Se lá estivesses também não deixarias de te divertir, acredita.
Tomei conhecimento com dois homens, que me relataram coisas muito
interessantes...
– Vamos, Lucas! Dize lá o que descobriste. Já estou curioso.
Com ar de fingida surpresa, o outro respondeu:
– Deram-me notícias da tua bela...
– Quem? Explica-te melhor – falou Charles, intrigado.
– De Marianne, claro! Quem mais poderia ser?
– O que foi que soubeste, Lucas? Dize logo!
– Sabes que a doce dama de companhia da senhora tua mãe tem
compromisso matrimonial com um homem do campo?
– Não é verdade! Senão Marianne nos teria dito.
– Pois te asseguro que é a pura verdade.
E relatou o que soubera na taberna. Quando Lucas falou de Pierre,
Charles estremeceu:
– Dizes que esse indivíduo chamado Pierre tem uma pequena
propriedade ao norte?
– Sim, esse mesmo. Pelo menos foi a informação que obtive.
– Canalha! Conheço esse maldito camponês.
– Conheces?
– Sim, Lucas. Certa vez, há pouco tempo, tivemos uma altercação
devido a um veio d’água que nasce em sua propriedade. Quisemos
comprar o sítio, que faz divisa com nossas terras, mas o velho Joachim se
recusou a vender. Judeu sujo e asqueroso!
Fez uma pausa, procurando relembrar os detalhes do acontecimento e
falou, entre dentes:
– Quando o velho judeu morreu, soubemos que um outro havia ficado
com a propriedade e tentamos entrar em acordo novamente. Ainda uma
vez foi recusada nossa proposta. Meu pai conversou diversas vezes com
ele e depois também tentei dialogar, mas tudo em vão. Desentendemo-nos
e ele chegou a expulsar-me de suas terras, o miserável!
– Que ousadia! Expulsar o filho do mais poderoso homem da região,
merece uma lição, penso eu.
Charles, irritado, completou:
– E agora, fico sabendo que é ele o homem que mantém compromisso
com Marianne... maldito!
– Estou errado ou já sabias desse noivado? Não denotaste muita
surpresa com o que te relatei.
– Na verdade, Lucas, meu pai já havia me contado, mas não desejava
acreditar na veracidade dos fatos e também não sabia quem era o
desgraçado. Agora que sei, com mais razão ainda não deixarei que
Marianne se aproxime dele.
Lucas mordeu os lábios, num gesto muito seu quando descontente.
– Pareces realmente interessado na linda plebeia.
– Mais do que isso, meu amigo. Vou casar-me com ela. Para tanto, conto
com tua ajuda inestimável.
– Por certo, Charles. Tens a minha total dedicação para o que se fizer
necessário.
Nesse instante vinha entrando monsenhor de B..., amigo da casa e
hóspede habitual no castelo.
A figura grave, de semblante austero, aproximou-se. Não tinha o
aspecto dos prelados da Igreja, de modo geral, que possuíam rosto
macilento e mãos geladas. Não. Seu todo era de um homem de muita saúde
e acostumado a passar bem. A pele era rosada e avermelhava-se com
facilidade. Os olhos vivos eram esquivos e, talvez pela miopia, não se
fixavam na pessoa com quem estava falando. Parecia estar sempre fitando
um ponto qualquer atrás.
Sorridente, aproximou-se estendendo a beijar a mão em que grande
anel de rubi cravejado de brilhantes cintilava.
– Que bons ventos vos trazem, monsenhor? Não poderia chegar em
melhor hora – disse Charles com afetação. – Gostaria que Vossa
Reverendíssima nos prestasse algumas informações.
– Com prazer, meus jovens amigos. Se estiver ao meu alcance.
– Estimaríamos obter informações sobre um certo Pierre...
– Pierre... Pierre... – monsenhor de B... parecia rebuscar na memória. –
Se for um tal que mora na herdade que foi do velho Joachim, o judeu, não
posso informar grande coisa. Sei que surgiu na aldeia, Deus sabe vindo de
onde, esse aventureiro. Trabalhou algum tempo com o velho e, quando
este morreu, ficou definitivamente instalado lá.
– Monsenhor conhece os filhos do velho falecido?
– Há muito tempo não os vejo. São dois malandros da pior espécie.
Gastaram todo o dinheiro que o velho lhes deu como herança com jogo,
bebida e mulheres – a trilogia maldita, meus filhos. Quanto ao tal Pierre,
deve ser da mesma laia. Posso dizer com certeza que não frequenta a
igreja; quanto ao mais, ignoro.
– Sabeis, Senhor, que os dois irmãos, Ezequiel e Samuel, encontram-se
na cidade e procuram reaver a herdade que lhes caberia por herança?
Os olhos do sacerdote brilharam mais intensamente.
Charles, que conhecia a ganância do prelado, disse-lhe que gostaria de
contar com o apoio da Igreja no caso de se fazer algo contra Pierre, e
concluiu:
– Naturalmente, Monsenhor, a nossa amada Igreja receberá uma
polpuda recompensa se conseguirmos provar que Pierre é um homem sem
escrúpulos e herege.
Com fingida bonomia e ar contrito, o sacerdote aceitou:
– Faremos o que for necessário para esclarecer os fatos, visando
também à salvação da alma da infeliz criatura, que sofreu a influência
“judaizante” do velho Joachim.
Abrindo um breve parêntese, é preciso que se diga que, na época, a
Igreja e o Estado já iniciavam o terrível processo que conduziria à
chamada “Santa Inquisição”. Mais por interesse e cobiça, procuravam
acusar de hereges aqueles que não comungavam da mesma ideologia, e os
judeus foram suas vítimas prediletas; as riquezas e tudo o que pertencesse
ao acusado eram revertidos em favor da Igreja.
Por isso, percebendo que os despojos poderiam render um bom lucro, o
monsenhor de B... aceitou ajudar no caso. Por outro lado, Charles visava
retirar do seu caminho o maldito Pierre e ainda ficar com a propriedade,
dando outra coisa de menor valor à Igreja.
Lucas estava calado, mas satisfeito, vendo que tudo caminhava melhor
do que poderia esperar.
Ao se separarem naquela noite, cada qual com seus pensamentos
buscava meditar a solução ideal para o próprio problema e a melhor
maneira de passar o outro para trás.
***
Os últimos raios de sol iluminavam a Terra quando Pierre terminou
seus afazeres diários.
Mais taciturno que de costume, tomou banho, preparou ligeira refeição,
que comeu sem interesse. Seus atos pareciam todos maquinais. Era como
se não estivesse ali; seus pensamentos estavam longe.
Envolvia em vibrações inquietantes a noiva bem-amada. O ambiente
estava mudado. Algo não ia bem e ele não sabia dizer o quê.
Já por diversas vezes estivera em casa de sua querida Marianne sem
conseguir avistá-la. Antoine dava uma desculpa qualquer, que ela
adormecera de cansaço pela faina diária ou que estava recolhida sofrendo
terrível dor de cabeça. Certa vez disse até que ela saíra em viagem para
visitar uma velha tia adoentada, de cuja existência ele, Pierre, nunca
soubera.
As vezes em que conseguia vê-la apresentava-se estranha, fria e
distante. Sempre linda e bem arrumada, naturalmente, mas distante. Cada
vez mais distante. Pierre sentia que Marianne lhe fugia dos braços, mas
não sabia o que fazer para prendê-la.
Nessa noite, porém, Pierre estava decidido a ter uma conversa séria.
Exigir uma definição. Afinal, a data marcada para os esponsais
aproximava-se e era preciso fazer alguma coisa.
Enquanto se dirigia para a aldeia, uma secreta intuição, porém, lhe dizia
que seria tudo inútil. Uma angústia muito grande lhe dominava o íntimo,
constringindo-lhe o coração. As têmporas latejavam e um prenúncio de
desgraça o acometeu de súbito.
Procurando conservar a calma e o sangue frio, foi recebido pelo pai de
Marianne. Antoine, sempre muito gentil, mostrou-lhe uma cadeira para
que sentasse. Conversaram durante alguns minutos sobre trivialidades.
Resolveu atacar de rijo e enfrentar o problema. Com delicadeza Pierre
perguntou pela prometida. Antoine avermelhou-se e ia dar uma desculpa
qualquer quando Pierre continuou:
– É imprescindível que ultimemos os preparativos para o casamento.
Marianne precisa fazer compras para o enxoval e tudo correrá por minha
conta. Também quero marcar um dia para que juntos possamos ir até
minha casa, nosso futuro lar. Desejo que Marianne faça as alterações que
julgar necessárias e adequadas. Pois não desconhece o meu amigo que a
minha casa é casa de homem e nada tem daquelas pequenas coisas que
tanto agradam às mulheres. A decoração ficará a cargo de minha querida
noiva. Mas, para isso, é preciso que conversemos, pois não?
Antoine titubeava, tentando alinhavar uma desculpa:
– É... tens razão... mas...
– Parece-me que algo está acontecendo. Por acaso estará minha noiva
enferma?
– Não... não se trata disso.
Resoluto, Pierre exigiu:
– Então, vamos lá. Acho que estás me devendo uma explicação. Noto
que está acontecendo alguma coisa. Marianne não deseja ver-me?
– Sim. É isso – respondeu Antoine abruptamente.
– Por quê? Fiz algo que a desagradasse? Se assim for, peço desculpas.
– Não... Pierre, nada fizeste para desagradá-la.
E o pobre homem estava cada vez mais nervoso e torcia as mãos
descontroladamente.
Pierre, taciturno e severo, falou, e sua voz não admitia réplica:
– Exijo uma explicação.
O pai decidiu-se afinal ao que não poderia evitar:
– Está bem. A verdade é que Marianne não deseja mais ver-te. Pede que
a libertes do compromisso assumido. Ainda é muito jovem e não se sente
apta para enfrentar o vínculo matrimonial.
Falou aos borbotões, como se quisesse livrar-se o mais rápido possível
da incumbência dolorosa. Depois, vendo o sofrimento estampado no rosto
do rapaz, falou mais brando:
– Quero que nos perdoes, Pierre. Sabes como as mulheres são
inconstantes. Logo encontrarás outra que poderá fazer-te muito feliz.
Pierre encontrava-se em estado de choque. Sem nem ouvir as últimas
palavras de Antoine, virou-se e deixou aquela casa, onde fora tão feliz e
que agora lhe causava tanta dor. Dirigiu-se à taberna mais próxima e lá
ficou sabendo que Marianne estava interessada em outro homem.
Furioso, desejou vingar-se...
Capítulo XV - Ataque criminoso

No dia seguinte Pierre acordou sob os efeitos de uma tremenda ressaca.


Chovera na véspera e no chão se viam os rastros das botas enlameadas.
A moradia, embora humilde, vivia em ordem e limpa, mas encontrava-
se toda desarrumada. Na cozinha, utensílios estavam espalhados aqui e
acolá. Sobre a mesa restos de comida e, no piso, um odre de vinho vazio.
Com dificuldade, após ingerir uma caneca de chá, Pierre pôs-se a
pensar:
– Por quê? Por quê?...
Seu pequeno mundo parecia desabar sobre sua cabeça. Tudo mudara de
repente e já não tinha incentivo para viver e para lutar.
Por que logo “ele”? Sabia que ambicionava sua propriedade e até já
tinham tido uma altercação, mas por que se interessar justo por sua noiva
Marianne?
A cabeça parecia querer explodir. Doía terrivelmente e seu tamanho
parecia ter duplicado.
Deveria viver, sim. Para vingar-se. Eles não perdiam por esperar.
Pagariam os canalhas tudo o que o fizeram sofrer.
Mas, ele a amava ainda; era com desgosto que admitia para si mesmo.
Como esquecê-la? Como esquecer aqueles olhos enganadores? E seu
rancor era maior ainda porque, sem saber como, tinha a intuição de que
não era a primeira vez que ela o traía. Rebuscava na memória sem
conseguir encontrar a origem desse sentimento, mas intimamente tinha
certeza de que já o atraiçoara outras vezes, e sentia um ódio cada vez
maior.
Com desencontrados pensamentos, deitou-se novamente.
Os animais lá fora esperavam pela ração, as vacas precisavam ser
ordenhadas, as galinhas ciscavam no terreiro, esfomeadas, mas ele não
estava preocupado com nada que não fosse sua própria dor.
Passou por ligeiro sono e acordou com leves batidas na porta.
Levantou-se com dificuldade e foi abrir.
– Ah! É o senhor, frei Victor?
Com um muxoxo indiferente fez um gesto para que o religioso entrasse
e, despreocupado do julgamento que dele pudesse fazer o recém-chegado,
encaminhou-se novamente para o quarto, jogando-se no leito.
O frade em silêncio o acompanhou. Sentou-se na cadeira, que puxou
para o lado da cama, e ficou observando o homem, que parecia ter se
esquecido da sua presença. Em pouco tempo estava roncando de novo,
adormecido profundamente.
Com um suspiro, o frade levantou-se da cadeira e caminhou pela casa
analisando a confusão reinante. Arregaçando as mangas, colocou em
ordem algumas coisas, lavou os utensílios de cozinha ainda sujos desde o
dia anterior e foi para a horta em busca de verduras e legumes.
Algumas horas depois Pierre acordou e estranhou ouvir passos e
movimento na cozinha. Levantou-se e, ainda cambaleando, assomou à
porta. Estranhou o que viu. Tudo estava na mais perfeita ordem e uma
panela fumegava no fogão exalando delicioso aroma.
O frade, que sentado num pequeno e tosco banco lia seu breviário,
alegrou-se com a presença de Pierre.
– Ainda bem que acordaste, meu filho. Já estava preocupado contigo.
Como te sentes agora?
Passando a mão pelos cabelos revoltos, Pierre indagou:
– Há quanto tempo estás aqui, frei Victor?
– Há muitas horas, meu filho. Não recordas que me abriste a porta?
Pierre fez um gesto negativo com a cabeça.
– Isso não tem importância! – respondeu o religioso com meigo sorriso.
– Vem, senta-te aqui. Toma este chá.
Ao primeiro gole Pierre reagiu com nojo.
– O que é isso? Está amargo como o diabo!
– Não blasfemes, Pierre. Bebe tudo. Fiz com algumas ervas que apanhei
no teu quintal.
Docilmente Pierre ingeriu a amarga mistura, sob o olhar atento e
satisfeito do sacerdote.
– Bem, agora toma este prato de sopa, que também te fará muito bem.
Estás fraco e necessitas recuperar a energia.
A essas palavras Pierre sentiu os olhos umedecerem.
– Lembrei-me neste momento de outro amigo que também se
preocupava comigo.
– Já sei. O velho Joachim... Conquanto não fosse cristão, era uma alma
boa e generosa. Muitas vezes conversamos e nunca deixei de admirar seu
espírito atilado e largueza de vistas.
Pierre concordou.
Ingeriram o caldo de legumes quase que em silêncio total. Ao terminar,
Pierre indagou:
– A que vieste, irmão? – e com irônico sorriso: – Não foi por certo para
arrumar minhas coisas e cozinhar para mim...
– Tens razão, meu filho.
Fez uma pausa enquanto Pierre examinava seu semblante sereno.
Quem assim falava, não obstante o chamasse de “meu filho”, era mais
velho alguns poucos anos, cinco ou seis no máximo. Teria uns trinta anos
aproximadamente. Fisionomia agradável, traços regulares e olhos serenos
e límpidos que inspiravam confiança e extravasavam bondade.
Seus gestos eram delicados e as mãos, embora de contornos
aristocráticos, estavam acostumadas ao trabalho mais rude.
Pierre nutria profunda simpatia por essa criatura que, conquanto
fazendo parte da Igreja, não se deixara contaminar pelos desregramentos
que, não raro, existiam na época.
Exercia seu ministério na pequena igreja da aldeia de Montmorency e
morava no mesmo local, em alguns poucos cômodos no fundo. Isso
quando estava no vilarejo, pois se locomovia muito, andando pelas
estradas e auxiliando aqueles mais necessitados da região.
Era com profundo amor que cuidava do seu rebanho e realizaria o
casamento de Pierre e Marianne. Não porque o noivo o desejasse, mas
porque a noiva fazia questão da bênção cristã.
– Na verdade, Pierre – prosseguiu ele –, aqui vim porque teus amigos
me avisaram que não estavas bem. Como te sentes agora?
– Como queres que esteja, irmão? Estou bem alimentado, é certo, mas
minha alma está vazia. Parece que nada tenho dentro de mim. É como se
tivessem me arrancado o coração.
– Precisas ter forças para superares as dificuldades da vida, Pierre.
Confia em Deus, que não te faltará.
– Não haverá mais casamento, meu amigo. O que faço da vida agora?
Com serena firmeza nos olhos límpidos, o religioso afirmou:
– Necessitas agora, mais do que nunca, das tuas forças e da tua
disposição de lutar. Esquece a ingrata que te não soube compreender o
coração amoroso e pensa em ti mesmo neste momento de perigo.
Ao ouvir as palavras do sacerdote, a entonação com que foram ditas,
Pierre julgou entrever algo nas entrelinhas.
– O que desejas dizer-me, frei Victor? Parece-me vislumbrar alguma
ameaça em tuas palavras.
– É certo, meu filho – confirmou o religioso. – Prepara-te para o pior.
E com tranquilidade, mas deixando perceber a preocupação no olhar
manso e nos gestos tímidos, o monge continuou:
– A perda da noiva não é algo irreparável. A da vida, sim.
E relatou a Pierre uma conversa que surpreendera entre monsenhor de
B... e um homem de sua confiança, quando tramavam atacar a propriedade
de Pierre, sob o pretexto de heresia.
Perplexo, Pierre ouvia estarrecido sem conseguir emitir o menor som.
– Heresia?! Mas, é absurdo! Baseados em quê? Considero-me cristão,
embora não frequente a missa. Não sou judeu!
– Eu sei, meu filho. Por isso, Pierre, vim a ti para suplicar que fujas
enquanto é tempo. Vai para longe, onde não te possam encontrar.
Com a fisionomia endurecida, Pierre andava de um lado para o outro,
pensando:
– Mas por quê? Por que desejam matar-me?
O religioso meneou a cabeça com enternecida tristeza:
– Quem sabe, meu filho? A ambição de certas pessoas não tem limites:
desejam teu sítio. Por isso te disse: foge enquanto é tempo. Salvarás a vida.
Resoluto, o rapaz redarguiu, raivoso:
– E deixar tudo para eles? Entregar sem luta o que me pertence por
direito? Não! Não, frei Victor, está fora de cogitação. Não sairei daqui. É
preciso achar outra solução. Mas qual?
E procurava rebuscar na mente uma saída para seu problema.
Ficaram em silêncio alguns minutos, cada qual com seus próprios
pensamentos, até que o monge falou:
– Existe uma saída. Não sei se aprovarias, mas te colocará a salvo da
violência desses homens.
– Dize, frei Victor. Qual é a solução?
– Bem, Pierre. Eles desejam tuas terras, não é assim?
Pierre concordou, interessado.
– Pois bem. Se entregares a propriedade para a Igreja e te colocares sob
a sua proteção, nada poderão fazer.
– Não sei, não me agrada, irmão, embora concorde contigo.
– Pensa bem, meu filho. E, assim, estarás tirando das mãos deles o
pretexto de que precisam para destruir-te.
Pierre riu:
– Ficarão com cara de imbecis! É, tens razão. Vale a pena, só para ver o
desapontamento deles. Está bem – falou com ar decidido –, doarei meus
haveres para a Igreja e me colocarei sob a sua proteção secular.
– Rápido, porém! Não tens tempo a perder.
O rapaz apanhou um papel, uma pena, molhou-a na tinta e escreveu um
termo de doação da propriedade.
Tudo resolvido, o sacerdote se despediu.
– Não demores, Pierre. O tempo urge.
– Sim, meu amigo. Levarei só o tempo de juntar alguns pertences mais
necessários e deixarei esta casa. Não sei como agradecer, irmão.
– Deus te abençoe, meu filho.
Após a saída do nobre religioso, Pierre ocupou o pouco tempo que lhe
restava juntando as coisas mais necessárias e importantes. Colocou num
pequeno saco de viagem algumas roupas, pegou os documentos que
possuía, o velho texto sagrado do seu querido pai Joachim e saiu fechando
a porta.
Mal teve tempo de sair de casa, ouviu o tropel de cavalos que se
aproximavam.
Lembrou-se de imediato de uma pequena gruta que existia nas
proximidades e que descobrira por acaso, encoberta pela vegetação.
Ninguém o encontraria lá, tinha certeza.
Correu até o local, que distava uns setenta metros da casa; com as mãos
desfez a intrincada rede de ramos que escondiam por completo a entrada.
Após abrigar-se convenientemente, fechou de novo o acesso para que
ninguém pudesse vê-lo.
Foi o tempo exato. Nesse momento, um destacamento de soldados dava
entrada na pequena propriedade, acolitando Charles, seu pai, o conde de
Montmorency e Drumond, Lucas, Túlio e monsenhor de B... A luz dos
archotes iluminou a pequena casa e o terreiro.
Aos berros, com um tremendo pontapé, arrombaram a frágil porta da
frente, após terem os soldados cercado a casa. Entraram fazendo
algazarra.
– Onde está o judeu? Onde se escondeu o herege?
Quebrando e derrubando tudo, percorreram a pequena moradia,
vasculhando cômodo por cômodo. Tudo vazio.
Decepcionados, não encontrando o perseguido, ficaram ainda mais
irritados e coléricos.
A presa lhes fugira. Era preciso dar-lhe caça. Por onde andaria?
O conde de Drumond ordenou aos soldados que procurassem nas
imediações. Não deveria estar longe.
Enquanto alguns soldados davam busca no mato, outros divertiam-se
em destruir a propriedade. A pobre horta tão bem traçada e
primorosamente plantada, onde as hortaliças cresciam abundantes e
viçosas sob as atenções do dono, foi totalmente destruída pelas patas dos
cavalos.
Os infelizes animais da herdade não tiveram destino diverso.
Apavorados com o barulho desusado, faziam grande alarido. As galinhas
desceram dos poleiros cacarejando assustadas, para serem trucidadas nas
mãos dos violentos homens, que as agarravam pelo pescoço esmagando-o,
às gargalhadas. As cabeças de gado não tiveram melhor sorte. À medida
que saíam do curral eram trespassadas pelas espadas assassinas. As
ovelhas também sofreram mortes cruéis. Só os cavalos foram poupados
por serem muito úteis como montaria.
De onde estava, trêmulo e em estado de pânico, Pierre acompanhava a
destruição de tudo o que lhe era caro. Desejaria ir até lá e enfrentá-los.
Mas como? Era um só e não teria condição de vitória.
Ao contrário. Agora, mais do que nunca, era preciso que se conservasse
vivo para vingar-se deles, de todos aqueles que agora queriam matá-lo, e
que só não o fizeram por não conseguirem encontrá-lo.
À luz avermelhada dos archotes, pôde distinguir os seus algozes. Viu o
conde de Drumond, Charles, o monsenhor de B..., Túlio e um outro cujo
rosto não conseguiu ver direito. Este último o intrigava. Assim, a distância,
parecera-lhe reconhecer seu irmão Lucas. Mas, não era possível. O que
estaria ele fazendo neste local? Impossível!
Voltaram os soldados que procuravam pelas matas.
– Nada encontramos, Senhor Conde. O miserável fugiu, aproveitando a
escuridão da noite. Nem sinal dele. Talvez ao raiar do dia as coisas se
tornem mais fáceis.
Antes de partir, atearam fogo na casa, que em pouco tempo ardia em
chamas.
À luz da imensa fogueira, Pierre viu Charles que dizia ao outro homem:
– Vamos embora, Lucas. Nada mais temos a fazer aqui.
Pierre se sentiu arrasado. Então era mesmo ele, seu irmão Lucas, um
dos acompanhantes daqueles homens maldosos e sanguinários?
Por quê? Como e por que estaria ele naquela região e, mais ainda,
naquele local fatídico? Que satânico acaso colocara seu irmão novamente
no seu caminho?
Sua cabeça parecia querer explodir. Os pensamentos turbilhonavam
dentro dela, e ele buscava uma resposta para suas indagações, sem
encontrá-las.
Algum tempo se passou sem que o infeliz jovem conseguisse deixar o
seu refúgio. Caindo em si, porém, decidiu que precisaria ausentar-se o
mais rápido possível do local, pois seus perseguidores poderiam voltar a
qualquer momento.
Por enquanto estava seguro. Deveriam ter ido comemorar o
acontecimento em alguma taberna.
Saiu do esconderijo com cuidado. O silêncio era total. Já não se ouviam
o pio do mocho, o cacarejar das galinhas, o balido das ovelhas e o mugido
dos bois. Os cavalos foram levados.
Aproximou-se do local da tragédia e não conteve as lágrimas. A cena
era macabra. O sangue espalhava-se por todos os lados, os corpos dos
animais mutilados cobriam o solo e a luz das chamas que já se apagavam
tornava tudo ainda mais horrível e impressionante.
Nada restava daquela que fora uma propriedade pequena, mas
próspera. Rojou-se ao solo, chorando convulsivamente.
O tempo urgia. Nada mais tendo a fazer ali, Pierre se afastou
rapidamente. Caminhou muitas léguas, sempre evitando as estradas e
caminhos mais frequentados, até que avistou o mosteiro.
À noite, a sólida construção amedrontava. O enorme edifício era todo
cercado por forte esquema de segurança. Chegando ao grande portão de
madeira, tocou a sineta, que soou lugubremente.
Tudo era silêncio.
Depois de algum tempo ouviu passos que se arrastavam no interior. O
postigo abriu-se e alguém perguntou:
– Quem vem em nome de Deus?
– Um pobre irmão necessitado de abrigo. Estou exausto.
Satisfeito com a resposta, o religioso abriu o imenso portão que gemeu
nos gonzos.
– Que desejas, irmão?
– Se for possível, desejaria falar com o superior deste mosteiro.
O monge fechou o grande portão com lúgubre ruído.
– Acompanha-me.
Arrepios gelados percorriam o corpo de Pierre. Já não sabia se fizera
bem em procurar a ajuda da Igreja.
Poderia ter fugido para bem longe e iniciar vida nova. Já não fizera isso
antes? Agora, porém, era tarde, não tinha mais como voltar atrás.
Percorreram corredores e mais corredores desertos. À luz do archote,
percebia muitas portas, todas fechadas. Após muito caminharem, o monge
estacou em frente a uma dessas portas e, abrindo-a, fez-lhe sinal para que
entrasse.
– Aguarda aqui – disse, acendendo um archote que se encontrava na
parede.
Sozinho naquela sala, Pierre se pôs a examiná-la. Era um aposento
comum, possuindo um grande armário, uma secretária e cadeiras. Sentou-
se numa delas e aguardou.
Alguns minutos depois deu entrada por outra porta, que ainda não
notara, um religioso.
Fisionomia tranquila, impassível, o estranho fitou-o, procurando
analisar o homem que se encontrava à sua frente e que buscara o mosteiro
àquela hora da noite.
Afinal, acomodou-se na cadeira que existia atrás da mesa e perguntou-
lhe, calmo:
– O que desejas, meu filho, a estas horas da noite?
– Busco refúgio, reverendo Abade.
Por alguma razão, achou melhor não contar a verdade ao religioso.
Prosseguiu:
– Desejo dedicar-me à religião. Tive um desgosto muito grande ao ser
preterido pela mulher amada e resolvi dedicar-me a Deus.
– Sábia decisão, meu filho. Tens certeza de que é isso o que desejas? –
perguntou o prior.
– Sim, meu pai. A prova disso é que ainda hoje à tarde lavrei um termo
de doação revertendo em favor da Igreja, mais precisamente deste
mosteiro, a minha propriedade, com tudo o que contém.
Retirou do saco o documento e passou para as mãos do prior, que o
analisou, satisfeito.
– Muito bem, meu filho. Ficarás conosco durante algum tempo como
noviço e, depois, se realmente aqui desejares permanecer, farás os votos.
Aqui morre o homem que és. Nada do que foste é importante agora. Serás
apenas mais um irmão. Mandarei que preparem uma cela para ti. Amanhã,
após uma boa noite de sono, te inteirarás de nossas regras. Boa noite e que
o Senhor te abençoe!
Após despedir-se, saiu por onde entrara. Em seguida um monge veio
buscá-lo para conduzi-lo àqueles que seriam, doravante, seus aposentos.
***
O silêncio era total. De longe em longe ouvia-se o ruído de um pássaro
noturno. Nada quebrava a quietude e o silêncio sepulcral.
Novamente um arrepio lhe percorreu o corpo. Tinha a sensação de
estar enterrado em vida.
Procurou dominar-se. Tomou da vela que o monge acendera e pôs-se a
examinar a cela. Era um cômodo pequeno e continha o estritamente
necessário. Um leito simples, sem atavios, mas com roupas limpas e um
cobertor; um baú, a um canto do aposento, para colocar os poucos
pertences; uma pequena mesa de cabeceira, contendo um exemplar do
texto sagrado, e uma cadeira completavam o mobiliário. Na parede, um
crucifixo com a imagem do Cristo em seus últimos momentos. O olhar do
Divino Mestre elevava-se ao Alto como se estivesse a conversar com o Pai
e dizendo-Lhe: “Perdoai-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem”.
Suspirou profundamente. Como sua vida mudara tanto em tão pouco
tempo? Que armadilha do destino o transformara de noivo feliz em um
noviço? Que poderia justificar essa mudança tão brusca e tão indesejável?
Sentia como se estivesse amarrado e sendo obrigado a realizar coisas
contra a sua vontade. Parecia preso a um visgo: quanto mais lutava para
dele se soltar, mais ele o prendia.
Sentou-se no leito, desalentado. Um cansaço muito grande o envolveu
de repente. Parecia estar no limite de suas forças.
Deitou-se tentando meditar. O silêncio parecia sufocá-lo. Apavorado, no
escuro, à sua mente voltavam lembranças antigas. Por que sua vida
sempre foi tão difícil? Fora enjeitado pela própria mãe ao nascer. Depois,
quando acreditava possuir um lar, uma família, viu-se expulso do convívio
dos que mais amava. Sozinho no mundo, tivera a felicidade de conhecer o
velho judeu Joachim, que foi um verdadeiro pai para ele, mas que Deus
tirou do seu caminho pelas portas da morte. Mais tarde, quando
encontrou Marianne, julgou ter finalmente descoberto a felicidade, e seria
realmente um homem feliz se não a houvessem arrancado de seus braços
e destruído seus haveres. Agora... agora nada mais possuía e, para sua
suprema desventura, encontrava-se numa outra prisão.
Mas, teria que transformar suas desvantagens em vitórias. Usar os
recursos que possuía para lutar e vencer. Conquanto não nutrisse especial
simpatia pela Igreja, seria doravante protegido por ela. Sabia que os
braços seculares eram longos e inflexíveis – ouvira histórias a esse
respeito –, que alcançavam o que se desejasse, onde quer que se
escondesse. Ótimo! Usaria então dos recursos que lhe estavam sendo
colocados nas mãos. Vingar-se-ia de cada um deles, custasse o que
custasse. Estabeleceria um plano de ação depois de estudar as
possibilidades.
Mais tranquilo após essa resolução, aos poucos foi entregando-se às
asas do sono.
Algum tempo depois, não saberia precisar quanto, viu-se num lugar
diferente. Suave neblina envolvia todas as coisas e ele se sentia bem e
satisfeito.
Lentamente viu formar-se à sua frente o vulto de um ancião de barbas
brancas e olhar dúlcido. Leve sorriso pairava em seus lábios e toda a sua
figura irradiava luminosidade opalina.
Sua destra pousou suavemente sobre a cabeça de Pierre, que não
conteve a emoção. Onde já teria conhecido este ser celestial? Onde já vira
estes olhos claros e meigos, o sorriso carinhoso?
Incapaz de controlar a emotividade, jogou-se de joelhos a chorar
convulsivamente.
Com voz serena e de tonalidade inconfundível, a entidade lhe falou:
“Não chores, meu filho. Temos que regozijar-nos diante da misericórdia
infinita do Pai, que permitiu pudéssemos conversar nesta oportunidade.
“Tem coragem! Nada acontece por acaso na Casa do Pai. Sei que tens
sofrido muito e tenho acompanhado tuas desventuras. Mas, é preciso que
te submetas à vontade do Altíssimo como condição de resgatares teus
compromissos do passado.
“No pretérito usaste e abusaste do poder espezinhando a todos que se
encontravam no teu caminho. Hoje, sofres as consequências do mal que
praticaste.
“Não te desesperes. Aceita os desígnios de Deus e resigna-te à Sua
vontade soberana como único caminho de regeneração e paz. Só assim
terás felicidade algum dia.
“Não lamentes o que perdeste. Segue adiante servindo a Jesus na pessoa
dos mais necessitados. Dignifica, com tuas atitudes, o hábito que irás
vestir. Acrescenta-lhe respeito e honradez e serás abençoado.
“Os seres a quem prejudicaste no passado surgem na atualidade
atravessando o teu caminho para as devidas reparações. Não
comprometas teu futuro espiritual com novos compromissos, com novas
quedas morais. Estás num ambiente consagrado à oração. Procura manter
o pensamento em prece e o auxílio de mais Alto se fará com mais
facilidade.
“Sobretudo, meu filho, olvida as ideias de vingança que te encharcam o
coração de fel. Esquece mágoas e dissabores, tristeza e decepções, para te
lembrares que, acima de tudo, existe Deus, que a tudo dirige com
sabedoria infinita e não está alheio às nossas dores. Que Jesus te abençoe e
te conserve em Sua santa paz!”
Incapaz de falar, Pierre ouviu de cabeça baixa, sentindo felicidade
inefável com a presença do celeste amigo. Aos poucos a claridade foi
desaparecendo e logo não viu mais nada. Abrindo os olhos encontrou a
realidade da sua cela escura.
Branda sensação de paz o envolveu e adormeceu afinal,
tranquilamente.
Neste dia desapareceu Pierre para sempre, enterrado num mosteiro.
Em seu lugar surgiu o irmão Felipe.
Segunda Parte
Capítulo I - O mosteiro

Ainda estava escuro quando irmão Felipe abriu os olhos. Fitou a alta
ogiva que deixava escoar ligeira claridade da madrugada. Tudo era
silêncio dentro do convento. Logo tocaria a sineta avisando a todos que
era hora de despertar.
Fazia frio. O inverno se aproximava e com ele a temperatura baixava,
tornando os dias mais tristes e monótonos.
Felipe suspirou. Ajeitou o cobertor aproveitando o resto dos minutos de
que dispunha.
Quanto tempo fazia que estava ali? Há quase três anos entrara nesse
mosteiro para não mais deixá-lo. Rebuscava na memória tudo o que se
passara desde então.
Ao perceber que foram logrados, seus perseguidores não contiveram a
cólera, mas nada mais puderam fazer. Pierre sumira sem deixar rastros.
Ao descobrir que a propriedade agora era do mosteiro, monsenhor de
B... buscou o diálogo com o prior, mas este apenas lhe exibiu o documento
assinado por Pierre doando tudo para a Igreja, e o religioso teve que dar-se
por satisfeito. Quanto ao destino de Pierre, o prior nada confidenciou, e
como monsenhor de B... nunca tivesse se encontrado com ele, nada ficou
sabendo sobre o seu paradeiro, conquanto desconfiasse que Pierre
estivesse dentro do próprio convento. A partir do momento em que lá
entrou, morreu sua personalidade antiga, sepultada para sempre. Agora,
apenas frei Felipe existia e ele estava perdido no anonimato entre a
multidão dos outros religiosos.
O conde de Montmorency e Drumond ficou realmente furioso porque
lhe escapou das mãos, definitivamente, a oportunidade de anexar a
herdade aos seus vastos domínios.
Charles, frustrado, desejava mover céus e terras para descobrir o
esconderijo de Pierre.
Quando alguém buscava o refúgio na Igreja e decidia abandonar o
mundo para se dedicar à vida religiosa era mantido rigoroso sigilo, se
assim o desejasse o futuro frade. Por isso, tanto quanto monsenhor de B...,
também Charles, embora tentasse descobrir onde se localizara ou se
escondera Pierre, esbarrava sempre com uma dificuldade enorme.
Ninguém sabia informar nada, nem seus amigos, vizinhos ou conhecidos.
Lucas não se preocupava com isso. Para ele era suficiente ter afastado
um rival. Agora, era preciso lutar para desfazer esse compromisso que
ameaçava destruir-lhe a felicidade.
Por outro lado, já se impacientava o duque de Bouillon com a demora
em marcar o casamento. A instâncias de seu pai, que estava com o
patrimônio ameaçado e contava com essa união para resolver seus
problemas financeiros mais prementes, Lucas não sabia o que fazer. Tinha
esperanças ainda de poder atrapalhar o romance de Charles com
Marianne e aí fugiriam juntos. Não lhe importava levar vida mais humilde,
desde que fosse ao lado dela.
Irmão Felipe ficava sabendo das ocorrências através das visitas de frei
Victor que, não obstante pertencesse ao mosteiro, passava grande parte
do tempo na igreja da aldeia, onde muitas vezes pernoitava, quando se
fazia tarde para retornar ao convento. No fundo da igreja ficavam suas
acomodações.
Por Victor, ficara sabendo que Charles e Marianne se casaram. Também
Lucas se casou com Régine após perder todas as esperanças, resolvendo de
uma vez por todas o problema da família.
Desiludido, já não tendo mais estímulo para lutar, Pierre tomou ordens,
definitivamente passando a ser frei Felipe.
Uma amargura muito grande se instalou em seu íntimo, a par de um
terrível desejo de vingança. Detestava a vida monástica, jamais sonhara
ser religioso e era com rancor feroz que executava suas tarefas e deveres
sacerdotais.
Ajoelhava-se com fingida humildade, e, enquanto seus lábios proferiam
automaticamente as orações, agarrado ao rosário, seus pensamentos eram
tumultuados e confusos. Repetia para si mesmo frases de vingança
alimentando o ódio em seu coração.
No início procurou manter a calma, ainda sentindo a influência
benéfica da primeira noite que passara sob o teto conventual, quando
recebera a visita de um “mensageiro celeste”, como pensava. As vibrações
amoráveis ficaram indelevelmente gravadas em suas lembranças mais
caras, como bênção de luz e paz no entrechoque das paixões. Mas, com o
passar do tempo, aos poucos essa influência benfazeja foi diluindo-se; o
dia a dia monótono do mosteiro, a vida sem atrativos e sem esperanças
fizeram com que ele se transformasse num ser amargo e revoltado.
Seus momentos mais tranquilos eram no campo, onde, ao trabalhar a
enxada, dava golpes na terra com furor, descarregando parte da energia
acumulada e do rancor concentrado, pois, caso contrário, poderiam até
comprometer-lhe a saúde física.
Voltava cansado dos labores no campo, mas sereno e menos amargo.
As horas que passava na biblioteca do mosteiro também eram
produtivas. Aprendera a ler e a escrever, fora educado por mestres
competentes, mas, após ser expulso do lar, nunca mais pudera dedicar-se
à leitura, salvo folhear o velho e surrado texto sagrado de Joachim.
Mas agora era diferente. Mesmo em seu castelo, ou melhor, no castelo
em que passara sua infância e parte da mocidade, não havia muitos livros.
O conde de Montpellier não era muito afeiçoado à educação e à cultura,
interessando-se preferencialmente por atividades mais violentas, como a
guerra.
Na biblioteca do mosteiro, porém, havia um tesouro em obras clássicas,
científicas, filosóficas e tudo o que era conhecido então. Grossos
compêndios sobre medicina, ocultismo, alquimia e muitos outros
assuntos.
Irmão Felipe passava horas esquecido de tudo, a compilar livros e mais
livros, debruçado sobre teorias e sistemas.
Um monge passou tocando a sineta. Eram quatro horas da manhã.
Levantou-se, vestiu-se e deixou a cela, caminhando pelos imensos
corredores onde outros monges, em silêncio, vinham unir-se a ele rumo à
capela.
Após os deveres religiosos dirigiram-se, sempre em silêncio, para o
refeitório e tomaram a primeira refeição do dia, muito simples, composta
de uma caneca de leite, pão e mel.
Depois foram para o campo, dedicando-se à lavoura até às nove horas.
Ao voltar, lavaram-se e foram para o refeitório almoçar. Após o almoço,
tiveram algumas horas de folga, quando Felipe aproveitou para ir à
biblioteca.
Victor chegou para visitá-lo. Felipe ficou contente em rever o amigo
depois de tantos dias sem se verem. Estimava de fato esse religioso, que
diferia em tudo dos demais.
Profundamente bom, frei Victor amava realmente o seu próximo,
procurando fazer o bem a todas as criaturas. Sabia compreender o
problema do seu semelhante e jamais se ouviu que se queixasse de coisa
alguma ou falasse mal de alguém.
Felipe sentia verdadeira veneração por ele e era sempre com agrado
que recebia sua visita. Só com Victor ele conversava, e nesses momentos,
raros por sinal, dedicavam-se a um diálogo franco e sincero, debatiam
problemas sociais e discutiam religião.
Com ninguém mais Felipe usava da franqueza que o caracterizava.
Ninguém gozava da sua confiança e ele sabia que, naquele ambiente, era
preciso sempre estar alerta.
Victor o conhecia profundamente, razão por que Felipe podia
perguntar por todos os que deixara para trás, especialmente Marianne.
– Como vai ela? – foi sua primeira pergunta.
– A Senhora Condessa vai muito bem, pelo que tenho ouvido dizer. Leva
vida tranquila ao lado do marido e nada lhe falta. É o que se comenta na
aldeia.
Felipe suspirou, baixando a cabeça. Sabia que o amigo e confidente não
aprovava seu interesse por Marianne, agora condessa de Montmorency.
– Felipe, meu amigo, procura olvidar o passado. Tens uma vida nova
pela frente e ela poderá ser muito rica em realizações.
Com azedume, Felipe retrucou:
– Onde? Aqui? Dentro destas paredes sombrias? Há momentos em que
sinto que vou enlouquecer, meu irmão.
E o infeliz rapaz, com os braços apoiados nos joelhos, apertava a cabeça
com as mãos como se quisesse esmagá-la. Fez uma pausa e continuou:
– Ah! meu amigo. Não sabes como é difícil desejar o céu e receber o
inferno; desejar a felicidade, o amor, a vida enfim, e obter a morte, o
sepulcro, o aniquilamento de todos os sonhos. Perco as noites pensando
nela. Como estará? Com certeza nos braços “dele” fruirá as venturas do
amor; ele verá seu sorriso, ouvirá sua voz, sentirá suas carícias... Ah! meu
amigo, tu que és uma alma pura, que desconheces os torvelinhos do amor
e do sofrimento, não poderás compreender-me. Não me peças para
esquecer. Por ironia do destino, que me reservou um futuro cruel e
solitário, aqui estou, mas não me peças para esquecer. Eu não conseguiria
jamais.
Victor colocou a destra sobre a perna de Felipe tentando de alguma
forma dar-lhe forças. Sua voz soou profundamente emotiva:
– Não fales de coisas que não sabes, meu amigo. Não me acredites puro
e bom porque não o sou. Sou um homem também em luta com suas
tendências inferiores. Confia em Deus, Felipe, que Ele te socorrerá nos
momentos mais difíceis. Não te revoltes, nem blasfemes contra a Divina
Providência, que deve ter tido Suas razões para assim modificar tua vida.
Aproveita o tempo que tens para aprimorar a alma, ser imortal e que
sobreviverá ao corpo putrescível. Se não consegues esquecer o ente
amado que te abandonou, procura ver nele a irmã necessitada de atenção
e carinho. Modifica e apura os sentimentos, transformando-os no amor
fraternal que devemos a todas as criaturas. Vê nela a irmã menor e,
mesmo de longe, procura ampará-la com tua assistência de servo de Deus.
Fez uma pausa e, analisando o efeito de suas palavras no amigo,
concluiu:
– A verdade, meu irmão, é que somos todos “aves sem ninho” em
busca do refúgio e aconchego que só o nosso Mestre Jesus pode nos
ofertar. Aproxima-te d’Ele, Felipe. Deixa que as mensagens de amor e paz
do Divino Pastor de nossas almas entrem em teu coração. Colocaste uma
couraça protegendo-te o íntimo e nada consegue penetrar. És um
religioso, sem seres religioso. Tens uma religião, mas não religiosidade.
Busca modificar-te, meu amigo, abrindo-te para a vida e para o
semelhante, pois só assim serás feliz.
Victor calou-se, mas o seu timbre de voz suave ecoava ainda entre as
quatro paredes nuas daquela pequena cela.
Após uma nova pausa, ele prosseguiu em outro tom:
– Na verdade, vim para comunicar-te que, a partir de agora, passo a ser
o responsável pela assistência espiritual do castelo de Montmorency e
confessor oficial da Senhora Condessa.
Felipe, que se mantinha cabisbaixo, remoendo intimamente as palavras
que ouvira, levantou a fronte fitando-o surpreso, com uma muda
indagação no olhar.
– É verdade! – confirmou Victor. – O velho frei Damião, que exercia
essas funções, faleceu e fui designado pelo prior para atendê-las.
Com voz sumida, Felipe murmurou:
– Poderás vê-la quando quiseres, falar com ela, saber seus mais íntimos
pensamentos, receber suas confidências. Ah! mas é a suprema ventura!
– Não para mim, meu amigo – respondeu com serena tranquilidade.
– Sim, eu sei. Oh! como gostaria de estar no teu lugar. Por que não
posso “eu” estar no teu lugar? Deixa-me falar com o prior e tentarei
modificar suas resoluções.
Com tristeza Victor retrucou:
– Sabia que reagirias dessa maneira – e, mais incisivo, falou enérgico: –
Não entendes que não podes aproximar-te daquela casa? Que não poderias
exercer a função de confessor, justamente pelo sentimento que te domina
o coração e a mente? Procura, antes, modificar tuas disposições íntimas a
esse respeito e, quem sabe, um dia estarás habilitado para enfrentar a
situação como o servo de Deus que agora és.
Felipe fitava-o atentamente enquanto falava e percebeu que não
deveria expor seus sentimentos, se quisesse obter algo. Imediatamente
mudou de expressão:
– Tens razão, meu amigo. Seria insensato se pensasse de outra forma.
Sim, eu sei que devo purificar meus sentimentos e transformá-los em algo
mais duradouro e mais profundo. Quem sabe ela, algum dia, venha a ser a
irmã que nunca tive? Não me culpes, nem te agastes comigo por isso. Vou
tentar seriamente me modificar. Para mim seria uma bênção poder estar
ao lado dela, nem que fosse por um momento e nem que fosse como uma
irmã.
Victor sorriu ao ver as boas disposições do amigo. Levantou-se em
seguida.
– Tenho que deixar-te agora. Minhas ocupações exigem que vá até a
aldeia. Fica com Deus, meu irmão.
– Vai em paz e que o Senhor te abençoe, irmão Victor!
Capítulo II - Frei Victor

Caminhando por entre as árvores, ao som cadenciado das patas do seu


cavalo, Victor vislumbrou as torres do castelo de Montmorency ao longe.
O sol estava forte e inclemente e o suor corria em bicas sob o burel.
Faltavam poucos minutos para as onze horas da manhã quando deu
entrada no amplo salão, onde estava a família reunida.
Com muita gentileza, o dono da casa foi ao seu encontro dizendo-lhe
amavelmente:
– Sede bem-vindo! Nós vos esperávamos, frei Victor, com muita
ansiedade. Vinde conhecer os outros membros da nossa família e que
serão vossos pupilos de hoje em diante.
A condessa Clarissa beijou-lhe a destra estendida com palavras de boas-
vindas.
Com a serena tranquilidade que lhe caracterizava a maneira de ser, o
frade agradeceu, afirmando-lhe em voz pausada e grave:
– Lamento, Senhora, que ficásseis privada do convívio do vosso
confessor e amigo de tantos anos.
– É verdade, reverendo Frade – respondeu a condessa, enxugando
discretamente uma lágrima com um pequeno lenço perfumado, à menção
feita ao falecido frei Damião.
Marianne também se aproximou, osculando a mão do religioso e
pedindo sua bênção.
Ao erguer os olhos encontrou os do sacerdote pousados nela e, sem
saber por que, estremeceu. A doçura, a confiança e a paz que esse olhar
transmitia a tocaram. Procurou vencer a emoção, para que ninguém
notasse como ele a impressionara.
Após as apresentações, encaminharam-se para o salão de refeições.
O conde, bem disposto e excepcionalmente bem-humorado nesse dia,
disse-lhe com sorriso nos lábios:
– Confesso, reverendo Frade, que esperava alguém mais velho e
experiente para ocupar o posto deixado pelo nosso bom frei Damião.
– A idade não é sinônimo de competência, Senhor Conde. Se desejais,
porém, solicitarei ao nosso prior que envie alguém mais adequado às
vossas necessidades – respondeu Victor com serenidade.
– Não me leveis a mal, frei Victor. Se o reverendíssimo abade vos
enviou para esta casa é porque vos julga digno da função que ides
desempenhar – retrucou rapidamente o conde. – Apenas vos julgava mais
idoso. Já ouvi referências sobre vossa pessoa e sobre o trabalho que
executais junto ao povo, e preciso dizer que todos vos admiram muito. O
povo vos respeita e estima.
– Por bondade, certamente. Não tenho feito mais do que cumprir com
meu dever.
A condessa Clarissa inquiriu, curiosa:
– E o que fazeis, exatamente, Frade?
– Tenho procurado ajudar o povo, que sofre por falta de condições
adequadas de vida. As pessoas adoecem com facilidade e busco orientá-las
na maneira de agir.
– E tendes obtido resultados? São todos tão ignorantes! – falou a dama,
com afetação.
– As dificuldades são muitas – explicou o religioso –, mas tenho
procurado contornar os obstáculos; apesar de lentos, os resultados vão
surgindo. Não devemos, porém, preocupar-nos com a colheita. Em
qualquer semeadura os resultados são de Jesus.
Discretamente, Marianne o observava. Às vezes seus olhares se
cruzavam e ela recebia como que um choque. Procurava conter-se, sem
saber a que atribuir os sentimentos que a agitavam intimamente. Um
bem-estar muito grande a dominava por inteiro, uma euforia, uma
satisfação que não sabia explicar. Tinha desejos de rir sozinha.
Por que tudo isso? Por que, desde o momento em que aquele humilde,
tranquilo e bom frade cruzara aquela porta, tudo se modificara? Onde já
teria ouvido aquele timbre de voz que lhe parecia tão querido e familiar? E
aqueles olhos serenos e pensativos que irradiavam tanta paz interior,
onde já os teria visto?
Debalde procurava nos arcanos da memória, sem conseguir descobrir.
Após o repasto, encaminharam-se para outro aposento. Nesse momento
uma criada entrou conduzindo pela mão uma bela criança de dois anos de
idade. Seus cabelos encaracolados tinham o brilho do sol, as faces coradas
irradiavam saúde e o riso argentino ecoou pelas amplas e vetustas paredes
do castelo.
Ao ver a mãe, correu ao seu encontro, jogando-se nos braços maternos
e gritando:
– Mamãe... mamãe... comi tudo e a Rita não quer deixar Augusto brincar
– foi sua reclamação dita aos poucos.
– Meu filho – disse-lhe Marianne – agora é preciso repousar um pouco.
Obedece à Rita e pede a bênção ao frei Victor.
O garoto, embora a contragosto, concordou com a ordem. Aproximou-
se do religioso e, quando ia beijar-lhe a mão, olhou-o, lançando-se-lhe ao
pescoço.
O frade, emocionado, apertou-o de encontro ao coração. Depois, o
pequeno Augusto falou com seu jeitinho infantil:
– Depois nós vamos brincar?
– Vamos! Depois que dormires um pouco, como a mamãe mandou.
A criança docilmente desceu do colo do frade e despediu-se dos avós e
da mãe, acompanhando a ama.
Marianne também, dentro de pouco tempo, pediu permissão para
retirar-se, alegando afazeres urgentes. Na verdade desejava ficar só. Subiu
as amplas escadarias quase a correr. Já nos seus aposentos, jogou-se numa
poltrona, que mantinha defronte a uma janela, onde gostava de sentar-se
para apreciar o panorama que se descortinava ao longe.
Desse lado do castelo a elevação do terreno permitia, nos dias bem
limpos, uma vista magnífica: um rio que serpenteava pela planície e duas
pequenas aldeias que o ladeavam. O verde da vegetação, como pano de
fundo, realçava o branco das pequenas casas. Camponeses arando a terra,
preparando o solo para receber as sementes; animais pastando e o
caminho que levava ao mosteiro recortava o chão como uma fita escura e
sinuosa.
Perdida em seus pensamentos Marianne não via o tempo passar. A
figura esguia e elegante do novo confessor não lhe saía da cabeça. Revia
seu rosto, jovem e belo, o olhar manso e doce, os gestos delicados, a
entonação da voz agradável a seus ouvidos.
Não se lembrava de ter sentido o que sentia agora. Por que um
sacerdote haveria de provocar nela tal reação? Qual a razão de sentir
como se estivesse reencontrando alguém muito querido e que há muito
tempo não via? Não! Não podia ser! Que coisa mais absurda! Teria alguém
notado a sua perturbação?
Nesse momento a porta se abriu dando passagem a Charles.
– Ah! és tu? – disse, virando-se.
– Claro! Quem esperavas que fosse? – respondeu com grosseria.
– Como foste de viagem? Parece que não muito bem, a julgar pelo teu
humor.
– Ao contrário, tudo correu esplendidamente bem. Conseguimos
realizar o que havíamos planejado.
– Então, por que o mau humor?
– Fiquei aborrecido por ver-te a fitar o horizonte. Estás vigiando a
estrada, por quê? Esperas alguém?
Marianne levantou-se esfregando as mãos nervosamente.
– Por que me insultas? Sabes muito bem que não estamos esperando
visitas. Apenas repousava um pouco após a refeição. É só.
– Ah! Pensei que aguardasses alguém – fez uma pausa e completou, com
voz compassada: – Lucas, por exemplo.
Com os olhos expelindo chamas, Marianne retrucou, colérica:
– Como ousas? Como podes insultar a mim, tua esposa, com tais
pensamentos?
Charles riu ironicamente, jogando-se em uma poltrona.
Marianne fitou o marido. As marcas do cansaço eram visíveis em seus
traços. Pequenas rugas de preocupação começavam a surgir na testa.
Enterneceu-se. Ajoelhou-se no chão, ao lado da poltrona em que ele se
sentara, e, abraçando-lhe os joelhos, falou-lhe com carinho:
– Charles, meu querido esposo. O que se passa contigo? Por que
mudaste tanto? Já não és mais aquele homem apaixonado com quem me
casei. Por que duvidas da minha sinceridade e do meu amor? Tens ciúmes
de Lucas, mas sabes perfeitamente que foi a ti que escolhi. Se quisesse
casar-me com o conde de Montpellier, sabes que o teria feito! Por que
agora procuras inculpar-me de coisas que não sei?
– Poderias estar arrependida de teres casado comigo.
– Não, meu amor! Mil vezes, não! Éramos tão felizes quando nos
casamos! Agora temos um lindo filhinho que veio enriquecer ainda mais
nosso lar. Por que não és feliz?
– Não sei, Marianne. Na verdade, não sei. E tu, és feliz? – perguntou a
fitá-la intensamente.
– Por que não seria? Tenho tudo o que uma mulher pode desejar. Um
marido bom, um filho adorável, riqueza, posição. Que mais poderia
desejar? – perguntou novamente.
– Nada te falta?
– Nada!
– Então, por que, vezes sem conta, te vejo perdida no vazio a fitar sabe
Deus o quê?
– Também não sei, Charles. Como posso te explicar o que não tem
explicação para mim? Apenas gosto de fitar a paisagem ao longe, o
mosteiro se recortando no céu azul, os camponeses trabalhando...
Charles pareceu esquecer subitamente suas preocupações.
– Por falar em mosteiro, viste o nosso novo sacerdote?
– Sim. Ele almoçou conosco.
– O que achaste dele?
– Uma boa pessoa.
– Achei-o muito jovem.
– É. Teu pai também disse a mesma coisa. Mas frei Victor é pessoa
muito estimada na região.
Charles pareceu desinteressar-se pelo assunto. Aliás, essa era uma
característica sua: nunca se detinha muito tempo num mesmo tema.
– Bem, devo agora conversar com meu pai e fazê-lo ciente do resultado
da nossa viagem – disse, levantando-se.
Marianne também se levantou e, após a saída do marido, voltou à sua
poltrona preferida defronte à janela, pensativa.
Na verdade, seria feliz realmente? Sentira sempre um grande carinho
por Charles e gratidão por tudo o que ele lhe proporcionara na vida. Mas
seria isso amor? Houve um tempo em que realmente julgara amá-lo e se
esforçara bastante para que isso acontecesse. Com o passar dos anos,
porém, o sentimento foi modificando-se e ficou um carinho muito grande,
como irmão, como amigo. Mas seria isso amor?
Capítulo III - Quando o amor chega

Dentro de pouco tempo o castelo estava completamente mudado. O


ambiente já não era o mesmo. Um clima de paz e harmonia parecia
envolver a todos como se uma aragem benéfica estivesse constantemente
soprando.
A personalidade de Victor, profundamente marcante, exercia
influência em tudo e em todos. A bondade, o otimismo e a fé que dele
extravasavam contagiavam os habitantes do castelo. Era incansável no
socorro aos necessitados, nas suas horas de folga naturalmente. Era
sempre a palavra do bom senso, do equilíbrio e da conciliação nos
momentos difíceis. Fosse quem fosse, servo ou senhor, recebia sempre a
sua atenção e carinho. Em pouco tempo todos o conheciam e estimavam.
O pequeno Augusto sentia verdadeira adoração por ele e
constantemente exigia sua presença, contando-lhe suas pequenas
travessuras, convidando-o a passear ou reclamando de algo.
Marianne, sorridente, dizia ao pequeno para não perturbar o frei
Victor, sempre tão ocupado; mas o religioso, com o olhar sereno,
tranquilizava-a assegurando-lhe que era um prazer estar com o garoto.
– Não há nada mais belo e puro do que uma criança. Nela nada é
artificial, por isso Nosso Senhor Jesus Cristo tomou-a como exemplo de
pureza e simplicidade.
– Sem dúvida – concordou a jovem senhora. – Na criança não existe
hipocrisia, maldade ou mentira... Se ela não gosta de alguém, não faz
segredo disso; mas também se ama alguém, demonstra sem receio.
Sua voz soou um tanto amarga, com laivos de tristeza, que Victor,
conhecedor da alma humana, não pôde deixar de notar.
– Minha filha, se tens algum problema não deixes de me procurar.
Sabes que só desejo ajudar e muitas vezes o fato de abrirmos o coração é
suficiente para suavizar nossas dores. Independentemente de ser um
servo de Deus, sou um amigo. Lembra-te disso.
– Eu sei, frade – disse, fitando-o com os olhos úmidos. – Mas,
infelizmente, ninguém pode me ajudar.
– Nem Jesus?! – perguntou com serenidade. – Senhora, nosso Mestre é
nosso Amigo Maior. Confia-te a Ele e ora muito.
– Sim, irmão. Temo que a minha fé não seja muito grande, nem muito
forte.
– Que Deus te ajude a suportar tua cruz. Quando precisares do amigo ou
do sacerdote, sabes onde me encontrar.
Marianne agradeceu e se afastou. Victor, cabisbaixo, ficou a meditar no
que acabaram de conversar, acompanhando-a com o olhar.
O que estaria acontecendo com ela? Notava-a estranha, muitas vezes
parecia febril, atormentada. As brigas com o jovem conde se tornaram
mais frequentes e não raro ele, Victor, teve que acalmar os ânimos. Como
consequência, Charles já não parava mais em casa, saindo amiúde para
divertir-se com os amigos, voltando sempre alta madrugada.
Marianne suportava a situação calada, sem uma queixa e,
invariavelmente sozinha, dedicava-se cada vez mais ao filho, que a
adorava.
Certa noite de estio, em que a temperatura se fazia quente e o ar
abafado, não conseguindo adormecer, Victor saiu para um passeio nos
jardins.
Lá fora o ar da noite estava fresco, tangido por suave brisa, e o perfume
das flores evolava balsamizando o ambiente.
Victor respirou profundamente o ar puro com satisfação. Andou um
pouco pelas alamedas, quando ouviu ligeiro ruído ali perto. Aproximou-se
e percebeu que uma outra pessoa tivera a mesma ideia que ele. Ao chegar-
se mais, não obstante a única claridade fosse a das estrelas do firmamento,
reconheceu Marianne que, absorta, contemplava o céu.
Ligeiro estalido de um galho que se quebrava à sua passagem fez com
que ela se voltasse, assustada. Levou as mãos ao peito, prendendo a
respiração.
Incontinenti, Victor identificou-se:
– Não pretendia assustar-te, Senhora. Desculpa-me.
Ao reconhecê-lo um ar de alívio lhe atenuou as feições infantis.
– Também não conseguiste adormecer, frei Victor?
– É verdade! Pudera, a beleza da noite é um convite à meditação e ao
sonho.
Curiosa, ela indagou:
– Também sonhas?
– Por que não? Sou um homem como os outros, com imperfeições e
dificuldades idênticas. Nós, os religiosos, não somos um produto à parte da
criação.
– Curioso! Mas nunca pensamos num sacerdote como uma pessoa igual
a nós – disse ela, rindo.
– Sei disso, o que coloca em nossos ombros um fardo maior ainda,
porque muitas vezes temos de parecer o que não somos.
Percebendo uma ponta de melancolia na voz do religioso, Marianne
indagou:
– Por que escolheste esta vida, irmão? Tinhas realmente vocação para o
celibato? Desculpa-me perguntar, mas tenho procurado observar-te e
noto que gostas tanto de crianças que seria de esperar que desejasses
casar, ter teus próprios filhos. Nunca pensaste nisso?
– Sim, claro que pensei. Mas, enquanto era livre nunca surgiu a mulher
que me fizesse bater o coração mais fortemente. E, depois, as
circunstâncias de família me obrigaram a tomar o hábito.
– Não foi por tua vontade, então?
– Não. Fui obrigado a professar. Como tantos outros, meus pais, muito
religiosos, fizeram votos de entregar seu primogênito a Deus. Porém, não
penses que estou me queixando. Não, sou feliz assim. Sempre fui crente
fervoroso em Deus e se Ele quis assim conduzir-me, que seja feita a Sua
vontade. Esta é apenas uma maneira de servi-Lo. Faço então o que posso
para ajudar meu semelhante.
Marianne suspirou:
– Ah! irmão, como gostaria de ter essa confiança em Deus que
demonstras a todo instante. Como invejo a paz que desfrutas! – sua voz
soou melancólica, conquanto um ligeiro sorriso aflorasse em seus lábios.
Ele tomou da pequena mão, comprimindo-a entre as suas, enquanto lhe
dizia:
– Não me invejes! Oh! Senhora, invejas um proscrito que atravessa a
vida solitário? Não sabes a luta que tenho precisado sustentar comigo
mesmo. A paz que desfruto é produto de uma consciência tranquila, não
obstante seja ela muito mais aparência do que realidade. Tenho, porém,
convicções profundamente arraigadas e que modificam minha maneira de
agir e de pensar.
– És uma criatura realmente diferente das outras que tenho conhecido.
Duvidas, frei Victor?
– Não, creio em um Deus Todo-Poderoso que é Pai, acima de tudo – e
seus olhos límpidos a fitaram com serenidade.
Fez uma pausa e, olhando o céu onde miríades de estrelas luziam
emitindo pálida luz, continuou com a voz repassada de ternura:
– Vê esses pontos luminosos incrustados no firmamento. Algo me diz,
em meu templo íntimo, que são outros tantos mundos onde criaturas
como nós lutam com as próprias imperfeições a caminho da redenção.
Com assombro ela retrucou:
– Deveras? Seria crível que fosse realmente verdade?
– Sim, não tenho dúvidas a esse respeito. A magnificência do Criador,
Sua sabedoria infinita, Sua misericórdia me levam a assim pensar. Temos o
péssimo hábito de considerar como a Casa do Pai o nosso mundo, quando
vemos tantos outros à nossa volta. Jesus não disse que “há muitas moradas
na casa do Pai”? Assim, degrau a degrau, vamos progredindo e executando
as tarefas que nos foram confiadas, vencendo nossas tendências inferiores
e fazendo com que o bem desabroche em nossa alma.
Marianne o fitava com assombro e grande ternura dentro do coração.
Estavam sentados num banco de mármore, lado a lado, e, enquanto ele
falava, mirando as estrelas, ela o observava. Aqueles traços regulares, a
curvatura da boca, o arquear das sobrancelhas, os olhos serenos e
límpidos, o timbre inconfundível daquela voz...
Algo dentro de si aflorou como que em catadupas e sentiu que o amava
profundamente, desesperadamente. Em seu íntimo algo se rompeu, como
se uma janela se abrisse para o passado, e lembrou-se que já o ouvira a
falar sobre essas coisas, sob a luz das estrelas, que um afeto muito grande
os unia e que nada poderia separá-los.
Nesse preciso instante Victor a fitou e viu que dos olhos dela incontidas
lágrimas corriam. Percebeu, pela sua expressão, tudo aquilo que seus
lábios não poderiam confessar. Ficaram ambos por breves instantes a
permutarem impressões através da linguagem muda dos sentimentos. Ele
também, preso àquele olhar e incapaz de vencer o fascínio e a atração que
aquela mulher sempre exercera sobre ele, desde a noite dos tempos.
Consciente, porém, das suas responsabilidades, foi ele o primeiro a
controlar suas emoções.
Afastou-se um pouco, abandonando a mão que ainda mantinha entre as
suas e, procurando tornar a voz tão natural quanto possível, falou-lhe com
serena firmeza:
– Perdoa-me, Senhora Condessa, estes instantes de íntimas divagações.
Procura esquecer-te de tudo o que te disse esta noite. Creio que o fascínio
noturno agiu sobre mim, levando-me a dizer coisas que poderiam ser mal
interpretadas e que, sei, são contra os postulados da nossa santa e amada
Igreja. Crê, isto não se repetirá. Sou um servo de Deus e assim devo
conduzir-me.
Sua voz soava longe, como se a distância que interpusera entre eles não
fosse apenas espiritual, mas física também.
Inclinou-se profundamente numa reverência e desapareceu na
escuridão da noite.
Marianne ali ainda permaneceu, incapaz de entender o que realmente
havia ocorrido. Era como se despertasse de um sonho para enfrentar a
triste realidade.
Dentro de si, porém, uma coisa ficara: uma emoção profunda, o crepitar
de uma chama que ameaçava queimá-la por inteiro. Agora sabia, agora
tinha a certeza do sentimento que a envolvia. Agora entendia porque
sentira-se tão mal ultimamente, angustiada e insone. Agora, tudo isso
tinha um nome que não poderia sequer ser pronunciado.
– Meu Deus! – balbuciou, apertando a cabeça entre as mãos. – O que
será de mim agora?!...
***
Deste dia em diante não mais se falaram e nem tiveram ocasião de ficar
a sós. Marianne estava sempre preocupada com seus afazeres, buscando
mais aturdir-se para não pensar.
Charles, sempre distante, não lhe propiciava meios de defender-se
contra o sentimento que lhe minava o íntimo. As brigas e
desentendimentos se tornaram frequentes, fazendo com que Marianne
cada vez mais se refugiasse em seus aposentos, isolando-se dos outros e
cultivando no recesso do coração aquele amor impossível e inconfessável.
Certo dia, não suportando mais aquela situação e necessitando dar
vazão aos sentimentos represados, chamou um servo e ordenou-lhe que
procurasse frei Victor e lhe dissesse que ela o aguardava no oratório.
Charles estava fora todo o dia, juntamente com seu pai. A condessa
Clarissa repousava e o pequeno Augusto adormecera, exausto pelas
brincadeiras e folguedos. Tudo estava tranquilo no castelo. Só ela não
tinha paz.
Dirigiu-se ao oratório, ajoelhou-se e, com o rosário entre os dedos,
genuflexa, pôs-se a orar.
O coração batia descompassado e era com dificuldade que as mãos
trêmulas sustinham o rosário. Ouviu passos que se aproximavam e em
breve o sacerdote levantou o reposteiro de veludo carmesim.
Ao vê-la ajoelhada, Victor estacou. Marianne levantou a fronte fitando-
o. Victor não pôde se impedir de pensar em como era bela aquela mulher.
Que estranha atração exercia sobre sua pessoa, sempre indene de
pensamentos malsãos? Por que Marianne fazia com que seu coração,
sempre controlado, batesse tão forte? Teria ela condições de perceber suas
disposições íntimas e como ele, um religioso, era frágil em sua presença?
Quando a via abraçada ao pequeno Augusto, pensava que aquele filho
poderia ser dele. E como seria feliz!
Por sua vez ela não pôde impedir-se de pensar em como ele era belo.
Notava-lhe, porém, marcas de sofrimento no semblante, vincos de
preocupação e a fisionomia abatida. Emagrecera, por certo. Emocionou-se
ao perceber que ele parecia sofrer de alguma forma, conquanto não
soubesse o porquê.
O frade aproximou-se, procurando fazer com que sua voz soasse o mais
natural e formal possível, como convinha a um servo de Deus.
– Chamaste-me, Senhora? Desejas confessar-te?
– Sim, irmão.
Ele se acomodou num banquinho, que aproximou mais, dizendo-lhe:
– Abre o coração, Senhora Condessa.
Ela colocou o rosto entre as mãos, inclinando a fronte. Os cabelos de
Marianne se espalharam pelas espáduas em nuvens envolventes. O
sacerdote sentiu o perfume que evolava daqueles cabelos sedosos e que
quase lhe roçaram o rosto e sentiu desejo de acariciá-los. Conteve-se,
porém.
– Oh! meu amigo, há quanto tempo não conversamos? – perguntou com
voz sumida.
– Quase seis meses – respondeu ele, impassível.
– Sofro tanto, frei Victor. Minha vida se tornou um inferno! Já não
existe amor entre mim e meu marido, se é que existiu algum dia. E cada
vez nos entendemos menos. Não sei o que fazer! Aconselha-me, irmão.
Victor percebeu a importância daquele momento. Ser-lhe-ia fácil
aproveitar-se da situação e amar aquela mulher – que, sabia, sentia
atração por ele –, como era comum entre os prelados da Igreja.
Mantinham um celibato aparente e, às escondidas, cultivavam o prazer e a
vida dissoluta, entregando-se a toda sorte de desregramentos.
Se ele quisesse, aquela linda dama seria sua. Percebia-lhe as disposições
íntimas e a necessidade de carinho e amor que ela exteriorizava. Mas, fiel
aos seus votos e consciente das suas responsabilidades, o religioso
suspirou profundamente, falando-lhe:
– Confia em Deus, Senhora. Tem esperança e tudo voltará ao normal.
Uma esposa deve saber entender o marido que Deus lhe deu, perdoando-
lhe as faltas e sendo o sustentáculo do lar. Tens um filho que é um tesouro
do céu. Procura ser fiel a tuas obrigações, que o Senhor da Vida te
recompensará os esforços.
Ela chorava com a cabeça entre as mãos. Levantou a fronte onde dois
olhos úmidos e brilhantes eram um apelo, enxugando as lágrimas com
pequeno lenço perfumado.
– Irmão, tenho medo. Sinto a vida estuar dentro do peito e temo não
poder ser fiel às minhas obrigações. Será pecado sentir falta de amor?
– Não, não é pecado, minha filha. O amor é um sentimento que nos
aproxima de Deus. Mas existem muitas formas de amar. Ama o teu
semelhante, distribui esse tesouro que tens na alma com os infelizes da
Terra e sentirás doce paz em teu coração.
– Mas, por que tudo isso? Desejei este casamento mais que tudo no
mundo e por que agora não me sinto feliz? – fez uma pausa e continuou: –
Creio que estou sendo punida...
– Punida?
– Sim. Fiz outras criaturas sofrerem e creio que Deus está castigando-
me. Sim, é isso. Estou sendo castigada. Antes de casar-me fui noiva e não
honrei meu compromisso. Deixei-me seduzir pelo luxo e pela riqueza e
desprezei a pobreza honrada que meu noivo me oferecia. Depois, Pierre,
meu noivo, sofreu um atentado e agora não sei onde está, se está vivo ou
morto. Ninguém mais soube dele desde aquele dia. Pobre Pierre! – falou
com um suspiro.
Victor ouvia a confissão sem nada dizer. Afinal, afirmou-lhe:
– Não creio que estejas sendo castigada, Senhora, não obstante acredite
que todos somos responsáveis por nossos atos. Procura fazer orações por
essa criatura e tenho certeza de que Deus irá perdoar-te, oferecendo-te
meios de reparar o mal que porventura fizeste.
Já mais tranquila, Marianne se despediu:
– Estou bem agora. Tens o condão de me dar segurança e paz.
Agradeço-te a atenção. Ora por mim, Senhor.
***
A partir desse dia o religioso passou a evitar a presença da jovem
condessa ainda com mais rigor, não permitindo ocasiões em que
pudessem ficar a sós. Marianne sofria com isso, mas compreendia que era
necessário para o seu bem-estar e o da sua família.
Aproximava-se a época do ano em que se realizavam festejos com a
participação dos nobres de toda a região. Expediram-se convites para os
mais diversos lugares, inclusive para o castelo de Montpellier. Não
demorou muito o portador trouxe a notícia de que os condes de
Montpellier aceitavam honrados o convite e teriam imenso prazer em
participar dos festejos.
A condessa Clarissa exultou com a notícia alvissareira. Afinal, reveria
sua amiga muito querida. Todos no castelo ficaram felizes. Marianne
suspirou, satisfeita; estava cansada daquela vida solitária que levava.
Sentia falta das festas e dos bailes, de ver pessoas diferentes e de
conversar com gente interessante.
Os preparativos iniciaram em clima de euforia. As costureiras se
esmeravam em confeccionar novos vestidos ao gosto da época. Os servos,
atarefados, corriam de um lado para o outro, pois era necessário que os
visitantes encontrassem tudo preparado para recebê-los. Lavavam-se as
escadarias, poliam-se os metais, batiam-se os tapetes. Tudo deveria estar
brilhando para o grande evento.
Na cozinha a azáfama não era menor. Procuravam as cozinheiras
adiantar o que fosse possível para diminuir o serviço nos dias dos festejos.
Pães recheados, biscoitos de aveia e mel, pasteizinhos açucarados de nata,
doces finos e manjares delicados.
A condessa Clarissa, que criara novo ânimo, dirigia tudo com olhares
entendidos, conhecedora do paladar refinado dos convivas.
Marianne até esqueceu seus problemas e preocupações, auxiliando na
decoração dos jardins, das salas e terraços, e executou tão bem sua tarefa
que a sogra não lhe poupou elogios.
Na verdade, num primeiro momento, Marianne se preocupara. Teria
que enfrentar Lucas e Régine, que, sabia, não simpatizava com ela. Mas,
depois, concluiu que era bobagem. Após todos esses anos era impossível
que ainda se lembrassem de tudo. Com certeza eram muito felizes no
casamento e ela se preocupava à toa.
Um sorriso de genuína satisfação aflorou-lhe aos lábios ao lembrar-se
que iria rever a condessa Louise de Montpellier. De todas as pessoas de
suas relações a de que mais gostava era ela. Possuía um ar de tranquila
serenidade e um sorriso cativante que sempre a atraíram. Sentia que
podia confiar nela, como se fossem amigas de longa data. E sabia que a
simpatia e o carinho eram recíprocos.
Por isso, foi com muita expectativa que Marianne viu transcorrerem os
dias que faltavam para o início programado dos festejos.
Capítulo IV - Velhos amigos

O entusiasmo era enorme; a agitação grande no castelo. Seus


moradores viviam momentos de euforia, compartilhados por toda a região
e cidades vizinhas.
Em todos os lados percebia-se um movimento incomum. Os homens se
adestravam nos jogos, preparando-se para as festividades que
transcorreriam dentro de pouco tempo.
O dia amanhecera esplêndido e uma brisa soprava leve no arvoredo. O
céu muito azul fazia fundo à vegetação luxuriante dos jardins. O aroma das
flores se espalhava no ambiente, produzindo bem-estar infinito.
Marianne, sentada num banco de pedra à sombra de uma grande
árvore, meditava. Como estariam os amigos? Teriam mudado? Temia o
reencontro com Lucas, embora o soubesse casado com Régine.
Estava ansiosa para rever a condessa Louise, que sempre lhe fora muito
cara ao coração. Ao lado dessa mulher admirável sentia paz, segurança e
um conforto que não encontrara em nenhum outro lugar. Era estranho!
Por que isso? Conheciam-se tão pouco, raras vezes tiveram ocasião de
confabular sozinhas e, no entanto, era a pessoa a quem mais amava, com
exceção do seu filho.
Nunca a sua própria mãe lhe proporcionara impressão semelhante. Ao
contrário; uma invisível barreira parecia separá-las sempre e, se já não
sentia ódio por sua mãe por tudo o que lhe fizera, também não poderia
esquecer os maus tratos, as bebedeiras e as brigas, que a deixavam
prostrada por dias consecutivos.
Felizmente sua mãe morrera. O que seria de sua vida se isso não tivesse
acontecido? Seria, provavelmente, uma qualquer relegada à sarjeta e ao
lixo. Não derramara uma lágrima.
Depois... depois viera com seu pai para a região e sua vida mudara por
completo. Ele não suportava a presença da mulher e viviam por isso cada
qual para o seu lado, mas amava àquela filha nascida de um momento de
profundo amor. Depois, a vida se encarregara de separá-los, mas ficara a
filha como testemunho de momentos felizes.
Seu pai era pobre, muito pobre, mas em sua companhia gozou
Marianne de momentos de paz e tranquilidade. Viviam com simplicidade,
não lhes era necessário muito para viver e nada lhes faltava.
Depois surgira Charles... e seu pequeno mundo nunca mais fora o
mesmo. As atenções daquele rapaz elegante e bem vestido, de sorriso fácil
e conversa agradável, a empolgaram. Era a oportunidade que esperava
para mudar de vida. Poderia ter tudo que quisesse, luxo, riqueza, posição
social; pertenceria à nobreza, e os aristocratas não mais a olhariam de
cima. Casaram-se e foram até certo ponto felizes; o filho era uma centelha
de luz e alegria em suas vidas. Mas, tudo mudara. Charles já não se
comportava mais como o marido apaixonado e galante de outros tempos.
Agora era uma visita em seu próprio lar; raras vezes se fazia visível.
Passava as noites envolvido com mulheres, bebidas e jogo. Voltava às
primeiras horas da manhã, com o dia clareando. Jogava-se numa cama; seu
criado o auxiliava a despir-se; e dormia o resto do dia, para recomeçar à
noite as mesmas atividades da véspera.
Augusto, agora com quase três anos, reclamava a presença do pai, mas
raramente tinha ocasião de vê-lo acordado. Sentia falta da ternura
paterna, das brincadeiras, dos folguedos.
Agora, com a chegada dos amigos vindos de tão longe, do sul da França,
Marianne tinha esperança de que Charles voltasse a ser o que era.
Percebia que a condessa Clarissa, mãe de Charles, aborrecia-se e
preocupava-se com as atitudes do filho, mas nada dizia. Sofria com
dignidade e não demonstrava a sua dor.
Quando Charles chegava em casa bêbado e falando com voz enrolada,
sua mãe baixava a cabeça e sofria em silêncio. Já tentara falar com ele,
chamar sua atenção, dar-lhe conselhos, mas fora tudo em vão.
Seu marido, Henri, este não achava nada de estranhável na conduta do
filho e quando Clarissa tentava fazê-lo perceber o abismo em que o rapaz
mergulhava ele respondia com uma gargalhada:
– Estás preocupada à toa, minha querida. Nosso filho leva a vida normal
de qualquer jovem aristocrata.
– Mas, ele tem responsabilidades, Senhor!
– Ora, com certeza não encontra em casa os estímulos que o façam
ficar. Marianne me parece muito distante e desinteressada de nosso filho.
Logo...
– Mas, Senhor, e o menino, nosso neto?
– Ora, mulher, deixa-o viver...
Clarissa baixava a fronte e silenciava. A sociedade criara um padrão de
comportamento que ela não aprovava, mas que era de uso corrente:
manter mulheres fora do casamento dava status e os homens não
prescindiam dele.
Não mais abrira a boca para reprochar o comportamento do filho, mas
intimamente sentia que as coisas iam de mal a pior.
O capelão do castelo também tentara várias vezes reconduzir Charles
ao bom caminho, sem resultado aparente. Por isso, também Clarissa
depositava muita esperança nessas visitas. Quem sabe Charles voltaria a
ser o que era antes.
Marianne percebeu um servo que se aproximava.
– O que é, Josias?
– Senhora, os hóspedes não tardam a chegar. Estão a poucas léguas
daqui, conforme afirma o batedor.
– Obrigada, Josias. Diga à Senhora Condessa que não me demoro. A
propósito, sabes onde está Augusto neste momento?
– Há pouco estava com Matilde brincando no parque, próximo do lago,
Senhora.
– Dize a Matilde que me traga o menino. Agora, avia-te; não tens tempo
a perder.
O servo saiu apressadamente.
Marianne enxugou os vestígios das lágrimas que ainda umedeciam seu
rosto, recompôs as dobras do vestido e encaminhou-se para o castelo.
No caminho encontrou a aia, que se apressava em trazer a criança. Por
uma alameda sombreada por grandes árvores divisou o vulto do pequeno
Augusto, que corria ao seu encontro com os braços abertos. Faces coradas,
lábios vermelhos, cabelos dourados pelo sol, era a própria imagem da
saúde e da alegria.
– Mamãe! Mamãe! Veja o que encontrei perto do lago!
Marianne olhou e só então percebeu que ele trazia entre os dedos uma
pequena borboleta azulada.
Com os olhos brilhantes ele repetia, eufórico:
– Veja, mamãe! Não é linda?
Marianne ajoelhou, colocando-se ao nível da criança e viu a borboleta
que, impaciente, fazia vãos esforços para livrar-se da pequenina mão que a
constringia.
– É realmente muito bonita, meu filho.
– Vou guardá-la só para mim! – disse o garoto aconchegando-a ao peito.
Condoída da sorte do bichinho, Marianne falou com doçura:
– Acreditas, meu filho, que a borboleta sentir-se-á feliz estando presa?
Augusto arregalou os grandes olhos aveludados, como se só agora
tivesse pensado nisso.
– Gostarias de ficar preso, sem poder ver a luz do sol, sem ver as flores
que aprecias tanto, sem brincar no jardim? – insistiu a mãe.
O garoto respondeu muito sério, após pensar um pouco:
– Não, mamãe. Augusto ficaria muito triste.
– Então, meu filho, Augusto deve deixá-la livre para voar no céu. E ela
virá sempre te visitar e brincar contigo, pois será tua amiga.
Radiante com essa possibilidade, Augusto abriu a mão. A pobre
borboleta, nos primeiros instantes, não percebeu que nada mais a prendia.
Depois, experimentando as delicadas asas, desajeitadamente, sentiu que
estava livre. Agitou-se, batendo as asas e elegantemente voou para os ares,
enquanto o menino acompanhava-lhe as evoluções pelo espaço, com
sorriso satisfeito.
Ao ver a pobrezinha livre, Marianne respirou aliviada. Sem saber por
que, ver aquela pobre borboleta a debater-se entre as mãos de seu filho
causara-lhe uma angústia muito grande.
– Agora – disse ao garoto –, vamos aguardar os visitantes que não
devem tardar.
Levantando-se, tomou a mão de Augusto, dirigindo-se para a frente do
castelo onde todos já se encontravam.
Em pouco tempo ouviram o ruído característico de cavalos
aproximando-se em meio a uma nuvem de poeira. O som dos metais tinia
no ar e os raios do sol refletiam em suas armaduras. Dentro em pouco,
escoltados por forte esquema de segurança, surgiram os visitantes. Na
frente vinha um destacamento com dez cavaleiros, em seguida as
carruagens que traziam o conde e a condessa de Montpellier, Lucas e a
esposa, as aias e demais acompanhantes; por último, as bagagens. E,
encerrando a comitiva, outro destacamento de soldados.
O encontro foi alegre de parte a parte. Após os cumprimentos e uma
primeira troca de impressões, dirigiram-se todos para as dependências do
castelo.
Depois de tantos anos o reencontro de Clarissa e Louise foi tocante.
Abraçaram-se como duas irmãs que não se vissem há muito e lágrimas de
alegria umedeceram seus olhos. Queriam saber das novidades e o que
acontecera durante esses anos de afastamento.
O conde de Montmorency, mais prático, falou à esposa com leve tom de
reprovação na voz, embora sorridente:
– Minha querida, não estás sendo boa anfitriã! Nossos amigos com toda
certeza estão exaustos da longa viagem e desejam refrescar-se e repousar
um pouco antes da refeição.
Sob os protestos dos recém-chegados, que afirmaram estarem bem,
Clarissa concordou:
– Henri tem razão. Queiram perdoar-me. A felicidade de rever-vos é tão
grande que esqueço meus deveres de dona-de-casa.
E, dando um último abraço em Louise, concluiu sorrindo:
– Teremos muito tempo para conversar. Vinde, os criados vos
conduzirão aos aposentos que vos foram destinados.
Algumas horas depois estavam todos novamente reunidos para o
almoço. Os visitantes, já refeitos da viagem, palestravam animadamente
com os anfitriões.
Louise se encantara, sobretudo, com a vivacidade e inteligência do
pequeno Augusto, que não conhecia. Ria alegremente de suas expressões
infantis e fazia-lhe perguntas, admirando-se com as respostas da criança.
O ambiente alegre e descontraído envolvia a todos em vibrações de paz
e reconforto.
Até Charles, que raramente se fazia visível a tais horas do dia, estava
espirituoso, demonstrando satisfação em conversar com Lucas e Régine.
Esta, um tanto emagrecida, acentuara mais seus traços, o que lhe conferia
um encanto especial. Não tinha filhos ainda, e foi com inveja rancorosa
que notara Marianne, no auge de sua beleza, ao lado do pequeno Augusto,
falante e encantador.
Charles também lhe parecera mais atraente após esses anos; a idade lhe
conferia uma certa distinção e sua palestra envolvente a mantinha presa
ao seu fascínio.
Lucas, que aguardara com ansiedade o momento em que reveria
Marianne, mordia os lábios com laivos de ciúmes ao vê-la ao lado de
Charles. Essa mulher, que possuía o condão de mexer com suas fibras mais
íntimas, estava mais bela do que nunca; a maternidade lhe acentuara as
formas do corpo, deixando-a mais encantadora. Já não era a rapariga
pobre e tímida que desconhecia os usos e costumes da Corte. Não, agora
era a castelã, cônscia de sua beleza, que adquirira segurança e traquejo
social. Movia-se com elegância, falava com tranquilidade e serena
nobreza. Sim, estava ainda mais bela e desejável.
Ruminando seus pensamentos, Lucas monologava intimamente:
“Esta mulher ainda será minha, custe o que custar. Pela minha honra de
cavaleiro, eu o juro solenemente.”
Alguém que pudesse ler os pensamentos das outras criaturas não
deixaria de estranhar, por certo, a diversidade e intensidade dos mesmos,
conquanto, aparentemente, tudo parecesse muito natural e conversassem
todos animadamente.
Os sentimentos, as impressões e os desejos de cada um dos presentes
causariam o maior espanto se se conseguisse vislumbrar a realidade. No
entanto, a vivência social, a educação e as regras de etiqueta não
permitiam que os participantes da alegre reunião dessem vazão aos
desejos, muitas vezes inconfessáveis.
Charles encontrara em Régine novos atrativos. Ardente e sensual por
natureza, volúvel e inconsequente por temperamento, ele se sentia
sempre atraído por novidades. E a esposa de Lucas, naquele ambiente
familiar onde não havia muitas opções, se apresentava bastante
interessante e desejável.
Esmerou-se, portanto, na sua aparência pessoal; vestiu-se com apuro,
penteou-se com cuidado e apresentou-se alegre e elegante para o almoço,
o que não deixou de notar Marianne.
A jovem condessa de Drumond, por sua vez, não deixava de fitar
disfarçadamente frei Victor, que se encontrava a palestrar discretamente
com a condessa Louise, a quem fora apresentado. Mútua simpatia os
envolveu desde o primeiro momento e era com sincera cordialidade que
dialogavam.
A condessa Clarissa fazia as honras da casa, conversando ora com um,
ora com outro, quando o criado veio comunicar que o almoço seria
servido.
Dirigiram-se todos para o amplo salão de refeições, onde um rico
banquete os aguardava.
Marianne e Victor se sentaram de frente um para o outro e o religioso
não pôde deixar de perceber que Marianne falou pouco e comeu menos
ainda.
Respondia por monossílabos aos galanteios que o jovem Lucas de
Montpellier lhe dirigia, sentado ao seu lado esquerdo. Descontente, mas
não querendo melindrar um hóspede de sua sogra, procurou tratá-lo com
frieza glacial, tentando inibir-lhe os arroubos.
Virou-se e pôs-se a conversar sobre frivolidades com uma velha tia de
seu marido, sentada à sua direita.
Victor, percebendo o que se passava e, inconscientemente enciumado,
notou os olhares de Marianne, que eram outros tantos pedidos de socorro,
e tentou entabular conversação com o rapaz, desviando-lhe a atenção
sobre Marianne.
Findo o repasto levantaram-se todos espalhando-se pelas salas e
varandas. Os mais jovens procurando distração, enquanto os mais idosos
se recolhiam para um ligeiro repouso.
Deixando o recinto e passando para outra sala, Marianne se encontrou
frente a frente com o sacerdote, que lhe ofereceu a mão para ajudá-la a
transpor os dois degraus que separavam um ambiente do outro.
Ao sentir aquela mão forte segurando a sua, Marianne ergueu a fronte e
seus olhares se encontraram. Um frêmito a envolveu toda e, fitando
aqueles olhos serenos, ela murmurou:
– Obrigada, frei Victor.
– Por quê?
– Por teres me tirado de uma situação incômoda.
Ele a olhou demoradamente e nada disse. Afinal, balbuciou de modo a
que só Marianne ouvisse:
– Tem cuidado, Senhora.
Com um sorriso de gratidão, ela beijou a mão do frade e afastou-se,
trêmula.
Procurou refúgio em um terraço onde raramente entrava alguém.
Reclinada numa poltrona viu a condessa Louise que, olhos cerrados,
parecia adormecida.
Ao ouvir ruído de passos ela abriu os olhos, vendo Marianne que já se
preparava para retirar-se.
– Perdoai-me, Senhora Condessa, não quis incomodar-vos. Não sabia
que estáveis aqui, caso contrário não teria entrado.
– Não, minha querida, não me incomodas. Ao contrário, me dará prazer
tua companhia.
– Mas, creio que estáveis a dormir e vim acordar-vos. Lamento ter
entrado assim tão intempestivamente.
Tomando-lhe a destra e aproximando-a mais da poltrona, Louise
retrucou:
– Não lamentes. Asseguro-te que não dormia. Apenas meditava. Senta-
te aqui, se não te desagrada fazer-me companhia.
– Não, Senhora! Só terei prazer em conversar convosco.
E, sentando-se numa outra poltrona ao lado daquela em que estava
Louise, continuou, fitando o semblante simpático e sorridente da outra:
– Já vos afiancei certa vez que nutro uma simpatia muito grande por
vossa pessoa. Nada mudou desde então; não obstante o tempo e a
distância, continuo a pensar e a sentir da mesma forma. É como se nos
conhecêssemos de longa data.
Com os belos olhos úmidos de emoção, Louise concordou, ratificando as
palavras da jovem amiga:
– Também eu sinto o mesmo por ti, Marianne. É como se fosses aquela
filha que gostaria de ter e nunca tive. Asseguro-te também que, durante
esses anos em que não nos vimos, jamais deixei de pensar em ti. É como se
fosses realmente alguém da família que estava ausente, e a alegria que
senti ao rever-te foi imensa.
Aqueles dois espíritos afins, reconhecendo-se apesar do tempo e da
diferença de idade e de personalidades, continuaram a se estimar
profundamente, pois laços muito fortes as uniram no pretérito.
Fazendo uma pausa, Louise tomou entre as suas as mãos da jovem
amiga, falando-lhe com carinho:
– Então, se é verdade que realmente me tens estima e se sinto que és
minha filha pelo coração, reservo-me o direito de inquirir-te, sem que me
tomes por uma bisbilhoteira qualquer: o que se passa contigo? Noto que já
não és a mesma de alguns anos atrás. Estás triste e não consegues disfarçar
o que te vai no íntimo. Queres falar-me como o farias a uma mãe?
Tocada em suas fibras mais sensíveis, Marianne sentiu os olhos
umedecerem-se de lágrimas amargas. Sob intensa emoção falou:
– Quero agradecer-vos, Senhora, o interesse demonstrado por minha
pessoa. Sim, querida amiga, necessito falar a alguém mas não tinha com
quem dividir meus problemas.
– Então, fala, minha querida, abre o teu coração e podes confiar na
minha discrição e devotamento.
– Não havia necessidade de que me afirmásseis, Senhora. Vós sois das
poucas pessoas em quem confio.
E Marianne falou então das suas tristezas, do matrimônio fracassado,
das infidelidades do marido e da sua solidão, concluindo:
– Não fosse meu filho que dá alento e não teria mais ninguém.
Fez uma pausa e concluiu, corando ligeiramente:
– Meu filho... e frei Victor.
– Ah! sim, frei Victor! Pareceu-me uma criatura extraordinária. Tomei-
me de viva simpatia por ele assim que o vi. Parece um santo. Bem
diferente dos outros religiosos que tenho conhecido – acrescentou Louise
com um sorriso.
Marianne concordou com entusiasmo:
– Realmente é uma criatura de escol. Coração sensível e bondoso, gasta
a maior parte do tempo a amparar os que sofrem.
A condessa a olhou com ternura e murmurou, como se falasse mais
para si mesma:
– Pareces gostar muito dele.
– Ah! sim. Gosto muito dele. Não só por ser o capelão do castelo e meu
confessor, mas pela sua personalidade cativante.
Ficaram ambas a palestrar por um bom tempo, matando as saudades e
contando as novidades, cada uma falando da sua vida e dos seus
problemas. Ao finalizar a conversa ambas se sentiam revigoradas e
Marianne bem mais tranquila.
Os conselhos da amiga para que tivesse paciência com o marido
pareceram calar fundo em seu coração sensível, e o fato de desabafar
ajudou-a a melhorar as disposições íntimas.
Algumas horas depois era outra Marianne que se encontrou com os
hóspedes, mais alegre e bem disposta.
Capítulo V - Frei Felipe

No mosteiro, irmão Felipe se desesperava mais a cada dia que passava.


Quem poderia avaliar o sofrimento de uma alma que, ansiando pelo sol, se
visse arremessada à mais tenebrosa escuridão? Que, amando a vida, se
visse atirada ao sepulcro?
Ninguém existia em sua vida que pudesse atenuar-lhe os sofrimentos,
velar seu sono atormentado; com quem pudesse dividir suas dúvidas, seus
receios e suas tristezas. A não ser o irmão Victor, que era seu amigo e
confidente. Mas esse encontrava-se agora entregue a seus novos afazeres
no castelo de Montmorency e raramente aparecia no mosteiro.
Felipe sentia que cada vez mais o burel pesava em seus ombros,
asfixiando-lhe os movimentos. Nutria ódio profundo por todos aqueles
que o arrojaram ao claustro. Ansiava por vingar-se, mas como?
Não tendo armas teria que utilizar-se dos recursos à sua disposição. Não
tendo poder precisava consegui-lo.
Para isso começou em primeiro lugar a analisar tudo o que acontecia a
seu redor. Os menores atos dos companheiros não passavam
despercebidos pelos seus olhos argutos. Sabia que o poderio clerical era
muito grande e os braços seculares da Igreja, longos e flexíveis, atingiam
onde quer que fosse.
Teria que agir com astúcia. Inteligente e de raciocínio lúcido, soube
insinuar-se junto ao prior, tornando-se, dentro de pouco tempo,
indispensável.
Na verdade, isso não era tarefa difícil. A população do convento
constituía-se, quase que em sua totalidade, de criaturas sem vontade e
incapazes de qualquer atitude. Eram seres ignorantes que as famílias, por
questão de orgulho, arremessavam à vida religiosa, sem que
apresentassem qualquer vocação; outros, qual ele mesmo, para fugirem
dos problemas do mundo; e outros, ainda, por não terem outra opção de
vida. Dentro dos muros do mosteiro vegetavam apenas.
Naturalmente, existiam aqueles que sentiam verdadeira vocação para a
vida do claustro, mas eram uma minoria, transformando suas existências
em real sacerdócio, como o amigo Victor.
Logo, não foi difícil a Felipe, usando dos recursos que possuía, pois fora
educado por mestres competentes, sair do anonimato e fazer-se
necessário ao prior. Auxiliava na administração interna da organização,
oferecia sugestões, dava pareceres e tornava-se com isso cada vez mais
poderoso dentro das paredes do mosteiro.
Em pouco tempo ocupava posição privilegiada. Abaixo do prior era ele
quem mandava. Ficou conhecendo outros frades mais intimamente, por
força de suas funções administrativas, e associara-se a outra criatura,
cruel, servil e sem escrúpulos e que fazia o que lhe fosse ordenado. Este
ser indigno levava a Felipe tudo o que ocorria no mosteiro, nada
passando-lhe despercebido. Ouvia atrás das portas, lia correspondências,
fazia perguntas e depois entregava um relatório completo a seu chefe, frei
Felipe.
Um dia Victor apareceu no convento. Após dialogar com o prior a
portas fechadas foi procurar o amigo em sua cela. Encontrou-o junto de
um indivíduo suspeito, de fisionomia desagradável e ar cruel.
Quando o frade saiu, Victor perguntou, surpreso:
– Quem é ele?
– Ora, é um pobre infeliz que, vez por outra, me procura pedindo ajuda
para seus problemas.
Meneando a cabeça, Victor disse, convicto:
– Não gostei do jeito dele. Tem algo de muito estranho que não me
agrada. Creio que deves tomar cuidado com ele, Felipe.
– Não te preocupes. Tem essa cara esquisita, mas não é má pessoa. Mas,
o que te trouxe aqui hoje? Há tempos não apareces! – falou, tentando
desviar a atenção do amigo.
– Estarei mais contigo a partir de hoje. Permanecerei por mais tempo
dentro do mosteiro.
– Aconteceu alguma coisa? – inquiriu Felipe.
– Não, nada de importante. Apenas tive dificuldades em me adaptar aos
costumes do castelo. É só.
– Como “é só”?! Estás a esconder-me algo, Victor! Queres dizer que
deixaste teu cargo de capelão do castelo de Montmorency?
– Exatamente.
– Por quê?
– Já te disse. Não me adaptei aos costumes do castelo – falou, sereno.
– E queres que eu acredite nisso?
– Bem, a verdade Felipe é que já comuniquei minha decisão ao prior e
também já recomendei frei Tiago para o posto.
– Por quê?
– Porque o julgo a criatura mais indicada para preencher o cargo.
– Não foi isso o que perguntei.
Victor permaneceu calado.
Vendo que nada mais conseguiria extrair dele, Felipe não insistiu e se
deu por satisfeito:
– Está bem. Sinto que algo aconteceu, mas não queres me contar. Não
tem importância. Respeito o teu silêncio; porém, quando sentires a
necessidade de abrir o coração, sabes que sou teu amigo e que podes
contar comigo.
Victor concordou com um sorriso triste e, agradecendo, estendeu a
mão ao amigo, que a apertou entre as suas. Em seguida Victor deixou a
cela do companheiro, encaminhando-se para o seu próprio cubículo.
Ficando só, imediatamente Felipe se dirigiu ao gabinete do prior.
Alguns minutos de conversa apenas e já convencera o superior de que o
cargo de capelão do castelo deveria ser dele, Felipe.
Dentro de poucas horas, após ter arrumado seus magros pertences,
rumava Felipe para o castelo, levando as credenciais encaminhadas pelo
prior.
Montado num animal, cavalgando passo a passo, frei Felipe percorria a
distância que o separava de Montmorency.
Os pensamentos fervilhavam em sua cabeça: seria reconhecido?
Acreditava que não. Teria a seu favor o fato de ter alguns anos a mais e
alguns fios de cabelos grisalhos nas têmporas. O cabelo crescera e uma
longa barba cerrada cobria quase que totalmente o rosto, deixando
descoberta a parte superior, os olhos profundos e a ampla testa.
O relacionamento superficial que tivera com os donos do castelo
também não o amedrontava. Estava muito diferente agora. O conde
conhecera um homem forte, que as lides do campo enrijeciam, de tez
morena queimada pelo sol. Agora, emagrecido pelos longos e prolongados
jejuns, parecia mais alto, fisionomia ascética; as maçãs do rosto se
acentuaram e a pele adquirira um tom pálido e oliváceo. Além disso, fora
dos portões do convento, as poucas vezes que saíra andava sempre com o
capuz puxado sobre a cabeça, o que tornava difícil o reconhecimento. E
depois, mesmo que alguma semelhança fosse detectada, quem poderia
supor que o infeliz camponês Pierre, desaparecido em misteriosas
circunstâncias, e o frei Felipe fossem a mesma pessoa?
Suspirou ao ver as torres do castelo ao longe. Reveria Marianne, a
mulher traidora que o abandonara pelo luxo e posição social que o marido
poderia oferecer-lhe. Como estaria ela?
Dentro de si alternavam-se sentimentos de ódio, revolta, mágoa
dolorida, com o profundo amor que ainda trazia dentro do peito.
A verdade é que ainda a amava. Que o simples fato de estar prestes a
revê-la punha em polvorosa seu coração, que batia descompassado. A
cabeça escaldava e um suor gelado umedecia suas mãos.
Engraçado. A sensação de que não era a primeira vez que vivia essa
situação se tornava cada vez mais forte. Tênues e esfumaçadas lembranças
surgiam vagamente na tela da memória, envolvendo o passado. Sentia,
intuitivamente, que não era a primeira vez que retornava a algum lugar
temendo ser reconhecido.
O atual frei Felipe se lembrava de outra vez, há muito tempo, quando
no século VI, como Ciro, retornava a Ravena acompanhando o exército do
general Belisário, após ter deixado a cidade em virtude de acontecimentos
assaz comprometedores e dramáticos. Esses fatos marcaram
profundamente seu espírito endividado e, agora, assomavam-lhe à
lembrança trazendo angústia e aflitiva expectação.
***
No convento, sob o acúleo da dor moral, que é a mais dolorosa e mais
difícil de ser vencida, frei Victor, em sua cela, meditava.
Ajoelhado no chão frio e áspero, de mãos postas, o servidor do Cristo
orava. Não sabia se agira certo, mas acreditava que não lhe restara
alternativa a não ser deixar o castelo de Montmorency.
Os acontecimentos pareciam precipitar-se. A situação se tornara
insustentável. O sentimento que o agitava interiormente crescia e se
avolumava, ameaçando tragá-lo no turbilhão.
A convivência com Marianne se tornara muito difícil, senão impossível.
O sentimento que a dominava era transparente demais. Ela não conseguia
esconder o afeto que nutria por ele e o demonstrava abertamente, fosse
por um sorriso, um olhar, um gesto casual. Não acreditava que alguém
tivesse notado, conquanto não fosse difícil de perceber por alguém mais
arguto e observador.
O mais difícil, porém, era que ele, não obstante lutasse com todas as
suas forças, sentia-se também cada vez mais envolvido e preso ao fascínio
de Marianne.
Certa tarde, quando conversava no terraço com os hóspedes, observou
Marianne um pouco afastada e absorta em seus pensamentos. Lucas se
aproximou dela e lhe disse algo, inclinando-se galantemente. Era uma
atitude perfeitamente normal, mas ele, Victor, percebeu nos olhos do
jovem conde de Montpellier a paixão devastadora que tentava esconder
sob o sorriso gentil.
Uma emoção insólita o acometeu de repente ao vê-los. Pela primeira
vez sentiu a dor do ciúme; uma agulhada funda o atingiu no peito e sentiu-
se angustiado.
Naquele momento não teve mais dúvidas: ele a amava. Amava como
nunca amara mulher alguma na vida, e justo agora que já fizera seus votos
religiosos e ela também estava presa a compromissos conjugais
indissolúveis.
Naquele instante teve certeza de que não poderia mais continuar
naquela casa, que estava pondo em risco a sua vida e, mais ainda, a vida e a
felicidade de Marianne, de Charles, do filhinho e de toda a família. Era
preciso colocar um ponto final nessa situação, que poderia levar todos à
derrocada moral.
Decidido, Victor levantou-se, dirigiu-se a seus aposentos, arrumou os
poucos pertences e redigiu uma pequena carta em que informava o conde
de Montmorency de que estava de partida para o mosteiro, por
convocação do prior. Nada mais. Depois pensaria numa explicação
plausível. Confiou a mensagem a um criado com a recomendação de que
só a entregasse quando já tivesse partido.
Entretidos em animada palestra ninguém percebeu a saída do religioso.
Suspirando aliviado, ele pensou: “Ainda bem! Não gostaria de ter que dar
explicações a alguém”.
Seu coração reto e bem formado, o caráter íntegro de que era dotado e,
principalmente, a fé que era a tônica do seu espírito haviam ditado o que
deveria ser feito, qual atitude tomar.
Agora, genuflexo em sua cela, com as sombras da noite a invadirem o
recinto, solitário e sofredor, elevava seu pensamento às altas esferas da
vida superior, suplicando a ajuda do Mestre.
“Senhor da Vida! Sei que sou um pecador e que não mereço a Vossa
misericórdia. Divino Irmão dos sofredores, dignai-vos lançar Vosso olhar
compassivo sobre este celerado que se debate entre a luz e as trevas.
“Deixei-me envolver pelas tendências inferiores que me são próprias,
Senhor, e olvidei meus deveres de sacerdote do Cristo.
“Ajudai-me, Senhor, para que arranque os pensamentos nocivos que
me atormentam a alma e dai-me outra oportunidade para provar que
posso vencer.
“Sustentai-me, Senhor, na luta de cada dia. Vós sois o meu refúgio e a
luz a iluminar-me os passos. Quero seguir Vossas pegadas e dedicar-me
aos sofredores e desgraçados do mundo.
“Não me abandoneis, Senhor, à própria sorte. Desde que nasci, da vida
só conheci o sofrimento. Venturas foram-me negadas e nem sequer tenho
alguém que me aplaque a sede.
“Só Vós, Senhor, sois meu companheiro e confidente das solitárias
horas. Em Vosso Evangelho de amor tenho haurido forças para continuar
vivendo. Tenho fé na Justiça Soberana de Deus e sei que, se sofro, é porque
sou pecador.
“Amparai-me, Senhor, para que não fraqueje em minhas decisões. Dai-
me forças para que eu seja o servidor de todos e perdoai-me, Senhor, se
falhei no meu apostolado.”
Exausto, Victor deitou-se no leito humilde. Doce refrigério lhe adviera
com a oração. Sensação de paz e reconforto o envolveu, balsamizando seu
coração ulcerado.
Tinha certeza agora de que fizera o melhor para todos.
Colocou a cabeça no travesseiro e adormeceu como um justo. Apesar de
tudo, tinha a paz de uma consciência tranquila.
Capítulo VI - Rumores de guerra

Adentrando os portões do castelo de Montmorency, frei Felipe solicitou


a um servo ser encaminhado à presença do proprietário.
Em pouco tempo foi introduzido numa sala, rodeada de estantes, onde
se viam livros e manuscritos. Ao centro, uma mesa pesada, de mogno,
fazia as funções de secretária. Era a biblioteca do castelo, onde o conde
recebia os visitantes e ultimava negociações.
Após dez minutos, aproximadamente, abriu-se a porta que o criado
fechara ao sair e os passos fortes do conde ressoaram no lajedo, às costas
de Felipe.
Surpreso por estar sendo procurado por um sacerdote estranho, o
conde o cumprimentou, reverentemente.
Após a troca de algumas gentilezas, o frade retirou de sob as dobras do
burel um pergaminho que estendeu ao seu interlocutor, dizendo-lhe:
– O Senhor Conde deve estar surpreso com a minha visita. A mensagem
o esclarecerá devidamente.
Lançando um último olhar ao estranho monge, o conde quebrou o lacre
e leu a correspondência que lhe fora enviada pelo superior do convento.
Nesta, ele lhe explicava que, por motivos de força maior, necessitara
chamar urgentemente frei Victor, conferindo-lhe outros encargos.
Enviava-lhe, porém, frei Felipe, que julgava capacitado e à altura de
exercer as funções de capelão do castelo de Montmorency.
Terminava a missiva empenhando-lhe sua eterna amizade e
consideração. Nada mais.
Pensativo, após se inteirar do conteúdo da mensagem, o conde
permaneceu alguns instantes com os olhos presos no papel. Em seguida,
enrolando novamente o pergaminho, inquiriu o sacerdote:
– Conheceis o conteúdo da mensagem, suponho.
– Sim, Senhor Conde – respondeu humildemente.
– Sabeis que encargos novos são esses que Sua Rev. outorgou a frei
Victor?
– Ignoro, Senhor. Sei apenas que motivos urgentes assim o
determinaram.
– Estranho... muito estranho – disse. Em seguida, fitando seu
interlocutor, completou, como se já houvesse mudado o rumo dos
pensamentos: – Vou mandar um criado acompanhar-vos até vossos
aposentos, frei Felipe. Mais tarde sereis apresentado à minha família e
demais convidados.
O religioso inclinou levemente a cabeça em sinal de concordância.
O conde chamou um servo, tocando a sineta, e deu-lhe as instruções
devidas. Antes de se separarem, estendeu a mão ao monge dizendo-lhe:
– Sede bem-vindo a esta casa, reverendo.
– Obrigado, Senhor. Procurarei bem desempenhar minhas funções.
Já acomodado em seus aposentos, frei Felipe não continha a satisfação.
“Finalmente! Mal acredito que estou aqui, no lar de Marianne, que
conviverei com ela, vê-la-ei todos os dias e ouvirei seus mais secretos
pensamentos. Ah! Senhores de Montmorency e Drumond, não sabeis o que
vos espera. Agora tenho as cartas na mão e saberei bem utilizá-las. É
preciso, porém, que não me reconheçam. Não. Não me reconhecerão.
Ninguém aqui me conhece profundamente... salvo Marianne. Mas, esta,
saberei manter calada, se necessário for.”
Deitou-se no leito saboreando a sua vitória:
– Malditos! Eles me pagarão. Por causa deles perdi tudo que possuía e
agora nada mais espero da vida.
Lembrava-se com saudade dos dias calmos e felizes que passara com pai
Joachim. Na tela da memória surgiram novamente as tardes em que,
sentados em toscos bancos, contemplando o pôr do sol, em frente à
humilde moradia, abria pai Joachim o novo testamento, já surrado pelo
uso, e parecia ouvir a voz do velho amigo a discorrer sobre a doce
mensagem de Jesus de Nazaré.
De olhos cerrados, Felipe ouvia na acústica da alma como se a
mensagem fora dita em tom caricioso e fraterno, enquanto lhe parecia
sentir na fronte o toque de mãos diáfanas a acariciar-lhe os cabelos:
“Não te entregues à vingança, meu filho. Cada criatura é responsável
pelo mal que desencadeia e sofrerá as consequências dos atos impensados
que houver praticado. Lembra-te das palavras do nosso Mestre Jesus, que
nos convidou a perdoar tantas vezes quantas se fizessem necessárias.
Perdoa aqueles que ainda são arrastados por suas tendências morais
inferiores e confia em Deus, não esquecendo que Ele é justo por excelência
e não estaria te entregando um fardo maior do que podes suportar.
“Aproveita, isto sim, a oportunidade que te foi concedida de seres um
servidor do Cristo e trabalha em prol de ti mesmo e de todos aqueles que
te cercam. Antes, espalha o amor e a consolação e receberás bênçãos de
luz no teu caminho. Não será através do desforço que conquistarás a
mulher amada. Ao contrário, colocarás maior distância entre ti e o
objetivo a alcançar.
“Hoje, saldas débitos contraídos num passado distante e criminoso,
conforme compromissos assumidos antes de voltares à carne. Não
comprometas, portanto, tua situação com novas agravantes que serão
debitadas em teu ajuste de contas com a Justiça Divina.
“O momento é precioso. Encontram-se reunidos aqui teus afetos e
desafetos maiores. Luta para desfazeres o mal que causaste anteriormente
e serás muito feliz.
“Nos momentos difíceis conta comigo e com outros amigos que possuis
no além-túmulo. Ora muito. Deus seja contigo!”
Doce paz o envolveu e, por alguns instantes ainda, parecia sentir doces
mãos afagando-lhe a fronte como um refrigério.
Batidas na porta, porém, o retiraram bruscamente do devaneio e se viu
jogado à dura realidade. Um servo vinha avisar que logo seria servida a
refeição e que era aguardado no salão.
Agradeceu, ajeitou as dobras do burel, recompôs a fisionomia e, com
um suspiro, deixou o quarto.
Atravessou intermináveis corredores, salas e longas escadarias que o
levariam ao salão onde era esperado. Felipe tentava conter as batidas
desordenadas do coração; a pulsação se fizera precípite e as têmporas
latejavam.
Ao assomar à porta de acesso ao salão divisou a seleta reunião, as
damas elegantemente trajadas e cobertas de adornos, os cavalheiros que
palestravam animadamente. Teve ímpetos de fazer meia volta e retornar
sobre os próprios passos fugindo dali. Sabia, porém, que não seria mais
possível. Respirou fundo, afivelou ao rosto uma máscara impassível e
penetrou no recinto.
As apresentações foram feitas a cada um. Respondia por monossílabos,
evitando falar demasiadamente; ainda assim procurou modificar o tom da
voz, tornando-a mais grave.
Aos poucos foi acalmando-se, ao perceber que ninguém notara nada. O
momento mais difícil foi quando o apresentaram a sua própria mãe, que
nunca imaginou encontrar no local. Por pouco não se denunciou, em face
da emoção que o tomara de assalto.
Felizmente estava num lugar pouco iluminado e Louise não percebeu
sua perturbação. Quando se inclinou para beijar a mão do novo sacerdote,
notou apenas que a mão dele estava fria e algo trêmula.
Quanto a Marianne, esta não poderia perceber nada realmente. Alheia a
tudo, aproximou-se com ar displicente e, sem nem olhar para o rosto do
religioso, com profunda indiferença osculou a mão que lhe era estendida.
Felipe detectou até uma certa irritação, certa animosidade, na pessoa da
jovem condessa, sem conseguir atinar com o motivo.
Após as apresentações, passaram para o salão destinado às refeições e
Felipe aos poucos se descontraiu.
Conquanto a iluminação estivesse mais intensa, o que o preocupou num
primeiro momento, logo percebeu que não teria motivos para isso. Na
verdade, ninguém estava interessado na sua pessoa. Trocavam ideias
sobre política, as últimas novidades da corte, os mexericos mais picantes e
assuntos diversos em que a frivolidade que imperava nos salões se fez
sempre presente.
O conde, após algumas perguntas impessoais feitas mais por gentileza
do que por real desejo de conhecer sua pessoa, desinteressou-se também
do monge, que, agradecido, fez a refeição em silêncio.
Após o repasto, e quando começariam a preparar as mesas de jogo e as
danças, Felipe pediu permissão para retirar-se, alegando cansaço, e saiu
deixando os hóspedes mais à vontade.
– Ufa! – resmungou Marianne, após a saída do sacerdote. – Felizmente
recolheu-se. Não aguentava mais sua presença soturna e grave.
Louise sorriu, retrucando com bondade:
– Não estarás fazendo juízo precipitado, minha querida?
– Não gostei dele assim que o vi, eis tudo! Causou-me medo.
– Em que o pobre frade te desagradou a tal ponto, para que te refiras a
ele dessa maneira indelicada?
– Não sei, querida condessa. Sinto algo de estranho em sua pessoa.
Balançando a cabeça, Marianne sorriu encantadora, enquanto completava:
– Provavelmente estarei sendo injusta. O pobre frei Felipe não tem
culpa da saída do nosso bom Victor.
– Ah! nisso concordo plenamente contigo. Mas, vê, estamos sendo
requisitadas naquele grupo.
Levantaram-se e foram conversar junto de outros convidados que lhes
exigiam a presença.
Num outro recanto, os cavalheiros falavam sobre política e
demonstravam preocupação. O conde de Montpellier, em voz baixa,
alertava a todos:
– Ficai cientes disso que vos digo. As coisas não tardam a explodir.
– Tens certeza do que acabas de afirmar? – indagou o Senhor de
Drumond.
Ricardo de Montpellier, assim questionado, pigarreou, levou a mão aos
bigodes bem tratados e respondeu:
– Naturalmente não posso afiançar-vos algo que não vi. Contudo, tenho
informações seguras de que se prepara um ataque.
O duque Segismundo de Bouillon, sogro de Lucas de Montpellier e que
chegara durante o dia juntamente com a esposa e outros hóspedes, vindos
de Paris, meneou a cabeça, incrédulo:
– Não... não creio que a Inglaterra se aventurasse a esse ponto. Desejam
nossos territórios, não resta dúvida, mas temem nosso poderio bélico.
– Creio que o conde Ricardo de Montpellier está com a razão, caro
duque – retrucou o barão de Montfort. O Senhor de Bouillon se esquece de
que o nosso poderio bélico está bastante enfraquecido e desgastado pelas
guerras santas e que uma parte de nossos soldados está lutando em terras
distantes. Creio mesmo que se eles têm intenção de nos atacar não
poderiam escolher melhor momento.
– Concordo contigo, amigo Montfort – aquiesceu Henri de
Montmorency. – Soube ainda no mês passado que o soberano inglês
tentava aliar-se a diversos senhores, inclusive ao conde de Flandres. Se
conseguir, ficará muito fortalecido.
Essas palavras caíram como uma ducha gelada sobre os participantes,
que ficaram pensativos e calados.
– O que pensaria Sua Majestade a esse respeito? – inquiriu o anfitrião ao
duque de Bouillon, fazendo menção à intimidade de que gozava o duque
Segismundo junto ao rei.
Suspirando, o duque respondeu com ceticismo:
– Não sei ao certo. Existem outros fatores que poderão intervir no
problema, mas Sua Majestade voltou da Terra Santa cansado de guerras.
Não obstante, se for obrigado a defender o solo francês não hesitará,
evidentemente.
– Vamos esperar que se trate tão só de rumores sem maiores
consequências – foram os votos do barão de Montfort.
Todos foram unânimes em concordar.
– É preciso, porém, que fiquemos de sobreaviso e preparados para
qualquer eventualidade – disse o conde de Montpellier.
– Sua Majestade já foi informado?
– Naturalmente. Assim que recebi a notícia, mandei um portador
urgente à Corte e, a esta altura, o rei já sabe de tudo o que se trama. Além
disso, ele mesmo tem sua própria rede de informações.
– Muito bem. Precisamos manter nossos contingentes preparados para
a refrega. Especialmente porque Montmorency, dada a sua posição
estratégica, representa para o exército inimigo passagem quase que
obrigatória para atingir a capital do reino.
Fez uma pausa e continuou, levantando-se:
– Porém, enquanto nada acontece – sugeriu o anfitrião – esqueçamos as
tristezas e aproveitemos estes dias de congraçamento. Proponho que
façamos um brinde.
Todos se ergueram com as taças de vinho nas mãos e, levantando os
braços, responderam em coro às palavras emocionadas do dono da casa:
– À França e à coragem e valentia de seus homens!
Capítulo VII - Trama diabólica

Eram dias de muita agitação. O céu limpo apresentava tonalidade azul


que se casava com o verde da vegetação, proporcionando lindo contraste.
As tendas, armadas numa planície, de matizes diversos, e as bandeiras e
estandartes coloridos agitados pelo vento produziam espetáculo brilhante
e encantador.
O povo, que acorria sempre a esses eventos, transitava satisfeito,
movimentando-se em alegre algazarra.
Como sempre acontecia, os jogos atraíam artistas populares,
saltimbancos, trapezistas, equilibristas, engolidores de espadas e mágicos,
que produziam um espetáculo à parte, para alegria geral.
De toda a região chegavam contendores para participar das liças,
trazendo toda a sua equipagem, servos e animais, o que produzia um
aumento populacional muito grande.
Sem contar com aqueles que montavam suas barracas para vender
produtos, provocando uma mistura de odores característica dessas
ocasiões. O cheiro de frituras se confundia com o aroma apetitoso de carne
assada no braseiro, de guloseimas, frutas e vinhos, além de perfumes de
variadas fragrâncias e óleos aromáticos importados do Oriente,
caríssimos.
No castelo a movimentação era intensa. Os criados corriam de um lado
para outro atendendo aos convidados, enchendo-lhes os copos de vinho
ou refrescos, trazendo-lhes frutas de diferentes qualidades e doces.
Outros, na cozinha, esmeravam-se na confecção de pratos complicados
e saborosos, temperando caças para serem assadas no espeto, ou em
grandes fornos de barro; peixes e aves que seriam servidos com molhos
picantes.
Todos tinham suas obrigações e não descuidavam delas, sob pena de
serem repreendidos pelos senhores, que desejavam um atendimento
perfeito.
As senhoras caprichavam nas toaletes e adornos, procurando
tornarem-se ainda mais sedutoras aos olhos dos demais.
Marianne se esforçava por manter uma fisionomia alegre, tentando ser
agradável e gentil com os visitantes, não obstante seu estado de íntima
desolação. Quem a conhecesse bem e se desse ao trabalho de analisar seus
traços, perceberia que ela não estava bem. Conquanto seus lábios
sorrissem, os olhos mantinham um perene véu de tristeza.
Em seus aposentos, após um dia estafante, entregava-se ao desespero e
chorava até altas horas da madrugada. Na manhã seguinte levantava
cansada, mas consciente de suas obrigações, pronta para enfrentar o novo
dia.
Percebendo que sua jovem amiga parecia muito abatida, Louise
conversou com ela, tentando arrancar-lhe os motivos dessa tristeza,
porém Marianne deu uma desculpa qualquer para não magoar a condessa
de Montpellier e nada disse.
A outra, porém, muito perspicaz, ponderou, aconselhando-a:
– Se não desejas relatar-me o motivo de teus infortúnios, Marianne,
posso entender. No entanto, creio que deves falar com alguém. Estás te
consumindo aos poucos e acabarás por adoecer gravemente. Por que não
procuras frei Felipe e expõe a ele o que te aflige?
Marianne sorriu timidamente, agradecendo o interesse da condessa e
prometeu que iria procurá-lo. Ao ficar a sós, a jovem meditou longamente
no alvitre da amiga e concluiu que ela tinha razão. Era necessário que
abrisse o coração, que se confessasse. Seus sentimentos ameaçavam
sufocá-la, já não suportava mais o turbilhão que rugia dentro de si.
Precisava mesmo contar a alguém seus pesares antes que explodisse. Na
verdade, a ideia de procurar o sacerdote não a entusiasmava nem um
pouco. Não simpatizava com ele e temia sua presença. Mas, a realidade é
que, apesar de seus sentimentos, ele era um religioso e a pessoa mais
indicada para ouvir sua confissão.
Mandou chamá-lo por um servo, dizendo que o aguardaria no oratório
e para lá se dirigiu.
Ao receber o chamado, Felipe exultou. Era a primeira vez que ficaria a
sós com Marianne. O simples fato de trocar algumas palavras com ela, sua
proximidade, tirava-lhe a razão.
Penetrou no recinto tentando manter atitude impessoal e discreta.
De fronte inclinada, ela orava. O véu lhe escondia o rosto; as mãos que
desfiavam o rosário eram níveas e delicadas. Teve ímpetos de tomá-las
entre as suas, como tantas vezes o fizera, e aconchegá-la ao peito.
Notou que ela sofria e aguardou ansiosamente que o chamasse.
Observava-a à distância e, conhecendo-a melhor do que ninguém,
percebeu que procurava manter-se impassível, conquanto seu coração
sangrasse.
Mas, por quê? Procurando entender a razão desse sofrimento começou
a observar o que ocorria ao redor dela e notou o desinteresse, raiando pela
indiferença criminosa, que lhe tributava o marido, esse mesmo Charles de
Montmorency que lhe destruíra as esperanças de felicidade e que, agora,
desprezava o que conseguira, traindo a outrem, e exterminando tudo o
que lhe era mais caro.
Certo, ele pagaria! Na tela da memória, naquele instante, Felipe reviu o
ataque covarde a sua pequena herdade, o fogo, os animais e aves banhados
em sangue, sua fuga.
Sim, ele não poderia ficar impune. Mil vezes amaldiçoado, sofreria as
penas do inferno.
Ao ouvir a voz de Marianne, rapidamente retornou ao presente.
– Filha, conta-me o que te aflige. Nosso Senhor Jesus Cristo saberá
proporcionar-te consolo.
Com as mãos no rosto ela balbuciou:
– Sofro muito, irmão. Sou uma pecadora e necessito do perdão e da
compreensão de Deus.
– O que fizeste, minha filha?
– Amo perdidamente um homem, e esse homem não é meu marido. Se
aquele que deveria estar sempre ao meu lado a proteger-me tivesse me
dado atenção, isso talvez não teria ocorrido; mas ele me ignora e raras
vezes permanece em casa, sempre envolvido com mulheres e bebidas.
Fazendo uma pausa ela prosseguiu, sem perceber a surpresa e a
perturbação que se estamparam na face do religioso.
– Compreendo, porém, que isso não justifica meus atos. Devo
penitenciar-me pelo pecado que cometi.
Num sopro de voz, Felipe inquiriu:
– E quem é esse homem?
– Aí é que está minha falta mais grave. De todos os homens, esse
especialmente me era proibido, pois já tinha compromisso.
– Casado?
– Sim, irmão, mas não da forma que imaginais. Seu compromisso é com
a Igreja.
Frei Felipe teve um movimento de recuo, perplexo.
– Sim, frei. É um sacerdote, como vós. O melhor, o mais puro dos
homens. Trata-se de frei Victor.
– Miserável! – grunhiu entre dentes.
– Dissestes algo, irmão?
– Desgraçada! O que fizeste? O que houve realmente entre ambos? –
perguntou entre indignado e curioso para informar-se de tudo.
– Nada. Nunca houve nada entre nós. Minha honra está intacta, pois
jamais manchei o bom nome de meu marido. Frei Victor deixou esta casa
por minha culpa, tenho certeza.
– Disse-te isso?
– Não, mas presumo. Ele não tem culpa nenhuma. A única criminosa
sou eu. Poderá Deus perdoar-me, frei?
Felipe pronunciou algumas palavras referindo-se ao castigo de Deus
para os que infringiam suas leis e deu-lhe uma penitência.
– Estás perdoada, filha. Porém não peques mais; arranca do teu coração
esse sentimento impuro para teres a salvação eterna.
Já em seus aposentos, Felipe andava de um lado para o outro,
impaciente e colérico.
“Até tu! Tu que eu considerava como meu melhor e único amigo. Tu me
cravas um punhal nas costas. Miserável! Por isso nada me contaste, ao
retornar ao mosteiro, sobre as razões que te levaram a abandonar o cargo
no castelo de Montmorency. Ama-a também, por certo, caso contrário não
fugiria. Maldito! Com que carinho ela fala dele; seus olhos brilham, a voz
se torna mais doce e os gestos mais delicados. Ah! Meu irmão Victor,
também tu não és digno de confiança. Ninguém o é. Não existe uma só
pessoa que mereça fé.”
Passava as mãos pelos cabelos revoltos, tentando acalmar-se.
– Preciso pensar com frieza. Manter a mente lúcida, os olhos abertos.
Não terei mais contemplação. De hoje em diante começarei a minar o
terreno em que pisam. Todos eles sentirão o peso da minha maldição e do
meu ódio.
A partir desse dia não teve mais um momento de paz. Passava o tempo
a observar os habitantes do castelo, procurando verificar suas fraquezas e
deslizes, de modo a facilitar sua tarefa espúria.
Mansamente, mas com muita sagacidade, foi assenhoreando-se dos
segredos de cada um, o que lhe permitia armazenar informações para uso
futuro, quando se fizesse necessário. Esses dados conseguia das mais
diferentes maneiras, através de confissões, de conversas com os criados
que sempre estavam muito bem informados, ouvindo bisbilhotices ou
escutando atrás das portas. Foi assim que ficou sabendo da nova paixão do
duque Segismundo de Bouillon: a condessa Clarissa de Montmorency.
Sensual e volúvel, o duque procurava novos interesses.
Em confissão, frei Felipe ficou sabendo que o duque de Bouillon
propusera um encontro à condessa Clarissa, num recanto isolado do
jardim, sob um caramanchão, a altas horas da noite. A própria condessa
lhe mostrou o bilhete comprometedor, sob violenta crise nervosa,
suplicando-lhe um conselho, pois o duque ameaçava contar ao seu marido
se ela não fosse ao dito encontro. Sem saber o que fazer, desesperada, ela
suplicou a ajuda do monge, no sentido de dissuadir o referido senhor dos
seus propósitos escusos.
Frei Felipe meditou durante alguns instantes, enquanto revirava o
bilhete perfumado entre as mãos. O duque tivera o cuidado de não colocar
o seu lacre e nem assinar a mensagem para que, se caísse em mãos
estranhas, não pudesse ser identificado como o remetente.
Afinal, com voz doce e melíflua, o religioso aconselhou:
– Senhora Condessa, vossa situação é deveras melindrosa e exige muito
cuidado. Quer-me parecer, porém, que o nosso homem continuará
insistindo até obter o que deseja. Creio que o melhor seria o vosso
comparecimento ao projetado encontro no sentido de tirar-lhe as
esperanças de uma vez por todas.
– Mas, reverendo...
– Não temais, Senhora. Para que a lição seja completa, prometo surgir
no momento preciso para dar um susto no duque e tirar-lhe o desejo de
encontros furtivos com damas de respeito.
Agradecida, a condessa beijou a mão do frade. Fútil e superficial, não
soube perceber o perigo da situação, aceitando como melhor recurso o
que o religioso lhe propunha:
– Oh! Senhor. Não sabeis que alívio sinto ao poder contar com a vossa
ajuda. Ficarei mais descansada agora. Acreditais mesmo que dará certo?
– Sem dúvida! Ao ser pilhado em flagrante, ficará tão apavorado que
nunca mais se atreverá novamente. Sem contar que o ameaçarei com a
excomunhão, coisa muito séria, como vós sabeis.
Aliviada, com leve sorriso no rosto, a condessa Clarissa afastou-se para
cuidar de seus afazeres.
Frei Felipe esboçou cínico sorriso na face, pensando: “O primeiro passo
está dado. O primeiro inimigo a ser atingido será o Senhor de Drumond; a
sua família seguirá com ele e, como consequência, o duque também não
deixará de ser atingido”.
O encontro furtivo estava marcado para aquela noite, às vinte e três
horas.
As luzes do castelo aos poucos foram apagando. Os hóspedes se
recolheram e o silêncio se fez. Só se ouviam o latido dos cães e o pio do
mocho.
Frei Felipe aguardava com ansiedade. Colocara sob a porta do quarto do
anfitrião um bilhete em que o alertava para o que estava acontecendo às
vistas dele.
À hora aprazada, abriu-se uma pequena porta que dava para o jardim e
um vulto embuçado saiu furtivamente, dirigindo-se para o caramanchão.
Ao aproximar-se titubeou com medo, fazendo menção de retroceder.
Estava tudo muito escuro e nada podia enxergar.
Antes que retrocedesse, porém, sentiu que dois braços possantes a
agarraram com força, puxando-a para dentro do caramanchão. Um hálito
quente se lhe aproximou do pescoço e lábios escaldantes se colaram aos
seus.
Tentando desvencilhar-se com todas as forças, soltou um grito abafado.
Ao mesmo tempo, ouviu uma voz colérica que dizia em altos brados:
– Para trás, miserável! Vou ensinar-te a não conspurcar a honra de um
lar digno e honesto.
De imediato, uma tocha foi acesa e, surpreso, o conde de Drumond deu
um passo atrás:
– Marianne! És tu?!...
Colocando a cabeça entre as mãos, Marianne desatou a chorar,
envergonhada da posição melindrosa em que se encontrava.
O duque, trêmulo, gaguejava:
– Meu amigo, posso explicar...
– Tua atitude não tem explicação e exige uma reparação pelas armas.
Desembainha tua espada, canalha, e luta como um homem – gritou o
conde sob violenta emoção.
Em posição, iniciaram a luta em silêncio. Só se ouviam suas respirações
ofegantes e o tinir dos metais. Apavorada, Marianne acompanhava a cena
que se desenrolava ante seus olhos sem conseguir sair do lugar.
Um quarto personagem existia que acompanhava o combate com
interesse. Avaliava rapidamente os prós e os contras e o melhor partido
que poderia tirar da situação. Saindo das sombras, puxou Marianne pelo
braço, tapando-lhe a boca para que não gritasse. Levou-a rapidamente
para lugar seguro e, dali, para os aposentos que ela ocupava.
À luz das velas, já no interior do castelo, ela viu que se tratava de Túlio,
o menestrel.
Em estado de choque, Marianne não conseguia falar. Agradeceu com os
olhos e o rapaz lhe disse:
– Condessa Marianne, amanhã conversaremos. Descansa e esquece o
que se passou aqui esta noite. Ninguém ficará sabendo de nada, não te
preocupes. Salvei-te a vida e a honra e espero que não te esqueças disso.
Em seguida Túlio voltou ao local em que se desenrolava a luta e, à luz
das estrelas, pôde ver o conde Henri de Drumond, que jazia no chão, em
meio a uma poça de sangue, já sem vida.
O duque não estava mais no local; fugira do palco da tragédia, deixando
o adversário estendido no lajedo.
Capítulo VIII - Funerais de Henri de
Montmorency

Presa de invencível tremor nervoso, Marianne não conseguia conciliar


o sono. O coração batia precípite, ocasionando sério desequilíbrio
orgânico. A cabeça escaldava e gotas de suor porejavam-lhe a fronte,
enquanto esfregava as mãos, gélidas e úmidas.
Recostada nos travesseiros, em seu leito, não conseguia entender como
tudo acontecera. Saíra tudo errado. Tudo. E agora, o que fazer? Sentia-se
perdida e desonrada.
Seu sogro, o conde de Montmorency, a encontrara nos braços daquele
homem asqueroso e por quem só sentia repulsa, e ele não teria piedade
dela. Charles, seu filho, ficaria sabendo e seria um escândalo.
Ao pensar nisso, abafou um grito de angústia, apertando o rosto contra
o travesseiro macio. Não queria acordar a serva que, adormecida, não
percebera a sua saída.
Por outro lado – meditava –, nada poderia dizer do real motivo da
presença dela, Marianne, naquele local ermo na calada da noite.
Percebendo a aflição de Clarissa, sua sogra, e notando lágrimas em seus
olhos, procurou saber a razão de seus dissabores e a condessa
confidenciou-lhe o encontro marcado e o acordo que fizera com o frei
Felipe. Afirmava-se, porém, sem coragem para enfrentar a situação e
Marianne, mais resoluta, se ofereceu para ir em seu lugar. Afinal, seria
divertido ver a consternação do duque, que ela abominava, e ao mesmo
tempo dar-lhe uma dura lição.
E, decidida, esperou a hora combinada para dirigir-se ao local.
Neste ponto de suas lembranças respirou profundamente e soltou um
gemido: “Mas como, por Deus, surgira o conde de Montmorency em vez do
frade? Por que louca ironia do destino fora apanhada numa armadilha,
sem culpa alguma e sem possibilidades de se defender e relatar a
verdade?”
Mesmo que seu sogro nada dissesse a Charles, pois acreditava que
Clarissa poderia auxiliá-la nessa contingência, já que fora a causadora do
terrível acontecimento, mesmo assim, existia ainda Túlio, que era muito
amigo e confidente de seu marido.
Como tudo isso acontecera? Por que razão o monge que deveria estar
no local e dar-lhe cobertura não estava, e em seu lugar surgira a figura
enérgica e severa do pai de Charles?
Mil indagações fervilhavam em sua mente, enquanto lágrimas
umedeciam-lhe o travesseiro.
O dia já clareava quando conseguiu adormecer. Teve sono agitado e
estremecia, vez por outra, presa de cruéis padecimentos.
A serva não quis despertá-la na hora de costume, percebendo pela sua
agitação, pelas marcas visíveis no rosto, que algo de muito grave
acontecera.
Marianne despertou com gritos terríveis e grande alarido nos
corredores do castelo.
O jardineiro encontrara o corpo do conde de Montmorency estendido
no chão, próximo ao caramanchão de rosas e buganvílias. Assustado, dera
o alarme e já todo o castelo se punha em polvorosa.
Assustada, Marianne inquiriu da criada o que estava acontecendo. Em
lágrimas a rapariga lhe disse:
– Uma desgraça, minha Senhora. Assassinaram barbaramente o Senhor
Conde de Montmorency!...
Marianne, que se levantara rapidamente do leito, apavorada com os
gritos, empalideceu ao ouvir a notícia e caiu sem sentidos no tapete, sendo
amparada pela serva que, com grande esforço, recolocou-a no leito,
dando-lhe sais para cheirar.
Voltando a si, alguns minutos depois, Marianne encontrou o rosto da
criada de quarto inclinado sobre ela com expressão aflita.
– Graças a Deus, Senhora, já recuperastes o sentido. Mandei chamar o
médico, que não deve tardar.
– Não há necessidade, Gertrudes. Estou bem agora. Preciso levantar-me
com urgência.
– Senhora, ainda estais muito pálida. É melhor que continueis no leito.
– Não, Gertrudes. Ajuda-me a preparar-me. Vamos, avia-te.
Um quarto de hora depois Marianne dava entrada no salão,
encontrando todos reunidos e igualmente consternados. A condessa
Clarissa, enlaçada por Louise, era a própria imagem da dor.
Ao aproximar-se dela, Marianne percebeu em seus olhos uma
indagação muda, mas não era a hora, nem o local, para esclarecimentos.
O duque, com ar contrito, conversava a um canto do salão com alguns
cavalheiros, demonstrando-se terrivelmente chocado. Túlio, ao lado de
Charles e de Lucas, consolava o filho do falecido, parecendo muito à
vontade.
O capelão do castelo, sentado numa cadeira, um pouco retirado, orava
de cabeça baixa.
A notícia se espalhou rapidamente. Crepes negros foram colocados no
castelo em sinal de luto.
Após os preparativos de praxe, o corpo foi colocado no salão em
câmara-ardente, para a visitação pública e as últimas homenagens ao
morto.
Em pouco tempo o local se encontrava repleto, tanto de curiosos como
de amigos do falecido conde. Como era temporada de jogos e grande
quantidade de nobres se encontravam reunidos para os festejos, o castelo
encheu rapidamente.
Localizado não muito distante de Paris, da Corte vieram nobres,
descendentes de famílias ilustres, para prestar suas homenagens ao
extinto, bem como altos dignitários da Igreja, funcionários da Casa Real e
cidadãos comuns do povo, curiosos para informar-se do acontecimento.
A família recebia as condolências, reunida.
Charles, agora detentor do título nobiliárquico do pai, que lhe era
passado por direito, envergava a posição com dignidade e orgulho
indisfarçáveis, andando de um lado para o outro a palestrar discretamente
com os diversos grupos que se formaram.
Após as honras de costume, considerando-se a posição social e a
importância do morto, foi o corpo enterrado numa cripta na capela do
castelo, em local previamente designado para esse fim e onde repousavam
os restos mortais dos ancestrais da família Drumond e Montmorency.
Após a cerimônia fúnebre o povo se dispersou voltando para seus lares.
Os visitantes que tinham acorrido ao local para os torneios, agora
suspensos, não tendo motivo para lá continuar, arrumaram as bagagens,
desarmaram as tendas coloridas e retiraram seus pavilhões. Dentro em
pouco a planície onde se alojavam estava deserta.
Também os comerciantes, os vendedores ambulantes de bugigangas, os
saltimbancos, todos tomaram outro rumo, em busca de outras localidades
para oferecerem seus produtos ou seus espetáculos.
Em pouco tempo tudo voltara ao normal. Os arredores do castelo
ficaram desertos, deixando uma sensação de vazio, após todo o
movimento e alegria que agitaram a região por alguns dias.
Soberana, a bandeira negra hasteada no alto do torreão, sacudida pelo
vento, era uma testemunha muda do sofrimento e da dor em que estava
mergulhado o castelo.
Na propriedade só permaneceram os mais íntimos, chocados com o
trágico acontecimento, e desejosos de prestar apoio moral à família
enlutada.
Somente se percebiam, de quando em vez, vultos negros transitando
pelas salas e corredores do castelo, imerso em sombras.
Ficaram, porém, muitas dúvidas, muitas indagações sem resposta.
A versão mais cogitada era a de que um salteador entrara nos jardins
para roubar e fora surpreendido pelo proprietário. Contudo, permanecia a
pergunta: por que estaria o conde altas horas da noite naquele local ermo
e sem seu escudeiro?
Dizia-se, também, à boca pequena, que o falecido teria ido encontrar-se
com alguma mulher casada e fora surpreendido pelo marido.
Isso, porém, falava-se em sigilo, pois ninguém podia provar nada. E,
além disso, que mulher seria essa, tão misteriosa que ninguém conhecia?
A verdade só era conhecida por Marianne, pela condessa Clarissa, por
frei Felipe, por Túlio e pelo duque, naturalmente.
No dia seguinte ao assassinato, Túlio se dirigiu aos aposentos do duque
Segismundo de Bouillon solicitando-lhe uma entrevista particular.
O referido senhor o recebeu, refestelado entre almofadas, degustando
algumas frutas açucaradas, enquanto se servia de excelente vinho da
adega do falecido conde. Assim que o músico entrou, o duque lhe dirigiu a
palavra em tom frio:
– Desejas falar-me? Peço-te, no entanto, que sejas breve. Como sabes, o
momento é muito triste e tenho urgência de descer e prestar minhas
homenagens ao querido amigo tão tragicamente desaparecido.
Despreocupado com o tom indiferente com que o duque o recebeu,
Túlio se sentou, sem que tivesse sido convidado, para espanto do Senhor
de Bouillon.
– Ah! Senhor! É verdade. Que triste e doloroso o fato que ocorreu à
noite passada! Estimava sinceramente o Senhor Conde, que sempre foi
muito bom para mim. Mas, agora, não sei o que farei da minha vida.
E, levantando-se, chegou até a janela, soltando uma exclamação de
prazer, sob o olhar intrigado do duque.
– Mas que linda vista tendes aqui da vossa janela, Senhor! O jardim é
lindíssimo e aprecio muito passear em suas aleias, sorvendo o ar
balsâmico das flores. Principalmente à noite, gosto de vagar por entre as
árvores, observando as estrelas e deixando-me envolver pelo fascínio da
lua. Afinal, sou um músico e muito romântico, como sabeis.
Sentindo a estocada que lhe era dirigida, o duque se assustou, embora
não demonstrasse.
– Gostas de andar pelo parque à noite?
– Sim, muito. É um hábito antigo, podeis acreditar.
– Ah! Todas as noites?
– Todas as noites.
– Ah!... às primeiras horas noturnas, presumo.
– Oh! Não, Senhor. Gosto de ouvir o silêncio e isso só se consegue
quando todos já se recolheram.
Bouillon estremeceu, pensando: “O que desejará de mim esse
desgraçado?”
E Túlio prosseguiu, após uma pausa, com ar displicente:
– Se bem que, na noite passada, não pude concentrar-me nas estrelas e
nem no perfume das flores por causa do barulho. Mas, creio que estou a
aborrecer-vos falando de coisas que não vos interessam. Este vinho está
excelente! – falou com aprovação, servindo-se sem que lhe fosse oferecida
a bebida.
– Ao contrário, estou muito interessado. Barulho, disseste?
– Sim, Monsieur. Dois homens quando lutam fazem uma bulha muito
grande.
Fez outra pausa e ficou esperando a reação do outro. O duque levantou-
se e pôs-se a andar de um lado para o outro, agitado, com as mãos nas
costas, num hábito muito seu. Afinal, parou e fitou o seu interlocutor com
olhos indevassáveis:
– Muito bem. Percebo aonde queres chegar. O que foi que viste?
– Tudo, Senhor.
– Tudo?
– Tudo. Quereis que vos recorde o que aconteceu? Lutastes com o
Senhor de Drumond e o vencestes, deixando-o morto no chão, esvaindo-se
em sangue.
– Cala-te, miserável – disse o duque, olhando em derredor para ver se
alguém poderia ter escutado a acusação do trovador.
– Não vos preocupeis, Senhor, estamos a sós – tranquilizou-o Túlio.
– Muito bem. O que pretendes fazer? Não tens provas do que dizes. Será
a palavra de um nobre do Reino contra a de um infeliz menestrel, sem
fortuna e sem família.
– É aí que vos enganais, Senhor Duque – retirou da algibeira um
pequeno retalho de tecido brocado em tom vinho e, agitando-o na mão,
completou triunfante: – Este pedaço de tecido encontrei no local do duelo
e ninguém terá dificuldades em reconhecê-lo como de Vossa Graça.
Assim colocado contra a parede e sem ter saída, Bouillon perguntou em
tom sibilino:
– O que desejas? Tornar público o meu ato e desonrar-me perante
todos?
– Não, Monsieur. Nada deveis temer de mim. Ninguém ficará sabendo,
afianço-vos. No entanto, sou um rapaz pobre, como vós mesmo dissestes.
Não tive a felicidade que vos coube de nascer entre as mais nobres e
aristocráticas famílias do Reino, como afirmastes. Não tenho família, nem
fortuna e vivo da bondade daqueles que me hospedam em suas casas.
Desejo, Senhor, ser vosso protegido. Creio que podeis confiar em mim e
vos serei muito útil. Colocai-me a vosso serviço e prometo que não vos
arrependereis.
– Só isso?
– E uma pequena renda, naturalmente, para que possa manter-me sem
precisar viver da caridade pública.
– É justo – concordou o duque. – Terás o que pediste. Trabalharás para
mim de ora em diante. A propósito, é preciso inventar uma boa história
para contar e que não levante suspeitas.
– Naturalmente, Senhor. Encarregar-me-ei de espalhar uma notícia que
agrade a todos. Afinal, existem muitos estranhos pelas redondezas e não
será difícil acusar qualquer deles – falou alegremente Túlio.
– Ótimo, meu rapaz. Creio que nos daremos bem.
Separaram-se os cúmplices, satisfeitos pelo acordo firmado, cada qual
julgando que não lhe seria difícil enganar o outro e pensando na melhor
forma de fazê-lo. Era preciso, porém, dar tempo ao tempo.
Deixando os aposentos do duque de Bouillon, Túlio dirigiu-se resoluto
para uma entrevista com a condessa Marianne.
Presa de forte depressão nervosa, a jovem dama se encontrava em seus
aposentos, recostada num sofá entre almofadas de cetim, numa pequena
varanda.
Tufos de folhagens e plantas odoríferas enfeitavam o local, enquanto
lindos pássaros, presos em elegantes e requintadas gaiolas, soltavam seus
trinados, alegrando o ambiente.
Marianne, contudo, parecia nada perceber. Mantinha os olhos perdidos
no vazio, como se fitasse algo inacessível ao olho comum e a espaços
estremecia, como se atingida por descarga elétrica.
O menestrel foi introduzido pela criada que, imediatamente, deixou-os
a sós a uma ordem da senhora.
Vestida com um roupão de cetim rosa que lhe caía até os pés, Marianne
estava belíssima. As mangas longas, que se alargavam como um sino,
possuíam uma abertura que lhe deixava ver os braços roliços. Os cabelos,
presos displicentemente com uma fita da mesma cor, demonstrara que a
dama não se preocupara com a toilette daquela manhã, e Túlio a achou
mais linda assim, sem os atavios próprios das damas da nobreza.
As mãos, finas e nervosas, tamborilavam, impacientes, e os delicados
pés, calçados com chinelos de cetim, acomodados em um tamborete ao
lado do sofá, também acompanhavam o ritmo das mãos, demonstrando
cabalmente o estado de espírito da dama a um observador inteligente.
Túlio pigarreou, desejando fazer notar sua presença.
Saindo da sua abstração, Marianne voltou-se e, vendo-o, desculpou-se:
– Estáveis aí há muito tempo?
– Não, Senhora Condessa. Acabo de chegar e confesso que me detive
por momentos na contemplação da vossa beleza estonteante.
– Não me lisonjeeis, Senhor, posso acreditar em vossas palavras! Meu
marido não ficaria contente de saber que lhe cortejais a esposa.
– Vosso marido, Senhora, ficaria satisfeito em saber que admiro o belo
como uma obra de arte.
Indicando uma poltrona para que se acomodasse, Marianne inquiriu:
– Mas, não viestes aqui para falar da minha pessoa. A que devo a honra,
Senhor?
– Realmente, Senhora, motivos mais graves me trazem à vossa
presença. Trata-se do que ocorreu na noite fatídica em que o...
– Ah! – murmurou Marianne, empalidecendo. – Não desejo recordar os
acontecimentos daquela noite.
– No entanto, é preciso, Senhora! – e, rojando-se-lhe aos pés: – Sou-vos
fiel até a morte, Senhora, e dedicado até as últimas consequências.
Com ar altivo e grave ela agradeceu:
– Agradeço-vos, Senhor, a dedicação de que nunca vos julguei capaz,
mas vos afianço que nada tenho a temer. As circunstâncias são contra
mim, é verdade, mas no devido tempo poderão ser explicadas.
– Senhora, longe de mim querer fazer um julgamento do vosso
comportamento. Entretanto, dificilmente poderíeis explicar o fato de
serdes encontrada altas horas da noite, em local solitário, acompanhada
de um cavalheiro que é sobejamente conhecido em todo o Reino por suas
aventuras galantes.
– Senhor! – disse, levantando-se – poupai-me!
– Não pretendia humilhar-vos, Senhora, mas é preciso que sejais
informada de tudo o que ocorre. Correis perigo, Senhora.
Atenta, ela ordenou que ele se explicasse.
– Conheceis a fama do Senhor de Bouillon. Mas, além de suas notórias
aventuras amorosas, ele tem outro defeito gravíssimo, que não lhe honra a
nobreza da estirpe: fala muito. Tem o hábito desagradável e deselegante
de não esconder seus triunfos amorosos. Percebeis onde quero chegar?
Marianne jogou-se numa poltrona, desalentada:
– Estou perdida!
Observando a mulher que deixava transparecer profundo desgosto a
par de terrível pânico, ele pensava: “Como pôde essa criatura bela deixar-
se envolver por um canalha como o duque de Bouillon? E agora se faz de
inocente temendo a publicidade de suas relações espúrias. Não me
desagradaria manter um relacionamento mais íntimo com a linda
Marianne. Além disso, poderia matar dois coelhos de uma só vez”.
E o menestrel continuou revolvendo a ferida da condessa, enfiando
ainda mais o estilete em seu peito:
– É verdade, Senhora. E o miserável narra com requintes de detalhes
que fariam corar a rameira mais desavergonhada das ruas.
– Canalha! Miserável! – e as lágrimas corriam de seus olhos, lavando-lhe
as faces.
– Estou perdida! Definitivamente perdida!
Entretanto, ela pareceu ter um vago pensamento de esperança.
– Mas esse miserável libertino não pode dar com a língua nos dentes
sem comprometer-se. Como explicaria a morte de meu sogro? Seria
acusado e condenado à morte pelo crime. Porque ele “é” um criminoso.
– É verdade, Senhora. Nós sabemos disso, mas ninguém mais sabe. É a
nossa palavra contra a dele. E sabeis como é poderoso. Na opinião do povo,
se essa história viesse a ser conhecida, vós seríeis a mulher adúltera que
não merece crédito, e eu o menestrel, sem eira nem beira, sem família,
sem fortuna e sem honra.
Ele fez uma pausa e concluiu:
– Em quem julgais que o soberano vai acreditar?
Marianne gemeu, afundada na poltrona.
– E tem mais, Senhora.
– Mais ainda? – falou num sopro. – O que mais pode haver de grave que
eu desconheça?
– O nosso homem anda comentando, à boca pequena, que nessa história
havia uma mulher e que o encontro, com toda certeza, era com alguém do
povo, um infeliz qualquer que veio para os festejos, um desses que
atulhavam as ruas.
– Bastardo! Tenta tirar de seus ombros a responsabilidade e as
suspeitas! – falou, colérica.
– Exatamente. E não lhe será difícil. Ele já está preparando o terreno.
Naturalmente, para uns poucos de sua confiança contará a verdade, pois
sua natureza vaidosa não lhe permitirá calar seus triunfos. Mas, para
todos, ficará a responsabilidade nos ombros de um coitado qualquer.
A pobre condessa recomeçou a chorar e a lastimar-se, considerando-se
perdida.
Túlio jogou-se novamente aos pés da dama, acalmando-lhe os receios:
– Senhora, estou aqui para ajudar-vos naquilo que for necessário.
Asseguro-vos ainda uma vez a minha lealdade e dedicação.
– Por que, Senhor? Por que vos preocupais tanto comigo?
– Por amor, Senhora.
Marianne quis reagir, mas ele suplicou:
– Meu amor nada tem de impuro, Senhora. Amo-vos há muito tempo e
sei que não me amais. Quero proteger-vos. Temos um trunfo nas mãos:
“ele” não sabe que presenciei o infeliz acontecimento e que o vi cometer o
crime. Não poderemos tornar pública sua participação porque o duque
não hesitaria em denegrir vosso nome honrado, Condessa. Entretanto,
tenho meios de mantê-lo calado, pois possuo provas do ato ignóbil que
perpetrou na calada da noite.
– Oh! Graças a Deus! Já consigo vislumbrar uma réstia de esperança –
falou a pobre senhora.
– Sim, Senhora Condessa. Em minhas mãos está vossa vida e a deposito
a vossos pés, com o preito do meu amor.
– Oh! Senhor. Sois o meu salvador e vos serei profundamente,
eternamente grata – disse, entregando-lhe a mão a beijar.
Com sorriso de alívio nas feições já descontraídas, ela perguntou:
– E o que poderei fazer eu por vós, Senhor? Se puder ser útil de alguma
forma, não hesiteis em pedir-me.
Mantendo a destra dela presa entre as suas mãos, Túlio balbuciou com
voz estudadamente emotiva:
– Há algo sim que desejo, Senhora, com todas as veras da alma.
– Sim? – perguntou com candura – talvez uma pequena herdade? Sei
que sois pobre. Perdoai-me por tocar nesse ponto, mas talvez uma
pequena propriedade e uma quantia em ouro para poderdes recomeçar
vossa vida.
– Não, Senhora. O que desejo mais que a tudo no mundo é... o vosso
amor.
Levando um choque, ela se desvencilhou das mãos dele e ergueu-se,
altaneira:
– Estais louco, Senhor? Sabeis em demasia que sou a esposa de um
homem que é vosso amigo e que vos acolheu em sua casa.
– É verdade, Senhora. Entretanto, sei que esse homem não dá valor à
esposa que tem, porque eu mesmo o tenho acompanhado pelas noitadas
em ambientes indignos e depravados. Sim, sei que essa mulher é
comprometida, mas também sei que a amo com loucura e que poderei dar-
lhe o amor que ela não recebe do marido.
– Retirai-vos, Senhor. Nada mais temos a falar.
– Pensai bem, Senhora, antes de me expulsardes. Não vos esqueçais que
tenho a vossa vida e vossa honra em minhas mãos e que só eu poderei
salvar-vos.
Túlio dirigiu-lhe essas palavras e, com uma mesura, retirou-se do
aposento. Marianne, pálida e quase sem forças, murmurou, vendo-o
retirar-se:
– Sim, podeis salvar-me. Mas, a que preço?!...
***
O jovem trovador afastou-se esfregando as mãos, satisfeito. Não tinha
dúvidas de que ganharia a batalha. E se conseguisse o amor da bela
Marianne, o resto viria com o tempo, pois arrancaria dela joias, ouro e
tudo o mais que quisesse.
Cruzou os corredores do castelo e rapidamente saiu para os jardins,
procurando não ser notado. Aproximou-se célere dos portões, deixando
para trás a propriedade e ganhando o campo. Aí, mais tranquilo, diminuiu
o passo e prosseguiu rumo à vila, observando tudo ao seu redor.
A maior parte do pessoal que viera para os festejos já se fora, buscando
novas atrações, mas muitos ainda permaneciam, sem pressa de retirar-se.
Andando sem destino, Túlio procurava algo. Ao ultrapassar uma curva
do caminho diminuiu ainda mais o passo. Sentados à sombra de uma
árvore, ao lado de pequena fogueira, sobre a qual um diminuto caldeirão
exalava cheiro acre, dois homens se encontravam. Pareciam esfomeados, a
julgar pelos olhares que deitavam sobre o caldeirão que fumegava.
Um pouco afastados, dois cavalos pastavam, indiferentes aos problemas
dos donos.
Túlio se aproximou, gentil:
– Que calor! Creio que não passaremos sem chuva durante este dia.
Posso sentar-me?
Ambos, surpresos, concordaram com o gentil cavalheiro que lhes
dirigia a palavra tão amistosamente e fizeram um gesto para que se
acomodasse.
Sentado na relva fresca o trovador os fitou atentamente:
– Já não nos conhecemos antes?
– É possível, Senhor – respondeu um deles, completando: – Chamo-me
Samuel e este é o meu irmão Ezequiel.
– Ah! Lembro-me agora. Não estivestes certa ocasião a serviço do
Senhor Conde de Drumond?
– Sim, Senhor, tivemos essa honra.
– Ah! Sabia que não poderia ter-me enganado. Pois saibam os senhores
que resido no castelo de Montmorency a convite do jovem conde Charles.
O velho conde – que Deus tenha sua alma! – acaba de falecer.
– Sim, fomos informados. Viemos para os torneios na esperança de
encontrar emprego, mas nada conseguimos. Vede, Senhor, a nossa
condição – e apontou para o pequeno caldeirão fumegante: – Somos
obrigados a alimentar-nos do que conseguimos obter – e fez uma careta de
nojo.
– Mas, não vejo necessidade disso – falou Túlio com ar prazenteiro. –
Não posso deixar dois valentes rapazes nessa penúria. Sereis meus
convidados. Acompanhai-me até o castelo e afianço-vos que, além de
excelente refeição, possivelmente também encontrareis trabalho.
Com olhos brilhantes de satisfação, eles agradeceram:
– Ah! Senhor! Seríamos muito gratos se tal acontecesse. Não estamos
acostumados a esta vida de misérias. Somos de boa família e, por
infelicidade, aqui nos encontramos nesta condição difícil. Não vos
arrependereis, podeis acreditar.
Batendo amavelmente nas costas dos dois irmãos, Túlio convidou-os a
acompanharem-no.
Ao retornar ao castelo fez com que o aguardassem na área reservada
aos criados e apressou-se a dar a boa notícia ao duque.
– Senhor Duque, tenho aí dois malandros que, acredito, servirão
perfeitamente aos nossos planos.
– Ótimo! – respondeu o duque, satisfeito. – Precisamos agir rápido.
Frente a frente com os irmãos Samuel e Ezequiel, o Senhor de Bouillon
dirigiu-lhes algumas perguntas, a que Samuel respondeu. Era sempre ele
que falava pelo irmão.
Afinal, o duque se deu por satisfeito. Tomando de duas pequenas bolsas
de moedas, acenou com elas para os cúpidos homens, afirmando-lhes:
– Sou generoso, como podem ver, mas exijo fidelidade a toda prova.
– Certamente, Senhor – responderam os dois pilantras, com os olhos
abrasados pela cobiça, ao fitarem as bolsas de ouro. – Faremos tudo o que
nos for ordenado.
– Muito bem. Preciso que permaneçam aguardando minhas ordens.
Peguem este ouro e fiquem pelas imediações do castelo, na vila. A
qualquer momento mandarei alguém procurá-los.
Jubilosos, os dois já se dispunham a afastar-se quando o duque
completou:
– E bico calado. Ninguém deve saber que estão a meu serviço. Pagarão
com a vida se abrirem a boca.
– Não, Senhor. Podeis confiar em nós. Seremos um túmulo.
– Muito bem. Retirem-se.
O duque e Túlio ainda permaneceram conversando durante algum
tempo, arquitetando planos. Afinal separaram-se, satisfeitos.
Capítulo IX - Sem saída

Recostada entre macias almofadas, os pés, calçados com delicados


chinelos de veludo, repousando em um tamborete, encontrava-se a
Senhora Condessa Clarissa de Drumond.
Descansando em seu regaço via-se um bordado e ela permanecia com a
agulha entre os dedos. Quem a visse de longe julgaria que se entretinha a
bordar atentamente a toalha de puro linho que mantinha entre as mãos.
Ao aproximar-se, porém, teria notado que a dama meditava, com os olhos
perdidos no vazio.
Sua criada de quarto introduziu Marianne em seus aposentos, sem que
ela percebesse o fato.
Marianne se aproximou, tomou de um pequeno banco que se
encontrava ao lado e, sentando-se aos pés da sua sogra, disse-lhe com voz
mansa:
– Mandastes chamar-me, Senhora?
Voltando a si, Clarissa viu o semblante preocupado de sua nora a fitá-la.
Tomou-lhe das mãos, carinhosa:
– Oh! sim, minha querida. Desejava falar-te em particular. Mas, como
estás abatida e desfigurada! Emagreceste, por certo. Ah! os dias têm sido
também terríveis para mim – e, virando-se para a serva, ordenou-lhe que
se retirasse e não permitisse a entrada de mais ninguém.
Ao perceber, pelo ruído da porta, que estavam a sós, Clarissa alterou a
fisionomia, denotando aflitiva ansiedade:
– Marianne, minha querida, tenho sofrido demais, sem possibilidades
de desabafar com ninguém. Após aquele dia terrível não consigo dormir e
nem alimentar-me. Desejava conversar contigo para saber o que
realmente aconteceu, mas tudo se tornou muito difícil. Conta-me, conta-
me tudo, pois preciso saber o que houve.
A jovem se ajeitou melhor no pequeno banco, enquanto Clarissa
aguardava, angustiada.
– Oh! Senhora, foi terrível! Não podeis imaginar o que também tenho
sofrido. Na hora aprazada, dirigi-me ao local do encontro, conforme o
combinado. Em lá chegando, fui repentinamente agarrada por braços
possantes, enquanto uma boca colava-se à minha...
Marianne levou a mão aos lábios como se ainda sentisse o beijo e
quisesse limpar-se daquele contato asqueroso. Prosseguiu:
– Debati-me com todas as minhas forças, mas já me dava por vencida na
luta desigual e ansiosa pela chegada de socorro, quando ouvi uma voz
enérgica às minhas costas. Era o vosso falecido esposo que chegara e,
raivoso, desembainhou a espada, conclamando o duque para a luta.
– Oh! Meu Deus! E depois?
– Depois, Senhora, encontrava-me tão aturdida que não sabia o que
fazer. Acompanhava o desfecho do combate quando fui agarrada por
alguém que me retirou dali.
– O frei Felipe! – antecipou-se a condessa de olhos arregalados.
– Não, Senhora. Túlio, o menestrel.
– Túlio?!... O que fazia àquelas horas no jardim?
Dando de ombros, Marianne respondeu:
– Diz que procurava inspiração...
– Inspiração?!... Bem, isso não importa agora. E depois? O que
aconteceu?
– Sensatamente, Túlio me convenceu que deveria retirar-me do local,
pois não deveria ser vista ali. Acompanhou-me até meus aposentos e foi
só. Nada mais vi.
– Entendo. Não viste quem matou o conde, então.
– Não, Senhora. Mas, tudo leva à conclusão de que o duque o venceu.
Afinal, é o melhor espadachim do Reino, dizem.
– Miserável! Matou o meu Henri e nada podemos falar. Estamos de
mãos atadas. E o menestrel?
– Compromete-se a calar... sob certas condições.
– Quais condições?
Marianne baixou a fronte, enrubescida.
– Canalha! Estamos nas mãos deles.
Com lágrimas nos olhos, tocou a face de sua jovem nora, ajoelhada a
seus pés:
– Oh! minha filha! Em que triste situação te coloquei. Tudo por minha
culpa. Não deveria ter dado ouvidos àquele sacerdote. Algo está errado!
Por que não acorreu ao local, conforme o combinado? Sabia que eu
precisava dele naquele momento e não compareceu.
– Bem – afirmou Marianne convicta –, se estava por lá, eu não o vi.
Clarissa demonstrava fundo rancor no semblante de ordinário tão
plácido:
– Nunca simpatizei com ele desde a primeira vez que o vi. Sinto uma
desconfiança que não sei explicar.
Clarissa permaneceu pensativa por momentos. Depois, tranquilizou a
jovem:
– Podes ir agora, Marianne, e não te preocupes, querida. Terei uma
conversa com o monge e tudo farei para livrar-te deste peso, já que é por
culpa minha que estás em situação melindrosa.
– Tenho medo, Senhora. E se Charles vier a saber de tudo? Nem sequer
posso dizer que me encontrava no local em lugar de outra pessoa...
– Eu sei, querida. Vou ajudar-te. Confia. Agora vai.
Após a saída de Marianne, Clarissa puxou o cordel chamando a criada.
– Mercedes, dize a frei Felipe que necessito vê-lo, com urgência.
Dentro de um quarto de hora, o astuto sacerdote deu entrada no
aposento da condessa.
Em poucas palavras, Clarissa pediu explicações sobre o acontecido.
– Lamento muito, Senhora, o triste fim que teve vosso esposo, mas Jesus
tem um lugar reservado para ele ao seu lado.
Ela inclinou a cabeça, agradecendo, mas nada disse. Aguardava as
justificativas do frade.
Ele continuou, após uma pausa:
– Quanto àquela noite de triste lembrança, saía do meu quarto para
dirigir-me ao local do encontro, quando fui abordado por uma dama que
desejava confessar-se.
– Àquela hora da noite? – perguntou, incrédula.
– Senhora, a consciência não escolhe hora para manifestar-se. Dizia-se
sofrendo muito e não conseguia adormecer. Vi-me obrigado a acompanhá-
la, para não despertar suspeitas. Quando consegui aproximar-me do
caramanchão, encontrei tudo quieto e, na escuridão da noite, não
consegui ver o conde que, com certeza, jazia inerte no chão.
Achando a história um pouco estranha, mas não podendo contradizê-
lo, Clarissa aceitou as justificativas, acrescentando, porém:
– Temo pela minha nora Marianne, irmão.
– Por que, minha filha?
Ela relatou-lhe, então, tudo o que ocorrera. Que, incapaz de ir ao
encontro, sua nora a substituíra, tomando-lhe o lugar, e agora ela temia
que os fatos viessem à luz, comprometendo-a.
Felipe empalideceu ao ouvir o nome de sua amada. Planejara tudo
cuidadosamente para que desse certo. Nunca, porém, iria imaginar que
Marianne fosse no lugar da sogra. Quando idealizara a armadilha, ao ler o
bilhete do duque para Clarissa, resolvera envolver a condessa de
Drumond, sem preocupar-se em prejudicá-la. Nunca simpatizara com ela;
até nutria uma certa animosidade pela dama e o fato de que, usando-a,
poderia causar-lhe dano, não o incomodava absolutamente. Mas, saber
que, inadvertidamente, atingira Marianne o abalava profundamente.
Procurou restaurar o equilíbrio abalado e acalmar a mulher:
– Senhora, não tenhais receio. Se alguma dúvida surgir saberei auxiliá-
las com o meu testemunho.
– Obrigada, frei. V. Rev. tira-me um peso do coração.
Naquela noite a condessa Clarissa adormeceu tranquilamente, já com a
consciência em paz, não obstante o ódio que sentia pelo infame duque de
Bouillon, que permanecia na propriedade, fazendo as vezes de amigo fiel
da família, conquanto a tivesse atraiçoado pelas costas.
O sangue da condessa fervia ao lembrar-se de como o assassino
mantinha uma falsa expressão de tristeza pela morte do amigo.
Deus saberia castigá-lo severamente, disso tinha certeza. O famigerado
criminoso e destruidor de lares não ficaria impune.
***
Entrementes, frei Victor sofria. Martirizava-se com constantes jejuns e
penitências, entre longas orações. Algo lhe dizia que errara; que deveria
ter permanecido no castelo, exercendo suas funções de pastor espiritual
do rebanho que lhe fora confiado, a despeito de tudo.
No silêncio do claustro, entre as lúgubres paredes do mosteiro, ele
meditava. Soubera da morte do conde de Drumond e lamentara muito o
acontecimento. Intrigado com as misteriosas circunstâncias em que
ocorrera o desenlace, não conseguia deixar de pensar em Felipe.
Lembrava-se dos seus momentos de cólera surda em que jurava
vingança contra todos aqueles que o magoaram. Estaria o dedo do monge
nisso? Não, não era possível! Não poderia acreditar que um ministro de
Deus pudesse chegar a tais extremos.
Ao mesmo tempo ele ria nervosamente a esse pensamento. Ministro de
Deus! Ele sabia por experiência própria que um religioso mais não era do
que um indivíduo como outro qualquer, com um acréscimo de
responsabilidades, pois tinha que se tolher intimamente, apagar suas
inclinações más e mostrar a todos uma aparência de serenidade, paz
interior e virtudes que absolutamente não sentia.
Como ele próprio – monologava –, que procurava santificar os elos
afetivos e sublimar o amor que nutria pela bela Marianne, substituindo-o
por fraternal amizade.
Desejava retornar ao castelo, tentar compreender a situação e minorar
os sofrimentos dos amigos que lá deixara.
Conversou com o prior expondo sua vontade de visitar a família
enlutada, sem falar, naturalmente, das suas suspeitas. O superior deu-lhe
permissão, concordando com o alvitre. Despediram-se, após terem
acertado que o monge deixaria o mosteiro na manhã seguinte, logo cedo.
Mais esperançado, Victor orou a Deus com fervor redobrado naquela
noite, pedindo forças para suportar as dificuldades que teria de enfrentar.
Intimamente, sombrios presságios lhe constringiam o coração; era como
se sentisse o prenúncio de novas desgraças.
Adormeceu placidamente, como toda alma alcandorada pela luz da
verdade, consciente das suas responsabilidades e confiante em Deus.
***
Naquela ocasião, no castelo, uma outra pessoa se debatia também em
conflitos emocionais. Era a serva Matilde.
Detestava Marianne desde que esta viera habitar a casa. Amava
profundamente a Charles, e com ele tivera até algum relacionamento; mas
o rapaz, inconstante e sequioso de novas aventuras, desinteressara-se por
completo da bela criada, a ponto de nem lembrar mais da sua existência.
Para Charles era um capítulo encerrado em sua vida, uma página virada
que não o interessava mais.
Para Matilde, no entanto, loucamente apaixonada pelo senhor, era um
insulto difícil de ser esquecido.
Enquanto o rapaz, volúvel e inconsequente, interessara-se pelas belas
damas da nobreza, de linhagem ilustre, ela se conformara. Sabia que não
poderia competir com elas, a distância era muito grande. Mas, quando
Charles passou a sentir atração pela humilde Marianne, filha de um pobre
lenhador, irritou-se profundamente. Passeando pelo parque mirava-se nas
águas polidas do lago e pensava: “Que tem ela que eu não tenho? Sou bela,
tenho pele macia, cabelos sedosos e meu talhe é perfeito; todos os rapazes
da região vivem a afirmar que sou a donzela mais bonita dos arredores.
Faltam-me boas roupas e joias. Por que ele a prefere a mim?”
E remoía seu veneno entre dentes, alimentando o coração com ódio e
conservando em fel o pensamento.
Quando, afinal, os pombinhos se casaram, escondeu-se num canto para
chorar a sua dor. Nada mais podia fazer, mas prometeu a si mesma que
vigiaria os dois. O tempo seria seu aliado.
Naquela noite do crime, por acaso encontrava-se no jardim. Não
conseguira adormecer e sentou-se num dos bancos. Logo em seguida
ouviu ruído de passos e ficou atenta. Afastando alguns arbustos, não
obstante a escuridão da noite, reconheceu o vulto esguio e o andar
elegante de Marianne. Intrigada, resolveu segui-la e viu quando se
encontrou com um homem.
Nada disse a ninguém. Guardou seu segredo avaramente. Algum dia ele
lhe seria útil. No momento certo saberia usar o trunfo que tinha nas mãos.
Marianne não perderia por esperar.
Alguns dias após os funerais do conde Henri de Drumond, quando o
castelo retomava aos poucos o ritmo que lhe era habitual e o filho do
falecido já demonstrava fisionomia afável e alegre, ela resolveu-se.
Aguardou um momento em que o jovem conde se encontrava sozinho
em seus aposentos, pois vira o criado sair para executar algum mandado, e
entrou.
O belo conde estava em pé alimentando uma ave com migalhas de pão
que trazia nas mãos. A um ruído voltou-se e, surpreso, viu Matilde que
parara na soleira da porta.
– O que desejas? Trazes algum recado, suponho – inquiriu com
indiferença.
Como a jovem se mantivesse calada, ele parou o que estava fazendo
para fitá-la.
– Vamos, dize a que vens e retira-te, pois tenho mais o que fazer.
A serva rojou-se-lhe aos pés, consciente da sua beleza e fascínio:
– Oh! Senhor. Sou assim tão feia e repelente a vossos olhos?
– Que dizes? – retrucou, surpreso. – Não, querida menina, és bela e
sedutora. E estás talvez ainda mais bela agora. Mas, a que se deve isso? –
perguntou, com o cenho carregado.
– Senhor! Nunca mais me procurastes e morro de amores por vós. Se
vos desagradei de alguma forma, peço-vos perdão; sofro com vossa
ausência. Esquecestes, porventura, os momentos maravilhosos que
passamos juntos?
Espantado, o homem deu um passo atrás, tentando desvencilhar-se dos
braços que lhe envolviam as pernas.
– Por Deus! Contém-te! Como ousas vir aos meus aposentos reclamar
minhas atenções? Desde quando te dei o direito de me interpelares?
– Desde quando fizestes apaixonar-me por vós. Amo-vos com loucura.
– Esqueceste, infeliz, que sou um homem casado.
– Não, Senhor. Mas sei também que não sois feliz com vossa esposa.
– Como te atreves? – murmurou ele, colérico.
Ela se levantou, ficando em pé à sua frente, próxima o bastante para
poder tocá-lo:
– Sei, Senhor, que não sois feliz. Eu o sinto. E depois, um homem
venturoso não necessita sair de casa para alegres noitadas – e, assim
dizendo, achegou-se mais, quase o beijando, enquanto roçava o seu corpo
jovem no corpo dele.
– Vós poderíeis obter aqui o que ides buscar fora, Senhor – falou,
insinuante, com os lábios purpurinos entreabertos num convite.
– Afasta-te, mulher. Não tentes me seduzir. Nada quero contigo.
Desprezo-te.
E, em seguida, empurrou-a para longe de si, fazendo com que caísse ao
chão. Irritada e sofrendo a dura humilhação, Matilde enfureceu-se,
endurecendo a fisionomia.
Pretendia guardar seu segredo para ocasião mais propícia, mas desejava
feri-lo, como tinha sido ferida. Levantou-se, arrumou as vestes, limpou-as
da poeira inexistente e falou com voz displicente:
– É pena! Poderia prestar-vos um favor. A notícia que tenho vos
interessaria, por certo.
– Que notícia?
Ela caiu numa gargalhada:
– Estais interessado, Senhor? Não, nada vos direi. Vós sereis o último a
saber.
– O que tens a me dizer, desgraçada. Dize logo. Despeja teu veneno e
deixa-me em paz – gritou, agarrando-a pelo pescoço.
– Largai-me! Estais a machucar-me – falou, com voz estrangulada.
Charles afrouxou os braços, ofegante, falando autoritário:
– Fala!
– Muito bem, Senhor. Vós pedistes e vos satisfaço. Largai-me, porém,
senão nada sabereis de meus lábios.
Respirando com dificuldade, nervoso, ele a libertou das suas mãos
fortes.
Matilde levou as mãos ao pescoço, onde se via uma grande marca
vermelha. Sem titubear, falou à queima-roupa:
– Vossa mulher vos trai.
– Mentira! Mentes, infeliz – gritou, atingindo-a com violenta bofetada
em plena face, rojando-a ao solo.
– É verdade! Sou testemunha disso.
– Conta-me tudo – ordenou, numa voz que não admitia réplica.
– Podeis bater-me e até matar-me, Senhor, mas nada me fará desdizer o
que já disse.
– Está bem. Senta-te aqui e conta-me tudo o que sabes.
Matilde sentou-se numa cadeira e, contendo as lágrimas que teimavam
em cair, enquanto limpava com as costas da mão um filete de sangue que
escorria pelo canto da boca, relatou o que se passara naquela noite fatídica
em que o pai de Charles perdera a vida. Contou que seguira a condessa
Marianne e viu que se encontrara com alguém.
– Quem?
– Isso eu não sei. Não dava para ver de longe e não podia aproximar-me
mais por medo de que me vissem. Logo em seguida alguém passou
próximo a mim, quase roçando em minhas vestes, mas não me viu. Era
vosso pai.
– O que faria ele ali? – Charles perguntou, intrigado.
– Não sei, Senhor. Talvez tivesse sido informado do encontro
clandestino e quisesse certificar-se.
– É possível. E depois? Prossegue.
– Depois, Senhor, fiquei temerosa das consequências do meu ato, isto é,
de estar espionando a Senhora Condessa e, quando ouvi ruído de armas,
fugi, acreditando que logo chegariam outras pessoas, e eu não queria ser
encontrada ali.
– Isto é tudo?
– Sim, Senhor.
– Contaste a alguém o que sabes?
– Não, Senhor.
– Muito bem. Precisarei de ti no momento oportuno. Nada diz a
ninguém; mantém tua boca fechada.
– Serei um túmulo, meu Senhor.
– Agora vai-te. O criado não deve tardar e não desejo que te encontre
aqui. Antes, porém, recebe isso como penhor da minha gratidão e em paga
do teu silêncio.
Assim dizendo, Charles se dirigiu a um móvel, pegou um pequeno baú,
dali retirou um belo broche de esmeraldas e o entregou à criada.
Ela agradeceu, comovida pelo presente, inclinou-se numa mesura e
retirou-se.
“Afinal! – pensou – conseguira o que desejava. Estava vingada.
Destruíra a felicidade dele e a honra de Marianne estava comprometida.
Nada mais almejava. Ele a repudiara e agora tivera o que merecia.
Malditos!...”
Capítulo X - Ciúmes

Ora recostado numa poltrona, tamborilando os dedos nervosamente,


ora andando de um lado para o outro, impaciente, sempre imerso em
cogitações encontrava-se o jovem conde Charles.
A verdade é que o rapaz sofria. O fato de saber que a esposa mantinha
ligações extraconjugais com outro homem o punha fora de si. Não tanto
pelo sentimento que pudesse nutrir por ela, senão pelo amor próprio
ferido e o orgulho espezinhado.
Dentro dele rugia uma tempestade. Tinha desejos de ir até onde ela
estava e jogá-la ao chão, espancando-a até a morte, com satânico prazer.
Em suas meditações revia-lhe o rosto suave, o perfil delicado, os olhos
aveludados e hesitava. Não era possível que fosse capaz de uma
indignidade dessas. Jamais interceptara um olhar diferente dirigido a
alguém, um gesto impensado ou uma atitude incorreta.
Aflorou-lhe à mente a figura de Lucas. Seria ele o rival detestado?
Procurou lembrar-se onde estaria o amigo naquele dia e naquela hora,
mas era inútil. Todos já se haviam recolhido.
A verdade era uma só. Eles teriam que pagar a afronta que lhe fizeram.
O homem, porque, além de seu rival, seria também, por dedução, o
assassino de seu pai. Marianne, porque ousara preteri-lo por outrem;
esquecera os compromissos conjugais e desonrara seu nome ilustre.
A honra exigia uma reparação. Teria que vingar-se. Mas, como? Após
muito pensar Charles decidiu que nada faria por enquanto, não obstante
muito lhe custasse. Era preciso não espantar os faltosos. Agiria
normalmente como se nada soubesse e, enquanto isso, faria investigações
discretas.
Ah! A infame pagaria pelo crime perpetrado!
Esquecia-se o jovem conde, tão indignado com o comportamento da
esposa, de que também ele era culpado do mesmo crime. Quantas e
quantas noites mantivera-se fora do lar em escandalosas orgias com os
falsos amigos?
Nesse momento lembrou-se de Túlio. Sim! Por que não pensara nele
antes? O menestrel estava sempre muito bem informado e não havia
história picante que ele ignorasse.
Procurou o jovem músico, encontrando-o numa roda, absorto no jogo
de gamão. Fez-lhe um sinal e logo em seguida Túlio deixou a mesa,
aproximando-se dele.
– Preciso ver-te em local discreto e a sós.
– O que se passa, Charles? Estás abatido, pálido.
– Logo saberás. Acompanha-me até a capela. A estas horas deverá estar
vazia e lá poderemos dialogar em paz.
Em silêncio dirigiram-se à igreja, atravessando o jardim que, àquela
hora, também se encontrava deserto.
Lá chegando sentaram-se num banco. Charles suspirou profundamente,
fitando a imagem do Cristo crucificado.
– É possível que aqui tenha a tranquilidade necessária para pensar e
decidir que atitude tomar.
Túlio, conquanto roído de curiosidade, aguardava.
– Meu amigo, sabes que tenho absoluta confiança em ti?
– E eu prezo essa confiança, amigo Charles, e renovo meus protestos de
lealdade incondicional. Dispõe de mim, se assim o desejas.
– Sim, preciso de ti. Trata-se de um assunto confidencial e só posso
contar contigo.
– O que te aflige? Dize sem receio. Se estiver ao meu alcance...
– É simples. Preciso que investigues quem foi o homem que naquela
noite matou meu pai. Tenho sérias razões para julgar que minha esposa...
– A nobre Marianne?!...
– ... esteja envolvida.
– Não pode ser, Charles! – replicou Túlio – procurando mostrar-se
surpreso e indignado.
Com ar compungido, o amigo confirmou:
– Infelizmente assim é, meu amigo. Uma testemunha a viu no local.
“O negócio vai mal” – pensou Túlio. “Outra testemunha?” – e, em voz
alta sugeriu:
– Não poderia haver engano?
– Não. A pessoa garantiu que era Marianne.
– Ah! Mas, então, qual é o problema? Se essa testemunha viu a
condessa, viu também o seu acompanhante!
– Aí é que te enganas. A pessoa não viu o assassino. Estava escuro e não
pôde ver-lhe o rosto.
– Ah! bem, então o caso muda de figura – disse aliviado e concluiu,
servil: – O que desejas que eu faça?
– Preciso que te coloques em campo fazendo investigações discretas e
sigilosas para apurar a verdade. Como trovador tens acesso a todas as
rodas e ouves todo tipo de conversas. Ninguém desconfiará de ti. Serás
bem recompensado, acredita.
– Ora, meu amigo, não é necessário. Servir-te-ei pela nossa amizade e
pela gratidão que te devo. Mas, de antemão te asseguro que não acredito
na culpabilidade da jovem, bela e nobre Marianne.
Dando-lhe um tapinha no ombro à guisa de despedida, Charles
asseverou:
– Gostaria de ter a tua certeza, amigo. Infelizmente as evidências são
contra ela. Não demores, tenho pressa de que inicies tua missão. Colocarei
à tua disposição os recursos que precisares para que leves a cabo a tua
tarefa.
O trovador inclinou-se: – Voltarei tão rápido quanto possível. Assim
que tiver novidades serás informado.
Afastou-se rapidamente, indo bater nos aposentos do duque de
Bouillon.
– Tudo corre às mil maravilhas. Melhor do que supúnhamos. Logo
teremos o caso resolvido – disse-lhe em voz baixa.
Em seguida pegou seu alaúde e deixou o castelo.
Andando pela vila de Montmorency não teve dificuldade de encontrar
os dois irmãos bebendo numa taberna.
Logo que o avistaram, Samuel e Ezequiel se entusiasmaram.
Cumprimentaram-no sorridentes, convidando-o para tomar uma caneca
de vinho em suas companhias.
– Viestes em nome do Senhor Duque...
– Calai-vos! Ninguém deve saber da nossa relação com o nobre senhor.
– Ah!... – exclamaram ao mesmo tempo.
– Digamos que vim divertir-me um pouco em companhias alegres –
falou Túlio com ar misterioso.
– Pois então bebamos! – disse Samuel.
– Vamos brindar ao nosso encontro! – sugeriu Ezequiel.
E levantando a caneca o músico concordou:
– E por que não? Que o nosso encontro seja muito proveitoso!
Os olhos dos dois rapazes brilharam de cobiça, entrevendo vantagens
pecuniárias. Já haviam bebido várias canecas de vinho quando o trovador
chegou na taberna; por isso estavam entontecidos e muito alegres.
– Quero fazer o brinde agora – pediu Túlio. – Brindemos às criaturas
que nos dão felicidade e amor: as mulheres!
Samuel riu. Ezequiel concordou plenamente:
– Bem lembrado. Brindemos às lindas raparigas francesas.
Samuel, com olhar cúpido, falou, já com a voz empastada pela bebida:
– Conheço uma rapariga que é o sonho de qualquer homem. Tem os
cabelos ruivos e seios fartos, e é muito... muito generosa...
Túlio explodiu numa gargalhada. Ezequiel fitava a caneca, absorto.
– E tu, meu amigo, tens alguma mulher também, por certo.
Ezequiel, mais fechado e taciturno que o irmão, deu de ombros:
– Nada de sério; gosto de todas e de nenhuma em particular.
– Queres que acredite nisso, meu rapaz? Belo e sedutor como és,
certamente as raparigas devem cair a teus pés.
Ezequiel riu, envaidecido. Samuel, mais loquaz e com a língua
destravada, sentenciou:
– O mano olha mais alto.
– Cala-te! – resmungou Ezequiel, enfurecido.
Mas foi o suficiente para Túlio perceber que havia algo mais
interessante que precisava saber. Resolveu dar corda:
– Então, amigo, estás escondendo a verdade do velho Túlio? Não confias
em mim? Pois vou provar-te que confio em ambos. Vou contar-vos um
segredo, mas não quero que conteis a ninguém e nem seja motivo de riso
em vossas bocas.
Ambos ficaram atentos, aguardando a confidência.
Fazendo uma pausa, Túlio aumentou o interesse pedindo ao taberneiro
que lhes trouxesse mais vinho.
– Pois bem, meus amigos. Também tenho interesse em uma mulher.
Não me interpreteis mal. Apenas acho-a a criatura mais bela que já me foi
dado contemplar. Mas, é fruto proibido, entendeis?
– Sim?!... Mas, o nome, queremos o nome da mulher assim tão linda –
indaga Samuel.
– Trata-se da esposa do meu amigo conde de Drumond. Sim, Marianne.
Samuel fitou seu irmão com olhar cúmplice, enquanto Ezequiel baixava
a cabeça, rubro.
Percebendo a reação de ambos, Túlio continuou como se nada tivesse
visto, enquanto pensava: “Ora essa! Sem querer, creio que atingi o alvo!” –
fez uma pausa e prosseguiu com ar sonhador:
– Ah! Esta dama vale qualquer sacrifício. Vê-la já é uma felicidade! – fez
nova pausa e perguntou com ar inocente:
– Por acaso já tivestes ocasião de conhecê-la?
– Sim!!... – responderam ambos ao mesmo tempo.
– E que achastes? Não tenho razão?
– É realmente uma bela mulher! – disse Samuel enlevado.
– Não prestei atenção – disse Ezequiel, ficando ainda mais corado.
– Ah! pois perdeste uma ocasião de ouro, meu amigo. Muitas vezes
costumo vê-la, escondido entre as folhagens. Ela gosta de passear nos
jardins ao entardecer e nutre especial interesse por um local bastante
aprazível, localizado não longe do muro, do lado sul. Acho até que não
seria difícil alguém penetrar no castelo para vê-la. Próximo a este local
fica um portãozinho, disfarçado entre as folhagens, que basta...
Interrompeu a narrativa fingindo-se chateado:
– Mas, vede! Estou aqui a aborrecer-vos com coisas que absolutamente
não vos interessam. Falemos de outras coisas.
Ezequiel, subitamente atraído pelo assunto, falou categórico:
– Não, meu amigo, continuai falando; o assunto estava sumamente
interessante. Dizíeis que existe um portãozinho...
– Não sei se devo... – hesitou Túlio, fingindo-se já um tanto bêbado.
– Não confiais em nós? – insistiu Ezequiel.
– Claro que confio! E a prova é que vos direi tudo. A umas cinquenta
jardas do caminho existe um leão esculpido em pedra. Basta pressionar o
olho esquerdo do leão e o portão se abrirá como por efeito de mágica.
Ninguém, a não ser que conheça o segredo, poderá abri-lo, pois está
disfarçado na pedra.
Os irmãos mostravam profundo espanto.
– Não direis nada a ninguém, por certo?
– Juramos solenemente nada revelar do que nos dissestes.
– Fico mais tranquilo. Quando bebo um pouco a minha língua desata, o
que não é muito bom.
Os irmãos estavam impressionados.
– Como sabeis do segredo? – perguntou Ezequiel.
– Bem, foi o avô do conde Charles que mandou construir essa abertura
para facilitar uma fuga do castelo, em caso de necessidade. O meu amigo
Charles a usa para facilitar suas escapadelas noturnas, das quais participo.
Percebeis?
Continuaram brindando e bebendo. Em pouco tempo os três estavam
quase que totalmente bêbados. Saíram pelas ruas cantando e tocando
alaúde.
Horas depois Túlio chegou ao castelo, entrando sem ser visto.
Jogou-se no leito, satisfeito com o rumo dos acontecimentos. Dentro em
pouco dormia profundamente.
Capítulo XI - Lembranças

Entrementes, numa bela manhã frei Victor chega aos portões do


castelo. Recebido com ostensivas demonstrações de carinho, sente-se
emocionado.
Realmente, no tempo em que habitara a propriedade dos Drumond
soubera, mercê do seu caráter bondoso e afável e de atitudes
verdadeiramente cristãs, cativar a amizade tanto dos senhores e hóspedes
quanto dos servos mais humildes. A todos tratava com consideração e
respeito, para cada um tinha uma palavra amiga; consolava os tristes, dava
esperança e ânimo aos deprimidos, tratava dos doentes e suas mãos
abençoadas curavam em pouco tempo; sabia ouvir e desculpava as faltas
com tolerância verdadeiramente digna de um servidor do Cristo.
Por isso todos o amavam e, quando chegou ao castelo, até os servos
mais humildes quiseram cumprimentá-lo.
A devoção com que se ajoelhavam para beijar-lhe a destra era tocante,
e para cada um deles tinha uma palavra amiga:
– Então, Ruão, como está tua perna? – perguntou a um velhinho que se
apresentava mancando, em virtude de ferimento em combate e do qual
nunca se recuperara.
– Não está boa não, frei. Depois que o senhor foi embora ninguém mais
se incomodou comigo.
– Não te preocupes. Logo irei fazer um curativo. Realmente, a ferida
está com aspecto nada bom, mas logo estarás melhor, verás. Tem fé em
Deus!
Com o rosto encarquilhado, radiante de satisfação, e os olhos brilhando,
o pobre velho concordou:
– Tenho fé sim, frei Victor. Agora tenho certeza de que vou ficar
curado. Só de saber que o senhor está aqui já sinto-me melhor.
E afastou-se feliz. Uma mulher de meia-idade aproximou-se, reverente:
– Sua bênção, frei Victor.
– Deus te abençoe, Marta. Como vão as crianças?
– Com a graça de Deus estão com saúde. O único problema é o
menorzinho, que sente muita falta do senhor.
– Ah! Meu querido Amadeu. Dize-lhe que logo irei vê-lo.
E assim, um por um, foram aproximando-se e afastando-se com o olhar
satisfeito, como se tivessem visto um anjo.
Frei Felipe, encostado a uma pilastra, acompanhava irritado as
demonstrações de afeto e amizade por parte dos servidores.
Mordia os lábios, despeitado, e apertava entre os dedos fortes o rosário
que trazia na algibeira.
Nunca ninguém lhe demonstrara carinho. Tratavam-no com respeito e
consideração pelo cargo que ocupava no castelo, mas sentia muitas vezes
que o temiam. Era diferente das manifestações cordiais que presenciava
agora.
Revoltado e impaciente, não entendia o porquê da desigualdade de
tratamento. Afinal, Victor era um religioso como ele. Que teria de tão
especial?
O que frei Felipe nunca poderia compreender era que essa distinção
provinha justamente da atitude de ambos.
Jamais procurara frei Felipe ajudar alguém, não obstante servidor do
Cristo e, para todos os efeitos, mentor espiritual da família.
Cumpria suas obrigações como confessor, rezava missas, ouvia
desabafos das pessoas que o procuravam, mas o fazia automaticamente.
Seus sentimentos não extravasavam. Sempre frio e indiferente, como se
nada daquilo lhe dissesse respeito. Jamais se condoera do sofrimento de
alguém ou passara noite insone ao lado de um enfermo. As adversidades
da vida, os problemas por que passara, a dor, ao invés de torná-lo mais
humano e sensível aos sofrimentos dos outros, formaram uma crosta em
torno do coração, afastando-o das outras criaturas.
Victor, ao contrário, era todo amor e devotamento. Não havia dor que
não tentasse estancar, sofrimento que não procurasse amenizar. Quando
nada podia fazer, levava o bálsamo consolador do Cristo através da sua
presença amorável.
Muitas vezes, velando à cabeceira de um doente, passava a noite a ler
trechos das escrituras e a discorrer sobre doces passagens do Novo
Testamento, e o fazia de tal maneira que o enfermo julgava ver o próprio
Mestre que ali repetia as lições inesquecíveis do Seu Evangelho.
Felipe nunca entenderia que Victor recebia amor porque se doava
inteiramente aos necessitados, que as vibrações amoráveis que de si
extravasavam voltavam centuplicadas pelo afeto que recebia de todos
eles. À noite, um coro de bênçãos se elevava ao céu em reconhecimento
por tudo que fizera àqueles pobre infelizes, que da vida só conheciam o
trabalho e o sofrimento.
A situação se agravou, porém, quando frei Victor adentrou ao salão do
castelo, onde se achavam os moradores e convidados.
Foi igualmente saudado por todos os nobres que ali estavam com
idênticas, conquanto mais comedidas, demonstrações de apreço.
Ao ver o sacerdote atravessando o portal de entrada, com suas vestes
surradas, os pés empoeirados, mas a fisionomia serena e agradável de
sempre, Marianne não resistiu. Ainda enfraquecida pelos múltiplos
dissabores que ultimamente minavam seu espírito, caiu desmaiada.
Lucas, que estava próximo, sustentou-a nos braços colocando-a deitada
entre almofadas. Foi rápido o seu delíquio. O suficiente, no entanto, para
criar pensamentos contraditórios em muitas cabeças.
Frei Felipe mordeu os lábios com tanta força que fez com que o sangue
vertesse. Régine, a esposa de Lucas, sempre observando Marianne, a quem
detestava, supôs tivesse fingido perder os sentidos apenas para ser
amparada por Lucas que estava ao seu lado. Roída de ciúmes, não se
conformava a bela e voluntariosa mulher, e monologava intimamente:
“Pois sim! Pensas que me enganas, hipócrita? Não contente em roubar-me
o amor de Charles, te atiraste agora aos braços de meu marido!”
Charles, tentando mostrar-se natural e até preocupado com a esposa,
na realidade deixava-se dominar por profundo rancor: “Então era isso?” –
pensava. “Lucas era mesmo o ‘outro’ na vida de sua mulher. Senão, por
que notara ele tão rapidamente o mal-estar de Marianne, a não ser que
estivesse embevecido a fitá-la?”
Ao voltar a si Marianne viu apenas fisionomias preocupadas à sua volta.
Num sopro de voz inquiriu: – O que aconteceu?
A condessa Louise, que se apressara em acudi-la e que se mantinha
ajoelhada ao seu lado, acalmou-a:
– Não aconteceu nada, minha querida. Apenas perdeste os sentidos por
alguns poucos instantes. Estás debilitada e necessitas repousar.
Régine, mordaz, não se conteve, falando alto o suficiente para que
todos ouvissem:
– Não é verdade, minha querida, que apenas quiseste chamar a atenção
sobre ti mesma? Não contente com as deferências que recebes, queres
sempre fazer-te centro das atenções!
– Não sejas maldosa, minha filha – repreendeu-a a condessa Clarissa,
que melhor do que ninguém compreendia a extensão do sofrimento e das
preocupações que assoberbavam sua nora. – Marianne está enferma e
necessita de cuidados médicos.
Lucas lançou um olhar de fogo para a esposa, censurando-a
silenciosamente pelo comportamento indelicado e maldoso.
A tudo observando, frei Victor aproximara-se discretamente. Ao vê-lo,
as lágrimas rolaram pelas faces de Marianne.
Com segurança e calma, o monge, que tinha conhecimentos médicos
adquiridos no mosteiro, examinou-a em silêncio e depois emitiu sua
opinião:
– A condessa Marianne não está doente propriamente do corpo,
embora ele esteja debilitado. A alma encontra-se combalida e ela precisa
de muito repouso e paz de espírito. Se me permitirdes – disse, dirigindo-se
ao conde e à sua mãe – gostaria de tê-la sob meus cuidados. Tem um
temperamento sensível e a morte do nobre Senhor Conde de Drumond
deve ter abalado suas fibras mais delicadas.
Ambos concordaram incontinenti. Marianne foi conduzida até seus
aposentos onde permaneceu sob os cuidados médicos de frei Victor, para
desassossego e desespero de frei Felipe.
***
Dias de serenidade e paz transcorreram para a pobre Marianne. Era
como se um oásis de bênçãos tivesse surgido em sua existência em meio a
um deserto de aflições; e, apesar de seus problemas estarem ainda sem
solução, era como se não existissem.
Parecia-lhe estar vivendo uma outra vida. A presença do monge, suas
atenções constantes, a doçura da sua voz quando lia para ela trechos do
Novo Testamento, o ambiente saturado de vibrações dulcificantes, faziam
com que Marianne se sentisse transportada ao paraíso.
Por vezes ela se lembrava do que acontecera, do perigo que pairava
sobre sua cabeça e entrava em pânico, esvaindo-se em lágrimas.
Victor, a quem ela já relatara os fatos, com infinita ternura lhe falava ao
coração:
– Não te lamentes, nem te queixes. E muito menos guardes rancor
contra os infelizes que te colocaram à prova. Procura ver neles apenas
criaturas necessitadas, credoras da tua compaixão. Por certo serão eles
apenas meios de que o Criador se utiliza para conduzir-te ao Seu Reino de
Amor.
Em prantos, com impaciente gesto de cabeça, ela nega
peremptoriamente.
– Não. Não pode ser. Não posso admitir isso. Não entendo como tudo foi
acontecer! Sinto-me de pés e mãos atados...
– Exatamente, minha querida. Não percebes nos acontecimentos que te
atropelaram a existência correta e digna a mão de Deus agindo? Não
sentes nos meandros do “acaso” que uma finalidade se delineia?
– Como assim? Não entendo o que dizes, frei Victor.
– Afirmo-te que, no cipoal dos sofrimentos e das dores que nos atingem,
dos fatos que escapam à nossa compreensão e ao nosso controle, existe
uma força maior agindo que, com toda certeza, tem um objetivo a alcançar
e esse objetivo é o nosso aprimoramento.
– Acreditas realmente nisso? – perguntou incrédula.
– Por certo. Senão teria que considerar Deus injusto e isso não podemos
conceber.
– Mas não entendo! Nada fiz de mal e tudo está contra mim!
– Procura resignar-te ao que não podes evitar. Confia em Deus e tem
paciência. Lembra-te da mensagem do Cristo: “Vinde a mim todos vós que
sofreis e que estais sobrecarregados e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o
meu jugo e aprendei de mim que sou brando e humilde de coração, e
encontrareis repouso para vossas almas; porque meu jugo é suave e leve o
meu fardo”.3
Observando-o com imenso carinho, ela acentuou:
– Ah! frei. Que bem me faz tua presença. Como gostaria de poder
acreditar nisso, de possuir essa fé inabalável que possuis. Não consigo,
porém, a não ser pensar que gostaria de arrasá-los, de destruí-los, os
malditos que ameaçam minha felicidade.
– Procura perdoá-los e te sentirás bem melhor. O Mestre não afirmou
que deveríamos perdoar não sete vezes, mas setenta vezes sete vezes?
Perdoa!... Marianne. Perdoa!...
Ao ouvi-lo dizer estas palavras algo dentro dela se abriu, como se uma
névoa se dissipasse e ela pudesse vislumbrar mais longe, sem noção de
tempo e de espaço. Suas fibras mais íntimas se tocaram de uma emoção
incontrolável. “Meu Deus! – ela pensou – onde já ouvi isso antes?”
Das brumas do passado, através dos escaninhos da memória, parecia
ouvir uma voz suave e saturada de vibrações indefiníveis que lhe repetia
sempre: “Perdoa!... Perdoa!... Para seres feliz”. Sentia que essa voz era a
mesma de alguém muito amado e que ela perdera.
Uma saudade dorida, uma dor lancinante de algo que já se fora e ela
não sabia o que era, a envolveu.
– Estás sentindo alguma coisa?
Ouviu a voz que lhe falava no presente e voltou a si, sentindo a mão que
apertava a sua. Viu a fisionomia preocupada do sacerdote e sorriu entre
lágrimas candentes.
– Não. Estou bem. Muito bem mesmo.
Nada disse, mas uma certeza inabalável lhe dizia que era Victor mesmo
quem lhe repetia aquelas palavras. À semelhança de outra vez, à luz do
luar, ela não sabia como, nem por que, mas sentia que já o conhecera no
pretérito. Parecera-lhe vislumbrar uma outra fisionomia, um rapaz de
uniforme, mas que ela estava convencida ser o mesmo Victor.
– Prepara-te Marianne para o futuro; sofrerás ainda muitos dissabores e
terás obstáculos difíceis para vencer. Escuda-te na oração e persevera em
Cristo Jesus para não falhares. Todos temos uma missão a cumprir e
também tens a tua.
Num sopro de voz ela murmurou:
– Vencerei, se puder contar com a tua presença.
Novamente pareceu-lhe já ter dito isso. O monge fitou-a com imensa
ternura e, segurando-lhe as mãos, disse com firmeza:
– Vencerás, porque tens condições para fazê-lo. Não dependes de mim.
Auxiliar-te-ei em tudo o que for possível, mas terás que caminhar com
teus próprios pés.
Marianne ficou pensativa.
– Deixo-te agora entregue aos próprios pensamentos. Tens muito em
que meditar. Pensa e reflete sobre tudo o que dialogamos.
– Vais abandonar-me?
– Não. Necessito fazer algumas visitas.
Nesse momento Clarissa e Louise adentraram o aposento. Vendo-as,
Victor voltou-se para Marianne, sorridente:
– Vês? Já não ficarás sozinha. Deixo-te em excelentes companhias.
Cumprimentou as senhoras e saiu, deixando-as em agradável palestra.

3. Citação de S. Mateus, cap. XI, v. 28 a 30.


Capítulo XII - França e Inglaterra

A vida no castelo prosseguia sem maiores problemas. Entretanto,


percebia-se no ar uma atmosfera de insegurança e tensão sempre
crescente. Os rumores de que estavam ameaçados pelo exército inimigo se
tornavam cada vez maiores. Os ingleses sempre foram uma constante
ameaça para os franceses e um adversário temível. As disputas entre os
dois países eram antigas e irreconciliáveis. Os acordos de paz tinham sido
largamente utilizados durante os períodos da história dos dois países, mas
com a mesma facilidade eram rompidos.
Agora, os ingleses se preparavam para invadir novamente o território
francês, eram as notícias alarmantes que corriam de boca em boca.
Comentava-se que Ricardo Coração de Leão estava furioso e desejava
vingar-se de Filipe Augusto. A verdade é que o soberano inglês tinha lá
seus motivos de queixa contra Filipe II.
Subindo ao trono da Inglaterra ainda jovem, com 3l anos, Ricardo I,
chamado Coração de Leão, ansiava ardentemente participar de uma
Cruzada. Durante os primeiros meses de seu reinado procurou amealhar
recursos para combater os muçulmanos e libertar Jerusalém do poder de
Saladino.
Não confiando, porém, nos franceses, e temendo que o jovem rei Filipe
Augusto, aproveitando a sua ausência, se apoderasse das possessões
inglesas na França, incentivou-o a que também participasse da 3ª Cruzada,
iniciada no ano anterior, em 1189.
O soberano francês concordou e partiram para o Oriente, saindo
Ricardo com seu exército de normandos, de Marselha, e Filipe, com o
exército francês, de Gênova (1190).
No ano seguinte, porém, adoentado e febril, regressou Filipe II à França,
deixando um exército de mais de 10.000 homens combatendo. Assim,
Ricardo se tornou o único chefe da 3ª Cruzada para combater Saladino.
Não conseguiu vencer os muçulmanos e, jurando vencer o sultão
Saladino, resolveu retornar à Inglaterra, em 1192. No caminho foi preso
pelo duque Leopoldo da Áustria, a quem ofendera e que se tomara de
rancor por ele. No princípio do ano seguinte o duque Leopoldo entregou
Ricardo ao Imperador Henrique VI, que o manteve prisioneiro exigindo da
Inglaterra 150.000 marcos pelo seu resgate.
Nessa época o irmão de Ricardo Coração de Leão, João Sem Terra,
procurou conquistar o trono inglês. Não o conseguindo, teve que fugir
para a França, unindo-se a Filipe Augusto na luta contra a Inglaterra. O
soberano francês, fazendo exatamente o que Ricardo I temia, atacou e
tomou os territórios ingleses na França, violando um acordo de paz que
existia e ainda oferecendo uma grande soma a Henrique VI para que não
libertasse Ricardo, conservando-o prisioneiro.
Após muitas peripécias em que se tornou ainda mais famoso, Ricardo
Coração de Leão foi libertado em 1194, voltando para o seu reino com
incrível popularidade.
As notícias que se ouviam eram exatamente essas: que Ricardo, desde
que retornara, angariava recursos e reunia soldados para atacar a França,
desejando vingar-se de um inimigo desleal, e objetivando reconquistar os
territórios ingleses na França, que foram tomados por Filipe Augusto.
Por outro lado, havia um movimento, surgido não se sabia de onde,
convocando o povo para uma nova Cruzada. A 3ª Cruzada terminara em
1192 e conseguira libertar Acre, mas não Jerusalém, a Cidade Santa. Era
necessário dar amparo aos cristãos que sitiavam Jerusalém; as muitas
baixas haviam reduzido bastante o exército e tornava-se imprescindível o
envio de reforços, para que as vantagens conquistadas fossem mantidas.
As dificuldades financeiras que assolavam o país, a falta de recursos,
pois grande parte do povo já colaborara enviando doações para suprir o
exército, as notícias aflitivas e inquietantes, tudo tirava o ânimo do povo.
O ambiente estava carregado e um sopro de desânimo se abatia sobre a
nação francesa.
No castelo procurava-se minorar as notícias para não assustar
inutilmente as damas, mas os varões conversavam a portas fechadas sobre
a melhor atitude a tomar em caso de ataque.
A vida, porém, transcorria normalmente. Não obstante o luto,
organizavam-se serões onde a música e o vinho exerciam papel
preponderante na alegria dos participantes.
Frei Felipe continuava as investigações em surdina. Através de
confissões ia inteirando-se de fatos que de outra forma nunca chegariam
ao seu conhecimento. Assim, ficou sabendo que seu irmão Lucas odiava de
morte o conde Charles, conquanto aparentassem relações cordiais e
amizade sincera; que Régine amava Charles e não perdoava a Marianne o
fato de ter-se consorciado com ele; que Charles, por sua vez, odiava Lucas,
julgando-se preterido por ele no coração da bela esposa, a qual não amava
de verdade, mas que não queria perder; que Túlio trabalhava na sombra
arquitetando planos sinistros; que o duque de Bouillon tinha muitos fatos
que não desejava viessem a público.
Resolveu utilizar essas informações em favor de si mesmo. Desejava
destruir algumas criaturas, mas não lhe importavam os meios, desde que
os fins fossem atingidos. Se não precisasse fazer nada, melhor ainda.
Para tanto teve uma conversa com Túlio, colocando-o a par de tudo o
que sabia sobre ele e concluiu, afirmando peremptoriamente:
– Logo, estás em minhas mãos. Se não te aliares a mim, denunciar-te-ei
publicamente e, entre a minha palavra e a tua, não terão dúvidas em
acreditar em mim. Por isso, continua como se nada tivesse acontecido.
Quero apenas que me informes de tudo o que ocorrer. Entendido? Serás
bem recompensado.
Túlio concordou, surpreso. Nunca gostara desse monge, mas não o
julgara capaz de uma atitude dessas. Afinal, subestimara o poder da Igreja.
Não obstante sua posição tivesse se tornado extremamente
escorregadia, não perdeu o bom humor. Afinal, agora prometera seus
serviços a três pessoas diferentes. Qualquer passo em falso e não lhe
perdoariam, fosse o duque, Charles ou o sacerdote. Por outro lado, as
vantagens eram grandes; sua situação financeira ia de vento em popa. E,
assim, a vida seguia seu curso.
Os dias estavam quentes, abafados, mas as noites eram frescas e
agradáveis; uma aragem soprava de leve nos arvoredos do jardim e o céu
azul cobalto se apresentava limpo. Logo as estrelas chegariam, à medida
que a noite fosse substituindo o dia.
Do lado de fora do muro alguém aguardava. Não tivera dificuldades em
encontrar a efígie do leão esculpido e disfarçado entre as folhagens. Da
mesma forma, apalpando com os dedos ágeis, pressentira, mais do que
notara, o portão recortado na pedra. Mais tranquilo, resolveu aguardar o
momento propício.
Quando o sol se pôs no horizonte o homem levantou olhando em
derredor para verificar se não vinha ninguém. Como o local estivesse
deserto, aproximou-se da figura do leão e pressionou o olho esquerdo.
Imediatamente ouviu um ruído surdo e percebeu que o portão girava nos
gonzos. Uma abertura surgiu, suficiente para dar passagem a uma pessoa.
Entrou. Parou para verificar onde estava. A vegetação era farta e árvores
frondosas tornavam o local sombrio àquela hora. Andou um pouco e, sem
dificuldades, encontrou o caramanchão.
Recostada num banco de pedra, com a cabeça apoiada no braço,
encontrava-se uma mulher. Seu talhe era gracioso e os níveos braços
terminavam em mãos longas e finas. De onde estava o homem não pôde
divisar-lhe o rosto, mas supôs que aqueles cabelos sedosos e ondulados só
poderiam ser dela, Marianne.
Sem fazer ruído, procurou posicionar-se de modo que pudesse
contemplá-la por inteiro. Queria ver-lhe o rosto delicado, a boca bem feita
e os olhos sonhadores.
Embevecido na contemplação da jovem dama não percebeu que alguém
se aproximara sem ser visto. De repente sentiu que dois braços fortes o
agarraram com decisão e ouviu alguém gritar:
– Corre, Ismar! Eu o apanhei.
Logo outro guarda surgira e ele debateu-se em vão para soltar-se. Fora
apanhado. Como justificar sua presença ali, naquele lugar?
Ouvindo ruído, Marianne saiu da sua abstração, assustada:
– O que houve?
– Perdão, Condessa, se interrompemos vosso retiro. Este homem
penetrou no jardim às escondidas e foi apanhado por nós enquanto a
observava.
Surpresa, ela indagou:
– A mim? Com que finalidade? Quem é este homem?
– Não sabemos, Senhora. Mas ficaremos sabendo em breve – respondeu
Ismar com riso sardônico que nada prometia de bom.
– Vamos, bastardo! Em pouco tempo vomitarás tudo o que sabes e o que
planejavas.
Confuso, sem saber o que dizer, Ezequiel, pois era ele, foi conduzido até
uma masmorra.
No castelo se preparavam para a refeição noturna, palestrando
animadamente nos salões e ouvindo as músicas que Túlio tocava em seu
alaúde.
Ismar se aproximou e sussurrou algo ao ouvido do conde Charles, que
trocava ideias com o duque de Bouillon.
– Pois traze-o aqui.
Depois, pensando melhor: – Não. Iremos onde ele está. Não convém
propiciar às damas um espetáculo deprimente.
– Dizes bem, meu caro Conde. E, depois, não sabemos que revelações
fará, e é possível que, de conformidade com o teor das mesmas, não devam
ser escutadas por ouvidos indiscretos.
Dirigiram-se os três para a masmorra onde fora levado o prisioneiro.
Ismar abriu a porta e arrastou o preso até um aposento onde aguardavam
os dois senhores.
– Muito bem. Por que penetraste em minha propriedade? – inquiriu
Charles, após examinar detidamente o homem que ali se encontrava
ajoelhado à sua frente.
– Senhor! Asseguro-vos que nada pretendia de mal. Peço-vos perdão.
Sou homem honesto e nunca fiz mal a ninguém.
– Confessa! És um espião.
Surpreso com o rumo que tomava a inquirição, Ezequiel repetiu:
– Espião, Senhor? Não... nunca.
– Sim, espião dos ingleses.
O pobre homem chorava e se lamentava dolorosamente.
– Como conseguiste passar pelos portões? Pelos meus guardas?
– Não passei pelos guardas, Senhor.
– Ah, não? E por onde entraste, então? Pelas muralhas não conseguirias
e não existe outra maneira.
O infeliz olhava para o duque em súplica muda, pedindo que o ajudasse,
pois o conhecia e estava a serviço do Senhor de Bouillon, mas este o fitava
autoritário como se dissesse: Não te atrevas a dizer que me conheces!
Apavorado, sem saber mais o que dizer, ele confessou:
– Existe sim, Senhor. Entrei pela pequena abertura que existe na
muralha.
– Mentes, miserável!
– É verdade, Senhor. Abre-se ao se pressionar o olho esquerdo do leão
esculpido.
Charles ergueu-se, colérico, aplicando-lhe violenta chibatada no dorso.
– Onde obtiveste essa informação? Confessa ou mato-te como a um cão.
Ezequiel, não obstante o acúleo da dor, transpirando em bagas,
manteve-se calado.
– Teu silêncio te acusa. Fala, miserável, ou serás enforcado.
– Não, Senhor. Poupai-me a vida. Nada fiz de errado – e, desesperado,
agarrava-se às pernas de Charles, que se mantinha impassível.
O pobre homem debruçou sobre si mesmo, chorando alucinado.
– Foi uma brincadeira, Senhor. Na verdade desejava apenas fitar a
condessa Marianne.
– Como ousas, infeliz? Como te atreveste a levantar os olhos para
cobiçar minha esposa? – Charles interpelou, furioso.
– Apenas a admiro, Senhor, e desejava vê-la, como o sapo que
contempla as estrelas do céu. Nenhum pensamento pecaminoso dominou
meu coração.
O duque de Bouillon lançou um olhar de entendimento para o conde e
chamou-o para um canto:
– Parece-me, meu amigo, que desvendaste o mistério.
– Julgas mesmo?
– Sem dúvida! Já tens o assassino de teu pai!
Charles fitou o infeliz que, com as mãos cobrindo o rosto, continuava
debulhado em lágrimas.
– Mas, “ele”?
No íntimo Charles não conseguia aceitar. O que levaria Marianne a traí-
lo com um ser abjeto como esse? Homem do povo, sem atrativos e sem
fortuna?
Observava o prisioneiro enquanto meditava. As roupas simples de
homem do povo estavam sujas e surradas. Mas, sob aqueles andrajos, viu
uma criatura no verdor dos trinta anos, rosto regular, tipicamente semita,
bastos cabelos negros e anelados. Compleição robusta, tinha traços fortes
e estatura mediana.
Sentiu uma fisgada de ciúme. “Será? Mas, qual a explicação para que ele
saiba o segredo da abertura? Marianne desconhece completamente essa
saída e a existência do portão”, pensou.
Desorientado e confuso, ordenou que Ismar o trancafiasse novamente.
– Depois decidirei o que fazer com ele. Entrementes, procura fazê-lo
confessar.
Afastou-se do local, retornando ao castelo, onde já aguardavam com
impaciência a presença do anfitrião para iniciarem a ceia.
Charles entrou sorridente, respondendo com evasivas às indagações e
procurando esconder o que lhe ia na alma. Seu coração, porém, estava
apertado.
Em dado momento Charles e Marianne se encontraram a sós. Ela estava
aflita; o acontecimento inusitado e a consequente prisão do invasor a
deixaram abalada.
Charles a analisava discretamente, procurando descobrir vestígios de
culpa em seu semblante. O nervosismo dela, suas mãos trêmulas, o olhar
inquieto, foram suficientes para julgá-la culpada. Não considerou que ela
se assustara com o fato, apenas achou que estava nervosa com o que
acontecera ao amante.
Colocando a destra sobre o braço do marido indagou, aflita:
– Prenderam um homem no jardim. Sabes quem é ou o que desejava?
O marido fitou-a indiferente. Não obtendo resposta ela prosseguiu:
– Disseram-me que foste vê-lo. Por Deus, Charles, quem é esse homem?
Por que invadiu assim nossa propriedade?
– Pois não sabes? Então, por que esse nervosismo todo?
– Claro que não sei! E te admiras que tenha ficado apreensiva? Charles,
essa criatura poderia ter-me matado e os guardas nem perceberiam!
– Ora, não te faças de ingênua. É pena! Julguei que pudesses dizer-me de
quem se trata!
Surpresa e irritada, ela inquiriu:
– Eu? Por que eu? Explica-te melhor, senhor meu marido. Julgo ter
notado recriminação em teu olhar e tuas palavras me ofendem. Por Deus!
Como poderia saber quem é? Não o conheço, nem nunca o vi antes...
– Acalma-te, Marianne. Este não é nem o local nem o momento propício
para esclarecimentos. Porque exigirei esclarecimentos, não tenhas
dúvidas. Mas não agora. Nossos hóspedes exigem nossa presença.
Fazendo uma pausa, ofereceu o braço à mulher, enquanto lhe dizia com
leve sorriso no rosto:
– Vamos, minha querida. A ceia está servida e todos já se
encaminharam para o salão de refeições.
Incapaz de balbuciar uma palavra que fosse, Marianne apoiou-se no
marido e aproximaram-se dos demais.
Pálida, sentindo o sangue gelar nas veias, Marianne sorria, tentando
disfarçar o seu estado de espírito para não gerar falatórios.
Após a refeição pediu licença para retirar-se logo, alegando ligeira
indisposição. Em seus aposentos caiu numa poltrona, incapaz de dar mais
um passo. O que estaria acontecendo? Charles a acusava sem motivos. Sua
cabeça estava confusa, suas ideias embaralhadas. Não sabia o que pensar.
Ali permaneceu mais algum tempo. O silêncio era total. Tocou a sineta
chamando a aia.
– Desejais preparar-vos para dormir, Senhora?
– Não, Gertrudes. Não foi para isso que te chamei. Os convidados?...
– Já estão se recolhendo, Senhora. Apenas alguns poucos permanecem
no salão.
– Meu marido?
– Joga gamão, Senhora.
– Ah!
– Desejais mais alguma coisa, Senhora?
– Sim. Diga ao conde Charles que desejo vê-lo antes que se recolha. Não
deixes que ninguém ouça. Outra coisa: fica de guarda nas escadarias e,
quando ele for subir, vem depressa prevenir-me. Agora, avia-te.
Cerca de três quartos de hora depois a serva veio avisar que o conde se
preparava para deixar a mesa de jogo, despedindo-se dos amigos.
Marianne procurou refazer os cabelos, compor a fisionomia para que
ele não notasse que chorara.
Quando o marido penetrou no aposento encontrou-a em atitude
displicente, levemente apoiada em almofadas de cetim.
– Desejas falar-me? Já se faz tarde e estou com sono.
Erguendo-se, ela fitou-o serena:
– Creio que me deves uma explicação, Charles. Disseste palavras
incompreensíveis e exijo esclarecimentos.
Furioso, ele a mirou de alto.
– Aqui quem tem o direito de exigir sou eu e és tu quem deve dar as
explicações necessárias.
– Por acaso enlouqueceste? – revidou ela, atônita.
– Não. Se há alguém que enlouqueceu foste tu.
– Como ousas?!...
– Como ousas tu encontrar-te com teu amante em nossa propriedade,
sob minhas vistas? – bradou, colérico.
– Estás louco, Charles? – indagou Marianne com grande espanto. Como
não obtivesse resposta, continuou: – Não acreditas realmente nisso que
dizes! Não podes acreditar.
– Por que não confessas? Há quanto tempo te encontravas com aquele
miserável?
Incapaz de acreditar no que ouvia Marianne levou as mãos ao rosto,
caindo sentada na poltrona mais próxima.
– Não julgaste que eu poderia descobrir, não é verdade? Tua paixão por
ele deve ser tamanha que não pesaste nem os perigos e nem as
consequências...
– Meu Deus! Devo estar sonhando! – exclamou entre lágrimas.
Procurando controlar-se, falou, grave:
– Charles, quero entender tudo mas não consigo. Como chegaste a esta
conclusão infamante? Nunca vi aquele homem antes do incidente do
jardim.
– Pois “aquele” homem confessou que penetrou no jardim para ver-te.
– A mim? Não pode ser!
– Não te faças de inocente, minha bela. Essa não era a primeira vez que
te encontraste com ele aqui. Deveis ter tido muitos outros encontros. Só
que, num desses momentos infelizes, meu pai vos surpreendeu, não é
verdade? E o teu amante não teve dúvidas em matá-lo!
– Charles! – ela gritou, perplexa. – Meu Deus! Meu Deus! Isso não é
verdade. Não podes acreditar nessas infâmias.
Desesperada, Marianne lançou-se aos pés do marido, soluçando:
– Por piedade, acredita em mim, Charles! Nada disso é verdade! Sou
inocente!
– Afasta-te de mim, mulher! Das minhas mãos não obterás misericórdia.
Serás punida como mereces. E evita falar disso a quem quer que seja. Não
quero meu nome honrado jogado na lama.
Afastou-se bruscamente da mulher que, em prantos, se agarrava às suas
pernas. Antes de sair virou-se, ordenando-lhe:
– Não saias de teus aposentos sem ordem expressa minha. Ficarás
confinada aqui até segunda ordem.
No auge do desespero Marianne tentou erguer-se do chão, mas as
forças lhe faltaram. Caiu sem sentidos.
Capítulo XIII - Invasão inglesa

A situação se agravava a cada dia. A hostilidade entre franceses e


ingleses aumentava de intensidade. Brigas ocorriam nas tabernas por
qualquer motivo e desentendimentos de lado a lado tornavam a situação
insustentável, especialmente nas fronteiras.
Desejando vingar-se de Filipe II, seu inimigo, Ricardo Coração de Leão,
furioso, pessoalmente à frente do seu exército, atravessou o Canal da
Mancha invadindo o território francês e espalhando o terror.
O exército francês, que já se encontrava de sobreaviso, tentou detê-los,
mas, maiores em número, os ingleses foram ganhando terreno.
As populações das cidades procuravam refúgio nos campos ou fugiam
para outras localidades, ainda não atacadas, mas logo tinham que deixar o
local para buscar novo refúgio, quando os inimigos se aproximavam.
Naquele dia, no castelo de Montmorency, ouviu-se um tropel de cavalos
e, logo, um mensageiro chegou, exausto e coberto de poeira. Trazia a
notícia de que os invasores se aproximavam. Era preciso tomar
providências urgentes.
O conde Charles reuniu imediatamente os cavaleiros que ainda
permaneciam no castelo, mandando um mensageiro com a notícia aos
castelãos vizinhos, para se protegerem.
Chegaram à conclusão de que deveriam colocar a população de
mulheres e crianças em segurança.
O conde de Montpellier sugeriu que seguissem imediatamente para sua
propriedade que, pela localização no sul do país, provavelmente não
estaria no trajeto do exército inglês e onde suas esposas e Augusto
ficariam em segurança. Além disso, em caso de perigo, poderiam
facilmente chegar até Marselha, que permitia saída pelo Mediterrâneo.
Todos concordaram com a proposta e, incontinenti, avisaram os
interessados para que se preparassem para a viagem.
Em pouco tempo o castelo se transformou por completo. Os servos
corriam de um lado para o outro arrumando a bagagem que seria levada.
Os soldados procuravam aumentar a defesa das muralhas, fazendo
barricadas e preparando as armas.
Após a reunião os Senhores saíram, cada qual para o seu lado, para se
reunirem a seus homens e defenderem suas propriedades.
Só permaneceram no castelo os condes de Montpellier, que iriam
ajudar na defesa. Acompanhando as senhoras na viagem rumo a
Montpellier seguiriam os religiosos, frei Felipe e frei Victor. Julgaram que,
com mais alguns serviçais e com a proteção da Igreja, não teriam
problemas em atravessar o território francês.
***
Marianne despertou em seus aposentos algum tempo depois. Vendo-se
só, levantou-se do chão com dificuldade. O corpo todo dolorido como se
tivesse levado uma surra. Aos poucos a lembrança dos últimos
acontecimentos lhe voltaram à mente.
A cabeça doía terrivelmente; as têmporas latejavam. Chamou a serva
mas não obteve resposta. Tentou abrir a porta mas não conseguiu. Estava
trancada por fora. Bateu na porta mas ninguém lhe respondeu. Exausta,
deixou-se cair na poltrona e resolveu aguardar.
Como tudo isso fora acontecer? Ela poderia esclarecer a situação mas
estava amarrada. O segredo não lhe pertencia. E, depois, se o duque de
Bouillon ficasse sabendo que ela dissera a verdade, ninguém mais estaria
seguro. Tinha certeza de que fora ele que, de alguma forma, tinha
envolvido aquele pobre homem, tentando incriminá-la e afastar de si
quaisquer possibilidades de suspeita. Conhecia a fama do Senhor de
Bouillon; era implacável com seus inimigos, e aqueles que caíssem em
desgraça desapareciam para nunca mais voltar. Além disso, era muito
poderoso, hábil político e Filipe Augusto fazia-lhe todas as vontades.
De sua sogra nada poderia esperar. Pusilânime em excesso, não tinha
coragem de enfrentar ninguém, nem o filho que, após a morte do pai,
mudara por completo, tornando-se prepotente e autoritário.
Mesmo se contasse a verdade Charles não acreditaria nela. Túlio, o
infame Túlio, sabia da verdade mas não moveria uma palha para ajudá-la.
Ultimamente estava muito ligado ao duque, pelo que observara, e deveria
ser bem recompensado para não abrir a boca.
No fundo, era tudo um jogo de interesses e cada qual puxava para o seu
lado.
E aquele homem que fora preso? Como e por que dissera que entrara no
jardim para vê-la? Só poderia ser homem do duque, desejoso de
incriminá-la ainda mais.
Não... decididamente não adiantava se defender. Tudo estava contra
ela.
O que seria dela? Qual o castigo que Charles lhe reservara? E seu filho, o
que seria de Augusto?
Levou as mãos à cabeça como que querendo expulsar os pensamentos
sombrios que a envolviam. Nisso ouviu ruído desusado no castelo. Um
rumor difuso de vozes, uma agitação febril parecia tomar conta de tudo.
Ficou assustada. Bateu novamente na porta mas ninguém veio abrir. O
que estaria acontecendo?
Entrementes, Charles reuniu as mulheres ordenando-lhes que se
aprontassem o mais rápido possível para a viagem. Clarissa, sua mãe,
lembrou-se:
– E Marianne? Onde está Marianne? Alguém a viu hoje?
Louise concordou, intrigada:
– É verdade! Também não a vi. Será que está acamada?
– Não. Marianne está muito bem – respondeu Charles.
– Oh! ainda bem! – suspirou Clarissa aliviada. – Temos de avisá-la que
partiremos logo.
– Não – disse Charles, peremptório. – Ela não irá.
– Por que não? – perguntaram as senhoras a um só tempo.
– Temos alguns pontos para resolver e ela permanecerá comigo.
– E o pequeno Augusto?
– Seguirá com a ama.
Preocupada, Clarissa inquiriu o filho:
– O que se passa, meu filho? Algo errado?
– Nada, minha mãe. Está tudo bem.
– Bem, creio que devemos subir e ir ver Marianne, não é Louise?
– Ia propor exatamente isso! – respondeu a outra.
Charles novamente reagiu, interceptando-lhes os passos, quando já se
preparavam para subir as escadarias.
– Não. Ela estava um tanto nervosa e ministrei-lhe umas gotas de
calmantes. Ela está dormindo agora e não desejo que seja perturbada.
Não tendo outra saída, ambas aceitaram a explicação de Charles, não
obstante estranhassem seu comportamento insólito.
Sairiam na manhã seguinte, logo após as primeiras horas.
Exausta de tanto chorar e se debater Marianne acabou por adormecer.
Acordou horas depois, assustada, com o rumor de uma chave na
fechadura.
Na penumbra do quarto pôde divisar a presença de seu marido. Trazia
alguma coisa nas mãos, que ela não distinguiu de pronto.
Levantou-se da poltrona, aflita, suplicando-lhe entre lágrimas:
– Charles, por piedade, quero ver meu filho.
– Ele está muito bem. É impossível que o vejas agora, pois está
dormindo.
– Deixa-me vê-lo! Leva-me até junto dele e prometo-te nada dizer a
ninguém.
Com firmeza ele respondeu:
– Não. Não mereces mais aproximar-te de teu filho. Tua conduta
indigna não é própria de uma mãe que ama seu filho. Quando me traíste,
perdeste teu direito de mãe.
Desesperada, Marianne lutava por vencer sua resistência:
– Já te afirmei tantas vezes que nada fiz de errado. Por que não me
acreditas? Será que não mereço nada de ti após esses anos de amor e de
dedicação?
Ele a fitou com desprezo e continuou em silêncio. Resoluta, afinal ela se
decidiu:
– Está bem. Não posso mais calar-me. Não me destruas a existência,
Charles. Se não acreditas em mim, fala com tua mãe. Tua mãe sabe que sou
inocente. Fala com ela, pede-lhe as explicações necessárias e tenho
certeza de que não se negará a fornecê-las. É tudo um terrível engano!
Acredita em mim.
Sob violento acesso de raiva, ele gritou:
– Como és covarde! Agora desejas apelar para minha mãe, tentando
comover-me. Mas, enganas-te se pensas que cairei no teu ardil.
Fez uma pausa e, já se despedindo, recomendou:
– Trouxe-te algo para comeres. Procura alimentar-te para te suprires
de forças. Vais precisar delas.
Saiu do aposento, trancando novamente a porta por fora e deixando
Marianne entregue a profunda dor.
Ela, porém, sentindo muita fome, resolveu alimentar-se. Era a primeira
vez que lhe traziam algo para comer e já era noite.
Algumas horas depois, no meio da noite, Marianne ouviu passos. Logo
em seguida o barulho de chaves e a porta se abriu.
Dois guardas da confiança de Charles estavam com ele e, a um gesto
seu, aproximaram-se dela. Assustada, perguntou ao marido o que estava
acontecendo.
– Acompanha estes homens e nada digas se não quiseres perder a vida.
Eles têm ordens de matar-te se fizeres o menor ruído.
Marianne baixou a cabeça concordando. Saíram do quarto e
encaminharam-se para uma ala do castelo que ela nunca vira. Todos
dormiam e o silêncio era quebrado apenas pelos latidos de cães ao longe.
Atravessaram corredores, transpuseram muitas portas e desceram
escadarias. Marianne tinha a impressão de estar em outro lugar
completamente diferente.
Afinal, pararam defronte de uma porta, que foi aberta por um dos
guardas.
Ela entrou e fecharam novamente a porta, com ruído lúgubre.
– Por favor, não me deixem aqui! – implorava, em pânico.
Um dos guardas, mais permeável às emoções, disse-lhe contrito:
– Senhora, nada podemos fazer por vós. Pesa-nos executar esta ordem,
pois nada fizestes, mas vosso marido assim o deseja.
Afastaram-se, deixando-a só naquele lugar terrível. Acostumando-se à
escuridão Marianne olhou em torno. Um leito rústico, uma mesa e um
banco tosco eram o único mobiliário daquele lugar. Sobre a mesa um toco
de vela inútil, pois sem lume.
Um frio terrível, a par de um desespero alucinante, tomou conta dela.
Bateu na porta, gritou, chorou e se debateu, até sentir-se exausta.
Julgou que fosse enlouquecer de pavor. Afinal, adormeceu.
Acordou no dia seguinte com leve claridade que se escoava através de
uma pequena grade no alto da parede do fundo da cela.
A princípio não se recordou do que acontecera. Foi suficiente olhar em
torno para saber que tudo era real. Não fora um sonho mau, um pesadelo.
Ela realmente estava encarcerada.
Nova crise de desespero a acometeu. Esmurrou a pesada porta,
machucou-se tentando abri-la e, no auge no sofrimento, batia a cabeça na
parede entre gritos atrozes, até cair sem sentidos.
Ao readquirir a lucidez recomeçava tudo de novo, até novamente
perder os sentidos.
Com temor de que alguém se condoesse de sua dor, Charles não
permitia que ela visse ninguém. Sua alimentação era colocada através de
uma portinhola que se abria o suficiente para dar passagem ao prato e à
caneca d’água.
Mas a própria violência da dor fez com que ela se esgotasse. Em pouco
tempo Marianne estava apática, já não tendo forças para lutar.
Como estariam todos? Lembrava-se dos momentos felizes que passara
naquele castelo e chorava sentidamente. Como teria sido explicada a sua
ausência? E seu filho? Ninguém viera libertá-la; talvez nem mesmo
soubessem onde se encontrava. Charles tivera o maior cuidado para
transportá-la durante a noite sem que ninguém visse. Charles! Não
reconhecia mais nele aquele rapaz elegante e gentil que a conquistara com
seu encanto. Carinhoso, não sabia o que fazer para agradá-la, atendendo-
lhe o menor capricho. Como mudara! Tornara-se irreconhecível,
especialmente depois da morte do pai. Até certas atitudes de Charles, a
maneira de olhar, tudo lembrava-lhe o velho conde falecido.
Achava muito estranho tudo isso. Sentia até um pouco de receio, na
presença de Charles, como quando se encontrava com o velho, ainda vivo.4
Lembrava-se de Victor e essa lembrança dulcificava um pouco seus
dias. Parecia-lhe ouvi-lo novamente a repetir: “Prepara-te Marianne para
o futuro; sofrerás ainda muitos dissabores e terás obstáculos difíceis para
vencer. Confia em Deus e ora...”
Quanta verdade em suas palavras proféticas. Quando poderia supor a
explosão dos acontecimentos?
Lembrava-se muitas vezes de seu pai. Afastara-se dele depois do
casamento, pois sua posição agora era outra e raramente o via. Passado
um certo tempo ele resolveu mudar-se sabe Deus para onde e ela nunca
mais tivera notícias dele. Isto é, no começo ainda recebia, vez por outra,
alguma correspondência, mas depois de alguns meses as notícias cessaram
e nunca mais ouviu falar dele. Provavelmente não queria importuná-la na
nova vida, por isso ela dizia a todos que Antoine morrera. Pobre pai! Ela o
amava, mas sentia que a felicidade, o luxo, o prazer fizeram com que se
afastasse dele, relegando ao esquecimento aquele homem que a amava
tanto e que tudo fizera por ela. Agora, na adversidade, podia aquilatar
melhor seus sentimentos. Como fora ingrata!
E Pierre? Nunca mais tivera notícias dele. Teria casado, tido filhos?
Tivesse se unido a ele, hoje teria talvez uma vida mais feliz. Na verdade,
escolhera o luxo de uma posição invejável. Sua ambição falara mais alto e
agora ali estava, só e abandonada.
Se conseguisse, porém, sair daquele cárcere fétido, eles lhe pagariam.
Principalmente aquele sórdido Bouillon e Charles, que, apesar de conhecê-
la, não duvidara da sua culpabilidade um só momento que fosse. E a
condessa Clarissa que, covarde e desleal, não tivera coragem de defendê-
la, não obstante inteirada de toda a verdade.
O ódio a manteria viva para vingar-se. Tinha que preservar suas forças,
não podia deixar-se abater.
E assim passava o tempo, entre lamentos e projetos de vingança.

4. Nota do Autor Espiritual – O que Marianne não sabia, e nem poderia imaginar, é que seu marido
Charles estava realmente sendo influenciado pelo pai já desencarnado, que, cheio de ódio e sedento
de vingança, transmitia-lhe suas sensações e desejos, mediante o fenômeno da sintonia, tão bem
explicado pela Doutrina Espírita. Na sua condição de Espírito desencarnado e inconsciente do seu
estado, só sabia aquilo que seus olhos viram, por isso odiava Marianne, a esposa que traíra seu filho,
e o duque, que o ferira de morte.
Capítulo XIV - Ricardo I, Coração de Leão

A azáfama era intensa nos preparativos finais para a longa viagem. A


condessa Clarissa desejava levar bagagem excessiva, no que foi impedida
pelo filho.
– Não há necessidade, minha mãe. Logo a senhora estará de volta. Levai
apenas o que julgardes suficiente para alguns poucos dias. Estaremos aqui
para defender nossos domínios e, em pouco tempo, rechaçaremos o
inimigo. Vereis.
E ela, levantando as mãos para o alto:
– Que Deus te ouça, meu filho. Não deixes de mandar notícias.
Estaremos aflitas, longe e sem ter qualquer informação. A propósito, meu
filho, e Marianne?
– Ela está bem, senhora minha mãe. Não vos preocupeis. Agora,
apressai-vos, deveis sair daqui o mais rápido possível.
Com efeito. Nesse momento chega um mensageiro com a notícia de que
os ingleses estão se aproximando. Enquanto as carruagens desapareciam
numa nuvem de poeira, os homens buscavam ultimar os preparativos para
a defesa do castelo.
Colocaram-se em seus postos e distribuíram os soldados pelas ameias
das muralhas, fortemente armados. Faziam-se barricadas para o caso de
invasão do castelo. O ambiente era tenso. Percebia-se, pelas fisionomias
fechadas e silenciosas, o que lhes ia dentro da alma. O suor escorria
abundante e o nervosismo era geral.
Durante aproximadamente duas horas permaneceram ali, em seus
postos, tensos e preocupados.
De repente perceberam o ruído do exército inglês aproximando-se ao
longe. Trazidos pelo vento, ouviram gritos dos habitantes da aldeia de
Montmorency, que teimaram em permanecer em suas casas, embora
alertados para o perigo que corriam. A maior parte, porém, refugiou-se no
castelo e estava a salvo.
O som dos clarins soou. Já em posição, os ingleses avançaram sobre as
muralhas, trazendo escadas gigantescas com que contavam invadir o
castelo. Eram recebidos com valentia pelos soldados franceses e repelidos
com óleo fervente; seus gritos ressoavam pelo espaço até seus corpos se
estatelarem no solo.
Aqueles que conseguiam colocar as escadas e chegar até as ameias eram
recebidos pelas espadas e adagas, com estocadas certeiras, e em pouco
tempo jaziam no chão, mergulhados numa poça de sangue.
Algumas horas depois ouviu-se o som dos clarins ordenando a retirada.
Um grito de vitória explodiu de todas as bocas.
Charles advertiu:
– Não se enganem. Eles voltarão com reforços. Vamos retirar os feridos
e preparar-nos para recebê-los novamente.
E assim permaneceram durante vários dias. Após cada nova ofensiva do
exército inimigo ficavam mais fracos e com grandes baixas entre o
contingente. Muitos daqueles homens eram camponeses sem qualquer
preparo para a luta; quantos deles nem sequer sabiam empunhar uma
arma, pacíficos e ordeiros que eram.
Os ingleses, já mais adestrados, tinham contra si o fato de não terem
como proteger-se, por estarem em campo aberto. Aos poucos, porém, pela
sua tenacidade, foram cansando os habitantes do castelo de
Montmorency.
A situação dos franceses era difícil e esperava-se uma derrota a
qualquer momento.
Preocupado com a posição crítica em que se encontravam, Charles
reuniu seus companheiros e amigos, expondo-lhes o problema. A situação
era de extrema gravidade e deveriam fugir. Os ingleses queriam as cabeças
dos líderes e nada fariam aos outros, soldados e população, se todos se
rendessem.
Desgostoso, o conde de Montpellier e seu filho Lucas concordaram, não
obstante relutantes.
– Mas, e como faremos isso? Não temos meios de atravessar as
muralhas para sair do castelo sem que o inimigo nos veja!
Ao que Charles retrucou:
– Quanto a isso não vos preocupeis. Conheço um meio que nos
possibilitará deixar o castelo sem que ninguém perceba. Ficareis de
sobreaviso. Quando os malditos ingleses entrarem no castelo sairemos
pelo lado oposto. Existe uma passagem na muralha que ninguém conhece
e será nossa salvação.
Os outros, pai e filho, respiraram aliviados.
E assim aguardaram o momento de fugirem, deixando,
temporariamente, o castelo de Montmorency aos inimigos ingleses.
As horas escoavam lentamente. A impaciência aumentava. Exaustos
pelos combates e pelas longas vigílias, os soldados estavam tensos e
preocupados. Em seus postos aguardavam uma nova ofensiva dos ingleses,
sabendo que não teriam condições de defesa e que, muito provavelmente,
seriam derrotados.
A valentia e a coragem daqueles homens, porém, fez com que se
conservassem em seus lugares, onde o dever os colocara, conquanto
soubessem que, provavelmente, não veriam um novo dia nascer.
Às primeiras horas da manhã ouviu-se um rumor inconfundível que
prenunciava a chegada do inimigo.
Não obstante a claridade do dia fosse ainda insuficiente, a sentinela deu
o alarme, indicando que um novo ataque se preparava.
Rapidamente colocaram-se em posição e, dentro em pouco, a luta se
fazia acirrada. O castelo resistiu bravamente mas, dada a força do inimigo,
não se sustentou. Em poucas horas os ingleses entravam como vencedores
no interior das muralhas do castelo.
O brado de vitória saído de suas gargantas destoava do chão, juncado de
mortos e feridos.
Quando o comandante inglês procurou os responsáveis franceses não
os encontrou. Já haviam conseguido fugir, utilizando a passagem secreta e
levando uma fortuna em ouro e joias, tudo o que puderam carregar.
Colérico, o comandante vencedor, Ricardo, reuniu os soldados
franceses ordenando-lhes que denunciassem o paradeiro de seus chefes.
Como não obtivessem resposta, pois realmente os infelizes soldados não
sabiam o que acontecera com eles, muitas cabeças rolaram.
Embora repetissem sempre que não tinham conhecimento do paradeiro
do conde Charles, que não sabiam seu esconderijo, os ingleses não
acreditaram, pensando que os soldados quisessem proteger seus
superiores.
E novas cabeças rolaram como exemplo e advertência, aumentando o
pânico dos infelizes que haviam sido abandonados à própria sorte.
Irritado e furioso o comandante das tropas bradou:
– Não pensem que desistirei. Encontrá-los-ei estejam onde estiverem e
não terei contemplação. Sofrerão minha ira. Morrerão como porcos, já que
não tiveram coragem de lutar e morrer como cavalheiros – virou-se,
ordenando a um oficial: – Procurem-nos! Quero-os aqui e vivos. Mesmo
que seja preciso não ficar pedra sobre pedra!
Iniciou-se então uma devassa completa pelo castelo. Percorreram
corredores, abriram aposentos, vasculharam armários. Nada encontraram.
Chegaram aos calabouços e, apanhando as chaves que o carcereiro
havia deixado abandonadas na ânsia de fugir, foram abrindo as portas.
Numa das portas ouviram choro de mulher, que suplicava por socorro.
No fundo da cela viram um vulto de mulher. Vestes rotas, cabelos em
desalinho e feições esquálidas, ela bradou num fio de voz:
– Piedade, Charles. Poupa-me a vida!
Ouvindo aquela súplica o oficial inquiriu:
– Quem está aí?
Percebendo pela voz que era um estranho e, conquanto falasse francês,
tinha um forte sotaque estrangeiro, a prisioneira se aproximou
respondendo com outra pergunta:
– Quem sois, Senhor? Não sois dos homens de meu marido, posso ver.
Ah, não importa. Libertai-me, Senhor, e vos serei eternamente grata.
Notando pela distinção das maneiras e pela linguagem que não se
tratava de uma prisioneira qualquer, ele respondeu:
– Sou um oficial do exército inglês e somos agora os senhores deste
castelo. E vós, quem sois, Senhora?
– Marianne, condessa de Montmorency e Drumond – disse com altivez.
– Onde está meu marido, o conde de Montmorency?
– Não sabemos, Senhora. Estávamos à procura dele quando vos
encontramos.
– Ah! entendo.
– Senhora, devo levar-vos à presença de meu chefe.
Ela fitou-o e afirmou com orgulho:
– Não desta forma, Senhor. Poupai-me mais este vexame.
– Naturalmente, Senhora. Tereis o tempo necessário para vos
preparardes convenientemente.
– Obrigada, Senhor. Não esperava outra atitude de vossa parte. Sois um
gentleman.
Com uma reverência o oficial a acompanhou até seus aposentos e
aguardou.
Algum tempo depois ela surgiu completamente transfigurada. Colocara
um traje de brocado azul que lhe realçava a tonalidade da pele; lavara e
penteara os cabelos, trançando-os e prendendo-os com um laço.
Conquanto magra e muito pálida pelas privações, sua beleza ainda não
passava despercebida.
Foi com um galanteio que o oficial a recebeu. Não podia acreditar nos
próprios olhos. A transformação fora radical.
Ofereceu-lhe o braço e a conduziu ao salão, onde os vencedores
comemoravam a vitória.
Quando penetrou no salão iluminado pelas tochas causou admiração
geral. Atravessou a distância que os separava do comandante inglês sob os
olhares cúpidos dos homens.
Ao aproximarem-se da mesa, onde os aguardava o comandante,
também surpreso, o oficial apresentou:
– Meu Senhor, a Condessa de Montmorency!
– Oh! Onde a encontraram? – perguntou fazendo uma avaliação da
mulher que tinha à sua frente. – E vosso esposo?
Como Marianne permanecesse calada, o oficial informou:
– Quanto ao Conde, ainda não foi encontrado.
– Ela deve saber seu paradeiro. Ou acreditas que ele fosse ficar longe
dessa beleza?
– Enganai-vos, Senhor. Não sei onde está meu marido e se soubesse não
teria escrúpulos em vos dizer – afirmou com arrogância.
– Ah, sim? E por que não permaneceis junto dele, Senhora?
– Porque ela estava presa, meu Senhor – apressou-se a informar o
oficial.
– Como? Presa?
– Exatamente. Nós a encontramos quando fazíamos uma busca nos
calabouços. Seu estado era deplorável, diga-se de passagem, e permiti que
ela se arrumasse, pois não quis apresentar-se perante vós no estado em
que estava.
– Compreendo... compreendo – e, dirigindo-se a Marianne: – Creio que
estou a exigir demais da Senhora. Agora começo a perceber vosso estado
de fraqueza. Sentai-vos, Senhora, ao meu lado e dai-me o prazer da vossa
companhia.
Já sem forças para se manter em pé, Marianne aceitou o oferecimento.
Estava faminta e alimentou-se bem, enquanto o inglês a fitava de soslaio.
Marianne não poderia imaginar que se encontrava sentada, lado a lado,
com o soberano inglês, o legendário Ricardo I, Coração de Leão. É porque o
rei inglês se vestia com simplicidade e quem não o conhecesse confundi-
lo-ia com um de seus comandados, visto portar as roupas de combate, a
malha protetora, o capacete. Ali, agora, retirara essas peças e vestia uma
túnica simples, calças justas, e nada trazia na cabeça que o distinguisse dos
demais.
Quando ela terminou de comer, Ricardo disse-lhe galantemente:
– Gostaria de conhecer as razões que levaram vosso esposo a
encarcerar-vos, se não fizerdes objeção, naturalmente.
– Não apenas me encarcerou, Senhor, como abandonou-me à própria
sorte, fugindo e deixando-me à mercê de nossos inimigos – respondeu
com amargura.
– Perdão, Senhora, dissestes que não sabíeis onde se encontrava vosso
marido, agora afirmastes que ele fugiu...
– São deduções minhas. Fugiu e deve estar longe a estas horas.
– Como podeis ter certeza disso? Não pode estar escondido no próprio
palácio?
– Não creio. Olhai para mim, Senhor. Vede. Não estou usando adornos.
O miserável fugiu levando todas as minhas joias.
Com ar divertido ele acompanhava as palavras de Marianne. Depois,
com um sorriso, concordou:
– Notável dedução, Senhora. Concordo convosco. Mas, o que o levaria a
mandar prender a própria mulher?
– É uma longa história, Senhor.
– Tenho todo o tempo disponível, Senhora – e, vendo a taça dela vazia,
apressou-se a enchê-la.
Marianne, calmamente, contou-lhe tudo como se passara, as
desconfianças do marido, a prisão do homem que ele julgara fosse seu
amante, até o momento em que ouvira o barulho de chave na fechadura e
a porta da prisão se abrira.
– Eu o amava ternamente, como a um irmão, e o respeitava
profundamente. Charles conseguiu transformar esse amor em ódio. Não
acreditou em mim, tirou meu filho e me condenou à morte na prisão. Não
posso perdoá-lo!
O ódio concentrado, a raiva de que se sentia possuída, fez com que o
sangue lhe afluísse à cabeça com mais intensidade. Sentiu uma vertigem e
sua cabeça tombou sobre o ombro do rei, que, percebendo seu mal-estar,
amparou-a.
– Senhora, estais profundamente exausta e enfraquecida – falou
atencioso. – Devo acompanhar-vos até vossos aposentos. É necessário que
repouseis para recuperardes as forças debilitadas.
Ela agradeceu e concordou. Ricardo ofereceu-lhe o braço e
encaminharam-se para as escadarias. Com as mãos nas costas da dama, ele
a amparou com delicadeza.
A proximidade daquela mulher, porém, tirou o sossego daquele homem
acostumado a mandar e a fazer-se obedecer. Galante por natureza, de
espírito aventureiro e dado a entretenimentos amorosos que ficaram
célebres, começou a sentir o coração bater célere e teve ímpetos de beijá-
la.
O que o impedia? Marianne estava à sua mercê, como ela mesmo
dissera. Era uma prisioneira de guerra, afinal de contas. Ele tinha todo o
direito de fazer dela o que quisesse. E era o que faria. Não perderia a
oportunidade de ter só para si essa criatura encantadora.
Quando chegaram à frente da porta de acesso aos aposentos de
Marianne, porém, seus arroubos arrefeceram. Ela virou-se para ele,
fitando-o com aqueles lindos olhos, e havia tal dignidade em sua atitude
que Ricardo não ousou transpor os limites da conveniência.
Graciosamente, ela lhe estendeu a destra, onde ele depositou um ósculo
enternecido, enquanto Marianne afirmava:
– Não sei como agradecer-vos, Senhor, a gentileza para comigo. Recebi
amparo e assistência de um temido inimigo, enquanto aquele que tinha o
dever de me proteger e amparar fugiu, deixando-me só. Essa incoerência
demonstra como não devemos fazer julgamentos precipitados. Além disso
– falou, risonha – vós me proporcionais o prazer de dormir em um leito
decente, coisa que não faço há muito tempo. Boa noite, Senhor.
– Podeis contar comigo, Senhora. A partir de hoje sou vosso aliado e
defensor mais ferrenho. Boa noite.
Com uma profunda reverência ele inclinou-se e depois a deixou.
Capítulo XV - Fuga para Montpellier

Aproveitando as trevas noturnas que não tardariam a ser substituídas


pela claridade da aurora, eles fugiram. Levando objetos pessoais, roupas e
joias, subiram nas carruagens e partiram com destino ao castelo de
Montpellier.
No silêncio da noite só se ouvia o ruído monótono das rodas no chão e
os estalidos do chicote no dorso dos animais. O condutor de vez em
quando praguejava, aflito por distanciar-se o mais possível de
Montmorency.
Ninguém tinha ânimo de conversar. O pequeno Augusto dormia no colo
da ama. As damas suspiravam vez por outra e ouvia-se um soluço abafado
de tempos a tempos.
Deixar o próprio lar, abandonando-o desta maneira, era mais do que
Clarissa poderia suportar. Agora que o marido morrera, seu bem maior era
o filho e tivera que deixá-lo também. Sabe-se lá se voltaria a vê-lo com
vida...
Fitou a criança, dormindo tranquilamente no colo da ama à sua frente,
e não conteve um lamento:
– Pobre criança!
Frei Felipe dirigiu-lhe palavras de confiança:
– Não vos preocupeis, Senhora Condessa. Logo podereis retornar ao
vosso lar, sã e salva. Esta situação não perdurará. Nossos valentes soldados
saberão defender o solo da França. O pequeno será muito feliz ainda,
vereis.
– A ausência da mãe será muito dolorosa para ele, frei.
Surpreso, Felipe inquiriu:
– Não entendo, Senhora. Dar-se-á o caso que a condessa Marianne não
esteja viajando conosco?
– Exatamente.
– Mas... por quê? – gaguejou ele, sem poder acreditar no que ouvia.
– Ordens do marido.
– Ah!...
Não satisfeito com a resposta que recebera Felipe procurou interrogar
discretamente a serva sua aliada, na primeira parada para as mudas.
Através dela ficou sabendo que se comentava, à boca pequena, que
Marianne estava prisioneira no castelo por ordem do conde e, por essa
razão, não viajara junto com todos.
Só então frei Felipe percebeu que realmente não a vira na véspera e
nem no momento da partida. Mas, como a confusão era muito grande no
castelo, não se deteve a pensar no assunto. Seu primeiro impulso foi voltar
imediatamente, porém foi impedido por frei Victor, a quem contara o que
estava acontecendo.
Frei Victor falou-lhe sobre a necessidade de prosseguirem com a
caravana, pois ali estavam para proteger os viajantes. Além disso, soubera
pelo estalajadeiro que o exército inglês estava avançando sempre. Não
podiam retroceder. Caminhariam juntos até um refúgio seguro para todos,
o castelo de Montpellier, e depois poderiam retornar e descobrir o que
realmente ocorrera.
Após estas considerações Felipe concordou em seguir viagem. Porém,
estava aflito e preocupado. O que estaria acontecendo com Marianne?
Viajou calado, respondendo por monossílabos ao que lhe era
perguntado, até que o deixaram entregue aos próprios pensamentos.
Com o rosário na mão, fingindo rezar para não ser incomodado, ele
monologava intimamente.
Victor tivera razão, como sempre. Como deixar desprotegidas aquelas
criaturas, quando entre elas estava sua mãe, Louise? E, depois, uma
expectativa enorme o abalava sensivelmente. Rever o lar que fora seu por
tantos anos era uma emoção muito especial. Ali vivera momentos tristes, é
verdade, mas também fora muito feliz.
Recordava as brincadeiras, os passeios ao lado de Lucas, os estudos, as
traquinagens... Tudo isso fazia parte de um passado que parecia tão
distante! No entanto, apenas alguns anos o separavam dessa época. Mais
precisamente sete anos e alguns meses desde que fora expulso por seu pai
adotivo, conde de Montpellier.
Suspirou profundamente.
O sol agora se fazia muito forte e era preciso parar para descansar e
comer alguma coisa. Logo chegariam a um posto de mudas.
E, assim, prosseguiram durante muitos e muitos dias até avistarem ao
longe o castelo de Montpellier.
Estavam exaustos. Os solavancos da viagem deixavam o corpo todo
dolorido. O pequeno Augusto – que parecia incansável e foi o único a
aproveitar as belezas do percurso, alegrando-se com tudo o que via, dando
gritinhos de alegria ao avistar uma lebre ou um esquilo entre as árvores –
adormeceu e foi logo conduzido para os aposentos que iria ocupar
juntamente com a ama.
Uma nova etapa se iniciava.
Em todos os semblantes liam-se a tristeza e o desencanto pela
necessidade de fugirem para tão longe de casa, mas também a esperança
de dias melhores, pois confiavam na vitória dos franceses.
***
A volta ao lar para Pierre, agora frei Felipe, foi cheia de emoções. Desde
o campo e a pequena mata nas proximidades do castelo e que
atravessaram na chegada, trouxe-lhe à mente lembranças inestimáveis da
sua meninice; os folguedos ao lado do irmão Lucas; as caçadas aos
pequenos animais, quando colocavam arapucas na floresta ao anoitecer e
no dia seguinte, logo cedo, iam ver o resultado da armadilha, cheios de
expectativas; os passeios e cavalgadas pelos arredores, a vila com seus
atrativos... Quanta coisa surgia agora, assomando dos refolhos da
memória.
Depois... depois a briga com Lucas, a ira de seu pai, que não soubera
perdoar nem compreender uma rusga entre dois irmãos, e, finalmente, a
suprema humilhação, a expulsão do lar.
Nessa parte das recordações o coração de Pierre se encheu de
amargura. Dominava-o novamente o mesmo sofrimento e a mesma
revolta que nutrira então. Do seu peito explodiu um soluço incontido.
– Estais sentindo alguma coisa, irmão?
Ouviu a voz meiga que lhe falava com doçura e notou uma mão que
pousara delicadamente em seu joelho. Era a condessa Louise.
Ela, sempre ela! O anjo tutelar da sua vida, a única criatura que se
preocupara realmente com ele. Naquele momento, esquecido do cuidado
que precisava manter na frente daquela mulher para que não viesse a
reconhecê-lo, fitou-a com carinho, agradecendo a preocupação que
demonstrara:
– Não, Senhora Condessa. Estou bem, podeis acreditar.
Foi um instante só, mas o suficiente para que Louise sentisse dentro de
si uma comoção profunda. Naquele ser taciturno, sombrio mesmo, que
andava pelos cantos encapuçado; que respondia secamente às indagações
que lhe eram feitas; que não olhava nunca nos olhos das outras pessoas
com quem dialogava, pareceu-lhe entrever algo conhecido. Era outra
pessoa que lhe respondera. Olhara-a de frente, sua voz estava diferente e
até vislumbrara lágrimas em seus olhos, tinha certeza. E o carinho? Aquela
voz chegara até ela repassada de ternura e havia uma conotação muito
familiar.
Estaria ficando louca? Mas, a verdade é que imediatamente se lembrara
do filho Pierre, desaparecido em misteriosas circunstâncias e que,
provavelmente, estaria morto. Não era possível! Mas a voz era idêntica!
Tentou reatar a conversação, tentando descobrir algo mais, mas foi
inútil. Já entregue a si mesmo, mergulhado em seu capuz, rosário entre os
dedos, frei Felipe retornara a seu mutismo.
Com um suspiro conformado Louise virou-se para o postigo da janela e
espraiou os olhos pela paisagem tão conhecida. Estavam já nas
proximidades do castelo e breve estariam em casa.
Os primeiros dias foram tirados apenas para descansar. Expediram um
postilhão levando notícias de que chegaram todos bem e estavam em
segurança.
O local era aprazível e a condessa Louise procurava tornar a estada no
castelo o mais agradável possível para todos, apesar da falta que sentia do
marido e do filho.
Dois dias depois da chegada encontrou frei Felipe num recanto muito
caro ao seu coração de mãe.
Não tendo ainda percebido sua presença, ele examinava tudo com
cuidado.
– Gostais deste recanto, reverendo?
Assim interpelado, ele voltou-se rápido, como se fora pego de surpresa.
– Desculpai-me, Senhora, se estou onde não devia.
– Não, em absoluto. Podeis ficar à vontade. Este era o lugar preferido de
meu filho Pierre – respondeu com tristeza.
– Sim?! Não sabia que tínheis outro filho. O que aconteceu com ele? –
inquiriu o monge, tentando manter tranquilidade.
– Na verdade eu não sei. Após uma briga com meu marido que, como
sabeis, é profundamente arbitrário, meu filho saiu pelo mundo. Não
tivemos mais notícias dele, não obstante todos os esforços que foram
empreendidos.
Tentando vencer a emoção, ele questionou:
– Estará vivo?
– Ignoro. Todas as evidências me afirmam que não, que já morreu na
mão de ladrões e salteadores de estradas, mas meu coração de mãe sente
que Pierre ainda vive e que nos reencontraremos um dia.
O momento era de extrema emoção e Felipe fazia esforços inauditos
para não se jogar aos pés de Louise e gritar: “Sou vosso filho querido. Não
estou morto e vim para ficar. Não nos separaremos mais e seremos ainda
muito felizes”.
A boca, porém, manteve-se fechada. Nada disse do que lhe ia na alma.
Mordeu os lábios para conter os soluços que lhe agitavam o peito e, com
voz embargada pela emoção, conseguiu balbuciar:
– Tende confiança em Deus, Senhora. Não vos preocupeis com vosso
filho. Poderá estar ele muito mais perto do que podeis imaginar.
Ela tomou-lhe da mão, que descansava sobre o regaço e, com infinita
ternura, sussurrou:
– Agradeço-vos as palavras de encorajamento, frei Felipe. Interessante
notar como despertais em mim sensações de carinho e afeto desde que vos
conheci. Não obstante sejais taciturno, retraído, e pouco dado a conversas,
sempre nutri por vós uma ternura que não sei justificar. E noto que vós,
conquanto essa fachada de isolamento e indiferença que vos separa das
outras criaturas, também sentis estima por mim. Prova é que, percebo,
estais sensibilizado com minhas desditas e vossas mãos estão trêmulas...
Como se houvesse sido picado por uma cobra ele se ergueu
abruptamente e Louise percebeu que, sob o capuz, seu rosto estava tenso,
todo o seu corpo se enrijecera repentinamente.
– Devo despedir-me agora, Senhora Condessa. Amanhã, logo às
primeiras horas, partirei de retorno. Frei Victor irá comigo – sua voz saiu
num tom que pretendia ser o mais natural e indiferente possível, embora
Louise sentisse a perturbação que o dominava.
Enxugando as lágrimas que desciam pelo rosto, ela respondeu:
– Não vos parece, frade, que deveríeis ficar mais alguns dias para vos
refazerdes da longa viagem?
Ele não quis dizer que estava preocupado com Marianne, respondendo
com gravidade:
– Não é possível nos alongarmos mais, Senhora. Temos deveres a
executar.
Ela concordou com um gesto de cabeça: – É justo. Compreendo.
– Desculpai-me, agora. Devo arrumar meus pertences para a viagem.
Precisaremos apenas de bons cavalos.
– Naturalmente. Darei ordens para que estejam prontos ao amanhecer,
equipados com víveres e tudo o mais que se fizer necessário para um
longo percurso.
À noite, antes de se recolherem, despediram-se de todos. Não se veriam
mais, pois sairiam muito cedo e os demais estariam dormindo.
Frei Victor teve uma palavra de consolo e de esperança para cada um.
– Sentiremos vossa falta, frei. Estávamos acostumados à vossa presença
carinhosa e amiga – reclamou Clarissa.
Ele sorriu compreensivo, afirmando:
– Não sentireis minha falta. Ocupai o tempo com os camponeses
necessitados que existem na propriedade, doentes e sofredores, e ficareis
muito bem protegidas. Jesus estará convosco. Não vos preocupeis.
Louise, com a voz embargada pela emoção, agradeceu, recomendando:
– Levai os nossos votos de boa viagem e a gratidão de todos pela ajuda
inestimável que nos prestastes. Mandai notícias assim que for possível.
Compreendeis como estamos aflitas para saber o que está acontecendo em
Montmorency com nossos maridos e filhos. Que Deus vos acompanhe!
Levando o mínimo indispensável e provisões para uma jornada de
longo curso eles partiram de retorno a Montmorency. No íntimo uma
interrogação: O que estaria acontecendo por lá?
Teriam um longo trajeto a vencer.
Cavalgaram dia e noite como se estivessem sendo perseguidos por mil
demônios, parando apenas o necessário, nas estações de mudas, para
substituir os cavalos cansados e para uma refeição ligeira, além de breve
repouso.
Atravessaram extensos territórios sem encontrarem dificuldades
maiores. Já próximos ao destino viram vestígios do exército inglês, que
avançava sempre.
Modificaram o roteiro para evitar um encontro com o inimigo e, em
pouco tempo, chegaram a Montmorency. Souberam, por moradores das
cercanias, que o castelo fora tomado e que estava em poder dos invasores.
– E os Senhores de Montmorency? O que aconteceu com eles? –
indagou Felipe.
– Não sabemos, frade – respondeu um camponês. – Correu um boato de
que não foram encontrados. Ninguém sabe o paradeiro deles. É o que
dizem!
– Mas, e a condessa Marianne? Também desapareceu?
– Segundo ouvi dizer, está com os ingleses.
– Como assim? Não acompanhou o marido? – perguntou Victor sob
mudo assombro.
– Sabe como é, reverendo, o povo fala muito...
– E o que dizem?
– Dizem que a senhora estava encarcerada quando foi encontrada pelos
ingleses ao tomarem o castelo.
– Malditos! – resmungou entre dentes frei Felipe.
– O que dissestes, frei?
– Nada, meu filho. Agradeço-te as informações que nos prestaste.
– Vossa bênção, meu pai.
– Que Deus te abençoe, meu filho. Vai em paz! – respondeu o religioso,
estendendo a mão que o camponês osculou com veneração.
Quando o homem se afastou sentaram-se na relva para repousar e
decidir o que fazer.
Felipe estava fremente de cólera:
– Viste? O miserável não trepidou em deixar a mulher à mercê do
inimigo, fugindo qual lebre assustada.
Pálido, mas tranquilo, Victor considerou mansamente:
– Meu amigo e meu irmão, não devemos julgar ninguém, é o que nos
ensina o Cristo de Deus. Na realidade, não sabemos exatamente o que
aconteceu. Pode ser que o bom homem não soubesse a verdade dos fatos.
E, mesmo que Charles tenha fugido e abandonado a esposa, ainda assim
não nos cabe julgar, pois não conhecemos as razões do seu procedimento.
Devemos, isto sim, tentar ajudar da melhor forma possível.
Com azedume, Felipe retrucou:
– Tens propensão para santo. Eu não. Conheces minha maneira de
pensar e os motivos que me arrastaram a esta vida solitária, jungido ao
burel que tanto odeio.
– Pois estás sendo ingrato, Felipe. Foi esse hábito que hoje lastimas que
te salvou em momento crucial da tua vida. Deverias ser grato à Instituição
que te acolheu, deu proteção e que continua a amparar-te – falou com
serenidade.
– Essa Instituição, como tu a chamas, está podre. Ela fede. Não percebes
como se desmorona sob a corrupção de seus membros, a cupidez de seus
líderes e a luxúria que mina seus alicerces? – respondeu, amargo.
– Ainda aí, meu irmão – explicou com paciência infinita –, tomas o
efeito pela causa, e não analisas com profundidade. Concordo contigo que
existe muita coisa errada em nossos meios, mas a nossa Igreja padece dos
erros que provêm da imperfeição humana. Somos todos criaturas falíveis e
cheias de pecados. Mas o que eu defendo, Felipe, não é o homem, mas a
“ideia”. Cristo nos deixou um código admirável de moral para ser seguido.
“Nós” é que o alteramos, vilipendiamos e corrompemos.
Enquanto falava seus olhos brilhavam estranhamente. Possuíam eles
uma luz inconfundível de fé, de amor e esperança. Fez uma pausa e
continuou:
– Um dia, Felipe, também serás tocado pela mão de Jesus e entenderás o
que sinto. O que eu amo e defendo são as ideias cristãs, pois somente elas
nos tornarão melhores e mais felizes: “EU SOU O CAMINHO, A VERDADE E
A VIDA. NINGUÉM VAI AO PAI SE NÃO FOR POR MIM”, disse Jesus. Um dia
não haverá mais diferenças de raça, de credo religioso, de cor, entre os
homens. Seremos todos irmãos e viveremos em paz, sem guerras e sem
destruição.
– Sonhas alto! – replicou Felipe, zombeteiro. – Mas te admiro por isso.
Talvez sejas a única criatura honesta e pura em seus ideais.
Olhando o castelo que se delineava ao longe, Felipe perguntou,
mudando de assunto:
– Bem, mas o que faremos? Estamos aqui a filosofar, mas precisamos
tomar uma decisão. Como penetrar no castelo?
– Deixa comigo. Estás muito alterado e poderás colocar tudo a perder –
respondeu Victor.
Levantaram-se e puseram-se a caminho. Ao chegarem junto aos portões
do castelo pararam. O soldado que estava de guarda deu uma ordem
ríspida:
– Alto! Não podeis passar. O que desejais?
Victor, com voz mansa, em que transpirava serenidade, falou-lhe:
– Meu bom homem, somos religiosos e viemos de longe para falar com
teu comandante. Precisamos de alimentos e repouso.
O vigia mirou de alto a baixo aqueles homens que tinha à sua frente.
Estavam sujos, as sandálias empoeiradas, as vestes rotas. Não tinham
aspecto de criaturas perigosas.
– O que pretendeis com o chefe? – perguntou aos monges.
– Queremos transmitir-lhe uma mensagem – respondeu Victor,
intimamente suplicando perdão a Deus pela mentira.
– Muito bem. Aguardai aqui. Vou saber se pode atender-vos.
Algum tempo depois voltou e abriu os portões de acesso ao castelo.
– Ele vai receber-vos. Acompanhai-me. Antes, porém, devo revistar-vos
para ver se não levais armas convosco.
Felipe pensou que bem que seria útil trazer um punhal entre as dobras
da roupa. Infelizmente, nada possuía para defender-se e à sua amada
Marianne. Como a tirariam daquele local tão protegido e fortificado?
Suspirou.
Aproximando-se e entregando-se à revista do soldado inglês, Victor
falou com cândido sorriso:
– Nossa única arma é a palavra de Deus, meu irmão.
O soldado fitou-o sem dizer nada. Completando a tarefa ordenou:
– Acompanhai-me.
Atravessaram pátios e jardins, até entrarem no salão, onde se
congregava a fina flor do exército inglês. Diversos grupos se espalhavam
pelo recinto.
O soldado os conduziu até um homem de porte médio, bigodes bem
aparados, maneiras gentis e cabeleira encaracolada.
– Desejais falar comigo?
Victor se aproximou. Trazia no semblante a fé que o enchia de
vitalidade. Humildemente dirigiu-se ao estranho que tinha à sua frente.
– Que a paz de Deus esteja convosco!
– Quem sois?
Victor se apresentou ao seu acompanhante, dizendo em seguida:
– Viemos de muito longe em busca de notícias da Senhora Condessa de
Montmorency, que, segundo nos informaram, encontra-se neste castelo.
– Ah! Entendo. Sois amigos dela?
– Sou seu confessor e a segurança da condessa me preocupa.
– E o marido da condessa, o Senhor de Montmorency, onde está?
– Ignoro, Senhor.
– Não desejais também saber onde se encontra?
– Na verdade não, Senhor. Nosso interesse se restringe em conhecer o
paradeiro da condessa Marianne.
O comandante inglês fitou-os, analisando a veracidade do que dizia o
monge. Afinal falou, pausadamente:
– Infelizmente, frei, ela aqui já não se encontra mais.
– Como assim?
– Um contingente do exército partiu há alguns dias levando-a consigo.
– Para onde, podeis informar-me?
– Não posso revelar-vos, frei. É segredo de Estado.
Desapontados, agradeceram a gentileza do inglês e se retiraram. Foram
conduzidos para um alojamento, onde receberam farta refeição, que lhes
caiu muito bem no estômago, já que pouco tinham se alimentado no
caminho.
Em seguida frei Victor ajoelhou em frente à janela, por onde entrava a
luz do luar e, fitando o céu estrelado, por muitas horas permaneceu em
oração.
Logo às primeiras horas da manhã seguinte, enquanto o castelo todo
ainda dormia, os religiosos deixaram o local sem terem obtido
informações precisas sobre a sorte de Marianne. Inquiriram dois ou três
servos, seus conhecidos, mas, a exemplo dos demais, nada puderam
informar.
No vilarejo, a cada habitante que encontravam procuravam obter
notícias, mas tudo em vão.
Desanimados e sem saber a quem mais recorrer resolveram retornar ao
mosteiro.
Victor trazia o coração apertado de preocupação. Nada em seu exterior
denotava a angústia que lhe assolava o íntimo. Crente fervoroso em Deus,
porém, elevava o pensamento ao Criador certo de que Ele não deixaria de
atender às suas súplicas.
Felipe, de temperamento diferente, remoía sua frustração e rancor.
Possuindo já inoculado em seu espírito o desejo de vingar-se de todos
aqueles que o feriram, teve agravado o seu estado. Justamente aqueles que
destruíram sua vida agora abandonavam Marianne à própria sorte.
Os olhos ardentes, a palidez marmórea do semblante, a agitação que lhe
caracterizava os gestos nervosos, os dedos que apertavam as rédeas
febrilmente, falavam do estado em que se encontrava. A tempestade rugia
dentro do seu peito e ele ruminava projetos de vingança.
De vez em quando Victor o observava, discretamente, preocupado com
o companheiro.
– Controla-te, meu irmão. Busca cultivar o equilíbrio interior para que a
paz venha habitar contigo.
Ao que Felipe retrucou, mastigando as palavras:
– Não posso. Os miseráveis terão que sofrer e pagar por seus crimes.
Com um suspiro repassado de tristeza e desalento o amigo prosseguiu:
– Não te esqueças, meu irmão, que tudo o que fizeres aos outros
receberás por tua vez – e continuou, conciliador: – Entrega a Deus a
solução dos teus problemas. Acalma o teu coração, asserena a tua mente; o
estado em que te encontras só poderá trazer-te muitos malefícios. Confia
em Deus, irmão Felipe. Ele não deixará de estender-te suas mãos
misericordiosas. E, afinal de contas, não sabemos o que aconteceu
realmente. Quem sabe, no mosteiro, poderão fornecer-nos as informações
que tanto buscamos alhures? Vamos... tranquiliza-te. Não podes chegar à
presença de nosso prior nessa agitação toda.
Felipe ruminou uma resposta qualquer e nada mais disse. Vendo-o
calado, Victor se calou também e prosseguiram em silêncio o resto do
percurso.
Em pouco tempo chegaram aos portões do mosteiro.
Felipe estremeceu ao avistar as pedras da muralha. Era sempre com
invencível repugnância que se aproximava daquele edifício escuro e
sombrio.
Após se apresentarem ao superior e fazerem um relatório das suas
atividades, buscaram suas celas para o necessário repouso. Estavam
exaustos.
Em poucos dias já estavam novamente integrados à vida do convento.
Enquanto Victor aproveitava o tempo disponível, fora das horas
reservadas aos deveres monacais, para auxiliar aos necessitados das
redondezas ou para aprofundar-se no estudo dos livros existentes na
biblioteca do mosteiro, Felipe se entretinha em buscar informações,
coletar dados. Entre os religiosos, como em qualquer outro lugar, também
existiam aqueles que viviam investigando a vida dos outros; estavam a par
dos mexericos mais recentes e de tudo o que acontecia nas cercanias.
Desta forma Felipe entrou em contato com outras criaturas que, como
ele, também desejavam vingança e que tinham motivos de represália
contra o conde de Montmorency e o duque de Bouillon. Como os
interesses e ideais atraem as criaturas mais do que qualquer outra coisa,
tornaram-se inseparáveis e andavam pelos cantos arquitetando planos.
Victor, ser puro e desprovido de sentimentos menos dignos, no início
não se apercebeu do que estava ocorrendo. Observando Felipe, porém,
sempre junto de irmãos que, não obstante religiosos como ele, eram
notoriamente maus elementos, começou a analisar melhor o
comportamento do amigo e de seus inseparáveis companheiros.
Não teve dúvidas. Pelos olhares cúmplices que lançavam uns para os
outros, risadinhas em voz baixa, as idas e vindas pelos corredores, os
cochichos, tudo isso fez com que Victor temesse pelo companheiro.
Chamou-o certo dia em sua cela para uma conversa. Expôs suas dúvidas
e preocupações. Felipe, porém, negou tudo, respondendo categórico:
– Tu divagas, meu nobre amigo. Nada estou a esconder de ti e nem
planejo algo terrível, como supões. Sim, tenho estado a fazer investigações
a respeito do paradeiro de Marianne e nada mais. Tranquiliza-te, meu
irmão. Nenhum perigo ameaça a mim ou a qualquer outra pessoa.
Victor não estava convencido da inocência de Felipe, mas nada poderia
fazer diante da resposta que recebera.
– Espero que estejas me dizendo a verdade, irmão. Ai de ti se ousares
levantar um dedo contra quem quer que seja. Sobre ti recairá a
responsabilidade do que praticares, e este hábito que abominas te será
duplamente pesado, pois estarás traindo teus votos sacerdotais.
Com tal gravidade proferiu Victor essas palavras que Felipe
estremeceu. Um arrepio gelado lhe percorreu o corpo e teve medo. Logo,
porém, sacudiu a cabeça e deu uma risada irônica, deixando a cela.
Não tocaram mais no assunto, cada qual seguindo seu caminho.
Capítulo XVI - No convento

Ao acordar Marianne não percebeu de pronto onde se encontrava.


Abriu os olhos lentamente e se assustou. Aquelas paredes nuas e frias, o
ambiente despojado de atavios, a falta de mobiliário e o leito humilde, à
primeira vista fizeram-na pensar que estava novamente encarcerada.
Aos poucos a lembrança foi voltando e suspirou aliviada. Estava num
convento para onde fora, espontaneamente, em busca de proteção e
refúgio.
Lembrava-se com mágoa profunda do marido que, não apenas se
contentou em repudiá-la, confinando-a num cárcere, entregue à própria
sorte, como lhe tirou o filho bem amado.
Os ingleses foram gentis com ela, conquanto fosse francesa. Temia o
assédio do chefe inglês que a libertara, por perceber-lhe o interesse
inconfessável por ela. Seus olhos fogosos a acompanhavam onde quer que
estivesse, causando-lhe apreensão e insegurança. Agora sabia que seu
generoso benfeitor era o soberano inglês, o legendário Ricardo Coração de
Leão, famoso por suas façanhas e galantes aventuras. Mas, sempre fora um
cavalheiro e, a bem da verdade, suas atenções a preservaram de perigos
maiores a que estaria sujeita no meio da soldadesca.
Foram dias de relativa tranquilidade que viveu no castelo sob o
domínio dos invasores. Depois, o exército precisava prosseguir e levaram-
na junto. Participou de batalhas, ficando sempre à retaguarda, no
acampamento, atendendo aos feridos, fazendo curativos, estancando
hemorragias ou simplesmente fechando-lhes os olhos ao perceber que a
chama da vida abandonava seus corpos jovens. Recolhia seus sorrisos de
agradecimento e, de certa forma, sentia-se compensada pelo esforço
despendido, pois era útil a muita gente.
Certo dia, porém, foram atacados de surpresa no acampamento e a luta
foi feroz. Via, com terror sempre crescente, os corpos que caíam, as
espadas ensanguentadas brandindo acima das cabeças, o sofrimento
estampado nos semblantes, a dor e o desespero. Atingida na cabeça pela
pata de um cavalo, perdeu os sentidos, caindo por terra.
Algumas horas depois despertou, estranhando o silêncio que cobria
tudo. Sentiu um peso muito grande comprimindo-lhe as costas e, com
infinito pavor, percebeu que estava deitada sob um soldado e viu suas
roupas empapadas de sangue que escorrera da ferida aberta no ventre
dele.
Com força incomum empurrou-o para o lado e levantou-se. Sentiu uma
dor aguda na cabeça e cambaleou, apoiando-se numa pedra. Olhou em
torno para perceber qual era a situação. O grosso do exército inglês
recuara, fugindo ao perceber o ataque. Apenas alguns soldados franceses
choravam, indo de um lado para o outro e descobrindo amigos que
tombaram no campo de batalha. Os mortos e feridos juncavam o solo.
Os ingleses perderam o combate e estavam nas mãos dos franceses, que
procuravam no chão os compatriotas feridos para prestarem socorro e
aprisionarem os inimigos que fossem encontrados com vida.
Com a cabeça dolorida, Marianne vagou pelo campo de batalha, sem
rumo. Ninguém ainda prestara atenção à sua pessoa, tomando-a talvez por
“salteadora de corpos”, por isso afastou-se do local sem ser molestada.
O calor, porém, era muito forte e, após andar um pouco ao léu, sentiu-
se desfalecer. O cansaço a dominou e adormeceu recostada a uma árvore.
Quando deu por si estava num ambiente estranho. O quarto era
pequeno mas asseado, e os lençóis brancos cheiravam a limpeza. Tentou
levantar-se, mas violenta pontada na cabeça a prostrou novamente no
leito.
– Não, não te levantes. A pancada foi muito grave e é preciso repousar.
Marianne virou a cabeça para o lado de onde vinha a voz e só então viu
uma mulher já de certa idade que a fitava com carinho. Teria uns sessenta
anos, mais ou menos, e a fisionomia simpática e tranquila lhe inspirou
imediata confiança. Trazia os cabelos brancos presos na nuca e vestia-se
simplesmente, como as mulheres do povo.
Marianne fez menção de querer falar, mas a boa mulher a impediu:
– Não te canses. Estás ainda muito fraca. Depois teremos tempo para
todas as tuas indagações. Agora vou trazer-te um caldo, pois necessitas
recuperar as forças.
Marianne aceitou sem discutir. Logo depois a dona da casa voltou
trazendo um prato de sopa, um pedaço de pão, uma fatia de excelente
queijo e uma caneca de vinho.
A enferma comeu com apetite e bebeu alguns goles de vinho. Depois,
desejando satisfazer sua curiosidade, perguntou:
– Agradeço-te, boa mulher, pela ajuda e pela refeição. Mas, como vim
parar aqui? De nada tenho lembrança... a não ser de estar andando entre
soldados mortos num campo juncado de cadáveres.
Com sorriso terno, a camponesa esclareceu:
– Bem, não sei o que fizeste ou onde estiveste antes, mas retornava da
casa de uma amiga, onde fora em visita de cortesia, quando te encontrei
desmaiada, recostada a uma árvore à margem do caminho. A princípio
julguei que estivesses morta, pela quantidade de sangue que te empastava
as vestes, mas, chegando mais perto, percebi que teu coração batia. Então,
pedi ajuda a alguns vizinhos e te trouxe para esta casa, onde estás há dois
dias dormindo. Foste examinada por um amigo meu que entende um
pouco de medicina e constatamos que não tinhas outros ferimentos, a não
ser uma ferida na cabeça que, provavelmente, foi produzida por uma
violenta pancada.
– O cavalo... não tive tempo de esquivar-me, conquanto o tivesse visto.
Dize-me, boa mulher, e os soldados?
– A luta foi feroz e muitos morreram. Admira-me que tivesses escapado
com vida, pois, pelo que disseste, estavas lá.
A jovem percebeu o desejo da outra de saber detalhes do que
acontecera e respondeu simplesmente:
– Sim, estava no campo de batalha. Era prisioneira dos ingleses e estava
no acampamento quando os nossos atacaram. Felizmente, tudo acabou.
Intimamente Marianne se sentiu mal por não contar toda a verdade,
mas sabia que a mulher não iria entender o fato de ela, Marianne, estar
acompanhando o exército inimigo, sendo francesa, e para explicar isso
teria que relatar os fatos como ocorreram, e quis encurtar a conversa. Não
desejava falar sobre o passado e muito menos com uma estranha.
Percebeu que a excelente criatura ficou mais tranquila com a
explicação e plenamente satisfeita.
– Pobrezinha! – disse, passando a mão sobre os cabelos da sua
protegida. – Quanto deves ter sofrido nas mãos daqueles selvagens
invasores! Descansa agora. Estás a salvo e ninguém poderá fazer-te
qualquer mal. Deixo-te sozinha; é preciso que repouses bastante.
Marianne agradeceu com um sorriso, virou-se para o outro lado, fechou
os olhos e em pouco tempo estava novamente adormecida.
Sua recuperação foi rápida. Em poucos dias sua cabeça estava curada e
a dor tornando-se cada vez mais fraca e distante. Passava longas horas a
meditar, sentada numa cadeira à sombra de copadas árvores no quintal.
Uma tristeza muito grande tomara conta do seu coração e lembrava-se
sempre com muita saudade do filhinho que lhe fora arrebatado dos
braços.
– Em que estás a pensar, tão calada? – perguntou-lhe a mulher um dia.
– Ah! minha amiga e benfeitora. Creio que já te dei muito trabalho, e
pensava em como resolver minha situação.
– Não quero que fales assim! Foi um prazer ajudar-te, querida
Marianne, numa hora tão difícil. Mas, chegaste a alguma conclusão?
– Creio que sim. Nada mais tenho que me prenda à vida. Meus bens
foram roubados, meu marido talvez morto num campo de batalha e meu
filho perdido para sempre. Meditei muito, Olívia, e acho que a melhor
medida será entrar para um convento.
– Convento? Mas, em nome de Deus, por quê? Podes perfeitamente
continuar morando comigo. Minha casa é humilde, mas não faltará o
necessário para nós duas. Poderias trabalhar...
– Trabalhar em que? Minha boa Olívia, eu nada sei fazer e nesta época
de guerra achar um trabalho é muito difícil. Não... não quero tornar-me
pesada para ti.
– Então, já decidiste? – questionou a outra com ar reprovador.
– Sim, creio que é o melhor que tenho a fazer. No convento encontrarei
a necessária paz de espírito que me falta hoje.
Com um gesto de desalento, Olívia concordou.
– Se assim o desejas... mas não creio que seja o melhor para ti. És jovem
e bela e a vida pode te oferecer muito ainda.
– Quem sabe? Mas, não temas. Não tomarei os votos, por enquanto.
Quero apenas ter paz e sossego para poder meditar bastante e decidir o
que fazer da minha vida. Manterei contato contigo e poderás visitar-me
sempre que o desejares.
Olívia sentiu os olhos úmidos e disse, emocionada:
– Esta casa já não será a mesma sem ti. Sabes que durante muitos anos
vivi aqui sozinha, desde a morte de meu esposo, e tu vieste alegrar um
pouco a minha solidão. Mas, quem sabe um dia voltarás para cá? Conta
sempre comigo se precisares de ajuda.
***
Sim, estava num convento. A sineta já tocara e era preciso levantar-se
para os serviços religiosos. Não tinha a mesma rotina obrigatória e severa
das freiras da congregação, mas ainda assim tinha deveres a cumprir. Mais
tarde tomaria o bordado e passaria algumas horas entretida com o
trabalho. Bordavam toalhas para os altares das igrejas, aceitavam
encomendas de fora e até nobres senhoras da Corte ali vinham para
adquirir suas peças de bordados, tal a finura dos mesmos. E, assim, nunca
faltava serviço. Ao anoitecer já se recolhiam, para recomeçar tudo no dia
seguinte.
Dentro de Marianne, porém, rugia a tempestade, não obstante a
aparente paz exterior. Cada vez mais revoltava-se contra a conduta do
marido Charles, e aquela paz que tanto almejava, e que ali entre as
paredes de uma cela fora buscar, distanciava-se cada vez mais, na
sequência monótona e infindável das horas.
A jovem condessa de Montmorency adaptou-se, não sem alguma
dificuldade, ao regime do convento. Acostumada ao luxo, aos festejos e
divertimentos, à convivência com uma sociedade frívola e galante,
estranhou muito o ambiente. A severidade e a monotonia existentes no
mosteiro como que a sufocavam. Mal-estar estranho se apossava da infeliz
criatura e falta de ar fazia-lhe arfar o peito, quando então procurava o
jardim para respirar um pouco de ar puro, com o coração opresso por
inenarrável angústia.
Com o passar do tempo, entretanto, seu estado foi acalmando-se e as
crises de desespero ficando cada vez mais raras, até serem substituídas
por uma apatia total.
A companhia de uma jovem noviça com quem fez amizade e trocava
ideias a ajudara muito. Passavam horas bordando numa saleta muito
simples e desataviada, mas onde o sol entrava iluminando e aquecendo o
ambiente, em contraposição à sombria e gélida atmosfera que imperava
no convento.
Era uma jovem graciosa, de talhe esbelto e maneiras gentis, provinda
de família aristocrática. Seu rosto infantil de traços regulares era de uma
beleza clássica e os cabelos castanhos eram longos e encaracolados. Na
verdade, era de causar admiração que uma tal jovem, possuindo tudo para
ser feliz, que deveria atrair a atenção dos melhores partidos do Reino,
estivesse ali mofando entre as paredes de um convento.
Certo dia em que palestravam animadamente sobre futilidades, e o riso
argentino de Rosa se fazia ouvir, Marianne não se conteve e perguntou-
lhe:
– Perdão, minha amiga, se minha curiosidade leva-me a estranhar tua
presença neste local triste. És atraente o suficiente para encantar os
homens mais exigentes do Reino, pertences a uma família aristocrática, és
rica e, não obstante, te enterraste neste convento... não posso
compreender.
O sorriso que brincava no rosto de Rosa apagou-se de repente,
substituído por um ar de serena tristeza.
– Perdoa se te fiz sofrer tocando numa ferida ainda não cicatrizada,
Rosa. Não tive a intenção de entristecer-te.
Com melancólica resignação, Rosa respondeu:
– Dizes bem, Marianne, atingiste uma ferida que ainda é sensível ao
toque, mas que não me incomoda mais. Vou contar-te a minha história,
que não é diferente da de tantas outras jovens...
Rosa fez uma pausa e suspirou, prosseguindo:
– Pertenço a uma ilustre família, é verdade, mas não sou rica como
pensas. Quando meus pais morreram e fiquei só no mundo, fui morar com
um tio, irmão de minha mãe, que generosamente acolheu a pequena órfã.
Do patrimônio de minha família nada mais restava; fora consumido em
jogos, bebidas e mulheres por meu pai. Minha situação não era nada
cômoda, pois estava órfã, pobre e dependente de outrem. Meu tio, porém,
educou-me convenientemente, deu-me um pequeno dote e nunca senti
falta de nada. Tinha belas roupas, joias, e, a não ser pela posição que
ocupava na casa, pois minha tia nunca simpatizou comigo, era feliz. Certo
dia apareceram alguns amigos de meu tio e se interessaram por mim.
Desrespeitando a casa que os acolheu e incentivados talvez pela minha
posição inferior, pois minha tia e sua filha me tratavam quase como uma
criada, abusaram da minha inocência, num dia em que havia festa no
castelo e eles haviam bebido em demasia.
Sufocando um soluço, ela continuou, com os olhos injetados de sangue:
– Invadiram meus aposentos e submeteram-me às maiores
barbaridades. Depois, deixaram-me jogada no chão, como se fosse um
trapo qualquer, morta de dor e de vergonha.
– Meu Deus! Mas, e teu tio, tua família?
Rosa balançou a cabeça tristemente:
– Nada ficaram sabendo. Os criminosos me ameaçaram com a morte,
caso contasse a alguém o que acontecera. E, na verdade, quem acreditaria
em mim? Eles eram senhores poderosos e eu uma pobre órfã. Seria a
minha palavra contra a deles.
– O que fizeste, então? – perguntou Marianne sob mudo assombro.
– Nada. Fiquei rezando para que não germinasse em mim o fruto
daquela infâmia. Naquela época estava apaixonada por um rapaz simples,
do povo, mas de boa índole e muito trabalhador. O futuro me estava
proibido agora; já não era digna dele e de ninguém. Resolvi entrar para o
convento e acabar aqui os meus dias.
– Mas, Rosa, és tão jovem! Podes ainda ser feliz! Quem sabe o teu amado
entenderia teu problema? Afinal, és apenas uma vítima.
– Não, minha amiga. Conheço seus pontos de vista e a rigidez do seu
caráter. Coloca a honra acima de tudo e jamais aceitaria uma mulher
desonrada.
– Mas, teu tio! Se lhe contasses?!...
– Não. Pensei em tudo isso para tomar uma decisão. Não quis manchar
o bom nome de minha família. Meu tio pediria uma satisfação e minha
vergonha se tornaria pública; e provavelmente ele morreria, porque um
deles é um dos maiores espadachins do Reino. Não, Marianne, estimo
muito ao meu tio e jamais poderia viver com o remorso de ter-lhe causado
a morte.
Indignada com a desgraça que se abatera sobre a amiga, Marianne quis
saber:
– Quem são eles? Dize os nomes desses celerados que abusaram de um
criatura inocente e indefesa.
Abaixando a voz, a jovem respondeu num sussurro:
– O duque Segismundo de Bouillon, o conde Lucas de Montpellier e o
conde Charles de Montmorency.
– Meu Deus!
Rosa ouviu um grito e um suspiro abafado. Quando olhou, Marianne
estava sem sentidos, caída no chão.
***
Ao abrir os olhos Marianne viu apenas rostos ansiosos debruçados
sobre ela. Um murmúrio elevava-se, abafado, e alguém a abanava com um
grande leque.
Dentre aqueles rostos destacou-se o semblante gordo e rosado da
madre superiora.
– Como te sentes, minha filha? – perguntou, solícita.
– Estou bem, Madre. Foi um mal-estar passageiro, não vos preocupeis.
Preciso de ar fresco, sinto-me abafar...
Com autoridade, a superiora ordenou às outras que se retirassem,
compreendendo que Marianne queria ficar só.
Estava deitada num leito, na mesma sala para onde a transportaram.
Marianne permaneceu calada, com os olhos cerrados, fingindo estar a
dormir, para não ter que responder ao questionamento da superiora.
Os pensamentos turbilhonavam em seu cérebro. A fronte parecia estar
sendo comprimida por tenazes de ferro.
Não era possível! Não poderia ser real! E, no entanto, Rosa não tinha
motivos para inventar uma história tão terrível.
Era verdade que seu marido saía muito e sempre em alegres
companhias, pensava Marianne. Era verdade que só aparecia em seu lar
alta madrugada e, de ordinário, bêbado. Mas nunca o supusera capaz de
tamanha infâmia. Não o amava, era verdade, mas sempre tivera respeito e
consideração por ele, a par de uma camaradagem tranquila.
O duque Segismundo de Bouillon não a surpreendera. Sabia como era
depravado, asqueroso e infame, capaz de todas as perfídias. Mas Lucas de
Montpellier, que parecia um cavalheiro e possuía uma mulher ciumenta e
irascível, também participara do torpe acontecimento!
Toda a calma haurida com extrema dificuldade em contato com a
monótona e rígida disciplina do convento foi por água abaixo. Seus
sentimentos represados por tanto tempo ameaçavam romper o dique e
avançar em catadupas, arrastando tudo em sua passagem.
Mais tarde, já refeita, Marianne procurou ocasião de ficar a sós com a
noviça Rosa. Fez com que ela, surpresa e aflita, repetisse os nomes
daqueles criminosos que a violentaram.
– Não tenho dúvidas – disse Marianne. – Tinha a esperança de estar
enganada, de ter ouvido mal, mas já não posso duvidar. Infames!
Assustada, de olhos arregalados, Rosa acompanhava o explodir dos
sentimentos da amiga, sem nada compreender.
– Por Deus, Marianne! Não te reconheço mais. Estás com os olhos
injetados, escaldas em febre e tuas mãos tremem. Dize-me, o que está
acontecendo?
Sem responder diretamente à pergunta, ela se levantou e deu alguns
passos pela cela, esfregando as mãos nervosamente. Altiva e sobranceira,
ela perguntou afinal:
– Sabes como me chamo?
Com ar infantil e cândido, Rosa respondeu:
– Marianne!
– Não. Perguntei se sabes todo o meu nome.
– Ah! Ignoro, minha amiga. Sabes que aqui no convento de Sainte-
Croix, ao entrar, deixamos para trás nossos nomes e títulos para sermos
apenas servas de Deus.
– Sou a condessa Marianne de Montmorency.
Rosa levou as mãos ao rosto, emitindo um grito abafado:
– Não!!!...
– Isso mesmo. Sou a esposa do conde Charles de Montmorency.
Lançando-se-lhe aos pés, Rosa abraçou-lhe os joelhos, suplicando no
maior desespero:
– Perdoa-me, Marianne, não sabia que estava a magoar-te. Jamais
desejei causar-te sofrimento. Não sabia quem eras. Oh! Meu Deus! Por que
não mantive a boca fechada?
Inclinando-se para a jovem desfeita em lágrimas, Marianne a tomou
nos braços fazendo com que se sentasse.
– Não te culpes, minha pobre amiga. És uma vítima de criaturas
malvadas e nada tens do que envergonhar-te. É verdade que fiquei
surpresa ao saber que meu esposo fora capaz de um ato tão nefando, mas,
analisando seu comportamento para comigo, sua esposa, não deveria
surpreender-me.
E contou a Rosa sua história, até o momento em que ingressara no
convento, concluindo:
– Vejo nisso tudo a mão de Deus. O Senhor colocou-nos sob a proteção
da Igreja e juntas para que pudéssemos exercer Sua Justiça! Por que não
utilizarmos a proteção dessa poderosa instituição para atingirmos nossos
objetivos? Sim! Vejo tudo claro agora. Eles terão que pagar pelos crimes
que praticaram e seremos nós, humildes noviças, que o conseguiremos. O
braço da Igreja é longo e firme, dizem. Aqui fica-se sabendo de muitas
coisas, quando se deseja. É preciso, porém, que possamos ter mais poder.
Quem sabe a madre superiora poderá ajudar-nos?
Assustada, a pequena Rosa não sabia o que pensar da mudança que se
operava na amiga.
– Não sei, Marianne. Talvez o melhor fosse entregar nas mãos de Deus e
deixar que Ele faça justiça – disse, titubeando.
– Jamais! É preciso que alguém faça justiça. Deus depende de nós para
punir os culpados. E, acredita em mim, eles se arrependerão de todos os
seus crimes!
Assim falava com os olhos flamejantes, possuída de férrea vontade de
punir os culpados. Sua voz soava autoritária e não admitia réplica,
subjugando o espírito débil e receoso da jovem amiga.
Pobre criatura! Infeliz espírito que voluntariamente se colocava à
margem da lei divina!
Que utilizava o sagrado nome de Deus, Senhor do Universo, para
justificar suas atitudes. Que, desejosa de vingar-se, mas temerosa das
consequências, inconscientemente, invocava o nome do Criador
procurando dar respaldo e respeitabilidade a suas infelizes ideias.
Se pudesse perceber o abismo voraz em que se arremessava,
complicando o seu futuro espiritual por muitos séculos, Marianne
provavelmente retrocederia em suas determinações, renovando seus
objetivos.
E, não contente em resvalar no sorvedouro das paixões nefastas, ainda
arrastava em sua queda o espírito simples de Rosa, incapaz de sobrepor-se
à vontade soberana da outra.
Ainda uma vez, a antiga escrava Maria, reencontrando-se com a ama de
outrora, a orgulhosa Tamara, era incapaz de desobedecê-la, acostumada
ao respeito e à veneração que a senhora sempre lhe conquistara.
Na verdade, conquanto sofredora e aflita, massacrada em seus mais
íntimos sentimentos e ideais de mulher, Rosa resignara-se à própria sorte,
confiante em que o Criador faria justiça. Seria incapaz de procurar vingar-
se ou, de alguma forma, prejudicar aqueles que a vilipendiaram.
Envolvida, porém, pela vontade poderosa de Marianne, não conseguiu
sobrepor seus pontos de vista, entregando-se ao desvario das ideias
negativas.
Na realidade, a infeliz condessa não estava sozinha nos seus propósitos
de desforço e destruição. Ligando-se a ela pelo fenômeno da sintonia,
através das emissões de pensamentos odiosos e carregados de revolta,
encontravam-se outras mentes afinadas com a sua e desejando o mal
àqueles a quem ela desejava atingir, inclusive o Espírito daquele que fora
Henri de Montmorency, e que morrera pelas mãos homicidas do falso
amigo, Segismundo de Bouillon.
Razão por que Marianne sentia-se tão fortalecida em suas decisões, tão
determinada a derrotar o inimigo. Coisa estranha é que o ódio dela se
centralizava não tanto sobre o marido, Charles de Montmorency, filho do
seu companheiro espiritual, mas sobre o duque de Bouillon, a quem ambos
envolviam em idêntico rancor.
Ela, porém, não se deu conta disso e nem teria condições de analisar
seus sentimentos. A partir daquele instante colocaram-se ambas a campo
para conseguirem meios de atingir os objetivos.
O que a infeliz Marianne não sabia, porém, era que esse malfadado
conúbio iria propiciar-lhe infinitos sofrimentos no futuro, através de
desgraças que recairiam sobre a sua cabeça, pois o seu parceiro espiritual
também a envolvia no mesmo ódio e ansiava destruí-la, igualmente tal
qual ao amigo traidor, por considerá-la também infiel.
Marianne colou-se à abadessa, fazendo-lhe mil favores, sempre gentil e
prestativa, inteirando-se da vida do convento, buscando conhecer os
segredos da superiora e, sempre que possível, escutando atrás das portas.
Percebeu, dessa forma, que o convento de Sainte-Croix estava numa
condição econômica invejável e que a superiora manobrava quantias
exorbitantes. Sentiu que, para alcançar suas metas, necessitava obter o
poder que aquele cargo lhe proporcionaria.
Àquela época era muito comum que os cargos da Igreja fossem
comprados a peso de ouro. Se alguém estivesse desgostoso do mundo e
desejasse subtrair-se para não ser perturbado, poderia adquirir um cargo,
fosse de bispo ou de prior, sem que tivesse vocação para a vida sacerdotal,
coisa corriqueira entre os grandes do Reino e nobres da Corte.
Marianne, porém, nada possuía de seu. O castelo, as propriedades, as
joias estavam em poder dos ingleses e pertenciam a seu marido
desaparecido. Portanto, por este lado, nada era possível. Teria que se
utilizar de outros recursos, vencendo os escrúpulos que ainda pudesse ter.
Foi assim que decidiu tomar os votos, colocando-se definitivamente sob
a proteção da Igreja.
A madre abadessa, que se tomara de simpatias pela noviça, percebendo
que seria uma fiel companheira e confidente, incentivava-lhe a decisão,
sorrindo com seus olhinhos apertados e astutos.
Numa gelada manhã de inverno, Marianne entregou sua cabeça para
que lhe cortassem os lindos e sedosos cabelos anelados. Pouco depois,
pronunciou os votos.
Naquele instante morria Marianne, condessa de Montmorency e
Drumond, e nascia a irmã Angélica.
Rosa também pronunciou os votos, alguns dias depois, passando a
chamar-se irmã Maria de Jesus.
Agora já não poderiam retroceder. Tinham dado o passo decisivo para
suas vidas jovens. Irmã Maria de Jesus chorou muito, angustiada pela
decisão que tomara, impelida pela amiga. Irmã Angélica, no entanto,
procurou não pensar no problema, sacudindo os ombros, levantando a
fronte e decidida a obter da sua posição tudo o que pudesse.
Muito íntima da abadessa, surpreendeu uma conversa entre esta e um
prelado da Igreja, em que falavam de uma correspondência
comprometedora que nunca poderia cair nas mãos de terceiros, por
configurar uma transação equívoca, em que havia a transferência de
verbas, com prejuízo para a instituição.
Escondida atrás de pesado reposteiro, Marianne viu que comemoravam
a vitória, bebendo uma taça de vinho. Viu a madre superiora levantar-se,
colocar a correspondência num pequeno baú e, chegando-se a uma
imagem da Virgem, incrustada na parede num pequeno nicho, fazer o
sinal-da-cruz. Em seguida, puxou o nicho, que abriu com pequeno estalido.
Surpresa, Marianne percebeu que se tratava de um cofre, muito bem
camuflado.
Ninguém, ao ver aquele nicho contendo uma imagem da Virgem,
poderia supor que se tratasse de um esconderijo.
Satisfeita, esperou que os dois cúmplices deixassem o aposento para
sair do seu abrigo. Com um sorriso feliz voltou para seu cubículo.
A superiora estava em suas mãos. Agora teria que agir rápido.
Nada contou da descoberta que fizera à irmã Maria de Jesus. Não
confiava em seus nervos, um tanto destrambelhados ultimamente, e temia
que ela pudesse pôr tudo a perder.
Ganharia a batalha! A vitória seria dela, com certeza.
E, fazendo projetos para o futuro, deixou-se envolver pela volúpia do
poder.
No dia seguinte procurou a abadessa num momento em que sabia ela
estaria a sós. Entrou e fechou a porta, chaveando-a. Em seguida,
aproximou-se da mesa retirando um pergaminho das dobras do hábito,
sempre acompanhada pelo olhar vivo e algo surpreso da outra.
Sem entender o que estava ocorrendo, a superiora fixava-a com seus
olhinhos perscrutadores, aguardando o desfecho.
Marianne, ou melhor, irmã Angélica, postou-se à frente da outra, jogou
o pergaminho sobre a mesa e, cruzando os braços, esperou.
A reação da superiora não se fez esperar:
– De que se trata? – inquiriu, tomando o pergaminho e desenrolando-o.
– Quero que vejas com os próprios olhos e leias o que contém este
documento.
Com os lábios contraídos e os olhos mais apertados ainda, a mulher
passou a vista pelo documento. Estupefata, levantou a cabeça e questionou
asperamente, com raiva concentrada no semblante, que adquirira um ar
de crueldade:
– Explica-te! A que devo esta brincadeira estúpida? Sim, porque só pode
ser uma brincadeira de mau gosto. Afianço-te, porém, que não me
agradam essas pilhérias e espero que tenhas uma boa explicação para isso.
Com voz serena e firme, Marianne respondeu:
– Não se trata de uma brincadeira ou pilhéria de mau gosto. Exijo que
assines este documento.
– Mas, é um absurdo! – repostou a outra, vermelha de cólera. – Estás
louca, por acaso? Sim, porque só se tiveres perdido a sanidade mental é
que posso entender tua atitude.
– Pois te enganas! Nunca estive tão lúcida em minha vida. Quanto ao
que está escrito, não vejo nenhum absurdo – e, tomando o documento das
mãos da outra, leu-o:
“Eu, Madre Carmela, nascida Duquesa Uliana de Chambry, abadessa do
Convento de Sainte-Croix, não me sentindo em condições de exercer as
funções que o cargo me confere, por problemas de saúde, apresento a
minha demissão em caráter irrevogável.
“Outrossim, indico o nome de Irmã Angélica para que me substitua,
ocupando o cargo de abadessa de Sainte-Croix, em virtude de sua
inclinação e competência para exercer as funções...”
Marianne terminou de ler, e, ignorando o ar furibundo que lhe era
dirigido, sorriu, completando:
– Está perfeito! Não vejo nenhum absurdo!...
Fez-se um silêncio pesado entre elas.
– Por quê? – inquiriu a outra com voz rouca pela emoção.
– Por quê? – repetiu Marianne, fazendo-se desentendida.
– Por que desejas minha demissão? Sempre fomos amigas! Como ousas
pensar que assinarei isto?
– Não tens escolha! – disse, dando de ombros.
A superiora deu uma gargalhada.
– Como és estúpida! Como pensas obrigar-me a renunciar ao cargo?
Sem responder, Marianne dirigiu-se para a parede onde se encontrava
o nicho com a imagem da Virgem. Abriu-o e retirou o pequeno cofre,
acompanhado pelo olhar esbugalhado de espanto da outra. Retirou o
documento e sacudiu-o sobre o nariz de madre Carmela, irônica.
– Com isto! Parece-te um motivo suficiente para renunciares? Ou
preferes que o mande ao Santo Papa, como prova de tua fidelidade à causa
da Igreja? Em qualquer dos casos, estás perdida, minha bela, e aconselho-
te a assinar enquanto é tempo.
Fez uma pausa, analisando o efeito de suas palavras e esperando que
Carmela digerisse o conteúdo amargo. Depois, concluiu:
– Não pretendo desterrar-te. Continuarás trabalhando comigo; não
posso prescindir de tua ajuda inestimável. Apenas as posições estarão
invertidas.
– Poupa-me! – suplicou a outra, lívida. – Não me destruas a vida e a
honra. Não suportarei a vergonha...
– Depende de ti! Se me servires lealmente, serei generosa contigo. O
que decides?
Derrotada, a orgulhosa mulher baixou a fronte e, molhando a pena no
tinteiro, assinou o documento.
Com um suspiro de alívio, Angélica tomou o documento nas mãos,
satisfeita. Madre Carmela fez menção de apanhar o papel comprometedor,
mas a outra foi mais rápida:
– Ficarei com isso, para o caso de teres vontade de me trair. Ai de ti se o
fizeres. Não terei contemplação e sofrerás as consequências dos teus atos
infames.
Fez uma pausa, observando a outra, discretamente, que permanecia de
cabeça baixa, humilde.
“Não me enganas com tua fingida humildade – pensou Marianne.
Conheço-te e sei como és orgulhosa e astuta qual uma raposa e perigosa
como uma serpente. Mas estarei vigilante.”
Em seguida, ordenou em voz alta:
– Agora, reúne a Congregação e procura ser o mais natural possível.
Que ninguém note nada de estranho em tuas atitudes. Em seguida, envia
um portador ao “teu amigo e cúmplice” marcando uma entrevista.
Como a irmã Angélica se calasse, a outra indagou:
– Mais alguma coisa?
– Não. É só.
Irmã Carmela saiu para tomar as providências devidas, deixando
Marianne sozinha. Ao se ver a sós, a ex-condessa de Montmorency sentou-
se na cadeira de braços e alto espaldar, que representava o poder. Colocou
as mãos no rosto, aturdida e perplexa. “Meu Deus – pensou – eu consegui!
Como reuni forças suficientes para enfrentar essa mulher poderosa e vil?
Graças, meu Deus! Isto é sinal de que estás comigo e que Tuas mãos me
dirigem. Agora acredito que conseguirei tudo o que desejar. Moverei céus
e terras e os culpados pagarão. Não terei piedade, nem contemplação.
Pisarei em todos aqueles que ousarem atravessar o meu caminho,
impedindo-me de atingir o objetivo colimado”.
Satisfeita, fez uma rápida oração defronte à pequena imagem da
Virgem e deixou o aposento, levando consigo os documentos
comprometedores escondidos nas dobras do hábito.
Estava há algum tempo em sua cela, quando uma noviça pequena e
franzina, de voz esganiçada, veio avisar que a superiora desejava reuni-las
no salão da congregação. Tocava a sineta de costume.
– Sabes o motivo da reunião? – perguntou, fingindo curiosidade.
– Ignoro. Deve ser algo grave porque jamais vi a abadessa tão abatida.
Saíram para o corredor, dirigindo-se Marianne para o local da reunião,
enquanto a outra prosseguia em sua tarefa de convocação, e o barulho da
sineta se fazia ouvir cada vez mais distante.
De todos os cubículos surgiam as religiosas, curiosas e faladeiras,
questionando-se mutuamente sobre o motivo da convocação. Faziam mil
conjecturas, suposições as mais diversas e algumas até infantis.
– Será que descobriram quem andava desfalcando a despensa?
– Não sejas tola! – dizia outra. – Como poderiam descobrir? Acredito
mais que seja em virtude das escapadelas noturnas de algumas
companheiras nossas...
– Cala-te! Queres que alguém te ouça e denuncie as irmãs?
E assim prosseguiam os comentários. Marianne ouvia calada, e um
discreto sorriso aflorava-lhe aos lábios cada vez que alguém dizia alguma
coisa diferente.
Irmã Maria de Jesus, caminhando ao lado de Marianne, também estava
curiosa e preocupada.
Chegando à sala do capítulo, sentaram-se, aguardando a superiora, que
ainda estava ausente. Quando ela entrou no recinto fez-se um silêncio
total.
Olhando uma por uma, a abadessa dirigiu-se a elas nestes termos:
– Sabeis que há longos anos, precisamente dois lustros, ocupo o cargo
de superiora desta congregação. Durante este período as lutas foram
muito árduas, exigindo dedicação e esforço de todas nós que formamos
esta irmandade. Muitas de vós acompanhastes o trabalho que executamos
à frente desta congregação, e como o convento de Sainte-Croix progrediu
desde então.
Fez uma pausa, pigarreou e prosseguiu, lançando um olhar por toda a
assistência:
– Não é desconhecido o fato de que minha saúde se encontra abalada,
de alguns meses para cá, e muitas de vós haveis acompanhado o meu
sofrimento. O médico me recomendou repouso e tranquilidade para que
possa recuperar-me das forças combalidas. Assim sendo, para que a
irmandade não seja prejudicada durante esse período, e, já que não
poderei exercer minhas obrigações a contento, resolvi renunciar ao cargo
de madre superiora e...
Nova pausa, em que procurou observar o efeito de suas palavras sobre o
auditório atento. Prosseguiu:
– No meu lugar deixo a irmã Angélica...
Um “ah!” de espanto e surpresa saiu de todas as bocas, que se viraram
para onde estava Marianne, que continuava impassível.
– ... que, tenho certeza, saberá exercer suas funções de protetora maior
desta casa e de todos quantos aqui se acolhem com firmeza e
determinação. A todas o nosso agradecimento pela compreensão e carinho
que sempre nos dispensaram. Prosseguirei aqui e coloco-me à vossa
disposição para servir-vos no que for possível. Que Deus vos abençoe!
Tomou a cruz de ouro pendente de um grosso cordão e a colocou no
pescoço de irmã Angélica, com leve e imperceptível gesto de repulsa, que
só Marianne percebeu.
O desconcerto era geral. As irmãs mais emotivas choravam; outras
mantiveram-se indiferentes; outras ainda ocultavam com dificuldade a
satisfação que a queda de madre Carmela lhes causara.
Marianne, recebendo as congratulações das companheiras, procurava
manter uma atitude humilde, por ser a mais indicada politicamente na
ocasião, contrastando com a euforia que lhe vibrava no íntimo.
Maria de Jesus se acercou dela, abraçando-a:
– Por que não me contaste?
– Também ignorava o que estava sendo programado. Tanto quanto
todas vós, também fui pega de surpresa.
– Pois estou muito feliz, querida amiga. Mereces esta oportunidade. És
decidida e possuis o carisma necessário para ocupar um posto tão
importante.
Angélica sorriu e agradeceu.
Em pouco tempo tudo voltava ao normal. Cada qual com suas
atividades, executando as tarefas que lhes foram destinadas.
Madre Angélica dirigiu-se às suas novas acomodações. Era preciso
pensar o que diria ao ilustre prelado, que não tardaria a atender ao seu
chamado.
Em pé, defronte da imagem da Virgem Maria, rosário nas mãos,
Marianne se encontrava entregue às suas meditações.
De súbito, viu-se agarrada por duas mãos fortes e ansiosas que,
enlaçando-a por detrás, envolveram-lhe os pequenos seios.
Perplexa, não teve tempo de se defender. Sentiu que um corpo quente
colava-se ao seu transmitindo-lhe uma onda de calor. Desejou gritar, mas
a voz paralisara na garganta. Uma boca ávida beijava-lhe o pescoço
repetidas vezes e procurava-lhe os lábios.
Forçando-a para que se virasse, o audacioso visitante percebeu que algo
de estranho ocorria.
Ao dar com os olhos assustados de irmã Angélica, estacou,
empalidecendo rapidamente. Sem saber o que dizer, o homem balbuciou
uma desculpa:
– Perdão!... Julguei que... isto é... esperava... que fosse... outra pessoa.
Soltando-se dos braços do sacerdote, Marianne procurou ajeitar o
hábito um tanto quanto desfeito pelas carícias intempestivas do prelado.
Tentando readquirir o equilíbrio bastante abalado e acalmar as batidas
do coração descompassado, ela respirou fundo. Nesse encontro tão difícil,
não desejava que ele surpreendesse qualquer fraqueza nela. Aliás,
providencialmente, ele se incumbira de colocar-se indefeso e passivo em
suas mãos.
Foi portanto com voz quase normal e pausada que Marianne dirigiu
suas primeiras palavras ao religioso:
– É assim que Vossa Reverendíssima costuma cumprimentar a madre
superiora do convento de Sainte-Croix?
Sua voz soou gélida e de timbre metálico no ambiente tenso. Com um
lenço na mão, assustado, ele procurava enxugar o suor que escorria
abundante da testa e das têmporas. Foi com voz trêmula que tentou
justificar-se:
– Não sei o que dizer... queira desculpar-me, irmã, nunca pensei
encontrar-vos nesta sala. Enfim... pensei que... outra pessoa... aqui
estivesse.
Tendo readquirido o seu controle emocional, Marianne replicou,
irônica:
– Acredito que não saibais o que dizer, mas não é necessário. Vossa
conduta é mais eloquente do que todas as palavras que pudésseis proferir.
– Não desejo que interpreteis erroneamente o que acaba de ocorrer...
– Existe outra interpretação para vossos arroubos de amante inquieto?
– retrucou, sarcástica.
Ele baixou a cabeça, envergonhado. Mas, como se repentinamente
tivesse ganho coragem, reagiu:
– Sim! Errei, é verdade, mas a irmã não ignora, por certo, o que ocorre
entre estas paredes – replicou, aludindo à vida dissoluta que muitos
religiosos levavam. – Mas, onde se encontra madre Carmela? Recebi um
recado marcando esta entrevista em caráter de urgência...
Sentando-se na cadeira de alto espaldar, atrás da secretária, Marianne
fitou detidamente o homem que tinha à sua frente, sem a couraça que o
protegia constantemente.
Já o vira de outras vezes e sempre sentira um certo receio desse
religioso imponente e severo, de maneiras orgulhosas e displicentes. Não
o reconhecia agora. Seu ar arrogante e altaneiro cedera lugar a um
homem inseguro e de ombros caídos.
Sentado na cadeira em que se deixara cair, monsenhor já não a
assustava tanto. Ao contrário, Marianne sentiu uma certa piedade pela
posição difícil em que ele se achava perante ela.
Olhando-o de alto a baixo, disfarçadamente, madre Angélica chegou à
conclusão que ele ainda era um belo homem. Tratava-se de alguém que já
ultrapassara o meio século de existência, mas que conservava um quê de
juventude, nas maneiras, no talhe esbelto. Os cabelos castanhos
começavam a branquear nas têmporas, o que lhe conferia um certo
encanto e acrescentava dignidade ao semblante. Os olhos escuros eram
sombreados por longas pestanas e mostravam-se apreensivos, e a boca
fina estava retesada, indicando a tensão íntima de que estava possuído.
Madre Angélica sorriu ao pensar na diferença de comportamento que
presenciava agora; aquele homem, ardoroso e sensual, transformara-se
num ser gelado pelo medo. Afinal, rompeu o silêncio:
– Estais enganado, Monsenhor. Realmente recebestes um recado
urgente, mas fui eu que o chamei aqui.
Apreensivo, ele perguntou novamente:
– E madre Carmela? Onde está madre Carmela?
– Já ficareis sabendo. A madre superiora achou por bem renunciar ao
cargo que ocupava, nomeando-me sua sucessora.
– Impossível! Não sem minha ordem! – retrucou o homem, percebendo
que algo mais sério acontecera.
– É a mais pura verdade, asseguro-vos. Caso contrário, o que estaria eu
fazendo aqui?
Angélica fez uma pausa e continuou:
– Por problemas de saúde, nossa querida irmã Carmela não pôde mais
ficar à testa da instituição.
– Não é verdade! Ela não tinha problemas de saúde... quer dizer,
problemas graves.
– Bem, digamos que ela foi obrigada a deixar o cargo por motivos
“alheios a sua vontade”...
Levantando-se, abriu o cofre, sob o olhar estupidificado do sacerdote,
que acompanhava seus gestos com apreensão crescente. Jogando o
documento sobre a mesa, ela concluiu:
– Em suma, estais nas minhas mãos. Ela reconheceu que perdera a
parada e abdicou.
Tentando readquirir o domínio interior, ele questionou:
– O que pretendeis fazer? Denunciar-nos? – com leve e irônico sorriso,
ele considerou: – Se quisésseis denunciar-nos já o teríeis feito sem que
houvesse necessidade de que ficássemos sabendo, não é verdade?
– Exato. Nada mudará. Tudo permanecerá como antes, com exceção das
posições que estarão trocadas.
Animando-se gradualmente, o prelado lançou-lhe um olhar envolvente
que não deixou dúvidas sobre suas intenções:
– Tudo?!...
Enrubescendo, ela consertou:
– “Quase” tudo.
– É pena! – retrucou ele, pois não se desgostaria de manter um
relacionamento mais íntimo com aquela mulher no auge da juventude,
cujos trajes sacerdotais não eram capazes de esconder-lhe a beleza.
– Mantende-vos no vosso lugar e nos entenderemos bem. Não sou e
nem pretendo ser outra “madre Carmela” – respondeu enérgica e com
supremo desprezo na voz.
Ele concordou com um gesto, pensando intimamente que era só
questão de tempo. Acabaria por dobrar aquela orgulhosa cabeça, ou não se
chamaria François D’Aubigny.
Capítulo XVII - A confissão

Os cúmplices passaram a entender-se muito bem. Os diálogos eram


sempre tolerados com alguma repulsa por parte de madre Angélica que,
conquanto desprezasse aquele homem, via nele os meios de atingir os seus
fins, suportando, portanto, a presença como inevitável; e da parte de
monsenhor, acompanhados sempre de olhares eivados de malícia e de um
leve sorriso irônico, que lhe era peculiar.
Desta forma, não obstante certa dose de desconfiança de parte a parte,
ele a colocou a par dos acontecimentos que ocorriam fora dos altos muros
do convento, falando-lhe de política, dos notáveis do Reino, da situação da
guerra com os ingleses, das notícias do Oriente, onde os cruzados se
empenhavam em salvar o Santo Sepulcro do domínio muçulmano, e até
das últimas novidades picantes ocorridas na Corte.
Marianne ouvia-o, depois de algum tempo, até com agrado. Não era
imune ao encanto daquela voz que sabia como ninguém contar histórias,
narrar fatos, acrescentando opiniões pessoais e tecendo comentários
inteligentes e eruditos sobre qualquer assunto.
Aqueles momentos em que estavam reunidos conversando passaram a
ter uma significação toda especial para ela, visto que, pelo menos naquelas
horas, afastava a monotonia e insipidez da vida do claustro.
Marianne, que já vivera aquela vida brilhante e luxuosa que ele
descrevia, que participara da nobreza alegre e despreocupada, na verdade
sentia muita falta de tudo aquilo que perdera e, através das palavras dele,
parecia estar revivendo aqueles momentos de festas, de alegria e de luxo.
Também porque ele lhe relatava o que ela precisava saber para
inteirar-se das pessoas que desejava atingir.
Ordenou-lhe madre Angélica que centralizasse suas atenções no duque
Segismundo de Bouillon; desejava relatório completo da vida daquele
homem. Monsenhor concordou, pois também ele desejava derrubar o
duque, que o prejudicara grandemente outrora.
– Madre Angélica, atenderei de bom grado ao vosso pedido. Entretanto,
apreciaria muito colocar-vos em contato com alguém que poderia nos
auxiliar decisivamente nesse empreendimento, por ser inimigo ferrenho
do Sr. Bouillon.
– Muito bem! Se Monsenhor julga necessário, farei empenho em
conhecer essa criatura que nos poderá ser útil. Trazei-o aqui daqui a dois
dias e conversaremos, quando então poderei ajuizar melhor.
Despedindo-se, monsenhor curvou-se ligeiramente, prometendo
retornar no dia aprazado.
Angélica foi cuidar de suas obrigações, deixando o gabinete. No
corredor, escuro e sombrio, encontrou-se com irmã Carmela que a fitou de
maneira estranha.
Angélica sentiu um leve toque de apreensão. Já de algum tempo que
notara que a ex-abadessa a olhava diferente. Não sabia a que atribuir esse
fato desde que acertara com ela que, conquanto não fosse mais superiora
do convento, continuaria a receber uma parte daquilo que conseguissem
obter com as atividades clandestinas, e que ela continuaria a participar do
grupo.
Preocupada com problemas mais sérios, Angélica acabou esquecendo o
incidente, sem lhe atribuir maior importância.
No dia combinado encontrava-se Marianne no gabinete, arrumando
alguns objetos que estavam sobre uma estante, quando ouviu baterem
levemente e a porta abrir-se. Não se voltou imediatamente, ocupada que
estava em recolocar um livro em seu lugar.
Nesse instante ouviu a voz de monsenhor François saudando-a. Voltou-
se e viu dois religiosos à sua frente. Um deles era monsenhor, o outro fez
com que empalidecesse repentinamente ao reconhecê-lo.
– Apresento-vos, Senhora Abadessa, frei Felipe, de quem já vos falei.
Procurando dissimular para que não percebessem sua perturbação,
Angélica fez sinal para que se sentassem.
Felipe, ao reconhecer aquela a quem tanto procurara e por quem se
preocupara durante tantos meses, também levou um choque. Ia falar
qualquer coisa identificando-se e deixando claro seu relacionamento
anterior, quando percebeu que Marianne fingia não reconhecê-lo,
mantendo a fisionomia fria e impassível. Conteve seu impulso mantendo-
se calado e aguardou.
Após fazer-lhe algumas perguntas banais a abadessa solicitou a
monsenhor François que os deixasse a sós. Cavalheirescamente ele
concordou, acrescentando que aproveitaria o tempo para rezar na capela.
Se precisassem dele estaria lá.
Ao ficarem sozinhos o sacerdote não se conteve:
– Senhora Condessa, que surpresa!...
Ela o interrompeu:
– A Condessa Marianne está morta. Sou irmã Angélica agora.
– Queira perdoar-me, Madre Angélica. Não sabeis a preocupação que
causastes por não sabermos vosso paradeiro.
Ela sorriu tristemente, acrescentando:
– É uma longa história...
– Soubemos que estáveis em poder dos ingleses, mas não conseguimos
obter mais informações.
– Contar-vos-ei tudo, frei Felipe, mas antes dizei-me: Como está meu
filho? Vistes Augusto ou tivestes notícias dele?
– Até deixarmos o Castelo de Montpellier...
– “Deixarmos”, dizeis?
– Sim. Eu e frei Victor.
Corando ligeiramente à menção desse nome, ela exclamou:
– Ah!... podeis continuar.
– Como dizia, até deixarmos Montpellier gozava ele de perfeita saúde e
parecia estar conformado. Depois disso não sei dizer, porque partimos à
vossa procura. Em Montmorency fomos informados de que já não estáveis
lá e ninguém sabia vosso destino.
– É verdade... parti junto com os ingleses que, por sinal, foram muito
gentis comigo.
E contou da batalha, quando foi atingida por um cavalo e ficou vagando
entre os cadáveres, sem rumo, até que alguém a encontrou e tratou do
ferimento que tinha na cabeça. Fez uma pausa e concluiu:
– Depois disso, o que poderia eu fazer? Desesperada, sozinha, sem
amigos ou parentes desde que meu pai morreu, sem fortuna e sem ter
onde ficar, procurei asilo no convento.
– Mas, e vosso esposo?
– Meu marido Charles me abandonou vergonhosamente para que
morresse num calabouço, ou para que caísse nas mãos inimigas. Poderia
recorrer a ele?
– Mas tínheis ainda vosso filho. Com alguma dificuldade ainda poderíeis
ter ido para Montpellier. A senhora condessa Clarissa, vossa sogra, e a
condessa Louise, vossa amiga, não deixariam de dar-vos abrigo.
Ela abanou a cabeça, discordando:
– Não tenho essa certeza. Minha sogra nada faria que pudesse desgostar
o filho que idolatra. E depois, quem sabe o que andou falando, que
histórias andou contando para justificar sua iníqua e covarde atitude?
Não... eles não deixariam que me aproximasse de meu filho.
Suspirou e concluiu:
– Por isso estou aqui. Entre estas paredes consegui a paz de que
necessitava e desliguei-me do passado.
– Mas, como conseguistes chegar tão rapidamente à posição invejável
que ocupais atualmente na direção do convento?
Marianne fitou-o como se só naquele instante se lembrasse, afinal, do
porquê da presença dele ali no seu gabinete, e retrucou, autoritária:
– Isso já é outra história. Passemos ao que interessa.
***
Desta forma Marianne ficou sabendo das informações que lhe
interessavam. Perplexa, de início, com a presença de frei Felipe, aos
poucos, ao ouvi-lo discorrer sobre os fatos do seu conhecimento e que
envolviam os adversários comuns, tranquilizou-se, passando a ver nele
não o confessor, mas o cúmplice.
Ao término da reunião solicitou-lhe que dissesse a frei Victor que
desejava vê-lo.
Mordendo os lábios de despeito Felipe concordou, dizendo-lhe que o
aguardasse no dia seguinte. Daria o recado.
Deixando o convento de Sainte-Croix, Felipe se dirigiu imediatamente
para o mosteiro. Tinha pressa de contar ao amigo Victor as novidades.
Encontrou-o na cela, imerso em suas orações. Aguardou em silêncio
que terminasse de rezar. Quando percebeu que proferia as últimas
palavras falou irônico:
– Tuas orações foram ouvidas.
Levantando-se da laje fria onde estivera ajoelhado o religioso não
entendeu e perguntou, sereno:
– O que dizes?
– Repito: tuas orações foram ouvidas. Não há mais necessidade de
rezares tanto.
– Agradeço-te a informação, mas não entendo aonde queres chegar –
respondeu com brandura, completando um pouco intrigado: – Por que
dizes que não preciso mais orar tanto? E o que pensas que peço em minhas
orações?
Sem responder às indagações do amigo, Felipe falou bruscamente:
– Encontrei-a, Victor.
– A quem encontraste, meu amigo?
– Encontrei Marianne, Victor. Entendes? Aquela por quem procuramos,
durante tanto tempo, está sã e salva.
– Graças a Deus! – murmurou frei Victor, lançando um olhar agradecido
para o alto. E completou: – Pensaste que rezava tanto por “ela”?
– E não era? – retrucou o outro, convicto.
Meneando a cabeça Victor fitou o amigo com olhos límpidos que
extravasavam pureza:
– Também orava por ela. Preocupava-me a falta de notícias e o
desconhecimento do seu paradeiro. Estamos em guerra, sabes, e o perigo
existe por toda parte, principalmente para uma mulher sozinha. Mas, oro
também para agradecer tantas coisas boas que temos recebido de Deus. As
orações me fazem falta. Não preciso ter um motivo para rezar. Tanto
quanto do alimento material, preciso também do alimento espiritual.
Fez uma pausa e, fitando o companheiro, acrescentou:
– Ainda não a esqueceste, Felipe? Em tuas palavras vislumbro laivos de
um sentimento que não ouso externar. Seriam ciúmes?! Meu pobre amigo,
ainda sofres por ela...
Chegando bem próximo de Felipe, colocando a destra em seu braço,
Victor falou com ternura:
– Modifica tuas disposições mentais, meu amigo. És um servo de Deus e
estás jungido ao teu destino. “Ela” é tua irmã, “nossa” irmã, necessitada de
proteção. Ajudemo-la com o coração aberto e a alma livre de pensamentos
doentios.
Felipe que, absorto em seus pensamentos, ruminava as ideias,
respondeu com fervor:
– Arrancá-la do peito seria destruir-me a vida, tão entranhado está este
sentimento dentro de mim. Sem ele eu morro, definho, entendes?
Calou-se, sufocando um soluço.
– Pobre amigo! – murmurou Victor com carinho fraternal.
Durante alguns minutos ficaram ambos calados, cada qual entregue aos
próprios pensamentos. Afinal, lembrando-se do objetivo da conversa,
Felipe indagou:
– Não me perguntas onde “ela” está?
Com um suspiro fundo, Victor respondeu:
– Para mim é suficiente saber que está bem. Mas, dize-me, então, onde a
encontraste?
– No Convento de Sainte-Croix. Deseja ver-te. Espera por ti amanhã.
Observando com olhos de lince para ver a reação do amigo, a Felipe não
passou despercebido que Victor corou ligeiramente, sem conseguir
ocultar totalmente seus sentimentos.
– Convento de Sainte-Croix? Mas, então...
– É verdade. Agora é uma serva do Cristo.
Já deixando a cela ele voltou-se e completou:
– Procura por madre Angélica.
***
Os portões se abriram com lúgubre ruído. O coração batendo forte em
ritmo descompassado, Victor pediu para ser conduzido à presença de irmã
Angélica, que já o aguardava.
Foi com o pensamento elevado ao Criador que atravessou os corredores
sombrios acompanhando a irmã porteira. Temia esse momento. O
reencontro há tanto tempo esperado e acalentado a medo no fundo do
coração deixava o religioso frágil e sensível.
Ao adentrar o aposento, cuja porta a freira abrira, encontrou-se numa
sala ampla, mobiliada com simplicidade, mas com móveis pesados e de boa
qualidade. Pesados reposteiros cobriam as janelas altas e indevassáveis.
Algumas poltronas em couro escuro, quase preto, uma estante de livros
e uma grande mesa que servia de secretária completavam o mobiliário.
Nas paredes sóbrias apenas um nicho onde se via uma escultura da Virgem
e, em posição de destaque, um grande crucifixo entalhado de maneira
soberba, onde a figura do Cristo crucificado parecia ter vida própria; os
ferimentos pareciam reais e o sangue acabara de escorrer através dos
cravos.
Emocionado, sentiu as lágrimas umedecerem seus olhos. Ante o olhar
manso e meigo, repassado de dor e infinita piedade por todas as criaturas,
sentiu que era ainda muito inferior, que se deixava arrastar por pequenos
problemas e que suas imperfeições eram imensas. Desejava fazer mais,
para limpar-se das impurezas arraigadas no seu íntimo e, mentalmente,
suplicou ao Mestre que o amparasse nos momentos difíceis.
– Realmente, é um trabalho soberbo!
Virou-se bruscamente ao ouvir a voz que soou às suas costas. Tão
embevecido estava na contemplação do Cristo que não percebeu que a
porta se abrira sem ruído e que alguém penetrara no gabinete.
Ao vê-la, erecta e firme à sua frente, suspirou profundamente. Ela
também fitava o crucifixo na parede.
– Tenho a nítida impressão de que Jesus ainda está vivo nessa cruz e
admira-me, muitas vezes, não vê-lo sair do madeiro e caminhar ao meu
encontro – comentou Angélica como se falasse consigo mesma.
– Estava a pensar a mesma coisa enquanto meditava aqui sozinho – ele
fez uma pausa, fitou-a demoradamente e perguntou:
– Mas, como estás? – Victor estendeu-lhe a mão, que ela apertou, e em
seguida abaixou-se e depositou um ósculo, sentindo que Victor
estremecera.
– Como queres que esteja, frei Victor? Diante das circunstâncias, estou
muito bem.
– Irmão Felipe escondeu o fato de seres a abadessa de Sainte-Croix.
– Não, frei Victor. Ele apenas omitiu o fato a pedido meu.
– Por quê?
– Desejava ter oportunidade de explicar pessoalmente quando viesses
visitar-me.
– Ah!
– Desejo que sejas meu confessor.
Ele prendeu a respiração, questionando novamente:
– Por quê?
Com voz repassada de ternura, ela murmurou:
– Desejo e “preciso” que sejas meu confessor porque não confio em
mais ninguém. A pessoa alguma poderia abrir meu coração, desvendar
minha alma e falar dos meus sentimentos e problemas.
Victor fitou-a detidamente e falou com voz pausada, mas firme:
– Não creio que seja o melhor para nós, madre Abadessa. Tenho certeza
de que existem religiosos que poderão orientar-te melhor do que eu.
Poderia até, se quisesses, indicar alguém com mais condição...
– Foges?!... – balbuciou ela com tristeza – quando mais preciso de ti?
O religioso fitou-a, surpreso. Ela prosseguiu:
– Abandonas-me novamente?
– Não sabes o que dizes – replicou ele, corando ligeiramente. – Nunca te
abandonei. Tomei a decisão que me foi ditada pela razão e não me
arrependo. Nada poderia fazer na ocasião.
Marianne se aproximou, incisiva:
– Não percebes que preciso de ti? Que sou apenas alguém que sofre?
Nunca negaste ajuda a ninguém.
Victor virou-se e deu de frente com o crucifixo na parede. Olhou o
semblante do Cristo e procurou ajuda. Ah! também ele precisava de
socorro. Temia ser fraco e deixar-se levar pelas emoções. Não era feito de
ferro ou talhado em pedra bruta; o burel de religioso não o defendia
contra si mesmo.
Naquele momento pareceu ouvir uma voz muito doce dizendo:
“Filho meu, não pediste uma oportunidade? Desejas vencer tuas
imperfeições, e não é fugindo dos problemas que o conseguirás. Sê forte.
Arma-te de coragem nas lutas do dia a dia. Confia e segue-me: Eu sou o
Caminho, a Verdade e a Vida; ninguém vai ao Pai senão por mim.”
Inclinou a fronte, emocionado, e foi com os olhos úmidos que fitou a
freira, que aguardava uma resposta.
– Tens razão, madre Angélica; creio que não adianta evitar os
obstáculos. Temos que enfrentá-los. Seja! Serei o pai espiritual que desejas
– fez uma pausa, respirou profundamente e continuou: – Acredita, porém,
que, mesmo que não estivesse em contato contigo, continuaria a amparar-
te à distância. Temia apenas uma aproximação maior, mas compreendo
agora que era bobagem. É na luta que temos condições de provar nosso
valor e nossa coragem. Quem não luta, não vence.
Marianne suspirou aliviada, com ligeiro sorriso no rosto agora
tranquilo:
– Estou feliz que tenhas mudado a maneira de pensar. Realmente
necessito de ti. Quero que me ouças em confissão; preciso aliviar minha
alma e acalmar o coração sofredor.
E, ali mesmo, Marianne confessou tudo que lhe ia no íntimo. Falou dos
primeiros e difíceis dias de cativeiro, da ajuda que recebera dos ingleses,
da batalha que a deixara novamente entregue à própria sorte e de quando
fora ferida pelas patas de um cavalo. Narrou sua convalescença e a decisão
de pedir asilo no convento.
E aí começou a parte mais penosa da sua narrativa. O desejo de
vingança que acalentava em seu íntimo, acentuado pelo torpe crime que
ficara sabendo fora cometido contra sua amiga, irmã Maria de Jesus. A
descoberta dos segredos de madre Carmela, a renúncia que obrigou esta a
assinar do cargo que ocupava e a sua consequente nomeação para dirigir o
convento de Sainte-Croix. O conluio com monsenhor François e frei
Felipe, e tudo o que tramavam nas sombras, objetivando destruir aqueles
que eram objeto de seu ódio.
Ao terminar a narrativa, frei Victor mantinha a fronte baixa,
preocupado e profundamente impressionado com tudo o que ouvira.
Procurando conter a emoção, afinal falou, com voz melancólica,
conquanto repassada de ternura:
– Minha filha, retorna ao regaço do Cristo. Agasalhaste em teu coração
sentimentos que te levarão à destruição; não deles, mas de ti mesma. És
uma serva do Cristo agora, e tudo o que me contaste é uma antítese do que
Ele nos ensinou. Busca, através da oração, forças para vencer tuas más
inclinações. Já não te reconheço nessa criatura dura e fria que só pensa em
vingança. Lembro com infinita saudade daquela jovem adorável e meiga
que conheci alguns anos atrás.
Ele fez uma pausa, fitando-a com carinho. Sentiu uma vontade muito
grande de abraçá-la, de embalá-la nos braços como se fora uma criança
necessitada de compreensão e ajuda. Não se atreveu, porém. Estendeu a
mão, pousando-a de leve sobre a cabeça dela, enquanto lhe dizia:
– Perdoa!... Perdoa para seres feliz!
Aquela voz de timbre agradável e ameno, as palavras ditas por aquela
boca, fizeram com que Marianne voltasse ao passado. De repente, sem
saber como, sentiu um choque íntimo; era como se já tivesse ouvido essas
mesmas palavras em outras circunstâncias. Das densas brumas do passado
sentiu que já vivera momento semelhante e que esse momento tinha
importância capital em sua vida, hoje como ontem...
Angustiada, tentava lembrar-se de quando e onde isso ocorrera, sem
conseguir. Uma saudade muito grande de algo que ela não sabia precisar a
envolveu. Os sentimentos tanto tempo represados eclodiram e ela desatou
em choro convulsivo.
– Chora... chora que as lágrimas fazem bem quando provêm de um
coração arrependido. Lavam a alma, purificando a mente. Esquece o que
passou. Tens uma nova programação de vida que escolheste
espontaneamente. A direção de uma congregação não é tarefa das mais
fáceis e encontrarás muito serviço por fazer, muita ajuda para prestar.
Procura ser fiel ao caminho que escolheste, pois se aqui estás é porque
Deus assim o quis. Volta a ser a criatura meiga e gentil que eras; é certo
que sofreste, mas nada justifica o desforço. Confia em Deus e caminha. A
justiça divina saberá dar aos culpados a punição que merecem. Coragem!
Que o Senhor te abençoe.
Algum tempo depois, ao ver Marianne já bem mais calma, frei Victor
deixou o convento.
Sentia que aquelas paredes e o teto pesavam sobre si como se os
carregasse nos próprios ombros.
Foi, portanto, com enorme sensação de alívio que deixou o convento
para trás. Ralado de angústia, sentia que o coração lhe doía terrivelmente
no peito. Olhou para o céu. Entardecia. Os últimos raios de sol se perdiam
no horizonte ao longe. O firmamento se coloria de tons que iam do violeta
ao rosa mais pálido. Do lado oposto as sombras já envolviam as montanhas
e as primeiras estrelas começavam a surgir; uma brisa leve passava
tangendo as folhas das árvores. Via o caminho serpenteando ao longe, o
casario da aldeia que, à distância, já se iluminava com as primeiras luzes.
Um longo suspiro exalou de seu peito.
“Oh, Senhor! A tarefa que me concedestes talvez seja pesada demais
para meus ombros frágeis. Sei agora, porém, que estou no caminho certo e
vos suplico forças para levar avante o meu desiderato. Ela nunca esteve
tão necessitada de ajuda quanto agora e fico-vos grato, Senhor, pela
oportunidade que concedestes a este vosso servo de poder auxiliar.
Abençoai-nos os propósitos, Mestre Amado, e guiai-nos os passos
vacilantes no caminho do bem.”
Sorriu ligeiramente. Nova esperança lhe balsamizava o coração e o
desejo de fazer o bem o estimulava.
Venceriam, tinha certeza. Não descansaria enquanto não conseguisse
elevá-la ao regaço do Mestre de Nazaré. Faria disso o objetivo maior de sua
existência.
Capítulo XVIII - O acampamento

Chovera durante toda a noite. Nuvens plúmbeas ainda cobriam o céu


prenunciando novos aguaceiros. A atmosfera se encontrava saturada de
eletricidade e relâmpagos cortavam os ares de tempos em tempos,
seguidos do estrondo de trovões.
Os soldados tentavam retirar as carroças que permaneciam atoladas na
lama. Os cavalos relinchavam, raivosos, espumavam e, ao som da chibata,
faziam vãos esforços para libertar-se do atoleiro.
Um oficial aproxima-se, colérico.
– Basta! – disse, retirando o látego das mãos do soldado. – Não percebes
que só pioras a situação? Cada vez mais o animal se atola na lama.
Furioso, o soldado esbravejava. O suor escorria pelo rosto, dificultando-
lhe a visão. Passou a mão rude e suja pela testa tentando enxugá-la, mas só
conseguiu enlamear-se ainda mais.
– Esse preguiçoso não quer fazer força! Só conhece a voz do chicote no
lombo – explodiu, à guisa de uma explicação.
– Imbecil! – bradou o oficial, impaciente – não percebes que o que
exiges está além das suas forças? Vê como o animal está exausto, suas
pernas tremem e sua boca espuma! Acabarás por matá-lo e serás
responsabilizado por isso.
Impotente para reagir o soldado continha a violência mordendo os
lábios:
– Já que pareces entender muito de cavalos, Senhor, o que sugeres que
eu faça para retirar a carroça do atoleiro?
Sua voz soou algo irônica, mas o superior fingiu não perceber.
– Bem. Retira os arreios do animal, dá-lhe água e alimenta-o. Depois,
deixa-o descansar. Pernoitaremos aqui hoje.
Afastou-se ordenando aos outros que fizessem o mesmo.
Aproximando-se do comandante das tropas, que cavalgava à frente,
informou:
– General, não temos condições de continuar. Os animais estão exaustos
e as carroças com os víveres e a maquinaria pesada estão atoladas na lama.
Se permitis uma sugestão, Senhor, temos que pernoitar aqui ou
permanecer até que o tempo melhore. De qualquer forma, parece que uma
nova tempestade se aproxima e é melhor nos resguardarmos.
– Muito bem, Capitão. Acampemos aqui, então. Dá ordem para que
montem as tendas.
– Sim, meu General.
Em pouco tempo o acampamento estava montado, num terreno mais
elevado e recoberto pela relva; dessa forma a água não empoçaria,
escoando-se rapidamente.
Algumas horas depois o ânimo dos soldados era outro. Abrigados e
alimentados descansavam da fatigante jornada que tinham empreendido.
Vestindo roupas secas, aqueciam-se do frio bebendo vinho em meio a uma
algazarra geral.
A tenda maior e facilmente reconhecível no meio das outras, pelo luxo
e pela guarda constante, era a do general. Dentro dela apenas se
encontravam os oficiais e os amigos mais íntimos do duque.
Ceavam, enquanto discutiam as últimas novidades na política e na
guerra. Falavam sobre estratégia militar e a situação do inimigo.
Através de informantes ficaram sabendo que um contingente do
exército inglês estava acampado perto de Évreux. Dirigiam-se, portanto,
ao encontro dos ingleses quando o mau tempo os impedira de prosseguir.
A luz das tochas bruxuleava, colocando tons avermelhados no
ambiente. As rodadas de bebidas prosseguiam, destravando as línguas e
acendendo o entusiasmo nos homens ali reunidos.
Segismundo de Bouillon já se apresentava com as gordas faces
avermelhadas e a cada nova história picante explodia em gargalhadas.
– Não obstante as histórias engraçadas, o saldo da Primeira Cruzada foi
animador. Os cristãos conseguiram importantes vitórias sobre os inimigos
muçulmanos – afirmava ele a um grupo de amigos.
– Só se foram vitórias obtidas na cama sobre as beldades muçulmanas.
Dizem que são realmente de uma beleza morena estonteante!
Ao ouvir esse comentário dito em tom jocoso, o general virou-se, em
meio à hilaridade geral, fitando o autor da crítica, seu genro, Lucas de
Montpellier.
– Não somente essas vitórias – disse sério o duque – que por certo
aconteceram, considerando-se a garbosidade e encanto de nossos
cavaleiros. Fez uma pausa, esperando a atenção da assembleia, pois era
extremamente orgulhoso e vaidoso, e prosseguiu: – Falo de outro tipo de
vitória que o nosso caro capitão, conde Lucas de Montpellier, com certeza
não ignora.
– Não sei a que o general se refere – respondeu o outro com ar
displicente.
Olhando dos lados, já impaciente com a ousadia e a petulância do seu
subordinado e genro, o duque informou com voz sibilante:
– Falo das vitórias do meu ancestral e avô, Godofredo, duque de
Bouillon, em Jerusalém, sobre as hordas sarracenas. Era um bravo
cavaleiro, que soube honrar o estandarte da França. Conta-se que em
combate era terrível, imbatível mesmo, dono de um caráter e lisura reais.
Seu nome estará indelevelmente gravado nas páginas da História pelos
seus feitos heroicos e pela bravura demonstrada em combate.
Com as mãos amarfanhando um lenço de seda, o jovem Lucas retrucou
com ar displicente e altaneiro, sob os olhares surpresos e temerosos dos
demais:
– Sem dúvida... sem dúvida... Vosso ilustre ancestral colocou um brilho
todo especial em vosso brasão, por certo.
O duque já ensaiava um sorriso vitorioso quando Lucas completou:
– Pena que não tenha assestado suas armas apenas na direção dos
miseráveis infiéis.
– Como?! – inquiriu surpreso o duque.
– Sim! É fato sabido que o duque Godofredo de Bouillon, vosso ilustre
ancestral – acompanhou estas palavras com uma mesura irônica –
provocou uma chacina “também” entre os cristãos!
– Como ousas?!!... – explodiu colérico o general, já levando a mão nos
copos da espada.
Assustados, os demais oficiais participantes da reunião procuraram
acalmar os ânimos. Alguns se aproximaram mais de Segismundo de
Bouillon, tentando modificar a conversa e lembrando-lhe alguma anedota
engraçada:
– Lembras-te daquele amigo do teu tio-avô, Balduíno de Bouillon, que
foi encontrado com uma muçulmana e teve que fugir sem roupas? Ainda
assim ficou sem as orelhas e só muitos anos depois foi encontrado aqui na
França, num mosteiro. Havia se ordenado.
O general riu estrondosamente da lembrança do amigo, enquanto
novamente sua taça era suprida de vinho.
Em volta de Lucas seus amigos tentavam lembrar-lhe a inutilidade de
provocar o general.
– Não é apenas inútil, mas extremamente perigoso o jogo que estás a
fazer, Lucas – dizia-lhe discretamente Charles de Montmorency.
– Não suporto mais as bravatas desse louco – ripostara Lucas, irritado.
– Acalma-te, meu amigo. Controla-te ou colocarás em risco nossas
vidas. Sabes como é perigoso esse homem.
– Tens razão. É que não resisti à vontade de responder-lhe à altura. Não
suporto mais esse homem; a convivência com ele se torna a cada dia mais
difícil – fez uma pausa e prosseguiu: – Estou exausto. Vou recolher-me.
– Acompanho-te – concordou Charles. – Mas antes é imprescindível que
te desculpes.
Conquanto relutante, Lucas se aproximou do grupo formado em torno
do general e solicitou licença para retirar-se.
– Quero desculpar-me convosco, General, pela brincadeira de há pouco.
Não pretendia hostilizar-vos.
Segismundo, com os olhinhos apertados, fez um gesto de compreensão
e entendimento. Parecia já nem lembrar-se do ocorrido.
Saindo para o ar livre foram bafejados pela frescura da noite. O céu
estava escuro como breu e somente uma ou outra estrela aparecia,
varando as nuvens.
– Será que poderemos prosseguir amanhã? – questionou Lucas, como se
estivesse falando para si mesmo.
– Por que diabos resolveste irritar o duque? – falou impaciente Charles,
sem responder à pergunta do companheiro.
– Porque ele pensa que somos todos idiotas. O saldo dessa maldita
Cruzada foi devastador, terrível. Perdemos tudo nessa luta e ele vem falar
em glórias!
– Mas deves reconhecer que Godofredo de Bouillon ficou famoso pela
coragem e bravura.
– E pelas barbaridades que cometeu. Sim, reconheço! Foi de uma
atrocidade só comparável à dos bárbaros e digna deles. Não de um
exército de criaturas civilizadas. Matou 70.000 muçulmanos, entre eles
mulheres e crianças, sem contar os judeus.
– Mas são nossos inimigos, Lucas.
– Não importa. Seria preferível que transformasse esses sarracenos em
trabalhadores, escravos, a tirar-lhes a vida.
– Acreditas realmente nisso?
– Claro. Se a cada vitória que obtivermos exterminarmos os inimigos,
logo estará tudo deserto. E como faremos a ocupação? É preferível torná-
los aliados, oferecendo-lhes condições de vida digna. Trabalharão para
nós. De resto, os romanos já faziam isso há muitos séculos.
– Bem, não importa. Deves, porém, evitar confrontos com “ele”.
– Sei disso – disse Lucas melancólico. – Mas não consigo mais suportar-
lhe a presença desagradável.
– Pois deves aprender a suportar para o teu próprio bem. Viste seus
olhinhos apertados? Nada pressagiam de bom, acredita. Não te iludas com
seu ar complacente e protetor. Segismundo de Bouillon não é de esquecer
uma ofensa por menor que seja.
Lucas concordou com um gesto de cabeça, exclamando:
– Ah! Meu Deus! Quando terminará esta guerra?
***
Dentro em pouco todo o acampamento estava mergulhado no silêncio.
Os soldados estavam exaustos e era preciso repousar.
Só se ouvia o crepitar das chamas das fogueiras que, vez por outra,
eram atiçadas pelos soldados de guarda; o andar cadenciado e o retinir das
armas das sentinelas. De longe em longe via-se o clarão mais forte de uma
faísca cortando os ares, logo seguido do ribombo do trovão.
Nem todos dormiam no acampamento. Lucas se revolvia em seu leito
sem conseguir conciliar o sono. O episódio da noite, conquanto
aparentemente inofensivo, o incomodava. Por que razão sentia sempre
essa repulsa por Segismundo de Bouillon? Eram amigos, haviam
compartilhado muitas coisas, algumas inclusive das quais não se
orgulhava nem um pouco; divertiram-se em jogos, passaram noites em
bebedeiras memoráveis. Mas, no fundo, sempre havia um sentimento
misto de repulsa e raiva dentro de si. Não sabia como explicar tais
sensações. Quando Segismundo abria a boca para falar um desejo
incontrolável de contradizê-lo o empolgava. Sabia o quanto Segismundo
de Bouillon era perigoso e sem escrúpulos; além disso, o prestígio que
desfrutava junto ao rei, Filipe II, era grande, o que o fazia duplamente
temível.
Revolveu-se novamente no leito. E Marianne, onde estaria? Por que,
Deus, pensar sempre naquela que era casada com seu melhor amigo? Por
que essa fixação numa mulher que sempre demonstrara indiferença para
com ele? A verdade é que, desde que a vira pela primeira vez, nunca mais
conseguira tirá-la da cabeça.
A imagem da esposa surgiu em sua tela mental. Régine lhe era
insuportável, sua presença o incomodava e tarde demais lamentara o
compromisso assumido com ela. O casamento de ambos era um completo
fracasso; apenas um acordo financeiro entre as partes, vantajoso para os
Montpellier, cuja fortuna estava bastante abalada com os excessos de seu
pai e seus também. Suspirou profundamente. O que estava feito não
poderia ser remediado.
Mudando o rumo dos pensamentos, lembrou-se de Charles. O amigo
parecia muito estranho desde que partiram para a guerra. Tornara-se
taciturno e estava sempre com a fisionomia fechada, sobrancelhas
contraídas, como se estivesse preocupado com algum problema.
Nunca mais tocara no nome de Marianne e só uma vez se referira ao
filho, que deixara aos cuidados da avó, sua mãe. Parecia-lhe, vez por outra,
ver Charles a examiná-lo disfarçadamente, com olhos desconfiados.
Quando ele, Lucas, fitava-o, desviava o olhar e fingia estar ocupado com
outra coisa.
Estranho. O que se passaria dentro da cabeça do amigo?
“Bem. Deve ser muito tarde. Preciso repousar um pouco, caso contrário
não conseguirei levantar-me amanhã” – pensou.
Virou-se para o outro lado e em pouco tempo ressonava
tranquilamente.
Charles também não conseguira adormecer. Na tenda, que dividia com
Lucas, via o amigo deitado e percebia, mesmo na escuridão ambiente, que
ele também estava insone. “O que estaria pensando Lucas? Ou melhor, em
‘quem’ estaria ele pensando? Talvez em Marianne, a esposa adúltera?”
Desde que soubera da traição da esposa não tivera mais sossego.
Perdera a paz de espírito e sua vida virara um inferno. O que teria sido
dela? Abandonara-a num calabouço, à própria sorte, tal o ódio que lhe
subira à cabeça. Agora lamentava esse procedimento. Deveria tê-la trazido
junto e fazê-la sofrer mil vezes o crime cometido contra a sua honra e seu
nome ilustre.
Não lhe perdoaria jamais e nem ao infame que ousara vilipendiar seu
lar. Aguardaria uma ocasião oportuna para vingar-se do canalha que,
fazendo-se passar por seu amigo, roubara-lhe a esposa.
Não tardariam a encontrar-se com o exército real. Faria de modo que o
miserável caísse em desgraça perante Sua Majestade, o rei Filipe II, e seu
destino ficasse selado.
Quanto à ingrata, já deveria estar morta pelas mãos dos ingleses.
Lamentava apenas por seu filho, mas a mãe não lhe faria falta. A
condessa Clarissa de Montmorency, sua mãe, nobre dama, de nascimento
ilustre e esmerada educação, saberia educá-lo como a um gentil-homem.
E assim, embalado por esses pensamentos, acabou entregando-se ao
sono.
O duque de Bouillon, em sua tenda, também estava insone. Irritara-se
com a arrogância daquele fidalgote de província, Lucas, que ousara
contestá-lo publicamente. Conquanto fingisse não ter se aborrecido, o fato
o irritara profundamente. Quem pensava ele que era para atrever-se a
contestar suas palavras? Na verdade, percebia sempre laivos de ironia,
gestos de impaciência, olhares de desprezo e tantas outras coisas, nas
atitudes de Lucas para com ele. Procurara sempre ser complacente com o
fedelho, pois não passava de um rapazote, comparado consigo, mas notava
sempre um fundo de hostilidade em suas atitudes. Verdade é que também
não simpatizava com ele. Tolerava a presença do genro pela filha, Régine,
que com ele se consorciara.
O rapazelho, porém, já estava ultrapassando os limites do tolerável.
Faria com que se arrependesse da sua ousadia. Tinha meios e poderio à sua
disposição para destruir quem quer que atravessasse seu caminho.
Dentro de alguns dias encontrariam o exército real e com a presença de
Sua Majestade tudo seria mais fácil.
Capítulo XIX - A verdade, enfim

O dia seguinte amanhecera chovendo torrencialmente. Impossível


prosseguir. A situação se tornava cada vez mais difícil. Os soldados se
impacientavam pela inatividade a que eram forçados.
Com a chuva sequer podiam andar um pouco, mantendo-se presos nas
tendas e distraindo-se com jogos e conversas picantes.
Os desentendimentos avultavam e as brigas se tornaram frequentes. O
moral das tropas estava baixo e se não parasse de chover nos próximos
dias a situação seria calamitosa.
Dois dias depois Charles andava pelo acampamento quando, já próximo
de sua tenda, ao desviar-se de uma pedra, viu algo que brilhava no meio da
lama.
Abaixou-se e apanhou o objeto. Era um cordão de ouro, com pendentif
no mesmo metal, incrustado de pedras preciosas. Rodou-o nas mãos. Era
uma peça muito interessante e que sempre admirara em Lucas.
Limpou bem a joia e a guardou na algibeira para devolvê-la ao amigo.
Entrou na tenda, tirou o manto encharcado de chuva e sentou-se no leito.
Curioso, pois nunca tivera aquele objeto nas mãos, retirou-o da
algibeira para examiná-lo melhor à luz de uma vela.
Era do tamanho de uma moeda grande, de formato ovalado. Com a
ponta dos dedos percebeu uma saliência; pressionou com o dedo e fez
funcionar uma pequena mola, abrindo a joia. Dentro, uma efígie de Régine
surgiu sorridente.
Passando a mão, inadvertidamente, sobre a pintura, tocou outra mola e
ouviu um estalido; surpreso, viu levantar-se a figura de Régine e, abaixo
dela, surgir a imagem de uma outra mulher: Marianne.
“Traidores!” – pensou. “Bem que eu desconfiava! Agora, porém, tenho a
certeza da culpabilidade de ambos. Ela já teve o que merecia, mas ele
ainda deverá pagar pelo seu procedimento infame.”
Fechou a joia cuidadosamente e guardou-a na algibeira. Bem a tempo.
Lucas entrou na tenda logo em seguida exclamando, irritado:
– Arre! Que tempo! Parece que nunca mais vai parar de cair água. A
propósito, sabes quem chegou ao acampamento?
A um gesto negativo de Charles, ele informou:
– Frei Felipe.
– Frei Felipe? A que veio o ilustre sacerdote? – questionou Charles.
– Bem, ainda não sei mas pretendo descobrir. Provavelmente para
abençoar as tropas e levantar-lhes o moral – completou, irônico.
Lucas fez uma pausa e só então olhou para Charles, notando o quanto o
companheiro trazia a fisionomia atormentada e o ar estranho.
– Aconteceu alguma coisa, Charles? Estás pálido!
– Estou bem, muito bem! Apenas aborreço-me e irrito-me com a chuva.
– Pois é o que eu digo. Temos que sair logo daqui, caso contrário nos
destruiremos a nós mesmos, sem precisar que os ingleses façam isso. Viste
como os soldados estão impacientes e nervosos?
– Não te preocupes, Lucas. Logo tudo isso acabará. Reunir-nos-emos ao
exército real e a presença de Sua Majestade será o suficiente para levantar
o ânimo das tropas.
Lucas suspirou: – Espero que tenhas razão.
Na hora do jantar reuniram-se na tenda principal.
Frei Felipe foi cercado por todos, desejosos de notícias de casa. A todos
atendeu, respondendo às perguntas na medida do possível.
Charles estava louco para saber notícias do castelo de Montmorency, de
Marianne, mas abstinha-se de perguntar, envergonhado da sua atitude.
Aquela noite foi particularmente feliz para aqueles homens cansados e
sofridos. As notícias de casa, dos familiares queridos, da terra que eles
amavam tanto, foi como um sopro de vida modificando as disposições.
Dentro em pouco estavam cantando velhas canções e bebendo,
satisfeitos e mais tranquilos, já esquecidos da chuva que continuava a cair.
No dia seguinte o sol voltou a brilhar para alegria geral. Apressaram-se
a arrumar as bagagens para prosseguir a jornada.
Novo ânimo tomara conta dos homens e via-se um sorriso em cada
rosto.
Em poucos dias avistaram o acampamento real e o encontro dos dois
exércitos foi muito alegre de parte a parte. Enquanto os soldados se
confraternizavam o rei recebeu os nobres e oficiais em sua tenda.
O fortalecimento do exército francês pela reunião das tropas e a
presença de Sua Majestade, Filipe II, eram fatores decisivos para o
entusiasmo dos soldados.
O soberano procurou saber qual era a verdadeira situação da região de
onde vinham. Houve troca de informações e estudaram a estratégia a ser
utilizada contra o exército de Ricardo Coração de Leão.
O rei Filipe II era jovem e pelas suas qualidades foi cognominado depois
de Filipe, o Augusto. No entanto, era maleável e sujeito a ser controlado
por mãos hábeis e mentes lúcidas.
Diga-se, de passagem, que num único assunto foi firme e irredutível:
sua briga com a Igreja. Em virtude de seus tumultuados casamentos foi
excomungado pelo Papa, que ainda interditou os serviços religiosos em
território francês. Ao saber da decisão papal, Filipe, colérico, destituiu
todos os bispos que obedeceram à ordem de Sua Santidade.
Quem sofreu com esse estado de coisas foi o povo francês,
profundamente religioso e temeroso da ira de Deus, terrivelmente
representada pelas fogueiras do inferno.
A figura do rei, àquela época, impunha respeito e centralizava as
atenções, que convergiam todas para a sua pessoa, como quem tem o
poder de resolver todos os problemas.
A presença de Sua Majestade, portanto, fez com que nossos
personagens desejassem levar até ele suas questões e querelas, buscando
uma solução.
Não foi outra a intenção de frei Felipe acompanhando o exército
francês. Em suas mãos trazia importantes e comprometedores
documentos que pretendia apresentar ao soberano, assim que fosse
possível aproximar-se dele sem tantas testemunhas e sem chamar a
atenção.
O duque Segismundo de Bouillon, por sua vez, pretendia destruir o
conde Ricardo de Montpellier e seu filho Lucas, para livrar-se deles. Era
vingativo e cruel e, por bagatelas, já derrubara a muitos.
Coisa estranha era que nada havia de grave para que desejasse a
derrocada de ambos, mas uma animosidade sem propósito e sempre
crescente se alojara em seu íntimo. Novamente eram as lembranças do
pretérito distante fazendo-se presentes em suas vidas. Agredido pelo
espírito de Lucas, de quem fora comparsa e companheiro em certa
encarnação, e por quem fora traído, Bouillon deixou que o ódio o
dominasse por muitos séculos. No século VI, durante o reinado de
Justiniano, desencarnado, era um dos inimigos de Godofredo, conde de
Ravena, a quem tentou destruir a todo custo. A Ricardo de Montpellier
estendia sua animosidade por ser pai daquele que detestava.
Ódio idêntico o duque de Bouillon estendia a frei Felipe, em quem não
confiava, e que, no pretérito, igualmente comparsa e na época amigo de
Lucas, o traíra. Hoje, como duque de Bouillon, ódio feroz o fazia desejar
livrar-se de todos aqueles que o ofenderam e vilipendiaram.
Charles, por sua vez, também desejava vingar-se de Lucas, julgando-o
amante de sua mulher, Marianne, e assassino de seu pai, o conde Henri de
Montmorency. Continha, porém, o seu ódio. Não queria escândalos que
pudessem denegrir seu nome ilustre e honrado.
Aquele que fora Afonso no século VI e de quem Godofredo roubara a
noiva bem-amada por simples capricho, e que posteriormente
reencarnara como Aurélio para prosseguir em suas vidas evolutivas,
retornara na atualidade como Charles de Montmorency, e a antiga
animosidade contra Lucas recrudescera, julgando-o culpado. Na verdade,
quando Godofredo, reencarnado em Nika, se jogara à frente do irmão
Aurélio, tentando protegê-lo, salvando-lhe a vida e perdendo a sua,
vitimado por uma flecha dirigida a um cão raivoso, Godofredo-Nika se
reabilitara perante Afonso-Aurélio, que lhe perdoou a afronta sofrida.
A bondade de Deus aprouve colocá-los novamente frente a frente e, em
razão da disputa por uma mesma mulher, o ódio tomara corpo
novamente, ameaçando conquistas espirituais já conseguidas.
Lucas possuía, sim, a imagem de Marianne na joia que
inadvertidamente e em má hora fora perdida, mas nunca se aproximara
dela para manchar-lhe a honra. Isso, porém, Charles não entenderia
nunca, pois julgava os outros conforme suas próprias tendências e ideias.
E depois, como conhecia Lucas e sabia que não era um poço de virtudes e
que, tanto quanto ele, Charles era dado a aventuras galantes, julgou-o e
condenou-o sem apelação.
Novamente o passado aflorando em suas vidas para os necessários
reajustes. Como já fora ofendido por Godofredo (Lucas), que lhe roubara a
mulher amada, julgou que ele cometera o mesmo deslize nesta existência,
roubando-lhe Marianne.
Bastaria que tivesse tido um pouco de equilíbrio e de bom senso, um
diálogo franco com aquele que até àquela data havia considerado como
amigo, para que o mal-entendido se desfizesse.
Portanto, aguardava Charles também uma oportunidade para caluniar
o amigo e fazê-lo cair em desgraça perante Sua Majestade.
A aproximação dos ingleses, porém, fez com que tivessem que adiar
seus propósitos para se unirem contra o inimigo comum.
Túlio, o menestrel, que fazia parte do contingente, continuava a fazer
seu jogo, vigiando os implicados em todos os seus passos. Foi assim que,
por acaso, viu quando Charles encontrou o objeto perdido entre as pedras,
debaixo da chuva. Curioso, desejou saber o que era aquilo e, pela
expressão de Charles ao deixar a tenda, notou que nada de bom
descobrira. Estava pálido como um cadáver e seus olhos tinham um brilho
cruel.
Gozando da estima e da confiança de Charles, Túlio decidiu que
arrancaria dele aquele segredo. Na noite seguinte, quando Túlio tocava
seu alaúde e conversavam antes de se recolherem, já tendo sorvido muitas
canecas de vinho, Túlio perguntou, como quem nada quer:
– A propósito, amigo Charles, outro dia deixaste-me curioso.
– E por que, se posso saber?
– Estava em minha tenda olhando a chuva que caía torrencial e
dispunha-me a chamar-te, vendo-te aproximar da tua tenda, quando
estacaste e, abaixando-te, pegaste algo nas mãos com muito cuidado...
Um tanto contrafeito e fazendo uma careta, Charles concordou:
– Não julguei que tivera testemunhas do meu achado. Mas, vá lá!
Mereces toda a minha confiança e talvez sejas o meu melhor amigo.
– Agradeço-te as palavras gentis e afianço-te que realmente sou digno
delas. Podes confiar em mim como confiarias em ti mesmo – disse, entre
orgulhoso e satisfeito.
– Pois bem, Túlio. Foi um escrínio que encontrei, preso a uma corrente
de ouro – e, retirando a joia da algibeira apresentou-a ao amigo, que a
tomou nas mãos, surpreso.
– É uma bela peça de ourivesaria. Quem teria perdido tal preciosidade?
– Não fazes ideia? Pois abre e descobrirás.
Ato contínuo, Túlio, de boca aberta, exclamou surpreso:
– Lucas! É verdade! Lembro-me agora de tê-lo visto adornado com esse
mimo. Mas, por que não a devolveste ao seu legítimo dono? – perguntou
Túlio, notando que algo mais existia.
Suspirando, Charles murmurou:
– Em cima, um pouco para a esquerda, bem disfarçada, existe uma outra
mola. Aperta-a e verás.
Apreensivo, Túlio executou a ordem e estacou sem dizer nada. A
imagem de Marianne, num soberbo trabalho de pintura, surgira diante de
seus olhos espantados. Fechou o pendentif, calado, e fitou Charles à sua
frente.
Sua cabeça trabalhava febrilmente. O duque ficaria feliz em saber que
existia outra pessoa que agora poderia ser culpada da morte do conde de
Montmorency.
Charles, pausadamente, continuou:
– Compreendes a extensão dessa descoberta?
Túlio balançou a cabeça concordando. Não queria comprometer-se com
palavras. Não ainda.
– O que pretendes fazer? – questionou.
– Ainda não sei. Vou entregá-lo ao nosso rei, mas não desejo
escândalos, compreendes?
– Naturalmente. Estarei à tua disposição para o que precisares. Sabes
que podes confiar em minha discrição.
– Agradeço-te, amigo Túlio. Por ora, vamos aguardar. O inimigo se
aproxima e precisamos contar com todas as forças disponíveis. Mas,
depois...
***
Na manhã seguinte surgiu a oportunidade que frei Felipe aguardava.
Chamado pelo rei, que exigia sua presença, viu nessa ocasião a resposta
às suas preces.
Prosternou-se perante Filipe Augusto, conforme rezava a etiqueta,
conquanto menos formal devido às prerrogativas concedidas aos
sacerdotes. Aguardou que o soberano lhe dirigisse a palavra, com a
expressão humilde e serena como convinha a um servo de Deus.
Com leve gesto de mão o rei ordenou que todos se retirassem, ficando a
sós com o religioso.
Observava o frade com expressão indecifrável; este permanecia em pé,
a alguns passos do soberano, suportando a análise, imperturbável. Afinal,
o rei lhe dirigiu a palavra:
– Sabeis, por certo, que minhas relações com a Igreja estão muito
estremecidas.
– Sim, Majestade.
– Sois um sacerdote. O que pensais dessa situação?
– Não cabe a mim emitir julgamentos, Majestade.
– Ah!...
Fez-se silêncio. O soberano continuava a avaliar o homem que tinha à
sua frente. Afinal, dirigiu-lhe novamente a palavra:
– A vossa presença, contudo, demonstra que não estais contra mim.
– É verdade, Majestade.
O soberano suspirou.
– Frade, a situação dos reis é muito difícil. Sobre suas testas coroadas
repousa a responsabilidade do bem-estar de um povo, a felicidade de uma
nação. Ah! frade, vossa posição é bem mais cômoda que a minha. Não sois
responsável pela vida de tanta gente.
– Também somos responsáveis, Majestade. Se não pelos corpos, mas
pelas almas.
– Ah! sim. Também tendes um rebanho a conduzir, é verdade. Achais a
vossa missão muito difícil?
O sacerdote inclinou a cabeça num gesto de assentimento,
completando:
– Nada é fácil, Majestade.
O soberano ficou calado durante alguns minutos, profundamente
concentrado em seus pensamentos. Afinal falou, com voz em que a
emoção transparecia:
– Preciso da vossa ajuda, frei Felipe, e podeis avaliar como me é difícil
admitir isso. Sinto algo estranho no ar e não sei como definir. Temo pela
batalha que se aproxima. Será decisiva em nossos destinos, e necessito do
vosso conselho e das vossas orações.
Algo dentro do coração do religioso se enterneceu vendo aquele rei tão
poderoso, despido do seu orgulho, a solicitar ajuda. Suspirou
profundamente:
– Que posso vos dizer, Majestade? Sou um humilde monge que nada
entende de estratégia militar e que só pode rezar suplicando o amparo de
Deus para vossas hostes.
Fez uma pausa e retirando das dobras do burel um rolo de pergaminhos
estendeu-o ao soberano, dizendo:
– Talvez isto vos ajude, Majestade.
Tomando em suas mãos o rolo de pergaminhos, Filipe Augusto,
surpreso, inquiriu o religioso:
– De que se trata?
– Ignoro, Majestade. Mandaram-me como portador desta mensagem,
com ordem de só entregá-la em vossas mãos e a sós.
– Por que não entregastes antes?
– Não achei ocasião propícia. Confio em Deus, Majestade, e sabia que o
momento adequado chegaria.
Um tanto preocupado o soberano passou os olhos pela mensagem e,
aflito, analisou rapidamente os outros documentos. Depois, com expressão
severa, inquiriu:
– Quem enviou estes documentos?
– Monsenhor François D’Aubigny.
– Sabeis o conteúdo desta mensagem?
– Como já vos afirmei, ignoro, Majestade.
– É muito grave o que consta destes documentos e envolve importantes
pessoas do Reino.
– Mais uma razão para ter chegado às vossas mãos, Majestade.
Com determinação, Filipe Augusto enrolou cuidadosamente os
documentos, escondendo-os dentro da camisa, junto ao coração.
– Muito bem, frei Felipe. Conseguistes ajudar-me, conquanto não o
soubésseis. Mas, a que preço? Bem, isso agora não importa. Tendes a
minha gratidão.
Com graça e altivez, estendeu a mão ao sacerdote que a apertou. Em
seguida frei Felipe saiu, deixando o rei a meditar sozinho. Algum tempo
depois o soberano tocou a sineta e imediatamente surgiu a figura
simpática de um jovem elegante e discreto.
– Senhor D’Anjou, temos importantes novidades que poderão causar ou
nossa vitória ou nossa derrota.
Fazendo uma reverência de estilo, o jovem afirmou:
– Que Deus não o permita, Majestade! Sois forte e poderoso e nada
poderá derrotar-vos.
Com triste sorriso o rei lamentou:
– Ah! meu bom e fiel Renan, gostaria de ter a tua certeza. Lê isto e
depois dá-me tua opinião.
Retirou do peito o rolo de documentos, passando-o para as mãos do
jovem aristocrata, que parecia gozar da sua confiança.
Ao cabo de poucos minutos Renan D’Anjou estava a par da situação.
Colérico, exclamou:
– Traidor sujo! Cão danado! O que pretendeis fazer, Majestade? É muito
grave a acusação que fazem ao Senhor de B...
Com gesto rápido o rei impediu que continuasse.
– Caluda! Nada pode transpirar do que aqui ficaste sabendo.
– Certamente, Majestade. Será que o miserável já conseguiu dar a nossa
posição ao inimigo?
– Não sei. É isso o que precisamos descobrir com urgência. Se Ricardo já
sabe da nossa localização, precisamos estar atentos. Poderemos ser
atacados a qualquer momento. Por isso, temos que vigiá-lo e decidir o que
fazer.
– Majestade, se vós me permitis...
– Dize, Renan, o que tens em mente?
– Bem, Senhor, creio que devemos atacar logo para contar com o
elemento surpresa, não dando tempo a que “ele” nos traia.
– Tens razão, D’Anjou. É o que faremos. Somente alguns poucos ficarão
sabendo, aqueles que gozam de inteira confiança, e o vigiaremos a todo
instante. Raposa velha, quero ver quem é o mais esperto.
Naquela mesma noite reuniram-se na tenda real para se divertirem,
como de hábito. Presentes os mais íntimos, apenas os membros da
nobreza, comandantes dos exércitos das diversas regiões e oficiais.
No acampamento, ao redor das fogueiras, os soldados conversavam
animadamente.
Logo ao adentrar a tenda real o duque de Bouillon notou algo de
estranho no ambiente.
Sua Majestade, Filipe II, que dialogava com o Senhor D’Anjou,
defendendo um ponto de vista com entusiasmo, ao vê-lo, parou de falar.
Correspondeu o rei à sua reverência com um leve gesto de cabeça,
displicente. O duque corou ao ver o tratamento que lhe era dispensado, e à
sua astúcia não passou despercebido o olhar de cumplicidade e
entendimento entre D’Anjou e o rei.
Também notou que os outros nobres e cavaleiros presentes viram o que
se passara e cada um reagiu de maneira particular e própria. O duque
corou novamente. A atitude do rei equivalia a ter caído em desgraça.
Na Corte era assim. Qualquer gesto era suficiente para elevar a criatura
às culminâncias da glória pelo favor real, mas também qualquer atitude de
desagrado do soberano lançava a vítima ao descrédito e ao ostracismo.
Ninguém desejava comprometer-se perante o rei e afastavam-se
rapidamente do infeliz que caíra em desgraça.
O duque sabia disso e, mentalmente, procurava com ansiedade
encontrar o motivo para a atitude de Filipe e também, febrilmente,
buscava arquitetar alguma forma de modificar o rumo dos
acontecimentos.
Sentado, com uma taça de vinho nas mãos, ele meditava: “Canalhas!
Seus amigos mal o cumprimentaram, já considerando-o como carta fora
do baralho”.
Observando o que se passava ao seu redor buscava uma saída para a
situação, quando viu Lucas que, pouco mais além, junto a um grupo de
rapazes, ria de alguma coisa engraçada. Nesse instante o genro olhou para
ele disfarçadamente e o duque percebeu que o jovem conde se divertia
com a sua infelicidade.
Não seria motivo de chacotas. Dentro de si sentiu a raiva crescer.
Astuto como uma raposa, chegou à conclusão de que o próximo passo
teria que ser seu. Necessitava tomar uma atitude que provasse sua
lealdade e o colocasse nas boas graças reais novamente.
Teve uma ideia que o elevaria aos olhos do soberano e, ao mesmo
tempo, o livraria da presença de Lucas. Levantou-se e o seu grande porte
pareceu avultar-se mais ainda naquele ambiente iluminado pelas tochas.
– Majestade! – disse com voz altissonante.
Filipe II, que conversava com o conde de Lozanne, virou-se, surpreso.
Franziu o sobrolho, levantando uma sobrancelha, hábito muito seu e que
nada pressagiava de bom, admirado da ousadia do duque de Bouillon.
– Majestade! repetiu o duque. – Tenho algo muito grave para
denunciar-vos e quero fazê-lo em público para que todos tomem
conhecimento.
O rei fez um gesto, ordenando-lhe que prosseguisse.
– Existe entre nós um traidor infame e sujo.
O rei olhou discretamente para D’Anjou como a dizer: – O homem tem
fôlego! Vejamos aonde quer chegar.
– Senhor de Bouillon, percebeis a enormidade e a importância de tal
acusação? – perguntou Filipe Augusto.
– Sim, Majestade – assentiu, inclinando-se numa reverência respeitosa.
– Mas não posso permanecer calado.
Com olhar duro o rei ordenou-lhe: – Prossegui.
– Já de algum tempo venho desconfiando que existe um traidor entre
nós, pois os ingleses sabem sempre dos nossos passos. Mas, há dois dias
obtive a confirmação das minhas suspeitas. Meu escudeiro seguiu alguém
e ouviu quando se encontrou com um soldado inimigo, dando-lhe nossa
posição e as últimas resoluções tomadas.
Os presentes, surpresos e chocados com a narrativa do duque, gritaram:
– O nome! O nome! Queremos o nome do traidor!
– Sim, Senhor Duque! Dizei-nos o nome desse traidor infame! – disse o
rei, colérico, admirado da ousadia do outro.
Virando-se, o duque espraiou seus olhinhos apertados e, estendendo o
braço acusador, apontou:
– Ei-lo! Lucas de Montpellier!
Atônito, Lucas sentiu que o chão lhe faltava e que tudo girava à sua
volta. Afinal, gritou:
– Eu?!... mas, isso é uma infâmia!
O rei, pálido e tenso, questionou:
– Senhor! Acusais um membro da vossa família?!...
– Sim, Majestade! Um membro da minha família, é verdade, mas, acima
de tudo, um traidor da França. Minha filha perdoar-me-á, tenho certeza,
pelo amor que tem à pátria.
Ricardo de Montpellier, branco de susto, dirigiu-se ao acusador:
– Senhor, meu filho seria incapaz de tal baixeza. Tereis que prestar
contas dessa infâmia.
– Às armas, Senhor! – disse o conde, levando a mão à espada.
Mas Lucas, já senhor da situação, se interpôs entre o pai e o duque,
bradando:
– Não, meu pai! Foi a mim que ele acusou barbaramente! É a mim que
terá que prestar contas! – e, dirigindo-se ao acusador: – Para fora, Senhor!
– Um momento, Senhores – interferiu o rei. – Senhor de Bouillon,
dissestes que vosso escudeiro é testemunha.
– Sim, Majestade. Permiti que venha a vossa presença.
O rei concordou, e Bouillon disse algo ao ouvido de Túlio e o trovador
saiu, voltando pouco depois acompanhado de um homem moreno, de
cabelos pretos e feições tipicamente semitas. Era Ezequiel, o filho do velho
Joachim, que acompanhara o exército alistando-se como mercenário, após
ser solto das masmorras do castelo de Montmorency por Túlio, a mando
do duque de Bouillon.
Já avisado e instruído por Túlio, o escudeiro repetiu e confirmou as
palavras do duque.
– Mentes, miserável! – gritou Lucas, apavorado e no auge da
indignação.
E, sem que alguém pudesse impedir, desembainhou a espada e cravou-a
na garganta do judeu, que caiu numa poça de sangue, para espanto geral.
– Isto, miserável, só confirma tua culpa! – bradou o duque.
– Sou inocente do crime a que me imputam! – gritou Lucas.
– O que fazias altas horas da noite fora do acampamento, ainda ontem?
– questionou Túlio.
Surpreso, e percebendo que cada vez se afundava mais, Lucas
respondeu a verdade:
– Procurava uma pequena joia de família, de grande valor estimativo e
que perdi há alguns dias.
Era a oportunidade que Charles aguardava. Retirando das algibeiras o
cordão de ouro perguntou com voz pausada:
– Será esta a joia?
Ao ver o pequeno objeto nas mãos de seu amigo Charles, Lucas
empalideceu repentinamente. No semblante irritado e acusador do amigo
percebeu que ele descobrira seu segredo, sabia de tudo.
– Sim, é esta joia que procurava – respondeu melancolicamente.
Tudo estava perdido. Sabia que o duque de Bouillon era excelente
espadachim e que pereceria nas mãos dele. Mas, se isso não acontecesse,
sabia que Charles lhe pediria uma satisfação e teria que dá-la.
Resoluto, apanhou a espada e gritou:
– Às armas, Senhor! Exijo uma reparação!
Bouillon desembainhou sua espada e, em pouco tempo, só se ouvia o
ruído das lâminas. A superioridade do duque logo ficou patente.
Prolongou por mais tempo a luta apenas para divertir-se, como o gato faz
com o rato. Nos lábios, um sorriso de deboche e desprezo.
Logo percebeu que seu oponente estava exausto e não aguentaria
muito tempo. Deu-lhe a estocada final.
No peito do rapaz se abriu uma roda de sangue e ele caiu no chão,
exânime.
Ricardo de Montpellier se jogou sobre o corpo do filho como louco. Os
amigos se aproximaram e perceberam que ainda estava com vida.
Removeram-no para sua tenda, chamando o médico rapidamente.
O jovem Lucas de Montpellier agonizava. O médico sacudiu a cabeça,
alegando nada poder fazer. O ambiente era de tristeza e dor. O pai,
sofredor e aflito, mantinha-se junto à cabeceira do filho, que representava
todas as suas esperanças e o orgulho da sua raça. Seu nome ilustre
pereceria com ele, pois não deixava herdeiros.
Chamado, frei Felipe se postou junto ao ferido para prestar-lhe a
extrema unção.
A sós com o agonizante o religioso fitou-o. Aquele rapaz elegante e ágil,
amante dos esportes e fascinado pela vida, perecia numa tenda qualquer,
num recanto qualquer do solo francês, numa guerra idiota e distante da
sua terra natal e dos seus familiares.
Felipe sentiu-se de volta à infância, quando, ao lado do irmão menor,
percorriam os campos cobertos de flores, brincavam com os animais e
entregavam-se aos folguedos próprios da idade. O perfil de madona de sua
mãe adotiva surgiu coroado com as luzes da saudade.
Quem sabe evocado pelas suas lembranças, ouviu a voz de Lucas, num
murmúrio:
– Pierre... Pierre... onde estás?
Lágrimas de emoção brotaram nos olhos do frade. Nada mais pensou no
momento. Mágoas, tristezas, ficaram para trás. À sua frente estava seu
irmão, chamando-o, desejando sua presença.
Retirou o capuz que conservava sempre cobrindo a cabeça e,
escondendo-lhe parte do rosto, falou, com voz trêmula de emoção:
– Lucas, aqui estou! Reage, Lucas! Luta pela vida que se escapa do teu
corpo! Sou eu, teu irmão Pierre, que te pede.
Das brumas da inconsciência que já o envolvia, Lucas ouviu aquela voz
que vinha como que de uma enorme distância.
Abriu os olhos lentamente e procurou ao seu redor. Seria verdade?
Ouvira a voz de Pierre. Estaria sonhando ou seu estado era tão ruim que já
estava a ouvir defuntos?
– Lucas, sou eu, Pierre!
– Pierre?!... És tu mesmo?
– Sim, meu irmão. Estamos novamente juntos.
– É muito... tarde... para mim. Não deixes nossa... mãe... sozinha.
Uma golfada de sangue jorrou da boca do ferido. Percebendo que Lucas
dizia suas últimas palavras Pierre tomou-lhe a mão, chorando
copiosamente.
Mas a alma de Lucas já se desligara do corpo material, partindo para a
Realidade Maior, onde iria tomar consciência da sua situação, para
prosseguir na trajetória de acesso à iluminação superior, buscando
aprender e lutar, trabalhar e servir para sublimar seu espírito imortal.
Teria de enfrentar suas responsabilidades, o uso do livre-arbítrio e as
sementes que plantara.
Consciente já da sua posição de sacerdote, Felipe se entregou às suas
orações. Em seguida, colocando novamente o capuz na cabeça, chamou os
outros que aguardavam do lado de fora da tenda.
– Ele acaba de expirar. Que o Senhor o receba em Seu reino e o conserve
em Sua paz.
Ricardo de Montpellier foi o primeiro a entrar, jogando-se alucinado de
dor sobre os despojos carnais do filho querido.
Aquele que fora um dia Bruno di Castelverde chorava hoje a morte do
filho, como pranteara outrora a morte do amigo Godofredo, conde de
Ravena.
Algumas horas depois, já preparado conforme os costumes da época, e
atendendo às dificuldades do momento, pois estavam longe de algum
povoado, o corpo daquele que fora Lucas, conde de Montpellier, era velado
em câmara ardente pelos amigos e companheiros.
O ambiente estava tenso. As circunstâncias da morte do jovem fidalgo
eram estranhas e lançavam lama sobre o nome ilustre dos seus
antepassados.
Os soldados não sabiam em que acreditar. Não supunham o jovem
oficial capaz de um ato de traição e, por outro lado, ficara a acusação
terrível do poderoso duque de Bouillon.
As notícias se espalharam rapidamente e, por isso, o ambiente estava
repleto de murmúrios e de cochichos. Não obstante as terríveis
ocorrências da noite, todos os presentes se admiraram quando viram
entrar na tenda, que fora transformada em câmara mortuária, a figura
imponente de Sua Majestade, Filipe Augusto.
A presença do rei naquele local equivalia a uma reabilitação pública do
morto. Tornava patente a todo o exército francês que o rei não acreditava
na culpabilidade do infeliz rapaz que ali jazia.
Foi, portanto, com o júbilo possível à ocasião que Ricardo de
Montpellier, ao notar a presença real que assomara à entrada da tenda,
levantou-se e prosternou-se aos pés do rei, sem nada dizer, mas com o
semblante lavado de lágrimas.
Filipe Augusto tocou-lhe o ombro num gesto de compreensão muda e
aproximou-se da mesa que servia de catafalco. Fitando o jovem Lucas, já
com o palor cadavérico a envolver as feições, disse, intrigado:
– Curioso! Dir-se-ia que o jovem Lucas está a sorrir! Interessante...
Após estas palavras o rei retirou-se, fazendo antes ligeiro sinal ao
Senhor de Bonnet, que sussurrou algo ao ouvido do Senhor de Lozanne, e,
em seguida, deixaram o recinto.
Realmente, Lucas parecia trazer leve sorriso estampado na face, o que
intrigara os presentes. Somente frei Felipe, a um canto da tenda, fingindo-
se entregue às suas orações, sabia o porquê daquele ar de satisfação no
semblante do morto, não obstante as circunstâncias em que ocorrera a sua
morte.
O jovem conde de Montpellier, com efeito, morrera feliz ao saber que
reencontrara o irmão e que este não estava morto, conforme a família
supunha.
Para Pierre também fora um encontro com a realidade. Naquele
instante o coração de frei Felipe, conservado em vinagre e azedume,
tocou-se de novas emoções. Não mais ódios, ressentimentos e mágoas.
Apenas a satisfação de ter conversado com o irmão, que sempre fora tão
querido e que as contingências da vida os haviam separado.
Ao abraçar Lucas pela última vez, Pierre sentiu uma emoção profunda
e, sem saber como, das brumas do passado lhe veio a certeza inabalável de
que, algum dia, em algum lugar, Lucas tinha sido seu filho. Vagas
reminiscências afloraram à sua mente, fazendo com que se recordasse de
Nika, seu filho, e das ligações afetivas que se estabeleceram naquela época,
modificando as relações de animosidade existente entre ambos até então.
Fora o início de uma nova fase que se consolidava agora neste final de
existência.
Para Ricardo, contudo, o fato permaneceria envolto em mistério, e
aquele tênue sorriso ficaria a intrigá-lo por muito tempo ainda.
Entrementes, longe da tenda mortuária, alguns homens se reuniam em
conciliábulo. Em voz baixa conversaram por algum tempo. Depois, tão
discretamente quanto chegaram, saíram para a escuridão da noite como
sombras.
O acampamento estava em silêncio. Era noite alta e os primeiros
albores da aurora não tardariam a surgir. Os soldados dormiam e somente
se ouvia o estalido do fogo crepitando nas fogueiras ainda acesas, e um ou
outro ruído de animal na mata.
Envoltos em amplas capas, caminharam quais sombras, aproximando-
se da tenda do duque de Bouillon, onde perceberam claridade e sons de
vozes.
Por uma fresta puderam ver o interior, onde dois homens conversavam
em voz baixa. Seus risos dominavam o recinto, e já estavam embriagados
pelo vinho tomado em abundância.
Vangloriavam-se dos seus feitos e regozijavam-se com a morte do
conde de Montpellier, cujo desaparecimento festejavam.
Eram eles: o duque de Bouillon e Túlio, o menestrel.
Na escuridão da noite os homens encapuçados aguardavam. A um sinal
daquele que era o chefe, os homens invadiram o recinto e dominaram os
dois, não obstante a resistência que opuseram. Porém, enfraquecidos pelos
vapores da bebida, e não esperando o ataque, em pouco tempo foram
amordaçados.
A luz da vela foi apagada e saíram levando os dois cúmplices
amarrados. Apavorados, os presos tentavam dizer algo, através de
grunhidos, mas em vão; seus atacantes não abriram a boca, mantendo
silêncio sepulcral.
Penetraram na mata e andaram durante algum tempo até que o chefe
falou:
– Alto! Aqui está bem. Mesmo se gritarem ninguém os escutará.
Tiraram as mordaças dos infelizes prisioneiros e o duque pôde afinal
gritar, em pânico:
– O que se passa? Por que nos prendestes? Exijo uma explicação!
Uma voz autoritária e firme respondeu, resoluta:
– Não estás em condições de exigir nada. Pagarás agora por todos os
teus crimes.
Vendo que a situação era realmente perigosa, Bouillon sugeriu, fazendo
a mente trabalhar rápido:
– Vamos conversar! O que desejais? Ouro? Se for, dar-vos-ei tudo o que
quiserdes. Dar-vos-ei tudo o que tenho...
Uma gargalhada explodiu:
– Vede como o nosso grande homem é corajoso. Não se peja de suplicar
por sua vida, como o faria o mais reles homem do povo.
Fez uma pausa e ordenou:
– Amarrem-nos às árvores.
Os outros encapuçados obedeceram e logo os infelizes estavam bem
manietados.
– Traidores! Covardes traidores da pátria. Por quanto nos venderam aos
ingleses? – disse alguém sem se conter.
– Não somos traidores. Estamos inocentes – gritou Bouillon.
– Cala-te! – ordenou o chefe.
Com a espada na mão deu um golpe rápido e ouviu-se um grito de dor.
Bouillon sentiu que o sangue escorria sujando-lhe as vestes.
– Isto é um aviso. Da próxima vez não será apenas uma orelha que
cortarei – afirmou o chefe.
Em pânico, Túlio, que era o mais fraco e pusilânime e que só fazia
chorar e lamentar, gritou, apavorado:
– Não me mutileis. Contar-vos-ei tudo o que sei. Poupai-me a vida.
– Desamarrem-no! – novamente fez-se ouvir a voz do chefe.
Em choro convulsivo Túlio foi retirado da árvore.
– Cão maldito! – berrou Bouillon – pagarás caro por isso.
– Fala! – ordenou o chefe.
E Túlio, aos poucos, foi falando tudo o que sabia, acusando Bouillon.
– Lucas era inocente. Foi apenas uma vítima desse homem nefando,
assim como eu. Ele me obrigou a obedecer-lhe, ameaçando-me com a
morte. Seu escudeiro, Ezequiel, é que levava as mensagens aos ingleses.
Nada fiz de mal. Poupai-me a vida e lhes poderei ser muito útil.
Ajoelhado e de mãos postas, dirigia-se a cada um dos seus algozes,
esperando vislumbrar uma réstia de compaixão em algum deles.
Permaneciam, porém, impassíveis.
Parecendo-lhe reconhecer o amigo Charles de Montmorency num
daqueles homens embuçados, apelou para a sua astúcia:
– Charles, meu amigo, pois és tu mesmo, tenho certeza. Ajuda-me e
revelar-te-ei um segredo muito importante.
Percebeu que aquele a quem se dirigia titubeou, indeciso.
– Poupa-me a vida e não te arrependerás.
– Fala, infeliz. O que sabes que possa interessar-me?
Era realmente o conde de Montmorency.
– Quero antes que jures, pela tua honra, proteger-me a vida.
– Não estás em condições de exigir nada, poltrão. Mas seja. Juro-te, à
minha fé de cavaleiro que, se tuas informações forem realmente tão
importantes quanto dizes, poderás sair em liberdade.
– Muito bem. Confio em ti. Sei quem matou teu ilustre pai.
O duque, apavorado e perplexo, fazia vãos esforços para soltar-se das
amarras:
– Cala-te, infeliz. Não digas mais uma palavra!
Túlio virou-se para o duque de Bouillon com ar de vencedor:
– Temes, desgraçado, pela tua vida, não é assim? Sempre manobraste
todo mundo a teu bel-prazer. Agora basta! Não ficarás impune!
E, virando-se para Charles, acusou peremptoriamente:
– Foi este homem quem matou teu pai: o ilustre e poderoso Duque
Segismundo de Bouillon!
Com os olhos esbugalhados, Charles fitava o duque.
– Vi com meus próprios olhos. Estava no jardim no momento e vi
quando teu pai, o ilustre conde Henri de Montmorency, chegou, e logo em
seguida ouvi o barulho das espadas. Em pouco tempo o conde jazia no
chão, morto, e vi quando o duque deixou sorrateiramente o local,
fechando-se em seus aposentos.
Pela cabeça de Charles passavam mil pensamentos. Pequenas
lembranças e coincidências que não pareceram importantes na ocasião e
que agora ganhavam vulto. Lembrou-se de Marianne. Então era o infame o
amante desconhecido de sua mulher?
Dando um urro terrível, Charles desembainhou a espada e arremessou-
se sobre o duque, cravando-lhe a lâmina no peito.
Por um momento todos ficaram estupidificados. A surpresa com a
revelação de Túlio e a consequente e rápida ação de Charles paralisaram a
todos os presentes. Mas foi por um instante só.
Ao som dos estertores do duque de Bouillon, que agonizava, enquanto o
sangue gorgolejava pela ferida aberta em ânsias inenarráveis, Túlio,
aproveitando-se do momento de descuido, fugiu, correndo e internando-
se na floresta.
Imediatamente o conde Ricardo de Montpellier, um dos embuçados,
correu em seu encalço.
Nesse ínterim, um dos homens do famigerado Bouillon, que percebera
que ele não estava na tenda, procurou-o cuidadosamente. Não o
encontrando no acampamento adentrou-se pelo mato em busca do chefe.
Ouvindo ruído de vozes, aproximou-se e, surpreso, viu o duque amarrado
a uma árvore. Como estivesse sozinho, esperou a melhor ocasião para
salvar os prisioneiros. Por isso, acompanhou todo o desenrolar dos
acontecimentos, até que resolveu intervir, ao ver Túlio solto. Já seriam
dois e dois é melhor do que um. A ação violenta de Charles, porém,
encheu-o de ódio, e agrediu o encapuçado mais próximo, o Senhor
D’Anjou, aplicando-lhe tremendo golpe na cabeça com a manzorra
fechada, que teve o impacto de uma arma mortífera, derrubando-o ao
chão, inconsciente.
Imediatamente, porém, dois outros encapuçados vieram em seu
socorro e travou-se uma luta feroz. Aquele homem rude e violento estava
disposto a vender caro a sua vida. Lutava como um leão e, em pouco
tempo, os dois adversários jaziam por terra.
Nisto surgiu Ricardo que, após alcançar e matar Túlio, voltava da
floresta e vendo os amigos no chão, mortos, lançou-se sobre o comparsa
do duque, o qual, não o tendo visto aproximar-se pelas costas, foi pego de
surpresa, sendo atravessado por um punhal que o conde trazia sempre
consigo.
O saldo desse acontecimento nefasto foi aterrador. Morreram cinco
pessoas, dois fiéis amigos do rei, que ficou realmente inconformado com
as perdas: o Senhor de Lozanne e o Senhor de Bonnet.
Após as trágicas ocorrências procuraram prestar ajuda àqueles que
estavam feridos, entre eles o Senhor D’Anjou.
Escondido entre as árvores a uma distância conveniente, frei Felipe
que, por acaso, vira o movimento desusado no acampamento e seguira o
grupo, acompanhou toda a tragédia. Tudo corria conforme seus desejos e,
sem sujar as mãos, seus inimigos iam caindo um por um.
Com exceção de Charles e de Ricardo, este que fora seu pai adotivo e a
quem odiava, os outros estavam mortos.
Voltou discretamente para o acampamento, sabendo que não tardariam
a procurá-lo para abençoar os mortos.
Algum tempo depois o acampamento estava em polvorosa. O rei, que
aguardava notícias, foi cientificado do ocorrido, ficando profundamente
deprimido com a morte dos seus leais e valentes súditos.
Estabeleceu-se um clima de luto no acampamento em respeito aos
mortos. Os traidores foram enterrados sem qualquer consideração, com
exceção do duque Segismundo de Bouillon, que mereceu enterro digno
pela nobreza de nascimento e posição que ocupara no governo de Filipe
Augusto.
Não obstante a repugnância que causava, o assunto foi analisado numa
reunião, após a qual se resolveu dar ao duque o que merecia por direito,
prestando-lhe honras fúnebres condizentes com sua posição.
Na verdade, o duque comandava um grande contingente de soldados e,
se existiam aqueles que não gostavam dele, uma grande parte lhe era
absolutamente fiel e o venerava pelas suas habilidades táticas e guerreiras.
Contar a verdade neste instante, em que se preparavam para um
confronto com os ingleses, seria destruir o moral das tropas e caminhar
para a derrota, pois ficariam em péssimo estado de espírito e não lutariam
com o necessário ardor.
Foi proposto então, já que poucas pessoas tinham o conhecimento da
verdade, e aquelas que poderiam ser contra estavam mortas e, portanto,
incapazes de reagir e desmentir, que fosse contada uma história diferente.
Dir-se-ia, na verdade, que o duque de Bouillon era um valente que, em
confronto com alguns ingleses que se aventuraram a espionar o
acampamento francês, perdera a vida, para proteger a vida deles, seus
comandados, e a de todo o contingente, inclusive a vida preciosa de Sua
Majestade, Filipe Augusto. Isso, ao invés de derrubar o ânimo da
soldadesca, iria produzir o efeito contrário, incentivando-os à luta e
aumentando-lhes o ódio aos adversários.
E assim foi feito. Embora a contragosto, aqueles que conheciam a
realidade dos fatos também prestaram ao duque de Bouillon honras
militares. Idêntico tratamento receberam os três nobres cavaleiros
falecidos: conde de Lozanne, de Bonnet e Lucas de Montpellier, com toda a
pompa possível naquelas circunstâncias.
Frei Felipe prestou-lhes os sacramentos religiosos e abençoou aquelas
criaturas que entravam agora numa outra realidade, prometendo-lhes o
céu beatífico, conquanto interiormente estivesse satisfeito.
Apenas ao rezar sobre os restos mortais daquele que fora seu irmão,
emocionou-se, enviando-lhe pensamentos sinceros de paz e reconforto
espiritual.
Os despojos, para não ficarem enterrados em terra estranha, longe de
seus familiares e das regiões de origem, foram incinerados, e as cinzas
colocadas em escrínios, para serem posteriormente entregues às famílias.
Algum tempo depois o acampamento readquiria o aspecto normal.
Nada faria supor, àquele que chegasse repentinamente, o drama que
ocorrera horas antes. Apenas três cruzes e montinhos de terra indicavam
que houve enterros ali. Nas sepulturas de Ezequiel, de Túlio e do outro
comparsa do duque, nem uma palavra, nem um sinal para identificar
quem estava enterrado naquele local.
As tropas se prepararam para prosseguir, recebendo ordens de levantar
acampamento.
Na madrugada seguinte aos enterros, mal clareava o dia, o exército se
colocou em marcha.
Capítulo XX - Sofrimento materno

No Castelo de Montpellier a vida transcorria tranquila e monótona. O


tempo passava e as notícias não vinham. Ficava no sul, e os combates se
realizavam no norte do país; a distância era muito grande, dificultando as
informações. Apesar disso, ficava-se sabendo, vez por outra, o que estava
ocorrendo por viandantes que, de passagem pela região, pediam pousada
no castelo; ou por mercadores que, a despeito da guerra, percorriam o país
vendendo seus produtos.
Com o passar dos dias e dos meses a vida foi retomando seu curso
normal.
Felizmente o Conde Ricardo de Montpellier tinha um bom intendente
que, a par de todos os problemas e necessidades da propriedade, agia com
correção e discernimento, tomando as atitudes adequadas. Quando o
assunto era mais grave, ele informava à condessa Louise e perguntava-lhe
o que deveria fazer nesse caso. E a Senhora, invariavelmente, questionava:
– O que achas que faria o Senhor meu marido nesta circunstância?
E o intendente, rodando o chapéu nas mãos, informava que o conde,
provavelmente, faria isso ou aquilo. E ela lhe respondia com sorriso
ameno:
– Pois então, Miguel, faze assim também.
À força de repetir-se este diálogo o empregado já quase não consultava
a Senhora, sabendo que o desejo dela era se fizesse exatamente o que o
marido apreciaria.
Com tudo isso, Louise passou a entreter-se cada vez mais com os
problemas internos da casa, para passar o tempo. Nas horas de lazer,
dedicavam-se, ela e a hóspede, Clarissa de Montmorency, aos bordados
finos e tapeçarias, verdadeiras obras de arte.
A maior parte do tempo, porém, dedicavam-se ao pequeno Augusto
que, na graça dos seus primeiros anos, exigia-lhes toda a atenção.
Clarissa era uma avó amorosa e no garoto sentia um pedaço do filho
querido do qual nada sabia, nem como e onde se encontrava. Era como tê-
lo novamente criança em seus braços, dependente de seu carinho e
atenção.
Louise também afeiçoara-se muito ao garoto que, vivo e inteligente,
alegre e brincalhão, fazia a alegria da casa. Também ela sentia saudades do
marido e do filho distante, Lucas, a quem amava com entranhado amor.
Às vezes Louise sentia os olhos úmidos ao ver o garoto brincando
absorto com seus brinquedos. O coração se apertava e um suspiro
profundo exalava do peito.
– Querida amiga, estás melancólica hoje! – repreendia-a Clarissa com
suavidade.
– É verdade, minha querida. É verdade. Augusto lembra-me muito a
época em que esta casa vivia cheia de risos e de alegria, quando possuía
em torno de mim os filhos da minha alma, e bastava-me esticar os braços
para apertá-los de encontro ao peito. Hoje nada tenho. Um filho
desapareceu pelo mundo e desespero-me sem saber seu destino. O outro,
bem como meu marido, encontra-se guerreando. Sabe Deus como estão e
se um dia voltarão com vida a este lar!
A outra suspirou, depondo o bordado no regaço, com os olhos perdidos
no vazio.
– Tens razão. Sofro muito também sem saber o que estará acontecendo.
Dia após dia espero receber notícias que não vêm. Um dia passa, seguido
de outro e mais outro, e a inconformação e a tristeza vão me envolvendo.
Tu ainda possuis teu marido, mas eu me encontro viúva e desamparada. Se
meu querido Charles vier a me faltar não sei o que será de mim. Há horas,
Louise, em que temo perder a razão.
A dona da casa colocou a mão dedicadamente sobre o braço da outra,
tentando consolá-la:
– Não podemos nos desesperar. Tenhamos confiança, Clarissa. Esta
guerra não durará para sempre, por certo. Confiemos em Deus, que não
nos deixará ao desamparo. Nossas orações estão sendo ouvidas, acredita.
Clarissa limpou as lágrimas já mais confiante:
– Tens razão. É preciso ter fé.
– Isso. E depois, temos tanto trabalho a fazer, existem tantas
necessidades a sanar. Lembras-te do que frei Victor nos falou? Com a
guerra e os homens longe, muitas famílias ficaram completamente sem
recursos. É preciso fazermos algo por elas.
– Acreditas mesmo nisso! Não gosto de lidar com “essa gente”. São
sujos e cheiram mal – afirmou Clarissa, fazendo um muxoxo.
– São pessoas como nós, minha querida, apenas tiveram a infelicidade
de nascer no meio da pobreza.
– Pois sim! Tuas ideias de igualdade me repugnam. Jamais considerarei
um plebeu como meu igual. Temos nobreza de nascimento e nossas
famílias são importantes no Reino. Queres comparar nosso sangue azul
com o “deles”?
Louise sorriu, divertida, retrucando:
– Não vejo essa diferença que tanto apregoas. Se nos despirmos a todos
não terão diferenças nossos corpos. E o sangue azul de que falas, se
colocado lado a lado com o sangue de um camponês, será semelhante
àquele.
– Tens ideias perigosas, minha amiga. Divagas, por certo. A falta de
companhia e de ambiente nobre, a troca de ideias com outras criaturas do
nosso nível, devem ter te influenciado a razão a ponto de te esqueceres
que és de nobreza ilustre.
– No entanto, minha amiga, nem sempre demonstras tal rigor de
atitudes. Com Marianne, por exemplo, não agiste assim tão cheia da
preconceito, não é verdade? Aceitaste-a como membro da tua família, e
ela te deu um neto adorável, não deixando por isso de ser uma jovem do
povo.
Clarissa deu de ombros, justificando-se:
– Com Marianne a coisa é diferente. A princípio, procurei-a apenas para
satisfazer a um capricho de meu filho Charles. Demonstrou, porém, pela
correção das maneiras, a elegância natural de que é dotada, que era
diferente da plebe. Além disso, tinha muita facilidade para aprender e em
pouco tempo não se distinguiria Marianne de uma aristocrata de berço.
– É verdade. Marianne é uma criatura diferente e nisso concordo
contigo. Quanto ao resto, Clarissa, pode ser que tenhas razão. Não quero,
porém, discutir contigo. Prezo muito a nossa amizade para desejar criar
antagonismos entre nós. Mudemos de assunto.
E continuaram palestrando, esquecidas do tempo, trocando ideias e
relembrando o passado. Muitas vezes a lembrança de Marianne, como
nesse momento, vinha preocupar-lhes os dias, pelo desconhecimento do
seu paradeiro e pela falta de notícias. Acreditavam, contudo, que estivesse
junto com Charles.
A única nota dissonante era Régine que, impaciente e mal-humorada
pela falta de distrações, entrava sempre em choque com Louise e Clarissa.
Sem ter o que fazer resolveu, após algum tempo em companhia de ambas,
ir para a casa dos pais.
– Achas prudente viajar nesta época tumultuada? – replicou Clarissa,
preocupada.
– Nada vejo de mal. Vegeto aqui no fundo desta província. Desejo ir
para a Corte, onde por certo não faltarão distrações dignas da nossa
posição, não obstante os percalços da guerra. Com certeza nem todos
foram para as frentes de batalha, e os divertimentos prosseguem, sem
falar que não pretendo passar o inverno neste buraco.
Profundamente magoada com as palavras rudes e a falta de polidez da
malcriada Régine, e sem poder demovê-la do seu intento, Louise arrumou-
lhe uma pequena escolta, uma carruagem e, numa manhã fria de outono,
despediram-se dela, que partiu satisfeita rumo a Paris.
A bem da verdade, sua ausência não causou maiores tristezas. Grosseira
e mal-educada, conquanto a nobreza da linhagem, Régine conseguia
tornar o ambiente insuportável, com suas reclamações e azedume
constantes.
Sua partida proporcionou a todos uma paz que havia muito não
desfrutavam. A tranquilidade voltou a reinar no castelo, e até Augusto
ficou mais dócil e meigo. Régine detestava o pequeno e não perdia
oportunidade de irritá-lo e fazê-lo chorar.
Louise saía todas as manhãs, acompanhada de um servo, levando uma
caixa com medicamentos, roupas e alimentos. Percorria os casebres,
levando a consolação e a paz. Via os doentes, tratava de suas feridas, fazia
partos e distribuía alimentos e roupas, conforme a necessidade da família.
A princípio ia só. Clarissa, apegada às suas ideias, não desejava
compartilhar das atividades da outra. Mas, com o passar do tempo, vendo
que Louise não desistia do seu intento e que voltava para casa exausta,
mas corada e com os olhos brilhantes de satisfação; e, cansada de ficar
sozinha no castelo sem ter o que fazer, um dia Clarissa resolveu
acompanhá-la. Afinal, ocuparia o tempo saindo um pouco e passeando
pelos arredores.
Aos poucos foi acostumando-se com a ideia e, à custa de repetir todos
os dias aquela rotina, acabou gostando. Passado algum tempo aguardava
com ansiedade a hora da “ronda”, como a chamavam. Não disse nada a
Louise que estava gostando do trabalho, mas a outra não deixou de
perceber a dedicação e disposição com que se lançava à atividade.
Com sorriso discreto Louise a observava enquanto Clarissa conversava
com as crianças, ou quando dava comida a um doente incapaz de
alimentar-se sozinho. Cheia de íntima satisfação, agradecia a Deus a
mudança que se operava na amiga de tantos anos.
E assim passavam-se os dias e os meses nos domínios de Montpellier,
tranquilos e cheios de esperança.
Certa tarde encontravam-se repousando das atividades diurnas, após o
jantar, que fora delicioso, conquanto simples, bem ao gosto das senhoras.
Louise tocava uma espécie de cravo, embalando-se aos acordes de
velhas canções, reminiscências de sua infância. O sol já se punha no
horizonte e seus últimos raios envolviam o ambiente em tonalidades
dourado-avermelhadas.
Nesse dia, especialmente, Louise se sentia angustiada; um aperto no
coração a deixava tensa e preocupada. Com voz entrecortada pela emoção,
cantava e mais parecia o gorjeio de alguma avezinha ferida.
Clarissa, com um bordado entre as mãos, observava a amiga, suspirando
vez por outra, mas sem coragem de romper o silêncio, respeitando os
sentimentos da companheira. Havia dias que Louise estava assim, mas
nessa tarde parecia mais angustiada ainda.
Repentinamente ouviram ruído de cascos de cavalo e um relincho
cortou os ares. Como raramente aparecia alguém no castelo e
especialmente àquelas horas, levantaram-se incontinenti, correndo
céleres para o saguão.
Um mensageiro, coberto de poeira, cansado da longa viagem, chegava
ao castelo. A criada já se dispunha a conduzi-lo para junto da Senhora,
quando percebeu a aproximação de ambas, que desciam as escadarias.
– Senhora Condessa, chegou um mensageiro – informou inutilmente.
Vendo as damas, o portador adiantou-se, fazendo uma mesura.
– Trazes notícias do conde de Montpellier, meu esposo? – perguntou
Louise com voz trêmula.
– Sim, Senhora Condessa. Ei-las – disse, estendendo a mão e
entregando-lhe um pergaminho enrolado e preso com uma tarja preta.
Louise empalideceu e Clarissa abraçou-a, dando-lhe amparo.
Com mãos trêmulas, Louise leu a mensagem em que o conde lhe
notificava a morte do querido filho Lucas, omitindo os detalhes que
precederam o triste acontecimento para que a pobre mãe não sofresse
ainda mais. Escusava-se de não poder estar presente quando ela recebesse
a notícia, para consolá-la, mas a situação era grave e não poderia
abandonar seu posto no exército, sob pena de ser tido como desertor.
Mandava-lhe com o portador as cinzas do filho para que, conquanto
tivesse perdido a vida em terras estranhas, pudesse repousar em paz ao
lado da família e no lugar que sempre amara.
O mensageiro, ainda jovem, compreendendo a dor que acometia o
coração da condessa, aguardava contrito.
Quando a mãe acabou de ler a mensagem ele entregou-lhe um pequeno
escrínio em prata lavrada.
– Senhora Condessa, nós o estimávamos muito. Lucas era meu amigo e
lutamos juntos muitas vezes, lado a lado.
Louise agradeceu e ordenou à serva que servisse uma refeição ao rapaz
e lhe preparasse um quarto.
Em seguida virou-se, encaminhando-se para seus aposentos. Nada
disse. Não chorou nem se lastimou.
Nos dias seguintes permaneceu encerrada no quarto sem querer ver
ninguém. Não comia e não dormia. Apenas vegetava, agarrada ao
recipiente que continha as cinzas do querido filho Lucas.
A dor era tão grande que Louise não conseguia extravasá-la. Represados
os sentimentos, as emoções ameaçavam tirar-lhe a razão.
Sentada junto à janela ela olhava, sem ver, os campos que se estendiam
a seus pés e onde Lucas fora tão feliz. “Por que a guerra? Esse monstro
devorador e implacável de vidas humanas, jovens e promissoras? Por que
os homens se matavam uns aos outros por um punhado de terra?”
Daria tudo para que o tempo voltasse e Lucas ainda fosse criança,
amparado pelos seus braços amorosos. Deus lhe tirara tudo o que ela mais
amava: seus filhos. Nada teria razão dali por diante. Sua vida não teria
valor, nada por que lutar.
Só agora percebia o quanto fora feliz. Tivera a felicidade ao alcance das
mãos e deixara escapar. Culpava-se por não ter sabido proteger o filho.
Não deveria ter permitido que fosse para a guerra.
Lucas não fora feliz. Obrigado por questões financeiras a contrair
matrimônio com aquela megera, nunca tivera satisfação no casamento.
Régine nunca lhe dera um momento de paz, que dirá de prazer. Não
soubera dar-lhe um filho que, se existisse, agora viria preencher o vazio da
sua vida. Por vaidade, jamais desejara ser mãe, temerosa de enfear o corpo
bem feito.
Agora... agora Lucas se fora, e ela, que o amava tanto, não pudera estar
a seu lado nos derradeiros instantes nem fechar-lhe os olhos entoando
uma canção de ninar para que adormecesse tranquilo.
Louise ouvia baterem na porta e Clarissa a suplicar-lhe que abrisse, que
a deixasse compartilhar de sua dor, mas nada a tocava.
Até que Clarissa teve a ideia de levar o pequeno Augusto até a porta do
quarto. Suas mãos pequeninas deram leves batidas enquanto ele dizia com
sua vozinha infantil:
– Tia Louise, deixa Augusto entrar. Estou com saudades da Senhora.
Abre a porta, titia. Foi alguma coisa que Augusto fez que te deixou triste?
Augusto não fez por mal. Perdoa, tia Louise. Abre a porta...
E tanto o pequeno pediu e chorou que, tocada no mais profundo do seu
ser, Louise resolveu abri-la.
– Graças a Deus! – exclamou Clarissa, aliviada.
O menino se jogou no colo de Louise e abraçou-a apertadamente. Ao
sentir o calor do corpinho do garoto colado ao seu, o perfume dos seus
cabelos, Louise desatou em pranto convulsivo. Como uma represa que
transborda, as emoções explodiram em catadupas e um choro desesperado
a agitou toda.
O garoto, assustado, tentou soltar-se daquele abraço, sem entender a
razão daquele choro.
Louise se sentou numa poltrona e Clarissa a abraçou, tentando
transmitir-lhe consolação e carinho.
– Chora, minha querida. As lágrimas te farão bem. Coloca para fora tudo
o que sentes, tudo o que sofres.
Após essa explosão Louise adormeceu, depois de muito tempo de
vigília. Dormiu um dia e uma noite. Ao acordar já havia melhorado
consideravelmente.
Estava triste, calada, vez por outra deixava que as lágrimas lhe
banhassem o rosto, mas era um sofrimento mais tranquilo, mais suave. O
próprio excesso da dor fez com que ela se esgotasse, transformando-se
naquela morna apatia.
Nunca mais Louise voltou a ser o que era. Com o tempo a dor,
conquanto não tivesse desaparecido, mudara de forma. Alguns meses
depois Louise voltou às suas atividades na “ronda”, porém nunca mais lhe
viram um sorriso alegre no rosto sereno. Atendia a todos com paciência,
dedicação, contudo um véu de tristeza cobria-lhe o semblante, e o sorriso,
que fora outrora tão luminoso, agora era triste e apagado.
Em compensação, parece que passara a entender melhor a dor.
Demonstrava sempre ainda mais carinho nas atitudes, mais doçura no
atendimento, mais calor no olhar.
Capítulo XXI - Irmã Angélica

As horas se arrastavam lentas e monótonas. A estação invernal chegara


com todo o seu rigor e muitas atividades tiveram que ser abandonadas.
A neve cobria os caminhos dificultando o trânsito de todos aqueles que
tivessem que deixar o abrigo e o calor dos seus lares para se aventurarem
pelas estradas.
Olhando através da janela, irmã Angélica contemplava o jardim, onde já
não se viam mais as flores embelezando e alegrando o ambiente. A horta,
que tanto carinho recebia das irmãs e que lhes fornecia verduras e
legumes fresquinhos para o consumo diário, agora estava recoberta por
uma camada de gelo, como um branco sudário.
O frio se fazia intenso. As paredes nuas do convento, sem quaisquer
atavios, eram gélidas; o piso de pedra deixava passar a friagem e, não raro,
muitas irmãs, nessa época do ano, ficavam gravemente enfermas. Algumas
até faleciam em consequência das doenças respiratórias e pulmonares;
outras sofriam de reumatismos, artrites e toda a sorte de males que
acompanham o frio intenso.
Os corredores se apresentavam desertos e as monjas faziam o
estritamente necessário.
A sineta do convento soou lugubremente no silêncio. Quem se atreveria
a andar pelos caminhos gelados àquela hora?
Um mensageiro chegou. Exausto da caminhada e enregelado de frio, foi
conduzido imediatamente para junto de uma lareira, enquanto lhe
serviam um caldo reconfortante, após entregar a mensagem à superiora.
Aproximou-se do fogo, que crepitava colocando reflexos avermelhados
no ambiente que já acusava as primeiras sombras da noite, não obstante
ainda não passassem das 16 horas. O céu plúmbeo, que ameaçava nova
tempestade, fizera com que a noite se debruçasse mais cedo sobre o
convento de Sainte-Croix.
A sós em seu gabinete Angélica abriu a missiva com impaciência.
Trazia-lhe notícias da guerra. Monsenhor relatava-lhe os acontecimentos
ocorridos no acampamento francês. À medida que seus olhos percorriam o
pergaminho, ligeiro rubor foi-se desenhando no semblante sempre
impassível.
Com que então, tinham conseguido! Morreram o infame duque de
Bouillon e seus sequazes. Túlio, o desprezível Túlio, que se atrevera a
querer chantageá-la. Lucas de Montpellier não tivera melhor sorte.
Exultou com as notícias e comentários picantes que Monsenhor François
inseria nas entrelinhas com aquele seu humor fino e cáustico, sua maneira
aristocrática de narrar os fatos mais corriqueiros.
– Muito bem! – pensou Angélica – uma parte dos planos foi executada.
Entretanto, seu marido, ou melhor, ex-marido, Charles, continuava vivo, e
ela ansiava por vingar-se dele também.
As notícias da guerra eram alarmantes. Os soldados, cansados, há muito
longe das famílias, não tinham ânimo para prosseguir. O inverno,
dificultando tudo, fazia com que a marcha fosse muito lenta, quando não
tinham que parar em virtude da inclemência do tempo.
Os ingleses haviam vencido duas batalhas, o que piorou em muito o
moral das tropas reais.
Monsenhor acreditava que Filipe Augusto perderia a guerra, caso
sofresse mais reveses. Essa opinião, contudo, não poderia ser externada –
escrevia ele – sob pena de perder a cabeça.
“Enfim – dizia ele –, vou para minha propriedade, em Paris, aguardar
que termine o resto da estação hibernal.”
“Frei Felipe continuará junto com o exército, tramando nas sombras.
Engraçado, noto que nosso companheiro sente uma atração especial pela
vida nômade do exército. Percebo em suas linhas e em seus comentários
uma satisfação e um entusiasmo inusitado pelas atividades guerreiras.
Muito estranho. Talvez nosso amigo Felipe tenha errado de profissão ao
ingressar no sacerdócio.”
Terminando de ler, Angélica enrolou a missiva, quedando-se, pensativa.
As notícias fizeram-lhe um bem enorme. Frei Felipe prosseguiria junto às
tropas e executaria as ordens que recebesse.
Realmente estranho esse sacerdote – meditava ela – sempre grave,
soturno, de poucas palavras. Abria a boca para falar só quando
absolutamente necessário. O que se esconderia sob aquele hábito? Qual o
passado que carregava consigo? Várias vezes ao ouvir-lhe a voz teve a
sensação de reconhecê-la; mas, logo em seguida, fugia a impressão e ela
voltava a ver nele apenas um estranho.
Ouviu baterem levemente na porta e ordenou que entrasse. Era a irmã
Maria de Jesus.
– Chamaste-me?
– Ah! minha querida, tenho excelentes notícias para ti.
– Deveras?
– Sim! Acabo de saber que o infame duque de Bouillon e Lucas de
Montpellier estão mortos.
A jovem monja empalideceu violentamente e ajoelhou-se de mãos
postas, olhos fitos no alto, enquanto dizia, contrita:
– Que Deus se apiede de suas almas.
Angélica a olhou, surpresa:
– Ora, não sejas hipócrita! Estamos a sós aqui e não é necessário que
finjas algo que não sentes.
– Não estou fingindo, Angélica. Realmente lamento a morte deles.
– Pois sim! Teus algozes!
– É verdade, Angélica. Contudo, tenho meditado muito sobre isso e nas
minhas orações tenho pedido perdão a Deus pelos meus pensamentos
maus. Jesus disse que não devemos julgar ninguém e, mais do que isso, se
alguém nos ferisse, deveríamos saber perdoar. E eu preciso aprender a
perdoar as ofensas.
– Ora, estás delirando, Maria. Eles não merecem tua misericórdia, nem
teu perdão. São infames e receberam aquilo que mereciam.
Temerosa, a outra arregalou os olhos perguntando com uma ponta de
dúvida na voz:
– Nada temos a ver com isso, não é?
– Com o quê?
– Com esses acontecimentos tristes, mortes... tu sabes!
– Não, claro que não. Estavam junto ao exército real e foram feridos em
combate. Só isso.
– Ah! Tiras-me um peso da consciência, Angélica. Antes assim – disse,
respirando aliviada.
Angélica concordou, enquanto a examinava fixamente. Fizera bem não
contando a verdade. Aquela tolinha com seus problemas de consciência
poderia causar-lhe embaraços mais tarde.
– Agora avia-te, minha amiga. Necessito escrever uma carta urgente.
A outra despediu-se e saiu, sorrindo candidamente.
Angélica tomou de um pergaminho e, mergulhando a pena no tinteiro,
começou a escrever:

“Prezado Monsenhor...

“As alvissareiras notícias trouxeram-me tranquilidade ao coração.


“Urge, contudo, prosseguirmos rumo ao objetivo estabelecido.

“Para atingirmos nosso desiderato faz-se imprescindível derrubarmos o


Senhor Conde de M...

“Os recursos para isso encontram-se à vossa disposição. Uma parte do


combinado segue pelo portador.

“Existe um outro assunto que exige nossa atenção. Tenho notado atitudes
bastante estranhas no comportamento da antiga abadessa. Temo que
Carmela nos cause problemas. Melhor seria que nos livrássemos dela no
tempo preciso, antes que seja tarde.

“Esperando continuar contando com a vossa preciosa colaboração,


despede-se vossa serva fiel.”
Não assinou a missiva. Colocou-lhe o lacre e guardou-a no cofre
embutido na parede.
Satisfeita, recolheu-se após as devoções.
Na manhã seguinte, após a missa, dirigiu-se ao seu gabinete, enquanto
aguardava a presença do mensageiro.
O portador se apresentou com uma mesura, aguardando em silêncio
que a superiora lhe dirigisse a palavra.
– Repousaste bem?
– Muito bem, Reverenda Madre.
– Ótimo! Tomaste a refeição matinal, presumo.
– Sim, Madre. Estou pronto para receber vossas ordens.
Com determinação ela ordenou:
– Muito bem. Entrega esta correspondência a Monsenhor François, e só
a ele. Confiamos em ti e respondes com tua cabeça pelo sucesso da viagem.
É muito importante que monsenhor receba a carta o mais rápido possível.
– Sim, Madre. Colocarei asas nos pés e farei com que meu cavalo voe.
Angélica lhe confiou também um saco de couro de carneiro com uma
pequena fortuna, reiterando a ordem para que o entregasse em mãos ao
religioso.
Pegou uma outra pequena bolsa contendo algumas moedas de ouro e a
colocou em suas mãos, dizendo:
– Isto é para ti, como recompensa pelos bons serviços prestados.
Em seguida ela o abençoou e ele se retirou. O cavalo, já preparado para
a viagem e refeito, aguardava no pátio.
Passou pela cozinha para apanhar víveres, queijo, pão, carne fria e
vinho.
A antiga abadessa, sabendo que o mensageiro iria passar por ali,
postou-se a aguardá-lo. Ao vê-lo recolhendo e guardando os alimentos na
mochila, aproximou-se, gentil.
– Não invejo o teu destino, meu jovem.
– Por que, Irmã?
– Sair com esse tempo é uma temeridade. Poderás ficar soterrado sob
uma avalanche de neve, ou despencares numa ravina com essas estradas
escorregadias e perigosas. Por que não deixas para sair mais tarde, quando
terá amainado o vento que sopra forte?
– Não posso, Irmã Carmela. Levo notícias importantes e preciso
colocar-me logo ao largo.
– É pena! Temo por ti, meu irmão. O tempo está inclemente e parece
que vai começar a nevar novamente.
Fazendo um sinal com a mão, pediu ao rapaz que aguardasse um
instante. Dirigiu-se a um armário e, apanhando uma caneca, encheu-a com
excelente vinho.
– Toma isto. Irá fortalecer-te para enfrentar as intempéries.
O rapaz não se fez de rogado. Virou de uma só vez o conteúdo da
caneca e, depois, limpando a boca com as costas da mão, agradeceu.
– Obrigado, Irmã. Deseja-me boa sorte. É tempo de partir. Quero
alcançar o povoado na hora do almoço.
Andou um pouco, percorrendo um corredor que o levaria ao pátio.
Certo momento, sentiu-se cambalear. Estranho mal-estar o acometeu
repentinamente. A vista se turvou e tudo pareceu girar à sua volta;
rodopiando sobre os próprios pés, caiu estatelado no chão.
A ex-abadessa, que o observava a uma discreta distância, aproximou-se
e, arrastando-o para um cômodo desocupado, fechou a porta. Antes, olhou
no corredor. Ninguém viu o que acontecera ao pobre homem; o corredor,
como previra, estava deserto.
Remexendo em suas algibeiras a irmã encontrou, aconchegada ao peito
do jovem, a correspondência.
Quebrou o lacre e leu ansiosamente o conteúdo da missiva, mordendo
os lábios, irritada. Ao terminar murmurou entre dentes:
– Miserável! Ela me pagará!
Havia um pequeno fogão aceso no aposento, onde preparavam algumas
ervas para medicamentos. Ela retirou das dobras do hábito um pedaço de
lacre que roubara da mesa de Angélica para essas eventualidades e,
levando-o ao fogo, derreteu-o. Fechou novamente a carta, com cuidado,
após colocar o selo da abadessa, insígnia do seu cargo, da qual ela,
Carmela, havia mandado fazer uma cópia, pagando a peso de ouro. Era
preciso tomar todas as precauções para que não pudessem notar que a
correspondência fora violada.
Em seguida, colocou-a no lugar onde estava e aguardou. Pouco tempo
depois, aproximadamente um quarto de hora, o rapaz despertou.
Assustado e surpreso, levantou-se, sem entender onde estava. Encontrou
os olhinhos apertados e o sorriso amável da irmã Carmela.
– O que aconteceu, Irmã? Por que estou aqui?
– Não sei, meu filho. Encontrei-te sem sentidos, logo depois que nos
deixaste, caído no chão do corredor. Não quis que permanecesses lá,
exposto ao falatório das irmãs, se me entendes. A abadessa não iria gostar
de saber que bebeste antes de cumprir uma missão, não é? – falou com
olhar cúmplice.
– Mas foi apenas uma caneca, Irmã! – justificou-se o pobre homem.
– Eu sei, eu sei. Mas creio que terias dificuldade em convencê-la disso.
Quanto ao mal-estar que te acometeu, não foi nada. Tanto é que já estás
bem. Queres que mande avisar-lhe que não poderás prosseguir viagem
agora? Talvez seja bom que descanses um pouco. Provavelmente foi algo
que comeste que te fez mal!
– Não, Irmã, não lhe digas nada. Já estou bem e posso prosseguir.
Obrigado, Irmã.
– Vai com Deus, meu filho. E muito cuidado!
O rapaz, ainda incerto das pernas, cambaleante, saiu apressado
dirigindo-se para o pátio externo. Logo depois já descia a encosta e era
apenas um ponto escuro ao longe.
De uma janela, vendo-o afastar-se, irmã Carmela esfregou as mãos,
satisfeita, enquanto monologava:
“Não me conhecem, se pensam que vou perder esta parada. Veremos
quem vence. Tenho ainda muito poder e muitos conhecimentos na Corte.”
Capítulo XXII - Tramas nas sombras

Era uma época muito política. Nos corredores e alcovas se tramavam


armadilhas entre sorrisos e mesuras. Nos salões aristocráticos, entre um
olhar e outro, um aperto de mão e um cumprimento, cabeças rolavam sem
que ninguém se interessasse pelo destino dos pobres infelizes caídos em
desgraça.
Entre a indiferença e o tédio, a calúnia e as trapaças medravam,
acobertadas por sorrisos e perfumes, entre uma taça e outra de vinho.
Nos bastidores dos palácios, nos corredores longos e sombrios, não era
difícil alguém desaparecer sem que ninguém pudesse saber seu paradeiro.
E, mesmo se um dos presentes notasse a falta de um convidado, encolheria
os ombros, suspirando, sem dar a isso maior importância; às vezes, até
fazendo comentários irônicos sobre o acontecimento.
Monsenhor François era um homem vivido e bastante atraente ainda. A
maior parte das informações que possuía era obtida no leito, entre um
suspiro e um beijo, quando as mulheres nada lhe ocultavam.
Era homem de muitas ligações, possuindo um poder muito grande e
ascendência sobre o soberano que, não obstante afastado da Igreja,
considerava-o seu amigo e fazia-lhe todas as vontades.
Filipe Augusto estava no front, mas todos respeitavam e temiam o
sacerdote, pois não ignoravam como era estimado pelo rei.
Negligentemente instalado numa poltrona, monsenhor divertia-se a
contar anedotas picantes (afirmava serem verdadeiras) a três damas da
Corte, que riam das histórias licenciosas do prelado, quando um servo se
aproximou e solicitou-lhe a presença em outra sala, onde um mensageiro
o aguardava.
Pedindo escusas às damas e prometendo retornar em seguida, ele se
levantou e saiu, acompanhando o servo.
– Trazes notícias? – indagou, breve.
– Sim, Monsenhor. Trago mensagem urgente de madre Angélica.
Tomando a missiva das mãos do rapaz o religioso inteirou-se do
conteúdo sem que um músculo do rosto se contraísse.
– É só isso o que tens para entregar-me?
– Não, Monsenhor – e o rapaz retirou da mochila o saco de couro de
carneiro, entregando-o ao prelado. – Isto também vos pertence.
– Ah! Muito bem! Podes ir descansar agora – disse, retirando algumas
moedas das algibeiras e entregando-as ao portador.
– Obrigado, Senhor. Sois muito generoso.
– Avia-te. Quando precisar de ti mandarei chamar. Vai comer algo e
descansar, pois estás com péssimo aspecto.
O rapaz agradeceu ainda uma vez e sumiu na penumbra do corredor.
Monsenhor caiu sentado numa cadeira que estava mais próxima e ali
ficou meditando.
“Essa mulher está se tornando muito exigente. Creio mesmo que não
demora a tornar-se perigosa. Ela não terá sossego, desejará sempre cada
vez mais e está querendo entrar em terreno escorregadio. Veremos!
Existem muitos interesses em jogo e... quem sabe? Talvez tenha chegado o
tempo e ocasião de livrar-me do seu jugo. Angélica pensa que me
manobra... ela tem-me prestado serviços relevantes, já foi muito útil, mas
pouco mais poderá fazer em meu benefício. É... talvez tenha chegado a sua
hora, minha bela...”
Depois de monologar consigo mesmo, monsenhor voltou ao salão onde
as damas se distraíam em outro grupo, inteirando-se das últimas
novidades.
Espraiou o olhar pelo ambiente e, notando alguém sentado a um canto,
bebericando seu vinho solitário, para lá se dirigiu. Sentou-se também,
aceitou uma taça que um criado lhe oferecia e, sem olhar para o
companheiro, murmurou fingindo fitar os pares que dançavam:
– Temos que agir. O pássaro está ficando muito audacioso. É hora de a
raposa colocar-se em campo.
– Novidades?
– Sim. Espera-me às 17 horas em ponto no local que conheces. Não
deixes de avisar os demais.
O outro fez um imperceptível gesto de concordância e levantou-se,
deixando o local.
***
Estugou os passos, que ressoavam sobre as pedras do calçamento.
Envolto em uma longa capa não se lhe podia ver o rosto, sob o enorme
capuz.
Àquela hora a rua estava deserta. O frio era intenso com as primeiras
sombras da noite e o vento cortante assobiava nas frestas das janelas.
De um lado e de outro da via pública viam-se casas de aspecto miserável
nesse bairro afastado e pobre.
Deixara o cavalo amarrado a uns cem metros para não chamar a
atenção de possíveis transeuntes.
Chegando defronte de uma casa de pedra, aos rés da calçada, em que só
se via uma porta rústica dando acesso ao interior, parou e deu dois toques
longos e um curto na aldrava.
Como se fosse um sinal previamente combinado, imediatamente a
porta se abriu e, sem dizer palavra, o nosso homem entrou, mergulhando
na escuridão. Atravessou um longo corredor, após o qual uma outra porta
se abriu, deixando ver um pátio interno, um pequeno jardim já na
penumbra.
Virou-se à esquerda, como conhecedor do caminho e encaminhou-se
para uma outra porta, que abriu sem hesitação.
Apartado da claridade, de pronto ficou parado, não conseguindo
identificar as pessoas ali reunidas, em número de cinco.
– Sede bem-vindo, caro Monsenhor! – ouviu alguém que lhe dizia com
voz untuosa.
Virou-se e viu o cavalheiro que assim o cumprimentava. No rigor da
moda, vestia-se com esmero e um tanto quanto de forma exagerada. Seu
rosto delicado e algo efeminado surgia de um tufo de rendas e babados.
Inclinou-se ligeiramente ante a saudação.
– Folgo em ver-vos, Senhor de Sastre.
Em seguida, já dono da situação, pôde observar os outros componentes
do grupo.
– Todos já se encontram presentes?
– Sim, com exceção do Senhor de Rouen, que não virá, pois se encontra
adoentado.
– Muito bem! Sentemo-nos, então, e passemos ao que interessa. Não
temos muito tempo.
Monsenhor, que parecia ser o chefe do grupo, exigiu de cada um
relatório das atividades e informações que tivessem conseguido obter.
Em voz baixa, audível apenas para aqueles que se inclinavam sobre a
mesa, cada um de per si passou a falar, como se as próprias paredes
tivessem ouvidos.
– Aquele nosso alto personagem, que todos conhecem, não tardará a
cair. Encontra-se cada vez mais enfraquecido e tempo virá em que não
terá condições de manter-se no cargo. Aí, então, poderemos mudar a
política reinante.
E assim todos se fizeram ouvir, até que chegou a vez do cabeça.
– Bem, todos já sabem do sucesso da nossa operação em relação ao
Senhor de B..., retirado do cenário político muito a propósito. Nossa
amiga, sem desconfiar, está prestando-nos um ótimo serviço e auxiliando
para que o objetivo se concretize.
Todos sorriram, trocando olhares cúmplices.
– Porém, sua ambição não tem limites e agora ela deseja a cabeça de um
dos membros do nosso grupo. Como está tornando-se muito perigosa,
sugiro que coloquemos um ponto final nessa situação. Ela é ingênua e
pensa que me domina, quando poderia destruí-la com um simples estalar
de dedos.
E, com a mão, fez um gesto característico. Após uma pausa, espraiando
o olhar pelo grupo, perguntou:
– Quem pode encarregar-se do assunto?
Um homem de fisionomia desagradável e riso cruel prontificou-se,
falando com voz rouca:
– Podeis deixar por minha conta.
– Muito bem. Fazei de forma que pareça muito natural e que ninguém
desconfie de nada.
– Sei como proceder. Já estou estudando um plano.
– Ótimo! Agora, partamos. Bastante cautela para não serdes
surpreendidos. Se alguém desconfiar de algo, matai-o.
Envolveram-se nas amplas capas e foram ganhando a rua, cada qual
tomando um rumo diferente para não despertar suspeitas.
Dentro em pouco a rua voltava ao silêncio habitual.
A noite descera por completo. O vento parara de soprar enquanto
miríades de estrelas piscavam no firmamento.
Capítulo XXIII - Resgate doloroso

O cerco se apertava. Nas sombras se agitavam e trabalhavam as forças


poderosas que levariam ao clímax da situação.
Irmanados nas próprias deficiências, cúmplices em atos escabrosos,
marchavam todos os envolvidos, sob o guante de acontecimentos
poderosos que ameaçavam sufocá-los em suas tramas.
Se outro tivesse sido o comportamento nesta existência, ante as
oportunidades de reajuste e elevação concedidas pelo Criador, diferente
teria sido o epílogo desta história.
Mas, reincidentes na infração das leis Divinas, perfeitas e imutáveis,
justas e magnânimas, os personagens se movimentavam rumo ao desastre
moral, incapazes de, por si sós, sustarem a mó que os esmagaria com seu
peso imenso.
Mentores Espirituais, companheiros do pretérito, ali permaneciam
tentando auxiliar os envolvidos; contudo, presos às suas deficiências e
dominados por suas tendências inferiores, os encarnados não conseguiam
notar a presença dos trabalhadores do bem.
Irmã Angélica, algo temerosa do futuro, meditava em seus aposentos.
Sem saber porque, uma angústia enorme lhe tomara conta do íntimo.
Estava tensa, o coração batia descompassadamente e o pressentimento de
que algo terrível estava avolumando-se sobre sua cabeça e iria acontecer a
qualquer momento não a abandonava.
“Bobagem! – pensava ela – tudo corre às mil maravilhas. Consegui,
mercê do meu trabalho, juntar uma fortuna que aumenta a cada dia que
passa. Tudo corre bem e dentro do programado. Minha vingança está
quase completa, e monsenhor François facultar-me-á os meios de concluí-
la. Contudo, por que esta cisma? Por que a impressão de que algo não vai
bem? Por que esse prenúncio de desgraça?”
Olhando a parede nua e sombria, recostada em seu leito, madre
Angélica meditava, buscando nos refolhos da alma, nos arcanos da
memória, algo que pudesse justificar seu mal-estar.
E em sua mente surgiu a imagem da ex-abadessa. Encontrara-se com
ela no refeitório do convento e trocaram algumas palavras. O
relacionamento entre ambas era normal. Jamais Carmela deixara perceber
qualquer descontentamento desde que ela, Angélica, assumira seu posto.
Carmela era ladina e hipócrita o suficiente para não demonstrar seus
verdadeiros sentimentos.
Porém, nesse dia, Carmela lhe lançara um olhar que destoava do
comportamento que vinha mantendo. Olhar de acinte, de desafio e de
vitória, que parecia dizer: “Veremos quem vence!”
“Sim! Era isso mesmo!” Angélica encontrara a razão do seu mal-estar.
“O que estaria tramando aquela velha megera?”
Procurou rever os últimos dias, os acontecimentos, as situações e nada
encontrou que justificasse uma mudança de atitudes da ex-abadessa.
Assim monologando, Angélica entrou a cochilar, cansada dos afazeres
diurnos.
Não saberia dizer quanto tempo se escoara quando despertou algo
assustada. Abrindo os olhos percebeu vultos dentro do aposento. A
escuridão não lhe permitiu maiores detalhes, porém notou que eram três
as pessoas que ali se encontravam.
Tentou levantar-se, dizendo:
– O que desejam?
Imediatamente, porém, sentiu-se dominada por braços fortes,
enquanto um outro vulto lhe amordaçava a boca. O terceiro lhe enterrou
um capuz preto na cabeça e ela não viu mais nada.
Sempre em absoluto silêncio um deles a colocou nas costas como se
fosse um fardo qualquer, e saíram da cela, rápidos.
Angélica perdeu a noção do tempo e do espaço. Fez vãos esforços para
soltar-se, para gritar a sua indignação e revolta, mas tudo foi inútil.
Não saberia dizer quanto tempo caminharam assim, em silêncio. Seu
corpo doía horrivelmente e a posição em que estava, com a cabeça para
baixo, era profundamente desagradável.
Percebeu, depois de algum tempo de caminhada, que pararam.
Colocaram-na no chão e tiraram-lhe o capuz. Com violência, arrancaram-
lhe a mordaça da boca.
Estavam encapuzados e ela não pôde reconhecê-los. Com uma risada
rouca um deles falou:
– Agora podes gritar à vontade. Ninguém irá ouvir-te.
O sangue subira-lhe à cabeça. Toda a sua natureza altiva se rebelava a
esse tratamento. Espumando de raiva, ela gritou:
– Quem sois? O que significa isso? Ignorais que sou poderosa? Que serão
responsabilizados por isto?
Sob os capuzes ouviu o som de risadas abafadas.
– Nada mais possuis, “Senhora Abadessa”, respondeu o de voz rouca,
ironicamente. – Agora estás em nossas mãos. Adeus!
Angélica tentou agarrá-lo pela capa, mas o homem a empurrou
violentamente, arremessando-a de encontro à parede; os ossos estalaram
e uma dor terrível a dominou, como se todo o seu corpo estivesse
quebrado. Em seguida escorregou lentamente até o chão.
Gritou, lançou-se sobre a porta, fechada irremediavelmente para o
exterior. Parecia um pesadelo. Dentro em pouco acordaria e tudo voltaria
ao normal.
Mas nada voltaria a ser o que era. Seus inimigos a derrotaram. Não
sabia por que, nem por quem, mas estava prisioneira, sabe Deus onde.
Racional, procurou acalmar-se para refletir, passada a primeira crise de
desespero.
Não poderiam prendê-la assim, sem mais nem menos. Notariam sua
ausência, moveriam céus e terras para encontrá-la. E, quando a
encontrassem e fosse retirada dali, não teria contemplação; descobriria
seus algozes e os destruiria com requintes de maldade, até que
suplicassem a morte, de joelhos.
Quando monsenhor François ficasse sabendo, quando dessem pela sua
ausência, ele a procuraria até libertá-la.
Pareceu-lhe ouvir risadas sarcásticas. Estava só. Como poderia ser isso?
Estremeceu. Encolhida num canto da cela espraiou o olhar buscando
analisar o ambiente. Encontrava-se numa pequena cela, fétida e imunda.
Das paredes escorriam filetes de água, vinda sabe-se lá de onde, formando
riscos escuros na parede. Não existiam móveis, nem mesmo uma enxerga.
Para servir de leito apenas um amontoado de palhas apodrecidas no chão.
Desatou em choro convulso ao sentir a extensão da sua desdita. Por que
faziam isto com ela? Fizera muitas coisas erradas, era verdade, mas nunca
maltratara ninguém.
Gritou. Jogou-se contra a parede, chamou e implorou ajuda, mas apenas
o silêncio existia naquele local tenebroso.
Cansada, enfim, de tanto lastimar-se, de blasfemar contra Deus, e de
chorar, acabou perdendo os sentidos, exausta de tanto sofrer.
Quanto tempo se escoara na ampulheta divina? Perdera a noção de
tudo e momentos havia em que julgava estar enlouquecendo.
As horas passavam lentamente em meio a seu desespero e sua dor. O
silêncio era a única resposta aos gritos e imprecações que externava. As
crises se sucediam, momentos em que a pobre religiosa se debatia entre as
quatro paredes, jogava-se contra a maciça porta que nunca mais se abrira
para dar passagem a ninguém. O frio e a fome a martirizavam.
Todos os dias alguém deixava passar, por uma pequena abertura na
porta, um prato contendo uma pequena ração de pão duro e uma caneca
com água. E essa insuficiente alimentação ela ainda tinha que disputar
com os insetos e roedores existentes no local.
A princípio, acostumada a todo o conforto e a alimentar-se de iguarias
saborosas, a ingerir vinhos de boa qualidade, rejeitou toda e qualquer
alimentação. Mesmo porque seu estômago delicado não conseguia
acostumar-se à presença desses animais que lhe causavam profundo nojo
e pavor.
No início gritava de medo à menor aproximação de uma barata ou de
um rato voraz; porém, com o passar do tempo, cansada de lutar e de
sofrer, já não se incomodava tanto.
A fome, apertando, fez com que passasse a disputar com eles o pão duro
que lhe era trazido, e que eles haviam se acostumado a comer. E ela
chorava de humilhação e vergonha de si mesma ao notar a degradação a
que chegara.
De outra feita, entregava-se a crises de desespero em que se
aproximava da demência, suplicando socorro. Tentando abrir a porta,
arranhava com as unhas a pesada madeira; tanta violência colocava nessa
operação que chegava a ter as pontas dos dedos dilaceradas. Cansada de
chorar, gritar e lastimar-se, caía muitas vezes desmaiada no chão, sem ter
quem lhe prestasse socorro. Acordava num estado de prostração que se
arrastava por muitas horas, às vezes dias. Até que, novamente, tomando
consciência da sua situação, recomeçava tudo de novo, numa repetição
contínua e infernal.
Como um círculo vicioso, alternava momentos de crise com horas de
depressão, em que, exausta e debilitada, nada a incomodava.
Quando não, estava a imprecar contra seus algozes, gastando tempo e
energia em planejar vinganças atrozes, para quando deixasse aquele local
horrendo. Sonhava destruí-los, como a estavam destruindo agora.
Analisando os fatos, já agora não acreditava mais em monsenhor e que
ele viesse libertá-la. Intimamente sabia que ele também tivera parte de
culpa no seu calvário.
Irmã Maria... a doce irmã Maria de Jesus estaria à sua procura? Ou a
teriam também aprisionado, por serem amigas e confidentes?
E Victor? A única lembrança boa de sua vida, com exceção do seu filho
Augusto, que não via há tanto tempo. Uma pequena esperança, como uma
réstia de luz, iluminou-a por dentro.
Sim! Victor, o querido Victor, não a esqueceria nunca. Por certo estaria
lutando para encontrá-la e reconduzi-la à liberdade. Teria que ter forças
para aguentar até lá. Mais do que nunca desejava viver para vingar-se.
Nesses momentos parecia ouvir vozes e risadas satânicas; estremecia de
pavor e encolhia-se num canto.
– Para trás, espíritos infernais! Deixai-me em paz! Apodrecei no
inferno, que é o local que mereceis. Não conseguireis levar-me convosco.
De olhos arregalados e fixos, ela gritava:
– Afastai-vos! Fora daqui, cães danados! Fora!
Esse estado muitas vezes se prolongava por horas, até que ela
adormecia de cansaço. De outras vezes ela concitava esses mesmos seres a
ajudarem-na:
– Espíritos satânicos, forças do mal! Ajudai-me a destruir os miseráveis
que me aprisionaram. Que eles sintam o peso da justiça divina sobre suas
cabeças infames. Que sofram o que estou passando agora. Ide, ide e fazei a
vossa parte!
Infeliz criatura! Incapaz de perceber que amontoava sobre sua cabeça
nuvens de ódio e rancor, revolta e maldade; incapaz de sentir que,
utilizando-se das trevas e a elas se unindo estava angariando sofrimento
maior para si mesma e criando elos de difícil dissolução no futuro, que
somente a obra dos séculos conseguiria realizar. Quando teria bastado
elevar o coração e a mente através da oração, para liberar-se das
companhias infelizes, inimigos e cúmplices do pretérito, às quais se
vinculara espontaneamente, muitas das quais prejudicadas por ela.
Haurindo forças através da prece teria condições de suportar o período
difícil do cativeiro com coragem e resignação, paciência e tranquilidade.
Por compromissos assumidos no passado, estava prevista essa expiação
para seu espírito, mas as condições seriam outras e muito mais fáceis, se
outro tivesse sido seu comportamento.
Companheiros abnegados do plano espiritual tentavam em vão ajudar,
mas não podiam sequer aproximar-se em virtude do ambiente deletério
que Angélica mantinha a seu redor.
De outras vezes via a infeliz religiosa vultos que a envolviam em hálitos
de ódio, acusando-a de crimes hediondos.
– O que fizeste com minha filha, miserável? – exprobrava-lhe um velho
de aparência feroz. – Por dinheiro e poder a vendeste a um poderoso e
infame senhor, que lhe conspurcou a honra, destruindo seus mais belos
sonhos de menina. Incapaz de resistir à vergonha, minha filha se matou.
Desde então, nunca mais a vi. Onde a escondeste, miserável? Devolve
minha filha ou não terás sossego.
Olhos vítreos, apavorada, Angélica tentava dizer algo, justificar-se, mas
não conseguia.
Dizia-lhe outro vulto, ameaçadoramente:
– Onde está meu dinheiro? Iludiste minha boa fé e roubaste tudo o que
possuía. Minha família ficou na miséria e, desesperado, arremessei-me em
um precipício, e passei a sofrer martírios inenarráveis desde então. Meu
corpo está todo esfacelado e sinto que morri; não obstante isso, a mesma
cena se repete continuamente, para meu desespero. Subo ao penhasco e
atiro-me no precipício morrendo mil vezes, numa repetição infernal e
horrenda. Ainda assim sinto que estou vivo e minha consciência me acusa
pelo ato praticado. Não tenho mais paz nem sossego. Meu sofrimento é
superlativo e tudo por tua causa, mulher sem coração!
Realmente, a imagem que Angélica via e que a enchia de pavor era a de
um homem ainda no verdor dos anos, mas como se estivesse todo
quebrado, olhos esbugalhados, crânio esfacelado, braços e pernas
desconjuntados.
Como uma sarabanda infernal repetiam-se as acusações.
Eram mulheres jovens que reclamavam suas filhas, obrigadas a entrar
para o convento, em virtude da fortuna que possuíam; eram jovens, ainda
quase meninas, que reclamavam das suas vidas destruídas; homens
cobrando haveres e, muitas vezes, falavam todos ao mesmo tempo,
deixando-a completamente enlouquecida de pavor.
Aí advinham-lhe as crises. Punha-se a gritar e rogar por socorro, até
que caía ao chão, desacordada.
Em sua cabeça o passado misturava-se ao presente, denotando já o
estado de perturbação mental que principiava a acometê-la, e, muitas
vezes, desorientada, não sabia dizer o que acontecera ontem e o que
estava ocorrendo hoje; o que era sonho e o que era realidade.
Certa feita viu um homem numa cela em condições que reconheceu
serem piores do que as suas, se isto era possível. Com surpresa reviu-se na
mesma cela com ele. Não obstante o depauperamento do pobre infeliz, da
barba e dos cabelos desgrenhados, do sofrimento que ele estava sentindo,
acusava-o, como faziam agora consigo mesma, e comprazia-se com o
sofrimento do infeliz prisioneiro.5
Com estranheza sentia que, embora ela fosse outra pessoa, com outra
aparência, era ela mesma; e que aquele homem ali estava por culpa sua.
Mais surpresa ainda ficou quando percebeu que esse homem, em “outras
vestes”, era irmão Felipe.
Seu coração bateu precípite: – “Meu Deus!” Algo dentro de si despertou
repentinamente. Mas, como poderia ser isso? Ele era também Pierre, seu
ex-noivo abandonado!
Não fazia sentido! Tudo estava confuso em sua mente.
Pierre! Há quanto tempo, quantos anos não soubera mais notícias dele.
Sempre fora bom para com ela e, talvez, se ela não tivesse sido tão
ambiciosa, hoje seria feliz a seu lado.
Debruçou-se sobre os braços caindo em choro convulso. O
arrependimento começara a nascer para aquela alma endividada e
rebelde.
E o tempo passava, lento e monótono, sem trazer a Angélica a tão
sonhada liberdade.
***
Enquanto tudo isso acontecia com a infeliz Angélica, ou melhor,
Marianne, pois já não usava o hábito e estava segregada da comunidade a
que pertencera, voltemos ao campo de batalha, onde os exércitos se
empenharam em luta feroz, após meses de intensa atividade. Repousavam
agora, aguardando os acontecimentos.
Apesar do entusiasmo das tropas, a situação não era boa. Os franceses
venceram algumas batalhas importantes, mas as baixas foram em grande
número, reduzindo de maneira perigosa o contingente. A tal ponto que
Filipe Augusto teria comentado com seus assessores mais diretos,
plagiando Pirro:
“Outra vitória como esta e estarei perdido!”
A França estava exaurida. Para defender o Santo Sepulcro, muitos
nobres já se encontravam empenhados na luta contra os árabes, e, tendo
viajado até o Oriente, não voltaram.
As guerras têm um custo muito alto e recursos foram canalizados com
esse objetivo. O povo, sofrido e faminto, já não suportava a sangria de
novos impostos. Para manter um exército era necessário muito dinheiro,
utilizado em alimentos, uniformes e calçados; na aquisição premente de
armas e no pagamento dos soldados.
Apesar de todas essas dificuldades a revolta principiou a infiltrar-se
entre a soldadesca, pois, mal alimentados e mal vestidos, sofrendo de fome
e frio, vivendo em condições sub-humanas, eram obrigados a presenciar a
discrepância existente no tratamento dado aos nobres e oficiais.
Levando vida regalada os aristocratas de nada se privavam. A cozinha
continuava sendo excelente, os vinhos, trazidos de longe no lombo de
cavalos, eram magníficos.
Não se preocupavam em saber como estavam sendo tratados os
soldados, colocados quase que ao nível dos animais.
A par disso tudo, foram informados também de que os ingleses
aguardavam reforços.
As coisas estavam neste pé quando retomamos a narrativa.
Aguardava Filipe Augusto, com ansiedade, reforços que viriam livrá-lo
da difícil conjuntura em que se encontrava. Foram expedidos mensageiros
para vários nobres senhores que governavam territórios independentes, e
com os quais o soberano francês pretendia entrar em acordo.
Se essa ajuda adicional não viesse o exército francês estaria em sérios
apuros.
Diga-se de passagem, a França não possuía a importância e o brilho que
hoje ocupa no concerto das nações. Não era mais do que pálido arremedo
do que veio a tornar-se como país.
A própria Paris, na atualidade denominada “Cidade-Luz” e uma das
mais belas capitais do mundo, era feia e lamacenta. Seu antigo nome,
Lutécia, do latim, designava justamente a sua situação de “cidade cheia de
lama” ou “cidade enlameada”.
O território francês era apenas uma faixa de terras, representando,
aproximadamente, um quinto do que é hoje.
Foi preciso muita luta e muita guerra para que o território se
expandisse, seja através de acordos, seja de casamentos, como é o caso da
Aquitânia, trazida por Leonor, por ocasião do seu matrimônio com Luís
VII.
Àquela época os senhores feudais eram verdadeiros soberanos em suas
terras e possuíam, bastas vezes, maior poderio do que o próprio rei.
Era necessário, então, fazerem-se acordos, conseguirem-se aliados e
aglutinar-se o poder através do carisma e da personalidade reais.
Para isso muito colaborava a crença de que uma aura divinal envolvia
os membros da realeza, a quem os súditos desde há muito aprenderam a
adorar, conservando o respeito e a lealdade à Coroa.
Deixando-se convencer por Ricardo I, o Coração de Leão, soberano
inglês, a participar da Terceira Cruzada, Filipe II, ou Filipe Augusto, partiu
para a Terra Santa, deixando atrás de si uma França exaurida.
Após algum tempo, em que mais se detiveram a gozar a vida do que
propriamente defender o Santo Sepulcro, que estava em poder dos
sarracenos, Filipe Augusto voltou para a França, sentindo-se enfermo e
sofrendo de acessos de febre. Deixou um exército para trás e Ricardo I
como único chefe da Terceira Cruzada.
Corria o ano de 1191 quando Filipe II retornou à pátria e se dispôs a
fortalecer a França.
Por essa época a Inglaterra dominava uma vasta área de terras na qual
se incluíam a Touraine, Anjou, Normandia, Bretanha e Aquitânia. Existia
uma boa parte de territórios que, na realidade, eram independentes, como
o Condado de Flandres, Lyon, Chambéry e Savóia. Outros, por interesses,
haviam aderido à Alemanha, como fez grande parte da Borgonha.
Dependia, portanto, o soberano francês do apoio e das forças dos
senhores feudais. Por isso aguardava com ansiedade reforços que mandara
buscar junto a barões do seu Reino. Porém esses reforços tardavam a
chegar. Possivelmente nunca viriam.
Filipe Augusto já estava desesperançado e, não obstante procurando
ocultar de seus leais servidores suas apreensões, todos sentiam o drama e
o perigo que corriam.
Por outro lado Ricardo I encontrava-se fortalecido, pois conseguira o
apoio dos condes de Flandres, de Boulogne e de Blois.
Atacado pelos ingleses, a luta foi feroz. Os soldados franceses bateram-
se bravamente, valentes filhos que eram da França.
Lutando lado a lado com estes guerreiros estava frei Felipe. Voltara a
incorporar-se ao exército de Filipe Augusto, na tentativa de saber notícias
de madre Angélica, cujo paradeiro era completamente desconhecido.
Tentara junto à Igreja, mas as autoridades eclesiásticas alegavam
ignorar o assunto. Parecia que um grande véu cobria tudo, como uma
grossa camada de gelo. Por mais que se esforçasse não obtinha qualquer
informação.
Demandou Paris, onde monsenhor se divertia com suas amantes.
Recebido pelo ilustre prelado, este demonstrou surpresa ante a notícia do
desaparecimento da reverenda madre, e assegurou-lhe que envidaria
todos os esforços para ajudá-lo. Alegou, porém, que naquele momento
estava ocupadíssimo e pediu a frei Felipe que voltasse outra hora, quando
então poderiam juntos estudar o assunto.
Agradecendo a atenção Felipe se despediu. Antes de sair do vestíbulo do
palácio de monsenhor ainda ouviu gargalhadas femininas no interior, o
que o levou a desistir de voltar a procurar François, percebendo que não
seria ali que conseguiria ajuda.
Deixando Paris decidiu suplicar socorro ao rei. Conhecendo a força e a
maneira de agir do clero, não duvidou que madre Angélica estivesse presa
e em poder da Igreja, em local a que dificilmente teria acesso pelas vias
normais. Lembrou-se, porém, que o soberano tinha divergências com o
papa, perante o qual mantinha uma atitude firme, muitas vezes até
posicionando-se contra os interesses deste.
Resolveu, assim, apelar para o rei, explicando-lhe o caso e pedindo-lhe
um salvo-conduto para percorrer as prisões e conventos existentes na
França. Ninguém iria colocar-se contra uma ordem real.
Mais animado e esperançoso, alcançou o exército francês; não teve
tempo, contudo, de falar ao rei, pois foram atacados pelo inimigo.
Incorporando-se às hostes de Filipe Augusto o sacerdote sentiu-se
vibrar intimamente. Parecia-lhe que ali estavam seus verdadeiros
interesses; pela primeira vez, em muito tempo, sentiu-se estranhamente
feliz. Coisa singular acontecia em seu íntimo. Mais do que nunca percebeu
o quanto detestava aquele hábito soturno que era obrigado a envergar.
Na verdade, sentia-se realizado ali, ao lado dos soldados, lutando e
batalhando pela pátria.
Os soldados, ao vê-lo tão empenhado, sorriam, entusiasmando-se
também com seus esforços e vitalidade.
Atacados de surpresa por novo contingente, por outro lado, foram
violentamente massacrados. O exército francês pôs-se em retirada para
não perecer completamente.
Frei Felipe, atingido por uma espada inimiga, ainda tentou continuar
lutando, mas caiu em meio aos cadáveres.
Quando despertou, horas depois, já estava anoitecendo. Abrindo os
olhos e tentando levantar ligeiramente o corpo, viu apenas o imenso
campo de batalha juncado de mortos.
Fazendo inaudito esforço, levantou-se, cambaleando. Suas pernas
estavam trêmulas e foi com grande dificuldade que tentou caminhar
naquele local, onde tropeçava a cada instante em corpos mutilados,
sangrentos e desfigurados. Vez por outra ouvia gemidos e estertores, mas
nada daquilo o comovia ou incomodava. Não conseguia pensar,
concatenar as ideias, que sentia embaralhadas em sua cabeça.
De repente percebeu, ao longe, alguém que se levantara e também,
como ele, tentava caminhar entre os mortos.
Os últimos raios de sol incidindo em seu rosto não lhe permitiram
enxergar direito o soldado que se aproximava, vindo em sua direção.
Ao chegar a uma distância regular ouviu, surpreso, que o outro
pronunciava seu nome:
– Frei Felipe! Frei Felipe! Pois sois vós mesmo e estais vivo?!...
Colocando a mão em concha sobre os olhos o sacerdote conseguiu ver,
enfim, quem se aproximava. Era um oficial, com grande ferimento na
cabeça e que, também atingido na perna, andava arrastando-se. Seu rosto
estava coberto de sangue; ainda assim reconheceu-o, mais pela voz que
pela fisionomia.
Um grande sopro de ódio passou por seu coração, envolvendo-lhe a
mente, já tumultuada, ao reconhecer Charles, conde de Montmorency.
Sentindo-se morrer, não quis passar desta para a outra vida sem
vingar-se daquele homem que lhe roubara Marianne, para depois
abandoná-la à própria sorte, destruindo-lhe a existência.
Como um turbilhão, a cólera tomou conta de Felipe, que nada mais
enxergou à sua frente a não ser o rival detestado.
Lançando o olhar para o chão abaixou-se e apanhou uma espada que
caíra das mãos de um soldado morto e, com raiva e ferocidade incríveis,
lançou-se sobre o adversário que, surpreso, à sua frente, não entendia o
que estava acontecendo.
Lábios crispados, fisionomia dura, gritou furibundo:
– Miserável! Morre, maldito! Vai para o inferno, onde é teu lugar.
E assim, diante da perplexidade e estupefação do outro, enterrou-lhe a
lâmina no peito; em seguida, arrancou-lhe o coração numa operação
macabra e repugnante, reminiscência dos tempos em que fora Alarico, o
visigodo.
– Teu coração, maldito, é uma dádiva e um tesouro que não mereces.
Ofertá-lo-ei a Marianne, quando a encontrar, como prova do meu amor e
da minha dedicação.
Falava e falava, continuando a lançar vitupérios sobre o inimigo, mas
Charles de Montmorency e Drumond já não tinha condições de ouvi-lo...
Arrancando um pedaço da camisa de um soldado Felipe embrulhou
cuidadosamente seu tétrico presente, com todo o carinho, como se fosse
mesmo um tesouro que pretendesse ofertar a Marianne.
Vagou pelo campo de batalha, sem saber o que estava fazendo. Próximo
a uma tenda encontrou um escrínio de prata, cravejado de pedras
preciosas, que alguém, na hora do saque e tentando fugir às pressas, por
certo deixara cair. Pegou o pequeno cofre colocando dentro dele o seu
“tesouro”.
Deixando o local, que o cheiro de sangue e fumaça tornava
nauseabundo, pôs-se a caminhar sem destino. O ombro atingido doía
terrivelmente, e não sabia onde encontrara forças para empunhar a
espada e matar aquele que considerava seu inimigo.
Exausto, sentiu-se desfalecer. Perdera a noção do tempo e de tudo o que
o rodeava.
Em determinado momento ouviu vozes. Abriu os olhos e com muita
dificuldade percebeu pessoas à sua volta. Um camponês dizia à sua
mulher:
– Vê, mulher! É um monge e está muito ferido. Temos que ajudá-lo.
– O que pensas fazer? – perguntou-lhe a gorda matrona.
– Não sei. Mas não podemos deixar um homem de Deus entregue à
própria sorte. Vamos, ajuda-me a colocá-lo na carroça. Irá conosco.
Enquanto viajamos poderás pensar seus ferimentos.
E assim dizendo colocaram-no na carroça, ajeitando da melhor forma
possível o sacerdote.
A mulher inclinou-se sobre ele, enternecida:
– Pobre frade! Parece ser jovem ainda. O que terá acontecido? Não
importa. Tenho que estancar essa hemorragia, ou o pobre infeliz perderá
todo o sangue, e a morte será coisa certa.
Levantando as amplas saias retirou um bom pedaço de tecido de uma
das anáguas e com ele fez um torniquete, impedindo que o sangue
escoasse do ferimento.
– Na próxima aldeia deixá-lo-emos entregue aos cuidados de algum fiel
caridoso – disse o camponês.
Chegando, porém, à aldeia não encontraram viva alma. Todos estavam
apavorados com a guerra e haviam se escondido. Ninguém atendeu à
porta ou respondeu às súplicas dos gentis camponeses que, não tendo
outro jeito, continuaram cuidando do religioso.
Durante muitos dias e noites frei Felipe esteve inconsciente, recebendo
o carinho e cuidados daquela boa mulher. No outro vilarejo por que
passaram, cogitaram em deixar o ferido, mas a camponesa já se afeiçoara a
ele.
Certa ocasião Felipe abriu os olhos, num momento de lucidez.
– Que bom, irmão! Recuperastes o senso! – exclamou a generosa
mulher, com sorriso irradiando no rosto redondo e rosado.
– Para onde vamos? – perguntou com voz apenas audível.
– Estamos a caminho de Marselha, onde reside um irmão de meu
marido. Já nada temos a fazer aqui e pretendemos recomeçar nossa vida
lá, longe dessa guerra maldita.
“Marselha!” O nome da cidade lembrou-lhe Montpellier, sua terra
natal, que não distava muito dali. Como seria bom retornar ao antigo lar!
Estavam se movimentando em sentido contrário àquele que desejaria
seguir, pois seu objetivo era encontrar o paradeiro de Marianne. Mas, na
atual circunstância, nada poderia fazer.
Sentia que a vida se esvaía a cada instante e a febre o devorava. A
lembrança da mãe adotiva encheu-lhe o coração e a mente, e desejou
receber-lhe os carinhos e cuidados. Ou, pelo menos, revê-la uma última
vez antes de morrer!
Com delicadeza o bom homem perguntou-lhe, já que ele agora estava
consciente e capaz de decidir seu futuro:
– Meu bom frade, estamos muito satisfeitos de poder prestar-vos nossa
ajuda, mas não sabemos de onde viestes, nem para onde estáveis indo
quando fostes atingido. Desejais ficar em algum lugar?
Com esforço, devido à fraqueza, o religioso respondeu:
– Agradeço-vos a assistência que me destes até agora. Demandais o
porto de Marselha e, se não for pedir demais, gostaria, se possível, de
continuar a viagem convosco.
– Mas, quem sabe não seria melhor ficardes em algum mosteiro, para
receberdes o tratamento médico adequado? – ponderou o camponês.
– Meus bons amigos, já não tenho esperança de viver muito tempo.
Minha família reside próximo à estrada que conduz a Marselha, justo na
direção que estais indo. Portanto, desejaria, se não for incômodo,
continuar convosco.
Resignando-se ao desejo do ferido, prosseguiram viagem, parando
apenas para descansar um pouco, trocar os cavalos e fazer uma refeição
frugal.
O trajeto foi muito difícil e cheio de percalços. Temiam a qualquer
momento ver esvair-se a vida daquele homem. Era um trapo de gente;
reduzira-se a uma situação misérrima.
Nas horas de crise, em que ele piorava, paravam e aproveitavam para
repousar e alimentar-se um pouco. Às vezes ao relento, muitas vezes em
algum cômodo que alguém caridoso lhes permitia ocupar por uma noite;
ou mesmo em algum celeiro, quando colocavam o infeliz rapaz com
cuidado entre as palhas e prestavam-lhe o socorro necessário.
Àqueles mais curiosos, que insistissem em saber por que viajavam com
um enfermo naquelas condições, respondiam apenas que era um parente
que sofrera um ataque de bandoleiros e que estava sendo levado para casa,
junto da família.
Felipe sempre procurava saber onde estavam; que região atravessavam,
para localizar-se. Conhecendo a estrada, solicitou aos novos amigos que,
quando chegassem próximo de Nimes, o avisassem.
No local determinado, solicitado por Felipe, certa tarde retiraram o
ferido da carroça, colocando-o na relva, sob uma árvore.
Preocupado, o camponês lhe falou:
– Irmão, temo deixar-vos, sozinho e doente, aqui neste local ermo.
Permiti que vos acompanheis até vosso lar para ficardes em segurança.
Com decisão, conquanto delicadamente, ele recusou:
– Não, meu bom amigo. Já fizestes muito por mim durante todo esse
tempo. Atrasastes em muito a vossa viagem por minha causa e não quero
causar-vos maior incômodo. Acreditai, sou profundamente grato por tudo
o que fizestes e nunca poderia pagar-vos as atenções e trabalhos. Não vos
preocupeis comigo, querido Jacques e minha boa Claire. Asseguro-vos que
fico muito bem. Conheço esta estrada e não me será difícil encontrar
quem me leve até Nimes e, de lá, até Montpellier.
Fez uma pausa. Esgotara-se falando tanto. Vendo a boa mulher, que
enxugava as lágrimas com o avental, sorriu confortador:
– Não choreis, minha boa amiga. Nunca chegaria até aqui sem vosso
concurso. Parti agora, para aproveitardes as horas do dia que ainda
restam, e que Deus vos abençoe.
Ambos se ajoelharam, emocionados, ao lado do sacerdote, que os
abençoou.
Antes de partirem, já acomodados na carroça, acenaram-lhe com a
mão, enquanto o camponês dizia, contendo um nó na garganta:
– Se algum dia, irmão Felipe, fordes para Marselha, não deixeis de nos
procurar.
Felipe fez um gesto com a mão e sorriu, concordando.
Acompanhou-os com o olhar até se perderem de vista numa curva do
caminho.
Estava novamente entregue a si mesmo.

5. Nota: Faz menção à passagem ocorrida no livro Perdoa!..., em que o personagem Ciro, encarcerado
por acusação de Tamara, reencarnada como Marianne, ou irmã Angélica, sofre penas atrozes.
Capítulo XXIV - Retorno ao lar

Amanhecera um dia lindo. O sol ainda não aparecera de todo no


horizonte e a temperatura era agradável. Soprava uma brisa leve que
enchia o ar com o aroma suave das flores que juncavam o chão e coloriam
o jardim em torno do castelo.
Louise de Montpellier olhava pela janela aberta de par em par,
enquanto aspirava em longos haustos o ar puro do campo.
E meditava, ao mesmo tempo, em tudo o que tinha para fazer. As
tarefas do dia, que eram muitas. Em primeiro lugar visitaria os seus
doentes e fazer a “ronda” matinal.
Com o tempo passando e a falta de notícias das frentes de batalha
Louise sentia cada vez mais a necessidade de dedicar-se àqueles que
tinham ainda menos do que ela.
Percorria as casas dos camponeses levando o necessário para a
sobrevivência deles, como mantimentos, agasalhos, remédios, sempre
acompanhada da inseparável Clarissa, que a secundava nessa ocupação.
Com os problemas se avolumando, os enfermos aparecendo, Louise teve
a ideia de usar alguns cômodos desocupados, próximos ao corpo principal
do castelo, para tratar os necessitados. Assim eles ficariam mais bem
atendidos, pois, com menos tempo e esforço, ela poderia observar a todos
conjuntamente.
Portanto, criou o que seria uma enfermaria de um hospital da
atualidade, o que, naquela época, diga-se de passagem, era altamente
revolucionário.
Ninguém se preocupava com os semelhantes e muito menos uma
senhora da aristocracia. Com Louise era diferente; não obstante nobre e
rica, era simples e humilde como qualquer camponesa de suas terras.
Nesse dia eram quatro os ocupantes da enfermaria. Louise, tendo
acabado de se levantar, aprestava-se para tomar sua refeição matinal e
começar a tarefa diária. Aguardava apenas que Clarissa descesse para
fazerem juntas o desjejum.
Nesse momento entra correndo uma velha serva, gorda e rosada,
dizendo-lhe, ofegante:
– Senhora Condessa, há um homem caído junto aos portões do castelo.
Parece muito mal.
Louise, serena, recomendou:
– Pede a Miguel que o recolha. Deve ser alguém em busca de ajuda.
Provavelmente sabe que mantemos um serviço de assistência aos
enfermos necessitados. Irei vê-lo em seguida.
Após a refeição ligeira dirigiram-se ambas para os cômodos em que
estavam os pacientes. A criada e Miguel aguardavam, fazendo cara de nojo
e tapando o nariz.
– Senhoras – disse a devotada serva – é melhor que não entreis. O
aspecto do pobre infeliz é terrível; exala um mau cheiro indescritível. A
impressão que tenho é que está apodrecendo em vida. Foi colocado em
outro aposento para que sua presença não venha a perturbar os outros
enfermos. Creio mesmo que não viverá muito tempo.
– Ora, minha boa Margarida, dar-se-á que tenhas escrúpulos agora? –
disse Louise.
– Senhora, é que não vistes o estado do infeliz. Peço-vos, minha
Senhora, não entreis neste quarto. Não se sabe nem o que tem; poderá
contaminar-vos com alguma doença, Deus não o permita! – fez o sinal-da-
cruz.
Colocando a mão no ombro da serva, Louise tirou-a da frente da porta,
onde ela impedia sua passagem, enquanto lhe assegurava:
– Acredita, Margarida, nada me acontecerá! Confio em Deus. É alguém
que veio procurar socorro em nossa casa e temos que auxiliar da melhor
forma possível. Se, como pensas, ele não viver muito, ótimo; é sinal de que
o Senhor o chamou a Si, e o nosso dever é amenizar-lhe os últimos
momentos de vida na Terra, proporcionando-lhe, pelo menos, uma morte
digna. Compreendeste?
A serva abaixou a cabeça, resignada, e Louise entrou no aposento. As
janelas estavam abertas de par em par e o ar balsâmico entrava livre. Não
obstante isso o ambiente estava irrespirável.
Com dificuldade, mas decidida, Louise aproximou-se do leito, cujos
lençóis eram alvos e muito limpos. Cheia de compaixão acercou-se do
enfermo. Jamais vira alguém em estado mais deplorável em toda a sua
vida.
As roupas surradas e de cor indefinível eram as de um sacerdote, notou,
surpresa. Os cabelos, hirtos e desgrenhados, desciam até os ombros e
juntavam-se à barba suja e mal cuidada. Parecia estar realmente muito
mal. Seu estado de fraqueza era extremo e estava inconsciente.
Com dificuldade e sob mudo assombro reconheceu nele o frei Felipe.
Louise não sabia nem por onde começar. Logo, porém, dominou-se e,
em seguida, ordenou aos servos:
– A primeira providência é dar-lhe um banho e colocar-lhe roupas
limpas e decentes. Ajudai-me.
– Miguel, corta-lhe os cabelos e faze-lhe a barba. Está muito sujo o
pobre homem.
Margarida aprestou-se a trazer sabão, água limpa e roupas. Ao tirarem
seu hábito infecto, perceberam que estava ferido. Felipe gemeu ao
tocarem no local sensível e infeccionado.
Louise lavou o ferimento, cuidadosamente, depois fez um curativo,
colocando um unguento cicatrizante. Em seguida enfaixou o ombro,
imobilizando o braço.
Quando Miguel terminou o serviço, e as roupas limpas foram colocadas,
o aspecto do enfermo era outro. O servo chamou a condessa, que
aguardava no outro quarto, visitando outros pacientes.
– Senhora, vede como parece bem mais jovem. Está com outro aspecto!
Louise entrou sorridente no quarto, onde já se respirava outro ar.
– Fizeste um milagre, meu bom Miguel. Ele está até bonito! – disse,
aproximando-se do leito.
De repente estacou, olhando fixamente o homem deitado à sua frente, e
um grito rouco saiu-lhe da garganta:
– Meu filho!
Os servos olharam-se atônitos e, em seguida, fitaram o doente.
Louise caíra no chão, ajoelhada junto ao leito, murmurando:
– Meu filho! Meu filho! Afinal, voltaste para tua mãe, Pierre!
Sua cabeça parecia querer explodir. Não estava compreendendo nada.
Tudo estava confuso, sem nexo. Mas, como? – pensava – era frei Felipe e,
de repente, também era seu filho. Como podia ser isso? Então, se fosse
verdade (e ela sabia que era verdade), ele estivera muito mais próximo
dela do que jamais pudera imaginar. Como nunca percebera nada?
Voltando através do tempo e rebuscando os escaninhos da memória
procurou rever todo aquele tempo de convivência em Montmorency e
chegou à conclusão de que, por incrível que pudesse parecer, nunca tinha
visto realmente o rosto de frei Felipe. Estava sempre com o capuz
enterrado na cabeça, cobrindo-lhe boa parte do rosto; sua atitude era
arredia e soturna. Não incentivava diálogos e apenas exercia suas funções
de sacerdote quando necessário. Afora isso, estava sempre longe de todos,
ou nos seus aposentos, ou andando pelo jardim ao percebê-lo vazio.
Incrível! Como pudera ser tão cega?
Sentia que seu filho Pierre tivera uma vida muito difícil e sofrida. Seu
aspecto denotava isso; era jovem ainda e já alguns fios de cabelos grisalhos
lhe tingiam a cabeça. Com carinho infinito Louise tocava seu rosto tão
amado, seus cabelos, suas mãos.
Clarissa, que ao ouvir o grito, entrara às pressas no aposento, estacou
estarrecida ao ver Louise ajoelhada junto ao leito, alheia a tudo.
Tentou chamá-la, mas a amiga não estava em condições de ouvi-la,
entregue aos próprios pensamentos.
Margarida, chamando-a de lado, num vão da janela, explicou à
condessa de Montmorency o que estava acontecendo. E dizia entre
lágrimas:
– É um milagre de Deus, Senhora Condessa. É o nosso pequeno Pierre
que volta para os braços de sua mãe. E nessas condições! – e chorava mais
ainda, lembrando-se de que não desejara assisti-lo.
Clarissa, emocionada, fitava a cena enternecedora que se desenrolava à
sua frente.
Louise, colocando a mão na fronte do rapaz, voltou a si e viu que estava
perdendo tempo.
– Está ardendo em febre. Pierre precisa de todo o cuidado possível. Não
posso perdê-lo agora. Não depois de tê-lo encontrado após tantos anos.
Fez uma pausa e, após pensar por um instante, ordenou:
– Miguel, vamos removê-lo para o castelo. Se for para morrer, quero
que morra no seu quarto, no seu leito.
Com imenso cuidado colocaram o ferido numa padiola improvisada e
conduziram-no para o castelo, acomodando-o naquele que fora seu quarto
outrora, há muitos anos, e que continuava como o deixara.
O conde Ricardo de Montpellier ficara possesso de ódio, na época, e
mesmo depois de ter expulsado o filho adotivo, cultivara a animosidade
em seu coração e exigira que Louise se desfizesse de tudo o que pertencera
ao infeliz Pierre.
Ela, porém, que, via de regra, não discutia as ordens do marido,
soberanas naqueles domínios, levantou a cabeça, altiva, enfrentando-o e
recusou-se terminantemente a cumprir suas determinações, dizendo-lhe
com voz firme e resoluta:
– Senhor meu marido. Expulsaste do lar aquele que considero, não
como filho de sangue, mas como filho do coração. Empurraste Pierre para
o desconhecido, quiçá para a morte. Mas não tocarei em nada que
pertenceu a ele, pois tenho esperanças de que, um dia, te arrependerás da
tua atitude intempestiva e insana, e de que ele retornará a este lar. Pede-
me, portanto, o que quiseres, Senhor, mas não poderás obrigar-me a
esquecer as lembranças do meu filho, que permanecerão vívidas nestes
aposentos.
Conhecendo o caráter e a personalidade da esposa, Ricardo entendeu
que esbarrara numa muralha intransponível e que não lograria convencê-
la a mudar de atitude. Por isso, com um gesto displicente e indiferente,
deu por encerrado o assunto:
– Faze como quiseres. Só te peço, já que cultuas tanto a memória
daquele miserável, que mantenhas aqueles cômodos trancados, para que
eu nunca mais tenha o desprazer de vê-los. É só.
Louise concordou e, desde então, os aposentos de Pierre eram
periodicamente limpos e trancados em seguida, permanecendo intocáveis.
E foi para lá que conduziram Pierre, depositando-o com infinito
carinho no leito, alvo e limpo.
A partir de então começou a luta de Louise para salvar a vida de seu
filho, cujo estado de saúde piorou repentinamente.
Enquanto esteve sozinho, lutando contra a febre e o tempo, tendo que
percorrer enormes distâncias numa incômoda carroça e sem qualquer
conforto, Pierre manteve a disposição de luta, e seu organismo se defendia
contra a enfermidade.
Desde, porém, que chegara a seu destino, sentindo-se em casa e em
segurança, entregara-se, caindo suas defesas, como se só aguardasse
alcançar o lar.
A febre aumentara muito, insidiosa, solapando-lhe as parcas energias.
Louise se esmerava em colocar compressas frias sobre sua fronte ardente.
Era uma luta contra a morte, que ameaçava levar-lhe o filho querido que
há tanto tempo não via.
O facultativo que foi chamado às pressas, após examiná-lo sacudiu a
cabeça, desalentado.
– Não tenhas muitas esperanças, Senhora. O estado do rapaz é
sumamente grave, e só um milagre poderá salvá-lo. Se tivesse sido
assistido a tempo a situação seria diferente. Mas, agora...
Aflita, Louise perguntou:
– O que posso fazer, Doutor?
– Bem. Vou prescrever alguns cuidados e medicamentos que deverão
ser ministrados sem falta.
O médico explicou-lhe que o ferimento deveria ser limpo duas vezes ao
dia e trocadas as ataduras. Entregou-lhe um pote com unguento, que
deveria ser passado após a limpeza, e deixou um saquinho com ervas para
fazer tisanas. E, passando às suas mãos um pequeno frasco com líquido
esverdeado, completou:
– Quando a febre estiver muito alta dá-lhe estas gotas calmantes. É só. O
mais, teremos que esperar que o seu organismo jovem reaja, combatendo
a enfermidade.
Louise agradeceu e o médico foi embora, prometendo voltar sempre
que possível.
À cabeceira do filho Louise permaneceu sem dar tréguas. Clarissa
suplicava-lhe que fosse repousar um pouco, enquanto ela a substituiria ao
lado de Pierre. Ela, porém, se recusava terminantemente a abandonar o
quarto; não se alimentava, senão quando Margarida trazia-lhe alguma
refeição ligeira. E, ainda assim, mal tocava nos alimentos, preferindo uma
fruta, um refresco ou apenas um pedaço de queijo.
Temia que, se abandonasse o quarto do filho, Pierre poderia morrer
sem que estivesse a seu lado. Às vezes adormecia com a cabeça debruçada
sobre o travesseiro do filho, acordando, assustada, logo em seguida.
Com a febre o rapaz entrou a delirar falando coisas desconexas. Às
vezes supunha-se ainda no mosteiro e falava com os companheiros de
sacerdócio; de outras vezes tentava levantar-se em delírio:
– Ela... onde está ela? Maldito, que me roubou a paz e a felicidade. Vejo-
te! Onde a deixaste, infeliz?
De quando em quando falava sobre conciliábulos e sinistros desígnios,
citando nomes e lugares.
Louise, assustada, tentava acalmá-lo, mas percebia que seu filho, desde
que deixara o lar, tivera uma vida escusa e complicada; que não era mais
aquele menino que fora expulso do lar paterno, mas um homem que
transitara por caminhos escuros e tristes, conquanto pertencesse ao clero.
Inclinava a fronte e orava por ele, suplicando a Deus lhe perdoasse as
faltas.
De outra feita ele recomeçara a falar alta madrugada. No aposento, só
Louise e Clarissa velavam.
A mãe amorosa afastara todos os servos, temendo que, em seu delírio,
ele se comprometesse, contando o que não devia. Nessa madrugada ele
arregalou os olhos, gritando:
– Eu a encontrei! Eu a encontrei! Mas, onde estará ela? Preciso levantar-
me e tirá-la daquela prisão.
– Quem, meu filho? – perguntou Louise, curiosa.
– Ela... ela... sofre muito. Estará sob o jugo da Igreja? Ou do rei? Não
sei... não sei... está presa...
– Ela, quem, meu filho?
– Ela... Marianne, Irmã Angélica.
As duas senhoras se entreolharam, perplexas. Clarissa se aproximou
mais, interessada. Afinal, ele falava de sua nora, a esposa de Charles.
– Onde está Marianne? – perguntou, aflita.
– Não sei... não sei... Eles a matarão. Preciso ir em seu socorro – e
tentava levantar-se, fazendo com que ambas fizessem um esforço enorme
para contê-lo no leito.
– Acalma-te, meu filho!
– Malditos! – ele prosseguia – incendiaram minha casa. Socorro! Tudo
está pegando fogo. Os animais estão mortos... não tenho saída. O que farei?
Mas eles não me pegarão. Vingar-me-ei de todos eles. Onde está minha
noiva? A traidora me abandonou. Seríamos tão felizes juntos...
E continuava falando... falando... e falando. Davam-lhe as gotas que o
médico prescrevera e ele se acalmava passando por ligeiro sono; para
recomeçar tudo novamente logo que o efeito do medicamento terminasse.
Num período em que ele dormia placidamente Louise e Clarissa se
afastaram para um vão da janela para trocarem ideias. Estavam ambas
sumamente intrigadas e aflitas.
– O que pensas de tudo isso? – perguntou Louise.
– Não sei, minha querida. Mas me assusta um pouco. Ele fala de coisas
que ignoramos e de fatos que desconhecemos.
– É verdade. Pobre filho! Como deve ter sofrido. Terá acontecido tudo o
que ele diz?
– Talvez seja apenas alucinação dele.
– É possível.
Mas, em outro dia, ele voltava a contar as mesmas coisas, as mesmas
histórias, confirmando o que dissera antes em seu delírio. Grande parte do
que ele falava elas não entendiam e lhes parecia sem sentido. Aos poucos
foram juntando os fatos.
Assim ficaram sabendo lances da vida dele que não conheciam;
acontecimentos que ocorreram e que Pierre desvendava agora. Seu amor
por Marianne veio à tona, a obsessão que nutria por ela. Ficaram sabendo
que ele a reencontrara depois, como aquela irmã Angélica a quem ele se
referia muito amiúde. Pierre falava sobre a guerra, os combates e a
política.
Quanto a Marianne, estaria presa realmente?
Uma angústia muito grande começou a assenhorear-se das duas
amigas. Um medo de tudo o que não sabiam, das coisas que ignoravam,
começou a tomar corpo.
Sob intensa emoção, ficaram sabendo, certo dia, que Pierre fechara os
olhos de Lucas, seu irmão, a quem o doente se referia com muito carinho.
Foram informadas também de que Filipe Augusto perdera a batalha em
Vernon, próximo a Évreux, e não muito distante de Montmorency, onde
Pierre, ou melhor, frei Felipe fora atingido.
Meu Deus! Quanta tragédia envolvendo tantas vidas! Parecia que um
sopro gélido de desgraças abatia-se sobre suas cabeças.
Sabendo da derrota de Filipe Augusto, Clarissa começou a temer pela
vida de seu filho, Charles. Por outro lado, tinha desejo de saber o que
acontecera com ele, mas temia perguntar ao enfermo com medo da
verdade.
Louise também sentiu que um nó fechou-lhe a garganta, ameaçando
sufocá-la. A imagem do marido, Ricardo, e as de seus comandados
surgiam-lhe na tela da memória. O que teria acontecido com eles? Teriam
conseguido fugir? Estariam vivos ainda, estariam mortos ou, quem sabe,
aprisionados?
E fitavam o doente com olhos febris, buscando nele a resposta a suas
indagações e dúvidas mais prementes.
Clarissa percebera, contudo, angustiada, a animosidade de Pierre
contra seu filho Charles, através das suas palavras, aparentemente
desconexas.
E Pierre continuava após alguns momentos de tranquilidade. Parecia
estar bem longe e falava coisas estranhas:
– Tamara, se não fores minha, não serás de mais ninguém. Esquece esse
maldito Agar... Tenho que matá-lo. Só assim serei feliz e Tamara será
minha... Como soldado de Belisário tenho que seguir junto ao exército,
mas Agar ficará aguardando reforços do Imperador Justiniano... É a
oportunidade que eu esperava... Rufino, ministra estas gotas ao nosso
amigo, mas de forma que ninguém desconfie de mim...
Nesse ponto abaixou a voz como se temesse algo, continuando: – Que
ninguém fique sabendo desta nossa conversa, ou responderás com a vida...
Louise colocou as mãos sobre o rosto, horrorizada, ao ouvir essas
palavras. De repente ele arregalou os olhos, fitando-a com expressão
esquisita:
– Lúcia, estás aí? Não me abandones. Todos me abandonaram... Lúcia,
onde estão os nossos filhos?!...
– Não sou Lúcia, meu filho. Sou Louise, tua mãe – respondeu com
carinho, passando a mão fresca sobre a testa ardente e perolada de suor.
– Não. Tenho certeza. És Lúcia, minha esposa. Onde estão nossos filhos?
O que foi feito deles? Nika... Lucas...
Nesse ponto suas lembranças, que misturavam o passado e o presente,
embaralharam-se e ele ficou confuso.
– Onde está meu irmão Lucas? Ah! Vejo-o agora. Está aqui neste quarto.
Mas, Lucas já morreu... Charles, tu também, maldito! Afasta-te de mim.
Não desejo ver-te.
E levantava os braços gesticulando, como se realmente quisesse afastar
alguém.
– Não... eu teu odeio. Afasta-te de mim. Também me odeias, eu sei.
Queres vingar-te, mas não o conseguirás. Já não existes mais, miserável
infame. Por tudo o que fizeste a Marianne e a mim, tiveste de pagar.
Destruí tua vida, sim. Matei-te e não me arrependo.
E continuava com expressão de delírio nos olhos turvos:
– Vê teu coração. Trago-o sempre comigo. Quero entregá-lo a Marianne
quando a encontrar, como penhor do meu amor.
E procurava nas roupas, nas algibeiras, algo, impaciente, num frenesi.
– Onde está? Teu coração está comigo, já não o tens mais e ficarás
sangrando por toda a eternidade.
Nesse ponto, Clarissa que, à medida que Pierre falava se afastara do
leito horrorizada, parecia enlouquecer de dor. Percebeu claramente que,
não obstante delirando, Pierre estava dizendo a verdade.
Assim que o rapaz fora recolhido no castelo e retiraram-lhe as roupas,
que exalavam cheiro pútrido e nauseabundo, Clarissa e Margarida
revistaram os trapos para ver se encontravam algo que o identificasse; que
lhes dissesse quem ele era e de onde vinha. Nada encontraram, salvo num
primoroso cofrezinho de prata lavrada, incrustado de pedras preciosas.
Abriram o escrínio e encontraram um pano todo sujo, onde se viam os
restos de uma massa escura e apodrecida, que os vermes devoravam. O
mau cheiro era tanto que ambas se sentiram mal e, cheias de nojo,
atiraram longe o cofrezinho, reconhecendo que grande parte da exalação
fétida provinha dele.
E agora, lembrando-se desse pormenor, Clarissa ligou os fatos e sua
cabeça rodopiou, sentindo-se enlouquecer. Era então o coração de seu
filho Charles aquela massa informe que jogara com asco. Pierre o matara
mesmo, tinha certeza agora.
Como num caleidoscópio, Clarissa via tudo girando à sua frente. A
realidade lhe fugia, envolta em vagas lembranças do passado. Revia o filho
ainda criança, cheio de graça e de mimos, impondo a sua vontade. Os
carinhos incontáveis que ela lhe prodigalizava, os afagos sem fim, os
momentos em que ele adormecia em seus braços amorosos. As horas em
que o filho corria para ela, sempre para ela, quando se machucava,
levemente que fosse, num folguedo. Bastava que ela o acarinhasse para
que ele voltasse feliz para as brincadeiras, já esquecido do incidente e
curado.
Revia o filho na primeira juventude, quando, havendo descoberto a
vida, embrenhara-se pelas veredas do prazer e da vida alegre. As primeiras
mulheres da sua vida, que não lhe traziam preocupações, por sabê-las
insignificantes. Quando conheceu Marianne, porém, sentira que aquela
mulher era perigosa porque atraíra um interesse em Charles que ele
nunca tivera por ninguém. A vinda do pequeno Augusto, algum tempo
após o casamento, fora um bálsamo consolador em suas vidas, uma réstia
de sol numa noite escura.
Depois... depois a guerra, afastando seus entes amados. Seu marido já
partira deste mundo, deixando como único tesouro o filho adorado. Esse
filho que agora sentia ter perdido de vez, assassinado por aquele homem,
aquela criatura que um dia a convencera a ter uma entrevista marcada
pelo infame Bouillon, onde seu marido Henri viria a perder a vida. Nunca
pôde perdoá-lo por isso.
Sua mão trêmula e febril, tateando sem rumo, tocou a lâmina de uma
faca, que permanecia sempre na pequena mesa dos curativos, para o que
se fizesse necessário. Agarrou com força aquela arma e, antes que alguém
pudesse atinar com o que estava acontecendo, Clarissa, de olhos
esgazeados, atirou-se sobre o enfermo, enterrando-lhe a lâmina no peito.
– Assassino desalmado e covarde, morre! Morre tu também, que não
mereces viver!
Ante o assombro e a estupefação de Louise, de Margarida e Miguel que,
presentes, nada puderam fazer para impedir, assistindo, impotentes, ao
ato tresloucado da mulher.
Foi um segundo só. Louise, fitando o filho bem-amado, que partira
desta para a outra vida, mergulhado em sangue, perdeu os sentidos.
Miguel e Margarida seguraram a condessa Clarissa, que dizia palavras
desconexas, e se debatia entre seus braços. A pobre perdera a razão. O
golpe fora muito duro para seu espírito e não suportara a realidade.
Miguel percebeu que mais uma pessoa presenciara o fato. Era Ricardo
que, parado à porta, surpreso, acompanhava a cena.
Acabara de chegar. Estava todo sujo e enlameado, exausto pela longa e
fatigante viagem. Ao entrar no castelo, não encontrando a esposa,
interpelou uma serva que lhe indicou onde encontrar Louise.
– Nos aposentos do Senhor Pierre, Senhor Conde.
Dirigiu-se para lá e, ouvindo vozes, parou na entrada do quarto,
assistindo à cena descrita. Ouviu que o enfermo falava de Charles,
percebeu a situação, teve ímpetos de também lançar-se sobre ele, mas não
teve tempo, pois Clarissa, rápida, já o golpeara de morte.
Os serviçais não sabiam a quem atender primeiro. Clarissa se debatia
nos braços de Miguel e Margarida. Viram, ao mesmo tempo, Louise que
perdera os sentidos, estatelada no chão. Na porta, qual fantasma
tenebroso, o conde Ricardo parecia estar tendo um ataque. Felizmente,
outros criados acudiram, ajudando-os no socorro aos patrões.
A pobre Clarissa foi levada pelos servos para seus aposentos, onde ali
permaneceu.
Espíritos benfeitores, amigos de antanho, ali se congregavam, tentando
evitar o desenlace brutal que, perceberam, ocorreria em instantes. Mas em
vão tentaram socorrer a infeliz criatura, que, auxiliada por aquele a quem
amava com todas as forças, seu filho Charles, perpetrara esse bárbaro
crime, que lamentaria por muitos séculos futuros.
O corpo de Pierre, ou frei Felipe, jazia inanimado. Somente o espírito
continuaria vivo para enfrentar as realidades maiores e assumir a
responsabilidade pelos atos praticados.
O infeliz Pierre, através da lei de causa e efeito, fizera jus a essa morte
infamante, mas Clarissa adquirira débitos que teria de sanar no futuro,
com sacrifício pessoal e renúncia extrema. Vinculava-se ao moribundo de
forma triste, e os séculos os encontrariam unidos um ao outro nos
compromissos aspérrimos do porvir.
Quanto ao espírito que acabara de ser expulso violentamente do corpo
físico, mergulhou num torpor em que perdeu a noção das coisas.
Despertou algum tempo depois sem saber onde estava. Gritou por
socorro, suplicou assistência, mas ninguém lhe respondeu aos apelos.
Dor atroz o martirizava quando percebeu que o peito sangrava em
abundância. Pôs-se a gritar freneticamente, tentando com as mãos
estancar o sangue que jorrava sem parar. Gritou até sentir a garganta
dolorida. Uma fraqueza imensa o acometeu; supôs que fosse pela perda
contínua de sangue. Sentiu-se mergulhar num oceano de névoas densas e
perdeu a noção de si mesmo.
Despertou ouvindo uma voz que o chamava à distância. Lembrou-se de
Marianne e, antes que pudesse perceber o que ocorria, viu-se numa cela
imunda, escura e fétida.
Ouviu um choro lamentoso e convulsivo. Procurou de onde provinha e
encontrou Marianne num local de difícil acesso, num buraco talhado na
rocha. Tentou puxá-la mas não conseguiu. Tentou retirá-la daquela local,
mas, desesperado, percebeu que não tinha forças para tanto.
Ela gritava, asfixiada, tentando libertar-se daquele túmulo terrível. De
repente ele percebeu que ela saía daquela buraco e respirou mais aliviado.
Marianne sentou-se no chão, com a cabeça entre as mãos, chorando
desesperada.
Pierre tentou chamar sua atenção, dizer que ele estava ali, ao seu lado,
e que, não obstante suas próprias dificuldades, procuraria ajudá-la a sair
do cárcere; ela, todavia, parecia não notar sua presença.
Em determinado momento, porém, saindo de si mesma, ela o
vislumbrou à sua frente e gritou, horrorizada.
Assustou-se com o aspecto que Pierre apresentava. Estava de fato
horrível. Vestes rotas, sujo, tendo uma ferida aberta no peito, mantinha as
mãos sobre ela, tentando segurar o sangue que se esvaía sem cessar.
Cabelos desgrenhados, olhos febris, parecia uma imagem saída do inferno.
Notando que a assustara, Pierre procurou esconder-se para que ela não
o visse.
Marianne, porém, ficava, em certo momento, fora do buraco; no
momento seguinte entrava novamente nele e revivia tudo, como se fosse
obrigada a passar sempre pelo mesmo local.
Aconteceu que a infeliz Marianne um dia descobrira, em meio às palhas
que constituíam seu leito, uma abertura talhada na pedra.
Cheia de esperança, muniu-se de coragem, examinou com atenção o
buraco escuro e chegou à conclusão de que valeria a pena tentar. Preferia
qualquer coisa a permanecer presa naquele calabouço.
A passagem não teria mais do que o suficiente para passar um corpo
magro na horizontal, e, assim mesmo, se arrastando e mantendo os braços
estendidos sobre a cabeça.
Prendendo a respiração, Marianne, com o coração aos saltos, entrou na
passagem. Com esforço ingente e sentindo-se morrer a todo instante, logo
conseguiu vislumbrar uma luz mortiça que indicava estar chegando ao
término do seu sofrimento.
Com novas esperanças retomou as forças que lhe faltavam a todo
instante e chegou do outro lado, sã e salva. Seus pulmões pareciam querer
explodir dentro do peito, por falta de oxigênio. Respirou sofregamente o
ar que lhe chegava e, antes de observar em torno, jogou-se no chão,
exausta, tentando recuperar-se do esforço despendido.
Algum tempo depois é que foi procurar ver onde estava, fazendo o
reconhecimento do terreno.
Encontrava-se numa gruta sem qualquer saída. A luz e o ar que
entravam provinham de uma pequena fresta, no alto, aberta na rocha.
Nenhuma saída, nenhuma porta. Nada.
Com horror viu num canto o esqueleto de alguém que, com toda
certeza, tivera a mesma ideia que ela. Talvez até alguém que tivesse feito o
buraco, escavando com dificuldade na pedra.
O desespero tomou conta dela. O medo de perecer como aquela outra
criatura que ali estava em forma assustadora.
O reconhecimento de que teria que voltar pelo mesmo caminho,
percorrendo novamente aquela passagem, deixou-a desesperada e
enlouquecida.
Mas, o único meio de sair daquele local – um beco sem saída – era voltar
pelo mesmo caminho. Não tinha escolha.
Marianne, encurralada, resolveu retornar. O medo era enorme. Da
primeira vez tinha a estimulá-la o desejo e a esperança de conseguir a
liberdade. Mas, agora!...
Prendendo a respiração, Marianne se internou novamente no buraco. O
ar lhe faltava e estava, ainda, cansada do esforço que empreendera na
vinda. O medo de morrer ali, sufocada, transformou-se em pânico. E o
pânico que a acometeu tirou-lhe a condição de lutar. Debateu-se para sair
daquele local, mas o seu desespero, os gritos sufocados, terminaram com a
pouca resistência que possuía. O ar necessário e suficiente à passagem
consumiu-se, e Marianne debateu-se até a morte, por asfixia.
Libertando-se, seu espírito, por não saber que já ocorrera o fenômeno
da morte física, continuou preso àquele local, ora fora do buraco (porque
na realidade estava livre), ora passando novamente pelo momento da
morte, mil vezes, infinitas vezes, como uma sarabanda infernal que não
tivesse fim.
E era isso que, sem entender, Pierre acompanhava. Era o desespero de
um espírito ainda preso à matéria e que sofria também pelos atos
praticados.
Acima de tudo, porém, velava a Misericórdia Divina, arrimo e socorro
de todos os sofredores e deserdados do mundo.
Ninguém está só. Amigos desvelados, do Plano Espiritual, aguardavam
uma oportunidade para retirá-los daquele local de desespero e morte.
Mas, somente o tempo, esse remédio para todos os males, faria com que
aquelas duas criaturas, que em vida envergaram as túnicas de servos do
Cristo, pudessem renovar-se através do pensamento enviado ao Criador.
Capítulo XXV - Vitória da França

Eram dias difíceis para a França. O exército francês, comandado


pessoalmente por Filipe Augusto, sofreu sérios reveses.
Ricardo I, o Coração de Leão, que ocupava o trono inglês, unindo-se
através de acordos com os condes de Boulogne, de Flandres e de Blois,
impôs ao soberano francês dolorosas derrotas, até que este foi obrigado a
aceitar a trégua de Vernon, humilhante para a França, em 1199.
Assinando o Tratado de Péronne no ano seguinte, que, não obstante
desonroso e revoltante, era sua única saída, Filipe Augusto se
comprometeu a devolver para o conde de Flandres o Aire e Saint-Omer.
Desgostoso com essas derrotas que lhe foram infligidas por Ricardo, o
soberano francês procurou reorganizar-se para voltar à luta.
A seu favor teve o fato de que o soberano inglês, Ricardo Coração de
Leão, que era um bravo e inteligente homem e mantinha as rédeas do
governo firme em suas mãos, faleceu pouco tempo depois, neste mesmo
ano (1200), quando enfrentava uma revolta dos senhores da Aquitânia,
que pertencia à Inglaterra.
Nessa época os ingleses dominavam não só a Aquitânia, como também a
Normandia, a Bretanha, o Anjou e a Touraine, entre outros territórios.
O sucessor de Ricardo I ao trono da Inglaterra, seu irmão João Sem
Terra, não possuía as qualidades e a capacidade de Ricardo, o que
propiciou a Filipe Augusto, superior em estratégia, a reconquista da
Normandia em 1204. Logo em seguida conseguiu reconquistar também o
Anjou, o Maine, a Bretanha, a Touraine e o Poitou.
O poderio da França era muito grande e a coroa francesa se fazia cada
vez mais respeitada e temida, o que desagradava profundamente a seus
inimigos.
Consciente de que não poderia vencer sozinho a França, João Sem Terra
procurou ajuda nos países vizinhos; conseguiu convencer Oto IV da
Alemanha, que nutria sérias queixas contra Filipe Augusto, a lutar a seu
lado. Convenceu também os senhores de Flandres e de Boulogne a se
aliarem a ele contra a França, o que aumentava muito as suas
possibilidades.
Assim fortalecido, João Sem Terra lançou-se ao ataque. Através da
Aquitânia, território inglês e, consequentemente seguro, João atacaria a
França, enquanto seus aliados atacariam por outro lado, a nordeste.
Filipe Augusto, muito sabiamente, em vez de dividir seu exército, como
era estratégia dos inimigos, preferiu atacar em massa os aliados da
Inglaterra, sabendo que, se os vencesse, João Sem Terra não teria
condições de prosseguir na luta.
Foi o que fez. Atacou com todas as forças o exército alemão e seus
aliados, e com tanta precisão que os derrotou em Bouvines, nas
proximidades de Lille.
Essa vitória, que foi importantíssima para o futuro da França, causou
uma série de contratempos, mas decidiu muitas questões fundamentais.
Descontentes com a ação de Oto IV, e já tendo outras questões
pendentes, essa batalha foi a gota d’água para os alemães, que depuseram
Oto, subindo ao trono Frederico II. Com isso os alemães ficaram
enfraquecidos, o que apressou a queda do Santo Império Romano, já
decadente.
Quanto aos condes de Flandres e de Boulogne, aliados da Alemanha e da
Inglaterra, ficaram sob o domínio francês, estendendo-se os territórios
anexados à França até o Reno.
João Sem Terra, enfraquecido e humilhado, perdeu a liderança em seu
próprio país, ficando desprestigiado e desamparado perante seus barões.
Assim, viu-se coagido a assinar a Magna Carta, em 1215, documento de
capital importância para a Inglaterra, o qual concedia direitos ao povo
inglês.
Mais de dois lustros haviam-se passado sobre os últimos
acontecimentos ocorridos em Montpellier.
Vamos encontrar nossos personagens em um lindo dia de sol em plena
primavera. O ar trazia suaves perfumes de flores silvestres. Pela ampla
janela viam-se o jardim florido e as folhas brandamente agitadas pela brisa
matutina.
Louise, que tivera os cabelos embranquecidos prematuramente,
ostentava-os como se fossem uma coroa luminosa encimando-lhe a cabeça
respeitável.
No semblante a mesma serenidade de sempre, a que não faltava um
leve ar de tristeza, que lhe conferia maior nobreza às feições. Com firmeza
decidia tudo, comandando a propriedade e seus bens.
Nesse exato instante procurava convencer Clarissa a alimentar-se:
– Querida Clarissa, vamos, come alguma coisa. Não queres esta fruta?
Então, aceita estes pasteizinhos de nata que estão deliciosos. Vamos! Desta
forma ficarás muito enfraquecida e não poderemos passear no jardim. E o
dia está tão bonito!
A pobre mulher parecia não entender, alheia ao que acontecia a seu
redor.
Nada naquela criatura lembrava a dama nobre e requintada, vaidosa e
elegante, que frequentara os melhores salões da França.
Dependia de alguém que lhe trocasse o vestuário, que lhe penteasse os
cabelos, que lhe desse de comer. Fitando aquele corpo que mirrava a olhos
vistos, a pele cor de cera, as carnes flácidas, as mãos esquálidas, Louise
suspirou:
– Está bem! Teu filho vai chegar e não gostará de ver que não tens te
alimentado convenientemente.
Ao ouvir falar do filho seus olhos vagos adquiriram novo brilho e
inquiriu, aflita:
– Charles vai chegar? Por que não me disseram antes? Preciso preparar-
me para recebê-lo. Onde está aquele vestido de cetim azul de que ele
gostava tanto?
Com gesto algo cansado, Louise suspirou e disse:
– Está guardado. Mas, antes, alimenta-te, pois estás muito pálida e
enfraquecida. Charles não gostará de ver-te assim.
Com ânimo novo a pobre enferma acedeu em comer alguma coisa,
auxiliada por Margarida.
Nisso, entrou Miguel dirigindo-se à patroa:
– Senhora Condessa, o Senhor Conde exige vossa presença.
– Como está ele hoje, Miguel?
– Difícil, Senhora. Não quer cooperar em nada.
Levantando-se da poltrona onde acabara de sentar-se, Louise tomou o
rumo dos aposentos do marido.
Abriu a porta com um sorriso, procurando demonstrar alegria e
otimismo.
– Bom dia, meu querido. Como estás hoje?
Ao vê-la o olhar do doente se acalmou e um toque de ternura apareceu
neles. Com gestos, acompanhados de grunhidos, tentou fazê-la entender o
que desejava.
– Não queres fazer a barba?
Ele concordou com um aceno eloquente, fulminando Miguel com o
olhar.
– Está bem, Ricardo. Hoje não farás a barba. Fica para amanhã. Mais
alguma coisa? Ah! queres que fique contigo fazendo-te companhia? Agora
não posso, querido. Tenho muitos afazeres, mas comporta-te bem e, logo
após o almoço, virei ficar contigo. Está bem?
Saindo dos aposentos do marido Louise dirigiu-se a seu quarto onde
ficou perdida em meditações.
Margarida entrou de mansinho.
– Senhora, consegui levar a condessa Clarissa para o quarto, após comer
ligeiramente – informou.
– Ótimo, Margarida.
– Senhora, se me permitis, acho-vos um tanto quanto cansada. É
necessário que repouseis um pouco.
– Ah! querida Margarida, o que faria eu sem ti? És o meu anjo bom
nesta casa. Como nossa vida mudou, não é mesmo? Foi-se o tempo em que
éramos felizes, os meninos pequenos e os problemas era resolvidos por
Ricardo, sem que eu chegasse a tomar conhecimento deles. Hoje em meus
ombros frágeis está toda a responsabilidade pela direção da propriedade,
além dos cuidados aos nossos doentes.
– Por isso insisto em que precisais repousar um pouco, Senhora.
– Não posso, Margarida. Minhas responsabilidades são muitas. Quem
sabe quando Augusto chegar?
– É verdade, o nosso menino vai voltar em breves dias.
– Sim, conforme mandou avisar, dentro de dez dias, no mais tardar,
estará conosco. O riso voltará a soar nestes corredores sombrios e tristes.
A alegria voltará a reinar nesta casa.
Enxugando uma lágrima a pobre serviçal se afastou para não deixar que
Louise percebesse sua comoção.
E a condessa de Montpellier ficou a meditar em tudo o que ocorrera
desde aquele fatídico dia...
Preocupada com o estado de saúde de seu filho Pierre, Louise fitava-o
enquanto ele discorria sobre coisas estranhas e fatos desconhecidos.
Não percebeu como a amiga se perturbara ao ouvir as declarações
desconexas de Pierre. Viu apenas quando ela, tresloucada de ódio e
portando uma pequena faca, se atirou subitamente contra seu filho,
enterrando-a de um só golpe no peito, que logo se tingiu de sangue.
Horrorizada, ela não sabia que atitude tomar, entre o medo e a
consternação. Viu que, incontinenti, saindo do torpor que os contivera a
todos, Margarida e Miguel seguraram Clarissa fortemente, enquanto esta
se debatia como louca. Perdera a razão.
Nesse instante percebeu Louise que na porta, acompanhando a
dramática cena com os olhos esbugalhados de ódio, estava seu marido
Ricardo, cuja presença ninguém notara.
Louise não viu mais nada. Rodopiou nos calcanhares e caiu desmaiada
no chão.
Quando Filipe Augusto perdeu a batalha, e os soldados foram quase
todos mortos, Ricardo conseguiu evadir-se com meia dúzia dos seus
homens, escapando ao morticínio geral.
Galoparam como loucos, vencendo as distâncias e procurando evitar o
exército inimigo. Escondiam-se de dia e viajavam à noite. Após muitos
percalços, cansados, famintos e maltrapilhos, aportaram ao castelo de
Montpellier. Procurando pela esposa, foi informado por um dos criados
onde encontrá-la.
Para os aposentos de Pierre se dirigiu. Uma carga violenta de ódio o
envolvia ao saber de seu retorno ao lar. Parado à porta, pelo teor da
conversa, percebeu o que se passara entre ele e Charles de Montmorency.
Mais por intuição do que por qualquer outra coisa, vinculou a figura do
filho Pierre ao detestável frei Felipe, aquele sacerdote cuja presença
parecia estar sempre ligada a algo de mal que acontecia.
As lembranças do acampamento, os fatos ocorridos com seu filho Lucas
e tudo o mais acudiram à sua mente.
A verdade é que Ricardo de Montpellier sempre tivera aversão por
Pierre, por sentir nele, inconscientemente, o inimigo Ciro, que destruíra a
vida de Bruno Di Castelverde no século VI.
Estava para lançar-se sobre Pierre, cravando-lhe a espada no peito,
quando viu Clarissa que se arremessava sobre ele, ferindo-o de morte.
Sua vista obscureceu de repente. Com uma das mãos segurava os copos
da espada, ainda não desembainhada, e com a outra tentava sustentar a
cabeça onde uma dor violenta se instalara de súbito. Algo se rompeu
dentro dela e, antes que alguém percebesse o que estava ocorrendo, caiu
ao chão, inconsciente, com o rosto contorcido.
O estado de saúde de Ricardo não era bom. Vinha sentindo
perturbações e tonturas havia tempo, mas, cônscio de suas
responsabilidades como comandante de um contingente do exército, não
podia fazer caso dessas coisas.
Com a carga emocional violenta que recebeu ao chegar àquele quarto,
mais o cansaço da viagem e dificuldades que lhe afligiam o cérebro
exausto, além das decepções ocasionadas pela derrota, não suportou. Uma
veia se rompeu, ocasionando um derrame cerebral.
A partir daquele instante tudo tomou o aspecto de uma roda-viva, em
que os participantes e atores executavam seus papéis sem se darem conta.
Os primeiros dias foram muito difíceis para Louise. O enterro de seu
filho Pierre fez-se de forma singela em razão dos outros fatos ocorridos.
Como um autômato, Louise procurou dar sua colaboração aos criados,
que se revezavam no atendimento ao conde Ricardo e à condessa Clarissa.
Conquanto ferida em seus afetos mais caros, Louise percebeu que
doravante tudo dependia dela. Antes ainda vivia da esperança de que o
marido, retornando da guerra, pudesse retirar dos ombros dela a enorme
responsabilidade de gerir seus haveres. Mas, agora, essa esperança não
existia mais. Concluíra que aprouvera a Deus testá-la mais uma vez.
Por isso, levando o coração em prece a Jesus, solicitou forças para
enfrentar suas tarefas com coragem e determinação.
Levantou a fronte, decidida, e a partir desse dia, ninguém a viu
reclamar de nada. Era a primeira a levantar-se com os albores da manhã, e
a última a recolher-se à noite, atenta aos seus deveres de enfermeira
solícita e dedicada.
Sua resistência física diminuía dia a dia, mas seu espírito continuava
forte e combativo.
Naquela manhã, enquanto meditava sobre os acontecimentos ocorridos
há mais de dez anos, ouviu que Margarida se aproximara. Esta, não
querendo importuná-la, aguardava que a patroa notasse sua presença, a
uma discreta distância.
– O que houve agora, Margarida? Ricardo se recusa novamente a tomar
os medicamentos?
Com um sorriso no rosto rosado e rechonchudo, a velha e fiel serva
respondeu, solícita:
– Não, Senhora. Desta vez não é problema que trago ao vosso
conhecimento. Felizmente, o conde ingeriu os medicamentos sem
reclamar, segundo me informou Miguel. Não. Não se trata disso. Também
não é nada com a Condessa, que se esmera em atavios para aguardar o
rebento do seu coração.
– Então, dize logo, pois estás a deixar-me curiosa.
– Trata-se de uma visita, Senhora. E creio que ficareis muito feliz em
recebê-la.
– Então, por que não a mandaste entrar?
– Porque eu não queria perturbar vosso repouso, Senhora Condessa
Louise de Montpellier!
Ao ouvir aquela voz terna e melodiosa Louise voltou-se e deparou-se
com a figura de um sacerdote. As roupas surradas já haviam perdido a cor
primitiva, as sandálias sujas de pó denotavam que andara muito pelas
estradas. O ar abatido e cansado, a barba longa e desfeita, mas os olhos
tinham a mesma ternura de outrora.
Com ele entrou uma onda de paz que pareceu envolver o ambiente.
Abrindo um sorriso que não se via há muito tempo em seu rosto, ela
correu para ele, exclamando:
– Frei Victor! Não acredito! Pois és tu mesmo?
Ele sorriu, deixando que ela o examinasse por inteiro, a segurar as mãos
dele.
– Tens andado muito, por certo. Que feliz circunstância te trouxe até
aqui?
– Tenho percorrido as aldeias e cidades, levando a palavra de Deus e
procurando auxiliar as criaturas necessitadas. Ao aproximar-se desta
região não contive o desejo de visitar os amigos saudosos.
– Ah! que feliz ideia tiveste. Mas, deves estar faminto. Teremos muito
tempo para conversar e colocar em dia as novidades. Mandarei preparar-
te um quarto e depois que estiveres mais repousado e alimentado
conversaremos melhor.
Com um sorriso agradecido, Victor foi levado até seus aposentos.
Após o banho desceu as escadarias para participar do almoço em
família.
Louise parecia haver remoçado. Era outra pessoa, mais alegre e bem
disposta.
– Desculpa, condessa. Estás sozinha neste castelo?
– Não, irmão Victor. Com certeza estás estranhando participar da
refeição apenas em minha companhia, não é exato?
– Bem, na verdade sim. E os outros membros da família?
– Essa é uma longa história que peço permissão para contar depois.
Deixemos as tristezas para mais tarde e aproveitemos este almoço que
está excelente – falou com delicadeza.
– Tens razão. Há muito não fazia uma refeição tão boa.
– Dize-me, frei Victor, e o mosteiro?
– Essa é uma história que também pretendo deixar para depois, a
exemplo da Senhora Condessa.
– Ah! Bem, então brindemos ao nosso encontro e à amizade que nos
une.
Mais tarde, repousando num terraço que a sombra das trepadeiras e
folhagens tornava aprazível e refrescante, Louise abriu seu coração ao
velho amigo e confessor.
– Ah! irmão Victor, se soubesses toda a desgraça que se abateu sobre
este lar... Perguntaste sobre os outros membros da família. Levar-te-ei
para visitar meu marido e a condessa de Montmorency. Mas não desejo
que os vejas sem que, antes, te informe do estado deles.
E contou a Victor seus problemas e dificuldades, a enfermidade de
Ricardo e de Clarissa; falou sobre os tristes e nefastos acontecimentos que
culminaram numa tragédia: a morte de Pierre.
O sacerdote, compungido, deixou que uma lágrima lhe deslizasse no
rosto.
– Por certo lamentas a morte de meu filho, pois és uma alma boa – disse
ao vê-lo tão emocionado.
– Não, Condessa. Lamento a morte de um grande amigo – retrucou o
monge.
– Ah! É verdade. Vez por outra esqueço-me de que Pierre foi também
frei Felipe, e que o conheceste.
O homem a fixou com olhar compungido, embora sereno. Ela continuou
em suas divagações:
– Há tantas coisas da vida de meu filho que desconheço! Há um espaço
tão grande e uma diferença tão gritante entre o rapaz que eu criei e
conheci e o que ele se tornou depois. Lembro-me dele no castelo de
Montmorency. Era sempre taciturno, frio e distante. Nunca sorria e vivia
sempre encapuçado. Jamais chegarei a conhecer o mistério que foi grande
parte de sua vida. O ódio que nutria por Charles, por exemplo...
Com voz pausada e tranquila, Victor afirmou, para surpresa de Louise:
– Creio que posso ajudar-te a desvendar esses mistérios...
– Como assim?!...
– Pierre fez-me confidente da sua vida e acredito que não se
incomodará, onde possa estar, que aclare esses pontos obscuros. Houve
tempo em que era necessário que ninguém disso tomasse conhecimento,
mas agora, quando os personagens centrais deste drama estão mortos, não
existe mais razão para guardar segredo.
Entre surpresa e incrédula, o coração aos saltos, Louise aguardou que
ele falasse. Fazendo uma pausa e fitando à distância, como se procurasse
rebuscar na memória os fatos do seu conhecimento, frei Victor iniciou:
– Conheci Pierre quando residia em Montmorency, numa pequena
herdade de um velho israelita...
Contou como o velho judeu o recolhera, muito ferido, após ter sido
roubado por salteadores de estradas. Falou-lhe do carinho com que o
ancião, que residia sozinho na propriedade, cuidou do jovem
desconhecido. Com o tempo o rapaz começou a trabalhar no sítio que,
conquanto pequeno, era bastante produtivo. Tornou-se indispensável e o
braço direito do velho judeu.
Fez uma pausa e notou que Louise acompanhava sensibilizada a
narrativa.
– Como se chama esse benfeitor desconhecido e generoso?
– Chamava-se Joachim. Faleceu algum tempo depois – e continuou: – Os
laços afetivos cresceram e se estreitaram tanto entre ambos que, quando o
ancião morreu, Pierre se tornou o proprietário da herdade. Sua vida corria
calma e o labor do campo não lhe deixava tempo para divertimentos.
Mesmo assim conheceu uma jovem da aldeia e se apaixonou por ela;
pouco tempo depois estavam noivos.
– Tu a conheceste?
– Sim, e a Condessa também.
– Marianne!... – murmurou surpresa.
– Exatamente. A jovem e linda Marianne. Nessa época eu ainda não a
conhecia. Sabia apenas que meu jovem amigo se apaixonara, mas ainda
não vira a noiva.
– Por favor, continua – suplicou Louise, profundamente interessada.
– Bem. Tudo corria às mil maravilhas quando um nobre cavaleiro
galante e sedutor viu a moça do povo e também se interessou por ela. A
noiva, conquanto fosse de boa índole, era porém muito pobre, ambiciosa e
volúvel. Escolheu o melhor partido, vindo a casar-se com o fidalgo.
– Charles de Montmorency!... Meu Deus! É por isso então que Pierre o
odiava tanto...
– Sem dúvida. O noivo traído não conseguiu liberar-se do ódio que o
acometera.
– Mas, como foi que ele se tornou um monge? Foi para esquecer a
ingrata, com certeza.
Titubeando, Victor explicou:
– Não exatamente. Para conseguir livrar-se do noivo, profundamente
incômodo, o jovem conde, assessorado por outras criaturas, inclusive com
o apoio de elementos do clero, infelizmente, resolveu expulsar Pierre da
herdade. Após um ataque brutal em que a destruíram, os invasores foram
embora, acreditando que Pierre houvesse fugido.
Fazendo uma pausa significativa, ele concluiu:
– A verdade é que o aconselhei a pedir asilo no mosteiro e a entregar-
lhes a propriedade, que eles tanto desejavam. Assim ficaria em segurança
dentro de um claustro, sem que ninguém conhecesse sua identidade.
– Meu Deus! Quanto meu filho deve ter sofrido.
– É verdade. Acompanhei seu martírio passo a passo, e posso assegurar
que sofreu muito.
Suspirando profundamente, Louise completou:
– O resto da história posso imaginar com os dados que já são do meu
conhecimento. Pierre, agora com o nome de frei Felipe, resolve entrar no
castelo de Montmorency para vingar-se daqueles que lhe destruíram a
felicidade.
Com um gesto de assentimento, Victor concordou.
Balançando a cabeça venerável, Louise falou, mais para si mesma:
– Agora posso entender muitas coisas. Seu ar arredio, o semblante
carregado, o andar soturno; por isso escondia-se nos cantos, procurando
as trevas.
Lembrou-se com carinho daquele dia em que retornaram a Montpellier,
fugindo da guerra e dos inimigos, quando notara nele uma inflexão de voz
diferente e carinhosa. Sim, seu coração de mãe lhe dissera, naquele
instante, que era ele, mas, voltando ao seu mutismo habitual, ele não
permitiu que ela descobrisse sua real personalidade...
Ficou assim meditando por largo tempo, enquanto Victor, também
imerso nos próprios pensamentos, monologava intimamente.
Contara-lhe apenas o essencial. Nada falara do comportamento de
Pierre depois e da participação dele em outros acontecimentos de seu
conhecimento, das tramas que fizera com madre Angélica e com
monsenhor François.
Nesse instante vieram chamá-la. Ricardo acordara e exigia sua
presença.
Voltando a si, Louise convidou o religioso a acompanhá-la.
Entrando nos aposentos do marido com um sorriso, Louise falou com
carinho:
– Trago-te uma visita muito querida, Ricardo. Lembras-te dele?
E, com um gesto, tomando a mão do sacerdote, aproximou-o do leito. O
conde de Montpellier olhou com curiosidade aquele homem à sua frente e
sua expressão avivou repentinamente. Através de grunhidos e de gestos
demonstrou que o reconhecera.
Percebia-se que tentava falar, mas não conseguia emitir as palavras.
Com delicadeza Victor se acercou mais dele, falando-lhe
paternalmente:
– Tranquiliza-te, conde Ricardo. Não deves agitar-te desta maneira.
Poderá ser prejudicial ao teu estado de saúde.
Ouvindo a voz terna e serena o enfermo aquietou-se, fitando-o.
– Gostarias que viesse sempre passar algumas horas contigo?
O doente aquiesceu, parecendo satisfeito.
– Pois bem. De hoje em diante virei todos os dias fazer-te companhia.
Ao ouvi-lo falar assim, Louise lhe endereçou um olhar agradecido.
Deixaram o aposento e foram visitar Clarissa. Ao adentrar o quarto
Victor, já percebeu a situação. Vestida como se fosse a uma festa e coberta
de joias, ela exigia que a serva lhe arrumasse os cabelos.
Ao ver entrar Louise e Victor, Clarissa abaixou o espelho que segurava
entre os dedos, exclamando satisfeita:
– Afinal chegaram. Não aguentava mais de impaciência e expectativa.
Como vai Charles? Ele está bem, espero. Por que não subiu imediatamente
para ver sua mãe?
Achegando-se a ela e passando os braços ao redor dos seus ombros,
Louise repreendeu-a com inflexão carinhosa:
– Acalma-te, querida. Ainda não cumprimentaste nosso velho amigo,
frei Victor!
Parecendo voltar à razão com as palavras da amiga, Clarissa dirigiu-se a
ele, sorridente:
– Tens razão. Estou faltando com meus deveres de civilidade. Perdoa-
me, irmão Victor, mas é tal o desejo de rever meu filho que tudo o mais se
torna sem importância para mim. Como vai ele? – disse, retornando ao
ponto central das suas preocupações.
Louise respondeu, conciliadora:
– Ele está ótimo, querida. Infelizmente ainda não chegou, mas não
tardará, por certo.
– Mas como? Não veio junto com frei Victor?
– Não, Senhora Condessa – assegurou-lhe o sacerdote.
– Ah! Sim. Não tem importância. Achas que estou bem assim? Será que
meu filho vai gostar da minha toalete?
– Naturalmente. Estás encantadora. Não apreciarias descer ao jardim a
passear com Margarida?
A enferma concordou e desceram todos as amplas escadarias.
Margarida levou a enferma para o parque, enquanto Louise dirigiu-se com
Victor para uma pequena varanda, aconchegante e tranquila.
– Agradeço-te o carinho com que trataste os nossos doentes e mais
ainda a promessa que fizeste a Ricardo.
– Que pretendo cumprir, naturalmente. Se permitires e me hospedares,
aqui ficarei algum tempo auxiliando-te no que se fizer necessário.
Louise o envolveu num olhar agradecido.
– És sempre o anjo bom em nossas vidas. Sinto que contigo entrou o sol
nestas paredes sombrias e lúgubres. Agora terei mais ânimo para lutar.
Confesso-te que a carga estava sendo pesada para meus ombros. Foi o
Senhor quem te enviou!...
– “Ele” sempre sabe das nossas necessidades, minha amiga...
Capítulo XXVI - Libertação

A partir desse dia a vida se modificou sensivelmente no castelo de


Montpellier. Frei Victor se entregou de corpo e alma ao serviço
nobilitante de assistência aos enfermos.
Consoante o que já vinha executando através das vilas e cidades,
amparando todo aquele que necessitasse de ajuda, parando aqui e acolá,
onde se fizesse mais necessário; e prosseguindo seu caminho ao perceber
que sua presença já não era imprescindível, o sacerdote encontrou ali o
ambiente ideal para seu ministério.
Não somente prestava inestimável auxílio a Ricardo e a Clarissa, como
também aos demais enfermos. Ao visitar os cômodos destinados ao
recebimento de quantos batessem às portas do castelo, carentes de ajuda,
sentiu-se fortemente envolvido na tarefa.
Empolgado com a feliz e generosa ideia que Louise tivera, mergulhou
fundo no serviço.
Àquela época era rara a preocupação com os menos afortunados, e
Victor sentiu que ali poderia dar o melhor de si mesmo, entusiasmado
com o labor edificante.
Iniciou-se uma nova era para todos. Como uma lufada de ar puro que
renova o ambiente, Victor revigorou e fortaleceu a tarefa, colocando mais
energia e determinação.
Atendia todos os doentes, quer do corpo, quer da alma. Para aqueles,
ministrava um remédio, uma tisana ou um cataplasma; fazia curativos e
banhava feridas. Para estes, tinha sempre uma palavra amiga e um
consolo, ensinando-lhes que Deus é grande e justo, e que tudo tinha uma
razão de ser. E terminava dizendo:
– Confiemos em Deus. Ele sabe melhor o que nos convém, e saberá dar a
cada um o que realmente necessita.
Muitas vezes, curados e agradecidos, os assistidos ali permaneciam
dando sua parcela de contribuição. Louise arranjava-lhes uma casinha,
dava-lhes serviço, que nunca faltava no campo, e continuavam na
propriedade, felizes e realizados.
De outras vezes, os protegidos, após conseguirem recuperar a saúde,
retornavam aos seus lares, levando a notícia daquele “pouso de amor” e
fazendo propaganda do excelente trabalho ali executado. Como
consequência disso os doentes avultavam, sendo necessário aumentar
sempre as instalações.
Com frequência eram trazidas criaturas endemoninhadas, babando e
contorcendo-se, sustidas dificilmente por muitos homens fortes. Ao
chegarem, porém, o monge ordenava:
– Desamarrai o pobrezinho.
Ao que, assustados, os acompanhantes se recusavam, retrucando:
– O Senhor não sabe do que ele é capaz, irmão. Lá onde estava quebrou
tudo e não foi sem muita dificuldade que o manietamos. Cuidado!
Fitando o enfermo, cujo olhar esgazeado, cabelos em desalinho, roupas
em frangalhos, falavam do seu estado miserável, com ternura Victor dizia:
– Não vos preocupeis. Ele não fará nada. Está apenas precisando de
carinho e proteção.
E ele mesmo, às vistas de quantos, surpresos e apavorados, sustinham o
doente, desamarrava-o. Colocava a mão sobre a cabeça dele, falando-lhe
com suavidade e, não raro, via-se o louco rojar-se a seus pés e soluçar
convulsivamente. Estava completamente curado.
Quando não, recebia toda a assistência que fosse preciso. Frei Victor
sabia com certeza que ali se encontrava um espírito necessitado de
esclarecimento e compreensão. Tinha todos os dias longos diálogos com o
enfermo e, a exemplo do querido Mestre a quem servia com amor,
espalmava as mãos sobre a cabeça do doente, transmitindo-lhe energias e
envolvendo-o em brandas e benéficas vibrações de paz e reconforto.
O próprio ambiente, já saturado de fluidos balsâmicos, por si só
auxiliava de forma poderosa no tratamento físico e espiritual. Só de ali
permanecer, aspirando e vivendo a paz e tranquilidade do local, via de
regra se operava sensível transformação no paciente.
As preleções evangélicas por ele realizadas traziam imensa consolação
a todas as criaturas. Falava de Jesus como se O tivesse conhecido deveras,
e as passagens do Evangelho vinham saturadas de intensa emotividade e
ganhavam novo colorido.
Suas missas, rezadas todas as semanas na capela do castelo, inovavam
radicalmente, sem que ele mesmo percebesse o ato litúrgico, aumentando
nos participantes a fé e a confiança em Deus.
Louise, profundamente agradecida e não raro com os olhos marejados
de lágrimas, acompanhava o trabalho dele com infinito carinho,
reconhecida a Jesus pela bênção daquela presença amorável e do braço
forte que lhe enviara em tão boa hora, em socorro às suas fracas
possibilidades.
Quanto a Ricardo e Clarissa, Victor lhes falava da necessidade de
deixarem de lado “o homem velho”, construindo dentro de si “o homem
novo”, através do amor e do perdão, por perceber a animosidade e
rebeldia que ainda lhes caracterizavam a personalidade.
Falava-lhes, sobretudo, que o espírito é eterno e que continuava sua
vivência “de alguma forma”. Com cuidado, tentava incutir-lhes a ideia das
vidas sucessivas, explicando-lhes o porquê das diferenças sociais,
econômicas e culturais existentes entre as criaturas. Falava-lhes com
profundo carinho que os problemas são consequências de atos passados e
que os afetos e desafetos são criações do espírito através da sua conduta.
Muitas vezes, após preleções esclarecedoras e inspiradas, Clarissa
reagia como se nada tivesse ouvido, exclamando com os olhos vagos, na
sua inconsciência:
– Onde estará meu filho, que ainda não chegou? Por certo não demora.
Já se faz tarde e ele sabe que o aguardo com impaciência.
O semblante de Louise se toldava de tristeza e, fitando o religioso,
murmurava com delicadeza:
– Às vezes penso que estás a perder o teu tempo e a gastar energias
inutilmente, meu amigo.
Abanando a cabeça e tomando-lhe as mãos nas suas, ele replicava com
firmeza, categoricamente:
– Não creias que semeio em vão, minha querida Louise. Tudo tem uma
razão de ser e nada há que se perca. Na verdade, esses conceitos
germinarão um dia. Como a terra que mantém úmida e aquecida a
semente, às vezes por longo tempo, aguardando o momento propício para
germinar, também assim o espírito humano. Além do mais – prosseguiu
fazendo uma pausa –, outras criaturas aqui existem e que aproveitam os
ensinamentos ora ministrados.
– Acreditas realmente nisso? – retrucava ela, entre surpresa e risonha.
– Não apenas acredito; tenho firme convicção do que afirmo.
– No que baseias tua convicção?
– Na lógica dos fatos e em minhas experiências pessoais...
– Como assim?!...
– Bem, se não temesse chocar a tua sensibilidade...
– Por favor! – ela suplicou. – Percebo que conheces fatos que ignoro e
ficaria muito feliz em saber. Por favor! Sou uma mulher forte e decidida.
Sabes que não sou nenhuma dama da nobreza vazia e fútil.
Ele concordou, decidido:
– Pois bem. A ninguém poderia relatar esses fatos a não ser a ti. A
própria Igreja não me perdoaria, se viesse a saber, tachando-me como
herege, blasfemo e feiticeiro contumaz. Não sei como isso ocorre, mas a
verdade é que possuo a faculdade de ver as almas daqueles que já
deixaram este mundo.
Fez uma pausa para analisar o efeito dessa afirmação na amiga.
– Continua! – ela pediu.
– Tenho presenciado, não raras vezes, criaturas infelizes e sofredoras a
suplicar auxílio. O próprio Charles muitas vezes aqui se encontra, atraído,
conforme penso, pelos apelos da mãe. Sofre muito e está completamente
desorientado.
Evitou, com delicadeza, relatar o aspecto profundamente dramático
desse espírito, pela alta carga negativa que isso traria para a sensibilidade
de Louise. Mas o fato é que Charles aparecia sempre com as vestes
empapadas de sangue, o peito aberto e sem o coração. Com as mãos
tentava estancar o sangue que vertia aos borbotões, num diabólico
reprisar das mesmas sensações, pois, embora jorrando sempre, ele era
inesgotável.
– Acredito em ti – dizia Louise, com expectativa na voz. – E meu filho?
Tens visto meu filho?
Carinhosamente ele falou:
– Não te preocupes demasiado, Louise. Todos estamos sujeitos a leis
perfeitas e sábias. Ninguém está desprotegido. Acredita, onde estiver,
Pierre estará sob as bênçãos de Deus. Também Lucas – falou, referindo-se
ao outro filho.
Parecendo ter se lembrado naquele instante, Louise concordou:
– É verdade! Lucas também já não está mais conosco. Confesso-te que,
não obstante Lucas seja meu filho, sangue do meu sangue, minhas
preocupações maiores são dirigidas a Pierre, que na verdade é de origem
desconhecida. Não te parece estranho isso?
– Quem sabe? Os laços do corpo nada têm a ver com os laços do espírito,
segundo penso.
– Como assim?
– Se realmente temos vidas sucessivas, construindo e criando afetos e
desafetos com nossas atitudes, o filho de hoje pode ter sido o desafeto de
ontem. Em relação ao estado de ambos, tuas preocupações são mais
dirigidas a Pierre porque, instintivamente, percebes que está mais
necessitado do que Lucas. Na verdade, Lucas, nesta existência, contraiu
menos débitos do que Pierre e está em melhores condições espirituais.
Louise pôs-se a meditar na profundidade daqueles conceitos.
– Talvez tenhas razão. Sinto que realmente Pierre está mais necessitado
de ajuda, e sofre profundamente. Quanto ao afeto, estou fortemente ligada
a ambos os filhos. Em relação a ti, por exemplo, sinto que não é a primeira
vez que nos encontramos. Desde que te conheci noto que reencontrei um
amigo muito querido.
Ele concordou com um sorriso:
– É verdade. Nossa amizade é muito antiga.
– Também sentes isso? – falou, curiosa.
– Tenho certeza. Temos nos encontrado muitas vezes e sempre nos
reconhecemos.
– És a criatura mais surpreendente que jamais conheci e a
personalidade mais encantadora também. Percebo que sabes muito mais
do que me dizes e gostaria que um dia me falasses sobre isso.
– Algum dia, quem sabe.
– E agora, vamos voltar ao serviço. O dever nos chama.
Reconfortados e alegres retornaram às tarefas de cada um.
E assim a vida prosseguia em Montpellier, entre as muitas ocupações a
que se entregavam os nossos amigos e os longos serões, após um dia
estafante, que eram como um oásis de paz e reconforto para os
participantes. Nesses momentos de diálogo e meditação aproveitavam
para orar por todos os entes queridos que já pertenciam a uma outra vida,
a um outro mundo.
E nessas horas de bate-papo fraterno e amigo, de consoladoras
mensagens de paz, de orientação da doutrina de Jesus, hauriam forças, que
se reabasteciam espiritualmente, para continuar executando as tarefas
que lhes foram confiadas.
Não raro participavam também desses serões Miguel e Margarida, que
já eram considerados como parte da família, pela dedicação de uma
existência inteira, e aí então a conversa se tornava mais genérica,
evitando-se assuntos que pudessem chocar os servos leais e generosos.
Certo dia recebem a visita muito esperada de Augusto. Com pequena
escolta aportou no castelo para alegria de todos. Agora, já com dezenove
anos, era um mancebo belo e de olhos vivos, porte elegante e maneiras
distintas, sendo o retrato vivo de seu pai, Charles.
Após os cumprimentos e abraços efusivos, Louise quis saber notícias de
todos em Paris.
– Como vai Régine, Augusto?
– Minha querida tia Louise, conheces minha tia Régine e sabes como ela
é fútil e inconsequente.
Fez uma pausa e Louise aproveitou para falar gravemente:
– Não estás sendo muito severo com ela?
– Não, minha tia. Estou sendo realista. Continua com a mesma vida
dissipada de sempre, talvez até pior. Passa as noites em festas e orgias, só
regressando a casa pela manhã, em lastimável estado de embriaguez.
– E tua tia-avó?
– Não conseguiu evitar essa degradação da filha que idolatrava – falou o
rapaz com amargura, continuando: – Apesar de bastante idosa e enferma,
minha tia Régine não se preocupava com ela. Nosso patrimônio, já
bastante dilapidado por meu avô quando em vida, agora sofre terrível
perda nas mãos de minha tia, que gasta desmedidamente com roupas,
modistas, joias e festas de todo o gênero. Na Corte, a vida é diferente, tia
Louise; a etiqueta exige que se retribuam os convites recebidos, e o fausto
e os excessos minam de maneira calamitosa a fortuna de nossa família.
– Não posso crer que Régine tenha chegado a tanto...
– Enquanto minha avó ainda era viva permaneci ao lado dela para
ampará-la na velhice. Mas, há dois meses minha avó enfermou
repentinamente dos pulmões e, por mais que fizéssemos, não
conseguimos evitar sua morte. Após o desenlace, que abalou sobremaneira
minha tia, pensei que ela fosse modificar sua vida e seus hábitos. Por um
tempo, realmente, dedicou-se mais ao lar e a mim, seu sobrinho. Aos
poucos, porém, foi voltando à rotina antiga, e não pude suportar. Por isso,
eis-me aqui.
Com carinho Louise afagou o rapaz.
– Como deves ter sofrido, meu querido Augusto! Não te parece, porém,
que abandonar tua tia Régine só irá piorar as coisas?
– Não, tia Louise – respondeu o jovem com firmeza. – Pensei muito
antes de tomar a decisão. Se minha presença pudesse ajudá-la de alguma
forma, acredita que teria ficado ao lado dela. Mas lhe sou absolutamente
indiferente. É verdade, tia Louise! Ela nunca me deu as atenções devidas a
um sobrinho, nem mesmo o carinho que se dispensa a um animal de
estimação. Creio mesmo que me odeia. Às vezes percebo em seus olhos
lampejos de uma profunda animosidade que ela procura ocultar, mas que
não me passa despercebida.
– Não estarás enganado, meu filho?
– Não, minha tia. Sinto que minha presença a desgosta profundamente.
Portanto, aqui estou para ficar ao teu lado, pelo menos por enquanto.
Daqui a algum tempo pretendo entrar para uma escola de medicina e,
então, terei que partir.
Fez uma pausa e, mudando de assunto, perguntou pela avó Clarissa.
Com tristeza, Louise respondeu:
– Sempre esperando por teu pai, meu filho. Creio que tua presença lhe
fará grande bem. Vem! Vamos vê-la.
Subiram as amplas escadarias e penetraram nos aposentos da enferma.
Ao vê-lo, Clarissa estampou no rosto um sorriso luminoso e, com os braços
estendidos, falou carinhosamente:
– Afinal, meu filho! Por que tardaste tanto? Estou a esperar-te há longo
tempo e não tens escrito nem uma linha para tua mãe!
Augusto virou-se para Louise, aflito. Sua avó o tomara por Charles, seu
pai.
Louise fez sinal para que nada dissesse, e ele se deixou abraçar e beijar
fingindo ser Charles, conquanto constrangido.
– Vem, Charles, senta-te aqui ao meu lado. Conta-me as novidades que
trouxeste da guerra. Desejo saber tudo, tudo o que aconteceu contigo.
Mas, pareces mais jovem. A guerra te rejuvenesceu, meu filho.
E, virando-se para Louise, perguntou:
– Não te parece, Louise, que Charles está mais jovem?
Louise, fitando com carinho o semblante de Augusto, teve que
concordar com ela. Augusto, em plena florescência juvenil, nos seus 19
anos de existência, era muito parecido com o pai. Os mesmos cabelos, os
mesmos olhos, o mesmo queixo voluntarioso, o mesmo porte.
Augusto crescera forte e sadio, mas as circunstâncias da vida, a
separação dos pais em tenra idade, deixaram marcas indeléveis em seu
espírito sensível e amoroso, não obstante Louise e Clarissa tivessem
procurado envolvê-lo com muito carinho e proporcionar-lhe uma vida
normal, como toda criança deve ter.
Apesar disso Augusto crescera tendo no rosto um ar profundamente
melancólico e um olhar em que se percebia uma tristeza perene. Mesmo
nos momentos alegres, quando o castelo se enchia de convidados, jovens
da sua faixa etária, pertencentes à aristocracia da região; quando o riso e
as danças, os namoricos e os entretenimentos envolviam a todos, Augusto,
ainda assim, conquanto o rosto risonho, mantinha os olhos
permanentemente tristes.
Não se poderia negar a semelhança física com o pai. Espiritual e
emocionalmente, porém, eram muito diferentes. Enquanto Charles
procurou sempre os divertimentos e se entregou a eles de corpo e alma,
levando desde a adolescência vida movimentada, Augusto, contudo,
buscou o silêncio e a solidão. Entregue aos livros e à meditação, era raro
sair de casa; evitava sempre contato com outras pessoas, preferindo um
diálogo informal em família.
Mesmo obrigado a ficar em Paris não alterou sua maneira de ser.
Embora na Corte, e sua tia Régine tentasse arrastá-lo para as festas,
esquivava-se tanto quanto possível. Com o tempo, ao perceber a
inutilidade de suas tentativas, Régine o deixou de lado.
Augusto se sentia bem mesmo em Montpellier, ao lado da tia Louise,
passeando pelos campos, enfiado na biblioteca em busca de algum livro
que ainda não tivesse lido, ou participando de longas conversas com
Victor, a quem admirava profundamente.
Em poucos dias estava participando ativamente das atividades
beneficentes. Acompanhava Victor em sua ronda pelos campos, à procura
de algum serviço que pudesse prestar, fosse uma ferida para ser tratada,
um remédio a ser ministrado, ou mesmo uma extrema-unção para aquele
que já estivesse de partida para o outro lado da vida.
Augusto muito aprendia nessas andanças e, como tivesse desejo de ser
médico e de aliviar o sofrimento alheio, ia familiarizando-se com o
assunto e aprendendo como agir em momentos de necessidade.
Evitava perguntar sobre a sua mãe, pois quando levantara a questão
indagando se tinham tido notícias dela, percebera um mal-estar muito
grande e Louise mudou de assunto.
Tentara interrogar Victor, mas o monge lhe respondera com muito
carinho, mas de forma evasiva:
– Por que te preocupas tanto, meu filho? Tua mãe talvez já não esteja
aqui na Terra...
– É possível, frei Victor. Mas é essa incerteza que me acabrunha. Por
que não veio ela junto conosco para Montpellier? Lembro-me, embora
fosse muito pequeno, que ela me amava muito e sua presença carinhosa
me dava segurança, sentia-me feliz junto dela. De repente tomamos uma
carruagem e nunca mais a vi. Será que ela se esqueceu de mim?
– Não, Augusto, nem penses nisso. Ela sempre te amou muito.
– Certa vez um servo deixou escapar que minha mãe foi separada de
mim pela força, por meu pai. É verdade? – perguntou, incisivo.
– Augusto, meu filho, evita fazer conjecturas em torno de assuntos que
desconheces. De qualquer forma, teu pai não está aqui para defender-se.
Não é justo que lhe imputes uma culpa quando ele não possui meios de
defesa. Acredita, Augusto, procura viver tua vida e esquece tudo o que
ficou para trás. Algum dia esses mistérios serão esclarecidos, não tenho
dúvidas. Portanto, dá tempo ao tempo.
Desde então Augusto nada mais perguntou, percebendo que ninguém
lhe diria a verdade.
Augusto gostava de visitar o tio Ricardo em seus aposentos. Lia para ele
os grandes clássicos da literatura universal e, conquanto Ricardo não
pudesse falar, sentia que sua presença lhe era agradável.
Quanto à sua avó Clarissa, estava cada vez pior. Quando chegou,
Augusto pôde perceber uma melhora em suas condições físicas e mentais.
Essa melhora, no entanto, era aparente, pois parece que apenas aguardava
a presença do filho.
Agora que ele estava ali com ela no castelo, ou pelo menos ela assim
acreditava, suas condições psíquicas entraram em declínio.
Via-se sempre perseguida por entidades maléficas. Às vezes falava com
Augusto, como se fosse Charles, lembrando fatos que ocorreram muitos
anos atrás:
– Charles, meu filho – dizia ela em surdina para que ninguém os
ouvisse. – Não quero que teu pai ouça, e vais jurar-me nunca lhe contar o
que vou confessar-te.
– Juro, minha mãe! – dizia Augusto, solenemente.
– “Ele” é um homem terrível, meu filho. Afasta-te dele!
– Quem, minha mãe?
– “Ele”, o maldito duque de Bouillon.
– O duque de Bouillon morreu na guerra, minha mãe.
– Aquela noite – prosseguia ela sem parecer ter escutado – o maldito
ficou de tocaia e matou Henri, teu pai.
Augusto, pensando que a avó delirasse em novo acesso de loucura,
disse-lhe com carinho:
– Acalma-te, minha mãe. Tudo está bem. Nada aconteceu.
Mas Clarissa, impaciente e aflita, continuava:
– Não culpes Marianne por isso, Charles. Ela não tem culpa nenhuma.
Aquele monge terrível é que me levou àquele encontro. Percebes?
Ouvindo o nome de sua mãe Augusto começou a interessar-se pelo
relato:
– O que tem Marianne com isso?
– Ela quis proteger-me, pobrezinha! Não fui ao encontro com medo das
consequências, mas ela foi e aí o menestrel surgiu e a levou embora...
– Por Deus, que encontro é esse? Com quem? E quem é esse monge
“terrível” e esse menestrel? – perguntou Augusto com a cabeça confusa.
Mas, nesse ponto das lembranças, Clarissa não disse mais nada,
modificando o assunto, como se completamente esquecida do que dissera:
– Henri está morto. Não é verdade que teu pai morreu, meu filho?
– Sim, minha mãe. É verdade.
– Mas, não pode ser. Deve haver algum engano porque agora mesmo
estava a ouvir-lhe a voz no corredor.
– Não pode ser, minha mãe – contestou o rapaz, pacientemente.
– Pensas que estou louca? Reconheço a voz dele dentre todas. Manda
chamá-lo! – ordenou enérgica. – Preciso falar com ele.
Aproveitando a oportunidade Augusto beijou-lhe a testa e saiu. Fechou
a porta atrás de si e encostou-se nela, completamente desorientado.
Não entendera nada, mas ela lhe falava com tamanha convicção que
pôs-se a meditar.
– Teriam realmente acontecido aqueles fatos? Ou seriam frutos de uma
mente desequilibrada? Quem sabe, numa outra ocasião conseguiria que
ela voltasse ao assunto? A verdade era uma só: estava começando a
acreditar que ali estava a ponta do fio da meada que o faria chegar à
verdade.
Que mistério se esconderia na vida daquelas criaturas? Sentia como se
fossem elos de uma mesma corrente, mas não encontrava a resposta para
suas dúvidas e indagações.
O estado de Clarissa se deteriorava a cada dia. Quando em crise ela
discutia em altos brados com o duque de Bouillon, a quem via em espírito
andando pelos corredores do castelo, atraído pelos pensamentos da
enferma.
Gritava que estava vendo o infeliz Pierre e que este a ameaçava.
– Afasta-te de mim, maldito! Não consegui destruir-te a vida naquele
dia, mas fá-lo-ei agora! – e assim dizendo, ordenava que lhe dessem uma
faca para que pudesse matá-lo.
De outras vezes via Charles todo ensanguentado, com o peito aberto,
sem o coração, e punha-se a gritar como louca, suplicando que
socorressem seu filho.
Como consequência dessas crises que se tornavam cada vez mais
frequentes, numa manhã chuvosa de outono Clarissa partiu para a
espiritualidade. Seu coração não resistira às constantes emoções.
Não era nem sombra do que fora. Perdera a beleza de traços clássicos
que possuíra um dia. Ao morrer estava muito magra, e os ossos apareciam
sob a pele enrugada. O semblante se afilara e as maçãs do rosto ficaram
salientes.
O enterro foi muito simples e apenas compareceram os doentes que já
podiam locomover-se, os criados, além de Victor, Augusto e Louise.
Uma névoa fina envolvia tudo como um manto cinzento naquela
manhã e os amigos choraram a partida daquela que partilhara por tantos
anos das suas vidas.
O espírito de Clarissa, liberto enfim dos sofrimentos e das algemas que
o mantinham preso ao corpo, entrou na Vida Maior para enfrentar as
consequências dos seus atos.
Não obstante os erros cometidos e a derrocada moral ao assassinar
Pierre, possuía alguns créditos. Durante anos dedicara-se aos necessitados,
acompanhando Louise em sua tarefa nobilitante, e isso seria creditado a
seu favor.
***
A vida no castelo de Montpellier prosseguia tranquila. Agora já sem a
presença de um de seus moradores, a condessa Clarissa de Montmorency.
Augusto ficou mais alguns meses na companhia da família pelos laços
do coração e depois partiu para a escola de medicina. Queria ser médico,
para aliviar o sofrimento humano.
Ricardo estava cada vez mais fraco. A idade já pesava em seus ombros e
o coração não era tão forte como antigamente.
Um dia tentou levantar-se do leito sem a ajuda do leal Miguel, e o
esforço foi demasiado para seu organismo frágil. Rompeu-se outro vaso
sanguíneo e novo derrame cerebral foi-lhe fatal.
Miguel o encontrou caído no chão, já sem vida, com o rosto retorcido e
os olhos arregalados.
Foi um golpe muito duro para Louise. Conquanto enfermo e
necessitando de atendimento constante, a simples presença de seu esposo
era um amparo para ela. Agora, porém, estava realmente só. Partira o
companheiro de tantos anos e uma dor muito profunda instalou-se-lhe no
íntimo.
O enterro, a que compareceram muitos nobres da região, foi feito com
toda a pompa de estilo. Afinal, era um grande senhor, herói nacional que
lutara em muitas batalhas; participara de duas Cruzadas e servira
lealmente e com coragem ao seu rei e à sua querida França.
Após o funeral todos foram embora, e o silêncio voltou a reinar no
castelo de Montpellier.
Repousando das atividades do dia, que fora exaustivo, Louise e Victor se
sentaram numa pequena e acolhedora sala íntima, que era o local
preferido de ambos.
Um olhou para o outro longamente e Victor tomou a mão de sua amiga
com carinho:
– Creio que estamos a pensar a mesma coisa, querida Louise.
Ela concordou com a cabeça:
– Sim, querido irmão Victor. A Deus aprouve que ficássemos sós neste
final de existência. Todos já se foram, chamados para uma Realidade
Maior. Por quê? Por que um sopro de morte varre esta casa, levando a
todos, e apenas nós somos poupados?
– Com certeza porque não terminamos nossa tarefa ainda. Deus nos
concede mais tempo para prosseguirmos nosso trabalho e executarmos a
missão que nos confiou.
– É verdade, meu grande amigo – disse Louise sorrindo. – E olha que
não temos muito tempo! Vê em que me tornei: uma velha cheia de
achaques, com dores nas pernas que já dificultam o andar, cuja vista já não
é tão boa quanto antigamente.
– Mas estás sempre bela e teus cabelos brancos parecem uma coroa
luminosa sobre a tua cabeça – respondeu Victor com ternura. – E eu? Sinto
dores em todas as juntas, o ouvido está cada vez pior e as dores nas costas
avultam a cada dia.
Louise sorriu com carinho, apertando-lhe a mão:
– Não obstante os meus 63 anos e os teus 48 anos, ainda temos ânimo
para lutar e trabalharemos enquanto suportarmos o peso das tarefas. Meu
medo é que ninguém nos substitua e tudo venha a perecer.
– Não te preocupes, minha amiga. Deus saberá cuidar de tudo e, por
certo, alguém surgirá que dará continuidade a este trabalho
extraordinário que iniciaste.
Ainda alguns anos prosseguiram trabalhando e servindo, lutando e
amando.
Os labores parecia que lhes renovavam as forças combalidas, dando-
lhes ânimo novo e vontade de prosseguir.
Certo dia, após as atividades diárias, palestravam após a ceia, e já se
preparavam para o repouso noturno, quando Louise disse:
– Victor, ouvi um ruído diferente. Não ouviste?
– Ouves demais, Louise. O que pode ser? Os criados já se recolheram e
tudo está tranquilo.
– Tens razão. Acho que ando um pouco assustada, como se algo fosse
acontecer. A idade me faz ver perigos onde não existem.
– Vamos ler o Novo Testamento – e, assim dizendo, Victor abriu o livro
e começou a ler as anotações de Mateus:
“Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte, e, como se assentasse,
aproximaram-se os seus discípulos; e Ele passou a ensiná-los, dizendo:
Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o Reino dos
Céus...”
E na voz de Victor as palavras de Jesus ganhavam vida. Louise recostou
a cabeça e fechou os olhos. Suspirou satisfeita ouvindo a leitura do
companheiro sobre as passagens do Evangelho.
Não percebeu que dois vultos embuçados penetraram na sala,
iluminada fracamente por um candelabro. Avançando sem ruído, um deles
se postou atrás da cadeira de Louise e, colocando uma mão sobre sua boca,
impediu que ela gritasse. Ao mesmo tempo, passou uma corda em torno
do seu pescoço e apertou até que a infeliz mulher estivesse morta.
E Victor, que nada ouvira, prosseguia lendo:
“Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão-
misericórdia.”
“Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.”
Nesse ponto da leitura Victor levantou a cabeça e olhou para Louise.
Viu-a com a cabeça pendente, já sem vida.
– Louise, o que houve? Louise!
Nisso, viu um vulto que se destacava das sombras aproximando-se dele.
Tentou falar alguma coisa, mas não teve tempo. Uma pancada na cabeça
lhe tirou a vida.
Dois salteadores, sabendo que naquele lugar residia apenas uma velha
senhora e um monge também idoso, além de alguns servos de confiança,
resolveram pilhar o castelo que, com certeza, deveria estar cheio de ouro,
joias e pratarias.
No dia seguinte, quando Margarida se levantou e foi acordar a sua
senhora, espantou-se de não encontrá-la no leito. Juntamente com Miguel
e outros dois servos saíram à sua procura.
Encontraram os dois corpos onde tinham sido deixados pelos ladrões. O
castelo todo fora saqueado e tudo estava em desordem.
No plano físico a consternação era geral. Os gritos dos criados, o choro
e o desespero dos albergados enfermos; a dor de quantos haviam
convivido com os mortos era superlativa.
Mas, na espiritualidade, a realidade era diferente. Libertos dos laços
que os uniam aos corpos físicos, Louise e Victor foram recebidos com
muito carinho pelos amigos espirituais e mensageiros de Jesus.
O júbilo por se sentirem leves e livres era inexcedível. Um coro de
vozes infantis cantava hosanas ao Criador, e do Alto vibrações
dulcificantes caíam sobre aqueles que, sendo do mundo, venceram o
mundo e se libertaram das inferioridades carnais.
O grupo luminoso alçou voo ao Infinito, deixando para trás o
sofrimento e a dor.
Capítulo XXVII - Epílogo

A França respirava aliviada. Haviam sido tempos difíceis aqueles, em


que o povo, exaurido e faminto, não tinha mais a quem recorrer.
Não obstante, uma nova era se delineava.
Em 1216 terminara a guerra entre a França e a Inglaterra. João Sem
Terra, o soberano inglês, derrotado e humilhado, perdera o prestígio que
tinha junto a seu povo.
A Magna Carta, extraordinário documento que fora assinado já no ano
anterior, representava uma conquista democrática de real valor para o
povo inglês, concedendo-lhe direitos que até então não possuía.
O Parlamento saía fortalecido, após essa conquista, tendo seu poder
consideravelmente aumentado.
Com os novos territórios anexados à Coroa Francesa, Filipe Augusto
estendia de muito o seu poder. A economia francesa aos poucos se
restabelecia, como consequência do esforço e do trabalho de todos.
Um sopro de paz e de esperança envolveu o povo e novas conquistas
foram sendo conseguidas.
Era novamente primavera e o sol brilhava num céu muito azul e sem
nuvens. Os acontecimentos que marcaram aquelas décadas de tantas lutas
e sofrimentos ficaram para trás na voragem do tempo.
Aproximando-se de Montpellier, cidade que muito amava e
profundamente ligada às suas mais ternas lembranças da última
existência, Louise sorriu.
Volitando suavemente no espaço e divisando ao longe o casario de
Montpellier, ela e seu companheiro Victor pararam por um momento. De
um lado, à distância, via-se o mar muito azul e o porto. Do outro, as
videiras brilhantes ao sol, os pomares, os castelos. Mais adiante, as altas
torres do castelo de Montpellier, seu lar durante tanto tempo, se
recortavam no azul do céu.
Suspirou ao aproximar-se da antiga construção.
Com emoção notou as mudanças que tinham sido feitas para melhorar
o local. Um sopro de vida nova percorria os corredores.
No local onde estava situada a enfermaria um novo prédio fora
construído, aumentando a área de atendimento.
Entraram. Augusto atendia os seus pacientes, dando a cada um uma
palavra amiga e consoladora.
Uma linda jovem, loura e esbelta, secundava-o nos esforços, fazendo as
vezes de enfermeira.
Ao terminar o atendimento se dirigiram, abraçados, para o jardim.
Augusto estava pensativo:
– Sabes, querida, lembranças do passado me assomam à mente hoje e as
imagens de tia Louise e do frei Victor adquirem contornos nítidos à minha
frente, como se em minha tela mental.
– Eles nunca saíram da tua cabeça, Augusto!
– É verdade. Mas hoje é diferente. É como se eles estivessem aqui
comigo, presentes neste momento.
Profunda emoção o envolveu e seus olhos se turvaram de lágrimas.
Nesse preciso instante recebia o abraço carinhoso e amigo dos entes
queridos ali presentes e, no recesso da alma, ouviu a voz de Louise que lhe
endereçava um comovido agradecimento:
– Obrigada, meu filho, pelo trabalho que vens executando e por não
teres deixado que se findasse o atendimento que instituí há tantos anos.
Que Deus te abençoe!
Sentindo-se envolver pelas vibrações espirituais Augusto se ajoelhou,
juntamente com a esposa, e endereçou a Deus seus pensamentos de amor,
no que foi acompanhado pelas entidades ali presentes.
Ao se afastarem do local de tantas lutas e de tantas vitórias, Victor
lembrou:
– Não te disse que Deus cuidaria para que a semeadura não se perdesse?
– Tens razão. O Senhor é a sabedoria e o amor infinitos. Só temos que
aprender a confiar “Nele”.
***
Ganhando o espaço se afastaram rapidamente. Tinham um trabalho a
realizar.
Venceram as distâncias com a velocidade do pensamento, rumo ao
norte do país. Dentro em pouco viam, à distância, os contornos de Paris.
Mais um pouco e aproximaram-se do vale do Oise; logo após atingiram a
elevação onde se localizava o Convento de Sainte-Croix, palco de tantos
acontecimentos funestos.
O ambiente se fizera pesado e asfixiante. Atravessaram corredores e
salas, desceram escadarias, passagens escuras e desoladas onde não se via
viva alma, até que chegaram a uma cela pequena e infecta.
Lá estavam Marianne e Pierre, jungidos um ao outro, incapazes de se
afastarem do local, como se um visgo poderoso os mantivesse presos.
Marianne, tresloucada e sofredora, impossibilitada de libertar seu
pensamento da morte fatídica, revolvia-se naquele quadro dantesco, como
se a repetir estivesse ininterruptamente o mesmo processo fatal.
Pierre, cujos sofrimentos se tornaram superlativos, sentia-se também
preso àquele lugar, desejoso de ajudá-la e sem conseguir ajudar-se.
Também para ele os fatos se repetiam num caleidoscópio aterrador, e
via-se sendo morto com uma lâmina pelas mãos de Clarissa.
Charles muitas vezes surgia, ameaçando e agredindo-o. Nessas ocasiões
eles se revolviam em lutas ferozes, como animais, e um ódio terrível
reacendia sua flama. Dessas brigas participava também Marianne, e
mutuamente se agrediam e exprobravam o comportamento, cada um
queixando-se do que julgava ter direito.
Outras vezes, Pierre percebia-se sem saber como, no castelo de
Montpellier, no lar de sua infância, como se atraído pelas lembranças de
Clarissa, que conservava o coração imerso em fel.
Tal era o quadro que Louise e Victor encontraram ao chegarem àquele
cárcere.
Com infinito carinho se aproximaram daquelas almas sofredoras,
procurando envolvê-las em vibrações harmônicas de paz. Aquietaram-se
por instantes, diminuindo as mútuas reclamações e queixas.
Louise aproximou-se de Pierre e Victor, de Marianne, passando a
assisti-los com passes balsamizantes.
Cansados, pareceram modificar as disposições íntimas, como se
percebessem que algo de estranho ocorria naquele momento.
Brandas vibrações de reconforto e paz os envolveram. Suave calor se
espraiou sobre seus corpos, expulsando as gélidas sensações de frio que
não os abandonavam nunca.
Em silêncio, Pierre entrou a meditar, já em diferente faixa de
pensamento. Marianne, sob intensa emoção que não sabia explicar, passou
a chorar sentidamente.
Acordavam ambos para as realidades maiores e para enfrentarem a
responsabilidade dos seus atos, praticados em consonância com o livre-
arbítrio que Deus lhes outorgara.
Passando levemente a destra espalmada sobre os olhos de Marianne,
imediatamente esta começou a ver o que estava acontecendo naquele
preciso instante. O mesmo foi feito com Pierre que, sob infinito assombro,
vislumbrou aquela que fora sua mãe na última romagem terrena.
Sem sentir caiu ajoelhado a seus pés. Louise parecia uma madona,
coroada de intensa luz. Surgia como nos dias mais felizes da existência,
bela e tranquila.
– Mamãe! Sofro tanto! – bradou em soluços.
Colocando a mão sobre a cabeça de Pierre, Louise considerou:
– Sofres, é verdade, mas por escolha própria. Lembra-te que,
espontaneamente, te arremessaste ao crime.
– Não me abandones! Faltou-me amparo em momentos cruciais da
existência... – queixou-se.
– Ao contrário, meu filho. Tiveste todo o amparo necessário para
viveres bem. Por motivos que ainda ignoras, era imprescindível que
atravessasses dificuldades, mas possuías todos os ensinamentos capazes
de levar-te à vitória. O ódio, o despeito, o orgulho ferido, arrojaram-te na
derrocada moral. Não obstante, tiveste orientação cristã, indispensável à
formação de um bom caráter, na infância e juventude. Foste expulso de
casa, é verdade, mas mãos carinhosas e amigas te cercaram de proteção, e
o velho amigo Joachim te amparou e te propiciou condições para
prosseguir na luta pela vida. A decepção com a noiva adorada não era
motivo para que descesses ao fundo da abjeção e do crime. Se outras
tivessem sido tuas reações, terias vencido a ti mesmo e o futuro seria bem
diferente. Como vês, Deus nunca te faltou com os recursos necessários
para que pudesses vencer.
Envergonhado, Pierre suplicou:
– Ajuda-me, mãe.
– Deus é Pai, meu filho, e sempre nos dará novas oportunidades. Tem
confiança. No entanto, bastaria que tivesses elevado o pensamento ao
Criador para que teu sofrimento tivesse sido abrandado.
Louise fez uma pausa, enquanto perscrutava o que se passava dentro de
Pierre, refratário a qualquer pensamento dirigido à Divindade.
– Eu sei, meu filho, o quanto de negativismo existe em tuas atitudes.
Não desconheço que, apesar de religioso, és profundamente materialista,
não acreditando no Criador. Renova, porém, filho meu, teus pensamentos,
pois o único culpado dos teus sofrimentos és tu mesmo. Não culpes Deus
pelas tuas desditas, pois elas são o resultado de tuas ações criminosas no
passado. Serena teu espírito, eleva-te pela prece e serás grandemente
beneficiado.
Enquanto esse diálogo ocorria entre Louise e Pierre, Victor, envolvendo
Marianne com sua vontade poderosa, fez-se visível também.
Por sua vez a ex-religiosa rojou-se aos pés daquela entidade angélica
que surgia à sua frente como uma bênção de luz.
– És tu mesmo, frei Victor?
– Sim, Marianne, e estamos aqui para ajudar-te.
Colocando as mãos sobre o rosto, ela se lastimou:
– Tenho sofrido tanto! Há muito tempo estou sozinha e ninguém me
atende às súplicas.
– Tens sofrido por tua própria culpa – disse, com inflexão carinhosa,
conquanto severa. – As súplicas de que falas foram ditadas pela revolta e
pelo ódio, nunca saídas de um coração arrependido e humilde. Na
verdade, minha querida, jamais te lembraste de enviar um pensamento a
Jesus, com real desejo de ser ajudada. Bastaria isso, para que teus
padecimentos tivessem sido abrandados, e a resposta de Deus não se faria
esperar, em forma de socorro e assistência dos nossos Anjos Tutelares.
Porém, te entregaste ao sofrimento e à dor, ao ódio e ao pessimismo, à
revolta e à inconformação.
Marianne se calara, envergonhada, e ele continuou com acento de voz
inesquecível:
– A hora não comporta queixas e lamentações. Mercê da misericórdia
divina, reajusta as próprias emoções e procura elevar-te através da oração,
e receberás toda a ajuda necessária. Basta de sofrimentos e de dores.
Liberta-te dos sentimentos doentios que te mantiveram presa ao palco de
teus derradeiros padecimentos físicos.
Marianne fitou-o, enternecida:
– Senti tanto a tua falta! – e olhava-o tentando devassar o passado. –
Por que tua presença me é tão necessária? Por que sinto tanto “carinho”
por ti?
Ela ia dizer “amor”, mas um resto de pudor a impediu.
Victor fitou-a intensamente, colocando a mão sobre seus cabelos;
suspirou profundamente antes de responder:
– Laços muito fortes nos ligam um ao outro. Saberás tudo com o tempo.
Agora, confia em Deus e caminha. Chegou o momento da tua libertação.
Vamos orar.
Victor elevou o pensamento ao Pai, enquanto Marianne e Pierre,
contritos, percebendo a importância do momento, tentavam acompanhar
a prece:
“Senhor do Universo. Pai Amoroso de todas as criaturas.
“Rendemos nosso preito de amor a Ti neste instante, agradecidos por
todas as dádivas alcançadas.
“Somos todos criaturas imperfeitas e errantes, Senhor, que desejam
progredir e se redimir perante Tua Excelsa Justiça.
“Fonte do Sumo Bem, envolve-nos com Tuas bênçãos, dando-nos forças
para prosseguirmos na luta.
“Muito temos errado, Senhor, nos caminhos do mundo.
“Apelamos para Tua misericórdia infinita no sentido de proporcionar-
nos novas oportunidades de redenção.
“Prosternamo-nos perante a Tua Majestade Divina, suplicando que a
Tua paz envolva estes irmãos cansados e necessitados de Teu socorro.
“Envolve-nos também com Teu Hálito Criador a fim de que possamos
prosseguir trabalhando e servindo como humildes seareiros Teus.
“Sê conosco para todo o sempre, Senhor.”
Quando as últimas palavras foram pronunciadas, Marianne e Pierre,
exaustos, mas experimentando um bem-estar inefável que há muito não
sentiam, acomodaram-se e caíram num sono profundo e renovador; o
sono da recuperação.
O ambiente impregnara-se de safirina luminosidade e flocos levíssimos,
de substância rarefeita, desciam do Alto, tocando nas entidades ali
reunidas, especialmente Marianne e Pierre, e desapareciam como se
assimiladas pelo perispírito de ambos.
Com carinho infinito os Mensageiros de Jesus tomaram-nos nos braços
e elevaram-se ao espaço com o fardo leve dos seus amores, reconfortados
e felizes, cientes de que uma nova etapa se iniciaria daquele momento em
diante.
Uma nova alvorada surgia, radiante de esperanças, e novas
oportunidades seriam concedidas por Deus a seus filhos rebeldes e
inconformados, que muito erraram no transcurso do tempo, mas que,
mercê da Misericórdia Divina, caminhavam para a evolução
acompanhando o progresso da criatura humana, lutando e se
aperfeiçoando através dos séculos e milênios.
***
O drama que se desenrolara durante o reinado de Filipe Augusto deixou
marcas profundas nos espíritos envolvidos.
Alguns saíram vencedores das lutas terrenas, e a experiência lhes foi
profundamente benéfica, como Louise e Victor, que conseguiram executar
a programação que estabeleceram antes de reencarnar.
Grande parte deles, porém, complicaram sua situação espiritual pois,
além de não saldarem velhos débitos, ainda contraíram novos, que séculos
não seriam suficientes para pagar.
Embora as lutas tenham sido duras e, presas de suas imperfeições, os
implicados no drama tenham dado livre curso ao seu livre-arbítrio,
complicando e aumentado seus débitos, ainda assim a experiência fora
bastante proveitosa. Novos laços afetivos se criaram, elos antigos se
fortaleceram e, não obstante as quedas morais, todos haviam dado um
passo a mais na senda do progresso, porque mais ricos em experiência.
Novas oportunidades seriam concedidas por Deus para que, retornando
aos palcos do mundo, pudessem, através de um novo corpo, retornar à
luta, reiniciando a caminhada no ponto em que a deixaram.
O duque Segismundo de Bouillon, entre outras coisas, mergulhara em
novo débito ao assassinar Henri de Montmorency, que saldava dívida
antiga contraída com a Justiça Divina. Bouillon, porém, semeara para
posterior colheita e seria responsabilizado por seus atos.
Charles de Montmorency, que em passada etapa reencarnatória fora
Afonso, inimigo de Godofredo de Ravena (Nika), hoje Lucas de
Montpellier, que lhe roubara a noiva e lhe destruíra a vida, agora pagava
com a mesma moeda, de acordo com a lei de ação e reação, casando-se
com a mulher que Lucas amava, Marianne.
Tamara, que viveu no século VI, ao retornar como Marianne ainda
mantinha seu rancor contra Godofredo (Lucas) e Ciro (Pierre). Conquanto
o tempo tivesse amainado a força dos sentimentos, não conseguiu
reabilitar-se perante este último, que perdera a vida por sua causa no
século VI em circunstâncias terríveis. Podendo saldar débitos transatos,
preferiu abandonar o noivo Pierre a quem se ligava por laços fortes e
compromissos antigos.
Casando-se, sem amor e apenas por interesse e ambição, com Charles
criava novos problemas e deixava de reabilitar-se perante Pierre. Sua
morte em condições trágicas no calabouço de um convento foi para saldar
débito contraído quando destruiu a vida de Ciro, segundo a lei de causa e
efeito.
Régine, a noiva que abandonara Afonso (Charles) por Godofredo
(Lucas), volúvel e incapaz de sentimentos mais nobres, embora não tenha
cometido graves infrações à Lei Divina, mergulhou em ligações
sentimentais de difícil solução no futuro, ao levar vida fútil e desregrada.
Túlio, o menestrel, reencarnação de Maurício, meio-irmão de
Godofredo, teve o fim que merecia por suas ações em existência passada,
quando havia lançado a pecha de traidor sobre Ciro que, não obstante
todos os seus crimes, nunca fora traidor.
Margarida e Miguel, servos fiéis e dedicados, pais de Ciro em anterior
existência, saíram fortalecidos dessa etapa terrena, pois, simples e
humildes, souberam cumprir seu dever com amor e dedicação.
Irmã Maria de Jesus, a serva Maria que fora cúmplice de Tamara em sua
vingança contra Ciro, espírito inseguro e frágil, não obstante tenha se
deixado envolver novamente por Marianne – Irmã Angélica –, em seu
desforço contra aqueles que a agrediram, reabilitou-se depois e, livre da
ascendência da ex-patroa, levou a vida digna e útil até o fim dos seus dias,
procurando ajudar os necessitados que batiam às portas do Convento de
Sainte-Croix.
Quanto à ex-abadessa Carmela e seu cúmplice, Monsenhor François,
tiveram fim trágico. Madre Carmela amanheceu morta num dia de frio
intenso, envenenada. Nunca foi descoberto o autor do crime, que logo foi
esquecido. Mas Monsenhor François, que praticara o delito para livrar-se
de alguém que sabia demais, também não teve melhor sorte. Algum tempo
depois foi encontrado morto numa encruzilhada, vítima de uma cilada.
Clarissa de Montmorency, Áurea em anterior existência, espírito
volúvel e frívolo, sob a assistência amorosa de Louise (Lúcia), conseguiu
ter vida proveitosa. Infelizmente, não soube vencer o rancor que nutria
por Pierre (Ciro) e, ao saber que este matara seu filho Charles, atirou-se a
ele, matando-o também. O que era absolutamente desnecessário, pois
Pierre já tinha seus dias contados e logo partiria desta para a outra vida.
Louise de Montpellier (Lúcia em anterior existência), que fora filha de
Godofredo (Lucas) e esposa de Ciro (Pierre), conseguiu executar a
programação de vida que estabelecera. Amparou os dois inimigos, seus
filhos Lucas e Pierre, e fez com que, sob sua assistência amorosa,
passassem a se estimar mutuamente. Separados pela ira de Ricardo, que
fora Bruno di Castelverde e a quem Ciro tirara a vida, por isso o odiava,
ainda assim se encontraram quando Lucas estava agonizante e fizeram as
pazes, sedimentando o afeto que principiara entre eles. Para isso muito
contribuiu a existência que Godofredo teve como Nika, filho de Ciro.
Augusto de Montmorency permaneceu na Terra, fiel ao compromisso
que assumira de dar continuidade ao trabalho de assistência iniciado por
Louise, sua amiga de outras eras quando ele foi o médico Marcus, em
Ravena. Agora, novamente como médico, tomou a si a tarefa de levar
adiante as sementes que Louise e Victor plantaram em território francês.
Victor, o nobre Agar de etapa transata, unido por laços de profundo
amor a Marianne, que como Tamara fora sua esposa, também saiu
vitorioso, conquanto não conseguisse reabilitar Marianne.
Entretanto, a Misericórdia Divina é infinita e todos teriam novas
oportunidades de crescimento espiritual.
Em novas romagens terrenas teriam condições de se reencontrar e de
se redimir perante a Justiça Divina e perante si mesmos. O importante é
que, através dessas contínuas encarnações, os espíritos vão se depurando
e caminhando para a perfeição.
Os séculos correram incessantes sobre as experiências penosas dessas
criaturas que, no cadinho da dor, nos embates do dia a dia, se reajustavam
à Lei Divina.
Credores e devedores encontrar-se-iam ainda por muito tempo até que,
conscientes da necessidade de modificarem as íntimas disposições,
passassem a se amar.
O Universo é regido por leis perfeitas e imutáveis, sábias e justas, e
ninguém escapa ao seu império.
“Vinde a mim todos vós que sofreis e que estais sobrecarregados e eu
vos aliviarei. Tomai meu jugo sobre vós e aprendei de mim, que sou
brando e humilde de coração, e encontrareis o repouso para vossas almas;
porque meu jugo é suave e meu fardo é leve.”
Não obstante a mensagem de Jesus varando o tempo e o espaço e
falando diretamente ao nosso coração, temos sido surdos e cegos
voluntários.
Nunca nos tem faltado a Misericórdia Divina com os recursos
necessários ao progresso, mas, rebeldes, temos sempre nos afastado do
caminho reto que conduz à redenção.
***
Os espíritos envolvidos no drama aqui narrado, salvo algumas exceções,
encontram-se ainda encarnados em luta contra as próprias dificuldades.
Voltaram muitas outras vezes à Terra, e em novas experiências foram
aos poucos quebrando as arestas das imperfeições, burilando os
caracteres, reaproximando-se de desafetos e construindo, sob condições
rudes e ásperas, a felicidade do porvir.
E, principalmente, tentando vencer as barreiras da incompreensão, do
ódio e da revolta, conscientes de que somente o amor nos tornará
melhores e mais felizes, e que só o perdão nos abrirá as portas da
fraternidade universal.
Presentemente batalhando sob a bandeira da Doutrina Espírita, muitos
dos personagens aqui citados lutam e se depuram, trabalhando em favor
do próximo necessitado, sob os auspícios do Consolador Prometido.
As palavras do Mestre de Nazaré já ecoam em suas almas torturadas e,
iluminados por uma nova esperança, cônscios das suas responsabilidades,
caminham com otimismo e determinação para um mundo melhor,
envolvidos amorosamente pelos seus Mentores Espirituais e com as
bênçãos do Divino Mestre.
Jésus Gonçalves
Rolândia, 7 de julho de 1989

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