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O HOMEM E O MUNDO NATURAL

KEITH THOMAS
Thomas foi professor de História Ele foi eleito membro da Sociedade

Keith Thomas Moderna no St John's College, em


Oxford, de 1961 a 1978. Em 1978,
Histórica Real em 1970 (vice-
presidente de 1980 a 1984) e
ele se tornou professor de História membro da Academia Britânica em
Sir Keith Thomas nasceu em 2 de na Universidade de Oxford e 1979 (presidente de 1993 a 1997)
janeiro de 1933, em Cardiff, no País membro do All Souls College. Ele se
de Gales. Ele estudou História aposentou em 2000, mas continuou Nas honras do aniversário da
Moderna no Balliol College, em a contribuir para o campo da história Rainha de 1988 , ele foi nomeado
Oxford, onde se formou bacharel como escritor e pesquisador. Cavaleiro solteiro e, em 1991, foi
em Artes. Em seguida, obteve um homenageado com a Ordem do
doutorado em História Social na Ele foi membro do Conselho de Mérito da República Italiana
Universidade de Cambridge. Pesquisa Econômica de 1985 a 1990
e do Comitê de Revisão de Na Honras de fim de ano de 2020 ,
Exportações de Obras de Arte de foi nomeado Membro da Ordem dos
1990 a 1993 e, desde 1992, da Companheiros de Honra pelos
Comissão Real de Manuscritos serviços prestados ao estudo da
Históricos. De 1991 a 1998, foi história
curador da National Gallery e desde
1997 é presidente do Comitê
Consultivo da Biblioteca Britânica
para Artes, Humanidades e Ciências
Sociais.
principais obras

Religião e o Declínio da Magia Os Fins da Vida O Homem e o Mundo Natural


1971 2009 1983
Nesta obra, keith Thomas aborda aspectos específicos da
relação entre os seres humanos e o ambiente natural em
períodos diferentes. Através de extensa pesquisa e análise,
Keith Thomas apresenta uma narrativa rica e detalhada,
explorando como as atitudes, percepções e interações
humanas com a natureza mudaram ao longo do tempo.
HOMENS E ANIMAIS
Pag. 110 - 169

ticos
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Nesse primeiro momento do capítulo é abordado a a relação dos seres humanos com os animais
domésticos. Embora a teologia pregasse uma separação estrita entre o homem e a natureza, na prática,
a relação entre as pessoas e os animais domésticos na Inglaterra dos primeiros tempos pós-medievais
era muito mais íntima do que a religião oficial propunha.
Animais eram força de trabalho e alimentação.
O Abate animal era uma prática comum para o uso de sua carne, pele e
couro. Entre outros casos para imitar a população de uma espécie, eliminar
animais considerados nocivos ou perigosos, ou parar a propagação da
doença.

Novilhos e cordeiros eram feridos no pescoço para que o sangue


escorresse, enquanto os porcos eram abatidos com menos pressa.

Era comum castrar os animais machos criados para alimentação.

os porcos eram mantidos em espaços tão estreitos que não podiam se


virar de lado afim de engordá-los, e as aves domésticas e de caça eram
frequentemente criadas em escuridão e confinamento, às vezes sendo
cegadas. Outras práticas curiosas incluíam pregar as membranas dos pés
dos gansos ao chão para que ganhassem peso e cortar as pernas das aves
vivas para tornar sua carne mais macia.
Nas cidades, os animais também estavam presentes em grande número.
Os esforços das autoridades municipais para impedir que os habitantes
soltassem porcos ou ordenhassem vacas nas ruas foram, em grande
parte, ineficazes. Comerciantes mantinham aves vivas em seus porões e
sótãos, e havia relatos de pessoas que criavam porcos em quintais e
cavalos no interior de suas moradias

Em relação aos animais de criação, como porcos e vacas, era comum


que os moradores mantivessem esses animais em suas propriedades
urbanas, como quintais ou até mesmo dentro de suas casas. Isso
ocorria principalmente em áreas mais periféricas das cidades, onde as
regulamentações eram menos rigorosas. Por exemplo, era comum que
as famílias criassem porcos em seus quintais para obter carne fresca.

No entanto, a presença desses animais soltos nas ruas podia causar


problemas, como danos a propriedades, disseminação de doenças e
conflitos com outros moradores.
comunicação com os animais
Keith Thomas apresenta várias situações que evidenciam a
relação próxima entre os seres humanos e os animais na
Inglaterra dos séculos XVIII e XIX.

Primeiramente, destaca-se a proximidade física entre os


animais domésticos e os humanos. Os pastores conheciam
individualmente suas ovelhas e alguns agricultores eram
capazes de seguir bois roubados reconhecendo as marcas
de suas pegadas.

vacas eram frequentemente nomeadas pelos proprietários


com nomes de flores ou epítetos descritivos, denotando
afeto e estabelecendo uma relação mais pessoal com os
animais. Os animais de trabalho, como cavalos e mulas,
também eram treinados por meio de uma linguagem
específica, entendendo comandos dos carroceiros e
respondendo a eles.
A comunicação entre humanos e animais
também é evidenciada no trecho sobre as
abelhas. Os donos usavam apitos, palmas, sinos
e outros sons para comunicar-se com as
abelhas quando elas enxameavam, alertando os
vizinhos e estabelecendo o direito de
propriedade sobre o enxame.

As abelhas deveriam ser tratadas


adequadamente.

No folclore e nas superstições populares, os


animais desempenhavam papéis importantes.
Eles eram vistos como portadores de boa sorte,
presságios ou mensageiros divinos
punição aos animais
Os animais domésticos muitas vezes eram
considerados como moralmente responsáveis.

O Antigo Testamento prescrevia a morte para os


animais envolvidos em homicídios ou
bestialidade, não como punição, mas como um
meio simbólico de expressar repulsa pelo crime
e respeito pela vida humana. Todavia, a Igreja
cristã na Inglaterra recomendara já nos seus
primeiros tempos a morte dos animais
corrompidos pela relação sexual com seres
humanos e de abelhas que tivessem aferroado
um homem até a morte
relação mútua
De várias maneiras, portanto, os animais domésticos
eram considerados comparsas da comunidade
humana, unidos por interesse mútuo a seus
proprietários, que dependiam de sua fecundidade e
bem-estar. Os laços entre os humanos e os animais
eram evidenciados por sua presença constante no
cotidiano das pessoas.

Como salientou sir Kenelm Digby, em 1658, “nem


mesmo o mais humilde dos aldeões deixa de ter uma
vaca para prover de leite a sua família; é esse o
principal sustento dos mais pobres.
ESPÉCIES PRIVILEGIADAS

Certos animais prediletos permaneceram, porém,


próximos à sociedade humana e talvez até se
tornado mais íntimos desta. O primeiro deles foi o
cavalo. Esse animal era cavalgado até a morte.
Thomas relata que no primeiro tempo da dinastia
dos Tudor, eles destruíam muitos cavalos, usados
para carga e tração. Esse animal era usado até a
exaustão, muitas vezes descartados em valas,
suas carnes comidas por cães e aves de rapina.

Enquanto o cavalo contribuísse para a autoestima


do proprietário, ele era valorizado. A sua
manutenção era uma carga maior para o dono do
que os salários dos empregados humanos. Nos
tempos da rainha Elizabeth I, os manuais de
equitação prescreviam técnicas implacáveis para
os animais que resistiam a montaria, como
marcá-los com ferro quente na anca, por palha
ardente em torno das orelhas, um porco espinho
ou um gato malicioso sob a cauda. Por volta do
século XVII, as técnicas se abrandam e os livros
apresentam técnicas mais humanas exortando
uma “amizade sincera e estreita” entre cavalo e
cavaleiro.
O falcão era outro animal tratado com carinho pelo dono. No período jacobiano, a esse animal se louvava a
“grandeza de espírito”. Havia uma relação íntima entre a ave e o seu treinador.

Mas o cão era o preferido de todos os animais. Havia cães por toda a Inglaterra no início dos tempos
modernos. Fynes Moryson considerava que o país tinha mais cães que outros animais proporcionalmente.

O Mastim Inglês é um dos cães mais citados por Thomas, era utilizado para proteger a propriedade privada,
advertir a presença de ladrões e salteadores. As municipalidades exigiam que esse tipo de animal ficasse
trancada e amordaçadas durante o dia. No livro é relatado situações do animal mata um porco no século XVII,
uma ovelha, um cordeiro, avança sobre o filho de Josselin e atacou o próprio diarista.

As Universidades de Cambrigde e Oxford nos fins do século XVII foram retratadas nas gravuras do artista
David Loggan com cães por toda a parte.
Os muito desses cães do século XVII tinham funções práticas, puxava carroças, trenos e mesmo arados.
Eram indispensáveis para pastores, tropeiros, agricultores e açougueiros. Havia uma ligação estreita entre
cão e dono, especialmente no caso dos cães pastores. Mas no geral, os cães trabalhadores parecem ter sido
considerados sem maiores sentimentos e normalmente enforcados ou afogados quando deixados de ter
utilidade.

Eram os sabujos e cãezinhos de estimação, em particular, que mereceriam real afeto e condição mais
elevada. Como hoje, a paixão pelos cães não necessários começava pela família real. Os Stuart eram
obcecados por eles. Jaime I tinha seus cães de caça favoritos, Jowler e Jewell. A filha do monarca, Isabel, a
Rainha do Inverno, viveu cercada de cães, pássaros e cavalos e ficou famosa, entre outras coisas, por preferir
seus animais de estimação aos seus filhos. As raças dos cachorros citados são poodle e beagle.

A aristrocacia tinha gosto similares. Como dizia o proverbio, não pode ser
fidalgo quem não ama um cão. Galgos e Spaniels eram sempre presentes
aceitáveis entre os aristrocratas. O sabujo de um fidalgo era tratado com
muita indulgencia. Os cães eram mais bem tratados que os serviçais. Os
animais de caça eram gordos e bem dispostos a correr, enquanto os homens
era pálidos e facos a andar debilitante. Muitas vezes tinham alojamentos
melhores. No retorno da caçada, os animais entravam primeiro, se serviam
da carne e ninguém ousava reclamar.
Na corte real e nas grandes casas, os cães estavam por toda parte. Os livros de civilidade dos fins da
Idade Média recordavam ao pajem que antes do amo ir para a cama, ele deveria tirar os cachorros e
gatos do quarto, e advertir os convidados em banquetes para não chutarem cães e gatos enquanto
sentados à mesa.

No final do século XVII, a sociedade educada começava a desprezar essa maneira antiga de cuidar das
casas “com bosta de cachorro e ossos de tutano enfeitando o salão de entrada”. A entrada das
mansões era mantida livre de cães e começou-se a ser substituída do cão de vigia pela campainha.
Descendo a escala social, a história era a mesma. A posse de cães era generalizada. A população
canina era periodicamente dizimada em tempos de peste (não sem grande resistência por parte dos
donos de cães) como medida sanitária. Diversos projetos de lei a respeito de imposto sobre cães era
periodicamente sugerido, em XVIII foram registrados esses projetos que não deram em nada. Somente
em 1796 ocorreu uma taxa sobre cães que acabou sendo adotada. Nessa época era raro um aldeão que
não tenha seu cachorro e a população canina estimada em cerca de 1 milhão. A maioria era mantida
mais por prazer do que por necessidade prática.

Thomas retrata que a imagem que a Bíblia à Inglaterra medieval trazia do cão era de um animal imundo
devorador de carniça no século XVI. O Livro do Apocalipse sugere que os cães, como outros seres
impuros não participarão da Ressureição. O animal era visto como sujo, bestiais, desordeiros, e a
simbolizar as mais vis facetas humanas: representava a gula, a lascívia, as funções corporais
ordinárias e a desagregação.
Os mastins e mestiços eram lascivos, imundos e truculentos e o vira-
lata de açougueiro rosnante, raivoso, rabugento, e soturno. Mas o cão de
caça, em contraste era nobre, sagaz, generoso, inteligente, fiel e
obediente. O motivo dessa distinção era essencialmente social. Os cães
diferiam de status porque o mesmo acontecia com os seus donos. Uma
das características das leis de caça no final do século XIV é que foi
confinado a propriedade de cães de caça a pessoas acima de um
determinado nível social.

Outro cão tratado com carinho nesse período era o cachorro de


estimação das damas: geralmente um spaniel anão no inicio do século
XVI e um buldogue anão no XVII (os pequineses só se tornaram
populares no século XIX). A moda começara no final da Idade Média e o
requisito essencial era que o cãozinho fosse muito pequeno. Nenhuma
mulher prospera estava completa sem um mascote desse tipo. Os
pregadores lamentavam que as damas em dia com a moda
negligenciassem seus filhos, preferindo abraçar um cãozinho ou um
filhote.
Os gatos demoraram mais para subir de status. Na idade média, eram criados em
casa para combater ratos e camundongos. É bem ocasional que apareçam como
companheiros e objetos de afeição, como o poema do século IX que um monge
irlandês dedicou a seu gato, Pangur Ban ou numa escultura quatrocentista em que
mostra um homem cujos pés descansam sobre um gato que tem as patas sobre um
camundongo. Muitos donos eximiam-se de alimentá-los para incentivá-los a caçar.
Era muito comum a alergia a gatos e os perigos de sua respiração foram muito
discutidos nos livros de medicina na época. No período Tudor os registros não são
positivos sobre os gatos, já no período Stuart é registrado numerosos amigos dos
gatos. Todavia, havia pessoas que viam os gatos como mero objeto de outros
esportes. Existem relatos de gatos tostado vivo amarrado a um espeto, cães de
caça a procura de gatos, encher as efígies com gatos e nas feiras era esporte
campestre atirar nos gatos suspenso em uma cesta.

O gato ganhou mais popularidade assim que a medida se elevava os padrões de


asseio doméstico. No século XIX, um vendedor de comidas para gatos entrevistado
por Henry Mayhew disse que em Londres havia pelo menos um gato para casa dez
pessoas; e que eles eram duas vezes mais numerosos que os cães. A primeira
exposição de gatos ocorreu em 1871.
Outros animais de estimação que o autor cita são os macacos, tartarugas, lontras, coelhos e esquilos
entre os séculos XVI e XVII. Nas granjas, os cordeiros de estimação criados no colo e objeto de intenso
sentimento. No século XVIII, a medida que a simpatia aumentava os tipos de animais aumentavam
também, como camundongos, ouriços-cacheiros, morcegos e sapos.

E finalmente, os pássaros de gaiola, que eram mantidos devido seu canto ou pela imitação da voz
humana. Vendedores de pássaros profissionais haviam aparecido nos tempos Tudor e no final do
século XVII existia em Londres um grande mercado de pássaros canoros, alguns capturados no país
por apanhadores de aves profissionais, outros, exóticos, importados dos trópicos. Certas aves
silvestres tornaram-se mascotes honorários sem serem capturadas, uma delas era o tordo de papo-
roxo, que tinha disposição a frequencias as residências humanas atrás de alimento no inverno.
im aç ã o
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animai
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r os a
out O texto aborda três características distintivas
dos animais de estimação em comparação com
outros animais. Em primeiro lugar, os animais
de estimação tinham permissão para entrar nas
casas. Eram criados dentro do lar com restos
de comida, diferentemente dos empregados
domésticos que não compartilhavam das
refeições com a família. Essa proximidade
física e alimentar estabelecia uma relação
especial entre os animais de estimação e seus
donos.
A segunda característica distintiva do animal de estimação era que ele
recebia um nome pessoal e individualizado. Isso o distinguia de todas
as outras criaturas. Os cães, cavalos e outros animais domésticos
subordinados à sociedade humana (humanos metonímicos como o
denomina Claude Lévi-Strauss), também recebiam nomes próprios
desde muito tempo. Mas tais nomes eram somente semi-humanos,
enfatizando seu lugar socialmente inferior. E esses nomes geralmente
eram de conotação agressivamente mácula; Arrogante, Zangado,
Selvagem, Folgazão e etc.
Por fim, os animais de estimação não eram
consumidos como alimento. Essa proibição não se
devia apenas a razões gastronômicas, mas também à
estreita relação que esses animais tinham com a
sociedade humana. Os cães e gatos não eram aceitos
como alimento, em parte devido à sua dieta carnívora e
também devido à posição que ocupavam na sociedade.
Os cavalos também eram excluídos da alimentação
devido à associação de sua carne ao paganismo do
norte.
Amor Animal
Por volta de 1700 todos os sintomas de uma obsessão por animais domésticos já estavam
evidentes. Com frequência os mascotes eram melhor alimentados que os empregados. Como
enfeites, traziam anéis, fitas, plumas e sinos; e vieram a tornar-se presença constante nos
retratos de família em grupo, geralmente simbolizando a fidelidade, a domesticidade e a
integridade.

Enquanto isso, a aristocracia revelava um desejo crescente de se fazer cercar de pinturas


individuais de seus cachorros, pássaros e cavalos favoritos. A moda começara no período
jacobiano: sir John Harington possuía um retrato excelente, curiosamente pintado”, de seu
maravilhoso cão, Bungey, cuja vida e aventuras ele descrevia pormenorizadamente
ao jovem príncipe Henrique.

Artistas como John Wootton (1688-1765) e Jaymes Seymour (1702-1752) ajudaram a


popularizar esse tipo de retrato. O propósito da pintura, pensava um fidalgo do final do século
XVIII, não era efetuar representações indecentes de Venus nuas e santos agonizantes, mas
reconhecer a linhagem de cada um e restaurar a memória de antigos cavalos e cães fiéis.
JOHN WOOTTON
JAYMES SEYMOUR
a distância diminui
Thomas retrata que observando esses hábitos e convivência entre os humanos e animais de
estimação que se começou a defender a inteligência e o caráter dos animais. A observação dos
animais de estimação, aliada à experiência com os domésticos, forneceu apoio a visão de que os
mascotes podiam ser racionais, sensíveis e compreensivos.

É nesse panorama que no início do período moderno, a tendencia dos cientistas e intelectuais de
romper a rígida fronteira que os teóricos anteriores procuravam construir entre animais e
homens.

O ataque aos padrões tradicionais teve origem em duas direções diferentes. A primeira que os
homens não eram moralmente melhores que os animais, sendo até piores; e a segunda que os
animais eram intelectualmente quase iguais ao homem. Na primeira categoria estavam os céticos
e libertinos, que acreditavam a morte era para todos, homens e animais. Uma posição menos
extrema era dos mortalistas, para quem a alma descansava com o corpo até a Ressureição Final,
quando renasceriam juntos. Essa crença era muito difundida no início da Inglaterra moderna.
Richard Overton em 1644 argumentou que homens eram igualmente mortais foi acusado de
traição a raça humana.
No século XVIII esse ataque a doutrina de pensamento à suposta singularidade humana ganhou reforço,
graças ao materialismo de pensadores franceses como La Mettire, em que toda a separação entre homem e a
natureza se fundara. Embora reconhecendo que as capacidades dos homens eram superiores, elas viam uma
explicação orgânica similar tanto para a inteligência animal como a humana.

Os heréticos e os materialistas, para os quais o homem não passava de um animal, tinham seus discípulos,
mas até o século XIX foram apenas uma minoria, não representativa. Contudo, um numero muito maior de
pessoas estava disposto a conceder que os animais não estavam muito abaixo dos homens.

A diferença intelectual entre homem e animal há bastante tempo


era vista por muitos como sendo questão de grau e não de
gênero. A cristandade medieval retratara o homem como sui
generis, mas na Antiguidade clássica era lugar-comum dizer que
havia semelhanças entre homens e animais e que a razão não
constituía qualidade exclusivamente humana. Mesmo nos
tempos cristãos, os teólogos representavam o homem como
estando mais perto dos animais do que de Deus. Houve um
debate público em 1615, na universidade de Cambrigde com a
presença do rei Jaime I (dinastia Stuart) sobre a questão se os
cães podiam ou não raciocinar, eles não cumpriam um mero
ritual pedante: e sim, enfrentavam um tópico de notória
dificuldade filosófica.
No século XVII, a tese mais defendida pelos intelectuais era que os animais tinham uma espécie
de razão, mas de categoria inferior. Possuiam sensibilidade, imaginação e memória, porém
nenhuma capacidade de reflexão; conforme definia John Locke, eram incapazes de comparar
ideias ou razão abstratamente.

Em meados do século XVIII, David Hume concedia aos animais o poder de raciocínio
experimental, acrescentando que, se eles não eram guiados pela razão em suas ações ordinárias.
No final do século XVIII, a visão mais comum era que os animais podiam efetivamente pensar e
raciocinar, embora de uma forma inferior.

As realizações do instinto animal sempre foram admiradas, como a perícia dos pássaros e das
abelhas, criavam seus abrigos ou cuidavam de sua prole. O instinto parecia difícil de distinguir da
razão. Muitos filósofos continuavam a sustentar que o instinto, ao contrário da razão, era incapaz
de aprimorar-se; a diferença era de espécie, não de grau, e a barreira entre homens e animais
nítida e distinta. Mas outros consideravam o “instinto animal” e a “razão humana” como meros
graus diferentes da mesma qualidade
Ao insistir na racionalidade dos animais, os intelectuais
simplesmente reafirmavam o que muitas pessoas incultas
sempre pensaram. Os moradores do campo também
acreditavam na inteligência das criaturas selvagens. As
pessoas familiarizadas com os animais não acreditavam
necessariamente que a linguagem fosse exclusividade do
homem. No século XVIII os autores cultos tornaram-se cada
vez mais hostis às histórias antropomórficas nas quais os
bichos agiam como seres humanos, e insistiram no fato de
que todas as fábulas que atribuem razão e fala devem ser
retiradas das crianças, como meros veículos de ilusão.

Incontáveis histórias populares falavam de pássaros sábios


e de animais que avisavam os homens ou os salvavam de
alguma situação difícil. Em meados do século XVII havia
também inúmeras pessoas educadas prontas a creditar aos
animais uma forma de linguagem, declarando que pássaros
e bichos, por meio do movimento, som e gesto podiam
comunicar seus pensamentos tão bem como os homens
No século XVII, ninguém tinha maior confiança na capacidade animal que Margaret Cavendish,
duquesa de Newcastle, escritora excêntrica e indisciplina, mas altamente original. Ela renegou
toda a tradição antropocêntrica, aplicando um tipo de relativismo cultural às diferenças entre
espécies, ao mesmo tempo em que argumentava que o homem não tinha nenhum monopólio de
senso ou razão. Seu “orgulho”, “auto-estima” e “presunção” o induziram ao erro de julgar as
outras criaturas pelos padrões humanos, não se dando conta de que linguagem e razão podiam
assumir forma não-humana.

No início do período moderno, havia uma tendência crescente a creditar aos


animais razão, inteligência, linguagem e quase todas as outras qualidades
humanas. Os animais domésticos, considerava o arcebispo de Abbot, eram
sensíveis ao estado de espírito de seus donos. A noção de que o homem
estava separado do resto da criação animal começou a desagregar.

Houve grande perturbação ao pensamento europeu quando descobriram


grandes macacos da África e do Sudoeste Asiático. Anatomistas viam-se
embaraçados por não verem diferenças fisiológicas do cérebro humano para
animais mais elevados.
Em 1774, o escocês Iord Monboddo afirmou que os orangotangos não eram
animais, mas uma raça de homens que ainda não aprendera a falar, porém se
mantinham num estado retardado de desenvolvimento. Jean-Jacques
Rousseau alguns anos antes sugeriria que os orangotangos eram homens
que não tiveram oportunidade de desenvolver suas faculdades. Para
Rousseau, a linguagem era uma invenção da sociedade humana, não um
atributo inato do homem.

Na mesma linha de pensamento, Monboddo sustentava a superioridade


humana era o mero resultado de séculos de evolução social. A descoberta,
nos séculos XVI e XVII, dos selvagens nus do Novo Mundo constituiu uma
dramática advertência acerca da condição em que todos os homens, em
outros tempos, viveram.

A crença cada vez maior na evolução social da espécie humana estimulou,


pois, a ideia de que os homens apenas eram animais que tinham conseguido
se aprimorar. No século XVIII muitos cientistas discutiram a possibilidade de
que o homem tivesse evoluído de formas inferiores de vida. Somente nos
últimos anos do século XVIII, os arqueólogos da pré-história começaram a se
dar conta de que a história do desenvolvimento humano podia ser
infinitamente mais extensa do que antes se concebia. Os estudos dos fósseis
e ossos encontrados nas cavernas tornou mais fácil aceitar as teorias
evolucionistas de Lamarck e Darwin.
Estavam implícitas muitas sugestões posteriores para o
aprimoramento da raça humana através de meios
eugênicos estava a noção de que também o gênero
humano constituía uma matéria-prima maleável e de que
era necessário cuidados para não retornasse a formas
“inferiores”.

Na mitologia popular, tem a linha divisória entre animais e


seres humano, constantemente cruzada e recruzada. Isso
tanto nas lendas de príncipes-sapos, como nos minotauros
da antiguidade clássica, dos homens com cabeça de cão e
as sereias.

Essas histórias mostram que pelo menos na avaliação


popular, o homem não era uma espécie tão distinta a ponto
de não poder cruzar com os animais. Foi porque a
separação da raça humana parecia tão precária e fácil de
ser perdida, que se vigiava tão estritamente a fronteira
No final do século XVII, Edward Tyson esforçou-se por invalidar a crença de que as crianças que
nasciam deformadas era resultado de concepções mistas. Mesmo assim a tradição persistiu. O
monogenismo (teoria que a origem humana veio de uma descendência comum) não impediu a
emergência de noções de inferioridade racial, pois a cor negra era comumente encarada como
uma deformidade; era comum explicar as diferentes variedades de homens no mundo dizendo-se
que os negros tinham degenerado de seu ancestral comum, Adão, enquanto os brancos tinham
permanecido constantes, ou mesmo melhorado.

Os asiáticos eram “severos, arrogantes e gananciosos”, e os africanos “manhosos, preguiçosos e


indolentes”. Apenas os europeus eram “gentis, agudos e inventivos”. A crença em que todos os
homens tinham um ancestral comum tornou mais difícil sustentar que alguns estivessem
sistematicamente mais perto da condição animal do que outros. O poligenismo (teoria que a
origem humana veio de várias descendências) se tornou mais atraente, pois preservava a
superioridade dos europeus. A ideia de que a raça humana era composta por diferentes espécies
foi proposta por sir Willian Petty, influenciado por relatos de marinheiros sobre os povos
primitivos encontrados além-mar.
almas animais
Na Idade Média, por exemplo, surgiram diferentes
perspectivas sobre a alma dos animais. Alguns teólogos
acreditavam que os animais tinham uma alma não racional,
enquanto outros argumentavam que eles não possuíam
alma, mas apenas uma "anima" ou princípio vital. A visão
predominante era a de que os animais tinham uma alma,
mas essa alma era considerada inferior à alma humana,
que era vista como racional e imortal.

Foi somente no século XIX, com o desenvolvimento da


ética animal e o surgimento de movimentos em defesa dos
direitos dos animais, que a discussão sobre a presença de
alma nos animais ganhou um novo enfoque. Filósofos e
ativistas como Peter Singer argumentaram que os animais
possuíam capacidades cognitivas, emocionais e sociais
que justificavam considerá-los como seres sencientes,
merecedores de respeito e consideração moral.
mitos e crenças
Xamanismo: Nas práticas
xamânicas, os xamãs acreditam
que podem se comunicar e
Metempsicose: Essa crença, encontrada em várias tradições interagir com os espíritos dos
religiosas e filosóficas, sugere que as almas dos seres humanos animais. Eles buscam
podem reencarnar em animais após a morte. Acreditava-se que
orientação espiritual e poderes
essa transmigração ocorria como uma forma de purificação ou
punição.
através da conexão com o reino
animal.
Animismo: Muitas culturas praticavam o animismo, a crença de que
todas as coisas, incluindo os animais, possuem uma alma ou Animagia: Em algumas
espírito. Nesse contexto, os animais eram vistos como seres tradições mágicas e folclóricas,
espirituais dotados de sabedoria e poderes especiais. acredita-se que os humanos
possam se transformar em
Totemismo: Algumas culturas nativas acreditam que certos animais animais. Essas histórias
têm uma conexão espiritual especial com um clã ou grupo familiar.
geralmente envolvem rituais,
Esses animais, conhecidos como totems, são considerados
ancestrais espirituais e guias protetores
feitiços ou maldições que
permitem a metamorfose entre
as formas humana e animal.
Keith Thomas reflete que cada vez mais pessoas na Europa ocidental estão
criando animais de estimação em uma escala sem precedentes na história.
Isso reflete a tendência contemporânea de homens e mulheres buscarem
refúgio na família em busca de maior satisfação emocional. Essa tendência
tem crescido rapidamente devido à urbanização, mesmo que apartamentos
apertados e sem jardins não sejam ambientes ideais para a manutenção de
animais desse tipo.

Os animais de estimação são frequentemente esterilizados, vivem isolados e


geralmente não têm contato com outros animais. Eles adotam o mesmo estilo
de vida de seus donos. O fato de tantas pessoas considerarem a criação de um
animal dependente como necessário para sua integridade emocional revela
muito sobre a sociedade atomizada em que vivemos. A disseminação dos
animais domésticos entre as classes médias urbanas no início do período
moderno é, portanto, um processo de grande alcance social, psicológico e até
comercial.

Esse processo estimulou a ideia de que os animais podem ter caráter e


personalidade individualizados, fundamentando a noção de que alguns
animais, pelo menos, merecem consideração moral. A relação entre humanos e
animais de estimação evoluiu para reconhecer que os animais possuem
características únicas e merecem ser tratados com respeito e consideração.
NÃO POSSO SER CRUEL COM UM
BICHO QUE ME AMA
p.144

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